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CHRONIGÂ
DA COMPANHIA DE JESU
DO
ESTADO DO BRASIL
VOLUME PRIMEIRO
I
iíôAfiú yii ÚUkiíá:
Typo^raphia do l'anoraiiin, rua dos Sanateífõà
(vulgo Kua do Arco do Bandeira, 112).
CHRONICA
DA COMPANHIA DE JESU
DO
ESTADO DO BRASIL
E DO QUE OBRARAM SEUS FILHOS N'ESTA PARTE DO NOVO MUNDO.
EM QUE SE TRATA
1)1 míuu u GouPA^um de jesu Nas pautes do brasil,
DOS FUNDAMENTOS QUE n"eLLAS LANÇARAM
E CONTINUARAM SEUS RELIGIOSOS, E ALGUMAS NOTICIAS ANTECEDENTES,
CURIOSAS E NECESSÁRIAS DAS COUSAS d'AQUELLE ESTADO
PELO PADRE TOn
SIMÃO DE VASCONCELLOS,
DA MESMA COMPANHIA.
TOMO PRIMEIRO (e UMCO)
SEGUNDA EDIÇÃO CORRECTA E AUGMENTADA
VOLUME I ;} "X.
lím rasa do Editor A. J. rcniandes Lopes, rua Áurea, 132 — 134.
MDCCCLXV.
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ELOGIUM
In Patre Simonem de Vasconcellos Societalis Jesu, ac Brasiliae olim Provin-
cialem meritissimum, . Autliorom ; rodigens ea que illius Chronica adeó
eleganter conlinet, de gestis mirificê à Patribus çj^i^sdejíi Soçiçitalis iu
ipsa Província, dum' tòt gentes Fidei splen,doi'e illusti^ant, á ,\:iUjs rievo-
cánt, ad virtutem tranferunt, ab OrcÒ extrahunt, Olympo restituunt,
et sic tellurem Avernum olim, totam nunc vertunt in floeium.
Dum calamo signas frateriía insígnia, Símo» vn'\\f\t."í '^v. ,í:liOt
Assumens Orhis façta decora novi: ,'^ oiU^^Vl «o ,oU\vj<i
Hcerere Heroes ad qim sibi^esta pidentur ^ w^rvsVm mb')nKO'^
An plausu Imc deceat num potiori coli? . .^^y^
lios si prima manus, te rcspicit ultima: .qw^me \ . u .^\,
Phiribus incceptum confieis uniis ppus^
Iilorum palmis Acheronta suhegit Ohjmpiis: . • •
Non nisi per palmas scd data palma tua,í.
Quce semel acta sibi^ bis per te rcddita: virias
Incrementa tua pcrcipit ipsa manu.
Quid mirum? Hinc cunciis si augeri, provcnit, una
Hoc você inclamat consona Terra Polo.
Usque ferax operum Scriptore hoc edita Tellus?
Prole pari felix additus usque Polus?
/Emula Terra Poli, Terra Polus invicem: ut illam
Ecocat ista quies, hunc vocat ille labor.
JJefers tanta quidem Telluri encomia, cwlo
Par vase at constei, quin prior illa tuo.
Se tali ccelum cognomine prorogat : olim
Imanta creans, per te prwstila quanta fácil !
Non Vasconcellos, cura cajlis vas es : et in te
Quem henc ccllasli, jam paíct Aula Poli.
PROTESTO DO AUTHOR
Pfáhihlú nò^s^ Banclissimo Padre Urbano VÍIÍ, por hum Dccrelo sen
pnssddà em íõ de Março de IG31, c confirmado em 5 de Julho de 1634,
ifnprimifem-^se livros de Varões celebres em sanlidado, e fama de mar-
tijriòy '^Ue ^cúiííiéèssem feitos milagrosos, revelações, ou outros quaes-
fjuer' t ene ficiòs alcançados de Deos ; sem- revista, e approação do Or-
dinário: com tudo, como o mesmo Sanctissimo Padre em 5 de Junho de
1C32, se explicasse uo sentido seguinte, que não se admitissem elogios de
Santo, ou Beato absolutamente, que caem sobre a pessoa , ainda que
concedia poderem-se admitir os que caem sobre os costumes, e opinião,
com protestação no principio, que os taes elogios não tenhão authorida-
de da Igreja Jlchnana, senão somente a fè que lhes dá o Author. O que
supposto, protesto que tudo o que trato nesta minha obra, entendo,
e quero se entenda, na forma dos sobreditos Decretos, c sua ultima ex-
plicação. IJsboaJ de Setembro de 1002.
Simau do Vascoiiccllos.
EMPREZV P\RA A UEPRODUCÇÃO DOS LIVROS CLÁSSICOS
PORTUGUEZES
OBRAS A ENTUAR >0 PRELO, NO FORMATO DE S." GRANDE
Preço por assicjmtura 800 rs. cada volume de 400 paij., avulso I^OOO rs.
Chronica da Companhia de Jcsu, do Estado do Rrasil, pelo Padre Simâo do
Vasconcellos, 2 vol. (Acha-se quasi concluída a impressão do volume ii.)
Historia do S. Domingos, particular do reino e conquistas, por Fr. Luis de
Sousa.
Chronica d"El-Rei D. João I, por Fernão Lopes e Gomes Eannes dWzAirara.
Nova Lusitânia, Historia da Guerra Brasílica, por Francisco de Brito Freire.
Ethiopia Oriental, por Fr. João dos Santos.
Ciironicas dos Reis de Portugal, por Duarte Nunes do Leão.
^íemorial dos Cavalleiros da Tabola redonda, e mais obras de Jorge Ferreira
de Vasconcellos.
Historia da índia, por António Pinto Pereira.
Arte do Reinar, por António Carvallio Perada.
Cartas que os Padres da Companhia de Jesus escreveram da China e Japão
(Completas.)
Apologos Dialogaes, por D. Francisco Manuel do Mello.
Espelho do Casados, pelo Doutor João do Barros.
Anlidoto da Lingua Portugucza, por António de Mello da Fonseca.
Verdadeira informação das terras doPreste João, pelo Padre Francisco Alvares.
Historia do F3rasil, por Sebastião da Roclia l>ita.
Comedias do Simão Machado.
Historia Insulana, pelo Padre António Cordeiro,
itinerário da Terra Santa, por Fr. Panlahião d' Aveiro. — Dito pelo Padre
Francisco Guerreiro.
Trabalhos de Jesus, por Fr. Thomé do Jesus.
Historia das vidas o f(;itos heróicos dos Santos, por Fr. Diogo do Rosário.
(Chronica d'El-Uoi D. João Hl, por Francisco do Andradi;.
Ni»biUarchia P(jrtugueza, por António do Villas-b(ías Sampaio.
Vida do S. Francisco Xaviíir, p(;l() Padre João de Lucena.
Vida do venerável Padre JosédAnchiela, pelo l*adro Simão de Vasconcellos.
Obras poéticas de Pedro António (iOrrèa Garcãí), nova edição correcta c ac-
crescenlada com muitas poesias o discursos ainda não impressos.
Escriptorio da Empreza: Rua Áurea, ['.I2~[l\'i.
Livraria de Anlonia José Fernandes Lopes.
ADVEiiTE^^CIA PRELIllINAR
ACERCA DA PRESENTE EDIÇÃO
A progressiva e qiiasi exlienm raridade a que teeni chegado entre nós
os exemplares da Clironica da Companhia de Jesu do Estudado Brasil, jjéio
Padre Simão de Yasconcellos, e o elevado preço a que subiram modoriia-
meiíte os poucos que a casualidade trouxe ao mercado dos livros (o ultimo
de que sabemos foi, se não nos enganamos, vendido por 18;5000 réis),
justificam de ccrlo modo a preferencia com que o editor antepoz a publi-
cação d'esta á de t3ulras obras de nossos antigos clássicos, que se propõe
vulgarisar por meio da reimpressão. E tanto mais que esta Chvonica con-
tinua a ser procurada com avidez, quer em Portugal, quer no Brasil, como
uma das mais notáveis e estimadas no seu género.
Ninguém ousará negar que, á parte o espií-ilo de exaggeração e pie-
dosa credulidade, dominantes nò século em que foi escripta, e de que o
aucíor mal jiodia sei' exemplo, esta obra iião seja uma ampla e curiosíssima
foule de noticias i»ar;i Indo o (pir, dí/ i-cspcilo ás piimeiras fon([uistas b
estabelecimcntoá culoiiiaes dus poílugiiezus ua ÍL-na de Santa Ciiiz; á (u-
pograpliia do paiz; e ás trabalhosas fadigas dos primeiros missionários na
catheqiiese e civilisarão dos Índios. É innegavcl o proveito que das narra-
tivas do Padre Vasconcellos no periodo, em verdade mui curl(j, que ellas
comprehendem, recollieram os qu(; em diversos tempos se occuparam mais
detidamente da historia do Brasil, como o antigo Rocha Pita, e o m.oderno
Southey.
Rogado pelo editor para nos incumbirmos de dirigir esta edição, e d
que mais é, da enfadonha e molesta revisão das provas typographicas, sen-
timos sobremaneira que a pressa que nos foi imposta, e a necessidade de
conciliar este com outros encargos a que temos de attender, nos não dei-
xasse livre o tempo de que carecíamos. Cumpria fazer sobre a Chronka
um estudo mais particular, e comparal-a passo a passo com os importantes
trabalhos históricos de recente data, pubhcados, mormente no Brasil, por
illustrados contemporâneos. Poderíamos, mediante esse exame e confronta-
rão appensar á obra as observações o reparos concernentes a rectificar al-
guns factos e datas, em que a ci'itica moderna, apoiada nos documentos e
provas authenticas, desconvèm das narrações do chronista; porém isto,
que de algum valor seria, para obviar futuras pi'eoccupações a leitores inex-
perientes, foi-nos de todo imiwssivel na actualidade.
Limitámo-nos portanto a reproduzir liei e escrupulosíunente, (juanto cm
nós coube, a edição primitiva de 1GG3, e até agora única, pelo que
respeita á Chronka, propriamente dita; pois que díis Noticias que a ante-
cedem, houve segunda em 16G8. Á primeira nos cingimos, sem nos per-
mittirmos outra liberdade, que não fosse a de restituir íilguns togares do
texto, em que eram manifestas e evidentes as incorrecções typographicas:
por exeníplo, entre as paginas 1^8 c ii29 d'aquella edição, onde em todos
os exemplares cfue consultámos existe uma lacuna visivel. Completámos
ahi o sentido, com as palavras (juc nos ])areceu faltavam.
Fizeram-se também na orthographia assas irregular e anómala, como
o é geralmente em nossas antigas edições, algumas leves mudanças, recla-
niadas pelo uso e coinmodidade dos leitores, ou exigidas pelo estado actual
das ollicinas typographicas: taes como a da conjuucção (Jf) em (e); a do (u)
pur (V) quando fere vogal; do (y) por ((), quando o emprego da primeira
letra não é determinado por alguma razão etymologica; e a substituição em
alguns casos das letras minúsculas ás capitães, de que nossos maiores se
mostraram tão sobejamente pródigos. Supprimiu-se o (/) dobrado na pre-
posição pelo, pela, que na edição antiga é pello, pella; e nos tempos dos
verbos, v. g. ajudal-o, fazei- o, visital-o, ctc, que alli se lêem ajudallo, fa-
zello, visitaUo, etc.
Afora estas alterações, conservou-se tudo o mais, por ser este em nossa
humilde opinião, o modo mais azado porque convém reproduzir na actua-
lidade as obras impressas de antigos escriptores. Se porém o acordo do
publico se mostrar adverso n"esla parte, a elle nos subjeitaremos nas fu-
turas reimpressões, que por ventura correrem ainda á nossa conta.
Para não defraudar em cousa alguma os leitores, conservaram-se inte-
gralmente nesta, que por conveniência vai dividida em dous volumes, a de-
dicatória, licenças e mais apparato da edição antiga. Quanto ás rubrica
marginaes dos capítulos, ou paragraphos, que não podiam entrar commo
(lamente em seus logares no formato em que esta é feita, reduziram-se a
summarios ou Índices geraes, collocados no fim dos volumes, onde ficam
sendo da mesma, se não de maior utilidade.
Quizeramos, como a razão aconselha, e o uso recommenda, ajuntar aqui
algumas noticias individuaes do auctor, ampliando o pouquíssimo que d elle
nos transmittiram os nossos bio-bibliographos; porém ficaram frustrados
n'essa parte os nossos desejos, pois que mui pouco ou nada avançamos
além do já sabido.
Foi o Padre Simão de Vasconcellos natuial da cidade do Porto, onde
nasceu em l.">97. Tendo passado de tenra edade á da Bahia, então capitai
dos estados da America portugucza, ahi vestiu a roupeta de Santo Ignacio
no Collegio da mesma cidade no anno de lOlti, ((uando entrara nos deze-
,,/,v,. \o i>.fyn,jo Collngio foi successivamente alumno e mestre, dirlando
por muito tempo letras luimanas, juntamente com a pbilosopiíia, o theolo-
gia especulativa c moral. Terminada esta laboriosa applicação, voltou para
Portugal em companhia do Padro António Vieira, no anno de lOil; c de-
pois de curta demora em Lisboa, passou a Roma no exercício de Procu-
rador da sua protincia. Deixou as funcçíjes d esse cargo por ser assumpto
ao de Provincial, c desempenhando este até ser n'e]le substituído, veia de
novo a Lisboa, provavelmente para cuidar da impressão da sua Chronka,
pois que d'esta cidade é datada a 7 de Septembro do 1662 a protestação
que na mesma fez inserii* segundo j3 uso então estabelecido. Recolhido por
íim ao Brasil, ahi vivia no Collegio do Rio de Janeiro, quando foi accom-
mettido de um accidente apopletico, que o levou do mundo aos 29 de
Septembro de 1071, contando 74 annos de edade e 53 de Companhia. Fi-
xeram-se-lhe decentes exéquias, a que assistiram os religiosos mais graves,
e pessoas mais auctorisadas d^aquella Capitania, capitulando o officio o Vi-
gário geral, que a esse tempo servia de administrador do bispado.
Eis tudo o que- a respeito de sua pessoa podemos colligir, consultando
a BibliotJteca Lusitana de Barbosa Machado, tomo nr; a Bibl. Societ. Jes.,
pag. 724 ; a Bibl. Ilispan. do Nicolau António, tom. n, pag. 233; e a
Bibl. Occid. do Leão Pinello, tom. ii. Quanto aos seus escriptos, diremos
succintamente o que alcançámos de própria investigação.
A obra níais considerável do Padre Vasconcellos é sem duvida a sua
Chronica, que se imprimiu em Lisboa, na officina de Henrique Valente de
Oliveira, em magnifica e para aquelle tempo luxuosa edição no formato de
folio grande, formando um volume de xu— 188 — 528 paginas, e mais doze
innurneradas, contendo o índice final. Este primeiro tomo ficava sendo, co-
mo diz o auctor, introdacção de todos os que se haviam de seguir, c que ha-
viam de ser de força muitos. Comtudo, nem imprimiu mais algum, nem
mesmo consta que os deixasse manuscriptos.
Dos dous livros que sob o titulo Noticias curiosas e necessárias das coti-
sfís do Brasil servem de apparalo á Chronica, se fez nova e se[)arada edi-
ção em Lisboa, por João da Costa, 1GG8, volume no foiínato de 4." com
Y(i[_291 pa^íinas, e mais 12 (iiiniimeradas) de indice, tendo uma dedica-
iDi-ia especial ao capitão Francisco Gil de Araújo, a cujas expensas se rea-
lisára a impressão.
Afora estas, imprimiram-se antes e depois as seguintes, todas destina-
das a exaltar a gloria da Companhia e de seus filhos :
Vida do Padre João de Almeida, da Companhia de Jesu, na provinda
do Brasil. Dedicada ao sr. Salvador Corrêa de Sd c Benevides, dos Conse-
lhos de Guerra e Ultramarino de Sua Magcstade, ctc. Lisboa, na oíTicina
Craesbeckiana W)S. Folio.
Continuação das maraviihas que Deos he servido ohrarno Estado do Bra-
sil, por intervenção do mui religioso e penitente servo seu, o venerável Pa-
dre João de Almeida, da Companhia do Jesu. Lisboa, na oíTicina de Do-
mingos Carneiro 1CG2. FoUo. Consta apenas de IG paginas sem nume-
ração.
Sermão que pregou na Bahia em o I ." de Janeiro de 1G59, na festa do
nome de Jesu. Lisboa, na oíllcina do Henrique Valente de Oliveira IGGI},
'i.'^ de 20 paginas.
Vida do venerável Padre Joseph de Anchieta, da Companhia de Jesu,
Ihaumaturgo do novo mundo, na provinda do Brasil. Dedicada ao Coronel
Franciso Gil de Araújo. Lisboa, na ófficina de João da Costa 1672. Folio.
Volume com xxxi — o03 paginas, a que se segue debaixo de nova numera-
ção, e com rosto s )lto, Becopilação da vida do Padre Joseph de Anchieta,
contendo 9"i paginas. — Advirla-se (lac a parte d'estc livro, que corre do
paginas 443, até 5i'] 6 preenchida com os versos latinos do Padre Anchie-
ta, que passaram para alli reproduzidos da Chrunicã, onde já haviam sido
impressos. Esta eJição, como se vê pela dala, só se concluiu posthuma.
tendo o auclor fallccido no anno antecedente.
Os exemplares de todas estas obras competem eidre si em rai-ídade :
poucas vezes se deparam de venda; e os que apparecem acham pr'(»nipíos
compradores, e ^lagam-se por preços proporcionalmente subidos.
E com isto cercaremos as prjscntes linhas, invocando para o Iiv!'í) u
benévola indulgência do publico ilkistrado. Desejamos e esperamos que do
seu favorável acolhimento resultem para o editor os incentivos que ha mis-
ter, sem os quaes mal poderá levar por dianle commeUimento tão árduo
quanto dispendioso, como o é de certo aquelle em que entrou, e que st)
assim poderá prosperar com os mellioramentos de que ó susceptível. Oxalá
que por falta de protecção animadora não venha a empreza a mallograr-se,
participando da sorte de outras do mesmo género !
Lisboa 4 de Junho de 1865.
IxNOCENcio Francisco da Sh.va,
Sócio effecíivo da Academia Real das Sciencias de Lisboa.
DEDICATÓRIA DO AUTHOR NA EDIÇÃO DE 1663
A MAGESTADE
DO MUITO ALTO, E PODF.HOSO REI DR PORTUGAL
mm^^ .^»b3^";i^^^^^^«ns 'm7m
ÍÍK
A Chronica de hum novo mundo por tantos annos esperada, em nenhum
tcwpo podia .mhir á luz com mais felicidade, que no em que sahe a reinar
hum Príncipe esperado pêra tantas venturas. Este he Vossa Magestade oh
poderoso Rei; porque sendo parle essencial da decima sexta geração do
primeiro Rei J). Ajfonso Henriques, tão esperada dos Portugueses,
conseguintemente em Vossa Magestade hão de ler cumprimento os Orá-
culos de suas esperanças, e hão de apparecer em o mundo as felicida-
des dos tempos dourados, que qual outro César Augusto, aguardão por
Vossa Magestade. Eu não ];retendo desenrolar aqui estas òonsventnrast
(pie pedem longa escrilluni, assumpto grande pêra dedicatória : sup-
ponho-as somente, offerecido comludo a proval-as, se mandado me
fosse. E fiqnr. desde logo a summa. Primeira: Que he Vossa Magesta-
de parle essencial da decimi sexta geração do primeira Bei Portuguez
I). Affonso Henriques. Segunda: Que a esta estão promellidas as fe-
licidades que esperamos os Portugueses, referidas por Christo, de hum
felicíssimo Império, quando disse áquclle Príncipe magnânimo : Volo iii
te, et in seniine tiio imperiíim milii slabílirc : com as proezas, e vi-
ctorias da sujeição da genlc Ollom na, Jiidcos, e Hereges, e reducção
de todas estas seitas a hum só Pastor, e igreja. Terceira: Que nem
pêra este intento tão desejado, devem viver nos corações dos Portugu-
gueses esperanças mortas, ou pensamentos de desenterrar defunctos Prin-
cipes, décimas sextas gerações acabadas: Non enlis, et non apparen-
lis eadem est legis disposilio. Ageraçã> decima sertã por linha recta,
que alguns esperavão, não apparcce. A parte primeira da dechna
sexta gvrarào transversal portuguesa, que já reinou, não hc necessária.
Gozou esta a parle primeira d'csias felicidades; a segunda ha de go-
zar a outra parle da mesma geração .-Non siint facieiída miracula sina
necessitate. Se -sem milagres temos viva a decima sexta geração, se
reina hoje sobre nós claramente, que necessidade ha de portentos no-
vos? Se fdho, e pai fazem a mesma geração, se são dats fartes esscn-
ciaes (qual alma e corpo pêra fazer hum himem) pai (jenerante, e filho
gerado, e a parle primeira doesta gerarão gozou as felicidades primei-
ras; a segunda parte porque 7iCio gozará as segundas ?
A este pois; a este Priiicipe venluroso, que claramente reina como parte
da decima sexta geração, c com esperanças de felicidades, quaes agora con-
vém esperar, não relatar; a este dedico minha obra, intitulada: Chro-
nica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil. Volis assuosco vocari.
Acostuma i-vos, oh grande Príncipe [qual outro novo imperador Cé-
sar Augusto, disse o Poeta Mauluano;) acor^lumai-vos a ser invocado,
com offertas dignas de Vossa 3Iagestade, Aceitai o obsequio de hum vas-
sallo, que com igual verdade escreve o que foi, e propõe o que espera.
Aceitai mais por outra via, que não iienos obriga: e he por ser Vossa
Mageslade successor dos Augustos, e sempre memorareis yenho:es]Reis
D. João Terceiro, e Quarto : aquclle, pai da Com.panhhi: este, vosso,
e nosso. Aquelle, pai da Companhia, porque foi qaasi confundador da
Companhia universal, fundador da de Portugal, e fundador da do Bra-
sil. Que pedra não moveo na fundarão e confirmação doesta Religião
amada sua? Que meios não tomou, de í^egados seus, de Príncipes estra-
nhos, de rogativas affectuosas ao Summo Pontífice'^: Que despesas não
fez da real fazenda? Que advertências, que consdhos não leve peva sa-
hlr com seu intento? Chegou a dizer nosso Pdtriarcha Santo Ignacio, que
de todos os Príncipes Chris!ão<i, a D. João o Terceiro tinha por hem-
feitor principal da Companhia. E talvez subindo mais de ponto, disse,
que era a Companhia mais d^El-Rei D. João o Terceiro, que sua. Em
seu Beino, com que honras não recebeo este grande Príncipe os fdhos de
Ignacio? Que sinaes de amor não mostrou? Dizem-no as Historias d'cste
Monarcha, e mais por extenso as Chronicas de nossa Companhia. Fal-
tem as obras pregoeiras eternas, as fundações das grandes fabricas, que
como pyramidas de seu bem ([uerer levantou da terra ao Ceo : da ma-
gnifica Casa professa de S. Roque em Lisboa: do insigne Collegio de
Coimbra, primeiro de toda a Companhia; grandioso cm rendas, illustra-
do com todas as Escholas menores d'aquella celebre Universidade. Estas
sós duas obras falte a por todas: as do Reino de Portugal, índia, e Bra-
sil, não he meu intento recontal-as toda^, agradecel-as sim. E principal-
mente testifique esta verdade a fundação notável do Brasil (sujeito de toda
nossa Chronica) ordenadapor este Sereníssimo Príncipe, por melo do vene-
rável Padre Manoel da Nóbrega, com os mesmos favores, e despesas, com
que obrara a da índia Oriental, por meio do incansável obreiro S. Fran-
cisco Xavier.
Seguio os intenios doeste Rei amoroso a boa memoria d'El-Rei D. João
o Quarto, pai de Vossa Magestade, e pai também de nossa Companhia.
Sabido he o zelo prudente, com que dispo z a leva espiritual de trinta e
tantos sujeitos da Companhia de Jesus de diversas províncias, pêra a
conversão do Esta 'o d> Maranhão, de tão immenso numero de almas,
e nações infiéis, prevind > esta de favores igualmente, e despesas reaes.
As mesmas foi servido fazer com os Missionários d> Brasil. Doou com
larga mão os Collegios de Goa, e Cochiin de grande summa de qunsí vin-
te e quatro mil cruzados de renda, que os Viso- Reis, e seu Senado lhes ti-
nhão tirado: á Provinda do Japão restituio dous mil cruzados anmiacs:
a da China dotou com mil e quinhentos cruzados. Ao Collegio de Angola
com dous mil por tempo de dez annos. Acrescentou os estipêndios dos Mís-
nonarios dos índios, sobre todos os Reis antepassados. No Collegio de
Elvwi ín>^tituio cadeira de Malhemalica (c.rercicí) dos que alli miíitão)
com estipendio annual de duzentos cruzados, mandando juntamente fa-
hncar a aula com despesa real. Continuou com n ediftcio do Templo da
Casa professa da Companhia de Jesu em ViUa-viçosa; com consignarão
pêra esta obra todos as annos de mil e quinhentos cruzados. E aliviou
a pobreza das mais Casas professas com esmolas de porte. Por todas
as razões referidas, justo era que se dedicasse a Vossa Magestade a Chrc-
nica primeira da Companhia de Jesu do Brasil: e junto com ella os âni-
mos de todos seus Religiosos, agradecidos, prostrados, e como admira-
dos já de agora das idades douradas, que esporão gozar.
Humilde tmssallo e servo de Vossa Magestade,
Simão de Vasconcellos.
APPROYACOES DA RELÍGIÂO
Li com a applicacão devida csla primeira parle da Clironica da Com-
panhia de Jesu desta Província do Brasil, composta peio Padre Simão de
Vasconr^ilos da mesma Companhia o Provincia : não acliei nada que rever
pêra a censura, achei muito que ver pêra o applauso: porque nesta ohra
se admira fácil, o que em todas he diíTicultoso: brevidade sem confusão,
curiosidade sem hyperboles, gravidade sem artificio, suavidade sem aíTe-
ctação, agudezas escholásticas sem faltar ásinceridadehistorica. Fazem pro-
logo aos illustres feitos dos filhos de Ignacio algumas noticias d'(3Síe_nova
mundo: que não era bem se relatassem acções de tanta gloria, sem que se
propuzesse o íheatro delias. Em Imma ,c outra cousa pi'ocede o Author tão
ajustado com a verdade, fjue sendo a ]ienna sua (e bastava pêra merecer a
maior fé) não quiz com tudo que fosse seu o credito. Tudo o que escreve
ou são experiências repetidas, ou tradições constantes, ou escritturas abo-
nadas. Aíjui se achão unidas exhortação, e narrativa, porque historiando
de propósito, inílamma como de pensado. Refere o que obrarão os mortos,
advertindo o que hão de obrar aos vivos. Não serve sua leitura somente
pêra occupar os olhos, se não pêra despertar os ânimos. Com a lição do
outros livros engana-se, c quando muito não se perde, o tíMupo: com a lição
d'este aproveita-se. Quem o ler, entenderá são estas palavras mais dictame
de seu merecimento, quo divida de meu aííecto. Finalmente na obra toda
não ha cousa que offiíuda, muito sim quo edifique, em beneficio dos fieis,
serviço de Deos, gloi ia da Cf)nipanliia, e lustre desta nossa Provincia. No
Collegio da Bahia 18 de Maio de 1661. — A7itonio de Sd.
Por ordem do Padre Provincial Baltliasai- de Sequeira vi o primeiro
tomo da (lironica da Companhia do Estado do Brasil, composta pelo Padre
Simão de Yasconcellos da mesma Companhia, Provincial que foi nesta Pro-
vincia: não acho nella que notar, e firo que acharão muitos que aprender
cm tão santa leitura, o muito que admirar em tanta variedade de cousas
J'este novo mundo. Ni!m cuido causará todio ao quo a ler ; i)orquo o csty-
lo he doce, e sem affectação : e sobre tudo certo, verdadeiro, e conforme ás
experiências, tradições, e apontamentos fidedignos do venerável Padre Jo-
sepli Anchieta, c outros varões, pais primeiros desta Pi'ovincia. Pelo que lie
muito digna de que se imprima esta obra a gloria de Deos, e da Compa-
nhia. Bahia 20 de Maio de 16G1. — Jacinlo de CarcaJhnes.
Por mandado do Padre Provincial Balthasar de Sequeira li, c ouvi ler
com o devido gosto, c particular attenção, o livro da CÍironica da Compa-
nhia de Jesu d"esta Província do Brasil, composta, e ordenada pelo Padre
Simão de Vasconcellos da mesma Companhia, e Província : parece-me ser
obra de grande edificação, proveito espiritual, e consolação pêra toda a Com-
panhia; por se referirem n'ella cousas mais admiráveis, que imitáveis, e de
grande confusão pêra alguns dos que vivemos, e vemos quão longe esta-
mos d"aquelle primeiro, e fervoroso espirito, com que se fundou esta Pro-
víncia do Brasil. O estylo da obra he grave, e pouco affectado, como deve
ser a historia. Contém successos grandes, e noticias muito curiosas d'estc
novo mundo ; e tudo mui conforme ás tradições, que ha n'cste Estado. Ao
Autkor deve graiídes obrigações o Estado, e a nossa Província do Brasil,
pela muita diligencia, e certeza com que escreve do Brasil, e da Província;
e pelos graves termos, com que tão doutameiíte entre a historia trata al-
gumas questões curiosas. Pelo que me parece mui digna de se estam^par
pêra edificação de toda a Companhia, e quasi reprehensão dos lilhos d*esta
Província. Bahia 17 de Abril de IGGl. — João Pereira.
JOANNES PAULLS OLIVA SGCIETATIS JF.SU
Yicarius Gene ralis
Cum Hisforiam Brasiliensem noatrcs Societalis Lusitano idiomale â P.
Simone de Vasconcellos ejiisdeni Societutis Saccrdole conscriplani, aliquot
nostri Theoíoyi recoguoverint, et in Incem edi posse probaverint ; poteslalem
facimus, iit typis mandetur, si it a ijs, ad quos spectat, videbitur; cujus rei
gratiá has lUteras nianunostra subscriplas, sirjilloque nostro munitas damus,
Romre í Julij 1662.— Joan. Paulus Oliva.
LICENÇAS DO SAINTO OFFICIO
Vi com parlicuiar gosto, allenr.ão e curiosidade a primeira parle da
Cliroiiica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil, composta com estvlo
douto, grave, claro, aprazivel, pelo muito reverendo Padre Simão de Vas-
concellos, Provincial (]uo foi d"aqui'i!a Provincia. Traía dos primeiros cou-
(juistadores, e descobi-idores do novo nmndo, e mais em particular do Es-
tado do Brasil, de sua grandeza, e cousas mais notáveis, que são muitas,
6 muito pêra saber ; com questões agradáveis, e mui curiosas, em que tem
bem que ver, e se entreter os curiosos antiquários. Trata também dos pri-
meiros Conquistadores espirituaes da Companhia, que forão áquellas par-
tes, dos grandes trabalhos que padecerão, e perigos que passarão na con-
versão de gentes tão rudes, barbai'as, indómitas, e inhumanas d^aquellas
vastas, agrestes, e incultas regiões, e o grande fruito espiritual que
em ellas íizerão, em que tem bem que imitar os que por oíTicio, e voto es-
tão dedicados a obra tão santa, e tanto do serviço de Deos. Não tem cousa
que encontre nossa santa Fé, muitas sim de sua exaltação, propagação, e
augmento; nenhuma contra os bons costumes, antes nmitos documentos
im[)oríantissimos pêra os introduzir, e desterrar os bárbaros, agrestes, e
inhumanos daquella gentilidade ; c assi a julgo por digna de saliir á luz
j)era maior gloria de Deos, honra e credito d'este nosso Reino, do qual sa-
liirão os primeiros, o sabem de continuo os obreiros de tão santa empresa.
Com tudo, como em o discurso da histoiia trata o Aulhor as vidas de al-
guns (raqu(^l!es primeiros Missionários, e n"ellas de algumas revelações, e
obr-as ao parecer milagrosas, e algumas vezes lhes dá o titulo de Santos,
e também do martyi'io do Padre Ignacio de Azevedo, e seus companheiros,
aos quaes nomeia martyres, contra o que o Breve, e Decreto do senhor Pa-
pa Ui-bano VÍII disjme; he necessário, primeiro que se lhe dè a licença pe-
i'a se estami)ar, lazer o Aulhor em o i)rincipio da obra, ouíim d'ella, pro-
testação, e reserva do dito Breve, conlbi-me sua explicação, como Hizem to-
dos os que depois d(í sua daia escreverão vidas o leitos de varões insignes
em virtude, e santidade. Advirto lambem, que íãKa aíjui a licença do seu
Padre Provincial. Lisboa em o Convento de Nossa Senhora de Jesus em 15
de Janeiro de lOGá. — Fr. Duarte da Conceição, Leitor jubilado, c Puãre
da Provinda.
í)h('de('(Mid(» ai) iiiiindadi) do santo Tribiiiiai, re\i csla Chronica da sagrrt-
da Beligião da Companhia de Jesus, pailicular do nosso Ueino de Portugal,
no tocante ao descobrimento d^aquella parle da America que chamamos
Brasil, com as noticias do clima, e natural do terreno, e marítimo d'ella ;
e mais em particular, dos })rincipios, e progressos com que os obreiros
d'esta Religião, enviados pelos Reis nossos Senhores, forão manifestar áquel-
la gentilidade a verdadeira crença do Evangelho. Por appendice da obra se
oíTerece hum poema do prodigioso Padre Joseph de Anchieta em louvor
da Virgem Maria Senhora nossa : o qual, sendo hum dos principaes execu-
tores d"aquella missão, soube poupar espaços pêra cantar, entre trabalhos
tão extraordinários, os louvores que se devião a quem lhe servia de alivio
n'elles.
A sobredita bistoria, e o poema, além de serem notáveis pelas noti-
cias, artificio, locução, e metro ; contém tão deleitosa, proveitosa, e sãa
doutrina, que ainda os menos affectos á Religião Christãa, e Fé Romana,
se encolherão convencidos; os mais escrupulosos Históricos, e Geógrafos se
publicarão allumiados, e os mais apurados Poetas confessarão ficar alonga-
dos da suavidade singela, com que mysterios tão elevados devem contar-se.
Procede tudo tão regulado com os decretos da Catholica Igreja, e resolu-
ções dos Summos Pastores d"ella, que não falta mais pêra acabar de afer-
vorar ânimos zelosos, que propor-lhes na estampa este incentivo de luzei-
ros Evangélicos, pêra que a imitação sua, como costumão a religião da Com-
panliia, e outras do nosso Portugal, despidão de si ramas, que vão plantar
a mesma Fé, e crença, e dirijão suas acções pelos dicfames, e execuções
de tão bons mestres. Isto he o que sinto na matéria presente. Em Nossa
Senhora do Desterro 13 de Outubro (*) de 1662. — O Doutor Fr. Francis-
co Brandão.
Vistas as informações, pôde-se imprimir este livro, cujo titulo he: Chro-
nica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil, author o Padre Simão de
Vasconcellos: e impresso tornará ao Conselho pêra se conferir com o ori-
ginal, e se dar licença pêra correr, e sem ella não correrá. Lisboa 17 de
Outubro de 166i. — Pacheco, Sousa, Fr. Pedro de Magalhães. Rocha^ Alva-
rx) Soares de Castro, Manoel de Magalhães de Menezes.
Pócle-se imprimir. Lisboa 30 de Outubro de 1662. — F. Bispo de Targa.
(-) IJa sciu rluviílii engano lui indiç.Tjão do mcz; poRm nfio tabcniot come rc-^ulval o.
LÍCENCAS DO TACO
Esla Chroiiica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil revi já por
mandado do Santo OiTicio, e n'aqaella approvação declarei o que d'ella sen-
tia: conl'ormando-me com o que então disse, posso agora certificar a Vossa
Magestadc, que lie huma bem trabalhada escrittura; e que além das miú-
das noticias daquella parte da America, principio, e progressos de seu des-
cobrimento, conquista, e conversão, com que esta nação ficará inteirada da
estimação que se deve fazer de parte tão principal de sua conquista ; Vos-
sa Magestade, e os Senhores Reis seus predecessores estão bem servidos
pelo zelo, e cuidado que applicárão a tão grande empresa; e o mundo to-
do se admirará com a leitura de tão notáveis e diíferentes eíTeitos chris-
tãos, mihtares, c políticos. Em Nossa Senhora do Desterro 3 tle Outubro
de iG6l2. — O Doutor Fr. Francisco Brandão, Chronista mor.
r
Pódc-se imprimir, vistas as licenças do Ordinai'io, e Santo OÍTicio, e
impresso tornará á Meza pêra se taxar, e sem isso não correrá. Lisboa 7
de Novembro de IGGá.— J/o?/rrt P., 'Sousa, Vcllio^ Gama, Silva.
Revi esta Chronica do Brasil, e lenho entendido que está conforme com
seu original: a qual tinha revisto, e examinado na primeira revisão, que
se me encommendou desse Santo Tribunal, e na segunda que do Tribunal
do Paço se me mandou. E conforme a esta informação pôde o Santo Tribunal
(lar-lhe licença para a publicação. Em Nossa Senhora do Desterro, ultimo
de Fevereiro de 10G'i. — O Doutor Fr. Francisco Brandão, Chronista mor.
Visto estar confoi-nií; com seu original, ])ó(l(! correr esla Chronica da
Comj)anhia de Jesus do Estado do Brasil. Lisboa 3 de Março de 1005. —
Pacheco, Sousa, Fr. Fedro de Magalhães, Rocha, D. Vcrissimo de Alcncastro.
Taxão este livro cm treze tostões em papel, visto o (pie se alloí^a.
Lisboa O de Março de \{\{V,\.- 1). liodrigo de Menezes /'., 3Jonlviro, Silva,
Magalhães de Menezes, Miranda.
SCRIPTORI
Reverendo Patri Simoiii de Vasconcellos Societatis Jesu, Saciíe Theologiíc
Professori sapienlissimo, semel ac iterum Reclori religiosíssimo, ac tan-
dem Propósito Provinciali expectatissimo, Brasiliensis Chronici xVulori
diligentíssimo, qiiidam ex eadem Societate hoc oífert
EPIGRAMMA
Brasilíditm scrihis popiilos, et fada virorani
Jesuadum didis áurea fada tuis.
Áurea maleries, stilus aureus, áurea fandi
Copia : cunda auro slant pretiosa suo
Nam cum barhariem calamo depingis incrmem,
Exidat á culto pollice barbáries.
Et cum divinos manus exarai inchjta mores,
Non nisi divinum est, quod tua scripta sonant.
Mille viros cíbIo, quos penna obscura silebat.
Das: tua mortales ccelica penna beat.
MíBoniiis vates fortem dma laudat Achillem
Virtutis pneco dicitur eximius.
Pncconem virtutis agis, dum scribis Adãlles
Jesuadum, et sacros fers super astra duces.
Maior Achilleá est virlus., quavi laudibus effers:
Maior Mwoniõ tu quoque Scriptor eris.
LURO PRIMEIRO
DAS NOTICIAS
ANTECEDENTES, CURIOSAS, E NECESSÁRIAS
DAS COISAS DO BRASIL
INTRODUCCÃO
Hei tle escrever a lieroica missão, (jiie empreheiulèrão os Filhos da Com-
panhia, a fim de conquistar o i)odpr do inferno, senhoreado por seis mil
e tantos annos do vasto império da Gentilidade Brasihca. Hei de contar os
leitos ilkistres d*estes religiosos Varões, as regiões que descobrirão, as
campanhas (jiie talarão, as empresas que accommeterão, as victorias que
alcançarão, as nações que sujeitarão, e a reputação que adquirirão as armas
espirituaes Portuguesas do Escjiiadrão, ou Companhia de Jesus. E como o
lugar das grandes victorias costuma sempre descrevcr-se, pêra maior cla-
reza delias; eu, que desejo declarar estas nossas com toda a inteireza pos-
sível, seguirei o estylo commum : mormente sendo o campo destas hum
mundo novo, ainda em o tempo presente mal conhecido, quanto mais no
d afjiielias euipresas i)riiM('irns. Jliv força, não já de estylo somente, mas
do necessidade, que descreva pi ímeiro este lugar, onde as I atalhas forão
VOI,. I II
XXVI
por Iiiima parte tão feridas, c por oiilra tão romoiitadas dos olhos dos liomcns,
(lue podem pêra credito seu toda a disliiicrão, e clareza. Nem será razão
])or outi-a via, que aquelles que hão de entrar em hum tão forte desafio,
l)artão sem saber o lugar, onde ha de ser o conflicto, c passem de hum
mundo a outro mundo, sem que tenhão i)rimeiro noticias d"eile; que região
hc, quando, e como foi descoljerla, quaes sejão suas qualidades, seus cli-
mas, suas gentes, seus costumes. E supposto que andem jú algumas
d"estas mesmas noticias em outros escrittos, hc acaso, ou por curiosidade:
aqui vèm por obrigação da historia. E quem comtudo não gostar com a
leitura d'esías curiosas advertências, pôde passar- aos livros seguintes, sem
prejuízo do principal intento. As noticias que hei de dar, serão ao tosco, se-
gundo o estado, em que no principio acharão as cousas nossos missioná-
rios ; porque á vista do que foi, melhor perceba o leitor a differença do
que he, quando estas Chronicas lêr. E não se espante o leitor de que seja
tão grande este principio; porque de logo liça sendo introducção de todos
os tomos da mesma Chronica, (lue se hão de seguir, e hão de ser de for^-a
muitos.
S-UMMA
— =^§^i**S>—
Cuníém CíiLe iicru o descobrimentu admirável do novo muudn, assí
por parle da Nova Ilespanha, como por parte do Brasil. O modo com
que se rcpartio enlre os dons lieis de Portugal, e Caslella. A descri-
pçào, e demarcação geographica de suas terras, costas, rios, porcos,
cabos, enseadas, c serranias fronteiras ao mar. E a resolução de al-
gumas duvidas curiosas, a saber : (Juem forào os primeiros progenito-
res dos índios ? 'Em que tempo entrarão neste novo mundo '^ De que
parte vierão ? De que nação erão? Por onde, e de que maneira entra-
rão ? Como não conservarão suas cores, lingoa, e costumes, seus des-
cendentes ?
\ São iii(:()m|)n,'ii(!iisivc'is os jaizos de Doos: seis mil seisccnlos e iki
Noiíla e liuiii aiiiios havia, <iuo aquclla sua iinmcrisa buudade, e omiiipo-
Ifiicia inlliiita, lirára do nada ao ser esta macliiiia teiTeiia, cfiic vemos
igualmente hiimas [)ailes, e outras, as do Norli;, as do Sul, ,'is do Levanie,
as do l'oenle, igualmente foririadas em !uuu gloho, o assentadas cm hum
mesmo centro, coma mesma íei'mosura de montes, campos, rios, [danlas,
XXVIII I-IVnO 1 DAS NOTICIAS
e aiiimaes, pêra perfeita liabitação dos homens. E comtudo nao sei com
que destino lhe cahio mais em {rrara ao Criador hiima parte d"esta mesma
terra, que outra ; porque aquella (pie de três partes, Europa, Africa, o
Ásia, compõe huma só, escolheo Deos pêra ci-iar o liomem, formar paraíso
terreno (segundo opinião mais commum) authorizal-a com Pafriardias, ca-
beças dos viventes racionaes; e o que mais lie, com sua divina presença feita
liumana, hiz verdadeira de nossa bemaventurança. Porém a outra parte da
terra, outro mundo igual, não menos aprazível, da qual dissera o mesmo
Criador, que era muito boa; deixou-a ficar em esq\iecimenío, sem paraiso,
sem Patriarchas, sem sua divina presença humana, sem luz da Fé, e salva-
ção, até que depois de corridos os séculos de seis mil seiscentos e noventa
e hum annos, deu ordem como apparecesse este novo, e encoberto mun-
do, e foi a seguinte.
2 N'aquella parte de Andaluzia, aonde chamão o Condado de Niebla,
havia hum homem de profissão piloto; seu nome era Affonso Sanches, na-
tural da villa de Guelva; traltava este em navegar ás ilhas da Canária, e
(restas á ilha da Madeira, onde carregava de açucares, conservas, e outros
frutos da terra, pêra líespanha (supposto que outros querem que fosse Por-
tuguez este homem, e que por elle se deva a Portugal o primeiro desco-
brimento da America.) Succedeo pois, que partindo este homem (qualquer
que fosse) no anno do Senhor de 1492 de huma (festas ilhas, foi arreba-
tado de ventos e agoas por esse mar immenso á parte do Poente, paragem
f(jra de todo o connnercio dos navegantes, desíroçado, e ({uasi perdido ;
até que passados vinte dias chegou a avistar certa terra desconhecida, e
nunca d' antes vista, nem sabida: íicou espantado o piloto, e não se atre-
vendo buscal-a mais ao perto, porque trattava então só da vida, e porque
temia que de todo faltassem os mantimentos, demarcoa-a somente, e tor-
nou a buscar seu caminho, e demandar a ilha da Madeira, aonde firialmente
cliegou, mas tão consumido da fome, e trabalho, que em breves dias aca-
l)ou a vida. Acertou de succeder sua morte em casa de Christovão Cólon,
(jenovez, e também piloto : com este (vendo que morria) communicou o
segredo que vira, dando-lhe relação por extenso de tudo ; e deixando-liie
em agradecimento da hospedagem, sua mesma carta de marear, onde ti-
nha demarcado a terra.
:\ Não cahio no chão a Cólon a nova noticia de cousas tão grande? :
entrou em pensamentos levantados de procurar adquirir honra e fama, o
fazer-sc descobridor de aleuma nova parle do mundo. Porem como era homem
DAS COUSAS no BRASir. XXIX
commiim c sem cabedal, andou procurando ajuda de custo, de Reino em
Heino: foi a Florença, passou a Castella, (resta a Portugal, e Inglaterra,
e em todos estes Reinos sem effeito algum, porque não era crido, nem ou-
vido, senão por zomijaria, reputado por homem que contava sonhos. Tor-
nou segunda vez aos Catholicos Reis de Castella, Fernando e Isabel (que
pêra estes tinha o Ceo guardado esta boa fortuna ) ; e supposto que tam-
bém no principio zombavão d'elle seus ministros, venceo íinalmente o tem-
po, e a constância de Cólon. Sahio com mandar El-Rei, que se dessem
dezeseis mil cruzados da fazenda real, pêra que aprestasse navios, e com
promessa da decima parle de tudo quanto descobrisse. Animado Colou
com esta mercê, partio da corte, fez companhia com Martim Fernandes
Pinron, e outro irmão do mesmo chamado Affonso Pinçon,. c armarão três
caravelas, de duas delias erão Capitães os dous irmãos Pinções, e da ter-
ceira Bertholameu Golon, irmão de Christovão Cólon, e este ptíi' Gapilão-
mór de todos.
4 Derão principio a sua viagem, sahindo de hum porto de Castella,
chamado Pálios de Mugel, com até cento e vinte companheiros sj'»mente (a
huma empresa, a maior que o mundo vira até áquelle tempo.) A 3 de
Agosto do anuo do Seiíhor liOâ cliiigárão a Gomeira, huma das ilhas For-
tunadas, a que hoje chamão Canárias: e d'alli ao primeiro de Setembro toma-
rão a derrota caminho do Poente (quaes outros Argonautas em busca do maior
thesouro, que jamais descobrirão os homens :) engolfárão-se no largo Oceano
por rumos novos, e nunca d"antes intentados, chegarão a entrai" na zona
tórrida, começarão a expeiimentar a inclemência de seus immoderados ca-
lores; mas nada descobrií-ão do fim de seus desejados intentos. Aqui gas-
tarão tempo considerável até que, vendo que a viagem se dilatava, e não
appareciDo sinaes do (|ue buscavão, entrarão em desconhança os compa-
nheiros, e ai)f'>s esta, em murmuração. «.Já i)arecc temeridade, dizião, o
que até agora parecia constância : os ardores do sol são excessivos, os man-
timentos faltão, a gente adoece, a viagem dilata-se, os ventos escasseão,
sinaes de terra não ai)parccem, he incerto o intento, e certo o perigo : a
prudência pede que desistamos já, antes (pie cheguemos a termo, em (pie
pretendendo fazel-o, não pussam(js, e fiíiuemos [nn- exemplo ao muudo de
escarneo, e faliula.w
o Podèráo todas estas razões fazer desmaiarão maior valiu-: ])orêm
era (>)lon outro .lason famoso, descobiidor do velo de ouio, [)ru(lente, o
esforçado. Dizia-lhes, (jue as cousas grandes forão sempre em[»resa de ani-
XIX I.IYI',0 1 DAS NOTICIAS
mos generosos, c que não ora digno de muita estima, o ({ue não era alcan-
çado com milito trabalho. Que no caso presente, trnzião entre mãos o maior
negocio de líesnaniia: que antes de passados muitos dias, liavião de vrr
cora seus olhos o que agora a dilatada esperança liies representava im-
íossivci. Krão as palavras de Cólon tão cheas de certeza, que dayão no-
vos corações, e parecerão d"ahi a pouco tempo propliecias humanas; por-
que quando mais descuidados estavão, ao romper de huma manhãa fermosa,
11 de Outubro, começarão a ver os mareantes claros sinaes da desejada
terra: a pouco espaço a divisarão claram.enle; e primeiro que todos o Ge-
neral Cólon (que até com esta circunstancia quiz Deos galardoar seu valor.)
Não houve nunca baixel Indiano açoutado de rijos temporaes, e dilatado em
viagem, que assi se alvoroçasse á vista da terra que buscava, como á vista
da presente se alvoroçarão os nossos navegantes. Põem-Ihe a proa, e sal-
tão em terra aquelles Argonautas; e era ella hum.a das ilhas a que chamão
Lucayas, e tinha por nome particular Goaneami, que está entre a Florida
e Cuba. Corridas estas ilhas, e communicada a gente d"ella3, fera, e in-
tratável, que se admirava muito de ver taes hospedes em suas terras; edi-
ficou Cólon hum casíello, e ])residiado com quarenta soldados, tomou dez
homens dos índios naturaes, quarenta papagaios, e algumas aves, e frutos
nunca vistos em nossa Europa, com algumas mostras de ouro finíssimo, e
voltou a ííespanha.
6 Entrou na corte a 3 de Abril do anno de 1493: houve grande alvo-
roço de festas; l)autizárão-se seis dos índios, que só chegarão vivos: íorão
padrinhos seus os próprios Reis, e honrarão muito ao General, dando-lhe
titulo de Almirante das índias, e a seu irmão Bertholameu Cólon, de Adian-
tado das mesmas : derão-Ihe armas de Cavalleiros e poz n"ellas Cólon por
orla, esta letra: <í Por CastUla, y Arafjon, nuero miiiulo luilló Cólon. t» E desta
casa descendem hoje os Almirantes das índias de Castella, com titulo de
Duques de Beragua. Poucos annos depois voltou Cólon por diversas vezes,
e foi descobrindo a terra firme : de cujos successos, descripções, povoa-
ções, e grandezas d'esta parte do novo mundo, se podem ver os authores
à margem citados (•).
7 Este foi o notável descobrimento do novo mundo por aquella parte
(') Garcilfièso de la Vega. liv. i, cap. 3.— .lose|ib da Cosia, De Novo Orbe, liv. i, cap. 2. — Af-
fonso de Ovalle. Ili?:. do Cliilli, liv. iv, cap. 4.— Gonçalo lllcsci?, EiM. Pontif. parf. ii. — Hisl.
iionú das Índias, liv. i, foi. «228. — Fraiici.sco (Jnnzaga', foi. 1Í98. — Oviedo, liv. ii, cap. 23. —
llencia. becada i. liv. i, cap. 8. — ■ Tlieatro Orbis, na dcsciipcão da America. — Abrubam Orlclio
na incínii.
n.VS COUS.VS DO P.RASll. XXXI
(lo Nort(\ qiio (h\)o\<> si^ intitulou Nova llospanha. O da outra parte do Sul,
íjjtitulada primeiro Santa (^ruz, o depois Brasil, matéria principal de nossa
íiisloria, não foi menos maravilhoso, nem menos agradável: e foi assi.
Depois de três aimos de principiada a famosa empresa da índia Oriental,
querendo El-Rei D. 3Ianoel de santa memoria, dar successor aos illustres
feitos do Capitão Vasco da Gama, escolheo pcra eóta elTeito a Pedro Alva-
rez Cabral, Portuguez, varão nobre, de valor, e resolução. O qual partindo
de Lisboa pêra aquellas partes da índia com huma frota de treze náos em
^larço do anno de 1300, chegou com prospera viagem ás ilhas Canárias :
porém passadas estas, foi arrebatado de força de ventos tempestuosos, e
derrotados seus navios. Hum d'elles, o do Capitão Luis Pires, destroçado,
tornou a arribar a Lisljoa: 'os outros doze engolfados demasiadamente em
o Oceano Austral, depois de quasi hum mez de derrota, aos ál de Abril
segunda oitava de Paschoa (segundo o computo de João de Barros, Luis
Coelho, c outros") vierão a ter vista de huma terra nunca d"antes sabida do
outro mareante : esta reputarão por ilha ao principio, mas depois de na-
vegarem alguns dias junto a suas pi-aias, averiguarão ser terra lirme (*).
8 Foi incrivel a alegi"ia de toda a armada: porque n"aquella altura ja-
mais vii^ra ao iionsamento que podia haver teri-a. Puzerão-lhe a proa, o
mandou Cabral ao m3Síre da Capitania rpie entrasse no batel, c fosse inves-
tigar o sitio, e a natureza da terra : tornou alegre, e referindo que era
fértil, ainena, vestida de erva o arvoredo, e cortada de rios: e que vira
andar junto ás praias Inins homens nús, que tirávão de vermelhos, cabello
corredio, com arco e freclias nas mãos. Não são cridas da primeira vez as
cousas grandes : tornou a mandar Capitães, e ílzerão estes certo tudo o
referido; porque trouxerão comsigo dous pescadores, que apanharão em
huma jangada junto á praia: entrados íia náo, vinhão a vel-os com espan-
to, (■{)]]]() a monstros da natinvza: e como nem elles comnosco, nem nós
com elles podíamos fallai", ]h)v acenos e siiiaes ])rocm'amos tirar noticias;
porém debalde,; ])oi'(pji^ sua rudeza, e o medo com (}ue estavão era tal,
que a nada acudião. O (pie vendo Cabral, mandou (jue os vestissem, e lan-
çassem em terra com bom tratamento: com (jue forão contentes aos seu*.,
e lhes contarão o que vn'ão, (í facilitarão o traito.
{•) Do (Ic-rohiiniciilo dn Cnisil. vid MalTi-o, liv. ii.— (^Iirnn. ile Porliifíal, parf. i, liv. 3, f;i|i. i.
— IJiiilu-, llisl. (las Anil. do Brasil, liv. i. (M|». S. — TíhmIi'. OiIjí^. Dcsciipl. do Itiasil.— Aliiahaiii
Orl;lio, ii.-i niKt-ina Dfscrip. — Oiland. Cliion. d.i Ciniip. liv. iv, n:" »sl.— .I(iãi) di- Uai-n)<, Dccad. i,
liv. V. -Clirmiica d'EI-llei D. ManoLl, liv. i, cai). íJ-'*— Osório, liv. ii, \)dg;. (!í.
XXXII i.nr.o I DAS noticias
U Lançou a armada fciTo peia (Ipscaiiçar da via<^i'ni, u oxperimenlar
terra tão nova, eni lugar a ()ue cliain;'irão Porlo sej,'uro, oii ponine n'ello
reconhecião seguro abrigo, ou ponfuc nelle consideravão já seguro o íim
de seus maiores traballios. Saltarão íinalniente em terra, como á compe-
tência de quem primeiro punha o pé em tão ditosas praias. Aqui arvorarão
aos 3 de Maio (como querem alguns) o primeiro Iropheo de Portugueses que
o Brasil vio, o estandarte da Santa Cruz, ao som de demonstrações de gran-
des alegrias, e solemnidade de missa, pregação, e salvas de artilharia da
armada toda, pondo por nomo a terra tão fermosa. Terra de Santa Cruz:
titulo, que depois converteo a cobiça dos homens em Brasil, contentes do
nome de outro pão bem difforente do da Cruz, e de eíTeitos bem diversos.
Ao estrondo da artilharia, nunca dantes ouvido ii"aquellas regiões, se aba-
larão, como attonitos, dos arredores de suas serranias, liandos de barba-
ria, suspensos de verem que sustentava o corpo 'das agoas maquinas tão
grandes, como a de nossas náos da índia ; e muito mais de verem hospe-
des tão estranhos, brancos, com barba, e vestidos, cousas entre elles nunca
imaginadas.
10 Descião a ver como em manadas, ordenados, porém a seu modo
em som de guerra; e erão tantos os que conciHMião, que ao principio da-
vão cuidado. Porém com sinaes, e acenos, e muito mais com dadivas (a
melhor falia do todas as nações) de cascavéis, manilhas, pentes, espelhos,
cousas pêra elles as maiores do mundo, vierão a conhecer que a nossa en-
trada não era de mão titulo : fizerão confiança, trouxerão mulheres, e filhos,
e trattárão logo com os Portugueses íõra de todo o receio: traçarão em sua
presensa mostras de alegria, a modo de sua gentilidade, galanteados elles
e ellas de tintas de pãos, e pcnnas de pássaros, fazendo festas, bailes, e
jogos, lançando frechas ao ar: e por íim vierão carregados de animaes, o
aves de suas caças e de frutas varias da terra, que por não vistas outro
tempo dos nossos, não podião deixar de agradar. Quando se embarcava o
General, acompanha vão-no com mostras de prazer : hião com elle até á
praia, huns se mettião pela agoa, chegando o batel, outros nadavão á con-
tenda com elle, outros seguião-no até ás náos em jangadas, tudo sinaes de
Timisade, dando a entender que lhes era grata sua presença, e que ficavão
agradecidos de sua boa correspondência. Sobre tudo mostrava esta gente
natural dócil, e domavel, porque assistindo entre os nossos ás missas, e
mais actos christãos dos Religiosos do Scraphico Padre S. Francisco, que
alli se acharão, estavão decentemente, como pasmados, mostrando fazer
DAS corsAs no brasii. xxxiii
conceito ih bondado d'aquellasceremonias, pondo-se de joelhos, batendo nos
l)0itnií, levantando as mãos, e fazendo as mais acções, que vião fazer aos Portu-
gueses, como pezarosos de não entenderem elles também o que signiíicavão.
H Aqui no meio d'estes applausos, quiz também o elemento do mar
sahir com bum seu : e foi, que vomitou á pi-aia bum monstro marinlio,
não conbecido, e portentoso, recreação dos Portugueses, por coiísa insóli-
ta, e mui aprazível aos índios, por pasto de seu gosto. Tinba de grossura
mais que a de bum tonel, e de comprimento mais que o de dous : a ca-
beça, os olhos, a pelle, erão como de porco, e a grossura da pelle era do
bum dedo. Não tinha dentes; as orelhas tinbão feições de elefante; a cauda
de bum covado de comprido, outro de largo. IMostrava já desde aqui a
novidade deste monstro, as muitas que andados os tempos se descobririão
n'estas regiões do Brasil.
12 Gastado em todas estas mostras cousa de bum mez, determinou o
General Pedro Alvares Cabral mandar noticias a Sua Alteza das novas ter-
ras que descobrira, dos rumos, e das paragens, e do que n"ellas vira. E
como era força proseguir elle sua derrota, que era pêra a índia, despedio
a este intento bum Capitão de etíeito por nome Gaspar de Lemos: o qua[
junto com as noticias, levou primícias dos frutos da terra, e hum dos ín-
dios d'ella, sinaes indubitáveis. Foi recebido em Portugal com alegria do
Rei, e do Reino. Não se fartavão os grandes, e pequenos de vei', c ouvir
a falia, gesto, e meneios d"aquelle novo individuo da geração humana. Iluns
o vinhão a ter por hum Semicapro, outros por bum Fauno, ou ])or algum
d"aquelles monstros antiguos, entre poetas celebrados : porém alegravão-se
todos pela esperança que concebião da fertilidade d'aquellas regiões.
I.'] Descoberto na forma referida este novo mundo, por Castelhanos da
banda do Norte, por I*ortugiieses da banda do Sul, pede a razão que ve-
jamos, com que parte ficou cada buma d'eslas duas nações. Pêra decisão
d"este ponto, porei brevemente o fundamento da i-epartição. Foi este buma
Bulia do Santo Padre Alexandre Vi. Sabendo este Santo Papa como tratta-
vão os Portugueses da conquista do Africa, do estreito do Gibraltar pêra
fora na confoi-midade dos intentos do Infante I). flenri(iue, filho d'El-Rei
D. João Primeiro, que a sustentara, e amplificáia, com tanto cabedal do
ingenbo, industria, e fazenda; o que senboreavão especialmente a mina de
ouro do Guine, descoberta no anno de 1471, sendo Rei de Portugal D.
Affonso V, o não sem algumas diíTerenças entro bum o outro Reino: doter-
niirjou fazer favor a El-Rej de Castolia, concedendo-Jhe, como em eíTeito
XXXIV I.IVUO I U\S NOTICIAS
roncedeo, doarão da parlt3 das índias occidonlaes ; porém de manoira,
(jue uão prejudicasse aos Reis de Poiiiigal. Pêra esle iiileatu iiiaudoii ii^a-
quella Bulia, (jue se laiieasse huma linha de Norte a Sul, desde cem legoas
de huma das ilhas dos Açores, e Cahoverde, a mais occidenlal pêra o
Poente; e que esta linha fosse marco do que havia de conquistar cada qual
dos Reis, sem que houvesse contenda entre elles, ficando as terras da con-
quista de Porlugal pêra o Nascente, e as da conquista de Casíella pêra o
Occidente. Passoii-se a Bulia em Maio do armo de li93. .
14. Porém El-Rei D. João o Segundo, que n"este tempo reinava em
Portugal, reclamou esta Bulia, pedindo ao Summo Pontiíice outras trezen-
tas legoas ao Poente, sohre as cento que tinha destinado. E como estavão
os Reis de Casíella tão aparentados com os de Porlugal, c o esperavão es-
tar mais, vierão facilmeiííe no que pedia El-Rei D. João, e de boa confor-
midade, e parecer do Summo Pontifice, se concederão mais duzentas e
setenta legoas, além do concedido na Bulia, a 7 de «Junho de liOi-. O que
supposto, aquella linha imaginaria, lançada de Norte a Sul, na conformi-
dade sobredita, que vem a ser do uUhiio ponto da de trezentas e setenta
legoas de huma das Ilhas dos Açores, e Caboverde, mais occidental (que
dizem foi a de Santo Antão) ao Poente, he o fundamento da divisão e de-
marcação do Brasil. E na mesma conformidade do linhas se tornou a coi'-
roborar depois por sentença de doze Juizes Cosmographos, e ?^Ialhemati-
cos, 110 ultimo de Maio do anuo de lui4 esta demarcação; por occasião de
duvidas, que então recrescerão entre o Rei de Porlugal e o Imperador Car-
los Quinto, acerca das ilhas Malucas da especiaria: como largamente refere
a Historia geral das índias, cap. 20, cuja extensão nos não serve.
15 Suppostas as concordatas sobreditas, resta descer ao modo parti-
cular da repartição, iisla se deve averiguar (segundo o dito) pelo que corta
a linha imaginaria, ou mental, de que alli falíamos, que vai lançada de Norte
a Sul, do ultimo ponto da linha transversal de trezentas e setenta legoas
da ilha de Santo Antão pêra o Poente. ]\ías como n"esta linha transversal,
os compassos de huns andarão mais, e menos liijeraes os de outros, ou de
propósito, ou levados das diversas arrumações das cartas geographicas,
veio a occasionar-se iresta matéria variedade : porque huns correm aquella
linha transversal de maneira, que a mental de Norte a Sul, vem a cortar
da America pêra o Reino de Portugal vinte e quatro grãos de compiúmento
somente, outros trinta e cinco, outros quarenta e cinco, outros cincoenta
c ciuco (deixando outras opiniões de menos conta) e todas estas varieda-
DAS COUSAS DO BRASIL XXXV
(los nascem das causas apontadas. A primeira opinião do vinte e quatro
gráos, iie escara, nem tom fundamento algum, convence-se com a expe-
riência, posse, e vista de cartas geograpliicas. A ultima que dá cincoenta
e cinco gráos, lie de compasso mais liberal, não parece tão ajustada aos
jirincipios referidos. As duas entremeias de trinta e cinco e (juarenta o
ciiico gi'áos, me parecem ambas verdadeiras l)em entendidas : porque a que
dá trinta' e cinco gráos, falia pelo que o Brasil está de posse por costa, e
a que dá quarenta e cinco falia pelo que lhe convém, em virtude da linha
que corre o sertão; e são ambas verdadeiras.
. IG lluma e outra parte declaro. Está de posse o Brasil da terra, que
corre por costa, desde o grão Rio das Almazonas, até o da Prata : porque
no das Almazonas comoção suas povoações, que correm até passante a Ga-
nanca, e senhoreão d"alli em diante todos os mais portos com suas embar-
cações, e commercio, e no Rio da Prata está posto hum marco na ilha do
Lobos, como hc notório. Nem (Foste Rio da Prata pêra o Norte junto á
costa possuem cousa alguma Castelhanos, como se deixa ver pela expe-
riência, o mappas : segura falia logo a opiuião que dá trinta e cinco gráos,
pelo que estamos de posse por costa. Pelo que convém em virtude da li-
nha, (|ue corre o sertão, talião ao certo os que dão (piarenta e cinco gráos.
Esta verdade i)oderá cxiierimentar todo o Cosmographo curioso; porque
se com exacta diligencia arrumar as terras do mundo, e depois com com-
passo fiel medir a linha que dissemos, desde a ilha do Santo Antão tre-
7X'ntas e setenta legoas ao Poente, achará que a linha de Norte a Sul. que
(lo ultimo ponto desta divide as terras da America, vai cortando direita
junto ao Rio das Almazonas, polo riacho que chamão de Vincente Pinçon,
e correndo pelo sertão deste Brasil até ir sahir no Porto, ou Bahia de S.
Mathias quinze gráos pouco mais on menos da Equinocial, distante da boca
do grão Rio da Prata pêra o Sul cento e setenta legoas : no qual lugar, he
constante fiuna, se meteo marco da Cor(ja de Portugal (vei'dado ho, que
doesta linha assi lançada poi'a a pai'te do mar do Oriente, jwssuem os
Castelhanos muita teri^a, não por costa, mas diiutro do sertão: como se podo
ver claramente na demarcação do algumas carias, (|iio dVsta nossa parte
assentão alguns lugares da Província do Iiuonns-Ayros, P;ii'aguay, Coi'dova,
e outras.)
'17 Pela opinão dos (jue dão trinta e cincij gráos por costa, se piwlo vero
Auclor do novo livro intitulado Thoatrum Oil )is, na taboa do Bi-asil, com Nicoláo
de Oliveira ahi citado. E dizem assi: (íliiiliim sumit (id esl JJrusilia) a
XXXVI I.IVRO I DAS NOTICIAS
Paráqum PorlncjaUorxim arx esl in ínlaario maxn)u flximlnis Amazonum mh
ipso pene lequutore sita: et definit in trigésimo quinto gradu ab wquatore ver-
sus Au^trum : quem ingentemterrarumtraclum Portugalli stii júris esse profi-
tentur.
O mesmo tom Gotofredo na sua Archontologia cósmica, folhas 318.
Pela opinião dos que dão quarenta e cinco grãos, está Maíleo no livro segundo
da Historia da índia, no principio : aonde faltando da Província do Brasil, diz
assi : Hcec d duobus ob aíquatore gradibus, parttbusqae aã gradus qnlnque et
quadraginta in Austrum excurrit. O mesmo segue Orlandino nas Chronicas
da Companhia de Jesu liv. 9, n." 86. E o doutíssimo Pedro Nunes já ci-
tado nos cap. i, 2 e 3, diz assi. «A Província do Brasil começa a correr
junto do rio das Almazonas, onde se principia o Norte da linha de demar-
cação, e repartição (falia da nossa, que corta o sertão do Brasil ) e vai cor-
rendo pelo sertão d'esta Província até quarenta e cinco grãos, pouco mais
ou menos: ali se fixou marco pela Coroa de Portugal.»
18 O diâmetro, ou largura da terra do Brasil, pende também das opi-
niões referidas; porque as que apartão mais da costa do mar pêra o Poente
aquella linha do sertão, conseguintemente dão maior extensão de largura :
as (}ue menos, menor. Porém ainda, segundo o computo que levamos, não
hc fácil averiguar largura certa, por respeito da varia disposição, e figura
da terra. O que parece verisimil, he, que terá em partes de largo duzen-
tas, em partes trezentas, em partes quatrocentas emais legoas, por regiões até
hoje inhabitadas de Europeos, posto que fecundas de gentilidade. Por esta par-
te do sertão respeita a terra do Brasil aquellas aífamadas serranias, que
vão correndo os reinos de Chilli, e Peru passante de mil legoas, de tão
immensa altura, que são hum assombro do mundo, e delias affirma Maí-
feo liv, 2, que o voo das mais ligeiras aves não pode superal-as. O mes-
ma afílrma António Herrera tom. 3, década 5, e o Padre AíTonso de
Ovalle liv. 1, cap. o. Logo que soarão em Portugal as primeiras noticias
do descobrimento nunca imaginado, de terras tão espaçosas, e regiões tão
férteis, enviou El-Rei D. Manoel com a mór brevidade possível, hum ho-
mem grande Mathematico, e Cosmographo, de nação Florentino, por nome
Américo Vespucio, a reconhecer, sondar, e demarcar a terra, e costa marítima
dCsle novo mundo. O que fez por espaço de tempo, entrando portos metendo
balizas, experimentando varias fortunas, monções, e correntes das agoas,
até voltar a Poriugal com as informações do que vio, e fez. D"este homem
tomou a terra o nome de America.
DAS COUSAS DO BllASIL XXXVI l
10 Depois do Américo, mandou o mesmo Rei D. Manoel segunda es-
quadra de seis velas, a cargo do Capitão Gonçalo Coellio, a explorar mais
de espaço a mesma costa, suas correntes, monções, portos, qualidade do
torrão, e da gente. Andou este Capitão por ella muitos mezes : descobrio
diversidade de portos, rios, e enseadas: em muitas destas partes sahio em
terra, e tomou informações da gente d'ellas, metendo marcos das armas
dEl-Rei seu senhor, e tomando posse por elle. Porém pela pouca noticia
que até então se tinha da corrente das agoas, e curso dos ventos d"estas
paragens, padeceo graves infortúnios na especulação d"esta costa, e veio a
recolher-se a Lisboa com menos dois navios, entregando as informações do
que achara a El-Rei D. João Terceiro, que já então reinava, por fallecimen-
to d"El-Rei D. Manoel seu pai. Formou este Príncipe grande conceito das
informações dittas, e enviou logo outra esquadra, pêra que de todo se aca-
basse de explorar a costa, e por capitão delia Christovão Jaques, fidalgo
de sua Casa, que renovou a mesma empresa, e acrescentou noticias de no-
vos portos, e de novas gentes, com grande trabalho, c igual serviço d"El-
Reí. Este fidalgo foi o primeiro, que andando correndo esta costa veio a
dar com a enseada da Bahia, (jue intitulou de Todos os Santos, por sua
formosura e aprazível vista. E andando investigando seus recôncavos, achou
em hum delles, ditto Paraguaçú, duas nàos Francesas, que tinhão entrado
a resgatar com a gente da terra. Chegou perto a ellas, estranhou-lhc o fei-
to, sendo aquellas terras dodominio e conquista dEl-Rei de Portugal, eelles
estrangeiros: e respondendo os Franceses soberbos, mostrando acção do
resistir, os metteo no fundo com gente e fazenda, em pena de seu atre-
vimento. E depois de tempo considerável, vários discursos, e noticias da
costa voltou a Poi'tugal, e deu conta de tudo a El-Rei D. João: como tam-
bém lha dera Pedro Lopes de Sousa, que por esta costa andara com Ar-
mada, e Martim Affonso de Sousa, de quem a seu tempo se fará menção ;
porque correo este fidalgo com numero d(! nãos á sua custa, em especial
a costa ipie corre desde a Capitania de S. Vicente até o famoso Rio da
Prata, descobrindo portos, rios, enseadas, saindo em terra, i)ondo nomes,
metendo marcos, e investigando particularmente a bondade e (pialidade
das gentes, e das terras.
áO Das noticias dos sobreditos (Capitães, e do (jue disserão ao8 Reis,
elles, e seus Cosmographos acerca do (jue explorarão, virão, e ouvirão,
Uivei huma breve relação, por agoi"a s('tmentt' ao tosco, per-a que ])()i cila
se veja o <]uc será quando se pinle ao vi\o: c he a seguinte. Ouanto ávis-
XXXVllI LIVRO I DAS NOTICIAS
ta exterior aos que vem do mar cm fúi-a, deposorão aquelles Capitães, e
Cosmographos, que não virão cousa igual no universo todo, á perspectiva
d'esta nova terra: porque ao longe, parece iiuma gloria o avultai- dos mon-
tes e serranias, com tal compostura e altura, que representão formas muito
pêra ver, e sobem, parece, á segunda região do ar, levando comsigo os olhos
e os corações ao Geo. A meia vista, começa a apparecer o alegre dos l)os-
ques, campos, e arvoredos verdes sempre, e sempre aprazíveis. Mais ao perto
alvejão as praias fermosas, e vão logo apparecendo n'ellas hiima immensida-
de de portos, barras, enseadas, rios, ribeiras despenhadas, e com tão grande
variedade, que lie iuim espanto da natureza. De tudo disserão alguma cou-
sa, que tudo não lhes era possível.
21 Estcá sita esta região do Brasil na zona, a que os aníiguos chamarão
tórrida. Começa pontualmente do meio d"ella pêra a parte Austral, corren-
do ao Trópico de Capricórnio, e entrando deste na zona temperada o es-
paço, que já consta do que dissemos, e logo mais diremos. Sua forma he
triangular. Pela parte do Norte, e logo pela do Oriente que respeita aos
Reinos de Congo e Angola, he lavada das agoas do Oceano. Traz seu
principio de junto ao rio das Almazonas, ou Grão-Pará, pela terra que cha-
mão dos Caribás, da banda do Loeste, desde, o riacho de Vicente Pinçon,
que demora debaixo da linha Equinocial, e vai acabar (segundo o que es-
tá de posse) em outro grande rio, a que chamão da Prata, e são duas fa-
ces do triangulo, e a terceira vem a fazer a linha do sertão.
22 Estes dous rios, o das Almazonas, e o da Prata, principio e fim
d"esta costa, são dous portentos da natureza, que não he justo se passem
em silencio. Sào como duas chaves de prata, ou de ouro, que fechão a ter-
ra do Brasil. Ou são como duas coiumnas de liquido crystal, que a demar-
cão entre nós e Castella, não só i)or parte do mariíimo, mas também do
terreno. Podem também chamar-se dous gigantes, que a defendem, e de-
marcão em comprimento, e circuito, como veremos. Porque he cousa ave-
riguada, e praticada entre os naturaes do interior do sertão, que estes dous
rios não somente presidem ao mar com a vastidão de seus corpos, e bo-
cas; mas também com a extensão de seus braços abarcão a circuinferencia
toda da terra do Brasil, fazendo n"ella por huma parte hum semicírculo de
mais de mil e quinhentas legoas; e por outra mais ao largo, outro de mais
de duas mil, com tão desusadas maravilhas, como logo veremos.
23 O das Almazonas, por outro nome Grão-Pará, sem exageração al-
guma, he o Imperador de todos os rios do mundo; e qualquer dos que ce-
DAS COISAS DO liHASlf, XXXIX
lel)ra a aiiiiguiJade, á visla desto íica stnido iiiii pequeno pigmeo em com-
pararão de liiini glande gigante. {^Iiainão-llie os ualiiraes Paráguarú, que
quer dizer mar grande: c tem razão, pois para ser hum mar, falla-lhc só
serem suas agoas salgadas. Jacte-se embora o antiguo mundo de seus famo-
sos rios: a índia do seu sagrado Ganges, a Assyria do seu ligeiro Tigris,
a Arménia do seu fecundo Eiq)iu'ates, a Africa do seu precioso Nilo; que
todos estes juntos em hum corpo, são pouca agoa, em comparação de hum
só Grão-Pará: c(jntendão embora sobre o principado, os rios maia antiguos.
Aristóteles, parece dá a palma ao Indo, jjorque tem de largura cincoenta
estádios italianos: Arriaiio a dá ao daiiges: Virgílio dá o reinado aoErida-
110, Diodoro Siculo ao Nilo. Poi'ém os nossos grandes rios das Almazonas,
(! da Prata, sem controvérsia, são os Imperadores dos rios. Assi o resoiveo
hum douto e curioso descobridor das obras meteorológicas da natureza, de nos-
sos tempos, por nome Liberlo Fromondo, no livro quinto de seus Meteo-
ros, cai)ltulo primeiro |. Verum, por estas palavras. aScd coutroversiam
fluviíis Amazonum in Amevica dirimit, qni laliludiuem ad 70 ctinm leucas
diffunditi, mnrevé^ nu.stjuum f avias suppar de indc ci (lucius Argenicus^ cul-
go liio da Prata, quem non adcequanl ]S'ilus, Euphralcs, Ganges, cvnfusis in
v.iium alveum et counnunicatis aquis.* Vem a dizer, que decide esta contro-
vcrsia o rio das Almazonas, mais vertladeiramenle mar ([ue rio; porque
chega a ter de largura setenta legoas; cujo semelhante he o Rio da Prafa,
com quem não tem compararão os rios Nilo, Euplwales, Ganges, juntas
suas agoas em hum só.
)l\ O com[)rimento d'este grão gigante dos lúos, he de mil e li-ezentas,
mil e seiscentas, ou mil c oitocentas legoos, segundo cômputos vários dos
(]ue o navegarão. A distancia i)or onde estende seus iiraços espaçosos, di-
reito, e esquerdo, soinma passante de mil legoas, por relação das gentes que
bebem suas agoas; e assi deve ser de razão, pêra ser verdade o que di-
zem, que chegão no meio do seilão a dar-se as mãos estes dous rios do
Pará, o da Prata.
2;i Da grandeza disforme d"este ri(j se colhe facilmente o grosso de seu
corpo, e o largo de sua boca. O grosso de seu corpo he força seja mui
crescido, como aíjuclle (iiie lu; alimcnlado de tantos rios, quantos se con-
slderão pag;ir-lhe o tribulo devido de, suas agoas, por Ião grande espaço,
como he o de mil (; irczentas alé mil c cilMCí.-iitas legoas, afora a extensão
de seus braços; pur(|uc entiaiido estes com mais de mil legoas, e [tosto seu
diamelio, vem a formar toda ;; circunfei-eiicia de seu grande dominio so-
XL
LlVnO I lUS NOTICIAS
bre quatro mil legoas, em boa Aiitlimelica. Donde de forra ha de ser de-
masiado o grosso d"este corpo, ou ern largura, ou em i)rofundidade, onde
os montes mais o opprimom ; e esta lie tal, que nao se lhe acha fundo em
partes, e por espaço de seiscentas legoas da barra nunca lhe faltão trinta
ou quarenta braças de alto, cousa nunca já vista em rio. Em sua largura
o que se experimenta he, que posta huma náo na madre deste rio, em
muitas paragens, por mais livres que dos altos mastos se lancem os olhos
a huma e outra parte, não apparece mais que o eco, e agoa ; nem he pos-
sível descobrir os cumes dos montes mais altos que cercão suas margens.
2G A boca vem a ser conforme o corpo, de oitenta ou mais legoas de
largo. Desemboca debaixo da Equinocial, e são cortadas d'ella suas agoas.
Vomita estas com tanta força em o mar, que de longa distancia as colhem
doces os mareantes, vinte e trinta legoas muitas vezes primeiro que avistem
a terra. Em lugar de trinta e dous dentes humanos, tem esta boca outras
tantas ilhas, pequenas humas, outras grandes : demorão todas da banda do
Sul, o terço he hum grão. São innumeraveis as demais ilhas d'este rio,
com variedade aprazível. As ordinárias são de duas, quatro, seis, dez, vin-
te e mais legoas : e taes ha, que tem de circunferência mais de cento. São
outros tantos bosques amenos, com todo o bom da natureza, e capacidade
pêra o da arte.
27 Contão os índios versados no sertão, que bem no meio d'elle são
vistos darem-se as mãos estes dous rios, em huma alagoa famosa, ou lago
profundo, de agoas que se ajuntão das vertentes das grandes serras do
Chilli, e Perii, e demora sobre as cabeceiras do rio que chamão S. Fran-
cisco, que vem desembocar ao mar em altura de dez grãos e um quarto ;
e que d'esta grande alagoa se formão os braços d"aquelles grossos corpos;
o direito, ao das Almazonas pêra a banda do Norte ; o esquerdo ao da
Prata pêra a banda do Sul; e que com estes abarcão e torneâo todo o
sertão do Brasil; c com o mais grosso do peito, pescoço, e boca, presi-
dem ao mar. Verdade he, (pie com mais larga volta, se avistão mais ao interior
da terra; encontrando-se não agoas com agoas, mas avistando-se tanto
ao perto, que distão somente duas pequenas legoas : donde com facilidade
os que navegão corrente acima de hum d*estes rios, levando as canoas ás
costas aquella distancia entreposta, tornão a navegar corrente abaixo do ou-
tro: e esta he a volta, com que abarcão estes dous grandes rios duas mil
legoas de circuito.
28 Mas tornando agoia ao Grão-Pará somente, deposerão os índios.
DAS COUSAS DO líUASlL
XLI
dos quaes tomarão estas noticias aquelles Exploradores Cosmographos,
grandezas taes qm parecião então sonhadas, e hoje não só verdadeiras, mas
muito acrescentadas. Dizião pois, que aquelle seu grande rio trazia a pri-
meira origem de humas serranias monstruosas, e nunca jámai* vistas na
terra, de comprimento e altura immensa, que distavão espaço que elles não
sabião explicar, mas souberão experimentar seus avós, fugindo infortúnios de
guerras, junto ao mar: e que aífaL-lias serranias estavão cheias de metal
amareilo, e branco, e de pedras de cores fermosas (modo de fallar seu,
pêra dizerem ouro, prata, e pedras preciosas:) que as agoas do rio cor-
rião sobre esses mesmos metaes, e com elles resplandecião a cada passo
seus arredores, montes, e valles circunvizinhos : e que em sinal disto, tra-
zião aquelles naturaes por ordinário as orellias e narizes ornadas com pe-
daços de metal amareilo, que derretião, e fazião em laminas; e que do bran-
co fazião certas cunhas, que lhes servião em lugar de machados pêra fen-
der os troncos das arvores.
29 Dizião mais, que as agoas do rio erão fertilissimas de varias castas
de pescado, mas mui especial de tão innumeravel quantidade de peixes
boyes, e tartarugas, que podião aquelles moradores fazer tamanhos montes
d"eUes, e d'ellas, como erão as mesmas serranias que tinhão explicado: e
que na mesma conformidade, erão férteis seus arredores, de antas, veados,
porcos monteses, e irmumeravel outra caça montesinha.
30 Que as nações que habitavão a circunferência do rio, e seus grandes
braços, não podião contal-as, não só pelos dedos das mãos, e dos pés, por
onde costumão contar, mas nem ainda com os seixos da praia: c indo no-
meando algumas passavão de cento e cincoenta só asdelingoasdiíTerentes:
e fora maior a multidão de gente, a não ser a guerra continua e insaciável,
que trazem entre si. Dos nomes de alginnas (festas nações porei exemplos;
porém será á margem (*) por não causar fastio, {)oi'que seria enfadonho se
quizesse contar todas as nações d'estas gentes. Em suas guerras contão al-
guns d'estes hum modo gracioso, de que usavão os menos iwderosns, quan-
do qiierião evitar o encontro; que como ordinariamente vivem em ilhas, ou
ribeiras do lio, e usão de canoas mui leves ; no tempo em que hão de ser
_ (•) f.aganaris. Miiriinés, Ma|)iayjs, Afiuinans, lliiriinás. Mariruás, Samariiás, Terariás, Sigiiiáí,
Gonapori», Mu|iiú:í, YaRoararús, Aturiariá, M.iciigás, Macipiás, Andurás. Safjuariis, Maraimumás,
íjanari», Cucliig«aiis,Cuniayri.s. <juai|uiari.'», CiiriiLiirú», (iuataiieis, Miituanis, Curinqiieás (estes silo
os Kií,'anles de (jue Ioro dirénio->) (laracanàs, 1'ocoaiuis, IJrayaris, fioarirú-!, Ootorerianás. Ororu-
jiiiiús, (iiiiiiacuinás. Tuinámaiiiá.s, Araí;oaiiaiiiás, Marigiidanas, Yariltaiás, Yaievaj^iiarús. (limiaru-
vianis, (I.Hiicoaris. Yaiiumis, Carapanari^, (ioariarás, Cagoás, Aurabaiis, Zurirús, Anamari>. (luina-
más, (Jiraiiaris, Abacalií, UrubuiiiiRás.
VOI,. I 111
XLII I IVRO I DAS NOTICIAS
acommetidos, passão â outra parte do rio, e logo tomando as canoas ás
costas, as vão esconder em algum dos muitos lagos que ha entro as mal-
tas, e fogem, deixando os contrários frustrados; o idos estes, toriiTío a res-
tituir-se a suas terras com as mesmas canoas.
31 Dizião, que entre as nações sobrediítas, mora vão alginnns monstruo-
sas. Huma he de anãos, de estatura tão pequena, que parecem afronta dos
homens, chamados Goayazis. Outra he de casta de gente, que nasc^comos
pés às avessas: de maneira, que (piem houver de seguir seu caminho, ha de
andar ao revés do que vão mostrando as pisadas : chamão-se estes Matuyiis.
Outra nação he de gigantes, de dezeseis palmos de alto, valentíssimos, ador-
nados de pedaços de ouro por beiços e narizes, aos quaes todos os ou-
tros pagão respeito: tem por nome Curinqueans. Finalmente que ha outra
nação de mulheres também monstruosas no modo de viver (são as que ho-
je chamamxos Almazonas, semelhantes ás da antiguidade, e de que tomou o
nome o rio) porque são mulheres guerreiras, que vivem per si sós, sem
commercio de homens: habitão grandes povoações de huma Província in-
teira, cultivando as terras, sustentando-se de seus próprios trabalhos. Vivem
entre grandes montanhas: são mulheres de valor conhecido, que sempre se hão
conservado sem consorcio ordinário de varões; e ainda quando, por con-
certo que tem entre si, vem estes certo tempo do anno a suas terras, são
recebidos d^ellas com as armas nas mãos, que são arco, e frechas; até que
certificadas virem de paz, deixando elles primeiro as armas, acodem cilas
a suas canoas, e tomando cada qual a rede, ou cama do que lhe parece me-
lhor, a leva a sua casa, e com ella recebe o hospede, aquelles breves dias,
(}ue ha de assistir : depois dos quaes, infallivelmente se tornão, até outro
tempo semelhante do anno seguinte, em que fazem o mesmo. Crião entre si
só as fêmeas d"este ajuntamento; os machos matão, ou oseritregãoasmais
piedosas aos pais que os levem.
32 Todas estas cousas contavão os índios aquelles primeiros descobri-
dores: e todas ellas, e muito maiores descobrio o discurso do tempo. Ve-
jão-se os authores, que hoje traltão d'este grande rio, tantas vezes depois
navegado, e explorado por mandado dos Reis. D"elle fazem menção os Geo-
graplios que arrumam as partes do mundo: Abraham ilortelio, Thcatrum
orbis, nas taboas do Brasil: e fez d"elle hum tratado inteiro o Padre
Chrislovão da Cunha, da Companhia de Jesu; que o navegou, e explorou
com extraordinário trabalho, e cuidado. Tratta delle o Padre Affonso
de Ovalle da mesma Companhia, na descripção do Reino de Chiilí, lív. 4,
DAS COLSAS DO URASII. XLIII
cap. Í2. Varias rclaçíjes outras live diárias em meu poder, de excursões,
(jue por este rio fizerão os moradoi'es da Capitania de S. Paulo; e lodos
concordão, e dizorn cousas maravilhosas; e tão grandes, que nenhum pec-
cado commetíeriam os que dissessem, que junto a este rio plantara Deos nos-
so Senhor o Paraiso terreal.
33 Mas como estas cousas modernas não são as de nosso intento, res-
ta mostrar agora as noticias do outro grande rio, quasi irmão em agoas, e
potencia, chamado da Prata, por outro nome Paraguay (*). Dá este a mão ao
Grão-Parã, n"aquelle grande lago, de que nascem, como já dissemos : ou
seja isto em sinal da conformidade com que reinão, ou seja como dando pa-
lavra hum ao outro da resolução, com que defendem as terras do Brasil.
D"esta mão vai formando-se o principal dos braços, e estendendo-se por
fermosas campinas, e bosques fertilissimos, correndo ao Sul de doze até
vinte e quatro grãos, quasi fronteiros da ilha de Santa Catharina ao sertão:
lugar onde se acha já engrossado o tronco de seu corpo com largura, e fun-
do monstruoso, pelo continuo e liberal tributo das agoas, que recebe de vários
e copiosos rios, quen'el!e dcsembocão por espaço tão grande. I)"esta paragem
vai correndo ao mar, e desemboca n"elle entre o Promontório de Santa Ma-
ria, e Cabo branco, ou de Santo António, cm trinta e cinco e trinta e seis
gráos da Equinocial com quarenta legoas de boca, e com tão impetuosos
vómitos, que lança suas agoas (apesar das do Oceano) por espaço de mui-
tas legoas da praia, tão doces como as da própria garganta ; e bebem d'el-
las os navegantes, quando ainda não avistão terra do topo dos mostos mais
altos.
34 Além do ditto, tem este rio outros braços, tantos, e taes que com
razão podemos chamar-lhe gigante Briareo. Com alguns d'esles vai penetran-
do e rodeando mais ao interior do sertão, ale avizinhar-sc a pouca distancia
com os de seu confederado o Grão-Pará; fazendo com elle aquelle cii"cuit0
de duas mil legoas, que acima dissemos.
3'i Com ser mui vasto e agigantado seu corpo quando vai recolhido á
madre ; he muito maior, e mais fero sem comparação, quando a tempos sae
fora d"ella (e he huma vez cada anno:) porque cx)m as enchentes do sertão, que
vem descendo d'aí|ucllas grandes serranias de Chilli, e Porú, qual outro mar,
espraia suas agoas tão licencioso, que de repente toma posse de campos, se-
menteiras, e estancias dos homens por legoas inteiras, com fúria desusada.
f.) DVsli! rio vpjíiRp. o P. Ovalle, llist fio Cliilli. liv. iv, f:\\>. 1 1 "— Abraham Orlfilin, Theairuin
OrSis na^ lahoas do Itio P.-írnrM;.}' -- J<)^r|i!i rl,i (losla. dr Nadiia novi Orbis. liv, n, rap fi •
XLIV ÍAMKO I DAS NOTICIAS
De cuja condição não ignorantes os naturaes da terra, estão alerta; e tanto
que sentem sinaes de sua ira, eml)arcão-se a toda a pressa em jangadas,
que sempre tem aparelhadas pêra este effeíío, a modo de casas portáteis ;
n"ellas fazem sua morada, conservão as pessoas, mantimentos, e alfaias,
espaço de três mezes, que ordinariamente senhorea a inundação; até que
tornando a recolher suas agoas, tornão também os moradores a suas pri-
meiras estancias.
36 Por estas enchentes em especial, parece chamarão os índios a este
grande rio, Paraguay; ou pela semelhança que tem com o Grão-Pará; por-
que abaixo d'este, a nenhum outro do mundo cede. Assi o julgam já hoje,
os que tem melhor noticia das terras. O author da geographia do mundo, in-
titulada Theatrum orbis, na taboa dezenove do Paraguay, diz assi: aPost
fíuvium Amazonum, nulli totius terrarum orhis flumini magnitiidine cedit.y>
Que afora o rio das Almazonas, a nenhum outro do orbe cede. Em seu
bojo comprehende muitas e grandes ilhas, todas amenas, e enfeitadas da
natureza.
37 Seus arredores são fertilissimos, campinas estendidas, até cansar os
olhos, capazes de searas, vinhas, frutaes, e de toda a sorte de plantas, ervas, e
flores de Europa; e de tão exhorbitante copia de gado, que chega a não ter
estima alguma. Não são menores as riquezas de ouro, prata, e pedraria,
que vem descobrindo suas agoas por todos seus sertões. Aqueíles índios
moradores da beiramar, as significavão a nossos Cosmographos, por seus
modos toscos. Mostravão-lhe pedaços de ouro, e prata, que contratavão com
os mais interiores da terra : e afflrmavão, que d'aquGlles metaes fundião
grandes quantidades. Contavão, que em certa paragem d'aquelle rio mos-
trava a natureza huma cousa monstruosa, e era esta hum salto altíssimo,
ou despenhadeiro, donde todas aquellas agoas juntas se despenhãoemhum
profundo laga medonho, e com tão espantoso estrondo, que' faz tremer a
todo o vivente, e perdem o tino os que de espaço próximo o ouvem.
Mostravão-lhes arvores inteiras convertidas em pedra por virtude das
agoas d'aquelle rio: certiíicavão-lhes, que todos os que bebiam d"ellas,
andavão isentos de humores nocivos, e suas vozes limpas, e claras : e fi-
'nalmente que erão infinitas as nações, que habitavão as margens
d'este rio, á maneira das do Grão-Parã. Tudo isto referião aquelles índios
aos nossos Cosmographos; e tudo o tempo, descobridor das cousas,
tem mostrado mais claro. Digão-no hoje os Chillis, as Maldivas, os Po-
tosis, os Perus, e os mais lugares donde se tem desentranhado mais quan-
DAS COUSAS DO BRASIL XLV
tidade de ouro e praia, do que jamais puderão ajuntar as potencias de hum
David, e de hum Salomão.
38 Estas são em Ijreve as noticias toscas e summarias dos dous gigan-
tes dos rios do Brasil, e Imperadores sem lisonja de todos os do mundo;
os defensores e como chaves, e balizas de todo este Estado. Se se houve-
rão de descrever todos os outros rios d'esta costa, que commummente d"estes
tem descendência, e vem do sertão com poderosas madres, e apressadas agoas
competir com o mar, serião necessários hvros inteiros. Basta dizer, que todo o
sertão está feito hum bosque, entretalhado como em canteiros, da mesma natu-
reza, com suas agoas : e a praia toda se vê autorizada com a grandeza e
variedade de suas bocas, barras, bahias, enseadas, e alagoas; fazendo vista
aprazível aos que vem de mar em fora, ou nella desembárcão : passante
de duzentos se contão como mais principaes, todos com nomes próprios,,
e todos caudalosos, e com tal capacidade de recôncavos abundantes de tudo
o necessário pêra a vida humana, que parece se poderião alojar só n'esie
Estado os homens de todo o universo. De alguns d'estes será forçado fazer
-menção na leitura seguinte.
39 Corre esta espaçosa praia (segundo notarão nossos Cosmographos)
as legoas e rumos seguintes. Desde o riacho de Vicente Pinçon, d"onde
tem seu principio, á ponta do rio Grão-Pará, ou Almazonas, da banda do
Loeste, correm quinze legoas : e d'esta á ponta do Leste, correm as legoas
de largura do rio, que segundo mais commum parecer, são oitenta. Da
ponta do Leste, que íica em hum gráo da l)anda do Sul, vão correndo cin-
coenta e oito legoas até a ponta do rio Maranhão. Está o rio Maranhão em
altura de dous gráos da linha : he hum dos fdhos do grão rio Pará : tem
dezesete legoas de boca; e conforme a esta he o corpo. Não me detenho
cm suas grandezas, recôncavos, e ferieis ribeiras; que vou somente mos-
trando a costa. São povoadas as terras d'este rio do gentio Tapuya. He
navegável muitas legoas pêra o sertão, onde abarca fermosâs ilhas, cober-
tas de grande arvoredo, senhoreadas dos naturaes da terra. Alguns quise-
rão confundir este rio com o das Almazonas; porém sem fundamento. Corre
a costa até este rio Noroeste Sueste, e toma da quait;» do Leste. Entre cllo
e o das Almazonas ha sete rios caudalosos.
