S-
WENCESLAU DP: MORAES
ar tas do Japão
II
UM AXXO DA cr, ,^\
(1904-1905)
Cow UM prefacio de VICENTE ALMEIDA D' EÇA
PORTO
LIVRARIA MAGALHÃES & MONIZ- Editora
12, Largo dos Loyos, 12
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AS DO JAPÃO
II
UM ANXO DA GUKRRA
( 1904- I 905 )
WENCKSLAU DK MORAES
Cartas do Japão
TM ANXO DA (iTEKRA
1 1 9 o 4 - 1 () o 5 )
Com um prefacio de VICENTE ALMEIDA D' EÇA
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PORTO
LIVRARIA xMAGALHÃES & MONIZ - Euitoua
12, Largo dos Loyos, \>
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TYPOGRAPHIA PROGRESSO
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DoMiNuos Augusto da Silva ís: C
Largo de S. Domingos, 15
PORTO
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— bhÍ
Se eu poclesse dizer...
ÊXITO brilhante do volume de
Cartas do Japão que se pu-
"blicou o anno passado, obri-
gava o editor, obrigava os três amigos
e obrigava o auctor' a recompensarem
a estima do publico, dando-lhe outro
volume de Cartas.
Reíiro-me ao auctor em ultimo lo-
gar, para dar ao menos esta satisfação
VI
ao seu insistente desejo de que não se
falle d'elle, modéstia de tal maneira fora
do commum que o fez desentranhar-se
em exclamações de pasmo quando teve
a surpresa, que esses amigos lhe pre-
pararam, de receber um exemplar do
primeiro volume das Cartas.
D'elles sabem os leitores das Car-
tas quem foi o primeiro: Bento Car-
queja, esse espirito de tão grande cul-
tura, esse patrono de toda a ideia gene-
rosa ou útil, que dia a dia cresce no
conceito dos que seguem com attenção
a sua obra meritória; foi quem prefa-
ciou o outro volume, e ali escreveu
em períodos scintillantes o que era a
alma japoneza e o que eram as Cartas.
Chegou a vez agora ao segundo.
VI I
*
\
Wenceslau de Moraes não carece de
ser apresentado, e seria irrisão que a
isso se atrevesse quem nos trabalhos
das lettras nunca se avantajou em pri-
mores. Mas, se assim como Bento Car-
queja pôde livremente esboçar os ele-
mentos da psycholo<»ia japoneza, alguém
quizesse tentar a analyse da psycholo-
gia do auctor das Cartas, talvez nin-
guém como este segundo amigo possua
elementos preciosissimos para o fazer.
Se ás Cartas que são para o publico,
\' m
se podessem juntar as que só ao amigo
são destinadas; se d'este escrínio, onde
a alma d'um bom se revela em gemmas
rutilantes, fosse permittido extrahir as
jóias de absoluta pureza que elle encer-
ra; se, ao menos, condensando, resu-
mindo, esbatendo, fosse licito dar a en-
tender o que só n'essas cartas se lê; en-
tão, por mais desvaliosa que fosse a
mão d'obra, o valor intrinseco da maté-
ria prima mostrar-se-hia inapreciável.
Então se veria como essa psychologia
encerra as mais nobres qualidades que
podem determinar um caracter — a in-
tegridade, a dedicação, o escrupuloso
cumprimento do dever, a superioridade
ás oífensas mesquinhas. . . .
Não; seria abuso de confiança con-
tar ao publico o que só para o amigo
IX
foi escrito. K nem é preciso: os que
lêem a obra, já hoje avultada, de Wen-
ceslau de Moraes, podem fazer a psy-
chologia do auctor, porque, lodos o sa-
bem, a Arte tem este condão maravi-
lhoso: por mais que intente mascarar-
se, por mais que procure enganar, se
procura, níío o consegue nunca; o ar-
tista revela-se sempre, tal qual é; se de-
seja disfarces, melhor será que não pro-
duza.
Façam, pois, os admiradores do
nosso auctor essa analyse, e grato lhes
será o trabalho, porque é sempre conso-
lador descobrir um caracter. E consin-
tam-me que, de collaboração com elles,
aponte tão somente uma feição.
Tenho para mim que a Dor é condi-
ção indispensável á plenitude da acção
X
intellectual e muito mais á perfeição do
trabalho artistico. A Dor é o acicate
que incita as energias, é o tónico para
as fraqiiezas da alma, é o cadinho onde
as qualidades individuaes se acrisolam.
Nascem as criaturas á custa da dôr ma-
terna; só se produzem perfeitas as obras
do espirito, quando o inventor soífreu.
Por isso a Dôr é necessária, e baldado
se torna o esforço para fugir-lhe. A Dôr
en nobrece, c bem mesquinho será quem
não saiba sentil-a. Só ella dá grandeza
d'alma; sem cila não ha senão egoismo.
Entendamo-nos: para que a Dôr produ-
za estes salutares eífeitos, é necessário
não a temer; soffrer com ella, mas lii-
ctar sempre. Por isso estão fora da na-
tureza os sobrehomens á Nietsche e os
misogynos á Schopenhauer e á Gorki.
Xl
Supprimir a Dor empregando a força,
luctar com soberbia pelo primeiro lo-
gar calcandí^ os humildes e destruindo
os fracos, procurar na mulher s(3menle
o instrumento do goso, mas refugir a
tudo que por causa d'ella nos possa
trazer soffrimento, e, como ultima con-
clusão, despresal-a porque é fraca, ou
dispensai -a porque nos é inútil ou em-
baraçosa, são aberrações da consciên-
cia humana, embora sejam o código dos
egoístas. E necessário sofírer para vi-
ver; quem não conhece a Dor, quem
nunca teve sensibilidade para soffrer,
ou, se alguma \'ez a teve, veiu a per-
del-a, esse tal não vive, vegeta.
E afinal o sobvehomem um dia co-
nhece que lhe falta alguma coisa; os fu-
mos da gloria dissipam-se: os inebria-
Xll
mentos da forca deixam de actuar; for-
ma-se o isolamento em roda d'elle, pois
que se collocou muito alto, e toda a
mais gente está muito abaixo. E então
o sobrehomem soífre pela primeira vez
a Dor, e salva-se; desce do pedestal a
que o elevou o orgulho, vem para a
communidade misera de que tentara se-
parar-se, é apenas um homem, como to-
dos devem procurar ser. E o misogyno
que se esqueceu de que teve mãe, esse,
mais infeliz quasi sempre, termina por
ser victima, indigna de compaixão, de
qualquer megera que vinga os despre-
sos proclamados pelo egoísta.
Censurando quem pela mulher só
professa desdém, nem por isso se
applaude o effeminado^ que não sabe
manter a dignidade do próprio sexo,
XI li
nem o femeeiro. tão ignóbil na espécie
como ignóbil é o termo, nem mesmo o
feminista^ que, na maioria dos casos,
mais parece um disfructador do que um
convencido. Não: o que se applaude,
porque é a verdadeira lei imposta pela
natureza, é a estima pela mulher, o re-
conhecimento da sua indispensabilidade
na sublime harmonia da creação, a con-
formidade com a Dor que por ella se
soífre. E assim é que do Loti, cujo
nome acode sempre que se trata de
Wenceslau de Moraes, nos aborrecem
as jactâncias amorosas dos primeiros li-
vros, mas nos enlevam as paginas, de
verdadeira estima pela mulher, do Ra-
muntcho e d'outras composições mais
recentes.
E voltando ainda ao universal im-
XI \'
perio da Dor, deve observar-se que elle
se manifesta nos mais grandiosos pro-
d actos do génio. Os Lusíadas^ com se-
rem a glorificação d'uma raça, estão
alanceados dos mais pungentes dramas
da Dor humana, desde os sottrimentos
obscuros do navegante cada dia a bra-
ços com os perigos do mar, até ao mar-
tyrio de Ignez e á tristeza incomportá-
vel de quem vê a Pátria prestes a mor-
rer. A Alma Gentil e a canção do Des-
amparo são, só por si, dois poemas da
Dôr, inegualaveis. Do D. Quixote se
disse já. e creio que se disse bem, que
aquelle riso perenne é apenas a masca-
ra transparente da Dôr, da tristeza por
um ideal que desapparece, do descon-
solo pelo vácuo produzido por essa fal-
ta que nada substitue. Camões e Cer-
x\
\antes íorcini grandes artistas, porque
sottVeram muito e sentiram profunda-
mente a Dor.
Pois bem. Se quizermos pela obra
de Wenceslau de Moraes conhecer da
psychologia do escritor, tacil nos será
observar que toda ella é dominada pela
Dor, que a sua alma se encontra mace-
rada pelo sotíVimento, que a tristeza do
desconforto próprio e dos males alheios
a ulcera e mortifica. Raro será o capi-
tulo onde uma palavra ou uma phrase
não indique esse estado, porventura ás
vezes levado até ao desalento, mas em
todo o caso sentido^ e por isso dando o
resultado appetecivel, a producção de
paginas esplendidas de verdade e de co-
lorido. E aíinal nem esse trabalho será
talvez necessário. No Preludio do Dai-
XVI
Nippon conta-se a historia dhim homem
que morreu em Macau^ historia commo-
vente d'um intelíectual retrahido desde
a juventude, porque n'essa idade uma
grande dor o ferira; esse homem, facil-
mente se adivinha, era o próprio escri-
tor ...
E d'esse mesmo Preludio e de toda
a obra de Wenceslau de Moraes trans-
parece a influencia que a mulher teve
nos seus destinos, influencia que lhe
vincou magoa indelével na alma dolo-
rida, mas que nem por isso o levou a
enfileirar-se entre os tresloucados que
a maldizem.
X V l 1
*
E agora só mais algumas palavras a
respeito do presente volume.
Nas primeiras Cartas, publicadas o
anno passado, descrevia-se principal-
mente a situação económica e politica
do Japão actual, dando-se aqui e alem
algumas indicações sobre as modalida-
des artisticas e intellectuaes, tão inte-
ressantes, d'esse povo. Mas a própria
situação politica apresentava, como fei-
ção proeminente, a lucta diplomática do
X ^' 1 1 1
Japão com a Rússia, lucta que dia a dia
se ia exacerbando, até que veiu a dar a
declaração da guerra. Com os primei-
ros actos de hostilidade termina esse
volume das Cartas.
O actual abrange o primeiro perío-
do da guerra — desde o combate naval
de Chemulpo até á grande batalha ter-
restre de Mukden.
N'elle se pode ir seguindo, a passo
e passo, esse terrível drama, primeiro
circumscrito quasi ao bloqueio de Por-
to Arthur, mas que em breve se desen-
volve pelo avanço das tropas japonezas
na Coréa e na Mandchuria; começam
os combates junto á poderosa forta-
leza, tenazes e violentíssimos de parte
a parte; cahe finalmente Porto Arthur,
e diminue por então o interesse da acção
X IX
l
marítima do Japão, para se avolumar a
importância da acção terrestre. F^ere-se
a batalha de Miikden, que na verdade
encerra o primeiro cyclo do trágico
duello, e com essa batalha conclue o
presente volume.
Mas não c só dos acontecimentos
da guerra que elle se occupa ; pelo con-
trario, entremeando-se ás noticias das
hostilidades e ás considerações, por ve-
zes da maior importância e acerto, so-
bre as consequências da guerra, appa-
recem-nos deliciosos quadros da natu-
reza, da arte e dos costumes do Japão,
campo dilecto do auctor, inexaurível
thesouro de que a sua impressionabili-
dade vae tirando successivas paginas
preciosíssimas. E tudo temperado pelo
seu sentimento predominante, a Honda-
XX
de, e tudo acrisolado pelo seu maior es-
timulo, a Dor.
Os leitores saberão entender quanto
estas Cartas valem. Assim cu o podesse
dizer. . .
Lisboa, maio cie 1905.
V/cenfe nimeidci c/'Eçc3.
Cartas do Japão
Estalou a guerra emfim ! »
(Cartas do Japão — Antes da guerra. —
Carta xl, de iS de fevereiro de 190+).
2 de março de 1904
Patriotismo, amor e paixão, que justificam as maiores
audácias — A politica da Rússia na presente guerra
— Os japonezes senhores do mar — Explica-se a
razão que assiste ao Japão em lu^tar pela sua
preponderância no Extremo-Oriente — O Japão em
festa, ao vêr a partida das tropas para a guerra
— As estampas guerreiras — Necessidade e con-
veniência da representação da marinha portugueza
nas aguas do Extremo Oriente.
í~\ MUNDO que assiste como espectador
^-^^ attentissimo ao grande drama iniciado
na região extremo-oriental, deve esperar todas
as audácias do povo japonez, embora lhe pese
confessal-o, por orgulho de raça. A prophecia
de um acontecimento tremendo, que devia
commover a Europa inteira, proferida pela
bôcca do velho Kruger durante a carnificina
do Transvaal, estava só na bòcca e também
na alma do venerando ancião; os outros, to-
dos os boers menos elle, ti\-eram de con-
temporisar, de acceitar a dura condição de
vencidos je a perda in-emediave) da sua pátria.
No Japão, cada homem, cada mulher, cada
creança, é um Kruger; ha aqui, com as esta-
tísticas na mão, uns -/^ milhões de krttgers; o
patriotismo affecta na alma japoneza o estado
de uma paixão, de uma quasi loucura, de um
quasi delido ; e é d'este povo, e de mais
nenhum outro, que é licito presumir-se os
mais estupendos arrojos, quando se trate do
engrandecimento da pátria ou de salval-a das
garras do colosso que a ameace. .
Definamos melhor as cousas, se é possi-
vél. Na Europa, na America civilisada, o
patriotismo é, sobretudo, um dever civico; os
soldados marcham para a guerra em obediên-
cia a este preceito. No Japão o patriotismo
não é um dever: é um amor, uma paixão, é
uma febre contagiosa, que põe em ebullição
o sangue dos soldados, e também o dos cam-
ponezes, e também o das mulheres, e também
o das creanças, esquecendo todos tudo para
um único fim — a gloria do Dai-Nippon. E'
este sentimento que faz dos japonezes um
povo único, em coragem e abnegação, do
que elles darão, estou certo, sobejas provas,
no decurso das hostilidades com a Rússia,
seja qual fòr a sorte final das armas. Em-
quanto a esta não se nega a ferocidade legen-
daria dos seus cossacos, por outro lado a
enorme extensão do seu território, a dura
autocracia que pesa sobre o povo, a crassa
ignorância e a miséria das massas, tudo faz
prever que o enthusiasmo que anima a grande
maioria dos soldados no campo de batalha,
seja de um caracter anodino, rastejando pelo
nivel de um simples dever de disciplina.
E veremos. . .
A que serão devidas as qualidades exce-
pcionaes d'este curioso povo japonez .^ a uma
caracteristica biológica ? á educação } á reli-
gião professada.^ Talvez devidas a tudo isto
e a muito mais; a religião, todavia, deve
entrar como um factor predominante. A reli-
gião do japonez, o S/imíôismo, antes um
culto — culto da pátria e de si mesmo — em
todo o caso uma religião de orgulho, de
iniciativa e de esperança terreal, differe como
um antipoda de todos os systemas religiosos
das sociedades civilisadas (christianismo, ju-
daismo, mahometismo, buddhismo) ; emquanto
que estes vão glorificando a humildade, o
sacrifício, o recolhimento, a dòr, a peniten-
cia, o Skintôísmo é o clarim da alegria e da
esperança, gritando ás massas este único
estribilho : — « Respeita os teus antepassados
e segue os teus instinctos ! » — Hei-de voltar
a este assumpto, que me parece interessante,
n'uma próxima correspondência, com tempo
e espaço para mais amplas considerações.
— Pôde já presumir-se quaes serão as
tendências da politica russa nas presentes
hostilidades. A Rússia procurará seguir uma
attitude defensiva, muito em harmonia com o
estado incompletissimo dos seus armamen-
tos no Extremo-Oriente, prolongando quanto
possível a guerra. Será, pois, uma guerra
exhaustiva, no intuito de enfraquecer o ini-
migo, que sabe em difficil situação económica,
e para o qual uma longa campanha pôde
trazer gravíssimas complicações financeiras.
Os japonezes é que não se submetterão a este
programma, e tratarão certamente de provocar
novos encontros, por mar e por terra, que
levem a guerra a um desfecho rápido.
O que se pôde desde já assegurar é
que os japonezes se encontram senhores do
mar. A consulta de uma carta geographica é
n'este momento interessantíssima. Vejamos.
A Rússia tem a força da sua esquadra abri-
gada em Porto Artnur e alguns navios em
Vladivostok. A esquadra japoneza escolheu
para base das suas operações a ilha de Tsus-
hinia, maravilhosamente collocada a mui curta
distancia do império e da costa sul da Corêa,
e d'alli destaca os seus navios, já para um
lado, já para outro, para o mar Amarello e
para o mar do Japão, impedindo os navios
russos de largarem dos seus coutos. Isto per-
mitte aos japonezes o irem transportando sem
risco algum as suas tropas para a Corêa, ao
que effectivamente se está procedendo com
grande afan. E de crer que em breves dias
as forças japonezas avancem para o norte,
passando além da fronteira coreana, onde se
encontram já tropas russas, occupadas na
faina de fortificações. Cerca da fronteira co-
reana deverá dar-se, em breve espaço, uma
grande batalha.
Uma rápida inspecção da mesma carta
geographica nos revela desde logo a alta
importância estratégica dá peninsula coreana
e do esti'eito da Coréa, esta chave do caminho
maritimo que leva á Mandchuria e á Sibéria.
Quando a Rússia domine na Corêa e no es-
treito, o Japão pôde considerar-se perdido ;
quando tal dominio caiba aos japonezes,
a preponderância russa no Extremo-Oriente
deixa de ser praticável.
o que se apresenta extremamente curioso
é o conjuncto de cirumstancias que.se dão e
tornam esta guerra um acontecimento sem
parallelo na historia, de modo que os precei-
tos do direito internacional, até hoje admit-
tido, passam a ser deficientes. A invasão e a
guerra vão dar-se na Mandchuria, que ainda
é theoricamentc solo da China, a qual se
declarou neutral, e na Corêa, paiz indepen-
dente, que também se declarou neutral. Mas
um exemplo comesinho talvez explique me-
lhor a situação e se preste a conclusões im-
portantes: um sujeito, no intuito de defendei'
os seus interesses e os bens de sua casa de
um bando de invasores, começa por defender
dos mesmos invasores as casas dos visinhos,
por onde a sua é vulnerável ; e isto porque
os visinhos, por incúria ou por fraqueza, não
se oppõem á invasão. Outro exemplo, se o
preferem : ha três casas contíguas e pega fogo
em uma de um extremo ; os proprietários do
outro extremo, sabendo que os visinhos estão
dormindo, não hesitam em ir apagar o incên-
dio que se ateia e que, sem tal intervenção,
não requerida, passaria á habitação intermé-
dia e ainda á sua própria. A questão, assim
exposta, creio que não deixa duvidas sobre a
justiça que assiste aos japonezes. Entra em
jogo o legitimo principio da conservação. A
China e a Corêa, pela sua fraqueza e apathia,
figuram como interdictas ; e o acto de defen-
del-as á força contra um perigo imminente, e
de mais a mais com prejuizo de terceiro, é
legal, certamente.
— O Japão inteiro está em festa. Com a
confiança inquebrantável, que lhe é própria,
nas futuras victorias, este povo acolhe com
explosão de jubilo os seus regimentos, se-
guindo em comboyos successivos até ao
ponto onde embarcam nos navios transpor-
tes que os vão levar ao encontro do ini-
migo. A cidade de Kobe mais se presta para
taes nianifestações, por ser atravessada pela
linha férrea em toda a sua extensão. O espe-
ctáculo é realmente admirável. A população
inteira agglomera-se, dia e noute, ao longo
do percurso; milhares de bandeiras, de ga-
lhardetes, de lanternas, de balões, de archo-
tes, dão ao quadro tintas de gala indescri-
ptivel. Quando se aproxima o comboyo, os
gritos de — Banzai \ Banzai \ — (Viva! Viva!)
eccoam como uma fanfarra immensa; e a fila
de carruagens carregadas de soldados, pre-
cedidas da locomotiva arquejante e enfuma-
çada, passa em apotheoses de exclamações
cariciosas, de chapéus que se agitam no ar,
8
de mãosinhas de musumés, brancas de neve,,
que applaudem. BanzcLÍl Banzai l . . .
Reapparece unm industria, que estava posta
de parte desde a guerra com a China: a das
estampas guerreiras. Encontram-se profusa-
mente em Tokio, em Yokohama, em Osaka,
em Kobe, em toda a parte, expostas á venda
a preços ínfimos, representando episódios dos
combates que se ti-avam ; e tão rápido é o
seu fabrico, após as noticias telegraphicas,
que mellior se poderiam chamar . . . telegrani-
mas ílliLstrados. O povo faz roda junto das loji-
nhas, irrompendo em exclamações de jubilo.
Estas estampas são productos de pincéis
modestíssimos em recursos artísticos, essen-
cialmente populares e tão ingénuos quanta
patrióticos. As cores vivas resaltam de estu-
pendas figurações de bombas que rebentam,
de torpedos em explosão, de ondas que espa-
danam, de carcassas de navios inimigos que
se afundam, de russosinhos que mergulham,
de impávidos marujos japonezes vencedores.
Como documentos da alma popular, em effer-
vescencia, são preciosas ! . . .
— Os jornaes portuguezes trazem -nos a
noticia de que o governo pensa em enviar
agora ao Extremo-Oriente algum ou alguns
dos nossos cruzadores.
I
Creio que assim seja, e a resolução será
acertadissima. Perante os gravissimos aconte-
cimentos que se esperam da guerra, apenas
começada, os navios de guerra poderão ser
um precioso soccorro aos nacionaes do mesmo
paiz espalhados no Extremo-Oriente. Pelo que
nos respeita, ha, conio é notório, um numero
muito notável de portuguezes nos portos do
5ul do China, em Shanghae por exemplo:
embora estejamos por emquanto longe de
motivos de receio n'esta parte da região ex-
tremo-oriental. Mas ha também alguns portu-
guezes na Corêa, e bastantes no Japão ; e
n'estes paizes, especialmente no primeiro, a
presença de um navio de guerra portuguez
pôde prestar, em dado momento, relevantís-
simo serviço a estes portuguezes. Mas a
missão dos vasos de guerra de uma nação
neutral, no theatro das hostilidades, não se
limita ao mister, já bastante meritório, de
proteger os súbditos da mesma bandeira: aos
officiaes de boi do offerece-se preciosíssima
opportunidade de estudo e de ensino prá-
tico, tão necessários n'esta época em que o
homem do mar deve ser muito versado nos
multíplices ramos do seu officio ; e, mais do
que tudo, essa presença traduz o interesse
que um determinado paiz vota aos grandes
10
acontecimentos mundiaes, o que firma o pres-
tigio do seu nome no conceito da sociedade
das nações. Recorde-se o que se passou no
bem recente combate naval de Chemulpo,
com que o Japão abriu as hostilidades: bom-
bardeados os navios russos e prestes a sub-
mergirem-se, as suas guarnições apavora-
das salvaram-se a nado e em escaleres e en-
contraram abrigo nos navios estrangeiros-
presentes — cruzador italiano «Elba», cru^
zador francez «Pascal» e cruzador inglez
« Talbot » ; eis uma bella missão a regis-
tar, que ennobrece as nações representadas
por estes três cruzadores. Os navios de guerra
das nações neutraes podem também ser cha-
mados a defender os portos das mesmas
nações contra uma tentativa de violação^
por parte de um dos belligerantes, dos seus
direitos de neutralidade, e não nos esqueça-
mos de que temos a nossa colónia de Macau
a bem curta distancia do theatro das hostili-
dades.
A Inglaterra tem actualmente nas aguas
do Extremo-Oriente 47 navios de guerra, dos
quaes cinco couraçados e sete cruzadores. A
AUemanha tem 14, incluindo alguns bellos
couraçados e cruzadores. A Itália tem três
cruzadores e acaba de mandar seauir mais
I
II
quatro. A França mantém egualmente uma
soberba esquadra.
Quanto a n(3s, posto que conservemos
sempre nas aguas de Macau uma canhoneira
(quando não mais), é certo que, por motivos
vários, os nossos navios raramente visitam os
•differentes portos visinhos. Ha pouco mais de
um anno, excepcionalmente, a canhoneira
«Diu» desempenhou uma brilhante commis-
são, percorrendo os portos do China; antes
d'ella, creio que em 1888, a «Rio Lima» visi-
tara os mesmos portos (Amoi, P\ichau, Shang-
hae, Chefu e Taku), passando depois ao Japão,
entrando em Nagasaki, Kobe e Yokohama.
Nos portos japonezes, particularmente, é
cousa rara vôr-se um vaso de guerra portu-
guez. O ultimo que aqui esteve foi a «Zaire»,
creio eu, não passando de Nagasaki e Kobe.
Dê-nos ao menos a guerra actual pretexto
para mostrarmos a nossa bandeira n'estes
portos longínquos, com manifesto interesse
do nosso prestigio e para intima satisfação
dos muitos portuguezes que se encontram
espalhados pelos paizes do Extremo-Oriente.
II
10 de março de 1904
O Japão em evidencia — A religião japoneza — O cha-
mado perigo amarello — A lenda e a moral do
Shintôismo — O culto dos antepasáados — Outras
seitas religiosas — Contrastes — O que é o periga
amarello — Outros perigos — Chimeras dos euro-
peus— Uma carta de Herbert Spencer.
TVTão resta duvida de que o Japão está em
evidencia, mercê da crise actual, que tem
por theatro o Extremo-Oriente. Por isto se me
affigura que merecem especial interesse n'este
momento todas as considerações, mesmo to-
das as divagações, que se relacionem com o
Império do Sol Nascente.
N'esta persuasão vou hoje referir-me, em
rápidos traços, a dous assumptos importantes :
a religião japoneza, que é o Shintôismo, e o-
chamado perigo amarello. Na carta anterior^
já alludi ao primeiro assumpto, e frizava
então que o Shintôismo deve entrar certa-
mente como um dos factores predominantes
do caracter do japonez, fazendo d'elle um
13
povo excepcional entre todos pelo seu orgu-
lho nacional, pela sua coragem perante o
perigo e pelo arrojo das suas energias; ten-
tarei hoje tornar mais convincente uma tal
affirmação.
O Shintòismo é a religião primitiva dos
japonezes. Possue uma lenda, em que figuram
vários deuses, lenda que a massa do povo
hoje mal conhece e não preoccupa os illus-
trados. Os deuses crearam o Japão, isto
basta; não importa saber como foi creado o
resto do mundo, o que demonstra a que
altura, desde as mais remotas eras, subiu o
orgulho da tribu ; para os japonezes, o mundo
é o Japão.
Lenda e ritos são em geral, no presente
tempo, meros pretextos para festivaes, em
que o povo, crente ou descrente, se diverte.
O que profundamente lançou raizes na alma
japoneza foi a moral do Shintòismo, a qual
se resume n'estes dous princípios : — « res-
peita os antepassados e segue os impulsos
dos teus instinctos».
O culto dos antepassados não é exclusiva-
niente do Japão ; é, pelo menos, peculiar a
todos os povos asiáticos, posto que exercido
com mais rigorosa perseverança pelos chine-
zes e japonezes. A consequência primeira de
14
tal culto, e a mais importante, é uma forte
constituição da familia, d'onde deriva um in-
tenso amor ás tradições, aos costumes, ao
solo pátrio, á raça; e é isto exactamente que
vemos manifestar-se nas nações citadas, em-
bora o Japão, quando estudado apenas super-
ficialmente, pareça levar-nos a conclusões
differentes: O culto -dos antepassados tem as
suas mais pomposas manifestações nos tem-
plos shintôistas, que são erguidos, não em
honra dos deuses, mas em memoria dos
grandes homens, — guerreiros, poetas, erudi-
tos.— -Aos templos antes se deveria chamar
monumentos, e sob este aspecto o Shintôismo
é menos uma jeligião dò que um culto da
pátria, representada pelos seus vultos emi-
nentes. Do culto dos antepassados, ou melhor,
dos mais remotos antepassados, que foram
os deuses creadores do solo sagrado de
Nippon, passa-se naturalmente ao culto do
imperador, que descende directamente de taes
deuses, occupando um logar na série de uma
única dynastia. O respeito pelo soberano é,
pois, um dogma Shintôista.
O segundo principio — « segue os impulsos
dos teus instinctos » — deriva da concepção
optimista, que o japonez faz do sêr humano,
isto é, de si mesmo. Effectivamente, se os
15
deuses, bons e prazenteiros, crearam as ílòres
odoríferas, os fructos saborosos, as arvores
gentis, os insectos multicores, as aguas crys-
tallinas, as montanhas graciosas, emfim a
inteira harmonia sorridente doeste paiz encan-
tador, e crearam também o japonez, este não
pôde ser um perv^erso, um monstro, mas sim
também uma cousa boa e utilisavel. Dizem
os japonezes, com um raciocinio que não
pôde ser taxado de imbecil: — «Os deuses
enviaram aos paizes estranhos os seus pro-
phetas, os seus messias, para trazerem ao
caminho da virtude os homens, que eram
ruins; no Japão nunca houve prophetas nem
messias, porque os homens eram bons e não
careciam d'elles». — Com uma tal noção de
si mesmos, nada mais lógico, mais natural,
do que obedecerem a esta boa máxima, bem
fácil de cumprir — « segue os dictames do teu
pensamento, dos teus caprichos, dos teus de-
sejos, o impulso natural dos teus instinctos».
O Shintôismo, despido da sua fabulação
e dos seus ritos, reduz-se, pois, a um culto
da tribu, da raça (familia, instituições, sobe-
rano) e a um culto da própria vontade. E o
orgulho da nação e de si próprio, santificado.
Com o correr dos séculos, outras seitas
religiosas penetraram no Japão : o Buddhismo>
I6
que adquiriu grande preponderância, e, muito
menos acceitado, o Christianismo, nas suas
varias subdivisões. No entretanto, era tão fácil
ser-se buddhista por exemplo, e ao mesmo
tempo amoroso da sua raça e do seu solo,
que os convertidos não deixaram de ser
shintôistas, no que a palavra exprime como
synthese de estima pelo soberano, pela famí-
lia, pela pátria e por si mesmo ; pelo que par-
ticularmente respeita ao Buddhismo, que se
tornou popularissimo no Japão, mesmo até
hoje, os próprios bonzos tiveram o cuidado,
para evitar complicações previstas, não de
transformar o sentimento do povo para se
approximar da nova religião, mas de trans-
formar o Buddhismo para se approximar do
povo.
Bem. Já podemos fazer uma ideia do japo-
nez shintòista, como é todo o japonez: — en-
levado no seu soberano, no seu paiz e em si
próprio ; deixando voar livremente o pensa-
mento, alegre e descuidoso, confiando plena-
mente nas suas energias.
Comparemos agora o Shintòismo com os
outros systemas religiosos das sociedades
cultas. Que se trate do Christianismo, ou do
Judaismo, ou do Mahometismo, ou do Bud-
dhismo, havemos de convir que qualquer
17
d'estas theologias íkz do ser humano um. filho
do peccado, um criminoso, que só pela mo-
déstia, pelo recolhimento, pela oração, pelo
martyrio, se poderá salvar. A terra é um valle
de lagrimas; a felicidade não está n'ella, mas
sim no outro mundo, n'uma mansão de elei-
tos, i-aros, porque o inferno é o paradeiro da
grande massa de homens. Bemaventurado o
desprezível, o humilde, o idiota mesmo. En-
sina-se a obediência, não por amor e con-
fiança no chefe, mas por humildade. Quem
recebe uma bofetada n\mia face deve offerecer
a outra face a outra bofetada. Quaesquer que
sejam os méritos d'estas differentes religiões,
e são muitos (que não me proponho enume-
rar), o que parece dever concluir-se, e muitos
assim concluem, é que taes religiões foram
lentamente amassando e moldando no barro
humano o homem actual, degenerado, muito
differente do homem primitivo, com manifesto
enfraquecimento dos seus dotes de iniciativa,
de independência, de apego á terra-mãe, de
coragem, de alegria, de livre arbítrio, de con-
fiança em si e de esperança na sua obra. O
japonez é o contrario de tudo isto ; e manda
a verdade que se diga que não e peor, se-
gundo as estatísticas criminaes, do que o seu
irmão na espécie embebido de outras crenças.
1-8
■ Ora eu penso que esta liberdade de con-
sciência de que o japonez goza, o seu livre
arbítrio, e também o culto amoroso que tri-
buta ao seu soberano, aos seus heroes e ás
suas instituições (e tudo isto é o Shintòismo),
em concorrência com outros dotes moraes e
physiologicos — relativa insensibilidade á dôr,
indiíTerença pela morte, sobriedade, etc, — fa^
zem d'elle um povo de selecção na época his-
tórica que atravessamos, dotando-o de uma
coragem sem rival, de um patriotismo incom-
parável, de uma confiança cega nos seus des-
tinos, de uma louçania emfim de sentimento
capaz de eleval-o aos mais arrojados e sur-
prehendentes commettimentos. Se me engano,
desculpem-me os leitores o tempo que lhes to-
mei com estas divagações, então irremediavel-
mente classificadas como simples frivolidades.
— Paliemos agora do perigo ania7'ello, que
parece ter voltado a occupar as attenções da
imprensa franceza e allemã, após um longo
periodo de tréguas em que passou de ser
moda. O que tem graça é que ainda ha pou-
cos dias, antes do rompimento das hostilida-
des, uma parte d'esta mesma imprensa repu-
tava a nação japoneza como um pequeno
povo, a termo da sua evolução e prestes a
extinguir-se! ...
19
O p:rlgo amarcllo é, como se sabe, o pe-
rigo que as nações occidentaes, representadas
principalmente pela pAiropa e pela America,
julgam vèr para os seus interesses n'um
grande desenvolvimento moral e económico
das nações extremo-orientaes, impellidas pelo
sopro vivificador do povo japonez. O perigo
amarello não tem uma importância absoluta,
como alguns lhe querem dar. E um perigo
como outro qualquer perigo; sendo certo que
a existência das nações está sujeita a mil
perigos n'este mundo. Se a Europa berra em
exclamações patheticas a propósito do pro-
blemático perigo amarello, o que não diria
a Africa, por exemplo, se fosse dada a jogos
de rhetorica, a propósito do indiscutível perigo
branco? Sobre a Turquia pesa o perigo russo;
sobre a Bulgária pesa o perigo turco] a Tuní-
sia tem o perigo francez; a America tem o
perigo negro; os negros da America, os filippi-
nos, os cubanos, teem o perigo americano;
emfim, para cada nação, para cada grupo de
homens, existe pelo menos um perigo, na
nação ou no grupo de homens que poderá
affectar a sua industria, o seu commercio,
a sua independência, os seus interesses de
qualquer ordem — económicos, políticos, mo-
raes.
20
A defeza contra o perigo ainarello é per-
feitamente justificável, baseada nas leis natu-
raes e universaes da lucta pela existência. O
que fora para desejar é que tal defeza se
apresentasse como simples lucta, não preten-
dendo envolver uma espécie de direito divino
que a Europa se arroga no sentido de domi-
nar os outros povos ao sabor dos seus inte-
resses exclusivos. N'outros tempos dizia-se
que o homem era o rei da creação e que o
universo inteiro surgira para lhe prestar con-
forto; esta chimera já cahiu em ruinas. O
europeu de hoje pensa que elle é superior a
todos os outros homens, e veio ao mundo
para dominal-o ; é conveniente demolir tam-
bém esta chimera.
O europeu — a raça branca — occupa hoje
a eminência na sociedade das nações, mercê
do desenvolvimento que attingiu ; mas querer
que este desenvolvimento seja eternamente
progressivo e que tal supremacia não decline,
é exigir muito dos destinos.
O solitário de qualquer nacionalidade,
aquelle que por temperamento ou circum-
stancias especiaes da existência observa do
alto do seu isolamento moral a evolução dos
povos, sorri -se das presumpções do branco.
Se admira os seus progressos scientificos, os
21
resultados maravilhosos das suas industrias,
nega-se a prestar inteiro culto ás suas glorias
civilisadoras, de que tanto se ufana. A acção
da raça branca junto das outras raças tem
sido sempre uma guerra egoísta, despótica
e sangrenta, na qual o minucioso aperfei-
çoamento dos seus canhões tem sempre re-
presentado o melhor argumento para con-
vencel-as; questão de melhor poK^ora e de
melhor aço, questão de força, o que bastaria
para presumir um limite a tal acção, próximo
ou remoto.
O solitário que considero, vê-se mesmo
impellido a admittir desde já indícios prenun-
ciadores da decadência do branco. O enfra-
quecimento physico do homem occidental é
manifesto. Quando este duro aviso não bas-
tasse, outros symptomas de ordem moral se
apresentam, embora custe confessal-os. São
elles a lenta dissolução dos laços de familia,
dos brios civicos, da honestidade publica, a
crescente venalidade das consciências, a min-
gua de escrúpulos, a ausência de ideal, o
gradual rebaixamento moral, emhm, das so-
ciedades.
Quanto ao perigo amarello, o solitário
admitte-o desde hoje, sem ódios nem invejas,
como uma nova concorrenciíi, ao trabalho e
22
á industria, já sensivel e dentro em breve
mais intensa. Não se decide ainda em reco-
nhecer-lhs condições bastantes para vir revo-
lucionar o mundo ; o que, em todo o caso, se
tem de acontecer, só será n'uma época certa-
mente ainda longinqua. No entretanto, se é a
esta raça amarella, já tão enorme em numero
e tão prolifera, que está reservada a missão
remota de vir reanimar o Occidente anemisado
e pervertido, que importa? . . . Venha ella,
espalhe o bem. E diga-se por ultimo: se taes
são os seus destinos, toda a resistência do
homem branco será ephemera, apenas poderá
retardar de alguns annos (nada) o tremendo
desfecho ; porque contra as grandes erupções
naturaes nada pôde fazer o mesquinho al-
cance da iniciativa humana.
— Depois de lidas estas linhas, que podem
ser ou não convincentes, mas, em todo o
caso, não passam de simples divagações de
quem se attribue o único merecimento de
conhecer um pouco, por forçada experiência,
o caracter asiático, principalmente o japonez,
julgo deverem merecer algum interesse as
seguintes referencias a uma carta sobre o
Japão, escripta por Herbert Spencer, o emi-
nente pensador inglez ha pouco fallecido, e
dirigida ao barão Kaneko, politico japonez,
23
occupando recentemente iim logar no minis-
teiio de Tokio.
. Spencer, que mantinha relações muito
intimas com o barão Kaneko, expunha-lhe
em forma de carta, ha cerca 12 annos, as
suas opiniões pessoaes sobre este paiz ; tal
carta só agora acaba de ser dada á publici-
dade. Diz Spencer, entre outras cousas, que
os japonezes deveriam manter-s3 tão afastados
quanto possível dos americanos e dos euro-
peus. Julga um erro a politica de abrir as
portas do império aos estrangeiros e aos ca-
pitães estrangeiros; talpolitica, perante- uma
raça mais poderosa e mais poderosas nações,
conduz a attrictos inevitáveis, que serão pre-
judiciaes aos japonezes. Entende que deve ser
negada aos estrangeiros a posse de terrenos,
negados mesmos os arrendamentos, admitti-
dos unicamente como usufructuarios annuaes,
gozando apenas dos privilégios que sejam
julgados necessários ás . permutações mer-
cantis.
Com relação aos casamentos entre japo-
nezes e estrangeiros, o philosopho inglez é
categórico, aconselhando terminantemente que
sejam prohibidos taes enlaces. Os mestiços,
quer se trate dos seres humanos ou de outros
animaes, dão sempre maus productos quando
24
entrem em jogo variedades muito dissimilhan-
tes, principalmente a partir da segunda gera-
ção; taes productos traduzem uma tão incal-
culável mistura de caracteres, que bem pôde
chamar-se-Ihes organisações chasticas; e é
isto que se dará, fatalmente, com os japonezes,
se não se esforçarem por conservar a sua
raça afastada quanto possível das outras raças.
Eis, em resumo, as considerações de
Spencer, as quaes se prestam incontesta-
velmente a viva controvérsia por parte de
economistas c biologistas que sigam outros
credos; os próprios japonezes teem-se des-
viado muito de taes conselhos e apparente-
mente com bom êxito. O que resalta, sem
duvida alguma, d'estas considerações é como
que uni desejo carinhoso de que a familia
japoneza, como uma tribu de eleição, se man-
tenha pura de outros contactos e ciosa do seu
solo, para proseguir no desempenho dos se'
destinos; quando um tal desejo emana de i
vulto como é Herbert Spencer, uma de
grandes glorias da humanidade intellectua.
o conceito não deve passar despercebido '
correr na enxurrada das banalidades.
III
15 de março de 1904
Os últimos acontecimentos da guerra — Os cavalleiros
bandidos da Mandchuria — Os bombardeamentos de
Vladivostok e de Porto Arthur — A esquad'-a japo-
neza e o almirante Togo — Algumas considerações
líccrca do dominio e aspirações russas no Extremo-
Oriente — As tropas japonezas que marcham para
a guerra — Enthusiasmo japonez — A propósito de
donativos — Diversos.
T^is O resumo dos últimos acontecimentos
da guerra, dos quaes os leitores terão
tido noticia pelos telegrammas que ahi devem
ter chegado.
Um partido coreano mostra-se contra os
•ponezes e contra o tratado de ailiança entre
"seu paiz e o Japão ; na residência do mi-
oistro dos negócios estrangeiros coreanos fo-
ram lançadas bombas de d3^namite, que explo-
"í-am sem causarem victimas.
O marquez Ito acaba de partir para a
v^^orêa, na qualidade de embaixador extraordi-
itario do Japão, acompanhado de numerosa
26
comitiva. Liga-se a mais alta importância á
missão do eminente estadista, que, em mui
avançada idade, não recusa á pátria os servi-
ços da sua grande competência.
Pela Mandchuria, umas hordas chinezas
mal conhecidas por emquanto, a que chamam
cavalleh'os bandidos, estão prejudicando bas-
tante os russos, apparecendo de improviso
onde lhes appetece^ destruindo a linha férrea
e eclipsando-se sem serem attingidos. Diz-se
que entre os cavalleíros bandidos^ cujo numero
se avalia em mais de 40:000, se encontram
muitos japonezes, que abraçaram aquella vida
errante em beneficio da sua pátria.
Em 6 do corrente, uma esquadra japoneza
bombardeou, pela primeira vez, o porto russo
de Vladivostok; os fortes da entrada, que
soffreram algumas avarias, não responderam,
nem os navios russos sahiram ao encontro
dos japonezes. Pela mesma occasião, também
Porto Arthur e Dalny (Talien-wan) foram bom-
bardeados.
Em 10, os japonezes deram um novo
ataque a Porto Arthur, o quarto em numero
e supposto o mais terrivel ; mas faltam deta-
lhes. Tiveram principal parte no combate os
destroyers, dando-se vários encontros com os
destroyers inimigos, dos quaos um foi a pique.
27
Houve perdas da parte dos japonezes, mas
parece que as dos russos foram muito sérias
e que esta batalha representa mais uma victo-
ria para a esquadra do Japão. Seguidamente,
a cidade de Dalny foi bombardeada, sendo
destruidas varias construcções russas. E nada
mais consta, pondo de parte boatos mais ou
menos verosimeis, um dos quaes, muito im-
provável, dava Porto Arthur abandonado pelos
russos, depois de haverem lançado fogo á
cidade.
Até agora toda a acção naval tem redun-
dado em gloria para a esquadra japoneza, sob
o commando do prestigioso almirante Togo;
devendo concluir-se que a esquadra russa se
encontra praticamente inutilisada. Resta vér o
que será a guerra em terra, na qual, parece,
os russos confiam plenamente. Não é de es-
perar que se dêem sérios combates antes de
um ou dous mezes. Sejam quaes forem os
resultados da tremenda lucta que vai travar-se,
estejamos certos que não ficarão por aqui os
actos de irradiante patriotismo dos bravos
servidores do império do Japão, que está hoje
despertando as attenções do mundo inteiro.
— Á falta de melhor assumpto, parece-me
de algum interesse o apresentar aqui ligeirís-
simas considerações sobre o dominio e aspi-
28
rações russas na região extremo-oriental, em-
preza colossal, causa única da gravissima
crise politica a que hoje assistimos.
A actividade da Rússia exerce-se na Si-
béria ha mais de 300 annos. Apenas libertado
do jugo dos tártaros, este paiz essencialmente
continental e com mui difficil accesso ao mar,
virou-se naturalmente para leste, que ne-
nhuma barreira séria offerecia contra a sua
expansão. Para leste era o espaço immenso e
indisputado ; e dir-se-hia que um vago pre-
sentimento, um impulso de instincto, a attrac-
ção do mar, animavam o povo russo a pro-
seguir na direcção do oceano asiático para
obter portos, sem os quaes as grandes ambi-
ções de uma grande tribu nada podem levar
a effeito. Foi lenta a tarefa, dura por vezes a
resistência dos indígenas; e só no anno de
1858, após incansável perseverança, que é uma
das feições mais preponderantes do caracter
dos russos, era definitivamente alcançada a
bacia média e inferior do Amur e arvorada a
bandeira moscovita á beira do mar asiático,
A Rússia estava de posse da inteira e am-
plíssima zona conhecida pelo nome de Sibéria.
As ambições da Rússia foram a pouco e
pouco crescendo e definindo-se, constituindo,
finalmente, um programma vastíssimo, nada
29
menos do que alcançar o predomínio na
China e em toda a região extremo-oriental,
o que envolve a posse de pontos estratégi-
cos que lhe garantam também a supremacia
no mar.
Uma das grandes consequências de tal
programma é a linha férrea transsiberiana, cuja
ideia data já de longos annos; mas foi Ale-
xandre ui que lhe deu corpo, sendo o pri-
meiro passo para obra tão monumental a
linha do Ural, inaugurada em 1880. O seu
termínus devia ser Vladivostok, porto siberiano
fortificado e em situação admirável como cen^
tro estratégico, em face do Japão e a curta
distancia da Corêa.
Em 1895, terminada a guerra entre o
Japão e a China, esta ia entregar ao vencedor
*uma forte indemnisação monetária e ceder-lhe
as ilhas dos Pescadores, Formosa e a já cobi-
çada pelos russos península de Liao-Tung^
com Porto Arthur e Talien-wan. Os russos é
que não podiam admittir tamanho golpe nas
suas ambições; conseguiram chamar para o
seu lado a AUemanha e a França, e as três
potencias reunidas representaram diplomatica-
mente ao Japão para renunciar a Liao-Tungj
cuja posse, diziam, seria de um perigo perma-
nente para a paz do Oriente e do mundo in-
30
teiro. O Japão cedeu; e a Rússia, em troca dos
seus bons ofncios, obtinha permissão da China
para fazer passar pela provincia chineza da
Mandchuria o traçado do seu caminho de ferro,
e era auctorisada também a occupar tal região
por tropas suas, sob o pretexto de protegerem
o material e os trabalhos a emprehender.
Não ficam por aqui as machinações do
colosso moscovita. Em março de 1898, depois
do golpe de theatro pelo qual a Allemanha se
apossou de Kiauchau, a Rússia' entendeu que
não devia ficar inactiva e arrancava á China
a assignatura de uma convenção, pela qual
esta lhe cedia por emprcstlmo Porto Arthur e
Talien-wan. Tal audácia representava uma
affronta, immerecida, lançada ao império japo-
nez ; mas que importava ? A , Rússia conse-
gnjira realisar os seus mais desejados fins;«
sem desistir do traçado que levava o seu
caminho de ferro a Vladivostok, tratou da
construcção de um ramal até Porto Arthur;
e da entrada do golfo de Petchili pôde fi-
nalmente ameaçar . Pekim e o coração da
China ! . . .
Ulteriormente, os recentes distúrbios dos
boxers levaram as principaes potencias da
Europa, os Estados-Unidos e o Japão a en-
viar á China tropas suas, na defeza dos pro-
31
prios interesses e n'um intuito humanitário.
A Rússia não se esqueceu de servir-se de
tão excellente ensejo para encher de soldados
seus a Mançichuria, onde até então só podia
conservar sem escândalo uma pequena força
para proteger o andamento da linha férrea;
querem mesmo alguns dizer que a revolta dos
boxers foi provocada pela Rússia, ou pelo me-
nos levada a um grau de maior gravidade
pelos seus subtis estratagemas. O facto é que,
terminada a insurreição e em harmonia com
a boa justiça e accordos anteriores, todas
as potencias se apressaram a fazer recolher
as suas tropas, menos a Rússia, que, pelo
contrario, as foi augmentando e tratando a
Aiandchuria como paiz conquistado.
Eis, em rápida summula, qual tem sido a
marcha do colosso do norte no sentido de
leste e os resultados a que chegou. A Rússia
apossára-se virtualmente da Mandchuria e
dava sobejas provas de que em breve faria o
mesmo á Corêa, onde a sua influencia cres-
cia dia a dia. Este procedimento incorrecto e
esta politica machiavelica affectaram bastante
os paizes com interesses no Extremo-Oriente,
sobretudo a Inglaterra e os Estados-Unidos,
não contando o Japão.
Com respeito a este ultimo, a cobiça insa-
32
ciavel da Rússia e as suas tendências exclu-
sivistas representam já uma grande quebra
de interesses, fazendo adivinhar bem mais
sérios prejuízos; não se perca de memoria
que o Japão vive principalmente do seu com-
mercio com a China e outros paizes visinhos.
Mas ha mais: os russos ás portas do Japão-
são terrível e constante ameaça á sua indepen-
dência e integridade territorial e constituem
immensa barreira á marcha brilhante dos seus
progressos. Sabe-se como a Rússia respondeu
ás repetidas instancias do governo japonez^
para a fazer desistir dos seus desígnios. O
resultado é a crise a que assistimos, cujo des-
fecho, certamente funesto — porque a guerra
é sempre uma calamidade — está longe de
prevêr-se.
— A passagem dos comboios carregados
de tropas que seguem para a guerra conti-
nua sendo o alvo de grandes manifestações
populares. Na cidade de Kobe, que é atra-
vessada em toda a sua extensão pela linha
férrea, as ruas prlncipaes estão litteralmente
cobertas de bandeiras; o povo afflue em car-
dume para vér e acclamar os seus solda-
dos. O espectáculo é deveras commovente e
sobre tudo emocionante para o estrangeiro, o
qual, menos animado de optimismos de que
33
a turba indigena, fita n'um relance a chusma
alegre dos soldados, muitos dos quaes não
voltarão por certo ao torrão pátrio.
O enthusiasmo japonez não se limita a
embandeirar as ruas; por toda a parte correm
subscripções destinadas a obter donativos, não
regateados, já para os fundos da guerra, já
para a excellentemente organisada sociedade
japoneza da Cruz Vermelha, já para as famí-
lias dos reservistas, que quasi todos teem
mulher e filhos, que deixam em tristes cir-
cumstancias.
A propósito de donativos, não resisto á
tentação de contar aqui um caso que põe em
-evidencia o feitio da alma japoneza e o seu
arreigado patriotismo, capaz de vir glorificar
os mais abjectos súbditos do império. Foi ha
dias executado n'uma prisão de Tokyo um
criminoso de nome Hamamura, que havia
commettido vários assassínios e roubos auda-
ciosos. Pouco antes da hora fatal, o carcereiro
fez-lhe constar que um seu parente depositara
dous yens (mil réis) afim de lhe ser servida
uma ultima refeição opipara, á moda europeia,
e perguntou-lhe que pratos preferia. Hama-
mura pensou alguns instantes no assumpto e
respondeu que dispensava todos os pitéus,
sendo o seu único desejo contribuir com os
34
dous yens para os fundos da guerra. . . Foi
acceite o donativo.
— Está calculado que os touristes que
-viajam no Japão deixam annualmente n'este
paiz uma somma não inferior a 15 milhões
de yens, ou mais de 1.500:000 libras ester-
linas. Taes viajantes são principalmente de
nacionalidade ingleza, americana, allemã e
franceza, que vêem attrahidos pelos notó-
rios enlevos d'este paiz, sobretudo deleitosos
n'uma certa quadra do anno, de abril a no-
vembro. Um jornal europeu, publicado n'este
império, referia-se ao assumpto e exhortava
ha pouco os touristes a não desistirem da sua
habitual excursão em consequência da guerra.
O theatro das operações annuncia-se como
devendo ser a Corêa, a Mandchuria e os
mares visinhos. Por outro lado, a esquadra
japoneza acha-se senhora do Oceano, encon-
trando-se os navios russos acoutados em
Porto Arthur e Vladivostok, d'onde não
sahem, o que mais garantias dá de tranquilli-
dade aos viajantes que se destinem ao Japão.
Ora, também eu me permitto fazer as
mesmas considerações aos meus patrícios.
As hostilidades em nada empanam os attra-
ctivos da paizagem nipponica ; e a prova está
em que as ameixieiras já florescem, e em
35
breve será a vez dos pecegueiros, das cere-
jeiras, das azáleas; a boa natureza creadora
não se incommoda, lá porque dous bandos
de homens se disputam com armas na mão
interesses e primazias. Se, pois, ahi em Por-
tugal imi toiíríste, rara avis, haja pensado
em lançar rumo para este paiz do Dai-Nippon,
onde o precederam Mendes Pinto e o sr.
Mendonça e Costa, que venha, não se assuste
com a guerra. As balas não chegam cá, posto
que se estejam cruzando a relativamente
pouca distancia. E quando cheguem? Sabem
que uma granada moderna, quando bem es^
vasiada e cuidadosamente limpa, pôde substi-
tuir perfeitamente uma garrafa de cerveja ? . . .
Por outro lado, o commercio continua até
bastante auspicioso durante estes primeiros
mezes do corrente anno ; o que quer dizer que
os negociantes portuguezes, que entraram ou
desejam entrar em relaçõss mercantis com o
Japão, podem persistir no seu propósito.
— Agora, para terminar, se querem rir,
como éu ri (o que me succede raras vezes),
ouçam a seguinte historia, que acabam de
contar-me como verídica, posto que eu por
tal veracidade não responda ; em todo o caso,
nos tempos mavórcios em que vivemos por
aqui, vem a propósito.
36
O capitão Kusunosé, de um dos regi*
mentos de Tol<io, recebeu ha dias o seguinte
convite de uma dama das legações estran-
geiras:
«Madame Ledoux (chamemos-lhe assim)
pede o prazer da companhia do capitão Kusu-
nosé, na quarta-feira, ás 9 horas da noute »►
O official respondeu por esta forma, no
seu melhor francez:
«O capitão Kusunosé apresenta os seus
cumprimentos a madame Ledoux e sente
informar que 13 soldados e dous sargentos
devem estar de serviço e um cabo encon-
tra-se com baixa á enfermaria; mas o restante-
da companhia do capitão Kusunosé terá muito-
prazer em assistir á reunião de madame Le-
doux, na quarta-feira ».
IV
28 de março de 1904
A acção naval japoneza — Consideraç(5es — A acção ter-
restre-^ Circumstancias que militam n'esta acção a
favor dos japonezes — O prestigio da Rússia — O
que esse prestigio demandará para vencer — Os pe-
rigos a que o Japão está exposto — Ou a victoria
ou a ruina — O exercito russo talvez, apesar de
tudo, não possa esmagar o Japão — Algumas con-
siderações sobre as origens do povo japonez —
D'onde provém o nome do Japão.
/^ I DRAMA da guerra, quando succeda, como
^■^^ é o caso geral, que o theatro das hosti-
lidades offereça portos maritimos e extensões
de terra firme e os belligerantes disponham de
esquadras e de exércitos, pôde sempre divi-
dir-se em duas partes distinctas: a acção na-
val e a acção terrestre. É o que se dá com o
Japão e a Rússia.
Na lucta que se trava, a acção naval já
reverteu toda em favor e em gloria dos japo-
nezes; e assim continuará até ao fim, salvo
eventualidades completamente imprevistas. Gs
torpedeiros — e diga-se de passagem que os
38
japonezes são talvez os melhores marinheiros-
torpedeiros do mundo, — os torpedeiros, ao
mesmo tempo que já demonstraram catego-
ricamente a supremacia d'estas machinas de
guerra sobre as outras unidades das esqua-
dras (couraçados e cruzadores), conseguiram
assegurar o triumpho do Japão sobre o mar,
desbaratando e destruindo muitos dos grandes
navios do inimigo e forçando os que ainda
lhe restam a abrigar-se á sombra das fortale-
zas de Porto Arthui* e de Vladivostok, d'onde
não sahem.
Devem-se, todavia, ir repetindo os ataques
dos japonezes a estes dous pontos, e a conse-
quência natural será a completa destruição da
esquadra russa do Extremo-Oriente, já a estas
horas certamente muito dizimada e muito des-
moralisada. Para que a fortuna passasse dos
japonezes aos russos, seria preciso admittir
que uma nova esquadra russa, muito mais
possante do que a primeira, viesse da Europa
até aqui ; mas tal é difficilimo admittir, porque
em primeiro logar seria necessário fazel-a, e
uma esquadra não se faz tão depressa como
se deseja. . . Registemos, pois, desde já, sem
reservas, a victoria da esquadra japoneza so-
bre a esquadra russa, facto tanto mais estron-
doso quanto era a opinião corrente que os
39
marinheiros nipponicos, vencedores, ha nove
annos, dos miseros chinezes, deveriam fatal-
mente mostrar-se muito inferiores se tivessem
um dia de medir-se com uma força naval
europeia. A experiência provou o contrario.
Resta considerar a acção terrestre, ainda
nem iniciada, se pozermos de parte umas li-
geiras escaramuças que se deram já, sem im-
portância alguma. Militam principalmente em
favor dos japonezes as seguintes circumstan-
cias : o dominio que adquiriram no mar, o
que permitte livre percurso aos seus transpor-
tes, com tropas, com munições, com viveres;
a excellencia dos seus soldados, que são como
nenhuns magníficos na marcha, muito in-
struídos, muito disciplinados, óptimos atirado-
res, e como nenhuns animados de immenso
patriotismo, de immensa coragem, de com-
pleto despreso pela vida; registe-se ainda um
armamento admirável. Milita em favor dos
russos sobretudo o seu numero, ou antes o
numero que podem attingir, enviados pouco
a pouco de um paiz enorme, com uma 'popu-
lação três vezes maior do que a do Japão; e
é-lhes de preciosíssimo recurso o seu caminho
de ferro transsiberiano, posto que ainda accuse
muitas imperfeições de construcção que lhe
diminuem o alcance prático e possa immen-
40
sãmente soffrer quando o inimigo se propo-
nha destruir a linha ao acaso das suas inves-
tidas.
. No entretanto, deve imaginar-se que a
Rússia já esteja duramente soffrendo no seu
orgulho nacional pelas recentes glorias alcan-
çadas contra a sua esquadra por um povo
asiático; e que por outro lado se lhe torne
uma necessidade imperativa o não perder o
alto prestigio de que goza perante as nações
occidentaes, e porfiar ao mesmo tempo na
realisação dos seus intentos expansivos do
lado do Extremo Oriente, que são a sua
grande ambição de ha mais de três séculos.
A Rússia prepara-se certamente na hora pre-
sente para reunir n'estas paragens um im-
menso exercito, cujos soldados se contem
por milhões, no determinado intuito de es-
magar completamente as forças japonezas. A
empreza demandará largos mezes, mas não
faltará paciência para leval-a a cabo; tanto
mais que a paciência é uma das grandes vir-
tudes dos russos e que a demora redunda
também em arma de combate, pois são bem
conhecidas as circumstancias pouco prosperas
do thesouro japonez, presumindo-se que uma
longa campanha possa arrastar o império a
graves difficuldades financeiras.
41
Ora a invasão da Mandchuria e dos paizes
visinhos por esse immenso exercito, recebendo
dia a dia reforços, substituindo a falta de cada
soldado morto no campo de batalha por três
ou quatro soldados frescos recemchegados
pelo caminho de ferro, affigura-se de terríveis
consequências; parecendo dever presumir-se
que todo o orgulho, toda a coragem, todo o
patriotismo dos japonezes serão inúteis e que
estes morrerão como heroes, 7nas viorrerdo,
perante a enorme desproporção do inimigo.
O Japão, este não morrerá ; mas iniciará então
uma existência de miséria, ferido em todas as
suas aspirações, abatido em todas as suas
energias, joguete do despótico vencedor; será
n'uma palavra, a ruina tremenda, da qual tal-
vez jamais possa surgir, prestigioso e forte,
como agora se encontra. Acontecerá assim?
Custa-me crêl-o. O Japão bem ponderou, por
certo, todos os perigos que o ameaçavam
antes de atirar a luva ao colosso moscovita.
E difficil acreditar que elle se submettesse
antecipadamente por si próprio a este terrível
dilemma: — victoria ou ruina. O Japão não
admitte a ruina. Se ousou arremessar a pri-
meira granada aos dous cruzadores russos no
porto de Chemulpo, é porque contava por
seguro que não iria ser esmagado sob a pata
42
do Urso do Norte. Com que emergências
conta? Nada .sabemos. No entretanto, bem
possível é que o. Japão tenha a certeza de
rpoder envolver na lucta, n'um momento cri-
^tido, uma ou mais nações occidentaes, ou
de electrisar pelo brilho dos seus feitos a
massa enorme da população chineza, a qual
se levante em peso, resolvida a aiixiliar o
seu visinho asiático, de quem, e não da
Rússia, pôde muito esperar na successão dos
tempos; ou será ainda um mysterioso desí-
gnio ou unia mysteriosa revelação, em que
entre em jogo a subtileza própria, o sexto
sentido nipponico, esse dom de raça a que
já me tenho referido n'estas cartas e que
continuo a adivinhar na alma japoneza, scen-
telha de génio que állumia este povo, por
caminhos desconhecidos, aos mais inespera-
dos triumphos ? . . . E, deve ainda advertir-se,
quaesquer intervenções que sobrevenham no
jestado actual da crise, poderão ir affectar
enormemente a paz universal, envolver os
occidentaes etri lances com que não conta-
vam; mas os japonezes é que poderão muito
ganhar com ellas, ou, talvez melhor, os russos
é que poderão muito perder com ellas. Con-
cluindo: apesar de todas as apparencias, pa-
rece-me que não caberá ao immenso exercito
43
russo a satisfação de esmagai* d'esta vez o
povo insular do Dai-Níppon.
— No momento histórico actual, em que
o- Japão está attrahindo as attenções do mundo
inteiro, não me parece fora de propósito apre-
sentar aqui algumas rápidas considerações
sobre o que se sabe das origens d'este povo
extraordinário, que viveu durante séculos e
séculos no mais mysterioso recolhimento e
que, resolvido a adoptar a civil isação Occi-
dental, em menos de 50 annos se encontra
sufficientemente forte para se erguer contra
as ambições russas e ir desafiar o colossal
império europeu.
Convém antes de tudo que fixemos a con-
figuração geral do Japão. O paiz estende-se
na direcção approximada de sudoeste para
nordeste, avisinhando da costa norte da China
e do extremo sul da península da Coréa, da
qual está apenas a algumas milhas de distan-
cia ; e é principalmente constituído por uma
grande ilha central, chamada Hondo ou Nip-
pon, e por mais três de menor grandeza, Yeso
ão norte em continuação de Hondo, e Kyushú
e Shikoku ao sul.
A historia do Japão, posto que não alcance
as eras remotíssimas da historia da China,
vai comtudo bem mais longe nos tempos do
44
que a de qualquer Estado europeu da actuali-
dade. As mais velhas chronicas japonezas, o
Kojíkí e o Nihonji, datam do nosso século
viu; d'el]as se podem colher preciosíssimas
informações, as quaes são particularmente
precisas a partir do nosso século v ; mas, se-
gundo as mesmas chronicas, havia já mais de
dez séculos que reinava a dynastia dos Mika-
dos, ou Imperadores, ininterrompida até hoje.
O primeiro imperador, Jimmu-tennô, descido
do céu sobre a ilha de Kyushú cerca do
anno 711 antes de Christo, passa depois
para a grande ilha, encontrando na pro-
vinda de Yamato povos da mesma raça dos
seus súbditos, com os quaes se trava em
guerra e que subjuga; escolhe em seguida
Kashivvabara, em Yamato, para capital do Im-
pério Nascente ; é alli acclamado em 1 1 de
fevereiro de ó6o e vota-se á organlsação do
Estado. No século v, os antepassados dos
japonezes actuaes eram senhores de Kyushú,
de Shlkoku e da metade sudoeste da grande
ilha de Nippon,
Os modernos estudos levam a conclusões
em harmonia com a lenda, como logicamente
devia succeder. E' conhecido que, muitos sé-
culos antes da éra chrlstã, piratas de origem
mongollca, vindos da Corêa, se entregaram, a
45
amiudadas investidas na costa Occidental do
Japão, fixando-se alguns em Kyushú, para
onde trouxeram suas famílias, e onde exter-
minaram ou d'onde expulsaram os habitantes
indigenas que encontra]'am, que eram os ainos,
dos quaes em breve fallarei. Mais tarde uma
expedição, partindo de Kyushú sob o com-
mando de um chefe supremo, que não seria
outro senão Jimmu-tennô, atravessou o mar
e passou para a grande ilha onde deparou com
•povos da mesma raça, igualmente vindos da
Corêa, já estabelecidos no Hondo. Travou-se
lucta, ficando vencedor Jimmu-tennô ; mas
vencedores e vencidos juntaram-se depois e
proseguiram n'uma commum tarefa de expan-
são e de conquista, escorraçando pouco a
.pouco para o norte os ainos, os quaes, por
fim se refugiaram em Yeso, onde até hoje se
encont.am, reunidos n'uma pequena tribu de
não mais que uns 17:600 individuos, que
parece se vão extinguindo, como acontece
aos aborígenes na America, como acontece
a todas as raças em presença de raças supe-
riores.
