Google
This is a digital copy of a book that was prcscrvod for gcncrations on library shclvcs bcforc it was carcfully scannod by Google as part of a projcct
to make the world's books discoverablc online.
It has survived long enough for the copyright to expire and the book to enter the public domain. A public domain book is one that was never subject
to copyright or whose legal copyright term has expired. Whether a book is in the public domain may vary country to country. Public domain books
are our gateways to the past, representing a wealth of history, cultuie and knowledge that's often difficult to discover.
Marks, notations and other maiginalia present in the original volume will appear in this file - a reminder of this book's long journcy from the
publisher to a library and finally to you.
Usage guidelines
Google is proud to partner with libraries to digitize public domain materiais and make them widely accessible. Public domain books belong to the
public and we are merely their custodians. Nevertheless, this work is expensive, so in order to keep providing this resource, we have taken steps to
prcvcnt abuse by commercial parties, including placing lechnical restrictions on automated querying.
We also ask that you:
+ Make non-commercial use of the files We designed Google Book Search for use by individuais, and we request that you use these files for
personal, non-commercial purposes.
+ Refrainfivm automated querying Do nol send automated queries of any sort to Google's system: If you are conducting research on machinc
translation, optical character recognition or other áreas where access to a laige amount of text is helpful, please contact us. We encouragc the
use of public domain materiais for these purposes and may be able to help.
+ Maintain attributionTht GoogXt "watermark" you see on each file is essential for informingpcoplcabout this projcct and hclping them find
additional materiais through Google Book Search. Please do not remove it.
+ Keep it legal Whatever your use, remember that you are lesponsible for ensuring that what you are doing is legal. Do not assume that just
because we believe a book is in the public domain for users in the United States, that the work is also in the public domain for users in other
countiies. Whether a book is still in copyright varies from country to country, and we can'l offer guidance on whether any specific use of
any specific book is allowed. Please do not assume that a book's appearance in Google Book Search mcans it can bc used in any manner
anywhere in the world. Copyright infringement liabili^ can be quite severe.
About Google Book Search
Googlc's mission is to organize the world's information and to make it univcrsally accessible and uscful. Google Book Search hclps rcadcrs
discover the world's books while hclping authors and publishers rcach ncw audicnccs. You can search through the full icxi of this book on the web
at |http: //books. google .com/l
Google
Esta é uma cópia digital de um livro que foi preservado por gerações em prateleiras de bibliotecas até ser cuidadosamente digitalizado
pelo Google, como parte de um projeto que visa disponibilizar livros do mundo todo na Internet.
O livro sobreviveu tempo suficiente para que os direitos autorais expirassem e ele se tornasse então parte do domínio público. Um livro
de domínio público é aquele que nunca esteve sujeito a direitos autorais ou cujos direitos autorais expiraram. A condição de domínio
público de um livro pode variar de país para país. Os livros de domínio público são as nossas portas de acesso ao passado e representam
uma grande riqueza histórica, cultural e de conhecimentos, normalmente difíceis de serem descobertos.
As marcas, observações e outras notas nas margens do volume original aparecerão neste arquivo um reflexo da longa jornada pela qual
o livro passou: do editor à biblioteca, e finalmente até você.
Diretrizes de uso
O Google se orgulha de realizar parcerias com bibliotecas para digitalizar materiais de domínio púbUco e torná-los amplamente acessíveis.
Os livros de domínio público pertencem ao público, e nós meramente os preservamos. No entanto, esse trabalho é dispendioso; sendo
assim, para continuar a oferecer este recurso, formulamos algumas etapas visando evitar o abuso por partes comerciais, incluindo o
estabelecimento de restrições técnicas nas consultas automatizadas.
Pedimos que você:
• Faça somente uso não comercial dos arquivos.
A Pesquisa de Livros do Google foi projetada p;ira o uso individuíil, e nós solicitamos que você use estes arquivos para fins
pessoais e não comerciais.
• Evite consultas automatizadas.
Não envie consultas automatizadas de qualquer espécie ao sistema do Google. Se você estiver realizando pesquisas sobre tradução
automática, reconhecimento ótico de caracteres ou outras áreas para as quEus o acesso a uma grande quantidade de texto for útil,
entre em contato conosco. Incentivamos o uso de materiais de domínio público para esses fins e talvez possamos ajudar.
• Mantenha a atribuição.
A "marca dágua" que você vê em cada um dos arquivos 6 essencial para informar aa pessoas sobre este projoto c ajudá-las a
encontrar outros materiais através da Pesquisa de Livros do Google. Não a remova.
• Mantenha os padrões legais.
Independentemente do que você usar, tenha em mente que é responsável por garantir que o que está fazendo esteja dentro da lei.
Não presuma que, só porque acreditamos que um livro é de domínio público para os usuários dos Estados Unidos, a obra será de
domínio público para usuários de outros países. A condição dos direitos autorais de um livro varia de país para pais, e nós não
podemos oferecer orientação sobre a permissão ou não de determinado uso de um livro em específico. Lembramos que o fato de
o livro aparecer na Pesquisa de Livros do Google não significa que ele pode ser usado de qualquer maneira em qualquer lugar do
mundo. As consequências pela violação de direitos autorais podem ser graves.
Sobre a Pesquisa de Livros do Google
A missão do Google é organizar as informações de todo o mundo c torná-las úteis e acessíveis. A Pesquisa de Livros do Google ajuda
os leitores a descobrir livros do mundo todo ao m esmo tempo em que ajuda os autores e editores a alcançar novos públicos. Você pode
pesquisar o texto integral deste livro na web, em |http : //books . google . com/|
.^
i-^0^ .
■ r»-
Lijl, !il_l
*^j
* \
* {»
*■ *
y
'^^i - ^ B ^g-»»— !*
timtf
X ^
CHRONICAS DO BIHÉ
• • fc-. ^<
ALEXANDRE MALHEIRO
r,
Chronicas
DoBIHÉ
lUutlradet eom pholoffraphitti e daefihot
JOSÉ LEITE
LISBOA
Ftmlri Jt Ollveln, Soce.
^
WANFORDLIBRARIPÍÍ ^-^
230739
CoarANHU TrraaBAraicA.— Hu do ^ArregUI te Bulio, 11 » SO, Ltoboa
• • • •#• • • ••• •• •» •■••••* ••••• •
A SEU TIO
o Ex,^^ 6r,
^
'í^i^^S^^é^
^^
f^^t^i^
Ofl.
o AUCTOR
FBSFACIO SQ AVCIOS
A apresentaçlo d'este modesto trabalho que hoje vé a
luz da publicidade, inteiramente destituido de vaidosas
pretensSes que a falta de recursos intelleotuaes jamais
me permittiría nutrir, poderá tão somente attribuir se a
uma pura condescendência da minha parte, perante os pe-
didos de alguns dedicados amigos que, na apreciação
apaixonada doestes meus apontamentos do sertão, preten-
deram descobrir valor e interesse que a minha fria refle-
xão, infelizmente, não conseguiria encontrar.
Simples apontamentos são elles que, destituidos de
soiencia e literatura, apenas tomara e colligira a meu modo,
como preenchimento das horas tristes e nostálgicas da vida
sertaneja.
Satisfiz-lhes pois o desejo, para o que poderosamente
contribuiu a bõa vontade e valioso auxilio que tão immere*
cidamente vim encontrar na amabilidade do editor, incum-
bindo-se da publicação do livro. A insufficiencia de quali-
dades iião me inhibiu, comtudo, de reconhecer os defeitos
10
do mea trabalho que, alem de muitos oatros, residem
principalmente na irregularidade e falta de methodo na
ezposiçSo, qne, se egualmente n!o pude embellezar com o
colorido da phrase, revesti ao menos com a pureza da
verdade.
Referencias desagradáveis, abstenho me de fazel-as seja
a quem fôr no meu livro, para n2o dar-lhe a nota triste da
má lingtuij que aliaz a influencia deprimente do clima tanto
desenvolve nas paragens que descrevo. Escripto este livro
na sua quasi totalidade em terras do Bihé, d'onde era en-
viado como que em folhetins para a familia, n&o seria cer-
tamente a intriga africana de que lançaria mão para
assumpto das minhas chronicas.
Tenho, comtudo, mau grado meu, escripto um volume-
sinho n'essa orientação, que talvez muita gente supponha
ser a que dou ao actual. Nlo é. Essa publicação reservo-a
eu para o momento em que, porventura, se lhe depare
a necessária opportunidade.
Utilidade não sei se o meu livro a terá. N'elle, pelo menos,
procuro dar uma ideia exacta da região que me propuz
descrever, assim como das condiçSes de vida ali do euro-
peu, e especialmente do commandante militar, para que
se ajuize verdadeiramente dos trabalhos e inclemências
experimentados por uns e outros — não raro, por cá, bem
dura e injustamente apreciados !
Da descripção minuciosa dos costumes do gentio e suas
leis, que de momento impossivel se toma modificar, po-
derá também conduir-se a impraticabilidade dos nossos
11
regulamentos e mais disposigSes, no seio de uma sociedade
que infelizmente se encontra ainda no mais degradante
estado de civilisação.
O Bihé d'hoje, posto que a seu respeito pouco se tenha
escripto, nSo é terra ácêrca de que a minha phantasia
podesse impunemente architectar quaesquer inverosímeis
historias com que preenchesse as paginas d 'este livro e
amenisasse a sua leitura.
E' grande já o numero de europeus que n'esta região
se acha estabelecido, representando semelhante capricho
de imaginaçSo um verdadeiro attentado contra o seu va-
lioso testemunho. Apesar d'isto, n'estes últimos tempos,
a febre de apreciaçSes tão inexactas como desencontradas
acerca do nosso sertão de Benguella sobre que, apenas com
verdade, se conhece o que disseram os nossos exploradores,
tem levado a opinião publica a um estado de desorien-
tação, incontestavelmente bem pouco proveitoso para os
interesses políticos e materíaes do paiz.
Sem verdade nem patriotismo que os inspire, apenas
obedecem taes escriptos, salvo raríssimas excepçSes, a um
ridículo sentimento de vaidade, no qual ordinariamente
se prima em despertar sensaçSes violentas, i custa de phan-
tasticas narrativas, para que a immensidade do sertão
fornece um ínexgotavel assumpto.
Seja pois a veracidade das suas doutrinas, o único ti-
tulo de recommendação para o meu livro ; e que lhe sirva,
também, de escudo contra as justas apreciaçSes da forma
e da linguagem.
12
E' ii'esta eonvioçio que lhe dou pablioidade, confiado
demais a mais na benevolência dos leitores, para quem a
apresentaçSo d'este modesto trabalho nunca poderia re-
presentar a satisfaçSo de uma vaidade.
CHRONICAS DO BIHÉ
No litoral de Angola. — A cidade de Bengiiella. — O palácio do
governo. — Hospitalidade do coinniorcio europeu. — Prepara •
tivos de viagem. — Chegada dofl carregadores. — A minha par-
tida para o Bihé.
A leitura dos relatórios das viagens emprehendidas
atravez de Africa pelos nossos arrojados exploradores, cons-
tituiu sempre para mim objecto de incomparável inte-
resse despertado pelas curiosas descripçSes n'elies feitas
das longínquas paragens que quasi se nos aiSgura não
existirem, e que, na minha qualidade de militar, facii me
seria ir apreciar de perto.
O primeiro passo para tal fim dei-o, quando em outu-
bro de 1900 embarcava para Angola como ajudante de
campo do governador geral d'aquella província, desem-
barcando na cidade de Loanda em 23 d'e8te mesmo mez.
E' vulgarissimo vermos intitular-se africanista qualquer
individuo que por algum tempo permaneceu n'uma cidade
do litoral de Africa, sendo certo que sobre assumptos do con-
tinente africano poderá com verdade dizer tanto, como
qualquer individuo que de uma obra apenas tenha co-
nhecimento do titulo.
A vida do gentio e excentricidade dos seus costumes,
assim como todas as demais curiosidades do sertSo, nSo
poderiam certamente ser por mim ^iRciadas do mirante
envidraçado do palácio do governo ^ral ; era mister aban-
donar o conforto piincipesco proporcionado por aqnella
espécie de corte de qoe fazia parte, iniciando omii longa
viagem para o interior, em cata de seosaçSes qoe corres-
pondessem is produzidas pela leitura dos livros.
Em fevereiro de 1901, nma portaria provincial propor-
cionava-me o ensejo para realisar nma d'essas interes-
santes viagens, publicando a minha nomeação para o cargo
de capitSo-mór do Bibe, seguindo em principio de março
a bordo d'am dos paquetes da Empreza Nacional para a
cidade de Benguella, onde esperaria carregadores que me
transportassem ao meu destíno.
Dois dias depois desembarcava em Benguella, sendo-me
amavelmente offerecida hospedagem pelo governador do
distrícto, capitSo Teixeira Moutinho, meu patricio e parente,
com que muito me honrei e desde logo acceitei.
As minhas impressSes da cidade de Benguella, poderSo
ser de oifu colhidas da seguinte carta que dirí^ ao sr.
Conselheiro Moacada:
15
J«.°^ ExJ^'' 8r. Conselheiro Governador Omã
£Í8-me finalmente em Benguella onde oheguei no dia 7
depois de ter realisado uma viagem nas melhores condiçSes,
hospedando me em casa do Moutinho que para isso me man-
dou convidar a bordo.
As minhas impressões d'esta terra são deveras agradá-
veis, e, nSo obstante ser esta a residência predilecta das
biliosas, parece que a configuração especial do terreno que
n'este ponto e arredores armou em extensa planicie; a ve-
getação um pouco mais desenvolvida do que ahi e uma
fresca viração quasi constante, attenuando consideravel-
mente o calor próprio doestas regiões, nos faz até certo
ponto esquecer as condições de incontestável insalubridade
do logar, para não pensarmos em mais que não seja pas-
seiar e admirar uma terra aonde vamos pela pnmeira
vez.
Tenho effectivamente realisado alguns passeios com o
Moutinho, geralmente a pé, mas relativamente suaves por
não haver aqui essas ladeiras asphyxiantes provenientes
do accidentado do solo sobre que assenta a cidade de
Loanda.
Em compensação, porém, esta grande planicie coberta
de verdejante relva que tão agradavelmente nos per-
mitte espraiar a vista, acha-se semeada de uma infinidade
de pequenos pântanos em que abundam os malmeque-
res, como grandes manchas amarellas sobre um fundo
verde.
Estas innocentes florinhas de que na Europa os na-
morados tiram muitas vezes um partidão e que aqui
começam a apparecer n'este quadra, são por esta
gente consideradas como precursoras das febres biliosas.
Que desagradável contraste!
16
O paUcáo do Oovenio do diatricto, « ceres de 50 metros
da prau, é am grande chaiet, género de c<»utrDcçSes qne
por Bignal alo é mníto do ^reço de V. Ex.*, aclundo-se
c<KDtDdo muito bem úiuado, aendo bastante elegante, mas
pessiniainente guarnecido de mobília.
N'nm dos meus passeios tive o>icasi2o de observar para
leste, a algumas milhas de distancia, a formidável linha de
montanhas que, prolongando-se de Norte a Sul como um
inexpugnável espaldão, marca verdadeiramente para o via-
jante o inicio de novas sensaçSes e desconhecidos trabalhos.
Gente d'esta terra ponoa ou nenhuma conheço, visto
que sendo o commercio a sua principal occupaçSo, passa os
dias no interior dos «eus estabelecimentos permutando as
soas fazendas com os géneros que as successivss comitivas
lie gentio lhe trazem do interior.
' As ruas sSo bastante espaçosas e muito bem alinhadas,
aolando-se nm estado geral de acceio e limpeza que
â«verM agradun e seriam indispensmveis como garantia da
b6a hygiene tiU> preotas D'e8tas terras doentias, etc, eto.
As diíGonldades de transporte para o interior, originadas
pela absolQta falta de estradas, fez-me permanecer em
Bengn^lla cerca de mez e meio & espera de carregadores
que me levassem para o Bihé.
Darante todo este tempo, de que me restam as mais
gratas recorda^Ses, tive occasiSo de relacionar me com a
maioria dos meus compatriotas ali residentes, qne n'ama
amabilidade inezcedivel me dispensaram finezas como ji-
mais havia recebido e de que sempre me lembrarei com
gratídSo.
Ali fui encontrar alguns bons patricios e amigos, nego-
ciantes da praça, que de prompto me relacionaram com
18
outras pessoas que ao fim de poucos dias passaram a ser
bons amigos como os primeiros, do que me resultava uma
infinidade de convites para almoços e jantares que nos
últimos tempos da minha estada ali me c^oUocavam na
situaçSo de não ter paradeiro certo, assistindo a uma serie
interminável de lautos banquetes, como só o commercio
de Benguela capricha em apresentar.
E' assim o commercio de Benguella para os seus hospe-
des, alguns dos quaes — nSo raro ! — n'uma ingratidão re-
voltante, commentam e criticam depois bem desfavoravel-
mente esta sincera generosidade que, a bem dizer, constitue
o único divertimento que em taes paragens lhes é dado gosar.
Houve tempo que em Benguella e Catumbella não exis-
tia um único hotel ou casa d'hospedes, pela razão inteira-
mente simples de que seria impossível a taes casas adqui-
rir freguezia que as sustentasse.
Para Benguella iam de ordinário individues que se des-
tinavam ao commercio, funccionarios públicos, civis ou
militares e um ou outro explorador.
Os primeiros seguiam desde logo para casa dos seus
patr5es, onde estes, mesmo que não tivessem necessidade
de empregados, os conservavam em sua casa e obsequia-
vam com a sua meza até que podessem offerecer-lhes uma
coUocação. Os outros, ou tinham em Benguella pessoas
conhecidas, ou em breve se relacionavam, por forma a
ser-lhes inteiramente vedada a entrada n'um hotel.
Hoje ha já um magnifico hotel em Benguella.
Nos derradeiros dias de março chegaram finalmente os
carregadores que me haviam de transportar para o inte-
rior. Eram quarenta robustos negros, na sua maior parte
hailundos, que hoje mesmo me não seria tlifBcil reconhecer,
tantas vezes os vi canúuhar a meu lado, sob o peso das
cargas ou do bordão da iypoia em que viajei.
Umft carta com que me obsequiou o meu sympatbico e
respeitável amigo Conselheiro Gomes de Sousa, fez a
mioha apreseotacilo a iim dos gerentes da Companhia Com-
mercial d'ADgola, o commendador Fedro d'Almeida Leal,
que me orientaria sobre os objectos de primeira necessi-
dade de que teria de fornecer-me antes de emprebender a
minha viagem, taes como rancho e fazendas para servirem
20
de moeda na acquisição de certos géneros alimentícios qne
se obtêem pela permuta com o gentio, alem de outras
destinadas á retribuição dos presentes que nos primei-
ros tempos da minha administração me seriam offerecidos
pelos sobbas na occasiio dos seus cumprimentos offi-
ciaes.
Uma outra carta do meu bom amigo Lima, gerente da
mesma companhia em Loanda, egualmente me apresen-
tava a um outro gerente em Benguella, o sympathico
Ignacio Fonseca da Costa, do que me resultou o máximo au-
xilio não só para mim, como para meu irmão que, achando
se ao serviço de uma propriedade agricola em S. Thomé,
me quiz acompanhar para o Bihé, onde se estabeleceu por
sua conta e se conserva ainda.
Preoccupava me sobremaneira a ideia de uma viagem
tão longa, que teria de realisar em typaia n'uma posição
que fatalmente acabaria por incommodar-me horrorosa-
mente, e sendo me proposta a compra de um cavallo de
Ignacio Fonseca, a pagar quando pudesse, não duvidei
em acceital a visto proporcionar-me uma agradável va-
riante na maneira de viajar, e o cavallo a que dei o nome
de Bihé passou desde logo a ser meu.
Os dias decorridos desde a chegada dos carregadores
até ao determinado para a minha partida, passei-os na an-
tiga Ccua Ferramenta assistindo ao empacotamento e dis-
tribuição pelos carregadores dos volumes que me eram
destinados, tendo occasião de admirar a actividade e de-
sembaraço de um tal Carlos, empregado da casa, que em
pouco tempo dispôz na melhor ordem tudo quanto me
dizia respeito. Um ou outro objecto ia lembrando a cada
momento como indispensável para uma multiplicidade de
fins, conseguindo-se finalmente adquirir tudo quanto me
não seria fácil obter no sertão.
Mo dia 3 d'«bril chegou âaalmeute u pu<juete com a
oorrespondenoia qne sdcíoso esperava para realisar a mi-
olia viagem para o Bihé, a qual teve logar n'es9e mesmo
dia, seguindo ás 4 horas da tarde para Catumbella, depois
de, ii'um affectuoso abraço, apresentar as minhas despe-
didas ao £x.'°' governador do distrioto e sua bondoàsúma
22
esposa, a quem agradeci a attenciosa amabilidade com que
me obsequiaram em sua casa.
O trajecto de Benguella a Catumbella effeciuou se em
pouco mais de uma bora, devido ao amável ofiferecimento
do meu amigo Pedro Leal, que mandou pôr ás minbas or-
dens um elegante brék da Companhia Commercial d*Ân-
gola, de que me aproveitei juntamente com meu irmSo e
meu patrício Júlio de Moraes Cardozo, dando-me o sr. Leal
por esta forma mais uma pi ova da sua estima.
Cbegados a Catumbella ás 6 horas, fui hospedar me em
casa do Júlio Cardozo, onde, a instancias suas, passei o
dia immediato. Durante este dia travei relaçSes com um
sertanejo que me foi apresentado e que devia seguir para
o Bihé, onde possuia uma importante fazenda agrícola, e
se fazia acompanhar de mais três outros europeus, um
dos quaes também fazendeiro.
O primeiro, cujas qualidades de caracter me tinham já
sido posta em relevo por diversas pessoas, tomou-se desde
logo para mim deveras sympathico, não só porque a minha
predisposição a seu respeito lhe era já favorável, mas por-
que a primeira impressão foi realmente agradável para mim,
como naturalmente o seria para todo aquelle que, como
eu, apreciasse a singelleza e modéstia das falias e acçSes
de qualquer individuo, qualidades estas que depois tive
ocoasião de ver, com grande distincção e nobreza, soli-
damente aliadas á mais fina educação e decisivo cara-
cter;
José Pinto Baroza, assim se chamava o sympathico ser-
tanejo, havia sido segundo sargento de cavallaria, quali-
dade esta que facilmente se concluiria do enthusiasmo com
que fallava das coisas militares, acceitando por isso com
o maior agrado a proposta que lhe fiz de seguirmos juntos
para o Bihé.
23
Desde logo, pois, ficou assente que a nossa partida de
Catumbella se reaiisaria n'esse mesmo dia ás 1 1 horas da
noite, para evitar a sede que produziria o calor durante
este primeiro dia da nossa viagem, em cujo precurso se
nSo encontra agua, cuja falta é tanto mais para sentir
quanto é certo ser o terreno accidentadissimo, por ter de
atravessar~se a escabrosíssima montanha da òupa.
Durante este interminável dia em que impaciente estive
na Catumbella, e que propriamente marcava o inicio da mi-
nha viagem pelo interior do grande continente africano, mil
pensamentos sinistros passavam como densas nuvens pelo
meu espirito.
Não sou dotado de grande robustez physica, posso mesmo
considerar-me um official incapaz de servir no ultramar,
não obstante a junta de inspecção, no seu superficial exame
medico, me ter dado apto para esse serviço; e a prespe-
ctiva de uma febre violenta ao fim de alguns dias He viagem,
em pleno sertão, sem commodidades de espécie alguma e
na época das chuvas em que os caminhos se transformam
por vezes em verdadeiros rios e as planicies em extensos
lagos, far-me-hia sem duvida fraquejar se não fôra a
decisão de ferro que sempre conheci in«{uebrantavel.
Á's 6 horas da tarde mandou o tio Júlio, como toda a
gente conhece o Júlio Cardozo, em Catumbella, servir o
jantar, para o qual foiam convidadas pessoas das relaçSes
da casa, e que foi, como todos os jantares d'África, uma
interminável refeição, em que não faltou o champigne,
com que o tio Júlio brindou pela felicidade da minha via-
gem, brinde que agradeci, assim como todas as fidalgas
attençSes que me dispensou pelas duas vezes que, a seu
convite, me utilisei da sua casa.
II
Primeira étape. — O acampamento da Supa. — O Bundeanoy — A
Lucinja. — Uma nota desagradável. — O Bocoio e Cubai. —
Olombinga. — Uma noite tempestuosa. — Uma acena de ieao.
— As curvas do Cubai. — Uma arrebita na'Améra.~Um grande
successo. — Bio Balombo.
Á's 11 horas, como baviamos estabelecido, caminbamos
para o sopé do primeiro morro que tinbamos a subir, se-
guidos de varias pessoas que nos iam acompanhar até ao
ponto onde, d^ordinario, costumam realisar se as despedidas.
Depois dos protestos de felicidade de parte a parte e dos
abraços do estylo, iniciámos a pé a subida do monte por
não ser possivel utilisar se a typoia ou cavalgaduras, sem
grave risco de rolarmos para os enormes precipicios, que
como abysmos medonhos se prolongavam constantemente
a nossos pés, caminhando apenas por estreitas faxas de ÕO
centimetros de largura que as continuadas comitivas de
gentio conseguiram abrir com os pés nús nas encostas es-
carpadas da montanha, desde que este começou a enca-
minhar por ali o seu commercio para o litoral.
O luar, que n'esta noite rompeu ás 10 horas, permittiunos
uma viagem livre de desastres, até ao ponto mais elevado
da montanha, onde nos amanheceu, começando então a
poder apreciar-se as curiosidades que nos proporciona o
interior d'Africa.
26
Pouco vi porem n'este dia de extraordinário, nem mesmo
a vegetação que não passava de um rasteiro capim, por
entre o qual rebentava uma arborisaçSo racliitica, dando*
nos este conjuncto o aspecto de extensas searas, por entre
as quaes houvesse crescido grande quantidade de pequenas
amendoeiras.
Perto das 9 horas da manhi começámos a descer para
leste, chegando ás margens do rio Catumbelia, onde se
achava o acampamento (chilambo), que consiste n'uma serie
de barracas (chingues) geralmente de forma cónica, cobertas
de capim e ramagem que sustentam hastes de madeira de
egual comprimento, dispostas circularmente, tendo as ex-
tremidades mais grossas assentes no solo, e convergindo
as outras n'um ponto situado a uma altura de 3 a 4 metros,
onde por meio de forquilhas se seguram e sustentam.
A maior parte dos carregadores, extenuados do cançasso
produzido pela noite perdida e irregularidades do caminho,
chegou um pouco mais tarde ao acompamento, o que atra-
zou bastante a nossa primeira refeiç&o ao ar livre, por
nos ficarem para traz as cargas de rancho indispensável
para a sua confecção.
Era um mixto de fadiga e muita fome o que todos
n'aquelle momento experimentávamos, do que me resultou
uma fraqueza como até então jamais havia sentido.
Quanto daria eu n'aquelle momento supremo por ver es-
tendida deante de mim a meza succulenta e antifastidiosa
do palácio de Loanda, e pelo meu espaçoso e confortável
leito de finissimos lençoes de bretanha de linho 7!
Não se prolongou, felismente, este suplicio que teria aca-
bado por endoidecer-nos, chegando finalmente os carrega*
dores com os volumes desejados. Nova contrariedade, porém,
nos surgiu quando procurámos o cosinheiro que ainda não
apparecera ; esta falta não impediu, comtndo, que a nossa
rffa
27
refeição se preparasse, viato que na bagagem dos meus prá-
ticos conhecimentos, oocnpam um logar importante os as-
sumptos de arte culinária, em que todos os meus compa
nheiros se declararam inteiramente leigos.
N'esta situação, pois, e obedecendo ao imperioso instin
cto de conservação, tendo rapidamente imaginsdu um li-
geiro menu, mandei collocar duas panelias e uma i;hal-
leira respectivamente sobre três fogSes formados cada um
d'elles por três pedras toscas sensivelmente da mesma al-
tura entre as quaes se metlia a lenha, e cujos pontos mais
elevados determinavam o pUno borizoulal que permitiia
snstentar em equilíbrio as caçarolas, sem grande risco,de
se entornarem.
A agna do Catiimbella, demasiadamente turva, apresen-
tara dentro das panelias e chaleiras a côr bastante carre -
gada de uma mistura café com leite ; mas apezar disso a
r«feigSo qae com ella ae preparou, sob a minha direoçSo
38
immediata, por todos foi recebida com extraordinário ap.
petite.
Finda ella restava nos, para a completa reparaçlo das
forças perdidas, o repouso qne durante tantas horas
seguidas nos faltava, mandando armar as camas, onde
passados momentos contra todos os preceitos da hygiene,
adormecíamos profundamente, emquanto que os nossos
pobres estômagos, como os de qualquer giboia, se entre-
tinham digerindo a abundante batelada de conservas varias
e lodo, que momentos antes sofregamente lhes havíamos
introduzido.
Pobres estômagos^ pobres rins e pobres figados ! • • •
O cançasso era de tal natureza que s6 ás 4 horas da
madrugada despegamos do mais reparador dos somnos,
levantando-se cerca das 5 horas aquelle simulacro de bi-
vaque, pois que n'esta primeira étape não approveitamos os
chinguesj dormindo ao ar livre sob uma extensa abobada
de verdura, formada pela densa ramagem de uma infini-
dade de gigantescos sycomoros (incendeiras).
Seguimos por alguns momentos a margem direita do
rio Catumbella, n'uma formosa madrugada de sabbado de
alleluia. As margens doeste rio são lindíssimas e a vegeta-
ção que por vezes lhe torna quasi invisíveis as suas ag^nas
attinge aqui proporçSes deveras colossaes, abundando os
sycomoros, cujo aspecto a distancia nos dá a impressão de
um denso carvalhal de muitos séculos de existência, pro-
proporcionando nos com a sua sombra uma frescura tanto
mais para apreciar, quanto é certo havermos apenas dois
dias antes deixado o calor asphyxiante do litoral.
Completava graciosamente a belleza do loc^l o canto
terno e amoroso de uma infinidade de innocentes rolas, qne
do alto da extensa ramagem do arvoredo, davam ao quadro
um irresistível encanto. No meio d'aqueUa solidão e pai^
tXo formoso quadro pediria um competente idílio, se este
nlo corresae o grave risco de ser perturbado pela visita
inesperada do leSo. Simplesmente adorável I . ■ .
Oontinliando a nossa viagem para leste, tivemos de sii))ir
os contrafortes da Luciuja a que o gentio dá o nome de
Bundeanoy, percorrendo caminhos escrabrosissimos e qtiasi
intransitáveis em typoia e principalmente a cavallo, tendo
mesmo n'alguns pontos sérias difficuldades em passar des
montado o meu cavailo, o Bihé, que por varias vezes quasi
receei escorregasse para qualquer precipicio ou partísse as
30
pernas, por ter de caminhar sobre escorregadias lages, a
todo o momento cortadas em grande declive.
Passados os maiores perigos fomos surprehendidos por
uma chuva torrencial, que nos encharcou por completo.
Á vegetação durante duas horas doeste trajecto, consis-
tia n'uma enorme profusão de arbustos hervaceos, orlando
por forma tal o estreito caminho, que só com grande dií-
iiculdade podia romper-se atravez d'aqiielle colossal e in-
terminável macisso de verdura que a custo deixava passar
a pouca luz que o tempo chuvoso e plúmbeo nos fornecia,
tendo para percorrer aquelle extenso e húmido túnel, de
dobrar me sobre a sella, formando com os braços na minha
frente uma espécie de quilha de navio que desviasse para
os lados as largas folhas das hervas, que, como grandes
caleiros d'agua, me innundavam por completo n'um banho
suffocante que chegou a desesperar me.
Finalmente, por volta das 1 1 horas, cheguei ao alto do
monte T^ucinja, onde pouoo depois parou a chuva, e
acampei novamente, tendo de fazer uma substituição
completa, embora tardia pela demora dos carregadores,
da roupa que levava vestida e que me custou despegar
do corpo.
Este banho não teve, felizmente, consequências de maior,
a não ser para alguns dos meus companheiros um ligeiro
defluxo.
Preparado o rancho que, como sempre, foi recebido com
magnifico appetite, tivemos uma interessante sessão de
tiro ao alvo experimentando eu a minha carabina Manlicher,
com uma serie de 5 tiros que fiz sobre o tronco de um
imbundeiro (?), como experiência de penetração n'esta espécie
de madeira que passa por ser uma das mais rijas, mas nem
por isso deixando de ser vazado o tronco d'esta arvore que
media cerca de 50 centimetros de diâmetro, collocando
assim a perder de vista na espingaardas dos meoa compa-
nheiros.
A atmosphera na Liicinja, a cerca de 60 kilometros do
litoral e oom uma altitude approzim adam ente de 500 me-
tros, tornava-se já extremamente agradável pela sua le>
veza e fres.'iira, perfumada pelo excíntriuo aroma 'las tigres
selvagens <4ue n'aquelle ponto abundavam variadíssimas e
deveras curiosas.
Apezar de as condiçSes hygienícas melhorarem conside-
ravelmente, á medida que nos affastavamos do litoral, um
dos meus companheiros de viagem achoa-se por forma tal
íncommodado, repugnando-lhe a tal ponto os alimentos, em
34
cavado na espessura do bosque é escassamente illuminado
pela frouxa luz do sol, coada atravez da immensidade da
folhagem que por todos os lados me envolvia.
Extraordinariamente curioso !
A fazenda do Bocoio marcava pois uma verdadeira
nuance, cortando agradavelmente a monotonia da nossa j4
bem longa viagem, não podendo resistir á tentação de saltar
da typoia, para poder detidamente apreciar o phantastico
quadro que tão extraordinariamente me impressionava, e
que ia variando de aspecto á medida que nos adiantáva-
mos, N^alguns pontos a estreita vereda que seguiamos
alargava n'uma espécie de pequenas clareiras, verdadeiros
caramanchões naturaes, em que o canto de uma infinidade
de passares de coloridas plumagens era reforçado como se
estivéramos no centro de um grande salão das melhores
condições acústicas.
Na camada superficial do solo, salientavam-se, cobertas
de musgo, robustas e nodosas raizes a que succediam tron-
cos verdadeiramente fabulosos. A estes troncos e seus ra-
mos enroscavam-se, como vigorosas serpentes, crusando-se
no espaço d'umas para outras arvores, como cabos de um
navio, uma enorme profusão de trepadeiras cujos braços^
descommunalmente engrossados pelo decorrer de muitos
séculos, interceptavam por vezes a livre passagem ao via-
jante, que excedesse a altura máxima que poderia attingir
a carga transportada á cabeça do carregador.
Um cavalleiro não poderia impunemente distrahir-se
durante o trajecto de que venho fallando, motivo por que
n'este dia me não utilisei do meu magnífico cavallo em
que viajava.
Ao fim de 40 minutos doeste curioso trajecto, attingia-
mos finalmente a orla do bosque que vinhamos atraves-
sando, sahindo a meia encosta de uma elevada montanha
33
nas a cama de viagem que elle próprio trazia e uma ca-
deira, cujo primor de construcçao se harmonisava com a
caaa a que a .destÍDaram| tendo a deselegancia do feitio e
os preguinhos amarellos (ta^as) com que abundantemente
a guarneceram, a denunciar lhe o desalmado auctor, que
deveria ter sido preto pouco versado na arte de carpin*
teiro.
lofelisménte não podia, em taes paragens, ezigir-se outras
commodidades, e o nosso desditoso companheiro encontra-
ria certamente durante o resto da viagem uma inevitável
morte, causando-nos sensaborias que, por esta formai des-
appareceriam, tanto mais que ainda que o desejasse lhe
seria impossivel proseguir.
Pepois de, com o maior empenho, deixar recommendado
o nosso desditoso viajante ao empregado do fazendeiro, de
quem obtive a promessa de lhe serem dadas melhores accom-
modaçSes, continuámos á hora costumada a nossa viagem
para leste.
Cerca de 300 m. a partir d'este ponto, caminhando
sempre ao longo do Cubai, deparou se-nos uma esguia
abertura, única solução de continuidade, talhada na orla
de um grande bosque, denso e escuro, principalmente
constituido por um macisso de arvores de notáveis propor-
çSes, exhuberantemente creadas pela fertilidade do valle^
cuja ramagem, estendendc-se simultaneamente de uma para
outra margem, se entrelaçava nas suas copas, formando
uma extensa abobada, verde negra, sob a qual o rio se es-
coava em vertiginosa coerente, solitário e triste, por vezes
invisivéi, n'um suave murmúrio quasi imperceptivél.
N'este dia viajava na lypoia. Os machileiros, indifferen-
tes perante taes encantos da Natureza, a breve trecho en>
fiavam commigo pelo matagal, caminhando como que den*
tro de um longo tubo, sinuoso e húmido, caprichosamente
s
f
36
sor o branco que cantava lá dentro, preencheu agradavel-
mente as horas que lhe dedicámos e que por qualquer
forma tinhamos de passar.
N'este acampamento deitámo-nos muito cedo; altas horas
da noite desencadeia-se uma fortíssima trovoada, acompa-
nhada de grossa chuva e relâmpagos, que, atravez da debil
camada de capim, illuminavam com tal intensidade o inte-
rior da nossa tenda, que por vezes nos davam a illusSo
de nos acharmos cercados de chammas.
Como complemento doeste quadro de verdadeiro bello*
horrível, foi-nos denunciado pelos carregadores a visinhança
pouco agradável do leão (hossi) que abunda n'aquelle
sítio, e cujo rugido assustador ouvi distinctamente com oH
meus companheiros, pela primeira e única vez em toda A
minha viagem.
A quem nunca tivesse ouvido o leão, pot certo não faria
mossa um ruido extranho, como seria o produzido por um
boi, gemendo sob a influencia de uma dor, tal era o som
surdo o cadenciado, como a distancia se manifestava a
presença daquelle viajante das trevas, que com verdadeira
curiosidade escutei; gradualmente, porém, e com uma ra-
pidez verdadeiramente prodigiosa, foram reforçados podero-
samente aquelles gemidos, que pareciam ser a custo arran-
cados das profundidades do continente que atravessáva-
mos.
De repente, longe ainda, mas com uma intensidade que
nos arrípiou todo o corpo, sentiu-se um estridente e pro-
longado rugido que correspondeu perfeitamente a ideia que
d*elle tinha antecipadamente formado, e que em nada se
pareceu com o anterior estribilho que, segimdo me foi ex-
plicado pelo gentio, é indicio de quá? o animal vae enl
marcha, parando apenas para soltar roncos verdadeira*
mente ferozes, como o que acabávamos de escutar.
37
Como a chuva tivesse apagado as fogueiras do acampa-
mento, e receiosos de que a presença do cavallo e muares
attraliisse o inesperado visitante, sahimos immediata-
mente de dentro dos chingues, e, armados das nossas esr
pingardas, trepamos para uma accacia d'onde esperávamos
a chegada do feroz animal. A noite porém era tão escura
que impossivel se tornaria vêl-o a dois metros de distan-
cia, e os pobres bucephalos, que se achavam um pouco
affastados, seriam fatahnente devorados sem que lhes po-
dessemos valer.