40 Da [)onta do rio Maranhão, entrando em conta as dezesete de sua
boca, se contão noventa o quatro legoas até ao Rio grande, que ciiamão
dos Tapuyas. Está este em dous gráos, pouco mais, e desde o Maivuihãf)
até clle coi're a costa Leste Oeste. lie poderoso em suas agoas : traz seu
\i.VI -LIVRO I DAS NOTICIAS
nascimento de huma alagoa fermosa do viníe legoas, na qual aílirmão os na-
taraes ha copia de preciosas pérolas. Todo este districto até este rio, ha-
bita o gentio Tapuya, gente barbara, tragadora de carne humana, amiga
de guerras, e treições : e por isso tratavão com elles com cautela, nossos
'^íxploradores.
41 Do Rio grande dos Tapuyas até o rio Jagoaribi vão trinta e sete le-
goas. He rio de poderosa madre : está em dous gráos, e três quartos. Todo
o districto d'esle até o rio chamado Parahiba, está povoado de outra na-
ção de gente, chamada Potigoar, mais bem assombrada que a dos Tapuyas,
e menos cautelosa.
42 D"este até o cabo de S. Roque, se estende a costa trinta e sete le-
goas. Está em altura de quatro gráos, e hum seismo : entre o qual e a barra
de outro rio grande, quatro gráos de aUui'a, ha huma fermosa bahia, em
cujas margens se acha grande quantidade de sal feito da natureza. Desde
o rio Maranhão até este Cabo se contão outros viníe e cinco rios caudaes.
43 Do Cabo de S. Roque vai arqueando a ponta mais grossa e promi-
nente, que lera a terra do Bi^asil, em giro convexo por noventa legoas, até
o Cabo de Santo Agostinho. Está este em oito gráos e meio da Equinocial.
E na distancia d'estas praias, entre cabo e cabo, correm ao mar treze rios,
entre os quaes reina o rio Parahiba, por outro nome, S. Domingos, onde
por tempos se veio a edificar a cidade chamada hoje (do mesmo nome)
Parahiba. Está este rio em seis gráos e três quartos: he caudaloso; vem de mui
longe do sertão. Todo o districto do Rio grande até o Parahiba he habitado
da nação Potigoar, que com os Tapuyas seus comarcãos trazem intimas
guerras. Estes Potigoares tratavão mais liumanamente com os nossos Cos-
mographos, e d'elles houverão grandes segredos de seus sertões. Entra
também n"este districto o rio Bebiribe, junto ao qual vemos fundada a villa
do Recife, e perto d'eila a outra de Olinda.
44 Do Cabo de Santo Agostinho, até o fermoso Rio S. Francisco,
vai correndo a costa quarenta e duas legoas, Norte e Sul ; e desembocão
n"ellas dez outros rios : porém entre elles merece ser notado o que cha-
mamos S. Francisco. He este rio hum dos mais celebres do Brasil, o pri-
mogénito d'aquelles dois primeiros, e como marco terceiro do meio d'esta
costa. Está em altura de dez gráos, e um quarto. He copiosíssimo em
agoas, desemboca no mar, com duas legoas de largura, com tanta violên-
cia, que bebem d'ella3 os mareantes em distancia de quatro e cinco legoas
antes de sua barra. Seu nascimento he d'aquella famosa alagoa feita das
DAS COUSAS DO m-.ASIL XI.Vll
vorteutes de agoas das serranias do Cliilli, e Peru, d onde dissemos pro-
redião os dois principaes rios, Grão-Pará, c da Prata. São seus arredores
fertilissimos, e por este respeito forão sempre requestados dos índios, que
sobre os sitios d"elles trouxerão entre si guerras memoráveis ; das quaes
contavão grandes successos de suas armas, áquelles nossos exploradores
de suas terras, que folgavão muito de ouvil-os, e ir tirando d'elles as cou-
sas dignas de memoria, que desejavão contar a seu Rei e senhor. Junto á
costa da banda do Norte habita, como já dissemos, a nação Caeté: da banda
do Sul, a dos Tupinambás : pelo rio acima, diversas castas de Tapuyas:
mais pêra o sertão Tupinaens, Amoigpyras, Ibirayaras, Almazonas, e ou-
tras, de quem dizião os índios maritimos que se ornavão com laminas de
ouro (como dissemos dos do Grão-Pará) por dizer que erão grandes os
thesouros do interior daquelles sertões. He navegável este rio até quarenta
legoas pela terra dentro : no fim d'estas, se vè precipitar aquelle mar de
agoas, de altura medonha, com tão grande estrondo, que atroa os montes,
e ensurdece a gente : cliamão \-ulgarmente a este precipício, Cachoeira, e
a outro semelhante que faz o rio Nilo, despenhando-se de altissimos mon-
tes com todas as suas agoas, chamarão os antiguos Cataracta, ouCatarrata.
Desde esta Cachoeira até á barra se contão passante de trezentas ilhas.
Delia (quehe de pedra viva) pêra o sertão, se podem também navegar as
agoas d'este rio, se lá se fizerem accommodadas embarcações, até chegai-
ao sumidouro, que dista como noventa legoas acima.
45 lie este sumidouro liuma notável invenção com que sahio a natu-
reza, porque vai sorvendo todo este rio com suas grandes agoas pelas ca-
vernas de huma furna medonlia subterrânea, aonde se escondem de maneira,
que não se vê mais rasto (relias, se não quando, depois de passadas doze
legoas, lie visto tornar a rebentar com o mesmo brio, e poder de agoas.
Fabula foi, que o rio Aljilieo se introduzisse por debaixo da terra em busca
da fonte Arelhusa. O que alh f(}i fabula, mini he i)ura realidade da natu-
reza, e huma monstruosidade maior. Do sumidouro pêra cima lie da mes-
ma maneira navegável, fazendo-se lá embarcações : c com effeito fazem os
índios alli moradores suas costumadas canoas, de que se servem pêra n'el-
las passar, e pescar. Os arvoredos d'estas ribeiras vão-se ás nuvens; tudo
he hum bosque, em muitas i)artes tão fecliado, que impede o ceo e a luz.
40 He abundanlíi de páos jireciosos, especialmente do que chamão bra-
sil: vecm-se maltas inteiras desde este rio até o rio Parahiba, o he o mais
íino de todo o Estado. Tem quaii! idade d*^ caiiaíislolas, ainda que bravias.
xj.viir i.ivno i das noticias
cujos canudos sâo tão grandes, qne basta hnm d'cllcs a dar quantidade de
polpa pêra huma valente purga. Suas cam[)inas vem a ser outros campos
Elysios, ameníssimas, ferlilissimas pêra toda a sorte de gado ; os bosques
abundantes de caça, os rios de pescaria, e a terra toda de mantimentos,
e frutas brasílicas. Foi sempre affamado este rio entre os naturaes (não só
até o tempo em que contavão estas grandezas a aquelles primeiros Portu-
gueses, mas também depois.) Corre por terras mineraes, ricas de ouro,
prata, e salitre; e tanto mais, quanto mais vão entrando ao sertão. Anda-
dos os tempos forão buscadas estas minas por mandado de alguns Gover-
nadores; mas até agora não achadas, por impedimento das nações que en-
tremeião : o tempo do descobrimento d'estas riquezas está guardado pêra
quando sabe o Auctor da natureza, que alli as criou. Em huma enseada,
junto a este rio, alguns annos depois, succedeo o triste desastre do naufrágio do
Bispo D. Pedro Fernandes Sardinha, primeiro do Brasil, que dando n'ella
á costa, foi cattivo dos índios Caeíés, cruéis, e deshumanos, que confor-
me o rito de sua gentilidade, sacrificarão â gula, e fizerão pasto de seus
ventres, não só aquelle santo varão, mas também a cento e tantas pessoas,
gente de conta, a mais d'ella nobre, que lhe fazião companhia voltando ao
Reino de Portugal. Desde o rio Grão-Parâ até o de S. Francisco, se contão
setenta rios caudalosos, além dos que aqui toco : dos quaes não tratto, por-
que fora larga a historia.
47 Do rio S, Francisco corre a costa setenta legoas até á ponta do Pa-
drão da Bahia de todos os Santos, que vem a ser a ponta da barra da
parte do Norte; e na distancia d'estas setenta legoas fermoseão as praias vinte
rios de agoas bellissimas ; e navegão-se quasi Norte Sul. D'estes rios os mais
affamados vem a ser o rio Sergy, o rio Real, e o rio Itapucuru: todos três
caudalosos, e todos de margens fertilissimas, especialmente pêra gado. Erão
mui povoadas suas ribeiras, por causa da muita fertilidade. As nações que se-
nhoreavão toda esta paragem do rio S. Francisco até á Bahia, ci-ão princi-
palmente Taboyarás, Tupinambás, e Timiminós, gente toda menos agreste,
de mais palavra, e fidelidade. A Baliia de todos os Santos, se houvéramos
de descrever aqui suas grandezas, largura e circunferência de suas agoas,
de suas ilhas, de seus recôncavos, e dos muitos rios caudalosos que des-
cem a pagar-lhe tributo; fora cousa mui larga. Baste dizer, que esta só
parte do Brasil com seus arredores, he capaz de hum Reino. Está em tre-
ze gráos escaços ; sua boca tem três legoas de largo, capaz de todas as ar-
madas do mundo. Aqui está hoje fundada a cidade de S. Salvador, cabeça
DAS COUSAS DO RRASII. XLIX
(lo toílo O EsLado; cuja descripção me não toca por ora, que vou relatando
S(')niente o estado brutcsco e natural das cousas que virão os primeiros ex-
ploradores dos Reis.
48 Da ponta do Padrão da Bahia vão correndo as praias sessenta le-
goas ao Porto, ou Piio de Santa Cruz. Este foi o lugar, onde desem.barcou
o capitão Pedro Alvares Cabral, quando no anno de 1500 descobrio o Bra-
sil, e a que chamou Porto seguro. Está em altura de dezeseis grãos e meio;
caminha a costa desde a Bahia quasi Norte Sal até o Rio Grande, que des-
agoa em quinze gráos e meio, e do Rio Grande até o de Santa Cruz, Nor-
deste Sudoeste. N'esta distancia desembocão ao mar trinta rios. Os prin-
cipaes são : Jagoaripe, Camamú, Rio de S. Jorge, que he o mesmo que dos
Ilheos. São todos rios de grossas madres, férteis suas agoas, e arredores.
As mattas desde o Rio das Contas, até o de Santa Cruz, são de páos pre-
ciosos; especialmente do que chamão brasil.
49 O Rio Grande vem de mui longe do sertão: traz copiosas agoas,
porque se mettem n"el[e quantidade de rios, e alagoas grandes ; tem mais
de vinte ilhas, e quarenta legoas do mar hum sumidouro, em que se es-
conde, qual outro Alpheo, por debaixo da terra espaço de hunia legoa, no
fim da qual torna a apparecer: e d'este sumidouro para cima corre com
fundo mais notável de seis e sete braças. Achão-se por elle grandes minas
de pedraria, segundo então informavão os índios: e logo diremos dos Rios,
Doce e das Caravelas (que são os mesmos seus sertões.) A gente que po-
voava então a terra, era huma nação de Tupinaquis, que senlioreavão a cos-
ta marítima desde o rio Camamú até o rio Quiricaré; porque o sertão se-
nlioreavão nações mais terríveis, e assalvajadas, de Aimorés, e outros Ta-
puyas semelhantes.
50 Do Rio de Santa Cruz até o Rio Doce, ha distancia de quarenta c
cinco legoas, c todas estas Norte Sul. Está em dezenove gráos. Tem a barra
esparcelada ao mar espaço de legoa e meia. Traz seu nascimento do interior do
sertão, precipilando-se de varias cachoeiras, e correndo quasi Leste Oeste até
chegar ao mar. Recebe em si vários e grossos rios, com que aiigmenta suas
agoas, e vem fazendo diversas ilhas, frescas, e habitáveis. He fértil de pes-
carias, e seus arredores de caça.
ol Contavão seus naturaes aos nossos, que por elle arriba se descobrião
grandes riquezas: e davão a entender por seus modos, que todo aquelle
tracto de terra de seus sertões era huma índia Oriental em p(;draria. E
porque vejamos o quão bem concordou o dillo d"estes índios com aex]ie-
L I.IVIIO I DAS NOTICIAS
riencia, tresladarei aqui hum roteiro do que por tempos foi"ão descobrindo
os Portugueses. Por este mesmo rio subio depois, andados alguns tempos,
hum alentado Portuguez, por nome Sebastião Fernandes lourinho, natural
de Porto seguro, com outros companheiros, os quaes navegando em canoas
até onde ajudou a maré, entrarão por hum braço acima chamado Mandij, e
d'este caminhando pòr terra vinte legoas com o rosto a Loésudoeste, fc-
rão dar em huma alagoa, a que o gentio chamava Boca do Mandij, grande,
e funda: da qual nasce hum braço, que vai entrar no Rio Doce. D'esta ala-
goa corre o rio a Loeste, e delle a quarenta legoas se despenha de huma
temerosa cachoeira. Andou esta gente ao longo do rio, que sahe da alagoa,
melhor de trinta legoas: d'aqui voltou caminho de cpiarenta dias o rosto a
Loeste, e no fim d>lles chegou a hum lugar, onde este se encorpora com
o Rio Doce (dizem que andarião n'estes quarenta dias como setlenta le-
goas.)
52 Chegados já outra vez ao Rio Doce, fizerão alli embarcações de casca de
arvores, possantes algumas de até vinte homens: navegarão com estas pela
corrente do rio acima até paragem em que vai meter-se em outro, chama-
do Aceci, pelo qual subindo quatro legoas, desembarcarão, e forão por terra
rosto ao Noroeste espaço de onze dias, e atravessando o Aceci, anda-
rão mais cincoenta legoas ao longo d'elle, da banda do Sul trinta d"ellas.
Acjui descobrirão então vários mineraes de pedras verdoengas, que tomavão
de azul, e parecem turquescas: é lhes alBrmou o gentio circunvizinho que
no alto do monte se descobrião pedras de mais fino azul; e que outro ha-
via, que linha em si copia de metal amarello (assi chamão o ouro )
53 Ao passar do Aceci a derradeira vez, distancia de cinco, ou seis le-
goas pêra a banda do Norte, descobrio Sebastião Fernandes huma gran-
de e fermosa pedreira de esmeraldas, e outra de saphiras, que estão junto
a huma alagoa : e sessenta ou settenta legoas da barra do Rio Doce pêra o sertão
ao redor do mesmo rio, vierão a dar com humas serras cheias de arvoredo, onde
também, acharão pedras verdes. Correndo mais acima quatro ou cinco legoas
pêra a parte do Sul, derão em outra serra, onde lhes aílirmou o gentio
havia pedras verdes, e vermelhas de comprimento de hum dedo, e outras
azues, todas resplandecentes. D "esta serra correndo ao Leste pouco mais
de legoa, derão em outra de fino crystal, que cria em si esmeraldas, e jun-
tamente pedra? azues.
5i Estas informações levou contente este Portuguez Sebastião Fernan-
des lourinho ao Governador do Brasil, quarto em ordem, Luis de Brito de
DAS COrSAS no lUlASlI. ti
Almeida: e foi occasião porá logo Iratar de outra entrada, em que mandou
o Capitão António Dias Adorno, pêra que descobrisse mais em forma tão
grande empresa. Partio esto com cento e cincoenta Portugueses, e quatro-
centos índios, e com eíTeito chegou ao pé da serra da banda do Leste, e
achou n'ella as esmeraldas; e da banda do Loesíe saphiras: humas e ou-
tras nascião em crystal, e trouxe d"cllas grande quantidade, algumas mui
grandes, porém somenos. Presume-se que debaixo da terra as haverá mais
fmas. Em varias paragens encontrou esta tropa pedras de peso desusado,
que affirm.avão terem ouro e prata.
55 Com esle achado se foi recolhendo ao mar esta gente pelo Rio Gran-
de abaixo, e o Capitão António Dias Adorno com parte dos companheiros
caminhou por terra, talando as brenhas, e atravessando naç(5es de índios
varias; Tupinães, Tupinambás, e outras: teve com ellas grandes encontros,
até chegar á Baliia, onde deu conta de tudo o succedido, e entregou ao
Governador os haveres cpie achara. Diversas outras vezes se peneírtárão estes
sertões, em busca especialmente d"aquellas esmeraldas. Hum Diogo Martins
Cão, o Matante negro por alcunha, foi o prim.eiro depois dos Capitães referi-
dos. E depois d'este, o Capitão Marcos de Azeredo Coutinho, que trouxe
quantidade considerável d'ellas. E por diversos outros tempos fizerão a mes-
ma jornada seus filhos, c outras pessoas; porém sem effeito, por terem os
tempos cegado os caminhos, crescendo as mattas, e escondendo aos homens
estas riquezas. Agora quando isto escrevemos prepara huma grande entrada o
General Salvador Corrêa de Sá e Benavides, e se esperão d"ella boas venturas.
As nações que dominão o sertão d"estas minas, são todas de Tapuyas, Pata-
chos, Aturaris, Puris, Aimorés, e outras semelhantes, toda gente agreste,
porém toda hoje de paz. Dos Aimorés são tão brancos alguns como Portu-
gueses.
56 No entremeio das quarenta e cinco legoas atraz, ha nesta costa vinte
rios: hum dos principaes he o Rio das Caravelas. Está em altura de dezoito
gráos: he copioso, tem na boca atravessada huma illia de grandeza de hu-
ma legoa, que causa n'clla duas barras. Suas praias abundão de thesouros
do dinheiro do Reino de Angola, que chamão zimbo: suas margens são fer-
ieis e espaçosas, traz sua corrente do mais interior do sertão. Aííirmavão
os índios, que guiava pêra grandes haveres: mostrou o eíTeito na entrada do
Capitão António Dias, e companheiros, que pela corrente d'este rio arriba
navegarão até acharem as minas, que já dissemos. Outro notável rio he o
a que cliamão Quiricaré: está em dezoito gráos o Ires quartos: hcmuifer-
LII LIVRO I DAS NOTICIAS
til: nasce do interior do sertão, recebendo em si grossos braços, qae o en-
riquecem de agoas. Porém eu não me detenho n'estas grandezas: que só
quero mostrar a extensão, fermosura, e rumos da costa. Desde o Camamú
até este rio senhoreava a nação do gentio cliamado Tupinaqui, de que já
dissemos, que n'este tempo trazia grandes guerras com Tupinambás, Ai-
morés, tragadores de gente, e sobre todos atreiçoados.
57 Do Rio Doce até o Cabo Frio he outra porção de oitenta legoas, e
quasi todas Norte Sul, exceptas oito. H6 Gabo Frio paragem notável em to-
da a costa : está em altura de vinte e três gráos: tem junto a si hum saco,
ou bahia, obra particular da natureza, cavada como de propósito entre o
duro de huma penedia, que lhe serve de muro e fortaleza em sua entrada:
está lançada ao comprido; he capaz de grandes Armadas, que ficão dentro co-
mo em huma casa, defendidas de todas as injurias dos ventos, com huma só
barra pêra o mar. As agoas doesta, desde Janeiro até ao fim do mez de
Fevereiro, se vem coalhadas em suas margens e seios mais secretos, e
transformadas em perfeito sal, em tanta quantidade, que basta a carregar
muitas, e grandes náos.
58 Ha n'este pedaço de costa vinte e quatro rios. Podéra dizer muito
das grandezas que d elles contavão os índios aos nossos. Dizião, que desde
o Rio Doce até Cabo Frio todas as mattas erão preciosas de páo brasil, ja-
carandá, copaigbas, páo rei, bálsamos finos, cheirosíssimos, medicinaes : e
tudo em tanta quantidade, que poderão carregar-se as náos de Euro-
pa toda. Dizião, que havia hum rio entre estes, de terras férteis, e abun-
dantes sobre todas, cobiçado dos índios, por essa razão v e por ser defen-
sável sobre maneira contra seus inimigos; cercado de penedia medonha.
Era este o rio, que hoje chamamos do Espirito santo: está em altura de
vinte gráos e um terço, abre em boca cousa de meia legoa; e tem em si a
villa, que toma o nome do mesmo rio. He defensável por extremo; porque
de huma e outra parte servem de praias muralhas altíssimas de penedia
tosca da natureza, assombro de inimigos.
59 Gabaváo mais os índios a bondade dos arredores de outro rio, cha-
mado Parahiba; cuja corrente desce de mui longe das montanhas de Pirati-
ninga da banda do sertão ; e como acha o impedimento dos mesmos mon-
tes, atravessando mais de noventa legoas do sertão, vem desembocar ao
mar, onde à natureza lhe concedeo sabida; em altura de vinte e hum gráos
e três quartos. Faz grande numero de ilhas de maçape finíssimo, cobertas
arvoredo, deque sobe ao ceo. Podéra d'aquella barra pêra dentro fundar-
DAS COUSAS DO BRASIL LIII
se hum Reino, a ser ella capaz de embarcações maiores. Todo o districto
que corre de Reritygba (outro rio distante quinze legoas do Espirito santo)
ao Sul, até o Cabo de S. Tliomô, era senhoreado de três nações de gente
selvagem, que convínhão em género Goaitacamopi, Goaitacáguaçu, Goaita-
cajacoritó, que andavão em continuas guerras, e se comião huns aos outros,
com mais vontade, que as feras da caça; habitavão humas campinas, cha-
madas de seu nome, e poderão chamar-se Campos Elysios, na fermosura,
grandeza, e fertiUdade. D'estes pêra o sertão habitavão castas de gente in-
numeraveis, Tapuyas todos, e todos intratáveis: porém pela pela parte ma-
ritima partia o gentio Goaitacá com os Tamoyos da banda do Sul, e da ban-
da do Norte com Tobayarás, e Tupinaquis, com quem tri5izião guerra.
60 Do Cabo Frio, dezoito legoas Leste Oeste, está o rio, ou enseada,
a que os índios cbamavão Nhiteroi, e nós depois chamámos Rio de Janei-
ro, em altura de vinte e três gráos. He huma bahia espaçosa de oito le-
goas de diâmetro, e vinte e quatro de circunferência : limpa, segura, e on-
de podem alojar-se todas as armadas de Portugal; emula da de Todos
os Santos: cujos recôncavos, ilhas, rios, saccos, enseadas, se quiséramos
aqui descrever, seria sahir de nosso intento: fique só ditto, que he esta
aquella enseada, a quem por tempos coube por sorte que fosse n"ella edi-
ficada a nobre cidade do Rio de Janeiro.
61 Correndo avante quarenta e duas legoas, descobre-se a barra do
Rio S. Vicente. Está em altura de vinte e quatro gráos e meio: navega-se a
ella Lésnordeste Oéssuducste, desde a Ilha grande; he porto capaz de todas
as náos. Aq'ii se edificou a villa, que hoje chamamos S. Vicente, cabeça
da Capitania de Martim AíTonso de Sousa. Divide-se esta da de Santo Ama-
ro (que foi de seu irmão Pedro Lopes de Sousa) mediante o esteiro da
villa de Santos. Ha n'esta costa muitas ilhas, algumas de conta: trinta rios
de agoas puras, d:is melhores do mundo; ponjue vem muitos d^elles des-
penhados de altas serras, e por entre espessos arvoredos, sempre frias.
AlTirmavão os índios, que os mais dos rios d'este districto erão copiosos mi-
neraes do ouro, prata, fíirro, calaim, <; salitre, até o Rio Cananéa: e dista
este de S. Vicente trinta legoas, quasi Nordeste Sudoeste. Está cm altura de
vinte cinco gráos e meio: he abundante todo seu districto de copiosas ala-
goas, e rios ferieis de pescado, c a terra de caça, c todo o género de man-
timento brasílico. Tem grande boca, e d'ella pêra dentro huma fermosa
abra, capaz do, toda a sorte de navios; <•, a(é :iqni chegão hoje as povoações
dos Portugueses.
Liy LIVRO I DAS NOTICIAS
G2 Do Rio Cananêa ao Rio da Prata vai outra fermosa parte da terra
do Brasil com duzentas legoas por costa, que compreliende cousas grandes,
em que não posso deter-me : porém era summa. tem vinte rios caudalosos
estas ultimas praias. Hum dos principaes he o Rio S. Francisco: está em
vinte e seis gráos e dous terços ; tem na boca três ilhas : he capaz de na-
vios ordinários, muito manso, de grandes pescarias : seus arredores férteis
de caça, e aptos pêra toda a planta brasílica. He povoado de índios Cari-
jós, a melhor nação do Brasil.
63 Outro he o Rio que chamão dos Patos, em toda a costa celebre. Es-
.tá em altura de vinte e oito gráos; he mui caudaloso; a que pagão tributo
outros menores. ■Tem por fronteira á sua barra a ilha de Santa Catharina,
que vai fazendo abrigo á terra a modo de huma fermosa enseada, de com-
primento de oito até dez legoas; fertilissima, coberta de arvoredo, retalha-
da de correntes de agoas, povoada de feras somente, e em tanta quantida-
de de veados, que parece coutada de algum grande Rei; e se não forão os ti-
gres que os comem, serão infinitos. Parece hmn viveiro de peixe e marisco
pêra todo o tempo, c de toda a sorte. D'aqui dizem foi levado aquelle casco
de ostra, no qual hum Capitão de S. Vicente mandou lavar os pés a hum
Bispo era lugar de bacia, pêra que desse credito ás cousas doesta ilha. E o
que he mais, que doestas ostras se tiram pérolas ferraosas, perfeitissiraas.
Na bahia que faz entre si, e a terra firme, tem grandes surgidouros pêra
navios de qualquer porte. He o Rio dos Patos fertilissimo, e abundantíssi-
mas suas terras, e por isso requestadas dos índios. Este fica sendo o ter-
mo do districto dos Carijós, que correm desde o rio Cananêa, onde tem
principio, e trazem guerras intestinas com os Goaynás. Dos Carijós pudera
dizer muito, acerca de seus ritos, costumes e modos de viver; porém pre-
tendo brevidade; e só digo agora, que he a mais docíl, e accommodada
nação de toda esta costa, e sobre tudo singular em não comer carne hu-
mana.
64 D'esíe rio andadas vinte legoas, se vè aquelle, que por antonomásia
chamarão Alagoa, cujas bondades, e fertilidade não são doeste lugar. He
terra toda de ferraosas campinas, que apascentão os olhos com infinidade
de gado, tal, que podéra elle só sustentar o Brasil todo. He possuída da
nação dos Tapuyas, e poderão ser povoações mui abundantes de gente Por-
tuguesa. Segue-se além d'esta Alagoa por vinte e duas legoos o Rio de Mar-
tim Alíonso. Está este em trinta gráos e hum quarto. Chama-se assi, por-
que nelíe sahio em terra o Capitão Martim Affonso de Sousa, quando liia
DAS COISAS DO BUASIL LV
descobrindo a costa atè o Rio da Prata, c deste Capitão tomou o rio
nome.
05 D'aqui em diante até o Rio da Prata seguem-se as campinas já dit-
las, cheias de immensidade de gado, caça, cavallos, porcos monteses, e mui-
tos outros géneros, que andão a bandos; e na mesma forma, multidão de
espécies de fermosas aves. São retalhadas estas campinas de ribeiras de
agoa, e adornadas de reboleiras de arvoredo, que as fazem vistosas, e
habitação aprazível pêra a vida humana : e tudo goza a nação já ditta dos
Tapuyas, desde o fértil Rio dos Patos, até á boca do grão Rio da Prata.
Verdade he, que são estes Tapuyas genle mais domestica, e também sin-
gulares commummente em não comer carne humana.
66 Chegados por fira nossos exploradores á barra d'este rio, que admi-
rarão, altura de trinta e seis grãos, em luima ilha que lhe fica á parte do Nor-
te, e chamão de Maldonado, metterão marco, com as armas d"El-Rei seu se-
nhor. E por aqui temos visto a costa toda do Brasil de mil ecincoenta legoas,
mais ou menos, segundo o computo de vários, pelo que estamos de posse. Po-
rém como a linlia que corta o sertão (como no principio dissemos) vá sahir mais
avante junto á bahia de S. Mathias, corre mais a terra do Brasil da boca do
Rio da Prata cento e setenta legoas ao Sul, segundo a opinião dos que conce-
dem quarenta e cinco gráos, especialmente do Doutor Pêro Nunes, Cosmo-
grapho d"El-Rei D. Sebastião, o mais insigne de seus tempos: e na ultima
ponta da bahia de S. Mathias, na terra que chamão do marco, he tradição se
metteo o de nossas armas de Portugal ; c vem a ficar em quarenta c (juatro
porá quarenta e cinco gráos de altura.
67 Não podião deixar de ser agradáveis tios Reis sereníssimos D. Ma-
nuel, e D. João IIÍ, as relações de seus Capitães, e Cosmographos, assi co-
mo liião ouvindo d'elles a descripção de tão lérmosa costa, de tantos, e tão
lennosos rios, portos, bahias, cabos, enseadas, e todos demarcados em pos-
se pacifica pela Coroa de Portugal. Porém não pararão aqui as informações
do que virão; adiante passarão, dando conta daquellas prodigiosas monta-
nhas, que acima dissemos lhes avuUavão de niiw em fora: e não era razão
ficasse em silencio cousa tão nota\el, c a primeira que virão n'estas partes.
Estas montanhas descrevemos por extenso na Historia da vida do Venerá-
vel Padre João de Almeida, no livro 4." i)or todo o capitulo i2, ;j, e 4: pe-
io que trataremos somente aqui do que vírSo aquelles exploradores, quan-
to ás apparencias externas, que de força pede a historia.
HR (>)nieção a apparecer estas montanhas aos que vão correndo a costa,
J.VI LIVRO I DAS NOTICIAS
da Capitama dos Ilheos pêra o Sul. Tem seu principio poucas legoas an-
dadas do sitio da villa de S. Jorge, aonde cliauião as serras dos Aimorés,
por outro nome as Goaitarácas ; e vão correndo d"aqui continuadas todas
como por corda, por toda a costa do Brasil, á vista sempre dos navegan-
tes, ora metidas mais no sertão cousa de oito, dez, ou quinze legoas, ora
sobranceiras ao mesmo mar, que em paragens lhes lava os pés caminhan-
do quasi até o Rio da Prata; que vem a ser de comprimento passante de
quatrocentas legoas. Onde parece descansou a natureza hum pouco, e tor-
nou logo a continuar com a fabrica d'esta maquina íiUal do terreno, cor-
rendo com ellas na mesma direitura (passado como por salto aquelle gran-
de rio) pelos Reinos de ChiUi, Quito, Peru, e Granada, por espaço de mais
de mil legoas, além das nossas quatrocentas. E esta he aquella aífamada cordi-
lheira, assi chamada dos Castelhanos, da qual fazem menção António Herrera na
Historia das índias, tom. 3, década 5, e o Padre Affonso de Ovalle da
Companhia de Jesu, na Historia de Chilli, livro i, do capitulo 5 por dian-
te. Tratem aquelles embora da parte que lhes toca, que nós tratamos aqui
do que cabe ás nossas quatrocentas legoas, que não são menos prodigiosas.
69 A immensa altura d'estes informes montes, he semelhante propor-
cionalmente a seu comprimento; parece querem competir com o Ceo: nem
Pyrinéos, nem Alpes, nem outros que saibamos, podem correr parelha com
elles ; as nuvens íicão-lhes servindo de faxa, que cingem pelo meio aquel-
les grandes corpos, ficando a parte superior isenta dos vapores, e exhala-
ções terrenas. Os que sobem a elles, pisão nuvens do meio por diante : e
quando chegão ao cume. parece-lhes andarem sobre a terra as mesmas nu-
vens; as chuvas, os ventos, tis tempestades, os arcos da íris, exhalações,
e impressões meteorológicas, tudo estão vendo de cima superiores, gozan-
do elles no mesmo tempo Sol, e bonança: ficão como em outro mundo, c
como isentos da jurisdição dos tempos; qual do cume do monte Olympo
cantão os Poetas. He certo occasião pêra louvar ao Criador, pôr alli os olhos
no Ceo, que como então se vê mais livre dos impedimentos que soem en-
cobril-o, apparece mais puro e fermoso. Quando vão desenfaixando-se as
nuvens, e enxergando-se entre ellas os meios corpos, que estavão cobertos,
he cousa de grande recreação ir vendo do mar aquelles agigantados cumes
as figuras e apparencias que formão de serpentes, gigantes, cavallos, leões,
cidades, castellos e torres que arrebatão a vista aos navegantes: e com
mais razão o farião aos exploradores reaes, novos nas taes visões.
70 Levava os olhos sobre tudo aos nossos hospedes ver brotar so-
DAS COUSAS DO Df.ASlL LVH
bre aquelles cumes allissimos, e sobre aquella fragosa penedia, copia í,Tan-
(lissima de agoas crystalinas, que arrebentando em fontes, juntas depois
em caudalosos rios, com sua coiTcnte ]irecipitada, e com estrondo fu-
rioso, vem açoutando os penedos, até pagar tributo ao mar. De Icnga
distancia ouvião os ruidos de suas agoas, lastimadas, e como queixosas
das quebras que sentião em a desigualdade dos penedos. Deixáriío por
estas, suas agoas, as Musas do Parnaso, em caso que ti verão noticias
d'ellas.
71 Estas externas apparencias, virão os exploradores somente, e só com
ellas ficarão admirados: que farião, se vissem seus inferiores? se pene-
trarão aquellas maltas solitárias, e virão a multidão de feras, que por
alli se crião, isentas das treições da gente humana? Canrarião de contar
suas espécies somente. Ilumas verião de animaes nocivos, tigres, onças,
gatos silvestres, serpentes, cobras, crocodillos, raposas. Outras do ani-
maes de caça, antas, veados, porcos montezes, e aquários, pacas, tatus,
tamanduás, lebres, coelhos, e estes de cinco ou seis espécies. Outras de
animaes de gosto, e recreação, monos, macacos, bugios, saguins, pregui-
ças, cotias, e outras espécies sem conto. Yerião aves as mais fermosas. o
numerosas, que se vêm em outra alguma parte do mundo. Só seus nomes
sem outra descripção lhes gastaria muito papel; [admiráveis em variedade,
pennas, cores, e formosura.
72 Verião seus grandes arvoredos, espessas matlas que sobem ás nu-
vens, e encobrem o Ceo: a grossura monstruosa de seus antiguos troncos:
a variedade de suas preciosas espécies, as melhores de todo o Universo,
dos cedros, vinhaticos, jacarandás, páos reis, páos brasis, vermelhos e ama-
rellos, bálsamos, copaigbas, almougas, ibicuigbas, ou noz noscadas, o ou-
tras espécies innumeraveis de páos reaes, preciosos. 1)>* ervas cheirosas e
medicinaes, são suas espécies sem conto: depositou a natureza n"estas mon-
tanhas hum Ihesouro de remédios humanos do poucos conhecido. Verião
finalmente os mineraes de pedras finas, forro, chumbo, calaim, praia e ou-
ro, de seus serros, vargens, arredores, e rios, ({ue podem comparar-se á
mesma índia, Potosi, M:íldivia, e I^ei-ú. O tempo, descobridor das cousas,
tem mostrado grande parle de todas ; e os séculos ({ue erilrarom virão a
mostrar mais. Tudo isto verião os exploi-adoros, se então llie foi'a {)ossi-
vel penetrar estas in)monsas maltas: porém do (\v,{\ virão, e do (|uo ouvi-
rão aos índios, linhão bem (jiie contar a s;mis Heis. Não será i.piii coiiilu
do passar em silencio algumas perguntas de curiosidade, qnr' or, cxiflrira-
vor. I IV
LVIII LIVRO I DAS NOTICIAS
dores tratarão com os índios, em quanto andavão correndo sua costa : por
que contém diíTiculdades dignas de se saber. Vião aquelles Capitães e Cos-
mograplios a feniiosura, e varia compostura das terras, campos, montes,
arvoredos, aves, animaes, peixes, e a multidão tão grande c varia de na-
ções de gentes: e pasmavão, como de cousa nunca vista em outra alguma
parte do mundo.
73 E como a curiosidade do liomem em procurar saber, lie tão natu-
ral, pretenderão (depois de adquirida mais noticia das iingoas) tirar dos
índios algumas repostas das duvidas que tinhão : e fazião-llies as pergun-
tas seguintes. Em que tempo entrarão a povoar aquellas suas [terras os
primeiros progenitores de suas gentes? De que parte do mundo vierão?
De que nação erão ? Por onde, e de que maneira passarão a terras tão re-
motas, sendo que não havia entre os antiguos uso de embarcaçíjes muito
mais capazes que as de suas ordinárias canoas? Como não conservarão suas
cores? Gomo não conservarão suas Iingoas ? Como chegái^ão a degenerar de
seus costumes, e a estado ião grosseiro alguns dos seus, especialmente Ta-
puyas, que pôde duvidar-se delies, se nascei'ão de homens, ou são indivi-
duos da espécie humana? Que Religião seguião? E finalmente í)erguntavão-
Ihes, que bondades erão as d'esta sua terra, e as d"este seu clima em que
vivião? Estas, e outras semelhantes perguntas hião fazendo os nossos explo-
radores aos índios, segundo as occasiões que achavão.
74 Porém podião mal satisfazer nações tão barbaras, a pergimtas de
líjnla difficuldade. A seu modo grosseiro protestarão em primeiro lugar,
que elles não tinhão uso de 1ím-os, nem outros archivos mais que os de
suas memorias, e que somente nestas estampavão as historias de suas an-
tigualhas, e dos successos que pelo discurso dos tempos liião ouvindo huns
aos outros. E vindo a responder, quanto á primeira pergunta, dizião os
que erão mais curiosos, e de maior experiência, que por tradição de seus
antepassados correra sempre, que houtera no mundo hum diluvio univer-
sal em que morrerão os homens todos, e que dos poucos que d'elle esca-
parão SC torneara a povoar esta sua íerra, e forão estes os primeii'os seus
progenitores, depois d'aquelle grande diluvio.
7.J E contavão a historia na maneira seguinte. Que antes de chegar o
diluvio liavia hum homem de grande saber, a que elles cliamavão Payò
(que vai o me^mo que Mago, ou adivinhador, e entre nós Propheta) o
({ual tinha por nome Tamanduaré, e que o seu grande Tupá, que quer dizer
c.xcellencia superior, e vem a ser o mesmo que Deo?, falla^a com este, e
DAS COUSAS DO BRASII. [.IX
Ilie descobria seus segredos : c entre outros lho communicára, que havia
de haver huma innundação da terra, causada de agoas do Ceo, e alagar o
mundo, sem que ficasse monte ou arvore, por mais alta que fosse. Atéqui
vão rastejando os relatores; porém logo varião. Accrescenlavão, que exce-
ptuara Deos huma palmeira de grande altura, que estava no cume de certo
monte, e se hia ás nuvens, e dava hum fructo a modo de cocos; e que es-
ta palmeira lhe assinalou Deos pêra que se salvasse das agoas elle, c sua
familia somente: e que no ponto -em que o ditto Payé^ ou Propliela, a tal
noticia teve, se passou logo ao monte, que havia de ser sua salvação, com
toda sua casa. Ex que estando n'este, vio certo dia que começavão a
chover grandes agoas, e que hião crescendo pouco e pouco, e alagando
toda a terra, e quando já cobrião o monte em que estava, começou a su-
bir elle, e sua gente aqaelía i)a]mcira sinalada, e estiverão nella todo o
tempo que durou o diluvio, suslentando-se com a fruta delia ; o qual aca-
bado, descerão, multiplicarão, c tornarão a povoar a terra. Este era o di-
zer fabuloso d'aquelles naturaes ; c segundo isto têm pêra si, que antes
do diluvio havia já povoadores cm sua terra, e que aquelle Mago, ou adi-
vinhador com sua familia já a povoava antes das agoas do diluvio, e ficou
também povoando depois d 'elle.
76 Por modo ainda mais fabuloso contão a tradição de sua origem os
índios das outras partes da Aniei'ica. Porque huns dizem (segundo o re-
fere o Padre AÍTonso de Ovaile de nossa Companhia na Historia de Chilii)
que em tempos antiquissimos, quando ainda não havia Reis Ingás, houvera
aquelle diluvio grande ; mas que em certas concavidades de altas serranias
íicárão alguns homens, que tornarão depois a povoar a terra; e a mesma tra-
dição, diz o Autor, tiverão os índios de Quito; e todos estes fazem a seus
povoadores antiquissimos, ainda de antes do diluvio. Yarião outros mais,
e dizem que naquelle diluvio não pode salvar-se em terra pessoa alguma,
porque cobrio o cume dos mais altos montes; porém que alguns se salva-
rão em huma balsa que fizerão, e dizião (jue forão estes seis (menos er-
rarão SC disserão oito.; Faz menção destas opiniões, ou disbarales d esta
gente, António Ilerrera na Historia geral das índias; e ahi escusa a igno-
rância d"estes, tanto por sua natural rudezri, como jtor falta de archivos.
77 De outros escreve o fiadre .loseph da Cosia ila Conípanhia de Jesu
de Novo Orbe, que têm por tradição que depois (raquclle grão diluvio, sá-
bio de hum lago hum homem portentoso, chamado Víracocha, e qm deste
livera prinripio a geração de sua gente. Dufros dizião. rpjt' *;ahir?>o dn?:
LX LIVUO 1 DAS NOTICIAS
entranhas de huns moiiles liuns tiomens nunca vistos, feitos pelo Sol, e que
(Fcstes tiverão seu principio. E temos visto a resposta da primeira pergunta,
que os Portugueses fizcrão aos índios, em que tempo vierão povoar estas
terras os primeiros progenitores de suas gentes.
78 Ás três perguntas seguintes : de qae parte do mundo vierão; de que
nação erão; por onde, e de que maneira passarão a estas terras tão remo-
tas? i-espondião que a tradição de seus antepassados era, que viei"ão da ou-
tra parte da terra, que elles não sabião. Que era gente de còr branca : e
que vierão em embarcações pelo mar, e aportarão em huma paragem, que
elles por suas semelhanças descrevião, e os Portugueses entenderão que
vinha a ser a do Cabo Frio. E vindo a contar a historia, dizião, que vierão
a este seu Brasil, lá da outra parle da terra dous irmãos com suas famí-
lias, em tempos antiquíssimos, antes que algum outro nascido entrasse
n'elle, quando ainda as mattas estavão virgens, os campos bravios, e as
feras,e aves vivião isentas de seus arcos, e que estes vinhão fugindo das
próprias pátrias, por causa de guerras que tiverão. E que chegarão a dar
fundo suas embarcações em huma bahia segura, e fermosa, que depois se
chamou do Cabo Frio. Aqui chegados saltarão em terra, e começarão a fa-
zer diligencia por varias partes divididos cm busca de gente, com quem
faltassem, e de quem tomassem noticias donde estavão, e do que devião
fazer ; porém debalde, porque a terra ainda não tinha conhecido ho-
mem algum, e tudo achavão em summa solidão, e silencio, senhoreado
somente das feras, e das aves: mas como já a experiência lhes hia ensi-
nando o que os homens não poderão ; vendo a frescura e fertilidade dos
montes, dos campos, dos bosques, e rios, vierão a resolver entre si, que
a fortuna os tinha conduzido a gosar de hum achado grande, o que mais
poderão desejar pêra largueza e abundância de suas famílias. E com ef-
feito fundarão alii huma povoação, a primeira que vio o Brasil, e ainda a
America; de que já se acabou a memoria.
79 Continuavão, e dizião mais: que depois de assi assentarem n"esta
povoação, e repartirem entre si o melhor da terra, em que habitarão, an-
dado o tempo (pai de variedades) vierão aquellas famílias a dividir-se en-
tre si. Na causa variavão: mas dizião os mais, que fora por differenças que
tiverão sobre hum papagaio, pretendendo a mulher do irmão mais velho
fazer-se senhora d'elle, e resistindo a mulher do irmão mais moço,
que o ensinara a fallar com tal propriedade, que parecia i)essoa humana
(bastava isto entre gente rude) chegarão a tanto as paixões, que dividirão
DAS COUSAS DO BRASIL I.XI
de todo as familias: a do mais velho ficou na terra, e a do mais moço cos-
teando a praia foi dar comsigo em o grande rio a que lioje chamamos da
Prata, c embocando sua larga barra, foi assentar vivenda da parte do
Sul. E este dizem foi o primeiro habitador das terras, que hoje chama-
mos Buenos-ayres, Chilli, Quito, Peru, e as de mais d'aquellas partes.
80 Mas tornando agora aos que ficarão em o nosso Brasil ; dizião que forão
estes multiplicando, e que divididos por varias partes do sertão, e marítimo,
formarão grandes povoações, que depois pelo tempo divididas por meio do dis-
senções, e guerras, vierão a fazer nações disíinctas, e lingoas varias, nunca ou-
vidas nem aprendidas; em costumes, modos, e religião differentes, e que des-
ta gente viera finalmente a povoar-se o Brasil todo, ed"elle toda a America.
81 Isto dizião aquelles índios acerca das perguntas, sobre que forão
consultados: e acerca da quinta especialmente de como não conservarão as
cores? responderão com a graça seguinte. «Façamos uma experiência, dizião:
trocai vós outros comnosco os trajos, e andai nús ao sol, e á chuva, quaes
nós andamos; e vereis logo, que de brancos vos heis de tornar da nossa
côr. » E quanto á mudança das lingoas, dizião, que com o discurso dos tem-
pos, a variedade de lugares, e divisões que tinlião feito entre si, por cau-
sa de seus ódios, e guerras, forão forçados chegar a esquecer-se dos voca-
<)ulos pátrios, e ajiidar-se de outros de novo inventados.
81 Quanto á religião, convinhão os índios de todas as nações, assim do
huma, como de outra parte da America, que havia tradição entre elles an-
tiquíssima de pais a filhos, que muitos séculos depois do diluvio andarão
por suas terras huns homens brancos, vestidos, e com barba, que dizião
cousas de hum Deos, e da outra vida, hum dos quaes se chamava Sumo,
que quer dizer Thomé: e que estes não forão admittidos de seus antepas-
sados, e se acolherão pêra outras partes do mundo; ensinando-lhes com-
ludo primeiro o modo de plantar o colher o fruto do princii)al mantimen-
to de que usão, chamado mandioca. Finalmente acerca da bondade da ter-
ra SC espraiavão mais: aqui mostravão com longas historias, e exemplos,
as descripções das cousas, que a seu modo tinhão por de maior momento;
como a de seus arcos, e frechas, das pennas com que se enfeitavão, das
frutas agrestes que comião, e de que fazião seus vinhos; c erão das cousas
fjiie em seus olhos avultavão mais, deixando por do menos conta, a prata,
o ouro, o âmbar, e as pedras preciosas; As quaes tem dado titulo de gran-
des, nossa real cubica.
H'4 Estas erão as repostas dos InHios a seu modo tosco, e gentílico.
LIVRO 1 DAS ?<OTICIAS
Era forra que fossem defoiluosas, e )ic necessário que demos nós satisfação
por outra via á curiosidade daquellas perguntas, segundo a capacidade maior
dos entendimentos, que Deos nosdeo, e da policia em que nos criámos. E
seja a primeira resolução. Que os homens que começarão a povoar esta
America depois dos annos de 1G56 da criação do mundo, e diluvio geral
da terra (quaesquer que fossem) não tinhão antes d'elle povoado a mesma
America. Esta resolução he certíssima: consta da sagrada Escrittura; porque
dos homens que vivião no mundo antes do diluvio, nenhum escapou, exce-
pto Oito almas da Arca de Noé, das quaes nenhum tinha passado a povoai"
a America: posto que algims de seus descendentes era força passasse de-
pois pêra este eíTeito, como ás mais partes do mundo.
84 Donde se vé, que são ridículos todos os outros modos com que os
nossos índios sonharão que escaparão do diluvio, ou sobre arvores, ou mon-
tes, ou de outras maneiras seus progenitores, e continuarão a povoar depois
de passado. Pelo que, supposío que as noticias que dão do diluvio pela
constância de nações tão diversas, que aíru-mão o mesmo, quanto á sustan-
cia possão ser verdadeiras, e do verdadeiro diluvio; quanto ás circunstan-
cias com tudo são disbarates; que como dependião de memorias, depois do dis-
curso de tantos séculos, era força chegassem, a estes nossos tempos muito
adulteradas: quando não sejão de outro diluvio dos que acontecerão depois
de Noé, como bem adverte António Herrera, no tom. in da Historia geral
das índias, década 5.-'': e se com tudo antes do diluvio geral de Noé houve
n'estas partes habitadores, nem consta da sagrada Escrittura, nem pôde por
outra via averiguar-se.
85 Segunda resolução. Depois do diluvio geral do mundo, he incerto
em que tempo passarão a estas partes os primeiros povoadores d ellas. O
que se vê claramente; porque huns dizem, que seu primeiro povoador foi
Ophir Indico, filho de .lectan, netío de Ileber, aquelle de quem falia a Es-
crittura no capitulo 10. ° do Génesis, e a quem coube pêra senhorear o ul-
timo da costa da índia Oriental. D"este pois dizem, que passou d'aqui a
povoar e senhorear a região da America, entrando pela parte do Peru, e
México, e dilatando por alli seu império. Assi o traz o Padre João de
Pineda da Companhia de Jesu, de Rebus Salomonis, onde refere por esta
opinião Árias Montano. E vem mui a propósito esta entrada de Ophir In-
dico; porque deste seu primeiro povoador (se he que o foi) devião tomar o
nome de índios os moradores da America, e toda a região da índia Occi-
dental. E por respeito do mesmo nome disserão muitos (como logo vere-
DAS COUSAS DO IIRASIL l.^çill
mos) que a America era o mesmo que o Ophir tao celebrado na sagrada
Kscriltura. E segundo esta opinião, o principio da povoação d"esta terra foi
pelos annos da creação do mundo de 1700, quarenta e cinco depois do
diluvio, e antes da vinda de Christo ao mundo 2088 annos.
8C Outros tiverão pêra si, que os primeiros povoadores d"eSta America
forão daquelles de que falia o Texto divino no capitulo xi do Génesis, que
pretenderão edificar a torre chamada de Babel, cujas ameas querião que
chegassem ao Gco. Porque d"estes dizem alguns, que vendo-se frustrados, e
e confundidos por Deos nas lingoas, porque não se entendessem na obra,
espalhados depois por diversas terras, vierão habitar esta nossa America.
E se assi he, são muito antigos estes povoadores: porque a historia da tor-
re passou aos cento e trinta e um annos depois do diluvio, na era de
1788 da criação do mundo, 2174 antes da vinda de Christo a elle.
87 Outros disserão, que estes primeiros povoadores forão d'aquellas
gentes dos Ilebreos, as quaes o sábio Salomão costumava enviar em suas náos
do mar Vermelho á região chamada de Ophir, em busca de ouro, páos pre-
ciosos, simios, e cousas semelhantes; e tem pcra si, que esta região de
Ophir he a da America, especialmente o Peru, México, e Brasil. Esta opi-
nião parece a alguns muito provável, e como tal a defende com forçosos
argumentos o Padre João de Pineda nossa Companhia, de rebus Salomonis liv.
4.", cap. XVI, foi. 214, retratando o parecer contrario, que tinha seguido
em seus Commeiiíarios sobi-e Job. Não com menos eflicacia a defende o Pa-
dre Frei Gregório Garcia, da sagrada Rehgião de S. Domingos, uo liv. 4."
de Indorum occidentalium Origine, e allega por si os Authores seguintes :
Vatablo sobre o 3." livro dos Reis, cap. 0." (e foi o primeiro diífcnsor d es-
ta opinião) Postcllo, Goropio, Árias Montano, Geneberardo, Marino Lixia-
no, António Possivino, Rodrigo Yepes, Bosio, Manoel de Sá, e outros refe-
ridos pelo Padre Pineda no lugar já citado.
88 E na verdade, os fundamentos que trazem por si estes Authores
fazem a cou.sa muito vtírisimil; porque ninguém pôde negar, (|ueo grande
sábio Salomão com sua alta sabedoria teve conhecimento da disposição de
todas as ti-nas do muudo, como elle o diz no capitulo 7." da Sabedoria.
«Ipsecnimdidil mikl horum, qiics snnl, scicnliam vcram,ut sciam disposilio-
nem orbis terrarum, el virliiles clementorum.)^ Pois se tinha conhecimento do
mundo, e sabia consi^guintemente os thesoui'os das riquezas da America,
especialmente de Maldivia, ÍVrú, Chilli, e as da terra do Brasil, e linha tão
grande desejo de ajuntal-as pêra a obra do Templo de Deos, que trazia
LXIV I.IVUO í BAS NOTICIAS
eutre inãus, por qae não mandaria cm busra d cilas ás partes sobredit-
tas? mormenle tendo sò pêra este eííeito fabricada gi'0ssa araiada nos por-
tos do mar Vermellio, com gente de mar destra, instruida por elle, como
por me.Ure de todas as artes. E correndo esta de três em três annos o
mnndo em busca d'estas drogas; porque não poderia n'este tempo pene-
trar lambem estas ultimas terras do Occideníe? Nem pêra isto o acovarda-
rião carrancas dos antiguos Philosoplios, de que não erão navegáveis estes
mares, nem habitáveis estas terras: porque teve scicncia infusa da arte da
Cosmographia, Geographia, e Hidrographia, como de todas as mais scien-
cias. Nem a viagem era mais difficultosa por isso; porque partindo, como
costumavão suas armadas do mar Vermelho, vinhão correndo áquella par-
te da índia Oriental, costeando Malaqua, e Samatra, e daqui direitas á ilha
âe S. Lourenço, d'esta ao Cabo da Boa Esperança, e d'ahi caminho direi-
to ao Brasil: e d'este finalmente correndo as costas, buscando as ilhas de
Cuba, S. Domingos, Hispaniola, e d'ellas os Reinos de Peru, e Chilli. Na
mesma forma pinta a viagem d'esías nãos Genebrardo, aOportuit (diz elle)
solventes ex mari Rubro, etaliqua índice Orientalis parte -perlustr ala, atta-
ctis Malaqua, Samatra, recta deinde contendere ad insulam Sancti Lauren-
tij\ ex qua ad Caput bonx Spei, inde ad Brasiliam: atque legentes illam Bra-
silioe oram, tanger e Cubam et insulam Sancti Bominici Hlspnnam ; ex qua
tandem paleret accessus ad ^íexicanas oras.n E muito menos ha de distan-
cia do Cabo da Boa Esperança á costa do Brasil, e d'ahi á da Nova Ilespa-
iiha, que á de Hespanha antigua, Africa, e Phenicia, onde commummente
dizem os Authores chega vão asnáos de Salomão, como se deixa ver do
computo dos grãos. Se isto he verdade, os primeiros povoadores destas
partes entrarão n'ellas depois dos annos de mil nove centos e trinta e três,
da creação do mundo, que foi o tempo em que reinou o sábio Salomão, mil
e vinte e oito annos antes do Nascimento de Chrislo.
89 Com esta mesma opinião vem a conceder outros, que dizem que
Ophir era em outra parte diversa, ou fosse a Mina, ou Angola, ou a índia,
segundo diversos pareceres : mas que levadas aquellas náos de Salomão de
força de ventos, desgarrarão ás praias da America, e ficando-se n"ella alguns
dos navegantes, povoarão aterra.En'este modo não parece ha impossibili-
dade alguma; e o tem por provável o mesmo Author referido no cap. 19.
90 Outros disserão, que forão estes primeiros povoadores de nação
Troianos, c companheiros de Eneas; porque depois de desbaratados estes
pelos Gregos na famosa destruição de Tróia, se divic^irão entre si, buscan-
BAS COUSAS DO BRASIL LXV
(lo novas terras, om que habitassem, como bomens envergonhados do mun-
do, e successo das armas. Alguns dos quaes dizem se engolfarão no largo
Oceano, e passarão ás partes da America. Assi parece o dão a entender
aquelles celebres versos de Virgílio.
Poslquám res Asioe, Priamique evertere gentem
íinmeritam vkum siiperis, ceciditque superbum
Iliiim, et omitis humo fumai Neplunia Tróia:
Diversa exilia, cl diversas quoerere terras
Augurijs agÍDiur diiiàm: cíassemque sub ipsa
Antandro, et Phrygioe rnolimur montibus Ida;,
Incerli qnj fala ferant vbi sistere deliir.
Veja-se o Padre Frei João Pineda á margem citado. (*) E segundo esta opi-
nião, os povoadores d'esía terra passarão a ella pelos annos dous mil oito
e seis da creação do mundo, e antes da vinda de Christo a elle mil cento
e cincoenta e seis.
91 Outros tiverão pêra si que forão Africanos estes primeiros povoa-
dores: os quaes depois da destruição de Carthago feita pelos Romanos em-
barcados em nãos da mesma maneira que os Troianos, houverão de bus-
car acolhida por diversas terras, e alguns d'elles desgarrarão á força de ven-
tos a esta costa do Brasil. E não ha que espantar, porque, segundo Stra-
bão lib. 17, tinhão os ditos Cartaginenses, quando forão cercados dos Ro-
manos, trezentas cidades na Africa, e só na principal de Carthago se acha-
rão no cerco setecentas mil pessoas. Força era logo buscasse varias terras tão
grande multidão de gente, onde houvesse de ter abrigo. E se forão estes os
primeiros povoadores, passarão a estas partes na era da creação do mun-
do de três mil oito centos e trinta e três, segundo o computo da Monarchia
Lusitana, e antes da Redompção dos homens, cento e quarenta e nove.
92 Outros querem, que fossem estes daquellas gentes dos dez tribus dos
antiguos Judeos, que ficarão cattivos no tempo do Propheta Ozéas, segundo
o tem a Historia do Esdras no liv. 4." cap. 13, onde diz d'cllas, que pela
virtude divina forão guiados a uma região desconhecida, onde nunc^a habi-
tara gente humana, o por caminiios muito compridos de anno c meio de
viagem. Esta região entendem que era a nossa America, c estes homens os
(.] Lib. 3, cap. 12, § .V, c lib. 14, cap. 2'^ § 1.» *
LXVI I.IVIIO I DAS NOTICIAS
primelres povoadores delia. E se assi lie, passarão a esLis partes pelos an-
nos da crearão do mundo Ires mil duzentos e vinte e seis. e antes da Re-
dempção dos homens setecentos e vinte e quatro. E na verdade, muito
grande prova faz por esta parte a semelhança que ha de costumes entre
estes índios e acpieUes antiguos Judeos: como he o serem medrosos, co-
vardes, supersticiosos, mentirosos, consen-adores da geração de seus ir-
mãos, casando-se com as cunhadas, quando aquelles morrem; lavarem-se
a cada passo nos rios ; e outros usos, em que conformão com esta nação.
93 Outros seguem a opinião de Diodoro Siculo, que tem pêra si, que
estes primeiros povoadores forão d"aquelles Phenices Africanos, que era
tempos antiquíssimos, saindo a navegar fora das CoUnnnas de Hercules, e
correndo a costa de Africa, forão levados do Ímpeto de ventos a huma ter-
ra nunca vista, de notável grandeza, no meio do Oceano, que defronte de
Africa corria á parte do Poente ; e era terra ameníssima, fertillissima, cheia
de bosques, campos, rios, e fontes. E esta terra nenhuma outra podia ser
na parte demarcada, se não a grande America. E segundo esta opinião,
estes primeiros povoadores Africanos passarão a estas partes na mesma
era, pouco mais ou menos, em que a opinião antecedente faz aportados a
elías os Cartaginenses. Finalmente PeroBercio.em sua Geographia, e Theo-
doro de Bry, coUigem a antiguidade dos povoadores da America nas paí'-
les da Nova Hespanha, das noticias de seus antiquíssimos Reis, e das ruí-
nas de seus grandes edifícios, e de outras cousas memoráveis, que n"aquel-
las partes acharão os Hespanhoes; porque taes cousas, não parece podião
fabricar-se se não em íempo immemoravel. Estas são as opiniões com que pro-
vo a segunda resolução que propuz, acerca da incerteza do tempo, em que
passarão a estas partes os primeiros povoadores d"ellas.
04 Verdade he, que tem ainda contra si todas estas opiniões em ge-
ral huma instancia grande: e vem a ser dos anímaes terrestres, onças, ti-
gres, e outros semelhantes, como passarão a estas partes? pois nem era
possível nadarem por tão grande distancia de mares, nem parece os tra-
rião os homens comsigo em suas nãos, nem sabemos que houvesse pêra
este eífeito segunda Arca de Noé, nem também que Deos fizesse d'elles se-
gunda e nova criação n'esta terra. Porque então, a que fim mandara o Se-
nhor a Noé, se occupasse em salvar na Arca as castas todas de anímaes,
macho, e fêmea "*
95 Por estas, e semelhantes razões tiverão outros Authores pêra si
muito differentc parecer. E he/que os povoadores primeiros d'estas par-
DAS COUSAS DO BRASIJ. Í.XVIl
tcs passarão a ollas, ou por terra continua, ou dividida com algum estrei-
to breve, que lacilniiMile podesse ser vencido, assi de homens, como de
animaes. Depende a força d"esta opinião da pergunta seguinte. Se he a
terra d'este novo mundo, ilha, ou terra firme? Jacobo Ghineo diz, que in-
da até agora não consta de certo, se he ilha, ou se he terra firme: suppos-
to que por voto dos melhores Geographos está recebido que he ilha. Gem-
ma Phrisio no cap. 3.° da divisão do mundo, deixa a pergunta em opinião, mas
inclina-se mais a que he ilha. Com a mesma indiíTerença se fica o Author
do novo livro Theatrum Orbis na taboa da America: e com razão; por-
que até nossos tempos ninguém chegou a experimentar o sitio da terra da
America, por aquella parte do Norte, que corre contra o estreito que cha-
mão Fretum Davis; como também nem por aquella parte d'álem do estreito
de Magalhães, que corre á parte do Oriente.
96 Supposta a indeterminação dos pareceres, a resolução seja também
condicional. Que se a terra d"este novo mundo he continuada com qualquer
das partes do antiguo, por ahi se ha de dizer, que continuou n"ella a pro-
pagação dos homens, e dos animaes juntamente; e da mesma maneira,, se
he ilha com entreposição de algum breve estreito; porque então era frus-
traneo o apparato de nàos, assi pêra homens, como pêra animaes. E n"es-
ta supposição tenho esta sentença por mais provável; e por tal a julga o Padre
Joseph da Costa da Companhia de Jesu, de natura Novi Orbis: e estando n'ella
se vê mais ás claras a verdade da resolução principal que acima tomamos, a sa-
ber, que depois do diluvio geral do mundo, he incerto em que tempo passarão
a estas partes os primeiros povoadores d*ellas: porque além da incerteza de
opiniões tão varias, como vimos, com esta ultima sentença se demostra mais;
porque se até hoje se não pjde averiguar se pelas partes ultimas d"esta terra
se podia passar a pé enxuto, ou se de força se havia de passar por agoa, nem
que distancia tinha esta: como se poderia averiguar, quando passarão os
primeiros que vierão povoar este mundo?
97 Do acima ditto se tira também a resolução das outras três pergun-
tas. Porque á segunda, de que parte do mundo vierão aquelles primeiros?
poderá responder cada hum segundo a opinião que seguir, ou que de Ju-
dea, ou que de Tróia, ou que de Carthago, ou que da Phenicia, etc. Á ter-
ceira: de que nação erão? responderão huns, (jue dos índios, outros que
dos Judeos, outros que dos Troianos, outros que dos Carthaginenses,
outros que dos Phenicios, etc. E íinahnente á quarta pergunta: por que
parte, e de que maneira passarão a estas [lartes? dirão huns, que em nãos
Lxvm Mvno i das noticías
a isso (leslinailas, outros que em náos desgarradas, outros por terra, ou
breve esti'cito, etc, que tudo são opiniões, e poderá seguir cada hum o
que mellior lhe parecer.
98 Depois de todas as opiniões, e modos de responder acima dedu-
zidos, me parecco referir aqui a opinião de Platão, e de outros Philosophos
seus antecessores: porque por meio d'esta (se he Yerdadeira) se responde
com muito mais facilidade, c brevidade, a todas as quatro perguntas venti-
ladas. Diz pois Platão, e dizião aquelles gravíssimos Philosophos, que hou-
ve em tempos antiquíssimos humailha prodigiosa, chamada de Atlante, que
começando defronte da boca do mar Mediterrâneo e das Columnas chama-
das de Hercules, hia correndo por esse mar immenso, com extensão tão
agigantada, que era maior que toda a Africa, e Asía. Porém que depois an-
dados os séculos, toda esta terra foi subvertida, e inundada com as
agoas do Oceano, por occasião de hum grande terremoto, e alluvião de agoas
de hum dia, e noite : e que ficou sendo mar navegável, a que chamamos hoje
mar Atlântico, apparecendo n'elle somente algumas ilhas (as da Madeira,
dos Açores, do Cabo verde, e as demais) por modo de ossos de defunto
corpo que fora. As palavras de Platão são as seguintes: «2'm7íc enimPelagus
illud innaoigabile erat\ iasalam cniin ante ostiiim hahebat, quocl vos Colum-
nas Uerculis appellatis : at insula illa, et Libia, et Ásia maior erat, etc.
Posteriore verd tempore, ferra} motibus, ac diliio>jsingentibiisobortistmo die,
ac nocle gruvi iiiciimbent, etapiid vos totum mildare genits acervatim terra
absorbuit^ et Attanlis insula similiter in mari submersa disparuit.)y
99 Segundo a opinião doestes philosophos, esta ilha de tão agigantada
e.xtensão, era n"aqueile tempo continua com a que hoje chamamos Ameri-
ca, e todo hum corpo somente, a que chamavão iiha de Atlante. E a razão
está manifesta: porque sendo o corpo d'esta ilha maior que o da Africa,
e Ásia, e começando das Columnas de Hercules, ou boca do mar Mediter-
râneo, e õicorrendo por aquelle golfo, chamado ainda hoje Atlântico, não
era possível que deixasse de ir entestar com toda a costa, chamada agora
da Nova Hespanha : pois até esta não he tal o espaço do mar Atlântico,
que iguale á grandeza da terra de Africa, e Ásia; e pêra o ser, se devião
necessariamente juntar, a parte do corpo, que hoje he da America, com a
que vinha correndo a ella pelo espaço do mar Atlântico; porque de ambas
saliisse a grandeza mostruosa que lhe davão.
100 O que supposto, respondendo agora á primeira pergunta ha se de
dizer, que os primeiros progenitores dos índios da America (segundo
DAS COISAS DO BRASIL LXIX
esta opinião) enlráião a povoai- a successivamente com os que entrarão a
povoar a illia de Atlante; pois tudo era a mesma terra, mais, ou menos
distante das Columnas de Hercules. E foi muito antes, que na dita ilha
reinasse o Príncipe Atlante, que succedeo nos annos da criação do mundo
2334 segundo o computo dos autores que descrevem este seu reinado, e
o de outro seu irmão, n'esta ilha. Veja-se a Monarchia Lusitana tom. i,
cap. 13. Á segunda pergunta: de que parte do mundo vierão? se ha de res-
ponder n"esta opinião (como por aquelles tempos era hum só o corpo d"esta
America, e o da ilha Atlântica, e este estava tão conjunto ás Columnas de
Hercules, terra de Europa, e pela parte Oriental á terra de Africa) que
por huma e outra fronteira, ou de Eiu^opa, ou de Africa, passarão os pri-
meiros povoadores, assi da Atlântica, como da America, que erão a mesma
cousa: ou estes fossem Judeos, ou Athenienses, ou Africanos, segundo as
opiniões sobreditas. E com a mesma facilidade se pôde responder á ter-
ceira pergunta: de que nação erão? segundo as mesmas opiniões. E ulti-
mamente a quarta pergunta : de que maneira passcárão a partes tão remo-
tas ? fica patente : porque assi das Columnas de Hercules, terra de Europa,
como de Africa, fácil ficava o passar á ilha de Atlante, e a brevidade da
distancia mostra Platão em suas palavras: ^ílnsulam enimanleosHumhabe-
hat, fjuoã vos Columnas Herculis appeUaíis.n Aquellas palavras : Aníe oí/íh/u
liabebat, não denotão grande distancia.
101 Marcilio Porcino sobre este lugar de Platão no Tima?o, cap. 4.", leni
pêra si, que toda esta historia da ilha Atlântica he verdadeira. O mesmo
parecer tem Diodoro Siculo, liv. vi, cap. l/\ onde diz o que já acima re-
ferimos, que os Phenices em tempos antiquíssimos navegando íora das Co-
lumnas de Hercules, e correndo a costa de Africa, forão levados da força
dos ventos, a huma ilha de notável grandeza, fronteira a Africa, que cor-
ria á parte do Poente, amenissima, fertilissima, chea de })0sques, de rios,
de arvoredos, de cidades, e edifícios sumptuosos. Abraham Hortelio na ta-
hoa da America, diz, que ha muitos (pie tem í)era si, (]ue a mesma Ame-
rica foi descripta por Platão, e debaixo de nome da ilha Atlântica, e que
também Plutarco seguira a opinião de Platão : e não diz elle cousa alguma
em contrario. O autor do livro, que se intitula do mundo (e outros o at-
tribuem a Aristóteles, ou Theopiírasto) diz, que neste lugar do mar Atlân-
tico, aléin da de Europa, Ahica, e Ásia, havia outra ilha grande, e não pôde
ser senão esta. Em prova do mesmo hc trazido commummenle outro lu-
gar do Aristóteles, ou Theophi-asto, onde diz, que o Senado dos Alhenien-
LXX LIYUO I DAS NOTICIAS
ses prohibio em tempos antiguos a seus navegantes, o navegarem á ilha
de Atlante, por não desampararem sua pátria. Parece que approva Plinio
esta opinião no livro n, cap. 67, e no livro vi, cap. 32, onde diz, que Ha-
non Carthaginense, navegando ás partes Occidentaes do Oceano, foi dar em
terras novas, nunca d'antes achadas. Favorece o mesmo Zarate em sua
Historia, e o mesmo parece faz o Curso Conimbricense sobre o segundo do
Geo, quest. i, art. 2, onde refere alguns dos autores que a favorecem, e
elle a não contradiz.
102 Se hei de dizer o que sinto n'esta opinião tão discutida da ilha de
Atlante, confesso que faz alguma força a meu entendimento, não só o se-
guil-a Platão, homem de tanta auctoridade, chamado n^aquelles tempos por
antonomásia, o Divino, luz de toda a Philosophia, e de todos seus segre-
dos, e tão serio em todo seu dizer : mas também o modo com que falia,
quando a segue, descrevendo-a com iodas suas particularidades, da gran-
deza da terra, fertilidade dos sitios, seus bosques, seus rios, suas fontes,
suas gentes, seus costumes, suas façanhas, suas cidades, seus sumptuosos
edifícios; e finalmente os Reis que n'ella senhoreavão, em parte d'ella El-
Rei Atlante, e na outra parte outro seu irmão, chamado Guadiro. Tudo
isto parece está metendo medo a duvidar de hum liomeni tão serio, pêra
se poder cuidar d'elle que escreveo patranhas. Alguns comíudo regeitão
esta doutrina da ilha Atlântica como fabulosa : outros por incerta, ou por
impossível : e por isso propuz em primeiro lugar as outras opiniões aci-
ma : cada qual siga o que lhe parecer.
103 Restão outras quatro perguntas dos Portugueses aos índios. Era
a primeira d'ellas: como não conservarão as cores? Porque nenhum dos
seus primeiros pais teria côr de quasi vermelho tostado, qual he a dos
índios da America. Na reposta que derão attribuião a mudança das cores
ao demasiado calor que fere suas carnes. E parece faltarão conforme a Phi-
losophia, e experiência; porque os Philosophos concordão, que a côr branca
procede de summa frialdade, como se vê na neve : e a negra de summo
calor, como se vê no pez. Por isso Aristóteles attribue a brancura do cis-
-ne, á frialdade do ventre da mãi; e a negrura do corvo, ao calor do ventre
da mesma. E doestes dous extremos se tirão as cores entremeias, verme-
lha, amarelia, verde, etc. segundo diversa intensão do calor, ou frio: quanto
mais participão do calor, tanto mais se chegão ao preto; e quanto mais do
frio, tanto mais ao branco : assi que foi a opinião dos índios, conforme a
Pliilosophia. E foi também conforme a experiência ; porque segundo istr^.
DAS COUSAS DO UUASIL LXXí
vemos, lançando os olhos por todos os climas do mundo, lanla diíTerença
lie cores nos homens; c tudo nasce do temperamento diverso de que go-
zão. Os Europeos, quanto mais chegados ao Polo gelado, tanto mais bran-
cos são; como Hollandezes, Flamengos, Alemães. E pelo contrario os Afri-
canos, Asianos, Americanos, quanto mais chegados ao tórrido da Zona, onde
mais predomina o calor, tanto mais pretos são. E d"aqui vem que huns
nascem alvíssimos, outros mais baços, outros tostados, outros fulos, ou-
tros vermelhos, outros pretos, outros sobre o preto azevichados.
104 Porém, não obstante toda esta doutrina, nem os índios, nem os
Philosophos, nem a experiência, parece satisfazem bastantemente, por-
que padece as instancias seguintes. Se toda a causa da sua côr vermelha
he a razão do clima, e calor, os Portugueses que vem a viver entre elles,
no mesmo clima, e calor, e ainda dentro de seus mesmos sertões, e talvez
despidos, como elles, por toda sua vida; porque são sempre brancos? E
porque de suas mulheres brancas gérão brancos, o estes gérão outros
Ijrancos, e não vermelhos como elles ? E pelo contrario os Índios, que vão
a viver entre os Europeos, no mesmo clima, e no mesmo frio como elles,
porque íicão sempre vermelhos ? E porque de suas mulheres gérão tam-
bém vermelhos, e estes gérão outros semehiantes, e não brancos, como
os Europeos?
103 Aristóteles parece que attribue a diíTerença d>stas cores á imagi-
nativa, segundo aquelle dito seu: «Imaginatio facitcausum. 9 E iwrque úei-
xemos a historia celeberi'ima da sagrada Escrittura, Génesis 10, num. 3
das cores diversas das ovelhas de Jacob nascidas da imaginação das mais,
e outras historias de animaes, que trazern os autores : vamos aos homens.
Quintiliano defendeo de adultério a huma mulher branca, que parira criança
preta, só com mostrar que estava em seu aposento ao tempo da conceição
o retrato de hum Ethiope. Tasso escreve da Clorinda, que nasceo branca
de pais ])retos, só por estar onde foi concebida a pintura de huma virgem
i)ranca. ih^liodoro conta o mesmo de Cariclea, que nasceo i)ranca, só por-
que a Rainha de Ethyopia sua mãi costumava olhar pêra hum retrato de
Andromeda branca. Outros casos semelhantes esci-evem os autores a cada
passo. E não ha duvida, que tem a imaginação eííicacia pêra maiores mons-
truosidades : de que se pode ver lium livro inteiro do Padre João Eusé-
bio Nierembcrg em sua curiosa Philosoj)hia, e he o segundo. Porém a meu
ver, esta df)utriiia não tem aqui lugar; jHJrípie de successos singulares,
uão se ai"gumenta com eííicacia pcra o geral, (juc sempi'c acontece: porque
LXXII LIVRO I DAS NOTICIAS
era necessário provar no nosso caso, que sempre os índios d'esta terra ao
tempo da conceição tem na memoria a sua côr vermelha : o (jue não tem
probabilidade alguma.
106 N'esta pergunta, depois de bem considerada, tenho por cousa certa,
que a causa da côr vermelha dos índios do Brasil, procede sem duvida de
calor; mas não de qualquer modo, se não depois de convertido n'elles ein
natureza; como também nos naturaes de Angola, e semelhantes partes, onde
os homens degenerão da côr. Explico na forma seguinte. Tem-nos mos-
trado a experiência em homens brancos, que por seu successo viverão en-
tre os índios por toda a vida, ou grande parte d'ella, sem vestidos, e
expostos ao rigor do Sol, como elles; que supposto que na verdade des-
lustrarão, e embaçárão em parte sua côr, comtudo nem chegarão a ser
vermelhos como índios, nem gerarão filhos vermelhos como elles (de hum
d'estes exemplos sou testemunha de vista.)
■107 Não he logo a causa d'esta côr, calor de qualquer modo, senão
que he necessário calor reconcentrado, e tal, que venha a ficar em natu-
reza. Porém aqui consiste o ponto todo da difficuldade, em explicar o modo
com que o calor n'estes homens vem a ficar em natureza de pai a filhos.
Explico assi (e he cousa que até agora não achei em autor algum
por mais diligencia que fiz.) Aquelle primeiro homem, que no Brasil come-
çou a cortir-se ao calor do sol (e o mesmo digo em Angola, e nas outras
partes, onde houve mudança de cores) pela continuação do largo tempo
de sua vida foi adquirindo temperamento intrínseco, e natural, mais cálido
que d'antes : o qual, supposto que não foi bastante n'elle pêra mudar
espécie de côr total, porque está necessita de gráo de calor mais intenso;
foi comtudo bastante pelo menos pêra embaçar-lhe as cores, e adquirir
temperamento mais cálido : com este gerou depois o filho; e o filho vivendo
na mesma forma que o pai, acrescentou outro gráo de calor, e tempera-
mento, e o neto outro; até que pouco, e pouco veio hum d'estes a ter
aquella intensão de calor, e temperamento necessário pela Philosophia pêra
espécie de côr differente; e foi a vermelha, a que somente pode chegar o
grào de calor, e temperamento do clima. E esse tal temperamento, digo
eu, que ohegou a ser convertido em natureza; e que he força que se trans-
funda pêra isso na virtude seminaria no macho, e na fêmea, e que por
meio d'ella passe a toda a geração de pais a filhos.
108 Fazem prova d'esta doutrina (que até agora não achei explicada
>'m IhTOs) a de Aristóteles, em quanto atribue a brancura do cisne á frial-
DAS COISAS DO BHASIL LXXIII
dade do ventre da iiiài, e a iiegiiira do corvo ao calor do ventre da mes-
ma : porque em atribuil-a ao ventre, dá a entender que he natural aquella
qualidade de frio, ou calor. Porém não satisfoz em tudo : porque se o gráo
do frio do ventre fora a causa somente d'este effeito, produzira sempre
branco o ventre frio, e produzira sempre preto o ventre cálido. E comtudo
vemos por experiência o contrario : porque a mulher branca, de branco
pare branco, e de negro mulato; seja quente, ou fria a disposição do ven-
tre. D'onde se lira manifestamente, que não está somente no ventre a vir-
tude do grão do frio, ou calor necessário; se não na virtude scminaria,
que depende de ambos os gerantes : porque se ambos tem virtude fria,
gerão branco; se ambos cálida, gerão preto; e se hum fria, outro cahda,
gerão mulato de côr entremeia, nem perfeitamente branca, nem preta.
109 De huma preta de Ethyopia se vio, não ha muitos tempos, em
Pernambuco (segundo se conta na Historia natural do Brasil) que pario
dous gémeos, hum perfeitamente branco, c outro perfeitamente preto: de-
vião de ser de dous pais; ou de hum pai branco, que devendo de gerar
mulato, participante de branco, e preto, distinguio a natureza em dous as
cores que houverão de estar confusamente em hum só. Vemos também a
cada passo, de pais prelos Ethyopes nascerem filhos brancos. Muitos vi
doestes, assi em Angola, corno n"este Brasil : porém estes não enlrão em
regra: são espécie de monstros da natureza. E temos respondido á duvida
das cores dos índios.
110 A da mudança, e variedade das lingoas, he lambem duvida curio-
sa. Porque se aquoUes primeiros povoadores do Brasil fallavão huma lin-
goa (porque nem podião ser muitas, nem quando o fossem, podião ser tan-
tas como sabemos tèm os índios, que chegão a contar-se mais de cento
diveí'sas) como se multiplicou em tantas Ião diíferenles? Q^iem foi o autor
d'ellas ? Em que escolas aprenderão, no meio dos sertões. Ião acertadas
regras da Grammatica, que não falta hum ponto na perfeição da praxe, de
nomes, verbos, declinações, conjugações, activas, e í)assivas? Não dão van-
tagem H'isto ás mais polidas artes dos Gregos, e Latinos. Vcja-se por exem-
I)lo a Arte da lingoa mais commum do Brasil, do venerável Padre Joseph
de Anchieta, e os louvores que ahi traz doesta lingoa. Por estes julgão mui-
tos, (juc tem a perfeição da lingoa grega: e na verdade tem-me admirado
especialmente sua delicadeza, copia, e facilidade.
Hl A esta pergunta i-esfiondêrão os índios, dando ))or c;/usa o dis-
curso do tempo, o varjpfl.iíh' do3 lugares. 1:^ certo, que se forão ))ei'í'eilos
voi,. 1 V
LXXIV LIVRO I DAS NOTICIAS
politicos, não poderão responder mais cm forma. Todas as cousas d'esla
vida, ou se varião com o tempo, ou com elle acal)ão : quanto mais as lin-
goas humanas, que além de dependerem do ar, tem seu valor do arbítrio
do homem, por natureza inquieto, e vario. O modo comtudo com que
huma Ungoa se varia, ou muda em outra, ou cm muitas, não souberão
exphcar os índios; e nós o explicaremos por elles, ajudados porém do fun-
damento que elles derão. E seja a primeira reposta.
112 Toda a variedade da lingoa, ou mudança d ella, depende necessa-
i'iamente da corrupção que o tempo faz em os vocábulos da primeira, e
introducção de outros novos, que os homens inventão pêra segunda, ou to-
mão de lingoas diflerentes. E porque esta corrupção de huns vocábulos, e
introducção de outros, melhor se entenda, porei exemplo em huma só lin-
goa, e seja esta a de Portugal.
113 ííe commum. entre os autores, que a lingoa que fallavão os ho-
mens Portugueses no tempo em que os Romanos senlioreárão a Lusitânia,
foi a latina perfeita, e pura, assi como os mesmos P\oman"o3 então a falla-
vão em Roma. Yeja-se Duarte Nunes de Leão na sua Origem da lingoa
Portuguesa. Os modos pois com que esta lingoa se foi variando, até che-
gar ao estado em que hoje a falíamos, forãò os seguintes. Primeiro, por
corrupção da terminação das palavras; porque em lugar de sermo, que an-
tes dizíamos, dizemos hoje sermão : em lugar de servus, servo : de pru~
ãens, prudente. Segundo, por corrupção de diminuição de letras, ou syl-
labas; porque de maré, dizemos mar : de nodum, nó : de sagilta, setta.
Terceiro, por acrescentamento de letras, ou syllabas; porque de umhra,
dizemos sombra: de mica, migalha: de açus, agulha. Quarto, por troca de
humas letras em outras; como de Ecclesia, igreja : de desiderimi, desejo:
de cupiditas, cubica. Quinto, por trespasso de letras; como de ftnes^ru,
fresta : de capistrum, cabresto : de feria, feira. Outra casta de corrupção,
he por metaphora, muito natural aos Portugueses, como chamando assomado
ao acelerado, ou irado, tomando a metaphora dos que fazem a conta em
somma, e não por miúdo; porque o assomado não lança conta ao que faz
l)or iniudo. Da mesma maneira chamamos abelhudo ao que anda apressa-
do, tomando a metaphora da abeliia : c lanipeiro ao que faz a cousa ante
tempo, tomando a metaphora dos figos lampos : talludo ao que he já cresci-
do, pela metaphora das alfaces. E d"este género são graúdo quantidade. Aju-
dou além d' is lo pêra a mudança da lingoa portuguesa a ijivenção de voca-
DAS COUSAS DO liRASIL LXXV
l)uIos próprios, ou t(3madús das nações com que commiinicavão : como se
pôde ver em Duarte Nunes de Leão já citado.
114 Agora viado ao nosso iníouto. Assi como a lingoa portuguesa por
corrupção de liuns vocábulos, c iníroducção de outros, veio a deixar de
ser lingoa latina, c ílcou lingoa portuguesa : e como antes de chegar ao
estado, em que hoje a vemos, teve tantas mudanças do lingoas, que hoje
não são entendidas : porque acabou nos Portugueses a lingoa primeira, que
fallavão em tempo do Tubal, que dizem ser caldaica, e se mudou em ou-
tra, e esta em outra, e depois na latina, e ultimamente na que hoje falía-
mos: e como d'esta latina se formarão tantas espécies, como são caste-
lhana, galega, francesa, e outras : assi lambem todas estas variedades tem
acontecido nas lingoas do Bi-asil, que por semeíliantes corrupções, e intro-
ducções de vocábulos, e semelhante mudança de lugares, se veio sua pri-
meira lingoa a corromper, e mudar em tão varias espécies, até chegar á
multidão, que hoje se conta de mais de cem diversas; humas de nenhum
modo entendidas das outras, outras em parte; porque debaixo do alguma
cabeça commua, a que chamão matriz, se comniunicão algumas palavras,
qual a do castelhano, ou galego, com a do portuguez. E tomos respon-
dido á duvida das hngoas. Respondamos agora á dos costumes do Brasil.
115 Quem considerasse com attenção a liberalidade com que o Autor
do universo repartio seus bens naturaes com esta terra do Brasil, a ferti-
lidade de seu torrão, a frescura de suas campinas, a verdura de seus mon-
tes, o ameno de seus bosques, a riqueza de seus thcsouros, c a delicia de
seus ares, e climas : sem duvida que julgaria, que á medida de tão bem
adornado palácio faria o Senhor a escolha dos homens, que o havião de
habitar: qual lá escolheo lium Adão, c Eva á medida do terreal Paraiso,
que pêra elles preparara. Senão que tudo verá muito ao contrario. Lançará
os olhos por esses campos, por essas brenhas, por essas serranias; c verá
n'ellas espécies de gentes innumeraveis, que vivem a modo de feras, e co-
mo taes contentes cora o tosco das brenhas, c solidão da penedia, despre-
zando todo o polido dos palácios, cidades, c graiulezas de todas as mais
])artes do mundí).
110 Todas estas nações de gentes, fallando e:n geral, c em ([uanto ha.
bitão seus sertões, e seguem sua gentilidade, sã(j feras, selvagens, monla-
nhezas, c deshnmanas: vivem ao son*! da natureza, neín seguem fé, nwn
lei, nem Ueí (freio commnm de todo o homem racional.) E em sinal (Testa
sija sing'!!aridado lhos negou lambem o AM'i>r da natureza as k'tras V,
LXXVI LIVRO I DAS NOTICIAS
L, R. Seu Deos he seu ventre, segundo a frase de S. Paulo : sua lei, e seu
Rei, são seu appelite, e gosto. Andão em manadas pelos campos de todo
nús, assi homens, como mulheres, sem empacho algum da natureza. Vive
n'elles tão apagada a luz da razão, quasi como nas mesmas feras. Parecem
mais brutos em pé, que racionaes humanados : huns semicai)ros, huns fau-
nos, huns satyros dos antiguos poetas. Nem tem arte, nem policia alguma,
nem sabem contar mais que até quatro: os demais números notão pelos
dedos das mãos, e pés ; e os annos da vida pelos fi-utos das arvores que
chamão acajús, ou pelo Sette-estrello, que nasce em Maio, a que chamão
Ceixú. andão esburacados,^ muitos d"elles, pelas orelhas, faces, e beiços;
e ii'estes buracos engastão pedras de varias cores, de grossura de hum
dedo. Alguns vi com cinco, e outros com sete buracos, nas faces, e bei-
ços; e estes são os mais principaes entre elles, e os que mais façanhas
obrarão. São por ordinário membrudos, corpulentos, bem dispostos, ro-
bustos, forçosos : e pêra que mais o sejão, os atão pelas pernas quando
nascem, com certas faxas mui apertadas, com que depois de grandes ficão
mais vigorosos.
117 Sua morada he commummente, como de gente isenta de leis, de-
jurisdícção, de republica, por onde quer que melhor lhes parece; huns pe-
los montes, outros pelos campos, outros pelas brenhas; vagabundos ordi-
nariamente, ora em huma, ora em outra parte, segundo os tempos do
anno, e as occasiões de suas comedias, caças, e pescas ; sem pátria certa,
sem aíTeição alguma, fora de toda a outra sorte de gentes. Os abrigos de
huns, são humas pequenas choupanas, armadas á mão em quatro páos, co-
bertas de palha, ou palma, como aquellas que hoje servem, e á manhãa
se queimão. Outros que tem mais semelhança de commuuidade humana,
formão cabanas, ou barracas compridas, desde o principio até o cabo, sem
repartimento algum : entremeio alojão dentro vinte, até trinta casaes: d"es-
tes cada qual se arrancha de hum esteio até outro com seu cão, e fogo,
que sempre tem comsigo; e aqui vivem juntos todos como cevados em chi-
queiro, sem que á memoria lhes venha pejar-se huns dos outros em ac(^io
alguma natural. Dormem" sus^tensos em redes, que tecem de algodão, as
quaes pendurão por duas pontas de esteio a esteio : e algumas nações dor-
mem no chão.
118 Nos nuiis costumes são como feras, sem policia, sem prudência,
sem quasi rastro de humanidade, preguiçosos, mentirosos, comilões, dados
a vinhos; e só iiesla parte esmerados, porque os fazem de castas' innume-
DAS COUSAS DO BI\.\S1L LXXVil
raveis, como logo diremos. Parece que d'esles fallava S. Paulo, quando
dizia: «iQuorum Deusventer est: semper mendaccs, mala' bestice, ventres pi-
gri, etc.»
H9 He gente paupérrima; cuja mesa lie a terra, cujas iguarias pen-
dem de seu arco; e n'es[e são tão destros, que parece que obedecem a
suas frechas, não somente as feras da terra, mas os peixes da agoa : com
ellas cação juntamente e pescão; ellas lhes servem juntamente de laços,
redes, e anzoes.
120 Fora d'este, seu maior enxoval vem a ser huma rede, hum pati-
guá, hum pote. hum cabaço, huma cuya, hum cão. Serve-lhe a rede pêra
dormir no ar, atada, como já dissemos, de tronco a tronco : o patiguá (que
he como caixa de palhas) pêra guardar pouco mais que a rede, cabaço, e
cuya : o pote, que cliamão igacába, pêra seus vinhos : o cabaço pêra suas
farinhas, mantimento seu ordinário : a cuya pêra beber por ella : e o cão
pêra descobridor das feras quando vão a caçar. Estes somente vem a ser
seus bens, moveis, e estes levão comsigo aonde quer que vão : e todos a
mulher leva ás costas, que o marido só leva o arco.
121 Estas são todas suas alfaias, sem cuidado de mais outra cousa;
porque vestidos sobejão-lhe os de Adão, e Eva : os campos, os bosíjues,
e os rios lhes dão de gi-aça o comer, c beber. E quando faltão rios, c fon-
tes, não falta certa casta de planta, que elles chamão caragoatá, que con-
serva a agoa da chuva entre as folhas (remédio de lugares estéreis pêra
os sequiosos.) Onde lhes anoitece, ahi tem facilmente casa certa, fogo, c
cama; porque se a noite he chuvosa, fincão na terra quatro páíJs, e n"estes
armão outros por tecto, com hum modo de vimes, a que chamão cipós, o
cobrem-no de folhas, ou palmas : de leito servem suas redes, que armão,
ou fie tronco a tronco, ou de páo a páo (os que as tem.) O fogo tirão de
certos páos, hum molle, c outro duro, que roção á força hum com o ou-
tro, e com o movimento concr-bem calor, c com o calor fogo; c feito isto
comem, bebem, c dormem contentes. Nem o comer lhes he diílicultoso,
são pouco delicados, contentão-sc com ratos do campo, rãs, cobras, lagar-
tos, jacarés, e outros bichos semolliantes.
122 A caça tomão de diversas maneiras; ou á freclia, ou em covas co-
bertas de ramos maiores, c menores, ode tantas maneii'as, que não lhes
cscapão as feras por mais ardilosas que sejão. E o que mais he, que a cada
género (]o caça, lem sou dislincto morlo de nrniar : a hum modo chamão
I.XXVIU UVIIO I DAS NOTiCÍAS
Pataca, a ontro Moiiíló araíacá. a (vUrn Poú, a ()ií!í'o Moí!d;''gi.iaçú, c a ou-
tro Mondégoaya.
123 Pêra aves tem também instrumentos diversos, principalmente três:
cliamão a hum . Jnçana bipiyara, qne caça pelos pés; a outro Juçana juri-
piyara, que ra^a pelos pescoços; e a outre Juçana pitereba, que caca pelo
meio do corpo. He pêra ver a facilidade de algumas d'estas caças. Huma
de muita recreação experimentei eu com' meus olhos, e hea seguinte. Es
tando em huina aldeã, vi que vinha voando huma qaasi nuvem de pássa-
ros, a que cliamão Tuins, casta de papagaios pequenos, que também fallão,
e são estimados." Pousarão estes enchendo certas arvores, que chamão ara-
çazeiros : chamei alguns íllhos dos índios, que os fossem caçar; levavão
elles huma vara comprida, e na ponta d'ella humlacinho, forão-se aos pés
das arvores; c d"aqui llies hião lançando o laço ao pescoço, hum, e hum,
o sem mais resistência, que de quando em quando afastar a cabeça, e fazer
hum pequeno gemido, com a maior facilidade, e destreza do mundo, trou-
xerão muitos d'elles, e todos vivos.
124 Nas pescarias usão de frecha, com que atravessão o peixe, que
vai nadando, com arte estremada, ou de ervas, com que os embebedão de
muitos modos, com folhas, que chamão japicay, ou com cipó, a que cha-
mão timbo putyana, ou com outro que chamão tinguy, ou tiniviry, ou com
huma fíiita cjue chamão corurúapé, ou com raiz de mangue: ou com cor-
tiça de arvoro anda. Usão tam-bem, depois dos Portugueses, de anzoes, e
de certa casta de covos, chamada uruguy boandipiá : e no mar usão por
emlDarcação de jangada, que vem a ser ires até quatro páos boiantes liga-
dos entre si, onde levão linhas, e anzoes, e pescão peixe grosso.
125 São por extremo vingativos com crueldade deshumana; não se
esquecem jamais dos aggravos, até tomar vingança d'eiles, ainda que seja
estando espirando. Nações ha d'estas, que em colliendo ás mãos o inimigo,
o atão a hum páo pendurado, como se pendurarão huma fera, e d"elle a
postas vão tirando, e comendo pouco a pouco, até deixar-lhe os ossos es-
brugados, ou cozendo-as, ou assando-as, ou torrando-as ao sol sobre pe-
dras; ou quando o ódio he maior, comendo-as cruas, palpitando ainda en-
tre os dentes, e correndo-llies pelos beiços o sangue do miserável pade-
cente, quaes tigres deslinmanos. Outros lhe abrem as entranhas, e lhe
bebem o sangue em satisfação do'aggravo; e antes que espire chega a elle
o aggravado, ou algum seu parente, e dando-lhe com huma maça na ca-
beça, acaba de matal-o: e fica d'este feito affamado, e com nome de gran-
DAS COUSAS DO BRASIL I.XXiX.
do, ft valonte ontre os oulros. Usão lambem paríir o padecente em quartos,
(lual caça do malío, e assados estes, ou cozidos, os vão comendo em seus
l)anf[iietes, com grandes bailes, e be1)idas de vinho ; e pêra mais cevarem
o ódio, conservão parte d"cslas carnes ao fumo, pêra dar sabor ás mais
carnes das feras, quando as cozem, como costumamos fazer com toucinho.
Notável foi o caso de hum Tapuya Goaytacá de nação ; íinlia este por ini-
migo seu a hum Principal da mesma nação, buscava occasião de vingar-se
d'e!le : e com estar certo, que se acolliêra pêra huma aldeã, que estava
a cargo dos Padres da Companhia, com quem estavão então de paz, e se
vendião por amigos seus; não descançou de vigial-o de noite, e de dia,
pêra o matar. E o que mais he, que vindo a saber, que adoecera o Prin-
cipal, na mesma aldeã, e morrera, c que estava enterrado, não assocegou.
Teve traça pêra ir desenterral-o, e assí morto lhe quebrou a cabeça (que
lie o modo entre elles de tomar vingança, e fartar o ódio.) E então se deu
por satisfeito, valente, e honrado.
120 Suas armas são arco, c frechas, e n"esías são tão destros, que
podem acertar hum mosquito voando: tem mais huma maça, ou clava de
páo rigissimo, e pesado como o mesmo ferro, com que investem huns
aos outros em suas guerras ; e com que quebrão a cabeça aos que n'eilas
matão.
