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Full text of "Cartas do Japão"

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S- 


WENCESLAU    DP:    MORAES 


ar  tas  do  Japão 


II 

UM    AXXO    DA    cr,      ,^\ 
(1904-1905) 


Cow  UM  prefacio  de   VICENTE  ALMEIDA  D' EÇA 


PORTO 

LIVRARIA   MAGALHÃES   &  MONIZ- Editora 

12,   Largo  dos  Loyos,   12 

I  ()«5 


AS    DO   JAPÃO 


II 

UM    ANXO    DA    GUKRRA 
( 1904- I 905 ) 


WENCKSLAU     DK    MORAES 


Cartas  do  Japão 


TM    ANXO    DA    (iTEKRA 
1  1  9  o  4  - 1  ()  o  5  ) 

Com  um  prefacio  de   VICENTE  ALMEIDA  D' EÇA 


\ 


PORTO 

LIVRARIA   xMAGALHÃES  &  MONIZ  -  Euitoua 

12,   Largo  dos  Loyos,    \> 

I  9 1>  5 


OO 


TYPOGRAPHIA     PROGRESSO 

DK 

DoMiNuos    Augusto    da    Silva    ís:    C 
Largo  de  S.  Domingos,  15 
PORTO 


< 


— bhÍ 


Se  eu  poclesse  dizer... 


ÊXITO  brilhante  do  volume  de 
Cartas  do  Japão  que  se  pu- 
"blicou  o  anno  passado,  obri- 
gava o  editor,  obrigava  os  três  amigos 
e  obrigava  o  auctor'  a  recompensarem 
a  estima  do  publico,  dando-lhe  outro 
volume  de  Cartas. 

Reíiro-me  ao  auctor  em  ultimo  lo- 
gar,  para  dar  ao  menos  esta  satisfação 


VI 


ao  seu  insistente  desejo  de  que  não  se 
falle  d'elle,  modéstia  de  tal  maneira  fora 
do  commum  que  o  fez  desentranhar-se 
em  exclamações  de  pasmo  quando  teve 
a  surpresa,  que  esses  amigos  lhe  pre- 
pararam, de  receber  um  exemplar  do 
primeiro  volume  das  Cartas. 

D'elles  sabem  os  leitores  das  Car- 
tas quem  foi  o  primeiro:  Bento  Car- 
queja, esse  espirito  de  tão  grande  cul- 
tura, esse  patrono  de  toda  a  ideia  gene- 
rosa ou  útil,  que  dia  a  dia  cresce  no 
conceito  dos  que  seguem  com  attenção 
a  sua  obra  meritória;  foi  quem  prefa- 
ciou o  outro  volume,  e  ali  escreveu 
em  períodos  scintillantes  o  que  era  a 
alma  japoneza  e  o  que  eram  as  Cartas. 

Chegou   a   vez   agora   ao   segundo. 


VI  I 


* 


\ 


Wenceslau  de  Moraes  não  carece  de 
ser  apresentado,  e  seria  irrisão  que  a 
isso  se  atrevesse  quem  nos  trabalhos 
das  lettras  nunca  se  avantajou  em  pri- 
mores. Mas,  se  assim  como  Bento  Car- 
queja pôde  livremente  esboçar  os  ele- 
mentos da  psycholo<»ia  japoneza,  alguém 
quizesse  tentar  a  analyse  da  psycholo- 
gia  do  auctor  das  Cartas,  talvez  nin- 
guém como  este  segundo  amigo  possua 
elementos  preciosissimos  para  o  fazer. 
Se  ás  Cartas  que  são  para  o  publico, 


\'  m 


se  podessem  juntar  as  que  só  ao  amigo 
são  destinadas;  se  d'este  escrínio,  onde 
a  alma  d'um  bom  se  revela  em  gemmas 
rutilantes,  fosse  permittido  extrahir  as 
jóias  de  absoluta  pureza  que  elle  encer- 
ra; se,  ao  menos,  condensando,  resu- 
mindo, esbatendo,  fosse  licito  dar  a  en- 
tender o  que  só  n'essas  cartas  se  lê;  en- 
tão, por  mais  desvaliosa  que  fosse  a 
mão  d'obra,  o  valor  intrinseco  da  maté- 
ria prima  mostrar-se-hia  inapreciável. 
Então  se  veria  como  essa  psychologia 
encerra  as  mais  nobres  qualidades  que 
podem  determinar  um  caracter — a  in- 
tegridade, a  dedicação,  o  escrupuloso 
cumprimento  do  dever,  a  superioridade 
ás  oífensas  mesquinhas.  .  .  . 

Não;  seria  abuso  de  confiança  con- 
tar ao  publico  o  que  só  para  o  amigo 


IX 


foi  escrito.  K  nem  é  preciso:  os  que 
lêem  a  obra,  já  hoje  avultada,  de  Wen- 
ceslau  de  Moraes,  podem  fazer  a  psy- 
chologia  do  auctor,  porque,  lodos  o  sa- 
bem, a  Arte  tem  este  condão  maravi- 
lhoso: por  mais  que  intente  mascarar- 
se,  por  mais  que  procure  enganar,  se 
procura,  níío  o  consegue  nunca;  o  ar- 
tista revela-se  sempre,  tal  qual  é;  se  de- 
seja disfarces,  melhor  será  que  não  pro- 
duza. 

Façam,  pois,  os  admiradores  do 
nosso  auctor  essa  analyse,  e  grato  lhes 
será  o  trabalho,  porque  é  sempre  conso- 
lador descobrir  um  caracter.  E  consin- 
tam-me  que,  de  collaboração  com  elles, 
aponte  tão  somente  uma  feição. 

Tenho  para  mim  que  a  Dor  é  condi- 
ção indispensável  á  plenitude  da  acção 


X 


intellectual  e  muito  mais  á  perfeição  do 
trabalho  artistico.  A  Dor  é  o  acicate 
que  incita  as  energias,  é  o  tónico  para 
as  fraqiiezas  da  alma,  é  o  cadinho  onde 
as  qualidades  individuaes  se  acrisolam. 
Nascem  as  criaturas  á  custa  da  dôr  ma- 
terna; só  se  produzem  perfeitas  as  obras 
do  espirito,  quando  o  inventor  soífreu. 
Por  isso  a  Dôr  é  necessária,  e  baldado 
se  torna  o  esforço  para  fugir-lhe.  A  Dôr 
en nobrece,  c  bem  mesquinho  será  quem 
não  saiba  sentil-a.  Só  ella  dá  grandeza 
d'alma;  sem  cila  não  ha  senão  egoismo. 
Entendamo-nos:  para  que  a  Dôr  produ- 
za estes  salutares  eífeitos,  é  necessário 
não  a  temer;  soffrer  com  ella,  mas  lii- 
ctar  sempre.  Por  isso  estão  fora  da  na- 
tureza os  sobrehomens  á  Nietsche  e  os 
misogynos  á  Schopenhauer  e  á  Gorki. 


Xl 


Supprimir  a  Dor  empregando  a  força, 
luctar  com  soberbia  pelo  primeiro  lo- 
gar  calcandí^  os  humildes  e  destruindo 
os  fracos,  procurar  na  mulher  s(3menle 
o  instrumento  do  goso,  mas  refugir  a 
tudo  que  por  causa  d'ella  nos  possa 
trazer  soffrimento,  e,  como  ultima  con- 
clusão, despresal-a  porque  é  fraca,  ou 
dispensai -a  porque  nos  é  inútil  ou  em- 
baraçosa, são  aberrações  da  consciên- 
cia humana,  embora  sejam  o  código  dos 
egoístas.  E  necessário  sofírer  para  vi- 
ver; quem  não  conhece  a  Dor,  quem 
nunca  teve  sensibilidade  para  soffrer, 
ou,  se  alguma  \'ez  a  teve,  veiu  a  per- 
del-a,  esse  tal  não  vive,  vegeta. 

E  afinal  o  sobvehomem  um  dia  co- 
nhece que  lhe  falta  alguma  coisa;  os  fu- 
mos da  gloria  dissipam-se:  os  inebria- 


Xll 


mentos  da  forca  deixam  de  actuar;  for- 
ma-se  o  isolamento  em  roda  d'elle,  pois 
que  se  collocou  muito  alto,  e  toda  a 
mais  gente  está  muito  abaixo.  E  então 
o  sobrehomem  soífre  pela  primeira  vez 
a  Dor,  e  salva-se;  desce  do  pedestal  a 
que  o  elevou  o  orgulho,  vem  para  a 
communidade  misera  de  que  tentara  se- 
parar-se,  é  apenas  um  homem,  como  to- 
dos devem  procurar  ser.  E  o  misogyno 
que  se  esqueceu  de  que  teve  mãe,  esse, 
mais  infeliz  quasi  sempre,  termina  por 
ser  victima,  indigna  de  compaixão,  de 
qualquer  megera  que  vinga  os  despre- 
sos  proclamados  pelo  egoísta. 

Censurando  quem  pela  mulher  só 
professa  desdém,  nem  por  isso  se 
applaude  o  effeminado^  que  não  sabe 
manter   a   dignidade   do   próprio  sexo, 


XI  li 


nem  o  femeeiro.  tão  ignóbil  na  espécie 
como  ignóbil  é  o  termo,  nem  mesmo  o 
feminista^  que,  na  maioria  dos  casos, 
mais  parece  um  disfructador  do  que  um 
convencido.  Não:  o  que  se  applaude, 
porque  é  a  verdadeira  lei  imposta  pela 
natureza,  é  a  estima  pela  mulher,  o  re- 
conhecimento da  sua  indispensabilidade 
na  sublime  harmonia  da  creação,  a  con- 
formidade com  a  Dor  que  por  ella  se 
soífre.  E  assim  é  que  do  Loti,  cujo 
nome  acode  sempre  que  se  trata  de 
Wenceslau  de  Moraes,  nos  aborrecem 
as  jactâncias  amorosas  dos  primeiros  li- 
vros, mas  nos  enlevam  as  paginas,  de 
verdadeira  estima  pela  mulher,  do  Ra- 
muntcho  e  d'outras  composições  mais 
recentes. 

E  voltando  ainda  ao  universal  im- 


XI  \' 


perio  da  Dor,  deve  observar-se  que  elle 
se  manifesta  nos  mais  grandiosos  pro- 
d actos  do  génio.  Os  Lusíadas^  com  se- 
rem a  glorificação  d'uma  raça,  estão 
alanceados  dos  mais  pungentes  dramas 
da  Dor  humana,  desde  os  sottrimentos 
obscuros  do  navegante  cada  dia  a  bra- 
ços com  os  perigos  do  mar,  até  ao  mar- 
tyrio  de  Ignez  e  á  tristeza  incomportá- 
vel de  quem  vê  a  Pátria  prestes  a  mor- 
rer. A  Alma  Gentil  e  a  canção  do  Des- 
amparo são,  só  por  si,  dois  poemas  da 
Dôr,  inegualaveis.  Do  D.  Quixote  se 
disse  já.  e  creio  que  se  disse  bem,  que 
aquelle  riso  perenne  é  apenas  a  masca- 
ra transparente  da  Dôr,  da  tristeza  por 
um  ideal  que  desapparece,  do  descon- 
solo pelo  vácuo  produzido  por  essa  fal- 
ta que  nada  substitue.  Camões  e  Cer- 


x\ 


\antes  íorcini  grandes  artistas,  porque 
sottVeram  muito  e  sentiram  profunda- 
mente a  Dor. 

Pois  bem.  Se  quizermos  pela  obra 
de  Wenceslau  de  Moraes  conhecer  da 
psychologia  do  escritor,  tacil  nos  será 
observar  que  toda  ella  é  dominada  pela 
Dor,  que  a  sua  alma  se  encontra  mace- 
rada pelo  sotíVimento,  que  a  tristeza  do 
desconforto  próprio  e  dos  males  alheios 
a  ulcera  e  mortifica.  Raro  será  o  capi- 
tulo onde  uma  palavra  ou  uma  phrase 
não  indique  esse  estado,  porventura  ás 
vezes  levado  até  ao  desalento,  mas  em 
todo  o  caso  sentido^  e  por  isso  dando  o 
resultado  appetecivel,  a  producção  de 
paginas  esplendidas  de  verdade  e  de  co- 
lorido. E  aíinal  nem  esse  trabalho  será 
talvez  necessário.  No  Preludio  do  Dai- 


XVI 


Nippon  conta-se  a  historia  dhim  homem 
que  morreu  em  Macau^  historia  commo- 
vente  d'um  intelíectual  retrahido  desde 
a  juventude,  porque  n'essa  idade  uma 
grande  dor  o  ferira;  esse  homem,  facil- 
mente se  adivinha,  era  o  próprio  escri- 
tor ... 

E  d'esse  mesmo  Preludio  e  de  toda 
a  obra  de  Wenceslau  de  Moraes  trans- 
parece a  influencia  que  a  mulher  teve 
nos  seus  destinos,  influencia  que  lhe 
vincou  magoa  indelével  na  alma  dolo- 
rida, mas  que  nem  por  isso  o  levou  a 
enfileirar-se  entre  os  tresloucados  que 
a  maldizem. 


X  V  l  1 


* 


E  agora  só  mais  algumas  palavras  a 
respeito  do  presente  volume. 

Nas  primeiras  Cartas,  publicadas  o 
anno  passado,  descrevia-se  principal- 
mente a  situação  económica  e  politica 
do  Japão  actual,  dando-se  aqui  e  alem 
algumas  indicações  sobre  as  modalida- 
des artisticas  e  intellectuaes,  tão  inte- 
ressantes, d'esse  povo.  Mas  a  própria 
situação  politica  apresentava,  como  fei- 
ção proeminente,  a  lucta  diplomática  do 


X  ^'  1 1 1 


Japão  com  a  Rússia,  lucta  que  dia  a  dia 
se  ia  exacerbando,  até  que  veiu  a  dar  a 
declaração  da  guerra.  Com  os  primei- 
ros actos  de  hostilidade  termina  esse 
volume  das  Cartas. 

O  actual  abrange  o  primeiro  perío- 
do da  guerra  —  desde  o  combate  naval 
de  Chemulpo  até  á  grande  batalha  ter- 
restre de  Mukden. 

N'elle  se  pode  ir  seguindo,  a  passo 
e  passo,  esse  terrível  drama,  primeiro 
circumscrito  quasi  ao  bloqueio  de  Por- 
to Arthur,  mas  que  em  breve  se  desen- 
volve pelo  avanço  das  tropas  japonezas 
na  Coréa  e  na  Mandchuria;  começam 
os  combates  junto  á  poderosa  forta- 
leza, tenazes  e  violentíssimos  de  parte 
a  parte;  cahe  finalmente  Porto  Arthur, 
e  diminue  por  então  o  interesse  da  acção 


X  IX 


l 


marítima  do  Japão,  para  se  avolumar  a 
importância  da  acção  terrestre.  F^ere-se 
a  batalha  de  Miikden,  que  na  verdade 
encerra  o  primeiro  cyclo  do  trágico 
duello,  e  com  essa  batalha  conclue  o 
presente  volume. 

Mas  não  c  só  dos  acontecimentos 
da  guerra  que  elle  se  occupa ;  pelo  con- 
trario, entremeando-se  ás  noticias  das 
hostilidades  e  ás  considerações,  por  ve- 
zes da  maior  importância  e  acerto,  so- 
bre as  consequências  da  guerra,  appa- 
recem-nos  deliciosos  quadros  da  natu- 
reza, da  arte  e  dos  costumes  do  Japão, 
campo  dilecto  do  auctor,  inexaurível 
thesouro  de  que  a  sua  impressionabili- 
dade vae  tirando  successivas  paginas 
preciosíssimas.  E  tudo  temperado  pelo 
seu  sentimento  predominante,  a  Honda- 


XX 


de,  e  tudo  acrisolado  pelo  seu  maior  es- 
timulo, a  Dor. 

Os  leitores  saberão  entender  quanto 
estas  Cartas  valem.  Assim  cu  o  podesse 
dizer.  .  . 

Lisboa,  maio  cie   1905. 


V/cenfe  nimeidci  c/'Eçc3. 


Cartas    do    Japão 


Estalou  a  guerra  emfim ! » 

(Cartas  do  Japão  —  Antes  da  guerra.  — 
Carta  xl,  de  iS  de  fevereiro  de  190+). 


2  de  março  de   1904 

Patriotismo,   amor  e  paixão,  que  justificam  as  maiores 
audácias  —  A  politica  da  Rússia  na  presente  guerra 

—  Os  japonezes  senhores  do  mar  —  Explica-se  a 
razão  que  assiste  ao  Japão  em  lu^tar  pela  sua 
preponderância  no  Extremo-Oriente  —  O  Japão  em 
festa,    ao   vêr   a  partida  das  tropas  para  a  guerra 

—  As  estampas  guerreiras  —  Necessidade  e  con- 
veniência da  representação  da  marinha  portugueza 
nas  aguas  do  Extremo  Oriente. 

í~\  MUNDO  que  assiste  como  espectador 
^-^^  attentissimo  ao  grande  drama  iniciado 
na  região  extremo-oriental,  deve  esperar  todas 
as  audácias  do  povo  japonez,  embora  lhe  pese 
confessal-o,  por  orgulho  de  raça.  A  prophecia 
de  um  acontecimento  tremendo,  que  devia 
commover  a  Europa  inteira,  proferida  pela 
bôcca   do   velho  Kruger  durante  a  carnificina 


do  Transvaal,  estava  só  na  bòcca  e  também 
na  alma  do  venerando  ancião;  os  outros,  to- 
dos os  boers  menos  elle,  ti\-eram  de  con- 
temporisar,  de  acceitar  a  dura  condição  de 
vencidos  je  a  perda  in-emediave)  da  sua  pátria. 

No  Japão,  cada  homem,  cada  mulher,  cada 
creança,  é  um  Kruger;  ha  aqui,  com  as  esta- 
tísticas na  mão,  uns  -/^  milhões  de  krttgers;  o 
patriotismo  affecta  na  alma  japoneza  o  estado 
de  uma  paixão,  de  uma  quasi  loucura,  de  um 
quasi  delido ;  e  é  d'este  povo,  e  de  mais 
nenhum  outro,  que  é  licito  presumir-se  os 
mais  estupendos  arrojos,  quando  se  trate  do 
engrandecimento  da  pátria  ou  de  salval-a  das 
garras  do  colosso  que  a  ameace.  . 

Definamos  melhor  as  cousas,  se  é  possi- 
vél.  Na  Europa,  na  America  civilisada,  o 
patriotismo  é,  sobretudo,  um  dever  civico;  os 
soldados  marcham  para  a  guerra  em  obediên- 
cia a  este  preceito.  No  Japão  o  patriotismo 
não  é  um  dever:  é  um  amor,  uma  paixão,  é 
uma  febre  contagiosa,  que  põe  em  ebullição 
o  sangue  dos  soldados,  e  também  o  dos  cam- 
ponezes,  e  também  o  das  mulheres,  e  também 
o  das  creanças,  esquecendo  todos  tudo  para 
um  único  fim  —  a  gloria  do  Dai-Nippon.  E' 
este  sentimento  que  faz  dos  japonezes  um 
povo    único,    em    coragem    e   abnegação,   do 


que  elles  darão,  estou  certo,  sobejas  provas, 
no  decurso  das  hostilidades  com  a  Rússia, 
seja  qual  fòr  a  sorte  final  das  armas.  Em- 
quanto  a  esta  não  se  nega  a  ferocidade  legen- 
daria dos  seus  cossacos,  por  outro  lado  a 
enorme  extensão  do  seu  território,  a  dura 
autocracia  que  pesa  sobre  o  povo,  a  crassa 
ignorância  e  a  miséria  das  massas,  tudo  faz 
prever  que  o  enthusiasmo  que  anima  a  grande 
maioria  dos  soldados  no  campo  de  batalha, 
seja  de  um  caracter  anodino,  rastejando  pelo 
nivel  de  um  simples  dever  de  disciplina. 
E  veremos.  .  . 

A  que  serão  devidas  as  qualidades  exce- 
pcionaes  d'este  curioso  povo  japonez  .^  a  uma 
caracteristica  biológica  ?  á  educação }  á  reli- 
gião professada.^  Talvez  devidas  a  tudo  isto 
e  a  muito  mais;  a  religião,  todavia,  deve 
entrar  como  um  factor  predominante.  A  reli- 
gião do  japonez,  o  S/imíôismo,  antes  um 
culto  —  culto  da  pátria  e  de  si  mesmo  —  em 
todo  o  caso  uma  religião  de  orgulho,  de 
iniciativa  e  de  esperança  terreal,  differe  como 
um  antipoda  de  todos  os  systemas  religiosos 
das  sociedades  civilisadas  (christianismo,  ju- 
daismo,  mahometismo,  buddhismo) ;  emquanto 
que  estes  vão  glorificando  a  humildade,  o 
sacrifício,   o   recolhimento,   a  dòr,  a  peniten- 


cia,  o  Skintôísmo  é  o  clarim  da  alegria  e  da 
esperança,  gritando  ás  massas  este  único 
estribilho :  —  «  Respeita  os  teus  antepassados 
e  segue  os  teus  instinctos !  »  —  Hei-de  voltar 
a  este  assumpto,  que  me  parece  interessante, 
n'uma  próxima  correspondência,  com  tempo 
e  espaço  para  mais  amplas  considerações. 

—  Pôde  já  presumir-se  quaes  serão  as 
tendências  da  politica  russa  nas  presentes 
hostilidades.  A  Rússia  procurará  seguir  uma 
attitude  defensiva,  muito  em  harmonia  com  o 
estado  incompletissimo  dos  seus  armamen- 
tos no  Extremo-Oriente,  prolongando  quanto 
possível  a  guerra.  Será,  pois,  uma  guerra 
exhaustiva,  no  intuito  de  enfraquecer  o  ini- 
migo, que  sabe  em  difficil  situação  económica, 
e  para  o  qual  uma  longa  campanha  pôde 
trazer  gravíssimas  complicações  financeiras. 
Os  japonezes  é  que  não  se  submetterão  a  este 
programma,  e  tratarão  certamente  de  provocar 
novos  encontros,  por  mar  e  por  terra,  que 
levem  a  guerra  a  um  desfecho  rápido. 

O  que  se  pôde  desde  já  assegurar  é 
que  os  japonezes  se  encontram  senhores  do 
mar.  A  consulta  de  uma  carta  geographica  é 
n'este  momento  interessantíssima.  Vejamos. 
A  Rússia  tem  a  força  da  sua  esquadra  abri- 
gada  em   Porto   Artnur   e   alguns   navios  em 


Vladivostok.  A  esquadra  japoneza  escolheu 
para  base  das  suas  operações  a  ilha  de  Tsus- 
hinia,  maravilhosamente  collocada  a  mui  curta 
distancia  do  império  e  da  costa  sul  da  Corêa, 
e  d'alli  destaca  os  seus  navios,  já  para  um 
lado,  já  para  outro,  para  o  mar  Amarello  e 
para  o  mar  do  Japão,  impedindo  os  navios 
russos  de  largarem  dos  seus  coutos.  Isto  per- 
mitte  aos  japonezes  o  irem  transportando  sem 
risco  algum  as  suas  tropas  para  a  Corêa,  ao 
que  effectivamente  se  está  procedendo  com 
grande  afan.  E  de  crer  que  em  breves  dias 
as  forças  japonezas  avancem  para  o  norte, 
passando  além  da  fronteira  coreana,  onde  se 
encontram  já  tropas  russas,  occupadas  na 
faina  de  fortificações.  Cerca  da  fronteira  co- 
reana deverá  dar-se,  em  breve  espaço,  uma 
grande  batalha. 

Uma  rápida  inspecção  da  mesma  carta 
geographica  nos  revela  desde  logo  a  alta 
importância  estratégica  dá  peninsula  coreana 
e  do  esti'eito  da  Coréa,  esta  chave  do  caminho 
maritimo  que  leva  á  Mandchuria  e  á  Sibéria. 
Quando  a  Rússia  domine  na  Corêa  e  no  es- 
treito, o  Japão  pôde  considerar-se  perdido ; 
quando  tal  dominio  caiba  aos  japonezes, 
a  preponderância  russa  no  Extremo-Oriente 
deixa  de  ser  praticável. 


o  que  se  apresenta  extremamente  curioso 
é  o  conjuncto  de  cirumstancias  que.se  dão  e 
tornam  esta  guerra  um  acontecimento  sem 
parallelo  na  historia,  de  modo  que  os  precei- 
tos do  direito  internacional,  até  hoje  admit- 
tido,  passam  a  ser  deficientes.  A  invasão  e  a 
guerra  vão  dar-se  na  Mandchuria,  que  ainda 
é  theoricamentc  solo  da  China,  a  qual  se 
declarou  neutral,  e  na  Corêa,  paiz  indepen- 
dente, que  também  se  declarou  neutral.  Mas 
um  exemplo  comesinho  talvez  explique  me- 
lhor a  situação  e  se  preste  a  conclusões  im- 
portantes: um  sujeito,  no  intuito  de  defendei' 
os  seus  interesses  e  os  bens  de  sua  casa  de 
um  bando  de  invasores,  começa  por  defender 
dos  mesmos  invasores  as  casas  dos  visinhos, 
por  onde  a  sua  é  vulnerável ;  e  isto  porque 
os  visinhos,  por  incúria  ou  por  fraqueza,  não 
se  oppõem  á  invasão.  Outro  exemplo,  se  o 
preferem :  ha  três  casas  contíguas  e  pega  fogo 
em  uma  de  um  extremo ;  os  proprietários  do 
outro  extremo,  sabendo  que  os  visinhos  estão 
dormindo,  não  hesitam  em  ir  apagar  o  incên- 
dio que  se  ateia  e  que,  sem  tal  intervenção, 
não  requerida,  passaria  á  habitação  intermé- 
dia e  ainda  á  sua  própria.  A  questão,  assim 
exposta,  creio  que  não  deixa  duvidas  sobre  a 
justiça  que  assiste  aos  japonezes.  Entra  em 


jogo  o  legitimo  principio  da  conservação.  A 
China  e  a  Corêa,  pela  sua  fraqueza  e  apathia, 
figuram  como  interdictas ;  e  o  acto  de  defen- 
del-as  á  força  contra  um  perigo  imminente,  e 
de  mais  a  mais  com  prejuizo  de  terceiro,  é 
legal,  certamente. 

—  O  Japão  inteiro  está  em  festa.  Com  a 
confiança  inquebrantável,  que  lhe  é  própria, 
nas  futuras  victorias,  este  povo  acolhe  com 
explosão  de  jubilo  os  seus  regimentos,  se- 
guindo em  comboyos  successivos  até  ao 
ponto  onde  embarcam  nos  navios  transpor- 
tes que  os  vão  levar  ao  encontro  do  ini- 
migo. A  cidade  de  Kobe  mais  se  presta  para 
taes  nianifestações,  por  ser  atravessada  pela 
linha  férrea  em  toda  a  sua  extensão.  O  espe- 
ctáculo é  realmente  admirável.  A  população 
inteira  agglomera-se,  dia  e  noute,  ao  longo 
do  percurso;  milhares  de  bandeiras,  de  ga- 
lhardetes, de  lanternas,  de  balões,  de  archo- 
tes, dão  ao  quadro  tintas  de  gala  indescri- 
ptivel.  Quando  se  aproxima  o  comboyo,  os 
gritos  de  —  Banzai \  Banzai \  —  (Viva!  Viva!) 
eccoam  como  uma  fanfarra  immensa;  e  a  fila 
de  carruagens  carregadas  de  soldados,  pre- 
cedidas da  locomotiva  arquejante  e  enfuma- 
çada, passa  em  apotheoses  de  exclamações 
cariciosas,   de  chapéus  que  se  agitam  no  ar, 


8 


de  mãosinhas  de  musumés,  brancas  de  neve,, 
que  applaudem.  BanzcLÍl  Banzai  l .  .  . 

Reapparece  unm  industria,  que  estava  posta 
de  parte  desde  a  guerra  com  a  China:  a  das 
estampas  guerreiras.  Encontram-se  profusa- 
mente em  Tokio,  em  Yokohama,  em  Osaka, 
em  Kobe,  em  toda  a  parte,  expostas  á  venda 
a  preços  ínfimos,  representando  episódios  dos 
combates  que  se  ti-avam ;  e  tão  rápido  é  o 
seu  fabrico,  após  as  noticias  telegraphicas, 
que  mellior  se  poderiam  chamar .  .  .  telegrani- 
mas  ílliLstrados.  O  povo  faz  roda  junto  das  loji- 
nhas,  irrompendo   em  exclamações  de  jubilo. 

Estas  estampas  são  productos  de  pincéis 
modestíssimos  em  recursos  artísticos,  essen- 
cialmente populares  e  tão  ingénuos  quanta 
patrióticos.  As  cores  vivas  resaltam  de  estu- 
pendas figurações  de  bombas  que  rebentam, 
de  torpedos  em  explosão,  de  ondas  que  espa- 
danam, de  carcassas  de  navios  inimigos  que 
se  afundam,  de  russosinhos  que  mergulham, 
de  impávidos  marujos  japonezes  vencedores. 
Como  documentos  da  alma  popular,  em  effer- 
vescencia,  são  preciosas !  .  .  . 

—  Os  jornaes  portuguezes  trazem -nos  a 
noticia  de  que  o  governo  pensa  em  enviar 
agora  ao  Extremo-Oriente  algum  ou  alguns 
dos  nossos  cruzadores. 


I 


Creio  que  assim  seja,  e  a  resolução  será 
acertadissima.  Perante  os  gravissimos  aconte- 
cimentos que  se  esperam  da  guerra,  apenas 
começada,  os  navios  de  guerra  poderão  ser 
um  precioso  soccorro  aos  nacionaes  do  mesmo 
paiz  espalhados  no  Extremo-Oriente.  Pelo  que 
nos  respeita,  ha,  conio  é  notório,  um  numero 
muito  notável  de  portuguezes  nos  portos  do 
5ul  do  China,  em  Shanghae  por  exemplo: 
embora  estejamos  por  emquanto  longe  de 
motivos  de  receio  n'esta  parte  da  região  ex- 
tremo-oriental.  Mas  ha  também  alguns  portu- 
guezes na  Corêa,  e  bastantes  no  Japão ;  e 
n'estes  paizes,  especialmente  no  primeiro,  a 
presença  de  um  navio  de  guerra  portuguez 
pôde  prestar,  em  dado  momento,  relevantís- 
simo serviço  a  estes  portuguezes.  Mas  a 
missão  dos  vasos  de  guerra  de  uma  nação 
neutral,  no  theatro  das  hostilidades,  não  se 
limita  ao  mister,  já  bastante  meritório,  de 
proteger  os  súbditos  da  mesma  bandeira:  aos 
officiaes  de  boi  do  offerece-se  preciosíssima 
opportunidade  de  estudo  e  de  ensino  prá- 
tico, tão  necessários  n'esta  época  em  que  o 
homem  do  mar  deve  ser  muito  versado  nos 
multíplices  ramos  do  seu  officio ;  e,  mais  do 
que  tudo,  essa  presença  traduz  o  interesse 
que   um    determinado   paiz   vota  aos  grandes 


10 


acontecimentos  mundiaes,  o  que  firma  o  pres- 
tigio do  seu  nome  no  conceito  da  sociedade 
das  nações.  Recorde-se  o  que  se  passou  no 
bem    recente    combate    naval    de    Chemulpo, 
com  que  o  Japão  abriu  as  hostilidades:  bom- 
bardeados os  navios  russos  e  prestes  a  sub- 
mergirem-se,     as    suas    guarnições    apavora- 
das salvaram-se  a  nado  e  em  escaleres  e  en- 
contraram    abrigo    nos    navios    estrangeiros- 
presentes  —  cruzador     italiano    «Elba»,    cru^ 
zador    francez    «Pascal»     e    cruzador  inglez 
« Talbot » ;    eis    uma    bella   missão    a    regis- 
tar,  que    ennobrece   as   nações  representadas 
por  estes  três  cruzadores.  Os  navios  de  guerra 
das  nações  neutraes  podem  também  ser  cha- 
mados   a    defender    os    portos    das    mesmas 
nações    contra    uma    tentativa    de    violação^ 
por  parte   de  um  dos  belligerantes,  dos  seus 
direitos  de  neutralidade,  e  não  nos  esqueça- 
mos de  que  temos  a  nossa  colónia  de  Macau 
a  bem  curta  distancia  do  theatro  das  hostili- 
dades. 

A  Inglaterra  tem  actualmente  nas  aguas 
do  Extremo-Oriente  47  navios  de  guerra,  dos 
quaes  cinco  couraçados  e  sete  cruzadores.  A 
AUemanha  tem  14,  incluindo  alguns  bellos 
couraçados  e  cruzadores.  A  Itália  tem  três 
cruzadores   e   acaba  de   mandar  seauir  mais 


I 


II 


quatro.  A  França  mantém  egualmente  uma 
soberba  esquadra. 

Quanto  a  n(3s,  posto  que  conservemos 
sempre  nas  aguas  de  Macau  uma  canhoneira 
(quando  não  mais),  é  certo  que,  por  motivos 
vários,  os  nossos  navios  raramente  visitam  os 
•differentes  portos  visinhos.  Ha  pouco  mais  de 
um  anno,  excepcionalmente,  a  canhoneira 
«Diu»  desempenhou  uma  brilhante  commis- 
são,  percorrendo  os  portos  do  China;  antes 
d'ella,  creio  que  em  1888,  a  «Rio  Lima»  visi- 
tara os  mesmos  portos  (Amoi,  P\ichau,  Shang- 
hae,  Chefu  e  Taku),  passando  depois  ao  Japão, 
entrando  em  Nagasaki,  Kobe  e  Yokohama. 

Nos  portos  japonezes,  particularmente,  é 
cousa  rara  vôr-se  um  vaso  de  guerra  portu- 
guez.  O  ultimo  que  aqui  esteve  foi  a  «Zaire», 
creio  eu,  não  passando  de  Nagasaki  e  Kobe. 
Dê-nos  ao  menos  a  guerra  actual  pretexto 
para  mostrarmos  a  nossa  bandeira  n'estes 
portos  longínquos,  com  manifesto  interesse 
do  nosso  prestigio  e  para  intima  satisfação 
dos  muitos  portuguezes  que  se  encontram 
espalhados  pelos  paizes  do  Extremo-Oriente. 


II 


10  de  março  de  1904 

O  Japão  em  evidencia  —  A  religião  japoneza  —  O  cha- 
mado perigo  amarello  —  A  lenda  e  a  moral  do 
Shintôismo  —  O  culto  dos  antepasáados  —  Outras 
seitas  religiosas  —  Contrastes  —  O  que  é  o  periga 
amarello — Outros  perigos  —  Chimeras  dos  euro- 
peus—  Uma  carta  de  Herbert  Spencer. 


TVTão  resta  duvida  de  que  o  Japão  está  em 
evidencia,  mercê  da  crise  actual,  que  tem 
por  theatro  o  Extremo-Oriente.  Por  isto  se  me 
affigura  que  merecem  especial  interesse  n'este 
momento  todas  as  considerações,  mesmo  to- 
das as  divagações,  que  se  relacionem  com  o 
Império  do  Sol  Nascente. 

N'esta  persuasão  vou  hoje  referir-me,  em 
rápidos  traços,  a  dous  assumptos  importantes : 
a  religião  japoneza,  que  é  o  Shintôismo,  e  o- 
chamado  perigo  amarello.  Na  carta  anterior^ 
já  alludi  ao  primeiro  assumpto,  e  frizava 
então  que  o  Shintôismo  deve  entrar  certa- 
mente como  um  dos  factores  predominantes 
do    caracter    do   japonez,    fazendo   d'elle   um 


13 


povo  excepcional  entre  todos  pelo  seu  orgu- 
lho nacional,  pela  sua  coragem  perante  o 
perigo  e  pelo  arrojo  das  suas  energias;  ten- 
tarei hoje  tornar  mais  convincente  uma  tal 
affirmação. 

O  Shintòismo  é  a  religião  primitiva  dos 
japonezes.  Possue  uma  lenda,  em  que  figuram 
vários  deuses,  lenda  que  a  massa  do  povo 
hoje  mal  conhece  e  não  preoccupa  os  illus- 
trados.  Os  deuses  crearam  o  Japão,  isto 
basta;  não  importa  saber  como  foi  creado  o 
resto  do  mundo,  o  que  demonstra  a  que 
altura,  desde  as  mais  remotas  eras,  subiu  o 
orgulho  da  tribu ;  para  os  japonezes,  o  mundo 
é  o  Japão. 

Lenda  e  ritos  são  em  geral,  no  presente 
tempo,  meros  pretextos  para  festivaes,  em 
que  o  povo,  crente  ou  descrente,  se  diverte. 
O  que  profundamente  lançou  raizes  na  alma 
japoneza  foi  a  moral  do  Shintòismo,  a  qual 
se  resume  n'estes  dous  princípios :  —  «  res- 
peita os  antepassados  e  segue  os  impulsos 
dos  teus  instinctos». 

O  culto  dos  antepassados  não  é  exclusiva- 
niente  do  Japão ;  é,  pelo  menos,  peculiar  a 
todos  os  povos  asiáticos,  posto  que  exercido 
com  mais  rigorosa  perseverança  pelos  chine- 
zes   e  japonezes.  A  consequência  primeira  de 


14 


tal  culto,  e  a  mais  importante,  é  uma  forte 
constituição  da  familia,  d'onde  deriva  um  in- 
tenso amor  ás  tradições,  aos  costumes,  ao 
solo  pátrio,  á  raça;  e  é  isto  exactamente  que 
vemos  manifestar-se  nas  nações  citadas,  em- 
bora o  Japão,  quando  estudado  apenas  super- 
ficialmente, pareça  levar-nos  a  conclusões 
differentes:  O  culto  -dos  antepassados  tem  as 
suas  mais  pomposas  manifestações  nos  tem- 
plos shintôistas,  que  são  erguidos,  não  em 
honra  dos  deuses,  mas  em  memoria  dos 
grandes  homens,  —  guerreiros,  poetas,  erudi- 
tos.— -Aos  templos  antes  se  deveria  chamar 
monumentos,  e  sob  este  aspecto  o  Shintôismo 
é  menos  uma  jeligião  dò  que  um  culto  da 
pátria,  representada  pelos  seus  vultos  emi- 
nentes. Do  culto  dos  antepassados,  ou  melhor, 
dos  mais  remotos  antepassados,  que  foram 
os  deuses  creadores  do  solo  sagrado  de 
Nippon,  passa-se  naturalmente  ao  culto  do 
imperador,  que  descende  directamente  de  taes 
deuses,  occupando  um  logar  na  série  de  uma 
única  dynastia.  O  respeito  pelo  soberano  é, 
pois,  um  dogma  Shintôista. 

O  segundo  principio  —  «  segue  os  impulsos 
dos  teus  instinctos »  —  deriva  da  concepção 
optimista,  que  o  japonez  faz  do  sêr  humano, 
isto    é,   de   si   mesmo.   Effectivamente,  se  os 


15 


deuses,  bons  e  prazenteiros,  crearam  as  ílòres 
odoríferas,  os  fructos  saborosos,  as  arvores 
gentis,  os  insectos  multicores,  as  aguas  crys- 
tallinas,  as  montanhas  graciosas,  emfim  a 
inteira  harmonia  sorridente  doeste  paiz  encan- 
tador, e  crearam  também  o  japonez,  este  não 
pôde  ser  um  perv^erso,  um  monstro,  mas  sim 
também  uma  cousa  boa  e  utilisavel.  Dizem 
os  japonezes,  com  um  raciocinio  que  não 
pôde  ser  taxado  de  imbecil:  —  «Os  deuses 
enviaram  aos  paizes  estranhos  os  seus  pro- 
phetas,  os  seus  messias,  para  trazerem  ao 
caminho  da  virtude  os  homens,  que  eram 
ruins;  no  Japão  nunca  houve  prophetas  nem 
messias,  porque  os  homens  eram  bons  e  não 
careciam  d'elles».  —  Com  uma  tal  noção  de 
si  mesmos,  nada  mais  lógico,  mais  natural, 
do  que  obedecerem  a  esta  boa  máxima,  bem 
fácil  de  cumprir  —  «  segue  os  dictames  do  teu 
pensamento,  dos  teus  caprichos,  dos  teus  de- 
sejos, o  impulso  natural  dos  teus  instinctos». 

O  Shintôismo,  despido  da  sua  fabulação 
e  dos  seus  ritos,  reduz-se,  pois,  a  um  culto 
da  tribu,  da  raça  (familia,  instituições,  sobe- 
rano) e  a  um  culto  da  própria  vontade.  E  o 
orgulho  da  nação  e  de  si  próprio,  santificado. 

Com  o  correr  dos  séculos,  outras  seitas 
religiosas  penetraram  no  Japão :  o  Buddhismo> 


I6 


que  adquiriu  grande  preponderância,  e,  muito 
menos  acceitado,  o  Christianismo,  nas  suas 
varias  subdivisões.  No  entretanto,  era  tão  fácil 
ser-se  buddhista  por  exemplo,  e  ao  mesmo 
tempo  amoroso  da  sua  raça  e  do  seu  solo, 
que  os  convertidos  não  deixaram  de  ser 
shintôistas,  no  que  a  palavra  exprime  como 
synthese  de  estima  pelo  soberano,  pela  famí- 
lia, pela  pátria  e  por  si  mesmo ;  pelo  que  par- 
ticularmente respeita  ao  Buddhismo,  que  se 
tornou  popularissimo  no  Japão,  mesmo  até 
hoje,  os  próprios  bonzos  tiveram  o  cuidado, 
para  evitar  complicações  previstas,  não  de 
transformar  o  sentimento  do  povo  para  se 
approximar  da  nova  religião,  mas  de  trans- 
formar o  Buddhismo  para  se  approximar  do 
povo. 

Bem.  Já  podemos  fazer  uma  ideia  do  japo- 
nez  shintòista,  como  é  todo  o  japonez:  —  en- 
levado no  seu  soberano,  no  seu  paiz  e  em  si 
próprio ;  deixando  voar  livremente  o  pensa- 
mento, alegre  e  descuidoso,  confiando  plena- 
mente nas  suas  energias. 

Comparemos  agora  o  Shintòismo  com  os 
outros  systemas  religiosos  das  sociedades 
cultas.  Que  se  trate  do  Christianismo,  ou  do 
Judaismo,  ou  do  Mahometismo,  ou  do  Bud- 
dhismo,   havemos    de    convir    que    qualquer 


17 


d'estas  theologias  íkz  do  ser  humano  um. filho 
do  peccado,  um  criminoso,  que  só  pela  mo- 
déstia, pelo  recolhimento,  pela  oração,  pelo 
martyrio,  se  poderá  salvar.  A  terra  é  um  valle 
de  lagrimas;  a  felicidade  não  está  n'ella,  mas 
sim  no  outro  mundo,  n'uma  mansão  de  elei- 
tos, i-aros,  porque  o  inferno  é  o  paradeiro  da 
grande  massa  de  homens.  Bemaventurado  o 
desprezível,  o  humilde,  o  idiota  mesmo.  En- 
sina-se  a  obediência,  não  por  amor  e  con- 
fiança no  chefe,  mas  por  humildade.  Quem 
recebe  uma  bofetada  n\mia  face  deve  offerecer 
a  outra  face  a  outra  bofetada.  Quaesquer  que 
sejam  os  méritos  d'estas  differentes  religiões, 
e  são  muitos  (que  não  me  proponho  enume- 
rar), o  que  parece  dever  concluir-se,  e  muitos 
assim  concluem,  é  que  taes  religiões  foram 
lentamente  amassando  e  moldando  no  barro 
humano  o  homem  actual,  degenerado,  muito 
differente  do  homem  primitivo,  com  manifesto 
enfraquecimento  dos  seus  dotes  de  iniciativa, 
de  independência,  de  apego  á  terra-mãe,  de 
coragem,  de  alegria,  de  livre  arbítrio,  de  con- 
fiança em  si  e  de  esperança  na  sua  obra.  O 
japonez  é  o  contrario  de  tudo  isto ;  e  manda 
a  verdade  que  se  diga  que  não  e  peor,  se- 
gundo as  estatísticas  criminaes,  do  que  o  seu 
irmão  na  espécie  embebido  de  outras  crenças. 


1-8 


■  Ora  eu  penso  que  esta  liberdade  de  con- 
sciência de  que  o  japonez  goza,  o  seu  livre 
arbítrio,  e  também  o  culto  amoroso  que  tri- 
buta ao  seu  soberano,  aos  seus  heroes  e  ás 
suas  instituições  (e  tudo  isto  é  o  Shintòismo), 
em  concorrência  com  outros  dotes  moraes  e 
physiologicos  —  relativa  insensibilidade  á  dôr, 
indiíTerença  pela  morte,  sobriedade,  etc,  — fa^ 
zem  d'elle  um  povo  de  selecção  na  época  his- 
tórica que  atravessamos,  dotando-o  de  uma 
coragem  sem  rival,  de  um  patriotismo  incom- 
parável, de  uma  confiança  cega  nos  seus  des- 
tinos, de  uma  louçania  emfim  de  sentimento 
capaz  de  eleval-o  aos  mais  arrojados  e  sur- 
prehendentes  commettimentos.  Se  me  engano, 
desculpem-me  os  leitores  o  tempo  que  lhes  to- 
mei com  estas  divagações,  então  irremediavel- 
mente classificadas  como  simples  frivolidades. 
—  Paliemos  agora  do  perigo  ania7'ello,  que 
parece  ter  voltado  a  occupar  as  attenções  da 
imprensa  franceza  e  allemã,  após  um  longo 
periodo  de  tréguas  em  que  passou  de  ser 
moda.  O  que  tem  graça  é  que  ainda  ha  pou- 
cos dias,  antes  do  rompimento  das  hostilida- 
des, uma  parte  d'esta  mesma  imprensa  repu- 
tava a  nação  japoneza  como  um  pequeno 
povo,  a  termo  da  sua  evolução  e  prestes  a 
extinguir-se!  ... 


19 


O  p:rlgo  amarcllo  é,  como  se  sabe,  o  pe- 
rigo que  as  nações  occidentaes,  representadas 
principalmente  pela  pAiropa  e  pela  America, 
julgam  vèr  para  os  seus  interesses  n'um 
grande  desenvolvimento  moral  e  económico 
das  nações  extremo-orientaes,  impellidas  pelo 
sopro  vivificador  do  povo  japonez.  O  perigo 
amarello  não  tem  uma  importância  absoluta, 
como  alguns  lhe  querem  dar.  E  um  perigo 
como  outro  qualquer  perigo;  sendo  certo  que 
a  existência  das  nações  está  sujeita  a  mil 
perigos  n'este  mundo.  Se  a  Europa  berra  em 
exclamações  patheticas  a  propósito  do  pro- 
blemático perigo  amarello,  o  que  não  diria 
a  Africa,  por  exemplo,  se  fosse  dada  a  jogos 
de  rhetorica,  a  propósito  do  indiscutível  perigo 
branco?  Sobre  a  Turquia  pesa  o  perigo  russo; 
sobre  a  Bulgária  pesa  o  perigo  turco]  a  Tuní- 
sia tem  o  perigo  francez;  a  America  tem  o 
perigo  negro;  os  negros  da  America,  os  filippi- 
nos,  os  cubanos,  teem  o  perigo  americano; 
emfim,  para  cada  nação,  para  cada  grupo  de 
homens,  existe  pelo  menos  um  perigo,  na 
nação  ou  no  grupo  de  homens  que  poderá 
affectar  a  sua  industria,  o  seu  commercio, 
a  sua  independência,  os  seus  interesses  de 
qualquer  ordem  —  económicos,  políticos,  mo- 
raes. 


20 


A  defeza  contra  o  perigo  ainarello  é  per- 
feitamente justificável,  baseada  nas  leis  natu- 
raes  e  universaes  da  lucta  pela  existência.  O 
que  fora  para  desejar  é  que  tal  defeza  se 
apresentasse  como  simples  lucta,  não  preten- 
dendo envolver  uma  espécie  de  direito  divino 
que  a  Europa  se  arroga  no  sentido  de  domi- 
nar os  outros  povos  ao  sabor  dos  seus  inte- 
resses exclusivos.  N'outros  tempos  dizia-se 
que  o  homem  era  o  rei  da  creação  e  que  o 
universo  inteiro  surgira  para  lhe  prestar  con- 
forto; esta  chimera  já  cahiu  em  ruinas.  O 
europeu  de  hoje  pensa  que  elle  é  superior  a 
todos  os  outros  homens,  e  veio  ao  mundo 
para  dominal-o ;  é  conveniente  demolir  tam- 
bém esta  chimera. 

O  europeu  —  a  raça  branca  — occupa  hoje 
a  eminência  na  sociedade  das  nações,  mercê 
do  desenvolvimento  que  attingiu ;  mas  querer 
que  este  desenvolvimento  seja  eternamente 
progressivo  e  que  tal  supremacia  não  decline, 
é  exigir  muito  dos  destinos. 

O  solitário  de  qualquer  nacionalidade, 
aquelle  que  por  temperamento  ou  circum- 
stancias  especiaes  da  existência  observa  do 
alto  do  seu  isolamento  moral  a  evolução  dos 
povos,  sorri -se  das  presumpções  do  branco. 
Se  admira  os  seus  progressos  scientificos,  os 


21 


resultados  maravilhosos  das  suas  industrias, 
nega-se  a  prestar  inteiro  culto  ás  suas  glorias 
civilisadoras,  de  que  tanto  se  ufana.  A  acção 
da  raça  branca  junto  das  outras  raças  tem 
sido  sempre  uma  guerra  egoísta,  despótica 
e  sangrenta,  na  qual  o  minucioso  aperfei- 
çoamento dos  seus  canhões  tem  sempre  re- 
presentado o  melhor  argumento  para  con- 
vencel-as;  questão  de  melhor  poK^ora  e  de 
melhor  aço,  questão  de  força,  o  que  bastaria 
para  presumir  um  limite  a  tal  acção,  próximo 
ou  remoto. 

O  solitário  que  considero,  vê-se  mesmo 
impellido  a  admittir  desde  já  indícios  prenun- 
ciadores  da  decadência  do  branco.  O  enfra- 
quecimento physico  do  homem  occidental  é 
manifesto.  Quando  este  duro  aviso  não  bas- 
tasse, outros  symptomas  de  ordem  moral  se 
apresentam,  embora  custe  confessal-os.  São 
elles  a  lenta  dissolução  dos  laços  de  familia, 
dos  brios  civicos,  da  honestidade  publica,  a 
crescente  venalidade  das  consciências,  a  min- 
gua de  escrúpulos,  a  ausência  de  ideal,  o 
gradual  rebaixamento  moral,  emhm,  das  so- 
ciedades. 

Quanto  ao  perigo  amarello,  o  solitário 
admitte-o  desde  hoje,  sem  ódios  nem  invejas, 
como  uma  nova  concorrenciíi,   ao  trabalho  e 


22 


á  industria,  já  sensivel  e  dentro  em  breve 
mais  intensa.  Não  se  decide  ainda  em  reco- 
nhecer-lhs  condições  bastantes  para  vir  revo- 
lucionar o  mundo ;  o  que,  em  todo  o  caso,  se 
tem  de  acontecer,  só  será  n'uma  época  certa- 
mente ainda  longinqua.  No  entretanto,  se  é  a 
esta  raça  amarella,  já  tão  enorme  em  numero 
e  tão  prolifera,  que  está  reservada  a  missão 
remota  de  vir  reanimar  o  Occidente  anemisado 
e  pervertido,  que  importa?  .  .  .  Venha  ella, 
espalhe  o  bem.  E  diga-se  por  ultimo:  se  taes 
são  os  seus  destinos,  toda  a  resistência  do 
homem  branco  será  ephemera,  apenas  poderá 
retardar  de  alguns  annos  (nada)  o  tremendo 
desfecho ;  porque  contra  as  grandes  erupções 
naturaes  nada  pôde  fazer  o  mesquinho  al- 
cance da  iniciativa  humana. 

—  Depois  de  lidas  estas  linhas,  que  podem 
ser  ou  não  convincentes,  mas,  em  todo  o 
caso,  não  passam  de  simples  divagações  de 
quem  se  attribue  o  único  merecimento  de 
conhecer  um  pouco,  por  forçada  experiência, 
o  caracter  asiático,  principalmente  o  japonez, 
julgo  deverem  merecer  algum  interesse  as 
seguintes  referencias  a  uma  carta  sobre  o 
Japão,  escripta  por  Herbert  Spencer,  o  emi- 
nente pensador  inglez  ha  pouco  fallecido,  e 
dirigida    ao    barão   Kaneko,   politico  japonez, 


23 


occupando  recentemente  iim  logar  no  minis- 
teiio  de  Tokio. 

.  Spencer,  que  mantinha  relações  muito 
intimas  com  o  barão  Kaneko,  expunha-lhe 
em  forma  de  carta,  ha  cerca  12  annos,  as 
suas  opiniões  pessoaes  sobre  este  paiz ;  tal 
carta  só  agora  acaba  de  ser  dada  á  publici- 
dade. Diz  Spencer,  entre  outras  cousas,  que 
os  japonezes  deveriam  manter-s3  tão  afastados 
quanto  possível  dos  americanos  e  dos  euro- 
peus. Julga  um  erro  a  politica  de  abrir  as 
portas  do  império  aos  estrangeiros  e  aos  ca- 
pitães estrangeiros;  talpolitica,  perante- uma 
raça  mais  poderosa  e  mais  poderosas  nações, 
conduz  a  attrictos  inevitáveis,  que  serão  pre- 
judiciaes  aos  japonezes.  Entende  que  deve  ser 
negada  aos  estrangeiros  a  posse  de  terrenos, 
negados  mesmos  os  arrendamentos,  admitti- 
dos  unicamente  como  usufructuarios  annuaes, 
gozando  apenas  dos  privilégios  que  sejam 
julgados  necessários  ás .  permutações  mer- 
cantis. 

Com  relação  aos  casamentos  entre  japo- 
nezes e  estrangeiros,  o  philosopho  inglez  é 
categórico,  aconselhando  terminantemente  que 
sejam  prohibidos  taes  enlaces.  Os  mestiços, 
quer  se  trate  dos  seres  humanos  ou  de  outros 
animaes,  dão  sempre  maus  productos  quando 


24 


entrem  em  jogo  variedades  muito  dissimilhan- 
tes,  principalmente  a  partir  da  segunda  gera- 
ção; taes  productos  traduzem  uma  tão  incal- 
culável  mistura   de  caracteres,  que  bem  pôde 
chamar-se-Ihes    organisações    chasticas;    e    é 
isto  que  se  dará,  fatalmente,  com  os  japonezes, 
se   não   se    esforçarem    por   conservar  a  sua 
raça  afastada  quanto  possível  das  outras  raças. 
Eis,     em    resumo,    as    considerações    de 
Spencer,    as    quaes    se    prestam    incontesta- 
velmente   a    viva    controvérsia   por    parte  de 
economistas   c   biologistas   que   sigam   outros 
credos;   os  próprios  japonezes   teem-se   des- 
viado  muito  de  taes  conselhos  e  apparente- 
mente    com    bom   êxito.   O   que   resalta,   sem 
duvida  alguma,  d'estas  considerações  é  como 
que    uni    desejo    carinhoso  de   que   a  familia 
japoneza,  como  uma  tribu  de  eleição,  se  man- 
tenha pura  de  outros  contactos  e  ciosa  do  seu 
solo,  para  proseguir  no  desempenho  dos  se' 
destinos;  quando  um  tal  desejo  emana  de  i 
vulto    como    é    Herbert    Spencer,    uma    de 
grandes    glorias    da    humanidade    intellectua. 
o   conceito   não   deve   passar   despercebido   ' 
correr  na  enxurrada  das  banalidades. 


III 


15   de  março  de  1904 

Os  últimos  acontecimentos  da  guerra — Os  cavalleiros 
bandidos  da  Mandchuria  —  Os  bombardeamentos  de 
Vladivostok  e  de  Porto  Arthur  —  A  esquad'-a  japo- 
neza  e  o  almirante  Togo — Algumas  considerações 
líccrca  do  dominio  e  aspirações  russas  no  Extremo- 
Oriente  —  As  tropas  japonezas  que  marcham  para 
a  guerra — Enthusiasmo  japonez  —  A  propósito  de 
donativos  —  Diversos. 

T^is    O   resumo  dos  últimos  acontecimentos 
da  guerra,   dos   quaes  os   leitores  terão 
tido  noticia  pelos  telegrammas  que  ahi  devem 
ter  chegado. 

Um   partido   coreano  mostra-se  contra  os 
•ponezes  e  contra  o  tratado  de  ailiança  entre 
"seu  paiz  e  o  Japão ;  na  residência  do  mi- 
oistro  dos  negócios  estrangeiros  coreanos  fo- 
ram lançadas  bombas  de  d3^namite,  que  explo- 
"í-am  sem  causarem  victimas. 

O  marquez  Ito  acaba  de  partir  para  a 
v^^orêa,  na  qualidade  de  embaixador  extraordi- 
itario   do   Japão,   acompanhado   de  numerosa 


26 


comitiva.  Liga-se  a  mais  alta  importância  á 
missão  do  eminente  estadista,  que,  em  mui 
avançada  idade,  não  recusa  á  pátria  os  servi- 
ços da  sua  grande  competência. 

Pela  Mandchuria,  umas  hordas  chinezas 
mal  conhecidas  por  emquanto,  a  que  chamam 
cavalleh'os  bandidos,  estão  prejudicando  bas- 
tante os  russos,  apparecendo  de  improviso 
onde  lhes  appetece^  destruindo  a  linha  férrea 
e  eclipsando-se  sem  serem  attingidos.  Diz-se 
que  entre  os  cavalleíros  bandidos^  cujo  numero 
se  avalia  em  mais  de  40:000,  se  encontram 
muitos  japonezes,  que  abraçaram  aquella  vida 
errante  em  beneficio  da  sua  pátria. 

Em  6  do  corrente,  uma  esquadra  japoneza 
bombardeou,  pela  primeira  vez,  o  porto  russo 
de  Vladivostok;  os  fortes  da  entrada,  que 
soffreram  algumas  avarias,  não  responderam, 
nem  os  navios  russos  sahiram  ao  encontro 
dos  japonezes.  Pela  mesma  occasião,  também 
Porto  Arthur  e  Dalny  (Talien-wan)  foram  bom- 
bardeados. 

Em  10,  os  japonezes  deram  um  novo 
ataque  a  Porto  Arthur,  o  quarto  em  numero 
e  supposto  o  mais  terrivel ;  mas  faltam  deta- 
lhes. Tiveram  principal  parte  no  combate  os 
destroyers,  dando-se  vários  encontros  com  os 
destroyers  inimigos,  dos  quaos  um  foi  a  pique. 


27 


Houve  perdas  da  parte  dos  japonezes,  mas 
parece  que  as  dos  russos  foram  muito  sérias 
e  que  esta  batalha  representa  mais  uma  victo- 
ria  para  a  esquadra  do  Japão.  Seguidamente, 
a  cidade  de  Dalny  foi  bombardeada,  sendo 
destruidas  varias  construcções  russas.  E  nada 
mais  consta,  pondo  de  parte  boatos  mais  ou 
menos  verosimeis,  um  dos  quaes,  muito  im- 
provável, dava  Porto  Arthur  abandonado  pelos 
russos,  depois  de  haverem  lançado  fogo  á 
cidade. 

Até  agora  toda  a  acção  naval  tem  redun- 
dado em  gloria  para  a  esquadra  japoneza,  sob 
o  commando  do  prestigioso  almirante  Togo; 
devendo  concluir-se  que  a  esquadra  russa  se 
encontra  praticamente  inutilisada.  Resta  vér  o 
que  será  a  guerra  em  terra,  na  qual,  parece, 
os  russos  confiam  plenamente.  Não  é  de  es- 
perar que  se  dêem  sérios  combates  antes  de 
um  ou  dous  mezes.  Sejam  quaes  forem  os 
resultados  da  tremenda  lucta  que  vai  travar-se, 
estejamos  certos  que  não  ficarão  por  aqui  os 
actos  de  irradiante  patriotismo  dos  bravos 
servidores  do  império  do  Japão,  que  está  hoje 
despertando   as  attenções  do   mundo  inteiro. 

—  Á  falta  de  melhor  assumpto,  parece-me 
de  algum  interesse  o  apresentar  aqui  ligeirís- 
simas considerações  sobre  o  dominio  e  aspi- 


28 


rações  russas  na  região  extremo-oriental,  em- 
preza  colossal,  causa  única  da  gravissima 
crise  politica  a  que  hoje  assistimos. 

A  actividade  da  Rússia  exerce-se  na  Si- 
béria ha  mais  de  300  annos.  Apenas  libertado 
do  jugo  dos  tártaros,  este  paiz  essencialmente 
continental  e  com  mui  difficil  accesso  ao  mar, 
virou-se  naturalmente  para  leste,  que  ne- 
nhuma barreira  séria  offerecia  contra  a  sua 
expansão.  Para  leste  era  o  espaço  immenso  e 
indisputado ;  e  dir-se-hia  que  um  vago  pre- 
sentimento,  um  impulso  de  instincto,  a  attrac- 
ção  do  mar,  animavam  o  povo  russo  a  pro- 
seguir  na  direcção  do  oceano  asiático  para 
obter  portos,  sem  os  quaes  as  grandes  ambi- 
ções de  uma  grande  tribu  nada  podem  levar 
a  effeito.  Foi  lenta  a  tarefa,  dura  por  vezes  a 
resistência  dos  indígenas;  e  só  no  anno  de 
1858,  após  incansável  perseverança,  que  é  uma 
das  feições  mais  preponderantes  do  caracter 
dos  russos,  era  definitivamente  alcançada  a 
bacia  média  e  inferior  do  Amur  e  arvorada  a 
bandeira  moscovita  á  beira  do  mar  asiático, 
A  Rússia  estava  de  posse  da  inteira  e  am- 
plíssima zona  conhecida  pelo  nome  de  Sibéria. 

As  ambições  da  Rússia  foram  a  pouco  e 
pouco  crescendo  e  definindo-se,  constituindo, 
finalmente,   um   programma   vastíssimo,    nada 


29 


menos  do  que  alcançar  o  predomínio  na 
China  e  em  toda  a  região  extremo-oriental, 
o  que  envolve  a  posse  de  pontos  estratégi- 
cos que  lhe  garantam  também  a  supremacia 
no  mar. 

Uma  das  grandes  consequências  de  tal 
programma  é  a  linha  férrea  transsiberiana,  cuja 
ideia  data  já  de  longos  annos;  mas  foi  Ale- 
xandre ui  que  lhe  deu  corpo,  sendo  o  pri- 
meiro passo  para  obra  tão  monumental  a 
linha  do  Ural,  inaugurada  em  1880.  O  seu 
termínus  devia  ser  Vladivostok,  porto  siberiano 
fortificado  e  em  situação  admirável  como  cen^ 
tro  estratégico,  em  face  do  Japão  e  a  curta 
distancia  da  Corêa. 

Em  1895,  terminada  a  guerra  entre  o 
Japão  e  a  China,  esta  ia  entregar  ao  vencedor 
*uma  forte  indemnisação  monetária  e  ceder-lhe 
as  ilhas  dos  Pescadores,  Formosa  e  a  já  cobi- 
çada pelos  russos  península  de  Liao-Tung^ 
com  Porto  Arthur  e  Talien-wan.  Os  russos  é 
que  não  podiam  admittir  tamanho  golpe  nas 
suas  ambições;  conseguiram  chamar  para  o 
seu  lado  a  AUemanha  e  a  França,  e  as  três 
potencias  reunidas  representaram  diplomatica- 
mente ao  Japão  para  renunciar  a  Liao-Tungj 
cuja  posse,  diziam,  seria  de  um  perigo  perma- 
nente para  a  paz  do  Oriente  e  do  mundo  in- 


30 


teiro.  O  Japão  cedeu;  e  a  Rússia,  em  troca  dos 
seus  bons  ofncios,  obtinha  permissão  da  China 
para  fazer  passar  pela  provincia  chineza  da 
Mandchuria  o  traçado  do  seu  caminho  de  ferro, 
e  era  auctorisada  também  a  occupar  tal  região 
por  tropas  suas,  sob  o  pretexto  de  protegerem 
o  material  e  os  trabalhos  a  emprehender. 

Não  ficam  por  aqui  as  machinações  do 
colosso  moscovita.  Em  março  de  1898,  depois 
do  golpe  de  theatro  pelo  qual  a  Allemanha  se 
apossou  de  Kiauchau,  a  Rússia'  entendeu  que 
não  devia  ficar  inactiva  e  arrancava  á  China 
a  assignatura  de  uma  convenção,  pela  qual 
esta  lhe  cedia  por  emprcstlmo  Porto  Arthur  e 
Talien-wan.  Tal  audácia  representava  uma 
affronta,  immerecida,  lançada  ao  império  japo- 
nez ;  mas  que  importava  ?  A ,  Rússia  conse- 
gnjira  realisar  os  seus  mais  desejados  fins;« 
sem  desistir  do  traçado  que  levava  o  seu 
caminho  de  ferro  a  Vladivostok,  tratou  da 
construcção  de  um  ramal  até  Porto  Arthur; 
e  da  entrada  do  golfo  de  Petchili  pôde  fi- 
nalmente ameaçar  .  Pekim  e  o  coração  da 
China !  . .  . 

Ulteriormente,  os  recentes  distúrbios  dos 
boxers  levaram  as  principaes  potencias  da 
Europa,  os  Estados-Unidos  e  o  Japão  a  en- 
viar á  China  tropas  suas,  na  defeza  dos  pro- 


31 


prios  interesses  e  n'um  intuito  humanitário. 
A  Rússia  não  se  esqueceu  de  servir-se  de 
tão  excellente  ensejo  para  encher  de  soldados 
seus  a  Mançichuria,  onde  até  então  só  podia 
conservar  sem  escândalo  uma  pequena  força 
para  proteger  o  andamento  da  linha  férrea; 
querem  mesmo  alguns  dizer  que  a  revolta  dos 
boxers  foi  provocada  pela  Rússia,  ou  pelo  me- 
nos levada  a  um  grau  de  maior  gravidade 
pelos  seus  subtis  estratagemas.  O  facto  é  que, 
terminada  a  insurreição  e  em  harmonia  com 
a  boa  justiça  e  accordos  anteriores,  todas 
as  potencias  se  apressaram  a  fazer  recolher 
as  suas  tropas,  menos  a  Rússia,  que,  pelo 
contrario,  as  foi  augmentando  e  tratando  a 
Aiandchuria  como  paiz  conquistado. 

Eis,  em  rápida  summula,  qual  tem  sido  a 
marcha  do  colosso  do  norte  no  sentido  de 
leste  e  os  resultados  a  que  chegou.  A  Rússia 
apossára-se  virtualmente  da  Mandchuria  e 
dava  sobejas  provas  de  que  em  breve  faria  o 
mesmo  á  Corêa,  onde  a  sua  influencia  cres- 
cia dia  a  dia.  Este  procedimento  incorrecto  e 
esta  politica  machiavelica  affectaram  bastante 
os  paizes  com  interesses  no  Extremo-Oriente, 
sobretudo  a  Inglaterra  e  os  Estados-Unidos, 
não  contando  o  Japão. 

Com  respeito  a  este  ultimo,  a  cobiça  insa- 


32 


ciavel  da  Rússia  e  as  suas  tendências  exclu- 
sivistas representam  já  uma  grande  quebra 
de  interesses,  fazendo  adivinhar  bem  mais 
sérios  prejuízos;  não  se  perca  de  memoria 
que  o  Japão  vive  principalmente  do  seu  com- 
mercio  com  a  China  e  outros  paizes  visinhos. 
Mas  ha  mais:  os  russos  ás  portas  do  Japão- 
são  terrível  e  constante  ameaça  á  sua  indepen- 
dência e  integridade  territorial  e  constituem 
immensa  barreira  á  marcha  brilhante  dos  seus 
progressos.  Sabe-se  como  a  Rússia  respondeu 
ás  repetidas  instancias  do  governo  japonez^ 
para  a  fazer  desistir  dos  seus  desígnios.  O 
resultado  é  a  crise  a  que  assistimos,  cujo  des- 
fecho, certamente  funesto  —  porque  a  guerra 
é  sempre  uma  calamidade  —  está  longe  de 
prevêr-se. 

—  A  passagem  dos  comboios  carregados 
de  tropas  que  seguem  para  a  guerra  conti- 
nua sendo  o  alvo  de  grandes  manifestações 
populares.  Na  cidade  de  Kobe,  que  é  atra- 
vessada em  toda  a  sua  extensão  pela  linha 
férrea,  as  ruas  prlncipaes  estão  litteralmente 
cobertas  de  bandeiras;  o  povo  afflue  em  car- 
dume para  vér  e  acclamar  os  seus  solda- 
dos. O  espectáculo  é  deveras  commovente  e 
sobre  tudo  emocionante  para  o  estrangeiro,  o 
qual,  menos  animado  de  optimismos  de  que 


33 


a  turba  indigena,  fita  n'um  relance  a  chusma 
alegre  dos  soldados,  muitos  dos  quaes  não 
voltarão  por  certo  ao  torrão  pátrio. 

O  enthusiasmo  japonez  não  se  limita  a 
embandeirar  as  ruas;  por  toda  a  parte  correm 
subscripções  destinadas  a  obter  donativos,  não 
regateados,  já  para  os  fundos  da  guerra,  já 
para  a  excellentemente  organisada  sociedade 
japoneza  da  Cruz  Vermelha,  já  para  as  famí- 
lias dos  reservistas,  que  quasi  todos  teem 
mulher  e  filhos,  que  deixam  em  tristes  cir- 
cumstancias. 

A  propósito  de  donativos,  não  resisto  á 
tentação  de  contar  aqui  um  caso  que  põe  em 
-evidencia  o  feitio  da  alma  japoneza  e  o  seu 
arreigado  patriotismo,  capaz  de  vir  glorificar 
os  mais  abjectos  súbditos  do  império.  Foi  ha 
dias  executado  n'uma  prisão  de  Tokyo  um 
criminoso  de  nome  Hamamura,  que  havia 
commettido  vários  assassínios  e  roubos  auda- 
ciosos. Pouco  antes  da  hora  fatal,  o  carcereiro 
fez-lhe  constar  que  um  seu  parente  depositara 
dous  yens  (mil  réis)  afim  de  lhe  ser  servida 
uma  ultima  refeição  opipara,  á  moda  europeia, 
e  perguntou-lhe  que  pratos  preferia.  Hama- 
mura pensou  alguns  instantes  no  assumpto  e 
respondeu  que  dispensava  todos  os  pitéus, 
sendo  o  seu  único  desejo  contribuir  com  os 


34 


dous  yens  para  os  fundos  da  guerra.  .  .  Foi 
acceite  o  donativo. 

—  Está  calculado  que  os  touristes  que 
-viajam  no  Japão  deixam  annualmente  n'este 
paiz  uma  somma  não  inferior  a  15  milhões 
de  yens,  ou  mais  de  1.500:000  libras  ester- 
linas. Taes  viajantes  são  principalmente  de 
nacionalidade  ingleza,  americana,  allemã  e 
franceza,  que  vêem  attrahidos  pelos  notó- 
rios enlevos  d'este  paiz,  sobretudo  deleitosos 
n'uma  certa  quadra  do  anno,  de  abril  a  no- 
vembro. Um  jornal  europeu,  publicado  n'este 
império,  referia-se  ao  assumpto  e  exhortava 
ha  pouco  os  touristes  a  não  desistirem  da  sua 
habitual  excursão  em  consequência  da  guerra. 
O  theatro  das  operações  annuncia-se  como 
devendo  ser  a  Corêa,  a  Mandchuria  e  os 
mares  visinhos.  Por  outro  lado,  a  esquadra 
japoneza  acha-se  senhora  do  Oceano,  encon- 
trando-se  os  navios  russos  acoutados  em 
Porto  Arthur  e  Vladivostok,  d'onde  não 
sahem,  o  que  mais  garantias  dá  de  tranquilli- 
dade  aos  viajantes  que  se  destinem  ao  Japão. 

Ora,  também  eu  me  permitto  fazer  as 
mesmas  considerações  aos  meus  patrícios. 
As  hostilidades  em  nada  empanam  os  attra- 
ctivos  da  paizagem  nipponica ;  e  a  prova  está 
em    que   as   ameixieiras  já  florescem,   e  em 


35 


breve  será  a  vez  dos  pecegueiros,  das  cere- 
jeiras, das  azáleas;  a  boa  natureza  creadora 
não  se  incommoda,  lá  porque  dous  bandos 
de  homens  se  disputam  com  armas  na  mão 
interesses  e  primazias.  Se,  pois,  ahi  em  Por- 
tugal imi  toiíríste,  rara  avis,  haja  pensado 
em  lançar  rumo  para  este  paiz  do  Dai-Nippon, 
onde  o  precederam  Mendes  Pinto  e  o  sr. 
Mendonça  e  Costa,  que  venha,  não  se  assuste 
com  a  guerra.  As  balas  não  chegam  cá,  posto 
que  se  estejam  cruzando  a  relativamente 
pouca  distancia.  E  quando  cheguem?  Sabem 
que  uma  granada  moderna,  quando  bem  es^ 
vasiada  e  cuidadosamente  limpa,  pôde  substi- 
tuir perfeitamente  uma  garrafa  de  cerveja  ?  .  .  . 

Por  outro  lado,  o  commercio  continua  até 
bastante  auspicioso  durante  estes  primeiros 
mezes  do  corrente  anno ;  o  que  quer  dizer  que 
os  negociantes  portuguezes,  que  entraram  ou 
desejam  entrar  em  relaçõss  mercantis  com  o 
Japão,  podem  persistir  no  seu  propósito. 

—  Agora,  para  terminar,  se  querem  rir, 
como  éu  ri  (o  que  me  succede  raras  vezes), 
ouçam  a  seguinte  historia,  que  acabam  de 
contar-me  como  verídica,  posto  que  eu  por 
tal  veracidade  não  responda ;  em  todo  o  caso, 
nos  tempos  mavórcios  em  que  vivemos  por 
aqui,  vem  a  propósito. 


36 


O  capitão  Kusunosé,  de  um  dos  regi* 
mentos  de  Tol<io,  recebeu  ha  dias  o  seguinte 
convite  de  uma  dama  das  legações  estran- 
geiras: 

«Madame  Ledoux  (chamemos-lhe  assim) 
pede  o  prazer  da  companhia  do  capitão  Kusu- 
nosé, na  quarta-feira,  ás  9  horas  da  noute  »► 

O  official  respondeu  por  esta  forma,  no 
seu  melhor  francez: 

«O  capitão  Kusunosé  apresenta  os  seus 
cumprimentos  a  madame  Ledoux  e  sente 
informar  que  13  soldados  e  dous  sargentos 
devem  estar  de  serviço  e  um  cabo  encon- 
tra-se  com  baixa  á  enfermaria;  mas  o  restante- 
da  companhia  do  capitão  Kusunosé  terá  muito- 
prazer  em  assistir  á  reunião  de  madame  Le- 
doux, na  quarta-feira  ». 


IV 

28  de  março  de  1904 

A  acção  naval  japoneza — Consideraç(5es  —  A  acção  ter- 
restre-^ Circumstancias  que  militam  n'esta  acção  a 
favor  dos  japonezes  —  O  prestigio  da  Rússia  — O 
que  esse  prestigio  demandará  para  vencer  —  Os  pe- 
rigos a  que  o  Japão  está  exposto  —  Ou  a  victoria 
ou  a  ruina  —  O  exercito  russo  talvez,  apesar  de 
tudo,  não  possa  esmagar  o  Japão  —  Algumas  con- 
siderações sobre  as  origens  do  povo  japonez  — 
D'onde  provém  o  nome  do  Japão. 

/^  I  DRAMA  da  guerra,  quando  succeda,  como 
^■^^  é  o  caso  geral,  que  o  theatro  das  hosti- 
lidades offereça  portos  maritimos  e  extensões 
de  terra  firme  e  os  belligerantes  disponham  de 
esquadras  e  de  exércitos,  pôde  sempre  divi- 
dir-se  em  duas  partes  distinctas:  a  acção  na- 
val e  a  acção  terrestre.  É  o  que  se  dá  com  o 
Japão  e  a  Rússia. 

Na  lucta  que  se  trava,  a  acção  naval  já 
reverteu  toda  em  favor  e  em  gloria  dos  japo- 
nezes; e  assim  continuará  até  ao  fim,  salvo 
eventualidades  completamente  imprevistas.  Gs 
torpedeiros  —  e   diga-se  de  passagem  que  os 


38 


japonezes  são  talvez  os  melhores  marinheiros- 
torpedeiros  do  mundo,  —  os  torpedeiros,  ao 
mesmo  tempo  que  já  demonstraram  catego- 
ricamente a  supremacia  d'estas  machinas  de 
guerra  sobre  as  outras  unidades  das  esqua- 
dras (couraçados  e  cruzadores),  conseguiram 
assegurar  o  triumpho  do  Japão  sobre  o  mar, 
desbaratando  e  destruindo  muitos  dos  grandes 
navios  do  inimigo  e  forçando  os  que  ainda 
lhe  restam  a  abrigar-se  á  sombra  das  fortale- 
zas de  Porto  Arthui*  e  de  Vladivostok,  d'onde 
não  sahem. 

Devem-se,  todavia,  ir  repetindo  os  ataques 
dos  japonezes  a  estes  dous  pontos,  e  a  conse- 
quência natural  será  a  completa  destruição  da 
esquadra  russa  do  Extremo-Oriente,  já  a  estas 
horas  certamente  muito  dizimada  e  muito  des- 
moralisada.  Para  que  a  fortuna  passasse  dos 
japonezes  aos  russos,  seria  preciso  admittir 
que  uma  nova  esquadra  russa,  muito  mais 
possante  do  que  a  primeira,  viesse  da  Europa 
até  aqui ;  mas  tal  é  difficilimo  admittir,  porque 
em  primeiro  logar  seria  necessário  fazel-a,  e 
uma  esquadra  não  se  faz  tão  depressa  como 
se  deseja.  .  .  Registemos,  pois,  desde  já,  sem 
reservas,  a  victoria  da  esquadra  japoneza  so- 
bre a  esquadra  russa,  facto  tanto  mais  estron- 
doso  quanto  era  a  opinião   corrente   que  os 


39 


marinheiros  nipponicos,  vencedores,  ha  nove 
annos,  dos  miseros  chinezes,  deveriam  fatal- 
mente mostrar-se  muito  inferiores  se  tivessem 
um  dia  de  medir-se  com  uma  força  naval 
europeia.  A  experiência  provou  o  contrario. 

Resta  considerar  a  acção  terrestre,  ainda 
nem  iniciada,  se  pozermos  de  parte  umas  li- 
geiras escaramuças  que  se  deram  já,  sem  im- 
portância alguma.  Militam  principalmente  em 
favor  dos  japonezes  as  seguintes  circumstan- 
cias :  o  dominio  que  adquiriram  no  mar,  o 
que  permitte  livre  percurso  aos  seus  transpor- 
tes, com  tropas,  com  munições,  com  viveres; 
a  excellencia  dos  seus  soldados,  que  são  como 
nenhuns  magníficos  na  marcha,  muito  in- 
struídos, muito  disciplinados,  óptimos  atirado- 
res, e  como  nenhuns  animados  de  immenso 
patriotismo,  de  immensa  coragem,  de  com- 
pleto despreso  pela  vida;  registe-se  ainda  um 
armamento  admirável.  Milita  em  favor  dos 
russos  sobretudo  o  seu  numero,  ou  antes  o 
numero  que  podem  attingir,  enviados  pouco 
a  pouco  de  um  paiz  enorme,  com  uma 'popu- 
lação três  vezes  maior  do  que  a  do  Japão;  e 
é-lhes  de  preciosíssimo  recurso  o  seu  caminho 
de  ferro  transsiberiano,  posto  que  ainda  accuse 
muitas  imperfeições  de  construcção  que  lhe 
diminuem  o  alcance  prático  e  possa  immen- 


40 


sãmente  soffrer  quando  o  inimigo  se  propo- 
nha destruir  a  linha  ao  acaso  das  suas  inves- 
tidas. 

.  No  entretanto,  deve  imaginar-se  que  a 
Rússia  já  esteja  duramente  soffrendo  no  seu 
orgulho  nacional  pelas  recentes  glorias  alcan- 
çadas contra  a  sua  esquadra  por  um  povo 
asiático;  e  que  por  outro  lado  se  lhe  torne 
uma  necessidade  imperativa  o  não  perder  o 
alto  prestigio  de  que  goza  perante  as  nações 
occidentaes,  e  porfiar  ao  mesmo  tempo  na 
realisação  dos  seus  intentos  expansivos  do 
lado  do  Extremo  Oriente,  que  são  a  sua 
grande  ambição  de  ha  mais  de  três  séculos. 
A  Rússia  prepara-se  certamente  na  hora  pre- 
sente para  reunir  n'estas  paragens  um  im- 
menso  exercito,  cujos  soldados  se  contem 
por  milhões,  no  determinado  intuito  de  es- 
magar completamente  as  forças  japonezas.  A 
empreza  demandará  largos  mezes,  mas  não 
faltará  paciência  para  leval-a  a  cabo;  tanto 
mais  que  a  paciência  é  uma  das  grandes  vir- 
tudes dos  russos  e  que  a  demora  redunda 
também  em  arma  de  combate,  pois  são  bem 
conhecidas  as  circumstancias  pouco  prosperas 
do  thesouro  japonez,  presumindo-se  que  uma 
longa  campanha  possa  arrastar  o  império  a 
graves  difficuldades  financeiras. 


41 


Ora  a  invasão  da  Mandchuria  e  dos  paizes 
visinhos  por  esse  immenso  exercito,  recebendo 
dia  a  dia  reforços,  substituindo  a  falta  de  cada 
soldado  morto  no  campo  de  batalha  por  três 
ou  quatro  soldados  frescos  recemchegados 
pelo  caminho  de  ferro,  affigura-se  de  terríveis 
consequências;  parecendo  dever  presumir-se 
que  todo  o  orgulho,  toda  a  coragem,  todo  o 
patriotismo  dos  japonezes  serão  inúteis  e  que 
estes  morrerão  como  heroes,  7nas  viorrerdo, 
perante  a  enorme  desproporção  do  inimigo. 
O  Japão,  este  não  morrerá ;  mas  iniciará  então 
uma  existência  de  miséria,  ferido  em  todas  as 
suas  aspirações,  abatido  em  todas  as  suas 
energias,  joguete  do  despótico  vencedor;  será 
n'uma  palavra,  a  ruina  tremenda,  da  qual  tal- 
vez jamais  possa  surgir,  prestigioso  e  forte, 
como  agora  se  encontra.  Acontecerá  assim? 
Custa-me  crêl-o.  O  Japão  bem  ponderou,  por 
certo,  todos  os  perigos  que  o  ameaçavam 
antes  de  atirar  a  luva  ao  colosso  moscovita. 
E  difficil  acreditar  que  elle  se  submettesse 
antecipadamente  por  si  próprio  a  este  terrível 
dilemma: — victoria  ou  ruina.  O  Japão  não 
admitte  a  ruina.  Se  ousou  arremessar  a  pri- 
meira granada  aos  dous  cruzadores  russos  no 
porto  de  Chemulpo,  é  porque  contava  por 
seguro  que  não  iria  ser  esmagado  sob  a  pata 


42 


do  Urso  do  Norte.  Com  que  emergências 
conta?  Nada  .sabemos.  No  entretanto,  bem 
possível  é  que  o.  Japão  tenha  a  certeza  de 
rpoder  envolver  na  lucta,  n'um  momento  cri- 
^tido,  uma  ou  mais  nações  occidentaes,  ou 
de  electrisar  pelo  brilho  dos  seus  feitos  a 
massa  enorme  da  população  chineza,  a  qual 
se  levante  em  peso,  resolvida  a  aiixiliar  o 
seu  visinho  asiático,  de  quem,  e  não  da 
Rússia,  pôde  muito  esperar  na  successão  dos 
tempos;  ou  será  ainda  um  mysterioso  desí- 
gnio ou  unia  mysteriosa  revelação,  em  que 
entre  em  jogo  a  subtileza  própria,  o  sexto 
sentido  nipponico,  esse  dom  de  raça  a  que 
já  me  tenho  referido  n'estas  cartas  e  que 
continuo  a  adivinhar  na  alma  japoneza,  scen- 
telha  de  génio  que  állumia  este  povo,  por 
caminhos  desconhecidos,  aos  mais  inespera- 
dos triumphos  ?  .  .  .  E,  deve  ainda  advertir-se, 
quaesquer  intervenções  que  sobrevenham  no 
jestado  actual  da  crise,  poderão  ir  affectar 
enormemente  a  paz  universal,  envolver  os 
occidentaes  etri  lances  com  que  não  conta- 
vam; mas  os  japonezes  é  que  poderão  muito 
ganhar  com  ellas,  ou,  talvez  melhor,  os  russos 
é  que  poderão  muito  perder  com  ellas.  Con- 
cluindo: apesar  de  todas  as  apparencias,  pa- 
rece-me  que  não  caberá  ao  immenso  exercito 


43 


russo   a  satisfação   de  esmagai*  d'esta  vez  o 
povo  insular  do  Dai-Níppon. 

—  No  momento  histórico  actual,  em  que 
o-  Japão  está  attrahindo  as  attenções  do  mundo 
inteiro,  não  me  parece  fora  de  propósito  apre- 
sentar aqui  algumas  rápidas  considerações 
sobre  o  que  se  sabe  das  origens  d'este  povo 
extraordinário,  que  viveu  durante  séculos  e 
séculos  no  mais  mysterioso  recolhimento  e 
que,  resolvido  a  adoptar  a  civil isação  Occi- 
dental, em  menos  de  50  annos  se  encontra 
sufficientemente  forte  para  se  erguer  contra 
as  ambições  russas  e  ir  desafiar  o  colossal 
império  europeu. 

Convém  antes  de  tudo  que  fixemos  a  con- 
figuração geral  do  Japão.  O  paiz  estende-se 
na  direcção  approximada  de  sudoeste  para 
nordeste,  avisinhando  da  costa  norte  da  China 
e  do  extremo  sul  da  península  da  Coréa,  da 
qual  está  apenas  a  algumas  milhas  de  distan- 
cia ;  e  é  principalmente  constituído  por  uma 
grande  ilha  central,  chamada  Hondo  ou  Nip- 
pon,  e  por  mais  três  de  menor  grandeza,  Yeso 
ão  norte  em  continuação  de  Hondo,  e  Kyushú 
e  Shikoku  ao  sul. 

A  historia  do  Japão,  posto  que  não  alcance 
as  eras  remotíssimas  da  historia  da  China, 
vai  comtudo  bem  mais  longe  nos  tempos  do 


44 


que  a  de  qualquer  Estado  europeu  da  actuali- 
dade. As  mais  velhas  chronicas  japonezas,  o 
Kojíkí  e  o  Nihonji,  datam  do  nosso  século 
viu;  d'el]as  se  podem  colher  preciosíssimas 
informações,  as  quaes  são  particularmente 
precisas  a  partir  do  nosso  século  v ;  mas,  se- 
gundo as  mesmas  chronicas,  havia  já  mais  de 
dez  séculos  que  reinava  a  dynastia  dos  Mika- 
dos,  ou  Imperadores,  ininterrompida  até  hoje. 
O  primeiro  imperador,  Jimmu-tennô,  descido 
do  céu  sobre  a  ilha  de  Kyushú  cerca  do 
anno  711  antes  de  Christo,  passa  depois 
para  a  grande  ilha,  encontrando  na  pro- 
vinda de  Yamato  povos  da  mesma  raça  dos 
seus  súbditos,  com  os  quaes  se  trava  em 
guerra  e  que  subjuga;  escolhe  em  seguida 
Kashivvabara,  em  Yamato,  para  capital  do  Im- 
pério Nascente ;  é  alli  acclamado  em  1 1  de 
fevereiro  de  ó6o  e  vota-se  á  organlsação  do 
Estado.  No  século  v,  os  antepassados  dos 
japonezes  actuaes  eram  senhores  de  Kyushú, 
de  Shlkoku  e  da  metade  sudoeste  da  grande 
ilha  de  Nippon, 

Os  modernos  estudos  levam  a  conclusões 
em  harmonia  com  a  lenda,  como  logicamente 
devia  succeder.  E'  conhecido  que,  muitos  sé- 
culos antes  da  éra  chrlstã,  piratas  de  origem 
mongollca,  vindos  da  Corêa,  se  entregaram,  a 


45 


amiudadas  investidas  na  costa  Occidental  do 
Japão,  fixando-se  alguns  em  Kyushú,  para 
onde  trouxeram  suas  famílias,  e  onde  exter- 
minaram ou  d'onde  expulsaram  os  habitantes 
indigenas  que  encontra]'am,  que  eram  os  ainos, 
dos  quaes  em  breve  fallarei.  Mais  tarde  uma 
expedição,  partindo  de  Kyushú  sob  o  com- 
mando  de  um  chefe  supremo,  que  não  seria 
outro  senão  Jimmu-tennô,  atravessou  o  mar 
e  passou  para  a  grande  ilha  onde  deparou  com 
•povos  da  mesma  raça,  igualmente  vindos  da 
Corêa,  já  estabelecidos  no  Hondo.  Travou-se 
lucta,  ficando  vencedor  Jimmu-tennô ;  mas 
vencedores  e  vencidos  juntaram-se  depois  e 
proseguiram  n'uma  commum  tarefa  de  expan- 
são e  de  conquista,  escorraçando  pouco  a 
.pouco  para  o  norte  os  ainos,  os  quaes,  por 
fim  se  refugiaram  em  Yeso,  onde  até  hoje  se 
encont.am,  reunidos  n'uma  pequena  tribu  de 
não  mais  que  uns  17:600  individuos,  que 
parece  se  vão  extinguindo,  como  acontece 
aos  aborígenes  na  America,  como  acontece 
a  todas  as  raças  em  presença  de  raças  supe- 
riores. 