Resolvemos então fazer uma descarga ao accaso que
pareceu não despertar a attenção do animal, seguindo
no seu estribilho por vezes apenas interrompido com rugi-
dos admiravelmente ferozes. Successivamente foi deixando
de ouvir-se a respeitável voz do temivel rei das selvas, que
por muito tempo os echos dos valles repetiram, no silencio
aterrador d'aquella noite tenebrosa, por entre os compas-
sados ribombos do trovão, com que tão medonhamente se
casava.
A partir de Olombinga para leste, n'uma extensão de
muitos kilometros, o terreno é bastante plano, tendo aqui
o seu inicio a extensa anhara (planície) que se prolonga
para alem de Cahata, importante povoado de que toma o
nome, e ao longo da qual, cm caprichosas curvas, o Cubai
vae preguiçosamente deslisando, n'um emaranhado de lacê-
tes que por duas vezes nos interceptaram o caminho que
seguíamos. O quinto dia da nossa viagem, em direcção a
Améra, realisou-se atravez doesta extensa planície, que as
chuvas próprias da quadra em que nos achávamos, haviam
tornado quasi intransitável.
Treze linhas d'agua, poderosamente engrossadas, e uma
infinidade de pântanos tivemos nós que transpor, uns ás
costas de carregadores e outros a cavallo; a passagem
38
porem do Cubai, que não podemos effectuar por nenhuma
doestas formas, constituiu para nós uma verdadeira difi-
culdade, por ter sido arrebatada pela corrente a ponte gen-
tílica, que de resto apenas nos teria poupado a um banho
forçado, visto achar-se estabelecida tão somente sobre a
corrente do rio.
A ponte porém, como disse, não existia, tendo eu conhe-
idmento de nos acharmos na visinhança de um rio, porque
essa prevenção me foi feita pelos carregadores, que esta-
caram no ponto em que o caminho era interceptado por
um grande pântano que o alargamento do rio transformara
n*um verdadeiro lago.
Dispunha-me a saltar para o pescoço de um robusto
carregador, que n*um equilibrio e firmeza verdadeiramente
prodigiosos me havia passado já em diversos outros pân-
tanos, quando elle, sorrindo admirado, se serviu d'esta
gotural interjeição tão característica das manifestações de
surpreza na língua rnhiuidu:
aHa-ha!!!
Os meus rudimentares conhecimentos do m^bundu não
me permittiam ainda comprehender a discussão que se
havia estabelecido entre os carregadores, ficando-me com-
tudo a impressão de que qualquer coisa de anormal se
havia passado.
Decorridos três minutos, toda a comitiva se achava de
cargas arriadas junto do pântano, apeiando-se do seu
valente garrano do Senegal, o meu alegre companheiro e
experimentado sertanejo Pinto Baroza, que me informou
então de que, a uma distancia de uns 60 metros do ponto
em que nos achávamos, corria disfarçadamente o río
Cubai, que durante o nosso trajecto, teríamos que trans>
pôr ainda mais duas vezes.
Em vibnndii correcto, perguntou então aos carregadores
mtm
40
se a cavallo poderia transpôr-sc o rio, sendo todos de
opinião que os cavallos teriam de nadar.
A hypothese de nos utilisarmos da typoia^ assentando
os dois carregadores o bordão sobre a cabeça, foi também
posta de parte, perante a perspectiva de se molhar a bar-
riga do boi (ubime-i-ongonbej como o gentio denomina a
convexidade apresentada pela rede da typoia sob o peso
do viajante.
A febre de proseguir não me permittiu deter-me por
mais tempo na contemplação d^aquelle insignificante obs-
táculo, perdendo tempo em conjecturas a que fiii o pri-
meiro a pôr termo, despindo-me por completo, no que fui
imitado pelos meus companheiros. Não tardou dois minu-
tos que enorme bicha, de mãos dadas, se enterrasse até
ao joelho, cortando o pântano sob a indicação de um preto
ejíperimentado que nos serviu de guia e que somente in
terrompeu a marcha para nos prevenir da diíFerença de
nivel que iamos encontrar, a qual de resto nos era denun-
ciada pelo movimento da corrente.
Tendo visto os primeiros pretos enterrarem-se na agua
»té ao pescoço, restou-me desde logo a esperança de que,
como eram mais baixos do que eu, me não veria na necessi-
dade de nadar.
Foi meu irmão o único que, desprendendo-se da extensa
cadeia que formávamos, fez a travessia, nadando como um
peixe, até á margem opposta.
Attingida esta, continuámos marchando atravez do pân-
tano, que se prolongava ainda uns 40 metros para além
da margem direita, chegando a terra firme, completa-
mente sujos do lodo pestilento que nos havia adherido ás
pernas.
Um jarro de agua limpa despejado sobre o corpo^
que, rapidamente, os ardores do sol enxugaram emquanto
41
esperávamos os nosscs vestuários, rematou este divertido
incidente, que foi objecto de grande admiração dos carre-
gadores, perante a simplicidade da nossa toilette^ sendo o
elemento femenino aquelle que mais ruidosamente se mani-
festou.
Eram ires horas quando chegamos a Amtra. Aqui
encontramos um europeu, negociante, que a troco de fa-
zendas, nos forneceu uma galinha, ovos e bananas, com
que podemos variar um pouco a nossa alimentação, pondo
de parte as conservas em latas, que só estômagos fortis-
simos podiam acceitar de bom grado. O jantar, que por
este facto se tornou mais agradável, produziu nos meus
companheiros grande animação, e eu fiquei também rasoa-
velmente disposto. Em seguida porém ás nossas refeições,
que terminavam sempre á luz d'uma lanterna, como nada
houvesse que nos distrahisse, acontecia sempre entrarmos
nas barracas, onde adormeciamos minutos depois, com
grave prejuizo das funcçSes digestivas, de que ordinaria-
mente nos resultava uma má disposição ao levantar, por
fortuna em breve dissipada pelo exercido forçado da viagem.
N*esta noite, porém, os meus companheiros, que se faziam
acompanhar pelos seus ladinos serviçaes, organisaram com
elles uma arreòífa segundo os costumes de Benguella, em
que tomaram parte todos quantos tinham conhecimento
d'esta espécie de dança, que era executada ao som de uma
harmónica de bôcca. Esta dança adquiriu um tal enthu-
siasmo, que chegou a attrahir todos os organisadores da
festa, com grande satisfação da pretalhada, que principiou
a ver n'aquella mélange ethenica um magnifico pretexto
para pedir o indispensável mcUa-bicho,
Estas danças, que não têem nada de batuques, possuem
como as nossas quadrilhas, varias marcas, de que a mais
vulgar consiste n'uma roda, composta de cavalheiros e
42
damas, dispostos alternadamente, principiando, em seguida
ás primeiras notas de uma musica um tanto monótona exe-
cutada em compasso de polka, pela sahida de um cava-
lheiro, que, dirigindo-se para o centro da roda, executa
com uma ligeireza de perna e flexibilidade de rins, uma
serie de dengosas voltas e requiebros que terminam por
uma valente umbigada n'uma das damas da roda.
Esta, abandonando o seu posto, rompe desde logo em
egual volteio, que egualmente faz rematar com outra um-
bigada em qualquer dos cavalheiros, e assim successiva-
mente, n*um enthusiasmo que chega a attingir a loucura,
e apenas se interrompe por momentos para os exe-
cutantes emborcarem alguns copos de qualquer bebida
espirituosa.
As arrebitas em Benguella, chegam a constituir o prin-
cipal divertimento da terra, assumindo porém um caracter
de importância, que lhes provem da intervenção do elemento
europeu que as promove e em que dispende sonunas de-
veras colossaes.
Para a realisação doestas festas, alguns dos principaes
negociantes, rapazes geralmente, fazem convite ás damas
pretas e mulatas mais em voga na cidade, e n'um deter-
minado dia, todos os foliões a quem a perniciosa influencia
do clima não consegue modificar o temperamento, reúnem
n'um sitio apropriado, onde se encontram, envoltas nos seus
amplos pannos de caprichosas cores, uma infinidade de ra-
parigas africanas de olhares langorosos, entre as quaes se
notam todas as variantes de tom, desde o negro de azevi-
che até ao branco-máte, como outras tantas misturas de
café com leite, em que cada um d'estes elementos ahi en-
trasse em proporções variadíssimas.
N^esta espécie de dança africana, que apenas caracte-
risa o elemento feminino que n'ellas toma parte, nota-se já
um cunho de festa civilisada, em que o harmonium chega
a ser substituído por uma pequena orchestra, ao som da
qual se executa uma infinidade de marcas, com uma perícia
e certeza de movimentos que causa verdadeira admiração.
A arrebita em que durante as primeiras investidas se
manifesta um certo acanhamento, adquire uma alegria de-
lirante, originada pelas abundantes libaçSes de tudo quanto
em bebidas espirituosas ha de mais fino e apreciável, a par
de um serviço de meza que rivalisa com o apresentado em
qualquer salão de baile da nossa primeira sociedade.
Um importante e conhecido negociante de Benguella,
organísou ha annos uma d'estas festas, cuja dcspeza exce-
deu a bonita conta de 5:000iS000 réis.
^ T
44
De madrugada iniciámos o nosso sexto dia de viagem
para Cahuita, onde chegamos ao meio dia, estabelecendo
o nosso acampamento no alto de um pequeno plateau de
cerca de 1:000 metros de extensão, ao fim do qual se er-
giíia uma grande fraga ennegrecida pela acção mixta do
sol e das chuvas.
O terreno entre esta fraga e o chibomho era sensivel-
mente horisontal, achando-se inteiramente a descoberto, em
consequência das devastações que o gentio faz no matto
que circumda os seus acampamentos, por ter de utilisal-o
como matéria prima na construcção dos chinguts.
Esta disposição do terreno permittiu-nos aproveital-o
para uma sessão de tiro a distancias relativamente gran-
des, ajuizando assim da precisão das nossas armas.
No fundo musgoso e negro, patenteado pela fraga, des-
tacava-se admiravelmente um quarto de «O Século», que
constituia o pequeno alvo sobre que iamos iniciar a nossa
sessão de tiro. Os pretos carregadores assistiam com visí-
vel attenção a todos estes preparativos, sem que desde logo
lhes fosse dado comprehender o que d'ali poderia sahir.
Era porém, sem duvida, algum divertimento de branco,
inteiramente novo para elles, bastando tal supposição para
que, n'um antecipado sorriso de admiração, seguissem
com os seus cinco sentidos aquelles nossos trabalhos pre-
paratórios.
Fui eu o primeiro a entrar em scena, graduando a alça
para 800™, distancia que tive a pachorra de medir a passo,
desde o alvo até á origem do tiro.
Ao vêr-me o gentio pegar na carabina, comprehendeu
naturalmente que eu fosse fazer fogo, sobre o alvo que
havia pregado na fraga, mas nunca a uma tal distancia;
vendo-me porém deitar no terreno (posição em que dis-
ponho de maior firmeza) e pôr a arma á cara, tendo
4ô
previamente interrogado um dos meus companheiros sobre
as minhas intenções, romperam todos em geraes exclama-
ções: «Cha! Cha! Cha!»
Não lhes dei tempo para commentarios, disparando a
carabina, sem esperança alguma, confesso, de que o pro-
jéctil fosse percutir aquelle pequeno alvo, que a tão grande
distancia, se me afigurava do tamanho de uma borboleta.
Para descargo porém da consciência, e visto que a tra-
jectória por alguma parte havia de passar, mandei um
òarregador verificar se ao menos acertaria na fraga.
Qual não foi porém o meu espanto quando o homeni,
trazendo o papel, o mostra com extraordinário assombro,
 toda a comitiva, indicando com o dedo o enorme ras-
gão produzido pelo choque e ricochete da bala de encon-
tro á fraga, quando a verdade é que o gentio nem mesmo
podia admittir um tal alcance de tiro.
Este successo, que para mim constituiu uma verdadeira
surpreza, fez-me adquirir um enorme prestigio entre o
gentio, que só por feitiço podia admittir um tal aconteci-
mento, que approveitoi, protestando desde logo para
commigo não tentar sequer repetir a habilidade, de que
certamente me resultaria a perda das esporas d' ouro, tão
brilhantemente conquistadas n'aquelle momento.
O successo foi tanto maior, quanto é certo nenhilm sequer
dos meus companheiros se me ter approximado, incluindo
meu irmão que, tendo no dia anterior atravessado uma
viuvinha (passarinho de grande cauda) com uma bala, con-
sumiu cerca de 20 cartuchos sem resultado favorável, o
que seriamente o arreliou.
A nossa refeição em Cahuita foi preparada n'uma pe-
quena cosinha de campanha (modelo do regulamento de
campanha do exercito) que risquei no solo, a titulo de
curiosidade, e mandei construir, sob minha direcção,
4i;
causando egualmente extranheza ao gentio o seu bom func-
cionamento.
Novamente a caminho, foi todavia interrompida a nossa
viagem, n^este dia, por uma formidável trovoada, que nos
surprehendeu das alturas do rio Balombo. A transposição
d'este rio effectuou-se, felizmente, com relativa facilidade^
por se nos deparar uma ponte cuja construcção se deve a
um preto cabinda, João Gomes Sambo, ex-corneteiro de
caçadores, ao tempo regedor do sitio e actualmente alferes
de 2.* linha por proposta do capitão de artilheria Massano
de Amorim, como recompensa dos serviços que, segundo
este oíHcial diz, o cabinda prestou á columna do Norte,,
na occasião da sua passagem para o Bailundo.
A ponte, que ao tempo apenas dava passagem a peSes,
é explorada pelo cabinda, que na margem direita construiu
umas pequenas casas em que tem estabelecida a sua resi-
dência, achando-se assim prompto para a todo o momento
cobrar o mutar (5 bolas de borracha) que tem que pagar-
Ihe todo o individuo que queira utilisar-se da sua obra
d'arte, que no fim de contas presta um relevante serviço.
Ao mesmo tempo o cabinda aproveita a sua permanên-
cia n^aquelle ponto, para realisar alguma permuta com o
gentio, que fatalmente por ali tem de seguir.
A passagem de solipedes tornava-se ainda assim um tanto
perigosa, por não se ajustarem n'alguns pontos os paus ho-
risontaes que formam o taboleiro, tendo de fazer-se pas-
sar a nado o meu cavallo, assim como as muares dos meus
companheiros.
O cabinda não cobra este imposto aos funccionarios do
Estado, nem tampouco aos seus carregadores, e, como foi
militar, tem ainda um certo respeito peles seus superiores,
obsequiando immenso os officiaes do exercito que lhe passem
pela porta e acceitem a hospedagem que ordinariamente
ali lhes é offerecida, n'Dma insistência a que impossível se
toma resistir.
A trovoada, que se prolongou pela iarde fora, levou-iro
s pernoitar com os meus companheiros em casa do Ca-
binda, visto que o adeantado da hora nos não permitlía
prosegTlir.
Este contratempo, que deveras a todos arreliou, trouze-
nos o alrazo de um dia na nossa já bem demorada via-
gem.
Cahita. — A libnta do Qnipipa. — O sr. Theodóm — Os niiO!<cn-
tos de JoSo ISraudSo. — As mulheres do (Juipipa. — O Sitjue.
— Um diii perdido.— Admirável ponto de vista. — L'ina cacada.
— As primeiras febres.— A nassagem do Quúbe.
No, dia seguinte seguimos para Caháta, atrav^i da ,
niesnia monotonia de vegetação, horisonte e accidentado
do terreno, sontindo-nos já horrorosamente fatigados de
corpo e de espirito.
A viag'>m dVsle dia (H." desde a nossa partida de Ca-
tuDíhelIa) não olistaiito durar as nu smas seis horas do
costume, realisoii-sc com um esfurço relativamente me-
nor, parecendo-nos mais curtos os 3(1 kilometros seguros,
que, como nos demais dias, havíamos percorrido, devido
tah'ez ao interessante cavaco do nosso companheiro Pinto
Bsroza, que, durante a via^m, nos contou uma série de
50
curiosas historias, relativas i vida sanguinária do celeber-
rimo salteador João Brandão, como é sabido, morto em
Africa, para onde havia sido degredado, devendo em
Caháta, onde passado pouco tempo nos encontraríamos,
ter occasião de ver & casa onde encontrou, n*um terrível
veneno que segimdo se diz lhe foi ministrado com os alimen-
tos, o digno termo dos seus dias criminosos.
A casa pertence hoje ao mulato, quasi preto, de nome
Theodóro Coimbra, um dos actuaes representantes do ex-
tiiicto Coimbra de Quipipa, que n'outros tempos foi capitão-
mor do Bihé.
O pae doeste Theodoro, que também já morreu, não se
livrou da fama, aliás pouco criminosa, de ter sido o auctor
do assassinato de João Brandão, satisfazendo assim á in-
cumbência que disso lhe fora feita por um individuo a
quem aquelle jurara exterminar, e houvera já feito repe-
tidas esperas,
João Brandão achava-se degredado na cidade de Ben-
giiella, possuindo de sociedade com um outro individuo,
uma importante fazenda de canna nas iumuediações da ci-
dade, obedecendo a sua fuga para o matto a uma vinga-
tiva perseguição, movida, ao que consta, por altos perso-
nagens, como velho e inadiável ajuste de contas, que final-
mente tiveram a sua liquidação n'uma importante libata
do pittorêsco logar de Caháta.
Esta libata, de que faz parte a casa em que fallei, des-
cjbre-se muito antes da sua proximidade, denunciando-se a
distancia, como um enorme e verdejante bouquet formado
pelos sycomoros (insendeiras) da libata, apertados a custo
pela densa palliçada com que n'esta espécie de aldeias es-
tabelecem a sua vedação, isolando-se completamente do ex-
terior, como defeza para os seus gados contra ataques da
onça e do leão.
A líbata acha-se situada quasi ao fim da anhara, sobre
uma ligeira elevação, formada por uma rajiida e iinica
ondulação do terreno, sendo banhada por um riacbo do
pequena itr porta n<-Ía, cujas aguas serpenteiam praleadas
ao longo da planície, deslisando langorosas sobre um leilo
marginado de verdejante relva, em que pastam enormes
rebanhos de pacificas ovelhas e muitos bois.
Kis-nos pois transpondo o rio e em presença da libata,
espécie de reducto de difficil accesso, tendo apenas aberta
uma das suas duas portas, por onde penetrou um dos meus
companheiros, pedindo auctorisação para a nossa entrada,
devendo, segundo o velho costume dos negociantes euro-
peus e especialmente das auctoridades, pernoitar-se n'aquelle
recÍDto, que, por ser-me iateirameate desconhecido, me
inspirava certa curiosidade.
WS9iBHBBS3C=S7-
52
O nosso companheiro níio so foz osporar com a preten-
dida auctorisação, e, depois de prezos os nossos animaes
nos paus do cercado, iniciámos a entrada, a ura do
fundo, atravez da esguia porta que se nos deparava, ca-
minhando durante alguns momentos por um estreito ca-
minho, limitado lateralmente por novas e densas paliçadas,
atravez das ([uaes espreitaxam muitas cabeças de mulher e
criança, que de olhos esgaseados e boquiabertos, assis-
tiam admirados ao desfilar dos importunos visitantes.
Ao fim de pouco tempo achámo-nos no meio de um la-
byrintho de ruas, originadas p(»r uma infinidade de veda-
ções de grupos de casas, (|ue tinham uma vida independente,
obedecendo todavia a uma casa cliefe, que finalmente se
nos deparou, ao fundo de um pequeno largo, tosca e
quasi primitiva, de microscópicas janellas ou postigos, e
com uma só porta esguia, caiada de branco, e coberta
com uma espessa e velhissima camada de capim.
Ao lado esquerdo tem a casa um velho mas soberbo pomar
de larangeiras, que vergavam sob o peso de milhares de pre-
ciosos fructos, como jamais havia visto nos nossos pomares.
No meio d'este largo lev^anta-sc um caramanchão coberto
por uma formosa trepadeira, muito antiga e muito mal pre-
sada, indicando porém todo aquelle conjuncto que o pri-
mitivo possuidor não deveria ter sido pessoa de todo des-
tituida de gosto.
Ao fim de alguns minutos qu(^ me permittiram observar
o exterior da casa e tudo o que a rodeava, appareceu fi-
nalmente, meio de esguelha, no limiar da porta, o seu pro-
prietário, trajando á europeia um elegante fato de linho
branco, camisa de Oxford, com a respectiva gravata de
chita, chapéu branco de aba larga, carregado afadistada-
mente sobre a orelha esquerda e um tanto para traz, e
calçando o belio sapato de peilica branca com atacadores.
cujas extremidades terminavam em abundantes borlas
amarellas.
A impressão que me fez aqnella prosaica appariçSo foi
deveras exlranha para mim, que não contava encontrar, no
interior de uma libata de pretos, um janota tSo distincta-
mente trajado; verdade seja, por<^m, segundo me foi atian-
çado, que a demora do Quipipa em apparecer-nos podia
attribuir-se ao tempo indispensável para o homemsinho fazer
a substituição dos pannos, que habituabnente usa, pelas
calças, dentro das quaes se q3o sente bem, affirmação que
de resto corroborava o estado de conservação da su«
toilette.
54
O sr. Theodóro, homem de cerca de 50 annos, nio era
de todo deselegante, tinha porém um semblante de verda-
deira imbecilidade, denunciado pelo seu olhar estupida-
mente esgaseado e bocca permanentemente aberta. A barba
não lhe abundava, o que, de resto, é apenas caracteristico
da raça negra, a que pertenciam 75 "/o do seu ser, dis-
pondo apenas de um pequeno buço em que appareciam
alguns cabellos brancos.
Vendo que o esperávamos, dirigiu-se-nos o homemsinho,
sendo-lhe eu n'esta occasiâo apresentado, depois do que
nos convidou para o interior da casa, onde terminou os
seus dias o temivel salteador da Beira Alta.
Duas salas e três quartos completavam o numero de
cubículos em que se achava dividida aquella casa. Uma
das salas, ao mesmo tempo de visitas e de jantar, tinha
ao centro uma enorme meza, e, dispostas ao longo das pare-
des, meia dúzia de cadeiras de construcção gentílica, tendo
o assento de coiro de boi.
D'uma das paredes pendia um quadro circular, bastante
antigo, sem vidro, no qual estavam seguros com uma linha
de retroz encarnado, dois retratos d'homem, um dos quaes
era do pae do sr. Theodóro, e o outro, que suppuz ser de
João Brandão, era de um individuo que, segundo me dis-
seram, o acompanhou muito em vida e lhe assistiu aos
últimos momentos. Era este o alojamento mais decente ou
menos repugnante da casa.
Um dos quartos, escassamente illuminado pela luz coada,
atravéz da densa ramagem d'uma gigantesca goiabeira que
se estendia em frente de uma janella sem portas, foi nos
indicado por Quipipa como o miserável aposento de que,
durante alguns mezes, se aproveitou João Brandão, desde
a sua fuga para o matto, até á triste finalisação da sua
ruel existência,
o
55
A simples inspecção d'este quarto fazia-nos calafrios}
independente da desagradável impressão de que nos achá-
vamos possuídos, pela fúnebre e trágica ideia que a elle se
associava. As paredes, que ha muitos annos deveriam ter
sido caiadas de branco, tinham, junto do chão, uma larga
faxa de musgo, crusando-se, por toda a sua superfície e
em direcções variadíssimas, um emaranhado de riscos bri-
lhantes e viscosos, assignalados pela passagem de uma
infinidade de caracóes nas suas marchas e contra-marchas
durante alguns annos de liberdade.
Largas fendas se abriam, obliquamente, ao longo d'estas
húmidas paredes, fendas que alguns repellentes e enormes
arachnideos, de grande fóUe, pretenderam disfarçar, urdindo-
Ihes pela frente as suas amplas teias, em que se achavam
depositadas varias pontas de cigarro, phosphoros queimados
e muito mais lixo.
Tinha este aposento uma porta que deitava para um
recanto, nas trazeiras da casa, onde crescia uma grande
profusão de plantas hervaceas, entre as quacs predominava
uma espécie de urtiga roxa de grandes proporções, sol-
tando esta porta ao abrir-se, em torno dos seus gonzos
ferrugentos, um som por tal forma estridente e desafinado,
que contendia poderosamente com os nervos.
Era este quarto repellente que o sr. Theodóro nos desti-
nava e desde logo regeitei, declarando aos meus com-
panheiros que preferia dormir no acampamento, a acceitar
uma tal pousada, que certamente me não permittiria conciliar
o somno em toda a noite, immaginando ouvir o estertor do
condemnado, contorcendo-se horrorosamente, sob a influen-
cia das dores intestinaes produzidas pelo veneno, e talvez
do remorso das suas numerosas victimas.
Estas, deveriam ter-lhe apparecido n'aquelle momento
supremo ) como um enorme desfilar em que figurassem os
56
espectros de indivíduos de todas as classes sociaes, e de
todas as edades, desde o rico ao pobre e desde o velho
até ao desditoso innocente, que a sua malvada condição
levou impiedosamente a assassinar, n*uma verdadeira e
triste aberração do instincto humano.
De harmonia pois com os meus companheiros de viagem,
resolvi dormirmos na sala de jantar, para o que tivemos
de armar as nossas camas, visto que apenas, no quarto de
Quipipa, havia um espaçoso leito de ferro em que elle dor-
mia com as suas duas favoritas, uma de cada lado ; diga-se
porém á puridade, que, qualquer cama que porventura nos
fosse oíFerecida n'aquella casa, não seria muito de appete-
cer, sendo preferível estender no chão um cobertor, caso
não dispozessemos das nossas camas de viagem.
Theodóro Quipipa vive miseravelmente, alimentando-se
como o gentio, de infunde (farinha de milho ou mandioca)
e feijão, pelo que lhe não são preparadas refeições á euro-
peia, posto que deveras as aprecie, como tive occasião
de observar, convidando-o para o jantar que mandei cosi-
nhar no largo fronteiro á sua casa, e que o nosso homem
acceitou com enorme satisfação.
Principiado este, sentou-se o sr. Theodóro na extremi-
dade da mesa, devorando com um appetite verdadeiramente
feroz, tudo quanto lhe era servido, como se se achasse na
convalescença de uma grande enfermidade, emborcando
canecas successivas de vinho, que propositadamente lhe
mandava servir, com o fim de arrancar o homem do mu-
tismo quasi absoluto em que durante o dia se conservara,
respondendo tão somente ao que se lhe perguntava.
Não tardou, porém, muito que um innocente sorriso lhe
afflorasse aos lábios, rompendo em desconchavos e risadas
alvares, acompanhadas de fortes palmadas sobre a mesa,
chamando e mostrando as suas duas mulheres e fallando
^i
^-^mammmi^BsmmBmgmmmmmmt
nos capitSes-miíres seus antepassados. Era emfjm outro
homem.
Terminado o jantar, tomon caf^. qne n3o conseguiu atte-
niiar-lhe a alegria que lhe reinava n'alma, e que uma bôa
dose de gramophone excitou extraordinariamente, fazendo-o
dançar na presença de quasi ioda a sna próJe, «jue, nesta
altura, havia já eva-
dido a casa, em que
espalhou um insup-
portavel perfume de
Perguntando -lhe
quantas mulheres
possuía, respondeu-
nos que apenas tiulia
54 (!), achando-se,
porám, todas casa-
das,. á razão de oito
por cada homem de
que dispunha, mo-
tivo pelo qual, com
grande pezar seu,
nos não podia brin-
dar, offerecendo
utna, provisoriamente, a cada um dos seus hospedes, como
aliás era de velho u.so em sua casa, e para cujo fim con-
servava sempre solteiras meia dúzia das maia interes-
santes.
Como um dos meus companheiros lhe fizesse sentir a
gravidade do erro que commetteu, alterando os antigos
costumes de sua casa, respondeu-lhe o Quipipa que pre-
cisava augmentar a sua família, que nos últimos tempos
tinha sido consideravelmente dizimada pela epidemia da
58
varíola, motivo pelo que deliberou casar todas as mulhe-
res para fazerem creaçio (*).
As duas mulheres do Quipipa eram, no seu género, de-
veras interessantes, sobretudo a mais nova, que, dotada
de uma elegância verdadeiramente esculptural, possuía
um corpo, cujas formas, devido á simplicidade do vestuá-
rio, podiam quasi em absoluto ser observadas, admiran-
do-se a regularidade dos seus contornos, e, como que
adivinhando- se a elasticidade d'aquella sadia carnação, co-
berta por uma epiderme que se suppunha macia como o
veludo, e cujo brilho, alliado ao tom escuro que lhe é pró-
prio, nos apresentavam a rapariga como uma verdadeira
estatua de bronze. As feições não eram próprias da sua
raça, podendo ser invejadas por muitas europeias vapo-
rozas que por ahi nos illudem com os mil preparados que
a chimica lhes proporciona.
Como os meus companheiros fizessem ver ao nosso ho-
mem o bom gosto que teve na escolha de tão bellos exem-
plares, elle então, desconfiado como todos os pretos, e re-
ceiando, alias infundadamente, um rapto durante a noite,
não obstante os esforços que empreguei para de tal o dis-
suadir, declarou que não dormiria em casa, sahindo com
as duas mulheres, para somente nos apparecer no dia im-
mediato todo envergonhado da triste figura que havia
feito de véspera.
O 9.** dia de viagem realisou-se em direcção ao Soque,
não sem grandes diíiiculdades, originadas pelos obstáculos
(1) Não ha duvida que a maior alegria do gentio consiste em
vivor no meio de immensa familia que por todoR os processos pro-
cura augmentar. Como familia síIo considerados todos os súbditos
de qualquer soba ou seMo, posto mesmo que entre ellcs nSo exista
o mínimo pai^entescQ.
69
de toda a espécie que a oada momento se nos depararam,
depois qne deixámos a anhára. O interior de Benguella,
sobretudo na parte noroeste do districto, é geralmente
montanhoso, transformando-se, na epocha das chuvas, a
maior parte dos seus talwegs em outros tantos rios cau-
dalosissimos, cujas aguas, rolando em grandes massas ao
longo de leitos pedregosos e alcantilados, se despenham
com velocidades verdadeiramente prodigiosas, represen^
tando a transposição doestes frequentes obstáculos uma
interminável successão de perigos e trabalhos, por ter de
fazer-se sobre pontes, muitas vezes tSo simples como sim
pies é um tronco d'arvore abatido e disposto transversal-
mente de uma para outra margem, o que obriga o viajante a
realisar verdadeiros prodigios de equilibrio, se não quer
ser levado pelo impetuoso turbilhão da corrente.
Por esta forma me vi na dura necessidade de exhibir
qualidades de acrobata, que até então ignorava possuir, e
com as quaes certamente me teria envaidecido, se não visse
seguidamente os meus trabalhos executados, com extraor-
dinária perícia e naturalidade, pelos pretos da comitiva, sob
o peso monstruoso das suas cargas.
Chegados ao Soque realisámos o nosso acampamento
próximo de um europeu que ali se achava estabelecido e
nos recebeu com verdadeiro agrado, por não ter ha muitos
dias tratado com gente branca.
A casa, espécie de cubata, em que este negociante vivia
e realisava as suas permutas com as comitivas de bihenos
e bailundos que por ali passavam, achava-se situada no alto
de uma elevação de difficil acesso, cuja altitude por falta
de instrumentos próprios não pude apreciar, mas que não
deveria ser inferior a 1:000 metros, devendo existir entre
este ponto e a arihára de C^áta uma differença de nivel
de 300 metros.
Do alto d'eBta elevaçXo descobría-ae entSo, lá em baixo,
toda essa immensa planície que percorremos com uma via-
gem de três étapes, ii'uma extensão total de sessenta kilo-
metros, a partir de Olombinga, caprichosa montanha que já
tive Qccasião de descrê- __^_______^__-,
ver, e que d'ali apenas — -r^»
se divisava ao longe "L, ' - !
como duas pontas ne-
gras nitidamente desc
nhadas no azul do firma-
mento. Dispersas, quasi
perdidas pela vastidão
da planicie, distinguiam-
sc algumas libatas tuja
situação nos era denun-
ciada pelos sy cômoros
dus cercados, que abun-
dam nos dominius do
Quipipa e de Saco-
Major.
O Cobal, llalombo e
outros riachos, dcsli-
sando por entre canna-
viaes nas suas curvas
caprichosas ao longo do valle, emittiam rcflext
como serpentes de prata, raslejaudu vagarosas
immenso tapete de esmeralda,
A passagem dos muitos pântanos e riachos durante esta
9.* étape, atrazun um poueu a uossa viagem, origiiiando-
me sérios embaraços e finalmente a dwença que me acompa-
nhon até á forlalo^a do Bailnndo.
Uma grande parte dos carregadores, extenuados pelo
cangasse produzido pela passagem de alguns rios em que
i de luz,
jobre um
61
a agua lhes dava pela cintura, pernoitou nos diversos
chilombos que a cada momento se encontram, sendo-nos
impossível iniciar de madrugada, como de costume, a nossa
viagem, pelo que tivemos de permanecer no Soque até ao
dia seguinte. N^esta impossibilidade, pois, de continuarmos
a marcha, era forçoso procurar-se uma distracção que pre-
enchesse aquellas horas que, mau grado nosso, ali tería-
mos de passar.
Eram 6 horas da manhã, já o sol, esse lampadário
universal, como que espreitando por entre as recortadas
montanhas do liailundo, ia doirando com os seus raios a
vigorosa paliçada que circumda a magestosa e sobran-
ceira m'laJla do Soque. E esta a hora precisa em que os
carregadores, depois de apertarem o ultimo landohe (cor-
das de casca de arvore) com que seguram as suas cargas,
começam invariavelmente a tarefa diária que se impo-
zeram.
D' um valle fronteiro, coberto de verdejante capim fino
e sedoso como se estivéramos em presença de um campo
de linho, chegava-nos, juntamente com o murmúrio de um
pequeno regato, a chilreada produzida pelo canto de
innumeras perdizes, cuja proximidade apparente nos des-
pertou a lembrança da caça, que ainda não tínhamos
podido usar, no nosso empenho de adiantar viagem e não
perder um só dia.
As armas de que dispúnhamos, Manllicher, Martiny
Henry e outras aperfeiçoadas, de baila, não se prestavam
para tal género de caça; o sr. Guimarães, porém, nego-
ciante do sitio, que era homem previdente, cedeu-nos da
melhor vontade uma caçadeira de espoleta, de dois canos,
que, á falta de melhor, tivemos que utilisar, e, em tão
boa hora que, logo aos primeiros tiros, um dos meus
companheiros (meu irmão António) deitou a terra duas
k
(
62
magnificas perdizes que, tão simplesmente, constituiram a
nossa caçada d^aquelle dia.
A esperança, porém, de melhor resultado, domorou-nos
ainda por algumas horas atravez de montes e valles, cal-
cando o capim encharcado pelo cacimbo (orvalho da noite).
O regresso ao chihmbo representou para mim já um ver-
dadeiro sacrifício. A dez dias de viagem do litoral e a seis
ainda da fortaleza do Bailundo, em pleno matto, experi-
mentava os primeiros symptomas de uma febre, que era
'ambem a primeira de que até então soflfrêra em Africa.
Frios violentos, dores nas arliculaçSes, espinha e cabeça,
impressões mais que sufiicientcs para me produzirem um
liorroroso mal estar, eram, pois, os terríveis symptomas
que, n'uma evidencia verdadeiramente aterradora, consti-
tuíam a guarda avançada da enfermidade que, poderosa-
mente aggravada pela escassez de commodidades tanto me
havia de fazer soffrer.
Uma vez dentro do meu chingue, ao centro da qual ar-
dia uma fogueira, devidamente auxiliado por um dos meus
solicitos companheiros fiz então a substituição da roupa e
botas, que escorriam agua, tendo a precaução, ahás tardia,
de friccionar as pernas e pés com álcool da minha pequena
pharmacia.
Era effectivamente tarde para a applicação de qualquer
medicamento preventivo, restando só o tratamento, por
experiência própria, tão conhecido pela generalidade dos
africanistas, que por dura necessidade, se tornam médicos
de si mesmos.
De dentro da minha esguia cama de viagem, tiritando
íjomo se estivera sob a influencia de um inverno rigoroso,
assistia á primeira refeição do dia, a que os meus compa-
nheiros estavam já fazendo as honras costumadas, e em
que tantas vezes os acompanhara.
^
64
Passados momentos, com o calor da fogueira que ardia
junto da minha cama e com muita roupa em que me
achava envolvido, augmentou gradualmente a minha tem-
peratura que o termómetro accusava de 41". Não obstante
ter ouvido dizer serem taes temperaturas vulgarissimas
nas febres d'Afriea, a leitura do thermometro deixou-me
verdadeiramente aterrado, considerando-me a braços com
uma d'essas torrivois biliosas quasi sempre fataes e que,
por via de regra, começam com febre intensa.
Uma serie de pensamentos sinistros assaltaram entSc
tumultuosamente o meu espirito, pensamentos que, feliz-
mente, foram seguidamente afogados n'um somno tiio
pesado e duradouro que bem poderia chamar-se-lhe da
morte.
'No dia immediato deram-mc um purgante de sulphato
de soda que nao produziu o effoito desejado, no seguinte
um vomitório, e, emfim, tudo quanto quizeram, revellando
os meus excellontes companheiros o mais disvellado empe-
nho em debellar-mc os sotiri mentos, com (» que apenas
conseguiram attenuar um pnueo a inten.sidade da febre,
conservando-me ò dias alimcnitado por .simples canjas de
gallinha, que, com repugnância, tomava n< s acampamentos.
Durante as marchas que diariamente se realizaram, como
se todos gosassemos magniíica saudc, d< rmia st^mpre pro-
fundamente, para sóment»' aeurdar nas passagens ditfi-
ceis, em que os maeliileir^is se não podiam aguentar com
o meu peso; e asíjim deoíjrnram para mim estes oim*»»
dias, quasi como se nao tivera existido, a ponto do, ii»
meu regresso, desconhecer por completo o caminho per-
corrido durante esse peri(Klo da minha doença.
O ultimo dia de viagem ao forte do liaihnulo realisei-í».
comtudo, um pouco mais animado, se bem que ainda com
alguma febre; a somnolencia porérn dos dias anteriores
■MB
1
65
havia-me desapparecido, o que para mim foi de um grande
alcance para a travessia do rio Quebe, em que a ausência
de ponte ou vau, me forçou ao ensaio de um novo género
de sport que, por excessivamente arriscado, reclamava
uma certa attençâo e aprumo de que, dias antes, impossi-
vel me seria dispor (*).
Foi em dongos (barquinhos de casca de arvore) muito
leves, e, por consequência, de equilibrio bastante proble-
mático, que me vi na necessidade de transpor o rio, para
não desistir da restante viagem que se achava já a 6 dias
do seu terminus.
A passagem, tanto do gentio como de europeus, effectua-se
pois n'estes barcos cujo comprimento, ordinariamente, não
excede 1"',50, por uma largura que é apenas a suíiiciente
4)ara poder conter juntamente com a respectiva carga um
único passageiro, sentado ou de joelhos, posição preferida
pelo gentio que, para não presencear o perigo, se prostra
de joelhos dentro do débil esquife, em cujo fundo apoia
nervosamente a cabeça para somente a levantar ao sentir-
se na margem opposta.