127 As consultas de suas guerras são muito pêra ver. Escolhcm-sc
quatro, ou cinco dos mais anciãos, que forão aífamados de valentes. Elei-
tos estes, assentão-se em roda, em lugar separado, e pondo primeiro no
meio provimento de vinho bastante, vão consultando, c bebendo ; e tanto
dura a consulta, como a bebida. E em quanto estão n'este conclave, não
he licito a pessoa alguma fallar-lhes, nem ainda chegar a avistal-os. Por fim
de contas, o (jue estes sábios veneráveis, e bem animados do Baccho, alli
concluem, isso sem fallencia se cumpre, ainda que saibão que a execução
lhes ha de custar a jjropria vida, não he possivel contradizer a tão vene-
rando consistório. Elegem sempre estes quatro hum dos mais valentes do
districto. Este governa toda a guerra, em quanto não commcle covardia :
porém em fazendo-a, ou ainda sonhando-a, he logo deposto, nem fazem
mais caso algum delle. A este Capitão compete juntamente o officio de
Pregador dos seus: corre suas estancias, e préga-lhes certas horas do dia,
e noite a altas vozes, o que hão d(! fazer. Traz-llies á memoria as façanhas
mais illustres de seus anle[)assados, e as covardias de seus contrários, pêra
animal-os. Seus acommelimenlos são de assalto, (j por cilailas.
l\\\ JJVftO 1 D\S NOTlCíAS
128 Dos que tomão na guerra, os velhos comem logo (carne do maior
sabor pêra elles) os mancebos levão cattivos, amarrados em cordas, com
grandes algazaras, á maneira de triunfo. O modo com que depois os ma-
tão, e comem, be força que ponhamos aqui; porque he huma mais refinada
de suas barbarias. Logo que o contrario lie tomado vivo em guerra, e
aquelle que o caltivou, tem intento de mostrar n'elle a illustre façanha de
guerreiro valente; reniete-o á povoação do maior Principal, e aqui em lugar
de grilhões se faz entrega d"elle solemne a huma carcereira fiel, que o ce-
ve, e engorde por tempo : pêra isto se lhe dão caçadores, pescadores, e
todo o mais necessário pêra que seja bem apascentado : e com advertên-
cia, que se lhe não dè pena em nada, antes alivio, e descanço em tudo,
porque assi se vá engordando, qual bruto animal, pêra os intentos da gula,
e ódio, que logo ouviremos. Quando já, a parecer da carcereira, está grosso
em carnes, despedem m.ensageiros por todas as povoações circunvizinhas,
fazendo a saber o dia da festa, pêra que todos sejão presentes a solemnidade
tão festival; sob pena de incorrerem em nota de avaros os que não convida-
rem, e de mal criados os que não acodirem.
129 Congregada na forma referida esta barbara gente, vai sahindo
aquelle valente soldado, que ha de matar o contrario, a hum terreiro, co-
mo a hum palanque, pisando grave, cercado de parentes, e amigos, como
se fora a armar-se Cavalleiro, ou a passar triunfo no mesmo Capitólio de
Roma. Vem vestido a mil maravilhas,- de pennas assentadas em bálsamo,
todo em contorno, desde a cabeça até os pés. Vem a cabeça coroada com
hum diadema vermelho aceso, côr de guerra. Do pescoço pendem dous
collares da mesma côr a tiracoUo encontrados, que vem a morrer na cin-
tura. Os braços pelos hombros, cotovelos, e pulsos, vão enfeitados com
suas plumagens, a feição de enrocados grandes. Pela cintura apertão huma
larga zona; d'esta pende até os joelhos hum largo fraldão a modo trágico,
e de tão grande roda, como he a de hum ordinário chapeo de sol. E final-
mente n'esta conformidade, nos joelhos, pernas, pés, vai continuando a
libré, toda. da mesma peça, de pennas de aves, as mais fermosas, e lus-
trosas em cores, que pêra este eíieito guardão de seus antepassados.
130 Assi se veste, e arrea o feroz combatente sahindo a terreiro. Leva
nas mãos huma maça, á maneira d'aquella3 com que se combatião os ca-
valleiros da anligua idade ; a qual desde a empunhadura até aquella parte
mais grossa, com que fere, vai toda guarnecida das mais luzidas pennas; e
DAS COISAS DO HhA.ML I.XXXI
he esta feita de páo mui pesado, e forte como o mesmo ferro. Assi se apre-
senta o combatente no terreiro, soberbo, jactancioso, e bizarro.
131 Entretanto vem sahindo o triste preso, que ha de ser sacrificado,
atado com duas cordas pela cintm\a, e por estas tirão dous mancebos ro-
bustos, porque não possa divertir-se pêra huma, ou outra parte : os braços
soltos, para com elles tomar os golpes, que lhe começa a tirar o contrario;
o qual se vai detendo n"estes de propósito, pêra mór festa dos circunstan-
tes, até que com a ultima pancada lhe faz em pedaços a cabeça, e o derriba "
morto, com taes applausos, gritas, assovios, bater de arcos, e de pés, dos
que estão á vista, que atroão os ares.
132 Mas voltando atraz, lie muito de advertir outra notável ceremonia:
porque logo que o triste preso vai sahindo do cárcere pêra a morte, he
costume irem recebel-o á porta seis, ou sete velhas mais feras que tigres,
e mais immundas que liarpyas, de ordinário tão envelhecidas no ofticio,
como na idade, passante de cem annos, que assi as escolhem. Vão cober-
tas com as primeiras roupas de nossos pais primeiros, mas pintadas todas
de hum verniz vermelho, e amarello, com que se dão por muito engraça-
das : vão cingidas pelo pescoço, e cintura, com muitos, c compridos col-
lares de dentes enfiados, que tem tirado das caveiras dos mortos, que em
semelhantes solemnidades tem ajudado a comer : e pêra mór recreação vão
ellas cantando, e dançando ao som de certos alguidares, que levão em as
mãos pêra effeito de receber o sangue, e juntamente as entranhas do pa-
decente. Recebidas estas, e o sangue, entra o Principal feito Almotacel, a
repartir a carne do defunto. A esta manda dividir cm tão miúdas parles,
que possão todos alcançar huma pequena fevera sequer. E he tanto assi,
que aíTirmão índios antiquíssimos, que como commummcnte he impossível
chegarem a provar tantas mil alrnas da carne de hum só corpo, se coze
muitas vezes hum s(') dedo da mão, ou do pé, em hum grande azado, até
ser bem delido, e depois se reparte o caldo em tão pequena quantidade a
cada hum, que possa dizer-se com verdade, qne bcbeo pelo menos do cal-
do, onde fora cozida aqueila parte de seu contrario. E quando algum dos
Principaos, ou [H)V enfermo, ou por muito distante, não pôde achar-se pre-
sente, lá se liie manda seu ((uinhão, que de ordinário he huma mão, ou
pelo menos hum dedo do defunto. E este se tem pelo maior brazão, e mór
nobreza de toda a geração, o haver morto, comido, ou bebido, de alguma
parfc cozida de ?r-n í/infnrin mor*'^ om *^vr?\rr>. A summi dp todns p?tns
I.XXXH LIVRO I DA!^ NOTICIAS
crueldades, c gontilidades descreve hum poeta moderno com os versos se-
guintes (*)
Lignea clava ollí in dextra, quo maclnt ohéssos,
Atque saginatos homines, captivaquc bello
Corpora, quce discisa in frusta írementia, lentis
Vel torret flammis. cálido vel lixai alieno :
Vel si quando famis rabies stimiilat, viage cruda,
Edam cwsa recens, nigroque fuentia íabo
Membra voral, tcpidi pavitanii sub denlibus arlns :
Horrendum facinus visu, horrendumcpie raeltu.
133 Em seus casamentos não lia respeito a parentescos por via femi-
nina : antes a filha da irmãa he commummente a mulher do tio, ou a mu-
lher que foi do irmão defunto. Tomão muitas mulheres ; e como entre
elles não se trata de dote, cuidão que fazem muita graça em casarem com
ellas. Nem seu amor he tal, que por qualquer desgosto que tenhão as não
larguem, com a mesma fLicilidade com que as receberão : nem ellas se ma-
tão muito por esse apartamento. As fecundas acabão de parir, e com,o se
o não fizessem, continuão em seu mesmo serviço, e occupação, como d"an-
tes. Porém os maridos (cousa ridícula) em seu lugar, lanção-se na rede, e
são visitados de seus amigos, como o houvera de ser a mulher : a ellcs
curão, dão as potagens, e comidas sadias; e tem certo tempo de recolhi-
mento, no qual não convém sahir fora, nem tral3alhar, por não empecer á
criança. Mas não hc muito pêra espantar que se ache este costume no Bra-
sil, quando cni Hespanha, Córsega, e outras partes de nações mais politi-
cas, diz o Padre Frei João de Pineda, que em tempos antiguos se usava o
mesmo por auctoridade ds Sírabo, João Bohemo, c outros, que cita na sua
Monarchia Ecclesiastica.
134 São inconslantes, c variáveis: o que hoje fizerão por adquirir,
ainda que com grande trabalho, e com suor de muitos dias, já ámanhãa
não he de estima pêra elles. .0 lugar onde fixarão suas casas a poder de bra-
ço, e suor, d'alii a pouco já não Ih s r>ervr', e o largão, fazendo outras
com novo suor, e trabalho.
13.5 A seus mortos fazem exéquias barbaras, e muito pêra ver. Iluns
(«) Abraham Oílclio, sobre a explicação da figura da America, no priociítio.
DAS COl'SAS DO HRASir, LXXXIIl
OS ontorríío cm hum vaso de barro, que cliamão igaçaba, com sua íoucc,
Ci cnxa:la ao pescoço, ou semclhantii inslrumeiílo de seu trabalho, pêra que
possão na ouíia vida fazer suas plantas, e não morrão de fome. Outros
melhorão a sepultara, porque os metem em suas entranhas, com as cere-
monias seguintes. Tirão o corpo do defunto a Irum campo, acompanhado
de todos seus parentes; e chegados alli, tirão-lhe as entranhas os feiticei-
ros, e agoureiros mais veneráveis; e logo o vão repartindo em partes, a
cada qual aquella que lhe cabe, segundo o gráo maior, ou menor do pa
rentesf.o. Estas partes torrão no fogo certas velhas, a quem pertence por
oíTicio : torradas ellas, cada hum come aquella que lhe coube com grande
seníim3nto : e tem pêra si, que lie o sinal de maior amor que podem os-
tentar n'esta vida aos que se ausentão pêra a outra, o dar-lhes sepultura
em seus ventres, e encorporal-os em suas entranhas. Porém com esta dif-
ferença, que os corpos dos que são Principaes só os comem outros Prin-
cipaes como elles, e repartem os ossos pelos demais parentes, os quaes
guardão pêra tempo de suas grandes festas, como de vodas, ou outras se-
melhantes; onde partidos por miúdo a modo de confeitos, os vão comendo
pouco, e pouco; e em quanto todos aquclles ossos na forma ditta não são
comidos, aiidão de luto; que entre huns he cortar ós cabellos, e enlre ou-
tros deixal-os crescer. E quando depois levantão o dó, he com festas ex-
traordinárias de vinhos, c bailes. Os Tapuyas em particular comem os
filhos, quando succede morre rem-ihes pouco depois de serem nascidos:
tendo pcra si, quc^está posto em boa razão, tenhão por tumba depois de
mortos, o mesmo berço, em que gozáião a primeira vida.
13G Os titules de sua mór nobreza, pêra huns, consistem nas maiores
ossadas de seus inimigos, que depois de mortos, e comidos, guardão cm
lugares particulares, junto a suas casas, quaes nos cartórios, os brazões
das mores fidalguias : e tanto mais se prezão d estes, quanto í^ão maiores
os montes de caveiras, e ossos, porque são sinal de maior numeio dos
vencidos em guerra, e de suas maiores valentias. Pêra com outros, con-
siste este titulo cm hum, como tusão, ou habito, que trazem lançado ao
pescoço; e he hum coilar do dentes enfiados, dos que matarão em suas
guerras, e desafios : tanto mais de estima, quanto consta de maior numero
dos queixaes, que n'elle enfião. Pêra com outros são as unhas crescidas.
Pêra com outros o cabello tozado. Pêra com outros um fraldão de pennas lus-
trosas. Pêra com outros, o maior numero de buracos nas faces, e beiços. Estes,
c outros semelhantes, são seus títulos vários, e varias suas presumpções,
LXXXIV LIVRO I DAS NOTICIAS
e timbres da nobreza de suas casas, de que niuilo se prezao, e por cuja
defensão darão as vidas, e passarão por todos os inconvenientes do mun-
do, por não desdizerem do que pede cada hum destes ti lulos: dadahuma
caveira d'estas, ou íio de dentes, ou pedra de face, ou beiço, em penhor
de sua palavra, não faltarão com ella, ainda que lhes custe a vida.
137 A vinda dos amigos recebem lançando-lhes os braços ao pescoço,
e apertando-lhes a cabeça a seus peitos, com grande pranto, triste senti-
mento, altos suspiros, e copiosas lagrimas; como compadecendo-se dos in-
commodos, que no caminho havião de passar. E feito isto, no mesmo ponto
se mostrão festivaes, desterrão o sentimento, suspiros, e lagrimas, como
se estas estivessem a seu mando, e pelo tempo que quizessem somente.
138 Rarissimamente se acha entre elles torto, cego, aleijado, surdo,
mudo, corcovado, ou outro género de monstruosidade : cousa tão commum
em outras partes do mundo. Tem os olhos pretos, narizes compressos,
boca grande, cabellos pretos, corredios; barba nenhuma, ou mui rara. São
vividouros, e passão muitos de cem annos, e cento e vinte; nem entrão em
cãs, senão depois de decrépita idade. Quando meninos são dóceis, enge-
nhosos, espertos, e l:>em aífeiçoados: mas em chegando a ser maiores,
todas aquellas partes vão perdendo, como se não forão elles os mesmos.
Tratão huns aos outros com mansidão, quando estão sem vinho; porque
com elle gritão, e saltão todo o dia, e noite; tudo são brigas, e desarranjos.
139 Também se enfeitão a seu modo de diversas maneiras. Huma he
pintar-se todo o corpo de varias cores, commummeni* de preto, verme-
ho, e amarello, com sumo de frutas, janipabo, uracú, e outras. Outros se
ornão de pennas varias, de guarás, araras, canindés, e outros pássaros
mais lustrosos. D'es!as fazem grinaldas, coroas, braceletes, franjões, plu-
magens, e com ellas se enfeitão, por cabeça, braços, cintura, e pernas; e
cuidão que enlevão os olhos dos que os vêm. Já se vão furadas as orelhas,
faces, e beiços, na forma que acima dissemos, não ha mais fermosura no
mundo. Os mais poderosos passão ainda a mão : tecem huma rede, e vão-na
enchendo de pennas, a modo de mantilha de cores ; e logo lauçando-a so-
bre a cabeça, cobrem até a cintara, e ficão excedendo a todos na fermo-
sura d'esta gala.
140 No comer são também singulares. E supposto que todos usem dos
mesntos mantimentos (commummente faltando) de raizes de plantas, man-
dioca, aypi, batata, inhame, cará, mangará, legumes, carne de suas caças,
peixe *de suas pescas, c frutas dos campos : são comtudo diversos os mo-
DAS COLSAS DO BBASIL LXXXV
dus eulre elles; porque liiiiis costumão comer assado, e cozido ao modo
ordinário; o que ha de assar-se sobre brazas, e o que ha de cozer-se em
panelas, a que chamão nhaempepó, de cujo caldo com farinha de mandio-
ca fazem como papas, que chamão mingau, ou mindipiró. Outros, basta
tostar a carne, ou peixe ao sol, e dal-a por cozida, e assada, e pasto sa-
boroso. Outros usão de melhor artificio, e que em verdade torna a carne
(e ainda o peixej saborosíssimo : fazem na terra huma cova, cobrem-Ihe o
fundo com folhas de arvores, e logo lanção sobre estas a carne, ou peixe,
que querem cozer, ou assar, cobrem-na de folhas, o depois de terra: feito
isto, fazem fogo sobre a cova, até que se dão por satisfeitos, e então a co-
mem : e chamão a este modo Biariby. Os peixes miúdos embrulhão em
folhas, e metidos debaixo do borralho, em breve tempo ficão cozidos, ou
assados. Pêra farinha, ou legumes não usãD de colher quando comem, mas
servem-lhe em lugar d'ella três -dedos tão adestrados, qiie fazendo o lanço
á boca de remesso, não perdem hum só grão. O tempo de comer deter-
minado, he quando a natureza lho pede, como qualquer animal do campo;
e pede-lho ella tantas vezes, que comem de dia, e de noite, se tem que.
Em quanto comem observão raro silencio,^ raramente bebem; mas depois
o fazem por junto, e com a demasia que diremos. São sofredores de gran-
des fomes, quando he necessário; mas tendo que comer, acabão huma an-
ta inteira sem descançar. O mesmo he nos vinhos: gastão muitos dias em
fazer quantidade em talhas grandes, que chamão igaçábas; porém no ponto
em que está perfeito, comerão a beber, e não acabão até que não acabe o
vinho, ainda que seja vomitando-o, e ourinando-o; andando á roda, e bai-
lando em quanto dura a causa de sua alegria.
141 Só em fazer varias castas de vinho são engenhosos. Parece certo,
que algum deos Baccho passou a estas partes a ensinar-lhes tantas espé-
cies d'elle, que alguns contão trinta e duas. Huns fazem de fruta que cha-
mão aíjayá; outros de aipy, e são de duas castas, a huma chamão cauyca-
raçú, a outra cauymachaxéra ; outros de pacóba, a que chamão pacouy ;
outros de milho, a que chamão abatiuy; outros de ananás, que chamão
nanauy, e este he mais elíicaz, e logo embebeda; outros de batata, que
chamão jeliuy; outros de janipabo; outros que ciiamão bacútinguy; outros
de beijú, ou mandioca, (jue chamão tepiocuy ; outros de mel silvestre, ou
de açúcar, a que chamão garapa: outros de acajú; e d"este em tão grande
quantidade, que j)odeni encher-se muitas pi{)as, de côi" a modo de palhete.
D esto vi ou huma frasqueira, c se não fora certificado do que era, affir-
tXXXVI LlVflO I DAS NOTICIAS
mára que era vinho de Portugal. Fazem-no da maneira seguinte. Espremem
o acajú ém vasos, e n'estes o deixão estar tanto tempo, que ferva, escume,
e fermente, até ílcar com sasíancia de vinho, mais ou menos azedo, se-
gundo a quantidade do tempo. lie este vinho entre elles estimado sobre
todos os outros : e ser senhor de hnm d'estes cajiiaes pêra eíTeito d'elle,
he ter. o morgado mais pingue.
142 Em suas curas ri-se esta gente de medicamentos compostos : só
nos simples dos campos tem sua confiança; e estes lhes ensinou a nature-
za, e o uso, como a arte aos melhores médicos. Cada qual he mtedico de
si, 6 dos seus; e apphcão com grande destreza os remédios, assi interio-
res, como exteriores, especialmente contra-venenos. Nos enchimentos eva-
cuão o sangue chupando-o á força por entremeios de certos cabacinhos,
ou sarjando o corpo, ou rasgando também as veas com hum dente de pei-
xe, que serve de lanceta. Ditoso he o que sara com estes remédios: porque
cm chegando a desconfiar o Medico de que estes não bastão, convocão os
parentes, e feito pranto sobre o enfermo, lhe dão com huma maça na ca-
beça, e o acabão, e feito em pedaços o fazem pasto de seus ventres; e tem
por gloria, não só os parentes, -mas tam.bem o que ha de morrer, que che-
gue a acabar com huma acção de tanto valor, e por esta via se livre das
misérias da vida, e vá gozar dos lugares alegres, que só se concedem na
outra aos que morrerão valerosamente.
143 Tem também seus instrumentos músicos. Huns os fazem de ossos
de finados, a que chamão cangoéra: outros cliamão murémuré: outros
maiores commummente de conchas, chamão membyguaçú, e outros uru-
cá : outros de cana chamão membyapára. São mui dados a dançar, e sal-
tar de muitos modos, a que chamão guaú em geral : a hum dos modos
chamão uracapy; a outro, dos de menor idade, chamão curupirára: outro
guaibipáye, outro guaibiâbucú. Hum doestes géneros de danças he mui so-
iomne entre elles; e vem a ser, que andão n'elle todos á roda sem mmca
mudarem o lugar d'onde começarão, cantando no mesmo tom arengas de
suas valentias, e feitos de guerra, com taes assovios, palmadas, e patadas,
que atroão os valles. E pêra que não desfallcção em acção tão heróica, as-
sistem alli ministros destros que dão de beber aos dançantes continuam.ente
de dia, de noite, ate que vão embebedando-se, e cahindo ora luim, ora
outro, e finalmente quasi todos.
144 Estes são os costumes dos índios do Brasil, faltando em commum;
senão que os Tapuyas tem alguns singulares. Porei aqui somente os em
DAS COrSAS DO BRASIL LXXXVII
que diííerem. He esta gente dos Tapuyas a mais vagaljimda de entre to-
das : mudão o sitio quasi todos os dias com estas cereraonias. Á vespora
do dia, o Principal de lodos faz ajuntar a relê de seus feiticeiros, e adivi-
iiiiadores, que sempre têm em grande quantidade; e feito conselho com
elles, pergunta, aonde será bem que vão assentar rancho o dia seguinte ?
e o que hão de fazer ivelle ? de que .maneira hão de matar as feras ? ele.
Ouvido o oráculo, o modo que tem de partir he n'esta íórma. Antes que
abalem, vão totlos juntos a lavar-se em rio, ou em outra quakiuer agoa ;
feito o lavatório, esfregão os corpos peU área, lodo, ou terra, e tornão se-
gunda vez a lavar-se; c sabidos da agoa, vão-se ao togo, c ao ar d'elle vão
sarjando seus corpos com dentes de animal por diversas partes, até lança-
çarem sangue : e este tem por remédio único pêra evitar o cansaço que
haviãode terno caminho. Chegados ao lugar destinado por seus feiticeiros,
os que são mais mancebos vão logo ao mato, cortão ramos, fazem barra-
cas toscas, e pequenas, chamadas como elles Tapuyas : e logo estas são
povoadas das mulheres, crianças, e bagagem de todos os haveres que com-
sigo trazem. Isto feito, dY'Síe lugar (morada que ha de ser de imm dia)
partem os homens, huns á caça, outros á pesca, outros a mel silvestre; e
as mulheres, as de mais idade, humas ás raizes de ervas, outras ás fru-
tas, que possão servir-liies de pão, e juntamente de vinho. As de menor
idade íicão em casa, e vão preparando as cousas, assi como vão vindo pêra
sustento commurn de toilos. O demais tempo cantão, danção, saltão, o
kl tão.
14.J ile pêra ver a Ijrevidade, c facilidade com ([ue cação. Ajuntão-se
os caçadores todos (que commummente \em a ser muitos centos) vão-sc
ao lugar destinado, seguindo o oráculo de áeus feitictíiros, despedem al-
guns delles, os mais destros, a vigiar as covas, e jazigos da caça: os quaes
achados, voltão, e dado ponto, vão todos, c cercão o lugar, c como são em
tanta ífuanlidade, e destros na arte, não lhes escapa fera alguma, por mais
ligeira, ou maniiosa que seja; porque se fogem das mãos, ou dos arcos,
dão na boca dos cães caçadores. Concluída a caça, logo com grande festa
dão com toda ella no meio de seus ranchos, cantando, e bailando; sahem-
Itie ao encontro na mesma forma, as fjue licárão em guarda das choupa-
nas, desentranhão as feras (cento, duzentas, « ás vezes mais, segundo o
numero dos caçadores, e fertilidade do sitio) e feitas gi-andes covas cober-
tas por dentro de folhas, metem n "ellas os animaes em })edaços, e cobertas
de terra, pondo fogo sobre ellas, na maneira que acima dissemos, íicão
LXXXVUI LIVUO I LAS NOTICIAS
cozidas, ou assadas, como em forno. Tem pouco que trabalhar no assentar
das mesas, que quando muito são folhas de arvores sobre a mesma terra :
n'esta mesma se assentão em roda, c com as raizes, c legumes, que li-
nhão ajuntado as de casa, comem todos até mais não poder, sem provi-
dencia dos seguintes dias, porque pêra estes estão confiados na destreza
dos arcos, e de seus agoureiros.
1 46 O tempo que sobeja do dia, gastão em jogos, cantos, e bailes ; e
assi vão passando a vida, sem cuidado algum da eterna, ou conta alguma
do bem, ou mal que íizerão. Sobre a tarde torna o Principal a consultar
seus feiticeiros acerca do dia seguinte; n'este fazem o mesmo, e o mesmo
em todos os demais; e este he seu modo continuo de viver.
147 He singularmente fero entre esta gente o modo de furar as ore-
lhas, faces, e beiços. Tomão o pobre moço padecente, levão-no como em
procissão entre cantos, e danças; e chegando ao lugar destinado, hum dos
mais nobres feiticeiros amarra-o de pés, e mãos, de maneií-a que não possa
mover-se : e logo entra outro feiticeiro, e com hum pâo duro, e agudo lhe
fura as orelhas, faces, ou beiços, segundo o que pedem os parentes, ou
suas boas obras merecem; planteando entretanto as mais á vista do tor-
mento dos filhos; porém levando tudo cm bem por ser acção de gloria, e
honra da familia.
148 O que he Principal dos Tapuyas he conhecido entre os outros,
porque traz o cabello tosado a modo de coroa, e as unhas dos dedos po-
legares muito compridas; insígnia que pertence somente ao Príncipe, e ne-
nhum he ousado trazer. Os mais parentes seus, e os que são famosos na
guerra, tem privilegio de unhífs compridas nos mais dedos das mãos, po-
rém não no polegar. Das crianças dos Tapuyas se diz, que dentro em nove
semanas começão juntamente a andar, e nadar : pelo que nenhum ha entre
elles, macho, ou fêmea, que náo seja insigne n"esta arte. Chegão a mais
annos de idade que todas as outras nações. Aífirma-se d"elles, que passão
muitos de cento e trinta, e cento e quarenta annos: e são estes antiguos
tidos entre elles em grão veneração, e como oráculos.
149 São também singulares na falia: porque se aíBrma terem perto de
cem lingoas diversas. E da mesma maneira excedem em numero de gente,
que alguns tiverão por maior que o de toda a Europa junta. São inimigos
conhecidos de todas as mais nações de índios : com estas, e ainda com
algumas das suas, trazem guerras continuas. E d'esta tão conhecida inimi-
zade, lhe veio o nome de Tapuyas, que vai o mesmo que de contrários.
DAS COUSAS DO I5HASIL LXXXIX
OU inimigos. Além creste nome geral a todos, toma outro cada qual das
suas nações, ou do lugar, ou de seu Principal : costume antiguo dos pri
meiros povoadores do mundo ; como de Roma, ou de llomulo tomarão o
nome os Romanos : de Luso os Lusitanos : de Agar os Agarenos : de Israel
os Israelitas. Assi também entre estes índios, de hum Principal chamado
Potygoár tomarão nome qs Potygoares : de Tupy (que dizciu ser o d'onde
procede a gente de todo Brasil) Immas nações tomarão o nome de Tupy-
nambás, outras de Tupynaquis, outras de Tupygoaés, e outras de Tomi-
minós.
150 Concluo este livro dos índios com a declaração de suas espécies.
As nações dos índios do Brasil todo, reduzem alguns a três: Topayaras,
Potigoares, Tapuyas : outros a quatro, acrescentando a estas a de Tupinam-
bás : outros a cinco, acrescentando mais a de Tamoyos : outros a seis,
acrescentando a de Carijós. Porém eu fazendo com curiosidade diligencia
por vários escrittos de antiguos, e pessoas de experiência entre os índios,
com mais propriedade julgo, que toda esta gente se deve reduzir a duas
nações genéricas, ou a dous géneros de nações somente, as quaes se divi-
dão depois em suas espécies na maneira seguinte.
ioi Todos os índios quantos ha no Brasil, vemos que se reduzem a
índios mansos, e índios bravos. Mansos chamamos, aos que com algum
modo de ré[)ublica (ainda que tosca) são mais tratáveis, e perseveráveis
entre os Portugueses, deixando-se instruir, e cultivar. Chamamos bravos,
pelo conti'ario, aos que vivem sem modo algum de republica, são intratá-
veis, e com diíliculdade se deixão instruir. Aquella nação genérica de ín-
dios mansos divide-se em algumas espécies, e a principal comprehende
todos os bandos, ou ranchos de semelhantes índios, que correm ordina-
riamente a costa do Brasil, e fallão aquella lingoa commum, de que com-
poz a Arte Universal o Padre Joseph de Anchieta, da Companhia de Josu,
como são Tobayaras, Tupis, Tupinambás, Tupinaquis, Tupigoáes, Tuminii-
nós, Amoigpyras, Araboyarás, Rariguoáras, Potigoares, Tamoyos, Carijós,
e outras quaesquer que houver da mesma lingoa. Todas tenho que fazem
só huma espécie, ou nação especifica, posto que accidentalmente diversas,
em lugares, e ranchos.
i5!2 A outra espécie he de Goayanás, índios que lambem se contão
entre os mansos; mas diflerenle lingoa ; são dos mais tratáveis, e habitãc»'
pêra a ultima parle do Sul, fronteiros aos Carijós, e contrários seus. Ou-
tras espécies muitas ha d'cstc5 índios pelo sertão dentro; especialmente
VOL. 1 M
XC LIVRO I DAS N0T1CL\S
pelo Rio das Almazonas acima, de homens não só nas lingoas, mas na còr,
feilio, e cosTtimos diversos: mas gente mansa, e Iriítavei.
lo3 A outra nação genérica lie de Tapiiyas. Desta afllrnião muitos,
que comprehende debaixo de si perto de hum cento de lingoas diíTerentes;
e por conseguinte outras tantas espécies: a saber, Aymorés, Potentús,
Guaitacás, Guarámomis, Goarégoarés, JeçaruçúS; Amanipaqués, Payeás :
seria cansar contar todas.
154 Esta repartição que faço, he conforme ao uso das gentes, entre as
quaes não se chama nação diversa, a que não tem diversa lingoa, nem basta
diversa região, nem diverso tratto, nem diverso Principe; como por induc-
ção se pôde ver, discorrendo pelas nações do mundo: porque por isso a
nação Portuguesa se tem por distinta da Castelhana, esta da Biscainha, a
Biscainha da Francesa, a Francesa da Hoilandesa, etc. porque tem diver-
sas hngoas humas das outras; e tanto mais diversas são as nações, quanto
são m.ais diversas as lingoas. Diversas regiões são a de Roma, e a de Siciha;
e comtudo porque os homens delia;) fallão huma só lingoa, he huma só
nação. Diverso Principe he o dos Romanos, que lic o Papa, e o dos Sici-
lianos, que he o Rei de Hespanha; e comtudo essa diversidade não faz di-
versas a nação Romana, e Siciliana. Diversa religião, e costumes tem os
Hollandeses das Províncias sujeitas a Hespanha, que os d"aquelias que
chamão unidas : huns são catholicos, e outros hereges : huns seguem os
costumes de Christo, outros os de Lutero, Calvino, etc, e comíudo a na-
ção he a mesma, porque a lingoa he a mesma.
155 D'aqui se declara, que nenhuma das primeiras divisões que refe-
ri, que alguns fazião, postas no principio, he ajustada com o uso das gen-
tes, porque não põem a diversidade nas lingoas : os Tobayaras não tem
diversa lingoa dos Potigoares, nem dos Tupinambás, nem dos Tamoyos,
nem dos Carijós, e fazião-nas comtudo diversas nações. E quando se hou-
vessem de diversillcar pelas regiões, costumes, ou Príncipes diversos ;
ainda então não era próprio o numero das divisões, de três, quatro, cin-
a.t, nem seis espécies; porque nesse sentido são muito mais sem compa-
ração suas diversas regiões, costumes, e Príncipes.
156 Tobayaras são os índios principaes do Brasil, e pretendem elles
ser os primeiros povoadores, e senhores da terra. O nome que tomarão o
mostra ; porque yára quer dizer senhores, tol)á quer dizer rosto; c vem a
dizer (jue são os senhores do rosto da terra, que elles tem pela fronteira
do maritimo, cm comparação do sertão. E na verdade, elles são os que se-
DAS COUSAS DO BRASIÍ, XCl
nhoreái-ão sempre grande parte da costa do mar. Outros d^zem que aquelle
Tobá allude á teiTa da Bahia, que sempre foi tida entre os índios por rosto
ou cabeça do Brasil : e porque estes Tobayáras senhorearão piúncipalmente
esta parte, por isso dizem se chamãQ Tobayáras : a saber, senhores da terra
da Bahia. E na verdade como taes forão sempre reverenciados entre os
mais índios, por primeiros, de grão senliorio, e por valentes, e fieis.
157 Em segundo lugar os Potigoáres forão sempre índios de valor, e
se fizerão estimar pelas armas, que por longos annos moverão contra os
Tobayáras : nas quaes tiverãp encontros dignos, de Jiisíoria; porém não me
posso deter em contal-os: ficarão" pêra cpeú de professo tratar das cousas
do Brasil. Senhorearão principalmente da Capitania de Pernambuco, e Ita-
maraca pêra baixo por costa, e pelo sertão, grande espaço até as serras
de Copaoba onde puiihãq enj (saaMw^vi^ite/até trinta.: mU «ircos. O terceiro
lugar na valentia,' cdnsilncijí na fudrra^, ,è outraf boas pahes, tem os Ta-
moyos do Rio de Janeiro : de cujos successos de guerra diremos alguma
»'ousa quando tratannos d"esta Capitania. Tapuya não he nome propria-
mente de nação, he só de divisão;, e vai tanto como dizer, contrario; por-
que era o mesíno ver qualquer' outr.rríáção hiim Taptiya,'que vtír hum
inimigo declarado, por nome, e effeito : porque como a nação dos Tapuyas
he gente atrciçoada, e tragadora que igualmente anda á caça da gente, o
das feras, pêra paésto da gula : a t ) las as outras tinha feita insultos, quer
no secreto, quer no publico, c por isso era tida de iodas por inimiga, e
como tal chamada Tapuya: a saber, nação contraria. Tem muito mais co-
pia de gente, que alguma das outras nações; e alguns cuidão que mais que
todas juntas. Forão sempre assi, como mais feras, mais affciçoadas ás en-
tranhas das brenhas, e desertos. Ordinariamente quasi todas estas suas
nações andão com guerra entre si; porquê Como o seu mais estimado pasto
seja carne humana, [)or esta via pretendem havel-o.
LIVRO SEGlIPiDO
DAS NOTICIAS
ANTECEDENTES, CURIOSAS, E NECESSÁRIAS
DAS COUSAS DO BRASIL
SUMNA
Contém outra parte da resolução das perguntas curiosas das cousas
dos índios. Se chegou a degenerar alguma de suas nações, de maneira
que perdesse o ser de humana ? Que religião seguem ? Se he certo que
veio a estas partes S. Thomé, ou outro Apostolo de Christo ? Se estando
na ignorância de sua gentilidade, podião salvar-se alguns d'ell€s? Trata
da bondade da terra do Brasil. Defende esta das calumnias que os
antiguos lhe impunhão de Zona tórrida ^einhabitavel : e por fim mostra
d bondade do clima, e duvida, se ndle plantou JJeos o paraíso terreal?
DAS COUSAS DO BRASIL XaU
1 Moslrámos no livro antecedente os costumes dos índios, em quanto
habitão seus sertões, e seguem sua gentilidade. E he bem que conheçâo
elles, e o mundo as monstruosidades de sua natureza, pêra que d'ellas
mais admirem a efficacia, com que a lei de Deos de toscas pedras faz fi-
lhos de Adão, e de rudes, e bárbaros, homens racionaes; porque he cousa
certa, que com a virtude, e boa criação d'esta santa lei entre os Portugue-
ses, tem visto o Brasil mudanças mui notáveis nas nações d'esta gente.
D'estas mudanças iremos vendo successos dignos de historia em seus lu-
gares, quando venha a propósito de nosso intento, especialmente nas fun-
dações das Capitanias da Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro, e outras; em
cujas conquistas florecerão muitos em numero, que forão afíamados, lou-
vados, e premiados dos Governadores, e Reis, por valerosos, engenhosos,
guerreiros, e fieis; e o que mais he, por dóceis, pios, amorosos, respu-
blicos, christãos, sofredores de todos os contrastes: tudo ao contrario do
que no livro antecedente vimos. E por agora seja exemplo hum famoso
Tabiá, que irmanando-se com os Portugueses, fez proezas em armas, em
fé, e lealdade christãa. Hum Itájibá, que quer dizer braço de ferro : hum
Pirajibá, que quer dizer braço de peixe : hum Exuig, Jucúguaçú, Tapéri-
rij, Taperibira, Tapéroába, Tarapápong, Aparaitíçabucú, Aparaiticamirí,
Pindaguaçú, Ibitinga, Ibitingapeba, todos de nação Tobayáras, famosos, e
christãos, que como taes acabarão na Fé de Christo, cora esperança de
sua salvação.
2 Da mesma maneira dos Potigoáres, hum antiguo Potígoaçú, Guiráo-
pina, Arárúna, Cerobabé, Meimguaçú, Ibâtatá, Abaiquija, todos famosos,
e Principaes de grandes povos; dos quaes se afiirma, punha em campo cada
qual d'elles de vinte até trinta mil arcos, que forão grande presidio nosso
nas Capitanias de Itamaracá, Parahiba, e Rio Grande. Não fallo aquid'ou-
tro Potiguaçú, maior que todos estes, assombro que foi de Hollandeses em
nossos tempos, nas guerras do Brasil; porque pêra suas façanhas hum
tomo inteiro era pouco volume. E de todo o dito se tira claramente, que
não nascem os costumes avessos d'esta gente do clima da terra, mas so-
mente da corrupção da natureza, e falta de boa criação, em verdadeira
fé, lei, e policia ; pois vemos que com esta luz cultivados, quasi diíTerem
de si mesmos.
3 Vj por aqui tínhamos assas respondido á pergunta das cousas dos
índios. Porém como í»; ajuntou a esta, a<jnoll.i ultima adiniiação dos Por-
XCIV I.IVKO II DAS NOTICIAS .
lugueses, que perguiitavão. coiiio chegarão íi eslado tão grosseiro algumas
nações d'estas, especialmente Tapuyas, que pôde duvidar-se d'elles, se
nascerão deliomons, ou conservão a hiunaua espécie? Por. satisfazer a esta
pergunta rem mais abono desta; gente pobre, e. miserável, que nem cabe-
dal tem pêra acudir por si; de boa vontade referirei aqui a resolução d'ésta
pergunta, antigaanienle contestada pelos primei i'os que povoarão esta Ame-
rica, pela parte.,Setentíional da Nov;a Hespanha, e sentenciada polo Summo
Pontífice, quo no mesmo temp.o regia a Igreja de Deos.
4 Chegarão a ter pêra si muiíos daquelíes primeiros povoadores, não
só idiotas, inais ainda ÍGi.rad,03, .-que os; índios da Ameiica não erão verda-
deiramente homens. racioEaes,._iíem indivíduos da verdadeira espécie hu-
mana ; e por conseguinte, que erão incapazes dos sacramentos da santa
Igreja : que podia toinal-os pêra si, qualquer que os houvesse, e servir-se
delles, da mesma maneira qu^ de hum camelo,- de hum cavallo, ou, de hum
boi, feril-os, maltratal-os, matal-os, sem injuria alguma, restituição, ou
peccado. E o peor he, que poz o interesse dos homens em praxe usual
tão deshumana opinião. E comççou a , execução d'esta nova doutrina na
ilha Hespanhola, primeira que foi no descobrimento dos índios, e pri-
meira na execução da ruina d^elles ; e foi lavrando pelo Reino de México,
e por toda a Nova Hespanha. N'aquella ilha, 'testemunha Frei Bartholameu
de las Casas, Bispo de Ciiiapa, varão de grande auctoridade, que chegarão
os Hespanhoes a sustentar seus libréos com carne dos pobres índios, que
pêra o tal eíTeito matavão, e fazião em postas, como a qualquer bruto do
mato. A Historia geral das índias, cap. xxxiii, faltando 4a mesma ilha Hes-
panhola diz, que usavão aquelles moradores, dos índios como de animaés
de serviço, tendo por cousa, sua aquelies que podião apanhar, quaes feras
do campo; e que os fazião trabalhar em suas minas, maltratando^os, aeu-
tilando-os, e matando-os, como lhes parecia. E que chegara a ficar a ilha
por esta razão hum deserto ; porque de hum milhão e meio que havia,
chegou a não haver quinhentos. E Frei Agostinho de Ávila, na sua Chro-
nica da Província de México diz, que em seu tempo chegara a não haver
hum só; çiorrendo huns á fome, outros a rigor de trabalho, outros a mãos
dos Hespanhoes; e os mais se matavão a si mesmos com peçonhas, ou en-
/jrcando-so das arvores por esses campos, as mulheres juntamente com os
maridos, e a ogando também os próprios ílihos, antes de sahir das entra-
nhas, poi'que não chegassem a ver, e experimentar tempos tão infelices. A
DAS COUSAS DO BRASIL XCV
lanlo chega a cobii;a dos homens, e a tanto chegarão aquelles prmicn'os
Hespanhocs, segundo a relação dos autores acima citados !
5 A tão lastimoso estado aciidio o Ceo (quando já os brados de tanto
sangue chegarão ao Tribunal do Empino) por meio de hum varão espiri-
tual, grande Religioso da Ordem sagrada do Patriarcha S. Domingos, por
nome Fr. Domingos de Betanços, Provincial que foi n*aquellas partes. Com-
padecido este de males tão grandes, e tão manifestos impedimentos da
pregação do Evangelho, mandou a Pioma hum Religioso da mesma Ordem,
por nome Fr. Domingos de Minaja, varão de grandes partes, a tratar esta
causa no Tribunal do Summo Pontífice anno de 1337, no qual Tribunal,
depois de vistas as informações de huma, e outra parte, se determinou
com autoridade apostólica, como cousa tocante â Fé, que os índios da
America são homens racionaes, da mesma espécie, e natureza de todos os
outros ; capazes dos sacramentos da santa Igreja; e ix)r conseguinte livres
por natureza, e senhores de suas acções: na forma que se vè nas mesmas
Letras Apostólicas, que são as seguintes.
6 Paulus Papa Tertius, ttnicersis CIwisti fidelibus, prwsenfesUtteras ins-
pecttiris, .mhdcm, et Aposfolicam benedtctionem. Et infra. Veritasipsa, quce
nec falli, nec fallerc potest, cúm pranUcalores fidei ad officium prajdicatioms
destinaret, dixisse cognoscitur, Euntesdocete omnes gentes. Omnes dixct, abs~
que omni delectu, càm omnes fidei disciplina; capaces existant. Quod videiis,
et invidcns ipsliis Inimani generis wmvlus, qtii bonis operibus, uipcreant^sem-
per adversatur., modum cxcogituvit hudcnus inauditum, quo impcdirct, ne ver-
bum Dei gcntibus, ut salvw fiercnt, prccdicaretur: ac quosdam suos satellites
commovit, qui suam cnpiditatem adimplere cupientes, Occidenfales, et Mcridio-
nales Indos, et alias gentes, qwe temporibus istis ad nostram 7wtiliiun perve-
nerunt, sub pr(ete.vtu quód fidei Catholica: expertes existant, xiti bruta animalia
ad nostra obsequia redlgendo^ esse pasúni assercre prcesumant, et eos in seroi-
tutem redigunf, tantis afflidionibus illos urgente",, quantis vix bruta animalia
illis sercientia urgent. Nos igitur, qui ejusdem Domini nostri vices, licèt indi-
gni, gerimus ia terris, et oves grcgis sui nobis commissas, quce extra ejus ovile
sunf, nd ipsum ovile totó nixi exquirimus : attendenles Indos ipsos., ut pote
veros homines, non solàin Christiawe Fidei capaces existere, sedntnobis in-
notuit, ad fideni ipsam promplisaimé currere; ac volentes super his congruis
remedijs providere; príxilictos Indos, et omnes alias gentes ad nofiíiam Cliris-
tianorum in posterum devenfuras, licet extra fulom Christi existant, sua li-
bertate, ac reruni suarum dominio privatos, seu privandos non esse, imó li-
XCYI LIVRO II DAS NOTICIAS
lertale, et domínio Jnijus modi nti, et potiri, et gaudere libere^ et licite posse ^
nec in scrvitutem redigi dehere; ac quidquid secus fieri contigcril, irritum, et
inane, ipsosque Indos, et alias gentes, verbi Dei prwdicatione, et exemplo bonce
vitíB, ad didam (idem Christi invitandos [ore, aiitlioritate Apostólica per prce-
sentes lilteras decernimus, et declaramus; uon obstantibus proemissis^ cwteris-
que contrarijs qiiibuscimque. Datum Romce anno 1537. Quarto nonas Junijj
Pontificatus nostri anno tertio.
7 Em portuguez quer dizer o seguinte. «Paulo Papa Terceiro, a todos
os fieis Chilstãos, que as presentes letras virem, saúde, e benção Apostó-
lica. A mesma Verdade, que nem pôde enganar, nem ser enganada, quando
mandava os Pregadores de sua Fé a exercitar este oíTicio, sabemos que dis-
se: «Ide, e ensinai a todas as gentes.» A todas disse, indiíTerentemente,
porque todas são capazes de receber a doutrina de nossa Fé. Vendo isto,
e invejando-o o commum inimigo da geração humana, que sempre se op-
põem ás boas obras, pêra que pereção, inventou hum modo nunca d"antes
ouvido, pêra estorvar que a palavra de Deos não se pregasse ás gentes,
nem ellas se salvassem. Pêra isto moveo alguns ministros seus, que dese-
josos de satisfazer a suas cobiças, presumem aíTirmar a cada passo, que
os índios das partes Occidentaes, e os do Meio dia, e as mais gentes, que
n'estes nossos tempos tem chegado a nossa noticia, hão de ser tratados, e
reduzidos a nosso serviço como animaos brutos, a titulo de que são inha-
beis pêra a Fé Catholica : e sacapa de que são incapazes de recebel-a, os
põem em dura servidão, e os aííligem, e opprimem tanto, que ainda a
servidão em que tem suas bestas, apenas he tão grande, como aquella com
que afíligem a esta gente. Nós outros, pois que, ainda que indignos, te-
mos as vezes de Deos na terra, e procuramos com todas as forças achar
suas ovelhas, que andão perdidas fora de seu rebanho, pêra reduzil-as a
elle, pois este ho nosso officio; conhecendo que aquelles mesmos índios,
como verdadeiros homens, não somente são capazes da Fé de Christo, se-
não que acodem a ella, correndo com grandissima promptidão, segundo
nos consta : e querendo prover n'estas cousas de remédio conveniente, com
autoridade Apostólica, pelo teor das presentes, determinamos, e declara-
mos, que os ditos índios, e todas as mais gentes que d"aqui em diante
vierem á noticia dos Christãos, ainda que estejão fora da Fé de Christo,
não estão privados, nem devem sel-o, de sua liberdade, nem do dominio
de seus bens, e que não devem ser reduzidos a servidão. Declarando que
os ditos índios, e as demais gentes hão de ser atrahidas, e convidadas adita
n\S COUSAS DO BRASIL XCVll
Fé de Christo, com a pregação da palavra divina, e com o exemplo de boa
vida. E tudo o que em contrario d'esta determinação se fizer, seja em si
de nenhum valor, nem firmeza; não obstantes quaesquer cousas em con-
trario, nem as sobreditas, nem outras, em qualquer maneira. Dada em Ro-
ma, anno de [íV.il aos nove de Junho, no anno terceiro de nosso Ponti-
ficado, w
8 De todo o dito se vè, e confessamos, que degenerarão os índios de
seus progenitores, por seus costumes bar])aros, em tal maneira, que vie-
rão a duvidar os homens, se conservavão ainda em si a espécie humana.
Porém, também da resolução da duvida sentenciada pelo Summo Pastor da
Igreja, que passou em cousa julgada, consta, que foi a presumpção errada,
e que são elles verdadeiros indivíduos da espécie humana, e verdadeiros
homens como nós, capazes dos sacramentos da santa Igreja, livres por na-
tureza, e senhores de seus bens, e acções. Verdade lie, que pôde o leite,
e criação agreste deslustrar a hum homem, e em tal grão, que pareça hum
bruto, mas não que chegue ao ser. Quando vião aquelles primeiros Por-
tugueses hum índio Tapuya, hum corpo nú, huns couros, e cabellos tos-
tados das injurias do tempo, hum habitador das l)renhas, companheiro das
feras, tragador da gente humana, armador de ciladas; hum selvagem emfim
cruel, deshumano, e comedor de seus próprios filhos : sem Deos, sem lei,
sem Rei, sem pátria, sem republica, sem razão : não era muito que duvi-
dassem, se era antes bruto posto em pé, ou racional em carne humana.
A criação agreste dentre as cabras, não pôde tornar semelhante a ellas ao
menino Abidis, reputado por fera dos caçadores dEl-Rei seu pai? Não são
innumeraveis os casos semelhantes a este? pois tal succcde em o presen-
te, e a razão he, porque como o homem racional nesta vida depende ne-
cessariamente em seu obrar dos sentidos exteriores ; e estes he força que
sejão toscos, e grosseiros n'aquelles que vivem cm os montes separados
do tratto, e policia da gente : d\iqui vem que também he forçado, que n'es-
tes taes todas as obras que pendem da razão, sejão por conseguinte tos-
cas, e grosseiras : e tanto mais, quanto mais os sentidos o forão.
9 Toda esta doutrina he certa; porém d'essa mesma tiro cu argumento
forçoso em favor da causa dos índios. Porque na mesma forma que acha-
mos possível, que hum homem verdadeiramente racional, por meio da cria-
ção agreste, e tosco uso dos sentidos, pôde perder o lustre de racional, e
chegar a parecer hum bruto, assi também pelo contrario, esse mesmo, d^^i-
xando a criação agreste, e tornando ao tratto politico dos homens, por moio
XCYIII LIVRO II DAS NOTICIAS
d'este poderá apurar-se nos sentidos, e apurados esles, nas obras da razão;
e não me^parece se allegará diversidade: os exemplos o mostrão; porque
o moeo Abidis, verdade he que de filho de Príncipes veio a ser reputado
por bruto, por meio da criação agreste; porém esse mesmo, criado depois
em policia na corte de seu pai, de tal maneira recobrou o perdido, que
chegou a reinar. E quem duvida que o Tapuya mais montanhez, reduzido
a ti"atto politico, pôde tornar a aperfeiçoar o lustre perdido da humana es-
pécie ^ Muitos vi com meus olhos trazidos do tosco das brenhas, e na ap-
parencia huns brutos : e comtudo andados os annos, com a criação, e dou-
trina dos Padres da Companhia, os achei depois tão trocados, que- quasi
os não conhecia.
10 Nem faz em contrario o ai-gumento que trazião alguns, de indivi-
dues, que forão vistos com corpos humanos, e acções humanas; e comtudo
se mostrou serem brutos; veem-se d'estes muitas espécies na Historia na-
tural do Padre Eusébio Nieremberg: não o posso negar : de hum tenho por
certo, que se criou com nossos Padi^s da Companhia no Cabo-verde: era
filho de huma escrava, e de hum animal d"aquellas partes, a que chamão
mono: era rapaz bem formado era feições, em corpo, estatura, cabeça,
mãos, e pés, como qualquer filho de homem : vivo, esperto, e que fazia o
que era mandado. Poz-se em questão se era capaz dos sacramentos, resol-
veo-se que não; e que nem devia ser bautizado. Porém n'este era mui dif-
ferente a razão; porque se provou que o principal progenitor não era ho-
mem racional, se não animal bruto; e nor conseguinte, que não tinha alma
racional. E logo os sinaes o mostravão; porque não fallava, e tinlia hum
vinculo de cabellos pelos lombos abaixo, indícios claros do pai que o ge-
rou. Porém nos nossos índios he diversa a razão, porque sabemos que seus
progenitores forão homens racionaes, em cuja geração he cousa certa não
nega o Auctor da natureza a infusão de alma racional.
1 1 Segu8-sc por ordem a pergunta da religião dos índios. A esta res-
]-)onderão elles somente com as noticias de S. Thomé (de que logo dire-
mos, pois se nos abre occasião tão boa.) E na verdade he questão curiosa;
porque se aquelles seus printeiros povoadores, pais, e mestres, forão Ju-
deos, segundo a opinião de alguns; ou erão do povo escolhido, e adora-
vão ao Deos verdadeiro; ou erão dos Idolatras, e adora vão a Deoses falsos:
se forão Troianos, Athenienses, Africanos, ou qualquer outra nação d"aquel-
les tempos, linhão seus Deoses particulares, Saturno, Júpiter, Marte, Mer-
cúrio, Hercules, Atlante, Palias, Diana : pois logo com que acontecimento
DAS COUSAS DO RRASIL XCI?Í
viérSo^os Infáios do Brasil a dogetíerar de todo o culto de Deoses? cousa
l3o f<')ra dás nações do mundo, qiic a primeira que aprendem, hc algum
Deos superior a tudo, segundo a luz da razão natural, refugio de seus ma-
leâ',"'fe esperança de seus bens.
12 'N'esta matéria seja a primeira resolução. Os índios do Brasil de
tampos immemoraveis a esta parte, não adorão expressamente Deos al-
gum : nem tem templo, nem sacerdote, nem sacrifício, nem fé, nem lei
alguma. Leão-se os autores á margem citados (*) onde tratão da gente d'esta
Amertca, e achaifio (posto que em outros termos) esta minha conclusão.
Consta mais em segundo lugar da experiência de todos os Portugueses,
que entre elles vivem desde o principio do descobrimento da terra. A ra-
zão porque assi degenerarão de seus progenitores, vem a ser a mesma
que a de seus costumes : lie porque occupados nas guerras, e odíos entra-
nháveis, a que. são mui propensos, descuidarão do amor devido a Deos, e
ultimamente por serem no commum mais agrestes, que todas as outras
nações da America.
•12 Disse do Brasil: porque dos índios de quasi todas as outras partes
da Amé^íica, do- Perá, México, Nova Hespanha, etc. sabemos o contrario ;
e que acharão aquelles primeiros seus descobridores grandes indicios, e
ruinas de templos famosos, de variedade de ídolos, Sacerdotes, ceremo-
ni'a8, e cultos. Chega a ser- espanto o que se escreve da magestade d'elles.
Veja-se Garrilasso da Veiga em seus Commenlarios Reaes, liv. ii, cap. 2:
Joaquim Brulio, Historia Peruana, liv. i, cap. 4.": Fr. Agostinho de Ávila,
Historia do México, liv. i, cap. 2i e 25: Historia geral das índias, cap.
27, e i21: o Padre AíTonso de Ovalle, da Companhia de Jesu, Historia de
Chili, liv. VIU, cap. d.", e 2.^
{'} Disse expressamente; porque supposto que claramente por commum
não reconhecem Deidade alguma; têm comtudo huns confusos vestígios de
hum'i Excelleucia superior, a que chamão Tupá, que quer dizer Exccllen-
cia espantosa; e d"esla mosirão que dependem; pela qual razão tem grande
medo dos trovões, e relâmpagos, porque dizem são effeitos d'este Tupá
superior : por isso chamão ao trovão Tupáçununga, que quer dizer estfondo
feito peia Excellencia superior ; e ao relâmpago chamão Tupáberaba, que
quer dizer, resplnndor feito pela mesma. Os mesmos vestígios ha entre
elles da immortalidadc da alma e da outra vida; porque tôm pêra si, que
f'] Maffco, D.'i Iliàt. nat. da Índia, lib. ii— ^lcoIáo Orlaudino, Francisco Sacehino, Abrahim
Orlclio, TheatruDQ Orbis.-Oliveirj; Dist nal do Brasil.
C LIVRO II DAS NOTICIAS
OS varões valentes, que n'esta vida matarão em guerra, e comerão muitos
(los inimigos; e da mesma maneira as fêmeas, que forâo tão ditosas, que
ajudarão a cozel-os, assal-os, e comel-os; depois que morrem se ajuntão a
ter seu paraíso em certos valles, que elles chamão campos alegres (quaes
outros Elysios) e que alli fazem grandes banquetes, cantos, e danças. Po-
rém os que forão covardes, e que em vida não obrarão façanhas, vão a
penar com certos mãos espíritos, a que chamão Anhangás.
14 A esta noticia da outra vida allude aquelle modo, com que enter-
rão os seus defuntos, com sua rede, e instrumentos de seu trabalho jun-
tamente ; porque na outra vida tenhão á mão em que dormir, e com que
grangear de comer. D'onde não cuidão que a outra vida he espiritual, co-
mo nós; se não somente corporal, como a que agora vivemos; e põem alli
sua bemaventurança na quietação, e paz que terão, isenta dos trabalhos
d"esta vida. Pelo contrario põem a desdita nas inquietações, e trabalhos dos
que viverem entre aquelles máos espíritos, que chamão Anhangás. Estes são
os vestígios que tem esta gente, e até aqui chega o cabedal de sua fé: nem
sabem claramente outra sorte de prémios, ou castigos do Ceo, ou inferno:
nem tem clara noticia da criação do mundo, nem de algum outro mysterio
da Fé.
15 Crêem que ha huns espíritos malignos, de que tem grandíssimo
medo : a estes chamão por vários nomes : Curupira, aos espíritos dos pen-
samentos; Macachéra, aos espíritos dos caminhos; Jurúpary, ou Anhangá,
aos espíritos que chamão máos, ou diabos; Maráguigána, aos espíritos, ou
almas separadas, que denuncião morte; a quem dão tanto credito, que basta
só o imaginarem que tem algum recado d'este espirito agoureiro, pêra que
logo se entreguem á morte, e com effeíto morrão sem remédio. A estes
fazem certas ceremonías, não como a Deoses, senão como a mensageiros
da morte ; offerecendo-lhes presentes com certos páosinhos metidos era a
terra; e tem pêra si que com estes se aplacão.
16 Tem grande canalha de feiticeiros, agoureiros, e bruxos. Aquelles
a que chamão Payes, ou Caraybas) com falsas apparencias os enganão ; e
estes os embruxão a cada passo. Os Tapuyas n'este particular são os peo-
res; porque além de não conhecerem a Deos, crêem invisívelmente o diaba
em formas ridículas de mosquitos, çapos, ratos, e outros anímaes despre-
zíveis. Os feitícoiros, agoureiros, e curadores, são entre elles os mais es-
timados; a estes dão toda a veneração ; e o que dizem, pêra com elles he
infallivel. Os modos de dar seus oráculos, e adivinhar os futuros, são va-
DAS COUSAS DO BRASIL Cl
rios, e ridículos : porei hum, ou dous, por exemplo. Usão alguns de hum
cabaço a modo de cabeça de homem fingida, com cabellos, orelhas, nari-
zes, olhos, e boca : estriba esta sobre huma frecha, como sobre pescoço,
e quando querem dar seus oráculos, fazem fumo dentro d'èste cabaço com
folhas secas de tabaco queimadas ; e do fumo que sahe pelos olhos, ouvi-
dos, 6 boca da fingida cabeça, recebem pelos narizes tanto, até que com
elle ficão perturbados, e como tomados do vinho; e depois de assi anima-
dos, fazem visagens, e ceremonias, como se forão indemoninhados : dizem
aos outros o que lhes vem á boca, ou o que lhes ministra o diabo; e tudo
o que dizem em quanto dura aquelle desatino, crêem firmemente, qual se
fora entre nós revelação de algum Propheta. A huns ameaçâo a morte, a
outros más venturas, a outros boas; e tudo recebe o vulgo ignorante, como
ditto de alguma Deidade. Em qualquer lugar que apparece, fazem-lhe gran-
des festas, danças, e bailes, como áquelle que traz comsigo espirito tão puro.
17 Vai outro exemplo. Hum troço de Soldados Portugueses, que ti-
nha partido em companhia de grande quantidade de índios a fazer guerra
ao sertão, vio com seus olhos, e depoz uniformemente o caso seguinte.
Postos em fronteira dos inimigos os nossos, entrarão em duvida, se se ha-
via de acommeter, ou não, porque estavão intrincheirados fortemente, e
com melhor partido de defensores. Ex que hum dos Iiulios, qua por nós
militavão, sahe a hum terreiro fronteiro ao inimigo, e fixando na terra
duas forquilhas, amarrou fortemente sobre ellas huma clava, ou maça de
pão, que he sua espada, e chamão tangapéma, toda galanteada de pennas
de pássaros variadas em cores. Depois que teve amarrada a clava, convo-
cou a muitos dos seus pêra que dançassem, e cantassem ao redor d'ella :
c acabadas suas danças, e cantos, começou o mesmo feiticeiro a fazer as
suas per si só, e ao redor da mesma maça, acrescentando a ellas ridículas ce-
remonias, momos, e esgares. Feito isto, chegando-se á espada, ou maça,
disse entre dentes certas palavras mal pronunciadas, e peor entendidas; e
ditas estas, soprando além d"ellas três vezes sobre a espada, de improviso
ficou esta solta das ligaduras em que estava, saltou fora das forquilhas, e
foi voando pelos ares com assaz de admiração dos Portugueses, que dese-
josos de ver o fim, perseverarão em hum lugar. Cousa espantosa f Dalli
a pouco espaço de tempo, virão todos, que tornava a vir a mesma espada
voando pelos ares pelo mesmo caminho, e á vista de todos se tornava a
pòr no próprio lugar, e sobre as mesmas forquilhas; porém com grande
diversidade, porque vinha toda ensanguentada, e estillando sangue, qual ^u
cu i.lVllO U DAS NOTICIAS
viera de grandes inalanças. Ficarão confusos os Poilugueses, porém o fei-
ticeiro contente, e declarou-llies o pronostico a sinal certo de vicloria :
acrescentando, que podião seguros acomnieter, porque havião de matar os
contrários, c derramar delles muito sangue. Elle o disse, e o successo o
mostrou brevemente, porque matarão sobre quatro mil, e pozerão em fugida
innumeraveis. Vejão-se as varias, e notáveis espécies de feitiçerias, que es-
crevemos no livro da Vida do venei^avel Paclre João de Almeida, no liv. iv, do
cap. 6.'' por diante, que são mui dignas de noíar, e eu não quero repetil-as aqui.
18 Temos dito em geral quanto á Fé de Deos: quanto á Fé de Cinislo
em particular, he cousa digna de se saber, a que os índios apontarão
em sua resposta acerca da vinda do Apostolo S. Thomé a esta sua ter-
ra, onde dizião linlião por tradição lhes ensinara cousas da outra vida; mas
que não fora recebido de seus antepassados. Sobre esta duvida curiosa
pêra maiop çLveza, direi o que vi, e alcíincei de pessoas fidedignas. Jaz
n"aquella parle da praia que vem correndo ao Norte do porto do S. Vi-
cente, não muito longe delle, hum pedaço de arrecife, ou lagem, (|ue o mar
lava, cobre, e descobre, cora a variedade de suas ordinárias marés. No
meio d'esta são. vistas de todos os que ãquella parte se chegão (além de
outras menos principaes) duas pegadas de hum homem descalço, direita,
e esquerda, ambas em proporção de quem passa pêra o mar, a parte pos-
terior pêra a terra, e a anterior pêra a agoa : tão vivas, e expressas, como
se em hum mesmo tempo juntamente se fizerão, e virão: e de tal maneira
permanentes, que nem poderão os séculos passados descompol-as, nem
parece poderão os futuros; porque supposto que não entrão de impressão
na pedra, são como de pintura tão firme, tão natural, e viva, que o me-
lhor pintor do mundo não parece poderia fazer obra tão acabada. Doestas
pegadas pois (que forão sempre dos Portugueses^ desde sua primeira en-
trada no Brasil, havidas por cousa milagrosa, e respeitadas por cousa san-
ta, até o tempo em que isto escrevemos) tirando informação aquelles pri-
meiros que povoarão esta Capitania, e depois d"elles alguns Padres de nossa
Religião, acharão por tradição antigua de pais a filhos dos naíuraes da terra,
que erão pegadas de hum homem branco, barbado, e vestido, ((uc em tem-
pos antiquíssimos andara n"aqucilas partes, e tinha por nome Sumé em sua
lingoa, que he. o mesmo que na nossa Thoiíii?; e ensinava cousas da outra
vida; e no fundamento da dita tradição, e da mesma cousa, que de si pa-
rece milagrosa, foi sempre tido o lugai' por santo, e venerado como Ud: e
com razão; porque a que propósito se põem a natureza a pintar- imagen?
l)AS COISAS DO blUSlL Clll
tão pi'oprias dos pés de hum homem? e depois a que propósito as con-
serva por tão dilatados tempos?
19 Sobre a verdadj' desta tradição dos índios, confesso que tive eu em
tempos passados alguma duvida ; porém desta me íoi livrando o mesmo
tempo, e a experiência, de maneira que venlio hoje a lel-a por certa. Con-
vencem-me os argumentos dos grandes sinaes que se acharão, e achão de
presente por toda esta costa do Brasil, e fora d'ella por toda a America.
N'esta Bahia fora da barra, em outra praia semelhante, distante como duas
legoas da cidade, aonde chamão a ítápoá, vi com meus olhos, e vêem cada
dia os nossos Padres, e o povo todo, em outro pedaço de recife, ou lagem,
huma pegada de homem perfeitíssima, metida de impressão na suslancia
da pedra, e a parte posterior pêra a terra, a anterior pêra a agoa. A esta
vindo eu de huma aldeã de índios, notei que concorrião todos os que tra-
zíamos em nossa companhia, ainda os que liião Com cargas : pergimtei a
hum deites a causa (que ei'a eu novo no caminlioj responderão-me todos:
(íPaij, Siiiné pijjuer a angãba aé :* he que que está aih a pegada de S. Tho-
mé. Então lhes {)edi me levassem a ella; vi a pegada que disse, de hum pé
descalço, esquerdo, assi e da maneira que se fora impresso em barro bran-
do. Tem-na os índios em grande veneração, e nenhum pass;i, que a não
visite, se pôde; e tem pêra si que pondo-liie o pé, íica melhorado seu corpo
todo. Não he esta parte frequentada, como a outra de S. Vicente, dos Por-
tugueses, poríjue está a mór parte do tempo coberta com o mar, e só ap-
parecc em vazantes maiores.
20 Dentro da barra da mesma Bahia, como Ires legoas de distancia,
em a paragem que chamão S. Thomé, ou Toque Toque, cm outra praia, e
em outro pedaço de lagem semelhante, deixou o mesmo Santo outras duas
pegadas de seus pés impressas na sustancia da pedi'a, na mesma forma
que a da lagem da ítápoá, e em distancia iiuma da outra, o que i"eí{uei'o
a proporção dos passos ordinários de hum homem ([ue caminha. Forão
sempre em todo o Bi'asil tidas, havidas, e veneradas por i)égadas do Santo
Apostolo milagrosas, entre os Portugueses. E a tradição antiquíssima dos
índios derivada de pais a íílhos, iie na mesma forma que acima temos ditto;
(juo são pegadas <1e hum homem branco, com l)arba, e v(;stido, que na-
queilas partes andara, e tratara com elles de outro modo de viver muito
diíícrente, ciiamado por nome Thomé; do qual allirmavão estes particular-
Fuenlc, que certo dia exasperados seus avós com a novidade de sua dou-
trina, ou induzidos de seus feiticeiros, ou do inimigo commum da geração
CIV LIVRO II DAS .NOTICIAS
humana, arremetendo pêra prendel-o, e elle se fora retirando direito á
praia, fazendo caminho por um monte abaixo, tão ingrime, que era im-
possivel seguil-o por alii ; e que em quanto por outra parte <:om algum
circuito o buscarão, tivera tempo de fugir; e o virão ir pelo mar, deixando
frustrados seus intentos, e por memoria de sua repugnância, aquellas pe-
gadas impressas na pedra sobredita. Esta tradição he constante: averigua-
rão-na os Padres de nossa Companhia, que no mesmo lugar residião anti-
guanaente; os quaes reconhecerão sempre, e venerarão aquelles sinaes como
do Santo, e como cousa sobrenatural. No cume do monte, por onde des-
ceo, fundou a devação do povo huma Igreja em honra do Santo, e em
memoria da ditta tradição ; a qual Igreja se bem foi sempre venerada, e
visitada dos fieis ; no tempo presente o he com mais continuação, e con-
curso, pelos eíTeitos extraordinários, tidos por milagrosos, que alli expe-
rimenta a fé commum dos enfermos, e necessitados.
21 Aqui pêra maior confirmação do sobredito, obrou a divina Potencia
huma circunstancia, que parece traz muito de sobrenatural. He esta huma
fonte perenne de agoa doce, que brota de outro penedo junto ao das pe-
gadas, poucos passos andados, em a raiz do próprio monte, por onde he
tradição que desceo o Santo. A esta fonte chama o vulgo fonte de S. Tho-
mé milagrosa; e a razão he varia. Huns dizem que he milagrosa, porque
nasce milagrosamente da pedra viva, qual lá a de Moysés no deserto. Ou-
tros porque milagrosamente nascera ao toque de hum pé do Santo, cuja
pegada alli se vira, qual lá a do pé do cordeiro de S. Clemente : De sub
cujus pedes fons vivus emanat. E d'aqui querem se derive o nome Toque
Toque. Outros porque milagrosamente se conserva sempre em hum mesmo
teor de suas agoas, quer de verão, quer de inverno, sem que redunde por
mais chuvas que haja, e sem que deixe de estar chea, por mais calmas
que abrazem a terra. Outros finalmente, porque cura milagrosamente com
suas agoas a todo o género de enfermidades.
22 Isto he o que dizem. Eu direi o que vi com meus olhos, e o que
parece mais verisimil, por informação que tirei de homens antiguos, fide-
dignos, e moradores do lugar, indo a elle só pêra effeilo de averiguar a
verdade : vi que he certo, que nasce aquella fonte da pedra ditta, não d'a-
quelle mesmo lugar, onde sua agoa se ajunta, como em pia de agoa ben-
ta; senão mais acima de hum como olho pequeno, por onde sahe em tão
pequena quantidade, que escaçamente se vê, se não he de quem faz refle-
xão; porque vem como lambendo a pedra, e como mo!hando-a não mais ;
DAS COUSAS DO BRASIL CV
mas enchendo sempre a pia : e o que tresborda he imperceplivel também,
porque vai da mesma maneira lambendo a pedra subtilmente; e como he
poucíi, e cahe em área, nem se empoça, nem pôde perceber-se.
23 Com razão, de tudo o que vi duvido; se se ha de dizer que nasce esta
ajjfoa da mesma pedra viva: ou antes que por aquelle olho que disse, vem
atrahida da sustancia do monte ? E a razão da duvida he, porque faz força
a experiência, que mostra, que nem mingua, nem redunda jamais a agoa
d'esta fonte, se não que sempre está no mesmo ser. Porque sabemos que
o natural das fontes que tom seu nascimento da terra, he que redundão
quando ha invernadas, e faltão quando ha grandes secas : e a que nasce da
pedra viva não segue estas variedades; porque esta não depende da terra,
que se ensope com grandes invernadas, ou se seque com grandes calmas.
Cada qual julgará nesta duvida o cjue lhe parecer; que eu só digo o que
vi, e experimentei.
24 Acerca do que dizem, que nasceo do toque de hum pé do Santo ;
supposto que não achei n"esta pedra sinal de pegada, nem quem a visse,
formei comtudo hum argumento fíivoravel : porque supposla a tradição re-
ferida, que veio fugindo o Santo por aquelle monte abaixo, observei (pon-
do-me no lugar das pegadas da lagem, termo onde f<ji j)arar, e olhando
direito ao cume do monte, aonde dizem que estivera a aldeã, e donde pa-
rece par tio) que fica a fonte em caminlio, e que de forra vindo direito,
havia de passar pelo penedo em que nasce. E por aqui se faz verisimel,
que indo passando pizaria com seus pés a pedra, a cujo toque brotarião
as agoas. Quanto aos cffeitos das agoas d"esta fonte, bem se pôde por elles
com verdade chamar milagrosa. He cousa mui sabida, e publica, que em
nome do Santo, o com modo havido por milagroso, dão saúde aciuellas
agoas aos enfermos, que cliegão a lavar-se n"ellas, ou as mandão buscar
pêra isso. Tudo collegi da frequência das romarias que fazem a ellas, dos
sinaes que vi pendurados pelas paredes da Igreja; e dos vários, e diversos
successos milagrosos, que ouvi contar neste género a homens fidedignos.
25 As [)égadas do Santo, que no i)rincipio disse, não vi, nem hoje so
enxergão; vi a lagem, e n'ella me mostrarão os antiguos daquelle lugar a
parte aonde ostiverão, e aonde as vii-ão com seus olhos : no que não podo
haver duvida alguma; por({U(í o convence a fama, e o testilicão instrumen-
tos antiquíssimos de datas de terras (raquelles primeiros tempos, em os
quaes se assina pov rnai-co a lagem das pegadas do Santo, dizendo assi.
«Concedo hunia data de terra, sita nas pegadas de S. Thomé, tanto poia
VOL. f vu
CVI LIVRO II DAS NOTICIAS
tal parto, e tanto pêra outra, etc.» E estes instrumentos vi, e lemos Imm
cm nosso cartório (l"este Collegio da Baiiia : se não que os tempos que
tudo gastão, vierao, passados os séculos não menos que de mil e quinhen-
tos annos, a cegar estes santos sinaes. Huns dizem, que pela continuação
dos devotos, que folgavão de levar relíquias, raspando parte d'elles: ou-
tros, que ajudou pêra isso a disposição do lugar, que he praia de área mui
movediça, e pôde arrazar os vazios conglutinando-se com a mesma pedra.
26 Passando eu pela cidade de Nossa Senhora da Assumpção do Cabo
Frio, distante da do Rio de Janeiro dezoito legoas em altura de vinte e
três gráos, e hum seismo pêra o Sul : o Capitão que alli governava me foi
mostrar huma paragem chamada Itajurú (nome dos índios) entre a cidade,
e huma fonte extraordinária de agoas vermelhas, medicinaes, especialmente
contra o mal de pedra. N'esta paragem me mostrou hum penedo grande
amolgado de varias bordoadas (devem de ser de sete, ou oito pêra cima)
tão impressas na pedra, como se o mesmo bordão dera com força em branda
cera; porque todas as moças erão iguaes. E a tradição dos índios he, que
são do bordão de S. Thomé, em occasião em que os índios resistião á dou-
trina, que alli lhes pregava : e lhes quiz mostrar com este exemplo, que
quando os penedos se deixavão penetrar da palavra de Deos, seus duros
corações resistião, mais obstinados que as duras penhas.
27 He também digna de notar aqui a historia de Mairapé, lugar dis-
tante como dez legoas no interior do recôncavo (Vesla cidade. He hum ca-
minho feito de área solida, e pura, de comprimento de meia legoa pelo
mar dentro ; e a tradição d'elle he, que foi feito milagrosamente por S.
Thomé, quando andando n*esta Bahia pregando aos índios d'aquella para-
gem, elles se amotinarão contra o Santo, ao qual, fugindo da fúria de seus
arcos, foi levantando o mar aquella estrada por onde passasse a pé enxuto
á vista sua, cobrindo logo o principio d'ella de agoa, porque não podessem
seguil-o os gentios, que na praia ficarão admirados de cousa tão extraor-
dinária ; c chamarão d^alli em diante áquella estrada milagrosa, Mairapé,
que vai o mesmo em lingoa dos Brasis, que caminho de homem branco :
assi chamavão a S. Thomé, porque até então nenhum outro branco entre
si tirihão visto.
28 Na altura da cidade de Parahiba em sete gráos da parte do Sul
pêra o sertão, em hum lugar hoje deserto, e solitário, se vê outro penedo
com duas pegadas de hum homem maior, e outras de outro mais peque-
no; e certas letras esculpidas na pedra. Este lugar he achado cada passo
DAS COUSAS DO BRASIL CVII
dos índios, que de suas aldeãs vão á caça; e têm pêra si, que aquelias pe-
gadas são de S. Thomé : e segundo o que affirma S. Chrisostomo, e S. Tho-
más, que acompanhava a S. Thomé hum dos Discípulos de Christo, as se-
gundas pegadas menores devem ser doeste. As letras pretenderão os ín-
dios arremedar aos nossos Padres nas aldeãs, mas não se entendeo até
agora sua significação.
29 Não só no Brasil, mas por toda essa Nova Hespanha ha noticias ad-
miráveis : direi as de mór conta. Frei Joaquim Brulio, na Historia do Peru
de sua Ordem de Santo Agostinho, hv. i, cap. 5 refere, que no mar do
Sul, em huma aldeã chamada Guatuleo, tinhão aquelles índios seus natu-
raes, não só por tradição antiquíssima de seus antepassados, mas ainda por
escritto em certas pinturas, de que usavão em lugar de letras ; que huma
cruz que alli adoravão com summa veneração, lhes fòra dada por S. Tho-
mé, cuja imagem, e próprio nome tinhão esculpido em pedra viva em huma
rocha, pêra memoria perpetua de cousa tão santa. O mesmo refere o Pa-
dre Gregório Garcia, liv. v, cap. fí, onde acrescenta, que esta cruz he a
mesma que pretendeo queimar aquelle insigne herege Francisco Draque,
quando descobrio o estreito de Magalhães ; mas sem eíTeito, e com exem-
plo de hum portento maravilhoso: porque a cruz lançada nas chammasnão
se queimou ; antes por três vezes frustrou a pérfida intenção do herege,
que por outras tantas intentou consumil-a com fogo, cobei'ta de pez, e al-
catrão. E finalmente esta milagrosa cruz tresladou, andados os tempos,
pêra Guaxãca, hum Prelado zeloso, João de Cervantes: e he venerada n"a-
quelle lugar cx)m grande multidão de milagres.
'JO Frei Bartholameu de las Casas, varão fidedigno, Bispo de Chíapa,
depois de tirada grave informação do caso, aííirma em huma sua Apolo-
gia, que consta {)or anli(]uissima tradição dos índios d"a(iuellas })ai'tes, que
em tempos anliguos forão annunciados a seus avós os mysterios da San-
tíssima Trindade, do parto da Virgem, e da [)aixão de Christo, por huns
homens brancos, barbados, o vestidos até os artelhos. Condiz com o que
acima dissemos, (jiie andava com o Santo Apostolo Thomé outi'0 Discípulo
de Christo.
'M Aquelles [)rimeiros Castelhanos, {'ernão Corlez, e seus com[)anliei-
ros, quando no i)ríncipio entrarão na ilha de Cozunicl da Nova Hespanha,
acháifio himia cousa, que os meteo em admiração; porque virão hum fer-
rnoso muro de pedra quadrada, e no meio (relle arvorada huma cruz de
dez palmos em alto, venerada por toda aquella íjente como DeosUa chuva:
CVllI LIVRO II DAS NOTICIAS
e o que mais he, que por seu meio a alcançavão em suas secas, fazendo
per isso procissões, e preces a seu modo gentilico: ou por milagre de S.
Thomé, que alli a plantou (segundo nota o autor da Historia do Pem aci-
ma citado) ou por traça do inimigo infernal, pêra fazer que esta gente ido-
latrasse no excesso da veneração, tendo aquella cruz por verdadeiro Deos.
Era este lugar tido por commum sacrário de todas as ilhas circunvezinhas,
e não havia povo algum, que n"elle não tivesse sua cruz de pedra mármo-
re, ou de outras matérias. Assi o affirma também Gomara, segunda parte,
cap. IV, e Justo Lipsio no liv. iii, em que trata da Cruz.
32 Finalmente, prova-se o assumpto que pretendo, de qpie andou por
estas partes o Santo Apostolo Thomé, por testemunhos infinitos, de todos
os Reinos da America, e de todas as gentes, e nações naturaes do Brasil,
do Paraguay, do Peru, especialmente de Cuxco, Quito, e México ; como
largamente trata e confirma o Padre Mestre António de la Calancha no liv.
II de sua Historia Peruana, cap. 2. O que tudo supposto : quem haverá
que negue ainda hoje haver-se de ter por certa, tradição tão constante por
tantas vias, por tantos Reinos, por tantas nações, c casos tão extraordiná-
rios ? D"outra maneira negar-se-ha a fé commum da tradição humana em
todas as mais cousas, tanto contra o estylo do mundo, e o intento da sa-
grada Escrittura, que diz, Exod. 32. íí Interroga patrein tuam, e amntntiabit
tibi: maiores tuos, et dicent tibi.» Se não pergunto eu : assi como no papel
as letras, porque não se imprimirão também nas memorias, as espécies
das cousas memoráveis? Neguemos logo as façanhas dos Césares, dos Pom-
peos, dos nossos Yiriatos, Sertorios, e outras historias semelhantes.
33 Contarei hum caso gracioso, e juntamente mui a propósito em prova
do intento. Refere o Padre Affonso de Ovalle, da Companhia de Jesu, no
livro que compoz da Historia do Reino de Chilli, que ouvio contar muitas
vezes ao Padre Diogo de Torres, da mesma Companhia, Provincial, e fun-
dador d'aquellas Províncias, varão digno de todo o credito : que indo elle
dito Provincial caminhando por hum valle de Quito, vio hum dia de festa
Imm índio já de idade, que tocando seu tamboril, estava ao som d'elle
cantando em sua lingoa certas historias, e estavão ouvindo altentos outros
mancebos. Parou o Padre, e logo acabando elle de cantar, perguntou, que
ceremonia vinha a ser aquella ? Respondeo hum dos que o ouvirão, que
aquelle índio que cantava, era o Archivista da aldeã, a quem corria a obri-
gação de sahir ãquelle lugar todos os dias santos, e repetir cantando as
tradições, e cousas memoráveis de seus antepassados, em pi'esenra dos
DAS COUSAS DO BRASIL CIX
([ue alli estavão, que por morte d'elle estavão destinados porá ficar em seit
lugar: porque como os índios não tinlmo livros, usavão d'esta diligencia
pêra conservar nas memorias as historias antiguas. Passou mais o Padre a
perguntar, que era o que de presente cantava ? Respondeo, que cantara em
primeiro lugar a historia de hum diluvio, que houvera no mundo antigua-
mente, e innundára toda a terra ; e que passados depois d'este diluvio
muitos séculos, havendo-se tornado a povoar o mundo, veio ao Peru hum
homem branco, chamado Thomé, a pregar huma lei nova, nunca ouvida
n"aquellas regiões. Exemplo he este, que mostra com evidencia a fé que
devemos dar ás tradições das gentes, ainda que barbaras. Que monta mais
que o escrivão assente no papel as historias, ou que aquelle do tamboril
as assente nas memorias dos que o estavão ouvindo, pêra eíTeito de serem
conservadas cm perpetua lembrança? E porque faremos mais caso do que
se imprime no papel, que do que se imprime nas memorias dos homens?
Pelo que de todo o sobredito discurso tiro por cousa certa, que se deve
dar credito á tradição que affirma haver andado n'estas partes o Apostolo
S. Thomé.
34 Quanto mais que, porque de huma vez apertemos este assumpto,
hei de mostral-o com argumentos de maior profissão : e digo assi. Algum
dos sagrados Apóstolos, por obrigação de preceito divino, passou a esta
America a promulgar o Evangelho da Lei da graça, em que os homens se
havião de salvar: este Apostolo, não foi S. Pedro, nem S. Paulo, nem S.
João, nem Santo André, nem S. Philippe, nem Sant-Iago, nem S. IMathcus,
nem S. Thaddeo, nem S. Simão, nem S. Mathias, nem outro Sant-Iago, nem
S. Barlholameu : resta logo que fosse S. Thomé. Só a primeira d'estas
proposições tem necessidade de prova : que algum dos sagrados Apóstolos
por obrigação de pi'eceito divino passou a esta America a promulgar o
Evangelho da Lei da graça, em que os homens se havião de salvar. Isto
parece fjiie convencem as palavras de Chrislo, por S. Marcos no cap. xvr.
aonde antes de subir ao Ceo, lançou a obrigação que tinha sobre os Ap(js-
tolos; e lhes disse assi: «Ide pelo mundo universo, e pregai o Evangelho
a toda a creatura: o que crêi-, e fôr bautizado, salvar-sc-ha; e o que não
crer, condemnar-se-ha.» Quem diz, pelo mundo universo, não deixa de fora
a America, que he quasi amelade do muiiílo. (Jnem diz a toda a creatura,
íião deixa de fora as da America, (jue são quasi ametade das gentes : c
que este preceito se haja de exí)li('ai' na generalidade, que só a de mundo,
e creaturas, enteufleia os Santos Padres, e Doutores sagrados á margem
CX LlVnO II DAS NOTICIAS
ciladosf). E mostro com razão efficaz : pinique Chrislo era Redemplor uni-
versal, tanto da America, como das outras partes do mundo : logo tanta
obrigação lhe corria de mandar ensinar o Evangelho á parle da America,
como ás outras partes do mundo. Assi o ponderou Hugo Cardeal, tirando
a nossa mesma consequência. «Ei"a Christo (diz elle) Redemptor universal
do mundo: logo a todos devia communicar o beneficio da Lei Evangélica.»
Declaro mais o argumento : porque esta Lei da graça, tem ser graça, e
tem ser lei : em quanto graça, he dom universal de todos ; porque he ga-
nhado pela morte, e sangue de Christo, como Redemptor universal de to-
das as gentes, sem excepção de pessoas, quanto mais de meio mundo da
America. Em quanto lei, deve este Evangelho de Christo ser promulgado
segundo o direito das gentes humano, e divino em todo o distrito do Le-
gislador, e este he o nmndo todo : e senão, como poderão ser havidos por
transgressores da dita lei, aquelles a quem não foi denunciada? ou com
que razão poderia o índio da America ser condemnado, apparecendo na
outra vida sem bautismo, se este lho não fora pregado?
35 Consta do dito, que mandou Christo aos Santos Apóstolos, que pro-
mulgassem a Lei da graça por todo o mundo universo, sem excepção de
parte alguma : porque de todas era Redemptor, a todos tinha igual obri-
gação, e essa mesma obrigação que tinha (indo-se ao Ceo) deixava aos Após-
tolos, como successores seus no officio. Porém não fica bastan temente
provado, que com effeito corressem os Apóstolos o universo mundo, ou to-
das as quatro partes d'elle, que o mesmo he. Isto provo agora com os ar-
gumentos seguintes: porque a doutrina commua dos santos Padres, e
Doutores sagrados he, cpie a Lei Evangélica foi promulgada por todo o
mundo universo, pelos mesmos Apóstolos, dentro de espaço de quarenta
annos depois da morte, e paixão de Christo. Assi o aíTirmão expressamente
S. Thomás, S. João Chrisostomo, S. Gregório Papa, Euthimio, Theophilato,
nos lugares citados á margem (**), com grande numero de Expositores mo-
dernos. Em particular Euthimio citado tem pêra si, que dentro em espaço
de vinte até trinta annos pregarão os Apóstolos a Lei de Christo por todo
o mundo. O Evangelista S. Marcos quando compoz o seu Evangelho, dizia
já então, que estava divulgada a lei de Christo pelos Apóstolos em todas
(•; Gregor. in Ilomíl. sup. Marc. 16. — Thenph. Hugo, Card. Caetano ibid.— Barratl. in Matt.
28 et Maic. IS.
(••) S. Tbcmas ad Bernard. 10 lect. 4. — S. Grep. Mag. in cap. 16. fliarc. — S. João Cbrií.
Homil. 76 sup. Math.— £uth. et Theophil. sup. Math.'2í.
DAS COUSAS DO BRASIL CXl
as partes ilo mundo : í(Pr(edicavi'nint ubique, eto^ Sendo assi cjiie o santo
Evangelista escreveo seu Evangelho doze annos somente depois da morte
de Cliristo, segundo diz Gesar Baronio. S. Paulo faltando do seu tempo
diz, que já então estava pregado o Evangelho a toda a criatura, que habita
debaixo do Ceo: «iProidicatum est Evangdium in omni crcatura, qme sub
Círio est.» E quem negará que está a nossa America debaixo do Ceo? Só
os que lhe negão o mesmo Ceo, como depois veremos.
36 Segue-se de todos estes argumentos, que algum dos sagrados Após-
tolos passou a esta quarta parte do mundo, que chamamos America, a
promulgar a Lei da graça. Consta também, que este Apostolo não foi S.
Pedro, nem S. Paulo, nem algum dos que referi acima: como se vê na re-
lação de suas vidas : e porque não ha autor que o diga; resta logo, que
fosse este o Apostolo S. Thomé. Parece que assi o quizerão significar S.
Chrisostomo, bomil. 61, e S. Thomás em sua Catena in Joannem, cap. H,
aonde dizem: «Tltomas infirmior erat,etin{idelior aiijs; postea omnibus for-
tior factus esl^ et irreprehensibilis. qui solus ferrarum orbem percurrit, et tu
inedljs plebibus volvebatur volentibus enm inter ficere.y» Nem faz contra esta
doutrina a exposição de alguns Doutores, que dizem, que os santos Após-
tolos, nem erão obrigados a correr, nem com elTeito correrão \)0V si mes-
mos o mundo universo; que isso parecia impossível, sendo tão poucos, e
em tão breve tempo. Porque esta exposição se entende (segundo os mes-
mos Doutores bem estudados) que não correrão os santos Apóstolos o uni-
verso mundo, quanto a lugares particulares, e indivíduos; o que he ver-
dade, e depois se fez, e vai fazendo por seus successores. Porém que cor-
ressem as partes do mundo, quanto aos lugares principaes, nem o negão,
nem o podem negar; pois sabemos que andarão os Apóstolos nas três par-
tes do mundo principaes, Ásia-, Europa, e Africa, o só da America proce-
dia a nossa questão, cuja parte aíTirmativa agora demonstramos : nem cu vi
autor algum, que o negue absolutamente ; e só o não alhrmão, porque
lhes não erão presentes os argumentos, que hoje nos são manifestos.
37 Achei somente o doutíssimo Cornelio Alapide sobre o cap. 46 de S.
Marcos, que diz assi: «que não parece verisimil, que tão poucos Apósto-
los por si corressem o mundo todo : principalmente porque na America,
de novo descoberta, não se achão vestígios da Fé.» Se soubera este dou-
tíssimo Expositor os vestígios d(; Fó prodigiosos, que temos refeiido, que
dissera ? Sem duvida alguma não duvidaria. Se soubera (laquella tradição
tão constante, e averiguada pelo Bispo de Chiapa acima referido, de como
CXir LIVRO II DAS NOTICIAS
OS índios antigiios cVaquellas partes forão inslruidos nos mvsteriosda San-
lissima Trindade, parlo da Virgem, morle, e i)aixão de Cliristo, por huns
homens brancos, com l)arba, e vestidos até os artelhos : dos muitos vestí-
gios que o grande Cólon, descobridor primeiro das terras da Nova Hespa-
iiha, e seus companheiros, acharão em as primeiras ilhas d'ella, qiic seus
moradores reconhecião hum só Deos infinito, e omnipotente, c que este Deos
tivera mãi, que vem a ser os primeiros dous artigos da Fé. Que em Cu-
maná, terra não mui distante da sobredita, entre seus Ídolos adoravão
aquelles naluraes liuma cruz com ceremonias de grande devação; que com
ella se benzião a si, e aos filhos novamente nascidos, pêra livrar-se, e lívral-os
a elles de males, segundo o refere Gomara, part. m, cap. 83. Se todos
estes, e outros vestígios da magnificência de seus templos, da diversidade
de suas ceremonias, de seus jejuns, e abstinências rigorosas de carne, e
outros semelhantes, que agora deixo por brevidade, e se podem ver em
parte no Padre António de la Calancha, Religioso fidedigno de Santo Agos-
tinho, no iiv. II da Historia do Peru, soubera o doutíssimo Cornelio Ala-
pide, n3o duvidara de que havia na America vestígios da Fé, e de que pas-
sara a estas partes algum dos sagrados Apóstolos; e por conseguinte, que
este fora S. Thomé.
38 De tudo o atraz referido se colho com bastante certeza, que passou
a esta nossa America o Apostolo S. Thomé, e que correo n"ella os lugares
marítimos que temos apontado, e são as principaes d'estas partes. E sobre
esta resolução, são dignas de ponderar outras duas resoluções moraes, huma
da parte da justiça, e misericórdia infinita de nosso grande Deos, que não
permitio dilatar até o tempo do descobrimento d"este novo mundo (que foi
espaço de mil e quinhentos annos) a graça da Lei Evangehca ; se não que
logo a communicou a todas suas gentes, igualmente com as outras partes
do mundo. A outra da parte dos naturaes da terra; que contra estes, que
não admittirão aquelle santo Legado Evangélico estarão gritando até o dia
ultimo do Juízo, aquelles sinaes de suas pegadas, de seu bordão, e de sua
doutrina, que em testemunho lhes deixou de sua pertinácia; e á vista d' el-
les não poderão allegar ignorância.
39 Além dos autores acima referidos, têm também pêra si que veio a
estas partes o santo Apostolo, o Padre Francisco de ]\Iendoça, da Compa-
nhia de Jesu, em seu Yiridario Probl. 44; o Padre Ribadeneira, da mesma
Companhia, no seu Fios Sanctorum, na vida do mesmo S. Thomé; e André
Lucas na vida de Santo Ignacío, foi. 243, onde traz huma notável prophe-
DAí5 COUSAS DO BRASIL CXIII
cia do mesmo santo, que pronosticando aos índios disse, «que depois do
muitos séculos virião a suas terras huns Sacerdotes, successores seus, a
jirégar-lhes o mesmo Evangeliio, que elle lhes pregava : c trarião por di-
visas cruzes em as mãos : e que estes os congregarião em povoações, pêra
que vivessem cm ordem, e policia christãa; e que então Tupis, e Garamo-
mís (que comprehendem todas as nações) vivirião em paz. » O que tudo teve
cumprimento com a entrada da Companhia de Jesu n'aquellas partes,
quando virão os índios os Sacerdotes d'ella chegados áquellas regiões com
cruzes em as mãos, em lugar de bordões, e que erão os primeiros, que
depois do santo Apostolo, prégando-lhes a Christo, os união em varias
christandades. Prophecia, que sendo com a mesma uniformidade achada
entre todos os índios d'aquellas partes, de tão varias nações, lingoas, e ter-
ritórios, e com distancia de duzentas, trezentas, e mais legoas, sem haver-
se jamais communicado entre si ; pareceo ter fundamento sohdo, e como
tal (depois de feita bastante diligencia) a enxerirão os Padres da Compa-
nhia nos Annaes d'aquel!as Províncias.
40 Os autores do livro intitulado. Imago swcuU, foi. G3 no fim, refe-
rem a mesma prophecia ; e resolvem, que não se pôde duvidar de que
andasse n'aquellas partes o santo Apostolo; por estas sustanciaes palavras:
aln remotissimis illis Peraguarloe Provincijs tanlam uhique inter Bárbaros
memoriam, vestigiaque Sancti Thomoi Áposloli imenére socij, ut duhitari non
possit Apostolum i.slic oliin fmsse.y> Fazem também menção d'esta prophecia,
Frei Joaquim Brulio, já citado, liv. i, cap. 5.", n.° 7, e João Torquemada,
part. ni da sua Historia, liv. xv, cap. 49, o Padre Affonso de Ovalle, da
Companhia de Jesu acima citado : aonde também (hz, que em muitas par-
tes do Pcrú, c Paraguay he commum tradição haver estado n'ollas o Apos-
tolo S. Thomé, c que d"isso ha grandes sinacs ; e traz outros argumentos
forçosos. Primeiro, os sumptuosos, c magníficos temi)los, que houve nos
dous poderosos Impérios do Peru, e IMexico, muit(j antes que fosse a elle
gente Ilespanhola; dos quaes acharão ainda cm sua entrada muitos, mui
ricos, e mui adornados, conforme consta dos Historiadores. Segundo, o co-
nhecimento que tiverão do verdadeiro Deos, Criador do mundo, Remune-
rador dos bens, o Castigador dos males: de Christo Hedemptor: da immor-
talidade da alma, como tiverão os índios Ingás, Amautas; e da resurreição
dos corpos, como tiverão outros ; do que tudo traz autores no mesmo ca-
pitulo citado. E por terceiro argumento traz huma fcrmosa cruz, de que
conta Garcilasso, que tinhão os Keis Ingás em Cusco, em hum de seus pa-
r.XW LIVRO II DAS NOTICIAS
lacios reaes, em cerlo apartamento chamado Htiâca, lugar sagrado, c de
veneração. O que tudo mostra nosso intento, que de força havia de liaver
pessoa, que lhes communicasse a noticia das cousas dittas, antes que en-
trassem n'aquellas regiões os Castelhanos ; e não parece podia ser outro,
que o Apostolo S. Thomé. E temos mostrado a verdade da tradição de ha-
ver vindo ás partes da America este santo x\postolo. Sobre tudo consta da
Igreja Syriaca, aonde nas lições d'este Santo se lê, que esteve na America,
e pregou alli áquelles povos; e parece se não pode negar já hoje.