Os japonezes de hoje são, pois, segundo
as opiniões mais auctorisadas, a que me
apoio, filhos de duas correntes de emigrantes
vindos da mesma procedência, da Gorêa. Per-
46
tencem assim á família chamada uralo-altaica,
que comprehende os íinnios, os magyares, os
turcos, os mongolios e os coreanos. Nada
teem de commum com os chinezes, a não ser
o participarem dos caracteres genéricos do
mesmo grande ramo asiático; o que por outro
lado se comprova pela differença radical entre
as duas linguas, a chineza monosyllabica, a
japoneza agglutinante. E quando a Rússia,
auxiliada por parte da imprensa de outros
paizes, começa agora a invocar o espantalho
do perigo amarello^ tem graça chegar-se á
conclusão de que os japonezes não são ama-
rcllos, mas que amarcllos, em certa proporção,
são os russos, que soffreram por mAiito tempo
o dominio dos tártaros, os quaes, retirando-se,
lhes deixaram não poucos vestígios do seu
sangue ! . . .
As duas correntes de emigração a que me
referi, embora da mesma origem, deveriam ter
pertencido a castas differentes. A isto se attri-
bue o facto de dous typos invariáveis que se
encontram na massa da população japoneza:
um, commum nas classes baixas e que accu-
saria os descendentes dos vencidos, de cara
de lua cheia avermelhada ou escura, de nariz
largo e achatado, de maçãs do rosto salientes,
de olhinhos repuxados; outro, o da tribu no-
47
bre de Jimniu-tennò, de rosto oval e pallido,
de nariz aquilino, de bellos olhos fendidos
em amêndoa. Muitos visitantes teem feito a
curiosa observação de que as japonezas pa-
tenteiam em geral um tj^po mais distincto e
gracioso do que o sexo forte da mesma na-
cionalidade ; sem pretender haver achado a
explicação do problema, assento a hypothese,
que me parece não ir de. encontro ás noções
da sciencia adquirida, de que possivelmente,
nos mil e mil vezes repetidos cruzamentos de
sangue que se dão entre as duas categorias
citadas, 'a filha possue mais aptidões do que
o tilho para herdar as qualidades phj^sicas do
ramo nobre.
Quanto aos elementos malaio e indonesico,
aos quaes se julgou em principio dever attri-
buir uma grande importância como factores
constituitivos da raça japoneza actual, parece
que hoje a perderam. A influencia do chinez
é também intima.
Pelo que toca aos ainos, povo aborigene
do Japão, ou pelo menos habitando o solo
muito tempo antes dos seus actuaes usufru-
ctuarios, são elles bastante alvos, possuindo
longa barba e tidos pelos homens mais cabol-
ludos do mundo inteiro, de costumes primiti-
vos, dados á pesca e á caça. Só no nosso
48
século XVIII é que os japonezes conseguiram
dominal-os por completo. A prolongada visi-
nhança das duas tribus, japonezes e ainos,
poderia fazer suppôr o seu natural cruza-
mento e por consequência uma grande parti-
cipação do elemento aino no typo japonez hoje
existente ; mas apresenta-se uma razão cate-
górica, agora conhecida, que invalida por
completo tal hypothese — os mestiços aino-
japonezes são estéreis á terceira ou quarta
geração.
Quereis por ultimo saber (se não sabeis)
d'onde provém o nome de Níhon, ou de Níp-
pofiy que os japonezes dão ao seu paiz? Ao
contrario do que poderia esperar-se, provém
da palavra chineza, composta, jip-pên (que
nós traduzimos por Japão); quer dizer origem
do sol, \s\.o é, logar d' onde o sol nasce, eviden-
temente traduzindo a impressão de um povo
que vivia ao occidente da terra japoneza. O
Zipangíí de Marco Polo deriva do mesmo
termo chinez, com a addição da palavra Kuo,
que quer dizer paiz. O nome de Nikon parece
ter sido primeiraments empregado pelos japo-
nezes, em linguagem official, só no anno 670
depois de Christo. Anteriormente chamavam
Yamato (o caminho das montanhas) ao solo
que habitavam, em concorrência com outras.
49
denominações mais exóticas, como O-uii-Kuni
(o grande augusto paiz), ou ainda, se me des-
culpam a citação, Toyo-ashi ivara-no chiseki
no iiagai-ho-aki-no-mizuho no knni (a-luxu-
fiante-planicie-de-bambus-a-terra-das-frescas-
espigas - de - arroz - que - durará - mil-vezes-qui-
nhentos-outomnos).
V
5 de abril de 1904
As noticias da guerra — O exercito japoncz tal como é
— A comparação da Rússia c do Japão — A im-
prensa europeia e as hostilidades — França, Rússia
e Japão — A opinião franceza — A ideia que se deve
fazer do povo japonez — As sympathias que me-
rece — [Jvros a respeito do Japão.
A
s ultimas noticias da guerra são as se-
guintes.
Em 2/ de março uma segunda expedição
tentou novamente obstruir a entrada de Porto
Arthur, submergindo quatro velhos vapores
que para tal fim seguiram para aquelle ponto,
comboiados por uma esquadrilha de torpedei-
ros e destroycrs, Pai-ece que o intento que se
tinha em vista, foi apenas parcialmente conse-
guido. No combate que se travou, os navios
russos soífreram varias avarias. Do lado dos
japonezes, ha a registar treze mortos e feri-
dos, entre os quaes se conta um distincto
official, o commandante Hirose, que uma bala
de canhão de tiro rápido attingiu na fronte,
matando-o instantaneamente.
51
Em terra, na parte norte da Coréa, teem-se
eíTectiiado varias escaramuças; uma d'ellas
occorreu na manhã de 28, cerca da cidade de
Chongju, entre forças de cavallaria, termi-
nando pela retirada dos russos, occupando os
japonezes a cidade.
Nada mais se sabe. Correm vaiiadissimos
boatos que não reproduzo, não querendo
imitar a grande maioria dos correspondentes
dos jornaes europeus, cujas estupendas men-
tiras, pelo que vejo nas folhas que me chegam
ás mãos, tocam as raias da phantasmagoria.
— Tenho visto ultimamente avaliado o
exercito japonez em tempo de guerra, por
alguns jornaes da Europa, e creio que mesmo
pelo Commercio do Porto^ em 400:000 homens.
Julgo dever indicar uma correcção.
E' impossível apresentar dados rigorosos
a tal respeito, visto faltarem ha annos estatís-
ticas minuciosas sobre o assumpto, o que é
devido, sem duvida, ao interesse do governo
japonez em não esclarecel-o. No entretanto,
pôde suppòr-se, sem ir muito longe da ver-
dade, que as forças japonezas de terra orçam
por 600:000 homens, quando incluídos o activo
ordinário, a reserva e a landzvehr; se contar-
mos também com os depósitos e a lajuisturm,
o numero pôde ainda ser muito augmentado.
52
Eis qual é a actual organisação militar
japoneza: Todos os indivíduos do sexo mas-
culino com 20 annos completos de idade estão
sujeitos ao serviço militar, devendo fazer 3
annos de serviço activo e 4 na reserva. Depois
d'este periodo são obrigados a servir na land-
wehr por 5 annos. Ha i.^ e 2.^ depósitos; o
i.^ deposito, com uma duração de 7 annos e
4 mezes, é organisado com aquelles individuos
que não foram alistados para activo serviço;
o 2." deposito, de i anno e 4 mezes, é com-
posto com os individuos que não foram alis-
tados no I." deposito. O serviço áo. landstiirm
é di\idido em duas classes, sendo ai.* comr
posta dos individuos que completaram a la7id-
wehr e o T.^ deposito, e. incluindo a 2.^ todos
os outros individuos. Todo o japonez, dentro
dos limites de 17 a 40 annos de idade, é
obrigado a servir a sua pátria em caso de
emergência nacional.
O exercito em activo serviço conta actual-
mente a divisão da guarda imperial e mais 12
divisões, distribuídas pelos differentes pontos
do império ; e inclue 48 regimenjbs de infan-
teria, 15 regimentos de cavallaria, 18 regi-
mentos de artilheria, 13 batalhões de enge-
nheiros, forças de praça, corpo de caminhos de
ferro, guarnições de Formosa e Tsushima, etc.
53
Vem a propósito lembrar agora que, com-
quanto a Rússia seja immensamente maior em
área do que o Japão, as populações dos dous
impérios estão longe de apresentar proporcio-
naes differenças. Assim, orçando a população
do Japão por 45 milhões de individuos, a da
Rússia é de 129 milhões, isto é, bastante infe-
rior ao triplo da população japoneza. Pôde a
Rússia, como é sabido, levantar um enorme
exercito em tempo de guerra, mas não pôde,
claramente, envial-o em massa ao Extremo-
Oriente. Conclue-se, pois, que as tropas russas,
que terão de haver-se com o inimigo, não o
encontrarão por certo em numero tão mesqui-
nho que lhes assegure desde logo os louros
da gloria. Pelo contrario, a lucta será renhida,
a victoria tenazmente disputada. Jogam-se,
por um lado, as ambições seculares do colosso
europeu ; por outro lado, a independência, por
assim dizer, do solo dos Mikados.
— Vão agora chegando ao Japão os pri-
meiros jornaes da Europa com referencias ao
facto do rompimento de hostilidades no Ex-
tremo-Oriente. Vejo com satisfação que a
imprensa europeia presta em geral a devida
justiça ao procedimento adoptado pelo império
japonez. Apenas a imprensa franceza, não
toda, se mostra discordante, o que nada deve
54
admirar, visto que, assim como nohlesse oblige,
também alliança ob7'iga, sendo natural que os
francezes, cuja amabilidade é proverbial, sejam
amáveis com os russos, seus actuaes alliados.
Digamos, de passagem, que a França, que em
1895, juntamente com a Allemanha, se poz ao
lado da Rússia para impedir que o Japão se
apossasse da península de Liaotung, que a
China vencida lhe cedia, desde aquelle mo-
mento deu o primeiro passo para alienar de
si as sympathias do Japão, ganhas desde lon-
gos annos em virtude de intimas relações
commerciaes, intellectuaes e politicas, que iam
promettendo crescente e prospera expansão ;
agora, os artigos dos jornaes francezes não
servirão por certo a fazer reviver taes sympa-
thias. A França, em toda a verdade, não tem
sido muito feliz com a sua norma de politica
em todo o Extremo-Oriente, podendo aliás ter
desempenhado um papel proeminente n'esta
parte do mundo, em harmonia com a alta
posição que occupa na sociedade das nações ;
sem já fallar em Siam, a sua interferência
na China tem quasi que meramente raste-
jado no campo das intrigas clericaes, esque-
cendo-se de alargar a sua influencia moral e
commercial, que bem mais útil lhe poderia ter
sido.
55
Mas, voltando á má vontade contra o Ja-
pão de uma parte da imprensa franceza, é de
presumir que ella se tenha reflectido na
opinião em Portugal, que é allíado politico da
Inglaterra, mas alliado intcl/ecttiai da. FreLUí^a.;
como, porém, não o é da Rússia, convém,
parece-mc, que no nosso paiz se faça uma
ideia justa d'este povo, perante a terrível crise
em que se acha envolvido.
Eu não nutro nem sombras de pretensão
de querer por estas singelas cartas orientar a
opinião dos meus patricios em favor dos japo-
nezes. Desejaria, é certo, que em Portugal se
não regateasse a sympathia de que o Japão é
merecedor; e aíigura-se-me este momento
mais azado do que nenhum outro para que se
consultem com interesse os melhores livros
que faliam d'este paiz e que ensinam a amal-o.
E' lamentável que a grande maioria, não direi
só dos portuguezes, mas de todos os europeus,
conheçam tão mal o Dai-Nippon, encantador
pelas suas paizagens, pelos seus aspectos, e o
seu povo, adorável pela arte, pelos costumes,
e dotado de qualidades brilhantes, que o tor-
nam um dos mais estimav^eis povos do mundo
inteiro.
N'este intuito, vou apresentar aos leitores
do Commercio do Porto, ao capricho da minha
56
fatigada reminiscência, os títulos de alguns
livros interessantes, que julgo deverão ser li-
dos com particular agrado. Na litteratura in-
gleza contam-se os seguintes volumes do
erudito snr. Chamberlain, que occupa distin-
ctamente desde longos annos uma cadeira
na Universidade de Tokio; Things Japanese^
Murrafs Handbook for Japan, etc. No mesmo
idioma: os brilhantes volumes de Lafcadio
Hearn, Glimpses of iinfaniiliar Japait^ Oiit of
the East e Ktikoro ; de Miss A. M. Bacon,
Japanese Girls and Women] de A. B. Mitford,
Tales of Olá Japan. Escriptos em francez, cito
os seguintes volumes, resumindo a lista : Essai
sur rhistoire dii Japon, de De la Alazelière ;
Le yapofty de I. Hitomi ; La renovai íon de VAsie^
de P. Leroy-Beaulieu ; os três livros de E. de
Goncourt La maison d'tm artiste, Outama7'0
e Hokonsai; La Restauratíon hnpéríale, de
Layrle ; L 'art japonais, de Gonse ; La Scvur
du Soleíl, de J. Gautier; o recente primoroso
volume Etude snr Hokonsai de M. Michel Re-
von, ex-professor em Tokio e actualmente em
França, onde pelas suas conferencias e outros
trabalhos de vulgarisação é um dos poucos
que muito concorrem para fazer conhecido e
amado o Impe7'io do Sol Nascente, Fiquemos
por aqui; mas direi ainda, terminando este
57
assumpto, que as photographias, as gravuras,
as estampas sobretudo, abundantes e baratís-
simas no Japão, prestarão aos curiosos um
valiosissimo auxilio no estudo dos aspectos
do paiz e dos costumes d'este povo. ^
VI
26 de abril de 190*
A guerra russo-japoneza — A perda do Petropaulowsk
— O almirante russo Makaroff — As cerejeiras cm
Tokio — A imprensa jornalística no Japão.
T3assaram-se bastantes dias sem haver a
registar nenhuma noticia importante do
campo das hostilidades, vindo apenas infor-
mações de ligeiras escaramuças entre guardas
avançadas dos dous exércitos. Sabe-se agora
que as forças belligerantes se encontram a
cerca de 600 jardas de distancia entre si, mas
separadas pelas alcantiladas montanhas do
valle do Yalu, difficeis de transpor, o que
pôde demorar ainda por alguns dias um en«
contro sério entre os dous exércitos.
Chega a noticia sensacional de ter o almi-
rante Alexeieff, vice-rei da Rússia no Extra-
mo-Oriente, pedido a demissão do seu alto
cargo, em virtude de descontentamento pes-
soal na marcha dos negócios e de desconsi-
59
derações que julga ter soffrido. O facto é de
grande importância e dá bem ideia das intri-
gas e dos resentimentos que fermentam na
administração superior do império do czar.
Um jornal ingiez do Japão, commentando a
noticia, judiciosamente lamenta que a exone-
ração de Alexeieff, um dos maiores instiga-
dores da guerra, não se tivesse dado alguns
mezes antes, o que possivelmente poderia ter
levado a uma solução pacifica da questão.
Com respeito á guerra marítima, também
se deram longas tréguas de incidentes, até
que finalmente nos chegaram informações de
um sétimo e oitavo ataques da esquadra ja-
poneza a Porto- Arthur, com resultados extre-
mamente commoventes. Na manhã de 13 a
esquadra japoneza atacou Porto-Arthur, sa-
hindo para o mar os navios russos afim de
lhe darem combate; estes, porém, trataram
de recolher logo após, atemorisados com o
grande numero dos barcos inimigos, alguns
dos quaes, certamente avisados por meio da
telegraphia sem hos, correram de longe a re-
forçar a primitiva esquadra. O mar esta\'a
tempestuoso ; a esquadra russa, na pressa de
se pôr a salvo, abandonou á mercê do inimigo
um dos seus dcstroycrs, que foi atacado e met-
tido no fimdo. O couraçado «Petropaulowsk»,
6o
quando ia passar a barra, tocou n\iiT) torpedo
que os japonezes haviam fundeado previa-
mente, explodindo e afundando-se. N'elle pe-
receram mais de óoo homens, incluindo o
almirante Makaroff, chefe das forças navaes
russas no Extremo-Oriente. O principe CiriL
Vladimir, que se achava a bordo, foi um
dos raros sobreviventes, mas encontra-se fe-
rido.
O couraçado « Petropaulowsk » era uma
das bellas unidades de combate da esquadra
russa, de construcção moderna, poderosa-
mente armado, com um deslocamento de
10:960 toneladas. Quanto á morte do distin-
ctissimo almirante, de alta competência profis-
sional, conhecido e respeitado no mundo
inteiro, deve ella ter sido muito sentida em
toda a Europa, e foi-o certamente no Japão,
a despeito do alcance que representa em
favor dos seus êxitos navaes. Em Tokio,
eminentes vultos políticos testemunharam pu-
blicamente o seu sentimento ; a imprensa pro-
cedeu da mesma forma; e em todo o Japão
o povo se absteve de commentar em enthu-
siasmos o seu no\'0 feito de armas, que teve
como resultado uma tamanha catastrophe e a
perda inglória do almirante Makaroff. Veja-se
n'isto uma manifestação da clássica fórmula.
6i
do Yaniato-Damaskií (o velho cavalheirismo
do Japão), aprcsentando-se ainda em finas
delicadezas de sociabilidade, mesmo no campo
da liicta, tendo por mira o exterminio.
Em 15, deu-se ainda outro ataque em
Porto Arthur, bombardeando a esquadra japo-
neza os fortes e o ancoradouro. Por esta occa-
sião os novos cruzcidores «Nisshim» e «Ka-
suga», ha pouco adquiridos na Itália, fizeram
a sua estreia de fogo, satisfazendo completa-
mente os officiaes japonezes.
— A correspondência referente ás nego-
ciações entre o Japão e a Rússia, trocada
entre o barão Komura, ministro japonez dos
negócios estrangeiros, e o snr. Kurino, ultimo
ministro do Japão na Rússia, tem tido larga
publicidade na imprensa local e é digna do
mais attento estudo; por ella se manifesta
claramente a maneira, ao mesmo tempo digna
e conciliadora, empregada pelo Japão, no in-
tuito de resolver pelos meios pacificos o pro-
blema do Extremo-Oriente. A Rússia é que
não perfilhava iguaes intuitos, embora se não
cansasse de apregoar a paz por todo o orbe;
e, pela sua indelicadeza para com o Japão,
pela sua teimosia em não desistir em ne-
nhum ponto das suas largas ambições, arras-
tou o conflicto ao extremo em que hoje se
62
encontra e que todos os imparciaes lamentam
profundamente.
— Durante as três primeiras semanas d'este
mez, o Japão inteiro, especialmente Kj^oto,
onde, por acaso me encontrei, achou-se em
grandes alvoroços, podendo dizer-se que toda
a gente andava pelas ruas, com excepção de
algum raro moribundo de mau gosto. . .
Questão de guerra } Uma esperada invasão
dos russos no solo sagrado de Nippon.^ Nada
dMsto, felizmente. E' que as cerejeiras floriam,
e nenhum bom japonez deixa passar esta
quadra sem ir peregrinar pelos logares mais
famosos, onde as deliciosas arvores — sakura,
em denominação indígena — se ostentam em
indescriptiveis primores primaveris.
Fique-se sabendo, se é que se não sabe,
que as cerejeiras japonezas, que os sábios
do Occidente appellidam com desdém e em
arrevesado latinório priiniis pscndo-ccrasus
(assim como quem diz as falsas cerejeiras),
produzem uns desprezíveis fructosinhos, in-
capazes de tentarem mesmo uma galllnha
esfomeada; mas, em flores, não ha maravilha
comparável.
As cerejeiras abundam por toda a parte
no Japão. Em Tokio, em Osaka, em Yoshino
e eni muitos outros sítios, ha pousos afamados
I
63
aonde o povo corre para gosar a sua flores-
cência, em doce recíjlhimento. Folgam os
olhos; as mãos não profanam taes encantos;
ainda não vae longe o tempo em que era
punido de morte aqueile que arrancasse uma
haste ás cerejeiras dos jardins de Tokio.
Kyoto é também notável por taes arvores,
sobretudo por uma, a mais bella cerejeira do
Japão; é a cerejeira de Guion, Guion-no-
sakuray cerca do templo de Guion, no parque
de Maruyama. Quando em começos de abril
se sobe a doce rampa que conduz a Maruyama
(a montanha redonda), vão, a pouco e pouco,
desenhando-se e projectando-se no fundo
verde da paizagem, aqui e alli, de mistura
com os pinheiros, as graciosas cerejeiras,
ainda nuas de folhas, mas recamadas de flo-
res ; segundo as variedades, e segundo a hora
e segundo o local, os aspectos d'estas flores-
cencias variam, ora similhando agglomerações
fofas de neve, em novellos de fumo, ora cham-
mas de incêndio. A certa altura surge, em
triumphos incomparáveis, a cerejeira de Guion,
muitas vezes secular, de nodoso e robusto
tronco, estendendo em torno os longos braços,
cujos extremos cahem em pendor, e coberta
de myriades de ílorinhas alvas, que lhe dão
a apparencia de uma arvore de prata, mara-
64
vilha fabulosa, digna de adornar jardins de
fadas. O vasto parque enche-se de passeantes,
que vêem de longe admirar tamanho encanto ;
e, como se o dia não bastasse, de noute bri-
lham lâmpadas eléctricas e ardem archotes em
torno, illuminando aquella phantastica cascata,
que jorra flores a esmo. . .
E' em tal occasião que mais interessante
se torna ao forasteiro o admirar este povo por
excellencia delicado, em extasis perennes pe-
rante as oflorias da natureza-mãe. Que miisii'
7nés deliciosas, que creancinhas adoráveis, sor-
rindo ás flores, suas irmãs ! . . . Mas todos,
homens na pujança da juventude, velhinhos
alquebrados, todos offe recém ao exame rostos
bons e captivantes, du.lcificados pelo senti-
mento de amor á vida e á creação, que anima
as consciências. A guerra concorre para o
espectáculo com mais uma gentileza: convém
que as tropas que ainda não partiram, mas
partirão, esperem o seu turno em salutar effer-
vescencia, alheias a ócios perniciosos; assim,
de logares distantes, acodem em marchas for-
çadas e ao som do alarido das cornetas os
bravos soldadinhos; chegam emfim a Ma-
ruyama, poeirentos, estafados, jubilosos, com
grandes ares mavórcios ; ensarilham as armas
e recebem ordem dos seus chefes para dis-
f
65
persarem e irem contemplar a cerejeira de
Guion. . . Encantadoras batalhas de ílòres! . . .
— Affigura-se-me que esta carta deve
chegar ao seu destino cerca de fins de maio,
isto é, dous ou três dias antes da altamente
sympathica commemoração do 50.° anni-
versario do Commercio do Porto. Enviando
d'aqui as minhas sinceríssimas felicitações á
illustre redacção d'este jornal, julgo terem
cabimento n'este momento e n'este logar al-
gumas ligeiras considerações sobre a imprensa
jornalística do Japão.
As publicações baratas de vulgarisação da-
tam de velhos tempos n'este império, quando
se tratava de algum grande crime emocionante
ou cousa parecida, sendo então a noticia gra-
vada toscamente n'uma tábua e reproduzida
por impressão em folhas soltas ; dizem-me
que ainda hoje o processo é empregado e
muito pi-oductivo, indo por vezes o esperto
vendilhão berrar o escândalo á porta de algum
compromettido no assumpto e que se vê
obrigado a comprar a edição toda a bem do
seu decoro. Mas nada d'isto é o jornal. O
Kaigwai Shimbiin, publicado em 1864- 1865,
foi a primeira tentativa jornalística; era seu
editor um tal Joseph Heco, japonez, que em
1850 cahira ao mar de uma lorcha japoneza,
66
sendo salvo por um navio estrangeiro e levado
para a America, d'onde voltou quando o Ja-
pão se abriu ao convívio mundial.
Em 1871, o Shunbiin Zazahi indica uma
segunda tentativa. O Nisshln Shinjiski, publi-
cado em 1872 pelo inglez John Black, um dos
primeiros residentes europeus de Yokohama,
foi, porém, o primeiro jornal digno d'este
nome, moldado á europeia, com artigo de
fundo, critica dos íicontecimentos políticos,
noticiário, etc. Aos inícios do jornalismo ja-
ponez também andou muito ligado um portu-
guez de Macau, Rosa, ha poucos mezes
fallecído, do que dei conta n'estas cartas.
A novidade agradou muito e o jornalismo
entrou em moda no Japão. Ha seis annos,
havia n'este império 1:500 publicações perió-
dicas, incluindo jornaes diários, magazines,
boletins de sociedades, revistas de arte, etc. ;
o numero tem certamente ainda augmentado.
Taes publicações são todas escriptas em ja-
ponez, com excepção de poucas, em geral
editadas por estrangeiros, escriptas em inglez,
e uma apenas, creio, em allemão. Vem a pro-
pósito dizer que m.uitos portuguezes de Macau
se dão ao officio de impressor, de sorte que
bastantes d'elles exercem cargos nas empre-
zas jornalísticas de todo o Extremo-Oriente.
67
No Japão, um portuguez pelo menos se en-
contra actualmente ao serviço de um editor
ingloz e ainda ha poucos mezes publicava por
conta própria uma folha diária.
Os jornaes japonezes são baratissimos ; as
melhores folhas diárias, com oito grandes
paginas de leitura, não custam mais de 200
reis mensaes aos assignantes; nos annuncios
que são caros, é que os editores tiram os
seus maiores proventos. No Japão toda a
gente sabe ler e toda a gente é curiosa de
noticias; de maneira que toda a gente com-
pra e lè o seu jornal. O jornal diário contém
os últimos telegrammas, calorosas discussões
partidárias, revista estrangeira, de modo a in-
teressar os políticos nipponicos ; traz sobra de
referencias mercantis e uma chuva de annun-
cios, tornando-se precioso á gente do commer-
cio; e não se esquece das mulheres, que são
talvez os seus melhores clientes, fornecendo-
Ihes romances-folhetins com i Ilustrações pro-
fusas, pequeninos escândalos, mexericos, refe-
rencias elogiosas ás giicishas (cantoras proíis-
sionaes), que constituem legiões nos centros
populosos.
Um dos exemplos mais frisantes de como
no Japão as coisas se passam ao reverso da
Europa é o livro ou o jornal. A primeira
68
pagina do jornal seria a ultima entre nós; a
escripta segue em linhas de alto a baixo e
lê-se da direita para a esquerda ; as columnas
são em sentido horisontal. Quanto ás gravuras,
primam pelo exotismo e algumas são dignas de
exame.
Nos caracteres empregados dá-se uma
circumstancia curiosa: a escripta é feita em
caracteres ideographicos, adoptados na China
ahi pelo nosso século quarto, sendo cada pa-
lavra representada por um só symbolo ; mas,
como o sexo feminino não possue bastante
illustração, em geral, para lêr por este systema,
ao lado de cada symbolo e em typo mais
miúdo segue a mesma palavra em notação
alphabetica, que é o hiragana, inventado no
anno 835 por um sábio budhista japonez. De
sorte que cada artigo do jornal é escripto si-,
multaneamente por dous processos, aos quaes
se pôde chamar, sem maldade — leitura para
homens e leitura para damas. . .
YII
4 de maio de 1904
A guerra russo-japoneza — A Europa, o JapSo e a China
— Considerações — intimas noticias da guerra —
Por mar c por terra — Os soldados japonezes — Os
reservistas — Scenas diversas — ^As mulheres japo-
nezas — A virtude de uma faixa — pontos fíitidicos;
Criados e criadas — Traços curiosos do povo ja-
poncz.
QUANTOS mais mezes vão passando e mais
se pensa no conflicto que se debate en-
tre um grande império europeu e um grande
império asiático, e nas suas consequências pos-
siveis, mais se affigura para alguns a situação
tremenda e capaz de resultados tão graves,
que provoquem uma terrível catastrophe sem
exemplo na historia do mundo.
Teria sido talvez possi\'el que a Europa
nunca houvesse pensado na China e no Japão,
deixando estas duas potencias do Extremo-
Oriente inteiramente á parte, entregues ao seu
absoluto isolamento, o que ellas tanto queriam,
e á sua civilisação exótica, que ellas julgavam
sem rival. Os occidentaes ainda não pensa-
70
ram e certamente nunca pensarão em especu-
lações lucrativas no solo do planeta Marte;
pois o mesmo deveria ter succedido com a
região citada, que pela Índole dos seus povos
e dessimilhança de interesses mais parece per-
tencer a outro planeta. Mas, quando pratica-
mente isto não fosse exequível, em virtude
das qualidades expansivas da raça humana,
as relações dos occidentaes com chinezes e
japonezes deveriam ter sido limitadas a puras
relações commerciaes, fácil tarefa, pondo abso-
lutamente de parte o pseudo-carinhoso intuito
de nos arvorarmos em educadores, de infes-
tarmos o solo alheio de missionários, de enge-
nheiros, de sábios, de militares, respeitando
pelo contrario a civilisação alheia e a integri-
dade do solo que não era nosso.
Não succedeu, porém, assim. Os occiden-
taes suppozeram os chinezes e os japonezes
uma raça caduca, como os Índios da America,
ou uma raça infantil, como os negros da
Africa; e trataram de escravisal-os do melhor
modo que poderam, de arrancal-os ás suas
crenças, aos seus costumes, ás suas civilisa-
ções, e emfim, de lhes extorquir ainda, não ao
Japão, mas á China, pedaços de território, que
transformaram em focos irradiantes dos seus
altos propósitos ambiciosos.
Rebentou agora a guerra que conhecemos,
a qual te\'e por origem única a cobiça desen-
freada da Rússia pelo solo chinez. Não se sabe
como acabará. No entretanto, seja qual íbr o
desfecho, o golpe está dado, o desafio está
lançado, e a Rússia, e com ella todos os Es-
tados occidentaes, hão-de redobrar de activi-
dades para proseguir no campo da sua politica
exploradora.
Bem. A China encontra-se fraca, ou antes,
de todo alheia ao espirito militar, sem ener-
gias de resistência. A China ha-de prestar-se,
muda e inerte, a todas as machinações da
usurpação. O Japão, se fòr \'encido, nem
mesmo fará ouvir o seu protesto. Tudo cor-
rerá ás mil maravilhas. Dentro de 50 annos,
dentro de 100 annos, dentro de 200 annos,
quando fòr, teremos uma China inteiramente
civilisada ao nosso gosto, consumindo os
nossos artigos, fallando as nossas línguas,
lendo os nossos livros, explorando minas,
hábil nas industrias, fundindo canhões, con-
struindo couraçados, com brilhantes exércitos,
dirigidos pelos nossos generaes, e já se sabe,
retalhada — um pedaço sendo da Rússia, outro
pedaço da Inglaterra, outro da Allemanha, ctc.
Mas a alma não se transforma. A alma
asiática será eternamente a mesma. Guando
^2
a China se encontre assim transformada, ao
lado do Japão, que já o está, será então o
momento para os povos asiáticos de porem
em prática as lições recebidas dos seus mes-
tres, cuspindo á viva força a civilisação im-
posta, escorraçando os intrusos, fechando as
suas portas, voltando á sua civilisação patriar-
chal. Da civilisação occidental apenas guarda-
rão os canhões e os couraçados, que a expe-
riência lhes terá mostrado constituírem o
melhor argumento da lógica mundial. Será a
vendetta tremenda ! . . .
— Ultimas noticias da guerra.
Alguns navios de guerra russos, aprovei-
tando fom ensejo de sahirem de Vladivostok
sem serem vistos pela esquadra japoneza, fize-
ram uma curta apparição no porto de Gensan,
na Coréa, onde bombardearam e metteram a
pique o vapor mercante «Goyo-maru», que
alli se achava. Isto succedia em 25 de abril.
A 26, encontrando no mar e perto de Gensan
o vapor «Kiushiu-maru», que transportava
tropas do inimigo, e fieis á prática adoptada
pela esquadra russa de não provocar a com-
bate senão Oo paquetes, metteram-no igual-
mente no fundo. Dos soldados japonezes que
não quizeram render-se, uns 70 foram mortos,
outros foram feitos prisioneiros, alguns prefe-
73
riram suicidar-sc, e alguns, finalmente, conse-
guiram alcançar a terra nos escaleres do barco
afundado. Pôde dizer-se que é este o primeiro
desastre dos japonezes na presente guerra.
Em terra, na fronteira coreana, téem-se
lepetido os encontros, um sobre todos digno
de especial menção, por não ter certamente
parallelo na historia, travando-se a lucta entre
forças de cavai laria russa e torpedeiros japo-
nezes que seguiam o rio Valu.
Agora annuncia-se, ainda com poucos de-
talhes, uma primeira batalha em terra, ao nor-
deste de Valu. A lucta foi renhidissima, oppon-
do os russos uma resistência desesperada ao
primeiro passo invasor do exercito inimigo.
Contam-se uns 700 mortos e feridos do lado
dos japonezes e 800 do lado dos russos. O
resultado final foi uma gloriosa victoria para
os japonezes, que occuparam Chulien-cheng,
aprisionando 20 officiaes e muitos soldados e
tomando 20 canhões, cavallos e bastante ma-
terial. Este primeiro encontro dos soldados de
Nippon com tropas brancas ha-de licar regis-
tado na historia.
— Foram-se já muitos milhares de solda-
dos, a caminho do campo das hostilidades, lá
para a Corêa, lá para as costas do norte da
China, não se sabe bem para onde. . . As filas
4
74
de comboios não cessaram de correr pela linha
férrea, durante longas semanas, carregados de
tropas ; até que, finalmente, houve uma pausa
em tal êxodo. Mas ainda por cá hcaram mui-
tos soldados, certamente; tornam-se mesmo
agora mais \'isiveis, em cidades e aldeias,
longe dos aquartelamentos ordinários e onde
era cousa rai'a vêr-se uma farda passear.
São os reservistas, chamados a reforçar as
forças de combate, veteranos da guerra da
China, alguns já de cabellos grisalhos e pro-
fundas rugas na cara. Uns apparecem de ponto
em branco, de fardas no\'as e insígnias relu-
zentes; outros ainda não tiveram tempo de
equipar-se, vestem ainda o kímono burguez,
calçam ainda as sandálias da aldeia, apenas
se distinguem pelo bonnet do uniforme, posto
petulantemente no alto da cabeça. Mourejam
de um para o outro lado, fazendo as ultimas
despedidas, fazendo as ultimas mercas, de
ordinário acompanhados da familia, a esposa
e os filhitos ou a mãe e o pai septuagenários.
Commovem estes grupos.
A chusma dos reservistas, surgindo de
norte a sul, de leste a oeste, por todo este
Japão, vai dando logar a umas scenas da rua
assaz estranhas, que a principio muito intri-
garam os estrangeiros residentes, até que
/D
eniíini o caso se explicou. Kncontiíim-se agora
vagueando pelos logares populosos bastantes
mulheres, em geral pobremente vestidas, tra-
zendo nas màos uma faixa de panno de algo-
dão, branco ou amarello, com muitos signaes
marcados a tinta escura, e mimidas de agulha
e linha juntamente; acercam-se de outras mu-
lheres que \'ão passando, segredam-lhes não
sei quê, o mundo feminino faz roda e cada
qual, successi vãmente, dá um ponto na faixa
por suas próprias mãos e vai-se embora.
Aclaremos o caso. Cada uma d'estas mu-
lheres ou é mãe, ou é esposa, ou é íilha, ou
é irmã de um reservista. A faixa é destinada
a ir ser\'ir de cinta a esse parente querido,
apertada junto ao corpo por baixo da fardeta;
e é tida por possuir a virtude de preservar do
effeito mortifero das balas inimigas. Na faixa
dão-se mil pontos, nada mais nem nada me-
nos; cada mulher dá um só ponto; são, por-
tanto, mil mulheres a occuparem-se da cinta;
a gente da familia collaborou piimeiramente,
depois seguiram-se as amigas, as visinhas;
depois foi -se para a rua, correndo de aldeia
em aldeia ou de cidade em cidade, pedindo
ás mulheres que vão passando o seu concurso,
até se completar o numero fatidico de pontos.
K nMsto que está a \-irtude, para os crentes;
76
e para nós, os descrentes (e porque não se-
remos crentes?) a poética e enternecedora in-
genuidade d'este acto. Como não seria mila-
grosa uma tal cinta, quando mil mulheres
trabalharam no mesmo santo intuito; juntando
os seus mil votos pela felicidade do mar-
manjo ? . . .
Sempre e em todo o mundo o enccinto
feminino! . . . Ai, mãos gentilissimas e mila-
grosas das niusiimcs] quanto vos não deveria
eu, a vós, mil raparigas, se resolvêsseis offe-
recer-me uma cinta trabalhada pelas v^ossas
duas mil mãos, que me servisse de couraça
contra os golpes da fortuna e os pontapés da
sorte? . . .
— Ha poucos dias, um jornal inglez da
terra dava publicidade a uma carta de um
correspondente, na qual se lembrava a grande
vantagem que haveria em crear-se no Japão
uma instituição de ensino de criados e criadas de
servir, de modo a evitar os contínuos dissabores
que se dão com taes sujeitos, especialmente
entre familias europeias, irritando-nos diaria-
mente os nervos, em virtude da detestável
maneira de se desempenharem dos seus cargos.
Ora eu estive para responder, também por
epistola, ao tal correspondente ; mas depois,
não sei porquê, passou-me o Ímpeto. V^ou
17
agora, porém, resumir o que diiia, a titulo de
curiosidade e como documento da feição so-,
ciai d'este povo interessante.
K certo que os serviçaes japonezes e em
particular os do sexo feminino, mais com-
mummente utilisados, são detestáveis. Nota-se,
entre outros defeitos, a sua pro\'erbial incúria,
a curta permanência na mesma casa, a con-
stante má vontade nos serviços que desem-
penham ; chega isto a tal ponto, que as la-
mentações sobre o assumpto constituem um
dos themas fcivoritos de conxersa entre as
damas europeias residentes, nem sempre muito
inventivas na difíicil arte do colloquio. No
emtanto, a tal instituição de ensino, aconse-
lhada pelo correspondente do jornal a que me
referi, seria obra perfeitamente inútil, não
tendo os criados japonezes, e principalmente
as criadas japonezas, empenho algum em
aperfeiçoar-se no seu mister.
O curioso é saber-se que esta caracte-
rística, feita de ignorância e de má \'ontade,
da classe que estou considerando, re\'erte toda
em favor da japoneza e da maneira de ser da
sociedade nipponica. Na Europa, ha por toda
a parte, como é bem notório, a profissão das
criadas de serxir; triste profissão, em que se
alistam as desprotegidas da sorte, as que não
78
lêem familia nem probabilidades de a adquirir,
as desprovidas de qualquer recurso.
No Japão, felizmente para elle, ainda se
não dão taes circumstancias. A suprema misé-
ria, com as suas terriveis exigências, tal como
ella se manifesta no mundo Occidental, é des-
conhecida n'um paiz onde a sobriedade do
povo se contenta fartamente com um punhado
de arroz por cada dia.
Depois, essa condição de abelha neutra,
destinada unicamente a mourejar, e que pesa
sobre um tão grande numero das mulheres
occidentaes, não attinge ainda a japoneza. Em
regra, a japoneza é destinada a ter um marido,
mais ou menos authentico, a ser mãe, a cuidar
dos filhos, do seu lar. -N'estas condições so-
ciaes, comprehende-se facilmente que a servi-
çal japoneza, trazida ao seu mister poi- alguma
discórdia de familia, ou por algum contratempo
súbito, ou pelo capricho momentâneo de cor-
rer terras, ou na mira de arranjar pecúlio e
enxoval, admitta a sua situação apenas como
transitória.
Isto bastaria para explicar a má vontade
e o nenhum desejo de aprender, de que dá
provas no desempenho dos seus deveres ; mas
junte-se ainda a Índole altiva da raça, talvez
ainda mais caracteristica na mulher do que
79
no homem ; e, para o caso de sermos europeus,
o ódio instinctivo que os japonezes professam
por nós todos e pelos nossos usos; e assim
não restará duvida alguma de que a serviçal
nipponica será sempre uma ignorante incorri-
givel, supportando a custo seis mezes de es-
cravidão em casa alheia, almejando unicamente
pelo momento de fazer a trouxa e abalar,
dedicando então os seus finos dotes carinhosos
ao companheiro, aos hlhos, ao seu casebre
humilde, mas em requintes de escrúpulos de
asseio.
— A presente guerra vai dando ensejo a
tornarem-se conhecidos alguns curiosos traços
do caracter do povo japonez. Apresento três
exemplos.
Na aldeia de Teko, districto de Satsuma,
vive em rural simplicidade uma familia con-
tando pouco menos de cem membros. O chefe
da familia, Okada Bun3'emon, acaba de com-
pletar o seu 70." anno de existência; a con-
sorte conta '/2 invernos. Onze filhos nasceram
do casal, sendo sete varões e quatro raparigas;
o mais velho tem hoje 50 annos, o mais no\'o
28, e são todos casados, tendo ao todo 24
filhos. Ora, como alguns dos netos também se
acham casados, 20 bisnetos alegram a exis-
tência dos velhinhos. Esta familia vive toda
8o
reunida actualmente e n'unia santa paz, bem
rara n'este mundo; ultimamente pensou em
commemorar com uma grande festa as suas
felizes condições ; mas o \^elho patriarcha
obtemperou que tal festa não ij-ia em harmo-
nia com as presentes condições da sua pátria^
propondo em substituição que todos concor-
ressem para os fundos da guerra, no que se
concordou, rendendo a coUecta 150 j^ens (15
libras).
Outro exemplo. Um certo camponez, de
uma aldeia do districto de Hiogo, chamado
Yamagata Yosaku, tem muitos filhos, tenda
já visto partir três d'elles para a guerra desde
o começo das actuaes hostilidades. O facta
de uma só familia contribuir com tantos ser-
vidores, é excepcional favor do céu; e o
ancião, no dia próximo do 61.*^ anniversario
natalício, vai commemoral-o erigindo três tú-
mulos, expressando por esta forma o deseja
de que os seus três soldados combatam até á
morte. . .
A outra historia é presenceada por mim
próprio. Entrava eu ha dias n'uma loja de
louças, com o íim de comprar um vaso para
flores. Deparei com o estabelecimento aban-
donado; chamei, gritei, até que, finalmente, a
dona da casa me appareceu. Fiz a escolha,.
8i
concordamos no preço, mas, tão cheio de pó
estava o tal vaso, que a boa da mulher deu-se
ao trabalho de limpal-o, espanador em punho,
emquanto que ia palestrando e desculpando
sua incúria. — « Ha mais de quatro dias, dizia-
me ella, que ninguém cuida da casa, nem
mesmo a poeira se sacode; andamos todos
doudos de alegria! . . . Imagine o senhor que
meu cunhado acaba de partir para a guerra
pela terceira vez. Na primeira vez, tratava-se
da guerra com a China. Na segunda vez, era
a baralha com os boxers. Agora vai contra a
Rússia. Pensa elle e pensamos todos nós que
o caso não passa de folia ; as balas já o co-
nhecem, não lhe hão-de fazer mal. Ha-de vol-
tai', são como um poro ; ha-de trazer-nos um
russo empalhado de presente. Fizemos-lhe
grandes festas, acompanhamol-o ao embarque,
rindo, folgando, uma galhofa! . . . Até o meu
pequeno, que não tem mais de cinco annos,
berrava, agitando no ar uma bandeira japo-
neza : — « Viva o Japão ! Viva o Japão ! »
VIII
17 de maio de 1904
As ultimas noticias da guerra; vantagens obtidas pelos
japonezes; peripécias varias — As paginas da histo-
ria japoneza e como técm sido apreciadas — Força
naval portugueza no Hxtremo-Oriente — Notas de
viaarem.
A BATALHA do Yalu, á qiuil me referi na
correspondência anterior, occorrida em
I do corrente e gloriosa para os japonezes,
que após uma lucta sangrenta conseguiram
atravessar o rio e occupar Cliulien-cheng,
achando-se assim no seio da Mandchuria,
marca o inicio da campanha terrestre, que vai
ser certamente acompanhada da acção naval
da esquadra do almirante Togo. Entram.os
assim no periodo agudo ; as actividades dos
belligerantes devem achar-se no momento
presente em enorme effervescencia ; mas, infe-
lizmente para os curiosos, poucas noticias
chegam, mesmo aqui, das scenas do grande
drama que se desenrola.
83
As ultimas informações da batalha do Yalu
accLisam que os i-ussos perderam 2:394 com-
batentes, entre mortos e feridos, contando-se
no numero 70 ofHciaes ; as perdas japonezas
foram de 900 homens.
Em 3, a esquadra japoneza, obedecendo a
duras exigências do plano geral da campanha,
procedeu a uma terceira tentativa de obstru-
cção do canal da entrada de Porto Arthur,
para o que conduziu ao local alguns barcos
mercantes, no intuito de os fazer submergir
em sitio conveniente. Esta tentativa foi a mais
mortífera das três e, como as outras, não com-
pletamente satisfactoria, pois os fortes do
inimigo descarregaram xivissimo fogo sobre
os barcos, afundando-os antecipadamente e
fazendo bastantes victimas; a coragem pro-
verbial dos marinheiros japoneze.s não se des-
mentiu em tão tremenda empreza.
F.m 5, uma divisão japoneza desembarcou
em Kinchau, na peninsula de Liaotung e a
40 milhas de Porto Arthur. Como resultados
immediatos d'este brilhante acto de audácia,
deve considerar-se positi\'0 que a linha férrea
russa foi logo destruida n'aquelle ponto e que
Porto Arthur se encontra isolado e cercado
pelas forças japonezas; sabe-se que o almi-
rante Alexeieff e o grão-duque Boris tiveram
84
apenas tempo de retirar-se precipitadamente
para o interior, para não licarem á mercê da
inimigo. Resta v^êr o que farão os japonezes:
se se contentarão em prolongar o cerco até
que, por carência de recursos, os russos se
vejam obrigados a render-se ; ou se, por
assalto, correrão a apoderar-se d'aquella praça
de guerra. Apresenta-se mais provável esta
ultima hypothese, por estar mais na Índole do
povo nipponico, embora tenham de sacrificar
algumas centenas de vidas ; e também porque
o cerco seria longo, parecendo que as forças
russas de Porto Arthur, reduzidas actualmente
ao minimo, possuem viveres para um anno
seguro.
As ultimas noticias dão já as tropas
japonezas em Fuin-panchen, encontrando-se
grupos exploradores ao longo da estrada que
vai a Liaoyang. Haverá alguma grande batalha
nas visinhanças de Mukden ? . . .
Os mysteriosos bandidos chinezes téem
feito larga destruição na linha férrea russa.
Chegam informações de que o torpedeiro-
japonez n.^ 48 e o cruzador «Miyako» foram
a pique, em resultado de terem tocado em.
minas submarinas, que os russos haviam coUo-
cado perto dos portos que occupavam. Houve,
algumas victimas.
85
Os russos abandonaram Newckvvang.
Consta também que destruiram as docas e
cães em Dalny, no intuito de não serem utili-
sados pelos japonezes.
O governo japonez contrahiu um emprés-
timo de IO milhões de libras no estrangeiro,
em condições pouco favoráveis, a julgar pelos
commentarios da imprensa local.
A guerra tem já dado pretexto a um sem
numero de publicações litterarias, gravuras
allusivas, bilhetes postaes, ele. Appareceu ulti-
mamente á venda em Tokio um curioso
mappa geographico, onde a Rússia é repre-
sentada por um enorme polvo, estendendo os
seus tentaculos sugadores á Turquia, á Bul-
gária e ao mais que se sabe. O Japão está
representado por um soldado, fazendo fogo
com a sua arma. Portugal, felizmente, longe
do alcance do monstro, é figurado por um
tranquillo fradesinho, que empunha uma gar-
rafa e um copo. . . allusão ao famoso «Port-
wine», o que mostra não ser aqui desconhe-
cido este producto da nossa terra, graças aos
snrs. Menéres e outros beneméritos.
— Tendo assim apresentado, em resumo, as
mais recentes peripécias da guerra, parece-me
interessante líinçar agora um rápido olhar re-
trospectivo sobre as paginas da historia japo-
8Ó
neza dos últimos dez annos c vèr como a
opinião Occidental, mercê da força irresistível
dos factos, se tem successivamente modificado
com respeito a este pox^o.
Ainda até ha pouco tempo, o Japão era,
para a grande maioria dos illustrados do Occi-
dente (não fallemos dos não illustrados), o
Japão dos livros de Loti, e nada mais, isto é,
o paiz das cegonhas bordadas e das chimeras,
o paiz das paizagens lilliputianas e das mulhe-
res acariciadoras, envoltas em sedas multi-
cores.
Quando, pelo anno de 1894, surgiram os
primeiros boatos de que o Japão ia fazer
guerra á China, com o íim de garantir a inde-
pendência da Corêa, o espanto do mundo
inteiro foi geral. A catastrophe completa para
o povo japonez foi logo prophetisada. Velhos
residentes europeus do Japão diziam (ou-
vi-os eu) que o castigo d'essa louca ousadia
de ir um punhado de asiáticos, apenas inicia-
dos na civilisação europeia, provocar o immenso
e mysterioso império chinez, seria a absoluta
derrota; e não sei já que grande sábio, com
v^astos conhecimentos das cousas do Extremo-
Oriente, apregoava aos quatro ventos que
soara a hora do desapparecimento da peque-
nina tribu de Nippon.
87
Síihc-sc bem o qiic se pass(Hi c como os
japonezes conckiiram a emprcza cobertos de
gloria, em terra como no mar, e como alcan-
çariam certamente Pekim, se não fosse a
opposição dos Kstados do Occidente, aos
qiiaes em todo o caso foram ensinando que
a China não era esse colosso impenetrav^el
como até então fora julgada.
Passou-se depois a dizer que a victoria
havia sido ganha contra um po\'o asiático,
cabido na derradeira desmoralisação e na inti-
ma fraqueza; mas quando, improvavelmente,
os japonezes tivessem de bater-se contra uma
nação branca, contra um Estado europeu, a
sua incompetência apresentar-se-hia indiscu-
tivel.
E' verdade que em tqoo, durante os tu-
multos dos boxers, os japonezes combateram
contra os rebeldes ao lado de contingentes de
tropas do mundo inteiro; e consta que se dis-
tinguiram entre todos, pela óptima organisação
militar, pela sua disciplina, pela sua honesti-
dade e pela sua admira\'el coragem. Mas ainda
não se queria \'èr o que era evidente, e
assegurava-se que o go\-erno japonez, por
um requinte de orgulho nacional, escolhera o
grupo de expedicionários de entre a flor do seu
exercito, com qualidades dístinctas, excepcio-
88
naes, alheias á grande maioria dos soldados
do Mikado.
Ainda ha poucos niezcs, em novembro
passado, perguntava eu a imi addido militar
de uma das legações europeias de Tokio que
impressão pessoal lhe haviam deixado os exer-
cidos e manobras militares do exercito japonez,
acabados de realisar na cidade de Himegi : —
«Tudo muito bem, respondeu-me elle; tudo
muito bem. . . pai-a japoneses».
A phrase traduz por completo a opinião
que os estrangeiros faziam do império do
Japão até ha poucos dias, no respeitante aos
seus recursos militares e á sua sciencia da
guerra: ainda e sempre a proverbial denomi-
nação de «um povo de macacos», simples e
imperfeitos imitadores de todas as instituições
europeias : e mais nada.
Rebenta agora a guerra. D'esta vez é o
Japão que se ]e\'anta contra a Rússia colossal,
a potencia mais temida em toda a Europa:
isto, quando esgotados todos os recursos di-
plomáticos para levar a uma solução pacifica
o problema extremo-oriental, que é nada mais
nem nada menos que uma questão de vida
ou de morte para este florescente paiz do Sol
Nascente. D'esta v^ez, as prophecias dos estra-
nhos são categóricas: a marinha do Mikado,
sg
com 30 íiniios de cxistcncia, scni tradições, sem
prática, corre ao massacre irremediável e á
destruição immediata das suas unidades de
combate. Não succedeu, porém, assim, antes
bem pelo contrario: a esquadra japoneza, im-
pellida sempre a tomar a oftensiva, porque o
inimigo lhe foge ou só lhe apparece ao abrigo
dos canhões de Porto Arthur, tem feito nume-
rosas investidas, desenvolvendo uma coragem
sem igual, uma táctica naval superior, de-
vastando os barcos inimigos, causando innu-
meras victimas, dominando completamente o
mar.
Bem. Diz-se então : No lim de contas,
dado o excellente material da marinha japo-
neza, o seu maior poder, comparado com a
esquadra russa do Extremo-Oriente e as van-
tagens locaes de que aproveita, os resultados
felizes até agora alcançados podiam-se prever.
Alas resta esperar pela campanha em terra.
O primeiro combate da campanha em terra
acaba de se ferir e a batalha de Chulien-cheng
corresponde a uma brilhantíssima victoria para
as armas nipponicas. O exercito japonez acaba
de passar além da fronteira coreana e de
invadir a Mandchuria, apesar da resistência
offerecida pelo inimigo. E hou\e resistência, e
duiissima; não se pense que os russos, em
90
obediência a uma táctica, que fora em tempo
apregoada, deixaram mui propositadamente os
japonezes internar-se na Mandchuria, para
depois mais facilmente os cercarem e extermi-
narem; tal Iwpothese cahe pela base quando
se considere que as perdas das forças russas
avultaram muito, tendo, além d'isto, a artilhe-
ria de entregar ao vencedor 20 dos seus ca-
nhões e muitas munições de guerra.
Não, os descrentes já não podem appellar
para mais provas; a verdade refulge. A re-
putação dos japonezes está feita como potencia
militar de primeira ordem, tanto no mar como
em terra, mercê da alta estratégia, da supina
coragem, da óptima organisação de que de-
ram tão plenos testemunhos. Aos brios dos
marinheiros e soldados deve juntar-se a ex-
cellencia das ambulâncias, dos hospitaes, a
carinhosa acção da Cruz \'ermelha, a con-
ducta delicada do povo, emfim, o que tudo
leva a affirmar que o Japão inteiro se tem
mostrado admirável em todo este drama sen-
sacional, em que joga a sua integridade terri-
torial e a sua independência e o futuro flores-
cente das suas energias productoras. Quando
se pense, por outro lado, no alto desen-
volvimento das industrias japonezas, na grande
illustração do povo, no eminente grau da
91
sciencia adquirida, nas actividades que pros-
peram, então o irnperi(^ do Japão, sabido
da mysteriosa comprehensão asiática para
abraçar a civMlisação moderna ba apenas 37
annos, mas guardando ainda as suas deli-
cadezas próprias, apparcce ao obser\'ador
sincero como um deslumbrantissimo meteoro
social, uma apotheose sem exemplo no mundo,
levando fatalmente á única coi^iclusão de que
nos acbamos em presença de uma tribu ex-
cepcionalniente privilegiada e excepcionalmente
intelligente. Um bravo pelo Japão! . . .
Pôde já assegurar-se que na grande lucta
que se tra\^a, caberão ao império do Sol Nas-
cente as bonras da victoria final? E' cedo
certamente para dizel-o. No entretanto, em
face de tamanba previdência, de tamanba
destreza e de tamanha coragem, só se deve
julgar admissivel uma catastropbe das armas
nipponicas, se se dér, tendo por imica cau-
sa a onda bumana, immensa e indestructivel,
do inimigo, que pela enorme desproporção de
numero enxameie, envolvendo e esmagando
os bravos soldadinhos japonezes. Seria então
o caso de recordar a famosa canção da opera
cómica que se cantava nos meus tempos, dos
três contra tun, que eu cito a custo, por não
comportar bilaridades o sangrento conflicto
92
t[Lic está assombrando o nuindo inteiro, mas
que em todo o caso exprime melhor do que
nenhum outro commentario as consequências
píjssiveis da lucta, tão desigual em números,
que se fere; vá sempre a canção, que é da
<^Gran-Duqueza» :
Appròtons-nous ptuir la \ ciigcaiicu,
Soj-ons adroits ;
11 est soul et nous, quellc cliance!
Xous sommcs troisl . . .
— Recebeu-se noticia de que os nossos
navios de guerra «Adamastor» e «V^asco da
Gama » chegaram a Macau, d'onde partiram
para Hong-Kong afim de procederem a ligei-
ros reparos e limpezas, sendo mesmo provav^el
que a estas horas já se achem a caminho de
Shanghae. Estes dous cruzadores, conjun-
taniente com a canhoneira «Diu», que se
achava estacionando em Macau, formam uma
respeitável força naval portugueza no Extre-
mo-Oriente, nem mais se dexeria esperar da
nossa parte. E' caso para nos congratularmos
por ter o governo portuguez tão bem com-
prehendido que no momento presente era brio
nosso acompanharmos as demais nações da
Europa na sua representação naval nas pro-
ximidades do tremendo conílicto que se fere.
93
Agora, o que será paru desejai* é que os
dous cnizadorcs cruzem, não se limitando a
uma fastidiosa e inútil permanência em algum
porto chinez; e que mostrem a sua bandeira
nos principaes portos da China, da Coréa e
do Japão, no que prestarão um alto beneficio
ao prestigio do nome portuguez. Aqui os
esperamos e com muita satisfação.
— O snr. Fernão Mendes Pinto ;/.** 2,
perdão, o snr. Mendonça e Costa, tem tido a
gentileza de en\'iar aos seus amigos do Japão
alguns números da « Gazeta dos Caminhos de
Ferro», da qual é director e proprietário, e onde
estão send(j publicadas as «Notas de \'iagem»
da larga excursão que ultimamente realisou
no Extremo-Oriente. Escritas com fina obser-
vação, têem aqui sido lidas com agrado e mais
interesse estarão certamente despertando no
nosso paiz, dando-lhes o momento presente
particular encanto sensacional. Servirão ellas
a animar alguns porttiguezes a encorpora-
rem-se á onda dos toiíristes que tanto fre-
quentam este paiz, mesmo no periodo critico
que atra\'essamos r Assim o espero e assim
o desejo.
IX
2 8 de maio de 1904
Dois desastres da marinha japoncza e a esquadra de
Vladivostock — As operações na península de Liao-
tung — O discurso do snr. Doumcr; a sua declara-
ção relativamente á !i;uerra e considerações a pro-
pósito— As festas em Tokio pela passagem gloriosa
do rio Yalu.
A .MARINHA japoneza acaba de soffrer dois
grandes desastres. Na madrugada de i $
do corrente, o novo cruzador «Kasiiga»
abalroou com o cruzador «Yoshino» durante
um densissimo nevoeiro, perto dò promontório
de Chantung, afundando-se o e Yoshino». A's
1 1 horas da manhã do mesmo dia, o cou-
raçado «Hathuse» foi de encontro a uma. mina
submarina nas \'isinhanças de Porto Arthur,-»
a qual fez explosão, indo a pique o cou-
raçado.
As perdas de \'idas foram, como se imagi-
nava, numerosas. No entretanto, deve servir
de consolação aos marinheiros da esquadr'
japoneza o facto de não serem devidos este
95
dois accidcnl.cs íi impcriciíi sua ou a superior
estratégia do inimigo, mas sim a causas nor-
maes em tempo de guerra, mais de prever-se
em taes paragens, onde o mar se apresenta
frequentemente tempestuoso e onde actual-
mente reinam consoantes e densissim()s ne-
x^oeiros, que muito prejudicam a navegação.
Quanto a minas, consta que os russos as
estão espalhando no alto mar, com grave
risco para os na\'ios neutraes, o que já está
provocando protestos na Kuropa.
Sabe-se agora que o cruzador russo
«Bogatyr'> encalhou ha dias á entrada de
Vladivostock, durante um denso ne\'oeiro, e
tão desastrosamente, que se perdeu.
Restam, pois, no porto de Vladivostock
três navios russos, agora sob o commando
superior do almirante Skrydloff, successor de
Makharoff, e destinado á esquadra que se
encontra em Port(^ Arthur, para onde nào
pôde seguir pela falta de comi nunicações com
quelle porto. A esquadra de Porto Arthur
deve hoje representar um deslocamento de
/(j:62S toneladas; o total da esquadra japo-
neza, feito já o desconto dos na\'ios perdidos,
'- de 204:645 toneladas.
'. — As ultimas noticias registam os bons
viultados das operações das forças japonezas
96
na península de Liaotung. Kinchau, um pouc~
ao norte de Dalny, foi occupado na nianh^
de i6 após uni combate desesperado, '|^
durou 26 horas. A parte sul de Liaot#
correspondendo ao território que foi dadt'
aluguer á Rússia pela China, acha-se actíti*
mente bloqueada pela esquadra japoneza con-
forme declaração do almirante Togo, com
mandante em chefe.
As forças na Mandchuria também avan-
çam com bom êxito, complicando-se agora
muito a tarefa para aquelles que tent.i
seguil-as pela simples informações dos J.í; •
naes, abundantes de nomes bárbaros de diíre-
rentes localidades, difficeis de precisar.
— Os jornaes do Japãa publicavam 'i
dias um telegramma de Londres, informar.''
que o snr. Doumer, presidente da commisp^-^
do orçamento francez, n'um discurS''*^^^^
proferiu n'um banquete, conden '^ P^'.-
mente a attitude de alguns franceâc:^
peitante á alliança franco-russa; referindò-5./
guerra, o snr. Doumer disse ser imp^' '^■
para a França estar do lado do povo a/^
em uma lucta entre as duas civiliM'
oriental e occidental. ' ^
Muito bem: chama-se a isto não ter p^'
na lingua; e seguramente as palax^/J"^'
97
iK^tabilissimo politico c hábil administrador,
ex-ministro das finanças, ex-governador da
ido-China, e sem duvida destinado ainda a
ais altos cargos, encontrarão sympathica
hesáo na grande maioria dos homens da
aropa. Certos excêntricos, porém, que sof-
•rem do mal chronico de sorrir de tudo que
vão ouvindo por este mundo, não deixarão
de sorrir-se também no caso presente, em-
bora corram o risco de se expor á indignação
das turbas. Se a opinião do snr. Doumer re-
'^resenta a opinião da França, como é prova-
1, que a Inglaterra aguente como poder a
lerroada, com o que ella por fim pouco se
rala, pois lá tem os seus planos, e não foi
x:)r certo por simples ingenuidade que se fez
alliada do Japão. Então fica-se sabendo que
'' impossivel á França estar do lado do povo
'^"ello em uma lucta entre a civilisação occi-
a civilisação oriental (ponha-se pri-
1 duvida se tal definição da lucta é
.luadeira). Fica-se mais sabendo, por lógica
"* 'cção, que a França só estará ao lado do
amarello nas seguintes circumstancias :
pacatamente ir infestando o solo asiático
iCgião dos seus missionados, que ella não
•?r para si, mas acha muito bons para os
* 'S ; para dominar na Indo-China e para
5
98
arrancar ao Siani pedaços do seu território ;
para impingir ao Extremo-Oriente a sua in-
dustria e por vezes os seus ax^entureiros.
Resumindo: a P' rança admitte o povo ama-
rello como uma vacca leiteira para seu uso, a
qual vá mungindo emquanto ella tem leite, e
nada mais. Se a vacca escouceia, indigna-se e
põe-se do lado dos outros sujeitos que tam-
bém se serxem da mesma vacca para idênticos
e peores fins. O que a P' rança não admitte, e
com ella, diga-se toda a verdade, a grande
maioria das nações occidentaes, é que uma
certa tribu doestes amarellos, á qual impoze-
mos a nossa civilisação, a adaptasse a si tão
bem, que se erga agora forte e instruída e
pretenda defender a sua integridade e os seus
interesses, pretendendo defender também a
integridade c os interesses dos povos visinhos,
menos fortes, com os quaes conta natural-
mente para o engrandecimento pacifico da
própria expansão e das próprias actividades.
O Japão não nutre o desígnio de arrancar á
P^ rança uma das suas províncias, ou á Allema-
nha, ou á Itália, ou a outra nação qualquer
Occidental; protesta apenas, com os meios de
que pôde dispor, contra a conquista que
algumas d'aquellas nações intentam no solo
asiático e que evidentemente equivalerá a uma
í>9
(jiioniic bancira contra o sen coniincrcio, pois
a Ásia é e tem de continuar a ser o seu na-
tural cliente, e sem um tal cliente o Japão
nào pôde viver.
Não se dá, pois, presentemente o que
apregoa o snr. Doumer, — uma lucta entre
as duas civilisaçòes oriental e occidental; —
dá-se a natural e legitima revolta d'aquelle
que defende contra o invasor a massa dos
seus bens : apresentada assim a questão, (e
é como julgo deve ser apresentada), nào
deveria restar du\'ida, se se escutasse apenas
a voz da justiça, sobre os direitos que assis-
tem ao império japonez para desembainhar a
espada.
Mas a humanidade não escuta apenas a
voz da justiça, escuta principalmente a voz
das suas ambições, no caso presente mais
intolerantes, por se imporem também pre-
conceitos de raça em effervescencia. E' in-
teressante prophetisar desde já que d'este
esforço hercúleo do Japão contra o colosso do
norte, e admittindo mesmo a hypothese mais
favorável para o Japão do final triumpho das
suas armas, os louros da victoria lhe acar-
retarão amargas desillusões. O Japão, que
ficará pobre e arruinado por longos annos
nas suas energias productoras, deve contar
lOO
com a inveja universal; por outro lado, a
politica que segue, impõe-lhe o dever de
deixar intactas a China e a Coréa, e não
poderá esperar indemnisação alguma de guerra,
pela impossibilidade manifesta de ir a S.
Petersburgo reclamal-a. Pôde então pergun-
tar-se o que ganhará o Japão, que o com-
pense dos sacrifícios immensos que se impõe ?
Ganhará seguramente a consideração — não
digo sjniipathia — a consideração mundial e o
respeito e a s^nnpathia de todos os povos
asiáticos, mais ou menos seus visinhos. Quem
sabe? Talvez isto lhe baste.
As nações estranhas, que estão vendo o
espectáculo das galenas, é que vão já ganhan-
do muita cousa. A Inglaterra ganha os seus
progressos politicos no Thibet. Os grandes
argentados inglezes e americanos ganham na
agiotagem do empréstimo. Os contrabandistas
do mundo inteiro vão ganhando. Ganham
muitos, ganharão muitos.