Eram três os dongos que davam a passagem do rio*
Dentro de cada um d^elles um preto empunhando uma
vara comprida que lhe servia de remo, fazia desUocar o
barco com admirável perícia, remando alternadamente com
as duas extremidades da vara, e mantendo-se sempre de
pé n'um equilíbrio verdadeiramente prodigioso.
(1) O rio Quebe tem uma largura approximadamente de 20 me-
tros, attingindo a sua corrento velocidades consideráveis, espe-
H^ialmente na epocba das chuvas em que nos achávamos.
Becebendo diversos affluentes, o Quebe, depois de atravessar
uma grande parte do districto de Loanda, vae desaguar no mar
«em Bengnella Velha com o nome de Cvtvo,
5
Assim passou de uma margem para a outra uma comi-
tiva composta de cerca de sessenta pessoas, em vinte via-
gens de ida e volta, para cada um dos três vebículos de
que dispúnhamos, no que se consumiu nada menos de 3
horas e meia.
Foi mais um contratempo sem outras consequências
que não fossem as de um pequeno atrazo n'este dia de
viagem, e na hora de jantardes
meus companheiros que, cheios
de saúde, tiveram de suppor-
tar o costumado appetite, até
perto das oito horas da noite,
occasião em que deveriamos al-
cançar o forte do Baiiundo,
que do Quebe distava ainda
cerca de vinte kilometros ap-
pr oximadamen te .
Á doença tornava-me Já in-
differente perante quaesquer
contrariedades, que nada repre-
sentavam perante os trabalhos
e inclemências dos últimos cinco
dias de viagem.
mmm.
A fcrtflii ia do BRilniido— Airabílidado do capitão-mitr — O meu
reslabelccimento— Fuga dos carregadores b ai Inndoa — Noto»
cartegadfrep— A caminho do Bihé— Ideia gorai das floresta»
— Ab habilflçBea dos termilas — Acampanieiito de Lomaiido —
Eio Catáto— Em terraa do Bibe — CacúIo-CnfiBO (aobba do
Bibel)— Os arimoã do sobba — A libais — Um batnqae — A
Restabelecida a ordem na margem opposta, entrei na
typoia, coDlinuando a minha viagem para a fortaleza do
Bjúlnndo, onde a hospedagem do respectivo commandanle
sem duvida me garantiria commodidades, relativas, que me
proporcionassem o restabelecimento da doença de que vi-
nha soflírendo.
68
Ao fim de cinco horas de viagem comecei de avistar o
morro alcantilado da poderosa e antiga m^balla, orlada por
seculares sycomoros, característico das mais importantes
libatas do chimbundu.
Em baixo, a uma distancia approximadamente de 500
metros, assentavam as pequenas edificaç6es da fortaleza,
que um profundo fosso e respectivo parapeito defendiam,
distinguindo-se nos dois tambores de flanqueamento, dqas
metralhadoras que, juntamente com mais duas peças de
montanha, constituiam a artilhería do forte.
£' péssima a situação doeste forte, perfeitamente domi-
nado pela inballa visinha; a ausência porém de artilhería
nos ataques do gentio, em nada prejudica as suas condi-
çSes de segurança. Como justificação da sua má situação
apresenta-se, o que de ordinarío succede com outros for-
tes, a circumstancia do aproveitamento de edificaçSes ji
existentes e que foram adquirídas pelo governo.
A apparencia de forte tem-lhe sido dada successivamente
com a abertura do fosso e estabelecimento do respectivo
parapeito, trabalhos que, principalmente, se devem á incan-
sável actividade do tenente do quadro de Angola, Alfredo
da Cunha Tamegão, que ali serviu como subalterno du-
rante alguns annos.
Minutos depois de avistada a fortaleza, precedendo a
necessaría auctorísação, transpúnhamos a ponte que dava
accesso á fortaleza, achando-nos seguidamente junto da
residência do capitâo-mór, que me recebeu com a amabili-
dade que o caracterísa, ofFerecendo-me a hospedagem com
que contava.
Egual ofFerecimento fez, como aliaz é uso corrente
no sertão, aos meus companheiros de viagem, com os
quaes dei entrada na residência da fortaleza. Um novo
accesso de febre não me permittiu fazer as honras a uma
69
explendida refeição que o meu camarada mandou servir
immediatamente, tendo de recolher-me ao leito que, a meu
pedido, me foi indicado.
A'parte o mal, passei uma noite de relativo conforto,
pois era a primeira, depois de tantas, em que me era dado
dormir dentro de uma casa boa ou má.
Parecia-me um sonho toda aquella viagem, sonho que o
delírio produzido pela febre aggravava poderosamente.
Logo de manhã cedo, informado o capitão-mór dos trar
balhos que passei durante os últimos dias da minha viagem,
preparou-me um enérgico purgante, que, com o demais
tratamento adequado á minha doença, acabou por debe-
lar-me sensivelmente a febre, permittindo-me, no dia imme-
diato, associar-me ao convivio e satisfação que sempre
origina o encontro de vários europeus em pleno sertão.
Sentia-me já outro.
Os carregadores que me haviam conduzido, eram na sua
maior parte bailundos, e, posto que houvessem recebido
pagamento até ao Bihé, uma vez regressados ás suas ter-
ras, retiraram para os quimbos (libatas), deixando na for-
taleza as cargas e typoia.
Esta contrariedade que já em Benguella havia sido
prevista por diversas pessoas, atrazou por alguns dias a
minha viagem, por ter de esperar no Bailundo novos
carregadores que o capitão-mór inunediatamente mandou
levantar para me transportarem ao Bihé. A demora de
quatro dias que, forçadamente, tive n^este forte, per-
mittiu-me, comtudo, restabelecer as forças perdidas pela
doença, e continuar depois, relativamente bem, o resto
da minha marcha em companhia de meu irmão, visto,
dois dias antes, ter seguido viagem o resto dos meus
companheiros, que estavam fazendo falta nas suas casas
do Bihé.
70
Em 23 de abril chegaram os novos carregadores que,
folgados, voavam com a minha typoia, depois da des-
pedida e penhorados agradecimentos que apresentei ao
capitAo-mór, cuja obsequiosa e amável hospitalidade aca-
bou por confundir-me.
Assim continuámos a nossa viagem, tfto agradavelmente
interrompida por alguns dias, encontrando-nos, passados
momentos, novamente embrenhados n'essas intermináveis
florestas de um verde-escuro, cujo silencio quasi absoluto
lhes imprime uma indefinida tristeza, que, ordinariamente,
acaba por se nos communicar.
O golpe de vista dirigido do alto das elevações, sobre
«sse como que tapete verde-nêgro formado pelas copas cer-
radas do arvoredo, amoldando-se graciosamente, n^uma
extensão de muitas milhas, ao accidentado do terreno,
dá-nos, a distancia, a grata impressão d'esses deliciosos pi-
nhaes nossos patrícios, com que a Providencia tão genero-
samente guarneceu este formoso jardim da Europa em que
nascemos.
O reino vegetal acha-se exhuberante mente representado,
encontrando-se muitos exemplares, que, pelos seus cara*
cteres perfeitamente definidos, podem á simples inspecção
ser comprehendidos nas diversas classes e famílias em que
a botânica os dividiu e agrupou.
As arvores, em geral, não attingem grandes proporçSes,
predominando, comtudo, nas florestas do Bailundo, uma
grande variedade de acácias e mimosas, (dicotyledoneas,
leguminosas) algumas de dimensões gigantescas e larga-
mente copadas, de que pendem compridos fructos de coty-
ledónes espessos e lenhosos, e grãos achatados.
O copal, variedade mimosa que abunda no sertão do
Congo e de que é extrahida a gomma copal tão apre-
ciada nos mercados, creio bem não existir nas florestas de
i"«i
SSo as, mais vulgares, formadas por seis laminas bran-
cas, ligadas eatre si e dispostas em dais verticilios, com o
carce interiormente colorido de um vivo carmezim qae,
a partir <lo come, vae gradualmente esbatendo-se para a
base. Juntamente com as arvores e as flores, rebentam do
solo as habitaçSes dos (ermitas ou salalú, como estatuas
gigantescas sobre as
quaes a mSo do es-
cultor apenas hon-
vcsse descarregado
os primeiros golpes
do seu cinzel.
São muito curio-
sas as formas apre-
sentadas por alguns
dVstes morros a que
por vozes cheguei
a attrihuír altitudes
variadíssimas, algu-
mas de verdadeiro
enfurecimento, co-
mo se todosestes ex-
traordinários phan-
tasmas estivessem
murmurando diálo-
gos de protesto con-
tra a irritante im-
mijbilidadc a que indefinidamente se vêem condemnados.
A visinbança dos rios de maior importância é denun-
ciada pelo canto do pelicano {•) e outras aves da familla dos-
{') f> pelicano encontra- 8 o mais nas prosimida<lcs da costa, abun-
dando nas iTioiitaiihas da Lucinfa
pdroipâd';», verJadeinis roncos, semelhantes aos sons pro-
duzidos por um sazephone desatinado, repetidos c reforça-
dos a distancia pelo echo e concavidade dos valles.
Nas planícies ou anhara* encontrasse, especialmente nos
togares pantanosos, nma ave da f&milia dos pemaltas, co-
nhecida entre o gentio pela denominação de panda (Grus
■ulata).
Estas aves, cujas pernas e bico ponteapiido, rematando
nm pescoço desmesuradamente alongado, attingem respe-
ctivamente 80 e 20 centímetros de comprimento, eneon-
tram-se ordinariamente aos casaes. Ao pressentirem o me-
nor raido aprumam rapidamente o corpo, estendendo para
74
o alto o seu descommunal pescoço, cujo branco de neve,
alvejando por entre o capin da planicie, muito antes da
sua proximidade, lhes denuncia o poiso, que depois abando-
nam, n'um magestoso e rápido voo, em que não é fácil
attingil-os a tiro.
Da familia dos pernaltas a ave mais curiosa que encon-
trei e de que, aliaz, me não seria fácil conhecer outro nome
que não fosse o que lhe é dado pelo gentio, é aquella que
se alimenta das carraças dos animaes, sendo vulgarissimo,
especialmente na visinhança das libatas, encontrar bandos
doestas aves empoleiradas sobre as manadas de gado do
gentio, que, assim, pachorrentamente, se vê deixando catar,
n^uma dupla vantagem para estas duas espécies d'animaes.
A estatura d'estes pernaltas é relativamente pequena, e
a sua plumagem branca de neve e macia como veludo.
Muitas outras curiosidades se encontram durante tão lon-
gas viagens, de que sucessivamente irei dando informação
no decurso doesta narrativa.
O primeiro acampamento que se nos deparou foi nas
proximidades da libata de Lumando.
D'este ponto apenas sé divisava muito ao longe, para oeste,
perfurando a immensidade do espaço, n'uma altura de
muitas dezenas de metros, a magestosa rnballa do Bai-
lundo, caprichosamente empoleirada no cume do aguçado
morro que lhe serve como que de pedestal, e nos permit-
tiu apreciar, em linha recta, a distancia que nos separava
do derradeiro ponto de partida.
As horas de descanço doeste dia, passei-as, como de
costume, registando impressões de viagem, trabalho que a
pertinaz doença me forçou a interromper por alguns dias.
No dia seguinte, ao fim de duas horas de marcha, deveria
ter logar a passagem do rio Cutato, limite conmium das
capitanias-móres do Bailundo e Bihé.
*
Cerca das 8 horas da manhS, fen^o a minha tipóia
attingido a orla de uma extensa floresta que vinhamoa
atravessando desde a madrugada, deparou-se-me uma ver-
dejante planície ligeiramente accidentada, que suppuz per-
núltisse aos machileiros uma longa trotaila ao longo do
ville; ^decorridos porém alguns minutos, um pântano, «
fríncipío disfarçado pelo capin, foi tornando succes&ivar
mente moroso o andamento da caravana que, dentro em
pOQoo, mergulhava até an joelho nas ngiias do rio, cujas
margens, por entre um labyrintho do jiine;is e denso can-
Mvial, se estendiam ao long.» da planicií n"ii:iia extensXo
de dgumas dezenas de metros.
A certa altura desta arrulienta travessia, attingín-se fi-
nalmente a ponte gentílica em que passamos para a mar-
gem O)iposta, na qnal nos esperavam idênticos trabalhos^
primeiro que se entrasse em caminho enxuto.
Eis-me, pois, em terras do Bihé, cujo ^vemo me es-
tava confiado. Ainda n'esse mesmo dia pernoitaríamos junto
da importante libata do Bihel, de que era senhor o po-
deroso sobba Caeulo-
r^-^f' -sí Cuêso, tâo conhecido
f ' ' ■ ■ .. pelos relevantes servi-
(t ■ ços prestados aos dis-
j? "■ tinctos officiaes do
nosso exercito, Faíva
Couceiro e Teixeira da
Silva, por occasiSo da
sua fuga do Bihé para o
Bailundo, seguidamente
á horrorosa tragedia do
sertanejo Silva Porto.
Cincoenta minutos,
approximadamente, de-
pois da travessia do
Cutato, alcançávamos
finalmente o esqueleto
de um grande irhilt.iiibo, acampamento, se este nome po-
derá dar SC a uma serio de chingues de que um recente
incêndio apenas havia poupado as toscas hastes de madeira
que lhes serviam de armaçàc. Grassava n'esta occasiSo por
quasi tudo o disiricto, com uma intensidade assustadora, a
epidemia de varií^la, que dc-simava, especialmente, a popu-
lação indígena, encontrando -se, por vezes, cadáveres de
abandunadus que fizeram parte de caravanas de gentio em
que a terrível doença se manifestara.
I
ii
Conhecedores os viajantes europeus do perigo que lhes
fodia occasionar a pernoita em acampamentos onde hou-
vessem estacionados varioiosps, incendiavam-lhes o capim,
<}omo medida preventiva contra futuros contágios, em ver-
dade, somente perigosos para os indigenas.
Iniciados os primeiros trabalhos para o improvisiona-
mento de novo chilomio^ um emissário de Caculo-Cusso
se approzima de mim, balbuciando um portuguez que me
não foi dado comprehender e que tomei na conta de cum-
primento, pelas divertidas eontomelias que na minha frente
exhibiu.
Traduzida a allocuçâo pelo meu interprete, vim ao co-
nhecimento de que o sobba do Bihel, cuja libata distava
pouco d'aquelle ponto, me mandava convidar para sua casa,
que não vinha pessoalmente offerecer-me, por se achar em
trajo impróprio de me apparecer, e pelo que ficava prepa-
rando uma toilette com que deveria apresentar-me os seus
cumprimentos.
A recusa, perante tâo amável offerecimento, por justifi-
cada que fosse, seria tomada, não só pelo sobba como por
todos os seus súbditos, na conta de uma represália que,
alem de profundamente os desgostar, os atemorisaria inmien-
so, na snpposição de uma eminente guerra — tal o ponto
a que chega a sua desconfiança e timidez.
Afim, pois, de evitar futuras complicações, e, satis-
fazendo mesmo á curiosidade que me estava inspirando
o interior de uma povoação de bihenos, acceitei o offe-
recimento do sobba, entrando novamente na typoia^ que,.
Juntamente com as cargas do rancho, fiz conduzir ao
alto de uma breve colina em que assentava a populosa
libata.
Grande parte do trajecto realisei-o atravez de um ex-
tenso arimo (lavra de milho, feijão, cará e mandioca)
de que se abastecia squella povoaçSo, a qne ao mesm»
tempo dava o pittoresco aspecto de nma formidável quinta
da nossa província do Minho. (*)
Attingido o cume <^a elevaçSo, arh»mo-nos cjn frent".
d'uma grossa paliiçada, em que, ao fundo e um pequeno-
largo, sa abria a porta principal de entra!.", na libati.
(I) O gentio aproveita os
maior desoavolvimento para o an
Para isso lança, na e|>oclia <
bnido n n'djalrite (macli adiu lio)
^
tí
I
N este íargo, sob a immensa ramaria <Ic velhos sycomo ' 1 i
ros, mais de 200 mulheres entoavam cânticos tão harmónio- \ ; |
SOS como monótonos, que faziam acompanhar de uma ensur- ^^ '
decedora guisalhada de cabaças, revestidas, eiteriormenie, ' \1
de ampla rede com numero- ^^^^^^^^^^^— i^^^ t ^
sas contas enfiadas. ^^^^^^^^^^^"^^M s,^
O ruido produ7.ido pelo
choque das contas de en- ^'^'^^I^^Hjj^^^^H \
contro á siiperticie d'ostas J0IW^^9^^^^|
cabaças, quando fortemente ^^ ..^^^fl^^^^l * ^
agitadas, a grande JJ^^^^Ê^^^^Ê . \ v
distancia, juntamente com ^^^^^W^^^^M'
aquelle coro excêntrico, que,
por ser exclusivamente com-
posto de vozes femininas, me
despertou sobremodo a atten-
ç3o, procurando desde logo
informar-me da sua significa-
ção.
Não tardou muito que ^^^^^^^^^^^^^^1' V^'
interprete me explicasse, ten- ^^^^^^^^^^^^^^
derem taes harmonias a afu-
gentar os espíritos maus da libata, onde deveria encon-
trar-se o qiiimhanda (mesinheiro) applicando o seu trata-
W
acção do fcgo niiO conseguiu destruir, sdii se prccceupar qne os \ í i
troncoB ciceditm 50 e mais eentinietros a Miiitificie (las terras que '• j
vae cultivar.
As cÍDzas provenientes ii'estB8 queiniiidjis, revohidas jun-
tamente com as terras na occasiuo do seu Runanlio, constituem, tSb -
símente, o adubo, alinz siífliciente, com que o gentio prepara os -
seus campos, em que faz as sementeiras, que dupni» são abuodan-
tetnente regadas pelas chuvas da epocha própria. ^
80
mento a qualquer doente (*). Achavam-se as executantes
distribuídas em diversos grupos que sorriam da minha
admiração, sem comtudo interromperem a sua supers-
ticiosa devoção.
Tendo penetrado na libata, achei-me, como em Caháta,
n'um labyrintho de ruas estreitas e lamacentas, por uma
das quaes os machileiroâ me conduziram a um largo.
Uma vez ali perguntei pelo soba, extranhando que ainda
o não tivéssemos encontrado. Foi-me então indicada uma
nova porta, talhada ao meio de uma segunda palliçada, que
isolava os aposentos particulares do soba e suas mulheres,
do resto da libata.
Transposta aquella vedação, deparou-se-me logo o sobba
que vinha já ao meu encontro, e me convidou a passar
ainda uma outra porta que nos levou propriamente ao
lombe^ (recinto em que tetn a sua cubata e da inácu (rai-
nha).
A toilette em que me appareceu Caculo-Cusso era tudo
quanto ha de mais pittoresco :
Vestia um antigo casaco cor de pinhão, de grande uni-
forme de major de infanteria, sem charlateiras, e ban-
doleira a tiracolo, pendendo-lhe da cintura uma bella es-
pada de copos amarellos. Na cabeça enfiara uma carapuça
Desde a sementeira até á colheita os ar imos dispensam quaes-
quer cuidados, o que não impede que esta seja abundantíssima,
attingindo as cannas de milho uma altura deveras notável, raras
vezes inferior a 4 metros, ao longo dos quaes se criam magnificas
espigas, ordinariamente cm numero superior ás produzidas nos
melhores terrenos da Europa
(^) O gentio attribue todos os seus soffrimentos á influenciado
espíritos maus ou feitiçaria como em capitulo especial desenvolvi-
damente exporei.
ribatejana, verde clara, forrada a encarnado, envolvendo-se,
da cintura para hauo, ii'uni lenço de chita com varíos de-
lenlios, em qne, apesar do muito uso, podia ainda distin.-
^ir-se o retrato de Serpa Pinto (').
Caculo- Cusío, como em geral todo o gentio, nSo pSe a me-
nor davida em usar qualquer vestnarío que lhe seja oHe-
recido, chegando a encontrar-se &\guas séculos, em dias de
s do littoral veuderam, em tempo, ao
gentio alguns leiíçoíi cem rutrntos dos nossos exploradores. A prin-
cipio foram estes leu^-os niuilo Rpreciados no serttto, até que,
tomHdoa vulgares, caliÍTiim fiDalmeote no desagrado do preto que
boje prefere ontrns no\ i(lad<'8.
82
lesta, vestídos por forma a não lhes faltar mesmo o ele-
gante chapéu fino, lustrosa camisa de gonmia e sobrecasaca,
que adquirem nas suas viagens ao littoral; o que porém
não supportam por muito tempo, são as calças e os sapatos.
Tendo-me recebido nos seus aposentos, fez-me sentir
a sua grande satisfação em ver que eu acceitára a sua
hospedagem, fazendo-me desde logo rasgados offerecimen-
tos, cuja importância baseava na immensidade dos seus do-
mínios e nos serviços que, por diversas vezes, prestara ao
paiz, idéa que, na sua rude linguagem, era significada pela
palavra muanepeto, que, para o preto, significa tanto a pes-
soa do chefe do Estado, como o simples official do exer-
cito com que mais de perto convive.
Depois de um interminável discurso, que, traduzido,
se reduziu a muito pouco, como sempre succede com as
conversas de pretos, fiz-lhe sentir que a minha impressão a
seu respeito lhe era muito favorável, em consequência das
boas informações que me tinham sido fornecidas, folgando
deveras com a boa disposição em que me dizia achar-se
para prestar o seu auxilio á auctoridade, que de futuro ali
seria exercida por mim.
Em seguida sahimos, indicando-me o sobba uma cubata
que destinou para eu ali passar a noite, e que, por esse
facto, fiz varrer com esmerado cuidado, por ter sido habi-
tação de um seu eecúlo, como todos os pretos, desconhe-
cedor dos mais rudimentares principies de limpeza. Sen-
tados nos bancos gentilicos apresentados pelo sobba, não
tardou que a inacu, da parte de seu marido, me offerecesse
uma ovelha, que tive de retribuir com uma anchorêta de
25 garrafas de aguardente, n'um ápice esvasiada pelo sobba
e sua numerosa corte.
A seguir os seus séculos presenteavam-me também com
varias quindas de fubá (espécie de alguidares de palha
83
entrançada) cheios de farinha de milho, e alguma batata do
reino que aproveitei na preparação do meu jantar.
Preparado elle, foi-me servido deante do sobba, convi-
dando-o então a provar a comida de hranco, que não acceitou,
por, segundo disse, lhe fazer mal, pedindo-me, comtudo, lhe
desse mais aguardente, com que desejava embriagar se em
honra da minha visita.
Fiz-lhe ver que tal vicio lhe não ia bem, pelo mau exem-
plo que dava aos seus súbditos. Caculo-Cuso riu então a
bom rir, dizendo ser isso preconceito de hranco, que nunca
poderia preoccupar os individues da sua raça, entre os
quaes, o estado permanente de embriaguez seria uma honra
para qualquer sobba, que se torna tanto mais digno do
respeito e admiração dos seus, quanto maior é o numero,
e mais fortes são as suas bebedeiras. Manifestando-se evi-
dentemente desgostoso em presença das considerações que,
sobre tal assumpto, lhe apresentei, não havia pois mais que
argumentar, mas o que também não havia já, era aguar-
dente, com que satisfizesse os seus incessantes pedidos, o
que deveras me contrariava, tanto mais que se succediam
a todo o momento os presentes de fuha e de ganjas (ca-
baças) com quinbombo (espécie de cerveja preparada pelos
pretos).
Não tardou, porem, que uma luminosa ideia me tirasse
d'aquella critica situação:
Recorrer á minha pharmacia, onde levava seis garrafas
de álcool a 40 graus! Feliz ideia!
Abri-lhe a primeira, que o sobba e seus ministros bebe-
ram com a mesma indifferença que beberiam se lhes ti «"esse
servido aguardente ordinária!
Não pude, porém, resistir á tentação de mandar-lhes per-
^ntar se não encontravam diflferença entre aquelle ul
timo liquido e o que lhes offerecera primeiro, obtendo como
resposta qne, ali, o Begociante de Combata (Bengiiclla) não
unha misturado agua do rio . . . Simplesmente divertido
tado isto.
Approximava-se a noite, e, tanto o sobba como o seu
conselho de estado, se achavam possuídos de nma verda-
deira alegria, de que não tardou a resultar um alegre ba
toque, em que o sobba, extraurdinariamente bcbado, per-
deu por completo a linha de gravidade em que, durante o
dia, se conservara, para, no meio dos seus súbditos, exhi-
bir uma serie de tregeitos e esgares curíosissimos, como
estava longe do suppór que, n'alguma parte do mundo, se
85
CaHiu repetidas vezes, sendo de prompto amparado pelos
seus séculos, que, longe de rirem, encaravam aquella triste
£gara com uma verdadeira admiração, que se não affas-
tava das theorias que o sobba, momentos antes, me havia
apresentado.
Apesar da gravidade do seu es'.ado, continuava fa-
zendo-me incessantes pedidos de aguardente, que eu fingia
não perceber, se bem que, com todas as lettras, pronun-
ciasse tal palavra.
Finalmente chegaram as suas dez mulheres, capitaneadas
pela rainha, um estafermo de uma velha, mais edosa do
que o sobba, de largas ventas completamente obstruídas
de simonte.
Á rainha, tendo ouvido o batuque, quiz vir mostrar-me
as suas aptidões musicaes, sobraçando uma besuntada har-
mónica de folie, que a desopilante odalisca, na minha frente,
dedilhava estupidamente, sem que de mim desviasse os
olhos, como que adivinhando a impressão que em mi-
nh^alma poderiam produzir os sons por ella arrancados do
enfadonho instrumento.
Estava já divertido, tanto mais que se avisinhavam as
11 Vi da noite, hora, muito decente, a que poderia pôr-se
termo áquella soirée selvagem, de que iiie despedi á fran-
ceza.
Não tinha ainda bem entrado na cubata, quando, der-
reado sob o peso da bebedeira, o Calulo-Cusso^ amparado
por duas das suas bem amadas, bate as palmas junto de
mim, em signal de respeito, e me pede, para a rainha,
aguardente rófina.
Foi a derradeira contribuição do dia. Lá lhe dei a se-
gunda garrafa d^alcool, que uma das pretas levou, ao mesmo
tempo que o sobba, em signal de reconhecimento, pregou
com o costado no chão, tombando- se repetidas vezes e
87
cobríndo-se por completo de terra. A casto consegui que
o pobre diabo me abandonasse o cubículo, onde tinha ar-
mado a cama de viagem, em que de prompto me metti,
para adormecer de um somno, a que só de madrugada pua^
termo.
De manhS cedo, ao sahir da cubata, a primeira enti-
dade que se deparou na minha frente, foi Caculo-Cuaso com
o seu comprimento, em rnhundo, Calunga, que, segundo o
uso, acompanhou com uma serie de palmas.
Feito o cumprimento, não se descuidou em dizer-me
que, antes da minha partida, desejava lhe deixasse uma
outra garrafa de aguardente, declarando-me ter gostado
immenso de mim, pelo que, na primeira lua nova, iria
á fortaleza apresentar-me os seus cumprimentos officiaes,
occasião em que se faria acompanhar de um boi, com que,
segundo o seu costume, me presentearia, esperando tam-
bém que eu li tivesse aguardente em abundância para elle
se emborrachar todos os dias, com as pessoas que o
acompanhassem.
São assim quasi todos os sobbas.
Tomado um ligeiro café, que acompanhei com algumas
bolachas, propunha-me a apresentar as minhas despedidas ao
régio hospedeiro, quando este me falia novamente na gar-
rafa, que, por distracção, deixara de offerecer-lhe, sendo pela
ultima vez satisfeitos os seus desejos, depois de ter feito
ama boa ãgura na sua presença.
D'esta vez, tendo junto de si os seus principaes nuicO'
tas, ordenou-lhes, n'uma espécie de voz de conmiando, que
se deitassem, e, depois de fazel-os dar uma série de tom-
bos, em que se cobriram de terra, desde a cabeça aos pés,
mandou-os então levantar, apromptando-se com elles para
me acompanhar, durante uma parte do meu trajecto, em
direcção a Chiticumuna.
88
Acceitei a companhia, que de tão boa vontade me era
offerecida, despedindo-se por fim o sobba, a certa altura
da caminhada, em que já se sentia cançado.
Surprehendeu-me a abstinência do sobba, que poderia
vantajosamente aproveitar o momento solenme da sua
despedida e respectivo conselho de macotcut, para formular
um derradeiro pedido de álcool a que impossível se toma-
ria responder com uma recusa. Dispunha-se Cctculo-Caso
a retroceder com a íntima satisfação que lhe resultava do
cumprimento dos seus deveres, quando lhe ordenei alg-uns
momentos de espera.
Fui eu então que entendi não dever deixar retirar o
velho sobba sem lhe agradecer a amabilidade da sua com-
panhia, brindando-o com uma quarta garrafa d'alcool, que
toda a corte do Bihel recebeu n'um verdadeiro delírio de
manifestaçSes, a que puz termo quando o poderoso reg'ulo
se dispunha a fazer, mais uma vez, espolínhar os seus
numerosos macótas, sobre o terreno alagadiço em que nos
achávamos.
90
cubata, coUocando perto do seu cadáver algumas garrafas
de aguardente, como que para mitigar-lhes a sede, visto que,
durante todo esse tempo, os suppSem adormecidos.
Esgotado o praso que consideram máximo para a re-
surreiçSo do sobba, iniciam entfto os festejos do óbito, que
se prolongam durante 15 e mais dias, segundo a riqueza
deixada ao herdeiro do throno.
O festejo do óbito de um sobba apenas differe do de qual-
quer outro século, na sumptuosidade da ceremonia; con-
sistindo, porém, todos n'um grande batuque, acompanhado
de repetidos tiros de espingarda e grande comesana, em
que são abatidos um ou mais bois, porcos, carneiros, etc,
tudo isto no meio de enorme bebedeira, que a ninguém
despega durante toda a festa.
As bebidas, quando pela pouca importância do óbito
não possam consistir em aguardente, são substituidas pelo
chimbombo, que o preto usa desde os seus tempos primitivos;.
K'alguns óbitos de sobbas de certas regiSes, como Luimbi
(G-aguellas) e ainda outros sobbados, juntamente com
diversas rezes, é abatido um preto (escravo) que é sabo-
reado pelos principaes personagens da familia.
Nos povos verdadeiramente avassallados, este repugnante-
costume acha-se por completo posto de parte, pelo receio
que lhes inspiram as auctoridades, e outro tanto se dá na.
proximidade das missSes.
Segundo a lei gentilica de bihenos e bailundos, o direito
de hereditariedade pertence aos sobrinhos e não aos filhos.
A explicação doeste facto encontra-se na pouca confiança
que inspiram ao gentio as suas mulheres, das quaes, como
mais adeante exporei, chegam a fazer copiosa fonte de
receita, estimulando-as, até, ao adultério, para darem logar
ao mucano (pleito) que ordinariamente se liquida com o
pagamento.
92
A distancia de Chiticumuna a Belmonte deverá avanta-
jar-se a qualquer outra percorrida nas mesmas oito horas
que, ordinariamente, se gastam entre estes dois pontos,
quando, por motivo de força maior, este precurso haja de
ser feito n'uma só étape, o que não succede nas marchas
ordinárias.
E comprehende-se isto pela ausência absoluta de obstá-
culos, durante uma grande parte doeste trajecto, que é feito
atravez da interminável anhara de Bulo-Bulo, enorme pla-
nicie que, a 500 metros a partir de Chiticumuna, se depara
ao viajante, n'uma extensão que deverá orçar por um mi-
lhar de kilometros quadrados, em que o teodolitho não
accusaria diflferenças de nivel apreciáveis, entre quaesquer
dos seus pontos, por forma a não poder considerar se o
terreno inteiramente horisontal.
£is-nos pois atravez do Bulo-Bulo, cujo capim, sedoso
e débil como o feno, era mansamente agitado pelo vento,
em ondulações graciosas, que, levando comsigo uma infi-
nidade de papoulas, se perdiam na immensidade da planí-
cie, dando-nos a distancia a curiosa impressão de um mar,
trato du pequenos trajectos, não excedentes a 4 dias, em que o
viajante se faz acompanhar de uma pequena mala de peso insi-
gnificante.
Uma viagem forçada de Benguella ao Bihé, por exemplo, so-
mente poderia ser exequível, se aos carregadores fossem distri-
"buidos volumes relativamente leves, o que augmentaria considera-
velmente o seu numero, e por consequência a despeza no transporte.
Fora da epocha das séccas, impossível se torna uma viagem de
^ol a sol, em consequência das fortíssimas trovoadas que, do meio
dia por de ante, aífogam o viajante n*um verdadeiro diluvio de agua,
>em que os caminhos ficam completamente submergidos, cami-
nhando-se, em taos condições, com grande morosidade, e debaixo
*<le um risco eminente.
^^-^I^^s^M^^^^^iiAAAflMHritt
ligeiramente encapellado, em que se produziam cambiantus
de Inz verdadeiramente maravilhosas.
 travessia da anhara foi feita d'uma trotada, íntor-
romptda apenas pelo opangnrola dos carregadores, ou suar
snbstituíçSo (').
(') C&upangvrola, verbo, significn mudar. Opatigurola, 2.' pes.--
SM da tiognlar do proseote do indicativo (rnudn', é palavra que o-
tiajiute de t^ioia ouve prounnciar uma iufiaidade de vezes aoe--
airegadoroB que, quando caiiçadoa de qualquer dos hoinbros, de-
sejun madar o bordSo para o outro hombro on para a cabeia.
94
Estes, ao sentirem* se em caminho direito e horísontal,
voavam com a typoia, procurando animar-se com os seus
gritos e phrases variadíssimas:
— Uhé, uhé, uhé! . , . Uaré quété!... lurú^ lurú! etc.
Em três horas attingiamos o final da anhara; quando,
porém, nos achávamos a cerca de um kilometro da orla de
um pequeno bosque, limite leste da extensa planicie que
vínhamos seguindo, estacaram de repente os machihiros,
dizendo-me qualquer cousa que, a principio, não pude
comprehender, apezar da insistência que faziam na palavra
olongiriy que todos pronunciavam em voz baixa, apontando
para a frente, n'uma direcção que não tardou a pôr-me ao
<)orrente do que se passava.
Uma manada de antilopes (oloíigirij pastava pachorren-
tamente, perto do bosque, de que aproveitava a som-
bra. Immediatamente pedi a Manllicher, que se fez demo-
rar alguns minutos, por se encontrar ainda á rectaguarda,
como de costume, o preto que, ordinariamente, m'a trans-
portava a tiracolo. Introduzindo-lhe as cinco cargas, eis-me
para logo em perseguição da volumosa caça, no que me
fiz acompanhar por dois prelos dos mais ladinos, depois
de ordenar ao resto da caravana que esperasse n'aquelle
ponto.
Por entre o capim espreitava o paradeiro dos formidá-
veis animaes que, ou por concluída a refeição ou por que
me presentissem os passos, começavam a embrenhar-se pelo
bosque.
Poucos restavam já no ponto em que, primitivamente, os
vira, resolvendo-me este facto, não obstante achar-me ainda
n cerca de 400 metros de distancia, a atirar sobre o que
mais a geito me pareceu, quando os animaes, aprumando
Vepentinamente o pescoço, largaram no seguimento dos
-seus companheiros.
mmtà
M^iaairitaairiÉMaiMBHMAi^Haa:^
Alguma, cousa ainda se acfa
a direita, que prendia a atten
tião tardando estes a indicai
(domhahij, sobre uma das qi
[ ticuiosa, appoiando o cano d<i
I um dos pretos que me segníac
I mira sobrepostos, projectavai
dadeiramente maravilhosa, si
aoimal.
Nada mais restava, pois, d
se^idunente apanhar a caça.
f mais ainda a dos pretos, qi
sDCcesso da Oabuita.
Fogo ! A detonação, sem vi
melhou-se ao estalido sêcco d'
nm agudo sibilar ao longo da
decepção ! O pobre animal, c
dade restante do meu project
tiginosa, de que bem podia co
restava.
Uma inesperada trovoada ir
proseguir, acampan-.!o a três hi
applauso dos carregadores, qii
com ttapee superiores a 6 lior
Este contratempo, no restí
liu-me, porém, evitar uma f
cupação de caminhar, por ce
paisana na fortaleza, que ia
estado lastimoso em que os e
viam posto o vestuário, que n.
Aproveitei, pois, o tempo, i
couro que, por duas vezes, i
mente, porém, que a agua
ÍM
quantidade tal, que os ardores do sol, durante o resto da
viagem, não tivessem enxugado por completo a roupa que
continha, na qual apenas appareciam algumas manchas
amarellas.
Quando me dispunha a estender a roupa, para lhe fazer
perder o cheiro a bolor, produzido pela humidade, um
incidente deveras agradável se deu no acampamento :
A cerca de 100 metros, dois rapazótes de 14 a 16
annos, filhos dos carregadores, approximavam se, trazendo
em suspensão uma soberba gazella (*).
Lançada sobre a relva, ao centro do acampamento, não
tardou que verificasse, pelo pequeno ferimento que apre-
sentava junto do pescoço, ser aquelle o antilope sobre que,
duas horas antes, havia disparado a Alanllicher.
Os carregadores, tão vivamente impressionados pelo meu
colossal successo de Cahuita, não podiam admittir, que, a
uma distancia relativamente pequena, podesse ter sido er-
rado este ultimo tiro; e, tendo-me visto s^^guir, suppuze
ram que, apenas por não querer atrazar viagem, deixasse
de mandar procurar a caça, que elles, talvez na carreira^
reconhecessem ferida.
(1) O gentio transporta as suas cargas, geralmente, á cabeça oa
hombro; quando, porém, pelo seu feitio especial e peso dema-
siado, a carga não possa ser levada por um só homem, ligam-na
então, por meio de cascas de arvore, a um comprido varapau que
lhes permitte a distribuição do peso por dois carregadores, pe-
gando ao hombro, um em cada extremidade.
£* também por este systema que transportam o homem, vivo ou
morto, com a diíFerença de que a rede da tj/poia, suspensa do
bambu por meio de duas argolas, dispensa a ligação, que n'outros
casos, se faz por meio de cascas d'arvorc.
Porcos, carneiros, cabras, etc, e, no caso presente a corça, são
transportados egualmentc, vivos ou mortos, depois de previamente
•v
mm^
98
Foi por isso que mandaram os dois rapazes no seu en-
calço, encontrando-a finalmente estendida no meio do matto,
onde formara uma pequena poça de sangue (').
Ha muitos dias que não comia outra carne que não fosse
de gallinha, e por isso me preparava para saborear uma
perna do delicioso antilope, que passa por ser superior á
do próprio onunci (*).
lhes terem sido ligados os membros, por forma a nSo deixarem
escapar o varapau, que fazem passar no sentido do comprimento
do animal, entre o peito e os pontos de ligação.
(1) A carabina Manllicher, como outras armas de calibre redu-
zido, não produzem a morte instantânea em qualquer animal, a
não ser que o ferimento seja no cérebro ou coração, o que só por
mero acaso poderá dar-se. A caça attingida por estes projecteis
pode correr ainda por algum tempo depois de ferida, por forma
a esconder-se no matto e não ser encontrada. N'este caso, como o
exemplo que deixo exposto demonstra, os melhores cães são os
pretos (gentio) que ordinariamente vão descortinar a caça ao fim
de algumas pesquizas, conhecendo demais a mais, na carreira, a gra-
vidade do ferimento, de que, por consequência, depende a maior
ou menor insistência na procura.