41 Depois de tantas duvidas curiosas, parece bem ponha ílm a ellas
huma mui necessária; e he esta, a da salvação d'estes índios: se no meio
de sua gentilidade se podião, ou podem salvar alguns d'eUes ? ou se todos
ss perdem? Na verdade que quando tomei a penna pêra tratar esta du-
vida, me pareceo que igualmente a tomava pêra tratar de huma apologia
em defensão da misericórdia de nosso grande Deos; porque sem duvida,
dura cousa parece aquella voz commua, de que toda esta immensa vastidão
de almas de hum mundo inteiro, e por espaço de tantos séculos de cinco
mil, seis mil, e sete mil annos" depois de sua creação, até a vinda dos Pre-
gadores Evangélicos, houvesse de perder-se toda: sendo certo que morreo
Chrislo por salval-as; e quer Deos que todas se salvem. Ora eu, depois de
considerar a duvida, e ver com cuidado os Padres, e Doutores sagrados ;
tenho concebido, que tem havido grandes misericórdias da bondade divina
sobre esta desamparada gente.
42 E digo em primeiro lugar, que na confusão de tantos séculos, quando
ainda a terra da America estava escondida, e antes que a ella passasse o
Apostolo S. Thomé, ou outros Pregadores; os homens d'estas partes nas
trevas de seu gentilismo vivião, ordinariamente fatiando, com ignorância
invencível da Fé divina ; e por conseguinte sem peccado de infidelidade,
porque houvessem de ser condemnados. Esta resolução, supposto que foi
refutada, e desfavorecida de muitos; comtudo he recebida hoje dos melho-
res, e mais pios Doutores, como S. Thomás, Secunda secundoe quíBst. 10,
art. 1, e os mais á margem citados (*). E a razão he clara, porque estes ho-
mens não tiverão conhecimento algum da Fé, nem souberão que cousa he
revelação, e porventura nem ainda que cousa he Deos alguns d'elles: logo
mal podião peccar contra o preceito da Fé, que não sabião. He o que cla-
(*] Aitisiodorense in Summ. lib. iii, tract. 3, cap. 2.— Guilhelmo Parisiense, de Fide, cap. 2.
— Alcx. Ualení, 2/ pari. qucst. 1 12. — Gerson, Tract. de Vita Spir. Ircí. 2. — È todos os roai»;,
citados por Soares, de Fide, disp. 17, scct. 1, parag. 2, e n." 5.
DAS COUSAS DO BRASIL CXV
ramenio diz S. Paulo, ad Roman. 10. «Quomodo craknt, si nov audiernnt?
aul quomodo auãienl sine predicante? )> Como havião de crer, se não ouvião?
ou como havião de ouvir, sem quem lhes pregasse? O pobre do Tapuya
metido em suas brenhas, a quem nunca veio ao pensamento obrigação da
Fé, com que razão se lhe imputaria a peccado a falta delia? E o mesmo
se ha de dizer dos que viverão, e vivem ainda hoje depois da pregação
do Apostolo S. Thomé, ou outros Pregadores na America; se não ouvirão
a tal pregação, ou lhes não foi sufficientemente proposta. Porque, como diz
S. Thomás, não basta que os Apóstolos pregassem a Fé em todas as Provín-
cias, ou Reinos, se taes, ou taes pessoas em particular a não ouvirão. Assi
o trata com provas mais extensas Vitoria, em huma relação que faz dos ín-
dios moradores das ilhas; e o Padre Soares citado na margem, na disp. 17,
sect. 1, n.° 9.
43 Antes acrescento, que podião, e podem n"aquella sua gentilidade ter
ignorância invencível, não só dos mysterios sobrenaturaes da Fé, Trindade,
Encarnação, e Remuneração, que são de si sobrenaturaes, e excedem o co-
nhecimento natural do homem; mas também dos próprios mysterios natu-
raes de Deos, Autor da natureza : como de haver Deos, ser hum só, inde-
pendente, omnipotente, etc. Pelo menos em algumas pessoas, e por algum
tempo da vida. Porque estas verdades, ainda que podem conliecer-se com
a luz do entendimento natural, comtudo não são proposições a que cha-
mamos "per se notas, nem primeiros princípios quanto a nós, posto que o
sejão em si; e he necessária, ou própria invenção, ou doutrina alhea; pêra
o que são os entendimentos dos índios do Brasil tão pouco capazes de es-
pecular n'estas matérias, que o a que mais subirão per si, foi o conheci-
mento d'aquella confusão, que por vezes dissemos, de huma Excellencia
superior, a que chamão Tupá, que tem domínio sobre os trovões, e coris-
cos, e a quem parece attribuem a remuneração dos lugares melhores, ou
pcores da outra vida ; e até aqui sobe de ponto o discurso d'esta pobre
gente. Se isto he conhecer a Deos, ou não, deixo eu ao juizo dos doutos.
44 D^onde se dissermos, que alguns destes por algum tempo tiverão
ignorância de Deos; seus homicídios, adultérios, furtos, e semelhantes obras,
ainda que contra o lume da razão natural, e materialmente sejão más; não
são comtudo peccados mortaes theologicos que chamão os Doutores, nem
por elles merecem o inferno, senão outra pena temporal; porque como não
conhecem a Deos, não commetem contra elle injuria, na qual consiste o ser
infinita a culpa do peccado, c merecíidora de pena eterna, .\ntes os q^ie
r.XVI IJVRO II DAS NOTICIAS
entre elles tivessem ignorância semelhante invencível de alguns dos princi-
pies moraes (o que não repugna, ao menos em algumas matérias, não tão
conhecidas, como na simples fornicação, vingança, e semelhantes, segundo
os Doutores) não peccarião, nem ainda physica, e materialmente ; porque
então nem offendião o ditame da razão. Digo mais, que todos aquelles que
n'esta sua gentilidade vivessem, segundo a justa lei da razão, e ditame do
bom, e honesto, poderião alcançar de Deos graça, e salvar-sc ; segundo
aquelle principio dos Theologos : (íFacienti quod in se est Deus non denegai
gratiam.y) E acrescento, que tenho pêra mim, que aquelle principio poderá
ter eíTeito também nos que peccárão no discurso de sua vida, se no fim
d'ella tiverem efficaz arrependimento, e lhes pezar deveras de haver offen-
dido aquelle que conhecem por Deos, ou o mesmo lume da razão : porque
fazem o que em si he; e póde-se crer da grandeza da misericórdia do Se-
nhor, que quer que todos os homens se salvem, lhes conceda a estes po-
bres assi arrependidos, o mesmo auxilio da graça, que no primeiro caso,
pêra que se salvem : e he conforme á boa razão, e os Doutores que cito á
margem (*).
45 Resta por ver a bondade da terra, e. clima, segundo a ordem das
perguntas passadas. Por esta razão sou forçado a escrever n'esta matéria
mais o seguinte. E também porque estou vendo os curiosos versados em
historias, que me dizem, que sendo esta a primeira que sahe a luz de cou-
sas d'estas partes, não satisfaço nem ao gosto de quem a lê, nem ao ofli-
cio de quem a escreve, se n'ella não der algum maior conhecimento, ao
menos de que cousa seja Brasil : por quanto tudo o que até agora disse-
mos, ou he seu descobrimento, ou suas gentes, ou seu? exteriores somente.
Proseguirei, vista esta razão; será porém com tal brevidade, que não se en-
fade quem lêr, nem também quem escreve.
46 ^ porque comecemos por ordem pêra mostrar que cousa he Brasil,
direi primeiro o que he quanto ao nome; e depois direi o que he quanto á
sustancia; seguindo a doutrina doPhilosopho, que diz, que (íDe iinaquaque
re cognoscendum est quid nominis, et quid rei.y> Quanto ao nome : o primeiro
que teve esta parte da America, de que escrevemos, foi Terra de Santa Cruz:
assi lho impoz Pedro Alvares Cabral, a quem de uso, e como direito das gen-
tes esta imposição pertencia, como a primeiro descobridor. A occasião foi,
ou a do mez do Maio, em que arvorou este sinal de nossa Redempção nas
(.) Soares, de Fido, disp. 12, Icct. 2. — Dclugo, de Fide, disp. 10, Icct. 1-
DAS COUSAS DO BRASIL CXVII
praias de Porto seguro (e porventura que foi o mesmo dia da Santa Cruz
três de Maio, segundo o escrevem Pedro de Mariz, de varia Historia, dialogo
V, cap. 2.°, e João de Barros, Década i, cap. 2.*^) ou também o costume da
nação portuguesa, affeiçoada a principiar suas empresas debaixo d"este vivi-
fico estandarte de Christo.
47 O segundo nome que teve, foi o de America : este tomou daquelle
insigne Geograplio, chamado Américo Yespucio, de quem dissemos, que
veio por mandado d'El-Rei D. Manoel, depois de Pedro Alvares Cabral, a
descobrir, e demarcar em segundo lugar a costa do Brasil. O terceiro foi
o de Brasil, em que fez troca a cobiça daquelles, que depois vierão ao tratto
do páo, que agora chamão d'este nome; não sem algum abatimento da im-
posição do primeiro, substituindo-se áquelle madeiro vermelho com o San-
gue de Christo, e preço de nossa Redempção, outro madeiro, que só tem
de sangue a cor, e de precioso o apparente da cobiça dos homens. Com
razão se queixa d'esta mudança o Historiador Portuguez na Década citada,
6 Pedro de Mariz em seus Diálogos. No quarto lugar chama -se índia Oc-
cidental; ou porque foi descoberta no mesmo tempo que a Oriental, ou pela
semelhança que ha entre os índios de huma, e outra parte. Assi o cuidou
o autor do livro intitulado Thoatrum orbis, na descripção da America. Ou
também do nome de Ophirlndo, primeiro seu povoador, segundo a opinião
que atraz puzcmos. Outros curiosos lhe quizerão lambem acommodar o
nome de Nova Lusitânia, á imitação do de Nova Ilespanha : não era mal
acommodado; porém não vemos que estfja em uso.
48 Quanto á sustancia, havia muito que dizer em defensão, e abono
da terra do Brasil; c muito mais de toda a America; porém por escusar
grandes processos, direi summariamente, e somente da parte que toca ao
Brasil. E pêra eu haver de arrazoar de justiça sobre as bondades de quo
Deos a dotou, he necessário desfazer primeiro suas calumnias : pêra o
que protesto que em lodo o direito são partes suspeitas as outras Ires par-
tes do orbe ; porque he certo (pie conspiíYirão em outro tempo lodos os
Sábios da Europa, Africa, c Ásia, em aniquilar, e desacreditar em tudo
esta quarta parte do mundo.
49 Aristóteles o Priuci[)edos Sábios, no segundo livro de seus Meteo-
ros, cap. V, com toda a escola de seus (liscii)ulos, foi o primeiro que infa-
mou a America, apregoando d"ella, e d»; toda a mais terra que corresponde
ã Zona, a íjiie chamava Tórrida dentre os dous circulos solsticios ãr Cancro,
e (;aj)ricornioj ser leiTa inútil, seca, reriueimada, e incapaz de fontes, lios,
CXVIII LIVRO 11 DAS NOTICÍAS
pastos, e arvoredos; e por conseguinte deserta pêra sempre, e inhabitavel
aos homens, pelos excessivos ardores causados da proximidade do Sol,
que anda sempre sobre ella. A este Philosopho seguirão depois Plinio, liv.
II, cap. 68, onde desacredita a mesma região de requeimada, tórrida, acesa
dos vehernentes raios do Sol, e conscguinlemente de intratável â gente
humana. Virgílio em suas Georgicas, liv. i, toca a mesma infâmia, quando
diz:
Quinque tenent coeliim Zonoe, quariim una corusco
Seinpcr sole rubens, et tórrida semper ab igne.
Ovidio no primeiro de suas Metamorphoses :
Totidemque plagie tellure premuntur :
Qiiarum quw media est, non est habitabilis cestu.
Cicero, Philo Judeo, Beda, S. Thomás, Escoto, Durando referidos pelos
Conimbricenses 2. de Coilo, cap. 14, qusest. i, art. 3, tiverão o mesmo. E
foi opinião communissima dos Sábios de todas aquellas três partes. Que
mais infâmias podião dizer-se de huma pobre parte ausente, nunca ouvida,
nem vista até então em juizo?
50 O Achilles de seus arrazoados vinha a ser este. O Sol he a causa
total do calor : logo quanto mais de perto ferir, tanto mór calor causará :
fere a região da Zona tórrida mais de perto que alguma outra do mundo
(porque anda sempre sobre ella, e reverberão n'ella seus raios direitos, e
a modo de settas:) pois logo, quem haverá que aguarde n'ella? Este he o
Achilles dos contrários, que parece têm vencida a causa : e a força que
tem no calor, milita na secura.
51 Não pàrão aqui os contrários da nossa Zona tórrida; pretendem
negar-lhe até o propí^io Ceo, commum ás crcaturas todas. Dizião não pou-
cos, nem menos autorizados Philosophos, e Astrólogos, que n'esta nossa
região, como em toda a mais Zona tórrida, não havia Ceo correspondente;
porque afllrmavão que não era espherico, se não que era a modo de pinha,
ou de hum pavilhão, ou de casa fundada em columnas, que de huma parte
tem o tecto, da outra o fundamento, ficando o meio, que corresponde á
Zona tórrida, sem parte alguma d'este benigno corpo. Assi o considerou o
Padre S. Chrisostomo, homil. 14 e 17, sobre a Epistolados Hebreos; onde
estranha muito a opinião dos que dizem, que he o Ceo espherico, corres-
DAS COUSAS DO BRASIL CXIX
poncleiíte a toda a terra; e cuida que lie contra a sagrada Escrittura, quando
diz, que he o Ceo tabernáculo fixo. Com S. Chrisostomo concordão Theodo-
reto, e Theophilato : e Lactancio rio-se dos Philosophos, que cansão seu
engenho ern provar que o Ceo cerca toda a terra. E o que he mais, que
duvidou S. Agostinho n'esta matéria, tão grande Philosopho, e Astrólogo,
com estas palavras : aQuid ad me pertinet iitrúm coBliim, sicut sphera^ undi-
que concludat terram in media mundi mole Ubratam, ati eam ex iitraque parte
de super, velut discus, operiat?)) A mim que me pertence, se o Ceo como
esphera cerca a terra, ou somente a cobre por cima como tecto ? Sobretudo
Procopio aííirma, que he contra a Escrittura sagrada a sentença de Aristó-
teles, que diz, que o Ceo he espherico, e que se move ao redor da terra.
Formão alguns este argumento em prova doesta opinião; porque olhando
nós pêra as estrellas quando estão sobre nossa cabeça, apparecem meno-
res : e quando estão no horizonte apparecem maiores, sendo as liiesmas :
não por outra razão, senão porque apparecem em diversa distancia, me-
nos longe quando maiores, e mais quando menores : não estão logo em
CÃio espherico, porque a esphera não admite lugares menos, e mais dis-
tantes.
52 Por esta via pretendião os autores citados anitpiilar a terra do Bra-
sil, e da America toda, negando huns poder haver terra, onde cuidavão,
que não havia Ceo. Outros negando-a por de nenhum eífeito; porque debalde
criaria o Autor da natureza terra que não havia de ser habitada, pela in-
clemência dos astros, quando nY'lla admittissemos ceo. Outros levavão esta
impossibilidade pela dos mares, que tinhão por immensos, e impossíveis
de navegar pêra chegar a ella, caso que tal terra houvesse. E finalmente
os que a concedião, era com tantas notas de inútil, inhabitavel, requei-
mada, etc. que era o mesmo que não haver tal terra. E eis-aqui a nossa
região sem ceo, e sem terra, tornada em ar, o em agoa áómente.
53 Pêra livrar de tantas calumriias tão f(jra da razão a terra do Brasil,
o deste novo mundo, hrxtvora mister muito tempo, se a experiência de
tantas gentes, ainda das partes contrarias, a olhos vistos não pregoara hoje
por sonhos todas as opiniões dos antiguos, não sem algum descrédito seu.
E comtudo, como tbrão as calumnias publicas, sabidas entre todas as gen-
tes; c nem todos passão ao Brasil, nem tem noticia do desagravo d'ellas ;
antes ainda os mesmos que a têm, e a vêem com seus olhos, não sabem
orílinariamente as causas; será agradável a todos responder mais em fói-
ma: assi o faremos; mas será com a brevidade possi\el.
CXX LIVRO II DAS NOTICIAS
54 E primeiro que tudo lancemos fora a ignorância dos que preten-
dem tirar-nos o Ceo, e com elle seus influxos benignos. Acodem por honra
d'estas partes autores sapientissimos; ainda dos das mesmas partes con-
trarias, e por taes dignos de mais credito: Thales Milesio da parte da Jo-
nia; Pithagoras, e Licéto, da parte da Itália : os Sábios da Babilónia, os da
Caldea, os do Egypto, os da Grécia (Aristóteles, Ptolomeo, Alphragano, e
Platão no seu Timeo) provão por nossa parte com razões evidentes, assi
philosophicas, como astronómicas, que a toda a terra, em qualquer parte
pue esteja responde o Ceo, por ser este espherico, e redondo. Porém por
brevidade, mostremol-o somente agora com a experiência do movimento
do Sol, Lua, e Elstrellas errantes. Todas estas vemos com nossos olhos,
ii'esta mesma região calumniada, irem subindo todos os dias do horizonte
oriental ao meio do Ceo : e d'este descer até o do Poente : e d'aqui vol-
tar outra vez em perenne movimento ao lugar do seu Oriente. E se o Ceo
não fora espherico, e espherica a terra, não tinlião os astros porque andar
á roda. Na mesma forma, com nossos olhos estamos vendo, quo vai o Ceo
rodeando a terra com suas estreitas fixás igualmente distantes : segundo o
confirma a sagrada Escrittura com as palavras do principio do Ecclesias-
tés, dizendo assi: «O Sol põe-se, e torna a seu lugar; e tornando ahi a
nascer, volta em giro pelo Meio-dia, e rodea pelo Acpiilão ao Norte, allu-
míando todas'as cousas em circuito, e torna a voltar a seus círculos.» Ea
mesma Escrittura a cada passo chama ao Ceo âmbito, cerco, ou giro, que
vai o mesmo que esphera; como também á terra cliama orbe: aOrbi ter-
rarum, e quidqnid cceli ambitu conlinetur.y> Pois logo que dizem a isto os
Astrólogos ? como podem negar que seja espherico o Ceo ?
00 Nem fazem contra, os lugares que allegáo da sagrada Escrittura ;
porque quando chama ao Ceo tabernáculo, tenda, casa, pelle, e outros no-
mes semelhantes, não tem respeito á figura, se não ao oíTicio com que
abarca, e recolhe todas as cousas em circuito. E ainda a pelle abarca o
animal em redondo á maneira do Ceo.
56 O argumento contrario das estrellas menores, e maiores, he só
apparente; porque estas estão sempre em a mesma distancia da terra, oU
em respeito da superfície, ou centro d'ella. Eo parecerem maiores quando
estão no horizonte, procede da crassidão dos ares, e vapores, que se põem
entre ellas, e nós, engrandecendo-as tanto mais, quanto mais, c mais gros-
sos são os vapores : não porque na verdade o sejão, mas porque o pare-
cem aos olhos : assi como parecerá maior qualquer cousa metida em agoa.
DAS COUSAS DO GRASIL CXXI
que fora d"ella, por respeito da crassidão do meio por onde passão as es-
pécies. Verdade lie, que lição mais longe de nossos olhos as estrellas,
quando se vêem no lionzonte, que (juando no meio do Geo; porque entre
nós, e o meio do Geo entrepõem-se somente dous elementos, de ar, e fogo:
e entre nós, e o Sol, v. g. quando está no horizonte, além d'estes dous
elementos entre põe-so mais o semidiamcíro da terra: porém a quanti-
dade d'esse semidiametro, e ainda a terra toda, em comparação da grande
distancia do Geo reputa-se por nada; e não he causa da maioria, ou meno-
ria das estrellas apparentes, senão a dos vapores já ditos, segundo a dou-
trina dos Philosophos, e Perspectivos Aristóteles, Séneca, Alphragano, e
outros. Mal negão logo com este argumento os autores contrários a figura
esplierica do Geo.
57 Livres já das principaes calumnias tocantes ao Geo; tratemos agorii
das da terra. Mas primeiro que entremos em prova, não posso deixar de
fazer advertência aos que estes meus escrittos lerem, que não passem sem
considerar a incerteza das cousas d"esta vida; e com que justiça roubavão
aquelles bons antiguos a toda huma região não menos que o Geo e a terra,
com provas tão pouco concludentes. Que disserão, se resuscitárão hoje
comnosco, e ^irão o ({ue vemos? Sem duvida que arrejiendidos disserão,
(jue a terra do Brasil, toda a Aniei'ica, e toda a meia Zona, a que chama-
vão Tórrida, não só não he teira inútil, seca, requeimada, deserta, inhabi-
tavel pêra gente humana; mas pelo contrario, que he iiuma região tem])e-
rada, amena, abundante de chuvas, orvalhos, fontes, rios, pastos, verdura,
arvoredos, e frutos pêra perfeita habitação de viventes, isto virão, e expe-
rimentarão primeiro que lodos os mortaes da Euix)pa, hum Cólon, e seus
companheiros: hum Gabral com 'toda sua armada, que com seu valor, o
trabalho mais rpie iiumano, descobrirão as parles desta Zona, como en-
cantada aos homens dos antiguos séculos. Isto ^emos, e gozamos nós hoje
os que as habitamos, com tal suavidade de temperamento, como em hum
paraíso da te ira.
58 Não só os homens de nossos séculos: houve tamijem muitos dos'
antiguos, que acertarão no coniiecimento doesta verdade. Assi o allirmavão
Kralhostenes, Polybio, Ptolomeo, Avicena, o não i)oucos de nossos Theo-
logos, de (jue faz menção S. Thomás na sua Teireira i)arte, qiiest. 10:2,
art. "2.", e em tanto grão, (jue chtigão a defender, (|ue n"esta parte' debaixo
fia linha Cífuinocial criara D(;os o I*araiso l<írrestre; [)or ser esía a parte
do mundo inais temperada, deleitosa, e amena [>era a \ida lumiana. Isto
SOL. I vm
CXXII LIVRO II DAS NOTICIAS
clamavão já tanto d*antos estes autores; porém não erao cridos. E ainda
que eu agora não me aproveite do que acrescentão do Paraiso ; não me
passa comtudo por alto pêra quando fôr tempo. Por entretanto não posso
deixar de agradecer-lhes o reconhecerem nestas partes tal temperamento,
c tão suave, que sejão forçados a passar pêra ellas o mesmo Paraiso da
terra.
59 Não he bastante a homens de bom entendimento ver, e experimen-
tar : sobretudo será gosto saber a razão fundamental de cousas tão notá-
veis, e ouvir confutai' os maiores Sábios dos séculos. O Achilles de suas
razões he este : O Sol quanto mais de perto fere, e quanto com raios mais
direitos, e a perpendiculo, tanto com mais violência aquenta, e seca: logo
ferindo á esta nossa região de muito mais perto que as outras, e com raios
direitos, que depois reflectem sobre si, e se encontrão liuns com outros,
he forca intendão o calor, aquentem, sequem, requeimem, e abrazem a
terra. Fracas são as forças deste Achilles, sem ser necessário feril-o pela
planta do pé, como fingião os Poetas : com o engano de suas mesmas ra-
zões, o venceremos. Os homens que habitão a parte do Sul do Brasil, que
chamão Rio de Janeiro, vêem por experiência, que na mór ausência do
Sol, e quando he ferida com raios mais obUquos, então está mais seca,
falta de chuvas, e humidades : e pelo contrario, em presença do Sol, e
quando mais ferida com seus raios direitos, então está mais húmida, abun-
dante de chuvas, e vapores : logo aqui não he verdadeiro aquelle seu prin-
cipio, que quanto o Sol fere mais de perto, e quanto com raios mais di-
reitos, tanto mais aquenta, e seca; e por conseguinte nem d'aqui formão
l)om argumento, que seja a terra do Rio de Janeiro seca, tórrida, requei-
mada, e inliabitavel aos homens.
GO A causa he muito digna de advertir-se, e com o exemplo de hum
alambique fica clara. Quando o fogo, que cerca o alambique, imprime n"elle
pouco calor, a experiência. nos mostra que ficão as hervas que hão de esti-
lar-se, quasi secas : nem despedem vapores ao alto, que depois resolutos
em frotas distillem agoas a modo de chuvas; e a razão he natural; porque
como foi pouca a força do calor, pouco licor pode desentranhar, e quando
este pouco desentranhado pretendia subir ao alto, pêra n'aquella segunda
região unir-se em gotas, e soltar-se em chuvas; o mesmo calor tornou a
consumíl-o, e deixou frustrado o intento. Pelo contrario, quando o fogo do
alambique imprime nelle maior calor, maior copia de vapores levanta ; e
podem estes subir ao alto, c esphera concava do instrumento, en'ellacon-
DAS COUSAS DO DÍIASII, f.XXIIl
vertidos em golas, resolvei-se como em chuva, e dar copia de agoa : por-
que o calor, ainda que giaride, c poderoso a levantar vapores grandes,
não he comtudo poderoso pêra gasíal-os todos, antes que cheguem a re-
solver-se era agoa. O mesmo passa no nosso caso. Quando o Sol por mais
remoto imprime menos calor n\iquella terra do Rio de Janeiro, ou outras
semelhantes, atrahe menos humidadcs; e como são poucas pôde gastal-as,
deixando a terra seca, e sem as chuvas que d'ella nascem : quando porém
o calor he maior, he também maior a copia de humidades; e como o Sol
não pôde gastar todas, he força subão ao alto, e ahi se converlão em
agoa, e resolvão em chuvas, reguem, e humedeção a terra, e por conse-
guinte moderem os calores. E ex-aqui como p(jde o Sol estar mui perlo,
o ferir a terra com raios direitos sem a secar, nem ainda aquentar dema-
siadamente : e esta razão milita, não só n'esta, mas em outras partes se-
melhantes 'da America. O que supposto, fique por conclusão, que a Zona
tórrida (exceptas algumas parles em que ha causas particulares) então he
menos seca, quando mais presente a fere o Sol; e então mais seca, quando
mais ausente está : e por conseguinte, que nunca pode torrar-se de seca,
nem abrazar-se de ardores ; porque a refrescão, e humedecem os vapores
desfeitos em chuvas : e mui ao contrario se philosopha n'esta matéria fora
dos Trópicos : porque alli a chuva com o frio, o calor com a secura andão
inseparáveis.
61 Outra causa ha mais commua, ainda a toda a região equinocial, o
he : porque como aqui os dias são iguaes com as noites, e o calor do dia
mais breve que nas outras partes de verão, d'aqui nasce que nas partes
equinociaes o frio da noite diminue o calor do dia; e o calor do dia, o frio
da noite ; e íicão quasi temperados calor, e frio. Muitas outras causas se
apontão : como he o sitio da terra, mais alta commummenlu, e mais vizi-
nha á meia região ilo ai-, que he mais fria, e mais isenta da repercussão
dos raios do Sol. A maior vizinhança do mar, as virações continuas vitaes,
e benignas, que commummente se experimentão, e lie força mitiguem o
calor : parece este hum singular* dom de Deos, tirado dos thcsouros de
■sua omnipotência. E sobre todas estas causas, tenho pêra mim ajuda lam-
bem certa condição, ou propriedade da terra particular, de que o Autor
da natureza dotou a esta região do principio do mundo, além da bondade
(los astros.
(i2 Segundo o (|ue temos rlito, Ixirn si; fica livrando de calumnias a
região do Brasil, e de toda a Ameri':.f. E íicvj tombem dcs.ipjwirtTendo , is
CXXIV LIVRO II DAS NOTICIAS
carrancas, e horrores da iinmcnsidade dos mares do Oceano entre a Ame-
rica, e as outras partes do mundo, que pareciao perpetuamente innavega-
veis. Estes temores tem desapparecido como fumo, á vista dos generosos
corações da gente Portuguesa, e Castelhana, que tem corrido o mundo to-
do, experimentando os poios mais distantes, Arlico, c Antarlico: passado
climas, regiões, e zonas nunca d"antes vistas. Pêra isto souberão achar ins-
trumentos, e armar vasos em o mar, que pareciao cidades portáteis, as-
sombro das nações estrangeiras, e em cuja comparação desapparecem as
aíTamadas navegações dos Eneas, Jasões, Ulisses. E sobretudo lique assen-
tado, que a nossa região nem he sem Ceo, nem sem terra, nem terra inú-
til, nem por extremo seca, tórrida, e requeimada : nem falta de chuvas,
fontes, rios, pastos, e arvoredos : e por conseguinte nem deserta, e inha-
hitavel à gente humana. Antes pêra que possa ver o mundo, o quanto
n"eslas mesmas cousas (se não excede) não dá vantagem ás demais terras,
e regiões do universo ; demonstraremos cada qual de suas bondades, e
propriedades de por si, tratando somente do Brasil, que por ora está á
nossa conta.
03 Negarão huns o ser a esta terra; outros lhe negarão as proprieda-
des: com os que neg;irão o ser, não temos que cansar-nos: cm terra do
Brasil estamos, n"ella escrevemos, nossos olhos a vêm, e nossos pés a pi-
são. Vemos n'ellas cidades populosas, muitas villas, muitos lugares : não
ha quem negue já esta verdade; porque assi foi ser.'ido o Autor do uni-
verso, que esta obra sua viesse a ser manifesta aos olhos dos homens, e
desenganasse ella mesma a sabedoria do mundo. Confesso que andando
correndo esta terra, e considerando a perfeição de sua fermosura, me ria
comigo algumas vezes, lembrado dos ditos dos antiguos, e do engano em
que viverão tantos séculos : e baste isto pêra os que negavão o ser a esta
terra; e outros dirão que não mereciáo, nem ainda esta reposta. Os quo
negavão as propriedades, vinhão ao mesmo que a negar o ser; porque,
secundo Aristóteles, as propriedades são as mostras do ser. E he certo,
que a mesma experiência que nos mostrou o ser do Brasil, nos mostra
juntamente a perfeição cks propriedades d"elle : e são estas taes, que pa-
recerão incríveis aos que as não virão. E por esta razão estou obrigado
a proval-as mais por menor; e d"ahi responderei depois aos autores que
forão cm contrario.
01 Em toda a boa Philoso})hia, da bondade das propriedades se coliie
a bondade do a-r. Quatio propriedades são necessárias pêra que por ei-
DAS COUSAS no MASIL CXXV
ias huma terra tenha nome de boa. A primeira he : Que se vista de verde :
a saber, de herva, pastos, e arvoredos de vários géneros. A segunda: Que
goze de bom clima, de ])oas influencias do Ceo, do Sol, Lua, e Estrcllas.
Terceira : Que sejão suas agoas ainmdantes de peixes, c seus ares abun-
dantes de aves. Quarta : Que produza todos os géneros de animaes, e bes-
tas da terra. Consta tudo do divino Texto na criação da terra; e por es-
tas quatro propriedades a approvou por boa o Autor d"ella: t^ProtuIit terra
herbam virenteni, et facientem sémen juxtà genus suum : lignumque facicns
fnidum, c hahens unuiiiqiiodque sementem secundum speciem suam : et vidit
Deus quôd esset bonum.» Diz o divino Texto no cap. i do Génesis: «Pro-
duzio a terra herva verde, que dava semente, segundo seu género: e jun-
tamente arvores frutíferas, que davão semente, segundo sua espécie, e vio
Deos que era boa a terra. » Ex a primeira propriedade, e por ella julga Deos a
terra por boa. (íFiant himinaria in firmamento cedi, et dicidant diem, ac
noctem; et sint in signa, et têmpora, et dies, et annos; et vidit Deus quôd
esset honum.y> Diz o mesmo capitulo: «Fação-se luminárias no Ceo, c di-
vidão a noite, o o dia; e sirvão de sinaes, de tempos, de dias, e de an-
nos; e vio Deos que era bom.» Ex a segunda propriedade, e he a do bom
clima, por onde julga a terra por boa. aProducant aqvai reptibile anima: vi-
ventis, et volatilc super ferram: et vidit Deus quôd esset bonum.yi Ex-aqui a
terceira, que produzão suas agoas viventes nadadores, e seus ares viven-
tes voadores, e i)or aqui julgou a terra por boa: <íProdncíit terra animam vi-
venteni in genere suo, jumenta, et reptilia, et beslias terrce secundum specie-
suas: cl vidit Deus quôd esset bomun.» Ex a quarta propriedade, que pro-
duza a terra os animaes, «í bestas d'ella em varias espécies; produzio, o
vi(» Deos qu(í era boa.
ihi D'aqui se vc, que não pinle a terra deixai* de ser boa, em que houver
estas qualro propriedades; nem i»oderã deixar de d(í ser defcctuosa aquclla.
cm que faltarem todas qualro, ou parte delias. Pois agora irei mostrando to-
das estas (]uatro propriedades jior excellencia na terra do Hrasil; e depois
d"ellas vistas, liraríMiios então a conseqiKnieia. E pêra que vamos por f»r-
dem, ponhamos a primeira resoiíieão.
fií) Primeira resolução. Uo, a terra d) Hrasil por (*xcellencia sempre
verde, chea de hervas, e arvoredos de vários géneros, entre todas as mais
terras do mundo, na conformidade do Texto do sua primeira criação.
N'esta pi-oposiffio só poderá (hividai-, ([uem não esteve no Hrasil, nem
teve noticia d"elle. A [trimeira cousa que admirão os que de novo vem a
CXX.V1 MVRO II DAS NOTICIAS
esta terra, tie o enfeite de sua perpetua verdura, quer de inverno, quer
de verão : parece estar sempre em huma eterna primavera, que recrea os
olhos, e convida as almas a louvar o Autor da natureza; porque sem du-
vida excede n^esta formosura a todas as outras partes do orbe; a essas só
enfeita de meias a natureza na primavera, emprestando-lhes a tapeçaria,
que no inverno lhes desarma. Porém a nossa parte enfeita de todo no ve-
rão, e inverno.
67 Dous géneros são de verdura, os que requero o divino Texto ; a
saber, de hervas verdes, e verdes arvoredos; e parecem ser estas que hoje
tem as mesmas hervas, e os mesmos arvoredos, com que sahio das mãos
do Criador esta nossa terra : «Protuht terra herbam virentem, lignumque,
etc.» Porque todas as bondades vemos n'estas hervas, e arvoredos, que o
Criador vio n^aquellas, pelas quaes deo a terra por boa: (.cVidit Demquôd
esscl bonum.» Tema verdura das hervas, e arvoredos do Brasil, engraçada-
mente as bondades seguintes, Enfeita a terra, alegra a vista, recrea o chei-
ro, sustenta o gado, cura os homens, engrandece os edifícios, farta os fa-
mintos, enriquece os pobres: não sei que mais bondades houvesse nas da
primeira criação. Treze géneros se contão só de herva, que serve ao sus-
tento do gado por montes, e canipinas immensas, que Deos criou por toda
esta costa ; por cuja bondade he tão grande a copia de gado, que pôde
contar-se por milhões. Campinas vi, não de muitas legoas, onde pastavão
oitenta mil cabeças de gado, com tal fecundidade, que huns se comião a
outros, e outros comião os cães, feitos lobos de puro vicio. Maior excesso
dizem ha nas Capitanias do Rio S. Francisco, Rio Real, Rio Sergipe, e
Rio Grande : e a tudo excedem as que correm do Rio dos Patos, altura de
vinte e nove grcáos até o grande Rio da Prata. He notável por aqui a bon-
dade da herva, os campos não têm fim, o numero do gado são milhões, e
milhões ; d'onde só pelos couros se mata, e se carregão muitos navios
d^elles, deixando a carne por inútil. Não sei que melhores, nem que mais
géneros de herva devia produzir. Á risca he o que diz o Texto sagrado :
mProtulit terra herbam virentem, et facientem sémen jiixta genus suiim.y) Os
mais géneros são de hervas maiores, todas floridas, todas cheirosas, todas
boas pêra infinitos remédios dos homens. Contal-as seria iníinito processo:
nem os de Dioscorides, nem outros maiores volumes bastarião ; logo com-
tudo porei alguns exemplos.
68 Os* arvoredos he o outro género de verdura, que pede o sagrado
Texto : c a bondade dos do Brasil he bem conhecida no mundo, por sua
DAS COUSAS DO BRASIL CXXVIl
fermosura, préstimo, e preço. He na verdade ornato da terra, e abono das
mãos do Criador, ver aqiiellas mattas immensas, gloria, e coroa de todo o
arvoredo do universo, os pés na terra, as copas no Ceo, formando bos-
ques deleitosos, brutescos sombrios, os mais agradáveis do mundo. Pelas
maiores calmas do verão penetrei o interior d "estas mattas, legoas inteiras,
á sombra sempre, sem vista de Sol, qual se fora na maior frescura da
primavera da Europa. Aqui admirava seus grossos troncos, sua procêra al-
tui'a, a diversidade de seus géneros, a suavidade de seu cheiro dos bálsa-
mos, copaigbas, almacegas, salçafrazes, etc. Alli a composição de seus sí-
tios, ordem, travação : apenas em partes se vè distancia porqne caiba hum
homem entre tronco, e tronco; com tão sôfrega emulação, que se vão impe-
dindo o lugar huns a outros. Muitos vi abraçados corpo a corpo, outros presos
com laçadas de cordas ; e quando cuidáveis que eram de linho, ou esparto,
erão ellas outra casta de arvore, a que chamão cipó. Em prova particular
de que todas as hervas, e arvores do Brasil são boas, cada qual em síu
género, e com bondade exquisita, e singular; leão-sc quatro livros inteiros
da Historia natural desta terra outras vezes citada; e folgará de ver o leitor
(além da verdura) o thesouro de virtudes medicinaes, que Deos poz n'esta
parte do mundo. Eu somente das hervas altas porei aqui poucos, mais apra-
zíveis exemplos, e depois alguns também das arvores.
Gí) Huma espécie mui galante, e causa de louvar o Autor da natureza
lie, a que chamamos aiKuiás ; seu fruto he a modo de pinha de Portugal ;
o gosto, e cheiro a modo de maraciitão o mais fmo; suas folhas são seme-
lhantes a herva babosa. A cabeça do fruto galanteou a natureza com hum
penacho, ou grinalda de cores aprazíveis : esta separada, e entregue á ter-
ra, he principio di3 outro ananás semelhante: além de i[ue dentro do mesmo
fruto nasce; semente delle cm ([uantidadc. Suas bondades servem pêra o
gosto, c medicina, come-se em fruta, e faz-se em conseiva durável. Do
sumo d"este frutr) misturadít com agoa fazem os índios medicina, da mes-
ma maneiíM que nós do hydromel; seu licor espiimido de fresco, e bebido,
he eíllcaz remédio pêra supressão de ourina, e dór de rins, e juntamente
contra veneno, especialmente contra o sumo da mandioca, ou raiz d'ella.
I)'esta herva, e fruto trata Monardes cai). ^-^ ^f^'^'^ largamente : nós o ((ue
basta pêra nosso intento.
70 Outra espécie, á vista desj)rezivel, mas chca d(; préstimos pêra a
vida humana, ho a da herva chamada carágoalá. He, florida, e tem varias, e
notáveis espécies. Huma delias he a verdadeira herva babosa mediívinal,
CXXVIír LIVRO II DAS XOTir.IAS
conliecida, de que iisão nossas boticas. Oiiíia cspocic he mais silvoslrr,
cresce cm grande quantidade, e lança de si espigões de comprimento do
huma lança, floridos em ajponta. SeiTe^esta planta pêra vários nsos dos
homens; porque plantada cm^cií-cuito, serve de cerca graciosa, a hortas,
quintas, e qualquer outra soríe do fazenda. As folhas em pedaços son-om do
telhas ás casas dos índios. Do corpo das mesmas folhas so tirão estrigas
a modo de linho, e mais fortes do que linho, de que se fazem linhas, cor-
das,, e pano, especialmente na Nova líespanha. Ferido o espigão d'esta
p4anta depois de bem madura, he cousa muito pêra ver lançar de dentro
de sua cavidade tão grande quantidade de licor, que pôde encher hum
grande pote, o de huma somente. D'este licor fazem os índios vinho, vi-
nagre, mel, e assucar; porque he muito doce, c cozido, coalha-se a modo
de torrões, e do mesmo sumo misturado com agoa fazem vinho, do assu-
car fazem o vinagre desfeito em agoa, e exposto ao Sol, tempo de nove
dias. Este mesmo sumo move o ventre, provoca ourinas, alimpa os rins,
veas ureteres, c bexiga; desfaz a pedra, e serve de outras curas, se o mis-
lurão com tabaco. Com o sumo de huma de suas folhas assada, espremi-
do, e misturado com hum pequeno de salitro bem moido, untados os si-
naes, ou cicaírices das feridas, se são modernas^ em breves dias desappa-
recem, como se nunca as-houvera. As mesmas foilias tostadas, e applicadas,
são medicina efficaz pêra os espasmos, e miligão as dores, especialmente
bebendo juntamente o sumo, porcp^ie tornão estúpido o sentido do tacto.
D'esía planta escrevem vários autores, e principalmente Carlos Clusio em
sua Historia das plantas, liv. v. Outras espécies tem esta planta, mas são
de menos conta.
71 O género de hcrva de raiz mais notável, e proveitosa do Brasil, he
a que chamão mandioca. Tem debaixo de si diversíssimas espécies, a sa-
ber: mandijbuçú, mandijbimana, mandijbibiyána, mandijbiyuruçii, apitiiiba,
aipij ; e este se divide em mui varias espécies apontadas á margem (*). O
sumo d" estas raizes verdes (exceptas as dos aipijs todos) he venenoso, e
mortal a todo o género de vivente. He esta planta toda a fartura do Bra-
sil, e he tradição, que a ensinou aos índios o Apostolo S. Thomé, cavando
a terra em montinlios, e metendo em cada qaial quatro pedaços da vara
de certos ramos, que chamão manaiba, de comprimento como de hum pal-
mo cada hum dos pedaços, cujas três partes vão metidas em terra, que
(*) Aipijgoaçii. aijjijarandó. nipijcaba. aipijeoananilja. aipijiaborandi, aipijcurumú, aipijiuru-
mÚDíiri, aipjjiurucuya, aipijniacliaxera, aipijinaiuacaú, aipijpoca, aiuijtayapoya, aipijpilanga.
i
DAS COUSAS DO DRASII, CXXIX
fiquem em ftjmia do cruz : o d"alii a dez dias commummente brolão os
pedaços do vara por lodos os nós ípiu Icm ameudados, c dentro cm set(3
ou oilo mezes crescem cm altura do dous, até três covados; supposto que
he necessário ordinariamente hum anno pêra perfeição de seu fruto, que
são as raizes, duas, quatro, seis, e muitas vezes cliegão a dez, mais ou
menos compridas, c grossas, conforme a fertilidade da terra.
72 D"esta raiz tirada da terra, raspada, lavada, e depois ralada, espre-
mida, o cozida em alguidares de barro, ou metal, a que os Brasis chamão
vlmoyipaba, os Portugueses forno, se faz farinha de três castas : meio co-
zida, a que chamão vylinga; os Portugueses farinha ralada : mais de meio
cozida, que chamão vyéçacoatinga : c cozida de todo, até que fique seca,
que chamão vyatá; os Portugueses farinha seca, ou de guerra. A farinha
ralada dura dous dias, a meia cozida seis mezes, a de guerra, ou seca,
hum anno. Todas estas servem de pão aos Brasis, e gente ordinária dos
Portugueses, e a juizo de muitos que correrão o mundo, abaixo de pão
de Europa, não ha outro melhor. He muito grande a abundância d"estc
mantimento : não farta somente o Brasil, mas podéra abranger a muitos
Estados, e antiguamente fartava o Reino de Angola, antes que lá usassem
d'esta planta. Do sumo d'estas raizes quando se espremem, fica no fundo
lumi como pé, ou polme, do qual, tirado, c seco ao Sol, fazem farinha al-
víssima, mui mimosa, chamada tipyoca : e do mesmo polme obreas pêra
cartas, e goma pêra a roupa, e mantcos.
73 Prepara-se também d'outras maneiras a mandioca : partem-se as
raizes verdes depois de limpas em diversos pedaços, estes se põem a se-
car ao Sol por dous dias; depois de secas, pizão-sc em hum pilão, c faz-se
farinha, a que os índios chamão typyrati ; os Portugueses farinha crua.
D'esta fazem huns bollos alvíssimos, e delicadíssimos, que he o comer
mais mimoso, ou em (juanto moUes, e fi'escos, ou depois de duros, e tor-
rados: e estes se guardão j)or muito tempo, e chamão-lhe os bulios mia-
peatá, que vai o mesmo (|uc biscouto. Lanção tambimi tle molho em agoa
estas raizes por três, quatro, ou cinco dias, até que amolleção, c (festas
assi molles, chaniíidas mandiópuba, fazem farinha mais mimosa, chamada
vypuba; os Portugueses farinha fresca: e he o crtmer ordinário da gente
Portuguesa mais limpa em lugar de pão, feita todos os dias; ponjue pas-
sado hum dia não hi; já tão boa. Seção também estas raizos ao fogo, C!
guardão-nas por do maior estima pêra vários usos : chamão-lhe carimá.
l)"eslas pizadas fazem huma lai-inlia alvissima, e (fella os mais esíimados
CXXX I.IVRO II DAS NOTICIAS
mingaos; que he a modo de papas siitis, e medicinaes, frescas, contra pe-
çonha. Também se fazem d'ella boUos doces com manteiga, e assucar. To-
das eétas espécies de mandioca crua sáo peçonhentas aos homens que as
comem, excepto o aipijmachaxera; o qual assado, he muito gostoso, e sau-
dável : porém os animaes brutos todos comem estas raizes cruas sem pre-
juízo algum ; que como não sabem lançal-a de molho, assal-a, ou cozel-a,
accommodou o xVutor da natureza as cousas á necessidade de suas cria-
turas.
74 Da raiz do aipijmachaxera fazem também os índios seus vinhos, a
que chamão caúymachaxera ; e além d'este outra casta na forma seguinte.
Mastigão as fêmeas a mandioca, e lançada em agoa assi mastigada, fazem
outra espécie de vinho cavícaraixú; até as folhas da mesma manayba piza-
das, e cozidas, são outro pasto gostoso aos índios. A farinha ralada posta
sobre feridas velhas, he único, e mui eíTicaz remédio pêra alimpal-as, e
cural-as. A mandioca, a que chamão caaxima pizada, lançada na agoa, e
bebida em forma de xarope, he finissima contrapeçonha. De outra planta
semelhante a esta, de que se faz outro género de pão nas partes da Nova
Hespanha, {ratão ]\lonardes, cap. xxv, e Oviedo no Summario, cap. v; po-
rém não he de tantos usos como esta.
73 Jamacarú, ou urumbeba, ou jarácatiyá, he género do cardo agres-
te, espinhoso, informe, amigo de lugares mais secos, e arenosos, desprezo
das plantas, quanto à vista exterior; mas quanto á qualidade interna, honra
da natureza. He cousa maravilhosa ver suas muitas, e varias figuras, quaes
as de hum Protheo, já de herva rasteira, já de arvore erguida, já pequena,
já grande, já grosseira, já delicada, já sertaneja, já marítima, sempre ves-
tida no exterior com o cilicio de seus espinhos, mas sempre no interior
nobre nas qualidades. São muitas em numero suas espécies : da variedade,
e conveniência de duas d"ellas faltarei aqui somente. Nasce a primeira ordi-
nariamente nas praias, e lugares secos: o tronco humas vezes he triangular,
outras quadrado, grosseiro sempre, e armado de espinhos : d"este (contra
costume da natureza) em lugar de ramos, nascem outros troncos, os quaes
brotão em flores muito graciosas, brancas, e de cxcellente cheiro : a estas
succedem no tempo de verão humas frutas vei-melhas, na grandeza, e fei-
tio semelhantes a hum ovo de pato ; no interior branquíssimo, mas cheio
de sementes pretas. He este fruto apetecido dos caminhantes sequiosos,
por seu bom cheiro, por sua humidade gostosa, que satisfaz a sede: e pêra
este effeito se applica aos febricitantes: porque resfria, c humedece o pa-
DAS COUSAS DO BRASIL CXX\I
lato, lira o desejo de agoa, e recrea; corrobora o coração: e com mais
força o sumo espremido, he remédio único ás febres biliosas. Outros in-
divíduos ha da mesma espécie, huns rastando por terra, outros em pé ;
huns a modo de cobra, outros de coroa, outros de muitos braços: não se
fingem mais varias formas a hum Protheo.Nãohc de menos admiração a se-
gunda espécie, chamada dos índios urumbeba, do mesmo género de cardo
espinhoso. Acha-se esta somente em mattas desertas ; o tronco todo espi-
nhoso, alto, direito, e com alguma semelhança de pinheiro de Europa,
ainda nas folhas. A esta espécie attribuem os índios varias bondades, que
como entre nós não estejão em uso, não me detenho em contal-as.
7G Acabemos estes exemplos com duas espécies de plantas singulares
no mundo. A huma d'ellas chamão herva viva, e cuidarão alguns que seno-
mea assi por capaz de vida sensitiva, pelos raros effeitos que vêem; porque
basta tocar-lhe na ponta de hum de seus ramos, pêra que logo toda ella,
e todos elles, como sentidos, e aggravados, desordenem a pompa de suas
folhas, murchando-se de repente, e quasi vestindo-se de luto (quaes se fi-
carão mortos, ou envergonhados) até que passada a primeira cólera, torna
em si a planta, estende de novo seus ramos, e tornão a ostentar sua pom-
pa. He planta emula do Sol : em quanto elle vive, vive ella; e em se pon-
do, com elle se sepulta, enrolando a gala de seus ramos, quasi amortalha-
dos em suas mesmas folhas, tornadas de côr de luto, até passar o triste
da noite, e tornar o alegre do dia : segredo só do Autor qne a fez. Ho
outrosi singular esta herva; porque he juntamente veneno, e contravc-
neno finíssimo. Com pequena quantidade feita em pó, dada em qualquer
convite, matão os índios com grande dissimulo a seus contrários ; e á fi-
neza de sua peçonha (sendo tão grandes hervolarios) não têm achado antí-
doto mais próprio, que o de sua mesma raiz bebida em pó, ou em sumo.
77 O outro portento das hervas, graça dos prados, brinco da natureza,
e devação da piedade chrislãa, he aquella a que chamão os Portugueses
herva da Paixão, os índios maracujá, os Castelhanos da Nova Ilespanha gra-
nadilha. Tem nove espécies, maracujá guaçú, mirí, satá, elé, mixira, pe-
roba, pirúna, tcmacúja, una. IJuas são as mais principaes de que só fatia-
rei, guaçú, e mirí. Cresci; a maneira de hèrva, em breve tempo trepa altas
arvores, grandes tectos, espaciosas latadas, a modo de parreira, cobrindo
tudo de huma verdura graciosa, c varia, cntreçachada de folhas, flores,
frutos em numerosa quantidade. He a folha das mais agradáveis, e frescas
do Brasil, e por este respeito sua sombra mui apetecida.
rXWU LIVRO II DAS NOTICIAS
78 A flor lic o mysterio único das flores. Tem o tamanho de hnma
grande rosa; e n"estc breve campo formou a natureza lium como ttieatro
dos mysterios da P»edempção domando. Lançou por fundamento cinco f(j-
Ihas mais grossas, no exterior verdes, no interior sobrosadas: sobre estas,
poslas em cruz outras cinco purpúreas, todas de liuma, e outra parte. F
logo doeste como tlirono sanguineo, vai annando hum quasi pavilhão feito
de huns semelhantes a fios de roxo, com mistura de branco. Outros lhe
chamarão coroa, outros míjlho de açoutes aberto, e tudo vem a ser. No
meio d'este pavilhão, ou coroa, ou molho, se vê levantada huma columna
branca, como de mármore, redonda, quasi feita ao torno, e rematada pêra
mais graciosa com huma maçãa, ou bola, que tira a ovada. Do remate d'esta
columna nascem cinco quasi expressas chagas, distintas todas, e pendura-
das cada qual de seu fio, tão perfeitas, que parece as não poderia pintar
n'outra forma o mais destro pintor: se não que em lugar de sangue tem
por cima hum como pó sutil, ao qual se applicaes o dedo, fica n"elle pin-
tada a mesma diaga, formada do pó, como com tinta se podéra formar.
Sobre a bola ovada do remate, se vêem três cravos perfeitíssimos, as pon-
tas na boUa, os corpos, e cabeças no ar : mais cuidareis que forão alli pre-
gados de industria, se a experiência vos não mostrara o contrario. A esta
flor por isso chamão flor da Paixão, porque mostra aos homens os prin-
cipaes instrumentos delia ; quaes são, coroa, columna, açoutes, cravos,
chagas. He flor que vive com o Sol, e morre com elle: o mesmo he se-
pultar-se o Sol, que fazer ella sepulchro daquelle seu pavilhão, ou coroa,
já então côr de luto, e sepultai' n'elle isentos os instrumentos da Paixão
sobreditos, que nascido o Sol torna a ostentar no mundo. Na fermosura,
e no cheiro traz esta flor contendas com a rosa; porque no artificio, ma-
nifesto he que a excede. Persevera quasi todo o anno, com succcssão de
humas a outras.
79 Os frutos d"estas duas espécies (deixo os das outras sete menores)
são como grandes peros de Europa, e ainda dobrados; huns redondos,
outros ovados : a côr he graciosa, mete de verde, amarella, e branca : a
casca grossa, porém não dura. Está esta cliea de huma polpa branca, suc-
cosa, entrcçachada de sementes pretas, de cheiro c gosto suave. He re-
frigério dos febricitantes, desafoga, e refrigera o coração, finitos a derão
em lugar de xarope cordial, com grande efleito. Reprime os ardores, ex-
cita o appetite do cibo, e não faz damno ao enfermo, posto que coma
grande quantidade, antes recrca, e apaga a sede. Semelhante effeito tem
DAS COUSAS DO DRASIL CXXXIII
as flores, c cascas do pomo, postas em conserva. Tem outra virtude in-
signe esta i)lanta, posto que a muitos incógnita; porque he de igual, ou
maior eíTicacia, que a salsaparrillia, pêra desoljstruir por Tia de suores,
ou ourinas; porque dada a beber esta herva algum tanto pisada em vinho,
ou em agoa, sem aballo algum, e em mui breve tempo, expelle as immun-
dicias do ventre, e corrobora as eníranlias. E as mesmas folhas pizadas,
lançadas em agoa fervente, até que íique tépida, são remédio eílicacissimo
pêra o mal das almorreimas, lavando-se com ella. As mais hervas não posso
descrever, porei só os nomes. Camará herva de seis espécies, e todas
regalo, e mezinha dos homens. Philipodio quatro espécies. Avenca, herva
de cobras, herva dos ratos, herva do bicho, herva pulgueira, salsaparrilha,
cipó de camarás, béthele, pimenta quatro géneros; gingibre, cayapiá, caa-
péba, caraóba, caátimay, caâtaya, jetíca, umcatú, jaborandí, nliambí, tajó-
ba, jeçapé, iiiimboya. Todas estas são hervas medicinaes, das mais conhe-
cidas, e usadas, de virtudes tão raras, que fora necessário hum Dioscorides
pcra descrevel-as. São contrapeçonha íinissima, e remédio de quasi todos
os males do Brasil, se bem se soubessem appHcar a modo dos índios do
sertão. D'estas poucas hervas referidas, poderá julgar o leitor, se se ajusta
bem com o Texto sagrado, a verdura, e i)ondade da tei"ia do Brasil. Me-
lhor julgara se de todas ouvira a relação: porém tanta detença, nem hc
de meu intento, nem assumpto fácil. O curioso que mais desejar, veja os
livros acima referidos de Guilhelmo Pinçon, e de Jorge Marcgravi, e verá
huma cousa grande.
80 Das arvores, que hc ouli'a parte não menor da verdura, e bondade
da terra, era razão que víssemos também alguns exemplos : porém hc no-
tório no mundo o gráo subido da ])erpeliiá verdura dos arvoredos, e !)os-
qiies do Brasil. A terra toda [lóde chaniar-se hum só l)us(jue. Pelo (pie,
deixando por mão a frescura, e preciosidade dos ciídros, angelins, quasi
ébanos, caráj)iiiimas, mocetaybas, claraybas, jacuybas, maçaiandúi)as, ci-
bipyras, vinhalicos, [)idiunuyíis, tapapinhoás, peról)as, çaj)ucáyas, jacaran-
dás, páos reis vermelhos, amarellos, palmeiras, coqueiíos : deixada outro
si a delicia das arvores, os bálsamos, coi)aigbas, ibicuybas, icicatybas, je-
laybas, salçafrazes, canaíistolas, tamarinhos, (|uasi cravos, canelas, ele,
deixando todas eslas espc-cies, descrínerei aigmnas s()niente das (|ue são
fiHJctiferíis, pêra gosto dos qui; são i-uridsos.
81 Ih; o acajú, ou cajueiro, a mais aprazivel, e graciosa de todas as
arvores da America: e poi- ventura de todas as de Euiopa. He muito peia
CXXXIV LIVHO II DAS NOTICIAS
vei' a pompa d'esta arvore, quando nos mezes de Jiillio, e Agoslo se vai
revestindo do verde fino de suas folhas : nos de Setembro, Outubro, e
Novembro, do branco sobrosado de suas flores; e nos de Dezembro, Ja-
neiro, e Fevereiro, das jóias pendentes de seus frutos.
82 Desde a raiz até a ultima vergontea, tem grandes mysterios esta
pomposa arvore. O vestido mais tosco de seu tronco serve de tintas pre-
tas : o mais interior a modo de camisa, he buscado dos oíTiciaes cortidores
pêra tinta amarella : a madeira do tronco, e braços, he apetecida dos que
fabricão obra naval; tir5o d'ella curvas, e leames fortíssimos. As folhas
sao dotadas de cheiro aromático, principalmente em tertipo de verão. Brota
em flores mui galantes de branco vivo sobrosado, de cheiro tão suave,
quando o Sol as fere com seus raios, que enche as mattas, e recrea os ca-
minhantes. A sombra d'esta arvore he saudável : tanto atrahe com esta os
encalmados caminhantes, como atrahe com sua fermosura os olhos curio-
sos. Mas o que mais he de admirar, que nos mezes de seu maior enfeite,
esteja esta arvore chorando : não sei se pela vaidade do mundo que lhe
sobeja, se pela que ainda lhe falta : o certo he (|ue suas lagrimas são la-
grimas Sabéas de licor crystalino, perfeita gomma arábia, e não sem fra-
grância de cheiro. Multiplicando-se estas humas sobre outras, fazem huns
ramaes a modo de pendentes chuveiros, que servem de ornato a ella, e
aos curiosos de resina, grude mais delicado. Da mesma gomma usão tam-
bém os índios pêra remédio de muitos seus achaques, desfeita em pó, e
bebida em agoa.
83 He singular entre todas as arvores : parece que de propósito busca
ranchos estéreis, alheios de consorcio das outras : nos areaes mais çáfios,
ahi verdeja mais, alii sahe mais alegre com sua ufania, enchendo talvez
legoas inteiras de desertas praias, e areaes inúteis; e quanto he mais secco
o lugar, e o tempo, tanto he maior seu vigor; porque parece que atraves-
são suas raizes o profundo da terra, e d'ella chupão a modo de esponjas,
o humor de que se alimentão.
84 Os pomos d' esta arvore parecem feitos de sobremão da natureza,
(juando mais curiosa. He hum feito de dous, ou dous que fazem hum, e
ambos de diversas espécies : cousa rara no mundo. Ao primeiro chamão
cayjú : he fruta comprida, a modo de pêro verdeal, porém maior : huns
são amarellos, outros vermelhos, outros tirão de huma, e outra côr; todos
succosos, frescos, e doces, quando asazoados. Igualmente matão aos encal-
mados a sede, c aos necessitados a fome : a sustancia interior hc espon-
DAS COUSAS DO BRASIL GXXXV
josa, succosa, e sem caroço, ou pevide alguma. Pêra os índios lie toda a
lartui"a, todo o seu mimo, e regalo; porque he seu comer, e beber mais
prezado. Quando verdes, ou seccos ao Sol, servem _de suas comedias : e
d'elles mesmos, quando maduros, tirão os vinhos mais preciosos seus,
na maneira seguinte. Vão-se a elles como á vindima, e conduzida grande
quantidade, juntão-se logo os vinhateiros destros no oíTicio, em quanto es-
tão frescos, e tirada a castanha vão espremendo poucos, e poucos, ou ás
mãos, ou á força de certo género de prensa de palma, que chamão tipity,
e aparado o licor em alguidai-es, o vão lançando em grandes talhas que-
pêra isso obrão, e chamão igaçábas, onde como em lagar ferve, e se torna
em vinho puro, e generoso: e he o que bebem com mais gosto, e guai'-
dão largos tempos, e quanto mais velho, mais eíTicaz. Tem-se por felices
aquelles, cujos distritos abundão doestas arvores, e sobre elles armão suas
maiores guerras. Do bagaço secco ao Sol, e depois pizado, fazem a mais
mimosa fai'inha que pôde servir a seu regalo, merecedora de ser guardada
em cabaços pêra seus maiores banquetes.
85 As castanhas tem semelhança de rins de lebre. Em quanto verdes
fazem d'ellas guisados. Depois de maduras, assadas são comer doce, e
suave, iguaes ás nozes de Europa : confeitão-se a modo de amêndoas, e
em falta d"estas supprem a matéria dos iloces secos. Por esta fruía contão
os naturaes da terra seus aniios : o mesmo he dizer tantos annos, que tan-
tos acajús : como se dos acajús dependesse a boa fortuna de seus annos :
e na verdade, parte he da felicidade natural d'esta gente.
80 A arvore chamada çapucáya, he lambem digna de ser notada, pela
galantaria do finto. São arvores ordinariamente de troncos grossos, e por
extremo altos. Seus pomos são do tamanho de cocos da índia, quando es-
tão com a prinieii'a casca, posto que mais esphericos. Dentro nestes (tos-
cos, e grosseiros por fora) cria, e esconde a natureza quantidade de frutos
doces, e suaves, que podem encher hum prato, á maneira de castanhas,
mas de melhor sabor, enxeridos em certo visgo a modo de J)agos de ro-
mãa. Remata-se esta como caixa com hum buraco Ires, ou quati'0 dedos
de largo na cabeça inferior, porém fechada com huma como rolha da pró-
pria matéria, tão apertada, e armada de dureza, ella, e toda a casca, que
com diniculdade se rende a uiu forte machado. Ensinou comtudo o bogio
sendo animal jjruto, modo mais fácil de abril-a; porque pegando com as
mãos no ramo, em cuja ponta nasce, dá com o pomo no tronco da arvore
tantas vezes, até que por si se desí)edc a rolha, e aberto o l)uraco tira as
CXXXYI LIVRO II DAS NOTICIAS
castanhas, cujo pasto lhe hc muito agradável: como também a índios, c
Portugueses. D'estes vasos depois de secos, usão os Tapuyas, em lugar
de pratos, e panelas. Ha tanta quantidade d"e5tas arvores em alguns ter-
renos, que podem sustentar com seu fruto exércitos inteiros. lie madeira
a d"esta arvore incorruptível, e por tal mui buscada pêra eixos de enge-
nhos. A casca de seus troncos serve de estopa pêra calafeto de barcos. Se
houvéramos de descrever em particular as arvores todas do Brasil, íliría-
mos hum grande volume : do que tantas vezes temos dito, ficão bem co-
nhecidas as infrutíferas. Das que dão fruto, além dos dous exemplos iffe-
ridos, apontarei pouco mais Cfue os nomes; e são os seguintes, pela lingoa
brasílica ordinariamente.
83 Mangabeira, cujo fruto em suavidade de gosto, e cheiro, não con-
cede vantagem a muitos da Europa. Mocujé, que se não excede, não cede
á mangaba na doçura do fruto. Pitangueira, seus frutos são como ginjas
de Portugal em gosto, e qualidade. Pitombeira^ seu fruto he a modo de
nespas; porém mui doce, e de cheiro suave, que recende a almíscar. Goia-
beiras, e ai^açamros são varias espécies : o fruto dos que chamão miry he
como perinhas, e tem o sabor das sanjoaneiras de Portugal. Igbánemixama,
tem fruto a modo de ameixas çaragoçanas, de bom sabor. Pocobeiras, o
])ananeiras; seu frato he de todo o anno; suas folhas por muito viçosas
chegão a ter de comprimento vinte palmos, e até quatro, ou cinco de lar-
go. Jaboticaba; seu fruto nasce no mesmo pão da arvore, desde a raiz até
o ultimo das vergonteas; he preto, redondo do tamanho de ameixas, ede
sabor de uvas, suave, até pêra enfermos. Bachoripari, he seu pomo a modo
de frutas novas de Lisboa. Umbu, tem fruto a modo de ameixas, e as
raízes como balancias esponjosas, servem de comer, e beber aos cami-
nliantes sequiosos em falta de agoa. Pinheiros brasílicos, arvores altíssimas,
cujas pinhas são quasi de tamanho de botija; cujos pinhões são mais com-
pridos que castanhas, não tão largos, mas mais gostosos : comem-se crus,
assados, ou cozidos, e sustentão exércitos grandes. Ha outros que cha-
mão pinhoeiros mais baixos, cujos pinhões são tão saborosos como os de
Europa; porém são purgativos. Araticú he arvore mui fresca, de três es-
pécies, cujos frutos tem feitio de pinha. O que chamão araticúapé, lie do-
ce, e suave: o a que chamão araticúgoaçú, toca de agro doce, mui fresco
pêra tempo de calma. A terceira espécie não se come. Guttís são arvores
utilíssimas, do três espécies ; seu fruto tem feitio de ovo, mas he muito
maior: o cheiro bom, o sabor medíocre. Gaiazeiros tem a mesma grande-
PAS- COUSAS DO bRASIJ, CXXXATt
za ; 03 frntos como grandes ameixas reinoes, verdes, e ainarullos. Japina-
beiro he semelhante em altura : seus frutos como grandes maçãas, servem
aos índios igualmente de comer, e enfeite com sua tinta. Tamarinhos, ca-
nafistolas lioitenses, e bravias : palmeiras hortenses, e bravias : coquei-
i-os hortenses, e bravios, diversas espécies, com diversas castas de fruto.
Por evitar fastio, ponho á margem os nomes dos demais; ahi os poderá
ver o que fòr curioso (*).
88 Estas sâo as arvores do Brasil frutíferas, verdes em todo amio, e
aprazíveis aos olhos. Não fallo aqui das que são próprias de Europa, da^
quaes por maior parte se dão n'esta terra. Todas estas arvores tem muito,
ou pouco de virtude medicinal, como vimos nas hervas : grande preroga-
tiva de sua bondade. Algumas d'estas se vêem por essas mattas, que além
da natural verdura, se vestem, e enfeitão de taes, e tão fermosas flores,
que representão armações aprazíveis, humas vermelhas, outras roxas, ou-
tras brancas, outras amarellas a modo de Maio de Portugal, e talvez todas
juntas, e com tal graça, í[ue parece se poz a natureza a debuxar a mais
pintada primavera. Vi muitas destas com assas de recreação, e não soube
comparal-as a algumas outras do nosso mundo velho. Não posso aqui de-
ter-me mais : quem quizer ver extensamente a bondade, verdura, e fres-
cura do arvoredo do Brasil, busque os autores acima citad(js; que eu vou
depressa, e hei de acudir a meu intento.
89 Segunda resolução.^0 clima do Brasil he por excellencia bom entre
todas as mais terras do mundo. E he a segunda propriedade, que requere o
Texto sagrado na bondade da terra segundo a(|uellas palavras: ^ifiant lu-
minária in firmamento cwli, et dividant diein, ac noctem, etc. » Do que dis-
semos no principio, quando livramos esta terra das calunmias dos que
querião roubar-lhe o Ceo, se podem tirar as excellencias, que n"este lu-
gar são necessárias pêra mostrar que he bom este clima; porém que seja
por excellencia bom, também não será difficultoso mostral-o a quem fizei-
comparação entre elle, e os climas sabidos da Euroí)a, Afi-ica, e Ásia. Não
quero eu ser só o autor d'esta resolução. Vejão-se pr-inieiro as excellen-
cias que d'este clima engrandece MalTeo, liv. n da Historia da índia, onde
diz assi : «/íer/jo fcnne tola imprimis amaina esl; coeli admodàm jucunda aa-
lubrisque tcmperies: leniam (/uijipe à muri vcnlornin commodissimi flalus ma-
(•) Aiiflá, engá, joá, mo(;ar.in(|iil»;i, niiiricí, amoreirn, ncquiá, ib;iraé, Ruail)irab;i, ihariiiia, ibe-
rába, ib.ixmna, japaraiidib.). jabolapif,iha, jaracatiá, ibamrába, ibaramuci, ibapuruiij^a, ftttHifrha^
raiúba iimari: 5ão fruilas agrfíteí-, servem a índio?, ca gado.
VOL. I
IX
CXXXVm LIVRO II DAS NOTICIAS
tutinos vapores, ac nehulas tempesticè disjiciunt, soksque puríssimos, ac ni-
tidissimos reddiint. Scalet ea tota fere plaga fontibus, ac syhis, et amnibus
inclilis, etc.» Quer dizer: «He esta região do Brasil sobretudo amena; o
temperamento do clima jucundo, e saudável ; porque a viração suave dos
ventos mareiros desfaz os vapores, e névoas matutinas, e toma os astros
puríssimos: ffuasi toda está adornada de variedade de fontes, rios, e ar-
voredos.» O mesmo tem Theatrum orbis na descripção do Brasil, pelas
mesmas pala\Tas de Maffeo, por isso as não treslado. Gotofredo em sua
Arcontologia cósmica, foi. 314, diz assi: «Fruilur Brasiliaaére óptimo pro-
pter ventos suavissimos, qui proper semper ibi spirant: abundai fontibus, flu-
tijs, sylvisque; distinguiturque in plana, et leviter edita collibus; seceper amceno
virore spectanda, et varietate plantarum, et animalium.* Como dizendo:
«Goza o Brasil de ares boníssimos, por razão de ventos mui suaves, que
n'elle quasi sempre aspírão : he abundante de fontes, rios, e bosques, va-
riado suavemente de valles, e outeiros, e revestido de verde, sempre apra-
zível.» Guilhelmo Pinçon no liv. i da Medicina do Brasil, diz assi: aBra-
silia autem prcBstantissima fitcile totius Americw pars penitus introspecLa, ju-
cunda in primis salubrique temperie excellit usque aden, tit mcritô cum Eu-
ropa atque Ásia de clementia aèris, et aquarum cer/eí.» Diz que o Brasil,
prestantissima parte da America, he de mui agradável, e saudável tempe-
ramento, com tanta excellencia, que com razão pôde contender com Eu-
ropa, e Ásia, acerca dos ares, e das agoas.
90 Porém eu quero mostral-o ainda com razões. Averiguada cousa he,
que a bondade do clima de huma região, se ha de contar pela maior feli-
cidade delia; e que esta só, excede a todas; e que todas as que pôde dar
a natureza, cedem á bondade daquelle. Porque como da bondade do cli-
ma, e da concórdia de suas quatro qualidades, dependa a vida, saúde, c
contentamento dos viventes; pouco importarião todas as mais naturaes fe-
licidades, se com falta da vida, saúde, e contentamento se houvessem de
lograr.
91 A medida de toda a felicidade natural, foi o estado do Paraíso ter-
reno, por isso chamado de deleites : e toda esta sua felicidade consistia no
temperamento proporcionado dos quatro humores procedidos das quatro
qualidades do clima; com que o homem vivera pêra sempre, e sempre com
saúde, e gosto; senão o impedira a amargura do peccado. D'esta medida
tem descaído o género humano; e (pianto mais distante está cada qual das
regiões do mundo daquelle clima, c temperamento primeiro, tanto mais
DAS COiSAS DO lillASIL CXXXIX
distanle está d'aqiiella primeira felicidade. Na conformidade d"esl,a doutri-
na certa, dizem alguns Médicos, que não ha clima no estado presente da
natureza descaída, que não seja doentio, nem homem que não seja doente.
E dizem bem; porffiic não ha clima, nem temperamento, que não diminua
daquelle primeiro do Paraíso: e como aquellc era a regra da vida, saúde, e
contentamento do homem ; tudo o que he menos, he menos vida, menos
saúde, menos contentamento. Se não que, como fomos gerados com essa
mesma des temperança, e não gozámos outra melhor; não advertimos no
que nos falta: mas pode advertil-o o douto Medico, que considerar nossas
acções destemperadas; porque não ha homem que possa dizer com verdade
(|ue passa isento de achaque, ou descontentamento, sem saber dizer o por-
que: e o porque, he a falta daproporção requisita pêra a saúde, e gosto perfeito.
92 He logo breve, de força, nossa vida : quasi doentes somos todos,
c todos vivemos com menos gosto no presente estado. Porém ha menos
doestes males, aonde o clima tem menos descaído. O Estado do Brasil,
tenho pêra mim, que descaio menos : mostro assi: porque a bondade do
clima compõem-se da bondade dos astros, que n'ellc predominão, e jun-
tamente da bondade dos ares, primeiro, e melhor pasto dos viven-
tes. Os astros que predominão n"esta região do Brasil, conhecidamente
são bons, e com tal bondade, que se não excedem, não cuido dão vanta-
gem ás mais partes do mundo. A experiência nol-o mostra, e testificão-no
grandes Astrólogos, que computarão humas, e outras regiões Articas, e
Antarticas ; porque n'esta a formosura, candura, pureza, e resplandor do
Sol, Lua, c Estrellas, parece está no mesmo ponto de sua primeira cria-
ção. Nas partes de Europa vemos ordinariamente que o Sol, depois de já
nascido, e levantado a mais de huma lança da terra, não oífende os olhos,
nem aquenta, nem despede o fermoso resplandor de seus raios, com que
alegre a terra; e da mesma maneira antes de se pôr; porque a grossura
dos ares impede todos estes cíleitos. Pelo contrario nos nossos hoiizontes,
vemos a(|uellc astro de ouro sempre puro, e no mesmo ser, ou nasça, ou
se ponha, que com a mesma luz, e resplandor alegra toda a terra. Com
a mesma excísllencia de luz em seu género preside a Lua no governo da
noite, fazendo tão claros os objectos, que podem lèr-sc ao lume d"esla ce-
leste tocha, os segredos das mais meudas cartas. O mesmo vemos na fer-
mosura, c- claridade das estrellas. lie bem conhecida a de hum Cruzeiro,
f|uati'o estrellas puras postas em cruz, o huma mais que lhe forma o \h\
princezas d'estes Ceos, ornato das estrellas Antarticas, e guia se,!?ura dor.
CXL LIVRO II DAS NOTICIAS
navegantes: a fermosiira, pureza, candura, e multidão das que compOeui
a via láctea, c da mesma maneira das que compõem as mais figuras do
nosso hemispherio Antartico; de que faz expressa menção Pêro Theodoro,
Asti'ologo perito, e outros que correrão estas partes; cujo parecer, e de
outros referidos pelo doutíssimo Mathematico Theodoro de Bry, na \iii, e
IX parte de suas Observações, não quero deixar de pôr aqui ; pois o traz
ao mesmo intento d^aquellas suas partes de Cliilli, o Padre AlTonso de
Ovalle da Companhia de Jesu; e refere assi. «Os que dos nossos doutos
sulcarão o mar do Sul, nos contão muitas cousas d'aquelle Geo, e de suas
estrellas, assi de seu numero, como de sua grandeza. E eu julgo que em
nenhuma maneira se devem antepor ás estrellas Meridionaes, estas que cá
vemos : antes aííirmo, sem género de duvida, que são muito mais, mais
luzidas, e maiores as que se vêem vizinhas ao Polo Antartico. « Até aqui
o autor. E logo continua louvando grandemente as do Cruzeiro, Via láctea,
e as outras. O que por ser testemunho de homens ,tão doutos na Astro-
logia, faz muito ao nosso caso.
93 A segunda parte do clima (como dissemos) são os ares : e pôde
ser questão problemática, qual mais depende na bondade externa de sua
pureza, e fermosura, se os astros dos ares, ou os ares dos astros ? Estes
com suas influencias purificão os ares : os ares com sua pureza tornão pu-
ros aquelles: e como sem bondade dos astros, que benignamente consu-
m3o as humidades, e exhalações entremeias, não pôde haver pureza, nem
bondade de ares; assi sem a pureza, e bondade dos ares, que desimpida
a crassidão do meio, não pôde haver pureza, nem resplandor dos astros.
E he o a que vem o Padre Maííeo no lugai" acima citado, quando diz, que
as virações dos ares do Brasil, desfazendo os vapores, e névoas, tornão as
estrellas puras, e limpas : porém onde os astros, e ares confederados cons-
pirão na pureza, he sem duvida o clima puro, e vital aos homens. O pri-
meiro mantimento de que vivemos he o ar : se este he puro, he força que
purifique as entranhas, e coração, fonte da vida: se he grosseiro, ou cor-
rupto, he força que engrosse, e corrompa também estas fontes vitaes. Que
importará que o alimento que tomamos duas vezes no dia, seja mui puro,
c delicado; se o principal alimento de cada hora, e de cada momento, fòr
grosseiro, e corrupto?
94 N"este nosso clima do Brasil são tão puros os ares, que se pôde
dizer com razão que bebemos espíritos vitaes; porque nem os vicia excesso
de frio, nem excesso de calma: se não que hc huraa j)rimavcra perpetua.
DAS COUSAS DO BRASIL fiXLI
com virações tao suaves, e puras, quaes descreve Maffeo, e os autores já
citados: nem eu sei parte do universo, que goze o mesmo. Os quo nave-
gão pêra estas partes, pela pureza dos ares descobrem a presença da ter-
ra; quanto mais vem chegando-se a ella, tanto vem bebendo os ares mais
puros, sensivelmente diíTerentes dos com que começarão a viagem. E com
os ares se parecem as agoas do mar, de crystal puríssimo, sereníssimas :
das altas popas se estão vendo ir nadando os peixes no profundo das
agoas, como reverberando em ouro. Raramente exasperão em tempesta-
des : causa porque os naturaes da terra se atrevem a navegal-as legoas in-
teiras de distancia da praia, em pequenas canoas, traves cavadas, ou em
três páos ligados huns com outros, a que chamão jangadas. Pois se con-
cordão na f(}rma sobredita a bondade dos ares com a dos astros, que bon-
dade de clima não terá o Brasil? He por excellencia bom entre todas as
terras do mundo : e não aperto mais a consequência, porque não pretendo
aggravar outras partes.
95 Pôde reforçar-se esta doutrina com este fundamento. As estrellas
(juanto mais de perto predominão, e quanto com raios mais direitos, tanto
mais punTicão os ares do clima (quanto em si he:) o a razão he natural,
porque quanto mais de perto, e direitos obrão os raios, tanto com maior
cfTicacia consumem as névoas, e os vapores entremeios; e por conseguinte
purilicão os ares, e os tornão vitaes, e suaves. O Sol, Lua, e principaes
estrellas do Ceo predominai) sobre o Brasil, como sobre as mais partes da
zona tórrida, mais de pculo, c com raios mais direitos, que sobre alguma
outra teiTa; he força logo que tornem os ares do clima do Brasil mais pu-
ros, e vitaes, que os das mais partes do mundo. E que o Sol, Lua, e
principaes estrellas do Ceo predominem sobre o Brasil mais de perto, e
com raios mais direitos, não pôde duvidar-se; porque o Sol, Lua, e signos
do Zodiaco, que são as estrellas principaes do governo do mundo, tem
e.ntre si, e a região d'esta zona dous elementos, de fogo, e ar: cem qual-
quer outra região fora da zona tórrida, tem entre si, e ella (atém dos ele-
mentos fogo, e ar) a parte da terra que vai de mais a mais, até qualquer
dos climas com quem fizermos comparação. He fundamento este eíTicaz; e
claro está, que sendo a zona do Zodiaco o palácio commum d'aquelles
príncipes das luzes, e assentando alli o throno do governo do universo,
que sempre dentro da esphera d'elle devão as cousas do ir mais regula-
res; como cm effcito vão os tempos, o verão, o inverno; os dias, e as noi-
tes ; o frio, e a calma ; e o mais que pcrt^Micc a hum perfeito clima, não
cxí.ii Liviio i: DAS Nonr.iAS
.sondo assi em aá outras partes da terra. A isto alludio o Texto da sagrada
Escrittura, quando disse: ^'Fiant luminária in fimamenlu cwli, d dimdant
(liem, (ic noctem, et sint in sijna, et têmpora, et (lies, et annos.^ Como dizen-
do, que são sinaes áos climas aquelles astros, pela variedade, e igualdade
dos tempos, dias, e anues. Disse, quanto em si he; porque não ha duvida,
que ha algumas outras causas, que impedem esta regra commua, que pro-
puzemos em algumas partes d"esla zona, onde os climas se sentem incle-
mentes ; porém d'estas não tomos muitas no Brasil, nem convém meter-
mo-nos agora nos porquês d*e3ta variedade.
96 Terceira resolução. Produzem as agoas do Brasil (a modo de fallar
da sagrada Escrittura) viventes nadadores ; e seus ares viventes voadores,
per excellencia bons entre todas as terras do mundo. E he a terceira pro-
priedade requerida pela sagrada Escrittura: «.ProdUcant acimereptUeanimíB
viventis, et volatile super terram.y* Não sei se pela bondade das agoas he-
mos de medir a bondade dos peixes; ou se pela bondade dos peixes hemos
de medir a das agoas? E da mesma maneira, se pela bondade dosares, a
bondade das aves; ou se pela bondade das aves, a bondade dos ares ? Ou
façamos huma cousa, ou outra, sempre acharemos grande bondade nos
peixes, e aves do Brasil; porque das agoas temos dito cjue são das melho-
res, mais puras, o mais crystallinas do mundo, tanto salgadas, como do-
ces. Em partes mui distantes da praia, se olhares pêra o fundo, vereis os
seixos, e conchas das áreas que estão branquejando, quaes pedaços de
prata. Sendo pois o elemento tão puro, a bondade dos peixes he tal, que
rara he a espécie nociva; e muitas d"ellas se dão a comer a doentes por
mantimento leve, e bom. No grande numero de suas espécies, se eu me
houvera de deter, encheria hum volume. Yeja-se hum livro inteiro com-
posto com curiosidade por Jorge Marcgravi, e he o quarto da Historia na-
tural do Brasil : alii se acharão tantas espécies, que parece não devia ha-
ver mais na primeira formação das agoas, desde a grande balea até o peixe
minimo, e se verá que não dão n'esta parte vantagem as nossas agoas a
algumas do orbe.
97 Monstros marinhos têm sabido á costa, de cuja espécie, nem antes,
nem depois sabemos que houvesse noticia em outra alguma parte do mun-
do. Aquelles descobiidores do Brasil, virão o primeiro (de que já falíamos)
nas praias do Porto seguro : e depois d^elles forão tão vários os que se vi-
rão, e de tão monstruosas espécies, que requerem hum tratado mui gran-
de. Dos peixes homens, e peixes mulheres vi grandes lapas junto ao mar
BAS COLS.VS DO IJhASlL CXLIII
clieas de ossadas dos mortos; e \i suas caveiras, que não tinhão mais dif-
ferença de homem, ou mulher, que iium buraco no toutiço, por onde di-
zem que respirão. Os peixes bois são mui ordinários : cozem-se a maneira
de carne, com couves, ou arroz; e podem enganar aos que o não sabem,
parecendo-ihes vaca na vista, e no sabor. As iDaleas são em tão grande nu-
mero, que só n'esta Bahia anda hoje o contrato real sobre ellas em qua-
renta e três mil cruzados por tempo de três annos. Revolve a multidão
d'estes peixes o profundo das agoas, e lança a praia tão grande quantidade
de âmbar, que tem enriquecido a muitos. No Seara he a mór abundância;
acha-se por arrobas, e fazem d"elle menos caso os índios d'aquellas partes,
e o dão por retornos mui leves. Tal houve, que deo por huma vez arroba
e meia de graça a certo Portuguez. Chamão os índios ao âmbar pirapua-
ma repoti, porque têm pêra si, que serve de pasto da balea, e sahe d'ella
ás praias por vómitos. Perto d"esta Bahia sahio á costa outro monstro,
posto que de differente espécie, que deo prova a esta opinião dos índios;
porque trouxe no ventre não meãos que dezaseis arrobas d'elle, parte cor-
rupto, e parte são. Quando isto escrevo defronto d'esta cidade da Bahia,
no principio da praia da ilha chamada Itaparica, se descobre grande quan-
tidade de âmbar linissimo, a modo de mineral; porque à enxada andão
cavando grande numero de escravos a praia, e quasi todos achão pedaços
enterrados, quaes grandes, quaes pequenos, alguns de muita consideração.
Muito havia que dizer no género de peixes; porém eu não me canso d'aqui
pêra baixo na multidão dos d'estas agoas : remeto-me ao livro citado.
98 A mesma bondade proporcional se acha nas aves d'estes ares. Todo
o universo não parece vio espécies, nem mais em numero, nem mais fer-
mosas : parecem as mesmas dos primitivos ares, antes criadas no mesmo
Paraíso da terra : tal he a bondade, o numero, a variedade de sua fermo-
sura: só n'aquell(í pi'imeiro Ceo terreno podíão pintar-se tão finas cores,
como são as de hum íjuorevaú, de hum caiiindé, de hum guai'á, d(; huma
arara, de hum papagaio, quando he verdadeii'o, de hum tyé, e outros se-
melhantes, que eu não quero descrever, porque me remeto a outro livro
do mesmo autor já citado, e he o quinto da obra do Brasil : veja-o o lei-
tor curioso, e compare estas com as outras aves do mundo. Hum só exem-
plo não posso deixar de referir, que mostia muito a fecundidadi.', e varie-
dade das aves d'estes ares : e he (jue de hum passaiinlio se coiitão nove
e.species, diversas todas, a qual mais galarite, e enfeitada da natuieza; cha-
mão a este passarinho em geral os naturaes da torra goanhamhig: eaipaj-
CXLIY LIYUO II BAS NOTiriAS
ticular a humas espécies, cliamão goaracyaba, que quer dizer raio do Sol;
a outras quoaracyaba, que quer dizer cabello do Sol a outras põem ou-
tros nomes, segundo o modo de sua fermosura, que he tão varia, e apra-
zível, que não poderá airemedal-a o mais destro pintor com as mais finas
tintas : rouba o verde do eólio do pavão, o amarello do pintacilgo, o louro
do papagaio, e o vermelho do goará, ou tyé; porém quebradas todas estas
cores, e modificadas com tal primor, que parece que nem são aquellas,
nem d"ellas deve cousa alguma áquelles pássaros. Chamão-lhe os Portugue-
ses picaílor. He ave mui pequena : quatro d'ellas não fazem o corpo de hum
só pintacilgo : tem cabeça redonda, bico comprido, vive somente do orva-
lho das flores, por cuja falta, sendo tomada viva, morre logo. Seu vôo he
ligeiríssimo ; quasi não se enxerga no ar, e voando pasce nas flores. Esta
avezinha supposto que fomenta seus ovos, e d'eUes nasce, he cousa certa,
que he produzida muitas vezes de borboletas. Sou testemunha, que vi com
meus olhos huma d"ellas meia ave, e meia borboleta, ir-se perfeiçoando
debaixo da folha de huma latada, até tomar vigor, e voar. Maior milagre
se affirma d'ella constantemente, e por tantos autores, que parece não pôde
duvidar-se, que como só vive de flores, em acabando estas, acaba ella na
maneira seguinte : prega o biquinho no tronco de huma arvore, e n'ella
está immovel como morta, em quanto tornão a brotar as flores (que são
seis mezes) passado o qual tempo, torna a viver, e voar. E este exemplo
baste pêra o intento de rastejar a multidão, e variedade das espécies das
aves d'estes ares, e sua fermosura.
99 Quarta resolução. Produz a terra do Brasil os animaes, e bestas
d'ella, em varias espécies, por excellencia boas pêra seus usos entre todas
as terras do mundo, na conformidade da quarta propriedade da terra boa:
tíProãucat terra animam viventein in genere suo , jumenta, et reptiUa, ethestias
terrcc secundum species suas.y> Fora cousa curiosa pintar aqui as qualidades
de cada qual das espécies de animaes d'estes montes, e brenhas, e suas
bondades, pêra serviço, uso, e proveito do homem. Porém fora obra com-
prida, fora de meu intento. Dous livros escreveo Jorge Marcgravi na His-
toria natural referida, e não lorão bastantes. Não deixarei comtudo de apon-
tar algumas pêra recreação dos que lerem. E entrem em primeiro lugar os
monos, e bogios. São estes em numero sem conto por estas brenhas, e
maltas do Brasil ; e tão sobejos, que no sertão são as guerras ordinárias
dos índios ; aos quaes destroem suas plantas, c perturbão suas sementei-
ras. Iluns são grandes, outros pequenos; huns cora barba, outros sem ella;
DAS COUSAS DO BRASIL CXLV
huns prelos, outros pardos, outros que metem de amarellos : differentes
em gestos, condições, e propriedades; huns alegres, outros malenconlcos;
huns hgeiros, outros vagarosos; huns animosos, outros covardes. De ne-
nhuma cousa têm tanto medo como da agoa, e do lodo : e se acertão de
molhar-se, ou enlodar-se, entrão logo em malenconia, fazem esgares, e es-
pantos ridículos. Recebem seus hospedes com sinaes de festa, e lamentão
seus mortos com sinaes de sentimento, e com tão grande pranto, que atroão
toda huma montanha. Passão a vida alegremente, nas mattas mais interio-
res fazem seus cantos, certas horas do dia, e da noite : no pino d"ella, ao
romper da manhãa, e pelo meio dia são os mais ordinários. Ajuntão-se to
dos em hum lugar, e logo hum d'elles mais pequeno posto em alto, e os
demais em roda, levanta a voz a modo do antiphona, e dado sinal, respon-
dem todos cantando em semelhante tora; e em tanto conlinuão o canto, em
quanto aquelle que começou torna a dar sinal que acabem. São cirurgiões
de suas feridas, e sabem cural-as com certas hervas, que mastigão na boca,
e applicão á parte, com effeito maravilhoso. Em frechando algum d'elles,
tira logo com sua mão a frecha, acode á herva, e applica a medicina, como
se tivera razão. E não he fabula, mas informação certa dos índios do ser-
tão, que quando os frechão, talvez lanção a mão a algum páo seco que
achão, e atirão com elle; ou com a mesma frecha. O artificio, e engenho,
com que tração seus modos de viver, he tão notável entre todos os ani-
maes, qne parece lhe assiste em suas acções algum alento racional.
100 Será agradável ouvir as condições de outro animal particular so-
mente d'esta terra; chamão-lhe os índios aíg, os Portugueses preguiça do
Brasil. He do tamanho de huma raposa, de còr cinzenta, cabeça mui pe-
quena, redonda, sem orelhas, dentes de cordeiro, cabello comprido, mais
curta nos pês que nas mãos, em cada hum dos pés tem três unhas mui
longas. He animal preguiçosíssimo ; gasta huma hora em passar de hum
ramo a outro : das folhas d'este se sustenta, porque só estes não podem
fugir a seu vagar. Nunca bebe : rarissimamente dá voz; e quando a dá, hc
a modo de gato pequeno. Pega devagar, mas o que huma vez alcança,
com muita diíTiculdade o larga.
101 O çarigué hc outra admirável compostura de animal : hc do tama-
nho de hum cachorro, cabeça de raposa, focinho agudo, dentes, e barba a
maneira de gato, as mãos mais curtas que os pés, negro pela mór parte.
O que he mais extraordinário n'clle, he que na parte inferior do ventre,
lhe formou a natureza hum bolso, a que os índios chamão tambeó, e ii'cste
oxLM Livno II jjas noticias
mesmo lhe induio (js peitos com oito leias. Aqui concebe, gera, fónna, e
cria os fillios, em quanlo per si não são capazes de buscar de comer : o
d'este bolso sahem fora, e torrião a entrar quando querem. He animal mor-
daz, grande amigo de gallinhas, que busca, e caça a modo de raposa, em
falta das quaes arma ciladas pelas arvores pêra caçar as aves. A cauda
d'este animal he prestaníissimo remédio pêra doenças de rins, e pedra, pi-
sada, e bebida em agoa, quantidade de huma onça por algumas vezes em
jejum: faz gerar leite, serve pêra dores de cólica, acelera os partos, e
lera. outras virtudes admiráveis.
•102 Os porcos monteses sãò oulra espécie digna de escrittura. Enchem
as maltas cm tão grande quantidade, que descem muitas vezes aos valles,
e campos exércitos inteiros; e tão ferozes era certos tempos, que tudo me-
tem em terror, e espanto; porque fazem certo trilhar de dentes, que atroa,
e assombra; e assanhados despedação a gente. He admirável seu modo de
marchar; porque andão juntos, em manadas, ou varas diversas, e cada huma
traz seu capitão conhecido, ao qual no marchar têm respeito, não ousando
nenhum ir adiante. He impossível vencer huma d'estas varas, sem que pri-
meiro se mate o capitão, porque em quanto vêem a este vivo, assi se unem,
animão, e moslrão valerosos em sua defensa, que parecem inexpugnáveis,
e pelo contrario, em vendo morto o capitão desmaião, e lanção a fugir:
He rara n'estes animaes, huma cousa, que trazem o embigo nas costas con-
tra toda a mais forma da natureza. Como estas pudera referir muitas es-
pécies extraordinárias : porém não me dá lugar meu intento. Remeto-me
aos hvros citados, e repito somente os nomes : onças, tigres, gatos silves-
tres, serpentes, cobras, lagartos, crocodilos, raposas, antas, veados, porcos
montezes, aquários, mansos, pacas, tátús, tamanduás, coelhos, estes de seis
espécies; bogios, ságuis, macacos, preguiças, cotias, coatís, londras: seria
longo contar todos. E tenho dado breves noticias das quatro bondades da
terra do Brasil, que são as mesmas com que Deos a criou em sua primeira
ormação, e pelas quaes julgou que era boa.
103 Por conclusão d'este livro, e descripção do Brasil, em que temos
escritto as qualidades da terra, o temperamento do clima, a frescura dos
arvoredos, a variedade de plantas, e abundância de frutos, as hervas me-
dicinaes, a diversidade de viventes, assi nas agoas, como na terra, e aves
tão peregrinas, e mais prodígios da natureza, com que o Autor d'ella en-
ríqueceo este novo mundo :. poderíamos fazer comparação, ou semelhança,
de alguma parte sua: com aquelle Paraíso da terra, em que Deos nosso
DAS COUSAS DO HP.AálI. CXLYU
Senhor, como em jardim, poz a nosso primeiro pai Adam, conforme a ou-
tros diligentes autores, Horta, Argençola, Ludovico Romano, c o nosso
Padre Eusébio Niereniberg nas suas Questões naturaes, liv. i, cap. 35.
104 Porém remeti?ndo os curiosos a vários autores, ainda Escolásticos,
S. Thomâs, i part., quest. 102, art. 2, ad 4. v-Credendnm est Paradysum
in temperatissimo Inco esse cGnstítutum, vel sub JEquinodiali^ vel alibi. j> S.
Boaventura 2, dist. 17, dub. 3, dá a razão: <íQuia secxis Mquinodiaest ihi
magna temperies temporis.)) Soares de Opere sex dierum, lib. 3, cap. 6,
n." 36. Cornelio Alapide in Genes. cap. 2, vers. 8, § 4. Deixo a seu juizo
considerem a vantagem que fazem algumas terras do mundo novo aos fa-
bulosos Cam.pos Elysios, hortos pensiles, ilha de Atlante ; e a semelhança
com o melhor clima da terra, e avantajada á ilha Tapobrana, cujo clima he
tão infesto á saúde dos homens, como testifica o Padre Lucena na Vida de
S. Francisco Xavier, liv. m, cap. 10. E com isto damos fim ás noticias cu-
riosas, e necessárias das cousas do Brasil.