— A gloriosa passagem do rio Yalu pelas
forças do exercito japonez foi festejada em
Tokio por uma procissão de lanternas, em
que figuravam mais de ioo:000 pessoas.
Tamanha era a onda humana e tão densa
em certas ruas mais estreitas, que \arios
indivíduos ficaram contusos, dando-se mes-
lOI
mo duas mortes ; as auctoridades já provi-
denciaram para que se não repitam acci-
dentes lamentáveis de tal ordem. O que esta
estupenda commemoração prova, se ainda
fosse necessário proval-o, é o grande enthu-
siasmo que anima o povo nas presentes cir-
cumstancias. O facto responde por si a uma
pergunta que ha dias me dirigia um amigo
de Lisboa, pedindo que o informasse se a
guerra, iniciada pelo Japão, correspondia ao
sentimento geral do povo ou era uma sim-
ples especulação dos governantes; eu apre-
sentei-lhe ligeiros traços, referentes á pro-
fimda commoção popular que aqui palpita,
acrescentando, por me faltar absolutamente
o tempo para longas missivas, que, se qui-
zer saber o resto. . . comprasse o papel. O
papel era O Comniercio do Porto; a phrase,
talvez já não usada hoje, era a que em-
pregavam no meu tempo pelas ruas os pre-
goeiros das novidades sensacionaes.
— As japonezices estão em moda em Ingla-
terra, o que não surprehende, quando se con-
sidera que ella é alliada do Japão. Ora, se
pode ampliar-se o velho axioma algébrico —
duas cousas iguaes a uma terceira, são iguaes
entre si — dizendo — duas nações alliadas a
uma terceira são alliadas entre si, — conclui-
I02
mos (não se assustem!) concliiimos mathema-
ticamente que nós somos alliados do Japão.
Mais concluímos, agora hcrnieneiiticamente,
que as japonczices devem também entrar em
moda em Portugal. N'este intuito, na impos-
sibilidade de expedir a cada uma das minhas
leitoras (acaso terei leitoras?) uma boceta de
charão. . . porque sahiria isso muito caro —
presumpções de auctor! — , envio-lhes d'aqui
o hymno nacional japonez, Kímígayo (O
remado do Jiosso soberano), presumindo que
as suas mãos commovidas se aprazerão em
ensaial-o no piano domestico. Eis, pois, o
hj^mno, musica e lettra, indo esta em japo-
nez. E eis também a traducção portugueza,
que vai em chata prosa, por eu já não ser
poeta e nunca ter sido musico: — Floresça
longamente em glorias o reinado do soberano]
Ntinca experimente revezes! Seja qual pe-
queno seixo, que se eleva até ser um ro-
chedo enorme, que os séculos reveste7n de
musgos ! , . .
Affigura-se-me a idea delicadíssima, com
um clássico sabor de impressionabilidade in-
dígena. Veja-se com que graciosidade o sen-
timento da longa duração se acha expresso
no seixo, que por justaposição se transforma
em rochedo gigante; e como a immutavel e
lO^
gloriosa tranquillidade se traduz pelos musgos
verdes, avelludando a rocha núa! . . . Outro,
mais habilidoso do que eu, poderá adaptar á
musica as palavras.
HYMNO JAPONEZ
MODKRATO
i
chi yo ni - - ya chi yo ni sa za re
-|-
tr^^"^=d
c:i-
i chi no i \va o to na ri te
t--W--^-.r:.zw--f-
-A-
t=±rt;t=-'
ko ke no nni - su
*!#
=1:r-Í^:í=1
:*zit
a-^H
ma
de
X
7 de junho de 1904
A guerra — O cerco de Porto Arthur — .\s perdas dos
japonezes na batalha de South Hill — -A queda pre-
vista de Porto Arthur — O que succederá depois? — •
Os futuros reforços da Rússia — O patriotismo e
heroicidade dos japonezes — Os próprios russos
sSo os primeiros a reconhecel-os — As noticias da
ultima hora — Scenas pueris- - Kxpediçílo de nove
damas americanas.
A O tempo em que escrevo esta carta, lances
sangrentos se travam ou pelo menos se
preparam para breve na península de Liao-
Tung, onde as forças japonezas se encontram
e apertam o circulo que tem por centro Porto
Arthur, contendo muitos milhares de soldados
russos; mas o telegrapho pouco falia agora.
Bem possivelmente, após os terríveis com-
bates de Kinchau e de South Hill, travados
nas mais duras condições, os japonezes en-
tregam-se a um curto mas indispensável
repouso, para de novo proseguirem com Ím-
petos medonhos até alcançarem o seu grande
íim desejado, que é a occupação de Porto
Arthur. Na batallia de South Hill as perdas
I05
japonezas foram de 4:211 homens, incluindo
749 mortos, dos quaes 46 eram officiaes; mas
conseguiram desalojar o inimigo d'aquella
fortissima posição, que na P^uropa se julgava
inexpugnável. Em Dalny, antes dos japonezes
alli entrarem, os russos poderam metter no
fundo uma canhoneira sua e varias lanchas
a vapor, a íim de não poderem ser úteis ao
inimigo, retirand(^-se depois para Porto Arthur.
Segundo a (opinião geral e em vista dos
factos consumados, Porto Arthur deve em
breve caliir em poder dos japonezes; pois
apesar das suas vastas fortificações e da
\'alorosa defeza que se espera das tropas
russas alli concentradas, nada resistirá á
indomável bravura dos filhos de Nippon, para
os quaes a vida nada vale, batendo-se como
leões para a única gloria da pátria. A empre-
za será terrível, no emtanto; morrerão 20:000
soldados, talvez mais, mas os restantes des-
fraldarão a bandeira do Sol Nascente sobre as
ruinas d'aquellc porto, que já foi japonez,
conquistado valorosamente á China, mas que
a politica russa fez restituir ao primitivo dono,
para pouco depois o chamar seu.
Que succederá depois ? A Rússia não se cansa
de apregoar a próxima concentração no thea-
tro da guerra de um immenso exercito e a
io6
chegada a estes mares, de uma esquadra
qiiasi fabulosa, que deve largar do Báltico. A
Rússia faz por ignorar todos os revezes soffri-
dos até agora, annunciando que a lucta ainda
não começou, alludindo assim ao momento da
chegada d'estes tremendos reforços, para
então iniciar a obra do esmagamento dos
japonezes, predita já pelo general Koropatkine.
A quem estuda imparcialmente as peripécias
do drama, parecem um tanto problemáticas
essa immensa concentração de forças russas
em uma região onde será difhcilimo alimen-
tal-as por alguns mezes, e a vinda de essa
nova esquadra a estas paragens, onde não
poderá contar com portos de abrigo, sem já
fallar na colossal empreza de poder chegar até
cá; mas tudo pôde ser possivel, quando es-
forços arrojadissimos se emprehendam e altas
coadjuvações, embora disfarçadas, se dispen-
sem. Soará então a hora da tremenda catas-
trophe para o Japão, obrigado a medir-se com
forças inimigas incomparavelmente superiores
ás forças de que poderá dispor e ainda por
cima minado pela escassez de recursos pecu-
niários? Possivelmente os japonezes terão
previsto este terrível desfecho e preferirão o
aniquilamento completo, cobertos de gloria
(porque ha derrotas gloriosas), c laureados
lo;
pela admiração do mundo inteiro, á v^ergonha
da tranquillidade que se lhes offerecia sob a
condição do sacrifício dos seus sonhos mais
caros de desenvolvimento e de expansão, na
região que geographicamente se prestava para
campo da sua marcha evolutiva. No emtanto,
estamos, por certo, ainda longe de poder
formular hypotheses temerárias. Admitta-se,
como dizem os russos, que a guerra ainda não
tenha começado; paira, com effeito, n'esta
parte do mundo, um sopro prenunciador de
não sei que gigantesca tempestade social, ex-
cedendo tudo que a imaginação nossa deva-
near; não se pôde, porém, prever nada posi-
tivo. Esperemos.
Ó velho espirito de bravura militar dos
japonezes resuscita, ou antes, adormecido
durante longos annos de progressos pacificos,
refloresce hoje com igual intensidade, causando
a admiração mundial.
Os próprios russos tecem os mais rasgados
elogios á heroicidade dos filhos de Nippon.
Contam os russos que, em uma das tentativas
do inimigo para obstruir Porto Arthur, os
marinheiros subiam aos mastros dos barcos
que se iam afundando sob a metralha dos
fortes para gritarem Banzai \ (^Viva!) pelo
imperador d(^ Japão antes de desapparecerem
io8
nas ondas. Em uma embarcação, que se
afundava, a guarnição subiu aos mastros para
agitar signaes e assim guiar os outros vapores
que se dirigiam ao mesmo local. Um mari-
nheiro foi descoberto pelos russos nadando
para terra; quando foi intimado a render-se,
empunhou o seu revolver, com o qual não
cessou de fazer fogo até que o mataram e
desappareceu no oceano.
Na batalha de South Hill, onde os russos
esperavam permanecer por um ou dous mezes,
graças á excellencia natural da situação e aos
recursos com que contavam, os japonezes
repetiram as cargas sem descanço, soffrendo
lerriveis perdas, até conseguirem desbaratar e
vencer o inimigo ; arrojo sem exemplo na his-
toria e que mostra quanto vale a tempera
d'estes asiáticos.
Em Osaka, a noticia das perdas na bata-
lha de South Hill foi recebida pelos parentes
das victimas com exemplar serenidade. As
auctoridades do deposito da divisão de Osaka,
ao possuírem a lista dos mortos, convocaram
no Club Militar as viuvas dos officiaes, ás
quaes transmittiram a triste nova. Todas se
mostraram dignamente conformadas, paten-
teando dons de coragem pouco vulgares no
seu sexo. A senhora Fujioka, esposa do te-
I09
nente-coronel do mesmo appellido, um dos
mortos, dirigiu-se depois para sua casa, onde
reuniu todos os filhos, fallando-lhes em pri-
meiro logar dos perigos a que anda sempre
exposta a vida do soldado ; depois annun-
ciou-lhes a morte do pai, exhortando-os a
que se conduzissem de futuro conforme os
desejos do defunto ; em vista da compostura
materna, os filhos supportaram silenciosa-
mente e corajosamente o seu golpe.
— Reservando um pequeno espaço para as
noticias da ultima hora, eis o que se me offe-
rece relatar.
O almirante Togo informa o seu governo
de que no dia 4 foram vistos pela esquadra
do bloqueio em Porto-Arthur vários navios
russos fora da barra, occupando-se na faina
de descobrir e retirar algumas minas subma-
rinas que os japonezes alli haviam collocado.
Uma canhoneira russa, presumidamente a
«Giljak», foi de encontro a uma das minas,
que fez explosão, afundando-se o barco. A
<s Giljak» era construída de aço, de 1:300 to-
neladas, com uma guarnição de 150 a 200
homens e fortemente armada.
Chegam noticias de origem russa de que
as forças moscovitas se decidiram finalmente
a tomar a offensiva c que um tremendo corpo
I IO
de exercito marcha para o sul cm soccorro de
Porto Arthiir, hoje sitiado pelo inimigo. Se-
gundo a imprensa local, o facto de vir a in-
formação do lado dos russos, que deveriam
ter todo o empenho em conservar secreto tal
movimento, faz acreditar que a noticia é uma
simples invenção, lançada no intuito de ame-
drontar os japonezes. Veremos.
Como succede em todos os grandes acon-
tecimentos, a guerra actual, ao passo que vai
urdindo grandes scenas tormentosas e com-
moventes, vai simultaneamente servindo de
pretexto para scenasinhas pueris e grotescas,
que não devem em todo o caso passar sem
commentario, pelo menos a titulo de salutares
diversões ao espirito sobresaltado do obser-
vador attento. No numero d'estas ultimas está
a expedição de umas nove damas americanas
da Sociedade da Cruz Vermelha da Great
Repiiblíc, as quaes chegaram a Yokohama ha
alguns dias, em resultado da sua espontânea
resolução de virem prestar serviço n'este im-
pério durante o conflicto que se fere. Eu vi-as
uma vez de relance, em um parque publico,
onde os pobres japonezes, que téem multiplica-
do inventos para ser agradáveis ás suas illus-
tres visitantes, lhes offereciam um Five o'clock
Tca, com acompanhamento de bolos e gelados,
III
uma das mil tVixolidades que as yankee mais
do intimo apreciam n'este mundo. As damas
\'estiam garridamente os seus uniformes de
combate brancos, com toucas brancas petu-
lantes, um pouco ás três pancadas sobre a
nucíi. Como physico, classificam-se pelo typo
de missionarias chegadas á idade das desillu-
sões, enormes de estatura, sem vislumbres de
graça, insexuaes, rostos angulosos e frios,
óculos terrificos nos narizes, mãos e pés de
tremendas proporções. Aqui se pespegam pois
estas seresmas, afim de cuidarem dos feridos
sem que ninguém as convidasse, e também
certamente e em primeiro logar afim de cui-
darem de si mesmas, do seu conforto, que
naturalmente inclue os vastos aposentos para
cada uma, os quartos de toiktte, de banho, o
salão commimi, as copiosas e variadas refei-
ções, talvez o seu copinho de ivhisky^ o chá
da tarde, sem contar as varias excursões ás
montanhas, o sport náutico, bicyclettista e
do kodack, as práticas religiosas e do tcnnis.
O que tem muita graça, é que os japone-
zes possuem cá uma Sociedade da Cruz Ver-
melha sua, que pôde ser considerada modelo
de perfeição no mundo inteiro, e um corpo de
enfermeiras superiormente educadas e habi-
lissimas. Estas enfermeiras, como authenticas
112
japonezinhas que são, têem todas umas cari-
nhas doces e sj^mpathicas, umas mãos de fadas
próprias para todos os desvelos ; são extrema-
mente carinhosas, asseadas, modestíssimas em
exigências, contentando-se com o seu jantari-
nho de arroz cozido, dormindo á noute em com-
mum, sem leitos, sobre a esteira de um cubi-
culo. Os feridos russos, no hospital de Mat-
zuyama, adoram-nas ; di\^ertem-se a jogar a
pélla com ellas, como creanças com creanças.
Emfim, nob lesse oblígc, e os japonezes não
tiveram remédio senão aceitar os serviços
impostos e acabam de enviar as nove damas
para os hospitaes de Hiroshima. Estou certo
de que não deixarão de implorar os seus deu-
ses para que não lhes mandem mais d'estes
exemplares de hysteria caridosa, que tão impor-
tunos e dispendiosos se lhes tornarão ; se a
America teima em ser amável, que a gentileza
feminina se transfira aos manos e aos maridos,
para que, na hypothese de um segundo em-
préstimo para acudir ás despezas da guerra,
elles se mostrem menos propensos á agiotagem
do que se mostraram no primeiro empréstimo,
realisado ha algumas semanas.
Xí
19 de julho de 1904
A tcinperalLira -A guena — A iíuropa e as victorias
japonczas — Porto Aithur — A importância da to-
mada d'esta praça pelos japonezes — Os últimos
acontecimentos — Algumas phrases sobre o Japão
e o povo japonez, escriptas por notáveis viajantes
-O que disse S. Francisco Xavier a respeito do
Japão — Impressões dos japonezes que teem visi-
tado a Europa.
(^oM a temperatura tropical que reina agora,
embora por pouco tempo, n 'estas pa-
ragens, tornada repetidamente ainda mais in-
supportavel pelas rajadas abrazadoras dos tu-
toes que passam perto e pelo ar húmido e
pesado que se respira, as forças falham, as
aptidões fallecem ; e, francamente, seria uma
duríssima tarefa o tentar reunir ideias para
descrever minuciosamente as peripécias da
guerra e critical-as em seguida. Felizmente
para o meu caso, as noticias não teem abun-
dado muito durante estes últimos dias, se
pozermos de parte citações menos importantes
com referencia a wiriadas escaramuças trava-
114
das em cem pontos diversos, denominados
por nomes bárbaros quaesquer, que nem
mesmo se encontram nas cartas mais minu-
ciosas. Eftectivamente, com respeito á guerra,
paira agora aqui como que uma calmaria
ameaçadora, similhante ás ameaçadoras calma-
rias meteorológicas, annunciadoras da próxima
tempestade. A tempestade prevista e que con-
serva em suspensão as attenções do mundo
inteiro, será uma grande batalha nas plani-
cies que avisinham Sianyang, ou o tremendo
assalto aos últimos fortes e entrincheiramentos
de Porto Arthur, sendo qualquer dos dous
acontecimentos de uma importância capital
para os futuros successos da contenda. A
Europa, quasi por completo hostil aos japone-
zes no começo das hostilidades, electrisa-se
perante os admiráveis arrojos e as successivas
victorias d'estes incomparáveis amarellos, que
luctam como tigres pela independência e pelo
engrandecimento da sua pátria e pelas prospe-
ridades de toda a vasta região extremo oriental ;
e a Europa, coUocando-se a pouco e pouco do
lado dos nippons, aguarda anciosa pelos suc-
cessos futuros, confia nas suas glorias e está
prompta para gritar com elles: — «Banzai!
Banzai pelo Japão ! . . . »
Ha dias, O — kiku San — a snr.'"* Chrysan-
115
themo (mas não a de Loti) — dizia-me em
confidencia que, ás escondidas da mãe, estava
cuidando de arranjar um traje completo á
europeia — saia, hlotise, botas, chaspellinho e
tudo o mais, — para assim se vestir quando
íbr annunciado que Porto Arthur cahiu nas
mãos dos japonezes ; e ir assim para a rua,
pimpona, assistir ás commemorações que se
projectam, lui sorri e promctti que as meias
lhe offereceria eu, um par de meias de seda
preta mui janotas, para calçarem os seus pési-
tos aK^os, invariavelmente nús sobre as estei-
ras. \^istam-se, pois, á europeia todas as viu-
sumcs, e á japoneza todas as meninas europeias,
e vão todas, e vamos todos festejar a tomada
de Porto Arthur, quando se dér e se se dér,
é que constituirá talvez o acontecimento mais
notável, não do século xx, que ainda não
tem historia, mas de toda a historia moderna
da humanidade em pezo ! . . .
A tomada de Porto Arthur pelos japonezes
será, effectivamente, de uma importância im-
mensa para os acontecimentos futuros ; impor-
tância moral, que se alastrará por toda a
China e irá mesmo mais longe ; importância
material e immediata, pois representará ao
mesmo tempo, segundo todas as probabilida-
des, o aniquillamento da esquadra russa, que
IIÓ
terá de render-se ao inimigo dentro de Porto
Arthur, se os i-iissos não preferirem destruil-a
e afundal-a por si próprios, ou então se verá
forçada a sahir para o mar e a ser destruída
pelos navios japonezes, podendo ainda admit-
tir-se a hypothese de alguns navios russos
poderem ganhar algum porto neutro da costa
da China, onde, segundo todos os usos inter-
nacionaes, deverão ser detidos até findarem
as hostilidades.
Mas cahirá, realmente. Porto Arthur nas
mãos dos japonezes? Tudo faz prever que
assim aconteça, quando se não supponha que
o exercito inteiro nipponico seja abrazado em
chammas e reduzido a cinzas pelas minas sub-
terrâneas que os russos hajam collocado na
sua passagem, como ha alguns dias certos
boatos, vindos de fora, de mui pouco credito,
tentavam íazer acreditar.
Mas vamos á rezenha dos últimos aconte-
cimentos. Em 8 do corrente, occupação de
Kaiping pelos japonezes, facto que os torna
senhores de toda a proxincia de Liaotung,
com excepção de Porto Arthur, que está nas
condições que todos conhecem.
Em 6, deu-se o tacto significativo de ter
partido de Tok^^o para o campo do conflicto o
marechal marquez Oyama, investido do alto
n;
cargo de commandante eni chefe de todas as
forças japonezas na Mandchiiria; o marquez
vai acompanhado de um brilhante estado
maior, cujo chefe é o prestigioso barão de
Kodama. A esquadra de Togo tem feito repe-
tidos ataques a Porto Arthur, constando que,
em 2/ de junho, um cruzador e um destroyet
russos foram a pique, e que, em 8 do corrente,
o poderoso cruzador «Askold» s')ffreu grossa
avaria. A canhoneira japoneza « Kaimon » foi
pelos ares perto de Talienvvan, por ter tocado
em uma mina submarina russíi ; morreram
umas 20 pessoas, incluindo o commandante
da canhoneira. O vice-almirante Kaminura, um
dos menos felizes ofíiciaes japonezes na pre-
sente canipanha, conseguiu encontrai' no mar
os navios russos de \'ladivostok, quando estes
tentavam, presumivelmente, dirigir-se a Porto
Arthur; Kaminura pôde evitar que tal aconte-
cesse, mas não logrou atacar os n.ivios russos,
que beneticiaram de um denso nevoeiro e
voltaram ao seu habitual refugio de Vladi-
vostok.
Um triste incidente a relatar: consta que,
ha alguns dias, os russos passearam pelas
ruas de Porto Arthur dous officiaes japonezes
seus prisioneiros, no intuito de incitar o animo
das tropas moscovitas; os dous officiaes, ijão
118
podendo resistir íio ultrage, suicidarani-se de-
pois. Se o facto é \'erdadeiro, cabe enorme
responsabilidade a quem auctorisou tamanha
ignomnia, tendente a desprestigiar um exercito
inteiro de uma nação que se diz de raça bran-
ca, com altas pretençòes de civilisada; em
nenhumas circumstancias os japonezes seriam
capazes de commetter tão grande infâmia,
positiv^amente.
Mais tristes incidentes : estão sendo aqui
commentados com a maior indignação, não
só pelos japonezes, mas pela imprensa estran-
geira, os factos, conhecidos por telegrammas,
de terem sahido do mar Negro alguns barcos
da frota mercante russa, os quaes, depois se
arvoraram em cruzadores de guerra, apresando
o vapor ingiez « Malacca » e apossando-se da
mala de correspondência para o Japão, que
vinha a bordo do vapor allemão <-. Prinz Hein-
rich » ; esta ultima proeza é simplesmente clas-
sificada de pirataria pelo jornal ingiez mais
respeitado de todos que se publicam n'este
império. Confiemos em que as potencias neu-
traes tomarão sérias providencias.
— Como agora o Japão e os japonezes
estão occupando intensamente as attenções do
mundo inteiro, não é certamente inopportuno
recordar n'este logar algumas phrases sobre
119
este império c sobre este povo, escriptas por
notáveis viajantes que por aqui téem passado.
No entretanto, é curioso observar que sobre o
assumpto se téem escripto e dito as opiniões
mais diversas e contradictoiias ; e eu apostaria
até que não se encontram dous residentes
estrangeiros no Japão que pensem identica-
mente em tal matéria.
S. P^rancisco Xavier, em meados do século
XVI, diz: — «Esta nação é a delicia da minha
alma».
Diz VVill Adams, nos principios do século
XV II : — «O povo d'esta ilha do Japão é bom
de natureza, excessiv-amente cortez e valente
na guerra. A justiça é seguramente exercida
sem nenhuma parcialidade contra os trans-
gressores da lei •> .
F^screve o allemão Engelbert Ksempfer, no
tim do século xvii : — «Arrojados... herói-
cos. . . vingativos. . . desejosos de fama. . .
muito industriosos e soffredores de fadigas. . .
grandes favoritos de civilidades e de boas
maneiras e muito garridos em si próprios, nas
suas vestes e casas, tudo limpo e asseado. . .
Em toda a espécie de trabalhos manuaes, se-
jam de luxo ou utilitários, não lhes faltam
materiaes e habilidades ; e tanto assim é que,
se téem ensejo de chamarem mestres de fora.
I20
excedem muito todas as outras nações em
engenho e esmero de acabamento, particular-
mente em obras de latão, ouro, prata e
cobre. . . Professam um grande respeito e
adoração pelos seus deuses, adorando-os por
vários modos : e supponho poder affirmar que
em prática de virtudes, em pureza de vida e
devoção exterior, elles estão muito acima dos
christãos ».
Sir Rutherford Alcock escrevia em 1860
esta phrase, que se popularisou até hoje como
um provérbio : — «O Japão é um verdadeiro
paraizo das creanças». — N'outro logar, diz o
mesmo auctor: — «Ha aqui um erro algures,
do qual resulta que n'uni dos mais encantado-
res e férteis paizes do mundo inteiro as flores
não téem perfume, as aves não téem canto e
os fructos e os vegetaes não téem sabor». Um
dos meus collegas dá as caracteristicas d'esta
terra por uma outra trilogia, da qual devo
limitar-me em dizer que não é inferior em
exactidão, embora talvez menos poética : —
« mulheres sem saias de balão, casas sem
percevejos e paiz sem advogados » ( tem-nos
agora já, mas ainda não tem percevejos). —
Acrescentarei, por conta própria, que ha ainda
uma outra trilogia, popular entre residentes
europeus e provavelmente inventada por algum
121
d'elles em uma hora de azedume : — < Flores
sem odor, fructos sem sabor e mulheres sem
pudor. *
— «No -que respeita á feição moral, a me-
dia japoneza é franca, honesta, fiel, carinhosa,
gentil, cortez, confiante, dedicada, filial, leal.
O amor da verdade pela verdade, a castidade,
a temperança, não são virtudes características»
(porque são geraes). — Assim escreve o vev,
VV. E. Griffin.
— « Seguramente, para a alegria, delicadeza
se obriedade, para branduras de voz e sempre
risonha tagarelice, para a abençoada faculdade
de colher das mais simples coisas um são
aprazimento. . . nenhum outro paiz pôde aspi-
rar a mostrar primazias sobre uma multidão
festival no Japão. » — (General Palmer.)
Persival Lowell nota uma sensível falta de
originalidade nos japonezes e acrescenta : —
« Modificações sobre motivos estrangeiros, mo-
dificações sempre artísticas e algumas vezes
deliciosamente engenhosas marcam a extensão
da originalidade japoneza. . . Uma geral in-
capacidade para ideias abstractas é outra
notável característica do intellecto do japo-
nez Por ultimo, o decoroso comporta-
mento do povo inteiro acusa a falta da sua
actividade mental; não são os costumes que
6
122
fazem o caracter, mas sim o caracter que de-
cide dos costumes. Não se esperam pensamen-
tos arrojados de uma etiqueta tão estranha-
mente cumprida.»
— «Os japonezes impressionam-me como
o povo mais feio e mais divertido que eu
tenho visto, e ao mesmo tempo o mais limpo
e engenhoso.» — (Miss Bird),
— «A terra das gentis maneiras e das
artes phantasticas. . . Os japonezes téem uma
alma mais de pássaro ou de borboletas do
que de ordinários seres humanos. . . Não serão
elles que tomarão e poderão tomar a vida a
sério.» — (Sir E. Arnold.)
— «O Japão provou de mais aos euro-
peus ; o jogo agora é d'elle, que explora os ex-
ploradores.»— (W. Lawson).
— « Certamente a terra do sol nascente,
mas também a terra do occaso do romance»
— (Curt Netto.)
— «O Japão dos nossos dias é uma tradu-
cção mal feita » — (Um residente diplomata.)
— « A terra do desapontamento. » — (Um
antigo residente.)
O conhecido Loti, tão enthusiasta do
Oriente, não professa a mesma alta estima
pelo Extremo-Oriente ; sendo certo que, com
respeito ao Japão, não são poucas as paginas
123
cscriptas do seu punho em que tudo se depri-
me, terra e povo. O famoso romance Madame
Chrysanthcmc é um dos volumes de Loti
onde mais se tenta redicularisar os japonezes,
especialmente as japonezas, o que mereceu
do escriptor Hitomi, no seu recente livro Le
Japon, as seguintes curiosas observações: —
« Alguns viajantes estrangeiros téem julgado
as japonezas pelas criadas do hotel ou pelas
mulheres fáceis que encontraram. Não tendo
occasião de vêr as mulheres honestas senão
na rua e não tendo jamais fallado com ellas,
pretenderam tornal-as conhecidas de nós todos.
Não faltam exemplos bem tristes de quantos
erros grosseiros, de quantas injustiças tal le-
viandade tem originado ; mas acreditemos que
os povos civilisados não se deixam enganar
por observadores tão superficiaes. . . » — E con-
tinua, em termos mais realistas, condemnando
o citado romance de Loti.
Fiquemos por aqui, no respeitante a cita-
ções. Concluirei, fazendo umas ligeiras referen-
cias ao que parece mais impressionar, do nosso
lado, os japonezes que visitam a Europa e
relanceiam os nossos costumes; cito para o
caso, em resumo, o que diz sobre o assumpto
o auctorisado professor Chamberlain no seu
precioso livro Things Japanesc, As nossas
124
mais notáveis características, segundo a critica
japoneza, resumem-se n'esta trilogia: — falta
de limpeza, preguiça e superstição. — Sobre o
primeiro ponto, nada temos para allegar em
nossa defeza; sem já fallar nos differentes
cuidados de asseio, que merecem as casas ja-
ponezas e as nossas, basta que se considere
que o banho é ainda na Europa uma prática
quasi luxuosa, da qual se abstém, por econo-
mia e por aversão, a grande maioria das popu-
lações; pois no Japão toda a gente toma
banhos, geralmente diários, não havendo infima
aldeia provinciana que não possua casas de
banhos públicos, orçando a admissão por cerca
de IO réis ou mesmo menos. Com respeito ao
segundo ponto, não se. estranhe que nos alcu-
nhe de e preguiçosos :> um povo que compara
os hábitos dos nossos operários, com os seus
domingos, com os seus dias santos, com
os seus feriados, ao dia de trabalho japonez,
que é de 15 horas, attingindo 365 o numero
de dias de trabalho de cada anno. Com
referencia ao ultimo ponto, talvez tenham
razão os japonezes em chamar-nos supersti-
ciosos ; em todo o caso, os exaggêros em que
descambem a tal respeito, serão filhos da in-
competência critica com que elles obser\'am as
nossas igrejas e as nossas cerimonias cultuaes.
125
O que se conclue de tudo isto é que o japonez,
contra o que poderia julgar-se, pouco se des-
lumbra com os aspectos da nossa civilisação,
voltando á pátria sem perda sensível dos sen-
timentos amorosos e exclusivistas que tributa
ao seu Dai-Níppon.
XII
27 de Julho de 1904
Maravilhoso espectáculo dado pelo Japão ao mundo —
A sua evoluçíío industrial c scientifica — Recursos
de que o Japão dispõe para defender os seus inte-
resses por meio das armas — O seu prestigio —
Raças branca e asiática — Os progressos do Japa©
— Causas especiaes a que obedecem esses progres-
sos— A Rússia — Os acontecimentos da guerra —
Porto Arthur e Liao-Yang — O apresamento de
navios pelos russos — P2squadra de Vladivostock —
Os mestiços japonezes.
II MARAVILHOSO cspectacLilo dado pelo Ja-
^"^^ pão ao mundo pela evolução indus-
trial e scientifica por que tem passado desde
1868, isto é, desde o advento do novo regimen
politico do império, evolução ainda o anno
passado brilhantissimamente confirmada na
exposição de Osaka, não deve deixar duvidas
áquelles que estudam attentamente este paiz
sobre o seguinte facto : que a moderna orienta-
ção das actividades pacificas não constitue um
traço exclusivo da raça branca, pois que os
nipponicos, povo asiático, a attingem, annun-
ciando-se desde já como intelligentissimos com-
127
petidores no campo do trabalho, da industria,
do commercio e de todas as energias pro-
ductoras.
Debaixo de um outro ponto de vista, o
Japão tem-se mostrado, durante os últimos
cinco mezes, igual, se não superior, aos prin-
cipaes Estados cultos: refiro-me aos recursos
com que conta, materiaes e scientificos, para
defender por meio das armas os seus interesses,
contra uma nação que pretende offendel-os. E
o exemplo não poderia ser mais eloquente do
que este a que assistimos, porque a nação
que se apresenta em campo, é nada menos do
que o colosso do norte, que se impõe dura-
mente na Europa pelo prestigio do seu im-
menso solo, da sua enorme população, dos
seus grandes recursos.
Effectivamente, o sorriso motejador que em
geral mereceu, nos centros cultos, a attitude
firme do Japão ao declarar a guerra á Rússia,
já hoje não seria desculpável, por simplesmente
alvar. Os japonezes estão cobertos de gloria;
a sua acção, quer por mar, quer por terra,
tem sido sempre victoriosa; a sua táctica tem
sido admirável e sobejamente comprovativa
da alta capacidade do exercito nipponico e da
marinha nipponica. Quanto á Rússia, está
humilhada, o seu prestigio afunda-se. Nem já
128
vale a pena fallar nos apregoados planos
estratégicos do general Kuropatkine; ha apenas
confusão, desorganisação, desmoralisação. A
partida nao está ganha ainda; mas o que se
pôde desde já affirmar, é que se a Rússia fòr^
por íim, vencedora, não o deverá á pericia dos
seus generaes, mas á enorme massa de homens
que poderá um dia enviar á Mandchuria ao
encontro dos heroes nipponicos.
Tira-se de todos estes factos um importan-
tíssimo conceito, que ainda ha poucos mezes
ninguém ousaria formular: é o não se poder
mais admittir a raça branca como uma raça
privilegiada, a que as outras. raças devam fatal-
mente obediência. O Japão, asiático, combate
contra a Rússia, de raça branca, e apresenta-se
superior a ella; o Japão, asiático, mostra ao
mesmo tempo um desenvolvimento de traba-
lho e um grau de civilisação muito superiores
ao desenvolvimento de trabalho e ao grau de
civilisação de muitos dos Estados da raça
branca. A superioridade do branco não tem,
pois, razão de ser apregoada, pois não se é
superior por se ter os olhos azues ou os ca-
bellos louros, mas pelos progressos realisados
nas conquistas positivas da evolução da tribu.
Se, admittindo, como não se pôde deixar
de admittir, o grau invejável de progressos
129
materiaes do Japão, tentássemos depreciar o
japonez com respeito ao seu feitio moral,
psy Chico, resvalariamos para o campo da ma-
nifesta banalidade. Não é dado ao homem
julgar em absoluto os differentes modos de ser
sentimentaes do seu similhante; não pôde
dizer, por exemplo, que a ideia que elle liga
á familia, ou á mulher, ou a Deus, é superior
á ideia que á familia, ou á mulher, ou a Deus
liga um homem de outras crenças. Os myste-
rios da alma são insondáveis; a excellencia
dos homens mede-se unicamente pelas suas
acções.
Ora, seria pueril admittir que a nação ja-
poneza seja wii. povo eleito do Sejihor. Se, de
facto, os nipponicos apresentam um exemplo
frisantissimo, único, de desenvolvimento em
harmonia com a e\'olução moderna, mundial,
é isto certamente devido a causas especiaes,
eventuaes, que favoreceram optimamente tal
desenvolvimento ; e entra na ordem das cousas
naturaes que um outro povo asiático, o chinez
por exemplo, attinja um dia idêntico desenvol-
vimento. Eu imagino que uma das conse-
quências da guerra actual pôde ser o reconhe-
cimento pelos povos de raça branca d'este
principio, a saber, que os povos de outras raças
são capazes de adquirir um alto grau de civi-
I30
lisação, de modo a poderem cuidar dos seus
interesses sem tutella e a defendel-os pelas
armas contra aggressões de estranhos. Possi-
velmente, uma tal noção levará os Estados
modernos a serem mais prudentes na sua
expansão colonial, hoje mais cubiçosa do que
nunca; não porque reconheçam a justiça da
causa dos povos que escravisam, mas por
uma prudente precaução contra a natural des-
forra dos escravisados. Como actualmente as
colónias e as zonas de influencia constituem a
vacca leiteira da qual os Estados e os grandes
syndicatos tiram os maiores proventos para a
satisfação dos seus desmandos e dos seus ca-
prichos, o retrahimento da expansão colonial
deve fazer prever uma medonha crise econó-
mica geral. Será então occasião de se voltarem
as attenções para um problema que, apesar
da sua immensa importância, nunca se estu-
dou, pelo menos nos gabinetes dos dirigentes,
— qual é o da mais equitativa distribuição das
riquezas, erguendo um dique contra o desme-
surado monopólio das grandes fortunas, das
quaes beneficiam três ou quatro millionarios
á custa do sangue da grande massa das po-
pulações.
No campo restricto a que visam especial-
mente estas linhas, quanto poderia fazer a
I
131
Kiissia, se, em vez de lançar as garras avaren-
tas a um solo longinquo que não lhe pertence,
cuidasse pelo contrario de melhorar os seus
males internos, resgatando o povo, misérrimo
miijik, das algemas que o opprimem, derra-
mando sobre elle a instrucção de que carece,
facultando-lhe os meios de elevar-se pelo tra-
balho e de augmentar o seu conforto ! . . .
— Por aqui, as attençoes estão-se princi-
palmente concentrando na perspectiva emocio-
nante do assalto decisivo a Porto Arthur e
nas probabilidades de uma tremenda batalha
nas visinhanças de Liao-Yang. A derrota das
forças que guarnecem Porto Arthur e a con-
sequente occupação da praça pelos soldados
de Nippon parecem certas, embora custem mui-
tos milhares de vidas ao intemerato belligerante
asiático. Demora-se o acontecimento, o que
mais faz convencer que os japonezes tomam
todas as precauções para só ferirem o combate
quando estiverem certos da victoria.
Fora dMsto, dois acontecimentos recentes
estão despertando uma viva commoção no
meio onde me encontro. Um é a pirataria
exercida pelos navios mercantes russos, mas-
carados em .vasos de guerra, pirataria que
se realisou nas aguas do mar Vermelho
e de que foram victimas um paquete da
132
mala imperial allemã e outro de uma Compa-
nhia ingleza. Não insisto no assumpto, que a
estas horas deve já ser bem conhecido em
toda a Europa; direi apenas que estes factos
vêem de molde a fazer eliminar da causa russa
as sympathias mundiaes, sendo por si bem
eloquente o enérgico procedimento que toma-
ram os dous governos oífendidos. Acreditam-se
agora mais facilmente as repetidas queixas
que os japonezes fazem do procedimento do
inimigo, cujas forças, nas peripécias mais gra-
ves das batalhas, não se pejam de arvorar a
bandeira branca, ou mesmo a bandeira japo-
neza, para assim poderem fugir sob tão prote-
ctoras insígnias.
O segundo acontecimento, muito digno de
attenção, é uma nova sortida da esquadra de
Vladivostok, conseguindo d'esta vez atraves-
sar o estreito de Tsugaru, que separa a ilha
de Yezo da grande ilha de Nippon, entrando
assim em pleno Pacifiico. Esta esquadra é
composta dos magníficos cruzadores «Rússia»,
«Rurik» e «Gromovoi» e possivelmente de
alguns torpedeiros.
Ha alguns dias que estes navios se encon-
tram cruzando nas visinhanças de Yokohama,
á espreita dos barcos mercantes que passam
ao seu alcance, os quaes apresam ou mettem a
133
pique. Comprehende-se a situação alarmante
e os gravissimos inconvenientes que ella traz
ao commercio em geral. Mal se prevê quaes
sejam as intenções finaes da esquadra russa,
pensando uns que tratará de regressar a Vla-
divostok, outros que procurará alcançar Porto
Arthur no dcsignio de juntar-se aos navios
russos que se encontram n'aquelle porto, o
que redundará certamente n'um grande com-
bate naval com a esquadra de Togo. E tal é
a durissima e inadiável empreza em que se
acha empenhada n'este momento afrotajapo-
neza para os lados de Liaotung, que ainda
lhe não permittiu o poder destacar alguns dos
seus navios para o Pacifico, de modo a darem
caça aos três barcos inimigos e a restabelece-
rem a segurança da navegação mercante na
costa Occidental do império.
— Nas cidades do Japão mais povoadas de
europeus, Yokohama, Kobe, Nagasaki, e ainda
accidentalmente em outros pontos, não é raro
encontrar exemplares de mestiços japonezes,
em geral filhos de mãe japoneza e de pae
europeu. Em boa verdade, são relativamente
raros os casaes em que o marido é japonez e
a mulher europeia, devidos em regra taes
enlaces de excepção á circumstancia de muitos
nipponicos permanecerem por alguns annos
134
na Europa ou na America, occupados em
estudos ou em negocio, sendo alguns attingi-
dos pelas settas travessas do Cupido louro
das nossas cidades. O caso contrario — marido
europeu e esposa japoneza— é aqui bem mais
frequente, e ainda em muito maior proporção
o das ligações fortuitas, não consagradas, mas
não menos proliferas — louvado Deus ! — em
que o varão pertence sempre á raça branca.
O certo é que, como eu ia dizendo, o mestiço
japonez já hoje não é raro ; pelas ruas popu-
losas encontram-se muitas vezes figurinhas
exóticas de creanças louras e de olhos azues,
vestindo kímofws indigenas, calçando sandálias
nos pés nús, tagarelando em excellente lingua
do paiz com a garotada japoneza.
Apresso-me a dizer que, na minha opinião
e na de muitos, o typo mestiço é em geral
physicamente inferior ao japonez e ao europeu,
dos quaes deriva, parecendo que o t3'po moral
é também geralmente inferior ao de cada uma
das duas raças componentes. Os mestiços
chinezes, hoje abundantes em Hong-Kong, em
Shangai e n 'outros pontos, offerecem a meu
vôr melhores productos.
Seria, por certo, interessante e útil estudar
attentamente o mestiço japonez, pelo que res-
peita aos seus dotes physicos e moraes, qua-
135
lidades resistentes e progenitoras, ctc, procu-
rando estabelecer qual seja a sua influencia
futura na ev^olução do paiz. E\ porém, muito
cedo para emprehender tal estudo. Nada se
pôde averiguar do que interessa a época
anterior, quando os primeiros europeus, prin-
cipalmente portuguezes, começaram a concor-
rer ao Japão. Os mestiços japonezes, reconhe-
cidos como taes, datam do segundo periodo
em que se estabeleceram relações estranhas
com este povo, isto é, desde cerca de 1854;
são em via de regra jovens e poucos ainda
terão filhos ; no entretanto, se nos apoiarmos
em observações scientificas do mesmo género,
esta meia-raça desapparecerá á terceira ou
quarta geração.
Os chinezes chamam aos seus mestiços
«fan-kuai-sai », isto é, « íilhos-do-diabo-bran-
co » ; os japonezes, mais cortezes e sobretudo
mais humoristicos, chamam aos seus «ainoko»,
isto é, «filhos do amor». Quantas referencias
philosophicas n'esta só palavra «ainoko» ! . . .
XIII
10 de agosto de 1904
Os últimos acontecimentos da guerra — A esquadra
russa de Vladivostok — Desastres soffridos por vá-
rios navios mercantes japonezes — Avultadas per-
das materiacs — Como se effectua este corso — Porto
Arthur — O exercito russo — Os seus revezes — A
guerra acusa já um grande phenomeno de ordem
moral: as sympathias pela causa japoncza — Por-
tugal c o Japão — Feições moraes do povo japonez
— A arte e a sensibilidade d'este povo — Surprezas
na arte de jardinagem — Um instantâneo.
I^UMPRK-MK, na minha missão de chronista,
^""^ ir relatando aos leitores os últimos acon-
tecimentos da guerra, ou antes, commentan-
do-os, a meu modo, porque as noticias tele-
graphicas, embora recheadas de petas (nunca
se mentiu tanto pelo telegrapho como agora),
já ha muito lhes levaram informação circum-
stanciada dos factos occorridos.
A esquadra russa de Vladivostok já re-
gressou ao seu porto de refugio, após um
cruzeiro de alguns dias na costa leste do Japão,
assignalado por uma longa lista de desastres
soffridos por vários navios mercantes, japone-
137
zes c neiítraes, sendo uns mettidos a pique e
outros levados para Vladivostok, onde prova-
velmente serão julgados boas prezas. Alguns
navios de guerra japonezes foram expedidos
em perseguição dos três cruzadores russos e
parece mesmo que chegaram a avistal-os ; mas
esses cruzadores que são exccl lentes barcos e
dispõem de velocidade magnifica, podéram
evitar o combate; decididamente não estava
no seu programma de operações entrarem
em fogo.
Estas sortidas dos- navios de \'ladivostok,
tornadas agora mais frequentes e que prova-
velmente se repetirão ainda, emquanto a
esquadra de Togo se achar empenhada no
bloqueio de Porto Arthur, téem occasionado
avultadissimas perdas materiaes e também de
vidas, e tendem a difficultar immensamente o
commercio estrangeiro com o Japão. No entre-
tanto, servem ellas para pôr em relevo as in-
calculáveis vantagens que o Japão encontrou
na acção enérgica da sua esquadra, tornando-o
senhor dos mares visinhos ; pois se imagina,
por estas sortidas fortuitas, o que teria succe-
dido se os navios russos encontrassem facili-
dades para cruzarem constantemente nas pro-
ximidades das costas nipponicas.
Com respeito a este papel de corsário, que
138
uma secção das forças navaes russas se apraz
em ir desempenhando (a outra secção limita-se
á quasi absoluta passibilidade em Porto Arthur),
não se pôde, em rigor, condemnar tal pro-
gramma, posto que elle não seja de molde a
exaltar os brios da marinha do czar. O que é
altamente condemnavel é a maneira como este
corso se vai exercendo, em manifesta opposi-
Ção a todas as regras de direito internacional
em uso e aos costumes humanitários seguidos
pelos povos cultos. Confiamos que as grandes
potencias da Europa e da America, feridas
no seu orgulho e nos seus interesses por tão
insólito procedimento, saberão chamar á ordem
o colosso do norte, como urge que se faça.
Agora a parte cómica (porque faz bem ir
rindo sempre) do ultimo cruzeiro dos navios
de Vladivostok. O almirante Skrydloff, chefe
de todas as forças navaes russas no theatro
da guerra, dá conta telegraphica ao seu sobe-
rano dos feitos realisados; dois vapores neu-
traes foram postos a pique, um outro vapor
neutral aprisionado e três pequenos barcos de
vela japonezes, com carga de sal (para usos
de pesca), igualmente afundados; e termina
informando que os três cruzadores recolheram
a Vladivostok. . . sem avarias e sem a perda
de um só homem.
139
Bravo ! Os três cruzadores vão para o mar
como três ladrões de estrada vão para o
campo; acommettem os incautos e desarma-
dos transeuntes, espoliam-nos dos seus have-
res, descarregam sobre elles os bacamartes ;
fogem da esquadra japoneza, quando aperce-
bem na linha do horizonte as columnas esguias
do fumo das suas chaminés ; recolhem em paz
a seus penates. . . E não houve avarias, nem
perdas de um só homem. Pudera ! O contrario
é que seria portentoso ! . . .
— De Porto Arthur nada se sabe ao certo,
estando prohibida a publicação de quaesquer
noticias que se lhe refiram. No entretanto,
boatos transpiram ; um grande desfecho é
esperado por estes dias.
Em terra, ha a registrar uma serie de acon-
tecimentos auspiciosos para as armas japone-
zas. Confirma-se a tomada de Tasbichao e de
Nevvchwang; para este ultimo ponto, onde
funcciona um posto da alfandega imperial chi-
neza, já foi requisitado pessoal japonez pela
superintendência de Peldm. O general Kuroki
atacou os russos perto de Motienling, a no-
roeste de Liao-Yang, do que resultou, após
varias operações, a retirada do inimigo. Por
ultimo, chega-nos noticia de um telegram-
ma que Kuropatkine acaba de dirigir ao
I40
czar, informando-o do movimento de retirada
das forças russas para o interior, duramente
dizimadas pelos japonezes e pelo calor abrazador
da região, e que termina fazendo votos para
que as tropas imperiaes possam resistir ao
inimigo na nova situação onde se encontram.
Este telegramma parece constituir a con-
fissão formal da extraordinária série de desas-
tres soffridos pelo exercito moscovita desde o
inicio das hostilidades e do desanimo que
lavra entre elle.
— A guerra russo-japoneza, que tanto
está maravilhando a Europa inteira, acusa
já um grande phenomeno de ordem moral, que
vem compensar em parte os japonezes dos
duros sacrifícios que para elles representa esta
lucta gigante, ferida no interesse das suas
mais caras e justas aspirações; este grande
phenomeno é a larga corrente de sympathias
que se manifesta e engrossa, dia a dia, em
todos os centros cultos, pela causa nipponica.
O que de melhor resta ainda no intimo da
nossa sensibilidade, não de todo embotada
pelo egoismo delirante que caracterisa a época
social que atravessamos, emociona-se, electri-
sa-se, perante as qualidades extraordinárias
que hoje patenteia este povo longínquo das
ilhas do Pacifico.
141
Referindo-me especialmente a um cantinho
do mundo, mas que mais amorosamente me
interessa do que este mundo todo, referin-
do-me a Portugal, observo que no meu paiz,
onde ha poucos mezes o Japão era quasi um
nome desconhecido, se inicia um notável mo-
vimento de interesse e de estima pelos nippo-
nicos e pela sua causa; provam-no a voz da
imprensa, que anda muito empenhada no
assumpto, e as notáveis conferencias já levadas
a effeito em alguns dos nossos centros intelle-
ctuaes, tendo igualmente por thema os japo-
nezes. Tal movimento, quando chegar a paz,
que ha-de chegar, pôde levar-nos a estreitar
mais intimas e profiquas relações com o impé-
rio do Japtão, visinho do nosso Macau e ligado
intimamente ás nossas gloriosas tradições his-
tóricas. Mas poderá muito mais acontecer: o
exemplo do esforço hercúleo, sem precedentes,
que representa a evolução social japoneza nos
últimos cincoenta annos, é contagioso, quando
a sympathia facilite a propagação ; este exem-
plo poderá acaso vir sacudir os nossos nervos
de heroes adormecidos e nostálgicos, incutindo-
nos desejos novos de trabalharmos mais pelo
nosso bem. Seria extremamente curioso o
duplo phenomeno, do dominio material e do
dominio psychico, que poderia succeder então:
142
— Mendes Pinto leva aos japonezes as pri-
meiras armas de fogo e ensina-lhes o seu
manejo; mais de três séculos depois os portu-
guezes compram aos japonezes os seus primo-
rosos canhões para irem guarnecer Macau;
estes asiáticos receberam dos nossos viajantes
as primeiras noções da civilisação occidental,
e seriam elles a inocular-nos agora, embora
inconscientemente, o sopro vivificante que
deve impellir os povos modernos nas suas
actividades creadoras. Estranha lei de permu-
tações e de compensações, realisada nas armas
de fogo e reali sável nas ideias abstractas da
evolução social! . . .
— Quando se estuda com intenções de
sympathia, ou pelo menos de sinceridade, o
povo japonez, uma das suas feições moraes
que mais surprehende e encanta é, sem duvida,
a aptidão que possue, incomparavelmente deli-
cada, para apreciar as bellezas da creação.
Adivinha-se como que um sentido a mais
n'estes asiáticos, um não sei quê, que os põe
em emotiva participação com os mysteriosos
labores genésicos da natureza-mãe. N'este
ponto de vista, nós, os europeus, somos infi-
nitamente inferiores a elles, a ponto de nem
sequer podermos imaginar de leve a synthese
psychologica que os í^spectos das cousas lhes
143
suggerem c o que lhes passa nos cérebros, cm
alvoroços jubilosos, perante os simples espe-
ctáculos comesinhos da vida quotidiana. K/
esta e será sempre a maior barreira que separa
e separará o europeu do nipponico; nós não
vemos como elle, não sentimos como elle, não
amamos como elle ; elle vê, sente e ama muito
mais delicadamente do que n(3s ; perante o seu
requintado pantheismo, o nosso coração é frio
e inerte como um pedaço de mármore.
A arte japoneza, em todas as suas mani-
festações, é uni preciosíssimo e irrefutável
documento da sensibilidade estranha d'este
povo. Enleva-nos, captiva-nos ; no entretanto,
tentaríamos aprofundar-lhe as intenções, por-
que ha o mysterio da inspiração que nos
escapa. Sem, pois, grandes pretensões de
analysta e sem mesmo i'ecorrer ás altas mani-
festações artísticas dos japonezes, o que é um
delicioso passatempo para aquelle que tem de
viver no. seu meio, é ir commentando-lhes
uma phrase, registando-lhes uma sentença,
notando-lhes uma preferencia, surprehenden-
do-lhes um sorriso, vagabundeando emfim em
pensamento no campo ignoto da alma japo-
neza, como um amoroso herborisador que se
aventurasse n 'alguma floresta virgem de uma
região exótica, desconhecida.
144
Que surprezas, por exemplo na arte de
jardinagem ! . . . O jardim não tem ílóres ; as
flores estimam-se, mas exhibem-se somente
em determinadas épochas, em espaços apro-
priados. O jardim japonez, em geral reduzido
a alguns metros quadrados de terra, é a mi-
niatura emocionante de paizagem indigena,
com os seus lagos e com os seus riachos
lilliputianos, com o massiço verde das mattas,
com as rochas rendilhadas a surdirem do solo,
revestidas de musgos frescos. O amor dos
nipponicos pelas penedias toscas, a que os
musgos adherem pela successão serena dos
tempos, é uma verdadeira característica do
seu feitio esthetico, e baldadamente se preten-
deria dar ideia dos effeitos gentilissimos que
elles realisam n'este ramo de preferencias, em
mimos decorativos do jardimsinho imprescindí-
vel, contiguo á casa de habitação.
Os cuidados que o japonez dispensa a
uma arvore, a um arbusto, imprimindo curvas
preferidas aos seus troncos, recortes especiaes
á sua rama, acusam n'elle um carinho pelos
seres vegetaes comparável, se não excedido,
ao que qualquer de nós poderá ter pela sua
amada. Certas formas casuaes da creação,
como a da arvore que se debruça á beira da
laguna e se mira Iranquillamente no espelho
145
das aguas, ou como a da braçada que se
estende sobre a porta do lar, lembrando o
gesto de um amigo que nos abençoasse o
albergue, são particularmente estimados pelo
japonez, a elles sujeitando, por esforços inces-
santes, o arbusto tenro que planta ao pé de si.
O japonez, segundo o seu temperamento
psychico, imprimirá ao jardim que cultiva uma
ideia abstracta, a que poderíamos chamar a
alma das cousas, alli reunidas por selecções
harmónicas. Tal jardim representará a paz,
outro representará a castidade, outro os anti-
gos tempos. . . representará para elle^ é claro.
O olho azul do visitante occidental, embora
armado do mais prescrutador monóculo, não
verá nada d'isto ; o visitante passará indiffe-
rente e desdenhoso, esmagando debaixo das
grossas solas dos seus sapatos de globetrotter
os musgos avelludados que levaram loo annos
a desen volve i'-se.
Fora do jardimsinho domestico, o japonez
tem o Nippon inteiro, que é todo elle um jar-
dim, para espraiar as suas contemplações
amorosas, deleitando-se na escolha minuciosa
das pai2:agens e sujeitando-as ainda a condi*
çôes especiaes que lhes multipliquem os encan-
tos. Eu não pretendo alongar-me no assum-
pto, embora elle se preste a amplas considera*
7
146
ções de critica. Não resisto, porém, á tentação
de enumerar aqui, conservando quanto possi-
vel o pittoresco da linguagem, as oito reputa-
das grandes scenas da província de Omi,
atravessada por este famoso lençol de aguas
que se chama o lago Biwa, e ao qual deve
mimos paradisíacos indescriptiveis. Eis as oito
maravilhas : — o lago prateando-se sob uma
lua de outomno quando o olhar do observa-
dor desce do alto de Ishiyama : a neve durante
a tarde, em Hirayama; a ardência do occaso
do sol, observada da ponte de Seta; o templo
de Miiders,. quando se ouvem á tarde os sons
do sino; as embarcações fazendo-se de vela
do porto de Yabase; os picos de Awazu, na
limpidez do horisonte; a chuva depois de
anoutecer, junto ao pinheiro de Karasaki ; os
patos bravos descendo em voos para Katata.
— Outro assumpto, outro quadrinho, me-
lhor dizendo um instantâneo, como que apro-
veitando o momento azado em que a objectiva
surprehende uma scenasinha deliciosa. E' fácil
de conceber que o japonez, especialmente a
japoneza, quando regressa do templo, depois
de percorrer as suas áleas sombreadas e fres-
cas e de conversar em doces intimidades com
os deuses, sinta a alma leve, cariciosa, pro-
pensa ao bem. D 'este estado psychico sabem
I
147
víilcr-se a propósito os vendilhões, os quaes
se vão postar á sabida com o estendal da sua
exótica mercancia, que inclue vários animaes
captivos, que o transeunte compra para resti-
tuir á liberdade e á alegria.
No vasto e famoso templo de ínari — o
templo da Raposa, — onde eu peregrinava ba
poucos dias, pela tarde, uma japoneza esbelta
bavia percorrido os diversos nicbos meio oc-
cultos pelas mattas de pinbeiros, curvando-se
com particular uncção em frente d'elles, ba-
tendo as palmas com as suas mãos muito
alvas para accordar as divindades adormecidas
e proferindo a meia voz phrases de prece, que
foram para mim intraduzíveis. Pude vêl-a de
perto, n'uma volta de caminbo : era alta, ainda
nova, de uma brancura de mármore, com uns
cabellos muito negros, com uns olbos de
azevicbe, patenteando na expressão não sei
que sentimento dolorido, ou apprebensivo, e
nos gestos delicadíssimos uma morna lan-
guidez que impressionava; vestia um simples
kimono de algodão de ramagem azul e branca ;
suspensos dos finos pés nús arrastava no la-
gedo os altos sóccos resonantes.
Quando a solitária peregrina se approxi-
mava do grande pórtico da sabida, todo de
charão vermelho, deparou com uma velha
148
macrobia que para alli estava acocorada, sem
cabello, sem dentes, lançando ao acaso o seu
olhar mortiço; junto d'ella pousavam no chão
três gaiolas cheias de pardaes. Acercou-se
então da velha, observou os pássaros e per-
guntou o preço. Dez réis por cada um. Mas
ella queria comprar todos, o que importava
um grande abatimento. Contaram-se os pás-
saros, eram dezoito, convindo-se finalmente
na somma de cem réis por todos elles. Rece-
bida a pratinha, a velha foi abrindo as portas
das gaiolas e dando êxodo a todos os pardaes,
que não se faziam rogar e cruzavam rapida-
mente o espaço na direcção das mattas, sol-
tando pios estridentes, de surpreza e de pra-
zer. A compradora demorou um pouco esta
operação, porque quiz haver da gaiola ás suas
mãos um dos pardaes, que levou apaixonada-
mente aos lábios, que beijou muito, ao qual
encarregou em longas phrases não sei de que
mensagem, dando-lhe em seguida a liberdade.
Que diria ella ao pardal.^ palavras de carinho
a um ausente? terá no campo de batalha um
pai, ou um irmão, ou um marido, ou um na-
morado.^ . . .
Éramos três os espectadores da scena: eu
e dous soldados japonezes da guarnição de
Fushimi. Os soldados, dous filhos das mon-
149
tíinhas, rudes c de feição al\ar, (jlhavam
aquella graciosa mulher, vestida de encantos
ultra-terrenos na doce mimica da sua niystica
piedade, visivelmente enternecidos. . .
XIY
18 de agosto de 1904
A batalha naval de lo de agosto — Poder marítimo da
Rússia — Cruzador portuguez «Adamastor» — Uma
das características do feitio moral dos japonezes —
A China — Relaçf5es do JapSo com a Coréa e com
a China — Portugal e a Europa no Japão.
"D EsuMAMos OS ultimos acootecimentos, o
que não seria fácil fazer-se quando se
pretendesse entrar em ' minuciosos detalhes,
porque muitos avultam dispersos, sendo dura
tarefa o concretisal-os ; para mais, a queda de
Porto Arthur, o baluarte russo reputado in-
vencível, está imminente, podendo-nos aqui
chegar a tremenda noticia da derrocada den-
tro de alguns dias ou dentro de alguns mi-
nutos. , .
No dia IO, toda a esquadra russa de
Porto Arthur sahiu para o mar, no intuito
desesperado de forçar o bloqueio e ir re-
unir-se aos navios de Vladivostok. A cerca de
20 milhas da terra encontrou-se com a es-
quadra de Togo, travando-se então um re-
151
nhidissimo combate naval, o primeiro rigoro-
samente digno d'este nome a registar, desde
o rompimento das hostilidades. O combate
durou desde a uma hora da tarde até ao sol
posto, dispersando á noute a esquadra russa
e ficando Togo victorioso. De seis couraçados
russos, cinco recolheram a Porto Arthur, re-
bocados e duramente avariados; um apenas
conseguiu safar-se, indo recolher-se ao porto
allemão de Kiao-Chau, ao que parece com-
pletamente avariado. Um destroyer refugiou-se
no porto chinez de Chefu, onde os japonezes
o foram apresar; acto irreflectido, incorrecto
e que offende particularmente a China, Estado
neutral; a Rússia não tem muita razão de
queixa, pois pelos actos anteriores da sua
marinha, de guerra e mercante, tem mostrado
que o direito internacional não lhe merece
especial cuidado. Mais dous ou três destroyers
foram mettidos a pique. Um ou dous cruza-
dores refugiaram-se em portos neutraes, com
bastantes avarias, parecendo que um só cru-
zador, o «Novik», conseguiu ganhar Vladi-
vostok.
Em 14, a esquadra de Kaminura encon-
trou nas alturas de Tsushima os três cruza-
dores de Vladivostok, aquelles que pelas suas
ultimas e repetidas excursões ao longo da
I'52
costa do Japão tantos damnos causaram ao
seu conimercio ; dirigiani-se presumidamente
até ás proximidades de Porto Arthur, afim de
contrariarem a acção do inimigo n'aquellas pa-
ragens. Travou-se combate, que durou cinco
horas, indo a pique o «Rurik» e retirando-se
os outros dous cruzadores com grossas ava-
rias, sendo possivel que reganhassem Vladi-
v^ostok. Os navios de Kami n ura occuparam-se
seguidamente em salvar os náufragos do
«Rurik», cerca de 600, e talvez em virtude
d'esta humanitária faina é que não conse-
guiram perseguir e capturar as outras duas
unidades inimigas.
Os japonezes soffreram, nas duas batalhas,
algumas perdas materiaes, mas, relativamente,
sem importância, e também algumas perdas
de vidas; o joven príncipe ?\ishimi foi ferido
ligeiramente a bordo do «Mikasa».
Os russos tiveram muitas perdas de vidas;
dous almirantes pereceram na batalha de
Porto Arthur. No entretanto, por esta simples
resenha dos factos, se deve concluir que o
poder naval russo deixou de existir nas aguas
do Extremo-Oríente. Virá ainda a esquadra
do Báltico? Parece que seria inútil tal reforço.
Como curioso detalhe, para nós, direi
ainda que no porto de Chefu, quando os
153
japonezes apresaram o destroyer russo, acha-
vam-se vários navios de guerra estrangeiros,
sendo um d'elles o cruzador «Adamastor»;
a noticia foi largamente espalhada pelos jor-
naes japonezes. Folgo em registar que a
nossa marinha recomeça a ser lembrada n'es-
tas regiões, o que não acontecia ha muito
tempo ; pois não é a modesta canhoneira da
estação de Macau, em regra condemnada a
jazer entre os lodos da colónia, que pôde
eíTicazmente concorrer para tal fim.
— Uma das caracteristicas do feitio moral
dos japonezes mais frequentemente citada,
sobre a qual o humorismo dos críticos mais
ironicamente se tem manifestado é, sem duvida,
o seu dom de imitação, a que eu julgo melhor
dever chamar adaptação, nacionalisação. Effe-
ctivamente, nenhum povo como o japonez
tem dado melhores provas das suas qualidades
imitativas, apropriando as manifestações das
civilisações estranhas, adaptando-as no seu
meio; mas taes qualidades, em que muitos
intencionalmente só respigam ridículos e the-
mas facciosos, affiguram-se-me, pelo contra-
rio, altamente meritórias, devendo a ellas o
império nipponico a surprehendente evolução
dos seus progressos e a proeminente situação
que occupa hoje na sociedade das nações.
154
Digamos de passagem o que seria inútil
relembrar: que a imitação, exercida com mais
ou menos habilidade e critério, é um dote
commum a todos os povos, providencialmente.
Quando em um certo paiz se realisa um
melhoramento qualquer de ordem material ou
especulativa, do que os outros paizes tratam
sem demora, se lhe reconhecem real proveito,
é em imital-o, nacionalisal-o no seu meio.
Quando o americano F\ilton applica pela pri-
meira vez o vapor á navegação, as demais
nações do mundo civilisado não se quedam
indifferentes perante o facto, esperando cada
uma realisar também o seu invento no mesmo
campo; do que cuidarn todas é de apro-
veital-o, modificando-o embora, melhorando-o.
E' assim a historia de todos os inventos.
Voltando ao Japão, imaginemos esta tribu
estranha, que veio não se sabe d'onde, em
todo o caso quasi barbara, invadindo as ilhas
nipponicas, escorraçando para as regiões menos
clementes os aborígenes, os ainos, sem duvida
muito mais bárbaros do que os japonezes.
Isto passava-se em tempos remotos, de que
apenas a lenda nos falia. Ora, dadas as con-
dições aprazíveis e productivas do solo e o
seu isolamento geographico do resto do mun-
do, os japonezes poderiam ir medrando em
155
tal isolamento, desinteressados das civilisações
de fora, assemilhando-se em nivel social aos
tilippinos ou aos indigenas de Borneo. Não
aconteceu, porém, assim. Parece que os povos
aborigenes de uma dada região se comportam
como os moUuscos, que se agarram á rocha-
mãe, sem outra ambição do que a de alli per-
manecerem em doce immobilidade, só se con-
seguindo removel-os á força de pancadas, pelo
aniquilamento, quebrando-lhes as valvas em
que se abrigam. Com as tribus emigrantes
dar-se-ha o contrario : adaptam-se embora ao
paiz invadido, mas fica-lhes na intimidade
psychica uma como que saudade inconsciente
da pátria abandonada, sentimento que se
traduz em actividades estimulantes, prose-
guindo na senda aventureira, alongando a
vista em torno, devassando os actos dos
visinhos, apropriando-se dos seus progressos.
