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Full text of "Chrónicas do Bihé"

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CHRONICAS DO BIHÉ 




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ALEXANDRE MALHEIRO 

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Chronicas 

DoBIHÉ 

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JOSÉ LEITE 



LISBOA 

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o AUCTOR 






FBSFACIO SQ AVCIOS 



A apresentaçlo d'este modesto trabalho que hoje vé a 
luz da publicidade, inteiramente destituido de vaidosas 
pretensSes que a falta de recursos intelleotuaes jamais 
me permittiría nutrir, poderá tão somente attribuir se a 
uma pura condescendência da minha parte, perante os pe- 
didos de alguns dedicados amigos que, na apreciação 
apaixonada doestes meus apontamentos do sertão, preten- 
deram descobrir valor e interesse que a minha fria refle- 
xão, infelizmente, não conseguiria encontrar. 

Simples apontamentos são elles que, destituidos de 
soiencia e literatura, apenas tomara e colligira a meu modo, 
como preenchimento das horas tristes e nostálgicas da vida 
sertaneja. 

Satisfiz-lhes pois o desejo, para o que poderosamente 
contribuiu a bõa vontade e valioso auxilio que tão immere* 
cidamente vim encontrar na amabilidade do editor, incum- 
bindo-se da publicação do livro. A insufficiencia de quali- 
dades iião me inhibiu, comtudo, de reconhecer os defeitos 



10 



do mea trabalho que, alem de muitos oatros, residem 
principalmente na irregularidade e falta de methodo na 
ezposiçSo, qne, se egualmente n!o pude embellezar com o 
colorido da phrase, revesti ao menos com a pureza da 
verdade. 

Referencias desagradáveis, abstenho me de fazel-as seja 
a quem fôr no meu livro, para n2o dar-lhe a nota triste da 
má lingtuij que aliaz a influencia deprimente do clima tanto 
desenvolve nas paragens que descrevo. Escripto este livro 
na sua quasi totalidade em terras do Bihé, d'onde era en- 
viado como que em folhetins para a familia, n&o seria cer- 
tamente a intriga africana de que lançaria mão para 
assumpto das minhas chronicas. 

Tenho, comtudo, mau grado meu, escripto um volume- 
sinho n'essa orientação, que talvez muita gente supponha 
ser a que dou ao actual. Nlo é. Essa publicação reservo-a 
eu para o momento em que, porventura, se lhe depare 
a necessária opportunidade. 

Utilidade não sei se o meu livro a terá. N'elle, pelo menos, 
procuro dar uma ideia exacta da região que me propuz 
descrever, assim como das condiçSes de vida ali do euro- 
peu, e especialmente do commandante militar, para que 
se ajuize verdadeiramente dos trabalhos e inclemências 
experimentados por uns e outros — não raro, por cá, bem 
dura e injustamente apreciados ! 

Da descripção minuciosa dos costumes do gentio e suas 
leis, que de momento impossivel se toma modificar, po- 
derá também conduir-se a impraticabilidade dos nossos 



11 



regulamentos e mais disposigSes, no seio de uma sociedade 
que infelizmente se encontra ainda no mais degradante 
estado de civilisação. 

O Bihé d'hoje, posto que a seu respeito pouco se tenha 
escripto, nSo é terra ácêrca de que a minha phantasia 
podesse impunemente architectar quaesquer inverosímeis 
historias com que preenchesse as paginas d 'este livro e 
amenisasse a sua leitura. 

E' grande já o numero de europeus que n'esta região 
se acha estabelecido, representando semelhante capricho 
de imaginaçSo um verdadeiro attentado contra o seu va- 
lioso testemunho. Apesar d'isto, n'estes últimos tempos, 
a febre de apreciaçSes tão inexactas como desencontradas 
acerca do nosso sertão de Benguella sobre que, apenas com 
verdade, se conhece o que disseram os nossos exploradores, 
tem levado a opinião publica a um estado de desorien- 
tação, incontestavelmente bem pouco proveitoso para os 
interesses políticos e materíaes do paiz. 

Sem verdade nem patriotismo que os inspire, apenas 
obedecem taes escriptos, salvo raríssimas excepçSes, a um 
ridículo sentimento de vaidade, no qual ordinariamente 
se prima em despertar sensaçSes violentas, i custa de phan- 
tasticas narrativas, para que a immensidade do sertão 
fornece um ínexgotavel assumpto. 

Seja pois a veracidade das suas doutrinas, o único ti- 
tulo de recommendação para o meu livro ; e que lhe sirva, 
também, de escudo contra as justas apreciaçSes da forma 
e da linguagem. 



12 



E' ii'esta eonvioçio que lhe dou pablioidade, confiado 
demais a mais na benevolência dos leitores, para quem a 
apresentaçSo d'este modesto trabalho nunca poderia re- 
presentar a satisfaçSo de uma vaidade. 



CHRONICAS DO BIHÉ 



No litoral de Angola. — A cidade de Bengiiella. — O palácio do 
governo. — Hospitalidade do coinniorcio europeu. — Prepara • 
tivos de viagem. — Chegada dofl carregadores. — A minha par- 
tida para o Bihé. 



A leitura dos relatórios das viagens emprehendidas 
atravez de Africa pelos nossos arrojados exploradores, cons- 
tituiu sempre para mim objecto de incomparável inte- 
resse despertado pelas curiosas descripçSes n'elies feitas 
das longínquas paragens que quasi se nos aiSgura não 
existirem, e que, na minha qualidade de militar, facii me 
seria ir apreciar de perto. 

O primeiro passo para tal fim dei-o, quando em outu- 
bro de 1900 embarcava para Angola como ajudante de 
campo do governador geral d'aquella província, desem- 
barcando na cidade de Loanda em 23 d'e8te mesmo mez. 

E' vulgarissimo vermos intitular-se africanista qualquer 
individuo que por algum tempo permaneceu n'uma cidade 
do litoral de Africa, sendo certo que sobre assumptos do con- 
tinente africano poderá com verdade dizer tanto, como 
qualquer individuo que de uma obra apenas tenha co- 
nhecimento do titulo. 

A vida do gentio e excentricidade dos seus costumes, 
assim como todas as demais curiosidades do sertSo, nSo 



poderiam certamente ser por mim ^iRciadas do mirante 
envidraçado do palácio do governo ^ral ; era mister aban- 
donar o conforto piincipesco proporcionado por aqnella 
espécie de corte de qoe fazia parte, iniciando omii longa 
viagem para o interior, em cata de seosaçSes qoe corres- 
pondessem is produzidas pela leitura dos livros. 



Em fevereiro de 1901, nma portaria provincial propor- 
cionava-me o ensejo para realisar nma d'essas interes- 
santes viagens, publicando a minha nomeação para o cargo 
de capitSo-mór do Bibe, seguindo em principio de março 
a bordo d'am dos paquetes da Empreza Nacional para a 
cidade de Benguella, onde esperaria carregadores que me 
transportassem ao meu destíno. 

Dois dias depois desembarcava em Benguella, sendo-me 
amavelmente offerecida hospedagem pelo governador do 
distrícto, capitSo Teixeira Moutinho, meu patricio e parente, 
com que muito me honrei e desde logo acceitei. 

As minhas impressSes da cidade de Benguella, poderSo 
ser de oifu colhidas da seguinte carta que dirí^ ao sr. 
Conselheiro Moacada: 



15 



J«.°^ ExJ^'' 8r. Conselheiro Governador Omã 

£Í8-me finalmente em Benguella onde oheguei no dia 7 
depois de ter realisado uma viagem nas melhores condiçSes, 
hospedando me em casa do Moutinho que para isso me man- 
dou convidar a bordo. 

As minhas impressões d'esta terra são deveras agradá- 
veis, e, nSo obstante ser esta a residência predilecta das 
biliosas, parece que a configuração especial do terreno que 
n'este ponto e arredores armou em extensa planicie; a ve- 
getação um pouco mais desenvolvida do que ahi e uma 
fresca viração quasi constante, attenuando consideravel- 
mente o calor próprio doestas regiões, nos faz até certo 
ponto esquecer as condições de incontestável insalubridade 
do logar, para não pensarmos em mais que não seja pas- 
seiar e admirar uma terra aonde vamos pela pnmeira 
vez. 

Tenho effectivamente realisado alguns passeios com o 
Moutinho, geralmente a pé, mas relativamente suaves por 
não haver aqui essas ladeiras asphyxiantes provenientes 
do accidentado do solo sobre que assenta a cidade de 
Loanda. 

Em compensação, porém, esta grande planicie coberta 
de verdejante relva que tão agradavelmente nos per- 
mitte espraiar a vista, acha-se semeada de uma infinidade 
de pequenos pântanos em que abundam os malmeque- 
res, como grandes manchas amarellas sobre um fundo 
verde. 

Estas innocentes florinhas de que na Europa os na- 
morados tiram muitas vezes um partidão e que aqui 
começam a apparecer n'este quadra, são por esta 
gente consideradas como precursoras das febres biliosas. 

Que desagradável contraste! 



16 



O paUcáo do Oovenio do diatricto, « ceres de 50 metros 
da prau, é am grande chaiet, género de c<»utrDcçSes qne 
por Bignal alo é mníto do ^reço de V. Ex.*, aclundo-se 
c<KDtDdo muito bem úiuado, aendo bastante elegante, mas 
pessiniainente guarnecido de mobília. 



N'nm dos meus passeios tive o>icasi2o de observar para 
leste, a algumas milhas de distancia, a formidável linha de 
montanhas que, prolongando-se de Norte a Sul como um 
inexpugnável espaldão, marca verdadeiramente para o via- 
jante o inicio de novas sensaçSes e desconhecidos trabalhos. 

Gente d'esta terra ponoa ou nenhuma conheço, visto 
que sendo o commercio a sua principal occupaçSo, passa os 
dias no interior dos «eus estabelecimentos permutando as 
soas fazendas com os géneros que as successivss comitivas 
lie gentio lhe trazem do interior. 
' As ruas sSo bastante espaçosas e muito bem alinhadas, 
aolando-se nm estado geral de acceio e limpeza que 



â«verM agradun e seriam indispensmveis como garantia da 
b6a hygiene tiU> preotas D'e8tas terras doentias, etc, eto. 



As diíGonldades de transporte para o interior, originadas 
pela absolQta falta de estradas, fez-me permanecer em 



Bengn^lla cerca de mez e meio & espera de carregadores 
que me levassem para o Bihé. 

Darante todo este tempo, de que me restam as mais 
gratas recorda^Ses, tive occasiSo de relacionar me com a 
maioria dos meus compatriotas ali residentes, qne n'ama 
amabilidade inezcedivel me dispensaram finezas como ji- 
mais havia recebido e de que sempre me lembrarei com 
gratídSo. 

Ali fui encontrar alguns bons patricios e amigos, nego- 
ciantes da praça, que de prompto me relacionaram com 



18 



outras pessoas que ao fim de poucos dias passaram a ser 
bons amigos como os primeiros, do que me resultava uma 
infinidade de convites para almoços e jantares que nos 
últimos tempos da minha estada ali me c^oUocavam na 
situaçSo de não ter paradeiro certo, assistindo a uma serie 
interminável de lautos banquetes, como só o commercio 
de Benguela capricha em apresentar. 

E' assim o commercio de Benguella para os seus hospe- 
des, alguns dos quaes — nSo raro ! — n'uma ingratidão re- 
voltante, commentam e criticam depois bem desfavoravel- 
mente esta sincera generosidade que, a bem dizer, constitue 
o único divertimento que em taes paragens lhes é dado gosar. 

Houve tempo que em Benguella e Catumbella não exis- 
tia um único hotel ou casa d'hospedes, pela razão inteira- 
mente simples de que seria impossível a taes casas adqui- 
rir freguezia que as sustentasse. 

Para Benguella iam de ordinário individues que se des- 
tinavam ao commercio, funccionarios públicos, civis ou 
militares e um ou outro explorador. 

Os primeiros seguiam desde logo para casa dos seus 
patr5es, onde estes, mesmo que não tivessem necessidade 
de empregados, os conservavam em sua casa e obsequia- 
vam com a sua meza até que podessem offerecer-lhes uma 
coUocação. Os outros, ou tinham em Benguella pessoas 
conhecidas, ou em breve se relacionavam, por forma a 
ser-lhes inteiramente vedada a entrada n'um hotel. 

Hoje ha já um magnifico hotel em Benguella. 

Nos derradeiros dias de março chegaram finalmente os 
carregadores que me haviam de transportar para o inte- 
rior. Eram quarenta robustos negros, na sua maior parte 
hailundos, que hoje mesmo me não seria tlifBcil reconhecer, 
tantas vezes os vi canúuhar a meu lado, sob o peso das 
cargas ou do bordão da iypoia em que viajei. 



Umft carta com que me obsequiou o meu sympatbico e 
respeitável amigo Conselheiro Gomes de Sousa, fez a 
mioha apreseotacilo a iim dos gerentes da Companhia Com- 



mercial d'ADgola, o commendador Fedro d'Almeida Leal, 
que me orientaria sobre os objectos de primeira necessi- 
dade de que teria de fornecer-me antes de emprebender a 
minha viagem, taes como rancho e fazendas para servirem 



20 



de moeda na acquisição de certos géneros alimentícios qne 
se obtêem pela permuta com o gentio, alem de outras 
destinadas á retribuição dos presentes que nos primei- 
ros tempos da minha administração me seriam offerecidos 
pelos sobbas na occasiio dos seus cumprimentos offi- 
ciaes. 

Uma outra carta do meu bom amigo Lima, gerente da 
mesma companhia em Loanda, egualmente me apresen- 
tava a um outro gerente em Benguella, o sympathico 
Ignacio Fonseca da Costa, do que me resultou o máximo au- 
xilio não só para mim, como para meu irmão que, achando 
se ao serviço de uma propriedade agricola em S. Thomé, 
me quiz acompanhar para o Bihé, onde se estabeleceu por 
sua conta e se conserva ainda. 

Preoccupava me sobremaneira a ideia de uma viagem 
tão longa, que teria de realisar em typaia n'uma posição 
que fatalmente acabaria por incommodar-me horrorosa- 
mente, e sendo me proposta a compra de um cavallo de 
Ignacio Fonseca, a pagar quando pudesse, não duvidei 
em acceital a visto proporcionar-me uma agradável va- 
riante na maneira de viajar, e o cavallo a que dei o nome 
de Bihé passou desde logo a ser meu. 

Os dias decorridos desde a chegada dos carregadores 
até ao determinado para a minha partida, passei-os na an- 
tiga Ccua Ferramenta assistindo ao empacotamento e dis- 
tribuição pelos carregadores dos volumes que me eram 
destinados, tendo occasião de admirar a actividade e de- 
sembaraço de um tal Carlos, empregado da casa, que em 
pouco tempo dispôz na melhor ordem tudo quanto me 
dizia respeito. Um ou outro objecto ia lembrando a cada 
momento como indispensável para uma multiplicidade de 
fins, conseguindo-se finalmente adquirir tudo quanto me 
não seria fácil obter no sertão. 



Mo dia 3 d'«bril chegou âaalmeute u pu<juete com a 
oorrespondenoia qne sdcíoso esperava para realisar a mi- 
olia viagem para o Bihé, a qual teve logar n'es9e mesmo 



dia, seguindo ás 4 horas da tarde para Catumbella, depois 
de, ii'um affectuoso abraço, apresentar as minhas despe- 
didas ao £x.'°' governador do distrioto e sua bondoàsúma 



22 



esposa, a quem agradeci a attenciosa amabilidade com que 
me obsequiaram em sua casa. 

O trajecto de Benguella a Catumbella effeciuou se em 
pouco mais de uma bora, devido ao amável ofiferecimento 
do meu amigo Pedro Leal, que mandou pôr ás minbas or- 
dens um elegante brék da Companhia Commercial d*Ân- 
gola, de que me aproveitei juntamente com meu irmSo e 
meu patrício Júlio de Moraes Cardozo, dando-me o sr. Leal 
por esta forma mais uma pi ova da sua estima. 

Cbegados a Catumbella ás 6 horas, fui hospedar me em 
casa do Júlio Cardozo, onde, a instancias suas, passei o 
dia immediato. Durante este dia travei relaçSes com um 
sertanejo que me foi apresentado e que devia seguir para 
o Bihé, onde possuia uma importante fazenda agrícola, e 
se fazia acompanhar de mais três outros europeus, um 
dos quaes também fazendeiro. 

O primeiro, cujas qualidades de caracter me tinham já 
sido posta em relevo por diversas pessoas, tomou-se desde 
logo para mim deveras sympathico, não só porque a minha 
predisposição a seu respeito lhe era já favorável, mas por- 
que a primeira impressão foi realmente agradável para mim, 
como naturalmente o seria para todo aquelle que, como 
eu, apreciasse a singelleza e modéstia das falias e acçSes 
de qualquer individuo, qualidades estas que depois tive 
ocoasião de ver, com grande distincção e nobreza, soli- 
damente aliadas á mais fina educação e decisivo cara- 
cter; 

José Pinto Baroza, assim se chamava o sympathico ser- 
tanejo, havia sido segundo sargento de cavallaria, quali- 
dade esta que facilmente se concluiria do enthusiasmo com 
que fallava das coisas militares, acceitando por isso com 
o maior agrado a proposta que lhe fiz de seguirmos juntos 
para o Bihé. 



23 



Desde logo, pois, ficou assente que a nossa partida de 
Catumbella se reaiisaria n'esse mesmo dia ás 1 1 horas da 
noite, para evitar a sede que produziria o calor durante 
este primeiro dia da nossa viagem, em cujo precurso se 
nSo encontra agua, cuja falta é tanto mais para sentir 
quanto é certo ser o terreno accidentadissimo, por ter de 
atravessar~se a escabrosíssima montanha da òupa. 

Durante este interminável dia em que impaciente estive 
na Catumbella, e que propriamente marcava o inicio da mi- 
nha viagem pelo interior do grande continente africano, mil 
pensamentos sinistros passavam como densas nuvens pelo 
meu espirito. 

Não sou dotado de grande robustez physica, posso mesmo 
considerar-me um official incapaz de servir no ultramar, 
não obstante a junta de inspecção, no seu superficial exame 
medico, me ter dado apto para esse serviço; e a prespe- 
ctiva de uma febre violenta ao fim de alguns dias He viagem, 
em pleno sertão, sem commodidades de espécie alguma e 
na época das chuvas em que os caminhos se transformam 
por vezes em verdadeiros rios e as planicies em extensos 
lagos, far-me-hia sem duvida fraquejar se não fôra a 
decisão de ferro que sempre conheci in«{uebrantavel. 

Á's 6 horas da tarde mandou o tio Júlio, como toda a 
gente conhece o Júlio Cardozo, em Catumbella, servir o 
jantar, para o qual foiam convidadas pessoas das relaçSes 
da casa, e que foi, como todos os jantares d'África, uma 
interminável refeição, em que não faltou o champigne, 
com que o tio Júlio brindou pela felicidade da minha via- 
gem, brinde que agradeci, assim como todas as fidalgas 
attençSes que me dispensou pelas duas vezes que, a seu 
convite, me utilisei da sua casa. 



II 



Primeira étape. — O acampamento da Supa. — O Bundeanoy — A 
Lucinja. — Uma nota desagradável. — O Bocoio e Cubai. — 
Olombinga. — Uma noite tempestuosa. — Uma acena de ieao. 
— As curvas do Cubai. — Uma arrebita na'Améra.~Um grande 
successo. — Bio Balombo. 



Á's 11 horas, como baviamos estabelecido, caminbamos 
para o sopé do primeiro morro que tinbamos a subir, se- 
guidos de varias pessoas que nos iam acompanhar até ao 
ponto onde, d^ordinario, costumam realisar se as despedidas. 
Depois dos protestos de felicidade de parte a parte e dos 
abraços do estylo, iniciámos a pé a subida do monte por 
não ser possivel utilisar se a typoia ou cavalgaduras, sem 
grave risco de rolarmos para os enormes precipicios, que 
como abysmos medonhos se prolongavam constantemente 
a nossos pés, caminhando apenas por estreitas faxas de ÕO 
centimetros de largura que as continuadas comitivas de 
gentio conseguiram abrir com os pés nús nas encostas es- 
carpadas da montanha, desde que este começou a enca- 
minhar por ali o seu commercio para o litoral. 

O luar, que n'esta noite rompeu ás 10 horas, permittiunos 
uma viagem livre de desastres, até ao ponto mais elevado 
da montanha, onde nos amanheceu, começando então a 
poder apreciar-se as curiosidades que nos proporciona o 
interior d'Africa. 



26 



Pouco vi porem n'este dia de extraordinário, nem mesmo 
a vegetação que não passava de um rasteiro capim, por 
entre o qual rebentava uma arborisaçSo racliitica, dando* 
nos este conjuncto o aspecto de extensas searas, por entre 
as quaes houvesse crescido grande quantidade de pequenas 
amendoeiras. 

Perto das 9 horas da manhi começámos a descer para 
leste, chegando ás margens do rio Catumbelia, onde se 
achava o acampamento (chilambo), que consiste n'uma serie 
de barracas (chingues) geralmente de forma cónica, cobertas 
de capim e ramagem que sustentam hastes de madeira de 
egual comprimento, dispostas circularmente, tendo as ex- 
tremidades mais grossas assentes no solo, e convergindo 
as outras n'um ponto situado a uma altura de 3 a 4 metros, 
onde por meio de forquilhas se seguram e sustentam. 

A maior parte dos carregadores, extenuados do cançasso 
produzido pela noite perdida e irregularidades do caminho, 
chegou um pouco mais tarde ao acompamento, o que atra- 
zou bastante a nossa primeira refeiç&o ao ar livre, por 
nos ficarem para traz as cargas de rancho indispensável 
para a sua confecção. 

Era um mixto de fadiga e muita fome o que todos 
n'aquelle momento experimentávamos, do que me resultou 
uma fraqueza como até então jamais havia sentido. 

Quanto daria eu n'aquelle momento supremo por ver es- 
tendida deante de mim a meza succulenta e antifastidiosa 
do palácio de Loanda, e pelo meu espaçoso e confortável 
leito de finissimos lençoes de bretanha de linho 7! 

Não se prolongou, felismente, este suplicio que teria aca- 
bado por endoidecer-nos, chegando finalmente os carrega* 
dores com os volumes desejados. Nova contrariedade, porém, 
nos surgiu quando procurámos o cosinheiro que ainda não 
apparecera ; esta falta não impediu, comtndo, que a nossa 



rffa 



27 



refeição se preparasse, viato que na bagagem dos meus prá- 
ticos conhecimentos, oocnpam um logar importante os as- 
sumptos de arte culinária, em que todos os meus compa 
nheiros se declararam inteiramente leigos. 



N'esta situação, pois, e obedecendo ao imperioso instin 
cto de conservação, tendo rapidamente imaginsdu um li- 
geiro menu, mandei collocar duas panelias e uma i;hal- 
leira respectivamente sobre três fogSes formados cada um 
d'elles por três pedras toscas sensivelmente da mesma al- 
tura entre as quaes se metlia a lenha, e cujos pontos mais 
elevados determinavam o pUno borizoulal que permitiia 
snstentar em equilíbrio as caçarolas, sem grande risco,de 
se entornarem. 

A agna do Catiimbella, demasiadamente turva, apresen- 
tara dentro das panelias e chaleiras a côr bastante carre - 
gada de uma mistura café com leite ; mas apezar disso a 
r«feigSo qae com ella ae preparou, sob a minha direoçSo 



38 



immediata, por todos foi recebida com extraordinário ap. 
petite. 

Finda ella restava nos, para a completa reparaçlo das 
forças perdidas, o repouso qne durante tantas horas 
seguidas nos faltava, mandando armar as camas, onde 
passados momentos contra todos os preceitos da hygiene, 
adormecíamos profundamente, emquanto que os nossos 
pobres estômagos, como os de qualquer giboia, se entre- 
tinham digerindo a abundante batelada de conservas varias 
e lodo, que momentos antes sofregamente lhes havíamos 
introduzido. 

Pobres estômagos^ pobres rins e pobres figados ! • • • 

O cançasso era de tal natureza que s6 ás 4 horas da 
madrugada despegamos do mais reparador dos somnos, 
levantando-se cerca das 5 horas aquelle simulacro de bi- 
vaque, pois que n'esta primeira étape não approveitamos os 
chinguesj dormindo ao ar livre sob uma extensa abobada 
de verdura, formada pela densa ramagem de uma infini- 
dade de gigantescos sycomoros (incendeiras). 

Seguimos por alguns momentos a margem direita do 
rio Catumbella, n'uma formosa madrugada de sabbado de 
alleluia. As margens doeste rio são lindíssimas e a vegeta- 
ção que por vezes lhe torna quasi invisíveis as suas ag^nas 
attinge aqui proporçSes deveras colossaes, abundando os 
sycomoros, cujo aspecto a distancia nos dá a impressão de 
um denso carvalhal de muitos séculos de existência, pro- 
proporcionando nos com a sua sombra uma frescura tanto 
mais para apreciar, quanto é certo havermos apenas dois 
dias antes deixado o calor asphyxiante do litoral. 

Completava graciosamente a belleza do loc^l o canto 
terno e amoroso de uma infinidade de innocentes rolas, qne 
do alto da extensa ramagem do arvoredo, davam ao quadro 
um irresistível encanto. No meio d'aqueUa solidão e pai^ 



tXo formoso quadro pediria um competente idílio, se este 
nlo corresae o grave risco de ser perturbado pela visita 
inesperada do leSo. Simplesmente adorável I . ■ . 



Oontinliando a nossa viagem para leste, tivemos de sii))ir 
os contrafortes da Luciuja a que o gentio dá o nome de 
Bundeanoy, percorrendo caminhos escrabrosissimos e qtiasi 
intransitáveis em typoia e principalmente a cavallo, tendo 
mesmo n'alguns pontos sérias difficuldades em passar des 
montado o meu cavailo, o Bihé, que por varias vezes quasi 
receei escorregasse para qualquer precipicio ou partísse as 



30 



pernas, por ter de caminhar sobre escorregadias lages, a 
todo o momento cortadas em grande declive. 

Passados os maiores perigos fomos surprehendidos por 
uma chuva torrencial, que nos encharcou por completo. 
Á vegetação durante duas horas doeste trajecto, consis- 
tia n'uma enorme profusão de arbustos hervaceos, orlando 
por forma tal o estreito caminho, que só com grande dií- 
iiculdade podia romper-se atravez d'aqiielle colossal e in- 
terminável macisso de verdura que a custo deixava passar 
a pouca luz que o tempo chuvoso e plúmbeo nos fornecia, 
tendo para percorrer aquelle extenso e húmido túnel, de 
dobrar me sobre a sella, formando com os braços na minha 
frente uma espécie de quilha de navio que desviasse para 
os lados as largas folhas das hervas, que, como grandes 
caleiros d'agua, me innundavam por completo n'um banho 
suffocante que chegou a desesperar me. 

Finalmente, por volta das 1 1 horas, cheguei ao alto do 
monte T^ucinja, onde pouoo depois parou a chuva, e 
acampei novamente, tendo de fazer uma substituição 
completa, embora tardia pela demora dos carregadores, 
da roupa que levava vestida e que me custou despegar 
do corpo. 

Este banho não teve, felizmente, consequências de maior, 
a não ser para alguns dos meus companheiros um ligeiro 
defluxo. 

Preparado o rancho que, como sempre, foi recebido com 
magnifico appetite, tivemos uma interessante sessão de 
tiro ao alvo experimentando eu a minha carabina Manlicher, 
com uma serie de 5 tiros que fiz sobre o tronco de um 
imbundeiro (?), como experiência de penetração n'esta espécie 
de madeira que passa por ser uma das mais rijas, mas nem 
por isso deixando de ser vazado o tronco d'esta arvore que 
media cerca de 50 centimetros de diâmetro, collocando 



assim a perder de vista na espingaardas dos meoa compa- 
nheiros. 

A atmosphera na Liicinja, a cerca de 60 kilometros do 
litoral e oom uma altitude approzim adam ente de 500 me- 
tros, tornava-se já extremamente agradável pela sua le> 



veza e fres.'iira, perfumada pelo excíntriuo aroma 'las tigres 
selvagens <4ue n'aquelle ponto abundavam variadíssimas e 
deveras curiosas. 

Apezar de as condiçSes hygienícas melhorarem conside- 
ravelmente, á medida que nos affastavamos do litoral, um 
dos meus companheiros de viagem achoa-se por forma tal 
íncommodado, repugnando-lhe a tal ponto os alimentos, em 



34 



cavado na espessura do bosque é escassamente illuminado 
pela frouxa luz do sol, coada atravez da immensidade da 
folhagem que por todos os lados me envolvia. 

Extraordinariamente curioso ! 

A fazenda do Bocoio marcava pois uma verdadeira 
nuance, cortando agradavelmente a monotonia da nossa j4 
bem longa viagem, não podendo resistir á tentação de saltar 
da typoia, para poder detidamente apreciar o phantastico 
quadro que tão extraordinariamente me impressionava, e 
que ia variando de aspecto á medida que nos adiantáva- 
mos, N^alguns pontos a estreita vereda que seguiamos 
alargava n'uma espécie de pequenas clareiras, verdadeiros 
caramanchões naturaes, em que o canto de uma infinidade 
de passares de coloridas plumagens era reforçado como se 
estivéramos no centro de um grande salão das melhores 
condições acústicas. 

Na camada superficial do solo, salientavam-se, cobertas 
de musgo, robustas e nodosas raizes a que succediam tron- 
cos verdadeiramente fabulosos. A estes troncos e seus ra- 
mos enroscavam-se, como vigorosas serpentes, crusando-se 
no espaço d'umas para outras arvores, como cabos de um 
navio, uma enorme profusão de trepadeiras cujos braços^ 
descommunalmente engrossados pelo decorrer de muitos 
séculos, interceptavam por vezes a livre passagem ao via- 
jante, que excedesse a altura máxima que poderia attingir 
a carga transportada á cabeça do carregador. 

Um cavalleiro não poderia impunemente distrahir-se 
durante o trajecto de que venho fallando, motivo por que 
n'este dia me não utilisei do meu magnífico cavallo em 
que viajava. 

Ao fim de 40 minutos doeste curioso trajecto, attingia- 
mos finalmente a orla do bosque que vinhamos atraves- 
sando, sahindo a meia encosta de uma elevada montanha 



33 



nas a cama de viagem que elle próprio trazia e uma ca- 
deira, cujo primor de construcçao se harmonisava com a 
caaa a que a .destÍDaram| tendo a deselegancia do feitio e 
os preguinhos amarellos (ta^as) com que abundantemente 
a guarneceram, a denunciar lhe o desalmado auctor, que 
deveria ter sido preto pouco versado na arte de carpin* 
teiro. 

lofelisménte não podia, em taes paragens, ezigir-se outras 
commodidades, e o nosso desditoso companheiro encontra- 
ria certamente durante o resto da viagem uma inevitável 
morte, causando-nos sensaborias que, por esta formai des- 
appareceriam, tanto mais que ainda que o desejasse lhe 
seria impossivel proseguir. 

Pepois de, com o maior empenho, deixar recommendado 
o nosso desditoso viajante ao empregado do fazendeiro, de 
quem obtive a promessa de lhe serem dadas melhores accom- 
modaçSes, continuámos á hora costumada a nossa viagem 
para leste. 

Cerca de 300 m. a partir d'este ponto, caminhando 
sempre ao longo do Cubai, deparou se-nos uma esguia 
abertura, única solução de continuidade, talhada na orla 
de um grande bosque, denso e escuro, principalmente 
constituido por um macisso de arvores de notáveis propor- 
çSes, exhuberantemente creadas pela fertilidade do valle^ 
cuja ramagem, estendendc-se simultaneamente de uma para 
outra margem, se entrelaçava nas suas copas, formando 
uma extensa abobada, verde negra, sob a qual o rio se es- 
coava em vertiginosa coerente, solitário e triste, por vezes 
invisivéi, n'um suave murmúrio quasi imperceptivél. 

N'este dia viajava na lypoia. Os machileiros, indifferen- 

tes perante taes encantos da Natureza, a breve trecho en> 

fiavam commigo pelo matagal, caminhando como que den* 

tro de um longo tubo, sinuoso e húmido, caprichosamente 

s 






f 



36 



sor o branco que cantava lá dentro, preencheu agradavel- 
mente as horas que lhe dedicámos e que por qualquer 
forma tinhamos de passar. 

N'este acampamento deitámo-nos muito cedo; altas horas 
da noite desencadeia-se uma fortíssima trovoada, acompa- 
nhada de grossa chuva e relâmpagos, que, atravez da debil 
camada de capim, illuminavam com tal intensidade o inte- 
rior da nossa tenda, que por vezes nos davam a illusSo 
de nos acharmos cercados de chammas. 

Como complemento doeste quadro de verdadeiro bello* 
horrível, foi-nos denunciado pelos carregadores a visinhança 
pouco agradável do leão (hossi) que abunda n'aquelle 
sítio, e cujo rugido assustador ouvi distinctamente com oH 
meus companheiros, pela primeira e única vez em toda A 
minha viagem. 

A quem nunca tivesse ouvido o leão, pot certo não faria 
mossa um ruido extranho, como seria o produzido por um 
boi, gemendo sob a influencia de uma dor, tal era o som 
surdo o cadenciado, como a distancia se manifestava a 
presença daquelle viajante das trevas, que com verdadeira 
curiosidade escutei; gradualmente, porém, e com uma ra- 
pidez verdadeiramente prodigiosa, foram reforçados podero- 
samente aquelles gemidos, que pareciam ser a custo arran- 
cados das profundidades do continente que atravessáva- 
mos. 

De repente, longe ainda, mas com uma intensidade que 
nos arrípiou todo o corpo, sentiu-se um estridente e pro- 
longado rugido que correspondeu perfeitamente a ideia que 
d*elle tinha antecipadamente formado, e que em nada se 
pareceu com o anterior estribilho que, segimdo me foi ex- 
plicado pelo gentio, é indicio de quá? o animal vae enl 
marcha, parando apenas para soltar roncos verdadeira* 
mente ferozes, como o que acabávamos de escutar. 



37 



Como a chuva tivesse apagado as fogueiras do acampa- 
mento, e receiosos de que a presença do cavallo e muares 
attraliisse o inesperado visitante, sahimos immediata- 
mente de dentro dos chingues, e, armados das nossas esr 
pingardas, trepamos para uma accacia d'onde esperávamos 
a chegada do feroz animal. A noite porém era tão escura 
que impossivel se tornaria vêl-o a dois metros de distan- 
cia, e os pobres bucephalos, que se achavam um pouco 
affastados, seriam fatahnente devorados sem que lhes po- 
dessemos valer. 

Resolvemos então fazer uma descarga ao accaso que 
pareceu não despertar a attenção do animal, seguindo 
no seu estribilho por vezes apenas interrompido com rugi- 
dos admiravelmente ferozes. Successivamente foi deixando 
de ouvir-se a respeitável voz do temivel rei das selvas, que 
por muito tempo os echos dos valles repetiram, no silencio 
aterrador d'aquella noite tenebrosa, por entre os compas- 
sados ribombos do trovão, com que tão medonhamente se 
casava. 

A partir de Olombinga para leste, n'uma extensão de 
muitos kilometros, o terreno é bastante plano, tendo aqui 
o seu inicio a extensa anhara (planície) que se prolonga 
para alem de Cahata, importante povoado de que toma o 
nome, e ao longo da qual, cm caprichosas curvas, o Cubai 
vae preguiçosamente deslisando, n'um emaranhado de lacê- 
tes que por duas vezes nos interceptaram o caminho que 
seguíamos. O quinto dia da nossa viagem, em direcção a 
Améra, realisou-se atravez doesta extensa planície, que as 
chuvas próprias da quadra em que nos achávamos, haviam 
tornado quasi intransitável. 

Treze linhas d'agua, poderosamente engrossadas, e uma 
infinidade de pântanos tivemos nós que transpor, uns ás 
costas de carregadores e outros a cavallo; a passagem 



38 



porem do Cubai, que não podemos effectuar por nenhuma 
doestas formas, constituiu para nós uma verdadeira difi- 
culdade, por ter sido arrebatada pela corrente a ponte gen- 
tílica, que de resto apenas nos teria poupado a um banho 
forçado, visto achar-se estabelecida tão somente sobre a 
corrente do rio. 

A ponte porém, como disse, não existia, tendo eu conhe- 
idmento de nos acharmos na visinhança de um rio, porque 
essa prevenção me foi feita pelos carregadores, que esta- 
caram no ponto em que o caminho era interceptado por 
um grande pântano que o alargamento do rio transformara 
n*um verdadeiro lago. 

Dispunha-me a saltar para o pescoço de um robusto 
carregador, que n*um equilibrio e firmeza verdadeiramente 
prodigiosos me havia passado já em diversos outros pân- 
tanos, quando elle, sorrindo admirado, se serviu d'esta 
gotural interjeição tão característica das manifestações de 
surpreza na língua rnhiuidu: 

aHa-ha!!! 

Os meus rudimentares conhecimentos do m^bundu não 
me permittiam ainda comprehender a discussão que se 
havia estabelecido entre os carregadores, ficando-me com- 
tudo a impressão de que qualquer coisa de anormal se 
havia passado. 

Decorridos três minutos, toda a comitiva se achava de 
cargas arriadas junto do pântano, apeiando-se do seu 
valente garrano do Senegal, o meu alegre companheiro e 
experimentado sertanejo Pinto Baroza, que me informou 
então de que, a uma distancia de uns 60 metros do ponto 
em que nos achávamos, corria disfarçadamente o río 
Cubai, que durante o nosso trajecto, teríamos que trans> 
pôr ainda mais duas vezes. 

Em vibnndii correcto, perguntou então aos carregadores 



mtm 



40 



se a cavallo poderia transpôr-sc o rio, sendo todos de 
opinião que os cavallos teriam de nadar. 

A hypothese de nos utilisarmos da typoia^ assentando 
os dois carregadores o bordão sobre a cabeça, foi também 
posta de parte, perante a perspectiva de se molhar a bar- 
riga do boi (ubime-i-ongonbej como o gentio denomina a 
convexidade apresentada pela rede da typoia sob o peso 
do viajante. 

A febre de proseguir não me permittiu deter-me por 
mais tempo na contemplação d^aquelle insignificante obs- 
táculo, perdendo tempo em conjecturas a que fiii o pri- 
meiro a pôr termo, despindo-me por completo, no que fui 
imitado pelos meus companheiros. Não tardou dois minu- 
tos que enorme bicha, de mãos dadas, se enterrasse até 
ao joelho, cortando o pântano sob a indicação de um preto 
ejíperimentado que nos serviu de guia e que somente in 
terrompeu a marcha para nos prevenir da diíFerença de 
nivel que iamos encontrar, a qual de resto nos era denun- 
ciada pelo movimento da corrente. 

Tendo visto os primeiros pretos enterrarem-se na agua 
»té ao pescoço, restou-me desde logo a esperança de que, 
como eram mais baixos do que eu, me não veria na necessi- 
dade de nadar. 

Foi meu irmão o único que, desprendendo-se da extensa 
cadeia que formávamos, fez a travessia, nadando como um 
peixe, até á margem opposta. 

Attingida esta, continuámos marchando atravez do pân- 
tano, que se prolongava ainda uns 40 metros para além 
da margem direita, chegando a terra firme, completa- 
mente sujos do lodo pestilento que nos havia adherido ás 
pernas. 

Um jarro de agua limpa despejado sobre o corpo^ 
que, rapidamente, os ardores do sol enxugaram emquanto 



41 



esperávamos os nosscs vestuários, rematou este divertido 
incidente, que foi objecto de grande admiração dos carre- 
gadores, perante a simplicidade da nossa toilette^ sendo o 
elemento femenino aquelle que mais ruidosamente se mani- 
festou. 