ÍNDICE
DAS NOTICIAS DO BRASIL
Almazonas, liv. i, num. 31.
America, sua repartição, liv. i, num. \'ò.
Seus povoadores. Vide Opiniões.
De que parte víerão ? liv. i, num. 93.
De que nação erão, porque partes passarão ? Ibidem.
Américo Vespucio primeiro explorador do Brasil, liv. i, num. 15.
António Dias Adorno, descobridor dos mineraes das pedras preciosas, liv.
I, num. 54.
Arvores principaes do Brasil, liv. ii, num. 80.
Cajueiro, e seu préstimo, liv. n, num. 81 em diante.
Çapucaya, sua descripção, liv. n, num. 86.
Outras arvores frutíferas, liv. n, num. 87.
Atlante, sua ilha, liv. i, num. 98.
Opinião de Platão sobre esta ilha, liv. i, num. 98.
Parecer acerca d'esta opinião, liv. i, num. 101, e 10:*.
B
Bahia de Todos os Santos, liv. i, num. 47.
Brasil que cousa seja? liv. ii, num. 46 e 47.
Nomes do Brasil, liv. n, num. 47.
Seu diâmetro, liv. i, num. 18.
Seu sitio, liv. I, num. 21.
Sua demarcação, liv. i, num. 14.
Diversas opiniões sobre, esta demarcação, liv. i, luim. 15.
Sou primeiro explorador, liv. i, num. 18.
GL í\ma:
Segnndo explorador, liv. i, num. 19.
Terceiro explorador, liv. i, num. ibid.
Noticias que derão estes do Brasil ao Rei, íiv. i, num. 20.
A relação de seu descobrimento foi agradável aos Reis de Portugal, lív. i,
num. 67.
Seu primeiro Bispo, liv. i, num. 46.
Descriprão de suas serras marítimas, liv. i, num. 68.
Descripção, grandeza, e fermosura de sua costa, liv, i, num. 39.
Altura (íe seus montes, liv. i, num. 69.
Frescura, e agoas doestes montes, liv. i, num. 70,
Suas apparencias, liv. i, num. 20.
Seu marco, liv, i, num, 66.
Bondade, e clima de suas terras, liv, n, num. 89. Yeja-se também o
verbo Clima.
Sua boa temperíe, lív. ir, num. 61.
Experiência da bondade da terra, liv, ii, num. 57.
Contra os que negavão o ser da terra, e propriedades, íiv. ii, mim. 63.
Variedade, e origem de suas lingoas, liv. i, num. ilO.
Seus ares puros, liv. n, num. 93.
Bondade de suas aves, e peixes, íiv. ii, num. 96.
Seus animaes terrestres, liv. n, do num. 99 por diante.
Bruto com espécie humana, liv. ii, num, 10.
Bulia do Papa Alexandre VI sobre a repartição da America, íiv. i, nmn. 13.
Bulia do Papa Paulo Hl sobre a liberdade dos índios, liv. ii, num. 6 e 7.
C
Cabo de S. Roque, íiv. i, num. 42.
Cabo de S, Agostinho, liv, i, num. 43.
Cabo Frio, liv. i, num. 57,
Calumnias da Zona tórrida. Vide Zona.
Carijós, liv, i, num. 63.
Castelhanos possuem algumas terras pertencentes á demarcação do Brasil,
liv. I, num, 16.
Clima do Brasil he por excellencia bom entre todas as terras do mundo,
liv. n, num. 89.
Não ha clima que não seja doentio, liv. u, num. 91,
O Brasil está menos distante em seu clima do clima do Paraíso terreal,
liv. n, num. 92.
Cólon trata de entabolar o descobrimento do novo m.undo, liv. i, num. 3.
Dá principio a sua viagem, liv. i, num. 4.
Entrão seus companheiros em desconfiança da empreza, ibidem.
Confirma Cólon bcus ânimos, liv, i, num, 5,
Começão a divisar terra aos 11 de Outubro, liv, i, num. ii.
DAS NOTICIAS Dl) UKASIL CU
Edifica hum castello, o volta a Ilespanlia, lív. i, num. 'ò.
Enlra na Corte em 3 de Abril, liv. i, luim. G.
Cores dos índios, liv. i, num. 103.
Parecer dos índios sobre suas cores, liv. i, num. 81.
Experiência sobre ellas, liv. i, num. 103.
Dilliculdade sobre as mesmas, liv. i, num. 104.
Requisitos pêra ellas. liv. i, num. 107.
Parecer do autor sobre este ponto, liv. i, num. 106.
Costumes dos índios. Vide Judios.
Costumes dos Tapuyas. Vide Tapuyas.
D
Descobrimento no novo mundo. Veja-se Mundo novo.
Descobrimento de minas de pedras preciosas, liv. i, num. 51.
Modo fabuloso dos índios acerca do diluvio, liv. i, num. 84.
Tradição que tem sobre o diluvio, liv. i, num. 74, 75, e 7(1.
Diogo Martins Cam, descobridor dos mineracs das pedras preciosas, li\ . r,
num. 55.
E
Ervas do Brasil, liv. n, ninn. (i7.
Erva viva, e seus effeitos, liv. u, iium. 70.
Erva da Paixão. Veja-se Maracujá.
Ananás, Caragoatá, liv. ii, num. 00 e 70.
Jamacurii, liv. ii, num. 75.
Mandioca, liv. n, num. 71.
Epilogo das mais liervas, liv. ii, num. 7y.
Exploradores do Brasil. Veja-se Brasil.
V
Feiliçai'ias dos índios, liv. ii, num. 10.
Exemplo d"ellas, liv. u, num. 17.
C
Gaspar de LenidS, parl(^ a Portugal levar noticias do Brasil, li\. i, num. 12.
Goaitacascs, liv. i, num. 5!}.
II
Hervas. Veja-se Ervas.
Pôde o homem por mais tosco qm seja, por íon;a de criação politica la-
zer-se politico, liv. ii, num. 0.
Pôde o leite, c criação agreste fa/er que o homem paieça bruto, eriãoíjuo
o seja, liv. H, num. 8.
Não ha homem que não seja doente, liv. u, num. 01.
CLIÍ ÍNDICE
I
Os que tem ignorância invencível de Deos, pelos peccados que commetem
não merecem pena do inferno, senão temporal, lív. n, num. 44.
Os índios do Brasil íiverão, e tem geralmente ignorância invencível de Deos
no meio de sua gentilidade, liv. n, num. 42.
Tem alguns d'elles ignorância invencível dos mysterios sobrenaturaes, e
naturaes, liv. n, num. 43.
ilha de Santa Catherina, liv. i, num. 63.
Ilha Atlante. Veja-se Atlante.
índios, seu natural, liv. i, num. 10.
Seus progenitores, liv. i, num. 78.
Sua divisão em povoações, liv. i, num. 80.
Reposta que derão sobre suas línguas, liv. i, num. ÍM.
Seus costumes, liv. i, num. 113.
Semelhantes aos dos Judeos, liv. i, num. 92.
Não tem humanidade, nem fé, nem lei, nem Rei, liv. i, num. 116.
Andão nús, não tem policia, nem arte, ibidem.
Furão as faces, orelhas, e beiços, ibidem.
Sâo paupérrimos, liv. i, num. 119.
São preguiçosos, mentirosos, e comilões, liv. i, num. 118.
Não tem morada certa muitos d'elles, liv. i, num. 117.
Suas alfaias, e modo de caminhar, liv. i, num. 120.
Modo de suas caças, liv. i, num. 122.
Modo de suas pescas, liv, i, num. 124.
Suas armas, e modo de guerras, liv. i, num. 126.
Modo com que cevão o que foi tomado na guerra, liv. i, num. 128.
Modo com que o matão, liv. i, num. 131.
São inconstantes, e variáveis, liv. i, num. 134.
São vingativos, liv. i, num. í2o.
Exemplos de sua vingança, lív. i, num. 125.
Títulos de sua nobreza, lív. i, num. 136.
Seus enterros, liv. i, num. 135.
Sua hospedagem, liv. i, num. 137.
Modo de seu comer, liv. i, num. 140.
Modo de suas curas, liv. i, num. 142.
Seus enfeites, lív. i, num. 139.
Instrumentos, musicas, e danças, liv. i, num. 143.
Tem a verdadeira Fé de Christo feito n'elles grande mudançii de costumes,
hv. n, num. 1.
Que religião seguem? hv. n, num. II.
Tem alguns vestígios de Deos, e da outra vida, liv. n, num. 13.
Não cuidão que a outra vida he espiritual, mas só temporal, lív. ii, num. li.
Crêem que ha mãos espíritos, lív. ii, num. lo.
DAS NOTICIAS DO nUASlL
Veneravao hiima cruz como Deos da cliuva, liv. ir, num. .31.
Tiverão alguns pêra si, que os Índios não eruo humanos, e os tratavão co-
mo brutos, liv. II, num. 4.
Sua ignorância invencível. Veja-se Ignorância.
Se se podem salvar no meio de sua mora gentilidade? liv. ii, num. 41.
' (finq ۇjI k'j
L
)aO) 'jbíJ,íi;»jni(i
Mudança das lingoas de que circunstancias dependa? liv. i, num. 112.
Lingoas dos Índios. Veja-se índios.
Lingoas dos Tapuyas. Veja-se Tapuyas.
Variedade das línguas do Brasil, liv. i, num. 1 10.
M
Mandioca, liv. ii, num. 71.
Delia se faz farinha de três castas, liv. n, num. 7á.
De outros usos, e proveitos, liv. ii, num. 7.3.
Maracujá, e sua descripção, liv. ii, num. 77 e 78.
Seu fruto, e propriedades, liv. n, num. 79.
Marcos de Azevedo, quarto descobridor dos mineraes das esmeraldas, liv.
I, num. 00.
Mineraes de pedras, liv. i, num. 52.
De esmeraldas, saphyras, pedras verdes, vermelhas, e crystal, liv. i,
num. 53.
Monstros marinhos, hv. i, num. M, c liv. ii, num. 97. níA fíf.f> «mÍI
Montanhas do Brasil, liv. i, num. G9. . ,^. ..
Apparencias exteriores delias, ibidem. . . •
Sua frescura, e agoas, liv. i, num. 70.
Seus anímaes, liv. i, num. 71.
Arvoredos, e mineraes delias, liv. i, num. 7!á. ,(>í
Mundo novo distinguc-se notavelmente do mundo antiguo, liv. i, num. il
Seu descobrimento pela parte quj foi chamada Nova Hespanha, liv. i,
num. 2.
Seu descobrimento pela parte do Brasil, liv. i, num. 7.
Se he ilha, ou terra firme? liv. i, num. í)5. ,«
Resolução sobre este ponto, Uv. i, num. 90. >
N
Nações que habitão o Rio das Almazonas, liv. i, num. .30, e 37.
iNações que habitão o Rio S. Francisco, liv. i, num. 4i.
Nações de três Rios diversos, liv. i, num. 47.
Nações monstruosas, liv. i. num. 31. ,,
Naíiôes dos índios do Brasil, liv. i, num. \òO. ,>j
VOL. I X
CLIV índice
Reduzem-se estas a dous géneros, liv. i, num. iril. ainí f)í7irf'wi*í7
Naíões dos Tapuyas perto de cem espécies, liv. i, num. io3.
O
Opiniões acerca dos primeiros povoadores da America, liv. i, no num. 85
por diante.
Difliculdade contra estas opiniões, liv. i, num. 94.
if
P ^
[
Paraíso terreal onde está situado? liv. ii, num. 103 por diante.
Muitos tem pêra si, que pêra a parle da linha equinocial, (jue corresponde
ao Brasil, liv. n, num. 104.
Pedro Alvares Cabral parte de Lisboa, e avista terras do Brasil, liv. i,
num. 7.
Lança ferro sua armada em Porto seguro, liv. i, num. 9.
Põe nome á terra Santa Cruz, ibidem.
Começa a tratar com os índios, liv. i, num. 10.
Pêro Fernandes Sardinha, primeiro Bispo do Brasil, liv. i, num. 4C.
Potigoares, suas boas partes, liv. i, num. 157.
K
Rio das Almazonas, liv. i, num. 22.
lie o Imperador dos Rios, liv. i, num. 23. i
Seu comprimento, liv.*i, num. 24.
Sua largura, liv. i, num. 25.
Seu principio, e riquezas, liv. i, num. 28.
Suas agoas fertilissimas, liv. i, num. 29.
Tem grande quantidade de ilhas, liv. i, num. 20.
Nações que o habitão, liv. i, num. 30, e 37.
Autores que delle ira tão, liv. i, num. 32.
Rio da Prata, ou Paraguay, liv. i, num. 33. . , , ,, ,
Sua largura, liv. i, num. 35. '. mío til riTíí iio
A nenhum do mundo cede, excepto o Grão-Parj, IK'. i, nom. 30.
Suas minas, e precipício, liv, i, num. 37.
Nações que o habitão, ibidem.
Rios principaes da costa do Brasil são cento e setenta, liv. i, num. 38.
Rio Maranlião, liv. i, num. 39.
Rio Grande dos Tapuyas, liv. i, num. 40.
Rio Jagoaribi, liv. i, lium. 41.
Rio Parahiba, e Beberibe, liv. i, num. 43.
Rio S. Francisco, seu nascimento, fertilidade, e largura, liv. ij mim. 44.
I
DAS NOTICIAS DO BRASIL CfcV
Naçôos quo o habilao, iludem. íd.i .i .n.. ii
Seu extraordinário sumidouro, liv. i, num. 4ô. ■*>{> í>LhI>í.i\
Suas riquezas, liv. i, num. 4(>.
Rio Sergí, rio Real, rio Itapucurú, liv. i, num. 47.
Narões que os habitão, ibidem.
Rio de Santa Cruz, liv. i, num. 48. > •., ui r,i.'
Rio Grande, liv. i, num. 49. di írolqni > í
Rio Doce, liv. i, num. 50.
Descobridores de suas minas, liv. i, num. 51, 54, « 55.
Rio das Caravelas, liv. i, num. 5(».
Rio 0"inc3ré, ibidem. .....■.,, tímA
Rio Parahiba, liv. i, num. 50. i uiim .n
Rio de Janeiro, liv. i, num. G(). -
Rio S. Vicente, liv. i, num. Gl.
Itio Cananéa, ibidem.
Outro rio S. Francisco, liv. i, num. 0:2.
Rio í\os Patos, liv. i, num. ^)•^.
Rio da Alagoíi, c de Martim AlTonso, liv. i, num. 40.
Sel)astião Fernandes lourinho, descobridor das minas do Rio Doce, liv. i,
num. 51.
Serras marítimas da costa do Brasil, c seu principio, liv. i, num. 08.
Tamoyos, sen natural, liv. i, num. !57.
Tapuyas são inimigos geraes de todas as narrM?s, liv. i, num. 149.
Ktymologia de seu nomo, liv. i, num. 157.
Seus costumes, liv. i, num. 1 14.
Modo de suas caça5, liv. i, num. 145.
Tobayaras, suas boas partes, liv. i, num. 150.
S. Thomé veio á America, liv. u, num. IH.
Sinaes de S. Thomé no Cabo Frio, liv. ii, num. Í0,
Sinaes na Nova llespanha, liv. ii, mim. "iU.
Suas pegadas em S. Vicente, Itapoâ, no To(|uê Toque, liv. h, num. 18,
10, -ÀO.
Suas pegadas na Parahiba, liv. u, num. 128.
De suas pegadas .se conjertuia nascer hunia tolde milagrosa, liv. ii, lium.ii.
Caminho ntilagroso do Santo Ajtosloh, liv. u, num. ^7.
prova-se coni ra/õcs di^' direito vir S. Thomé ã Amrrica, li\. ir, do num.
I]V até o num. 50.
CLVI íVIXJI INDICK
Tradição humana nâo se ha de negar, Uv. ii, num. 32.
Tradição dos Índios acerca da vinda de S. Thomé á America, liv. ii, num. 82.
Viagem de Cólon pêra o Brasil, Uv. i, num. 4.
Exemplos da vingançs dos índios, liv. i, num. 125.
Zona tórrida foi calumniada pelos Pliilosophos, e Astrólogos antíguos, liv.
11, num. 49.
Houve muitos que a defenderão, liv. ii* num. 54.
Boa temperie da Zona tórrida, liv. ií, num. 61.
FIM DAS NOTICIAS DO BRASIL
íirff
^t íriíii)
.>*♦
LIVRO PRIMEIRO
'.'!> r.iíliív.ui'
CH RO NICA
DA COMPANHIA DE JESU
DO ESTADO DO BRASIL
PELO PADRE.
SIMÃO DE VASCONCELLOS
D A .M E S M'A '■'CT.ilP.A 'N H,,l A
NATURAL DA CIDADE DO POIITO
LENTE QUE FOI OA SAGRADA THEQLOGlA E PROVINCIAL
NO DITO ESTADO
Contém a cleirào, principio devida, viagem, e chegada ao Bra-
sil, do Padre Manoel da Nóbrega : os fundamentos da conversão das
almas, que nelle lançou p r si, e por seus companheiros, desde o an-
no de 1549 alé ó de íb^5;como$ princípios da fundar â» do Colle-
gio da Bahia, S. Vicente, Casas do Espirito Santo, Pernambuco,
Porto- seguro : e os fins bem-assombrados dos servos de Deus Salvador
Rodrigues, Leonardo Nunes, Pedro Corrêa, João de Sousa, Domin-
gos Pecorela, e João Aspikuela Navarro.
voi.. 1 I
2 LIVHO 1 DA CIIROMCA DA COMPANHIA DE JES
1 Conia a era da criação do mundo em G7i8 annos, segundo o com-
puto mais verisímil; e a era da Redempção dos homens em 13i9; eachava-
se neste tempo nossa Companliia de tão pouca idade, que tinha somente
nove annosj^porfiue nascera por conflrmarão de Bulias Apostólicas no an-
no de lo4% Porém como foi sempre timbre das traças divinas, com meios
pequenos empreender cousas grandes; tinha esta pequena Ileli{íião já nes-
ta puericia de sua idade corrido quasi toda a circunferência do antiguo mun-
do (cliamo-lhe antiguo por distincção do novo de que logo diiemos :) acha-
va-se nas partes principaes de Itália, tinha jXMietrado as Alemanhas, Alta,
e Baixa, as Galias, as Hespanhas, Africa, e Ásia, com muitos CoUegios,
Casas, e Residências: humas feitas, outras começadas; e todas com os feli-
ces successos, de que faz menção largamente a lenda dos ditos nove annos,
e nove livros primeiros das Chronicas geraes de nossa Companhia, escri-
tas pelo Padre Nicolao Orlandino.
2 Parara aqui neste mundo antiguo oabrazado zelo do nosso Santo Pa-
triarcha Ignacio de Loyola, è pararão tainbem arpii as divinas traças; se
parara só nelle a matéria de conquistar: havia porém outro mundo inteiro
de almas, que havendo sido criado juntamente com as outras partes da
terra, não teve a dita das demais: porque as aguas inmiensas do Oceano
o dividirão do commercio dos homens, e o privarão do meio commum
da Fé, e salvação eterna. O bojo do instituto da Companhia não se limita
a região, ou nação alguma, por mais remota e desacommodada que pareça ;
e muito mais a esta, que por algumas congniencias se considerava parti-
cular empresa sua, por se começar a descobrir mysteriíjsamente quasi no
mesmo anno, em que nosso Santo Patriarcha tinha nasc-ido ao mundo: como
se Deos o empenhasse desde seu nascimento pêra a conquista espiritual d'es-
ta vastíssima região, que nascia por noticia juntamente com elle: e já tan-
to antecipadamente se lhe preparasse, e assegurasse o campo, onde sua
sagrada Religião havia de combater e luctar com o inimigo infenial, privan-
do-o da antiga posse, em que por tantos séculos se havia injustamente in-
troduzido, e feito senlior absoluto de tantos milhares de almas: logrando
nesta parte divinamente ambiciosa a Companhia, aquella dita por que sus-
pirava Alexandre, ouvindo dizer ao Philosopho Anaxágoras, que havia mui-
tos mundos, não sendo elle ainda senhor de hum; e guardando Deos este
novo (por segredos occultos de sua providencia) pêra o descobrir neste
lonqx), e dar nova matéria de conquistar aos soldados daquelle Capitão,
DO ESTADO DO BIIASIL (ANXO DE loÍ9) 3
qiic soube trocar a milícia temporal pela do espirito, com tão seguros acer-
tos, e nâo menos gloriosas vlctorias.
3 Succedeo pois, que no anno sobredito de 1549, correndo entre as
gentes as noticias mais claras do descobrimento estranho d'este novo mun-
do, que apparecera entre o abysmo das aguas, povoado de innumeravel
gentilidade, desemparado de todo o soccorro, e alheio do conhecimento da
Fé ; despertou Deos nosso Senhor (como autor que he da salvação dos ho-
mens) o coração alto e generoso do venerável Padre Simão Rodrigues de
Azevedo, que neste tempo assistia em Portugal, pêra que tratasse do bem
destas almas. Communicou a cousa â Alteza de el-Rei Dom João o III, que
então vivia, Príncipe tão pio, e inclinado a propagar a Fé, que se lhe ou-
vira muitas vozes, que desejava mais a conversão das almas, que a dilata-
ção de seu império. E com esta disposição da parte do Rei, e obrigação
do nosso instituto, foi fácil ajustar os intentos, e concluir, que se expedis-
se huma gloriosa missão a partes tão necessitadas.
4 Era o Padre Mestre Simão, varão apostólico de altos espirites, c
apostadas resoluções pêra emprezas do serviço de Deos, e do próximo. E
merecia-nos este grande pai da Companhia Portugueza, que nesta historia
do Brasil enxerissemos huma comprida narração de suasexcellentes virtudes,
e raras i)artes : não só por cabeça primeira, e primeiro Provincial da Com-
panhia em Portugal; mas também pelos grandes desejos que teve, e logo
veremos, de vir empregar seus trabalhos nesta nossa empresa (que he ra-
zão que entre os homens valhão tamljem desejos por obras, pois valem
em os olhos de Deos.) E finalmente, porque ellc, e aquella sua Província
foi primeira origem, e mmo mãi primeira de todos nossos Missionários, e
consegiiintementc. dos huctos, que com seus trabalhos colherão nesta tão
vasta vinha do Seniior. Este tão devido reconhecimento ficará em eterna
memoria pêra os (jue hoje, e pêra os que em tempos vindouros, continuão
e coiitiriuarem as empresas daquellcs primeiros varões, que foram nossas
guias. E quero eu da minlia parte, íi<|ue estaminado nestes escriltos, este
como protesto meu, e de minha Província; e fico com isto satisfeito, visto
como já priin(Mro que nós, c com jjenna mais alta, tem dado á estampa
as obras heróicas deste varão o Autor da Historia das Chronicas da Com-
panhia do Reino de Portugal, na parte primeira, livro primeiro, capitulo
íiuinlo. Agora somente tocaremos o que parecer necessário a fim do inten-
to que levamos.
5 Enlre todas as outras virtudes, c raro zelo deste santo varão, só o
4 LIVRO I DA CMUOMCA DA COMPAMIfA DE JESf
fervor cohi que pêra si procurou a missão sobredita, posto que sem effeito,
era bastante a mostrar ao mundo quão bèm ítprenden daqnella fonte do
fervor de espirito, Igiiacio Santo I^triárclia nosso, do quem foi companhei-
ro por muitos.annos, e dos primeiros que mamaram o teite de sua dou-
trina, em Paris, Yeneza, e Roma; até rjíiP P^^i' jiiizo divino ibi escolhido
por conipanheiro do grande Missionário do Oriente o Santo Padre Francis-
co Xavier, e mandado peTra este intento a Portugal. As razoes; pelas (fiiaes
foi forçado ficar-se em Lisboa, e não proseguir a missão da índia, banha-
do èrijijagiimas por ver partir ú companheiro somente á ditosa empresa,
què ápõs sMhò levaSá ò boração; trata diffusãmente o livro primeiro das
Chronicas de Portugal ](r citadas. E cm siTmma forão os clamores do Rei*
e do povo, -que tetldò áos dòus por At)bstioIò8 etiviaílos de Deos áffueíle
Reino, haviam' qiie não estava em pradencía prfVar-se do remédio de suas
alnias presente^, pelo futuro dasalhtaâ: e vieram, a mais não pwler, depois
de consultado o Summo Pontífice, e Santo Ignacio, em qnea contenda se par-
tisse; fosse embora o Padre Mestre Xavier pcra a índia, è ficasse o Padre Mes-
tre Simão em Portugal. Pois agora ao nosso intento: estas mesmas razões
foram a causa do môr empenho, com que pretendeo a missão do Brasil;
porque á vista da primeira repulsa, que tanto sentio e diorou, lhe parecia
ter niais direito nesta ségtmda occasião: môi-mente que tinha já em Por-
tugal varões de espirito, que poderião supprir sua ausência. Representava-
se-llie, qiie ' só esta miss"So poderia fartar seus desejos, e só ella igualar
aquelia primeira do Oriente. Põe toda a força pêra com El-Rei, de quem
pendia toda esta contenda; porque não aCabava comsigo aquelle Príncipe
ver apartada de seu palácio a prudência, e experiência d>ste varâó, ique
era Mestre juntamente do fitíio, é conselheiro dos maiores negócios dopai.
A eífícacia dá petição, e pratica com que o Padre Mestre Simão pretendeo
convencer ao ílei, porqiie contem tudo ó (jue referimos; edeve ser a pró-
pria, póréi aqui ao pé ida letra, assi como a traz o 'Padre Balthasar Tel-
les ha piimeira parte^ Íi\\ iii, cap. 2. de sua Chrôriica de Poi*tiigal: « he
a seguinte. , ^ ' ""' • : i
'^^.o. «Até agora (Senhor) tendo recebido de vossa real mão muitas e mui
grandes mercês pêra a ílompanhia (que todos sabemos reconhecer, e ne-
nhum acabar de servir) não tenho pedido nada pêra mim á conta da gran-
de vontade com que vos sirvo, e da que em Vossa Alteza veja pêra me
fazer mercês. Por onde agora, com toda a confiança vos quero pedir huma
mercê, que segundo confio da graça diviíia, será para vos fazer maiores
DO ESTADO DO BRASIL (aN.NO DE loi9) ti
sorviros, estando ausente, ensinando os gentios, do íjuc vos faro com
minlia presenea, sendo mestre do Príncipe meu seniior. Bem salx; Vossa
A!teza, como de Roma vinha destinado paia a índia por companheiro do
Padre M. Francisco: o gosto de Vossa Alteza me íez ficar eai Euiopa, cheio
de mil saudades da índia, e grandes invejas de meu bom companheiío:
pelo que a Vossa Alteza, como a Principe tão justo, .perteoce fazer-me jus-
tiçí», resíituindo-me agora ^ conversão da gentillidade, que entik) por bons
respeitos me tirou. Já o Coilegio de CoimI>ra, que Vossa Alteza; mandou
fundar (a cuja obra até agora tenho assistido) esitá em altm^a, que sem çaim
pôde ir avante. Bem sei que-liaverá muitos, que_ me estranl^em querer dei-
xar a corte de Vossa Alteza pelas choupanas dos Brasis; deixar o mellior
Principe, pelos peiores gentios; e o melhor seetborpeio^.m^^baixQS ser-
voã: mas talvez he licito deixan a Deos por i^iior ds D^&,í líjrgaif o, Rei
pelos vassallos, deixar o senhor pelos escravos. lia muitos melhores do que
eu nesta vossa corte, que a^m partes mais a\ant<ijadas possão acudir ao
vosso real serviço; mas Im mui poucos, que se animem a deixar os Cor-
tezãos de LisJ)oa, pelos Aim<jrés do Brasil. Destes ix>ucoa, com vossa real
licenea, quero eu ser o primetio no Bi-asil, pois mo mereci sei" o segundo
na índia: a Vossa Alteza pertence' por muitos titidos conc«der-me esta U-
ceuçaç as* porque ha muitos annos, quo correm por sua cogita estes gen-
tios, como também porque^ a peço em recompensa de serviços^ se alguns
tenho feito a Vossa Alteza ; a ouja real benignidade, peitencoí acudir como
bom Senhor áquelles servos, &)mo bom Rei «(laellrs vassallos, como bom
pastor áqucHas alma», e comiii íPririct))e ^ão benigno a consolação destij hu-
milde servo seu.» • : ; ■. , ■ :, ' : ,;i/ ,1 1
7' Desta pratica consta do grande fervor, cora íjiie intontou a. empresa
o Padre M. Simão: e por outras vias constay íjue léii (5» (jraade a Corça de
impedimentos que so opposíTão, de dentro, e fora da Religião, que su^h
posUi que o Rei já se inclinava a conwdcr-lhe a ida por lenq)o de Ires an-
noSj^nao^ foi pOssiwI e(T(.'itiiai%so esta, nem acabar cfimsigo aquella Provín-
cia privar-Sí' de hum i>ai tão amável. O que supposto, houve de ticar o Pa-
dre M. Simão, e escolher pêra ai[uella eiiii>resa hum varão tal, (jue pudes-
se icori-eaponder ao gi-and© MAstruI^Yàiiciseo Xíivier,' e ser hum Apost/Mo da
America, como ellc; o era «la Ásia. E consult;«ido o negí)ciO'a)tti o meí>mo
Rei D. João, e mais ellicMizmentíí com a Magestade diviíw, oatúo. a; sorte
venturosa sobre o Padre .Manoel da Nóbrega fuwiador^ K C(imo este he o
varão, stigeito quG-'ha!de ser de toda esla piiraoira parte do nossa Ilisto-
6 LIVUO I DA CIIHONICA DA COMI ..Mil A DE JESU
ria com os feitos raros, e obras heróicas, que por si c seus companheiros,
obrou no Estado do Brasil ; he força que já desde agora, antes que parta,
digamos o que he, pêra que d'ahi vamos vendo o (jue será depois na em-
presa. E advirto aqui, que nas cousas particulares deste nosso primeiro
pai da Provincia, e seus companheiros, seguirei com principal cuidado huns
apontamentos, que em meu poder tenho, do venerável Padre Joseph de
Anchieta, escriptos de sua própria mão, e letra : volume pecjueno no corpo,
porque he só de quatro cadernos; mas na sustancia grande, porque con-
tém noticias de cousas muito grandes. E por serem de tão autorisado va-
rão, contemporâneo, amigo, e companheiro seu, são dignos de todo o cre-
dito, e da verdade que nesta matéria se pôde desejar, e eu sempre pro-
curarei seguir em toda ella.
8 Em o Padre Manoel da Nóbrega hia traçando a divina sabedoria de
Deos nosso Senhor, hum Apostolo da immensa gentillidade de hum novo mun-
do, que por espaço de séculos tão dilatados como temos dito, tivera enco-
berto, e destituído, por occultos juizos, de mestres evangélicos, que lhe
ensinassem o caminho de sua salvação. E segundo isto, não haverá que es-
pantar, se toda a vida, e costumes deste, que assim foi eleito pêra fim tão
alto, saírem taes, quaes necessita empresa tão grande : porque sempre nas
traças divinas concordão entre si os princípios, meios e fins. Os princípios
do Padre Manoel da Nóbrega foram os seguintes. Nasceo no século de pais
nobres e virtuosos; "primeiro fundamento dos bons: e como filho de taes
foi criado em santo temor, e amor de Deos. Chegado a idade sufliciente,
foi levado a estudar á Universidade de Coimbra; deu mostras de bom en-
genho, e habilidade, e não de menor índole pêra a virtude. Perfeiçoado
já em Humanidades, entrou em desejos de passar a continuar seus estudos
fora da pátria. Partio-se á Universidade de Salamanca, e nesta fez tão bom
emprego na intellígencia dos Cânones (a que sempre foi inclinado) que foi
havido conhecidamente por hum dos mais avantajados naquella profissão.
Feito este progresso, voltou a Portugal, e á sua própria Universidade de
Coimbra: aqui consummou seus estudos, e se agraduou de Bacharel for-
mado em Cânones, com grande applauso, e opinião de letras ; especialmente
por voto de seu mestre o Doutor Martim Aspílcueta Navarro, que o pre-
goava pelo melhor de seus discípulos. Á volta desta opinião crescião as
esperanças de valer no serviço dEl-Reí, e de grandes despachos, assi por
suas letras, como por seus virtuosos costumes, e talentos naturaes; e so-
bre tudo pelas muitas valias que tinha; porque seu pai era Desembarga-
DO ESTADO DO Bll.VSIL (.VN.NO Dl-: loiD) 7
dor, c um tio Chanceller mór, e ambos mui cabidos com a Pessoa Real,
que d elles fazia grande estimação, e lhes commettia negócios de muita qua-
lidade; por cujo respeito tinha já dado moradia a Nóbrega, e concedido-
Ihe outros favores pêra seus estudos.
9 Porém erão as traças divinas mui difíerentes das humanas: a mui
diverso fim atiravão humas, e outras; porque pelo mesmo caminho de suas
esperanças, acharão meio, com que de todo lhe aborrecesse o mundo:, e
foi assi. Vagara uma Gollegiatura na Universidade : era costume levar-se
esta por opposição : poz-se a ella o P. Nóbrega, já então Sacerdote de Mis-
sa: e supposto que, a juizo dos melhores, e de seu mestre o Doutor Na-
varro, fazia elle a seu oppositor conhecida vantagem, ficou comtudo aquel-
le victorioso, e Nóbrega regeitado (que estes são os juizos dos homens.)
(Jonhec«o o soldado já destro a traça do Altissimo, e determinou despicar-
se com o mundo, aíFrontal-o, e repudial-o, como o mundo o fizera com elle,
entrando em huma Religião, em que por via de obediência lograsse mais segu-
ros seus lanços. Escolheo pêra isto a Companhia de Jesu, que então anda-
va novamente no mundo em os olhos dos homens por seu instituto da sal-
vação das almas; e nesta entrou com effeito, no Collegio de Coimbra no
anno do Senhor de 1344, no tempo mais florido de sua idade, quando o
Rei tinha nelle os olhos, c quando o mundo lhe hia promettendo esperan-
ças grandes.
iO Feito já Nóbrega lieligioso da Companhia, não so pòdc facilmente
explicar o zelo que começou a ferver em s(*u peito liera cousas de Deos,
e do próximo. Em huma e outra cousa foi vivo exemplar, quando noviço de
noviços, quando ajllegial de collegiaes: e conforme a isto era o cona'ito
que delle tinha a Religião; porque sendo ainda mui moderno, o escolherão
os Superiores pêra pai, e pi"otector do próximo, pobres, viuvas, orphãos,
. presos, enfermos, desemparados; oflicio dos de mais importância, e con-
fiança, que tem a Companhia: »' fi'1-o elle de maneira, que ficou sendo ver-
dadeiro uKjIde a todos os (pie depois o servirão. Suava, cansava, não dor-
mia, por ajudar a qualquer necessitado, ou no espirito, ou no corpo. K
esta era a matéria, em que mais frequentemente fallava Goiuibra e seus
c/)nt()rnos, ainda depois de ausente elle muitos aimos, no zelo ardente do
Padre gago; que assi lhe chamavam alguns, por ter alguma cousa de im-
poflimonto no faltar. Os succx?ssos irão mostrando o que dizemos, fhivrm
í \ Havia na comarca de Coimbra hum homem valenlissimo, grande
salteador de caminhos, e de quem temia toda a terra, especialmente os
8 LIVUO I DA CIinONICA DA COMPANHIA DE JESU
Meirinhos, t{iié elle trazia amoaçados. Depois rte vários roubos, e assaltos
foi preso^ ò Valente, e senteneiade -á morte. Aciidio logo o Padre Nóbrega
a íazer seu ofíicio, e palpando o estado do homem, achou que estava de-
sesperado, e obstinado em ódio das Justiças, e dos que lho traçarão a pri-
são: não queria otívh' fallár em confissão,' t)U sacramento, ou moio alg«m
de salvação. Que faria 'o fervoirDSo zelador das almas? Buscou todos os
meios, coírèo todaá as traças em' successo; tão triste ; apphcou missas, ora-
ções, ' jéjuílS' ^' 'pratifeõu huiná' *e- mnifeiè s^zm lai» ■ obstinado, e nenlioma cousa
abrandava áf/ilelfé 'duro e«rfioãO:'Qnarí(;lo desesperado já do negocio, ins-
pirado do' keto' do espirito, deu na traça seguinte,: Pedio atteiição ao ho-
mem, e'Cóm' alta 'Vok,'e^og6l?iòs no Gèo, lhe disse assi: «Irmão meu, da-
qui vos drgo; que' mi tomo sobre mim todos vossos peccados; eu darei
conta dei lés 'no' Tributial díAino; e cessai já com vossa obstinação.» A esta
voz, como Se 'descera' 'dò Ceo, aquietou logo o penitente, e iwndo os olhos
no Padre, sem^ mái^í ôtití'a ^lavra, lhe disse: «Padre meu,. quero confes-
sar-me.» Fel-di assim', assoí^ègtíu, oUvio a sentença de suai morte, e suppos-
to que á'leiíura ^esía íesUscitavão 4\s lembranças de seus primeiros ódios,
com só ètqiiellà cMsllletííçSo da' promessa: do* Padi^e forão rebatidos ; e che-
gou elle áfpièlie ultimo, e ' terrível snpplicid,banliado em lagrimas, suspi-
rando^ ao' (íleo com mostras de com-ersão íioíaTelj de graixle gloria de Deos
e de seu servo. E até aqui pode chegar o fino da maior charidade, tomar
sobre siós peecadòs alheio^''- (''"••'''' f'-'»!!-' ,..//,;_,.:,.; ,;
lâ (GoTft o inestnòzelo; {jost(y'que'n?lo^ mm o mesmo ieífóiío, succèdeo
o caso seguinte, qiie' lie espantoso. Foi" chamado o Phárèl Nóbrega pêra
huma mulhéí peccàdiòili', tfuéi estava em ' aní^ias dá morte ': tiníia gastado gran-
de párteí dá vida éftifhiâO' estado, publica j e escandalosamente, com hum
EcclesíáStiéo. 'Chegod o PMre, api>licoH os remédios, que em taes casos
seu éfepírítoíhe di-ltat&'5'e depois' de ^^randes resoluções, lagrimas, e mos-
tras de árre]!)endimentd, veiòá'oúVil^a' de confissão, e absolvel-a; porém
com esta ctímMinaçmi, (^ue Vissíe oque fàzia j^lalli ^.m diante;' porque se
agora achafVa'prof)icià a' 'misericórdia de Deos í retrocedendo em peccados
de tanto escãftdalo, acharia depois 'rigorosa a divina justiça. Ficou impres-
sa na alma daquellapecOíadorá esta' resolução de Nóbrega, prometeo pre-
catar4e, e foi mdStrando dfue cumpria a promessai, espaço de hum anno,
vivendo recolhida, frequentando os sacramentos, e pondo quasi em esque-
cimento o passftóòdescreditbíj porém he grande a força das traças do: ini-
migo do género humano. Passarão os tempos, mas não passou a vigilan-
DO ESTADO DO BRASIL (ANNO DE 4,^)49) 9
cia do pai da sensualidade ; Ijastoii o discurso daquelles pêra fazer crer
ao povo, que estava já confirmada a mercê de Deos, mas não bastou porá
apagar naquelie coração o incêndio antiguo de Satanás: tornou ao vomito
com o maior secreto qíie pode, mas com deshonestidade míaior. Eis que
certo dia, estando Nóbrega Jjem descuidado de caso tão esti'aíilio, chamão
á portaria, que vá com toda a pressa ajudar a morrer liuma mulher, que
está em passamento. Apressa-se o servo de Deos, chega á casa, e acha que
era a sua primeira convertida; poi*ém em mui dilíerente : esjado ; :poi*que
achou aquella triste alma deses^jeradá : não quiz fallar-lhe a:proposito, nem
pôr nelle os olhos, nem virar o rosto: e informando-se das pessoasque
esta vão presentes, ouvia -a relação do desatino ' desastrado enihqiie. cléra ;
porque disserão, que aquella mulher, depois de lidar só coim^igo, diante
de todos os que alU estavão rompera nas palavras seguintes; «H^ veíi'da-
de que por estai' eu amancebada por vinte aunos com hum Ecclesiastico me
hei de condemnar?» E respondia ella mesma: Sim, repetindo isto, tr^s vezes
coneluio dizendo: «Pois eu creio que Belzebu ciiou os Geos, e a terra, e
o mar e as áreas, e a elle me entrego.» Aqui licámos (continuarão os rela-
tores) atónitos-, e pasmados; acodimos-lhe com,mn cj/ucilixo, o^qual regei-
tou cí»m escandalosas visagcns: e neste estado mandámos cjiamar a V. Re-
verencia.» Entrou o Padre em sen costumado íervor dç> eápiíito;, e ^ijipii-
cou aqui tddas as traças; de que usara com Q, salteador, por, ,>cn-.í>e podia
tirar da mão de Satanás aquella trishj alma. Bradava ao Ceo, multiplicava
lagrimas, suspiros, orações^ a]»i)licava rehquias, imagens, <?,M>rcisnios ;, po-
rém todos estes remédios não bastarão ;, .quí?. a peccadoí'^(,morre9- ^l^fga»
surda, o muda, e: deu a alma nas mãos de Síitanátj : por<|ue^|uiz Deus, com
este exemplo msostrâr' aos pe(cadí)i'eS', que são tão verdadeiras si'us sorvos
no prometer perdões da misíMicurdia, como no ameaçai: castig(ts da justi-
ça: e que i^eocaidos-de reincidência, escandaljo^os, e ouno de ©iStado, bra-
dão ao Ceo, e grange^o aç/)ut<^s extraoriUnarios. E(jí igual a eslimpção.de
Nóbrega neslií s<.^giMido, que no prjnieiío caso; pc/ique naqutillç viiãí^ (^s
homottSi ;que abria o thMSííuro fia. graça; i« nes^o,; que previa; jo.^-.i^or da
justiça. E valiíão esíies dons suceessoSi por ipiíiíos, que dejxo; i>oi:;,^uie-
ihíffitesk ' : •; ■■• .' \ ., .; . • -. • .., ,-.,! .-
43 Não cabia em hum só coilegio, em liuma só cvladu Rejv» tão gr^iiidc'.
Sabia com licença dos ■Su[)eriores a desafogar lííu nus^irHís por diversas par-
tes do Reino, ainda dos de (I;illiza, e Caslella, á maneira de hqm Santo
Ignacio, e de hum Saôio Xavier. Partia de CoimJjia com hum bordão na mão,
•10 LIVRO I DA CÍIHOMCA DA COMPANHIA DK JESU
e Breviário pendurado do braço, sem mais outro viatico, camiiiiiando a
pé : o vestido mais roto, e desprezivel : discorrendo por aquelles lugares,
aonde esperava mais fruto, como voz de Deus, feito hum pregoeiro do Evan-
gelho, pedindo esmola de porta em porta, e agasalhando-se nos hospitaes
com os demais pobres de Christo. Quando entrava nos lugares, gastava
com a gente mais capaz o tempo da manha em pregações, praticas, e con-
versões particulares : e o tempo da tarde gastava em doutrinar os que erão
mais rudes, com fruto, e eíTeitos notáveis.
14 Entrando na cidade da Guarda (feita primeiro informação, como
costumava, das cousas publicas, e de mais peso daquelle povo, em que
houvesse de meter cabedal) achou dous casos principaes. O primeiro era
de huma triste peccadora, a quem o lobo infernal, hum diabo incubo, (jiial
ovelha perdida, tinha tragado, e cobrado tal dominio sobre ella, que vivião
de portas a dentro, como marido, e mulher, com espanto, e escândalo do
povo, e sem remédio, havia muifos annos. Aqui vinha nascendo o espirito
de nosso peregrino ; então mais forte, quando havia mais que vencer. Bus-
cou occasião de sec ouvido desta mulher, prégou-lhe tão altamente da fe-
aldade do peccâdo, que a peccadora rendida veio logo lançar-se a seus pés
e perguntou-lhe, se havia ainda remédio para salvar-se ? E ouvindo muito
da grandeza dos thesouros da misericórdia de Deos, banhada em lagrimas
pedio ao Padre tempo acommodado, e começou-lhe a contar do principio
toda a historia de sua torpe vida. «Sendo eu moça (lhe dizia) e mulher
simples, veio-me hum dia ao pensamento ir buscar por esse mundo algum
escolar, dos que a gente ignorante desta terra tem pêra si que andão pe-
las nuvens, trovoadas, e pés de vento grandes, e advinhão os successos
futuros ; pêra que me dissesse alguma boa dita minha. Com este néscio
pensamento sahi com effeito de minha casa, e fui por caminhos occultos, e
nunca de mim antes intentados, sem saber eu aonde me levava o destino.
Estando em hum destes caminhos, fez-se-me encontradiço hum demónio ves-
tido em hábitos compridos, como de estudante, e perguntou-me aonde hia?
Não queria eu descobrir meu propósito ; porém elle mo declarou dizendo :
Tu não vens com tal, e tal pensamento? Pois eu sou aquelle escolar que
tu buscas: que queres que faça por ti? Vendo-me descoberta, lancei fora
de mim o medo, e pejo, e confessei-lhe a verdade : então accrescentou el-
le o seguinte : Pois porque eu possa fazer-te o que desejas, he necessário
que consintas comigo no que eu te direi. E apartando-me em hum lugar
'^ecreto, entendi logo o intento do espirito immundo : e supposlo que ao
DO ESTADO DO MASIL (aNNO DE d 540) 14
principio resisti, vim a consentir no que queria por pensamento, mas sem
elTeito, que antes delle desappareceo o escolar, e fiquei eu frustrada, mas
não arrependida ; porque tornando pêra minlia casa, me tornou a apparecer
o demónio, e eu me entreguei de 'tal modo a elle, que ficou sendo como
marido meu, vivendo comigo de portas a dentro ; e com tanto dominio so-
bre mim, que me obrigava a commeter os mais torpes e nefandos actos,
que pôde inventar a natureza depravada : e o que mais he, que me levava
por varias partes de Portugal, por terras, e mares, a enganar os homens,
induzindo-os, e constrangendo-os eu em virtude sua, com acções deshones-
tas, a commetter torpezas abomináveis. Nesta forma me trouxe por mui-
tos annos ; e outros tantos ha que me tornou a minha casa, onde não de-
sistio, mas faz que acommetta torpemente os mais honestos, e virtuosos
do lugar ; e me obriga pêra todos estes eíTeitos como besta á força de pan-
cadas. N
lo Ouvindo estas cousas, cada vez hia entrando em mais espirito o
nosso peregrino ; que pêra casos semelhantes tinha mão singular. Animou
a pobre peccadora, declarou-lhe a eíficacia do Sangue de Christo, que a
tudo abrange, e ensinou-lhe o como era necessário resistir fortemente aos
enganos do diabo, e aparelhar-se com grande dòr, e arrependimento a
huma perfeita confissão. Aqui foi cousa digna de espanto ; porque no pon-
to em que esta mulher se resolveo a confessar-se, nesse mesmo perdeo o
demónio a liberdade com que a possuía; nem já a mandava, nem chega-
va a ella, nem a espancava ; mas somente de longe lhe fazia ameaças, que
não se confessasse ; com tanta eíTicacia, que até estando a peccadora pros-
trada aos pés do confessor, era assai teada com assombros terríveis, e im-
pressões cruéis, tã(j forç^jsas, que tremia, suava, e se apegava por vezes
ao Padre. Porém, oh virtude divina f o mesmo foi acabar-se o sacramen-
to, e ser absolta de seus peccados aquella peccadora, que desapparecer de
improviso o infernal espirito, deixando livre a morada ao Senhor, que a
tinha criado, e ao servo de Deos matéria de consolação ; porque na obra
em que Christo Redemptor nosso çiais suara por lançar fora hum demónio
encasado : Erat Jesus ejiciens dwmo nium ; se via elle favorecido do mesmo
Senhor com tão pouco cabedal de trabalho, e suor seu.
16 O segundo caso foi, de hum homem Ecclesiastico dos mais nobres
da terra, que vivia, íx)m escândalo grande de todo aquelle povo, havia mui-
tos annos, em occasião de peccado do portas a dentro ; e tão obstinado,
íjue nem inspirações do Ceo, nem advertências de amigos, nem temor do
12 LIVRO 1 DA CimONICA DA COMPANHIA DE JESC
inferno, nem censuras de Prelados, nem amearas do Rei, forâo bastantes
a refreado. Avisado de todas estas ( ircimstancias, rpe faria o pobre pere-
grino? Com que authoridade coml)ateria hum coração igualmente senhor do
lugar, que do vicio? Era grande o animo de Nóbrega: vai visitar huma e
outra vez o nobre Ecclesiastico, como acolhcndo-se a seu amparo em ter-
ra estranha: serve-o, acompanha-o, chega a fazer-se amigo seu familiar (por-
que na boa conformidade das vontades assenta melhor a persuação dos
entendimentos.) Assi succedeo no nossoi cáásô; pèrqne em sentindo o
destro zelador aíTeiçoada aquella A-ontade, começon logo a comhatel-a, no
principio com suavidade, propondo-lhe diante dos olhos o perigo em que
vivia • á vileza do' estado em que esta^-â, a infâmia de huma pessoa tSo Ijera
nascida^ o escândalo de todo aqirelle povo, e O' que he' mais,'0 risco de
sua perdiçfiO eterna. Estava porém aquelle coração hum' duro bronze: ouvia
somente por respeito, mas não o penetravão as vozes (que ainda ns do
projpfrio Deos não são bastantes, quando não quer o homem, qiie he- se-
nhor de seu alvedrio.) Não desiste o- hospedo; e donw temi o. ouvido por
si, applica razões mais elTicazes, da morte, do inferno, de castigos aspér-
rimos em casos semelhantes : qiie^ a' tudo dava lugar -a capa de boa ami-
zade: porém á vista do vinculo" niais forte de torpeza tão emielhecidaj não
tinha forra o do amizade tão moderna: resolveo-se o bom Eccleaia&ticOí,
em queioPadíe lhe não fallassé mais na "matéria, sob pena de lhe tirar a
vida; sem respeito a amizade, sacerdócio, ou rehgião. Porém com tudo
estas mesmas ameaças forão a cawsa da conversão deste peccador; por-
que: iVtista ' delias cobrou novas forças o ^ zé-lo de Nobl'eg»r (foe i^enliunfâ
fóusa- mais desejava, que dará vida por defensãoda Castidade. Insta op-
pòrttino,) e importuno, qual outro S. Paula, com maior for-ça;- entra na ca-
sa, já: prohibida,e busca-o lia rua, na igreja, ' de dia^ e de ríòite, e mos-
tra-lhe^èoira este grande ahimd aUmportaiicia do- negocio, qiiéemprende,
e qiianio a eHe lhe ímiwrte resolução, pela qual hum homem estranho che-
ga arriscar a propria- vida. Aqui começa a eiitrar em si o combatido lier-
culosi-b Cítffleí^* í consMerar comsigó^isó-asirazSeg seguintes, dizendo as-
si: «Terrível conflito, que ou hei de malar esto Religiosa, ou hei de míh
tar meu appetite! A grave termo hei chegado!' Se mato este Religioso,
mato também coin elle meu appetite ;'iM)rqiie não será possi\^l; ^aííando
hum tal homem, que fique viva dentro de minha casa a occasião que sus-
tento : será força fugir, e deixãl-a. Pois se por fim hei de vir a deixar meu
appetite, para que quero matar este Religioso ? Morra, pois antes meu ap-
I
DO ESTADO DO BRASIL (aNXO DE lo49) {^
petite, c com esta morte viva minha alma, viva minha lionra, viva meu
credito j e viva o zelo de quem também me soube converter.» Rendeo-se
com elTeito á forra de combates este grande Hi^rcules da sensualidade, en-
trcígoiHse rendido a seu competidor, lançou de Cíisa a occasião de seus
males, e dallt em diante Uá exemplar <le honestidade, hum raro espelho de
virtude, agradecido sempre ao Padre Nóbrega, e \mw seu resj^ito a toda a
Companhia.
17 :i Na peregrinação Que fez a Gastellai! ilie aconteceo outro caso, que
por semelhante quero meter aqui. Caminhando pêra Salamanca, encontrou
no caminho um senhor titular, que elle conhecia do tempo que estudou
naquella Universidade. Andava este á montaria oom copia de criados, e
succedeo estar áquella hora jantando jimto a huns casaes : tinlia cooíisigo
á mesa huma moça, com «juiím tinha mao trato havia muitos annos, e com
a qual tratava actualmelito i)raticas deshonestas, sem i^ejo dos criados, e
com menos caboíde seu sangue illustre. Tinha já uotida de ifiOgQ o Padre
Nóbrega desta infâmia; c vendo agora diante de seus olhos aquelle ix>uco
pejo c temor de i)eos, entrou em zelo, chegou-se á mesa, e começou a
reprehenderseu atrevimento, fallando-lhe por Vós, aCfeando-lhe as Gii'cums-
tancias delle, de sua nobreza, de seu perigo^ e do escândalo que dava aos
que o servião, com tal espiíito, que ficarão todos pasmados; eesperavão
os criados que lho mandasse lançar dalli, ainda ás pancadas. Porém o Con-
de, lançando a cousa a graça, lhe foz esta pergunta : dleniiano, sois de los
Alumbrados? quereis limosna?» Respondeo o Padre : «.Pecunia tua lecim fU
inperditionem: Sois hum [iordido, pois tão ^ierdidamente offendeis a Deos:
olhai não se cumpra erá vós aqui lio da Ksmttura sagrada: Vidi impium
superexattatunit etc: e quo daqui a breves dias vá des parar em o nada da
morte, e penas do infeiiio.» VUam a)mo as5K>mbrado o.íJloiide:nem já co-
mia, nem ria, Ddni fa liava. Foi necessário tomar a mão un* cíjacorreiro
seu, dizendo ao Padn): «Hermano, si qu^^rcis liniosna, tomadla, y quando
no, id en f)ra buena, y dexad comer a Su Seiíoria.» iMas contra esto con-
verte© Nolwega seu Zelo severamente,, chamando-llMí por Tu, estranhando-
Ihe as chaa)rrices, com que esluva concorrendo em acto de tão grande es-
cândalo. O fim dfsta comedia es[)orava o servo de Deos que desparasse
em i»ancadas, dadas por seu alievimento ; e nenhuma outra cx>usa mais
desejava: porém foi mui dilTerenU; ; jKirque as duas íiguras principaes li-
cárão convertidas. O chacoireiro lançou-s(} logo aos pés do Padre, protes-
tando emenda : o Conde callou união, e fez depois ; i)orquc lançou de
14 LIVRO I DA CHRONICA DA COMPANHIA DE JESU
si a occasiâo, viveo exemplarmente, agradecido sempre a Nóbrega, por cu-
ja devaçâo fundou hum collegio â Companhia dentro de suas terras.
18 Discorreo depois por varias villas, e lugares de Portugal : e como
o modo era em todas semelhante, direi somente algumas cousas em pro-
va de seu grande espirito. Era estremado seu desejo de padecer ; folgava
que tudo lhe faltasse, que todos o maltratassem, e tivessem em pouco,
por serviço de Deos, e das almas : e o contrario disto sentia tanto, como
outros podem sentir a falta de honra, e regalos. Teve noticia hum fidalgo
illustre, Dom Duarte de Castel-branco (então Alcaide mór da villa de Sa-
bugal, e depois Conde delia) que vinha o Padre peregrinando a pé, e qua-
si sem çapatos, gastados do largo caminho ; e que entrava pela villa pe-
dindo esmola pelas portas, e tratava de se agasalhar no hospital. Conhe-
cia elle o sugeito, e compadecido de seu máo trato, determinou com todo
o empenho hospedal-o em casa, e mesa : porém debalde, porque resistio
á cortesia do fidalgo, como resistira á maior tentação do diabo. Crescia
o empenho naquelle senhor, e mandou pôr vigias ás portas da Igreja, on-
de havia de pregar, para que dalli o trouxessem a jantar a sua casa : mas
não menos crescia a resolução do obreiro apostólico, que tinha achado
traça, com que depois da precação não era achado dos criados, indo-se
embrenhar em um matto, onde escondido escapava dacjuella como afronta,
e perseguição. Mas a graça foi, que reforçou a charidade do fidalgo as tra-
ças, e poz taes vigias, que houve de ser descoberto seu jazigo, e elle acha-
do no meio de umas sylvas, mais contente entre as espinhas, que outros
entre panos de armar do palácio. Achado assi com o furto na mão, foi
força de cortesia (que elle também sabia usar) acudir ao chamado do ami-
go ; chegou a casa, agradeceo-lhe os termos de sua muita caridade, mas
significou-lhe altamente a pena, que nesta mesma cortesia lhe dava, e o
quanto importava a seu intento ser visto viver como pobre, e não entre
mimos, e regalos. Vierão por fim neste concerto ; que o Padre se agasa-
lhasse embora no hospital, mas que nelle receberia por esmola o sustento
da casa do fidalgo : que deste modo sabem contender os varões santos
contra os mimos, e regalos da carne ; e com semelhantes exemplos conven-
cem as almas no desprezo do mundo.
19 Se neste lugar recebeo o amigo a nosso peregrino, tanto contra von-
tade ; outros houve, que o receberão muito conforme ao que desejava.
Chegara hum dia de guarda junto a hum lugar, onde vio que estavão huns
homens jogando a bóia, c ouvio juntamente pouca decência em suas pala-
DO ESTADO DO DIUSIL (ANNO DE 1549) 13
vras (como costuma gente de pouca conta, larga na vida) cliegou-se a el-
les, começou a fallar-llies de Deos, e pretendeo convertel-os a raellior
compostura : porém os homens (quaes se ouvirão hum aggravo grande) en-
cherão-no de injurias enormes, e graves afrontas, e faltou pouco que não
viessem a pancadas, zombando delle, e dando-lhe vaia, dizião : «Este he
aquelle estudantão, que o outro dia furtou a mulher casada ; prendamol-o
e levemol-o ao Corregedor.» Então se accendia mais o servo d^Deos no
desejo de ser affrontado : porém elles deix>is de satisfeitos o deixarão
por louco. N outro lugar chegarão a prendel-o por intentar hum serviço de
Deos. Outros lhe negarão a esmola, morrendo de fome dias inteiros:
sempre com tudo aquelle seu espirito estava forte, e apostado a trabalhar
por bem das almas.
20 Porei aqui hmii castigo horrendo, que o Geo deu a certo homem,
por desprezar este servo seu, e o mesmo Deos, blasfemando. Hia entran-
do na Igreja de hum d'estes lugares, e achou que se fazia nella uma folia
descomposta, que com musicas mal soantes, e bailes deshonestos, profa-
navão o lugar sagrado. Reprehendeo o atrevimento como era razão : po-
rém os dançantes, sentidos de se lhe interromper a festa, perderão o res-
peito ao Prégad(jr, com acções descompostas, e impacientes : e acrescen-
tando maldade a maldade, chegou hum delles ao desprezo do mesmo Deos,
soltando palavras blasfemas, tão horrendas, que ficou pasmado o servo do Se-
nhor. Poz-se de joelhos, pedindo a Deos não ouvisse tão grandes desatinos. Se
não que, acabada a folia, c posto a cavallo o blasfemo para ir jantar a ca-
sa, armou-se o Geo contra elle com tão desusados sinaes de tempestades,
raios, trovões, e com tão grande perturbação dos elementos, que todos en-
tenderão ser castigo do Alto : e com mais fundamento, quando virão cair
das nuvens hum raio com l)ramido horrível, e acommetter o triste delin-
quente, que á vista do mundo, do Geo, e dos Anjos, íicou abrasado, c
c/jnvertldo em jx), e em cinza : castigo horrendo, mas l)em merecido por
tão insolente desacato. Ficarão atónitos os da ftjlía, e á vista desta festa
do Geo tão differentc, temião e tremião ; e cobráião alto ajnceito do Pre-
gador, e da razão, com í|ue os reprohendia. Passarão . palavra de lugar
em lugar, e reverenciavão seus ditos dalli em diante, como de hum pro-
])heta de Deos, e de hum Elias vingadoí'. Villa houve, que com hum só bra-
do, que levantou este servo do Senhor no meio de huma praça, contra os
peccadores sem mais cabedal, fir^)u ref(jrmada, temendo, e tremendo.
'ii Não erão só os homens, lambem os demónios tinhão respeito ao
16 LIVUO I DA CUnONICA DA CO^rPA^H^A DÊ JESU
Padre Nóbrega. Vivia por estes lugares huma mullier, conhecida de to-
dos pôr atormentada do diabo, o qual se tinha apoderado delia com tão
grande familiaridade, (fue lhe entrava no corpo cada vez que ípieria, falla-
A^-lhe á orelha, e dizia-lhe cousas admiráveis, com que espantava o povo.
Á fama' da pregação de Nóbrega começou a respirar esta mulher, buscou-o,
lanço«-se a seus pés, pedio remédio para poder afugentar de si diabo tão
apoderád#. Entrando o seiTO de Deos em zelo de espirito contra o mali-
gno, disse-lhe só- estas palavras: «Irmã, (juando o diabo tomar a ter com-
vosco, dizel*lhe que vá folliar comigo, e deixai-o vir, que eu me haverei cá
com elle. » CoUsa estranha! foi tão eíTicaz só este remédio, que escolheo
antes acpielle antiguo possuidor largar a posse do que tinha ganhado, que
ir ouvir as palavras de Nóbrega, que o ameaçava: desappareceo logo, licou
a miilhér com victoria, e Nóbrega com a fama, que afugentava oídemonio
só com siía palavra.
22 Na peregrinação que fez a GaMiza, teve occâsião de padecer muito,
especiahnénte de fome, por ser mui pobre aquella terra. Costumava o Pa-
dre Nóbrega, estancio já em o Brasil, contar aos companheiros, como por
graça, ^c«8o seguinte, que lhe aconteceo na cidade de S. TiagO; E foi (di-
zia elle:) rf Depois de pregar certo dia de guarda, sahi eu, e o Irmão meu
companheiro a pedir esmola pelas portas; e tendo corrido varias ruas, sem
proveito algum, chegámos a huma praça, onde vimos hum ajuntamento de
mulheres Gallegas, com grande risada, e galhofa; e querendo o Irmão meu
companheiro pedir-lhe esmola, vio que estavão todas ouvindo a huma, que
feita pregadora arremedava, como por' zombaria, o sermão que eu tinha
pregado. Teve vergonha de chegar o Irmão, e ficou sem esmola ; e a que
eu tinha tirado, não chegava a quatro ceitis: pelo qUe todo aquelle dia pas-
sámos sem comer. Porém acudio Deos na maior necessidade; por que che-
gando á tíoite, e recolhendo-nos aohosi>ital, fomos dar acaso em hum apo-
sento' delle, onde achámos quantidade de pobres pedintes -peregritlos, com
muitas viandas, e cabaças de vinho, comendo, e bebendo alegremente; e
tinhão grandes contendas entre si: no ponto em que nos virão, parecendo-
Ihes seriaftios também de sua relê, chamarão por nós, dizendo: «Irmãos,
sentai-vos, e èomei, e sereis nossos juizes, porque estamos em grande dis-
puta, sobre tiiial denóssabe melhor pedirpara tirar muito dinheiro. «Eu (dizia o
Padre) como estava morto de fome, aceitei de boa vontade o oíferecimento, como
esmola da mão de Deos, e comecei a comer, e meu companheiro. Em quanto o
faziamos, contava cada qual delles o modo que tinha pêra enganar. E por
DO ESTADO DO BRASIL (A.N.NU DE 1549) 17
derradeiro disse iium: «Vós outros não sabeis pedir: olhai, eu tenho esta
traça : nunca peço esmola ; mas chegando a huma porta, dou ahi hum gran-
de suspiro, dizendo: Bemdita seja a Madre de Deos, ou, Bemdito seja tal
Santo: os de casa tanto que ouvem este meu sentido suspiro, acodem lo-
go a saber o que tenho : então eu com huma voz quebrada, e fraca quanto
posso, começo assi : Senhores, grandes são as mercês, que N. Senhor
me tem feito. Sabei que eu estava cativo em Turquia, e o perro do Turco
meu amo me dava muito mcá vida, com ásperos açoutes, pêra que arrene-
gasse de Christo: ás minhas mãos has de morrer (dizia) se não arrenega-
res. E eu respondia, oh perro não hei de arrenegar da Fé de meu Senhor;
porque Nossa Senhora, ou S. Tiago, ou outro Santo, conforme o lugar em
que me acho, me ha de livrar. E com effeito, irmãos, assi o fez com este
peccador, que aqui vedes: porque estando eu huma noite mui attribulado,
carregado de ferros em huma masmorra escura, encommendando-me á Se-
nhora, ou a tal Santo (bemdita seja a magestade de Deos) achei-me ao ou-
tro dia ao romper da alva, em terra de Christãos, e por dar-lhe as graças
de tão grande mercê, venho agora em romaria á sua santa casa.» Contada
esta historia, concluío dizendo: «Com esta traça todos me dão grandes es-
molas:» e disse pêra mim: «Que vos parece irmão? não tenho ganhado a
aposta?» Eu que até então tinha soccorrido minlia necessidade, e de meu
companheiro, com zelo da honra de Deos , dei a sentença na forma seguin-
te. «Sois huns ladrões, inimigos de Deos; andais roubando as esmolas dos
pobres, e enganando o povo Christão; e mereceis ser todos enforcados:
hei-vos de accusar á Justiça. Ficarão pasmados os pobres; porque cuida-
vão que tinhão em mim hum dos seus : huns após outros se forão acolhen-
do fora do hospital; e onde quer que me encontrava' algum delles, fugia
por outra rua, temendo e tremendo.»
23 N'outra occasião, chegara Nóbrega cansado, e faminto a certa povoa-
ção, e vendo gente em huma Igreja, não pode acabar comsigo descansar; foi-
se a ella, subio ao púlpito, e como vinha com poucas forças do caminho,
e era algum tanto impedido da Miigoa, em começando a pregar, cí)mo não
era conhecida a pessoa, íizerão pouco caso, e todo o auditório se acolheo
hum após outro. Não desanimou o servo df) Senhor, descfo do púlpito, e
pedio encarecidamente ao ParotJio,que rogasse ao povo, que á tarde o vies-
se a ouvir. Fel-o o Parodio com modo desprezível, dizendo assi: «Quem
quizer pôde vir á tarde ouvir aquelle Clérigo gago.» Veio o povo, mais pelo
ditto de seu Vigário, qnp poi- es[>erança do fruto. Porém o gago de i;d
vor.. I "i
18 LlVnO I DA CimO.MC.V da companhia de JESl'
maneira se explicou, e se ascendeo em espirito, que deixou abrasados no
fogo do amor de Deos os ouvintes, com tal excesso, que pedião instante-
mente que licasse alli aquelle pregador, pêra remédio de sua salvação: que
assi íroca Deos corações, e assi salje concorrer com seus servos. Fora
cousa comprida querer relatar por menor todos os casos das missões, e
peregrinações d"este servo do Senhor; quantos nellas soube alumiar, quan-
tos reduzir, quantos tirar de máo estado, e trazer ao caminho da vida.
24 Este he o varão que escollieo em seu lugar o Padre Mestre Simão
Rodrigues pêra a empresa do Brasil. Bem dava mostras, que o zelo, que
tão bem affinára nos povos pequenos de Portugal, com maior força refina-
ria entre a immensidade de bárbaros de hum novo mundo. A fama de seu
grande espirito foi a causa de ser pedido em particular com grandes ve-
ras, assi da Alteza dEI-Rei D. João, coi^io também de seu Governador,
o primeiro que vinlia a estas partes. Pelo que foi força ser mandado cha-
mar pelos Superiores ás peregrinações acima referidas, Obedeceo o servo
de Deos, veio logo a pé a Lisboa, aceitou a missão, como mercê da mão
do Altíssimo, a quem, e a todas as almas daquelle novo mundo, desde logo
se dedicou, e protestou servir até a ultima boqueada. Derão-lhe mais os
Superiores cinco companheiros, varões de provada virtude, e desejosos
de empregar seus trabalhos, e dar a vida, se necessário fosse, por bem das
mesmas almas. Erão seus nomes os seguintes: o Padre Leonardo Nunes,
o P. João de Aspilcueta Navarro, o P. António Pires; e dous Irmãos, Vi-
cente Rodrigues, e Diogo Jacome. Não foi possível, por mais pressa que se
dera o P. Nóbrega, chegar a Lisboa a tempo em que pudesse embarcar-se
com o Governador, que por elle esperava; e como nem elle, nem El-Rei,
quisessem aceitar outro, pelo conceito de sua virtude, e letras; supposto que
partio com a frota, e mais Religiosos companheiros, deixou coratudo espe-
rando por elle uma fermosa não de António Cardoso de Barros, que tam-
bém vinha por primeiro Provedor do Brasil : na qual se embarcou, e veio
a alcançar a frota a poucas sangraduras; onde foi recebido do Governador
em sua náo, com mostras de grande alegria.
2o Era este primeiro Governador Thomé de Sousa, fidalgo de gran-
des partes, mui experimentado nas guerras de Africa, e da índia; nas
quaes partes se tinha portado valeroso cavalleiro, e por seus serviços
mereceo fiar delle o Rei empresa tão grande, de dar principio a hum
Estado em que pretendia fundar Império. Trazia poder absoluto, com ju-
risdição sobre todas as mais Capitanias. Partio da barra de Lisboa ao i."
DO ESTADO DO DRASIL (AN.NO DE loiO) 19
de Fevereiro do anno de 1549. Nesta viagem abrio as velas de seu grande
fervor o P. Manuel da Nóbrega, e brevemente pode experimentar o Go-
vernador o que delle ouvia só por fama, porque não aquietou seu espirito,
pregando, praticando, fazendo procissões, prohibindo jogos, juramentos,
fazendo amizades, trazendo aos sacramentos, e estranhando sobre modo
abusos. Em breve tempo se vio a náo, e toda a frota reformada por meio
seu, e de seus companheiros, que todos erão varões apostados, como de-
pois contará a Historia.
20 Entre outros succedeo hum caso notável nesta viagem, que ficou
impresso na memoria ao Governador, e depois o contava muitas vezes em
Portugal, como grande prodígio : foi assi. Veio a descobrir o Padre 'Nó-
brega, que o Governador guardava na viagem, e tinha guardado muitos
annos havia, a titulo de devação, não comer cabeça alguma de peixe, ou
carne, em honra da cabeça de S. João Bautista, cortada por defensão da Cas-
tidade: e como era re-.soluto seu zelo, e mais com os maiores, e por esta
via parece queria Deos acredital-o já dalli; buscou occasião de advertil-o;
e foi, que estando hum dia com elle á mesa, o vindo a ella hum peixe, não
quiz comer a cabeça delle: então lhe declarou, que aquella devação, que
fazia, vinha a ser espécie de superstição; e era bem que Sua Senhoria a
trocasse em outra mais aceita a Deos, e ao Santo. O Governador, que ti-
nha já convertido em costume aquella devação, e i)or v^entura tinha pêra
si, que por ella lhe tinha o Santo feito alguns favores, dissimulava com o Pa-
dre: porém elle, (pie não costumava empreender debalde as cousas, vendo
que não bastavão palavras, veio á obra ; e revestido de espirito prophetico,
intrepidamente lhe disse: «Mande Vossa Senhoria lançar a linha ao mar, e
do que pescar verá claramente a vontade de Di.-os, e essa siga, já que
não ([uer seguir meus conselhos.» Lançou-se a linha, com grande alvoroço
de muitos, que cstavão presentes, e esperavão o fim de promessa tão
nova: quando vêem todos com seus olhos (prodígio milagroso!) vir presa
no anzol huma cabeça de peixe só, e sem corpo, em cumprimento da ver-
dade de Nóbrega. Ficarão pasmados, e sobre todos o Governador; e foi
tão grande a força, com que sentio desenganar-se á vista de tão claro sinal
do Ceo, que mandou logo cozer a cabeça, comeo-a em presença de todos,
e repartio c/)m algims, como de peixe milagroso. Conciliou o caso, assi
pêra com o Governador, como pêra com toda a náo, conceito de santo a
Nóbrega ; e á volta d'esla opinião obrava cm bem de suas almas íjrandcs
cousas. Não me detenho neste caso em ponderar, quem foi o que separou
LIVHO 1 DA CHUOMCA DA COMPANHIA DE JESl
a cabeça áquelle peixe? com que instrumento? ou com que fim? Porque
quando Deos quer fazer milagres, as agoas lhe podem servir de cutello, e
as mais leves occasiões de matéria pêra prodígios grandes. A occasião não
foi grave; porém o exemplo que delia resultou, foi gravíssimo, causa do
grande conceito do servo de Deos, e principio da melhoria de muitas almas,
que depois se renderão á sua doutrina.
27 Tempo havia que navegava a frota com estes auxílios espirituaes
de Nóbrega, e de seus companheiros, e com os ventos favoráveis, que o Ceo
lhe dava; quando chegados ao ílm de Março, ou como querem outros, prin-
cipio de Abril, começarão a ver os sinaes da desejada terra : os ares claros,
os ventos serenos, as agoas de prata; e após estes arrebatavão os olhos
os montes altos, verdes, aprazíveis, que enlevavão junto com a vista os
corações dos Inavegantes: mareão as jvelas, buscão porto, e chegão por
fim a lançar ferro (com sessenta e seis dias de viagem, se hemos de seguir
Orlandino nas Chronicas da nossa Companhia) na fermosa, e espaçosa Bahia
de Todos os Santos; assi chamada, ou porque parece hum Paraíso, onde
habitam todos os Santos ; ou porque parece que todos os Santos do Paraí-
so míluem nella alguma parte de suas qulidades. E na verdade não sei eu
se haverá em todo o descuberto paragem mais accomodada pêra o com-
mercio, e habitação humana, que esta da Bahia, e seus arredores (que tudo
entra em nome de Bahia;) nem será fácil o descrevel-a eu aqui como he.
28 Quanto ao mar, he a Bahia huma capacidade de agoas de muitas le-
goas (dão-lhe alguns doze de diâmetro com seus braços mais grossos, e por
conseguinte de circunferência trinta e seis.) He estancia fiel pêra navios, abri-
gada dos ventos e tempestades do Oceano. Dentro de huma barra real de
mais de duas legoas de largura (o que he limpo, fundo, e navegável) en-
trada segura de galeões, e náos da índia, suíTiciente pêra todas as Arma-
das do mundo, entreçachada de aprazíveis ilhas, humas grandes, outras pe-
quenas, e tantas em numero, que se aífirma que passão de cento da barra
pêra dentro; pela mór parte enriquecidas de grossas fazendas de morado-
res; fermosa, com graciosa variedade em brancas praias, toscos penedos,
verdes arredores, boqueirões, entradas, e sabidas, que fazem bahias diffe-
rentes, e enganão facilmente a vista humas com outras, dos que não tem
experiência : cercada quasi em contorno de terra firme, de cujo sertão vem
a pagar tributo grandes rios ; o de Piraia, Matuim, Parnamerim, Seregipe,
Paragnaçú, Jagoarípe, e outros que nascem d*estes, ainda que menores,
não menos aprazíveis, e todos elles navegáveis. A'eem-se hoje todas estas
DO ESTADO DO BRASIL (ANNO DE loWj 24
bahias, e margens de rios, cercadas das ricos lavouras da doce planta de
canaveaes, já verdes, já louros, quasi innumeraveis. Porém o que mais
admira, e faz todo este recôncavo mais proveitoso, h« a providencia parti-
cular, com que a natureza deu portos, e commercio a todas estas la-
vouras, e fazendas, ajuntando a qualquer d'estes rios maiores huma
plebe numerosa de riachos, e esteiros, que meteo pela terra, de maneira
que até a partes muito distantes, e situadas no coração delia, forão buscar
como de propósito estes riachos, todos navegáveis, pêra lhes darem porto,
e sabida, com tão alegre confusãe, que se não pode facilmente julgar, se
está aqui a terra no mar, se o mar na terra. Avultão entre todas, as gran-
des fazendas dos engenhos de açúcar, maquinas lustrosas; porque contém
grandes oíTicinas, e grandiosas casarias de igrejas, moradas dos Senhores,
Vigários, lavradores, oíTiciaes, serventes, e escravos. E vem a ser estes en-
genhos em numero, quando isto escrevemos, sessenta e nove, que representão
outras tantas villas, e fazem aquelles arredores sobre maneira nobres, e
aprazíveis. He notável a facilidade do trato, commercio, e serventia de to-
dos estes moradores. São vistas aquellas bahias, rios, portos, boqueirões, en-
tradas, e sabidas, continuamente cheios de vellas, quaes grandes, quaes pe-
quenas, todas sem conto: os arraes brancos, os marinheiros pretos; são
todo o serviço necessário, escusão carros, e cavalgaduras, e vem a fazer o
commercio, não só mui fácil, e abreviado, mas proveitoso, e"alegre : e a fal-
tar esta grande facilidade de meneio, não vejo eu como fora possível de-
sembocarem todos os annos d'esta Bahia pêra o Reino de Portugal tantos
milhares de caixas de açúcar, que enchem tão grandiosas frotas, de tanta
quantidade de nãos, como vemos, toda a doçura, e todo riso do Rei, c do
Reino.
29 As agoas d'este grande lagamar, ou pequeno Oceano, da barra para
dentro, parecem de crystal. Da náo mais alongada da praia, experimentei,
que olhando pêra o fundo das áreas, via nelle os seixos, e as conchas bran-
quejando a modo de pedaços de prata. As margens, e ribeiras dos rios
por ordinário estão galanteadas da verdura dos mangues, mui engraçados,
não só por verdes, mas por aquellas singniares laçadas, com que a nature-
za vigorosa os enredou; porque do mais alto de seus braços lanção ver-
gonteas a beber em as agoas, e nestas como luxuriando, dos braços fazem
pés, arreigão em o fundo, crião raizes, e tornão a brotar ao alto troncos
diversos, e diversos ramos. Não dão estas arvores fruto algum; recompen-
são porém a falta delle, com vários préstimos em proveito maior dos mr*
22 LIVRO I LA CimOMCA DA COMPANHIA DE JESU
radores; porque aqiielles braços, que dissemos lanção do alto a prender
outra vez em as agoas, formão cada hum cinco e seis raizes antes que che-
guem á vasa, as quaes naquelle espaço que lhe cliegou a agua das marés,
se cobrem com tanta quantidade de ostras humas sobre outras, que talyez
he bastante hum só pé d'estes pêra encher hum cesto. Debaixo d'estas
mesmas raizes se cria tanta copia de caranguejos,. c[ue sendo muitos
milhares os moradores, principalmente serventes, e escravos, a todos dão
pasto quotidiano, e gostoso, só os que andão pelas margens dos rios. Com
a folha d'estas arvores pisada, se fazem os cortumes de toda a courama
do Brasil, muito mais brevemente que com o somagre do Reino; c com a
casca pisada se dá a tinta vermelha, e engraçada, que tem os mesmos cou-
ros. De seus troncos se fazem as melhores,, e mais incorruptíveis madeiras
pêra todos os altos das casas, como são caibros, enchimentos, e pilares : e
vem a ser esta arvore infrutífera a de maiores préstimos. De pescado he
toda esta paragem de mar, e rios abundantíssima: suas espécies são
innumeraveis, gostoso todo, e sadio : nem he menor a copia de géneros de
marisco, regalo de ricos, e fartura de gente ordinária.
30 A terra he hum pintado mapa, sempre verde, e sempre alegre ; por-
que conservão todo o anno a folha seus arvoredos. Na compostura da na-
tureza, bem assombrada, levantada em outeiros, estendida em campinas,
povoada de bosques, abundante de pastos, retalhada de rios* fecunda d(í
fontes, sempre a mesma, sempre varia : donde nasce, cjue he innumeravel
o gado, e todo o género de criação abundantíssimo. O torrão por ordiná-
rio he fino, maçapé, feraz e vigoroso, não só das cousas naturaes, mas das
do Reino : na fruta de espinho não dá vantagem á melhor de Europa : as par-
reiras todos os meses sahirião com fruto, se todos os meses forão podadas,
e beneficiadas. O sitio principal d'esta paragem, \w o daquella parte junto
á barra, onde hoje avulta. a cidade, prominente a toda a bahia, e donde a
hum levar de olhos se estão vendo juntamente aquellas agoas, ilhas, praias,
penedos, verdura, boqueirões, entradas, e sabidas, e embarcações innume-
raveis, que acima dissemos: huma das vistas que no mundo se gabão.
Os moradores naturaes da terra, por natureza são liberaes, engenhosos,
magnanimos,e dadivosos. Seria cousa grande descer ao particular, quer de esmo-
las, quer de donativos gratuitos. Homem houve, que despendeo graciosamente
quantia de fazenda, com que pudérão enriquecer quatro: ainda vivem successo-
i"es seus, que seguem a liberalidade do pai. Occasião vi, em que tirando-
ie huma esmola pêra principio de huma obi-a [«ia, se ajuntarão só na cidade
DO ESTADO DO DRISIL ÍAXNO DF. V}W} 23
trinta e dons mil cruzados: outra houve em que se ajuntarão pela cidade,
e recôncavo, pêra a fabrica de hum templo, sessenta mil cruzados, dando
hum só morador os trinta ; em agradecimento dos quaes se lhe fez escrit-
tura da fundação da capélla mór.
;]1 A região do ár he conhecidamente vital, hum quasi segundo Paraí-
so, huma perpetua primavera, onde raramente se sente excesso de frio ou
de calma, donde andão desterradas as pestes, e ramos delia, as doenças
contagiosas; e sem esta injuria dos climas morrem os homens por seus ca-
baes, cheios de dias, e de annos. Estcá em altura de treze grãos e meio,
entre a linha, e trópico Austral : e com tudo zombão seus naturaes da dou-
trina dos antigos Philosophos, que tinhão pêra si, que era inhabitavel esta
parte do mundo, que não tinha Ceo, que carecia de antípodas; e outros
sonhos contrários do que hoje nos mostra a experiência. Faltava só que
fosse também mellior o Ceo d'esta parte: e não será temeridade aíTirmal-o;
segundo a doutrina que temos assentado no Livro segundo das Curio-
sidades do Brasil. Parece na verdade se poz a natureza a formar esta par-
te do mundo, quando estava com a mão mais folgada : como lá disse Plinio
da sua Campania.
Íj2 íle a Bahia cabeça do Brasil, c he este na compostura, a modo de
hum gigante gi-ande. O broco esquerdo lhe vão formando as Capitanias de
Sergipe, Pernambuco, Itamaracá, Paraíba, Rio-grande, Seara, Maranhão, e
Gr"ão-Pará. O braço direito lhe formão as Capitanias dos liheosj Porto-se-
guro, Espirito Santo, Uio de Janeiro, S. Vicente ; e doesta até ao grão Rio
da Prata : de maneira que vem a lavar-lhe as mãos (por não dizer os pés)
a este gi-ão gigante, da parte esquerda as immensas agoas do rio Grão-Pará:
e da parte direita as do Rio da Prata.
33 O primeiro descobridor desta Bahia foi Christovão Jaques, fidalgo
da Casa Real, aquelle de quem dissemos já no livro primeiro das Cousas
do Brasil, que andando d('scol)rindo, e demarcando os po?'tos d'esta costa,
veio a dar com esta Bahia até então encoberta: e entrando nella, por
sua fermosura, como de Paraíso, lhe poz o nome, Bahia de Todos os San-
tos. E indo correndo seus recôncavos, em hum a que chamão Paraguaçú
achou duas nãos de Franceses, fazendo resgate com os índios: ás quaes,
pondo-se ellas em resistência, e não (jiierendo largar o porto, que não lhe
pertencia, por ser conquista do Rei de Portugal, meteo no fundo com gen-
te, e fazenda: que assi obravão os Capitães daquèlle tempo cm cousas do
síTviço de seu Rei.
24 LIVRO I DA CnnONICA DA COMPANHIA DE JESU
3i o primeiro povoador Portuguez foi outro fidalgo por nome Francisco
Pereira Coutinho; e foi a occasião a seguinte. Voltara este fidalgo da índia,
onde fizera serviços grandes á Coroa de Portugal, a tempo que os Capi-
tães Gonçalo Coelho, Pêro Lopes de Sousa, e Christovão Jacques (co-
mo dissemos) tinlião informado a Sua Alteza das cousas do Brasil, e das
grandes esperanças que prometião, em cujo fundamento se tinka o Rei re-
soluto em mandar povoar estas terras. N'esta occasião pedio Francisco Pe-
reira Coutinho parte d^ellas, offerecendo-se a cultival-as, e deffendel-as á
sua custa da immensidade de Bárbaros, que alli vivião. Foi-lhe feita a mer-
cê, e demarcou-se-lhe a costa, que corre desde o Rio S. Francisco, até a
ponta do padrão da Bahia, que vem a ser a ponta da barra chamada hoje
de Santo António: e logo depois se lhe fez mercê da própria Bahia de To-
dos os Santos, com todos seus recôncavos. Partido pois este fidalgo em
pessoa, com boa armada feita á sua custa, pêra estas partes, veio a de-
sembocar da ponta do padrão pêra dentro, e começou a fortificar-se, e po-
voar junto ao mar, onde agora chamão Villa-velha. Esteve algum tempo
de paz com os índios, e chegou a fazer dous engenhos, e algumas roças:
se não que, como são inconstantes todas as felicidades da vida, a d'este fi-
dalgo teve também occasião de descair, e foi esta o desastrado caso da
morte do filho de hum Principal dos índios mais guerreiros, e temidos
em todo o Brasil, chamados Tupínambás. Levantou-se aggravado este Prin-
cipal com toda a sua gente, começou a perturbar a paz, e fazer cruel guer-
ra: matou grande quantidade de Portugueses em vingança de seu aggravo,
e entre elles hum filho bastardo do mesmo Capitão Francisco Pereira Cou-
tinho; destruindo á volta da guerra os engenhos, roças, e tudo quanto pos-
suião: de maneira, que dentro de sete ou oito annos, por mais industria,
e valor que soube applicar em sua defensa hum Capitão, outro tempo tão
destro e venturoso nas guerras da índia (ou por justo castigo, ou por oc-
culto destino de sua estreita) veio a ficar de todo destruido. Houve de re-
tirar-se á Capitania dos Ilheos: porém aqui, se pararão as armas, não pa-
rou o rigor da fortuna d"este fidalgo; porque embarcando-se depois de al-
gum tempo, em fé de certas composições de paz com os índios, antes de
chegar á Bahia fez naufrágio a embarcação em que vinlia; e o mesmo Ca-
pitão, com todos os que com elle navegavão, e sahirão á praia, forão nel-
la cativos dos Tupínambás, e logo mortos com barbara crueldade, e con-
vertidos em pastos de seus ventres. E este foi o fim do primeiro povoa-
dor da Bahia, e juntamente a causa, que moveo a El-Rei a tomal-a por
DO KSTADO DO BRASIL (ANNO DE 1549) 2í)
sua, e fabricar n'ella huma cidade, que fosse cabeça, e couio coração do
Estado, donde pudessem ser socorridos todos os mais lugares da costa.
35 Não deixarei com tudo de referir aqui ao breve a historia notável
do celebrado Diogo Alvares; por que são dignas de ser sabidas suas cir-
cunstansias, e querem alguns contal-o a elle pelo primeiro povoador da
Villa-velha. Foi Diogo Alvares Portuguez de nação, natural da notável
villa de Vianna, de gente nobre, e generoso coração. Sendo mancebo, as-
pirou a ver novas teri'as; embarcou-se em huma náo, que segundo alguns,
fazia viagem peia S. Vicente, Capitania deste Estado, já então povoada por
Martim Affonso de Sousa: segundo outros, pêra a índia. Fosse qualquer
das duas a derrota, a náo chegou a esta costa do Brasil, e n'ella constran-
gida de um temporal rigoroso, depois de quebrados os mastos, foi dar em
os baixos que hoje vemos junto á barra da Baliia á parte do Norte, cha-
mados do Gentio Maíragiquiig, onde fez miserável naufrágio, e pereceo
parte da gente ao rigor da fereza dos mares, parte ao da fereza dos índios,
que sahindo ás praias cativarão os pobres naufragantes, e os despojarão
da vida, fazendo d elles pasto. Fntre os mais cativos notarão . os bárbaros
a singular constância do nosso Diogo Alvares, que desi)rezando o golpe da
fortuna, ajudava ajuntar as cousas do naufrágio comcoi'ação intrépido em
favor dos que já tinha por senhores (que he o fino da prudência saber ac-
comodar-se hum coração aos lanços vários da fortuna:) contentárão-se d'el-
le, e assentarão entre si, que aquelle ficasse com a vida: traça do Alto
pêra os fins que veremos do serviço de Deos, do Rei, e da terra.
36 Entre a fazenda que sahia á praia, recollieo Diogo Alvares alguns
barris de pólvora, e com elles hum, ou dous arcabuzes; e nestes consis-
tio toda a felicidade, e senhorio em que depois se vio: porque estando já
recolhidos em suas aldeãs, concertou elle um dos arcabuzes, e disparan-
do-o em presença de todos, á vista do estrondo que fez, do fogo que lu-
zio, e do eíTeito que obrou (devia ser a morte de alguma fera, ou ave) fi-
carão attonitos os barbaios de cousa que nunqua já mais virão: puzerão-
se em fugida mulheres, e meninos, dizendo a vozes que era hum homem
de fogo, que queria matal-os. Apenas pararão os varões: a estes fez capa-
citarem-se que o ífue virão era arte sua, que podia wm ella ajudal-os contra
seus inimigos; que não havia de que temer, porque seu fogo matava somente
os contrários, não os amigos, e ficarão com isto desabafados. No mesmo
tempo trazião guerra com os Tapuyas habitadores do sit» de Passe, dis-
tante como seis legoas do lugar aonde hoje he a cidade: quiserão fazei-
2G Livro i da curomca da companhia de iesu
experiência, juntarão seus arcos, c Icvando-o por guia forão dar sobre el-
les, e virão tudo o que csperavão; porque no ponto que tiverão noticia
aquelles salvagens, que hia contra elles o homem de fogo (que assi lhe cha-
mavão) que de longe feria, e matava, quaes se. virão a fúria de hum Vul-
cano, ficarão desmaiados, e derão a fugir pelos mattos; ficando assi prova-
do o valor, e arte mais que humana (na opinião desta gente) de Diogo
Alvares, cuja fama correo em breve por todos os sertões, e foi tido pn»'
homem portentoso, contra quem não erão capazes seus arcos: e aqui lhe
acrescentarão o nome, chamando-lhe o grande Caramurú. Os Principaes
maiores prezavão-se de que quizesse acceitar suas filhas por mulheres, e
lhas offerecião; e cuidava que alcançava favor grande aiiuelle de quem as
recebia. Em contendas de guerra que se offerecião, Diogo Alvares era o
arbitro de todas ellas: foi de maneira, que em breve tempo subio de ca-
tivo a senhor, que tudo governava; e aquella parte pêra onde inclinava
seu fogo, tudo obedecia, e pagava páreas.
37 Assentou suas casas naquelle raso, que hoje se vè em Villa-velha,
além de Nosí^a Senhora da Vitoria, cujas ruínas ainda agora dão sinaes.
Teve aqui grande familia, e muitas mulheres; porque não se havia por hon-
rado o Principal, que com elle se não tinha apparentado. Houve muitos fi-
lhos e filhas, que pelo tempo forão cabeças de nobres gerações. Nestes ter-
mos estava, quando chegou a esta Bahia huma não francesa, determinou
passar nella a Portugal por via de França, e carregando-a de pcáo lirasil,
embarcou a mais querida de suas mulheres, dotada de fermosura, e Prin-
cesa daquella gente. Fez-se á vella, não sem grande inveja das que ficavão.
Delias contão alguns, que chegarão a lançar-se a nado seguindo a não,
com perda de huma, que ficou afogada nas ondas. Chegado a França, foi ou-
vida sua historia do Rei, e Rainha com satisfação, como cousa tão nova :
folgavam de ver a esposa, individuo estranho de hum novo mundo. Trata-
ram de bautizar a ella, e casar a ambos na face da Igreja. Celebrou este
sacramentos hum Bispo, dignando-se de serem os padrinhos os próprios
Reis. Houve ella por nome Catharina Alvares, sendo o do Brasil Paragua-
çú. Derão-lhe a Rainha, e outros Senhores titulares ricos vestidos, e mui-
tas jóias, mas não consentirão passarem a Portugal. O (jue visto, por meio
de hum Portuguez por nome Pedro Fernandes Sardinha, que acabara em
Paris seus estudos, e voltava a Lisboa, fez aviso a el-Rei D. João o Hl da
bondade da barra, e terra da Bahia, a fim de que a mandasse povoar. Este
Pedro Fernandes Sardinha, depois de feita sua recommendação, foi áe^yiv
DO ESTADO DO BRASIL (ANNO DE l')Í9) 27
chailo por El-Rei pêra a índia, por Vigário geral;- e.he o mesmo que de-
pois veio por primeiro Bispo do Brasil D. Pedro Fernandes Sardinhíi.
38 Depois de algum tempo voltou Diogo Alvares ao Brasil, concertan-
do-se em França com hum mercador grosso, que carregando-llíe duas nãos
com quantidade de lY^sgates, pólvora, munições, e artelliaria, e trazendo-o
a elle, e a sua mulher, em ti^oco disto lhas carregaria de páo brasil. Che-
gou a salvamento, cumprio a obrigação, carregando as nãos, e com a ar-
telharia formou estancia forte, onde seguro habitasse, â sombra da qual, e
com o valor dos resgates, começou a fazer-se senhor de muitos escravos,,
e vassallos, temido, e respeitado das maiores potencias da costa.
30 Neste comenos succedeo, que navegando huma náo pêra: o -Rio da
Pi'ata, com gente Castelhana (muitos delles nobres, que hião povoar aquel-
la parte) levadív de tormenta, foi enxorar junto a Boipeba em huma ponta,
onde pelo successo ficou o nome Ponta dos Castelhanos. Soube Diogo Al-
vares do naufrágio, e como já experimentara fortuna semelhante, foi fácil
condoer-se: acudio logo áquella parte a tempo que livrou a gente dos den-
tes dos bárbaros, e a trouxe comsigo, e hospedou humanamente, em es-
pecial alguns cavalleiros de conta que entre ella vinlião; os íjuaos torna-
dos a Espanha pregoarão o lanço, e foram causa que o Imperador Carlos
V mandasse escrever liuma cai'ta, em (juíí lhe agí"adecia o serviço que lhe
fizera em livrar arjuelles seus vassallos, offerecendo-lhe por isso sua graça.
40 Na occasião do naufrágio houv(! hum caso digno de historia : porque
voltando Diogo Alvarez Caramuni de socorrer aos (^astelhauDS, se foi a elle
sua mulher Catharina xMvares Paraguaçú, e lhe pedio com instancias gran-
des que tornasse a buscar-lhe huma mulher, que vieia na náo, e estava en-
tre os índios, po]'que llie api)arecia em visão, e lhe dizia que. a mandasse vir
})era junto a si, e IIkí fizesse huma casa. Tornou o marido, o não achando
mulher alguma em todas as aldèas, não se aquitítou a devota Catharina
Alvaies, instava que naqucllas aldèas a tinhão, jioi-que não cessavão as vi-
sõi!s, que a certiiiravão. Feita a segunda, e terceira diligencia, se veio a
dar com uma imagem da Virgem Senhora nossa, (]ue hum ludio recolhera
da praia, e tinha lançado ao cantíj de huma casa. lM»i-llie apresentada, e
abraçando-se com ella dis.se, que aquella era a mulher tpie lhe apparecia :
])edioao maridíj IIk; mandasse fazer huma casa, fez-se huma entretanto de barro,
e pelo terapo outra de pedra e cal, onde foi honrada com titulo de Nossa
Senhfjj-a da Graça, ,tmi(|iiecida de muitas leliquias, e indulgências, que en-
tão mandou o Summo Ponliíice: e hoje a possuem os Religiosos da sagrada
28 LIVRO I DA CHRONICA PA COMPANHIA DE JESU
Religião do Patriarcha S. Bento, aos quaes fez doação esta devota matrona,
assi da Igreja, como da terra do circuito delia, e alli jaz enterrado seu corpo.