Esta qualidade eminentemente positiva,
feita de energias effervescentes, que me parece
commum a todos os pov^os nas condições que
acabo de apontar, apresenta-se nos japonezes
em uma grande intensidade incomparável. Os
japonezes, entrando cedo em contacto com
povos de civilisação superior, comprehenderam
com extrema lucidez que a civilisação faz a
força e que um de dous caminhos se lhes
156
offerecia seguir; ou contentarem-se com O
seu grau de inferioridade, o que implicava a
ideia de sujeição ás tribus mais cultas, ou
avantajarem-se a ellas, imitando-as nos seus
processos, aperfeiçoando-os, melhorando-os, e
por seu turno impòrem-se a ellas; um im-
menso e meritório amor próprio fez-lhes ado-
ptar sem hesitação o segundo caminho. N'estas
palavras se resume, a meu vêr, o inteiro se-
gredo da maravilhosa evolução d'este império
no campo da civilisação occidental; não é,
como alguém julga, que o japonez renegue os
seus velhos costumes, as suas remotas delica-
dezas asiáticas; é a convicção de que se pos-
suiu de que, para não ser escravo do Occi-
dente, tem de apropriar-se da civilisação
occidental, melhorando-a ainda, aperfeiçoan-
do-a no que poder, para também dominar, ao
lado dos primeiros Estados do mundo. E'
curioso lembrar aqui o que succedeu á China:
a China não procedeu como o Japão, a China
não curou de adaptar-se á civilisação dos
brancos; o resultado foi que os brancos, por-
que inventaram a pólvora, lhe cuspiram nas
cãs, sem o minimo respeito pela sua remotís-
sima civilisação patriarchal e pela imponen-
tíssima massa dos seus 500 milhões de habi-
tantes, unidos no mesmo credo de ideias.
157
Mas voltemos ainda ao Japão, para não
nos afastarmos mais do assumpto. As suas
relações com a Coréa, da qual dista apenas
algumas milhas, começaram cedo ; e se dermos
credito á lenda indigena, no anno 200 da
nossa éra a imperatriz Jingo dirigia em pessoa
uma expedição armada contra aquelle paiz.
Seguidamente, taes relações tornaram-se ainda
muito mais activas ; e a Coréa, que se achava
n'aquelle tempo n'um grau de desenvolvimento
muito superior ao do Japão, representou para
este durante longos annos o papel de introdu-
ctor da civilisação chineza.
O Nippon, primeiramente por intermédio
da Coréa, depois directamente pela China,
absorve em poucos séculos a inteira civilisa-
ção chineza, ímítando-a, se a palavra mais
agrada aos leitores, mas nacionalisando-a e
elevando-a a um alto grau de cultura. A es-
cripta chineza é adoptada no anno de 284
segundo a chronologia nipponica; seguida-
mente vêem a medicina, as principaes obras
de Confucius e de seus discípulos, a amoreira,
o bicho da seda, a arte de fiar e de tecer. Do
século VI ao século vii, periodo em que se
manifesta com mais vehemencia o ardor do
transformismo, a religião budhista propaga-se
no Japão, e com ella o calendário chinez, a
158
língua, a litteratura, as artes, as sciencias, as
industrias, o regimen burocrático. No anno de
628, quando morre a imperatriz vSenko, o
Japão está completamente remodelado á ima-
gem do seu visinho continental; e isto tudo
opera-se sem resistências notáveis, sem oppo-
sições reaccionistas, n'um impulso unisono
de todos os filhos do império, que querem
aprender para serem fortes.
Passam os tempos. Km 1542, chegam a
Tanegashima os primeiros europeus que pisam
o Japão, três portuguezes, que um forte tem-
poral arroja ás praias do Japão em um barco
de piratas. Os indigenas recebem-nos de braços
abertos, curiosos d'essès seres estranhos, que
lhes peden^ hospitalidade, inquirindo d'onde
vêem, em que se occupam, o que produz a
sua pátria longínqua. Recebem dos portuguezes
as primeiras armas de fogo que viram, imitam-'
nas logo e em breve o artigo se torna popu-
lar; outros artigos nunca conhecidos recebem
dos portuguezes. adoptando-os, e com elles
muitos termos de linguagem, até hoje conser-
vados no vocabulário. Este inicio de relações
entre portuguezes e japonezes poderia ter sido
para nós de uma immensa gloria e de um
incalculável interesse económico, e de igual
interesse também para os japonezes, se uma
159
má oricntaçjão religiosa da nossa parte, que
mal disfarçava iini intimo desejo de absorpção,
não v-iesse ferir a alma nipponica no senti-
mento que ella tem por mais sagrado — o
patriotismo. Seguem-se as tremendas perse-
guições religiosas, bem conhecidas; em 1624,
o Japão fecha as suas portas á christandade,
permanecendo, por excepcional tolerância,
apenas os hollandezes, encerrados em uma
ilha e sujeitos a humilhantissimo regimen ; no
entretanto, por intermédio dos mercadores
hollandezes, continua o Japão iniciando-se
nas cousas do Occidente.
Em 1853, os americanos chegam a Yoko-
hama, impondo por ameaças que o império
do Sol Nascente se abra ao convivio mundial;
não tardam representantes de outras nações;
formulam-se tratados. Manifestam-se agora
certas resistências por parte dos japonezes,
já precavidos contra os brancos; mas a evolu-
ção impõe-se fatalmente, a restauração impe-
rial realisa-se em 1 868 e o paiz enceta franca-
mente o seu caminho pelo trilho das ideias
modernas. O que o Japão realisou, n'estes
últimos 36 annos, sabe-se. No campo do tra-
balho ou das industrias, aprendeu tudo, imitou
tudo ; confessemos que ainda lhe cumpre
aperfeiçoar-se, mas já creou uma industria
i6o
sua importantíssima, que hoje se exerce de
uma maneira brilhante, principalmente nos
mercados orientaes. No ramo administrativo,
no ramo de educação, nas sciencias, regista-se
idêntica apropriação de ideias. Da efficacia
que attingiram os seus elementos de defeza,
do seu exercito, da sua marinha, é inútil dis-
cursar agora, quando no theatro do conflicto,
batendo-se contra uma poderosíssima nação
europeia, se está cobrindo de glorias.
O Japão não inventa, admittamos, posto
que se podéssem citar exemplos em contrario
(o dr. Kiatasato descobre o micróbio da peste,
o dr. Shitose inventa um poderosíssimo explo-
sivo de guerra, etc. ) ; . o Japão não inventa,
mas imita. Esta preciosa qualidade, que dis-
pensa os intellectuaes das penosíssimas locu-
brações de gabinete, que tanto -definham o
organismo, dá-lhes ao mesmo tempo a faci-
lidade de selecção e o prazer de aperfeiçoar
o artigo que lhe vem parar ás mãos, N'este
paiz não ha um Edison, é facto; mas a luz
eléctrica está divulgada em toda a parte, em
cidades e aldeias, bem como o telegrapho, o
telephonio e todas as applicações recentes da
electricidade. Para não alongar mais este
artigo e referi r-me de preferencia a um assum-
pto agora mais em evidencia, consideremos o
I
i6i
que tem succedido com o exercito japonez: o
Japão estudou todos os exércitos do mundo,
colheu do allemão o que de melhor encontrou,
fez o mesmo com respeito ao francez, ao
inglez, ao italiano, etc. ; assim obteve um
exercito seu modelo, considerado já por
algumas auctoridades na matéria como o
melhor de todos os exércitos, o que as recen-
tes occorrencias estão longe de desmentir.
Imitação, sim, mas prodigiosa e felicíssima
imitação, que em 36 annos transforma radical-
mente um paiz e o eleva a um alto grau de
prestigio. A sua antiga civilisação asiática era
bem mais delicada e talvez bem mais racional
do que a nossa, e os japonezes são os pri-
meiros a reconhecel-o ; mas, se n'ella conti-
nuasse perseverando, o Japão seria hoje mui
provavelmente uma simples colónia de qual-
quer Estado da Europa ou da America.
— Sacritique-sc a civilisação dos antepas-
sados, mas salve-se a independência da pátria
— foi a divisa moral que impelliu os japonezes.
nos seus progressos.
XV
31 de Agosto de 1904
Porto Arthur — A esquadra russa de Vladivostok — O
cruzador «Rurik» — O desafogo que a população
japoneza sentiu com a destruição do «Rurik» — O
almirante Kaminura — O cruzador « Novik » —
Ainda a batalha naval do dia lo — O navio almi-
rante « Mikasa » — Togo e a sua popularidade —
Liao-Yang — Festas e celebrações — Costumes ja-
ponezes — O consulado portuguez em Kobe.
IVÍa hora presente faltam absolutamente
noticias referentes a Porto Arthur, o que
quer dizer que o terrível porto militar ainda se
encontra em poder dos russos. Annunciava-se
já ha dias a sua queda como imminente; mas
o tempo vai passando, sem outras diversões á
impaciência nipponica do que os preparativos
festivaes para a commemoração do grande
acontecimento que se espera. O que se pôde
concluir de toda esta demora é que a tarefa é
duríssima para os japonezes, e que os russos,
nas poucas milhas de terreno de que ainda
dispõem, téem concentrado uma resistência
desesperada, minando ao mesmo tempo o solo,
dispondo-se, emfim, para fazerem pagar bem
íOi
cara ao inimigo a sua enorme audácia. No
entretanto, Porto Arthur ha-de cahir; segundo
todas as supposições, do que os generaes ja-
ponezes cuidam n'este momento é de poupar
quanto possível as vidas dos seus bravos sol-
dados, avançando com mil cautelas antes de
se travar o tremendo assalto.
Com a esquadra russa, mercê do alto
valor do almirante Togo, é que pouco haverá
ainda a contar nos futuros episódios da guerra.
A batalha naval de IO, próximo de Porto
Arthur, e a de 14 nas visinhanças de Tsus-
hima, acabaram de desbarata-la. Encontram-se
agora ao abrigo de Porto Arthur uns cinco ou
seis grandes navios, avariados e provavelmente
desartilhados ; a sua destruição completa
corresponderá á queda de Porto Arthur. Em
Vladivostok acham-se o « Rossia » e o « Gro-
movoi», arruinados pelo fogo da esquadra de
Kaminura, mas certamente susceptíveis de
reparações, ás quaes se deve estar proceden-
do, parecendo que o «Bogatyr», que ha
tempos encalhou perto de Vladivostok e se
suppunha perdido, foi reparado e poderá de
novo entrar em combate. O que é, pois, ainda
possível é que dentro de algumas semanas os
navios de Vladivostok, com o «Rurik» de
menos e o « Bogatyr » a mais, tentem reno-
104
var as suas razzías ao longo da costa do
Japão, com gravíssimo prejuízo não só dos
japonezes, mas de todo o commercio neutral;
mas então, devemos crer, Togo estará desem-
baraçado do bloqueio de Porto Arthur, o que
lhe permittirá impedir efficazmente taes excuiv
soes e assegurar o livre commercio nos mares
do Japão.
A'cerca do resto da esquadra russa, recor-
demos que na batalha naval de lO se perderam'
o « Paliada ^> e alguns pequenos barcos ; que
os japonezes apresaram um dcstroycr em Chefu,
que um cruzador e um destroycr se abrigaram
no porto allemão de Kiaochau, onde desarma-
ram em conformidade còm os usos das nações
neutraes; que o mesmo deverá succeder ao
cruzador « Askold > e a um destroycr refugia-'
dos em Changhae ; que o <^ Rurik » foi total-
mente destruído em 14 pela esquadra de Kami-
nura. Com respeito ao «Diana», que se disse
estar em Saigon, nega-se agora a noticia,-
ignorando-se o seu paradeiro. Por ultimo, ha
a registar o boato de que uma canhoneira
russa, do typo «Otrasjny », e o destroycr «Se-
bastopol » foram pelos ares cerca de Porto.
Arthur, ao tocarem em minas submarinas, e
que o bello cruzador «Novik.> foi destruído
pelos navios japonezes. Como se vê, é longa
I6;
a lista dos desastres recentes da esquadra
do czar.
A destruição do «Novik» constitue o
grande acontecimento d'estes últimos dias.
Este barco, o único que se mostrou aggres-
sivo e dirigido por mão intelligente durante os
diversos combates travados nas visinhanças
de Porto Arthur desde o começo das hostili-
dades, conseguira romper o bloqueio na bata-
lha de IO e fugir para o mar largo, imaginan-
do-se que teria «ganhado a salvo o porto de
Vladivostok. Mas não succedeu assim ; pas-
sando ao Pacifico, dirigiu o seu rumo ao
norte, dobrou depois o difficil estreito de Soya,
que separa as terras do Japão da ilha russa
de Saghalien, abrigando-se depois n'uma
bahia d'esta ilha de modo a esperar ensejo
favorável para alcançar Vladivostok; mas os
cruzadores japonezes « Chi tosse » e « Tsushi-
ma» deram por elle em tal bahia, atacando-o
e destruindo-o completamente. O « Novik »
fora construído ha quatro annos, segundo os
planos do mallogrado almirante Makaroff;
possuia três hélices, tinha um deslocamento
de 3:100 toneladas e uma excellente marcha
de 25 milhas por hora; era imi magnifico
barco.
Ainda com respeito ao <;i^unk», cuja
I66
perda desastrosa fez reviver a popularidade do
almirante Karninura, abalada pelas recentes
infructiferas perseguições que dera aos navios
de Madivostok, ha algumas curiosas referen-
cias a fazer. Registe-se em primeiro logar que
as guarnições dos três navios russos se por-
taram denodamente na batalha de 14; o
«Rurik» foi desde o principio do combate. o
que mais soffreu; os seus companheiros,
«Rossia» e « Gromovoi », trataram em vão de
lhe prestar a possível assistência, expondo-se
mais por tal facto ao vivo fogo do inimigo, e
só se retiraram da scena quando o «Rurik» se
ia submergir ; os artilheiros d'este conser-
varam-se a postos e fazendo fogo até ao
ultimo momento, isto é, até a agua subir
ás cobertas.
O « Rurik » , responsável pelo maior numero
dos recentes desastres occorridos aos paquetes
japonezes nos mares do Japão e pelo maior
numero de perdas de vidas dos tripulantes dos
mesmos barcos, fora o navio almirante da
esquadra russa do Extremo-Oriente em 1895,
isto é, ao terminar a guerra entre o Japão e
a China; e foi tal esquadra que, graças ao
súbito accordo entre a Rússia, a Allemanha e
a França, se apresentou arrogante em Chefu,
decidida a convencer por qualquer modo os
lúy
japonczes a abandonarem o que lhes fora
cedido pela China, Liaotung com f^orto Arthiir ;
diz-se mesmo que, se não tora a attitude pru-
dente e reservada do almirante francez de
Beaumont, a esquadra russa, reforçada com
os seus alliados de occasião, teria então cahido
sobre a insignificante esquadra nipponica
d'aqueila época, esmagando-a sem ceremonia.
Com taes precedentes, imagine-se com que
intima alegria os japonezes receberam a noti-
cia de que o « Rurik » ha\'ia desapparecido
para sempre no seio das aguas ! . . . No entre-
tanto (diga-se isto em abono do caracter
d'estes asiáticos), na occasião da catastrophe,
os japonezes salvaram mais de 600 náufragos
do « Rurik » ; e quando ha poucos dias estes
prisioneiros entraram no Japão e foram reco-
lhidos nas casernas que lhes eram destinadas,
o povo, reunido em multidão para vêl-os, re-
cebeu-os com benigno acolhimento. Nem todos
os povos do Occidente dariam, em occasião
tão especial, provas assim disti netas da sua
urbanidade.
— Contam os jornaes japonezes que duran-
te a grande batalha de 10, o inimigo concen-
trou o seu fogo sobre o «Mikasa», que arvo-
rava o distinctivo do almirante Togo, com-
mandante da esquadra nipponica; isto deu em
i68
resultado que só a bordo do « Mikasa » cerca
de loo homens, entre officiaes e marinheiros,
foram mortos ou feridos. Togo pessoalmente,
nada soffreu; mas ao terminar a batalha,
quando os officiaes o felicitavam pela sua boa
fortuna, notou-se no fato que vestia estragos
devidos a fragmentos de projectis.
O povo começa acreditando que o seu
querido almirante, graças a um milagre qual-
quer, é invulnerável. D'este distinctissimo
marinheiro, talvez até agora o vulto mais em
evidencia da presente campanha, espero poder
apresentar aqui em breve algumas notas
biographicas.
—Noticias da -ultima hora, ainda mal
precisas, dão conta de vários encontros a
sueste de Liao-Yang, entre as tropas russas
e as forças de Kuroki e de Oku, ficando os
japonezes victoriosos e occupando Anping, a
12 milhas de Liao-Yang, após um renhida
combate, que durou desde o dia 24 até 26^
Parece, pois, que a grande batalha, ha muito
prevista, se prepara ou já se está travando, a
despeito dos contínuos esforços do general
Koropatkine, que tem sempre cuidado de
evital-a, retirando successivamente para o
norte. D'esta vez, diz-se mesmo que os japo^
nezes acabam de destruir as pontes e a linha
i69
férrea entre Liao-Vang e Mukden, o que, a
confirmar-se, torna materialmente impossível
tal retirada. Nada prophetisamos ainda; mas,
se os nipponicos se apossam de Liao-Yang
e esmagam o exercito de Kuropatkine, o golpe
será terrível para o prestigio da Kussia, sem
já fallar no prestigio pessoal do famoso chefe,
em quem o governo do czar depositou todas
as suas esperanças.
— A guerra não affecta naturalmente o
calendário, e as festas e celebrações vão
succedendo com a rotineira precisão de todos
os annos.
Ainda ha pouco, no dia 7." do 7.'' mez
(antigo calendário lunar), solemnisava-se Ta-
nabata, uma historia de amores de estrellas.
O Pastor é uma estrella da constellação da
Águia, a Tecelã é a estrella Vega, achando-se
separadas pelo Rio do Céu, que é a Via Láctea.
Tão occupada estava sempre a Tecelã em
tecer os xestidos para a família do Imperador
do Céu, que de todo lhe faltava o tempo para
adornar sua pessoa. O Imperador, por fim,
condoído da sua solidão, deu-lhe um marido,
o Pastor, que habitava a margem opposta da
ribeira; e lá foi ella reunir-se ao bem amado.
Aconteceu então que a Tecelã começou a
mostrar negligencia em seu mister, o que írri-
s
i;x)
tou o Imperador do Céu c o decidiu a fazel-á
voltar ao antigo pouso, (M*denando que iima
só vez em cada anno, no 7,^ dia, da 7.^ lua,
os esposos se reunissem. Eis, pois, a explica-
ção da festa, decorando-se em tal dia todas as
ceisas com verdejantes hastes.de bambu, d'oode
pendem fitas de papel com inscripções poéti-
cas. Está averiguado que, quando chove e o
tempo se entrovisca, o Rio do Céu se torna
innavegavel, o que faz adiar por mais um anno
o.encontro feliz dos dous amantes; d'esta v^ez,
a julgar pelo tempo radioso que fazia onde
me acho, não houve estorvo aos beijos e aos
abraçoSj sob o cplpio do albergue ornado em
gala, trocados entre o Pastor e a Tecelã. . .
Seguidamente, de 13 a 15 (também pelo
antigo calendário), foi a festa dos mortos, cha-
mada Bo7u, Na noute de 13, teem por habito
as almas. dos defuntos abandonar as campas
e virem fazer companhia a seus parentes, no
seio das familias; na noute de 15, recolhem
novamente ao triste pouso. Ora, dada a pro-
verbial amabilidade japoneza, imagineni como
esta gente anda occupada indo buscar ao
cemitério as almas, conduzi ndo-as a casa, alli
Qfferecendo-lhes refrescos e manjares e recon-
duzindo-as íiniilmente ás campas respecti-
YSís\ . . . Para se festejar tão estranhos hospe^
I7Í
dcs, vestem-^c as melhores roupas, adorna-se
a casa com lanternas e com flores, queimam-se
incensos; em muitas aldeias, rapazes e rapari-
gas entregam-se a curiosas áansa,s, o Bom-odon\
Na China, os mortos também dão que
fazer em determinados dias, em que as almas
também excursionam. Mas alli chora-se, as
carpideiras soltam lamentosos brados; aqui
ri-se, eis a difterença.
— E' de notar que a imprensa japoneza
raras vezes se deleita em artigos de politica
desbragada, tão vulgares de encontrar nos
jornaes do Occidente, nos nossos por exemplo,
para não irmos mais longe. Assim como a
pintura ingénua d'este paiz se apraz em chi-
meras, em esboços singelos de aves e de inse*
ctos pousando em ramagens de bambu, assim
também os jornaes nipponicos preferem ás
grandes tiradas de politica tenebrosa os assum-
ptos pueris, as divagações ingénuas, por vezes
as besbilhotices innocentes. Como espécimen
d'este ultimo género, lembro-me de transcrever
aqui um artigo apparecido ha poucos dias no
jornal japonez Xodc Yushin Nippo, artigo
que particularmente poderá interessar os leito-
res, por se tratar de referencias a estrangeiros.
O artigo em questão intitula-se « Traços sobre
os cônsules de Kobe» e é do theor seguinte:
172
«o vice-consLil iiiglez snr. Griffitlis acha-se
doente no Canadá, devendo voltar em setem-
bro; outro individuo o está substituindo. O
cônsul americano snr. Lyon está doente desde
março; esteve por algum tempo n'uma casa
de saúde, mas já regressou ao seu domicilio,
sendo provável que se retire em breve para a
America. O cônsul francez snr. F^ossaréeu
também se acha doente, acabando de passar
alguns dias na estação thermal de Arima,
para onde voltará em breve. O cônsul allemão
snr. Krien conserva-se em Kobe. O cônsul
de Portugal snr. Moraes está agora accumu-
lando as funcções de cônsul de Itália; o
seu consulado encontra-se agora estabelecido
n'uma casa nova. O consulado mais distante
do porto é o da Hollanda.
« Os consulados que ficam mais cerca do
porto são os da Inglaterra, da Bélgica e da
AUemanha, este n'um sumptuoso edifício de
três andares, onde, pelo conforto que offereôe',
os cônsules se reúnem de preferencia quando
téem de tratar de algum assumpto.
«No consulado portuguez cncontram-se,
entre varias curiosidades, algimias pinturas
chinezas e japonezas, um canário n'uma gaiola
e salamandras n'um vaso de vidro cheio de
agua ; o cônsul é homem estudioso.
1/3
«O antigo cônsul russo, snr. Wassilicff,
íigora em S. Petersburgo, era, quando aqui se
encontrava, o mais preguiçoso de todos os
cônsules : le\'antava-se ás 1 1 horas c meia da
manhã. No consulado chinez offerece-se, inva-
riavelmente, chá a cada visita. Os cônsules
que se entregam simultaneamente á profissão
commercial, são os da Bélgica e do Chili. . . »
Pelo que mais particularmente interessa
o nosso paiz, é facto que raro se vê, no porto
de Kobe, como nos outros portos japonezes,
um navio de guerra portuguez; o nosso com^
mercio com o Japão é, por agora, quasi nullo,
embora susceptivel de prósperos progressos.
Kmfim, temos aqui um cônsul; e consolemo-
nos com a ideia de que, graças ás pinturas,
ao canário e ás salamandras de sua senhoria,
o nome glorioso de Portugal não foi ainda de
todo esquecido n 'estas paragens longínquas,
por onde ha três séculos, pouco mais ou me-
nos, transitou Fernão Mendes Pinto.
XVI
27 de Setembro de 1904
C^s acontecimentos — Liao-Yang; batalha de dez dias
— Os enthusiasmos da Europa pelo Japão; o seu
esfriamento; varias causas — Retirada dos russos
— As chuvas — Porto Arthur — Japão e Coréa — A
emigração chineza por Macau — Um episodio.
."T^KPois da minha ultima carta, escripta ha
bastantes dias; importantíssimos acon-
tecimentos se passaram, já a estas horas por
certo profusamente relatados nos jornaes da
Europa, mercê da faina incessante do tele-
prapho. Eu bem dizia aos leitores d'estas
correspondências, logo após o rompimento do
conflicto, que ellas não queriam e não podiam
mesmo aspirar a ter um interesse rigorosa-
mente actual ; limitando-se a simples com-
mentarios, escriptos ao correr da penna e ao
capricho das horas vagas, dos factos succedidos
e sabidos. Sahem do Japão para Portugal,
rabiscadas muitas vezes, no momento em que
soam fanfarras jubilosas commemorando a
175
ultima victoria, ou quando os garotos vão
berrando o popular estribilho : — Nippon katta,
Nippon katta ! Kosia makimashita / . . . (o Japão
vence, o Japão vence! a Rússia vai perden-
do! . . .) — E eis o seu único merecimento.
la-se contando como imminente a queda
de Porto Arthur e para tal já se preparavam
activamente estrondosos festejos; e por fim é
Liao-Yang que cahe primeiro nas mãos dos
japonezes, reclamando para si os regozijos ! . . .
Caprichos do destino. Após uma série re-
nhidíssima de sangrentos combates, que dura-
ram dez dias, Liao-Yang é tomada de assalto
pelos nipponicos no dia 4 de setembro, á
custa de duríssimas perdas de vidas dos dois
lados. Kuropatkine, derrotado, foge com o seu
exercito para o norte, em direcção a Mukden,
abandonando ao inimigo sobra de provisões e
de material de guerra. Calcula-se, por alto,
que as forças de cada belligerante orçariam
por uns 200:000 homens; esta batalha de
Liao-Yang pode francamente classificar-se
como uma das maiores dos tempos modernos.
— Sabe-se por cá que foi intensa a admira-
ção mundial por este po\'0 de heroes, que ha
algumas semanas apenas desbaratava pelo mar
e reduzia a miserável mina a esquadra russa,
inflingindo poucos dias depois por terra uma
176
tremenda derrota ás enormes forças do famoso
generalíssimo do czar. No entretanto, sabe-se
também que uma parte da imprensa europeia,
incluindo a ingleza, esfriou agora nos seus
enthusiamos pelos nipponicos. Duas causas
terão concorrido principalmente para isto.
Uma deve estar no resentimento dos corres-
pondentes da imprensa estrangeira acom-
panhando as tropas japonezas, de ha muito
descontentes por se lhes não permittir livre
besbilhotice no campo de batalha, e agora,
alguns d^elles, em férias nos portos da China,
fora da tutela nipponica, vingando-se em
expedirem telegrammas azedos derivados do
seu mau humor. A outra causa reside mesmo
no espirito das massas, dispostas natural-
mente ao exaggêro, contando vér na annun-
ciada batalha de Liao-Yang uma segunda
Sedan, em que os japonezes envolveriam o
inteiro exercito de Kuropatkine, forçando-o a
render-se em peso, seguindo-se o fim da
guerra. Não se deve sonhar o impossível. O
que é facto é que, no campo do supremo arro-
jo e da pericia das armas, os japonezes
acabam de realisar tudo o que humanamente
lhes era possível fazer. Para editarem uma
segunda Sedan, precisariam ellci dispor de
forças muito mais nimierosas e que estas se
177
encontrassem relativamente folgadas, não
exhaustas como estavam após dez dias — dez
dias! — de continuos combates. Registe-se
sinceramente que os russos se bateram com
içrande valentia, defendendo a todo o transe a
cidade que fortificaram durante longos mezes
e escolhida por Kuropatkine como base de
operações. Registe-se que os japonezes, com
forças proximamente iguaes ás russas, quando
tào monumental empreza reclamava maior
numero, se bateram com a maior bravura
(fanatismo, segundo os russosj, vencendo os
mil obstáculos que as fortificações lhes
offereciam, arvorando finalmente o pavilhão
do Sol Nascente em substituição do inimigo
na cidade manchu, tão vi\'amente disputada.
Em resumo, registe-se de um lado uma
grande victoria e do outro lado uma grande
derrota, esta embora sem o completo aniquil-
lamento do vencido, por que os russos podéram
realisar uma perfeita retirada, se bem que á
custa de grandes perdas, achando-se ainda
em condições de continuarem hostilidades.
Admittamos, pois, sem reticencias, a reti-
rada russa, louvando até, se tanto fòr preciso,
a forte sciencia estratégica de retiradas, de
que tem dado sobejas provas na presente
campanha o general Kuropatkine; isto a
1/8
ponto de ter já merecido de iim jornal ame-
ricano o seguinte commentario : — « que por
este andar se apresentam grandes probabi-
lidades para que Kuropatkine vá comer o seu
jantar do Natal d'este anno em S. Peters-
burgo. . . » — Houve uma retirada, uma esca-
pada; os russos não se renderam, como os
japonezes evidentemente o desejariam, embora
sem duvida não contassem com tal desfecho.
Mas não regateemos as grandes vantagens
que os mesmos japonezes alcançaram com a
tomada de Liao-Yang, importantissima cidade
chineza; vantagens de ordem moral e ordem
prática, bastando citar a de alli poderem
invernar, com todo o conforto requerido, as
tropas do Japão, n'uma possivel suspensão
de hostilidades com que se talvez deva contar,
Dar-se-ha em breve uma subsequente batalha
em Mukden? E' possivel, e até repetidas esca-
ramuças, que se travam, agora o fíizem prever;
mas também é possivel que Kuropatkine a ella
se furte e trate de aqiiartelar-se em Karbin.
Em todo o caso, as chuvas já começam
na região, inutilisando os caminhos ; bem
depressa virão os frios e as neves; o inverno,
que falia mais alto do que as ambições
humanas, vai suspender a campanha. Uns,
raros, crêem, porém, que chegaram já enor-
179
mes reforços ao exercito russo e que soou a
hora da desforra, como se saberá em breves
dias; duvido eu. . .
— De Porto Arthur é que nada se sabe,
continuando aqui a prohibição de qualquer
noticia que se lhe refira.
Suppõe-se que se teem repetido os ataques
e que os russos e japonezes teem soffrido
sérias perdas; o que haverá decidido estes
últimos a mostrarem-se mais prudentes e
pacientes, aguardando melhor ensejo para um
ataque geral, do qual lhes resulte a posse de
Porto Arthur. E' notório que esta praça de
guerra se acha poderosissimamente fortifi-
cada; por outro lado, a sua guarnição russa,
commandada por um general enérgico e sem
a minima esperança de soccorro exterior ou
de opportunidade de escapar-se, rompendo
o cordão que a cerca, tem-se exercitado em
brios guerreiros, disposta a combater até á
morte.
Todas estas circumstancias tornam diffici-
limo o ataque geral, não devendo, porém.
Testar duvidas de que os japonezes saberão
dal-o em momento conveniente, tirando d'elle
todo o proveito requerido, embora com grande
sacrifício de vidas. Aguardemos pacientemente
os acontecimentos.
í8o
— Annuncia-se concluido um novo accordo
entre o Japão e a Coréa, que se resume em uns
poucos artigos, certamente de effeito proviso-^
rio, pois o Tratado definitivo só poderá ser
feito depois da guerra. Pelo actual accordo, a
Coréa obriga-se a contratar como conselheiro
diplomático em matéria de finanças um súb-
dito japonez, recommendado pelo governo do
Japão, bem como um outro conselheiro diplo-
mático, estrangeiro^ em matérias de politica
exterior, igualmente recommendado pelo mes-
mo governo; também se obriga a consultar
previamente o governo do Japão antes de
concluir Tratados ou convenções com as po-
tencias estrangeiras, e outros importantes
negócios diplomáticos, como grandes conces-
sões ou contratos com estrangeiros.
Como se vê, o Japão não se demora em
aproveitar-se da sua situação para impor ao
visinho os seus designios e restringir-lhe os
direitos de paiz que se diz independente.
As condições actuaes da Coréa, chamada
irrisoriamente um império, e o que se deve
esperar ainda, mereceriam sincera piedade do
observador imparcial, se não se tornassem evi-
dentes o cahos interno em que labuta e a
miséria irremediável do povo entregue á sua
simples iniciativa; por outro lado, a posição
i8l
geographica da Coréa, tornando-a a chave do
mar do Japão, desenvolve taes cobiças, que
fatalmente este paiz em decadência deverá
softrer o jugo dos russos ou dos japonezes ;
sejam, pois, os japonezes, como a solução
mais justa do problema.
— Ha poucos dias, um dos mais bem con^
ceituados jornaes inglezes do Japão dava pu-
blicidade, em artigo de fundo, a um interes-
sante episodio da historia da emigração chineza
feita por Macau, no qual figurava o governo
japonez; concluindo o articulista que fora o
Japão que dera o golpe de misericórdia n'este
trafego deshumano, que tanto desenvolvimento
attingiu, n'uma determinada época, na nossa
colónia asiática. O episodio deve ser conhe-
cido de poucos, e por isto aqui o reproduzo
em resumo, pois creio que poderá interessar
os leitores.
P^oi a partir de 1848 que começou o cha-
mado trafego dos ciUís em Macau, arreba-
nhando-se por todos os meios, geralmente
pela violência, os pobres chinezes do interior
e expedindo-os contra sua vontade para Cuba,
Peru e outros pontos; calcula-se que annual-
mente eram assim expatriados uns 13:000
indivíduos. Em ; de julho de 1872 chegava a
Yokohama a barca peruviana «Maria Luz», a
I82
fim de reparar avanas causadas por um forte
temporal que apanhara no mar largo ; a «Maria
Luz» trazia a seu bordo 232 chinezes emigran-
tes, embarcados em Macau e destinados ao
Peru, os quaes, tendo em vista as largas
dimensões da barca, vinham relativamente
em satisfactorias condições de conforto. Cons-
tava, porém, que os ctdís eram muito mal
tratados. Uma certa noute, de bordo do navno
de guerra inglez «Iron Duke», surto no porto,
foi visto um cidí fugindo da barca e nadando
para terra; apanhado e conduzido a bordo do
<^ Iron Duke», fez declarações do mau trata-
mento de que era victima; levado ao cônsul
inglez, este por seu tLirno enviou-o ás aucto-
ridades japonezas, que o mandaram entregar
ao capitão da barca, o tenente Herrera, da
marinha de guerra peruviana. Passados alguns
dias, dava-se scena igual com outro chínez,
pelo qual se sabia que o primeiro fugitivo fora
barbaramente punido ao regressar a bordo. Ao
corrente d'estas informações, as auctoridades
japonezas intimaram o tenente Herrera a apre-
sentar-se ao go^'ernador de Yokohama, con-
ciuindo-se do seu depoimento e de outras
pesquizas que os emigrantes recebiam os mais
duros tratos, que todos haviam embarcado á
força e que nenhun> d'elles desejav^á seguir
k
183
para u l-*crú. Com a mais louvável energia, o
governo japonez mandou desembarcar todos
os cuUs, informando do caso o governo chi-
nez, que não tardou em enviar ao Japão um
seu delegado, com a dupla missão de agrade-
cer tão humanitário serviço e de reconduzir á
China os pobres emigrantes. Em resultado de
tudo isto, os governos inglez e chinez decidi-
ram que nenhum navio suspeito de fazer o
trafego dos culis poderia dar entrada em
qualquer porto das duas respectivas nações;
no anno seguinte, o próprio gov^erno portu-
guez declarax^a (j trafego i Ilegal. Quanto ao
Peru, suppòz-se por algum tempo que viria
ao Japão algum na\'io d'aquella republica to-
mar satisfação do succedido, mas tal não
aconteceu, sendo a questão, porque houve
uma questão, decidida em favor dos japonezes,
por arbitragem do imperador da Rússia.
O artigo citado deu logar a uma carta
assignado por um J. C. H., iguabnente inte-
ressante, publicada '^o mesmo jornal, dias
depois, na qual o seu auctor se associava em
prestar inteiro culto ao procedimente dos ja-
ponezes, mas queria para a higlaterra a gloria
de ter conseguido pôr termo á emigração chi-
neza feita por Macau.
Xo outomno de 1871, isto é, algims mezes
i84
antes do caso da «Maria Luz», a barca «Do-
lores Ugata», ou outra parecida, levava de
Macau para o Peru um carregamento de ctilis^
fechados debaixo de escotilhas, como de ordi-
nário. N'um momento opportuno, os prisionei-
ros quebram os seus grilhões, matam o capi-
tão, os officiaes e a guarnição e conseguem
abordar um certo porto da China, onde de-
sembarcaram, alcançando as suas aldeias. O
caso tornou-se conhecido e o governo de
Macau requisitou do de Hong-Kong a captura
e entrega de alguns dos taes chinezes refu-
giados na colónia ingleza, um por nome
Kwck-A-Ling, que foi apanhado ; ia ser entre-
gue como assassino, quando, bem aconselhado
por alguns amigos, appellou para a justiça
ingleza, no intuito de desculpar o seu proce-
dimento em defeza da própria liberdade. Em
tão boa hora o fez, que o juiz, estudando e
fazendo uma publica exposição da emigração
chineza feita por Macau, condemnou-a como
um trafego de escravos e pôz em liberdade o
accusado. Na opinião do correspondente foi,
principalmente, este caso, embora reforçado
pelo da «Maria Luz», que motivou a suppres-
são do trafego dos culis por Macau.
Ambos estes factos, a meu ver, merecem
registo, sem com tudo se de\'er tirar d'elles a
185
conclusão que parece intencional nos auctores
dos dois artigos, tendente a tornar patente a
dureza dos nossos costumes e ao mesmo
tempo a acção humanitária dos inglezes. Isto
de humanitarismo, meus caros leitores, é uma
historia muito complicada; e sobre o assum-
pto valeria a pena fazer algumas considerações,
se o espaço me sobrasse, a propósito da
emigração chineza que se inicia agora no
mesmo porto de Hong-Kong para a Africa do
Sul, em condições mais decorosas em appa-
rencia, como exige o século xx em que vive-
mos, mas nem por isto sensivelmente mais
benevolentes do que a emigração exercida, ha
cerca de quarenta annos, na cidade do Santo *
Nome de Deus de Macau. . .
No entretanto, o assumpto presta-se ao
seguinte commentario : se, na historia colonial
moderna, Portugal occupa um logar distincto
pelos seus honestos e incessantes esforços
exercidos na região africana, sem já fallarmos
da America; na Ásia, no Extremo-Oriente, na
sua colónia de Macau, os seus esforços não
teem sido sempre igualmente meritórios; mas
urge que faça em breve esquecer alguns tran-
ses da sua administração, nem sempre muito
escrupulosa, firmando o seu credito por novas
medidas de sà actividade, desenvolvendo o
lS6
commercio livre, inelhorando as condições so-
ciaes d'esta velha reliquia que se chama Macau,
digna de melhor fama de que a de que goza
actualmente.
XVII
28 de setembro de 1904
As attcnçíJes que se prestam hoje ao Japfto — Referencias
á geographia do JapJo — Um rosário de ilhas — As
que comprehende o Japão actual — O paiz japonez
occupando o centro de uma importantíssima zona
de actividades humanas — Os principaes sj-^stemas
de montanhas do archipeiago japonez, os seus rios e
lagos — Phenomenos geographicos — -Considerações
sobre a área do império, clima e população.
Y^RA, diga-se aqui muito á puridade que ha
^■^^ alguns mezes, ahi na Europa, ninguém
■pensava no Japão. Hoje, o Japão está na
bôcca de todos e occupa longas columnas de
jornaes e de revistas. Pro\'a isto, embora se
a-pregòe a indole pacifica e civilisadora do
século em que vivemos, que as qualidades
destruidoras, isto é, negativ^as, do povo japo-"
nez, fizeram mais em poucos mezes do que
em algumas dezenas de annos os seus dotes
<:onstituitivos, laboriosos, emprehendedores,
•isto é, positivos. Pois seja assim. Mas parece-
■me que é já tempo para que a Europa
í88
dedique mais detida attenção ao que é o Japão,
sob o ponto de vista da sua situação natural,
e ao que são os japonezes, como povo eminen-
temente emprehendedor, organisador, dotado
de magnificas energias e de dedicadissimos
sentimentos. N'esta ordem de ideias e no in-
tuito, talvez immodesto, de despertar nos lei-
tores portuguezes o amor do estudo por taes
assumptos, apresento hoje aqui umas mui
rápidas referencias á geographia do Japão,
expostas como simples palestra; feliz me jul-
garei se, á curiosidade excitada, succeder o
desejo de consultar obras de mérito, não
escassas nas litteraturas estranu:eiras.
— Em face do vastissimo continente asiáti-
co, constituido por massas compactas e offe-
recendo á vista formas cheias e espessos con-
tornos, estende-se um longo rosário de elegan-
tes e rendilhadas ilhas, partindo de Alaska e
terminando no archipelago malaico. Uma se-
cção doeste longo rosário, a parte que defronta
com a Sibéria e a China septentrional, é. o
actual império do Japão. Este império descreve
três curvas de quasi igual grandeza, lembrando
uma haste de vinha em ondulações graciosas/,
offerecendo a costa asiática o curioso pheno-
meno de acompanhar parallelamente taes on-
dulações.— ^. A forma do nosso inteiro archi-
i8ç)
pélago, diz cnthusiasticamente (e orgulhosa-
mente) um cscriptor indígena, a cujos estudos
geographicos recorro para este trabalho, é a
de uma enorme vaga do oceano, que viesse
açoutar as praias do antigo mundo ! »
O Japão actual comprehende cinco grandes
ilhas: Honshu ou Hondo (a que os estrangei-
ros chamam algumas vezes Nippon\ Shikoku,
Kyúshú, Hokkaidò ou Yeso e Taiwan (For-
mosa), cedida esta ultima pela China em 1895,
depois do tratado de paz. A estas cinco ilhas
devem juntar-se: as ilhas de inferior grandeza
Sado, Oki, Iki, Tsushima e Awaji ; os archipe-
lagos dos Pescadores (também cedidos pela
China), de Chishima, Ogasowara (as ilhas
Bonin), e Okinawa (as ilhas Loochu, as Lequios
dos nossos navegadores); finalmente, mais de
seiscentas ilhas de pequenas dimensões. A
parte mais ao norte do império é o extremo
norte da ilha de Araito nas Kiirilas, cuja lati-
tude é de 50*^56'; a parte mais ao sul é a
ponta sul de Taiwan, em latitude de 2i"43\
Com respeito á longitude a ilha das Piores,
nos Pescadores, situada em 119^20' K. G.,
marca o extremo occidental; a ilha Shumushu,
nas Kurilas, e cm I5()"32' K. G., marca o
extremo oriental.
Considerand(^ o Japão, propriamente dito.
I90
formado pelas quatro primeiras, grandes ilha$
que enumerei, as quaes, por assim dizer, lhe
dão a estructura, temos ao norte o Hoki<aidô,
separado da ilha Saghalien (hoje russa e anter
riormente japoneza), pelo estreito de Soya ou
de La Pérouse ; segue-se para o sul o Hondo,
a niaior das quatro ilhas, separada do Hok4
kaidò, pelo estreito de Taugaro; Hondo esten?
de-se primeiramente n\ima direcção norte-sul,
depois inílecte-se para oeste em recortes capri^
chosos; da sua extremidade sul avisinham-se
Shikoku c Kyúshú deixando no meio um es-
paço livre, que é o mar interior do Japão,
povoado de pequenas ilhas e de uma belleza
incomparável.
— De um lado do Japão estende-se o Oceano
Pacifico ; do lado opposto, o mar do Japão,
Privilegiadamente bem fadado, o paiz japonez
occupa o centro de uma importantissima zona
de actividades humanas, ficando-lhe a leste a
rica America, com cujos principaes portos
mantém muitas linhas de communicação ma-
rítima, e para oeste a costa da China e ainda
a península coreana, que dista de Nagasaki e
de Shimonoseki apenas poucas horas de via-
gem, e também Hong-Kong, o grande empório
colonial ínglez; para o sul ficam as F^ilippinas,
Java e as índias Neerlandezas, a Austrália.
191
O íirchipela<;() Japonez é essencialmente
montanhoso, sendo comparativamente raras
as extensas planicies; só no Hokkaidò algu-
n\as se encontram de regulares dimensões. O
paiz é caprichosainente accidentado por siicces-
sivas elevações de terrenos, cobertas em geral
de densas florestas e separadas por valles pro-
fundos adaptados ás culturas, predominando
o arroz, que os innumeros cursos dos rios
e das ribeiras, dirigidos pela mão do homem,
iringam de iima maneira admira\'el. Os variá-
veis cones^ de formação \'ulcanica, espalhados
jí)rofusamente, concorrem para dar á paizagem
o seu caracteristico encanto.
Dois principaes systemas de montanhas
ne observam no Japão. Um é o chamado sys-
tema do norte ou de Saghalien, tendo a sua
origem na ilha do mesmo nome, passando ao
Hokkaidò, onde se divide em varias ramifica-
ções subsidiarias tomando depois uma direcção
sudoeste e penetrando no Honshii pela sua
costa do norte; no Hoishu e na sua parte
central enconti*a-se e choca-se com o segundo
systema, chamado do sul, produzindo-se um
verdadeiro conflicto de estructuras.
: Este segundo systema, o do sul, ou da
China, ou ainda de Kunglung, tem o seu
inicio nas cordilheiras de Kun<jflunLí, na China,
192
continúa-se pelo mar até á Formosa, apparece
no Japão em K^aishú, após em Shikoku, para
depois ir reunir-se aos massiços alpinos da
grande ilha central. A este ponto de reunião
concorre também um terceiro systema menos
extenso, que atravessa o Honshú e se pro-
longa até ás Mariannas, dando no Japão ori- 1
gem á sua mais alta e famosa montanha, o
Fuji.
O monte sagrado do Fuji, marca distin-
ctissima de navegantes, thema favorito de
poetas e de pintores, é um vulcão, hoje extin-
cto, elevado de 3:780 metros sobre o nivel
das aguas, com a sua crista coberta de neves
quasi constantes e- de uma belleza de perfil
indescriptivel, posto que extremamente popu-
larisado pela arte.
O systema do F^uji, embora de curto de-
senvolvimento, tem na historia geographica
do paiz uma importância capital, dividindo-o
em duas partes distinctas, septentrional e me-
ridional, que se differenciam pelo clima, pelas
culturas e mesmo pelos costumes dos habitan-
tes, constituindo uma verdadeira barreira á
evolução, o que fez que, de tempos remotos,
predominasse, de um lado, a influencia da
corte de Kyoto, e de outro, a influencia de
Shogun.
193
Os rios no Japão são de curto curso, o
que facilmente se explica pela orientação das
montanhas, que correm de norte a sul, e pela
pequena extensão do solo no sentido de léste-
oéste ; da mesma circumstancia deriva o facto
de se encontrarem na estação sécca muitas
\ezes quasi sem agua, transformando-se em
torrentes impetuosas durante a épocha das
chuvas. Taes como são, prestam em todo o
caso relevantes serviços ao systema das com-
municações internas, como o rio Yodo, o rio
de Osaka; e mostram-se de uma complacên-
cia providencial em virem refrescar os campos
de cultura, os vastissimos arrozaes por exem-
plo, que constituem o principal alimento do
povo.
Km assumpto de lagos, o Japão offerece
ao estudioso toda a escala de phenomenos
naturaes qtie dão origem á sua formação.
Assim, encontram-se os lagos provenientes do
abaixamento do nivel do solo, derivado de
perturbações seismicas e vulcânicas; tal é o
formoso lago Biwa, que mede 12 milhas na
sua maior largura, 39 milhas no seu compri-
mento, com uma circumferencia de 178 milhas,
tão conhecido dos touristes. Encontram-se
outros lagos constituidos nas crateras de ex-
tinctos vulcões e por conseguinte muito eleva-
9
194
dos sobre o solo, como urnas gigantescas
trasbordando de agua, apoiadas sobre altos
pedestaes ; o lago Chúsenjé, perto de Nikko,
a 4:296 pés acima do nivel do mar, entra
n'este grupo. Finalmente, outros lagos, como
o Kasimiiga-ura, prov^éem do retrahimento do
Oceano, deixando a sôcco o antigo leito, ex-
cepto nas depressões casuaes.
Um outro phenomeno geographico muito
interessante no estudo d'este paiz é o concer-
nente á linha da costa e sua respectiva ondu-
lação. Kstes dados constituem factores das
energias e da prosperidade de um povo.
Quanto maior é a linha da costa em propor-
ção á área, quanto- mais notáveis são as suas
evoluções, que se traduzem em golfos, em
bahias de abrigo e em portos de commercio,
tanto mais activo é o povo, tanto mais progri-
dem as industrias. Ora, no Japão, estes facto-
res são notabilissimos, sendo a sua linha de
costa de cerca de 10:814 milhas para uma
área total de 161:290 milhas quadradas, o que
dá em media um ri ou 2,44 milhas por Céida
22 milhas quadradas. As estatisticas dão a
ilha de Shikoku offerecendo proporcionalmente
maior linha de costa, isto é, mafs angras e
portos ; seguindo-se-lhe por sua ordem Kyúshú,
Hokkaido, Formosa e Honshú, o que não im-
J
«05
pede que Honshú possua os dous portos mais
prósperos e frequentados da na\'egaçào de
todo o império, Vokohama e Kobe.
— Algumas ligeiras considerações sobre a
área do império do Japão. Esta área é, como
já apontei, de 161:290 milhas quadradas, o
que corresponde proximamente á 325.'' parte
da total superfície terrestre e á 107.'' parte do
do continente asiático.
Representando por 100 a totalidade da
área . do Japão, Honshú, a maior das ilhas
(86:843 milhas quadradas), occupa 53,84 partes
d'esta totalidade; o Hokkaido, 18,70; Kyushú,
9,6/ \ Formosa, 8,33; Shikoku, 4,36; Chris-
hima, 3,82; todas as ilhas restantes 1,28.
Comparando mais uma vez a área total do
Japão com as de outros paizes e tomando-a
por unidade, esses paizes serão representados
pelos seguintes números: Sibéria, 29,99;
China, 26,54; Índia ingleza, 11,64; Pérsia, 3,94;
Turquia asiática, 4,26; Siam, 1,91; Afghanis-
tan, 1,31; asiática, 0,83; Rússia na Europa,
14,04; Allemanha, 1,29; França, 1,28; Tur-
quia na Europa, 0,77; Hespanha, 1,20; Sué-
cia, 1,07; Gran Bretanha, 0,75; Noruega,
0,77; Itália, 0,70.
O império era dixidido, em tempos passados,
em pro\incias (knni), sem já faltarmos nas
196
divisões feiídaes. A classificação por províncias
cessou officialmente com a nov^a administração
estabelecida pela restauração imperial, embora
praticamente ainda muitas vezes se recorra a
tal classificação. Hoje, o Japão está dividido
em 46 districtos ou prefeituras (fn e ken),
que se subdividem em cidades ou districtos
urbanos e em districtos ruraes. Sabe-se que
Tokyo constitue por si só um districto, é a
capital do império e residência do soberano,
tendo-o sido anteriormente Kyoto. As cidades
principaes, contendo mais de 50:000 habitan-
tes, são em numero de 21.
Duas palavras sobre o clima. Das mui
diversas latitudes que as differentes ilhas do
archipelago attingem, resultam grandes varie-
dades de temperaturas, sendo esta ainda
notavelmente infiuenciada pela visinhança dos
mares, correntes maritimas, disposição das
montanhas e ventos predominantes. A mais
notax^el corrente maritima é o Kuroshiwo, ou
corrente negra, de aguas quentes, que atraves-
sam os estreitos de Malacca e das Filippinas,
chegam ao Japão e correm ao longo da sua
costa oriental. A costa japoneza do Pacifico,
beneficiando do Kuroshiwo e abrigada, pelas
montanhas, dos ventos do norte, que reinam
no inverno, offerece em tal quadra do anno
197
um clima muito mais benigno do que a costa
Occidental, voltada para o mar do Japão; e no
xerào goza de imia temperatura menos eleva-
da do sul, que recebe directamente, o que não
succede á costa occidental. O Hokkaidò, em
virtude da sua alta latitude e das correntes
frias \'indas da Sibéria e que tornejam as suas
costas, offerece um clima muito frio. Km
Kyúshú e Shikoku notam-se as temperaturas
mais elevadas, sem fallar da Formosa, onde o
clima é quasi tropical.
A parte central do império, onde os eu-
ropeus geralmente residem, goza de clima
muito agradável e sadio, certamente o melhor
de todo o Extremo-Oriente.
Termino com algumas referencias á popu-
lação. Em 1872, a população do Japão era
aproximadamente de 33 milhões de almas; em
1876, de 35 milhões e 700 mil; em 1883, de
37 milhões; em 1889, de 40 milhões; em 1897,
de 43 milhões; em 1899, o numero exacto da
população era de 44.260:604 individues, sendo
22.329:925 do sexo masculino e 21.930:681
do sexo feminino; estes successivos acrés-
cimos correspondem á média annual de
412:955 individuos. Actualmente, a população
do Japão orça por 45 milhões de almas. Com
referencia á população da Formosa e Pesca-
198
dores, não incluida nos números apontados,
era ella em 1899 de 2.621:158 individuos.
A média da densidade da população por
cada ri quadrado (5,95 milhas quadradas),
é de 1:831 individuos; no entretanto, convém
notar que o Hokkaidô é a parte do império
menos povoada (141 individuos por cada ri
quadrado), emquanto que na parte occidental
do Honskú a população se encontra mais
densa (2:945 individuos por cada ri quadrado).
Referindo-me ás cidades mais populosas do
império, 1'okyo, cm 1899, tinha 1.440:121 ha-
bitantes; Osaka, 821:238; Kj^oto, 353:139;
Nagoya, 244:145; Kobe, 215:780; Yokohama,
193:762; Hyroshima, 122:306; Nagasaki,
107:422.
O numero de nascimentos, que em 1872
indicava uma proporção de 1,71 por 100 habi-
tantes, em 1899 attingiu o numero de 3,10.
Nos mesmos annos, a proporção dos óbitos
por 100 habitantes foi, respectivamente, de
1,22 e de 2,09.
XVIII
29 de novembro de 1904
Sobre a guerra: o sentimento da colónia eíítrangeira no
JapSo; inválidos que vSo chegando; a situação dos
japonezes e russos na Mandchuria ; o que se passa
em Porto Arthur; pergunta-se qual será o desfecho
da guerra; ultimas noticias recebidas. — O banho
japonez; divagações curiosíssimas a propósito.
/^^ALMARiA em noticias da guerra, mas não
^-^^ mui presumidamente em acontecimentos
occorridos no campo das hostilidades, os quaes
se vão passando inteiramente desconhecidos
do publico, mercê da rigorosa censura exercida
pelas auctoridades imperiaes sobre a imprensa
local. A mais, referindo-me á colónia estran-
geira, uma certa oppressão, um sentimento
indehnivel de mágua perante o sangrento con-
flicto que se fere, e cujos tremendos resultados
finaes estão ainda muito longe de prevêr-se.
Quando acabará a guerra? Como acabará a
guerra ? . . .
Aqui, no Japão, posto que a relativa curta
distancia da Mandchuria, o ribombar da arti-
200
Iheria e os gritos dilacerantes dos que se rojam
pelo campo na ultima agonia, não chegam. As
bandeiras desfraldadas, os clamores patrióti-
cos, que não cessam, poderão mesmo dar uma
primeira ideia da festa perenne para as armas
gloriosas do império. No entretanto, os inváli-
dos vão chegando por centenas, por milhares,
uns atacados do kakke (beri-beri), a terrivel
hydropesia tantas vezes íatal, outros sem uma
perna, outros sem um braço, outros desfigura-
dos por medonhas cicatrizes; e estes pobres
inúteis, vestidos do uniforme khnono branco e
com o symbolo da Cruz Vermelha sobre a
manga, conjuntamente com vagos boatos de
tremendas scenas de carnificina passadas, cha-
mam-nos á noção da realidade e ao conheci-
mento, embora muito imperfeito, de quantos
duros sacrificios estão custando aos pobres
soldados japonezes as brilhantes victorias
alcançadas em serviço da pátria! . . .
No interior da Mandchuria, após a renhida
batalha de Liao-Yang, victoriosa para os japo-
nezes, proseguem operações mal definidas,
ignorando-se o grau de probabilidades de uma
subsequente batalha em Mukden, ou mais ao
norte em Tieling. O inverno vai começar, ou
já começou, n'aquella inhospita região; e não
sei se as durissimas condições climatéricas
201
permittirão o proseguimento das hostilidades.
Diz-se, no entretanto, que Kuropatkine, vai
agora tomar a offensiva, havendo recebido
reforços importantissimos que lhe permittem
mudar de táctica. Assim será: já agora só
por uma grande desproporção de numero é
que as tropas russas, desmoralisadas pelas
derrotas, sem generaes competentes, sem es-
pirito patriótico collectivo, poderão deter nos
seus triumphos e esmagar os soldadinhos ja-
ponezes. Mas acautele-se Kuropatkine: nas
circumstancias habituaes da vida, usa-se dizer
popularmente que um homem é para outro
homem ; mas no caso presente, um russo não
é para um japonez, nem dous russos, nem
três russos; o generalissimo terá de contar
com um exercito muitas vezes superior em
numero ás forças nipponicas para haver pro-
babilidades de aniquillar estes intemeratos
asiáticos, cuja coragem, cujo desamor á vida,
cujo frenesi de gloria não encontram parallelo
no mundo. Ora, por mais que se admitta que
a Rússia dispõe de um exercito immenso, é
igualmente indiscutivel que o império mosco-
vita não poderá concentrar na Mandchuria tão
numerosas forças quantas deseje expedir para
tal sitio ; isto pela simples razão de que o seu
caminho de ferro transiberiano, para além de
202
um certo limite, não poderá satisfazer ao duplo
serviço impreterivel de transporte de homens
e dos mantimentos e munições de que elles
carecem. O mais que se pôde esperar, e é já
importantissimo, é que a Rússia consiga man-
ter, por um periodo indefinido, um constante
numero de soldados no campo do conflicto,
pois ser-lhe-ha relativamente fácil o ir enviando
reforços que supram as perdas soffridas; não
se poderá dizer o mesmo dos japonezes, para
os quaes de dia para dia, á medida que mais
se internam em território alheio, mais crescem
as difficuldades em receberem recursos da
mãe -pátria.
E que diremos de Porto Arthur.^ A temí-
vel praça de guerra continua em poder dos
russos, contra a espectativa de todos, estran-
geiros e japonezes, que julgavam que de ha
muito houvesse cahido em poder dos sitiantes.
Indubitavelmente, os japonezes suppunham ao
principio a tarefa mais fácil, não contando com
os grandes recursos de que dispunha a praça,
com o contrabando dos juncos chinezes, que
conseguem de quando em quando romper o
cerco e ir abastecer de viveres os sitiados, e
sobretudo com a resistência desesperada que
estes estão oppondo á acção nipponica. Consta
vagamente que horríveis lances de carnificina
203
alli s(3 teeni dado, com muitas perdas dos dois
lados, principalmente, e como era de prever,
do lado dos japonezes. Aquillo é um açougue
humano, onde os assaltantes cahem prostrados
aos milhares pela acção do fogo da grossa
artilheria e das minas que rebentam. Da ban-
deira branca já ninguém faz caso: ainda ha
pouco os russos se gaba\'am de terem derru-
bado até ao ultimo soldado um grupo de ja-
ponezes que se viram com a retirada cortada
e alçavam os seus lenços em signal de se
rendei'em. Não ha tempo para enterrar os
mortos ; apodrecem onde cahiram. Alguém me
contou que alguns japonezes permaneceram
durante dias dentro de escavações das rochas,
abrigados contra o fogo dos fortes inimigos e
expostos a uma temperatura tropical, sem
alimento algum nem agua; quando algum
soldado se erguia e sahia do esconderijo, era
logo attingido e cahia morto, e os companhei-
ros tratavam de beber-lhe o sangue, para miti-
gar a sede! ... O ultimo lance do drama de
Porto Arthur excederá tudo que a imaginação
possa conceber: os homens, russos e japone-
zes, excitados pela longa demora no desfecho,
transformar-se-hão em feras ! . . . A matança
será horrivel ! . . .
No entretanto, seja qual fòr a medonha
204
resistência da guarnição russa de Porto Arthur,
a praça ha-de cahir e os japonezes hão-de
içar sobre as ruinas dos fortes a bandeira do
Sol Nascente, embora o sacrifício de vidas
tenha de ser enorme; ninguém põe isto em
duvida. Mas já será tarde para correr, ainda
durante este anno, ao bloqueio e ao ataque
de Vladivostok: os gelos do próximo inverno
impedirão por longos mezes tal audácia.
Mas qual será o desfecho da guerra? per-
guntamos todos nós com anciedade. Se se
tratasse de belligerantes habitando ambos
paizes continentaes e visinhos, as glorias já
realisadas pelos japonezes, esperando-se ainda
talvez pela queda de Porto Arthur, bastariam
para pôr um fim á contenda. Mas infelizmente
as condições são muito differentes, permittindo
á Rússia o prolongar por longos tempos o
estado actual das cousas, e parece que é isto
mesmo que ella pretende, no intuito de recu-
perar o que ella chama o seu prestigio politico,
A guerra de extermínio continuará, pois, a
não ser que uma grande circumstancia impre-
vista, um phenomeno politico inimaginável,
venha pôr termo, de prompto, á matança.
— Depois de escriptas as linhas que pre-
cedem, chegam-nos importantíssimas noticias
do theatro da guerra, as quaes não podem
205
ticar em silencio, embora eii tenha cie alongar
esta carta além de que era meu propósito.
Registemos em primeiro logar que estas
informações de Porto Arthur nos dizem que
os ataques dos sitiantes proseguem com incan-
sável ardor, tendo os japonezes collocado ca-
nhões de grande alcance em algumas eminên-
cias de terreno, o que lhes permitte metralhar
a praça com mais destruidor effeito. A bia\'ura
de todos, japonezes e russos, n'este drama
em que se joga um estupendo lance de amor
próprio nacional, é assombrosa! . . .
No entretanto, o facto mais sensacional é
a batalha de Shaho, que acaba de travar-se,
correspondendo a uma completa victoria para
os indomáveis nipponicos. Ha ainda poucos
detalhes que lhe respeitem, mas sabe-se que
Kuropatkine, havendo recebido importantís-
simos e frescos reforços da metrópole e
achando-se assim com um exercito provavel-
mente muito superior em numero ao do ini-
migo, resolveu tomar a offensiva, conforme os
conhecidos desejos do czar. A batalha de
Shaho deu-se ao sul e nas visinhanças de
Mukden, iniciando-se no dia lO do corrente e
terminando em 14. Os russos começaram por
atacar os japonezes; mas estes, não se con-
tentando com o papel de defender simples-
20Ó
mente as suas posições, ertectuarani iim con-
tra-ataque, collocando-se logo na offensiva. O
exercito russo softVeu então uma terrível
derrota, rcalisando Uina apressada retirada,
não sem perder uns 50:000 iiomens entre
mortos e feridos, segundo as informações do
marechal Oyama, e muitos mais, segundo in-
formações de outras procedências. Parece que
as perdas japonezas foram bastante infe-
riores.
K' deplora\'cl o etfeito moral da derrota de
Kuropatkine, no momento que elle julgava
azado para emfim colher umii victoria para as
armas russas, e após uma pomposa proclama-
ção que dirigira ás tropas do seu commando.
Infelizmente, os japonezes, batendo-se com
um denodo que excede toda a expectativa, não
possuem no campo de batalha forças bastan-
tes que envolvam o inimigo e o obriguem a
render-se em pezo, homens e armas, do que
possivelmente poderia resultar o termo do
conílicto. Succedem-se as victorias ás victorias,
mas com resultados que quasi poderíamos
chamar nullos ; porque os russos, embora
retirando sempre, vão substituindo as suas
falhas om reforçxs de gente, a qual está longe
de faltar, e assim a guerra se eternisa.
Informações da ultima hora dão conta de
20/
continuarem as Iiosiilidades nas visinhanças
de Mukden.
— Ha algumas semanas, a propósito de
certas damas europeias que se banhavani em
uniíi das praias mais frequentadas do Japão, as
quaes, pretendendo que o sentimento japonez
se amolde ao sabor das suas exigências, se
mostraram muito offendidas porque na sua
\isinhança alguns indigenas se vieram banhar
em plena nudez, veio á balha, na imprensa
ingleza local, a eterna questão do banho
japonez, d'onde se passou para uma questão
mais genérica — o pudor (ou impudor^ dos
nipponicos.
O assumpto é sempre interessante e pres-
ta-se a curiosos commentarios, que natural-
mente dobram de valor quando destinados a
leitores distantes, alheios por completo ao
feitio moral d'este po\'0 ; por tal motivo vou
aqui apresentar algumas ligeiras reflexões
sobre a matéria.
Xa \ida qiKjtidiana dos japonezes, que
primam pela singeleza do vestuário e dos usos
sociaes, e n'um paiz onde o estio é por vezes
abrazador, a nudez, parcial e mesmo completa,
entra nos hábitos geraes. O touristc, sem que
se dê a grandes pesquizas, encontrará por
toda a parte a mãe offerecendo sem recatos o
208
seio nú ao íilho, a serviçal arregaçando o
kbnono até acima dos joelhos, um homem de
labuta vestido apenas de uma faixa, nas praias
os banhistas dos dous sexos em absoluta
nudez. Questão de educação e ainda mais de
feitio moral. No entretanto, apresso-me a
dizer que, se o toiírístc mencionado vê isto, o
indigena não o vê, isto é, o seu olhar não se
tixa em taes quadros; a nudez passa, vestida
da indifferença da turba. Não se classifique,
pois, isto de impudor; ainda ninguém chamou
impudicas ás borboletas, por exemplo, por não
vestirem camizas e ceroulas. Como ainda mais
completo contraste ao sentimento occidental
apresenta-se após o facto do, japonez não
admittir a nudez na arte; n'esse ponto é que
elle manifesta o seu pudor. Esclareçamos este
assumpto. Uma mulher núa ou quasi núa,
passeando pelas ruas de Paris ou de Lisboa,
provocaria o espanto e a indignação geral;
mas em mármore, ou na tela, chamada Vénus,
chamada Chloe, ou mesmo anonyma, não
desperta taes sentimentos, antes os de es-
tima e do enlê\'0, se o artista trabalhou com
mestria a sua obra. Pois a mulher núa ou
quasi núa é admittida sem reparo em Tokyo
ou em Yokohama, já não digo passeando
pelas ruas, mas relanceada n'uma casa de
209
biinlios públicos ou no \iver intimo do seu lar
domestico ; emquanto que a arte do nú, do nú
que reclama a attenção dos que passam, é
repudiada energicamente. Ha uns nove annos,
quando um pintor japonez, embebido de
modernismos, apresentou um estudo do nú
n'uma exposição em Kyoto, a indignação foi
geral, conseguindo elle a muito custo que a
policia não lhe mandíisse retirar o quadro; na
exposição de Osaka do anno passado, mais
alguns trabalhos do mesmo estylo se apre-
sentaram, tolerados pelas auctoridades, mas
não tidos em estima pelo publico, e note-se
que taes trabalhos são sempre completados
por uma cabeça loira de occidental, pois
nenhum pintor indígena ousaria attribuir a uma
das suas compatrícias as formas que indis-
cretamente reproduz. Direi ainda que ao ja-
ponez ou á japoneza causam simplesmente
nojo esses livros e revistas agora puUulantes
em certas litteraturas occidentaes, intencional-
mente illustrados com gravuras provocantes.