Os cães, posto que podessem prestar algum serviço na descoberta
da caça, não convêem, visto que, geralmente, a espantam muito
antes da distancia a que o tiro pôde considerar-se efficaz. Os pró-
prios boers, caçadores por excellencia, não fazem uso dos cães
que, quando muito, apenas poderiam ter applicação na caça meu-
da, a que em Africa ordinariamente se dá pouca importância, e que
também, por sor essencialmente mansa, pôde mesmo matar-se pa-
rada. A*s tardes e de madrugada as perdizes, junto dos pequenos
regatos, matam-se facilmente no chão, encontrando-se também
n*estes mesmos pontos muitas lebres, fáceis de alcançar a tiro.
(2) Tanto a carne de gazella como a de onunci são deliciosas.
Vulgarmente preparam-na deixando-a durante 24 horas de vi-
nho e alhos, e, seguidamente, assando-a no forno, depois de tem-
perada com banha de porco e sal.
«^S^^PB?
102
fdndamento, á visinhança de responsabilidades que me
resultariam da espinhosa administração do Bihé, cuja inves-
tidura marcaria, para assim dizer, o íinal da minha exis-
tência despreoccupada.
Não me desagradaria proseguir por essa Africa fora, em
cata de novas sensaçSes que, por muito desagradáveis que
fossem, preferiria ás difficuldades de toda a ordem, origi-
nadas nos governos do interior, acerca das quaes, um dos
meus primitivos companheiros de viagem, n'uma ligeira
prelecção, me pozéra ao corrente.
No entretanto os machilUeiros, anciosos por alcançarem
os chimhos, (povoaçSes) galgavam montes e valles, com
uma resistência e coragem, que até então não tinham re-
vellado. Tinha já transposto o rio Cuquema, á falta de
ponte como em muitos outros rios, escarranchado sobre o
pescoço de Chipondonffo, amável e serviçal carregador
que, durante toda a marcha, me prestou grandes serviços.
Finalmente, eram 10 horas da manhã, attingiamos o
alto de uma elevação, d'onde, a meio d^uma encosta fron-
teira, de não grande declive, se avistava, sob o aspecto de
velhos casebres de uma quinta phylloxerada, a pseudo-
fortaleza do Bihé, orlada de gigantescos sycomoros, por
entre os quaes alvejava a pequena residência que me es
tava destinada, e que por tantos annos o fora também do
velho sertanejo que lhe deu o nome.
Eis finalmente á vista o «Forte Silva Porto».
Para o attingir não havia mais do que descer o monte
e transpor o Culto, galgando depois cerca de 300 metros
da nova encosta, ao longo da qual se achavam dispersos
muitos montões de lixo, em que se adivinhavam diversos
períodos de accumulação, predominando ahi as latas de
conservas alimenticias e outros objectos inutilisados e fer-
rugentos, provenientes dos despejos da fortaleza.
m"-i. ^t.mipw^mv^mmmm^s^^^^^m^^^'-^^'^. * - -^ ^ - v^
104
Ao entrar a porta das armas senti-me um tanto nervoso.
Desconhecia o meu antecessor, assim como todo o demais
pessoal da capitania, acerca do qual corriam vers5es tão
variadas como inverosimeis, que, desde Loanda, me ha-
viam sido narradas, no evidente intuito de me desgostarem.
Descendo os degraus de uma pequena escada da resi-
dência, para vir ao meu encontro, reconheci logo o capitão
Almeida Fragoso, pelos signaes que diversas pessoas an-
tecipadamente me tinham dado da sua pessoa, um valente
minhoto, essencialmente bondoso e amável.
Na sala da residência, entre outras pessoas, na sua maior
parte negociantes, tive prazer de encontrar o meu amigo
de Loanda, ex.'°^ sr. coronel Lourenço Padrel, que para
mim foi sempre tão sympathico como affeiçoado amigo.
Passados momentos, meu irmão, que havia £cado um
pouco á rectaguarda, entrava egualmente na sala, onde
fiz a sua apresentação. Seguimos depois para a casa de
jantar, onde o meu illustre antecessor nos convidou a sen-
tar em volta de uma ampla mesa elyptica, coberta de alvís-
sima toalha, em que um magnifico caldo verde se não fez
esperar, seguido de outros pratos muito para apreciar, de-
pois de uma viagem na qual os prazeres da mesa se acha-
ram sempre infinitamente reduzidos.
Duas bojudas garrafas de crystal cheias do famoso
liquido que, segundo o Velhò Testamento levou o santo
patriarcha ao quinto peccado mortal, completavam por
forma condigna aquelle delicioso mise-en-scène que momen-
taneamente nos transportava a um paiz civilisado.
Todo aquelle relativo conforto dispensei com natural
indifierença, durante os 24 dias da minha viagem ; apenas
uma falta se tornou para mim extraordinariamente sensí-
vel: — A do jião — .Dispensa se bem a carne e o vinho,
mas não nos tirem o pão.
105
Ali havia também miignifico pâo, cosido no próprio dia,
alimento de que imraediatamente me servi e demorada-
mente mastiguei.
O pão com que sahiramos de Catumbella e que poderia
conservar-se relativamente fresco durante 4 ou õ dias, de-
\ido a uma indesculpável imprevidência de empacota-
mento, transformou-se numa pasta insupportavel com a
enonnissima trovoada da Lucinja. Durante alguns dias,
puis, acompanhávamos então as nossas refeições com bo-
lacha de agua e sal, reserva que, infelizmente, acabou tam-
i>em nas alturas de Cahata.
A capitania-mór do Bibe não tem como os demais con-
celhos de districto, definidos os seus limites, estendendo-se
a esphera de administração, até aonde as diversas tribus
gentilicas podem considerar-se avassaladas. Apenas uma
parte do rio Cutato é tomada como limite oeste que a separa
da capitania mór do Bailundo, sem que comtudo, official-
mente, qualquer cousa se ache legislado a tal respeito (*).
Com a ida ao Bihé da expedição, sob o commando do
fallecido major Arthur de Paiva, por occasião da gloriosa
morte de Silva Porto, facto de que depois me occuparei
detalhadamente em capitulo especial, teve logar o aprisio-
namento do sobba grande da região, Dunduma, ficando
alguns séculos ou sobhttas á testa das respectivas libatas,
e todos mais ou menos submettidos á auctoridade militar
que, desde então, ali se tem conservado (^).
(>> Ao sul o rio Qaquêma apenas estabelece o limite commuin
dos paízes de Bihé e Gauguellas; admiDistrativamente, porém, o
Liiimbi (Gaoguellas) faz parte da capitania-mór do Bihé.
(') Excepção do sobbado da Gamba, onde ainda alguns sé-
culos se conservam rebeldes, talvez pela pouca superioridade que
reconhecem ao sobbêta da região, que, da sua parte, visita a forta-
leza e se manifesta perfeitamente subordinado.
i
wsr^sccs3 i*i^ ::;9ssm!msseKS9mm
106
A sede da capitania, como já tive occasi^ de dizer^
acha-se estabelecida no «Forte Silva Porto», a antiga libata
do explorador que lhe deu o nome, depois de organisada
defensivamente com a abertura de um fosso de 4 metros
de largura por 5 de profundidade.
Nada justifica o estabelecimento d'este forte no local
em que actualmente se encontra, a não serem as circums-
tancias que revestiram a morte de Silva Porto, que n^este
ponto teve logar, e, como no Bailundo, o aproveitamento
das edificações existentes.
Effectivamente acha-se este forte situado a meia en-
costa de uma pequena elevação, e por consequência, com-
pletamente dominado pelo lado do sul, não sendo mesmo
fácil conseguir-se-lhe um desenfiamento com a construcçãa
de um parapeito, que actualmente não possue.
Mediante a superior auctorisação, que nunca me foi con-
cedida, poderia iniciar-se a construcção de um novo forte
a cerca de 300 metros ao sul do actual, oflferecendo n^este
ponto a sua situação muito mais garantias para uma boa
defeza, mormente, se, como é natural, a sua construcção
se regulasse pelos preceitos da fortificação.
Nas condiçSes, porém, em que actualmente se encontra,
é mais que sufficiente para que a sua guarnição possa de-
fender-se de qualquer ataque, aliás pouco provável, do gentia
da região ; no entretanto torna-se reparada a applicação de
tal nome a um recinto, no qual, para não perder de toda
o aspecto de libata, conserva ainda o característico cer-
cado de paus a pique com que o gentio estabelece a veda-
ção n'esta espécie de aldeias, a fim de preservar durante
a noite os seus gados, dos frequentes ataques das feras.
O traçado que propuz para a construcção do novo furte
em nada se afi^astava do actual: quadrado com dois tam>
bores oppostos de flanqueament(».
'^
senriço das guardas, usam de preferencia ao sen uni-
forme (').
Por outro lado a multiplicidade de serviços conunetti-
dos ao pessoal da capitama-mór e a deficiência d'este.
nunca permittiriam dar grande desenvolvimento & instmo-
ção militar do destacamento, a qual nunca passou de umas
pequenas evoluçSes em ordem unida e manejo d'arma.
(■) Convém notar que o soldado indigena dífficilmente se sn-
joita á vida de caserna, preferindo a sanzala (espécie da acampa-
mento) em qae possa ter mulher que lhe prepare as suas refei-
A residência e mais de]
d3o tem gasto um real, o i
todos os cominandos affasla
reparaçCes, para que nunca
rança de que me fosse satia
çâo do novo forte, onde enl
a Fazenda, poderiam realisi
A reside D cia e suas depe
las seguintes casas, disperí
casas do capitão-mór, otliciae
secretaria e repartição do c<
da extÍDCta Colónia Fenal ili
sSo e casa da guarda.
A casa do capitão-mór a
com a frente voltada para
cti vãmente parallelas ás do i
tros ao centro da fachada p
manentemente se acha hasti
Esta casa, com 4 metroi
nos seguintes compartiment
duas janellas para a frente,
ao centro, como mobília, umi
dineira, coberta com um p
assentava um pesado candi
Jus da sua edade e natural
dos pelos profanos que o te
tar-me os seus serviços,
Encostado á parede, coi
sentava desconjuncfado sof
por taboas aproveitadas de
riormente revestido por um
condia o capim com que
suppríu as mollas.
110
Fazendo angulo recto com este sophá, tinha encostada
a uma das paredes lateraes uma chctUse-longue de cons-
trucção americana e duas cadeiras de balouço, algo perí-
.gosas por se voltarem com facilidade, proporcionando
divertidas cambalhotas a quem se excedesse na lattitude
das suas oscillaçÕes.
No espaço comprehendido entre as duas janellas, uma
jpequena mesa rectangular aguentava uma enorme caixa
de musica systema Elliopp, a que podia dar-se corda para
20 minutos, durante os quaes era estupidamente moida
•uma série de dez musicas em que figurava a valsa da
sombra da Dinoràh, a Santa Lúcia e outras, que ao cabo
de alguns dias me faziam dores de cabeça.
Alguns antigos quadros de bom gosto, symetricamente
dispostos ao longo das paredes e umas ligeiras sanefas de
chita que pendiam das janellas, completavam a decoração
d'esta sala que communicava por uma espécie de arco
•-com uma outra destinada a casa de jantar.
Tinha também duas janellas esta sala, egnalmente des-
provida de vidraças, que em todas as janellas da residen-
-cia eram substituidas por umas segundas portas exteriores
^m forma de persiannas.
Além da mesa de jantar, apenas havia n^esta sala um
.aparador com duas gavetas, sendo o guarda-louça cavado
na parede. £squecia-me mencionar oito cadeiras de palhi-
nha que os mulequea mudavam durante o anno da sala
de jantar para a de visitas e vice- versa, segundo as
necessidades, 366 x n, sendo n o numero das refeiçSes que
ordinariamente variava segundo o dos hospedes que ines-
j)eradamente se apresentavam, muitas vezes depois de ter-
minadas as minhas refeições habituaes.
Uma estreita porta fazia communicar a casa de jantar
com um pequeno quarto que destinei para casa de banho
^i^mm^^^fm^mB^^m
111
e de que pela sua vez, se passava para um outro quarto,
que tanto eu como os meus antecessores, aproveitámos
para aposentos de dormir.
Tinha este quarto uma mobília relativamente confortá-
vel: Bello leito desmesuradamente espaçoso sobre que as-
sentava um magnifico colchão de arame. Uma banquinha
de cabeceira e toilette-commoda com varias gavetas e ma-
^ifico espelho de crystal, sendo n'este movei a pedra
mármore vantajosamente substituída e fingida por um pe-
daço de oleado branco, convenientemente estirado na
parte superior.
 mobilia existente na residência do capitão-mór, sua
propriedade exclusiva, a^^sim como louças, talheres, etc,
furam adquiridas por compra ás missSes americanas, visto
que o Estado, assim como não tem effectuado despezas
oom as edificaçSes, não dispendeu egualmente um real, na
compra de mobilia, naturalmente indispensáveis para o
official que ordinariamente tem de estabelecer no matto
uma demorada permanência, como commandante militar.
Esta mobilia passou sempre, por venda, com uma pe-
quena depreciação no seu valor, em consequência do uso,
de um para outro capitão-mór, no acto da posse doeste e
retirada d'aquelle.
Se um determinado capitão-mór, por occasião da sua
retirada, se negasse, por qualquer circumstancia, á venda
da mobilia ao seu successor, coUocal-o-hia n^uma situação
extraordinariamente critica, em que se veria forçado a
dormir durante alguns annos na sua esguia cama de via-
gem, cosinhando sobre três pedras como o gentio; co-
mendo sobre uma das suas malas que egualmente lhe
serviria de banca de trabalho; e finalmente recebendo as
suas visitas de pé, por não possuir, cadeiras para lhes
oflTerecer.
1
<«
*
^
^
^
i l
M
ti
I
r;
;L
■h
i v
•1
V
{'■■■
n
I
i
: 1
'• i
A sala de janfar tem uma porta que dá servenlia para
um vasto quintal em volta do qual se acham dispostas al-
gumas pequenas casas, ta^s como cosinha, em que assenta
um magnifico fogSo, propriedade egualmente do eapitSo-
mór; quartos para cosinhoiro e orçados de iresa, e ao fundo
arrecadação de fazendas (mceda para pagamento ao des-
tacamento c carregadorfK). A casa para officiaes acha-se
á esquerda da residoncia do capitão-mór, com cuja frente
faz um angulo sensivelmente recto.
Ksta casa tem apenas duas divisões, uma das quaes era,
ao tempo, aproveitada pelo fallecido tenente Coelho d;i
Silva e esposa, para quarto de dormir, sendo o a outra
para sala de trabalho, de visitas, e em casos estraordi-
nHvios, para jantar, visto que, segundo os preceitos estu-
helecidos desde longa data, o capitão-m<5r dava de comer
113
8
nr » ♦
i -
t
I •
» '
aos seus subalternos e família, se a tivessem, pratica esta
que, da minha parte, não alterei. k^%
A' direita da residência do capitão mór, com a frente . ^ ,
voltada para esta e sensivelmente parallela, encontra-se a • . ^
casa dos sargentos, cuja disposição interior não differe da
dos officiaes, senão pela situação das portas.
Á casa dos oíBciaes é a única cujas janellas se acham
guarnecidas de vidraças, o que a torna relativamente con-
fortável e de melhor aspecto. Com a transferencia do te-
nente Coelho da Silva para o Bailundo, passou esta casa
a ser a minha residência effectiva, em que egualmente fazia
o men gabinete de trabalho.
Fronteira á casa dos officiaes inferiores havia a casa da
guarda com uma tarimba a todo o comprimento, e em \
frente da casa dos officiaes, á direita da residência do ça-
pitão-mór, a secretaria e repartição do correio, com três
mezas, um armário fechado e um relógio de parede.
De cada lado da residência do capitão-mór, a egual
distancia e sensivelmente alinhadas, havia duas casas para
hospedes, divididas em quartos, desprovidos de mobília,
visto que, geralmente, os visitantes da fortaleza se fazein
acompanhar de camas de viagem, o que de resto, se tor-
naria indispensável, attendendo ao grande numero que ?
algumas vezes ali chegava a juntar-se.
Entre uma doestas casas e a dos officiaes havia uma i
outra destinada a deposito de cargas da Colónia Penal i
Militar Agrícola de Mochico, e junto da face sul do forte,
uma outra casa com três compartimentos, destinada a pri-
são. • ^^
Entre esta casa e as trazeiras da residência crescia um
magnifico pomar de larangeiras e limoeiros, com cerca de
200 pés muito bem alinhados, que Silva Porto mandou
plantar quando habitava a antiga libata de Belmonte.
t
I
;
i
i
I
I
114
Este poirar que no tempo de Silva Porto produzia ma-
gníficos fructos, deteriorou-se um pouco com a abertura
do fosso, que na épocha das seccas, lhe enxugava as ter-
ras, justamente quando se operava a maturação dos deli-
ciosos pomos. Ha também dois paioes, sendo um destinado
a muniçSes de infanteria e o outro ás de artilheria.
Estas duas casas, assim como a do capitâo-mór, eram
as únicas cobertas de zinco, sendo todas as demais a capim.
Esta cobertura é a mais económica e sobretudo a mais hy-
gienica que pôde adoptar-se no sertão africano, permittindo
estabelecer e conservar uma temperatura constante no inte-.
rior dos aposentos, propriedade esta do capim, deveras
para apreciar no plan'alto do Bihé, em que, no cacimbo, se
produzem differenças de temperatura consideráveis do dia
para a noite.
A cobertura de zinco tem ainda o inconveniente do ruido
ensurdecedor que contra ella produzem as chuvas de se-
tembro a abril. O forte de Belmonte esteve em tempo ar-
tilhado com duas peças de montanha de 7 c, uma das
quaes ultimamente foi enviada para o Bailundo.
Além de 110 espingardas Seneyder destinadas ao des-
tacamento indigena, que ao tempo se achava reduzido a 42
praças, existiam ainda a cargo do capitão-mór do Bihé 18
espingardas Martyni Henry que, em caso de conflicto com
o gentio, poderiam ser distribuídas por auxiliares (nego-
ciantes).
Interessante cavaco com Jonquim Guilherme Gonçalves (o Chiti-
dartdfr) áctrca da tragedia de Belmonte — Saa louvável predi-
lecção pelo valente capitSo Paiva Coaceiro — Eminente risco
de vida (I'e5te official e do seu digno companheiro e velho africa-
nista, Justino Teixeira da Silva — Sua retirada para oBailundo
— í^Dicidio de Silva Porto — O negociante Santos Gil — Duit-
duma {aohla grande do Bihé) — Discordância de opiniões entre
este potentado e o de Beilundo — Conferencia de Teiíelia da
Silva com Equiqui (tobba do Bailundo) — Viagem de Couceiro
ao Uncusso. Seu regresso — Expedição ao Uihé ~~ Prisão e
deportação de Lhmduma.
A fim de servir-me de interprete das falias do gentio,
foi-me indicado, ao fim de alguns mezes da minta admi-
nistração, o mulato biheno, Joaquim Guilherme, o Chin-
àanãtr, homem de cerca de 50 annos de edade, regular-
mente intelligente e dotado de uma privilegiada memoria
que lhe penuittia a reproducçSo das intermináveis conversas
116
do gentio em que, de ordinário, muito se falia e pouca
se diz.
A physionomia sympathica e insinuante de Chindander,
assim como a boa disposição em que a seu respeito me
coUocou o conhecimento de alguns valiosos serviços por
elle prestados ao paiz, levavam-me, ordinariamente, a es-
cutal-o com verdadeira attenção, quando porventura um
excesso de álcool, que muito apreciava, o não tivesse tor-
nado um insupportavel massador.
Era Joaquim Guilherm**, com justa razão, um dos mui-
tos devotados admiradores de Paiva Couceiro que, a todo
o momento, se encontram no sertão de Benguella, onde o
distincto official poderá contar o numero de amigos pelo
de sertanejos que lhe presencearam os seus actos de incom-
parável sacrifício e inexcedivel valor.
Em consequência d'esta predilecção de Joaquim Gui-
lherme por Couceiro, quasi sempre as suas conversações
recahiam sobre assumptos referentes a qualquer facto que
mais ou menos se ligasse com aquelle oíBcial, cujo nome,
por vezes, no auge do enthusiasmo, lhe ouvi pronunciar
com os olhos marejados de lagrimas.
A viagem de Paiva Couceiro ao Bihé, com destino ao
Barotze, no patriótico intuito do engrandecimento dos nos-
sos dominios, com a vassalagem d'essa importante região ;
o risco inmiinente de sua vida por occasião da tragedia
de Belmonte, a sua retirada para o Bailundo, com Tei-
xeira da Silva, e finalmente a sua viagem a terras de
Mucusso, na irritante impossibilidade de pôr em pratica
o seu primitivo itenerario ; eram factos que Joaquim Gui-
lherme narrava, possuído sempre do mais vivo eníbu^-
siasmo.
Um dia, contava-me elle, passeiando nós na parada da
fortaleza:
— «Tendo o sr. teaente Henriqne de Fúva Couceiro
chegando ao B^undo, hospedou-se no sitio denominado
Catapi, logar que o tobba Equiqui, do Bailundo, havia
offerecido ao sr. capitão Teixeira da Silva, para sua mo-
rada, (hoje fortaleza do Bailundo). Acompanha vani o sr.
tenente Couceiro o negociante Adriano dos Santos Oii, o
lingua Filippe Coimbra, (o CandunAa), e sua comitiva.
•O sobba do Bulundo recebeu estes senhores com todo
o prazer, obsequiando-os segundo os seus recursos. Du-
rante 05 dias em que o sr. tenente Couceiro permaneceu
no Bailundo para se refazer do cançaço da viagem, offe-
receu alguns presentes ao sobba, com os quaes este se
sentiu immensamente penhorado, fornecendo áquelle se-
nhor alguns carregadores, de que necessitava, para o
transporte de cargas, assim como mantimentos para os
que o acompanhavam.
«Continuou depois o sr. Couceiro a sua viagem para o
Bihé, onde acceitou a hospitalidade que the foi offerecida
pelo seu camarada, capitão sr. Teixeira da Silva, vísinho
do sertanejo Silva Porto.
«Ao lim de alguns dias de descanço, preparou-se o
sr, Gil para voltar a Benguella afim de fazer conduzir ao
Bifaé o resto das cargas do sr. Couceiro, que o reduzido
numero de carregadores lhe não permiltiu trazer de uma
só vez.
«Reunido a Silva Porto, antigo e prestigioso negociante
do Bihé, resolveram os dois dirigir-se á m'balla do gobba,
afim de lhe apresentarem os seus cumprimentos, e, segundo
a lei gentílica, o presentearam condignamente.
•Aproveitou desde logo Silva Porto este ensejo para
fazer vêr ao sobba o lim da vinda de Paiva Cou<;eiro ao
Bihé, onde apenas passava na sua viagem ao Barot/<>.
para onde se dirigiria, logo que elle aobba lhe offereeessí
118
os carregadores necessários para o transporte das suas
cargâs.
«Immediatamentc o sohla declarou que da melhor von-
tade fornecia os carregadores pedidos, ficando (íesde logo
assente que a partida teria logar poucos dias depois da
chegada do sr. Gil, que ainda se achava para Bengiiella.
«Estava, pois, o Dumluma (assim .se chamava o sobba
do Bihé) nas melhores disposições para com os dois senlio-
res, nunca podendo, ao certo, averiguar-se qual a pessoa
que, ou };or inimisade pessoal para com Silva Porto, ou
por conveniência politica, levou Dunduma á convicção de
que a vinda do íUustre official ao Bihé, apenas obedecera
á ideia de ali construir um forte. E, por grandes que ti-
vessem sido os exforços empregados pelo infeliz sertanejo^
para d'isso despersuadir o sohba e obter d'elle o nome da
pessoa que tão erradamente o informara, nada absolata-
mente lhe foi dado conseguir. E não obstante Silva Porto,
até ali, merecer a mais absoluta confiança de todo o geutio
da região, entre o qual o seu nome havia conquistado,
durantií longos annos de permanência, um extraordinário
prestigio, começou desde logo a ser, pelos híhenos, consi-
derado como traidor, manifestando llie um geral desagrado
em repetidas faltas de respeito que sobremaneira desgos-
tavam o pobre velho.
«A guerra estava já declarada, se bem que o gentio
não houvesse dirigido ainda qualquer attaque ás residên-
cias dos europeus que se achavam em Belmonte.
«Um ultimo exforço foi ainda empregado por Silva Porto,
no sentido de despersuadir Dunduma d^aquella errada con-
vicção, procurando demovel-o das suas aggressivas inten-
ções com respeito aos europeus que, apenas de passagem,
se encontravam nas suas terras; o resultado, porém, alcan-
çado pelo patriótico sertanejo, em presença do sobba, então
■?!f^^w^ff^^W^
MM«
^6m^0Êi^^ 'Z-
119
inabalável e já só disposto para o mal, foi egual, senão
peior, ao obtido na primeira entrevista, correndo geral-
mente a versão de ter Silva Porto sido esbofeteado por
Dunduma, na presença dos seus séculos, e com galhofa
de ordem tal, que levou o pobre velho ao doloroso extremo
de resolver desde logo, pôr termo á existência.
«Fosse como fosse, não resta duvida alguma, de que
Silva Porto tivesse sido exovalhkdo pelo sobba e recolhesse
desgostosíssimo a sua casa.
«Uma vez ali, depois de dar aos illustres oí&ciaes conhe-
cimento do insuccesso dos seus exforços, rodeou-se de
grande quantidade de barris de pólvora, que possuia arma-
zenada para negocio com o gentio, e, depois de envol-
ver-se na bandeira natâonal, fez voar pelos ares o seu
corpo, que a tensão dos gazes produzidos pela pavorosa
explosão arremessou a uma distancia de cincoenta metros.
«O estrondo produzido attrahiu, ao local do terrível sinis-
tro, os dois illustres oíHciaes seus visinhos, fugindo espa*
vorída uma grande parte dos serviçaes de Silva Porto,
que não podia comprehender o que tal acontecimento signi-
ficava.
«Foi Silva Porto encontrado por Paiva Couceiro e Tei-
xeira da Silva, ainda com restos de vida, que os dois oíH-
ciaes não poderam prolongar com os medicamentos que
immediatamente lhe applicaram, procedendo ao seu en-
terro com o respeito que lhes impunha a memoria do vene-
rando ancião.
«Tinha Silva Porto, em Belmonte, uma filha, Maria,
que junto de sua mãe, a velha Roza, foi, no meio das suas
lamentaçSes, surprehendida pela intimação do solba que)
no mais curto espaço de tempo, emprazava a pobre mulher
a pagar o crime de seu pae, que Duuãuma classificava
de traição, protegendo a construcção de uma fortaleza em
:i I
I -^
H-
• • • »
^
«
■ ^
i
•
> 1
• 1
f
»
".
» ■
1 I
' I
terras de qne só etle poderia oonsiderar-se senhor alisoluto,
entregando por fim aos enviados do íobba a indemnisação
que lhe havia sido estipulada.
«Seguidamente voltaram-se as attenções do sobba para
os dois officiaes, que ainda se encontravam no Bihé, cujo
valioso ^espolio, como suas cabeqas, o seduziam. Alguns
pretos manhosos, nSo se sentindo talvez com coragem pAra,
desde logo, romperem com os dois officiaes, procuravam
entSo illudil-os pedindo-lhes as suas malas de roupa e
^VH
"^ii!^
"^
i|^P
» •♦
121
outras cargas, para lh'as transportarem para onde lhes fosse
indicado, levando, dentro em poucos momentos, todas
quantas encontravam.
«O sr. Couceiro, contava então Joaquim Guilherme,
procurou ainda resistir eshuracando a casa (setcirando) para
d'ali, com os poucos soldados de que dispunha, se defen-
der até á ultima extremidade; vendo, porém, que esses
poucos homens lhe desappareciam, levando comsigo a es-
pingarda e cartuchame que podiam apanhar, não teve
outro remédio este official, senão pôr-se em immediata re-
tirada com o seu camarada, no momento em que Dunduma
se preparava, para com mais de 600 homens os atacar (*).
<Na sua retirada os dois officiaes não poderam fazer-se
acompanhar de qualquer alimento, em que de resto não
tiveram tempo de pensar, não tendo tampouco quem lhes
transportasse fosse o que fosse, visto haverem-lhes fugido
' . *■ •
?•
(^) Como prova da coragem inconcebivel de Paiva Couceiro
ouvi no Bihó narrar a diversas pessoas o seguinte facto que re-
presenta uma verdadeira temeridade, como tantas outras que so
encontram na vida d'aquel1e distincto official:
Affirmava-se ali, que tendo-lhe sido proposta, pelo não menos
digno official Teixeira da Silva, a retirada para o Bailando, segui-
damente ao suicídio de Silva Porto, visto ser-lhes materialmente
impossivel resistir com um pequeno numero de homens, Couccirc,
talvez menos conhecedor da indole do gentio do que o ezpcrimcu*
tado Teixeira da Silva, se negou formal mente a isso, procurando
organisar defensivamente a casa em que se achava.
Que então Teixeira da Silva, conhecedor da intriga africana,
lhe exigia uma declaração escripta em como, sob sua inteira res-
ponsabilidade, se sujeitava áquella inevitável morte, procurando
assim subtrahir-se a quaesquer responsabilidades quu posterior-
mente lhe podessem vir a ser attribuidas. À fuga dos soldados com
armas e munições, levou entào, como disse. Couceiro ao convenci-
mento da inutilidade dos seus exforços.
« t
• t
1
1
I
t
f
.*.
122
todos os seus soldados, alguns dos quaes, por de todo lhes
ser desconhecido o camÍLlio, cahiram em poder do ini-
migo.
«Até ao Bailundo foram perseguidos por gentio enviado
por Dundunm, 'om ordens terminantes para o sobba de
Bihel no sentido de lhes cortar as cabeças e apoderar-se
de qualquer cousa que porventura podessem levar para a
compra de alimentos, de que sem duvida necessitariam.
«O sobba do Bihel, porém, mais reflectido do que Diin-
duma, receioso da inevitável révanche, desde logo decla-
rou que a camisa em que este pretendia mettel o não
servia, por possuir um corpo de superiores dimensões ás
de um tlephante, tanto mais que os brancos que perseguiam
haviam passado já para o Bailundo (*).
cEm presença doesta resposta seguiram os enviados de
Dunduma para a m'bala de Bailundo a cujo sobba leva-
vam idêntico recado.
cAs instrucçSes enviadas a este sobba eram um pouco
mais largas, recommendando-lhe Dunduna não só a exe-
cução dos dois of&ciaes como a do negociante Adriano dos
Santos Gil que, como era sabido, em breve deveria re-
gressar de Benguella conduzindo as restantes cargas de
Paiva Couceiro.
^Equiqui, sobba do Bailundo, conhecedor já das occor-
rencias do Bihé, não obstante ser cunhado de Dunduma,
prendeu immediatamente os escoteiros, até á chegada dos
officiaes á sua m'balla.
«De Bihel continuaram os dois officiaes a viagem para
Cambenje, onde ficou Paiva Couceiro, seguindo Teixeira
(») Foi esta a evasiva de Caculo-Cusso para não apresentar os
dois oâiciacs, que conservava escondidos no interior da sua libata.
124
-official, vestido como o gentio e completamente desfigu-
rado.
«Passada a estupefacção de Equiqui, perguntou este a
Teixeira da Silva onde tinha ficado o outro branco filho
do Muaneputo (Rei). Informei então o sobba de que Paiva
Couceiro se achava acampado em Cambenje, offerecendo
por esta occasião Equiqui todo o seu auxilio, em homens
e armamento que, incondiccionalmente , punha á disposição
d'aquelle official, para a hypothese de qualquer emboscada
que lhe podesse ser preparada pelos bihtnos, cujo sobba,
na sua opinião, devia encontrar se maluco para fazer tanto
disparate.
«Seguidamente preparava-se Equiqui para informar
Teixeira da Silva das instrucçSes que lhe trouxeram os
enviados de Dunduma^ mandando conduzir á presença
d'este ofiicial os escuteiros bihenos; estes, porém, já se ti-
nham evadido em consequência talvez, da attitude desfavo-
rável que reconheceram no sobba do Bailundo.
«Na impossibilidade pois de fazer expor aos próprios
escoteiros o recado de Dunduma, seu cunhado, começou
Equiqui reproduzindo, ipsis verbis, a falia i^ue lhe havia
sido transmittida, e immediatamente foi traduzida por Joa-
quim Guilherme nos seguintes termos:
— «O Silva Porto já se enforcou, envergonhado de ter-
nos enganado, pretendendo crear fortaleza em terras que
são exclusivamente nossas, e onde por consequência só
nós temos poder para nomear os nossos cajntamolo (cor-
Tupçâo de capitão- mór).
«Nem eu nem você devemos consentir semelhantes abusos,
que só podem concorrer para o nosso desprestigio e mina.
«Tive immensa pena de que esses dois brancos não po-
dessem ser aqui apanhados e degolados, como merecia o
:seu atrevimento.
•- — -"-
fÀo Bohba do Bibel Caculo-Cusso, encarreguei d'esta
missão, na passagem d'eUes pela sua terra, mas já sei que-
este uSo cumpriu as minhas ordens, protegendo antes e
escondendo os referidos branco»; elle o pagará. . . N'esta
desconfiança despachei com urgência os escoteiros que tSo
até ahi, para que o meu cunhado mate ps referidos hrcen-
aa e lhes roube a comitiva, que em breves dias ahi deverá.
chegar, sob as ordens do sr. Gil, condnzindo grande nu-^-
mero de cargas de que você ficará com a maior parte,,
mudando para aqui o que quiser».
(Agora, meu branco, como fugiram os escoteiros vou
mandar alguns meus entrevistar Dundvma, a quem mando^-
a segninte resposta:
9i^
V2C)
— «Sigam á vi'halla do Bihé e digam a meu cunhado
^sohba, que os dois brancos que elle desacatou estão por
mim sendo obsequiados, não se escrevendo por isso para
Govulo Combaca (Governador de Bengnella) emquanto elle
me não responder. Que trate de reunir tudo quanto man-
dou roubar, assim como deverá pagar todos os prejuízos
de casas incendiadas e outros que a sua gente causou,
procurando os camalfdcu (soldados, corrupção de camara-
das) do Muaneputo que fugiram e se perderam por desco-
nhecerem os caminhos que trouxeram os seus patrões.
«Que é mister para alcançar o perdão dos brancos, res-
tituir-lhes todo o roubo e indemnisal os devidamente, no
que, como parente, estou prompto a auxilial-o, contri-
buindo, da minha parte, com o que lhe for necessário,
achando conveniente que, para o perdão ser mais com-
pleto, se faça ^trega aos brancos offendidos, de todos os
séculos que em tão desastrado passo o aconselharam.
«Que em tempo, no Bailnndo, succedeu também ciso
idêntico, e porque os nossos antepassados dessem má res-
posta ao Muanepnto de Loanda, vieram d'aquella cidade,
aquell js que puz4.rcmi conversa no papel e fiziram caminho
pelo mar, nada conseguindo fazerse com clles, dando-nos
uma coça monumental, como bem claramente o attestam
as balas d'artilheria que ainda hoje podem vêr-se crava-
das nas incendeiras da rn baila,
«Que, de resto, em nada poderemos competir com os
"brancos, incontestavelmente mais fnrtes do que nós, e a
quem, alem de tudo, muitos benefícios devemos, acceitan-
do-nos as nossas mercadorias em troca de magniticos pan-
:nos com que andamos vestidos.
«Que se o branco não fora de pelles de cabrito tería-
mos de fazer as nossas camisas e casacos, consumindo um
itempo immenso em amaciar um coiro de boi ou de malanca
127
para nos servir de cobertor, on em preparar, para o mesmo
£iD, uma casca de arvore que a mais pequena faisca de
lume de prompto incendiava e destruía.
«Mais direis, por iim, ao sobba, que considere detida-
mente no conselho que, como parente, lhe envio e aprecie
devidamente todos os exemplos que a velha experiência
e fria reflexão me dita, pois que da natureza da sua resposta
dependerá o contheudo da mucanda (carta, officio), que
seguidamente será enviada por elles para o Guvulo».
«E assim terminou o recado de Equiqui, depois de ter
invocado a memoria dos seus antepassados, como estimulo
que podesse levar Dunduma a uma resposta satisfactoria.
«As paixões, porém, imperam no sertão africano, como
no mais esclarecido centro de civilisação, e Dunduma sen-
tia-se orgulhoso do seu poder e absolutamente cônscio da
sua força, enviando a seu cunhado J^^í^t a seguinte
resposta:
— «Ouvi tudo quanto me mandou dizer pelos seus es-
coteiros; entrou-me, porém, o seu recado por uma orelha
^ sahiume pela outra. Vejo que o meu cunhado pretendia
que a minha terra fosse avassalada; pois entregue a sua
se tem medo : eu não tenho medo dos brancos, nem tam-
pouco das suas guerras, pois possuo muita pólvora e ar-
mas para lhe resistir. Só poderia admittir que os brancoê
viessem ás minhas terras para negociar, e assim, durante
muitos annos, aqui consenti alguns, exclusivamente occupa-
dos n'esse mister, e conservando se sempre respeitosos para
comigo, única pessoa que no Bihé pode levantar a voz — o
honge (fortaleza) é que eu nunca consentiria nas minhas ter-
ras.
«Do que roubei aos brancos nada restituirei, sendo de
hturo desnecessárias novas insistências suas n'esse sen-
tido».
#4
I
(. I
f
i
l *
li
<%«*>
12S
«Ouvindo Equiqui esta cathegorica resposta de sea
cunhado, immediatamente se dirigiu a Teixeira da Silva^
a fim de que este senhor procedesse, em tal conjun-
tura, como muito bem lhe approuvesse, visto que, a tal
respeito, nada mais tinha a dizer, lavando d'ahi as suas
mãos»
«Tomado conhecimento no governo do distrícto, doestes
lamentáveis acontecimentos, foi organisada uma expedi-
ção sob o commando do valente capitão Arthur de Paiva
que seguiria para o Bihé, onde applicaria ao sobba o cas-
tigo que tão justamente merecia.
«Chega finalmente Adriano dos Santos Gil com o in-
terprete Filippe Coimbra (o Candunba) e a comitiva, con-
duzindo as cargas de Paiva Couceiro, sendo então também
entregue a este militar um officio urgente do governo em
que lhe era communicado o ultimatum inglez, e lhe man-
davam, por esse facto, ficar sem effeito a expedição ao
Barotze.
«O illustre official, contava me ainda o Chindandtr,
(nome gentilico que significa pau ferro) na impossibilidade
pois, de seguir o seu primitivo destino, uma vez de posse
das suas cargas, para não perder o seu tempo, resolveu
marchar para terras de Mucusso, cujo sohha pretendia
avassalar. Tendo-me pedido que o acompanhasse, na im-
possibilidade de levar comsigo o Candumha, que se decla-
rou inteiramente ignorante acerca da lingua da região,
desde logo me ofiereci, tanto mais que, por ter viajado
muito em taes paragens no tempo de meu fallecido pae,
fallava o mucusso como o próprio mbundo.