Eram ires horas quando chegamos a Amtra. Aqui 
encontramos um europeu, negociante, que a troco de fa- 
zendas, nos forneceu uma galinha, ovos e bananas, com 
que podemos variar um pouco a nossa alimentação, pondo 
de parte as conservas em latas, que só estômagos fortis- 
simos podiam acceitar de bom grado. O jantar, que por 
este facto se tornou mais agradável, produziu nos meus 
companheiros grande animação, e eu fiquei também rasoa- 
velmente disposto. Em seguida porém ás nossas refeições, 
que terminavam sempre á luz d'uma lanterna, como nada 
houvesse que nos distrahisse, acontecia sempre entrarmos 
nas barracas, onde adormeciamos minutos depois, com 
grave prejuizo das funcçSes digestivas, de que ordinaria- 
mente nos resultava uma má disposição ao levantar, por 
fortuna em breve dissipada pelo exercido forçado da viagem. 

N*esta noite, porém, os meus companheiros, que se faziam 
acompanhar pelos seus ladinos serviçaes, organisaram com 
elles uma arreòífa segundo os costumes de Benguella, em 
que tomaram parte todos quantos tinham conhecimento 
d'esta espécie de dança, que era executada ao som de uma 
harmónica de bôcca. Esta dança adquiriu um tal enthu- 
siasmo, que chegou a attrahir todos os organisadores da 
festa, com grande satisfação da pretalhada, que principiou 
a ver n'aquella mélange ethenica um magnifico pretexto 
para pedir o indispensável mcUa-bicho, 

Estas danças, que não têem nada de batuques, possuem 
como as nossas quadrilhas, varias marcas, de que a mais 
vulgar consiste n'uma roda, composta de cavalheiros e 



42 



damas, dispostos alternadamente, principiando, em seguida 
ás primeiras notas de uma musica um tanto monótona exe- 
cutada em compasso de polka, pela sahida de um cava- 
lheiro, que, dirigindo-se para o centro da roda, executa 
com uma ligeireza de perna e flexibilidade de rins, uma 
serie de dengosas voltas e requiebros que terminam por 
uma valente umbigada n'uma das damas da roda. 

Esta, abandonando o seu posto, rompe desde logo em 
egual volteio, que egualmente faz rematar com outra um- 
bigada em qualquer dos cavalheiros, e assim successiva- 
mente, n*um enthusiasmo que chega a attingir a loucura, 
e apenas se interrompe por momentos para os exe- 
cutantes emborcarem alguns copos de qualquer bebida 
espirituosa. 

As arrebitas em Benguella, chegam a constituir o prin- 
cipal divertimento da terra, assumindo porém um caracter 
de importância, que lhes provem da intervenção do elemento 
europeu que as promove e em que dispende sonunas de- 
veras colossaes. 

Para a realisação doestas festas, alguns dos principaes 
negociantes, rapazes geralmente, fazem convite ás damas 
pretas e mulatas mais em voga na cidade, e n'um deter- 
minado dia, todos os foliões a quem a perniciosa influencia 
do clima não consegue modificar o temperamento, reúnem 
n'um sitio apropriado, onde se encontram, envoltas nos seus 
amplos pannos de caprichosas cores, uma infinidade de ra- 
parigas africanas de olhares langorosos, entre as quaes se 
notam todas as variantes de tom, desde o negro de azevi- 
che até ao branco-máte, como outras tantas misturas de 
café com leite, em que cada um d'estes elementos ahi en- 
trasse em proporções variadíssimas. 

N^esta espécie de dança africana, que apenas caracte- 
risa o elemento feminino que n'ellas toma parte, nota-se já 



um cunho de festa civilisada, em que o harmonium chega 
a ser substituído por uma pequena orchestra, ao som da 
qual se executa uma infinidade de marcas, com uma perícia 
e certeza de movimentos que causa verdadeira admiração. 



A arrebita em que durante as primeiras investidas se 
manifesta um certo acanhamento, adquire uma alegria de- 
lirante, originada pelas abundantes libaçSes de tudo quanto 
em bebidas espirituosas ha de mais fino e apreciável, a par 
de um serviço de meza que rivalisa com o apresentado em 
qualquer salão de baile da nossa primeira sociedade. 

Um importante e conhecido negociante de Benguella, 
organísou ha annos uma d'estas festas, cuja dcspeza exce- 
deu a bonita conta de 5:000iS000 réis. 




^ T 



44 



De madrugada iniciámos o nosso sexto dia de viagem 
para Cahuita, onde chegamos ao meio dia, estabelecendo 
o nosso acampamento no alto de um pequeno plateau de 
cerca de 1:000 metros de extensão, ao fim do qual se er- 
giíia uma grande fraga ennegrecida pela acção mixta do 
sol e das chuvas. 

O terreno entre esta fraga e o chibomho era sensivel- 
mente horisontal, achando-se inteiramente a descoberto, em 
consequência das devastações que o gentio faz no matto 
que circumda os seus acampamentos, por ter de utilisal-o 
como matéria prima na construcção dos chinguts. 

Esta disposição do terreno permittiu-nos aproveital-o 
para uma sessão de tiro a distancias relativamente gran- 
des, ajuizando assim da precisão das nossas armas. 

No fundo musgoso e negro, patenteado pela fraga, des- 
tacava-se admiravelmente um quarto de «O Século», que 
constituia o pequeno alvo sobre que iamos iniciar a nossa 
sessão de tiro. Os pretos carregadores assistiam com visí- 
vel attenção a todos estes preparativos, sem que desde logo 
lhes fosse dado comprehender o que d'ali poderia sahir. 

Era porém, sem duvida, algum divertimento de branco, 
inteiramente novo para elles, bastando tal supposição para 
que, n'um antecipado sorriso de admiração, seguissem 
com os seus cinco sentidos aquelles nossos trabalhos pre- 
paratórios. 

Fui eu o primeiro a entrar em scena, graduando a alça 
para 800™, distancia que tive a pachorra de medir a passo, 
desde o alvo até á origem do tiro. 

Ao vêr-me o gentio pegar na carabina, comprehendeu 
naturalmente que eu fosse fazer fogo, sobre o alvo que 
havia pregado na fraga, mas nunca a uma tal distancia; 
vendo-me porém deitar no terreno (posição em que dis- 
ponho de maior firmeza) e pôr a arma á cara, tendo 



4ô 



previamente interrogado um dos meus companheiros sobre 
as minhas intenções, romperam todos em geraes exclama- 
ções: «Cha! Cha! Cha!» 

Não lhes dei tempo para commentarios, disparando a 
carabina, sem esperança alguma, confesso, de que o pro- 
jéctil fosse percutir aquelle pequeno alvo, que a tão grande 
distancia, se me afigurava do tamanho de uma borboleta. 

Para descargo porém da consciência, e visto que a tra- 
jectória por alguma parte havia de passar, mandei um 
òarregador verificar se ao menos acertaria na fraga. 

Qual não foi porém o meu espanto quando o homeni, 
trazendo o papel, o mostra com extraordinário assombro, 
 toda a comitiva, indicando com o dedo o enorme ras- 
gão produzido pelo choque e ricochete da bala de encon- 
tro á fraga, quando a verdade é que o gentio nem mesmo 
podia admittir um tal alcance de tiro. 

Este successo, que para mim constituiu uma verdadeira 
surpreza, fez-me adquirir um enorme prestigio entre o 
gentio, que só por feitiço podia admittir um tal aconteci- 
mento, que approveitoi, protestando desde logo para 
commigo não tentar sequer repetir a habilidade, de que 
certamente me resultaria a perda das esporas d' ouro, tão 
brilhantemente conquistadas n'aquelle momento. 

O successo foi tanto maior, quanto é certo nenhilm sequer 
dos meus companheiros se me ter approximado, incluindo 
meu irmão que, tendo no dia anterior atravessado uma 
viuvinha (passarinho de grande cauda) com uma bala, con- 
sumiu cerca de 20 cartuchos sem resultado favorável, o 
que seriamente o arreliou. 

A nossa refeição em Cahuita foi preparada n'uma pe- 
quena cosinha de campanha (modelo do regulamento de 
campanha do exercito) que risquei no solo, a titulo de 
curiosidade, e mandei construir, sob minha direcção, 



4i; 



causando egualmente extranheza ao gentio o seu bom func- 
cionamento. 

Novamente a caminho, foi todavia interrompida a nossa 
viagem, n^este dia, por uma formidável trovoada, que nos 
surprehendeu das alturas do rio Balombo. A transposição 
d'este rio effectuou-se, felizmente, com relativa facilidade^ 
por se nos deparar uma ponte cuja construcção se deve a 
um preto cabinda, João Gomes Sambo, ex-corneteiro de 
caçadores, ao tempo regedor do sitio e actualmente alferes 
de 2.* linha por proposta do capitão de artilheria Massano 
de Amorim, como recompensa dos serviços que, segundo 
este oíHcial diz, o cabinda prestou á columna do Norte,, 
na occasião da sua passagem para o Bailundo. 

A ponte, que ao tempo apenas dava passagem a peSes, 
é explorada pelo cabinda, que na margem direita construiu 
umas pequenas casas em que tem estabelecida a sua resi- 
dência, achando-se assim prompto para a todo o momento 
cobrar o mutar (5 bolas de borracha) que tem que pagar- 
Ihe todo o individuo que queira utilisar-se da sua obra 
d'arte, que no fim de contas presta um relevante serviço. 

Ao mesmo tempo o cabinda aproveita a sua permanên- 
cia n^aquelle ponto, para realisar alguma permuta com o 
gentio, que fatalmente por ali tem de seguir. 

A passagem de solipedes tornava-se ainda assim um tanto 
perigosa, por não se ajustarem n'alguns pontos os paus ho- 
risontaes que formam o taboleiro, tendo de fazer-se pas- 
sar a nado o meu cavallo, assim como as muares dos meus 
companheiros. 

O cabinda não cobra este imposto aos funccionarios do 
Estado, nem tampouco aos seus carregadores, e, como foi 
militar, tem ainda um certo respeito peles seus superiores, 
obsequiando immenso os officiaes do exercito que lhe passem 
pela porta e acceitem a hospedagem que ordinariamente 



ali lhes é offerecida, n'Dma insistência a que impossível se 
toma resistir. 

A trovoada, que se prolongou pela iarde fora, levou-iro 
s pernoitar com os meus companheiros em casa do Ca- 
binda, visto que o adeantado da hora nos não permitlía 
prosegTlir. 

Este contratempo, que deveras a todos arreliou, trouze- 
nos o alrazo de um dia na nossa já bem demorada via- 
gem. 



Cahita. — A libnta do Qnipipa. — O sr. Theodóm — Os niiO!<cn- 
tos de JoSo ISraudSo. — As mulheres do (Juipipa. — O Sitjue. 

— Um diii perdido.— Admirável ponto de vista. — L'ina cacada. 

— As primeiras febres.— A nassagem do Quúbe. 

No, dia seguinte seguimos para Caháta, atrav^i da , 
niesnia monotonia de vegetação, horisonte e accidentado 
do terreno, sontindo-nos já horrorosamente fatigados de 
corpo e de espirito. 

A viag'>m dVsle dia (H." desde a nossa partida de Ca- 
tuDíhelIa) não olistaiito durar as nu smas seis horas do 
costume, realisoii-sc com um esfurço relativamente me- 
nor, parecendo-nos mais curtos os 3(1 kilometros seguros, 
que, como nos demais dias, havíamos percorrido, devido 
tah'ez ao interessante cavaco do nosso companheiro Pinto 
Bsroza, que, durante a via^m, nos contou uma série de 



50 



curiosas historias, relativas i vida sanguinária do celeber- 
rimo salteador João Brandão, como é sabido, morto em 
Africa, para onde havia sido degredado, devendo em 
Caháta, onde passado pouco tempo nos encontraríamos, 
ter occasião de ver & casa onde encontrou, n*um terrível 
veneno que segimdo se diz lhe foi ministrado com os alimen- 
tos, o digno termo dos seus dias criminosos. 

A casa pertence hoje ao mulato, quasi preto, de nome 
Theodóro Coimbra, um dos actuaes representantes do ex- 
tiiicto Coimbra de Quipipa, que n'outros tempos foi capitão- 
mor do Bihé. 

O pae doeste Theodoro, que também já morreu, não se 
livrou da fama, aliás pouco criminosa, de ter sido o auctor 
do assassinato de João Brandão, satisfazendo assim á in- 
cumbência que disso lhe fora feita por um individuo a 
quem aquelle jurara exterminar, e houvera já feito repe- 
tidas esperas, 

João Brandão achava-se degredado na cidade de Ben- 
giiella, possuindo de sociedade com um outro individuo, 
uma importante fazenda de canna nas iumuediações da ci- 
dade, obedecendo a sua fuga para o matto a uma vinga- 
tiva perseguição, movida, ao que consta, por altos perso- 
nagens, como velho e inadiável ajuste de contas, que final- 
mente tiveram a sua liquidação n'uma importante libata 
do pittorêsco logar de Caháta. 

Esta libata, de que faz parte a casa em que fallei, des- 
cjbre-se muito antes da sua proximidade, denunciando-se a 
distancia, como um enorme e verdejante bouquet formado 
pelos sycomoros (insendeiras) da libata, apertados a custo 
pela densa palliçada com que n'esta espécie de aldeias es- 
tabelecem a sua vedação, isolando-se completamente do ex- 
terior, como defeza para os seus gados contra ataques da 
onça e do leão. 



A líbata acha-se situada quasi ao fim da anhara, sobre 
uma ligeira elevação, formada por uma rajiida e iinica 
ondulação do terreno, sendo banhada por um riacbo do 
pequena itr porta n<-Ía, cujas aguas serpenteiam praleadas 
ao longo da planície, deslisando langorosas sobre um leilo 



marginado de verdejante relva, em que pastam enormes 
rebanhos de pacificas ovelhas e muitos bois. 

Kis-nos pois transpondo o rio e em presença da libata, 
espécie de reducto de difficil accesso, tendo apenas aberta 
uma das suas duas portas, por onde penetrou um dos meus 
companheiros, pedindo auctorisação para a nossa entrada, 
devendo, segundo o velho costume dos negociantes euro- 
peus e especialmente das auctoridades, pernoitar-se n'aquelle 
recÍDto, que, por ser-me iateirameate desconhecido, me 
inspirava certa curiosidade. 



WS9iBHBBS3C=S7- 



52 



O nosso companheiro níio so foz osporar com a preten- 
dida auctorisação, e, depois de prezos os nossos animaes 
nos paus do cercado, iniciámos a entrada, a ura do 
fundo, atravez da esguia porta que se nos deparava, ca- 
minhando durante alguns momentos por um estreito ca- 
minho, limitado lateralmente por novas e densas paliçadas, 
atravez das ([uaes espreitaxam muitas cabeças de mulher e 
criança, que de olhos esgaseados e boquiabertos, assis- 
tiam admirados ao desfilar dos importunos visitantes. 

Ao fim de pouco tempo achámo-nos no meio de um la- 
byrintho de ruas, originadas p(»r uma infinidade de veda- 
ções de grupos de casas, (|ue tinham uma vida independente, 
obedecendo todavia a uma casa cliefe, que finalmente se 
nos deparou, ao fundo de um pequeno largo, tosca e 
quasi primitiva, de microscópicas janellas ou postigos, e 
com uma só porta esguia, caiada de branco, e coberta 
com uma espessa e velhissima camada de capim. 

Ao lado esquerdo tem a casa um velho mas soberbo pomar 
de larangeiras, que vergavam sob o peso de milhares de pre- 
ciosos fructos, como jamais havia visto nos nossos pomares. 

No meio d'este largo lev^anta-sc um caramanchão coberto 
por uma formosa trepadeira, muito antiga e muito mal pre- 
sada, indicando porém todo aquelle conjuncto que o pri- 
mitivo possuidor não deveria ter sido pessoa de todo des- 
tituida de gosto. 

Ao fim de alguns minutos qu(^ me permittiram observar 
o exterior da casa e tudo o que a rodeava, appareceu fi- 
nalmente, meio de esguelha, no limiar da porta, o seu pro- 
prietário, trajando á europeia um elegante fato de linho 
branco, camisa de Oxford, com a respectiva gravata de 
chita, chapéu branco de aba larga, carregado afadistada- 
mente sobre a orelha esquerda e um tanto para traz, e 
calçando o belio sapato de peilica branca com atacadores. 



cujas extremidades terminavam em abundantes borlas 
amarellas. 

A impressão que me fez aqnella prosaica appariçSo foi 
deveras exlranha para mim, que não contava encontrar, no 



interior de uma libata de pretos, um janota tSo distincta- 
mente trajado; verdade seja, por<^m, segundo me foi atian- 
çado, que a demora do Quipipa em apparecer-nos podia 
attribuir-se ao tempo indispensável para o homemsinho fazer 
a substituição dos pannos, que habituabnente usa, pelas 
calças, dentro das quaes se q3o sente bem, affirmação que 
de resto corroborava o estado de conservação da su« 
toilette. 



54 



O sr. Theodóro, homem de cerca de 50 annos, nio era 
de todo deselegante, tinha porém um semblante de verda- 
deira imbecilidade, denunciado pelo seu olhar estupida- 
mente esgaseado e bocca permanentemente aberta. A barba 
não lhe abundava, o que, de resto, é apenas caracteristico 
da raça negra, a que pertenciam 75 "/o do seu ser, dis- 
pondo apenas de um pequeno buço em que appareciam 
alguns cabellos brancos. 

Vendo que o esperávamos, dirigiu-se-nos o homemsinho, 
sendo-lhe eu n'esta occasiâo apresentado, depois do que 
nos convidou para o interior da casa, onde terminou os 
seus dias o temivel salteador da Beira Alta. 

Duas salas e três quartos completavam o numero de 
cubículos em que se achava dividida aquella casa. Uma 
das salas, ao mesmo tempo de visitas e de jantar, tinha 
ao centro uma enorme meza, e, dispostas ao longo das pare- 
des, meia dúzia de cadeiras de construcção gentílica, tendo 
o assento de coiro de boi. 

D'uma das paredes pendia um quadro circular, bastante 
antigo, sem vidro, no qual estavam seguros com uma linha 
de retroz encarnado, dois retratos d'homem, um dos quaes 
era do pae do sr. Theodóro, e o outro, que suppuz ser de 
João Brandão, era de um individuo que, segundo me dis- 
seram, o acompanhou muito em vida e lhe assistiu aos 
últimos momentos. Era este o alojamento mais decente ou 
menos repugnante da casa. 

Um dos quartos, escassamente illuminado pela luz coada, 

atravéz da densa ramagem d'uma gigantesca goiabeira que 

se estendia em frente de uma janella sem portas, foi nos 

indicado por Quipipa como o miserável aposento de que, 

durante alguns mezes, se aproveitou João Brandão, desde 

a sua fuga para o matto, até á triste finalisação da sua 

ruel existência, 
o 



55 



A simples inspecção d'este quarto fazia-nos calafrios} 
independente da desagradável impressão de que nos achá- 
vamos possuídos, pela fúnebre e trágica ideia que a elle se 
associava. As paredes, que ha muitos annos deveriam ter 
sido caiadas de branco, tinham, junto do chão, uma larga 
faxa de musgo, crusando-se, por toda a sua superfície e 
em direcções variadíssimas, um emaranhado de riscos bri- 
lhantes e viscosos, assignalados pela passagem de uma 
infinidade de caracóes nas suas marchas e contra-marchas 
durante alguns annos de liberdade. 

Largas fendas se abriam, obliquamente, ao longo d'estas 
húmidas paredes, fendas que alguns repellentes e enormes 
arachnideos, de grande fóUe, pretenderam disfarçar, urdindo- 
Ihes pela frente as suas amplas teias, em que se achavam 
depositadas varias pontas de cigarro, phosphoros queimados 
e muito mais lixo. 

Tinha este aposento uma porta que deitava para um 
recanto, nas trazeiras da casa, onde crescia uma grande 
profusão de plantas hervaceas, entre as quacs predominava 
uma espécie de urtiga roxa de grandes proporções, sol- 
tando esta porta ao abrir-se, em torno dos seus gonzos 
ferrugentos, um som por tal forma estridente e desafinado, 
que contendia poderosamente com os nervos. 

Era este quarto repellente que o sr. Theodóro nos desti- 
nava e desde logo regeitei, declarando aos meus com- 
panheiros que preferia dormir no acampamento, a acceitar 
uma tal pousada, que certamente me não permittiria conciliar 
o somno em toda a noite, immaginando ouvir o estertor do 
condemnado, contorcendo-se horrorosamente, sob a influen- 
cia das dores intestinaes produzidas pelo veneno, e talvez 
do remorso das suas numerosas victimas. 

Estas, deveriam ter-lhe apparecido n'aquelle momento 
supremo ) como um enorme desfilar em que figurassem os 



56 



espectros de indivíduos de todas as classes sociaes, e de 
todas as edades, desde o rico ao pobre e desde o velho 
até ao desditoso innocente, que a sua malvada condição 
levou impiedosamente a assassinar, n*uma verdadeira e 
triste aberração do instincto humano. 

De harmonia pois com os meus companheiros de viagem, 
resolvi dormirmos na sala de jantar, para o que tivemos 
de armar as nossas camas, visto que apenas, no quarto de 
Quipipa, havia um espaçoso leito de ferro em que elle dor- 
mia com as suas duas favoritas, uma de cada lado ; diga-se 
porém á puridade, que, qualquer cama que porventura nos 
fosse oíFerecida n'aquella casa, não seria muito de appete- 
cer, sendo preferível estender no chão um cobertor, caso 
não dispozessemos das nossas camas de viagem. 

Theodóro Quipipa vive miseravelmente, alimentando-se 
como o gentio, de infunde (farinha de milho ou mandioca) 
e feijão, pelo que lhe não são preparadas refeições á euro- 
peia, posto que deveras as aprecie, como tive occasião 
de observar, convidando-o para o jantar que mandei cosi- 
nhar no largo fronteiro á sua casa, e que o nosso homem 
acceitou com enorme satisfação. 

Principiado este, sentou-se o sr. Theodóro na extremi- 
dade da mesa, devorando com um appetite verdadeiramente 
feroz, tudo quanto lhe era servido, como se se achasse na 
convalescença de uma grande enfermidade, emborcando 
canecas successivas de vinho, que propositadamente lhe 
mandava servir, com o fim de arrancar o homem do mu- 
tismo quasi absoluto em que durante o dia se conservara, 
respondendo tão somente ao que se lhe perguntava. 

Não tardou, porém, muito que um innocente sorriso lhe 
afflorasse aos lábios, rompendo em desconchavos e risadas 
alvares, acompanhadas de fortes palmadas sobre a mesa, 
chamando e mostrando as suas duas mulheres e fallando 



^i 



^-^mammmi^BsmmBmgmmmmmmt 



nos capitSes-miíres seus antepassados. Era emfjm outro 
homem. 

Terminado o jantar, tomon caf^. qne n3o conseguiu atte- 
niiar-lhe a alegria que lhe reinava n'alma, e que uma bôa 
dose de gramophone excitou extraordinariamente, fazendo-o 
dançar na presença de quasi ioda a sna próJe, «jue, nesta 
altura, havia já eva- 
dido a casa, em que 
espalhou um insup- 
portavel perfume de 

Perguntando -lhe 
quantas mulheres 
possuía, respondeu- 
nos que apenas tiulia 
54 (!), achando-se, 
porám, todas casa- 
das,. á razão de oito 
por cada homem de 
que dispunha, mo- 
tivo pelo qual, com 
grande pezar seu, 
nos não podia brin- 
dar, offerecendo 

utna, provisoriamente, a cada um dos seus hospedes, como 
aliás era de velho u.so em sua casa, e para cujo fim con- 
servava sempre solteiras meia dúzia das maia interes- 
santes. 

Como um dos meus companheiros lhe fizesse sentir a 
gravidade do erro que commetteu, alterando os antigos 
costumes de sua casa, respondeu-lhe o Quipipa que pre- 
cisava augmentar a sua família, que nos últimos tempos 
tinha sido consideravelmente dizimada pela epidemia da 



58 



varíola, motivo pelo que deliberou casar todas as mulhe- 
res para fazerem creaçio (*). 

As duas mulheres do Quipipa eram, no seu género, de- 
veras interessantes, sobretudo a mais nova, que, dotada 
de uma elegância verdadeiramente esculptural, possuía 
um corpo, cujas formas, devido á simplicidade do vestuá- 
rio, podiam quasi em absoluto ser observadas, admiran- 
do-se a regularidade dos seus contornos, e, como que 
adivinhando- se a elasticidade d'aquella sadia carnação, co- 
berta por uma epiderme que se suppunha macia como o 
veludo, e cujo brilho, alliado ao tom escuro que lhe é pró- 
prio, nos apresentavam a rapariga como uma verdadeira 
estatua de bronze. As feições não eram próprias da sua 
raça, podendo ser invejadas por muitas europeias vapo- 
rozas que por ahi nos illudem com os mil preparados que 
a chimica lhes proporciona. 

Como os meus companheiros fizessem ver ao nosso ho- 
mem o bom gosto que teve na escolha de tão bellos exem- 
plares, elle então, desconfiado como todos os pretos, e re- 
ceiando, alias infundadamente, um rapto durante a noite, 
não obstante os esforços que empreguei para de tal o dis- 
suadir, declarou que não dormiria em casa, sahindo com 
as duas mulheres, para somente nos apparecer no dia im- 
mediato todo envergonhado da triste figura que havia 
feito de véspera. 

O 9.** dia de viagem realisou-se em direcção ao Soque, 
não sem grandes diíiiculdades, originadas pelos obstáculos 



(1) Não ha duvida que a maior alegria do gentio consiste em 
vivor no meio de immensa familia que por todoR os processos pro- 
cura augmentar. Como familia síIo considerados todos os súbditos 
de qualquer soba ou seMo, posto mesmo que entre ellcs nSo exista 
o mínimo pai^entescQ. 



69 



de toda a espécie que a oada momento se nos depararam, 
depois qne deixámos a anhára. O interior de Benguella, 
sobretudo na parte noroeste do districto, é geralmente 
montanhoso, transformando-se, na epocha das chuvas, a 
maior parte dos seus talwegs em outros tantos rios cau- 
dalosissimos, cujas aguas, rolando em grandes massas ao 
longo de leitos pedregosos e alcantilados, se despenham 
com velocidades verdadeiramente prodigiosas, represen^ 
tando a transposição doestes frequentes obstáculos uma 
interminável successão de perigos e trabalhos, por ter de 
fazer-se sobre pontes, muitas vezes tSo simples como sim 
pies é um tronco d'arvore abatido e disposto transversal- 
mente de uma para outra margem, o que obriga o viajante a 
realisar verdadeiros prodigios de equilibrio, se não quer 
ser levado pelo impetuoso turbilhão da corrente. 

Por esta forma me vi na dura necessidade de exhibir 
qualidades de acrobata, que até então ignorava possuir, e 
com as quaes certamente me teria envaidecido, se não visse 
seguidamente os meus trabalhos executados, com extraor- 
dinária perícia e naturalidade, pelos pretos da comitiva, sob 
o peso monstruoso das suas cargas. 

Chegados ao Soque realisámos o nosso acampamento 
próximo de um europeu que ali se achava estabelecido e 
nos recebeu com verdadeiro agrado, por não ter ha muitos 
dias tratado com gente branca. 

A casa, espécie de cubata, em que este negociante vivia 
e realisava as suas permutas com as comitivas de bihenos 
e bailundos que por ali passavam, achava-se situada no alto 
de uma elevação de difficil acesso, cuja altitude por falta 
de instrumentos próprios não pude apreciar, mas que não 
deveria ser inferior a 1:000 metros, devendo existir entre 
este ponto e a arihára de C^áta uma differença de nivel 
de 300 metros. 



Do alto d'eBta elevaçXo descobría-ae entSo, lá em baixo, 
toda essa immensa planície que percorremos com uma via- 
gem de três étapes, ii'uma extensão total de sessenta kilo- 
metros, a partir de Olombinga, caprichosa montanha que já 
tive Qccasião de descrê- __^_______^__-, 

ver, e que d'ali apenas — -r^» 

se divisava ao longe "L, ' - ! 

como duas pontas ne- 
gras nitidamente desc 
nhadas no azul do firma- 
mento. Dispersas, quasi 
perdidas pela vastidão 
da planicie, distinguiam- 
sc algumas libatas tuja 
situação nos era denun- 
ciada pelos sy cômoros 
dus cercados, que abun- 
dam nos dominius do 
Quipipa e de Saco- 
Major. 

O Cobal, llalombo e 
outros riachos, dcsli- 
sando por entre canna- 
viaes nas suas curvas 

caprichosas ao longo do valle, emittiam rcflext 
como serpentes de prata, raslejaudu vagarosas 
immenso tapete de esmeralda, 

A passagem dos muitos pântanos e riachos durante esta 
9.* étape, atrazun um poueu a uossa viagem, origiiiando- 
me sérios embaraços e finalmente a dwença que me acompa- 
nhon até á forlalo^a do Bailnndo. 

Uma grande parte dos carregadores, extenuados pelo 
cangasse produzido pela passagem de alguns rios em que 



i de luz, 

jobre um 



61 



a agua lhes dava pela cintura, pernoitou nos diversos 
chilombos que a cada momento se encontram, sendo-nos 
impossível iniciar de madrugada, como de costume, a nossa 
viagem, pelo que tivemos de permanecer no Soque até ao 
dia seguinte. N^esta impossibilidade, pois, de continuarmos 
a marcha, era forçoso procurar-se uma distracção que pre- 
enchesse aquellas horas que, mau grado nosso, ali tería- 
mos de passar. 

Eram 6 horas da manhã, já o sol, esse lampadário 
universal, como que espreitando por entre as recortadas 
montanhas do liailundo, ia doirando com os seus raios a 
vigorosa paliçada que circumda a magestosa e sobran- 
ceira m'laJla do Soque. E esta a hora precisa em que os 
carregadores, depois de apertarem o ultimo landohe (cor- 
das de casca de arvore) com que seguram as suas cargas, 
começam invariavelmente a tarefa diária que se impo- 
zeram. 

D' um valle fronteiro, coberto de verdejante capim fino 
e sedoso como se estivéramos em presença de um campo 
de linho, chegava-nos, juntamente com o murmúrio de um 
pequeno regato, a chilreada produzida pelo canto de 
innumeras perdizes, cuja proximidade apparente nos des- 
pertou a lembrança da caça, que ainda não tínhamos 
podido usar, no nosso empenho de adiantar viagem e não 
perder um só dia. 

As armas de que dispúnhamos, Manllicher, Martiny 
Henry e outras aperfeiçoadas, de baila, não se prestavam 
para tal género de caça; o sr. Guimarães, porém, nego- 
ciante do sitio, que era homem previdente, cedeu-nos da 
melhor vontade uma caçadeira de espoleta, de dois canos, 
que, á falta de melhor, tivemos que utilisar, e, em tão 
boa hora que, logo aos primeiros tiros, um dos meus 
companheiros (meu irmão António) deitou a terra duas 



k 



( 



62 



magnificas perdizes que, tão simplesmente, constituiram a 
nossa caçada d^aquelle dia. 

A esperança, porém, de melhor resultado, domorou-nos 
ainda por algumas horas atravez de montes e valles, cal- 
cando o capim encharcado pelo cacimbo (orvalho da noite). 

O regresso ao chihmbo representou para mim já um ver- 
dadeiro sacrifício. A dez dias de viagem do litoral e a seis 
ainda da fortaleza do Bailundo, em pleno matto, experi- 
mentava os primeiros symptomas de uma febre, que era 
'ambem a primeira de que até então soflfrêra em Africa. 

Frios violentos, dores nas arliculaçSes, espinha e cabeça, 
impressões mais que sufiicientcs para me produzirem um 
liorroroso mal estar, eram, pois, os terríveis symptomas 
que, n'uma evidencia verdadeiramente aterradora, consti- 
tuíam a guarda avançada da enfermidade que, poderosa- 
mente aggravada pela escassez de commodidades tanto me 
havia de fazer soffrer. 

Uma vez dentro do meu chingue, ao centro da qual ar- 
dia uma fogueira, devidamente auxiliado por um dos meus 
solicitos companheiros fiz então a substituição da roupa e 
botas, que escorriam agua, tendo a precaução, ahás tardia, 
de friccionar as pernas e pés com álcool da minha pequena 
pharmacia. 

Era effectivamente tarde para a applicação de qualquer 
medicamento preventivo, restando só o tratamento, por 
experiência própria, tão conhecido pela generalidade dos 
africanistas, que por dura necessidade, se tornam médicos 
de si mesmos. 

De dentro da minha esguia cama de viagem, tiritando 
íjomo se estivera sob a influencia de um inverno rigoroso, 
assistia á primeira refeição do dia, a que os meus compa- 
nheiros estavam já fazendo as honras costumadas, e em 
que tantas vezes os acompanhara. 



^ 



64 



Passados momentos, com o calor da fogueira que ardia 
junto da minha cama e com muita roupa em que me 
achava envolvido, augmentou gradualmente a minha tem- 
peratura que o termómetro accusava de 41". Não obstante 
ter ouvido dizer serem taes temperaturas vulgarissimas 
nas febres d'Afriea, a leitura do thermometro deixou-me 
verdadeiramente aterrado, considerando-me a braços com 
uma d'essas torrivois biliosas quasi sempre fataes e que, 
por via de regra, começam com febre intensa. 

Uma serie de pensamentos sinistros assaltaram entSc 
tumultuosamente o meu espirito, pensamentos que, feliz- 
mente, foram seguidamente afogados n'um somno tiio 
pesado e duradouro que bem poderia chamar-se-lhe da 
morte. 

'No dia immediato deram-mc um purgante de sulphato 
de soda que nao produziu o effoito desejado, no seguinte 
um vomitório, e, emfim, tudo quanto quizeram, revellando 
os meus excellontes companheiros o mais disvellado empe- 
nho em debellar-mc os sotiri mentos, com (» que apenas 
conseguiram attenuar um pnueo a inten.sidade da febre, 
conservando-me ò dias alimcnitado por .simples canjas de 
gallinha, que, com repugnância, tomava n< s acampamentos. 

Durante as marchas que diariamente se realizaram, como 
se todos gosassemos magniíica saudc, d< rmia st^mpre pro- 
fundamente, para sóment»' aeurdar nas passagens ditfi- 
ceis, em que os maeliileir^is se não podiam aguentar com 
o meu peso; e asíjim deoíjrnram para mim estes oim*»» 
dias, quasi como se nao tivera existido, a ponto do, ii» 
meu regresso, desconhecer por completo o caminho per- 
corrido durante esse peri(Klo da minha doença. 

O ultimo dia de viagem ao forte do liaihnulo realisei-í». 
comtudo, um pouco mais animado, se bem que ainda com 
alguma febre; a somnolencia porérn dos dias anteriores 



■MB 



1 



65 



havia-me desapparecido, o que para mim foi de um grande 
alcance para a travessia do rio Quebe, em que a ausência 
de ponte ou vau, me forçou ao ensaio de um novo género 
de sport que, por excessivamente arriscado, reclamava 
uma certa attençâo e aprumo de que, dias antes, impossi- 
vel me seria dispor (*). 

Foi em dongos (barquinhos de casca de arvore) muito 
leves, e, por consequência, de equilibrio bastante proble- 
mático, que me vi na necessidade de transpor o rio, para 
não desistir da restante viagem que se achava já a 6 dias 
do seu terminus. 

A passagem, tanto do gentio como de europeus, effectua-se 
pois n'estes barcos cujo comprimento, ordinariamente, não 
excede 1"',50, por uma largura que é apenas a suíiiciente 
4)ara poder conter juntamente com a respectiva carga um 
único passageiro, sentado ou de joelhos, posição preferida 
pelo gentio que, para não presencear o perigo, se prostra 
de joelhos dentro do débil esquife, em cujo fundo apoia 
nervosamente a cabeça para somente a levantar ao sentir- 
se na margem opposta. 

Eram três os dongos que davam a passagem do rio* 
Dentro de cada um d^elles um preto empunhando uma 
vara comprida que lhe servia de remo, fazia desUocar o 
barco com admirável perícia, remando alternadamente com 
as duas extremidades da vara, e mantendo-se sempre de 
pé n'um equilíbrio verdadeiramente prodigioso. 



(1) O rio Quebe tem uma largura approximadamente de 20 me- 
tros, attingindo a sua corrento velocidades consideráveis, espe- 
H^ialmente na epocba das chuvas em que nos achávamos. 

Becebendo diversos affluentes, o Quebe, depois de atravessar 
uma grande parte do districto de Loanda, vae desaguar no mar 
«em Bengnella Velha com o nome de Cvtvo, 

5 



Assim passou de uma margem para a outra uma comi- 
tiva composta de cerca de sessenta pessoas, em vinte via- 
gens de ida e volta, para cada um dos três vebículos de 
que dispúnhamos, no que se consumiu nada menos de 3 
horas e meia. 

Foi mais um contratempo sem outras consequências 
que não fossem as de um pequeno atrazo n'este dia de 

viagem, e na hora de jantardes 

meus companheiros que, cheios 
de saúde, tiveram de suppor- 
tar o costumado appetite, até 
perto das oito horas da noite, 
occasião em que deveriamos al- 
cançar o forte do Baiiundo, 
que do Quebe distava ainda 
cerca de vinte kilometros ap- 
pr oximadamen te . 

Á doença tornava-me Já in- 
differente perante quaesquer 
contrariedades, que nada repre- 
sentavam perante os trabalhos 
e inclemências dos últimos cinco 
dias de viagem. 



mmm. 



A fcrtflii ia do BRilniido— Airabílidado do capitão-mitr — O meu 
reslabelccimento— Fuga dos carregadores b ai Inndoa — Noto» 
cartegadfrep— A caminho do Bihé— Ideia gorai das floresta» 
— Ab habilflçBea dos termilas — Acampanieiito de Lomaiido — 
Eio Catáto— Em terraa do Bibe — CacúIo-CnfiBO (aobba do 
Bibel)— Os arimoã do sobba — A libais — Um batnqae — A 



Restabelecida a ordem na margem opposta, entrei na 
typoia, coDlinuando a minha viagem para a fortaleza do 
Bjúlnndo, onde a hospedagem do respectivo commandanle 
sem duvida me garantiria commodidades, relativas, que me 
proporcionassem o restabelecimento da doença de que vi- 
nha soflírendo. 



68 



Ao fim de cinco horas de viagem comecei de avistar o 
morro alcantilado da poderosa e antiga m^balla, orlada por 
seculares sycomoros, característico das mais importantes 
libatas do chimbundu. 

Em baixo, a uma distancia approximadamente de 500 
metros, assentavam as pequenas edificaç6es da fortaleza, 
que um profundo fosso e respectivo parapeito defendiam, 
distinguindo-se nos dois tambores de flanqueamento, dqas 
metralhadoras que, juntamente com mais duas peças de 
montanha, constituiam a artilhería do forte. 

£' péssima a situação doeste forte, perfeitamente domi- 
nado pela inballa visinha; a ausência porém de artilhería 
nos ataques do gentio, em nada prejudica as suas condi- 
çSes de segurança. Como justificação da sua má situação 
apresenta-se, o que de ordinarío succede com outros for- 
tes, a circumstancia do aproveitamento de edificaçSes ji 
existentes e que foram adquirídas pelo governo. 

A apparencia de forte tem-lhe sido dada successivamente 
com a abertura do fosso e estabelecimento do respectivo 
parapeito, trabalhos que, principalmente, se devem á incan- 
sável actividade do tenente do quadro de Angola, Alfredo 
da Cunha Tamegão, que ali serviu como subalterno du- 
rante alguns annos. 

Minutos depois de avistada a fortaleza, precedendo a 
necessaría auctorísação, transpúnhamos a ponte que dava 
accesso á fortaleza, achando-nos seguidamente junto da 
residência do capitâo-mór, que me recebeu com a amabili- 
dade que o caracterísa, ofFerecendo-me a hospedagem com 
que contava. 

Egual ofFerecimento fez, como aliaz é uso corrente 
no sertão, aos meus companheiros de viagem, com os 
quaes dei entrada na residência da fortaleza. Um novo 
accesso de febre não me permittiu fazer as honras a uma 



69 



explendida refeição que o meu camarada mandou servir 
immediatamente, tendo de recolher-me ao leito que, a meu 
pedido, me foi indicado. 