Mas voltemos ao banho nipponico. Todos
os japonezes tomam banhos ; a casa de banhos
públicos é tão frequente, em cidades e aldeias,
como a mercearia, onde se vão buscar as
provisões diárias. Ha seis annos, só na cidade
de 'l'okio ha\ia i : i oo casas de banhos públicos,
2IO
com lima frequência diária de 400:000 banhis-
tas, v^ariando o preço de admissão entre 5 e 7
réis ; actualmente, o numero deve ter augmen-
tado. Além d'estas casas de banho, frequen-
tadas geralmente pela classe pobre, cada
habitação regularmente conforta\^el possue o
seu quarto de banho privativo.
O banho do mar é um luxo moderno. O
banho que o japonez prefere é o banho de
agua quente, doce ou mineral, elevada a uma
alta temperatura, 45'' centigrados pouco mais
ou menos; pretendendo, e parece que com
razão, que o banho quente aquece no inverno,
produzindo no verão uma agradável reacção de
frescura. No banho domestico inimerge diaria-
mente, em regra, primeiro o dono da casa,
depois a esposa, seguindo-se as outras pessoas
de familia por ordem de precedências; por
ultimo os criados. Nas casas de banhos pú-
blicos, acha-se^ ao centro do grande recinto
legeado a fumegante tina de madeira, de
secção rectangular, parecendo mais um tanque,
graças ás suas vastas proporções, e onde os
clientes vão mergulhando juntamente, deixando
a roupa fora. Esta agua, que serv^e a toda a
gente durante um dia inteiro, poderia invo-
car ao leitor desprevenido uma ideia de sujo
habito, se não se advertisse que os banhistas
2tl
se entregam á roda da tina a abluçoes pre-
liminares, servindo-se de pequenas celhas de
madeira ou de metal, que trazem comsigo ou
encontram á sua disposição no estabelecimen-
to ; lavam-se, ensaboani-se, lavam-se de novo
e só depois mergulham na piscina commum.
A circumstancia que acabo de apresentar, é
motivo bastante para que nas hospedarias ja-
ponezas se difticulte o accesso de banho a imi
hospede europeu não conhecido, por se ima-
ginar, com sobra de razão, que o sujeito se
vai ensaboar dentro da tina, inutilisando o
banho aos mais clientes. Na F.uropa, passam-se
as cousas ao revéz: um distincto official ja-
ponez de artilheria conta\'a-me um dia os
tormentos que passara quando, recemchegado
a Pariz e banhando-se n'um quarto de hotel,
começou, segundo a regra, espargindo agua
sobre si antes de entrar na tina; alagado o
tapete, alagados os quartos dos ■ \'isinhos,
chovendo nos quartos inferiores, acode o pro-
prietário em altos berros — «mais, qu'cst cc
qiLC c'cst çà? y . . via is, qn'cst cc que vous
faitcs? . . . — » c por pouco não desanca á
cacetada o inexperiente viajante. . .
No Japão, os banhos públicos foram em
todos os tempos franqueados a todas as pessoas,
sem distincção de sexos. Apenas mui moderna-
212
nienie, por mexericos da nossa moralissima
civilisaçáo Occidental, as auctoridades japo-
nezas entenderam decretar, nas cidades e al-
deias mais frequentadas, a separação de sexos,
íicando os homens para um lado e as mulheres
para o outro lado. Eu ainda sou da época em
que tal separação consistia n'um simples
cordel ; de modo que o \'iajante recemchegado
a Yokohama, e levado invariavelmente pelo
guia matreiro a uma casa de banhos públicos,
\ia n'um S(3 relance de olhos o jucundo es-
pectáculo do grupo de homens que se banha-
Níim e do grupo de mulheres que se banha-
\am. . . separados por um fio de pudor. O fio
já foi substituido por uma scMida parede; isto
nas cidades e pontos mais frequentados, por-
que nas aldeias e nos banhos de todas as
hospedarias ainda persiste a mesma innocente
promiscuidade dos velhos tempos.
Ainda ha poucas semanas um missionário
inglez contava pela imprensa o seguinte caso
divertido. Achava-se elle, não sei como, to-
mando o seu banho em certa hospedaria, mo-
destamente recolhido a um canto do recinto;
a distancia, uma familia Japoneza deliciava-se
em abluções, dando as costas ao reverendo;
eis que, casualmente, o chefe de familia vol-
ta-se, fita o inglez, reconhece n*elle um amigo.
213
seguindo-se as intermináveis cortezias prover-
biaes ; o japonez não quer perder o ensejo de
apresentar sua faniilia ao missionário, \indo
então cada qual por hierarchias, — primeiro a
esposa, depois as filhas, depois as creanças, —
prestar suas homenagens ao estrangeiro, na
doce toilcttc de nymphas encharcadas, alvejan-
tes de espuma de sabão.
Ha alguns dias, eu contava este caso, lido
n'um jornal, a um amigo europeu ; este, que
acabava de chegar de Matzuyama, onde em
serviço official fora conferenciar com os presos
russos, narrou-me por seu turno que na \'es-
pera, tomando o seu banho matinal, encon-
trara o recinto regorgitando de freguezes;
dentro da tina, as damas cortezmente conche-
gavam-se entre si, faziam logar, acenando-lhe
que entrasse, pois ainda havia espaço. . .
Ora, digani o que quizerem do banho ja-
ponez; sobretudo achem-no em contradicção
com os nossos hábitos; mas não queiram por
elle concluir que seja impudico o povo japo-
nez. () povo japonez não é impudico.
XIX
26 de outubro de 1904
o incidente da esquadra russa do Báltico com os pesca-
dores inglezes — Noticias do theatro da i^uerra —
("alculos do moiticinio havido nos dous exércitos
combatentes — Previsão de novos horrores — Enthu-
siasmo pchis victorias japonezas — Morte de Lafca-
dio Hearn — A emigração japoneza transformada
cm trafico de escravatura — Ausencia.de cruzadores
portuguezes nos portos do Japão — Compatriotas
que nos téem visitado.
T^scAssKz de noticias do theatro da guerra.
As attenções aqui, e certamente com
mais razão na Europa, occupam-se ha dous
dias do extraordinário ultrage perpetrado pela
esquadra russa do Báltico contra a nação
ingleza, quando, apenas sahida das aguas
nacionaes, encontra no mar do Norte uma
esquadrilha de pescadores inglezes, sobre a
qual faz fogo, metvendo no fundo alguns bar-
cos, matando \'arios tripulantes, ferindo muitos
e proseguindo impa\'ida na sua derrota, sem
se importar de recolher os náufragos agoni-
21
santes. Pretende-se explicar agora esta inqua-
lificável selvageiia pelo tacto de terem os ofii-
ciaes da esquadra russa imaginado que os japo-
nezes lhe armavam algiinia cilada, collocando
minas submarinas no seu trajecto. Admittamos
a explicação, que não \em de molde a exaltai'
os brios da marinha do czar, á qual o medo
leva já a taes desmandos no inicio de uma
viagem, que exige pelo menos três longos
mezes para chegar ao seu termo; devemos,
pois, contar com uma larga série de estranhas
peripécias. Em todo o caso, a insólita proeza,
tendente a cercear ainda mais as escassas
sympathias que a causa russa \'ai merecendo
no conceito mundial, ha-de custar-lhe cara, á
Kussia, devendo contar-se que a Inglaterra,
ferida nos sclis interesses e no seu orgulho,
não se demorará em exigir uma prompta
reparação, que redundará pro\'a\^elmente em
desculpas diplomáticas, n'uma lai-ga indemni-
sação pelas perdas materiaes softridas e talvez
no desembarque immediato dos officiaes que
ordenaram o bombardeamento.
Além do interesse ligado ao sensacional
acontecimento que acabo de apontar, a im-
prensa local \'ae in\'ent'iriando por miúdo os
detalhes das ultimas duas grandes batalhas de
Liao-Vang e de Shaho. Calcula-se que as
2l6
torças russas. eram em Shaho de cerca de
300:000 homens e as japonezas de 250:000
ou 280:000. As baixas dos russos aproxi-
mam-se de 70:000, incluindo uns 25:000
mortos; as baixas japonezas foram muito
inferiores, indicando-se o numero total de
13:000, posto que não se conte ainda com
informações rigorosas. Lamentam alguns que
o marechal Oyama não podésse conseguir,
cm Liao-Vang ou depois em Shaho, envolver
o exercito russo, obrigando-o a uma capitula-
ção geral, que poria provavelmente fim á con-
tenda. Seria isto certamente muito bom,
mas não se deve desejar o impossivel: os
nipponicos, manobrando em péssimo campo,
detidos a cada passo pelas obras de defeza do
inimigo, esfalfados e esfomeados em virtude
de combates que duraram muitos dias seguidos,
desenvolveram prodigios de heroicidade, ganha-
ram penosissimamente duas grandes batalhas;
francamente, seria loucura exigir-se mais
ainda. E como envoher e aprisionar em peso
o exercito de Kuropatkine, quando é certo
que as habilidades estratégicas do generalis-
simo russo se concentram particularmente e
antecipadamente em preparar a retirada se-
gura, de modo que, quando os japonezes
atacam a \anguarda, já a rectaguarda volta
217
costas e ganha a salvo os caminhos distan-
tes ? . . .
Fazendo os cálculos desde o começo do
conílicto, devem os japonezes ter soffrido umas
100:000 baixas e os russos o dobro d'este
numero, pelo menos. Além d'estas 300:000
victimas, imagine-se o numero de soldados
derrubados pelas doenças, pelas epidemias,
sendo geralmente admittido que em uma cam-
panha as baixas por doenças orçam em regra
pelo dobro ou triplo dos que cabem feridos
pelas balas do inimigo. Estas ligeiras referen-
cias bastam para se fazer uma leve ideia dos
tremendos horrores da guerra actual, que pro-
mette ser a mais sangrenta na historia moderna
das nações. E' medonho o quadro e, infeliz-
mente, não se prevê quando este estado de
cousas cessará.
A quem cabe, finalmente, a responsabilidade
de tão grande matança? Seria mui difíicil res-
ponder a tal interrogação e longas as con-
siderações que viriam a propósito. No entre-
tanto, registe-se mais uma vez que o Japão
trabalhava pela paz ; a Rússia trabalhava pelos
seus interesses ambiciosos, sem admittir a
possibilidade de uma guerra, orgulhosa do seu
nome, desdenhosamente indifferente ás con-
tinuas reclamações do pequeno povo de
10
2l8
Nippon, que ella \'ia de longe como um car-
dume de formigas, sem direito a ser escutado
nas suas queixas; as grandes nações da Fai-
ropa por seu lado, todas desconsideradas pelo
colosso no respeitante aos accordos realisados
a propósito da evacuação da China, desin-
teressavam-se da responsabilidade que lhes
cabia, não só não fazendo causa commum
com o Japão, mas pondo-se de lado, embas-
bacadas perante os acontecimentos com um
interesse alvar de saloios que assistissem pela
primeira vez a uma representação theatral. . .
e agora que a gente lhes ature as tiradas
philosophicas ! Com tacs elementos, a diplo-
macia, sempre acrimoniosa nos seus processos,
ateou o incêndio latente e assim rebentou a
guerra ! . . .
— Um amigo meu, lino observador, que
acaba de regressar ao Japão de uma viagem
pelos Estreitos e índia Ingleza, informa-me
ter notado nas populações indigenas — ma-
laios, singalezes, indús e outros — um franco
interesse pelos actuaes acontecimentos do
Extremo-Oriente e o maior enthusiasmo pelas
successivas victorias dos japonezes. O facto é
significativo. A população asiática obserxa
com admiração e com orgulho que um povo
irmão, filho da mesma Ásia, ouse erguer-se
219
contra uma potencia europeia, l(ji;rando obter
gloriosas \'antagens durante uns longos oito
mezes de conflicto. Adi\'inha-se como que um
renascimento platónico, o desabrochar de uma
\'aga esperança de liberdade e de poderio
n'aquelles tantos milhões de almas, ha tão
longos annos subjugadas á dura tutela da
raça branca. Um tal sentimento é antes de
tudo enternecedor, quando se pense nos ter-
ri\'eis Hagellos — fome, epidemias, despotis-
mo, — que vão esmagando, como uma con-
demnação do céo, aquelle enorme rebanho da
familia humana ; mas quem poderá affirmar
que elle não conduza, n\im periodo mais ou
menos longo, em séculos talvez, á realisação
de uma estupenda evolução social, a renas-
cença da Ásia? . . . K vejo n'elle a possibili-
dade de effeitos beni menos remotos, de um
alcance prático importantíssimo, como uma
corrente de auxílios pecuniários, quando o
Japão d^elles carecesse, que xiessse da parte
dos riquíssimos commerciantes indígenas, que
não escasseiam nos empórios de Bombaim^
de Calcuttá e em outros muitos pontos do
mesmo vastíssimo continente.
— Aquelles que se interessam pela littera-
tura exótica ingleza acabam de perder em
I-afcadio Hearn, ou em Koizumi Vakumo — -
220
como quizerem, — um dos seus mais primo-
rosos cultores.
Hearn nasceu em 1850, em uma das ilhas
Jónicas, de pae irlandez e de mãe grega. Fi-
cando muito cedo orphão de pae, foi mandado
educar n'um coUegio de jesuitas em França.
Pouco depois morreu-lhe a mãe, parecendo
que os taes jesuitas se apossaram com pouca
lisura dos bens d'esta; em todo o caso o po-
bre Lafcadio foi enviado para a America a
bordo de um navio de emigrantes, chegando
ao seu destino apenas com o fato que vestia
sobre o corpo. Na America iniciou uma vida
de inclemências, dormindo pelas ruas por não
ter outro abrigo, desprovido dos mais Ínfimos
recursos, até que finalmente um impressor
começou a prestar-lhe alguma protecção.
Hearn trabalhou primeiramente também como
impressor, foi depois jornalista, passou á co-
lónia franceza da Martinica, onde se demorou
cerca de dous ou três annos. Em 1890, com
quarenta annos de idade, apparece no Japão,
mandado por um editor americano, com o fim
de colher elementos para uma obra descri -
ptiv-a d'este paiz ; mas, por um moti\'0 qual-
quer, indispõe-se com o artista desenhador
que o acompanhava e quebra o seu contracto.
No Japão, foi jornalista em Kobe, professor
221
de inglez nas cidades provincianas de Matsue
e Kuniamoto e íinalmente professor de litte-
ratura ingleza na Universidade imperial de
Tokyo, cargo que exerceu até ha poucos
mezes. Hearn, após alguns annos de residên-
cia no paiz do Sol Nascente, casou-se com
uma japoneza, da qual teve quatro lilhos,
naturalisando-se japonez com o nome de
Koizumi Yakumo.
De débil constituição physica, abalada
ainda certamente pela dura existência da
sua juventude, Koizumi achava-se ha algum
tempo doente, recolhido na sua vivenda japo-
neza de Tokyo, rodeada de um delicioso
jardim; de um temperamento ner\'Oso e ex-
cêntrico, farto do convívio dos homens, recu-
sára-se absolutamente, n'estes últimos tem-
pos, a quaesquer relações com a numerosa
colónia estrangeira da grande capital. Na
manhã de 26 de setembro, após um ligeiro
passeio no seu jardim, morria quasi repenti-
namente; o enterro realisou-se em conformi-
dade dos ritos buddhistas.
Koizumi Yakumo adorou a sua pátria
adoptiva, conseguindo também, pelos seus
livros, que muitos a adorassem de longe.
Intelligencia superior, temperamento impres-
sionavel e delicadíssimo de artista, delicioso
222
no estylo, escreveu numerosos volumes sobre
o Japão, os quaes passam por Ser as mais
finas jóias litterarias de tudo que se tem
publicado como impressionismo nipponico.
Cito as suas principaes obras, convidando
os meus leitores a diligenciarem conhecel-as:
«Glimpses of unfamiliar Japan » (1894), « Out
of the Earth» (1895), «Koroko» (1896), «Glea-
nings in Buddha F^ields » (1897), « Exotics
and Retrospections» (1898), « Ghosth' Japan »
(1899), « Shadewings » (1900), « A Japanese
Miscellany» (1901), <sKotto orjapanese Mrius »
(1902), «Kwaidan» (1903).
— No decurso d'estas correspondências
tenho-me por vezes referido ao antigo tra-
fego de emigrantes chinezes feito de Macau
para a America, e ao moderno e idêntico tra-
fego feito geralmente por Hong-Kong, desti-
nando-se apenas os culis chinezes a pon-
tos differentes do mundo. O assumpto, com
a recente tentativa de introducção de traba-
lhadores chinezes na Africa do Sul, renova
de actualidade e de interesse.
É notório como todos os viajantes estran-
geiros — francezes, inglezes, allemães e outros.;
■ — quando se referem nos seus li\'ros a Ma-
cau, recordam, quasi sem excepção, os me-
donhos horrores do commercio dos culis
223
exercido na nossa velha colónia ha algumas
dezenas de annos; commercio rastejando pela
escravatura amarella, resumindo-se os pro-
cessos em arrebanhar os chinezes do interior
com falsas promessas, enciirralal-os nos fa^
mosos barracões de Macau, detendo-os alli
como prisioneiros até seguirem para o Perií
ou para Cuba, á força, em navios vindos
especialmente para esta mercancia. A lamuria
platónica dos mesmos viajantes não se poupa
então a variações de rhetorica plangente,
aproveitando o ensejo para nos mimosearem
com as costumadas ferroadas, como se pre-
tendessem fazer dos portuguezes o povo mais
scelerado do universo. Os inglezes, a mais,
ufanam-se de terem sido os campeões de uma
cruzada moralisadora, conseguindo, pelos seus
esforços, acabar com o trafego de Macau; e
orgulham-se das leis de emigração estabele-
cidas em Hong-Kong, permittindo apenas a
sabida voluntária d'aquelles que pretendem ir
longe exercer actividades.
Ora, n'estas mesmas correspondências, eu
tenho procurado fazer sentir que sorrio de
taes clamores de humanitarismo, parecen-
do-me que o homem é o mesmo em toda a
parte, louro britannico ou moreno lusitano;
af!1gurando-se-me que entre os dous syste-
224
mas de emigração, por Hong-Kong e por
Macau, as diíTerenças não são grandes. O
que os tempos trazem incontestavelmente, é o
supremo esmero na arte de disfarçar as irre-
gularidades, de mascarar as podridões, de
dotirar as pílulas, servindo-me de uma locu-
çãO" beiti nossa e cheia de profunda philoso-
phia; é n'isto de saber dourar a pílula que
os inglezes e outros se téem mostrado bem
superiores a nós, na escravatura chineza como
em muitos outros ramos da chafurda social;
— é um mérito, não contesto, não de ordem
humanitária, mas de ordem esthetica, e como
tal digno de applauso. Claro está que os
meus commentarios amargos hão-de ter sido
taxados de azedumes de espirito resequido,
observações de mysanthropo impenitente, em
constante conflicto com a sociedade e seus
progressos ; mas cahe-me agora de improviso,
sobre as mãos trémulas de commoção, um
jornal inglez, por consequência insuspeito,
que vem dar alguma força aos meus apartes
desabridos.
Resumo os factos. Ha algumas semanas,
um culí em Hong-Kong, pretendendo fugir
pela varanda de uma casa onde se achava
detido, cahiu desastradamente á rua, falle-
cendo pouco depois. Intervém a policia, passa
225
busca á casa, encontra alli encerrados e reti-
dos por meio de maus tratos e ameaças vários
indivíduos, mulheres e homens, todos desti-
nados a serem exportados como emigrantes
voluntários pelo vapor « Catherina Apear»
(poético nome!), que devia largar do porto
no dia seguinte. Km resultado d'esta inter-
venção casual da policia, três chinezes, pro-
prietários ou seus representantes da casa
referida, são conduzidos ao tribunal da coló-
nia e alli julgados. O agente do ministério
publico demora-se em explicar o assumpto,
demonstrando que uma vasta instituição se-
creta existe e tem existido na colónia, dada
ao mister de agarrar chinezes ignorantes e
incautos e de expedil-os á força para fora,
como emigrantes. Os regulamentos de emi-
gração do paiz impõem aos emigrantes o
preceito de virem prestar declarações e infor-
mar do seu propósito na capitania do porto;
mas, em taes casos, os que devem partir
acham-se encerrados em alguma das casas
ao serviço doeste trafego, indo em vez d'elles
uns impostores quaesquer, cimiplices no crime
e provavelmente sempre os mesmos, prestar
declarações, naturalmente satisfactorias.
Contei já, em outra carta, o caso da absol-
vição dada por um juiz de Hong-Kong, ha
226
30 annos, a um ciUí íligido de uni navio que
o levava á força para a America, pretendendo
os inglezes que por este facto acabara o ne-
fando trafego na nossa colónia de Macau. Pois
agora o juiz do mesmo tribunal em Hong-
Kong condemna os três chinezes referidos a
prisão com trabalhos públicos, durante 18 me-
zes para dois, e seis mezes para o terceiro. Ha
ainda a notar a circumstancia curiosa de ter
pretendido o agente do ministério publico pro-
seguir em minúcias, tendentes a demonstrar-se
positivamente que a escravatura amarella se
exerce desde longos annos em Hong-Kong em
larga escala; mas o juiz cortou-lhe a palavra,
advertindo-o de restringir-se aos pormenores
do processo. Sirva isto para abonar sobre a
lenidade das vistas actuaes da justiça ingleza
a respeito do trafego dos ciilís, que tanto a
impressionou n'outras eras, e para nos conven-
cermos de que a escravatura amarella transitou
de Macau para Hong-Kong, onde prospera.
Nota importante: recommenda-se aos via-
jeiros litteratos, propensos a descripções sen-
sacionaes, que cessem de fallar dos barracões
de Macau, por antiquados, para se occuparem
dos modernos boardíng houscs de Hong-Kong.
— Quasi que se vão perdendo as esperan-
ças, entre portuguezes aqui residentes, de que
22/
algum dos nossos criizadores em serviço no
Extremo-Oriente appareça por estes portos.
Continua quasi nullo o commercio do nosso
paiz com o Japão, sendo provav^el que a
guerra haja por agora esfriado algumas tenta-
tivas incipientes da parte de dous ou três dos
nossos commerciantes ; em todo o caso algum
vinho do Porto e espumoso se vende, encon-
trando-se também nas lojas latas de sardinhas
portuguezas. . . importadas por chinezes. No
entretanto, o interesse dos portuguezes por
este paiz está-se manifestando por outra forma,
não inútil — visitando-o quando se lhes offe-
rece opportunidade : — é assim que muitos
funccionarios, que vêem do reino para Macau
ou ao reino regressam vindos d'aquella nossa
colónia, preferem o caminho da America, que
lhes proporciona ensejo de relancearem esta
terra, que tanta curiosidade está despertando
no mundo civnlisado. Registo a passagem por
aqui, n 'estes últimos mezes, dos snrs. juiz
Magalhães e familia, chefe de serviço de saúde
Gomes da Silva, director de obras publicas
Abreu Nunes, chefe da repartição militar Che-
das SanfAnna, officiaes da armada Barros e
Penalva e outros. Bem hajam.
XX
10 de novembro de 1904
O annivcrsario do imperador; algumas divagações sobre
a figura d'este — Noticias da guerra; a defeza
de Stoessel e a esquadra do Báltico; opinião de
um funccionario japonez — Vista retrospectiva sobre
o inicio das relações russo-nipponicas; informa-
ções curiosas a tal respeito — Inauguração da esta-
tua do marquez de Ito.
"jVío dia 3 do corrente, anniversario natalicio
do soberano, eftectuaram-se as comme-
morações officiaes do estyl ) ; nas grandes cida-
des as manifestações populares, favorecidas
por magnifico tempo, offereciam este anno
mais accentuado esplendor, como facilmente
se imagina.
O imperador Mutsuhito nasceu em 3 de
novembro de 1852, entrando agora no seu
53.^ anno de existência. Subiu ao throno
quando tinha 16 annos; no espaço dos 37
annos do seu reinado, o Japão tem passado
por maiores e mais notáveis transformações
politicas do que nenhuma outra nação em tão
curto periodo. As esquadras estrangeiras
229
íicercani-se do mysterioso império do Sol
Nascente, instando por tratados de commercio ;
o Japão, fechado ao convivio mundial durante
longos tempos, vè-se impellido a abrir as suas
portas aos intrusos; o dualismo politico,
constituído pelo imperador, entidade divina
mas não deliberativa, e pelo shogun ou ge-
neralíssimo, que governa em seu nome, cessa,
desapparecendo o shogun e re\'ertendo o in-
teiro mando ao soberano ; a capital do império
é transferida de Kyoto para Tokyo; é dissol-
vido o feudalismo ; promulga-se uma Constitui-
ção; adoptam-se com fervor todas as ideias
occidentaes; as actividades, ofrtciaes e parti-
culares, moldam-se pelos processos europeus ;
o Japão declara a guerra á China e fica ven-
cedor; a sua importância cresce de dia para
dia, prodigiosamente, levando-o finalmente a
occupar um logar proeminente na familia
das nações ; por ultimo, o Japão declara a
guerra á Rússia, rompem-se hostilidades, co-
brem-se até hoje de gloria os soldados nippo-
nicos, causando a admiração do mundo in-
teiro. . .
O imperador Mutsuhito não é hoje o caval-
Iciro esbelto que as gra\airas d::s revistas
locaes se aprazem em reproduzir e divulgar
nas suas paginas. S. M. apresenta visíveis
230
indícios de fadiga, como se a existência lhe
vergasse ao peso das miiltiplices emoções qiie
cçrtamente a téem agitado desde os seus mais
tenros annos. No entretanto, o vulto do
monarcha impõe-se ao respeito geral e im-
pressiona profundamente a quem o relanceia;
o seu aspecto sereno e firme é bem o do
soberano d'este brilhante império asiático, ainda
em parte en\^ol\Mdo em mysterio, glorificado
pela lenda e admirado pelos seus progressos
gigantes. O imperador é adorado pelo seu
povo; o Nippon guarda ainda a feição de uma
grande familia patriarchal, da qual natural-
mente o soberano é o chefe supremo, o pai;
Mutsuhito é certamente hoje, de entre todos
os imperadores e todos os reis do mundo in-
teiro, o mais querido dos seus vassallos.
A guerra que se está ferindo, vem ainda
enaltecer a figura do monarcha do Japão, na
hora presente. Elle não é o auctor d'ella, os
auctores são os seus ministros, ou antes todos
os japonezes, porque todos a queriam, na
defeza dos interesses da pátria c da honra
nacional ameaçada; mas é o imperador que
assume toda a responsabilidade, decretando-a.
A guerra enluta já o Japão, tendo prostrado
muitos dos seus filhos; mas também o cobre
de gloria e chama sobre elle a admiração do
^31
mundo inteiro. A gucM-ra c unia tremenda
calamidade, sim, mas ainda não imprescindível
no estado actual das civilisaçòes. Ku acabo
de ler o ultimo volume do mvstico Tolstoi,
reterindo-se precisamente íU) sangrent<3 confli-
cto d'este momento. As crenças do velho
apostolo da paz merecem o nosso respeito,
como o merecem todas as crenças, mas a sua
lógica não con\'ence. A guerra, sobretudo
de defeza, é necessária, emquanto houver
ambições ; a guerra é o effeito, as ambições
são a causa; acabe-se primeiro com a causa,
se é possível, tornando os homens bons. Mas
quem pode classificar de utopias, no momento
presente, o emblema da bandeira nacional, o
amor da pátria ? e condemnar a disciplina e a
coragem dos soldados? . . . Utopias.- talvez;
mas o inteiro edifício social, a que se abriga
a pobre humanidade, não é acaso todo con-
struído de utopias? ... O que seria para dese-
jar é que a consciência das nações, distin-
guindo o justo do injusto, as impellisse a
virem entrepòr-se entre os combatentes, decla-
rando-se pelo lado do opprimido ; mas não
vêem. . . Philosophos da paz: lembrai-vos de
que, de todas as grandes nações do mundo,
uma só realisou ainda o ideal em qtio persistis,
odiando e desprezando a guerra, tendo em lior-
232
ror os exércitos e as esquadras, eximindo-se
aos Ímpetos fogosos do patriotismo, prestando
culto exclusivo aos seus usos patriarchaes,
á familia, ás actividades pacificas; esta na-
ção é a China; e sabeis, sem que eu vol-o
recorde, quanto á China tem custado este
grau de civilisação certamente superior, vendo-
se escarnecida pelo mundo civilisado em peso,
invadida por legiões de cubiçosos, espoliada
dos seus dominios, joguete, emfim, da alta
politica dos Estados ! . . .
s. Ponhamos agora de parte divagações tran-
scendentes. Em homenagem ao dia 3 de novem-
bro, Banzai pelo imperador do Japão e pelas
glorias nipponicas, e também votos ferventes
por um prompto termo das hostilidades ! . . .
— Poucas noticias da guerra.
Para os lados de Mukden déram-se alguns
encontros entre os combatentes, parece que
favoráveis ao nippo nicos. Estamos longe de
prever os acontecimentos que se seguirão.
Muita gente contava que Porto Arthur
cahisse nas mãos dos sitiantes anteriormente
ao dia 3 de novembro; tal não succedeu,
porém. No entretanto, consta que os ataques
se téem repetido insistentemente, começando a
ser empregados ha alguns dias canhões de
grande poder destructivo, que occasionaram
I
233
já gravissimas avarias na praça. A defeza
opposta pelo general Stoessel tem sido alta-
mente briosa, e é incontestável o relevantis-
simo serviço qtie o \"alcnte soldado está pres-
tando á causa do seu paiz, immobilisando em
frente de Porto Arthur toda a esquadra de
Togo e um importante corpo de exercito ini-
migo, cujas actividades se requerem n'outros
pontos. Julga-se em todo o caso que a temi\'el
praça de guerra não permanecerá por longas
semanas nas mãos dos moscovitas.
Deixou de prender aqui as attenções "O
altamente ridiculo incidente que se deu entre
a esquadra riissa do Báltico e os pescadores
inglezes do mar do norte. A esquadra segue
o seu rumo, segundo consta, e aqui chegará
um dia, se chegar. . .
E nada que nos dê a esperança de um
termo próximo a esta sangrenta campanha. . .
A opinião de um distincto funccionario japo-
ncz, exposta ha algum tempo na imprensa,
deve ser tomada em conta n'este assumpto.
Eil-a em resumo, hnaginemos que o Japão
continua victorioso ; em todo o caso, a Rússia
licará sempre livre de só pedir a paz quando
mui bem o entender, isto pelas condições
geographicas especiaes dos dois belligerantes,
quando não por outras causas ; mas o Japão
234
não deverá seguir indefinidamente a sua mar-
cha triumphal ; antes lhe convém parar, forta-
lecer-se no limite que escolheu, e esperar os
acontecimentos. Supponhamos agora a outra
hypothese, isto é, que desanda a roda da for-
tuna e que os japonezes começam soffrendo
duros revezes ; o Nippon deve então imme-
diatamente provocar a quebra da neutralidade
da China e que ella se levante, com armas na
mão, em seu favor ; a conflagração será tama-
nha, que todas as nações occidentaes terão
de inter\'ir sem demora, em defeza dos seus
próprios interesses, do que resultará fatalmente
aquillo mesmo por que os japonezes pelejam
— a repressão do alastramento moscovita.
Pôde muito bem ser que assim aconteça; aguar-
demos o desenvolvimento do drama, que nos
reserva, porventura, estupendos desenlaces ! . . .
Para aquelles que hajam seguido com in-
teresse as ultimas phases das relações dos rus-
sos com os japonezes até ao trágico desfecho
a que estamos assistindo, é interessante lan-
çar vistas mais distantes sobre o inicio e suc-
cessivas peripécias de taes relações; leva-nos
este estudo a registar uma constante intenção
aggressi\'a da parte dos russos para com os
seus visinhos nipponicos, não de molde a cimen-
tar sjnnpathias sociaes entre os dous povos.
235
A primeira vez que uns e outros entraram
em contacto foi em 1780. N'aquelle anno, um
barco japonez perdeu-sc nas costas da Sibéria,
já então sob o dominio do czar. A tripulação
foi levada prisioneira até írkutsk e alli sujeita
a minuciosos interrogatórios com respeito á
sua pátria. Parece que as informações colhidas
despertaram as ambições latentes dos russos,
que desde longa data haviam, sem duvida,
lançado olhares cubiçosos sobre as terras do
Mikado, tão favoravelniente situadas, pela sua
disposição geographica, para o alastramento
dos seus planos de conquista. E' certo que,
no anno seguinte, cm 178 1, um bando de
moscovitas atravessa\'a o golfo da Tartaria e
vinha desembarcar em Sakhalien.
Sakhalien, denominada Karafuto pelos ja-
ponezes, é imia ilha extensa e estreita, cor-
rendo ao longo e a curta distancia da parte
da vSiberia que os russos chamam a sua Pro-
vincia Mantima, e comprehendida entre as
latitudes de 46" e 54^. O clima é durissimo e
nada convidativo; possue, no entretanto, a
ilha valiosas florestas e minas; mas a princi-
pal riqueza da Sakhalien está nas abundantis-
simas pescarias das suas costas, o que decidiu
os japonezes a irem para alli residir e exercer
as suas actividades paciticas, sem encontrarem
236
outros competidores além dos ainos aborí-
genes.
A inesperada apparigão dos moscovitas,
em 1781, explica-se, porém, sem difticuldade,
quando se attente no seu propósito. Sakhalien
íica apenas separada do paiz nipponico, isto é,
da ilha de Yeso, pelo estreito de La Pérouse
(Al de Soya, prestando-se assim ao estabele-
cimento de intimidades entre os dous povos,
o que se tornava indispensável para a realisa-
ção de mais importantes desígnios. No entre-
tanto, nem ainos nem japonezes mostraram o
minimo desejo de irem contra as leis então
em vigor no seu paiz, as quaes prohibiam
categoricamente quaesquer relações com estra-
nhos; e os russos tiveram de retirar-se sem
nada haxerem conseguido.
Em 180Ó, muda-se de táctica, enviando o
czar um embaixador seu a Nagasaki, portador
de uma carta para o Shogun e munido de
poderes para negociar um tratado de commer-
cio com o Japão. A politica absorvente da
Rússia não era então já desconhecida n'este
império, nem o ShogLin ignorava que largos
tractos de terreno ha\'iam sido extorquidos
por ella ao império da China. Prudentemente,
as propostas do embaixador não receberam
resposta satisfactoria.
2hl
Em seguida, c ainda no mesmo anno,
uma expedição russa chega a Sakhalien,
pilha e incendeia a cidade de Kushunkotan,
que era o mais importante centro da actividade
dos japonezes; ao retirar-se, deixa um docu-
mento escripto, onde declara o firme propósito
do governo moscovita de destruir toda a
parte norte do Japão, se os japonezes se não
decidem a negociar com os russos. A mes-
ma expedição ainda se dirige a uma das ilhas
Kurilas, onde procede pela mesma forma.
Cinco annos depois, os russos mandam ás
mesmas paragens a fragata « Diana >-, com o
fim de traduzir em facto as pré\'ias ameaças;
mas tal não se realisa e os japonezes logram
mesmo prender alguns officiaes da referida fra-
gata.
O governo russo muda ainda mais uma
vez de táctica, persuadindo os seus emigrantes
nacionaes a virem estabelecer-se em grande
numero na parte norte de Sakhalien, pre\'endo
um alastramento de população que lhe faci-
lite os intentos. Por seu lado, os japonezes,
não se achando em condições de poderem
impedir pelas armas esta invasão não desejada
e imminentemente perigosa para a integridade
do solo pátrio, limitaram-se a irem estabe-
lecer-se também em grande numero na parte
238
sul- de Sakhalien; e assim a ilha se achou
submettida, por alguns annos, a duas in-
fluencias distinctas, ao norte a russa e ao sul
a japoneza.
Em 1855, durante a grande contusão que
reinava em todo o Nippon, no momento
critico em que a sua \^elha politica de isola-
mento cahia por terra e as portas do império
se abriam ao convi\'io mundial, a Rússia,
seguindo o exemplo de outras nações, realisa
o seu teimoso desejo, negociando com o Japão
um tratado de commercio, que foi renovado
em 1858.
Kni 1859, a Rússia toma posse definitiva
da parte norte de Sakhalien. O facto produziu
grande indignação no Japão, mas a prudência
aconselhou-o a não tentar resolver o problema
por meio de hostilidades. O governo japonez
envia á Rússia uma embaixada, que chega a
S. Petersburgo em 18Ó2, com a missão de
tratar de evitar novos alastramentos do inva-
sor, cuidando de obter uma delimitação de
fronteiras, que permitta ao império asiático
o gòso seguro da metade sul da ilha; a pro-
posta foi acolhida com indilferença e a em-
baixada recolhe ao Japão sem nada ter con-
seguido. Em 1867, imia segunda embaixada
partiu para a Rússia com idêntico fim, chegan-
239
do-se então ao accordo de que a ilha fosse
conjuntamente occupada por japonezes e
russos; mas oito annos depois, em 1875, o
império do czar consegue fazer acceitar pelo
Japcão um novo tratado, pelo qual os japonezes
reconhecem perder todos os direitos a Sakha-
lien, isto em troca da posse do intimo archi-
pelago das Kurilas, que a Rússia lhes cede,
posto que nunca praticamente o tivesse
occupado como dono. Sakhalien passa então
a ser uma colónia penitenciaria russa, o
inhospito capti\'eiro de milhares e milhares de
deportados, politicos e outros, cujas misérrimas
condições de existência nenhu;n \iajante po-
derá rigorosamente relatar.
Deve também aqui registar-se que em um
bello dia do anno de 1861 a fragata russa
« Passadnik t> ia fundear junto da pequena ilha
japoneza chamada Tsushima, excellente ponto
estratégico que defronta com o extremo sul da
península da Coréa e constitue a chave do
mar do Japão. Os marinheiros russos desem-
barcaram em Tsushima e alli arvoraram a sua
bandeira nacional, começando a dispor da ilha
como se fosse cousa sua; assustados pela
chegada de -um navio de guerra ingiez, reti-
raram precipitadamente, não trazendo o desa-
cato outras consequências.
240
Convém agora fazer menção de que em
1876 os japonezes conseguiram negociar com
a Coréa um tratado de commercio, abrindo-
Ihes esta o seu porto de P\isan ; Chemulpo
foi-lhes aberto em 1880. A America obtinha da
mesma Coréa, em 1882, um tratado de com-
mercio nas mesmas condições. Seguiu-se-lhe
a Inglaterra em 1883 e a Rússia em 1884.
Desde então, a Coréa tornou-se um vasto
campo da intriga dos russos, que não téem
cessado um só momento de procurar por todos
os expedientes substituir a sua influencia á
que alli naturalmente exerciam, por laços de
visinhança e de tradição, os japonezes. Estes
também por seu lado téem intrigado, cuidando
de fazer pender o braço da balança em seu
favor. Mas note-se, em justificação do seu
procedimento, que, encontrando-se o Estado
coreano em taes condições de miserável deca-
deijcia que não poderá subsistir sem o apoio
de algum dos seus visinhos, que só pôde ser
um dos três impérios — China, Japão ou Rússia
— o Japão tratou mui logicamente de se con-
stituir o protector. Por piedade altruista? Não,
não invoquemos este conceito hilariante. E'
que, no momento em que a influencia chineza
ou russa predominasse na Coréa, a indepen-
dência e a integridade territorial do Japão en-
241
contrar-se-hiam em imminente risco ; e aos
japonezes impòe-se o dev^er sagrado de pugna-
rem pelos interesses da sua pátria, da pátria
de seus avós. K' claro que nenhum dos dois
outros impérios poderia invocar idêntico motivo
em seu favor; o que, perante a sã justiça
mundial, mais robustece a legitimidade das
pretenções nipponicas. E não se poderia aqui
recorrer a um argumento, bem mais transcen-
dente, servindo para a plena justificação d'estas
mesmas pretenções nipponicas? Sobre os po-
vos pesam por \ezes tremendas responsabili-
dades, como que escriptas no programma
insondável dos destinos. Perante a philosophia
da Historia, não se presente acaso que o Japão
trabalha, consciente ou inconsciente, para a
evolução da Ásia inteira, para o seu engran-
decimento, para a sua gloria talvez? Deve,
pelo contrario, esperar-se tão alta missão par-
tindo da China apathica ou então da Rússia
intrusa? Não, não pôde esperar-se isso; perante
o tribunal da consciência humana, ao Japão
assiste o direito e assiste o dever de fir-
mar a sua hegemonia em todo o Kxtremo-
Oriente.
Terminando estas linhas, devo por ultimo
lembrar que as intrigas e ambiciosa interferên-
cia da Rússia nas questões da Coréa torna-
11
242
ram-se ainda muito mais activas n'estes iiltimos
annos; a Coréa foi, como é notório, o pomo
de discórdia, levando finalmente o Japão a
romper hostilidades com o seu orgulhoso com-
petidor.
XXI
23 de novembro de 1904
As surprezas da guerra — O nome de Togo; coisas inte-
ressantes que respeitam a este arrojado marinheiro:
a sua origem, a sua lista de serviços, a sua physio-
Hí^mia. -As rubras « momiji » do outomno.
A (luEKRA actual vai-nos proporcionando de
quando em quando as mais surprehen-
dentes peripécias. Sirva de exemplo, para não
escolhermos outro, o combate quixotesco
da esquadra russa do Báltico contra a ílotilha
dos pescadores inglezes. Agora, isto é, ha
poucos dias, é o caso do destroyer russo « Ras-
toropny». Este barco sahiu de Porto Arthur
e pôde furtar-se ao encontro com a esquadra
japoneza de bloqueio, graças a um temporal
de neve que se desencadeou n'aquellas para-
gens. Chegado ao porto chinez, pouco distan-
te, de Chefu, desembarcava toda a guarnição ;
pouco depois dava-se uma explosão a bordo,
evidentemente propositada, e o «Rastoropny»
afundava-se. Não resta a menor duvida de
que o commandante do destroyer era portador
244
de comniunicações importantíssimas para o
governo de S. Petersburgo ; e que transmittidas
ellas pelo telegrapho, como não seria em preza
fácil, nem útil, o regresso a Porto Arthur, se
sacrificou o barco, evitando-se assim complica-
ções internacionaes ou que os japonezes d'elle
se apropriassem. Mas que communicações im-
portantíssimas se teriam transmittido? Isto e
que se ignora completamente.
Para não errar, nenhumas conjecturas é
licito fazer com respeito á situação de Porto
Arthur; sabe-se que os ataques continuam;
atacantes e defensores continuam desenv^ol-
vendo energia enorme, coragem furiosa, o que
está causando a maior admiração no mundo
inteiro.
Dos lados de Mukden chegam noticias
vagas, annunciando-se alguns encontros de
fortuna varia, mas de nenhuma importância
para o prosegui mento das operações, que em
todo o caso parecem pouco activas n'este
momento. Entre japonezes e russos levanta-se
agora um inimigo terrível, não poupando nem
uns nem outros, matando sem balas nem
pólvora e impondo fatalmente longas moro-
sidades aos progressos do conflicto: é o
medonho inverno da Mandchuria. Mal se
imagina como estão agora soffrendo, em tão
245
inhospita região de nebolusidades geladas, os
bravos soldadinhos nipponicos, habituados ao
seu doce paiz do sol e de luz ! ...
E, infortunadamente, ninguém pensa na
possibilidade de uma próxima solução pacifica
do conflicto. . .
— O nome de Togo era, até ha alguns
mezes, inteiramente ignorado para além da
sua pátria; hoje popularisou-se por toda a
parte e já pertence á historia mundial. Os pri-
meiros tiros feridos por imia divisão naval
japoneza contra dous navios de guerra russos,
á entrada do porto coreano de Chemulpo, no
dia 9 de fevereiro; o ataque infligido, no mes-
mo dia, á esquadra russa fundeada descui-
dosamente em frente de Porto Arthur: o
arrojado serviço dos torpedeiros e as succes-
sivas e horoicas tentativas de obstrucção da
barra do mesmo porto de guerra; o combate
naval de lo de setembro, glorioso para os
marinheiros japonezes e ao mesmo tempo triste
documento da desorganisação reinante do
lado dos seus adversários ; a caça sLibsequente
aos navios de Vladivostok, resultando a perda
total de um cruzador e a fuga dos seus dois
companheiros de fortuna, seriamente avaria-
dos; a paciente e cfticaz acção do já longo
bloqueio de Porto Arthur; todos esses factos,
246
para não fallar de outras peripécias secundarias
e do muito que é licito ainda esperar-se da
victoriosa esquadra nipponica, téem feito con-
vergir as attenções geraes sobre o distinctis-
sinio almirante que a commanda.
Parece, pois, que não deixarão de des-
pertar interesse os traços biographicos que
vão seguir-se, referentes ao almirante Togo,
um dos vultos mais em evidencia, se não o
mais saliente, nos factos já registados do
terrível conflicto que se trava, e a cujo proce-
dimento o Japão deve a enormissima vantagem
de vêr-se senhor do mar desde o rompimento
das hostilidades. Ha já bastantes semanas que
era meu desejo apresentar aqui estas rápidas
referencias, realisando-o só agora, por ter
querido consultar publicações indigenas, que
tarde me chegaram ás mãos.
Togo Hehachiro — Togo é o appellido de
familia — nasceu na cidade de Kagoshima,
capital da província de Satsuma (então daimy-
ato) na ilha de Kyushii, aos 22 de dezembro
de 1842 (encontro em vários documentos
ligeiras divergências de datas, o que não vale
a pena discutir aqui). Pertence a uma fami-
lia de samurai, isto é, da classe votada ao
serviço militar nos tempos do feudalismo.
Antes de ir mais longe, convém referir-me
247
a umas allusões que correram mundo sobre a
origem de Togo: alguém escreveu algures,
segundo noticia que me chegou da Europa,
que elle descendia de portuguezes, mais cor-
rectamente — que era um mestiço. — Não acre-
dito em tal. Também se disse ha pouco que o
pai de Kuroki era francez. Taes divagações
saltaram mui provavelmente da penna de
qualquer escriptor russophilo, desejoso de
fazer acreditar que os mentos indiscutíveis do
almirante e do general i-ecahem em dous mes-
tiços, em cujas veias corre sangue europeu;
de que se poderá, porventura, concluir, for-
çando a lógica, que em genuínos japonezes
não seria dado vér reunidos tão finos dotes.
Para o caso especial de Togo, quer-se talvez
allegar a circumstancia de que foi cerca de
Kagoshima que os primeiros europeus — os
portuguezes por mais de 6o annos — aborda-
ram o Japão, por 1543, conservando intimas
relações, religiosas e mercantis, com esta parte
do archípelago; mas não consta que de tal
facto resultasse uma população mestiça na
província de Satsuma ou seus subúrbios, sendo
absurdo requerer para Togo o privilegio.
Diz-se que a tenra infância do meu biogra-
phado foi muito influenciada pela convivência
com um seu visinho, Ito Koyemen, homem de
248
profundos estudos, pensador, escriptor, educa-
dor, que baseava a essência de todas as suas
doutrinas n'um alto culto pela firmeza de
caracter, pela inflexibilidade perante os con-
tratempos da existência. I^oucos vestígios
restam do que foi Ito Koyemen ; mas julgan-
do-os por alguns discípulos seus, cujo espirito
formou, taes como vSaigò, o valoroso chefe
rebelde de Satsuma, e Okubo, e Katto, e
muitos outros vultos notáveis na historia
moderna do império, revela-se-nos como uma
personalidade dotada de finíssimos dotes de
cavalheirismo, de subida nobreza de alma e
de grande poder communicativo.
Seja como fòr, Togo, que - nos interessa
agora mais do que os outros, começou cedo
dando provas de um caracter primoroso,
de uma intelligencia robusta e de profundo
amor ao estudo. Por aquella época, coincidindo
com a chegada dos occidentaes a Yokohama,
insistindo em entrar cm relações com o Ja-
pão, e com as grandes convulsões politicas
resultantes, os differentes principados começa-
ram a despertar do lethargo em que até então
iam vivendo, reconhecendo a necessidade de
se iniciarem nas ideias modernas e de se ar-
marem com elementos novos em defeza da
pátria ameaçada. Satsuma figurava á frente
249
d'este movimento, o que em parte se deve
attribuir a antigas rivalidades entre os seus
príncipes e o shogun, generalissimo, cujo
procedimento, contemporisador para com os
desejos dos estrangeiros, ia já provocando
indignada effervescencia na facção mais devo-
tada ao prestigio do soberano. O daimyò de
Kagoshima, Hisamitau, procedeu, pois, ao
apuramento dos moços mais esperançosos de
entre os seus vassallos, que destinou a diversas
carreiras publicas, sob um regimen de educa-
ção moderna; Togo foi escolhido para a
marinha, partindo para Yokohama, afim de
estudar, antes de tudo, a lingua ingleza com
um professor inglez alli residente.
Rebentam hostilidades entre os partidários
da causa imperial e os do shogun ; Togo,
collocando-se naturalmente do lado dos pri-
meiros, põe de parte estudos, embarca no
vapor «Kasuga» pertencente ao daimyato de
Satsumia, tomando parte em vários combates
contra os navios do shogun. Em 187 1, quan-
do restaurada de todo a paz no império com
a suppressão do shogunato, Togo é enviado
a Inglaterra, a fim de completar a sua educa-
ção naufica, servindo como aspirante no navio
da marinha britannica «Worcester» e em
outros, durante cerca de seis annos. Muitos
2í;o
oíficiaes inglezes da vdha guarda ainda se
recordam do mocinho circumspecto e diligente,
a queni os camaradas chamam chínaman (o
homem da China); isto até que o tal mocinho
lhes explicou mui asperamente que elle não era
chína-inan, mas sim japan-man^ e não estava
resolvido a supporfar por mais tempo a falsa
alcunha. . . Após, quando o novo official deve-
ria regressar á pátria, recebeu instrucções do
governo de Tokyo para assistir á construcção
do « Hieikan», navio que os japonezes haviam
encommendado na Inglaterra; facto que demo-
rou por mais dous annos o seu regresso.
Mas esta demora foi uma circumstancia
felicíssima, que salvou certamente de um hm
trágico e breve o valente marinheiro, que hoje
tão relevantes serviços está prestando ao seu
paiz. Recordemos a historia. Saigò Takamori,
samurai de Satsuma e que representou um
papel importante na restauração imperial, fora
ministro da guerra em 1870; mas retirou-se
para Kagoshima quando viu que o governo,
longe de respeitar os antigos usos nacionaes,
cuidava com afinco de europeanisar o Japão.
Em Kagoshima fundou uma escola militar,
que se encheu da mocidade exaltada das pro-
víncias de Satsuma e de Osumi. O governo,
desejando prudentemente chamal-o a Tokyo,
2 vi
nomeou-0 marechal commandante em chefe
das armas do império, mas nada com isto
conseguiu. O movimento insurreccional, latente
havia alguns annos, fez explosão em 1877,
capitaneado por Saigò. As forças imperiaes
marcharam a ir suffocar a revolta de Satsuma.
Durante seis mezes, os combates succedem-sç
sem descanço, sangrentos e indecisos. Pouco
a pouco, os rebeldes vão enfraquecendo, não
por mingua de bravura, mas dizimados, por
forças superiores; até que finalmente Saigò
se vê forçado a refugiar-se, com os poucos
que lhe restam, no castello de Shiroyama, tor
dos dispostos a venderem caro as suas vidas..
A batalha deu-se no dia 24 de setembro,;
Saigò foi um dos primeiros a baquear, ferido
n'uma perna por uma bala dos sitiantes; orde-
nou então a um dos seus officiaes que lhe
decepasse a cabeça, para não cahir vivo nas
mãos das forças imperiaes; muitos o imitaram,
outros ficaram prostrados pela chuva da me-
tralha ; e assim acabou a revolta de Satsuma.
Ora os três irmãos de Togo haviam-se todos
alistado no partido do seu nobre e prestigioso
compatrício, Saigò Takamori, morrendo todos
com elle, na batalha de Shiroyama; não resta
duvida de que Togo houvera tido a mesma
sorte, se chegasse a tempo de poder acompa-
252
nhar seus irmãos; mas não chegou a tempo;
a 2 de maio de 1878 regressava ao Japão,
a bordo do «Hieikan», quando as dissensões
politicas se haviam acalmado e refloria a paz
no paiz do Sol Nascente.
Segue-se agora a lista de serviços do valo-
roso marinheiro, mas que pôde aqui só appa-
recer muito em resumo. Promovido a tenente
á sua chegada á pátria, foi seguindo rapida-
mente os postos e occupando sempre logares
importantes, ora em terra, ora no mar. Assiste
aos tumultos da Coréa em 1882, encarregado
de proteger os japonezes residentes. Segue de
perto o ataque dado pela esquadra do almi-
rante francez Courbet aos navios chinezes em
Fuchau, em 1885. Em seguida, já capitão de
fragata, exerce o cargo de director do material
de guerra no arsenal de Yokosuka. Em 1894,
quando rebenta a guerra com a China, é no-
meado com r andante do bello cruzador prote-
gido «Naniwa», de 3:650 toneladas, tomando
parte muito distincta nas operações navaes.
A bordo do «Naniwa» e de companhia com
os cruzadores «Yoshino» e « Akitrushima»,
trava combate, após provocação, perto de
Asan, na Coréa, com os dois cruzadores-cou-
raçados chinezes « Tsi-Yuen » e «Kwang-y»,
resultando ir este ultimo encalhar na costa,
253
sendo abandonado pela sua guarnição, e o «Tsi-
Yuen» fugir muito avariado na direcção de
Wei-hai-Wei. Após este combate, que durou
uma hora, o « Naniwa » encontrava o vapor
inglez « Kowshin » transportando i:ioo solda-
dos chinezes para a Coréa ; como o vapor não
se rendesse, Togo mette-o no fundo a tiros
de canhão, caso que foi muito discutido
n'aquella época por toda a imprensa europeia.
Na batalha de Valu, no bombardeamento
de Porto Arthur e finalmente na tomada de
Wei-hai-Wei, ainda o « Naniwa ->> íigura bri-
lhantemente, encorporado na esquadra do
almirante Ito e ma'iobrado pelo seu habilissimo
commandante. No fim da guerra, a actividade
de Togo exerce-se no sul da China, sendo
elle que protege o desembarque das forças
nipponicas na Formosa. Durante os tumultos
dos boxerSy é Togo que commanda a esquadra
japoneza no mar da China.
Togo era promovido a vice-almirante em
1898. Quando a guerra com a Rússia se apre-
sentou inevitável, foi nomeado commandante
em ' chefe da esquadra e promovido pouco
depois a almirante. Entramos nos aconteci-
mentos da actualidade, os quaes seria supér-
fluo relembrar, porque são de conhecimento
de todos; basta dizer que taes acontecimentos
254
serviram já para demonstrar plenamente quanto
acertada foi a escolha do governo japonez,
dando a Togo uma tão melindrosa missão.
A guerra naval que se fere, ligurará certa-
mente na historia do mundo como a mais
terrível e a mais iiotax-el dos tempos moder-
nos, e aquella em que pela primeira vez os
mais altos aperfeiçoamentos — enorme alcance
de tiro, extrema delicadeza dos machinismos,
excellencia do poder da couraça, telegraphia
sem hos, — entram em jogo. O almirante
Togo mostra-se bem á altura do seu cargo,
tendo já, por si e pelo auxilio dos seus bravos
marinheiros, erguido ás eminências da fama
o prestigio da pátria nipponica, perante a sur-
preza das nações. Mas muito terá ainda que
fazer, após o bloqueio de Porto Arthur, em
que agora se empenha. Chegará a estes mares
a já tão fallada esquadra russa do mar Báltico?
Se chega, novas energias exigirá de Togo o
seu paiz. EUe já desbaratou e aniquilou os
navios russos do Extremo-Oriente; mas cum-
pre-lhe que desbarate e aniquile também os
navios do Báltico, convencendo por esta forma
indiscutix^el os seus commandantes de que a
esquadra nipponica não se encontrava nos
mares do norte da Europa, pescando arenques
de mistura com as companhas inglezas, mas
255
aqui, no niar do Japão, com os canhões em
bateria, em defeza d'este encantador império
insular.
Togo é um homem de mediana estatura»
de olhos claros e meigos, de pequeno bigode
quasi branco e barba grisalha e curta a em-
moldurar-lhe o rosto. A sua physionomia é
doce, paciente, captivante. Quando em terra,
nos seus raros ócios, entrega-se ao calmo con-
vívio da familia, rodeado da esposa e dos
filhos, que são numerosos, de ambos os sexos;
encontram-no então ás vezes acocorado á
borda das ribeiras, vestindo um simples kimono
de aldeão, um grande chapéu de palha enter-
rado na cabeça, pescando serenamente á
linha. . .
— Por estes dias de fins de outomno e por
estas paizagens nipponicas, o incomparável
pintor colorista, que se chama, em boa lingua-
gem chã, a nossa mãe natureza, prodigalisa
as suas nielhores tintas de ouros-velhos, de
vermelhos, de escarlates, sobre as comas das
arvores, na esplendida amenidade dos campos.
A primavera, a primavera ! . . . no fim de con-
tas, uma menina pretenciosa, enfrascada em
perfumes, arrebicada de grinaldas, toda ella
nervosismos; e por isto mesmo, por tanta
garridice quisilenta. Não ha flores que valham
256
esta rama requeimada de certas arvores que
se chamam niomiji em japonez, de delicadíssi-
mas folhas digitadas a lembrarem patas de
gallinha, em estupendas apotheoses de incan-
descência, graças ao colorido estranho que
lhes imprimem os últimos dias de novembro.
Mas o outomno não cora apenas os momiji:
um grande numero de outras arvores, de
arbustos, de plantas, se vestem de tonalidades
prodigiosas — amarellos ardentes, carmezins
sanguíneos, roxos lutuosos, — contrastando
com o verde perenne, eterno, da rama dos
pinheiros.
Encantadoras florestas e encantador ou-
tomno ! . . . E reparai : na primavera, uma
folhinha que espiga é a imagem da esperança;
no outomno, uma folha que cahe é a imagem
da saudade. . . Sois velho, como eu ? Se o sois,
haveis de convir commigo que, no campo do
mysterio psychico das forças emotivas, entre
a esperança e a saudade, a poesia d'esta
ultima é bem mais arrebatadora, bem mais
intensamente sentida. E' bom rir. . . mas me-
lhor é chorar, se a nossa sentimentalidade
pôde attingir, com a experiência da vida, o
requinte supremo de se aprazer na dor! . . .
Eu contemplava este soberbo espectáculo
outomnal do alto do templo buddhista de
257
Kiyoinizu, em Kioto, dedicado á deusa do per-
dão, Kwannon, de 1 1 rostos e de iiooo braços.
A meus pés, cavava-se em precipicio um pro-
fundo valle, coberto de arvoredo, em que
abundavam os rubros momíji, e que ia es-
treitando até offerecer um leito serpeante e um
tilete de aguas crystalinas, que deslisavam em
silencio. O pov^o em multidão, de \'estes poly-
chromas, desfilava pelos trilhos em zigue-
zague, ou abancava junto de pequenas vendas
garridamente embandeiradas, para tomar chá
e comer bolos, no enlevo d'aquella festa das
folhas mortas. . .
XXII
12 de dezembro de 1904
Calmaria de noticias — A situação dos dois belligeraii-
tes — Qual será o resultado do novo e tremendo
encontro que se espera? — Porto Arthur — A esqua-
dra russa do Báltico — A sympathia mundial a
favor do JapSo — Considerações e explicações —
Ultimas noticias relativas á guerra,
A pRovEiTKMos a qiiasi absoluta calmaria de
noticias da guerra d'estas ultimas sema-
nas, para lançarmos um rápido relance de
olhos sobre a situação dos dois belligerantes,
tentando deduzir dos factos as consequências
próximas mais prováveis.
Dos lados de Mukden os exércitos inimi-
gos conservam-se em permanente contacto,
como o estão provando as quasi constantes
escaramuças que se dão, de resultados vários.
Posto que o inverno, que começa rigorosís-
simo, como é sempre na Mandchuria, esteja
impondo uma natural pausa nas hostilidades,
para recomeçarem presumidamente na prima-
vera, parece, comtudo, que nem russos nem
japonezes se acham satisfeitos com as respe-
2 59
ctivas posições que occupam, affigurando-se
imtninente uma grande batalha ainda dui^antc
este mez.
Admitte-se como certo que importantissi-
nios reforços, de tropas frescas vindas da
Europa, tenham augmentado ultimamente o
ertectivo do exercito de Kuropatkine. Dos ja-
ponezes nada se sabe aqui, cuidando cautelo-
samente o governo de occultar jio publico
as suas determinações; mas a experiência dos
acontecimentos anteriores induz-nos a acredi-
tar que ainda ha sobra de soldados nipponicos
e que as falhas nas forças do marechal Oyama
hajam sido largamente preenchidas durante o
presente periodo de tréguas.
Qual será o resultado do novo e tremendo
encontro que se espera? Os observadores im-
parciaes já descrêem muito das promessas de
Kuropatkine e da vinda do tal exercito im-
menso, incumbido de esmagar todos os nippo-
nicos. Embora a Rússia disponha, effectiva-
mente, de uma população enorme, a expedição
de similhante exercito e a sua manutenção
em plena Mandchuria não passam de simples
chimeras, de sonhos irrealisaveis. Succederá
acaso que a sorte das armas favoreça as for-
ças do czar, as quaes até agora não téem
tido senão revezes ; mas essa mui problemática
26o
victoria não poderá deixar de ser incompleta,
porque já será humanainente impossível ani-
quilar o exercito do mikado, composto de tão
excellentes soldados e hoje muitas vezes supe-
rior ao que era no inicio do conflicto, pela
incalculável força moral que lhe imprime o
prestigio das suas multiplices victorias. A
Rússia cm peso já não poderia esmagar agora,
como um bando de formigas, os heroes de tão
brilhantes e successivas batalhas.
Quanto a Porto Arthur, é certo que o pu-
blico no Japão, mesmo as auctoridades diri-
gentes, todos se illudiram muito, julgando que
a temivel praça de guerra cahiria dentro de
poucos dias nas mãos dos sitiantes. Não cahiu
e ainda se mantém, mercê da coragem inau-
dita dos seus defensores, dos recursos de que
dispunham, e das condições naturaes do ter-
reno. Esta grande audácia dos japonezes tem-
Ihes custado, sabe-se, muitos milhares de
vidas. Mas Porto Arthur ha-de fatalmente
cahir. Os ataques continuam, com duras perdas
para os japonezes, mas também com duras
perdas para os russos, que não podem receber
auxilio algum do exterior. Annuncia-se agora
que no dia 30 de novembro os japonezes
tomaram de assalto, após desesperada resis-
tência, o forte chamado «Cota dos 203
26 1
metros», o qual domina quasi todas as forti-
ficações do inimigo. D'este acontecimento e
de outros que vão succeder-lhe, resultará, não
se sabe quando, a derrocada final, substituin-
do-se a bandeira da cruz de Santo André pela
do Sol Nascente, e assim se terá cumprido
uma condição imprescindível do tremendo
programma nipponico.
No entretanto, a esquadra russa do Báltico
avança, aproxima-se lentamente das aguas
extremo-orientaes, o que até ha pouco nos
parecia impossivel de realisar-se, porque não
contávamos com uma certa elasticidade dos
deveres neutraes que se está dando por parte
de terceiros, deveres que tomam differentes
formas, como uma bola de borracha, c assim
permittem aos russos commodo aprovisiona-
mento nas escalas que \'ão fazendo. Mas che-
gará cá, a já famosa esquadra do Báltico ?
Como é licito imaginar-se tal, que após uma
longa e penosa viagem, com avarias certas a
exigirem prompto reparo, com uma guarnição
inexperiente (porque a Hòr da marinha russa
deve ter sido a que veio com a primeira
esquadra), inexperiente e ainda por cima des-
moralisada, do que já deu sobejas provas;
como é licito imaginar-se que uma tal esqua-
dra, carecendo, antes de entrar em combate, de
202
iini porto de abrigo que não se lhe depara,
venha expor-se temerariamente ao encontro
da esquadra de Togo, a qual lhe é material-
mente superior e guarnecida por uma tripula-
ção altamente experimentada no mar e no
fogo, exaltada pelas glorias dos seus feitos? . . .
Não, eu creio que a esquadra do Báltico não
se arriscará a aproximar-se do império insular,
para não soffrer sorte igual á da esquadra do
mallogrado Makaroff. De duas hypotheses,
uma: ou algum grande acontecimento, como
a provável e próxima queda de Porto Arthur,
a decide a voltar para traz, imitando assim
no mar a estratégia em terra de Kuropatlvine ;
ou então vae e.spalhar-se por esses mares de
Christo, occupando-se na faina aventureira de
corsário, pouco gloriosa mas bastante profícua,
e com o que poderá causar terríveis damnos
ao commercio japonez e também ao commer-
cio neutral. Não nos fatiguemos, no entretanto,
em elaborar hypotheses, que podem todas
falhar; o futuro, na crise presente, mostra-se
insondável; sendo possivel que, se a Rússia
insistir no prolongamento do conflicto, tremen-
dos acontecimentos surgirão, cujo alcance nem
se imagina nos dias que vão correndo. . .