41 Por este tempo partindo pêra a índia Martim AÍTonso de Sousa,
veio de arribada a tomar porto nesta barra : trazia comsigo Religiosos, os
quaes entre as cousas do serviço de Deos, que aqui fizerão, foi bautizar
na mesma Igreja os filhos e filhas d'estes dous devotos da Senhora : das
quaes huma casou nesta occasião com Aífonso Rodrigues natural de Óbidos;
outra com Paulo Dias Adorno fidalgo Genovez, que tinha vindo de S. Vi-
cente, por causa de hum homicídio. Chegou depois disto Francisco Pereira
Coutinho (como acima vimos) e casou outras duas filhas legitimas de entre
elle, e Catharina Alvares com outros dous homens Portugueses nobres; das
quaes, e de outras muitas que logo foi casando com pessoas de conta, as-
si legitimas, como naturaes vio numerosa e feliz successão, tão estendida,
que seria cousa larga querer contal-a toda. Digo somente, que d'este tron-
co procederão muitas das melhores, e mais nobres famílias da Bahia. E
este he o antecessor de Francisco Pereira Coutinho ; donde dizemos que foi
Coutinho o primeiro povoador por data d"El-Rei, e direito Real: porém
Diogo Alvares foi o primeiro por data dos senhores da terra naturaes, e
direito das gentes. Qual seja mais, julguem-nò os que sabem.
42 Nesta pai^gem pois da Bahia sahio em terra ; esta escolheo pêra ca-
beça do Estado, e assento perpetuo dos Governadores, Bispos, e Ouvidores
geraes, aquelle primeiro, e bem afortunado Governador Thomé de Sousa.
Foi demandar o lugar da Yilla-velha, sitio aprazível, donde dissemos se
descobre a fermosura de toda a Bahia. Veio marchando a som de guerra,
armados, e postos em forma de peleja os Portugueses: assi porque não
se fiavão dos naturaes da terra, como por ser conveniente que vissem es-
tes o poder com que vinha, e começassem a fazer conceito do braço pode-
roso do Rei de Portugal. Consta>^ o grosso da gente de mil homens, os
seiscentos soldados, os quatrocentos degradados : afora outros muitos mora-
dores com suas casas; e alguns crmdos dEl-Rei, que vinlião providos em
officios: por Ouvidor geral Pêro Borges, e por Provedor mór do Estado
António Cardoso de Barros. Neste lugar de Villa-velha estiverão alojados
em boa ordenança, espaço de hmn mez, em quanto se demarcava o sitio pê-
ra a cidade, que de novo determinava© edificar.
43 Depois do Governador sahirão também a terra os Religiosos da
Companliia, e forão agasalhados junto ao arraial: aqui fazendo o seu pri-
meiro sacrificio, o mais solemne que puderão, em acção de graças. Man-
DO ESTADO DO BRASIL (aNNO DE li) 49) 29
dou O Padre Nóbrega arvorar huma fermosa cruz, sinal propicio áquelles
infiéis de sua salvação ; e logo levantando os olhos do alto daquella emi-
nência por todo o grande contorno da Bahia, alcançou que tudo erão es-
tancias de índios bárbaros, e que com a mesma frequência habitavão pelo
interior do sertão, em tanta cfiiantidade que podia duvidar-se, quaes erão
mais, se elles, ou as folhas das arvores ? Ficou por huma parte como cor-
rido de achar-se com tão poucos segadores em tão grande seara : e por
outra parte não cabia em si de prazer, porque via já com seus olhos cam-
po estendido, em que fartasse seu generoso coração. Alegrava-se com a
esperança dos que havia de converter a Deos ; e enlristecia-se com a lem-
brança dos que já se lhe. representavão perdidos. Bradava ao Ceo, e con
fundia-se na consideração de tão escondido juizo, que criasse Deos tantas
almas, com a mesma bondade, e amor, que todas as outras do universo, e
que a estas acudisse com tantos meios de sua salvação, e deixasse as d'es-
te novo mundo, seis mil e tantos annos, sem noticia de Deos, da Fé, ou
da outra vida ! Desfazia-se em lagrimas, e quanto mais concebia de pesar
pelos já perdidos, tanto mais se banhava de alegria pelos que pretendia
ganhar. A todas as partes daquellas grandes brenhas se apostava seu ze-
loso espirito.
4í Achava porém graves impedimentosnestes princípios da conversão.
O primeiro era, porque não tinhão os Portugueses Sacerdote, que houves-
se de servir de Vigário, e foi força que houvesse de fazer este officio, á
instancia do Governador, e do povo, confessando, pregando, desobrigando
e fazendo as mais acções de Parocho. Segundo, porque não sabião a lin-
goa brasílica, e por acenos exprimem-se mal os conceitos, mormente os
que tocão á alma : nem ainda interpretes havia accomodados. Terceiro,
porque andavão peia mór parte os índios inquietos com guerras entre si,
e com os Portugueses muitos delles, e era cousa diíTicultosa imprimir a
doutrina clirislã em entendimentos tão diversos. Destas guerras não pude
achar informação particular : a raiz delias sabe-se que foi mais antigua,
desde os primeiros fundadores das Capitanias, quando tomavão posse del-
ias por mandado dos Reis de Portugal : jwrque forão notando os naturaes
da terra em nossos Portugueses outra intenção mui diíle rente da com que
aportarão a ella em Porto-seguro : então tratavão com elles como hospe-
des, mostravão alcgrar-sc com sua presença, e enchião-nos de favores, e
mimos : porém agora *havião-se como inimigos, pretendião desten'al-os de
sun«i pátrias, fazer-sc senhores delias, eaindadesuasliboidades.Perareme-
LIVRO I DA CHUOMCA DA COMPANHIA DE JESU
dio d>8tes males, e defensão sua natural, passarão palavra por toda a cos-
ta do Brasil, e confederarão-se as nações, suspendendo os arcos que ma-
neavão entre si, passando a força delles contra os Portugueses inimigo
commum.
4o Nestas primeiras guerras houve successos dignos de historia ; po-
rém eu nem possoí agora deter-me nelles, nem aqui vem tanto ao próprio
como- quando tratarmos das conquistas das Capitanias, onde forão obrados.
Digo somente, que depois de tempo de experiência, assentando os índios
que perdião as vidas, e não restauravão as pátrias; e que os Portugue-
ses, aindii que menos em numero, erão mais venturosos pela vantagem
de suas armas, esforço, industi-ia, e constância ; vierão a entender que lhes
estava melhor a paz. Os primeiros que tratarão concertos delias, forão os To-
bayaras, e f upinambás da Bahia ; outros Tobayaras de Pernambuco ; e os
Tamoyos do Rio de Janeiro ; os quaes, como de melhor ientender, vendo
que a força dos Portugueses, havia de vir a obrigal-os, mais cedo, ou mais
tarde, e receosos outro si dos Puliguáres, e Tapuyas, f|ue lhes íicavão so-
bre as costas (de cuja amizadô jamais se fiavão) andarão primeiro, e feitas
pazes com os Portugueses, virarão contra aquelles os arcos. Ficarão sen-
tidos, e exasperados os Potiguares, e Tapuyas: porém vendo-se sós, vierão
por tempo a imital-os. Durarão estas pazes em quanto durou a paciência
dos índios; porque a gente portuguesa, não contente com senhorear a ter-
ra, passava a senhorear as pessoas: e como em caso de liberdade natural,
todo o hontem, por mais tosco que seja, acuda por si; houverão de tor-
nar a rompimento muitas destas nações. E estas vinhão a ser as guerras
que de presente acharão na Bahia os Portugueses ao tempo da chegada
dos Padres, e algumas outras que as nações trazião entre si. Não desmaia-
rão comtudo os obreiros zelosos (que onde he grande o desejo, não soem
parecer os meios difficultosos.) A primeira traça com que sahirão, foi fazer
famiUares de casa (ainda á custa de dadivas, e mimos) os meninos íilhos
dos índios; porque estes, por menos divertidos, e por mais hábeis que os
grandes, em todas as nações do Brasil, são mais fáceis de doutrinar; e
doutrinados os filhos, por elles se começarião a doutrinar os pais: traça que
a experiência mostrou ser vinda do Ceo, como mostrará o discurso. Pêra
o segundo impedimento da falta da lingoa, sérvio também a traça dos me-
ninos; porque com estes fatiando cada dia, á volta do uso da doutrina apren-
dião o idioma brasílico. No terceiro principal impedimento, applicárão
taes traças, por meio de suas orações, penitencias, e industrias, que che-
DO KSTADO DO BRASIL (ANNO DE V)W) ;t|
gârâo a conseguir assento de pazes entre muitos daquelles bárbaros, os
qnaes vierão render os arcos ao novo Governadijr, ([ue acceitou os meios
delias, c os recel)eo com mosti'as de benignidade. Neste entremeio não íi-
cou o Ceo sem algumas primicias ; porque grangeárão os padres as almas
de muitos innocentes, e velhos, que bautizavão in extremis (e forão em
bom numero) porque pêra este eíTeito corrião as estancias, e punliuo oUiei-
ros, ([ue fielmente avisavão dos doentes.
4G Nestas cousas se occupavão os nossos, quando passado o mez . de
Abril, mudou de sitio o Governador pêra distancia, como de meia legoa
de Yilla-velha, lugar cpie tinha demarcado, e começado a fundar a cidade
a que poz nome de S. Salvador: e foi força mudarem-se também nossos
Uehgiosos, e no mesmo tempo, em que os moradores ediíicavão casas, fa-
zer as suas, e Igreja, no lugar onde hoje se vè a de Nossa Senhora da
Ajuda, invocação que então lhe poserão; e foi a primeira (jue no Brasil te-
ve a Companhia. Esta obrárãrr com próprias mãos, e suores; por([ue como
andavão os moradores occupados em semelhantes obras, e principalmente
em cercar a cidade pêra defensão de alguns gentios, que ainda não estavão
sugeitos, não havia quem pudesse ser-lhes de ajuda, Elles erão os mestres
das taipas, liião ao matto, cortavam as arvores, trazião as madeiras ás cos-
tas, e o mais necessário: e o mór rigor era, que havia grande falta de sus-
tento corporal, eerão forçados andar pedindo de porta em porta oqueha-
vião de comer, e acha vão mui pouco; porque era a todos commua a ne-
cessidade: hião á fonte pela ag(ja, e ao matto pela lenha, pêra o que an-
davão á ligeira em coi'í)o: cpie não havia entre tanta pobreza tratai* de ves-
te, ou manteo: e talvez nem çapatos havia, nem camisa.
47 Neste sitio de Nossa Senhora da Ajuda persevei-arão, exercitando
na forma referida, juntamente com os ministérios da Companhia, o de Pa-
rodio dos Portugueses; até que chegando do Reino hum Sacerdote, lhe en-
tregarão a Vigairaria, e com ella a casa, e Igreja, í|ue com tanto suor ti-
nhão edificado; e se forão contentes assentar nova habilação liiia da cida-
de em hum lugar alto, que hoje chamão iMontc Calvário, com novos tra-
balhos, semelhantes aos já referidos. Kra o sitio (loMiinte Calvário aquel-
le, onde hoje vemos fundadíj o mosteiro da sagrada Religião de Nossa Se-
nhora do Carmo. Naquelle tempo era o principal assento das aldeãs dos
índios d(! toda esta (Capitania, jior seus bons ares, visinliança do mar, e
outi'as melhorias, íjiie nelle conhecião. Kra grande a (|uaillidade de Bar-
baria, que iicslas povoaçijcs habilavão, c diversos os Principaos, que as
3Í LIVRO I DA CHHO.MCA DA COMPANHIA DE JESU
governavão, a seu modo gentílico. Aqui acharão os nossos missionários em
que empregar seus desejos. Começou cada qual a pôr em praxe a traça que
mais lhe parecia accommodada áquella conversão.
48 Se bem, poucos dias andados, começarão a conhecer, que a diífi-
culdade da conversão era grande, e não menor o perigo delia ; porque es-
tava esta gente bravia, e aiTeigada em seus costumes bárbaros, principal-
mente no de comer carne humana, ter muitas mulheres, ódios, guerras,
feitiçarias, e excesso de vinhos: vicios todos, que sobre maneira perturbão
os sentidos, provocão a grandes desarranjos, e divertem de tudo o que he
de razão : mormente que eslavão fora da cidade sem coacção alguma, nem
ainda de eíTicacia de razões, em quanto os nossos ignoravão a lingoa. Bem
vião os servos de Deos o perigo: e a primeira resolução que tomarão foi,
que aventurassem a vida por bem daquellas almas, esperando o auxilio
do Ceo onde era tão grande a necessidade. ^lettèrão todo o cabedal em
aprender a hngoa, e o que mais se assignalou nesta empresa, foi o Padre
João Aspilcueta Navarro, que sahío em breve tempo suíTiciente pêra pregar
nella, e confessar: e foi o primeiro que poz na lingoa brasílica algumas
orações, e diálogos da nossa santa Fé, a fim de cathequizar esta gente.
Corrião todos os dias as aldeãs, saudando-os, sabendo dos doentes, cu-
rando-os, e acudindo a suas necessidades do modo que podião. E foi tão
poderosa esta primeira traça, que de homens feros e intratáveis, vierão
a entrar em razão, começando a ouvir aos Padres, buscando-os, confiando-
se delles, e abrandando da fereza de seus ritos agrestes (que até brutos
animaes vimos render-se a bem fazer.) Porém he cousa digna de ser no-
tada, que sendo bastantes estes trabalhos pêra que fossefn remitindo al-
guns daquelles bárbaros de outros costumes inveterados, e amigados com
a natureza, como de multidão de mulheres, ódios, guerras, e o que he
mais da demasia de seus vinhos, com que de pequenos se crião, e a que
são sobre maneira inclinados: com tudo do vicio abominável da torpe gula
da carne humana, suavão, e trabalhavão os Padres, e não podião refreal-os,
Desfazião-se em zelo Nóbrega, e os mais companheiros, porque vião a ca-
da passo diante de seus olhos aquella infanda carniçaria, nos terreiros, e
ouvião com seus ouvidos a solemnidade das festas com que matavão, e re-
partião como em açougue as carnes de seus inimigos; e não podião pôr
remédio a tão detestável abuso, deshonra da própria natureza.
49 Dous motivos principalmente os incitavão. Primeiro, porque tinhão
aquelle pelo manjar mais saboroso., vital, e proveitoso á natureza huma-
DO ESTADO DO BRASIL (aNNO DE 1549) 33
na, de quantos ha na terra : não lia carne de fera, veado, porco montez,
tatu, paca, apereyá, comida sua, tão prezada, que chegue a huma só posta
de carne humana : vem a ser para elles o fahuloso néctar dos Deoses. Com
este crião os meninos mais regalados ; com este alimentão os fracos, e
os enfermos mais enfastiados. Contava um Padre de nossa Companhia,
grande lingoa brasílica, que penetrando huma vez o sertão, chegando
a certa aldeã, achou huma Índia velhíssima no ultimo 'da vida; cathe-
quizou-a naquellé extremo, ensinou-lhe as cousas da Fé, e fez cumpri-
damente seu oíficio. Depois de haver-se cansado em cousas de tanta
importância, attendendo a sua fraqueza, e fastio, lhe disse (fallando a
modo seu da terra : ) «Minha avó (assi chamão ás que são muito
velhas) se eu vos dera agora um pequeno de açúcar, ou outro bocado
de conforto de lá das nossas partes do mar, não o comeríeis?» Respon-
deo a velha, cathequizada já: «Meu neto, nenliuma cousa da vida desejo,
tudo já me aborrece ; só huma cousa me podéra abrir agora o fastio :
se eu tivera huma mãosínha de hum rapaz Tapuya de pouca idade ten-
rinha, e lhe chupara aquelies ossinhos, então me parece tomara algum
alento: porém eu (coitada de mim) não tenho quem me vá frechar a
hum d'estes.» Parece que está assas explicado o appetíte da gente do
Brasil pêra carne humana. O que eu tenho para mim he, que cresce
nelles este grande desejo de pequenos, á medida do que tem de vingar-
se de seus inimigos : e como he o summo da vingança comer-lhc as car-
nes, daqui vem que á medida do gosto da vingança nasce com clles o
da comrida.
oO O segundo motivo he, o ter-lhe metido em cabeça o inimigo do gé-
nero humano, que a mór gloria a que pôde chegar nesta vida hum homem
valeroso, he cativar vivo na guerra hum contrario seu, trazel-o preso, ma-
tal-o, e comel-o depois em terreiro, com aquellas suas gentílicas ceremo-
nias de ([ue usão, de metel-o em ceva, cntregal-o a velhas que o engordem,
sínalar-lhe dia solemne, convidar parentes, o amigos, vestir-se das galas
mais íinas de suas pennas, sair com elle a terreiro, jugar-lhe as feridas, e
deixal-o morto no campo a som de npplausos, c vivas, na forma que por
menor dissemos no Livro t." das (lousas do IJrasi . E nesta acção tem pêra
si consiste o m<jr gráí) de nobreza de suas casas, e famílias ; tanto mais
exaillonte, quantos mais forão os cativos, mortos, o comidos, na forma re-
ferida.
iil Daqui se ptxlc voi' agora a dífíiculdade, e perigo, com que os nos-
VOL. I '.\
34 LIVRO I DA ClÍi\0.\ICA DA COMPANHIA D12 JESC
SOS pretentiíão desarreigar desta gciifc tâa inveterado abuso da carne Ííií-
mana, o verse-liá mais em praxe no caso seguinte. Eslavão estes índios iium
dia celebrando huma das festas referidas, da morte do huniTapuya, em lumi
terreiro perto de nossos aposentos,, e ouvião os Padres os gritos descom-
postos, os assovios, bater de pé, e arcos, que atr(j«vam os montes vizi-
nlios. «Que faremos? diziam: Cegar-nos-hemos? Taparemos os ouvidos, e bo-
cas ? Seremos como consentidores de tão enorme offensa de Deos cada diaf
Pêra que queremos as vidas ? Não são bem empregadas em caso tão nota-
veí, tão próprio do zelo de Christãos, quanto mais do do Religiosos?» Di-
zendo isto, remete Kobrega, e seus companheiro»: vão-se ao terreiro, bra-
dâo ao Ceo, allegão grandes queixas, reprehendendo asperamente, e com
império mais que humano aquellas infames ceremonias, e detestáveis car-
nicerías. Ficarão pasmados os matadoi-es ; e em quanto paravão suspen-
sos, chegão-se os Padres ao corpo, que jazia morto entre as velhas, que
de costume o havião de partir, e cozer, arrancão-no das nnhas daquelles
íobos carniceiros, e daquellas liarpyas cruéis. Aqui ficarão mais atónitos
á vista de resolução tão estranlia : porém então não houve algum, que se
atrevesse oppor-se aos Padres, que o levarão, e forão enterrar em íium
lugar escondido dentro de sua cerca.
52 Mas convêm que esteíão desagora áterta os piedosos roubadores,
porque arnía o inferno contra elles furor de morte. Aquellas velhas que
dissemos, de cujos dentes, quaes tigres esfaimados tirarão os Padres a
presa, idos elles, levantarão taes alaridos nac[uelle terreiro, fizerão taes
esgares, disserão taes injurias aos homens, de infames, covardes, pêra
pouco que deixarão perder a honra e nobreza de sua geração, e se-
melhantes reprehensões ; que afrontados elles, levantarão motim, e em
forma de guerra feitos em hum corpo, forão demandar os Padres. Tivera
aviso o Governador do que passava, c tinha mandado aos mesmos, que se
retirassem â cidade (e o tinhão feito em secreto a liumas pobres casas do
Ijarro, onde hoje se vê o Collegio ;) e foi tão fero o Ímpeto com que dc-
rão os bárbaros, que não achando já os Padres, faltou pouco que não ar-
rombassem os muros, o destruíssem a mesma cidade. Foi forçado acudir
o Governador com todo seu presidio, e parte com espanto das armas de
fogo (que elles admirão) parle com razões efficazes de eloquentes lingoas
houverão de ceder, e retirar-se.
l)^ Porém após este, seguio-sc outro acometimento contra os nossos ;
porque murmuravão os Portugueses, e dizião, que aquelle zelo era indis-
DO ESTADO DO BRASIL (ANNO DE loÍ9) 35
creto, que posora em risco a cidade, tirara o commercio, e resgate dos
índios, que era o remédio dos homens, e semelhantes outras queixas, fun-
dadas principahiiente em interesse. Acudio a estas calumnias o Governa-
dor Tiiomé de Sousa, como tão Christão: e logo com mais eííicacia o mes-
mo Deos, de cuja causa se tratava ; porque passado aquelle nevoeiro, e
cólera, despedidas as infames velhas, que instigavão, tornarão em si aquel-
les bárbaros, vierão pedir perdão aos Padres, e meter terceiros com o
Governador pêra que lhos mandasse, porque erão seus pais, e já sabião
que tratavão seu bem, e prometião emendar-se do abuso da carne huma-
na. Ficarão satisfeitos os Portugueses, e ensinados a fiar mais em Deos.
Feito concerto com esía aldeã, que se absterião das festas referidas, fica-
rão os Padres contentíssimos : porém havia outras muitas, independentes
desta, que não querião estar por elle. Que remédio ? (lembrados da dou-
trina de S, Paulo a Timotheo, e Tito, que no emendar erros alheios pro-
cedamos com suavidade ; e da de Christo Redemptor nosso, que quando se
vissem os Apóstolos entre lobos tragadores de carne humana, então se hou-
vessem como cordeiros.) Forão-se ter com os Prineipaes, e celebrarão
amigável contralto com elles, que pelo menos seria licito aos Padres entrar
nas cadeas dos presos que estavão á ceva a faltar com elles, e cathequi-
zal-os. Em virtude deste consentimento, tinlião os Padres em cada aldeã
posto vigias, e andavão alerta de huma em outra, cathequizando, pratican-
do, e bautizando os que havião de sahir a terreiro ; assi como entre os
Portugueses tratão os mesmos Padres com os que sahem a ser justiçados,
e em chegando ao lugar do sui)plicio, deixão fazer o algoz sua obrigação.
Porém isto mesmo invejou o inimigo da salvação dos homens : meteo em
cabeça a esta gente ignorante, que aquella agoa do bautismo tirava o gos-
to ás caiTies dos padecentes, por mais que elles os engordassem : c apre-
hendida esta persuação, de nenhuma maneira consentirão mais que os Pa-
dres fizessem tal ofíicio, rescindindo lodo o contralto ((pie esta hc a pala-
vra de bárbaros.)
iii Dura cousa parecia aos Padres ver com seus olhos morrer gente
humana, capaz da bemavenlurança, e não poder acudir-liie com o remé-
dio único da salvação: pêra mel(M' mais cabedal, era arriscar maiores es-
peranças (lembrados bem das revoltas passadas;) que se pêra huma aldeã
em que só residião, teve eITeito, não podia prudentemente esparar-se o ti-
vesse cm todas ; poríjue nem s.íuipre Deos faz milagres. Gom outra traça
sahirão (dopois do encomnicndado o negfjcio a Deos) c foi a seguinte. Qunn-
;jfi
LIVHO I DA CimOMCA DA CO^IPAMIIA DE JESL'
(lo sabiao, que om alguma daquellas aldeãs havia de haver padecente, híáo
então a visital-a, e estando lá como acaso, pedião licença pêra ir ao ter-
reiro, com protesto de ver aquellas suas musicas, e danças : e como esta
gente se preza muito de que os A])arés (i\sú chamão aos Padres) lhe ga-
bem seus bailes, e vozes quando cantão, c muito mais que se dignem de
serem presentes a ellas ; no ponto que alH os vião, cheios de vangloria, do
tal maneira se imbebião na festa, que descuidavão por algum espaço do
padecente ; e logo na tal occasião chegava-se algum delles ao justiçado, e
dava-lhe alli brevemente o melhor que podia noticia de nossa Santa Fé, per-
suadindo-o á contrição de seus peccados, e a pedir o sacramento do bau-
íismo ; e feito isto, tirando de hum lenço, que levava ensopado em agoa,
e espremendo-lho sobre a cabeça, dizendo a forma do bautismo, o deixa-
va Christão ; e triumphava com esta santa invenção dos embustes, com
que o inimigo infernal enganava esta pobre gente : e com isto por então
se contentavão estes zelosos trabalhadores, até melhor occasião.
Além do caso do perigo acima referido, houve outro, em que os
00
índios começarão a conceber maior conceito das cousas dos Padres. Tinhão
elles outro impedimento notável de grandes feiticeiros, em cujas mãos as$i
&G entregavão, que tudo quanto lhes dizião, tinhão por verdadeii-o, e zom-
Ijavão de qualquer outro ditto contrario, com prejuizo grande da doutrina
christãa. Entre estes, hum era o mais estimado, e como cabeça de todos
respeitado, qual outro oráculo de Apolo : tinha-se por filho de Deos, e
cí)nio tal mudava os elementos, dava respostas de cousas futuras, tingia
medicinas, e dominava em tudo com tal império, e authoridade, que fa-
zia tremer hum só aceno seu : e com estes, e semelhantes embustes, des-
viava os simples índios da doutrina da verdadeira Fé. A este tão grande
feiliceiro chamou a desafio o Padre Nóbrega, obrigando-o com força de
in.iperio superior, a que sahisse a terreiro : não pode escusar-se o fingido
filho de Deos : prepararão-se as cousas, apellidou-se gente, que concoiTco
som numero a ver cousa tão nova. Eis que chega a entrar em theatro o
grande feiticeiro, mui autorizado, e acompanhado, assoberbando aqaelle
ajuntamento, batendo pé, fi fazendo visagens. Sahio pelo contrario o Pa-
dre Nóbrega sem companhia, humilde, e sereno; e chegando-se a elle, fez
lhe só a pergunta seguinte, mas com grande espirito. «Dize-me, quem te
dou o poder, com que obras as cousas que ouço de ti, sendo tu criatura
como qualquer das mais ?» Sua resposta foi chea de soberba, e com voz
arrogante : Que elle tinha o poder de si mesmo ; porque era íliho de Disos,
BO ESTADO DO BRASII. (aNNO DE loiO) 3|-
que mandava os elementos, e morava no alto ; que como a filho o reco-
nhecia, e se lhe mostrava entre as nuvens, e entre os temerosos trovões
lhe communicava o que havia de dizer, e fazer. Entrou em fervor o zelo
abrazado de Nóbrega, ouvindo tal blasphemia, e pondo os olhos como afo-
gueados no feiticeiro, deu hum alto brado, exclamou ao Ceo, e arrazoou em
breves palavras, m;is com tal eíTicacia, que ficou convertido o bárbaro,
lançou-se a seus pés, e confeí^sou em publico seus erros, pedindo perdão,
e ser admitido á doutrina dos Padres.
56 Lançou-lhe Nóbrega os braços, e feita huma pratica ao povo sobre
o engano da seita que que seguião, e desengano da Fé que professamos,
recolheo o arrependido, cathequizou-o, bautizou-o, e perseverou elle por
toda a vida, com esperanças de sua salvaçãp. E o que foi mais, que ren-
dido este Achilles, se renderão com elle oitocentos do mais granado de
seus sequazes, e como discípulos na mesma arte : cento dos quaes, pêra
maior solemnidade o acompanharão no bautismo em hum mesmo dia, com
a mór festa, e apparato, que dava lugar a possibilidade do t«mpo. E foi
este o primeiro bautismo, que até então se solemnizára publicamente. Os
setecentos ficarão cathecumenos, se bem violentados por então seus dese-
jos, á vista daquella, que tinlião já por grão felicidade. Virão com tudo,
pouco depois, o cumprimento delles, com grande jubilo de suas almas, e
não menor exemplo pêra os demais.
í)7 Deu muito que fazer ao inferno ver tantas almas convertidas em
tão breve espaço : receava que de centos viessem a milhares, e viesse a
ser privado elle do domínio de tão grande gentilidade. Sahio com enredo
terrível ; porque o mesmo foi acabar de bautizar-se a primeira centena,
que, descer sobre todos tal fogo de doença, que parecia peste. Aqui co-
meção a descorçoár os mais fracos ; porque os que ainda não esta vão ren-
didos, os remoqueavão dizendo, que aqueíle mal vinha do Alto, porque
deixavão seus antiguos costumes ; que nascia da .agoa, em (|ue forão mo-
lhados ; que havia de durar muitos tempos ; que todos havião de perecer
(jue o remédio era fugir, e deixar os engaiKts dos Parhes. Porém ficou o
inferno frustrado ; poique se lhe op(jz o zelo de Nóbrega, e empenhou
sua' palavra, que passaria em ])\v\v tempo a doença: e virão-no em eíTeito;
porque applicaiido (j remédio de sangrias, qu(^ esta gente até então não
usava, e juntamente de procissões ao Ceo ; antes de poucos dia« cassou a
oppressão, ficou convencida a mentira dos calumniadores, e a verdade de
Nóbrega autorizada.
8g LIYllO I DA CIIRONíCA DA COMPANUÍA DE JESU
58 Estando as cousas da Bahia neste estado, chegarão novas, que na
Capitania de S. Vicente, distante 240 legoas, correndo a costa á parte do
Sul, havia grande desamparo da doutrina christã ; porque os Portugueses,
que alli já estavão, e começavão a povoar lugares, vivião a modo de gen-
tios ; 6 os gentios com o exemplo destes, hião fazendo menos conceito da
Lei dos Christãos : e sobre tudo, que vivião aquelles Pprtugueses de hum
trato villissimo, salteando os pobres Índios, ou nos caminhos ou em suas
terras, sendo muitos destes Christãos, bautizados por certos Religiosos do
Patriarcha S. Francisco, Castelhanos, que por successos de viagem, tinhão
estado com elles algum tempo, na paragem a que chamão dos Patos : que
todos estes fazião sous escravos, servindo-se delles, e avexando-os contra
toda a lei de razão. Pelo que pedião homens desinteressados ; que fossem
alguns Religiosos a compor cousas tão importantes de Portugueses, e do
índios.
59 Magoou altamente o coração de Nóbrega esta proposta : poz em
consulta a resposta delia: representa vão-se razões por huma, e outra par-
te : pêra não irem se arrazoou assi. Que na conquista temporal, a pru-
dência que fosse acommetendo o capitão, segundo o numero de soldados
que tinha : e quando este era pequeno, que hão convinha dividir-se, por-
que enerva a divisão as forças do exercito ; e a victoria que junto elle se
promete, arrisca-se* estando di\idido. Pois logo, se de conquista a conquis-
ta, e de prudência a prudência, se argumenta bem ; nesta nossa conquis-
ta espiritual, achando-nos nós com tão pequeno numero, como he o de seis
soldados não mais, e estando em campo, á vista de tão immensa barbaria,
ainda por vencer ; que prudência pede, que deixando de acommetler to-
dos em hum corpo, pêra alcançar de huma vez huma boa vitoria, nos di-
vidamos, e enfraqueçamos, com acommetimentos diversos ? Vençamos pri-
meiro esta empresa, e depois voltaremos as armas vitoriosas a outra. Não
pôde ser maior em nós, que em Christo, o zelo de conquistar .as almas :
pois esta mesma foi sua praxe ; não acudio ás demais províncias do mun-
do, antes de haver conquistado a de Judea, por onde começou. Com todos
seus Apóstolos juntos acommeíeo aqaella principal parte da terra, e de-
pois de ganhada, e presidiada então dividio o exercito, de dous em dous
soldados, a consquistar as outras partes. A força áe toda esta razão nos
mostrará o exemplo no eíTeito. Ponhamos, que de seis que somos vão dous
a S. Vicente : com quatro que ficão, como será possível acudir ao Gover-
nador que nos trouxe, a Portugueses que nos possuem, a pregações, con-
DO ESTADO DO BRASIL (a.NXO DE 13'l-9) 39
fissões, e mais nocessidados da lerra ? E como sei'á possivol (que lie o q«e
mais fóira) poder acudir a Ião diversas, e numerosas povoações de índi-
as, que só peia huma vez visitai-las, são necessários muitos obreiros, quau-
co mais i^eni convertei-las ? Sobre t#do, porque a estes da Bahia em pri-
meiro lugar somos mandados por nosso Patriarclia Ignacio, c |X)r nosso
Padre ]\í. Simão ; e estando elles de pos,se de nós, e nós delles, com quo
razão faltaremos a estes presentes, por acudir a outros distantes, e a quem
não estamos ainda obrigados ? Melhor parece que esperemos o soccorro
do Reino, que não pôde tardar ; e com melhor acerto então acudiremos a
huma, e outra parte.
GO Parecião estas razões efficazes, mas não aquietava com cilas a gran-
de confiança de Nol)rega. Ha muita dilTerença (dizia pela parte contraria)
entre a conquista temporal, e espií-itual : naquella depende o successo do
esforço, e braço dos soldados : na espiritual, do esforço, e braço de Deos:
aquella conquista he violenta, esta he voluntária. Esforce Deos hum cora-
ção, e com hum só brado, com hum só pregão do Cco, da outra vida, e
dos bens, e males eternos, poderá render muitas mil almas, sem mais
ajuda de companlieiro algum, querendo ellas. E se Deos não dér o esfor-
ço, ou ellas não quizerem, não bastarão todos os coUegios de Europa. Hum
só soldado basta, hum só vale i)or grandi^s exércitos, aonde entra o esfor-
ço de Deos, e o querer dos homens. Hum só brado de hum Bautista foi
!)astante pêra calhequizar tantas gentes, pêra o recel)imento de Christo:
hum só Apostolo era bastante cm cada qual das provindas do mundo. Haja
em nós espirito de Apóstolos, e bastará a pregação de qualquer pêra con-
verter a gentilidade toda do Brasil. Não pergunta esta, (juantos são os ijue
vem? mas, que he o que diz, o que prega? E basta que "este os convença,
pêra que logo íiíjuem ganhados. Seis somos aqui, que podem ir a seis par-
les diversas do Brasil, a gritar })or esses campos, essas brenhas? Salvação,
salvação eterna! Quantomais, (jtic se agora damos dous, não será Deos es-
<-aço em dar-nus dej)()is quatro, (juando mentjs cuidarmos.
01 Imii virtude da resolução acima referida, avisou o Padre .Manoel de
Nóbrega pcra a empi-esa de S. Vicente ao Padre Leonardo Nunes, varão de
grande satisfação, e provada virtude, de íjiieni esperava grandi* elfeitos, e
ao Irmão Diogo Jacome |>era seu compaiilieií-o. Aceitou elle a missão, como
da parte do mesmo Deos : e havidas as ordens, c diiecção do que havia
de guardar, assi do Superior, como também do Governador Tlitmié de Sou-
sa (í) qual lhe encomendou muito a liberdade dos Índios salteados e llie
40 LlVnO I DA CIir.ONICA DA COMPANHIA DE JESU
deu provisões eíTicazes pêra em sen nome os fazer ajuntar, e restituir á
liberdade;) partio da Bahia ao 1." de Novembro de 15i9, fez escala á po-
voação do Espirito santo (que já então era principiada;) aqui ajuntou alguns
índios na forma das provisões referidns: e recebeo pêra noviço ao irmão
MatheusNogueira, ferreiro, de quem depois diremos, e tornou a partir-se.
Porém em quanto prosegue viagem, demos noticia da Capitania aonde he
mandado.
62 Esta Capitania de S. Vicente foi das primeiras do Brasil. Está em
altura de 24 grãos e meio, correndo pela costa, do trópico Austral pêra
a parte do pólo. A região he alegre, aprazível, e saudável : tem variedade
de verão, e inverno, fora do commum de toda a outra terra do Brasil del-
ia pêra o Norte, com os mesmos frios, e calmas, que se experimentão na
Europa, com mais rigor pela terra dentro : trocadas porém as cesões ; por-
que o verão, são os seis mezes do inverno, e o inverno são os seis mezes
do verão do clima de Europa (que assi soube trocar as mãos o Autor da
natureza pêra os fins que pretendia.) O terreno he fertilissimo, não só dos
frutos communs do Brasil, mas dos frutos, frutas, e flores melhores de Eu-
ropa : especialmente se fermosea de abundantes searas de trigo, e fecundas
vinhas. Os campos recreão os olhos, igualmente vestidos de erva, flores,
e gado em numero excessivo, e de todos os géneros. He a fartura de todo
o Estado de carnes, e trigo, esta Capitania : e pode dizerse delia (o que lá
disse Itaha da fértil Sicília em comparação do povo Romano) que he o ce-
leiro de todo o Brasil. As entranhas de toda aquella terra, são minas de
todo o género de metaes, principalmente ouro, e deste se bate hoje m.oe-
da, e se espera venha a ser esta parte, outro rico Peru, ou Potosí.
63 Seu fundador foi Martim Affonso de Sousa, fidalgo de partes co-
nhecidas (que depois foi Governador na índia, levou comsigo pêra ella o
grande Apostolo do Oriente, o Santo Padre Francisco Xavier, e nella obrou
cavallarias dignas de historia.) A este tinha El Rei concedido nesta costa
huma Capitania de cincoenta legoas, e outra de outras tantas a seu irmão
Pêro Lopes de Sousa. A povoar a sua partio Maríim Affonso com huma
Armada, feita á própria custa, com que andou sondando, e demarcando
todos os portos, rios, e enseadas, que correm até o famoso Rio da Prata
(em cujos baixos deixou perdida huma náo) saindo em terra, pondo nemes,
metendo marcos, e tomando posse por El Rei de Portugal. Tornou a voltar
á paragem já ditta de 24 grãos e meio, e nella fundou huma villa, a que
poz nome S. Vicente (donde depois o tomou toda a Capitania) junto a hum
DO ESTADO DO BRASIL (aNNO DE \í)'i9) 4|
porto capaz, e fermoso, que senhorea duas ilhas, que fazem duas barras:
a do Norte fortificou com Imma torre, que chamão da Biritioga : a do Sul
com outro forte, pêra defensão daquelle tempo ambas bastantes. Na mes-
ma ilha, em distancia como de duas legoas da de S. Vicente, fundou outra
villa, a que chamão de Santos: e outras em outras paragens com gente que
trouxe de Portugal (não fallo de outra, que então se fez em Guibé, porque
esta fundou-se na demarcação da data de seu irmão Pêro Lopes de Sousa,
que com elle viera, e morreo afogado no mar.) Esta villa de S. Vicente
foi a primeira, em que se fez açúcar na costa do Brasil, e donde as outras
Capitanias se proverão de cana pêra planta, e de vacas também pêra cria-
ção.
G4 Habitara o distrito desta Capitania até o tempo da ditta fundação,
multidão grande de índios bárbaros, os quaes á força das armas Portugue-
sas se forão afastando, e habitando como hoje habitão, pêra a banda do
Sul, até as correntes do Rio da Prata. A primeira nação destes, he a dos
Goayanazes; a segunda dos Carijós, dos Patos, e dahi em diante nações
de Tapuyas diversas, de cujos sitios, naturezas, terras fecundíssimas, e
abundantíssimas de gado, sobre todas as outras do Brasil, dissemos no
Livro primeiro das Cousas curiosas da terra do Brasil.
65 Os costumes dos Portugueses moradores, que então se achavão nes-
tas villas, vinhão a ser quasi como os dos índios; porque sendo Christãos,
vivião a modo de Gentios. Na sensualidade era grande sua devassidão, aman-
cebando-se ordinariamente de portas a dentro com suas mesmas índias, ou
fossem casados ou solteiros. Não se estranhava transgressão dos preceitos
da Igreja, nem havia fallar em jejum, nem em abstinência de carne, e mui-
to pouco nos sacramentos necessai-ios pêra a salvação: homens havia que
desde que entrarão na terra, se não tinhão confessado, nem commungado.
Vivia-se de rapto dos índios, era tido o ollicio de assalteal-os por valentia,
e por elle eião os homens estimados; o sobretudo sem prelado, sem pre-
gador, sem quem zelasse da parte de Deos tantos males.
06 Fste era o estado das cousas daquella Capitania, quando chegou a
ella o Padre Leonardo Nimes. Lançou ferro no porto da villa de S. Vicen-
te; e tanto que foi saíjida a nova, que eião ciiegados dous Religiosos da
Companhia, não se pôde explicar o grande alvoroço de todos (qual o de
perigosos enfermos, á vista do Medico de fama.) Ojnc^rrèrão á embarca-
ção, forão levados com applauso de grandes, c pequenos; huns lhes beija-
vão o bordão, outros a roupeta, outros lhe pediãí) a benção, como de ho-
42 LIVRO I DA CHRO.NICA DA COMPANHIA DE JESU
mens vindos tio Ceo pêra remédio seu (((iie sempre o prudente enfermo
estima o Fisico, ainda que seja á conta de mezinhas penosas.) Começarão
a fabricar-lhes casas, e Igreja, folgando cada hum de intervir no traballio
delias, trazendo as madeiras, e mais matérias a seus próprios hombros, ain-
da os mais graves da terra, como pêra cousa sagrada.
67 Já tinha sido informado o novo Missionário do estado da terra; e
considerando a muita necessidade daquelles Portugueses, resolveo-se tratar
em primeiro lugar de ajudal-os, c depois aoslndios: assi porque lie conse-
lho este de hum dos grandes Missionários que teve a Igreja, o Apostolo
S. Paulo, que devemos primeiro trabalhar pelos que são de nossa Fé, o
depois pelos de fora delia ; como também porque da conversão dos Portu-
gueses dependia em muita parte a dos índios.
68 Era o Padre Leonardo Nunes varão descarnado de todos os affe-
ctos humanos, mortificado, pobre, humilde, prudente, paciente, e sobre tu-
do dotado de grande zelo de espirito. Este foi o primeiro motivo, que ti-
verão aquelles moradores pêra entrar em mudança de vida, o testemunho
inculpável daquelle seu Mestre. Vião o Padre Leonardo passar por suas
portas pedindo de esmola o de que havia de sustentar-se, em pobres ves-
tidos, e talvez descalço, ou com alpargatas de cardos; e era este hum es-
pertador, que lhes batia juntamente á porta, e ao coração. Vião-no pelas
praças, pelas praias, pelos campos, ensinando a doutrina, e explicando a
obrigação de Ghristãos, a seus filhos e escravos, e á volta destes aos se-
nhores ; e envergonhavão-se do mal que tinbão correspondido nesta matéria.
Vião-no na casa do pobre, do rico, do justo, do peccador, do sensual, do
que afrontou, do que espancou, do que salteou, e que acabava gi^andes
effeitos nas emendas das vidas, alcançava perdoens, fazia amizades; e com-
pungião-se aquelles, que achavão em si defeitos iguaes, e não vião eííeitos
semelhantes. Vião-no su ir ao púlpito, fallar da outra vida, do premio
dos bons, e castigo dos máos, da fealdade do peccado, e seus grandes
perigos ; e dizião, que era hum S. Paulo, ou hum proplieta mandado de
Deos a converter aquelles povos. Vião por fim aquella caridade solicita,
com que acabava de dizer missa, e pregar a hum povo, e na mesma ma-
nhãa tornava a dizer missa, e pregar a outro distante duas, e três legoas,
por acudir a todos na grande falta que havia de Sacerdotes: e era tal
o espirito, e pressa, com que corria os lugares circunvizinhos, a pezar de
frios, neves, e calmas excessivas, que vierão a por-lhe por nome na lingoa
do Brasil. Abaré Bebé, que quer dizer «Padre que voa.»
DO KSTADO DO BRASIL (aNNO DE 1549) 43
G9 Com estes exemplos que os homens vião, e como com outras tan-
tas vozes di) Ceo, despertadoras dos corações, assi se forão melhorando
as vidas daquelles moradores, que dá testemunho o venerável Padre Joseph
de Anchieta contemporâneo seu, que em muito breve tempo trocou aquel-
les povos de maneira, que parecião outros; tirando os homens da ceguei-
ra em que vivião, desarreigando-os- da sensualidade, lançando-lhes de casa
as occasiões, casando-os com as próprias amigas, fazendo-lhes largar o abu-
so de saltear os índios (a mór fineza a que então podião chegar:) já guar-
da vão os preceitos da Igreja, já confessaváo, e commungavão de oito em
oito, e de quinze em (phnze dias, com tal mudança, que se estranhavão a
si mesmos, e dizião, que se espantavão de como Deos os não sovertéra no
estado primeiro, e que no Padre Leonardo lhe administrara hum propheta
que os alumiara, que fora aquella a conversão de Ninive, etc. Todas reso-
luções mostradoras de corações trocados, e todas em substancia testemu-
nhadas pelo Padre Joseph em seus apontamentos.
70 Pêra melhor ajTida dos Portugueses, e pêra melhor acudir também
aos índios, que perecião em sua gentilidade, começou o Padre Leonardo
a receber alguns noviços, dos quê sabião bem a lingoa brasílica, ou a po-
dião aprender facilmente. Admittio em primeiro lugar a Pedro Corrêa, e
Manoel de Chaves, homens principaes, moradores da terra, de muitos an-
nos do Brasil, e muito grandes lingoas: e logo após estes, alguns moços
pequenos, iissi Europeos, como mestiços. Entre estes, os que principalmen-
te provarão, forão dous, Leonardo do Valle, e Gaspar Lourenço. De todos
irá faltando a Historia em seus lugares, porque forão grandes sogeitos na
conversão dos índios. Com estes novos companheiros vivia o Padre Leo-
nardo em grande observância, e rigor de vida, com continua pobreza, e
mortificação, pedindo pelas ruaa esmola pêra seu sustento, de dous em
dous, com grande edificação do povo. Sahião a fazer doutrina pelos luga-
res, e pelos campos, especialmente a mestiços, e índios: pêra cujo effeito
foi pondo o Irmão Pêro Corrêa em eslylo da lingoa nalui"al da lerra a sum-
ma da doutrina christãa, pela qual ensinavão com fruto das almas.
71 Não havia junto ao mar povoações de índios (principal intento da
missão,) nem era conveniente ainda largar os Portugueses: deu em huma tra-
ça a caridade engenhosa do P. Leonardo; poz-sc a caminho cm companhia
de hum dos mais robustos Irmãos, bom lingoa, e atravessou a pé aquellas
fragosas serranias, de que já falíamos, naquelle tempo mais bravias, e das
aldeãs de gentios, que por ariuellas mattas vivião: teve poder com sua au-
44 UYnO I DA CHRONICA DA COMPANinA DE lESU
taridade, ajudada da lingoa eloquente do companheiro, pêra negociar, 6|ue
lhe entregassem os filhos pequenos, porque queria trazel-os comsigo pêra o
mar, e ensinar-lhes entre os Portugueses as cousas da Fé, e dar-lhes a agoa
do bautismo. Dura cousa accommeteo o Padre ; porque o mesmo he a esta
gente arrancar-lhes os filhos, que arrancar-lhes o coração; porém entrava
aqui a mão de Deos: elles os entregarão, e o Padre os trouxe em grande nu-
mero, quaes ovelhinhas, á Casa de S. Vicente, em a qual com outros mes-
tiços da terra, e alguns órfãos vindos de Portugal, formou hum seminário,
onde os nossos lhes ensinavão a fallar portuguez, ler, escrever e ainda la-
tim a alguns mais hábeis; e a volta de tuda os bons costumes, e doutrina
christãa: e foi traça de grande importância; porque com este cevo, ou an-
zol dos filhos dos índios feitos Christãos, se atrahião depois os pais com
mais facilidade a imital-os, e deixar os ritos de sua barbaria.
72 Huma diíTiculdade se offerecia : que pêra sustentar tanta gente, era
grande a pobreza da Casa, e ainda da terra : nem erão bastantes as esmo-
las, que de porta em porta pedião. Pêra remédio d'esta necessidade acu-
dirão os Irmãos com suas traças: inventarão oíTicios mechanicos, com que
pudessem ajudar. O Irmão Diogo Jacomê levantou hum torno de pé, sem
mais noticia do oíTicio, que a que llie deu a engenhosa caridade ; e no tem-
po escuso das mais occupacões, fazia coroas, e rosários de páo, que repar-
tia por devotos, e cedião também em proveito da Casa. Outros Irmãos
aprendião a fazer alpargatas (porque então erão mui poucos os çapatos)
que repartião por alguns dos homens ordinários, e de que usavão pêra ca-
minhos ásperos. O modo de as fazer era este : hião ao campo, trazião cer-
tos cardos, wi caragoatás bravos, lançavam-nos na agoa por 15 ou 20 dias,
até que apodrecião : doestes tirávão estrigas grandes, como de linho, e mais
rijas que linho, e delias fazião as dittas alpargatas que erão seus çapatos.
Outro se fez official de carpintaria, sem (fue nunqua aprendesse, com tal ha-
bihdade, que fez por suas mãos muitas casas, e Igrejas nossas em S. Vi-
cente, e depois no Rio de Janeiro, sendo já Sacerdote. O Irmão Matlteus
Nogueira, que com o P. Leonardo viera do Espirito santo, usava também
do officio que no século tinha de ferreiro, fazendo anzóes, cunhas, facas, e
o mais género de ferramenta, com que acudia gi\indemente ao sustento dos
meninos, e casa. E d'este tempo ficou introduzido, trabalharem os Irmãos
em alguns oíficios mecânicos, e proveitosos á communidade, por razão da
graade pobreza, em que então vivião. Nem deve parecer cousa nova, e
muito menos indecente, que Religiosos se occupem em oíficios semelhantes;
DO ESTADO DO BRASIL (aNNO DE 1540) 45
pois nem S. Joseph achou que era cousa indigna da dignidade de lium
pai de Cliristo (qual elle era na commum estimação "dos homens ;) nem S.
Paulo de hum Apostolo do collegio de Jesu, ganhar o que havião de co-
nter, pelo trabalho de suas mãos, e suor de seu rosto : antes foi exemplo,
(jue imitarão os mais perfeitos Religiosos da antiguidade, acostumando, com
esta traça, o corpo ao trabalho, e a alma á humildade: chegou a ser re-
gra vinda do Ceo, que os Anjos dittárão a Pacomio Abbade santo.
73 No meio d'esta paz, e socego da vida, passavão os nossos conten-
tes em sua pobreza ; vivendo do suor do seu rosto, e trabalhando no bem
daquellas almas, pelas quaes derão de mão ao mundo, pátria, parentes, e
tudo o que, tirado Deos, possuião : quando, fora de todo o imaginado, se
começou a armar o inferno contra esta pobre casa: e a causa foi aquella
meSma, que hoje persevera, e perseverará em quanto durar entre os Por-
tugueses a immoderada cubica de cativar os índios, e nos Padres da Compa-
nhia o zelo de sua liberdade: porque (como já tocámos acima) tinha tra-
zido o P. Leonardo provisão do Governador geral, em que mandava fos-
sem restituídos os índios, que os Portugueses havião cativado contra jus-
tiça, ou em caminhos, ou em suas terras, ou d'outro qualquer modo (em
especial os Christãos, que tinhão doutrinado, e bautizado os Religiosos de
S. Francisco Castelhanos) pêra que fossem todos postos em sua liberdade.
Alguns d'estes índios tirara o Padre logo ao principio, das casas de alguns
moradores, com suavidade, e boas razões, tocantes ao bem de suas cons-
ciências: porém depois, andando o tempo, esfriando já em alguns delles a
íjuelle primeiro espirito com que os doutrinara, arrependidos, e tornados
contrários, começarão primeiro a murmurar dos Padres, e logo a persegui 1-os,
tirando-lhes as esmolas, e dizendo delles as cousas, que sua paixão lhes
dittava: e erão cilas taes, que andavão como envergonhados, e admirados,
de que pudesse tanto o inimigo do bem dos homens, que descompuses-
se por esta via; o que Deos por outra via tinha obrado cm tantos morado-
res.
74 O fundamento d'esta pai.xão, explicavão com a queixa seguinte. Se
os Padres fdizião elles) vem a tratar das almas, poi-quc não tratãíj delias, e
de seu instituto somente? Porque se metem com os índios dos pobres?
Porque lhes lião-de tii-ar seu remédio? Querem que vão suas mulheres á
fonte, o rio? e que vind(j de suas terras a senhorear o Brasil, fiquen»
iguaes aos natiu'a(!S delle?Pai'ece digna decon)i)aixã() aqueixa: i)orém acllarei-
pondia o Padre Leonardo desta maneira: «Não vejo eu (senhores) cousa mais lo-
46 LINHO I DA CI1R<)M(JA DA COMPANHIA DE JESU
cante a vossas almas, e a meu instituto, que esta detirar-vos os índios mal havi-
dos de casa. Algum dia o entendíeis vós assi, quando podiacomvosco maisagra-
ça pêra remediar vossas almas, que a cobiça pêra acudir a vossos corpos. Que
variedade houve agora? Não julgastes então, que era obrigação vossa, e profis-
são minha, o tratar de repor estes índios em sua liberdade? Ninguém pôde sal-
var-se sem restituir o alheio :' pois se estes índios são seus por natural direito,
sem quesejão restituídos asi mesmos como podereis salvar-vos? Que titulo
houve, que os fizesse vossos? o querer que o sejão, o catival-os contra sua
vontade, sem aggravo algum precedente? Não toca isto a vossas almas? E
não toca a meu instituto fazer comvosco que restituaes o que não he vosso,
e trabalhar, que os que são roubados, tornem a ser seus? He tanto de
meu instituto, tanto de direito divino, natural, e humano, e tão digna em-
presa de religiosos peitos, que só por esta causa perderemos as vidas, eu,
e meils companheiros, e cuidaremos que então as ganhamos. Se por esta
nos faltarem vossos favores, e se occasionarem nossos trabalhos, afrontas,
c descréditos, então nos teremos por ditosos. Huma só cousa sentiremos,
e he a que toca a vossas consciências; porque isto he tornar ao vomito, e
dar por terra com o edifício, que até agora tinlieis edificado. Consola-nos
comtudo, que não são os mais, os que acendem este novo fogo, e que
haveis de vir a conhecer, que procede todo de huma só cabeça, semeado-
ra de cizânia, e inimiga de todo vosso bem.
75 Por então ficarão como em seminário estas razões: porém andado
pouco tempo, brotou a luz o desengano: e como a paixão não procedia de
malevolencia das pessoas, se não do sentimento dos índios, de cuja servi-
dão se sentião privados; foi fácil o desfazer-se este nevoeiro, comporem-
se as cousas, reconciliarem-se com os Padres, e pedir-lhes perdão. Estes
índios postos em sua liberdade, tinha desejo o Padre Leonardo de levar a
suas terras, e n'ellas fazer huma copiosa Christandade: o que também de-
sejou depois o Padre Nóbrega pêra o mesmo fim; e porque *á vista dos Por-
tugueses não resuscitassem as lembranças já enterradas : porém impossibi-
bilitou-se o effeito com vários accidentes, mas não se acabarão os desejos,
que ficão reservados pêra melhores tempos.
76 Não foi só a perseguição sobreditta, a que padeceo o Padre Leo-
nardo: quiz o inferno desaíTrontar-se d'elle mais ás claras: tomou por meio
hum homem, não tão velho na idade, como envelhecido em vicios da car-
ne. Tinha o Padre trabalhado com este, muito tempo havia, porque lar-
gasse a má occasião de portas a dentro, em que vivia, com muitos filhos,
DO KSTADO DO BRASIL (aNNO DE 1549) 47
O iiâo menos escândalo dos qae liavião melhorado a vida: deu-ihe huma, c
muitas bafarias, primeiro em secreto, e depois ao claro; porque onde to-
mava forças o escândalo, era força que não enfraquecessem os pregadores
evangélicos. Quando hum dia, levado de furor diabólico, cego do amor da
lascívia, esperou o Padre no meio de huma rua este perdido homem, e
tirou de hum pão, que levava, pêra espancal-o: sem duvida o fizera; por-
({ue o seno de Deos, estava tao fora de fugir, que antes posto de joelhos,
esperava o golpe, como da parte da Justiça divina por suas faltas: porém
hum filho, que se achou presente, envergonhado d'esta acção, reparou a
pancada, e lhe tirou o páo das mãos, frustrando assi a intenção -do pai,
mas não o merecimento do Padre. Não tirou o inimigo fnito d'està empresa;
porque o homem caindo na conta do mal que fizera, corrido de si, e edi-
licado do servo de Deos, converteo a paixão em amor, fez-se amigo, e fa-
voreceo sobre maneira a Companhia naquellas partes: e o que mais importa,
cahío em seu perigo, lançou de casa a occasião, e depois de bons dias, com
cento e tantos annos de idade passou a melhor vida, com bons sinaes de
sua salvação. Hum delles foi, que emprestando-se-lhe copia de cera de hu-
mas Confrarias pêra seu enterro, c oflicio, com condição que depois se pa-
gasse por peso o dispêndio; durou o acto tempo considerável; e com es-
tar sempre acesa, (|uando depois veio ao peso, não houve que pagar,
porque pesava mais então (que com taes tochas sabe morrer, o que sou-
be viver com taes obras.) Faz menção d'esta maravilha como milagrosa
o Padre Joseph de Anchieta, attribuindo-a a sinal da salvação d"este ho-
mem.
77 Não pararão aqni os trabalhos. Havia em S. Vicente hum João Ra-
malho, homem jior graves crimes infame, e actualmente escommungado.
Mandou-lhc oParli-e Leonardo pedir com cortesia, fosse servido sahir-se da
Igreja, porque pudesse elle celebrar sacrifício, pois não podia em sua pre-
sença: fel-o assi, e celebrou o Padre. Pf^iYíin dons filhos seus Mamalucos,
dados por afrontados, detei-mináião castigar no servo do Senhor a injuria
que Unhão por feita ao pai; o levados de sua natural barbaria materna, es-
y)erárão-no á porta da Igrcjíi, onde chegando hum delles fez golpe sobre o
Padre com a espada nua; f)orém em vão, porque lançando-se o servo de
Deos de joelhos pêra apparal-o, íicou-lhe o braço suspenso (qual o de ou-
tro Abrahão;) ou fosse porque ficou atónito com tão rara espécie de pie-
dade, ou ])orque Deos então o quiz evitar, pêra re[)arlil-o depois em vario.s
liagos, í[ue ainda lhe reslavão poi- [»adecer. Fosse huma, ou outra cousa,
48 LIVRO I DA CHnONICA DA COMPANHIA DK JESU
pareceo provável a Oiiandino, que entrara aqui a mão de Deos, quando
disse: Sive hoec rara pietatis spccies, sive divina vis mulfaruin prospiciens
animarum saluti, sacrílegos condtus inhibuit, facintts perpetralum non est.
78 Tinhão neste tempo os Portugueses gravissimas guerras com os ín-
dios chamados Tamoyos, e tinhão estes tomado em assaltos algumas mu-
lheres dos mesmos Portugueses com assas lastima dos maridos, e não me-
nos perigo da honra, vida, e alma delias, porque o costume d'estes bárba-
ros he, que em vingança dos maridos, usão mal das mulheres prisioneiras,
e depois servem-se delias como de escravas : e o que he mais, que em qual-
quer sentimento que tem, ou lembrança de seus ódios passados, as matão
como rezes, e fazem pasto delias. Sentia muito a caridade do Padre Leo-
nardo o risco destas almas'; e fiado no auxilio divino, fez missão a estes
contrários, levando comsigo o Irmão Pedro Corrêa, grande talento, e estre-
mado lingoa do Brasil. Chegou a suas terras, foi a suas aldeãs, e fiado em
Deos, e na eloquência da lingoa do Irmão, assi suspendeo, e converteo aquel-
les corações sua autoridade, que vierão a conceder-Ilie todas as mulheres
que tinhão, e algumas já postas em ceva, pêra eíTeito de sua gula, e com
ellas voltarão aos maridos, que não acabavão de crer cousa tão rara de se-
melhantes bárbaros.
79 Outra viagem fez aos índios dos Patos, cem legoas de distancia, a
semelhante serviço de Deos ; porque indo ter áquella paragem certos fidal-
gos Castelhanos com suas famílias, que navegavão pêra o Rio da Prata, e
estavão arriscados a serem mortos daquella gente (então inimiga ;) por meio
da presença do Padre Leonardo, cuja autoridade era venerada, e conheci-
da entre aquellas gentes, elles se amansarão : agradecerão muito que fosse
visital-os ; e em troco doeste favor que imaginavão lhes fazia, lhe derão to-
dos os Castelhanos. Com elles voltou pêra S. Vicente, onde estiverão' até
que houve occasião opportuna de proseguirem sua viagem, agradecidos sem-
pre ao Padre, como aqyielles que por seu respeito escaparão de perigo da
vida tão provável. Com semelhantes obras de caridade, e com o exempl o sin-
gular de sua vida, e de seus companheiros, testemunha o Padre Anchieta,
que tinha Leonardo convertido a Capitania de S. Vicente, quando no anno
de mil e quinhentos e cincoenta e três a foi visitar da vez primeira o Pa-
dre Nóbrega.
80 Correndo as cousas de S. Vicente na forma sobreditta, no anno se-
guinte de iooO chegou cá Bahia huma armada, e por capitania o galeão
conhecido por fama, que chamavão o Velho, e outros navios menores, com
I
I
i
DO ESTADO DO BRASIL (ANNO DE looO) 4^9
gente, e mantimentos, - mandados por ElRei pêra soccorro da nova cidade
do Salvador, por Capitão Simão da Gama. Alguns tiverão pêra si, que vi-
nha também nesta armada Dom Pedro Fernandes Sardinlia, primeiro Bis-
po do Brasil, pessoa de grande autoridade, e bom pregador ; com Clérigos,
e quantidade de ornamentos pêra o culto de sua Sé: segundo o escreve
Pedro de Maris nos seus Diálogos de varia historia. Supposto cjue eu fa-
zendo diligencia, tenho que houve erro no anno; porque achei nos livros
dos Registos da Fazenda Real desta cidade, que foi passada a Provisão de
seu provimento em Lisboa a 4 de Dezembro de 1551, e que chegou ao
Brasil no principio de 1552, e morreo em 16 de Junho de 155G. Donde
se vê que foi erro do computo, e este segundo seguirei.
81 Vierão nesta armada quatro Padres de nossa Companhia: a saber,
o Padre AíTonso Braz, o Padre Salvador Rodrigues, o Padre Manoel de Pai-
va, e o Padre Francisco Pires, mandados por ordem de nosso Patriarcha
Ignacio de Loyola, em soccorro desta vinha do Senhor: e juntamente no-
meava por Yice-Provincial do Brasil ao Padre Manoel da Nóbrega. Forão
recebidos como Anjos vindos do Céo: fizerão-se por sua chegada acções
de graças ao Senhor, que foi servido acudir com tão opportuno soccorro:
e já se davão todos por bem pagos de dous que derão pêra a empresa de
S. Virente, e aprendião a confiar em Deos, lembrados bem da promessa
de Nóbrega, que havia de pagal-os em dobro.
82 Tinha pêra si o Padre Nóbrega, que todo o espirito dos Missionários
do Brasil se devia reduzir a dous pontos. Mortificação, e Obediência. O pri-
meiro lanço que fez, foi exercitar os que de novo vinhão nos actos destas
duas virtudes. Porei poucos, mas serão efficazes exemplos. Seja o primeiro
o do Padre Manoel de Paiva: a este, com pretexto da pobreza em que en-
tão vivião, mandou vender a pregão pelas praças; entoando o porteiro em
voz alta: «Ouem quer comprar este homem? que he já Sacerdote, e p(jdc
servir em muitos usos.» E foi tão de siso o pregão, que chegou a persuadir-
se o povo, que hia deveras (porque continuou alguns dias;) e já somente
se duvidava, se era acarto desfazer-se a Companhia deste Religioso, tendo
tãí) poucos. O governador Thomé de Sousa propoz o caso ao Ouvidor Pê-
ro Borges; e acrescentou: «Eu nunca vi vender Sacenloto de missa; mas
como vejo que os Padres o fazem, não ouso condenal-o.» Não faltava (\mm
])rometesse já até cem cruzaílos pelo Padre Paiva; o os moradores de Yil-
la-v.;lhii subirão o lanço, poniuc o querião pêra seu Capellão. Espantavão-
se lodos do ver espectáculo tão novo; porém o vendido Padre aos lançadores
\oi.. I 4
30 UXnO I DA CIIRONICA DA COMPANHIA DE JIÍSU
desculpava o feito por via da poljrcza: c quando ei'a perguntado, se esta-
va resoluto a servir? respondia que sim; porque elie era dos Superiores, e
que podião estes dispor do seu, como melhor lhes parecíísse. A segunda
figura d'estc acto foi o Padre Vicente Rodrigues; porque este era o pre-
goeiro, que hia bradando pelas praças: e pode por-se em questão, qual dos
dous ficou mais mortificado, se o que era apregoado calando, ou se o que
apregoava bradando? Assentado com eíTeito o dia em que se havia de ar-
rematar o lanço, quando todos esperavão o fim, declarou o Padre Nóbre-
ga ao Governador, e mais amigos da Companhia, o espirito com que aquel-
la fingida venda se fazia, por exercício de mortificação, e obediência; os
quaes ficarão edificados, e não menos exercitados, os dous Padres que fi-
zcrão a figura do acto.
83 Hia o Padre Nóbrega com o mesmo Religioso Paiva caminhando jun-
to a hum monte Íngreme, (juiz provar mais sua obediência, e mandou-lhe
que se lançasse a rodar por alli abaixo. Não houve mais demora, lançou-se
mtrepidaraente sem considerar o perigo, atê que foi mandado parar. Ao Pa-
dre Vicente Rodrigues mandou que assentasse soldada com hum tecelão,
com quem aprendesse o officio, e com quem morasse a suas ordens até
sair perfeito: e assi se fez. Ao Padre João Aspilcueta Navarro mandou que
fosse disciplinando-se pelas ruas até chegar á praça do Governador (cujo
Confessor era) que folgaria de ver penitente tão destro. Fel-o Navarro com
obediência rara, e não menos edificação da cidade. Estas e outras seme-
lhantes mortificações, e obediências erão as daquelle bom tempo, que con-
tinuavão as memorias de outras, a que alguns chamarão excessos, em que
nossos Religiosos se exercitavão em Coimbra na primitiva Companhia de
Portugal: e prouvera a Deos perseverarão ainda hoje estes excessos, com
o mesmo fervor de espirito! Delias faz honorifica menção o Padre Joseph
nos lugares á margem citados. (Jos. pag. 32, Apontam, lib. w.)
84 Feitas as dittas experiências, fez-lhes o Padre Nóbrega aos nova-
mente chegados a pratica seguinte: «Que os varões que vem desterrados da
pátria, parentes, amigos, e Collegios de Europa, postos em esta nova re-
gião do mundo, hão de assentar comsigo, que não são seus, mas que são
já da gentifidade; cuja salvação vem buscar. Ha-lhes de andar retinindo
nas orelhas o preceito de Christô: Ide pelo mundo universo, e pregai o
Evangelho a toda a criatura, ctc. Comnosco falia, successores somos dos
Apóstolos, cahe-nos ás costas sua obrigação. E que criaturas nos coubérão em
sorte? As mais esquecidas, e desamparadas do universo. aond(í por espaço
DO ESTADO DO BRASIL (aNNO DE looO) 51.
de mais de seis mil annos, não chegou a Lei de hum só Deos; e depois por
espaço de mil e quinhentos não chegou a Lei Evangélica. Por esta causa,
e porque são estas as mais hrutaes, e agrestes de todas, ficamos sendo nós
mais ditosos: quanto a cruz nos íica sendo mais pesada, tanto mais nos
parecemos com Christo: lembremo-nos que a carregou«este Senhor tanto
por estas criaturas mais baixas, como pelas mais nobres. Naquelle lençol
de S. Pedro igualmente se lhe representarão os géneros de animaes mais
nobres, e os mais vis e baixos, por dizer o Senhor que queria que todos se
salvassem, nobres, e baixos iguahnente; porque igualmente de todos era Re-
demptor. Não se podia melhor explicar a baixeza, e rudeza de huma nação,
que com o nome de jumentos: pois destas gentes baixas, e rudes, a que o
Propheta Rei chamou jumentos, segundo a explica Santo Ambrósio, diz, que
igualmente se hÃo de salvar com os demais homens: Homines, et jumenta
sakabis Domine: e O que mais he, que igualmente os conheceo, entre os que
se salvarão de todas as gerações do mundo. O Evangelista S. João no seu Apo-
calypse: Ex omnihus gentibiis, et íribuhus, et popuHs, et lingiiis stanles ante
Tronum, et in cunspectu Arjni, etc. Pêra csla gentilidade tão remontada, e
novamente descoberta, trouxe Deos a Companhia ao mundo: então quiz que
nascesse, quando ella no Nascente, c no Poente se descobria: e não são in-
dícios somente, he próprio instituto, a conversão da gentilidade. Levou-nos,
he verdade, ventagem o grande zelador do gentilismo do Oriente, o Padre
Mestre Francisco Xavier, no ser primeiro: porém não na sorte de gente;
porque quanto esta nossa tem de mais rude, tanto pôde ter de mais glo-
ria. Estamos feitos (Padres, e Irmãos cm Christo) hum espectáculo univer-
sal á vista do Ceo, que nos moveo, á vista do Vigário de Deos na terra,
íjue nos mandou com tantos privilégios, favores, jubileos do Ihesouro do
Christo: e á vista de nossa mãi a Companhia, que nos destinou á empresa,
c nos prevenio com seus meios, dEl-Rei de Portugal, que nos pedio; e do
mundo todo, (y.ui está observando como cooperamos com a gloria de Deos,
lionra da Companhia, credito do Rei, e obrigação de nossas pessoas, por
tantas vias contrahida, por caridade, por promessa, por voto, por instituto,
poi- preceito de Christo, e por vigor da própria empresa que aceitámos.»
85 Havia ainda neste tempo grande corrupção de costumes, assi na
gente Portuguesa, como nos índios, Os Portugueses licenciosos com a vida
soldadesca vecejavão em vicios públicos, que servião do escândalo a toda
a terra. Os índios eslavão ainda f)erlinazes no peior de seus vicios, e com
mais força nos que são mais confountís á rariii'. Pei'a reninlio de huns e
52 LIVRO I DA CURONICA DA CO.^rPAMIIA DE JESU
outros males, reparlío Nóbrega em dons cs(iuadr(3es seus soldados ; Iiuns
delles principalmente pêra os Portugueses, outros pêra os índios; feita pri-
meiro lista dos mais necessitados; e com tal ordem, que todos os dias dessem
bataria, e ajuntando-se á noite fizessem conferencia do que tinhão obrado
entre dia, pêra qae á medida da necessidade fossem applicando as armas
de penitencias, orações, jejuns, disciplinas, com que applacassem a divina
Magesíade oíTendida. Não foi debalde; porque á medida do fervor, hiaDeos
pondo a sua mão.
8G Com hum Portuguez degradado, nobre no sangue, mas infame nos
vícios, e escandaloso em toda a cidade, meteo por muitos dias cabedal
hum. d'estes aventureiros, indo buscal-o a sua casa todas as manliãas avi-
sando-o, amocstando-o, opportuna, e- importunamente, segundo a doutrina
do Apostolo; mas não aproveitava. Dava conta do succeditlo, applicavão-se
mais e mais penitencias, e cada vez mais indurecido aquelle coração. Até
que chegou hum dia por Deos destinado, e que indo amanhecer-lhe á porta
o seu requerente, em abrindo a boca pêra lembrar-Ilie o estado em que
vivia, entrou o peccador soberbOj e altivo por natureza, em tão grande
paixão, que brotou nas palavras seguintes: «Padre perseguidor, igual tomá-
reis vós aquelle serviço que está sujo (mostrando-lho com o dedo) e o le-
vareis a lavar; e aquelle pote que está vazio, e o levareis a encher de agoa,
que não queimar-me as entranhas todos os dias com vossas semsaborias. »
Só este lanço esperava a misericórdia divina. Vai-se o Padre ao vaso^ e
leva-o a lavar; toma depois o pote, vai enchel-o â fonte,' e pergunta-lhe,
com toda a boa paz, se tem mais que fazer ? Aqui não pôde deixar de ren-
der-se este Hercules bravo : arrebentou-lhe o coração pelos olhos, qual
outra pedra do deserto em agoas; poz-se de joelhos, abraçou-se com seu
bemfeitor, e prometeo-lhe mudança resoluta : assi o experimentou a cida-
de, com exemplo igual ao que tinha recebido de escândalo; porque chegou
a viver como religioso, recolher-se á sombra dos Padres, e empregar dalli
em diante suas acções em ajuda de nossos ministérios. Da conversão d'este
disse Nicoláo Orlandino (lib. n, n." 78) estas palavras: Omnium prope miracii-
him, qiiidam in Lusitânia, et in BrasHia, quo deporialus in exilium fiierat^
improhitate nohiiis, conversus est aã insignem virtutem : quasi tendo por mi-
lagrosa no conceito dos homens, mudança de tão depravada maldade, pêra
tão insigne virtude.
87 Não foi só este o rendido; outro andava a rol, se não de menor
qualidade, de muito maior liberdade, e lambem degradado. Erão mais il-
DO ESTALO DO BRASIL (aNNO DE looO) 53
íiislros quo cUe seus vicios, commetiOos assi em Portugal, como no Bra-
sil; malfeitor, arrogante, soberbo, desbocado, sem temor de Deos, nem dos
homens, cm cabo desalmado. De que maneira acommeteria hum soldado
manso, religioso, a hum leão tão bravo ? Acovardar-se não convinha, pois
hia de propósito á empresa. Entra com brandura com elle, faz-lhe obras
de amigo (que até leões doma); porém as obras de amizade tomava o homem
arrogante como de divida, sem cortesia, ou agradecimento algum. Mas Deos,
que sabe mudar corações, permitio huma occasião opportuna. Succedeo
que cahio em huma enfermidade este homem fera: estava em huma pobre
choupana fora da cidade, desamparado, sem criado, parente, ou amigo :
porém não sem o seu zeloso pretendente, que teve a occasião como vinda
do Ceo. Entrou a elle, desabafou-o, consolou-o, que alli o tinha a elle por
criado, parente, e amigo : que não havia de desamparal-o, que elle bastava
pêra servil-o : que só sentia não prestar pêra fazel-o como merecia tal
pessoa. Aceitou a oíferta, mas não a agradeceo; porque tinha tudo por de-
vido aos quilates de sua qualidade. Nem foi necessário muito tempo pêra
mostrar a mór ingratidão, que virão os homens; porque continuando a
doença por tempo largo, e não menos com ella a paciência do seu serven-
te, que como escravo trabalhava, chamando-lhe medico, buscando-lhe as
mezinhas, ftizendo-lhe a cama, barrendo-lhe a casa, lavando-lhe os pés ;
aíjuelle peito duro, ingrato a todo este bemfazer, correspondia com rcpre-
hensões descortezes, c baixas; dizendo ao Padre, que devia ser mal cria-
do, e de baixo solar, quem fazia as cousas tão toscamente, e mais a hum
homem de sua qualidade. Não desesperava o servo de Deos: quanto mais
esbravejava o touro, tanto tinha maiores es[)eranças de rendel-o. E succe-
deo assi; porque foi huma de suas reprehensõcs a causa total de sua re-
pentina mudança.' Entrou-lhe huma manhãa o sen-ente pela porta dentro,
e parecf3ndo-lhe ao enft?rmo (tanto de corpo, como de soffrimento) que vi-
nha, tarde; sobre esta tardança começou a lançar sobre elle graves injurias,
dizendo que era homem baixo, que fazia como quem era, c outras não^ me-
nores. Porém o soldado d(^ Jesu padecente, que não espei'ava outra cousa,
se tornou qual jioviço diante de seu mestre; poz-se de joelhos, pedio per-
dão de suas faltas: e logo tira de luimas disciplinas (que pêra o elTeito
levava preparadas) e virando-se pêra um Crucifixo, começou a disciplinar-
sc com tal crueldade?, que em breve tempo lhe vio o enfermo as costas la-
vadas em sangue; o levantando o disciplinante a voz, disse: «Estes açoutes
tomo diante daquelle Senhor Julgador do bem, e do mal, em castigo do
54 LIVRO I DA CÍIRONICA DA COMPANHIA DE JESL'
que dizeis lenho faltado a vosso serviço.» E era este que assi se discipli-
nava, c era reprehendido de liomenl baixo, hum dos mais veneráveis va-
rões de todos quantos o Padre Nóbrega tinha por companheiros, o Padre
João Aspilcueta Navarro, não somente por sua virtude, mas também por
sua nobreza bem conhecido da cajía, e solar dos Aspilcuelas do reino de
Navarra, aparentados com a illustre casa dos Loyolas. O que quiz advertir,
porque vejamos quem, e a quem: quem era o que servia, e quem o que
era servido : quem o injuriado, c quem o que injuriava.
88 Aqui com tudo á vista de espectáculo tão raro, se abrandou aquelle
peito de diamante duro; e lançado da cama aos pés de Navarro, protestou
com breves, se bem elTioazes, palavras, a emenda da vida. «Vencestes (di-
zia) vencestes. Padre meu, com vossa humildade, minha soberba; com vosso
primor, minha descortesia; com vosso soíTrimento, minha arrogância; com
vossa perseverança, minha obstinação; c com vosso exemplo, meu coração,
c alma. Só da sabedoria de hum Deos podia esperar-se lanço tão oppor-
tuno. Todos meus erros ficão envergonhados, e convencidos em theatro.
Eu vos prometto, que execute em mim o rigor da sentença que estão me-
recendo. Daqui liie confesso por rendido vosso, e espero que, como fostes
causa da saúde do corpo, o sejaes também da da alma, que determino en-
tregar-vos.» Levou o vencedor o seu rendido em os braços, assentou-o na
cama, foi-o dispondo até o mais subido gráo de dôr, e deu principio a
huma geral -confissão, que durou por mais dias; obrando sempre a divina
misericórdia naquelle coração eíTeitos de verdadeiro convertido. Sarou de
todo, m.ostrou-se ao povo, e nos templos, dando exemplo de cabal peni-
tencia : hcec mxilaiio dcxteroe excelsi, podemos dizer com o Propheta Rei ;
porque mudança tão notável não podia proceder d'outra mão, que da de
bum Deos excelso. Senhor de coraçíjes. O d'este peccador ficou tão outro,
que era já reconhecido por de homem, o que dantes era aborrecido por de
fera: e o que dantes escandalizava por depravado, ediíicava agora por co-
medido, por pio, por arrependido, por trocado. Foi esta victoria muito fes-
tejada do Padre Nóbrega, dos companheiros, e de toda a cidade : e á vista
delia se seguirão outras muitas empresas semelhantes em peccadores pú-
blicos, 6 apoz estes grande conversão de gente ordinária. Perseverou este
nosso insigne peccador convertido em seu santo arrependimento, e mudan-
ça de vida (qual outro S. Paulo) por muitos annos, seguindo sempre o
conselho, e doutrina dos Padres, e acabou com grandes esperanças, e si-
naes de sua salvai^ão.
I
DO ESTADO DO BRASIL (AXNO DE looO) 55
R9 Os das aldêas não sahião com menores empresas: erão muitas em
numero, e por todas discorrião aquelles, a cujo cargo forão distribuídas: si-
nalou-se porém entre todos o Padre João Aspilcueta Navarro (que andava
volante por hum e outro exercito de Portugueses, e de índios) assi pela
exceilencia que já tinha da hngoa brasiUca, como por suas grandes traças
em toda a matéria de espirito. A primeira cousa que procurarão todos es-
tes pregoeiros do Evangellio foi, que os índios cathecumenos fizessem Ca-
pellas, e Igrejas accommodadas a suas aldeãs, pêra nellas lhes administrarem
o culto divino, e necessários sacramentos. Segunda, que vivessem em for-
ma de Republica, com leis mais politicas, e accommodadas ao estado em
que de presente se achavão. Poz-se em execução, e presavão-se de se asse-
melhar nesta parte aos Portugueses: e os que dantes vivião vagos pe-
los campos sem assento certo, erão obrigados dalli em diante a redu-
zir-se a (pjalquer das aldeãs, e ao teor das sobredittas leis, cousa mui
importante, porque os Padres podessem obrar nelles os effeitos da dou-
trina christãa.
90 Huma das cousas, que difficultava o fruto desejado, era o costume
que ainda hoje ha nesta gente, quasi necessário nos que não estão mui do-
mesticados; que como vivem de seu arco, em amanhecendo partem á*caça
das aves, e feras por esses campos; e como de natureza são andejos, e
vagabundos, voltão commummente á noite; de maneira que em todo o dia
não ha trattar com elles com socego. Porém este inconveniente vencia o
grande fervor de Aspilcueta. Hia esperal-os sobre a tarde, a tempo que
vinhão carregados com suas caças ; dava-lhes as boas vindas, e os parabéns
do successo aos que tiverão boa ditta. Dizia-lhes, que descansassem, e
ceassem muita embora com suas famílias : e quando já estavão descansa-
dos, e satisfeitos, em começando a noite a desenrolar seu manto, começa-
va elle a despregar a torrente de sua eloquência, levantando a voz, e pré-
gaiido-lhes os mysterios da Fé, andando em roda delles, batendo pé, es-
palmando mãos, fazendo as mesmas pausas, qnebros, e espantos costuma-
dos entre seus prégadonís, pci'a mais os agradar, e persuadir. Arrebata-
vão-se de sua grande eloquência, e da destreza de sua liiigoa, convencião-
se, domes ticavão-se, e adestravão-sc d"esta maneira facilmente peia o baii-
tisrno, que recebião quasi aos centos.
91 Outra cousa acabou com os índios mui necessária; e fui, que le-
vantassem duas casas em duas aldêas princii)aes, pêra que fossem como
dous Seminários, aonde se ajuntassem seus filhos, e os das mais aldêas,
56 LIATiO I DA CIIRONÍCA DA COMPANHIA DE JEÍIS
pora linvorem do ser calheqiiizados com maior rommodo, e perfeição: ii
imitarão de oulro Seminário, que levantara o Padre Noijrega junto á cida-
de, de que logo diremos. Forão estes Seminários meio efficaz ; porque em
breve ficarão os meninos mestres dos pais em todo o género de doutrina
cliristãa; que era força que espalhados elles por suas casas, cantando-a
de dia, e de noite, composta em sua própria lingoa, a communicassem a
todos. E o que foi cousa mais notável, que tendo, por mandado dos Pa-
dres, cuidado cada qual dos meninos em sua casa de visitar qualquer que
estivesse doente, e rezar sobre elle a oração do Padre nosSo; aconteceo
por vezes, com a boa fé d'estes innocentes, obrarem-se curas milagrosas,
de que os índios ficavão admirados, e com maior conceito da Fé que pro-
fessamos.
92 Correndo certo dia as casas da principal aldéa (como era costume)
pêra soccorreí' os doentes, e pêra com melhor effeito intimar a doutrina
de Chrisío ; vio o Padre João de Aspilcueta seis, ou sete velhas igualmente
maduras na idade, e refinadas em seus ritos gentílicos (quaes sete harpias
do inferno) que rodeavao huma grande fogueira, ministrando lenha, e ati-
çando o fogo com cantos de alegria a seu modo bárbaro: entendeo logo o
que podia ser, e chegando-se vio que estavão assando muitos quartos de
carne humana, e outros tantos tinhão a cozer em hum grande azado, em
que entravão diversas cabeças, pés, e mãos ; tudo a fim de celebrarem cer-
ta festa. Que faria Navarro? lembràrão-lhe aqui as historias do monte Cal-
vário, e a resolução que daqui fizerão os companheiros, que nesta maté-
ria se ganha tanto mais quanto he maior a brandura, 'e paciência. Abominou- lhes
a cozinha infame com argumentos deduzidos pela piedade christãa : porém co-
mo ainda erão gentios os d"esta festa, escusárão-se com seus antepassados: «Não
sabes tu (dizião) que foi sempre este o regalo maior de nossas festas? que
nestes nos criámos de pecpenos, e estes aprendemos de nossos pais, e
avós? Assi te parece tão fácil largar hum costume tão antiguo?» Ouvio o
Padre a escusa, dissimulou, e tratou por então de cathequizal-os ; porque
bem via, que sem a luz da Fé, não podião conhecer-se tão grandes trevas
da gentilidade : e por fim veio a acabar com os da festa, e com as velhas
(que he o que mais espanta) trocassem o banquete em outras espécies de
comida. Por estas, e outras semelhantes traças de espirito, de que usava
o Padre Aspilcueta Navarro, vierão commummente a dizer delle, que pa-
recia que andava avinculada a conversão da gentilidade na gente Aspilcue-
ta Navarra; alludlndo á conversão que o Padre Mestre Francisco Xavier no mes-
DO ESTADO DO BRASIL (anNO DE 1351) 57
mo tempo fazia no Oriente, e comparando-a com a que o Padre fazia no
Brasil, ambos da gente Aspilcueta Navarra.
93 Junto á cidade tinha também a industria da Padre Nóbrega, e seus
companheiros, levantado casa de Seminário com suas 'próprias mãos, e
trabalho. Neste criavão, e sustentavão c[uantidade de meninos fdhos dos ín-
dios, e mestiços da terra, em bons costumes, e doutrina christãa, com
muito fruto, e ajuda das almas : porcjue fazião tanta estima d'este Recolhi-
mento, que de todas as partes concorrião meninos, em tal numero, que pa-
recia já impossível sustental-os. Aqui aprendião a ler, escrever, contar, aju-
dar á missa, e doutrina christãa: e os que estavão mais provectos saiiião
em prociss(3es pelas ruas, entoando em canto de solfa as orações, e mys-
terios da Fé, compostos em estylo. Aqui he digno de notar o successo se-
guinte. Era grande a seara, e erão poucos os obreiros, e entre esses pou-
cos continuava hum, que era o Padre Vicente Rodrigues, com doença de
hum anno inteiro, e rpie ainda promettia longos vagares: levado hum dia
de zelo o Padre Nóbrega, com espirito, ao que pareceo, mais que ordiná-
rio, fallou ao enfermo d"esta maneira: «Padre Vicente, a doutrina das almas
tem necessidade de vós; pelo que em virtude da santa obediência vos or-
deno, que lanceis fora essa doença, e vades acudir ao próximo.» Cousa ad-
mirável! no mesmo ponto foi o Padre restituído á saúde, e forças perfeitas,
e foi logo ajudar aos mais, não sem fruto das almas.
9i Entrou o anno de 1551, e chegou á Bahia outra Armada igual á do
anno passado, mandada por El-Rei de Portugal, em soccorro de sua nova
cidade do Salvador, debaixo do governo do Capitão António de Oliveira,
homem muito nobre (em quem encabeçou a Alcaidaría mór delia, que con-
tinuou até o presente em sua descendência) porque como ainda neste tem-
po não havia mercadores de conta no Brasil, costumava mandar todos os
annos nestas nãos fazendas, gado, cavallos, e outras cousas necessárias ao
provimento abundante da terra. Esta Armada, supposlo que não trouxe
soccorro de obreiros, trouxe comtudo esperanças alegres, de que prelen-
dião a missão com instancia muitos, cbons sujeitos, a que cedo virião, le-
vados da fama da multidão de almas, e fruto qnc nollas se fazia. Vinha
nestes navios quantidade de homens degradados, c orfãas mandadas pela
Rainha D. Catharina pêra cá se casarem, e povoarem a terra. Com esta
gente tiverão os Padres assas em que empregar seus desejos, acudindo,
assi ao remédio espiritual dos degradados, como ao estado temporal das
orfãas, com zelo, c não sem o esperado fruto; porque tirarão a muitos
58 LIVRO I DA CimONICA DA COMPANHIA DE JESU
de péssimo estado, e a muitas ajudarão a amparar, com iionra, e re-
médio.
95 Por este tempo do anno em que imos de 1551, segundo colijo
do computo, e de humas palavras do Padre Josepli de Anchieta, em seus
Apontamentos (que outra noticia não pude achar) mandou o Padre Nóbre-
ga á Capitania do Espirito santo, já então fundada, mas destituída de obrei-
ros do Evangelho, o Padre Aííonso Braz, hum dos quatro que pouco ha
dissemos vierão de Portugal em soccorro. Está esta Capitania em altura
de 20 grãos, e hum terço, distante 120 legoas da Bahia, e de S. Vicen-
te outras tantas: foi fundada no anno de 1525 por Vasco Fernandes Cou-
tinho, fidalgo de igual valor, e nobreza, dos mais illustres e antigos, solares
de Portugal. Concedeo-lhe o Sereníssimo Rei D. João III cincoenta le-
goas por costa, começando donde acabasse a data de Pedro de Campos,
donatário de Porto-seguro, correndo ao Sul ; pelos serviços que na índia
lhe fizera. Fez em Lisboa huma boa Armada á sua custa, com gente, e
aprestos necessários pêra defensão da terra, e vinhão com elle ajudal-o
sessenta homens nobres criados d'El-Rei, D. Jorge de Meneses, D. Simão
de Castel-branco, e outros. Chegou a salvamento a esta costa do Brasil,
onde por informações (ao que parece) dos que havião demarcado a terra,
forão em demanda do porto, que hoje chamamos do Espirito santo ; e en-
trando da barra pêra dentro á mão esquerda, junto ao monte de Nossa Se-
nhora, lançarão gente, ao som da artelharia de seus navios, naquellas praias
occupadas então de gentio blirbaro : e nas mesmas começarão a fundhr a
villa, que agora tem nome de Villa-velha, com íiwocação do Espirito santo,
que foi depois o de toda a Capitania. Aqui teve apertadas guerras de huma
parte com a nação dos Guayanás, e de outra com a de Topinaquís (cujos
successos vários a mim me não pertencem aqui;) porém he certo que na-
quelle principio mostrou a fortuna bom rosto a nossas armas, e alcançou
o valor d'este Capitão victorias dignas de historia, e taes, que forão causa
de que pedissem [pazes parte dos inimigos, outros se retirassem a seus
sertões, e tivessem lugar os nossos de mudar de sítio pêra outro mais se-
guro, e forte, onde hoje vemos a villa com invocação da Victoria, por res-
peito de huma que então alcançámos considerável de numerosa quantidade
de bárbaros, que no lugar estavão situados.
96 Está esta villa em lugar igualmente defensável, e commodo pêra a
vida humana : cercado de agoa, armado de penedia, horrível por nature-
za, habitável por arte : junto ao rio, perto da barra, senhor de pescarias
DO ESTADO DO liRASIL (aNNO DE 1551) 59
c mariscos sem numero. Seus arredores são terra fértil, capaz de grandes
canaviaes, e engenhos: seus campos amenos, relalliados de rios, e fontes:
suas mattas recendem, são delicia dos cheiros, bálsamos, copaigbas, alme-
cecas, salçafrazes : seus montes estão prenhes de minas de varia sorte de
pedraria, e segundo dizem, de prata, e ouro: será feliz o tempo em que
saião a luz com seu parto. Todas as partes referidas prometem boas dittas:
farão relação delias os que ao diante escreverem; que eu trato somente do
que pertence ao estado presente, em que vai a historia. N'este com tudo
darei breve noticia do modo com que colhem, e usão do thesouro dos bál-
samos aquelles moradores. São arvores altíssimas, de troncos grossos, e
estendidas ramas, que excedem muito as do celebre bálsamo da Palestina.
Hum género delias chamão os naturaes cabureigba, de còr cinzenta, folhas
á maneira de myrto, e casca de grossura de hum dedo. Esta casca pois,
golpeada no mez de Fevereiro, ou Março, em conjunção de lua chea, lan-
ça pelas feridas, em vez de sangue, copia do licor amarello fragantissimo,
e preciosíssimo, a que chamamos bálsamo, em tanta quantidade, que corre
o mundo todo, ou como sahe da arvore, ou feito em obra de bola, vasos^
contas, e semelhantes peças cheirosas, e prezadas. He admirável sua vir-
tude medicinal: elle só suppre huma botica de remédios humanos : resol-
ve, digere, e conforta por intensão cálida, o seca. Duas gotas delle leva-
das em jejum pela boca, desfaz a asma, e cruezas do ventre, e conforta as
entranhas. Com elle morno esfregado o peito se desfazem as opilações
frias: e esfregada a cabeça, e pescoço, com panno vermelho, corrobora o
cérebro, presença de apoplexia, e espasmo. Tem elficacia grande pêra sa-
rar feridas, e mordeduras de animaes peçonhentos. Os próprios brutos le-
vados do instincto natural, quando estão feridos correm a esta arvore, e
mordendo-lhe a casca achão remédio a seu mal. Em diversas partes do Bra-
zil nascem estas arvores, no Rio de Janeiro, S. Vicente, Pernambuco ; po-
rém nem em tão grande copia, nem de tão fino bálsamo, como na capita-
nia do Espirito Santo. Ao outro género chamão os naturaes copaigba: são
lambem grandes arvores, tanib(im cinzentas, porém são maiores a's fo-
lhas. Ferido o tronco até a medulla, especialmente em conjunção de lua
chea, recebem-se de licor grandes cântaros : chamão-lhe (como á arvore)
copaigba: e quando cessa, tapad(j oburaco por oilo, ou mais dias, quando
depois se torna a destapar, sahe com a mesma liberalidade. O cheiro d'este
óleo não he tão precioso, mas he igualmente medicinal cfue o primeiro.
97 N"esta capitania pois, c villa da Vicloria, foi recebido o Padre Af"
CO LIM^O I DA CimONIC.V D.\ COMPANHIA BE JESU
fonso Braz, e hum irmão companheiro sen, com tão íjrande alvoroço do
povo, quanta era a necessidade que linha de (piem administrasse as cousas
do espirito. Edificarao-lhe em breve tempo casa, e Igreja, na (piai, c fora
d'ella pelas ruas, e praças, exerciíava os ministérios do nossa Companhia,
com bom fruto das almas. De casos particulares só achei conjecturas, mas
não relação; porque naquelles tempos obrava-se muito, escrevia-se pouco.
Contentou-se o Padre Joseph com dizer, que ajudava este varão aos próxi-
mos com confissões, praticas, e exortaçíjes espirituaes, e se exercitava tam-
bém a si em penitencias, e trabalho do corpo, com grande edificação de
todos; e especialmente, que fazia officio de carpinteiro, que nunqua apren-
dera: com razão ; porque se a necessidade faz mestres, com maior o zelo
de ajudar os próximos.
98 Este progresso hião tendo as cousas : porém o espirito de Nóbre-
ga, que aspirava a toda a gentilidade, não se assocegava em tão pequenos
termos. Resolveo-se n'este anno de mil e quinhentos e cincoenta e hum ir
em pessoa a Pernambyco, a fim de ver o modo que poderia ter a conver-
são daquellas almas, que erão innumeraveis, e todas faltas de doutrina.
Porém em quanto dispõe a viagem, e vem por caminho, hc bem que de-
mos brevemente noticia d'esta Capitania, e do estada era que então estava.
99 He a Capitania de Pernambuco huma das primeiras, e mais nobres
d"esta província. Corre cincoenta legoas por costa desde o rio S. Francisco,
altura de dez grãos, e hum quarto, até entestar com outro rio chamado
Igaruçú em oito grãos da equinocial. Pêra o sertão não tem limite certo,
se não o que se achar por divisão das terras entre Portugal e Castella,. e
devem ser como trezentas legoas, mais ou menos, segundo o computo de
alguns dos Geographos. Toda he terra bem assentada, com moderada com-
postura de montes, e campinas: o torrão fértil, feraz, vigoroso, e que pro-
metle desempenhar os desejos dos que a cultivarem, por mais ambiciosos
que sejão. Os campos são fecundos de infinidade de gado, regados de rios,
abundantes de fontes, e agoas salutiferas. Só de rios que desembocão em
o mar, se conta numero de vinte e cinco : n"esta Capitania os mais d'elles
caudaes, e navegáveis. Seu arvoredo compete com as nuvens, perpetuo na
verdura, sem numero na quantidade, sem preço na estima. Os páos bra-
sis, amarelos, jacarandás, caripinimás, e sobre tudo a amenidade de seus
fermosos coqueiraes he singular. Da bondade do clima, ares vitaes, e mais
commodidades pêra a vida humana, basta dizer que he parte principal do
Brasil. Nesta só Capitania podéra bem fundar-se hum reino.