A'parte o mal, passei uma noite de relativo conforto, 
pois era a primeira, depois de tantas, em que me era dado 
dormir dentro de uma casa boa ou má. 

Parecia-me um sonho toda aquella viagem, sonho que o 
delírio produzido pela febre aggravava poderosamente. 

Logo de manhã cedo, informado o capitão-mór dos trar 
balhos que passei durante os últimos dias da minha viagem, 
preparou-me um enérgico purgante, que, com o demais 
tratamento adequado á minha doença, acabou por debe- 
lar-me sensivelmente a febre, permittindo-me, no dia imme- 
diato, associar-me ao convivio e satisfação que sempre 
origina o encontro de vários europeus em pleno sertão. 
Sentia-me já outro. 

Os carregadores que me haviam conduzido, eram na sua 
maior parte bailundos, e, posto que houvessem recebido 
pagamento até ao Bihé, uma vez regressados ás suas ter- 
ras, retiraram para os quimbos (libatas), deixando na for- 
taleza as cargas e typoia. 

Esta contrariedade que já em Benguella havia sido 
prevista por diversas pessoas, atrazou por alguns dias a 
minha viagem, por ter de esperar no Bailundo novos 
carregadores que o capitão-mór inunediatamente mandou 
levantar para me transportarem ao Bihé. A demora de 
quatro dias que, forçadamente, tive n^este forte, per- 
mittiu-me, comtudo, restabelecer as forças perdidas pela 
doença, e continuar depois, relativamente bem, o resto 
da minha marcha em companhia de meu irmão, visto, 
dois dias antes, ter seguido viagem o resto dos meus 
companheiros, que estavam fazendo falta nas suas casas 
do Bihé. 



70 



Em 23 de abril chegaram os novos carregadores que, 
folgados, voavam com a minha typoia, depois da des- 
pedida e penhorados agradecimentos que apresentei ao 
capitAo-mór, cuja obsequiosa e amável hospitalidade aca- 
bou por confundir-me. 

Assim continuámos a nossa viagem, tfto agradavelmente 
interrompida por alguns dias, encontrando-nos, passados 
momentos, novamente embrenhados n'essas intermináveis 
florestas de um verde-escuro, cujo silencio quasi absoluto 
lhes imprime uma indefinida tristeza, que, ordinariamente, 
acaba por se nos communicar. 

O golpe de vista dirigido do alto das elevações, sobre 
«sse como que tapete verde-nêgro formado pelas copas cer- 
radas do arvoredo, amoldando-se graciosamente, n^uma 
extensão de muitas milhas, ao accidentado do terreno, 
dá-nos, a distancia, a grata impressão d'esses deliciosos pi- 
nhaes nossos patrícios, com que a Providencia tão genero- 
samente guarneceu este formoso jardim da Europa em que 
nascemos. 

O reino vegetal acha-se exhuberante mente representado, 
encontrando-se muitos exemplares, que, pelos seus cara* 
cteres perfeitamente definidos, podem á simples inspecção 
ser comprehendidos nas diversas classes e famílias em que 
a botânica os dividiu e agrupou. 

As arvores, em geral, não attingem grandes proporçSes, 
predominando, comtudo, nas florestas do Bailundo, uma 
grande variedade de acácias e mimosas, (dicotyledoneas, 
leguminosas) algumas de dimensões gigantescas e larga- 
mente copadas, de que pendem compridos fructos de coty- 
ledónes espessos e lenhosos, e grãos achatados. 

O copal, variedade mimosa que abunda no sertão do 
Congo e de que é extrahida a gomma copal tão apre- 
ciada nos mercados, creio bem não existir nas florestas de 



i"«i 



SSo as, mais vulgares, formadas por seis laminas bran- 
cas, ligadas eatre si e dispostas em dais verticilios, com o 
carce interiormente colorido de um vivo carmezim qae, 
a partir <lo come, vae gradualmente esbatendo-se para a 
base. Juntamente com as arvores e as flores, rebentam do 
solo as habitaçSes dos (ermitas ou salalú, como estatuas 
gigantescas sobre as 
quaes a mSo do es- 
cultor apenas hon- 
vcsse descarregado 
os primeiros golpes 
do seu cinzel. 

São muito curio- 
sas as formas apre- 
sentadas por alguns 
dVstes morros a que 
por vozes cheguei 
a attrihuír altitudes 
variadíssimas, algu- 
mas de verdadeiro 
enfurecimento, co- 
mo se todosestes ex- 
traordinários phan- 
tasmas estivessem 
murmurando diálo- 
gos de protesto con- 
tra a irritante im- 
mijbilidadc a que indefinidamente se vêem condemnados. 
A visinbança dos rios de maior importância é denun- 
ciada pelo canto do pelicano {•) e outras aves da familla dos- 



{') f> pelicano encontra- 8 o mais nas prosimida<lcs da costa, abun- 
dando nas iTioiitaiihas da Lucinfa 



pdroipâd';», verJadeinis roncos, semelhantes aos sons pro- 
duzidos por um sazephone desatinado, repetidos c reforça- 
dos a distancia pelo echo e concavidade dos valles. 

Nas planícies ou anhara* encontrasse, especialmente nos 
togares pantanosos, nma ave da f&milia dos pemaltas, co- 
nhecida entre o gentio pela denominação de panda (Grus 
■ulata). 



Estas aves, cujas pernas e bico ponteapiido, rematando 
nm pescoço desmesuradamente alongado, attingem respe- 
ctivamente 80 e 20 centímetros de comprimento, eneon- 
tram-se ordinariamente aos casaes. Ao pressentirem o me- 
nor raido aprumam rapidamente o corpo, estendendo para 



74 



o alto o seu descommunal pescoço, cujo branco de neve, 
alvejando por entre o capin da planicie, muito antes da 
sua proximidade, lhes denuncia o poiso, que depois abando- 
nam, n'um magestoso e rápido voo, em que não é fácil 
attingil-os a tiro. 

Da familia dos pernaltas a ave mais curiosa que encon- 
trei e de que, aliaz, me não seria fácil conhecer outro nome 
que não fosse o que lhe é dado pelo gentio, é aquella que 
se alimenta das carraças dos animaes, sendo vulgarissimo, 
especialmente na visinhança das libatas, encontrar bandos 
doestas aves empoleiradas sobre as manadas de gado do 
gentio, que, assim, pachorrentamente, se vê deixando catar, 
n^uma dupla vantagem para estas duas espécies d'animaes. 

A estatura d'estes pernaltas é relativamente pequena, e 
a sua plumagem branca de neve e macia como veludo. 
Muitas outras curiosidades se encontram durante tão lon- 
gas viagens, de que sucessivamente irei dando informação 
no decurso doesta narrativa. 

O primeiro acampamento que se nos deparou foi nas 
proximidades da libata de Lumando. 

D'este ponto apenas sé divisava muito ao longe, para oeste, 
perfurando a immensidade do espaço, n'uma altura de 
muitas dezenas de metros, a magestosa rnballa do Bai- 
lundo, caprichosamente empoleirada no cume do aguçado 
morro que lhe serve como que de pedestal, e nos permit- 
tiu apreciar, em linha recta, a distancia que nos separava 
do derradeiro ponto de partida. 

As horas de descanço doeste dia, passei-as, como de 
costume, registando impressões de viagem, trabalho que a 
pertinaz doença me forçou a interromper por alguns dias. 
No dia seguinte, ao fim de duas horas de marcha, deveria 
ter logar a passagem do rio Cutato, limite conmium das 
capitanias-móres do Bailundo e Bihé. 



* 



Cerca das 8 horas da manhS, fen^o a minha tipóia 
attingido a orla de uma extensa floresta que vinhamoa 
atravessando desde a madrugada, deparou-se-me uma ver- 
dejante planície ligeiramente accidentada, que suppuz per- 
núltisse aos machileiros uma longa trotaila ao longo do 
ville; ^decorridos porém alguns minutos, um pântano, « 



fríncipío disfarçado pelo capin, foi tornando succes&ivar 
mente moroso o andamento da caravana que, dentro em 
pOQoo, mergulhava até an joelho nas ngiias do rio, cujas 
margens, por entre um labyrintho do jiine;is e denso can- 
Mvial, se estendiam ao long.» da planicií n"ii:iia extensXo 
de dgumas dezenas de metros. 



A certa altura desta arrulienta travessia, attingín-se fi- 
nalmente a ponte gentílica em que passamos para a mar- 
gem O)iposta, na qnal nos esperavam idênticos trabalhos^ 
primeiro que se entrasse em caminho enxuto. 

Eis-me, pois, em terras do Bihé, cujo ^vemo me es- 
tava confiado. Ainda n'esse mesmo dia pernoitaríamos junto 
da importante libata do Bihel, de que era senhor o po- 
deroso sobba Caeulo- 
r^-^f' -sí Cuêso, tâo conhecido 

f ' ' ■ ■ .. pelos relevantes servi- 

(t ■ ços prestados aos dis- 

j? "■ tinctos officiaes do 

nosso exercito, Faíva 
Couceiro e Teixeira da 
Silva, por occasiSo da 
sua fuga do Bihé para o 
Bailundo, seguidamente 
á horrorosa tragedia do 
sertanejo Silva Porto. 
Cincoenta minutos, 
approximadamente, de- 
pois da travessia do 
Cutato, alcançávamos 
finalmente o esqueleto 
de um grande irhilt.iiibo, acampamento, se este nome po- 
derá dar SC a uma serio de chingues de que um recente 
incêndio apenas havia poupado as toscas hastes de madeira 
que lhes serviam de armaçàc. Grassava n'esta occasiSo por 
quasi tudo o disiricto, com uma intensidade assustadora, a 
epidemia de varií^la, que dc-simava, especialmente, a popu- 
lação indígena, encontrando -se, por vezes, cadáveres de 
abandunadus que fizeram parte de caravanas de gentio em 
que a terrível doença se manifestara. 



I 



ii 



Conhecedores os viajantes europeus do perigo que lhes 
fodia occasionar a pernoita em acampamentos onde hou- 
vessem estacionados varioiosps, incendiavam-lhes o capim, 
<}omo medida preventiva contra futuros contágios, em ver- 
dade, somente perigosos para os indigenas. 

Iniciados os primeiros trabalhos para o improvisiona- 
mento de novo chilomio^ um emissário de Caculo-Cusso 
se approzima de mim, balbuciando um portuguez que me 
não foi dado comprehender e que tomei na conta de cum- 
primento, pelas divertidas eontomelias que na minha frente 
exhibiu. 

Traduzida a allocuçâo pelo meu interprete, vim ao co- 
nhecimento de que o sobba do Bihel, cuja libata distava 
pouco d'aquelle ponto, me mandava convidar para sua casa, 
que não vinha pessoalmente offerecer-me, por se achar em 
trajo impróprio de me apparecer, e pelo que ficava prepa- 
rando uma toilette com que deveria apresentar-me os seus 
cumprimentos. 

A recusa, perante tâo amável offerecimento, por justifi- 
cada que fosse, seria tomada, não só pelo sobba como por 
todos os seus súbditos, na conta de uma represália que, 
alem de profundamente os desgostar, os atemorisaria inmien- 
so, na snpposição de uma eminente guerra — tal o ponto 
a que chega a sua desconfiança e timidez. 

Afim, pois, de evitar futuras complicações, e, satis- 
fazendo mesmo á curiosidade que me estava inspirando 
o interior de uma povoação de bihenos, acceitei o offe- 
recimento do sobba, entrando novamente na typoia^ que,. 
Juntamente com as cargas do rancho, fiz conduzir ao 
alto de uma breve colina em que assentava a populosa 
libata. 

Grande parte do trajecto realisei-o atravez de um ex- 
tenso arimo (lavra de milho, feijão, cará e mandioca) 



de que se abastecia squella povoaçSo, a qne ao mesm» 
tempo dava o pittoresco aspecto de nma formidável quinta 
da nossa província do Minho. (*) 

Attingido o cume <^a elevaçSo, arh»mo-nos cjn frent". 



d'uma grossa paliiçada, em que, ao fundo e um pequeno- 
largo, sa abria a porta principal de entra!.", na libati. 



(I) O gentio aproveita os 
maior desoavolvimento para o an 

Para isso lança, na e|>oclia < 
bnido n n'djalrite (macli adiu lio) 



^ 

tí 



I 



N este íargo, sob a immensa ramaria <Ic velhos sycomo ' 1 i 

ros, mais de 200 mulheres entoavam cânticos tão harmónio- \ ; | 

SOS como monótonos, que faziam acompanhar de uma ensur- ^^ ' 

decedora guisalhada de cabaças, revestidas, eiteriormenie, ' \1 

de ampla rede com numero- ^^^^^^^^^^^— i^^^ t ^ 

sas contas enfiadas. ^^^^^^^^^^^"^^M s,^ 

O ruido produ7.ido pelo 

choque das contas de en- ^'^'^^I^^Hjj^^^^H \ 

contro á siiperticie d'ostas J0IW^^9^^^^| 

cabaças, quando fortemente ^^ ..^^^fl^^^^l * ^ 

agitadas, a grande JJ^^^^Ê^^^^Ê . \ v 

distancia, juntamente com ^^^^^W^^^^M' 

aquelle coro excêntrico, que, 
por ser exclusivamente com- 
posto de vozes femininas, me 
despertou sobremodo a atten- 
ç3o, procurando desde logo 
informar-me da sua significa- 
ção. 

Não tardou muito que ^^^^^^^^^^^^^^1' V^' 

interprete me explicasse, ten- ^^^^^^^^^^^^^^ 

derem taes harmonias a afu- 
gentar os espíritos maus da libata, onde deveria encon- 
trar-se o qiiimhanda (mesinheiro) applicando o seu trata- 



W 



acção do fcgo niiO conseguiu destruir, sdii se prccceupar qne os \ í i 

troncoB ciceditm 50 e mais eentinietros a Miiitificie (las terras que '• j 

vae cultivar. 

As cÍDzas provenientes ii'estB8 queiniiidjis, revohidas jun- 
tamente com as terras na occasiuo do seu Runanlio, constituem, tSb - 
símente, o adubo, alinz siífliciente, com que o gentio prepara os - 
seus campos, em que faz as sementeiras, que dupni» são abuodan- 
tetnente regadas pelas chuvas da epocha própria. ^ 



80 



mento a qualquer doente (*). Achavam-se as executantes 
distribuídas em diversos grupos que sorriam da minha 
admiração, sem comtudo interromperem a sua supers- 
ticiosa devoção. 

Tendo penetrado na libata, achei-me, como em Caháta, 
n'um labyrintho de ruas estreitas e lamacentas, por uma 
das quaes os machileiroâ me conduziram a um largo. 

Uma vez ali perguntei pelo soba, extranhando que ainda 
o não tivéssemos encontrado. Foi-me então indicada uma 
nova porta, talhada ao meio de uma segunda palliçada, que 
isolava os aposentos particulares do soba e suas mulheres, 
do resto da libata. 

Transposta aquella vedação, deparou-se-me logo o sobba 
que vinha já ao meu encontro, e me convidou a passar 
ainda uma outra porta que nos levou propriamente ao 
lombe^ (recinto em que tetn a sua cubata e da inácu (rai- 
nha). 

A toilette em que me appareceu Caculo-Cusso era tudo 
quanto ha de mais pittoresco : 

Vestia um antigo casaco cor de pinhão, de grande uni- 
forme de major de infanteria, sem charlateiras, e ban- 
doleira a tiracolo, pendendo-lhe da cintura uma bella es- 
pada de copos amarellos. Na cabeça enfiara uma carapuça 



Desde a sementeira até á colheita os ar imos dispensam quaes- 
quer cuidados, o que não impede que esta seja abundantíssima, 
attingindo as cannas de milho uma altura deveras notável, raras 
vezes inferior a 4 metros, ao longo dos quaes se criam magnificas 
espigas, ordinariamente cm numero superior ás produzidas nos 
melhores terrenos da Europa 

(^) O gentio attribue todos os seus soffrimentos á influenciado 
espíritos maus ou feitiçaria como em capitulo especial desenvolvi- 
damente exporei. 



ribatejana, verde clara, forrada a encarnado, envolvendo-se, 
da cintura para hauo, ii'uni lenço de chita com varíos de- 



lenlios, em qne, apesar do muito uso, podia ainda distin.- 
^ir-se o retrato de Serpa Pinto ('). 

Caculo- Cusío, como em geral todo o gentio, nSo pSe a me- 
nor davida em usar qualquer vestnarío que lhe seja oHe- 
recido, chegando a encontrar-se &\guas séculos, em dias de 



s do littoral veuderam, em tempo, ao 
gentio alguns leiíçoíi cem rutrntos dos nossos exploradores. A prin- 
cipio foram estes leu^-os niuilo Rpreciados no serttto, até que, 
tomHdoa vulgares, caliÍTiim fiDalmeote no desagrado do preto que 
boje prefere ontrns no\ i(lad<'8. 



82 



lesta, vestídos por forma a não lhes faltar mesmo o ele- 
gante chapéu fino, lustrosa camisa de gonmia e sobrecasaca, 
que adquirem nas suas viagens ao littoral; o que porém 
não supportam por muito tempo, são as calças e os sapatos. 

Tendo-me recebido nos seus aposentos, fez-me sentir 
a sua grande satisfação em ver que eu acceitára a sua 
hospedagem, fazendo-me desde logo rasgados offerecimen- 
tos, cuja importância baseava na immensidade dos seus do- 
mínios e nos serviços que, por diversas vezes, prestara ao 
paiz, idéa que, na sua rude linguagem, era significada pela 
palavra muanepeto, que, para o preto, significa tanto a pes- 
soa do chefe do Estado, como o simples official do exer- 
cito com que mais de perto convive. 

Depois de um interminável discurso, que, traduzido, 
se reduziu a muito pouco, como sempre succede com as 
conversas de pretos, fiz-lhe sentir que a minha impressão a 
seu respeito lhe era muito favorável, em consequência das 
boas informações que me tinham sido fornecidas, folgando 
deveras com a boa disposição em que me dizia achar-se 
para prestar o seu auxilio á auctoridade, que de futuro ali 
seria exercida por mim. 

Em seguida sahimos, indicando-me o sobba uma cubata 
que destinou para eu ali passar a noite, e que, por esse 
facto, fiz varrer com esmerado cuidado, por ter sido habi- 
tação de um seu eecúlo, como todos os pretos, desconhe- 
cedor dos mais rudimentares principies de limpeza. Sen- 
tados nos bancos gentilicos apresentados pelo sobba, não 
tardou que a inacu, da parte de seu marido, me offerecesse 
uma ovelha, que tive de retribuir com uma anchorêta de 
25 garrafas de aguardente, n'um ápice esvasiada pelo sobba 
e sua numerosa corte. 

A seguir os seus séculos presenteavam-me também com 
varias quindas de fubá (espécie de alguidares de palha 



83 



entrançada) cheios de farinha de milho, e alguma batata do 
reino que aproveitei na preparação do meu jantar. 

Preparado elle, foi-me servido deante do sobba, convi- 
dando-o então a provar a comida de hranco, que não acceitou, 
por, segundo disse, lhe fazer mal, pedindo-me, comtudo, lhe 
desse mais aguardente, com que desejava embriagar se em 
honra da minha visita. 

Fiz-lhe ver que tal vicio lhe não ia bem, pelo mau exem- 
plo que dava aos seus súbditos. Caculo-Cuso riu então a 
bom rir, dizendo ser isso preconceito de hranco, que nunca 
poderia preoccupar os individues da sua raça, entre os 
quaes, o estado permanente de embriaguez seria uma honra 
para qualquer sobba, que se torna tanto mais digno do 
respeito e admiração dos seus, quanto maior é o numero, 
e mais fortes são as suas bebedeiras. Manifestando-se evi- 
dentemente desgostoso em presença das considerações que, 
sobre tal assumpto, lhe apresentei, não havia pois mais que 
argumentar, mas o que também não havia já, era aguar- 
dente, com que satisfizesse os seus incessantes pedidos, o 
que deveras me contrariava, tanto mais que se succediam 
a todo o momento os presentes de fuha e de ganjas (ca- 
baças) com quinbombo (espécie de cerveja preparada pelos 
pretos). 

Não tardou, porem, que uma luminosa ideia me tirasse 
d'aquella critica situação: 

Recorrer á minha pharmacia, onde levava seis garrafas 
de álcool a 40 graus! Feliz ideia! 

Abri-lhe a primeira, que o sobba e seus ministros bebe- 
ram com a mesma indifferença que beberiam se lhes ti «"esse 
servido aguardente ordinária! 

Não pude, porém, resistir á tentação de mandar-lhes per- 
^ntar se não encontravam diflferença entre aquelle ul 
timo liquido e o que lhes offerecera primeiro, obtendo como 



resposta qne, ali, o Begociante de Combata (Bengiiclla) não 
unha misturado agua do rio . . . Simplesmente divertido 
tado isto. 

Approximava-se a noite, e, tanto o sobba como o seu 
conselho de estado, se achavam possuídos de nma verda- 



deira alegria, de que não tardou a resultar um alegre ba 
toque, em que o sobba, extraurdinariamente bcbado, per- 
deu por completo a linha de gravidade em que, durante o 
dia, se conservara, para, no meio dos seus súbditos, exhi- 
bir uma serie de tregeitos e esgares curíosissimos, como 
estava longe do suppór que, n'alguma parte do mundo, se 






85 



CaHiu repetidas vezes, sendo de prompto amparado pelos 
seus séculos, que, longe de rirem, encaravam aquella triste 
£gara com uma verdadeira admiração, que se não affas- 
tava das theorias que o sobba, momentos antes, me havia 
apresentado. 

Apesar da gravidade do seu es'.ado, continuava fa- 
zendo-me incessantes pedidos de aguardente, que eu fingia 
não perceber, se bem que, com todas as lettras, pronun- 
ciasse tal palavra. 

Finalmente chegaram as suas dez mulheres, capitaneadas 
pela rainha, um estafermo de uma velha, mais edosa do 
que o sobba, de largas ventas completamente obstruídas 
de simonte. 

Á rainha, tendo ouvido o batuque, quiz vir mostrar-me 
as suas aptidões musicaes, sobraçando uma besuntada har- 
mónica de folie, que a desopilante odalisca, na minha frente, 
dedilhava estupidamente, sem que de mim desviasse os 
olhos, como que adivinhando a impressão que em mi- 
nh^alma poderiam produzir os sons por ella arrancados do 
enfadonho instrumento. 

Estava já divertido, tanto mais que se avisinhavam as 
11 Vi da noite, hora, muito decente, a que poderia pôr-se 
termo áquella soirée selvagem, de que iiie despedi á fran- 
ceza. 

Não tinha ainda bem entrado na cubata, quando, der- 
reado sob o peso da bebedeira, o Calulo-Cusso^ amparado 
por duas das suas bem amadas, bate as palmas junto de 
mim, em signal de respeito, e me pede, para a rainha, 
aguardente rófina. 

Foi a derradeira contribuição do dia. Lá lhe dei a se- 
gunda garrafa d^alcool, que uma das pretas levou, ao mesmo 
tempo que o sobba, em signal de reconhecimento, pregou 
com o costado no chão, tombando- se repetidas vezes e 



87 



cobríndo-se por completo de terra. A casto consegui que 
o pobre diabo me abandonasse o cubículo, onde tinha ar- 
mado a cama de viagem, em que de prompto me metti, 
para adormecer de um somno, a que só de madrugada pua^ 
termo. 

De manhS cedo, ao sahir da cubata, a primeira enti- 
dade que se deparou na minha frente, foi Caculo-Cuaso com 
o seu comprimento, em rnhundo, Calunga, que, segundo o 
uso, acompanhou com uma serie de palmas. 

Feito o cumprimento, não se descuidou em dizer-me 
que, antes da minha partida, desejava lhe deixasse uma 
outra garrafa de aguardente, declarando-me ter gostado 
immenso de mim, pelo que, na primeira lua nova, iria 
á fortaleza apresentar-me os seus cumprimentos officiaes, 
occasião em que se faria acompanhar de um boi, com que, 
segundo o seu costume, me presentearia, esperando tam- 
bém que eu li tivesse aguardente em abundância para elle 
se emborrachar todos os dias, com as pessoas que o 
acompanhassem. 

São assim quasi todos os sobbas. 

Tomado um ligeiro café, que acompanhei com algumas 
bolachas, propunha-me a apresentar as minhas despedidas ao 
régio hospedeiro, quando este me falia novamente na gar- 
rafa, que, por distracção, deixara de offerecer-lhe, sendo pela 
ultima vez satisfeitos os seus desejos, depois de ter feito 
ama boa ãgura na sua presença. 

D'esta vez, tendo junto de si os seus principaes nuicO' 
tas, ordenou-lhes, n'uma espécie de voz de conmiando, que 
se deitassem, e, depois de fazel-os dar uma série de tom- 
bos, em que se cobriram de terra, desde a cabeça aos pés, 
mandou-os então levantar, apromptando-se com elles para 
me acompanhar, durante uma parte do meu trajecto, em 
direcção a Chiticumuna. 



88 



Acceitei a companhia, que de tão boa vontade me era 
offerecida, despedindo-se por fim o sobba, a certa altura 
da caminhada, em que já se sentia cançado. 

Surprehendeu-me a abstinência do sobba, que poderia 
vantajosamente aproveitar o momento solenme da sua 
despedida e respectivo conselho de macotcut, para formular 
um derradeiro pedido de álcool a que impossível se toma- 
ria responder com uma recusa. Dispunha-se Cctculo-Caso 
a retroceder com a íntima satisfação que lhe resultava do 
cumprimento dos seus deveres, quando lhe ordenei alg-uns 
momentos de espera. 

Fui eu então que entendi não dever deixar retirar o 
velho sobba sem lhe agradecer a amabilidade da sua com- 
panhia, brindando-o com uma quarta garrafa d'alcool, que 
toda a corte do Bihel recebeu n'um verdadeiro delírio de 
manifestaçSes, a que puz termo quando o poderoso reg'ulo 
se dispunha a fazer, mais uma vez, espolínhar os seus 
numerosos macótas, sobre o terreno alagadiço em que nos 
achávamos. 



90 



cubata, coUocando perto do seu cadáver algumas garrafas 
de aguardente, como que para mitigar-lhes a sede, visto que, 
durante todo esse tempo, os suppSem adormecidos. 

Esgotado o praso que consideram máximo para a re- 
surreiçSo do sobba, iniciam entfto os festejos do óbito, que 
se prolongam durante 15 e mais dias, segundo a riqueza 
deixada ao herdeiro do throno. 

O festejo do óbito de um sobba apenas differe do de qual- 
quer outro século, na sumptuosidade da ceremonia; con- 
sistindo, porém, todos n'um grande batuque, acompanhado 
de repetidos tiros de espingarda e grande comesana, em 
que são abatidos um ou mais bois, porcos, carneiros, etc, 
tudo isto no meio de enorme bebedeira, que a ninguém 
despega durante toda a festa. 

As bebidas, quando pela pouca importância do óbito 
não possam consistir em aguardente, são substituidas pelo 
chimbombo, que o preto usa desde os seus tempos primitivos;. 

K'alguns óbitos de sobbas de certas regiSes, como Luimbi 
(G-aguellas) e ainda outros sobbados, juntamente com 
diversas rezes, é abatido um preto (escravo) que é sabo- 
reado pelos principaes personagens da familia. 

Nos povos verdadeiramente avassallados, este repugnante- 
costume acha-se por completo posto de parte, pelo receio 
que lhes inspiram as auctoridades, e outro tanto se dá na. 
proximidade das missSes. 

Segundo a lei gentilica de bihenos e bailundos, o direito 
de hereditariedade pertence aos sobrinhos e não aos filhos. 

A explicação doeste facto encontra-se na pouca confiança 
que inspiram ao gentio as suas mulheres, das quaes, como 
mais adeante exporei, chegam a fazer copiosa fonte de 
receita, estimulando-as, até, ao adultério, para darem logar 
ao mucano (pleito) que ordinariamente se liquida com o 
pagamento. 



92 



A distancia de Chiticumuna a Belmonte deverá avanta- 
jar-se a qualquer outra percorrida nas mesmas oito horas 
que, ordinariamente, se gastam entre estes dois pontos, 
quando, por motivo de força maior, este precurso haja de 
ser feito n'uma só étape, o que não succede nas marchas 
ordinárias. 

E comprehende-se isto pela ausência absoluta de obstá- 
culos, durante uma grande parte doeste trajecto, que é feito 
atravez da interminável anhara de Bulo-Bulo, enorme pla- 
nicie que, a 500 metros a partir de Chiticumuna, se depara 
ao viajante, n'uma extensão que deverá orçar por um mi- 
lhar de kilometros quadrados, em que o teodolitho não 
accusaria diflferenças de nivel apreciáveis, entre quaesquer 
dos seus pontos, por forma a não poder considerar se o 
terreno inteiramente horisontal. 

£is-nos pois atravez do Bulo-Bulo, cujo capim, sedoso 
e débil como o feno, era mansamente agitado pelo vento, 
em ondulações graciosas, que, levando comsigo uma infi- 
nidade de papoulas, se perdiam na immensidade da planí- 
cie, dando-nos a distancia a curiosa impressão de um mar, 



trato du pequenos trajectos, não excedentes a 4 dias, em que o 
viajante se faz acompanhar de uma pequena mala de peso insi- 
gnificante. 

Uma viagem forçada de Benguella ao Bihé, por exemplo, so- 
mente poderia ser exequível, se aos carregadores fossem distri- 
"buidos volumes relativamente leves, o que augmentaria considera- 
velmente o seu numero, e por consequência a despeza no transporte. 

Fora da epocha das séccas, impossível se torna uma viagem de 

^ol a sol, em consequência das fortíssimas trovoadas que, do meio 

dia por de ante, aífogam o viajante n*um verdadeiro diluvio de agua, 

>em que os caminhos ficam completamente submergidos, cami- 

nhando-se, em taos condições, com grande morosidade, e debaixo 

*<le um risco eminente. 



^^-^I^^s^M^^^^^iiAAAflMHritt 



ligeiramente encapellado, em que se produziam cambiantus 
de Inz verdadeiramente maravilhosas. 

 travessia da anhara foi feita d'uma trotada, íntor- 
romptda apenas pelo opangnrola dos carregadores, ou suar 
snbstituíçSo ('). 



(') C&upangvrola, verbo, significn mudar. Opatigurola, 2.' pes.-- 
SM da tiognlar do proseote do indicativo (rnudn', é palavra que o- 
tiajiute de t^ioia ouve prounnciar uma iufiaidade de vezes aoe-- 
airegadoroB que, quando caiiçadoa de qualquer dos hoinbros, de- 
sejun madar o bordSo para o outro hombro on para a cabeia. 



94 



Estes, ao sentirem* se em caminho direito e horísontal, 
voavam com a typoia, procurando animar-se com os seus 
gritos e phrases variadíssimas: 

— Uhé, uhé, uhé! . , . Uaré quété!... lurú^ lurú! etc. 
Em três horas attingiamos o final da anhara; quando, 
porém, nos achávamos a cerca de um kilometro da orla de 
um pequeno bosque, limite leste da extensa planicie que 
vínhamos seguindo, estacaram de repente os machihiros, 
dizendo-me qualquer cousa que, a principio, não pude 
comprehender, apezar da insistência que faziam na palavra 
olongiriy que todos pronunciavam em voz baixa, apontando 
para a frente, n'uma direcção que não tardou a pôr-me ao 
<)orrente do que se passava. 

Uma manada de antilopes (oloíigirij pastava pachorren- 
tamente, perto do bosque, de que aproveitava a som- 
bra. Immediatamente pedi a Manllicher, que se fez demo- 
rar alguns minutos, por se encontrar ainda á rectaguarda, 
como de costume, o preto que, ordinariamente, m'a trans- 
portava a tiracolo. Introduzindo-lhe as cinco cargas, eis-me 
para logo em perseguição da volumosa caça, no que me 
fiz acompanhar por dois prelos dos mais ladinos, depois 
de ordenar ao resto da caravana que esperasse n'aquelle 
ponto. 

Por entre o capim espreitava o paradeiro dos formidá- 
veis animaes que, ou por concluída a refeição ou por que 
me presentissem os passos, começavam a embrenhar-se pelo 
bosque. 

Poucos restavam já no ponto em que, primitivamente, os 
vira, resolvendo-me este facto, não obstante achar-me ainda 
n cerca de 400 metros de distancia, a atirar sobre o que 
mais a geito me pareceu, quando os animaes, aprumando 
Vepentinamente o pescoço, largaram no seguimento dos 
-seus companheiros. 



mmtà 



M^iaairitaairiÉMaiMBHMAi^Haa:^ 



Alguma, cousa ainda se acfa 

a direita, que prendia a atten 

tião tardando estes a indicai 

(domhahij, sobre uma das qi 

[ ticuiosa, appoiando o cano d<i 

I um dos pretos que me segníac 

I mira sobrepostos, projectavai 

dadeiramente maravilhosa, si 

aoimal. 

Nada mais restava, pois, d 
se^idunente apanhar a caça. 
f mais ainda a dos pretos, qi 
sDCcesso da Oabuita. 

Fogo ! A detonação, sem vi 
melhou-se ao estalido sêcco d' 
nm agudo sibilar ao longo da 
decepção ! O pobre animal, c 
dade restante do meu project 
tiginosa, de que bem podia co 
restava. 

Uma inesperada trovoada ir 
proseguir, acampan-.!o a três hi 
applauso dos carregadores, qii 
com ttapee superiores a 6 lior 
Este contratempo, no restí 
liu-me, porém, evitar uma f 
cupação de caminhar, por ce 
paisana na fortaleza, que ia 
estado lastimoso em que os e 
viam posto o vestuário, que n. 
Aproveitei, pois, o tempo, i 
couro que, por duas vezes, i 
mente, porém, que a agua 



ÍM 



quantidade tal, que os ardores do sol, durante o resto da 
viagem, não tivessem enxugado por completo a roupa que 
continha, na qual apenas appareciam algumas manchas 
amarellas. 

Quando me dispunha a estender a roupa, para lhe fazer 
perder o cheiro a bolor, produzido pela humidade, um 
incidente deveras agradável se deu no acampamento : 

A cerca de 100 metros, dois rapazótes de 14 a 16 
annos, filhos dos carregadores, approximavam se, trazendo 
em suspensão uma soberba gazella (*). 

Lançada sobre a relva, ao centro do acampamento, não 
tardou que verificasse, pelo pequeno ferimento que apre- 
sentava junto do pescoço, ser aquelle o antilope sobre que, 
duas horas antes, havia disparado a Alanllicher. 

Os carregadores, tão vivamente impressionados pelo meu 
colossal successo de Cahuita, não podiam admittir, que, a 
uma distancia relativamente pequena, podesse ter sido er- 
rado este ultimo tiro; e, tendo-me visto s^^guir, suppuze 
ram que, apenas por não querer atrazar viagem, deixasse 
de mandar procurar a caça, que elles, talvez na carreira^ 
reconhecessem ferida. 



(1) O gentio transporta as suas cargas, geralmente, á cabeça oa 
hombro; quando, porém, pelo seu feitio especial e peso dema- 
siado, a carga não possa ser levada por um só homem, ligam-na 
então, por meio de cascas de arvore, a um comprido varapau que 
lhes permitte a distribuição do peso por dois carregadores, pe- 
gando ao hombro, um em cada extremidade. 

£* também por este systema que transportam o homem, vivo ou 
morto, com a diíFerença de que a rede da tj/poia, suspensa do 
bambu por meio de duas argolas, dispensa a ligação, que n'outros 
casos, se faz por meio de cascas d'arvorc. 

Porcos, carneiros, cabras, etc, e, no caso presente a corça, são 
transportados egualmentc, vivos ou mortos, depois de previamente 



•v 



mm^ 



98 



Foi por isso que mandaram os dois rapazes no seu en- 
calço, encontrando-a finalmente estendida no meio do matto, 
onde formara uma pequena poça de sangue ('). 

Ha muitos dias que não comia outra carne que não fosse 
de gallinha, e por isso me preparava para saborear uma 
perna do delicioso antilope, que passa por ser superior á 
do próprio onunci (*). 



lhes terem sido ligados os membros, por forma a nSo deixarem 
escapar o varapau, que fazem passar no sentido do comprimento 
do animal, entre o peito e os pontos de ligação. 

(1) A carabina Manllicher, como outras armas de calibre redu- 
zido, não produzem a morte instantânea em qualquer animal, a 
não ser que o ferimento seja no cérebro ou coração, o que só por 
mero acaso poderá dar-se. A caça attingida por estes projecteis 
pode correr ainda por algum tempo depois de ferida, por forma 
a esconder-se no matto e não ser encontrada. N'este caso, como o 
exemplo que deixo exposto demonstra, os melhores cães são os 
pretos (gentio) que ordinariamente vão descortinar a caça ao fim 
de algumas pesquizas, conhecendo demais a mais, na carreira, a gra- 
vidade do ferimento, de que, por consequência, depende a maior 
ou menor insistência na procura. 

Os cães, posto que podessem prestar algum serviço na descoberta 
da caça, não convêem, visto que, geralmente, a espantam muito 
antes da distancia a que o tiro pôde considerar-se efficaz. Os pró- 
prios boers, caçadores por excellencia, não fazem uso dos cães 
que, quando muito, apenas poderiam ter applicação na caça meu- 
da, a que em Africa ordinariamente se dá pouca importância, e que 
também, por sor essencialmente mansa, pôde mesmo matar-se pa- 
rada. A*s tardes e de madrugada as perdizes, junto dos pequenos 
regatos, matam-se facilmente no chão, encontrando-se também 
n*estes mesmos pontos muitas lebres, fáceis de alcançar a tiro. 

(2) Tanto a carne de gazella como a de onunci são deliciosas. 

Vulgarmente preparam-na deixando-a durante 24 horas de vi- 
nho e alhos, e, seguidamente, assando-a no forno, depois de tem- 
perada com banha de porco e sal. 



«^S^^PB? 



102 



fdndamento, á visinhança de responsabilidades que me 
resultariam da espinhosa administração do Bihé, cuja inves- 
tidura marcaria, para assim dizer, o íinal da minha exis- 
tência despreoccupada. 

Não me desagradaria proseguir por essa Africa fora, em 
cata de novas sensaçSes que, por muito desagradáveis que 
fossem, preferiria ás difficuldades de toda a ordem, origi- 
nadas nos governos do interior, acerca das quaes, um dos 
meus primitivos companheiros de viagem, n'uma ligeira 
prelecção, me pozéra ao corrente. 

No entretanto os machilUeiros, anciosos por alcançarem 
os chimhos, (povoaçSes) galgavam montes e valles, com 
uma resistência e coragem, que até então não tinham re- 
vellado. Tinha já transposto o rio Cuquema, á falta de 
ponte como em muitos outros rios, escarranchado sobre o 
pescoço de Chipondonffo, amável e serviçal carregador 
que, durante toda a marcha, me prestou grandes serviços. 

Finalmente, eram 10 horas da manhã, attingiamos o 
alto de uma elevação, d'onde, a meio d^uma encosta fron- 
teira, de não grande declive, se avistava, sob o aspecto de 
velhos casebres de uma quinta phylloxerada, a pseudo- 
fortaleza do Bihé, orlada de gigantescos sycomoros, por 
entre os quaes alvejava a pequena residência que me es 
tava destinada, e que por tantos annos o fora também do 
velho sertanejo que lhe deu o nome. 

Eis finalmente á vista o «Forte Silva Porto». 

Para o attingir não havia mais do que descer o monte 
e transpor o Culto, galgando depois cerca de 300 metros 
da nova encosta, ao longo da qual se achavam dispersos 
muitos montões de lixo, em que se adivinhavam diversos 
períodos de accumulação, predominando ahi as latas de 
conservas alimenticias e outros objectos inutilisados e fer- 
rugentos, provenientes dos despejos da fortaleza. 



m"-i. ^t.mipw^mv^mmmm^s^^^^^m^^^'-^^'^. * - -^ ^ - v^ 



104 



Ao entrar a porta das armas senti-me um tanto nervoso. 
Desconhecia o meu antecessor, assim como todo o demais 
pessoal da capitania, acerca do qual corriam vers5es tão 
variadas como inverosimeis, que, desde Loanda, me ha- 
viam sido narradas, no evidente intuito de me desgostarem. 