— A sympathia mundial, tão necessária
ao Nippon para a realisação dos seus desígnios,
363
apresenta-se ainda dt.) sen lado, maravilhando
a todos o esforço gigante d'este bando de
ilhéus, arcando contra o inimigo colossal que
pretende esmagal-os. Km todo o caso, não
confiemos demasiadamente n'esta sympathia.
Os effluvios sentimentaes das nações lembram,
em grande, os caprichos, as preferencias das
creanças, susceptiveis de mudarem n'um mo-
mento de sentido, quando por exemplo venha
a fadiga de uma prolongada expectativa. F.,
assim como um confeito, ou um bom fructo
maduro, lançado a propósito sobre a palma
da mãosita cubiçosa, poderá modificar de im-
proviso a orientação mental do infante, assim
também outro género de fructos ou de con-
feitos, isto é, os interesses próximos e porven-
tura mesquinhos, os accordos productivos,
poderão alienar do remoto Kstado asiático as
attençoes dos occidentacs, abandonando-o ao
seu destino.
Creio até que uma certa impaciência já
começa a manifestar-se na ICuropa, já começa
a manifestar-se na America, mesmo do lado
d'aquelles que mais se enthusiasmam pela
causa nipponica. A principio, era simplesmente
uma louca temeridade a acção dos japonezes
contra os russos; mas já que os venceram, já
que os desbarataram, porque não avançam
204
mais? porque não correm a Mukden ? porque
não alcançam Karbin ? porque não envolvem
n'uma cintura de canhões o exercito em peso
de Kuropatkine ? porque não penetram de vez
em Porto Arthur ? . . . As massas folgam,
commovem-se com o drama; mas não lhe
concedem de bom grado mais dos cinco actos
usuaes. Cruéis e irreflectidas interrogações,
que téem ares de desconhecerem as enormes
difíiculdades que tolhem constantemente o
passo aos bravos soldados japonezes, os hor-
rores do inverno duríssimo que começa, as
doenças que sobrevoem, a grande paciência
requerida, esperando momento azado para
disputar mais um palmo de terra ao inimigo
poderosíssimo que está na frente ! . . .
E' curioso, no entretanto, observar que,
se ainda na F.uropa, se ainda na America,
desabrocha a flor da sympathia, voltando a
corolla para o lado do Sol Nascente, é na
região asiática c principalmente no Japão,
onde por entre os residentes occidentaes se
nos deparam mais irreconciliáveis antipathias
pela causa nipponica. Assim devia acontecer;
Esta guerra reduz-se, no fim de contas, a uma
lucta de raças, devendo ter-se o cuidado de
esclarecer assim a situação: a Ásia, represen-
tada pelo Estado asiático mais florescente,
265
mais av^ançado em progressos, reclama o
direito da sua independência, da sua unifica-
ção, do seu engrandecimento ; a Europa, ou
melhor, o Occidentc, representado por um dos
seus mais temíveis Estados, quer para si o
direito de explorar a Ásia como cousa própria,
como colónia escravisada. Ora ninguém per-
sonifica melhor o elemento mais empenhado
em tal exploração do que os occidentaes aqui
residentes, directamente com as mãos no ne-
gocio, em contacto diário com os japonezes
no jogo das permutações, e por isto mais
promptamente lesados pelas iniciativas indí-
genas.
E' assim que nos clubs, nos hotéis, pro-
vavelmente nas igrejas, n'um centro qualquer
onde se pratique a palestra, entre residentes
estrangeiros, transpira frequentemente o desejo
de vér vencido o Japão. A Rússia não é boa,
mas antes ella domine no Extremo-Oriente em
vez do Nippon. A ideia enuncia-se apenas
parcialmente, porque um inglez desejaria que
a Inglaterra fosse o dominador, um allemão
que fosse a AUemanha, um francez que fosse
a França e assim os outros. O egoísmo, dis-
pondo soberanamente das consciências.
Continuemos discorrendo, á feita de me-
llior assumpto, sobre este das sympathias e
ia
266
•,♦
das antipathias que o Japtão inspira aos occi-
dentaes ; parecendo-me a palestra não de todo
destituida de interesse.
Na Europa, na America, as sympathias
sinceras por este império e por este povo
encontram-se nos raros que apreciam o Japão
pelo seu lado artistico, tão surprehendente de
primores, ou nos egualmente raros que estu-
dam a sua maravilhosa historia, o seu assom-
broso desenvolvimento, as palpitantes aspi-
rações da nação. Até ha pouco, o resto, isto
é, a gi^ande maioiia, quasi que se mantinha
por completo indifferente em tal matéria; a
guerra popularisou o Japão, excitando a emo-
tividade das massas, fazendo brotar S3'mpa-
thias e antipathias, ao acaso.
Com respeito áquelles que conhecem por
seus olhos o Japão, que o habitam ou habita-
ram, devemos distinguir entre toiírístes e re-
sidentes. Os touristes, os que fizeram uma
rápida apparição n'este paiz, adoram-no em
geral ; a litteratura enthusiastica sobre o Nip-
pon emana quasi toda d'elles. Nem eu mesmo
comprehendo que estas paizagens graciosíssi-
mas, que esta arte gentil que resalta de tudo
e de todos, que este povo amabilissimo, que
estas mulheres encantadoras, deixem frio, in-
differente ou sarcástico aquelle que relanceou
lÒ']
tantos enlevos; esse alguém, que não se en-
terneça com tal quadro, será um imbecil ou
um perverso.
Com o residente, o caso muda muito de
figura. Não fallando já nas razões mercantis
que ficaram apontadas, e que naturalmente
lhe predispõem o animo contra o competidor
naiivo, outras razões, mais subtis, vão ex-
plicar a frequente antipcithia do europeu con-
tra o japonez. A primeira impressão de agrado,
contrapõem-se dia a dia a ignorância irritante
da lingua, o antagonismo dos sentimentos e
dos costumes, o orgulho occidental em fricção
com o orgulho nipponico, uma certa acção
mórbida do clima e certamente ainda outras
causas. O residente, em regra, afasta-se a pouco
e pouco de tudo que seja japonez, vivendo
na sua casa, no seu escriptorio, no seu club,
no seu bar e no seu tcnnis.
Se ha algum branco que, após demorada
permanência n'este paiz, ainda se commov^a
pela paizagem que o envolve, e pelo quadro
exótico da vida indigena, votando franca sym-
pathia ás glorias nipponicas, este homem de
excepção deve ser um solitário e um excên-
trico, impróprio para o sport e physiologica-
mente incapaz de esvasiar de um trago um
copo de whisky e soda; deve, além d'isto, ter
^4
268
tido a fatalidade de haver softVido do contacto
dos seus similhantes e de não possuir um lar
amigo, distante embora, que o attráia; deve,
finalmente, ter gasto, na experiência da vida
o seu farnel inteiro de esperanças pessoaes.
Um tal sujeito poderá viver evidentemente
no Japão, como em outro qualquer sitio,
reduzido ao aprazimento dos olhos; uma es-
pécie de homem-pharol — permitta-se-me a
imagem — mas pharol para vèr e não para
ser visto, elevado sobre o árido rochedo ideal
das suas desillusòes e do desinteresse de si
mesmo. Para taes olhos — e alguns tenho en-
contrado nas condições descriptas, — para taes
olhos, o espectáculo do Japão e do seu pov^o
é fascinante ! . . .
Insistindo no phenomeno da antipathia
dos residentes pelos nativ-os, notemos ainda
uma circumstancia especialmente curiosa : —
é nas mulheres que tal antipathia mais se
aninha; rara será a dama europeia residente
que não deteste o Japão e os japonezes ou
pelo menos estes últimos. — Porquê ? Vá a
gente metter-se em discutir a psychologia fe-
minina! ... No entretanto, a medo, tentarei
levemente esclarecer o enigma. Escasseiam á
mulher, em comparação com o homem, dotes
de analyse para descriminar os encantos da
209
creação e da paizagem e os encantos da arte,
que são o que n^ais emociona quando se pisa
o solo japonez. A mais, ha o clima exótico, o
meio estranho, que particularmente irritam a
sua nervosidade sensitiva. A residente euro-
peia é e]|| regra, no Japão, uma doente —
hysterica, neurasthenica, o que quizerem. O
effeito desequilibrante das longas viagens pelo
mar sobre a compleição moral feminina é bem
conhecido d'aquelles que navegam ; junte-se a
isto a permanência, ainda mais perturbadora,
n'este paiz de tão flagrantes contrastes com
as terras do branco, da branca, e assim nos
approximaremos da explicação do caso.
Dois factores ainda, que se me affiguram
bem mais ponderativos do que os que ficaram
apontados, concorrem para tornar desagradá-
vel á europeia a residência no Japão, do que
deriva consequentemente a sua aversão pelo
indigena.
Um d'esses factores resume-se nas contí-
nuas complicações domesticas com os servi-
çaes; dando-se, por um lado, a circumstancia
da já n'este logar apontada má vontade com
que o criado japonez, sobretudo a criada ja-
poneza, acceita o mister da servidão, e por
outro lado os hábitos de creoula em que em
geral descamba a dama, no que a palavra ex-
270
prime de existência preguiçosa e egoísta, mor-
dida de caprichos, propensa a exigir da gente-
de serviço as mais enfadonhas tarefas, os mais
aviltantes empregos. As relações entre a dona
da casa (o termo aqui é mal cabido) e os seus
criados são sempre acrimoniosas; basta re-
gistar que o assumpto constitue a palestra
predilecta do feminino loiro no Japão.
O outro factor, que ficou para o fim por
ser mais grave, consiste na graciosidade da
mulher japoneza, para fallarmos sem rodeios.
A japoneza é dotada de uma graça, de uma
gentileza enternecedoras ; a elegância do seu
trajo é adorável; a fluidez das suas formas
e da sua mimica, os seus altos dotes em manu-
sear as artes de deleite, a sua admirável com-
prehensão das cores, no respeitante aos seus
vestidos, ás cousas de uso, de ornamentação,
revelam-na como uma creatura feminina cheia
de encantos, a mais requintada em esmeros
que ainda veio a este mundo. A europeia
aprecia perfeitamente estes dons alheios e
sente-se deprimida, offuscada. Tem inveja,
tem ciúmes da japoneza, mal pôde encaral-a ;
alastrando seu ódio, profundo embora incon-
fessado, ao povo inteiro, ao próprio solo onde
a japoneza pousa, protegido sobre a sandália
de palha, o seu pé nú, branco, esculptural.
271
Das boquinhas petulantes das minhas com-
patricias — refiro-me á grande pátria Occiden-
tal— chovem por vezes motejos crudelissimos
sobre a terra nipponica, os quaes muito de-
vem offender os ouvidos dos seus deuses tu-
telares. — « E' delicioso este paiz — dizia-me
ha poucos dias uma d'ellas, quando contem-
plávamos juntos um quadro de paizagem
agreste, admirável ; — é delicioso, mas queria-o
n'outras mãos, sabel-o com outros donos. . . »
— Sim, percebo, ser ella a dona, de parceria
com as fufias das irmãs e outras senhoras
do meu conhecimento, e os respectivos papás,
os manos e os maridos. A picareta do pro-
gresso viria em breve trecho arrazar por com-
pleto tudo isto, demolindo os templos, os jar-
dins, as casinhas de papel, todo o conjunto
que tão bem se harmonisa com o aspecto na-
tural d'este Nippon ; e teríamos em troca as
afuniladas egrejas de tijolo, os casarões de
quinze andares, os tennis, os parques de
jiirtatíon.
Toiíristcs: se algum dia souberdes que o
Japão mudou de donos (catastrophe que não
se me apresenta realisavel), não venhaes cá,
porque já não hav^erá nada que vêr; se insis-
tirdes na viagem, nada mais vos espera, para
cumulo do vosso aprazimento, do que o salão
272
cheirando a bafio de uma qualquer matrona,
no seu 7'eceptiou day, salão onde deveis perma-
necer por meia hora em insipido colloquio,
com o vosso chapéu n'uma das mãos, com a
chávena de chá preto n'outra mão, com o
kake n'outra mão, com a sandivich n'outra
mão. . . porque, deveis saber, para esta g}^-
mnastica do bom tom e pelo menos exigivel
o ser-se quadrumano.
— Deixando para a ultima hora as noticias
da guerra, eis o que ha.
A occupação, pelos japonezes, da cota
de 203 metros, na visinhança de Porto Arthur,
collocou-os em circumstancias especialmente
favoráveis para levarem a cabo a terrivel em-
preza em que porham. D'aquella altura, que
domina todos os fortes russos e d'onde se
descobre a cidade e o seu porto, o bombar-
deamento tem proseguido tenazmente, sendo
o fogo dirigido em particular contra os restan-
tes navios de guerra russos, ancorados dentro
do porto, do que resultou já a sua quasi
total destruição. Praticamente, a bella esquadra
moscovita, enviada antes da guerra a estas
paragens, desappareceu por completo, com ex-
cepção dos dois ou três cruzadores, avariados,
que ainda permanecem em Vladivostok. As
opiniões mais dignas de credito julgam que a
273
derrocada final de Porto Ailhur não se fará
esperar muito.
Annuncia-se agora mais um desastre para
a esquadra japoneza. No dia 30 de novembro,
o navio guarda-costas «Saiyen», quando mui-
to junto de terra, cerca de Porto Arthur, no
intuito de auxiliar a acção das forças de terra,
tocou n'uma mina submarina russa, afundan-
do-se logo. Salvaram-se 191 homens da tripu-
lação, perecendo 31, entre os quaes o seu
commandante.
XXIII
22 de dezembro de 1904
Ao findar do anno — Noticias da guerra — Desejos de
paz; considerações sobre o assumpto — Estudo
acerca do nipponico; a sua pintura, escuiptura,
musica, theatro, poesia, architeçtura religiosa —
Ultimas reflexões: a «uta» japoneza e a quadra
portugueza.
I^ARTA do fim do anno, longa, fastidiosa
^■^ como uma noite de dezembro. Liberdade
plena, porém, á benevolente redacção do Com-
mercio do Porto para exercer sobre esta mesma
carta o que O Lav7'ador recommenda coni
respeito á poda dos pomares, desembaraçan-
do-os das ramadas inúteis, infructiferas ; e como
ultima medida, radical, resta ao leitor o doce
aprazimento de pòr de parte a epistola, lan-
çando a vista a assumpto mais ameno. No
entretanto, o i.® de janeiro não vem longe,
dia em que todos os japonezes percorrem os
innumeros templos que lhes ficam ao alcance,
a fim de implorarem os deuses para que lhes
concedam sobra de venturas e muitas coisas
mais; e eu já aqui prometto que hei-de pare-
2/5
grinar também de templo em templo, á japo-
neza, rogando ás minhas divindades tutelares
que me illuminem e me tornem menos maça-
dor n'estes cavacos. . .
— Que ha da guerra? Pouca coisa. Che-
gam noticias de algumas escaramuças do lado
de Shaho. Quanto a Porto Arthur, as esquadri-
lhas japonezas de torpedeiros téem-se empe-
nhado, n'estes últimos dias, em vivos e succes-
sivos ataques contra os restos da bella esqua-
dra russa ainda no interior do porto, restos
representados pelo «Sebastopol» e por alguns
dcstroycrs. Os japonezes perderam bastantes
vidas n'estes ataques, incluindo as de alguns
officiaes, soffrendo também avarias; nem admira
que assim succedesse, quando se imagine a
arriscadíssima empreza dos pequenos barcos,
investindo pelo porto dentro, expondo-se, sem
remédio, á chuva de metralha lançada dos
innumeros fortes. Parece, porém, que, em com-
pensação, se attingiu o fim desejado, restando
ainda em condições de navigabilidade, se é
que resta, apenas algum raro dcstroycr do
inimigo. Em terra, as forças sitiantes occupa-
ram mais uma posição importante, o forte de
leste do monte Kikwan ; isto após corajosa
resistência dos russos, que, finalmente, tiveram
de retirar-se, deixando no campo uns 50 mor-
2^6
tos, abandonando cinco canhões e outro ma-
terial. E' cedo ainda para fazer conjecturas
sobre a época da queda completa da temivel
praça de guerra.
Do Japão estão seguindo constantemente
novos reforços de tropas para o theatro do
conflicto. Um recente decreto imperial, que
elevou de três a dez annos o serviço das re-
servas, garante sobra de soldados para esta
lucta tremenda que se fere. Está sendo mesmo
a nota caracteristica da cidade onde me encon-
tro, a ornamentação festiva das casas habita-
das pelos reservistas que vão partir para a
guerra, e os cortejos de amigos que os acom-
panham processionalmente pelas ruas, até á
próxima estação da linha férrea.
— Vai-se registando, pela imprensa euro-
peia, uma notável insistência de desejos de
paz, no que respeita ao terrível drama do
Extremo-Oriente. Admittamos que são since-
ros e honestos taes desejos. Effectivamente, a
sangrenta lucta que se fere, deve ir impressio^
nando dolorosamente os espiritos cultos e os
espíritos bons; e todos os esforços desinte-
ressados, que se empreguem no sentido de
aproximar de uma solução pacifica o proble-
ma extremo-oriental, merecem um caloroso
applauso.
7/
No entretanto, é licito perguntar-se como
é que os occidentaes comprchendem, por seu
lado, essa paz tão almejada ; se se trata apenas
de um simples exercicio declamatório, para dar
franca vasão á rhetorica dos publicistas; ou
se, francamente, todos se propõem collaborar
para uma longa tranquillidade, tão necessária,
da região de que me occupo. A paz ha-de che-
gar, cedo ou tarde; mas será ella durável?
Affigura-se-me difíicil que assim aconteça,
tendo em conta a insaciável ambição das gran-
des potencias da Europa e da America e o
enorme orgulho da raça branca. No presente
estado do grande edifício social, a America é
da America, e escusamos de pensar mais
n'ella; a Africa, claramente, não é da Africa,
mas de um certo numero de nações europeias,
que já se entretiveram em retalhal-a em peda-
ços, occupando-se agora cada qual em tirar,
como pôde, o melhor proveito do seu pedaço.
Mas isto não basta. Por um lado, a ambição
dos grandes e dos ricos não se mostra satis-
feita ; por outro lado, a miséria do proletário
augmenta em graves proporções. Evidente-
mente, o mundo civilisado prosegue por um
caminho falso; este caminho não leva á felici-
dade dos povos, pois que os vemos debate-
rem-se, com anciã crescente, contra a fome,
2;8
chafurdando no charco niephitico da ignorân-
cia, do impudor, da dev^assidão e do crime.
Quando nos extasiemos perante os maravilho-
sos resultados a que os homens téem sabido
elevar todas as sciencias do conhecimento
humano, parece que devemos confessar que
n'uma só se mostram incapazes — a sciencia
social, — rocha concreta, resistindo a todas as
tentativas do obreiro. .
Não vem para aqui o discutir se seria me-
ritório uni enorme esforço de remodelação,
abandonando o caminho errado, voltando para
traz e procurando outro trilho, que nos pare-
cesse levar mais efficazmente ao ideal que se
deve ter cm vista, que é a felicidade das
massas. Basta-nos agora tomar nota do estado
febricitante em que se encontra a cobiça mun-
dial, do qual deriva fatalmente a politica de
expansão e de conquista. Comprehendemos,
pois, sem surpreza, o motivo das vistas insis-
tentes lançadas ha alguns annos sobre o con-
tinente asiático, o menos explorado e não o
menos rico ; hoje ainda mais em evidencia,
mercê da guerra russo-japoneza, que está,
por assini dizer, valorisando-lhe o terreno.
As investidas começaram. A espoliação mate-
rial está provada, não precisamos insistir no
assumpto : Kiau-chau (para não irmos mais
279
longe nos tempos), nas mãos dos allemães;
Wei-hai-wei, nas mãos dos inglezes; Tonkin,
parte de Siam, nas mãos dos francezes ; e nas
mãos dos russos, embora actualmente es-
cancaradas e quasi deixando fugir o pás-
saro. . . o que se sabe. Mas ha muito mais:
o problema da repartição da Ásia pelos esta-
dos da raça branca é hoje negocio assente,
esperando-se apenas opportunidade para a sua
tremenda realisação.
Quanto ao desprezo e ao orgulho interes-
seiro com que o occidental encara o asiático,
é também matéria fácil de esclarecer. Se o
asiático se apresenta utilisavel como massa
combustível, para atear a effervescente labuta
das grandes actividades lucrativas, eil-o ex-
pedido como carga, como fardo, a bordo dos
vapores que se dirigem á Africa do Sul e a
outros pontos, a fim de, com o seu suor, com
a sua vida, sacar do solo as riquezas escon-
didas — ouro, prata, diamantes — para gáudio
dos grandes sjnidicatos. Quando, porém, nos
centros aonde a existência deslisa amena-
mente, o mesmo asiático se offerece como um
competidor ao trabalho do branco (por ser
mais sóbrio e mais modesto do que o branco),
é escorraçado como cão damnado, fecham-se-
Ihe as portas sob todos os pretextos. Nos
28o
Estados-Unidos, o chinez só tem entrada
quando desembolse de chofre uma grossa
quantia e continue pagando uma alta taxa de
residência; o ingresso aproveita, pois, só aos
ricos, ainda assim sujeitos a longas formali-
dades e a não raros vexames. Na Austrália,
nenhum estranho é admittido sem primeiro
provar que sabe escrever em uma lingua
qualquer europeia, o que é o mesmo que
dizer que este bello paiz se acha praticamente
defezo á grande maioria dos asiáticos.
Mas, emquanto que os occidentaes vão
decretando estas estupendas leis e outras
equivalentes contra os asiáticos, estes mesmos
occidentaes gozam do livre accessò nos paizes
asiáticos. Quando, por excepção, os chinezes
mostram desejos de que os estrangeiros se
retirem do seu solo, estes não se retiram, vão
ficando; e dá-se então a revolta, não dos
estrangeiros, como parecia lógico chamar-se-
Ihe, mas. . . dos chinezes, dos hoxcrs. Ima-
gine-se agora, por um momento, que o Japão,
que é no entretanto dos Estados asiáticos o
que exerce com mais effectiva liberdade os
seus direitos de soberania, imaginemos agora
que o Japão decretava uma lei, prohibindo a
entrada dos estrangeiros que não soubessem
escrever em uma lingua asiática! . . . Está-se
28 1
imaginando a erupção de rhetorica indignada
que partiria do mundo que se diz civilisado, e
a sua prompta acção, coUectixamente aggres-
siva, para pôr termo ao que então se appelli-
daria pomposamente — os desmandos do bar-
barismo ! — E reparem os meus caros leitores
que uma tal lei, que viesse dos japonezes, seria
por vários motivos justilicavel, quando se pen-
se na horda de pseudo-mariniieiros vadios,
desordeiros e dissolutos, que invadem os portos
abertos ao commercio ; quando se observem as
diversas tabernas instituídas para regalo d'estes
clientes, constituindo terríveis focos de des-
moralísação dos costumes; quando se fixe a
turba crescente dos pequeninos mestiços,
passeando a sua orphandade e a sua miséria
pelas ruas ; quando se note, emfim, que muitos
attritos internos provêem da presença dos
residentes estranhos; tudo isto, sem já lembrar
a séria concorrência que estes mesmos estra-
nhos exercem em muitos ramos de negocio,
com prejuizo dos interesses nati\os. Pela
China, pela Indo-China, pelo Siam, por todo o
Extremo-Oriente, é o mesmo, ou peor.
Ora, relanceando assim, muito por alto, a
maneira de julgar e de proceder de todos os
occidentaes, no que respeita ás suas relações
sociaes com os povos do Extremo-Oriente, é
282
licito que, voltando ás primeiras reflexões
d'este artigo, perguntemos mais uma vez : —
Quando a paz chegar, cedo ou tarde, será
ella durável? — Se a raça branca entende per-
sistir na sua philosophia de orgulho e de am-
bições, a paz não poderá ser durável; porque
o Japão já não poderá assistir, silencioso e
humilde, aos duros ataques contra os inte-
resses do continente visinho, interesses que
são os seus próprios, e contra a sua hegemo-
nia no Extremo-Oriente; e também porque
a Ásia, a Ásia em peso, acorda n'este momen-
to da sua longa modorra, como que rejuvenes-
cida pelo sopro de vitalidade que lhe chega
de perto, do pedaço mais nobre doseu torrão;
e foi a Europa que a acordou . . . Se, pelo
contrario, as potencias do Occidente resolvem
adoptar uma politica mais equitativa e con-
ciliadora para com os povos asiáticos, então
será durável a paz, nem a Ásia reclama outra
cousa.
A Ásia prosegue na sua evolução, acre-
ditai ; mas lentamente, muito lentamente, e sem
carecer dos esti mulos de fora, que pelo con-
trario a prejudicam. No entretanto, as duas
grandes familias humanas, branca e amarella,
nunca se poderão fundir uma na outra, por
dissidências ethnicas, por dissidências de
283
civilisações, civilisações consolidadas, comple-
tas, mas distinctas, mas em flagrante antago-
nismo. Poderão, porém, marchar parallelamente
uma com a outra, sem se prejudicarem, antes
auxiliando-se na permutação de que necessitem
e saudando-se cortezmente; eis o mais que é
permittido esperar-se do convívio das duas
raças.
Está em uso, em linguagem figurada e
pittoresca, representar a Rússia por um urso;
a Inglaterra ó o leopardo; a Hespanha é o
leão ; outros paizes reclamarão para o seu
symbolo outros brutos. Talvez que esta assas
humorística imagem de uma nmiageric uni-
versal resuma em si um conceito philosophico
de alto ensinamento, mas não nos detenhamos
em sondal-o: admittamos o facto. Pois bem,
feras do Occidente : — deixae em paz o dragão
oriental; não o exciteis, não o provoqueis á
lucta, isto por vários motivos peremptórios,
incluindo o da prudência ; esphacelae-vos, se a
tanto vos impelle o instincto, entre vós mes-
mos, mas deixai em paz o dragão oriental. . .
— Quando pretendamos aprofundar, embora
levemente, o mysterio da alma japoneza, con-
ceber uma ligeira ideia da requintada e exótica
sentimentalidade d'esta interessantíssima tribu
de delicados, o melhor caminho que temos a
284
seguir — como não poucas vezes acontece — •
é o mais longo. Não será quando propozermos
a nós mesmos questões preciosas, directas,
sobre a emotividade do nippenico — estas,
por exemplo: como elle ama a mulher? como
supporta a dòr? como encara os revezes? —
que chegaremos a conhecel-o. Os taludes do
castello são deniasiado em alcantil para pen-
sarmos em tomal-o por assalto. São precisos
rodeios. O que se nos offerece de mais apra-
zível e com maiores probabilidades de bom
êxito, é o estudarmos o individuo pela sua
obra, isto é, pelas suas manifestações artísticas
e outras creações; documentos que persistem,
visíveis, palpáveis, prestando-se ■ complacente-
mente ao exame e á analyse. De taes inves-
tigações ameníssimas que nos enfeitiçam, que
nos prendem amorosamente o espirito, algumas
surprezas inéditas poderemos colher sobre a
sentimentalidade subtil dos filhos do paiz do
Sol Nascente e registal-as na nossa carteira
de apontamentos.
A pintura, a esculptura, a musica, o
theatro, a poesia, a architectura religiosa, a
construcção da casa, o aninho do lar, a arte
ornamental dos ramos de flores, a arte de
servir o chá, a arte de jardinagem, e mais, e
mais, offerecem-nos vasto e riquíssimo campo
285
de exploração. Já n'estas correspondências
tiv^e ensejo de referir-me á pintara japoneza,
e possivelmente ainda \'oltarei ao assumpto,
que se me affigura cheio de interesse ; mas
hoje fallarei da poesia, menos tangivel que
a pintura, mas não menos rica em filões
auriferos, se a ouro se pôde comparar a ruti-
lante feição psychologica d'estes extraordiná-
rios asiáticos.
A poesia, no Japão, não é um privilegio
dos educados. E' de todos, todos a comprehen-
dem, todos são poetas, todos são capazes de
fazer versos. A poesia não é só de todos, é
de tudo, está em tudo. Dir-se-hia a alma da
nação, fiuido subtilissimo em que se embebe
a inteira paizagem, que fluctua sobre as aguas,
que se respira no ar, que embriaga nativos e
até estranhos.
A poesia japoneza, expressa em palavras,
reduzida a documento escripto, é representada
principalmente pela uta, espécie de pequeno
poema, de pequena canção, de que restam
milhares de exemplos, retidos desde os mais
remotos tempos históricos d'este povo. Os
japonezes também compõem o poema segundo
as regras chinezas, género de exercicio clás-
sico, que não corresponde á alma nacional,
e do qual não me occuparei n'este logar; e
286
mui modernamente um ou outro innovador
pretende imitar a poesia Occidental, resultando
um producto ainda mais hybrido e que nem
merece menção.
N'uma compilação de uta, feita no século x
da nossa era, os compiladores dão a seguinte
definição do poema indigena: — « Yamato uta^
a poesia de Yamato (do Japão), reside no co-
ração do homem, mas é depois expressa em
palavras. O homem occupa-se de tudo e ma-
nifesta o seu sentimento sobre tudo que vê,
e sobre tudo que ouve. Mas escutae a voz do
rouxinol pousado sobre as flores, e a voz da
rã emergindo dos charcos, e comprehendereis
que todos os seres compõe a slia tita. Com-
mover o céo e a terra sem empregar nenhuma
violência, fazer chorar os próprios génios in-
visiveis, amenisar as relações dos dois sexos
e consolar o espirito dos guerreiros corajosos,
tal é o fim da tita. » — Após dez séculos de
distancia, a teta dos nossos dias ainda se pôde
definir pelas mesmas palavras ; é ainda o mur-
múrio espontâneo, quasi inconsciente, que o
japonez solta, como o rouxinol, como a rã,
para traduzir o seu sentimento, de desejos,
de alegria, de máguas ou de dòr. Se o espirito
devaneia, o japonez escreve um poema; se
ama, escreve um poema; se soffre, escreve
287
um poema; antes de siiicidar-se, escreve um
poema; ha algumas semanas, na Mandchuria,
um soldado moribundo, cabido no campo de
batalba, escrevia um poema, molbando o in-
dicador no sangue das próprias feridas.
Na casa nipponica encontra-se frequente-
mente o kakemono, que é um desenbo, sobre
parei ou seda, suspenso da parede; mas ainda
mais frequentemente se encontra o gakn, isto
é, o pequeno quadro, sobre o qual a mão
hábil de um calligrapho traçou um poema, a
uta enternecedora. O japonez, na paz do lar,
apraz-se em pousar os olhos n'aquelles cara-
cteres, seguindo mentalmente a evolução pa-
thetica da phrase, por longo tempo, até que
a imaginação abra as azas e suba a \'oar, no
mundo das chimeras. Mas não é só do quadro
que a tita enfeitiça o sonhador: na parede, no
biombo, na toalha de enxugar o rosto, na
ventarola, na chávena de chá, na taça de
vinho, no cachimbo de metal, no espelho, em
mil e mil objectos de uso quotidiano, se en-
contra o poemeto, escripto ou gravado, para
regalo dos olhos.
Ora a pintura japoneza caracterisa-se
pelos contornos indecisos, pelos tons vapo-
rosos, apenas esboçados, pintura pouco re-
presentativa das coisas, antes inxocadora de
288
reminiscências; é n'isto que se apraz a alma
japoneza. Pois a uUi participa da mesma in-
consistência, da mesma fluidez, da mesma
parcimonia de detalhes. Como a pintura, é
mais do que tudo um estimulo das nossas
recordações, do que vimos, do que sentimos,
do que soffremos. Reduzido em geral cada
poema a dimensões Ínfimas, não excedendo
ordinariamente trinta e uma syllabas, con-
tendo ás vezes apenas dezesete, a habilidade
do poeta consiste em grupar dentro d'estes
curtos limites uma sufficiente escolha de pa-
lavras, que suggiram uma profunda impressão
intima. Esta circumstancia torna por vezes
muito difficil a interpretação da tita, sobretudo
para estrangeiros.
Exemplifiquemos. Cito para estreia algu-
mas uta que encontro no delicioso livro In
Ghostly Japan, de Lafcadio Hearn, apresen-
tando apenas para a primeira o original ja-
ponez :
Chôchô ni ! . . .
Kyonem shishitaru
Tsuma koishi I
Traduzindo: -- «Duas borboletas! ... no
anno passado, morreu a minha querida es-
289
posa ! » — Um sujeito viu duas borboletas,
talvez no seu jardim, e irrompe com a excla-
mação que reproduzo. Que quer isto dizer?
Saiba-se que um casal de borboletas é o
symbolo gracioso da união conjugal n'este
paiz, sendo até de uso enviar duas borboletas
de papel com o presente de noivado. Agora
comprehende-se o resto.
Outra tita^ esta profundamente enternece-
dora: — « Oh, vento que trespassa o coração !
as marcas dos dedinhos sobre o papel das
corrediças ! . . . » — Que é isto ? O poema é o
de uma dolorida mãe, que acaba de perder o
seu filhinho. As casas japonezas, ao longo
das extensas \'arandas, são providas de gran-
des caixilhos de madeira, cobertos de papel,
formando corrediças de alto a baixo, que se
unem umas de encontro ás outras, no in-
\'erno; as creanças divertem-se a furar o
papel com as pontas dos deditos ; pelos bu-
racos penetra o vento, que no caso presente
\'inha ferir, como um punhal, o coração da
pobre mãe. . .
Eis outra tita, curiosissima, attribuida á
poetisa Chiyo, de remota fama. Um dia, pro-
pozerani-lhe que compozesse um poema de
17 syllabas, o qual se referisse ao quadrado,
ao triangulo e ao circulo; ella respondeu de
13
2QO
prompto: — «Desatando uma ponta do mos-
quiteiro, eis-me contemplando a lua ! . . . » — ■
Expliquemos : no Japão ha muitos mosquitos,
principalmente no vercão ; os japonezes ser-
vem-se, durante a noite, de mosquiteiros de
espesso gaze verde, amarrados pelas quatro
pontas ao tecto do quarto de dormir, muitas
vezes escancarado á brisa; ora, o mosquiteiro
envolve a ideia de quadrado ; desatando uma
ponta, íicando assim o mosquiteiro suspenso
só por três, fica expressa a ideia de triangulo ;
a pessoa deitada pôde então debruçar a ca-
beça fora do mosquiteiro e contemplar a lua,
que é circular. . .
Consta que em Okayama, não sei porque
dura expiação de crime, uma misera rapariga
passou toda a sua vida enclausurada. Pouco
antes de morrer compòz a seguinte poesia: —
«Nasci em Okayama, provincia de Bizen ; uma
espiga de arroz. . . ainda não sei o que seja!»
— A ideia do permanente sequestro á vida e
ao contacto com os enlevos da creação não
poderia melhor exprimir-se, nem mais sentida-
mente, do que por esta ignorância do que seja
a espiga do arroz, n'um paiz onde o arroz é o
pão do povo e os arrozaes constituem a mais
vulgar cultura. Isto aconteceu ha muito tempo;
mas parece que a cantiga ficou retida por
291
todas as moças de Okayama, muitas das
quaes emigram temporariamente para outras
provincias, no mister de serviçaes; e quando
a patroa pergunta a alguma d'ellas: — «De
que terra és tu, rapariga?» — ella responde in-
variavelmente, por modéstia, por humildade: —
<' Nasci em Okayama, provinda de Bizen ; uma
espiga de arroz. . . ainda não sei o que seja ! »
Mais outra lUa, esta deliciosa de ingenui-
idade: — «A asagao enleou-se no poço; vai-se
buscar agua fora » — Asagao e uma trepadeira
[annual, ofterecendo innumeras e bellas varieda-
ides, florescendo no verão em jardins e campos,
[onde nasce quasi espontaneamente. Ora um pé
|d'esta planta medrou junto do poço, abraçou-se
^casualmente a uma das duas ripas a prumo,
[trepou até á ripa transversal, enrolou-se á rol-
dana e á corda do balde. . . por piedade não
[se molesta, xai-se buscar a agua a outra parte.
Ainda outra nta, puramente pittoresca,
'recordando uma paizagem vista, no inverno:
f — «Aldeia de neve; cantam os gallos; aurora
alvacenta. . .»
Seguem mais algumas iita^ para terminar
as citações, deixando ao leitor o cuidado de
commental-as. Notaremos que umas são exclu-
sivamente descriptivas, pittorescas, graphicasy
fallando aos olhos; outras vão ferir de prefe-
292
rencia o mysterio da nossa sentimentalidade;
outras ainda trazem comsigo um como que
perfume de amor, subtilissimo, porém, indefi-
nido, porque o pudor japonez recusa-se a
cantar a graça de uns olhos travessos ou a
frescura de uma bôcca appetecivel. Mas voamos
ás citações.
— «Contemplando em torno, vejo as flores
misturarem-se á \'erdura dos salgueiros. Bro-
cado, tecido pelas mãos da primavera. »
— «Meiga e limpida pela noite, a voz de
um rapazinho que estuda, lendo alto, um
livro. . . Também eu ti\'e um rapazinho. . . »
— « Vós sois como a arvore de momiji,
cujas folhas mudam de cor com- as estações ;
eu sou como o pinheiro, do mesmo verde
constante em todos os dias do anno. »
— «Não imagineis que os sonhos só appa-
recem de noute, ao adormecido; os sonhos,
n'este mundo de soffrimento, também nos
apparecem de dia. »
— «Da semente, cabida sobre a rocha,
nasce e prospera o pinheiro. O amor não tem,
pois, grandes exigências. »
— « Todas as noutes, fixando as nuvens,
penso em alguém, que vi\'e sob outros hori-
zontes. . .»
— - « O perfume das fiôres das ameixeeiras
^93
do meu jardim é mais agradável do que a sua
côr. . . Quem foi, pois, a encantadora pessoa,
cujas mangas do kímono roçaram por estas
flores ? . . . »
— « Junto das margens da ribeira, como é
delicioso brincar! . . . Mas tomae cuidado, bor-
boletas do outomno ! . . . »
— « Sobre a neve recente, as pegadas dos
cães deixam a impressão de flores de amei-
xeeiras. »
— «Oh, o rústico lago! e o som das rãs
atirando-se á agua! ...»
— « Quando fixo o olhar para os lados
onde o cuco se achava cantando, nada está;
vejo apenas a lua, começando a erguer-se no
horizonte. »
— « A ílòr da glycinia pende de altas
latadas, em longos cachos. Quem quizer con-
templal-a, tem de olhar para o céu. »
Fiquemos por aqui em exemplos. Digamos
ainda que a nta, tão antiga como antigo é o
Japão, tem merecido até hoje particular esti-
ma. . . Resiste á onda demolidora das velhas
tradições. Até no palácio imperial se cultiva
amorosamente. Em cada anno, em janeiro, o
imperador, a imperatriz, os nobres da corte,
compõem sobre um dado thema um poema
de trinta e uma syllabas, espécie de concurso,
294
-a que a nação inteira é convidada a concor-
rer; chovem então no palácio muitos milhares
de poesias. Os themas téem sido, n'estes últi-
mos annos : — pinheiros reflectindo-se nas
aguas; congratulações comparadas a uma
montanha; a longevidade do bambu verde:
pinheiros cobertos de neve.
— Umas ultimas reflexões. A traducção, va-
sada em molde poético, da ?^/^ japoneza, seria
um trabalho interessantissimo, posto que
erriçado de difíiculdades para aquelle que ten-
tasse fazel-o n'uma lingua qualquer europeia.
Ha alguns ensaios do género, principalmente
em inglez e francez. Em portuguez, nada, é
claro; os nossos próprios missionários e mer-
cadores, que descobriram o Japão, para a
Europa, eram pouco dados ás musas. A meu
vêr, em lingua portugueza, seria a quadra po-
pular que melhor corresponderia á uta nippo-
nica. Primeiramente, pela sua estructura, limi-
tada a imi curto numero de syllabas, como
acontece na uta. Em segundo logar, porque
a quadra, que em Portugal traduz em regra a
poesia do povo, é o género que melhor se ada-
pta á ingenuidade lyrica da uta, que também
é poesia do povo, embora seja a poesia de
todos. . . não havendo ainda, felizmente, poetas
de academia no Japão.
Í95
Mal liaja quem inventou
No mar andarem navios,
Porque foi o causador
Dos meus olhos serem rios!
Oh águia, que vaes voando
Por essas serras de além !
Leva-me ao céu, onde assiste
A alma de minha mãe ! . . .
E tantas, e tantas outras deliciosas qua-
dras, na inexgotavel fonte do cancioneiro por-
tuguez! . . . Não vos parece, pois, se este artigo
alguma attenção vos mereceu, que a quadra
portugueza poderia bem passar, muitas vezes,
por uma íita japoneza, aportiiguczada^ pela
sobriedade na phrase, pela delicada observação,
pela exuberante poesia que exhala? Não é
que o portuguez haja aprendido a fazer versos
com o japonez, ou este com aquelle; mas é
porque ambas as composições traduzem sem
rodeios a espontaneidade sentimental dos dois
povos, e a alma do povo é por toda a parte
a mesma, pondo de parte ligeiras divergências
de meio, de costumes, de educação.
Ainda n'uma particularidade a quadra po-
pular portugueza faz lembrar a tita nipponica.
A quadra não tem aiictor, o seu auctor é a
turba ; apenas, quando muito, se lhe assignala
296
uma origem, uma determinada provinda do-
paiz. Pois também a uta japoneza corre ano-
nyma, de bôcca em bòcca ; apenas são conhe-
cidos os seus colleccionaiores, que de longe
em longe se dão á tarefa de colher, como-
flores em campinas, estas flores da alma
japoneza, grupando-as em volume, em ra-
malhete. . ,
I
XXIV
5 de janeiro de 1905
Anno novo japoncz — Apreciação a um artigo sobre o
Japão — Raças superiores e raças inferiores — O
perigo afnare/lo e o J/agelh branco — Divaga-
ções sobre o que do despertar da Ásia resultará
para a Europa e para o mundo — Episódios curiosos
da campanha — Os cossacos e a cavallaria japoneza
— Porto Arthur rendeu-se!
IV/rais um anno que se foi; mais uma conta
esbrugada do rosário da vida. . . Entra-
mos no anno de 1905 da éra christã; ou, se
me permittem fallar com mais propriedade,
com referencia ao paiz onde habito, entramos
no 38.® anno da éra de Meiji. No Japão, como
é geralmente sabido, contam-se os annos em
grupos de eras, assignaladas por algum grande
facto da historia pátria ; e esta em que estamos,
chamada de Meiji (Grandiosa), principia com
o notabilissimo acontecimento histórico conhe-
cido pela Restauração Imperial (1868).
O dia i." de janeiro amanheceu sereno e
límpido; e aqui, como acolá, como além, por
toda a região central do Nippon, cidade e cam-
298
pos apresentaram-se vestidos de uma alvis-
sima camada de neve. Delicioso espectáculo ;
mesmo de auspicioso agouro, como que tra-
zendo á ideia uma delicada sensação de pureza,
de candura, na obra esplendida da creação ! . . .
Nas florestas e nos jardins as arvores e os
arbustos offereciam um aspecto encantador,
dir-se-hiam recamados de brancas florescencias
estranhas. Nas ruas, atapetadas de fofas alvu-
ras, destacavam-se gentilmente as figurinhas
negras dos transeuntes, muito correctos nas
suas longas sobrecasacas e nos seus chapéus
altos, de etiqueta ; e ainda mais gentilmente se
destacavam os kimonos multicores e festivos,
sobretudo os das raparigas, primorosamente
ataviadas, em commemoração do dia! . . . E
as sobrecasacas e os kimonos curvavam-se em
reverencias, a cada passo, trocando-se a phrase
sacramental : — «O medetò gozarimaçu » —
felicito-vos. . .
— Um delicadíssimo amigo, interessado na
questão japoneza, como está actualmente
acontecendo á grande maioria dos espíritos
cultos e reflectivos, envia-me de quando em
quando da metrópole retalhos de jornaes que
tratam do assumpto. Foi assim que me veio
parar ás mãos, ha poucos dias, um interes-
sante artigo, «Rússia e Japão ^>, onde, a pro-
299
posito de japonezes, avultam referencias aos
problemas sociaes mais palpitantes, do domí-
nio da sciencia contemporânea. Sem o intento
de criticar, nem por sombras, o artigo, mas
respigando aqui uma ideia, além outra ideia,
vai clle dar-me pretexto para a palestra habi-
tual que n'este logar se me consente.
Diz-se que as raças inferiores são comple-
tamente incapazes de crear, e mesmo de con-
tinuar uma civilisação. Pôde bem ser; mas,
primeiro do que tudo, quaes são as raças infe-
riores? Que os japonezes, da raça asiática, são
inferiores aos europeus da raça branca, não
resta a menor duvida. . . no conceito, é claro,
dos próprios europeus; mas, precisamente, os
japonezes são de contraria opinião. Carecia-se,
em boa lógica, de um terceiro para desem-
patar. . .
Talvez, porém, a classificação de raças
superiores e inferiores seja incoherente, con-
vindo apenas registar : — raças differentes. Por-
ventura os dois qualificativos serão incompa-
tíveis com a animalidade inteira. Entre o par-
dal e a tainha, qual é o inferior? No vòo, é a
tainha ; mas em nadar, é o pardal. . . Não nos
afastemos, porém, do nosso caso, mas cuide-
mos de escolher exemplos bem frisantes.
Parece indiscuti\'el que o negro seja inferior,
300
muito inferior ao branco. Evidentemente o ne-
gro é-lhe inferior, por exemplo, para aprender
geometria, ou para dirigir uma fabrica de
fiação, ou para saber vestir uma casaca ; mas
perguntai a vós mesmos qual dos dois é su-
perior ao outro para resistir ao impaludismo,
ou para prostrar o antílope com uma flecha,
ou para trepar a um tronco de palmeira. . . O
homem, posto que não seja filho do meio, se-
gundo as opiniões de maior credito, é, comtudo,
imperiosamente influenciado por elle ; de modo
que cada tribu corresponde a uma dada civili-
sação, e cada civilisação corresponde ás cir-
cumstancias actuaes do meio. A emigração é
phenomeno bem averiguado ; o emigrante pôde,
sem duvida, viver em paiz estranho, mas em
condições de inferioridade em relação ao indi-
gena, — e é n'isto que se me affigura consistir
a inferioridade relativa das raças.
— « Facilmente se faz um bacharel ou um
advogado de um negro ou de um japonez;
mas é um simples verniz, inteiramente super-
ficial, sem acção sobre a sua constituição
moral. . . » — diz Gustavo Le Bon. Assim o
creio. Mas se pensaes que um europeu se
transforma mais facilmente n'um japonez; se
cuidaes que o branco, vivendo por longos
annos no Japão, tendo aprofundado a lin-
30I
gua do paiz, perscrutado os mysterios da sua
litteratura, da sua arte, dos seus costumes,
adoptando mesmo quanto possível estes cos-
tumes, transformou de um ponto sequer a sua
mentalidade de europeu na mentalidade do
asiático, enganaes-vos completamente. . . por-
que elle apenas conseguiu adquirir, se adqui-
riu, o verniz superficial asiático. Logo a cita-
ção de Le Bon é dispensável.
Se, por vezes, árabes, turcos, mongoes,
venceram os europeus, sem comtudo saberem
imprimir aos vencidos um forte grau de civili-
sação; vede agora o que se passa com os
europeus, que dominam ha tantos séculos na
China, na índia, mas dominando apenas, sem
abalarem as civilisações indigenas ! . . . Não se
manifestam, pois, nas duas raças, differenças
notáveis nos seus dons potenciaes.
Ganha mais a civilisação, triumphando a
Rússia em vez de triumphar o Japão ? Distin-
gamos: se se trata da civilisação europeia,
ganha ella mais n'esta h\'pothese ; se se trata
da civilisação asiática, ganhará esta mais na
hypothese contraria.
Com respeito ao perigo aniarcllo, precisa-
mos encaral-o com escrupulosa attenção e
•angélica imparcialidade. O desenvolvimento da
raça asiática, que é o que se pôde chamar o
302
perigo amarello, deve ser concebido em diver-
sas phases, como os graus de uma escala
ascendente. As ultimas culminancias perdem-se
no vago do immensamente remoto, que esca-
pa ás nossas previsões. A craveira possivel-
mente attingivel n'um próximo futuro, e á
qual os asiáticos, impellidos pelo sopro das
actividades japonezas, parecem já dispostos a
querer elevar-se, corresponde ao estado de in-
dependência, de emancipação, de progresso
material, que lhes permitta pòrem-se em defe-
za contra o perigo branco, ao que melhor
poderemos chamar o flagello branco, porque
perigo indica uma ameaça no porvir, emquan-
to que a dura auctoridade do branco, a sua
acção escravisadora e absorvente, já se estão
exercendo na Ásia, de nossos dias.
Ora, quando imaginemos a Ásia, em espe-
cial a Ásia extremo-oriental, trabalhando para
o seu próprio desenvolvimento, pouco importa
que os sábios europeus, nos venham ensinar
que o asiático só logra apropriar-se de como
que um verniz exterior da civilisação Occiden-
tal. Assim é; mas elle não deseja nem precisa
mais do que d'este verniz. Este verniz será a
organisação regular do seu exercito, da sua
marinha, das suas fo/tificações de defeza ; será
a creação da grande industria ; será o útil apro-
303
veitamento da sua riqueza mineira; será o con-
veniente estudo das linguas occidentaes. Mas a
alma asiática permanecerá intacta, mas a civili-
sação que se procurará desenvolver será a
asiática ; e ninguém poderá agora pôr em duvida
a capacidade da raça para um tal emprehendi-
mento, quando se recorde, por exemplo, que
a China, constituída em nação, é mais velha,
por muitas centenas de annos, do que as mais
antigas nações da Europa.
Não resta duvida de que os progressos da
Ásia, se se forem realisando, irão ferindo dura-
mente os interesses da raça branca, e fa\'ore-
cendo, os interesses dos próprios asiáticos;
isto sobretudo no que respeita aos interesses
industriaes e commerciaes. A raça branca
convirá evidentemente muito mais que a he-
gemonia europeia se inicie e consolide n'esta
parte do planeta ; que a importância do Japão
decline, que as suas aspirações abortem ; que
a China, anemisada pelo ópio inglez, mergu-
lhada em inércia, se vá dia a dia submettendo
mais ao jugo do homem louro, e indifferente
aos seus caprichos, e finalmente retalhada em
postas, se transforme em outras tantas coló-
nias escravisadas aos Estados occidentaes.
No entretanto, quando se diga que, na
guerra actual, nem a Rússia nem o Japão são
304
movidos por outro sentimento que não seja o
da ambição (mas é sempre a ambição que
excita os povos á guerra?), devemos admittir
francamente tal conceito, mas distinguindo. —
A Rússia, antes o governo russo, não o povo
russo, batalha pela ambição de dominar na
China, de impor ahi a sua civilisação dessi-
milhante, as suas leis de autocrata sobre um
povo estranho, amordaçando-o, escravisan-
do-o. O Japão, governo e povo, a nação in-
teira, levanta-se pela Ásia em peso, batalha pela
ambição da sua perenne independência, do seu
desenvolvimento material e moral, do engran-
decimento da sua civilisação mil e mil vezes
secular, dentro dos limites do meio - próprio e
único que a providencia universal lhe destinou.
Se sois europeu e com interesses na
Ásia, bradae afoutamente que, n'esta lucta
tremenda, a justiça está do lado da Rússia.
Se sois asiático, bradae com igual afouteza,
que a justiça está do lado do Japão. Se sois
imparcial, se as lentes do vosso telescópio de
observador são lapidadas no simples e puro
crystal da vossa consciência, então não sois
europeu nem asiático, sois homem, e mais
nada; e bradae então também, embora dolo-
rido por tanto sangue derramado, de russos e
nipponicos, que a justiça está do Japão. . .
305
— Agora, umas ultimas divagações da
minha lavra para concluir o artigo. A Ásia
desperta. A Ásia, por uma lei natural dos des-
tinos, inicia o seu trabalho de unificação, de
affirmação. A Europa ainda não sente isto, mas
presente ou resente. E estas ideias, nascidas
de hoje, da harmonia europeia, manifestadas,
já por allianças, já por convénios amigáveis,
já por aspirações pacificadoras, nas quaes se
pretende adivinhar os progressos do bem, a
tendência á dulcificação do sentimento hu-
mano, não representarão mais talvez do que a
labuta inconsciente mas instinctiva, soberana-
mente egoista mas justificável, para a organi-
sação coUectiva da raça branca n'um poder
único e tremendo, preparando-se para o medo-
nhíssimo drama do futuro insondável, quando
a Ásia, rompendo as vestes de chrysallida, se
erguer também altiva das ruinas do seu myste-
rio. Uma fera ha-de então devorar a outra fera,
por uma lei fatal dos destinos ; ou então uma
á outra se esphacelarão, abraçan-do-se, final-
mente, em enternecido pranto, os raros so-
breviventes que restarem, surgindo d'esse am-
plexo um sèr differente, mais perfeito do que
o homem de hoje. . . e o mundo terreal, alheio
ao sangue que correr, terá percorrido mais uma
idade na sua marcha eterna e triumphal! .. .
3o6
— Os jornaes do paiz relatam alguns epi-
sódios curiosos, succedidos n'estes últimos
dias junto de Porto Arthur; especialmente in-
teressantes por virem revelar-nos uma coisa
que tão frequentemente se mostra em evi-
dencia — imi cantinho bom da alma humana.
Nos centros civilisados, a delicadeza, a hospi-
talidade, a conducta obsequiosa e ainda outras
gentilezas são, — louvado Deus, — quasi de
uso correntio. Mas então o homem é feliz,
tranquillo sobre o dia de amanhã, agazalhado
no aninho do seu lar; e, ajudado por uma pon-
tinha de vaidade e pelo doce egoismo de se
incensar de agradecimentos, desabrocham fa-
cilmente taes virtudes, sem que mereçam, em
verdade, mui enternecido reparo. O que se
apresenta, ao primeiro aspecto, surprehendente,
é o caso de espontâneas manifestações de
amoravel sympathia entre japonezes e russos,
mesmo no campo de exterminio. Uns e outros
não se conheciam, nunca se haviam avistado.
Para os russos, os japonezes eram os maca-
cos amarellos, para os nipponicos os russos
eram os bárbaros da Sibéria. Mas desenca-
deia-se a guerra. Os homens dos dois impé-
rios entram em contacto, claro está que para
se visarem os peitos atravéz das alças das
espingardas, para se abrirem os craneos
307
com os gumes das espadas, para se rasgarem
as carnes com as unhas, quando não encon-
trem a geito outra arma. No entretanto, eis
o convívio, e d'elle a camaradagem, a estima
reciproca, a fraternidade até, reforçadas pelos
vinculos de um mesmo dever, pela identidade
nos perigos e pela identidade nos soffrimentos.
Durante os últimos combates, pasmosa-
mente sangrentos, dos quaes resultou a occu-
pação, pelos japonezes, do Forte de 203 me-
tros e de outras posições de alta importância
na vanguarda da temivel cidadella, deram-se,
por vezes, algumas tréguas de duas ou três
horas, por mutuo accordo, afim de cada qual
dos dois belligerantes, que acabavam de se
misturar em lucta corpo a corpo, cuidar dos
seus feridos, dos seus mortos. Russos e japo-
nezes estiveram então em plácido contacto.
Trocaram-se cartões de visita, fizeram-se elo-
gios de parte a parte, os japonezes beberam
aguardente das cantinas dos russos, estes
beberam sakc das cantinas dos nipponicos,
um photographo tirou cm grupo aquella
amável sociedade. Alguém, que presenceou
a scena, narra o seu enternecimento, quando
deu fé do carinho, quasi feminino, quasi
maternal, com que os russos traziam para
o campo japonez os mortos japonezes e
308
com que os japonezes levavam para o campo
russo os mortos russos.
N'uma certa occasião, um soldado russo
estendeu o braço a ir pousar a mão sobre o
ventre de um soldado japonez, o qual, sup-
pondo o gesto uma aggressão, se pôz em
guarda. Mas não era: por palavras e por
gestos, mas principalmente pelos gestos, por-
que não fallava japonez, o russo explicou que
o seu ventre encontrava-se vasio, mercê da
dieta em xigor em Porto Arthur, emquanto
que a barriga do nipponico avolumava de
farta refeição, sentindo elle prazer em apal-
par-lh'a. Homens brancos e homens amarellos
rompem em francas gargalhadas ; um encanto !
E então, do lado dos homens amarellos, co-
meçam apparecendo appetitosas bolachas de
campanha, frascos de perfumado vinho indi-
gena, com que se regalam o esfomeado e
outros muitos; offerecem-se também cigarros
do Japão. F^inda a faina, estendem-se as mãos
á pressa, apertam-se com anciã, soltam-se
saudações de irmão a irmão. . . e toca á
metralha! ...
Tem-se já prophetisado que, quando cahir
finalmente Porto Arthur nas mãos dos japo-
nezes, tal é a longa tensão dos espiritos pe-
rante esta faina de sangue e soffrimento, que
309
vencedores e vencidos se lançarão uns aos
outros, n'uma derradeira fúria de extermínio.
Não sou eu d'esta opinião. Após a ultima
scena de matança, eni plena apotheose do
drama, as armas serão arrojadas no solo, por
inúteis, e vencidos e vencedores se abraçarão
entre si commovidos, chorando de fome, de
íadiga, de dor, de alegria e piedade ! . . . o
quadro em miniatura e antecipado da catas-
trophe mundial que diligenciei esboçar nas
linhas antecedentes.
— A guerra actual vae-nos mostrando,
como todas as guerras, o seu lado utilitário,
servindo-nos de ensinamento em assumptos
vários e varrendo do nosso espirito diversas
illusões por longo tempo conservadas. Uma
d'estas illusões era o poder irresisti\'el que
attribuiamos aos cossacos.
Esta gente, cujo nome deriva do termo
tártaro kosak, que significa «ladrão nómada»,
constitue uma tribu guerreira de cerca de três
milhões de almas, de origem siava, mestiçada
com outros elementos ethnicos, e habitando
vastos territórios na Rússia da Europa e na
Rússia da Ásia. Mvendo em parte da agri-
cultura, beneficiando de certos privilégios tra-
dicionaes e de certas isenções de taxas, os
cossacos obrigam-se em compensação a um
3 IO
duro ser\iço militar, podendo dizer-se que
desde os 17 ou 18 annos de idade até á inva-
lidade se encontram á disposição do governo
moscovita, que pôde obrigal-os a pegar em
armas quando assim o entender.
Servem principalmente na cavallaria, po-
dendo fornecer 894 sotnías ou esquadrões em
caso de mobilisação geral; mas também for-
necem 19 batalhões de infan teria e 40 baterias
de artilheria montada. Ora a cavallaria cos-
saca, armada com lança e carabina, decorati-
vamente imponente, tem vindo honrando-se
da fama, até hoje, de constituir o corpo de
cavallaria mais hábil e temivel do mundo in-
teiro. Direi Jiielhor: até hontem ; porque os
resultados práticos, na guerra que se fere, não
correspondem a tal fama. Os seus serviços
em nada se téem distinguido, exceptuando
talvez os de exploração; destros e ágeis ca-
valleiros, destemidos, cruéis, são, por certo,
os cossacos; porém, estas apreciáveis quali-
dades de guerra, mas da guerra antiga, não
da actual, nada podem contra o prodigioso
alcance, o enorme poder destruidor da arti-
lheria moderna e contra a sciencia do soldado
bem instruído.
Ao passo que a cavallaria cossaca repre-
senta na época presente mais uma illusão
311
perdida, a cavallaria japoneza — curioso con-
traste ! — montada nos seus garranitos felpu-
dos e miseráveis á vista, a cavallaria japo-
neza, tida até agora por uma simples mas-
carada grotesca, que ainda ha uns qua-
torze mezes, durante a revista militar de
Himeji, provocou mais de um sorriso no
grupo petulante dos addidos estrangeiros que
a ella assistiam, vae-se rehabilitando no con-
ceito dos entendidos, dando provas indiscuti-
veis da sua capacidade c útil effeito, no
terreno accidentado de collinas, que constitue
o theatro da guerra.
— Guardei para o fim, esperando por noti-
cias frescas, a minha habitual referencia ás
cousas da guerra. Bem frescas são, com effeito,
taes noticias, e de excepcional importância.
Correm boatos de que uma esquadra japo-
neza foi avistada cerca de Singapura, na\'e-
gando para o sul. Possivelmente, vae ao
encontro de alguns dos barcos da já famosa
esquadra do Báltico.
O anno de 1904 terminou com um nota-
bilissimo acontecimento. Destruida, finalmente,
a esquadra russa do Extremo-Oriente, da qual
restam apenas alguns raros destroycrs e tor-
pedeiros e os dois ou três cruzadores que se
encontram desarmados nos portos neutros, o
312
imperador desejou vêr e felicitar o almirante
Togo, o grande heroe das façanhas navaes
japonezas. Togo, acompanhado do vice-almi-
rante Kaminiira, chegou a Sasebo em 28 de
dezembro, em 29 estava em Kobe, em 30 em
Tokyo, sendo recebido no seu longo transito,
pelo caminho de ferro, com grandes ovações
do povo. Este bravo é, até hoje, o vulto mais
em evidencia na presente guerra, e certamente
o marinheiro mais glorioso dos tempos moder-
nos da historia mundial. Quando tentemos
comparal-o a algum heroe dos mares, não
encontramos parallelo nos períodos próximos,
sendo preciso remontar até Nelson, o grande
almirante inglez de fama universal. Togo tem,
desde hoje, o seu nome escripto em lettras de
ouro nos annaes da historia marítima do
mundo. Parece isto extraordinário, mas é assim
mesmo. . .
— Finalmente ! chegou a noticia ha tanto
tempo desejada.
Porto Arthur cahiu; não em resultado de
um ultimo e tremendo conflicto de sangue,
como se esperava; mas porque o general
Stoessel offereceu render-se c melhor foi assim,
evitando-se mais dura chacina. . .
As forças sitiadas haviam chegado á mais
extrema penúria de recursos, os feridos eram
313
numerosissimos, poucos os combatentes, a
posição insustentável. Na noite do i.° de ja-
neiro o general Stoessel propóz capitular.
Seguiram-se as necessárias conferencias; o
general Nogui apresentou as condições de
capitulação, que foram acceitas. N'este mo-
mento Porto Arthur é já japonez, cuidando-se
apenas da final evacuação dos russos e do
estabelecimento dos nipponicos na praça con-
quistada.
Seria longo enumerar aqui as condições
da capitulação, já por certo conhecidas dos
leitores. Basta registar que os vencedores com
applauso do mundo inteiro, deram provas de
magnanimidade para com os vencidos, dignos,
na sua desgraça, do respeito geral, mercê do
grande valor militar que os ennobrece.
Os japonezes, pela segunda vez, entram
na posse do árido penedo, tido até ha pouco
como a mais temível fortaleza do mundo.
Tal posse custou-lhes milhares de vidas. Entre-
gam-se agora ás commemorações festivas do
seu feito, ainda surprezos do acontecimento,
que não julgavam tão próximo, e que vae
assombrar o mundo inteiro ! . . .
Depois.^ . . .
14
XXV
^■'" 18 de janeiro de 1905
A queda de l^orto Artliur --Efteito moral davictoriados
jiàponezcs — Incoherencias de Stoessel — Imprevidèrt-
cias dos còmmandantes da esquadra russa— -Subsí-
dios para a historia — As duas religiões, que mais
. pi-osperam. no Japão; complicaçpes externas do
culto dQs mortos; uma reco^-daçao emocionante —
A propósito do iivro portuguez O Japào por
Uoifro. — P. S: o embarque de Stoessel e uma
divao^açílo commovcdora.
IVÍo ílm da minha carta anterior registei
a queda de Porto Arthur, entrando
os japonezes eni plena posse da terrível praça
de guerra, conquistada á custa de muito "
sangue derramado e de muitos milhares de
vidas perdidas, A noticia, poi: outro lado,
também correu logo mundo, devendo achar-se
os leitores, sobre este assumpto, conveniente-
mente informados. No entretanto, é de.tamanha
magnitude o acontecimento, que nãO: parecerá
estranho consagrar-lhe aqui mais algumas ligei-
ras referencias.
6T5
Tcil magnitude náo está no facto, de mera
importância material, que sejam os nipponicos
em \'ez dos russos, os actuaes possuidores
d'essa lingua rochosa e estéril, qúe se alonga
pelo mar íbra -a ir estreitar a entrada de í.i-
chi-li. Está no effeito moral que resulta de
terem os nipponicos forçado a render-se o
poderoso exercito que guarnecia o baluarte
considerado invencível, occupando após o solo
duramente porfiado, que já fora seu por
cedência da China vencida, mas cuja devolu-
ção, logo em seguida, a politica europeia lhes
impozera, indo a Rússia, por seu turno, des-
poticamente recebel-o e alli arvorar a sua
bandeira. A nova d'este feito de suprema
audácia, escripto para sempre nas paginas da
historia do mundo, \'ai retumbar em toda a
Ásia, vai encher de emoção a inteira e im-
mensa familia amarella, que, acordada do seu
longo lethargo, ia já presenciando os aconteci-
mentos com um olho aberto, mas agora abriu
os dois, esbogalhou os dois ! . . .
— O immenso prestigio da Rússia (podería-
mos dizer da raça branca) soffre agora uma
tremenda brecha ; e é o Japão que se eleva
n'este momento á consideração dos povos
visinhos, dos povos irmãos, como que personi-
ficando o braço justiceiro, ao qual ninguém
3IÔ
resiste, que expulsa o intruso, que esmaga o
ambicioso. Pôde muito bem acontecer que o
Japão saiba aproveitar-se em breve trecho das
circumstancias épicas actuaes, em que a Ásia
inteira o contempla, envolto na sua aureola de
glorias.