Os  japonezes  de  hoje  são,  pois,  segundo 
as  opiniões  mais  auctorisadas,  a  que  me 
apoio,  filhos  de  duas  correntes  de  emigrantes 
vindos  da  mesma  procedência,  da  Gorêa.  Per- 


46 


tencem  assim  á  família  chamada  uralo-altaica, 
que  comprehende  os  íinnios,  os  magyares,  os 
turcos,  os  mongolios  e  os  coreanos.  Nada 
teem  de  commum  com  os  chinezes,  a  não  ser 
o  participarem  dos  caracteres  genéricos  do 
mesmo  grande  ramo  asiático;  o  que  por  outro 
lado  se  comprova  pela  differença  radical  entre 
as  duas  linguas,  a  chineza  monosyllabica,  a 
japoneza  agglutinante.  E  quando  a  Rússia, 
auxiliada  por  parte  da  imprensa  de  outros 
paizes,  começa  agora  a  invocar  o  espantalho 
do  perigo  amarello^  tem  graça  chegar-se  á 
conclusão  de  que  os  japonezes  não  são  ama- 
rcllos,  mas  que  amarcllos,  em  certa  proporção, 
são  os  russos,  que  soffreram  por  mAiito  tempo 
o  dominio  dos  tártaros,  os  quaes,  retirando-se, 
lhes  deixaram  não  poucos  vestígios  do  seu 
sangue !  .  .  . 

As  duas  correntes  de  emigração  a  que  me 
referi,  embora  da  mesma  origem,  deveriam  ter 
pertencido  a  castas  differentes.  A  isto  se  attri- 
bue  o  facto  de  dous  typos  invariáveis  que  se 
encontram  na  massa  da  população  japoneza: 
um,  commum  nas  classes  baixas  e  que  accu- 
saria  os  descendentes  dos  vencidos,  de  cara 
de  lua  cheia  avermelhada  ou  escura,  de  nariz 
largo  e  achatado,  de  maçãs  do  rosto  salientes, 
de  olhinhos  repuxados;  outro,  o  da  tribu  no- 


47 


bre  de  Jimniu-tennò,  de  rosto  oval  e  pallido, 
de  nariz  aquilino,  de  bellos  olhos  fendidos 
em  amêndoa.  Muitos  visitantes  teem  feito  a 
curiosa  observação  de  que  as  japonezas  pa- 
tenteiam em  geral  um  tj^po  mais  distincto  e 
gracioso  do  que  o  sexo  forte  da  mesma  na- 
cionalidade ;  sem  pretender  haver  achado  a 
explicação  do  problema,  assento  a  hypothese, 
que  me  parece  não  ir  de. encontro  ás  noções 
da  sciencia  adquirida,  de  que  possivelmente, 
nos  mil  e  mil  vezes  repetidos  cruzamentos  de 
sangue  que  se  dão  entre  as  duas  categorias 
citadas,  'a  filha  possue  mais  aptidões  do  que 
o  tilho  para  herdar  as  qualidades  phj^sicas  do 
ramo  nobre. 

Quanto  aos  elementos  malaio  e  indonesico, 
aos  quaes  se  julgou  em  principio  dever  attri- 
buir  uma  grande  importância  como  factores 
constituitivos  da  raça  japoneza  actual,  parece 
que  hoje  a  perderam.  A  influencia  do  chinez 
é  também  intima. 

Pelo  que  toca  aos  ainos,  povo  aborigene 
do  Japão,  ou  pelo  menos  habitando  o  solo 
muito  tempo  antes  dos  seus  actuaes  usufru- 
ctuarios,  são  elles  bastante  alvos,  possuindo 
longa  barba  e  tidos  pelos  homens  mais  cabol- 
ludos  do  mundo  inteiro,  de  costumes  primiti- 
vos,  dados   á  pesca   e   á   caça.   Só  no  nosso 


48 


século  XVIII  é  que  os  japonezes  conseguiram 
dominal-os  por  completo.  A  prolongada  visi- 
nhança  das  duas  tribus,  japonezes  e  ainos, 
poderia  fazer  suppôr  o  seu  natural  cruza- 
mento e  por  consequência  uma  grande  parti- 
cipação do  elemento  aino  no  typo  japonez  hoje 
existente ;  mas  apresenta-se  uma  razão  cate- 
górica, agora  conhecida,  que  invalida  por 
completo  tal  hypothese  —  os  mestiços  aino- 
japonezes  são  estéreis  á  terceira  ou  quarta 
geração. 

Quereis  por  ultimo  saber  (se  não  sabeis) 
d'onde  provém  o  nome  de  Níhon,  ou  de  Níp- 
pofiy  que  os  japonezes  dão  ao  seu  paiz?  Ao 
contrario  do  que  poderia  esperar-se,  provém 
da  palavra  chineza,  composta,  jip-pên  (que 
nós  traduzimos  por  Japão);  quer  dizer  origem 
do  sol,  \s\.o  é,  logar  d' onde  o  sol  nasce,  eviden- 
temente traduzindo  a  impressão  de  um  povo 
que  vivia  ao  occidente  da  terra  japoneza.  O 
Zipangíí  de  Marco  Polo  deriva  do  mesmo 
termo  chinez,  com  a  addição  da  palavra  Kuo, 
que  quer  dizer  paiz.  O  nome  de  Nikon  parece 
ter  sido  primeiraments  empregado  pelos  japo- 
nezes, em  linguagem  official,  só  no  anno  670 
depois  de  Christo.  Anteriormente  chamavam 
Yamato  (o  caminho  das  montanhas)  ao  solo 
que   habitavam,  em  concorrência  com  outras. 


49 


denominações  mais  exóticas,  como  O-uii-Kuni 
(o  grande  augusto  paiz),  ou  ainda,  se  me  des- 
culpam a  citação,  Toyo-ashi  ivara-no  chiseki 
no  iiagai-ho-aki-no-mizuho  no  knni  (a-luxu- 
fiante-planicie-de-bambus-a-terra-das-frescas- 
espigas  -  de  -  arroz  -  que  -  durará  -  mil-vezes-qui- 
nhentos-outomnos). 


V 

5  de  abril  de  1904 

As  noticias  da  guerra  —  O  exercito  japoncz  tal  como  é 
—  A  comparação  da  Rússia  c  do  Japão  —  A  im- 
prensa europeia  e  as  hostilidades  —  França,  Rússia 
e  Japão  —  A  opinião  franceza  —  A  ideia  que  se  deve 
fazer  do  povo  japonez  —  As  sympathias  que  me- 
rece —  [Jvros  a  respeito  do  Japão. 


A 


s  ultimas  noticias  da  guerra  são  as  se- 
guintes. 

Em  2/  de  março  uma  segunda  expedição 
tentou  novamente  obstruir  a  entrada  de  Porto 
Arthur,  submergindo  quatro  velhos  vapores 
que  para  tal  fim  seguiram  para  aquelle  ponto, 
comboiados  por  uma  esquadrilha  de  torpedei- 
ros e  destroycrs,  Pai-ece  que  o  intento  que  se 
tinha  em  vista,  foi  apenas  parcialmente  conse- 
guido. No  combate  que  se  travou,  os  navios 
russos  soífreram  varias  avarias.  Do  lado  dos 
japonezes,  ha  a  registar  treze  mortos  e  feri- 
dos, entre  os  quaes  se  conta  um  distincto 
official,  o  commandante  Hirose,  que  uma  bala 
de  canhão  de  tiro  rápido  attingiu  na  fronte, 
matando-o  instantaneamente. 


51 


Em  terra,  na  parte  norte  da  Coréa,  teem-se 
eíTectiiado  varias  escaramuças;  uma  d'ellas 
occorreu  na  manhã  de  28,  cerca  da  cidade  de 
Chongju,  entre  forças  de  cavallaria,  termi- 
nando pela  retirada  dos  russos,  occupando  os 
japonezes  a  cidade. 

Nada  mais  se  sabe.  Correm  vaiiadissimos 
boatos  que  não  reproduzo,  não  querendo 
imitar  a  grande  maioria  dos  correspondentes 
dos  jornaes  europeus,  cujas  estupendas  men- 
tiras, pelo  que  vejo  nas  folhas  que  me  chegam 
ás  mãos,  tocam  as  raias  da  phantasmagoria. 

—  Tenho  visto  ultimamente  avaliado  o 
exercito  japonez  em  tempo  de  guerra,  por 
alguns  jornaes  da  Europa,  e  creio  que  mesmo 
pelo  Commercio  do  Porto^  em  400:000  homens. 
Julgo  dever  indicar  uma  correcção. 

E'  impossível  apresentar  dados  rigorosos 
a  tal  respeito,  visto  faltarem  ha  annos  estatís- 
ticas minuciosas  sobre  o  assumpto,  o  que  é 
devido,  sem  duvida,  ao  interesse  do  governo 
japonez  em  não  esclarecel-o.  No  entretanto, 
pôde  suppòr-se,  sem  ir  muito  longe  da  ver- 
dade, que  as  forças  japonezas  de  terra  orçam 
por  600:000  homens,  quando  incluídos  o  activo 
ordinário,  a  reserva  e  a  landzvehr;  se  contar- 
mos também  com  os  depósitos  e  a  lajuisturm, 
o  numero  pôde  ainda  ser  muito  augmentado. 


52 


Eis  qual  é  a  actual  organisação  militar 
japoneza:  Todos  os  indivíduos  do  sexo  mas- 
culino com  20  annos  completos  de  idade  estão 
sujeitos  ao  serviço  militar,  devendo  fazer  3 
annos  de  serviço  activo  e  4  na  reserva.  Depois 
d'este  periodo  são  obrigados  a  servir  na  land- 
wehr  por  5  annos.  Ha  i.^  e  2.^  depósitos;  o 
i.^  deposito,  com  uma  duração  de  7  annos  e 
4  mezes,  é  organisado  com  aquelles  individuos 
que  não  foram  alistados  para  activo  serviço; 
o  2."  deposito,  de  i  anno  e  4  mezes,  é  com- 
posto com  os  individuos  que  não  foram  alis- 
tados no  I."  deposito.  O  serviço  áo.  landstiirm 
é  di\idido  em  duas  classes,  sendo  ai.*  comr 
posta  dos  individuos  que  completaram  a  la7id- 
wehr  e  o  T.^  deposito,  e. incluindo  a  2.^  todos 
os  outros  individuos.  Todo  o  japonez,  dentro 
dos  limites  de  17  a  40  annos  de  idade,  é 
obrigado  a  servir  a  sua  pátria  em  caso  de 
emergência  nacional. 

O  exercito  em  activo  serviço  conta  actual- 
mente a  divisão  da  guarda  imperial  e  mais  12 
divisões,  distribuídas  pelos  differentes  pontos 
do  império ;  e  inclue  48  regimenjbs  de  infan- 
teria,  15  regimentos  de  cavallaria,  18  regi- 
mentos de  artilheria,  13  batalhões  de  enge- 
nheiros, forças  de  praça,  corpo  de  caminhos  de 
ferro,  guarnições  de  Formosa  e  Tsushima,  etc. 


53 

Vem  a  propósito  lembrar  agora  que,  com- 
quanto  a  Rússia  seja  immensamente  maior  em 
área  do  que  o  Japão,  as  populações  dos  dous 
impérios  estão  longe  de  apresentar  proporcio- 
naes  differenças.  Assim,  orçando  a  população 
do  Japão  por  45  milhões  de  individuos,  a  da 
Rússia  é  de  129  milhões,  isto  é,  bastante  infe- 
rior ao  triplo  da  população  japoneza.  Pôde  a 
Rússia,  como  é  sabido,  levantar  um  enorme 
exercito  em  tempo  de  guerra,  mas  não  pôde, 
claramente,  envial-o  em  massa  ao  Extremo- 
Oriente.  Conclue-se,  pois,  que  as  tropas  russas, 
que  terão  de  haver-se  com  o  inimigo,  não  o 
encontrarão  por  certo  em  numero  tão  mesqui- 
nho que  lhes  assegure  desde  logo  os  louros 
da  gloria.  Pelo  contrario,  a  lucta  será  renhida, 
a  victoria  tenazmente  disputada.  Jogam-se, 
por  um  lado,  as  ambições  seculares  do  colosso 
europeu ;  por  outro  lado,  a  independência,  por 
assim  dizer,  do  solo  dos  Mikados. 

—  Vão  agora  chegando  ao  Japão  os  pri- 
meiros jornaes  da  Europa  com  referencias  ao 
facto  do  rompimento  de  hostilidades  no  Ex- 
tremo-Oriente.  Vejo  com  satisfação  que  a 
imprensa  europeia  presta  em  geral  a  devida 
justiça  ao  procedimento  adoptado  pelo  império 
japonez.  Apenas  a  imprensa  franceza,  não 
toda,  se  mostra  discordante,  o  que  nada  deve 


54 


admirar,  visto  que,  assim  como  nohlesse  oblige, 
também  alliança  ob7'iga,  sendo  natural  que  os 
francezes,  cuja  amabilidade  é  proverbial,  sejam 
amáveis  com  os  russos,  seus  actuaes  alliados. 
Digamos,  de  passagem,  que  a  França,  que  em 
1895,  juntamente  com  a  Allemanha,  se  poz  ao 
lado  da  Rússia  para  impedir  que  o  Japão  se 
apossasse  da  península  de  Liaotung,  que  a 
China  vencida  lhe  cedia,  desde  aquelle  mo- 
mento deu  o  primeiro  passo  para  alienar  de 
si  as  sympathias  do  Japão,  ganhas  desde  lon- 
gos annos  em  virtude  de  intimas  relações 
commerciaes,  intellectuaes  e  politicas,  que  iam 
promettendo  crescente  e  prospera  expansão ; 
agora,  os  artigos  dos  jornaes  francezes  não 
servirão  por  certo  a  fazer  reviver  taes  sympa- 
thias. A  França,  em  toda  a  verdade,  não  tem 
sido  muito  feliz  com  a  sua  norma  de  politica 
em  todo  o  Extremo-Oriente,  podendo  aliás  ter 
desempenhado  um  papel  proeminente  n'esta 
parte  do  mundo,  em  harmonia  com  a  alta 
posição  que  occupa  na  sociedade  das  nações ; 
sem  já  fallar  em  Siam,  a  sua  interferência 
na  China  tem  quasi  que  meramente  raste- 
jado no  campo  das  intrigas  clericaes,  esque- 
cendo-se  de  alargar  a  sua  influencia  moral  e 
commercial,  que  bem  mais  útil  lhe  poderia  ter 
sido. 


55 


Mas,  voltando  á  má  vontade  contra  o  Ja- 
pão de  uma  parte  da  imprensa  franceza,  é  de 
presumir  que  ella  se  tenha  reflectido  na 
opinião  em  Portugal,  que  é  allíado  politico  da 
Inglaterra,  mas  alliado  intcl/ecttiai  da.  FreLUí^a.; 
como,  porém,  não  o  é  da  Rússia,  convém, 
parece-mc,  que  no  nosso  paiz  se  faça  uma 
ideia  justa  d'este  povo,  perante  a  terrível  crise 
em  que  se  acha  envolvido. 

Eu  não  nutro  nem  sombras  de  pretensão 
de  querer  por  estas  singelas  cartas  orientar  a 
opinião  dos  meus  patricios  em  favor  dos  japo- 
nezes.  Desejaria,  é  certo,  que  em  Portugal  se 
não  regateasse  a  sympathia  de  que  o  Japão  é 
merecedor;  e  aíigura-se-me  este  momento 
mais  azado  do  que  nenhum  outro  para  que  se 
consultem  com  interesse  os  melhores  livros 
que  faliam  d'este  paiz  e  que  ensinam  a  amal-o. 
E'  lamentável  que  a  grande  maioria,  não  direi 
só  dos  portuguezes,  mas  de  todos  os  europeus, 
conheçam  tão  mal  o  Dai-Nippon,  encantador 
pelas  suas  paizagens,  pelos  seus  aspectos,  e  o 
seu  povo,  adorável  pela  arte,  pelos  costumes, 
e  dotado  de  qualidades  brilhantes,  que  o  tor- 
nam um  dos  mais  estimav^eis  povos  do  mundo 
inteiro. 

N'este  intuito,  vou  apresentar  aos  leitores 
do  Commercio  do  Porto,  ao  capricho  da  minha 


56 


fatigada  reminiscência,  os  títulos  de  alguns 
livros  interessantes,  que  julgo  deverão  ser  li- 
dos com  particular  agrado.  Na  litteratura  in- 
gleza  contam-se  os  seguintes  volumes  do 
erudito  snr.  Chamberlain,  que  occupa  distin- 
ctamente  desde  longos  annos  uma  cadeira 
na  Universidade  de  Tokio;  Things  Japanese^ 
Murrafs  Handbook  for  Japan,  etc.  No  mesmo 
idioma:  os  brilhantes  volumes  de  Lafcadio 
Hearn,  Glimpses  of  iinfaniiliar  Japait^  Oiit  of 
the  East  e  Ktikoro ;  de  Miss  A.  M.  Bacon, 
Japanese  Girls  and  Women]  de  A.  B.  Mitford, 
Tales  of  Olá  Japan.  Escriptos  em  francez,  cito 
os  seguintes  volumes,  resumindo  a  lista :  Essai 
sur  rhistoire  dii  Japon,  de  De  la  Alazelière ; 
Le  yapofty  de  I.  Hitomi ;  La  renovai íon  de  VAsie^ 
de  P.  Leroy-Beaulieu ;  os  três  livros  de  E.  de 
Goncourt  La  maison  d'tm  artiste,  Outama7'0 
e  Hokonsai;  La  Restauratíon  hnpéríale,  de 
Layrle ;  L  'art  japonais,  de  Gonse ;  La  Scvur 
du  Soleíl,  de  J.  Gautier;  o  recente  primoroso 
volume  Etude  snr  Hokonsai  de  M.  Michel  Re- 
von,  ex-professor  em  Tokio  e  actualmente  em 
França,  onde  pelas  suas  conferencias  e  outros 
trabalhos  de  vulgarisação  é  um  dos  poucos 
que  muito  concorrem  para  fazer  conhecido  e 
amado  o  Impe7'io  do  Sol  Nascente,  Fiquemos 
por   aqui;   mas  direi   ainda,   terminando   este 


57 


assumpto,  que  as  photographias,  as  gravuras, 
as  estampas  sobretudo,  abundantes  e  baratís- 
simas no  Japão,  prestarão  aos  curiosos  um 
valiosissimo  auxilio  no  estudo  dos  aspectos 
do  paiz  e  dos  costumes  d'este  povo.  ^ 


VI 


26    de    abril    de    190* 


A  guerra  russo-japoneza  —  A  perda  do  Petropaulowsk 
—  O  almirante  russo  Makaroff — As  cerejeiras  cm 
Tokio  —  A  imprensa  jornalística  no  Japão. 


T3assaram-se  bastantes  dias  sem  haver  a 
registar  nenhuma  noticia  importante  do 
campo  das  hostilidades,  vindo  apenas  infor- 
mações de  ligeiras  escaramuças  entre  guardas 
avançadas  dos  dous  exércitos.  Sabe-se  agora 
que  as  forças  belligerantes  se  encontram  a 
cerca  de  600  jardas  de  distancia  entre  si,  mas 
separadas  pelas  alcantiladas  montanhas  do 
valle  do  Yalu,  difficeis  de  transpor,  o  que 
pôde  demorar  ainda  por  alguns  dias  um  en« 
contro  sério  entre  os  dous  exércitos. 

Chega  a  noticia  sensacional  de  ter  o  almi- 
rante Alexeieff,  vice-rei  da  Rússia  no  Extra- 
mo-Oriente,  pedido  a  demissão  do  seu  alto 
cargo,  em  virtude  de  descontentamento  pes- 
soal na  marcha  dos  negócios  e  de  desconsi- 


59 


derações  que  julga  ter  soffrido.  O  facto  é  de 
grande  importância  e  dá  bem  ideia  das  intri- 
gas e  dos  resentimentos  que  fermentam  na 
administração  superior  do  império  do  czar. 
Um  jornal  ingiez  do  Japão,  commentando  a 
noticia,  judiciosamente  lamenta  que  a  exone- 
ração de  Alexeieff,  um  dos  maiores  instiga- 
dores da  guerra,  não  se  tivesse  dado  alguns 
mezes  antes,  o  que  possivelmente  poderia  ter 
levado  a  uma  solução  pacifica  da  questão. 

Com  respeito  á  guerra  marítima,  também 
se  deram  longas  tréguas  de  incidentes,  até 
que  finalmente  nos  chegaram  informações  de 
um  sétimo  e  oitavo  ataques  da  esquadra  ja- 
poneza  a  Porto- Arthur,  com  resultados  extre- 
mamente commoventes.  Na  manhã  de  13  a 
esquadra  japoneza  atacou  Porto-Arthur,  sa- 
hindo  para  o  mar  os  navios  russos  afim  de 
lhe  darem  combate;  estes,  porém,  trataram 
de  recolher  logo  após,  atemorisados  com  o 
grande  numero  dos  barcos  inimigos,  alguns 
dos  quaes,  certamente  avisados  por  meio  da 
telegraphia  sem  hos,  correram  de  longe  a  re- 
forçar a  primitiva  esquadra.  O  mar  esta\'a 
tempestuoso ;  a  esquadra  russa,  na  pressa  de 
se  pôr  a  salvo,  abandonou  á  mercê  do  inimigo 
um  dos  seus  dcstroycrs,  que  foi  atacado  e  met- 
tido  no  fimdo.  O  couraçado  «Petropaulowsk», 


6o 


quando  ia  passar  a  barra,  tocou  n\iiT)  torpedo 
que  os  japonezes  haviam  fundeado  previa- 
mente, explodindo  e  afundando-se.  N'elle  pe- 
receram mais  de  óoo  homens,  incluindo  o 
almirante  Makaroff,  chefe  das  forças  navaes 
russas  no  Extremo-Oriente.  O  principe  CiriL 
Vladimir,  que  se  achava  a  bordo,  foi  um 
dos  raros  sobreviventes,  mas  encontra-se  fe- 
rido. 

O  couraçado  « Petropaulowsk »  era  uma 
das  bellas  unidades  de  combate  da  esquadra 
russa,  de  construcção  moderna,  poderosa- 
mente armado,  com  um  deslocamento  de 
10:960  toneladas.  Quanto  á  morte  do  distin- 
ctissimo  almirante,  de  alta  competência  profis- 
sional, conhecido  e  respeitado  no  mundo 
inteiro,  deve  ella  ter  sido  muito  sentida  em 
toda  a  Europa,  e  foi-o  certamente  no  Japão, 
a  despeito  do  alcance  que  representa  em 
favor  dos  seus  êxitos  navaes.  Em  Tokio, 
eminentes  vultos  políticos  testemunharam  pu- 
blicamente o  seu  sentimento ;  a  imprensa  pro- 
cedeu da  mesma  forma;  e  em  todo  o  Japão 
o  povo  se  absteve  de  commentar  em  enthu- 
siasmos  o  seu  no\'0  feito  de  armas,  que  teve 
como  resultado  uma  tamanha  catastrophe  e  a 
perda  inglória  do  almirante  Makaroff.  Veja-se 
n'isto   uma  manifestação   da  clássica  fórmula. 


6i 


do  Yaniato-Damaskií  (o  velho  cavalheirismo 
do  Japão),  aprcsentando-se  ainda  em  finas 
delicadezas  de  sociabilidade,  mesmo  no  campo 
da  liicta,  tendo  por  mira  o  exterminio. 

Em  15,  deu-se  ainda  outro  ataque  em 
Porto  Arthur,  bombardeando  a  esquadra  japo- 
neza  os  fortes  e  o  ancoradouro.  Por  esta  occa- 
sião  os  novos  cruzcidores  «Nisshim»  e  «Ka- 
suga»,  ha  pouco  adquiridos  na  Itália,  fizeram 
a  sua  estreia  de  fogo,  satisfazendo  completa- 
mente os  officiaes  japonezes. 

—  A  correspondência  referente  ás  nego- 
ciações entre  o  Japão  e  a  Rússia,  trocada 
entre  o  barão  Komura,  ministro  japonez  dos 
negócios  estrangeiros,  e  o  snr.  Kurino,  ultimo 
ministro  do  Japão  na  Rússia,  tem  tido  larga 
publicidade  na  imprensa  local  e  é  digna  do 
mais  attento  estudo;  por  ella  se  manifesta 
claramente  a  maneira,  ao  mesmo  tempo  digna 
e  conciliadora,  empregada  pelo  Japão,  no  in- 
tuito de  resolver  pelos  meios  pacificos  o  pro- 
blema do  Extremo-Oriente.  A  Rússia  é  que 
não  perfilhava  iguaes  intuitos,  embora  se  não 
cansasse  de  apregoar  a  paz  por  todo  o  orbe; 
e,  pela  sua  indelicadeza  para  com  o  Japão, 
pela  sua  teimosia  em  não  desistir  em  ne- 
nhum ponto  das  suas  largas  ambições,  arras- 
tou  o  conflicto  ao   extremo   em   que  hoje  se 


62 


encontra  e  que  todos  os  imparciaes  lamentam 
profundamente. 

—  Durante  as  três  primeiras  semanas  d'este 
mez,  o  Japão  inteiro,  especialmente  Kj^oto, 
onde,  por  acaso  me  encontrei,  achou-se  em 
grandes  alvoroços,  podendo  dizer-se  que  toda 
a  gente  andava  pelas  ruas,  com  excepção  de 
algum  raro  moribundo  de  mau  gosto.  .  . 
Questão  de  guerra }  Uma  esperada  invasão 
dos  russos  no  solo  sagrado  de  Nippon.^  Nada 
dMsto,  felizmente.  E'  que  as  cerejeiras  floriam, 
e  nenhum  bom  japonez  deixa  passar  esta 
quadra  sem  ir  peregrinar  pelos  logares  mais 
famosos,  onde  as  deliciosas  arvores  —  sakura, 
em  denominação  indígena  —  se  ostentam  em 
indescriptiveis  primores  primaveris. 

Fique-se  sabendo,  se  é  que  se  não  sabe, 
que  as  cerejeiras  japonezas,  que  os  sábios 
do  Occidente  appellidam  com  desdém  e  em 
arrevesado  latinório  priiniis  pscndo-ccrasus 
(assim  como  quem  diz  as  falsas  cerejeiras), 
produzem  uns  desprezíveis  fructosinhos,  in- 
capazes de  tentarem  mesmo  uma  galllnha 
esfomeada;  mas,  em  flores,  não  ha  maravilha 
comparável. 

As  cerejeiras  abundam  por  toda  a  parte 
no  Japão.  Em  Tokio,  em  Osaka,  em  Yoshino 
e  eni  muitos  outros  sítios,  ha  pousos  afamados 


I 


63 


aonde  o  povo  corre  para  gosar  a  sua  flores- 
cência, em  doce  recíjlhimento.  Folgam  os 
olhos;  as  mãos  não  profanam  taes  encantos; 
ainda  não  vae  longe  o  tempo  em  que  era 
punido  de  morte  aqueile  que  arrancasse  uma 
haste  ás  cerejeiras  dos  jardins  de  Tokio. 

Kyoto  é  também  notável  por  taes  arvores, 
sobretudo  por  uma,  a  mais  bella  cerejeira  do 
Japão;  é  a  cerejeira  de  Guion,  Guion-no- 
sakuray  cerca  do  templo  de  Guion,  no  parque 
de  Maruyama.  Quando  em  começos  de  abril 
se  sobe  a  doce  rampa  que  conduz  a  Maruyama 
(a  montanha  redonda),  vão,  a  pouco  e  pouco, 
desenhando-se  e  projectando-se  no  fundo 
verde  da  paizagem,  aqui  e  alli,  de  mistura 
com  os  pinheiros,  as  graciosas  cerejeiras, 
ainda  nuas  de  folhas,  mas  recamadas  de  flo- 
res ;  segundo  as  variedades,  e  segundo  a  hora 
e  segundo  o  local,  os  aspectos  d'estas  flores- 
cencias  variam,  ora  similhando  agglomerações 
fofas  de  neve,  em  novellos  de  fumo,  ora  cham- 
mas  de  incêndio.  A  certa  altura  surge,  em 
triumphos  incomparáveis,  a  cerejeira  de  Guion, 
muitas  vezes  secular,  de  nodoso  e  robusto 
tronco,  estendendo  em  torno  os  longos  braços, 
cujos  extremos  cahem  em  pendor,  e  coberta 
de  myriades  de  ílorinhas  alvas,  que  lhe  dão 
a  apparencia  de  uma  arvore  de  prata,  mara- 


64 


vilha  fabulosa,  digna  de  adornar  jardins  de 
fadas.  O  vasto  parque  enche-se  de  passeantes, 
que  vêem  de  longe  admirar  tamanho  encanto ; 
e,  como  se  o  dia  não  bastasse,  de  noute  bri- 
lham lâmpadas  eléctricas  e  ardem  archotes  em 
torno,  illuminando  aquella  phantastica  cascata, 
que  jorra  flores  a  esmo.  .  . 

E'  em  tal  occasião  que  mais  interessante 
se  torna  ao  forasteiro  o  admirar  este  povo  por 
excellencia  delicado,  em  extasis  perennes  pe- 
rante as  oflorias  da  natureza-mãe.  Que  miisii' 
7nés  deliciosas,  que  creancinhas  adoráveis,  sor- 
rindo ás  flores,  suas  irmãs !  .  .  .  Mas  todos, 
homens  na  pujança  da  juventude,  velhinhos 
alquebrados,  todos  offe recém  ao  exame  rostos 
bons  e  captivantes,  du.lcificados  pelo  senti- 
mento de  amor  á  vida  e  á  creação,  que  anima 
as  consciências.  A  guerra  concorre  para  o 
espectáculo  com  mais  uma  gentileza:  convém 
que  as  tropas  que  ainda  não  partiram,  mas 
partirão,  esperem  o  seu  turno  em  salutar  effer- 
vescencia,  alheias  a  ócios  perniciosos;  assim, 
de  logares  distantes,  acodem  em  marchas  for- 
çadas e  ao  som  do  alarido  das  cornetas  os 
bravos  soldadinhos;  chegam  emfim  a  Ma- 
ruyama,  poeirentos,  estafados,  jubilosos,  com 
grandes  ares  mavórcios  ;  ensarilham  as  armas 
e   recebem  ordem  dos  seus  chefes  para  dis- 


f 


65 


persarem  e  irem  contemplar  a  cerejeira  de 
Guion.  .  .  Encantadoras  batalhas  de  ílòres!  .  .  . 

—  Affigura-se-me  que  esta  carta  deve 
chegar  ao  seu  destino  cerca  de  fins  de  maio, 
isto  é,  dous  ou  três  dias  antes  da  altamente 
sympathica  commemoração  do  50.°  anni- 
versario  do  Commercio  do  Porto.  Enviando 
d'aqui  as  minhas  sinceríssimas  felicitações  á 
illustre  redacção  d'este  jornal,  julgo  terem 
cabimento  n'este  momento  e  n'este  logar  al- 
gumas ligeiras  considerações  sobre  a  imprensa 
jornalística  do  Japão. 

As  publicações  baratas  de  vulgarisação  da- 
tam de  velhos  tempos  n'este  império,  quando 
se  tratava  de  algum  grande  crime  emocionante 
ou  cousa  parecida,  sendo  então  a  noticia  gra- 
vada toscamente  n'uma  tábua  e  reproduzida 
por  impressão  em  folhas  soltas ;  dizem-me 
que  ainda  hoje  o  processo  é  empregado  e 
muito  pi-oductivo,  indo  por  vezes  o  esperto 
vendilhão  berrar  o  escândalo  á  porta  de  algum 
compromettido  no  assumpto  e  que  se  vê 
obrigado  a  comprar  a  edição  toda  a  bem  do 
seu  decoro.  Mas  nada  d'isto  é  o  jornal.  O 
Kaigwai  Shimbiin,  publicado  em  1864- 1865, 
foi  a  primeira  tentativa  jornalística;  era  seu 
editor  um  tal  Joseph  Heco,  japonez,  que  em 
1850  cahira  ao  mar  de  uma  lorcha  japoneza, 


66 


sendo  salvo  por  um  navio  estrangeiro  e  levado 
para  a  America,  d'onde  voltou  quando  o  Ja- 
pão se  abriu  ao  convívio  mundial. 

Em  1871,  o  Shunbiin  Zazahi  indica  uma 
segunda  tentativa.  O  Nisshln  Shinjiski,  publi- 
cado em  1872  pelo  inglez  John  Black,  um  dos 
primeiros  residentes  europeus  de  Yokohama, 
foi,  porém,  o  primeiro  jornal  digno  d'este 
nome,  moldado  á  europeia,  com  artigo  de 
fundo,  critica  dos  íicontecimentos  políticos, 
noticiário,  etc.  Aos  inícios  do  jornalismo  ja- 
ponez  também  andou  muito  ligado  um  portu- 
guez  de  Macau,  Rosa,  ha  poucos  mezes 
fallecído,  do  que  dei  conta  n'estas  cartas. 

A  novidade  agradou  muito  e  o  jornalismo 
entrou  em  moda  no  Japão.  Ha  seis  annos, 
havia  n'este  império  1:500  publicações  perió- 
dicas, incluindo  jornaes  diários,  magazines, 
boletins  de  sociedades,  revistas  de  arte,  etc. ; 
o  numero  tem  certamente  ainda  augmentado. 
Taes  publicações  são  todas  escriptas  em  ja- 
ponez,  com  excepção  de  poucas,  em  geral 
editadas  por  estrangeiros,  escriptas  em  inglez, 
e  uma  apenas,  creio,  em  allemão.  Vem  a  pro- 
pósito dizer  que  m.uitos  portuguezes  de  Macau 
se  dão  ao  officio  de  impressor,  de  sorte  que 
bastantes  d'elles  exercem  cargos  nas  empre- 
zas  jornalísticas  de  todo  o  Extremo-Oriente. 


67 


No  Japão,  um  portuguez  pelo  menos  se  en- 
contra actualmente  ao  serviço  de  um  editor 
ingloz  e  ainda  ha  poucos  mezes  publicava  por 
conta  própria  uma  folha  diária. 

Os  jornaes  japonezes  são  baratissimos ;  as 
melhores  folhas  diárias,  com  oito  grandes 
paginas  de  leitura,  não  custam  mais  de  200 
reis  mensaes  aos  assignantes;  nos  annuncios 
que  são  caros,  é  que  os  editores  tiram  os 
seus  maiores  proventos.  No  Japão  toda  a 
gente  sabe  ler  e  toda  a  gente  é  curiosa  de 
noticias;  de  maneira  que  toda  a  gente  com- 
pra e  lè  o  seu  jornal.  O  jornal  diário  contém 
os  últimos  telegrammas,  calorosas  discussões 
partidárias,  revista  estrangeira,  de  modo  a  in- 
teressar os  políticos  nipponicos ;  traz  sobra  de 
referencias  mercantis  e  uma  chuva  de  annun- 
cios, tornando-se  precioso  á  gente  do  commer- 
cio;  e  não  se  esquece  das  mulheres,  que  são 
talvez  os  seus  melhores  clientes,  fornecendo- 
Ihes  romances-folhetins  com  i Ilustrações  pro- 
fusas, pequeninos  escândalos,  mexericos,  refe- 
rencias elogiosas  ás  giicishas  (cantoras  proíis- 
sionaes),  que  constituem  legiões  nos  centros 
populosos. 

Um  dos  exemplos  mais  frisantes  de  como 
no  Japão  as  coisas  se  passam  ao  reverso  da 
Europa    é    o    livro    ou   o  jornal.   A    primeira 


68 


pagina  do  jornal  seria  a  ultima  entre  nós;  a 
escripta  segue  em  linhas  de  alto  a  baixo  e 
lê-se  da  direita  para  a  esquerda ;  as  columnas 
são  em  sentido  horisontal.  Quanto  ás  gravuras, 
primam  pelo  exotismo  e  algumas  são  dignas  de 
exame. 

Nos  caracteres  empregados  dá-se  uma 
circumstancia  curiosa:  a  escripta  é  feita  em 
caracteres  ideographicos,  adoptados  na  China 
ahi  pelo  nosso  século  quarto,  sendo  cada  pa- 
lavra representada  por  um  só  symbolo ;  mas, 
como  o  sexo  feminino  não  possue  bastante 
illustração,  em  geral,  para  lêr  por  este  systema, 
ao  lado  de  cada  symbolo  e  em  typo  mais 
miúdo  segue  a  mesma  palavra  em  notação 
alphabetica,  que  é  o  hiragana,  inventado  no 
anno  835  por  um  sábio  budhista  japonez.  De 
sorte  que  cada  artigo  do  jornal  é  escripto  si-, 
multaneamente  por  dous  processos,  aos  quaes 
se  pôde  chamar,  sem  maldade  —  leitura  para 
homens  e  leitura  para  damas.  .  . 


YII 

4  de  maio  de  1904 

A  guerra  russo-japoneza  —  A  Europa,  o  JapSo  e  a  China 
—  Considerações  —  intimas  noticias  da  guerra  — 
Por  mar  c  por  terra  —  Os  soldados  japonezes  —  Os 
reservistas  —  Scenas  diversas — ^As  mulheres  japo- 
nezas  — A  virtude  de  uma  faixa  —  pontos  fíitidicos; 
Criados  e  criadas  —  Traços  curiosos  do  povo  ja- 
poncz. 

QUANTOS  mais  mezes  vão  passando  e  mais 
se  pensa  no  conflicto  que  se  debate  en- 
tre um  grande  império  europeu  e  um  grande 
império  asiático,  e  nas  suas  consequências  pos- 
siveis,  mais  se  affigura  para  alguns  a  situação 
tremenda  e  capaz  de  resultados  tão  graves, 
que  provoquem  uma  terrível  catastrophe  sem 
exemplo  na  historia  do  mundo. 

Teria  sido  talvez  possi\'el  que  a  Europa 
nunca  houvesse  pensado  na  China  e  no  Japão, 
deixando  estas  duas  potencias  do  Extremo- 
Oriente  inteiramente  á  parte,  entregues  ao  seu 
absoluto  isolamento,  o  que  ellas  tanto  queriam, 
e  á  sua  civilisação  exótica,  que  ellas  julgavam 
sem   rival.   Os  occidentaes  ainda  não  pensa- 


70 


ram  e  certamente  nunca  pensarão  em  especu- 
lações lucrativas  no  solo  do  planeta  Marte; 
pois  o  mesmo  deveria  ter  succedido  com  a 
região  citada,  que  pela  Índole  dos  seus  povos 
e  dessimilhança  de  interesses  mais  parece  per- 
tencer a  outro  planeta.  Mas,  quando  pratica- 
mente isto  não  fosse  exequível,  em  virtude 
das  qualidades  expansivas  da  raça  humana, 
as  relações  dos  occidentaes  com  chinezes  e 
japonezes  deveriam  ter  sido  limitadas  a  puras 
relações  commerciaes,  fácil  tarefa,  pondo  abso- 
lutamente de  parte  o  pseudo-carinhoso  intuito 
de  nos  arvorarmos  em  educadores,  de  infes- 
tarmos o  solo  alheio  de  missionários,  de  enge- 
nheiros, de  sábios,  de  militares,  respeitando 
pelo  contrario  a  civilisação  alheia  e  a  integri- 
dade do  solo  que  não  era  nosso. 

Não  succedeu,  porém,  assim.  Os  occiden- 
taes suppozeram  os  chinezes  e  os  japonezes 
uma  raça  caduca,  como  os  Índios  da  America, 
ou  uma  raça  infantil,  como  os  negros  da 
Africa;  e  trataram  de  escravisal-os  do  melhor 
modo  que  poderam,  de  arrancal-os  ás  suas 
crenças,  aos  seus  costumes,  ás  suas  civilisa- 
ções,  e  emfim,  de  lhes  extorquir  ainda,  não  ao 
Japão,  mas  á  China,  pedaços  de  território,  que 
transformaram  em  focos  irradiantes  dos  seus 
altos  propósitos  ambiciosos. 


Rebentou  agora  a  guerra  que  conhecemos, 
a  qual  te\'e  por  origem  única  a  cobiça  desen- 
freada da  Rússia  pelo  solo  chinez.  Não  se  sabe 
como  acabará.  No  entretanto,  seja  qual  íbr  o 
desfecho,  o  golpe  está  dado,  o  desafio  está 
lançado,  e  a  Rússia,  e  com  ella  todos  os  Es- 
tados occidentaes,  hão-de  redobrar  de  activi- 
dades para  proseguir  no  campo  da  sua  politica 
exploradora. 

Bem.  A  China  encontra-se  fraca,  ou  antes, 
de  todo  alheia  ao  espirito  militar,  sem  ener- 
gias de  resistência.  A  China  ha-de  prestar-se, 
muda  e  inerte,  a  todas  as  machinações  da 
usurpação.  O  Japão,  se  fòr  \'encido,  nem 
mesmo  fará  ouvir  o  seu  protesto.  Tudo  cor- 
rerá ás  mil  maravilhas.  Dentro  de  50  annos, 
dentro  de  100  annos,  dentro  de  200  annos, 
quando  fòr,  teremos  uma  China  inteiramente 
civilisada  ao  nosso  gosto,  consumindo  os 
nossos  artigos,  fallando  as  nossas  línguas, 
lendo  os  nossos  livros,  explorando  minas, 
hábil  nas  industrias,  fundindo  canhões,  con- 
struindo couraçados,  com  brilhantes  exércitos, 
dirigidos  pelos  nossos  generaes,  e  já  se  sabe, 
retalhada  —  um  pedaço  sendo  da  Rússia,  outro 
pedaço  da  Inglaterra,  outro  da  Allemanha,  ctc. 

Mas  a  alma  não  se  transforma.  A  alma 
asiática  será   eternamente   a  mesma.  Guando 


^2 


a  China  se  encontre  assim  transformada,  ao 
lado  do  Japão,  que  já  o  está,  será  então  o 
momento  para  os  povos  asiáticos  de  porem 
em  prática  as  lições  recebidas  dos  seus  mes- 
tres, cuspindo  á  viva  força  a  civilisação  im- 
posta, escorraçando  os  intrusos,  fechando  as 
suas  portas,  voltando  á  sua  civilisação  patriar- 
chal.  Da  civilisação  occidental  apenas  guarda- 
rão os  canhões  e  os  couraçados,  que  a  expe- 
riência lhes  terá  mostrado  constituírem  o 
melhor  argumento  da  lógica  mundial.  Será  a 
vendetta  tremenda !  .  .  . 

—  Ultimas  noticias  da  guerra. 

Alguns  navios  de  guerra  russos,  aprovei- 
tando fom  ensejo  de  sahirem  de  Vladivostok 
sem  serem  vistos  pela  esquadra  japoneza,  fize- 
ram uma  curta  apparição  no  porto  de  Gensan, 
na  Coréa,  onde  bombardearam  e  metteram  a 
pique  o  vapor  mercante  «Goyo-maru»,  que 
alli  se  achava.  Isto  succedia  em  25  de  abril. 
A  26,  encontrando  no  mar  e  perto  de  Gensan 
o  vapor  «Kiushiu-maru»,  que  transportava 
tropas  do  inimigo,  e  fieis  á  prática  adoptada 
pela  esquadra  russa  de  não  provocar  a  com- 
bate senão  Oo  paquetes,  metteram-no  igual- 
mente no  fundo.  Dos  soldados  japonezes  que 
não  quizeram  render-se,  uns  70  foram  mortos, 
outros  foram  feitos  prisioneiros,  alguns  prefe- 


73 


riram  suicidar-sc,  e  alguns,  finalmente,  conse- 
guiram alcançar  a  terra  nos  escaleres  do  barco 
afundado.  Pôde  dizer-se  que  é  este  o  primeiro 
desastre  dos  japonezes  na  presente  guerra. 

Em  terra,  na  fronteira  coreana,  téem-se 
lepetido  os  encontros,  um  sobre  todos  digno 
de  especial  menção,  por  não  ter  certamente 
parallelo  na  historia,  travando-se  a  lucta  entre 
forças  de  cavai laria  russa  e  torpedeiros  japo- 
nezes que  seguiam  o  rio  Valu. 

Agora  annuncia-se,  ainda  com  poucos  de- 
talhes, uma  primeira  batalha  em  terra,  ao  nor- 
deste de  Valu.  A  lucta  foi  renhidissima,  oppon- 
do  os  russos  uma  resistência  desesperada  ao 
primeiro  passo  invasor  do  exercito  inimigo. 
Contam-se  uns  700  mortos  e  feridos  do  lado 
dos  japonezes  e  800  do  lado  dos  russos.  O 
resultado  final  foi  uma  gloriosa  victoria  para 
os  japonezes,  que  occuparam  Chulien-cheng, 
aprisionando  20  officiaes  e  muitos  soldados  e 
tomando  20  canhões,  cavallos  e  bastante  ma- 
terial. Este  primeiro  encontro  dos  soldados  de 
Nippon  com  tropas  brancas  ha-de  licar  regis- 
tado na  historia. 

—  Foram-se  já  muitos  milhares  de  solda- 
dos, a  caminho  do  campo  das  hostilidades,  lá 
para  a  Corêa,  lá  para  as  costas  do  norte  da 
China,  não  se  sabe  bem  para  onde.  .  .  As  filas 

4 


74 


de  comboios  não  cessaram  de  correr  pela  linha 
férrea,  durante  longas  semanas,  carregados  de 
tropas ;  até  que,  finalmente,  houve  uma  pausa 
em  tal  êxodo.  Mas  ainda  por  cá  hcaram  mui- 
tos soldados,  certamente;  tornam-se  mesmo 
agora  mais  \'isiveis,  em  cidades  e  aldeias, 
longe  dos  aquartelamentos  ordinários  e  onde 
era  cousa  rai'a  vêr-se  uma  farda  passear. 

São  os  reservistas,  chamados  a  reforçar  as 
forças  de  combate,  veteranos  da  guerra  da 
China,  alguns  já  de  cabellos  grisalhos  e  pro- 
fundas rugas  na  cara.  Uns  apparecem  de  ponto 
em  branco,  de  fardas  no\'as  e  insígnias  relu- 
zentes; outros  ainda  não  tiveram  tempo  de 
equipar-se,  vestem  ainda  o  kímono  burguez, 
calçam  ainda  as  sandálias  da  aldeia,  apenas 
se  distinguem  pelo  bonnet  do  uniforme,  posto 
petulantemente  no  alto  da  cabeça.  Mourejam 
de  um  para  o  outro  lado,  fazendo  as  ultimas 
despedidas,  fazendo  as  ultimas  mercas,  de 
ordinário  acompanhados  da  familia,  a  esposa 
e  os  filhitos  ou  a  mãe  e  o  pai  septuagenários. 
Commovem  estes  grupos. 

A  chusma  dos  reservistas,  surgindo  de 
norte  a  sul,  de  leste  a  oeste,  por  todo  este 
Japão,  vai  dando  logar  a  umas  scenas  da  rua 
assaz  estranhas,  que  a  principio  muito  intri- 
garam   os    estrangeiros    residentes,    até    que 


/D 


eniíini  o  caso  se  explicou.  Kncontiíim-se  agora 
vagueando  pelos  logares  populosos  bastantes 
mulheres,  em  geral  pobremente  vestidas,  tra- 
zendo nas  màos  uma  faixa  de  panno  de  algo- 
dão, branco  ou  amarello,  com  muitos  signaes 
marcados  a  tinta  escura,  e  mimidas  de  agulha 
e  linha  juntamente;  acercam-se  de  outras  mu- 
lheres que  \'ão  passando,  segredam-lhes  não 
sei  quê,  o  mundo  feminino  faz  roda  e  cada 
qual,  successi vãmente,  dá  um  ponto  na  faixa 
por  suas  próprias  mãos  e  vai-se  embora. 

Aclaremos  o  caso.  Cada  uma  d'estas  mu- 
lheres ou  é  mãe,  ou  é  esposa,  ou  é  íilha,  ou 
é  irmã  de  um  reservista.  A  faixa  é  destinada 
a  ir  ser\'ir  de  cinta  a  esse  parente  querido, 
apertada  junto  ao  corpo  por  baixo  da  fardeta; 
e  é  tida  por  possuir  a  virtude  de  preservar  do 
effeito  mortifero  das  balas  inimigas.  Na  faixa 
dão-se  mil  pontos,  nada  mais  nem  nada  me- 
nos; cada  mulher  dá  um  só  ponto;  são,  por- 
tanto, mil  mulheres  a  occuparem-se  da  cinta; 
a  gente  da  familia  collaborou  piimeiramente, 
depois  seguiram-se  as  amigas,  as  visinhas; 
depois  foi -se  para  a  rua,  correndo  de  aldeia 
em  aldeia  ou  de  cidade  em  cidade,  pedindo 
ás  mulheres  que  vão  passando  o  seu  concurso, 
até  se  completar  o  numero  fatidico  de  pontos. 
K   nMsto  que  está  a  \-irtude,  para  os  crentes; 


76 


e  para  nós,  os  descrentes  (e  porque  não  se- 
remos crentes?)  a  poética  e  enternecedora  in- 
genuidade d'este  acto.  Como  não  seria  mila- 
grosa uma  tal  cinta,  quando  mil  mulheres 
trabalharam  no  mesmo  santo  intuito;  juntando 
os  seus  mil  votos  pela  felicidade  do  mar- 
manjo ?  .  .  . 

Sempre  e  em  todo  o  mundo  o  enccinto 
feminino!  .  .  .  Ai,  mãos  gentilissimas  e  mila- 
grosas das  niusiimcs]  quanto  vos  não  deveria 
eu,  a  vós,  mil  raparigas,  se  resolvêsseis  offe- 
recer-me  uma  cinta  trabalhada  pelas  v^ossas 
duas  mil  mãos,  que  me  servisse  de  couraça 
contra  os  golpes  da  fortuna  e  os  pontapés  da 
sorte?  .  .  . 

—  Ha  poucos  dias,  um  jornal  inglez  da 
terra  dava  publicidade  a  uma  carta  de  um 
correspondente,  na  qual  se  lembrava  a  grande 
vantagem  que  haveria  em  crear-se  no  Japão 
uma  instituição  de  ensino  de  criados  e  criadas  de 
servir,  de  modo  a  evitar  os  contínuos  dissabores 
que  se  dão  com  taes  sujeitos,  especialmente 
entre  familias  europeias,  irritando-nos  diaria- 
mente os  nervos,  em  virtude  da  detestável 
maneira  de  se  desempenharem  dos  seus  cargos. 

Ora  eu  estive  para  responder,  também  por 
epistola,  ao  tal  correspondente ;  mas  depois, 
não   sei    porquê,    passou-me    o    Ímpeto.    V^ou 


17 


agora,  porém,  resumir  o  que  diiia,  a  titulo  de 
curiosidade  e  como  documento  da  feição  so-, 
ciai  d'este  povo  interessante. 

K  certo  que  os  serviçaes  japonezes  e  em 
particular  os  do  sexo  feminino,  mais  com- 
mummente  utilisados,  são  detestáveis.  Nota-se, 
entre  outros  defeitos,  a  sua  pro\'erbial  incúria, 
a  curta  permanência  na  mesma  casa,  a  con- 
stante má  vontade  nos  serviços  que  desem- 
penham ;  chega  isto  a  tal  ponto,  que  as  la- 
mentações sobre  o  assumpto  constituem  um 
dos  themas  fcivoritos  de  conxersa  entre  as 
damas  europeias  residentes,  nem  sempre  muito 
inventivas  na  difíicil  arte  do  colloquio.  No 
emtanto,  a  tal  instituição  de  ensino,  aconse- 
lhada pelo  correspondente  do  jornal  a  que  me 
referi,  seria  obra  perfeitamente  inútil,  não 
tendo  os  criados  japonezes,  e  principalmente 
as  criadas  japonezas,  empenho  algum  em 
aperfeiçoar-se  no  seu  mister. 

O  curioso  é  saber-se  que  esta  caracte- 
rística, feita  de  ignorância  e  de  má  \'ontade, 
da  classe  que  estou  considerando,  re\'erte  toda 
em  favor  da  japoneza  e  da  maneira  de  ser  da 
sociedade  nipponica.  Na  Europa,  ha  por  toda 
a  parte,  como  é  bem  notório,  a  profissão  das 
criadas  de  serxir;  triste  profissão,  em  que  se 
alistam  as  desprotegidas  da  sorte,  as  que  não 


78 


lêem  familia  nem  probabilidades  de  a  adquirir, 
as  desprovidas  de  qualquer  recurso. 

No  Japão,  felizmente  para  elle,  ainda  se 
não  dão  taes  circumstancias.  A  suprema  misé- 
ria, com  as  suas  terriveis  exigências,  tal  como 
ella  se  manifesta  no  mundo  Occidental,  é  des- 
conhecida n'um  paiz  onde  a  sobriedade  do 
povo  se  contenta  fartamente  com  um  punhado 
de  arroz  por  cada  dia. 

Depois,  essa  condição  de  abelha  neutra, 
destinada  unicamente  a  mourejar,  e  que  pesa 
sobre  um  tão  grande  numero  das  mulheres 
occidentaes,  não  attinge  ainda  a  japoneza.  Em 
regra,  a  japoneza  é  destinada  a  ter  um  marido, 
mais  ou  menos  authentico,  a  ser  mãe,  a  cuidar 
dos  filhos,  do  seu  lar. -N'estas  condições  so- 
ciaes,  comprehende-se  facilmente  que  a  servi- 
çal japoneza,  trazida  ao  seu  mister  poi-  alguma 
discórdia  de  familia,  ou  por  algum  contratempo 
súbito,  ou  pelo  capricho  momentâneo  de  cor- 
rer terras,  ou  na  mira  de  arranjar  pecúlio  e 
enxoval,  admitta  a  sua  situação  apenas  como 
transitória. 

Isto  bastaria  para  explicar  a  má  vontade 
e  o  nenhum  desejo  de  aprender,  de  que  dá 
provas  no  desempenho  dos  seus  deveres ;  mas 
junte-se  ainda  a  Índole  altiva  da  raça,  talvez 
ainda   mais  caracteristica  na  mulher  do   que 


79 


no  homem ;  e,  para  o  caso  de  sermos  europeus, 
o  ódio  instinctivo  que  os  japonezes  professam 
por  nós  todos  e  pelos  nossos  usos;  e  assim 
não  restará  duvida  alguma  de  que  a  serviçal 
nipponica  será  sempre  uma  ignorante  incorri- 
givel,  supportando  a  custo  seis  mezes  de  es- 
cravidão em  casa  alheia,  almejando  unicamente 
pelo  momento  de  fazer  a  trouxa  e  abalar, 
dedicando  então  os  seus  finos  dotes  carinhosos 
ao  companheiro,  aos  hlhos,  ao  seu  casebre 
humilde,  mas  em  requintes  de  escrúpulos  de 
asseio. 

—  A  presente  guerra  vai  dando  ensejo  a 
tornarem-se  conhecidos  alguns  curiosos  traços 
do  caracter  do  povo  japonez.  Apresento  três 
exemplos. 

Na  aldeia  de  Teko,  districto  de  Satsuma, 
vive  em  rural  simplicidade  uma  familia  con- 
tando pouco  menos  de  cem  membros.  O  chefe 
da  familia,  Okada  Bun3'emon,  acaba  de  com- 
pletar o  seu  70."  anno  de  existência;  a  con- 
sorte conta  '/2  invernos.  Onze  filhos  nasceram 
do  casal,  sendo  sete  varões  e  quatro  raparigas; 
o  mais  velho  tem  hoje  50  annos,  o  mais  no\'o 
28,  e  são  todos  casados,  tendo  ao  todo  24 
filhos.  Ora,  como  alguns  dos  netos  também  se 
acham  casados,  20  bisnetos  alegram  a  exis- 
tência dos  velhinhos.   Esta  familia  vive  toda 


8o 


reunida  actualmente  e  n'unia  santa  paz,  bem 
rara  n'este  mundo;  ultimamente  pensou  em 
commemorar  com  uma  grande  festa  as  suas 
felizes  condições ;  mas  o  \^elho  patriarcha 
obtemperou  que  tal  festa  não  ij-ia  em  harmo- 
nia com  as  presentes  condições  da  sua  pátria^ 
propondo  em  substituição  que  todos  concor- 
ressem para  os  fundos  da  guerra,  no  que  se 
concordou,  rendendo  a  coUecta  150  j^ens  (15 
libras). 

Outro  exemplo.  Um  certo  camponez,  de 
uma  aldeia  do  districto  de  Hiogo,  chamado 
Yamagata  Yosaku,  tem  muitos  filhos,  tenda 
já  visto  partir  três  d'elles  para  a  guerra  desde 
o  começo  das  actuaes  hostilidades.  O  facta 
de  uma  só  familia  contribuir  com  tantos  ser- 
vidores, é  excepcional  favor  do  céu;  e  o 
ancião,  no  dia  próximo  do  61.*^  anniversario 
natalício,  vai  commemoral-o  erigindo  três  tú- 
mulos, expressando  por  esta  forma  o  deseja 
de  que  os  seus  três  soldados  combatam  até  á 
morte.  .  . 

A  outra  historia  é  presenceada  por  mim 
próprio.  Entrava  eu  ha  dias  n'uma  loja  de 
louças,  com  o  íim  de  comprar  um  vaso  para 
flores.  Deparei  com  o  estabelecimento  aban- 
donado; chamei,  gritei,  até  que,  finalmente,  a 
dona  da  casa   me  appareceu.   Fiz  a  escolha,. 


8i 


concordamos  no  preço,  mas,  tão  cheio  de  pó 
estava  o  tal  vaso,  que  a  boa  da  mulher  deu-se 
ao  trabalho  de  limpal-o,  espanador  em  punho, 
emquanto  que  ia  palestrando  e  desculpando 
sua  incúria.  —  «  Ha  mais  de  quatro  dias,  dizia- 
me  ella,  que  ninguém  cuida  da  casa,  nem 
mesmo  a  poeira  se  sacode;  andamos  todos 
doudos  de  alegria!  .  .  .  Imagine  o  senhor  que 
meu  cunhado  acaba  de  partir  para  a  guerra 
pela  terceira  vez.  Na  primeira  vez,  tratava-se 
da  guerra  com  a  China.  Na  segunda  vez,  era 
a  baralha  com  os  boxers.  Agora  vai  contra  a 
Rússia.  Pensa  elle  e  pensamos  todos  nós  que 
o  caso  não  passa  de  folia ;  as  balas  já  o  co- 
nhecem, não  lhe  hão-de  fazer  mal.  Ha-de  vol- 
tai', são  como  um  poro ;  ha-de  trazer-nos  um 
russo  empalhado  de  presente.  Fizemos-lhe 
grandes  festas,  acompanhamol-o  ao  embarque, 
rindo,  folgando,  uma  galhofa!  .  .  .  Até  o  meu 
pequeno,  que  não  tem  mais  de  cinco  annos, 
berrava,  agitando  no  ar  uma  bandeira  japo- 
neza :  —  «  Viva  o  Japão !  Viva  o  Japão !  » 


VIII 


17  de  maio  de  1904 


As  ultimas  noticias  da  guerra;  vantagens  obtidas  pelos 
japonezes;  peripécias  varias  —  As  paginas  da  histo- 
ria japoneza  e  como  técm  sido  apreciadas  —  Força 
naval  portugueza  no  Hxtremo-Oriente  —  Notas  de 
viaarem. 


A  BATALHA  do  Yalu,  á  qiuil  me  referi  na 
correspondência  anterior,  occorrida  em 
I  do  corrente  e  gloriosa  para  os  japonezes, 
que  após  uma  lucta  sangrenta  conseguiram 
atravessar  o  rio  e  occupar  Cliulien-cheng, 
achando-se  assim  no  seio  da  Mandchuria, 
marca  o  inicio  da  campanha  terrestre,  que  vai 
ser  certamente  acompanhada  da  acção  naval 
da  esquadra  do  almirante  Togo.  Entram.os 
assim  no  periodo  agudo ;  as  actividades  dos 
belligerantes  devem  achar-se  no  momento 
presente  em  enorme  effervescencia ;  mas,  infe- 
lizmente para  os  curiosos,  poucas  noticias 
chegam,  mesmo  aqui,  das  scenas  do  grande 
drama  que  se  desenrola. 


83 


As  ultimas  informações  da  batalha  do  Yalu 
accLisam  que  os  i-ussos  perderam  2:394  com- 
batentes, entre  mortos  e  feridos,  contando-se 
no  numero  70  ofHciaes ;  as  perdas  japonezas 
foram  de  900  homens. 

Em  3,  a  esquadra  japoneza,  obedecendo  a 
duras  exigências  do  plano  geral  da  campanha, 
procedeu  a  uma  terceira  tentativa  de  obstru- 
cção  do  canal  da  entrada  de  Porto  Arthur, 
para  o  que  conduziu  ao  local  alguns  barcos 
mercantes,  no  intuito  de  os  fazer  submergir 
em  sitio  conveniente.  Esta  tentativa  foi  a  mais 
mortífera  das  três  e,  como  as  outras,  não  com- 
pletamente satisfactoria,  pois  os  fortes  do 
inimigo  descarregaram  xivissimo  fogo  sobre 
os  barcos,  afundando-os  antecipadamente  e 
fazendo  bastantes  victimas;  a  coragem  pro- 
verbial dos  marinheiros  japoneze.s  não  se  des- 
mentiu em  tão  tremenda  empreza. 

F.m  5,  uma  divisão  japoneza  desembarcou 
em  Kinchau,  na  peninsula  de  Liaotung  e  a 
40  milhas  de  Porto  Arthur.  Como  resultados 
immediatos  d'este  brilhante  acto  de  audácia, 
deve  considerar-se  positi\'0  que  a  linha  férrea 
russa  foi  logo  destruida  n'aquelle  ponto  e  que 
Porto  Arthur  se  encontra  isolado  e  cercado 
pelas  forças  japonezas;  sabe-se  que  o  almi- 
rante Alexeieff  e  o  grão-duque  Boris  tiveram 


84 


apenas  tempo  de  retirar-se  precipitadamente 
para  o  interior,  para  não  licarem  á  mercê  da 
inimigo.  Resta  v^êr  o  que  farão  os  japonezes: 
se  se  contentarão  em  prolongar  o  cerco  até 
que,  por  carência  de  recursos,  os  russos  se 
vejam  obrigados  a  render-se ;  ou  se,  por 
assalto,  correrão  a  apoderar-se  d'aquella  praça 
de  guerra.  Apresenta-se  mais  provável  esta 
ultima  hypothese,  por  estar  mais  na  Índole  do 
povo  nipponico,  embora  tenham  de  sacrificar 
algumas  centenas  de  vidas ;  e  também  porque 
o  cerco  seria  longo,  parecendo  que  as  forças 
russas  de  Porto  Arthur,  reduzidas  actualmente 
ao  minimo,  possuem  viveres  para  um  anno 
seguro. 

As  ultimas  noticias  dão  já  as  tropas 
japonezas  em  Fuin-panchen,  encontrando-se 
grupos  exploradores  ao  longo  da  estrada  que 
vai  a  Liaoyang.  Haverá  alguma  grande  batalha 
nas  visinhanças  de  Mukden  ?  .  .  . 

Os  mysteriosos  bandidos  chinezes  téem 
feito  larga  destruição  na  linha  férrea  russa. 

Chegam  informações  de  que  o  torpedeiro- 
japonez  n.^  48  e  o  cruzador  «Miyako»  foram 
a  pique,  em  resultado  de  terem  tocado  em. 
minas  submarinas,  que  os  russos  haviam  coUo- 
cado  perto  dos  portos  que  occupavam.  Houve, 
algumas  victimas. 


85 


Os  russos  abandonaram  Newckvvang. 
Consta  também  que  destruiram  as  docas  e 
cães  em  Dalny,  no  intuito  de  não  serem  utili- 
sados  pelos  japonezes. 

O  governo  japonez  contrahiu  um  emprés- 
timo de  IO  milhões  de  libras  no  estrangeiro, 
em  condições  pouco  favoráveis,  a  julgar  pelos 
commentarios  da  imprensa  local. 

A  guerra  tem  já  dado  pretexto  a  um  sem 
numero  de  publicações  litterarias,  gravuras 
allusivas,  bilhetes  postaes,  ele.  Appareceu  ulti- 
mamente á  venda  em  Tokio  um  curioso 
mappa  geographico,  onde  a  Rússia  é  repre- 
sentada por  um  enorme  polvo,  estendendo  os 
seus  tentaculos  sugadores  á  Turquia,  á  Bul- 
gária e  ao  mais  que  se  sabe.  O  Japão  está 
representado  por  um  soldado,  fazendo  fogo 
com  a  sua  arma.  Portugal,  felizmente,  longe 
do  alcance  do  monstro,  é  figurado  por  um 
tranquillo  fradesinho,  que  empunha  uma  gar- 
rafa e  um  copo.  .  .  allusão  ao  famoso  «Port- 
wine»,  o  que  mostra  não  ser  aqui  desconhe- 
cido este  producto  da  nossa  terra,  graças  aos 
snrs.  Menéres  e  outros  beneméritos. 

—  Tendo  assim  apresentado,  em  resumo,  as 
mais  recentes  peripécias  da  guerra,  parece-me 
interessante  líinçar  agora  um  rápido  olhar  re- 
trospectivo sobre  as  paginas  da  historia  japo- 


8Ó 


neza  dos  últimos  dez  annos  c  vèr  como  a 
opinião  Occidental,  mercê  da  força  irresistível 
dos  factos,  se  tem  successivamente  modificado 
com  respeito  a  este  pox^o. 

Ainda  até  ha  pouco  tempo,  o  Japão  era, 
para  a  grande  maioria  dos  illustrados  do  Occi- 
dente  (não  fallemos  dos  não  illustrados),  o 
Japão  dos  livros  de  Loti,  e  nada  mais,  isto  é, 
o  paiz  das  cegonhas  bordadas  e  das  chimeras, 
o  paiz  das  paizagens  lilliputianas  e  das  mulhe- 
res acariciadoras,  envoltas  em  sedas  multi- 
cores. 

Quando,  pelo  anno  de  1894,  surgiram  os 
primeiros  boatos  de  que  o  Japão  ia  fazer 
guerra  á  China,  com  o  íim  de  garantir  a  inde- 
pendência da  Corêa,  o  espanto  do  mundo 
inteiro  foi  geral.  A  catastrophe  completa  para 
o  povo  japonez  foi  logo  prophetisada.  Velhos 
residentes  europeus  do  Japão  diziam  (ou- 
vi-os  eu)  que  o  castigo  d'essa  louca  ousadia 
de  ir  um  punhado  de  asiáticos,  apenas  inicia- 
dos na  civilisação  europeia,  provocar  o  immenso 
e  mysterioso  império  chinez,  seria  a  absoluta 
derrota;  e  não  sei  já  que  grande  sábio,  com 
v^astos  conhecimentos  das  cousas  do  Extremo- 
Oriente,  apregoava  aos  quatro  ventos  que 
soara  a  hora  do  desapparecimento  da  peque- 
nina tribu  de  Nippon. 


87 


Síihc-sc  bem  o  qiic  se  pass(Hi  c  como  os 
japonezes  conckiiram  a  emprcza  cobertos  de 
gloria,  em  terra  como  no  mar,  e  como  alcan- 
çariam certamente  Pekim,  se  não  fosse  a 
opposição  dos  Kstados  do  Occidente,  aos 
qiiaes  em  todo  o  caso  foram  ensinando  que 
a  China  não  era  esse  colosso  impenetrav^el 
como  até  então  fora  julgada. 

Passou-se  depois  a  dizer  que  a  victoria 
havia  sido  ganha  contra  um  po\'o  asiático, 
cabido  na  derradeira  desmoralisação  e  na  inti- 
ma fraqueza;  mas  quando,  improvavelmente, 
os  japonezes  tivessem  de  bater-se  contra  uma 
nação  branca,  contra  um  Estado  europeu,  a 
sua  incompetência  apresentar-se-hia  indiscu- 
tivel. 

E'  verdade  que  em  tqoo,  durante  os  tu- 
multos dos  boxers,  os  japonezes  combateram 
contra  os  rebeldes  ao  lado  de  contingentes  de 
tropas  do  mundo  inteiro;  e  consta  que  se  dis- 
tinguiram entre  todos,  pela  óptima  organisação 
militar,  pela  sua  disciplina,  pela  sua  honesti- 
dade e  pela  sua  admira\'el  coragem.  Mas  ainda 
não  se  queria  \'èr  o  que  era  evidente,  e 
assegurava-se  que  o  go\-erno  japonez,  por 
um  requinte  de  orgulho  nacional,  escolhera  o 
grupo  de  expedicionários  de  entre  a  flor  do  seu 
exercito,  com  qualidades  dístinctas,  excepcio- 


88 


naes,  alheias  á  grande  maioria  dos  soldados 
do  Mikado. 

Ainda  ha  poucos  niezcs,  em  novembro 
passado,  perguntava  eu  a  imi  addido  militar 
de  uma  das  legações  europeias  de  Tokio  que 
impressão  pessoal  lhe  haviam  deixado  os  exer- 
cidos e  manobras  militares  do  exercito  japonez, 
acabados  de  realisar  na  cidade  de  Himegi :  — 
«Tudo  muito  bem,  respondeu-me  elle;  tudo 
muito  bem.  .  .  pai-a  japoneses». 

A  phrase  traduz  por  completo  a  opinião 
que  os  estrangeiros  faziam  do  império  do 
Japão  até  ha  poucos  dias,  no  respeitante  aos 
seus  recursos  militares  e  á  sua  sciencia  da 
guerra:  ainda  e  sempre  a  proverbial  denomi- 
nação de  «um  povo  de  macacos»,  simples  e 
imperfeitos  imitadores  de  todas  as  instituições 
europeias :  e  mais  nada. 

Rebenta  agora  a  guerra.  D'esta  vez  é  o 
Japão  que  se  ]e\'anta  contra  a  Rússia  colossal, 
a  potencia  mais  temida  em  toda  a  Europa: 
isto,  quando  esgotados  todos  os  recursos  di- 
plomáticos para  levar  a  uma  solução  pacifica 
o  problema  extremo-oriental,  que  é  nada  mais 
nem  nada  menos  que  uma  questão  de  vida 
ou  de  morte  para  este  florescente  paiz  do  Sol 
Nascente.  D'esta  v^ez,  as  prophecias  dos  estra- 
nhos são  categóricas:  a  marinha  do  Mikado, 


sg 


com  30  íiniios  de  cxistcncia,  scni  tradições,  sem 
prática,  corre  ao  massacre  irremediável  e  á 
destruição  immediata  das  suas  unidades  de 
combate.  Não  succedeu,  porém,  assim,  antes 
bem  pelo  contrario:  a  esquadra  japoneza,  im- 
pellida  sempre  a  tomar  a  oftensiva,  porque  o 
inimigo  lhe  foge  ou  só  lhe  apparece  ao  abrigo 
dos  canhões  de  Porto  Arthur,  tem  feito  nume- 
rosas investidas,  desenvolvendo  uma  coragem 
sem  igual,  uma  táctica  naval  superior,  de- 
vastando os  barcos  inimigos,  causando  innu- 
meras  victimas,  dominando  completamente  o 
mar. 

Bem.  Diz-se  então :  No  lim  de  contas, 
dado  o  excellente  material  da  marinha  japo- 
neza, o  seu  maior  poder,  comparado  com  a 
esquadra  russa  do  Extremo-Oriente  e  as  van- 
tagens locaes  de  que  aproveita,  os  resultados 
felizes  até  agora  alcançados  podiam-se  prever. 
Alas  resta  esperar  pela  campanha  em  terra. 

O  primeiro  combate  da  campanha  em  terra 
acaba  de  se  ferir  e  a  batalha  de  Chulien-cheng 
corresponde  a  uma  brilhantíssima  victoria  para 
as  armas  nipponicas.  O  exercito  japonez  acaba 
de  passar  além  da  fronteira  coreana  e  de 
invadir  a  Mandchuria,  apesar  da  resistência 
offerecida  pelo  inimigo.  E  hou\e  resistência,  e 
duiissima;    não   se   pense  que  os  russos,  em 


90 


obediência  a  uma  táctica,  que  fora  em  tempo 
apregoada,  deixaram  mui  propositadamente  os 
japonezes  internar-se  na  Mandchuria,  para 
depois  mais  facilmente  os  cercarem  e  extermi- 
narem; tal  Iwpothese  cahe  pela  base  quando 
se  considere  que  as  perdas  das  forças  russas 
avultaram  muito,  tendo,  além  d'isto,  a  artilhe- 
ria  de  entregar  ao  vencedor  20  dos  seus  ca- 
nhões e  muitas  munições  de  guerra. 

Não,  os  descrentes  já  não  podem  appellar 
para  mais  provas;  a  verdade  refulge.  A  re- 
putação dos  japonezes  está  feita  como  potencia 
militar  de  primeira  ordem,  tanto  no  mar  como 
em  terra,  mercê  da  alta  estratégia,  da  supina 
coragem,  da  óptima  organisação  de  que  de- 
ram tão  plenos  testemunhos.  Aos  brios  dos 
marinheiros  e  soldados  deve  juntar-se  a  ex- 
cellencia  das  ambulâncias,  dos  hospitaes,  a 
carinhosa  acção  da  Cruz  \'ermelha,  a  con- 
ducta  delicada  do  povo,  emfim,  o  que  tudo 
leva  a  affirmar  que  o  Japão  inteiro  se  tem 
mostrado  admirável  em  todo  este  drama  sen- 
sacional, em  que  joga  a  sua  integridade  terri- 
torial e  a  sua  independência  e  o  futuro  flores- 
cente das  suas  energias  productoras.  Quando 
se  pense,  por  outro  lado,  no  alto  desen- 
volvimento das  industrias  japonezas,  na  grande 
illustração     do    povo,    no   eminente   grau   da 


91 


sciencia  adquirida,  nas  actividades  que  pros- 
peram, então  o  irnperi(^  do  Japão,  sabido 
da  mysteriosa  comprehensão  asiática  para 
abraçar  a  civMlisação  moderna  ba  apenas  37 
annos,  mas  guardando  ainda  as  suas  deli- 
cadezas próprias,  apparcce  ao  obser\'ador 
sincero  como  um  deslumbrantissimo  meteoro 
social,  uma  apotheose  sem  exemplo  no  mundo, 
levando  fatalmente  á  única  coi^iclusão  de  que 
nos  acbamos  em  presença  de  uma  tribu  ex- 
cepcionalniente  privilegiada  e  excepcionalmente 
intelligente.  Um  bravo  pelo  Japão!  .  .  . 

Pôde  já  assegurar-se  que  na  grande  lucta 
que  se  tra\^a,  caberão  ao  império  do  Sol  Nas- 
cente as  bonras  da  victoria  final?  E'  cedo 
certamente  para  dizel-o.  No  entretanto,  em 
face  de  tamanba  previdência,  de  tamanba 
destreza  e  de  tamanha  coragem,  só  se  deve 
julgar  admissivel  uma  catastropbe  das  armas 
nipponicas,  se  se  dér,  tendo  por  imica  cau- 
sa a  onda  bumana,  immensa  e  indestructivel, 
do  inimigo,  que  pela  enorme  desproporção  de 
numero  enxameie,  envolvendo  e  esmagando 
os  bravos  soldadinhos  japonezes.  Seria  então 
o  caso  de  recordar  a  famosa  canção  da  opera 
cómica  que  se  cantava  nos  meus  tempos,  dos 
três  contra  tun,  que  eu  cito  a  custo,  por  não 
comportar    bilaridades    o    sangrento   conflicto 


92 


t[Lic  está  assombrando  o  nuindo  inteiro,  mas 
que  em  todo  o  caso  exprime  melhor  do  que 
nenhum  outro  commentario  as  consequências 
píjssiveis  da  lucta,  tão  desigual  em  números, 
que  se  fere;  vá  sempre  a  canção,  que  é  da 
<^Gran-Duqueza» : 


Appròtons-nous    ptuir  la  \  ciigcaiicu, 

Soj-ons  adroits ; 
11  est  soul  et  nous,  quellc  cliance! 

Xous  sommcs  troisl  .  .  . 


—  Recebeu-se  noticia  de  que  os  nossos 
navios  de  guerra  «Adamastor»  e  «V^asco  da 
Gama »  chegaram  a  Macau,  d'onde  partiram 
para  Hong-Kong  afim  de  procederem  a  ligei- 
ros reparos  e  limpezas,  sendo  mesmo  provav^el 
que  a  estas  horas  já  se  achem  a  caminho  de 
Shanghae.  Estes  dous  cruzadores,  conjun- 
taniente  com  a  canhoneira  «Diu»,  que  se 
achava  estacionando  em  Macau,  formam  uma 
respeitável  força  naval  portugueza  no  Extre- 
mo-Oriente,  nem  mais  se  dexeria  esperar  da 
nossa  parte.  E'  caso  para  nos  congratularmos 
por  ter  o  governo  portuguez  tão  bem  com- 
prehendido  que  no  momento  presente  era  brio 
nosso  acompanharmos  as  demais  nações  da 
Europa  na  sua  representação  naval  nas  pro- 
ximidades do  tremendo  conílicto  que  se  fere. 


93 


Agora,  o  que  será  paru  desejai*  é  que  os 
dous  cnizadorcs  cruzem,  não  se  limitando  a 
uma  fastidiosa  e  inútil  permanência  em  algum 
porto  chinez;  e  que  mostrem  a  sua  bandeira 
nos  principaes  portos  da  China,  da  Coréa  e 
do  Japão,  no  que  prestarão  um  alto  beneficio 
ao  prestigio  do  nome  portuguez.  Aqui  os 
esperamos  e  com  muita  satisfação. 

—  O  snr.  Fernão  Mendes  Pinto  ;/.**  2, 
perdão,  o  snr.  Mendonça  e  Costa,  tem  tido  a 
gentileza  de  en\'iar  aos  seus  amigos  do  Japão 
alguns  números  da  «  Gazeta  dos  Caminhos  de 
Ferro»,  da  qual  é  director  e  proprietário,  e  onde 
estão  send(j  publicadas  as  «Notas  de  \'iagem» 
da  larga  excursão  que  ultimamente  realisou 
no  Extremo-Oriente.  Escritas  com  fina  obser- 
vação, têem  aqui  sido  lidas  com  agrado  e  mais 
interesse  estarão  certamente  despertando  no 
nosso  paiz,  dando-lhes  o  momento  presente 
particular  encanto  sensacional.  Servirão  ellas 
a  animar  alguns  porttiguezes  a  encorpora- 
rem-se  á  onda  dos  toiíristes  que  tanto  fre- 
quentam este  paiz,  mesmo  no  periodo  critico 
que  atra\'essamos  r  Assim  o  espero  e  assim 
o  desejo. 


IX 


2  8  de  maio  de  1904 


Dois  desastres  da  marinha  japoncza  e  a  esquadra  de 
Vladivostock  —  As  operações  na  península  de  Liao- 
tung  —  O  discurso  do  snr.  Doumcr;  a  sua  declara- 
ção relativamente  á  !i;uerra  e  considerações  a  pro- 
pósito—  As  festas  em  Tokio  pela  passagem  gloriosa 
do  rio  Yalu. 


A  .MARINHA  japoneza  acaba  de  soffrer  dois 
grandes  desastres.  Na  madrugada  de  i  $ 
do  corrente,  o  novo  cruzador  «Kasiiga» 
abalroou  com  o  cruzador  «Yoshino»  durante 
um  densissimo  nevoeiro,  perto  dò  promontório 
de  Chantung,  afundando-se  o  e  Yoshino».  A's 
1 1  horas  da  manhã  do  mesmo  dia,  o  cou- 
raçado «Hathuse»  foi  de  encontro  a  uma. mina 
submarina  nas  \'isinhanças  de  Porto  Arthur,-» 
a  qual  fez  explosão,  indo  a  pique  o  cou- 
raçado. 

As  perdas  de  \'idas  foram,  como  se  imagi- 
nava, numerosas.  No  entretanto,   deve  servir 
de   consolação   aos   marinheiros   da  esquadr' 
japoneza  o  facto  de  não  serem  devidos  este 


95 


dois  accidcnl.cs  íi  impcriciíi  sua  ou  a  superior 
estratégia  do  inimigo,  mas  sim  a  causas  nor- 
maes  em  tempo  de  guerra,  mais  de  prever-se 
em  taes  paragens,  onde  o  mar  se  apresenta 
frequentemente  tempestuoso  e  onde  actual- 
mente reinam  consoantes  e  densissim()s  ne- 
x^oeiros,  que  muito  prejudicam  a  navegação. 
Quanto  a  minas,  consta  que  os  russos  as 
estão  espalhando  no  alto  mar,  com  grave 
risco  para  os  na\'ios  neutraes,  o  que  já  está 
provocando  protestos  na  Kuropa. 

Sabe-se  agora  que  o  cruzador  russo 
«Bogatyr'>  encalhou  ha  dias  á  entrada  de 
Vladivostock,  durante  um  denso  ne\'oeiro,  e 
tão  desastrosamente,  que  se  perdeu. 

Restam,    pois,    no   porto   de   Vladivostock 

três    navios  russos,  agora   sob   o   commando 

superior  do  almirante  Skrydloff,  successor  de 

Makharoff,    e    destinado    á    esquadra   que    se 

encontra   em    Port(^    Arthur,    para   onde    nào 

pôde  seguir  pela  falta  de  comi nunicações  com 

quelle   porto.    A    esquadra   de   Porto    Arthur 

deve    hoje    representar    um    deslocamento   de 

/(j:62S    toneladas;  o  total  da  esquadra  japo- 

neza,  feito  já  o  desconto  dos  na\'ios  perdidos, 

'-  de  204:645  toneladas. 

'.  — As    ultimas    noticias    registam    os  bons 

viultados  das  operações  das  forças  japonezas 


96 


na  península  de  Liaotung.  Kinchau,  um  pouc~ 
ao   norte  de    Dalny,   foi  occupado  na  nianh^ 
de    i6    após    uni    combate   desesperado,  '|^ 
durou    26    horas.   A   parte   sul   de   Liaot# 
correspondendo  ao  território  que   foi  dadt' 
aluguer  á  Rússia  pela  China,  acha-se  actíti* 
mente  bloqueada  pela  esquadra  japoneza  con- 
forme   declaração    do    almirante    Togo,    com 
mandante  em  chefe. 

As  forças    na  Mandchuria  também  avan- 
çam   com    bom    êxito,    complicando-se  agora 
muito    a    tarefa    para    aquelles    que    tent.i 
seguil-as    pela   simples    informações   dos  J.í;  • 
naes,  abundantes  de  nomes  bárbaros  de  diíre- 
rentes  localidades,  difficeis  de  precisar. 

—  Os   jornaes    do    Japãa   publicavam  'i 
dias  um  telegramma  de  Londres,  informar.'' 
que  o  snr.  Doumer,  presidente  da  commisp^-^ 
do    orçamento    francez,    n'um    discurS''*^^^^ 
proferiu     n'um    banquete,    conden   '^   P^'.- 
mente  a  attitude  de  alguns  franceâc:^ 
peitante  á  alliança  franco-russa;  referindò-5./ 
guerra,   o   snr.   Doumer  disse   ser  imp^'  '^■ 
para  a  França  estar  do  lado  do  povo  a/^ 
em    uma    lucta    entre    as    duas    civiliM' 
oriental    e  occidental.  '  ^ 

Muito  bem:  chama-se  a  isto  não  ter  p^' 
na    lingua;    e    seguramente    as    palax^/J"^' 


97 


iK^tabilissimo    politico    c    hábil    administrador, 
ex-ministro    das    finanças,   ex-governador  da 
ido-China,  e  sem  duvida  destinado  ainda  a 
ais    altos    cargos,    encontrarão    sympathica 
hesáo   na  grande   maioria   dos   homens  da 
aropa.    Certos  excêntricos,  porém,  que  sof- 
•rem  do  mal  chronico  de  sorrir  de    tudo  que 
vão   ouvindo    por   este   mundo,  não  deixarão 
de   sorrir-se  também   no  caso   presente,  em- 
bora corram  o  risco  de  se  expor  á  indignação 
das  turbas.  Se  a  opinião  do  snr.  Doumer  re- 
'^resenta  a  opinião  da  França,  como  é  prova- 
1,  que  a  Inglaterra  aguente  como  poder  a 
lerroada,   com   o   que   ella  por  fim    pouco  se 
rala,   pois    lá   tem   os  seus  planos,  e  não  foi 
x:)r  certo  por  simples  ingenuidade  que  se  fez 
alliada  do  Japão.  Então  fica-se  sabendo  que 
''  impossivel  á  França  estar  do  lado  do  povo 
'^"ello  em  uma  lucta  entre  a  civilisação  occi- 
a  civilisação  oriental  (ponha-se  pri- 
1   duvida  se  tal  definição  da  lucta  é 
.luadeira).  Fica-se  mais  sabendo,  por  lógica 
"*  'cção,  que  a  França  só  estará  ao  lado  do 
amarello   nas  seguintes  circumstancias : 
pacatamente  ir  infestando  o  solo  asiático 
iCgião  dos  seus  missionados,  que  ella  não 
•?r   para  si,  mas  acha  muito  bons   para  os 
*  'S ;    para   dominar  na  Indo-China  e  para 

5 


98 


arrancar  ao  Siani  pedaços  do  seu  território ; 
para  impingir  ao  Extremo-Oriente  a  sua  in- 
dustria e  por  vezes  os  seus  ax^entureiros. 

Resumindo:  a  P' rança  admitte  o  povo  ama- 
rello  como  uma  vacca  leiteira  para  seu  uso,  a 
qual  vá  mungindo  emquanto  ella  tem  leite,  e 
nada  mais.  Se  a  vacca  escouceia,  indigna-se  e 
põe-se  do  lado  dos  outros  sujeitos  que  tam- 
bém se  serxem  da  mesma  vacca  para  idênticos 
e  peores  fins.  O  que  a  P' rança  não  admitte,  e 
com  ella,  diga-se  toda  a  verdade,  a  grande 
maioria  das  nações  occidentaes,  é  que  uma 
certa  tribu  doestes  amarellos,  á  qual  impoze- 
mos  a  nossa  civilisação,  a  adaptasse  a  si  tão 
bem,  que  se  erga  agora  forte  e  instruída  e 
pretenda  defender  a  sua  integridade  e  os  seus 
interesses,  pretendendo  defender  também  a 
integridade  c  os  interesses  dos  povos  visinhos, 
menos  fortes,  com  os  quaes  conta  natural- 
mente para  o  engrandecimento  pacifico  da 
própria  expansão  e  das  próprias  actividades. 
O  Japão  não  nutre  o  desígnio  de  arrancar  á 
P^ rança  uma  das  suas  províncias,  ou  á  Allema- 
nha,  ou  á  Itália,  ou  a  outra  nação  qualquer 
Occidental;  protesta  apenas,  com  os  meios  de 
que  pôde  dispor,  contra  a  conquista  que 
algumas  d'aquellas  nações  intentam  no  solo 
asiático  e  que  evidentemente  equivalerá  a  uma 


í>9 


(jiioniic  bancira  contra  o  sen  coniincrcio,  pois 
a  Ásia  é  e  tem  de  continuar  a  ser  o  seu  na- 
tural cliente,  e  sem  um  tal  cliente  o  Japão 
nào  pôde  viver. 

Não  se  dá,  pois,  presentemente  o  que 
apregoa  o  snr.  Doumer,  —  uma  lucta  entre 
as  duas  civilisaçòes  oriental  e  occidental;  — 
dá-se  a  natural  e  legitima  revolta  d'aquelle 
que  defende  contra  o  invasor  a  massa  dos 
seus  bens :  apresentada  assim  a  questão,  (e 
é  como  julgo  deve  ser  apresentada),  nào 
deveria  restar  du\'ida,  se  se  escutasse  apenas 
a  voz  da  justiça,  sobre  os  direitos  que  assis- 
tem ao  império  japonez  para  desembainhar  a 
espada. 

Mas  a  humanidade  não  escuta  apenas  a 
voz  da  justiça,  escuta  principalmente  a  voz 
das  suas  ambições,  no  caso  presente  mais 
intolerantes,  por  se  imporem  também  pre- 
conceitos de  raça  em  effervescencia.  E'  in- 
teressante prophetisar  desde  já  que  d'este 
esforço  hercúleo  do  Japão  contra  o  colosso  do 
norte,  e  admittindo  mesmo  a  hypothese  mais 
favorável  para  o  Japão  do  final  triumpho  das 
suas  armas,  os  louros  da  victoria  lhe  acar- 
retarão amargas  desillusões.  O  Japão,  que 
ficará  pobre  e  arruinado  por  longos  annos 
nas   suas   energias   productoras,   deve   contar 


lOO 


com  a  inveja  universal;  por  outro  lado,  a 
politica  que  segue,  impõe-lhe  o  dever  de 
deixar  intactas  a  China  e  a  Coréa,  e  não 
poderá  esperar  indemnisação  alguma  de  guerra, 
pela  impossibilidade  manifesta  de  ir  a  S. 
Petersburgo  reclamal-a.  Pôde  então  pergun- 
tar-se  o  que  ganhará  o  Japão,  que  o  com- 
pense dos  sacrifícios  immensos  que  se  impõe  ? 
Ganhará  seguramente  a  consideração — não 
digo  sjniipathia — a  consideração  mundial  e  o 
respeito  e  a  s^nnpathia  de  todos  os  povos 
asiáticos,  mais  ou  menos  seus  visinhos.  Quem 
sabe?  Talvez  isto  lhe  baste. 