Descendo os degraus de uma pequena escada da resi- 
dência, para vir ao meu encontro, reconheci logo o capitão 
Almeida Fragoso, pelos signaes que diversas pessoas an- 
tecipadamente me tinham dado da sua pessoa, um valente 
minhoto, essencialmente bondoso e amável. 

Na sala da residência, entre outras pessoas, na sua maior 
parte negociantes, tive prazer de encontrar o meu amigo 
de Loanda, ex.'°^ sr. coronel Lourenço Padrel, que para 
mim foi sempre tão sympathico como affeiçoado amigo. 

Passados momentos, meu irmão, que havia £cado um 
pouco á rectaguarda, entrava egualmente na sala, onde 
fiz a sua apresentação. Seguimos depois para a casa de 
jantar, onde o meu illustre antecessor nos convidou a sen- 
tar em volta de uma ampla mesa elyptica, coberta de alvís- 
sima toalha, em que um magnifico caldo verde se não fez 
esperar, seguido de outros pratos muito para apreciar, de- 
pois de uma viagem na qual os prazeres da mesa se acha- 
ram sempre infinitamente reduzidos. 

Duas bojudas garrafas de crystal cheias do famoso 
liquido que, segundo o Velhò Testamento levou o santo 
patriarcha ao quinto peccado mortal, completavam por 
forma condigna aquelle delicioso mise-en-scène que momen- 
taneamente nos transportava a um paiz civilisado. 

Todo aquelle relativo conforto dispensei com natural 
indifierença, durante os 24 dias da minha viagem ; apenas 
uma falta se tornou para mim extraordinariamente sensí- 
vel: — A do jião — .Dispensa se bem a carne e o vinho, 
mas não nos tirem o pão. 



105 



Ali havia também miignifico pâo, cosido no próprio dia, 
alimento de que imraediatamente me servi e demorada- 
mente mastiguei. 

O pão com que sahiramos de Catumbella e que poderia 
conservar-se relativamente fresco durante 4 ou õ dias, de- 
\ido a uma indesculpável imprevidência de empacota- 
mento, transformou-se numa pasta insupportavel com a 
enonnissima trovoada da Lucinja. Durante alguns dias, 
puis, acompanhávamos então as nossas refeições com bo- 
lacha de agua e sal, reserva que, infelizmente, acabou tam- 
i>em nas alturas de Cahata. 

A capitania-mór do Bibe não tem como os demais con- 
celhos de districto, definidos os seus limites, estendendo-se 
a esphera de administração, até aonde as diversas tribus 
gentilicas podem considerar-se avassaladas. Apenas uma 
parte do rio Cutato é tomada como limite oeste que a separa 
da capitania mór do Bailundo, sem que comtudo, official- 
mente, qualquer cousa se ache legislado a tal respeito (*). 

Com a ida ao Bihé da expedição, sob o commando do 
fallecido major Arthur de Paiva, por occasião da gloriosa 
morte de Silva Porto, facto de que depois me occuparei 
detalhadamente em capitulo especial, teve logar o aprisio- 
namento do sobba grande da região, Dunduma, ficando 
alguns séculos ou sobhttas á testa das respectivas libatas, 
e todos mais ou menos submettidos á auctoridade militar 
que, desde então, ali se tem conservado (^). 



(>> Ao sul o rio Qaquêma apenas estabelece o limite commuin 
dos paízes de Bihé e Gauguellas; admiDistrativamente, porém, o 
Liiimbi (Gaoguellas) faz parte da capitania-mór do Bihé. 

(') Excepção do sobbado da Gamba, onde ainda alguns sé- 
culos se conservam rebeldes, talvez pela pouca superioridade que 
reconhecem ao sobbêta da região, que, da sua parte, visita a forta- 
leza e se manifesta perfeitamente subordinado. 



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wsr^sccs3 i*i^ ::;9ssm!msseKS9mm 



106 



A sede da capitania, como já tive occasi^ de dizer^ 
acha-se estabelecida no «Forte Silva Porto», a antiga libata 
do explorador que lhe deu o nome, depois de organisada 
defensivamente com a abertura de um fosso de 4 metros 
de largura por 5 de profundidade. 

Nada justifica o estabelecimento d'este forte no local 
em que actualmente se encontra, a não serem as circums- 
tancias que revestiram a morte de Silva Porto, que n^este 
ponto teve logar, e, como no Bailundo, o aproveitamento 
das edificações existentes. 

Effectivamente acha-se este forte situado a meia en- 
costa de uma pequena elevação, e por consequência, com- 
pletamente dominado pelo lado do sul, não sendo mesmo 
fácil conseguir-se-lhe um desenfiamento com a construcçãa 
de um parapeito, que actualmente não possue. 

Mediante a superior auctorisação, que nunca me foi con- 
cedida, poderia iniciar-se a construcção de um novo forte 
a cerca de 300 metros ao sul do actual, oflferecendo n^este 
ponto a sua situação muito mais garantias para uma boa 
defeza, mormente, se, como é natural, a sua construcção 
se regulasse pelos preceitos da fortificação. 

Nas condiçSes, porém, em que actualmente se encontra, 
é mais que sufficiente para que a sua guarnição possa de- 
fender-se de qualquer ataque, aliás pouco provável, do gentia 
da região ; no entretanto torna-se reparada a applicação de 
tal nome a um recinto, no qual, para não perder de toda 
o aspecto de libata, conserva ainda o característico cer- 
cado de paus a pique com que o gentio estabelece a veda- 
ção n'esta espécie de aldeias, a fim de preservar durante 
a noite os seus gados, dos frequentes ataques das feras. 

O traçado que propuz para a construcção do novo furte 
em nada se afi^astava do actual: quadrado com dois tam> 
bores oppostos de flanqueament(». 



'^ 



senriço das guardas, usam de preferencia ao sen uni- 
forme ('). 

Por outro lado a multiplicidade de serviços conunetti- 
dos ao pessoal da capitama-mór e a deficiência d'este. 






nunca permittiriam dar grande desenvolvimento & instmo- 
ção militar do destacamento, a qual nunca passou de umas 
pequenas evoluçSes em ordem unida e manejo d'arma. 



(■) Convém notar que o soldado indigena dífficilmente se sn- 
joita á vida de caserna, preferindo a sanzala (espécie da acampa- 
mento) em qae possa ter mulher que lhe prepare as suas refei- 



A residência e mais de] 
d3o tem gasto um real, o i 
todos os cominandos affasla 
reparaçCes, para que nunca 
rança de que me fosse satia 
çâo do novo forte, onde enl 
a Fazenda, poderiam realisi 

A reside D cia e suas depe 
las seguintes casas, disperí 
casas do capitão-mór, otliciae 
secretaria e repartição do c< 
da extÍDCta Colónia Fenal ili 
sSo e casa da guarda. 

A casa do capitão-mór a 
com a frente voltada para 
cti vãmente parallelas ás do i 
tros ao centro da fachada p 
manentemente se acha hasti 

Esta casa, com 4 metroi 
nos seguintes compartiment 
duas janellas para a frente, 
ao centro, como mobília, umi 
dineira, coberta com um p 
assentava um pesado candi 
Jus da sua edade e natural 
dos pelos profanos que o te 
tar-me os seus serviços, 

Encostado á parede, coi 
sentava desconjuncfado sof 
por taboas aproveitadas de 
riormente revestido por um 
condia o capim com que 
suppríu as mollas. 



110 



Fazendo angulo recto com este sophá, tinha encostada 

a uma das paredes lateraes uma chctUse-longue de cons- 

trucção americana e duas cadeiras de balouço, algo perí- 

.gosas por se voltarem com facilidade, proporcionando 

divertidas cambalhotas a quem se excedesse na lattitude 

das suas oscillaçÕes. 

No espaço comprehendido entre as duas janellas, uma 

jpequena mesa rectangular aguentava uma enorme caixa 

de musica systema Elliopp, a que podia dar-se corda para 

20 minutos, durante os quaes era estupidamente moida 

•uma série de dez musicas em que figurava a valsa da 

sombra da Dinoràh, a Santa Lúcia e outras, que ao cabo 

de alguns dias me faziam dores de cabeça. 

Alguns antigos quadros de bom gosto, symetricamente 

dispostos ao longo das paredes e umas ligeiras sanefas de 

chita que pendiam das janellas, completavam a decoração 

d'esta sala que communicava por uma espécie de arco 

•-com uma outra destinada a casa de jantar. 

Tinha também duas janellas esta sala, egnalmente des- 
provida de vidraças, que em todas as janellas da residen- 
-cia eram substituidas por umas segundas portas exteriores 
^m forma de persiannas. 

Além da mesa de jantar, apenas havia n^esta sala um 
.aparador com duas gavetas, sendo o guarda-louça cavado 
na parede. £squecia-me mencionar oito cadeiras de palhi- 
nha que os mulequea mudavam durante o anno da sala 
de jantar para a de visitas e vice- versa, segundo as 
necessidades, 366 x n, sendo n o numero das refeiçSes que 
ordinariamente variava segundo o dos hospedes que ines- 
j)eradamente se apresentavam, muitas vezes depois de ter- 
minadas as minhas refeições habituaes. 

Uma estreita porta fazia communicar a casa de jantar 
com um pequeno quarto que destinei para casa de banho 



^i^mm^^^fm^mB^^m 



111 



e de que pela sua vez, se passava para um outro quarto, 
que tanto eu como os meus antecessores, aproveitámos 
para aposentos de dormir. 

Tinha este quarto uma mobília relativamente confortá- 
vel: Bello leito desmesuradamente espaçoso sobre que as- 
sentava um magnifico colchão de arame. Uma banquinha 
de cabeceira e toilette-commoda com varias gavetas e ma- 
^ifico espelho de crystal, sendo n'este movei a pedra 
mármore vantajosamente substituída e fingida por um pe- 
daço de oleado branco, convenientemente estirado na 
parte superior. 

 mobilia existente na residência do capitão-mór, sua 
propriedade exclusiva, a^^sim como louças, talheres, etc, 
furam adquiridas por compra ás missSes americanas, visto 
que o Estado, assim como não tem effectuado despezas 
oom as edificaçSes, não dispendeu egualmente um real, na 
compra de mobilia, naturalmente indispensáveis para o 
official que ordinariamente tem de estabelecer no matto 
uma demorada permanência, como commandante militar. 
Esta mobilia passou sempre, por venda, com uma pe- 
quena depreciação no seu valor, em consequência do uso, 
de um para outro capitão-mór, no acto da posse doeste e 
retirada d'aquelle. 

Se um determinado capitão-mór, por occasião da sua 
retirada, se negasse, por qualquer circumstancia, á venda 
da mobilia ao seu successor, coUocal-o-hia n^uma situação 
extraordinariamente critica, em que se veria forçado a 
dormir durante alguns annos na sua esguia cama de via- 
gem, cosinhando sobre três pedras como o gentio; co- 
mendo sobre uma das suas malas que egualmente lhe 
serviria de banca de trabalho; e finalmente recebendo as 
suas visitas de pé, por não possuir, cadeiras para lhes 
oflTerecer. 



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A sala de janfar tem uma porta que dá servenlia para 
um vasto quintal em volta do qual se acham dispostas al- 
gumas pequenas casas, ta^s como cosinha, em que assenta 
um magnifico fogSo, propriedade egualmente do eapitSo- 
mór; quartos para cosinhoiro e orçados de iresa, e ao fundo 



arrecadação de fazendas (mceda para pagamento ao des- 
tacamento c carregadorfK). A casa para officiaes acha-se 
á esquerda da residoncia do capitão-mór, com cuja frente 
faz um angulo sensivelmente recto. 

Ksta casa tem apenas duas divisões, uma das quaes era, 
ao tempo, aproveitada pelo fallecido tenente Coelho d;i 
Silva e esposa, para quarto de dormir, sendo o a outra 
para sala de trabalho, de visitas, e em casos estraordi- 
nHvios, para jantar, visto que, segundo os preceitos estu- 
helecidos desde longa data, o capitão-m<5r dava de comer 






113 



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aos seus subalternos e família, se a tivessem, pratica esta 

que, da minha parte, não alterei. k^% 

A' direita da residência do capitão mór, com a frente . ^ , 

voltada para esta e sensivelmente parallela, encontra-se a • . ^ 

casa dos sargentos, cuja disposição interior não differe da 
dos officiaes, senão pela situação das portas. 

Á casa dos oíBciaes é a única cujas janellas se acham 
guarnecidas de vidraças, o que a torna relativamente con- 
fortável e de melhor aspecto. Com a transferencia do te- 
nente Coelho da Silva para o Bailundo, passou esta casa 
a ser a minha residência effectiva, em que egualmente fazia 
o men gabinete de trabalho. 

Fronteira á casa dos officiaes inferiores havia a casa da 
guarda com uma tarimba a todo o comprimento, e em \ 

frente da casa dos officiaes, á direita da residência do ça- 
pitão-mór, a secretaria e repartição do correio, com três 
mezas, um armário fechado e um relógio de parede. 

De cada lado da residência do capitão-mór, a egual 
distancia e sensivelmente alinhadas, havia duas casas para 
hospedes, divididas em quartos, desprovidos de mobília, 
visto que, geralmente, os visitantes da fortaleza se fazein 
acompanhar de camas de viagem, o que de resto, se tor- 
naria indispensável, attendendo ao grande numero que ? 
algumas vezes ali chegava a juntar-se. 

Entre uma doestas casas e a dos officiaes havia uma i 

outra destinada a deposito de cargas da Colónia Penal i 

Militar Agrícola de Mochico, e junto da face sul do forte, 
uma outra casa com três compartimentos, destinada a pri- 
são. • ^^ 

Entre esta casa e as trazeiras da residência crescia um 
magnifico pomar de larangeiras e limoeiros, com cerca de 
200 pés muito bem alinhados, que Silva Porto mandou 
plantar quando habitava a antiga libata de Belmonte. 



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Este poirar que no tempo de Silva Porto produzia ma- 
gníficos fructos, deteriorou-se um pouco com a abertura 
do fosso, que na épocha das seccas, lhe enxugava as ter- 
ras, justamente quando se operava a maturação dos deli- 
ciosos pomos. Ha também dois paioes, sendo um destinado 
a muniçSes de infanteria e o outro ás de artilheria. 

Estas duas casas, assim como a do capitâo-mór, eram 
as únicas cobertas de zinco, sendo todas as demais a capim. 
Esta cobertura é a mais económica e sobretudo a mais hy- 
gienica que pôde adoptar-se no sertão africano, permittindo 
estabelecer e conservar uma temperatura constante no inte-. 
rior dos aposentos, propriedade esta do capim, deveras 
para apreciar no plan'alto do Bihé, em que, no cacimbo, se 
produzem differenças de temperatura consideráveis do dia 
para a noite. 

A cobertura de zinco tem ainda o inconveniente do ruido 
ensurdecedor que contra ella produzem as chuvas de se- 
tembro a abril. O forte de Belmonte esteve em tempo ar- 
tilhado com duas peças de montanha de 7 c, uma das 
quaes ultimamente foi enviada para o Bailundo. 

Além de 110 espingardas Seneyder destinadas ao des- 
tacamento indigena, que ao tempo se achava reduzido a 42 
praças, existiam ainda a cargo do capitão-mór do Bihé 18 
espingardas Martyni Henry que, em caso de conflicto com 
o gentio, poderiam ser distribuídas por auxiliares (nego- 
ciantes). 



Interessante cavaco com Jonquim Guilherme Gonçalves (o Chiti- 
dartdfr) áctrca da tragedia de Belmonte — Saa louvável predi- 
lecção pelo valente capitSo Paiva Coaceiro — Eminente risco 
de vida (I'e5te official e do seu digno companheiro e velho africa- 
nista, Justino Teixeira da Silva — Sua retirada para oBailundo 
— í^Dicidio de Silva Porto — O negociante Santos Gil — Duit- 
duma {aohla grande do Bihé) — Discordância de opiniões entre 
este potentado e o de Beilundo — Conferencia de Teiíelia da 
Silva com Equiqui (tobba do Bailundo) — Viagem de Couceiro 
ao Uncusso. Seu regresso — Expedição ao Uihé ~~ Prisão e 
deportação de Lhmduma. 



A fim de servir-me de interprete das falias do gentio, 
foi-me indicado, ao fim de alguns mezes da minta admi- 
nistração, o mulato biheno, Joaquim Guilherme, o Chin- 
àanãtr, homem de cerca de 50 annos de edade, regular- 
mente intelligente e dotado de uma privilegiada memoria 
que lhe penuittia a reproducçSo das intermináveis conversas 



116 



do gentio em que, de ordinário, muito se falia e pouca 
se diz. 

A physionomia sympathica e insinuante de Chindander, 
assim como a boa disposição em que a seu respeito me 
coUocou o conhecimento de alguns valiosos serviços por 
elle prestados ao paiz, levavam-me, ordinariamente, a es- 
cutal-o com verdadeira attenção, quando porventura um 
excesso de álcool, que muito apreciava, o não tivesse tor- 
nado um insupportavel massador. 

Era Joaquim Guilherm**, com justa razão, um dos mui- 
tos devotados admiradores de Paiva Couceiro que, a todo 
o momento, se encontram no sertão de Benguella, onde o 
distincto official poderá contar o numero de amigos pelo 
de sertanejos que lhe presencearam os seus actos de incom- 
parável sacrifício e inexcedivel valor. 

Em consequência d'esta predilecção de Joaquim Gui- 
lherme por Couceiro, quasi sempre as suas conversações 
recahiam sobre assumptos referentes a qualquer facto que 
mais ou menos se ligasse com aquelle oíBcial, cujo nome, 
por vezes, no auge do enthusiasmo, lhe ouvi pronunciar 
com os olhos marejados de lagrimas. 

A viagem de Paiva Couceiro ao Bihé, com destino ao 
Barotze, no patriótico intuito do engrandecimento dos nos- 
sos dominios, com a vassalagem d'essa importante região ; 
o risco inmiinente de sua vida por occasião da tragedia 
de Belmonte, a sua retirada para o Bailundo, com Tei- 
xeira da Silva, e finalmente a sua viagem a terras de 
Mucusso, na irritante impossibilidade de pôr em pratica 
o seu primitivo itenerario ; eram factos que Joaquim Gui- 
lherme narrava, possuído sempre do mais vivo eníbu^- 
siasmo. 

Um dia, contava-me elle, passeiando nós na parada da 
fortaleza: 



— «Tendo o sr. teaente Henriqne de Fúva Couceiro 
chegando ao B^undo, hospedou-se no sitio denominado 
Catapi, logar que o tobba Equiqui, do Bailundo, havia 
offerecido ao sr. capitão Teixeira da Silva, para sua mo- 
rada, (hoje fortaleza do Bailundo). Acompanha vani o sr. 
tenente Couceiro o negociante Adriano dos Santos Oii, o 
lingua Filippe Coimbra, (o CandunAa), e sua comitiva. 

•O sobba do Bulundo recebeu estes senhores com todo 
o prazer, obsequiando-os segundo os seus recursos. Du- 
rante 05 dias em que o sr. tenente Couceiro permaneceu 
no Bailundo para se refazer do cançaço da viagem, offe- 
receu alguns presentes ao sobba, com os quaes este se 
sentiu immensamente penhorado, fornecendo áquelle se- 
nhor alguns carregadores, de que necessitava, para o 
transporte de cargas, assim como mantimentos para os 
que o acompanhavam. 

«Continuou depois o sr. Couceiro a sua viagem para o 
Bihé, onde acceitou a hospitalidade que the foi offerecida 
pelo seu camarada, capitão sr. Teixeira da Silva, vísinho 
do sertanejo Silva Porto. 

«Ao lim de alguns dias de descanço, preparou-se o 
sr, Gil para voltar a Benguella afim de fazer conduzir ao 
Bifaé o resto das cargas do sr. Couceiro, que o reduzido 
numero de carregadores lhe não permiltiu trazer de uma 
só vez. 

«Reunido a Silva Porto, antigo e prestigioso negociante 
do Bihé, resolveram os dois dirigir-se á m'balla do gobba, 
afim de lhe apresentarem os seus cumprimentos, e, segundo 
a lei gentílica, o presentearam condignamente. 

•Aproveitou desde logo Silva Porto este ensejo para 
fazer vêr ao sobba o lim da vinda de Paiva Cou<;eiro ao 
Bihé, onde apenas passava na sua viagem ao Barot/<>. 
para onde se dirigiria, logo que elle aobba lhe offereeessí 



118 



os carregadores necessários para o transporte das suas 
cargâs. 

«Immediatamentc o sohla declarou que da melhor von- 
tade fornecia os carregadores pedidos, ficando (íesde logo 
assente que a partida teria logar poucos dias depois da 
chegada do sr. Gil, que ainda se achava para Bengiiella. 

«Estava, pois, o Dumluma (assim .se chamava o sobba 
do Bihé) nas melhores disposições para com os dois senlio- 
res, nunca podendo, ao certo, averiguar-se qual a pessoa 
que, ou };or inimisade pessoal para com Silva Porto, ou 
por conveniência politica, levou Dunduma á convicção de 
que a vinda do íUustre official ao Bihé, apenas obedecera 
á ideia de ali construir um forte. E, por grandes que ti- 
vessem sido os exforços empregados pelo infeliz sertanejo^ 
para d'isso despersuadir o sohba e obter d'elle o nome da 
pessoa que tão erradamente o informara, nada absolata- 
mente lhe foi dado conseguir. E não obstante Silva Porto, 
até ali, merecer a mais absoluta confiança de todo o geutio 
da região, entre o qual o seu nome havia conquistado, 
durantií longos annos de permanência, um extraordinário 
prestigio, começou desde logo a ser, pelos híhenos, consi- 
derado como traidor, manifestando llie um geral desagrado 
em repetidas faltas de respeito que sobremaneira desgos- 
tavam o pobre velho. 

«A guerra estava já declarada, se bem que o gentio 
não houvesse dirigido ainda qualquer attaque ás residên- 
cias dos europeus que se achavam em Belmonte. 

«Um ultimo exforço foi ainda empregado por Silva Porto, 
no sentido de despersuadir Dunduma d^aquella errada con- 
vicção, procurando demovel-o das suas aggressivas inten- 
ções com respeito aos europeus que, apenas de passagem, 
se encontravam nas suas terras; o resultado, porém, alcan- 
çado pelo patriótico sertanejo, em presença do sobba, então 



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inabalável e já só disposto para o mal, foi egual, senão 
peior, ao obtido na primeira entrevista, correndo geral- 
mente a versão de ter Silva Porto sido esbofeteado por 
Dunduma, na presença dos seus séculos, e com galhofa 
de ordem tal, que levou o pobre velho ao doloroso extremo 
de resolver desde logo, pôr termo á existência. 

«Fosse como fosse, não resta duvida alguma, de que 
Silva Porto tivesse sido exovalhkdo pelo sobba e recolhesse 
desgostosíssimo a sua casa. 

«Uma vez ali, depois de dar aos illustres oí&ciaes conhe- 
cimento do insuccesso dos seus exforços, rodeou-se de 
grande quantidade de barris de pólvora, que possuia arma- 
zenada para negocio com o gentio, e, depois de envol- 
ver-se na bandeira natâonal, fez voar pelos ares o seu 
corpo, que a tensão dos gazes produzidos pela pavorosa 
explosão arremessou a uma distancia de cincoenta metros. 

«O estrondo produzido attrahiu, ao local do terrível sinis- 
tro, os dois illustres oíHciaes seus visinhos, fugindo espa* 
vorída uma grande parte dos serviçaes de Silva Porto, 
que não podia comprehender o que tal acontecimento signi- 
ficava. 

«Foi Silva Porto encontrado por Paiva Couceiro e Tei- 
xeira da Silva, ainda com restos de vida, que os dois oíH- 
ciaes não poderam prolongar com os medicamentos que 
immediatamente lhe applicaram, procedendo ao seu en- 
terro com o respeito que lhes impunha a memoria do vene- 
rando ancião. 

«Tinha Silva Porto, em Belmonte, uma filha, Maria, 
que junto de sua mãe, a velha Roza, foi, no meio das suas 
lamentaçSes, surprehendida pela intimação do solba que) 
no mais curto espaço de tempo, emprazava a pobre mulher 
a pagar o crime de seu pae, que Duuãuma classificava 
de traição, protegendo a construcção de uma fortaleza em 







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terras de qne só etle poderia oonsiderar-se senhor alisoluto, 
entregando por fim aos enviados do íobba a indemnisação 
que lhe havia sido estipulada. 

«Seguidamente voltaram-se as attenções do sobba para 
os dois officiaes, que ainda se encontravam no Bihé, cujo 



valioso ^espolio, como suas cabeqas, o seduziam. Alguns 
pretos manhosos, nSo se sentindo talvez com coragem pAra, 
desde logo, romperem com os dois officiaes, procuravam 
entSo illudil-os pedindo-lhes as suas malas de roupa e 



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121 



outras cargas, para lh'as transportarem para onde lhes fosse 
indicado, levando, dentro em poucos momentos, todas 
quantas encontravam. 

«O sr. Couceiro, contava então Joaquim Guilherme, 
procurou ainda resistir eshuracando a casa (setcirando) para 
d'ali, com os poucos soldados de que dispunha, se defen- 
der até á ultima extremidade; vendo, porém, que esses 
poucos homens lhe desappareciam, levando comsigo a es- 
pingarda e cartuchame que podiam apanhar, não teve 
outro remédio este official, senão pôr-se em immediata re- 
tirada com o seu camarada, no momento em que Dunduma 
se preparava, para com mais de 600 homens os atacar (*). 

<Na sua retirada os dois officiaes não poderam fazer-se 
acompanhar de qualquer alimento, em que de resto não 
tiveram tempo de pensar, não tendo tampouco quem lhes 
transportasse fosse o que fosse, visto haverem-lhes fugido 



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(^) Como prova da coragem inconcebivel de Paiva Couceiro 
ouvi no Bihó narrar a diversas pessoas o seguinte facto que re- 
presenta uma verdadeira temeridade, como tantas outras que so 
encontram na vida d'aquel1e distincto official: 

Affirmava-se ali, que tendo-lhe sido proposta, pelo não menos 
digno official Teixeira da Silva, a retirada para o Bailando, segui- 
damente ao suicídio de Silva Porto, visto ser-lhes materialmente 
impossivel resistir com um pequeno numero de homens, Couccirc, 
talvez menos conhecedor da indole do gentio do que o ezpcrimcu* 
tado Teixeira da Silva, se negou formal mente a isso, procurando 
organisar defensivamente a casa em que se achava. 

Que então Teixeira da Silva, conhecedor da intriga africana, 
lhe exigia uma declaração escripta em como, sob sua inteira res- 
ponsabilidade, se sujeitava áquella inevitável morte, procurando 
assim subtrahir-se a quaesquer responsabilidades quu posterior- 
mente lhe podessem vir a ser attribuidas. À fuga dos soldados com 
armas e munições, levou entào, como disse. Couceiro ao convenci- 
mento da inutilidade dos seus exforços. 



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todos os seus soldados, alguns dos quaes, por de todo lhes 
ser desconhecido o camÍLlio, cahiram em poder do ini- 
migo. 

«Até ao Bailundo foram perseguidos por gentio enviado 
por Dundunm, 'om ordens terminantes para o sobba de 
Bihel no sentido de lhes cortar as cabeças e apoderar-se 
de qualquer cousa que porventura podessem levar para a 
compra de alimentos, de que sem duvida necessitariam. 

«O sobba do Bihel, porém, mais reflectido do que Diin- 
duma, receioso da inevitável révanche, desde logo decla- 
rou que a camisa em que este pretendia mettel o não 
servia, por possuir um corpo de superiores dimensões ás 
de um tlephante, tanto mais que os brancos que perseguiam 
haviam passado já para o Bailundo (*). 

cEm presença doesta resposta seguiram os enviados de 
Dunduma para a m'bala de Bailundo a cujo sobba leva- 
vam idêntico recado. 

cAs instrucçSes enviadas a este sobba eram um pouco 
mais largas, recommendando-lhe Dunduna não só a exe- 
cução dos dois of&ciaes como a do negociante Adriano dos 
Santos Gil que, como era sabido, em breve deveria re- 
gressar de Benguella conduzindo as restantes cargas de 
Paiva Couceiro. 

^Equiqui, sobba do Bailundo, conhecedor já das occor- 
rencias do Bihé, não obstante ser cunhado de Dunduma, 
prendeu immediatamente os escoteiros, até á chegada dos 
officiaes á sua m'balla. 

«De Bihel continuaram os dois officiaes a viagem para 
Cambenje, onde ficou Paiva Couceiro, seguindo Teixeira 



(») Foi esta a evasiva de Caculo-Cusso para não apresentar os 
dois oâiciacs, que conservava escondidos no interior da sua libata. 



124 



-official, vestido como o gentio e completamente desfigu- 
rado. 

«Passada a estupefacção de Equiqui, perguntou este a 
Teixeira da Silva onde tinha ficado o outro branco filho 
do Muaneputo (Rei). Informei então o sobba de que Paiva 
Couceiro se achava acampado em Cambenje, offerecendo 
por esta occasião Equiqui todo o seu auxilio, em homens 
e armamento que, incondiccionalmente , punha á disposição 
d'aquelle official, para a hypothese de qualquer emboscada 
que lhe podesse ser preparada pelos bihtnos, cujo sobba, 
na sua opinião, devia encontrar se maluco para fazer tanto 
disparate. 

«Seguidamente preparava-se Equiqui para informar 
Teixeira da Silva das instrucçSes que lhe trouxeram os 
enviados de Dunduma^ mandando conduzir á presença 
d'este ofiicial os escuteiros bihenos; estes, porém, já se ti- 
nham evadido em consequência talvez, da attitude desfavo- 
rável que reconheceram no sobba do Bailundo. 

«Na impossibilidade pois de fazer expor aos próprios 
escoteiros o recado de Dunduma, seu cunhado, começou 
Equiqui reproduzindo, ipsis verbis, a falia i^ue lhe havia 
sido transmittida, e immediatamente foi traduzida por Joa- 
quim Guilherme nos seguintes termos: 

— «O Silva Porto já se enforcou, envergonhado de ter- 
nos enganado, pretendendo crear fortaleza em terras que 
são exclusivamente nossas, e onde por consequência só 
nós temos poder para nomear os nossos cajntamolo (cor- 
Tupçâo de capitão- mór). 

«Nem eu nem você devemos consentir semelhantes abusos, 
que só podem concorrer para o nosso desprestigio e mina. 

«Tive immensa pena de que esses dois brancos não po- 
dessem ser aqui apanhados e degolados, como merecia o 
:seu atrevimento. 



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fÀo Bohba do Bibel Caculo-Cusso, encarreguei d'esta 
missão, na passagem d'eUes pela sua terra, mas já sei que- 
este uSo cumpriu as minhas ordens, protegendo antes e 
escondendo os referidos branco»; elle o pagará. . . N'esta 
desconfiança despachei com urgência os escoteiros que tSo 
até ahi, para que o meu cunhado mate ps referidos hrcen- 
aa e lhes roube a comitiva, que em breves dias ahi deverá. 



chegar, sob as ordens do sr. Gil, condnzindo grande nu-^- 
mero de cargas de que você ficará com a maior parte,, 
mudando para aqui o que quiser». 

(Agora, meu branco, como fugiram os escoteiros vou 
mandar alguns meus entrevistar Dundvma, a quem mando^- 
a segninte resposta: 



9i^ 



V2C) 



— «Sigam á vi'halla do Bihé e digam a meu cunhado 
^sohba, que os dois brancos que elle desacatou estão por 
mim sendo obsequiados, não se escrevendo por isso para 
Govulo Combaca (Governador de Bengnella) emquanto elle 
me não responder. Que trate de reunir tudo quanto man- 
dou roubar, assim como deverá pagar todos os prejuízos 
de casas incendiadas e outros que a sua gente causou, 
procurando os camalfdcu (soldados, corrupção de camara- 
das) do Muaneputo que fugiram e se perderam por desco- 
nhecerem os caminhos que trouxeram os seus patrões. 

«Que é mister para alcançar o perdão dos brancos, res- 
tituir-lhes todo o roubo e indemnisal os devidamente, no 
que, como parente, estou prompto a auxilial-o, contri- 
buindo, da minha parte, com o que lhe for necessário, 
achando conveniente que, para o perdão ser mais com- 
pleto, se faça ^trega aos brancos offendidos, de todos os 
séculos que em tão desastrado passo o aconselharam. 

«Que em tempo, no Bailnndo, succedeu também ciso 
idêntico, e porque os nossos antepassados dessem má res- 
posta ao Muanepnto de Loanda, vieram d'aquella cidade, 
aquell js que puz4.rcmi conversa no papel e fiziram caminho 
pelo mar, nada conseguindo fazerse com clles, dando-nos 
uma coça monumental, como bem claramente o attestam 
as balas d'artilheria que ainda hoje podem vêr-se crava- 
das nas incendeiras da rn baila, 

«Que, de resto, em nada poderemos competir com os 

"brancos, incontestavelmente mais fnrtes do que nós, e a 

quem, alem de tudo, muitos benefícios devemos, acceitan- 

do-nos as nossas mercadorias em troca de magniticos pan- 

:nos com que andamos vestidos. 

«Que se o branco não fora de pelles de cabrito tería- 
mos de fazer as nossas camisas e casacos, consumindo um 
itempo immenso em amaciar um coiro de boi ou de malanca 



127 




para nos servir de cobertor, on em preparar, para o mesmo 
£iD, uma casca de arvore que a mais pequena faisca de 
lume de prompto incendiava e destruía. 

«Mais direis, por iim, ao sobba, que considere detida- 
mente no conselho que, como parente, lhe envio e aprecie 
devidamente todos os exemplos que a velha experiência 
e fria reflexão me dita, pois que da natureza da sua resposta 
dependerá o contheudo da mucanda (carta, officio), que 
seguidamente será enviada por elles para o Guvulo». 

«E assim terminou o recado de Equiqui, depois de ter 
invocado a memoria dos seus antepassados, como estimulo 
que podesse levar Dunduma a uma resposta satisfactoria. 

«As paixões, porém, imperam no sertão africano, como 
no mais esclarecido centro de civilisação, e Dunduma sen- 
tia-se orgulhoso do seu poder e absolutamente cônscio da 
sua força, enviando a seu cunhado J^^í^t a seguinte 
resposta: 

— «Ouvi tudo quanto me mandou dizer pelos seus es- 
coteiros; entrou-me, porém, o seu recado por uma orelha 
^ sahiume pela outra. Vejo que o meu cunhado pretendia 
que a minha terra fosse avassalada; pois entregue a sua 
se tem medo : eu não tenho medo dos brancos, nem tam- 
pouco das suas guerras, pois possuo muita pólvora e ar- 
mas para lhe resistir. Só poderia admittir que os brancoê 
viessem ás minhas terras para negociar, e assim, durante 
muitos annos, aqui consenti alguns, exclusivamente occupa- 
dos n'esse mister, e conservando se sempre respeitosos para 
comigo, única pessoa que no Bihé pode levantar a voz — o 
honge (fortaleza) é que eu nunca consentiria nas minhas ter- 
ras. 

«Do que roubei aos brancos nada restituirei, sendo de 
hturo desnecessárias novas insistências suas n'esse sen- 
tido». 









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«Ouvindo Equiqui esta cathegorica resposta de sea 
cunhado, immediatamente se dirigiu a Teixeira da Silva^ 
a fim de que este senhor procedesse, em tal conjun- 
tura, como muito bem lhe approuvesse, visto que, a tal 
respeito, nada mais tinha a dizer, lavando d'ahi as suas 
mãos» 

«Tomado conhecimento no governo do distrícto, doestes 
lamentáveis acontecimentos, foi organisada uma expedi- 
ção sob o commando do valente capitão Arthur de Paiva 
que seguiria para o Bihé, onde applicaria ao sobba o cas- 
tigo que tão justamente merecia. 

«Chega finalmente Adriano dos Santos Gil com o in- 
terprete Filippe Coimbra (o Candunba) e a comitiva, con- 
duzindo as cargas de Paiva Couceiro, sendo então também 
entregue a este militar um officio urgente do governo em 
que lhe era communicado o ultimatum inglez, e lhe man- 
davam, por esse facto, ficar sem effeito a expedição ao 
Barotze. 

«O illustre official, contava me ainda o Chindandtr, 
(nome gentilico que significa pau ferro) na impossibilidade 
pois, de seguir o seu primitivo destino, uma vez de posse 
das suas cargas, para não perder o seu tempo, resolveu 
marchar para terras de Mucusso, cujo sohha pretendia 
avassalar. Tendo-me pedido que o acompanhasse, na im- 
possibilidade de levar comsigo o Candumha, que se decla- 
rou inteiramente ignorante acerca da lingua da região, 
desde logo me ofiereci, tanto mais que, por ter viajado 
muito em taes paragens no tempo de meu fallecido pae, 
fallava o mucusso como o próprio mbundo. 

«Em três dias, tendo-se reunido os carregadores neces- 
sários, achavamo-nos a caminho, percorrendo as terras de 
Cuangar, Muquequelume, Gorgomar, eXc.^ seguindo o 
sr. (.'ouceiro na sua canoa, que lançou ao Cubango, e 



•companhando eu por terra a comitiva juntamente com os 
fiUiot do tobha do Mucusso. Concluídos os trabalhos do 
ar. Couceiro, iniciámos a nossa viagem de re^e^so, che- 
gando ao forte iPríaceza Amélia*, onde o sr. Couceiro ae 
encontrou com o sr. capitSo Marques, que lhe dea noticias 
qne muito o alegraram, acerca da expedição ao Bihé. 

•N'este commando deixou o sr. Couceiro a sua can6a 
ccDtinuando a nossa viagem, até que finalmente, chegi- 
■nos a Cachíngue, sem que nos fosse possível obter noticias 
eiActas da expediçSo. 

(No dia seguinte entravamos em Morna, onde acampá- 
m<'S tarde, sendo porém, aqui o sr. Couceiro informado da 
proximidade da expedição. 

(D'aqui ofiBciou o illustre official para o governo do dis- 
Iricts, commonicando o seu regresso do Mucusso. O acam- 
pamento seguinte realisnu se nas margens do Cutato, onde 
fomos visitados pelo commandante da expedição, capitão 
Ârthsr de Paiva, capitão Teixeira da Silva e outros, offe- 
receado o sr. Paiva um magnifico boi á comitiva do sr. 
Conceiro. 

<E aqui, disse Joaquim Quilherme, terminou a minha 
feliz convivência com o brioso official, de quem, com ver- 
daddro pezar, me despedi, por me não ser dado acompa- 
nbal-o na expedição ao Bihé, de que, desde este momento, 
passou a fazer parte. 

Foram simples, ao que constava, as operaçCes no Bihé, 
em que não houve grande resistência da parte do gentio, 
limitando- se ao arrazamento da m.'balla grande de Eko- 
voDgo e prisão do respectivo sobba, que depois foi depor- 
lado para a cidade da Praia, no archipelago de Cabo 
Verde. 

■A antiga libata Silva Porto, foi então transformada no 
fcrte do mesmo nome, em que, desde logo, ficou o primeiro 



dos capitães mores, tenente de infanteria, ao tempo alfe- 
res, Evaristo Simpliciaao d'AImeida, que conserron sob 
o seu commando um forle destacamento, retirando segui- 
damente para o litoral o resto da ezpediçSo.i 

D'esta espécie de relatório que Joaquim Guilherme Gon- 
çalves reproduzia, sempre com um verdadeiro agrado e 
entlinsiasmo, poderá avaliar-se nSo só dos relevantes ser- 
viços prestados por Paiva Couceiro ao seu p^z, como da 
modéstia de que deu provas, com a apresentação do seo 
relatório oflicíal, em que nSo apparece a mais ligeira refe- 
rencia aos seus principaes perigos e trabalhos. 