«Em três dias, tendo-se reunido os carregadores neces-
sários, achavamo-nos a caminho, percorrendo as terras de
Cuangar, Muquequelume, Gorgomar, eXc.^ seguindo o
sr. (.'ouceiro na sua canoa, que lançou ao Cubango, e
•companhando eu por terra a comitiva juntamente com os
fiUiot do tobha do Mucusso. Concluídos os trabalhos do
ar. Couceiro, iniciámos a nossa viagem de re^e^so, che-
gando ao forte iPríaceza Amélia*, onde o sr. Couceiro ae
encontrou com o sr. capitSo Marques, que lhe dea noticias
qne muito o alegraram, acerca da expedição ao Bihé.
•N'este commando deixou o sr. Couceiro a sua can6a
ccDtinuando a nossa viagem, até que finalmente, chegi-
■nos a Cachíngue, sem que nos fosse possível obter noticias
eiActas da expediçSo.
(No dia seguinte entravamos em Morna, onde acampá-
m<'S tarde, sendo porém, aqui o sr. Couceiro informado da
proximidade da expedição.
(D'aqui ofiBciou o illustre official para o governo do dis-
Iricts, commonicando o seu regresso do Mucusso. O acam-
pamento seguinte realisnu se nas margens do Cutato, onde
fomos visitados pelo commandante da expedição, capitão
Ârthsr de Paiva, capitão Teixeira da Silva e outros, offe-
receado o sr. Paiva um magnifico boi á comitiva do sr.
Conceiro.
<E aqui, disse Joaquim Quilherme, terminou a minha
feliz convivência com o brioso official, de quem, com ver-
daddro pezar, me despedi, por me não ser dado acompa-
nbal-o na expedição ao Bihé, de que, desde este momento,
passou a fazer parte.
Foram simples, ao que constava, as operaçCes no Bihé,
em que não houve grande resistência da parte do gentio,
limitando- se ao arrazamento da m.'balla grande de Eko-
voDgo e prisão do respectivo sobba, que depois foi depor-
lado para a cidade da Praia, no archipelago de Cabo
Verde.
■A antiga libata Silva Porto, foi então transformada no
fcrte do mesmo nome, em que, desde logo, ficou o primeiro
dos capitães mores, tenente de infanteria, ao tempo alfe-
res, Evaristo Simpliciaao d'AImeida, que conserron sob
o seu commando um forle destacamento, retirando segui-
damente para o litoral o resto da ezpediçSo.i
D'esta espécie de relatório que Joaquim Guilherme Gon-
çalves reproduzia, sempre com um verdadeiro agrado e
entlinsiasmo, poderá avaliar-se nSo só dos relevantes ser-
viços prestados por Paiva Couceiro ao seu p^z, como da
modéstia de que deu provas, com a apresentação do seo
relatório oflicíal, em que nSo apparece a mais ligeira refe-
rencia aos seus principaes perigos e trabalhos.
WAR^JBUIM
và'
íumpri mentos — Miasiotiarios amiiricanos — Iiiglezcs — Francezes
(do Es]>irito ííniito) — Suas rdaçòua com a auctoridade local,
crim o cuiiimcrcio europeu e com o gcutio — Sua ioAuencia na
civilisHr-iio dos povoA — Superioridade de dotaçSo das missSes
protestantes sobre as catliolicns — O vosiao do m' bundo — Li-
vroE de doutrioas protestantes escriplos D'estli lingua.
Seguii lamente ao acto de posse, do oapilão-mór, reali-
zado sem formalidades de espécie alguma, têem log'ar os
<runipriiii'-ntos que se prolongam durante os primeiros dois
mezes. IrViram estes iniciados qiiasi simiiitaneamente, pelas
missões >- commercio do Bihé.
Occup.ir-me-hei primeiro das missões, referindo-me se-
guidamente ao commercio, e d'aqueUas começarei pelas
americaiiKS :
'4*
r 1
- 1 '.f.'
132
São três as missSes americanas do Bihé, fechando as
suas sedes um triangulo, cujo perímetro pode ser percorrido
n'uma viagem de seis étapes, de 5 a 7 horas por dia.
Era esta a disposição mais vantajosa e racionai para
que, exercendo cada uma doestas missSes a sua poderosa
influencia de catechese, respectivamente em torno dos seus
pontos de installação, conseguissem finalmente diffundir as
suas doutrinas pelas numerosas libatas d'aquella vastís-
sima região.
O encontro doesta influencia com a desenvolvida por
idênticas miss5es do Bailundo, e d'outras estabelecidas em
egiSes visinhas, quando inspirado n'um puro sentimento
de desinteresse, que não obstante muita gente lhes pre-
tende contestar, acabaria por levar uma relativa civili-
sação a todo o distrícto, e quem sabe mesmo se á provinda.
Os três pontos em que, como disse, se acham estabele-
cidas as missSes amerícanas (por via de regra os mais
salubres e formosos da região) são os seguintes :
O primeiro, em que parece achar- se o superior de todas
ellas, é Camundongo, a sudoeste de Belmonte, cujo chefe é
o sr. Sanders ; o segundo Chissamba, a nordeste do mesmo
forte, que tem como chefe o sr. Coorrie, e finalmente a
terceira a oeste, em Sacanjimba, tendo como chefe o sr.
Voodssid.
Qualquer d'estas miss5es tem estendido, por uma forma
verdadeiramente assombrosa a sua influencia por todo o
Bihé, sem que, com os poucos elementos de que se dispu-
nha nas capitanias, podesse de perto apreciar-se devida-
mente os seus processos de ensinamento, que, tanto em
Afnca como por cá, são commentados por formas bastailte
contradictorias.
Tive occasião de percorrer uma parte do Bihé n'tiiiia
viagem, que, nos últimos tempos, ali realisei, e apezar
ie passar a alguns minutos das sedes d'esta3 missSes, 6
dos instantes e amáveis convites dos respectivos chefes,
Donca entrei em nenhuma â'ella3, tendo, comtndo, ocoasiSo
de apreciar o seu magnifico aspecto exterior, do qual facil-
mente se conclue o relativo conforto e commodidades que
ali deverSo existir, pe-
las dimeosSes, aperfei-
çoamento e bom gosto
das suas construcç5eSf
tanto em desharmouia
com as realisadas pelos
negociantes europeus, e
mesmo pelos missioná-
rios catholicos do Espi-
rito Santo.
E' no interior d'es-
tas casas que, aos do-
mingos, se reúne todo o
gentio das suas proximi-
dades, para assistir ás
predicas e oraçSes reali-
sadas pelos missioná-
rios, que, tendo- se pre-
viamente dedicado ao
«studo da língua do p^z, conseguem produzir longos dis-
cursos, no mais clássico m'hundo, de que tiram os melho-
res resultados. N'estHs dias ninguém os procure, recebendo
as suas visitas apenas nos dias não santificados.
Nâo é dífficil encontrar um ou outro preto das proximi-
dades de Chissamba, Camundongo ou Hacanjimba, escre-
vendo a sua própria lingua com uma orthographia ingle-
uda, constando- me que alguns faliam também muito
regularmente o inglez.
!'.* '
I
^! í.
1 •» i
xf>4
A verdade é que os missionários declaram que apenas-
ensinam aos pretos a escrever a sua própria lingua, para
poderem ler os livros de oração que lhes são distribuidos.
nas missões, impressos na lingua rnbundo.
Os pretos que primeiro conseguiram aprender a ler e a
escrever, passam a ser distribuidos pelas libatas mais pró-
ximas, onde estabelecem uma escola, construindo logo
uma magnifica casa de adobes (parallelepipedos de argila
amassada e seccos ao sol) muito bem caiada e pintada,,
com amplas janellas envidraçadas !
No topo d essas casas acha-se hasteada a bandeira ame-
ricana que, segundo dizem os missionários, apenas serve
para indicar a que espécie de missão pertencem as esco-
las, visto na região haver mais missSes pertencentes a
outras nacionalidades.
O pessoal doestas missSes é bastante reduzido, cons-
tando ordinariamente, alem do respectivo chefe, de um
medico, e das esposas e filhos de cada um d'estes.
Em Sacanjimba é uma medica que tem a seu cargo o
serviço de saúde da missão; as miss8es de Camundongo
e Chissamba, têem respectivamente como médicos os há-
beis doutores Frederik Carlington Wellmen e Alfred Mas-
sey, passando este por uma verdadeira summidade para a
maioria dos negociantes europeus, entre os quaes conquis-
tou geraes sympathias, talvez por se conservar affastado
do fim principal a que as missões se destinam^ despre-
sando por completo o serviço de evangelisação, a que o
seu coUega de Camundongo de preferencia, ao que cons-
tava, se dedica.
Efiectivamente dava-se no Bihé o dr. Wellmen como
o principal evangclisador da missão de Camundongo, e
talvez o elemento de mais influencia em todas as mis-
sões, apezar dos seus poucos annos, pela forma hábil e
Vjs^
135
intelligente como se dirige aos pretos, em longos e interes-
santes discursos, com que consegue prender-lhes a attençSo.
Era já muito meu conhecido este americano, antes da
minha estada no Bihé. Travei relações com elle quando,
em outubro de 1900, sahi de Lisboa a bordo do paquete
Cabo Verdcj na minha viagem para Angola, onde ia exer-
cer a comn^issão de ajudatfte de campo do governador
ger&I d'aquella província.
fita uma d^essas formosas tardes de outomno, triste como
todas as tardes, jamais nos momentos angustiosos em que,
debruçado da amurada de um navio, apenas se vê desenhar
no horisonte, em uma espécie de maternal e conmiovido
adens, os derradeiros contornos d'essa.« como que manchas
de azul ferrete, sob cujo aspecto se nos apresenta o acci-
dentado da costa d'este nosso abençoado torrão natal.
De todos os passageiros que se conservavam no tomba-
dilho, foi o americano quem mais d<!spertou a minha at-
tençio, pela indiíferença que o vi manifestar por tudo
quanto o roíleava, passeiando apressadamente de proa a
popa com a perícia de um profissional, de tal forma o via
equilibrar o corpo ao balanço de bombordo a estibordo,
realisado pela embarcação.
Era noite já, e quasi todos os passageiros se haviam
recolhido, até que, encontrando-me frente a frente com o
medico, entabolámos conversação, dirigindo-lhe uma d'essas
Unalidades tão vulgarmente repetidas a bordo, e prolon-
gando-se o cavaco por algumas horas, durante as quaes o
nosso homem me pôz ao facto da sua profissão, referíndo-me
eguafanente alguns curiosos episódios das suas viagens pelo
sertão; e a verdade é que a primeira impressão a seu
respeito foi para mim deveras agradável.
Durante o resto da viagem, manifestou-se o joven dou-
tor bastante communicativo, prefcrindo-me a qualquer
t 1
u
i
4'
I
1
•o
<
1
ê
M
1
■ 1 ■
t
i .
•a '
I»'
\
J
i
(
1
ontro passageiro nas suas conversaçSes, a jwQto de chegar
por varias vezes a caatar alguns trechos, que aoompaohmvft
Ba viola.
Desembarquei em Loaada, seguindo o americano para
Bengnella c d'ahi para o Bihé, sem que suppozesse sequer
voltar a encontral-o. Decorridos cinco mezes approxima-
damente, e:ii seguida á viagem de 24 dias que descrevi nos
primeiros capitulos d'este livro, assumia eu o commando da
capitania mór do BJhé, onde, passados dias, era visitado
pelo dr. Wellmen.
Trocadcs os primeiros cumprimentos, já elle me propn-
nha uma visita á sua missSo que, infelizmente, nunca tive
ií íí: ^
!; I
u
138
cccasião de realisar, apresentando-me mais tarde alngns
pedidos sem importância, relativos & qvestiiincalas entre
gentio das suas escolas, que satisfiz na ignorância, quer
da minha parte quer da do medico, do desprestigio que
d'ahi poderia resultar me.
Effectivamente os pretos de Camundongo e immediaçoes
chegaram a dizer que era o c^outor quem mandava na for-
taleza, visto ser tio do capitão-mór, negando-se n'alguma&
libatas a satisfazer os pedidos de c ar reg a dores que lhes
fossem feitos, quando tal pedido nSo partisse da missão,
mas sim de qualquer negociante.
A fim pois de evitar futuros attritos entre estas mis-
sSes e o commercio local, vi me obrigado a dizer, com a
amabilidade com que aliás sempre me dirigi ao sympathico
medico, que seria conveniente destruir, como podésse, a
convicçfto que as nossas boas relaçSes fizeram nascer no
espirito do gentio, em que, d^ordinario, a apreciação dos
factos se affasta immenso da realidade.
Este meu natural pedido que em nada poderia melindrar
o joven medico, supponho tel-o amuado um pouco, como
conclui da absoluta falta das suas visitas, com que muito
me desgostei.
Na occasiâo da minha retirada recebi a visita do dr.
Wellmen por quem, aparte quaesquer considerações, tinha
uma verdadeira sympathia, pondo assim de parte qualquer
mal entendido que porventura a minha simples e leal me-
dida preventiva o tivesse levado a formular.
São muito frequentes os attritos entre os missionários
americanos e commerciantes europeus, tendo, como disse,
131)
ordinariamente a sua origem na reluctaneia manifestada
por alguns séculos, quando se trate do levantamento de
carregadores nas libatas, onde, por meio das escolas, as
missões têem conseguido fazer chegar as suas doutrinas.
E, por via de regra, a auctoridade local quem aplana
estas difficuldades, constituindo semelhantes pendências,
um dos principaes embaraços que as administraçSes do
interior a cada momento proporcionam, por ser ordi-
nariamente diflScil apurar de que lado se acha a boa ra-
zão.
£ mdiscutivel a sympathia grangeada por esta classe de
missionários no gentio das suas visinhanças, cuja explica-
ção poderá encontrar-se na brandura de que taes missio-
nários usam no seu tracto com o gentio, que por todos os
meios procuram attrahir, e que a este certamente se affi-
pr.i como inteiramente desinteressada, sob o ponto de vista
pecuniário.
Por outro lado, a indolência do preto, caracteristico
predominante da sua raça, trazendo-lhe uma completa ne-
gação para o trabalho, não lhe permitte adaptar-se tão fa-
cilmente á vida laboriosa e activa que lhe proporcionam
os serviços de qualquer commerciante ou agricultor —
que não foi á Africa para tomar ares, mas sim para
adquirir fortuna — como ao repouso que lhe é garantido
sob a protecção da bandeira americana, onde apenas lhe
é imposta a crença das suas doutrinas.
O grande numero de commerciantes que durante os
últimos annos affluiu ao interior, deu origem á falta de car-
regadores, indispensáveis sempre no exercicio do commer-
do de uma região, em que o indigena bem pode conside-
rarse, até hoje, o único meio de transporte.
Emquantoj era relativamente diminuto o numero de
commerciantes europeus no Bihé, e egualmente menos
II
n
• 1
»
-j
140
!
6j(tensa a esphera de influencia das missSes, foram natural-
mente poupados, no serviço de carregadores, os povos em
que aquellas se achavam installadas ; estabelecida porém
a necessidade do transporte, nenhuma libata poderia ser
poupada pelo commercio.
D'aqui os attritos entre europeus e missionários que
desejavam vêr numerosa e regularmente frequentadas as
escolas em que se professavam as doutrinas do Yesso, A in-
tervenção também dos missionários perante qualquer pen-
dência entre o commercio e o gentio, originou, n^estes úl-
timos tempos, não poucos conflictos entre estas duas
classes de individues.
Segundo ouvi e me pareceu, os missionários americanos
têem um grande despreso pelos europeus, se bem que algu-
mas vezes, em caso de doença, os recebam nas suas mis*
soes, onde, mediante a competente e aliaz justa remune-
ração pecuniária, os respectivos médicos lhes applicam o
necessário tratamento.
Foi n'um d'estes internatos, segundo também ouvi dizer,
que um negociante, recentemente chegado do littoral, onde
contrahira certa doença, foi durante algum tempo tratado
n'uma missão protestante, não sei de que nacionalidade
nem em que região, iniciando-se apoz a sua alta, um idên-
tico tratamento á esposa do chefe da missão, em que o
referido negociante havia sido hospedado, a qual, pouco de-
pois, foi enviada para o seu paiz.
Este facto indecoroso que muitas vezes ouvi referir em
Angola, e que, como tal, se é que, algum dia se deu^ não
carece de commentarios, não pôde por si só, lançar uma
suspeita geral sobre uma classe inteira de individues, na
sua maior parte digna do máximo respeito e consideração.
o que o preto qSo tolera, por fónna alguma, ê qne o
massem, transigindo com tudo mais, e só assim se com-
prehende a corjente de sympathia qne da parte do gentio
se estabelece para as missSes de qualquer nacíonalida.ie.
As catecheses, seja qual fôr o assumpto sobre que ver-
sem, pelo caracter de facultativo qne se lhes imprime,
constituem sempre um objecto de mais on menos curiosi-
dade, que, quando nSo consiga a conversão dos povos,
diverte pela novidade.
Em Camundcngo, Sacanjimba, e naturalmente nas de-
mais missCes protestantes, as catecheses s3o, aos domin-
gos, realisadas em fórma de espectáculo ou conferencia,
nos quaes as passagens m&is interessantes da Biblia, se
apresentam ao publico em projeeçSes de lanterna magica
que o gentio pôde simultaneamente admirar e commentar,
ao mesmo tempo qne, do alto de uma espécie de púlpito,
o missionário animado de uma paciência verdadeiramente
evangélica, vae successivamente fazendo a explicaçSo dos
diverscts quadros com que deslumbra a galeria, em admi-
ráveis trechos de verdadeira eloquência indígena.
D'esta forma o gentio gosa, incontestavelmente, nada
tendo que pagar, o que lhe nSo acontece junto do commer-
mnte europeu, onde tudo lhe sae pago com a necessária
nsnra.
E' por tudo isto, o missionário para o gentio, uma en-
tidade verdadeiramente sobrenatural, cuja norma de con-
ducta, apparentemente desinteressada, o maravilha e as-
sombra.
O respeito com qne o negro se conserva em presença
do branco, em geral, é uma consequência da superioridade
de raça ijue lhe reconhece, e do medo que lhe inspira o
aperfeíçoiímeuto das suas armas, assim como a ousadia
que tão deãpreuccupadameute o levou ás suas paragens;
quando, poriam, o brancu è um missionário, esse respeito
converteu-se n'uma extraordinária veneração que em todo
o tempo e logar llie proporciona a muxima ;;araQtia de
invulnerahiliindf.
Se o negro, algum dia, chega a couvenccr-se de que, pela
sua superioridade numérica pôde anniquiilar o branco,
fal-o desapiedadamente, dando todas as largas á feroci-
dade dos seus instinctos ; comtudo, nas manifestações mais
«zcessivas da sua cólera, respeita e ouve sempre . o
143
missionarío que, n'aquelle momento, deixa de ser um
iranco, para o considerar como um semi-deus.
Assim se explica a confiança com qae nas missSes do
Bailando, durante a ultima rebelliâo, se recolhiam, ao que
<x>nstou, as mulheres de alguns negociantes e egualmente
a regalaridade como sempre se fez o transito de carrega*
dores e o serviço de correio doestas casas, entre Bailundo
€ Benguella, a ponto de, algumas noticias que, nos primei-
ros tempos, chegavam ao littoral, serem trazidas pelos seus
escoteiros, que a simples senha de Affulo garantia a maior
segurança e protecçSo.
Affulo é o nome pelo qual o gentio conhece todos os in-
flezes e americanos, para os distinguir dos portuguezes, a
quem dá o nome de chindér. Branco é a significação doesta
palavra; pois apesar d^isso, por chindér apenas é conhe-
cido o branco que falle o portuguez, chegando mesmo a
chamar-se chindér a qualquer preto ou mulato civilisado,
comtanto que estes se sujeitem ao sacrificio de usar calças
e sapatos.
Convém notar que, tanto os inglezes como os america-
nos, embirram solemnemente com esta selecção feita pelo
gentio, que sabendo isso, usa da boa educação de, somente^
empregar a palavra Affulo, na ausência dos individues
por ella significados, sem que tal denominação, que apenas
obedece a uma variante de linguagem, envolva a menor
offensa.
A denominação chindér é privativa do branco portu-
^ez. £ tanto assim que aos bóers que muito abundam
em Angola, empregando-se na conducção dos seus enor-
mes carros, em que transportam mercadorias, nas suas
longas viagens atravez do sertão, o gentio conhece pelo
nome de Vamacua^ palavra que nada mais significa do que
l)oer, como Affulo apenas significa inglez cu americano.
r
r
144
Comtndo são tão somente os inglezes e americanos que
manifestam o seu despeito em presença de semelhante ca-
pricho de linguagem, que a sua poderosa influencia n&o
consegue modificar, despeito que, quando muito, poderá
encontrar justificação na circumstancia, aliaz curiosa, de
todo o preto que consegue aprender a nossa lingua,
empregar invariavelmente a palavra hranco na mesma al-
tura da phrase em que, anteriormente á sua aprendiza-
gem, se serviria do vocábulo chindér.
£ assim dirá, por exemplo, que próximo da sua libata
se acha estabelecido um branco; que foi consultar um me-
dico americano ou inglez, e finalmente que viu diversos
carros, conduzidos por boers, efiêctuarem a travessia do
rio Cubango, segundo se referisse respectivamente a por-
tuguezes, americanos ou boers, etc. £m resumo: brancos
são apenas os, portuguezes.
Como missão protestante ha ainda no Bihé uma de na-
cionalidade ingleza, com a sua sede em Chilonda. O seu
chefe sr. Swan, sua esposa e filhos constituem o pessoal
d'esta missão, cuja esphera de acção se limita aos povos
mais visinhos do seu ponto de installação.
O sr. Swan, verdadeiro gentlemen, gosa de geraes
sympathias no elemento europeu, que lhe tributa o mais
profundo respeito e consideração. Homem de cerca de 40
annos, possuindo uma physionomia agradável, sem perder
a linha ou aplomh que por via de regra caracterisa os nu-
merosos súbditos da Gran-Bretanha, conseguiu insinuar-se
no animo de todos que com elle tenham occasião de tra-
tar.
mmmm
E' (lotado de lúcida intelligencia qne lhe permittíu adqui-
rir uma solida instnicçao geral que immenso maravilha,
pelos conhecimentos profundos que revelia sobre qualquer
assumpto de que casualmente se trate.
A sua longa permanência em Africa não lhe tem aba-
lado sensivelmente a saúde, que me pareceu magnifica,
em presença do aspecto doen-
tio que geralmente se nota
na maioria dos brancoB nos-
sos compatriotas.
E sem duvida a diSe-
rença de commodidades e
boa hygiene, com que nóa
portuguezes, por via de re-
gra, nos não preoccupamos,
a única explicação d' es te
facto.
Em todos 08 pontos da
Africa, que tive occasião
de percorrer, vi sempre com
verdadeira admiração, que
as mais elegantes edifica-
ções, as mais confortáveis e
de melhor situação, sob o
ponto de vi^ta hygieiíieu, eram ordinariamente habitadas
per ingle7.es.
A casa do consulado inglez, em que varias vezes tive
occasião de visilar o meu dislincto amigo Nilyngalle, as do
Cabo Submarino em Cabo Verde, S. Thomé, Loanda a
Benguella, e Jinalmente a residência da missão ingleza no
Bihé, são tudo quanto em faes paragens pôde consegiiÍr-se
de agradável, produzindo desde logo a melhor impressão
no visitante.
í
!■ Lk. L"U •
^*. •••■
140
Duas vezes que tive o prazer de receber a visita do
missionário Swan, na fortaleza, de uma das quaes aU
í ' pernoitou, observei que este senhor prefere a viagem a
cavallo á de typoia, montando por isso um valente jumento,
meio de transporte com que, segundo me disse, muito bem
se dava (').
A única missão catholica do Bihé encontra se installada
no Luimbi, a dois dias de viagem ao sul da fortaleza. Era
constituída por dois padres francezes do Espirito Santo,
mrs. Bateix e Blanch, as creaturas mais bondosas e agra-
dáveis com que tratei durante toda a minha permanência
em Africa. Ambos estes padres me deram a subida honra
da sua visita, que eu desejaria se prolongasse indefinida-
mente, tal era o prazer que sempre me dava a boa com-
panhia dos santos evangelisadores.
p Luimbi, posto que, como já tive occasiâo de dizer, nSo
faça já parte de terras do Bihé, de cujos habitantes os
d'aquella região, nem sequer faliam a lingua, acha-se com-
tudo, administrativamente, subordinado á capitania-mór do
Bihé, motivo pelo qual os padres do Espirito Santo se
apressaram em cumprimentar-me.
As missões catholicas, francezas ou portuguezas, não
possuem, infelizmente, as dotações fabulosas, com que,
pelos governos inglez e americano, são contempladas as
protestantes. D'aqui resulta para as primeiras uma exis-
tência de relativa pobreza, que só com grande sacrifício
lhes permitte a diflfusão das suas doutrinas, não obstante
serem as únicas que se acham de harmonia com a religião
official do Estado.
(^) N*osta missão, como nas americanas, somente se ensina o
m*bumdo.
147
Envoltos sempre nas suas compridas batinas, sobre que
por vezes assenta uma longa barba, usam para resguar-
dar lhes a cabeça dos ardores do sol, capacetes brancos,
de explorador, viajando também pelo sertão, os pacientes
sacerdotes, montados em bois ou jumentos, por serem
também os dois meios de transporte mais baratos que se
póv!e conseguir.
Nas escolas doestas missSes, se bem que os padres se-
jam francezes e faltem também, como todos os missioná-
rios de qualquer nacionalidade, a lingua nibundo e gan-
gntUas com a máxima correcção, somente se ensina a
fallir e a escrever a lingua portugueza.
Existe na verdade uma grammatica de nibiindo escri-
pta p^lo padre Ernesto Leconte, superior geral das mis-
sões do Espirito Santo, mas esse livro, além de possuir
todas as regras escriptas em portuguez, serve apenas para
os curiosos se dedicarem ao estudo do m^bimdo.
Junto d'estas missões onde, com grande difficuldade, se
tem conseguido crear verdadeiri»s núcleos de colonisação,
todos os pretos, além de fallarem regularmente o portu-
guez, sãu baptisados, e constituem familia (*) consorcian-
do-se segundo as leis da egreja, da qual, tanto quanto
possivel, seguem todos os demais preceitos, assistindo
ao santo sacrincio da missa com uma notável devoção,
etc, etc.
Têcm adquirido o amor de propriedade, realisando cons-
trucções íle adobes que procuram aperfeiçoar o mais pos-
sivel^ dando lhes um cunho de permanência, que se não
encontra nas diversas libatas do gentio.
(') Depois de abandonarem o svstema de polygamia, gerai»
mcute seguido por te do o gentio.
148
Com diiScuIdades sempre grandes, em consequência do
seu feitio indolente por natureza, também, ainda que em
pequena escala, se tem procurado incutir no gentio o estimulo
do trabalho, levando-o a agricultar os campos de maneira
diversa, pela forma e pelo intuito, dos seus primitivos pro-
cessos de cultura. As minhas relações com esta classe de
missionários foram sempre as melhores, desde o dia em
que, antes ainda de ter recebido a honra da sua visita,
lhes enviei um grande maço de correspondência que lhes
havia sido enviada para a estação postal do Bihé, e não
pelo correio especial que, ordinariamente, todas as missões
enviam a Benguella.
Penliorou-os o meu proceder e muito mais a circumstan-
cia de ir já pago o escoteiro, mandando-me por elle um
sacco de magnificas batatas produzidas nas laxTas da sua
missão, entregando uma amável carta ao escoteiro, em
que, além do seu penhorado agradecimento, me era apre-
sentada proposta que acceitei, de, sempre que houvesse,
lhes enviar a sua correspondência para terem assim occa-
sião de mandar novas remessas de batata que possuiam
em grande abundância, e hortaliça.
Tinha immensos desejos de ir ao Luimbi visitar a mis-
são do Espirito Santo, satisfazendo assim, não só aos in-
cessantes pedidos dos dois sympathicos sacerdotes, mas
também ao desejo que tinha de conhecer a região ; infeliz-
mente, porém, a inesperada e triste noticia do fallecimento
de meu pae tirou-me a boa disposição para qualquer outro
emprehendimento que não fosse o da minha retirada.
o commercio no llíhí — Primitivos nugociaites — Sua eiplora-
ç5o pelos fhhiií — PfínuutR— Ba»z'i» — BorrncliR Malar —
Equim — Chitola — ChirUla — Como o gentio ae individa com O
negociante — farrepadores — Sou luvantumento — liicalo» —
Gastos o pagaraeDtos.
Muitos annos antes da occiípação militar do Bihé ji
D'esta re°'Íão se achavam, comn tive occasiSo de dizer, nSo
só o velho sertanejo Francisco Ferreira da Silva Porto, como
os commerciantes Bonifácio José Basquete, Francisco Fer-
nandes Eelvas, João Baptista Ferreira, Caetano José Fer-
reira, José António Alves, o companheiro de Cameron,
Guilherme José Gonçalves (o CamUmba), pae de Joaquim
Guilherme Gonçalves, a que já tive occasião de referirme,
150
e filhos do irajor de 2.* linha Filippe José Coin.br.v (o
Chipipa).
De todos estes negociantes, a que vulgarmente .m^ dá o
nome de f imantes, foi sem duvida Silva Porto aquelle que
SC aventurou a viagens mais longínquas, e por esse facto
mais perigosas, cujos itinerários podem vêr-se desde mui-
tos annos marcados em cartas d'Africa que se têem pu-
blicado no extrangeiro, onde, como em Portugal, sua
pátria, a memoria do honrado sertanejo é justa e merecida-
mente respeitada.
Consta ter Silva Porto entrado no Bihé, vindo de Loanda
por Fungo Andongo, adquirindo por compra a um napo-
litano, o pequeno recinto que successivamente foi augmen-
tando, e transformou por íim na importante libata em que
viveu o melhor de cincoenta annos da sua existência.
As viagens ao littt ral realisavam-se n*esse tempo por
Caconda; Silva Porto, porém, conhecedor dos assaltos sof-
fridos pelas caravanas de gentio n'aquella região, conse-
guiu em 1845 descobrir um itinerário inteiramente novo
pelo Bailundo e Quissange (*) que, de resto, offerecia a
grande vantagem de encurtar sobre maneira a viagem para
Benguella.
As regiões de preferencia percorridas por Silva Porto
foram as de Barotze, valle do Zambeze e Linhianti.
Durante a sua viagem encontrou-se Silva Porto com o
explorador inglez, David Liwington, e na região dos Lui
com o sohha Sibitane, que, tendo sido expulso da con-
tra-costa, conseguiu pela sua vez expulsar os naturaes tor-
nando-se solla doesta região.
Guilherme Gonçalves, o Candimba (Idyt^e), foi egualmente
um dos primeinis viajantes do Mucusso, para onde se foz
r
f' £ O que actualmente seguem as comitivas.
lõl
acompanhar por seu filho Joaquim (o Chindandtr) que,
como tive occasiâo de dizer, muitos annos depois servia
de guia ao valente capitão Paiva Couceiro, quando este
official reduziu á vassalagem o solha doesta região.
A Garanganja foi sempre a região predilecta de José
António Alves, etc, etc.
Eram grandes os trabalhos experimentados pelos euro-
peus que n'esses tempos se aventuravam, não digo já para
as regiSes que acabo de apontar, d^onde regressavam a
maior parte das vezes por um verdadeiro milagre, mas
mesmo no próprio Bihé, onde, se queriam praticar livre-
mente o commercio e conseguir carregadores para o trans-
porte das suas mercadorias, tinham de sugeitar-se aos
caprichos dos solhas, que nas suas pessoas exerciam uma
verdadeira exploração, quer exigindo-lhes presentes, espé-
cie de licença para a sua installação n'um determinado
ponto, quer atando-lhes repetidos mucanos pelo mais insi-
gnificante pretexto, com o fim de lhes apanhar successi-
vas braças de fazenda.
O systema de negocio com o gentio foi, e é ainda hoje,
o da permuta de fazendas varias, como chitas, riscados,
lenços, camisas, chapéus, etc, ou tachas amareUas, mis-
sanga variada, aguardente, etc, pella, borracha ou mar-
fim que o gentio chimhundu, conmierciante por verdadeira
mclinação, vae funar em numerosas comitivas, que no seu
regresso ao Bihé abarrotam com os referidos géneros.
A permuta fez-se sempre a retalho ou por atacado:
A primeira tem logar pela venda, como n^uma mercea-
ria, em que a aguardente é medida ás garrafas, as fa-
zendas ás jardas, e o sal pesado a borracha.
A permuta por atacado, até 1899, realisava-se, princi-
palmente, nas casas commerciaes do littoral, Benguella e
Catumbella, onde se dirigiam as caravanas de gentio,
152
conduzindo enormes carregamentos de horracha, que o ex-
cessivo preço d*este género attrahia em grande quantidade.
A crise commercial, cuja origem por diversas formas se
tem pretendido explicar, coliocou durante estes últimos
tempos, aquellas cidades n'uma situação de verdadeiro
desespero, que, felizmente, ao que consta, tende a melho-
rar consideravelmente, sem, comtudo, attingir a grande
influencia d'outros tempos.
A elevação successiva do preço da borracha, durante
o anno de 1898, em que este género chegou a attingir a
bella cotação de 2^5400 réis, deu margem a que muitas
casas commerciaes do littoral, no intuito de attrahirem as
caravanas de gentio, e esperançadas sempre na indefinida
subida de preço, dessem repetidos e puchados tingues (es-
pécie de gorgêta), em que muitas vezes a borracha lhes
ficava paga pelo triplo do seu valor.
De repente deu-se uma baixa enorme na cotação da bor-
racha, não podendo então o commercio aguentar-se com
os preços fabulosos que vinha estabelecendo ao gentio, a
quem começou pagando este género por muito menos do
que elle estava já habituado a receber, não sendo preciso
mais nada para que este, desde logo, retrahisse o seu
negocio, em que, sem outras considerações que não pode
comprehender, se considerou roubado.
Uma grande parte dos pequenos negociantes do litoral,
não podendo assim aguenlar-se com as suas casas, segui-
ram para o sertão, especialmente para o Bailundo e Bihé,
sustentando se apenas as casas mais poderosas, com as re-
messas enviadas pelos seus numerosos aviados do interior.
Estes, porém, começaram estorvando-se, especialmente
no levantamento de carregadores, que não podiam chegar
para tantos, seguindo-se as graves complicações, mais ou
menos conhecidas.
lia ainda o negocio de haiizos, em que o oommerciante
dislribne pelos fuinòeirua (finmnti-s indígenas), um certo
numero de valorea, geralmente em fazendas, cada um de
importância invariável (hanzo») confirme o tim a que es-
(('s se destinam.
Recebidos os banzns pelos finii'iei'roii, reuiem estes em
grupos mais ou menos numerosos n'um ponto de concen-
tração previamente determinado chilomho (acampamento),
fm que arvoram uma bandeira, e, quando já nSo falte
DÍD^em da comitiva, iniciam então as suas viagens por
fsse sertão fora, em direcções variadas, segundo o intuito
eommercial das respectivas caravanas.
Xo regresso ás suas terras, ordinariamente ao Hm de
muitos mezes de ausência, v3o os fH»d>eiros procurar
154
os seus fornecedores a quem, por cada banzo recebidd,
entregam um volume de borracha, marâm, etc, cujo pczo
varia com o valor do banzo,
O bom ou mau ezito d'esta espécie de negocio, em que
alguns commerciantes por vezes empatam grossos capi-
tães, depende do resultado colhido feios futnbeiros a quom
os banzas foram distribuidos. Acontece muitas vezes as
comitivas serem assaltadas e pundadas (roubadas) pelo
gentio de certas regiSes, que se vêem obrigadas a
atravessar, recolhendo aos chimbos, por forma a não po-
derem pagar aos seus fornecedores.
N'este caso, se o commerciante tem consciência, espera
mais um anno pela realisaçâo de nova viagem do senfum-
beiro que finalmente lhe vem a pagar.
Estes contratempos dão logar, ordinariamente, a com-
plicações com o commerciante europeu que se não ache
revestido da paciência necessária para esperar por algum
tempo a realisaçâo do seu negocio, motivo pelo qual nem
todos se dedicam a esta espécie de commercio, que da sua
parte, o gentio somente também pratica com um determi-
nado numero de individues que lhe inspire a necessária
confiança.
E talvez Felisberto Guedes de Sousa (AmbuêteJ (*) ar-
roj:ido sertanejo e antigo negociante, o europeu que, no
Bihé, durante os últimos annos, tem distribuido maior nu-
mero de banzas pelo gentio, que por este homem tem um
verdadeiro respeito e admiração. Esta boa disposição do
gentio para com Felisberto Guedes é uma consequência
(*) Amhucte, em m*bundo pau, é o nome pelo qual o gentio co-
nhece Felisberto Guedes. É costume do gentio, naturalmente para
evitar defeitos de pronuncia, dar nomes aos diversos europeus com
quem mais de perto convive.
155
da sna honestidade e incomparável paciência, que, dentro
dos limites do razoável, lhe tem permittido transigir nas
diversas conjuncturas que a cada momento se dSo no com-
mercio com o negro.
Existem, como este, mais alguns commerciantes, alvo
das maiores sympathias dos povos que se lhes avisinham
e aos quaes, por via de regra, chamam como protectores
quando se sentem victimas de qualquer acto mais ou me-
nos violento da parte de um ou outro individuo que, feliz-
mente em pequeno numero, se aventura pelo sertão.
Nas pequenas compras serve se o biheno sempre da
borracha, que é a sua verdadeira moeda. Para isso adopta
como unidade o mutar, (cinco bolas ligadas). Dois mutarea
ligados entre si, formam o équim que tem dez bolas ; dez
ifiinê a chitota^ com cem bolas; e dez chitoiaa a chirilla,
com mil, sendo estes, como se vê, os múltiplos do mutar.
Doesta forma podem comprar pequenas quantidades de
aguardente, dando geralmente um équím por um copinho
de um decilitro, e uma chitota pela garrafa cheia.
O mutar apenas serve para o pagamento de uma pe-
quena porção de sal, n'um pezo egual ao da borracha,
etc., etc.
O gentio, porém, nem sempre tem borracha que possa
iazer face ás suas repetidas borracheiras, comprando quasi
sempre fiada a aguardente que bebe, de sociedade com os
seus amigos, cujo numero, como em terras da Europa,
ordinariamente se avalia pela craveira pecuniária de qual-
quer cidadão.
Nem sempre o commerciante se alarga com estes indi-
vidues que, no acto das suas compras, pouco mais fazem
do que apregoar as suas colossaes fortunas, intitulando-se
repetidas vezes de fuvibeiro enema (grande funanté). Um
dia, porém, que a conta attinge uma cifra importante, é
pp^
J56
esta apresentada ao borrachão, que a ouve lêr com natu-
ral indifferença limitando- se apenas a aífiançar que tem
muito por onde pague.
Ordinariamente, perante a recusa dos seus pedidos de
aguardente, que o entranhado vicio lhe nSo pôde dispen-
sar, lá se resolve a m^indar ao chimbo buscar uma pequena
parcella da importância do seu debito, com que, por
então, engoda o seu fiador, continuando a embriagar-se
a todo o momento, amontoando assim consideravelmente
as suas dividas, que, não raro, chegam a attingir a cifra
de 500^000 a 600íK)00 réis !