As  nações  estranhas,  que  estão  vendo  o 
espectáculo  das  galenas,  é  que  vão  já  ganhan- 
do muita  cousa.  A  Inglaterra  ganha  os  seus 
progressos  politicos  no  Thibet.  Os  grandes 
argentados  inglezes  e  americanos  ganham  na 
agiotagem  do  empréstimo.  Os  contrabandistas 
do  mundo  inteiro  vão  ganhando.  Ganham 
muitos,  ganharão  muitos. 

—  A  gloriosa  passagem  do  rio  Yalu  pelas 
forças  do  exercito  japonez  foi  festejada  em 
Tokio  por  uma  procissão  de  lanternas,  em 
que  figuravam  mais  de  ioo:000  pessoas. 
Tamanha  era  a  onda  humana  e  tão  densa 
em  certas  ruas  mais  estreitas,  que  \arios 
indivíduos   ficaram   contusos,   dando-se  mes- 


lOI 


mo  duas  mortes ;  as  auctoridades  já  provi- 
denciaram para  que  se  não  repitam  acci- 
dentes  lamentáveis  de  tal  ordem.  O  que  esta 
estupenda  commemoração  prova,  se  ainda 
fosse  necessário  proval-o,  é  o  grande  enthu- 
siasmo  que  anima  o  povo  nas  presentes  cir- 
cumstancias.  O  facto  responde  por  si  a  uma 
pergunta  que  ha  dias  me  dirigia  um  amigo 
de  Lisboa,  pedindo  que  o  informasse  se  a 
guerra,  iniciada  pelo  Japão,  correspondia  ao 
sentimento  geral  do  povo  ou  era  uma  sim- 
ples especulação  dos  governantes;  eu  apre- 
sentei-lhe  ligeiros  traços,  referentes  á  pro- 
fimda  commoção  popular  que  aqui  palpita, 
acrescentando,  por  me  faltar  absolutamente 
o  tempo  para  longas  missivas,  que,  se  qui- 
zer  saber  o  resto.  .  .  comprasse  o  papel.  O 
papel  era  O  Comniercio  do  Porto;  a  phrase, 
talvez  já  não  usada  hoje,  era  a  que  em- 
pregavam no  meu  tempo  pelas  ruas  os  pre- 
goeiros das  novidades  sensacionaes. 

—  As  japonezices  estão  em  moda  em  Ingla- 
terra, o  que  não  surprehende,  quando  se  con- 
sidera que  ella  é  alliada  do  Japão.  Ora,  se 
pode  ampliar-se  o  velho  axioma  algébrico  — 
duas  cousas  iguaes  a  uma  terceira,  são  iguaes 
entre  si — dizendo  —  duas  nações  alliadas  a 
uma  terceira  são  alliadas  entre  si,  —  conclui- 


I02 


mos  (não  se  assustem!)  concliiimos  mathema- 
ticamente  que  nós  somos  alliados  do  Japão. 
Mais  concluímos,  agora  hcrnieneiiticamente, 
que  as  japonczices  devem  também  entrar  em 
moda  em  Portugal.  N'este  intuito,  na  impos- 
sibilidade de  expedir  a  cada  uma  das  minhas 
leitoras  (acaso  terei  leitoras?)  uma  boceta  de 
charão.  .  .  porque  sahiria  isso  muito  caro  — 
presumpções  de  auctor!  — ,  envio-lhes  d'aqui 
o  hymno  nacional  japonez,  Kímígayo  (O 
remado  do  Jiosso  soberano),  presumindo  que 
as  suas  mãos  commovidas  se  aprazerão  em 
ensaial-o  no  piano  domestico.  Eis,  pois,  o 
hj^mno,  musica  e  lettra,  indo  esta  em  japo- 
nez. E  eis  também  a  traducção  portugueza, 
que  vai  em  chata  prosa,  por  eu  já  não  ser 
poeta  e  nunca  ter  sido  musico: — Floresça 
longamente  em  glorias  o  reinado  do  soberano] 
Ntinca  experimente  revezes!  Seja  qual  pe- 
queno seixo,  que  se  eleva  até  ser  um  ro- 
chedo enorme,  que  os  séculos  reveste7n  de 
musgos ! ,  .  . 

Affigura-se-me  a  idea  delicadíssima,  com 
um  clássico  sabor  de  impressionabilidade  in- 
dígena. Veja-se  com  que  graciosidade  o  sen- 
timento da  longa  duração  se  acha  expresso 
no  seixo,  que  por  justaposição  se  transforma 
em  rochedo  gigante;  e  como   a  immutavel  e 


lO^ 


gloriosa  tranquillidade  se  traduz  pelos  musgos 
verdes,  avelludando  a  rocha  núa!  .  .  .  Outro, 
mais  habilidoso  do  que  eu,  poderá  adaptar  á 
musica  as  palavras. 


HYMNO    JAPONEZ 

MODKRATO 


i 


chi   yo   ni     -     -     ya  chi  yo  ni     sa  za    re 


-|- 


tr^^"^=d 


c:i- 


i    chi   no  i    \va    o    to         na    ri       te 


t--W--^-.r:.zw--f- 


-A- 


t=±rt;t=-' 


ko  ke  no         nni    -  su 


*!# 


=1:r-Í^:í=1 


:*zit 


a-^H 


ma 


de 


X 

7  de  junho  de    1904 

A  guerra  —  O  cerco  de  Porto  Arthur — .\s  perdas  dos 
japonezes  na  batalha  de  South  Hill — -A  queda  pre- 
vista de  Porto  Arthur  —  O  que  succederá  depois? — • 
Os  futuros  reforços  da  Rússia  —  O  patriotismo  e 
heroicidade  dos  japonezes  —  Os  próprios  russos 
sSo  os  primeiros  a  reconhecel-os  —  As  noticias  da 
ultima  hora — Scenas  pueris- -  Kxpediçílo  de  nove 
damas  americanas. 

A  O  tempo  em  que  escrevo  esta  carta,  lances 
sangrentos  se  travam  ou  pelo  menos  se 
preparam  para  breve  na  península  de  Liao- 
Tung,  onde  as  forças  japonezas  se  encontram 
e  apertam  o  circulo  que  tem  por  centro  Porto 
Arthur,  contendo  muitos  milhares  de  soldados 
russos;  mas  o  telegrapho  pouco  falia  agora. 
Bem  possivelmente,  após  os  terríveis  com- 
bates de  Kinchau  e  de  South  Hill,  travados 
nas  mais  duras  condições,  os  japonezes  en- 
tregam-se  a  um  curto  mas  indispensável 
repouso,  para  de  novo  proseguirem  com  Ím- 
petos medonhos  até  alcançarem  o  seu  grande 
íim  desejado,  que  é  a  occupação  de  Porto 
Arthur.  Na  batallia  de  South    Hill  as  perdas 


I05 


japonezas  foram  de  4:211  homens,  incluindo 
749  mortos,  dos  quaes  46  eram  officiaes;  mas 
conseguiram  desalojar  o  inimigo  d'aquella 
fortissima  posição,  que  na  P^uropa  se  julgava 
inexpugnável.  Em  Dalny,  antes  dos  japonezes 
alli  entrarem,  os  russos  poderam  metter  no 
fundo  uma  canhoneira  sua  e  varias  lanchas 
a  vapor,  a  íim  de  não  poderem  ser  úteis  ao 
inimigo,  retirand(^-se  depois  para  Porto  Arthur. 

Segundo  a  (opinião  geral  e  em  vista  dos 
factos  consumados,  Porto  Arthur  deve  em 
breve  caliir  em  poder  dos  japonezes;  pois 
apesar  das  suas  vastas  fortificações  e  da 
\'alorosa  defeza  que  se  espera  das  tropas 
russas  alli  concentradas,  nada  resistirá  á 
indomável  bravura  dos  filhos  de  Nippon,  para 
os  quaes  a  vida  nada  vale,  batendo-se  como 
leões  para  a  única  gloria  da  pátria.  A  empre- 
za  será  terrível,  no  emtanto;  morrerão  20:000 
soldados,  talvez  mais,  mas  os  restantes  des- 
fraldarão a  bandeira  do  Sol  Nascente  sobre  as 
ruinas  d'aquellc  porto,  que  já  foi  japonez, 
conquistado  valorosamente  á  China,  mas  que 
a  politica  russa  fez  restituir  ao  primitivo  dono, 
para  pouco  depois  o  chamar  seu. 

Que  succederá  depois  ?  A  Rússia  não  se  cansa 
de  apregoar  a  próxima  concentração  no  thea- 
tro   da  guerra  de   um   immenso  exercito  e  a 


io6 


chegada  a  estes  mares,  de  uma  esquadra 
qiiasi  fabulosa,  que  deve  largar  do  Báltico.  A 
Rússia  faz  por  ignorar  todos  os  revezes  soffri- 
dos  até  agora,  annunciando  que  a  lucta  ainda 
não  começou,  alludindo  assim  ao  momento  da 
chegada  d'estes  tremendos  reforços,  para 
então  iniciar  a  obra  do  esmagamento  dos 
japonezes,  predita  já  pelo  general  Koropatkine. 
A  quem  estuda  imparcialmente  as  peripécias 
do  drama,  parecem  um  tanto  problemáticas 
essa  immensa  concentração  de  forças  russas 
em  uma  região  onde  será  difhcilimo  alimen- 
tal-as  por  alguns  mezes,  e  a  vinda  de  essa 
nova  esquadra  a  estas  paragens,  onde  não 
poderá  contar  com  portos  de  abrigo,  sem  já 
fallar  na  colossal  empreza  de  poder  chegar  até 
cá;  mas  tudo  pôde  ser  possivel,  quando  es- 
forços arrojadissimos  se  emprehendam  e  altas 
coadjuvações,  embora  disfarçadas,  se  dispen- 
sem. Soará  então  a  hora  da  tremenda  catas- 
trophe  para  o  Japão,  obrigado  a  medir-se  com 
forças  inimigas  incomparavelmente  superiores 
ás  forças  de  que  poderá  dispor  e  ainda  por 
cima  minado  pela  escassez  de  recursos  pecu- 
niários? Possivelmente  os  japonezes  terão 
previsto  este  terrível  desfecho  e  preferirão  o 
aniquilamento  completo,  cobertos  de  gloria 
(porque   ha   derrotas    gloriosas),    c   laureados 


lo; 


pela  admiração  do  mundo  inteiro,  á  v^ergonha 
da  tranquillidade  que  se  lhes  offerecia  sob  a 
condição  do  sacrifício  dos  seus  sonhos  mais 
caros  de  desenvolvimento  e  de  expansão,  na 
região  que  geographicamente  se  prestava  para 
campo  da  sua  marcha  evolutiva.  No  emtanto, 
estamos,  por  certo,  ainda  longe  de  poder 
formular  hypotheses  temerárias.  Admitta-se, 
como  dizem  os  russos,  que  a  guerra  ainda  não 
tenha  começado;  paira,  com  effeito,  n'esta 
parte  do  mundo,  um  sopro  prenunciador  de 
não  sei  que  gigantesca  tempestade  social,  ex- 
cedendo tudo  que  a  imaginação  nossa  deva- 
near; não  se  pôde,  porém,  prever  nada  posi- 
tivo. Esperemos. 

Ó  velho  espirito  de  bravura  militar  dos 
japonezes  resuscita,  ou  antes,  adormecido 
durante  longos  annos  de  progressos  pacificos, 
refloresce  hoje  com  igual  intensidade,  causando 
a  admiração  mundial. 

Os  próprios  russos  tecem  os  mais  rasgados 
elogios  á  heroicidade  dos  filhos  de  Nippon. 
Contam  os  russos  que,  em  uma  das  tentativas 
do  inimigo  para  obstruir  Porto  Arthur,  os 
marinheiros  subiam  aos  mastros  dos  barcos 
que  se  iam  afundando  sob  a  metralha  dos 
fortes  para  gritarem  Banzai  \  (^Viva!)  pelo 
imperador  d(^  Japão  antes  de  desapparecerem 


io8 


nas  ondas.  Em  uma  embarcação,  que  se 
afundava,  a  guarnição  subiu  aos  mastros  para 
agitar  signaes  e  assim  guiar  os  outros  vapores 
que  se  dirigiam  ao  mesmo  local.  Um  mari- 
nheiro foi  descoberto  pelos  russos  nadando 
para  terra;  quando  foi  intimado  a  render-se, 
empunhou  o  seu  revolver,  com  o  qual  não 
cessou  de  fazer  fogo  até  que  o  mataram  e 
desappareceu  no  oceano. 

Na  batalha  de  South  Hill,  onde  os  russos 
esperavam  permanecer  por  um  ou  dous  mezes, 
graças  á  excellencia  natural  da  situação  e  aos 
recursos  com  que  contavam,  os  japonezes 
repetiram  as  cargas  sem  descanço,  soffrendo 
lerriveis  perdas,  até  conseguirem  desbaratar  e 
vencer  o  inimigo ;  arrojo  sem  exemplo  na  his- 
toria e  que  mostra  quanto  vale  a  tempera 
d'estes  asiáticos. 

Em  Osaka,  a  noticia  das  perdas  na  bata- 
lha de  South  Hill  foi  recebida  pelos  parentes 
das  victimas  com  exemplar  serenidade.  As 
auctoridades  do  deposito  da  divisão  de  Osaka, 
ao  possuírem  a  lista  dos  mortos,  convocaram 
no  Club  Militar  as  viuvas  dos  officiaes,  ás 
quaes  transmittiram  a  triste  nova.  Todas  se 
mostraram  dignamente  conformadas,  paten- 
teando dons  de  coragem  pouco  vulgares  no 
seu  sexo.   A  senhora  Fujioka,  esposa  do  te- 


I09 


nente-coronel  do  mesmo  appellido,  um  dos 
mortos,  dirigiu-se  depois  para  sua  casa,  onde 
reuniu  todos  os  filhos,  fallando-lhes  em  pri- 
meiro logar  dos  perigos  a  que  anda  sempre 
exposta  a  vida  do  soldado ;  depois  annun- 
ciou-lhes  a  morte  do  pai,  exhortando-os  a 
que  se  conduzissem  de  futuro  conforme  os 
desejos  do  defunto ;  em  vista  da  compostura 
materna,  os  filhos  supportaram  silenciosa- 
mente e  corajosamente  o  seu  golpe. 

—  Reservando  um  pequeno  espaço  para  as 
noticias  da  ultima  hora,  eis  o  que  se  me  offe- 
rece  relatar. 

O  almirante  Togo  informa  o  seu  governo 
de  que  no  dia  4  foram  vistos  pela  esquadra 
do  bloqueio  em  Porto-Arthur  vários  navios 
russos  fora  da  barra,  occupando-se  na  faina 
de  descobrir  e  retirar  algumas  minas  subma- 
rinas que  os  japonezes  alli  haviam  collocado. 
Uma  canhoneira  russa,  presumidamente  a 
«Giljak»,  foi  de  encontro  a  uma  das  minas, 
que  fez  explosão,  afundando-se  o  barco.  A 
<s Giljak»  era  construída  de  aço,  de  1:300  to- 
neladas, com  uma  guarnição  de  150  a  200 
homens  e  fortemente  armada. 

Chegam  noticias  de  origem  russa  de  que 
as  forças  moscovitas  se  decidiram  finalmente 
a  tomar  a  offensiva  c  que  um  tremendo  corpo 


I  IO 


de  exercito  marcha  para  o  sul  cm  soccorro  de 
Porto  Arthiir,  hoje  sitiado  pelo  inimigo.  Se- 
gundo a  imprensa  local,  o  facto  de  vir  a  in- 
formação do  lado  dos  russos,  que  deveriam 
ter  todo  o  empenho  em  conservar  secreto  tal 
movimento,  faz  acreditar  que  a  noticia  é  uma 
simples  invenção,  lançada  no  intuito  de  ame- 
drontar os  japonezes.  Veremos. 

Como  succede  em  todos  os  grandes  acon- 
tecimentos, a  guerra  actual,  ao  passo  que  vai 
urdindo  grandes  scenas  tormentosas  e  com- 
moventes,  vai  simultaneamente  servindo  de 
pretexto  para  scenasinhas  pueris  e  grotescas, 
que  não  devem  em  todo  o  caso  passar  sem 
commentario,  pelo  menos  a  titulo  de  salutares 
diversões  ao  espirito  sobresaltado  do  obser- 
vador attento.  No  numero  d'estas  ultimas  está 
a  expedição  de  umas  nove  damas  americanas 
da  Sociedade  da  Cruz  Vermelha  da  Great 
Repiiblíc,  as  quaes  chegaram  a  Yokohama  ha 
alguns  dias,  em  resultado  da  sua  espontânea 
resolução  de  virem  prestar  serviço  n'este  im- 
pério durante  o  conflicto  que  se  fere.  Eu  vi-as 
uma  vez  de  relance,  em  um  parque  publico, 
onde  os  pobres  japonezes,  que  téem  multiplica- 
do inventos  para  ser  agradáveis  ás  suas  illus- 
tres  visitantes,  lhes  offereciam  um  Five  o'clock 
Tca,  com  acompanhamento  de  bolos  e  gelados, 


III 


uma  das  mil  tVixolidades  que  as  yankee  mais 
do  intimo  apreciam  n'este  mundo.  As  damas 
\'estiam  garridamente  os  seus  uniformes  de 
combate  brancos,  com  toucas  brancas  petu- 
lantes, um  pouco  ás  três  pancadas  sobre  a 
nucíi.  Como  physico,  classificam-se  pelo  typo 
de  missionarias  chegadas  á  idade  das  desillu- 
sões,  enormes  de  estatura,  sem  vislumbres  de 
graça,  insexuaes,  rostos  angulosos  e  frios, 
óculos  terrificos  nos  narizes,  mãos  e  pés  de 
tremendas  proporções.  Aqui  se  pespegam  pois 
estas  seresmas,  afim  de  cuidarem  dos  feridos 
sem  que  ninguém  as  convidasse,  e  também 
certamente  e  em  primeiro  logar  afim  de  cui- 
darem de  si  mesmas,  do  seu  conforto,  que 
naturalmente  inclue  os  vastos  aposentos  para 
cada  uma,  os  quartos  de  toiktte,  de  banho,  o 
salão  commimi,  as  copiosas  e  variadas  refei- 
ções, talvez  o  seu  copinho  de  ivhisky^  o  chá 
da  tarde,  sem  contar  as  varias  excursões  ás 
montanhas,  o  sport  náutico,  bicyclettista  e 
do  kodack,  as  práticas  religiosas  e  do  tcnnis. 
O  que  tem  muita  graça,  é  que  os  japone- 
zes  possuem  cá  uma  Sociedade  da  Cruz  Ver- 
melha sua,  que  pôde  ser  considerada  modelo 
de  perfeição  no  mundo  inteiro,  e  um  corpo  de 
enfermeiras  superiormente  educadas  e  habi- 
lissimas.  Estas  enfermeiras,  como  authenticas 


112 


japonezinhas  que  são,  têem  todas  umas  cari- 
nhas doces  e  sj^mpathicas,  umas  mãos  de  fadas 
próprias  para  todos  os  desvelos ;  são  extrema- 
mente carinhosas,  asseadas,  modestíssimas  em 
exigências,  contentando-se  com  o  seu  jantari- 
nho  de  arroz  cozido,  dormindo  á  noute  em  com- 
mum,  sem  leitos,  sobre  a  esteira  de  um  cubi- 
culo.  Os  feridos  russos,  no  hospital  de  Mat- 
zuyama,  adoram-nas ;  di\^ertem-se  a  jogar  a 
pélla  com  ellas,  como  creanças  com  creanças. 
Emfim,  nob lesse  oblígc,  e  os  japonezes  não 
tiveram  remédio  senão  aceitar  os  serviços 
impostos  e  acabam  de  enviar  as  nove  damas 
para  os  hospitaes  de  Hiroshima.  Estou  certo 
de  que  não  deixarão  de  implorar  os  seus  deu- 
ses para  que  não  lhes  mandem  mais  d'estes 
exemplares  de  hysteria  caridosa,  que  tão  impor- 
tunos e  dispendiosos  se  lhes  tornarão ;  se  a 
America  teima  em  ser  amável,  que  a  gentileza 
feminina  se  transfira  aos  manos  e  aos  maridos, 
para  que,  na  hypothese  de  um  segundo  em- 
préstimo para  acudir  ás  despezas  da  guerra, 
elles  se  mostrem  menos  propensos  á  agiotagem 
do  que  se  mostraram  no  primeiro  empréstimo, 
realisado  ha  algumas  semanas. 


Xí 

19   de  julho   de   1904 

A  tcinperalLira  -A  guena  —  A  iíuropa  e  as  victorias 
japonczas  —  Porto  Aithur  —  A  importância  da  to- 
mada d'esta  praça  pelos  japonezes  —  Os  últimos 
acontecimentos  —  Algumas  phrases  sobre  o  Japão 
e  o  povo  japonez,  escriptas  por  notáveis  viajantes 
-O  que  disse  S.  Francisco  Xavier  a  respeito  do 
Japão  —  Impressões  dos  japonezes  que  teem  visi- 
tado a  Europa. 

(^oM  a  temperatura  tropical  que  reina  agora, 
embora  por  pouco  tempo,  n 'estas  pa- 
ragens, tornada  repetidamente  ainda  mais  in- 
supportavel  pelas  rajadas  abrazadoras  dos  tu- 
toes  que  passam  perto  e  pelo  ar  húmido  e 
pesado  que  se  respira,  as  forças  falham,  as 
aptidões  fallecem ;  e,  francamente,  seria  uma 
duríssima  tarefa  o  tentar  reunir  ideias  para 
descrever  minuciosamente  as  peripécias  da 
guerra  e  critical-as  em  seguida.  Felizmente 
para  o  meu  caso,  as  noticias  não  teem  abun- 
dado muito  durante  estes  últimos  dias,  se 
pozermos  de  parte  citações  menos  importantes 
com   referencia  a  wiriadas  escaramuças  trava- 


114 


das  em  cem  pontos  diversos,  denominados 
por  nomes  bárbaros  quaesquer,  que  nem 
mesmo  se  encontram  nas  cartas  mais  minu- 
ciosas. Eftectivamente,  com  respeito  á  guerra, 
paira  agora  aqui  como  que  uma  calmaria 
ameaçadora,  similhante  ás  ameaçadoras  calma- 
rias meteorológicas,  annunciadoras  da  próxima 
tempestade.  A  tempestade  prevista  e  que  con- 
serva em  suspensão  as  attenções  do  mundo 
inteiro,  será  uma  grande  batalha  nas  plani- 
cies  que  avisinham  Sianyang,  ou  o  tremendo 
assalto  aos  últimos  fortes  e  entrincheiramentos 
de  Porto  Arthur,  sendo  qualquer  dos  dous 
acontecimentos  de  uma  importância  capital 
para  os  futuros  successos  da  contenda.  A 
Europa,  quasi  por  completo  hostil  aos  japone- 
zes  no  começo  das  hostilidades,  electrisa-se 
perante  os  admiráveis  arrojos  e  as  successivas 
victorias  d'estes  incomparáveis  amarellos,  que 
luctam  como  tigres  pela  independência  e  pelo 
engrandecimento  da  sua  pátria  e  pelas  prospe- 
ridades de  toda  a  vasta  região  extremo  oriental ; 
e  a  Europa,  coUocando-se  a  pouco  e  pouco  do 
lado  dos  nippons,  aguarda  anciosa  pelos  suc- 
cessos futuros,  confia  nas  suas  glorias  e  está 
prompta  para  gritar  com  elles:  —  «Banzai! 
Banzai  pelo  Japão !  .  . .  » 

Ha  dias,  O  —  kiku  San  —  a  snr.'"*  Chrysan- 


115 


themo  (mas  não  a  de  Loti)  —  dizia-me  em 
confidencia  que,  ás  escondidas  da  mãe,  estava 
cuidando  de  arranjar  um  traje  completo  á 
europeia  —  saia,  hlotise,  botas,  chaspellinho  e 
tudo  o  mais,  —  para  assim  se  vestir  quando 
íbr  annunciado  que  Porto  Arthur  cahiu  nas 
mãos  dos  japonezes ;  e  ir  assim  para  a  rua, 
pimpona,  assistir  ás  commemorações  que  se 
projectam,  lui  sorri  e  promctti  que  as  meias 
lhe  offereceria  eu,  um  par  de  meias  de  seda 
preta  mui  janotas,  para  calçarem  os  seus  pési- 
tos  aK^os,  invariavelmente  nús  sobre  as  estei- 
ras. \^istam-se,  pois,  á  europeia  todas  as  viu- 
sumcs,  e  á  japoneza  todas  as  meninas  europeias, 
e  vão  todas,  e  vamos  todos  festejar  a  tomada 
de  Porto  Arthur,  quando  se  dér  e  se  se  dér, 
é  que  constituirá  talvez  o  acontecimento  mais 
notável,  não  do  século  xx,  que  ainda  não 
tem  historia,  mas  de  toda  a  historia  moderna 
da  humanidade  em  pezo !  .  .  . 

A  tomada  de  Porto  Arthur  pelos  japonezes 
será,  effectivamente,  de  uma  importância  im- 
mensa  para  os  acontecimentos  futuros ;  impor- 
tância moral,  que  se  alastrará  por  toda  a 
China  e  irá  mesmo  mais  longe ;  importância 
material  e  immediata,  pois  representará  ao 
mesmo  tempo,  segundo  todas  as  probabilida- 
des, o  aniquillamento  da  esquadra  russa,  que 


IIÓ 


terá  de  render-se  ao  inimigo  dentro  de  Porto 
Arthur,  se  os  i-iissos  não  preferirem  destruil-a 
e  afundal-a  por  si  próprios,  ou  então  se  verá 
forçada  a  sahir  para  o  mar  e  a  ser  destruída 
pelos  navios  japonezes,  podendo  ainda  admit- 
tir-se  a  hypothese  de  alguns  navios  russos 
poderem  ganhar  algum  porto  neutro  da  costa 
da  China,  onde,  segundo  todos  os  usos  inter- 
nacionaes,  deverão  ser  detidos  até  findarem 
as  hostilidades. 

Mas  cahirá,  realmente.  Porto  Arthur  nas 
mãos  dos  japonezes?  Tudo  faz  prever  que 
assim  aconteça,  quando  se  não  supponha  que 
o  exercito  inteiro  nipponico  seja  abrazado  em 
chammas  e  reduzido  a  cinzas  pelas  minas  sub- 
terrâneas que  os  russos  hajam  collocado  na 
sua  passagem,  como  ha  alguns  dias  certos 
boatos,  vindos  de  fora,  de  mui  pouco  credito, 
tentavam  íazer  acreditar. 

Mas  vamos  á  rezenha  dos  últimos  aconte- 
cimentos. Em  8  do  corrente,  occupação  de 
Kaiping  pelos  japonezes,  facto  que  os  torna 
senhores  de  toda  a  proxincia  de  Liaotung, 
com  excepção  de  Porto  Arthur,  que  está  nas 
condições  que  todos  conhecem. 

Em  6,  deu-se  o  tacto  significativo  de  ter 
partido  de  Tok^^o  para  o  campo  do  conflicto  o 
marechal   marquez   Oyama,  investido  do  alto 


n; 


cargo  de  commandante  eni  chefe  de  todas  as 
forças  japonezas  na  Mandchiiria;  o  marquez 
vai  acompanhado  de  um  brilhante  estado 
maior,  cujo  chefe  é  o  prestigioso  barão  de 
Kodama.  A  esquadra  de  Togo  tem  feito  repe- 
tidos ataques  a  Porto  Arthur,  constando  que, 
em  2/  de  junho,  um  cruzador  e  um  destroyet 
russos  foram  a  pique,  e  que,  em  8  do  corrente, 
o  poderoso  cruzador  «Askold»  s')ffreu  grossa 
avaria.  A  canhoneira  japoneza  «  Kaimon  »  foi 
pelos  ares  perto  de  Talienvvan,  por  ter  tocado 
em  uma  mina  submarina  russíi ;  morreram 
umas  20  pessoas,  incluindo  o  commandante 
da  canhoneira.  O  vice-almirante  Kaminura,  um 
dos  menos  felizes  ofíiciaes  japonezes  na  pre- 
sente canipanha,  conseguiu  encontrai'  no  mar 
os  navios  russos  de  \'ladivostok,  quando  estes 
tentavam,  presumivelmente,  dirigir-se  a  Porto 
Arthur;  Kaminura  pôde  evitar  que  tal  aconte- 
cesse, mas  não  logrou  atacar  os  n.ivios  russos, 
que  beneticiaram  de  um  denso  nevoeiro  e 
voltaram  ao  seu  habitual  refugio  de  Vladi- 
vostok. 

Um  triste  incidente  a  relatar:  consta  que, 
ha  alguns  dias,  os  russos  passearam  pelas 
ruas  de  Porto  Arthur  dous  officiaes  japonezes 
seus  prisioneiros,  no  intuito  de  incitar  o  animo 
das  tropas  moscovitas;  os  dous  officiaes,  ijão 


118 


podendo  resistir  íio  ultrage,  suicidarani-se  de- 
pois. Se  o  facto  é  \'erdadeiro,  cabe  enorme 
responsabilidade  a  quem  auctorisou  tamanha 
ignomnia,  tendente  a  desprestigiar  um  exercito 
inteiro  de  uma  nação  que  se  diz  de  raça  bran- 
ca, com  altas  pretençòes  de  civilisada;  em 
nenhumas  circumstancias  os  japonezes  seriam 
capazes  de  commetter  tão  grande  infâmia, 
positiv^amente. 

Mais  tristes  incidentes :  estão  sendo  aqui 
commentados  com  a  maior  indignação,  não 
só  pelos  japonezes,  mas  pela  imprensa  estran- 
geira, os  factos,  conhecidos  por  telegrammas, 
de  terem  sahido  do  mar  Negro  alguns  barcos 
da  frota  mercante  russa,  os  quaes,  depois  se 
arvoraram  em  cruzadores  de  guerra,  apresando 
o  vapor  ingiez  «  Malacca »  e  apossando-se  da 
mala  de  correspondência  para  o  Japão,  que 
vinha  a  bordo  do  vapor  allemão  <-.  Prinz  Hein- 
rich  »  ;  esta  ultima  proeza  é  simplesmente  clas- 
sificada de  pirataria  pelo  jornal  ingiez  mais 
respeitado  de  todos  que  se  publicam  n'este 
império.  Confiemos  em  que  as  potencias  neu- 
traes  tomarão  sérias  providencias. 

—  Como  agora  o  Japão  e  os  japonezes 
estão  occupando  intensamente  as  attenções  do 
mundo  inteiro,  não  é  certamente  inopportuno 
recordar   n'este   logar  algumas  phrases  sobre 


119 


este  império  c  sobre  este  povo,  escriptas  por 
notáveis  viajantes  que  por  aqui  téem  passado. 
No  entretanto,  é  curioso  observar  que  sobre  o 
assumpto  se  téem  escripto  e  dito  as  opiniões 
mais  diversas  e  contradictoiias ;  e  eu  apostaria 
até  que  não  se  encontram  dous  residentes 
estrangeiros  no  Japão  que  pensem  identica- 
mente em  tal  matéria. 

S.  P^rancisco  Xavier,  em  meados  do  século 
XVI,  diz:  —  «Esta  nação  é  a  delicia  da  minha 
alma». 

Diz  VVill  Adams,  nos  principios  do  século 
XV II :  —  «O  povo  d'esta  ilha  do  Japão  é  bom 
de  natureza,  excessiv-amente  cortez  e  valente 
na  guerra.  A  justiça  é  seguramente  exercida 
sem  nenhuma  parcialidade  contra  os  trans- 
gressores da  lei  •> . 

F^screve  o  allemão  Engelbert  Ksempfer,  no 
tim  do  século  xvii :  —  «Arrojados...  herói- 
cos. .  .  vingativos.  .  .  desejosos  de  fama.  .  . 
muito  industriosos  e  soffredores  de  fadigas.  .  . 
grandes  favoritos  de  civilidades  e  de  boas 
maneiras  e  muito  garridos  em  si  próprios,  nas 
suas  vestes  e  casas,  tudo  limpo  e  asseado.  .  . 
Em  toda  a  espécie  de  trabalhos  manuaes,  se- 
jam de  luxo  ou  utilitários,  não  lhes  faltam 
materiaes  e  habilidades ;  e  tanto  assim  é  que, 
se  téem  ensejo  de  chamarem  mestres  de  fora. 


I20 


excedem  muito  todas  as  outras  nações  em 
engenho  e  esmero  de  acabamento,  particular- 
mente em  obras  de  latão,  ouro,  prata  e 
cobre.  .  .  Professam  um  grande  respeito  e 
adoração  pelos  seus  deuses,  adorando-os  por 
vários  modos :  e  supponho  poder  affirmar  que 
em  prática  de  virtudes,  em  pureza  de  vida  e 
devoção  exterior,  elles  estão  muito  acima  dos 
christãos  ». 

Sir  Rutherford  Alcock  escrevia  em  1860 
esta  phrase,  que  se  popularisou  até  hoje  como 
um  provérbio :  —  «O  Japão  é  um  verdadeiro 
paraizo  das  creanças».  —  N'outro  logar,  diz  o 
mesmo  auctor: — «Ha  aqui  um  erro  algures, 
do  qual  resulta  que  n'uni  dos  mais  encantado- 
res e  férteis  paizes  do  mundo  inteiro  as  flores 
não  téem  perfume,  as  aves  não  téem  canto  e 
os  fructos  e  os  vegetaes  não  téem  sabor».  Um 
dos  meus  collegas  dá  as  caracteristicas  d'esta 
terra  por  uma  outra  trilogia,  da  qual  devo 
limitar-me  em  dizer  que  não  é  inferior  em 
exactidão,  embora  talvez  menos  poética :  — 
« mulheres  sem  saias  de  balão,  casas  sem 
percevejos  e  paiz  sem  advogados »  ( tem-nos 
agora  já,  mas  ainda  não  tem  percevejos). — 
Acrescentarei,  por  conta  própria,  que  ha  ainda 
uma  outra  trilogia,  popular  entre  residentes 
europeus  e  provavelmente  inventada  por  algum 


121 


d'elles  em  uma  hora  de  azedume :  —  <  Flores 
sem  odor,  fructos  sem  sabor  e  mulheres  sem 
pudor.  * 

—  «No -que  respeita  á  feição  moral,  a  me- 
dia japoneza  é  franca,  honesta,  fiel,  carinhosa, 
gentil,  cortez,  confiante,  dedicada,  filial,  leal. 
O  amor  da  verdade  pela  verdade,  a  castidade, 
a  temperança,  não  são  virtudes  características» 
(porque  são  geraes).  —  Assim  escreve  o  vev, 
VV.  E.  Griffin. 

—  «  Seguramente,  para  a  alegria,  delicadeza 
se  obriedade,  para  branduras  de  voz  e  sempre 
risonha  tagarelice,  para  a  abençoada  faculdade 
de  colher  das  mais  simples  coisas  um  são 
aprazimento.  .  .  nenhum  outro  paiz  pôde  aspi- 
rar a  mostrar  primazias  sobre  uma  multidão 
festival  no  Japão. »  —  (General  Palmer.) 

Persival  Lowell  nota  uma  sensível  falta  de 
originalidade  nos  japonezes  e  acrescenta :  — 
«  Modificações  sobre  motivos  estrangeiros,  mo- 
dificações sempre  artísticas  e  algumas  vezes 
deliciosamente  engenhosas  marcam  a  extensão 
da  originalidade  japoneza.  .  .  Uma  geral  in- 
capacidade para  ideias  abstractas  é  outra 
notável  característica  do  intellecto  do  japo- 
nez Por  ultimo,  o  decoroso  comporta- 
mento do  povo  inteiro  acusa  a  falta  da  sua 
actividade  mental;  não  são  os  costumes  que 

6 


122 


fazem  o  caracter,  mas  sim  o  caracter  que  de- 
cide dos  costumes.  Não  se  esperam  pensamen- 
tos arrojados  de  uma  etiqueta  tão  estranha- 
mente cumprida.» 

—  «Os  japonezes  impressionam-me  como 
o  povo  mais  feio  e  mais  divertido  que  eu 
tenho  visto,  e  ao  mesmo  tempo  o  mais  limpo 
e  engenhoso.»  —  (Miss  Bird), 

—  «A  terra  das  gentis  maneiras  e  das 
artes  phantasticas.  .  .  Os  japonezes  téem  uma 
alma  mais  de  pássaro  ou  de  borboletas  do 
que  de  ordinários  seres  humanos.  .  .  Não  serão 
elles  que  tomarão  e  poderão  tomar  a  vida  a 
sério.»  —  (Sir  E.  Arnold.) 

—  «O  Japão  provou  de  mais  aos  euro- 
peus ;  o  jogo  agora  é  d'elle,  que  explora  os  ex- 
ploradores.»—  (W.  Lawson). 

— « Certamente  a  terra  do  sol  nascente, 
mas  também  a  terra  do  occaso  do  romance» 
—  (Curt  Netto.) 

—  «O  Japão  dos  nossos  dias  é  uma  tradu- 
cção  mal  feita  »  —  (Um  residente  diplomata.) 

—  «  A  terra  do  desapontamento. »  —  (Um 
antigo  residente.) 

O  conhecido  Loti,  tão  enthusiasta  do 
Oriente,  não  professa  a  mesma  alta  estima 
pelo  Extremo-Oriente ;  sendo  certo  que,  com 
respeito  ao  Japão,  não  são  poucas  as  paginas 


123 


cscriptas  do  seu  punho  em  que  tudo  se  depri- 
me, terra  e  povo.  O  famoso  romance  Madame 
Chrysanthcmc  é  um  dos  volumes  de  Loti 
onde  mais  se  tenta  redicularisar  os  japonezes, 
especialmente  as  japonezas,  o  que  mereceu 
do  escriptor  Hitomi,  no  seu  recente  livro  Le 
Japon,  as  seguintes  curiosas  observações:  — 
« Alguns  viajantes  estrangeiros  téem  julgado 
as  japonezas  pelas  criadas  do  hotel  ou  pelas 
mulheres  fáceis  que  encontraram.  Não  tendo 
occasião  de  vêr  as  mulheres  honestas  senão 
na  rua  e  não  tendo  jamais  fallado  com  ellas, 
pretenderam  tornal-as  conhecidas  de  nós  todos. 
Não  faltam  exemplos  bem  tristes  de  quantos 
erros  grosseiros,  de  quantas  injustiças  tal  le- 
viandade tem  originado ;  mas  acreditemos  que 
os  povos  civilisados  não  se  deixam  enganar 
por  observadores  tão  superficiaes.  .  . »  —  E  con- 
tinua, em  termos  mais  realistas,  condemnando 
o  citado  romance  de  Loti. 

Fiquemos  por  aqui,  no  respeitante  a  cita- 
ções. Concluirei,  fazendo  umas  ligeiras  referen- 
cias ao  que  parece  mais  impressionar,  do  nosso 
lado,  os  japonezes  que  visitam  a  Europa  e 
relanceiam  os  nossos  costumes;  cito  para  o 
caso,  em  resumo,  o  que  diz  sobre  o  assumpto 
o  auctorisado  professor  Chamberlain  no  seu 
precioso    livro    Things   Japanesc,    As   nossas 


124 


mais  notáveis  características,  segundo  a  critica 
japoneza,  resumem-se  n'esta  trilogia:  —  falta 
de  limpeza,  preguiça  e  superstição.  —  Sobre  o 
primeiro  ponto,  nada  temos  para  allegar  em 
nossa  defeza;  sem  já  fallar  nos  differentes 
cuidados  de  asseio,  que  merecem  as  casas  ja- 
ponezas  e  as  nossas,  basta  que  se  considere 
que  o  banho  é  ainda  na  Europa  uma  prática 
quasi  luxuosa,  da  qual  se  abstém,  por  econo- 
mia e  por  aversão,  a  grande  maioria  das  popu- 
lações; pois  no  Japão  toda  a  gente  toma 
banhos,  geralmente  diários,  não  havendo  infima 
aldeia  provinciana  que  não  possua  casas  de 
banhos  públicos,  orçando  a  admissão  por  cerca 
de  IO  réis  ou  mesmo  menos.  Com  respeito  ao 
segundo  ponto,  não  se. estranhe  que  nos  alcu- 
nhe de  e  preguiçosos  :>  um  povo  que  compara 
os  hábitos  dos  nossos  operários,  com  os  seus 
domingos,  com  os  seus  dias  santos,  com 
os  seus  feriados,  ao  dia  de  trabalho  japonez, 
que  é  de  15  horas,  attingindo  365  o  numero 
de  dias  de  trabalho  de  cada  anno.  Com 
referencia  ao  ultimo  ponto,  talvez  tenham 
razão  os  japonezes  em  chamar-nos  supersti- 
ciosos ;  em  todo  o  caso,  os  exaggêros  em  que 
descambem  a  tal  respeito,  serão  filhos  da  in- 
competência critica  com  que  elles  obser\'am  as 
nossas  igrejas  e  as  nossas  cerimonias  cultuaes. 


125 


O  que  se  conclue  de  tudo  isto  é  que  o  japonez, 
contra  o  que  poderia  julgar-se,  pouco  se  des- 
lumbra com  os  aspectos  da  nossa  civilisação, 
voltando  á  pátria  sem  perda  sensível  dos  sen- 
timentos amorosos  e  exclusivistas  que  tributa 
ao  seu  Dai-Níppon. 


XII 

27  de  Julho  de  1904 

Maravilhoso  espectáculo  dado  pelo  Japão  ao  mundo  — 
A  sua  evoluçíío  industrial  c  scientifica  —  Recursos 
de  que  o  Japão  dispõe  para  defender  os  seus  inte- 
resses por  meio  das  armas  —  O  seu  prestigio  — 
Raças  branca  e  asiática  —  Os  progressos  do  Japa© 
—  Causas  especiaes  a  que  obedecem  esses  progres- 
sos—  A  Rússia  —  Os  acontecimentos  da  guerra  — 
Porto  Arthur  e  Liao-Yang  —  O  apresamento  de 
navios  pelos  russos  —  P2squadra  de  Vladivostock  — 
Os  mestiços  japonezes. 

II  MARAVILHOSO  cspectacLilo  dado  pelo  Ja- 
^"^^  pão  ao  mundo  pela  evolução  indus- 
trial e  scientifica  por  que  tem  passado  desde 
1868,  isto  é,  desde  o  advento  do  novo  regimen 
politico  do  império,  evolução  ainda  o  anno 
passado  brilhantissimamente  confirmada  na 
exposição  de  Osaka,  não  deve  deixar  duvidas 
áquelles  que  estudam  attentamente  este  paiz 
sobre  o  seguinte  facto :  que  a  moderna  orienta- 
ção das  actividades  pacificas  não  constitue  um 
traço  exclusivo  da  raça  branca,  pois  que  os 
nipponicos,  povo  asiático,  a  attingem,  annun- 
ciando-se  desde  já  como  intelligentissimos  com- 


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petidores  no  campo  do  trabalho,  da  industria, 
do  commercio  e  de  todas  as  energias  pro- 
ductoras. 

Debaixo  de  um  outro  ponto  de  vista,  o 
Japão  tem-se  mostrado,  durante  os  últimos 
cinco  mezes,  igual,  se  não  superior,  aos  prin- 
cipaes  Estados  cultos:  refiro-me  aos  recursos 
com  que  conta,  materiaes  e  scientificos,  para 
defender  por  meio  das  armas  os  seus  interesses, 
contra  uma  nação  que  pretende  offendel-os.  E 
o  exemplo  não  poderia  ser  mais  eloquente  do 
que  este  a  que  assistimos,  porque  a  nação 
que  se  apresenta  em  campo,  é  nada  menos  do 
que  o  colosso  do  norte,  que  se  impõe  dura- 
mente na  Europa  pelo  prestigio  do  seu  im- 
menso  solo,  da  sua  enorme  população,  dos 
seus  grandes  recursos. 

Effectivamente,  o  sorriso  motejador  que  em 
geral  mereceu,  nos  centros  cultos,  a  attitude 
firme  do  Japão  ao  declarar  a  guerra  á  Rússia, 
já  hoje  não  seria  desculpável,  por  simplesmente 
alvar.  Os  japonezes  estão  cobertos  de  gloria; 
a  sua  acção,  quer  por  mar,  quer  por  terra, 
tem  sido  sempre  victoriosa;  a  sua  táctica  tem 
sido  admirável  e  sobejamente  comprovativa 
da  alta  capacidade  do  exercito  nipponico  e  da 
marinha  nipponica.  Quanto  á  Rússia,  está 
humilhada,  o  seu  prestigio  afunda-se.  Nem  já 


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vale  a  pena  fallar  nos  apregoados  planos 
estratégicos  do  general  Kuropatkine;  ha  apenas 
confusão,  desorganisação,  desmoralisação.  A 
partida  nao  está  ganha  ainda;  mas  o  que  se 
pôde  desde  já  affirmar,  é  que  se  a  Rússia  fòr^ 
por  íim,  vencedora,  não  o  deverá  á  pericia  dos 
seus  generaes,  mas  á  enorme  massa  de  homens 
que  poderá  um  dia  enviar  á  Mandchuria  ao 
encontro  dos  heroes  nipponicos. 

Tira-se  de  todos  estes  factos  um  importan- 
tíssimo conceito,  que  ainda  ha  poucos  mezes 
ninguém  ousaria  formular:  é  o  não  se  poder 
mais  admittir  a  raça  branca  como  uma  raça 
privilegiada,  a  que  as  outras. raças  devam  fatal- 
mente obediência.  O  Japão,  asiático,  combate 
contra  a  Rússia,  de  raça  branca,  e  apresenta-se 
superior  a  ella;  o  Japão,  asiático,  mostra  ao 
mesmo  tempo  um  desenvolvimento  de  traba- 
lho e  um  grau  de  civilisação  muito  superiores 
ao  desenvolvimento  de  trabalho  e  ao  grau  de 
civilisação  de  muitos  dos  Estados  da  raça 
branca.  A  superioridade  do  branco  não  tem, 
pois,  razão  de  ser  apregoada,  pois  não  se  é 
superior  por  se  ter  os  olhos  azues  ou  os  ca- 
bellos  louros,  mas  pelos  progressos  realisados 
nas  conquistas  positivas  da  evolução  da  tribu. 

Se,  admittindo,  como  não  se  pôde  deixar 
de    admittir,   o   grau  invejável  de  progressos 


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materiaes  do  Japão,  tentássemos  depreciar  o 
japonez  com  respeito  ao  seu  feitio  moral, 
psy Chico,  resvalariamos  para  o  campo  da  ma- 
nifesta banalidade.  Não  é  dado  ao  homem 
julgar  em  absoluto  os  differentes  modos  de  ser 
sentimentaes  do  seu  similhante;  não  pôde 
dizer,  por  exemplo,  que  a  ideia  que  elle  liga 
á  familia,  ou  á  mulher,  ou  a  Deus,  é  superior 
á  ideia  que  á  familia,  ou  á  mulher,  ou  a  Deus 
liga  um  homem  de  outras  crenças.  Os  myste- 
rios  da  alma  são  insondáveis;  a  excellencia 
dos  homens  mede-se  unicamente  pelas  suas 
acções. 

Ora,  seria  pueril  admittir  que  a  nação  ja- 
poneza  seja  wii.  povo  eleito  do  Sejihor.  Se,  de 
facto,  os  nipponicos  apresentam  um  exemplo 
frisantissimo,  único,  de  desenvolvimento  em 
harmonia  com  a  e\'olução  moderna,  mundial, 
é  isto  certamente  devido  a  causas  especiaes, 
eventuaes,  que  favoreceram  optimamente  tal 
desenvolvimento ;  e  entra  na  ordem  das  cousas 
naturaes  que  um  outro  povo  asiático,  o  chinez 
por  exemplo,  attinja  um  dia  idêntico  desenvol- 
vimento. Eu  imagino  que  uma  das  conse- 
quências da  guerra  actual  pôde  ser  o  reconhe- 
cimento pelos  povos  de  raça  branca  d'este 
principio,  a  saber,  que  os  povos  de  outras  raças 
são  capazes  de  adquirir  um  alto  grau  de  civi- 


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lisação,  de  modo  a  poderem  cuidar  dos  seus 
interesses  sem  tutella  e  a  defendel-os  pelas 
armas  contra  aggressões  de  estranhos.  Possi- 
velmente, uma  tal  noção  levará  os  Estados 
modernos  a  serem  mais  prudentes  na  sua 
expansão  colonial,  hoje  mais  cubiçosa  do  que 
nunca;  não  porque  reconheçam  a  justiça  da 
causa  dos  povos  que  escravisam,  mas  por 
uma  prudente  precaução  contra  a  natural  des- 
forra dos  escravisados.  Como  actualmente  as 
colónias  e  as  zonas  de  influencia  constituem  a 
vacca  leiteira  da  qual  os  Estados  e  os  grandes 
syndicatos  tiram  os  maiores  proventos  para  a 
satisfação  dos  seus  desmandos  e  dos  seus  ca- 
prichos, o  retrahimento  da  expansão  colonial 
deve  fazer  prever  uma  medonha  crise  econó- 
mica geral.  Será  então  occasião  de  se  voltarem 
as  attenções  para  um  problema  que,  apesar 
da  sua  immensa  importância,  nunca  se  estu- 
dou, pelo  menos  nos  gabinetes  dos  dirigentes, 
—  qual  é  o  da  mais  equitativa  distribuição  das 
riquezas,  erguendo  um  dique  contra  o  desme- 
surado monopólio  das  grandes  fortunas,  das 
quaes  beneficiam  três  ou  quatro  millionarios 
á  custa  do  sangue  da  grande  massa  das  po- 
pulações. 

No  campo  restricto  a  que  visam  especial- 
mente   estas    linhas,   quanto   poderia  fazer  a 


I 


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Kiissia,  se,  em  vez  de  lançar  as  garras  avaren- 
tas a  um  solo  longinquo  que  não  lhe  pertence, 
cuidasse  pelo  contrario  de  melhorar  os  seus 
males  internos,  resgatando  o  povo,  misérrimo 
miijik,  das  algemas  que  o  opprimem,  derra- 
mando sobre  elle  a  instrucção  de  que  carece, 
facultando-lhe  os  meios  de  elevar-se  pelo  tra- 
balho e  de  augmentar  o  seu  conforto !  .  .  . 

—  Por  aqui,  as  attençoes  estão-se  princi- 
palmente concentrando  na  perspectiva  emocio- 
nante do  assalto  decisivo  a  Porto  Arthur  e 
nas  probabilidades  de  uma  tremenda  batalha 
nas  visinhanças  de  Liao-Yang.  A  derrota  das 
forças  que  guarnecem  Porto  Arthur  e  a  con- 
sequente occupação  da  praça  pelos  soldados 
de  Nippon  parecem  certas,  embora  custem  mui- 
tos milhares  de  vidas  ao  intemerato  belligerante 
asiático.  Demora-se  o  acontecimento,  o  que 
mais  faz  convencer  que  os  japonezes  tomam 
todas  as  precauções  para  só  ferirem  o  combate 
quando  estiverem  certos  da  victoria. 

Fora  dMsto,  dois  acontecimentos  recentes 
estão  despertando  uma  viva  commoção  no 
meio  onde  me  encontro.  Um  é  a  pirataria 
exercida  pelos  navios  mercantes  russos,  mas- 
carados em  .vasos  de  guerra,  pirataria  que 
se  realisou  nas  aguas  do  mar  Vermelho 
e    de    que    foram    victimas    um    paquete   da 


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mala  imperial  allemã  e  outro  de  uma  Compa- 
nhia ingleza.  Não  insisto  no  assumpto,  que  a 
estas  horas  deve  já  ser  bem  conhecido  em 
toda  a  Europa;  direi  apenas  que  estes  factos 
vêem  de  molde  a  fazer  eliminar  da  causa  russa 
as  sympathias  mundiaes,  sendo  por  si  bem 
eloquente  o  enérgico  procedimento  que  toma- 
ram os  dous  governos  oífendidos.  Acreditam-se 
agora  mais  facilmente  as  repetidas  queixas 
que  os  japonezes  fazem  do  procedimento  do 
inimigo,  cujas  forças,  nas  peripécias  mais  gra- 
ves das  batalhas,  não  se  pejam  de  arvorar  a 
bandeira  branca,  ou  mesmo  a  bandeira  japo- 
neza,  para  assim  poderem  fugir  sob  tão  prote- 
ctoras insígnias. 

O  segundo  acontecimento,  muito  digno  de 
attenção,  é  uma  nova  sortida  da  esquadra  de 
Vladivostok,  conseguindo  d'esta  vez  atraves- 
sar o  estreito  de  Tsugaru,  que  separa  a  ilha 
de  Yezo  da  grande  ilha  de  Nippon,  entrando 
assim  em  pleno  Pacifiico.  Esta  esquadra  é 
composta  dos  magníficos  cruzadores  «Rússia», 
«Rurik»  e  «Gromovoi»  e  possivelmente  de 
alguns  torpedeiros. 

Ha  alguns  dias  que  estes  navios  se  encon- 
tram cruzando  nas  visinhanças  de  Yokohama, 
á  espreita  dos  barcos  mercantes  que  passam 
ao  seu  alcance,  os  quaes  apresam  ou  mettem  a 


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pique.  Comprehende-se  a  situação  alarmante 
e  os  gravissimos  inconvenientes  que  ella  traz 
ao  commercio  em  geral.  Mal  se  prevê  quaes 
sejam  as  intenções  finaes  da  esquadra  russa, 
pensando  uns  que  tratará  de  regressar  a  Vla- 
divostok,  outros  que  procurará  alcançar  Porto 
Arthur  no  dcsignio  de  juntar-se  aos  navios 
russos  que  se  encontram  n'aquelle  porto,  o 
que  redundará  certamente  n'um  grande  com- 
bate naval  com  a  esquadra  de  Togo.  E  tal  é 
a  durissima  e  inadiável  empreza  em  que  se 
acha  empenhada  n'este  momento  afrotajapo- 
neza  para  os  lados  de  Liaotung,  que  ainda 
lhe  não  permittiu  o  poder  destacar  alguns  dos 
seus  navios  para  o  Pacifico,  de  modo  a  darem 
caça  aos  três  barcos  inimigos  e  a  restabelece- 
rem a  segurança  da  navegação  mercante  na 
costa  Occidental  do  império. 

—  Nas  cidades  do  Japão  mais  povoadas  de 
europeus,  Yokohama,  Kobe,  Nagasaki,  e  ainda 
accidentalmente  em  outros  pontos,  não  é  raro 
encontrar  exemplares  de  mestiços  japonezes, 
em  geral  filhos  de  mãe  japoneza  e  de  pae 
europeu.  Em  boa  verdade,  são  relativamente 
raros  os  casaes  em  que  o  marido  é  japonez  e 
a  mulher  europeia,  devidos  em  regra  taes 
enlaces  de  excepção  á  circumstancia  de  muitos 
nipponicos   permanecerem   por  alguns   annos 


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na  Europa  ou  na  America,  occupados  em 
estudos  ou  em  negocio,  sendo  alguns  attingi- 
dos  pelas  settas  travessas  do  Cupido  louro 
das  nossas  cidades.  O  caso  contrario  —  marido 
europeu  e  esposa  japoneza—  é  aqui  bem  mais 
frequente,  e  ainda  em  muito  maior  proporção 
o  das  ligações  fortuitas,  não  consagradas,  mas 
não  menos  proliferas  —  louvado  Deus !  —  em 
que  o  varão  pertence  sempre  á  raça  branca. 
O  certo  é  que,  como  eu  ia  dizendo,  o  mestiço 
japonez  já  hoje  não  é  raro ;  pelas  ruas  popu- 
losas encontram-se  muitas  vezes  figurinhas 
exóticas  de  creanças  louras  e  de  olhos  azues, 
vestindo  kímofws  indigenas,  calçando  sandálias 
nos  pés  nús,  tagarelando  em  excellente  lingua 
do  paiz  com  a  garotada  japoneza. 

Apresso-me  a  dizer  que,  na  minha  opinião 
e  na  de  muitos,  o  typo  mestiço  é  em  geral 
physicamente  inferior  ao  japonez  e  ao  europeu, 
dos  quaes  deriva,  parecendo  que  o  t3'po  moral 
é  também  geralmente  inferior  ao  de  cada  uma 
das  duas  raças  componentes.  Os  mestiços 
chinezes,  hoje  abundantes  em  Hong-Kong,  em 
Shangai  e  n 'outros  pontos,  offerecem  a  meu 
vôr  melhores  productos. 

Seria,  por  certo,  interessante  e  útil  estudar 
attentamente  o  mestiço  japonez,  pelo  que  res- 
peita aos  seus  dotes  physicos  e  moraes,  qua- 


135 


lidades  resistentes  e  progenitoras,  ctc,  procu- 
rando estabelecer  qual  seja  a  sua  influencia 
futura  na  ev^olução  do  paiz.  E\  porém,  muito 
cedo  para  emprehender  tal  estudo.  Nada  se 
pôde  averiguar  do  que  interessa  a  época 
anterior,  quando  os  primeiros  europeus,  prin- 
cipalmente portuguezes,  começaram  a  concor- 
rer ao  Japão.  Os  mestiços  japonezes,  reconhe- 
cidos como  taes,  datam  do  segundo  periodo 
em  que  se  estabeleceram  relações  estranhas 
com  este  povo,  isto  é,  desde  cerca  de  1854; 
são  em  via  de  regra  jovens  e  poucos  ainda 
terão  filhos ;  no  entretanto,  se  nos  apoiarmos 
em  observações  scientificas  do  mesmo  género, 
esta  meia-raça  desapparecerá  á  terceira  ou 
quarta  geração. 

Os  chinezes  chamam  aos  seus  mestiços 
«fan-kuai-sai »,  isto  é,  « íilhos-do-diabo-bran- 
co  » ;  os  japonezes,  mais  cortezes  e  sobretudo 
mais  humoristicos,  chamam  aos  seus  «ainoko», 
isto  é,  «filhos  do  amor».  Quantas  referencias 
philosophicas  n'esta  só  palavra  «ainoko»  !  .  .  . 


XIII 

10  de  agosto  de  1904 

Os  últimos  acontecimentos  da  guerra  —  A  esquadra 
russa  de  Vladivostok  —  Desastres  soffridos  por  vá- 
rios navios  mercantes  japonezes — Avultadas  per- 
das materiacs — Como  se  effectua  este  corso  —  Porto 
Arthur  —  O  exercito  russo  —  Os  seus  revezes  —  A 
guerra  acusa  já  um  grande  phenomeno  de  ordem 
moral:  as  sympathias  pela  causa  japoncza  —  Por- 
tugal c  o  Japão  —  Feições  moraes  do  povo  japonez 
—  A  arte  e  a  sensibilidade  d'este  povo  — Surprezas 
na  arte  de  jardinagem  —  Um  instantâneo. 

I^UMPRK-MK,  na  minha  missão  de  chronista, 
^""^  ir  relatando  aos  leitores  os  últimos  acon- 
tecimentos da  guerra,  ou  antes,  commentan- 
do-os,  a  meu  modo,  porque  as  noticias  tele- 
graphicas,  embora  recheadas  de  petas  (nunca 
se  mentiu  tanto  pelo  telegrapho  como  agora), 
já  ha  muito  lhes  levaram  informação  circum- 
stanciada  dos  factos  occorridos. 

A  esquadra  russa  de  Vladivostok  já  re- 
gressou ao  seu  porto  de  refugio,  após  um 
cruzeiro  de  alguns  dias  na  costa  leste  do  Japão, 
assignalado  por  uma  longa  lista  de  desastres 
soffridos  por  vários  navios  mercantes,  japone- 


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zes  c  neiítraes,  sendo  uns  mettidos  a  pique  e 
outros  levados  para  Vladivostok,  onde  prova- 
velmente serão  julgados  boas  prezas.  Alguns 
navios  de  guerra  japonezes  foram  expedidos 
em  perseguição  dos  três  cruzadores  russos  e 
parece  mesmo  que  chegaram  a  avistal-os ;  mas 
esses  cruzadores  que  são  exccl lentes  barcos  e 
dispõem  de  velocidade  magnifica,  podéram 
evitar  o  combate;  decididamente  não  estava 
no  seu  programma  de  operações  entrarem 
em  fogo. 

Estas  sortidas  dos-  navios  de  \'ladivostok, 
tornadas  agora  mais  frequentes  e  que  prova- 
velmente se  repetirão  ainda,  emquanto  a 
esquadra  de  Togo  se  achar  empenhada  no 
bloqueio  de  Porto  Arthur,  téem  occasionado 
avultadissimas  perdas  materiaes  e  também  de 
vidas,  e  tendem  a  difficultar  immensamente  o 
commercio  estrangeiro  com  o  Japão.  No  entre- 
tanto, servem  ellas  para  pôr  em  relevo  as  in- 
calculáveis vantagens  que  o  Japão  encontrou 
na  acção  enérgica  da  sua  esquadra,  tornando-o 
senhor  dos  mares  visinhos ;  pois  se  imagina, 
por  estas  sortidas  fortuitas,  o  que  teria  succe- 
dido  se  os  navios  russos  encontrassem  facili- 
dades para  cruzarem  constantemente  nas  pro- 
ximidades das  costas  nipponicas. 

Com  respeito  a  este  papel  de  corsário,  que 


138 


uma  secção  das  forças  navaes  russas  se  apraz 
em  ir  desempenhando  (a  outra  secção  limita-se 
á  quasi  absoluta  passibilidade  em  Porto  Arthur), 
não  se  pôde,  em  rigor,  condemnar  tal  pro- 
gramma,  posto  que  elle  não  seja  de  molde  a 
exaltar  os  brios  da  marinha  do  czar.  O  que  é 
altamente  condemnavel  é  a  maneira  como  este 
corso  se  vai  exercendo,  em  manifesta  opposi- 
Ção  a  todas  as  regras  de  direito  internacional 
em  uso  e  aos  costumes  humanitários  seguidos 
pelos  povos  cultos.  Confiamos  que  as  grandes 
potencias  da  Europa  e  da  America,  feridas 
no  seu  orgulho  e  nos  seus  interesses  por  tão 
insólito  procedimento,  saberão  chamar  á  ordem 
o  colosso  do  norte,  como  urge  que  se  faça. 

Agora  a  parte  cómica  (porque  faz  bem  ir 
rindo  sempre)  do  ultimo  cruzeiro  dos  navios 
de  Vladivostok.  O  almirante  Skrydloff,  chefe 
de  todas  as  forças  navaes  russas  no  theatro 
da  guerra,  dá  conta  telegraphica  ao  seu  sobe- 
rano dos  feitos  realisados;  dois  vapores  neu- 
traes  foram  postos  a  pique,  um  outro  vapor 
neutral  aprisionado  e  três  pequenos  barcos  de 
vela  japonezes,  com  carga  de  sal  (para  usos 
de  pesca),  igualmente  afundados;  e  termina 
informando  que  os  três  cruzadores  recolheram 
a  Vladivostok.  .  .  sem  avarias  e  sem  a  perda 
de  um  só  homem. 


139 


Bravo !  Os  três  cruzadores  vão  para  o  mar 
como  três  ladrões  de  estrada  vão  para  o 
campo;  acommettem  os  incautos  e  desarma- 
dos transeuntes,  espoliam-nos  dos  seus  have- 
res, descarregam  sobre  elles  os  bacamartes ; 
fogem  da  esquadra  japoneza,  quando  aperce- 
bem na  linha  do  horizonte  as  columnas  esguias 
do  fumo  das  suas  chaminés ;  recolhem  em  paz 
a  seus  penates.  .  .  E  não  houve  avarias,  nem 
perdas  de  um  só  homem.  Pudera !  O  contrario 
é  que  seria  portentoso !  .  .  . 

—  De  Porto  Arthur  nada  se  sabe  ao  certo, 
estando  prohibida  a  publicação  de  quaesquer 
noticias  que  se  lhe  refiram.  No  entretanto, 
boatos  transpiram ;  um  grande  desfecho  é 
esperado  por  estes  dias. 

Em  terra,  ha  a  registrar  uma  serie  de  acon- 
tecimentos auspiciosos  para  as  armas  japone- 
zas.  Confirma-se  a  tomada  de  Tasbichao  e  de 
Nevvchwang;  para  este  ultimo  ponto,  onde 
funcciona  um  posto  da  alfandega  imperial  chi- 
neza,  já  foi  requisitado  pessoal  japonez  pela 
superintendência  de  Peldm.  O  general  Kuroki 
atacou  os  russos  perto  de  Motienling,  a  no- 
roeste de  Liao-Yang,  do  que  resultou,  após 
varias  operações,  a  retirada  do  inimigo.  Por 
ultimo,  chega-nos  noticia  de  um  telegram- 
ma    que    Kuropatkine    acaba    de    dirigir    ao 


I40 


czar,  informando-o  do  movimento  de  retirada 
das  forças  russas  para  o  interior,  duramente 
dizimadas  pelos  japonezes  e  pelo  calor  abrazador 
da  região,  e  que  termina  fazendo  votos  para 
que  as  tropas  imperiaes  possam  resistir  ao 
inimigo  na  nova  situação  onde  se  encontram. 

Este  telegramma  parece  constituir  a  con- 
fissão formal  da  extraordinária  série  de  desas- 
tres soffridos  pelo  exercito  moscovita  desde  o 
inicio  das  hostilidades  e  do  desanimo  que 
lavra  entre  elle. 

—  A  guerra  russo-japoneza,  que  tanto 
está  maravilhando  a  Europa  inteira,  acusa 
já  um  grande  phenomeno  de  ordem  moral,  que 
vem  compensar  em  parte  os  japonezes  dos 
duros  sacrifícios  que  para  elles  representa  esta 
lucta  gigante,  ferida  no  interesse  das  suas 
mais  caras  e  justas  aspirações;  este  grande 
phenomeno  é  a  larga  corrente  de  sympathias 
que  se  manifesta  e  engrossa,  dia  a  dia,  em 
todos  os  centros  cultos,  pela  causa  nipponica. 
O  que  de  melhor  resta  ainda  no  intimo  da 
nossa  sensibilidade,  não  de  todo  embotada 
pelo  egoismo  delirante  que  caracterisa  a  época 
social  que  atravessamos,  emociona-se,  electri- 
sa-se,  perante  as  qualidades  extraordinárias 
que  hoje  patenteia  este  povo  longínquo  das 
ilhas  do  Pacifico. 


141 


Referindo-me  especialmente  a  um  cantinho 
do  mundo,  mas  que  mais  amorosamente  me 
interessa  do  que  este  mundo  todo,  referin- 
do-me a  Portugal,  observo  que  no  meu  paiz, 
onde  ha  poucos  mezes  o  Japão  era  quasi  um 
nome  desconhecido,  se  inicia  um  notável  mo- 
vimento de  interesse  e  de  estima  pelos  nippo- 
nicos  e  pela  sua  causa;  provam-no  a  voz  da 
imprensa,  que  anda  muito  empenhada  no 
assumpto,  e  as  notáveis  conferencias  já  levadas 
a  effeito  em  alguns  dos  nossos  centros  intelle- 
ctuaes,  tendo  igualmente  por  thema  os  japo- 
nezes.  Tal  movimento,  quando  chegar  a  paz, 
que  ha-de  chegar,  pôde  levar-nos  a  estreitar 
mais  intimas  e  profiquas  relações  com  o  impé- 
rio do  Japtão,  visinho  do  nosso  Macau  e  ligado 
intimamente  ás  nossas  gloriosas  tradições  his- 
tóricas. Mas  poderá  muito  mais  acontecer:  o 
exemplo  do  esforço  hercúleo,  sem  precedentes, 
que  representa  a  evolução  social  japoneza  nos 
últimos  cincoenta  annos,  é  contagioso,  quando 
a  sympathia  facilite  a  propagação ;  este  exem- 
plo poderá  acaso  vir  sacudir  os  nossos  nervos 
de  heroes  adormecidos  e  nostálgicos,  incutindo- 
nos  desejos  novos  de  trabalharmos  mais  pelo 
nosso  bem.  Seria  extremamente  curioso  o 
duplo  phenomeno,  do  dominio  material  e  do 
dominio  psychico,  que  poderia  succeder  então: 


142 


—  Mendes  Pinto  leva  aos  japonezes  as  pri- 
meiras armas  de  fogo  e  ensina-lhes  o  seu 
manejo;  mais  de  três  séculos  depois  os  portu- 
guezes  compram  aos  japonezes  os  seus  primo- 
rosos canhões  para  irem  guarnecer  Macau; 
estes  asiáticos  receberam  dos  nossos  viajantes 
as  primeiras  noções  da  civilisação  occidental, 
e  seriam  elles  a  inocular-nos  agora,  embora 
inconscientemente,  o  sopro  vivificante  que 
deve  impellir  os  povos  modernos  nas  suas 
actividades  creadoras.  Estranha  lei  de  permu- 
tações e  de  compensações,  realisada  nas  armas 
de  fogo  e  reali sável  nas  ideias  abstractas  da 
evolução  social!  .  .  . 

—  Quando  se  estuda  com  intenções  de 
sympathia,  ou  pelo  menos  de  sinceridade,  o 
povo  japonez,  uma  das  suas  feições  moraes 
que  mais  surprehende  e  encanta  é,  sem  duvida, 
a  aptidão  que  possue,  incomparavelmente  deli- 
cada, para  apreciar  as  bellezas  da  creação. 
Adivinha-se  como  que  um  sentido  a  mais 
n'estes  asiáticos,  um  não  sei  quê,  que  os  põe 
em  emotiva  participação  com  os  mysteriosos 
labores  genésicos  da  natureza-mãe.  N'este 
ponto  de  vista,  nós,  os  europeus,  somos  infi- 
nitamente inferiores  a  elles,  a  ponto  de  nem 
sequer  podermos  imaginar  de  leve  a  synthese 
psychologica  que  os  í^spectos  das  cousas  lhes 


143 


suggerem  c  o  que  lhes  passa  nos  cérebros,  cm 
alvoroços  jubilosos,  perante  os  simples  espe- 
ctáculos comesinhos  da  vida  quotidiana.  K/ 
esta  e  será  sempre  a  maior  barreira  que  separa 
e  separará  o  europeu  do  nipponico;  nós  não 
vemos  como  elle,  não  sentimos  como  elle,  não 
amamos  como  elle ;  elle  vê,  sente  e  ama  muito 
mais  delicadamente  do  que  n(3s ;  perante  o  seu 
requintado  pantheismo,  o  nosso  coração  é  frio 
e  inerte  como  um  pedaço  de  mármore. 

A  arte  japoneza,  em  todas  as  suas  mani- 
festações, é  uni  preciosíssimo  e  irrefutável 
documento  da  sensibilidade  estranha  d'este 
povo.  Enleva-nos,  captiva-nos ;  no  entretanto, 
tentaríamos  aprofundar-lhe  as  intenções,  por- 
que ha  o  mysterio  da  inspiração  que  nos 
escapa.  Sem,  pois,  grandes  pretensões  de 
analysta  e  sem  mesmo  i'ecorrer  ás  altas  mani- 
festações artísticas  dos  japonezes,  o  que  é  um 
delicioso  passatempo  para  aquelle  que  tem  de 
viver  no.  seu  meio,  é  ir  commentando-lhes 
uma  phrase,  registando-lhes  uma  sentença, 
notando-lhes  uma  preferencia,  surprehenden- 
do-lhes  um  sorriso,  vagabundeando  emfim  em 
pensamento  no  campo  ignoto  da  alma  japo- 
neza, como  um  amoroso  herborisador  que  se 
aventurasse  n 'alguma  floresta  virgem  de  uma 
região  exótica,  desconhecida. 


144 


Que  surprezas,  por  exemplo  na  arte  de 
jardinagem !  .  .  .  O  jardim  não  tem  ílóres ;  as 
flores  estimam-se,  mas  exhibem-se  somente 
em  determinadas  épochas,  em  espaços  apro- 
priados. O  jardim  japonez,  em  geral  reduzido 
a  alguns  metros  quadrados  de  terra,  é  a  mi- 
niatura emocionante  de  paizagem  indigena, 
com  os  seus  lagos  e  com  os  seus  riachos 
lilliputianos,  com  o  massiço  verde  das  mattas, 
com  as  rochas  rendilhadas  a  surdirem  do  solo, 
revestidas  de  musgos  frescos.  O  amor  dos 
nipponicos  pelas  penedias  toscas,  a  que  os 
musgos  adherem  pela  successão  serena  dos 
tempos,  é  uma  verdadeira  característica  do 
seu  feitio  esthetico,  e  baldadamente  se  preten- 
deria dar  ideia  dos  effeitos  gentilissimos  que 
elles  realisam  n'este  ramo  de  preferencias,  em 
mimos  decorativos  do  jardimsinho  imprescindí- 
vel, contiguo  á  casa  de  habitação. 

Os  cuidados  que  o  japonez  dispensa  a 
uma  arvore,  a  um  arbusto,  imprimindo  curvas 
preferidas  aos  seus  troncos,  recortes  especiaes 
á  sua  rama,  acusam  n'elle  um  carinho  pelos 
seres  vegetaes  comparável,  se  não  excedido, 
ao  que  qualquer  de  nós  poderá  ter  pela  sua 
amada.  Certas  formas  casuaes  da  creação, 
como  a  da  arvore  que  se  debruça  á  beira  da 
laguna  e  se  mira  Iranquillamente  no  espelho 


145 


das  aguas,  ou  como  a  da  braçada  que  se 
estende  sobre  a  porta  do  lar,  lembrando  o 
gesto  de  um  amigo  que  nos  abençoasse  o 
albergue,  são  particularmente  estimados  pelo 
japonez,  a  elles  sujeitando,  por  esforços  inces- 
santes, o  arbusto  tenro  que  planta  ao  pé  de  si. 

O  japonez,  segundo  o  seu  temperamento 
psychico,  imprimirá  ao  jardim  que  cultiva  uma 
ideia  abstracta,  a  que  poderíamos  chamar  a 
alma  das  cousas,  alli  reunidas  por  selecções 
harmónicas.  Tal  jardim  representará  a  paz, 
outro  representará  a  castidade,  outro  os  anti- 
gos tempos.  .  .  representará  para  elle^  é  claro. 
O  olho  azul  do  visitante  occidental,  embora 
armado  do  mais  prescrutador  monóculo,  não 
verá  nada  d'isto ;  o  visitante  passará  indiffe- 
rente  e  desdenhoso,  esmagando  debaixo  das 
grossas  solas  dos  seus  sapatos  de  globetrotter 
os  musgos  avelludados  que  levaram  loo  annos 
a  desen  volve  i'-se. 

Fora  do  jardimsinho  domestico,  o  japonez 
tem  o  Nippon  inteiro,  que  é  todo  elle  um  jar- 
dim, para  espraiar  as  suas  contemplações 
amorosas,  deleitando-se  na  escolha  minuciosa 
das  pai2:agens  e  sujeitando-as  ainda  a  condi* 
çôes  especiaes  que  lhes  multipliquem  os  encan- 
tos. Eu  não  pretendo  alongar-me  no  assum- 
pto, embora  elle  se  preste  a  amplas  considera* 

7 


146 


ções  de  critica.  Não  resisto,  porém,  á  tentação 
de  enumerar  aqui,  conservando  quanto  possi- 
vel  o  pittoresco  da  linguagem,  as  oito  reputa- 
das grandes  scenas  da  província  de  Omi, 
atravessada  por  este  famoso  lençol  de  aguas 
que  se  chama  o  lago  Biwa,  e  ao  qual  deve 
mimos  paradisíacos  indescriptiveis.  Eis  as  oito 
maravilhas :  —  o  lago  prateando-se  sob  uma 
lua  de  outomno  quando  o  olhar  do  observa- 
dor desce  do  alto  de  Ishiyama :  a  neve  durante 
a  tarde,  em  Hirayama;  a  ardência  do  occaso 
do  sol,  observada  da  ponte  de  Seta;  o  templo 
de  Miiders,.  quando  se  ouvem  á  tarde  os  sons 
do  sino;  as  embarcações  fazendo-se  de  vela 
do  porto  de  Yabase;  os  picos  de  Awazu,  na 
limpidez  do  horisonte;  a  chuva  depois  de 
anoutecer,  junto  ao  pinheiro  de  Karasaki ;  os 
patos  bravos  descendo  em  voos  para  Katata. 
—  Outro  assumpto,  outro  quadrinho,  me- 
lhor dizendo  um  instantâneo,  como  que  apro- 
veitando o  momento  azado  em  que  a  objectiva 
surprehende  uma  scenasinha  deliciosa.  E'  fácil 
de  conceber  que  o  japonez,  especialmente  a 
japoneza,  quando  regressa  do  templo,  depois 
de  percorrer  as  suas  áleas  sombreadas  e  fres- 
cas e  de  conversar  em  doces  intimidades  com 
os  deuses,  sinta  a  alma  leve,  cariciosa,  pro- 
pensa ao  bem.  D 'este  estado  psychico  sabem 


I 


147 


víilcr-se  a  propósito  os  vendilhões,  os  quaes 
se  vão  postar  á  sabida  com  o  estendal  da  sua 
exótica  mercancia,  que  inclue  vários  animaes 
captivos,  que  o  transeunte  compra  para  resti- 
tuir á  liberdade  e  á  alegria. 

No  vasto  e  famoso  templo  de  ínari  —  o 
templo  da  Raposa,  —  onde  eu  peregrinava  ba 
poucos  dias,  pela  tarde,  uma  japoneza  esbelta 
bavia  percorrido  os  diversos  nicbos  meio  oc- 
cultos  pelas  mattas  de  pinbeiros,  curvando-se 
com  particular  uncção  em  frente  d'elles,  ba- 
tendo as  palmas  com  as  suas  mãos  muito 
alvas  para  accordar  as  divindades  adormecidas 
e  proferindo  a  meia  voz  phrases  de  prece,  que 
foram  para  mim  intraduzíveis.  Pude  vêl-a  de 
perto,  n'uma  volta  de  caminbo :  era  alta,  ainda 
nova,  de  uma  brancura  de  mármore,  com  uns 
cabellos  muito  negros,  com  uns  olbos  de 
azevicbe,  patenteando  na  expressão  não  sei 
que  sentimento  dolorido,  ou  apprebensivo,  e 
nos  gestos  delicadíssimos  uma  morna  lan- 
guidez que  impressionava;  vestia  um  simples 
kimono  de  algodão  de  ramagem  azul  e  branca ; 
suspensos  dos  finos  pés  nús  arrastava  no  la- 
gedo  os  altos  sóccos  resonantes. 

Quando  a  solitária  peregrina  se  approxi- 
mava  do  grande  pórtico  da  sabida,  todo  de 
charão    vermelho,    deparou    com    uma    velha 


148 


macrobia  que  para  alli  estava  acocorada,  sem 
cabello,  sem  dentes,  lançando  ao  acaso  o  seu 
olhar  mortiço;  junto  d'ella  pousavam  no  chão 
três  gaiolas  cheias  de  pardaes.  Acercou-se 
então  da  velha,  observou  os  pássaros  e  per- 
guntou o  preço.  Dez  réis  por  cada  um.  Mas 
ella  queria  comprar  todos,  o  que  importava 
um  grande  abatimento.  Contaram-se  os  pás- 
saros, eram  dezoito,  convindo-se  finalmente 
na  somma  de  cem  réis  por  todos  elles.  Rece- 
bida a  pratinha,  a  velha  foi  abrindo  as  portas 
das  gaiolas  e  dando  êxodo  a  todos  os  pardaes, 
que  não  se  faziam  rogar  e  cruzavam  rapida- 
mente o  espaço  na  direcção  das  mattas,  sol- 
tando pios  estridentes,  de  surpreza  e  de  pra- 
zer. A  compradora  demorou  um  pouco  esta 
operação,  porque  quiz  haver  da  gaiola  ás  suas 
mãos  um  dos  pardaes,  que  levou  apaixonada- 
mente aos  lábios,  que  beijou  muito,  ao  qual 
encarregou  em  longas  phrases  não  sei  de  que 
mensagem,  dando-lhe  em  seguida  a  liberdade. 
Que  diria  ella  ao  pardal.^  palavras  de  carinho 
a  um  ausente?  terá  no  campo  de  batalha  um 
pai,  ou  um  irmão,  ou  um  marido,  ou  um  na- 
morado.^ .  .  . 

Éramos  três  os  espectadores  da  scena:  eu 
e  dous  soldados  japonezes  da  guarnição  de 
Fushimi.  Os  soldados,  dous  filhos  das  mon- 


149 


tíinhas,  rudes  c  de  feição  al\ar,  (jlhavam 
aquella  graciosa  mulher,  vestida  de  encantos 
ultra-terrenos  na  doce  mimica  da  sua  niystica 
piedade,  visivelmente  enternecidos.  .  . 


XIY 

18   de   agosto   de   1904 

A  batalha  naval  de  lo  de  agosto  —  Poder  marítimo  da 
Rússia  —  Cruzador  portuguez  «Adamastor»  —  Uma 
das  características  do  feitio  moral  dos  japonezes  — 
A  China  —  Relaçf5es  do  JapSo  com  a  Coréa  e  com 
a  China  —  Portugal  e  a  Europa  no  Japão. 

"D  EsuMAMos  OS  ultimos  acootecimentos,  o 
que  não  seria  fácil  fazer-se  quando  se 
pretendesse  entrar  em  '  minuciosos  detalhes, 
porque  muitos  avultam  dispersos,  sendo  dura 
tarefa  o  concretisal-os ;  para  mais,  a  queda  de 
Porto  Arthur,  o  baluarte  russo  reputado  in- 
vencível, está  imminente,  podendo-nos  aqui 
chegar  a  tremenda  noticia  da  derrocada  den- 
tro de  alguns  dias  ou  dentro  de  alguns  mi- 
nutos. ,  . 

No  dia  IO,  toda  a  esquadra  russa  de 
Porto  Arthur  sahiu  para  o  mar,  no  intuito 
desesperado  de  forçar  o  bloqueio  e  ir  re- 
unir-se  aos  navios  de  Vladivostok.  A  cerca  de 
20  milhas  da  terra  encontrou-se  com  a  es- 
quadra  de    Togo,   travando-se   então   um  re- 


151 


nhidissimo  combate  naval,  o  primeiro  rigoro- 
samente digno  d'este  nome  a  registar,  desde 
o  rompimento  das  hostilidades.  O  combate 
durou  desde  a  uma  hora  da  tarde  até  ao  sol 
posto,  dispersando  á  noute  a  esquadra  russa 
e  ficando  Togo  victorioso.  De  seis  couraçados 
russos,  cinco  recolheram  a  Porto  Arthur,  re- 
bocados e  duramente  avariados;  um  apenas 
conseguiu  safar-se,  indo  recolher-se  ao  porto 
allemão  de  Kiao-Chau,  ao  que  parece  com- 
pletamente avariado.  Um  destroyer  refugiou-se 
no  porto  chinez  de  Chefu,  onde  os  japonezes 
o  foram  apresar;  acto  irreflectido,  incorrecto 
e  que  offende  particularmente  a  China,  Estado 
neutral;  a  Rússia  não  tem  muita  razão  de 
queixa,  pois  pelos  actos  anteriores  da  sua 
marinha,  de  guerra  e  mercante,  tem  mostrado 
que  o  direito  internacional  não  lhe  merece 
especial  cuidado.  Mais  dous  ou  três  destroyers 
foram  mettidos  a  pique.  Um  ou  dous  cruza- 
dores  refugiaram-se  em  portos  neutraes,  com 
bastantes  avarias,  parecendo  que  um  só  cru- 
zador,  o  «Novik»,  conseguiu  ganhar  Vladi- 
vostok. 

Em  14,  a  esquadra  de  Kaminura  encon- 
trou nas  alturas  de  Tsushima  os  três  cruza- 
dores  de  Vladivostok,  aquelles  que  pelas  suas 
ultimas    e    repetidas    excursões  ao   longo   da 


I'52 


costa  do  Japão  tantos  damnos  causaram  ao 
seu  conimercio ;  dirigiani-se  presumidamente 
até  ás  proximidades  de  Porto  Arthur,  afim  de 
contrariarem  a  acção  do  inimigo  n'aquellas  pa- 
ragens. Travou-se  combate,  que  durou  cinco 
horas,  indo  a  pique  o  «Rurik»  e  retirando-se 
os  outros  dous  cruzadores  com  grossas  ava- 
rias, sendo  possivel  que  reganhassem  Vladi- 
v^ostok.  Os  navios  de  Kami n ura  occuparam-se 
seguidamente  em  salvar  os  náufragos  do 
«Rurik»,  cerca  de  600,  e  talvez  em  virtude 
d'esta  humanitária  faina  é  que  não  conse- 
guiram perseguir  e  capturar  as  outras  duas 
unidades  inimigas. 

Os  japonezes  soffreram,  nas  duas  batalhas, 
algumas  perdas  materiaes,  mas,  relativamente, 
sem  importância,  e  também  algumas  perdas 
de  vidas;  o  joven  príncipe  ?\ishimi  foi  ferido 
ligeiramente  a  bordo  do  «Mikasa». 

Os  russos  tiveram  muitas  perdas  de  vidas; 
dous  almirantes  pereceram  na  batalha  de 
Porto  Arthur.  No  entretanto,  por  esta  simples 
resenha  dos  factos,  se  deve  concluir  que  o 
poder  naval  russo  deixou  de  existir  nas  aguas 
do  Extremo-Oríente.  Virá  ainda  a  esquadra 
do  Báltico?  Parece  que  seria  inútil  tal  reforço. 

Como  curioso  detalhe,  para  nós,  direi 
ainda   que    no    porto    de    Chefu,   quando   os 


153 


japonezes  apresaram  o  destroyer  russo,  acha- 
vam-se  vários  navios  de  guerra  estrangeiros, 
sendo  um  d'elles  o  cruzador  «Adamastor»; 
a  noticia  foi  largamente  espalhada  pelos  jor- 
naes  japonezes.  Folgo  em  registar  que  a 
nossa  marinha  recomeça  a  ser  lembrada  n'es- 
tas  regiões,  o  que  não  acontecia  ha  muito 
tempo ;  pois  não  é  a  modesta  canhoneira  da 
estação  de  Macau,  em  regra  condemnada  a 
jazer  entre  os  lodos  da  colónia,  que  pôde 
eíTicazmente  concorrer  para  tal  fim. 

—  Uma  das  caracteristicas  do  feitio  moral 
dos  japonezes  mais  frequentemente  citada, 
sobre  a  qual  o  humorismo  dos  críticos  mais 
ironicamente  se  tem  manifestado  é,  sem  duvida, 
o  seu  dom  de  imitação,  a  que  eu  julgo  melhor 
dever  chamar  adaptação,  nacionalisação.  Effe- 
ctivamente,  nenhum  povo  como  o  japonez 
tem  dado  melhores  provas  das  suas  qualidades 
imitativas,  apropriando  as  manifestações  das 
civilisações  estranhas,  adaptando-as  no  seu 
meio;  mas  taes  qualidades,  em  que  muitos 
intencionalmente  só  respigam  ridículos  e  the- 
mas  facciosos,  affiguram-se-me,  pelo  contra- 
rio, altamente  meritórias,  devendo  a  ellas  o 
império  nipponico  a  surprehendente  evolução 
dos  seus  progressos  e  a  proeminente  situação 
que  occupa  hoje  na  sociedade  das  nações. 


154 


Digamos  de  passagem  o  que  seria  inútil 
relembrar:  que  a  imitação,  exercida  com  mais 
ou  menos  habilidade  e  critério,  é  um  dote 
commum  a  todos  os  povos,  providencialmente. 
Quando  em  um  certo  paiz  se  realisa  um 
melhoramento  qualquer  de  ordem  material  ou 
especulativa,  do  que  os  outros  paizes  tratam 
sem  demora,  se  lhe  reconhecem  real  proveito, 
é  em  imital-o,  nacionalisal-o  no  seu  meio. 
Quando  o  americano  F\ilton  applica  pela  pri- 
meira vez  o  vapor  á  navegação,  as  demais 
nações  do  mundo  civilisado  não  se  quedam 
indifferentes  perante  o  facto,  esperando  cada 
uma  realisar  também  o  seu  invento  no  mesmo 
campo;  do  que  cuidarn  todas  é  de  apro- 
veital-o,  modificando-o  embora,  melhorando-o. 
E'  assim  a  historia  de  todos  os  inventos. 