DO ESTADO DO BRASIL (aNNO DE lõol) 6i
100 Foi dada esta parte do Brasil por El-Rei D. João a Duarte Coe-
lho, o velho : a occasião foi a mesma que temos dito de Martim Affonso de
Sousa, e Vasco Fernandes Coutinho. Tinha elle chegado da índia' rico de
bens, e de serviços : em paga delles llie foi concedida esta Capitania, pêra
que a povoasse, e defendesse á sua custa, demarcada na forma que disse-
mos, e com as larguezas que constão do foral, que são grandes. Com
este despacho animado fez huma Armada, e embarcou-se n'ella com toda
sua casa, e niuitos parentes, e amigos, que quizerão acompanlial-o, provido
de soldadesca, e aprestos de guerra, tudo á sua custa. Deu á vela em Lis-
boa no mez de ]\Iarço de 1530. Chegou á sua Capitania, e tomando pri-
meiro noticias necessárias, e experimentadas outras estancias, veio a des-
embarcar no porto, a que os índios chamão Paranambuca, e nós com pouca
corrupção Pernambuco. E logo indo- roçando as mattas ao som de armas
de fogo, terror d'aquelles bárbaros, abrirão caminho de huma legoa; e con-
tentando-se de hum lugar mais alto (sitio que depois foi da villa) livre de
padrastos, e defensável, fundou- huma torre de pedra e cal (cujas ruinas
ainda hoje perseverão na Rua nova) formou valles, dispoz sua gente de
guerra, e mostrou bem a experiência o quanto lhe era necessário todo este
apresto; porque foi aqui acommettido com terríveis assaltos de bárbaros
sem numero, chamados especialmente Caetês, capitaneados por Prancezes,
que trazião comsigo. Forão postos em cerco com grandes apertos de fome,
e sede; em cuja defensão foi ferido o mesmo Capitão, morta muita gente,
e chegarão a ponto de pcrder-se. Porém era Duarte Coelho homem de
grande coração, destro em guerra, e tirando maiores brios dos maiores
apertos, com tal valor se houve, que não somente veio a livrar-se do cer-
co, mas a accommetter o inimigo, com tão milagrosas empresas, que erão
dignas de huma grande narração. Matou infinidade de barbaria, e aos que
ficarão obrigou, ou a pazes, ou a retirada do sitio por larga distancia, em
que podessem viver os moradores, e assentar fazendas. As mesmas victo-
rias continuou depois Duarte Ceelho, o moço, filho seu, e de sou valor, em
cujo tempo chegou a não apparecer inimigo cincoenla legoas em circuito,
íjneJjrados os arcos, c os brios; com que puderão continuar os nossos a
fundação da villa de Olinda, com quietação, c socego, crescendo esta a
grande estado. Porém aqui entre tão prosiieros successos de guerra, julgo
que he conforme a razão advertir, <iue pêra estes forão de grande adjuto-
rio os Índios da nação Tobayár: e isto lhes sirva sequer por agradeci-
mento.
G2 Lm\o I DA cnnoNicA da companhia de jesu
101 Foi esta nação dos Tobayâres a primeira, que (como já tocámos
failando da Bahia) se poz da parte dos Portugueses; apesar de Potiguáras,
Tapuyas, e outros, e em nossa defensão obrarão grandes cousas em todas
as conquistas. Da d"estas parles porei alguns exemplos. Seja o primeiro o
de hum aíTamado Tabyra, Capitão de valor, esforço, e arte: chegou a ser
terror, e assombro de nossos inimigos; venceo batalhas, matou innumera-
veis, e fez taes proezas em armas, que só com Tabyra sonhavão. O mes-
mo era saber que vinha no exercito, que dar a empresa por perdida. A
modo dos Capitães de fama, dispunlia ciladas, assaltos nocturnos, inopina-
veis, trazendo areados com elles seus contrários. Rondava de noite disfar-
çado os arraiaes do inimigo, e ouvia quanto entre si tratavão, e no se-
guinte dia pondo-se em fronteira lhes descobria suas traças como adivi-
nhadas, mettendo-os em espanto, e medo. E tudo certificão certidões au-
tenticas dos Capitães d'aquelle tempo.
102 Exasperadas, e desesperadas as nações, appellidárão suas gentes,
metterão o resto do poder, e formarão exercito excessivo, e numeroso,
ajuramentados a morrer, ou acabar de huma vez com este acoute com-
mum de todas. Fizerão-se fronteiros a seu arraial, e mandarão-lhe intimar
desafio. Sobio-se a hum alto o mais esforçado de seus combatentes, e a
grandes vozes, chamando por seu nome, dizia: «Tabyra, Tabyra, só a pro-
var forças comligo, he nossa vinda a este lugar : se és valente, como di-
zes, convém que saias com toda tua gente a campo, que n'elle nos acha-
rás sem temor : e se comtudo não sahires de tuas covas (em que encova-
dos estaes como ratos) não te jactes mais de esforçado.» Ouvio Tabyra o
desafio, e levantando-se a huma eminência, vio os campos cobertos de guer-
reiros, qiie batendo os ares o esperavão arrogantes, promettendo-se d"esta
vez a victoria, cpie perderão por tantas. Outro cpie Tab3Ta não fora, des-
fallecera; porque não tinha comparação alguma exercito com exercito: po-
rém elle, que não sabia que cousa era medo, com tanto maior brio, quanto
era maior a empresa, ajuntou os seus, e fallou-lhes assi: «Parentes, e ami-
gos, bem nos dizião a nós os Portugueses, que o Deos que adorão favore-
cia os de seu bando: aqui nos traz agora como a matadouro juntos os ini-
migos, que tempo ha andávamos pelas mattas buscando pêra huma vez aca-
bal-os: os mesmos são a quem tantas vezes vencestes: o virem unidos, he
que quer nossa boa fortuna dar de hum golpe nome a nossas armas: não ha
que temer: cpanto mais que no caso presente não he voluntária a batalha,
força he que saiamos a quem nos desafia, sob pena de covardes. Saião,
DO ESTADO DO BRASIL (aNNO DE 1551) 63
saião (las covas os ratos, e vejamos que gato he este que pretentlc co-
mol-os ? Imitai o que virdes que faço, e por ventura vejaes liqje que deixa
em nossas mãos a pelle.» Disse, e fez: em breve tempo se poz fronteiro ao
inimigo, que presentoii batalha. Conta-se, que rompeo n'esta com tal fu-
ror, e estrondo de vozes, bater de pés, e arcos, que atroadas as aves que
voavão, cahião em terra. O famoso Tabyra (qual a exiialação leve na região
do ar, cercada de nuvens inimigas, concebe fogo, rompe em trovões, e
despede coriscos) assi cercado da multidão de seus inimigos, concebe ar-
dor, brama como trovão, e corisco, assolla, e põe por terra o que mais
lhe resiste. Era porém a multidão de bárbaros excessiva: a centenas de
mortos succedião milhares de vivos; e como doestes o primeiro cuidado
era tirar da vida o Capitão Tabyra, no principal fervor do conflicto des-
carregou sobre elle por hum lado tal nuvem de frechas, que correo peri-
go sua vida, e ficou pregado em hum olho, a cuja vista esteve suspenso
seu exercito. Porém Tabyra arrancando a frecha, e com ella o olho, e acu-
dindo brevemente a certa erva que lhe estancou o sangue, disse aos sol-
dados que fossem por diante, que ninguém desmaiasse, que pêra vencer
seus contrários lhe bastava hum olho só. Continuou com elle quebrado,
mas inteiro o animo; e como só a grandeza do numero detinha a victoria,
depois de mortos e frechados tão grande quantidade de bárbaros, que lhe
não souberão pôr o numero, antes que o sol se puzesse ficarão os nossos
senhores do campo, e de huma victoria das mais famosas de todos aquel-
les tempos.
103 Não foi inferior no valor, e potencia, o grande Piràgibá, que vai
tanto como Braço de peixe. Taes façanhas obrou em defensão dos Portu-
gueses, que mereceo ser appremiado com habito de Christo, e tença. O
mesmo obrou hum Itagybâ, Braço de ferro, e muitos outros Tobayáres, em
cuja ajuda, o potencia forão os Portugueses remontando as demais nações
pêra o interior das bi-enhas, e se ficarão olles nas partes marítimas da
terra, indo d'esta maneira sempre a conquista com prospeiidade, e em cres-
cimento a villa de Olinda.
104 Oh quem i)i-ophetizara então as varias fortunas, que tinhão guar-
dado os tempos a esta nobi-e villa? Quem dissera que seria Olinda, anda-
dos os annos de hum século, o thcalro da maior inconstância da vida, o
campo da maior variedade humana, (jue virão os olhos dos mor! acs? Cres-
cerá, subirão aos aros suas maf|uinas, chegai'á a ser cabeça do hum dos Po-
Innladiis do nrlic, soberl);! em edificios, iUusIrc cm cidadãos, esmerada em
04 LIVUO I DA CimOMCA DA COMPANHIA DE JESU
policia, culto, fausto, tratto, riqueza; conhecida, applaudida, buscada de to-
das as partes do mundo, por suas ricas drogas: será seu corpo agiganta-
do, florente, povoado de grandiosas villas, cheio de grandes maquinas de
engenhos, revestido de verdes e louros canaviaes, rico, grandioso, hum
quasi Paraiso da vida humana.
104 Porém (oh roda da fortuna!) essa mesma grande cabeça, esse mes-
mo agigantado corpo, por soberba, e outros vícios, ou por juizos occultos
do Ceo, cahirão brevemente, e com precipitada ruína serão despedaçados,
feitos opprobrio, e ludibrio de gentes infiéis estrangeiras. Aquella sua ca-
beça de ouro será abrazada em vivo fogo; tornada (qual de primeiro) lugar
deserto, e matta inhabitavel, sem lustre, sem nobreza, sem policia, culto,
fausto, trâtto, riqueza, desconhecido, e deixado de todos. Aquelle seu corpo
de metal ferraoso, braços, e pés, serão feitos pedaços, e postos por terra.
As villas, os lugares, as maquinas, os engenhos, as doces plantas, senho-
reado tudo de cultor estranho: os homens mortos, martyrizados, tyrani-
zados, com crueldades taes, que excederão ás dos Decios, e Dioclecianos.
Foi visto seu incêndio por verdadeira revelação em lugar mui distante, e
muito antes que naturalmente se pudesse saber, por hum servo de Deos
religioso, que posto de joelhos, arrasado em lagrimas, e levantadas as mãos
ao Ceo, me certificou a mim mesmo que isto escrevo, na própria hora em
que succedia, com todas suas circunstancias, o triste, e lamentável caso.
He pessoa passada já da presente vida, a quem se devia todo o credito ;
porque além d'esta foi dotado de outras muitas visões do Ceo.
106 Aqui com tudo, oh feliz queda, podemos dizer com razão; porque
quanto foi maior a ruina, tanto com mór espanto do mundo ha de resus-
citar. He momentânea a resurreição de hum corpo, torna novamente a alma
cora nova graça a dar vigor aos membros mortos. Aquelle corpo, aquella
cabeça, aquelles membros deslustrados com a sombra da morte por vinte e
quatro annos, quasi em hum momento tomarão nova alma, com nova graça, e
tal vigor, que porá em esquecimento sua ruina: será coroa das idades pas-
sadas, inveja das presentes, e escarmento das futuras: será assombro de
estrangeiros, labéo de suas armas, portento de valor, exemplo de vence-
dores, pregão dos séculos, gloria da Lusitânia, e honra da gente Pernam-
bucense, e Capitães internos, e externos tão valerosos, que serão contados
nos annaes futuros entre os Martes semideoses da guerra. Tornemos agora
ao fio da nossa historia.
107 O (jue acima disse foi o principio da fundação da Capitania de
DO ESTADO DO RRASIL (ANNO DE [-)-)\) 65
Pernambuco: e cio modo de viver de seus moradores, occupados em guer-
ras licenciosas, som Pastores ou Pregadores, que lhes pudessem ir á mão,
se deixa ver o eslado em que se acharia iicei"ca de suas consciências, quan-
do pêra elle vinha o Padre Nóbrega. Era njuila a corrupção da sensuali-
dade, mui pouca a guarda das leis ecciesiasticas, e raro o uso dos sacra-
mentos. Homens havia, que por espaço de quinze, e vinte annos, nem con-
fessavão, nem commungavão, nem mais tratlavão de I\Iissa, ou Pregação,
que os próprios Gentios. A estes males dava mais ousadia o escândalo de
alguns Sacerdotes seculares, que devendo zelar estes vicios, chegavão a
pregar com boca atrevida, não ser cousa iUicita, nem prohibida por lei al-
guma, sustentar cada qual dentro de sua casa índias, ainda coíii máo uso;
nem ter por cattivos os índios, que podião grangear. Este era o estado da
Capitania no temporal, e espiritual.
108 Neste estado pois, se resolveo o Padre Noijrega ir intentar remé-
dio a estas almas. Chegou a Olinda, levando por companheiro o Padre An-
tónio Pires, varão provado em todo o género de espirito, correndo o an-
no do Senhor de lool, sendo ainda Governador^eral na Bahia Thomé de
Sousa, c Capitão mór, e Governador em Pernambuco Duarte Coelho. Does-
te, e de toda a gente do povo forão bem recebidos: e não com menos ale-
gria dos In(hos; por que em soando por seus arredores, que ei'ão chegados
â terra dous daquelles Abaréguaçús (que assi chamão aos Padres) dos quaes
elles Unhão por fama, que na liahia, e em S. Vicente, erão pais, e prote-
ctores dos índios, e lhes ensinavão os meios <le sua salvação, descerão logo
de suas aldeãs a dar-lhes a boa vinda, carregados de caça, legumes, beijús,
farinhas, offertas de sua possihilidade; e pcdir-lhes quizessem ser hospedes
seus, e levar-lhes a luz da doutrina que trazião do Ceo. Ilece])erão-n()s os
Padres com mostras de benevolência, e despedirão-nos com esperanças do
que desejavão.
109 Porém era necessário em priFTieiro lugar dar algum meio ás cou-
sas (\os Portugueses. Começou o Padre Nóbrega a lançar as primeiras re-
des da pregação do Evangelho naquellc vasto mai", e não sem grande fi-u-
lo: i)or(|uc como a pessoa, vida, e santidade do pregador era tão conhe-
cida, fazião a suas p;ilavras geral applauso, pedião que ficasse com elles,
dizião (\m era voz do Ceo, que por seu meio se havia de converter a ter-
ra; e lhe offerecêrão casa, e Igreja. O mesmo fruto hia fazendo o compa-
nheiro na gente ordinária. Havia [)oréin duas sí)rtes de gente da mais avul-
tada, (jue necessitava de cabedal mais rjue oiilinario. Erão estes (|uan(ida-
VOL. I .")
66 LIVRO I DA CIIROMCA DA COMPAXIIIA DE JESU ~
de de amancebados com suas mesmas índias, e outra não menor multidão
dos que cativavão os índios som titulo alííiim justo; ponjue como aquoUes
não podião fazer-sc capazes dos sacramentos sem que largassem as índias
lie seu mão tratto, nem estes sem que largassem os índios de seu serviço;
era-lhes pela hora da morte ouvir f;jllar, quanto mais consentir, na tal re-
solução. Davão por desculpa, que sem índias, e índios ficavão sem remé-
dio; que era opinião de seus Sacerdotes, e a usavão elles; que era licito
rctel-os especialmente por necessidade. E vem a ser este o mór impedi-
mento, quando aquelles mesmos, que deverão acudir ao mal, são o exem-
plo delle.
110 Em grandes anciãs se via mettido o servo de Deos: representava-
se-lhe a seu grande zelo sair a publico a confutar ás claras doutrina tão
injusta, e dar a vida, se necessário fosse, por defensão de dous pontos tão
graves, pertencentes, hum á honestidade, outro á Uberdade dos índios.
Pelos púlpitos, pelas praças, pelas ruas, em praticas publicas, e particula-
res, trattava de ensinar a todos a verdadeira, e solida doutrina: e como
tinhão os homens grande conceito de suas letras, e virtude, hia fazendo o
desejado fruto: davão muitos de mão ás mancebas: muitos largavão os ín-
dios mal havidos, ou os retinhão com condições licitas, e suaves; e geral-
mente acudião á frequência necessária dos sacramentos, até alli tão i)ouco
usada. Senão que o inimigo das almas, por seus [sequazes, aquelles Sacer-
dotes semeadores da falsa doutrina já ditta, por causa delia, e porque vião
que nosso instituto era contrario a seu modo de vida, e impedimento ma-
nifesto aos lucros de suas pregações, e missas, conceberão tal ódio contra
os pregadores da verdade, que pretenderão infamal-os, expulsal-os, ou aca-
bal-os se pudessem, incitando pêra isto o povo, e os que erão de sua fac-
ção: e chegarião a effeituar seu intento, a não acudirem á maldade (a ponto
jã de commetter-se) os homens principaes do governo, e desapaixonados,
que reprehendêrão a insolência, e opprimirão os desarranjos delia.
111 Em quanto passavão estas cousas entre Portugueses; os índios
não cessavão de enviar seus embaixadores, pedindo aos Padres quises-
sem ir a suas aldeãs denunciar-Ihes a palavra de Deos, de que somen-
te tinhão noticias confusas. Acudirão os Padres a seu justo intento; e
forão recebidos daquella gente com as maiores mostras de festas de sua
gentilidade. Era a multidão grande, e os obreiros somente dous, pouco
industriados em sua lingoa, e era impossível acudir a lodos. Tomarão a
traça seguinte. Escolherão cento dos mais babeis porá serem cathequizados
I
DO ESTADO DO BIíASIL (ANXO DE 150:2) 67
e depois mestres dos demais : tomarão estes com íiicilidadc a duiilriíia, e
merecerão cm Ijreve ser aprovados pêra o bautismo. Porém o inimigo das
almas não dorme: inspirou fogo de inveja em alguns dos que não forão
admittidos; e d'estes Imm, que era a cabeça, arrogante, de grande opinião
entre elles, e de quem aprendião falsas doutrinas, levantou huma pertur-
barão perigosa: bia mettendo em cabeça aos simples índios catliequizados,
que elle era da geração dos Padres, por certa via, que lhes bia contando
fabulosa, que delles aprendera antiguamente a doutrina, que dantes lhes
ensinava, e que morrendo, por mandado de Deos, resuscitára pêra lha en-
sinar, e era a mesma que lhes praticavão os Padres (e ensinava-lbes elle
cousas bem más) pelo que concluía deixassem ir os Padres, porque elle só
bastava, c tinha da parte de Deos o lugar prevenido pêra doutrinal-os. Com
este estratagema tinha já enganado a muitos, quando foi avisado Nóbrega do
que passava ; e com toda a pressa, e zelo pregou contra o enganador, e desfez
seus embustes com tão grande effeito, que foi desterrado por falso, e este-
ve a ponto de ser morto a mãos do povo, a não lhe acudirem os Padres.
112 Obradas as cousas referidas, e tendo tentado o Padre Nóbrega o
estado d"esta Capitania, fazendo primeiro capazes os moradores, voltou á
Bahia com intenção de tornar, ou mandar mais numero de sujeitos, bem
necessários a tão grande seara. E pêra que por entretanto se conservassem
os princípios lançados, deixou na terra, e como em reféns, o Padre Antó-
nio Pires seu companheiro, porque além de sua grande virtude, era bem
quisto, assi de Portugueses, como de índios. E não se enganou; ponjue foi
conservando a missão no mesmo teor começado: pêra cujo effeito lhe con-
cedeo o Governador Duarte Coelho huma Ermida de N. Senhora da Gra-
ça, que edificara com intenção de trazer pêra ella Religiosos de S. Agosti-
nho. Estava esta situada no próprio monte, em que ao presente vemos edi-
ficado o Collegio da Companhia. Nesta Ermida trabalhou com grande cui-
dado o servo de Deos, porque neila passaA a os dias, e parte ^\s Jioites em
confissões continuas, e administração dos mais ministérios de seu institu-
to: e o pouco tem[)o (jue lhe sobejava, occupava em arrasar o monte a po-
der de seu braço; e como era homem de grandes forças, chegou a lazer
bum largo terreiro, no (\\u\ edificou por suas mesmas mãos casas de tai[)a,
em ({ue se agasalhou religiosamente, com recolhimento estremado; porque
era mui dado á oração, e lamiliar tratto com Deos.
M.'{ (Chegou o Padre Manoel de Nol)rega de Pernambuco á cidade da
Bahia no mez de Março de V')o'2, e visitando o pequeno reljanho de seus
G8 LIVRO I DA CHROMCA DA COMPANHIA DE JESU
Religiosos, achou que tinlião não só conservado, mas muito augmentado o
estado das cousas espirituaes, entre os Portugueses, e índios. Acliou com-
tudo que cstavão sentidos de que como erão em grande quantidade, nuo
podião acudir-lhes como quizerão cm todas as aldeãs com a frequência de
missas, pregações, e doutrinas, de que já estavão capazes. Era principio
de Quaresma, e como se viera mui folgado da missão, e viagem de Per-
nambuco, se oííereceo (supposto o não ser tão versado na lingoa dos índios)
tomar á sua conta as missas conventuaes, pregações, e confissões de todos
os dias de guarda daquelle santo tempo, assi da nossa Igreja da cidade,
como de Yilla-velha; porque assi podessem ficar desoccupados os lingoas,
que havião de acudir ás aldeãs. O que cumprio á risca, e não sem grande
edificação do povo. No dia santo pela manhãa dizia missa na nossa Igreja da
cidade; depois delia, pregava, e confessava até certas horas: e logo a pé com
seu bordão na mão (por haver então falta de Sacerdotes) hia a Yilla-velha,
dizia missa outra vez, e ditta ella pregava, e confessava até mais não ha-
ver. Oh se houvera em todos os Collegios muitos d'estes obreiros! O cer-
to he que todas estas difliculdades facilita o zelo verdadeiro da salvação
das almas.
114 N"esta necessidade de obi'eiros acudio o Ceo, com a chegada de
Dom Pedro Fernandes Sardinha, primeiro Bispo do Brasil, que trouxe com-
sigo alguns Sacerdotes, Cónegos, e Dignidades, pêra formar sua Sé e Igreja
Cathedral n'esta cabeça do Estado, na forma que tocámos no principio do
anno de 15o0, onde só reparámos no anno, que pelas razões abi dittas
averiguámos ser este, e não aquelle. Foi este Prelado varão insigne em le-
tras, e virtude, affamado pregador de seus tempos: estudara na Universi-
dade de Paris, onde se agraduou de Doutor: foi mandado á índia com o
offlcio de Vigário geral, e pelo bem que nelle se jiouve, mereceo ser elei-
to Bispo do Brasil, por líll-Rei D. João o Terceiro. Era dotado de grande
zelo do servjfo de Deos, e das almas; e nelle tiiihão posto os olhos, e es-
peranças os moradores de sua Diocese. Se não que envejoso o inimigo com-
mum do bem das almas, traçou como se reduzisse a breves annos sua
vida com morte deshumana, de que no anno de 1556 tocaremos huma bre-
ve noticia. Tinha grande conceito do procedimento dos Padres da Compa-
nhia, de cujos traltalhos desejava ajudar-se em suas obrigações pastoraes.
Logo que chegou á Bailia, com beneplácito do Padre Nóbrega, despachou
provisão ao Padi-e António Pires, que tinha ficado em Pernambuco, pêra
que visitasse cm seu nome aquella Diocese. Aceitou a coinmissão por obe-
DO ESTADO DO BRASIL (aNXO DE l."."2) 69
(Vioncia, c foz o oíficio com grande prudência, dando remédio a muitos ne-
gócios, que parecia impossivel acabarem-se em tempos tão licenciosos; tu-
do com grande satisfação c agradecimento do Bispo. Feita esta visita, foi
mandado vir á Bali ia o mesmo Padre, assi pêra dar conta ao Prelado do já
obrado, como pêra que com sua nova informação se dispusessem em me-
Uior forma as cousas daquella Capitania.
lio N'este meio tempo, cm que as aldeãs da Bahia começavão a fio-
recer, sobreveio hum açoute, que juntamente foi castigo de màos, e aílicção
de bons: acendeo-se quasi de repente huma como peste terrivel de tosse,
e catarro mortal, sobre certas casas de índios já bautizados, mas pouco lem-
brados das obrigações christãas, dados ainda, com publico escândalo, a seus
antiguos vicios; e com evidentes sinaes, (jue vinha do Ceo destinada a es-
tes; porque somente elles morrião, com todos seus filhos, e famílias, não
tocando a peste nos bons, e tementes a Deos. Porém d'este açoute, com
que o Ceo quiz tirar a emenda de huns, pretendeo tirar Satanás a ruína
de outros: e foi assi. Metteo na cabeça áquella gente rude, que a tal doen-
ça era causada pelos Padres;, porque onde quer que punhão a mão, por
meio da agoa, com que lavavão os corpos, punha a peste seu rigor. E foi
tão de veras, que o pobre povo ignorante, levado do embuste, começou
logo não só a fugir, mas como a benzer-se dos Padres; os catecumenos de
seus instructores, e os discípulos (V3 seus mestres, como se forão huns dia-
bos: o mesmo ora vel-os em hum caminho, que voltarem por outro. Che-
garão a usar do ultimo remédio, que quando ouvião que havião de vir por
hum caminho, ajuntava-se toda a communidade, e nelle queimavão pimen-
tas, e sal pêra retol-os, e como esconjural-os, não fossem por diante, se-
gundo costumavão fazer por ritos antiguos de sua gentilidade, quando que-
rião afugentar ináos prodígios, pestes, ou animaes nocivos: c não podião
chegar a mais.
110 Porém esta infernal invenção desfez em vento o mesmo successo
contrario. Tt)mavão os Padres por remédio ir correndo as casas dos doen-
tes, levando comsigo os meninos innocentes de sua doutrina, cantando La-
dainhas dos Santos, e benzendo os enfermos com agoa benta. E como com
esta santa ccremonia somente, vissem os índios, que se levantavão algims
sãos (ou pela fé (faíiuclies innocentes, ou pela dos enfermos) pasmavão de
tão repentina mudança, foi^mavão conceito dos Padres, e desmentião com
estes casos a falsidade do aleive contrario. O caso mais urgente foi, (|ue
oílereceo huma destas ald(3as aos Padres hum menino desconfiado j;i da
70 LIVRO I DA CíIRONICA DA COMPANHIA DE JESU
vida : ora este íillio de gentio, ])edirão licença ao pai pêra baiitizal-o, e
deo-a de má vontade, mas com effeilo venturoso; ponjue o mesmo foi ser
molliado na agoa do bautismo, que entregar-ilio vivo, e são. E com este
ultimo caso, espanto de toda aquella casa, se acabarão de convencer, pedirão
perilão, e vierão oíTerecer-se aos Padres, como a pais, e mestres verdadeiros.
117 Visitou mais o Padre Nóbrega sobre aquelle rol antiguo dos vicios
dos índios, que dissemos fizera, como também dos Portugueses, pêra que
repartidamente tratassem de desarreigal-os : e conhecendo-se notável me-
lhoria em todos os mais erros, só no abominável abuso da carne humana,
não estavão seus protectores satisfeitos; porque achavão convencidos a mui-
tos, ainda dos já bautizados, com escândalo, e tentação dos outros, tanto
mais forte, quanto mais este vicio he n'elles quasi natural: e vião que esta
vinha a ser a porta mais fácil do inferno, que tinhão de presente os índios.
Ficou magoado o Padre Nóbrega, e querendo pôr em consulta o remédio,
entrou o fervor em hum dos companheiros (segundo conjecturo, devia ser
o Padre Navarro; porque he este o metal de suas traças, e não pude achar
quem trouxesse nome expresso:) tomou logo debaixo da sotaina huma dis-
ciplina, e veste, e foi a fazer-se penitente, correndo as aldeãs na maneira
seguinte. Chegava á primeira aldeã vestido naquelle sacco de supplicio,
passeava huma e muitas vezes seu terreiro, e o arredor de suas casas,
quando mais cheas de moradores, com a disciplina na mão desfazendo-se
em sangue, até tingir a veste, e molhar a terra. Pasmavão os índios de por-
tento tão novo, ajuntavão-se a ver o que nunqua virão; e os que tinhão
mais sinaes de razão, compadecião-se, e pedião ao Padre não quizessema-
tar-se por suas mãos, e lhes dissesse que he o que pretendia com acto tão
cruel? Então respondia o penitente, levantando a mão ao Ceo, e junta-
mente a voz quanto podia: «Que o intento daquelle acto era applacar a ira
divina, que sabia estava aparelhada pêra descarregar sobre aquelles, que
sendo já filhos dos Padres, e ensinados em sua doutrina, continuavão o in-
fame vicio do appetite da carne humana; de que já era o primeiro aviso,
a grave doença que tinhão padecido.» O mesmo fazia na segunda, terceira,
e mais aldeãs: até que os pobres delinquentes, entendendo que era desco-
berto seu crime, e que eia causa de tanto damno, cheios de terror e es-
panto sahirão a publico, pedirão perdão, e assentarão cbm lei penal entre
todos de não tornar a vicio semelhante, sob pena de serem gravemente
castigados. E não ficou em vão a promessa : porque correndo os meninos
do Recolhimento as casas dalli em diante (costume seu) pêra testemunhas
DO ESTADO DO BRASIL (aN.NO DE Vi^i^) 71
(la oljservancia creste preceito, raros erão os que acharão comprehendidos
na pena da lei que propuserão.
118 O Seminário, ou Confraria dos meninos fdhos dos índios, c mes-
tiços, ia em crescimento maravilhoso. Tinha cuidado delle o Padre Salva-
dor Rodrigues, com cuja doutrina fkjrecia com louvor de todas as virtudes.
Sahião em procissões todos juntos pela cidade, cantando as Ladainhas, e
orações da doutrina christãa em canto de solfa, com tal modéstia, e reli-
gião, que levavão os olhos de todos: c começavão a pretender os Portu-
gueses aggregar seos filhos a clles, pêra sahirem bem doutrinados. Outras
vezes hião em procissão da cidade até suas próprias aldeãs, levando sua cruz
levantada, e cantando as mesmas devações em lingoa brasílica ; com sum-
mo gosto e alegria dos pais, que de nenhuma cousa mais se prezavão. Ne-
nhuma outra satisfaz tanto a esta gente, como a doçura do canto : n'ella
põe a felicidade humana. Chegou a ser opinião de Nóbrega, que era hum
dos meios, com que podia converter-se a gentilidade do Brasil, a doce har-
monia do canto; e por esta causa ordenou se lhe pusessem em solfa as ora-
ções, e documentos mais necessários de nossa santa Fé; porque â volta da
suavidade do canto entrasse cm suas almas a intelligencia das cousas do Ceo.
Succedeo, que dirigirão certo dia sua procissão a casa de hum Principal de
grande nome, amigo dos (^hrislãos, mas Gentio ainda. Tinha este huma fi-
lha sua doente, e desconliada da vida : hum dos meninos entrou em zelo,
e com fé disse ao pai, que sua filha logo havia de sarar : cUe o disse, e o
pai o vio; porque fazendo o menino, e os companheiros suas orações sobre
a enferma, melhorou logo, e sarou brevemente; de que ficou espantado o
Gentio, e tão contente do successo, que desde logo olíereceo aos próprios
meninos hum filho seu, a quem queria muito, pêra que ellesoinslruissem
n*a(iuella doutrina dos Padres, qu(j ensinava a fazer maravilhas: fizerão-no
ellcs melhor do que Ih.) encommendára o pai, e em breve tempo o bau-
tiz;irão, e aggregarão ao mais numero de seu Seminário. Chegava a ser
demasiada a ((piniãu (jue se tinha d'esl(!S meninos entre os Índios; poi-fjue
os respeitavãíj como cousa sagrada : jienlumi ousava obrar cousa alguma
roulra sua vontade, crião no que dizião, e cuidavão que nV.'l!es estava posta
alguma divindade: até os caminhos enramavão, por onde havião de pas-
sai'. Foi finalmente tão applaudida a traça ilesle Seminário, que á imitação
delle levantarão os Portugueses outros em diversas i)(jvoações, pedindo aos
Padres alguns dos meninos jxti- mestres delles, assignando renda, que bas-
tava i>era o su;tenlo de lod(js,
/2 LIVRO I T)\ CIIRONICA DA COMPANHIA CE JESU
120 N'éste tempo aprestava o Governador geral, por ordem d'El-Rei
vinda de Portugal, liuma missão em descobrimento de certas minas do ser-
tão da banda do Sul da P>aliia, distante mais de 200 legoas (segundo con-
jecturo, éra ehtrè a Capitania do Espirito santo, e Porto seguro, pela terra
dentro:) mandava luima tropa de soldados sertanejos, capazes de aturar
aquellas asperezas. Ao som do tambor d'esía leva não aquietou o espirito
do bom Padre Navarro : era seu animo converter a gentilidade do Brasil
toda, e des que viera a elle suspirava pela que estava escondida, e remon-
tada por essas brenhas, aonde não podia chegar. Agora que vê esta porta
aberta, abraza-se em desejos, pede ao Padre Nóbrega se aproveite da occa-
sião, e o mande a elle com titulo de Capellão d^arpiella gente em busca de
almas (pois outra semelhante não se acharia facilmente) e a explorar aquel-
les sertí5es, e denunciar por elles a Fé de Christo: e que por esta via se
fazião dous serviços, juntamente a Deos, e ao Rei, que não tinha Capellão
que mandar.
121 Agro pareceo ao Padre Nóbrega o haver de laj-gar hum tão grande
obreiro de si, e dos índios presentes, pelos futuros, distantes, e incertos:
porém concordavão no mesmo zelo estes dous varões, aos quaes parecia mui
pouca a gentilidade da Bahia pêra seu grande animo. Encommendou Nóbrega
o negocio ao Geo, e houve de conceder-lhe licença, entrevindo também
pêra isso petição do Governador por parle do serviço d"El-Rei. Havida esta,
partio á empresa Navarro, explicada primeiro a condição de seu intento
principal, que era o das almas, que á somÍ)ra dos mesmos soldados deter-
minava conduzir. Achou n'essa empresa o servo do Senhor o que desejava
seu espirito, porque erão aquelles sertões ainda virgens, intrattaveis a pés
de Portugueses, diíTiculíosissimos de penetrar; era necessário abrir cami-
nho á força de braço: erão continuas as alagoas, e rios; o caminhar sem-
pre a pé, e pela mór parte sempre descalços; os montes fragosissimos, as
maítas espessas, que chegavão a impedir-lhes o dia. Entre todos estes tra-
balhos muitos desfallecião, e muitos acabavão a vida por essas brenhas: po-
rém entre tão grandes necessidades não desmaiou nunca o grande coração
de Navarro, pêra grandes empresas criado : animava aos fracos, servia aos
doentes, dava sepultura aos corpos dos que morrião, e todas estas misé-
rias, doenças, e m.ortes chorava como próprias; e fazião tanto effeito n'elle,
que chegou a não poder ter-se em pé de fraqueza; porque (qual outro
Apostolo das gentes) com os fracos enfraquecia,, e com os enfermos, enfer-
mava.
DO ESTADO DO BRASIL (aNXO DE loSS) ÍZ
122 Chegados por fim ao termo da viagem, os soldados não descobri-
rão os haveres que bnscavão, ou por folta de guias, ou por traça do Ceo.
Descobrio porém Navarro seu thesouro, teve falia de muitas nações de gen-
te, ás quaes pregou a doutrina de Christo, que todos ouvião de boa von-
tade; mas nem todos a podião seguir, assi pela pressa que a tropa levava,
como porque nem todos entendião a lingoa, e por outras razões. Trouxe
com tudo grande quantidade de almas, que vierão rompendo as mattas, até
saliir ao mar, na Capitania de Porto seguro, onde Navarro os assentou em
aldeã: por cuja causa, e pela fraqueza, e achaques, com que se sentia, se
ficou alli até nova ordem dos Superiores. Fazem menção d'esía missão do
Padre Navarro o Padre Nicoláo Orlandino no livro 13, n.° 71 das Chroni-
cas da Companhia, e o Padre Balíhasar Telles tom. i, liv. 3, cap. 9 das
Clironicas de Portugal; e algumas lembranças que achei de apontamentos
antigos; nenhum com tudo declara o tempo d'ella : porém como por outra
via consta que no principio do anno seguinte de 1353 se avistou o Padre
Nóbrega com elle em Porto seguro (como logo veremos) fica provado que
foi a partida no anno de 1332 em que a escrevemos. '
123 Pelos fins d'este anno a dous de Dezembro aconteceo o transito
sentidíssimo, se bem gloriosíssimo, do maior dos Missionários da Compa-
nhia, Pregador das gentes Indianas, Apostolo do Oriente, o Santo Padre
Francisco Xavier. Com razão causaria grande abalo nos Missionários d'esta
província o echo d'esta nova inesperada; porque era único exemplar este,
a cuja medida oljravão, e com cujos augmentos crescíão, animados com a
semelhança da empresa, e mais com a excellencia das obras. Porém não faltará
nunqua que imitar n"aquelle portento de obreiros Evangélicos; porque se a
morte invejosa lhe abbrcviou o tempo, a vida prodigiosa deixou exemplos,
que podem estender-se a longos séculos, e a todos os obreiros do mundo.
Em breve termo, não mais que de onze annos, correo trinta mil iegoas
por aquellcs novos reinos do Oriente, a pé, talvez descalço, pegado á cauda
dos cavallos, com os ornamentos ás costas, em busca de almas. Convertco
doestas numero sem conto, derribou templos de Gentios, destruio conven-
tos de Bonzos, lançou por teira (juarí-nla mil Ídolos, edificou Igrejas innu-
meraveis, e l)autizou por suas mesmas mãos hum millião e quasi meio de
ÍFiíieís. E baste por rnaíor elogio d'esle grande Apostolo do Oriente, o que
diz d'elle Bossío, autor gravíssimo, que fez mais fruto n'a(]uel!a gentilidade
elle só n'estes onze annos ainda não cumpridos, do que foi o damno que
lizerão os Hereges uo resto do mundo por espaço de mil e cjuinhcutos
y4 LIVRO I DA CIIRONICA DA COMPANHIA DE JKSlT
ílosde a vinda de Christo até o tempo de sua ])régaf'ão. Confundio os Bra-
cmeries, os Cacizes, os Bonzos, qual outro Apostolo S. Paulo, entre enfer-
midades, trabalhos, necessidades, perigos, naufrágios. Foi três vezes sub-
mergido das agoas, pei'seguido de infleis, ladrões, demónios, falsos irmãos,
tido por louco, afrontado, entregue a assassinos, apedrejado: e depois de
fazer nos elementos todos prodigiosas maravilhas, abalar a terra, armar o
ar, refrear o fogo, e amansar o mar; depois de em todas as criaturas obrar
portentosos milagres, dando vista a cegos, saúde a enfermos, vida a mor-
tos; á vista do vasto Império da China, aonde pretendia entrar, qual outro
Moysés á vi6ta da Terra da promissão, arrebentando em puras saudades do
Ceo em summo desemparo de todas as cousas humanas, na ilha de San-
cháo, em huma pobre choça de ramos, e torrões, rota, e aberta ás inju-
rias do tempo, em Imma sexta feira, era de 1532, dezannos, settemezes,
e quatro dias depois de haver entrado na Iiulia, aos oo de sua idade, com
lium Crucilixo em as mãos, e os nomes de Jesus e Maria na boca, entre-
gou a alma ao Senhor, que pêra tanta perfeição a criara. Celeijrárão os
Missionários d''esta [)rovincia, entre plantos e alegrias, suas exéquias, na
maneira que erão devidas a virtude tão rara; e ficarão-lhes estas mortas
lembranças servindo de vivos espertadores pêra melhor obrar.
124 Entrava o anno do Senhor de 1553, e era tempo de que o Padre
Nóbrega fosse visitar os princípios da Christandade, que tinhão lançado em
S. Vicente os dous obreiros que alli mandara, assi por zelo, como por of-
ficio. Partio em Janeiro do corrente anno em companhia do Governador
geral Thomé de Sousa, que n'este tempo foi visitar toda a costa do Sul.
Levou comsigo o Padre Francisco Pires, e quatro órfãos, que tinhão vindo
de Portugal, e vivião á doutrina dos Padres, pêra aggregar ao Seminário.
Foi correndo as Cai)itanias: na dos Ilheos, no breve tempo que alli esteve,
levou os olhos de lodo aquelle povo o zelo de suas pregações, e pedio-lhe
assistência de Padres. Na de Porto seguro achou o zeloso Padre João As-
pilcueta Navarro, que, como dissemos, tinha mandado ao sertão em com-
panhia de huma tropa de soldados, e se havia recolhido á(:{uella villa, e
n"ella linha obrado cousas grandes, segundo seu espirito : do qual ediíicado
p.edio o povo com instancia fundasse alli residência ; e alcançou promessa
de Nóbrega (sendo também medianeiro a isso o Governador Tljomé de
Sousa, que desde logo destinou lugar pêra casa, e Igreja). Na Capitania do
Espirito santo achou já casa, e Seminário de meninos da nossa doutrina, a
que presidia o Padre Affonso Braz, com bua criação d'aquellas tenras plan-
DO ESTADO DO DUASIL (aNNO DE í^io^) 7S
tns, e ajuda do Portugueses, o índios. Visitou, c deu ordens do que se
devia fazer.
125 Do porto do Espiíito santo partio a frota do Governador, e foi
avistar o Rio de Janeiro: não entrou porém esta da barra pêra dentro, por
ter noticias que eslavão de guerra os naturaes da terra, c não consentião
commercio de Portugueses : pelo que proseguio a viagem a S. Vicente, em
cuja costa teve vários contrastes; porém o ultimo foi perigosíssimo, porque
a pouca distancia do porto se levantou de improviso huma terrível tem-
pestade, com cuja fúria chegarão alguns dos navios a ponto de perder-se;
e com effeito, por juizo occulto do Alto, o em que hia o Padre Nóbrega, ú
vista de todos foi ao fundo : porém (cousa maravilhosa, e ao que parece
traçada pelo Ceo) vindo este servo do Senhor com mui poucas forças do
largo trabalho da viagem, em que lidara de dia, e de noite no bem das al-
mas de toda aquella frota, e não tendo iisò algum de nadar, foi visto an-
dar sobre as ondas com grande assocego (que tem os varões justos pre-
sente sempre o auxilio divino, tanto na terra, como no mar) até que houve
occasião, em que lançados liuns índios ás ondas o tomarão em braços, c
puserão a salvo na terra de lium ilhote que alli faz o Oceano: a este o vie-
rão depois buscar, e foi levado á villa de S. Vicente pelas ruas e praças,
com appiauso do povo, e cidadãos, e não menor alegria dos Padres, que
o receberão com Te Dexim laudamus, como a homem concedido do Ceo.
12G Porém nem ainda pêra os justos ha nesta vida inconstante, alegria
segura. Aconteceo aqui huma semelhança da variedade, com que os homens
do povo Judaico trattàrão a Christo em dia de Ramos. Aquelle famoso João
Ramalho, homem rico na terra, mas infame nos vicios, amancebado publi-
co i)or quasi quarenta annos, c de ordinário por essa causa escommunga-
do (cujos filhos dissemos acima intentarão pôr as mãos no servo de Deos
Leonardo Nunes) lembrado agora de seus antiguos ódios, c tendo ainda
vivo em seu peito o aggravo que cuidou lhe íizera o Padre, quando o man-
dou avisar se sahisse da Igreja, i)í)rque presente elle não podia exercer o
sacrifício do altar, por estar censurado: entre as alegrias, e parabéns, com
que o povo recebi» ]ior hospede o Padre Nóbrega, andava elle com a ca-
terva de seus filhos, muitos em numero, e todos de má casta, Mamalucos
i Ilegítimos, e desalmados, com arcos, frechas, e gritarias, fazendo gente, c
desinquietando a villa contra os Padres, espalhando de alguns delles crimes
péssimos, e indignos de seculaies, quanto mais de pessoas religiosas ; e
76 I.IVUO I DA CimONICA DA COMPANHIA DF> JESlT
(Vestes mesmos furão accusados por elles ante o mesmo Padre Nóbrega,
porque todos injuriassem de hum golpe no dia de seus maiores vivas.
127 Ouvio o humilde servo de Deos envergonhado, e postos os olhos
em terra, a accusar-ão; e tomou nella huma resolurão digna de sua pru-
dência, e zelo. Respondeo, que faria justiça: mas logo, ponjue visse o mun-
do o zelo com que a Companhia cria seus súbditos, e a severidade com
que castiga aos que acha defectuosos; e porque outro si o accusador era
homem tão conhecido, e tinha espalhado no povo as propostas calumnias;
mandou sahir de casa primeiro que tudo os Religiosos calumniados; que
vinhão a ser, o Padre Manoel de Paiva, Francisco Pires, Manoel de Chaves,
e alguns Irmãos: e poz em juizo diante do Vigário geral a decisão do caso,
mandando cpie as partes o provassem, e se julgasse severissimamente ; por-
que se erão taes os calumniados, não servião á Companhia; e se o não erão,
seria justo que o mundo soubesse as invenções daquelles homens apaixo-
nados. Fez-se assi, tirárão-se as testemunhas da mór parte do povo; po-
rém nellas tirarão os accusadores hum libello dilfamatorio de suas mesmas
vidas; porque conformemente os • condemnárão todas de homens desal-
mados, sol)erbos, vingativos, calumniadores; c aos Religiosos abonarão de
servos de Deos puros, limpos e exemplares. Publicou-se a sentença, forão
restituídos a sua casa com applauso, e acompanhamento de toda a villa, e
louvor dobrado (rpie assi sabe o Ceo acudir por seus servos, e confundir
os que o são de Satanás.) Foi semelhante aqui a prudência de Nóbrega,
á com que Santo Ignacio fez que fossem julgadas as calumnias que outros
homens apaixonados impuserãõ a seus companlieiros (que não he nova na
Companhia esta contradição do inimigo do bem das almas.)
128 A pi-esumpção temerária daquelles accusadores, ao que se pôde
colligir, foi a seguinte. Considerado entre os Padres quão grande impedi-
mento era á salvação das almas da gentilidade, a falta de lingoas do Bra-
sil, que com destreza lhe explicassem o Evangelho; determinarão metter
em casa alguns mestiços filhos de índias, pêra cpie provados primeiro em
a doutrina religiosa (aproveitando) fossem recebidos na Companhia; e quan-
do não, servissem pelo menos de interpretes. D'estes havia alguns recolhi-
dos, quando chegou a visitar o Padre Nóbrega, occupados em serviço da
Casa: e como não erão da Companhia, sahião algumas vezes fora. D'estas
sabidas vierão a sentir mal, e recear-se os Mamalucos accusadores, que
devião cuidar hião a suas casas, ou de seus interesses (e erão todos da
DO ESTADO DO BRASIL (aNNO DE 1553) 77
mesma casta, e relê) e como tiiihão paixão cora os Padres, impuserão-lliiís
os crimes dos mestiços.
129 Porém aqui he digno de notar o siiccesso de hum doestes mesti^
ços. Tirada severa informação, achou o Padre Nohrega, qne delinquira:
convenceo-o, exagerou-lhe a culpa, e a pureza da Companhia, em cuja ca-
sa estava; e depois de feito capaz, disse-llie assi: «Irmão meu, a fealdade
dopeccado que commetestes, e o aggravo que com elle fizestes á Compa-
nhia, só pôde salisfazer-se com que sejais enterrado vivo : tende paciência,
pedi perdão a Deos, confessai, e commungai; porque ámanhãa a taes ho-
ras se ha de ahrir sepultura na Igreja, e se vos ha de fazer oííicio, e cantar
missa de defuntos, e haveis de ser enterrado vivo. » Começou a tremer o po-
bre mestiço; e como conhecia a inteireza, e resolução de Nóbrega, deo-se
por acabado : confessou, commungou, e ao tempo assinalado dobrárão-se
os sinos, celebrou-se o Officio de defuntos, e disse a missa o Padre Manoel
de Paiva de corpo i)resente amorlalhado (suspensa ao tal espectáculo mui-
ta gente Portugueses, e índios, e ainda parentes do penitenciado :) e sendo
acabado o Officio, e Responsorio ultimo (como he costume) foi botado na
cova, e depois de alguma terra em cima lançou-se de joelhos o Irmão Pe-
dro Corrêa (que só sabia em segredo a intenção de Nóbrega) pedindo com
lagrimas perdão por aíjuelle peccador, de quem já podia esperar-se que vi-
viria como resuscitado dalli em diante. Ao Irmão seguirão todos os pre-
sentes; a cujos rogos o Servo zeloso, que não pretendia mais que metter
espanto, e mostrar a pureza da Companhia, usou de misericórdia, e man-
dou que fosse desenterrado, e desamortalhado, deixando-o livre, porém
despedido da companhia dos Religiosos, que dalli em diante se abstiverão
de receber semelhante gente, nem ainda í)era o serviço da Casa. E ficou o
sujeito presente por toda a sua vida com o nome de Fulano da Cova,
130 Compostas estas cousas, vendo Nóbrega (pie a conversão dos ín-
dios hia mui devagar, não só por razão de sua rud(!za, mas principalmente
por razão das conlentlas, e (jdios dos Portugueses, que pi'elendião catti-
val-os sem titulo algum justo, o erão causa de desassocego a elles, e aos
Padres: e sobre tudo considerando os obstinados ânimos de muitos pecca-
dores escandalosos puljlicos, (pie não deixavão com sua devassidão melho-
rar o rebanho do Senhor; encomendando primeiro o negocio a Deos, com
o fervor de seu costumado zelo, determinou ir-se pelo sertão dentro como
cem legoas, busear lug;ir acconimodado, e fundar de novo hum j»ovo prin-
cipiado em sinceridade, e verdadeiía religião, e amor de Chrislo, Favore-
78 LlVnO I DA CHRO.MCA DA COMPANHIA DE JICSÚ
cião os votos dos companheiros, c trattava já de apresto; quando chegando
a resolução á noticia do Governador, impeíUo o eíreilo com todas as véras>
por largas razões, parte christãas, c parte politicas. Tinha recebido por no-
viço pouco havia o Irmão António Rodrigues, homem que havia sido solda-
do nos partes do Paraguai, e mui versado nos costumes da gente Carij(3,
entre a qual estivera muitos annos. A este tomou por companheiro, e com
mais alguns cathecumenos dos índios de Pirátinínga, ao menos entrou pelo
sertão como quarenta legoas até a aldeã de Japyuba, ou Maniçoba, a fim
de fazer experiência do que trazia em seu pensamento. Fez aqui huma pe-
quena Igreja, e começou n'ella a ensinar a doutrina christãa, dando prin-
cipio a huma residência, que continuou alguns annos, com muito fruto da-
quellas almas, principalmente de innocentes, e bautizados in extremis, que
com a graça d'aquelle sacramento voavão ao Ceo.
131 Á fama d'este grão zelo de Nóbrega, mui conhecido pelos sertões
do Paraguai (nos quaes era chamado Barcaclué, que vai o mesmo que ho-
mem santo) se aballárão grandes levas de Carijós em busca d'elle, pêra se-
rem doutrinados na aldeã já ditta, que ficava mais perto; pois não forão
tão ditosos que tivessem eíTeito os desejos que o Padre tivera de ir a suas
terras, donde fora chamado por elles tantas vezes. Era este hum grande
principio pêra os intentos de Nóbrega; e parecia-lhe que por aqui abria o Ceo
caminho áquella gentilidade tão desamparada. Senão que as traças de Deos
erão outras: mostrou-as hum caso lastimoso, ainda que por outra parte feliz.
E foi, que indo chegando esta gente á desejada aldeã, foi á traição acommet-
tida dos Tupis seus contrários; roubados, feridos, e mortos muitos d'el-
les: mas não sem esperança grande de salvação, pelo que então se publicou,
que quando os estavão matando seus contrários, dizião, como em fé do sa-
grado bautismo, que desejavão, e yinhão buscar: «Matai-nos, e comei-nos em-
bora como cães; que nossas almas hãode ir ao Ceo, áquelle lugar que os Pa
dres ensinão.» Ditoso esquadrão! Semelhante foi sua resolução á dos an-
tiguos e esforçados Machabeos, quando, segundo sua Historia do liv. 2, cap.
7, derão as vidas temporaes com alegria, protestando a firme esperança que
tinhão da eterna.
132 Sentio por extremo o Padre Nóbrega este successo; mas punha a
confiança em Deos, que sabe bem o tempo, e hora da salvação dos que tem
escolhido. Alguns Castelhanos vinhão em companhia dos dittos Carijós: es-
tes ao tempo do combate, como erão poucos, e hão podião resistir-lhes, se
acolherão pelos ma t tos; dos quaes, passada a fúria dos bárbaros, vierão
DO ESTADO DO ItRASIL (aNNO DE 15í).3) 7Ó
liiins ter á aldeã de Maniçoba, c alli forão recolhidos com toda a cliaridade
<1<) Padre António Pires: outros cahírão nas mãos dos inimigos, que os giiar-
davão porá ostentação do seus arcos, e pasto de sua gula depois quo fos-
sem gordos, segundo seu costume bárbaro. Porém sai)endo do successo
miserável d'estes pobres homens, o Padre Nóbrega, não lhe sofreo o cora-
rão deixal-os perecer: mandou o Irmão Pedro Corroa a Paranâitú por em-
l)aixador seu aos Tupis; e por seu respeito, e pela eloquência, e zelo com
qne o Irmão lhes soube ííillar, lhe mandarão de presente todos os Caste-
lhanos: cousa bem digna de espanto a quem sabe o grande empenho d'es-
tes bárbaros em qualquer seu prisioneiro, quanto mais em pessoas de conta,
133 N'este tempo instituío o Padre Nóbrega a Confraria chamada do
IMenino Jesu (como já na Bahia instituirá outra, e outra achara no Espiri-
to santo) por virtude de bulias pontifícias, que pêra isso houve; aggregan-
do a ella aquelles moços órfãos, que tomos ditto vierão do Reino á sombra
dos Padres; com intenção do fazer d'elles dignos obreiros da vinha do Se-
nhor: e juntamente os meninos filhos dos índios, que o Padre Leonardo
Nune^ havia congregado: porá que todos em boa conformidade se crias-
sem na doutrina da Fé, e aprendessem a ler, escrever, e contar: e os ór-
fãos além do sobreditto aprendessem a lingoa brasílica, e os lilhos dos
índios a portuguesa.
134 Tomado já o pulso á terra, e vendo Nóbrega quão larga porta se
abria ifella pêra os hitentos da Companhia, no grande numero de i)ovoa-
ções Portuguesas, que cada dia se hião levantando, e na immensidade do
ahuas de varia sorte de gentilidade, (pie estavão gritando por remédio :
determinou ficar-se alli com demora, antes mandar chamar á Bahia mais
numero de obi'oiros, que viessem a ajudar ifesta seara. Porá este eíTeito
partio o Padre Lotjnardo Nunes, i)ossoa de tanta confiança, como temos
mostrado, e mostra também a importância do negocio a que he mandado.
Porém não monos caso fez o Coo d"esta traça de Nóbrega; ponjue n"aquello
mesmo anno em 13 do inez de Julho chegara á líahia o mais importante
soccorro, que até então vira, nem por ventura veria dei)ois, a Comi)anhia
do Brasil. Erão sette sujeitos, e estes de maneira, que promettião ser sette
cabeças contrarias aos sette vicios ])rincipaos. Era o i)rimeiro, e por então
Superior de todos, o Padie Luiz da Crain, Uoitor que fora do Collegio de
(íoimbra (o maior ria província de Portugal) e cedo veremos Provincial
(Fosta: tão venerado, e dota(h) do Coo em talentos da natureza, v, graça,
que dará bem que fazer a nossa penna. Erão os outros dous Saci'idotes, o
80 LIVRO I DA CHRONICA DA COMPANHIA DE JESU
Padre Braz Lourenço, e o Padre Ambrósio Pires, e quatro Irmãos, João
Gonçalves, António Blasques Castelhano, Gregório Serrão; e sobre todos,
como entre planetas, aquelle que foi sol da America, luz da gentilidade, glo-
ria de seus irmãos, honra da Companhia, e exemplar de Missionários ;
aquelle que só podia fartar os desejos de Nóbrega, o grande Joseph de
Anchieta, assas conhecido hoje no mundo por portento de santidade, se-
gundo Taumaturgo de maravilhas, e Apostolo d'este novo orbe : cujos lou-
vores em particular agora callo, porque quero primeiro seguir seus pas-
sos, e notar suas obras, pêra depois fallar por junto em singular volume,
se primeiro Deos, ou a obediência não disposcrem de mim, ou de minha
pemia.
135 Partira de Lisboa este tão grandioso soccorro no anno corrente de
1553 a 8 de Maio, em companhia de D. Duarte da Costa, fidalgo illustre,
filho d'aquelle D. Álvaro da Costa, Embaixador que foi d'El-Rei D. Manoel
ao Emperador Carlos Quinto, e grande amigo da Companhia. Vinha por
Governador geral, o segundo d'este Estado. Chegarão a lançar ferro na Ba-
hia de Todos os Santos no dia referido de 13 de Julho do mesmo anno,
com alegria dos que vinlião, e dos que esperavão, costumados a ver todos
os annos Armadas de seu Rei.
136 Bem sei que dizem alguns que foi esta partida e chegada do Go-
vernador D, Duarte da Costa (e por .conseguinte do nosso soccorro) no anno
de 1552. Assi o tem Pedro de ]\Iaris, de Varia historia, Dialogo 5, cap. 2.
E o que mais he, que o livro dos assentos d'este Collegio da Bahia, em
que se escrevem por ordem de annos, e dias os Missionários que vem pêra
esta província, tem assentado a vinda dos presentes no anno de 1552, o
que revela foi erro de computo, ou de penna; cpie achei também em ou-
tras lembranças de mão antiguas, fundadas todas (ao que parece) no ditto
assento. E que seja erro, averiguei claramente por outro assento mais certo
do Padre Joseph de Anchieta, que como vimos, foi hum dos que chegarão
em companhia de D. Duarte, e tem de sua própria letra em partes diver-
sas de seus Apontamentos pagina 37 e 38, que foi esta chegada no anno
de 1553, partindo de Lisboa em companliia do segundo Governador D.
Duarte da Costa, a 8 de Maio; e chegando á Baliia a i3 de Julho do ditto
anno. O mesmo seguem Nicoláo Oiiandino nas Chronicas gerães da nossa
Companhia, liv. 13, n.° 68, e o Padre Estevão de Paternina na Vida do
Padre Joseph de Anchieta, pag. 23 e 43, e o Padre Balthasar Telles nas
Chronicas de Portugal, part. 2, liv. 5, cap. 6, e outras memorias de mão.
DO ESTADO DO BRASIL (ANNO DE 1533) 81
que vi antígnas. Porém o que tira de todo a duvida, he a diligencia que
fiz no livro antiguo dos Registos da Fazenda Real d'esta cidade da Bahia,
pelo qual consta que D. Duarte da Costa foi provido em Governador doeste
Estado em o 1." de Março de 1553, em cujo assento, etreslado de sua mes-
ma Provisão não pôde haver duvida. E d'esta diligencia ficão confutadas
com mais razão as opiniões de alguns que dizem, que veio no anno de
1556, eque seu antecessor governou sete annos(({iie vem ao mesmo) e tudo
fora da verdade. '-M
137 Forão recebidos os nossos de hum Sacerdote, e dous Irmãos, de
que constava somente nossa Communidade: erão o Padre Salvador Rodri-
gues, e os Irmãos Vicente Rodrigues, e Domingos Pecorela, assi chamado •
por sua estremada candura. Estes erão todos os operários de hum lugar,
onde havia tão grande seara. Começarão logo a pregar, ainda os que nãò
erão Sacerdotes, e a ensinar a ler, e escrever a grande numero de meni-
nos, e grammatica aos mais provectos. O primeiro exemplo que vio no Bra-
sil hum dos Sacerdotes novamente chegados, foi o seguinte. Acompanhou
o Irmão Vicente Rodrigues a huma aldèa de Cíue tinha cuidado, a fim de
bautizar hum Tapuya, cjne os índios d'ella tinhão em cordas pêra matar, é
comer em terreiro com as ceremonias tantas vezes já ditas, e n'esta aldèa
por nova ainda observadas. Tinha o Tapuya custado ao Irmão bem de tra-
balho em o instruir, e estava apto pêra ser bautizado: porém a malicia do
Principal da aldèa, que era Gentio, conjecturando o a cjue podião ir os
. Padres, proliibio aos seus que lhe não dessem agoa; porque tem pêra si
esta gentilidade, que a agoa bautismal eml)ota o gosto ás carnes dos que
com ella são lavados. Ficou admirado o novo companheiro de tanta barba-
ria. Que remédio? Fingirão os dous que comião, e pedirão lhe dessem pelo
menos pêra beber hum púcaro de agoa: mas não pudcrão enganar a sa-
gacidade do bárbaro, o foi-llie negada. Porém não faltou o Ceo com favor
a tão pios desejos; porque acaso passou huma índia vinda da fonte com
bum cabaço grande de agoa: a esta ignorante da prohíbiíj^o pedirão de be-
ber; e em quanto fingia hum d"elles que bebia, ensopou na agoa o lenço;
e foi esta bastante, porque com ella esi)remida sobre o corpo do que ha-
via de padecer, o api^iicada juntamente a fòi-ma daquelle santo sacramento,
mandarão aqiiella alma ao Ceo.
138 Hum mez andado depois da chegada d'este soccorro, passou a me-
lhor vi(Ja na casa da Bahia o Parire Salvador Rodrigues. E foi esta outra
providencia do Ceo; poniue só elle era Sacerdote (como vimos) c a tardar
VOL. I • (i
82 LIYRO I DA CHRONICA DA COMPANHIA DE JESU
mais o soccorro, ficaria em grande falta a casa com dous Irmãos somente.
Foi este Padre o primeiro dos da Companhia, que chegou a gozar o pre-
mio dos trabalhos d'esta penosa vinha. Foi rara sua sinceridade, e obe-
diência : tal, que dizendo-lhe (despedindo-se d'elle pêra S. Vicente) o Pa-
dre Nóbrega, por modo de hyperbole : «Vossa Reverendíssima não morra
em quanto eu não tornar;» recebeo este ditto como preceito de obediên-
cia: e chegando depois ás portas da morte, dava-lhe isto grande cuidado,
parecendo-lhe que não poderia ir ver a Deos sem que houvesse quem o ab-
solvesse d'este preceito : e na verdade teve respeito a morte, que a nada
perdoa, a tão santa sinceridade; porque esteve desconfiado dos médicos
tempo notável, fora do que parecia natural, sustentando a vida, até que
chegou o Padre Luis da Gram, que com poderes de Collateral do Provin-
cial absolveo aquella alma retida em laços de obediência só imaginados; e
o mesmo foi livral-o do escrúpulo, que dar a alma ao Criador. Com razão
lhe chamava o venerável Padre Joseph, homem de simplicidade, e obe-
diência.
139 Varão além d'isto verdadeiramente humilde. Somente elle era Sa-
cerdote (como dissemos) e não lhe foi comtudo pesado ficar debaixo da
obediência, e superioridade do Irmão Vicente Rodrigues, que ainda o não
era. (E que de estrondo podia causar n'outro tempo, e n'outro coração,
esta só sombra de desprezo!) Em todas as^virtudes religiosas foi exemplar;
em todo o género de occupação incansável; em todo o bem do próximo di-
ligente; e em toda a sorte de devação aífectuoso; especialmente devotíssi-
mo da Virgem Senliora Nossa da Assumpção: em nenhuma cousa fallava
com mais gosto, que nos mysterios d'esta sua Mãi. Pagou-lhe ella este
amor com o mimo c{ue muito desejava; e foi desatal-o d'esta vida em seu
próprio dia; depois de padecidos com grande paciência os traballios de sua
enfermidade, cheio de fé, e esperança, recebidos todos os sacramentos da
santa Igreja, espirou no ponto em que o relógio dava a meia noite, que
foi principio do dia da Assumpção do anno presente de 1553 com hum
Crucifixo na mão, e na boca o santo nome de Jesu, e Maria, com grande
consolação de seus Irmãos, que n'este primeiro exemplar da morte toma-
rão animo pêra fazer menos caso da vida.
140 Do novo soccorro forão mandados a Porto seguro o P. Ambrósio
Pires, e o Padre Gregório Serrão (na conformidade da promessa que alli
dissemos deixara feita o Padre Nóbrega, quando passava pêra S. Vicente)
em lugar do Padre João Aspilcueta Navarro, que depois da missão do ser-
DO ESTADO DO BRASIL (ANNO DE 1S53) 83
tâo acima referida, alli ficara debilitado nas forças do corpo. Porém a for-
taleza do espirito d'este servo de Deos era tal, e obrou taes cousas no
pouco tempo que aqui se deteve, que não faria eu bem deixal-as em si-
lencio, por mais depressa que vá escrevendo, por acompanhar o soccorro
tão esperado do Padre Nóbrega. Dizem d'este varão as noticias antiguas,
e o Padre Nicoláo Orlandino na Historia geral de nossa sagrada Religião,
seguindo as mesmas noticias que chegarão a Roma; que n'este lugar obrara
o Ceo muitos prodígios á medida do grande fervor d'este zeloso Padre, e
que aquillo que nos ânimos mal cultivados, e endurecidos d'aquelles ho-
mens não acabava sua palavra, acabavão castigos prodigiosos repentinos do
Ceo : e forão assi. Havia em hum lugar d'aquelles hmna antigua e preju-
dicial contenda, e entre partes obstinadas: tomou Navarro á sua conta des-
arreigar estes Íntimos ódios : não respeitarão elles a pessoa do medianei-
ro : ameaçou elle o castigo do Ceo, e deixou-os. Cousa maravilhosa ! De
repente se vio levantar hum incêndio horrível, que em breve espaço con-
sumio a mór parte das casas do lugar, sem jamais se saber donde viera,
ou donde tivera principio : que pêra Deos haver de castigar hum incêndio
de ódios, julgou que era opportuno outro de fogo. Não pára aqui : n'outro
lugar licencioso em vicios com demasia, pregava o Padre penitencia (qual
em outra Ninive) antes que vissem sobre si o castigo de Deos : fazião ore-
lhas surdas: eis que de improviso se levanta outro semelhante incêndio, e
tão atroz, que sem valerem traças de homens, tornou em cinza quasi todo
o lugar. E o que mais meteo em espanto, foi a circunstancia seguinte. Es-
caparão do incêndio as casas de hum homem rico, peccador publico em
usuras, e sensualidade ; gloriando-se, e jactando-se elle de innocente dos
crimes que lhe attribuião, e de que o reprehendia o Pregador, dizendo que
o mostrava o Ceo, pois suas casas não merecerão fogo. Assi se jactava ;
quando ao segundo dia desceo (o donde não se sabe) sobre o tecto de sua
morada tão horrendo fogo, que em breve espaço tornou em cinza, e car-
vão os haveres d'aquelle peccador, e com elles a casa toda, sem ficar mais
que o lugar que fura d'ellas. Com estes portentos do Ceo, e com o cxem-
I)Io raro de sua vida, e doutrina, trazia o Padre Aspilcueta Navarro aquel-
les lugares ja mais arrendados, c descidos da dureza antigua. N'este tempo
pois chegarão os dous Missionários referidos, que á vista de tantas demons-
trações do espirito dò seu antecessor, forão recebidos com veneração, e
respeito. Do que obrarão, dirão os annos subsequentes.
4ii2 Porém entretanto digamos nós algimia cousa d'csta Capitania. Foi
84 LIVRO I DA CrmO.MCA DA COMPANHIA DE JESU
seu primeiro fundador, e povoador, Pedro de Campos lourinho, homem
nobre, natural de Yianna do Lima ( segundo outros de Villa do Conde )a
quem El-Í\ei D. João o Terceiro concedeo cincoenta legoas por costa. Ven-
deo este Capitão sua fazenda, e á custa d'elia ajuntou huma Frota, na qual
embarcado com mulher e fdhos, e outras famílias, parentes, e amigos, que
quiserão vir povoar esta nova terra, partio do porto de Vianna, e veio a
demandar o Brasil, e lançar ferro em Porto seguro, no mesmo lugar, onde
aportou Pedro Alvarez Cabral. Aqui desembarcou sua gente, e começou a
edificar a villa que hoje alli vemos, cabeça da Capitania; e depois d*ella as
de Santa Cruz, e Santo Amaro. Teve tfaquelles primeiros annos guerras com
a nação dos Tupinaquis, que levavão mal ver gente estranha cultivar suas
terras; e depois de successos de armas (de que não acho mais que gene-
ralidades) chegarão a meter nossa gente em sacco apertado. Porém acabou
tudo o tempo; e depois de alguns annos foi florecendo aquella villa em mo-
radores, e a terra em fazendas de canaviaes, e engenhos. Por fallecimento
de Pedro de Campos herdou a Capitania huma filha sua, Leonor de Cam-
pos, que com licença d'El-Rei a vendeo a D. João de Alencastre, Duque de
Aveiro, por cem mil réis de juro. Este Príncipe a favoreceo com nãos,
gente, e mercadorias, que mandava a ella todos os annos; e chegou a ter
sette engenhos. Está esta villa em 16 gráos e meio de altura. He toda a
Capitania terra fresca, vestida de arvoredo, e abundante de rios caudalo-
sos, e férteis. De suas maítas se colhe a maior quantidade de pão brasil,
e do mais fino de toda esta costa. Parte esta Capitania pela banda do Norte
com a dos Ilheos por meio do Rio grande; e pela do Sul com a do Espi-
rito santo por meio do rio Maruy pouco mais ou menos. E esta he a fun-
dação d'esta Capitania.
143 Tornemos agora ao Padre Leonardo Nunes: o qual depois de es-
tar na Bahia até Outubro do presente anno, tornou a voltar pêra S. Vicente,
sef^undo a ordem que trouxera de Nóbrega ; levando comsigo hum bom
soccorro de obreiros, a saber: Vicente Rodrigues, que já então era Sacer-
dote, e outros quatro Rehgiosos dos que vierão de Portugal, e entre estes
o Irmão Joseph de Anchieta.
144 Não sentia bem Satanás d'este soccorro, segundo procurou des-
truil-o : porque chegando aos baixos dos Abrolhos, o assaltou com tão des-
apoderada tormenta, que se virão perdidas as duas embarcações em que
hião repartidos, rotas as velas, cortados os mastros, perdidas ancoras, e ba-
tel: a em que hia o Irmão Joseph, foi dar através entre os arrecifes, onde
DO ESTADO DO BRASIL (ANNO DE 1S53) 85
padecendo por toda luima noite o l)ater das ondas alteradas, poderão estas
viral-a, e quebral-a; mas não poderão contrastar a confiança de Joseph, e
seus companheiros, que com as reliquias dos Santos, e com huma imagem
da Virgem Senhora Nossa em as mãos, em cuja vespora de sua Presenta-
ção se achavão, clamavão ao Ceo, e pedião misericórdia; até que rompendo
a alva do alegre dia da Virgem, por maravilha de seu grande favor, sahi-
rão todos vivos á praia, e poderão depois levar o navio, ainda que que-
brado, e destroçado, ao porto que chamão das Caravelas. A embarcação em
que hia o Padre Leonardo enxorou em a praia, e fez-se em pedaços, sal-
vando-se a gente, e algumas cousas d'ella; e d'esta foi força restaurar a
quebrada. Porém em quanto a obra se fazia, forão combatidos de outro
aperto de fome, que pêra tanta gente, e em praia estéril chegou a ser ex-
trema ; e só com fruta buscada com trabalho pelos mattos conservarão as
vidas. Não se pôde negar que entreveio em tão grandes perigos favor mi-
lagroso da Senhora, e vai Joseph experimentando a particular protecção,
que toda a vida gosará. Concertado o navio, proseguirão viagem ao porto
do Espirito santo, aonde depois de alguma refeição, embarcarão comsigo
o Padre Affonso Braz, que n'aquella casa estava, e deixando em seu lugar
o Padre Braz Lourenço, largando a vela, chegarão a salvamento a lançar
ferro no porto de S. Vicente desejado, em 24 de Dezembro do mesmo anno
de 1533. •'■'
146 Não ha cubiçoso cjue assi se alegre com a chegada de náos da ín-
dia, em que espera os retornos de seus grossos empregos, como aqui se
alegrou o coração de Nóbrega com a chegada d'este seu soccorro, em que
empregara tanto cabedal. Não se fartava de abraçal-os luima e outra vez,
especialmente ao Irmão Joseph; que parece lhe dizia já desde alli o cora-
ção, quem por tempos havia de vir a ser este sujeito: qual de outro Ja-
cob o seu Joseph mimoso, companheiro de seus caminhos, consorte do seus
trabalhos, alivio de seus cuidados, desempenho de suas cãas, e honra da
missão do Brasil.
147 Até este tempo governava Nóbrega com titulo somente de Vice-
Provincial, subordinado á Província de Portugal, donde partira. Porém
considerando nosso PatriaiTha Ignacio a gi-ande distancia dos lugares, e
os inconvenientes que podião occasionar-se de consultar tão longe negó-
cios, que pedião ordinariamente presta resolução (com o acerto que cm
to(l;is suas cousas costumava), desjjedio patente n'este jmno ao' Padre Nó-
brega pêra que fosse Pi-ovincial com jurisdicção dividida, e in(loi)endent(!
86 LIVRO I DA CimO.NiCA DA COMPANHIA DE JESU
de Portugal; assinalando-lhe por companheií-o Collateral com os mesmos
poderes (porque assi o pedia o governo, e circunstancias d'aquelle tempo)
o Padre Luis da Gram, varão das partes, e esperanças, que já dissemos ;
cora ordem outro si, que de seus companheiros escolhesse alguns de mais
experiência pêra Consultores dos negócios de mais momento, cujos votos
serião somente consultivos, e não difinitivos : e d'estes hum (qual elle ele-
gesse) seria o companheiro de seus caminhos. Veio com esta juntamente
outra ordem pêra que o mesmo Padre Nóbrega, e o Padre Luis da Gram,
fizessem profissão solemne dos quatro votos, ultimo grão dos da Compa-
nhia, nas mãos de qualquer Ordinário d'estas partes.
148 A primeira cousa que intentou o Padre Manoel da Nóbrega, depois
do novo titulo de Provincial, e da chegada de tão bom e desejado soccorro,
foi a fundação de hum Collegio nos campos de Piratininga, pêra onde ti-
nha já feito mudar alguns índios principaes com suas aldeãs, deixando o
lugar das antiguas. Poz em consulta seus intentos; e era das razões a
primeira : que d'aquelle lugar poderião mais commodamente acudir, não
§ó ás aldeãs dos índios, que alli já mora vão, mas a outro grande numero
de almas, que hal3Ítavão por esse sertão em circuito; e com esta vizinhança
dos Padres se poderião mais facilmente avocar, ou pelo menos remediar
por meio de missões dos lingoas, que já então havia mui peritos. Segunda
razão: porque no lugar onde estavão, erão já muitos, e tinhão á sua conta
para sustentar grande numero de meninos do Seminário, assi brancos, co-
mo filhos de índios, e a terra estava mui pobre, e não podião as esmolas
abranger a tantos; e poderião, repartindo-se. Terceira : porque era neces-
sário, sendo já o Brasil Província de per si, haver Estudos, e criar sujei-
los era tal cumero, que acudissem a tão diversas partes, como as de que
consta, todas necessitadas; ás quaes não poderia acudir com soccorros bas-
tantes a de Portugal, vistas as empresas com que de presente se achava
pêra varias partes do mundo.
149 Contentarão as razões : e logo, na conformidade d'ellas, no prin-
cipio de Janeiro do anno seguinte de 1554 (deixados na villa os que pare-
cerão necessários pêra os ministérios dos Portugueses), forão mandados
treze ou quatorze sujeitos Padres, e Irmãos debaixo da obediência do Pa-
dre Manoel de Paiva fundar o Collegio já dítto nos campos de Piratininga.
Estes campos merecem nome de Elysios, ou bem afortunados ; assi pela
ventura que lhes coube de que fossem elles o primeiro Seminário da con-
versão da gentilidade n'aquellas partes, e o maior de toda a Província :
DO ESTADO DO BRASIL (ANNO DE 1554) 87
como porque partio com elles a natureza do melhor do mundo. De toda a
al)undancia de cousas necessárias pêra uso da vida humana são capazes; e
ainda pêra recreação, e deUcia, a quem a procurar. Reveste-se de flores do
cravos, rosas, açucenas, Urios: he fértil de uvas, maçans, pêssegos, nozes,
ginjas, figos, marmelos, amoras, melões, balancias, e quasi todas as frutas
de Europa. De searas de trigo, grandes vinhas, abundância de gado, ca-
vallos, carneiros, cabras, porcos mansos, monteses, e aquários. Caça infi-
nita de animaes, aves, galinhas, perus, perdizes, rolas : seria longo contar
só as espécies de todas estas cousas. Distão como dez legoas do mar, po-
rém do porto de S. Vicente doze ou treze: ficão quasi na segunda região
do ar, depois de atravessada aquella notável serrania, de que-dissemos al-
guma cousa no Livro primeiro das Cousas do Brasil ; que sempre vai su-
bindo, acumulando montes sobre montes ; e tem bem que suar os que
houverem de chegar a vencel-os, pêra gozar do raso das campinas.
150 A própria aspereza das serras faz mais aprazível a benignidade dos
campos : da qual aspereza só digo, que a paragem por onde se atravessão
estas serras, he a mais fácil, que depois de experiência, e discurso dos
tempos puderão achar os moradores da outra parte do sertão de Pirati-
ninga pêra passarem ao mar (chamando-lhe os índios Paranâpiacaba), e
com ser parte escolhida, e o caminho feito por arte, he elle tal, que põe
assombro aos que hão de subir, ou descer. O mais do espaço não^he ca-
minhar, he trepar de pés, a de mãos, aferrados ás raizes das arvores, e
por entre quebradas taes, e taes despenhadeiros, que confesso de mim, que
a primeira vez que passei por aqui, me tremerão as carnes, olhando pêra
baixo. A profundeza dos valles he espantosa : a diversidade dos montes
huns sobre outros, parece tira a esperança de chegar ao fim : ^ando cui-
dais que chegais ao cume de hum, achais-vos ao pé de outro não menor :
e he isto na parte já trilhada, e escolhida. Verdade he, que recompensava
eu o trabalho d'esta subida de quando em quando ; porque assentado so-
bre hum d'aquelles penedos, donde via o mais alto cume, lançando os
olhos pêra baixo me parecia que olhava do ceo da lua, e que via todo o
globo da terra posto dcl)aixo de meus pés : e com notável fermosura, pela
variedade de vistas, do mar, da terra, dos campos, dos bosques, e serra-
nias, tudo vario, e sobremaneira aprazível. Se se houvera do medir o
grande diâmetro d'esta serra, houvéramos de achar melhor de oito legoas:
porque supposlo que vai fazendo em paragens algumas chans a modo de
leljoleiros, sempre vai subindo, e tornando á mesma aspereza ; ainda que
88 Lr\T\o í DA cimoNiCA da companhia de jesu
em nome diversa, chamada em Imma das paragens, Paraná Piacá Mirí, e
logo em outra Cabarú Pararàngaba; e tudo lie a mesma serrania. E final-
mente vai subindo sempre até chegar ao raso dos campos, e á segunda
região do ar, e onde corre tão delgado, que parece se não podem fartar
os que de novo vão a eila. Á grande copia de alagôas, fontes, e rios ; a
fermosura de bosques, brutescos, e arvoredos; a diversidade de ervas, e
flores; a variedade de animaes terrenos, e voadores; as apparencias admi-
ráveis da compostura da penedia posta em ordem desigual, desde o prin-
cipio . (parece) da criação do mundo ; a riqueza dos mineraes de ferro,
cobre^ chumbo, e ainda ouro, prata, e pedraria ; tudo isto, se se houvera
de escrever em particular, pediria leitura mui diffusa.
151 Indo eu subindo com meu companheiro o meio d'esta serra, nos
divertio hum estrondo extraordinário, e desusado, do mais intimo delia.
Parecia-nos que ouvíamos o grande boato de muitas peças de artelharie
juntas, que pelas quebradas dos montes fazia o som mais medonho. E per-
guntando nós hum ao outro o que seria? não soubemos a que attribuir
cousa tão nova: mas perguntando logo aos índios que comnosco vinhão,
disserão pela Ungoa brasihca: «Itá aé cera:» Parece que he estrondo de
pedra. E foi assi; porque passados dias se achou o logar, onde arrebenta-
ra hum penedo de circunferência considerável, que das entranhas, com o
estrondo diíto, como gemidos de parto, brotou á luz hum thesouro peque-
no. Era este huma pinha, do tamanho e forma do coração de hum touto,
ctiea por dentro de pedraria de diversas cores : humas brancas de trans-
parente crystal, outras roxas de fina côr, outras entre branco e roxo, ain-
da imperfeitas, ao que parecia, e não acaljadas de formar da natureza. To-
das estas estavão dispostas em ordem, quaes bagos de romãa em seu po-
mo, dentro de huma caixa, ou casca tão dura, que excedia o mesmo duro
ferro. E como he arremeçada á forca, ou com a violência do bojo donde
sahe, ou com o golpe dos penedos com que encontra, se desfaz em pedaços,
e mostra aos homens seus haveres.
152 A philosophia d'estes successos he sabida; porque como a opera-
ção do sol, e natureza, pêra haver de vir a formar o parto mais pohdo
darjuefia fina pedraria nas. entranhas de hum penedo tosco, he força que
reduza algmna maior quantidade de seu interior a menor qualidade da
pedra que pretende gerar, que quanto he mais fina, tanto mais dura he ;
e quanto mais dura, tanto mais partes he força que comprehenda em me-
nor espaço; e como não sofre a natureza vácuo, nem he possivel passar o
DO ESTADO DO BRASIL (aJsTíO DE 1534) 80
ar o grosso do penedo pêra soccorrel-o : no mesmo ponto em que a força
do sol he tanta, que chega a querer causar vazio em prol da obra, f|ue
tem entre mlíns; resiste por outra via a natureza, e nesta luta arrebenta
o bojo da pedra, e fica a obra imperfeita. Aqui no mais patente d'estes
campos, junto a hum rio, e perto da vivenda dos índios, escolherão os
Padres _o sitio pêra seu Collegio, e por bom annuncio do futuro, disserão
nelle a primeira missa aos 25 de Janeiro, dia da conversão do sagrado
Apostolo S. Paulo; de cujo nome quiserão todos se denominasse o sitio,
e depois se denominou a villa, e teiritorio todo.
153 O modo da pobreza, e edificação religiosa, com que aqui começa-
rão a viver estes obreiros da vinha do Senhor, descreverei pelas mesmas
palavras, com que o pinta o mesmo Irmão Joseph de Anchieta: e diz assi
á letra. «Aqui se fez uma casinha de palha, com uma esteira de canas por
porta, em que morarão algum tempo bem apertados os Irmãos; mas este
aperto era ajuda contra o frio, que naquella terra he grande com muitas
geadas. As camas erão redes, que os índios costumão ; os cobertores o fo-
go, pêra o qual os Irmãos commummente, acabada a lição da tarde, hião
ix)r lenha ao matto, e a trazião ás costas pêra passar a noite. O vestido
era muito pouco, e pol)re, sem calças, nem çapatos, de panno de algodão.
Pêra mesa usarão algum tempo de folhas largas de arvores em lugar de
guardanapos ; mas bem se escusavão toalhas, onde faltava o comer, o qual
não tinhão donde lhes viesse, senão dos índios, c[ue lhes davão alguma es-
mola de farinha, e algumas vezes (mas raras) alguns peixinhos do rio, e
caça do matto. Muito tempo passarão grande fome, e frio : e com tudo pro-
seguirão seu estudo com fervor, lendo ás vezes a lição fora no frio, com o
qual se havião melhor, que com o fumo dentro de casa.» Até aqui Joseph.
Esta mesma sustancia com pouca mudança escreveo o mesmo a Roma a
nosso Padre Ignacio de Loyola, em carta sua feita em Agosto do mesmo
anno, em que liimos de 1554. E diz assi no mesmo latim em que a es-
creveo. A Januário usque ad prccsens nonniimquam pliis vifjinti (simul enim
fueri catichest(B degebant) in paupercula domo luto et lignis contexta, puleis
cooperln, qnaíuor decim passus lonfjn, decem lala mansimus. Jhi schola, ibi
valetudinariuniy ibidornúlorium, crenacidiim item, et coriuina, et penus simul
sunt: nec tamen amplarum ítnbitationum^ quibus alibi fratres nostri utuntur,
nos mouet desiderium; siquidem Dominus noster Jesus Chrisfus in arctiore
loco positus est, ciim in paupere pnesepi interduo bruta animalia voluit
nasci; multo vero arclissimo cum in Cruce pro nobis dignatus est mori.
90 LIVRO I DA CHRONICA DA COMPANHIA DE JESU
134 Aqui nesta pobreza se abrio a segunda classe de Grammatica que
teve o Brasil (porque já na Bahia se tinha aberto liuma). Frequentavão-na
nossos Irmãos, e bom numero de estudantes brancos, e mamalucos, que
acudião das villas circunvizinhas. Lia esta classe o Irmão Joseph de An-
chieta: occupacão em que perseverou alguns annos, com grande aprovei-
tamento de seus discípulos, e com maior opinião de sua santidade. O tra-
balho era excessivo: ainda naquelle tempo não havia nestas partes copia
de livros, por onde pudessem os discípulos aprender os preceitos da Gram-
matica.
155 Esta grande falta remediava a charidade de Joseph á custa de seu
suor, e trabalho, escrevendo por própria mão tantos quadernos dos dittos
preceitos, quantos erão os discípulos que ensinava ; passando nisto as noi-
tes sem dormir, porque os dias occupava inteiros nas obrigações do officio:
e acontecia não poucas vezes romper a manhãa, e achar a Joseph com a
penna na mão.
15G Não parávão aqui seus trabalhos; era de vivo ingenho, e era insa-
ciável sua charidade, e de huma, e outra cousa tirava grandes forças. No
mesmo tempo era mestre, e era discípulo, e os mesmos lhe servião de dis-
cípulos, e mestres; porque na mesma classe fallando latim, alcançou da
falia dos que o ouvião a mór parte da lingoa do Brasil, que brevemente
perfeiçoou com tal excellencia, que pode reduzir aquelle idioma bárbaro
a modo e regras grammaticaes, compondo Arte delias, tão perfeita, que
approvada dos mais famosos lingoas, foi dada á impressão, e tem servido
de guia, e mestra daquella faculdade aos que depois vierão, com proveito,
e facilidade; e delia ha lição particular em alguns CoUegios da Provincia.
Além da Arte, fez Vocabulário da mesma lingoa : traduzio a doutrina chris-
tãa, e mysterios da Fé, dispostos a modo de dialogo, em beneficio dos
índios cathecumenos : e fez trattado, interrogatórios, e avisos necessários
pêra os que houvessem de confessar, e instruir, principalmente no tempo
da morte, aos já bautizados; deixando alivio com seus trabalhos aos que
em tempos vindouros se houvessem de occupar no tratto de salvar estas
almas.
157 Era destro em quatro lingoas, portuguesa, castelhana, latina, e
brasílica: em todas ellas traduzio em romances pios, com muita graça, e
delicadeza, as cantigas profanas, que então andavão em uso; com fruto das
almas, porque deixadas as lascivas não se ouvia pelos caminhos outra cou-
sa senão cantigas ao divino, convidados os entendimentos a isso do suav»
DO ESTADO DO BRASIL (ANNO DE 1554) 9|
metro de Joseph. Aprendeo a fazer alpargatas de cardos bravos, que ser-
vião em lugar de rapatos. Juntamente a sangrador; com que foi causa da
vida a muitos, porque não havia na terra o tal officio. Aprendia em fim em
hum mesmo tempo Joseph todas as artes, modos, e traças, com que podia
ser de alivio a seus Irmãos n'aquelle desterro do mundo, e a qualquer dos
outros homens sem differença; porque a todos se estendia aquelle seu di-
latado bojo da charidade: a todos ensinava, consolava, e metia em seu cora-
ção; e tudo são princípios, depois verá o mundo seus prodigios.
158 Não era este com tudo o principal intento de Joseph, e mais obrei-
ros: a conversão da gentiUdade era a que alli os trouxera em primeiro lu-
gar. Todos em casa, todos fora d'ella, todos volantes andavão no serviço dos
índios; levantavão elles então suas casas, que por mandado de Nóbrega ti-
nhão começado: estas também ajudarão a fazer os Religiosos com suas pró-
prias mãos: crescia a obra, e crescia á medida d'ella o fervor da doutrina
christãa. Fizerão juntamente Igreja de taipa de mão, cuberta de palha, ac-
commodada á occasião de tempo.
159 Aqui começarão a fazer os oíTicios divinos, ensinar a doutrina duas
vezes no dia, instruir os que havião de ser bautizados, e celebrar os casa-
mentos á lei dos Christãos, dando de mão á multidão das mulheres dos
contrattos de sua gentihdade. Pasmavão os índios de ver a perfeição das
cousas sagcadas; e á fama d'esta Igreja, e d'aquella agoa que leva ao Ceo,
como dizem, crescião cada dia, deixando seus sertões.
160 Dos primeiros c[ue alli principiarão, e aperfeiçoarão suas aldeãs,
os dous principaes forão Martim AíTonso Tebyreçá, e João Caí Uby, Senhor
de Jaraibatygba já muito velho, o qual deixando no sertão parentes, casas,
e roças, veio a viver junto aos Padres em huma pequena choupana, pêra
bem de sua alma. Daqui partia, não sem grande trajjalho por sua idade,
ao lugar primeiro em ijusca de mantimento, e colhido este tornava sem de-
mora: e o que he mais de admirar, que não hia vez alguma, sem pedir li-
cença aos Padi"es, e sem se despedir de N. Senhora na Igreja; e levava des-
tinados os dias, no fim dos quaes apparecia diante dos Padres a dar razão
de si: e n'esta boa fé, e simpUcidade, sendo doutrinado, cathequizado, e
jjaulizado, perseverou este honrado velho até sua morte, semelhante á vi-
da, com esperanças de sua salvação. O mesmo foi de Martim Affonso, co-
mo depois veremos: e a exemplo d'estes famosos índios descerão tantos
de seus sertões, que não cabião já cm a aldeã.
161 Pêra mais fácil catliecismo de tanta gente, ordenou o Padre No-
92 LIVRO I DA CURONICA DA COMPANHIA DE JESU
brega que viessem da villa de S. Vicente aquelles meninos fillios dos ín-
dios, que como já dissemos, tinhão alli criado os Padres cm Sentinario de
boa doutrina, e sal^ião já ler, escrever, c cantar muitos d'clles: forão estes
de grande ajuda a toda a sua gente, continuando na nova aldeã sua esco-
la, e ajudando a beneficiar os OíTicios sagrados em canto de órgão, com
destreza, e instrumentos músicos (o mór gosto, e incitamento, que podia
haver pêra os pais.) As traças que usavâo, erão as seguintes. Juntavão-se
á noite a cantar pelas casas cantigas de Deos em própria lingoa, contrapos-
tas'ás que elles costumavão cantar vãas, c gentílicas: com os Padres ajuda-
vão a cathequizar: na escola instruião aos seus iguaes, assi em doutrina,
como em ler, escrever, e cantar; e vinhão a ser quasi mestres d'estes. To-
dos os dias pela manliãa no fim da escola cantavão na Igreja as Ladainhas
dos Santos, e á tarde a Salve Rainha, com outras pias orações em canto
de órgão: ás sextas feiras açoutavão-se com disciplinas, que todos fazião de
linho de cardos: duas vezes no dia davão lição da doutrina christãa, e em
breve tempo n"esta forma forão bautizados com toda a solemnidade possí-
vel passante de trinta d'estes meninos (e erão mais de cento os que espe-
ravão semelhante fortuna) com grande festa, e applauso, e não menos exem-
plo dos pais: com os quaes com tudo os Padres liião mais devagar, porque
arreigassem bem nas cousas da Fé, e desarreigassem de seus ritos gentí-
licos, especialmente das muitas mulheres, e vinhos, que são os-vicios que
mais costumão perturbal-os, e instigal-os a grandes desarranjos. N'estes ví-
cios a nenhuns tinháo mais contrários que seus próprios filhos; porque es-
tes, com zelo já christão, vigiavão os pais, e os accusavão aos Padres, e
ajudavão a lhes quebrar as talhas de vinho em suas bebedices.
162 Em todos os bons princípios costuma Satanás entrepor seus em-
bustes na matéria da salvação das almas: assi o fez aqui, primeiro com doen-
ças, logo com ódios, e por fim com guerras: e foi d'esta maneira. Estando
as cousas n'esta bella paz, começou a apoderar-se dos pobres índios huma
como peste terrível de priorizes, com tal rigor, que era o mesmo acom-
metter, que derribar, privar dos sentidos, e dentro de três ou quatro dias
levar á sepultura. Doeste trabalho se ajudou o inimigo, mettendo em cabeça
a esta gente simples (como já em outras occasiões) que os Padres lhes cau-
savão a morte, que não morrião assi em seus sertões, e outros semelhan-
tes embustes, sem razão, mas com effeito, e tal, que se virão os Padres
em grande aperto, e o discurso da conversão em perigo. Recorrerão a Deos,
e ordenarão nove Procissões aos nove Choros dos Anjos, com a mór so-
DO ESTADO DO BRASIL (ANNO DE 1554) 9^
lemnidade possível: hião n'ellas todos os sãos, homens e mulheres com
luzes de cera em as mãos, os meninos da escola com cruzes ás costas, e
disciplinando-se muitos até derramar sangue: e á vista d'esta piedade
hião trocando aquelles bárbaros os conceitos, porque á medida d'ella
parava a fúria da doença. Outro meio liumano entreveio, e foi, que ven-
do os Padres que o mal era força de sangue, e não havendo na terra
Medico, ou Sangrador, nem ainda lancetas, começarão alguns, e o Ir-
mão Joseph o primeiro, a aguçar seus canivetes de aparar pennas; e com
elles, e com o zelo da charidade sangrando-os, fizerão tal effeito, que raro
foi o que d'alli em diante morreo: e os perigosos em breves dias melhora-
rão. Á vista de hum e outro exemplo íicárão os Índios de todo satisfeitos,
e dizião, que a doença dava o diabo, e a saúde davão os Padres. Este meio
de charidade, que com esta gente usamos, onde quer que com elles vivemos,
em suas doenças, he huma das razões mais forçosas, que abranda sua na-
tural fereza. Algum escrúpulo houve entre os Religiosos do exercício das
sangrias, pelo perigo de irregularidade: mandou-se perguntar a questão a
Roma a nosso Santo Patriarcha Ignacio pêra successos semelliantes: a res-
posta foi por estas palavras: «Quanto ás sangrias digo, cpie a tudo se esten-
de o bojo da charidade:» pelo que com mais resolução o fazião dalli em dian-
te, até o mesmo Padre Nóbrega por sua mão em casos de necessidade.
1G3 A segunda perseguição foi de ódios. Aquelles Mamalucos Rama-
lhos, de arvore ruim peiores frutos, tornão agora a resuscitar seus ranco-
res; e forão maiores os males, que excitarão, que a própria peste. Mora-
vão estes era hum lugar três legoas distante de Piratininga por nome Santo
André : daqui tramavão seus embustes, e despedião a peçonha, que concebe-
rão contra os Padi^es, amotinando toda a criatura, que conjurasse contra
elles, como contra os mores inimigos, em vingança de suas, que elles cha-
mavam, injurias, e em liberdade do uso da terra de assaltear, e cattivar
os índios. Aos próprios índios persuadião com argumento de niór força,
que pôde haver entre esta gente; e era lançar-lhes em rosto, que se aco-
Ihião á Igreja por covardes, e por não prestarem pêra a guerra contra seus
inimigos: e era este o maior impropério de que os podião cahimniar, e
Cíjm que de feito hião [)erigando alguns mais fracos. Não párão aqui ; vão-
se á aldôa de Maniçoba, residência moderna dos nossos, pertui'bão tudo,
e persuadem com a destreza de sua lingoa áquelle rebanlio ignorante, que
larguem os Padres, homens estrangeiros, e rlegradadospei-a estas jiartes por
gente vadia: e (luc meilior honra lhes seria sujeitai -se a homens destros
94 LIVRO I DA CHRONICA DA COMPANHIA DE JESU
em arco e frecha como elles, que a huns estranhos covardes. Nâo só dis-
serâo, mas fizerão ; porque os pobres índios, supposto que mansos por na-
tureza, enganados da eloquência e efficacia dos Mamalucos, em cujos cor-
pos parece fallava o diabo, assi se forão embravecendo, e amotinando, que
houverão os Padres de deixal-os, em quanto não se esperava mais fruto. Não
permittio com tudo o Ceo, que estes homens enganadores rendessem os
de Piratininga, que prometião morrer com os Padres, por mais combates
que pêra isto derão.
i64 A terceira perseguição foi de guerra. Esta excitou, ou o espirito
infernal, ou o daquelles mesmos Mamalucos : de qual nascesse, não ha no-
ticia certa. O certo he, que se accendeo entre os índios moradores de Pi-
ratininga e seus comarcãos ; e que estes feitos em hum corpo vierão a aco-
mettel-os. Sahirão contra elles os Piratininganos armados de seus arcos, e
frechas, e não menos de confiança em Deos, a quem já conliecião, porque
erão Christãos, ou cathecumenos grande parte delles. Porém chegados á
vista do inimigo, entrarão em pavor, e desconfiança, de commeter huma
tão grande multidão de gente, qual nunca tinhão imaginado. Esta descon-
fiança notou a mulher do Capitão mór de todos, a qual (segundo costu-
me antiguo desta gente) hia ao lado do marido ; e era bautizada, grande
Christãa, e de animo varonil : e voltando-se aos soldados receosos, os ani-
mou, e lhes disse assi: «Que covardia he esta, oh soldados? Não vos lem-
braes, que pelejamos já da parte de Christo, e como pessoas pertencentes
ao Ceo ? E que estes que vedes são Gentios, tragadores da carne humana ?