WAR^JBUIM 



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íumpri mentos — Miasiotiarios amiiricanos — Iiiglezcs — Francezes 
(do Es]>irito ííniito) — Suas rdaçòua com a auctoridade local, 
crim o cuiiimcrcio europeu e com o gcutio — Sua ioAuencia na 
civilisHr-iio dos povoA — Superioridade de dotaçSo das missSes 
protestantes sobre as catliolicns — O vosiao do m' bundo — Li- 
vroE de doutrioas protestantes escriplos D'estli lingua. 



Seguii lamente ao acto de posse, do oapilão-mór, reali- 
zado sem formalidades de espécie alguma, têem log'ar os 
<runipriiii'-ntos que se prolongam durante os primeiros dois 
mezes. IrViram estes iniciados qiiasi simiiitaneamente, pelas 
missões >- commercio do Bihé. 

Occup.ir-me-hei primeiro das missões, referindo-me se- 
guidamente ao commercio, e d'aqueUas começarei pelas 
americaiiKS : 



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132 



São três as missSes americanas do Bihé, fechando as 
suas sedes um triangulo, cujo perímetro pode ser percorrido 
n'uma viagem de seis étapes, de 5 a 7 horas por dia. 

Era esta a disposição mais vantajosa e racionai para 
que, exercendo cada uma doestas missSes a sua poderosa 
influencia de catechese, respectivamente em torno dos seus 
pontos de installação, conseguissem finalmente diffundir as 
suas doutrinas pelas numerosas libatas d'aquella vastís- 
sima região. 

O encontro doesta influencia com a desenvolvida por 
idênticas miss5es do Bailundo, e d'outras estabelecidas em 
egiSes visinhas, quando inspirado n'um puro sentimento 
de desinteresse, que não obstante muita gente lhes pre- 
tende contestar, acabaria por levar uma relativa civili- 
sação a todo o distrícto, e quem sabe mesmo se á provinda. 

Os três pontos em que, como disse, se acham estabele- 
cidas as missSes amerícanas (por via de regra os mais 
salubres e formosos da região) são os seguintes : 

O primeiro, em que parece achar- se o superior de todas 
ellas, é Camundongo, a sudoeste de Belmonte, cujo chefe é 
o sr. Sanders ; o segundo Chissamba, a nordeste do mesmo 
forte, que tem como chefe o sr. Coorrie, e finalmente a 
terceira a oeste, em Sacanjimba, tendo como chefe o sr. 
Voodssid. 

Qualquer d'estas miss5es tem estendido, por uma forma 
verdadeiramente assombrosa a sua influencia por todo o 
Bihé, sem que, com os poucos elementos de que se dispu- 
nha nas capitanias, podesse de perto apreciar-se devida- 
mente os seus processos de ensinamento, que, tanto em 
Afnca como por cá, são commentados por formas bastailte 
contradictorias. 

Tive occasião de percorrer uma parte do Bihé n'tiiiia 
viagem, que, nos últimos tempos, ali realisei, e apezar 



ie passar a alguns minutos das sedes d'esta3 missSes, 6 
dos instantes e amáveis convites dos respectivos chefes, 
Donca entrei em nenhuma â'ella3, tendo, comtndo, ocoasiSo 
de apreciar o seu magnifico aspecto exterior, do qual facil- 
mente se conclue o relativo conforto e commodidades que 
ali deverSo existir, pe- 
las dimeosSes, aperfei- 
çoamento e bom gosto 
das suas construcç5eSf 
tanto em desharmouia 
com as realisadas pelos 
negociantes europeus, e 
mesmo pelos missioná- 
rios catholicos do Espi- 
rito Santo. 

E' no interior d'es- 
tas casas que, aos do- 
mingos, se reúne todo o 
gentio das suas proximi- 
dades, para assistir ás 
predicas e oraçSes reali- 
sadas pelos missioná- 
rios, que, tendo- se pre- 
viamente dedicado ao 
«studo da língua do p^z, conseguem produzir longos dis- 
cursos, no mais clássico m'hundo, de que tiram os melho- 
res resultados. N'estHs dias ninguém os procure, recebendo 
as suas visitas apenas nos dias não santificados. 

Nâo é dífficil encontrar um ou outro preto das proximi- 
dades de Chissamba, Camundongo ou Hacanjimba, escre- 
vendo a sua própria lingua com uma orthographia ingle- 
uda, constando- me que alguns faliam também muito 
regularmente o inglez. 



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A verdade é que os missionários declaram que apenas- 
ensinam aos pretos a escrever a sua própria lingua, para 
poderem ler os livros de oração que lhes são distribuidos. 
nas missões, impressos na lingua rnbundo. 

Os pretos que primeiro conseguiram aprender a ler e a 
escrever, passam a ser distribuidos pelas libatas mais pró- 
ximas, onde estabelecem uma escola, construindo logo 
uma magnifica casa de adobes (parallelepipedos de argila 
amassada e seccos ao sol) muito bem caiada e pintada,, 
com amplas janellas envidraçadas ! 

No topo d essas casas acha-se hasteada a bandeira ame- 
ricana que, segundo dizem os missionários, apenas serve 
para indicar a que espécie de missão pertencem as esco- 
las, visto na região haver mais missSes pertencentes a 
outras nacionalidades. 

O pessoal doestas missSes é bastante reduzido, cons- 
tando ordinariamente, alem do respectivo chefe, de um 
medico, e das esposas e filhos de cada um d'estes. 

Em Sacanjimba é uma medica que tem a seu cargo o 
serviço de saúde da missão; as miss8es de Camundongo 
e Chissamba, têem respectivamente como médicos os há- 
beis doutores Frederik Carlington Wellmen e Alfred Mas- 
sey, passando este por uma verdadeira summidade para a 
maioria dos negociantes europeus, entre os quaes conquis- 
tou geraes sympathias, talvez por se conservar affastado 
do fim principal a que as missões se destinam^ despre- 
sando por completo o serviço de evangelisação, a que o 
seu coUega de Camundongo de preferencia, ao que cons- 
tava, se dedica. 

Efiectivamente dava-se no Bihé o dr. Wellmen como 
o principal evangclisador da missão de Camundongo, e 
talvez o elemento de mais influencia em todas as mis- 
sões, apezar dos seus poucos annos, pela forma hábil e 






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135 



intelligente como se dirige aos pretos, em longos e interes- 
santes discursos, com que consegue prender-lhes a attençSo. 
Era já muito meu conhecido este americano, antes da 
minha estada no Bihé. Travei relações com elle quando, 
em outubro de 1900, sahi de Lisboa a bordo do paquete 
Cabo Verdcj na minha viagem para Angola, onde ia exer- 
cer a comn^issão de ajudatfte de campo do governador 
ger&I d'aquella província. 

fita uma d^essas formosas tardes de outomno, triste como 
todas as tardes, jamais nos momentos angustiosos em que, 
debruçado da amurada de um navio, apenas se vê desenhar 
no horisonte, em uma espécie de maternal e conmiovido 
adens, os derradeiros contornos d'essa.« como que manchas 
de azul ferrete, sob cujo aspecto se nos apresenta o acci- 
dentado da costa d'este nosso abençoado torrão natal. 

De todos os passageiros que se conservavam no tomba- 
dilho, foi o americano quem mais d<!spertou a minha at- 
tençio, pela indiíferença que o vi manifestar por tudo 
quanto o roíleava, passeiando apressadamente de proa a 
popa com a perícia de um profissional, de tal forma o via 
equilibrar o corpo ao balanço de bombordo a estibordo, 
realisado pela embarcação. 

Era noite já, e quasi todos os passageiros se haviam 
recolhido, até que, encontrando-me frente a frente com o 
medico, entabolámos conversação, dirigindo-lhe uma d'essas 
Unalidades tão vulgarmente repetidas a bordo, e prolon- 
gando-se o cavaco por algumas horas, durante as quaes o 
nosso homem me pôz ao facto da sua profissão, referíndo-me 
eguafanente alguns curiosos episódios das suas viagens pelo 
sertão; e a verdade é que a primeira impressão a seu 
respeito foi para mim deveras agradável. 

Durante o resto da viagem, manifestou-se o joven dou- 
tor bastante communicativo, prefcrindo-me a qualquer 




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ontro passageiro nas suas conversaçSes, a jwQto de chegar 
por varias vezes a caatar alguns trechos, que aoompaohmvft 
Ba viola. 

Desembarquei em Loaada, seguindo o americano para 
Bengnella c d'ahi para o Bihé, sem que suppozesse sequer 
voltar a encontral-o. Decorridos cinco mezes approxima- 



damente, e:ii seguida á viagem de 24 dias que descrevi nos 
primeiros capitulos d'este livro, assumia eu o commando da 
capitania mór do BJhé, onde, passados dias, era visitado 
pelo dr. Wellmen. 

Trocadcs os primeiros cumprimentos, já elle me propn- 
nha uma visita á sua missSo que, infelizmente, nunca tive 



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138 



cccasião de realisar, apresentando-me mais tarde alngns 
pedidos sem importância, relativos & qvestiiincalas entre 
gentio das suas escolas, que satisfiz na ignorância, quer 
da minha parte quer da do medico, do desprestigio que 
d'ahi poderia resultar me. 

Effectivamente os pretos de Camundongo e immediaçoes 
chegaram a dizer que era o c^outor quem mandava na for- 
taleza, visto ser tio do capitão-mór, negando-se n'alguma& 
libatas a satisfazer os pedidos de c ar reg a dores que lhes 
fossem feitos, quando tal pedido nSo partisse da missão, 
mas sim de qualquer negociante. 

A fim pois de evitar futuros attritos entre estas mis- 
sSes e o commercio local, vi me obrigado a dizer, com a 
amabilidade com que aliás sempre me dirigi ao sympathico 
medico, que seria conveniente destruir, como podésse, a 
convicçfto que as nossas boas relaçSes fizeram nascer no 
espirito do gentio, em que, d^ordinario, a apreciação dos 
factos se affasta immenso da realidade. 

Este meu natural pedido que em nada poderia melindrar 
o joven medico, supponho tel-o amuado um pouco, como 
conclui da absoluta falta das suas visitas, com que muito 
me desgostei. 

Na occasiâo da minha retirada recebi a visita do dr. 
Wellmen por quem, aparte quaesquer considerações, tinha 
uma verdadeira sympathia, pondo assim de parte qualquer 
mal entendido que porventura a minha simples e leal me- 
dida preventiva o tivesse levado a formular. 



São muito frequentes os attritos entre os missionários 
americanos e commerciantes europeus, tendo, como disse, 



131) 



ordinariamente a sua origem na reluctaneia manifestada 
por alguns séculos, quando se trate do levantamento de 
carregadores nas libatas, onde, por meio das escolas, as 
missões têem conseguido fazer chegar as suas doutrinas. 

E, por via de regra, a auctoridade local quem aplana 
estas difficuldades, constituindo semelhantes pendências, 
um dos principaes embaraços que as administraçSes do 
interior a cada momento proporcionam, por ser ordi- 
nariamente diflScil apurar de que lado se acha a boa ra- 
zão. 

£ mdiscutivel a sympathia grangeada por esta classe de 
missionários no gentio das suas visinhanças, cuja explica- 
ção poderá encontrar-se na brandura de que taes missio- 
nários usam no seu tracto com o gentio, que por todos os 
meios procuram attrahir, e que a este certamente se affi- 
pr.i como inteiramente desinteressada, sob o ponto de vista 
pecuniário. 

Por outro lado, a indolência do preto, caracteristico 
predominante da sua raça, trazendo-lhe uma completa ne- 
gação para o trabalho, não lhe permitte adaptar-se tão fa- 
cilmente á vida laboriosa e activa que lhe proporcionam 
os serviços de qualquer commerciante ou agricultor — 
que não foi á Africa para tomar ares, mas sim para 
adquirir fortuna — como ao repouso que lhe é garantido 
sob a protecção da bandeira americana, onde apenas lhe 
é imposta a crença das suas doutrinas. 

O grande numero de commerciantes que durante os 
últimos annos affluiu ao interior, deu origem á falta de car- 
regadores, indispensáveis sempre no exercicio do commer- 
do de uma região, em que o indigena bem pode conside- 
rarse, até hoje, o único meio de transporte. 

Emquantoj era relativamente diminuto o numero de 
commerciantes europeus no Bihé, e egualmente menos 



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6j(tensa a esphera de influencia das missSes, foram natural- 
mente poupados, no serviço de carregadores, os povos em 
que aquellas se achavam installadas ; estabelecida porém 
a necessidade do transporte, nenhuma libata poderia ser 
poupada pelo commercio. 

D'aqui os attritos entre europeus e missionários que 
desejavam vêr numerosa e regularmente frequentadas as 
escolas em que se professavam as doutrinas do Yesso, A in- 
tervenção também dos missionários perante qualquer pen- 
dência entre o commercio e o gentio, originou, n^estes úl- 
timos tempos, não poucos conflictos entre estas duas 
classes de individues. 

Segundo ouvi e me pareceu, os missionários americanos 
têem um grande despreso pelos europeus, se bem que algu- 
mas vezes, em caso de doença, os recebam nas suas mis* 
soes, onde, mediante a competente e aliaz justa remune- 
ração pecuniária, os respectivos médicos lhes applicam o 
necessário tratamento. 

Foi n'um d'estes internatos, segundo também ouvi dizer, 
que um negociante, recentemente chegado do littoral, onde 
contrahira certa doença, foi durante algum tempo tratado 
n'uma missão protestante, não sei de que nacionalidade 
nem em que região, iniciando-se apoz a sua alta, um idên- 
tico tratamento á esposa do chefe da missão, em que o 
referido negociante havia sido hospedado, a qual, pouco de- 
pois, foi enviada para o seu paiz. 

Este facto indecoroso que muitas vezes ouvi referir em 
Angola, e que, como tal, se é que, algum dia se deu^ não 
carece de commentarios, não pôde por si só, lançar uma 
suspeita geral sobre uma classe inteira de individues, na 
sua maior parte digna do máximo respeito e consideração. 



o que o preto qSo tolera, por fónna alguma, ê qne o 
massem, transigindo com tudo mais, e só assim se com- 
prehende a corjente de sympathia qne da parte do gentio 
se estabelece para as missSes de qualquer nacíonalida.ie. 

As catecheses, seja qual fôr o assumpto sobre que ver- 
sem, pelo caracter de facultativo qne se lhes imprime, 
constituem sempre um objecto de mais on menos curiosi- 
dade, que, quando nSo consiga a conversão dos povos, 
diverte pela novidade. 

Em Camundcngo, Sacanjimba, e naturalmente nas de- 
mais missCes protestantes, as catecheses s3o, aos domin- 
gos, realisadas em fórma de espectáculo ou conferencia, 
nos quaes as passagens m&is interessantes da Biblia, se 
apresentam ao publico em projeeçSes de lanterna magica 
que o gentio pôde simultaneamente admirar e commentar, 
ao mesmo tempo qne, do alto de uma espécie de púlpito, 
o missionário animado de uma paciência verdadeiramente 
evangélica, vae successivamente fazendo a explicaçSo dos 
diverscts quadros com que deslumbra a galeria, em admi- 
ráveis trechos de verdadeira eloquência indígena. 

D'esta forma o gentio gosa, incontestavelmente, nada 
tendo que pagar, o que lhe nSo acontece junto do commer- 
mnte europeu, onde tudo lhe sae pago com a necessária 
nsnra. 

E' por tudo isto, o missionário para o gentio, uma en- 
tidade verdadeiramente sobrenatural, cuja norma de con- 
ducta, apparentemente desinteressada, o maravilha e as- 
sombra. 

O respeito com qne o negro se conserva em presença 
do branco, em geral, é uma consequência da superioridade 



de raça ijue lhe reconhece, e do medo que lhe inspira o 
aperfeíçoiímeuto das suas armas, assim como a ousadia 
que tão deãpreuccupadameute o levou ás suas paragens; 
quando, poriam, o brancu è um missionário, esse respeito 
converteu-se n'uma extraordinária veneração que em todo 
o tempo e logar llie proporciona a muxima ;;araQtia de 
invulnerahiliindf. 



Se o negro, algum dia, chega a couvenccr-se de que, pela 
sua superioridade numérica pôde anniquiilar o branco, 
fal-o desapiedadamente, dando todas as largas á feroci- 
dade dos seus instinctos ; comtudo, nas manifestações mais 
«zcessivas da sua cólera, respeita e ouve sempre . o 



143 



missionarío que, n'aquelle momento, deixa de ser um 
iranco, para o considerar como um semi-deus. 

Assim se explica a confiança com qae nas missSes do 
Bailando, durante a ultima rebelliâo, se recolhiam, ao que 
<x>nstou, as mulheres de alguns negociantes e egualmente 
a regalaridade como sempre se fez o transito de carrega* 
dores e o serviço de correio doestas casas, entre Bailundo 
€ Benguella, a ponto de, algumas noticias que, nos primei- 
ros tempos, chegavam ao littoral, serem trazidas pelos seus 
escoteiros, que a simples senha de Affulo garantia a maior 
segurança e protecçSo. 

Affulo é o nome pelo qual o gentio conhece todos os in- 
flezes e americanos, para os distinguir dos portuguezes, a 
quem dá o nome de chindér. Branco é a significação doesta 
palavra; pois apesar d^isso, por chindér apenas é conhe- 
cido o branco que falle o portuguez, chegando mesmo a 
chamar-se chindér a qualquer preto ou mulato civilisado, 
comtanto que estes se sujeitem ao sacrificio de usar calças 
e sapatos. 

Convém notar que, tanto os inglezes como os america- 
nos, embirram solemnemente com esta selecção feita pelo 
gentio, que sabendo isso, usa da boa educação de, somente^ 
empregar a palavra Affulo, na ausência dos individues 
por ella significados, sem que tal denominação, que apenas 
obedece a uma variante de linguagem, envolva a menor 
offensa. 

A denominação chindér é privativa do branco portu- 
^ez. £ tanto assim que aos bóers que muito abundam 
em Angola, empregando-se na conducção dos seus enor- 
mes carros, em que transportam mercadorias, nas suas 
longas viagens atravez do sertão, o gentio conhece pelo 
nome de Vamacua^ palavra que nada mais significa do que 
l)oer, como Affulo apenas significa inglez cu americano. 



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144 



Comtndo são tão somente os inglezes e americanos que 
manifestam o seu despeito em presença de semelhante ca- 
pricho de linguagem, que a sua poderosa influencia n&o 
consegue modificar, despeito que, quando muito, poderá 
encontrar justificação na circumstancia, aliaz curiosa, de 
todo o preto que consegue aprender a nossa lingua, 
empregar invariavelmente a palavra hranco na mesma al- 
tura da phrase em que, anteriormente á sua aprendiza- 
gem, se serviria do vocábulo chindér. 

£ assim dirá, por exemplo, que próximo da sua libata 
se acha estabelecido um branco; que foi consultar um me- 
dico americano ou inglez, e finalmente que viu diversos 
carros, conduzidos por boers, efiêctuarem a travessia do 
rio Cubango, segundo se referisse respectivamente a por- 
tuguezes, americanos ou boers, etc. £m resumo: brancos 
são apenas os, portuguezes. 



Como missão protestante ha ainda no Bihé uma de na- 
cionalidade ingleza, com a sua sede em Chilonda. O seu 
chefe sr. Swan, sua esposa e filhos constituem o pessoal 
d'esta missão, cuja esphera de acção se limita aos povos 
mais visinhos do seu ponto de installação. 

O sr. Swan, verdadeiro gentlemen, gosa de geraes 
sympathias no elemento europeu, que lhe tributa o mais 
profundo respeito e consideração. Homem de cerca de 40 
annos, possuindo uma physionomia agradável, sem perder 
a linha ou aplomh que por via de regra caracterisa os nu- 
merosos súbditos da Gran-Bretanha, conseguiu insinuar-se 
no animo de todos que com elle tenham occasião de tra- 
tar. 



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E' (lotado de lúcida intelligencia qne lhe permittíu adqui- 
rir uma solida instnicçao geral que immenso maravilha, 
pelos conhecimentos profundos que revelia sobre qualquer 
assumpto de que casualmente se trate. 

A sua longa permanência em Africa não lhe tem aba- 
lado sensivelmente a saúde, que me pareceu magnifica, 
em presença do aspecto doen- 
tio que geralmente se nota 
na maioria dos brancoB nos- 
sos compatriotas. 

E sem duvida a diSe- 
rença de commodidades e 
boa hygiene, com que nóa 
portuguezes, por via de re- 
gra, nos não preoccupamos, 
a única explicação d' es te 
facto. 

Em todos 08 pontos da 
Africa, que tive occasião 
de percorrer, vi sempre com 
verdadeira admiração, que 
as mais elegantes edifica- 
ções, as mais confortáveis e 
de melhor situação, sob o 
ponto de vi^ta hygieiíieu, eram ordinariamente habitadas 
per ingle7.es. 

A casa do consulado inglez, em que varias vezes tive 
occasião de visilar o meu dislincto amigo Nilyngalle, as do 
Cabo Submarino em Cabo Verde, S. Thomé, Loanda a 
Benguella, e Jinalmente a residência da missão ingleza no 
Bihé, são tudo quanto em faes paragens pôde consegiiÍr-se 
de agradável, produzindo desde logo a melhor impressão 
no visitante. 



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140 



Duas vezes que tive o prazer de receber a visita do 
missionário Swan, na fortaleza, de uma das quaes aU 
í ' pernoitou, observei que este senhor prefere a viagem a 

cavallo á de typoia, montando por isso um valente jumento, 
meio de transporte com que, segundo me disse, muito bem 
se dava ('). 

A única missão catholica do Bihé encontra se installada 
no Luimbi, a dois dias de viagem ao sul da fortaleza. Era 
constituída por dois padres francezes do Espirito Santo, 
mrs. Bateix e Blanch, as creaturas mais bondosas e agra- 
dáveis com que tratei durante toda a minha permanência 
em Africa. Ambos estes padres me deram a subida honra 
da sua visita, que eu desejaria se prolongasse indefinida- 
mente, tal era o prazer que sempre me dava a boa com- 
panhia dos santos evangelisadores. 

p Luimbi, posto que, como já tive occasiâo de dizer, nSo 
faça já parte de terras do Bihé, de cujos habitantes os 
d'aquella região, nem sequer faliam a lingua, acha-se com- 
tudo, administrativamente, subordinado á capitania-mór do 
Bihé, motivo pelo qual os padres do Espirito Santo se 
apressaram em cumprimentar-me. 

As missões catholicas, francezas ou portuguezas, não 
possuem, infelizmente, as dotações fabulosas, com que, 
pelos governos inglez e americano, são contempladas as 
protestantes. D'aqui resulta para as primeiras uma exis- 
tência de relativa pobreza, que só com grande sacrifício 
lhes permitte a diflfusão das suas doutrinas, não obstante 
serem as únicas que se acham de harmonia com a religião 
official do Estado. 



(^) N*osta missão, como nas americanas, somente se ensina o 
m*bumdo. 



147 



Envoltos sempre nas suas compridas batinas, sobre que 
por vezes assenta uma longa barba, usam para resguar- 
dar lhes a cabeça dos ardores do sol, capacetes brancos, 
de explorador, viajando também pelo sertão, os pacientes 
sacerdotes, montados em bois ou jumentos, por serem 
também os dois meios de transporte mais baratos que se 
póv!e conseguir. 

Nas escolas doestas missSes, se bem que os padres se- 
jam francezes e faltem também, como todos os missioná- 
rios de qualquer nacionalidade, a lingua nibundo e gan- 
gntUas com a máxima correcção, somente se ensina a 
fallir e a escrever a lingua portugueza. 

Existe na verdade uma grammatica de nibiindo escri- 
pta p^lo padre Ernesto Leconte, superior geral das mis- 
sões do Espirito Santo, mas esse livro, além de possuir 
todas as regras escriptas em portuguez, serve apenas para 
os curiosos se dedicarem ao estudo do m^bimdo. 

Junto d'estas missões onde, com grande difficuldade, se 
tem conseguido crear verdadeiri»s núcleos de colonisação, 
todos os pretos, além de fallarem regularmente o portu- 
guez, sãu baptisados, e constituem familia (*) consorcian- 
do-se segundo as leis da egreja, da qual, tanto quanto 
possivel, seguem todos os demais preceitos, assistindo 
ao santo sacrincio da missa com uma notável devoção, 
etc, etc. 

Têcm adquirido o amor de propriedade, realisando cons- 
trucções íle adobes que procuram aperfeiçoar o mais pos- 
sivel^ dando lhes um cunho de permanência, que se não 
encontra nas diversas libatas do gentio. 



(') Depois de abandonarem o svstema de polygamia, gerai» 
mcute seguido por te do o gentio. 



148 



Com diiScuIdades sempre grandes, em consequência do 
seu feitio indolente por natureza, também, ainda que em 
pequena escala, se tem procurado incutir no gentio o estimulo 
do trabalho, levando-o a agricultar os campos de maneira 
diversa, pela forma e pelo intuito, dos seus primitivos pro- 
cessos de cultura. As minhas relações com esta classe de 
missionários foram sempre as melhores, desde o dia em 
que, antes ainda de ter recebido a honra da sua visita, 
lhes enviei um grande maço de correspondência que lhes 
havia sido enviada para a estação postal do Bihé, e não 
pelo correio especial que, ordinariamente, todas as missões 
enviam a Benguella. 

Penliorou-os o meu proceder e muito mais a circumstan- 
cia de ir já pago o escoteiro, mandando-me por elle um 
sacco de magnificas batatas produzidas nas laxTas da sua 
missão, entregando uma amável carta ao escoteiro, em 
que, além do seu penhorado agradecimento, me era apre- 
sentada proposta que acceitei, de, sempre que houvesse, 
lhes enviar a sua correspondência para terem assim occa- 
sião de mandar novas remessas de batata que possuiam 
em grande abundância, e hortaliça. 

Tinha immensos desejos de ir ao Luimbi visitar a mis- 
são do Espirito Santo, satisfazendo assim, não só aos in- 
cessantes pedidos dos dois sympathicos sacerdotes, mas 
também ao desejo que tinha de conhecer a região ; infeliz- 
mente, porém, a inesperada e triste noticia do fallecimento 
de meu pae tirou-me a boa disposição para qualquer outro 
emprehendimento que não fosse o da minha retirada. 



o commercio no llíhí — Primitivos nugociaites — Sua eiplora- 
ç5o pelos fhhiií — PfínuutR— Ba»z'i» — BorrncliR Malar — 
Equim — Chitola — ChirUla — Como o gentio ae individa com O 
negociante — farrepadores — Sou luvantumento — liicalo» — 
Gastos o pagaraeDtos. 

Muitos annos antes da occiípação militar do Bihé ji 
D'esta re°'Íão se achavam, comn tive occasiSo de dizer, nSo 
só o velho sertanejo Francisco Ferreira da Silva Porto, como 
os commerciantes Bonifácio José Basquete, Francisco Fer- 
nandes Eelvas, João Baptista Ferreira, Caetano José Fer- 
reira, José António Alves, o companheiro de Cameron, 
Guilherme José Gonçalves (o CamUmba), pae de Joaquim 
Guilherme Gonçalves, a que já tive occasião de referirme, 



150 



e filhos do irajor de 2.* linha Filippe José Coin.br.v (o 
Chipipa). 

De todos estes negociantes, a que vulgarmente .m^ dá o 
nome de f imantes, foi sem duvida Silva Porto aquelle que 
SC aventurou a viagens mais longínquas, e por esse facto 
mais perigosas, cujos itinerários podem vêr-se desde mui- 
tos annos marcados em cartas d'Africa que se têem pu- 
blicado no extrangeiro, onde, como em Portugal, sua 
pátria, a memoria do honrado sertanejo é justa e merecida- 
mente respeitada. 

Consta ter Silva Porto entrado no Bihé, vindo de Loanda 
por Fungo Andongo, adquirindo por compra a um napo- 
litano, o pequeno recinto que successivamente foi augmen- 
tando, e transformou por íim na importante libata em que 
viveu o melhor de cincoenta annos da sua existência. 

As viagens ao littt ral realisavam-se n*esse tempo por 
Caconda; Silva Porto, porém, conhecedor dos assaltos sof- 
fridos pelas caravanas de gentio n'aquella região, conse- 
guiu em 1845 descobrir um itinerário inteiramente novo 
pelo Bailundo e Quissange (*) que, de resto, offerecia a 
grande vantagem de encurtar sobre maneira a viagem para 
Benguella. 

As regiões de preferencia percorridas por Silva Porto 
foram as de Barotze, valle do Zambeze e Linhianti. 

Durante a sua viagem encontrou-se Silva Porto com o 
explorador inglez, David Liwington, e na região dos Lui 
com o sohha Sibitane, que, tendo sido expulso da con- 
tra-costa, conseguiu pela sua vez expulsar os naturaes tor- 
nando-se solla doesta região. 

Guilherme Gonçalves, o Candimba (Idyt^e), foi egualmente 
um dos primeinis viajantes do Mucusso, para onde se foz 



r 

f' £ O que actualmente seguem as comitivas. 



lõl 



acompanhar por seu filho Joaquim (o Chindandtr) que, 
como tive occasiâo de dizer, muitos annos depois servia 
de guia ao valente capitão Paiva Couceiro, quando este 
official reduziu á vassalagem o solha doesta região. 

A Garanganja foi sempre a região predilecta de José 
António Alves, etc, etc. 

Eram grandes os trabalhos experimentados pelos euro- 
peus que n'esses tempos se aventuravam, não digo já para 
as regiSes que acabo de apontar, d^onde regressavam a 
maior parte das vezes por um verdadeiro milagre, mas 
mesmo no próprio Bihé, onde, se queriam praticar livre- 
mente o commercio e conseguir carregadores para o trans- 
porte das suas mercadorias, tinham de sugeitar-se aos 
caprichos dos solhas, que nas suas pessoas exerciam uma 
verdadeira exploração, quer exigindo-lhes presentes, espé- 
cie de licença para a sua installação n'um determinado 
ponto, quer atando-lhes repetidos mucanos pelo mais insi- 
gnificante pretexto, com o fim de lhes apanhar successi- 
vas braças de fazenda. 

O systema de negocio com o gentio foi, e é ainda hoje, 
o da permuta de fazendas varias, como chitas, riscados, 
lenços, camisas, chapéus, etc, ou tachas amareUas, mis- 
sanga variada, aguardente, etc, pella, borracha ou mar- 
fim que o gentio chimhundu, conmierciante por verdadeira 
mclinação, vae funar em numerosas comitivas, que no seu 
regresso ao Bihé abarrotam com os referidos géneros. 
A permuta fez-se sempre a retalho ou por atacado: 
A primeira tem logar pela venda, como n^uma mercea- 
ria, em que a aguardente é medida ás garrafas, as fa- 
zendas ás jardas, e o sal pesado a borracha. 

A permuta por atacado, até 1899, realisava-se, princi- 
palmente, nas casas commerciaes do littoral, Benguella e 
Catumbella, onde se dirigiam as caravanas de gentio, 



152 



conduzindo enormes carregamentos de horracha, que o ex- 
cessivo preço d*este género attrahia em grande quantidade. 

A crise commercial, cuja origem por diversas formas se 
tem pretendido explicar, coliocou durante estes últimos 
tempos, aquellas cidades n'uma situação de verdadeiro 
desespero, que, felizmente, ao que consta, tende a melho- 
rar consideravelmente, sem, comtudo, attingir a grande 
influencia d'outros tempos. 

A elevação successiva do preço da borracha, durante 
o anno de 1898, em que este género chegou a attingir a 
bella cotação de 2^5400 réis, deu margem a que muitas 
casas commerciaes do littoral, no intuito de attrahirem as 
caravanas de gentio, e esperançadas sempre na indefinida 
subida de preço, dessem repetidos e puchados tingues (es- 
pécie de gorgêta), em que muitas vezes a borracha lhes 
ficava paga pelo triplo do seu valor. 

De repente deu-se uma baixa enorme na cotação da bor- 
racha, não podendo então o commercio aguentar-se com 
os preços fabulosos que vinha estabelecendo ao gentio, a 
quem começou pagando este género por muito menos do 
que elle estava já habituado a receber, não sendo preciso 
mais nada para que este, desde logo, retrahisse o seu 
negocio, em que, sem outras considerações que não pode 
comprehender, se considerou roubado. 

Uma grande parte dos pequenos negociantes do litoral, 
não podendo assim aguenlar-se com as suas casas, segui- 
ram para o sertão, especialmente para o Bailundo e Bihé, 
sustentando se apenas as casas mais poderosas, com as re- 
messas enviadas pelos seus numerosos aviados do interior. 

Estes, porém, começaram estorvando-se, especialmente 
no levantamento de carregadores, que não podiam chegar 
para tantos, seguindo-se as graves complicações, mais ou 
menos conhecidas. 



lia ainda o negocio de haiizos, em que o oommerciante 
dislribne pelos fuinòeirua (finmnti-s indígenas), um certo 
numero de valorea, geralmente em fazendas, cada um de 
importância invariável (hanzo») confirme o tim a que es- 
(('s se destinam. 



Recebidos os banzns pelos finii'iei'roii, reuiem estes em 
grupos mais ou menos numerosos n'um ponto de concen- 
tração previamente determinado chilomho (acampamento), 
fm que arvoram uma bandeira, e, quando já nSo falte 
DÍD^em da comitiva, iniciam então as suas viagens por 
fsse sertão fora, em direcções variadas, segundo o intuito 
eommercial das respectivas caravanas. 

Xo regresso ás suas terras, ordinariamente ao Hm de 
muitos mezes de ausência, v3o os fH»d>eiros procurar 



154 



os seus fornecedores a quem, por cada banzo recebidd, 
entregam um volume de borracha, marâm, etc, cujo pczo 
varia com o valor do banzo, 

O bom ou mau ezito d'esta espécie de negocio, em que 
alguns commerciantes por vezes empatam grossos capi- 
tães, depende do resultado colhido feios futnbeiros a quom 
os banzas foram distribuidos. Acontece muitas vezes as 
comitivas serem assaltadas e pundadas (roubadas) pelo 
gentio de certas regiSes, que se vêem obrigadas a 
atravessar, recolhendo aos chimbos, por forma a não po- 
derem pagar aos seus fornecedores. 

N'este caso, se o commerciante tem consciência, espera 
mais um anno pela realisaçâo de nova viagem do senfum- 
beiro que finalmente lhe vem a pagar. 

Estes contratempos dão logar, ordinariamente, a com- 
plicações com o commerciante europeu que se não ache 
revestido da paciência necessária para esperar por algum 
tempo a realisaçâo do seu negocio, motivo pelo qual nem 
todos se dedicam a esta espécie de commercio, que da sua 
parte, o gentio somente também pratica com um determi- 
nado numero de individues que lhe inspire a necessária 
confiança. 

E talvez Felisberto Guedes de Sousa (AmbuêteJ (*) ar- 
roj:ido sertanejo e antigo negociante, o europeu que, no 
Bihé, durante os últimos annos, tem distribuido maior nu- 
mero de banzas pelo gentio, que por este homem tem um 
verdadeiro respeito e admiração. Esta boa disposição do 
gentio para com Felisberto Guedes é uma consequência 



(*) Amhucte, em m*bundo pau, é o nome pelo qual o gentio co- 
nhece Felisberto Guedes. É costume do gentio, naturalmente para 
evitar defeitos de pronuncia, dar nomes aos diversos europeus com 
quem mais de perto convive. 



155 



da sna honestidade e incomparável paciência, que, dentro 
dos limites do razoável, lhe tem permittido transigir nas 
diversas conjuncturas que a cada momento se dSo no com- 
mercio com o negro. 

Existem, como este, mais alguns commerciantes, alvo 
das maiores sympathias dos povos que se lhes avisinham 
e aos quaes, por via de regra, chamam como protectores 
quando se sentem victimas de qualquer acto mais ou me- 
nos violento da parte de um ou outro individuo que, feliz- 
mente em pequeno numero, se aventura pelo sertão. 

Nas pequenas compras serve se o biheno sempre da 
borracha, que é a sua verdadeira moeda. Para isso adopta 
como unidade o mutar, (cinco bolas ligadas). Dois mutarea 
ligados entre si, formam o équim que tem dez bolas ; dez 
ifiinê a chitota^ com cem bolas; e dez chitoiaa a chirilla, 
com mil, sendo estes, como se vê, os múltiplos do mutar. 

Doesta forma podem comprar pequenas quantidades de 
aguardente, dando geralmente um équím por um copinho 
de um decilitro, e uma chitota pela garrafa cheia. 

O mutar apenas serve para o pagamento de uma pe- 
quena porção de sal, n'um pezo egual ao da borracha, 
etc., etc. 

O gentio, porém, nem sempre tem borracha que possa 
iazer face ás suas repetidas borracheiras, comprando quasi 
sempre fiada a aguardente que bebe, de sociedade com os 
seus amigos, cujo numero, como em terras da Europa, 
ordinariamente se avalia pela craveira pecuniária de qual- 
quer cidadão. 

Nem sempre o commerciante se alarga com estes indi- 
vidues que, no acto das suas compras, pouco mais fazem 
do que apregoar as suas colossaes fortunas, intitulando-se 
repetidas vezes de fuvibeiro enema (grande funanté). Um 
dia, porém, que a conta attinge uma cifra importante, é 



pp^ 



J56 



esta apresentada ao borrachão, que a ouve lêr com natu- 
ral indifferença limitando- se apenas a aífiançar que tem 
muito por onde pague. 

Ordinariamente, perante a recusa dos seus pedidos de 
aguardente, que o entranhado vicio lhe nSo pôde dispen- 
sar, lá se resolve a m^indar ao chimbo buscar uma pequena 
parcella da importância do seu debito, com que, por 
então, engoda o seu fiador, continuando a embriagar-se 
a todo o momento, amontoando assim consideravelmente 
as suas dividas, que, não raro, chegam a attingir a cifra 
de 500^000 a 600íK)00 réis ! 

Um dia, porém, esgota se a borracha, e depois is inces- 
santes pedidos do seu credor, vem finalmente a declaração 
formal da impossibilidade do pagamento, que o preto pro- 
mette satisfazer no seu regresso das Ganguelhia. E umas 
vezes bem, e outras mal recebi.ia esta proposta pelo com- 
merciante, que, por fim, se vê na dura necessidade de 
transigir, recebendo mais tarde juros e capital, se o seu de- 
vedor não tem a má sorte de deixar a pelle pelo cami- 
nho. 

A contingência doestes negócios com o gentio e as pro- 
vaç5es de toda a ordem, experimentadas pelo negociante 
sertanejo, justificam, até certo ponto, a usura que o euro- 
peu se vê forçado a praticar no seu commercio, p&ra que 
da sua permanência no sertão, possa finalmente resultar-lhe 
algum proveito. 



* 



Sendo o carregador indigena, por assim dizer, o único meio 
de transporte de que se serve o commercio de Benguella, 
poderá imaginar-se o enorme formigueiro de comitivas 
que, dada a normalidade commercial da região, percorrem 



1Ò7 



CS caminhos do sertão de sua própria conta, ou mandadas 
pelos diversos aviados do interior do districto (*). 

Para o levantamento de um determinado numero de car- 
regadores, entende-se, ordinariamente, o commercianle com 
o sobha de qualquer região ou séculos dos seus bican- 
jo8 (libatas que lhes são subordinadas). Realisado que seja 
o contracto, quasi sempre muitos mezes antes do levanta- 
mento, tem desde logo opportunidade a entrega dos bica- 
tos, espécie de signal que, não obstante ser dado }.elo 
negociante, estabelece por esta forma, para o gentio, o 
formal compromisso do angariamento dos homens. 

Fallados os carregadores e reunidos pelo sobba ou sectUo, 
em numero egual ao dos bicatos recebidos, tem então logar 
a distribuição dos gastos, n'uma importância que tem va- 
riado com o desenvolvimento commercial da região, e que 
slo destinados á compra de mantimentos necessários para 
a sua alimentação durante a viagem. N'um determinado 



(*) O transporte de europeus faz-se ordinariamente de tipóia 
(r^de), a cavallo em muares ou bois, chamados bois cavallos. Es- 
tes beis, que sao dcmesticados desde muito novos para este íim, 
fuendo-os transportar repetidos saccos de areia, são finalmente 
spparclhados como qualquer cavallo, á excepção do arreio de ca- 
beça, qae se reduz a uma rédea partindo de cada lado de uma ar-. 
^la que fura as ventas do animal. O boi cavallo, além de não se 
achar tão exposto a doenças como a muar ou o cavallo, resiste 
melhor a uma longa viagem. 