Voltando  ao  Japão,  imaginemos  esta  tribu 
estranha,  que  veio  não  se  sabe  d'onde,  em 
todo  o  caso  quasi  barbara,  invadindo  as  ilhas 
nipponicas,  escorraçando  para  as  regiões  menos 
clementes  os  aborígenes,  os  ainos,  sem  duvida 
muito  mais  bárbaros  do  que  os  japonezes. 
Isto  passava-se  em  tempos  remotos,  de  que 
apenas  a  lenda  nos  falia.  Ora,  dadas  as  con- 
dições aprazíveis  e  productivas  do  solo  e  o 
seu  isolamento  geographico  do  resto  do  mun- 
do,  os  japonezes   poderiam  ir  medrando  em 


155 


tal  isolamento,  desinteressados  das  civilisações 
de  fora,  assemilhando-se  em  nivel  social  aos 
tilippinos  ou  aos  indigenas  de  Borneo.  Não 
aconteceu,  porém,  assim.  Parece  que  os  povos 
aborigenes  de  uma  dada  região  se  comportam 
como  os  moUuscos,  que  se  agarram  á  rocha- 
mãe,  sem  outra  ambição  do  que  a  de  alli  per- 
manecerem em  doce  immobilidade,  só  se  con- 
seguindo removel-os  á  força  de  pancadas,  pelo 
aniquilamento,  quebrando-lhes  as  valvas  em 
que  se  abrigam.  Com  as  tribus  emigrantes 
dar-se-ha  o  contrario :  adaptam-se  embora  ao 
paiz  invadido,  mas  fica-lhes  na  intimidade 
psychica  uma  como  que  saudade  inconsciente 
da  pátria  abandonada,  sentimento  que  se 
traduz  em  actividades  estimulantes,  prose- 
guindo  na  senda  aventureira,  alongando  a 
vista  em  torno,  devassando  os  actos  dos 
visinhos,  apropriando-se  dos  seus  progressos. 
Esta  qualidade  eminentemente  positiva, 
feita  de  energias  effervescentes,  que  me  parece 
commum  a  todos  os  pov^os  nas  condições  que 
acabo  de  apontar,  apresenta-se  nos  japonezes 
em  uma  grande  intensidade  incomparável.  Os 
japonezes,  entrando  cedo  em  contacto  com 
povos  de  civilisação  superior,  comprehenderam 
com  extrema  lucidez  que  a  civilisação  faz  a 
força  e  que   um   de   dous  caminhos  se  lhes 


156 


offerecia  seguir;  ou  contentarem-se  com  O 
seu  grau  de  inferioridade,  o  que  implicava  a 
ideia  de  sujeição  ás  tribus  mais  cultas,  ou 
avantajarem-se  a  ellas,  imitando-as  nos  seus 
processos,  aperfeiçoando-os,  melhorando-os,  e 
por  seu  turno  impòrem-se  a  ellas;  um  im- 
menso  e  meritório  amor  próprio  fez-lhes  ado- 
ptar sem  hesitação  o  segundo  caminho.  N'estas 
palavras  se  resume,  a  meu  vêr,  o  inteiro  se- 
gredo da  maravilhosa  evolução  d'este  império 
no  campo  da  civilisação  occidental;  não  é, 
como  alguém  julga,  que  o  japonez  renegue  os 
seus  velhos  costumes,  as  suas  remotas  delica- 
dezas asiáticas;  é  a  convicção  de  que  se  pos- 
suiu de  que,  para  não  ser  escravo  do  Occi- 
dente,  tem  de  apropriar-se  da  civilisação 
occidental,  melhorando-a  ainda,  aperfeiçoan- 
do-a  no  que  poder,  para  também  dominar,  ao 
lado  dos  primeiros  Estados  do  mundo.  E' 
curioso  lembrar  aqui  o  que  succedeu  á  China: 
a  China  não  procedeu  como  o  Japão,  a  China 
não  curou  de  adaptar-se  á  civilisação  dos 
brancos;  o  resultado  foi  que  os  brancos,  por- 
que inventaram  a  pólvora,  lhe  cuspiram  nas 
cãs,  sem  o  minimo  respeito  pela  sua  remotís- 
sima civilisação  patriarchal  e  pela  imponen- 
tíssima massa  dos  seus  500  milhões  de  habi- 
tantes, unidos  no  mesmo  credo  de  ideias. 


157 


Mas  voltemos  ainda  ao  Japão,  para  não 
nos  afastarmos  mais  do  assumpto.  As  suas 
relações  com  a  Coréa,  da  qual  dista  apenas 
algumas  milhas,  começaram  cedo ;  e  se  dermos 
credito  á  lenda  indigena,  no  anno  200  da 
nossa  éra  a  imperatriz  Jingo  dirigia  em  pessoa 
uma  expedição  armada  contra  aquelle  paiz. 
Seguidamente,  taes  relações  tornaram-se  ainda 
muito  mais  activas ;  e  a  Coréa,  que  se  achava 
n'aquelle  tempo  n'um  grau  de  desenvolvimento 
muito  superior  ao  do  Japão,  representou  para 
este  durante  longos  annos  o  papel  de  introdu- 
ctor  da  civilisação  chineza. 

O  Nippon,  primeiramente  por  intermédio 
da  Coréa,  depois  directamente  pela  China, 
absorve  em  poucos  séculos  a  inteira  civilisa- 
ção chineza,  ímítando-a,  se  a  palavra  mais 
agrada  aos  leitores,  mas  nacionalisando-a  e 
elevando-a  a  um  alto  grau  de  cultura.  A  es- 
cripta  chineza  é  adoptada  no  anno  de  284 
segundo  a  chronologia  nipponica;  seguida- 
mente vêem  a  medicina,  as  principaes  obras 
de  Confucius  e  de  seus  discípulos,  a  amoreira, 
o  bicho  da  seda,  a  arte  de  fiar  e  de  tecer.  Do 
século  VI  ao  século  vii,  periodo  em  que  se 
manifesta  com  mais  vehemencia  o  ardor  do 
transformismo,  a  religião  budhista  propaga-se 
no  Japão,  e  com  ella  o  calendário  chinez,  a 


158 


língua,  a  litteratura,  as  artes,  as  sciencias,  as 
industrias,  o  regimen  burocrático.  No  anno  de 
628,  quando  morre  a  imperatriz  vSenko,  o 
Japão  está  completamente  remodelado  á  ima- 
gem do  seu  visinho  continental;  e  isto  tudo 
opera-se  sem  resistências  notáveis,  sem  oppo- 
sições  reaccionistas,  n'um  impulso  unisono 
de  todos  os  filhos  do  império,  que  querem 
aprender  para  serem  fortes. 

Passam  os  tempos.  Km  1542,  chegam  a 
Tanegashima  os  primeiros  europeus  que  pisam 
o  Japão,  três  portuguezes,  que  um  forte  tem- 
poral arroja  ás  praias  do  Japão  em  um  barco 
de  piratas.  Os  indigenas  recebem-nos  de  braços 
abertos,  curiosos  d'essès  seres  estranhos,  que 
lhes  peden^  hospitalidade,  inquirindo  d'onde 
vêem,  em  que  se  occupam,  o  que  produz  a 
sua  pátria  longínqua.  Recebem  dos  portuguezes 
as  primeiras  armas  de  fogo  que  viram,  imitam-' 
nas  logo  e  em  breve  o  artigo  se  torna  popu- 
lar; outros  artigos  nunca  conhecidos  recebem 
dos  portuguezes.  adoptando-os,  e  com  elles 
muitos  termos  de  linguagem,  até  hoje  conser- 
vados no  vocabulário.  Este  inicio  de  relações 
entre  portuguezes  e  japonezes  poderia  ter  sido 
para  nós  de  uma  immensa  gloria  e  de  um 
incalculável  interesse  económico,  e  de  igual 
interesse  também  para  os  japonezes,  se  uma 


159 


má  oricntaçjão  religiosa  da  nossa  parte,  que 
mal  disfarçava  iini  intimo  desejo  de  absorpção, 
não  v-iesse  ferir  a  alma  nipponica  no  senti- 
mento que  ella  tem  por  mais  sagrado  —  o 
patriotismo.  Seguem-se  as  tremendas  perse- 
guições religiosas,  bem  conhecidas;  em  1624, 
o  Japão  fecha  as  suas  portas  á  christandade, 
permanecendo,  por  excepcional  tolerância, 
apenas  os  hollandezes,  encerrados  em  uma 
ilha  e  sujeitos  a  humilhantissimo  regimen  ;  no 
entretanto,  por  intermédio  dos  mercadores 
hollandezes,  continua  o  Japão  iniciando-se 
nas  cousas  do  Occidente. 

Em  1853,  os  americanos  chegam  a  Yoko- 
hama,  impondo  por  ameaças  que  o  império 
do  Sol  Nascente  se  abra  ao  convivio  mundial; 
não  tardam  representantes  de  outras  nações; 
formulam-se  tratados.  Manifestam-se  agora 
certas  resistências  por  parte  dos  japonezes, 
já  precavidos  contra  os  brancos;  mas  a  evolu- 
ção impõe-se  fatalmente,  a  restauração  impe- 
rial realisa-se  em  1 868  e  o  paiz  enceta  franca- 
mente o  seu  caminho  pelo  trilho  das  ideias 
modernas.  O  que  o  Japão  realisou,  n'estes 
últimos  36  annos,  sabe-se.  No  campo  do  tra- 
balho ou  das  industrias,  aprendeu  tudo,  imitou 
tudo ;  confessemos  que  ainda  lhe  cumpre 
aperfeiçoar-se,    mas   já   creou    uma   industria 


i6o 


sua  importantíssima,  que  hoje  se  exerce  de 
uma  maneira  brilhante,  principalmente  nos 
mercados  orientaes.  No  ramo  administrativo, 
no  ramo  de  educação,  nas  sciencias,  regista-se 
idêntica  apropriação  de  ideias.  Da  efficacia 
que  attingiram  os  seus  elementos  de  defeza, 
do  seu  exercito,  da  sua  marinha,  é  inútil  dis- 
cursar agora,  quando  no  theatro  do  conflicto, 
batendo-se  contra  uma  poderosíssima  nação 
europeia,  se  está  cobrindo  de  glorias. 

O  Japão  não  inventa,  admittamos,  posto 
que  se  podéssem  citar  exemplos  em  contrario 
(o  dr.  Kiatasato  descobre  o  micróbio  da  peste, 
o  dr.  Shitose  inventa  um  poderosíssimo  explo- 
sivo de  guerra,  etc. ) ; .  o  Japão  não  inventa, 
mas  imita.  Esta  preciosa  qualidade,  que  dis- 
pensa os  intellectuaes  das  penosíssimas  locu- 
brações  de  gabinete,  que  tanto  -definham  o 
organismo,  dá-lhes  ao  mesmo  tempo  a  faci- 
lidade de  selecção  e  o  prazer  de  aperfeiçoar 
o  artigo  que  lhe  vem  parar  ás  mãos,  N'este 
paiz  não  ha  um  Edison,  é  facto;  mas  a  luz 
eléctrica  está  divulgada  em  toda  a  parte,  em 
cidades  e  aldeias,  bem  como  o  telegrapho,  o 
telephonio  e  todas  as  applicações  recentes  da 
electricidade.  Para  não  alongar  mais  este 
artigo  e  referi r-me  de  preferencia  a  um  assum- 
pto agora  mais  em  evidencia,  consideremos  o 


I 


i6i 


que  tem  succedido  com  o  exercito  japonez:  o 
Japão  estudou  todos  os  exércitos  do  mundo, 
colheu  do  allemão  o  que  de  melhor  encontrou, 
fez  o  mesmo  com  respeito  ao  francez,  ao 
inglez,  ao  italiano,  etc. ;  assim  obteve  um 
exercito  seu  modelo,  considerado  já  por 
algumas  auctoridades  na  matéria  como  o 
melhor  de  todos  os  exércitos,  o  que  as  recen- 
tes occorrencias  estão  longe  de  desmentir. 

Imitação,  sim,  mas  prodigiosa  e  felicíssima 
imitação,  que  em  36  annos  transforma  radical- 
mente um  paiz  e  o  eleva  a  um  alto  grau  de 
prestigio.  A  sua  antiga  civilisação  asiática  era 
bem  mais  delicada  e  talvez  bem  mais  racional 
do  que  a  nossa,  e  os  japonezes  são  os  pri- 
meiros a  reconhecel-o ;  mas,  se  n'ella  conti- 
nuasse perseverando,  o  Japão  seria  hoje  mui 
provavelmente  uma  simples  colónia  de  qual- 
quer Estado  da  Europa  ou  da  America. 

—  Sacritique-sc  a  civilisação  dos  antepas- 
sados, mas  salve-se  a  independência  da  pátria 
—  foi  a  divisa  moral  que  impelliu  os  japonezes. 
nos  seus  progressos. 


XV 

31  de  Agosto  de  1904 

Porto  Arthur  —  A  esquadra  russa  de  Vladivostok  —  O 
cruzador  «Rurik»  —  O  desafogo  que  a  população 
japoneza  sentiu  com  a  destruição  do  «Rurik»  — O 
almirante  Kaminura  — O  cruzador  «  Novik  »  — 
Ainda  a  batalha  naval  do  dia  lo  —  O  navio  almi- 
rante «  Mikasa  »  —  Togo  e  a  sua  popularidade  — 
Liao-Yang — Festas  e  celebrações  —  Costumes  ja- 
ponezes  — O  consulado  portuguez  em  Kobe. 

IVÍa  hora  presente  faltam  absolutamente 
noticias  referentes  a  Porto  Arthur,  o  que 
quer  dizer  que  o  terrível  porto  militar  ainda  se 
encontra  em  poder  dos  russos.  Annunciava-se 
já  ha  dias  a  sua  queda  como  imminente;  mas 
o  tempo  vai  passando,  sem  outras  diversões  á 
impaciência  nipponica  do  que  os  preparativos 
festivaes  para  a  commemoração  do  grande 
acontecimento  que  se  espera.  O  que  se  pôde 
concluir  de  toda  esta  demora  é  que  a  tarefa  é 
duríssima  para  os  japonezes,  e  que  os  russos, 
nas  poucas  milhas  de  terreno  de  que  ainda 
dispõem,  téem  concentrado  uma  resistência 
desesperada,  minando  ao  mesmo  tempo  o  solo, 
dispondo-se,  emfim,  para  fazerem  pagar  bem 


íOi 


cara  ao  inimigo  a  sua  enorme  audácia.  No 
entretanto,  Porto  Arthur  ha-de  cahir;  segundo 
todas  as  supposições,  do  que  os  generaes  ja- 
ponezes  cuidam  n'este  momento  é  de  poupar 
quanto  possível  as  vidas  dos  seus  bravos  sol- 
dados, avançando  com  mil  cautelas  antes  de 
se  travar  o  tremendo  assalto. 

Com  a  esquadra  russa,  mercê  do  alto 
valor  do  almirante  Togo,  é  que  pouco  haverá 
ainda  a  contar  nos  futuros  episódios  da  guerra. 
A  batalha  naval  de  IO,  próximo  de  Porto 
Arthur,  e  a  de  14  nas  visinhanças  de  Tsus- 
hima,  acabaram  de  desbarata-la.  Encontram-se 
agora  ao  abrigo  de  Porto  Arthur  uns  cinco  ou 
seis  grandes  navios,  avariados  e  provavelmente 
desartilhados ;  a  sua  destruição  completa 
corresponderá  á  queda  de  Porto  Arthur.  Em 
Vladivostok  acham-se  o  «  Rossia  »  e  o  «  Gro- 
movoi»,  arruinados  pelo  fogo  da  esquadra  de 
Kaminura,  mas  certamente  susceptíveis  de 
reparações,  ás  quaes  se  deve  estar  proceden- 
do, parecendo  que  o  «Bogatyr»,  que  ha 
tempos  encalhou  perto  de  Vladivostok  e  se 
suppunha  perdido,  foi  reparado  e  poderá  de 
novo  entrar  em  combate.  O  que  é,  pois,  ainda 
possível  é  que  dentro  de  algumas  semanas  os 
navios  de  Vladivostok,  com  o  «Rurik»  de 
menos  e  o   « Bogatyr »   a  mais,  tentem  reno- 


104 


var  as  suas  razzías  ao  longo  da  costa  do 
Japão,  com  gravíssimo  prejuízo  não  só  dos 
japonezes,  mas  de  todo  o  commercio  neutral; 
mas  então,  devemos  crer,  Togo  estará  desem- 
baraçado do  bloqueio  de  Porto  Arthur,  o  que 
lhe  permittirá  impedir  efficazmente  taes  excuiv 
soes  e  assegurar  o  livre  commercio  nos  mares 
do  Japão. 

A'cerca  do  resto  da  esquadra  russa,  recor- 
demos que  na  batalha  naval  de  lO  se  perderam' 
o  « Paliada  ^>  e  alguns  pequenos  barcos ;  que 
os  japonezes  apresaram  um  dcstroycr  em  Chefu, 
que  um  cruzador  e  um  destroycr  se  abrigaram 
no  porto  allemão  de  Kiaochau,  onde  desarma- 
ram em  conformidade  còm  os  usos  das  nações 
neutraes;  que  o  mesmo  deverá  succeder  ao 
cruzador  «  Askold  >  e  a  um  destroycr  refugia-' 
dos  em  Changhae ;  que  o  <^  Rurik  »  foi  total- 
mente destruído  em  14  pela  esquadra  de  Kami- 
nura.  Com  respeito  ao  «Diana»,  que  se  disse 
estar  em  Saigon,  nega-se  agora  a  noticia,- 
ignorando-se  o  seu  paradeiro.  Por  ultimo,  ha 
a  registar  o  boato  de  que  uma  canhoneira 
russa,  do  typo  «Otrasjny  »,  e  o  destroycr  «Se- 
bastopol »  foram  pelos  ares  cerca  de  Porto. 
Arthur,  ao  tocarem  em  minas  submarinas,  e 
que  o  bello  cruzador  «Novik.>  foi  destruído 
pelos   navios  japonezes.  Como  se  vê,  é  longa 


I6; 


a  lista  dos  desastres  recentes  da  esquadra 
do  czar. 

A  destruição  do  «Novik»  constitue  o 
grande  acontecimento  d'estes  últimos  dias. 
Este  barco,  o  único  que  se  mostrou  aggres- 
sivo  e  dirigido  por  mão  intelligente  durante  os 
diversos  combates  travados  nas  visinhanças 
de  Porto  Arthur  desde  o  começo  das  hostili- 
dades, conseguira  romper  o  bloqueio  na  bata- 
lha de  IO  e  fugir  para  o  mar  largo,  imaginan- 
do-se  que  teria  «ganhado  a  salvo  o  porto  de 
Vladivostok.  Mas  não  succedeu  assim ;  pas- 
sando ao  Pacifico,  dirigiu  o  seu  rumo  ao 
norte,  dobrou  depois  o  difficil  estreito  de  Soya, 
que  separa  as  terras  do  Japão  da  ilha  russa 
de  Saghalien,  abrigando-se  depois  n'uma 
bahia  d'esta  ilha  de  modo  a  esperar  ensejo 
favorável  para  alcançar  Vladivostok;  mas  os 
cruzadores  japonezes  «  Chi  tosse  »  e  «  Tsushi- 
ma»  deram  por  elle  em  tal  bahia,  atacando-o 
e  destruindo-o  completamente.  O  « Novik » 
fora  construído  ha  quatro  annos,  segundo  os 
planos  do  mallogrado  almirante  Makaroff; 
possuia  três  hélices,  tinha  um  deslocamento 
de  3:100  toneladas  e  uma  excellente  marcha 
de  25  milhas  por  hora;  era  imi  magnifico 
barco. 

Ainda    com    respeito    ao    <;i^unk»,    cuja 


I66 


perda  desastrosa  fez  reviver  a  popularidade  do 
almirante  Karninura,  abalada  pelas  recentes 
infructiferas  perseguições  que  dera  aos  navios 
de  Madivostok,  ha  algumas  curiosas  referen- 
cias a  fazer.  Registe-se  em  primeiro  logar  que 
as  guarnições  dos  três  navios  russos  se  por- 
taram denodamente  na  batalha  de  14;  o 
«Rurik»  foi  desde  o  principio  do  combate. o 
que  mais  soffreu;  os  seus  companheiros, 
«Rossia»  e  «  Gromovoi »,  trataram  em  vão  de 
lhe  prestar  a  possível  assistência,  expondo-se 
mais  por  tal  facto  ao  vivo  fogo  do  inimigo,  e 
só  se  retiraram  da  scena  quando  o  «Rurik»  se 
ia  submergir ;  os  artilheiros  d'este  conser- 
varam-se  a  postos  e  fazendo  fogo  até  ao 
ultimo  momento,  isto  é,  até  a  agua  subir 
ás  cobertas. 

O  «  Rurik  » ,  responsável  pelo  maior  numero 
dos  recentes  desastres  occorridos  aos  paquetes 
japonezes  nos  mares  do  Japão  e  pelo  maior 
numero  de  perdas  de  vidas  dos  tripulantes  dos 
mesmos  barcos,  fora  o  navio  almirante  da 
esquadra  russa  do  Extremo-Oriente  em  1895, 
isto  é,  ao  terminar  a  guerra  entre  o  Japão  e 
a  China;  e  foi  tal  esquadra  que,  graças  ao 
súbito  accordo  entre  a  Rússia,  a  Allemanha  e 
a  França,  se  apresentou  arrogante  em  Chefu, 
decidida  a  convencer  por  qualquer  modo  os 


lúy 


japonczes  a  abandonarem  o  que  lhes  fora 
cedido  pela  China,  Liaotung  com  f^orto  Arthiir  ; 
diz-se  mesmo  que,  se  não  tora  a  attitude  pru- 
dente e  reservada  do  almirante  francez  de 
Beaumont,  a  esquadra  russa,  reforçada  com 
os  seus  alliados  de  occasião,  teria  então  cahido 
sobre  a  insignificante  esquadra  nipponica 
d'aqueila  época,  esmagando-a  sem  ceremonia. 
Com  taes  precedentes,  imagine-se  com  que 
intima  alegria  os  japonezes  receberam  a  noti- 
cia de  que  o  «  Rurik »  ha\'ia  desapparecido 
para  sempre  no  seio  das  aguas !  .  .  .  No  entre- 
tanto (diga-se  isto  em  abono  do  caracter 
d'estes  asiáticos),  na  occasião  da  catastrophe, 
os  japonezes  salvaram  mais  de  600  náufragos 
do  «  Rurik  »  ;  e  quando  ha  poucos  dias  estes 
prisioneiros  entraram  no  Japão  e  foram  reco- 
lhidos nas  casernas  que  lhes  eram  destinadas, 
o  povo,  reunido  em  multidão  para  vêl-os,  re- 
cebeu-os  com  benigno  acolhimento.  Nem  todos 
os  povos  do  Occidente  dariam,  em  occasião 
tão  especial,  provas  assim  disti netas  da  sua 
urbanidade. 

—  Contam  os  jornaes  japonezes  que  duran- 
te a  grande  batalha  de  10,  o  inimigo  concen- 
trou o  seu  fogo  sobre  o  «Mikasa»,  que  arvo- 
rava o  distinctivo  do  almirante  Togo,  com- 
mandante  da  esquadra  nipponica;  isto  deu  em 


i68 


resultado  que  só  a  bordo  do  «  Mikasa »  cerca 
de  loo  homens,  entre  officiaes  e  marinheiros, 
foram  mortos  ou  feridos.  Togo  pessoalmente, 
nada  soffreu;  mas  ao  terminar  a  batalha, 
quando  os  officiaes  o  felicitavam  pela  sua  boa 
fortuna,  notou-se  no  fato  que  vestia  estragos 
devidos  a  fragmentos  de  projectis. 

O  povo  começa  acreditando  que  o  seu 
querido  almirante,  graças  a  um  milagre  qual- 
quer, é  invulnerável.  D'este  distinctissimo 
marinheiro,  talvez  até  agora  o  vulto  mais  em 
evidencia  da  presente  campanha,  espero  poder 
apresentar  aqui  em  breve  algumas  notas 
biographicas. 

—Noticias  da  -ultima  hora,  ainda  mal 
precisas,  dão  conta  de  vários  encontros  a 
sueste  de  Liao-Yang,  entre  as  tropas  russas 
e  as  forças  de  Kuroki  e  de  Oku,  ficando  os 
japonezes  victoriosos  e  occupando  Anping,  a 
12  milhas  de  Liao-Yang,  após  um  renhida 
combate,  que  durou  desde  o  dia  24  até  26^ 
Parece,  pois,  que  a  grande  batalha,  ha  muito 
prevista,  se  prepara  ou  já  se  está  travando,  a 
despeito  dos  contínuos  esforços  do  general 
Koropatkine,  que  tem  sempre  cuidado  de 
evital-a,  retirando  successivamente  para  o 
norte.  D'esta  vez,  diz-se  mesmo  que  os  japo^ 
nezes  acabam  de  destruir  as  pontes  e  a  linha 


i69 


férrea  entre  Liao-Vang  e  Mukden,  o  que,  a 
confirmar-se,  torna  materialmente  impossível 
tal  retirada.  Nada  prophetisamos  ainda;  mas, 
se  os  nipponicos  se  apossam  de  Liao-Yang 
e  esmagam  o  exercito  de  Kuropatkine,  o  golpe 
será  terrível  para  o  prestigio  da  Kussia,  sem 
já  fallar  no  prestigio  pessoal  do  famoso  chefe, 
em  quem  o  governo  do  czar  depositou  todas 
as  suas  esperanças. 

—  A  guerra  não  affecta  naturalmente  o 
calendário,  e  as  festas  e  celebrações  vão 
succedendo  com  a  rotineira  precisão  de  todos 
os  annos. 

Ainda  ha  pouco,  no  dia  7."  do  7.''  mez 
(antigo  calendário  lunar),  solemnisava-se  Ta- 
nabata,  uma  historia  de  amores  de  estrellas. 
O  Pastor  é  uma  estrella  da  constellação  da 
Águia,  a  Tecelã  é  a  estrella  Vega,  achando-se 
separadas  pelo  Rio  do  Céu,  que  é  a  Via  Láctea. 
Tão  occupada  estava  sempre  a  Tecelã  em 
tecer  os  xestidos  para  a  família  do  Imperador 
do  Céu,  que  de  todo  lhe  faltava  o  tempo  para 
adornar  sua  pessoa.  O  Imperador,  por  fim, 
condoído  da  sua  solidão,  deu-lhe  um  marido, 
o  Pastor,  que  habitava  a  margem  opposta  da 
ribeira;  e  lá  foi  ella  reunir-se  ao  bem  amado. 
Aconteceu  então  que  a  Tecelã  começou  a 
mostrar  negligencia  em  seu  mister,  o  que  írri- 

s 


i;x) 


tou  o  Imperador  do  Céu  c  o  decidiu  a  fazel-á 
voltar  ao  antigo  pouso,  (M*denando  que  iima 
só  vez  em  cada  anno,  no  7,^  dia,  da  7.^  lua, 
os  esposos  se  reunissem.  Eis,  pois,  a  explica- 
ção da  festa,  decorando-se  em  tal  dia  todas  as 
ceisas  com  verdejantes  hastes.de  bambu,  d'oode 
pendem  fitas  de  papel  com  inscripções  poéti- 
cas. Está  averiguado  que,  quando  chove  e  o 
tempo  se  entrovisca,  o  Rio  do  Céu  se  torna 
innavegavel,  o  que  faz  adiar  por  mais  um  anno 
o.encontro  feliz  dos  dous  amantes;  d'esta  v^ez, 
a  julgar  pelo  tempo  radioso  que  fazia  onde 
me  acho,  não  houve  estorvo  aos  beijos  e  aos 
abraçoSj  sob  o  cplpio  do  albergue  ornado  em 
gala,  trocados  entre  o  Pastor  e  a  Tecelã.  .  . 
Seguidamente,  de  13  a  15  (também  pelo 
antigo  calendário),  foi  a  festa  dos  mortos,  cha- 
mada Bo7u,  Na  noute  de  13,  teem  por  habito 
as  almas. dos  defuntos  abandonar  as  campas 
e  virem  fazer  companhia  a  seus  parentes,  no 
seio  das  familias;  na  noute  de  15,  recolhem 
novamente  ao  triste  pouso.  Ora,  dada  a  pro- 
verbial amabilidade  japoneza,  imagineni  como 
esta  gente  anda  occupada  indo  buscar  ao 
cemitério  as  almas,  conduzi ndo-as  a  casa,  alli 
Qfferecendo-lhes  refrescos  e  manjares  e  recon- 
duzindo-as  íiniilmente  ás  campas  respecti- 
YSís\  .  .  .  Para  se  festejar  tão  estranhos  hospe^ 


I7Í 


dcs,  vestem-^c  as  melhores  roupas,  adorna-se 
a  casa  com  lanternas  e  com  flores,  queimam-se 
incensos;  em  muitas  aldeias,  rapazes  e  rapari- 
gas entregam-se  a  curiosas  áansa,s,  o  Bom-odon\ 

Na  China,  os  mortos  também  dão  que 
fazer  em  determinados  dias,  em  que  as  almas 
também  excursionam.  Mas  alli  chora-se,  as 
carpideiras  soltam  lamentosos  brados;  aqui 
ri-se,  eis  a  difterença. 

—  E'  de  notar  que  a  imprensa  japoneza 
raras  vezes  se  deleita  em  artigos  de  politica 
desbragada,  tão  vulgares  de  encontrar  nos 
jornaes  do  Occidente,  nos  nossos  por  exemplo, 
para  não  irmos  mais  longe.  Assim  como  a 
pintura  ingénua  d'este  paiz  se  apraz  em  chi- 
meras,  em  esboços  singelos  de  aves  e  de  inse* 
ctos  pousando  em  ramagens  de  bambu,  assim 
também  os  jornaes  nipponicos  preferem  ás 
grandes  tiradas  de  politica  tenebrosa  os  assum- 
ptos pueris,  as  divagações  ingénuas,  por  vezes 
as  besbilhotices  innocentes.  Como  espécimen 
d'este  ultimo  género,  lembro-me  de  transcrever 
aqui  um  artigo  apparecido  ha  poucos  dias  no 
jornal  japonez  Xodc  Yushin  Nippo,  artigo 
que  particularmente  poderá  interessar  os  leito- 
res, por  se  tratar  de  referencias  a  estrangeiros. 
O  artigo  em  questão  intitula-se  «  Traços  sobre 
os  cônsules  de  Kobe»  e  é  do  theor  seguinte: 


172 


«o  vice-consLil  iiiglez  snr.  Griffitlis  acha-se 
doente  no  Canadá,  devendo  voltar  em  setem- 
bro; outro  individuo  o  está  substituindo.  O 
cônsul  americano  snr.  Lyon  está  doente  desde 
março;  esteve  por  algum  tempo  n'uma  casa 
de  saúde,  mas  já  regressou  ao  seu  domicilio, 
sendo  provável  que  se  retire  em  breve  para  a 
America.  O  cônsul  francez  snr.  F^ossaréeu 
também  se  acha  doente,  acabando  de  passar 
alguns  dias  na  estação  thermal  de  Arima, 
para  onde  voltará  em  breve.  O  cônsul  allemão 
snr.  Krien  conserva-se  em  Kobe.  O  cônsul 
de  Portugal  snr.  Moraes  está  agora  accumu- 
lando  as  funcções  de  cônsul  de  Itália;  o 
seu  consulado  encontra-se  agora  estabelecido 
n'uma  casa  nova.  O  consulado  mais  distante 
do  porto  é  o  da  Hollanda. 

«  Os  consulados  que  ficam  mais  cerca  do 
porto  são  os  da  Inglaterra,  da  Bélgica  e  da 
AUemanha,  este  n'um  sumptuoso  edifício  de 
três  andares,  onde,  pelo  conforto  que  offereôe', 
os  cônsules  se  reúnem  de  preferencia  quando 
téem  de  tratar  de  algum  assumpto. 

«No  consulado  portuguez  cncontram-se, 
entre  varias  curiosidades,  algimias  pinturas 
chinezas  e  japonezas,  um  canário  n'uma  gaiola 
e  salamandras  n'um  vaso  de  vidro  cheio  de 
agua ;  o  cônsul  é  homem  estudioso. 


1/3 


«O  antigo  cônsul  russo,  snr.  Wassilicff, 
íigora  em  S.  Petersburgo,  era,  quando  aqui  se 
encontrava,  o  mais  preguiçoso  de  todos  os 
cônsules :  le\'antava-se  ás  1 1  horas  c  meia  da 
manhã.  No  consulado  chinez  offerece-se,  inva- 
riavelmente, chá  a  cada  visita.  Os  cônsules 
que  se  entregam  simultaneamente  á  profissão 
commercial,  são  os  da  Bélgica  e  do  Chili.  .  . » 

Pelo  que  mais  particularmente  interessa 
o  nosso  paiz,  é  facto  que  raro  se  vê,  no  porto 
de  Kobe,  como  nos  outros  portos  japonezes, 
um  navio  de  guerra  portuguez;  o  nosso  com^ 
mercio  com  o  Japão  é,  por  agora,  quasi  nullo, 
embora  susceptivel  de  prósperos  progressos. 
Kmfim,  temos  aqui  um  cônsul;  e  consolemo- 
nos  com  a  ideia  de  que,  graças  ás  pinturas, 
ao  canário  e  ás  salamandras  de  sua  senhoria, 
o  nome  glorioso  de  Portugal  não  foi  ainda  de 
todo  esquecido  n 'estas  paragens  longínquas, 
por  onde  ha  três  séculos,  pouco  mais  ou  me- 
nos, transitou  Fernão  Mendes  Pinto. 


XVI 


27  de  Setembro  de  1904 


C^s    acontecimentos  —  Liao-Yang;   batalha  de  dez   dias 

—  Os   enthusiasmos  da  Europa  pelo  Japão;  o  seu 
esfriamento;    varias   causas  —  Retirada   dos  russos 

—  As  chuvas  — Porto  Arthur  —  Japão  e  Coréa — A 
emigração  chineza  por  Macau  —  Um  episodio. 


."T^KPois  da  minha  ultima  carta,  escripta  ha 
bastantes  dias;  importantíssimos  acon- 
tecimentos se  passaram,  já  a  estas  horas  por 
certo  profusamente  relatados  nos  jornaes  da 
Europa,  mercê  da  faina  incessante  do  tele- 
prapho.  Eu  bem  dizia  aos  leitores  d'estas 
correspondências,  logo  após  o  rompimento  do 
conflicto,  que  ellas  não  queriam  e  não  podiam 
mesmo  aspirar  a  ter  um  interesse  rigorosa- 
mente actual ;  limitando-se  a  simples  com- 
mentarios,  escriptos  ao  correr  da  penna  e  ao 
capricho  das  horas  vagas,  dos  factos  succedidos 
e  sabidos.  Sahem  do  Japão  para  Portugal, 
rabiscadas  muitas  vezes,  no  momento  em  que 
soam    fanfarras   jubilosas    commemorando   a 


175 


ultima  victoria,  ou  quando  os  garotos  vão 
berrando  o  popular  estribilho :  —  Nippon  katta, 
Nippon  katta !  Kosia  makimashita  / .  .  .  (o  Japão 
vence,  o  Japão  vence!  a  Rússia  vai  perden- 
do! .  .  .) — E  eis  o  seu  único  merecimento. 

la-se  contando  como  imminente  a  queda 
de  Porto  Arthur  e  para  tal  já  se  preparavam 
activamente  estrondosos  festejos;  e  por  fim  é 
Liao-Yang  que  cahe  primeiro  nas  mãos  dos 
japonezes,  reclamando  para  si  os  regozijos !  .  .  . 
Caprichos  do  destino.  Após  uma  série  re- 
nhidíssima de  sangrentos  combates,  que  dura- 
ram dez  dias,  Liao-Yang  é  tomada  de  assalto 
pelos  nipponicos  no  dia  4  de  setembro,  á 
custa  de  duríssimas  perdas  de  vidas  dos  dois 
lados.  Kuropatkine,  derrotado,  foge  com  o  seu 
exercito  para  o  norte,  em  direcção  a  Mukden, 
abandonando  ao  inimigo  sobra  de  provisões  e 
de  material  de  guerra.  Calcula-se,  por  alto, 
que  as  forças  de  cada  belligerante  orçariam 
por  uns  200:000  homens;  esta  batalha  de 
Liao-Yang  pode  francamente  classificar-se 
como  uma  das  maiores  dos  tempos  modernos. 

—  Sabe-se  por  cá  que  foi  intensa  a  admira- 
ção mundial  por  este  po\'0  de  heroes,  que  ha 
algumas  semanas  apenas  desbaratava  pelo  mar 
e  reduzia  a  miserável  mina  a  esquadra  russa, 
inflingindo  poucos  dias  depois  por  terra  uma 


176 


tremenda  derrota  ás  enormes  forças  do  famoso 
generalíssimo  do  czar.  No  entretanto,  sabe-se 
também  que  uma  parte  da  imprensa  europeia, 
incluindo  a  ingleza,  esfriou  agora  nos  seus 
enthusiamos  pelos  nipponicos.  Duas  causas 
terão  concorrido  principalmente  para  isto. 
Uma  deve  estar  no  resentimento  dos  corres- 
pondentes da  imprensa  estrangeira  acom- 
panhando as  tropas  japonezas,  de  ha  muito 
descontentes  por  se  lhes  não  permittir  livre 
besbilhotice  no  campo  de  batalha,  e  agora, 
alguns  d^elles,  em  férias  nos  portos  da  China, 
fora  da  tutela  nipponica,  vingando-se  em 
expedirem  telegrammas  azedos  derivados  do 
seu  mau  humor.  A  outra  causa  reside  mesmo 
no  espirito  das  massas,  dispostas  natural- 
mente ao  exaggêro,  contando  vér  na  annun- 
ciada  batalha  de  Liao-Yang  uma  segunda 
Sedan,  em  que  os  japonezes  envolveriam  o 
inteiro  exercito  de  Kuropatkine,  forçando-o  a 
render-se  em  peso,  seguindo-se  o  fim  da 
guerra.  Não  se  deve  sonhar  o  impossível.  O 
que  é  facto  é  que,  no  campo  do  supremo  arro- 
jo e  da  pericia  das  armas,  os  japonezes 
acabam  de  realisar  tudo  o  que  humanamente 
lhes  era  possível  fazer.  Para  editarem  uma 
segunda  Sedan,  precisariam  ellci  dispor  de 
forças  muito  mais  nimierosas  e  que  estas  se 


177 


encontrassem  relativamente  folgadas,  não 
exhaustas  como  estavam  após  dez  dias  —  dez 
dias!  —  de  continuos  combates.  Registe-se 
sinceramente  que  os  russos  se  bateram  com 
içrande  valentia,  defendendo  a  todo  o  transe  a 
cidade  que  fortificaram  durante  longos  mezes 
e  escolhida  por  Kuropatkine  como  base  de 
operações.  Registe-se  que  os  japonezes,  com 
forças  proximamente  iguaes  ás  russas,  quando 
tào  monumental  empreza  reclamava  maior 
numero,  se  bateram  com  a  maior  bravura 
(fanatismo,  segundo  os  russosj,  vencendo  os 
mil  obstáculos  que  as  fortificações  lhes 
offereciam,  arvorando  finalmente  o  pavilhão 
do  Sol  Nascente  em  substituição  do  inimigo 
na  cidade  manchu,  tão  vi\'amente  disputada. 
Em  resumo,  registe-se  de  um  lado  uma 
grande  victoria  e  do  outro  lado  uma  grande 
derrota,  esta  embora  sem  o  completo  aniquil- 
lamento  do  vencido,  por  que  os  russos  podéram 
realisar  uma  perfeita  retirada,  se  bem  que  á 
custa  de  grandes  perdas,  achando-se  ainda 
em  condições  de  continuarem  hostilidades. 

Admittamos,  pois,  sem  reticencias,  a  reti- 
rada russa,  louvando  até,  se  tanto  fòr  preciso, 
a  forte  sciencia  estratégica  de  retiradas,  de 
que  tem  dado  sobejas  provas  na  presente 
campanha     o    general    Kuropatkine;    isto    a 


1/8 


ponto  de  ter  já  merecido  de  iim  jornal  ame- 
ricano o  seguinte  commentario :  —  «  que  por 
este  andar  se  apresentam  grandes  probabi- 
lidades para  que  Kuropatkine  vá  comer  o  seu 
jantar  do  Natal  d'este  anno  em  S.  Peters- 
burgo.  .  . »  —  Houve  uma  retirada,  uma  esca- 
pada; os  russos  não  se  renderam,  como  os 
japonezes  evidentemente  o  desejariam,  embora 
sem  duvida  não  contassem  com  tal  desfecho. 
Mas  não  regateemos  as  grandes  vantagens 
que  os  mesmos  japonezes  alcançaram  com  a 
tomada  de  Liao-Yang,  importantissima  cidade 
chineza;  vantagens  de  ordem  moral  e  ordem 
prática,  bastando  citar  a  de  alli  poderem 
invernar,  com  todo  o  conforto  requerido,  as 
tropas  do  Japão,  n'uma  possivel  suspensão 
de  hostilidades  com  que  se  talvez  deva  contar, 
Dar-se-ha  em  breve  uma  subsequente  batalha 
em  Mukden?  E'  possivel,  e  até  repetidas  esca- 
ramuças, que  se  travam,  agora  o  fíizem  prever; 
mas  também  é  possivel  que  Kuropatkine  a  ella 
se  furte  e  trate  de  aqiiartelar-se  em  Karbin. 
Em  todo  o  caso,  as  chuvas  já  começam 
na  região,  inutilisando  os  caminhos ;  bem 
depressa  virão  os  frios  e  as  neves;  o  inverno, 
que  falia  mais  alto  do  que  as  ambições 
humanas,  vai  suspender  a  campanha.  Uns, 
raros,   crêem,  porém,  que  chegaram  já  enor- 


179 


mes  reforços  ao  exercito  russo  e  que  soou  a 
hora  da  desforra,  como  se  saberá  em  breves 
dias;  duvido  eu.  .  . 

—  De  Porto  Arthur  é  que  nada  se  sabe, 
continuando  aqui  a  prohibição  de  qualquer 
noticia  que  se  lhe  refira. 

Suppõe-se  que  se  teem  repetido  os  ataques 
e  que  os  russos  e  japonezes  teem  soffrido 
sérias  perdas;  o  que  haverá  decidido  estes 
últimos  a  mostrarem-se  mais  prudentes  e 
pacientes,  aguardando  melhor  ensejo  para  um 
ataque  geral,  do  qual  lhes  resulte  a  posse  de 
Porto  Arthur.  E'  notório  que  esta  praça  de 
guerra  se  acha  poderosissimamente  fortifi- 
cada; por  outro  lado,  a  sua  guarnição  russa, 
commandada  por  um  general  enérgico  e  sem 
a  minima  esperança  de  soccorro  exterior  ou 
de  opportunidade  de  escapar-se,  rompendo 
o  cordão  que  a  cerca,  tem-se  exercitado  em 
brios  guerreiros,  disposta  a  combater  até  á 
morte. 

Todas  estas  circumstancias  tornam  diffici- 
limo  o  ataque  geral,  não  devendo,  porém. 
Testar  duvidas  de  que  os  japonezes  saberão 
dal-o  em  momento  conveniente,  tirando  d'elle 
todo  o  proveito  requerido,  embora  com  grande 
sacrifício  de  vidas.  Aguardemos  pacientemente 
os  acontecimentos. 


í8o 


—  Annuncia-se  concluido  um  novo  accordo 
entre  o  Japão  e  a  Coréa,  que  se  resume  em  uns 
poucos  artigos,  certamente  de  effeito  proviso-^ 
rio,  pois  o  Tratado  definitivo  só  poderá  ser 
feito  depois  da  guerra.  Pelo  actual  accordo,  a 
Coréa  obriga-se  a  contratar  como  conselheiro 
diplomático  em  matéria  de  finanças  um  súb- 
dito japonez,  recommendado  pelo  governo  do 
Japão,  bem  como  um  outro  conselheiro  diplo- 
mático, estrangeiro^  em  matérias  de  politica 
exterior,  igualmente  recommendado  pelo  mes- 
mo governo;  também  se  obriga  a  consultar 
previamente  o  governo  do  Japão  antes  de 
concluir  Tratados  ou  convenções  com  as  po- 
tencias estrangeiras,  e  outros  importantes 
negócios  diplomáticos,  como  grandes  conces- 
sões ou  contratos  com  estrangeiros. 

Como  se  vê,  o  Japão  não  se  demora  em 
aproveitar-se  da  sua  situação  para  impor  ao 
visinho  os  seus  designios  e  restringir-lhe  os 
direitos  de  paiz  que  se  diz  independente. 

As  condições  actuaes  da  Coréa,  chamada 
irrisoriamente  um  império,  e  o  que  se  deve 
esperar  ainda,  mereceriam  sincera  piedade  do 
observador  imparcial,  se  não  se  tornassem  evi- 
dentes o  cahos  interno  em  que  labuta  e  a 
miséria  irremediável  do  povo  entregue  á  sua 
simples  iniciativa;   por  outro  lado,  a  posição 


i8l 


geographica  da  Coréa,  tornando-a  a  chave  do 
mar  do  Japão,  desenvolve  taes  cobiças,  que 
fatalmente  este  paiz  em  decadência  deverá 
softrer  o  jugo  dos  russos  ou  dos  japonezes ; 
sejam,  pois,  os  japonezes,  como  a  solução 
mais  justa  do  problema. 

—  Ha  poucos  dias,  um  dos  mais  bem  con^ 
ceituados  jornaes  inglezes  do  Japão  dava  pu- 
blicidade, em  artigo  de  fundo,  a  um  interes- 
sante episodio  da  historia  da  emigração  chineza 
feita  por  Macau,  no  qual  figurava  o  governo 
japonez;  concluindo  o  articulista  que  fora  o 
Japão  que  dera  o  golpe  de  misericórdia  n'este 
trafego  deshumano,  que  tanto  desenvolvimento 
attingiu,  n'uma  determinada  época,  na  nossa 
colónia  asiática.  O  episodio  deve  ser  conhe- 
cido de  poucos,  e  por  isto  aqui  o  reproduzo 
em  resumo,  pois  creio  que  poderá  interessar 
os  leitores. 

P^oi  a  partir  de  1848  que  começou  o  cha- 
mado trafego  dos  ciUís  em  Macau,  arreba- 
nhando-se  por  todos  os  meios,  geralmente 
pela  violência,  os  pobres  chinezes  do  interior 
e  expedindo-os  contra  sua  vontade  para  Cuba, 
Peru  e  outros  pontos;  calcula-se  que  annual- 
mente  eram  assim  expatriados  uns  13:000 
indivíduos.  Em  ;  de  julho  de  1872  chegava  a 
Yokohama  a  barca  peruviana  «Maria  Luz»,  a 


I82 


fim  de  reparar  avanas  causadas  por  um  forte 
temporal  que  apanhara  no  mar  largo ;  a  «Maria 
Luz»  trazia  a  seu  bordo  232  chinezes  emigran- 
tes, embarcados  em  Macau  e  destinados  ao 
Peru,  os  quaes,  tendo  em  vista  as  largas 
dimensões  da  barca,  vinham  relativamente 
em  satisfactorias  condições  de  conforto.  Cons- 
tava, porém,  que  os  ctdís  eram  muito  mal 
tratados.  Uma  certa  noute,  de  bordo  do  navno 
de  guerra  inglez  «Iron  Duke»,  surto  no  porto, 
foi  visto  um  cidí  fugindo  da  barca  e  nadando 
para  terra;  apanhado  e  conduzido  a  bordo  do 
<^ Iron  Duke»,  fez  declarações  do  mau  trata- 
mento de  que  era  victima;  levado  ao  cônsul 
inglez,  este  por  seu  tLirno  enviou-o  ás  aucto- 
ridades  japonezas,  que  o  mandaram  entregar 
ao  capitão  da  barca,  o  tenente  Herrera,  da 
marinha  de  guerra  peruviana.  Passados  alguns 
dias,  dava-se  scena  igual  com  outro  chínez, 
pelo  qual  se  sabia  que  o  primeiro  fugitivo  fora 
barbaramente  punido  ao  regressar  a  bordo.  Ao 
corrente  d'estas  informações,  as  auctoridades 
japonezas  intimaram  o  tenente  Herrera  a  apre- 
sentar-se  ao  go^'ernador  de  Yokohama,  con- 
ciuindo-se  do  seu  depoimento  e  de  outras 
pesquizas  que  os  emigrantes  recebiam  os  mais 
duros  tratos,  que  todos  haviam  embarcado  á 
força  e    que   nenhun>   d'elles   desejav^á  seguir 


k 


183 


para  u  l-*crú.  Com  a  mais  louvável  energia,  o 
governo  japonez  mandou  desembarcar  todos 
os  cuUs,  informando  do  caso  o  governo  chi- 
nez,  que  não  tardou  em  enviar  ao  Japão  um 
seu  delegado,  com  a  dupla  missão  de  agrade- 
cer tão  humanitário  serviço  e  de  reconduzir  á 
China  os  pobres  emigrantes.  Em  resultado  de 
tudo  isto,  os  governos  inglez  e  chinez  decidi- 
ram que  nenhum  navio  suspeito  de  fazer  o 
trafego  dos  culis  poderia  dar  entrada  em 
qualquer  porto  das  duas  respectivas  nações; 
no  anno  seguinte,  o  próprio  gov^erno  portu- 
guez  declarax^a  (j  trafego  i Ilegal.  Quanto  ao 
Peru,  suppòz-se  por  algum  tempo  que  viria 
ao  Japão  algum  na\'io  d'aquella  republica  to- 
mar satisfação  do  succedido,  mas  tal  não 
aconteceu,  sendo  a  questão,  porque  houve 
uma  questão,  decidida  em  favor  dos  japonezes, 
por  arbitragem  do  imperador  da  Rússia. 

O  artigo  citado  deu  logar  a  uma  carta 
assignado  por  um  J.  C.  H.,  iguabnente  inte- 
ressante, publicada  '^o  mesmo  jornal,  dias 
depois,  na  qual  o  seu  auctor  se  associava  em 
prestar  inteiro  culto  ao  procedimente  dos  ja- 
ponezes, mas  queria  para  a  higlaterra  a  gloria 
de  ter  conseguido  pôr  termo  á  emigração  chi- 
neza  feita  por  Macau. 

Xo  outomno  de  1871,  isto  é,  algims  mezes 


i84 


antes  do  caso  da  «Maria  Luz»,  a  barca  «Do- 
lores Ugata»,  ou  outra  parecida,  levava  de 
Macau  para  o  Peru  um  carregamento  de  ctilis^ 
fechados  debaixo  de  escotilhas,  como  de  ordi- 
nário. N'um  momento  opportuno,  os  prisionei- 
ros quebram  os  seus  grilhões,  matam  o  capi- 
tão, os  officiaes  e  a  guarnição  e  conseguem 
abordar  um  certo  porto  da  China,  onde  de- 
sembarcaram, alcançando  as  suas  aldeias.  O 
caso  tornou-se  conhecido  e  o  governo  de 
Macau  requisitou  do  de  Hong-Kong  a  captura 
e  entrega  de  alguns  dos  taes  chinezes  refu- 
giados na  colónia  ingleza,  um  por  nome 
Kwck-A-Ling,  que  foi  apanhado ;  ia  ser  entre- 
gue como  assassino,  quando,  bem  aconselhado 
por  alguns  amigos,  appellou  para  a  justiça 
ingleza,  no  intuito  de  desculpar  o  seu  proce- 
dimento em  defeza  da  própria  liberdade.  Em 
tão  boa  hora  o  fez,  que  o  juiz,  estudando  e 
fazendo  uma  publica  exposição  da  emigração 
chineza  feita  por  Macau,  condemnou-a  como 
um  trafego  de  escravos  e  pôz  em  liberdade  o 
accusado.  Na  opinião  do  correspondente  foi, 
principalmente,  este  caso,  embora  reforçado 
pelo  da  «Maria  Luz»,  que  motivou  a  suppres- 
são  do  trafego  dos  culis  por  Macau. 

Ambos  estes  factos,  a  meu  ver,  merecem 
registo,  sem  com  tudo  se  de\'er  tirar  d'elles  a 


185 


conclusão  que  parece  intencional  nos  auctores 
dos  dois  artigos,  tendente  a  tornar  patente  a 
dureza  dos  nossos  costumes  e  ao  mesmo 
tempo  a  acção  humanitária  dos  inglezes.  Isto 
de  humanitarismo,  meus  caros  leitores,  é  uma 
historia  muito  complicada;  e  sobre  o  assum- 
pto valeria  a  pena  fazer  algumas  considerações, 
se  o  espaço  me  sobrasse,  a  propósito  da 
emigração  chineza  que  se  inicia  agora  no 
mesmo  porto  de  Hong-Kong  para  a  Africa  do 
Sul,  em  condições  mais  decorosas  em  appa- 
rencia,  como  exige  o  século  xx  em  que  vive- 
mos, mas  nem  por  isto  sensivelmente  mais 
benevolentes  do  que  a  emigração  exercida,  ha 
cerca  de  quarenta  annos,  na  cidade  do  Santo  * 
Nome  de  Deus  de  Macau.  .  . 

No  entretanto,  o  assumpto  presta-se  ao 
seguinte  commentario :  se,  na  historia  colonial 
moderna,  Portugal  occupa  um  logar  distincto 
pelos  seus  honestos  e  incessantes  esforços 
exercidos  na  região  africana,  sem  já  fallarmos 
da  America;  na  Ásia,  no  Extremo-Oriente,  na 
sua  colónia  de  Macau,  os  seus  esforços  não 
teem  sido  sempre  igualmente  meritórios;  mas 
urge  que  faça  em  breve  esquecer  alguns  tran- 
ses da  sua  administração,  nem  sempre  muito 
escrupulosa,  firmando  o  seu  credito  por  novas 
medidas    de    sà   actividade,   desenvolvendo  o 


lS6 


commercio  livre,  inelhorando  as  condições  so- 
ciaes  d'esta  velha  reliquia  que  se  chama  Macau, 
digna  de  melhor  fama  de  que  a  de  que  goza 
actualmente. 


XVII 


28  de  setembro  de  1904 

As  attcnçíJes  que  se  prestam  hoje  ao  Japfto  —  Referencias 
á  geographia  do  JapJo  —  Um  rosário  de  ilhas  —  As 
que  comprehende  o  Japão  actual  —  O  paiz  japonez 
occupando  o  centro  de  uma  importantíssima  zona 
de  actividades  humanas — Os  principaes  sj-^stemas 
de  montanhas  do  archipeiago  japonez,  os  seus  rios  e 
lagos  —  Phenomenos  geographicos — -Considerações 
sobre  a  área  do  império,  clima  e  população. 


Y^RA,  diga-se  aqui  muito  á  puridade  que  ha 
^■^^  alguns  mezes,  ahi  na  Europa,  ninguém 
■pensava  no  Japão.  Hoje,  o  Japão  está  na 
bôcca  de  todos  e  occupa  longas  columnas  de 
jornaes  e  de  revistas.  Pro\'a  isto,  embora  se 
a-pregòe  a  indole  pacifica  e  civilisadora  do 
século  em  que  vivemos,  que  as  qualidades 
destruidoras,  isto  é,  negativ^as,  do  povo  japo-" 
nez,  fizeram  mais  em  poucos  mezes  do  que 
em  algumas  dezenas  de  annos  os  seus  dotes 
<:onstituitivos,  laboriosos,  emprehendedores, 
•isto  é,  positivos.  Pois  seja  assim.  Mas  parece- 
■me    que    é    já    tempo    para   que    a   Europa 


í88 


dedique  mais  detida  attenção  ao  que  é  o  Japão, 
sob  o  ponto  de  vista  da  sua  situação  natural, 
e  ao  que  são  os  japonezes,  como  povo  eminen- 
temente emprehendedor,  organisador,  dotado 
de  magnificas  energias  e  de  dedicadissimos 
sentimentos.  N'esta  ordem  de  ideias  e  no  in- 
tuito, talvez  immodesto,  de  despertar  nos  lei- 
tores portuguezes  o  amor  do  estudo  por  taes 
assumptos,  apresento  hoje  aqui  umas  mui 
rápidas  referencias  á  geographia  do  Japão, 
expostas  como  simples  palestra;  feliz  me  jul- 
garei se,  á  curiosidade  excitada,  succeder  o 
desejo  de  consultar  obras  de  mérito,  não 
escassas  nas  litteraturas  estranu:eiras. 

—  Em  face  do  vastissimo  continente  asiáti- 
co, constituido  por  massas  compactas  e  offe- 
recendo  á  vista  formas  cheias  e  espessos  con- 
tornos, estende-se  um  longo  rosário  de  elegan- 
tes e  rendilhadas  ilhas,  partindo  de  Alaska  e 
terminando  no  archipelago  malaico.  Uma  se- 
cção doeste  longo  rosário,  a  parte  que  defronta 
com  a  Sibéria  e  a  China  septentrional,  é.  o 
actual  império  do  Japão.  Este  império  descreve 
três  curvas  de  quasi  igual  grandeza,  lembrando 
uma  haste  de  vinha  em  ondulações  graciosas/, 
offerecendo  a  costa  asiática  o  curioso  pheno- 
meno  de  acompanhar  parallelamente  taes  on- 
dulações.—  ^.  A  forma  do  nosso  inteiro  archi- 


i8ç) 


pélago,  diz  cnthusiasticamente  (e  orgulhosa- 
mente) um  cscriptor  indígena,  a  cujos  estudos 
geographicos  recorro  para  este  trabalho,  é  a 
de  uma  enorme  vaga  do  oceano,  que  viesse 
açoutar  as  praias  do  antigo  mundo ! » 

O  Japão  actual  comprehende  cinco  grandes 
ilhas:  Honshu  ou  Hondo  (a  que  os  estrangei- 
ros chamam  algumas  vezes  Nippon\  Shikoku, 
Kyúshú,  Hokkaidò  ou  Yeso  e  Taiwan  (For- 
mosa), cedida  esta  ultima  pela  China  em  1895, 
depois  do  tratado  de  paz.  A  estas  cinco  ilhas 
devem  juntar-se:  as  ilhas  de  inferior  grandeza 
Sado,  Oki,  Iki,  Tsushima  e  Awaji ;  os  archipe- 
lagos  dos  Pescadores  (também  cedidos  pela 
China),  de  Chishima,  Ogasowara  (as  ilhas 
Bonin),  e  Okinawa  (as  ilhas  Loochu,  as  Lequios 
dos  nossos  navegadores);  finalmente,  mais  de 
seiscentas  ilhas  de  pequenas  dimensões.  A 
parte  mais  ao  norte  do  império  é  o  extremo 
norte  da  ilha  de  Araito  nas  Kiirilas,  cuja  lati- 
tude é  de  50*^56';  a  parte  mais  ao  sul  é  a 
ponta  sul  de  Taiwan,  em  latitude  de  2i"43\ 
Com  respeito  á  longitude  a  ilha  das  Piores, 
nos  Pescadores,  situada  em  119^20'  K.  G., 
marca  o  extremo  occidental;  a  ilha  Shumushu, 
nas  Kurilas,  e  cm  I5()"32'  K.  G.,  marca  o 
extremo  oriental. 

Considerand(^  o  Japão,  propriamente  dito. 


I90 


formado  pelas  quatro  primeiras,  grandes  ilha$ 
que  enumerei,  as  quaes,  por  assim  dizer,  lhe 
dão  a  estructura,  temos  ao  norte  o  Hoki<aidô, 
separado  da  ilha  Saghalien  (hoje  russa  e  anter 
riormente  japoneza),  pelo  estreito  de  Soya  ou 
de  La  Pérouse ;  segue-se  para  o  sul  o  Hondo, 
a  niaior  das  quatro  ilhas,  separada  do  Hok4 
kaidò,  pelo  estreito  de  Taugaro;  Hondo  esten? 
de-se  primeiramente  n\ima  direcção  norte-sul, 
depois  inílecte-se  para  oeste  em  recortes  capri^ 
chosos;  da  sua  extremidade  sul  avisinham-se 
Shikoku  c  Kyúshú  deixando  no  meio  um  es- 
paço livre,  que  é  o  mar  interior  do  Japão, 
povoado  de  pequenas  ilhas  e  de  uma  belleza 
incomparável. 

—  De  um  lado  do  Japão  estende-se  o  Oceano 
Pacifico ;  do  lado  opposto,  o  mar  do  Japão, 
Privilegiadamente  bem  fadado,  o  paiz  japonez 
occupa  o  centro  de  uma  importantissima  zona 
de  actividades  humanas,  ficando-lhe  a  leste  a 
rica  America,  com  cujos  principaes  portos 
mantém  muitas  linhas  de  communicação  ma- 
rítima, e  para  oeste  a  costa  da  China  e  ainda 
a  península  coreana,  que  dista  de  Nagasaki  e 
de  Shimonoseki  apenas  poucas  horas  de  via- 
gem, e  também  Hong-Kong,  o  grande  empório 
colonial  ínglez;  para  o  sul  ficam  as  F^ilippinas, 
Java  e  as  índias  Neerlandezas,  a  Austrália. 


191 


O  íirchipela<;()  Japonez  é  essencialmente 
montanhoso,  sendo  comparativamente  raras 
as  extensas  planicies;  só  no  Hokkaidò  algu- 
n\as  se  encontram  de  regulares  dimensões.  O 
paiz  é  caprichosainente  accidentado  por  siicces- 
sivas  elevações  de  terrenos,  cobertas  em  geral 
de  densas  florestas  e  separadas  por  valles  pro- 
fundos adaptados  ás  culturas,  predominando 
o  arroz,  que  os  innumeros  cursos  dos  rios 
e  das  ribeiras,  dirigidos  pela  mão  do  homem, 
iringam  de  iima  maneira  admira\'el.  Os  variá- 
veis cones^  de  formação  \'ulcanica,  espalhados 
jí)rofusamente,  concorrem  para  dar  á  paizagem 
o  seu  caracteristico  encanto. 

Dois  principaes  systemas  de  montanhas 
ne  observam  no  Japão.  Um  é  o  chamado  sys- 
tema  do  norte  ou  de  Saghalien,  tendo  a  sua 
origem  na  ilha  do  mesmo  nome,  passando  ao 
Hokkaidò,  onde  se  divide  em  varias  ramifica- 
ções subsidiarias  tomando  depois  uma  direcção 
sudoeste  e  penetrando  no  Honshii  pela  sua 
costa  do  norte;  no  Hoishu  e  na  sua  parte 
central  enconti*a-se  e  choca-se  com  o  segundo 
systema,  chamado  do  sul,  produzindo-se  um 
verdadeiro  conflicto  de  estructuras. 

:  Este  segundo  systema,  o  do  sul,  ou  da 
China,  ou  ainda  de  Kunglung,  tem  o  seu 
inicio  nas  cordilheiras  de  Kun<jflunLí,  na  China, 


192 


continúa-se  pelo  mar  até  á  Formosa,  apparece 
no  Japão  em  K^aishú,  após  em  Shikoku,  para 
depois  ir  reunir-se  aos  massiços  alpinos  da 
grande  ilha  central.  A  este  ponto  de  reunião 
concorre  também  um  terceiro  systema  menos 
extenso,  que  atravessa  o  Honshú  e  se  pro- 
longa até  ás  Mariannas,  dando  no  Japão  ori-  1 
gem  á  sua  mais  alta  e  famosa  montanha,  o 
Fuji. 

O  monte  sagrado  do  Fuji,  marca  distin- 
ctissima  de  navegantes,  thema  favorito  de 
poetas  e  de  pintores,  é  um  vulcão,  hoje  extin- 
cto,  elevado  de  3:780  metros  sobre  o  nivel 
das  aguas,  com  a  sua  crista  coberta  de  neves 
quasi  constantes  e-  de  uma  belleza  de  perfil 
indescriptivel,  posto  que  extremamente  popu- 
larisado  pela  arte. 

O  systema  do  F^uji,  embora  de  curto  de- 
senvolvimento, tem  na  historia  geographica 
do  paiz  uma  importância  capital,  dividindo-o 
em  duas  partes  distinctas,  septentrional  e  me- 
ridional, que  se  differenciam  pelo  clima,  pelas 
culturas  e  mesmo  pelos  costumes  dos  habitan- 
tes, constituindo  uma  verdadeira  barreira  á 
evolução,  o  que  fez  que,  de  tempos  remotos, 
predominasse,  de  um  lado,  a  influencia  da 
corte  de  Kyoto,  e  de  outro,  a  influencia  de 
Shogun. 


193 


Os  rios  no  Japão  são  de  curto  curso,  o 
que  facilmente  se  explica  pela  orientação  das 
montanhas,  que  correm  de  norte  a  sul,  e  pela 
pequena  extensão  do  solo  no  sentido  de  léste- 
oéste ;  da  mesma  circumstancia  deriva  o  facto 
de  se  encontrarem  na  estação  sécca  muitas 
\ezes  quasi  sem  agua,  transformando-se  em 
torrentes  impetuosas  durante  a  épocha  das 
chuvas.  Taes  como  são,  prestam  em  todo  o 
caso  relevantes  serviços  ao  systema  das  com- 
municações  internas,  como  o  rio  Yodo,  o  rio 
de  Osaka;  e  mostram-se  de  uma  complacên- 
cia providencial  em  virem  refrescar  os  campos 
de  cultura,  os  vastissimos  arrozaes  por  exem- 
plo, que  constituem  o  principal  alimento  do 
povo. 

Km  assumpto  de  lagos,  o  Japão  offerece 
ao  estudioso  toda  a  escala  de  phenomenos 
naturaes  qtie  dão  origem  á  sua  formação. 
Assim,  encontram-se  os  lagos  provenientes  do 
abaixamento  do  nivel  do  solo,  derivado  de 
perturbações  seismicas  e  vulcânicas;  tal  é  o 
formoso  lago  Biwa,  que  mede  12  milhas  na 
sua  maior  largura,  39  milhas  no  seu  compri- 
mento, com  uma  circumferencia  de  178  milhas, 
tão  conhecido  dos  touristes.  Encontram-se 
outros  lagos  constituidos  nas  crateras  de  ex- 
tinctos  vulcões  e  por  conseguinte  muito  eleva- 

9 


194 


dos  sobre  o  solo,  como  urnas  gigantescas 
trasbordando  de  agua,  apoiadas  sobre  altos 
pedestaes ;  o  lago  Chúsenjé,  perto  de  Nikko, 
a  4:296  pés  acima  do  nivel  do  mar,  entra 
n'este  grupo.  Finalmente,  outros  lagos,  como 
o  Kasimiiga-ura,  prov^éem  do  retrahimento  do 
Oceano,  deixando  a  sôcco  o  antigo  leito,  ex- 
cepto nas  depressões  casuaes. 

Um  outro  phenomeno  geographico  muito 
interessante  no  estudo  d'este  paiz  é  o  concer- 
nente á  linha  da  costa  e  sua  respectiva  ondu- 
lação. Kstes  dados  constituem  factores  das 
energias  e  da  prosperidade  de  um  povo. 
Quanto  maior  é  a  linha  da  costa  em  propor- 
ção á  área,  quanto-  mais  notáveis  são  as  suas 
evoluções,  que  se  traduzem  em  golfos,  em 
bahias  de  abrigo  e  em  portos  de  commercio, 
tanto  mais  activo  é  o  povo,  tanto  mais  progri- 
dem as  industrias.  Ora,  no  Japão,  estes  facto- 
res são  notabilissimos,  sendo  a  sua  linha  de 
costa  de  cerca  de  10:814  milhas  para  uma 
área  total  de  161:290  milhas  quadradas,  o  que 
dá  em  media  um  ri  ou  2,44  milhas  por  Céida 
22  milhas  quadradas.  As  estatisticas  dão  a 
ilha  de  Shikoku  offerecendo  proporcionalmente 
maior  linha  de  costa,  isto  é,  mafs  angras  e 
portos  ;  seguindo-se-lhe  por  sua  ordem  Kyúshú, 
Hokkaido,  Formosa  e  Honshú,  o  que  não  im- 


J 


«05 


pede  que  Honshú  possua  os  dous  portos  mais 
prósperos  e  frequentados  da  na\'egaçào  de 
todo  o  império,  Vokohama  e  Kobe. 

—  Algumas  ligeiras  considerações  sobre  a 
área  do  império  do  Japão.  Esta  área  é,  como 
já  apontei,  de  161:290  milhas  quadradas,  o 
que  corresponde  proximamente  á  325.''  parte 
da  total  superfície  terrestre  e  á  107.''  parte  do 
do  continente  asiático. 

Representando  por  100  a  totalidade  da 
área .  do  Japão,  Honshú,  a  maior  das  ilhas 
(86:843  milhas  quadradas),  occupa  53,84  partes 
d'esta  totalidade;  o  Hokkaido,  18,70;  Kyushú, 
9,6/ \  Formosa,  8,33;  Shikoku,  4,36;  Chris- 
hima,  3,82;  todas  as  ilhas  restantes  1,28. 
Comparando  mais  uma  vez  a  área  total  do 
Japão  com  as  de  outros  paizes  e  tomando-a 
por  unidade,  esses  paizes  serão  representados 
pelos  seguintes  números:  Sibéria,  29,99; 
China,  26,54;  Índia  ingleza,  11,64;  Pérsia,  3,94; 
Turquia  asiática,  4,26;  Siam,  1,91;  Afghanis- 
tan,  1,31;  asiática,  0,83;  Rússia  na  Europa, 
14,04;  Allemanha,  1,29;  França,  1,28;  Tur- 
quia na  Europa,  0,77;  Hespanha,  1,20;  Sué- 
cia, 1,07;  Gran  Bretanha,  0,75;  Noruega, 
0,77;  Itália,  0,70. 

O  império  era dixidido,  em  tempos  passados, 
em    pro\incias    (knni),   sem  já   faltarmos   nas 


196 


divisões  feiídaes.  A  classificação  por  províncias 
cessou  officialmente  com  a  nov^a  administração 
estabelecida  pela  restauração  imperial,  embora 
praticamente  ainda  muitas  vezes  se  recorra  a 
tal  classificação.  Hoje,  o  Japão  está  dividido 
em  46  districtos  ou  prefeituras  (fn  e  ken), 
que  se  subdividem  em  cidades  ou  districtos 
urbanos  e  em  districtos  ruraes.  Sabe-se  que 
Tokyo  constitue  por  si  só  um  districto,  é  a 
capital  do  império  e  residência  do  soberano, 
tendo-o  sido  anteriormente  Kyoto.  As  cidades 
principaes,  contendo  mais  de  50:000  habitan- 
tes, são  em  numero  de  21. 

Duas  palavras  sobre  o  clima.  Das  mui 
diversas  latitudes  que  as  differentes  ilhas  do 
archipelago  attingem,  resultam  grandes  varie- 
dades de  temperaturas,  sendo  esta  ainda 
notavelmente  infiuenciada  pela  visinhança  dos 
mares,  correntes  maritimas,  disposição  das 
montanhas  e  ventos  predominantes.  A  mais 
notax^el  corrente  maritima  é  o  Kuroshiwo,  ou 
corrente  negra,  de  aguas  quentes,  que  atraves- 
sam os  estreitos  de  Malacca  e  das  Filippinas, 
chegam  ao  Japão  e  correm  ao  longo  da  sua 
costa  oriental.  A  costa  japoneza  do  Pacifico, 
beneficiando  do  Kuroshiwo  e  abrigada,  pelas 
montanhas,  dos  ventos  do  norte,  que  reinam 
no  inverno,   offerece  em  tal  quadra  do  anno 


197 


um  clima  muito  mais  benigno  do  que  a  costa 
Occidental,  voltada  para  o  mar  do  Japão;  e  no 
xerào  goza  de  imia  temperatura  menos  eleva- 
da do  sul,  que  recebe  directamente,  o  que  não 
succede  á  costa  occidental.  O  Hokkaidò,  em 
virtude  da  sua  alta  latitude  e  das  correntes 
frias  \'indas  da  Sibéria  e  que  tornejam  as  suas 
costas,  offerece  um  clima  muito  frio.  Km 
Kyúshú  e  Shikoku  notam-se  as  temperaturas 
mais  elevadas,  sem  fallar  da  Formosa,  onde  o 
clima  é  quasi  tropical. 

A  parte  central  do  império,  onde  os  eu- 
ropeus geralmente  residem,  goza  de  clima 
muito  agradável  e  sadio,  certamente  o  melhor 
de  todo  o  Extremo-Oriente. 

Termino  com  algumas  referencias  á  popu- 
lação. Em  1872,  a  população  do  Japão  era 
aproximadamente  de  33  milhões  de  almas;  em 
1876,  de  35  milhões  e  700  mil;  em  1883,  de 
37  milhões;  em  1889,  de  40  milhões;  em  1897, 
de  43  milhões;  em  1899,  o  numero  exacto  da 
população  era  de  44.260:604  individues,  sendo 
22.329:925  do  sexo  masculino  e  21.930:681 
do  sexo  feminino;  estes  successivos  acrés- 
cimos correspondem  á  média  annual  de 
412:955  individuos.  Actualmente,  a  população 
do  Japão  orça  por  45  milhões  de  almas.  Com 
referencia  á  população  da  Formosa  e  Pesca- 


198 


dores,  não  incluida  nos  números  apontados, 
era  ella  em  1899  de  2.621:158  individuos. 

A  média  da  densidade  da  população  por 
cada  ri  quadrado  (5,95  milhas  quadradas), 
é  de  1:831  individuos;  no  entretanto,  convém 
notar  que  o  Hokkaidô  é  a  parte  do  império 
menos  povoada  (141  individuos  por  cada  ri 
quadrado),  emquanto  que  na  parte  occidental 
do  Honskú  a  população  se  encontra  mais 
densa  (2:945  individuos  por  cada  ri  quadrado). 
Referindo-me  ás  cidades  mais  populosas  do 
império,  1'okyo,  cm  1899,  tinha  1.440:121  ha- 
bitantes; Osaka,  821:238;  Kj^oto,  353:139; 
Nagoya,  244:145;  Kobe,  215:780;  Yokohama, 
193:762;  Hyroshima,  122:306;  Nagasaki, 
107:422. 

O  numero  de  nascimentos,  que  em  1872 
indicava  uma  proporção  de  1,71  por  100  habi- 
tantes, em  1899  attingiu  o  numero  de  3,10. 
Nos  mesmos  annos,  a  proporção  dos  óbitos 
por  100  habitantes  foi,  respectivamente,  de 
1,22  e  de  2,09. 


XVIII 


29  de   novembro   de   1904 

Sobre  a  guerra:  o  sentimento  da  colónia  eíítrangeira  no 
JapSo;  inválidos  que  vSo  chegando;  a  situação  dos 
japonezes  e  russos  na  Mandchuria ;  o  que  se  passa 
em  Porto  Arthur;  pergunta-se  qual  será  o  desfecho 
da  guerra;  ultimas  noticias  recebidas.  —  O  banho 
japonez;  divagações  curiosíssimas  a  propósito. 

/^^ALMARiA  em  noticias  da  guerra,  mas  não 
^-^^  mui  presumidamente  em  acontecimentos 
occorridos  no  campo  das  hostilidades,  os  quaes 
se  vão  passando  inteiramente  desconhecidos 
do  publico,  mercê  da  rigorosa  censura  exercida 
pelas  auctoridades  imperiaes  sobre  a  imprensa 
local.  A  mais,  referindo-me  á  colónia  estran- 
geira, uma  certa  oppressão,  um  sentimento 
indehnivel  de  mágua  perante  o  sangrento  con- 
flicto  que  se  fere,  e  cujos  tremendos  resultados 
finaes  estão  ainda  muito  longe  de  prevêr-se. 
Quando  acabará  a  guerra?  Como  acabará  a 
guerra  ?  .  .  . 

Aqui,  no  Japão,  posto  que  a  relativa  curta 
distancia  da  Mandchuria,  o  ribombar  da  arti- 


200 


Iheria  e  os  gritos  dilacerantes  dos  que  se  rojam 
pelo  campo  na  ultima  agonia,  não  chegam.  As 
bandeiras  desfraldadas,  os  clamores  patrióti- 
cos, que  não  cessam,  poderão  mesmo  dar  uma 
primeira  ideia  da  festa  perenne  para  as  armas 
gloriosas  do  império.  No  entretanto,  os  inváli- 
dos vão  chegando  por  centenas,  por  milhares, 
uns  atacados  do  kakke  (beri-beri),  a  terrivel 
hydropesia  tantas  vezes  íatal,  outros  sem  uma 
perna,  outros  sem  um  braço,  outros  desfigura- 
dos por  medonhas  cicatrizes;  e  estes  pobres 
inúteis,  vestidos  do  uniforme  khnono  branco  e 
com  o  symbolo  da  Cruz  Vermelha  sobre  a 
manga,  conjuntamente  com  vagos  boatos  de 
tremendas  scenas  de  carnificina  passadas,  cha- 
mam-nos  á  noção  da  realidade  e  ao  conheci- 
mento, embora  muito  imperfeito,  de  quantos 
duros  sacrificios  estão  custando  aos  pobres 
soldados  japonezes  as  brilhantes  victorias 
alcançadas  em  serviço  da  pátria!  .  .  . 

No  interior  da  Mandchuria,  após  a  renhida 
batalha  de  Liao-Yang,  victoriosa  para  os  japo- 
nezes, proseguem  operações  mal  definidas, 
ignorando-se  o  grau  de  probabilidades  de  uma 
subsequente  batalha  em  Mukden,  ou  mais  ao 
norte  em  Tieling.  O  inverno  vai  começar,  ou 
já  começou,  n'aquella  inhospita  região;  e  não 
sei    se    as    durissimas    condições  climatéricas 


201 


permittirão  o  proseguimento  das  hostilidades. 
Diz-se,  no  entretanto,  que  Kuropatkine,  vai 
agora  tomar  a  offensiva,  havendo  recebido 
reforços  importantissimos  que  lhe  permittem 
mudar  de  táctica.  Assim  será:  já  agora  só 
por  uma  grande  desproporção  de  numero  é 
que  as  tropas  russas,  desmoralisadas  pelas 
derrotas,  sem  generaes  competentes,  sem  es- 
pirito patriótico  collectivo,  poderão  deter  nos 
seus  triumphos  e  esmagar  os  soldadinhos  ja- 
ponezes.  Mas  acautele-se  Kuropatkine:  nas 
circumstancias  habituaes  da  vida,  usa-se  dizer 
popularmente  que  um  homem  é  para  outro 
homem ;  mas  no  caso  presente,  um  russo  não 
é  para  um  japonez,  nem  dous  russos,  nem 
três  russos;  o  generalissimo  terá  de  contar 
com  um  exercito  muitas  vezes  superior  em 
numero  ás  forças  nipponicas  para  haver  pro- 
babilidades de  aniquillar  estes  intemeratos 
asiáticos,  cuja  coragem,  cujo  desamor  á  vida, 
cujo  frenesi  de  gloria  não  encontram  parallelo 
no  mundo.  Ora,  por  mais  que  se  admitta  que 
a  Rússia  dispõe  de  um  exercito  immenso,  é 
igualmente  indiscutivel  que  o  império  mosco- 
vita não  poderá  concentrar  na  Mandchuria  tão 
numerosas  forças  quantas  deseje  expedir  para 
tal  sitio ;  isto  pela  simples  razão  de  que  o  seu 
caminho  de  ferro  transiberiano,  para  além  de 


202 


um  certo  limite,  não  poderá  satisfazer  ao  duplo 
serviço  impreterivel  de  transporte  de  homens 
e  dos  mantimentos  e  munições  de  que  elles 
carecem.  O  mais  que  se  pôde  esperar,  e  é  já 
importantissimo,  é  que  a  Rússia  consiga  man- 
ter, por  um  periodo  indefinido,  um  constante 
numero  de  soldados  no  campo  do  conflicto, 
pois  ser-lhe-ha  relativamente  fácil  o  ir  enviando 
reforços  que  supram  as  perdas  soffridas;  não 
se  poderá  dizer  o  mesmo  dos  japonezes,  para 
os  quaes  de  dia  para  dia,  á  medida  que  mais 
se  internam  em  território  alheio,  mais  crescem 
as  difficuldades  em  receberem  recursos  da 
mãe -pátria. 

E  que  diremos  de  Porto  Arthur.^  A  temí- 
vel praça  de  guerra  continua  em  poder  dos 
russos,  contra  a  espectativa  de  todos,  estran- 
geiros e  japonezes,  que  julgavam  que  de  ha 
muito  houvesse  cahido  em  poder  dos  sitiantes. 
Indubitavelmente,  os  japonezes  suppunham  ao 
principio  a  tarefa  mais  fácil,  não  contando  com 
os  grandes  recursos  de  que  dispunha  a  praça, 
com  o  contrabando  dos  juncos  chinezes,  que 
conseguem  de  quando  em  quando  romper  o 
cerco  e  ir  abastecer  de  viveres  os  sitiados,  e 
sobretudo  com  a  resistência  desesperada  que 
estes  estão  oppondo  á  acção  nipponica.  Consta 
vagamente  que  horríveis  lances  de  carnificina 


203 


alli  s(3  teeni  dado,  com  muitas  perdas  dos  dois 
lados,  principalmente,  e  como  era  de  prever, 
do  lado  dos  japonezes.  Aquillo  é  um  açougue 
humano,  onde  os  assaltantes  cahem  prostrados 
aos  milhares  pela  acção  do  fogo  da  grossa 
artilheria  e  das  minas  que  rebentam.  Da  ban- 
deira branca  já  ninguém  faz  caso:  ainda  ha 
pouco  os  russos  se  gaba\'am  de  terem  derru- 
bado até  ao  ultimo  soldado  um  grupo  de  ja- 
ponezes que  se  viram  com  a  retirada  cortada 
e  alçavam  os  seus  lenços  em  signal  de  se 
rendei'em.  Não  ha  tempo  para  enterrar  os 
mortos ;  apodrecem  onde  cahiram.  Alguém  me 
contou  que  alguns  japonezes  permaneceram 
durante  dias  dentro  de  escavações  das  rochas, 
abrigados  contra  o  fogo  dos  fortes  inimigos  e 
expostos  a  uma  temperatura  tropical,  sem 
alimento  algum  nem  agua;  quando  algum 
soldado  se  erguia  e  sahia  do  esconderijo,  era 
logo  attingido  e  cahia  morto,  e  os  companhei- 
ros tratavam  de  beber-lhe  o  sangue,  para  miti- 
gar a  sede!  ...  O  ultimo  lance  do  drama  de 
Porto  Arthur  excederá  tudo  que  a  imaginação 
possa  conceber:  os  homens,  russos  e  japone- 
zes, excitados  pela  longa  demora  no  desfecho, 
transformar-se-hão  em  feras !  .  .  .  A  matança 
será  horrivel !  .  .  . 

No   entretanto,    seja   qual   fòr  a   medonha 


204 


resistência  da  guarnição  russa  de  Porto  Arthur, 
a  praça  ha-de  cahir  e  os  japonezes  hão-de 
içar  sobre  as  ruinas  dos  fortes  a  bandeira  do 
Sol  Nascente,  embora  o  sacrifício  de  vidas 
tenha  de  ser  enorme;  ninguém  põe  isto  em 
duvida.  Mas  já  será  tarde  para  correr,  ainda 
durante  este  anno,  ao  bloqueio  e  ao  ataque 
de  Vladivostok:  os  gelos  do  próximo  inverno 
impedirão  por  longos  mezes  tal  audácia. 

Mas  qual  será  o  desfecho  da  guerra?  per- 
guntamos todos  nós  com  anciedade.  Se  se 
tratasse  de  belligerantes  habitando  ambos 
paizes  continentaes  e  visinhos,  as  glorias  já 
realisadas  pelos  japonezes,  esperando-se  ainda 
talvez  pela  queda  de  Porto  Arthur,  bastariam 
para  pôr  um  fim  á  contenda.  Mas  infelizmente 
as  condições  são  muito  differentes,  permittindo 
á  Rússia  o  prolongar  por  longos  tempos  o 
estado  actual  das  cousas,  e  parece  que  é  isto 
mesmo  que  ella  pretende,  no  intuito  de  recu- 
perar o  que  ella  chama  o  seu  prestigio  politico, 
A  guerra  de  extermínio  continuará,  pois,  a 
não  ser  que  uma  grande  circumstancia  impre- 
vista, um  phenomeno  politico  inimaginável, 
venha  pôr  termo,  de  prompto,  á  matança. 

—  Depois  de  escriptas  as  linhas  que  pre- 
cedem, chegam-nos  importantíssimas  noticias 
do   theatro   da  guerra,   as  quaes  não  podem 


205 


ticar  em  silencio,  embora  eii  tenha  cie  alongar 
esta  carta  além  de  que  era  meu  propósito. 

Registemos  em  primeiro  logar  que  estas 
informações  de  Porto  Arthur  nos  dizem  que 
os  ataques  dos  sitiantes  proseguem  com  incan- 
sável ardor,  tendo  os  japonezes  collocado  ca- 
nhões de  grande  alcance  em  algumas  eminên- 
cias de  terreno,  o  que  lhes  permitte  metralhar 
a  praça  com  mais  destruidor  effeito.  A  bia\'ura 
de  todos,  japonezes  e  russos,  n'este  drama 
em  que  se  joga  um  estupendo  lance  de  amor 
próprio  nacional,  é  assombrosa!  .  .  . 

No  entretanto,  o  facto  mais  sensacional  é 
a  batalha  de  Shaho,  que  acaba  de  travar-se, 
correspondendo  a  uma  completa  victoria  para 
os  indomáveis  nipponicos.  Ha  ainda  poucos 
detalhes  que  lhe  respeitem,  mas  sabe-se  que 
Kuropatkine,  havendo  recebido  importantís- 
simos e  frescos  reforços  da  metrópole  e 
achando-se  assim  com  um  exercito  provavel- 
mente muito  superior  em  numero  ao  do  ini- 
migo, resolveu  tomar  a  offensiva,  conforme  os 
conhecidos  desejos  do  czar.  A  batalha  de 
Shaho  deu-se  ao  sul  e  nas  visinhanças  de 
Mukden,  iniciando-se  no  dia  lO  do  corrente  e 
terminando  em  14.  Os  russos  começaram  por 
atacar  os  japonezes;  mas  estes,  não  se  con- 
tentando   com    o   papel   de   defender   simples- 


20Ó 


mente  as  suas  posições,  ertectuarani  iim  con- 
tra-ataque,  collocando-se  logo  na  offensiva.  O 
exercito  russo  softVeu  então  uma  terrível 
derrota,  rcalisando  Uina  apressada  retirada, 
não  sem  perder  uns  50:000  iiomens  entre 
mortos  e  feridos,  segundo  as  informações  do 
marechal  Oyama,  e  muitos  mais,  segundo  in- 
formações de  outras  procedências.  Parece  que 
as  perdas  japonezas  foram  bastante  infe- 
riores. 

K'  deplora\'cl  o  etfeito  moral  da  derrota  de 
Kuropatkine,  no  momento  que  elle  julgava 
azado  para  emfim  colher  umii  victoria  para  as 
armas  russas,  e  após  uma  pomposa  proclama- 
ção que  dirigira  ás  tropas  do  seu  commando. 
Infelizmente,  os  japonezes,  batendo-se  com 
um  denodo  que  excede  toda  a  expectativa,  não 
possuem  no  campo  de  batalha  forças  bastan- 
tes que  envolvam  o  inimigo  e  o  obriguem  a 
render-se  em  pezo,  homens  e  armas,  do  que 
possivelmente  poderia  resultar  o  termo  do 
conílicto.  Succedem-se  as  victorias  ás  victorias, 
mas  com  resultados  que  quasi  poderíamos 
chamar  nullos ;  porque  os  russos,  embora 
retirando  sempre,  vão  substituindo  as  suas 
falhas  om  reforçxs  de  gente,  a  qual  está  longe 
de  faltar,  e  assim  a  guerra  se  eternisa. 

Informações  da  ultima  hora  dão  conta  de 


20/ 


continuarem  as  Iiosiilidades  nas  visinhanças 
de  Mukden. 

—  Ha  algumas  semanas,  a  propósito  de 
certas  damas  europeias  que  se  banhavani  em 
uniíi  das  praias  mais  frequentadas  do  Japão,  as 
quaes,  pretendendo  que  o  sentimento  japonez 
se  amolde  ao  sabor  das  suas  exigências,  se 
mostraram  muito  offendidas  porque  na  sua 
\isinhança  alguns  indigenas  se  vieram  banhar 
em  plena  nudez,  veio  á  balha,  na  imprensa 
ingleza  local,  a  eterna  questão  do  banho 
japonez,  d'onde  se  passou  para  uma  questão 
mais  genérica  —  o  pudor  (ou  impudor^  dos 
nipponicos. 

O  assumpto  é  sempre  interessante  e  pres- 
ta-se  a  curiosos  commentarios,  que  natural- 
mente dobram  de  valor  quando  destinados  a 
leitores  distantes,  alheios  por  completo  ao 
feitio  moral  d'este  po\'0 ;  por  tal  motivo  vou 
aqui  apresentar  algumas  ligeiras  reflexões 
sobre  a  matéria. 