Um dia, porém, esgota se a borracha, e depois is inces-
santes pedidos do seu credor, vem finalmente a declaração
formal da impossibilidade do pagamento, que o preto pro-
mette satisfazer no seu regresso das Ganguelhia. E umas
vezes bem, e outras mal recebi.ia esta proposta pelo com-
merciante, que, por fim, se vê na dura necessidade de
transigir, recebendo mais tarde juros e capital, se o seu de-
vedor não tem a má sorte de deixar a pelle pelo cami-
nho.
A contingência doestes negócios com o gentio e as pro-
vaç5es de toda a ordem, experimentadas pelo negociante
sertanejo, justificam, até certo ponto, a usura que o euro-
peu se vê forçado a praticar no seu commercio, p&ra que
da sua permanência no sertão, possa finalmente resultar-lhe
algum proveito.
*
Sendo o carregador indigena, por assim dizer, o único meio
de transporte de que se serve o commercio de Benguella,
poderá imaginar-se o enorme formigueiro de comitivas
que, dada a normalidade commercial da região, percorrem
1Ò7
CS caminhos do sertão de sua própria conta, ou mandadas
pelos diversos aviados do interior do districto (*).
Para o levantamento de um determinado numero de car-
regadores, entende-se, ordinariamente, o commercianle com
o sobha de qualquer região ou séculos dos seus bican-
jo8 (libatas que lhes são subordinadas). Realisado que seja
o contracto, quasi sempre muitos mezes antes do levanta-
mento, tem desde logo opportunidade a entrega dos bica-
tos, espécie de signal que, não obstante ser dado }.elo
negociante, estabelece por esta forma, para o gentio, o
formal compromisso do angariamento dos homens.
Fallados os carregadores e reunidos pelo sobba ou sectUo,
em numero egual ao dos bicatos recebidos, tem então logar
a distribuição dos gastos, n'uma importância que tem va-
riado com o desenvolvimento commercial da região, e que
slo destinados á compra de mantimentos necessários para
a sua alimentação durante a viagem. N'um determinado
(*) O transporte de europeus faz-se ordinariamente de tipóia
(r^de), a cavallo em muares ou bois, chamados bois cavallos. Es-
tes beis, que sao dcmesticados desde muito novos para este íim,
fuendo-os transportar repetidos saccos de areia, são finalmente
spparclhados como qualquer cavallo, á excepção do arreio de ca-
beça, qae se reduz a uma rédea partindo de cada lado de uma ar-.
^la que fura as ventas do animal. O boi cavallo, além de não se
achar tão exposto a doenças como a muar ou o cavallo, resiste
melhor a uma longa viagem.
Ka passagem dos pântanos a conformação especial das patafl
permitte-lbes desenterrarem-se com relativa facilidade do lodo,
o que Dão se dá com os animaes da raça cavallar, cujo casco, for-
mado de uma só peça, os sobrecarrega com o esforço que têem de
exercer paia vencerem á pressão athmospherica a cada movi-
mento asccncional dos membros. Outro tanto não succede ao boi,
em que o ar, immediatamente penetrando por entre as unhas, lhe
facilita a marcha, apenas sugeita aos attrictos do lodaçal.
dia dirígem-se os carregadores i feitoria commercial qiie
os levanton, onde lhes é feita a distribuiçSo das caibas,
n'nm peso qiie varia de 30 a 3-.Í kilogrammas de borra-
cha, marlím ou cera.
Sentados os carregadores respectivamente sobre os vo-
iimes que lhes foram confiados, toma cntâo o commer-
ciante nota dos nomes de cada hoinein, l<imando-08 assim
responsáveis pela entrega exacta e fiel, no local do destino,
do mesmo numero de kilos que n'aqiielle momento vira
pe/,ar.
Seguidamente, lançando os carregadores mSo dos
ijhimangu» que previamente teve o cuidado de prepa-
rar, liga-os solidamente de cada um dos lados da sua
carga e nas extremidades oppostas, por meio de landobe
(cucas de an'ore) aiTOmptando-se assiti' todos para a
pariida (').
Concluído, pois, o trabalho Ae amarração das cargas,
dirige-se entSo o cAíí-
*ongo (chefe de comi^-
va) ao commerciante,
pedindo lhe a mucattda
jw, (carta) que, depois de
recebida, envolve cni-
dadosaniente n'um pe-
' daço de oleado que tem
I o cuidado de pedir, afim
de preserval-a da agua
I <las chuvas ou de algum
I banho, por occasiSo da
I>as5agem dos lios, en-
talando-a por fim n'uma
varinha de 50 cenlime-
Iros, fendida longitudi-
nalmente até um terço
do seu comprimento, de
(jue, seguidamente, li-
^am cuidadosamente as pontas, superiormente á carta para
nua cahir.
l') (Momango é palavra euiprt;gH[lH pelo chiminindu para signi-
ficar iloii varapaus da sua altura que, ligados solidam ir q te k sua
'^"gn. D03 termos nciítia initicaitos, lhe pennittem cucostal-a a
■una irvore einqiraiito deaeanraiii, collocando-a aovaniente sobre o
lionibro on A c»bcça sem auxilio de outra pessoa, que, por esta
-imples dísposiçiío se torna perírltameute díspensavvL
Estes varapaus pcrmittuin tanibem ao carregador, segurar cora
maÍ4 facilidade certos volumes rpie, pela sua forma especial, lhe
ol{<;ncciii mau geito no transporte.
Assim, ptiis, se acha a comiliva prompta para seguir ao
seu destino; uma furmalidaile, por^m, se torna indispensá-
vel preencber, sem a qual o preto, em geral, se não sento
com disposição de prestar qualquer serviço— a data do
nuUambi<;ij — matabicho — que a todos é dado juntamente'
com algum sal e duas ou Ires caixas de phosphoros. §.4
As comitivas de gentio, viajando sem a companhia di^
europeus, raríssimas vezes realisam uma marcha de ida u
regresso entre Bihé e BengueJIa em tempo inferior a &'
dias, nos quaes se contam dois ou três de permanência
no litoral, onde, por via de regra, llies são distribuídas ou-
tras mercadorias, e feito o pagamento do transporte.
Uma vez de volta, entrega o clnsaongo a mucanda ao
commercianto, que por ella confere as cargas conduzidas,
despedindo os carregadores, que seguem satisfeitíssimos
para os seus chimbvs, depois de pela ultima vez lhes le-
rem servido um abundante mutiiMclto.
KeUfSea da anctoridade com o gentio — Seus campiim entoa offidaes
~ Pie Rentes e ana retriboição — Xiealo \»obba do 14'dulo|
ÃdmÍDÍstrafSo da jnatiça — O mucuno— Crimes predominan-
tee — O adultério como fonte de receita do gentio — O volungo
— A feitiçaTia e impossibilidade da aua repTossão — Cobrança
de dividas — Cadáveres de *ec<>» individados e procedimento
dos parentes para com elles.
As reUçSes dos commandsntes militares ou capit&es-móres
com o gentio começam também com os cumprimentos,
qae geralmente iniciam os vários aobbas e aecúloê, alguns
dias depois da chegada d'aquelles, prolongando-se durante
os primeiros tempos da^sua adminislraçilo.
Ocupassvla, cumprimentar, foi sempre pratica corrente
do gentio para com o seu grande »ohba cujas attribuiç&es,
depois da occapaçSo militar fez recahir no capitfto-mór, a
quem denominou osoma-i-étu (nosso sobbaj.
NSo é fácil de um momento para o outro, modificar os
costumes de certos povos gentílicos, por mais devotados
162
que n'esse sentido sejam os exforços de uma auctori-
dade.
A civilisação de taes povos é sempre uma natural con-
sequência da realisação de successivos melhoramentos ma-
teriaes, devidamente conjugados com o exercicio sábio c
presistente de numerosos missionários, a cujas congrega-
çSes o Estado não regateie as dotaçSes necessárias para o
desenvolvimento e proíicuidade da sua obra.
A tensão do vapor é quasi sempre a força propulsora
d'essa civilisação, de que o silvo da locomotiva indica, para
assim dizer, o momento de chegada. Vem longe ainda para
nós esse momento, a partir do qual deverão redobrar as
nossas attençSes, exercendo-se o melhor da nossa activi-
dade, para que essa obra de engrandecimento intellectual
jamais possa reverter em proveito de extranhas e occultas
ambiçSes.
Entretanto, as coisas são o que são, bem podendo consi-
derarse como extemporâneas quaesquer pretensSes ten-
dentes á immediata reforma de costumes e promulgação
de leis, que só o tempo e as circumstancias poderão sa-
biamente dictar-nos.
E, assim, accei taremos o cumprimento de qualquer ne-
gro, com todas as bobices e divertidos tregeitos que o ca-
racterisam, correspondendo, segundo os usos e costumes
do gentio, com o qual, por todos os motivos, nos convém
manter as melhores relações.
Como exemplo de cumprimentos de negros citarei o de
Xicaio^ sobba do- Nódulo, um dos potentados de maior
prestigio, e chefe indígena d^uma das mais populosas re-
giSes que se acham subordinadas á vastíssima capitania-
mór do Bihé:
Havia terminado o meu almoço de um dos primeiros
dias de junho, quando o sussurro dos soldados da guarda
■?•>
] Cu)
me chamou a atíenção, deixando-me prever qualquer acon-
tecimento extraordinário. Não tardou que na encosta do
Xjamba, fronteira de Belmonte, descobrisse enorme comi-
tiva, em que se disting^uia uma typoia, descendo vagarosa-
mente o monte em direcção á fortaleza. Momentos depois,
eomo que para denunciar a sua proximidade, algumas no'
tas profundamente graves e estridentes, foram desespera-
damente sopradas n*um descommunal instrumento metallico
ijue da vertente fronteira, por entre a numerosa turba do
P?Dtio, emittia lampejos de luz, que se coavam atravez
duma espessa nuvem de poeira.
Toda a comitiva, tendo transposto o Cuito, trepava já
para Belmonte, vendo então d'uma janella apparecer o
(rimeiro troço de gentio, constituido por cincoenta carre-
«radores que a este sobba haviam sido pedidos, e marcha-
vam na frente, armados já com os competentes olonango
«11 varapaus com que seguravam as suas cargas.
Seguidamente apparecia o solha, apenas precedido por
iinua pequena linha de músicos, executando, incançavois,
nama espécie de pifanos, uma exhotica composição, a
ijue, no meio da sua insupportavel monotonia, se tinha
inprímido um certo cunho de tristeza.
Era esta musica desastradamente acompanhada por um
velho e ameigado íigle de largas chavetas, que tapavam
Imracos [como punhos, devendo ser enorme o exforço exer-
cido pelo seu curioso executante que guardava, ad lihitnm,
immensos compassos de espera, como que para adquirir
alento que lhe permittisse arrancar do instrumento as
cinco notas que invariavelmente fazia soar de minuto a
minuto, enchendo de vento as bochechas e retezando po-
derosamente as veias.
Este homem, de cerca de quarenta annos, alto, secco,
com feiçSes de mulher, profusamente crivadas de signaes
de varíoU, er& de todos os executantes o mais curioso,
não só pelo seu feitio especial, como pela grotesca pose de
que se achava possuído, a qual, naturalmente, lhe resultava
da adnúraçUo que entre o gentio produziam as suas apti-
dSes musicaes, que as difficuldades de execução sobrema-
neira exaltavam.
Atraz do tobha caminhavam, reverentes, algumas deze-
nas de eecúlos, que constituíam o seu consflho de es-
tado, por entre os
quaes fervilhavam pe-
quenos muleques que
lhes transportavam os
bancos (catujruu).
f Uma vez dentro do
V recinto da fortaleza,
w toda a comitiva se sen-
tt tou immediatamente ;
V os aecúloa nos bancos
^ que lhes foram apre-
V ■ ' sentados pelos seus
■'^ muleques, todos os
'*\-^ ^ demais no chSo ou de
' , . cócoras, sua posiçSo
■ . predilecta, conservan-
do-se o sobba em pé,
assistindo, vaidoso, á concentraçSo da sua numerosa corte.
Este é sempre o ultimo a abaucar-se, tomando assento no
meio de todos os seus súbditos que, teudo^aguardado com
reli^osa attençSo este momento, introduzem dois dedos
na bocca, com que produzem um assobio^unisono e agudo,
que fazem acompanhar de uma rápida salva de palmas.
Esta ruidosa manifestação, repetida invariavelmente to-
das as vezes que o tobba se assenta, é signal^de res-
peito de natureza tal, que somente oom os verdadeiros
Mat se pratica.
Sentado o Xicato, supersticioso oomo tudos os tobhas,
procurou desde logo afugentar os espíritos maus que por-
veatara em volta d'elle se eucontrassem agitando o seu
lalisman, espécie de gnízo de creança, que sacudiu por es-
paço de cinco minutos em todas as direcções, mandando
s^gaidamente tocar a musica
para apresentar os seus cumpri-
meolos officiaes que fez prece-
der do offerecimento de um ma-
gnifico boi, ,
ConLecedor já d' estes costu-
mes e do procedimento qup em
tal oonjunctiira deveria seguir,
mandei entregar ao sobha duas
ichoretas de aguardente, con-
tfndo cada uma cerca de 30
garrafas, a qual este fez abrir
<■ serviu a todos por suas pró-
prias mãos, desde o seu pri-
meiro tec&lo ao mais Ínfimo dos
it\is mu leques.
A retribuição dos presentes
recebidos do gentio, era feita -^ ,,
pur conta das auctoridades pre-
senteadas, muitas vezes com um valor egual ou superior
ao do presente recebido, que, naturalmente, reverlia como
indemnisaçâo, em proveito das mesmas auctoridades, que,
á oHtra forma, seriam, ao fim de alguns mezes, duramente
prejudicadas.
Convém dizer que s<Ímente aos governadores geraes ou
«ledistricto é, por lei, auctorísado o aproveitame^to de uma
i
]()«
verba especial abonada pelos orçamentos geracs das pro*
vincias ultramarinas para retribuiçSo de presentes aos soh-
bas, sendo por isso justo que reverta em beneficio da
fazenda nacional, o producto da liquidação dos presentes
que recebem.
D'aqui parece, á primeira vista, que somente os gover-
nadores deveriam acceitar estes presentes e da mesma
fórma retribuil-os, sendo isso vedado para as demais aucto-
ridades, o que realmente representaria uma grande com-
modidade, se de tal pratica não resultassem as mais gra-
ves complicações, originadas perante a mais significante
recusa; a verdade, porém, é que sã# justamente os chefes dos
concelhos do interior, pelo seu maior contacto com o gen-
tio, as entidades mais frequentemente cumprimentadas e que,
por consequência, recebem maior numero de presentes.
Só quem desconhecesse em absoluto os costumes do gen-
tio e especialmente a desconfiança e ruindade do seu ca-
racter, poderia admittir como exequivel a recusa de qual-
quer presente offerecido por um sobba ao seu capitão-mór,
quando a verdade é que a troca d'estas dadivas bem pôde
considerar- se como a maior garantia de segurança e boas
relações com os diversos povos do sertão.
O discurso de Xicato^ como em geral o de todos os sob-
basy consistiu, principalmente, nos mais sinceros protestos
de vassalagem e fidelidade, que por via de regra, terminam
com quatro tombos que o orador exhibe sobre a terra de
que finalmente se cobre por completo.
* *
A administração da justiça ao gentio, em que é seguido
o regimen da indemnisação, foi no Bihé, em tempo, exercida
167
I
pelo sobba grande ; realisada, porém, que foi a occupaçAo mi-
litar, e deportado o sobba da região, começou desde logo o
gentio a considerar o commandante militar como seu sobba, á
presença do qual se dirigia para a decisSo das suas n^dcÊCtu.
Foi o gentio sempre attendido por estas auctoridades,
sendo as suas questSes resolvidas de harmonia com as ve-
lhas leis e costumes predominantes, que as mesmas aucto-
ridades foram pouco e pouco estudando.
Entre o gentio do Bihé suscitavam-se pleitos variadís-
simos que não podian ser previstos ou comprehendidos
pela nossa legislação, mas que também não podiam deixar
de ser attendidos e resolvidos, segundo as leis e costumes
bihenos, afim de manter-se uma certa auctoridade e pres-
tigio, evitando complicaçSes de que resultariam contendas,
que teriam como consequência inevitável a guerra entre
08 povos.
Os casos de feitiçaria, infinitamente complicados, são os
que maior contingente dão para as questSes entre pretos,
e por maiores que sejam os esforços empregados pela
auctoridade no sentido de convencel-os do erro em que vi-
vem^ procurando até com exemplos frisantes destruir as suas
arraigadas superstições, nada mais pôde conseguir-se de que
um sorriso de desconfiança, acompanhado de uma troca
de olhares de significativo desdém, com evidentes manifes"
taçSes de contrariedade, que invariavelmente terminam pela
retirada successiva de todos os individues que momentos
antes se apresentavam deante da auctoridade, a quem, nO
seu intimo, passam o diploma de incompetente, suppondo-a
sem poderes sufficientes para a resolução dos seus pleitos*
D'aqui resulta irem ter com o primeiro secúlo seu visi-
nho, quando não procuram algum negociante que, se para
isso tem feitio, atana o mucano com grave desprestigio da
auctoridade.
170
próprio da solemnidade do caso, taes são as peripécias e
incidentes divertidissimos que, no decurso de taes pleitos,
a cada momento se suscitam e que muitas vezes me força-
vam a abandonar o meu posto, se não queria rebentar de
riso na presença do gentio.
Maravilha ver como um preto se eiforça em comprovar
» infidelidade da sua mulher, que, de mãos dadas com o
marido, egualmente emprega, sem o menor rebuçoi o me-
lhor da sua eloquência na coniissão excessivamente deta-
lhada da sua falta, em que as mais intimas e particulares
minúcias, chegam a vir a lume, desde o simples namoro
até ao acto final da seducção, que a desbragada, natnral-
menle, descreve, n'uma obscenidade de linguagem e gesti-
culação, de que não é fácil encontrar-se precedente.
Da sua parte o accusado que assiste i discussão da
causa, desejando a todo o custo subtrahir-se ao pagamento,
protesta, cm termos vehementes e não menos deshonestos,
contra as affirmativas da sua seductora, procurando com
denodado empenho destruir a accusação, ou pelo menos
reduziUa, com a apresentação de attcnuantes por vezes mais
divertidas ainda do que a própria accusação.
Queixosos e accusados, porém, no decurso dos debates,
offerecem reciprocamente as suas pitadas, como se estives-
sem nas melhores relaçSes possíveis, chupando até do
mesmo cachimbo que, por ventura, qualquer dos três ac-
cenda.
Finalmente, liquidada a questão, seguem satisfeitíssimos
para os seus chimhos (aldeias), onde com a entrega dos
tantos volumes, fica inteiramente illibada a honra do ma-
rido ultrajado, que do producto doeste pagamento compra
algumas braças t e pintado (chita) com que brinda, reco-
nhecidíssimo^ sua esposa, pela forma hábil e intelligente
como se houve durante a sua ausência.
Por outro lado o seductor, desprr^ndeodo-se com ap-
parente índifferença dos volumes que teve que pa^ar, de-
clara, com certo orgulho, qae pnfjoii porque tinha por onde
•pagaste.
Na decisão de alguns pleitos nSo se consegue, piir falta
de provas, chegar a descobrir de que lado se encontra a
razUo, havendo, de ordiná-
rio, um ou outro secúlo que,
levantando- se, lembra a con-
veniência de que as duas
partes litigantes vSo beber
o volungo.
Volungo, juramento, va-
ria com os diversos povos
e com o 6m a que se des '
tina. Xoa casos de duvida [
a que alraz me referi, ape-
nas se pretende averiguar
de qual das duas partes se
encontra a razão, perden-
do-a e ficando queimado,
aquelle que vomitar, tendo
ingerido um liquido que lhe é ministrado por um chim-
banda.
Este individuo, espécie de mezinheíro, mais intelligente
e manhoso do que os seus visinhos, conhecendo as proprie-
dades medicinaes de certas plantas, prt^para dois líquidos
da mesma cõr, de que um produz fortes vómitos, podendo
o outro considerar-se inoSensivo.
No momento solemne, seguidamente aos discursos pro-
nunciados por cada uma das partes, i este ultimo liquido
dado pelo ckimhanãa ao individuo qite melhor lhe pagou,
oSo tardando que o outro, sentindo-se fortemente enjoado,
172
vomite todo o liquido que bebeu, sendo assim considerado
queimado.
A profissão de quimbanda é sobremaneira rendosa, ap-
plicando-se não somente ao mister de adivinhaçSes, como
ao tratamento medico ou cirúrgico de certas doenças, em
que chegam a ser consultados por alguns europeus que,
segundo dizem, tiram de tal tratamento os melhores resul-
tados.
Quando o juramento se applioa a individuo sobre quem
pesa a terrível acciisação de feiticeiro, o volungo acaba,
ordinariamente, por tirar-lhe a vida, depois do que é o seu
corpo ignominiosamente arrastado por montes e finalmente
abandonado á voracidade das feras.
A vida do biheno, fora de uma ou outra viagem de com-
mercio que nem todos os annos realisa, é empregada na
constante decisão dos seus pleitos, verdadeira cobrança
de dividas que a muitos séculos augmenta poderosamente
os seus haveres. Seguidamente á morte de qualquer ne-
gro, o sobrinho, seu legitimo herdeiro, passados os feste-
jos do óbito, immediatamente se emprega na cobrança das
dividas do fallecido, atanando os seus mucanos.
Se, pelo contrario, este negro, em consequência do
seu feitio conflictuoso e discipador, deixou dividas que os
seus reduzidos haveres lhe não permittem pagar, nenhum
individuo se denuncia como seu parente, para não assumir
a responsabilidade dos seus compromissos, que teriam de
ser satisfeitos aos credores do morto.
O enterro de qualquer seciUo fallecido no Bihé e respe-
ctivo festejo do seu óbito, é sempre realisado pelos seus
■««M
■e- ' ^
173
parentes mais próximos; ora não se apresentando ninguém
como parente, fica o cadáver indefinidamente insepulto,
sendo envolto n'uma espécie de cortiço convenientemente
fechado, e finalmente collocido sobre uma arvore a uma
altura em que as feras lhe não possam chegar.
n«iP«M
Al lerrMB de Bihé — Configaratto e f«rtíUd*de do solo — Clima —
Altilode — Hibitsntea do pa» — li«nt cottumea « aUmeutaçSo
— a garapa — AoMat e )iiÍDeipaea dignitarioi da cOrte — Batu-
ques— Chinfugo — Oi obitoa « Kni featejoi — Enterroi -Ba*
palturaa— O ebimbaQdiamo^ONiMMpa aerena — Caprichoaoi pan-
teadoa — Lfnçoa da aaaoar — Uaueira coaw BpraseuUm aa
anaa preteusAai — Sua fòrmola de landaçSo — Edionda iu~
peratifío.
O paiz do Bihé faz parte do vastíssimo planalto de Ben-
guella, de que, para o lado do oeste, marca, para assim
dizer, a sna tennÍDaçXo.
Da leitura dos primeiros capítulos d'eate livro, em que
procuro descrever a minha viagem para o Bihé, e do exame
das diversas altitudes rigorosamente marcadas oas cartas
geograpfaiciis do distãilo pelos nossos distiuctos explorado-
res e outros nXo menos distinctos viajantes, bem pôde
concluir-se que, n'esse pittoresco trajecto, se realisa uma
verdadeira ascensão, em que é feita a transposição de uma
série de elevadissimas montanhas, por vezes de caprichosa
configuração, que, curiosamente projectadas no azul do
firmamento, se vão successivamente deparando ao viajante,
oomo outros tantos phantasmas colossaes, rompendo ma-
gestosos da immensidade do continente.
Não visando oste modesto trabalho ao estudo geogra-
phico do Bihé, sob este importante ponto de vista, tão
proficientemente descripto por Capello e Ivens, Serpa Pinto
e outros exploradores, apenas me limito, para orientação
dos leitores, a apresentar um ligeiro croquis do trajecto
de Benguella ao Bihé, cuja determinação, como disse, se
deve ao fallecido sertanejo Silva Porto.
A configuração do terreno, em geral pouco accidentado,
apresenta- se-nos em ligeiras ondulações, dando por vezes
origem a immensas anharaa ou planuras, entre as quaes
se abrem valles de pouca profundidade.
A altitude média determinada por Capello e Ivens é de
1:572 metros. O clima pôde considerar-se relativamente
salubre, não sendo também grandes as variantes de tem-
peratura durante todo o anno. Belmonte é talvez o ponto
mais doentio de toda a capitania, e, como tal, reconhecida-
mente considerado por todos os europeus e negociantes, que
geralmente cahem com as febres, quando, por objecto de
serviço ou em visi^, se demoram na fortaleza.
A natureza do solo argilo-silicioso, immensamente re-
gado por abundantes correntes, torna-o extraordinaria-
mente fértil, cirçumstancia esta que conjugada com a ame-
nidade do clima, sobremaneira influe no atrazo moral em
que ainda hoje vivem os seus habitantes que, encontrando
na fertilidade do solo a satisfação das suas primeiras
necessidades, não têem, visto que de nada precisam, o
3QCIS)
7.
X
íscala
B
^/w^m^mmm^
^mmmmmmmm
177
imperíoso ÍDceutivu do trftb&lho, udÍco obstáculo para o na-
tarai desenvolvimento de todos os vícios a que aemprt
U logar a ociosidade.
£ tanto asHÍm, que a agricultura dos seus arimos, nSo
exigindo exíorço demasiado, é exclusivamente confiada aos
t^dadoa das suas mulheres, que com extrema facilidade,
preparam as terras de quu oblêem producçlies por fórma tal
178
abundantes que, excedendo as suas próprias necessidadesi
lhes permittem ainda a venda ao negociante sertanejo, para
o sustento dos seus serviçaes.
As proilucçSes são, em geral, as mesmas que no Bailundo,
desenvolvendo-se com notável rapidez as culturas de im-
Iho, mandioca, batata doce, o feijão, a ervilha, a batata or-
dinária, o tomate, pepino e toda a casta de hortaliça. De-
senvolvem-se sendo regadas, a bananeira e ananaz, mas
não tanto como no litoral, em consequência da altitude, e
egualmente a laiangt-ira, o limoeiro, aromanzeira, agoia.
beira, a figueira e o pecegueiro.
O abandono a que ordinariamente se votam os bihenos,
como consequência das causas que atras deixo expostas,
manifesta se, de resto, na simplicidade do seu vestuário e
ligeireza das suas construcçSes, a que, até hoje, nenhum
preto imprimiu um cunho de permanência que lhes desse o
aspecto de casas.
Não' tendo frio dispensam também a cama, que nem o
sobba mais poderoso possue, dormindo n*uma pequena es-
teira lançada sobre um esguio alpendre que armam no in-
terior das buas cubatas.
Na epoclia do cacimbo, ombambi, e em especial nos me-
ses de maio a junho, em que as noites são relativamente
frias, uma pequena fogueira, ardendo dentro da sua cubata,
dispensa-lhe ainda vantajosamente a roupa de cama, de qae
nós europeus não prescindimos n'esta agradável quadra do
anno. Durante o dia, não é também o frio que os obriga
a vestir mais roupa ; e se no Bihé, uma vez ou outra, se en-
contram alguns seculoê vestindo pesados capotes ou casa-
cos de agasalho, bem pôde tal uso attribuir-se a qualquer
presente das auctoridades ou negociantes, usando tal Tes-
tuario indistinctamente, sob a influencia do frio ou do mais
ardente calor.
^ - 4
179
O lame é a sua principal roupa no frio, se bem que
DOS jangos de qualquer libata de gentio, arda permanen-
temente uma fogueira, em volta da qual em qualquer epo-
cha do anno, se vêem sentados alguns pretos que, d'este
ponto, fazem sala de palestra.
£m todas as libaiaa existem geralmente dois jangos,
sendo um destinado aos homens e o outro ás mulheres.
Nas m'balaí, de sobha são estes chamados respectivamente
do sobba e da inacufo (rainha>.
A construcção dos jangos obedece aos mesmos princí-
pios que a de qualquer cubata, de que apenaâ differe pelo
seu traçado circular. N'uma circumferencia de raio variá-
vel, não excedendo ordinariamente 4 metros, são profunda-
mente cravados a prumo, alguns grossos paus de 2 metros
de altura, unidos entre si, excepto nos dois pontos diame-
tralmente oppostos, em que se abrem as portas.
Superiormente é o jango coberto com umi espessa ca-
mada de capim, como qualquer outra casa, que apenas
differe doesta espécie de clubs gentílicos, no revestimento
de argila amassada com que são barreadas as cubatas^ em
cujas paredes, alisadas á mão, se ostentac. exotioos dese-
nhos da íigara humana e de diversos animaes selvagens, e
outras garatujas, mais ou menos relacionadas com assum-
ptos de feitiçaria.
£' tal o vicio àojango e respectiva fogueira, que alguns
velhos pretos, á força de se approximarem do lume, apre-
sentam a epiderme das pernas, na parte anterior, por
forma tal contraída pela acção do fogo, que iinaimente se
destaca e cae, como se n'esses pontos lhes houvessem ap-
plicado uma forte dose de tintura de iodo.
No Bihé, como de passagem tive já occasiâo de dizer,
não ha actualmente sobba, tendo os diversos chimbos por
chefes alguns séculos, a que o gentio dá aquelle nome,
. de cujo viver o sen differe pela importância e sumptuosi-
datle (la soa corte.
Era esta conetiluida pelo muâne-cária, espécie de pre-
sidente de conselho de ministros, que é composto pe-
los eens êeeúlos on macófot, entre os qnaes ainda se encon-
tram dignitários espe-
ciaes, como o capilango,
espécie de ministro da
guerra, e Culfér, respe ■
eticamente corrupçSes
de oapitilo e alferes.
Ha também junto do
monarcha um creado
particular, o CtUei, de
maneiras afeminadas,
a quem é attribuida certa
missSo reservada que
me pareceu iaverosimil.
Sendo o bihtno, como
disse, naturalmente pro-
penso ao commercio, que
em geral vae exercer
com outros povos do ser-
tSo, foi contraindo rela^Ses de que tSem resultado cru-
zamentos por fórma tal complicados qne, introduzindo
verdadeiras dissimilhanças na primitiva raça, nio permittem
actualmente definir-lhe um typo oaracteristico.
Relativamente á origem â'este povo, a falta, nSo digo
ji de Iiistoria, mas de documentos elucidativos, nlo pir-
mitte tirar conclusSes que, por apenas se basearem em
simples lendas, de todo o ponto inverosímeis, conserva-
das pelo gentío, nos levariam a resultados que pouco pode-
riam approzimar-se de realidade.
à sua popuUçSo, segundo um ligeiro o&loulo baseado qss
iofonDaçSes dslguas tecúloi, e confirmaias por DegouJan-
tes europeus, é de 50:000 habitantes, incluindo oa dois
MbI)ailos nSo bihínoi de N'Dulo e Lnimbi.
Os costumes da regiSo receotem-se também das mea-
mu eztranhas ínflueociaa que modi6{:aram o lypo car»'
(.'lerístico do biheno, que
tem adquirido costumes
Ião diversos, qu&o di-
versas sSo as terras que
percoiTe.Ãmulher,além
io amanho dos arimos
que, como ji lívtí occa- (^
sião de dizer, lhe é ez ^
cl usi vãmente confiado,
compete lhe também a
|)reparag3o das farinhns
de milho e mandioca de
(|ue o gentio principal-
mente ae alimenta. A'
/alta de moinhos, tanto
o milho como a man-
dioca, s&o reduzidos a farinha em pilões de madeira, e.-i\
que dnas mulheres batem alternadamente cada uma ooai
seu pau, que successivamente levantam e fazem cair oom
força deatro do pílSo.
Obtida a farinha, é esta lançada i)'uma panella, contendo
sgna a ferver, que continuadamente ee vae meoheaio até
«bter um ponto de solidez que só o indigena sabe apre-
ciar.
Retirada do fogo é então lançada nos pratos, d'onde,
depois de ligeiramente arrefecida, a comem com as mSos,
sob a denominaçSo de infundi.
i^^^p
182
E' o infundi a base principal da alimentação do gentio, cor-
respondendo á broa on centeio que o nosso lavrador egoal-
mente não dispensa. Com o infundi é também servido um
outro prat a que o chind>undu dá o nome de omharéra.
Esta denominação bastante genérica, applica-se a todo o
alimento a que nas nossas aldeias transmontanas chamam
o apresigo* e vem a ser qualquer outro cozinhado, ordi-
nariamente carne, que, depois de cosida, misturam com o
infundi.
A carne, geralmente de qualquer animal morto por
doença, visto que só por occasião de festejos o gentio mata
alguma cabeça das suas creaçSes, é tanto mais apreciada
quanto mais pestilento fôr o cheiro por ella exalado, sendo
ordinariamente cozinhada quando se ache em completo es-
tado de putrefacção, em que, segundo diz, se torna deli-
ciosamente tenra e saborosa ! . . .
Uma ombaiéra extremamente apreciada pelo gentio é o
gafanhoto. Não raro, nuvens immensas de gafanhotos ap*
parecem no espaço onde chegam a interceptar os raios
solares, proje -tando immensas sombras sobre a terra. Tal
acontecimento produz uma indescriptivel alegria em todo
o gentio, que immediatamente se prepara afim de, durante
a noite, recolher alguns milhares do destruidor insecto, no
que chega a derrubar as arvores em que elles se acham
pousados. Cozidos os gafanhotos fica o gentio aprovisio-
nado de ombaréra para alguns dias, durante os quaes, na
occasião das suas refeiçSes, apenas os submette a uma li-
geira torrefacção, ordinariamente sobre um velho pedaço
de lata, ou dentro de uma panella vasia, misturando-os se-
guidamente com o infundi.
Com a comida bebe o gentio agua, se bem que pre-
pare uma bebida extremamente agradável e hygienica, o
chimbomboj que os próprios europeus apreciam immenso^
■N
considerando- a alguns preferível ao^ próprio viulio. Na
preparação do chimhombo ou garapa, que se obtém pela
férmeutaçSo da farinha de milho, provocada pelo imhundi
Oúpnlo), ê este laoçado em grSo na agiia, onde se conserva
até que comece de germinar.
NVsta altura tira se da agua, estendendo o ao sol at4
se tornar completamente secco, indo entSo ao pilSo, oade
wfire uma ligeira trituração. Do pilSo passa novamente
para uma panella com agua, snbmettendo-o assim a uma
pequena ebuliçlo, juntamente com o lúpulo, depois do que
se retira do lume, «ssentando a panella n'um sitio fresco.
Completamente arrefecido, servem n'o eotão em enormes
oftbsQas oorUdss pelo meio, a que se di o nome de ganjaa.
E' tal o eDthusiasmo do gentio por esta bebid«, que em
todas as líb'it(u do Bih4 slo frequentes as festas do chim-
bombo, para que sXo ordinariamente oonvidados os habi-
tantes da visínhan<;a.
Para a preparação de tae^ festas, que terminam sempre
por tremendas borracheiras, é o milho preparado por to-
das «8 mulheres da lAnta eum muitos dias de antecedên-
cia, desenvolvendo se uma faina de que resulta o fabrico
de muitos almudes da espiritunsa bebida.
Estas festas, ordmaríamente acompaahadas dos seus b»*
tuques, dSo logar a alguns cnsamentos, resultantes das re-
lações que, d'e3ta forma, se estabelecem entre os mancebos
e raparigas de lihattt diSerentes.
Os batuques consistem, pouco mais nu menos, em dao
Cas genainamente selvagens, para nós destituídas de graça,
em que 4 eze<<utado, em coro, um canto extraordinariamente
185
monótono, mas afinado, que alguns bumbos (dohoma) acom-
panham n'uma enferneira ensurJecedora.
Duas linhas de povo dispostas vis à-^is, constituidas uma
por cavaJhmros outra por damas, torcem-se e retorcem-set
sacudindo os hombros e as ancas com uma ligeireza pro-
digiosa. Em passo miudinho a linha de damas avança len-
tamente, produzindo no solo largos sulcos, ao mesmo tempo
que da linha de cavalheiros rompe um doestes, levantando os
braços, escarranchando as pernas, soltando urros, e produ-
zindo esgares, de ordem tal, que sobre maneira maravilham
quem por vez primeira os presenceie.
A lettra de que se servem nos coros geralmente usados,
nos batuques, é a seguinte :
Námeii dêpa iié!
Oh, oh!
Námen dêpa ué
Ca chin ganguella
Mamané uendér êquiari
Námen dêpa ué
Oh oh!
A significação doestas palavras refere-se a casos de fei-
tiçaria de que resultou ordinariamente a morte de qualquer
pessoa.
Differe da lettra das arrebitas^ que diz :
A cambinda mu cuá quillengue
A cambinda mu cuá quillengue
Ná uáquemba, ná uáquemba
Ná uáquemba qui coáta có!
A arreibta é a dança predilecta do chimbar (ez-escravo
do sobba ou século).
186
N'algumas libatoM, além dos humhos^ é usado o chingufo,
que é um prysma triangular truncado (^i, de madeira, cujas
bmses são triângulos isosceles. Ao longo da aresta do die-
dro menor foi aberta uma fenda pela qual, por meio de
facas, se escavacou o interior do prysma, por forma a dei-
xar em cada face uma espessura regular e minima de um
oentimetro. Duas grossas vaquetas, tendo as extremida-
des revestidas de borracha, permittem tirar do instru-
mento sons por forma tal extranbos e intensos, que se
ouvem a grande distancia.
A irregularidade de espessura das duas faces maiores
do prysma, dá logar a sons variáveis, segundo os pontos
em que se toca. Eis aqui a descripçSo do chingufo, tão
conhecido em todo o sertfto de Benguella, cujo som, por ve-
zes agudo e penetrante, se ouve noites inteiras, por en-
tre bumbos e plangentes marimbas de líbatas distantes,
ii'nm conjuncto grandioso de que nos resulta uma extra*
nha impressão da indefinivel tristeza.
Ordinariamente os maiores e mais prolongados batuques
são realisados por occasião do fallecimento de qualquer
Mobba ou secúlo importante. O fim d'e8tes batuques, acom-
panhados de um tiroteio ensurdecedor é, como de passa-
gem tive occasião de di/.er, evitar que a alma do morto
permaneça na libata^ onde poderá originar as mus estu-
pendas fatalidades.
Não admittindo o gentio, por principio algum, a morte
natural, procura desde logo descobrir-lhe a causa, que
attríbue sempre a mysteríosas influencias de feitiça-
ria*
(^) Alguém tem pretendi lo apresentar o chingufo como tambor
de guerra, mas isso é mtrnos exacto.
187
A adivinhação é n^este caso o caminho seguido, dirí>
gindose os parentes com o morto para casa do chimbanda
qae, por processos mais ou menos astuciosos, faz ordina-
riamente recahir as responsabilidades em individues que,
pela sua abastança de meios, possnm pagar o crime.
O chimbanda nfto falia sem que na sua frente veja uma
vacca e algumas peças de fazenda, que, de resto, todo o
gentio considera indispensáveis para legalidade do veredi-
dunij com o qual o próprio accusado, passada a natural
estupefacção de momento, se conforma pondo finalmente de
parte o testemunho da própria consciência, para se consi-
derar um verdadeiro culpado.