Ka passagem dos pântanos a conformação especial das patafl 
permitte-lbes desenterrarem-se com relativa facilidade do lodo, 
o que Dão se dá com os animaes da raça cavallar, cujo casco, for- 
mado de uma só peça, os sobrecarrega com o esforço que têem de 
exercer paia vencerem á pressão athmospherica a cada movi- 
mento asccncional dos membros. Outro tanto não succede ao boi, 
em que o ar, immediatamente penetrando por entre as unhas, lhe 
facilita a marcha, apenas sugeita aos attrictos do lodaçal. 



dia dirígem-se os carregadores i feitoria commercial qiie 
os levanton, onde lhes é feita a distribuiçSo das caibas, 
n'nm peso qiie varia de 30 a 3-.Í kilogrammas de borra- 
cha, marlím ou cera. 

Sentados os carregadores respectivamente sobre os vo- 
iimes que lhes foram confiados, toma cntâo o commer- 



ciante nota dos nomes de cada hoinein, l<imando-08 assim 
responsáveis pela entrega exacta e fiel, no local do destino, 
do mesmo numero de kilos que n'aqiielle momento vira 
pe/,ar. 

Seguidamente, lançando os carregadores mSo dos 
ijhimangu» que previamente teve o cuidado de prepa- 
rar, liga-os solidamente de cada um dos lados da sua 
carga e nas extremidades oppostas, por meio de landobe 



(cucas de an'ore) aiTOmptando-se assiti' todos para a 
pariida ('). 
Concluído, pois, o trabalho Ae amarração das cargas, 
dirige-se entSo o cAíí- 
*ongo (chefe de comi^- 
va) ao commerciante, 
pedindo lhe a mucattda 
jw, (carta) que, depois de 

recebida, envolve cni- 
dadosaniente n'um pe- 
' daço de oleado que tem 

I o cuidado de pedir, afim 

de preserval-a da agua 
I <las chuvas ou de algum 

I banho, por occasiSo da 

I>as5agem dos lios, en- 
talando-a por fim n'uma 
varinha de 50 cenlime- 
Iros, fendida longitudi- 
nalmente até um terço 
do seu comprimento, de 
(jue, seguidamente, li- 
^am cuidadosamente as pontas, superiormente á carta para 
nua cahir. 



l') (Momango é palavra euiprt;gH[lH pelo chiminindu para signi- 
ficar iloii varapaus da sua altura que, ligados solidam ir q te k sua 
'^"gn. D03 termos nciítia initicaitos, lhe pennittem cucostal-a a 
■una irvore einqiraiito deaeanraiii, collocando-a aovaniente sobre o 
lionibro on A c»bcça sem auxilio de outra pessoa, que, por esta 
-imples dísposiçiío se torna perírltameute díspensavvL 

Estes varapaus pcrmittuin tanibem ao carregador, segurar cora 
maÍ4 facilidade certos volumes rpie, pela sua forma especial, lhe 
ol{<;ncciii mau geito no transporte. 



Assim, ptiis, se acha a comiliva prompta para seguir ao 
seu destino; uma furmalidaile, por^m, se torna indispensá- 
vel preencber, sem a qual o preto, em geral, se não sento 
com disposição de prestar qualquer serviço— a data do 
nuUambi<;ij — matabicho — que a todos é dado juntamente' 
com algum sal e duas ou Ires caixas de phosphoros. §.4 

As comitivas de gentio, viajando sem a companhia di^ 
europeus, raríssimas vezes realisam uma marcha de ida u 
regresso entre Bihé e BengueJIa em tempo inferior a &' 
dias, nos quaes se contam dois ou três de permanência 
no litoral, onde, por via de regra, llies são distribuídas ou- 
tras mercadorias, e feito o pagamento do transporte. 

Uma vez de volta, entrega o clnsaongo a mucanda ao 
commercianto, que por ella confere as cargas conduzidas, 
despedindo os carregadores, que seguem satisfeitíssimos 
para os seus chimbvs, depois de pela ultima vez lhes le- 
rem servido um abundante mutiiMclto. 



KeUfSea da anctoridade com o gentio — Seus campiim entoa offidaes 
~ Pie Rentes e ana retriboição — Xiealo \»obba do 14'dulo| 
ÃdmÍDÍstrafSo da jnatiça — O mucuno— Crimes predominan- 
tee — O adultério como fonte de receita do gentio — O volungo 
— A feitiçaTia e impossibilidade da aua repTossão — Cobrança 
de dividas — Cadáveres de *ec&lt>» individados e procedimento 
dos parentes para com elles. 



As reUçSes dos commandsntes militares ou capit&es-móres 
com o gentio começam também com os cumprimentos, 
qae geralmente iniciam os vários aobbas e aecúloê, alguns 
dias depois da chegada d'aquelles, prolongando-se durante 
os primeiros tempos da^sua adminislraçilo. 

Ocupassvla, cumprimentar, foi sempre pratica corrente 
do gentio para com o seu grande »ohba cujas attribuiç&es, 
depois da occapaçSo militar fez recahir no capitfto-mór, a 
quem denominou osoma-i-étu (nosso sobbaj. 

NSo é fácil de um momento para o outro, modificar os 
costumes de certos povos gentílicos, por mais devotados 



162 



que n'esse sentido sejam os exforços de uma auctori- 
dade. 

A civilisação de taes povos é sempre uma natural con- 
sequência da realisação de successivos melhoramentos ma- 
teriaes, devidamente conjugados com o exercicio sábio c 
presistente de numerosos missionários, a cujas congrega- 
çSes o Estado não regateie as dotaçSes necessárias para o 
desenvolvimento e proíicuidade da sua obra. 

A tensão do vapor é quasi sempre a força propulsora 
d'essa civilisação, de que o silvo da locomotiva indica, para 
assim dizer, o momento de chegada. Vem longe ainda para 
nós esse momento, a partir do qual deverão redobrar as 
nossas attençSes, exercendo-se o melhor da nossa activi- 
dade, para que essa obra de engrandecimento intellectual 
jamais possa reverter em proveito de extranhas e occultas 
ambiçSes. 

Entretanto, as coisas são o que são, bem podendo consi- 
derarse como extemporâneas quaesquer pretensSes ten- 
dentes á immediata reforma de costumes e promulgação 
de leis, que só o tempo e as circumstancias poderão sa- 
biamente dictar-nos. 

E, assim, accei taremos o cumprimento de qualquer ne- 
gro, com todas as bobices e divertidos tregeitos que o ca- 
racterisam, correspondendo, segundo os usos e costumes 
do gentio, com o qual, por todos os motivos, nos convém 
manter as melhores relações. 

Como exemplo de cumprimentos de negros citarei o de 
Xicaio^ sobba do- Nódulo, um dos potentados de maior 
prestigio, e chefe indígena d^uma das mais populosas re- 
giSes que se acham subordinadas á vastíssima capitania- 
mór do Bihé: 

Havia terminado o meu almoço de um dos primeiros 
dias de junho, quando o sussurro dos soldados da guarda 



■?•> 



] Cu) 



me chamou a atíenção, deixando-me prever qualquer acon- 
tecimento extraordinário. Não tardou que na encosta do 
Xjamba, fronteira de Belmonte, descobrisse enorme comi- 
tiva, em que se disting^uia uma typoia, descendo vagarosa- 
mente o monte em direcção á fortaleza. Momentos depois, 
eomo que para denunciar a sua proximidade, algumas no' 
tas profundamente graves e estridentes, foram desespera- 
damente sopradas n*um descommunal instrumento metallico 
ijue da vertente fronteira, por entre a numerosa turba do 
P?Dtio, emittia lampejos de luz, que se coavam atravez 
duma espessa nuvem de poeira. 

Toda a comitiva, tendo transposto o Cuito, trepava já 
para Belmonte, vendo então d'uma janella apparecer o 
(rimeiro troço de gentio, constituido por cincoenta carre- 
«radores que a este sobba haviam sido pedidos, e marcha- 
vam na frente, armados já com os competentes olonango 
«11 varapaus com que seguravam as suas cargas. 

Seguidamente apparecia o solha, apenas precedido por 
iinua pequena linha de músicos, executando, incançavois, 
nama espécie de pifanos, uma exhotica composição, a 
ijue, no meio da sua insupportavel monotonia, se tinha 
inprímido um certo cunho de tristeza. 

Era esta musica desastradamente acompanhada por um 
velho e ameigado íigle de largas chavetas, que tapavam 
Imracos [como punhos, devendo ser enorme o exforço exer- 
cido pelo seu curioso executante que guardava, ad lihitnm, 
immensos compassos de espera, como que para adquirir 
alento que lhe permittisse arrancar do instrumento as 
cinco notas que invariavelmente fazia soar de minuto a 
minuto, enchendo de vento as bochechas e retezando po- 
derosamente as veias. 

Este homem, de cerca de quarenta annos, alto, secco, 
com feiçSes de mulher, profusamente crivadas de signaes 



de varíoU, er& de todos os executantes o mais curioso, 
não só pelo seu feitio especial, como pela grotesca pose de 
que se achava possuído, a qual, naturalmente, lhe resultava 
da adnúraçUo que entre o gentio produziam as suas apti- 
dSes musicaes, que as difficuldades de execução sobrema- 
neira exaltavam. 

Atraz do tobha caminhavam, reverentes, algumas deze- 
nas de eecúlos, que constituíam o seu consflho de es- 
tado, por entre os 
quaes fervilhavam pe- 
quenos muleques que 
lhes transportavam os 
bancos (catujruu). 
f Uma vez dentro do 

V recinto da fortaleza, 
w toda a comitiva se sen- 
tt tou immediatamente ; 

V os aecúloa nos bancos 
^ que lhes foram apre- 

V ■ ' sentados pelos seus 
■'^ muleques, todos os 
'*\-^ ^ demais no chSo ou de 

' , . cócoras, sua posiçSo 

■ . predilecta, conservan- 

do-se o sobba em pé, 
assistindo, vaidoso, á concentraçSo da sua numerosa corte. 
Este é sempre o ultimo a abaucar-se, tomando assento no 
meio de todos os seus súbditos que, teudo^aguardado com 
reli^osa attençSo este momento, introduzem dois dedos 
na bocca, com que produzem um assobio^unisono e agudo, 
que fazem acompanhar de uma rápida salva de palmas. 
Esta ruidosa manifestação, repetida invariavelmente to- 
das as vezes que o tobba se assenta, é signal^de res- 



peito de natureza tal, que somente oom os verdadeiros 
Mat se pratica. 

Sentado o Xicato, supersticioso oomo tudos os tobhas, 
procurou desde logo afugentar os espíritos maus que por- 
veatara em volta d'elle se eucontrassem agitando o seu 
lalisman, espécie de gnízo de creança, que sacudiu por es- 
paço de cinco minutos em todas as direcções, mandando 
s^gaidamente tocar a musica 
para apresentar os seus cumpri- 
meolos officiaes que fez prece- 
der do offerecimento de um ma- 
gnifico boi, , 

ConLecedor já d' estes costu- 
mes e do procedimento qup em 
tal oonjunctiira deveria seguir, 
mandei entregar ao sobha duas 
ichoretas de aguardente, con- 
tfndo cada uma cerca de 30 
garrafas, a qual este fez abrir 
<■ serviu a todos por suas pró- 
prias mãos, desde o seu pri- 
meiro tec&lo ao mais Ínfimo dos 
it\is mu leques. 

A retribuição dos presentes 
recebidos do gentio, era feita -^ ,, 

pur conta das auctoridades pre- 
senteadas, muitas vezes com um valor egual ou superior 
ao do presente recebido, que, naturalmente, reverlia como 
indemnisaçâo, em proveito das mesmas auctoridades, que, 
á oHtra forma, seriam, ao fim de alguns mezes, duramente 
prejudicadas. 

Convém dizer que s<Ímente aos governadores geraes ou 
«ledistricto é, por lei, auctorísado o aproveitame^to de uma 



i 



]()« 



verba especial abonada pelos orçamentos geracs das pro* 
vincias ultramarinas para retribuiçSo de presentes aos soh- 
bas, sendo por isso justo que reverta em beneficio da 
fazenda nacional, o producto da liquidação dos presentes 
que recebem. 

D'aqui parece, á primeira vista, que somente os gover- 
nadores deveriam acceitar estes presentes e da mesma 
fórma retribuil-os, sendo isso vedado para as demais aucto- 
ridades, o que realmente representaria uma grande com- 
modidade, se de tal pratica não resultassem as mais gra- 
ves complicações, originadas perante a mais significante 
recusa; a verdade, porém, é que sã# justamente os chefes dos 
concelhos do interior, pelo seu maior contacto com o gen- 
tio, as entidades mais frequentemente cumprimentadas e que, 
por consequência, recebem maior numero de presentes. 

Só quem desconhecesse em absoluto os costumes do gen- 
tio e especialmente a desconfiança e ruindade do seu ca- 
racter, poderia admittir como exequivel a recusa de qual- 
quer presente offerecido por um sobba ao seu capitão-mór, 
quando a verdade é que a troca d'estas dadivas bem pôde 
considerar- se como a maior garantia de segurança e boas 
relações com os diversos povos do sertão. 

O discurso de Xicato^ como em geral o de todos os sob- 
basy consistiu, principalmente, nos mais sinceros protestos 
de vassalagem e fidelidade, que por via de regra, terminam 
com quatro tombos que o orador exhibe sobre a terra de 
que finalmente se cobre por completo. 



* * 

A administração da justiça ao gentio, em que é seguido 
o regimen da indemnisação, foi no Bihé, em tempo, exercida 






167 

I 



pelo sobba grande ; realisada, porém, que foi a occupaçAo mi- 
litar, e deportado o sobba da região, começou desde logo o 
gentio a considerar o commandante militar como seu sobba, á 
presença do qual se dirigia para a decisSo das suas n^dcÊCtu. 

Foi o gentio sempre attendido por estas auctoridades, 
sendo as suas questSes resolvidas de harmonia com as ve- 
lhas leis e costumes predominantes, que as mesmas aucto- 
ridades foram pouco e pouco estudando. 

Entre o gentio do Bihé suscitavam-se pleitos variadís- 
simos que não podian ser previstos ou comprehendidos 
pela nossa legislação, mas que também não podiam deixar 
de ser attendidos e resolvidos, segundo as leis e costumes 
bihenos, afim de manter-se uma certa auctoridade e pres- 
tigio, evitando complicaçSes de que resultariam contendas, 
que teriam como consequência inevitável a guerra entre 

08 povos. 

Os casos de feitiçaria, infinitamente complicados, são os 
que maior contingente dão para as questSes entre pretos, 
e por maiores que sejam os esforços empregados pela 
auctoridade no sentido de convencel-os do erro em que vi- 
vem^ procurando até com exemplos frisantes destruir as suas 
arraigadas superstições, nada mais pôde conseguir-se de que 
um sorriso de desconfiança, acompanhado de uma troca 
de olhares de significativo desdém, com evidentes manifes" 
taçSes de contrariedade, que invariavelmente terminam pela 
retirada successiva de todos os individues que momentos 
antes se apresentavam deante da auctoridade, a quem, nO 
seu intimo, passam o diploma de incompetente, suppondo-a 
sem poderes sufficientes para a resolução dos seus pleitos* 

D'aqui resulta irem ter com o primeiro secúlo seu visi- 
nho, quando não procuram algum negociante que, se para 
isso tem feitio, atana o mucano com grave desprestigio da 
auctoridade. 



170 



próprio da solemnidade do caso, taes são as peripécias e 
incidentes divertidissimos que, no decurso de taes pleitos, 
a cada momento se suscitam e que muitas vezes me força- 
vam a abandonar o meu posto, se não queria rebentar de 
riso na presença do gentio. 

Maravilha ver como um preto se eiforça em comprovar 
» infidelidade da sua mulher, que, de mãos dadas com o 
marido, egualmente emprega, sem o menor rebuçoi o me- 
lhor da sua eloquência na coniissão excessivamente deta- 
lhada da sua falta, em que as mais intimas e particulares 
minúcias, chegam a vir a lume, desde o simples namoro 
até ao acto final da seducção, que a desbragada, natnral- 
menle, descreve, n'uma obscenidade de linguagem e gesti- 
culação, de que não é fácil encontrar-se precedente. 

Da sua parte o accusado que assiste i discussão da 
causa, desejando a todo o custo subtrahir-se ao pagamento, 
protesta, cm termos vehementes e não menos deshonestos, 
contra as affirmativas da sua seductora, procurando com 
denodado empenho destruir a accusação, ou pelo menos 
reduziUa, com a apresentação de attcnuantes por vezes mais 
divertidas ainda do que a própria accusação. 

Queixosos e accusados, porém, no decurso dos debates, 
offerecem reciprocamente as suas pitadas, como se estives- 
sem nas melhores relaçSes possíveis, chupando até do 
mesmo cachimbo que, por ventura, qualquer dos três ac- 
cenda. 

Finalmente, liquidada a questão, seguem satisfeitíssimos 
para os seus chimhos (aldeias), onde com a entrega dos 
tantos volumes, fica inteiramente illibada a honra do ma- 
rido ultrajado, que do producto doeste pagamento compra 
algumas braças t e pintado (chita) com que brinda, reco- 
nhecidíssimo^ sua esposa, pela forma hábil e intelligente 
como se houve durante a sua ausência. 



Por outro lado o seductor, desprr^ndeodo-se com ap- 
parente índifferença dos volumes que teve que pa^ar, de- 
clara, com certo orgulho, qae pnfjoii porque tinha por onde 
•pagaste. 

Na decisão de alguns pleitos nSo se consegue, piir falta 
de provas, chegar a descobrir de que lado se encontra a 
razUo, havendo, de ordiná- 
rio, um ou outro secúlo que, 
levantando- se, lembra a con- 
veniência de que as duas 
partes litigantes vSo beber 
o volungo. 

Volungo, juramento, va- 
ria com os diversos povos 

e com o 6m a que se des ' 

tina. Xoa casos de duvida [ 

a que alraz me referi, ape- 
nas se pretende averiguar 
de qual das duas partes se 
encontra a razão, perden- 
do-a e ficando queimado, 
aquelle que vomitar, tendo 

ingerido um liquido que lhe é ministrado por um chim- 
banda. 

Este individuo, espécie de mezinheíro, mais intelligente 
e manhoso do que os seus visinhos, conhecendo as proprie- 
dades medicinaes de certas plantas, prt^para dois líquidos 
da mesma cõr, de que um produz fortes vómitos, podendo 
o outro considerar-se inoSensivo. 

No momento solemne, seguidamente aos discursos pro- 
nunciados por cada uma das partes, i este ultimo liquido 
dado pelo ckimhanãa ao individuo qite melhor lhe pagou, 
oSo tardando que o outro, sentindo-se fortemente enjoado, 



172 



vomite todo o liquido que bebeu, sendo assim considerado 
queimado. 

A profissão de quimbanda é sobremaneira rendosa, ap- 
plicando-se não somente ao mister de adivinhaçSes, como 
ao tratamento medico ou cirúrgico de certas doenças, em 
que chegam a ser consultados por alguns europeus que, 
segundo dizem, tiram de tal tratamento os melhores resul- 
tados. 

Quando o juramento se applioa a individuo sobre quem 
pesa a terrível acciisação de feiticeiro, o volungo acaba, 
ordinariamente, por tirar-lhe a vida, depois do que é o seu 
corpo ignominiosamente arrastado por montes e finalmente 
abandonado á voracidade das feras. 



A vida do biheno, fora de uma ou outra viagem de com- 
mercio que nem todos os annos realisa, é empregada na 
constante decisão dos seus pleitos, verdadeira cobrança 
de dividas que a muitos séculos augmenta poderosamente 
os seus haveres. Seguidamente á morte de qualquer ne- 
gro, o sobrinho, seu legitimo herdeiro, passados os feste- 
jos do óbito, immediatamente se emprega na cobrança das 
dividas do fallecido, atanando os seus mucanos. 

Se, pelo contrario, este negro, em consequência do 
seu feitio conflictuoso e discipador, deixou dividas que os 
seus reduzidos haveres lhe não permittem pagar, nenhum 
individuo se denuncia como seu parente, para não assumir 
a responsabilidade dos seus compromissos, que teriam de 
ser satisfeitos aos credores do morto. 

O enterro de qualquer seciUo fallecido no Bihé e respe- 
ctivo festejo do seu óbito, é sempre realisado pelos seus 



■««M 



■e- ' ^ 



173 



parentes mais próximos; ora não se apresentando ninguém 
como parente, fica o cadáver indefinidamente insepulto, 
sendo envolto n'uma espécie de cortiço convenientemente 
fechado, e finalmente collocido sobre uma arvore a uma 
altura em que as feras lhe não possam chegar. 



n«iP«M 



Al lerrMB de Bihé — Configaratto e f«rtíUd*de do solo — Clima — 
Altilode — Hibitsntea do pa» — li«nt cottumea « aUmeutaçSo 
— a garapa — AoMat e )iiÍDeipaea dignitarioi da cOrte — Batu- 
ques— Chinfugo — Oi obitoa « Kni featejoi — Enterroi -Ba* 
palturaa— O ebimbaQdiamo^ONiMMpa aerena — Caprichoaoi pan- 
teadoa — Lfnçoa da aaaoar — Uaueira coaw BpraseuUm aa 
anaa preteusAai — Sua fòrmola de landaçSo — Edionda iu~ 
peratifío. 

O paiz do Bihé faz parte do vastíssimo planalto de Ben- 
guella, de que, para o lado do oeste, marca, para assim 
dizer, a sna tennÍDaçXo. 

Da leitura dos primeiros capítulos d'eate livro, em que 
procuro descrever a minha viagem para o Bihé, e do exame 
das diversas altitudes rigorosamente marcadas oas cartas 
geograpfaiciis do distãilo pelos nossos distiuctos explorado- 
res e outros nXo menos distinctos viajantes, bem pôde 






concluir-se que, n'esse pittoresco trajecto, se realisa uma 
verdadeira ascensão, em que é feita a transposição de uma 
série de elevadissimas montanhas, por vezes de caprichosa 
configuração, que, curiosamente projectadas no azul do 
firmamento, se vão successivamente deparando ao viajante, 
oomo outros tantos phantasmas colossaes, rompendo ma- 
gestosos da immensidade do continente. 

Não visando oste modesto trabalho ao estudo geogra- 
phico do Bihé, sob este importante ponto de vista, tão 
proficientemente descripto por Capello e Ivens, Serpa Pinto 
e outros exploradores, apenas me limito, para orientação 
dos leitores, a apresentar um ligeiro croquis do trajecto 
de Benguella ao Bihé, cuja determinação, como disse, se 
deve ao fallecido sertanejo Silva Porto. 

A configuração do terreno, em geral pouco accidentado, 
apresenta- se-nos em ligeiras ondulações, dando por vezes 
origem a immensas anharaa ou planuras, entre as quaes 
se abrem valles de pouca profundidade. 

A altitude média determinada por Capello e Ivens é de 
1:572 metros. O clima pôde considerar-se relativamente 
salubre, não sendo também grandes as variantes de tem- 
peratura durante todo o anno. Belmonte é talvez o ponto 
mais doentio de toda a capitania, e, como tal, reconhecida- 
mente considerado por todos os europeus e negociantes, que 
geralmente cahem com as febres, quando, por objecto de 
serviço ou em visi^, se demoram na fortaleza. 

A natureza do solo argilo-silicioso, immensamente re- 
gado por abundantes correntes, torna-o extraordinaria- 
mente fértil, cirçumstancia esta que conjugada com a ame- 
nidade do clima, sobremaneira influe no atrazo moral em 
que ainda hoje vivem os seus habitantes que, encontrando 
na fertilidade do solo a satisfação das suas primeiras 
necessidades, não têem, visto que de nada precisam, o 




3QCIS) 



7. 



X 



íscala 



B 




^/w^m^mmm^ 



^mmmmmmmm 



177 



imperíoso ÍDceutivu do trftb&lho, udÍco obstáculo para o na- 
tarai desenvolvimento de todos os vícios a que aemprt 
U logar a ociosidade. 



£ tanto asHÍm, que a agricultura dos seus arimos, nSo 
exigindo exíorço demasiado, é exclusivamente confiada aos 
t^dadoa das suas mulheres, que com extrema facilidade, 
preparam as terras de quu oblêem producçlies por fórma tal 



178 



abundantes que, excedendo as suas próprias necessidadesi 
lhes permittem ainda a venda ao negociante sertanejo, para 
o sustento dos seus serviçaes. 

As proilucçSes são, em geral, as mesmas que no Bailundo, 
desenvolvendo-se com notável rapidez as culturas de im- 
Iho, mandioca, batata doce, o feijão, a ervilha, a batata or- 
dinária, o tomate, pepino e toda a casta de hortaliça. De- 
senvolvem-se sendo regadas, a bananeira e ananaz, mas 
não tanto como no litoral, em consequência da altitude, e 
egualmente a laiangt-ira, o limoeiro, aromanzeira, agoia. 
beira, a figueira e o pecegueiro. 

O abandono a que ordinariamente se votam os bihenos, 
como consequência das causas que atras deixo expostas, 
manifesta se, de resto, na simplicidade do seu vestuário e 
ligeireza das suas construcçSes, a que, até hoje, nenhum 
preto imprimiu um cunho de permanência que lhes desse o 
aspecto de casas. 

Não' tendo frio dispensam também a cama, que nem o 
sobba mais poderoso possue, dormindo n*uma pequena es- 
teira lançada sobre um esguio alpendre que armam no in- 
terior das buas cubatas. 

Na epoclia do cacimbo, ombambi, e em especial nos me- 
ses de maio a junho, em que as noites são relativamente 
frias, uma pequena fogueira, ardendo dentro da sua cubata, 
dispensa-lhe ainda vantajosamente a roupa de cama, de qae 
nós europeus não prescindimos n'esta agradável quadra do 
anno. Durante o dia, não é também o frio que os obriga 
a vestir mais roupa ; e se no Bihé, uma vez ou outra, se en- 
contram alguns seculoê vestindo pesados capotes ou casa- 
cos de agasalho, bem pôde tal uso attribuir-se a qualquer 
presente das auctoridades ou negociantes, usando tal Tes- 
tuario indistinctamente, sob a influencia do frio ou do mais 
ardente calor. 



^ - 4 



179 



O lame é a sua principal roupa no frio, se bem que 
DOS jangos de qualquer libata de gentio, arda permanen- 
temente uma fogueira, em volta da qual em qualquer epo- 
cha do anno, se vêem sentados alguns pretos que, d'este 
ponto, fazem sala de palestra. 

£m todas as libaiaa existem geralmente dois jangos, 
sendo um destinado aos homens e o outro ás mulheres. 
Nas m'balaí, de sobha são estes chamados respectivamente 
do sobba e da inacufo (rainha>. 

A construcção dos jangos obedece aos mesmos princí- 
pios que a de qualquer cubata, de que apenaâ differe pelo 
seu traçado circular. N'uma circumferencia de raio variá- 
vel, não excedendo ordinariamente 4 metros, são profunda- 
mente cravados a prumo, alguns grossos paus de 2 metros 
de altura, unidos entre si, excepto nos dois pontos diame- 
tralmente oppostos, em que se abrem as portas. 

Superiormente é o jango coberto com umi espessa ca- 
mada de capim, como qualquer outra casa, que apenas 
differe doesta espécie de clubs gentílicos, no revestimento 
de argila amassada com que são barreadas as cubatas^ em 
cujas paredes, alisadas á mão, se ostentac. exotioos dese- 
nhos da íigara humana e de diversos animaes selvagens, e 
outras garatujas, mais ou menos relacionadas com assum- 
ptos de feitiçaria. 

£' tal o vicio àojango e respectiva fogueira, que alguns 
velhos pretos, á força de se approximarem do lume, apre- 
sentam a epiderme das pernas, na parte anterior, por 
forma tal contraída pela acção do fogo, que iinaimente se 
destaca e cae, como se n'esses pontos lhes houvessem ap- 
plicado uma forte dose de tintura de iodo. 

No Bihé, como de passagem tive já occasiâo de dizer, 
não ha actualmente sobba, tendo os diversos chimbos por 
chefes alguns séculos, a que o gentio dá aquelle nome, 



. de cujo viver o sen differe pela importância e sumptuosi- 
datle (la soa corte. 

Era esta conetiluida pelo muâne-cária, espécie de pre- 
sidente de conselho de ministros, que é composto pe- 
los eens êeeúlos on macófot, entre os qnaes ainda se encon- 
tram dignitários espe- 
ciaes, como o capilango, 
espécie de ministro da 
guerra, e Culfér, respe ■ 
eticamente corrupçSes 
de oapitilo e alferes. 

Ha também junto do 
monarcha um creado 
particular, o CtUei, de 
maneiras afeminadas, 
a quem é attribuida certa 
missSo reservada que 
me pareceu iaverosimil. 
Sendo o bihtno, como 
disse, naturalmente pro- 
penso ao commercio, que 
em geral vae exercer 
com outros povos do ser- 
tSo, foi contraindo rela^Ses de que tSem resultado cru- 
zamentos por fórma tal complicados qne, introduzindo 
verdadeiras dissimilhanças na primitiva raça, nio permittem 
actualmente definir-lhe um typo oaracteristico. 

Relativamente á origem â'este povo, a falta, nSo digo 
ji de Iiistoria, mas de documentos elucidativos, nlo pir- 
mitte tirar conclusSes que, por apenas se basearem em 
simples lendas, de todo o ponto inverosímeis, conserva- 
das pelo gentío, nos levariam a resultados que pouco pode- 
riam approzimar-se de realidade. 



à sua popuUçSo, segundo um ligeiro o&loulo baseado qss 
iofonDaçSes dslguas tecúloi, e confirmaias por DegouJan- 
tes europeus, é de 50:000 habitantes, incluindo oa dois 
MbI)ailos nSo bihínoi de N'Dulo e Lnimbi. 

Os costumes da regiSo receotem-se também das mea- 
mu eztranhas ínflueociaa que modi6{:aram o lypo car»' 
(.'lerístico do biheno, que 
tem adquirido costumes 
Ião diversos, qu&o di- 
versas sSo as terras que 
percoiTe.Ãmulher,além 
io amanho dos arimos 
que, como ji lívtí occa- (^ 
sião de dizer, lhe é ez ^ 
cl usi vãmente confiado, 
compete lhe também a 
|)reparag3o das farinhns 
de milho e mandioca de 
(|ue o gentio principal- 
mente ae alimenta. A' 
/alta de moinhos, tanto 
o milho como a man- 
dioca, s&o reduzidos a farinha em pilões de madeira, e.-i\ 
que dnas mulheres batem alternadamente cada uma ooai 
seu pau, que successivamente levantam e fazem cair oom 
força deatro do pílSo. 

Obtida a farinha, é esta lançada i)'uma panella, contendo 
sgna a ferver, que continuadamente ee vae meoheaio até 
«bter um ponto de solidez que só o indigena sabe apre- 
ciar. 

Retirada do fogo é então lançada nos pratos, d'onde, 
depois de ligeiramente arrefecida, a comem com as mSos, 
sob a denominaçSo de infundi. 



i^^^p 



182 



E' o infundi a base principal da alimentação do gentio, cor- 
respondendo á broa on centeio que o nosso lavrador egoal- 
mente não dispensa. Com o infundi é também servido um 
outro prat a que o chind>undu dá o nome de omharéra. 
Esta denominação bastante genérica, applica-se a todo o 
alimento a que nas nossas aldeias transmontanas chamam 
o apresigo* e vem a ser qualquer outro cozinhado, ordi- 
nariamente carne, que, depois de cosida, misturam com o 
infundi. 

A carne, geralmente de qualquer animal morto por 
doença, visto que só por occasião de festejos o gentio mata 
alguma cabeça das suas creaçSes, é tanto mais apreciada 
quanto mais pestilento fôr o cheiro por ella exalado, sendo 
ordinariamente cozinhada quando se ache em completo es- 
tado de putrefacção, em que, segundo diz, se torna deli- 
ciosamente tenra e saborosa ! . . . 

Uma ombaiéra extremamente apreciada pelo gentio é o 
gafanhoto. Não raro, nuvens immensas de gafanhotos ap* 
parecem no espaço onde chegam a interceptar os raios 
solares, proje -tando immensas sombras sobre a terra. Tal 
acontecimento produz uma indescriptivel alegria em todo 
o gentio, que immediatamente se prepara afim de, durante 
a noite, recolher alguns milhares do destruidor insecto, no 
que chega a derrubar as arvores em que elles se acham 
pousados. Cozidos os gafanhotos fica o gentio aprovisio- 
nado de ombaréra para alguns dias, durante os quaes, na 
occasião das suas refeiçSes, apenas os submette a uma li- 
geira torrefacção, ordinariamente sobre um velho pedaço 
de lata, ou dentro de uma panella vasia, misturando-os se- 
guidamente com o infundi. 

Com a comida bebe o gentio agua, se bem que pre- 
pare uma bebida extremamente agradável e hygienica, o 
chimbomboj que os próprios europeus apreciam immenso^ 



■N 



considerando- a alguns preferível ao^ próprio viulio. Na 
preparação do chimhombo ou garapa, que se obtém pela 
férmeutaçSo da farinha de milho, provocada pelo imhundi 
Oúpnlo), ê este laoçado em grSo na agiia, onde se conserva 
até que comece de germinar. 



NVsta altura tira se da agua, estendendo o ao sol at4 
se tornar completamente secco, indo entSo ao pilSo, oade 
wfire uma ligeira trituração. Do pilSo passa novamente 
para uma panella com agua, snbmettendo-o assim a uma 
pequena ebuliçlo, juntamente com o lúpulo, depois do que 
se retira do lume, «ssentando a panella n'um sitio fresco. 



Completamente arrefecido, servem n'o eotão em enormes 
oftbsQas oorUdss pelo meio, a que se di o nome de ganjaa. 
E' tal o eDthusiasmo do gentio por esta bebid«, que em 
todas as líb'it(u do Bih4 slo frequentes as festas do chim- 
bombo, para que sXo ordinariamente oonvidados os habi- 
tantes da visínhan<;a. 



Para a preparação de tae^ festas, que terminam sempre 
por tremendas borracheiras, é o milho preparado por to- 
das «8 mulheres da lAnta eum muitos dias de antecedên- 
cia, desenvolvendo se uma faina de que resulta o fabrico 
de muitos almudes da espiritunsa bebida. 

Estas festas, ordmaríamente acompaahadas dos seus b»* 
tuques, dSo logar a alguns cnsamentos, resultantes das re- 
lações que, d'e3ta forma, se estabelecem entre os mancebos 
e raparigas de lihattt diSerentes. 

Os batuques consistem, pouco mais nu menos, em dao 
Cas genainamente selvagens, para nós destituídas de graça, 
em que 4 eze<<utado, em coro, um canto extraordinariamente 



185 



monótono, mas afinado, que alguns bumbos (dohoma) acom- 
panham n'uma enferneira ensurJecedora. 

Duas linhas de povo dispostas vis à-^is, constituidas uma 
por cavaJhmros outra por damas, torcem-se e retorcem-set 
sacudindo os hombros e as ancas com uma ligeireza pro- 
digiosa. Em passo miudinho a linha de damas avança len- 
tamente, produzindo no solo largos sulcos, ao mesmo tempo 
que da linha de cavalheiros rompe um doestes, levantando os 
braços, escarranchando as pernas, soltando urros, e produ- 
zindo esgares, de ordem tal, que sobre maneira maravilham 
quem por vez primeira os presenceie. 

A lettra de que se servem nos coros geralmente usados, 
nos batuques, é a seguinte : 

Námeii dêpa iié! 
Oh, oh! 

Námen dêpa ué 
Ca chin ganguella 
Mamané uendér êquiari 
Námen dêpa ué 
Oh oh! 

A significação doestas palavras refere-se a casos de fei- 
tiçaria de que resultou ordinariamente a morte de qualquer 
pessoa. 

Differe da lettra das arrebitas^ que diz : 

A cambinda mu cuá quillengue 
A cambinda mu cuá quillengue 
Ná uáquemba, ná uáquemba 
Ná uáquemba qui coáta có! 

A arreibta é a dança predilecta do chimbar (ez-escravo 
do sobba ou século). 



186 



N'algumas libatoM, além dos humhos^ é usado o chingufo, 
que é um prysma triangular truncado (^i, de madeira, cujas 
bmses são triângulos isosceles. Ao longo da aresta do die- 
dro menor foi aberta uma fenda pela qual, por meio de 
facas, se escavacou o interior do prysma, por forma a dei- 
xar em cada face uma espessura regular e minima de um 
oentimetro. Duas grossas vaquetas, tendo as extremida- 
des revestidas de borracha, permittem tirar do instru- 
mento sons por forma tal extranbos e intensos, que se 
ouvem a grande distancia. 

A irregularidade de espessura das duas faces maiores 
do prysma, dá logar a sons variáveis, segundo os pontos 
em que se toca. Eis aqui a descripçSo do chingufo, tão 
conhecido em todo o sertfto de Benguella, cujo som, por ve- 
zes agudo e penetrante, se ouve noites inteiras, por en- 
tre bumbos e plangentes marimbas de líbatas distantes, 
ii'nm conjuncto grandioso de que nos resulta uma extra* 
nha impressão da indefinivel tristeza. 

Ordinariamente os maiores e mais prolongados batuques 
são realisados por occasião do fallecimento de qualquer 
Mobba ou secúlo importante. O fim d'e8tes batuques, acom- 
panhados de um tiroteio ensurdecedor é, como de passa- 
gem tive occasião de di/.er, evitar que a alma do morto 
permaneça na libata^ onde poderá originar as mus estu- 
pendas fatalidades. 

Não admittindo o gentio, por principio algum, a morte 
natural, procura desde logo descobrir-lhe a causa, que 
attríbue sempre a mysteríosas influencias de feitiça- 
ria* 



(^) Alguém tem pretendi lo apresentar o chingufo como tambor 
de guerra, mas isso é mtrnos exacto. 



187 



A adivinhação é n^este caso o caminho seguido, dirí> 
gindose os parentes com o morto para casa do chimbanda 
qae, por processos mais ou menos astuciosos, faz ordina- 
riamente recahir as responsabilidades em individues que, 
pela sua abastança de meios, possnm pagar o crime. 

O chimbanda nfto falia sem que na sua frente veja uma 
vacca e algumas peças de fazenda, que, de resto, todo o 
gentio considera indispensáveis para legalidade do veredi- 
dunij com o qual o próprio accusado, passada a natural 
estupefacção de momento, se conforma pondo finalmente de 
parte o testemunho da própria consciência, para se consi- 
derar um verdadeiro culpado. 

Liquidado este assumpto com a entrega do porco aos 
parentes do finado, como signal de assentimento, ficando 
assim estabelecido o compromisso pagamento, iniciam-se 
então os festejos do óbito nos termos que tenho exposto, 
e durante os quaes, pela bocca do finado, os parentes des- 
pejam repetidas garrafas de aguardente atapulhando-lh'a 
por íim com uma boa dose de infunde. 

Na occasião do enterro, que não pôde realisar se sem 
a comparência de todcs os patentes, têem estes o cuidado 
de introduzirlhe na cova um frango, que é enterrado 
vivo juntamente com o defunto, como que servindo-Ihe de 
merenda durante a eterna viagem. N'alguns outros paizes 
do sertão, é o frango substituído por uma das suas mu- 
lecas (escravas) quando se trate do enterro de algum 
sobba, sendo, durante os respectivos festejos, abatido e co- 
mido pelos seus parentes um ou mais pretos, segundo a 
importância do óbito. Este bárbaro costume, ha annos posto 
de parte no Bihé, onde pela falta de sobba não tem havido 
opportunidade de usar-se, é, ao que se affirma, seguido 
ainda no Luimbi {Gang^tdlas), região que, administrati- 
vamente, se acha subordinada á capitania-mór do Bihé. 