Xa  \ida  qiKjtidiana  dos  japonezes,  que 
primam  pela  singeleza  do  vestuário  e  dos  usos 
sociaes,  e  n'um  paiz  onde  o  estio  é  por  vezes 
abrazador,  a  nudez,  parcial  e  mesmo  completa, 
entra  nos  hábitos  geraes.  O  touristc,  sem  que 
se  dê  a  grandes  pesquizas,  encontrará  por 
toda  a  parte  a  mãe  offerecendo  sem  recatos  o 


208 


seio  nú  ao  íilho,  a  serviçal  arregaçando  o 
kbnono  até  acima  dos  joelhos,  um  homem  de 
labuta  vestido  apenas  de  uma  faixa,  nas  praias 
os  banhistas  dos  dous  sexos  em  absoluta 
nudez.  Questão  de  educação  e  ainda  mais  de 
feitio  moral.  No  entretanto,  apresso-me  a 
dizer  que,  se  o  toiírístc  mencionado  vê  isto,  o 
indigena  não  o  vê,  isto  é,  o  seu  olhar  não  se 
tixa  em  taes  quadros;  a  nudez  passa,  vestida 
da  indifferença  da  turba.  Não  se  classifique, 
pois,  isto  de  impudor;  ainda  ninguém  chamou 
impudicas  ás  borboletas,  por  exemplo,  por  não 
vestirem  camizas  e  ceroulas.  Como  ainda  mais 
completo  contraste  ao  sentimento  occidental 
apresenta-se  após  o  facto  do,  japonez  não 
admittir  a  nudez  na  arte;  n'esse  ponto  é  que 
elle  manifesta  o  seu  pudor.  Esclareçamos  este 
assumpto.  Uma  mulher  núa  ou  quasi  núa, 
passeando  pelas  ruas  de  Paris  ou  de  Lisboa, 
provocaria  o  espanto  e  a  indignação  geral; 
mas  em  mármore,  ou  na  tela,  chamada  Vénus, 
chamada  Chloe,  ou  mesmo  anonyma,  não 
desperta  taes  sentimentos,  antes  os  de  es- 
tima e  do  enlê\'0,  se  o  artista  trabalhou  com 
mestria  a  sua  obra.  Pois  a  mulher  núa  ou 
quasi  núa  é  admittida  sem  reparo  em  Tokyo 
ou  em  Yokohama,  já  não  digo  passeando 
pelas    ruas,    mas    relanceada    n'uma  casa   de 


209 


biinlios  públicos  ou  no  \iver  intimo  do  seu  lar 
domestico ;  emquanto  que  a  arte  do  nú,  do  nú 
que  reclama  a  attenção  dos  que  passam,  é 
repudiada  energicamente.  Ha  uns  nove  annos, 
quando  um  pintor  japonez,  embebido  de 
modernismos,  apresentou  um  estudo  do  nú 
n'uma  exposição  em  Kyoto,  a  indignação  foi 
geral,  conseguindo  elle  a  muito  custo  que  a 
policia  não  lhe  mandíisse  retirar  o  quadro;  na 
exposição  de  Osaka  do  anno  passado,  mais 
alguns  trabalhos  do  mesmo  estylo  se  apre- 
sentaram, tolerados  pelas  auctoridades,  mas 
não  tidos  em  estima  pelo  publico,  e  note-se 
que  taes  trabalhos  são  sempre  completados 
por  uma  cabeça  loira  de  occidental,  pois 
nenhum  pintor  indígena  ousaria  attribuir  a  uma 
das  suas  compatrícias  as  formas  que  indis- 
cretamente reproduz.  Direi  ainda  que  ao  ja- 
ponez ou  á  japoneza  causam  simplesmente 
nojo  esses  livros  e  revistas  agora  puUulantes 
em  certas  litteraturas  occidentaes,  intencional- 
mente illustrados  com  gravuras  provocantes. 
Mas  voltemos  ao  banho  nipponico.  Todos 
os  japonezes  tomam  banhos ;  a  casa  de  banhos 
públicos  é  tão  frequente,  em  cidades  e  aldeias, 
como  a  mercearia,  onde  se  vão  buscar  as 
provisões  diárias.  Ha  seis  annos,  só  na  cidade 
de  'l'okio  ha\ia  i :  i  oo  casas  de  banhos  públicos, 


2IO 


com  lima  frequência  diária  de  400:000  banhis- 
tas, v^ariando  o  preço  de  admissão  entre  5  e  7 
réis ;  actualmente,  o  numero  deve  ter  augmen- 
tado.  Além  d'estas  casas  de  banho,  frequen- 
tadas geralmente  pela  classe  pobre,  cada 
habitação  regularmente  conforta\^el  possue  o 
seu  quarto  de  banho  privativo. 

O  banho  do  mar  é  um  luxo  moderno.  O 
banho  que  o  japonez  prefere  é  o  banho  de 
agua  quente,  doce  ou  mineral,  elevada  a  uma 
alta  temperatura,  45''  centigrados  pouco  mais 
ou  menos;  pretendendo,  e  parece  que  com 
razão,  que  o  banho  quente  aquece  no  inverno, 
produzindo  no  verão  uma  agradável  reacção  de 
frescura.  No  banho  domestico  inimerge  diaria- 
mente, em  regra,  primeiro  o  dono  da  casa, 
depois  a  esposa,  seguindo-se  as  outras  pessoas 
de  familia  por  ordem  de  precedências;  por 
ultimo  os  criados.  Nas  casas  de  banhos  pú- 
blicos, acha-se^  ao  centro  do  grande  recinto 
legeado  a  fumegante  tina  de  madeira,  de 
secção  rectangular,  parecendo  mais  um  tanque, 
graças  ás  suas  vastas  proporções,  e  onde  os 
clientes  vão  mergulhando  juntamente,  deixando 
a  roupa  fora.  Esta  agua,  que  serv^e  a  toda  a 
gente  durante  um  dia  inteiro,  poderia  invo- 
car ao  leitor  desprevenido  uma  ideia  de  sujo 
habito,  se  não  se  advertisse  que  os  banhistas 


2tl 


se  entregam  á  roda  da  tina  a  abluçoes  pre- 
liminares, servindo-se  de  pequenas  celhas  de 
madeira  ou  de  metal,  que  trazem  comsigo  ou 
encontram  á  sua  disposição  no  estabelecimen- 
to ;  lavam-se,  ensaboani-se,  lavam-se  de  novo 
e  só  depois  mergulham  na  piscina  commum. 
A  circumstancia  que  acabo  de  apresentar,  é 
motivo  bastante  para  que  nas  hospedarias  ja- 
ponezas  se  difticulte  o  accesso  de  banho  a  imi 
hospede  europeu  não  conhecido,  por  se  ima- 
ginar, com  sobra  de  razão,  que  o  sujeito  se 
vai  ensaboar  dentro  da  tina,  inutilisando  o 
banho  aos  mais  clientes.  Na  F.uropa,  passam-se 
as  cousas  ao  revéz:  um  distincto  official  ja- 
ponez  de  artilheria  conta\'a-me  um  dia  os 
tormentos  que  passara  quando,  recemchegado 
a  Pariz  e  banhando-se  n'um  quarto  de  hotel, 
começou,  segundo  a  regra,  espargindo  agua 
sobre  si  antes  de  entrar  na  tina;  alagado  o 
tapete,  alagados  os  quartos  dos  ■  \'isinhos, 
chovendo  nos  quartos  inferiores,  acode  o  pro- 
prietário em  altos  berros  —  «mais,  qu'cst  cc 
qiLC  c'cst  çà?  y  .  .  via  is,  qn'cst  cc  que  vous 
faitcs?  .  .  .  — »  c  por  pouco  não  desanca  á 
cacetada  o  inexperiente  viajante.  .  . 

No  Japão,  os  banhos  públicos  foram  em 
todos  os  tempos  franqueados  a  todas  as  pessoas, 
sem  distincção  de  sexos.  Apenas  mui  moderna- 


212 


nienie,  por  mexericos  da  nossa  moralissima 
civilisaçáo  Occidental,  as  auctoridades  japo- 
nezas  entenderam  decretar,  nas  cidades  e  al- 
deias mais  frequentadas,  a  separação  de  sexos, 
íicando  os  homens  para  um  lado  e  as  mulheres 
para  o  outro  lado.  Eu  ainda  sou  da  época  em 
que  tal  separação  consistia  n'um  simples 
cordel ;  de  modo  que  o  \'iajante  recemchegado 
a  Yokohama,  e  levado  invariavelmente  pelo 
guia  matreiro  a  uma  casa  de  banhos  públicos, 
\ia  n'um  S(3  relance  de  olhos  o  jucundo  es- 
pectáculo do  grupo  de  homens  que  se  banha- 
Níim  e  do  grupo  de  mulheres  que  se  banha- 
\am. .  .  separados  por  um  fio  de  pudor.  O  fio 
já  foi  substituido  por  uma  scMida  parede;  isto 
nas  cidades  e  pontos  mais  frequentados,  por- 
que nas  aldeias  e  nos  banhos  de  todas  as 
hospedarias  ainda  persiste  a  mesma  innocente 
promiscuidade  dos  velhos  tempos. 

Ainda  ha  poucas  semanas  um  missionário 
inglez  contava  pela  imprensa  o  seguinte  caso 
divertido.  Achava-se  elle,  não  sei  como,  to- 
mando o  seu  banho  em  certa  hospedaria,  mo- 
destamente recolhido  a  um  canto  do  recinto; 
a  distancia,  uma  familia  Japoneza  deliciava-se 
em  abluções,  dando  as  costas  ao  reverendo; 
eis  que,  casualmente,  o  chefe  de  familia  vol- 
ta-se,  fita  o  inglez,  reconhece  n*elle  um  amigo. 


213 


seguindo-se  as  intermináveis  cortezias  prover- 
biaes ;  o  japonez  não  quer  perder  o  ensejo  de 
apresentar  sua  faniilia  ao  missionário,  \indo 
então  cada  qual  por  hierarchias,  —  primeiro  a 
esposa,  depois  as  filhas,  depois  as  creanças, — 
prestar  suas  homenagens  ao  estrangeiro,  na 
doce  toilcttc  de  nymphas  encharcadas,  alvejan- 
tes de  espuma  de  sabão. 

Ha  alguns  dias,  eu  contava  este  caso,  lido 
n'um  jornal,  a  um  amigo  europeu ;  este,  que 
acabava  de  chegar  de  Matzuyama,  onde  em 
serviço  official  fora  conferenciar  com  os  presos 
russos,  narrou-me  por  seu  turno  que  na  \'es- 
pera,  tomando  o  seu  banho  matinal,  encon- 
trara o  recinto  regorgitando  de  freguezes; 
dentro  da  tina,  as  damas  cortezmente  conche- 
gavam-se  entre  si,  faziam  logar,  acenando-lhe 
que  entrasse,  pois  ainda  havia  espaço.  .  . 

Ora,  digani  o  que  quizerem  do  banho  ja- 
ponez; sobretudo  achem-no  em  contradicção 
com  os  nossos  hábitos;  mas  não  queiram  por 
elle  concluir  que  seja  impudico  o  povo  japo- 
nez. ()  povo  japonez  não  é  impudico. 


XIX 


26    de   outubro   de  1904 


o  incidente  da  esquadra  russa  do  Báltico  com  os  pesca- 
dores inglezes  —  Noticias  do  theatro  da  i^uerra  — 
("alculos  do  moiticinio  havido  nos  dous  exércitos 
combatentes  —  Previsão  de  novos  horrores  —  Enthu- 
siasmo  pchis  victorias  japonezas — Morte  de  Lafca- 
dio  Hearn — A  emigração  japoneza  transformada 
cm  trafico  de  escravatura  —  Ausencia.de  cruzadores 
portuguezes  nos  portos  do  Japão  —  Compatriotas 
que  nos  téem  visitado. 


T^scAssKz  de  noticias  do  theatro  da  guerra. 
As  attenções  aqui,  e  certamente  com 
mais  razão  na  Europa,  occupam-se  ha  dous 
dias  do  extraordinário  ultrage  perpetrado  pela 
esquadra  russa  do  Báltico  contra  a  nação 
ingleza,  quando,  apenas  sahida  das  aguas 
nacionaes,  encontra  no  mar  do  Norte  uma 
esquadrilha  de  pescadores  inglezes,  sobre  a 
qual  faz  fogo,  metvendo  no  fundo  alguns  bar- 
cos, matando  \'arios  tripulantes,  ferindo  muitos 
e  proseguindo  impa\'ida  na  sua  derrota,  sem 
se  importar  de   recolher  os  náufragos  agoni- 


21 


santes.  Pretende-se  explicar  agora  esta  inqua- 
lificável selvageiia  pelo  tacto  de  terem  os  ofii- 
ciaes  da  esquadra  russa  imaginado  que  os  japo- 
nezes  lhe  armavam  algiinia  cilada,  collocando 
minas  submarinas  no  seu  trajecto.  Admittamos 
a  explicação,  que  não  \em  de  molde  a  exaltai' 
os  brios  da  marinha  do  czar,  á  qual  o  medo 
leva  já  a  taes  desmandos  no  inicio  de  uma 
viagem,  que  exige  pelo  menos  três  longos 
mezes  para  chegar  ao  seu  termo;  devemos, 
pois,  contar  com  uma  larga  série  de  estranhas 
peripécias.  Em  todo  o  caso,  a  insólita  proeza, 
tendente  a  cercear  ainda  mais  as  escassas 
sympathias  que  a  causa  russa  \'ai  merecendo 
no  conceito  mundial,  ha-de  custar-lhe  cara,  á 
Kussia,  devendo  contar-se  que  a  Inglaterra, 
ferida  nos  sclis  interesses  e  no  seu  orgulho, 
não  se  demorará  em  exigir  uma  prompta 
reparação,  que  redundará  pro\'a\^elmente  em 
desculpas  diplomáticas,  n'uma  lai-ga  indemni- 
sação  pelas  perdas  materiaes  softridas  e  talvez 
no  desembarque  immediato  dos  officiaes  que 
ordenaram  o  bombardeamento. 

Além  do  interesse  ligado  ao  sensacional 
acontecimento  que  acabo  de  apontar,  a  im- 
prensa local  \'ae  in\'ent'iriando  por  miúdo  os 
detalhes  das  ultimas  duas  grandes  batalhas  de 
Liao-Vang   e   de    Shaho.    Calcula-se    que    as 


2l6 


torças  russas. eram  em  Shaho  de  cerca  de 
300:000  homens  e  as  japonezas  de  250:000 
ou  280:000.  As  baixas  dos  russos  aproxi- 
mam-se  de  70:000,  incluindo  uns  25:000 
mortos;  as  baixas  japonezas  foram  muito 
inferiores,  indicando-se  o  numero  total  de 
13:000,  posto  que  não  se  conte  ainda  com 
informações  rigorosas.  Lamentam  alguns  que 
o  marechal  Oyama  não  podésse  conseguir, 
cm  Liao-Vang  ou  depois  em  Shaho,  envolver 
o  exercito  russo,  obrigando-o  a  uma  capitula- 
ção geral,  que  poria  provavelmente  fim  á  con- 
tenda. Seria  isto  certamente  muito  bom, 
mas  não  se  deve  desejar  o  impossivel:  os 
nipponicos,  manobrando  em  péssimo  campo, 
detidos  a  cada  passo  pelas  obras  de  defeza  do 
inimigo,  esfalfados  e  esfomeados  em  virtude 
de  combates  que  duraram  muitos  dias  seguidos, 
desenvolveram  prodigios  de  heroicidade,  ganha- 
ram penosissimamente  duas  grandes  batalhas; 
francamente,  seria  loucura  exigir-se  mais 
ainda.  E  como  envoher  e  aprisionar  em  peso 
o  exercito  de  Kuropatkine,  quando  é  certo 
que  as  habilidades  estratégicas  do  generalis- 
simo  russo  se  concentram  particularmente  e 
antecipadamente  em  preparar  a  retirada  se- 
gura, de  modo  que,  quando  os  japonezes 
atacam  a  \anguarda,  já  a  rectaguarda  volta 


217 


costas  e  ganha  a  salvo  os  caminhos  distan- 
tes ?  .  .  . 

Fazendo  os  cálculos  desde  o  começo  do 
conílicto,  devem  os  japonezes  ter  soffrido  umas 
100:000  baixas  e  os  russos  o  dobro  d'este 
numero,  pelo  menos.  Além  d'estas  300:000 
victimas,  imagine-se  o  numero  de  soldados 
derrubados  pelas  doenças,  pelas  epidemias, 
sendo  geralmente  admittido  que  em  uma  cam- 
panha as  baixas  por  doenças  orçam  em  regra 
pelo  dobro  ou  triplo  dos  que  cabem  feridos 
pelas  balas  do  inimigo.  Estas  ligeiras  referen- 
cias bastam  para  se  fazer  uma  leve  ideia  dos 
tremendos  horrores  da  guerra  actual,  que  pro- 
mette  ser  a  mais  sangrenta  na  historia  moderna 
das  nações.  E'  medonho  o  quadro  e,  infeliz- 
mente, não  se  prevê  quando  este  estado  de 
cousas  cessará. 

A  quem  cabe,  finalmente,  a  responsabilidade 
de  tão  grande  matança?  Seria  mui  difíicil  res- 
ponder a  tal  interrogação  e  longas  as  con- 
siderações que  viriam  a  propósito.  No  entre- 
tanto, registe-se  mais  uma  vez  que  o  Japão 
trabalhava  pela  paz ;  a  Rússia  trabalhava  pelos 
seus  interesses  ambiciosos,  sem  admittir  a 
possibilidade  de  uma  guerra,  orgulhosa  do  seu 
nome,  desdenhosamente  indifferente  ás  con- 
tinuas    reclamações    do     pequeno    povo    de 

10 


2l8 


Nippon,  que  ella  \'ia  de  longe  como  um  car- 
dume de  formigas,  sem  direito  a  ser  escutado 
nas  suas  queixas;  as  grandes  nações  da  Fai- 
ropa  por  seu  lado,  todas  desconsideradas  pelo 
colosso  no  respeitante  aos  accordos  realisados 
a  propósito  da  evacuação  da  China,  desin- 
teressavam-se  da  responsabilidade  que  lhes 
cabia,  não  só  não  fazendo  causa  commum 
com  o  Japão,  mas  pondo-se  de  lado,  embas- 
bacadas perante  os  acontecimentos  com  um 
interesse  alvar  de  saloios  que  assistissem  pela 
primeira  vez  a  uma  representação  theatral.  .  . 
e  agora  que  a  gente  lhes  ature  as  tiradas 
philosophicas !  Com  tacs  elementos,  a  diplo- 
macia, sempre  acrimoniosa  nos  seus  processos, 
ateou  o  incêndio  latente  e  assim  rebentou  a 
guerra !  .  .  . 

—  Um  amigo  meu,  lino  observador,  que 
acaba  de  regressar  ao  Japão  de  uma  viagem 
pelos  Estreitos  e  índia  Ingleza,  informa-me 
ter  notado  nas  populações  indigenas  —  ma- 
laios, singalezes,  indús  e  outros  —  um  franco 
interesse  pelos  actuaes  acontecimentos  do 
Extremo-Oriente  e  o  maior  enthusiasmo  pelas 
successivas  victorias  dos  japonezes.  O  facto  é 
significativo.  A  população  asiática  obserxa 
com  admiração  e  com  orgulho  que  um  povo 
irmão,   filho  da  mesma  Ásia,  ouse  erguer-se 


219 


contra  uma  potencia  europeia,  l(ji;rando  obter 
gloriosas  \'antagens  durante  uns  longos  oito 
mezes  de  conflicto.  Adi\'inha-se  como  que  um 
renascimento  platónico,  o  desabrochar  de  uma 
\'aga  esperança  de  liberdade  e  de  poderio 
n'aquelles  tantos  milhões  de  almas,  ha  tão 
longos  annos  subjugadas  á  dura  tutela  da 
raça  branca.  Um  tal  sentimento  é  antes  de 
tudo  enternecedor,  quando  se  pense  nos  ter- 
ri\'eis  Hagellos  —  fome,  epidemias,  despotis- 
mo, —  que  vão  esmagando,  como  uma  con- 
demnação  do  céo,  aquelle  enorme  rebanho  da 
familia  humana ;  mas  quem  poderá  affirmar 
que  elle  não  conduza,  n\im  periodo  mais  ou 
menos  longo,  em  séculos  talvez,  á  realisação 
de  uma  estupenda  evolução  social,  a  renas- 
cença da  Ásia?  .  .  .  K  vejo  n'elle  a  possibili- 
dade de  effeitos  beni  menos  remotos,  de  um 
alcance  prático  importantíssimo,  como  uma 
corrente  de  auxílios  pecuniários,  quando  o 
Japão  d^elles  carecesse,  que  xiessse  da  parte 
dos  riquíssimos  commerciantes  indígenas,  que 
não  escasseiam  nos  empórios  de  Bombaim^ 
de  Calcuttá  e  em  outros  muitos  pontos  do 
mesmo  vastíssimo  continente. 

—  Aquelles  que  se  interessam  pela  littera- 
tura  exótica  ingleza  acabam  de  perder  em 
I-afcadio   Hearn,   ou   em   Koizumi  Vakumo  — - 


220 


como   quizerem,  —  um  dos  seus  mais  primo- 
rosos cultores. 

Hearn  nasceu  em  1850,  em  uma  das  ilhas 
Jónicas,  de  pae  irlandez  e  de  mãe  grega.  Fi- 
cando muito  cedo  orphão  de  pae,  foi  mandado 
educar  n'um  coUegio  de  jesuitas  em  França. 
Pouco  depois  morreu-lhe  a  mãe,  parecendo 
que  os  taes  jesuitas  se  apossaram  com  pouca 
lisura  dos  bens  d'esta;  em  todo  o  caso  o  po- 
bre Lafcadio  foi  enviado  para  a  America  a 
bordo  de  um  navio  de  emigrantes,  chegando 
ao  seu  destino  apenas  com  o  fato  que  vestia 
sobre  o  corpo.  Na  America  iniciou  uma  vida 
de  inclemências,  dormindo  pelas  ruas  por  não 
ter  outro  abrigo,  desprovido  dos  mais  Ínfimos 
recursos,  até  que  finalmente  um  impressor 
começou  a  prestar-lhe  alguma  protecção. 
Hearn  trabalhou  primeiramente  também  como 
impressor,  foi  depois  jornalista,  passou  á  co- 
lónia franceza  da  Martinica,  onde  se  demorou 
cerca  de  dous  ou  três  annos.  Em  1890,  com 
quarenta  annos  de  idade,  apparece  no  Japão, 
mandado  por  um  editor  americano,  com  o  fim 
de  colher  elementos  para  uma  obra  descri - 
ptiv-a  d'este  paiz  ;  mas,  por  um  moti\'0  qual- 
quer, indispõe-se  com  o  artista  desenhador 
que  o  acompanhava  e  quebra  o  seu  contracto. 
No  Japão,   foi  jornalista  em   Kobe,  professor 


221 


de  inglez  nas  cidades  provincianas  de  Matsue 
e  Kuniamoto  e  íinalmente  professor  de  litte- 
ratura  ingleza  na  Universidade  imperial  de 
Tokyo,  cargo  que  exerceu  até  ha  poucos 
mezes.  Hearn,  após  alguns  annos  de  residên- 
cia no  paiz  do  Sol  Nascente,  casou-se  com 
uma  japoneza,  da  qual  teve  quatro  lilhos, 
naturalisando-se  japonez  com  o  nome  de 
Koizumi  Yakumo. 

De  débil  constituição  physica,  abalada 
ainda  certamente  pela  dura  existência  da 
sua  juventude,  Koizumi  achava-se  ha  algum 
tempo  doente,  recolhido  na  sua  vivenda  japo- 
neza de  Tokyo,  rodeada  de  um  delicioso 
jardim;  de  um  temperamento  ner\'Oso  e  ex- 
cêntrico, farto  do  convívio  dos  homens,  recu- 
sára-se  absolutamente,  n'estes  últimos  tem- 
pos, a  quaesquer  relações  com  a  numerosa 
colónia  estrangeira  da  grande  capital.  Na 
manhã  de  26  de  setembro,  após  um  ligeiro 
passeio  no  seu  jardim,  morria  quasi  repenti- 
namente; o  enterro  realisou-se  em  conformi- 
dade dos  ritos  buddhistas. 

Koizumi  Yakumo  adorou  a  sua  pátria 
adoptiva,  conseguindo  também,  pelos  seus 
livros,  que  muitos  a  adorassem  de  longe. 
Intelligencia  superior,  temperamento  impres- 
sionavel  e  delicadíssimo   de   artista,  delicioso 


222 


no  estylo,  escreveu  numerosos  volumes  sobre 
o  Japão,  os  quaes  passam  por  Ser  as  mais 
finas  jóias  litterarias  de  tudo  que  se  tem 
publicado  como  impressionismo  nipponico. 
Cito  as  suas  principaes  obras,  convidando 
os  meus  leitores  a  diligenciarem  conhecel-as: 
«Glimpses  of  unfamiliar  Japan  »  (1894),  «  Out 
of  the  Earth»  (1895),  «Koroko»  (1896),  «Glea- 
nings  in  Buddha  F^ields »  (1897),  «  Exotics 
and  Retrospections»  (1898),  « Ghosth' Japan » 
(1899),  « Shadewings  »  (1900),  «  A  Japanese 
Miscellany»  (1901),  <sKotto  orjapanese  Mrius  » 
(1902),  «Kwaidan»  (1903). 

—  No  decurso  d'estas  correspondências 
tenho-me  por  vezes  referido  ao  antigo  tra- 
fego de  emigrantes  chinezes  feito  de  Macau 
para  a  America,  e  ao  moderno  e  idêntico  tra- 
fego feito  geralmente  por  Hong-Kong,  desti- 
nando-se  apenas  os  culis  chinezes  a  pon- 
tos differentes  do  mundo.  O  assumpto,  com 
a  recente  tentativa  de  introducção  de  traba- 
lhadores chinezes  na  Africa  do  Sul,  renova 
de  actualidade  e  de  interesse. 

É  notório  como  todos  os  viajantes  estran- 
geiros —  francezes,  inglezes,  allemães  e  outros.; 
■ — quando  se  referem  nos  seus  li\'ros  a  Ma- 
cau, recordam,  quasi  sem  excepção,  os  me- 
donhos    horrores    do    commercio    dos    culis 


223 


exercido  na  nossa  velha  colónia  ha  algumas 
dezenas  de  annos;  commercio  rastejando  pela 
escravatura  amarella,  resumindo-se  os  pro- 
cessos em  arrebanhar  os  chinezes  do  interior 
com  falsas  promessas,  enciirralal-os  nos  fa^ 
mosos  barracões  de  Macau,  detendo-os  alli 
como  prisioneiros  até  seguirem  para  o  Perií 
ou  para  Cuba,  á  força,  em  navios  vindos 
especialmente  para  esta  mercancia.  A  lamuria 
platónica  dos  mesmos  viajantes  não  se  poupa 
então  a  variações  de  rhetorica  plangente, 
aproveitando  o  ensejo  para  nos  mimosearem 
com  as  costumadas  ferroadas,  como  se  pre- 
tendessem fazer  dos  portuguezes  o  povo  mais 
scelerado  do  universo.  Os  inglezes,  a  mais, 
ufanam-se  de  terem  sido  os  campeões  de  uma 
cruzada  moralisadora,  conseguindo,  pelos  seus 
esforços,  acabar  com  o  trafego  de  Macau;  e 
orgulham-se  das  leis  de  emigração  estabele- 
cidas em  Hong-Kong,  permittindo  apenas  a 
sabida  voluntária  d'aquelles  que  pretendem  ir 
longe  exercer  actividades. 

Ora,  n'estas  mesmas  correspondências,  eu 
tenho  procurado  fazer  sentir  que  sorrio  de 
taes  clamores  de  humanitarismo,  parecen- 
do-me  que  o  homem  é  o  mesmo  em  toda  a 
parte,  louro  britannico  ou  moreno  lusitano; 
af!1gurando-se-me   que   entre   os  dous  syste- 


224 


mas  de  emigração,  por  Hong-Kong  e  por 
Macau,  as  diíTerenças  não  são  grandes.  O 
que  os  tempos  trazem  incontestavelmente,  é  o 
supremo  esmero  na  arte  de  disfarçar  as  irre- 
gularidades, de  mascarar  as  podridões,  de 
dotirar  as  pílulas,  servindo-me  de  uma  locu- 
çãO"  beiti  nossa  e  cheia  de  profunda  philoso- 
phia;  é  n'isto  de  saber  dourar  a  pílula  que 
os  inglezes  e  outros  se  téem  mostrado  bem 
superiores  a  nós,  na  escravatura  chineza  como 
em  muitos  outros  ramos  da  chafurda  social; 
—  é  um  mérito,  não  contesto,  não  de  ordem 
humanitária,  mas  de  ordem  esthetica,  e  como 
tal  digno  de  applauso.  Claro  está  que  os 
meus  commentarios  amargos  hão-de  ter  sido 
taxados  de  azedumes  de  espirito  resequido, 
observações  de  mysanthropo  impenitente,  em 
constante  conflicto  com  a  sociedade  e  seus 
progressos ;  mas  cahe-me  agora  de  improviso, 
sobre  as  mãos  trémulas  de  commoção,  um 
jornal  inglez,  por  consequência  insuspeito, 
que  vem  dar  alguma  força  aos  meus  apartes 
desabridos. 

Resumo  os  factos.  Ha  algumas  semanas, 
um  culí  em  Hong-Kong,  pretendendo  fugir 
pela  varanda  de  uma  casa  onde  se  achava 
detido,  cahiu  desastradamente  á  rua,  falle- 
cendo  pouco  depois.  Intervém  a  policia,  passa 


225 


busca  á  casa,  encontra  alli  encerrados  e  reti- 
dos por  meio  de  maus  tratos  e  ameaças  vários 
indivíduos,  mulheres  e  homens,  todos  desti- 
nados a  serem  exportados  como  emigrantes 
voluntários  pelo  vapor  « Catherina  Apear» 
(poético  nome!),  que  devia  largar  do  porto 
no  dia  seguinte.  Km  resultado  d'esta  inter- 
venção casual  da  policia,  três  chinezes,  pro- 
prietários ou  seus  representantes  da  casa 
referida,  são  conduzidos  ao  tribunal  da  coló- 
nia e  alli  julgados.  O  agente  do  ministério 
publico  demora-se  em  explicar  o  assumpto, 
demonstrando  que  uma  vasta  instituição  se- 
creta existe  e  tem  existido  na  colónia,  dada 
ao  mister  de  agarrar  chinezes  ignorantes  e 
incautos  e  de  expedil-os  á  força  para  fora, 
como  emigrantes.  Os  regulamentos  de  emi- 
gração do  paiz  impõem  aos  emigrantes  o 
preceito  de  virem  prestar  declarações  e  infor- 
mar do  seu  propósito  na  capitania  do  porto; 
mas,  em  taes  casos,  os  que  devem  partir 
acham-se  encerrados  em  alguma  das  casas 
ao  serviço  doeste  trafego,  indo  em  vez  d'elles 
uns  impostores  quaesquer,  cimiplices  no  crime 
e  provavelmente  sempre  os  mesmos,  prestar 
declarações,  naturalmente  satisfactorias. 

Contei  já,  em  outra  carta,  o  caso  da  absol- 
vição dada  por  um  juiz   de    Hong-Kong,  ha 


226 


30  annos,  a  um  ciUí  íligido  de  uni  navio  que 
o  levava  á  força  para  a  America,  pretendendo 
os  inglezes  que  por  este  facto  acabara  o  ne- 
fando trafego  na  nossa  colónia  de  Macau.  Pois 
agora  o  juiz  do  mesmo  tribunal  em  Hong- 
Kong  condemna  os  três  chinezes  referidos  a 
prisão  com  trabalhos  públicos,  durante  18  me- 
zes  para  dois,  e  seis  mezes  para  o  terceiro.  Ha 
ainda  a  notar  a  circumstancia  curiosa  de  ter 
pretendido  o  agente  do  ministério  publico  pro- 
seguir  em  minúcias,  tendentes  a  demonstrar-se 
positivamente  que  a  escravatura  amarella  se 
exerce  desde  longos  annos  em  Hong-Kong  em 
larga  escala;  mas  o  juiz  cortou-lhe  a  palavra, 
advertindo-o  de  restringir-se  aos  pormenores 
do  processo.  Sirva  isto  para  abonar  sobre  a 
lenidade  das  vistas  actuaes  da  justiça  ingleza 
a  respeito  do  trafego  dos  ciilís,  que  tanto  a 
impressionou  n'outras  eras,  e  para  nos  conven- 
cermos de  que  a  escravatura  amarella  transitou 
de    Macau   para  Hong-Kong,  onde  prospera. 

Nota  importante:  recommenda-se  aos  via- 
jeiros  litteratos,  propensos  a  descripções  sen- 
sacionaes,  que  cessem  de  fallar  dos  barracões 
de  Macau,  por  antiquados,  para  se  occuparem 
dos  modernos  boardíng  houscs  de  Hong-Kong. 

—  Quasi  que  se  vão  perdendo  as  esperan- 
ças, entre  portuguezes  aqui  residentes,  de  que 


22/ 


algum  dos  nossos  criizadores  em  serviço  no 
Extremo-Oriente  appareça  por  estes  portos. 
Continua  quasi  nullo  o  commercio  do  nosso 
paiz  com  o  Japão,  sendo  provav^el  que  a 
guerra  haja  por  agora  esfriado  algumas  tenta- 
tivas incipientes  da  parte  de  dous  ou  três  dos 
nossos  commerciantes ;  em  todo  o  caso  algum 
vinho  do  Porto  e  espumoso  se  vende,  encon- 
trando-se  também  nas  lojas  latas  de  sardinhas 
portuguezas.  .  .  importadas  por  chinezes.  No 
entretanto,  o  interesse  dos  portuguezes  por 
este  paiz  está-se  manifestando  por  outra  forma, 
não  inútil  —  visitando-o  quando  se  lhes  offe- 
rece  opportunidade :  —  é  assim  que  muitos 
funccionarios,  que  vêem  do  reino  para  Macau 
ou  ao  reino  regressam  vindos  d'aquella  nossa 
colónia,  preferem  o  caminho  da  America,  que 
lhes  proporciona  ensejo  de  relancearem  esta 
terra,  que  tanta  curiosidade  está  despertando 
no  mundo  civnlisado.  Registo  a  passagem  por 
aqui,  n 'estes  últimos  mezes,  dos  snrs.  juiz 
Magalhães  e  familia,  chefe  de  serviço  de  saúde 
Gomes  da  Silva,  director  de  obras  publicas 
Abreu  Nunes,  chefe  da  repartição  militar  Che- 
das  SanfAnna,  officiaes  da  armada  Barros  e 
Penalva  e  outros.  Bem  hajam. 


XX 

10  de   novembro  de  1904 

O  annivcrsario  do  imperador;  algumas  divagações  sobre 
a  figura  d'este  —  Noticias  da  guerra;  a  defeza 
de  Stoessel  e  a  esquadra  do  Báltico;  opinião  de 
um  funccionario  japonez —  Vista  retrospectiva  sobre 
o  inicio  das  relações  russo-nipponicas;  informa- 
ções curiosas  a  tal  respeito  —  Inauguração  da  esta- 
tua do  marquez  de  Ito. 

"jVío  dia  3  do  corrente,  anniversario  natalicio 
do  soberano,  eftectuaram-se  as  comme- 
morações  officiaes  do  estyl ) ;  nas  grandes  cida- 
des as  manifestações  populares,  favorecidas 
por  magnifico  tempo,  offereciam  este  anno 
mais  accentuado  esplendor,  como  facilmente 
se  imagina. 

O  imperador  Mutsuhito  nasceu  em  3  de 
novembro  de  1852,  entrando  agora  no  seu 
53.^  anno  de  existência.  Subiu  ao  throno 
quando  tinha  16  annos;  no  espaço  dos  37 
annos  do  seu  reinado,  o  Japão  tem  passado 
por  maiores  e  mais  notáveis  transformações 
politicas  do  que  nenhuma  outra  nação  em  tão 
curto     periodo.    As    esquadras    estrangeiras 


229 


íicercani-se  do  mysterioso  império  do  Sol 
Nascente,  instando  por  tratados  de  commercio ; 
o  Japão,  fechado  ao  convivio  mundial  durante 
longos  tempos,  vè-se  impellido  a  abrir  as  suas 
portas  aos  intrusos;  o  dualismo  politico, 
constituído  pelo  imperador,  entidade  divina 
mas  não  deliberativa,  e  pelo  shogun  ou  ge- 
neralíssimo, que  governa  em  seu  nome,  cessa, 
desapparecendo  o  shogun  e  re\'ertendo  o  in- 
teiro mando  ao  soberano ;  a  capital  do  império 
é  transferida  de  Kyoto  para  Tokyo;  é  dissol- 
vido o  feudalismo ;  promulga-se  uma  Constitui- 
ção; adoptam-se  com  fervor  todas  as  ideias 
occidentaes;  as  actividades,  ofrtciaes  e  parti- 
culares, moldam-se  pelos  processos  europeus ; 
o  Japão  declara  a  guerra  á  China  e  fica  ven- 
cedor; a  sua  importância  cresce  de  dia  para 
dia,  prodigiosamente,  levando-o  finalmente  a 
occupar  um  logar  proeminente  na  familia 
das  nações ;  por  ultimo,  o  Japão  declara  a 
guerra  á  Rússia,  rompem-se  hostilidades,  co- 
brem-se  até  hoje  de  gloria  os  soldados  nippo- 
nicos,  causando  a  admiração  do  mundo  in- 
teiro. .  . 

O  imperador  Mutsuhito  não  é  hoje  o  caval- 
Iciro  esbelto  que  as  gra\airas  d::s  revistas 
locaes  se  aprazem  em  reproduzir  e  divulgar 
nas   suas   paginas.    S.   M.   apresenta  visíveis 


230 


indícios  de  fadiga,  como  se  a  existência  lhe 
vergasse  ao  peso  das  miiltiplices  emoções  qiie 
cçrtamente  a  téem  agitado  desde  os  seus  mais 
tenros  annos.  No  entretanto,  o  vulto  do 
monarcha  impõe-se  ao  respeito  geral  e  im- 
pressiona profundamente  a  quem  o  relanceia; 
o  seu  aspecto  sereno  e  firme  é  bem  o  do 
soberano  d'este  brilhante  império  asiático,  ainda 
em  parte  en\^ol\Mdo  em  mysterio,  glorificado 
pela  lenda  e  admirado  pelos  seus  progressos 
gigantes.  O  imperador  é  adorado  pelo  seu 
povo;  o  Nippon  guarda  ainda  a  feição  de  uma 
grande  familia  patriarchal,  da  qual  natural- 
mente o  soberano  é  o  chefe  supremo,  o  pai; 
Mutsuhito  é  certamente  hoje,  de  entre  todos 
os  imperadores  e  todos  os  reis  do  mundo  in- 
teiro, o  mais  querido  dos  seus  vassallos. 

A  guerra  que  se  está  ferindo,  vem  ainda 
enaltecer  a  figura  do  monarcha  do  Japão,  na 
hora  presente.  Elle  não  é  o  auctor  d'ella,  os 
auctores  são  os  seus  ministros,  ou  antes  todos 
os  japonezes,  porque  todos  a  queriam,  na 
defeza  dos  interesses  da  pátria  c  da  honra 
nacional  ameaçada;  mas  é  o  imperador  que 
assume  toda  a  responsabilidade,  decretando-a. 
A  guerra  enluta  já  o  Japão,  tendo  prostrado 
muitos  dos  seus  filhos;  mas  também  o  cobre 
de  gloria  e  chama  sobre  elle  a  admiração  do 


^31 


mundo  inteiro.  A  gucM-ra  c  unia  tremenda 
calamidade,  sim,  mas  ainda  não  imprescindível 
no  estado  actual  das  civilisaçòes.  Ku  acabo 
de  ler  o  ultimo  volume  do  mvstico  Tolstoi, 
reterindo-se  precisamente  íU)  sangrent<3  confli- 
cto  d'este  momento.  As  crenças  do  velho 
apostolo  da  paz  merecem  o  nosso  respeito, 
como  o  merecem  todas  as  crenças,  mas  a  sua 
lógica  não  con\'ence.  A  guerra,  sobretudo 
de  defeza,  é  necessária,  emquanto  houver 
ambições ;  a  guerra  é  o  effeito,  as  ambições 
são  a  causa;  acabe-se  primeiro  com  a  causa, 
se  é  possível,  tornando  os  homens  bons.  Mas 
quem  pode  classificar  de  utopias,  no  momento 
presente,  o  emblema  da  bandeira  nacional,  o 
amor  da  pátria  ?  e  condemnar  a  disciplina  e  a 
coragem  dos  soldados?  .  .  .  Utopias.-  talvez; 
mas  o  inteiro  edifício  social,  a  que  se  abriga 
a  pobre  humanidade,  não  é  acaso  todo  con- 
struído de  utopias?  ...  O  que  seria  para  dese- 
jar é  que  a  consciência  das  nações,  distin- 
guindo o  justo  do  injusto,  as  impellisse  a 
virem  entrepòr-se  entre  os  combatentes,  decla- 
rando-se  pelo  lado  do  opprimido ;  mas  não 
vêem.  .  .  Philosophos  da  paz:  lembrai-vos  de 
que,  de  todas  as  grandes  nações  do  mundo, 
uma  só  realisou  ainda  o  ideal  em  qtio  persistis, 
odiando  e  desprezando  a  guerra,  tendo  em  lior- 


232 


ror  os  exércitos  e  as  esquadras,  eximindo-se 
aos  Ímpetos  fogosos  do  patriotismo,  prestando 
culto  exclusivo  aos  seus  usos  patriarchaes, 
á  familia,  ás  actividades  pacificas;  esta  na- 
ção é  a  China;  e  sabeis,  sem  que  eu  vol-o 
recorde,  quanto  á  China  tem  custado  este 
grau  de  civilisação  certamente  superior,  vendo- 
se  escarnecida  pelo  mundo  civilisado  em  peso, 
invadida  por  legiões  de  cubiçosos,  espoliada 
dos  seus  dominios,  joguete,  emfim,  da  alta 
politica  dos  Estados !  .  .  . 
s.  Ponhamos  agora  de  parte  divagações  tran- 
scendentes. Em  homenagem  ao  dia  3  de  novem- 
bro, Banzai  pelo  imperador  do  Japão  e  pelas 
glorias  nipponicas,  e  também  votos  ferventes 
por  um  prompto  termo  das  hostilidades !  .  .  . 

—  Poucas  noticias  da  guerra. 

Para  os  lados  de  Mukden  déram-se  alguns 
encontros  entre  os  combatentes,  parece  que 
favoráveis  ao  nippo nicos.  Estamos  longe  de 
prever  os  acontecimentos  que  se  seguirão. 

Muita  gente  contava  que  Porto  Arthur 
cahisse  nas  mãos  dos  sitiantes  anteriormente 
ao  dia  3  de  novembro;  tal  não  succedeu, 
porém.  No  entretanto,  consta  que  os  ataques 
se  téem  repetido  insistentemente,  começando  a 
ser  empregados  ha  alguns  dias  canhões  de 
grande  poder  destructivo,   que  occasionaram 


I 


233 


já  gravissimas  avarias  na  praça.  A  defeza 
opposta  pelo  general  Stoessel  tem  sido  alta- 
mente briosa,  e  é  incontestável  o  relevantis- 
simo  serviço  qtie  o  \"alcnte  soldado  está  pres- 
tando á  causa  do  seu  paiz,  immobilisando  em 
frente  de  Porto  Arthur  toda  a  esquadra  de 
Togo  e  um  importante  corpo  de  exercito  ini- 
migo, cujas  actividades  se  requerem  n'outros 
pontos.  Julga-se  em  todo  o  caso  que  a  temi\'el 
praça  de  guerra  não  permanecerá  por  longas 
semanas  nas  mãos  dos  moscovitas. 

Deixou  de  prender  aqui  as  attenções  "O 
altamente  ridiculo  incidente  que  se  deu  entre 
a  esquadra  riissa  do  Báltico  e  os  pescadores 
inglezes  do  mar  do  norte.  A  esquadra  segue 
o  seu  rumo,  segundo  consta,  e  aqui  chegará 
um  dia,  se  chegar.  .  . 

E  nada  que  nos  dê  a  esperança  de  um 
termo  próximo  a  esta  sangrenta  campanha.  .  . 
A  opinião  de  um  distincto  funccionario  japo- 
ncz,  exposta  ha  algum  tempo  na  imprensa, 
deve  ser  tomada  em  conta  n'este  assumpto. 
Eil-a  em  resumo,  hnaginemos  que  o  Japão 
continua  victorioso ;  em  todo  o  caso,  a  Rússia 
licará  sempre  livre  de  só  pedir  a  paz  quando 
mui  bem  o  entender,  isto  pelas  condições 
geographicas  especiaes  dos  dois  belligerantes, 
quando  não  por  outras  causas ;  mas  o  Japão 


234 


não  deverá  seguir  indefinidamente  a  sua  mar- 
cha triumphal ;  antes  lhe  convém  parar,  forta- 
lecer-se  no  limite  que  escolheu,  e  esperar  os 
acontecimentos.  Supponhamos  agora  a  outra 
hypothese,  isto  é,  que  desanda  a  roda  da  for- 
tuna e  que  os  japonezes  começam  soffrendo 
duros  revezes ;  o  Nippon  deve  então  imme- 
diatamente  provocar  a  quebra  da  neutralidade 
da  China  e  que  ella  se  levante,  com  armas  na 
mão,  em  seu  favor ;  a  conflagração  será  tama- 
nha, que  todas  as  nações  occidentaes  terão 
de  inter\'ir  sem  demora,  em  defeza  dos  seus 
próprios  interesses,  do  que  resultará  fatalmente 
aquillo  mesmo  por  que  os  japonezes  pelejam 
—  a  repressão  do  alastramento  moscovita. 
Pôde  muito  bem  ser  que  assim  aconteça;  aguar- 
demos o  desenvolvimento  do  drama,  que  nos 
reserva,  porventura,  estupendos  desenlaces !  .  .  . 
Para  aquelles  que  hajam  seguido  com  in- 
teresse as  ultimas  phases  das  relações  dos  rus- 
sos com  os  japonezes  até  ao  trágico  desfecho 
a  que  estamos  assistindo,  é  interessante  lan- 
çar vistas  mais  distantes  sobre  o  inicio  e  suc- 
cessivas  peripécias  de  taes  relações;  leva-nos 
este  estudo  a  registar  uma  constante  intenção 
aggressi\'a  da  parte  dos  russos  para  com  os 
seus  visinhos  nipponicos,  não  de  molde  a  cimen- 
tar sjnnpathias  sociaes  entre  os  dous  povos. 


235 


A  primeira  vez  que  uns  e  outros  entraram 
em  contacto  foi  em  1780.  N'aquelle  anno,  um 
barco  japonez  perdeu-sc  nas  costas  da  Sibéria, 
já  então  sob  o  dominio  do  czar.  A  tripulação 
foi  levada  prisioneira  até  írkutsk  e  alli  sujeita 
a  minuciosos  interrogatórios  com  respeito  á 
sua  pátria.  Parece  que  as  informações  colhidas 
despertaram  as  ambições  latentes  dos  russos, 
que  desde  longa  data  haviam,  sem  duvida, 
lançado  olhares  cubiçosos  sobre  as  terras  do 
Mikado,  tão  favoravelniente  situadas,  pela  sua 
disposição  geographica,  para  o  alastramento 
dos  seus  planos  de  conquista.  E'  certo  que, 
no  anno  seguinte,  cm  178 1,  um  bando  de 
moscovitas  atravessa\'a  o  golfo  da  Tartaria  e 
vinha  desembarcar  em  Sakhalien. 

Sakhalien,  denominada  Karafuto  pelos  ja- 
ponezes,  é  imia  ilha  extensa  e  estreita,  cor- 
rendo ao  longo  e  a  curta  distancia  da  parte 
da  vSiberia  que  os  russos  chamam  a  sua  Pro- 
vincia  Mantima,  e  comprehendida  entre  as 
latitudes  de  46"  e  54^.  O  clima  é  durissimo  e 
nada  convidativo;  possue,  no  entretanto,  a 
ilha  valiosas  florestas  e  minas;  mas  a  princi- 
pal riqueza  da  Sakhalien  está  nas  abundantis- 
simas  pescarias  das  suas  costas,  o  que  decidiu 
os  japonezes  a  irem  para  alli  residir  e  exercer 
as  suas  actividades  paciticas,  sem  encontrarem 


236 


outros  competidores  além  dos  ainos  aborí- 
genes. 

A  inesperada  apparigão  dos  moscovitas, 
em  1781,  explica-se,  porém,  sem  difticuldade, 
quando  se  attente  no  seu  propósito.  Sakhalien 
íica  apenas  separada  do  paiz  nipponico,  isto  é, 
da  ilha  de  Yeso,  pelo  estreito  de  La  Pérouse 
(Al  de  Soya,  prestando-se  assim  ao  estabele- 
cimento de  intimidades  entre  os  dous  povos, 
o  que  se  tornava  indispensável  para  a  realisa- 
ção  de  mais  importantes  desígnios.  No  entre- 
tanto, nem  ainos  nem  japonezes  mostraram  o 
minimo  desejo  de  irem  contra  as  leis  então 
em  vigor  no  seu  paiz,  as  quaes  prohibiam 
categoricamente  quaesquer  relações  com  estra- 
nhos; e  os  russos  tiveram  de  retirar-se  sem 
nada  haxerem  conseguido. 

Em  180Ó,  muda-se  de  táctica,  enviando  o 
czar  um  embaixador  seu  a  Nagasaki,  portador 
de  uma  carta  para  o  Shogun  e  munido  de 
poderes  para  negociar  um  tratado  de  commer- 
cio  com  o  Japão.  A  politica  absorvente  da 
Rússia  não  era  então  já  desconhecida  n'este 
império,  nem  o  ShogLin  ignorava  que  largos 
tractos  de  terreno  ha\'iam  sido  extorquidos 
por  ella  ao  império  da  China.  Prudentemente, 
as  propostas  do  embaixador  não  receberam 
resposta  satisfactoria. 


2hl 


Em  seguida,  c  ainda  no  mesmo  anno, 
uma  expedição  russa  chega  a  Sakhalien, 
pilha  e  incendeia  a  cidade  de  Kushunkotan, 
que  era  o  mais  importante  centro  da  actividade 
dos  japonezes;  ao  retirar-se,  deixa  um  docu- 
mento escripto,  onde  declara  o  firme  propósito 
do  governo  moscovita  de  destruir  toda  a 
parte  norte  do  Japão,  se  os  japonezes  se  não 
decidem  a  negociar  com  os  russos.  A  mes- 
ma expedição  ainda  se  dirige  a  uma  das  ilhas 
Kurilas,  onde  procede  pela  mesma  forma. 

Cinco  annos  depois,  os  russos  mandam  ás 
mesmas  paragens  a  fragata  « Diana  >-,  com  o 
fim  de  traduzir  em  facto  as  pré\'ias  ameaças; 
mas  tal  não  se  realisa  e  os  japonezes  logram 
mesmo  prender  alguns  officiaes  da  referida  fra- 
gata. 

O  governo  russo  muda  ainda  mais  uma 
vez  de  táctica,  persuadindo  os  seus  emigrantes 
nacionaes  a  virem  estabelecer-se  em  grande 
numero  na  parte  norte  de  Sakhalien,  pre\'endo 
um  alastramento  de  população  que  lhe  faci- 
lite os  intentos.  Por  seu  lado,  os  japonezes, 
não  se  achando  em  condições  de  poderem 
impedir  pelas  armas  esta  invasão  não  desejada 
e  imminentemente  perigosa  para  a  integridade 
do  solo  pátrio,  limitaram-se  a  irem  estabe- 
lecer-se  também   em  grande  numero  na  parte 


238 


sul-  de  Sakhalien;  e  assim  a  ilha  se  achou 
submettida,  por  alguns  annos,  a  duas  in- 
fluencias distinctas,  ao  norte  a  russa  e  ao  sul 
a  japoneza. 

Em  1855,  durante  a  grande  contusão  que 
reinava  em  todo  o  Nippon,  no  momento 
critico  em  que  a  sua  \^elha  politica  de  isola- 
mento cahia  por  terra  e  as  portas  do  império 
se  abriam  ao  convi\'io  mundial,  a  Rússia, 
seguindo  o  exemplo  de  outras  nações,  realisa 
o  seu  teimoso  desejo,  negociando  com  o  Japão 
um  tratado  de  commercio,  que  foi  renovado 
em  1858. 

Kni  1859,  a  Rússia  toma  posse  definitiva 
da  parte  norte  de  Sakhalien.  O  facto  produziu 
grande  indignação  no  Japão,  mas  a  prudência 
aconselhou-o  a  não  tentar  resolver  o  problema 
por  meio  de  hostilidades.  O  governo  japonez 
envia  á  Rússia  uma  embaixada,  que  chega  a 
S.  Petersburgo  em  18Ó2,  com  a  missão  de 
tratar  de  evitar  novos  alastramentos  do  inva- 
sor, cuidando  de  obter  uma  delimitação  de 
fronteiras,  que  permitta  ao  império  asiático 
o  gòso  seguro  da  metade  sul  da  ilha;  a  pro- 
posta foi  acolhida  com  indilferença  e  a  em- 
baixada recolhe  ao  Japão  sem  nada  ter  con- 
seguido. Em  1867,  imia  segunda  embaixada 
partiu  para  a  Rússia  com  idêntico  fim,  chegan- 


239 


do-se  então  ao  accordo  de  que  a  ilha  fosse 
conjuntamente  occupada  por  japonezes  e 
russos;  mas  oito  annos  depois,  em  1875,  o 
império  do  czar  consegue  fazer  acceitar  pelo 
Japcão  um  novo  tratado,  pelo  qual  os  japonezes 
reconhecem  perder  todos  os  direitos  a  Sakha- 
lien,  isto  em  troca  da  posse  do  intimo  archi- 
pelago  das  Kurilas,  que  a  Rússia  lhes  cede, 
posto  que  nunca  praticamente  o  tivesse 
occupado  como  dono.  Sakhalien  passa  então 
a  ser  uma  colónia  penitenciaria  russa,  o 
inhospito  capti\'eiro  de  milhares  e  milhares  de 
deportados,  politicos  e  outros,  cujas  misérrimas 
condições  de  existência  nenhu;n  \iajante  po- 
derá rigorosamente  relatar. 

Deve  também  aqui  registar-se  que  em  um 
bello  dia  do  anno  de  1861  a  fragata  russa 
«  Passadnik  t>  ia  fundear  junto  da  pequena  ilha 
japoneza  chamada  Tsushima,  excellente  ponto 
estratégico  que  defronta  com  o  extremo  sul  da 
península  da  Coréa  e  constitue  a  chave  do 
mar  do  Japão.  Os  marinheiros  russos  desem- 
barcaram em  Tsushima  e  alli  arvoraram  a  sua 
bandeira  nacional,  começando  a  dispor  da  ilha 
como  se  fosse  cousa  sua;  assustados  pela 
chegada  de -um  navio  de  guerra  ingiez,  reti- 
raram precipitadamente,  não  trazendo  o  desa- 
cato outras  consequências. 


240 


Convém  agora  fazer  menção  de  que  em 
1876  os  japonezes  conseguiram  negociar  com 
a  Coréa  um  tratado  de  commercio,  abrindo- 
Ihes  esta  o  seu  porto  de  P\isan ;  Chemulpo 
foi-lhes  aberto  em  1880.  A  America  obtinha  da 
mesma  Coréa,  em  1882,  um  tratado  de  com- 
mercio nas  mesmas  condições.  Seguiu-se-lhe 
a  Inglaterra  em  1883  e  a  Rússia  em  1884. 
Desde  então,  a  Coréa  tornou-se  um  vasto 
campo  da  intriga  dos  russos,  que  não  téem 
cessado  um  só  momento  de  procurar  por  todos 
os  expedientes  substituir  a  sua  influencia  á 
que  alli  naturalmente  exerciam,  por  laços  de 
visinhança  e  de  tradição,  os  japonezes.  Estes 
também  por  seu  lado  téem  intrigado,  cuidando 
de  fazer  pender  o  braço  da  balança  em  seu 
favor.  Mas  note-se,  em  justificação  do  seu 
procedimento,  que,  encontrando-se  o  Estado 
coreano  em  taes  condições  de  miserável  deca- 
deijcia  que  não  poderá  subsistir  sem  o  apoio 
de  algum  dos  seus  visinhos,  que  só  pôde  ser 
um  dos  três  impérios — China,  Japão  ou  Rússia 
—  o  Japão  tratou  mui  logicamente  de  se  con- 
stituir o  protector.  Por  piedade  altruista?  Não, 
não  invoquemos  este  conceito  hilariante.  E' 
que,  no  momento  em  que  a  influencia  chineza 
ou  russa  predominasse  na  Coréa,  a  indepen- 
dência e  a  integridade  territorial  do  Japão  en- 


241 


contrar-se-hiam  em  imminente  risco ;  e  aos 
japonezes  impòe-se  o  dev^er  sagrado  de  pugna- 
rem pelos  interesses  da  sua  pátria,  da  pátria 
de  seus  avós.  K'  claro  que  nenhum  dos  dois 
outros  impérios  poderia  invocar  idêntico  motivo 
em  seu  favor;  o  que,  perante  a  sã  justiça 
mundial,  mais  robustece  a  legitimidade  das 
pretenções  nipponicas.  E  não  se  poderia  aqui 
recorrer  a  um  argumento,  bem  mais  transcen- 
dente, servindo  para  a  plena  justificação  d'estas 
mesmas  pretenções  nipponicas?  Sobre  os  po- 
vos pesam  por  \ezes  tremendas  responsabili- 
dades, como  que  escriptas  no  programma 
insondável  dos  destinos.  Perante  a  philosophia 
da  Historia,  não  se  presente  acaso  que  o  Japão 
trabalha,  consciente  ou  inconsciente,  para  a 
evolução  da  Ásia  inteira,  para  o  seu  engran- 
decimento, para  a  sua  gloria  talvez?  Deve, 
pelo  contrario,  esperar-se  tão  alta  missão  par- 
tindo da  China  apathica  ou  então  da  Rússia 
intrusa?  Não,  não  pôde  esperar-se  isso;  perante 
o  tribunal  da  consciência  humana,  ao  Japão 
assiste  o  direito  e  assiste  o  dever  de  fir- 
mar a  sua  hegemonia  em  todo  o  Kxtremo- 
Oriente. 

Terminando  estas  linhas,  devo  por  ultimo 
lembrar  que  as  intrigas  e  ambiciosa  interferên- 
cia da  Rússia  nas  questões  da  Coréa  torna- 

11 


242 


ram-se  ainda  muito  mais  activas  n'estes  iiltimos 
annos;  a  Coréa  foi,  como  é  notório,  o  pomo 
de  discórdia,  levando  finalmente  o  Japão  a 
romper  hostilidades  com  o  seu  orgulhoso  com- 
petidor. 


XXI 

23    de    novembro    de    1904 


As  surprezas  da  guerra  —  O  nome  de  Togo;  coisas  inte- 
ressantes que  respeitam  a  este  arrojado  marinheiro: 
a  sua  origem,  a  sua  lista  de  serviços,  a  sua  physio- 
Hí^mia.   -As  rubras  «  momiji »  do  outomno. 


A  (luEKRA  actual  vai-nos  proporcionando  de 
quando  em  quando  as  mais  surprehen- 
dentes  peripécias.  Sirva  de  exemplo,  para  não 
escolhermos  outro,  o  combate  quixotesco 
da  esquadra  russa  do  Báltico  contra  a  ílotilha 
dos  pescadores  inglezes.  Agora,  isto  é,  ha 
poucos  dias,  é  o  caso  do  destroyer  russo  «  Ras- 
toropny».  Este  barco  sahiu  de  Porto  Arthur 
e  pôde  furtar-se  ao  encontro  com  a  esquadra 
japoneza  de  bloqueio,  graças  a  um  temporal 
de  neve  que  se  desencadeou  n'aquellas  para- 
gens. Chegado  ao  porto  chinez,  pouco  distan- 
te, de  Chefu,  desembarcava  toda  a  guarnição ; 
pouco  depois  dava-se  uma  explosão  a  bordo, 
evidentemente  propositada,  e  o  «Rastoropny» 
afundava-se.  Não  resta  a  menor  duvida  de 
que  o  commandante  do  destroyer  era  portador 


244 


de  comniunicações  importantíssimas  para  o 
governo  de  S.  Petersburgo ;  e  que  transmittidas 
ellas  pelo  telegrapho,  como  não  seria  em  preza 
fácil,  nem  útil,  o  regresso  a  Porto  Arthur,  se 
sacrificou  o  barco,  evitando-se  assim  complica- 
ções internacionaes  ou  que  os  japonezes  d'elle 
se  apropriassem.  Mas  que  communicações  im- 
portantíssimas se  teriam  transmittido?  Isto  e 
que  se  ignora  completamente. 

Para  não  errar,  nenhumas  conjecturas  é 
licito  fazer  com  respeito  á  situação  de  Porto 
Arthur;  sabe-se  que  os  ataques  continuam; 
atacantes  e  defensores  continuam  desenv^ol- 
vendo  energia  enorme,  coragem  furiosa,  o  que 
está  causando  a  maior  admiração  no  mundo 
inteiro. 

Dos  lados  de  Mukden  chegam  noticias 
vagas,  annunciando-se  alguns  encontros  de 
fortuna  varia,  mas  de  nenhuma  importância 
para  o  prosegui mento  das  operações,  que  em 
todo  o  caso  parecem  pouco  activas  n'este 
momento.  Entre  japonezes  e  russos  levanta-se 
agora  um  inimigo  terrível,  não  poupando  nem 
uns  nem  outros,  matando  sem  balas  nem 
pólvora  e  impondo  fatalmente  longas  moro- 
sidades aos  progressos  do  conflicto:  é  o 
medonho  inverno  da  Mandchuria.  Mal  se 
imagina  como  estão  agora  soffrendo,  em  tão 


245 


inhospita  região  de  nebolusidades  geladas,  os 
bravos  soldadinhos  nipponicos,  habituados  ao 
seu  doce  paiz  do  sol  e  de  luz !  ... 

E,  infortunadamente,  ninguém  pensa  na 
possibilidade  de  uma  próxima  solução  pacifica 
do  conflicto.  .  . 

—  O  nome  de  Togo  era,  até  ha  alguns 
mezes,  inteiramente  ignorado  para  além  da 
sua  pátria;  hoje  popularisou-se  por  toda  a 
parte  e  já  pertence  á  historia  mundial.  Os  pri- 
meiros tiros  feridos  por  imia  divisão  naval 
japoneza  contra  dous  navios  de  guerra  russos, 
á  entrada  do  porto  coreano  de  Chemulpo,  no 
dia  9  de  fevereiro;  o  ataque  infligido,  no  mes- 
mo dia,  á  esquadra  russa  fundeada  descui- 
dosamente  em  frente  de  Porto  Arthur:  o 
arrojado  serviço  dos  torpedeiros  e  as  succes- 
sivas  e  horoicas  tentativas  de  obstrucção  da 
barra  do  mesmo  porto  de  guerra;  o  combate 
naval  de  lo  de  setembro,  glorioso  para  os 
marinheiros  japonezes  e  ao  mesmo  tempo  triste 
documento  da  desorganisação  reinante  do 
lado  dos  seus  adversários ;  a  caça  sLibsequente 
aos  navios  de  Vladivostok,  resultando  a  perda 
total  de  um  cruzador  e  a  fuga  dos  seus  dois 
companheiros  de  fortuna,  seriamente  avaria- 
dos; a  paciente  e  cfticaz  acção  do  já  longo 
bloqueio  de  Porto  Arthur;  todos  esses  factos, 


246 


para  não  fallar  de  outras  peripécias  secundarias 
e  do  muito  que  é  licito  ainda  esperar-se  da 
victoriosa  esquadra  nipponica,  téem  feito  con- 
vergir as  attenções  geraes  sobre  o  distinctis- 
sinio  almirante  que  a  commanda. 

Parece,  pois,  que  não  deixarão  de  des- 
pertar interesse  os  traços  biographicos  que 
vão  seguir-se,  referentes  ao  almirante  Togo, 
um  dos  vultos  mais  em  evidencia,  se  não  o 
mais  saliente,  nos  factos  já  registados  do 
terrível  conflicto  que  se  trava,  e  a  cujo  proce- 
dimento o  Japão  deve  a  enormissima  vantagem 
de  vêr-se  senhor  do  mar  desde  o  rompimento 
das  hostilidades.  Ha  já  bastantes  semanas  que 
era  meu  desejo  apresentar  aqui  estas  rápidas 
referencias,  realisando-o  só  agora,  por  ter 
querido  consultar  publicações  indigenas,  que 
tarde  me  chegaram  ás  mãos. 

Togo  Hehachiro  —  Togo  é  o  appellido  de 
familia  —  nasceu  na  cidade  de  Kagoshima, 
capital  da  província  de  Satsuma  (então  daimy- 
ato)  na  ilha  de  Kyushii,  aos  22  de  dezembro 
de  1842  (encontro  em  vários  documentos 
ligeiras  divergências  de  datas,  o  que  não  vale 
a  pena  discutir  aqui).  Pertence  a  uma  fami- 
lia de  samurai,  isto  é,  da  classe  votada  ao 
serviço  militar  nos  tempos  do  feudalismo. 

Antes  de  ir  mais  longe,  convém  referir-me 


247 


a  umas  allusões  que  correram  mundo  sobre  a 
origem  de  Togo:  alguém  escreveu  algures, 
segundo  noticia  que  me  chegou  da  Europa, 
que  elle  descendia  de  portuguezes,  mais  cor- 
rectamente —  que  era  um  mestiço.  — Não  acre- 
dito em  tal.  Também  se  disse  ha  pouco  que  o 
pai  de  Kuroki  era  francez.  Taes  divagações 
saltaram  mui  provavelmente  da  penna  de 
qualquer  escriptor  russophilo,  desejoso  de 
fazer  acreditar  que  os  mentos  indiscutíveis  do 
almirante  e  do  general  i-ecahem  em  dous  mes- 
tiços, em  cujas  veias  corre  sangue  europeu; 
de  que  se  poderá,  porventura,  concluir,  for- 
çando a  lógica,  que  em  genuínos  japonezes 
não  seria  dado  vér  reunidos  tão  finos  dotes. 
Para  o  caso  especial  de  Togo,  quer-se  talvez 
allegar  a  circumstancia  de  que  foi  cerca  de 
Kagoshima  que  os  primeiros  europeus  —  os 
portuguezes  por  mais  de  6o  annos  —  aborda- 
ram o  Japão,  por  1543,  conservando  intimas 
relações,  religiosas  e  mercantis,  com  esta  parte 
do  archípelago;  mas  não  consta  que  de  tal 
facto  resultasse  uma  população  mestiça  na 
província  de  Satsuma  ou  seus  subúrbios,  sendo 
absurdo  requerer  para  Togo  o  privilegio. 

Diz-se  que  a  tenra  infância  do  meu  biogra- 
phado  foi  muito  influenciada  pela  convivência 
com  um  seu  visinho,  Ito  Koyemen,  homem  de 


248 


profundos  estudos,  pensador,  escriptor,  educa- 
dor, que  baseava  a  essência  de  todas  as  suas 
doutrinas  n'um  alto  culto  pela  firmeza  de 
caracter,  pela  inflexibilidade  perante  os  con- 
tratempos da  existência.  I^oucos  vestígios 
restam  do  que  foi  Ito  Koyemen ;  mas  julgan- 
do-os  por  alguns  discípulos  seus,  cujo  espirito 
formou,  taes  como  vSaigò,  o  valoroso  chefe 
rebelde  de  Satsuma,  e  Okubo,  e  Katto,  e 
muitos  outros  vultos  notáveis  na  historia 
moderna  do  império,  revela-se-nos  como  uma 
personalidade  dotada  de  finíssimos  dotes  de 
cavalheirismo,  de  subida  nobreza  de  alma  e 
de  grande  poder  communicativo. 

Seja  como  fòr,  Togo,  que  -  nos  interessa 
agora  mais  do  que  os  outros,  começou  cedo 
dando  provas  de  um  caracter  primoroso, 
de  uma  intelligencia  robusta  e  de  profundo 
amor  ao  estudo.  Por  aquella  época,  coincidindo 
com  a  chegada  dos  occidentaes  a  Yokohama, 
insistindo  em  entrar  cm  relações  com  o  Ja- 
pão, e  com  as  grandes  convulsões  politicas 
resultantes,  os  differentes  principados  começa- 
ram a  despertar  do  lethargo  em  que  até  então 
iam  vivendo,  reconhecendo  a  necessidade  de 
se  iniciarem  nas  ideias  modernas  e  de  se  ar- 
marem com  elementos  novos  em  defeza  da 
pátria    ameaçada.    Satsuma   figurava  á  frente 


249 


d'este  movimento,  o  que  em  parte  se  deve 
attribuir  a  antigas  rivalidades  entre  os  seus 
príncipes  e  o  shogun,  generalissimo,  cujo 
procedimento,  contemporisador  para  com  os 
desejos  dos  estrangeiros,  ia  já  provocando 
indignada  effervescencia  na  facção  mais  devo- 
tada ao  prestigio  do  soberano.  O  daimyò  de 
Kagoshima,  Hisamitau,  procedeu,  pois,  ao 
apuramento  dos  moços  mais  esperançosos  de 
entre  os  seus  vassallos,  que  destinou  a  diversas 
carreiras  publicas,  sob  um  regimen  de  educa- 
ção moderna;  Togo  foi  escolhido  para  a 
marinha,  partindo  para  Yokohama,  afim  de 
estudar,  antes  de  tudo,  a  lingua  ingleza  com 
um  professor  inglez  alli  residente. 

Rebentam  hostilidades  entre  os  partidários 
da  causa  imperial  e  os  do  shogun ;  Togo, 
collocando-se  naturalmente  do  lado  dos  pri- 
meiros, põe  de  parte  estudos,  embarca  no 
vapor  «Kasuga»  pertencente  ao  daimyato  de 
Satsumia,  tomando  parte  em  vários  combates 
contra  os  navios  do  shogun.  Em  187 1,  quan- 
do restaurada  de  todo  a  paz  no  império  com 
a  suppressão  do  shogunato,  Togo  é  enviado 
a  Inglaterra,  a  fim  de  completar  a  sua  educa- 
ção naufica,  servindo  como  aspirante  no  navio 
da  marinha  britannica  «Worcester»  e  em 
outros,   durante  cerca  de  seis  annos.  Muitos 


2í;o 


oíficiaes  inglezes  da  vdha  guarda  ainda  se 
recordam  do  mocinho  circumspecto  e  diligente, 
a  queni  os  camaradas  chamam  chínaman  (o 
homem  da  China);  isto  até  que  o  tal  mocinho 
lhes  explicou  mui  asperamente  que  elle  não  era 
chína-inan,  mas  sim  japan-man^  e  não  estava 
resolvido  a  supporfar  por  mais  tempo  a  falsa 
alcunha.  .  .  Após,  quando  o  novo  official  deve- 
ria regressar  á  pátria,  recebeu  instrucções  do 
governo  de  Tokyo  para  assistir  á  construcção 
do  «  Hieikan»,  navio  que  os  japonezes  haviam 
encommendado  na  Inglaterra;  facto  que  demo- 
rou por  mais  dous  annos  o  seu  regresso. 

Mas  esta  demora  foi  uma  circumstancia 
felicíssima,  que  salvou  certamente  de  um  hm 
trágico  e  breve  o  valente  marinheiro,  que  hoje 
tão  relevantes  serviços  está  prestando  ao  seu 
paiz.  Recordemos  a  historia.  Saigò  Takamori, 
samurai  de  Satsuma  e  que  representou  um 
papel  importante  na  restauração  imperial,  fora 
ministro  da  guerra  em  1870;  mas  retirou-se 
para  Kagoshima  quando  viu  que  o  governo, 
longe  de  respeitar  os  antigos  usos  nacionaes, 
cuidava  com  afinco  de  europeanisar  o  Japão. 
Em  Kagoshima  fundou  uma  escola  militar, 
que  se  encheu  da  mocidade  exaltada  das  pro- 
víncias de  Satsuma  e  de  Osumi.  O  governo, 
desejando  prudentemente  chamal-o  a  Tokyo, 


2  vi 


nomeou-0  marechal  commandante  em  chefe 
das  armas  do  império,  mas  nada  com  isto 
conseguiu.  O  movimento  insurreccional,  latente 
havia  alguns  annos,  fez  explosão  em  1877, 
capitaneado  por  Saigò.  As  forças  imperiaes 
marcharam  a  ir  suffocar  a  revolta  de  Satsuma. 
Durante  seis  mezes,  os  combates  succedem-sç 
sem  descanço,  sangrentos  e  indecisos.  Pouco 
a  pouco,  os  rebeldes  vão  enfraquecendo,  não 
por  mingua  de  bravura,  mas  dizimados,  por 
forças  superiores;  até  que  finalmente  Saigò 
se  vê  forçado  a  refugiar-se,  com  os  poucos 
que  lhe  restam,  no  castello  de  Shiroyama,  tor 
dos  dispostos  a  venderem  caro  as  suas  vidas.. 
A  batalha  deu-se  no  dia  24  de  setembro,; 
Saigò  foi  um  dos  primeiros  a  baquear,  ferido 
n'uma  perna  por  uma  bala  dos  sitiantes;  orde- 
nou então  a  um  dos  seus  officiaes  que  lhe 
decepasse  a  cabeça,  para  não  cahir  vivo  nas 
mãos  das  forças  imperiaes;  muitos  o  imitaram, 
outros  ficaram  prostrados  pela  chuva  da  me- 
tralha ;  e  assim  acabou  a  revolta  de  Satsuma. 
Ora  os  três  irmãos  de  Togo  haviam-se  todos 
alistado  no  partido  do  seu  nobre  e  prestigioso 
compatrício,  Saigò  Takamori,  morrendo  todos 
com  elle,  na  batalha  de  Shiroyama;  não  resta 
duvida  de  que  Togo  houvera  tido  a  mesma 
sorte,  se  chegasse  a  tempo  de  poder  acompa- 


252 


nhar  seus  irmãos;  mas  não  chegou  a  tempo; 
a  2  de  maio  de  1878  regressava  ao  Japão, 
a  bordo  do  «Hieikan»,  quando  as  dissensões 
politicas  se  haviam  acalmado  e  refloria  a  paz 
no  paiz  do  Sol  Nascente. 

Segue-se  agora  a  lista  de  serviços  do  valo- 
roso marinheiro,  mas  que  pôde  aqui  só  appa- 
recer  muito  em  resumo.  Promovido  a  tenente 
á  sua  chegada  á  pátria,  foi  seguindo  rapida- 
mente os  postos  e  occupando  sempre  logares 
importantes,  ora  em  terra,  ora  no  mar.  Assiste 
aos  tumultos  da  Coréa  em  1882,  encarregado 
de  proteger  os  japonezes  residentes.  Segue  de 
perto  o  ataque  dado  pela  esquadra  do  almi- 
rante francez  Courbet  aos  navios  chinezes  em 
Fuchau,  em  1885.  Em  seguida,  já  capitão  de 
fragata,  exerce  o  cargo  de  director  do  material 
de  guerra  no  arsenal  de  Yokosuka.  Em  1894, 
quando  rebenta  a  guerra  com  a  China,  é  no- 
meado com  r andante  do  bello  cruzador  prote- 
gido «Naniwa»,  de  3:650  toneladas,  tomando 
parte  muito  distincta  nas  operações  navaes. 
A  bordo  do  «Naniwa»  e  de  companhia  com 
os  cruzadores  «Yoshino»  e  « Akitrushima», 
trava  combate,  após  provocação,  perto  de 
Asan,  na  Coréa,  com  os  dois  cruzadores-cou- 
raçados  chinezes  «  Tsi-Yuen  »  e  «Kwang-y», 
resultando   ir  este  ultimo  encalhar  na   costa, 


253 


sendo  abandonado  pela  sua  guarnição,  e  o  «Tsi- 
Yuen»  fugir  muito  avariado  na  direcção  de 
Wei-hai-Wei.  Após  este  combate,  que  durou 
uma  hora,  o  « Naniwa »  encontrava  o  vapor 
inglez  «  Kowshin  »  transportando  i:ioo  solda- 
dos chinezes  para  a  Coréa ;  como  o  vapor  não 
se  rendesse,  Togo  mette-o  no  fundo  a  tiros 
de  canhão,  caso  que  foi  muito  discutido 
n'aquella  época  por  toda  a  imprensa  europeia. 

Na  batalha  de  Valu,  no  bombardeamento 
de  Porto  Arthur  e  finalmente  na  tomada  de 
Wei-hai-Wei,  ainda  o  « Naniwa  ->>  íigura  bri- 
lhantemente, encorporado  na  esquadra  do 
almirante  Ito  e  ma'iobrado  pelo  seu  habilissimo 
commandante.  No  fim  da  guerra,  a  actividade 
de  Togo  exerce-se  no  sul  da  China,  sendo 
elle  que  protege  o  desembarque  das  forças 
nipponicas  na  Formosa.  Durante  os  tumultos 
dos  boxerSy  é  Togo  que  commanda  a  esquadra 
japoneza  no  mar  da  China. 

Togo  era  promovido  a  vice-almirante  em 
1898.  Quando  a  guerra  com  a  Rússia  se  apre- 
sentou inevitável,  foi  nomeado  commandante 
em '  chefe  da  esquadra  e  promovido  pouco 
depois  a  almirante.  Entramos  nos  aconteci- 
mentos da  actualidade,  os  quaes  seria  supér- 
fluo relembrar,  porque  são  de  conhecimento 
de  todos;  basta  dizer  que  taes  acontecimentos 


254 


serviram  já  para  demonstrar  plenamente  quanto 
acertada  foi  a  escolha  do  governo  japonez, 
dando  a  Togo  uma  tão  melindrosa  missão. 

A  guerra  naval  que  se  fere,  ligurará  certa- 
mente na  historia  do  mundo  como  a  mais 
terrível  e  a  mais  iiotax-el  dos  tempos  moder- 
nos, e  aquella  em  que  pela  primeira  vez  os 
mais  altos  aperfeiçoamentos  —  enorme  alcance 
de  tiro,  extrema  delicadeza  dos  machinismos, 
excellencia  do  poder  da  couraça,  telegraphia 
sem  hos,  —  entram  em  jogo.  O  almirante 
Togo  mostra-se  bem  á  altura  do  seu  cargo, 
tendo  já,  por  si  e  pelo  auxilio  dos  seus  bravos 
marinheiros,  erguido  ás  eminências  da  fama 
o  prestigio  da  pátria  nipponica,  perante  a  sur- 
preza  das  nações.  Mas  muito  terá  ainda  que 
fazer,  após  o  bloqueio  de  Porto  Arthur,  em 
que  agora  se  empenha.  Chegará  a  estes  mares 
a  já  tão  fallada  esquadra  russa  do  mar  Báltico? 
Se  chega,  novas  energias  exigirá  de  Togo  o 
seu  paiz.  EUe  já  desbaratou  e  aniquilou  os 
navios  russos  do  Extremo-Oriente;  mas  cum- 
pre-lhe  que  desbarate  e  aniquile  também  os 
navios  do  Báltico,  convencendo  por  esta  forma 
indiscutix^el  os  seus  commandantes  de  que  a 
esquadra  nipponica  não  se  encontrava  nos 
mares  do  norte  da  Europa,  pescando  arenques 
de  mistura  com  as  companhas  inglezas,  mas 


255 


aqui,  no  niar  do  Japão,  com  os  canhões  em 
bateria,  em  defeza  d'este  encantador  império 
insular. 

Togo  é  um  homem  de  mediana  estatura» 
de  olhos  claros  e  meigos,  de  pequeno  bigode 
quasi  branco  e  barba  grisalha  e  curta  a  em- 
moldurar-lhe  o  rosto.  A  sua  physionomia  é 
doce,  paciente,  captivante.  Quando  em  terra, 
nos  seus  raros  ócios,  entrega-se  ao  calmo  con- 
vívio da  familia,  rodeado  da  esposa  e  dos 
filhos,  que  são  numerosos,  de  ambos  os  sexos; 
encontram-no  então  ás  vezes  acocorado  á 
borda  das  ribeiras,  vestindo  um  simples  kimono 
de  aldeão,  um  grande  chapéu  de  palha  enter- 
rado na  cabeça,  pescando  serenamente  á 
linha.  .  . 

—  Por  estes  dias  de  fins  de  outomno  e  por 
estas  paizagens  nipponicas,  o  incomparável 
pintor  colorista,  que  se  chama,  em  boa  lingua- 
gem chã,  a  nossa  mãe  natureza,  prodigalisa 
as  suas  nielhores  tintas  de  ouros-velhos,  de 
vermelhos,  de  escarlates,  sobre  as  comas  das 
arvores,  na  esplendida  amenidade  dos  campos. 
A  primavera,  a  primavera !  .  .  .  no  fim  de  con- 
tas, uma  menina  pretenciosa,  enfrascada  em 
perfumes,  arrebicada  de  grinaldas,  toda  ella 
nervosismos;  e  por  isto  mesmo,  por  tanta 
garridice  quisilenta.  Não  ha  flores  que  valham 


256 


esta  rama  requeimada  de  certas  arvores  que 
se  chamam  niomiji  em  japonez,  de  delicadíssi- 
mas folhas  digitadas  a  lembrarem  patas  de 
gallinha,  em  estupendas  apotheoses  de  incan- 
descência, graças  ao  colorido  estranho  que 
lhes  imprimem  os  últimos  dias  de  novembro. 
Mas  o  outomno  não  cora  apenas  os  momiji: 
um  grande  numero  de  outras  arvores,  de 
arbustos,  de  plantas,  se  vestem  de  tonalidades 
prodigiosas  —  amarellos  ardentes,  carmezins 
sanguíneos,  roxos  lutuosos,  —  contrastando 
com  o  verde  perenne,  eterno,  da  rama  dos 
pinheiros. 

Encantadoras  florestas  e  encantador  ou- 
tomno !  .  .  .  E  reparai :  na  primavera,  uma 
folhinha  que  espiga  é  a  imagem  da  esperança; 
no  outomno,  uma  folha  que  cahe  é  a  imagem 
da  saudade.  .  .  Sois  velho,  como  eu  ?  Se  o  sois, 
haveis  de  convir  commigo  que,  no  campo  do 
mysterio  psychico  das  forças  emotivas,  entre 
a  esperança  e  a  saudade,  a  poesia  d'esta 
ultima  é  bem  mais  arrebatadora,  bem  mais 
intensamente  sentida.  E'  bom  rir.  .  .  mas  me- 
lhor é  chorar,  se  a  nossa  sentimentalidade 
pôde  attingir,  com  a  experiência  da  vida,  o 
requinte   supremo  de    se  aprazer  na  dor!  .  .  . 

Eu  contemplava  este  soberbo  espectáculo 
outomnal   do    alto    do    templo   buddhista   de 


257 


Kiyoinizu,  em  Kioto,  dedicado  á  deusa  do  per- 
dão, Kwannon,  de  1 1  rostos  e  de  iiooo  braços. 
A  meus  pés,  cavava-se  em  precipicio  um  pro- 
fundo valle,  coberto  de  arvoredo,  em  que 
abundavam  os  rubros  momíji,  e  que  ia  es- 
treitando até  offerecer  um  leito  serpeante  e  um 
tilete  de  aguas  crystalinas,  que  deslisavam  em 
silencio.  O  pov^o  em  multidão,  de  \'estes  poly- 
chromas,  desfilava  pelos  trilhos  em  zigue- 
zague, ou  abancava  junto  de  pequenas  vendas 
garridamente  embandeiradas,  para  tomar  chá 
e  comer  bolos,  no  enlevo  d'aquella  festa  das 
folhas  mortas.  .  . 


XXII 

12   de   dezembro   de   1904 

Calmaria  de  noticias  —  A  situação  dos  dois  belligeraii- 
tes  —  Qual  será  o  resultado  do  novo  e  tremendo 
encontro  que  se  espera?  —  Porto  Arthur —  A  esqua- 
dra russa  do  Báltico — A  sympathia  mundial  a 
favor  do  JapSo — Considerações  e  explicações  — 
Ultimas  noticias  relativas  á  guerra, 

A  pRovEiTKMos  a  qiiasi  absoluta  calmaria  de 
noticias  da  guerra  d'estas  ultimas  sema- 
nas, para  lançarmos  um  rápido  relance  de 
olhos  sobre  a  situação  dos  dois  belligerantes, 
tentando  deduzir  dos  factos  as  consequências 
próximas  mais  prováveis. 

Dos  lados  de  Mukden  os  exércitos  inimi- 
gos conservam-se  em  permanente  contacto, 
como  o  estão  provando  as  quasi  constantes 
escaramuças  que  se  dão,  de  resultados  vários. 
Posto  que  o  inverno,  que  começa  rigorosís- 
simo, como  é  sempre  na  Mandchuria,  esteja 
impondo  uma  natural  pausa  nas  hostilidades, 
para  recomeçarem  presumidamente  na  prima- 
vera, parece,  comtudo,  que  nem  russos  nem 
japonezes  se  acham  satisfeitos  com  as  respe- 


2  59 


ctivas  posições  que  occupam,  affigurando-se 
imtninente  uma  grande  batalha  ainda  dui^antc 
este  mez. 

Admitte-se  como  certo  que  importantissi- 
nios  reforços,  de  tropas  frescas  vindas  da 
Europa,  tenham  augmentado  ultimamente  o 
ertectivo  do  exercito  de  Kuropatkine.  Dos  ja- 
ponezes  nada  se  sabe  aqui,  cuidando  cautelo- 
samente o  governo  de  occultar  jio  publico 
as  suas  determinações;  mas  a  experiência  dos 
acontecimentos  anteriores  induz-nos  a  acredi- 
tar que  ainda  ha  sobra  de  soldados  nipponicos 
e  que  as  falhas  nas  forças  do  marechal  Oyama 
hajam  sido  largamente  preenchidas  durante  o 
presente  periodo  de  tréguas. 

Qual  será  o  resultado  do  novo  e  tremendo 
encontro  que  se  espera?  Os  observadores  im- 
parciaes  já  descrêem  muito  das  promessas  de 
Kuropatkine  e  da  vinda  do  tal  exercito  im- 
menso,  incumbido  de  esmagar  todos  os  nippo- 
nicos. Embora  a  Rússia  disponha,  effectiva- 
mente,  de  uma  população  enorme,  a  expedição 
de  similhante  exercito  e  a  sua  manutenção 
em  plena  Mandchuria  não  passam  de  simples 
chimeras,  de  sonhos  irrealisaveis.  Succederá 
acaso  que  a  sorte  das  armas  favoreça  as  for- 
ças do  czar,  as  quaes  até  agora  não  téem 
tido  senão  revezes ;  mas  essa  mui  problemática 


26o 


victoria  não  poderá  deixar  de  ser  incompleta, 
porque  já  será  humanainente  impossível  ani- 
quilar o  exercito  do  mikado,  composto  de  tão 
excellentes  soldados  e  hoje  muitas  vezes  supe- 
rior ao  que  era  no  inicio  do  conflicto,  pela 
incalculável  força  moral  que  lhe  imprime  o 
prestigio  das  suas  multiplices  victorias.  A 
Rússia  cm  peso  já  não  poderia  esmagar  agora, 
como  um  bando  de  formigas,  os  heroes  de  tão 
brilhantes  e  successivas  batalhas. 

Quanto  a  Porto  Arthur,  é  certo  que  o  pu- 
blico no  Japão,  mesmo  as  auctoridades  diri- 
gentes, todos  se  illudiram  muito,  julgando  que 
a  temivel  praça  de  guerra  cahiria  dentro  de 
poucos  dias  nas  mãos  dos  sitiantes.  Não  cahiu 
e  ainda  se  mantém,  mercê  da  coragem  inau- 
dita dos  seus  defensores,  dos  recursos  de  que 
dispunham,  e  das  condições  naturaes  do  ter- 
reno. Esta  grande  audácia  dos  japonezes  tem- 
Ihes  custado,  sabe-se,  muitos  milhares  de 
vidas.  Mas  Porto  Arthur  ha-de  fatalmente 
cahir.  Os  ataques  continuam,  com  duras  perdas 
para  os  japonezes,  mas  também  com  duras 
perdas  para  os  russos,  que  não  podem  receber 
auxilio  algum  do  exterior.  Annuncia-se  agora 
que  no  dia  30  de  novembro  os  japonezes 
tomaram  de  assalto,  após  desesperada  resis- 
tência,    o    forte    chamado    «Cota    dos    203 


26 1 


metros»,  o  qual  domina  quasi  todas  as  forti- 
ficações do  inimigo.  D'este  acontecimento  e 
de  outros  que  vão  succeder-lhe,  resultará,  não 
se  sabe  quando,  a  derrocada  final,  substituin- 
do-se  a  bandeira  da  cruz  de  Santo  André  pela 
do  Sol  Nascente,  e  assim  se  terá  cumprido 
uma  condição  imprescindível  do  tremendo 
programma  nipponico. 

No  entretanto,  a  esquadra  russa  do  Báltico 
avança,  aproxima-se  lentamente  das  aguas 
extremo-orientaes,  o  que  até  ha  pouco  nos 
parecia  impossivel  de  realisar-se,  porque  não 
contávamos  com  uma  certa  elasticidade  dos 
deveres  neutraes  que  se  está  dando  por  parte 
de  terceiros,  deveres  que  tomam  differentes 
formas,  como  uma  bola  de  borracha,  c  assim 
permittem  aos  russos  commodo  aprovisiona- 
mento nas  escalas  que  \'ão  fazendo.  Mas  che- 
gará cá,  a  já  famosa  esquadra  do  Báltico  ? 
Como  é  licito  imaginar-se  tal,  que  após  uma 
longa  e  penosa  viagem,  com  avarias  certas  a 
exigirem  prompto  reparo,  com  uma  guarnição 
inexperiente  (porque  a  Hòr  da  marinha  russa 
deve  ter  sido  a  que  veio  com  a  primeira 
esquadra),  inexperiente  e  ainda  por  cima  des- 
moralisada,  do  que  já  deu  sobejas  provas; 
como  é  licito  imaginar-se  que  uma  tal  esqua- 
dra, carecendo,  antes  de  entrar  em  combate,  de 


202 


iini  porto  de  abrigo  que  não  se  lhe  depara, 
venha  expor-se  temerariamente  ao  encontro 
da  esquadra  de  Togo,  a  qual  lhe  é  material- 
mente superior  e  guarnecida  por  uma  tripula- 
ção altamente  experimentada  no  mar  e  no 
fogo,  exaltada  pelas  glorias  dos  seus  feitos? . . . 
Não,  eu  creio  que  a  esquadra  do  Báltico  não 
se  arriscará  a  aproximar-se  do  império  insular, 
para  não  soffrer  sorte  igual  á  da  esquadra  do 
mallogrado  Makaroff.  De  duas  hypotheses, 
uma:  ou  algum  grande  acontecimento,  como 
a  provável  e  próxima  queda  de  Porto  Arthur, 
a  decide  a  voltar  para  traz,  imitando  assim 
no  mar  a  estratégia  em  terra  de  Kuropatlvine ; 
ou  então  vae  e.spalhar-se  por  esses  mares  de 
Christo,  occupando-se  na  faina  aventureira  de 
corsário,  pouco  gloriosa  mas  bastante  profícua, 
e  com  o  que  poderá  causar  terríveis  damnos 
ao  commercio  japonez  e  também  ao  commer- 
cio  neutral.  Não  nos  fatiguemos,  no  entretanto, 
em  elaborar  hypotheses,  que  podem  todas 
falhar;  o  futuro,  na  crise  presente,  mostra-se 
insondável;  sendo  possivel  que,  se  a  Rússia 
insistir  no  prolongamento  do  conflicto,  tremen- 
dos acontecimentos  surgirão,  cujo  alcance  nem 
se  imagina  nos  dias  que  vão  correndo.  .  . 