Liquidado este assumpto com a entrega do porco aos
parentes do finado, como signal de assentimento, ficando
assim estabelecido o compromisso pagamento, iniciam-se
então os festejos do óbito nos termos que tenho exposto,
e durante os quaes, pela bocca do finado, os parentes des-
pejam repetidas garrafas de aguardente atapulhando-lh'a
por íim com uma boa dose de infunde.
Na occasião do enterro, que não pôde realisar se sem
a comparência de todcs os patentes, têem estes o cuidado
de introduzirlhe na cova um frango, que é enterrado
vivo juntamente com o defunto, como que servindo-Ihe de
merenda durante a eterna viagem. N'alguns outros paizes
do sertão, é o frango substituído por uma das suas mu-
lecas (escravas) quando se trate do enterro de algum
sobba, sendo, durante os respectivos festejos, abatido e co-
mido pelos seus parentes um ou mais pretos, segundo a
importância do óbito. Este bárbaro costume, ha annos posto
de parte no Bihé, onde pela falta de sobba não tem havido
opportunidade de usar-se, é, ao que se affirma, seguido
ainda no Luimbi {Gang^tdlas), região que, administrati-
vamente, se acha subordinada á capitania-mór do Bihé.
Estes acontatnmentos , porém, aSo raros, como rsros s9o
03 fallecimentos de Bobbas, que, de ordmari<>, vivem, como
todo o preto, gr&nde numero de sanos; afSrmaado se po-
rém serem taes sacrificios formalidade indispensável,
tanto DO óbito como na
accIamaçSo de qualquer
sobba. N'este e n'outros
casos idênticos usa o
gentio de uma certa dis-
creçSo para com as auc-
toridades, perante quem,
sobre o assumpto, man-
tém o mais rigoroso si-
gillo que impossível se
tornaria desvendar.
Enterrado o cadáver
e depois de calcada a
terra, sSo lançadas al-
gumas pedras e outros
objectos sobre a sepul-
tura, em volta da qual
é estabelecida uma pequena paliçada que a preserve dos
assaltos da hyhena, lobos e outros animaes caroivoros.
N'a'gumas sepulturas armam ainda os biheno» uma espé-
cie de telhado de capim, para que a acção das chuvas
nSo destrua os vestígios das sepulturas, pelas quaes o gen-
tio conserva particular respeito.
Finalmente, >iisp5e o gentio eaorrae profusSo de cra-
neos de diversos animaes, espetados nos paus do ceroado,
laes como, antílopes, buffalos, bois, etc, abatidos durante
as festas, e ainda guarnecidos com as respectivas armaçSea,
a que a acção do tempo arranca por fim o revestimento
comeo, deixando a nú apenas a parte óssea.
189
Diversos utensílios sKo ainda collocados sobre a sepul
tura, taes como: garrafas, pratos, pequenos barris, etc.,
que o gentio se encarrega de inutilisar para n&o serem
roubados, e todos mais ou menos indicativos do prolongado
ffstejo.
Contam-se no Bihé casos de adivinhaçSo tSo variados
como de interessantes, de que apenas narrarei o seguinte,
que me foi apresentado por um negociante europeu, no
seu regresso ao Bihé, de uma viagem de commercio que
acabava de fazer a Benguella :
Tendo o homem seguido para ali com um carregamento
de borracha, foi procurado, a um terço da viagem, por um
dos seus carregadores, que se lhe queixou de fortes dores
Das pernas, que certamente lhe não permittiriam prose-
guir; e, para não ter em qualquer outro ponto de abando-
nar a carga, resolvera consultar um importante chimbanda
que sabia residir n'uma libata do logar.
Achando sensata a proposta do preto, seguiu o commer-
ciante acompanhado dos seus carregadores para a libata
indicada, onde, passados momentos, apparecia o chimbanda^
com o qual se entrou em ajustes para a adivinhação da
doença.
Estabelecido o preço de uma chirana (8 jardas de fa-
zenda) nada mais restava do que iniciarem-se os trabalhos.
Para isso, o chimbanda, chamando o doente e os seus
companheiros, que mandou sentar no chão, entrou na sua
cubata, d' onde passados momentos sahia trazendo na mão
nm enorme chifre de malanca completamente cheio de uma
pasta negra como pêz.
Eotacando em frente do enfermo esfregou a base do
chifre com uns p<is vermelhos, de que egualmente se s^r-
vin para desenhar alguns riscos na própria fronte e faces.
Collocando em seguida o chifre sobre um cSpo de ma-
deira, que fez transportar para junto dos carregadores,
peJiu a dois d'eates que o aguentassem, sempre com a
ponta assente sobre o cepo, e por forma a nXo o deixarem
cahir. Voltou únda o chmhanda a entrar na sua cubata,
d'oDde trazia uma cabaça, gat^a^ contendo pós brancos.
N'esla altura dirigiado-se a um terceiro carregador iDCum-
biu o de interrogar o chifre, dizendo-lhe : tapuia, (falia),
ao mesmo tempo que tomava nos dedos uma pitada de
pós brancos que ia deixando cair dentro do chifre.
Este ultimo carregador iniciou eulSo o sttj^uinte interro-
gatório : Porque é que aqueile homem está doente ? Qual a
sua doença? etc. E depois de repelidas vezes interrogar o
chifre, notou, maravilhado, que ente principiava a andar de
roda, e, seguidamente, a querer levantar se no, que os car-
regadores, sobre maneira intricados, o procuravam impe-
dir, aoltaado as seguintes exclamaySes omhinga êerenaf
^o chifre escorregai)
Como este continuasse a levantar-se, e podésse conàde-
rar-se insafficiente o esforço empregado pelos dois carre-
gadores, um terceiro se promptíGcou a auzilial-os, sem
resultado satisfatório ; nSo tardando que lodos os seus com-
192
panheiros se lançassem em seu auxilio, n'uma lucta encar-
niçada, em que finalmente ficaram vencidos, escapando,
lhes da mão o mysterioso appendice depois de tel-os
levantado por diversas vezes do chão.
Uma vez em liberdade subiu o chifre a uma certa altura,
cahindo finalmente no chão, para o lado do Bihé. D'este
facto concluiu o chlmbanda que o rapaz adoecera em con-
sequência de sua mulher lhe ter servido o inftmdi, encon-
trando se accommettida da sua periódica enfermidade, que
om descuido ou falta de asseio transmittiu ao marido, em
quem se manifestou com as dores de que se queixava, e
para as quaes somente o seu regresso ao chimbo traria o
restabelecimento desejado, bem podendo considerar-se in-
úteis, quaesquer exforços no sentido de proseguir na via-
gem.
Dispensou, pois, o commerciante este carregador, se-
guindo para Benguella com os restantes. No seu regresso
ao Bihé, o seu primeiro cuidado foi informar se do rapaz,
que soube achar se de boa saúde desde o dia da sua che-
gada ao chimbo...
Sem querer desvirtuar o poder de adivinhação do sr.
Chimbinda^ não deixei de dizer ao i^^egociante, que, da sua
boa fé, abusou o fino adivinhão, naturalmente feito com o
carregador que se não achava disposto a seguir.
Como já tive occasião de dizer o biheno preoccupa-se
pouco com o vestuário, encontraudo-se —não raro —impor-
tantes aecúlos, nojenta e andrajosamente vestidos, se ves-
tuário poderá chamar-se a um miserável panno seguro em
volta da cintura com um pequeno cordel.
As mulheres nSo vestem melhor, fazendo coavergir todas
u GDsa attençSes para o peoteado, qae usam do seguinte
pato:
Depois de sufficientemente crescida a carapinha, ahrem
duu riscas perpendicniarps, dn que uma segue a dírecçXo
uada nos autuaes pen-
teados das nossas da-
mts, iato é, ao meio.
fica pois a carapinha
^vidids em quatro quar-
tos, sendo em cada um
dos dois da frente fei-
tas numerosas tranci-
nhas qoe assentam de
nm para o outro lado, e
ahi seguram com azeite
de palma que sobre o
cibello despejam em
grande quantidade.
Os dois quartos da
nnca dSo origem a mais
daas tranças que se li-
gam pelas extremidades
em forma de aza de césio, ficando esta pendente e profu-
samente guarnecida de tachas amarellas.
Os homens usam, em geral, o cabello crescido por todo,
especialmente os tecúlo» que, apenas de vez em quando,
o rapam com facas afiadas oa vidros de garrafa.
Alguns rapazes ahrem tamhem i faca ao longo da ca-
beça uma risca com que simulam o cabello apertado ; outros
rapam toda a carapinha á ezcepçSo de uma longa fiúxa
que se estende desde'^ a testa & nuca em f6rma de crista
<!e gallo; ainda outros abitm diversas riscas longiludinaes
e~ par&lellas, eatre as quaes deixam ficsr tiras de cabello
de e^al largara ; e finalmeate a múor parte, apenas deixa
uma espécie de poupa junto i lesta a que chamam a chã^
ãumba.
Alguns pretos — raros — adquirem, depois de muito ve-
lhos, magníficos bigodes e compridas pêras que entrançam,
enfiando- lhes nas extremidades contas de diversas oõrea.
Outros usam este enfeite no cabello, que para isso Atar-
xi>m crescer, afím de poderem entrançal-o.
Como luxo, Dos'^retos, sSo consideradas as tatuagens qae,
quasi todas as tribus gentílicas, fazem em diversos pontos
do corpo.
195
A operaçSo da tatuagem é feita em creanQa, por pessoa
devidamente habilitada, que sujeita os pacientes a uma
verdadeira tortura, com os golpes que ordinariamente lhes
faz no baixo-ventre, coxas rins, e costas.
£m certas regiSes, como, por exemplo na Luba, os pretos
são também marcados, arrancando-lhes todos os dentes
incisivos do maxilar inferior, ao passo que os ganguellss
se limitam já á limagem dos dois incisivos da frente do
maxilar superior, em forma de V.
Alguns exemplares se encontram no Bihé, mas não de
raça m'bundo^ com o nariz e orelhas ostentando orificios,
abertos na parte cartilaginea, etc, ete.
Não possuindo algibeiras, dispensam por isso mesmo o
lenço de assoar, servindo-se do de cinco pontas com que
a natureza os dotou, e, seguidamente, de um pequeno pau
ou palhinha que apanham do chão e que, seguro pelas duas
extremidades, fazem escorregar ao longo do lábio superior
para complemento de limpeza.
Na apreciação que entre si fazem sobre os costumes dos
europeus, aos quaes acham tanta graça como nós podere-
mos achar aos d*elles, criticam immenso o branco que,
as8oando-se, guarda o que elles deitam fora.
Se cospem no chão, immediatamente cobrem com terra
servindo-se para isso da mão ou do pé, segundo se encon-
tram ou não sentados.
Quando um grupo de gentio procura o capitão-mór para
lhe apresentar qualquer pretensão, depois de, ao passar
pela sua frente, lhe dirigir uma ligeira saudação com as
palavras Calunga! calunga! que pronuncia batendo simul-
taneamente no peito e curvando-se ligeiramente, toma em
seguida assento no chão, ordinariamente de cócoras, espe-
rando que o ultimo dos seus companheiros tenha tomado
esta posição, que o preto considera a mais respeitosa
^I^Jf*.-, -.
196
para se dirigir, nSo só ás auctoridades, como a qual-
quer europeu.
Somente depois de tudo se achar sentado, é que a pes-
soa mais importante do grupo, lançando em redor um ligeiro
golpe de vista, em que procura verificar se tudo se acha
na devida compostura, formula a sua pretensão, que in-
variavelmente faz preceder do voccativo líagana (Senhor !)
Nas saudaçSes entre pretos emprega- se também a palavra
calunga^ acompanhada de palmas, a que a pessoa saudada
responde com a mesma palavra e estribilho, que muitas
vexes faz seguir de outras palavras, taes como: cu-cu,
hoquitu, moioj etc.
O contacto do gentio com os europeus tem-no levado a
cumprimentar os braiicos com aperto de mão, quando estes
lhe permittem tal liberdade, reservando, oomtudo, para
si o seu primitivo cumprimento.
Se, durante a exposição das suas pretensSes, têem ne-
cessidade de passar pela frente do branco ou mesmo de
qualquer aobba ou seciUo, que lhes inspire respeito, o seu
pedido de licença fazem-no com um estalido de dedos, que só
termina depois de se encontrarem um pouco affastados.
Se usam chapéu ou carapuça nunca se descobrem, con-
sistindo o seu cumprimento tão somente no que atraz referi.
Todos os Bobbas possuem e se fazem acompanhar, ordi-
nariamente, de um talisman especial com que, por occasião
das guerras, suppSem fazer desviar as balas na sua tra-
jectória, para direcçSes em que não possam attingir as
suas forças, que sob esta mysteriosa protecção avançam
corajosamente para o perigo, considerando-se de todo in-
vulneráveis. E' possível, porém, que a enorme mortandade
que por vezes lhe tem sido inflingida pelas nossas tropas,
tenha conseguido desfazer, bem duramente, esta curiosa
superstição.
197
£ também por superstiçSo que alguns pretos, ainda
que muito raros, chegam a praticar o acto mais hediondo
e repugnante que imaginar se pôde, fazendo copula com
a própria mãe, no intimo convencimento de que assim lhes
advirá um futuro de riquezas e prosperidades.
São tantos e t&o variados os costumes do gentio, que só
para descrevel-os teria que organisar um volumoso livro ;
tanto, porém, sobre o assumpto se tem escripto, que des-
necessário me parece proseguir, depois de ter-me referido
aos que me pareceram de maior importância.
Encontra-se no Bihé, ainda que com difficuldade, grande
numero de armas gentilicas e diversos outros objectos des-
tinados a usos variadissimos, cuja enumeração me parece
ocioso fazer, em seguida ao que tão completamente apre-
sentaram Capello e Ivens no seu livro cDe Benguella a
Terras de laccai.
O empenho da maioria dos europeus n'estes objectos
toma hoje difficillima a sua acquisição; no entanto, a mi-
nha insistência em taes pesquizas permittiu-me, fio fim de
alguns mezes, posto que para isso tivesse que dispender
alg^um dinheiro, reunir uma interessante collecçâo, de que
fiz presente ao sr. conselheiro Governador geral.
'\ •!
Oi bo«rfi, MDi earroa e fâirilina — Ormtna recorda^Sea — Muna da
Silva Porto — SiipTcina angaitia — Noi derradeircn (empM —
O meu aneceaior — A viagem d.' rcgreiao — O aeu ataque do
Soqnee amiiiha milagroan ínlvaçiUi — Chegada a Ca t um bel! a —
Em Beognella — Em Loaiida — O meu regreiao A metrópole
Posto que o principal e insis rápido meio de traosporte
de mercadorias tenha até hoje sido, no dietricto de Ben-
^ella, o carregador, numerosos carros da colónia bóer de
Mossamedes e sudoeste de Benguella, percorrem o dis-
trícto em demoradas viagens, que, ordinariamente a prO<
fnndidade dos rios não permitte realisar f<Sra da èpooadas
sêccas (cacimbo).
A Filial da Companhia Commercial de Angola no Bibe
(Caiala) transporta a força das suas mercadorias por Caçoada
* -
200
em carros boers, geralmente contractados para um peso
total de cem arrobas, em que cada uma lhe fica posta
no Bihé ao preço de 2(9000 réis, com a vantagem de, nas
mesmas comdiçSeii, fazerem transportar para Benguella os
seus géneros coloniaes.
 irritante monotonia do sertão era assim, por vezes,
agradavelmente interrompida pelos estallos monumentaes
dos seus compridos chicotes, que, brutalmente agitados do
alto dos carros pelas mSos callosas dos seus robustos con-
ductores, começavam a ouvir-se quando ainda a alguns
kilometros de distancia.
A medida que a columna de carros se avisinhava, ia se
ouvindo, de mistura com os repetidos urros de uma infini-
dade de bois, os gritos semi- selvagens dos boers, seus fi-
lhos e pretos auxiliares, que, de feiçSes singularmente
descompostas, procuravam affoitar os valentes animaes na
deslocação de verdadeiras casas ambulantes.
Effectivamente, bem pôde dar-se tal nome a estes enor-
mes carros, em que, junto com a carga, é pelos boers
conduzida a sua familia inteira.
Semelhantes aos carroçSes alemtejanos, apenas differem
d'estes pela superioridade de dimensSes e principalmente
pela solidez da sua construcção, incomparavelmente maior,
para poderem atravessar, em viagens de muitos mezes
de demora, uma interminável siiccessão de rios, montes
e valles, por vezes, bastante pantanosos, de que são final-
mente arrancados n'um admirável e inaudito esforço, e
em que por todos são derramadas verdadeiras torrentes
de suor.
Passava a estrada, se tal nome poderia dar-se ao tra-
jecto escolhido pelos boers, em frente mesmo da fortaleza,
assistindo por isso, repetidas vezes, ao desfiUar de enor-
mes columnas d*estes carros, ordinariamente pertencentes
mmm
s Miranda ('), venerando
velho, chefe da colónia
bóer de Caconda.
Encontrava-me no
Bih4, ha dois mezes,
quando, cerca das 9 ho-
ras da manhã, me foi cha-
mada pela primeira vez
& attenção para o dee-
usado rnldo que, a cami-
nho do forte, jiroduzia
a visinhanca de uma enor-
misaima cotumna de cnr-
ros boers.
Acercando- me da es-
trada, não tardou que a
prímeira junta de corpu-
lentos ruminantes, temi o
attiogido o ponto mais ele-
vado de Belmonte, se avis-
tasse, precedida de muitas
outras, caminhando vaga-
rosamente ao longo da eu
costa, para em oeguida des-
cerem ao valle do Cuito,
em cuja margem esquerda
se completaria o treck de
aquelle dia.
(') Nome porlQ^uPi que
(ornou o bóer Hwue W.n
àet MaDn.
*^« d '«te**». A.
202
Tive então occasião de presencear um espectáculo in-
teiramente novo para mim :
Arrastado cada um por dez juntas, spne, de arquejantes
touros, balouçavam -se nas irregularidades da estrada, em
que deixavam profundos sulcos, sete carros monstruosos,
sob cujos toldos arqueados e brancos, se escondiam formo-
sos rostos de mulheres, graciosamente emoldurados nas
suas amplas toucas, de que por vezes se escapavam dou-
radas madeixas de cabellos, que a brisa perfumada e tépida
do sertão agitava docemente n'um prolongado beijo de
amor.
Sentado n*uma espécie de boleia o oonductor, empu-
nhando o seu chicote, brandia o a espaços sobre o gado,
emquanto que, ao lado das diversas juntas, caminhavam,
esbaforidos, outros boers e alguns robustos negros auxi-
liares.
Jaquetão e calça, solidas botas de canno, e chapéu de
aba larga, é o seu trajo característico.
Usam todos longa barba, de que ordinariamente não cui-
dam, pendendo-lhes do queixo, recurvado e volumoso ca-
chimbo, em permanente combustão de repetidas doses de
tabaco hoUandez.
O seu olhar é franco e sincero como as suas palavras,
sendo vulgarmente sympathicas as physionomias doestes
homens de faces tostadas pelos ardores do sol a que a todo
o momento se expSem.
Na sua passagem, dirigiamse-me com extranha natura-
lidade, como se de ha muito me conhecessem, apertando-me
francamente a mão, e conversando animadamente acerca
da sua viagem.
Os carros, tendo atravessado o rio, formavam na ver-
tente fronteira uma espécie de parque em que passariam
as horas de maior calor.
Fui convidado por Miraoda pars visitar o seu scampa-
meato, onde me apresentaria sua esposa e mais famiiia.
Nio me fiz rogado, tal era o meu empenho em conhe-
cer ura pouco d'aquella vida ambulante, cujos detalhes me
estavam despertando a curiosidade.
Chpgando ao acampamento, penetrei no intervallo de
dois carros, onde, sobre um espesso toldo, se at^havam trea
senhoras, que Miranda me apresentou como sua esposa a
filhas. Uma destas, extremamente sympathioa e distin-
cts, tendo feito descer dn carro a sua muchina de costura,
cosia com verdadeiro afTin n'um vestido de creança, qne
passados momentos era alegremente envergado por um dos
seus pequenos irmSos.
£ste8, vermelhos como laore, saltavam pelo acampa-
mento, distribuindo repetidas chicotadas pelos pequenos
negros auxiliares, que, de corpo quasi nu, Hpenas ae ea-
colhiam ao receberem aquelle pesado «figo.
Preparava a esposa de Miranda una appetitoso cosioliado
de carne secca, de Tnalanca, desfiada, com molho de man-
teiga e omrlltle. P<ir vergonha menloterv: de tal petisco,
ftpeznr da insiítencia dos offerecimentos, acceitando tio sã-
mente lima enorme chávena de café sem assucar, que im-
possível se tornaria recusar, sem grande desgosto para es-
tas familias que, considerando o café como a sua principal
bebida, o offerecem sempre como um verdadeiro mimo.
A tilha mais nova do velho bóer, tSo gentil como a outra,
ezceilih-a, comtudo, em robustez, empregando-se por isso
mesmo nos mais pesados serviços.
i'0:)
Tendo aberto as capoeiras, installadas no fundo dos seus
carros, soltou todas as gallinhas, que, por entre os bois,
começaram pastando, nas visinhanças do parque, esperando
o momento da partida.
Seguidamente, trepando com extrema agilidade para o
interior do seu carro, sahia dentro em pouco, trazendo
n'nma das mãos enorme sacco de roupa enxovalhada, com
que se dirigiu para o rio, e cuidadosamente lavou, esten-
dendo-a, por fim, sobre a relva luxuriante das suas mar-
gens.
Dos homens da familia, occupavam-se, uns na reparação
dos diversos utensilios pertencentes á formidável equipa-
gem, emquanto que os outros reduziam a compridas tiras,
a carne de um magnifico antilope, recentemente morto,
que em seguida salgaram.
Na impossibilidade de obterem todos os dias carne fresca,
é esta secca pelos boers que, tendo-a partido em tiras e
salgado ligeiramente, a expSem ao ar durante a noite, con-
servando-a de dia abafada, por forma a n&o deixar lhe
chegar a mosca.
Âo fim de seis noites seguidas de exposição ao ar, pôde
a carne considerar-se inteiramente secca, e, como tal, isenta
de perigo, podendo então conservar-se também ao ar du-
rante o dia, para o que a suspendem em cordas que ligam
em volta dos carros, onde, passado pouco tempo, adquire
a seccura indispensável para garantia da sua conservação.
Este processo, inteiramente simples, é hoje já muito
seguido pelos europeus sertanejos, que, de outra forma,
nSo poderiam, sem grande prejuizo, ter carne para as suas
refeiçSes.
A carne de que o bóer se serve nas suas refeiçSes é a
de antilope, que com extrema facilidade alcança o tiro cer-
teiro das suas espingardas (ordinariamente a Martiny).
200
É immensa a variedade de antílopes que se encontram no
distrícto de Benguella, sendo os príncipaes exemplares:
a malanca (Hypotragus equinus) ; o onunei, (Cephalobos
mergens) ; ombambi (gazella) ; munha (cabra) ; ongiri^ (Etio-
tragus Reduncus)| etc.
 paeaça (Búfalo) é mais vulgar para o sul do distrícto.
O gentio também caça, servindo-se para isso da espera,
junto de pontos certos de pastagem, disparando a sna es-
pingarda quando, pela proximidade do alvo, o erro de
pontaria, ou a commoção de momento, em nada possam
prejudicar o bom extto do tiro.
Como recordação, o caçador biheno prende no delgado
da coronha da sua espingarda alguns pellos de crina de
malanca (da cauda), ou estreitas tiras de pelle de outros
animaes.
O bóer desfecha muitas vezes, e quasi sempre com bom
êxito, sobre a caça em movimento, quando esta lhe passe
ao alcance efficaz do seu tiro, sendo, por via de regra, fe-
lizes as suas excursSes, nào só pela abundância de caç»!
que se lhes depara, naturalmente por saberem muito bem
procural-a, como pela certeza das suas pontarias. (')
Não viajam ao domingo, reservando estes dias para lei-
tura da Bíblia, juntamente com sua família.
Os filhos e netos de Miranda nasceram todos em Africa,
sendo elle e sua esposa os únicos membros de sua família
que, tendo nascido na Hollanda, emigraram p ira o continente
(1) Vê boers fasem na verdade pontarias admiráveis, o que nSo
impede que maia de uma vea apanhem o seu bigode que Ihea é dado
por algnoa europeus, taea como: Abel Carneiro, Felisberto Guedes
meu irmSo António e outros, que, a tiros de baia, matavam peqae-
niasimos pássaros nas insendei^-aê de Belmonte, furando tambeiiy
pelo meio, quasi todaa aa laranjas do pomar.
iir'gro assentando arraiais no i>ul d'Angola, a exemplo ie
ontros seus irmlos qne se dirigiram para outros poD-
Ao tempo da míaba estada no l>ihé ncliava se a guerra
anglo-boer no mais accesso da lucta, maravilhando o in-
teresse como todos os boers que me encontravam, procura-
vam informar-se da sorte dos seus valorosos irmXos, qne,
□'am verdadeiro patriotismo, desejavam conliecer nos mus
rainnciosos detalhes.
Orgulham-se immenso da sua origem reiúiaando, ordina-
riamente, os seus oasameatos com indivíduos da própria
S — '• J^" J! ^ '. •■■ I 1 ^.1 i».
206
raça, raríssimo com portuguezes d'Europa, e muito mais
raro com o negro, a quem votam o muor despreso, sendo
filhos de portuguezes os mulatos que em Benguella se en-
contram, ou quando muito de individues d'outra8 nacio-
nalidades d*Europa.
Existem ainda no Bihé muitos representantes dos pri-
meiros commerciantes do sertão, sendo um d'elles a filha
de Silva Porto, Maria, visinha ainda da fortaleza que il'ou-
tros tempos constituiu demorada residência de seu velho
pae, cujo óbito, annualmente, festeja com ensurdecedores
batuques de muitos dias de duraçSo. Sâo estes festejos
realisados na sua sanzala com o antigo pessoal do fallecido
sertanejo, que, n'uma grande parte, se conservou ao ser-
viço da infeliz mulher.
Vive Maria do Porto como o próprio gentio, de que usa
os pannos e penteado, bem como todos os demais vicios e
costumes, sem exceptuar o permanente estado de embria-
guez.
A minha permanência no Bihé, cheia de doenças e dif.
ficuldades d^adminiatraçSo, tornava-se-me por forma tal in-
Bupportavel, que, ao fim do nono mez da minha administra-
ção, não hesitei em soUicitar, com o mais vivo empenho, a
minha exoneração, que immediatamente me foi concedida^
levando, com tudo, muito tempo primeiro que d'isso tomasse
conhecimento official.
Não desejava, porém, que a minha retirada se effectuasse
sem emprehender pela região que administrara uma via-
gem de instrucçlo, que aproveitaria na despedida aos
dedicados e leaes amigos com quem sempre me encontrei*
209
Foi sob esta grata inspiraçSo que, em fina de novembro, me
dirigi com o velho africanista Santos Gil em direcção a
Caiala, onde fui recebido pelos gerentes da Companhia
Commercial d 'Angola, seguindo para Cabir, residência do
major reformado Araújo e Santos, meu sympathico cama-
rada e bom amigo, de quem sempre recebi as mais subidas
finezas e attençSes.
Este official que durante cerca de cinco annos exerceu
a administração da capitania mor do Bihé, foi para mim
sempre um valioso auxiliar, cujos favores, a bôa gratidão»
manda recordar.
Kecebendo-me em sua casa com a galhardia e amabili-
dade próprias do seu caracter franco, deu-me, por esta
forma, a derradeira prova da sua leal amisade.
Nas referencias que n^este modesto trabalho tomo a liber-
dade de fazer-lhe, e que sem duvida o vão ferir na sua mo-
déstia, procuro apenas testemunhar publica e solemnemente
a mmha infinda gratidão e bôa amisade, que alguns invejo-
sos procuraram, de parte a parte, macular com a costu-
mada intriga.
De Cabir dirigi-me a Capdco, onde fui recebido pelo ins-
truidissimo agricultdr António de Sousa Neves, que, d'este
panto, me acompanhou para sua casa, onde, como sempre,
me recebeu com a distincçSio e amabilidade que o caraote-
risam, e que em todo o Bihé lhe grangearam as sympathias
de indigenas e europeus.
Na sua vastissima fazenda, que intelligentemente dirige
de sociedade com outro individuo, além de uma magnifica
vivenda, em que procurou introduzir todas as commodidades
compatíveis coro as circumstancias, possue seis enormes
almmbiqut^s, e um aperfeiçoado apparelho de distillação con-
tinua, como nenhum outro agricultor do Bihé, até então,
havia adquirido.
iv
210
De Capôco dirigia-me i missSo oatholica do Luimbi,
satisfazendo assim aos inoessantes convites dos Rv.°^' P.*'
Bateix e Blanch, segaindo o caminho de Cassamba, onde
egualmente fui obseqaeiado pelo negooiante Domingos de
Moura; exigências, porém, de serviço reclamaram a minha
comparência em Belmonte, para onde tive que dirigir-me,
n^uma única viagem de 10 horas seguidas, em que tam-
bém passei pela residência do commerciante Domingos
Fernandes de Candona, sem que me fosse dado acceitar o
generoso offerecimento da sua hospedagem.
Cerca das 4 horas da tarde dava entrada no forte Silva
Porto, sobre modo pezaroso por não seguir para o Luimbi,
onde certamente colheria preciosos elementos com que
poderia desemvolver muito este meu modesto trabalho.
Havia muito tempo que de minha familia recebia noti*
cias desagradáveis acerca do estado de saúde do meu in-
feliz cunhado que, no seu regresso ao reino, depois de três
annos de permanência na ilha de S. Thomé, on4e traba-
lhou incançavelmente como medico, chegara ao seio da fa-
milia, por tal forma enfermo, que a todos levou á dolorosa
convicção de um fatal e próximo desenlace.
No ultimo correio, porém, recebera carta de meu pae, em
que me dava noticias um pouco animadoras de meu cunhado,
que me fizeram alimentar a esperança de salvação.
Decorridos porém três dias, era o 1.® de janeiro de 1902,
ás cinco horas da tarde, approximadamente, estava para
sentar me á mesa com vários hospedes que tinha na resi-
dência, ;Como visitas, discutindo ainda a violência da
tempestade que n'aquelle dia se havia desencadeado sobre
211
Belmonte, e qae felizmente se achava já bastante affastada,
depois de ter transformado o recinto da fortaleza n'um
verdadeiro lago, quando se approxima de mim um esco-
teiro com uma das muitas cartas que ali recebia diaria-
mente. A lettra de um meu patricio Minoel de Barros
chegado talvez no mesmo dia de Benguella, levou-me a
rasgar immediatamente o enveloppe, que, além da sua
carta, continha uma outra do ex.™^ Governador do dis-
tricto.
Li primeiro a de Manoel de Barros.
Âs sentidas palavras que n'ella me dirigia e que aqui
deixo transcriptas fízeram-me ver logo o faltecimento de
meu cunhado.
Dizia a carta:
€Meu bom amigo
Lastimo profundamente que seja eu o portador de uma
tão triste noticia como a que deverá levar-lhe a carta do
sr. Governador Moutinho. Creia, mea bom amigo, que
sentidamente me associo aos seus dolorosos soffrimentos,
aconselhando-lhe resignação e coragem para supporiar tão
profundo golpe.
c Incondicionalmente me colloco ás suas disposiçSes, pois
seria para mim bastante grato o poder prestar-lhe qual-
quer serviço, que por estes dias irá pessoalmente offere*
cer-lhe o que com verdadeira estima é
Seu velho amigo
Manoel J. Moraes Barros, »
Mas oh! horror! Passando a ler a segunda carta, deparo
com os seguintes periodos da carta de Teixeira Moutinho
212
Meu caro primo e amigo
cSerenidade e onve:i
cPrepara-te para ouvires uma noticia para ti bastante
grave. — Teu pae e cunhado falleceramt. • •
Calcuie-se como ficaria o meu pobre coraçSo!
Deixando immediatamente todos os convivas, recolhi-me
aos meus aposentos, onde, no meio de todos os retratos de
minha familia, se achava o de meu extremoso pae, que um
diluvio de sentidas lagrimas me nSo deixou contemplar
por muito tempo.
N'esta horrível situaçfto fui encontrado por meu pobre
irmSo António, que, ignorando a triste noticia, entrava
risonho a porta do meu quarto, por serem horas de jantar.
Wum fraternal abraço, de que a custo nos desembaraça-
mos, communiquei-lhe a horrorosa desgraça que acabava
de ferír-nos.
Meu irmSo, dotado de um sensivel coraçio, possue, com-
tudo, um feitio pouco dado a expansSes de qualquer natureza,
deixando-se cahir pesadamente sobre o meu leito, em que
se conservou soltando profundos suspiros que fariam dó a
qualquer indifferente. Só passados momentos me pediu para
lhe deixar ler a carta que tfto duramente nos acabava de
ferir, como que procurando descobrir n*ella qualquer mal
entendido da minha, talvez, precipitada leitura; não tar-
dou, porém que m'a restituísse sem pronunciar palavra^
sahindo novamente de regresso a sua casa.
Fiquei então com alguns amigos, a quem mandei servir
o jantar. Inteiramente só, nSo poude conservar-me ali por
mus tempo: precisava de um amigo com quem podéase
desabafar de tSo pungente magua.
r—
213
Só meu irtnSo poderia ser esse amigo, e, aresta in-
tima convicção, abandonei a fortaleza em direcção á sua
casa.
Ka minha frente então o nubloso horisoate, vivamente
affogueado ainda pelo sol poente, tinha assumido o tom ru-
bro esbrazeado de uma fornalha immensa, em que, ao longe,
ardessem, crepitantes, rendilhadas florestas solitárias.
Uma ligeira viração agitava nervosamente a húmida fo-
lhagem dos sycomoros, de que se desprendiam espessas got-
tas d'agua, puras e limpidas como lagrimas.
£m torno de mim reinava um silencio mysterioso, mde-
fínivel, apenas, a espaços, interrompido pelo longínquo
roUamento do trovão.
Ao longo da pequena avenida do forte o meu iéoiamento
era quasi completo: apenas dois pretos desciam o monte
em direcção ao valle, d'onde vinha o doce murmúrio do
Quito, escoando-se brandamente por entre macisos de ver-
des caiiaviaes.
Tudo em volta do meu pobre ser respirava tristeza, luto
e saudade infinda, como se os elementos, a natureza in-
teira se houveram associado á minha cruciante dôr!
Pensava então em minha santa mãe, cujas lagrimas de
extremosa esposa, derramadas n'outras latitudes, em tão
longes terras, não podia, como bom filho, enxugar, n'aquelle
momento supremo, em que só o pensamento tem o condão
de voar.
Os clarSes do occidente foram-se gradualmente dissi-
pando, e a noite triste e meditabunda era annunciada pelo
logubre piar das aves noctívagas, á compita presistente e
triste com as numerosas rãs dos pântanos visinhos.
Junto de meu irmão passei uma parte da noite, em de-
soladoras conjecturas, e reciprocas palavras de fraternal
conforto, nas quaes os projectos da nossa próxima retirada
214
para o reino eram apresentados e acceites sem condi-
çSes.
A minha permanência no matto passou então a repre-
sentar para mim o mais duro dos sacríficios, que me teria
levado a retirar para o litoral, antes mesmo da chegada
do meu successor, se n%o me tivesse sido communicada já a
sua partida de Benguella.
Baseado pois n'estas agradáveis informaçSes, tendo, a
18 de janeiro, ouvido a guisalhada de algumas typoias que
se dirigiam para o forte, fui levado, sem mais conjecturas,
a suppor a possibilidade da próxima chegada do distincto
official e meu velho amigo Vieira da Fonseca, recente-
mente nomeado para o Bihé.
Sahindo da fortaleza ao encontro das typoias^ não tar-
dou que o novo capitào-mór, saltando da rede, me desse,
n'um affectuoso abraço, a confirmação do que tão interes-
sadamente suppozera.
E' Vieira da Fonseca um dos ofiiciaes mais inteligen-
tes e instruidos da nossa infanteria, em cujo quadro possue
o posto de capitão.
Ás suas excellentes qualidades de official do exprcito,
devidamente apreciadas por uma longa serie de escrupulo-
sos commandantes, sob oujas ordens serviu, conquistaram-
lhe, apezar da sua natural modéstia, o grau de official da
Ordem d^Âviz, subida honra, que, como tenente ainda, lhe
foi conferida por distincção.
A nobreza de qualidades do seu caracter, alliada a um
sympathico typo de genuino transmontano, tornaram-no
digno da estima e admiração de todos os seus camaradas,
entre os quaes Vieira da Fonseca conta numerosos e de-
votados amigos.
Datavam as nossas relaçSes desde 1893 em que^ eu
como aspirante a official, e elle como tenente, servimos
215
juntos no regimento de infanteria 19 em Chaves, donde
Vieira da Fonseca é natural.
A nomeação doeste bello camarada para me substituir,
trouxe-me por isso alguma satisfação, por proporcionar me
o ensejo de abraçar um amigo, cujo encontro, em tão lon-
ginquas paragens, extraordinariamente se aprecia.
Realisada que foi a entrega da capitania, apenas aguar-
dava a chegada dos carregadores que, com a devida an-
tecedência, mandara levantar, para me transportarem para
Benguella, conservando me, ainda, como hospede do novo
capitão mór, até 31 de janeiro, em que me puz em marcha,
juntamente com meu irmão, António e 1.® sargento Por-
phirio Affonso.
Uma viagem de regresso do sertão, onde se permane-
ceu por algum tempo, é sempre agradável, não havendo
fadigas que se não supportem, nem obstáculos que se não
vençam.
Resolvi, pois, que a minha viagem se realisasse com a
rapidez máxima, e compativel com as necessidades de ali-
mentação, vencendo logo no primeiro dia uma étape de 7
horas até á libata de Chiticumuna.
Infelizmente a época das chuvas, em que estava con-
demnaio a viajar, não me permittia exceder as duas horas
da tarde, sem o risco de ser desagradavelmente surpre-
hendido pelas tempestades, que, como disse, infalivelmente
86 desencadeiam no sertão, depois d'esta hora.
Ainda assim, com um pouco de esforço, fazendo levan-
tar os acampamentos ás 6 horas da madrugada, conse-
gui, mantendo sempre uma certa pontualidade, realisar o
216
seguinte itinerário, em qae, apezar do mau tempo e indo-
lência dos carregadores, apenas consumi 16 dias :
Dia 31 Chitioumuna
» 1 Bihel
» 2. Lumando
» 3 Bailundo (forte)
» 4 Chonjorolla
» 5 Quebe
9 6 Charineua
V 7 Humbi
» 8 Monombambi
» 9 Soque
» 10 Balombo
» 11 .... • Cahuita
» 12 Bocoio
• 13 Chicucúrua
p 14 Supa
» 15 Caturobella
Este itinerário, que representa uma bagatella de ÕOO ki-
lometros, percorrio-o com os meus companheiros sempre
de boa saúde, caminhando n^uma verdadeira anciedade
pelo temiinus da viagem. Até ao Soque, a nSo ser a pas-
sagem do Quebe que se effectuou nos mesmos dongosy em
que, um anno antes, transpusera este rio, nãk> se deu acon-
tecimento algum digno de mensão, viajando-se atravez
da mesma monotonia de vegetação que, em sentido inverso,
havia já passado em revista.