Estes acontatnmentos , porém, aSo raros, como rsros s9o 
03 fallecimentos de Bobbas, que, de ordmari<>, vivem, como 
todo o preto, gr&nde numero de sanos; afSrmaado se po- 
rém serem taes sacrificios formalidade indispensável, 
tanto DO óbito como na 
accIamaçSo de qualquer 
sobba. N'este e n'outros 
casos idênticos usa o 
gentio de uma certa dis- 
creçSo para com as auc- 
toridades, perante quem, 
sobre o assumpto, man- 
tém o mais rigoroso si- 
gillo que impossível se 
tornaria desvendar. 

Enterrado o cadáver 
e depois de calcada a 
terra, sSo lançadas al- 
gumas pedras e outros 
objectos sobre a sepul- 
tura, em volta da qual 

é estabelecida uma pequena paliçada que a preserve dos 
assaltos da hyhena, lobos e outros animaes caroivoros. 
N'a'gumas sepulturas armam ainda os biheno» uma espé- 
cie de telhado de capim, para que a acção das chuvas 
nSo destrua os vestígios das sepulturas, pelas quaes o gen- 
tio conserva particular respeito. 

Finalmente, >iisp5e o gentio eaorrae profusSo de cra- 
neos de diversos animaes, espetados nos paus do ceroado, 
laes como, antílopes, buffalos, bois, etc, abatidos durante 
as festas, e ainda guarnecidos com as respectivas armaçSea, 
a que a acção do tempo arranca por fim o revestimento 
comeo, deixando a nú apenas a parte óssea. 



189 



Diversos utensílios sKo ainda collocados sobre a sepul 
tura, taes como: garrafas, pratos, pequenos barris, etc., 
que o gentio se encarrega de inutilisar para n&o serem 
roubados, e todos mais ou menos indicativos do prolongado 
ffstejo. 



Contam-se no Bihé casos de adivinhaçSo tSo variados 
como de interessantes, de que apenas narrarei o seguinte, 
que me foi apresentado por um negociante europeu, no 
seu regresso ao Bihé, de uma viagem de commercio que 
acabava de fazer a Benguella : 

Tendo o homem seguido para ali com um carregamento 
de borracha, foi procurado, a um terço da viagem, por um 
dos seus carregadores, que se lhe queixou de fortes dores 
Das pernas, que certamente lhe não permittiriam prose- 
guir; e, para não ter em qualquer outro ponto de abando- 
nar a carga, resolvera consultar um importante chimbanda 
que sabia residir n'uma libata do logar. 

Achando sensata a proposta do preto, seguiu o commer- 
ciante acompanhado dos seus carregadores para a libata 
indicada, onde, passados momentos, apparecia o chimbanda^ 
com o qual se entrou em ajustes para a adivinhação da 
doença. 

Estabelecido o preço de uma chirana (8 jardas de fa- 
zenda) nada mais restava do que iniciarem-se os trabalhos. 

Para isso, o chimbanda, chamando o doente e os seus 
companheiros, que mandou sentar no chão, entrou na sua 
cubata, d' onde passados momentos sahia trazendo na mão 
nm enorme chifre de malanca completamente cheio de uma 
pasta negra como pêz. 



Eotacando em frente do enfermo esfregou a base do 
chifre com uns p<is vermelhos, de que egualmente se s^r- 
vin para desenhar alguns riscos na própria fronte e faces. 

Collocando em seguida o chifre sobre um cSpo de ma- 
deira, que fez transportar para junto dos carregadores, 



peJiu a dois d'eates que o aguentassem, sempre com a 
ponta assente sobre o cepo, e por forma a nXo o deixarem 
cahir. Voltou únda o chmhanda a entrar na sua cubata, 
d'oDde trazia uma cabaça, gat^a^ contendo pós brancos. 
N'esla altura dirigiado-se a um terceiro carregador iDCum- 
biu o de interrogar o chifre, dizendo-lhe : tapuia, (falia), 
ao mesmo tempo que tomava nos dedos uma pitada de 
pós brancos que ia deixando cair dentro do chifre. 



Este ultimo carregador iniciou eulSo o sttj^uinte interro- 
gatório : Porque é que aqueile homem está doente ? Qual a 
sua doença? etc. E depois de repelidas vezes interrogar o 
chifre, notou, maravilhado, que ente principiava a andar de 



roda, e, seguidamente, a querer levantar se no, que os car- 
regadores, sobre maneira intricados, o procuravam impe- 
dir, aoltaado as seguintes exclamaySes omhinga êerenaf 
^o chifre escorregai) 

Como este continuasse a levantar-se, e podésse conàde- 
rar-se insafficiente o esforço empregado pelos dois carre- 
gadores, um terceiro se promptíGcou a auzilial-os, sem 
resultado satisfatório ; nSo tardando que lodos os seus com- 



192 



panheiros se lançassem em seu auxilio, n'uma lucta encar- 
niçada, em que finalmente ficaram vencidos, escapando, 
lhes da mão o mysterioso appendice depois de tel-os 
levantado por diversas vezes do chão. 

Uma vez em liberdade subiu o chifre a uma certa altura, 
cahindo finalmente no chão, para o lado do Bihé. D'este 
facto concluiu o chlmbanda que o rapaz adoecera em con- 
sequência de sua mulher lhe ter servido o inftmdi, encon- 
trando se accommettida da sua periódica enfermidade, que 
om descuido ou falta de asseio transmittiu ao marido, em 
quem se manifestou com as dores de que se queixava, e 
para as quaes somente o seu regresso ao chimbo traria o 
restabelecimento desejado, bem podendo considerar-se in- 
úteis, quaesquer exforços no sentido de proseguir na via- 
gem. 

Dispensou, pois, o commerciante este carregador, se- 
guindo para Benguella com os restantes. No seu regresso 
ao Bihé, o seu primeiro cuidado foi informar se do rapaz, 
que soube achar se de boa saúde desde o dia da sua che- 
gada ao chimbo... 

Sem querer desvirtuar o poder de adivinhação do sr. 
Chimbinda^ não deixei de dizer ao i^^egociante, que, da sua 
boa fé, abusou o fino adivinhão, naturalmente feito com o 
carregador que se não achava disposto a seguir. 



Como já tive occasião de dizer o biheno preoccupa-se 
pouco com o vestuário, encontraudo-se —não raro —impor- 
tantes aecúlos, nojenta e andrajosamente vestidos, se ves- 
tuário poderá chamar-se a um miserável panno seguro em 
volta da cintura com um pequeno cordel. 



As mulheres nSo vestem melhor, fazendo coavergir todas 
u GDsa attençSes para o peoteado, qae usam do seguinte 
pato: 

Depois de sufficientemente crescida a carapinha, ahrem 
duu riscas perpendicniarps, dn que uma segue a dírecçXo 
uada nos autuaes pen- 
teados das nossas da- 
mts, iato é, ao meio. 

fica pois a carapinha 
^vidids em quatro quar- 
tos, sendo em cada um 
dos dois da frente fei- 
tas numerosas tranci- 
nhas qoe assentam de 
nm para o outro lado, e 
ahi seguram com azeite 
de palma que sobre o 
cibello despejam em 
grande quantidade. 

Os dois quartos da 
nnca dSo origem a mais 
daas tranças que se li- 
gam pelas extremidades 

em forma de aza de césio, ficando esta pendente e profu- 
samente guarnecida de tachas amarellas. 

Os homens usam, em geral, o cabello crescido por todo, 
especialmente os tecúlo» que, apenas de vez em quando, 
o rapam com facas afiadas oa vidros de garrafa. 

Alguns rapazes ahrem tamhem i faca ao longo da ca- 
beça uma risca com que simulam o cabello apertado ; outros 
rapam toda a carapinha á ezcepçSo de uma longa fiúxa 
que se estende desde'^ a testa & nuca em f6rma de crista 
<!e gallo; ainda outros abitm diversas riscas longiludinaes 



e~ par&lellas, eatre as quaes deixam ficsr tiras de cabello 
de e^al largara ; e finalmeate a múor parte, apenas deixa 
uma espécie de poupa junto i lesta a que chamam a chã^ 
ãumba. 

Alguns pretos — raros — adquirem, depois de muito ve- 



lhos, magníficos bigodes e compridas pêras que entrançam, 
enfiando- lhes nas extremidades contas de diversas oõrea. 

Outros usam este enfeite no cabello, que para isso Atar- 
xi>m crescer, afím de poderem entrançal-o. 

Como luxo, Dos'^retos, sSo consideradas as tatuagens qae, 
quasi todas as tribus gentílicas, fazem em diversos pontos 
do corpo. 



195 



A operaçSo da tatuagem é feita em creanQa, por pessoa 
devidamente habilitada, que sujeita os pacientes a uma 
verdadeira tortura, com os golpes que ordinariamente lhes 
faz no baixo-ventre, coxas rins, e costas. 

£m certas regiSes, como, por exemplo na Luba, os pretos 
são também marcados, arrancando-lhes todos os dentes 
incisivos do maxilar inferior, ao passo que os ganguellss 
se limitam já á limagem dos dois incisivos da frente do 
maxilar superior, em forma de V. 

Alguns exemplares se encontram no Bihé, mas não de 
raça m'bundo^ com o nariz e orelhas ostentando orificios, 
abertos na parte cartilaginea, etc, ete. 

Não possuindo algibeiras, dispensam por isso mesmo o 
lenço de assoar, servindo-se do de cinco pontas com que 
a natureza os dotou, e, seguidamente, de um pequeno pau 
ou palhinha que apanham do chão e que, seguro pelas duas 
extremidades, fazem escorregar ao longo do lábio superior 
para complemento de limpeza. 

Na apreciação que entre si fazem sobre os costumes dos 
europeus, aos quaes acham tanta graça como nós podere- 
mos achar aos d*elles, criticam immenso o branco que, 
as8oando-se, guarda o que elles deitam fora. 

Se cospem no chão, immediatamente cobrem com terra 
servindo-se para isso da mão ou do pé, segundo se encon- 
tram ou não sentados. 

Quando um grupo de gentio procura o capitão-mór para 
lhe apresentar qualquer pretensão, depois de, ao passar 
pela sua frente, lhe dirigir uma ligeira saudação com as 
palavras Calunga! calunga! que pronuncia batendo simul- 
taneamente no peito e curvando-se ligeiramente, toma em 
seguida assento no chão, ordinariamente de cócoras, espe- 
rando que o ultimo dos seus companheiros tenha tomado 
esta posição, que o preto considera a mais respeitosa 



^I^Jf*.-, -. 



196 



para se dirigir, nSo só ás auctoridades, como a qual- 
quer europeu. 

Somente depois de tudo se achar sentado, é que a pes- 
soa mais importante do grupo, lançando em redor um ligeiro 
golpe de vista, em que procura verificar se tudo se acha 
na devida compostura, formula a sua pretensão, que in- 
variavelmente faz preceder do voccativo líagana (Senhor !) 
Nas saudaçSes entre pretos emprega- se também a palavra 
calunga^ acompanhada de palmas, a que a pessoa saudada 
responde com a mesma palavra e estribilho, que muitas 
vexes faz seguir de outras palavras, taes como: cu-cu, 
hoquitu, moioj etc. 

O contacto do gentio com os europeus tem-no levado a 
cumprimentar os braiicos com aperto de mão, quando estes 
lhe permittem tal liberdade, reservando, oomtudo, para 
si o seu primitivo cumprimento. 

Se, durante a exposição das suas pretensSes, têem ne- 
cessidade de passar pela frente do branco ou mesmo de 
qualquer aobba ou seciUo, que lhes inspire respeito, o seu 
pedido de licença fazem-no com um estalido de dedos, que só 
termina depois de se encontrarem um pouco affastados. 
Se usam chapéu ou carapuça nunca se descobrem, con- 
sistindo o seu cumprimento tão somente no que atraz referi. 

Todos os Bobbas possuem e se fazem acompanhar, ordi- 
nariamente, de um talisman especial com que, por occasião 
das guerras, suppSem fazer desviar as balas na sua tra- 
jectória, para direcçSes em que não possam attingir as 
suas forças, que sob esta mysteriosa protecção avançam 
corajosamente para o perigo, considerando-se de todo in- 
vulneráveis. E' possível, porém, que a enorme mortandade 
que por vezes lhe tem sido inflingida pelas nossas tropas, 
tenha conseguido desfazer, bem duramente, esta curiosa 
superstição. 






197 



£ também por superstiçSo que alguns pretos, ainda 
que muito raros, chegam a praticar o acto mais hediondo 
e repugnante que imaginar se pôde, fazendo copula com 
a própria mãe, no intimo convencimento de que assim lhes 
advirá um futuro de riquezas e prosperidades. 

São tantos e t&o variados os costumes do gentio, que só 
para descrevel-os teria que organisar um volumoso livro ; 
tanto, porém, sobre o assumpto se tem escripto, que des- 
necessário me parece proseguir, depois de ter-me referido 
aos que me pareceram de maior importância. 

Encontra-se no Bihé, ainda que com difficuldade, grande 
numero de armas gentilicas e diversos outros objectos des- 
tinados a usos variadissimos, cuja enumeração me parece 
ocioso fazer, em seguida ao que tão completamente apre- 
sentaram Capello e Ivens no seu livro cDe Benguella a 
Terras de laccai. 

O empenho da maioria dos europeus n'estes objectos 
toma hoje difficillima a sua acquisição; no entanto, a mi- 
nha insistência em taes pesquizas permittiu-me, fio fim de 
alguns mezes, posto que para isso tivesse que dispender 
alg^um dinheiro, reunir uma interessante collecçâo, de que 
fiz presente ao sr. conselheiro Governador geral. 




'\ •! 



Oi bo«rfi, MDi earroa e fâirilina — Ormtna recorda^Sea — Muna da 
Silva Porto — SiipTcina angaitia — Noi derradeircn (empM — 
O meu aneceaior — A viagem d.' rcgreiao — O aeu ataque do 
Soqnee amiiiha milagroan ínlvaçiUi — Chegada a Ca t um bel! a — 
Em Beognella — Em Loaiida — O meu regreiao A metrópole 

Posto que o principal e insis rápido meio de traosporte 
de mercadorias tenha até hoje sido, no dietricto de Ben- 
^ella, o carregador, numerosos carros da colónia bóer de 
Mossamedes e sudoeste de Benguella, percorrem o dis- 
trícto em demoradas viagens, que, ordinariamente a prO< 
fnndidade dos rios não permitte realisar f<Sra da èpooadas 
sêccas (cacimbo). 

A Filial da Companhia Commercial de Angola no Bibe 
(Caiala) transporta a força das suas mercadorias por Caçoada 



* - 



200 



em carros boers, geralmente contractados para um peso 
total de cem arrobas, em que cada uma lhe fica posta 
no Bihé ao preço de 2(9000 réis, com a vantagem de, nas 
mesmas comdiçSeii, fazerem transportar para Benguella os 
seus géneros coloniaes. 

 irritante monotonia do sertão era assim, por vezes, 
agradavelmente interrompida pelos estallos monumentaes 
dos seus compridos chicotes, que, brutalmente agitados do 
alto dos carros pelas mSos callosas dos seus robustos con- 
ductores, começavam a ouvir-se quando ainda a alguns 
kilometros de distancia. 

A medida que a columna de carros se avisinhava, ia se 
ouvindo, de mistura com os repetidos urros de uma infini- 
dade de bois, os gritos semi- selvagens dos boers, seus fi- 
lhos e pretos auxiliares, que, de feiçSes singularmente 
descompostas, procuravam affoitar os valentes animaes na 
deslocação de verdadeiras casas ambulantes. 

Effectivamente, bem pôde dar-se tal nome a estes enor- 
mes carros, em que, junto com a carga, é pelos boers 
conduzida a sua familia inteira. 

Semelhantes aos carroçSes alemtejanos, apenas differem 
d'estes pela superioridade de dimensSes e principalmente 
pela solidez da sua construcção, incomparavelmente maior, 
para poderem atravessar, em viagens de muitos mezes 
de demora, uma interminável siiccessão de rios, montes 
e valles, por vezes, bastante pantanosos, de que são final- 
mente arrancados n'um admirável e inaudito esforço, e 
em que por todos são derramadas verdadeiras torrentes 
de suor. 

Passava a estrada, se tal nome poderia dar-se ao tra- 
jecto escolhido pelos boers, em frente mesmo da fortaleza, 
assistindo por isso, repetidas vezes, ao desfiUar de enor- 
mes columnas d*estes carros, ordinariamente pertencentes 



mmm 



s Miranda ('), venerando 
velho, chefe da colónia 
bóer de Caconda. 

Encontrava-me no 
Bih4, ha dois mezes, 
quando, cerca das 9 ho- 
ras da manhã, me foi cha- 
mada pela primeira vez 
& attenção para o dee- 
usado rnldo que, a cami- 
nho do forte, jiroduzia 
a visinhanca de uma enor- 
misaima cotumna de cnr- 
ros boers. 

Acercando- me da es- 
trada, não tardou que a 
prímeira junta de corpu- 
lentos ruminantes, temi o 
attiogido o ponto mais ele- 
vado de Belmonte, se avis- 
tasse, precedida de muitas 
outras, caminhando vaga- 
rosamente ao longo da eu 
costa, para em oeguida des- 
cerem ao valle do Cuito, 
em cuja margem esquerda 
se completaria o treck de 
aquelle dia. 



(') Nome porlQ^uPi que 
(ornou o bóer Hwue W.n 
àet MaDn. 



*^« d '«te**». A. 



202 



Tive então occasião de presencear um espectáculo in- 
teiramente novo para mim : 

Arrastado cada um por dez juntas, spne, de arquejantes 
touros, balouçavam -se nas irregularidades da estrada, em 
que deixavam profundos sulcos, sete carros monstruosos, 
sob cujos toldos arqueados e brancos, se escondiam formo- 
sos rostos de mulheres, graciosamente emoldurados nas 
suas amplas toucas, de que por vezes se escapavam dou- 
radas madeixas de cabellos, que a brisa perfumada e tépida 
do sertão agitava docemente n'um prolongado beijo de 
amor. 

Sentado n*uma espécie de boleia o oonductor, empu- 
nhando o seu chicote, brandia o a espaços sobre o gado, 
emquanto que, ao lado das diversas juntas, caminhavam, 
esbaforidos, outros boers e alguns robustos negros auxi- 
liares. 

Jaquetão e calça, solidas botas de canno, e chapéu de 
aba larga, é o seu trajo característico. 

Usam todos longa barba, de que ordinariamente não cui- 
dam, pendendo-lhes do queixo, recurvado e volumoso ca- 
chimbo, em permanente combustão de repetidas doses de 
tabaco hoUandez. 

O seu olhar é franco e sincero como as suas palavras, 
sendo vulgarmente sympathicas as physionomias doestes 
homens de faces tostadas pelos ardores do sol a que a todo 
o momento se expSem. 

Na sua passagem, dirigiamse-me com extranha natura- 
lidade, como se de ha muito me conhecessem, apertando-me 
francamente a mão, e conversando animadamente acerca 
da sua viagem. 

Os carros, tendo atravessado o rio, formavam na ver- 
tente fronteira uma espécie de parque em que passariam 
as horas de maior calor. 



Fui convidado por Miraoda pars visitar o seu scampa- 
meato, onde me apresentaria sua esposa e mais famiiia. 

Nio me fiz rogado, tal era o meu empenho em conhe- 
cer ura pouco d'aquella vida ambulante, cujos detalhes me 
estavam despertando a curiosidade. 



Chpgando ao acampamento, penetrei no intervallo de 
dois carros, onde, sobre um espesso toldo, se at^havam trea 
senhoras, que Miranda me apresentou como sua esposa a 
filhas. Uma destas, extremamente sympathioa e distin- 
cts, tendo feito descer dn carro a sua muchina de costura, 
cosia com verdadeiro afTin n'um vestido de creança, qne 
passados momentos era alegremente envergado por um dos 
seus pequenos irmSos. 

£ste8, vermelhos como laore, saltavam pelo acampa- 
mento, distribuindo repetidas chicotadas pelos pequenos 



negros auxiliares, que, de corpo quasi nu, Hpenas ae ea- 
colhiam ao receberem aquelle pesado «figo. 

Preparava a esposa de Miranda una appetitoso cosioliado 
de carne secca, de Tnalanca, desfiada, com molho de man- 



teiga e omrlltle. P<ir vergonha menloterv: de tal petisco, 
ftpeznr da insiítencia dos offerecimentos, acceitando tio sã- 
mente lima enorme chávena de café sem assucar, que im- 
possível se tornaria recusar, sem grande desgosto para es- 
tas familias que, considerando o café como a sua principal 
bebida, o offerecem sempre como um verdadeiro mimo. 

A tilha mais nova do velho bóer, tSo gentil como a outra, 
ezceilih-a, comtudo, em robustez, empregando-se por isso 
mesmo nos mais pesados serviços. 



i'0:) 



Tendo aberto as capoeiras, installadas no fundo dos seus 
carros, soltou todas as gallinhas, que, por entre os bois, 
começaram pastando, nas visinhanças do parque, esperando 
o momento da partida. 

Seguidamente, trepando com extrema agilidade para o 
interior do seu carro, sahia dentro em pouco, trazendo 
n'nma das mãos enorme sacco de roupa enxovalhada, com 
que se dirigiu para o rio, e cuidadosamente lavou, esten- 
dendo-a, por fim, sobre a relva luxuriante das suas mar- 
gens. 

Dos homens da familia, occupavam-se, uns na reparação 
dos diversos utensilios pertencentes á formidável equipa- 
gem, emquanto que os outros reduziam a compridas tiras, 
a carne de um magnifico antilope, recentemente morto, 
que em seguida salgaram. 

Na impossibilidade de obterem todos os dias carne fresca, 
é esta secca pelos boers que, tendo-a partido em tiras e 
salgado ligeiramente, a expSem ao ar durante a noite, con- 
servando-a de dia abafada, por forma a n&o deixar lhe 
chegar a mosca. 

Âo fim de seis noites seguidas de exposição ao ar, pôde 
a carne considerar-se inteiramente secca, e, como tal, isenta 
de perigo, podendo então conservar-se também ao ar du- 
rante o dia, para o que a suspendem em cordas que ligam 
em volta dos carros, onde, passado pouco tempo, adquire 
a seccura indispensável para garantia da sua conservação. 

Este processo, inteiramente simples, é hoje já muito 
seguido pelos europeus sertanejos, que, de outra forma, 
nSo poderiam, sem grande prejuizo, ter carne para as suas 
refeiçSes. 

A carne de que o bóer se serve nas suas refeiçSes é a 
de antilope, que com extrema facilidade alcança o tiro cer- 
teiro das suas espingardas (ordinariamente a Martiny). 



200 



É immensa a variedade de antílopes que se encontram no 
distrícto de Benguella, sendo os príncipaes exemplares: 
a malanca (Hypotragus equinus) ; o onunei, (Cephalobos 
mergens) ; ombambi (gazella) ; munha (cabra) ; ongiri^ (Etio- 
tragus Reduncus)| etc. 

 paeaça (Búfalo) é mais vulgar para o sul do distrícto. 

O gentio também caça, servindo-se para isso da espera, 
junto de pontos certos de pastagem, disparando a sna es- 
pingarda quando, pela proximidade do alvo, o erro de 
pontaria, ou a commoção de momento, em nada possam 
prejudicar o bom extto do tiro. 

Como recordação, o caçador biheno prende no delgado 
da coronha da sua espingarda alguns pellos de crina de 
malanca (da cauda), ou estreitas tiras de pelle de outros 
animaes. 

O bóer desfecha muitas vezes, e quasi sempre com bom 
êxito, sobre a caça em movimento, quando esta lhe passe 
ao alcance efficaz do seu tiro, sendo, por via de regra, fe- 
lizes as suas excursSes, nào só pela abundância de caç»! 
que se lhes depara, naturalmente por saberem muito bem 
procural-a, como pela certeza das suas pontarias. (') 

Não viajam ao domingo, reservando estes dias para lei- 
tura da Bíblia, juntamente com sua família. 

Os filhos e netos de Miranda nasceram todos em Africa, 
sendo elle e sua esposa os únicos membros de sua família 
que, tendo nascido na Hollanda, emigraram p ira o continente 



(1) Vê boers fasem na verdade pontarias admiráveis, o que nSo 
impede que maia de uma vea apanhem o seu bigode que Ihea é dado 
por algnoa europeus, taea como: Abel Carneiro, Felisberto Guedes 
meu irmSo António e outros, que, a tiros de baia, matavam peqae- 
niasimos pássaros nas insendei^-aê de Belmonte, furando tambeiiy 
pelo meio, quasi todaa aa laranjas do pomar. 



iir'gro assentando arraiais no i>ul d'Angola, a exemplo ie 
ontros seus irmlos qne se dirigiram para outros poD- 



Ao tempo da míaba estada no l>ihé ncliava se a guerra 



anglo-boer no mais accesso da lucta, maravilhando o in- 
teresse como todos os boers que me encontravam, procura- 
vam informar-se da sorte dos seus valorosos irmXos, qne, 
□'am verdadeiro patriotismo, desejavam conliecer nos mus 
rainnciosos detalhes. 

Orgulham-se immenso da sua origem reiúiaando, ordina- 
riamente, os seus oasameatos com indivíduos da própria 



S — '• J^" J! ^ '. •■■ I 1 ^.1 i». 



206 



raça, raríssimo com portuguezes d'Europa, e muito mais 
raro com o negro, a quem votam o muor despreso, sendo 
filhos de portuguezes os mulatos que em Benguella se en- 
contram, ou quando muito de individues d'outra8 nacio- 
nalidades d*Europa. 

Existem ainda no Bihé muitos representantes dos pri- 
meiros commerciantes do sertão, sendo um d'elles a filha 
de Silva Porto, Maria, visinha ainda da fortaleza que il'ou- 
tros tempos constituiu demorada residência de seu velho 
pae, cujo óbito, annualmente, festeja com ensurdecedores 
batuques de muitos dias de duraçSo. Sâo estes festejos 
realisados na sua sanzala com o antigo pessoal do fallecido 
sertanejo, que, n'uma grande parte, se conservou ao ser- 
viço da infeliz mulher. 

Vive Maria do Porto como o próprio gentio, de que usa 
os pannos e penteado, bem como todos os demais vicios e 
costumes, sem exceptuar o permanente estado de embria- 
guez. 



A minha permanência no Bihé, cheia de doenças e dif. 
ficuldades d^adminiatraçSo, tornava-se-me por forma tal in- 
Bupportavel, que, ao fim do nono mez da minha administra- 
ção, não hesitei em soUicitar, com o mais vivo empenho, a 
minha exoneração, que immediatamente me foi concedida^ 
levando, com tudo, muito tempo primeiro que d'isso tomasse 
conhecimento official. 

Não desejava, porém, que a minha retirada se effectuasse 
sem emprehender pela região que administrara uma via- 
gem de instrucçlo, que aproveitaria na despedida aos 
dedicados e leaes amigos com quem sempre me encontrei* 



209 



Foi sob esta grata inspiraçSo que, em fina de novembro, me 
dirigi com o velho africanista Santos Gil em direcção a 
Caiala, onde fui recebido pelos gerentes da Companhia 
Commercial d 'Angola, seguindo para Cabir, residência do 
major reformado Araújo e Santos, meu sympathico cama- 
rada e bom amigo, de quem sempre recebi as mais subidas 
finezas e attençSes. 

Este official que durante cerca de cinco annos exerceu 
a administração da capitania mor do Bihé, foi para mim 
sempre um valioso auxiliar, cujos favores, a bôa gratidão» 
manda recordar. 

Kecebendo-me em sua casa com a galhardia e amabili- 
dade próprias do seu caracter franco, deu-me, por esta 
forma, a derradeira prova da sua leal amisade. 

Nas referencias que n^este modesto trabalho tomo a liber- 
dade de fazer-lhe, e que sem duvida o vão ferir na sua mo- 
déstia, procuro apenas testemunhar publica e solemnemente 
a mmha infinda gratidão e bôa amisade, que alguns invejo- 
sos procuraram, de parte a parte, macular com a costu- 
mada intriga. 

De Cabir dirigi-me a Capdco, onde fui recebido pelo ins- 
truidissimo agricultdr António de Sousa Neves, que, d'este 
panto, me acompanhou para sua casa, onde, como sempre, 
me recebeu com a distincçSio e amabilidade que o caraote- 
risam, e que em todo o Bihé lhe grangearam as sympathias 
de indigenas e europeus. 

Na sua vastissima fazenda, que intelligentemente dirige 
de sociedade com outro individuo, além de uma magnifica 
vivenda, em que procurou introduzir todas as commodidades 
compatíveis coro as circumstancias, possue seis enormes 
almmbiqut^s, e um aperfeiçoado apparelho de distillação con- 
tinua, como nenhum outro agricultor do Bihé, até então, 

havia adquirido. 

iv 



210 



De Capôco dirigia-me i missSo oatholica do Luimbi, 
satisfazendo assim aos inoessantes convites dos Rv.°^' P.*' 
Bateix e Blanch, segaindo o caminho de Cassamba, onde 
egualmente fui obseqaeiado pelo negooiante Domingos de 
Moura; exigências, porém, de serviço reclamaram a minha 
comparência em Belmonte, para onde tive que dirigir-me, 
n^uma única viagem de 10 horas seguidas, em que tam- 
bém passei pela residência do commerciante Domingos 
Fernandes de Candona, sem que me fosse dado acceitar o 
generoso offerecimento da sua hospedagem. 

Cerca das 4 horas da tarde dava entrada no forte Silva 
Porto, sobre modo pezaroso por não seguir para o Luimbi, 
onde certamente colheria preciosos elementos com que 
poderia desemvolver muito este meu modesto trabalho. 



Havia muito tempo que de minha familia recebia noti* 
cias desagradáveis acerca do estado de saúde do meu in- 
feliz cunhado que, no seu regresso ao reino, depois de três 
annos de permanência na ilha de S. Thomé, on4e traba- 
lhou incançavelmente como medico, chegara ao seio da fa- 
milia, por tal forma enfermo, que a todos levou á dolorosa 
convicção de um fatal e próximo desenlace. 

No ultimo correio, porém, recebera carta de meu pae, em 
que me dava noticias um pouco animadoras de meu cunhado, 
que me fizeram alimentar a esperança de salvação. 

Decorridos porém três dias, era o 1.® de janeiro de 1902, 
ás cinco horas da tarde, approximadamente, estava para 
sentar me á mesa com vários hospedes que tinha na resi- 
dência, ;Como visitas, discutindo ainda a violência da 
tempestade que n'aquelle dia se havia desencadeado sobre 






211 



Belmonte, e qae felizmente se achava já bastante affastada, 
depois de ter transformado o recinto da fortaleza n'um 
verdadeiro lago, quando se approxima de mim um esco- 
teiro com uma das muitas cartas que ali recebia diaria- 
mente. A lettra de um meu patricio Minoel de Barros 
chegado talvez no mesmo dia de Benguella, levou-me a 
rasgar immediatamente o enveloppe, que, além da sua 
carta, continha uma outra do ex.™^ Governador do dis- 
tricto. 

Li primeiro a de Manoel de Barros. 

Âs sentidas palavras que n'ella me dirigia e que aqui 
deixo transcriptas fízeram-me ver logo o faltecimento de 
meu cunhado. 

Dizia a carta: 

€Meu bom amigo 

Lastimo profundamente que seja eu o portador de uma 
tão triste noticia como a que deverá levar-lhe a carta do 
sr. Governador Moutinho. Creia, mea bom amigo, que 
sentidamente me associo aos seus dolorosos soffrimentos, 
aconselhando-lhe resignação e coragem para supporiar tão 
profundo golpe. 

c Incondicionalmente me colloco ás suas disposiçSes, pois 
seria para mim bastante grato o poder prestar-lhe qual- 
quer serviço, que por estes dias irá pessoalmente offere* 
cer-lhe o que com verdadeira estima é 

Seu velho amigo 

Manoel J. Moraes Barros, » 



Mas oh! horror! Passando a ler a segunda carta, deparo 
com os seguintes periodos da carta de Teixeira Moutinho 



212 



Meu caro primo e amigo 



cSerenidade e onve:i 

cPrepara-te para ouvires uma noticia para ti bastante 
grave. — Teu pae e cunhado falleceramt. • • 

Calcuie-se como ficaria o meu pobre coraçSo! 

Deixando immediatamente todos os convivas, recolhi-me 
aos meus aposentos, onde, no meio de todos os retratos de 
minha familia, se achava o de meu extremoso pae, que um 
diluvio de sentidas lagrimas me nSo deixou contemplar 
por muito tempo. 

N'esta horrível situaçfto fui encontrado por meu pobre 
irmSo António, que, ignorando a triste noticia, entrava 
risonho a porta do meu quarto, por serem horas de jantar. 
Wum fraternal abraço, de que a custo nos desembaraça- 
mos, communiquei-lhe a horrorosa desgraça que acabava 
de ferír-nos. 

Meu irmSo, dotado de um sensivel coraçio, possue, com- 
tudo, um feitio pouco dado a expansSes de qualquer natureza, 
deixando-se cahir pesadamente sobre o meu leito, em que 
se conservou soltando profundos suspiros que fariam dó a 
qualquer indifferente. Só passados momentos me pediu para 
lhe deixar ler a carta que tfto duramente nos acabava de 
ferir, como que procurando descobrir n*ella qualquer mal 
entendido da minha, talvez, precipitada leitura; não tar- 
dou, porém que m'a restituísse sem pronunciar palavra^ 
sahindo novamente de regresso a sua casa. 

Fiquei então com alguns amigos, a quem mandei servir 
o jantar. Inteiramente só, nSo poude conservar-me ali por 
mus tempo: precisava de um amigo com quem podéase 
desabafar de tSo pungente magua. 



r— 



213 



Só meu irtnSo poderia ser esse amigo, e, aresta in- 
tima convicção, abandonei a fortaleza em direcção á sua 
casa. 

Ka minha frente então o nubloso horisoate, vivamente 
affogueado ainda pelo sol poente, tinha assumido o tom ru- 
bro esbrazeado de uma fornalha immensa, em que, ao longe, 
ardessem, crepitantes, rendilhadas florestas solitárias. 

Uma ligeira viração agitava nervosamente a húmida fo- 
lhagem dos sycomoros, de que se desprendiam espessas got- 
tas d'agua, puras e limpidas como lagrimas. 

£m torno de mim reinava um silencio mysterioso, mde- 
fínivel, apenas, a espaços, interrompido pelo longínquo 
roUamento do trovão. 

Ao longo da pequena avenida do forte o meu iéoiamento 
era quasi completo: apenas dois pretos desciam o monte 
em direcção ao valle, d'onde vinha o doce murmúrio do 
Quito, escoando-se brandamente por entre macisos de ver- 
des caiiaviaes. 

Tudo em volta do meu pobre ser respirava tristeza, luto 
e saudade infinda, como se os elementos, a natureza in- 
teira se houveram associado á minha cruciante dôr! 

Pensava então em minha santa mãe, cujas lagrimas de 
extremosa esposa, derramadas n'outras latitudes, em tão 
longes terras, não podia, como bom filho, enxugar, n'aquelle 
momento supremo, em que só o pensamento tem o condão 
de voar. 

Os clarSes do occidente foram-se gradualmente dissi- 
pando, e a noite triste e meditabunda era annunciada pelo 
logubre piar das aves noctívagas, á compita presistente e 
triste com as numerosas rãs dos pântanos visinhos. 

Junto de meu irmão passei uma parte da noite, em de- 
soladoras conjecturas, e reciprocas palavras de fraternal 
conforto, nas quaes os projectos da nossa próxima retirada 



214 



para o reino eram apresentados e acceites sem condi- 
çSes. 

A minha permanência no matto passou então a repre- 
sentar para mim o mais duro dos sacríficios, que me teria 
levado a retirar para o litoral, antes mesmo da chegada 
do meu successor, se n%o me tivesse sido communicada já a 
sua partida de Benguella. 

Baseado pois n'estas agradáveis informaçSes, tendo, a 
18 de janeiro, ouvido a guisalhada de algumas typoias que 
se dirigiam para o forte, fui levado, sem mais conjecturas, 
a suppor a possibilidade da próxima chegada do distincto 
official e meu velho amigo Vieira da Fonseca, recente- 
mente nomeado para o Bihé. 

Sahindo da fortaleza ao encontro das typoias^ não tar- 
dou que o novo capitào-mór, saltando da rede, me desse, 
n'um affectuoso abraço, a confirmação do que tão interes- 
sadamente suppozera. 

E' Vieira da Fonseca um dos ofiiciaes mais inteligen- 
tes e instruidos da nossa infanteria, em cujo quadro possue 
o posto de capitão. 

Ás suas excellentes qualidades de official do exprcito, 
devidamente apreciadas por uma longa serie de escrupulo- 
sos commandantes, sob oujas ordens serviu, conquistaram- 
lhe, apezar da sua natural modéstia, o grau de official da 
Ordem d^Âviz, subida honra, que, como tenente ainda, lhe 
foi conferida por distincção. 

A nobreza de qualidades do seu caracter, alliada a um 
sympathico typo de genuino transmontano, tornaram-no 
digno da estima e admiração de todos os seus camaradas, 
entre os quaes Vieira da Fonseca conta numerosos e de- 
votados amigos. 

Datavam as nossas relaçSes desde 1893 em que^ eu 
como aspirante a official, e elle como tenente, servimos 



215 



juntos no regimento de infanteria 19 em Chaves, donde 
Vieira da Fonseca é natural. 

A nomeação doeste bello camarada para me substituir, 
trouxe-me por isso alguma satisfação, por proporcionar me 
o ensejo de abraçar um amigo, cujo encontro, em tão lon- 
ginquas paragens, extraordinariamente se aprecia. 



Realisada que foi a entrega da capitania, apenas aguar- 
dava a chegada dos carregadores que, com a devida an- 
tecedência, mandara levantar, para me transportarem para 
Benguella, conservando me, ainda, como hospede do novo 
capitão mór, até 31 de janeiro, em que me puz em marcha, 
juntamente com meu irmão, António e 1.® sargento Por- 
phirio Affonso. 

Uma viagem de regresso do sertão, onde se permane- 
ceu por algum tempo, é sempre agradável, não havendo 
fadigas que se não supportem, nem obstáculos que se não 
vençam. 

Resolvi, pois, que a minha viagem se realisasse com a 
rapidez máxima, e compativel com as necessidades de ali- 
mentação, vencendo logo no primeiro dia uma étape de 7 
horas até á libata de Chiticumuna. 

Infelizmente a época das chuvas, em que estava con- 
demnaio a viajar, não me permittia exceder as duas horas 
da tarde, sem o risco de ser desagradavelmente surpre- 
hendido pelas tempestades, que, como disse, infalivelmente 
86 desencadeiam no sertão, depois d'esta hora. 

Ainda assim, com um pouco de esforço, fazendo levan- 
tar os acampamentos ás 6 horas da madrugada, conse- 
gui, mantendo sempre uma certa pontualidade, realisar o 



216 



seguinte itinerário, em qae, apezar do mau tempo e indo- 
lência dos carregadores, apenas consumi 16 dias : 

Dia 31 Chitioumuna 

» 1 Bihel 

» 2. Lumando 

» 3 Bailundo (forte) 

» 4 Chonjorolla 

» 5 Quebe 

9 6 Charineua 

V 7 Humbi 

» 8 Monombambi 

» 9 Soque 

» 10 Balombo 

» 11 .... • Cahuita 

» 12 Bocoio 

• 13 Chicucúrua 

p 14 Supa 

» 15 Caturobella 

Este itinerário, que representa uma bagatella de ÕOO ki- 
lometros, percorrio-o com os meus companheiros sempre 
de boa saúde, caminhando n^uma verdadeira anciedade 
pelo temiinus da viagem. Até ao Soque, a nSo ser a pas- 
sagem do Quebe que se effectuou nos mesmos dongosy em 
que, um anno antes, transpusera este rio, nãk> se deu acon- 
tecimento algum digno de mensão, viajando-se atravez 
da mesma monotonia de vegetação que, em sentido inverso, 
havia já passado em revista. 