—  A    sympathia    mundial,    tão   necessária 
ao  Nippon  para  a  realisação  dos  seus  desígnios, 


363 


apresenta-se  ainda  dt.)  sen  lado,  maravilhando 
a  todos  o  esforço  gigante  d'este  bando  de 
ilhéus,  arcando  contra  o  inimigo  colossal  que 
pretende  esmagal-os.  Km  todo  o  caso,  não 
confiemos  demasiadamente  n'esta  sympathia. 
Os  effluvios  sentimentaes  das  nações  lembram, 
em  grande,  os  caprichos,  as  preferencias  das 
creanças,  susceptiveis  de  mudarem  n'um  mo- 
mento de  sentido,  quando  por  exemplo  venha 
a  fadiga  de  uma  prolongada  expectativa.  F., 
assim  como  um  confeito,  ou  um  bom  fructo 
maduro,  lançado  a  propósito  sobre  a  palma 
da  mãosita  cubiçosa,  poderá  modificar  de  im- 
proviso a  orientação  mental  do  infante,  assim 
também  outro  género  de  fructos  ou  de  con- 
feitos, isto  é,  os  interesses  próximos  e  porven- 
tura mesquinhos,  os  accordos  productivos, 
poderão  alienar  do  remoto  Kstado  asiático  as 
attençoes  dos  occidentacs,  abandonando-o  ao 
seu  destino. 

Creio  até  que  uma  certa  impaciência  já 
começa  a  manifestar-se  na  ICuropa,  já  começa 
a  manifestar-se  na  America,  mesmo  do  lado 
d'aquelles  que  mais  se  enthusiasmam  pela 
causa  nipponica.  A  principio,  era  simplesmente 
uma  louca  temeridade  a  acção  dos  japonezes 
contra  os  russos;  mas  já  que  os  venceram,  já 
que    os   desbarataram,    porque   não   avançam 


204 


mais?  porque  não  correm  a  Mukden  ?  porque 
não  alcançam  Karbin  ?  porque  não  envolvem 
n'uma  cintura  de  canhões  o  exercito  em  peso 
de  Kuropatkine  ?  porque  não  penetram  de  vez 
em  Porto  Arthur  ?  . .  .  As  massas  folgam, 
commovem-se  com  o  drama;  mas  não  lhe 
concedem  de  bom  grado  mais  dos  cinco  actos 
usuaes.  Cruéis  e  irreflectidas  interrogações, 
que  téem  ares  de  desconhecerem  as  enormes 
difíiculdades  que  tolhem  constantemente  o 
passo  aos  bravos  soldados  japonezes,  os  hor- 
rores do  inverno  duríssimo  que  começa,  as 
doenças  que  sobrevoem,  a  grande  paciência 
requerida,  esperando  momento  azado  para 
disputar  mais  um  palmo  de  terra  ao  inimigo 
poderosíssimo  que  está  na  frente !  .  .  . 

E'  curioso,  no  entretanto,  observar  que, 
se  ainda  na  F.uropa,  se  ainda  na  America, 
desabrocha  a  flor  da  sympathia,  voltando  a 
corolla  para  o  lado  do  Sol  Nascente,  é  na 
região  asiática  c  principalmente  no  Japão, 
onde  por  entre  os  residentes  occidentaes  se 
nos  deparam  mais  irreconciliáveis  antipathias 
pela  causa  nipponica.  Assim  devia  acontecer; 
Esta  guerra  reduz-se,  no  fim  de  contas,  a  uma 
lucta  de  raças,  devendo  ter-se  o  cuidado  de 
esclarecer  assim  a  situação:  a  Ásia,  represen- 
tada   pelo    Estado    asiático    mais   florescente, 


265 


mais  av^ançado  em  progressos,  reclama  o 
direito  da  sua  independência,  da  sua  unifica- 
ção, do  seu  engrandecimento ;  a  Europa,  ou 
melhor,  o  Occidentc,  representado  por  um  dos 
seus  mais  temíveis  Estados,  quer  para  si  o 
direito  de  explorar  a  Ásia  como  cousa  própria, 
como  colónia  escravisada.  Ora  ninguém  per- 
sonifica melhor  o  elemento  mais  empenhado 
em  tal  exploração  do  que  os  occidentaes  aqui 
residentes,  directamente  com  as  mãos  no  ne- 
gocio, em  contacto  diário  com  os  japonezes 
no  jogo  das  permutações,  e  por  isto  mais 
promptamente  lesados  pelas  iniciativas  indí- 
genas. 

E'  assim  que  nos  clubs,  nos  hotéis,  pro- 
vavelmente nas  igrejas,  n'um  centro  qualquer 
onde  se  pratique  a  palestra,  entre  residentes 
estrangeiros,  transpira  frequentemente  o  desejo 
de  vér  vencido  o  Japão.  A  Rússia  não  é  boa, 
mas  antes  ella  domine  no  Extremo-Oriente  em 
vez  do  Nippon.  A  ideia  enuncia-se  apenas 
parcialmente,  porque  um  inglez  desejaria  que 
a  Inglaterra  fosse  o  dominador,  um  allemão 
que  fosse  a  AUemanha,  um  francez  que  fosse 
a  França  e  assim  os  outros.  O  egoísmo,  dis- 
pondo soberanamente  das  consciências. 

Continuemos  discorrendo,  á  feita  de  me- 
llior  assumpto,  sobre  este   das  sympathias  e 

ia 


266 


•,♦ 
das  antipathias  que  o  Japtão  inspira  aos  occi- 
dentaes ;  parecendo-me  a  palestra  não  de  todo 
destituida  de  interesse. 

Na  Europa,  na  America,  as  sympathias 
sinceras  por  este  império  e  por  este  povo 
encontram-se  nos  raros  que  apreciam  o  Japão 
pelo  seu  lado  artistico,  tão  surprehendente  de 
primores,  ou  nos  egualmente  raros  que  estu- 
dam a  sua  maravilhosa  historia,  o  seu  assom- 
broso desenvolvimento,  as  palpitantes  aspi- 
rações da  nação.  Até  ha  pouco,  o  resto,  isto 
é,  a  gi^ande  maioiia,  quasi  que  se  mantinha 
por  completo  indifferente  em  tal  matéria;  a 
guerra  popularisou  o  Japão,  excitando  a  emo- 
tividade das  massas,  fazendo  brotar  S3'mpa- 
thias  e  antipathias,  ao  acaso. 

Com  respeito  áquelles  que  conhecem  por 
seus  olhos  o  Japão,  que  o  habitam  ou  habita- 
ram, devemos  distinguir  entre  toiírístes  e  re- 
sidentes. Os  touristes,  os  que  fizeram  uma 
rápida  apparição  n'este  paiz,  adoram-no  em 
geral ;  a  litteratura  enthusiastica  sobre  o  Nip- 
pon  emana  quasi  toda  d'elles.  Nem  eu  mesmo 
comprehendo  que  estas  paizagens  graciosíssi- 
mas, que  esta  arte  gentil  que  resalta  de  tudo 
e  de  todos,  que  este  povo  amabilissimo,  que 
estas  mulheres  encantadoras,  deixem  frio,  in- 
differente ou  sarcástico  aquelle  que  relanceou 


lÒ'] 


tantos  enlevos;  esse  alguém,  que  não  se  en- 
terneça com  tal  quadro,  será  um  imbecil  ou 
um  perverso. 

Com  o  residente,  o  caso  muda  muito  de 
figura.  Não  fallando  já  nas  razões  mercantis 
que  ficaram  apontadas,  e  que  naturalmente 
lhe  predispõem  o  animo  contra  o  competidor 
naiivo,  outras  razões,  mais  subtis,  vão  ex- 
plicar a  frequente  antipcithia  do  europeu  con- 
tra o  japonez.  A  primeira  impressão  de  agrado, 
contrapõem-se  dia  a  dia  a  ignorância  irritante 
da  lingua,  o  antagonismo  dos  sentimentos  e 
dos  costumes,  o  orgulho  occidental  em  fricção 
com  o  orgulho  nipponico,  uma  certa  acção 
mórbida  do  clima  e  certamente  ainda  outras 
causas.  O  residente,  em  regra,  afasta-se  a  pouco 
e  pouco  de  tudo  que  seja  japonez,  vivendo 
na  sua  casa,  no  seu  escriptorio,  no  seu  club, 
no  seu  bar  e  no  seu  tcnnis. 

Se  ha  algum  branco  que,  após  demorada 
permanência  n'este  paiz,  ainda  se  commov^a 
pela  paizagem  que  o  envolve,  e  pelo  quadro 
exótico  da  vida  indigena,  votando  franca  sym- 
pathia  ás  glorias  nipponicas,  este  homem  de 
excepção  deve  ser  um  solitário  e  um  excên- 
trico, impróprio  para  o  sport  e  physiologica- 
mente  incapaz  de  esvasiar  de  um  trago  um 
copo  de  whisky  e  soda;  deve,  além  d'isto,  ter 


^4 


268 


tido  a  fatalidade  de  haver  softVido  do  contacto 
dos  seus  similhantes  e  de  não  possuir  um  lar 
amigo,  distante  embora,  que  o  attráia;  deve, 
finalmente,  ter  gasto,  na  experiência  da  vida 
o  seu  farnel  inteiro  de  esperanças  pessoaes. 
Um  tal  sujeito  poderá  viver  evidentemente 
no  Japão,  como  em  outro  qualquer  sitio, 
reduzido  ao  aprazimento  dos  olhos;  uma  es- 
pécie de  homem-pharol  —  permitta-se-me  a 
imagem  —  mas  pharol  para  vèr  e  não  para 
ser  visto,  elevado  sobre  o  árido  rochedo  ideal 
das  suas  desillusòes  e  do  desinteresse  de  si 
mesmo.  Para  taes  olhos  —  e  alguns  tenho  en- 
contrado nas  condições  descriptas,  —  para  taes 
olhos,  o  espectáculo  do  Japão  e  do  seu  pov^o 
é  fascinante !  .  .  . 

Insistindo  no  phenomeno  da  antipathia 
dos  residentes  pelos  nativ-os,  notemos  ainda 
uma  circumstancia  especialmente  curiosa :  — 
é  nas  mulheres  que  tal  antipathia  mais  se 
aninha;  rara  será  a  dama  europeia  residente 
que  não  deteste  o  Japão  e  os  japonezes  ou 
pelo  menos  estes  últimos.  —  Porquê  ?  Vá  a 
gente  metter-se  em  discutir  a  psychologia  fe- 
minina! ...  No  entretanto,  a  medo,  tentarei 
levemente  esclarecer  o  enigma.  Escasseiam  á 
mulher,  em  comparação  com  o  homem,  dotes 
de  analyse    para   descriminar  os  encantos  da 


209 


creação  e  da  paizagem  e  os  encantos  da  arte, 
que  são  o  que  n^ais  emociona  quando  se  pisa 
o  solo  japonez.  A  mais,  ha  o  clima  exótico,  o 
meio  estranho,  que  particularmente  irritam  a 
sua  nervosidade  sensitiva.  A  residente  euro- 
peia é  e]||  regra,  no  Japão,  uma  doente  — 
hysterica,  neurasthenica,  o  que  quizerem.  O 
effeito  desequilibrante  das  longas  viagens  pelo 
mar  sobre  a  compleição  moral  feminina  é  bem 
conhecido  d'aquelles  que  navegam  ;  junte-se  a 
isto  a  permanência,  ainda  mais  perturbadora, 
n'este  paiz  de  tão  flagrantes  contrastes  com 
as  terras  do  branco,  da  branca,  e  assim  nos 
approximaremos  da  explicação  do  caso. 

Dois  factores  ainda,  que  se  me  affiguram 
bem  mais  ponderativos  do  que  os  que  ficaram 
apontados,  concorrem  para  tornar  desagradá- 
vel á  europeia  a  residência  no  Japão,  do  que 
deriva  consequentemente  a  sua  aversão  pelo 
indigena. 

Um  d'esses  factores  resume-se  nas  contí- 
nuas complicações  domesticas  com  os  servi- 
çaes;  dando-se,  por  um  lado,  a  circumstancia 
da  já  n'este  logar  apontada  má  vontade  com 
que  o  criado  japonez,  sobretudo  a  criada  ja- 
poneza,  acceita  o  mister  da  servidão,  e  por 
outro  lado  os  hábitos  de  creoula  em  que  em 
geral  descamba  a  dama,  no  que  a  palavra  ex- 


270 


prime  de  existência  preguiçosa  e  egoísta,  mor- 
dida de  caprichos,  propensa  a  exigir  da  gente- 
de  serviço  as  mais  enfadonhas  tarefas,  os  mais 
aviltantes  empregos.  As  relações  entre  a  dona 
da  casa  (o  termo  aqui  é  mal  cabido)  e  os  seus 
criados  são  sempre  acrimoniosas;  basta  re- 
gistar que  o  assumpto  constitue  a  palestra 
predilecta  do  feminino  loiro  no  Japão. 

O  outro  factor,  que  ficou  para  o  fim  por 
ser  mais  grave,  consiste  na  graciosidade  da 
mulher  japoneza,  para  fallarmos  sem  rodeios. 
A  japoneza  é  dotada  de  uma  graça,  de  uma 
gentileza  enternecedoras ;  a  elegância  do  seu 
trajo  é  adorável;  a  fluidez  das  suas  formas 
e  da  sua  mimica,  os  seus  altos  dotes  em  manu- 
sear as  artes  de  deleite,  a  sua  admirável  com- 
prehensão  das  cores,  no  respeitante  aos  seus 
vestidos,  ás  cousas  de  uso,  de  ornamentação, 
revelam-na  como  uma  creatura  feminina  cheia 
de  encantos,  a  mais  requintada  em  esmeros 
que  ainda  veio  a  este  mundo.  A  europeia 
aprecia  perfeitamente  estes  dons  alheios  e 
sente-se  deprimida,  offuscada.  Tem  inveja, 
tem  ciúmes  da  japoneza,  mal  pôde  encaral-a ; 
alastrando  seu  ódio,  profundo  embora  incon- 
fessado,  ao  povo  inteiro,  ao  próprio  solo  onde 
a  japoneza  pousa,  protegido  sobre  a  sandália 
de  palha,  o  seu  pé  nú,  branco,  esculptural. 


271 


Das  boquinhas  petulantes  das  minhas  com- 
patricias  —  refiro-me  á  grande  pátria  Occiden- 
tal—  chovem  por  vezes  motejos  crudelissimos 
sobre  a  terra  nipponica,  os  quaes  muito  de- 
vem offender  os  ouvidos  dos  seus  deuses  tu- 
telares. —  «  E'  delicioso  este  paiz  —  dizia-me 
ha  poucos  dias  uma  d'ellas,  quando  contem- 
plávamos juntos  um  quadro  de  paizagem 
agreste,  admirável ;  —  é  delicioso,  mas  queria-o 
n'outras  mãos,  sabel-o  com  outros  donos.  .  . » 
—  Sim,  percebo,  ser  ella  a  dona,  de  parceria 
com  as  fufias  das  irmãs  e  outras  senhoras 
do  meu  conhecimento,  e  os  respectivos  papás, 
os  manos  e  os  maridos.  A  picareta  do  pro- 
gresso viria  em  breve  trecho  arrazar  por  com- 
pleto tudo  isto,  demolindo  os  templos,  os  jar- 
dins, as  casinhas  de  papel,  todo  o  conjunto 
que  tão  bem  se  harmonisa  com  o  aspecto  na- 
tural d'este  Nippon ;  e  teríamos  em  troca  as 
afuniladas  egrejas  de  tijolo,  os  casarões  de 
quinze  andares,  os  tennis,  os  parques  de 
jiirtatíon. 

Toiíristcs:  se  algum  dia  souberdes  que  o 
Japão  mudou  de  donos  (catastrophe  que  não 
se  me  apresenta  realisavel),  não  venhaes  cá, 
porque  já  não  hav^erá  nada  que  vêr;  se  insis- 
tirdes na  viagem,  nada  mais  vos  espera,  para 
cumulo  do  vosso  aprazimento,  do  que  o  salão 


272 


cheirando  a  bafio  de  uma  qualquer  matrona, 
no  seu  7'eceptiou  day,  salão  onde  deveis  perma- 
necer por  meia  hora  em  insipido  colloquio, 
com  o  vosso  chapéu  n'uma  das  mãos,  com  a 
chávena  de  chá  preto  n'outra  mão,  com  o 
kake  n'outra  mão,  com  a  sandivich  n'outra 
mão.  .  .  porque,  deveis  saber,  para  esta  g}^- 
mnastica  do  bom  tom  e  pelo  menos  exigivel 
o  ser-se  quadrumano. 

—  Deixando  para  a  ultima  hora  as  noticias 
da  guerra,  eis  o  que  ha. 

A  occupação,  pelos  japonezes,  da  cota 
de  203  metros,  na  visinhança  de  Porto  Arthur, 
collocou-os  em  circumstancias  especialmente 
favoráveis  para  levarem  a  cabo  a  terrivel  em- 
preza  em  que  porham.  D'aquella  altura,  que 
domina  todos  os  fortes  russos  e  d'onde  se 
descobre  a  cidade  e  o  seu  porto,  o  bombar- 
deamento tem  proseguido  tenazmente,  sendo 
o  fogo  dirigido  em  particular  contra  os  restan- 
tes navios  de  guerra  russos,  ancorados  dentro 
do  porto,  do  que  resultou  já  a  sua  quasi 
total  destruição.  Praticamente,  a  bella  esquadra 
moscovita,  enviada  antes  da  guerra  a  estas 
paragens,  desappareceu  por  completo,  com  ex- 
cepção dos  dois  ou  três  cruzadores,  avariados, 
que  ainda  permanecem  em  Vladivostok.  As 
opiniões  mais  dignas  de  credito  julgam  que  a 


273 


derrocada   final  de  Porto  Ailhur   não  se  fará 
esperar  muito. 

Annuncia-se  agora  mais  um  desastre  para 
a  esquadra  japoneza.  No  dia  30  de  novembro, 
o  navio  guarda-costas  «Saiyen»,  quando  mui- 
to junto  de  terra,  cerca  de  Porto  Arthur,  no 
intuito  de  auxiliar  a  acção  das  forças  de  terra, 
tocou  n'uma  mina  submarina  russa,  afundan- 
do-se  logo.  Salvaram-se  191  homens  da  tripu- 
lação, perecendo  31,  entre  os  quaes  o  seu 
commandante. 


XXIII 

22  de  dezembro  de  1904 

Ao  findar  do  anno  —  Noticias  da  guerra — Desejos  de 
paz;  considerações  sobre  o  assumpto  —  Estudo 
acerca  do  nipponico;  a  sua  pintura,  escuiptura, 
musica,  theatro,  poesia,  architeçtura  religiosa  — 
Ultimas  reflexões:  a  «uta»  japoneza  e  a  quadra 
portugueza. 

I^ARTA  do  fim  do  anno,  longa,  fastidiosa 
^■^  como  uma  noite  de  dezembro.  Liberdade 
plena,  porém,  á  benevolente  redacção  do  Com- 
mercio  do  Porto  para  exercer  sobre  esta  mesma 
carta  o  que  O  Lav7'ador  recommenda  coni 
respeito  á  poda  dos  pomares,  desembaraçan- 
do-os  das  ramadas  inúteis,  infructiferas ;  e  como 
ultima  medida,  radical,  resta  ao  leitor  o  doce 
aprazimento  de  pòr  de  parte  a  epistola,  lan- 
çando a  vista  a  assumpto  mais  ameno.  No 
entretanto,  o  i.®  de  janeiro  não  vem  longe, 
dia  em  que  todos  os  japonezes  percorrem  os 
innumeros  templos  que  lhes  ficam  ao  alcance, 
a  fim  de  implorarem  os  deuses  para  que  lhes 
concedam  sobra  de  venturas  e  muitas  coisas 
mais;  e  eu  já  aqui  prometto  que  hei-de  pare- 


2/5 


grinar  também  de  templo  em  templo,  á  japo- 
neza,  rogando  ás  minhas  divindades  tutelares 
que  me  illuminem  e  me  tornem  menos  maça- 
dor n'estes  cavacos.  .  . 

—  Que  ha  da  guerra?  Pouca  coisa.  Che- 
gam noticias  de  algumas  escaramuças  do  lado 
de  Shaho.  Quanto  a  Porto  Arthur,  as  esquadri- 
lhas japonezas  de  torpedeiros  téem-se  empe- 
nhado, n'estes  últimos  dias,  em  vivos  e  succes- 
sivos  ataques  contra  os  restos  da  bella  esqua- 
dra russa  ainda  no  interior  do  porto,  restos 
representados  pelo  «Sebastopol»  e  por  alguns 
dcstroycrs.  Os  japonezes  perderam  bastantes 
vidas  n'estes  ataques,  incluindo  as  de  alguns 
officiaes,  soffrendo  também  avarias;  nem  admira 
que  assim  succedesse,  quando  se  imagine  a 
arriscadíssima  empreza  dos  pequenos  barcos, 
investindo  pelo  porto  dentro,  expondo-se,  sem 
remédio,  á  chuva  de  metralha  lançada  dos 
innumeros  fortes.  Parece,  porém,  que,  em  com- 
pensação, se  attingiu  o  fim  desejado,  restando 
ainda  em  condições  de  navigabilidade,  se  é 
que  resta,  apenas  algum  raro  dcstroycr  do 
inimigo.  Em  terra,  as  forças  sitiantes  occupa- 
ram  mais  uma  posição  importante,  o  forte  de 
leste  do  monte  Kikwan ;  isto  após  corajosa 
resistência  dos  russos,  que,  finalmente,  tiveram 
de  retirar-se,  deixando  no  campo  uns  50  mor- 


2^6 


tos,  abandonando  cinco  canhões  e  outro  ma- 
terial. E'  cedo  ainda  para  fazer  conjecturas 
sobre  a  época  da  queda  completa  da  temivel 
praça  de  guerra. 

Do  Japão  estão  seguindo  constantemente 
novos  reforços  de  tropas  para  o  theatro  do 
conflicto.  Um  recente  decreto  imperial,  que 
elevou  de  três  a  dez  annos  o  serviço  das  re- 
servas, garante  sobra  de  soldados  para  esta 
lucta  tremenda  que  se  fere.  Está  sendo  mesmo 
a  nota  caracteristica  da  cidade  onde  me  encon- 
tro, a  ornamentação  festiva  das  casas  habita- 
das pelos  reservistas  que  vão  partir  para  a 
guerra,  e  os  cortejos  de  amigos  que  os  acom- 
panham processionalmente  pelas  ruas,  até  á 
próxima  estação  da  linha  férrea. 

—  Vai-se  registando,  pela  imprensa  euro- 
peia, uma  notável  insistência  de  desejos  de 
paz,  no  que  respeita  ao  terrível  drama  do 
Extremo-Oriente.  Admittamos  que  são  since- 
ros e  honestos  taes  desejos.  Effectivamente,  a 
sangrenta  lucta  que  se  fere,  deve  ir  impressio^ 
nando  dolorosamente  os  espiritos  cultos  e  os 
espíritos  bons;  e  todos  os  esforços  desinte- 
ressados, que  se  empreguem  no  sentido  de 
aproximar  de  uma  solução  pacifica  o  proble- 
ma extremo-oriental,  merecem  um  caloroso 
applauso. 


7/ 


No  entretanto,  é  licito  perguntar-se  como 
é  que  os  occidentaes  comprchendem,  por  seu 
lado,  essa  paz  tão  almejada ;  se  se  trata  apenas 
de  um  simples  exercicio  declamatório,  para  dar 
franca  vasão  á  rhetorica  dos  publicistas;  ou 
se,  francamente,  todos  se  propõem  collaborar 
para  uma  longa  tranquillidade,  tão  necessária, 
da  região  de  que  me  occupo.  A  paz  ha-de  che- 
gar, cedo  ou  tarde;  mas  será  ella  durável? 
Affigura-se-me  difíicil  que  assim  aconteça, 
tendo  em  conta  a  insaciável  ambição  das  gran- 
des potencias  da  Europa  e  da  America  e  o 
enorme  orgulho  da  raça  branca.  No  presente 
estado  do  grande  edifício  social,  a  America  é 
da  America,  e  escusamos  de  pensar  mais 
n'ella;  a  Africa,  claramente,  não  é  da  Africa, 
mas  de  um  certo  numero  de  nações  europeias, 
que  já  se  entretiveram  em  retalhal-a  em  peda- 
ços, occupando-se  agora  cada  qual  em  tirar, 
como  pôde,  o  melhor  proveito  do  seu  pedaço. 
Mas  isto  não  basta.  Por  um  lado,  a  ambição 
dos  grandes  e  dos  ricos  não  se  mostra  satis- 
feita ;  por  outro  lado,  a  miséria  do  proletário 
augmenta  em  graves  proporções.  Evidente- 
mente, o  mundo  civilisado  prosegue  por  um 
caminho  falso;  este  caminho  não  leva  á  felici- 
dade dos  povos,  pois  que  os  vemos  debate- 
rem-se,   com  anciã  crescente,  contra  a  fome, 


2;8 


chafurdando  no  charco  niephitico  da  ignorân- 
cia, do  impudor,  da  dev^assidão  e  do  crime. 
Quando  nos  extasiemos  perante  os  maravilho- 
sos resultados  a  que  os  homens  téem  sabido 
elevar  todas  as  sciencias  do  conhecimento 
humano,  parece  que  devemos  confessar  que 
n'uma  só  se  mostram  incapazes  —  a  sciencia 
social, —  rocha  concreta,  resistindo  a  todas  as 
tentativas  do  obreiro.    . 

Não  vem  para  aqui  o  discutir  se  seria  me- 
ritório uni  enorme  esforço  de  remodelação, 
abandonando  o  caminho  errado,  voltando  para 
traz  e  procurando  outro  trilho,  que  nos  pare- 
cesse levar  mais  efficazmente  ao  ideal  que  se 
deve  ter  cm  vista,  que  é  a  felicidade  das 
massas.  Basta-nos  agora  tomar  nota  do  estado 
febricitante  em  que  se  encontra  a  cobiça  mun- 
dial, do  qual  deriva  fatalmente  a  politica  de 
expansão  e  de  conquista.  Comprehendemos, 
pois,  sem  surpreza,  o  motivo  das  vistas  insis- 
tentes lançadas  ha  alguns  annos  sobre  o  con- 
tinente asiático,  o  menos  explorado  e  não  o 
menos  rico ;  hoje  ainda  mais  em  evidencia, 
mercê  da  guerra  russo-japoneza,  que  está, 
por  assini  dizer,  valorisando-lhe  o  terreno. 
As  investidas  começaram.  A  espoliação  mate- 
rial está  provada,  não  precisamos  insistir  no 
assumpto :   Kiau-chau   (para   não  irmos  mais 


279 


longe  nos  tempos),  nas  mãos  dos  allemães; 
Wei-hai-wei,  nas  mãos  dos  inglezes;  Tonkin, 
parte  de  Siam,  nas  mãos  dos  francezes ;  e  nas 
mãos  dos  russos,  embora  actualmente  es- 
cancaradas e  quasi  deixando  fugir  o  pás- 
saro. .  .  o  que  se  sabe.  Mas  ha  muito  mais: 
o  problema  da  repartição  da  Ásia  pelos  esta- 
dos da  raça  branca  é  hoje  negocio  assente, 
esperando-se  apenas  opportunidade  para  a  sua 
tremenda  realisação. 

Quanto  ao  desprezo  e  ao  orgulho  interes- 
seiro com  que  o  occidental  encara  o  asiático, 
é  também  matéria  fácil  de  esclarecer.  Se  o 
asiático  se  apresenta  utilisavel  como  massa 
combustível,  para  atear  a  effervescente  labuta 
das  grandes  actividades  lucrativas,  eil-o  ex- 
pedido como  carga,  como  fardo,  a  bordo  dos 
vapores  que  se  dirigem  á  Africa  do  Sul  e  a 
outros  pontos,  a  fim  de,  com  o  seu  suor,  com 
a  sua  vida,  sacar  do  solo  as  riquezas  escon- 
didas —  ouro,  prata,  diamantes  —  para  gáudio 
dos  grandes  sjnidicatos.  Quando,  porém,  nos 
centros  aonde  a  existência  deslisa  amena- 
mente, o  mesmo  asiático  se  offerece  como  um 
competidor  ao  trabalho  do  branco  (por  ser 
mais  sóbrio  e  mais  modesto  do  que  o  branco), 
é  escorraçado  como  cão  damnado,  fecham-se- 
Ihe   as   portas  sob   todos   os   pretextos.   Nos 


28o 


Estados-Unidos,  o  chinez  só  tem  entrada 
quando  desembolse  de  chofre  uma  grossa 
quantia  e  continue  pagando  uma  alta  taxa  de 
residência;  o  ingresso  aproveita,  pois,  só  aos 
ricos,  ainda  assim  sujeitos  a  longas  formali- 
dades e  a  não  raros  vexames.  Na  Austrália, 
nenhum  estranho  é  admittido  sem  primeiro 
provar  que  sabe  escrever  em  uma  lingua 
qualquer  europeia,  o  que  é  o  mesmo  que 
dizer  que  este  bello  paiz  se  acha  praticamente 
defezo  á  grande  maioria  dos  asiáticos. 

Mas,  emquanto  que  os  occidentaes  vão 
decretando  estas  estupendas  leis  e  outras 
equivalentes  contra  os  asiáticos,  estes  mesmos 
occidentaes  gozam  do  livre  accessò  nos  paizes 
asiáticos.  Quando,  por  excepção,  os  chinezes 
mostram  desejos  de  que  os  estrangeiros  se 
retirem  do  seu  solo,  estes  não  se  retiram,  vão 
ficando;  e  dá-se  então  a  revolta,  não  dos 
estrangeiros,  como  parecia  lógico  chamar-se- 
Ihe,  mas.  .  .  dos  chinezes,  dos  hoxcrs.  Ima- 
gine-se  agora,  por  um  momento,  que  o  Japão, 
que  é  no  entretanto  dos  Estados  asiáticos  o 
que  exerce  com  mais  effectiva  liberdade  os 
seus  direitos  de  soberania,  imaginemos  agora 
que  o  Japão  decretava  uma  lei,  prohibindo  a 
entrada  dos  estrangeiros  que  não  soubessem 
escrever  em  uma  lingua  asiática!  .  .  .  Está-se 


28 1 


imaginando  a  erupção  de  rhetorica  indignada 
que  partiria  do  mundo  que  se  diz  civilisado,  e 
a  sua  prompta  acção,  coUectixamente  aggres- 
siva,  para  pôr  termo  ao  que  então  se  appelli- 
daria  pomposamente  —  os  desmandos  do  bar- 
barismo !  —  E  reparem  os  meus  caros  leitores 
que  uma  tal  lei,  que  viesse  dos  japonezes,  seria 
por  vários  motivos  justilicavel,  quando  se  pen- 
se na  horda  de  pseudo-mariniieiros  vadios, 
desordeiros  e  dissolutos,  que  invadem  os  portos 
abertos  ao  commercio ;  quando  se  observem  as 
diversas  tabernas  instituídas  para  regalo  d'estes 
clientes,  constituindo  terríveis  focos  de  des- 
moralísação  dos  costumes;  quando  se  fixe  a 
turba  crescente  dos  pequeninos  mestiços, 
passeando  a  sua  orphandade  e  a  sua  miséria 
pelas  ruas ;  quando  se  note,  emfim,  que  muitos 
attritos  internos  provêem  da  presença  dos 
residentes  estranhos;  tudo  isto,  sem  já  lembrar 
a  séria  concorrência  que  estes  mesmos  estra- 
nhos exercem  em  muitos  ramos  de  negocio, 
com  prejuizo  dos  interesses  nati\os.  Pela 
China,  pela  Indo-China,  pelo  Siam,  por  todo  o 
Extremo-Oriente,  é  o  mesmo,  ou  peor. 

Ora,  relanceando  assim,  muito  por  alto,  a 
maneira  de  julgar  e  de  proceder  de  todos  os 
occidentaes,  no  que  respeita  ás  suas  relações 
sociaes  com  os  povos  do  Extremo-Oriente,  é 


282 


licito  que,  voltando  ás  primeiras  reflexões 
d'este  artigo,  perguntemos  mais  uma  vez :  — 
Quando  a  paz  chegar,  cedo  ou  tarde,  será 
ella  durável?  —  Se  a  raça  branca  entende  per- 
sistir na  sua  philosophia  de  orgulho  e  de  am- 
bições, a  paz  não  poderá  ser  durável;  porque 
o  Japão  já  não  poderá  assistir,  silencioso  e 
humilde,  aos  duros  ataques  contra  os  inte- 
resses do  continente  visinho,  interesses  que 
são  os  seus  próprios,  e  contra  a  sua  hegemo- 
nia no  Extremo-Oriente;  e  também  porque 
a  Ásia,  a  Ásia  em  peso,  acorda  n'este  momen- 
to da  sua  longa  modorra,  como  que  rejuvenes- 
cida pelo  sopro  de  vitalidade  que  lhe  chega 
de  perto,  do  pedaço  mais  nobre  doseu  torrão; 
e  foi  a  Europa  que  a  acordou  .  .  .  Se,  pelo 
contrario,  as  potencias  do  Occidente  resolvem 
adoptar  uma  politica  mais  equitativa  e  con- 
ciliadora para  com  os  povos  asiáticos,  então 
será  durável  a  paz,  nem  a  Ásia  reclama  outra 
cousa. 

A  Ásia  prosegue  na  sua  evolução,  acre- 
ditai ;  mas  lentamente,  muito  lentamente,  e  sem 
carecer  dos  esti mulos  de  fora,  que  pelo  con- 
trario a  prejudicam.  No  entretanto,  as  duas 
grandes  familias  humanas,  branca  e  amarella, 
nunca  se  poderão  fundir  uma  na  outra,  por 
dissidências     ethnicas,     por     dissidências    de 


283 


civilisações,  civilisações  consolidadas,  comple- 
tas, mas  distinctas,  mas  em  flagrante  antago- 
nismo. Poderão,  porém,  marchar  parallelamente 
uma  com  a  outra,  sem  se  prejudicarem,  antes 
auxiliando-se  na  permutação  de  que  necessitem 
e  saudando-se  cortezmente;  eis  o  mais  que  é 
permittido  esperar-se  do  convívio  das  duas 
raças. 

Está  em  uso,  em  linguagem  figurada  e 
pittoresca,  representar  a  Rússia  por  um  urso; 
a  Inglaterra  ó  o  leopardo;  a  Hespanha  é  o 
leão ;  outros  paizes  reclamarão  para  o  seu 
symbolo  outros  brutos.  Talvez  que  esta  assas 
humorística  imagem  de  uma  nmiageric  uni- 
versal resuma  em  si  um  conceito  philosophico 
de  alto  ensinamento,  mas  não  nos  detenhamos 
em  sondal-o:  admittamos  o  facto.  Pois  bem, 
feras  do  Occidente :  —  deixae  em  paz  o  dragão 
oriental;  não  o  exciteis,  não  o  provoqueis  á 
lucta,  isto  por  vários  motivos  peremptórios, 
incluindo  o  da  prudência ;  esphacelae-vos,  se  a 
tanto  vos  impelle  o  instincto,  entre  vós  mes- 
mos, mas  deixai  em  paz  o  dragão  oriental.  .  . 

— Quando  pretendamos  aprofundar,  embora 
levemente,  o  mysterio  da  alma  japoneza,  con- 
ceber uma  ligeira  ideia  da  requintada  e  exótica 
sentimentalidade  d'esta  interessantíssima  tribu 
de  delicados,  o  melhor  caminho  que  temos  a 


284 


seguir  —  como  não  poucas  vezes  acontece  — • 
é  o  mais  longo.  Não  será  quando  propozermos 
a  nós  mesmos  questões  preciosas,  directas, 
sobre  a  emotividade  do  nippenico  —  estas, 
por  exemplo:  como  elle  ama  a  mulher?  como 
supporta  a  dòr?  como  encara  os  revezes?  — 
que  chegaremos  a  conhecel-o.  Os  taludes  do 
castello  são  deniasiado  em  alcantil  para  pen- 
sarmos em  tomal-o  por  assalto.  São  precisos 
rodeios.  O  que  se  nos  offerece  de  mais  apra- 
zível e  com  maiores  probabilidades  de  bom 
êxito,  é  o  estudarmos  o  individuo  pela  sua 
obra,  isto  é,  pelas  suas  manifestações  artísticas 
e  outras  creações;  documentos  que  persistem, 
visíveis,  palpáveis,  prestando-se  ■  complacente- 
mente ao  exame  e  á  analyse.  De  taes  inves- 
tigações ameníssimas  que  nos  enfeitiçam,  que 
nos  prendem  amorosamente  o  espirito,  algumas 
surprezas  inéditas  poderemos  colher  sobre  a 
sentimentalidade  subtil  dos  filhos  do  paiz  do 
Sol  Nascente  e  registal-as  na  nossa  carteira 
de  apontamentos. 

A  pintura,  a  esculptura,  a  musica,  o 
theatro,  a  poesia,  a  architectura  religiosa,  a 
construcção  da  casa,  o  aninho  do  lar,  a  arte 
ornamental  dos  ramos  de  flores,  a  arte  de 
servir  o  chá,  a  arte  de  jardinagem,  e  mais,  e 
mais,  offerecem-nos  vasto  e  riquíssimo  campo 


285 


de  exploração.  Já  n'estas  correspondências 
tiv^e  ensejo  de  referir-me  á  pintara  japoneza, 
e  possivelmente  ainda  \'oltarei  ao  assumpto, 
que  se  me  affigura  cheio  de  interesse ;  mas 
hoje  fallarei  da  poesia,  menos  tangivel  que 
a  pintura,  mas  não  menos  rica  em  filões 
auriferos,  se  a  ouro  se  pôde  comparar  a  ruti- 
lante feição  psychologica  d'estes  extraordiná- 
rios asiáticos. 

A  poesia,  no  Japão,  não  é  um  privilegio 
dos  educados.  E'  de  todos,  todos  a  comprehen- 
dem,  todos  são  poetas,  todos  são  capazes  de 
fazer  versos.  A  poesia  não  é  só  de  todos,  é 
de  tudo,  está  em  tudo.  Dir-se-hia  a  alma  da 
nação,  fiuido  subtilissimo  em  que  se  embebe 
a  inteira  paizagem,  que  fluctua  sobre  as  aguas, 
que  se  respira  no  ar,  que  embriaga  nativos  e 
até  estranhos. 

A  poesia  japoneza,  expressa  em  palavras, 
reduzida  a  documento  escripto,  é  representada 
principalmente  pela  uta,  espécie  de  pequeno 
poema,  de  pequena  canção,  de  que  restam 
milhares  de  exemplos,  retidos  desde  os  mais 
remotos  tempos  históricos  d'este  povo.  Os 
japonezes  também  compõem  o  poema  segundo 
as  regras  chinezas,  género  de  exercicio  clás- 
sico, que  não  corresponde  á  alma  nacional, 
e  do  qual  não  me    occuparei  n'este  logar;  e 


286 


mui  modernamente  um  ou  outro  innovador 
pretende  imitar  a  poesia  Occidental,  resultando 
um  producto  ainda  mais  hybrido  e  que  nem 
merece  menção. 

N'uma  compilação  de  uta,  feita  no  século  x 
da  nossa  era,  os  compiladores  dão  a  seguinte 
definição  do  poema  indigena:  —  «  Yamato  uta^ 
a  poesia  de  Yamato  (do  Japão),  reside  no  co- 
ração do  homem,  mas  é  depois  expressa  em 
palavras.  O  homem  occupa-se  de  tudo  e  ma- 
nifesta o  seu  sentimento  sobre  tudo  que  vê, 
e  sobre  tudo  que  ouve.  Mas  escutae  a  voz  do 
rouxinol  pousado  sobre  as  flores,  e  a  voz  da 
rã  emergindo  dos  charcos,  e  comprehendereis 
que  todos  os  seres  compõe  a  slia  tita.  Com- 
mover  o  céo  e  a  terra  sem  empregar  nenhuma 
violência,   fazer  chorar  os  próprios  génios  in- 
visiveis,  amenisar  as  relações  dos  dois  sexos 
e  consolar  o  espirito  dos  guerreiros  corajosos, 
tal   é   o   fim  da  tita.  »  —  Após  dez  séculos  de 
distancia,  a  teta  dos  nossos  dias  ainda  se  pôde 
definir  pelas  mesmas  palavras ;  é  ainda  o  mur- 
múrio  espontâneo,   quasi  inconsciente,  que  o 
japonez   solta,   como   o   rouxinol,  como  a  rã, 
para  traduzir  o   seu   sentimento,   de  desejos, 
de  alegria,  de  máguas  ou  de  dòr.  Se  o  espirito 
devaneia,   o  japonez  escreve   um   poema;  se 
ama,    escreve   um   poema;   se   soffre,  escreve 


287 


um  poema;  antes  de  siiicidar-se,  escreve  um 
poema;  ha  algumas  semanas,  na  Mandchuria, 
um  soldado  moribundo,  cabido  no  campo  de 
batalba,  escrevia  um  poema,  molbando  o  in- 
dicador no  sangue  das  próprias  feridas. 

Na  casa  nipponica  encontra-se  frequente- 
mente o  kakemono,  que  é  um  desenbo,  sobre 
parei  ou  seda,  suspenso  da  parede;  mas  ainda 
mais  frequentemente  se  encontra  o  gakn,  isto 
é,  o  pequeno  quadro,  sobre  o  qual  a  mão 
hábil  de  um  calligrapho  traçou  um  poema,  a 
uta  enternecedora.  O  japonez,  na  paz  do  lar, 
apraz-se  em  pousar  os  olhos  n'aquelles  cara- 
cteres, seguindo  mentalmente  a  evolução  pa- 
thetica  da  phrase,  por  longo  tempo,  até  que 
a  imaginação  abra  as  azas  e  suba  a  \'oar,  no 
mundo  das  chimeras.  Mas  não  é  só  do  quadro 
que  a  tita  enfeitiça  o  sonhador:  na  parede,  no 
biombo,  na  toalha  de  enxugar  o  rosto,  na 
ventarola,  na  chávena  de  chá,  na  taça  de 
vinho,  no  cachimbo  de  metal,  no  espelho,  em 
mil  e  mil  objectos  de  uso  quotidiano,  se  en- 
contra o  poemeto,  escripto  ou  gravado,  para 
regalo  dos  olhos. 

Ora  a  pintura  japoneza  caracterisa-se 
pelos  contornos  indecisos,  pelos  tons  vapo- 
rosos, apenas  esboçados,  pintura  pouco  re- 
presentativa das  coisas,  antes  inxocadora  de 


288 


reminiscências;  é  n'isto  que  se  apraz  a  alma 
japoneza.  Pois  a  uUi  participa  da  mesma  in- 
consistência, da  mesma  fluidez,  da  mesma 
parcimonia  de  detalhes.  Como  a  pintura,  é 
mais  do  que  tudo  um  estimulo  das  nossas 
recordações,  do  que  vimos,  do  que  sentimos, 
do  que  soffremos.  Reduzido  em  geral  cada 
poema  a  dimensões  Ínfimas,  não  excedendo 
ordinariamente  trinta  e  uma  syllabas,  con- 
tendo ás  vezes  apenas  dezesete,  a  habilidade 
do  poeta  consiste  em  grupar  dentro  d'estes 
curtos  limites  uma  sufficiente  escolha  de  pa- 
lavras, que  suggiram  uma  profunda  impressão 
intima.  Esta  circumstancia  torna  por  vezes 
muito  difficil  a  interpretação  da  tita,  sobretudo 
para  estrangeiros. 

Exemplifiquemos.  Cito  para  estreia  algu- 
mas uta  que  encontro  no  delicioso  livro  In 
Ghostly  Japan,  de  Lafcadio  Hearn,  apresen- 
tando apenas  para  a  primeira  o  original  ja- 
ponez : 


Chôchô  ni ! . .  . 

Kyonem  shishitaru 

Tsuma  koishi  I 


Traduzindo: -- «Duas  borboletas!  ...  no 
anno  passado,   morreu  a  minha  querida  es- 


289 


posa !  »  —  Um  sujeito  viu  duas  borboletas, 
talvez  no  seu  jardim,  e  irrompe  com  a  excla- 
mação que  reproduzo.  Que  quer  isto  dizer? 
Saiba-se  que  um  casal  de  borboletas  é  o 
symbolo  gracioso  da  união  conjugal  n'este 
paiz,  sendo  até  de  uso  enviar  duas  borboletas 
de  papel  com  o  presente  de  noivado.  Agora 
comprehende-se  o  resto. 

Outra  tita^  esta  profundamente  enternece- 
dora:  —  «  Oh,  vento  que  trespassa  o  coração  ! 
as  marcas  dos  dedinhos  sobre  o  papel  das 
corrediças !  .  .  . »  —  Que  é  isto  ?  O  poema  é  o 
de  uma  dolorida  mãe,  que  acaba  de  perder  o 
seu  filhinho.  As  casas  japonezas,  ao  longo 
das  extensas  \'arandas,  são  providas  de  gran- 
des caixilhos  de  madeira,  cobertos  de  papel, 
formando  corrediças  de  alto  a  baixo,  que  se 
unem  umas  de  encontro  ás  outras,  no  in- 
\'erno;  as  creanças  divertem-se  a  furar  o 
papel  com  as  pontas  dos  deditos ;  pelos  bu- 
racos penetra  o  vento,  que  no  caso  presente 
\'inha  ferir,  como  um  punhal,  o  coração  da 
pobre  mãe.  .  . 

Eis  outra  tita,  curiosissima,  attribuida  á 
poetisa  Chiyo,  de  remota  fama.  Um  dia,  pro- 
pozerani-lhe  que  compozesse  um  poema  de 
17  syllabas,  o  qual  se  referisse  ao  quadrado, 
ao  triangulo  e  ao  circulo;  ella  respondeu  de 

13 


2QO 


prompto:  —  «Desatando  uma  ponta  do  mos- 
quiteiro, eis-me  contemplando  a  lua !  .  .  .  »  — ■ 
Expliquemos :  no  Japão  ha  muitos  mosquitos, 
principalmente  no  vercão ;  os  japonezes  ser- 
vem-se,  durante  a  noite,  de  mosquiteiros  de 
espesso  gaze  verde,  amarrados  pelas  quatro 
pontas  ao  tecto  do  quarto  de  dormir,  muitas 
vezes  escancarado  á  brisa;  ora,  o  mosquiteiro 
envolve  a  ideia  de  quadrado ;  desatando  uma 
ponta,  íicando  assim  o  mosquiteiro  suspenso 
só  por  três,  fica  expressa  a  ideia  de  triangulo ; 
a  pessoa  deitada  pôde  então  debruçar  a  ca- 
beça fora  do  mosquiteiro  e  contemplar  a  lua, 
que  é  circular.  .  . 

Consta  que  em  Okayama,  não  sei  porque 
dura  expiação  de  crime,  uma  misera  rapariga 
passou  toda  a  sua  vida  enclausurada.  Pouco 
antes  de  morrer  compòz  a  seguinte  poesia:  — 
«Nasci  em  Okayama,  provincia  de  Bizen ;  uma 
espiga  de  arroz.  .  .  ainda  não  sei  o  que  seja!» 
—  A  ideia  do  permanente  sequestro  á  vida  e 
ao  contacto  com  os  enlevos  da  creação  não 
poderia  melhor  exprimir-se,  nem  mais  sentida- 
mente, do  que  por  esta  ignorância  do  que  seja 
a  espiga  do  arroz,  n'um  paiz  onde  o  arroz  é  o 
pão  do  povo  e  os  arrozaes  constituem  a  mais 
vulgar  cultura.  Isto  aconteceu  ha  muito  tempo; 
mas    parece   que    a   cantiga  ficou   retida  por 


291 


todas  as  moças  de  Okayama,  muitas  das 
quaes  emigram  temporariamente  para  outras 
provincias,  no  mister  de  serviçaes;  e  quando 
a  patroa  pergunta  a  alguma  d'ellas:  —  «De 
que  terra  és  tu,  rapariga?»  — ella  responde  in- 
variavelmente, por  modéstia,  por  humildade:  — 
<'  Nasci  em  Okayama,  provinda  de  Bizen  ;  uma 
espiga  de  arroz. .  .  ainda  não  sei  o  que  seja ! » 

Mais  outra  lUa,  esta  deliciosa  de  ingenui- 
idade:  —  «A  asagao  enleou-se  no  poço;  vai-se 
buscar  agua  fora  »  —  Asagao  e  uma  trepadeira 
[annual,  ofterecendo  innumeras  e  bellas  varieda- 
ides,  florescendo  no  verão  em  jardins  e  campos, 
[onde  nasce  quasi  espontaneamente.  Ora  um  pé 
|d'esta  planta  medrou  junto  do  poço,  abraçou-se 
^casualmente  a  uma  das  duas  ripas  a  prumo, 
[trepou  até  á  ripa  transversal,  enrolou-se  á  rol- 
dana e  á  corda  do  balde.  .  .  por  piedade  não 
[se  molesta,  xai-se  buscar  a  agua  a  outra  parte. 

Ainda  outra  nta,  puramente  pittoresca, 
'recordando  uma  paizagem  vista,  no  inverno: 
f — «Aldeia  de  neve;  cantam  os  gallos;  aurora 
alvacenta.  .  .» 

Seguem  mais  algumas  iita^  para  terminar 
as  citações,  deixando  ao  leitor  o  cuidado  de 
commental-as.  Notaremos  que  umas  são  exclu- 
sivamente descriptivas,  pittorescas,  graphicasy 
fallando  aos  olhos;  outras  vão  ferir  de  prefe- 


292 


rencia  o  mysterio  da  nossa  sentimentalidade; 
outras  ainda  trazem  comsigo  um  como  que 
perfume  de  amor,  subtilissimo,  porém,  indefi- 
nido, porque  o  pudor  japonez  recusa-se  a 
cantar  a  graça  de  uns  olhos  travessos  ou  a 
frescura  de  uma  bôcca  appetecivel.  Mas  voamos 
ás  citações. 

—  «Contemplando  em  torno,  vejo  as  flores 
misturarem-se  á  \'erdura  dos  salgueiros.  Bro- 
cado, tecido  pelas  mãos  da  primavera. » 

—  «Meiga  e  limpida  pela  noite,  a  voz  de 
um  rapazinho  que  estuda,  lendo  alto,  um 
livro.  .  .  Também  eu  ti\'e  um  rapazinho.  . . » 

— « Vós  sois  como  a  arvore  de  momiji, 
cujas  folhas  mudam  de  cor  com-  as  estações ; 
eu  sou  como  o  pinheiro,  do  mesmo  verde 
constante  em  todos  os  dias  do  anno. » 

—  «Não  imagineis  que  os  sonhos  só  appa- 
recem  de  noute,  ao  adormecido;  os  sonhos, 
n'este  mundo  de  soffrimento,  também  nos 
apparecem  de  dia. » 

—  «Da  semente,  cabida  sobre  a  rocha, 
nasce  e  prospera  o  pinheiro.  O  amor  não  tem, 
pois,  grandes  exigências. » 

— « Todas  as  noutes,  fixando  as  nuvens, 
penso  em  alguém,  que  vi\'e  sob  outros  hori- 
zontes. .  .» 

— -  « O  perfume  das  fiôres  das  ameixeeiras 


^93 


do  meu  jardim  é  mais  agradável  do  que  a  sua 
côr.  .  .  Quem  foi,  pois,  a  encantadora  pessoa, 
cujas  mangas  do  kímono  roçaram  por  estas 
flores  ?  . .  . » 

—  « Junto  das  margens  da  ribeira,  como  é 
delicioso  brincar!  .  .  .  Mas  tomae  cuidado,  bor- 
boletas do  outomno !  .  .  .  » 

—  «  Sobre  a  neve  recente,  as  pegadas  dos 
cães  deixam  a  impressão  de  flores  de  amei- 
xeeiras. » 

—  «Oh,  o  rústico  lago!  e  o  som  das  rãs 
atirando-se  á  agua!  ...» 

— « Quando  fixo  o  olhar  para  os  lados 
onde  o  cuco  se  achava  cantando,  nada  está; 
vejo  apenas  a  lua,  começando  a  erguer-se  no 
horizonte. » 

— « A  ílòr  da  glycinia  pende  de  altas 
latadas,  em  longos  cachos.  Quem  quizer  con- 
templal-a,  tem  de  olhar  para  o  céu. » 

Fiquemos  por  aqui  em  exemplos.  Digamos 
ainda  que  a  nta,  tão  antiga  como  antigo  é  o 
Japão,  tem  merecido  até  hoje  particular  esti- 
ma. .  .  Resiste  á  onda  demolidora  das  velhas 
tradições.  Até  no  palácio  imperial  se  cultiva 
amorosamente.  Em  cada  anno,  em  janeiro,  o 
imperador,  a  imperatriz,  os  nobres  da  corte, 
compõem  sobre  um  dado  thema  um  poema 
de  trinta  e  uma  syllabas,  espécie  de  concurso, 


294 


-a  que  a  nação  inteira  é  convidada  a  concor- 
rer; chovem  então  no  palácio  muitos  milhares 
de  poesias.  Os  themas  téem  sido,  n'estes  últi- 
mos annos :  —  pinheiros  reflectindo-se  nas 
aguas;  congratulações  comparadas  a  uma 
montanha;  a  longevidade  do  bambu  verde: 
pinheiros  cobertos  de  neve. 

—  Umas  ultimas  reflexões.  A  traducção,  va- 
sada  em  molde  poético,  da  ?^/^  japoneza,  seria 
um  trabalho  interessantissimo,  posto  que 
erriçado  de  difíiculdades  para  aquelle  que  ten- 
tasse fazel-o  n'uma  lingua  qualquer  europeia. 
Ha  alguns  ensaios  do  género,  principalmente 
em  inglez  e  francez.  Em  portuguez,  nada,  é 
claro;  os  nossos  próprios  missionários  e  mer- 
cadores, que  descobriram  o  Japão,  para  a 
Europa,  eram  pouco  dados  ás  musas.  A  meu 
vêr,  em  lingua  portugueza,  seria  a  quadra  po- 
pular que  melhor  corresponderia  á  uta  nippo- 
nica.  Primeiramente,  pela  sua  estructura,  limi- 
tada a  imi  curto  numero  de  syllabas,  como 
acontece  na  uta.  Em  segundo  logar,  porque 
a  quadra,  que  em  Portugal  traduz  em  regra  a 
poesia  do  povo,  é  o  género  que  melhor  se  ada- 
pta á  ingenuidade  lyrica  da  uta,  que  também 
é  poesia  do  povo,  embora  seja  a  poesia  de 
todos. .  .  não  havendo  ainda,  felizmente,  poetas 
de  academia  no  Japão. 


Í95 


Mal  liaja  quem  inventou 
No  mar  andarem  navios, 
Porque  foi  o  causador 
Dos  meus  olhos  serem  rios! 


Oh  águia,  que  vaes  voando 
Por  essas  serras  de  além  ! 
Leva-me  ao  céu,  onde  assiste 
A   alma  de  minha  mãe  !  .  . . 


E  tantas,  e  tantas  outras  deliciosas  qua- 
dras, na  inexgotavel  fonte  do  cancioneiro  por- 
tuguez!  .  . .  Não  vos  parece,  pois,  se  este  artigo 
alguma  attenção  vos  mereceu,  que  a  quadra 
portugueza  poderia  bem  passar,  muitas  vezes, 
por  uma  íita  japoneza,  aportiiguczada^  pela 
sobriedade  na  phrase,  pela  delicada  observação, 
pela  exuberante  poesia  que  exhala?  Não  é 
que  o  portuguez  haja  aprendido  a  fazer  versos 
com  o  japonez,  ou  este  com  aquelle;  mas  é 
porque  ambas  as  composições  traduzem  sem 
rodeios  a  espontaneidade  sentimental  dos  dois 
povos,  e  a  alma  do  povo  é  por  toda  a  parte 
a  mesma,  pondo  de  parte  ligeiras  divergências 
de  meio,  de  costumes,  de  educação. 

Ainda  n'uma  particularidade  a  quadra  po- 
pular portugueza  faz  lembrar  a  tita  nipponica. 
A  quadra  não  tem  aiictor,  o  seu  auctor  é  a 
turba ;  apenas,  quando  muito,  se  lhe  assignala 


296 


uma  origem,  uma  determinada  provinda  do- 
paiz.  Pois  também  a  uta  japoneza  corre  ano- 
nyma,  de  bôcca  em  bòcca ;  apenas  são  conhe- 
cidos os  seus  colleccionaiores,  que  de  longe 
em  longe  se  dão  á  tarefa  de  colher,  como- 
flores  em  campinas,  estas  flores  da  alma 
japoneza,  grupando-as  em  volume,  em  ra- 
malhete. .  , 


I 


XXIV 
5  de  janeiro  de  1905 

Anno  novo  japoncz  —  Apreciação  a  um  artigo  sobre  o 
Japão  —  Raças  superiores  e  raças  inferiores  —  O 
perigo  afnare/lo  e  o  J/agelh  branco  —  Divaga- 
ções sobre  o  que  do  despertar  da  Ásia  resultará 
para  a  Europa  e  para  o  mundo  —  Episódios  curiosos 
da  campanha  —  Os  cossacos  e  a  cavallaria  japoneza 
—  Porto  Arthur  rendeu-se! 

IV/rais  um  anno  que  se  foi;  mais  uma  conta 
esbrugada  do  rosário  da  vida.  .  .  Entra- 
mos no  anno  de  1905  da  éra  christã;  ou,  se 
me  permittem  fallar  com  mais  propriedade, 
com  referencia  ao  paiz  onde  habito,  entramos 
no  38.®  anno  da  éra  de  Meiji.  No  Japão,  como 
é  geralmente  sabido,  contam-se  os  annos  em 
grupos  de  eras,  assignaladas  por  algum  grande 
facto  da  historia  pátria ;  e  esta  em  que  estamos, 
chamada  de  Meiji  (Grandiosa),  principia  com 
o  notabilissimo  acontecimento  histórico  conhe- 
cido pela  Restauração  Imperial  (1868). 

O  dia  i."  de  janeiro  amanheceu  sereno  e 
límpido;  e  aqui,  como  acolá,  como  além,  por 
toda  a  região  central  do  Nippon,  cidade  e  cam- 


298 


pos  apresentaram-se  vestidos  de  uma  alvis- 
sima  camada  de  neve.  Delicioso  espectáculo ; 
mesmo  de  auspicioso  agouro,  como  que  tra- 
zendo á  ideia  uma  delicada  sensação  de  pureza, 
de  candura,  na  obra  esplendida  da  creação !  .  .  . 
Nas  florestas  e  nos  jardins  as  arvores  e  os 
arbustos  offereciam  um  aspecto  encantador, 
dir-se-hiam  recamados  de  brancas  florescencias 
estranhas.  Nas  ruas,  atapetadas  de  fofas  alvu- 
ras, destacavam-se  gentilmente  as  figurinhas 
negras  dos  transeuntes,  muito  correctos  nas 
suas  longas  sobrecasacas  e  nos  seus  chapéus 
altos,  de  etiqueta ;  e  ainda  mais  gentilmente  se 
destacavam  os  kimonos  multicores  e  festivos, 
sobretudo  os  das  raparigas,  primorosamente 
ataviadas,  em  commemoração  do  dia!  .  .  .  E 
as  sobrecasacas  e  os  kimonos  curvavam-se  em 
reverencias,  a  cada  passo,  trocando-se  a  phrase 
sacramental :  —  «O  medetò  gozarimaçu »  — 
felicito-vos.  .  . 

—  Um  delicadíssimo  amigo,  interessado  na 
questão  japoneza,  como  está  actualmente 
acontecendo  á  grande  maioria  dos  espíritos 
cultos  e  reflectivos,  envia-me  de  quando  em 
quando  da  metrópole  retalhos  de  jornaes  que 
tratam  do  assumpto.  Foi  assim  que  me  veio 
parar  ás  mãos,  ha  poucos  dias,  um  interes- 
sante artigo,  «Rússia  e  Japão ^>,  onde,  a  pro- 


299 


posito  de  japonezes,  avultam  referencias  aos 
problemas  sociaes  mais  palpitantes,  do  domí- 
nio da  sciencia  contemporânea.  Sem  o  intento 
de  criticar,  nem  por  sombras,  o  artigo,  mas 
respigando  aqui  uma  ideia,  além  outra  ideia, 
vai  clle  dar-me  pretexto  para  a  palestra  habi- 
tual que  n'este  logar  se  me  consente. 

Diz-se  que  as  raças  inferiores  são  comple- 
tamente incapazes  de  crear,  e  mesmo  de  con- 
tinuar uma  civilisação.  Pôde  bem  ser;  mas, 
primeiro  do  que  tudo,  quaes  são  as  raças  infe- 
riores? Que  os  japonezes,  da  raça  asiática,  são 
inferiores  aos  europeus  da  raça  branca,  não 
resta  a  menor  duvida.  .  .  no  conceito,  é  claro, 
dos  próprios  europeus;  mas,  precisamente,  os 
japonezes  são  de  contraria  opinião.  Carecia-se, 
em  boa  lógica,  de  um  terceiro  para  desem- 
patar. .  . 

Talvez,  porém,  a  classificação  de  raças 
superiores  e  inferiores  seja  incoherente,  con- 
vindo apenas  registar :  —  raças  differentes.  Por- 
ventura os  dois  qualificativos  serão  incompa- 
tíveis com  a  animalidade  inteira.  Entre  o  par- 
dal e  a  tainha,  qual  é  o  inferior?  No  vòo,  é  a 
tainha ;  mas  em  nadar,  é  o  pardal.  .  .  Não  nos 
afastemos,  porém,  do  nosso  caso,  mas  cuide- 
mos de  escolher  exemplos  bem  frisantes. 
Parece  indiscuti\'el  que  o  negro  seja  inferior, 


300 


muito  inferior  ao  branco.  Evidentemente  o  ne- 
gro é-lhe  inferior,  por  exemplo,  para  aprender 
geometria,  ou  para  dirigir  uma  fabrica  de 
fiação,  ou  para  saber  vestir  uma  casaca ;  mas 
perguntai  a  vós  mesmos  qual  dos  dois  é  su- 
perior ao  outro  para  resistir  ao  impaludismo, 
ou  para  prostrar  o  antílope  com  uma  flecha, 
ou  para  trepar  a  um  tronco  de  palmeira.  .  .  O 
homem,  posto  que  não  seja  filho  do  meio,  se- 
gundo as  opiniões  de  maior  credito,  é,  comtudo, 
imperiosamente  influenciado  por  elle ;  de  modo 
que  cada  tribu  corresponde  a  uma  dada  civili- 
sação,  e  cada  civilisação  corresponde  ás  cir- 
cumstancias  actuaes  do  meio.  A  emigração  é 
phenomeno  bem  averiguado ;  o  emigrante  pôde, 
sem  duvida,  viver  em  paiz  estranho,  mas  em 
condições  de  inferioridade  em  relação  ao  indi- 
gena,  —  e  é  n'isto  que  se  me  affigura  consistir 
a  inferioridade  relativa  das  raças. 

—  «  Facilmente  se  faz  um  bacharel  ou  um 
advogado  de  um  negro  ou  de  um  japonez; 
mas  é  um  simples  verniz,  inteiramente  super- 
ficial,  sem  acção  sobre  a  sua  constituição 
moral.  .  . »  —  diz  Gustavo  Le  Bon.  Assim  o 
creio.  Mas  se  pensaes  que  um  europeu  se 
transforma  mais  facilmente  n'um  japonez;  se 
cuidaes  que  o  branco,  vivendo  por  longos 
annos    no    Japão,   tendo  aprofundado  a  lin- 


30I 


gua  do  paiz,  perscrutado  os  mysterios  da  sua 
litteratura,  da  sua  arte,  dos  seus  costumes, 
adoptando  mesmo  quanto  possível  estes  cos- 
tumes, transformou  de  um  ponto  sequer  a  sua 
mentalidade  de  europeu  na  mentalidade  do 
asiático,  enganaes-vos  completamente.  .  .  por- 
que elle  apenas  conseguiu  adquirir,  se  adqui- 
riu, o  verniz  superficial  asiático.  Logo  a  cita- 
ção de  Le  Bon  é  dispensável. 

Se,  por  vezes,  árabes,  turcos,  mongoes, 
venceram  os  europeus,  sem  comtudo  saberem 
imprimir  aos  vencidos  um  forte  grau  de  civili- 
sação;  vede  agora  o  que  se  passa  com  os 
europeus,  que  dominam  ha  tantos  séculos  na 
China,  na  índia,  mas  dominando  apenas,  sem 
abalarem  as  civilisações  indigenas !  .  .  .  Não  se 
manifestam,  pois,  nas  duas  raças,  differenças 
notáveis  nos  seus  dons  potenciaes. 

Ganha  mais  a  civilisação,  triumphando  a 
Rússia  em  vez  de  triumphar  o  Japão  ?  Distin- 
gamos: se  se  trata  da  civilisação  europeia, 
ganha  ella  mais  n'esta  h\'pothese ;  se  se  trata 
da  civilisação  asiática,  ganhará  esta  mais  na 
hypothese  contraria. 

Com  respeito  ao  perigo  aniarcllo,  precisa- 
mos encaral-o  com  escrupulosa  attenção  e 
•angélica  imparcialidade.  O  desenvolvimento  da 
raça   asiática,  que  é  o   que  se  pôde  chamar  o 


302 


perigo  amarello,  deve  ser  concebido  em  diver- 
sas phases,  como  os  graus  de  uma  escala 
ascendente.  As  ultimas  culminancias  perdem-se 
no  vago  do  immensamente  remoto,  que  esca- 
pa ás  nossas  previsões.  A  craveira  possivel- 
mente attingivel  n'um  próximo  futuro,  e  á 
qual  os  asiáticos,  impellidos  pelo  sopro  das 
actividades  japonezas,  parecem  já  dispostos  a 
querer  elevar-se,  corresponde  ao  estado  de  in- 
dependência, de  emancipação,  de  progresso 
material,  que  lhes  permitta  pòrem-se  em  defe- 
za  contra  o  perigo  branco,  ao  que  melhor 
poderemos  chamar  o  flagello  branco,  porque 
perigo  indica  uma  ameaça  no  porvir,  emquan- 
to  que  a  dura  auctoridade  do  branco,  a  sua 
acção  escravisadora  e  absorvente,  já  se  estão 
exercendo  na  Ásia,  de  nossos  dias. 

Ora,  quando  imaginemos  a  Ásia,  em  espe- 
cial a  Ásia  extremo-oriental,  trabalhando  para 
o  seu  próprio  desenvolvimento,  pouco  importa 
que  os  sábios  europeus,  nos  venham  ensinar 
que  o  asiático  só  logra  apropriar-se  de  como 
que  um  verniz  exterior  da  civilisação  Occiden- 
tal. Assim  é;  mas  elle  não  deseja  nem  precisa 
mais  do  que  d'este  verniz.  Este  verniz  será  a 
organisação  regular  do  seu  exercito,  da  sua 
marinha,  das  suas  fo/tificações  de  defeza ;  será 
a  creação  da  grande  industria ;  será  o  útil  apro- 


303 


veitamento  da  sua  riqueza  mineira;  será  o  con- 
veniente estudo  das  linguas  occidentaes.  Mas  a 
alma  asiática  permanecerá  intacta,  mas  a  civili- 
sação  que  se  procurará  desenvolver  será  a 
asiática ;  e  ninguém  poderá  agora  pôr  em  duvida 
a  capacidade  da  raça  para  um  tal  emprehendi- 
mento,  quando  se  recorde,  por  exemplo,  que 
a  China,  constituída  em  nação,  é  mais  velha, 
por  muitas  centenas  de  annos,  do  que  as  mais 
antigas  nações  da  Europa. 

Não  resta  duvida  de  que  os  progressos  da 
Ásia,  se  se  forem  realisando,  irão  ferindo  dura- 
mente os  interesses  da  raça  branca,  e  fa\'ore- 
cendo,  os  interesses  dos  próprios  asiáticos; 
isto  sobretudo  no  que  respeita  aos  interesses 
industriaes  e  commerciaes.  A  raça  branca 
convirá  evidentemente  muito  mais  que  a  he- 
gemonia europeia  se  inicie  e  consolide  n'esta 
parte  do  planeta ;  que  a  importância  do  Japão 
decline,  que  as  suas  aspirações  abortem  ;  que 
a  China,  anemisada  pelo  ópio  inglez,  mergu- 
lhada em  inércia,  se  vá  dia  a  dia  submettendo 
mais  ao  jugo  do  homem  louro,  e  indifferente 
aos  seus  caprichos,  e  finalmente  retalhada  em 
postas,  se  transforme  em  outras  tantas  coló- 
nias escravisadas  aos  Estados  occidentaes. 

No  entretanto,  quando  se  diga  que,  na 
guerra  actual,  nem  a  Rússia  nem  o  Japão  são 


304 


movidos  por  outro  sentimento  que  não  seja  o 
da  ambição  (mas  é  sempre  a  ambição  que 
excita  os  povos  á  guerra?),  devemos  admittir 
francamente  tal  conceito,  mas  distinguindo. — 
A  Rússia,  antes  o  governo  russo,  não  o  povo 
russo,  batalha  pela  ambição  de  dominar  na 
China,  de  impor  ahi  a  sua  civilisação  dessi- 
milhante,  as  suas  leis  de  autocrata  sobre  um 
povo  estranho,  amordaçando-o,  escravisan- 
do-o.  O  Japão,  governo  e  povo,  a  nação  in- 
teira, levanta-se  pela  Ásia  em  peso,  batalha  pela 
ambição  da  sua  perenne  independência,  do  seu 
desenvolvimento  material  e  moral,  do  engran- 
decimento da  sua  civilisação  mil  e  mil  vezes 
secular,  dentro  dos  limites  do  meio  -  próprio  e 
único  que  a  providencia  universal  lhe  destinou. 
Se  sois  europeu  e  com  interesses  na 
Ásia,  bradae  afoutamente  que,  n'esta  lucta 
tremenda,  a  justiça  está  do  lado  da  Rússia. 
Se  sois  asiático,  bradae  com  igual  afouteza, 
que  a  justiça  está  do  lado  do  Japão.  Se  sois 
imparcial,  se  as  lentes  do  vosso  telescópio  de 
observador  são  lapidadas  no  simples  e  puro 
crystal  da  vossa  consciência,  então  não  sois 
europeu  nem  asiático,  sois  homem,  e  mais 
nada;  e  bradae  então  também,  embora  dolo- 
rido por  tanto  sangue  derramado,  de  russos  e 
nipponicos,  que  a  justiça  está  do  Japão.  .  . 


305 


—  Agora,  umas  ultimas  divagações  da 
minha  lavra  para  concluir  o  artigo.  A  Ásia 
desperta.  A  Ásia,  por  uma  lei  natural  dos  des- 
tinos, inicia  o  seu  trabalho  de  unificação,  de 
affirmação.  A  Europa  ainda  não  sente  isto,  mas 
presente  ou  resente.  E  estas  ideias,  nascidas 
de  hoje,  da  harmonia  europeia,  manifestadas, 
já  por  allianças,  já  por  convénios  amigáveis, 
já  por  aspirações  pacificadoras,  nas  quaes  se 
pretende  adivinhar  os  progressos  do  bem,  a 
tendência  á  dulcificação  do  sentimento  hu- 
mano, não  representarão  mais  talvez  do  que  a 
labuta  inconsciente  mas  instinctiva,  soberana- 
mente egoista  mas  justificável,  para  a  organi- 
sação  coUectiva  da  raça  branca  n'um  poder 
único  e  tremendo,  preparando-se  para  o  medo- 
nhíssimo drama  do  futuro  insondável,  quando 
a  Ásia,  rompendo  as  vestes  de  chrysallida,  se 
erguer  também  altiva  das  ruinas  do  seu  myste- 
rio.  Uma  fera  ha-de  então  devorar  a  outra  fera, 
por  uma  lei  fatal  dos  destinos ;  ou  então  uma 
á  outra  se  esphacelarão,  abraçan-do-se,  final- 
mente, em  enternecido  pranto,  os  raros  so- 
breviventes que  restarem,  surgindo  d'esse  am- 
plexo um  sèr  differente,  mais  perfeito  do  que 
o  homem  de  hoje. .  .  e  o  mundo  terreal,  alheio 
ao  sangue  que  correr,  terá  percorrido  mais  uma 
idade  na  sua  marcha  eterna  e  triumphal!  ..  . 


3o6 


—  Os  jornaes  do  paiz  relatam  alguns  epi- 
sódios curiosos,  succedidos  n'estes  últimos 
dias  junto  de  Porto  Arthur;  especialmente  in- 
teressantes por  virem  revelar-nos  uma  coisa 
que  tão  frequentemente  se  mostra  em  evi- 
dencia —  imi  cantinho  bom  da  alma  humana. 
Nos  centros  civilisados,  a  delicadeza,  a  hospi- 
talidade, a  conducta  obsequiosa  e  ainda  outras 
gentilezas  são,  —  louvado  Deus,  —  quasi  de 
uso  correntio.  Mas  então  o  homem  é  feliz, 
tranquillo  sobre  o  dia  de  amanhã,  agazalhado 
no  aninho  do  seu  lar;  e,  ajudado  por  uma  pon- 
tinha de  vaidade  e  pelo  doce  egoismo  de  se 
incensar  de  agradecimentos,  desabrocham  fa- 
cilmente taes  virtudes,  sem  que  mereçam,  em 
verdade,  mui  enternecido  reparo.  O  que  se 
apresenta,  ao  primeiro  aspecto,  surprehendente, 
é  o  caso  de  espontâneas  manifestações  de 
amoravel  sympathia  entre  japonezes  e  russos, 
mesmo  no  campo  de  exterminio.  Uns  e  outros 
não  se  conheciam,  nunca  se  haviam  avistado. 
Para  os  russos,  os  japonezes  eram  os  maca- 
cos amarellos,  para  os  nipponicos  os  russos 
eram  os  bárbaros  da  Sibéria.  Mas  desenca- 
deia-se  a  guerra.  Os  homens  dos  dois  impé- 
rios entram  em  contacto,  claro  está  que  para 
se  visarem  os  peitos  atravéz  das  alças  das 
espingardas,    para    se    abrirem    os    craneos 


307 


com  os  gumes  das  espadas,  para  se  rasgarem 
as  carnes  com  as  unhas,  quando  não  encon- 
trem a  geito  outra  arma.  No  entretanto,  eis 
o  convívio,  e  d'elle  a  camaradagem,  a  estima 
reciproca,  a  fraternidade  até,  reforçadas  pelos 
vinculos  de  um  mesmo  dever,  pela  identidade 
nos  perigos  e  pela  identidade  nos  soffrimentos. 
Durante  os  últimos  combates,  pasmosa- 
mente  sangrentos,  dos  quaes  resultou  a  occu- 
pação,  pelos  japonezes,  do  Forte  de  203  me- 
tros e  de  outras  posições  de  alta  importância 
na  vanguarda  da  temivel  cidadella,  deram-se, 
por  vezes,  algumas  tréguas  de  duas  ou  três 
horas,  por  mutuo  accordo,  afim  de  cada  qual 
dos  dois  belligerantes,  que  acabavam  de  se 
misturar  em  lucta  corpo  a  corpo,  cuidar  dos 
seus  feridos,  dos  seus  mortos.  Russos  e  japo- 
nezes estiveram  então  em  plácido  contacto. 
Trocaram-se  cartões  de  visita,  fizeram-se  elo- 
gios de  parte  a  parte,  os  japonezes  beberam 
aguardente  das  cantinas  dos  russos,  estes 
beberam  sakc  das  cantinas  dos  nipponicos, 
um  photographo  tirou  cm  grupo  aquella 
amável  sociedade.  Alguém,  que  presenceou 
a  scena,  narra  o  seu  enternecimento,  quando 
deu  fé  do  carinho,  quasi  feminino,  quasi 
maternal,  com  que  os  russos  traziam  para 
o    campo   japonez    os    mortos    japonezes    e 


308 


com  que  os  japonezes  levavam  para  o  campo 
russo  os  mortos  russos. 

N'uma  certa  occasião,  um  soldado  russo 
estendeu  o  braço  a  ir  pousar  a  mão  sobre  o 
ventre  de  um  soldado  japonez,  o  qual,  sup- 
pondo  o  gesto  uma  aggressão,  se  pôz  em 
guarda.  Mas  não  era:  por  palavras  e  por 
gestos,  mas  principalmente  pelos  gestos,  por- 
que não  fallava  japonez,  o  russo  explicou  que 
o  seu  ventre  encontrava-se  vasio,  mercê  da 
dieta  em  xigor  em  Porto  Arthur,  emquanto 
que  a  barriga  do  nipponico  avolumava  de 
farta  refeição,  sentindo  elle  prazer  em  apal- 
par-lh'a.  Homens  brancos  e  homens  amarellos 
rompem  em  francas  gargalhadas ;  um  encanto ! 
E  então,  do  lado  dos  homens  amarellos,  co- 
meçam apparecendo  appetitosas  bolachas  de 
campanha,  frascos  de  perfumado  vinho  indi- 
gena,  com  que  se  regalam  o  esfomeado  e 
outros  muitos;  offerecem-se  também  cigarros 
do  Japão.  F^inda  a  faina,  estendem-se  as  mãos 
á  pressa,  apertam-se  com  anciã,  soltam-se 
saudações  de  irmão  a  irmão.  .  .  e  toca  á 
metralha!  ... 

Tem-se  já  prophetisado  que,  quando  cahir 
finalmente  Porto  Arthur  nas  mãos  dos  japo- 
nezes, tal  é  a  longa  tensão  dos  espiritos  pe- 
rante esta  faina  de  sangue  e  soffrimento,  que 


309 


vencedores  e  vencidos  se  lançarão  uns  aos 
outros,  n'uma  derradeira  fúria  de  extermínio. 
Não  sou  eu  d'esta  opinião.  Após  a  ultima 
scena  de  matança,  eni  plena  apotheose  do 
drama,  as  armas  serão  arrojadas  no  solo,  por 
inúteis,  e  vencidos  e  vencedores  se  abraçarão 
entre  si  commovidos,  chorando  de  fome,  de 
íadiga,  de  dor,  de  alegria  e  piedade !  .  .  .  o 
quadro  em  miniatura  e  antecipado  da  catas- 
trophe  mundial  que  diligenciei  esboçar  nas 
linhas  antecedentes. 

—  A  guerra  actual  vae-nos  mostrando, 
como  todas  as  guerras,  o  seu  lado  utilitário, 
servindo-nos  de  ensinamento  em  assumptos 
vários  e  varrendo  do  nosso  espirito  diversas 
illusões  por  longo  tempo  conservadas.  Uma 
d'estas  illusões  era  o  poder  irresisti\'el  que 
attribuiamos  aos  cossacos. 

Esta  gente,  cujo  nome  deriva  do  termo 
tártaro  kosak,  que  significa  «ladrão  nómada», 
constitue  uma  tribu  guerreira  de  cerca  de  três 
milhões  de  almas,  de  origem  siava,  mestiçada 
com  outros  elementos  ethnicos,  e  habitando 
vastos  territórios  na  Rússia  da  Europa  e  na 
Rússia  da  Ásia.  Mvendo  em  parte  da  agri- 
cultura, beneficiando  de  certos  privilégios  tra- 
dicionaes  e  de  certas  isenções  de  taxas,  os 
cossacos  obrigam-se  em  compensação  a  um 


3  IO 


duro  ser\iço  militar,  podendo  dizer-se  que 
desde  os  17  ou  18  annos  de  idade  até  á  inva- 
lidade se  encontram  á  disposição  do  governo 
moscovita,  que  pôde  obrigal-os  a  pegar  em 
armas  quando  assim  o  entender. 

Servem  principalmente  na  cavallaria,  po- 
dendo fornecer  894  sotnías  ou  esquadrões  em 
caso  de  mobilisação  geral;  mas  também  for- 
necem 19  batalhões  de  infan teria  e  40  baterias 
de  artilheria  montada.  Ora  a  cavallaria  cos- 
saca, armada  com  lança  e  carabina,  decorati- 
vamente imponente,  tem  vindo  honrando-se 
da  fama,  até  hoje,  de  constituir  o  corpo  de 
cavallaria  mais  hábil  e  temivel  do  mundo  in- 
teiro. Direi  Jiielhor:  até  hontem ;  porque  os 
resultados  práticos,  na  guerra  que  se  fere,  não 
correspondem  a  tal  fama.  Os  seus  serviços 
em  nada  se  téem  distinguido,  exceptuando 
talvez  os  de  exploração;  destros  e  ágeis  ca- 
valleiros,  destemidos,  cruéis,  são,  por  certo, 
os  cossacos;  porém,  estas  apreciáveis  quali- 
dades de  guerra,  mas  da  guerra  antiga,  não 
da  actual,  nada  podem  contra  o  prodigioso 
alcance,  o  enorme  poder  destruidor  da  arti- 
lheria moderna  e  contra  a  sciencia  do  soldado 
bem  instruído. 

Ao  passo  que  a  cavallaria  cossaca  repre- 
senta   na    época   presente    mais   uma  illusão 


311 


perdida,  a  cavallaria  japoneza  —  curioso  con- 
traste !  —  montada  nos  seus  garranitos  felpu- 
dos e  miseráveis  á  vista,  a  cavallaria  japo- 
neza, tida  até  agora  por  uma  simples  mas- 
carada grotesca,  que  ainda  ha  uns  qua- 
torze  mezes,  durante  a  revista  militar  de 
Himeji,  provocou  mais  de  um  sorriso  no 
grupo  petulante  dos  addidos  estrangeiros  que 
a  ella  assistiam,  vae-se  rehabilitando  no  con- 
ceito dos  entendidos,  dando  provas  indiscuti- 
veis  da  sua  capacidade  c  útil  effeito,  no 
terreno  accidentado  de  collinas,  que  constitue 
o  theatro  da  guerra. 

—  Guardei  para  o  fim,  esperando  por  noti- 
cias frescas,  a  minha  habitual  referencia  ás 
cousas  da  guerra.  Bem  frescas  são,  com  effeito, 
taes  noticias,  e  de  excepcional  importância. 

Correm  boatos  de  que  uma  esquadra  japo- 
neza foi  avistada  cerca  de  Singapura,  na\'e- 
gando  para  o  sul.  Possivelmente,  vae  ao 
encontro  de  alguns  dos  barcos  da  já  famosa 
esquadra  do  Báltico. 

O  anno  de  1904  terminou  com  um  nota- 
bilissimo  acontecimento.  Destruida,  finalmente, 
a  esquadra  russa  do  Extremo-Oriente,  da  qual 
restam  apenas  alguns  raros  destroycrs  e  tor- 
pedeiros e  os  dois  ou  três  cruzadores  que  se 
encontram  desarmados  nos  portos  neutros,  o 


312 


imperador  desejou  vêr  e  felicitar  o  almirante 
Togo,  o  grande  heroe  das  façanhas  navaes 
japonezas.  Togo,  acompanhado  do  vice-almi- 
rante  Kaminiira,  chegou  a  Sasebo  em  28  de 
dezembro,  em  29  estava  em  Kobe,  em  30  em 
Tokyo,  sendo  recebido  no  seu  longo  transito, 
pelo  caminho  de  ferro,  com  grandes  ovações 
do  povo.  Este  bravo  é,  até  hoje,  o  vulto  mais 
em  evidencia  na  presente  guerra,  e  certamente 
o  marinheiro  mais  glorioso  dos  tempos  moder- 
nos da  historia  mundial.  Quando  tentemos 
comparal-o  a  algum  heroe  dos  mares,  não 
encontramos  parallelo  nos  períodos  próximos, 
sendo  preciso  remontar  até  Nelson,  o  grande 
almirante  inglez  de  fama  universal.  Togo  tem, 
desde  hoje,  o  seu  nome  escripto  em  lettras  de 
ouro  nos  annaes  da  historia  marítima  do 
mundo.  Parece  isto  extraordinário,  mas  é  assim 
mesmo.  .  . 

—  Finalmente !  chegou  a  noticia  ha  tanto 
tempo  desejada. 

Porto  Arthur  cahiu;  não  em  resultado  de 
um  ultimo  e  tremendo  conflicto  de  sangue, 
como  se  esperava;  mas  porque  o  general 
Stoessel  offereceu  render-se  c  melhor  foi  assim, 
evitando-se  mais  dura  chacina.  .  . 

As  forças  sitiadas  haviam  chegado  á  mais 
extrema  penúria  de  recursos,  os  feridos  eram 


313 


numerosissimos,  poucos  os  combatentes,  a 
posição  insustentável.  Na  noite  do  i.°  de  ja- 
neiro o  general  Stoessel  propóz  capitular. 
Seguiram-se  as  necessárias  conferencias;  o 
general  Nogui  apresentou  as  condições  de 
capitulação,  que  foram  acceitas.  N'este  mo- 
mento Porto  Arthur  é  já  japonez,  cuidando-se 
apenas  da  final  evacuação  dos  russos  e  do 
estabelecimento  dos  nipponicos  na  praça  con- 
quistada. 

Seria  longo  enumerar  aqui  as  condições 
da  capitulação,  já  por  certo  conhecidas  dos 
leitores.  Basta  registar  que  os  vencedores  com 
applauso  do  mundo  inteiro,  deram  provas  de 
magnanimidade  para  com  os  vencidos,  dignos, 
na  sua  desgraça,  do  respeito  geral,  mercê  do 
grande  valor  militar  que  os  ennobrece. 

Os  japonezes,  pela  segunda  vez,  entram 
na  posse  do  árido  penedo,  tido  até  ha  pouco 
como  a  mais  temível  fortaleza  do  mundo. 
Tal  posse  custou-lhes  milhares  de  vidas.  Entre- 
gam-se  agora  ás  commemorações  festivas  do 
seu  feito,  ainda  surprezos  do  acontecimento, 
que  não  julgavam  tão  próximo,  e  que  vae 
assombrar  o  mundo  inteiro !  .  .  . 

Depois.^  .  .  . 


14 


XXV 


^■'"  18   de   janeiro    de   1905 

A  queda  de  l^orto  Artliur --Efteito  moral  davictoriados 
jiàponezcs —  Incoherencias  de  Stoessel — Imprevidèrt- 
cias  dos  còmmandantes  da  esquadra  russa— -Subsí- 
dios para  a  historia — As  duas  religiões,  que  mais 
.  pi-osperam.  no  Japão;  complicaçpes  externas  do 
culto  dQs  mortos;  uma  reco^-daçao  emocionante  — 
A  propósito  do  iivro  portuguez  O  Japào  por 
Uoifro. — P.  S:  o  embarque  de  Stoessel  e  uma 
divao^açílo  commovcdora. 


IVÍo  ílm  da  minha  carta  anterior  registei 
a  queda  de  Porto  Arthur,  entrando 
os  japonezes  eni  plena  posse  da  terrível  praça 
de  guerra,  conquistada  á  custa  de  muito  " 
sangue  derramado  e  de  muitos  milhares  de 
vidas  perdidas,  A  noticia,  poi:  outro  lado, 
também  correu  logo  mundo,  devendo  achar-se 
os  leitores,  sobre  este  assumpto,  conveniente- 
mente informados.  No  entretanto,  é  de.tamanha 
magnitude  o  acontecimento,  que  nãO: parecerá 
estranho  consagrar-lhe  aqui  mais  algumas  ligei- 
ras referencias. 


6T5 


Tcil  magnitude  náo  está  no  facto,  de  mera 
importância  material,  que  sejam  os  nipponicos 
em  \'ez  dos  russos,  os  actuaes  possuidores 
d'essa  lingua  rochosa  e  estéril,  qúe  se  alonga 
pelo  mar  íbra  -a  ir  estreitar  a  entrada  de  í.i- 
chi-li.  Está  no  effeito  moral  que  resulta  de 
terem  os  nipponicos  forçado  a  render-se  o 
poderoso  exercito  que  guarnecia  o  baluarte 
considerado  invencível,  occupando  após  o  solo 
duramente  porfiado,  que  já  fora  seu  por 
cedência  da  China  vencida,  mas  cuja  devolu- 
ção, logo  em  seguida,  a  politica  europeia  lhes 
impozera,  indo  a  Rússia,  por  seu  turno,  des- 
poticamente recebel-o  e  alli  arvorar  a  sua 
bandeira.  A  nova  d'este  feito  de  suprema 
audácia,  escripto  para  sempre  nas  paginas  da 
historia  do  mundo,  \'ai  retumbar  em  toda  a 
Ásia,  vai  encher  de  emoção  a  inteira  e  im- 
mensa  familia  amarella,  que,  acordada  do  seu 
longo  lethargo,  ia  já  presenciando  os  aconteci- 
mentos com  um  olho  aberto,  mas  agora  abriu 
os  dois,  esbogalhou  os  dois !  .  .  . 