Mas faltemos de Porto Arthur. Rendeu-se,
com a sua avultada guarnição de cerca de
24:000 combatentes, porque, dizem, as muni-
ções e os viveres lhes faltavam, porque perto de
20:000 homens jaziam enfermos, uns victima-
dos pela doença, outros feridos pela metralha
do inimigo. Seguramente, Porto Arthur ainda
poderia ter resistido por algumas semanas;
mas chegara lá dentro a noticia de que ne-
nhum soccorro immediato havia a esperar do
exercito de Kuropatkine ou da esquadra do
Báltico; e esta terrivel desesperança apressou
a queda, parecendo, comtudo, que alguns
generaes optavam pela defeza da praça até ao
ultimo extremo.
Os japonezes concederam a liberdade aos
officiaes que prestassem juramento de não mais
pegar em armas contra o Japão no presente
conflicto ; uns acceitaram este beneficio, outros
negaram-se ao juramento e constituiram-se
prisioneiros. Os homens da fileira são pri-
sioneiros de guerra, e estão agora mesmo
31/
chegando ao Nippon, onde são distribuídos
pelos differentes depósitos de detenção.
Na sua tremenda derrota, todos estes
bravos, que tão denodadamente luctaram pelo
prestigio e pela gloria das armas russas,
merecem a nossa calorosa sympathia. Mas
não achaes que, n'este epilogo do drama,
alguma cousa vos gela o coração? O chefe,
esse já famoso general Stoessel, sobre quem
iam chovendo desde longos mezes os applau-
sos mundiaes, havia recusado arrogantemente
uma proposta dos japonezes para entregar a
praça, quando então a sua annuencia teria
evitado as terríveis chacinas que se seguiram ;
Stoessel proclama aos quatro ventos que
resistirá até ao fim, que Porto Arthur será o
seu tumulo; ao seu commando omnipotente,
os soldados persistem guarnecendo os fortes,
soffrendo resignados mil privações, cahindo a
esmo sob o chuveiro das balas inimigas. . . e
agora rende-se, presta o juramento que lhe
pedem os nipponicos, vira costas á chusma
dos soldados sobreviventes, que cá ficam em
captiveiro, e elle ahi vai, caminho da pátria,
a bordo de um paquete francez, o « Australien »,
em companhia da esposa, de varias damas, de
meninos, como que fazendo parte de um
grupo de touristes, em excursão de recreio. . .
3i8
Ou eu me engano, ou Stoessel não S3 com-
penetrou, n'este momento íinal, da enorme
responsabilidade que lhe pesava, perante a
historia, como chefe dos heroes vencidos de
Porto Arthur.
Com respeito aos japonezes, prolongando
mais do que de ordinário as suas festas do
anno novo, illuminam cidades e aldeias, des-
fraldam estandartes e põem-se a passear pelas
ruas, em commemoração do grande feito das
suas armas. Nem um caso violento de em-
briaguez, nem um ligeiro conflicto, nem a mais
leve aggressão a um estrangeiro. Povo algum
no mundo daria provas de tão notável co-
medimento, tratando-se de glorificar uma das
maiores façanhas militares dos tempos moder-
nos.
A primeira phase da guerra chegou ao seu
termo. A destruição da esquadra russa, a
tomada de Porto Arthur e o movimento de
retirada até aos subúrbios de Mukden, imposto
ao exercito, de Kuropatkine, definem este
periodo. O que vier depois, pertencerá a uma
nov^a phase.
A'cerca da guerra, ha ainda as seguintes
noticias a registrar. O generalíssimo russo
reuniu importantissimos reforços, calculando-se
que terá hoje uns 400:000 homens sob o seu
l
319
commando; parece próxima uma tremenda
batalha. Uma força russa conseguiu ha dias
chegar a Newchwang, invadindo a cidade por
surpreza; pouco depois foi desbaratada pelos
nipponicos. Alguns navios da marinha de
guerra japoneza foram avistados nas alturas
de Java e das Filippinás.
— A soberba defeza de Porto Arthur re-
presenta para mim, até hoje, a pagina gloriosa
do exercito russo na presente campanha; mas
tive de apontar-lhe um único sencão — o pro-
cedimento final de Stoessel. — • Também, refe-
rindo-me n'uma correspondência anterior ao
desastre de Chemulpo, quando o cruzador
«Varyag» e a canhoneira' «Koreatz» foram
destruídos pela esquadra nipponica, classifi-
quei o acontecimento como a única pagina
brilhante d'aquillo que foi a esquadra russa
no Extremo-Oriente ; e tenho agora de simi-
Ihantemente indicar um senão a esse quadro
pathetico, após os recentes detalhes que colhi
de alguém que, pela sua distincta posição
como official superior de uma marinha estran-
geira, tem plena auctoridade na matéria. Os
transportes japonezes já desembarcavam tro-
pas em Chemulpo, e ainda os dois navios
russos, que deveriam prudentemente retirar-se
logo para o mar, iam recebendo as damas e
3.20
os cavalheiros da localidade, eni banquetes
festivos. Quando chega a esquadra de Uriíi,
que os convida a render-se ou a aprestar-se
a combate, competia ao commandante do
magnifico cruzador «Varyag», com uma ve-
locidade de 24 milhas, receber a seu bordo
a guarnição do « Koreatz », cuja velocidade era
apenas de 10 milhas, metter no fundo este
barco inútil e tentar fugir, a toda a força, do
poderoso inimigo. Não se fez isto : os dois
barcos largaram juntos para o mar, ao meio
dia, ambos com uma marcha de 10 milhas, e
tão despreoccupadamente, que nenhum pre-
parativo de manobra, imposta .em taes cir-
cumstancias, se tomou; para cumulo de im-
previdência, um marinheiro entretinha-se em
dar brochadas de tinta, junto do portaló! . . .
De sorte que a catastrophe de Chemulpo
apparece-nos antes de tudo como uma scena
de deplorável desleixo, de inteira responsabili-
dade dos commandantes russos.
E não pareçam estas considerações retro-
spectivas filhas de um azedume condemnavel
do meu espirito. Ninguém talvez terá apon-
tado esta verdade; quiz eu apontal-a. A cri-
tica da Historia haverá mais tarde de apre-
sentar o seu juizo severo sobre o conflicto
Extremo-Oriental; todas as contribuições.
321
ainda as mais iTumildes, podem ser úteis;
a coragem c a \'alentia do russo, do bom e
rude povo feito soldado, hão-de ser aprecia-
das no seu justo valor; mas tornar-se-hão
evidentes a mais estupenda incúria, a mais
supina ignorância de responsabilidades, por
parte dos dirigentes — ministros, vice-reis, al-
mirantes, generaes, commandantes. . .
— Os livros que se occupam dos japone-
zes dedicam em geral longas paginas ás duas
religiões que mais prosperam no Japão, as
quaes são : o shintòismo, culto nacional, e o
buddhismo, religião importada do continente
asiático. O assumpto é sem duvida interes-
sante, mas não de uma importância capital
para o estudo da alma do povo, quando se
observa que o nipponico é pouco devoto,
pouco dado a práticas religiosas; frequen-
tando os templos, na maior parte das vezes,
por habito, por passatempo e principalmente
por prazer, deleitando-se na amenidade da
paizagem em torno, ou folgando com a turba,
em dias de commemorações festivas. Pensa-se
no shintòismo, pensa-se no buddhismo; mas
dá-se geralmente maior apreço a um outro
systema de crenças, a que bem se poderia
chamar uma terceira religião, ou antes a pri-
meira, por ser por certo a primitiva e aquella
322
a que ainda hoje mais arreigada está a alma
nacional. Esta outra religião é o culto dos
antepassados, o culto dos mortos.
■ O culto dos mortos não é, sabe-se bem,
especial aos japonezes, nem mesmo aos asiá-
ticos. É commum a todos os povos, sem
duvida o mais remoto; datando da idade
ingénua das tribus, da primeira interpretação
mystica dos sonhos, é tão persistente, que
ainda hoje, mesmo na sceptica Europa, raro
será aquelle que não lhe preste homenagem. O
amor pelos seus defuntos ! Quem ha que se
exima a este culto ? Os cemitérios, o carinho
que se vota á lapide tumular, as flores em
cultura junto da campa dos parentes, o dia
votado aos finados e muitos outros usos, são
outras tantas manifestações de um culto in-
timo, bárbaro, mas enternecedor, que vem na
série dos séculos muito primeiro do que as
religiões que elevam os seus altares na syna-
goga, na igreja ou na mesquita.
Nos japonezes, porém, para não fallarmos
dos outros asiáticos, o culto dos mortos attinge
complicações extremas, para nós mal concebi-
das, mal adivinhadas. E' a base da inteira
moral indígena, do sentimento da familia, da
sociedade, da nação. O próprio shintòismo
deriva d'elle ; e o buddhismo, que não deriva
323
d'elle, pois é uma religião importada, teve de
amoldar a sua doutrina, para poder implan-
tar-se no solo estranho, á concepçcão japoneza
dos mortos. ri
O morto não morre, mas parece que não
vae para o céu, nem para o .inferno. Não sobe
tão alto, nem desce tão baixo : paira, em espi-
rito, no ambiente próximo, quasi na intimidade
dos seus parentes. O japonez presume, não
forja grande sobra de theorias, nem se dedica
a longas meditações, sobre este caso ; conse-
guiu, por assim dizei', materialisar a saudade
pelos que se vão; e n'isto se resume a exi-s-
tencia espiritual attribuida aos defuntos. Quan-
do um japonez morre, o bonzo buddhista.da
parochia dá-lhe outro nome, em . substitui-
ção do que tinha, e d'isto faz registo ; é como
que um baptismo, que marca o inicio de unm
vida nova que succede .á primeira, mas invnsi-
sivel c eterna.
Do culto dos mortos, isto é, da estima, do
respeito, da adoração, devidos aos parentes
mais velhos, e com mais razão aos que se
foram, deriva, como apontei,, a concepção
moral da familia, encontrando-sé uma tal sen-
timentalidade em flagrante contraste.com as
ideias occidentaes sobre o mesmo assumpto.
Assim no lar europeu, o chefe de familia tem
324
por principal dever o deixar em herança um
nome honrado, illustre se é possível, a seus
filhos. No Japão, o japonez é apenas usu-
fructuario das suas virtudes, das suas glo-
rias; não pôde dispor d^ellas, não vão ellas
honrar seus filhos, mas sim aureolar seus
pães, no mysterio de além da vida. Não nos
é dado aprofundar devidamente estas subtile-
zas mysticas da alma nipponica; mas desde
logo se nos torna evidente que á familiajapo-
neza, destituída de património moral, impon-
do-se-lhe pelo contrario o dever de illustrar os
ascendentes, cabe mais dose de actividades e
de responsabilidades sentimentaes do que á
familia Occidental; também facilmente nos
apercebemos do maior respeito que se tributa
ao chefe da casa, directo representante dos
mortos, primeiro sacerdote nos ritos que se
lhes prestam e mais perto de reunir-se a elles.
O resultado social de tudo isto é o accentuado
cunho de familia patriarchal que nos offerece
o lar japonez, no qual o pai é rei, é Deus,
honrado e obedecido piedosamente por todos
os outros membros; por outras palavras: a
constituição da familia japoneza accusa um
alto grau de cohesão, sem parallelo nas socie-
dades europeias.
Se é interessante o divagar n'estas consi-
4
325
derações de ordem psychica, não é digno de
menor interesse o seguir com os olhos a prá-
tica ingénua do culto, na intimidade do povo.
Elm cada lar ha um altarzinho votado aos
mortos, movei preciosissimo de charões e
ouros na casa do rico, simples armário de
madeira despolida no albergue do pobre. Alli
se guardam as relíquias dos parentes defuntos
e as minúsculas alfaias do rito ; alli diariamente
se exercem praxes de piedade filial. P^óra de
casa, no cemitério, outros carinhos se dispen-
sam, cuidando dos arbustos que vegetam
junto do tumulo, conservando sempre viçosos
ramos de flores e folhas em bocaes de bambii,
queimando incensos, enchendo de agua o
exiguo recipiente cavado na lapide, onde,
parece, o morto vem beber. Ha então, em
cada anno, certos dias festivos para todos os
defuntos, melhor direi — certas noites festivas;
e mal imaginaes o phantastico espectáculo dos
cemitérios em taes noites, illuminados por mi-
lhares de lanternas de papel, subindo em tur-
bilhões o fumo dos pivetes, e o povo em mul-
tidão a contemplar as campas. . .
Palestrando dos mortos c do culto que
merecem, acode-me á memoria a casita onde,
ha alguns annos, eu tinha por habito ir repou-
sar durante meia hora, a meio da extensa
326
ladeira que le\'ava a um templo da minha
devoção, alli para os lados de Kyoto.*Era um
bem modesto albergue, reduzido a proporções
Ínfimas — - dois pequeninos quartos apenas —
mas cuidado com esmeros- requintados. N'elle
vivia o velho Yamasaki, com os seus 70
invernos a pesarem-lhe no lombo, e a sua filha
O-Toki, gentil. moça de 24 annos. Nunca che-
guei a perceber de que dispunham o velho e
a rapariga, em que se occupavam. Pouco im-
porta. Occupavam-se em sacudir a poeira das
esteiras e dos dois únicos moveis visíveis
a meus olhos — -um armário com roupa e um
altar do culto — occupavam-se a mais efii
aquecer a agua no brazeiro, em preparar o
chá, em cozinhar o arroz, em regar o pinhei-
rito do jardim e no culto dos seus mortos.
No desempenho d'estes últimos misteres, o
pae cirandava para um lado, a filha ciranda\'a
para outro lado, sorrindo-se, fallando-Se rara-
mente ou então palestrando de segredo, por-
que o velh(3 ei*a muito surdo e tanto menoé
ouvia quanto mais se lhe berrava, só pela
mímica dos lábios percebendo as phrases pro-
feridas.
A feição mais curiosa, para niim, d'aquellas
duas existências era o cuidado que vota\'am
aos seus mortos. Dentro do altar grupavam-se
327
coisas vtirias e niysteriosas, escriptos mysticos,
o retrato em daguerreotypo de uma velha,
nomes de defuntos gra\'ado;^ em pedaços de
madeira; lâmpadas^ taças, ílòres ; notava-se
um espaço livre, antecipadamente com destino
ás reliquias do \'elho Yamazaki, quando elle
deixasse de existir. Umas três vezes por dia,
de manhã, ao meio dia e pela tarde, o velho
ou sua filha, segundo preceitos rituaes, vinham
junto do altar queimar pivetes, ou accender
as lâmpadas, ou servir o chá aos mortos, ou
servir-lhes o vinho ou o arroz da refeição,
tendo feito soar previamente um timbre para
acordar os espíritos.
Um dia, encontro os dois muito occupados
n\im grave problema. A rapariga photogra-
phára-se, emmoldurára gentilmente o seu re-
trato e tratava de pendural-o na parede; e
discutiam agora os dois imi local apropriado,
— aqui, alli, acolá, — onde a luz mais lhe
desse e melhor enfeitasse o aposento. Eu então,
escorrendo em suor ap(3z a caminhada, esti-
rado sobre a esteira, saboreando uma chávena
de chá, quiz também ter meu \'Oto na matéria
e indiquei um espaço vasio da parede, por
cima do altar dos mortos. Ignaro ! . . . 0-Toki,
reprehensiva, observou-me que isso seria um
sacrilégio, concedendo á sua imagem mais
328
honras que aos defuntos. Eftectivamente, é
sabido que entre os japonezes a etiqueta
é muito escrupulosa nas alturas; por esta
razão ninguém pôde encontrar-se, á passa-
gem do imperador, superior a elle; ás portas
e ás janellas rentes com o chão assoma o
povo, mas todas as janellas dos andares supe-
riores são respeitosamente fechadas.
Bem. Para o caso do culto dos mortos no
Japão, não vos está parecendo que de tal
sentimento fatalmente resulta uma intensis-
sima cohesão moral na familia nipponica, em-
bora não possamos avaliar devidamente os
seus effeitos? . . . E essa eternidadesinha do-
mestica, familiar, na qual os septuagenários
vão antecipadamente pensando com amor,
imaginando já o momento próximo que os
substanciará, que os synthetisará n'uma pho-
tographia, ou n'uma madeixa de cabellos, ou
n'um punhado de cinza-, n'uma reliquia qual-
quer Ínfima, á qual a descendência inteira
prestará culto diário, amanhã os filhos, mais
tarde os netos, ainda mais tarde os bisnetos;
essa eternidadesinha a preços reduzidos, des-
pida de transcendencias, não será ac^-so, para
estas almas simples, de uma grande consolação,
de um grande amparo, nos derradeiros dias da
decrepitude, que precedem a derrocada final? . . .
329
— Tenho procurado dar noticia, no de-
curso d'estas correspondências, dos bons li-
vros sobre o Japão, que vão chegando ao
meu conhecimento.
Cabe agora referi r-me ao volume O Ja-
pão por dentro, que acaba de sahir dos
prelos portuguezes, devido á penna do snr.
Ladislau Batalha. O livro é de reconhecido
mérito, abundando sensatas considerações do
seu auctor, entremeadas com copiosa compi-
lação de tudo que de melhor tem apparecido
sobre este interessantissimo império nipponico.
O nosso publico, agora decididamente inte-
ressado pelo que se vae passando no Ex-
tremo-Oriente, ha-de, sem duvida, prestar
sincero applauso á obra litteraria, de vulgari-
sação, do snr. Ladislau Batalha.
P. S. — E hoje que o general Stoessel
embarca em Nagasaki, no « Australien», de
regresso á Europa e á pátria, onde o esperam
as ovações das massas e as distincções das
cortes. . .
Eu estou longe de Nagasaki. Aqui, onde
me encontro, assisto por acaso á passagem
de um comboyo cheio de soldados prisionei-
ros, que vêem de Porto Arthur, com destino
ás casernas de detenção. O instantâneo é
330
profundamente coinmo\'edor. O povo acode a
postar-se ao longo da via férrea, para vér,
silencioso e respeitoso perante a desgraça do
inimigo. Lá dentro, na longa fila de carrua-
gens, é o rebanho humano. Assomam para
fora das janellas das portinholas centenas de
bustos \'estidos em farrapos de uniformes,
centenas de cabeças, nuas umas, outras co-
bertas com kepis de vários typos, outras
enfiadas até ás orelhas no enorme barrete dos
cossacos. Barbas e cabellos longos e hirsutos,
que não sentem a tesoura ha muitos mezes.
Rostos róseos, juvenis, sorridentes. E o ani-
mal humano a revelar-se, nas suas doces
qualidades affectivas.
As scenas de matança esqueceram-se já.
Agora é o suave clima e são as amenas pai-
zagens de Nippon a enfeitiçarem os olhos, a
chamarem á realidade e ao amor da vida; é
a perspectiva de noites inteiras de somno,
embora no captivjeiro ; é a perspectiva de um
jantar em cada dia, com verduras, com carne
e com um pão. . . O russo adivinha já este
paraizo, í^ito de uma cama, de um nabo, de
um naco de carne e de um pão ! e, impellido
pelas suas tendências sociaes — o bicho ho-
mem é eminentemente social — envia sorrisos
á multidão, é já amigo dos japonezes, pre-
I
331
tende que elles o sejam d'elle, quer viver
n'um ambiente de sympathias e de carinhos.
Depois de passar o comboyo, ouço algumas
vozes, sabidas da turba, talvez dos pães que
perderam os filhos na guerra, tah'ez das imi~
siimés que perderam os namorados na guerra,
balbuciarem : — <:< kinodohi ! kínodohi ! » ('coi-
tados ! coitados \),
Coitados! coitados!
XXVI
2 de fevereiro de 1905
Evokr^òcs da guerra — Os. tumultos na Rússia — Pre-
visões sobre a duração que poderá ter a futura paz
— O que poderia tornal-a estável — Uma heroina —
Maravilhosa viagem que fez um coelho branco —
Os provérbios japonczes — Concurso imperial de
poesia.
T^sTÁ-SK dando presentemente uma pausa,
todavia natural, nos acontecimentos da
guerra. O campo do theatro limita-se por agora
ao espaço que avisinha Mukden, onde os dois
tremendos exércitos se confrontam, apparente-
mente inactivos, não levando em conta algumas
ligeiras escaramuças ; mas presumidamente
esperando anciosos um momento favorável
para se precipitarem um contra o outro, o
que se espera succederá em breve. O exercito
de Kuropatkine terá por certo recebido da
Europa valiosíssimos reforços, durante estas
longas semanas de simulado repouso; o exer-
cito de Oyama haverá, por seu turno, sido
reforçado com soldados frescos idos do im-
pério, sem que o publico possa avaliar o seu
333
numero, e também com a grande maioria das
tropas que cercava Porto Arthur, as quaes
tão brilhantemente acabam de concluir a sua
duríssima missão.
Pelo que respeita á acção nav^al, calcula-se
que uma poderosa esquadra japoneza se en-
contra a estas horas em pleno Oceano Indico,
não longe da esquadra russa, que ainda ha
poucos dias se achava nas aguas de Mada-
gáscar. Algum grande combate se espera,
pois, d'aquelles lados.
Annuncia-se que as forças nav^aes japo-
nezas, sob o commando superior de Togo,
receberam agora um importante augmento,
vindo reforçal-o uma esquadrilha de barcos
submarinos — nomeiam uns dez — o que con-
stitue uma novidade no Japão; estes barcos,
adquiridos não se diz como, vieram provavel-
mente da America, em secções separadas.
Mais do que se passa presentemente aqui,
estão merecendo as attenções do publico os
actuaes tumultos internos da Rússia, que são
como que os primeiros tremores do terrivel
vulcão latente, o alarme inicial de um povo
immenso, acorrentado aos grilhões da escra-
vidão e clamando pelas suas liberdades. Quem
pôde prever as consequências tremendas da
convulsão . social, hoje sufíbcada talvez pela
334
metralha da fuzilaria, mas irrompendo amanhã
coni maior fúria ? . . .
E a paz ? e a paz ? . . . A queda de Porta
Arthur pareceu indicar a alguns que o mo-
mento de entrar em negociações pacificas não
estaria longe; mas tal esperança vae-se já
desvanecendo. Corre agora uma opinião de
que a Rússia, abalada profundamente no seu
prestigio de grande potencia europeia, não
poderá prestar-se a entrar em propósitos
conciliadores sem que tenha ganho brilhante-
mente uma batalha, feito que, de certo modo,
sirva a diminuir a tristíssima impressão moral
das suas constantes derrotas. Seria de Kuro-
patkine que poderia esperar-se um tal desforço;
mas os acontecimentos anteriores não são de
molde, em minha opinião, a fazerem acreditar
na próxima probabilidade de uma notável
victoria russa.
No entretanto, animemo-nos com a espe-
rança de que, por qualquer forma imprevista,
contra todas as apparencias agoirentas do
conflicto, possamos registar, dentro de curto
periodo, a cessação de hostilidades e do drama
eminentemente sangrento que se trava. Ve-
nha a paz. Convém, porém, que não nos
deixemos illudir em tal assumpto. A futura
paz entre a Rússia e o Japão, sejam quaes
335
forem as peripécias que a guerra ainda nos
reserva, não poderá ser senão uma paz pro-
visória, um. descanso na lucta. Os japouezes
sabem isto.. A Rússia, não . se resignará a.^
desistir para sempre das suas tremendas aspi-
rações de domínio do lado do Kxtremo-Oriente.
O Japão, por sua. parte, tíunbem não se resi--
gnará a assistir impassivel á acção in\'asora
da Rússia, Mas uma tal acção, que corres-
ponde á anciã de um povo immenso em busca
da costa marítima e de portos, sem o que
não poderão desenvolver.-se as suas activida-
des latentes, pôde comparar-se. a uma enor-
me massa de aguas-, que viesse inundando os
campos próximos e alastrando-se pelas planí-
cies contíguas. O Japão terá de perseverar na
sua heróica resistência em reprimir esta castas-
trophe, erguendo diques contra a onda cala-
mitosa ; a lucta continuará ; devendo prevêr-se
que virá um dia em que os esforços dos
nipponicos, por mais arrojados que sejam, se
mostrem. impotentes perante tamanha empreza.
Um meio se ofterecia de perpetuar a paz,
quando os dois impérios entraram em intima
alliança, partilhando entre si a \^asta região
onde os seus interesses contam desenvolver-se
mais energicamente; a F.uropa c a Anierica
calar-se-hiam,. embora com pezar.. Mas isto.
336
que seria possível ha alguns annos, affigura-se-
nie agora impraticável, quando o Japão mos-
tra assumir um papel de libertador da Ásia
extremo-oriental, pouco compatível com um
súbito reviramento para a política de conquista.
Não. O problema, o momentoso problema
que se apresenta, não encontrará solução
definitiva senão pelo acordar da Ásia inteira,
no propósito de garantir a sua hegemonia no
próprio solo que os destinos lhe legaram.
Assim se irá constituindo uma outra enorme
onda, avançando em sentido opposto á pri-
meira; e é do choque inevitável d'essas duas
immensas forças que resultará um phenomeno
sociológico qualquer, capaz de estender a
pacificação n'esta vastíssima região mundial,
que uns já cobiçam com tanta anciã, e que
outros, os legítimos donos, tratarão de defender
com igual anciã.
— No numero dos soldados russos da
guarnição de Porto Arthur, constituídos pri-
sioneiros de guerra e que seguiram para o
Japão, contava-se um soldadinho franzino e
sympathico, de cabellos louros, imberbe, então
soffrendo de uma forte coryza, o que lhe valeu
especiaes attenções do destacamento japonez
que acompanhava os vencidos. Quando desem-
barcou em terra japoneza, o soldadinho fez ás
337
auctoridades a surprehendente declaração de
que elle era. . . uma mulher, expondo pela
forma seguinte a sua romanesca historia.
Algum tempo antes da guerra, foi residir
para Harbin, na Mandchuria, empregando-se
como enfermeira. Teve alli occasião de pres-
tar os seus cuidados profissionaes a um rapaz,
que se apaixonou por ella, sendo correspon-
dido em seus affectos. Guando se ia tratar
do casamento, já então se estava em plenas
hostilidades; e o noivo, que era official de
irtilharia, teve de seguir precipitadamente para
*orto Arthur. A enfermeira Bogdanoff (tal é o
seu nome) resolve acompanhar o noivo, sendo
admittida na cidadella, onde a sua profissão
lhe proporciona útil emprego. Soffre corajosa-
nente uns oito mezes de cerco, supportando
lurissimas privações, assistindo diariamente
los mais horrorosos espectáculos de sangue
arriscando a própria vida a todos os momen-
tos. Rende-se finalmente a praça, e então»
'■estindo-se com um uniforme de soldado, a
lossa enfermeira decide acompanhar para o
:aptiveiro o seu querido oííicial. Chegados a
Jjina, resolve-se a fazer confissão do dis-
farce, implorando para ser empregada nos
lospitaes japonezes onde os feridos russos vão
ser tratados, e assim conservar-se tão perto
15
338
quanto possível d'aquelle que ella ama mais do
que tudo n'este mundo. A' enfermeira Bogda-
noff foi logo concedida a liberdade, mas ainda
não está resolvido se se dará satisfação aos
seus desejos.
Eu vi esta heroina em Kobe : um entesinho ,
delicado e modesto, vestindo já um traje
feminino, de ílanella preta, e um gorro al-
vadio, que lhe occulta os cabellos, cortados
rente; as mãos, brancas e mimosas, tremem
ainda convulsas, accusando assim o estado
mórbido d'aquelles pobres nervos femininos,
tão terrivelmente abalados pelo estupendo dra-
ma, de morte e de angustias, que se ia desen-
rolando dentro das muralhas dè Porto Arthur.
Romancistas: ora aqui está um thema
magnifico para os vossos romances sensacio-
naes ; mas o thema é já por si um romance,
real, vivido, bem estranho nos tempos que \'ão
correndo, de egoismo e de dinheiro ; e não o
profaneis, supplico-vos, com a rhetoiica irre\'e-
rente das vossas pennas ferrugentas. . .
— As velhas chronicas nipponicas dão
conta da maravilhosa viagem, que levou a
effeito um sagaz coelho branco, o qual, mais
tarde, entrou no rol das divindades japonezas.
O coelho habitava a pequena ilha de Oki,
que .fica, como é sabido, em pleno mar do
339
Japão, e andava desejoso de fazer uma viagem
até á província de Inaba, que lhe estava fron-
teira, situada na grande ilFia de Nihon. Mas
de Oki até Inaba ha que navegar 50 milhas,
pelo menos, o que define claramente a diffi-
culdade da empreza.
Ora, um bello dia, em que o nosso coelho
se entretinha passeando junto á praia e
olhando eni direcção da terra cobiçada, como
era seu costume, viu acercar-se um crocodilo.
De súbito, uma ideia, das que \'ulgarmente se
chamam luminosas, passou-lhe no bestunto,
enchendo-o de alegria. Prudentemente, saben-
do com que vil animalejo tinha a haver-se,
desfez-se em cortezias e em mesuras, deu os
bons dias, indagou do nadador como ia de
saúde, fallou da chuva e do bom tempo. . . E
o \'oraz bicharoco, começando talvez a imagi-
nar no delicioso almoço que a sorte lhe apon-
tava, respondeu nos mesmos termos, mavioso
como um diplomata das eras actuaes:
— « Que solidão a sua, n'esta ilha, meu
caro coelho ! . . . — ia dizendo o espertalhão.
— Procure-me, quando se sinta aborrecido ;
poderemos palestrar, matar o tempo em pas-
seios interessantes. . .» — Mas o coelho retor-
quiu, pezaroso no gesto, que eram impraticá-
veis propostas tão bondosas, \'ivendo um
340
dentro de agua e o outro nas montanhas. . .
E sabendo — philosopho consumniado — que
partido se pôde tirar da vaidade da varia bi-
charia, fez sentir que bem imaginava como
alegre a vida seria pelas aguas, em numerosa
e selecta companhia. — « E tem muitos amigos
da sua espécie, snr. crocodilo?» — continuou.
— Disse que muitos, impertigando-se. — «Dez?
vinte? cincoenta?. . .» O crocodilo affirmou
que mais de mil, mais de um milhão, dois
milhões, três milhões, nem tinham conta ! . . .
O coelho branco, ingénuo, pediu licença para
duvidar; e ajuntou, após ligeira pausa: — «En-
tão, todos os seus amigos, em fila, um a se-
guir a outro, preencheriam a distancia que v^ae
d'aqui a Inaba? » — O crocodilo disse que sim,
ufanoso. — « E permitte-me que verifique o que
assegura e que os conte a um por um ? . . . »
Assim se combinou. Em certo dia, aíTluiu
o enxame. A um signal dado, postou-se cada
qual como convinha; e os negros dorsos for-
maram uma ponte, que ia desde Oki até Inaba.
O coelho, á cautela, recommendou tranquilli-
dade na fileira, pois queria saber ao certo o
numero de todos os amigos de tão poderoso
rei das aguas. E, aos pulinhos, contando alto:
— « Um ! dois ! três ! quatro ! cinco ! . . . » —
foi-se safando, foi-se safando, foi-se safando,
I
341
íité que chegou a Inaba e se embrenhou no
niatto, a rir, a rir, a rir. . .
Até aqui, a fabula, com mais ims predica-
dos, que não vêem agora para o caso. Mas,
pergunto eu, que sou dado a descobrir os pa-
rallelos entre a chimera e a vida prática : —
Não terão querido os japonezes passar do
Japão para a Coréa, para a Mandchuria, para
a China, solicitando dos crocodilos de Moscow
um pretexto, a poíite da lenda, para execu-
tarem seus planos? . . .
— Os velhos cancioneiros, as fabulas, os
provérbios, tudo isto que agora está em moda
chamar-se o folk-lore, e que constitue um
cabedal preciosíssimo para o estudo psycho-
logico dos povos, redobra de interesse quando
se trata do Japão: por um lado, pela abun-
dância da matéria, datando das mais remotas
eras, o que tende a proporcionar maior somma
de deleite ; por outro lado, porque, assimilando
facilmente o japonez as exterioridades das
civilisações estranhas, só pelo folk-lorc se
pôde ir desvendar, embora mui de leve, o
mysterio da alma nipponica, despida do v-er-
niz das convenções.
Já n'uma carta anterior fallei da uta, a
poesia clássica japoneza. Hoje, para entreter
os curiosos, vou apresentar alguns provérbios
342
nipponicos. A seguir a alguns d'elles, escre-
verei o provérbio portuguez que melhor lhes
corresponde, pelo sentido moral ; porque uma
parte do assumpto, não a menos attrahen-
te, está precisamente em respigar similhanças,
que provem, ao lado dos característicos que
distinguem os povos entre si, os não poucos
pontos de contacto da alma humana, sejam
quaes forem as familias que se comparem,
tratando-se por exemplo de uma tribu latina
do extremo occidente da Europa e do asiático
insular extremo-oriental. Seguem os provér-
bios, ou antes a sua traducção, muito despida
de brilho, sem duvida, porque a litteratura
fallada, dos provérbios, obedece em todas as
línguas e mais na japoneza, a uma selecção
de tei-mos, a um rythmo musical, que não
podem transmittir-se á traducção.
«Quando as pedras florescerem» (quando
as gallinhas tiverem dentes).
«Se vives na aldeia, ella é a capital. >>
«Uma rã dentro de um poço, não conhece
o mar largo.»
«Provar é melhor do que discutir.»
« Um mau orador discursa muito. »
« O perfume das flores sente-se a distancia. »
«Longa experiência vale mais do que ta-
lento.»
343
«A belleza sem virtude é igual á flor sem
aroma.»
«O ausente torna-se menos intimo de dia
para dia» (longe da vista, longe do coração).
«Implorar os deuses na desgraça > (lem-
brar-se de Santa Barbara só quando ha tro-
vões).
«Se tomares \'eneno, lambe o prato.»
«A vida assimelha-se a uma luz exposta
ao vento.»
«Emquanto ha vida, ha meio de resolver.»
«Esconder a cabeça sem esconder o rabo »
(rato escondido com o rabo de fora).
« Não ha ninguém que não tenha sete
^ratices pelo menos. >
«Cuidado com uma mulher bonita: é o
pimento vermelho.»
«Se não se entra na toca do tigre, não
ha meio de apanhar-lhe os filhos.»
«O amor illude todos os cálculos.»
«Uma boa opportunidade raramente se
encontra e facilmente se perde.»
«Antes de te molhares, acautela-te até do
orvalho.»
«Dar uma moeda d'ouro a um gato»
(manteiga em nariz de cão).
«O grito de mil pardaes é inferior ao dè
uma só cegonha.»
344
«Com o auxilio de mil marinheiros pôde
um navão subir a uma montanha.»
« Os rapazes que moram perto de um tem-
plo sabem as rezas de cór.»
«Conhece-se se um homem é bom ou
mau pelos seus amigos.»
«Não julgues um homem pela sua appa-
rencia» (as apparencias illudem).
« Observa os erros dos outros e corrige
os teus próprios.»
« O homem honesto tem muitos filhos.»
«Em occasião de fome, não ha comida
insonsa. »
« Aos três annos, aos cem annos, a alma
é a mesma.»
« O morto não falia.»
«Não batas no cão que abaixa o rabo.»
« Rabo de pargo não vale cabeça de
sardinha.» (quasi idêntico ao rifão portu-
guez).
« Theoria é fácil, prática é difficil.»
« O soberano é um na\'io, o povo dos
vassallos é o mar.»
« Hontem noiva, amanhã sogra.»
« Os macacos cahem ás \'ezes das arvores
abaixo.»
«Uma mulher respeita\'el não conhece
dois maridos.»
345
« Aprende as coisas novas, estudando as
velhas.»
«Saúde é dinheiro.»
«O mel na bòcca c um punhal escondido
no coração.»
«Sem dòr, não ha prazer.»
«Um bom pintor não escolhe o pincel.»
«Bois com bois, cavallos com cavallos.»
« As nuvens estão a dez mil léguas da
lama. »
«Quando se fazem cálculos para o anno
futuro, os diabos riem-se.»
« Os insectos do verão riem-se da neve.»
« Quando os pardaes brigam, não téem
medo da gente.»
« Pilho de rã, rã ha-de ser » (filho de peixe
sabe nadar).
«Uns vão dentro do palanquim, outros
carregam com elle.»
«Assistir a um barulho do lado opposto
do rio.»
« Os pães pensam nos filhos mesmo a cem
léguas de distancia.»
« O pensamento do homem e a corrente
do rio podem mudar de sentido durante uma
noite.»
« O adivinho, que discursa sobre a sorte
dos outros, desconhece a sua. >
346
« Fazer como os • macacos, que queriam
apanhar a lua.»
Ficou para o íim este provérbio, e vae
com a devida explicação. Allude a certa pará-
bola, que dizem contada pelo próprio Buddha.
Vários macacos achavam-se sobre uma ar-
vore, durante certa noite. Vae depois, dão fé
da imagem da lua, reflectida n'um poço que
lhes ficava por baixo. Julgando vêr a reali-
dade e não a imagem, resolvem apanhar á
lua. Um dos monos, enrolando a cauda a um
tronco, deixa pender o corpo ; outro mono
suspende-se-lhe das mãos; á cauda d'este,
outro se segura; e assim segue o rosário, avi-
sinhando-se do objecto cubicado, quando o
tronco se parte e a macacaria toda, dentro do
poço, se afoga, sem remédio. . .
— O primeiro concurso imperial de poesia,
d'este anno, realisou-se ha poucos dias, no
palácio do hiiperador. Os poemas, uta^ escri-
ptos pelos príncipes, pelos altos funccionarios
da corte e pelo povo, em geral, elevaram-se ao
numero de 16:232. Das composições populares,
seis foram classificadas de distinctas e guarda-
das no imperial archivo, sendo uma d'ellas de-
vida á mulher de um soldado, agora no campo
da batalha. Feliz império de poetas ! . . .
\
XXVII
15 de íevereiro de 1905
A tomada de Porto Arthur; algumas divagações a pro-
pósito— Data memorável; principaes factos da
guerra — O commercio do Japão no anno findo; fir-
mas portuguezas em Ivobe.
I^HEOAM-MK ás mãos os primeiros jornaes
da pAiropa, registando a terrivel cata-
strophe de Porto Arthiir, com que tão estron-
dosamente iniciou os seus fastos o novo anno
de 1905. O acontecimento, embora esperado,
impressionou profimdamente o mundo Occiden-
tal, e não admira que assim succedesse. Pela
primeira vez, na historia moderna dos povos,
um Estado europeu (e dos mais poderosos)
é desfeiteado nos seus dcsignios, e \'encido
nos seus arrojos, por uma nação de raça
difterente, por um grupo da familia amarella,
julgada até ha pouco inteiramente incapaz de
se erguer e ác protestar contra a cubica do
branco. O pequeno Japão derrota a grande
Rússia; — derrota, — porque o feito, que está
longe de traduzir ainda a feição final da cam-
348
panha, é só por si de uma importância capital,
bastante para desprestigiar perante o mundo
inteiro o nome temido do enorme império
moscovita. Assistimos, em face da rude e in-
discutivel realidade das coisas, a uma repu-
tação que se afunda e a outra que nasce; e
do duplo phenomeno vae derivar certamente
uma nova orientação social, vae surgir um
novo sentimento na consciência das nações,
o qual se resumirá no respeito devido ao
solo asiático, á sua integridade e á evolução
independente dos seus povos. O risonho sonho
da divisão da China em retalhos, como se fosse
roupa de francezes, com que até ha bem pouco
tempo se ia deleitando a \elha Europa, tem
agora de desvanecer-se como todos os sonhos,,
porque se descobriu — tarde, para nossa ver-
gonha— que palpita no Extremo-Oriente uma
alma cheia de arrojos, dotada de suprema co-
ragem e moldavel a todos os progressos — a
alma do Japão! . . .
Paz ? . . . Os nomes mais considerados na
imprensa mundial já a aconselham abertamente,,
convencidos de que uma prolongada teimosia
pelo lado da Rússia, no desígnio de recuperar
o seu prestigio, não fará senão arrastal-a a
mais terríveis desillusoes e porventura á der-
roçada total das suas instituições. Encontra-
J
í
349
se-ha n'este momento o governo do czar dis-
posto a propor uma tal paz? Nada se sabe.
Ha poucos dias, circularam insistentes boatos
n'este sentido, mas parece que cessaram já.
Se a effervescencia social, que convulsiona
actualmente as massas no império moscovita,
se alastra até á Sibéria; se a ameaça de uma
j^revi' geral, no pessoal da linha férrea trans-
siberiana, se torna acaso effectiva ; então a
paz apresenta-se imminente, inobstavel; por-
que o governo russo, seja qual fòr a tensão
do seu orgulho, não ousará expor aos horro-
res da fome e ás medonhas consequências
resultantes, quando o transporte de viveres
cessar, o enorme exercito de Kuropatkine,
contido ainda nas immediaçoes de Mukden
por um resto de disciplina militar, pelo temor
dos chefes, mas desmoralisado pelas continuas
derrotas, mas alanceado pelas doenças e pelos
rigores do clima, mas profundamente desgos-
toso por uma lucta sem hm, cujos motivos
políticos não electrisam a sua fibra patriótica.
Propriamente noticias da guerra escasseiam.
Os dois grandes exércitos, em face um do
outro, v^oltam ao que parece a uma quasi
absoluta immobilidade. Não se prev^è o que
resultará de tão prolongada espectativa.
— Data momora\'el foi a de 9 do corrente
350
mez, pois em igual dia do anno anterior
soaram os primeiros tiros de canhão em Che-
mulpo e Porto Arthur, alarmando o mundo
inteiro, marcando assim o inicio irremediável
da grande lucta. Conta, pois, já um longo
anno esta giierra tremenda, assignalada -por
surprehendentes e terríveis acontecimentos,
por grandes desillusões dos povos occidentaes
e pela convicção, a que se chegou, do alto
grau de sentimentalidade patriótica, de cora-
gem c de sciencia militar e naval em que se
encontra a familia japoneza. Profundas con-
siderações se podem ii- fazendo sobre os
factos consummados. Por minha parte, no
decurso doestas despretenciosas correspondên-
cias, terei occasião de ir discreteando, antes
palestrando, com respeito ao que o assumpto
me suggere.
Limito-me por hoje, commemorando o
anniversario referido, a apresentar uma rese-
nha dos principaes factos, a qual successiva-
mente irei continuando; é tirada de uma das
mais correctas publicações sobre a guerj-a,
impressas no Japão, e offerecerá, supponho,
algum interessa áquelles cuja curiosidade está
convergindo para o sangrento drama Extremo-
Oriental. Segue a resenha.
1904 — Fevereiro 5, cortadas as relações
351
diplomáticas entre o Japão e a Rússia; 8, lei
sobre o sitio approvada; 9, batalha naval de
Chemulpo; 9, primeiro ataque a Porto Arthur;
10, proclamação de guerra, pelo Japão; 10,
proclamação de guerra, pela Rússia; 10, o mi-
nistro Kurino retira de S. Petersburgo; 11, o
ministro barão Rosen retira de Tokio; 11, o
vapor costeiro <- Nagupa-maru » é mettido a
pique pelos russos na costa de Hakodate; ii,
o «Venisei» é afundado em Porto Arthur, em
resultado de uma explosão de torpedeiros sub-
marinos; 12, o ministro Pavloff retira de Seul;
13, segundo ataque a Porto Arthur; 13, é
capturado o vapor inglez « Foxton Halle»;
14, é atacado o vapor inglez «P\iping»; 15,
é atacado e capturado o vapor inglez « Hsi-
ping > ; 22, os passageiros do « Nagura-muro >,
com excepção de dois (afogados), chegam a
Nagasaki ; 22^ aprezado o vapor inglez « Rosa-
lie » ; 22^ o paquete inglez «Mombassa;>, da
Companhia P. & O., é atacado e obrigado a
parar; 23, terceiro ataque a Porto Arthur,
fazendo-se tentativas para obstruir a barra da
entrada; 26, o vapor inglez « Ettrickdale » é
obrigado a parar, não proseguindo na sua
viagem; 2Ó, o vapor inglez «Benalder» é
obrigado a parar; 2'], o vapor inglez «Oriel»
aprezado; 28, encontro entre forças russas e
352
japonezas de reconhecimento, ao norte de
Ping3^ang.
Março 6, bombardeamento de Vladivostok;
9, encontro de forças de reconhecimento em
Pakchkyon ; lO, quarto ataque a Porto Arthur;
12, o vapor allemão «Stuttgart» é obrigado
a parar; 2i, quinto ataque a Porto Arthur;
23, primeira escaramuça &m Tongju; 27, sexto
ataque a Porto Arthur, com tentativa de
obstrucção da barra; 28, escaramuça em
Tongju, a cidade occupada pelos japonezes.
Abril 8, os russsos evacuam Gensen; 10,
escaramuça entre forças avançadas á entrada
do lio Yalu; 13, sétimo ataque a Porto Arthur,
destruição do «Petropawiowsk», morrem afo-
gados o almirante Makaroff, o seu estado
maior, 30 officiaes e 600 marinheiros; 15,
oitavo ataque a Porto Arthur, em que se
estreiam os novos cruzadores «Nisshin» e
«Kazuga»; 21, escaramuças na entrada de
Yalu; 25, alguns navios de guerra russos
apparecem em Gensan (Coréa), mettendo a
pique o vapor mercante «Gayo-maru»; 25,
os russos destroem uma ponte no Yalu ; 26, o
transporte japonez «Kiushiu-maru» é afundado
perto de Gensan.
Maio I, os japonezes occupam Chulien-
cheng, após severo combate; 2, o navio de
353
vela japonez «Haginoura-maru > é mettido
a pique pelos russos perto de Coréa; 3, ter-
ceira expedição enviada a Porto Arthur para
obstruir a entrada; 3, o paquete inglez «Osiris»
(P. & O.) é obrigado a parar e é revistado; 5,
uma divisão japoneza desembarca em Liao-
tung ; 6, esta divisão occupa as visinhanças de
Kinchan, começando o cerco de Porto Arthur;
6, os japonezes occupam Fuinhancheng; 7, os
japonezes occupam Porto Adams e Pi-tsze-vvo;
10, escaramuça em Anju, ataque dos russos
repellido; 12, o torpedeiro japonez n.*^ 48
afunda-sc na bahia Kerr, em resultado da
explosão de torpedos submarinos; 13, os ja-
ponezes occupam Sinjan (oeste de Fuinhan-
cheng); 14, afunda-se o «Aliyako» na bahia
de Kerr, em resultado da explosão de torpedos
submarinos; 15, acontece idêntico desastre ao
«Hatsuae», em frente de Porto Arthur; 15, o
«Yoshino» é abalroado pelo «Kusuga» e
afimda-se; 18, combate em Chulishau (nor-
deste de Kinchau), russos desalojados; 2^,
escaramuça perto de Kvvanten, os russos re-
tiraram; 25, o" almirante Skrydioff chega a
Vladivostok; 26, os japonezes occupam Kin-
chau, após duro combate; 2/, os japonezes
occupam Nanshan (^monte do sul); 30, escara-
muça em Sichatsu (perto de Porto Adams);
354
30, escaramuças na península, os japonezes
dispersam os russos em Tienchaton, Chan-
chaton e Royoobyo.
Junho 4, a canhoneira russa «Gremiaschy»,
afundada por explosão de torpedos submari-
nos; 7, os japonezes occupam Samazi (norte
de Fuinhancheng) ; 9, os japonezes occupam
Sinjan (oéste de F\iinhancheng) ; ii, severo
ataque em Fuchan e visinhanças, os japonezes
victoriosos; 14, a esquadra de Vladivostok
apparece em frente de Okinoshima e, proce-
dendo para Tsushima, torpedeia os transpor-
tes japonezes « Hitachimaru», «Sado-maru»
e <'Idzumi-maru », nos estreitos de Tsushima
e ataca c afunda alguns barcos costeiros; a
esquadra do almirante Kaminura persegue
sem resultado a esquadra inimiga; 16, batalha
de Tokuriji ; 18, os japonezes expulsam os
russos de Shichibanrei; 18, o vapor inglez
«AUanton», apresado em frente do Hokkaido
pela esquadra de Vladivostok ; 20, os japone-
zes occupam Schun^^oncheng; 22^ os russos
atacam os japonezes em Aiyangpienmun (sul
de Samazi\ retirando após curto combate; 22,
escaramuça em Senkaton (na estrada de
Tashichau), os japonezes occupando subse-
quentemente Kakoto e Tojiko ; 23, nono ata-
que combinado contra Porto Arthur, a esquadra
355
russa impedida de largar do porto, um coura-
çado russo a pique, outro desmantelado, dois
cruzadores de primeira classe com avarias ;
27, os japonezes apossam-se de Bunsurei
(Fenshuilienj ; 27, uma divisão de torpedeiros
japonezes ataca o navio vigia em Porto Arthur,
afundando-se no combate dois navios russos;
29, os japonezes occupara importantes pontos
estratégicos nas visinhanças de P"enshuilien ;
30, a esquadra de Madivostok bombardeia
Gensan, mettendo no fundo uma lancha a
vapor e um navio de vela japonezes.
Julho I, dá-se vista da esquadra de Madi-
vostok nas visinhanças de Tsushima; 2, os
japonezes atacam os russos ao sul de Tashi-
chao ; batalha de Jisilipao (sul de. Haicheng) ;
4, os japonezes occupam Motienling (nordeste
de Liao-Yang); 5, a canhoneira japoneza
« Kaimon » afundada por uma explosão de
torpedos submarinos; 5, escaramuça na pas-
sagem de Fengsin, cossacos repellidos; 6, o
vapor ingiez «Cheltenham» aprezado; 6, os
japonezes occupam Kansho ; 9, os japonezes
occupam Kaiping; 10, os japonezes occupam
Shuhoko e Senkakoku; 13, o paquete «Ma-
lacca » (P. & O.) apresado pela frota \'oluntaria
russa no mar Vermelho; 15, o vapor ingiez
<; Dragonman ^^ obrigado a parar; 15, o paquete
356
allemão « Prinz Heinrich » obrigado a parar e as
malas do correio capturadas; i6, idêntico facto
com o vapor inglez «Pérsia»; i6, o vapor in-
glez «Hipsang» torpedeado e afundado; 17,
os japonezes atacam os russos dos dois lados
da passagem de Montien, perseguindo-os até
Kinchanpaotze; 24, os japonezes occupam
Tashichao e posições próximas; 24, uma divi-
são de torpedeiros com duas canhoneiras ataca
os destroycrs russos perto do cabo Sensei,
em Porto Arthur; 24, a esquadra de Vladivos-
tok aftmda o vapor inglez «Knight Comman-
der» ; 24, o vapor allemão «Arábia» apresado;
24, occupação japoneza de Newchwang offi-
cialmente annunciada; 25, o vapor allemão
«Thea» afundado pela esquadra de Vladivos-
tok; 2Ó, o paquete inglez «Formosa» apresado
no mar Vermelho ; 30, Hsimocheng atacado e
occupado pelos japonezes; 31, novo combate
em Motienling; 31, os japonezes occupam
posições nas elevações próximas de Hsimo-
cheng.
Agosto í, os russos evacuam Haicheng;
9, apparecimento de cossacos em Gensan;
10, a esquadra de Porto Arthur, quando pro-
curava escapar-se, encontra a esquadra japo-
neza, seguindo-se um duro combate; subse-
quente dispersão dos russos, morto o almirante
357
Witgeft; II, o destroyer russo «Retshitelny»,
refugiado em Chefii, é aprisionado pelos japo-
nezes ; 14 a esquadra de Kaminura encontra a
esquadra de Vladivostok ao norte de Tsus-
hima; após cinco horas de combate, o «Rurik»
afunda-se, escapando-se com sérias avarias o
«Rossia'> e o -< Gromovoi » ; 17, o major
\amaska transmitte ao chefe do estado-maior
de Porto Arthur o desejo do imperador para
que as vidas dos não-combatentes sejam pou-
padas, bem como um convite de rendição; 17,
resposta da guarnição de Porto Arthur, de-
clinando o convite para render-se; 20, os ja-
ponezes afundam o «Novik» em Sakhalien;
24, inicio do combate a sueste de Liao-Vang.
Setembro 3, os japonezes apossam -se de
Liao-Yang; 18, o navio de guerra japonez
« Heiyen » vai a pique em frente de Porto
Arthur, em resultado de explosão de uma
mina fluctuante; 30, os russos incendeiam os
barcos chinezes que encontram no rio Hun,
mas são dispersados pelos japonezes.
Outubro 2, os japonezes derrotam a ca-
vallaria russa em Hosoton; 10, em Mukden
os russos começam um assalto geral a toda
a linha japoneza; 14, victoria japoneza na
batalha de Shaho.
Novembro 15, o dcsh'oycr xw'>'>o «Ratsto-
358
repny > evade-se de Porto Arthur e chega a
Chefu; 15, forças russas de cavallaria e infan-
teria atacam os japonezes em Hinlugtun, mas
são repellidas ; 15, a ca\'allaria e infanteria
russas atacam Chitaitze e Mamachich, mas
pouco damno causam ás posições japonezas;
ló, a guarnição ^o « Ratstorepny » faz explo-
dir o seu barco; 20, os japonezes apresam
o vapor allemão ^. Peteran», perto da ilha
Round ; 24, a infanteria russa repetidamente
ataca a guarda avançada japoneza em dire-
cção de Lamatun, mas é repellida; algumas
descargas da artilheria russa na visinhança
da ponte da linha férrea de Shaho não pro-
duzem efíeito; 30, os japonezes tomam a
« cota de 203 metros ^> ; 30, o guarda-costas
japonez « Saiyen » afunda-se perto de Porto
Arthur, em resultado de uma explosão de
mina submarina.
Dezembro i, ataque infructuoso dos russos
para recuperarem a « cota de 203 metros » ;
19, informações ofíiciaes do bom êxito de um
novo ataque de torpedeiros contra os navios
russos em Porto Arthur e da captura de im-
portantes posições; 23, Togo confirma a no-
ticia da destruição da esquadra de Porto
Arthur, pelo que recebe no mesmo dia um
telegramma com as felicitações do imperador;
i
35.9
2/, escaramuça na \'isinhança do Shaho; 28,
os japonezes tomam o monte Nir}'o, em Porto
Arthur; 31, os japonezes occupam o monte
Sunshu, em Porto Arthur; 31, quatro dcs-
troyjrs escapam-se de Porto Arthur para
Chefu.
1905 — Janeiro i, após severo combate,
mensageiros russos avançani até ás forças
japonezas, apresentando uma proposta de
capitulação do general Stoessel; o general
Nogi acceita condicionalmente a proposta; 3,
os ofíiciaes commissionados dos dois exérci-
tos para combinarem os processos de rendi-
ção da praça concluem os seus trabalhos; 4,
as fortificações de Porto Arthur passam para
as mãos dos japonezes; 5, felicitações impe-
riaes enviadas ao general Nogi; 7, completa-se
a entrega de presioneiros ; 9, completa-se a
entrega de fortes e material; 10, chega a Na-
gasaki o primeiro troço de prisioneiros; 11, o
general Stoessel larga de Porto Arthur; 1 1, foi-
ças japonezas, estacionadas em Ham-heling
(Coréa), atacam os cossacos e capturam im-
portante preza; ii, os japonezes capturamos
vapores ingiezes «Roseley» e «Lethington »,
ambos com carga de carvão para Madivos-
tok; 12, decreto imperial, annunciando o ad-
diccionamento de submarinos á flotilha de tor-
36o
pedeiros da marinha japoneza; 13, as forças
japonezas occupam Porto Arthur; 13, a ca-
vallaria russa ataca de surpreza Newchvvang
(a cidade v^elha) e é repellida; 14, chegada do
general Stoessel a Nagasaki; 17, partida do
general Stoessel para Shangae e Europa, a
bordo do paquete francez « Australien »; 23,
escaramuça perto de Kansho, a leste de Muk-
den; 2^, os russos principiam avançando na
margem esquerda do rio Hun; 25, o vapor
austríaco «Burma», carregado de carvão para
Vladivostok, é apresado pelos japonezes, perto
do Hokkaido ; 2(5, os russos são repellidos em
um encontro perto de Liuchaskon; 27, bata-
lha de Heitaiko; depois de successivos com-
bates durante três dias, os russos retiram e os
japonezes occupam Heitaiko ; perdas russas
avaliadas em 20:000 e japonezas em 7:000;
27, o vapor inglez «M. S. Dollar» com carga
de carvão para Vladivostok, é apresado pelos
japonezes em frente do Hokkaido; 30, a
mesma sorte tem o vapor inglez « Wein-
field», carregado de contrabando de guerra
para Vladivostok.
— Em breve espero ter occasião de apre-
sentar alguns dados estatísticos com respeito
ao commercio do Japão durante o anno findo,
commercio que se mostrou muito lisongeiro,
3^1
apesar dos gravissinios inconvenientes que,
sem duvida, a guerra lhe occasionou.
Por agora fallenios de assumpto que mais
nos toca pela porta. K geralmente sabido que
existem em Kobe duas firmas mercantis por-
tuguezas: uma é a do snr. J. L. Gil Pereira,
outra a de Gomes Brothers & C.^, as quaes
mantéem relações directas com algumas im-
portantes casas de Portugal. Já, ha tempo,
me referi á primeira, e hoje seria supérfluo
insistir sobre a sua respeitabilidade. Também
já mencionei a segunda por occasião da ex-
posição de Osaka, onde figurou honrosamente
como representante da Companhia Vinícola
do Norte de Portugal; a firma Gomes Bro-
thers & C.^, cujo nome gosa de excellente
credito, desde longos annos, no Extremo-
Oriente, tem alargado ultimamente o seu ne-
gocio, offerecendo magnificas promessas de
longa prosperidade. Citando hoje estas duas
lirmas portuguezas, é meu intento lembrar
aos nossos negociantes do continente a van-
tagem de entrarem cm relações com alguma
d'ellas, com o fim de estabelecer-se de forma
definitiva uma séria corrente de negocio entre
í^ortugal e o Japão.
le
XXVIII
27 de fevereiro de 1905
Noticias da guerra — O descobrimento do Japão pelos
Portuguezes; a passagem d'estes pelo império nip-
ponico — \''estigios linguisticos — O inverno no Im-
pério do Sol Nascente; conta-se a propósito a his-
toria de um salgueiro.
T~j^scASSEiAM inteiramente noticias da guerra,
se não levarmos em conta as pequenas
escaramuças que diariamente se repetem ao
longo da extensissima linha das forças inimi-
gas estacionadas ao sul de Mukden, tendo
por chefes superiores Kuropatkine e Oyama. O
inverno, tão rigoroso, da Mandchuria está im-
pondo quasi que completa immobilidade a
esse milhão de homens vivendo em pleno
campo, apenas abrigados dos nevões, das
chuvas e dos ventos desabridos pelas cavas
subterrâneas e velha casaria chineza onde se
acoutam, e que lhes proporcionam um simu-
lacro de conforto.
Resta o assumpto das conjecturas — e este
é vasto — para ir entretendo a curiosidade
publica. Muito possilvemente uma tremenda
3^3
batalha se ferirá, quando o tempo a torne
exequível, isto é, dentro de algumas semanas;
inclinando-se fortemente a opinião japoneza no
sentido de que ella reserva á Rússia uma
enorme catastrophe e a ruina completa do seu
prestigio, já muito abalado nos tempos que
vão correndo.
No entretanto, não é condição imprescindí-
vel que tal batalha se dê, podendo acaso
evitar-se a medonha carnificina que ella repre-
sentará. No momento presente, não é por
certo ao Japão, victorioso e confiando na
extrema bravura e no alto patriotismo dos seus
soldados, que pertence iniciar quaesquer pro-
postas de paz. Alas a Rússia tem razões de
sobra para começar por seu lado taes propos-
tas, sendo notório que já vão correndo pela
imprensa mundial largos boatos sobre o as-
sumpto. A promessa de Kuropatkine, apre-
goada nos jornaes do Occidente, ante a pro-
phecia de que o exercito japonez seria massa-
crado no continente até ao ultimo soldado e
que elle viria em pessoa, o generalíssimo, impor
em Tokio as duras condições de paz, já ha lon-
gos mezes perdeu o mérito de poder ser invo-
cada como uma esperança. Hoje a Rússia verga
ao peso das suas.successivas derrotas, sem vir
contrabalançal-as a consolação de uma só
3^4
victoria, quer por terra, quer pelo mar ; e não
se affigura verosímil que, depois d'este longo
anno de guerra, as suas tropas da Mandchuria
ou a sua esquadra do Báltico, esta reforçada
com uma no\'a esquadra que se annuncia em
caminho, sejam capazes de virar a fortuna das
armas em favor de colosso europeu.
Parece, pois, simplesmente lógico que o
colosso tenha de submetter-se á força dos
destinos, embora provisoriamente, e embora
sangre o seu amor próprio. No emtanto, se é
possível admittir-se que o orgulho nacional,
recusando-se a confessar a derrota, porfie na
lucta inglória, eternisando o contlicto ; e é
facto que os recursos mosco\itas, a enorme
massa humana disponível e ainda a protecção
da rica e poderosa alliada poderão permittir,
quasi por um tempo indefinido, essa precária
teimosia; o que parece agora imminente é
que a effervescencia interna do grande impé-
rio fará calar todos os orgulhos e será a causa
fatal e omnipotente que levará a Rússia a
entrar na via das conciliações e a solicitar por
qualquer forma a cessação das hostilidades.
Relanceie-se o que se vae passando pre-
sentemente dentro das fronteiras da Rússia.
Pouco se pôde ajuizar dos factos; o estranho
não logra aprofundar de\'idamente o intimo
36:
niysterio social d'essc immenso povo. Maà
vulcão adivinha-se, ou antes, já se rnanifest
A multidão, até agora passivamente soffredora,
solta o primeiro grito de revolta contra o des-
potismo que a opprime; patenteia desordena-
damente o seu furor, já pelo tumulto, já pela
l^^rcvjy já pelo assassínio, sem que as descargas
da tropa ou os horrores do suppiicio a ame-
drontem e detenham nos seus Ímpetos. Kstá
encetada a lucta, o povo não pôde recuar já.
O governo, na defeza das instituições ameaça-
das, terá de fii'mar á pressa um tratado de
paz com o Japão, de modo a poder concentrar
na tragedia interna todos os seus cuidados e
todos os seus elementos de força.
E' assim que a iniciativa das propostas de
paz pelo lado da Rússia se annuncia não só
coisa possível, mas até provável ; e nMsto
coníiam muitos d'aquelles que se interessam
pela tranquillidade do Extremo-Oriente. Se
depois o governo russo disporá ^ de meios
sufricientes para sustentar a revolta interna,
agora incipiente, isto é uma outra questão.
Quem poderá ser propheta? Pode muito bem
acontecer que esta guerra tremenda, provocada
unicamente pela má c orgulhosa politica dos
governantes do império slavo, duplamente
lhes seja funesta, como um gladio de dois
òàô
gumes, trazendo-lhes por um lado a derrota e
o desprestigio, por outro lado a guerra civil,
a anarchia, o desmoronamento final das insti-
tuições do Estado. O povo, o povo immenso,
esse não succumbirá. Mas que poderá resultar
do fermento, da convulsão da nação em massa,
onde tantos elementos ethnicos pullulam, ani-
mados por differentes credos, por difíerentes
aspirações, por agora synthetisadas na doce
palavra — Liberdade r . . . A tempestade extre-
mo-oriental apresenta-se hoje cruel ; mas,
quanto mais carrancudo e ameaçador se vae
mostrando o horizonte dos lados do Occidente,
a despeito de todos os hymnos de paz e de
confraternisação, com que se vão deleitando
os ouvidos dos simples ! . . .
— Como é sabido, em 1542 (data mais
recommendada), os Portuguezes descobriram
o Japão ao mundo Occidental. Em seguida, os
nossos missionários e os nossos commarcian-
tes começaram a frequentar o paiz do Sol
Nascente; foram bem recebidos, a religião
christã e o nesfocio floresceram maravilhosa-
mente. Após, graves complicações se desen-
cadearam, como igualmente é notório: os
europeus residentes, que eram então principal-
mente portuguezes e hespanhoes, começaram
soffrendo cruéis perseguições; fechando-se
36;
•emfim o Japão, em 1624, a toda a Christan-
dade.
No entretanto a influencia portugueza no
império nipponico, durante o período que vai
de 1542 a 1624, foi muito notável; e o acon-
tecimento representa uma época importante
na historia do Japão. Acode, pois, ao espirito
dos curiosos perguntar quaes são os vestigios,
reconheciveis até hoje, que deixámos aqui da
nossa passagem ; e é esta pergunta que vae
servir de thema á curta palestra que se segue.
Tal passagem teve a má fortuna de se
tornar profundamente odiosa aos nipponicos,
que julgaram adivinhar na nossa invasão paci-
fica, e não sem razão, disfarçados designios
de cobiça, inconfessados intentos contra as
suas instituiç'~)es politicas e mesmo contra a
sua independência; e os nipponicos de então
eram já tão patriotas como os de hoje. Isto,
por si só, explica a mingua de documentos
que ficaram sobre o assumpto, pois não se
ôentia desejo de guardal-os, antes de des-
truil-os, no intuito de apagar da memoria do
povo, tanto quanto possível, uma éra classifi-
cada de nefasta e de perigosa.
Não restam, que me conste, monumentos,
na rigorosa significação da palavra, da nossa
estada no Japão ; as igrejas, que tanto abun-
363
davam, foram arrazadas até aos alicerces. Dos
utensílios de uso, alguns, certamente, foram
modificados pela nossa apparição e hoje affe-
ctam formas copiadas dos objectos que trou-
xemos ; mas nada se sabe ao certo, e a inves-
tigação n'este campo seria difficilima. Cite-se
apenas, não como uma modificação, mas como
uma apropriação, a Taiiegashíma, actualmente
conservada como simples artigo de muzeu, e
que é uma espingarda ou arcabuz copiado
dos modelos portuguezes trazidos aqui por
Mendes Pinto e seus companheiros, como resa
a Peregríiiaçào. Tanegashima é uma ilha perto
de Kagoshima, onde pela primeira vez desem-
barcaram os nossos aventureiros; e o nome
da ilha passou ás armas de fogo, as quaes —
entenda-se as do primitivo systema — conser-
vam até hoje a mesma denominação.