E por demais conhecida a tendência do carregador, 
quando acompanhado de europeus, para o roubo, á viva 
força, dos mantimentos de viagem transportados, junta- 
mente com as suas cargas, pelas diversas caravanas de 



gentio que enooQtrsui peloa caminhos, cuja timidez sobre 
maneira contrasta com a audácia dos primeiros. A presença 
do branco incnte-lbes uma corasem tal, que os leva a ati- 
rarem-se desaforadamente, em numero relativamente iiir 
feríor, sobre numerosas oomUivas, a quem, ordinariamente. 



nlo roubam mais do que a fnba (farinha), alguma espiga 
de milho ou raie de mandioca, sendo baldados todos os 
esforços empregados pelo europeu que os acompanhe, no 
sentido de reprimir semelhantes abusos. 

Esta ditiãculdade de repressão acc<>ntua s-i sobre moiiu 
com a dispersXo dos carregadores, que na sua maior parte, 
caminham a grandes dístancíns, i frente ou reciagiiarda do 
europeu que os contraotou, tomando-se assim iiiteiramvnio 
impossível vígial-os convenientemente. 



218 



A bypothese mesmo de uma permanente concentração 
dos carregadores, pôde também considerar-se absoluta- 
mente impraticável, pela impossibilidade de consegair-se 
qae todos descansem simultaneamente do pezo da sua 
carga, circumstancia esta dependente d'este mesmo pezo e 
das condições de resistência de cada carregador entre os 
quaes apparecem alguns de edade bastante avançada. 

Impossivel, pois, se torna a repressão de taes abusos 
que, não obstante poderem considerar se de pequena im- 
portância, originam, comtudo, muitas vezes as mais sérias 
complicações, quando praticados em regiões não comple- 
tamente avassaladas. 

O gentio do Soque, por exemplo, pouco dado ao conví- 
vio do europeu, que nas suas terras, ordinariamente, não 
negoceia, não tem, devido ao seu grande afastamento da 
capitania-mór do Bailundo, o minimo respeito pelas aucto- 
ridades, cuja, influencia, a uma tão grande distancia, se não 
faz já sentir. 

Ora acontece justamente que, na minha passagem por 
esta região, alguns carregadores que se haviam adiantado, 
oonfundindo, talvez, dois pretos do Soque, por quem passa- 
ram, com quaesquer outros do Bailundo ou Bihé, lhes ti- 
raram uma pequena garrafa que levavam com aguardente, 
d'onde resultou o seguinte conflicto, em que eu e meus 
companheiros, por milagre, nos salvámos da morte. 

Seriam duas horas da tarde, quando acampava adeante 
do Soque, a poucos kilometros do rio Balombo, inteiramente 
alheio, por não tel-o presenciado, ao acontecimento, aliaz 
vulgarissimo, a que acima me referi. Não tardou, porém, 
que um preto d'aquella região se me queixasse de que um 
dos carregadores que transportavam as minhas cargas, lhe 
bebera aguardente d'uma garrafa que pouco antes havia 
comprado. 



219 



Sem averiguar da veracidade da «|ueixa, e para evitar 
attrictos, mormente n^ima região, onde o gentio, pela 
grande distancia a que se encontra da sede da capitania- 
mór do Bailundo, por diversas vezes tinha já manifestado 
a sua insubordinação, em certos actos que, pelo desassom- 
bro e naturalidade com que são praticados, denunciam 
um evidente e desprestigloso testemunho da ausência de 
respeito, e sobretudo, do receio que lhes ins«piram as aucto- 
ridades, mandei indemnisar o referido preto com uma an- 
chorêta d'aguardent«, que adquiri em casa de um com- 
merciante de nome Guimarães, que, por acaso, se achava 
estabelecido próximo do acampamento onde n^esse dia es- 
tacionei, posto que o queixoso exigisse a cabeça do carre- 
gador que o roubou. 

Considerando o assumpto inteiramente liquidado, entrei 
dentro de um chinguey onde procurava o descanço de que 
n^este dia tanto necessitava, por ter realisado uma marcha 
mais longa do que o usual, sendo surprehendido por uma 
aUnvião de gentio, armado de flechas, zagaias, machadi- 
nhos, espingardas, etc, o qual, tendo avançado encoberto 
com o raatto em direcção ao nosso acampamento, surgiu 
como por encanto, a uma distancia de 100 metros aproxi- 
madamente d'este, cahindo sobre nós em vertiginosa carga, 
acompanhada de uma ensurdecedora algazarra de gritos 
guerreiros. 

T)a porta do chingue assistia á fuga desordenada dos 
meus carregadores que, espavoridos, abandonavam as car- 
gas, como é seu velho costume, sem que eu desde logo 
comprehendesse o que tudo aquillo significava. 

De repente, um dos pretos mais avançados da linha ag* 
gressora, avistando-me, eocaminha-se para mim de zagaia 
em riste, gritando como um doido e de feiçSes tão singu- 
larmente descompostas, que não só lhe denunciavam 



ferocidade dos instinctos como s malvadez dis suas iatea- 
çSes. Ao defrontar comniiga (primeiro branco que ae lhe 



deparou), dirígiu-mu uma eslocadii ao peito, que milagrosa- 
mente desvi<-i cum uma parada feita i os tine ti vãmente oom 
o próprio lirac«; e sem procurar saber de mais nada, 
vendo-me HpenHs na prespecliva de uma iaevilavel morte* 



221 



pois que toda aquella enorme massa de geado se dirigia 
sobre miro, e não tendo, por não contar com o ataque, 
qaalquer arma que me permittisse a defesa, puz-me em 
immediata retirada, recebendo no momento em que me 
voltava, uma tão violenta bordoada no pescoço, que me ia 
prostrando, e que, se me houvesse attingido.a cabeça, cer- 
tamente me produziria a morte, permittindo-me, porém, 
refugiar-me na casa do negociante a que acima me referi, 
dando assim tempo a que o preto roubado, tendo tido co- 
nhecimento do que se passava, se apressasse em vir de- 
clarar que havia sido generosamente pago, e acalmasse 
doesta forma a exaltação dos assaltantes, que, n'este mo- 
mento, emquanto uns me perseguiam, os outros se apode- 
ravam de algumas cargas abandonadas pelos carregadores; 
e assim se conseguiu, ainda que com algum» diffic;uldade, 
impedir que puzessem em pratica a» suas sanguinárias in- 
tençSes, resultado este, que, evidentemente, se deve á pro- 
videncial apparição do preto roubado. 

£' possivel que este acontecimento tivesse attingido 
consequências mais graves, se um dos meu^ carregadores 
nSo tivesse em seu poder a minha carabina Manilicher, 
com a qual fiigiu, e eu me encontrasse ao tempo armado 
Gom ella, pois que certamente a teria disparado contra os 
meus cobardes aggressores, travando-se séria lucta, em que 
tomariaro parte do meu lado os meus companheiros 1.® 
sargento António Porphyrio Âffonso e meu irmão António 
Manoel Malheiro, os quaes, coroo eu, nada receiando, 
egualmente se achavam desprevenidos, encontrando-se este 
ultimo^ demais a roais, a cerca de 500 metros affastádo, 
põT ter ido banhar-ae n'um rio próximo. 

A hypothese mesme de nos encontrarmos juntos e 
convenientemente armados, devido á proximidade a que 
o gentio nos surprehendeu, não nos asseguraria gra&de 



successo, tanto maís que dífficíl se nos tornaria a retirada, 
por de antemão se acharem prevenidas muiUs lihata» 
do sitio, sendo ãnalmente vencidos com a chegada de 



novos reforços t^ue a concentrada população d'a>(uaila re- 
gião permittiria rapidamente fornecer, em caso de neces- 
sidade. 

Da narração d'este facto, persenceadu por todos os io- 
dividuos que me acompanhavam, poderá avaliar se da 



— »J.l 



223 



valentia e coragem do gentio do Soque que, tendo avançado 
em grande massa, encoberto sempre com o matto, até 
junto do nosso acampamento, procurou surprehender desar- 
mados, os três únicos europeus que ali sabia encontrarem- 
se, no evidente receio de um inauccesso. 

De resto, esta mesma concIusUo poderá tirar-se da cir- 
cumstancia de meu irmão António, no seu regresso ao 
acampamento, obrigar um grupo de pretos armados, com 
uma simples pontaria da sua espingarda, de que se havi» 
feito acompanhar, ao abandono de algumas caibas que lhe 
levavam roubadas, fazendo-lh'a8 coliocar no mesmo sitio 
d'onde as haviam levantado. 

Immediatamente todo o gentio do Soque regressava ás 
suas líbataSf indo dar conhecimento ao poderoso 8obba da 
forma heróica como se houve no desempenho da sua mis- 
são, sem que., comtudo, lhe levasse as cabeças dos três 
brancos que, depois se soube, o velhaco lhe havia encom- 
mendado. 

Durante a noite, que passámos acordados, deixámos 
estabelecido um ligeiro serviço de segurança, que nos pre* 
servasse de qualquer ataque que, com forças superiores, 
o gentio se animasse a fazer-nos. 

Felizmente, porém, novidade alguma se deu, abando- 
nando de madrugada o acampamento, sobre maneira pe- 
sarosos por não termos mais alguns europeus com que 
podássemos ir applioar o necessário correctivo ao digno 
chefe dos nossos cobardes aggressores. 

Pela uma hora chegávamos ao Balombo, continuando a 
nossa viagem sem que no restante trajecto se nos depa- 
rasse qualquer outro contratempo. Do que deixo escripto 
no final, para assim di2er, da narrativa d'esta minha ex- 
cursão, poderá facilmente vêr-se que nem tudo são rosas 
para um official que, completamente só, se aventura 



es!ujw*..4u>««k.i. - " " m.M'„^- . .? — --«mm 



algumas oentenxs de kilometrospelosertSo d'Africa, BDJeito, 
qnando mais nlo seja, ás influencias perniciosas do clima, 
por via de regra, tanto para receiar como os ataques do 
gentio. 



Na Supa, onde anampei cedo, encontrei alguns euro- 
pêoB que êubiam para o matto, (na phrase geralmente 



ooaheoida) e me deram noticias /resras da Europa que apre- 
«ei tantn como o pHo egualmente fresco que me ofereceram, 
n'umft iragniti-^a refeíçSo. 



mim 



A 15 deixava este acampamento, ultimo da viagem 
que termiDaría cerca daa 3 da tarde com a minha ohegad» 
a Oatumbella, seguindo os aertanejos nas saas possantes 
muares a caminho dcQuisBRuge. A visinhança do litoral era, 
desde Quisauge, annunjíada pelo affi-ouxamento da vegeta- 
ção que, nas escabrosas montanhas da Supa desapparece 



quaai por completo, limitando-se a um rasteiro capim, pre- 
cocemente ressequido pelos arHores do sol. A aridez accen- 
tuava-se com a proximidade da costa : profuadissimos 
valles de declivosas vertentes, dilaceradas pela acção des- 
truidora das chuvas, em sulcos verticaea e sinuosos, 
deixando por vezes a nú as fragas da montanha, eis a 
triste e desoladora configuração do terreno que n'este dia 
pisava. Em compensação via já para oeste, estendeudo-se 
ao longo da costa, as nuvens precursoras do oceano, como 



longas pÍDcelIaâas borísonlaes que se esbatiam prateadas 
DO azul do firmamento. 

Eis-me por fim trepando o Lung le-Lung, dt- rradeira e 
elevadissimft dobra de terreno da interminável cordilheira 
que vinbimos de atravessar, e que finalmente póz a des- 
coberto, em toda a sua magestosa plenilude e belleza, a 
bacia immonsa do Atlântico, cujas aguas se espraiavam 



sobre a areia~re[uzente, em alvos lençoes de espuma, qne 
a forte calema d'aquelle dia levava por vezes a grandeH 
distancias. 

Ao tundo dos morros assi-ntava a formosa villa de 
Catumbella, que o rio do mesmo nome banhava, escoao- 
do se depois em graciosas curvas, por entre a frouxa ve- 
getação da planície, que finalmente o conduzia ao mar. 
A 20 kilometros, mais ao sul, lá se via a cidade de Ben- 
guella, em cuja ampla babia ancoravam diversas embar- 
caçSes, entre as quaes me n&o foi difficit distinguir o 
paquete que, no seu regresso de Mossamedes, deveria 
transportar- me ao reino. Tendo me apenas demorado um 
dia em Catumbella, onde novamente fui obsequiadissimo 



227 



por alguns meus bons patrícios ali residentes, segai pára 
Benguella. 

Junto de a. ex.^ o governador de distrícto fiz a minha 
apresentação, ao mesmo tempo que, em participação es- 
cripta, lhe dava conhecimento official do acontecimento 
do Soque, o qual, revellando um imperdoável abuso do gen- 
tio, re(;lamava severo castigo, que, desde logo, me offe- 
reci para ir applicar-lhe, se o mesmo senhor me forne- 
cesse a força necâssaria para tal fim, fazendo lhe vêr o 
risco que n^aquelle momento correu a minha vida e do 
meus companheiros, quando, pacificamente, nos dirigíamos 
para aquella cidade. Não dispunha sua ex/ de força para 
tal empresa, quando, segundo me disse, nem para guarda 
do seu palácio havia soldados em l^enguella. (^) 



(h Este e outros acontecimentos ide.nticos, sãi uma triste con- 
sequeufiH da falta de occupaçilo militar da provincia de Angola 
qm*, entre o forte de Bailundo e a villa de Catumbella, n*um pre- 
curso de 300 kilomctroe, não possuía, aiada ha bem pouco tempo, 
um único commando militar. 

Recoutemente foi crcado um posto militar perto do rio Balombo 
que podei ia ter alguma utiliiade se não enfermasse do mesmo mal 
que todos os outros, creados ou já existentes : a falta de guarni- 
ção militar sufficiente para conter em respeito os povos circumvi- 
sinhos. 

Os postos militares, sem a força necessária, representam um pe- 
rigo permanente para os respectivos commandantes, mormente 
quando aquelles se achem estabelecidos no centro de regiões, cujos 
habitantes, pelo seu caracter aguerrido ou insubmisjo, reclamem 
ameudados castigo», e uma permanente repressão dos seus abusos. 

>âão quer isto dizer, qu '. o gentio do Soqui deva ser comprehen- 
dido, como o do Huambo, CuanhamaSi etc, nas considerações que 
acabo de fazer ; mas^ por esse facto, não devemos também illudir- 
nos, suppondo-o em rospeito e estupidamente amedrontado com a 
existência de um pequeno forte que elle vê quasi dcsguamscido o 
cujo grau de resistência muito bem sabe avalinr. 



N*e8ta8 circumstanciaa, pois, enviou o ex.°" goveniador 
o Begnmte telegrammK para a secretaria do governo geral 
da provincia: 

■Tenente Alezandie Malteiro, regresso Bihé, foi ata* 
cado gentio armado, região Soque, proximids les rio Ba- 
lonibo. Salvo milagrossmt nte. Preciso desforço violento 
custe o que custar. — Moutinho, governador*. 

Como este (elegramma nâo tivesse resposta, em 22 em- 
barcava para Loanda. d'onde, mediante a necessária aucto- 
rísaçAo, seguia para Lisboa. 



Dni8 palavras sobre o "m^bondin 



O m^bundu é a língua fallada pelo gentio do Bihé e 
sinda, com mais ou menos variantes, por alguns outros po- 
vos do distrícto, taes como N'Dulo, Bailund0| Caconda, 
Quillengues, Dombe, Quissange, etc. 

Em Loanda e Mossamedes classificam de m^bundu a 
lingua fallada pelos povos mais visinhos do littoral, posto 
que as differenças de linguagem d'estes últimos para os 
primeiros seja quasi radical. 

O m*bundu clássico passa por ser o do Bihé, segundo 
informações de intelligentes missionários, que se dedicam 
ao estudo profundo e aturado da lingua das regiSes em 
«que se acham estabelecidos. 

O reverendíssimo padre Ernesto Lecomte escreveu uma 
grammatica da lingua m'bundu quê pôde considerar-se um 
valioso auxiliar para quem, possuindo uma certa cultura 
intellectual, pretenda dedicar-se ao estudo doesta lingua. 

Como tendo de exercer uma administração no Bihé, 
onde as minhas permanentes relaçSes com o gentio recla- 
mavam a aprendisagem da sua lingua, immediatamente 
adquiri em Benguella aqucUe precioso livro, que, ao fim 



S^"^P* _ __ _ 



f>31^,j,/A'A'.J^".- ' 4.^ ' '•^ ^^^^^S;:^P^^£^^ ^^Jí;í^.^;J 'S!5 SF\» I k ; -ssap^^ . ;^.a^c-_,^^^«>«»«iÉ^ 



130 



de pouco tempo, se me não dispensou o uso do interprete, 
me permittiu, comtudo, adquirir uma certa confiança naS 
suas traducções^ o que já não era pequena vantagem. 

Pôde considerar-se extremamente fácil a aprendisagem 
do m'hundu, em consequência da relativa inferioridade nu- 
mérica dos seus vocábulos, de que hoje, uma grande parter 
são palavras portuguezas, mais ou menos adaptadas á 
própria lingua. 

Conhecida a formação do plural dos nomes, a conjuga- 
ção dos verbos e algumas poucas regras previstas pela 
interessante grammatica do reverendissimo Lecomte, ape- 
nas a fixação de significados, um pouco de uso e attenção 
na maneira de compor a phrase, são sufficientes para que 
qualquer europeu, ao fim de alguns mezes, falle regular- 
mente a lingua do Bihé. 

Não me alongarei, pois, sobre este assumpto, tão profi- 
cientemente tratado no livro do intelligente missionário ; 
a titulo simplesmente de curiosidade, e, por isso que nem 
todos o possuem, darei uma ideia da formação do plural 
e conjugaçSes no mhxindu. 

São além d'outros, poucos, os prefixos :cA{, 6^ que 
dão a forma do singular á maioria dos vocábulos, de que 
a formação do plural se faz com a substituição d'aquelles 
prefixos, respectivamente pelos da forma — obi — ólo — assim: 

Chipalla, cara; ohipalla, caras; Chindér, branco; obin- 
dér, brancos; Chiitr, carga; obitér, cargas; Chinhania, 
bicho; obinhama, bichos; ombinga, chifre; ohmbinga, chi- 
fres; omdco, faca; olomôco, facas; ombua, cão; olambua, 
cães; angiti, pau; olongiti, paus; ongueve, hippopotama; 
olongueve, hippopotamos; 

Com estes prefixos forma- se o plural da maioria dos no- 
mes. Ha ainda outros, mas, como disse, em pequeno nu- 
mero, de que, pela pratica, se toma conhecimento. 



231 



As palavras ailquiridas pelo convivio do elemento euro- 
peu, modifica-as o gentio com a juncção dos prefixos que 
a euphonia da sua lingua lhes aconselha. Assim : , 

Onéca, caneca; olonéca, canecas; ocopo, copo; olocopo, 
copos ; ongalufo, garfo ; olongcdufo, garfos ; cldmburro, 
burro; obimburro, burros, etc. etc. 

Os verbos no infinito conhecem-se pelo prefixo, oku] 
exemplo : okuj>equera^ dormir. Para a conjugação dos ver- 
bos deverei primeiro indicar os pronomes pessoaes, que 
sSo: 

Ameii , Eu 

Obé Tu 

Eie Elle ou Ella 

Étu Nós 

Éne Vós 

Ovo EUes ou Elias 

Querendo pois conjugar por exemplo o verbo 

Oku-ongola — Querer, 

no presente do indicativo, apenas teremos que substituir 
o prefixo — oku — do infinitivo, pelos prefixos, ndi, 6, rf, 
tu, vu, vá, fazendo depois preceder o verbo, assim modi- 
ficado, dos respectivos pronomes pessoaes. 
Assim : 

Amen- n'di-ongolà Eu quero 

Ohé-ó-ongola Tu queres 

Eie-ó-ongola Elle ou Ella quer 

Étu-tu-ongola Nós queremos 

Éne-vU'Ongola Vós quereis 

OvO'Vá-ongola Elles ou Elias querem 



232 



Pretérito imperfeito 



Amen-n^da-ongola 

Obé-oá-ongola 

Eie-oá-ongola 

ÉtU'tuá'Ongola 

Éne-vua-ongola 

Ovo^áa-ongola 



£u queria 

Tu querias 

Elle ou Ella queria 

Nós queríamos 

Vós queríeis 

Elles ou Elias queriam 



Praterito perfeito 



Amen-n^da-onguiUe 

Ohé'0á-onguille 

JSie-oá-anguille 

Étu-tud-onguUle 

Éne-vuá-onguiUe 

Ovo-váá-onguille 



Eu quiz 

Tu quizeste 

Elle ou Ella quiz 

Nós quizemos 

Vós quizestes 

Elles ou Eilas quizeram 



Estes mesmos tempos conjugam-se negativamente ape- 
nas com a mudança dos prefixos. Assim : 



Amen-si-ongola 

Obé'Câ'Ongola 

JSie^cá-ongola 

ÉtU'cátU'Ongola 

JS!ne-cávU'Ongola 

OvO'cáva-ongola 



Nâo quero 
Não queres 
Não quer 
Não queremos 
Não quereis 
Não querem 



Imperfeito 



Amen-sa-ongola 

Obé'Cáa-ongola 

Eíe-cáa-ongola 

Etu-cátua-ongoUi 

Ene-cávtia-ongola 

Ovo-cávaa-ongola 



Não queria 
Não querias 
Não queria 
Não queriamos 
Não querieis 
Não queriam 



233 



Pretérito perfeito 



Amen-sá^anguUe 

Obé'Cách<mguile 

JSte-cáchongutle 

Étu-cátua-onguile 

Éne-cávfUJhonguile 

Ovo-cáviM-onguUe 



Nfto quiz 
Nfto quizeste 
Nfto quiz 
Nfto quizemos 
Nfto quizestes 
Nfto quizeram 



Na conjugaçfto d'este verbo e outros intercalam, por ea- 
phonia, um i entre o prefixo e o verbo, excepto no indica, 
tivo. E assim, dizem: 

Omlma-aiangolchoku-fa, o cfto quer morrer; Oquenje- 
cavmguiUe-oku-tira, o rapaz nfto quiz fugir. 

Esta forma especial do pretérito perfeito nfto é egual 
para todos os verbos, assim com o verbo oku-arnbata, 
levar, este tempo toma a forma : 



Amen-n^da-ambatíre 


Levei 


Obé-oá-ambatére 


Levaste 


Eie^oà-amhatóre * 


Levou 


ÉtU'tuà'(xmbatére 


Levámos 


Éne-vuáromhatóre 


Levastes 


Ovo-váa-ambatére 


Levaram 



Correntemente fazem a òontracgfto das vogaes dizendo 

Amen-n^dambcUére 

Ohé-oáwbaUre 

Eíe-oámbatére 

EtU'tuâmbatére 

Éne-vtumhaJtire 

OvO'vàmbatére 



234 



Os pronomes pessoaes não se usam no decurso da phrase, 
e assim se diz, empregando, por exemplo, o verbo oTcu-quête^ 
ter: ndi-quete-onjcãu^ tenho fome; tu-qvête-onjala, temos 
fome; si-quête-onjala, não tenho fome; Catu-quête-onjala, 
não temos fome. 

E còm o verbo oku-ria, comer: ndi-ria, como; n-ria, 
não como; nda-ria, comia; sá-ria, não comia; nda-ricUe^ 
comi ; sd' riále^ não comi ; Tuá-riale^ comemos ; catuá-riále 
andi, ainda não comemos; vtia-ríáZc?^ já comestes?; tuá- 
riále, Hffana, já comemos, senhor. 

No verbo okurínga^ fazer, talvez por euphouia, inter- 
cala se a syllaba che, na conjugação dos diversos tempos, 
4|uando conjugado interrogativamente, assim: 



Presente 



NWtcheringa nhé f 
Ocheringa lihéí 
Ocheringa nhé? 
Tu chcringa nhé í 
Vu . eht7*inga nhé ? 
Va cheringa nhé ? 



Que faço? 
Que fazes? 
Que faz? 
Que fazemos? 
Que fazeis? 
Que fazem? 



Pretérito imperfeito 



N'da chtringa nhéf 


Que fazia? 


Oa chringa nhéf 


Que fazias? 


Oa cheringa nhéf 


Que fazia? 


Tuá cheringa nhéf 


Que faziamos? 


Vuá cheringa nhéf 


Que fazieis? 


Váá cheringa nhéf 


Que faziam? 



23Õ 



Pretérito perfeito 



N^da cheringuille nhéí 
Oa cheringuille nhé? 
Oa cheringuille nhé f 
Tuá cheringuille nhé? 
Vuá cheringuille nhé f 
Vaá cheringuille nhét 



Que fiz? 
Que fizeste? 
Que fez? 
Que fizemos? 
Que fizestes? 
Que fizeram? 



Com umas pequenas alteraçSes se conjugam os outros 
tempos que fundamentalmente se resumem no que deixo 
exposto. 

Dos pronomes pessoaes, formam-se facilmente os pos- 
sessivos. Assim: 



tang 

iolé 

• » 
tai 

iètu 

ieno 

iovo 



Meu 

Teu 

Seu, d'elle ou d^ella 

Nosso 

Vosso 

Seu, d'elles ou d'ellas 



Estes pronomes empregam-se sempre depois do nome. 
Assim : 

O cai-iang, minha mulher ; Olocai-ietu, as nossas mu- 
lheres ; Ombuchióbe, o teu cão ; Olombuct-iéney os nossos 
cSes ; O mêrne-iai, o seu carneiro. (Por euphonia diz-se o 
tnSme viai, em vez de omeme-iai ; Olotneme v%6vo, os seus 
carneiros ; Manj-iang-ó-cassi pit Meu irmão (mais novo) 
onde está? 

Traduzida á lettra esta phrase, seria : 

Irmão meu está onde? 



236 



Para terminar esta ligeira iadioaçUo do rnbundu, ape- 
nas me referirei aos numeraes oardinaes, que sSlo até 10 : 

1, moBsi 

2, bibari 
3j biUxtu 

4, biquano 

5, bitano 

6, epandu 

7, q^ndu-bari 

8, echeíla 
9j echeAaha 

10, équi, 

A partir de 10, o gentio, querendo por exemplo contar 
onze bois dirá : 

Equi-olongombe, quenda ongombe, cuja traducção i let- 
tra seria : 10 bois e um boi. 

Querendo contar 12 bois dirá : Equi-olongombe, quenda 
ólongomhe bibari, isto é, dez bois e mús dois bois ; 13 
bois, JEqui-olongomhe^ quenda olangambe bitatu; vinte, 
equi-abari. 

Querendo contar 21 porcos, dirá: equi-abari olongulo, 
quenda ong%Uoy 20 porcos e mais um porco ; 22 porcos, 
equi-abari ólongrão, quenda-olongulo bibari; 25 porcoS| 
equi abari-olongulo quenda olangulo bitano; 30 gallinhas, 
equi-atatu oloêêonge; 36 gallinhas, equi-atatu olossange 
quenda oloaêange ^^ndu ; 40 gallinhas, equi aquano oloê- 
sange; 47 gallinhas, equiaquano olosêange quenda olos- 
sange epandubari; equi atano, cincoenta; equi qpando, 
sessenta; equi epando-bari, setenta, etc.; chita, cem; oiita 
bibari, duzentos; obita bitatu, trezentos; obiia biquano, 
quatrocentos ; oluncai, mil. 



237 



Homem, Omano; Mulher, ocai. 

Géneros adoptam-se somente para os animaes, com o 
accrescentamento da palavra ocai ao nome masculino, assim: 

Ongombe, boi ; Ongomde ocai, vacca ; Ongulo^ porco ; 
OngulO'i-oca\, porca. 

Traduzindo á lettra, seria: 

Ongulo, i-ocai, um porco, mulher, etc, etc. 

Ahi fica pois, a mais ligeira indicação da lingua m^hundu, 
com a qual, e um pouco de pratica, se aprenderia a falar 
esta lingua em alguns mezes. 



^5P 



?!^ 



f— • •-•s*. 



^1L**"<wk.M 




Homes de algans earopens 
qne conliecl no Bihè, com a iadicaçao dos looaes 

das sais residências 



Francisco Xavier da C. A.raajo e Santos Cabir. 

Abel Carneiro / 

. ^ o ^T Capôco. 

António de Sousa Neves \ 

Alfredo de Andrade Cha88aca(i}. 

Felisberto Gaedes de Sou^a Canjungo. 

António M. d^Azerêdo Malheiro / _ 

\ Bonga. 

Joio Baptista Gomes \ 

José Vieira da Fonseca / _, 

> Cungallo. 

Raul Vieira da Fonseca | 

Firmino C. de Moraes Barros Chariueaa 

Adriano dos Santos Gil • Cbilonda. 

António A. de Medeiros Lucila 

Manuel Joaquim Fernandes Júnior Camundongo 

António José Barbosa Cassoalala. 

Carlos I. da Costa Barata Canhanga. 



(*) R4g«nt« agrícola « ez.)lora(l;r dittineto, potinlndo trabalhoi inédlicf d« fa- 
eoataatavol Talor. 



%*»<M^ --. 



240 



Roberto Pioto Machado Caasongo 

C A. 8alrêta ) ^ . . 

^ > Caiala. 

Parada Leitão ) 

António Teixeira N'Janiba. 

António dos Reis Braz Chiteque. 

António Ferreira ) ^ , , ^'^ 

> CMiende. 
Joaé Francisco Ferreira | 

João Miranda de Mello ) ^ , ^^ 

) Taromba. ^ 

José Beudrau ) 

Gregório & Santos Calembe. 

Andrade Mello i ,^.. . 

> Bihel 
Francisco Cypriano Pio ) 

Silva Ribeiro & Irmão Nhane. 

Fernandes & Capei la N'Gôlo. 

José António d'(). Candeias Sindaco. 

António Marques * Caria. 

António Pinto Leite i .. 

Joào Parente Vieira j 

Francisco António Calheiros Camera. 

Luiz Mendes da R. e Moura Tarala. 

Arthur de J. Aragão ) ^ , 

> Golungo. 
Avelino I houiaz Pacheco ) 

Santos Laborim Builundo. 

José Pinto Baroza Pepangae. 

Prospero José Teixeira Chissende. 

Menezes & Irmão Umbale. 

Benjamim de Brito .... Chingue. 

Alberto A. d^OIiveira N 'Oulo. 

Alfredo d^Almeida Dias 

Arthur d'Almeida Dias 

Augusto Borgts . . \ Cachingue. 

Manuel da Silva l ' 

Joaquim de Saint Maurice / 



lOES CIRCUMVISINHAS 



ko 



SO 



to 



Miam 




INOICE DOS capítulos 



Prbfaoio do auctob 

CAP. I. — ^No litoral de Angola. — A cidade de Benguella. — 
O palácio do goveruo. — Hospitalidade do commercio eu- 
ropeu. — Preparativos de viagem. — Chegada dos carrega- 
dores. » A minha partida para o Bihé 

CAP. n. — Primeira étape. — O acampamento da Supa. — O 
Bundeanoy — A Lucinja — Uma nota desagradável. — O 
Bocoio e Cubai. — Olombinga. —Uma noite tempestuosa. 
— Uma scena de leão. — As curvas do Cubai. — Uma ar- 
rebita na Améra. — Um grande successo. — Rio Balombo. 

CAP. ni. — Caháta. — A libata do Quipipa. — O sr. Theo- 
dóro. — Os aposentos de João Brandão. — As mulheres do 
Quipipa. — O Soque. — Um dia perdido. — Admirável pon- 
to de vista. — Uma caçada. -— As primeiras febres. — A 
passagem do Québe 

CAP. IV. — A fortaleza do Bailundo. — Amabilidade do ca- 
pitfio-mór. — O meu restabelecimento. — Fuga dos car- 
regadores. — A caminho do Bihé. — Ideia geral das flo- 
restas. — As habitações dos térmitas. - Acampamento de 
Lumando. — Rio Cutáto. — Em terras do Bihé. — Cacá- 
lo-Cusso (sobba do Bihel). — Os arimoa do sobba. — A li- 
bata. — Um batuque. — A inácu 

CAP. V. — Em Chiticumnna. — O fallecimento do sobba. — 
Os direitos de hereditariedade. -^ Pretensões de Calum- 
bango. — Os festejos do óbito. — A anhara de Bulo-bulo. 
— Uma manada de antilopes.— Novo o inesperado successo. 



Pa». 

12 



13 



25 



49 



67 



10 




^.'^Víierv^ws--,. 



-i ri 



242 



— Dosvautageus da Manllicher como arma de caça. — 
Nojento cosinhado 80 

CAP. VI. — A caminho de lielmonte. — As minhas appre- 
hensòes. — O aspecto do forte —Primeiras impressões. 
O meu antecessor. — Uma bella refeição, — A capitania- 
mór do Bihé. — O forte «Silva Porto». — Projecto de um 
novo forte. — Forte aNeves «Ferreira». — O pessoal da 
capitania e serviços que lhe são commettidos. — O des- 
tacamento de tropas indígenas. — Seu aqaartelamento. — 
Kesidencia e suas dependências. — A mobília, proprie- 
dade particular do capitão-mór 101 

CAP. VII. — Importante cavaco com Joaquim Guilherme 
Gonçalves (o Chindander) ácêrca da tragedia de Bel- 
monte. — Sua louvável predilecção pelo valente capitão 
Paiva Couceiro. — Eminente risco de vida doeste official 
e do seu digno companheiro e velho africanista, Justino 
Teixeira da Silva. — Sua retirada para o Bailundo. — 
Suicídio de Silva Porto. — O negociante Santos Gil. — 
Dunduma {sobba grande do Bihé). — Discordância de opi- 
niões entre este potentado e o de Bailundo. ^ Conferen- 
cia do Teixeira da Silva com Equiqui (sobba do Bailun- 
do). — Viagem de Couceiro ao Mucusso. — Seu regresso. 

— Expedição ao Bihé. — Prisão e deportação de Dun- 
duma 115 

CAP. VIU. — Cumprimentos. — Missionários americanos. — 
Inglezes. — -Fraucezes (do Espirito Santo). — Suas rela- 
ções com a auctor idade local, com o commercio europeu e 
com o gentio. — Sua influencia na civilisação dos povos. — 
Superioridade de dotação das missões protestantes sobre 
as catholicas. — O ensino do m^bundu. — Livros de dou- 
trinas protestantes escriptos n'esta lingua 131 

CAP. IX. — O conunercio no Bihé. — Primitivos negocian- 
tes. — Sua exploração pelos aobboà — Permuta. — Banzos 

— Borracha. — Mutar, — Equim — Chitota — ChiriUa — 
Como o gentio se individa com o negociante. — Carrega- 
dores. — Seu levantamento. — fíicatos, — Gastos e pa- 
gamentos 149 

CAP. X. — Relações da auctoridade com o gentio.— Seus 
cumprimentos officiaes — Presentes e sua retribuição. — 



243 



XiccUo (êohba do N'dalo). — AdministraçSo da justiça. — 
O mucano. ^ Crimes predominantes. — O adultério como 
fonte de receita do gentio. — O vclungo. — A feitiçaria 
e impossibilidade da sua repressSo. — Cobrança de divi- 
das. — Cadáveres de secúloa individados e procedimento 
dos parentes para com elles 161 

CAP. XI. — Á3 terras de Bihé. — Configuração e fertilidade 
do solo. — Clima. — Altitude — Habitantes do paiz. — 
Seus costumes e alimentação a garapa, — Sobbas e prin- 
cipaes dignitários da corte. — Batuques. — Chingírfo, — 
Os óbitos e seus festejos. — Enterros. — Sepulturas. — O 
cbimbandismo* — Ombinga serena. — Caprichosos pentea- 
dos. — Lenços de assoar. — Maneira como apresentam as 
suas pretensões. — Sua fórmula de saudação. — Edionda 
superstição 175 

CAP, Xn — Os boers, seus carros e famílias. — Gratas re- 
cordações. — Maria da Silva Porto. — Suprema angustia. 
— Nos derradeiros tempos. — O meu successor. — A via- 
gem de regresso. — O meu ataque no Soque e a minha 
milagrosa salvação. — Chegada a Catumbella. — Em Ben- 
gnella. — Em Loanda. — O meu regresso á metrópole ... 199 

Algumas palavras sobre o m*bundu 229 

Nomes de alguns europeus que conheci no Bihé, com a in- 
dicação dos locaes das suas residências 239 



índice das gravuras 



Pm 

o meu retrato • 1 

Palácio do Governo geral de Angola i4 

Salla dos espelhos do palácio do governo geral de Angola . 16 

Carruagem do governo geral de Angola 17 

PaUcio do Governo do districto de Benguella (frente) 19 

Idem do lado .do mar ... .... . 21 

Uma vista dôt morros da Catumbella . • 27 




'— :*-^'' »*:>*«. w 




244 



Um chibombo (acampamento) 29 

A caminho de Quissange 31 

Olombinga 35 

Uma tempestade no matto 39 

Passagem de um rio a vau 43 

Uma ponte ... 47 

Uma anhara (planície) .... 49 

Passage-n de um riacho'^ 51 

Os jango8 53 

As mulheres de Chipipa 57 

Aspectos do sertão 60 

A caçada ás perdizes 63 

Viajando em typoia ■ 66 

As florestas do Bailundo 67 

Os morros dos térmitas 72 

As pandas 73 

Ás boieiras 75 

A ponte do Cutato .... 76 

A recepçfio na corte do Bihel . . 78 

Os arimos do sobba - 79 

Um ehUombo em cimsas 81 

O sobba bebendo álcool a 40» 84 

Um batuque 86 

Um enterro 89 

Uma manada de antilopes 93 

Transportando uma gaiella 97 

Aspecto do forte Silva Porto 101 

A sentinella do forte 103 

Soldados á paisana 108 

A residência no forte Silva Porto 112 

Ideia das florestas ; as acácias 115 

Procuravam illudil-os, pedindo -lhes as suas mallaa 120 

Os escoteiros bnilundos 125 

Aspectos do sertão 130 

O ensino Ho m'bundu • 131 

Escrevendo a própria lingaa 133 

Preferindo-me a qualquer outro passageiro nas suas conver- 
sações 136 

Vista de Loanda 187 



245 



Projecções de lanterna magica. , 142 

Evangelitando 145 

Junto da feitoria 149 

Conversando á fogaeira 153 

Boi caTallo 158 

Carregador em marcha 159 

Omatabiobo 160 

CkUmungá^ CeUmungá 161 

Um musico do N*Dulo 164 

A visita de Xicato J65 

Em plena audiência 169 

O vdungo 171 

O sobba junto do ehingtte 175 

De volta das lavras 177 

Typo éhimbundu 180 

Pisando milbo • • 181 

A ciça do gaphanhoto 183 

Bthenáo o chimbombo 184 

Uma sepultura 188 

Um chimbaruUi 190 

Ombinga serena 191 

Tjpo cAtmòimdu de mulher 193 

Penteados curiosos 194 

Um acampamento bóer 199 

O carro bóer em marcha 201 

Meninas boers ..•. 203 

Lavando a roupa 204 

Menina bóer, costurando 207 

A passagem do Quebe 217 

O meu ataque no Soqu<) 220 

Photographia do meu irm&o António de Aseredo Malheiro . 222 

A cavallo em muares ■ 224 

Avistando o Atlântico 225 

A ponte da alfandega em Bcnguella 226 

A caminho dd Lisboa 228 




■*^N ^ 'f^-. wk%-<. .. 




««• ««> .• 



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ERRATAS 



Ptg. 


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33 


4 


74 


12 


77 


3 


77 


6 


93 


7 


98 


12 


122 


11 


126 


31 


132 


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27 


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31 


158 


11 


160 


12 


163 


17 


165 


19 


168 


24 


178 


25 


181 


5 


186 


6 


186 


18 


188 


16el7 


189 


7 


235 


18 


235 


22 


235 


24 



Onde M 1 4 

tazBfl 

se vé deixando 

estacionados 

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mettel o nSo servia 

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