—  O  immenso  prestigio  da  Rússia  (podería- 
mos dizer  da  raça  branca)  soffre  agora  uma 
tremenda  brecha ;  e  é  o  Japão  que  se  eleva 
n'este  momento  á  consideração  dos  povos 
visinhos,  dos  povos  irmãos,  como  que  personi- 
ficando  o   braço  justiceiro,  ao  qual  ninguém 


3IÔ 


resiste,  que  expulsa  o  intruso,  que  esmaga  o 
ambicioso.  Pôde  muito  bem  acontecer  que  o 
Japão  saiba  aproveitar-se  em  breve  trecho  das 
circumstancias  épicas  actuaes,  em  que  a  Ásia 
inteira  o  contempla,  envolto  na  sua  aureola  de 
glorias. 

Mas  faltemos  de  Porto  Arthur.  Rendeu-se, 
com  a  sua  avultada  guarnição  de  cerca  de 
24:000  combatentes,  porque,  dizem,  as  muni- 
ções e  os  viveres  lhes  faltavam,  porque  perto  de 
20:000  homens  jaziam  enfermos,  uns  victima- 
dos  pela  doença,  outros  feridos  pela  metralha 
do  inimigo.  Seguramente,  Porto  Arthur  ainda 
poderia  ter  resistido  por  algumas  semanas; 
mas  chegara  lá  dentro  a  noticia  de  que  ne- 
nhum soccorro  immediato  havia  a  esperar  do 
exercito  de  Kuropatkine  ou  da  esquadra  do 
Báltico;  e  esta  terrivel  desesperança  apressou 
a  queda,  parecendo,  comtudo,  que  alguns 
generaes  optavam  pela  defeza  da  praça  até  ao 
ultimo  extremo. 

Os  japonezes  concederam  a  liberdade  aos 
officiaes  que  prestassem  juramento  de  não  mais 
pegar  em  armas  contra  o  Japão  no  presente 
conflicto ;  uns  acceitaram  este  beneficio,  outros 
negaram-se  ao  juramento  e  constituiram-se 
prisioneiros.  Os  homens  da  fileira  são  pri- 
sioneiros   de    guerra,    e    estão    agora    mesmo 


31/ 


chegando   ao   Nippon,   onde   são   distribuídos 
pelos  differentes  depósitos  de  detenção. 

Na  sua  tremenda  derrota,  todos  estes 
bravos,  que  tão  denodadamente  luctaram  pelo 
prestigio  e  pela  gloria  das  armas  russas, 
merecem  a  nossa  calorosa  sympathia.  Mas 
não  achaes  que,  n'este  epilogo  do  drama, 
alguma  cousa  vos  gela  o  coração?  O  chefe, 
esse  já  famoso  general  Stoessel,  sobre  quem 
iam  chovendo  desde  longos  mezes  os  applau- 
sos  mundiaes,  havia  recusado  arrogantemente 
uma  proposta  dos  japonezes  para  entregar  a 
praça,  quando  então  a  sua  annuencia  teria 
evitado  as  terríveis  chacinas  que  se  seguiram ; 
Stoessel  proclama  aos  quatro  ventos  que 
resistirá  até  ao  fim,  que  Porto  Arthur  será  o 
seu  tumulo;  ao  seu  commando  omnipotente, 
os  soldados  persistem  guarnecendo  os  fortes, 
soffrendo  resignados  mil  privações,  cahindo  a 
esmo  sob  o  chuveiro  das  balas  inimigas.  .  .  e 
agora  rende-se,  presta  o  juramento  que  lhe 
pedem  os  nipponicos,  vira  costas  á  chusma 
dos  soldados  sobreviventes,  que  cá  ficam  em 
captiveiro,  e  elle  ahi  vai,  caminho  da  pátria, 
a  bordo  de  um  paquete  francez,  o  «  Australien  », 
em  companhia  da  esposa,  de  varias  damas,  de 
meninos,  como  que  fazendo  parte  de  um 
grupo  de  touristes,  em  excursão  de  recreio.  .  . 


3i8 


Ou  eu  me  engano,  ou  Stoessel  não  S3  com- 
penetrou, n'este  momento  íinal,  da  enorme 
responsabilidade  que  lhe  pesava,  perante  a 
historia,  como  chefe  dos  heroes  vencidos  de 
Porto  Arthur. 

Com  respeito  aos  japonezes,  prolongando 
mais  do  que  de  ordinário  as  suas  festas  do 
anno  novo,  illuminam  cidades  e  aldeias,  des- 
fraldam estandartes  e  põem-se  a  passear  pelas 
ruas,  em  commemoração  do  grande  feito  das 
suas  armas.  Nem  um  caso  violento  de  em- 
briaguez, nem  um  ligeiro  conflicto,  nem  a  mais 
leve  aggressão  a  um  estrangeiro.  Povo  algum 
no  mundo  daria  provas  de  tão  notável  co- 
medimento, tratando-se  de  glorificar  uma  das 
maiores  façanhas  militares  dos  tempos  moder- 
nos. 

A  primeira  phase  da  guerra  chegou  ao  seu 
termo.  A  destruição  da  esquadra  russa,  a 
tomada  de  Porto  Arthur  e  o  movimento  de 
retirada  até  aos  subúrbios  de  Mukden,  imposto 
ao  exercito,  de  Kuropatkine,  definem  este 
periodo.  O  que  vier  depois,  pertencerá  a  uma 
nov^a  phase. 

A'cerca  da  guerra,  ha  ainda  as  seguintes 
noticias  a  registrar.  O  generalíssimo  russo 
reuniu  importantissimos  reforços,  calculando-se 
que  terá  hoje  uns  400:000  homens  sob  o  seu 


l 


319 


commando;  parece  próxima  uma  tremenda 
batalha.  Uma  força  russa  conseguiu  ha  dias 
chegar  a  Newchwang,  invadindo  a  cidade  por 
surpreza;  pouco  depois  foi  desbaratada  pelos 
nipponicos.  Alguns  navios  da  marinha  de 
guerra  japoneza  foram  avistados  nas  alturas 
de  Java  e  das  Filippinás. 

—  A  soberba  defeza  de  Porto  Arthur  re- 
presenta para  mim,  até  hoje,  a  pagina  gloriosa 
do  exercito  russo  na  presente  campanha;  mas 
tive  de  apontar-lhe  um  único  sencão  —  o  pro- 
cedimento final  de  Stoessel.  — •  Também,  refe- 
rindo-me  n'uma  correspondência  anterior  ao 
desastre  de  Chemulpo,  quando  o  cruzador 
«Varyag»  e  a  canhoneira'  «Koreatz»  foram 
destruídos  pela  esquadra  nipponica,  classifi- 
quei o  acontecimento  como  a  única  pagina 
brilhante  d'aquillo  que  foi  a  esquadra  russa 
no  Extremo-Oriente ;  e  tenho  agora  de  simi- 
Ihantemente  indicar  um  senão  a  esse  quadro 
pathetico,  após  os  recentes  detalhes  que  colhi 
de  alguém  que,  pela  sua  distincta  posição 
como  official  superior  de  uma  marinha  estran- 
geira, tem  plena  auctoridade  na  matéria.  Os 
transportes  japonezes  já  desembarcavam  tro- 
pas em  Chemulpo,  e  ainda  os  dois  navios 
russos,  que  deveriam  prudentemente  retirar-se 
logo   para   o  mar,  iam  recebendo  as  damas  e 


3.20 


os  cavalheiros  da  localidade,  eni  banquetes 
festivos.  Quando  chega  a  esquadra  de  Uriíi, 
que  os  convida  a  render-se  ou  a  aprestar-se 
a  combate,  competia  ao  commandante  do 
magnifico  cruzador  «Varyag»,  com  uma  ve- 
locidade de  24  milhas,  receber  a  seu  bordo 
a  guarnição  do  «  Koreatz  »,  cuja  velocidade  era 
apenas  de  10  milhas,  metter  no  fundo  este 
barco  inútil  e  tentar  fugir,  a  toda  a  força,  do 
poderoso  inimigo.  Não  se  fez  isto :  os  dois 
barcos  largaram  juntos  para  o  mar,  ao  meio 
dia,  ambos  com  uma  marcha  de  10  milhas,  e 
tão  despreoccupadamente,  que  nenhum  pre- 
parativo de  manobra,  imposta  .em  taes  cir- 
cumstancias,  se  tomou;  para  cumulo  de  im- 
previdência, um  marinheiro  entretinha-se  em 
dar  brochadas  de  tinta,  junto  do  portaló!  .  .  . 
De  sorte  que  a  catastrophe  de  Chemulpo 
apparece-nos  antes  de  tudo  como  uma  scena 
de  deplorável  desleixo,  de  inteira  responsabili- 
dade dos  commandantes  russos. 

E  não  pareçam  estas  considerações  retro- 
spectivas filhas  de  um  azedume  condemnavel 
do  meu  espirito.  Ninguém  talvez  terá  apon- 
tado esta  verdade;  quiz  eu  apontal-a.  A  cri- 
tica da  Historia  haverá  mais  tarde  de  apre- 
sentar o  seu  juizo  severo  sobre  o  conflicto 
Extremo-Oriental;     todas    as     contribuições. 


321 


ainda  as  mais  iTumildes,  podem  ser  úteis; 
a  coragem  c  a  \'alentia  do  russo,  do  bom  e 
rude  povo  feito  soldado,  hão-de  ser  aprecia- 
das no  seu  justo  valor;  mas  tornar-se-hão 
evidentes  a  mais  estupenda  incúria,  a  mais 
supina  ignorância  de  responsabilidades,  por 
parte  dos  dirigentes  —  ministros,  vice-reis,  al- 
mirantes, generaes,  commandantes.  .  . 

—  Os  livros  que  se  occupam  dos  japone- 
zes  dedicam  em  geral  longas  paginas  ás  duas 
religiões  que  mais  prosperam  no  Japão,  as 
quaes  são :  o  shintòismo,  culto  nacional,  e  o 
buddhismo,  religião  importada  do  continente 
asiático.  O  assumpto  é  sem  duvida  interes- 
sante, mas  não  de  uma  importância  capital 
para  o  estudo  da  alma  do  povo,  quando  se 
observa  que  o  nipponico  é  pouco  devoto, 
pouco  dado  a  práticas  religiosas;  frequen- 
tando os  templos,  na  maior  parte  das  vezes, 
por  habito,  por  passatempo  e  principalmente 
por  prazer,  deleitando-se  na  amenidade  da 
paizagem  em  torno,  ou  folgando  com  a  turba, 
em  dias  de  commemorações  festivas.  Pensa-se 
no  shintòismo,  pensa-se  no  buddhismo;  mas 
dá-se  geralmente  maior  apreço  a  um  outro 
systema  de  crenças,  a  que  bem  se  poderia 
chamar  uma  terceira  religião,  ou  antes  a  pri- 
meira, por  ser  por  certo  a  primitiva  e  aquella 


322 


a  que  ainda  hoje  mais  arreigada  está  a  alma 
nacional.  Esta  outra  religião  é  o  culto  dos 
antepassados,  o  culto  dos  mortos. 
■  O  culto  dos  mortos  não  é,  sabe-se  bem, 
especial  aos  japonezes,  nem  mesmo  aos  asiá- 
ticos. É  commum  a  todos  os  povos,  sem 
duvida  o  mais  remoto;  datando  da  idade 
ingénua  das  tribus,  da  primeira  interpretação 
mystica  dos  sonhos,  é  tão  persistente,  que 
ainda  hoje,  mesmo  na  sceptica  Europa,  raro 
será  aquelle  que  não  lhe  preste  homenagem.  O 
amor  pelos  seus  defuntos !  Quem  ha  que  se 
exima  a  este  culto  ?  Os  cemitérios,  o  carinho 
que  se  vota  á  lapide  tumular,  as  flores  em 
cultura  junto  da  campa  dos  parentes,  o  dia 
votado  aos  finados  e  muitos  outros  usos,  são 
outras  tantas  manifestações  de  um  culto  in- 
timo, bárbaro,  mas  enternecedor,  que  vem  na 
série  dos  séculos  muito  primeiro  do  que  as 
religiões  que  elevam  os  seus  altares  na  syna- 
goga,  na  igreja  ou  na  mesquita. 

Nos  japonezes,  porém,  para  não  fallarmos 
dos  outros  asiáticos,  o  culto  dos  mortos  attinge 
complicações  extremas,  para  nós  mal  concebi- 
das, mal  adivinhadas.  E'  a  base  da  inteira 
moral  indígena,  do  sentimento  da  familia,  da 
sociedade,  da  nação.  O  próprio  shintòismo 
deriva  d'elle ;  e  o  buddhismo,  que  não  deriva 


323 


d'elle,  pois  é  uma  religião  importada,  teve  de 
amoldar  a  sua  doutrina,  para  poder  implan- 
tar-se  no  solo  estranho,  á  concepçcão  japoneza 
dos  mortos.  ri 

O  morto  não  morre,  mas  parece  que  não 
vae  para  o  céu,  nem  para  o  .inferno.  Não  sobe 
tão  alto,  nem  desce  tão  baixo :  paira,  em  espi- 
rito, no  ambiente  próximo,  quasi  na  intimidade 
dos  seus  parentes.  O  japonez  presume,  não 
forja  grande  sobra  de  theorias,  nem  se  dedica 
a  longas  meditações,  sobre  este  caso ;  conse- 
guiu, por  assim  dizei',  materialisar  a  saudade 
pelos  que  se  vão;  e  n'isto  se  resume  a  exi-s- 
tencia  espiritual  attribuida  aos  defuntos.  Quan- 
do um  japonez  morre,  o  bonzo  buddhista.da 
parochia  dá-lhe  outro  nome,  em .  substitui- 
ção do  que  tinha,  e  d'isto  faz  registo ;  é  como 
que  um  baptismo,  que  marca  o  inicio  de  unm 
vida  nova  que  succede  .á  primeira,  mas  invnsi- 
sivel  c  eterna. 

Do  culto  dos  mortos,  isto  é,  da  estima,  do 
respeito,  da  adoração,  devidos  aos  parentes 
mais  velhos,  e  com  mais  razão  aos  que  se 
foram,  deriva,  como  apontei,,  a  concepção 
moral  da  familia,  encontrando-sé  uma  tal  sen- 
timentalidade em  flagrante  contraste.com  as 
ideias  occidentaes  sobre  o  mesmo  assumpto. 
Assim  no  lar  europeu,  o  chefe  de  familia  tem 


324 


por  principal  dever  o  deixar  em  herança  um 
nome  honrado,  illustre  se  é  possível,  a  seus 
filhos.  No  Japão,  o  japonez  é  apenas  usu- 
fructuario  das  suas  virtudes,  das  suas  glo- 
rias; não  pôde  dispor  d^ellas,  não  vão  ellas 
honrar  seus  filhos,  mas  sim  aureolar  seus 
pães,  no  mysterio  de  além  da  vida.  Não  nos 
é  dado  aprofundar  devidamente  estas  subtile- 
zas  mysticas  da  alma  nipponica;  mas  desde 
logo  se  nos  torna  evidente  que  á  familiajapo- 
neza,  destituída  de  património  moral,  impon- 
do-se-lhe  pelo  contrario  o  dever  de  illustrar  os 
ascendentes,  cabe  mais  dose  de  actividades  e 
de  responsabilidades  sentimentaes  do  que  á 
familia  Occidental;  também  facilmente  nos 
apercebemos  do  maior  respeito  que  se  tributa 
ao  chefe  da  casa,  directo  representante  dos 
mortos,  primeiro  sacerdote  nos  ritos  que  se 
lhes  prestam  e  mais  perto  de  reunir-se  a  elles. 
O  resultado  social  de  tudo  isto  é  o  accentuado 
cunho  de  familia  patriarchal  que  nos  offerece 
o  lar  japonez,  no  qual  o  pai  é  rei,  é  Deus, 
honrado  e  obedecido  piedosamente  por  todos 
os  outros  membros;  por  outras  palavras:  a 
constituição  da  familia  japoneza  accusa  um 
alto  grau  de  cohesão,  sem  parallelo  nas  socie- 
dades europeias. 

Se  é  interessante  o  divagar  n'estas  consi- 


4 


325 


derações  de  ordem  psychica,  não  é  digno  de 
menor  interesse  o  seguir  com  os  olhos  a  prá- 
tica ingénua  do  culto,  na  intimidade  do  povo. 
Elm  cada  lar  ha  um  altarzinho  votado  aos 
mortos,  movei  preciosissimo  de  charões  e 
ouros  na  casa  do  rico,  simples  armário  de 
madeira  despolida  no  albergue  do  pobre.  Alli 
se  guardam  as  relíquias  dos  parentes  defuntos 
e  as  minúsculas  alfaias  do  rito ;  alli  diariamente 
se  exercem  praxes  de  piedade  filial.  P^óra  de 
casa,  no  cemitério,  outros  carinhos  se  dispen- 
sam, cuidando  dos  arbustos  que  vegetam 
junto  do  tumulo,  conservando  sempre  viçosos 
ramos  de  flores  e  folhas  em  bocaes  de  bambii, 
queimando  incensos,  enchendo  de  agua  o 
exiguo  recipiente  cavado  na  lapide,  onde, 
parece,  o  morto  vem  beber.  Ha  então,  em 
cada  anno,  certos  dias  festivos  para  todos  os 
defuntos,  melhor  direi  —  certas  noites  festivas; 
e  mal  imaginaes  o  phantastico  espectáculo  dos 
cemitérios  em  taes  noites,  illuminados  por  mi- 
lhares de  lanternas  de  papel,  subindo  em  tur- 
bilhões o  fumo  dos  pivetes,  e  o  povo  em  mul- 
tidão a  contemplar  as  campas.  .  . 

Palestrando  dos  mortos  c  do  culto  que 
merecem,  acode-me  á  memoria  a  casita  onde, 
ha  alguns  annos,  eu  tinha  por  habito  ir  repou- 
sar   durante   meia  hora,   a   meio   da  extensa 


326 


ladeira  que  le\'ava  a  um  templo  da  minha 
devoção,  alli  para  os  lados  de  Kyoto.*Era  um 
bem  modesto  albergue,  reduzido  a  proporções 
Ínfimas  — -  dois  pequeninos  quartos  apenas  — 
mas  cuidado  com  esmeros- requintados.  N'elle 
vivia  o  velho  Yamasaki,  com  os  seus  70 
invernos  a  pesarem-lhe  no  lombo,  e  a  sua  filha 
O-Toki,  gentil. moça  de  24  annos.  Nunca  che- 
guei a  perceber  de  que  dispunham  o  velho  e 
a  rapariga,  em  que  se  occupavam.  Pouco  im- 
porta. Occupavam-se  em  sacudir  a  poeira  das 
esteiras  e  dos  dois  únicos  moveis  visíveis 
a  meus  olhos — -um  armário  com  roupa  e  um 
altar  do  culto  —  occupavam-se  a  mais  efii 
aquecer  a  agua  no  brazeiro,  em  preparar  o 
chá,  em  cozinhar  o  arroz,  em  regar  o  pinhei- 
rito  do  jardim  e  no  culto  dos  seus  mortos. 
No  desempenho  d'estes  últimos  misteres,  o 
pae  cirandava  para  um  lado,  a  filha  ciranda\'a 
para  outro  lado,  sorrindo-se,  fallando-Se  rara- 
mente ou  então  palestrando  de  segredo,  por- 
que o  velh(3  ei*a  muito  surdo  e  tanto  menoé 
ouvia  quanto  mais  se  lhe  berrava,  só  pela 
mímica  dos  lábios  percebendo  as  phrases  pro- 
feridas. 

A  feição  mais  curiosa,  para  niim,  d'aquellas 
duas  existências  era  o  cuidado  que  vota\'am 
aos  seus  mortos.  Dentro  do  altar  grupavam-se 


327 


coisas  vtirias  e  niysteriosas,  escriptos  mysticos, 
o  retrato  em  daguerreotypo  de  uma  velha, 
nomes  de  defuntos  gra\'ado;^  em  pedaços  de 
madeira;  lâmpadas^  taças,  ílòres ;  notava-se 
um  espaço  livre,  antecipadamente  com  destino 
ás  reliquias  do  \'elho  Yamazaki,  quando  elle 
deixasse  de  existir.  Umas  três  vezes  por  dia, 
de  manhã,  ao  meio  dia  e  pela  tarde,  o  velho 
ou  sua  filha,  segundo  preceitos  rituaes,  vinham 
junto  do  altar  queimar  pivetes,  ou  accender 
as  lâmpadas,  ou  servir  o  chá  aos  mortos,  ou 
servir-lhes  o  vinho  ou  o  arroz  da  refeição, 
tendo  feito  soar  previamente  um  timbre  para 
acordar  os  espíritos. 

Um  dia,  encontro  os  dois  muito  occupados 
n\im  grave  problema.  A  rapariga  photogra- 
phára-se,  emmoldurára  gentilmente  o  seu  re- 
trato e  tratava  de  pendural-o  na  parede;  e 
discutiam  agora  os  dois  imi  local  apropriado, 
—  aqui,  alli,  acolá,  —  onde  a  luz  mais  lhe 
desse  e  melhor  enfeitasse  o  aposento.  Eu  então, 
escorrendo  em  suor  ap(3z  a  caminhada,  esti- 
rado sobre  a  esteira,  saboreando  uma  chávena 
de  chá,  quiz  também  ter  meu  \'Oto  na  matéria 
e  indiquei  um  espaço  vasio  da  parede,  por 
cima  do  altar  dos  mortos.  Ignaro !  .  .  .  0-Toki, 
reprehensiva,  observou-me  que  isso  seria  um 
sacrilégio,    concedendo    á   sua    imagem    mais 


328 


honras  que  aos  defuntos.  Eftectivamente,  é 
sabido  que  entre  os  japonezes  a  etiqueta 
é  muito  escrupulosa  nas  alturas;  por  esta 
razão  ninguém  pôde  encontrar-se,  á  passa- 
gem do  imperador,  superior  a  elle;  ás  portas 
e  ás  janellas  rentes  com  o  chão  assoma  o 
povo,  mas  todas  as  janellas  dos  andares  supe- 
riores são  respeitosamente  fechadas. 

Bem.  Para  o  caso  do  culto  dos  mortos  no 
Japão,  não  vos  está  parecendo  que  de  tal 
sentimento  fatalmente  resulta  uma  intensis- 
sima  cohesão  moral  na  familia  nipponica,  em- 
bora não  possamos  avaliar  devidamente  os 
seus  effeitos?  .  .  .  E  essa  eternidadesinha  do- 
mestica, familiar,  na  qual  os  septuagenários 
vão  antecipadamente  pensando  com  amor, 
imaginando  já  o  momento  próximo  que  os 
substanciará,  que  os  synthetisará  n'uma  pho- 
tographia,  ou  n'uma  madeixa  de  cabellos,  ou 
n'um  punhado  de  cinza-,  n'uma  reliquia  qual- 
quer Ínfima,  á  qual  a  descendência  inteira 
prestará  culto  diário,  amanhã  os  filhos,  mais 
tarde  os  netos,  ainda  mais  tarde  os  bisnetos; 
essa  eternidadesinha  a  preços  reduzidos,  des- 
pida de  transcendencias,  não  será  ac^-so,  para 
estas  almas  simples,  de  uma  grande  consolação, 
de  um  grande  amparo,  nos  derradeiros  dias  da 
decrepitude,  que  precedem  a  derrocada  final? .  . . 


329 


—  Tenho  procurado  dar  noticia,  no  de- 
curso d'estas  correspondências,  dos  bons  li- 
vros sobre  o  Japão,  que  vão  chegando  ao 
meu  conhecimento. 

Cabe  agora  referi r-me  ao  volume  O  Ja- 
pão por  dentro,  que  acaba  de  sahir  dos 
prelos  portuguezes,  devido  á  penna  do  snr. 
Ladislau  Batalha.  O  livro  é  de  reconhecido 
mérito,  abundando  sensatas  considerações  do 
seu  auctor,  entremeadas  com  copiosa  compi- 
lação de  tudo  que  de  melhor  tem  apparecido 
sobre  este  interessantissimo  império  nipponico. 
O  nosso  publico,  agora  decididamente  inte- 
ressado pelo  que  se  vae  passando  no  Ex- 
tremo-Oriente,  ha-de,  sem  duvida,  prestar 
sincero  applauso  á  obra  litteraria,  de  vulgari- 
sação,  do  snr.  Ladislau  Batalha. 

P.  S.  —  E  hoje  que  o  general  Stoessel 
embarca  em  Nagasaki,  no  « Australien»,  de 
regresso  á  Europa  e  á  pátria,  onde  o  esperam 
as  ovações  das  massas  e  as  distincções  das 
cortes.  .  . 

Eu  estou  longe  de  Nagasaki.  Aqui,  onde 
me  encontro,  assisto  por  acaso  á  passagem 
de  um  comboyo  cheio  de  soldados  prisionei- 
ros, que  vêem  de  Porto  Arthur,  com  destino 
ás    casernas    de    detenção.    O    instantâneo    é 


330 


profundamente  coinmo\'edor.  O  povo  acode  a 
postar-se  ao  longo  da  via  férrea,  para  vér, 
silencioso  e  respeitoso  perante  a  desgraça  do 
inimigo.  Lá  dentro,  na  longa  fila  de  carrua- 
gens, é  o  rebanho  humano.  Assomam  para 
fora  das  janellas  das  portinholas  centenas  de 
bustos  \'estidos  em  farrapos  de  uniformes, 
centenas  de  cabeças,  nuas  umas,  outras  co- 
bertas com  kepis  de  vários  typos,  outras 
enfiadas  até  ás  orelhas  no  enorme  barrete  dos 
cossacos.  Barbas  e  cabellos  longos  e  hirsutos, 
que  não  sentem  a  tesoura  ha  muitos  mezes. 
Rostos  róseos,  juvenis,  sorridentes.  E  o  ani- 
mal humano  a  revelar-se,  nas  suas  doces 
qualidades  affectivas. 

As  scenas  de  matança  esqueceram-se  já. 
Agora  é  o  suave  clima  e  são  as  amenas  pai- 
zagens  de  Nippon  a  enfeitiçarem  os  olhos,  a 
chamarem  á  realidade  e  ao  amor  da  vida;  é 
a  perspectiva  de  noites  inteiras  de  somno, 
embora  no  captivjeiro  ;  é  a  perspectiva  de  um 
jantar  em  cada  dia,  com  verduras,  com  carne 
e  com  um  pão.  .  .  O  russo  adivinha  já  este 
paraizo,  í^ito  de  uma  cama,  de  um  nabo,  de 
um  naco  de  carne  e  de  um  pão !  e,  impellido 
pelas  suas  tendências  sociaes  —  o  bicho  ho- 
mem é  eminentemente  social  —  envia  sorrisos 
á   multidão,   é  já  amigo  dos  japonezes,  pre- 


I 


331 


tende  que  elles  o  sejam  d'elle,  quer  viver 
n'um  ambiente  de  sympathias  e  de  carinhos. 
Depois  de  passar  o  comboyo,  ouço  algumas 
vozes,  sabidas  da  turba,  talvez  dos  pães  que 
perderam  os  filhos  na  guerra,  tah'ez  das  imi~ 
siimés  que  perderam  os  namorados  na  guerra, 
balbuciarem  :  —  <:<  kinodohi !  kínodohi ! »  ('coi- 
tados !  coitados  \), 

Coitados!   coitados! 


XXVI 

2  de  fevereiro  de  1905 

Evokr^òcs  da  guerra  —  Os.  tumultos  na  Rússia — Pre- 
visões sobre  a  duração  que  poderá  ter  a  futura  paz 
—  O  que  poderia  tornal-a  estável  —  Uma  heroina  — 
Maravilhosa  viagem  que  fez  um  coelho  branco  — 
Os  provérbios  japonczes  —  Concurso  imperial  de 
poesia. 


T^sTÁ-SK  dando  presentemente  uma  pausa, 
todavia  natural,  nos  acontecimentos  da 
guerra.  O  campo  do  theatro  limita-se  por  agora 
ao  espaço  que  avisinha  Mukden,  onde  os  dois 
tremendos  exércitos  se  confrontam,  apparente- 
mente  inactivos,  não  levando  em  conta  algumas 
ligeiras  escaramuças ;  mas  presumidamente 
esperando  anciosos  um  momento  favorável 
para  se  precipitarem  um  contra  o  outro,  o 
que  se  espera  succederá  em  breve.  O  exercito 
de  Kuropatkine  terá  por  certo  recebido  da 
Europa  valiosíssimos  reforços,  durante  estas 
longas  semanas  de  simulado  repouso;  o  exer- 
cito de  Oyama  haverá,  por  seu  turno,  sido 
reforçado  com  soldados  frescos  idos  do  im- 
pério, sem  que  o  publico  possa  avaliar  o  seu 


333 


numero,  e  também  com  a  grande  maioria  das 
tropas  que  cercava  Porto  Arthur,  as  quaes 
tão  brilhantemente  acabam  de  concluir  a  sua 
duríssima  missão. 

Pelo  que  respeita  á  acção  nav^al,  calcula-se 
que  uma  poderosa  esquadra  japoneza  se  en- 
contra a  estas  horas  em  pleno  Oceano  Indico, 
não  longe  da  esquadra  russa,  que  ainda  ha 
poucos  dias  se  achava  nas  aguas  de  Mada- 
gáscar. Algum  grande  combate  se  espera, 
pois,  d'aquelles  lados. 

Annuncia-se  que  as  forças  nav^aes  japo- 
nezas,  sob  o  commando  superior  de  Togo, 
receberam  agora  um  importante  augmento, 
vindo  reforçal-o  uma  esquadrilha  de  barcos 
submarinos  —  nomeiam  uns  dez  —  o  que  con- 
stitue  uma  novidade  no  Japão;  estes  barcos, 
adquiridos  não  se  diz  como,  vieram  provavel- 
mente da  America,  em  secções  separadas. 

Mais  do  que  se  passa  presentemente  aqui, 
estão  merecendo  as  attenções  do  publico  os 
actuaes  tumultos  internos  da  Rússia,  que  são 
como  que  os  primeiros  tremores  do  terrivel 
vulcão  latente,  o  alarme  inicial  de  um  povo 
immenso,  acorrentado  aos  grilhões  da  escra- 
vidão e  clamando  pelas  suas  liberdades.  Quem 
pôde  prever  as  consequências  tremendas  da 
convulsão  .  social,   hoje  sufíbcada   talvez   pela 


334 


metralha  da  fuzilaria,  mas  irrompendo  amanhã 
coni  maior  fúria  ?  .  .  . 

E  a  paz  ?  e  a  paz  ?  .  .  .  A  queda  de  Porta 
Arthur  pareceu  indicar  a  alguns  que  o  mo- 
mento de  entrar  em  negociações  pacificas  não 
estaria  longe;  mas  tal  esperança  vae-se  já 
desvanecendo.  Corre  agora  uma  opinião  de 
que  a  Rússia,  abalada  profundamente  no  seu 
prestigio  de  grande  potencia  europeia,  não 
poderá  prestar-se  a  entrar  em  propósitos 
conciliadores  sem  que  tenha  ganho  brilhante- 
mente uma  batalha,  feito  que,  de  certo  modo, 
sirva  a  diminuir  a  tristíssima  impressão  moral 
das  suas  constantes  derrotas.  Seria  de  Kuro- 
patkine  que  poderia  esperar-se  um  tal  desforço; 
mas  os  acontecimentos  anteriores  não  são  de 
molde,  em  minha  opinião,  a  fazerem  acreditar 
na  próxima  probabilidade  de  uma  notável 
victoria  russa. 

No  entretanto,  animemo-nos  com  a  espe- 
rança de  que,  por  qualquer  forma  imprevista, 
contra  todas  as  apparencias  agoirentas  do 
conflicto,  possamos  registar,  dentro  de  curto 
periodo,  a  cessação  de  hostilidades  e  do  drama 
eminentemente  sangrento  que  se  trava.  Ve- 
nha a  paz.  Convém,  porém,  que  não  nos 
deixemos  illudir  em  tal  assumpto.  A  futura 
paz  entre  a  Rússia   e   o  Japão,  sejam  quaes 


335 


forem  as  peripécias  que  a  guerra  ainda  nos 
reserva,  não  poderá  ser  senão  uma  paz  pro- 
visória, um.  descanso  na  lucta.  Os  japouezes 
sabem  isto..  A  Rússia,  não  .  se  resignará  a.^ 
desistir  para  sempre  das  suas  tremendas  aspi- 
rações de  domínio  do  lado  do  Kxtremo-Oriente. 
O  Japão,  por  sua. parte,  tíunbem  não  se  resi-- 
gnará  a  assistir  impassivel  á  acção  in\'asora 
da  Rússia,  Mas  uma  tal  acção,  que  corres- 
ponde á  anciã  de  um  povo  immenso  em  busca 
da  costa  marítima  e  de  portos,  sem  o  que 
não  poderão  desenvolver.-se  as  suas  activida- 
des latentes,  pôde  comparar-se.  a  uma  enor- 
me massa  de  aguas-,  que  viesse  inundando  os 
campos  próximos  e  alastrando-se  pelas  planí- 
cies contíguas.  O  Japão  terá  de  perseverar  na 
sua  heróica  resistência  em  reprimir  esta  castas- 
trophe,  erguendo  diques  contra  a  onda  cala- 
mitosa ;  a  lucta  continuará  ;  devendo  prevêr-se 
que  virá  um  dia  em  que  os  esforços  dos 
nipponicos,  por  mais  arrojados  que  sejam,  se 
mostrem. impotentes  perante  tamanha  empreza. 
Um  meio  se  ofterecia  de  perpetuar  a  paz, 
quando  os  dois  impérios  entraram  em  intima 
alliança,  partilhando  entre  si  a  \^asta  região 
onde  os  seus  interesses  contam  desenvolver-se 
mais  energicamente;  a  F.uropa  c  a  Anierica 
calar-se-hiam,.  embora  com   pezar..  Mas  isto. 


336 


que  seria  possível  ha  alguns  annos,  affigura-se- 
nie  agora  impraticável,  quando  o  Japão  mos- 
tra assumir  um  papel  de  libertador  da  Ásia 
extremo-oriental,  pouco  compatível  com  um 
súbito  reviramento  para  a  política  de  conquista. 

Não.  O  problema,  o  momentoso  problema 
que  se  apresenta,  não  encontrará  solução 
definitiva  senão  pelo  acordar  da  Ásia  inteira, 
no  propósito  de  garantir  a  sua  hegemonia  no 
próprio  solo  que  os  destinos  lhe  legaram. 
Assim  se  irá  constituindo  uma  outra  enorme 
onda,  avançando  em  sentido  opposto  á  pri- 
meira; e  é  do  choque  inevitável  d'essas  duas 
immensas  forças  que  resultará  um  phenomeno 
sociológico  qualquer,  capaz  de  estender  a 
pacificação  n'esta  vastíssima  região  mundial, 
que  uns  já  cobiçam  com  tanta  anciã,  e  que 
outros,  os  legítimos  donos,  tratarão  de  defender 
com  igual  anciã. 

—  No  numero  dos  soldados  russos  da 
guarnição  de  Porto  Arthur,  constituídos  pri- 
sioneiros de  guerra  e  que  seguiram  para  o 
Japão,  contava-se  um  soldadinho  franzino  e 
sympathico,  de  cabellos  louros,  imberbe,  então 
soffrendo  de  uma  forte  coryza,  o  que  lhe  valeu 
especiaes  attenções  do  destacamento  japonez 
que  acompanhava  os  vencidos.  Quando  desem- 
barcou em  terra  japoneza,  o  soldadinho  fez  ás 


337 


auctoridades  a  surprehendente  declaração  de 
que  elle  era.  .  .  uma  mulher,  expondo  pela 
forma  seguinte  a  sua  romanesca  historia. 

Algum  tempo  antes  da  guerra,  foi  residir 
para  Harbin,  na  Mandchuria,  empregando-se 
como  enfermeira.  Teve  alli  occasião  de  pres- 
tar os  seus  cuidados  profissionaes  a  um  rapaz, 
que  se  apaixonou  por  ella,  sendo  correspon- 
dido em  seus  affectos.  Guando  se  ia  tratar 
do  casamento,  já  então  se  estava  em  plenas 
hostilidades;  e  o  noivo,  que  era  official  de 
irtilharia,  teve  de  seguir  precipitadamente  para 

*orto  Arthur.  A  enfermeira  Bogdanoff  (tal  é  o 
seu  nome)  resolve  acompanhar  o  noivo,  sendo 
admittida  na  cidadella,  onde  a  sua  profissão 
lhe  proporciona  útil  emprego.  Soffre  corajosa- 
nente  uns  oito  mezes  de  cerco,  supportando 
lurissimas  privações,  assistindo  diariamente 
los  mais  horrorosos  espectáculos  de  sangue 

arriscando  a  própria  vida  a  todos  os  momen- 
tos. Rende-se  finalmente  a  praça,  e  então» 
'■estindo-se  com  um  uniforme  de  soldado,  a 
lossa  enfermeira  decide  acompanhar  para  o 
:aptiveiro   o  seu   querido  oííicial.  Chegados  a 

Jjina,    resolve-se    a    fazer  confissão   do   dis- 
farce,   implorando    para    ser    empregada   nos 
lospitaes  japonezes  onde  os  feridos  russos  vão 
ser  tratados,  e   assim  conservar-se  tão  perto 

15 


338 


quanto  possível  d'aquelle  que  ella  ama  mais  do 
que  tudo  n'este  mundo.  A'  enfermeira  Bogda- 
noff  foi  logo  concedida  a  liberdade,  mas  ainda 
não  está  resolvido  se  se  dará  satisfação  aos 
seus  desejos. 

Eu  vi  esta  heroina  em  Kobe :  um  entesinho  , 
delicado  e  modesto,  vestindo  já  um  traje 
feminino,  de  ílanella  preta,  e  um  gorro  al- 
vadio, que  lhe  occulta  os  cabellos,  cortados 
rente;  as  mãos,  brancas  e  mimosas,  tremem 
ainda  convulsas,  accusando  assim  o  estado 
mórbido  d'aquelles  pobres  nervos  femininos, 
tão  terrivelmente  abalados  pelo  estupendo  dra- 
ma, de  morte  e  de  angustias,  que  se  ia  desen- 
rolando dentro  das  muralhas  dè  Porto  Arthur. 

Romancistas:  ora  aqui  está  um  thema 
magnifico  para  os  vossos  romances  sensacio- 
naes ;  mas  o  thema  é  já  por  si  um  romance, 
real,  vivido,  bem  estranho  nos  tempos  que  \'ão 
correndo,  de  egoismo  e  de  dinheiro ;  e  não  o 
profaneis,  supplico-vos,  com  a  rhetoiica  irre\'e- 
rente  das  vossas  pennas  ferrugentas. .  . 

—  As  velhas  chronicas  nipponicas  dão 
conta  da  maravilhosa  viagem,  que  levou  a 
effeito  um  sagaz  coelho  branco,  o  qual,  mais 
tarde,  entrou  no  rol  das  divindades  japonezas. 

O  coelho  habitava  a  pequena  ilha  de  Oki, 
que  .fica,   como   é   sabido,   em   pleno  mar  do 


339 


Japão,  e  andava  desejoso  de  fazer  uma  viagem 
até  á  província  de  Inaba,  que  lhe  estava  fron- 
teira, situada  na  grande  ilFia  de  Nihon.  Mas 
de  Oki  até  Inaba  ha  que  navegar  50  milhas, 
pelo  menos,  o  que  define  claramente  a  diffi- 
culdade  da  empreza. 

Ora,  um  bello  dia,  em  que  o  nosso  coelho 
se  entretinha  passeando  junto  á  praia  e 
olhando  eni  direcção  da  terra  cobiçada,  como 
era  seu  costume,  viu  acercar-se  um  crocodilo. 
De  súbito,  uma  ideia,  das  que  \'ulgarmente  se 
chamam  luminosas,  passou-lhe  no  bestunto, 
enchendo-o  de  alegria.  Prudentemente,  saben- 
do com  que  vil  animalejo  tinha  a  haver-se, 
desfez-se  em  cortezias  e  em  mesuras,  deu  os 
bons  dias,  indagou  do  nadador  como  ia  de 
saúde,  fallou  da  chuva  e  do  bom  tempo.  .  .  E 
o  \'oraz  bicharoco,  começando  talvez  a  imagi- 
nar no  delicioso  almoço  que  a  sorte  lhe  apon- 
tava, respondeu  nos  mesmos  termos,  mavioso 
como  um  diplomata  das  eras  actuaes: 

— « Que  solidão  a  sua,  n'esta  ilha,  meu 
caro  coelho !  .  .  .  —  ia  dizendo  o  espertalhão. 
—  Procure-me,  quando  se  sinta  aborrecido ; 
poderemos  palestrar,  matar  o  tempo  em  pas- 
seios interessantes.  .  .» — Mas  o  coelho  retor- 
quiu, pezaroso  no  gesto,  que  eram  impraticá- 
veis   propostas    tão    bondosas,    \'ivendo    um 


340 


dentro  de  agua  e  o  outro  nas  montanhas.  .  . 
E  sabendo  —  philosopho  consumniado  —  que 
partido  se  pôde  tirar  da  vaidade  da  varia  bi- 
charia, fez  sentir  que  bem  imaginava  como 
alegre  a  vida  seria  pelas  aguas,  em  numerosa 
e  selecta  companhia.  —  «  E  tem  muitos  amigos 
da  sua  espécie,  snr.  crocodilo?» —  continuou. 

—  Disse  que  muitos,  impertigando-se.  —  «Dez? 
vinte?  cincoenta?.  .  .»  O  crocodilo  affirmou 
que  mais  de  mil,  mais  de  um  milhão,  dois 
milhões,  três  milhões,  nem  tinham  conta !  . .  . 
O  coelho  branco,  ingénuo,  pediu  licença  para 
duvidar;  e  ajuntou,  após  ligeira  pausa:  —  «En- 
tão, todos  os  seus  amigos,  em  fila,  um  a  se- 
guir a  outro,  preencheriam  a  distancia  que  v^ae 
d'aqui  a  Inaba?  »  — O  crocodilo  disse  que  sim, 
ufanoso.  —  «  E  permitte-me  que  verifique  o  que 
assegura  e  que  os  conte  a  um  por  um  ?  .  .  .  » 

Assim  se  combinou.  Em  certo  dia,  aíTluiu 
o  enxame.  A  um  signal  dado,  postou-se  cada 
qual  como  convinha;  e  os  negros  dorsos  for- 
maram uma  ponte,  que  ia  desde  Oki  até  Inaba. 
O  coelho,  á  cautela,  recommendou  tranquilli- 
dade  na  fileira,  pois  queria  saber  ao  certo  o 
numero  de  todos  os  amigos  de  tão  poderoso 
rei  das  aguas.  E,  aos  pulinhos,  contando  alto: 

—  «  Um  !  dois !  três  !  quatro  !  cinco  !  .  .  . »  — 
foi-se  safando,  foi-se  safando,  foi-se  safando, 


I 


341 


íité  que  chegou  a  Inaba  e  se  embrenhou  no 
niatto,  a  rir,  a  rir,  a  rir.  .  . 

Até  aqui,  a  fabula,  com  mais  ims  predica- 
dos, que  não  vêem  agora  para  o  caso.  Mas, 
pergunto  eu,  que  sou  dado  a  descobrir  os  pa- 
rallelos  entre  a  chimera  e  a  vida  prática :  — 
Não  terão  querido  os  japonezes  passar  do 
Japão  para  a  Coréa,  para  a  Mandchuria,  para 
a  China,  solicitando  dos  crocodilos  de  Moscow 
um  pretexto,  a  poíite  da  lenda,  para  execu- 
tarem seus  planos?  .  .  . 

—  Os  velhos  cancioneiros,  as  fabulas,  os 
provérbios,  tudo  isto  que  agora  está  em  moda 
chamar-se  o  folk-lore,  e  que  constitue  um 
cabedal  preciosíssimo  para  o  estudo  psycho- 
logico  dos  povos,  redobra  de  interesse  quando 
se  trata  do  Japão:  por  um  lado,  pela  abun- 
dância da  matéria,  datando  das  mais  remotas 
eras,  o  que  tende  a  proporcionar  maior  somma 
de  deleite ;  por  outro  lado,  porque,  assimilando 
facilmente  o  japonez  as  exterioridades  das 
civilisações  estranhas,  só  pelo  folk-lorc  se 
pôde  ir  desvendar,  embora  mui  de  leve,  o 
mysterio  da  alma  nipponica,  despida  do  v-er- 
niz  das  convenções. 

Já  n'uma  carta  anterior  fallei  da  uta,  a 
poesia  clássica  japoneza.  Hoje,  para  entreter 
os  curiosos,  vou  apresentar  alguns  provérbios 


342 


nipponicos.  A  seguir  a  alguns  d'elles,  escre- 
verei o  provérbio  portuguez  que  melhor  lhes 
corresponde,  pelo  sentido  moral ;  porque  uma 
parte  do  assumpto,  não  a  menos  attrahen- 
te,  está  precisamente  em  respigar  similhanças, 
que  provem,  ao  lado  dos  característicos  que 
distinguem  os  povos  entre  si,  os  não  poucos 
pontos  de  contacto  da  alma  humana,  sejam 
quaes  forem  as  familias  que  se  comparem, 
tratando-se  por  exemplo  de  uma  tribu  latina 
do  extremo  occidente  da  Europa  e  do  asiático 
insular  extremo-oriental.  Seguem  os  provér- 
bios, ou  antes  a  sua  traducção,  muito  despida 
de  brilho,  sem  duvida,  porque  a  litteratura 
fallada,  dos  provérbios,  obedece  em  todas  as 
línguas  e  mais  na  japoneza,  a  uma  selecção 
de  tei-mos,  a  um  rythmo  musical,  que  não 
podem  transmittir-se  á  traducção. 

«Quando  as  pedras  florescerem»  (quando 
as  gallinhas  tiverem  dentes). 

«Se  vives  na  aldeia,  ella  é  a  capital. >> 
«Uma  rã  dentro  de  um  poço,  não  conhece 
o  mar  largo.» 

«Provar  é  melhor  do  que  discutir.» 
«  Um  mau  orador  discursa  muito. » 
«  O  perfume  das  flores  sente-se  a  distancia. » 
«Longa  experiência  vale  mais  do  que  ta- 
lento.» 


343 


«A  belleza  sem  virtude  é  igual  á  flor  sem 
aroma.» 

«O  ausente  torna-se  menos  intimo  de  dia 
para  dia»   (longe  da  vista,  longe  do  coração). 

«Implorar  os  deuses  na  desgraça  >  (lem- 
brar-se  de  Santa  Barbara  só  quando  ha  tro- 
vões). 

«Se  tomares  \'eneno,  lambe  o  prato.» 

«A  vida  assimelha-se  a  uma  luz  exposta 
ao  vento.» 

«Emquanto  ha  vida,  ha  meio  de  resolver.» 

«Esconder  a  cabeça  sem  esconder  o  rabo » 
(rato  escondido  com  o  rabo  de  fora). 

« Não  ha  ninguém  que  não  tenha  sete 
^ratices  pelo  menos.  > 

«Cuidado  com  uma  mulher  bonita:  é  o 
pimento  vermelho.» 

«Se  não  se  entra  na  toca  do  tigre,  não 
ha  meio  de  apanhar-lhe  os  filhos.» 

«O  amor  illude  todos  os  cálculos.» 

«Uma  boa  opportunidade  raramente  se 
encontra  e  facilmente  se  perde.» 

«Antes  de  te  molhares,  acautela-te  até  do 
orvalho.» 

«Dar  uma  moeda  d'ouro  a  um  gato» 
(manteiga  em  nariz  de  cão). 

«O  grito  de  mil  pardaes  é  inferior  ao  dè 
uma  só  cegonha.» 


344 


«Com  o  auxilio  de  mil  marinheiros  pôde 
um  navão  subir  a  uma  montanha.» 

«  Os  rapazes  que  moram  perto  de  um  tem- 
plo sabem  as  rezas  de  cór.» 

«Conhece-se  se  um  homem  é  bom  ou 
mau  pelos  seus  amigos.» 

«Não  julgues  um  homem  pela  sua  appa- 
rencia»  (as  apparencias  illudem). 

« Observa  os  erros  dos  outros  e  corrige 
os  teus  próprios.» 

«  O  homem  honesto  tem  muitos  filhos.» 

«Em  occasião  de  fome,  não  ha  comida 
insonsa. » 

«  Aos  três  annos,  aos  cem  annos,  a  alma 
é  a  mesma.» 

«  O  morto  não  falia.» 

«Não   batas   no   cão  que  abaixa  o  rabo.» 

« Rabo  de  pargo  não  vale  cabeça  de 
sardinha.»  (quasi  idêntico  ao  rifão  portu- 
guez). 

«  Theoria  é  fácil,  prática  é  difficil.» 

« O  soberano  é  um  na\'io,  o  povo  dos 
vassallos  é  o  mar.» 

«  Hontem  noiva,  amanhã  sogra.» 

«  Os  macacos  cahem  ás  \'ezes  das  arvores 
abaixo.» 

«Uma  mulher  respeita\'el  não  conhece 
dois  maridos.» 


345 


« Aprende  as  coisas  novas,  estudando  as 
velhas.» 

«Saúde  é  dinheiro.» 

«O  mel  na  bòcca  c  um  punhal  escondido 
no  coração.» 

«Sem  dòr,  não  ha  prazer.» 

«Um   bom   pintor  não  escolhe  o  pincel.» 

«Bois  com  bois,   cavallos   com   cavallos.» 

« As  nuvens  estão  a  dez  mil  léguas  da 
lama. » 

«Quando  se  fazem  cálculos  para  o  anno 
futuro,  os  diabos  riem-se.» 

«  Os  insectos  do  verão  riem-se  da  neve.» 

« Quando  os  pardaes  brigam,  não  téem 
medo  da  gente.» 

«  Pilho  de  rã,  rã  ha-de  ser  »  (filho  de  peixe 
sabe  nadar). 

«Uns  vão  dentro  do  palanquim,  outros 
carregam  com  elle.» 

«Assistir  a  um  barulho  do  lado  opposto 
do  rio.» 

«  Os  pães  pensam  nos  filhos  mesmo  a  cem 
léguas  de  distancia.» 

« O  pensamento  do  homem  e  a  corrente 
do  rio  podem  mudar  de  sentido  durante  uma 
noite.» 

« O  adivinho,  que  discursa  sobre  a  sorte 
dos  outros,  desconhece  a  sua.  > 


346 


« Fazer  como  os  •  macacos,  que  queriam 
apanhar  a  lua.» 

Ficou  para  o  íim  este  provérbio,  e  vae 
com  a  devida  explicação.  Allude  a  certa  pará- 
bola, que  dizem  contada  pelo  próprio  Buddha. 
Vários  macacos  achavam-se  sobre  uma  ar- 
vore, durante  certa  noite.  Vae  depois,  dão  fé 
da  imagem  da  lua,  reflectida  n'um  poço  que 
lhes  ficava  por  baixo.  Julgando  vêr  a  reali- 
dade e  não  a  imagem,  resolvem  apanhar  á 
lua.  Um  dos  monos,  enrolando  a  cauda  a  um 
tronco,  deixa  pender  o  corpo ;  outro  mono 
suspende-se-lhe  das  mãos;  á  cauda  d'este, 
outro  se  segura;  e  assim  segue  o  rosário,  avi- 
sinhando-se  do  objecto  cubicado,  quando  o 
tronco  se  parte  e  a  macacaria  toda,  dentro  do 
poço,  se  afoga,  sem  remédio.  .  . 

—  O  primeiro  concurso  imperial  de  poesia, 
d'este  anno,  realisou-se  ha  poucos  dias,  no 
palácio  do  hiiperador.  Os  poemas,  uta^  escri- 
ptos  pelos  príncipes,  pelos  altos  funccionarios 
da  corte  e  pelo  povo,  em  geral,  elevaram-se  ao 
numero  de  16:232.  Das  composições  populares, 
seis  foram  classificadas  de  distinctas  e  guarda- 
das no  imperial  archivo,  sendo  uma  d'ellas  de- 
vida á  mulher  de  um  soldado,  agora  no  campo 
da  batalha.  Feliz  império  de  poetas !  . .  . 


\ 


XXVII 

15  de  íevereiro  de  1905 

A  tomada  de  Porto  Arthur;  algumas  divagações  a  pro- 
pósito—  Data  memorável;  principaes  factos  da 
guerra  —  O  commercio  do  Japão  no  anno  findo;  fir- 
mas portuguezas  em  Ivobe. 

I^HEOAM-MK  ás  mãos  os  primeiros  jornaes 
da  pAiropa,  registando  a  terrivel  cata- 
strophe  de  Porto  Arthiir,  com  que  tão  estron- 
dosamente iniciou  os  seus  fastos  o  novo  anno 
de  1905.  O  acontecimento,  embora  esperado, 
impressionou  profimdamente  o  mundo  Occiden- 
tal, e  não  admira  que  assim  succedesse.  Pela 
primeira  vez,  na  historia  moderna  dos  povos, 
um  Estado  europeu  (e  dos  mais  poderosos) 
é  desfeiteado  nos  seus  dcsignios,  e  \'encido 
nos  seus  arrojos,  por  uma  nação  de  raça 
difterente,  por  um  grupo  da  familia  amarella, 
julgada  até  ha  pouco  inteiramente  incapaz  de 
se  erguer  e  ác  protestar  contra  a  cubica  do 
branco.  O  pequeno  Japão  derrota  a  grande 
Rússia; — derrota,  — porque  o  feito,  que  está 
longe  de  traduzir  ainda  a  feição  final  da  cam- 


348 


panha,  é  só  por  si  de  uma  importância  capital, 
bastante  para  desprestigiar  perante  o  mundo 
inteiro  o  nome  temido  do  enorme  império 
moscovita.  Assistimos,  em  face  da  rude  e  in- 
discutivel  realidade  das  coisas,  a  uma  repu- 
tação que  se  afunda  e  a  outra  que  nasce;  e 
do  duplo  phenomeno  vae  derivar  certamente 
uma  nova  orientação  social,  vae  surgir  um 
novo  sentimento  na  consciência  das  nações, 
o  qual  se  resumirá  no  respeito  devido  ao 
solo  asiático,  á  sua  integridade  e  á  evolução 
independente  dos  seus  povos.  O  risonho  sonho 
da  divisão  da  China  em  retalhos,  como  se  fosse 
roupa  de  francezes,  com  que  até  ha  bem  pouco 
tempo  se  ia  deleitando  a  \elha  Europa,  tem 
agora  de  desvanecer-se  como  todos  os  sonhos,, 
porque  se  descobriu  —  tarde,  para  nossa  ver- 
gonha—  que  palpita  no  Extremo-Oriente  uma 
alma  cheia  de  arrojos,  dotada  de  suprema  co- 
ragem e  moldavel  a  todos  os  progressos  —  a 
alma  do  Japão!  .  .  . 

Paz  ?  .  . .  Os  nomes  mais  considerados  na 
imprensa  mundial  já  a  aconselham  abertamente,, 
convencidos  de  que  uma  prolongada  teimosia 
pelo  lado  da  Rússia,  no  desígnio  de  recuperar 
o  seu  prestigio,  não  fará  senão  arrastal-a  a 
mais  terríveis  desillusoes  e  porventura  á  der- 
roçada  total  das  suas  instituições.  Encontra- 


J 


í 


349 


se-ha  n'este  momento  o  governo  do  czar  dis- 
posto a  propor  uma  tal  paz?  Nada  se  sabe. 
Ha  poucos  dias,  circularam  insistentes  boatos 
n'este  sentido,  mas  parece  que  cessaram  já. 
Se  a  effervescencia  social,  que  convulsiona 
actualmente  as  massas  no  império  moscovita, 
se  alastra  até  á  Sibéria;  se  a  ameaça  de  uma 
j^revi'  geral,  no  pessoal  da  linha  férrea  trans- 
siberiana,  se  torna  acaso  effectiva ;  então  a 
paz  apresenta-se  imminente,  inobstavel;  por- 
que o  governo  russo,  seja  qual  fòr  a  tensão 
do  seu  orgulho,  não  ousará  expor  aos  horro- 
res da  fome  e  ás  medonhas  consequências 
resultantes,  quando  o  transporte  de  viveres 
cessar,  o  enorme  exercito  de  Kuropatkine, 
contido  ainda  nas  immediaçoes  de  Mukden 
por  um  resto  de  disciplina  militar,  pelo  temor 
dos  chefes,  mas  desmoralisado  pelas  continuas 
derrotas,  mas  alanceado  pelas  doenças  e  pelos 
rigores  do  clima,  mas  profundamente  desgos- 
toso por  uma  lucta  sem  hm,  cujos  motivos 
políticos  não  electrisam  a  sua  fibra  patriótica. 

Propriamente  noticias  da  guerra  escasseiam. 
Os  dois  grandes  exércitos,  em  face  um  do 
outro,  v^oltam  ao  que  parece  a  uma  quasi 
absoluta  immobilidade.  Não  se  prev^è  o  que 
resultará  de  tão  prolongada  espectativa. 

—  Data  momora\'el  foi  a  de  9  do  corrente 


350 


mez,  pois  em  igual  dia  do  anno  anterior 
soaram  os  primeiros  tiros  de  canhão  em  Che- 
mulpo  e  Porto  Arthur,  alarmando  o  mundo 
inteiro,  marcando  assim  o  inicio  irremediável 
da  grande  lucta.  Conta,  pois,  já  um  longo 
anno  esta  giierra  tremenda,  assignalada  -por 
surprehendentes  e  terríveis  acontecimentos, 
por  grandes  desillusões  dos  povos  occidentaes 
e  pela  convicção,  a  que  se  chegou,  do  alto 
grau  de  sentimentalidade  patriótica,  de  cora- 
gem c  de  sciencia  militar  e  naval  em  que  se 
encontra  a  familia  japoneza.  Profundas  con- 
siderações se  podem  ii-  fazendo  sobre  os 
factos  consummados.  Por  minha  parte,  no 
decurso  doestas  despretenciosas  correspondên- 
cias, terei  occasião  de  ir  discreteando,  antes 
palestrando,  com  respeito  ao  que  o  assumpto 
me  suggere. 

Limito-me  por  hoje,  commemorando  o 
anniversario  referido,  a  apresentar  uma  rese- 
nha dos  principaes  factos,  a  qual  successiva- 
mente  irei  continuando;  é  tirada  de  uma  das 
mais  correctas  publicações  sobre  a  guerj-a, 
impressas  no  Japão,  e  offerecerá,  supponho, 
algum  interessa  áquelles  cuja  curiosidade  está 
convergindo  para  o  sangrento  drama  Extremo- 
Oriental.  Segue  a  resenha. 

1904 — Fevereiro    5,  cortadas  as  relações 


351 


diplomáticas  entre  o  Japão  e  a  Rússia;  8,  lei 
sobre  o  sitio  approvada;  9,  batalha  naval  de 
Chemulpo;  9,  primeiro  ataque  a  Porto  Arthur; 
10,  proclamação  de  guerra,  pelo  Japão;  10, 
proclamação  de  guerra,  pela  Rússia;  10,  o  mi- 
nistro Kurino  retira  de  S.  Petersburgo;  11,  o 
ministro  barão  Rosen  retira  de  Tokio;  11,  o 
vapor  costeiro  <-  Nagupa-maru »  é  mettido  a 
pique  pelos  russos  na  costa  de  Hakodate;  ii, 
o  «Venisei»  é  afundado  em  Porto  Arthur,  em 
resultado  de  uma  explosão  de  torpedeiros  sub- 
marinos; 12,  o  ministro  Pavloff  retira  de  Seul; 

13,  segundo  ataque  a  Porto  Arthur;  13,  é 
capturado    o    vapor   inglez  « Foxton    Halle»; 

14,  é  atacado  o  vapor  inglez  «P\iping»;  15, 
é  atacado  e  capturado  o  vapor  inglez  « Hsi- 
ping  > ;  22,  os  passageiros  do  «  Nagura-muro  >, 
com  excepção  de  dois  (afogados),  chegam  a 
Nagasaki ;  22^  aprezado  o  vapor  inglez  «  Rosa- 
lie » ;  22^  o  paquete  inglez  «Mombassa;>,  da 
Companhia  P.  &  O.,  é  atacado  e  obrigado  a 
parar;  23,  terceiro  ataque  a  Porto  Arthur, 
fazendo-se  tentativas  para  obstruir  a  barra  da 
entrada;  26,  o  vapor  inglez  « Ettrickdale »  é 
obrigado  a  parar,  não  proseguindo  na  sua 
viagem;  2Ó,  o  vapor  inglez  «Benalder»  é 
obrigado  a  parar;  2'],  o  vapor  inglez  «Oriel» 
aprezado;  28,  encontro  entre    forças  russas  e 


352 


japonezas  de  reconhecimento,  ao  norte  de 
Ping3^ang. 

Março  6,  bombardeamento  de  Vladivostok; 
9,  encontro  de  forças  de  reconhecimento  em 
Pakchkyon  ;  lO,  quarto  ataque  a  Porto  Arthur; 
12,  o  vapor  allemão  «Stuttgart»  é  obrigado 
a  parar;  2i,  quinto  ataque  a  Porto  Arthur; 
23,  primeira  escaramuça  &m  Tongju;  27,  sexto 
ataque  a  Porto  Arthur,  com  tentativa  de 
obstrucção  da  barra;  28,  escaramuça  em 
Tongju,   a  cidade  occupada  pelos  japonezes. 

Abril  8,  os  russsos  evacuam  Gensen;  10, 
escaramuça  entre  forças  avançadas  á  entrada 
do  lio  Yalu;  13,  sétimo  ataque  a  Porto  Arthur, 
destruição  do  «Petropawiowsk»,  morrem  afo- 
gados o  almirante  Makaroff,  o  seu  estado 
maior,  30  officiaes  e  600  marinheiros;  15, 
oitavo  ataque  a  Porto  Arthur,  em  que  se 
estreiam  os  novos  cruzadores  «Nisshin»  e 
«Kazuga»;  21,  escaramuças  na  entrada  de 
Yalu;  25,  alguns  navios  de  guerra  russos 
apparecem  em  Gensan  (Coréa),  mettendo  a 
pique  o  vapor  mercante  «Gayo-maru»;  25, 
os  russos  destroem  uma  ponte  no  Yalu ;  26,  o 
transporte  japonez  «Kiushiu-maru»  é  afundado 
perto  de  Gensan. 

Maio  I,  os  japonezes  occupam  Chulien- 
cheng,   após   severo  combate;   2,  o  navio  de 


353 


vela  japonez  «Haginoura-maru  >  é  mettido 
a  pique  pelos  russos  perto  de  Coréa;  3,  ter- 
ceira expedição  enviada  a  Porto  Arthur  para 
obstruir  a  entrada;  3,  o  paquete  inglez  «Osiris» 
(P.  &  O.)  é  obrigado  a  parar  e  é  revistado;  5, 
uma  divisão  japoneza  desembarca  em  Liao- 
tung ;  6,  esta  divisão  occupa  as  visinhanças  de 
Kinchan,  começando  o  cerco  de  Porto  Arthur; 
6,  os  japonezes  occupam  Fuinhancheng;  7,  os 
japonezes  occupam  Porto  Adams  e  Pi-tsze-vvo; 
10,  escaramuça  em  Anju,  ataque  dos  russos 
repellido;  12,  o  torpedeiro  japonez  n.*^  48 
afunda-sc  na  bahia  Kerr,  em  resultado  da 
explosão  de  torpedos  submarinos;  13,  os  ja- 
ponezes occupam  Sinjan  (oeste  de  Fuinhan- 
cheng); 14,  afunda-se  o  «Aliyako»  na  bahia 
de  Kerr,  em  resultado  da  explosão  de  torpedos 
submarinos;  15,  acontece  idêntico  desastre  ao 
«Hatsuae»,  em  frente  de  Porto  Arthur;  15,  o 
«Yoshino»  é  abalroado  pelo  «Kusuga»  e 
afimda-se;  18,  combate  em  Chulishau  (nor- 
deste de  Kinchau),  russos  desalojados;  2^, 
escaramuça  perto  de  Kvvanten,  os  russos  re- 
tiraram; 25,  o"  almirante  Skrydioff  chega  a 
Vladivostok;  26,  os  japonezes  occupam  Kin- 
chau, após  duro  combate;  2/,  os  japonezes 
occupam  Nanshan  (^monte  do  sul);  30,  escara- 
muça em   Sichatsu   (perto  de  Porto  Adams); 


354 


30,  escaramuças  na  península,  os  japonezes 
dispersam  os  russos  em  Tienchaton,  Chan- 
chaton  e  Royoobyo. 

Junho  4,  a  canhoneira  russa  «Gremiaschy», 
afundada  por  explosão  de  torpedos  submari- 
nos;  7,  os  japonezes  occupam  Samazi  (norte 
de  Fuinhancheng) ;  9,  os  japonezes  occupam 
Sinjan  (oéste  de  F\iinhancheng) ;  ii,  severo 
ataque  em  Fuchan  e  visinhanças,  os  japonezes 
victoriosos;  14,  a  esquadra  de  Vladivostok 
apparece  em  frente  de  Okinoshima  e,  proce- 
dendo para  Tsushima,  torpedeia  os  transpor- 
tes japonezes  « Hitachimaru»,  «Sado-maru» 
e  <'Idzumi-maru  »,  nos  estreitos  de  Tsushima 
e  ataca  c  afunda  alguns  barcos  costeiros;  a 
esquadra  do  almirante  Kaminura  persegue 
sem  resultado  a  esquadra  inimiga;  16,  batalha 
de  Tokuriji ;  18,  os  japonezes  expulsam  os 
russos  de  Shichibanrei;  18,  o  vapor  inglez 
«AUanton»,  apresado  em  frente  do  Hokkaido 
pela  esquadra  de  Vladivostok ;  20,  os  japone- 
zes occupam  Schun^^oncheng;  22^  os  russos 
atacam  os  japonezes  em  Aiyangpienmun  (sul 
de  Samazi\  retirando  após  curto  combate;  22, 
escaramuça  em  Senkaton  (na  estrada  de 
Tashichau),  os  japonezes  occupando  subse- 
quentemente Kakoto  e  Tojiko ;  23,  nono  ata- 
que combinado  contra  Porto  Arthur,  a  esquadra 


355 


russa  impedida  de  largar  do  porto,  um  coura- 
çado russo  a  pique,  outro  desmantelado,  dois 
cruzadores  de  primeira  classe  com  avarias ; 
27,  os  japonezes  apossam-se  de  Bunsurei 
(Fenshuilienj ;  27,  uma  divisão  de  torpedeiros 
japonezes  ataca  o  navio  vigia  em  Porto  Arthur, 
afundando-se  no  combate  dois  navios  russos; 

29,  os  japonezes  occupara  importantes  pontos 
estratégicos  nas   visinhanças  de  P"enshuilien ; 

30,  a  esquadra  de  Madivostok  bombardeia 
Gensan,  mettendo  no  fundo  uma  lancha  a 
vapor  e  um  navio  de  vela  japonezes. 

Julho  I,  dá-se  vista  da  esquadra  de  Madi- 
vostok nas  visinhanças  de  Tsushima;  2,  os 
japonezes  atacam  os  russos  ao  sul  de  Tashi- 
chao ;  batalha  de  Jisilipao  (sul  de.  Haicheng) ; 
4,  os  japonezes  occupam  Motienling  (nordeste 
de  Liao-Yang);  5,  a  canhoneira  japoneza 
« Kaimon »  afundada  por  uma  explosão  de 
torpedos  submarinos;  5,  escaramuça  na  pas- 
sagem de  Fengsin,  cossacos  repellidos;  6,  o 
vapor  ingiez  «Cheltenham»  aprezado;  6,  os 
japonezes  occupam  Kansho ;  9,  os  japonezes 
occupam  Kaiping;  10,  os  japonezes  occupam 
Shuhoko  e  Senkakoku;  13,  o  paquete  «Ma- 
lacca  »  (P.  &  O.)  apresado  pela  frota  \'oluntaria 
russa  no  mar  Vermelho;  15,  o  vapor  ingiez 
<; Dragonman ^^  obrigado  a  parar;  15,  o  paquete 


356 


allemão  «  Prinz  Heinrich  »  obrigado  a  parar  e  as 
malas  do  correio  capturadas;  i6,  idêntico  facto 
com  o  vapor  inglez  «Pérsia»;  i6,  o  vapor  in- 
glez  «Hipsang»  torpedeado  e  afundado;  17, 
os  japonezes  atacam  os  russos  dos  dois  lados 
da  passagem  de  Montien,  perseguindo-os  até 
Kinchanpaotze;  24,  os  japonezes  occupam 
Tashichao  e  posições  próximas;  24,  uma  divi- 
são de  torpedeiros  com  duas  canhoneiras  ataca 
os  destroycrs  russos  perto  do  cabo  Sensei, 
em  Porto  Arthur;  24,  a  esquadra  de  Vladivos- 
tok  aftmda  o  vapor  inglez  «Knight  Comman- 
der»  ;  24,  o  vapor  allemão  «Arábia»  apresado; 
24,  occupação  japoneza  de  Newchwang  offi- 
cialmente  annunciada;  25,  o  vapor  allemão 
«Thea»  afundado  pela  esquadra  de  Vladivos- 
tok;  2Ó,  o  paquete  inglez  «Formosa»  apresado 
no  mar  Vermelho ;  30,  Hsimocheng  atacado  e 
occupado  pelos  japonezes;  31,  novo  combate 
em  Motienling;  31,  os  japonezes  occupam 
posições  nas  elevações  próximas  de  Hsimo- 
cheng. 

Agosto   í,  os  russos  evacuam  Haicheng; 

9,  apparecimento    de    cossacos   em  Gensan; 

10,  a  esquadra  de  Porto  Arthur,  quando  pro- 
curava escapar-se,  encontra  a  esquadra  japo- 
neza, seguindo-se  um  duro  combate;  subse- 
quente dispersão  dos  russos,  morto  o  almirante 


357 


Witgeft;  II,  o  destroyer  russo  «Retshitelny», 
refugiado  em  Chefii,  é  aprisionado  pelos  japo- 
nezes  ;  14  a  esquadra  de  Kaminura  encontra  a 
esquadra  de  Vladivostok  ao  norte  de  Tsus- 
hima;  após  cinco  horas  de  combate,  o  «Rurik» 
afunda-se,  escapando-se  com  sérias  avarias  o 
«Rossia'>  e  o  -<  Gromovoi » ;  17,  o  major 
\amaska  transmitte  ao  chefe  do  estado-maior 
de  Porto  Arthur  o  desejo  do  imperador  para 
que  as  vidas  dos  não-combatentes  sejam  pou- 
padas, bem  como  um  convite  de  rendição;  17, 
resposta  da  guarnição  de  Porto  Arthur,  de- 
clinando o  convite  para  render-se;  20,  os  ja- 
ponezes  afundam  o  «Novik»  em  Sakhalien; 
24,  inicio  do  combate  a  sueste  de  Liao-Vang. 

Setembro  3,  os  japonezes  apossam -se  de 
Liao-Yang;  18,  o  navio  de  guerra  japonez 
« Heiyen »  vai  a  pique  em  frente  de  Porto 
Arthur,  em  resultado  de  explosão  de  uma 
mina  fluctuante;  30,  os  russos  incendeiam  os 
barcos  chinezes  que  encontram  no  rio  Hun, 
mas  são  dispersados  pelos  japonezes. 

Outubro  2,  os  japonezes  derrotam  a  ca- 
vallaria  russa  em  Hosoton;  10,  em  Mukden 
os  russos  começam  um  assalto  geral  a  toda 
a  linha  japoneza;  14,  victoria  japoneza  na 
batalha  de  Shaho. 

Novembro   15,  o  dcsh'oycr  xw'>'>o  «Ratsto- 


358 


repny  >  evade-se  de  Porto  Arthur  e  chega  a 
Chefu;  15,  forças  russas  de  cavallaria  e  infan- 
teria  atacam  os  japonezes  em  Hinlugtun,  mas 
são  repellidas ;  15,  a  ca\'allaria  e  infanteria 
russas  atacam  Chitaitze  e  Mamachich,  mas 
pouco  damno  causam  ás  posições  japonezas; 
ló,  a  guarnição ^o  «  Ratstorepny  »  faz  explo- 
dir o  seu  barco;  20,  os  japonezes  apresam 
o  vapor  allemão  ^.  Peteran»,  perto  da  ilha 
Round ;  24,  a  infanteria  russa  repetidamente 
ataca  a  guarda  avançada  japoneza  em  dire- 
cção de  Lamatun,  mas  é  repellida;  algumas 
descargas  da  artilheria  russa  na  visinhança 
da  ponte  da  linha  férrea  de  Shaho  não  pro- 
duzem efíeito;  30,  os  japonezes  tomam  a 
« cota  de  203  metros  ^> ;  30,  o  guarda-costas 
japonez  « Saiyen »  afunda-se  perto  de  Porto 
Arthur,  em  resultado  de  uma  explosão  de 
mina  submarina. 

Dezembro  i,  ataque  infructuoso  dos  russos 
para  recuperarem  a  « cota  de  203  metros » ; 
19,  informações  ofíiciaes  do  bom  êxito  de  um 
novo  ataque  de  torpedeiros  contra  os  navios 
russos  em  Porto  Arthur  e  da  captura  de  im- 
portantes posições;  23,  Togo  confirma  a  no- 
ticia da  destruição  da  esquadra  de  Porto 
Arthur,  pelo  que  recebe  no  mesmo  dia  um 
telegramma  com  as  felicitações  do  imperador; 


i 


35.9 


2/,  escaramuça  na  \'isinhança  do  Shaho;  28, 
os  japonezes  tomam  o  monte  Nir}'o,  em  Porto 
Arthur;  31,  os  japonezes  occupam  o  monte 
Sunshu,  em  Porto  Arthur;  31,  quatro  dcs- 
troyjrs  escapam-se  de  Porto  Arthur  para 
Chefu. 

1905  —  Janeiro  i,  após  severo  combate, 
mensageiros  russos  avançani  até  ás  forças 
japonezas,  apresentando  uma  proposta  de 
capitulação  do  general  Stoessel;  o  general 
Nogi  acceita  condicionalmente  a  proposta;  3, 
os  ofíiciaes  commissionados  dos  dois  exérci- 
tos para  combinarem  os  processos  de  rendi- 
ção da  praça  concluem  os  seus  trabalhos;  4, 
as  fortificações  de  Porto  Arthur  passam  para 
as  mãos  dos  japonezes;  5,  felicitações  impe- 
riaes  enviadas  ao  general  Nogi;  7,  completa-se 
a  entrega  de  presioneiros ;  9,  completa-se  a 
entrega  de  fortes  e  material;  10,  chega  a  Na- 
gasaki  o  primeiro  troço  de  prisioneiros;  11,  o 
general  Stoessel  larga  de  Porto  Arthur;  1 1,  foi- 
ças japonezas,  estacionadas  em  Ham-heling 
(Coréa),  atacam  os  cossacos  e  capturam  im- 
portante preza;  ii,  os  japonezes  capturamos 
vapores  ingiezes  «Roseley»  e  «Lethington », 
ambos  com  carga  de  carvão  para  Madivos- 
tok;  12,  decreto  imperial,  annunciando  o  ad- 
diccionamento  de  submarinos  á  flotilha  de  tor- 


36o 


pedeiros  da  marinha  japoneza;  13,  as  forças 
japonezas  occupam  Porto  Arthur;  13,  a  ca- 
vallaria  russa  ataca  de  surpreza  Newchvvang 
(a  cidade  v^elha)  e  é  repellida;  14,  chegada  do 
general  Stoessel  a  Nagasaki;  17,  partida  do 
general  Stoessel  para  Shangae  e  Europa,  a 
bordo  do  paquete  francez  « Australien »;  23, 
escaramuça  perto  de  Kansho,  a  leste  de  Muk- 
den;  2^,  os  russos  principiam  avançando  na 
margem  esquerda  do  rio  Hun;  25,  o  vapor 
austríaco  «Burma»,  carregado  de  carvão  para 
Vladivostok,  é  apresado  pelos  japonezes,  perto 
do  Hokkaido ;  2(5,  os  russos  são  repellidos  em 
um  encontro  perto  de  Liuchaskon;  27,  bata- 
lha de  Heitaiko;  depois  de  successivos  com- 
bates durante  três  dias,  os  russos  retiram  e  os 
japonezes  occupam  Heitaiko ;  perdas  russas 
avaliadas  em  20:000  e  japonezas  em  7:000; 
27,  o  vapor  inglez  «M.  S.  Dollar»  com  carga 
de  carvão  para  Vladivostok,  é  apresado  pelos 
japonezes  em  frente  do  Hokkaido;  30,  a 
mesma  sorte  tem  o  vapor  inglez  « Wein- 
field»,  carregado  de  contrabando  de  guerra 
para  Vladivostok. 

—  Em  breve  espero  ter  occasião  de  apre- 
sentar alguns  dados  estatísticos  com  respeito 
ao  commercio  do  Japão  durante  o  anno  findo, 
commercio   que  se  mostrou  muito  lisongeiro, 


3^1 


apesar    dos    gravissinios   inconvenientes   que, 
sem  duvida,  a  guerra  lhe  occasionou. 

Por  agora  fallenios  de  assumpto  que  mais 
nos  toca  pela  porta.  K  geralmente  sabido  que 
existem  em  Kobe  duas  firmas  mercantis  por- 
tuguezas:  uma  é  a  do  snr.  J.  L.  Gil  Pereira, 
outra  a  de  Gomes  Brothers  &  C.^,  as  quaes 
mantéem  relações  directas  com  algumas  im- 
portantes casas  de  Portugal.  Já,  ha  tempo, 
me  referi  á  primeira,  e  hoje  seria  supérfluo 
insistir  sobre  a  sua  respeitabilidade.  Também 
já  mencionei  a  segunda  por  occasião  da  ex- 
posição de  Osaka,  onde  figurou  honrosamente 
como  representante  da  Companhia  Vinícola 
do  Norte  de  Portugal;  a  firma  Gomes  Bro- 
thers &  C.^,  cujo  nome  gosa  de  excellente 
credito,  desde  longos  annos,  no  Extremo- 
Oriente,  tem  alargado  ultimamente  o  seu  ne- 
gocio, offerecendo  magnificas  promessas  de 
longa  prosperidade.  Citando  hoje  estas  duas 
lirmas  portuguezas,  é  meu  intento  lembrar 
aos  nossos  negociantes  do  continente  a  van- 
tagem de  entrarem  cm  relações  com  alguma 
d'ellas,  com  o  fim  de  estabelecer-se  de  forma 
definitiva  uma  séria  corrente  de  negocio  entre 
í^ortugal  e  o  Japão. 


le 


XXVIII 

27  de  fevereiro  de  1905 

Noticias  da  guerra  —  O  descobrimento  do  Japão  pelos 
Portuguezes;  a  passagem  d'estes  pelo  império  nip- 
ponico  —  \''estigios  linguisticos  —  O  inverno  no  Im- 
pério do  Sol  Nascente;  conta-se  a  propósito  a  his- 
toria de  um  salgueiro. 

T~j^scASSEiAM  inteiramente  noticias  da  guerra, 
se  não  levarmos  em  conta  as  pequenas 
escaramuças  que  diariamente  se  repetem  ao 
longo  da  extensissima  linha  das  forças  inimi- 
gas estacionadas  ao  sul  de  Mukden,  tendo 
por  chefes  superiores  Kuropatkine  e  Oyama.  O 
inverno,  tão  rigoroso,  da  Mandchuria  está  im- 
pondo quasi  que  completa  immobilidade  a 
esse  milhão  de  homens  vivendo  em  pleno 
campo,  apenas  abrigados  dos  nevões,  das 
chuvas  e  dos  ventos  desabridos  pelas  cavas 
subterrâneas  e  velha  casaria  chineza  onde  se 
acoutam,  e  que  lhes  proporcionam  um  simu- 
lacro de  conforto. 

Resta  o  assumpto  das  conjecturas  —  e  este 
é  vasto  —  para  ir  entretendo  a  curiosidade 
publica.  Muito   possilvemente  uma  tremenda 


3^3 


batalha  se  ferirá,  quando  o  tempo  a  torne 
exequível,  isto  é,  dentro  de  algumas  semanas; 
inclinando-se  fortemente  a  opinião  japoneza  no 
sentido  de  que  ella  reserva  á  Rússia  uma 
enorme  catastrophe  e  a  ruina  completa  do  seu 
prestigio,  já  muito  abalado  nos  tempos  que 
vão  correndo. 

No  entretanto,  não  é  condição  imprescindí- 
vel que  tal  batalha  se  dê,  podendo  acaso 
evitar-se  a  medonha  carnificina  que  ella  repre- 
sentará. No  momento  presente,  não  é  por 
certo  ao  Japão,  victorioso  e  confiando  na 
extrema  bravura  e  no  alto  patriotismo  dos  seus 
soldados,  que  pertence  iniciar  quaesquer  pro- 
postas de  paz.  Alas  a  Rússia  tem  razões  de 
sobra  para  começar  por  seu  lado  taes  propos- 
tas, sendo  notório  que  já  vão  correndo  pela 
imprensa  mundial  largos  boatos  sobre  o  as- 
sumpto. A  promessa  de  Kuropatkine,  apre- 
goada nos  jornaes  do  Occidente,  ante  a  pro- 
phecia  de  que  o  exercito  japonez  seria  massa- 
crado no  continente  até  ao  ultimo  soldado  e 
que  elle  viria  em  pessoa,  o  generalíssimo,  impor 
em  Tokio  as  duras  condições  de  paz,  já  ha  lon- 
gos mezes  perdeu  o  mérito  de  poder  ser  invo- 
cada como  uma  esperança.  Hoje  a  Rússia  verga 
ao  peso  das  suas.successivas  derrotas,  sem  vir 
contrabalançal-as    a   consolação   de    uma   só 


3^4 


victoria,  quer  por  terra,  quer  pelo  mar ;  e  não 
se  affigura  verosímil  que,  depois  d'este  longo 
anno  de  guerra,  as  suas  tropas  da  Mandchuria 
ou  a  sua  esquadra  do  Báltico,  esta  reforçada 
com  uma  no\'a  esquadra  que  se  annuncia  em 
caminho,  sejam  capazes  de  virar  a  fortuna  das 
armas  em  favor  de  colosso  europeu. 

Parece,  pois,  simplesmente  lógico  que  o 
colosso  tenha  de  submetter-se  á  força  dos 
destinos,  embora  provisoriamente,  e  embora 
sangre  o  seu  amor  próprio.  No  emtanto,  se  é 
possível  admittir-se  que  o  orgulho  nacional, 
recusando-se  a  confessar  a  derrota,  porfie  na 
lucta  inglória,  eternisando  o  contlicto ;  e  é 
facto  que  os  recursos  mosco\itas,  a  enorme 
massa  humana  disponível  e  ainda  a  protecção 
da  rica  e  poderosa  alliada  poderão  permittir, 
quasi  por  um  tempo  indefinido,  essa  precária 
teimosia;  o  que  parece  agora  imminente  é 
que  a  effervescencia  interna  do  grande  impé- 
rio fará  calar  todos  os  orgulhos  e  será  a  causa 
fatal  e  omnipotente  que  levará  a  Rússia  a 
entrar  na  via  das  conciliações  e  a  solicitar  por 
qualquer    forma  a  cessação  das  hostilidades. 

Relanceie-se  o  que  se  vae  passando  pre- 
sentemente dentro  das  fronteiras  da  Rússia. 
Pouco  se  pôde  ajuizar  dos  factos;  o  estranho 
não   logra  aprofundar  de\'idamente  o  intimo 


36: 


niysterio  social  d'essc  immenso  povo.  Maà 
vulcão  adivinha-se,  ou  antes,  já  se  rnanifest 
A  multidão,  até  agora  passivamente  soffredora, 
solta  o  primeiro  grito  de  revolta  contra  o  des- 
potismo que  a  opprime;  patenteia  desordena- 
damente o  seu  furor,  já  pelo  tumulto,  já  pela 
l^^rcvjy  já  pelo  assassínio,  sem  que  as  descargas 
da  tropa  ou  os  horrores  do  suppiicio  a  ame- 
drontem e  detenham  nos  seus  Ímpetos.  Kstá 
encetada  a  lucta,  o  povo  não  pôde  recuar  já. 
O  governo,  na  defeza  das  instituições  ameaça- 
das, terá  de  fii'mar  á  pressa  um  tratado  de 
paz  com  o  Japão,  de  modo  a  poder  concentrar 
na  tragedia  interna  todos  os  seus  cuidados  e 
todos  os  seus  elementos  de  força. 

E'  assim  que  a  iniciativa  das  propostas  de 
paz  pelo  lado  da  Rússia  se  annuncia  não  só 
coisa  possível,  mas  até  provável ;  e  nMsto 
coníiam  muitos  d'aquelles  que  se  interessam 
pela  tranquillidade  do  Extremo-Oriente.  Se 
depois  o  governo  russo  disporá  ^  de  meios 
sufricientes  para  sustentar  a  revolta  interna, 
agora  incipiente,  isto  é  uma  outra  questão. 
Quem  poderá  ser  propheta?  Pode  muito  bem 
acontecer  que  esta  guerra  tremenda,  provocada 
unicamente  pela  má  c  orgulhosa  politica  dos 
governantes  do  império  slavo,  duplamente 
lhes    seja  funesta,   como   um   gladio   de   dois 


òàô 


gumes,  trazendo-lhes  por  um  lado  a  derrota  e 
o  desprestigio,  por  outro  lado  a  guerra  civil, 
a  anarchia,  o  desmoronamento  final  das  insti- 
tuições do  Estado.  O  povo,  o  povo  immenso, 
esse  não  succumbirá.  Mas  que  poderá  resultar 
do  fermento,  da  convulsão  da  nação  em  massa, 
onde  tantos  elementos  ethnicos  pullulam,  ani- 
mados por  differentes  credos,  por  difíerentes 
aspirações,  por  agora  synthetisadas  na  doce 
palavra  —  Liberdade  r  .  .  .  A  tempestade  extre- 
mo-oriental  apresenta-se  hoje  cruel ;  mas, 
quanto  mais  carrancudo  e  ameaçador  se  vae 
mostrando  o  horizonte  dos  lados  do  Occidente, 
a  despeito  de  todos  os  hymnos  de  paz  e  de 
confraternisação,  com  que  se  vão  deleitando 
os  ouvidos  dos  simples !  .  .  . 

—  Como  é  sabido,  em  1542  (data  mais 
recommendada),  os  Portuguezes  descobriram 
o  Japão  ao  mundo  Occidental.  Em  seguida,  os 
nossos  missionários  e  os  nossos  commarcian- 
tes  começaram  a  frequentar  o  paiz  do  Sol 
Nascente;  foram  bem  recebidos,  a  religião 
christã  e  o  nesfocio  floresceram  maravilhosa- 
mente.  Após,  graves  complicações  se  desen- 
cadearam, como  igualmente  é  notório:  os 
europeus  residentes,  que  eram  então  principal- 
mente portuguezes  e  hespanhoes,  começaram 
soffrendo    cruéis    perseguições;    fechando-se 


36; 


•emfim  o  Japão,  em  1624,  a  toda  a  Christan- 
dade. 

No  entretanto  a  influencia  portugueza  no 
império  nipponico,  durante  o  período  que  vai 
de  1542  a  1624,  foi  muito  notável;  e  o  acon- 
tecimento representa  uma  época  importante 
na  historia  do  Japão.  Acode,  pois,  ao  espirito 
dos  curiosos  perguntar  quaes  são  os  vestigios, 
reconheciveis  até  hoje,  que  deixámos  aqui  da 
nossa  passagem ;  e  é  esta  pergunta  que  vae 
servir  de  thema  á  curta  palestra  que  se  segue. 

Tal  passagem  teve  a  má  fortuna  de  se 
tornar  profundamente  odiosa  aos  nipponicos, 
que  julgaram  adivinhar  na  nossa  invasão  paci- 
fica, e  não  sem  razão,  disfarçados  designios 
de  cobiça,  inconfessados  intentos  contra  as 
suas  instituiç'~)es  politicas  e  mesmo  contra  a 
sua  independência;  e  os  nipponicos  de  então 
eram  já  tão  patriotas  como  os  de  hoje.  Isto, 
por  si  só,  explica  a  mingua  de  documentos 
que  ficaram  sobre  o  assumpto,  pois  não  se 
ôentia  desejo  de  guardal-os,  antes  de  des- 
truil-os,  no  intuito  de  apagar  da  memoria  do 
povo,  tanto  quanto  possível,  uma  éra  classifi- 
cada de  nefasta  e  de  perigosa. 

Não  restam,  que  me  conste,  monumentos, 
na  rigorosa  significação  da  palavra,  da  nossa 
estada  no  Japão ;  as  igrejas,  que  tanto  abun- 


363 


davam,  foram  arrazadas  até  aos  alicerces.  Dos 
utensílios  de  uso,  alguns,  certamente,  foram 
modificados  pela  nossa  apparição  e  hoje  affe- 
ctam  formas  copiadas  dos  objectos  que  trou- 
xemos ;  mas  nada  se  sabe  ao  certo,  e  a  inves- 
tigação n'este  campo  seria  difficilima.  Cite-se 
apenas,  não  como  uma  modificação,  mas  como 
uma  apropriação,  a  Taiiegashíma,  actualmente 
conservada  como  simples  artigo  de  muzeu,  e 
que  é  uma  espingarda  ou  arcabuz  copiado 
dos  modelos  portuguezes  trazidos  aqui  por 
Mendes  Pinto  e  seus  companheiros,  como  resa 
a  Peregríiiaçào.  Tanegashima  é  uma  ilha  perto 
de  Kagoshima,  onde  pela  primeira  vez  desem- 
barcaram os  nossos  aventureiros;  e  o  nome 
da  ilha  passou  ás  armas  de  fogo,  as  quaes  — 
entenda-se  as  do  primitivo  systema — conser- 
vam até  hoje  a  mesma  denominação. 