Existem velhos documentos escriptos e
velhos desenhos, contemporâneos dos primei-
ros portuguezes que visitaram o Japão e a
-elles referentes, mas mal explorados pelos
eruditos e parece que bastante confusos em
■alguns pontos. Afora isto, dois interessantíssi-
mos factos, de ordem sentimental e social,
servem de eloquente testemunho da nossa
influencia n'estas paragens. Um, foi a desco-
berta enternecedora de famílias christãs japo-
3^9
nezas, feita pelos primeiros missionários fran-
cezes que chegaram ao Japão logo após os
tratados com as nações occidentaes; familias
que conservaram, durante cerca de dois sé-
culos e meio, a crença ensinada pelos missio-
nários portuguezes aos seus remotos ascen-
dentes, guardada na sombra do mysterio e
inteiramente ignorada das auctoridades, que
julgavam haver sido extirpado da alma nacio-
nal de todo e para sempre o culto de Jesus.
O outro facto, sobre o qual vou agora
apresentar algumas breves considerações, é o
da introducção na língua japoneza de muitos
termos portuguezes, pela maior parte ainda
de uso corrente; claro está que taes termos
soffreram modificações varias, derivadas prin-
cipalmente da accommodação que se lhes deu
ao s^ilabario indígena, não muito rico em
tonalidade?.
Convém notar que a lingua japoneza se
apresentava, certamente, muito escassa de
locuções no seu primitivo estado, como lingua
que era de um povo insular, de conhecimentos
rudimentares e fechado inteiramente ás civilisa-
ções estranhas. De ter o Japão entrado depois
em contacto com a China, resultou o facto
natural de se ir enriquecendo subsequente-
mente a sua lini^uaoem com. muitos termos
3/0
chinezes de objectos e de noções que os nippo-
nicos viam e recebiam pela primeira vez; e
pela mesma razão o biiddhismo da China lhes
trouxe mais tarde bastantes palavras de origem
sanskrita. O mesmo aconteceu depois e suc-
cessivamente com os portuguezes, com os
hespanhoes e com os hollandezes ; e mais
recentemente, e até aos dias que vão correndo,
com os inglezes, com os francezes, com os
allemães e com outros ; de sorte que a imita-
ção das coisas, tão apregoada como uma
característica dos nipponicos, começou tornan-
do-se effectiva na sua arte de fallar.
Pelo que em particular respeita á lingua
portugueza, cujos termos necessariamente se
impunham aos japonezes para designarem
muitos objectos europeus que elles viam pela
primeira vez nas mãos dos nossos missionários
e mercadores, ha ainda a circumstancia, que
lhe facilita a adopção, de apresentar ella, muito
harmoniosa pelo abundante emprego de vo-
gaes, uma certa similhança phonetica com a
lingua japoneza, que igualmente ou ainda
mais recorre ao uso das vogaes. A similhança
vae mais longe : quasi todas as nossas syllabas
simples, formadas por uma consoante e uma
vogal, téem correspondentes na lingua japo-
neza; e a reciproca é igualmente verdadeira.
3/1
Resalta dMsto até a curiosa e por vezes engra-
çada coincidência de muitas palavras portu-
guezas serem exactainente idênticas, pelo som,
a outras tantas palavras japonezas, embora de
mui diFferente significação; seguem alguns
exemplos, tirados ao acaso : — mono, mono
(objecto, coisa) ; santo, saitto (o conjunto das
três cidades principaes do Japão); cara, kai'a
(casca, concha) ; cana, kanà (caracteres do
syllabario japonez) ; mata, viata (bifurcação de
um caminho) ; mato, 7nato (alvo) ; cura, kitra
(armazém) ; cama, kama (marmita) ; macaco,
viakkakiL (quadrado perfeito).
Voltando agora ao interessante facto de
muitas palavras japonezas serem derivadas do
portuguez, vou citar algumas d'estas palavras
de uso mais corrente. Convém notar que a
religião christã, ensinada pelos nossos missio-
nários, concorreu com uma grande cópia de
locuções, algumas mesmo latinas; os modernos
missionários francezes téem-se esforçado em
substituir taes locuções por termos genuina-
mente japonezes, julgando isto mais útil aos
seus fins, o que não vale a pena discutir n'este
logar. Seguem as palavras de origem portu-
gueza : — kontasii (contas, rosário) ; kirisiito
(Christo) ; anima (anima, alma) ; bateren (padre) ;
battcra (batel) ; kompctô (confeito) ; tabako (ta-
372
baço) ; bidoro (vidro) ; hoppii (copo) ; kappa
(capa) ; manto (manto) ; manteru (manter) ;
sabcru (sabre) ; katana (catana, ou é o termo
portuguez que deriva do japonez ?) ; /^/2 (pão;)
sJiabon (sabão); tempiira (espécie de fritura,
provavelmente de tempero ; o termo também
é usado pelos negros de Moçambique) ; kantta
(carta de jogar) ; etc.
Para concluir este ligeiro estudo, é interes-
sante indicar agora algumas palavras portu-
guezas, que devem ser consideradas de origem
nipponica. Biombo vem certamente do termo
japonez bíôbii^ e o objecto é do puro estylo
japonez. Em Macau chama-se caía a um mos-
quiteiro, palavra que deve provir de kciya^
termo japonez com idêntica significação. Bonzo^
que é a palavra corrente entre nós para desi-
gnar um sacerdote buddhista, vem de bòzu^
com a mesma significação. Chá poderia vir da
China, porque os chinezes do sul dizem cliá;
mas 03 japonezes também assim dizem: e in-
ciino-me mais para esta ultima origem, porque
nós dizemos chávena (chicara), e os japo-
nezes dizem chawan^ para indicar o mesmo
objecto.
Fiquemos por aqui, para que não me cha-
mem massador. . . ou sábio, que vem a ser a
mesma coisa.
i
373
— Estamos em pleno inverno, pois, como
é sabido, o mez de fevereiro é o mais rigoroso
d'esta quadra. O thermometro desce quasi
diariamente a zero e ainda mais abaixo, aqui
na região central, tida pela mais suave. Cahem
frequentes nevadas. Mas estamos também em
plena florescência das ameixieiras, sendo, por
vezes, difficil, em excursão pelos campos, dis-
tinguir se tal arvore se ostenta coberta de neve
ou coberta de flores. ... Até parece mentira^
mas não é. N'este paiz, o inverno não logra
transmittir á paizagem o tom de desolação e
de angustia que leva a outras terras ; as arv^o-
res e os arbustos de folhagem persistente, tão
abundantes, retéem os seus verdes caiiciosos;
florescem camélias e florescem ameixieiras ; se
os vértices dos montes branquejam de quando
em quando, ou se sobre a superfície gelada
dos charcos passeiam serenamente os corvos,
registemos estes incidentes como novas gra-
ciosidades para o quadro sempre risonho em
que o olhar se pousa, acrescentando que para
a neve inventaram os japonezes a phrase —
Yiikími-sàké — que quer dizer — beber vinho
ao ver cahir a neve — que nos revela, sem
outros commentarios, as habituaes reuniões
de amigos, motivadas sob o pretexto de se ir
contemplar tão gentilissimo phenomeno, sobre-
3/4
tudo frequente nos mezes de janeiro e feve-
reiro.
Paliando de ameixieiras, recorda-me de
outras ar\'ores, do salgueiro entre varias, a
que nós chamamos chorão, em cujas hastes,
pendentes já por este tempo, vão assomando
multiplices rebentos verdejantes, o que consti-
tue um dos primeiros avisos da prima\'era
próxima. E, a propósito de salgueiros, acode-
me á lembrança a historia commovente de um
d'elles, o qual, segundo opiniões dignas de
credito, vegetou em solo japonez ha algumas
centenas de annos.
Eu vou contar-lhes a historia. Antes, porém,
devo dizer-lhes que os salgueiros não gozam
de boa fama n'esta terra, attribuindo-se-lhes
sobras de feitiços e o vezo de servirem de
abriofo a almas do outro mundo. Em não raras
occasiões se tem visto, quando se abate um
salgueiro, cahirem gottas de sangue do seu
tronco.
Ora, havia em Kioto um daíniyo, senhor
feudal ; e contiguo ao castello, no terreno des-
tinado á gente de armas, um salgueiro cres-
cera no jardim de certo guerreiro, ou samurai.
Este, que embirrava com a arvore, sem duvida
pelas razões que apresentei, resolveu des-
truil-a; mas um dos companheiros acudiu,
I
3/5
reprovando-Ihe a intenção, dizendo que o sal-
gueiro tinha uma alma e seria acto criminoso
fazel-a padecer; e vae d'ahi, transplantou-o
para o seu próprio jardim. A arvore prosperou
no novo solo e sentiu-se sensibilisada por tão
carinhosa acção; e, em recompensa, o seu
espirito tomou a forma de uma mulher muito
formosa, que veio a ser a esposa do seu deli-
cado protector. Um filhinho foi o fructo d'esta
pathetica união. Annos depois, o daimyô, que
andava empenhado na reparação de um templo,
mandou abater a arvore para servir-se da
madeira. Então a esposa confessou ao samurai
a sua estranha origem, e em choros foi dizendo
que tinha de desapparecer, de recolher á arvore
e de morrer com ella. O daíniyô x\^o se com-
moveu a rogos, o salgueiro foi cortado e ba-
queou no chão. Foi então coisa digna de
vêr-se que dez homens, vinte homens, cem
homens, trezentos homens não conseguiram
removel-o. N'esta altura, o pequenito, segu-
rando n'um raminho do salgueiro, balbuciou
íilialmente: — « Venha. . .» — e, seguindo em
frente, a arvore acompanhou-o até ao portal
do templo, onde então os carpinteiros, serra e
machado em punho, a desfizeram em pedaços.
XXIX
15 de março de 1905
Batalha de Mukdcn — DivagaçÒes; o mais vehcmentc
desejo de todo o japonez — ■ Informações curiosas
de um correspondente do Times — O amor pantheis-
ta dos japonezes pela crcaçíto.
||EPois da data da minha ultima carta, im-
portantissimos acontecimentos se passa-
ram e se estão passando n'este momento no
campo das hostilidades, ainda incompletamente
conhecidos, mas aos quaes devo referi r-me
n'este logar, embora as informações telegra-
phicas da imprensa europeia largamente se en-
carreguem de instruir sobre o succedido os
leitores d' este jornal.
A batalha prevista, ao sul de Mukden,
desencadeou-se e ainda não está terminada.
Por mais de quatro mezes os dois exércitos
inimigos fortificaram-se nas suas posições, um
em frente do outro, quasi em contacto, rece-
bendo largos reforços, viveres, munições, estu-
dando planos de estratégia para um tremendo
combate decisivo, e dando apenas signal de si,
377
de quando em quando, por ligeiros encontros
de forças avançadas, sem importância real.
Por fim Kuropatkine tomou a offensiva,
em que alguns adivinhavam a rjva-iche, pois
não era certamente o tempo que havia faltado
ao famoso general para bem dispor dos seus
recursos. Outros, os que contavam com mais
uma victoria nipponica, anhelavam pjrque
Oyama envolvesse totalmente o inimigo, obri-
gando-o a uma capitulação geral, que impo-
zesse assim um termo ao sangrento conflicto.
No entretanto esta ultima h^-pothese não
passava de pura phantasia, porque, se não
me illudem os escassos conhecimentos milita-
res de que disponho, por maior que S3ja a
fortuna das armas, não cabe no humano
poder o arcar e obrigar a render-se, em pleno
campo, um exercito enorme, que occupa uma
linha de frente de cerca de 130 milhas de ex-
tensão ; a massa das forças de Kuropatkine,
que excedia 300:000 homens, só poderia ren-
der-se por capitulação na hypothese impro-
vável de guarnecer uma praça de guerra,
que fosse cercada e sabiamente atacada pelo
inimigo.
Mas vamos aos factos. Travada a batalha,
que ha-de ser considerada na historia uma
das primeiras, a derrota de Kuropatkine foi
m
.completa, mesmo mais do que uma derrota,
— uma tremenda catastrophe. As forças japo-
nezas responderam ao ataque com uma fúria
maravilhosa, forçando os russos a retirarem
precipitadamente, impondo-lhes perdas terrí-
veis, em gente, em material, em viveres, em
tudo. Após, differentes columnas nipponicas
romperam as fileiras inimigas, atacando-as
pela rectaguarda, cortando-lhes o único meio
de salvação, que era fugir, expondo-as ao
horror de dois fogos. Déram-se assim encon-
tros destacados, do mais mortífero efteito,
ficando os russos inteiramente á mercê dos
japonezes, que fizeram basta colheita de pri-
sioneiros. Taes encontros ainda proseguem,
bem como furiosas correrias em perseguição
dos grupos desbaratados d'aquillo que se cha-
mou o exercito de Kuropatkine, e que já não
merece agora este nome. Quanto a Mukden,
a cidade sagrada, que contém os maravilhosos
monumentos tumulares dos ascendentes do
actual soberano da China, consta que os
japonezes, por especial deferência pelo visinho
império, escorraçaram d'ella os russos sem
occupal-a militarmente, gentileza que dev^e ter
sido muito grata a todos os celestes.
As perdas dos russos, incluindo provavel-
mente os prisioneiros, são calculadas em
379
20o:ooo homens ; as perdas japonezas orçam
talvez pela quarta parte. Os russos deixaram
no campo 500 canhões e uma enorme quan-
tidade de munições de guerra, viveres e di-
versos materiaes.
Kuropatkine pede ao czar a demissão do
seu alto commando.
— Paz? A imprensa occupa-se muito do
assumpto, mas não sei que credito se lhe
deva attribuir. E facto que só dentro de uns
seis mezes os russos poderão conseguir, se
conseguirem, reconstituir na Mandchuria um
exercito egual em força ao que acaba de ser
aniquilado. Mas, durante este tempo, os nip-
ponicos victoriosos occuparão Tieling, avan-
çarão até ás alturas de Karbin, cortarão a
linha férrea, isolarão \nadivostok; pro\'avel-
mente, a agitação interna, no coração da
Rússia, accentuar-se-ha mais effervescente ; e,
o que é peor, os banqueiros francezes já
annunciam que fecharam os seus cofres á
attribulada alliada. . .
Muito se pôde discorrer sobre a matéria;
mas reservo para a correspondência próxima
algumas outras considerações.
— O conflicto extremo-oriental está com-
movendo profundamente a sensibilidade dos
espectadores. Quando pensamos . na já bem
38p
longa duração d'esta guerra sangrenta ; quando
imaginamos a triste resenha de milhares e mi-
lhares de vidas -^ de russos e japonezes, — sa-
crificadas no campo de batalha, pelo chuveiro
da metralha, pelas doenças — a nossa alma
chora, alanceada.
No entretanto, não sei bem se nos é licito
votar idêntico sentimento de piedade a todos
os mortos, quer se trate dos russos, quer dos
japonezes. Não resta duvida que esses miseros
súbditos do czar, nossos irmãos pela raça,
que baquearam ou vão baquear, feridos pelas
balas nipponicas, ou dizimados pelas epide-
mias ou pelos rigores do clima mandchu, mere-
cem incondicionalmente a nossa inteira com-
miseração ; pobres miijiks arrancados, á força,
á paz da sua aldeia, ao conforto do albergue,
ao aninho da família, e empurrados para a
Sibéria, para a Coréa, para a Mandchuria,
para Porto Arthur, a fim de se arrebanharem
em legião e irem travar dura contenda com
imi inimigo improvisado, na defeza de uma
causa, cuja lógica subtil excede os limites da
sua comprehensão.
j\Ias merecem acaso as victimas nipponicas
o mesmo grau de piedade que os russos nos
merecem ? Parece-me que não. Uma tal duvida,
que acode ao meu espirito, constitue assumpto
38i
p grave; e, visto que tive a sinceridade de apon-
tal-a, devo explical-a, o que passo a fazer.
A' minha concepção offerecem-se duas
r únicas maneiras de interpretar os individuos
pelas suas relações com a nação: ou como
unidades distinctas, como entidades indepen-
dentes, embora reunidas por interesses com-
muns, e então, a nação, o Es Lado, pôde bem
chamar-se uma confederação de individuos;
ou, pela segunda maneira, os individuos não
são mais do que simples parcellas de uma só
unidade — o Estado — não são mais do que
porções de argamassa (permitta-se-me a ex-
pressão) constitutiva do edifício nacional.
D'aqui dois systemas philosophicos de senti-
mentalidade social.
As sociedades modernas (refiro-me aos
• Estados civilisados da Europa e da America)
tendem cada vez mais a perfilhar a primeira
interpretação. O homem emancipa-se dia a dia
de um certo numero de concepções ideaes,
nas quaes se incluem a dedicação incondicio-
nal á pátria, o sacrifício espontâneo pelo sym-
bolo da bandeira. O homem vae comprehen-
dendo que o seu primeiro dever é ser feliz, e
para isto trabalha; os seus outros sentimen-
tos passam ao segundo plano; o respeito pelas
instituições, pelos outros homens, o patriotis-
382
mo, são para elle, mais do que outra coisa,
simples estatutos de collectividade, que elle
admitte e a que se submette, mas, principal-
mente, porque n^elles encontra a garantia dos
seus próprios interesses. Não o condemnemos;
antes devemos reconhecer n'este estado de
alma o pleno desabrochar da consciência
humana, segura de si mesma, da sua força,
dos seus recursos ; o rei dos animaes fabrica
por suas mãos o próprio throno, e é lógico
que assim seja. Poderemos apenas commentar
que a felicidade é raro fructo terreal, e que o
homem, quando despindo-se assim de ideaes,
quando repetindo, para seu uso, a phrase
que outr'ora foi proferida por um rei — «O
Estado sou eu», — resvala facilmente para os
desregramentos do egoismo e de egotismo,
isola-se, contempla-se não raras vezes no de-
serto do seu En^ descamba na nostalgia cru-
ciante. . . e não é feliz.
Ora, os japonezes, por um duplo pheno-
meno histórico e psychologico, fácil de admittir,
encontram-se n'este momento n'um estado
medieval e a mais com a tremenda responsa-
bilidade moral de defenderem perante o universo
inteiro o prestigio de uma raça; d'isto resulta
o elles não acompanharem a evolução positi-
vista da época, grupando-se, levados pelo
I
383
raciocinio e ainda mais pelo instincto, do lado
do segundo systema social que apresentei. Na
alma japoneza, os individuos não se contam;
não são mais do que a pedra em pedaços e a
argamassa agglutinante do feiticeiro edifício
social que S3 chama o Dai-Nippon, o Grande
Japão ! . . .
Esta concepção basta para explicar, a meu
vêr, todos os actos de coragem inaudita, de
patriotismo sem freio, de desprendimento, da
vida, de resignação perante o soffrimento, de
que já tem dado tantas provas este po\'o, no
conílicto que se trava.
O que quer cada soldado ou cada mari-
nheiro? alcançar um nome distincto, ou uma
medalha para o peito, ou mais um galão para
o braço ? O que quer o po\'0 ? enriquecer-se
com os despojos da guerra, substituir o himono
de algodão pelo himono d-e seda? Nada dMsto:
soldados, marinheiros, povo, luctam com um
único intuito — o engrandecimento da pátria
nipponica, o prestigio da bandeira do Sol
Nascente.
Em taes circumstancias do sentimento,
morrer que importa? ou melhor: morrer,
quando a morte possa trazer beneficio á nação,
é uma gloria, é uma felicidade invejável. Valo
mesmo mais, talvez, morrer: os que \'oltarem
384
á pátria, após a paz, serão os ignorados, os
anonymos; aquelles que hão-de persistir na
memoria de todos, serão os mortos, aos qiiaes
se elevarão, nas cidades, nas aldeias, em toda
a parte, monumentos commemorativos, visita-
dos pela multidão em épocas memoráveis do
anno. Morrer pela sua pátria, morrer pelo seu
imperador, é o mais vehemente desejo de todo
o japonez.
E' assim que pensa o povo. Para documen-
tar, com todo o desejável rigor, este ligeiro
estudo sobre a feição patriótica da alma japo-
neza, e passar depois ás conclusões que tenho
em mente, precisaria inquirir dos mortos, dos
cabidos no campo de batalba, o. que elles pen-
sam sobre o assumpto ; mas elles não poderão
responder-me, os pobres mortos ! . . . E'-me
licito apenas colher as ultimas impressões dos
moribundos e relancear também a sentimen-
talidade das famílias, dos parentes próximos
d'aquelles que se vão; isto basta, a meu vêr,
para se ter uma opinião approximada dos
defuntos, em matéria que tanto lhes respeita.
Nos campos da Mandchuria, os soldados alve-
jados cahem por terra bradando — «Banzai!»,
viva a pátria ! — com o seu ultimo suspiro.
Um moribundo occupa os últimos momentos
de vida que lhe restam, humedecendo o dedo
385
indicador no próprio sangue e esboçando a
tinta vermelha uma scena de batalha. Sabe-se
como, a bordo dos transportes inutilisados
pelos russos, um grande numero de soldados
preferiu o suicídio ao captiveiro. As famílias
não pranteiam os mortos; gloriticam-se ape-
nas do seu nome ; as mães exhortam os filhi-
tos a seguirem o exemplo de seus pães, sacri-
íicando-se pela pátria. Ao general Noghi, o
briosíssimo commandante do exercito japonez,
que cerca\'a Porto Arthur, morrem dois filhos,
os únicos que tinha, pelejando pelo seu impe-
rador; e orgulha-se d'ísto, resignado e calmo.
N'aquelle mesmo Porto Arthur, os primeiros
soldados avançavam para os fortes com a
certeza de morrerem ; mas felizes, por saberem
que seus corpos serviriam de degraus aos seus
camaradas para subirem acima das muralhas
e irem implantar nas culminancias uma ban-
deira japoneza ! . . .
Ora, pois, a nossa piedade platónica, de
occidentaes, deve temer-se, julgo, de dar largas
á sua rhetorica dolorida perante o phenomeno
sentimental que nos está offerecendo o povo
inteiro japonez. Morre um japonez, attingido
por uma granada moscovita.^ morrem mil?
morrem dez mil ? Crede que são dez mil felizes,
na epopeia patiia. O patriotismo no Japão
17
386
alcança a craveira do hcroismo; ser-se heroe
é quasi ser-se um Deus, com direito a invo-
cação n'um templo, com direito á adoração
da turba dos fieis. Não nos assiste justiça
bastante para virmos discutir se esta eterni-
dade gloriosa não compensa a meia dúzia de
annos banaes descontados de surpreza á exis-
tência. Limitemo-nos a juntarmo-nos á turba,
tiremos os nossos chapéus, respeitosos, silen-
ciosos, abysmados, em face do mysterio psy-
chologico d'esta gente. . .
— Como imagino que o Times londrino
não seja frequentemente consultado pelos
meus leitores, julgo intei-essante referir-me
aqui a um recente artigo apparecido n'aquella
folha, devido á penna do seu correspondente
em Pekin, o conhecido dr. Morrison.
O correspondente, que teve a fortuna de
visitar Porto Arthur logo após a capitulação,
refere-se circumstanciadamente á grande quan-
tidade de provisões e de munições de guerra
encontradas na praça e também ao facto do
avultado numero de soldados russos válidos
e nas melhores disposições de saúde, em força
de maiB de 25:000 homens, quando Stoessel
declarava que, nos últimos dias do cerco, não
podia contar senão com uns 5:000 homens
capazes de combater. Conclue por estas pala-
387
^fvTas: — <í Todas as informações concordam
em condemnar o general Stoessel, o qual, se
não tivesse sido reprimido pela resolução do
general Kondratchenko, já houvera capitulado
algumas semanas antes. Todas as informações
concordam em condemnar a maioria dos offi-
^ ciaes russos, os quaes mais se arreceavam da
mingua de certos confortos do que da falta
de munições. Todas as informações enaltecem
a coragem da gente da fileira, em muitos e
muitos casos vergonhosamente commandada
pelos seus officiaes. Todas as informações
concordam em que nenhum homem, que haja
exercido um commando responsável, menos
merece o titulo de heroe do que o general
Stoessel.
« Aquelles que foram testemunhas das con-
dições da fortaleza, comparando a evidencia
dos seus olhos com a assombrosa falta de
verdade do general Stoessel, sentem a sua
jSympathia transformar-se em irrisão, conven-
idos de que a historia não recorda mais des-
onrosa rendição. Tivesse o Kaiser esperado
elos relatórios do addido militar allemão e de
\ outros addidos, e, certamente não houvera
conferido cio general Stoessel a ordem Foiír
k Méríte.'^
E' muito cedo ainda para attribuirmos o
388
seu justo valor ás opiniões pessoaes, mesmo
as mais honestas, mas porventura apaixona-
das, sobre as peripécias do drama extremo-
oriental. Registremos apenas a exposição do
dr. Morrison. E ajuntarei, por conta própria,
constar-me que muitos dos officiaes russos
dos mais graduados, hoje prisioneiros no Ja-
pão, fazem largas acusações ao seu antigo
chefe, attribuindo a Kondratchenko, desastro-
samente alcançado por uma granada japoneza,
alguns dias antes da queda da praça, toda a
Gfloriosa iniciativa da defeza. Ouanto aos sol-
dados russos válidos, que todos julgávamos
em Ínfimo numero e escavacados pela fome e
outras angustias, vi-os eu, via-os toda a gente,
passarem, caminho das casernas de detenção,
atafulhando as carruagens do caminho de
ferro, e isto durante semanas inteiras e em
frequentes comboios diários ; e guapos, e ro-
sados, e cheios de vida e de forças, amorosa-
mente embevecidos na paizagem nipponica,
debruçando-se das portinholas, para enviarem,
com um gesto, beijos ás mtismnés que iam
pelas ruas. . . Pobres rapagões, esquecendo já
rancores e abençoando a creação : do que elles
tinham fome, os patifes. . . era de beijos! . . .
— O amor pantheista dos japonezes pela
ci"eação accusa-se por mil formas, revela-se por
389
mil preferencias; vindo a propósito fallar da
synipathia que elles votam a muitos insectos e
outros animaes inferiores, que em geral não
merecem dos occidentaes a minima estima, an-
tes lhes produzem muitas vezes aversão e asco.
Já uma tal sympathia se denuncia inten-
samente na arte, na pintura e na esculptura,
por exemplo. Ninguém melhor do que os nip-
ponicos sabe desenhar um rato, ou um peixe,
ou uma tartaruga, ou uma mosca, ou uma
aranha, ou um \erme. Mas esta perfeição não
está só, nem está tanto, na reproducção hei
do animal; está principalmente em saber res-
pigar elegâncias de contornos, delicadezas de
attitudes, como que expressões de sentimen-
talidade, em cada um d'estes brutos, á pri-
meira vista tão avessos á analyse psychologica
do observador attento. De sorte que o pincel
de um artista pôde offerecer-nos, supponha-
mos no desenho de uma lagarta, intenções
sentimentaes que nos commovam e enterne-
çam, taes como as provocadas por uma tela
realista da escola hollandeza ou religiosa da
escola italiana. Isto confirma a primeira parte
de um conceito, que corre mundo entre euro-
peus : — «Os japonezes são grandes nas pe-
quenas coisas e pequenos nas grandes coisas»;
— não \'indo agora para aqui apreciar a se-
390
gunda parte, de mais a mais susceptível de
larga controvérsia, nos tempos históricos. que
vão correndo.
Mas voltemos aos bichos. Fora do domi-
nio da arte c entrando na realidade da vida,
é interessante registar que ha no Japão sitios
afamados para ir ouvir o coaxar das rãs;
outros sitios para ir vèr os lumes vagabundos
dos pyrilampos cruzando-se no espaço, du-
rante a noite escura; outros ainda para ir
ouvir cantar — se o termo é admissivel —
certos insectos, uns similhando os nossos
grillos, outros de espécies differentes. E a
todos estes sitios concorre o povo em multi-
dão, como para uma festa, em determinadas
épocas do anno. E ainda poderiamos fallar
dos innumeros tanques, dos innumeros lagos,
em Tokio, em Nasa, em Kobe, por toda a
parte, em volta dos quaes os passeantes se
demoram a todas as horas, contemplando os
peixes vermelhos, ou os kágados, familiarisa-
dos com a turba, concorrendo em cardumes
ao chamamento, quando se batem as palmas,
e aos quaes se lançam vários acepipes, com-
prados ao vendilhão de artigo, muito de pro-
pósito acampado cerca, com o estendal da
sua industria.
A rã, por si só, exigiria um grosso volume,
391
se eu pretendesse occupar-me aqiii detida-
mente do papel que ella representa na arte e
em geral na sentimentalidade nipponica. O
japonez vota, effectivamente, especial sympa-
thia a este bicho. Porque ? Sem poder respon-
der cabalmente á interrogação, é certo que o
seu canto acalentador, ouvido em noites esti-
vaes, na suggestiva serenidade dos campos,
quando nos achamos na visinhança das ex-
tensas várzeas de arroz ou cerca das ribeiras
ou das lagoas, entra como causa predomi-
nante da estima de que ella goza. Ha sobre-
tudo uma espécie, a kojíka, que é particular-
mente apreciada.
E' popular o uso de ter em casa gentis
gaiolinhas de rede de arame, assentando n'um
prato cheio de agua, onde se dispõem plantas
do rio e pequeninos rochedos, de modo a re-
produzirem em miniatura uma paizagem aquá-
tica ; dentro da gaiola, algumas kajíka deleitam
os ouvintes com o seu papear gracioso. Ha
um poeta em Osaka (conta Lafcadio Hearn),
que guarda no tanque do seu jardim centena-
res de rãs; em certas épocas, convida os
amigos para um banquete, impondo a cada
um o preceito de compor um pequeno poema,
uta, respeitante aos seus batrachios. Mas não
é só n'este cenáculo das letras que as rãs
392
téem inspirado poetas: ha mais de mil e cem
annos que figuram nos cancioneiros nippo-
nicos.
Um outro motivo que concorre em fazei*
beneficiar a rã da estima publica é sem duvida
a sua própria apparencia. Rastejando no solo,
com as pernas curvadas, o corpo pendente
para a frente, as duas mãos espalmadas no
terreno, a postura da rã lembra muito a de
uma rapariga sobre a esteira domestica, no
acto de saudar respeitosamente o hospede
recemvindo. D' isto provêm a gentil cantiga,
devida a um antigo poeta, cuja traducção é
pouco mais ou menos como segue: — «Com
as mãos pousadas no chão, reverentemente
vaes repetindo o teu poema, oh rã ! . . . »
Que direi dos insectos ? Em noites calmo-
sas de junho, em certos logares, como na
aldeia de Ishiyama, que avisinha de uma
pittoresca ribeira, a turba acode para gozar
dó espectáculo dos pyrilampos, que alli enxa-
meiam, e para colhel-os, perseguindo-os no
voo. A scena é esplendida, na negridão da
noite, crivada de myriades de lumes de inse-
ctos; devassando-se ao clarão fugidio das
lanternas, os barcos cheios de caçadores ale-
gres, onde abundam as gtieishas, deliciosas,
primorosamente ataviadas nas suas sedas
393
multicores. Os japonezes comprazem-se em
conservar em casa, em graciosas gaiolinhas,
feitas de gaze, enxames de vagalumes, colhi-
dos nos logares onde abundam ou comprados
nos mercados.
Outros insectos ha, queridos pelo agradá-
vel ruido dos seus elytros, merecendo por este
dom assiduas peregrinações aos sitios onde
mais se encontram e melhor se ouvem, cari-
nhos amorosos em conserval-os em gaiolas
junto do lar, e dos poetas um interminável
cancioneiro em honra dos seus encantos.
N'um artigo sobre o assumpto, que tenho
presente, encontro mencionadas não menos
de doze variedades de insectos e os seus res-
pectivos preços correntes no mercado de
Tokio, como o hírlgtcirlsu, o kanctatahi, o
matsumiishi, etc, alguns d'elles muito de
perto aparentados com os grillos e gafanhotos
dos campos do nosso Portugal.
Com respeito aos peixes de ornamento, a
que nós vulgarmente ç\\2í\Vl?í\VíO^ peixes verme-
lhos, posto que nem todos sejam vermelhos,
ha no Japão, como na China, innumeras va-
riedades, algumas da mais exótica belleza.
Koriyama, povoação visinha da cidade de
Nasa, é o principal centro de creação de taes
peixes, que alli representam importante ramo
394
de commercio. No estio, quasi que não haverá
casa japoneza onde se não encontre o clássico
globo de vidro cheio de agua, com dois ou
três peixinhos vermelhos, os quaes também
povoam o lago minúsculo, de rigor em qual-
quer jardim nipponico.
Peixes, rãs, ^ kágados, insectos vários,
vêem-se profusamente á \-enda nos innume-
ros mercados, como que feiras permanentes,
que abundam no Japão ; e também nos baza-
res, que se estabelecem junto aos templos,
por occasião das grandes festas annuaes,
aonde a multidão afflue. Todos estes bichos,
em concorrência com alguns pássaros de
particular estima, como o ugiãsn (o rouxinol
japonez), o viejiro (interessante insectivoro),
e outros, concorrem para alegrar a casa, pelo
enlevo da sua apparencia ou do seu canto,
trazendo a nota da vida ao aspecto das coi-
sas, já sabiamente dispostas para nos chama-
rem ao amor da natureza e das doces mara-
vilhas da creação.
XXX
23 de março de 1905
^Ommentarjos sobre a íçuerra; a situarão dos bellige-
rantcs — O chrysanthemo repudiado da cidade de
Himeji; historia curiosa a propósito — Tm punhado
de exotismos japonczes.
|^()M.MENTA-si: ainda a recente batalha de
^"^^ Mukden, que engrinalda de louros o nome
do marechal 0\'ama, que eleva a um alto
prestigio a pericia militar e a rutilante cora-
gem do exercito nipponico e que, associando-se
ás glorias navaes da esquadra do almirante
Togo, colloca o império nipponico na primeira
linha das grandes potencias do mundo inteiro.
No entretanto, o exercito v-encedor não repousa
á sombra das suas victorias, comprehendendo
que o momento é soberanamente asado para
avançar para o norte, para perseguir os restos
desmoralisados c fatigados do exercito de Ku-
ropatkine, agora já sem Kuropatkine, que reco-
lheu precipitadamente á pátria, vergando ao
peso do seu terrível insuccesso, agora sob o
396
cominando de um novo chefe, o quasi septua-
genário Linievitch, ainda surpreso e indeciso
dos planos a pôr em prática perante tão deses-
perada crise.
São pouco minuciosas as noticias que nos
chegam do theatro da guerra, mas sabe-se já
que no dia 19 as forças de Oyama occuparam
Kayuan, uma importante cidade situada na
linha férrea e distante de Tieling cerca de
vinte ou trinta milhas, o que prova a celeri-
dade com que vão avançando os japonezes.
E' opinião corrente, não só aqui, mas em
toda a Europa e em toda a America, conforme
nos diz o telegrapho, que é chegado para a
Rússia o momento de confessar-se vencida e
de solicitar a paz por qualquer forma, sujei-
tando-se, fatalmente, ás condições, por certo
pouco lisonjeiras, que téem de ser-lhe impos-
tas; isto para evdtar maior catastrophe. Antes
que um novo exercito moscovita possa apre-
sentar-se na Mandchuria e fazer face ao
inimigo, os nipponicos terão provavelmente
attingido as alturas de Karbin, que tomarão;
ou, embora se limitem a cortar a linha férrea,
eis a cidade de Vladivostok, que é o único
porto siberiano, isolada, e cahindo em poder
do Japão, cedo ou tarde.
Mas a vinda á Mandchuria de Lim novo
1
i
397
exercito russo, mesmo quando decorridos lon-
gos mezes, é já problema muito duvidoso. A
massa enorme do povo, que se insurge contra
a primeira expedição, a ponto de estar amea-
çando as instituições do Estado, que fará
quando se cuide da segundar Ousará o go-
verno do czar pôr assim em imminente risco o
inteiro machinismo social do império, indo de
encontro á vontade imperiosa da nação em
peso, que rugirá, abrazada em ódio, contra os
seus despóticos dirigentes? E quando ouse;
quando, mais uma vez o chicote, o sabre e a
metralha logrem impor apparente serenidade
ao vulcão humano que estremece ; ha uma
coisa que se exigirá de prompto e largamente^
para formar e expedir o tal novo exercito,
coisa que é a alma de todos os gigantes em-
prehendimentos: — o dinheiro. E fiilta o di-
nheiro : os altos financeiros francezes, que
téem na hei alliada o seu maior credor, já se
esquivam a futuras sangrias; sendo bem elo-
quente a voz da imprensa da grande republica
europeia, [que já aconselha abertamente a paz,
conselho que se deve ter por bom aviso e em
todo o caso significativo de que os cofres dos
Bancos se fecharam. Ora, seria agora excel-
lente ensejo para uma outra potencia quaN
quer se entremetter solicita e captar assim a
398
estima do colosso, em detrimento da França;
mas, como se trata de dinheiro, e de dinheiro
que ficaria mal parado, não ha politica que se
afoite. Em conclusão: a Rússia não deverá
contar com notável auxilio monetário do
mundo financeiro.
Nas sérias condições que apontei, a paz
annuncia-se pro\'avel e próxima, e será a
Rússia que procurará obtel-a sem demora, no
seu próprio interesse, para fugir ao ab3^smo
de mais tremendas humilhações, que se adi\'i-
nham, tanto quanto se pôde adivinhar o por-
vir, n'esta delicadíssima ordeni de assumptos.
A julgar, porém, pelas informações da im-
prensa mundial, que, seja dito, nem sempre
representam o espelho da verdade, não é pela
paz que se inclinam n'este momento os espí-
ritos dos dirigentes de S. Petersburgo, antes
se declaram resolvidos a continuar sem tréguas
o sangrento conflicto, que tão mal lhes vae
sahindo.
Eu explico esse estado sentimental do
governo russo, pela reluctancia que experi-
menta em apressar o facto irremediável da
paz, nas tristes circumstancias presentes.
Emquanto os acontecimentos prosigam como
proseguem, succedendo-se as derrotas ás der-
rotas, as desillusões ás desillusões, persiste
399
sempre a seductora esperança — -com o au-
xilio do orgulho nacional — de que a fortuna
das armas mude um dia de rumo, dé que um
factor qualquer propicio entre em jogo, de que
emfim a Rússia esmague o seu tenaz e inte-
merato adversário, sacuda de si a poeira do
opprobrio, reconquiste o seu nome de colosso
invencível, prosiga ufanosa e temida na sua
obra de expansão e de absorpção, n'esta parte
do mundo que tanto a enfeitiça. A paz, pelo
contrario, a paz humilhante, apaga n'um mi-
nuto todas as esperanças de um immediato
desafogo, deixando apenas, como platónica
consolação, a ideia da revanche\ e sabe-se co-
mo a historia ensina, mesmo por factos proxi-
mamente anteriores (exemplo a França e a
AUemanha), que a rcvanche se desfaz muitas
vezes, em fumo, pela successão dos annos. A
indecisão, perante a alternativa da dòr que
opprime e do corte radical, tem na vida come-
sinha de cada um o seu eloquente parallelo,
que serve para vir explicar cabalmente o phe-
nomeno: a Rússia é agora o individuo, a quem
um dente cariado e infecto incommoda e per-
turba; mas que não se decide a ir ao dentista,
que lhe arranque a excrescência inútil, pelo
horror do caso e na esperança chimerica de
que cesse a dòr e volte a saúde á gengiva
400
tumefacta. E\ possível pois, que o conflicto
se prolongue até o ultimo extremo de desen-
gano e desespero.
Acceitar a paz affrontosa das mãos de um
povo asiático, confessar o homem amarello
superior em seus recursos a um poderosíssimo
Estado europeu. . . que vergonha! . . . Assim
pensam os russos, infelizmente bastante tarde
para evitarem o peso do desaire. Assim pen-
sam elles, e assim pensam muitos outros. Ha
dias, dízia-me um hollandez, de esclarecida
educação, que elle, que via a chusma dos in-
dígenas estacar respeitosa e humilde nas ruas
de Batavia, para deixar passar adiante o euro-
peu que transitava," nunca poderia admittir
complacente a marcha altiva da turba japo-
neza, caminhando de cabeça erguida pela senda
dos seus progressos. E é assim mesmo. Admit-
tia-se o pequenino Japão, offerecendo-nos com
um sorriso os galanteios das suas musumcs, o
exotismo da sua arte mimosa, a doce alegria
das suas paizagens, mas na attitude submissa
de povo de outra cor, inferior, nascido para
nosso regalo, para nosso proveito e para nosso
domínio ; e quando algum nípponíco esque-
cesse inadvertidamente este código que lhe
decretamos, e, não parasse nas ruas de Tokío
ou de Yokohama para nos deixar seguir em
I
I
40I
frente, um bom murro, expedido a tempo da
mão nodosa do homem louro, lhe faria dura-
mente relembrar os seus preceitos de conducta.
E' licito suppòr-se que assim deveria ter pen-
sado o commodoro americano Parr}', quando
com a sua imponente esquadra, em 3 de junho
de 1853, veio bater ás portas do Japão, inti-
mando-o a que as abrisse. Foi assim que pen-
saram aquelles que depois vieram. Mas o pe-
quenino Japão, a principio reluctante, descon-
fiado, timorato, comprehendeu de prompto que
o melhor que tinha a fíizer era seguir resolu-
tamente a civilisação imposta, iniciar-se na
cultura estranha; e tão intelligentemente o
conseguiu, que se transformou, como acaba
de proval-o, n'um grande Japão, cioso da sua
independência, da sua illustração, dos seus
direitos, e oppondo á cubica alheia uma es-
quadra e um exercito valentissimos.
O facto, que só agora se patenteia em
toda a magnitude, assombra toda a gente e
produz fatalmente um profundo desequilíbrio
na politica mundial. Até aqui, o poder dirigente
era para três ou quatro grandes Estados do
mundo occidental, que se entretinham em in-
trigar, em espoliar e em armar-se até aos
dentes para se defenderem uns dos outros ; os
pequenos Estados não contavam, eram o jo-
402
guete dos seus tutores; e as nações exóticas,
da Africa, da America, da Ásia, da Oceania,
eram a pleba ignara, boa simplesmente para
escravisar, ás quaes se iam enviando a pouco
e pouco, á medida das exigências, dois missio-
nários e três metralhadoras, para salvação da
iilma e purificação do corpo.
Surge agora o Japão como potencia de
primeira ordem, reclamando o seu quinhão de
prestigio, impondo-se na região que é desti-
nada a soffrer a influencia da sua acção; e
como que reivindicando o direito do asiático á
liberdade e á integridade do seu solo. O Occi-
dente applaudc, em geral, as glorias recentes:
uma minoria, por sincera admiração e sympa-
thia ; a maioria, porque se apraz na desgraça
do colosso. Mas, por outro lado, a opinião
publica já se irrita: no parlamento francez
falla-se no perigo que ameaça a Indo-China;
no parlamento americano falla-se no perigo
que ameaça as Filippinas ; ha mesmo quem
avance que o enorme incremento, que vae
dar-se á esquadra americana, tem por mira
primordial o pôr em cheque a esquadra japo-
neza. Veremos em breve as actividades officiaes
dos grandes Estados do Occidente concentra-
rem-se no Extremo-Oriente, invejosas e preca-
vidas. A politica internacional vae soffrer um
I
403
tremendo deslocamento. O Japão, sorridente e
sereno, mysterio vi\'0 da psychologia humana,
é bem capaz, não só de impor o respoito á
Rússia, o que já se afigura indiscutível, mas
de afastar de si todas as outras tormentas,
que negrejam agora n'estes horizontes. Ho-
mens, que vos aprazeis, desinteressados de
vós mesmos, no desen\'olvimento do drama
social em que esbracejam os outros homens:
— Olhae para cá !
— Sabeis, por certo, leitores bondosos, que
o chrysanthemo é uma planta genuinamente
japoneza, que os japonezes cultivam com parti-
cular carinho, mercê das suas mara\'ilhosas flo-
res; também na Europa, desde alguns annos,
os nossos jardineiros lhe consagram estima des-
velada. No mez de novembro a florescência
dos chrysanthemos nos jardins imperiaes de
Tokio é sem rival, dizem ; mas, em tal época,
mesmo sem recordar tão alto luxo, é um enlevo
surprehender a gente em cada jardinzinho
modesto, em cidades e aldeias, os verdes tufos
d'estas plantas, recamadas de flores, de mil
formas diversas, de mil tonalidades distinctas.
Parecerá, pois, caso estranho que, sendo o
chrysanthemo tão popular n'este paiz, haja um
sitio no Japão onde, asseguram-me, ninguém
se occupa d'elle, ninguém o cultiva, por ser
404
tido alli de mau agouro. O sitio é uma parte
da gentil cidade de Himeji, na província de
Harima, distante de Kobe umas duas horas de
viagem, em caminho de ferro. Vou dar a de-
vida explicação d'este mysterio.
Ha longos tempos, havia na cidade de
Himeji um nobre senhor, que tinha no seu
serviço uma joven e formosa serviçal, de dis-
tincta familia e de nome 0-kiku-san {luku
quer dizer — chrysanthemo); de modo que
a moça de quem fallo chamava-se a senhora
Chrysanthemo. O seu mister consistia na
guarda das relíquias do museu, da baixella da
casa, das preciosidades raras, contando-se no
numero d'ellas dez pratos de ouro, valiosíssi-
mos. Ora, consta que um rapaz, também com
certo emprego no palácio, nutriu desejos atre-
vidos com respeito á bella 0-kiku-san ; e, como
encontrasse honesta resistência, teve artes de
fazer desapparecer um dos taes pratos, no vil
intuito de vingar-se da rapariga; esta, após
baldadas buscas e haver contado e recontado
aquelles pratos, mil vezes, dez mil vezes, sem
que podésse contar além dos nove, e prevendo
a justa cólera do amo, sem ao menos poder
prov^ar sua innocencia, atirou-se a um poço e
afogou-se.
Kis toda a historia, simples e sentida. Con-
405
vém agora acrescentar que o espirito da des-
venturada moça paira no poço, dando signal
de si pela alta noite, desde então até hoje;
porque o poço ainda existe; vê-o quem quer,
com os seus bordos de pedra, que se elevam
um pouco sobre o solo, carcomidos e esver-
deados de musgos seculares, com a cova pro-
funda, negra, mysteriosa, e lá em baixo a agua
dormente. Quando, pela noite velha, alguém
se aproxima d'este poço, começa aperceben-
do-se de um monótono murmúrio, interminá-
vel, que vem de dentro d'elle. Depois, se tem
coragem de acercar-se, ouve palavras mui dis-
tinctas. E' a pobre 0-Kiku-san que conta
eternamente os pratos de ouro: — «Um, dois,
três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove. . .
aaaai ! . . . » — a contagem termina por um
grito doloroso, quando, após o nono, falta
o decimo prato. E recomeça: — «Um, dois,
três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove. . .
aaaai ! . . . »
0-Kiku-san encarnou-se n\im pequenino
insecto, ao qual se chamou 0-kiku-mushi (a
mosca 0-kiku) e que só em Himeji é encon-
trado; ás vezes, nas feiras de povoações dis-
tantes, exhibe-se, a tanto por cabeça, um
exemplar da espécie. F/ um bichinho de formas
graciosas, com longos pôllos similhando cabel-
4o6
los desgrenhados, dando ideia de uma musumc
em angustia. . .
Assim fica plenamente explicado porque
na cidade de Himeji, especialmente no bairro
que avisinha do poço referido, por excepção
se tem quisilia em cultivar os chrysanthemos,
que recordam o outro Chrysanthemo. . .
— Para terminar, por hoje, eis um pu-
nhado de exotismos japonezes, a falta de mais
agradável passatempo:
I — O papel de escrever, leve, ílexivel, em
\'ez de ser em cadernos, é em rolo. O pincel,
como é sabido, desenha os caracteres da di-
reita para a esquerda e de alto a baixo; e a
mão exercitada vae então desenrolando o papel,
á medida que. a escripta o reclama. Depois,
rasga-se, arranca-se do rolo a parte que con-
stitue a carta, dobra-se em muitas voltas e
introduz-se no competente sobrescripto. E',
pois, curioso registar que entre namorados,
por exemplo, que são aqui, como em toda
a parte, grandes rabiscadores de ideias, as
missivas que se trocam não enchem quatro
folhas, ou \\m caderno, ou dois cadernos,
como entre occidentaes ; occupam uma folha
unicamente, mas de dois metros, mas de dez
metros de extensão. . . A nmsiuné, erguida e
pensativa com a faixa de papel que acabou de
407
percorrer com a vista, desenrolando-se das
mãos e cahindo até aos pés, ou fluctuando á
brisa, é assumpto corriqueiro de desenhos e
gravuras.
II — Na Europa exige a polidez que ao
entrar em uma casa a gente tire o seu chapéu.
No Japão ao entrar em casa japoneza, não é
de rigor este preceito; mas, como as cousas
aqui são ao revés, é de dexer a gente tirar o
seu calçado, deixando á porta os butes, ou os
sapatos, ou as gujta, ou os zorl. A regra
alcança os europeus, claramente ; nem se po-
deria admittir que a lama da rua, fosse como
fosse transportada, viesse macular a limpis-
sima esteira do aposento. Quantas vezes, em
occasiões ceremoniosas, nos temos encontrado
^ — eu e nós todos que japonízamos por estes
lados, — vestidos de bella calça preta, de dis-
tincta casaca preta, lustrosa camisa alvissima,
correcta gravata branca. . . e em meias! . . .
Acrescentarei que ha no Japão a industria de
ratoneiros de calçado, os quaes espreitam pelas
portas e se safam com o que encontram, dei-
xado pelos visitantes; ainda ha pouco, um ca-
valheiro francez meu conhecido, victima d'este
malefício, te\'e de recolher a casa sem sapatos,
valendo-lhe um huruma, o commodo carrinho
indigena, que encontrou facilmente e o dispen-
4o8
sou de ir a pé, ou melhor, no caso presente,
de ir. . . a pés.
III — Ah, estes ratoneiros japonezes. . . qué
artes, que feitiços ! . . . Querem os senhores
saber como elles roubam as gucta, mesmo dos
pés das raparigas ? As gtieta, convém dizer,
são umas grossas solas de madeira, sustidas
ligeiramente aos pés por uma presilha de seda
ou de velludo. O finório levou comsigo, bem
escondido, um par de gueta velhas, sem valor.
Junta-se á multidão, n'um arraial, n'uma festa
qualquer, onde os attractiv^os desnorteiem um
tanto as cabecitas. E vae então, abaixa-se,
não sei como, e com um alfinete pica ao de
leve o pé nú da pobre moça. EUa, assustada,
julgando que uma vespa mordeu, levanta o
pé sem gjLcta, relanceia-o, nada vé, enfia-o de
novo na giicta deixada sobre o solo e prose-
gue. . . mas já leva comsigo a gueta velha.
Repete-se a operação, mas iroutro pé ; o re-
sultado é idêntico; e eis, mui simplesmente
como, com pouco trabalho mas com supina
astúcia, o patife ganhou em dous ou três mi-
nutos uns cinco ou seis tostões.
IV — E' notório, pelo menos entre aquelles
que teem vivido no Japão, que o japonez, que
a japoneza, sentem, amam, compenetram-se
da creação, pelos olhos claramente, mas tam-
4
409
bem pela epiderme, pelos poros, pela alma, por
toda a sua delicadíssima affectibilidade ; vibram
com ella. Sem querer amesquinhar-lhes, nem
de leve, os dotes intellectuaes, que tão ruti-
lantes se mostram. p<')de bem comparar-se
cada japonez ou cada japoneza a uma planta,
a um ser vegetal qualquer, porque é o que
podemos conceber mais visivelmente sensível
ás variações meteorológicas do meio. Este
estado de deliciosa servidão — digamos assim,
— ao ambiente, traduz-se em todos os instan-
tes pela phrase, entrada na categoria de cum-
primento, que o nipponico não deixa nunca
de acrescentar aos bons-dias e á mesura que
dirige á gente das suas relações, nos encon-
tros habituaes. A phrase, segundo as circum-
stancias, é do teor seguinte : — <<^ Que lindo
tempo ! » — ou — « Que enorme calor ! >> — ou
— « Que grande frio ! >> — ou — <^ Que furioso
\endaval ! ^> — ou — « Oue \'alente chu\'a ! » —
O chinez também tem o seu estribilho; mas,
mais positivo e \i vendo essencialmente pela
barriga, dirige aos amigos que encontra, o in-
variável cumprimento : — « Oh ! já hoje comeu
arroz ? . . . ^>
V — Os gatos, no Japão, são, em geral,
desprovidos de cauda, ou antes, a cauda limi-
ta-se a um simples coto, mais ou menos ru-
is
410
dimentar, por \'ezes tortuoso, isto em conse-
quência da defeituosa disposição das vértebras ;
na China, \allia a verdade, também estes bi-
chos apresentam um exotismo similhante.
Além da citada disformidade, os gatos japo-
nezes são pequenos, infezados, de feio pêllo,
não attingindo jamais belleza igual á dos seus
irmãos do Occidente e ainda menos compará-
veis aos seus vasinhos de Siam, aos quaes
bem cabe o epitheto dos mais gentis gatos do
universo. A' parte estas misérias exteriores, o
gato nipponico em nada differe, moralmente,
dos seus parentes distantes : caracter de supina
independência, bohemio de telhados, ladrão do
que encontra a geito na cosinha, caçador
emérito de ratos e pardaes ; e, com especial
referencia á fêmea, exemplo enternecedor de
solicitude maternal, no cuidar da joven prole.
Em abono d'esta ultima virtude, poderia agora
referir sobejas provas, se o louvor da própria
familia não fosse acção classificada de immo-
desta : fallaria da minha gata, do poema senti-
mental dos seus desvelos, que dispensa n'este
momento a quatro gatinhos que lhe perten-
cem. . . e mais a um cachorrito, que lhe im-
pingi, por achar-se orphão de mãe.
FIM
índice
b
ÍNDICE
Pag.
Se eu podesse dizer v
l
2 de março de 1904
Patriotismo, amor e paixão, que justilicam as
maiores audácias — A politica da Rússia na
presente guerra — Os japonezes senhores do
mar — Explica-sc a razSo que assiste ao Japào
em luctar pela sua preponderância no Extremo-
Oriente — O Japão em festa, ao vêr a partida
das tropas para a guerra — As estampas guer-
reiras — Necessidade e conveniência da repre-
sentação da marinha portugueza nas aguas
do Extremo-Oriente
li
10 de março de 1904
O Japilo em evidencia — A religião japoneza —
O chamado perigo amarello - A lenda e a
moral do Shintôismo — O culto dos antepas-
-^^
4 1 4 INDICIí
Pag.
sados — Outras seitas religiosas — Contrastes
— O que é o perigo amarello — Outros perigos
— Chimeras dos europeus — Tma carta de
Herbert Spencer 12
111
15 de março de 1904
Os últimos acontecimentos da guerra — Os caval-
leiros bandidos da Mandchuria — Os bombar-
deamentos de Vladivostok e de Porto Arthur
— A esquadra japoneza e o almirante Togo
— Algumas consideraçfíes acerca do dominio
e aspirações russas no Ivxtremo-Oriente — As
tropas japonezas que marcham para a guerra
■ — iMUlHisiasmo japonez — -A propósito de do-
nativos— Diversos.
IV
28 de março de 1904
A acçSo naval japoneza — Considerações — A
acçílo terrestre — Circumstancias que militam
n'esta acção a favor dos japonezes — O pres-
tigio da Rússia — O que esse prestigio deman-
dará para vencer - Os perigos a que o Japão
está exposto — Ou a victoria ou a ruina — O
exercito russo talvez, apesar de tudo, nao
possa esmagar o JapSo — Algumas conside-
rações sobre as origens do povo japonez —
D'onde provém o nome do Japíto
INDICE
\'
5 de abril de 1904
As noticias da guerra — O exercito japonez tal
como é — A comparação da Rússia e do Japão
— A imprensa europeia e as hostilidades —
França, Rússia e Japío — A opinião tVanccza
— A ideia que se deve fazer do povo japonez
— As sympathias que merece ~ Livros a res-
peito do Japão
415
Paíç.
50
VI
26 de abril de 1904
A guerra russo-japoneza-- A perda do <n Petropau-
lowsk » — O almirante russo Makaroft" — As
cerejeiras em Tokio — A imprensa jornalistica
no Japão
58
V 1 1
4 de maio de 1904
A guerra russo-japoneza — A Europa, o Japão e
a China — Considerações — ITltimas noticias
da guerra — Por inar e por terra- — Os solda-
dos japonezes — Os reservistas — Scenas di-
versas— As mulheres japonezas — A virtude
de uma faixa; pontos fatidicos — Criados e
criadas — Traços curiosos do povo japonez .
Ó9
41 6 INDICK
\M 1 1
17 de maio de 1904
As ultimas noticias da guerra; vantagens obtidas
pelos japonezes; peripécias varias — As pagi-
nas da historia japoneza c como técm sido
apreciadas — Força naval portugueza no Ex-
trcino-Oricnte- X<ítas de viagem . . . . . . <S2
IX
28 de maio de 1904
Dois desastres da marinha japoneza e a esquadra
de \'ladivostok — As operações na peninsula
de Liaotung — O discurso do snr, Doumer; a
sua declaração relativamente á guerra e con-
siderações a propósito — As festas em Tokio
pela passagem gloriosa do rio Yalu .... 94
X
7 de junho de 1904
A guerra — O cerco de Porto Arthur — As perdas
dos japonezes na batalha de South Hill — A
queda prevista de Porto Arthur — O que suc-
cederá depois? — Os futuros reforços da Rús-
sia— O patriotismo e heroicidade dos japone-
zes— Os próprios russos sao os primeiros a
reconhecel-os — As noticias da ultima hora —
Sccnas pueris — Kxpediçào de nove damas
americanas 104
INDICK 417
XI
19 de julho de 1904
A temperatura — A guerra — A Europa e as victo-
rias japonezas — P(3rto Arthur — A importân-
cia da tomada d'esta praça pelos japonuzes-
Os últimos acontecimentos — Algumas phrases
► sobre o Japíío e o povo japonez, escriptas por
notáveis viajantes-- O que disse S. Francisco
Xavier a respeito do Japão — Impressões dos
mk japonczes que tccm visitado a luuopa ... 113
XII
27 de julho de 1904
Maravilhoso espectáculo dado pelo .lapào ao
mundo — A sua evolução industrial e scienti-
fica —Recursos de que o Japão dispfíe para
defender os seus interesses por meio das ar-
mas— O seu prestigio — Haças branca e asiá-
tica— Os progressos do Japão — Causas es-
peciaes a que obedecem esses progressos —
A Rússia — Os acontecimentos da guerra —
kPorto Arthur c Liao-Yang — O apresamento
de navios pelos russos — Esquadra de \'ladi-
vostok — Os mestiços japonezcs * 126
X 1 1 1
10 de agosto de 1904
>s últimos acontecimentos da guerra — .\ esqua-
dra russa de \'Iadivostok — Desastres soffri-
41 8 ÍNDICE
l'íllí.
dos por vários navios mercantes japonezes —
Avultadas perdas materiaes — Como se eftc-
ctua este corso — Porto Arthur — O exercito
russo — Os seus revezes — A guerra acusa já
um grande phenomeno de ordem moral: as
sympathias pela causa japoneza — Portugal e
o Japão — Feições moraes do povo japonez —
A arte e a sensibilidade d'este povo — Surpre-
zas na arte de jardinagem — Km instantâneo. 136
18 de agosto de 1904
A batalha naval de 10 de agosto — Poder marí-
timo da Rússia— -Cruzador portuguez «Ada-
mastor»— Uma das características do feitio
moral dos japonezcs — A China — Relações do
Japào com a Corça e com a China — Portugal
e a Kuropa no Japão 150
31 de agosto de 1904
Porto Arthur — A esquadra russa de Vladivostok
— O cruzador «Rurik» — O desafogo que a
população japoneza sentiu com a destruição
do « Rurík :> — O almirante Kaminura — O
cruzador « Novik » — Ainda a batalha naval
do dia 10 — O navio almirante « Mikasa » —
Togo e a sua popularidade — ÍJao-Yang —
Festas e celebrações — Costumes japonezcs —
O consulado portuguez cm Kobe 162
INI MCI'. 41 9
X V I
27 de setembro de 1904
Os acontecimentos — Liao-Yung; batalha de dez
dias — Os enthusiasmos da Europa pelo Japão;
o seu esfriamento; varias causas — Retirada
dos russos. As chuvas. Porto Arthur. Japío
e Coréa — A emij^raçao chineza por Macau;
um episodiíí 1-4
X \' 1 1
28 de setembro de 1904
As attençries que se prestam hoje ao Japão -Re-
ferencias á geographia do Japào — Vm rosário
de ilhas — As que comprehende o Japío actual
— O paiz japonez occupando o centro de uma
importantissima zona de acti\'idades humanas
— Os principaes systemas de montanhas do
archipelago japonez, os seus rios e lagos
— F*henomenos gcographicos — Considerações
sobre a área do império, clima e população . 187
X \' 1 1 1
19 de outubro de 1904 ^*i
Sobre a guerra: o sentimento da colónia estran-
geira no Japílo; inválidos que vilo chegando;
a situação dos japonezes e russos na Mandchu-
ria; o que se passa cm Porto Arthur; pcrgun-
(*) Por lapso loi indicada no tcxio outra data.
420 ÍNDICE
Pa-,
ta-se qual será o desfecho da guerra; ultimas^
noticias recebidas. — O banho japonez; diva-
gações curiosíssimas a propósito 199
XIX
26 de outubro de 1904
O incidente da esquadra russa do Báltico com os
pescadores inglezcs — 'Xoticias do theatro da
guerra — ('alculos do morticinio havido nos
dois exércitos combatentes — Previsão de no-
vos horrores — Rnthusiasmo pelas victorias
japonezas — Morte de Lafcadio Hearn — A
emigração japoneza transformada em trafico
de escravatura — Ausência de cruzadores por-
tuguezes nos portos do Japão — Compatriotas
que nos têm visitado 214
XX
10 de novembro de 1904
O anniversario do imperador; algumas divaga-
ções sobre a figura d'este — Noticias da guerra;
a defeza de Stoessel e a esquadra do Bál-
tico; opinião de um funccionario japonez —
Vista retrospectiva sobre o inicio das rela-
ções russo-nipponicas; informações curiosas
a tal respeito — Ipauguração da estatua do
marquez de Ito 228
INDICK 421
Pag.
XXI
23 de novembro de 1904
As surprezas da guerra- -O nome de Togo; coi-
sas interessantes que respeitam a este arrojado
marinheiro: a sua origem, a sua lista de ser-
viços, a sua physionomia. — As rubras c mo-
miji ^ do outomno 243
X X l í
12 de dezembro de 1904
Calmaria de noticias — A situação dos dois belli-
gerantes — Qual será o resultado do novo c
tremendo encontro que se espera? — Porto
Arthur — A esquadra russa do Báltico — A
sympathia mundial a favor do Japão — Con-
siderações e explicações — Ultimas noticias
relativas á guerra 258
X X 1 1 1
22 de dezembro de 1904
Ao findar do anno — Noticias da guerra — Dese-
jos de paz; considerações sobre o assumpto
— Estudo acerca do nipponico; a sua pintura,
esculptura, musica, theatro, poesia, archite-
ctura religiosa — Ultimas reflexões: a «uta- •
japoneza e a quadra portugueza ^74
422 INDICH
X X 1 \'
5 de janeiro de 1905
Anuo novo japonez — Apreciaçío a um artigo
sobre o Japíto — Raças superiores e raças
inferiores — O perigo amare/lo c o flagello
bratico — Divagações sobre o que do desper-
tar da Ásia resultará para a Europa e para o
mundo — Episódios curiosos da campanha —
Os cossacos e a cavallaria japoneza — Porto
Arthur rcndeu-sel 297
X X \'
18 de janeiro de 1905
A queda de l^orto Arthur -- Efteito moral da victo-
ria dos japonezes — hicohercncias de Stocsscl
— Imprevidencias dos com mandantes da es-
quadra russa — Subsidios para a historia —
As duas reh'giòes que mais prosperam no
Japão; complicações externas do culto dos
mortos; uma recordação emocionante — A pro-
pósito do livro portuguez O Japão por
dentro. — /-*. .S'. ; o embarque de Stoessel e
uma divagação commovedora 314
XXVI
2 de fevereiro de 1905
Evoluções da guerra-^ Os tumultos na Rússia —
Previsões sobre a duração que poderá ter a
INDICK 423
Pag.
futura paz — O que poderia tonial-a esta\-el
— Uma heroina — Maravilhosa viagem que fez
um coelho branco — Os provérbios japonczes
— Concurso imperial de poesia 332
X X \' 1 1
15 de fevereiro de 1905
A tomada de Porto Arthur; algumas divagaçòcs
a propósito — Data memorável; principaes fa-
ctos da guerra — O commercio do Japiío no
anno findo; firmas portuguezas em I\obe . . 347
X X \' 1 1 1
27 de fevereiro de 1905
Noticias da guerra — O descobrimento do Japão
pelos Portuguezes; a passagem d'estes pelo
império nipponico — \'estigios linguisticos —
O inverno no Império do Sol Nascente; con-
ta-sc a propósito a historia de um salgueiro . 362
X X I X
15 de março de 1905
Batalha de Mukden — Divagações; o mais vehe-
mente desejo de todo o japonez — Informações
curiosas de um correspondente do Times — ,
O amor pantheista dos japonezes pela cteaçito. 370
424
INDICIÍ
XXX àiMBW^^^
23 de março de 1905 ^^^t
("ominentarios sobre a guerra; a situação dos
bclligcrantes -O chrysanthemo repudiado da
cidade de Himeji; historia curiosa a propósito
— Tm punhado do cxotistnos japonezcs . . 3^5
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