E por demais conhecida a tendência do carregador,
quando acompanhado de europeus, para o roubo, á viva
força, dos mantimentos de viagem transportados, junta-
mente com as suas cargas, pelas diversas caravanas de
gentio que enooQtrsui peloa caminhos, cuja timidez sobre
maneira contrasta com a audácia dos primeiros. A presença
do branco incnte-lbes uma corasem tal, que os leva a ati-
rarem-se desaforadamente, em numero relativamente iiir
feríor, sobre numerosas oomUivas, a quem, ordinariamente.
nlo roubam mais do que a fnba (farinha), alguma espiga
de milho ou raie de mandioca, sendo baldados todos os
esforços empregados pelo europeu que os acompanhe, no
sentido de reprimir semelhantes abusos.
Esta ditiãculdade de repressão acc<>ntua s-i sobre moiiu
com a dispersXo dos carregadores, que na sua maior parte,
caminham a grandes dístancíns, i frente ou reciagiiarda do
europeu que os contraotou, tomando-se assim iiiteiramvnio
impossível vígial-os convenientemente.
218
A bypothese mesmo de uma permanente concentração
dos carregadores, pôde também considerar-se absoluta-
mente impraticável, pela impossibilidade de consegair-se
qae todos descansem simultaneamente do pezo da sua
carga, circumstancia esta dependente d'este mesmo pezo e
das condições de resistência de cada carregador entre os
quaes apparecem alguns de edade bastante avançada.
Impossivel, pois, se torna a repressão de taes abusos
que, não obstante poderem considerar se de pequena im-
portância, originam, comtudo, muitas vezes as mais sérias
complicações, quando praticados em regiões não comple-
tamente avassaladas.
O gentio do Soque, por exemplo, pouco dado ao conví-
vio do europeu, que nas suas terras, ordinariamente, não
negoceia, não tem, devido ao seu grande afastamento da
capitania-mór do Bailundo, o minimo respeito pelas aucto-
ridades, cuja, influencia, a uma tão grande distancia, se não
faz já sentir.
Ora acontece justamente que, na minha passagem por
esta região, alguns carregadores que se haviam adiantado,
oonfundindo, talvez, dois pretos do Soque, por quem passa-
ram, com quaesquer outros do Bailundo ou Bihé, lhes ti-
raram uma pequena garrafa que levavam com aguardente,
d'onde resultou o seguinte conflicto, em que eu e meus
companheiros, por milagre, nos salvámos da morte.
Seriam duas horas da tarde, quando acampava adeante
do Soque, a poucos kilometros do rio Balombo, inteiramente
alheio, por não tel-o presenciado, ao acontecimento, aliaz
vulgarissimo, a que acima me referi. Não tardou, porém,
que um preto d'aquella região se me queixasse de que um
dos carregadores que transportavam as minhas cargas, lhe
bebera aguardente d'uma garrafa que pouco antes havia
comprado.
219
Sem averiguar da veracidade da «|ueixa, e para evitar
attrictos, mormente n^ima região, onde o gentio, pela
grande distancia a que se encontra da sede da capitania-
mór do Bailundo, por diversas vezes tinha já manifestado
a sua insubordinação, em certos actos que, pelo desassom-
bro e naturalidade com que são praticados, denunciam
um evidente e desprestigloso testemunho da ausência de
respeito, e sobretudo, do receio que lhes ins«piram as aucto-
ridades, mandei indemnisar o referido preto com uma an-
chorêta d'aguardent«, que adquiri em casa de um com-
merciante de nome Guimarães, que, por acaso, se achava
estabelecido próximo do acampamento onde n^esse dia es-
tacionei, posto que o queixoso exigisse a cabeça do carre-
gador que o roubou.
Considerando o assumpto inteiramente liquidado, entrei
dentro de um chinguey onde procurava o descanço de que
n^este dia tanto necessitava, por ter realisado uma marcha
mais longa do que o usual, sendo surprehendido por uma
aUnvião de gentio, armado de flechas, zagaias, machadi-
nhos, espingardas, etc, o qual, tendo avançado encoberto
com o raatto em direcção ao nosso acampamento, surgiu
como por encanto, a uma distancia de 100 metros aproxi-
madamente d'este, cahindo sobre nós em vertiginosa carga,
acompanhada de uma ensurdecedora algazarra de gritos
guerreiros.
T)a porta do chingue assistia á fuga desordenada dos
meus carregadores que, espavoridos, abandonavam as car-
gas, como é seu velho costume, sem que eu desde logo
comprehendesse o que tudo aquillo significava.
De repente, um dos pretos mais avançados da linha ag*
gressora, avistando-me, eocaminha-se para mim de zagaia
em riste, gritando como um doido e de feiçSes tão singu-
larmente descompostas, que não só lhe denunciavam
ferocidade dos instinctos como s malvadez dis suas iatea-
çSes. Ao defrontar comniiga (primeiro branco que ae lhe
deparou), dirígiu-mu uma eslocadii ao peito, que milagrosa-
mente desvi<-i cum uma parada feita i os tine ti vãmente oom
o próprio lirac«; e sem procurar saber de mais nada,
vendo-me HpenHs na prespecliva de uma iaevilavel morte*
221
pois que toda aquella enorme massa de geado se dirigia
sobre miro, e não tendo, por não contar com o ataque,
qaalquer arma que me permittisse a defesa, puz-me em
immediata retirada, recebendo no momento em que me
voltava, uma tão violenta bordoada no pescoço, que me ia
prostrando, e que, se me houvesse attingido.a cabeça, cer-
tamente me produziria a morte, permittindo-me, porém,
refugiar-me na casa do negociante a que acima me referi,
dando assim tempo a que o preto roubado, tendo tido co-
nhecimento do que se passava, se apressasse em vir de-
clarar que havia sido generosamente pago, e acalmasse
doesta forma a exaltação dos assaltantes, que, n'este mo-
mento, emquanto uns me perseguiam, os outros se apode-
ravam de algumas cargas abandonadas pelos carregadores;
e assim se conseguiu, ainda que com algum» diffic;uldade,
impedir que puzessem em pratica a» suas sanguinárias in-
tençSes, resultado este, que, evidentemente, se deve á pro-
videncial apparição do preto roubado.
£' possivel que este acontecimento tivesse attingido
consequências mais graves, se um dos meu^ carregadores
nSo tivesse em seu poder a minha carabina Manilicher,
com a qual fiigiu, e eu me encontrasse ao tempo armado
Gom ella, pois que certamente a teria disparado contra os
meus cobardes aggressores, travando-se séria lucta, em que
tomariaro parte do meu lado os meus companheiros 1.®
sargento António Porphyrio Âffonso e meu irmão António
Manoel Malheiro, os quaes, coroo eu, nada receiando,
egualmente se achavam desprevenidos, encontrando-se este
ultimo^ demais a roais, a cerca de 500 metros affastádo,
põT ter ido banhar-ae n'um rio próximo.
A hypothese mesme de nos encontrarmos juntos e
convenientemente armados, devido á proximidade a que
o gentio nos surprehendeu, não nos asseguraria gra&de
successo, tanto maís que dífficíl se nos tornaria a retirada,
por de antemão se acharem prevenidas muiUs lihata»
do sitio, sendo ãnalmente vencidos com a chegada de
novos reforços t^ue a concentrada população d'a>(uaila re-
gião permittiria rapidamente fornecer, em caso de neces-
sidade.
Da narração d'este facto, persenceadu por todos os io-
dividuos que me acompanhavam, poderá avaliar se da
— »J.l
223
valentia e coragem do gentio do Soque que, tendo avançado
em grande massa, encoberto sempre com o matto, até
junto do nosso acampamento, procurou surprehender desar-
mados, os três únicos europeus que ali sabia encontrarem-
se, no evidente receio de um inauccesso.
De resto, esta mesma concIusUo poderá tirar-se da cir-
cumstancia de meu irmão António, no seu regresso ao
acampamento, obrigar um grupo de pretos armados, com
uma simples pontaria da sua espingarda, de que se havi»
feito acompanhar, ao abandono de algumas caibas que lhe
levavam roubadas, fazendo-lh'a8 coliocar no mesmo sitio
d'onde as haviam levantado.
Immediatamente todo o gentio do Soque regressava ás
suas líbataSf indo dar conhecimento ao poderoso 8obba da
forma heróica como se houve no desempenho da sua mis-
são, sem que., comtudo, lhe levasse as cabeças dos três
brancos que, depois se soube, o velhaco lhe havia encom-
mendado.
Durante a noite, que passámos acordados, deixámos
estabelecido um ligeiro serviço de segurança, que nos pre*
servasse de qualquer ataque que, com forças superiores,
o gentio se animasse a fazer-nos.
Felizmente, porém, novidade alguma se deu, abando-
nando de madrugada o acampamento, sobre maneira pe-
sarosos por não termos mais alguns europeus com que
podássemos ir applioar o necessário correctivo ao digno
chefe dos nossos cobardes aggressores.
Pela uma hora chegávamos ao Balombo, continuando a
nossa viagem sem que no restante trajecto se nos depa-
rasse qualquer outro contratempo. Do que deixo escripto
no final, para assim di2er, da narrativa d'esta minha ex-
cursão, poderá facilmente vêr-se que nem tudo são rosas
para um official que, completamente só, se aventura
es!ujw*..4u>««k.i. - " " m.M'„^- . .? — --«mm
algumas oentenxs de kilometrospelosertSo d'Africa, BDJeito,
qnando mais nlo seja, ás influencias perniciosas do clima,
por via de regra, tanto para receiar como os ataques do
gentio.
Na Supa, onde anampei cedo, encontrei alguns euro-
pêoB que êubiam para o matto, (na phrase geralmente
ooaheoida) e me deram noticias /resras da Europa que apre-
«ei tantn como o pHo egualmente fresco que me ofereceram,
n'umft iragniti-^a refeíçSo.
mim
A 15 deixava este acampamento, ultimo da viagem
que termiDaría cerca daa 3 da tarde com a minha ohegad»
a Oatumbella, seguindo os aertanejos nas saas possantes
muares a caminho dcQuisBRuge. A visinhança do litoral era,
desde Quisauge, annunjíada pelo affi-ouxamento da vegeta-
ção que, nas escabrosas montanhas da Supa desapparece
quaai por completo, limitando-se a um rasteiro capim, pre-
cocemente ressequido pelos arHores do sol. A aridez accen-
tuava-se com a proximidade da costa : profuadissimos
valles de declivosas vertentes, dilaceradas pela acção des-
truidora das chuvas, em sulcos verticaea e sinuosos,
deixando por vezes a nú as fragas da montanha, eis a
triste e desoladora configuração do terreno que n'este dia
pisava. Em compensação via já para oeste, estendeudo-se
ao longo da costa, as nuvens precursoras do oceano, como
longas pÍDcelIaâas borísonlaes que se esbatiam prateadas
DO azul do firmamento.
Eis-me por fim trepando o Lung le-Lung, dt- rradeira e
elevadissimft dobra de terreno da interminável cordilheira
que vinbimos de atravessar, e que finalmente póz a des-
coberto, em toda a sua magestosa plenilude e belleza, a
bacia immonsa do Atlântico, cujas aguas se espraiavam
sobre a areia~re[uzente, em alvos lençoes de espuma, qne
a forte calema d'aquelle dia levava por vezes a grandeH
distancias.
Ao tundo dos morros assi-ntava a formosa villa de
Catumbella, que o rio do mesmo nome banhava, escoao-
do se depois em graciosas curvas, por entre a frouxa ve-
getação da planície, que finalmente o conduzia ao mar.
A 20 kilometros, mais ao sul, lá se via a cidade de Ben-
guella, em cuja ampla babia ancoravam diversas embar-
caçSes, entre as quaes me n&o foi difficit distinguir o
paquete que, no seu regresso de Mossamedes, deveria
transportar- me ao reino. Tendo me apenas demorado um
dia em Catumbella, onde novamente fui obsequiadissimo
227
por alguns meus bons patrícios ali residentes, segai pára
Benguella.
Junto de a. ex.^ o governador de distrícto fiz a minha
apresentação, ao mesmo tempo que, em participação es-
cripta, lhe dava conhecimento official do acontecimento
do Soque, o qual, revellando um imperdoável abuso do gen-
tio, re(;lamava severo castigo, que, desde logo, me offe-
reci para ir applicar-lhe, se o mesmo senhor me forne-
cesse a força necâssaria para tal fim, fazendo lhe vêr o
risco que n^aquelle momento correu a minha vida e do
meus companheiros, quando, pacificamente, nos dirigíamos
para aquella cidade. Não dispunha sua ex/ de força para
tal empresa, quando, segundo me disse, nem para guarda
do seu palácio havia soldados em l^enguella. (^)
(h Este e outros acontecimentos ide.nticos, sãi uma triste con-
sequeufiH da falta de occupaçilo militar da provincia de Angola
qm*, entre o forte de Bailundo e a villa de Catumbella, n*um pre-
curso de 300 kilomctroe, não possuía, aiada ha bem pouco tempo,
um único commando militar.
Recoutemente foi crcado um posto militar perto do rio Balombo
que podei ia ter alguma utiliiade se não enfermasse do mesmo mal
que todos os outros, creados ou já existentes : a falta de guarni-
ção militar sufficiente para conter em respeito os povos circumvi-
sinhos.
Os postos militares, sem a força necessária, representam um pe-
rigo permanente para os respectivos commandantes, mormente
quando aquelles se achem estabelecidos no centro de regiões, cujos
habitantes, pelo seu caracter aguerrido ou insubmisjo, reclamem
ameudados castigo», e uma permanente repressão dos seus abusos.
>âão quer isto dizer, qu '. o gentio do Soqui deva ser comprehen-
dido, como o do Huambo, CuanhamaSi etc, nas considerações que
acabo de fazer ; mas^ por esse facto, não devemos também illudir-
nos, suppondo-o em rospeito e estupidamente amedrontado com a
existência de um pequeno forte que elle vê quasi dcsguamscido o
cujo grau de resistência muito bem sabe avalinr.
N*e8ta8 circumstanciaa, pois, enviou o ex.°" goveniador
o Begnmte telegrammK para a secretaria do governo geral
da provincia:
■Tenente Alezandie Malteiro, regresso Bihé, foi ata*
cado gentio armado, região Soque, proximids les rio Ba-
lonibo. Salvo milagrossmt nte. Preciso desforço violento
custe o que custar. — Moutinho, governador*.
Como este (elegramma nâo tivesse resposta, em 22 em-
barcava para Loanda. d'onde, mediante a necessária aucto-
rísaçAo, seguia para Lisboa.
Dni8 palavras sobre o "m^bondin
O m^bundu é a língua fallada pelo gentio do Bihé e
sinda, com mais ou menos variantes, por alguns outros po-
vos do distrícto, taes como N'Dulo, Bailund0| Caconda,
Quillengues, Dombe, Quissange, etc.
Em Loanda e Mossamedes classificam de m^bundu a
lingua fallada pelos povos mais visinhos do littoral, posto
que as differenças de linguagem d'estes últimos para os
primeiros seja quasi radical.
O m*bundu clássico passa por ser o do Bihé, segundo
informações de intelligentes missionários, que se dedicam
ao estudo profundo e aturado da lingua das regiSes em
«que se acham estabelecidos.
O reverendíssimo padre Ernesto Lecomte escreveu uma
grammatica da lingua m'bundu quê pôde considerar-se um
valioso auxiliar para quem, possuindo uma certa cultura
intellectual, pretenda dedicar-se ao estudo doesta lingua.
Como tendo de exercer uma administração no Bihé,
onde as minhas permanentes relaçSes com o gentio recla-
mavam a aprendisagem da sua lingua, immediatamente
adquiri em Benguella aqucUe precioso livro, que, ao fim
S^"^P* _ __ _
f>31^,j,/A'A'.J^".- ' 4.^ ' '•^ ^^^^^S;:^P^^£^^ ^^Jí;í^.^;J 'S!5 SF\» I k ; -ssap^^ . ;^.a^c-_,^^^«>«»«iÉ^
130
de pouco tempo, se me não dispensou o uso do interprete,
me permittiu, comtudo, adquirir uma certa confiança naS
suas traducções^ o que já não era pequena vantagem.
Pôde considerar-se extremamente fácil a aprendisagem
do m'hundu, em consequência da relativa inferioridade nu-
mérica dos seus vocábulos, de que hoje, uma grande parter
são palavras portuguezas, mais ou menos adaptadas á
própria lingua.
Conhecida a formação do plural dos nomes, a conjuga-
ção dos verbos e algumas poucas regras previstas pela
interessante grammatica do reverendissimo Lecomte, ape-
nas a fixação de significados, um pouco de uso e attenção
na maneira de compor a phrase, são sufficientes para que
qualquer europeu, ao fim de alguns mezes, falle regular-
mente a lingua do Bihé.
Não me alongarei, pois, sobre este assumpto, tão profi-
cientemente tratado no livro do intelligente missionário ;
a titulo simplesmente de curiosidade, e, por isso que nem
todos o possuem, darei uma ideia da formação do plural
e conjugaçSes no mhxindu.
São além d'outros, poucos, os prefixos :cA{, 6^ que
dão a forma do singular á maioria dos vocábulos, de que
a formação do plural se faz com a substituição d'aquelles
prefixos, respectivamente pelos da forma — obi — ólo — assim:
Chipalla, cara; ohipalla, caras; Chindér, branco; obin-
dér, brancos; Chiitr, carga; obitér, cargas; Chinhania,
bicho; obinhama, bichos; ombinga, chifre; ohmbinga, chi-
fres; omdco, faca; olomôco, facas; ombua, cão; olambua,
cães; angiti, pau; olongiti, paus; ongueve, hippopotama;
olongueve, hippopotamos;
Com estes prefixos forma- se o plural da maioria dos no-
mes. Ha ainda outros, mas, como disse, em pequeno nu-
mero, de que, pela pratica, se toma conhecimento.
231
As palavras ailquiridas pelo convivio do elemento euro-
peu, modifica-as o gentio com a juncção dos prefixos que
a euphonia da sua lingua lhes aconselha. Assim : ,
Onéca, caneca; olonéca, canecas; ocopo, copo; olocopo,
copos ; ongalufo, garfo ; olongcdufo, garfos ; cldmburro,
burro; obimburro, burros, etc. etc.
Os verbos no infinito conhecem-se pelo prefixo, oku]
exemplo : okuj>equera^ dormir. Para a conjugação dos ver-
bos deverei primeiro indicar os pronomes pessoaes, que
sSo:
Ameii , Eu
Obé Tu
Eie Elle ou Ella
Étu Nós
Éne Vós
Ovo EUes ou Elias
Querendo pois conjugar por exemplo o verbo
Oku-ongola — Querer,
no presente do indicativo, apenas teremos que substituir
o prefixo — oku — do infinitivo, pelos prefixos, ndi, 6, rf,
tu, vu, vá, fazendo depois preceder o verbo, assim modi-
ficado, dos respectivos pronomes pessoaes.
Assim :
Amen- n'di-ongolà Eu quero
Ohé-ó-ongola Tu queres
Eie-ó-ongola Elle ou Ella quer
Étu-tu-ongola Nós queremos
Éne-vU'Ongola Vós quereis
OvO'Vá-ongola Elles ou Elias querem
232
Pretérito imperfeito
Amen-n^da-ongola
Obé-oá-ongola
Eie-oá-ongola
ÉtU'tuá'Ongola
Éne-vua-ongola
Ovo^áa-ongola
£u queria
Tu querias
Elle ou Ella queria
Nós queríamos
Vós queríeis
Elles ou Elias queriam
Praterito perfeito
Amen-n^da-onguiUe
Ohé'0á-onguille
JSie-oá-anguille
Étu-tud-onguUle
Éne-vuá-onguiUe
Ovo-váá-onguille
Eu quiz
Tu quizeste
Elle ou Ella quiz
Nós quizemos
Vós quizestes
Elles ou Eilas quizeram
Estes mesmos tempos conjugam-se negativamente ape-
nas com a mudança dos prefixos. Assim :
Amen-si-ongola
Obé'Câ'Ongola
JSie^cá-ongola
ÉtU'cátU'Ongola
JS!ne-cávU'Ongola
OvO'cáva-ongola
Nâo quero
Não queres
Não quer
Não queremos
Não quereis
Não querem
Imperfeito
Amen-sa-ongola
Obé'Cáa-ongola
Eíe-cáa-ongola
Etu-cátua-ongoUi
Ene-cávtia-ongola
Ovo-cávaa-ongola
Não queria
Não querias
Não queria
Não queriamos
Não querieis
Não queriam
233
Pretérito perfeito
Amen-sá^anguUe
Obé'Cách<mguile
JSte-cáchongutle
Étu-cátua-onguile
Éne-cávfUJhonguile
Ovo-cáviM-onguUe
Nfto quiz
Nfto quizeste
Nfto quiz
Nfto quizemos
Nfto quizestes
Nfto quizeram
Na conjugaçfto d'este verbo e outros intercalam, por ea-
phonia, um i entre o prefixo e o verbo, excepto no indica,
tivo. E assim, dizem:
Omlma-aiangolchoku-fa, o cfto quer morrer; Oquenje-
cavmguiUe-oku-tira, o rapaz nfto quiz fugir.
Esta forma especial do pretérito perfeito nfto é egual
para todos os verbos, assim com o verbo oku-arnbata,
levar, este tempo toma a forma :
Amen-n^da-ambatíre
Levei
Obé-oá-ambatére
Levaste
Eie^oà-amhatóre *
Levou
ÉtU'tuà'(xmbatére
Levámos
Éne-vuáromhatóre
Levastes
Ovo-váa-ambatére
Levaram
Correntemente fazem a òontracgfto das vogaes dizendo
Amen-n^dambcUére
Ohé-oáwbaUre
Eíe-oámbatére
EtU'tuâmbatére
Éne-vtumhaJtire
OvO'vàmbatére
234
Os pronomes pessoaes não se usam no decurso da phrase,
e assim se diz, empregando, por exemplo, o verbo oTcu-quête^
ter: ndi-quete-onjcãu^ tenho fome; tu-qvête-onjala, temos
fome; si-quête-onjala, não tenho fome; Catu-quête-onjala,
não temos fome.
E còm o verbo oku-ria, comer: ndi-ria, como; n-ria,
não como; nda-ria, comia; sá-ria, não comia; nda-ricUe^
comi ; sd' riále^ não comi ; Tuá-riale^ comemos ; catuá-riále
andi, ainda não comemos; vtia-ríáZc?^ já comestes?; tuá-
riále, Hffana, já comemos, senhor.
No verbo okurínga^ fazer, talvez por euphouia, inter-
cala se a syllaba che, na conjugação dos diversos tempos,
4|uando conjugado interrogativamente, assim:
Presente
NWtcheringa nhé f
Ocheringa lihéí
Ocheringa nhé?
Tu chcringa nhé í
Vu . eht7*inga nhé ?
Va cheringa nhé ?
Que faço?
Que fazes?
Que faz?
Que fazemos?
Que fazeis?
Que fazem?
Pretérito imperfeito
N'da chtringa nhéf
Que fazia?
Oa chringa nhéf
Que fazias?
Oa cheringa nhéf
Que fazia?
Tuá cheringa nhéf
Que faziamos?
Vuá cheringa nhéf
Que fazieis?
Váá cheringa nhéf
Que faziam?
23Õ
Pretérito perfeito
N^da cheringuille nhéí
Oa cheringuille nhé?
Oa cheringuille nhé f
Tuá cheringuille nhé?
Vuá cheringuille nhé f
Vaá cheringuille nhét
Que fiz?
Que fizeste?
Que fez?
Que fizemos?
Que fizestes?
Que fizeram?
Com umas pequenas alteraçSes se conjugam os outros
tempos que fundamentalmente se resumem no que deixo
exposto.
Dos pronomes pessoaes, formam-se facilmente os pos-
sessivos. Assim:
tang
iolé
• »
tai
iètu
ieno
iovo
Meu
Teu
Seu, d'elle ou d^ella
Nosso
Vosso
Seu, d'elles ou d'ellas
Estes pronomes empregam-se sempre depois do nome.
Assim :
O cai-iang, minha mulher ; Olocai-ietu, as nossas mu-
lheres ; Ombuchióbe, o teu cão ; Olombuct-iéney os nossos
cSes ; O mêrne-iai, o seu carneiro. (Por euphonia diz-se o
tnSme viai, em vez de omeme-iai ; Olotneme v%6vo, os seus
carneiros ; Manj-iang-ó-cassi pit Meu irmão (mais novo)
onde está?
Traduzida á lettra esta phrase, seria :
Irmão meu está onde?
236
Para terminar esta ligeira iadioaçUo do rnbundu, ape-
nas me referirei aos numeraes oardinaes, que sSlo até 10 :
1, moBsi
2, bibari
3j biUxtu
4, biquano
5, bitano
6, epandu
7, q^ndu-bari
8, echeíla
9j echeAaha
10, équi,
A partir de 10, o gentio, querendo por exemplo contar
onze bois dirá :
Equi-olongombe, quenda ongombe, cuja traducção i let-
tra seria : 10 bois e um boi.
Querendo contar 12 bois dirá : Equi-olongombe, quenda
ólongomhe bibari, isto é, dez bois e mús dois bois ; 13
bois, JEqui-olongomhe^ quenda olangambe bitatu; vinte,
equi-abari.
Querendo contar 21 porcos, dirá: equi-abari olongulo,
quenda ong%Uoy 20 porcos e mais um porco ; 22 porcos,
equi-abari ólongrão, quenda-olongulo bibari; 25 porcoS|
equi abari-olongulo quenda olangulo bitano; 30 gallinhas,
equi-atatu oloêêonge; 36 gallinhas, equi-atatu olossange
quenda oloaêange ^^ndu ; 40 gallinhas, equi aquano oloê-
sange; 47 gallinhas, equiaquano olosêange quenda olos-
sange epandubari; equi atano, cincoenta; equi qpando,
sessenta; equi epando-bari, setenta, etc.; chita, cem; oiita
bibari, duzentos; obita bitatu, trezentos; obiia biquano,
quatrocentos ; oluncai, mil.
237
Homem, Omano; Mulher, ocai.
Géneros adoptam-se somente para os animaes, com o
accrescentamento da palavra ocai ao nome masculino, assim:
Ongombe, boi ; Ongomde ocai, vacca ; Ongulo^ porco ;
OngulO'i-oca\, porca.
Traduzindo á lettra, seria:
Ongulo, i-ocai, um porco, mulher, etc, etc.
Ahi fica pois, a mais ligeira indicação da lingua m^hundu,
com a qual, e um pouco de pratica, se aprenderia a falar
esta lingua em alguns mezes.
^5P
?!^
f— • •-•s*.
^1L**"<wk.M
Homes de algans earopens
qne conliecl no Bihè, com a iadicaçao dos looaes
das sais residências
Francisco Xavier da C. A.raajo e Santos Cabir.
Abel Carneiro /
. ^ o ^T Capôco.
António de Sousa Neves \
Alfredo de Andrade Cha88aca(i}.
Felisberto Gaedes de Sou^a Canjungo.
António M. d^Azerêdo Malheiro / _
\ Bonga.
Joio Baptista Gomes \
José Vieira da Fonseca / _,
> Cungallo.
Raul Vieira da Fonseca |
Firmino C. de Moraes Barros Chariueaa
Adriano dos Santos Gil • Cbilonda.
António A. de Medeiros Lucila
Manuel Joaquim Fernandes Júnior Camundongo
António José Barbosa Cassoalala.
Carlos I. da Costa Barata Canhanga.
(*) R4g«nt« agrícola « ez.)lora(l;r dittineto, potinlndo trabalhoi inédlicf d« fa-
eoataatavol Talor.
%*»<M^ --.
240
Roberto Pioto Machado Caasongo
C A. 8alrêta ) ^ . .
^ > Caiala.
Parada Leitão )
António Teixeira N'Janiba.
António dos Reis Braz Chiteque.
António Ferreira ) ^ , , ^'^
> CMiende.
Joaé Francisco Ferreira |
João Miranda de Mello ) ^ , ^^
) Taromba. ^
José Beudrau )
Gregório & Santos Calembe.
Andrade Mello i ,^.. .
> Bihel
Francisco Cypriano Pio )
Silva Ribeiro & Irmão Nhane.
Fernandes & Capei la N'Gôlo.
José António d'(). Candeias Sindaco.
António Marques * Caria.
António Pinto Leite i ..
Joào Parente Vieira j
Francisco António Calheiros Camera.
Luiz Mendes da R. e Moura Tarala.
Arthur de J. Aragão ) ^ ,
> Golungo.
Avelino I houiaz Pacheco )
Santos Laborim Builundo.
José Pinto Baroza Pepangae.
Prospero José Teixeira Chissende.
Menezes & Irmão Umbale.
Benjamim de Brito .... Chingue.
Alberto A. d^OIiveira N 'Oulo.
Alfredo d^Almeida Dias
Arthur d'Almeida Dias
Augusto Borgts . . \ Cachingue.
Manuel da Silva l '
Joaquim de Saint Maurice /
lOES CIRCUMVISINHAS
ko
SO
to
Miam
INOICE DOS capítulos
Prbfaoio do auctob
CAP. I. — ^No litoral de Angola. — A cidade de Benguella. —
O palácio do goveruo. — Hospitalidade do commercio eu-
ropeu. — Preparativos de viagem. — Chegada dos carrega-
dores. » A minha partida para o Bihé
CAP. n. — Primeira étape. — O acampamento da Supa. — O
Bundeanoy — A Lucinja — Uma nota desagradável. — O
Bocoio e Cubai. — Olombinga. —Uma noite tempestuosa.
— Uma scena de leão. — As curvas do Cubai. — Uma ar-
rebita na Améra. — Um grande successo. — Rio Balombo.
CAP. ni. — Caháta. — A libata do Quipipa. — O sr. Theo-
dóro. — Os aposentos de João Brandão. — As mulheres do
Quipipa. — O Soque. — Um dia perdido. — Admirável pon-
to de vista. — Uma caçada. -— As primeiras febres. — A
passagem do Québe
CAP. IV. — A fortaleza do Bailundo. — Amabilidade do ca-
pitfio-mór. — O meu restabelecimento. — Fuga dos car-
regadores. — A caminho do Bihé. — Ideia geral das flo-
restas. — As habitações dos térmitas. - Acampamento de
Lumando. — Rio Cutáto. — Em terras do Bihé. — Cacá-
lo-Cusso (sobba do Bihel). — Os arimoa do sobba. — A li-
bata. — Um batuque. — A inácu
CAP. V. — Em Chiticumnna. — O fallecimento do sobba. —
Os direitos de hereditariedade. -^ Pretensões de Calum-
bango. — Os festejos do óbito. — A anhara de Bulo-bulo.
— Uma manada de antilopes.— Novo o inesperado successo.
Pa».
12
13
25
49
67
10
^.'^Víierv^ws--,.
-i ri
242
— Dosvautageus da Manllicher como arma de caça. —
Nojento cosinhado 80
CAP. VI. — A caminho de lielmonte. — As minhas appre-
hensòes. — O aspecto do forte —Primeiras impressões.
O meu antecessor. — Uma bella refeição, — A capitania-
mór do Bihé. — O forte «Silva Porto». — Projecto de um
novo forte. — Forte aNeves «Ferreira». — O pessoal da
capitania e serviços que lhe são commettidos. — O des-
tacamento de tropas indígenas. — Seu aqaartelamento. —
Kesidencia e suas dependências. — A mobília, proprie-
dade particular do capitão-mór 101
CAP. VII. — Importante cavaco com Joaquim Guilherme
Gonçalves (o Chindander) ácêrca da tragedia de Bel-
monte. — Sua louvável predilecção pelo valente capitão
Paiva Couceiro. — Eminente risco de vida doeste official
e do seu digno companheiro e velho africanista, Justino
Teixeira da Silva. — Sua retirada para o Bailundo. —
Suicídio de Silva Porto. — O negociante Santos Gil. —
Dunduma {sobba grande do Bihé). — Discordância de opi-
niões entre este potentado e o de Bailundo. ^ Conferen-
cia do Teixeira da Silva com Equiqui (sobba do Bailun-
do). — Viagem de Couceiro ao Mucusso. — Seu regresso.
— Expedição ao Bihé. — Prisão e deportação de Dun-
duma 115
CAP. VIU. — Cumprimentos. — Missionários americanos. —
Inglezes. — -Fraucezes (do Espirito Santo). — Suas rela-
ções com a auctor idade local, com o commercio europeu e
com o gentio. — Sua influencia na civilisação dos povos. —
Superioridade de dotação das missões protestantes sobre
as catholicas. — O ensino do m^bundu. — Livros de dou-
trinas protestantes escriptos n'esta lingua 131
CAP. IX. — O conunercio no Bihé. — Primitivos negocian-
tes. — Sua exploração pelos aobboà — Permuta. — Banzos
— Borracha. — Mutar, — Equim — Chitota — ChiriUa —
Como o gentio se individa com o negociante. — Carrega-
dores. — Seu levantamento. — fíicatos, — Gastos e pa-
gamentos 149
CAP. X. — Relações da auctoridade com o gentio.— Seus
cumprimentos officiaes — Presentes e sua retribuição. —
243
XiccUo (êohba do N'dalo). — AdministraçSo da justiça. —
O mucano. ^ Crimes predominantes. — O adultério como
fonte de receita do gentio. — O vclungo. — A feitiçaria
e impossibilidade da sua repressSo. — Cobrança de divi-
das. — Cadáveres de secúloa individados e procedimento
dos parentes para com elles 161
CAP. XI. — Á3 terras de Bihé. — Configuração e fertilidade
do solo. — Clima. — Altitude — Habitantes do paiz. —
Seus costumes e alimentação a garapa, — Sobbas e prin-
cipaes dignitários da corte. — Batuques. — Chingírfo, —
Os óbitos e seus festejos. — Enterros. — Sepulturas. — O
cbimbandismo* — Ombinga serena. — Caprichosos pentea-
dos. — Lenços de assoar. — Maneira como apresentam as
suas pretensões. — Sua fórmula de saudação. — Edionda
superstição 175
CAP, Xn — Os boers, seus carros e famílias. — Gratas re-
cordações. — Maria da Silva Porto. — Suprema angustia.
— Nos derradeiros tempos. — O meu successor. — A via-
gem de regresso. — O meu ataque no Soque e a minha
milagrosa salvação. — Chegada a Catumbella. — Em Ben-
gnella. — Em Loanda. — O meu regresso á metrópole ... 199
Algumas palavras sobre o m*bundu 229
Nomes de alguns europeus que conheci no Bihé, com a in-
dicação dos locaes das suas residências 239
índice das gravuras
Pm
o meu retrato • 1
Palácio do Governo geral de Angola i4
Salla dos espelhos do palácio do governo geral de Angola . 16
Carruagem do governo geral de Angola 17
PaUcio do Governo do districto de Benguella (frente) 19
Idem do lado .do mar ... .... . 21
Uma vista dôt morros da Catumbella . • 27
'— :*-^'' »*:>*«. w
244
Um chibombo (acampamento) 29
A caminho de Quissange 31
Olombinga 35
Uma tempestade no matto 39
Passagem de um rio a vau 43
Uma ponte ... 47
Uma anhara (planície) .... 49
Passage-n de um riacho'^ 51
Os jango8 53
As mulheres de Chipipa 57
Aspectos do sertão 60
A caçada ás perdizes 63
Viajando em typoia ■ 66
As florestas do Bailundo 67
Os morros dos térmitas 72
As pandas 73
Ás boieiras 75
A ponte do Cutato .... 76
A recepçfio na corte do Bihel . . 78
Os arimos do sobba - 79
Um ehUombo em cimsas 81
O sobba bebendo álcool a 40» 84
Um batuque 86
Um enterro 89
Uma manada de antilopes 93
Transportando uma gaiella 97
Aspecto do forte Silva Porto 101
A sentinella do forte 103
Soldados á paisana 108
A residência no forte Silva Porto 112
Ideia das florestas ; as acácias 115
Procuravam illudil-os, pedindo -lhes as suas mallaa 120
Os escoteiros bnilundos 125
Aspectos do sertão 130
O ensino Ho m'bundu • 131
Escrevendo a própria lingaa 133
Preferindo-me a qualquer outro passageiro nas suas conver-
sações 136
Vista de Loanda 187
245
Projecções de lanterna magica. , 142
Evangelitando 145
Junto da feitoria 149
Conversando á fogaeira 153
Boi caTallo 158
Carregador em marcha 159
Omatabiobo 160
CkUmungá^ CeUmungá 161
Um musico do N*Dulo 164
A visita de Xicato J65
Em plena audiência 169
O vdungo 171
O sobba junto do ehingtte 175
De volta das lavras 177
Typo éhimbundu 180
Pisando milbo • • 181
A ciça do gaphanhoto 183
Bthenáo o chimbombo 184
Uma sepultura 188
Um chimbaruUi 190
Ombinga serena 191
Tjpo cAtmòimdu de mulher 193
Penteados curiosos 194
Um acampamento bóer 199
O carro bóer em marcha 201
Meninas boers ..•. 203
Lavando a roupa 204
Menina bóer, costurando 207
A passagem do Quebe 217
O meu ataque no Soqu<) 220
Photographia do meu irm&o António de Aseredo Malheiro . 222
A cavallo em muares ■ 224
Avistando o Atlântico 225
A ponte da alfandega em Bcnguella 226
A caminho dd Lisboa 228
■*^N ^ 'f^-. wk%-<. ..
««• ««> .•
•H
. \
ERRATAS
Ptg.
LiDhkS
33
4
74
12
77
3
77
6
93
7
98
12
122
11
126
31
132
2<l
U4
27
lf)7
31
158
11
160
12
163
17
165
19
168
24
178
25
181
5
186
6
186
18
188
16el7
189
7
235
18
235
22
235
24
Onde M 1 4
tazBfl
se vé deixando
estacionados
improvisionamonto
muda
produzem
mettel o nSo servia
nâo fora de pelles
sudoeste
conseguiu
á pressão
08 carregadores
e feito
seguravam
a quil
a melhor
dispensa-lhe
recent(>m-se
regular
da indefinível
cadáver e depois
de interessantes
iovo
iene, os nossos
viovo
Date lér-M
tachas
se vílo deixando
estacionado
improvisamento
mudas
produi
mettel-o lhe não serii:>
nâo fora, de pellcs
sueste
consegue
a pressão
o carregador
e é feito
segurariam
as quaes
o melhor
dispensa- lhes
resentem se
irregular
de indefinível
cadáver, depois
interessantes
iavo
teno, os vossos
viavo
< <»'fc'»
V
I
%
•^"^T-TT-
•^
,*. >--V>*.- ■ *■
,-..>-. .-11 •^mr/;'
- V .V
• - 1
/
/
í- • '
Tò avoid 1^ tliis book shoaM be ntumed on
or beforo tbe date last sUmped bdow
j- r
•• ti
iit
?>*
B
55»-
.»►
Eíf
1^ ■
\ PAM PHIET BINOÍr"L
\
Syrocuje, N. Y. •
2T6l1.a.B6M24 c
fipi
3 6105 083 145 81