Existem  velhos  documentos  escriptos  e 
velhos  desenhos,  contemporâneos  dos  primei- 
ros portuguezes  que  visitaram  o  Japão  e  a 
-elles  referentes,  mas  mal  explorados  pelos 
eruditos  e  parece  que  bastante  confusos  em 
■alguns  pontos.  Afora  isto,  dois  interessantíssi- 
mos factos,  de  ordem  sentimental  e  social, 
servem  de  eloquente  testemunho  da  nossa 
influencia  n'estas  paragens.  Um,  foi  a  desco- 
berta enternecedora  de  famílias  christãs  japo- 


3^9 


nezas,  feita  pelos  primeiros  missionários  fran- 
cezes  que  chegaram  ao  Japão  logo  após  os 
tratados  com  as  nações  occidentaes;  familias 
que  conservaram,  durante  cerca  de  dois  sé- 
culos e  meio,  a  crença  ensinada  pelos  missio- 
nários portuguezes  aos  seus  remotos  ascen- 
dentes, guardada  na  sombra  do  mysterio  e 
inteiramente  ignorada  das  auctoridades,  que 
julgavam  haver  sido  extirpado  da  alma  nacio- 
nal de  todo  e  para  sempre  o  culto  de  Jesus. 

O  outro  facto,  sobre  o  qual  vou  agora 
apresentar  algumas  breves  considerações,  é  o 
da  introducção  na  língua  japoneza  de  muitos 
termos  portuguezes,  pela  maior  parte  ainda 
de  uso  corrente;  claro  está  que  taes  termos 
soffreram  modificações  varias,  derivadas  prin- 
cipalmente da  accommodação  que  se  lhes  deu 
ao  s^ilabario  indígena,  não  muito  rico  em 
tonalidade?. 

Convém  notar  que  a  lingua  japoneza  se 
apresentava,  certamente,  muito  escassa  de 
locuções  no  seu  primitivo  estado,  como  lingua 
que  era  de  um  povo  insular,  de  conhecimentos 
rudimentares  e  fechado  inteiramente  ás  civilisa- 
ções  estranhas.  De  ter  o  Japão  entrado  depois 
em  contacto  com  a  China,  resultou  o  facto 
natural  de  se  ir  enriquecendo  subsequente- 
mente  a  sua  lini^uaoem  com.  muitos  termos 


3/0 


chinezes  de  objectos  e  de  noções  que  os  nippo- 
nicos  viam  e  recebiam  pela  primeira  vez;  e 
pela  mesma  razão  o  biiddhismo  da  China  lhes 
trouxe  mais  tarde  bastantes  palavras  de  origem 
sanskrita.  O  mesmo  aconteceu  depois  e  suc- 
cessivamente  com  os  portuguezes,  com  os 
hespanhoes  e  com  os  hollandezes ;  e  mais 
recentemente,  e  até  aos  dias  que  vão  correndo, 
com  os  inglezes,  com  os  francezes,  com  os 
allemães  e  com  outros ;  de  sorte  que  a  imita- 
ção das  coisas,  tão  apregoada  como  uma 
característica  dos  nipponicos,  começou  tornan- 
do-se  effectiva  na  sua  arte  de  fallar. 

Pelo  que  em  particular  respeita  á  lingua 
portugueza,  cujos  termos  necessariamente  se 
impunham  aos  japonezes  para  designarem 
muitos  objectos  europeus  que  elles  viam  pela 
primeira  vez  nas  mãos  dos  nossos  missionários 
e  mercadores,  ha  ainda  a  circumstancia,  que 
lhe  facilita  a  adopção,  de  apresentar  ella,  muito 
harmoniosa  pelo  abundante  emprego  de  vo- 
gaes,  uma  certa  similhança  phonetica  com  a 
lingua  japoneza,  que  igualmente  ou  ainda 
mais  recorre  ao  uso  das  vogaes.  A  similhança 
vae  mais  longe :  quasi  todas  as  nossas  syllabas 
simples,  formadas  por  uma  consoante  e  uma 
vogal,  téem  correspondentes  na  lingua  japo- 
neza; e  a  reciproca  é  igualmente  verdadeira. 


3/1 


Resalta  dMsto  até  a  curiosa  e  por  vezes  engra- 
çada coincidência  de  muitas  palavras  portu- 
guezas  serem  exactainente  idênticas,  pelo  som, 
a  outras  tantas  palavras  japonezas,  embora  de 
mui  diFferente  significação;  seguem  alguns 
exemplos,  tirados  ao  acaso :  —  mono,  mono 
(objecto,  coisa) ;  santo,  saitto  (o  conjunto  das 
três  cidades  principaes  do  Japão);  cara,  kai'a 
(casca,  concha) ;  cana,  kanà  (caracteres  do 
syllabario  japonez) ;  mata,  viata  (bifurcação  de 
um  caminho) ;  mato,  7nato  (alvo) ;  cura,  kitra 
(armazém) ;  cama,  kama  (marmita) ;  macaco, 
viakkakiL  (quadrado  perfeito). 

Voltando  agora  ao  interessante  facto  de 
muitas  palavras  japonezas  serem  derivadas  do 
portuguez,  vou  citar  algumas  d'estas  palavras 
de  uso  mais  corrente.  Convém  notar  que  a 
religião  christã,  ensinada  pelos  nossos  missio- 
nários, concorreu  com  uma  grande  cópia  de 
locuções,  algumas  mesmo  latinas;  os  modernos 
missionários  francezes  téem-se  esforçado  em 
substituir  taes  locuções  por  termos  genuina- 
mente japonezes,  julgando  isto  mais  útil  aos 
seus  fins,  o  que  não  vale  a  pena  discutir  n'este 
logar.  Seguem  as  palavras  de  origem  portu- 
gueza :  —  kontasii  (contas,  rosário) ;  kirisiito 
(Christo) ;  anima  (anima,  alma) ;  bateren  (padre) ; 
battcra  (batel) ;  kompctô  (confeito) ;  tabako  (ta- 


372 


baço) ;  bidoro  (vidro) ;  hoppii  (copo) ;  kappa 
(capa) ;  manto  (manto) ;  manteru  (manter) ; 
sabcru  (sabre) ;  katana  (catana,  ou  é  o  termo 
portuguez  que  deriva  do  japonez  ?) ; /^/2  (pão;) 
sJiabon  (sabão);  tempiira  (espécie  de  fritura, 
provavelmente  de  tempero ;  o  termo  também 
é  usado  pelos  negros  de  Moçambique) ;  kantta 
(carta  de  jogar) ;  etc. 

Para  concluir  este  ligeiro  estudo,  é  interes- 
sante indicar  agora  algumas  palavras  portu- 
guezas,  que  devem  ser  consideradas  de  origem 
nipponica.  Biombo  vem  certamente  do  termo 
japonez  bíôbii^  e  o  objecto  é  do  puro  estylo 
japonez.  Em  Macau  chama-se  caía  a  um  mos- 
quiteiro, palavra  que  deve  provir  de  kciya^ 
termo  japonez  com  idêntica  significação.  Bonzo^ 
que  é  a  palavra  corrente  entre  nós  para  desi- 
gnar um  sacerdote  buddhista,  vem  de  bòzu^ 
com  a  mesma  significação.  Chá  poderia  vir  da 
China,  porque  os  chinezes  do  sul  dizem  cliá; 
mas  03  japonezes  também  assim  dizem:  e  in- 
ciino-me  mais  para  esta  ultima  origem,  porque 
nós  dizemos  chávena  (chicara),  e  os  japo- 
nezes dizem  chawan^  para  indicar  o  mesmo 
objecto. 

Fiquemos  por  aqui,  para  que  não  me  cha- 
mem massador.  . .  ou  sábio,  que  vem  a  ser  a 
mesma  coisa. 


i 


373 


—  Estamos  em  pleno  inverno,  pois,  como 
é  sabido,  o  mez  de  fevereiro  é  o  mais  rigoroso 
d'esta  quadra.  O  thermometro  desce  quasi 
diariamente  a  zero  e  ainda  mais  abaixo,  aqui 
na  região  central,  tida  pela  mais  suave.  Cahem 
frequentes  nevadas.  Mas  estamos  também  em 
plena  florescência  das  ameixieiras,  sendo,  por 
vezes,  difficil,  em  excursão  pelos  campos,  dis- 
tinguir se  tal  arvore  se  ostenta  coberta  de  neve 
ou  coberta  de  flores.  ...  Até  parece  mentira^ 
mas  não  é.  N'este  paiz,  o  inverno  não  logra 
transmittir  á  paizagem  o  tom  de  desolação  e 
de  angustia  que  leva  a  outras  terras ;  as  arv^o- 
res  e  os  arbustos  de  folhagem  persistente,  tão 
abundantes,  retéem  os  seus  verdes  caiiciosos; 
florescem  camélias  e  florescem  ameixieiras ;  se 
os  vértices  dos  montes  branquejam  de  quando 
em  quando,  ou  se  sobre  a  superfície  gelada 
dos  charcos  passeiam  serenamente  os  corvos, 
registemos  estes  incidentes  como  novas  gra- 
ciosidades para  o  quadro  sempre  risonho  em 
que  o  olhar  se  pousa,  acrescentando  que  para 
a  neve  inventaram  os  japonezes  a  phrase  — 
Yiikími-sàké — que  quer  dizer — beber  vinho 
ao  ver  cahir  a  neve  —  que  nos  revela,  sem 
outros  commentarios,  as  habituaes  reuniões 
de  amigos,  motivadas  sob  o  pretexto  de  se  ir 
contemplar  tão  gentilissimo  phenomeno,  sobre- 


3/4 


tudo  frequente  nos  mezes  de  janeiro  e  feve- 
reiro. 

Paliando  de  ameixieiras,  recorda-me  de 
outras  ar\'ores,  do  salgueiro  entre  varias,  a 
que  nós  chamamos  chorão,  em  cujas  hastes, 
pendentes  já  por  este  tempo,  vão  assomando 
multiplices  rebentos  verdejantes,  o  que  consti- 
tue  um  dos  primeiros  avisos  da  prima\'era 
próxima.  E,  a  propósito  de  salgueiros,  acode- 
me  á  lembrança  a  historia  commovente  de  um 
d'elles,  o  qual,  segundo  opiniões  dignas  de 
credito,  vegetou  em  solo  japonez  ha  algumas 
centenas  de  annos. 

Eu  vou  contar-lhes  a  historia.  Antes,  porém, 
devo  dizer-lhes  que  os  salgueiros  não  gozam 
de  boa  fama  n'esta  terra,  attribuindo-se-lhes 
sobras  de  feitiços  e  o  vezo  de  servirem  de 
abriofo  a  almas  do  outro  mundo.  Em  não  raras 
occasiões  se  tem  visto,  quando  se  abate  um 
salgueiro,  cahirem  gottas  de  sangue  do  seu 
tronco. 

Ora,  havia  em  Kioto  um  daíniyo,  senhor 
feudal ;  e  contiguo  ao  castello,  no  terreno  des- 
tinado á  gente  de  armas,  um  salgueiro  cres- 
cera no  jardim  de  certo  guerreiro,  ou  samurai. 
Este,  que  embirrava  com  a  arvore,  sem  duvida 
pelas  razões  que  apresentei,  resolveu  des- 
truil-a;    mas    um    dos   companheiros  acudiu, 


I 


3/5 


reprovando-Ihe  a  intenção,  dizendo  que  o  sal- 
gueiro tinha  uma  alma  e  seria  acto  criminoso 
fazel-a  padecer;  e  vae  d'ahi,  transplantou-o 
para  o  seu  próprio  jardim.  A  arvore  prosperou 
no  novo  solo  e  sentiu-se  sensibilisada  por  tão 
carinhosa  acção;  e,  em  recompensa,  o  seu 
espirito  tomou  a  forma  de  uma  mulher  muito 
formosa,  que  veio  a  ser  a  esposa  do  seu  deli- 
cado protector.  Um  filhinho  foi  o  fructo  d'esta 
pathetica  união.  Annos  depois,  o  daimyô,  que 
andava  empenhado  na  reparação  de  um  templo, 
mandou  abater  a  arvore  para  servir-se  da 
madeira.  Então  a  esposa  confessou  ao  samurai 
a  sua  estranha  origem,  e  em  choros  foi  dizendo 
que  tinha  de  desapparecer,  de  recolher  á  arvore 
e  de  morrer  com  ella.  O  daíniyô  x\^o  se  com- 
moveu  a  rogos,  o  salgueiro  foi  cortado  e  ba- 
queou no  chão.  Foi  então  coisa  digna  de 
vêr-se  que  dez  homens,  vinte  homens,  cem 
homens,  trezentos  homens  não  conseguiram 
removel-o.  N'esta  altura,  o  pequenito,  segu- 
rando n'um  raminho  do  salgueiro,  balbuciou 
íilialmente:  —  «  Venha.  .  .»  —  e,  seguindo  em 
frente,  a  arvore  acompanhou-o  até  ao  portal 
do  templo,  onde  então  os  carpinteiros,  serra  e 
machado  em  punho,  a  desfizeram  em  pedaços. 


XXIX 

15   de   março   de   1905 

Batalha  de  Mukdcn  —  DivagaçÒes;  o  mais  vehcmentc 
desejo  de  todo  o  japonez  — ■  Informações  curiosas 
de  um  correspondente  do  Times  —  O  amor  pantheis- 
ta  dos  japonezes  pela  crcaçíto. 

||EPois  da  data  da  minha  ultima  carta,  im- 
portantissimos  acontecimentos  se  passa- 
ram e  se  estão  passando  n'este  momento  no 
campo  das  hostilidades,  ainda  incompletamente 
conhecidos,  mas  aos  quaes  devo  referi r-me 
n'este  logar,  embora  as  informações  telegra- 
phicas  da  imprensa  europeia  largamente  se  en- 
carreguem de  instruir  sobre  o  succedido  os 
leitores  d' este  jornal. 

A  batalha  prevista,  ao  sul  de  Mukden, 
desencadeou-se  e  ainda  não  está  terminada. 
Por  mais  de  quatro  mezes  os  dois  exércitos 
inimigos  fortificaram-se  nas  suas  posições,  um 
em  frente  do  outro,  quasi  em  contacto,  rece- 
bendo largos  reforços,  viveres,  munições,  estu- 
dando planos  de  estratégia  para  um  tremendo 
combate  decisivo,  e  dando  apenas  signal  de  si, 


377 


de  quando  em  quando,  por  ligeiros  encontros 
de  forças  avançadas,  sem  importância  real. 

Por  fim  Kuropatkine  tomou  a  offensiva, 
em  que  alguns  adivinhavam  a  rjva-iche,  pois 
não  era  certamente  o  tempo  que  havia  faltado 
ao  famoso  general  para  bem  dispor  dos  seus 
recursos.  Outros,  os  que  contavam  com  mais 
uma  victoria  nipponica,  anhelavam  pjrque 
Oyama  envolvesse  totalmente  o  inimigo,  obri- 
gando-o  a  uma  capitulação  geral,  que  impo- 
zesse  assim  um  termo  ao  sangrento  conflicto. 
No  entretanto  esta  ultima  h^-pothese  não 
passava  de  pura  phantasia,  porque,  se  não 
me  illudem  os  escassos  conhecimentos  milita- 
res de  que  disponho,  por  maior  que  S3ja  a 
fortuna  das  armas,  não  cabe  no  humano 
poder  o  arcar  e  obrigar  a  render-se,  em  pleno 
campo,  um  exercito  enorme,  que  occupa  uma 
linha  de  frente  de  cerca  de  130  milhas  de  ex- 
tensão ;  a  massa  das  forças  de  Kuropatkine, 
que  excedia  300:000  homens,  só  poderia  ren- 
der-se por  capitulação  na  hypothese  impro- 
vável de  guarnecer  uma  praça  de  guerra, 
que  fosse  cercada  e  sabiamente  atacada  pelo 
inimigo. 

Mas  vamos  aos  factos.  Travada  a  batalha, 
que  ha-de  ser  considerada  na  historia  uma 
das  primeiras,   a  derrota  de   Kuropatkine  foi 


m 


.completa,  mesmo  mais  do  que  uma  derrota, 
—  uma  tremenda  catastrophe.  As  forças  japo- 
nezas  responderam  ao  ataque  com  uma  fúria 
maravilhosa,  forçando  os  russos  a  retirarem 
precipitadamente,  impondo-lhes  perdas  terrí- 
veis, em  gente,  em  material,  em  viveres,  em 
tudo.  Após,  differentes  columnas  nipponicas 
romperam  as  fileiras  inimigas,  atacando-as 
pela  rectaguarda,  cortando-lhes  o  único  meio 
de  salvação,  que  era  fugir,  expondo-as  ao 
horror  de  dois  fogos.  Déram-se  assim  encon- 
tros destacados,  do  mais  mortífero  efteito, 
ficando  os  russos  inteiramente  á  mercê  dos 
japonezes,  que  fizeram  basta  colheita  de  pri- 
sioneiros. Taes  encontros  ainda  proseguem, 
bem  como  furiosas  correrias  em  perseguição 
dos  grupos  desbaratados  d'aquillo  que  se  cha- 
mou o  exercito  de  Kuropatkine,  e  que  já  não 
merece  agora  este  nome.  Quanto  a  Mukden, 
a  cidade  sagrada,  que  contém  os  maravilhosos 
monumentos  tumulares  dos  ascendentes  do 
actual  soberano  da  China,  consta  que  os 
japonezes,  por  especial  deferência  pelo  visinho 
império,  escorraçaram  d'ella  os  russos  sem 
occupal-a  militarmente,  gentileza  que  dev^e  ter 
sido  muito  grata  a  todos  os  celestes. 

As  perdas  dos  russos,  incluindo  provavel- 
mente   os    prisioneiros,    são    calculadas    em 


379 


20o:ooo  homens ;  as  perdas  japonezas  orçam 
talvez  pela  quarta  parte.  Os  russos  deixaram 
no  campo  500  canhões  e  uma  enorme  quan- 
tidade de  munições  de  guerra,  viveres  e  di- 
versos materiaes. 

Kuropatkine  pede  ao  czar  a  demissão  do 
seu  alto  commando. 

—  Paz?  A  imprensa  occupa-se  muito  do 
assumpto,  mas  não  sei  que  credito  se  lhe 
deva  attribuir.  E  facto  que  só  dentro  de  uns 
seis  mezes  os  russos  poderão  conseguir,  se 
conseguirem,  reconstituir  na  Mandchuria  um 
exercito  egual  em  força  ao  que  acaba  de  ser 
aniquilado.  Mas,  durante  este  tempo,  os  nip- 
ponicos  victoriosos  occuparão  Tieling,  avan- 
çarão até  ás  alturas  de  Karbin,  cortarão  a 
linha  férrea,  isolarão  \nadivostok;  pro\'avel- 
mente,  a  agitação  interna,  no  coração  da 
Rússia,  accentuar-se-ha  mais  effervescente ;  e, 
o  que  é  peor,  os  banqueiros  francezes  já 
annunciam  que  fecharam  os  seus  cofres  á 
attribulada  alliada.  .  . 

Muito  se  pôde  discorrer  sobre  a  matéria; 
mas  reservo  para  a  correspondência  próxima 
algumas  outras  considerações. 

—  O  conflicto  extremo-oriental  está  com- 
movendo  profundamente  a  sensibilidade  dos 
espectadores.    Quando  pensamos .  na  já  bem 


38p 


longa  duração  d'esta  guerra  sangrenta ;  quando 
imaginamos  a  triste  resenha  de  milhares  e  mi- 
lhares de  vidas  -^  de  russos  e  japonezes,  —  sa- 
crificadas no  campo  de  batalha,  pelo  chuveiro 
da  metralha,  pelas  doenças  —  a  nossa  alma 
chora,  alanceada. 

No  entretanto,  não  sei  bem  se  nos  é  licito 
votar  idêntico  sentimento  de  piedade  a  todos 
os  mortos,  quer  se  trate  dos  russos,  quer  dos 
japonezes.  Não  resta  duvida  que  esses  miseros 
súbditos  do  czar,  nossos  irmãos  pela  raça, 
que  baquearam  ou  vão  baquear,  feridos  pelas 
balas  nipponicas,  ou  dizimados  pelas  epide- 
mias ou  pelos  rigores  do  clima  mandchu,  mere- 
cem incondicionalmente  a  nossa  inteira  com- 
miseração ;  pobres  miijiks  arrancados,  á  força, 
á  paz  da  sua  aldeia,  ao  conforto  do  albergue, 
ao  aninho  da  família,  e  empurrados  para  a 
Sibéria,  para  a  Coréa,  para  a  Mandchuria, 
para  Porto  Arthur,  a  fim  de  se  arrebanharem 
em  legião  e  irem  travar  dura  contenda  com 
imi  inimigo  improvisado,  na  defeza  de  uma 
causa,  cuja  lógica  subtil  excede  os  limites  da 
sua  comprehensão. 

j\Ias  merecem  acaso  as  victimas  nipponicas 
o  mesmo  grau  de  piedade  que  os  russos  nos 
merecem  ?  Parece-me  que  não.  Uma  tal  duvida, 
que  acode  ao  meu  espirito,  constitue  assumpto 


38i 


p    grave;  e,  visto  que  tive  a  sinceridade  de  apon- 
tal-a,  devo  explical-a,  o  que  passo  a  fazer. 
A'    minha    concepção    offerecem-se    duas 

r  únicas  maneiras  de  interpretar  os  individuos 
pelas  suas  relações  com  a  nação:  ou  como 
unidades  distinctas,  como  entidades  indepen- 
dentes, embora  reunidas  por  interesses  com- 
muns,  e  então,  a  nação,  o  Es  Lado,  pôde  bem 
chamar-se  uma  confederação  de  individuos; 
ou,  pela  segunda  maneira,  os  individuos  não 
são  mais  do  que  simples  parcellas  de  uma  só 
unidade  —  o  Estado  —  não  são  mais  do  que 
porções  de  argamassa  (permitta-se-me  a  ex- 
pressão) constitutiva  do  edifício  nacional. 
D'aqui  dois  systemas  philosophicos  de  senti- 
mentalidade social. 

As  sociedades  modernas  (refiro-me  aos 
•  Estados  civilisados  da  Europa  e  da  America) 
tendem  cada  vez  mais  a  perfilhar  a  primeira 
interpretação.  O  homem  emancipa-se  dia  a  dia 
de  um  certo  numero  de  concepções  ideaes, 
nas  quaes  se  incluem  a  dedicação  incondicio- 
nal á  pátria,  o  sacrifício  espontâneo  pelo  sym- 
bolo  da  bandeira.  O  homem  vae  comprehen- 
dendo  que  o  seu  primeiro  dever  é  ser  feliz,  e 
para  isto  trabalha;  os  seus  outros  sentimen- 
tos passam  ao  segundo  plano;  o  respeito  pelas 
instituições,  pelos  outros  homens,  o  patriotis- 


382 


mo,  são  para  elle,  mais  do  que  outra  coisa, 
simples  estatutos  de  collectividade,  que  elle 
admitte  e  a  que  se  submette,  mas,  principal- 
mente, porque  n^elles  encontra  a  garantia  dos 
seus  próprios  interesses.  Não  o  condemnemos; 
antes  devemos  reconhecer  n'este  estado  de 
alma  o  pleno  desabrochar  da  consciência 
humana,  segura  de  si  mesma,  da  sua  força, 
dos  seus  recursos ;  o  rei  dos  animaes  fabrica 
por  suas  mãos  o  próprio  throno,  e  é  lógico 
que  assim  seja.  Poderemos  apenas  commentar 
que  a  felicidade  é  raro  fructo  terreal,  e  que  o 
homem,  quando  despindo-se  assim  de  ideaes, 
quando  repetindo,  para  seu  uso,  a  phrase 
que  outr'ora  foi  proferida  por  um  rei — «O 
Estado  sou  eu», — resvala  facilmente  para  os 
desregramentos  do  egoismo  e  de  egotismo, 
isola-se,  contempla-se  não  raras  vezes  no  de- 
serto do  seu  En^  descamba  na  nostalgia  cru- 
ciante. .  .  e  não  é  feliz. 

Ora,  os  japonezes,  por  um  duplo  pheno- 
meno  histórico  e  psychologico,  fácil  de  admittir, 
encontram-se  n'este  momento  n'um  estado 
medieval  e  a  mais  com  a  tremenda  responsa- 
bilidade moral  de  defenderem  perante  o  universo 
inteiro  o  prestigio  de  uma  raça;  d'isto  resulta 
o  elles  não  acompanharem  a  evolução  positi- 
vista   da    época,    grupando-se,    levados    pelo 


I 


383 


raciocinio  e  ainda  mais  pelo  instincto,  do  lado 
do  segundo  systema  social  que  apresentei.  Na 
alma  japoneza,  os  individuos  não  se  contam; 
não  são  mais  do  que  a  pedra  em  pedaços  e  a 
argamassa  agglutinante  do  feiticeiro  edifício 
social  que  S3  chama  o  Dai-Nippon,  o  Grande 
Japão !  .  .  . 

Esta  concepção  basta  para  explicar,  a  meu 
vêr,  todos  os  actos  de  coragem  inaudita,  de 
patriotismo  sem  freio,  de  desprendimento,  da 
vida,  de  resignação  perante  o  soffrimento,  de 
que  já  tem  dado  tantas  provas  este  po\'o,  no 
conílicto  que  se  trava. 

O  que  quer  cada  soldado  ou  cada  mari- 
nheiro? alcançar  um  nome  distincto,  ou  uma 
medalha  para  o  peito,  ou  mais  um  galão  para 
o  braço  ?  O  que  quer  o  po\'0  ?  enriquecer-se 
com  os  despojos  da  guerra,  substituir  o  himono 
de  algodão  pelo  himono  d-e  seda?  Nada  dMsto: 
soldados,  marinheiros,  povo,  luctam  com  um 
único  intuito  —  o  engrandecimento  da  pátria 
nipponica,  o  prestigio  da  bandeira  do  Sol 
Nascente. 

Em  taes  circumstancias  do  sentimento, 
morrer  que  importa?  ou  melhor:  morrer, 
quando  a  morte  possa  trazer  beneficio  á  nação, 
é  uma  gloria,  é  uma  felicidade  invejável.  Valo 
mesmo  mais,  talvez,  morrer:  os  que  \'oltarem 


384 


á  pátria,  após  a  paz,  serão  os  ignorados,  os 
anonymos;  aquelles  que  hão-de  persistir  na 
memoria  de  todos,  serão  os  mortos,  aos  qiiaes 
se  elevarão,  nas  cidades,  nas  aldeias,  em  toda 
a  parte,  monumentos  commemorativos,  visita- 
dos pela  multidão  em  épocas  memoráveis  do 
anno.  Morrer  pela  sua  pátria,  morrer  pelo  seu 
imperador,  é  o  mais  vehemente  desejo  de  todo 
o  japonez. 

E'  assim  que  pensa  o  povo.  Para  documen- 
tar, com  todo  o  desejável  rigor,  este  ligeiro 
estudo  sobre  a  feição  patriótica  da  alma  japo- 
neza,  e  passar  depois  ás  conclusões  que  tenho 
em  mente,  precisaria  inquirir  dos  mortos,  dos 
cabidos  no  campo  de  batalba,  o.  que  elles  pen- 
sam sobre  o  assumpto  ;  mas  elles  não  poderão 
responder-me,  os  pobres  mortos !  .  . .  E'-me 
licito  apenas  colher  as  ultimas  impressões  dos 
moribundos  e  relancear  também  a  sentimen- 
talidade das  famílias,  dos  parentes  próximos 
d'aquelles  que  se  vão;  isto  basta,  a  meu  vêr, 
para  se  ter  uma  opinião  approximada  dos 
defuntos,  em  matéria  que  tanto  lhes  respeita. 
Nos  campos  da  Mandchuria,  os  soldados  alve- 
jados cahem  por  terra  bradando — «Banzai!», 
viva  a  pátria !  —  com  o  seu  ultimo  suspiro. 
Um  moribundo  occupa  os  últimos  momentos 
de  vida  que  lhe  restam,  humedecendo  o  dedo 


385 


indicador  no  próprio  sangue  e  esboçando  a 
tinta  vermelha  uma  scena  de  batalha.  Sabe-se 
como,  a  bordo  dos  transportes  inutilisados 
pelos  russos,  um  grande  numero  de  soldados 
preferiu  o  suicídio  ao  captiveiro.  As  famílias 
não  pranteiam  os  mortos;  gloriticam-se  ape- 
nas do  seu  nome ;  as  mães  exhortam  os  filhi- 
tos  a  seguirem  o  exemplo  de  seus  pães,  sacri- 
íicando-se  pela  pátria.  Ao  general  Noghi,  o 
briosíssimo  commandante  do  exercito  japonez, 
que  cerca\'a  Porto  Arthur,  morrem  dois  filhos, 
os  únicos  que  tinha,  pelejando  pelo  seu  impe- 
rador; e  orgulha-se  d'ísto,  resignado  e  calmo. 
N'aquelle  mesmo  Porto  Arthur,  os  primeiros 
soldados  avançavam  para  os  fortes  com  a 
certeza  de  morrerem ;  mas  felizes,  por  saberem 
que  seus  corpos  serviriam  de  degraus  aos  seus 
camaradas  para  subirem  acima  das  muralhas 
e  irem  implantar  nas  culminancias  uma  ban- 
deira japoneza ! . .  . 

Ora,  pois,  a  nossa  piedade  platónica,  de 
occidentaes,  deve  temer-se,  julgo,  de  dar  largas 
á  sua  rhetorica  dolorida  perante  o  phenomeno 
sentimental  que  nos  está  offerecendo  o  povo 
inteiro  japonez.  Morre  um  japonez,  attingido 
por  uma  granada  moscovita.^  morrem  mil? 
morrem  dez  mil  ?  Crede  que  são  dez  mil  felizes, 
na    epopeia    patiia.   O   patriotismo   no  Japão 

17 


386 


alcança  a  craveira  do  hcroismo;  ser-se  heroe 
é  quasi  ser-se  um  Deus,  com  direito  a  invo- 
cação n'um  templo,  com  direito  á  adoração 
da  turba  dos  fieis.  Não  nos  assiste  justiça 
bastante  para  virmos  discutir  se  esta  eterni- 
dade gloriosa  não  compensa  a  meia  dúzia  de 
annos  banaes  descontados  de  surpreza  á  exis- 
tência. Limitemo-nos  a  juntarmo-nos  á  turba, 
tiremos  os  nossos  chapéus,  respeitosos,  silen- 
ciosos, abysmados,  em  face  do  mysterio  psy- 
chologico  d'esta  gente.  .  . 

—  Como  imagino  que  o  Times  londrino 
não  seja  frequentemente  consultado  pelos 
meus  leitores,  julgo  intei-essante  referir-me 
aqui  a  um  recente  artigo  apparecido  n'aquella 
folha,  devido  á  penna  do  seu  correspondente 
em  Pekin,  o  conhecido  dr.  Morrison. 

O  correspondente,  que  teve  a  fortuna  de 
visitar  Porto  Arthur  logo  após  a  capitulação, 
refere-se  circumstanciadamente  á  grande  quan- 
tidade de  provisões  e  de  munições  de  guerra 
encontradas  na  praça  e  também  ao  facto  do 
avultado  numero  de  soldados  russos  válidos 
e  nas  melhores  disposições  de  saúde,  em  força 
de  maiB  de  25:000  homens,  quando  Stoessel 
declarava  que,  nos  últimos  dias  do  cerco,  não 
podia  contar  senão  com  uns  5:000  homens 
capazes  de  combater.  Conclue  por  estas  pala- 


387 


^fvTas:  — <í  Todas  as  informações  concordam 
em  condemnar  o  general  Stoessel,  o  qual,  se 
não  tivesse  sido  reprimido  pela  resolução  do 
general  Kondratchenko,  já  houvera  capitulado 
algumas  semanas  antes.  Todas  as  informações 
concordam  em  condemnar  a  maioria  dos  offi- 
^  ciaes  russos,  os  quaes  mais  se  arreceavam  da 
mingua  de  certos  confortos  do  que  da  falta 
de  munições.  Todas  as  informações  enaltecem 
a  coragem  da  gente  da  fileira,  em  muitos  e 
muitos  casos  vergonhosamente  commandada 
pelos  seus  officiaes.  Todas  as  informações 
concordam  em  que  nenhum  homem,  que  haja 
exercido  um  commando  responsável,  menos 
merece  o  titulo  de  heroe  do  que  o  general 
Stoessel. 

«  Aquelles  que  foram  testemunhas  das  con- 
dições da  fortaleza,  comparando  a  evidencia 
dos   seus   olhos   com   a  assombrosa  falta   de 
verdade    do   general   Stoessel,   sentem   a  sua 
jSympathia  transformar-se  em  irrisão,  conven- 
idos  de  que  a  historia  não  recorda  mais  des- 
onrosa rendição.  Tivesse  o  Kaiser  esperado 
elos  relatórios  do  addido  militar  allemão  e  de 
\  outros    addidos,   e,    certamente    não   houvera 
conferido   cio  general  Stoessel  a  ordem  Foiír 
k  Méríte.'^ 

E'  muito  cedo  ainda  para  attribuirmos  o 


388 


seu  justo  valor  ás  opiniões  pessoaes,  mesmo 
as  mais  honestas,  mas  porventura  apaixona- 
das, sobre  as  peripécias  do  drama  extremo- 
oriental.  Registremos  apenas  a  exposição  do 
dr.  Morrison.  E  ajuntarei,  por  conta  própria, 
constar-me  que  muitos  dos  officiaes  russos 
dos  mais  graduados,  hoje  prisioneiros  no  Ja- 
pão, fazem  largas  acusações  ao  seu  antigo 
chefe,  attribuindo  a  Kondratchenko,  desastro- 
samente alcançado  por  uma  granada  japoneza, 
alguns  dias  antes  da  queda  da  praça,  toda  a 
Gfloriosa  iniciativa  da  defeza.  Ouanto  aos  sol- 
dados  russos  válidos,  que  todos  julgávamos 
em  Ínfimo  numero  e  escavacados  pela  fome  e 
outras  angustias,  vi-os  eu,  via-os  toda  a  gente, 
passarem,  caminho  das  casernas  de  detenção, 
atafulhando  as  carruagens  do  caminho  de 
ferro,  e  isto  durante  semanas  inteiras  e  em 
frequentes  comboios  diários ;  e  guapos,  e  ro- 
sados, e  cheios  de  vida  e  de  forças,  amorosa- 
mente embevecidos  na  paizagem  nipponica, 
debruçando-se  das  portinholas,  para  enviarem, 
com  um  gesto,  beijos  ás  mtismnés  que  iam 
pelas  ruas.  .  .  Pobres  rapagões,  esquecendo  já 
rancores  e  abençoando  a  creação :  do  que  elles 
tinham  fome,  os  patifes.  .  .  era  de  beijos!  .  .  . 
—  O  amor  pantheista  dos  japonezes  pela 
ci"eação  accusa-se  por  mil  formas,  revela-se  por 


389 


mil  preferencias;  vindo  a  propósito  fallar  da 
synipathia  que  elles  votam  a  muitos  insectos  e 
outros  animaes  inferiores,  que  em  geral  não 
merecem  dos  occidentaes  a  minima  estima,  an- 
tes lhes  produzem  muitas  vezes  aversão  e  asco. 
Já  uma  tal  sympathia  se  denuncia  inten- 
samente na  arte,  na  pintura  e  na  esculptura, 
por  exemplo.  Ninguém  melhor  do  que  os  nip- 
ponicos  sabe  desenhar  um  rato,  ou  um  peixe, 
ou  uma  tartaruga,  ou  uma  mosca,  ou  uma 
aranha,  ou  um  \erme.  Mas  esta  perfeição  não 
está  só,  nem  está  tanto,  na  reproducção  hei 
do  animal;  está  principalmente  em  saber  res- 
pigar elegâncias  de  contornos,  delicadezas  de 
attitudes,  como  que  expressões  de  sentimen- 
talidade, em  cada  um  d'estes  brutos,  á  pri- 
meira vista  tão  avessos  á  analyse  psychologica 
do  observador  attento.  De  sorte  que  o  pincel 
de  um  artista  pôde  offerecer-nos,  supponha- 
mos  no  desenho  de  uma  lagarta,  intenções 
sentimentaes  que  nos  commovam  e  enterne- 
çam, taes  como  as  provocadas  por  uma  tela 
realista  da  escola  hollandeza  ou  religiosa  da 
escola  italiana.  Isto  confirma  a  primeira  parte 
de  um  conceito,  que  corre  mundo  entre  euro- 
peus :  —  «Os  japonezes  são  grandes  nas  pe- 
quenas coisas  e  pequenos  nas  grandes  coisas»; 
—  não   \'indo   agora  para  aqui  apreciar  a  se- 


390 


gunda  parte,  de  mais  a  mais  susceptível  de 
larga  controvérsia,  nos  tempos  históricos. que 
vão  correndo. 

Mas  voltemos  aos  bichos.  Fora  do  domi- 
nio  da  arte  c  entrando  na  realidade  da  vida, 
é  interessante  registar  que  ha  no  Japão  sitios 
afamados  para  ir  ouvir  o  coaxar  das  rãs; 
outros  sitios  para  ir  vèr  os  lumes  vagabundos 
dos  pyrilampos  cruzando-se  no  espaço,  du- 
rante a  noite  escura;  outros  ainda  para  ir 
ouvir  cantar  —  se  o  termo  é  admissivel  — 
certos  insectos,  uns  similhando  os  nossos 
grillos,  outros  de  espécies  differentes.  E  a 
todos  estes  sitios  concorre  o  povo  em  multi- 
dão, como  para  uma  festa,  em  determinadas 
épocas  do  anno.  E  ainda  poderiamos  fallar 
dos  innumeros  tanques,  dos  innumeros  lagos, 
em  Tokio,  em  Nasa,  em  Kobe,  por  toda  a 
parte,  em  volta  dos  quaes  os  passeantes  se 
demoram  a  todas  as  horas,  contemplando  os 
peixes  vermelhos,  ou  os  kágados,  familiarisa- 
dos  com  a  turba,  concorrendo  em  cardumes 
ao  chamamento,  quando  se  batem  as  palmas, 
e  aos  quaes  se  lançam  vários  acepipes,  com- 
prados ao  vendilhão  de  artigo,  muito  de  pro- 
pósito acampado  cerca,  com  o  estendal  da 
sua  industria. 

A  rã,  por  si  só,  exigiria  um  grosso  volume, 


391 


se  eu  pretendesse  occupar-me  aqiii  detida- 
mente do  papel  que  ella  representa  na  arte  e 
em  geral  na  sentimentalidade  nipponica.  O 
japonez  vota,  effectivamente,  especial  sympa- 
thia  a  este  bicho.  Porque  ?  Sem  poder  respon- 
der cabalmente  á  interrogação,  é  certo  que  o 
seu  canto  acalentador,  ouvido  em  noites  esti- 
vaes,  na  suggestiva  serenidade  dos  campos, 
quando  nos  achamos  na  visinhança  das  ex- 
tensas várzeas  de  arroz  ou  cerca  das  ribeiras 
ou  das  lagoas,  entra  como  causa  predomi- 
nante da  estima  de  que  ella  goza.  Ha  sobre- 
tudo uma  espécie,  a  kojíka,  que  é  particular- 
mente apreciada. 

E'  popular  o  uso  de  ter  em  casa  gentis 
gaiolinhas  de  rede  de  arame,  assentando  n'um 
prato  cheio  de  agua,  onde  se  dispõem  plantas 
do  rio  e  pequeninos  rochedos,  de  modo  a  re- 
produzirem em  miniatura  uma  paizagem  aquá- 
tica ;  dentro  da  gaiola,  algumas  kajíka  deleitam 
os  ouvintes  com  o  seu  papear  gracioso.  Ha 
um  poeta  em  Osaka  (conta  Lafcadio  Hearn), 
que  guarda  no  tanque  do  seu  jardim  centena- 
res de  rãs;  em  certas  épocas,  convida  os 
amigos  para  um  banquete,  impondo  a  cada 
um  o  preceito  de  compor  um  pequeno  poema, 
uta,  respeitante  aos  seus  batrachios.  Mas  não 
é   só   n'este   cenáculo  das  letras  que   as  rãs 


392 


téem  inspirado  poetas:  ha  mais  de  mil  e  cem 
annos  que  figuram  nos  cancioneiros  nippo- 
nicos. 

Um  outro  motivo  que  concorre  em  fazei* 
beneficiar  a  rã  da  estima  publica  é  sem  duvida 
a  sua  própria  apparencia.  Rastejando  no  solo, 
com  as  pernas  curvadas,  o  corpo  pendente 
para  a  frente,  as  duas  mãos  espalmadas  no 
terreno,  a  postura  da  rã  lembra  muito  a  de 
uma  rapariga  sobre  a  esteira  domestica,  no 
acto  de  saudar  respeitosamente  o  hospede 
recemvindo.  D' isto  provêm  a  gentil  cantiga, 
devida  a  um  antigo  poeta,  cuja  traducção  é 
pouco  mais  ou  menos  como  segue: —  «Com 
as  mãos  pousadas  no  chão,  reverentemente 
vaes  repetindo  o  teu  poema,  oh  rã !  .  .  . » 

Que  direi  dos  insectos  ?  Em  noites  calmo- 
sas de  junho,  em  certos  logares,  como  na 
aldeia  de  Ishiyama,  que  avisinha  de  uma 
pittoresca  ribeira,  a  turba  acode  para  gozar 
dó  espectáculo  dos  pyrilampos,  que  alli  enxa- 
meiam, e  para  colhel-os,  perseguindo-os  no 
voo.  A  scena  é  esplendida,  na  negridão  da 
noite,  crivada  de  myriades  de  lumes  de  inse- 
ctos; devassando-se  ao  clarão  fugidio  das 
lanternas,  os  barcos  cheios  de  caçadores  ale- 
gres, onde  abundam  as  gtieishas,  deliciosas, 
primorosamente    ataviadas    nas    suas    sedas 


393 


multicores.  Os  japonezes  comprazem-se  em 
conservar  em  casa,  em  graciosas  gaiolinhas, 
feitas  de  gaze,  enxames  de  vagalumes,  colhi- 
dos nos  logares  onde  abundam  ou  comprados 
nos  mercados. 

Outros  insectos  ha,  queridos  pelo  agradá- 
vel ruido  dos  seus  elytros,  merecendo  por  este 
dom  assiduas  peregrinações  aos  sitios  onde 
mais  se  encontram  e  melhor  se  ouvem,  cari- 
nhos amorosos  em  conserval-os  em  gaiolas 
junto  do  lar,  e  dos  poetas  um  interminável 
cancioneiro  em  honra  dos  seus  encantos. 
N'um  artigo  sobre  o  assumpto,  que  tenho 
presente,  encontro  mencionadas  não  menos 
de  doze  variedades  de  insectos  e  os  seus  res- 
pectivos preços  correntes  no  mercado  de 
Tokio,  como  o  hírlgtcirlsu,  o  kanctatahi,  o 
matsumiishi,  etc,  alguns  d'elles  muito  de 
perto  aparentados  com  os  grillos  e  gafanhotos 
dos  campos  do  nosso  Portugal. 

Com  respeito  aos  peixes  de  ornamento,  a 
que  nós  vulgarmente  ç\\2í\Vl?í\VíO^  peixes  verme- 
lhos, posto  que  nem  todos  sejam  vermelhos, 
ha  no  Japão,  como  na  China,  innumeras  va- 
riedades, algumas  da  mais  exótica  belleza. 
Koriyama,  povoação  visinha  da  cidade  de 
Nasa,  é  o  principal  centro  de  creação  de  taes 
peixes,  que  alli  representam  importante  ramo 


394 


de  commercio.  No  estio,  quasi  que  não  haverá 
casa  japoneza  onde  se  não  encontre  o  clássico 
globo  de  vidro  cheio  de  agua,  com  dois  ou 
três  peixinhos  vermelhos,  os  quaes  também 
povoam  o  lago  minúsculo,  de  rigor  em  qual- 
quer jardim  nipponico. 

Peixes,  rãs,  ^  kágados,  insectos  vários, 
vêem-se  profusamente  á  \-enda  nos  innume- 
ros  mercados,  como  que  feiras  permanentes, 
que  abundam  no  Japão ;  e  também  nos  baza- 
res, que  se  estabelecem  junto  aos  templos, 
por  occasião  das  grandes  festas  annuaes, 
aonde  a  multidão  afflue.  Todos  estes  bichos, 
em  concorrência  com  alguns  pássaros  de 
particular  estima,  como  o  ugiãsn  (o  rouxinol 
japonez),  o  viejiro  (interessante  insectivoro), 
e  outros,  concorrem  para  alegrar  a  casa,  pelo 
enlevo  da  sua  apparencia  ou  do  seu  canto, 
trazendo  a  nota  da  vida  ao  aspecto  das  coi- 
sas, já  sabiamente  dispostas  para  nos  chama- 
rem ao  amor  da  natureza  e  das  doces  mara- 
vilhas da  creação. 


XXX 

23   de   março   de    1905 


^Ommentarjos  sobre  a  íçuerra;  a  situarão  dos  bellige- 
rantcs  — O  chrysanthemo  repudiado  da  cidade  de 
Himeji;  historia  curiosa  a  propósito  —  Tm  punhado 
de  exotismos  japonczes. 


|^()M.MENTA-si:  ainda  a  recente  batalha  de 
^"^^  Mukden,  que  engrinalda  de  louros  o  nome 
do  marechal  0\'ama,  que  eleva  a  um  alto 
prestigio  a  pericia  militar  e  a  rutilante  cora- 
gem do  exercito  nipponico  e  que,  associando-se 
ás  glorias  navaes  da  esquadra  do  almirante 
Togo,  colloca  o  império  nipponico  na  primeira 
linha  das  grandes  potencias  do  mundo  inteiro. 
No  entretanto,  o  exercito  v-encedor  não  repousa 
á  sombra  das  suas  victorias,  comprehendendo 
que  o  momento  é  soberanamente  asado  para 
avançar  para  o  norte,  para  perseguir  os  restos 
desmoralisados  c  fatigados  do  exercito  de  Ku- 
ropatkine,  agora  já  sem  Kuropatkine,  que  reco- 
lheu precipitadamente  á  pátria,  vergando  ao 
peso  do  seu  terrível  insuccesso,  agora  sob  o 


396 


cominando  de  um  novo  chefe,  o  quasi  septua- 
genário Linievitch,  ainda  surpreso  e  indeciso 
dos  planos  a  pôr  em  prática  perante  tão  deses- 
perada crise. 

São  pouco  minuciosas  as  noticias  que  nos 
chegam  do  theatro  da  guerra,  mas  sabe-se  já 
que  no  dia  19  as  forças  de  Oyama  occuparam 
Kayuan,  uma  importante  cidade  situada  na 
linha  férrea  e  distante  de  Tieling  cerca  de 
vinte  ou  trinta  milhas,  o  que  prova  a  celeri- 
dade com  que  vão  avançando  os  japonezes. 

E'  opinião  corrente,  não  só  aqui,  mas  em 
toda  a  Europa  e  em  toda  a  America,  conforme 
nos  diz  o  telegrapho,  que  é  chegado  para  a 
Rússia  o  momento  de  confessar-se  vencida  e 
de  solicitar  a  paz  por  qualquer  forma,  sujei- 
tando-se,  fatalmente,  ás  condições,  por  certo 
pouco  lisonjeiras,  que  téem  de  ser-lhe  impos- 
tas; isto  para  evdtar  maior  catastrophe.  Antes 
que  um  novo  exercito  moscovita  possa  apre- 
sentar-se  na  Mandchuria  e  fazer  face  ao 
inimigo,  os  nipponicos  terão  provavelmente 
attingido  as  alturas  de  Karbin,  que  tomarão; 
ou,  embora  se  limitem  a  cortar  a  linha  férrea, 
eis  a  cidade  de  Vladivostok,  que  é  o  único 
porto  siberiano,  isolada,  e  cahindo  em  poder 
do  Japão,  cedo  ou  tarde. 

Mas  a   vinda  á  Mandchuria  de  Lim  novo 


1 


i 


397 


exercito  russo,  mesmo  quando  decorridos  lon- 
gos mezes,  é  já  problema  muito  duvidoso.  A 
massa  enorme  do  povo,  que  se  insurge  contra 
a  primeira  expedição,  a  ponto  de  estar  amea- 
çando as  instituições  do  Estado,  que  fará 
quando  se  cuide  da  segundar  Ousará  o  go- 
verno do  czar  pôr  assim  em  imminente  risco  o 
inteiro  machinismo  social  do  império,  indo  de 
encontro  á  vontade  imperiosa  da  nação  em 
peso,  que  rugirá,  abrazada  em  ódio,  contra  os 
seus  despóticos  dirigentes?  E  quando  ouse; 
quando,  mais  uma  vez  o  chicote,  o  sabre  e  a 
metralha  logrem  impor  apparente  serenidade 
ao  vulcão  humano  que  estremece ;  ha  uma 
coisa  que  se  exigirá  de  prompto  e  largamente^ 
para  formar  e  expedir  o  tal  novo  exercito, 
coisa  que  é  a  alma  de  todos  os  gigantes  em- 
prehendimentos:  —  o  dinheiro.  E  fiilta  o  di- 
nheiro :  os  altos  financeiros  francezes,  que 
téem  na  hei  alliada  o  seu  maior  credor,  já  se 
esquivam  a  futuras  sangrias;  sendo  bem  elo- 
quente a  voz  da  imprensa  da  grande  republica 
europeia,  [que  já  aconselha  abertamente  a  paz, 
conselho  que  se  deve  ter  por  bom  aviso  e  em 
todo  o  caso  significativo  de  que  os  cofres  dos 
Bancos  se  fecharam.  Ora,  seria  agora  excel- 
lente  ensejo  para  uma  outra  potencia  quaN 
quer  se   entremetter   solicita   e  captar  assim  a 


398 


estima  do  colosso,  em  detrimento  da  França; 
mas,  como  se  trata  de  dinheiro,  e  de  dinheiro 
que  ficaria  mal  parado,  não  ha  politica  que  se 
afoite.  Em  conclusão:  a  Rússia  não  deverá 
contar  com  notável  auxilio  monetário  do 
mundo  financeiro. 

Nas  sérias  condições  que  apontei,  a  paz 
annuncia-se  pro\'avel  e  próxima,  e  será  a 
Rússia  que  procurará  obtel-a  sem  demora,  no 
seu  próprio  interesse,  para  fugir  ao  ab3^smo 
de  mais  tremendas  humilhações,  que  se  adi\'i- 
nham,  tanto  quanto  se  pôde  adivinhar  o  por- 
vir, n'esta  delicadíssima  ordeni  de  assumptos. 
A  julgar,  porém,  pelas  informações  da  im- 
prensa mundial,  que,  seja  dito,  nem  sempre 
representam  o  espelho  da  verdade,  não  é  pela 
paz  que  se  inclinam  n'este  momento  os  espí- 
ritos dos  dirigentes  de  S.  Petersburgo,  antes 
se  declaram  resolvidos  a  continuar  sem  tréguas 
o  sangrento  conflicto,  que  tão  mal  lhes  vae 
sahindo. 

Eu  explico  esse  estado  sentimental  do 
governo  russo,  pela  reluctancia  que  experi- 
menta em  apressar  o  facto  irremediável  da 
paz,  nas  tristes  circumstancias  presentes. 
Emquanto  os  acontecimentos  prosigam  como 
proseguem,  succedendo-se  as  derrotas  ás  der- 
rotas,  as   desillusões    ás  desillusões,    persiste 


399 


sempre  a  seductora  esperança — -com  o  au- 
xilio do  orgulho  nacional  —  de  que  a  fortuna 
das  armas  mude  um  dia  de  rumo,  dé  que  um 
factor  qualquer  propicio  entre  em  jogo,  de  que 
emfim  a  Rússia  esmague  o  seu  tenaz  e  inte- 
merato adversário,  sacuda  de  si  a  poeira  do 
opprobrio,  reconquiste  o  seu  nome  de  colosso 
invencível,  prosiga  ufanosa  e  temida  na  sua 
obra  de  expansão  e  de  absorpção,  n'esta  parte 
do  mundo  que  tanto  a  enfeitiça.  A  paz,  pelo 
contrario,  a  paz  humilhante,  apaga  n'um  mi- 
nuto todas  as  esperanças  de  um  immediato 
desafogo,  deixando  apenas,  como  platónica 
consolação,  a  ideia  da  revanche\  e  sabe-se  co- 
mo a  historia  ensina,  mesmo  por  factos  proxi- 
mamente anteriores  (exemplo  a  França  e  a 
AUemanha),  que  a  rcvanche  se  desfaz  muitas 
vezes,  em  fumo,  pela  successão  dos  annos.  A 
indecisão,  perante  a  alternativa  da  dòr  que 
opprime  e  do  corte  radical,  tem  na  vida  come- 
sinha  de  cada  um  o  seu  eloquente  parallelo, 
que  serve  para  vir  explicar  cabalmente  o  phe- 
nomeno:  a  Rússia  é  agora  o  individuo,  a  quem 
um  dente  cariado  e  infecto  incommoda  e  per- 
turba; mas  que  não  se  decide  a  ir  ao  dentista, 
que  lhe  arranque  a  excrescência  inútil,  pelo 
horror  do  caso  e  na  esperança  chimerica  de 
que  cesse  a  dòr    e  volte  a  saúde  á  gengiva 


400 


tumefacta.  E\  possível  pois,  que  o  conflicto 
se  prolongue  até  o  ultimo  extremo  de  desen- 
gano e  desespero. 

Acceitar  a  paz  affrontosa  das  mãos  de  um 
povo  asiático,  confessar  o  homem  amarello 
superior  em  seus  recursos  a  um  poderosíssimo 
Estado  europeu.  .  .  que  vergonha!  .  .  .  Assim 
pensam  os  russos,  infelizmente  bastante  tarde 
para  evitarem  o  peso  do  desaire.  Assim  pen- 
sam elles,  e  assim  pensam  muitos  outros.  Ha 
dias,  dízia-me  um  hollandez,  de  esclarecida 
educação,  que  elle,  que  via  a  chusma  dos  in- 
dígenas estacar  respeitosa  e  humilde  nas  ruas 
de  Batavia,  para  deixar  passar  adiante  o  euro- 
peu que  transitava,"  nunca  poderia  admittir 
complacente  a  marcha  altiva  da  turba  japo- 
neza,  caminhando  de  cabeça  erguida  pela  senda 
dos  seus  progressos.  E  é  assim  mesmo.  Admit- 
tia-se  o  pequenino  Japão,  offerecendo-nos  com 
um  sorriso  os  galanteios  das  suas  musumcs,  o 
exotismo  da  sua  arte  mimosa,  a  doce  alegria 
das  suas  paizagens,  mas  na  attitude  submissa 
de  povo  de  outra  cor,  inferior,  nascido  para 
nosso  regalo,  para  nosso  proveito  e  para  nosso 
domínio ;  e  quando  algum  nípponíco  esque- 
cesse inadvertidamente  este  código  que  lhe 
decretamos,  e,  não  parasse  nas  ruas  de  Tokío 
ou  de  Yokohama  para  nos  deixar  seguir  em 


I 

I 


40I 


frente,  um  bom  murro,  expedido  a  tempo  da 
mão  nodosa  do  homem  louro,  lhe  faria  dura- 
mente relembrar  os  seus  preceitos  de  conducta. 
E'  licito  suppòr-se  que  assim  deveria  ter  pen- 
sado o  commodoro  americano  Parr}',  quando 
com  a  sua  imponente  esquadra,  em  3  de  junho 
de  1853,  veio  bater  ás  portas  do  Japão,  inti- 
mando-o  a  que  as  abrisse.  Foi  assim  que  pen- 
saram aquelles  que  depois  vieram.  Mas  o  pe- 
quenino Japão,  a  principio  reluctante,  descon- 
fiado, timorato,  comprehendeu  de  prompto  que 
o  melhor  que  tinha  a  fíizer  era  seguir  resolu- 
tamente a  civilisação  imposta,  iniciar-se  na 
cultura  estranha;  e  tão  intelligentemente  o 
conseguiu,  que  se  transformou,  como  acaba 
de  proval-o,  n'um  grande  Japão,  cioso  da  sua 
independência,  da  sua  illustração,  dos  seus 
direitos,  e  oppondo  á  cubica  alheia  uma  es- 
quadra e  um  exercito  valentissimos. 

O  facto,  que  só  agora  se  patenteia  em 
toda  a  magnitude,  assombra  toda  a  gente  e 
produz  fatalmente  um  profundo  desequilíbrio 
na  politica  mundial.  Até  aqui,  o  poder  dirigente 
era  para  três  ou  quatro  grandes  Estados  do 
mundo  occidental,  que  se  entretinham  em  in- 
trigar, em  espoliar  e  em  armar-se  até  aos 
dentes  para  se  defenderem  uns  dos  outros ;  os 
pequenos  Estados  não  contavam,  eram  o  jo- 


402 


guete  dos  seus  tutores;  e  as  nações  exóticas, 
da  Africa,  da  America,  da  Ásia,  da  Oceania, 
eram  a  pleba  ignara,  boa  simplesmente  para 
escravisar,  ás  quaes  se  iam  enviando  a  pouco 
e  pouco,  á  medida  das  exigências,  dois  missio- 
nários e  três  metralhadoras,  para  salvação  da 
iilma  e  purificação  do  corpo. 

Surge  agora  o  Japão  como  potencia  de 
primeira  ordem,  reclamando  o  seu  quinhão  de 
prestigio,  impondo-se  na  região  que  é  desti- 
nada a  soffrer  a  influencia  da  sua  acção;  e 
como  que  reivindicando  o  direito  do  asiático  á 
liberdade  e  á  integridade  do  seu  solo.  O  Occi- 
dente  applaudc,  em  geral,  as  glorias  recentes: 
uma  minoria,  por  sincera  admiração  e  sympa- 
thia ;  a  maioria,  porque  se  apraz  na  desgraça 
do  colosso.  Mas,  por  outro  lado,  a  opinião 
publica  já  se  irrita:  no  parlamento  francez 
falla-se  no  perigo  que  ameaça  a  Indo-China; 
no  parlamento  americano  falla-se  no  perigo 
que  ameaça  as  Filippinas ;  ha  mesmo  quem 
avance  que  o  enorme  incremento,  que  vae 
dar-se  á  esquadra  americana,  tem  por  mira 
primordial  o  pôr  em  cheque  a  esquadra  japo- 
neza.  Veremos  em  breve  as  actividades  officiaes 
dos  grandes  Estados  do  Occidente  concentra- 
rem-se  no  Extremo-Oriente,  invejosas  e  preca- 
vidas. A  politica  internacional  vae  soffrer  um 


I 


403 


tremendo  deslocamento.  O  Japão,  sorridente  e 
sereno,  mysterio  vi\'0  da  psychologia  humana, 
é  bem  capaz,  não  só  de  impor  o  respoito  á 
Rússia,  o  que  já  se  afigura  indiscutível,  mas 
de  afastar  de  si  todas  as  outras  tormentas, 
que  negrejam  agora  n'estes  horizontes.  Ho- 
mens, que  vos  aprazeis,  desinteressados  de 
vós  mesmos,  no  desen\'olvimento  do  drama 
social  em  que  esbracejam  os  outros  homens: 

—  Olhae  para  cá ! 

—  Sabeis,  por  certo,  leitores  bondosos,  que 

o  chrysanthemo  é  uma  planta  genuinamente 
japoneza,  que  os  japonezes  cultivam  com  parti- 
cular carinho,  mercê  das  suas  mara\'ilhosas  flo- 
res; também  na  Europa,  desde  alguns  annos, 
os  nossos  jardineiros  lhe  consagram  estima  des- 
velada. No  mez  de  novembro  a  florescência 
dos  chrysanthemos  nos  jardins  imperiaes  de 
Tokio  é  sem  rival,  dizem ;  mas,  em  tal  época, 
mesmo  sem  recordar  tão  alto  luxo,  é  um  enlevo 
surprehender  a  gente  em  cada  jardinzinho 
modesto,  em  cidades  e  aldeias,  os  verdes  tufos 
d'estas  plantas,  recamadas  de  flores,  de  mil 
formas  diversas,  de  mil  tonalidades  distinctas. 
Parecerá,  pois,  caso  estranho  que,  sendo  o 
chrysanthemo  tão  popular  n'este  paiz,  haja  um 
sitio  no  Japão  onde,  asseguram-me,  ninguém 
se  occupa  d'elle,   ninguém  o  cultiva,  por  ser 


404 


tido  alli  de  mau  agouro.  O  sitio  é  uma  parte 
da  gentil  cidade  de  Himeji,  na  província  de 
Harima,  distante  de  Kobe  umas  duas  horas  de 
viagem,  em  caminho  de  ferro.  Vou  dar  a  de- 
vida explicação  d'este  mysterio. 

Ha  longos  tempos,  havia  na  cidade  de 
Himeji  um  nobre  senhor,  que  tinha  no  seu 
serviço  uma  joven  e  formosa  serviçal,  de  dis- 
tincta  familia  e  de  nome  0-kiku-san  {luku 
quer  dizer  —  chrysanthemo);  de  modo  que 
a  moça  de  quem  fallo  chamava-se  a  senhora 
Chrysanthemo.  O  seu  mister  consistia  na 
guarda  das  relíquias  do  museu,  da  baixella  da 
casa,  das  preciosidades  raras,  contando-se  no 
numero  d'ellas  dez  pratos  de  ouro,  valiosíssi- 
mos. Ora,  consta  que  um  rapaz,  também  com 
certo  emprego  no  palácio,  nutriu  desejos  atre- 
vidos com  respeito  á  bella  0-kiku-san ;  e,  como 
encontrasse  honesta  resistência,  teve  artes  de 
fazer  desapparecer  um  dos  taes  pratos,  no  vil 
intuito  de  vingar-se  da  rapariga;  esta,  após 
baldadas  buscas  e  haver  contado  e  recontado 
aquelles  pratos,  mil  vezes,  dez  mil  vezes,  sem 
que  podésse  contar  além  dos  nove,  e  prevendo 
a  justa  cólera  do  amo,  sem  ao  menos  poder 
prov^ar  sua  innocencia,  atirou-se  a  um  poço  e 
afogou-se. 

Kis  toda  a  historia,  simples  e  sentida.  Con- 


405 


vém  agora  acrescentar  que  o  espirito  da  des- 
venturada moça  paira  no  poço,  dando  signal 
de  si  pela  alta  noite,  desde  então  até  hoje; 
porque  o  poço  ainda  existe;  vê-o  quem  quer, 
com  os  seus  bordos  de  pedra,  que  se  elevam 
um  pouco  sobre  o  solo,  carcomidos  e  esver- 
deados de  musgos  seculares,  com  a  cova  pro- 
funda, negra,  mysteriosa,  e  lá  em  baixo  a  agua 
dormente.  Quando,  pela  noite  velha,  alguém 
se  aproxima  d'este  poço,  começa  aperceben- 
do-se  de  um  monótono  murmúrio,  interminá- 
vel, que  vem  de  dentro  d'elle.  Depois,  se  tem 
coragem  de  acercar-se,  ouve  palavras  mui  dis- 
tinctas.  E'  a  pobre  0-Kiku-san  que  conta 
eternamente  os  pratos  de  ouro:  —  «Um,  dois, 
três,  quatro,  cinco,  seis,  sete,  oito,  nove.  .  . 
aaaai !  .  .  . »  —  a  contagem  termina  por  um 
grito  doloroso,  quando,  após  o  nono,  falta 
o  decimo  prato.  E  recomeça:  —  «Um,  dois, 
três,  quatro,  cinco,  seis,  sete,  oito,  nove.  .  . 
aaaai !  .  .  .  » 

0-Kiku-san  encarnou-se  n\im  pequenino 
insecto,  ao  qual  se  chamou  0-kiku-mushi  (a 
mosca  0-kiku)  e  que  só  em  Himeji  é  encon- 
trado; ás  vezes,  nas  feiras  de  povoações  dis- 
tantes, exhibe-se,  a  tanto  por  cabeça,  um 
exemplar  da  espécie.  F/  um  bichinho  de  formas 
graciosas,  com  longos  pôllos  similhando  cabel- 


4o6 


los  desgrenhados,  dando  ideia  de  uma  musumc 
em  angustia.  .  . 

Assim  fica  plenamente  explicado  porque 
na  cidade  de  Himeji,  especialmente  no  bairro 
que  avisinha  do  poço  referido,  por  excepção 
se  tem  quisilia  em  cultivar  os  chrysanthemos, 
que  recordam  o  outro  Chrysanthemo.  .  . 

—  Para  terminar,  por  hoje,  eis  um  pu- 
nhado de  exotismos  japonezes,  a  falta  de  mais 
agradável  passatempo: 

I  —  O  papel  de  escrever,  leve,  ílexivel,  em 
\'ez  de  ser  em  cadernos,  é  em  rolo.  O  pincel, 
como  é  sabido,  desenha  os  caracteres  da  di- 
reita para  a  esquerda  e  de  alto  a  baixo;  e  a 
mão  exercitada  vae  então  desenrolando  o  papel, 
á  medida  que.  a  escripta  o  reclama.  Depois, 
rasga-se,  arranca-se  do  rolo  a  parte  que  con- 
stitue  a  carta,  dobra-se  em  muitas  voltas  e 
introduz-se  no  competente  sobrescripto.  E', 
pois,  curioso  registar  que  entre  namorados, 
por  exemplo,  que  são  aqui,  como  em  toda 
a  parte,  grandes  rabiscadores  de  ideias,  as 
missivas  que  se  trocam  não  enchem  quatro 
folhas,  ou  \\m  caderno,  ou  dois  cadernos, 
como  entre  occidentaes ;  occupam  uma  folha 
unicamente,  mas  de  dois  metros,  mas  de  dez 
metros  de  extensão.  .  .  A  nmsiuné,  erguida  e 
pensativa  com  a  faixa  de  papel  que  acabou  de 


407 


percorrer  com  a  vista,  desenrolando-se  das 
mãos  e  cahindo  até  aos  pés,  ou  fluctuando  á 
brisa,  é  assumpto  corriqueiro  de  desenhos  e 
gravuras. 

II  —  Na  Europa  exige  a  polidez  que  ao 
entrar  em  uma  casa  a  gente  tire  o  seu  chapéu. 
No  Japão  ao  entrar  em  casa  japoneza,  não  é 
de  rigor  este  preceito;  mas,  como  as  cousas 
aqui  são  ao  revés,  é  de  dexer  a  gente  tirar  o 
seu  calçado,  deixando  á  porta  os  butes,  ou  os 
sapatos,  ou  as  gujta,  ou  os  zorl.  A  regra 
alcança  os  europeus,  claramente ;  nem  se  po- 
deria admittir  que  a  lama  da  rua,  fosse  como 
fosse  transportada,  viesse  macular  a  limpis- 
sima  esteira  do  aposento.  Quantas  vezes,  em 
occasiões  ceremoniosas,  nos  temos  encontrado 
^ —  eu  e  nós  todos  que  japonízamos  por  estes 
lados,  —  vestidos  de  bella  calça  preta,  de  dis- 
tincta  casaca  preta,  lustrosa  camisa  alvissima, 
correcta  gravata  branca.  .  .  e  em  meias!  .  .  . 
Acrescentarei  que  ha  no  Japão  a  industria  de 
ratoneiros  de  calçado,  os  quaes  espreitam  pelas 
portas  e  se  safam  com  o  que  encontram,  dei- 
xado pelos  visitantes;  ainda  ha  pouco,  um  ca- 
valheiro francez  meu  conhecido,  victima  d'este 
malefício,  te\'e  de  recolher  a  casa  sem  sapatos, 
valendo-lhe  um  huruma,  o  commodo  carrinho 
indigena,  que  encontrou  facilmente  e  o  dispen- 


4o8 


sou  de  ir  a  pé,  ou  melhor,  no  caso  presente, 
de  ir.  . .  a  pés. 

III  —  Ah,  estes  ratoneiros  japonezes.  .  .  qué 
artes,  que  feitiços !  .  .  .  Querem  os  senhores 
saber  como  elles  roubam  as  gucta,  mesmo  dos 
pés  das  raparigas  ?  As  gtieta,  convém  dizer, 
são  umas  grossas  solas  de  madeira,  sustidas 
ligeiramente  aos  pés  por  uma  presilha  de  seda 
ou  de  velludo.  O  finório  levou  comsigo,  bem 
escondido,  um  par  de  gueta  velhas,  sem  valor. 
Junta-se  á  multidão,  n'um  arraial,  n'uma  festa 
qualquer,  onde  os  attractiv^os  desnorteiem  um 
tanto  as  cabecitas.  E  vae  então,  abaixa-se, 
não  sei  como,  e  com  um  alfinete  pica  ao  de 
leve  o  pé  nú  da  pobre  moça.  EUa,  assustada, 
julgando  que  uma  vespa  mordeu,  levanta  o 
pé  sem  gjLcta,  relanceia-o,  nada  vé,  enfia-o  de 
novo  na  giicta  deixada  sobre  o  solo  e  prose- 
gue.  .  .  mas  já  leva  comsigo  a  gueta  velha. 
Repete-se  a  operação,  mas  iroutro  pé ;  o  re- 
sultado é  idêntico;  e  eis,  mui  simplesmente 
como,  com  pouco  trabalho  mas  com  supina 
astúcia,  o  patife  ganhou  em  dous  ou  três  mi- 
nutos uns  cinco  ou  seis  tostões. 

IV  —  E'  notório,  pelo  menos  entre  aquelles 
que  teem  vivido  no  Japão,  que  o  japonez,  que 
a  japoneza,  sentem,  amam,  compenetram-se 
da  creação,  pelos  olhos  claramente,  mas  tam- 


4 


409 


bem  pela  epiderme,  pelos  poros,  pela  alma,  por 
toda  a  sua  delicadíssima  affectibilidade  ;  vibram 
com  ella.  Sem  querer  amesquinhar-lhes,  nem 
de  leve,  os  dotes  intellectuaes,  que  tão  ruti- 
lantes se  mostram.  p<')de  bem  comparar-se 
cada  japonez  ou  cada  japoneza  a  uma  planta, 
a  um  ser  vegetal  qualquer,  porque  é  o  que 
podemos  conceber  mais  visivelmente  sensível 
ás  variações  meteorológicas  do  meio.  Este 
estado  de  deliciosa  servidão  —  digamos  assim, 

—  ao  ambiente,  traduz-se  em  todos  os  instan- 
tes pela  phrase,  entrada  na  categoria  de  cum- 
primento, que  o  nipponico  não  deixa  nunca 
de  acrescentar  aos  bons-dias  e  á  mesura  que 
dirige  á  gente  das  suas  relações,  nos  encon- 
tros habituaes.  A  phrase,  segundo  as  circum- 
stancias,  é  do  teor  seguinte  :  —  <<^  Que  lindo 
tempo ! »  —  ou  —  «  Que  enorme  calor !  >>  —  ou 

—  «  Que  grande  frio !  >>  —  ou  —  <^  Que  furioso 
\endaval ! ^>  —  ou  —  « Oue  \'alente  chu\'a ! »  — 
O  chinez  também  tem  o  seu  estribilho;  mas, 
mais  positivo  e  \i vendo  essencialmente  pela 
barriga,  dirige  aos  amigos  que  encontra,  o  in- 
variável cumprimento :  —  «  Oh  !  já  hoje  comeu 
arroz  ?  .  .  .  ^> 

V  —  Os  gatos,    no  Japão,  são,  em   geral, 
desprovidos  de  cauda,  ou  antes,  a  cauda  limi- 
ta-se  a  um  simples  coto,  mais  ou  menos  ru- 
is 


410 


dimentar,  por  \'ezes  tortuoso,  isto  em  conse- 
quência da  defeituosa  disposição  das  vértebras ; 
na  China,  \allia  a  verdade,  também  estes  bi- 
chos apresentam  um  exotismo  similhante. 
Além  da  citada  disformidade,  os  gatos  japo- 
nezes  são  pequenos,  infezados,  de  feio  pêllo, 
não  attingindo  jamais  belleza  igual  á  dos  seus 
irmãos  do  Occidente  e  ainda  menos  compará- 
veis aos  seus  vasinhos  de  Siam,  aos  quaes 
bem  cabe  o  epitheto  dos  mais  gentis  gatos  do 
universo.  A'  parte  estas  misérias  exteriores,  o 
gato  nipponico  em  nada  differe,  moralmente, 
dos  seus  parentes  distantes :  caracter  de  supina 
independência,  bohemio  de  telhados,  ladrão  do 
que  encontra  a  geito  na  cosinha,  caçador 
emérito  de  ratos  e  pardaes ;  e,  com  especial 
referencia  á  fêmea,  exemplo  enternecedor  de 
solicitude  maternal,  no  cuidar  da  joven  prole. 
Em  abono  d'esta  ultima  virtude,  poderia  agora 
referir  sobejas  provas,  se  o  louvor  da  própria 
familia  não  fosse  acção  classificada  de  immo- 
desta :  fallaria  da  minha  gata,  do  poema  senti- 
mental dos  seus  desvelos,  que  dispensa  n'este 
momento  a  quatro  gatinhos  que  lhe  perten- 
cem. .  .  e  mais  a  um  cachorrito,  que  lhe  im- 
pingi, por  achar-se  orphão  de  mãe. 


FIM 


índice 


b 


ÍNDICE 


Pag. 

Se   eu   podesse  dizer v 


l 
2  de  março  de  1904 

Patriotismo,  amor  e  paixão,  que  justilicam  as 
maiores  audácias  —  A  politica  da  Rússia  na 
presente  guerra  —  Os  japonezes  senhores  do 
mar  —  Explica-sc  a  razSo  que  assiste  ao  Japào 
em  luctar  pela  sua  preponderância  no  Extremo- 
Oriente  —  O  Japão  em  festa,  ao  vêr  a  partida 
das  tropas  para  a  guerra  —  As  estampas  guer- 
reiras —  Necessidade  e  conveniência  da  repre- 
sentação da  marinha  portugueza  nas  aguas 
do  Extremo-Oriente 


li 
10  de  março  de  1904 


O  Japilo  em  evidencia  —  A  religião  japoneza  — 
O  chamado  perigo  amarello  -  A  lenda  e  a 
moral   do  Shintôismo  —  O  culto  dos  antepas- 


-^^ 


4 1 4  INDICIí 


Pag. 


sados  —  Outras  seitas  religiosas  —  Contrastes 

—  O  que  é  o  perigo  amarello  —  Outros  perigos 

—  Chimeras    dos    europeus  —  Tma    carta   de 
Herbert  Spencer 12 


111 
15  de  março  de  1904 

Os  últimos  acontecimentos  da  guerra  —  Os  caval- 
leiros  bandidos  da  Mandchuria  —  Os  bombar- 
deamentos  de  Vladivostok  e  de  Porto  Arthur 

—  A   esquadra  japoneza  e   o  almirante  Togo 

—  Algumas  consideraçfíes  acerca  do  dominio 
e  aspirações  russas  no  Ivxtremo-Oriente  —  As 
tropas  japonezas  que  marcham  para  a  guerra 
■ — iMUlHisiasmo  japonez — -A  propósito  de  do- 
nativos—  Diversos. 

IV 
28  de  março  de  1904 

A  acçSo  naval  japoneza — Considerações  —  A 
acçílo  terrestre  —  Circumstancias  que  militam 
n'esta  acção  a  favor  dos  japonezes  —  O  pres- 
tigio da  Rússia  —  O  que  esse  prestigio  deman- 
dará para  vencer  -  Os  perigos  a  que  o  Japão 
está  exposto  —  Ou  a  victoria  ou  a  ruina  —  O 
exercito  russo  talvez,  apesar  de  tudo,  nao 
possa  esmagar  o  JapSo — Algumas  conside- 
rações sobre  as  origens  do  povo  japonez  — 
D'onde  provém  o  nome  do  Japíto 


INDICE 


\' 


5  de  abril  de  1904 

As   noticias   da  guerra — O  exercito  japonez  tal 
como  é  —  A  comparação  da  Rússia  e  do  Japão 

—  A   imprensa  europeia   e  as  hostilidades  — 
França,  Rússia  e  Japío  —  A  opinião  tVanccza 

—  A  ideia  que  se  deve  fazer  do  povo  japonez 

—  As  sympathias  que  merece  ~  Livros  a  res- 
peito do  Japão  


415 

Paíç. 


50 


VI 
26  de  abril  de  1904 

A  guerra  russo-japoneza-- A  perda  do  <n  Petropau- 
lowsk  » — O  almirante  russo  Makaroft"  — As 
cerejeiras  em  Tokio  —  A  imprensa  jornalistica 
no  Japão  


58 


V 1 1 
4  de  maio  de  1904 

A  guerra  russo-japoneza — A  Europa,  o  Japão  e 
a  China  —  Considerações  —  ITltimas  noticias 
da  guerra — Por  inar  e  por  terra- — Os  solda- 
dos japonezes  —  Os  reservistas  —  Scenas  di- 
versas—  As  mulheres  japonezas — A  virtude 
de  uma  faixa;  pontos  fatidicos  —  Criados  e 
criadas — Traços  curiosos  do  povo  japonez   . 


Ó9 


41 6  INDICK 


\M  1 1 
17  de  maio  de  1904 

As  ultimas  noticias  da  guerra;  vantagens  obtidas 
pelos  japonezes;  peripécias  varias  —  As  pagi- 
nas da  historia  japoneza  c  como  técm  sido 
apreciadas  —  Força  naval  portugueza  no  Ex- 
trcino-Oricnte-    X<ítas  de  viagem .     .     .     .     .      .   <S2 

IX 
28  de  maio  de  1904 

Dois  desastres  da  marinha  japoneza  e  a  esquadra 
de  \'ladivostok  —  As  operações  na  peninsula 
de  Liaotung  —  O  discurso  do  snr,  Doumer;  a 
sua  declaração  relativamente  á  guerra  e  con- 
siderações a  propósito  —  As  festas  em  Tokio 
pela  passagem  gloriosa  do  rio  Yalu  ....  94 

X 
7  de  junho  de  1904 

A  guerra  —  O  cerco  de  Porto  Arthur  —  As  perdas 
dos  japonezes  na  batalha  de  South  Hill  —  A 
queda  prevista  de  Porto  Arthur  —  O  que  suc- 
cederá  depois?  —  Os  futuros  reforços  da  Rús- 
sia—  O  patriotismo  e  heroicidade  dos  japone- 
zes—  Os  próprios  russos  sao  os  primeiros  a 
reconhecel-os  —  As  noticias  da  ultima  hora  — 
Sccnas  pueris — Kxpediçào  de  nove  damas 
americanas 104 


INDICK  417 

XI 
19  de  julho  de  1904 

A  temperatura  —  A  guerra  —  A  Europa  e  as  victo- 
rias  japonezas  —  P(3rto  Arthur  —  A  importân- 
cia da  tomada  d'esta  praça  pelos  japonuzes- 
Os  últimos  acontecimentos  —  Algumas  phrases 

►        sobre  o  Japíío  e  o  povo  japonez,  escriptas  por 
notáveis  viajantes--  O  que  disse  S.  Francisco 
Xavier  a  respeito  do  Japão  —  Impressões  dos 
mk         japonczes  que  tccm   visitado  a  luuopa  ...        113 

XII 
27  de  julho  de  1904 

Maravilhoso  espectáculo  dado  pelo  .lapào  ao 
mundo  —  A  sua  evolução  industrial  e  scienti- 
fica —Recursos  de  que  o  Japão  dispfíe  para 
defender  os  seus  interesses  por  meio  das  ar- 
mas—  O  seu  prestigio  —  Haças  branca  e  asiá- 
tica—  Os  progressos  do  Japão  —  Causas  es- 
peciaes  a  que  obedecem  esses  progressos  — 
A   Rússia — Os   acontecimentos    da  guerra — 

kPorto  Arthur  c  Liao-Yang  —  O  apresamento 
de  navios  pelos  russos  —  Esquadra  de  \'ladi- 
vostok  —  Os  mestiços  japonezcs *   126 

X  1 1 1 
10  de  agosto  de  1904 

>s  últimos  acontecimentos  da  guerra  —  .\  esqua- 
dra russa   de   \'Iadivostok  —  Desastres   soffri- 


41 8  ÍNDICE 


l'íllí. 


dos  por  vários  navios  mercantes  japonezes  — 
Avultadas  perdas  materiaes  —  Como  se  eftc- 
ctua  este  corso — Porto  Arthur — O  exercito 
russo — Os  seus  revezes  —  A  guerra  acusa  já 
um  grande  phenomeno  de  ordem  moral:  as 
sympathias  pela  causa  japoneza — Portugal  e 
o  Japão  —  Feições  moraes  do  povo  japonez  — 
A  arte  e  a  sensibilidade  d'este  povo  —  Surpre- 
zas  na  arte  de  jardinagem — Km  instantâneo.        136 

18  de  agosto  de  1904 

A  batalha  naval  de  10  de  agosto — Poder  marí- 
timo da  Rússia— -Cruzador  portuguez  «Ada- 
mastor»—  Uma  das  características  do  feitio 
moral  dos  japonezcs — A  China  —  Relações  do 
Japào  com  a  Corça  e  com  a  China — Portugal 
e  a  Kuropa  no  Japão 150 

31  de  agosto  de  1904 

Porto  Arthur  —  A  esquadra  russa  de  Vladivostok 
—  O  cruzador  «Rurik»  —  O  desafogo  que  a 
população  japoneza  sentiu  com  a  destruição 
do  «  Rurík  :>  —  O  almirante  Kaminura — O 
cruzador  «  Novik  »  —  Ainda  a  batalha  naval 
do  dia  10  —  O  navio  almirante  «  Mikasa  »  — 
Togo  e  a  sua  popularidade — ÍJao-Yang  — 
Festas  e  celebrações  —  Costumes  japonezcs  — 
O  consulado  portuguez  cm  Kobe 162 


INI  MCI'.  41  9 

X  V  I 

27  de  setembro  de  1904 

Os  acontecimentos  —  Liao-Yung;  batalha  de  dez 
dias — Os  enthusiasmos  da  Europa  pelo  Japão; 
o  seu  esfriamento;  varias  causas  —  Retirada 
dos  russos.  As  chuvas.  Porto  Arthur.  Japío 
e  Coréa  —  A  emij^raçao  chineza  por  Macau; 
um  episodiíí 1-4 

X  \'  1  1 

28  de  setembro  de  1904 

As  attençries  que  se  prestam  hoje  ao  Japão  -Re- 
ferencias á  geographia  do  Japào  —  Vm  rosário 
de  ilhas  —  As  que  comprehende  o  Japío  actual 

—  O  paiz  japonez  occupando  o  centro  de  uma 
importantissima  zona  de  acti\'idades  humanas 

—  Os  principaes  systemas   de  montanhas  do 
archipelago    japonez,    os   seus     rios    e    lagos 

—  F*henomenos  gcographicos  —  Considerações 
sobre  a  área  do  império,  clima  e  população     .        187 

X  \'  1 1 1 
19  de  outubro  de  1904     ^*i 

Sobre  a  guerra:  o  sentimento  da  colónia  estran- 
geira no  Japílo;  inválidos  que  vilo  chegando; 
a  situação  dos  japonezes  e  russos  na  Mandchu- 
ria;  o  que  se  passa  cm  Porto  Arthur;  pcrgun- 

(*)    Por  lapso  loi  indicada  no  tcxio  outra  data. 


420  ÍNDICE 

Pa-, 
ta-se  qual  será  o  desfecho  da  guerra;  ultimas^ 
noticias  recebidas.  —  O  banho  japonez;  diva- 
gações curiosíssimas  a  propósito 199 

XIX 
26  de  outubro  de  1904 

O  incidente  da  esquadra  russa  do  Báltico  com  os 
pescadores  inglezcs — 'Xoticias  do  theatro  da 
guerra  —  ('alculos  do  morticinio  havido  nos 
dois  exércitos  combatentes  —  Previsão  de  no- 
vos horrores  —  Rnthusiasmo  pelas  victorias 
japonezas  —  Morte  de  Lafcadio  Hearn  —  A 
emigração  japoneza  transformada  em  trafico 
de  escravatura  —  Ausência  de  cruzadores  por- 
tuguezes  nos  portos  do  Japão  —  Compatriotas 
que  nos  têm  visitado 214 


XX 
10  de  novembro  de  1904 

O  anniversario  do  imperador;  algumas  divaga- 
ções sobre  a  figura  d'este — Noticias  da  guerra; 
a  defeza  de  Stoessel  e  a  esquadra  do  Bál- 
tico; opinião  de  um  funccionario  japonez  — 
Vista  retrospectiva  sobre  o  inicio  das  rela- 
ções russo-nipponicas;  informações  curiosas 
a  tal  respeito — Ipauguração  da  estatua  do 
marquez  de  Ito 228 


INDICK  421 

Pag. 

XXI 
23  de  novembro  de  1904 

As  surprezas  da  guerra- -O  nome  de  Togo;  coi- 
sas interessantes  que  respeitam  a  este  arrojado 
marinheiro:  a  sua  origem,  a  sua  lista  de  ser- 
viços, a  sua  physionomia.  —  As  rubras  c  mo- 
miji  ^    do  outomno 243 

X  X  l  í 
12  de  dezembro  de  1904 

Calmaria  de  noticias  —  A  situação  dos  dois  belli- 
gerantes  —  Qual  será  o  resultado  do  novo  c 
tremendo  encontro  que  se  espera?  —  Porto 
Arthur — A  esquadra  russa  do  Báltico  —  A 
sympathia  mundial  a  favor  do  Japão  —  Con- 
siderações e  explicações  —  Ultimas  noticias 
relativas  á  guerra 258 

X  X  1 1 1 
22  de  dezembro  de  1904 

Ao  findar  do  anno  —  Noticias  da  guerra  —  Dese- 
jos de  paz;  considerações  sobre  o  assumpto 
—  Estudo  acerca  do  nipponico;  a  sua  pintura, 
esculptura,  musica,  theatro,  poesia,  archite- 
ctura  religiosa  —  Ultimas  reflexões:  a  «uta-  • 
japoneza  e  a  quadra  portugueza ^74 


422  INDICH 

X  X  1  \' 
5  de  janeiro  de  1905 

Anuo  novo  japonez — Apreciaçío  a  um  artigo 
sobre  o  Japíto  —  Raças  superiores  e  raças 
inferiores  —  O  perigo  amare/lo  c  o  flagello 
bratico  —  Divagações  sobre  o  que  do  desper- 
tar da  Ásia  resultará  para  a  Europa  e  para  o 
mundo  —  Episódios  curiosos  da  campanha  — 
Os  cossacos  e  a  cavallaria  japoneza —  Porto 
Arthur  rcndeu-sel 297 

X  X  \' 
18  de  janeiro  de  1905 

A  queda  de  l^orto  Arthur -- Efteito  moral  da  victo- 
ria  dos  japonezes  —  hicohercncias  de  Stocsscl 
—  Imprevidencias  dos  com  mandantes  da  es- 
quadra russa  —  Subsidios  para  a  historia  — 
As  duas  reh'giòes  que  mais  prosperam  no 
Japão;  complicações  externas  do  culto  dos 
mortos;  uma  recordação  emocionante  —  A  pro- 
pósito do  livro  portuguez  O  Japão  por 
dentro. — /-*.  .S'. ;  o  embarque  de  Stoessel  e 
uma  divagação  commovedora 314 

XXVI 
2  de  fevereiro  de  1905 

Evoluções  da  guerra-^ Os  tumultos  na  Rússia  — 
Previsões   sobre  a  duração  que  poderá  ter  a 


INDICK  423 

Pag. 
futura   paz — O  que  poderia  tonial-a  esta\-el 

—  Uma  heroina  —  Maravilhosa  viagem  que  fez 
um  coelho  branco  —  Os  provérbios  japonczes 

—  Concurso  imperial  de  poesia 332 

X  X  \'  1 1 
15  de  fevereiro  de  1905 

A  tomada  de  Porto  Arthur;  algumas  divagaçòcs 
a  propósito  —  Data  memorável;  principaes  fa- 
ctos da  guerra  —  O  commercio  do  Japiío  no 
anno  findo;  firmas  portuguezas  em  I\obe   .     .       347 


X  X  \'  1 1 1 
27  de  fevereiro  de  1905 

Noticias  da  guerra  —  O  descobrimento  do  Japão 
pelos  Portuguezes;  a  passagem  d'estes  pelo 
império  nipponico  —  \'estigios  linguisticos  — 
O  inverno  no  Império  do  Sol  Nascente;  con- 
ta-sc  a  propósito  a  historia  de  um  salgueiro  .       362 

X  X  I  X 
15  de  março  de  1905 

Batalha  de    Mukden  —  Divagações;   o  mais  vehe- 
mente  desejo  de  todo  o  japonez  —  Informações 
curiosas   de    um  correspondente  do  Times —    , 
O  amor  pantheista  dos  japonezes  pela  cteaçito.       370 


424 


INDICIÍ 


XXX  àiMBW^^^ 

23  de  março  de  1905  ^^^t 

("ominentarios  sobre  a  guerra;  a  situação  dos 
bclligcrantes  -O  chrysanthemo  repudiado  da 
cidade  de  Himeji;  historia  curiosa  a  propósito 
—  Tm  punhado  do  cxotistnos  japonezcs     .     .       3^5 


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