Fazei todos aquelle signal que os Padres vos tem ensinado, da santa Cruz,
e com elle confiados acommetei ; que o Deos que seguimos nos ha de dar
victoria contra estes Pagãos.»
165 Forão palavras parece de espirito superior; porque foi cousa de
espanto ver, depois de feito o signal da Cruz, o grande animo com que ar-
remeterão, tão conhecido, que desmaiarão logo os contrários, e se pose-
rão em torpe fugida, com miserável estrago, de mortos, e cattivos : attri-
buindo os nossos a victoria ao sinal da santa Cruz. De nossa parte forão
mortos só dous, e estes, dizião commummente, que por não darem cre-
dito ao dito da índia. Com todos estes três géneros de perseguições foi
neste tempo combatida esta tão tenra vinha do Senhor : não desconfiavão
com tudo seus operários, applicando suores, sacrifícios, e orações pêra
cultura destas almas.
166 Desta guerra se conta, que depois de retirados os inimigos do
DO ESTADO DO BRASIL (aNNO DE 1554) 95
campo, a noite seguinte voltarão sobre elle, a ver se achavão alguns cor-
pos mortos dos contrários, aos quaes quebrassem a cabeça, despedaçassem
e comessem, em vingança de seus ódios, segundo seu costume bárbaro.
Porém como em lugar de corpos, achassem somente montes de terra le-
vantados de fresco, entenderão que erão os corpos que buscavão, e que
alli os tinhão sepultados ; porque não crião, que sendo dos seus, os não
tivessem comido os contrários, e usassem com elles tão pio beneficio. Des-
enterrârão-nos, e levárão-nos ás costas a suas aldeãs, contentes com a pre-
sa : se não que que lhes mostrou a luz da manhãa o engano ; e vendo-se
com os corpos dos seus, chorarão o trabalho perdido, e admirárão-se de
que em tão breve tempo estivessem tão trocados seus inimigos, que se abs-
tivessem das carnes dos corpos que matarão, e usassem com elles de hum
beneficio tão contrario a seus antiguos ritos. Bom exemplo he este da abs*
tinencia que já usavão os discípulos dos Padres de carne humana.
167 Havia já seis annos que continuava a cultura desta Província, com
os successos que temos referido : e era razão, segundo o modo de nosso
Instituto, especialmente sendo Província já separada, eleger Religioso que
fosse a Roma informar dos negócios delia, a N. R. P. Geral, que então
era o Padre Ignacio de Loyola. Feita consulta sahio eleito pêra esta missão
o Padre Leonardo Nunes, primeiro companheiro do Padre Nóbrega, primeiro
pai, e fundador em espirito da Capitania de S. Vicente, e o mais pratico de todo
o Estado. Aceitou a missão como obediência, não como dignidade ; porque
igualmente era resignado a seus superiores, que desapegado de honras,
este varão. Preparou a disposição dos negócios, recebeo as ordens, e ben-
ção de seu Superior; c com o apparato de viatico, que bem se deixa con-
siderar da estremada pobreza daquelles tempos, parlio alegre no mcz de
Junho de mil e quinhentos e cincoenla e quatro.
168 São porém diflerentes as traças de Deos, e dos homens : porque
o navio em que hia, fez lastimoso naufrágio, e acabarão nelle as vidas qua-
si todos os que se embarcarão, e com elles o Padre Leonardo. Escaparão
mui poucos, mas bastantes pêra testificar o grande zelo com que aquellé
servo de Deos neste ultimo conílicto, e despedida da vida mortal, empe-
nhou seu trabalho em ajudar os companheiros a levar com animo chrislão
trago tão violento, e confessando, animando, e pregando em voz alta com
hum Crucifixo em a mão até a ultima boqueada.
109 Assi morreo por obediência sobre as ondas do Oceano, aquello,
que entre os sertões do Brasil foi a vida do tantos. Chorarão sua morte
96 LIMIO I DA CHRONTCA DA COMPANHIA DE JESU
OS Religiosos, privados de seus grandes exemplos: os povos de S. Vicente
privados de sua saudável doutrina : e os desei-tos da gentilidade órfãos de
pai, defensor, e libertador. Não pretendo recontar de novo a vida d'este
grande varão, porque he tornar a repetir grande pai'te da leitura passada;
a quem já a tem lido, bastará refrescar-lhe a memoria de que foi elle, de-
pois do Padre Nóbrega, o primeiro obreiro da missão do Brasil, hum Vi-
ce-Nobrega de S. Vicente, hum Apostolo daquellas partes, hum exemplar
de bem viver dos Portugueses, hum pai dos índios, himi alivio de toda
a sorte de criaturas, benigno, affavel, e incansável pêra o bem de todos.
Era espelho de pobreza, pureza, aspereza, obediência, e de todas as ou-
tras virtudes religiosas : no amor de Deos, e do próximo hum Seraphim.
Estas virtudes forão o meio da conversão mais que ordinária dos morado-
res de S. Vicente. Diz delle assi o venerável Padre Joseph de Anchieta :
«Com as pregações, e vida exemplar do Padre Leonardo Nunes, começou
Deos a mover, e trazer a tal confusão de seus peccados os moradores daquel-
la Capitania, que os mais delles trabalharão por se apartar de seus vicios :
huns casando-se com as índias que tinhão por mancebas, outros apartan-
do-se delias buscando-lhes maridos, outros vivendo bem em seu estado ma-
trimonial, e todos com grande espanto de si, vendo a cegueira em que ti-
nhão vivido. » Tudo isto são palavras do Padre Joseph, testemunha qualifi-
cada daquelles mesmos tempos. Este espirito lhe dava o acerto das traças
eíTicazes da conversão dos próximos : aquella do Seminário dos meninos,
discípulos primeiro, e mestres depois de seus pais : aquella grande agili-
dade como de .\njo, com que voava, em vez de caminhar, ao maior servi-
ço dos homens, e por isso chamado Padre que voa. Voou atravessando as
grandes serras da Paraná Piacaba em busca dos filhos dos índios, pêra ca-
thequizal-os. Voou penetrando os sertões mais distantes do feroz Tamoyo,
em busca das mulheres dos Portugueses, que tinhão cattivas pêra pasto da
gula. Voou a terras ainda mais remotas do gentio Carij(j, em livramento
dos Castelhanos, que estavão entre elles, em perigo da morte. A muitas e
insignes missões semelhantes voou. Estas virtudes forão as que soíTrêrão
as ameaças, aggravos, contumelias, e aíTrontas daquelles mesmos, a quem
procurava o lustre da alma (que esta vem a ser a moeda, em que o mundo
paga.) Nem cuide alguém, que pareceria menos bem assombrado a este va-
rão aquelle género de morte, com que acabou : porque quem desejava morrer
por obediência ao pé de hum pào (como dizia muitas vezes) por ajudar liuma
só alma: mais estimaria morrer em occasião de ajudar a tantas, quantas
I
DO ESTADO DO RRASIL (aNNO DE looí) 97
forão as que ensinou a despedir da vida mortal, e entrar na eterna, naquel-
la embarcação. Pois a si mesma, como se disporia aquella alma pêra a eter-
nidade? Que contas saberia lançar nesta bora, o que por todo o tempo da
vida as trouxe apuradas ? Com o Crucifixo na mão, e a disciplina na ou-
tra, pedindo ora misericórdia, ora oíTerecendo penitencia pelos que morrião,
fixos os olbos em o Ceo, se diz, que obrigado da fereza dos mares, cla-
mando em alta voz: «.Miserere mei Deus», acabou a vida, e começaria a
gozar da eterna. D"este servo de Deos escreve o Padre Balthasar Telles na
primeira parte das Chronicas de Portug. liv. 3, cap. 10.
170 He Deos admirável em todas suas disposições: não pôde o homem
perguntar-lhe os porquês d'ellas. Ainda estavão retinindo nas orelhas os
balidos do justo sentim.ento de hum rebanho tão diminuído, por morte de
hum pastor tão vigilante, principio, e pai de tão importante empresa :
quando começão a soar da parte do sertão os eccos sentidíssimos da morte
de outros dons Irmãos, filhos ambos primogénitos do mesmo Padre Leo-
nardo, que recebera, e formara em Christo na Companhia, duas luzes das
trevas da gentihdade, ambos nos annos mais floridos, guias dos mais oc-
cultos sertões, exemplares de Missionários, espelhos de toda a virtude :
chamava-se hum Pedro Corrêa, outro João de Sousa.
171 A occasião de sua morte (segundo a conta o venerável Padre Jo-
seph de Anchieta, que seguirei á letra na sustancia, assi pela authoridade
de sua pessoa, como por suas noticias mais certas, por ser elle actualmente
mestre, contemporâneo, ecohabítador do mesmo Collegio, quando derão as
vidas estes dous servos do Senhor) foi a seguinte. Corria fama de huma
nação de gente, que habitava além dos Carijós, a que chamavão Igbiraya-
ras os naturaes, e os Portugueses Bilreíros: dízia-se que era dotada de bons
costumes, de huma só mulher, de não comerem carne humana, de sujei-
ção a huma só cabeça, que não erão amigos de matar, e outros raros en-
tre os m.ais índios: c parecia tinhão já bom caminho andado pêra aceitar
a doutrina de Cbristo. Ao som doesta fama, (jue voava, ardia em zelo o Ir-
mão Pedro Corrêa por ir levar-llies luz do Evangelho : tinba já tomado por
(iscritto os vocábulos, e modos de fallar d'esta gente, de bum índio, que
tinha estado entre elles cattivo, e certificava estas noticias. Este foi o pri-
meiro motivo d'(?sta missão, o zelo de converter á Fé aquelles índios.
172 Outro motivo houve pertencente ácliaridade; e foi, que alguns d'a-
quelles nobres Ilespaiihoes, (jue acima dissc-inos, que bindo pêra o Bio da
í'i"ata forão dar ao Porto dos Patos, c forão trazidos dalli pelo Padre Leo-
VOL. 1 7
08 LIVRO I DA CrmONICA DA COMPANHIA DE JESU
nardo a S. Vicente com suas mulheres, e famílias : determinarão depois
proseguir viagem cm canoas até o mesmo Porto dos Patos, pêra dahi pas-
sarem por terra ao Rio da Prata. E porque tinhão fundados arreceios, que
os índios Tupis entre-meios, chegando a seus portos (que com prol)abiH-
dade seria necessário) lhos farião traição, e os matarião por ódio que lhes
tinhão ; pedirão instantemente ao Padre Nóbrega mandasse api)lacar estes
bárbaros pelo Irmão Corrêa, que dominava a todos pela excellencia de sua
lingoa.
173 Houve ainda terceiro motivo; e foi, que havia guerras acesas en-
tre aquellas duas nações Tupis, e Carijós dos Patos, destruindo-se, e asso-
lando-se huns aos outros : e era grande inconveniente este pêra os intentos
da conversão da Fé, que desejavão introduzir os Padres em huma e outra
gente: e só Corrêa poderia acabar com estes barliaros depozessem os ar-
cos. Por estes fins, ou motivos se resolveo o Padre Nóbrega mandar o Ir-
mão Pedro Corrêa a esta gloriosa missão, confiando d'elle que com sua
grande eloquência, e fervor de espirito acabaria todas estas três cousas;
que de propósito quiz eu distinguir, porque se veja que todos os fins, e
motivos d'esta missão forão santos, e dignos de se derramar sangue por
ehes.
■174 Pêra esta missão pois, e pêra estes fins, foi avisado o Irmão Pedro
Corrêa com grande jubilo de sua alma (porque estes erão seus mais esti-
mados empregos.) Partio a ella a 24 do Agosto, dia de S. Bertholameu do
anno corrente de 1554, tomando a benção, e abraçando a seus Irmãos com
lagrimas de alegria (que parece lhe adivinliava o coração a boa ventura,
que por aquellas mattas lhe tinha guardado o Ceo.) Acompanhárão-no o Irmão
João de Sousa, e o Irmão Fabiano : os cavallos erão seus bordões, o via-
tico a grande providencia de Deos, e dos campos. Chegados ao porto pi-in-
cipal dos Tupis (era então o a que hoje chamão Cananéa, e o donde se
arreceavão os Castelhanos) entrou pregando áquella gente, e com sua gra-
ça, e eloquência catíivou os ânimos de todos, fez oílicio de Anjo da paz;
prometterão de não fazer mal aos Hespanhoes, e assi o cumprirão á risca.
E he hum dos motivos da ida. Tratou logo da paz, c negocio da Fé, e de-
rão palavra de fazer hum lugar sei)arado, onde lodos pudessem ajuntar-se
a ouvir a doutrina christãa; e o que ho espanto, que chegarão a entregar-
gar-lhes os cattivos, que tinhão já em cordas, como a engordar pêra pasto:
pi'imor mais raro, a que podem chegar. Entre estes lhe derão hum Caste-
lhano, que linlia vindo com os Carijós contra elles á guerra ; e com este
DO ESTADO DO BRASIL (aNXO DE 1554) 99
(além de iivral-o da morte, porque estava mal ferido de Imma frechada,
que houvera na guerra) deixou o Irmão Fabiano pêra que o curasse, e con-
solasse; como fez, até que passando outros Castelhanos, que hião nas ca-
noas, o levcárão comsigo? ficando-se só o Irmão ensinando a doutrina da
Fé, e esperando o companheiro, que tinha partido em 5 de Outubro.
173 Chegou o Irmão Corrêa, depois de largos e ásperos caminhos, á
terra dos Carijós : e como era tão conhecido seu nome, graça, e eloquên-
cia, ouvirão dç boa vontade seus sermijes, e vierão em tudo o que pedia,
assi das pazes com os Tupis, como 'de receber a doutrina da Fé ; com tat
facilidade, que disse o mesmo Irmão a hum Portuguez, que alli se achou,
que nunca vira índios tão dispostos. Acjui se informou devagar acerca do
primeiro intento que levava dos índios ígbiráyaras, e achou que não podia
Iiaver por então entrada pêra elles (por inconvenientes, parece, de guerras
das nações entremeias.) O que supposto, vendo como cessava aquelle in-
tento, e como já íinlião passado livres dos Carijós os Hespanhoes, em cujo
favor tinha vindo, se poz outra vez a caminho, com intenção de tornar aos
Tupis com a boa nova da paz que com elles querião os Carijós, a assentar
as condições d"ella, e introduzir de espaço a pregação da Fé n"estas duas
nações.
176 Senão ({ue são ineomprehensiveis os juizos de Deos: entrou aqui
o inimigo infernal, invejoso de tão grandes princípios: amotinou de impro-
viso os bari)aros contra os pregadores d.a verdade, e determinárão-se em
dar a morte aos que pretendião dar-lhes a vida. A causa de tão grande
variedade, hc certo que foi hum Castelhano, homem perverso, que alli se
achara com o Irmão Corrêa: porém que Castelhano he este? Direi pri-
meiro o que segue o Padre JosOph de Anchieta, e tenho por mais certo,
e o segui na Relação da Vida do Padre João de Almeida : depois direi o
que seguem outros. Tinha hum Padre de nossa Companhia dos que mo-
ravão no mesmo CoUcgio' de Pij-atininga, por nome Manoel de Chaves, li-
vrado das cordas e dentes dos Tupis a este Castelhano, que eslava cattivo:
o da mesma maneira tinha livi-ado huma índia Carijó, com quem audava
em máo estado, dando remédio aos dous, a elle com liberdade da vida, a
ella com sujeição do estado do matrimonio. Este pois foi, segundo a re-
lação de Joseph, o Castelhano, causa da conjuração dos Carijós, pelo sen-
timento que teve de vcr-sc apartado da índia, que tinha por amiga. E
l)()rque este lie ponto suslancia!, |)0!-oi as palavras de Joseph. cEsle homem
(diz elle) que os fez matai- era hum Castelhano, que estava cattivo cmi)0-
100 LlVnO I DA CHRONICA DA COMPANHIA DK JESU
(ler dos Tupis, e o Padre Manoel de Chaves livrou da morle : da qual lam-
bem livrou huma índia Carijó, que elle tinha por manceba, a qual casarão
os Padres : e porque não t[uizerão dal-a ao barregão, como elle pretendia
pêra tornar a seu peccado, tomou tanto ódio aos- Padres, que veio a parar
em fazer matar aos Irmãos.» Todas são palavras de Joseph. O mesmo se-
guem certos Apontamentos antiguos, que achei em nosso Archivo : e o
mesmo o Padre Balthasar Telles no lugar abaixo citado n.*^ C e 7. Outros
dizem, que foi aquelle mesmo Castelhano, que o Irmão Pêro Corrêa livrara
âo poder dos Tupis, entre outros prisioneiros, como vimos; e que o mes-
mo Irmão lhe tirara a amiga, causa do sentimento. Assi o escreve Orlan-
dino nas Ghronicas de nossa Companhia, tom. i, liv, 14, n.° 125, e o Padre
Eusébio Nieremberg, dos Varões illustres, abaixo citado. Fosse a causa por
qualquer dos dous modos, não vem a fazer diversidade na historia; supposto
que pareça o faz no fim do martyrio. O certo he, que impaciente aquelle
pobre homem de ver-se apartar de sua má consorte, ou por via do Irmão,
ou do Padre, cobrou tal ódio aos da Companhia, que detei-minou vingar
seu sentimento nos dous innocentes, e desacautelados Irmãos : e como era
sagaz, manhoso, e destro na lingoa brasílica, meteo em cabeça aos simples
índios, que os Irmãos vinhão por espias da parte dos Tupis seus con-
trários, e que convinha tirar-lhes as vidas muito á pressa, antes que ex-
perimentassem em si as frechas, e dentes de seus inimigos. Não forão
necessárias mais palavras a gente tão barbara, e variável : sahem a terrei-
ro, appelidão gente, batem os pés, os arcos, e as frechas, sinaes de amo-
tinados, e arremetem ao caminho em busca dos dous servos de Deos.
177 Tinhão elles chegado, bem fora do successo, a huma campina,
rezando suas devaçíjes, a pé, e com seus bordões em as mãos, quando ou-
virão alaridos e vozes, que atroavão osmontes vizinhos, e de improviso veem-se
cercados de bandos de seus mesmos hospedes, e juntamente de hum cliu-
veiro de suas frechas. Encontrarão primeiro com o Irmão João de Sousa,
com hum cestinho de pinhões i)endurado do braço (viatico que devia ser
do caminho) o qual vendo os bárbaros conheceo seu damnado intento ; e
posto de joelhos, invocando os santos nomes de Jesu, e Maria, foi trespas-
sado de suas cruéis frechas, até que cahindo desmaiado em terra, deu o
espirito ao Criador. Tudo via o Irmão companheiro Pedro Corrêa ; e em
quanto durava aquelle espectáculo sanguíneo, pregava em voz alta, repre-
hendenlo tão grande desatino, com aqiiella sui costumada eloquência, que
abrr.ndâra os mais duros penedos. Porém não erão já ouvidas suas pala-
DO ESTADO DO RRASIL (aNNO DE loí)4) 101
vras, liem erão aqaelles corações os mesmos ; trocárão-se em corações de
feras; endurecêra-os o logo ardente do inferno: carrega logo o cordeiro
manso liuma nuvem de frechas, e feito o corpo todo em hum crivo (qual
outro martyr S. Sehastião) passado o peito e entranhas, não pôde ter-se
em o bordão, cahindo de joelhos, levantadas as mãos ao Ceo, rompeo
aquella alma dittosa as ataduras da carne mortal, e voou á terra dos vi-
ventes, por quem tanto havia suspirado, e padecido n"este desterro. Ficá-
'Yio os corpos defuntos no mesmo lugar do martyrio, pêra serem comidos
das aves, e feras, e ficarão até o dia derradeiro seus ossos, por testemu"
nhãs de tão grande maldade.
178 Oh fera.s cruéis! oh tigres hircanos! a dous cordeiros mansos!
oh Castelhano duro! pagas com morte a quem te deu a vida? Que impor-
ta, que com mão escondida obres o homicídio ? Com mão alhea o obrou
hum Herodes, e foi com tudo martyr illustre o zelador da castidade. Em
tua mão não está a causa do martyrio, está em tua intenção ; e esta foi a
detestarão da pureza. Oh almas ditosas ! oli martyres felices ! Primícias do
Brasil, espelho de Missionários, lustre de Confessores, esmalte dos que
pregão, honra dos Irmãos, gloria da Companhia : com vosso sangue íerli-
lizastes aquellas mattas, com vosso exemplo ficão appeteciveis ; e virá dia,
em que este sangue brote em grandes colheitas d'esta gentilidade. Taes
forão os motivos da morte d'estes serves de Deos : a pregação da Fé, a
castidade, e a obediência; c todos excellentes.
170 Foi o Irmão Pedro Cori'ca no século de geração nobre dos Correas
do Reino de Portugal. Passou-sc ao Brasil naquelles princípios da Capita-
nia de S. Vicente, e foi nella o mais poderoso dos moradores. Gastou mui-
tos annos de sua vida accomodando-se ao modo de viver do lugar, saltean-
do, e cattivando índios por mar, e por terra, de que enriquecia sua casa:
não entendendo a gi'ande injuria, que nisso fazia aquellas creaturas racio-
naes, por natureza livres; antes parccendo-lhe fazia serviço a Deos, com
capa de qm entre Christãos poderião reduzir-se a Christo. Chegou aquel-
la Capitania o Padre Leonardo Nunes no anno de mil e quinhentos c qua-
renta e nove: e ouvindo Pedro Corrêa sua doutrina, e as razões, pelas
quacs estranhava aquellc modo de viver de saltear, o catlivar os índios;
como era homem capaz e bem entendido, fez nelle tanta impressão, que
deliherou, não só deixar o oflicio, mas com elle o mundo, c dedicíu'-sc to-
do a hum perpetuo sacrilicio, entrando em Religião. Julgava, que só d'e5ta
maneira i)oderia [)agar seus i)eccados. Trattou com o Padre Leonardo, foi
102 LIVRO I DA CnnOMC.V DA CO.MPA?;;UA DE JESU
(ielle com cffeito recebido na Companhia (como era seu lugar dissemos)
e foi semelhante sua conversão á de hum S. Paulo; porcfue foi insigne o
zelo com que trattou os índios dalli em diante, padecendo pela liberdade
de seus corpos, e vida de suas almas, fomes, sedes, frios, calmas, malque-
renças, perigos de mar, e de terra, e todo o género de trabalhos, com a
constância do outro Apostolo das gentes. Foi ouvido dizer muitas vezes,
(jiie não poderia alcançar perdão dos grandes males que tinha obrado con-
tra os Brasis, senão empregando-se todo em seu serviço até morrer. Assi
o cumprio; porque cinco annos que lhe restou de vida, forão outros tan-
tos que teve de cattivo de índios.
180 Não podem contar-se facilmente os sertões que correo, os mares
que navegou, os rios que passou, as brenhas que rompeo em busca de seus
amados índios. Por toda a historia atrazada encontramos com estes seus •
trabalhos. Passou intrépido aos arraiaes dos Tamoyos, ás terras dos Tupis,
dos Tupinac[uis, dos Carijós : suspendeo seus arcos, e muito mais seus co-
rações, o grande espirito, c eloquência de Corrêa: (não torno a repetir
passos particulares.) He cousa averiguada, que foi o melhor lingoa daquel-
le t^mpo : dil-o expressamente o Padre Joseph ; e que era tal a corrente
de sua eloquência, que em começando a fallar, suspendia os ânimos. En-
trava pelas casas dos índios pregando, como se entrara pelas suas, ainda
que fossem gentios. A pregação era comraummeníe de noite, e succedia
começar antes do meio delia, e acabar alta manhã, sem que alguém dor-
misse. Com este dom, e seu grande espirito, não podem reduzir-se a nu-
mero os muitos que trouxe de seus sertões ao grémio da Igreja: e os
muitos que cathequizou, que bauíizou, que curou, e livrou da morte. Foi
discípulo do Padre Joseph, não menos na Arte da Grammatica, que da vir-
tude; e de sua classe foi mandado por obediência a esta ultima, e ditosa
missão. O que quiz advertir aqui ; porque se veja, que o Irmão Pedro Cor-
rêa foi estudante em nossa Companhia, e não Coadjutor temporal, como
escreve o Padre Balthasar Telles na sua Segunda parte das Chronicas liv.
5, cap. o2, n.° 13; enganado, parece, ou de que não chegou a ser Padre,
ou dos oílicios baixos, que no serviço da Companhia exercitou por sua hu-
mildade. O contrario he certo: dil-o expressamente seu mesmo mestre da
Grammatica, o Padre Joseph, .por esías palavras. «Começou o Irmão Pedro
Corrêa o estudo de Grammatica, com muita diligencia, e fervor, por ser
ordem da obediência, e com zelo das almas, pêra poder ser ordenado, e
empregar-se mais em seu serviço.
DO ESTADO DO DRASII. (aNNO DE 1*351) 103
181 Sal)i(la a morte d'estc santo Irmão em Piratininga, houve planto ge-
ral entre os índios: enchião os montes oseccos de seus ais lastimosos: jamais
íizerrio a seu modo exéquias mais sentidos. Não faltou pregador: ao redor
dos tristes enojados andava hum dos mais escolhidos, e este em altas vo-
zes se queixava assi : «Aonde está o nosso pai? o nosso mestre? o nosso
pregador? Aquelle que com sua eloquência suspendia por inteiras noites
nosso somno, e nossos corações? Aquelle que era Medico de nossas enfer-
midades, e consolarão em nossos trabalhos? Aonde está? Aonde está?» Per-
guntavão a seu modo aos caminhos, aos montes, aos rios, aos desertos, que
feito era do seu Corrêa? Chamavão cruéis e ingratos aos corações, aos bra-
ços, e aos arcos, dos que lhe tirarão a vida. E a não serem Christãos al-
guns delles, c todos discípulos dos Padres, armarão suas frechas contra
gente tão fera.
182 Algumas mercês do Ceo se conlão feitas a este servo seu em fa-
vor de suas missões: huma de duas vigas de notável grandeza, que no
meio de hum de seus caminiios lhe cahírão sobre a cabeça, com ferida mor-
tal : e quando davão os companheiros por desfeita a missão, o acharão são
de repente, com espanto grande. O mesmo se diz de huma dor de olhos
vehemente, que lhe impedia o caminhar: mas posto em oração, foi livi^e de
improviso, e continuou a empresa. Não são Uvovas estas preservações do Ceo
aos que assi trabalhão por elle.
183 O Irmão João de Sousa foi dos primeiros povoadores da Capitania
de S. Vicente, e dos primeiros que recebeo na Companhia o Padre Nó-
brega. Foi de honesta geração, da casa do primeiro Governador do BrasilThomé
de Sousa. Estando ainda em o século, vivia como em religião, virtuosa e
santamente. Jejuava todas as quartas, sextas leiras, e sabbados do anno.
Não consentia onde quer (jue estava, cousa que parecesse oíTensa de Deos.
Padeceo por esta causa alguns desprezos, c vitupérios; e tudo levava com
alegria. Entrando na Companhia, diz o venei-avel Padre Josei)h, que exce-
dia a todos seus iguaes em charidade, sim[)licidade, humildade, o peniten-
cia: e he este hum grande testemunho. Folgava de servir na cozinha, c
mais olíicios baixos, por agradar a todos, e ilesprezar-se a si: e d'estes lu-
gares sabe Deos tirar seus mimosos, pêra favores semelhantes ao que fez
a este servo seu.
184 Destes dous ditosos mancebos escreverão muitos autores: o Pa-
dre Nicolao Orlandino na Primeira pai'le das Chronicas (h Companhia, liv.
14, desde o n." 118. Maííeo liv. 10 das Cousas da índia. O Paiii-e Pedro
104 LIVRO I DA CimONICA DA COMPANHIA DE JESU
Jarich, tom. 2." de seu Thesouro Indico, liv. 1, cap. 24. O Padre Pedro de
Ribadeneira, liv. 4 da Vida de Santo Ignacio, cap. 12. O Padre Spinelo,
na Vida da Virgem Senhora Nossa, cap. 20. O Padre BaUliasar Telles, nas
Chronicas de Portugal, part. 2.° liv. 5, cap. u2. O Catalogo dos Martyres
da Companhia de .lesu. António de Vasconcellos, na Descripção de Portu-
gal. O P. Eusébio Niereml^erg, tom. 2." dos Vari3es illustres da Companhia.
E primeiro que todos o Padre Joseph de Anchieta em seus notados ma-
nuscritos.
185 Na Casa do Espirito santo continuava o Padre Braz Lourenço, que
alli deixámos em lugar do Padre AíTonso Braz o anno antecedente, quan-
do passámos com o Padre Leonardo Nunes. Entre as cousas do augmento
espiritual que alli fez, foi huma devota Confraria, com invocação da Chari-
dade: o instituto o mostrava; e era elle, que além da confissão, e com-
munhão nas festas principaes do anno, e de Nossa Senliora, todos os que
nella entravão, ílcavão obrigados a procurar com todas as forças desarrei-
gar dous vícios (os mais communs na terra) juramentos, e murmurações ;
com pena destinada por regra, que pagaria certa quantia de dinheiro pêra
ajuda de casar huma orfãa, todo aquelle, que ou em sua pessoa fosse achado
commeter os taes vicios, ou os consentisse nos outros sem trattar de lhe
applicar remédio conveniente assinado na mesma regra.
186 Porém entre todas as obras que aqui fez este varão, huma tenho
por rara, e que denota seu grande espirito, e obediência; por que consta,
que residindo n'esta casa por alguns annos, não teve nunca í^adre compa-
nheiro, nem. ainda Sacerdote de fora, que o aliviasse nas obrigações
exteriores do povo, ou nas interiores de sua consciência: e só tinha por
companheiros Irmãos (pela grande falta que havia de Padres.) Bem se dei-
xa ver quanta pureza d"alma he necessária, e quanta confiança em si, e em
Deos, a hum homem, que ha de administrar sacramentos a outros, e não
tem quem lhos administre a elle: e quanto zelo seja necessário pêra que
tendo por ofllcio levantar os outros, não tenha, se cahir, quem o levante:
ou he que sua consciência lhe dá confiança de «não cahir; ou que com ris-
co de seu remédio (caso que caia) quer acudir aos outros cabidos: e isto
he mais.
187 Este só Sacerdote era o Parocho daquelle povo todo: nem na nos-
sa, nem em alguma outra Igreja, havia quem pregasse, ou confessasse, ou dou-
trinasse, ou administrasse sacramento algum: a tudo acudia hum só Braz Lou-
renço incansavelmente, e com tal fruto, que disse d"elle o venerável Padre José-
DO ESTADO DO BRASIL (aNNO DE 13^)4) 105
ph, que d'aquelle bom tempo durava ainda em o seu, sendo elle já velho, na vil-
la do Espirito santo o eíTeito da doutrina do Padre, por estas palavras: «Doutri-
nava, eprêgava (diz) com tanto fruto, que além do aproveitamento dos pais,
ficarão os filhos com tanta luz, e tão aíTeiçoados á virtude, como ainda ago-
ra se enxerga, especialmente nas mulheres, as quaes n'aquella pequena idade
ganharão pêra o tempo futuro pêra si, e pêra suas filhas, continuando qua-
si todo o femineo sexo a confissão, e communhão cada oito, e quinze dias,
com notável fama de honestidade entre todas as do Brasil.» São palavras
do venerável Padre, que he bem lhe agradeça esta nobre villa.
188 Não estava satisfeito o Ceo com os obreiros que tinha levado pêra
si: hia também fazendo sua colheita quasi cada dous mezes. No Collegio da
Bahia chamou a melhor vida aquelle Irmão simplicíssimo, por nome Do-
mingos, a quem (como dissemos) por respeito de sua grande simplicidade
poserão por sobrenome Pecorela. N'este servo de Deos andava em ques-
tão, qual florecia mais, se a simplicidade, ou a obediência? He certo que
forão ambas insignes n'elle estas virtudes. Cinco annos sérvio este servo
fiel a Companhia, e em todos elles se teve sempre por hum escravo com-
prado por dinheiro pêra o serviço da casa; sem mais querer, nem mais pre-
tender, que o de hum escravo leal. Entre os mais olTicios da obediência, o
principal era ter cuidado em hum jumentinho, e ir com elle a todas as par-
tes onde era mandado em busca do sustento da casa, que era pobrissima.
Bastava significar-lhe o Superior: «Irmão Domingos, ide á lenha pêra a
cozinha:» sem mais demora, a pó descalço, roupeta a meia perna, esem bar-
rete, nem sombreiro ordinariamente, aparelliava seu jumentinho, e hia ao
matto a carregar de lenha; e da mesma maneira á fonte a carregar de agoa;
Não era necessário pêra elle doscançar: tornava ao matto, tornava á fonte
pelo meio das ruas da Cidade, e tinha por gloria o trabalhar pêra servos
de Deos.
189 Quando faltava de comer na Casa (que era muitas vezes) não des-
maiava Domingos Pecorela: ornava seu jumento, liia-se ás aldeãs dos índios,
e entrava com elles com tal graça, fallando-lhes pela própria lingoa, cm
que era perito, que estes lhe fazião a carga do mais eslimado de seus ha-
veres, farinha, caça do matto, batatas, bananas, carás, que he o que pos-
sue esta gente quando mais rica: e era n'aquclle temi)o o comer de mais
estima dos Padres. Era tal a humildade simples, c simplicidade humilde
d'este bom Irmão, que cliegava a tcr-se por obrigarlo a servir ao próprio
jumento: assi curava d"elle, assi se compadecia de seu trabalho, como se
106 LIVRO I DA CUROMCV DA COJIPAMIÍA DE JESU
fora criatura racional: chegava a descuidar de si, por cuidar o asninho-
Pareceo-lhe algumas vezes que vinha carregado sobre suas forças; e logo
compadecido tirou parte da carga das costas do jumento, e a poz ás suas,
e caminharão ambos carregados: e aos que lhe perguntavão, porque toma-
va aquclle trabalho? respondia cheio de compaixão: «Porque esta pobre cria-
tura não pôde mais: e que se diria de mim, se viesse ella arrebentando
com a carga, e o Irmão Domingos folgando?»
190 Aém das referidas, era perfeito em todas as mais virtudes religiosas^
puro, pobre, manso, devoto, mortificado, sofredor de trabalhos, e de gran-
de zelo. Não lhe sofria o coração ver falta alguma, que não estranhasse; e
avisava logo ao que vio faltar, com santo amor, e simplicidade. Como era
perito na lingoa brasílica, fazia pelas aldeãs grande fruto nos índios, com
aqiielle seu modo chão, e simples, de que elles gostavão. Foi dos primei-
ros que recebeo o Padre Nóbrega na Bahia.
191 Adoeceo este servo fiel do Senhor, de hum accidente extraordiná-
rio de pedra, tal que em breve o chegou ás portas da morte. N'estas do^
res foi rara sua paciência, e conformidade com Deos. Perdeo antes que ex-
pirasse os sentidos todos, com o grande tormento das dores; porque não
tivesse lugar o inimigo entre ellas de perturljar sua simplicidade. Acabou
o curso doesta vida em 24 de Dezembro de 1534 com geral sentimento-,
e não menos opinião de santidade: de quem podemos com verdade dizer
o que lá disse Santo Agostinho: Veniunt indocti, et rapiunt regnum coelorum,
etc. Jaz sepultado na Igreja anligua da Bahia.
192 Com o Irmão Domingos Pecorela espirou juntamente o anno de
mil e quinhentos e cincoenta e quatro; e começou o de mil e quinhentos e
cincoenta e cin;^o, Neste se acha vão em toda a província vinte e seis su-
jeitos da Companhia : quatro na Bahia, dous em Porto seguro, dous no
Espirito santo, cinco em S. Vicente, treze em Piratininga : pequeno nu-
mero de segadoras pêra tão grande seara. Residia ainda na Bahia o Padre
Luís da Gram, CoUateral, igual em poderes com o Padre Nóbrega, donde
dispunha os negócios, que succedião d'esta parte do Norte, com grande
nome de santidade, e muito fruto, que tinha feito, e fazia nas almas de
Portugueses, e de índios; levando por diante os fundamentos lançados por
Nóbrega, cujas ordens reverenciava como de santo. Não" acho apontados
casos particulares dos muitos que he certo obrou este varão, e seus com-
panheiros o anno presente.
193 Ainda n"este tempo se não tinhão avistado estas duas columnas da
DO ESTADO DO BRASIL (aNNO DE 1535) 107
Companhia do Brasil, Nóbrega, e Gram; e parecia necessário fazel-o, assi
pêra communicar o passado, como pêra consultar o futuro. Pelo que par-
tio Gram a ver-ss com Nóbrega a S. Vicente : nós porém não poderemos
acompaiihal-o, porque somos chamados a celebrar as exéquias sentidas de
hum incomparável obreiro. Se algum'hora tive paixão contra o império
violento da morte, he na presente, quando vejo, que de hum tão contado
numero como he o de três, e dedicado esse á cultura de huma vinha tão
estendida; chamado pêra o trabalho d'ella por tão grande Senhor, de tão
distantes terras, por tão imniensos mares; roube a morte rigorosa, cruel,
tyranna, hum d'esses três obreiros, e o mais principal; sem respeito a an-
nos, partes, talentos, ou necessidade de fim tão grande. Com razão leio
que chorarão ínconsolavelmente, os dous que somente ficarão, o saudoso
apartamento de hum companheiro, que era a luz, lustre, e exemplo da mis-
são do Brasil, o incansável trabalhador João de Aspilcueta Navarro. Aquelle
tantas vezes nomeado n'esta historia, e nunca assas louvado. Aquelle que
com suas traças, zelo, espirito, paciência, c sangue, tirou tantas almas da
garganta do dragão infernal. Que combaíeo o duro peito d'aquelle homem
nobre no sangue, mas infame nos vicios, escandaloso na cidade : a quem
não poderão render os annos, o Rei, as Justiças, as prisões, os castigos ;
venceo comtudo a perseverança, e paciência rara de João Aspilcueta. EUe
venceo o outro Hercules famoso (caso n'aquelle tempo celebre, e pêra os
séculos exemplo dos que trattão de almas) : era outro não menos duro co-
ração, d"aquelle antes fora que homem, malfeitor pubUco, degradado, so-
berbo, arrogante, desbocado; de quem foliámos no anno de mil e quinhentos
e cincoenta, a quem servindo por largo tempo de criado, chegando a lavar-
Ihe o serviço, e trazer-lhe da fonte o pote de agoa, ultimamente polo san-
gue de huma cruel disciplina acabou de ganhal-o.
104 Esto foi aquelle grande zelador, que vestido de disciplinante sahio
pelas ruas e praças da cidade da Bahia, lavando-se cm sangue, até as por-
tas do Palácio do Governador, cujo Confessor era : espanto, o edificação do
muitos peccadores. Este, o que sabia pelas aldeãs em semelhante trajo,
qual hcce homo banhado cm seu sangue, pregando, ameaçando, c espan-
tando 03 índios : com cujo novo espectáculo, e nunca d'elles visto, deixarão
o abuso cruel da aivm humana. Foi aquelle tão conhecido, e respeitado
entre Portugueses o índios, que chegava a ser bastante só sua presença
pêra compor a todos, ainda quando mais alterados : de cujas ])régações, c
doutrinas íicavão suspensas as almas : por cujo meio se converlerão innu-
108 LIVRO I DA CFIHOMCA DA COMPANHIA DE JESU
meraveis peccadores : a cujas ameaças ti-emião os mais endurecidos. Forão
exemplo os povos de Porto seguro, quando virão os incêndios do Geo,
vingadores em favor da verdade de sua palavra. Este varão foi o primeiro
que sahio com a empresa da lingoa dos Brasis, com que suspendia seus
ânimos. Ilum dos primeiros que sahio com a traça de alistar os peccado-
res públicos, e combatel-os todos os dias, até rendel-os. (^om a de pregar
aos índios de noite, quando estavão mais desoccupados, e talvez a noite
inteira. Com a do modo de viver mais politico, e humano dos índios. Com
a de levantarem altares, e capellas em suas aldeãs. Com a de formar Se-
minário de meninos filhos de índios, donde saliião n'aquella idade tão bons
discípulos, que vinhão a ser mestres dos pais. Com a de pôr ,em canto de
órgão as cantigas dos índios, que continhão a doutrina christãa ; íicando
elles instruídos á volta da suavidade do canto. EUe traçou os modos, com
que foi facilmente largando aquella geqte seus ritos bárbaros, multidão de
mulheres, feitiçarias, vinhos, e abuso da carne humana. Foi dos primeiros
cpie pêra este intento arremeteo ao Tapuya morto em terreiro a tempo já
de ser repartido, e comido, desprezando o perigo da morte, que previa de
bárbaros ainda então não cultivados. Foi finalmente o inventor primeiro
d"aquelia traça de bautizar com a agoa de lenço molhado, espremido so-
bre a cabeça dos que estavão em prisões pêra serem comidos. Com estas,
e outras traças semelhantes, dignas de seu fervor, e espirito, converteo
aquelle varão milhares de almas, com tal facilidade, que corria d'elle o dít-
tado: «Que parecia andava avínculada a conversão de hurae outro mundo.
Oriental, e Occidental, á gente Aspilcueta Navarra.» Este zelo por fim veio
a custar-lhe a vida; porque acommetendo aquella missão (que atraz disse-
mos) de duzentas legoas do sertão, até então só de feras, e gente silvestre
penetrado, depois de acabados muitos dos companheiros na empresa, es-
capou elle tal, que parecia a mesma morte, e veio a pagar o tributo com-
mum.não muito depois d'elles.
195 Foi o Padre João Aspilcueta Navarro de geração illustre, natu-
ral do Reino de Navarra, da casa, e tronco dos Aspilcuetas, aparenta-
dos com a fomilia nobilíssima dos Xavieres, e Loyolas, sobrinho d'aquelle
celebre Doutor Martim Aspilcueta Navarro, Caíhedraíico de Prima da fa-
culdade de Cânones na insigne Universidade de Coimbra, de cuja casa en-
trou na Companhia no anno de húi\, pessoa já então de conhecido exem-
plo. Era de generosos espíritos ; e como tal foi escolhido pêra a maior
empresa que então se considerava da conversão d"este novo mundo, em
DO ESTADO DO liRASIL (AN.NO DE 1555) 109
companhia do Padre Nóbrega, e como a segunda pessoa após elle. Varão
verdadeiramente humilde, simples, e de grande obediência : em cuja prova
succederão casos notáveis, como beber hum copo de azeite ao aceno do
mandado do Superior, qual se íora de agoa; e todos os mais que pelo dis-
curso d'esta historia vimos. D'elle se diz, que mandando escrever em lium
papel a oraçTuj do Padre nosso, e pôl-a sobre os enfermos, saravão de seus
males só com esta mezinha santa. Cansado pois, e consumido este servo
de Deos de seus excessivos traljallios, o mais que tudo da missão sobre-
ditta, passou a meliior vida no CoUegio da Bahia no anno da redempção
do mundo de 1555, recebidos todos os sacramentos da Santa Igreja, com
sentimento geral de todos, e mais excessivo dos que erão maiores pecca-
dores. Jaz sei>ultado na Igreja velha do ditto CoUegio, aonde esperão seus
ossos a resurreição geral dos defuntos. Faz menção honorifica d"este servo
do Senhor o venerável Padre Josepli de Anchieta em varias partes de seus
Apontamentos; Orlandino em muitos lugares das Chronicas de nossa Com-
panhia; Eusébio Nieremberg, dos Varões illustres, pag. 092: E o Padre
Balthasar Telles nas Chronicas de Portugal liv. 3, cap. 9, da parte i.
196 Nâo se acovardava comtudo o pequeno rebanho dos vivos, á vista
de tantos, e taes mortos. Tinhão íe viva que hião estes fundar na outra
vida novos Collegios, e nova Republica na Cidade de Deos, cujo costume he
sustituir iguaes, ou mais aventajados aos que leva em empresas semelhan-
tes. Lidava n"este tempo o espirito de Nóbrega incansável na conversão dos
índios em S. Vicente, e experimentava nelles vários eITeitos á medida da
variedade de sua natureza inconstante; especialmente sobre o vicio de matar,
e comer em terreiro os inimigos. He notável u*esta matéria o caso seguinte.
Corria o principio de Janeiro do presente anno, e forão-se ás escondidas
dos Padres quantidade de índios das aldeãs de Piratininga a hum lugar
])or nome Jaraibatígba, aonde tinhão jH-eparado grandes vinhos pêra brin-
darem sobre as carnes de hum Tapuya, que havião de malar, e comer em
terreiro. Obrarão seu intento livremente, porque ficavão muito distantes
dos Padres : porém voltando não se acharão tão folgados; porque o Padre
Nóbrega revestido da ira do zelo de S. Paulo, depois de i-eprehender gra-
vemente o atrevimento em hom(!ns já Christãos, os mais d'elles, lhes deu
penitencias mui graves; e entre eilas, (luc não entrassem na igreja até não
irem todos disciplinados de mão commum (como o foi'ão em suas festas
abomináveis) pedindo i)erdão ao Senhor, (jue tinhão olíi.-ndido. Quem vira
o arrependimento destes Índios, e a facilidade com que aceitáiíio as [)e-
lio LIVRO I DA CIIUONICA DA COMPANHIA DE JESU
nilencias, diria, que não havia gcnle mais apta pêra o reino de Deos. Po-
rão todos sem repugnância alguma, disciplinando-se : liião diante d'elles
seus filhos canlando-lhes as Ladainhas, e Psaimo Misererc : e depois de
feita a penitencia, e reconciliados á antigua graça dos Padres, voltarão logo
ao vomito.
197 Não tinhão passado muitos dias, quando indo estes mesmos á
guerra, tomarão n"ella hum Goayaná contrario; e voltando-se com elle pêra
a aldeã, convidados parece de suas boas carnes, determinarão fazer o mes-
mo que tinhão feito em Jaraihatigba : e o que he mais que pêra prova, que
era a causa publica, o próprio Principal já Christão, por nome Martim Af-
fonso de Mello, mandou alimpar o terreiro defronte das casas dos Padres,
com tal resolução, festa, e alarido, como se em seu sertão estiverão (que
parece não ficão em si n^estes casos, ou arrebatados do ódio do inimigo,
ou do amor da carne humana, ou do appetite da honra, que cuidão ganlião
em semelhante acto). Já chegava a ser preso em cordas o pobre Goayaná,
já corrião os brindes, já se aprestavão as velhas, repartidoras que havião
de ser das carnes do triste padecente : prevenião fogo, lenha, panelas em
que cozel-as: já finalmente se enfeitava aquelle valente triumphador, que
havia de ser obrador de tão illustre feito. Quando n'este comenos sentio o
descomedido e arrogante Principal a força do espirito de Nóbrega: o qual,
depois de tentados os meios de brandura sem effeito, mandou Religiosos
resolutos, que quebrarão as cordas, largarão o preso, afugentarão as ve-
lhas, desfizerão o fogo, quebrarão as panelas, e tallias de vinho; e o que
mais espanta, senhoreárão-se da própria maça, ou espada, com que costu-
mão esgrimir, ferir, e matar n'esta3 occasiões; e he entre elles-o maior
aggravo. Aqui se deo por afrontado o bom Principal Martim Affonso: gri-
tou, assoviou, bateo o arco, e o pé, appellidou os seus, e ameaçou que
lançaria de suas terras gente que não deixava desafrontar-se hum Princi-
pal de seus inimigos. Pretendeo tornar ao intento; e em lugar da maça,
ou espada; houve huma fouce ás mãos, e quiz obrar com ella a morte,
que com a espada não podia: porém foi-lhe tirada com tal industria, que
ficou frustrado seu intento, e o Goayaná livre. E o fim mais espantoso foi,
cpie quando se podia esperar de hum Principal aggravado, e vassallos tão
inconstantes, hum grande desatino; posto distante de todos elles Nóbrega,
lhes estranhou com tal resolução, e espirito a fealdade do deliíto que com-
metião homens já da Igreja de Deos, que voltando todos as costas se forão
como envergonhados meter em suas casas; e passado o furor, e reprehen-
DO ESTADO DO BIL\.SIL (ANNO DE looo) III
dido também o Principal de sua sogra, c mulher, índias Christãas, e de
bom respeito, tornou em si elle, e os demais caiiirão no mal que íizerão,
c forão lançar-se aos pés dos Padres a pedir-Uies perdão de sua ignorância.
198 Trazia o Padre No])rega tempo havia era seu peito (como já tocá-
mos) grandes fervores de ir assentar sua residência com alguns compa-
nheiros entre os índios Carijós, que habitavão a mór parte da costa maritima
até o Rio da Prata, e era grande multidão de gente accommodada pêra a
Fé; e cercada de outras nações, das quaes todas se esperava grande co-
lheita. Estes pensamentos revolvia em séu entendimento, quando chegarão
Embaixadores de todas aquellas partes do Paraguai, e Rio da Prata, onde
por fama era mui conhecido o zelo de Nóbrega, e de seus companheiros
como de homens santos: e pedião que quizesse ir, ou mandar alguns dos
seus a ensinar-lhes o caminho da verdade. Vinha entre os mais índios hum
grande Principal já Ghristão, por nome António de Leiva, cujos desejos de
levar os Padres erão tão grandes, que depois de atravessar com muitos
trabalhos sertões de duzentas legoas com seus vassallos, dizia, que ou ha-
vião de ir com eUe os Padres, ou elle com todos os seus liavia de ficar
entre elles. Dava por razão, que todas as nações d'aquellas suas partes es-
tavão compromettidas n'elle, e seria afronta sua tornar com mãos lavadas:
e que se os Padres fossem com elle, todos havião de ouvir sua doutrina,
e sem elles ficavão sem remédio de quem lhes pregasse desenganadamen-
te, e fora de cobiça. Facilitava a petição do Principal, outra occasião op-
portuna de serviço de Deos: porque pretendião passar poios mesmos ser-
tões ao Rio da Prata parte da-juelles Castelhanos, que o Padre Leonardo^
Nunes de boa memoria tinlia trazido, na forma que dissemos, d'entre o
Gentio dos Patos, e não poderão ir com os primeiros. Pt.'dião estes agora
ao Padre Nóbrega, quizesse mandar-lhes dar escolta por alguns Religiosos
lingoas, que franqueassem a passagem entre as nações por onde havião de
passar, que só aos Padres conhecião, e respeitavão.
190 Todas estas razoes erão settas de fogo, que incendião em chari-
dade o coração de N(jbrega : i)or todas ellas esteve resoluto a partir-se, e
a ponto já de embarcar-se com alguns companheiros em canoa pelo rio
abaixo, que retalhando a([uelle vasto sertão, vai a desembocar no rio Pa-
raguai, e da Prata. Porém o Ceo traçava cousas diversas, e foi servido que
no í)roprio dia 15 de Maio de itròo em que havia de partir, chegasse nova
que liniia aportado á villa de S. Vicente o Padre Luis da Gram seu Golla-
teral, i)oi' (juem esperava. E foi ordem parece do Ceo ; porque n'esla de-
112 LIVRO I DA CimOMCA DA COMPANHIA DE JESU
mora leve lugar clc saber em como os Tupis, nação bellicosa, e pela qual
de força liavião de passar, estavão em guerra, e impedião o caminho : e
não era prudência assegurar a passagem aos que lha pedião, nem as pró-
prias pessoas ifesta occasião. Pelo que houve de ficar (que onde o Ceo
não favorece, as traças dos homens são nenhumas).
200 Impedirão-se os fervores de Nobi-ega, porém não se impedirão os
do Padre Luis da Gram. Poucos dias havia que era chegado, e parecia-lhe
que gastava o tempo debalde. Trattou com o Padre Nóbrega o animo que
trazia de se empregar com os índios: foi fácil concordarem tão semelhan-
tes ânimos. Penetrou logo o sertão, levando por companheiro o Irmão Ma-
noel de Chaves, perito na lingoa do Brasil, com intento de fazer residência
em liuma grande povoação de índios, em que parecia poderia satisfazer seu
desejo, e fazer muito fruto nas almas. Porém este intento ficou frustrado;
porque ardia em guerra esta gente, e trattava de outros cuidados. Não fi-
cou comtudo frustrado o trabalho de tão grande caminho, a pé, e sem pre-
venção de viatico, mais que o que davão os campos, e rios que passavão.
201 Frustrada esta, mudou a empresa a outra povoação não menos po-
pulosa, que estava em paz. Ac[ui foi recebido com igual alegria sua, e dos
índios. Propoz-lhes pratica da outra vida, dos bens, e males que esperamos,
e tememos, e da necessidade que tinhão da doutrina da Fé pêra salvar-se.
Vierão facilmente em tudo, fizerão Igreja, e n'ella lhes administrava os sa-
cramentos, e ensinava a doutrina duas vezes no dia, e todas as noites (tempo
mais a propósito entre elles) sabia o Padre, e hum menino com liuma cam-
painha diante fazendo sinal, e corria as casas da aldeã, ensinando em alta
"voz as orações três vezes em cada huma delias : traça com que ficarão cathe-
quizados em breve tempo, e voarão ao Ceo muitas almas, assi de innocen-
tes, como de adultos; trocando estes com gran facilidade seus antiguos
costumes, de muitas mulheres, excessos de vinhos, e mais ritos genlilicos.
Foi grande numero o dos que acabarão a vida bautizados, e com grandes
esperanças do fructo da divina graça ; e o que mais andava por espanto
era, que além de em breve tempo forão todos os desta aldeã Christãos, e
dos melhores daquellas partes, jamais hião á guerra, sem que primeiro
confessassem, e commungassem ; e nunca nella forão vencidos.
202 No fim d'este presente anno determinou o Padre Nóbrega, com
conselho do Padre Luis da Gram, e mais adjuntos seus, formar em per-
feito Collegio o que só era inchoado cm Piratininga, pelas razões que já
apontámos, de ser o lugar o coração da gentilidade daquella Capitania,
DO ESTADO DO DUASIL (ANXO DE 1555) 113
donde mais facilmente podião acudir a grande multidão de gentio, que ha-
bitava aquellcs arredores : e porque era mais aljundante a terra pêra se-
gundo a pobreza daqueiles tempos passarem a vida humana. E teve prin-
cipio a execução desta solemnidade nos primeiros de Janeiro do anno se-
guinte de Í55C. E este foi o primeiro CoUegio formado que teve aProvin-
cia do Brasil. Já neste tempo tinhão quasi acabado as casas, e Igreja de
taipa de pilão, e não com pequeno suor dos nossos estudantes, que pêra
a obra trazião ás costas os cestos de terra e potes de agoa, no tempo que
podião poupar de seu estudo. Notavelmente luzio aqui o trabalho do bom
Padre Alfonso Braz, que foi o mestre, e juntamente obreiro, assi das tai-
pas, como da cari)intaria. Com esta ultima resolução se accommodárão
Classes mais em forma, pêra ler, escrever, e latim : e applicárão-se a este
Coljegio os poucos bens de raiz que possuía a Casa de S. Vicente, ficando
esta vivendo de esmolas somente.
203 Considerando o Padre Nóbrega o zelo, e espirito do Padre Gram
seu Collateral, e como com sua presença ficavão amparadas as cousas de
S. Vicente, tratíou de voltar á Bahia, e visitar a conversão destas partes,
que necessitavão de ol)reiros, e trazer comsigo alguns, especialmente lin-
goas pêra as aldeãs. Communica o intento ao Padre Gram, e dispõe via-
gem pêra o principio do anno seguinte, onde o iremos esperar.
204 Na Casa da villa do Esi)irito Santo perseverava o Padre Braz Lou-
renço com a mesma satisfação, trabalho, e zelo, que nos annos passados.
Era por extremo desejoso da conversão dos índios, e offereceo-se-lhe neste
tempo huma boa occasião. Teve noticia que nas partes do Rio de Janeiro
nndavão em guerras cruéis duas nações delles, chamados huns Temimínós,
outros Tamoyos, (}ue se destruião, e comião huns aos outros : a[)rovcitan-
do-se da occasião (ijor industria lambem, e autoridade do Padre Luis da Gram)
trattou com o Senhor, e Governador da terra, que então era Vasco Fer-
nandes Coutinho, que offerecesse agasalhado ao Principal dos Temiminós,
(jue estava de peior partido, e se chamava Maracayaguaçú, que vem a di-
zer em nossa linguagem o grande Gatto. Fez-se a embaixada, propondo-
se-lhe prudentemente, não sua menor força (porque também em peitos
tão agrestes entrão desconfianças) se não os inconvenientes, e moléstia da
guerra; e que supposto qua já em outras outras occasiões linha dado mos-
tras do valor de seus arcos, quizesse agora descansar, e tratar de vida
mais í|MÍ(!la : e que pcra isso lhe olíerecia suas terras, favor, e anipai-o, e
o dos Padres da (j>miinnhia. (|ue lambem desejavão exercitar com elles o
VOL. 1 8
114 LIVRO I DA CnnOMCA DA COMPANHIA DE JESÚ
que com todas as nações do Brasil. Aceitou o grande Gatto o oíTerecimen-
to : mandou Vasco Fcrruindcs Coutinlio embarcações, o veio com todos seus
vassallos recolher-sc ao amparo de seu Ijenigno protector, e dos Padres
que já por fama conliecião. Desta gente se formou huma populosa aldeã,
onde pelo tempo em diante liouve grande conversão de Chrislãos : e seu
Principal, o grande Gatto, alem de perfeito Christão, foi homem mui pru-
dente em cousas da paz, e da guerra, e em seu tratto pouco differente de
quakpier bem governado Portuguez.
205 Á fama d"estes índios Temiminós, e do fruto que com elles obra-
vão os Padres, descerão de seus sertões grandes levas de gente ; e enti-e
estas o affamado Pirá Obyg, que vai o mesmo, que o Peixe verde, com
grandes aldeãs de que era Principal. E logo da parte de Porto seguro des-
cerão muitos d"outra nação dos Tupinacpiis, e fizerão todos grossas povoa-
ções ; a cuja multidão forão acudindo necessários obreiros da Companliia,
que ganliárão depois muitas atoas, como a historia a seus tempos dirá. E
forão também de grande adjutorio estas aldeãs na conquista que depois in-
tentamos na enseada do Rio de Janeiro, indo a ella em companliia do Go-
vernador Mem de Sá. e seu sobrinho Eslacio de Sá.
LiVeO SEGUNDO
DA
CHRONICA
DA COMPANHIA DE JESU
DO ESTADO DO BRASIL
■^Mf*'^—
Conlmuão os trabalhos do Padre ManoeÀ da Nóbrega^ c seus com-
panheiros, ja mais em numero, com grande fruto na cultura das al-
mas, desde o anno de 1555 alú o de 15G2. Entre os mais obreiros
avulta o Irmão Joseph de Anchieta, prodigioso ; e o Padre Luis da
(iram, segundo Provincial do Brasil. Dá-se noticia das guerras dos
Portugueses contra Franceses na enseada do Rio de Janeiro. Da fun-
dação daquella Cidade^ e CoUegio delia. E tocão-se os trânsitos a me-
lhor vida de nosso Santo Patriarcla Jgnacio de Loyola, d^el-fíei Dom
João 6 terceiro, c dos Irmiios Dertholameu Adam, c Mathcus No-
gueira.
HG LIVRO II DA CimOMCA DA COMPANHIA DE JESU
1 Na cidade da Bahia andava neste tempo occupado o Governador Dom
Duarte da Costa em guerras com todos os índios. E a occasião foi o ale-
vantamento de alguns Principaes descontentes. Erão estes poderosos em ar-
cos, e soíTrião mal a soberania dos Portugueses, que cada dia entravão pela
terra dentro com suas fazendas, e liião fazendo-se senhores até do sertão.
E como era gente valente a dos Tupinambas, victoriosos em muitas occa-
siões, e confederados pêra este effeito com as nações dos Tapuyas mais in-
teriores ; feitos em hum corpo, confiados na multidão de suas frechas, fa-
zendo menos caso de antiguos concertos, levantarão-se, e pondo-se em ar-
mas, fizerão assaltos em diversas partes, matando, e roubando nellas, o
pelos caminhos tudo quanto aclíavão, com confusão desordenada dos mo-
radores todos, e não menos detrimento das aldeãs dos Padres. Derão que
cuidar no principio ao Governador ; porque as queixas dos oííendidos se
exageravão : os da cidade cansados ainda das guerras passadas, fazia-se-lhes
de mal tornar a ellas; e persuadião a paz, ainda com condições desiguaes.
Dizião que os tempos não eram todos huns, e que os aprestos primeiros
erão já consumidos, as despezas deminuidas, a gente pouca, e desigual a
tão pujante inimigo : e sobre tudo, que devia arrecear-se a commum in-
constância da fortuna; e que vencendo nós os presentes, não íicavão por
isso vencidos os inimigos todos : e vencendo elles a nós, ficava arriscado
todo o Estado do Brasil, que dependia mais da fama, que da potencia da Bahia.
2 Podião quebrar o coração estas desconfianças a outro, que o de D.
Duarte não fora : porém era este fidalgo dotado de grande prudência, ex-
periência, e constância de animo : e aos que exageravão a multidão de fre-
chas do inimigo, respondia o que lá o outro celebre Capitão, que sendo
tantas que cobrissem o Sol, á sombra delias pelejaríamos mais desencal-
mados : á falta de aprestos e soldados, dizia, que poucos homens de fogo
bastavão pêra queimar a frecharia toda do Brasil: e á falta de despesas,
dizia, que não erão muitas necessárias; porque esperava comer dos semea-
dos das terras dos bárbaros. Mas chegando mais ao vivo, acrescentava, que
no caso presente a guerra vinha a ser forçosa, não voluntária ; porque era
força castigar a rebeldia de vassallos levantados, sob pena de injuria, e afron-
ta própria. Fez-se emílm a guerra ; porém com tal prudência, que se visse
o intento de castigar, e não podesse ver-se perigo de sermos vencidos. ]Mon-
tou muito pêra este efíeito a boa industria do Capitão Álvaro da Costa, fi-
lho em tudo da prudência, c constância do pai.
1)0 ESTADO DO BRASIL (ANNO DE 1356) 117
n Forão vários os successos da guerra: não he de meu instituto contal-
os 1)01" extenso. Digo S()mente, que teve nella mais lugar nosso esforço,
que nossa Ibrea: com poucos acommetiamos a muitos; mas como erão nos-
sas armas avantejadas, cursavão mais que suas freclias, e contentavão-se os
nossos com derril^ar aquelles que de mais a mais alcançavão, e desistião
(los de maior distancia. E nesta íorma ficavão sempre vencedores, sempre
temidos, não perdião gente, e vinlião a ter o mesmo effeito, ainda que mais
detençosa a guerra. Porém como era grande o numero dos contrários, usou
o Governador de hum ardil de muita importância. Fingio que trattava con-
certos com Sí) a nação dos Tupinambcàs: e como as nações dos Tapuyas se
não confiavão d'esta gente, por ter sido seus inimigos declarados, e só se
unirão nesta occasião a fim de evitar o inimigo commum; facilmente deu
credito ao engano, e concebeo, que querião fazer-lhes treição, lançar-se
com os nossos, e desamparal-os a elles; e foi o mesmo começarem a des-
confiar, que fugir pelos mattos, deixando S(3s os TupinamLàs. Aqui consistio
nosso bem; porque os Tupinambàs, vendo-se faltos de tão grande quanti-
dade de arcos, e que ou mais tarde, ou mais cedo havião de ser vencidos;
trattárão deveras o que fingidamente cuidarão os Tapuyas: e os mais ad-
vertidos pedirão pazes, e se lhes concederão: os que as não pedirão já
menos fortes forão vencidos, parte mortos, e parte cattivos; e erão estes
muitos milhares: e assi teve fim esta molesta, mas bem afortunada guerra,
no mez de Maio do anno do Senhor de 1550.
4 Neste comenos chegou á Bahia o Padre Nol)rega, que o anno passado
deixámos em S. Vicente trattando da viagem, e se aproveitou da monção
da costa. Trouxe comsigo quatro companheiros estremados lingoas dos Índios:
o Padre Francjsco Pires, c os Irmãos António Rodrigues, António de Sou-
sa, o Fabiano de Lucena. Recébeo-o aquella sua Casa com alegre rosto;
ponjue tornava a ver seu Provincial, o numero de seus sujeitos augmen-
tado, e o credito da lingoa brasílica pêra as aldeãs restaurado. Não foi ne-
cessário muito descanso áfiuelle, que todo seu espirito e vida tinha dédi-
cadí) á salvação das almas. Foi informado do successo da guerra passada
dos índios, que castigara, e sujeitara com animo chrislão varonil D. Duar-
t(í da Costa: pareceo-llie disposta a sasão, e trattou logo com o Gover-
nador, que de si era pio, e z(3loso do bem da Christandade, que reduzisse
ás aldeãs os índios novamente sujeitos, assi os já Cliristãos, como os que
o ftnitendião ser, em lugares acommodados, onde os Padres podessem dou-
trinal-os, e estar com elles de assento; fazendo-lhes Igrejas capazes (porque
H8 LIVRO II DA CUROMCA DA COMPANHIA DE JESU
as que aíé finlão linliãn, erão Capellas de visila somente.) Nfío foi necessá-
ria muita força: a tudo deu ordem o Governador, e com effeilo ijrevemente
se formarão muitas aldeãs, e se poserão Religiosos nellas.
5 A primeira aldeã cjue assentarão os Padres, foi junto ao Rio verme-
lho : residirão nella os Padres, António Rodrigues, ordenado de próximo,
e Leonardo do Valle, ambos peritos na lingoa do Brasil (posto que esta
gente se mudou depois pelo tempo pêra outra aldeã de S. Paulo.) A se-
gunda chamada de S. Sebastião, assentarão por então n'outro sitio meia legoa
da cidade; e logo por boas razões ella, e outras se unirão em huma, inti-
tulada S. Tiago. A terceira foi a do Espirito santo, não muito longe
do rio de Joanne, que hoje ainda pei^severa, mas não naquella antigua gran-
deza, que era de mais de mil arcos. A quarta foi a de S. João, no sitio,
que depois veio a chamar-se Tapera de Boyrangaoba. Todas estas quatro
aldeãs presidiou Nóbrega com Padres e Irmãos residentes, pêra melhor
ensino dos índios. E huma das cousas, que muito alegrou ao novo Visita-
dor foi, não achar já por estas aldeãs entre os Christãos mais antiguos o
infame abuso da carne humana.
6 D'este tenpo em diante se começarão a meter nas aldeãs Escolas de
meninos, de ler, escrever, cantar, c doutrina christãa, com a mesma per-
feição dos que estavão no Seminário: de cujo aproveitamento já dissemos.
O modo de ensinar, que nellas se usava, e ainda hoje preservera nas al-
deãs do Brasil (com pouca variedade em algumas delias) he o seguinte.
Rompendo a manhãa, em se ouvindo pela aldeã o sino que tange á Missa,
todos os meninos delia se vão ajuntar na Capella môr da Igreja, aonde pos-
tos de joelhos, em coros iguaes, entoão em voz alta louvores de Jesu, e
da Virgem; dizendo os de hum coro : «Bemdito, e louvado seja o santís-
simo nome de Jesu:» e respondendo os do outro: «E o da bemaventurada
Virgem Maria mãi sua pêra sempre Amen:» e logo todos juntos: «Gloria Pa-
tri, et Filio, et Spiritui sanefa, Amen. E nisto continuão até chegar a mis-
sa. Chegada esta, a ouvem era silencio ; e acabada ella (idos os mais índios)
esperão elles no mesmo lugar o Religioso que tem cuidado delles, o cpial
lhes ensina as orações da doutrina christãa em voz alta, e após esta da
mesma maneira os mysterios de nossa santa Fé, em diálogos de pergun-
tas e repostas, compostos pêra este effciío cm lingoa do Brasil, da santís-
sima Trindade, criação do mundo, primeiro liomem. Encarnação, Morte, e
Paixão, Resurreição, e mais mysterios do Filho de Deos, do Juizo univer-
sal, Limbo, Purgatório, Inferno, Igreja Catholica, etc. E ficão tão destros.
DO ESTADO DO BRASIL ("ANNO DE \iJoG) \\9
qiip podem ensinar, c ensinão com eíTeito em suas casas aos pais, que sãu
mais rudes ordinariamente (supposto que também estes, e as mais tem
sua particular doutrina todos os dias santos, e domingos na mesma Igreja,
com praticas accommodadas sobre ella.) Acabada a Doutrina, tornão a di-
zer os meninos a coros: «Louvado seja o santissimo nome de Jesu.» Respon-
dem os outros: «E o da santissima Virgem Maria mãi sua pêra sempre:
Amen. » E logo esperão que os mandem, e vão todos juntos a suas escolas,
a ler, escrever, ou cantar: outros a instrumentas músicos, segundo o
talento de cada hum: e saem no canto, e instrumentos tão destros, que
ajudão a beneficiar as missas, e procissões de suas Igrejas, com a mesma
perfeição que os Portugueses. (A cuja vista aclíando-se presente hum Bis-
po, não pôde ter as lagrimas, considerando a capacidade que nunca ima-
ginara em taes sujeitos.) Nestas escolas gastão duas horas da manhãa, e
outros duas horas da tarde, tornando-se-lhes a tanger o sino, a que pon-
tualmente acodem.
7 Tangendo ás Ave Marias da noite, tornão-se ajuntar aporta da Igreja,
e darpi formão procissão com cruz levantada diante, e postos em ordem
vão cantando pelas ruas em alta voz cantigas santas em sualingoa, até che-
garem a huma Cruz destinada, a cujo pé postos de joelhos encomendão as
almas do Purgatório na forma seguinte, cm sua lingoa própria. «Fieis Chris-
tãos, amigos de Jesu Chrisío, lembrai-vos das almas, que estão penando
no fogo do Purgatório : ajudai-as com hum Padre nosso, e Ave Maria, pêra
(]ue Deos as tire das penas que padecem.» E respondem todos: «Amen».
Kézão em alta voz o Padre nosso, e Ave Maria, e voltam com a mesma
procissão, o canto até a portaria dos Padres onde por fim entoão, e res-
pondem como assima : «Bcradito e louvado seja o santissimo nome de Je-
su, etc.» esperâo que os mandem, e mandados se vão a suas casas.
8 Este he o exercício dos meninos : o dos Padres he o que se segue.
Bautizão os innocentes, cathequizão os adultos, administrão-lhes o sacra-
mento de Matrimonio na Lei da graça, e o da Eucharislia aos que são ca-
[lazes : ensinão-lhes a boa intelligencia, observância, c perfeição de todas
. estas cousas. Defendem sua liLerdade, curão suas rloenças, prepárão-os
pêra b(ím nioi'rer, sepulífto em suas Igrejas os (jue morrem, com asolem-
1 lidado de enterro dos mais pontuaes Portugueses, com tumba, procissão,
cruzes, velas acesas, Ojnfrarias. E sobre tudo discorrem, e penetrão os
sertões, prégando-lhes o caminho do Ceo, trazend'.»-os, e inlroduziíido-os
na santa Igreja.
120 LIVRO II DA CimOXICA DA CO.^^ÍPANHIA DE JESU
9 IIg bem que digamos também o que os índios fazem. lie esta gente
tanto mais íiicil em aceitar a Fé do vei^dadeiro Deos, quanto menos empe-
nhada está com os falsos ; porque nenhum conhece ou ama, que possa rou-
bar-lhe a affeirão. Seus Ídolos são os ritos avessos de sua gentilidade, mul-
tidão de mulheres, vinhos, ódios, agouros, feitiçarias, e gula de carne hu-
mana: vencidos estes nenhuma repugnância lhes fica pêra cousas da Fé:
e porque he tão admirável a magestade, e consonância das obras do ver-
dadeiro Deos, que ellas mesmas estão pregando ao entendimento mais ru-
de (quando a affeição não está impedida) que são dignas de toda a cren-
ça. Assi que vencidas as difficuldades dos ritos he muito pêra louvar a
Deos, ver nesta gente o cuidado com que os já Christãos, acodem a cele-
brar as Festas, e Officios divinos. São afeiçoadíssimos a musica ; e os que
são escolhidos pêra Cantores da Igreja, prezão-se muito do oíTicio, e gas-
tão os dias, e as noites em aprender, e ensinar outros. Saem destros em
todos os instrumentos músicos, charamelas, frautas, trombetas, baixões,
cornetas, e fagotes : com elles beneficião em canto de órgão Vésperas, Com-
pletas, Missas, Procissões, tão solemnes como entre os Portugueses.
10 Prezão-se de que andem suas igrejas bem adornadas de paramen-
tos, cruzes, alampadas. Confrarias, e tudo o mais do culto divino das ci-
dades. Glorião-se de serem os primeiros que contribuão perã estas peças,
por mais qne empenhem pêra isso seu suor, e trabalho. Será entre elles
falta mui notada, possuírem cousa de preço, sem que repartão com sua
Igreja. Em certas aldeãs visinhas ao mar, sabiam ao mar em tempos de
tormenta, pedaços de âmbar, que os Índios achavão : de raro se sabe, que
não levasse o achado a oíierecer á Igreja, deixando pêra ella alguma parte.
Sei eu que com huma dadiva destas se fez huma boa custodia de prata
dourada,, frontaes ricos, e outras peças do divino culto, em certa aldeã. Nos
dias de Oragos, e Festas, ornão com grande curiosidade suas Igrejas com
enramados aprazáveis de ervas, e flores, que talvez excedem as sedas : traba-
lham todos á porfia; e não ha algum por mais respeitado c[ue seja, que em seme-
lhante ocasião não canse. Será tido por sacrilégio entre elles, deixar de acudir
a huma destas festas, por mais distantes que estejão. He pêra agradecer
ver partir carregadas as pobres índias com os filhos aos peitos, e o cesto
da provisão á cabeça, caminho de huma, duas, e três legoas, pêra chegar
na mesma manhã á Missa, até a qual (por mais tarde que cheguem) não
hão de comer cousa alguma. Os sabbados á tarde acodem á Igreja, e can-
tão devotamente a Salve da Virgem Senhora nossa em canto de órgão, com
DO ESTADO DO BRASIL (aNNO DE looG) 121
seus cirios nas mííos: c todas ns segundas feiras pela manliãa os Respon-
sorios dos defiinlos, encomendando com o Sacerdote suas almas a Deos ao
íini da Missa. Da paixão de Christo são mui devotos: celebrão seus passos
com sentimento, fazem sepulchros curiosos, que muitos delles pintão: to-
mão disciplinas de sangue correndo os passos na semana santa : até os fi-
llios de pequena idade levão nas procissões suas cruzes ás costas. São so-
lícitos de confessar, e commungar; e envergonhão-sc muito entre' os outros
os que não tem, ou idade ou capacidade pêra isso : e os que chegam a
commungar, vão com decência, e seus rosários ao pescoço. Dilatava-se a
huma índia a communhão: depois de varias diligencias, ajuntou hum gran-
de pão de cera, levou-o ao Padre Confessor, pedindo-lhe com grande ins-
tancia, e com não menos simplicidade, lhe concedesse o commungar : in-
dícios de seus desejos grandes. A outro índio dilatava o Padre a confissão:
poz-se de joelhos com mãos levantadas, e lagrimas nos olhos, dizendo : hia
ao malto, e podia caliir-lhe hum páo na cabeça, ou mordel-o huma cobra,
e matal-o, e ficar baldado o trabalho que com elle tinha tomado, indo-se
sua alma ao inferno : e soube dizer tanto, que ficou com escrúpulo o Pa-
dre, e logo alli foi confessado.
11 No Collegio de Piratininga cresceo este anno o trabalho dos obrei-
ros dos índios: portpie estes, levados de sua natural inconstância, e tam-
bém da nec«BSSidade de terras pêra suas lavouras, dividirão-se do lugar em
que o Padre Nóbrega os deixara junto ao Collegio, em sette distintas po-
voações, e todas distantes ; das quaes supposto que acudião á Igreja nas fes-
tas do anno principaes, e quaresmas, a suas praticas, confissões, e com-
munhões; não era com tudo bastante isso pêra sua cultura, e era força
multiplicar-se quasi as mesmas sette vezes o trabalho dos Religiosos, cujo
espirito não sofria seu desamparo. Tinhão, além destas sette povoações, ou-
tra maior a que acudir distante duas legoas: e em distancia de três huma
villa de Portugueses, que commummenfe não tinhão outro Cura, senão os
Padres da Companhia, (jue a visitavão os domingos, o festas, com missa,
pregação, e doutrina. Era este trabalho excessivo, e poucos os obreiros;
e o que subia de ponto, que erão os caminhos aspérrimos, cheios de mal-
tas, e de alagoas, que de força havião de passar a pé, e descalços, com
excessivas calmas liumas vezes, outras com excessos de frios, naquellas
})artes mui rigorosos. Delles diz o Padre Joseph de Anchieta, que d'estcs
caminhos andavão commummenle com os pés esfolados, e escaldados do
rigoj- das neves, e geadas: e succedia a cada passo chamarem de -noite pe-
122 LIVRO II DA CHRONICA DA COMPANHIA DE JESU
ra doeiíles necessitados, e acudirem os servos de Deqs com faciíos acesos
pelo meio das maltas cerradas, tropeçando, e cahindo a cada passo com
assas de perigo. Palavras são de Anchieta: e a tanto se estendia naquelle
tempo o bojo da charidade. «Era tão grande o desvelo (continua Josepli) que
era força fazerem aquelles bons obreiros da noite dia pêra si; porque en-
tão se ajuntavão a rezar as Horas Canónicas, que devião do dia; então fa-
zião suas praticas espirituaes; então tomavão disciplina, e fazião todos os
mais actos de suas devações, e mortificações, com tanto gosto, que não
sentião a falta do somno.» Tudo lie do Padre Joseph, que nas mesmas obr^s
teve tão grande parte.
Í2 Na Casa de S. Vicente meteo o Padre Luis da Gram este aiino hum
novo modo de doutrina das cousas da Fé, por diálogos de perguntas, e
repostas (fiue já nas aldeãs tinha metido entre os índios) na lingoa bra-
sílica : e como naquellas villas os mais dos homens, e mulheres sabião esta
lingoa, e este modo de diálogos he mui conforme ao costume natural do
fallar dos Brasis; foi pêra ver o muito que contentou esta nova traça de
ensinar, e o grande cuidado com que se davão a aprender: especialmente
as mulheres mestiças em breve tempo ficarão mestras, e prezavão-se de
ensinar seus filhos, e escravos com a mesma doutrina; e se vião naquellas
villas tantas escolas, c{uantas erão as casas, onde ellas moravão, com mu-
dança notável de costumes, e frequência maior do sacramento da confis-
são pela lingoa brasílica: porque ficando-lhes impressas no entendimento,
depois de estudadas, as verdades da Fé, era força que obrigassem a von-
tade com mais eírlcacia,^que ({uando erão somente ouvidas. Residião então
na Casa de S. Vicente dous Sacerdotes: estes tinhão cuidado, não só d'esta
villa, mas t:ímbem das outras circunvizinhas, onde não havia Clérigos, e
só elles erão os Curas de necessidade.
13 Neste tempo chegarão novas, que metorão em perturbação toda a
costa, em como naqiiella enseada, a que os índios chamavão Nhiteroy, e
os Portugueses Rio de Janeiro, distante de S. Vicente 24 legoas correndo
ao Norte, tinha entrado huma esquadra de náos francesas, e comcçavão a
se fortificar. Deu esta nova muito em que entender, assi a Portugueses,
como a índios, e par conseguinte aos Padres, que consideravão introduzi-
da guerra, perturbadora de todo o bem, e do socego necessário pêra per-
feita conversão das almas. Na Capitania do Espirito santo, tendo partido
pêra Portugal o senhor da terra Vasco Fernandes Coutinho, e deixado en-
tregue o governo delia a D. Jorge de Meneses, se levantarão os índios de
DO ESTADO DO BHASIL (AN.NO DE \i)i)(i) i^i',',
diVor.sas partos do sortão, especialmente Tnpinaquís, e derão tão cruéis as-
saltos na terra, que destruirão, e queimarão os engenhos, e fazendas, com
morte de muitos Portugueses, e do mesmo D. Jorge, eD. Simão de Castel-
branco, que lhe succedco no governo ; e chegarão a por a villa em tal a-
perto, que forão forçados muitos moradores a despovoal-a, e ir viver a ou-
tros lugares.
14 Não posso deixar de contar aqui (supposto que repugne a penna)
o successo mais triste, que até estes tempos virão as partes do Brasil, e
chorarão os Portugueses d'elle. Foi este o naufrágio, e morte cruel de D.
Pedro Fernandes Sardinha, Bispo primeiro d'este Estado, e dos que com
elle navegavão. Chegara oste grande Prelado á Bahia de Todos os Santos,
cabeça de sua diocese, no principio do anno de 1352, e procedera com o
zelo, e aceitação que n'aquelle anno tocamos : até cjue no presente em que
imos (não sei se chamado do Ceo, se do Rei : dizem alguns, que da me-
lhoria das almas) se embarcou pêra Portugal em companliia de António
Cardoso de Barros, Provedor-mór que fora do Estado, e de outras pessoas
nobres, que levavão Airaiilias de mulheres, e filhos. Derão á vela nos pri-
meiros de Junho; e havendo navegado quatorze dias, armou-sc contra elles
o horizonte com i"era tempestade de ventos de travessia envoltos em escu-
ridão, trov(3es, e relâmpagos; tão furiosa, que logo se derão por perdidos;
porque distava perto a terra, e não podia contrastar a náo a fúria dos ma-
res. Mandou ferrar o piloto o panno; e quando qiiizerão lançar ferro ao
mar (remédio único de suas esperanças) tendo a amarra entre mãos, lavou
o convés tal pancada de mar, que levou comsigo ancoras, e amarras, c
faltou pouco que não levasse os pobres navegantes. A tudo se achava pre-
sente o santo Prelado, e vendo as poucas esperanças que restavão de vida
(porque já hião avistando as praias, e pêra ellas levavão a náo como con-
jurados agoas, ventos, e mares, que batíão furiosamente o costado) posto
de joelhos, depíjis de exclamar ao Ceo, começou hunia pratica aos compa-
nheiros, porém não acabou; porque foi atalhada com confusão de vozes, e
alaridos dos tristes navegantes, que vião a náo ir descaindo sobre hum
disforme penedo que por entre as nuvens, e relâmpagos então mal divisa-
vão, mas logo conhecerão ás claras, hindo dar sobre elle, e fazendo mise-
rável naufrágio, nos baixos chamados de D. Francisco; por outro nomo
enseada do porto dos Francezes, altura ílc dez gráos e hum quarto, entre
dous rios, o de S. Francisco, e outro por nome Cururúig, a dezeseis de
Junho do corrente anno.
124 LIVRO II DA CHRONICA DA COMPANHIA DE JESU
15 Porém aqui (oh fereza de corarôes liiimanos !) quando os ventos,
mares, e penedos dcrão como perdão aos aílligidos naufragantes, sahindo
a terra, huns a nado, outros em o batel, todos debilitados, quasi no ulti-
mo alento, a mãos de selvagens chamados Caétes, que n'aquella paragem
habitavão, acabarão as vidas com naufrágio muito mais deshumano. Em
vendo estes o destroço da náo do alto de suas serranias, descerão ás praias,
a aguardando alli fingirão-se amigos, mostrando compadeccr-sc de seu es-
tado; levárão-nos a hospedar a suas pequenas choupanas, fizerão fogo, trou-
xerão mantimento, alentarão os corpos debilitados; mas com cautela atrai-
çoada, porque fizerão no mesmo tempo aviso a seus circunvizinhos pêra
o que havião de obrar, e veremos logo. O coração do homem he leal, e
mais em occasiões de tanto aperto. Nunca se derão por seguros os pobres
Portugueses : olhavão pêra os hospedes, parecião-lhes feras tragadoras ;
pêra os quintaes de suas pousadas, vião rumas de ossos, e caveiras de
mortos, sinaes dos muitos que tinhão comido, insígnias prezadas de seu
esforço, e valentia. Elles em quantidade innumeraveis, os nossos poucos,
os mais mulheres, e meninos, desarmados, e alguns som camisa, assi como
o mar os deixara. Fazião da necessidade virtude, cariciavão os que conhe-
cião por mortaes inimigos, mostravão-lhes sinaes de agradecimento debaixo
de tão fundados arreceies.
16 Despedirão-se ultimamente de seus hospedes, e forão seguindo o
caminho que elles lhes mostrarão a fim de seu engano. Eis que chegando
ao descoberto das praias, junto a hum rio, que de força havião de passar,
sahem de emboscada chusmas de ferozes selvagens, atroando aquellas en-
seadas com seus costumados alaridos (menos bastava pêra hum exercito
tão fraco.) Cahirão logo desmaiadas mulheres, e crianças com vista tão ter-
rível. Dos homens poucos podião íer-se em pé : fizerão aquella gente fera
dos peitos immoveis alvo de suas frechas, e das cabeças prova de suas ma-
ças, sem resistência alguma. Hião matando huns, e outros carregando, qual
caça do matto, pêra fazer banquetes a toda a sua gente. Oh tigres hirca-
nos ! Que crueldades vossas não virão hoje estas avaras praias ? Nem cho-
ros das crianças, nem abraços das mais, nem despedidas tristes dos des-
posados, pais, e filhos, commovião aquelles peitos duros. As mais tenras
crianças tomavão pelo braço, e despedaçavão em hum penedo, e ás mais
que as choravão, abrião a cabeça, ou rasgavão os peitos com facões de páos
duros. Não chegou aqui a crueldade de hum Herodes, ou a de hum Dio-
cleciano.
DO ESTADO DO BRASIL (ANNO DE 155G) 125
17 Resta poròm o caso mais triste. Tinha passado o rio em balsa o
Prelado, e estava vendo da outra parte toda esta tragedia sanguinolenta,
ouvindo os alaridos dos lobos feros, e os balidos das ovelhas mansas, que
a seus dentes acabavão, e padecia outras tantas lançadas em seu coração:
quando pregado com os olhos no Ceo, e consultando o que faria, sahirão
do mar ás ribeiras do rio multidão dos mesmos selvagens nadadores, que
em busca d'elle, c dos que o levarão, tinlião passado. Signiíicárão-lhe es-
tes por acenos, que era aquelle o grande Prelado dos Portugueses, Sacer-
dote consagrado a Deos, cjue havia tomar vingança de seus excessos. Não
peneirava porém cousa alguma tão duros corações : derão com huma maça
no santo Prelado, abrirão-ihe a cabeça pelo meio. O mesmo fizerão aos
companheiros, e levárão-nos pêra pasto prezado de seus ventres, e seus os-
sos por insignia de tão grande façanha. E este foi o lim do primeiro Bispo
do Brasil D. Pedro Fernandes Sardinha.
•18 O lugar onde foi morto este virtuoso Prelado, he tradição commum
que nunqua mais vio em si fermosura, ou ornato algum natural ; porque
vestindo-se antes de herva, e de arvoredo, ficou dahi em diante estéril,
escalvado, e secco, quaes outros montes de Gelboé pela maldição de Da-
vid, e morrerem n"elles os insignes varões de Israel, Saul, e Jonathas. Do
castigo que houverão na terra estes insolentes selvagens, noutro lugar di-
remos.
19 A este estado tinhão chegado as cousas da Província, quando em
Uoma houve por bòm o Ceo de chamar pêra si a primeira cabeça, e mo-
vimento de toda a machina da Companhia, o bemaventurado Padre, e
Patriarcha nosso Ignacio de Loyola, servo liei, pêra que fosse entrar no
gozo de seu Senhor. Espirou esta alma ditosa ao nascer do sol de huma
sexta feira 31 de Julho do anno corrente da Redempção dos homens 155G,
de idade de Co, dezeseis depois de fundada a Companhia, e propagada
por quasi o orbe todo, com hum cento de Casas, e Collegios de Religiosos
em ti-eze Províncias (não entrando em conta a de Roma.)
20 Varão verdadeiramente prodigioso, c pai de entranhas suavíssimas,
(í amorosíssimas : cujas palavras, não sij ouvidas, mas somente lidas, antes
huma s(j letra de S(;u nome, era bastante a eiiciuír de doçura, e zelo os
súbditos pêra dai- d(5 mão á pátria, parentes, amigos, e desterrar-se por
l)(!m das almas i)era as mais duras brenhas do mundo. A(|ui poderá eu en-
xtji-ir a liistoi-ia i'ara de sua santa vida, por pai conunuin da Cíjmpanhia, o
l)articular da missão d'este novo mundo, não menos que da do Oriente,
126 LIVUO II DA CHUOMCA DA COMPANHIA DE JESU
que encommeiídou a seu amado companheiro Xavier : porém anda e,la es-
critta por tantas, e tão diversas pennas, que dão escusa bastante, pêra que
eu occupe antes a minha em cousas mais occultas d'esta Província. Não
poderei comtudo deixar de fazer d'ella algum Ijreve epilogo.
21 He cousa digna de se notar n'este grande santo, que no mesmo an-
no, em que traçava a divina providencia descobrir aos homens a machina
segunda d'este novo mundo, que por tantos mil annos tivera escondida :
n'este mesmo, que foi o de 1491, sahio a luz com o prodigioso parto de
Ignacio, em Ilespanha, província de Guipuscoa, de troncos nobilíssimos,
sendo Pontífice Innocencio VIII, Imperador Federico III, Rei de Castella
D. Fernando Catholico, invicto, e de Portugal o felicíssimo Rei D. Manoel,
de boa memoria. Porque queria a sabedoria de Deos Nosso Senhor, que
quando se hia descobrindo hum mundo de almas necessitadas, se fosse jun-
tamente criando hum novo portento de santidade, que houvesse de redu-
zil-as ao Ceo. Assi o notarão as Bulias Apostólicas, e o Concilio Tarraco-
nense celebrado no anno de 1602, que depois de chamar a Ignacio Capitão
grande, que Deos mandou a sua Igreja com singular providencia pêra que
nos tempos presentes, qual outro Atlante, sustentasse o mundo aos hom-
bros de sua doutrina, e piedade: accrescentou, que este era aquelle anjo
homem, e homem anjo do Apocalypse, com corpo de nuvem, rosto de sol,
e pés de columnas de bronze afogueadas, hum sobre o mar, outro sobre a
terra.
22 Com razão mostra Deos ao mundo o nosso santo Patriarcha em fi-
gura de anjo homem, e de homem anjo, por dizer que houve n'elle duas
origens, angélica huma, outra humana. Na terra nasceo, humanos forão
seus progenitores, humano seu illustre sangue, e aquella generosa criação
que o perfeiçoou, até ser digno dos palácios dos Reis mais illustres. A
força da predestinação fez cjue subisse ao ser quasi angélico, por destino
de hum tiro ditoso, que deu por terra com o ser de homem, e o subio ao
ser de quasi anjo. Como homem conheceo seus defeitos, e os castigou se-
veramente com lagrimas, e penitencias aspérrimas de cadeas, saccos, cilí-
cios, pés descalços, cabeça desgrenliada, e habitação de huma cova hórrida,
mais de feras, cjue de gent^ humana. Vivia de esmolas, jejuava continua-
mente a pão e agoa (exceptos os domingos.) A cama era a dura terra, fi-
cando apenas em sujeito tão descarnado a semelhança do ser humano. E
contra este homem assi desfigurado assestou o inferno suas machinas, per-
DO ESTADO DO BRASIL (aNNO DE 1556) 1^7
seguio-0, aíírontou-o, aroufou-o, espancou-o, esbofeteou-o, acciísou-o, fez
que fosse tido por louco, por herege, e enganador dos povos.
23 Como anjo parece que gozava da continua vista do Ceo, da face do
Senlior, da Virgem Santíssima, e Bemaventurados. Que segredos lhe não
communicárão ? Que favores, e mimos não fizerão a este seu anjo huma-
nado? Vio cm summos deleites a Trindade Santíssima, a presença de Christo,
c de sua Mãi sacratíssima. Esta Senhora lhe concedeo a pureza angélica :
e forão mais de trinta 'as vezes cfue se lhe communicárão, ella, e seu Fillio
Santíssimo, e Trindade divina, banhando aquella alma ditosa das doçuras
da gloria. Foi-lhe mostrado o modo admirável com que a divina Sabedoria
criara do nada todas as criaturas : a intelligencia verdadeira de muitos mys-
terios de nossa santa Fé : os princípios de muitas sciencias humanas, e o
conhecimento sobrenatural de cousas futuras, e ausentes, como se com os
olhos as vira. Conheceo os pensamentos de peitos humanos, assocegou co-
rações aiíligidos, descobrio enredos do demónio. Foi arrebatado a ver as
cousas celestíaes, o que havia de padecer por amor de Christo, e o pro-
gresso que havia de ter a religião da Companhia, que havia de fundar, o
da infinidade de almas (jue por meio d'ella liavião de salvar-se. Tudo isto
querião significar os resplandores daquelle seu rosto de sol; e juntamente
o amor abrazado de Seraphim, em que se accendia da gloria de Deos, e
salvação do próximo. E que virtudes sobrenaturaes não resultarão doesta
união de amor? Que de maravilhas insólitas, e portentosas não obrou?
Foi visto levantar-se no ar, acudir a diversas parles, juntamente senhorear
os elementos, sopear os esí)íritos malignos, sarar enfermos, e resuscitar
mortos.
24 Porém sojjre todas estas grandes cousas, nos quizerão dar a enten-
der aquelles veneráveis Padres, e Doutores sagrados do santo Concilio Tar-
raconense nos pés de columnas de bronze arfogu(\ados, hum posto no mar,
outro na terra, o espirito particular das missões deste homem anjo, ex-
posto sempre, e como em camíniio, por terra, e por mar, em busca de
almas. Oh que formosos pés! Quám pulchri pedes euanqelizanlium! Que pe-
regrinações não acommeteo? A Monserrate, a Roma, a .Jerusalém, por lles-
panha, por França, por Flandres, por Inglaterra, i)or Itália, a pé sempre,
e sempre descalço, quasí se forão pés de bronze. Qne direi do fogo de sua
charidade? Por ajnverler lium manciíbo lascivo, s(; m(!t(M)em liuma alagoa
gelada no meio do inverno. l*or converter as almas esc<ilhia pôr-se a pe-
rigo da própria salvação, e da i)erda da gloria, i)or ganliar do inferno os
128 LiVHO II DA CHUOMCA DA COMPAMllA DE JESU
próximos. E como ora impossível correr [)er si o mundo totlo, correo o
do Oriento por meio d'aqaelies seus i)rimeiros Missionaiios, e este do Oc-
cidente por meio dos segundos, significados huns e outros polo pé do mar.
Se mais mundos se descobrirão, a mais aspirara : por este zelo grande das
almas, e missões do mar, e da terra, quiz o Senhor que fosse conhecido;
e será servido que seja imitado de seus zelosos filhos. E basta por ora esta
breve noticia pêra nosso intento.
25 Na Bahia passara estéril o anno que começa de 1557, pela queixa
que já fiz muitas vezes, de que não se occupavão em escrever nossos an-
tiguos : he necessário andar mendigando de anno em anno noticias, como
havidas por esmola, de papelinhos velhos, achados acaso : porque os Apon-
tamentos do Padre Joseph, e alguns outros que n'elles estribão, e vem a
ser o mesmo, nem tem os annos todos, nem tudo; antes nem a centissima
parte dos feitos chgnos de memoria d^aquelles ditosos tempos da Compa-
nhia, que pêra bem houverão de andar impressos, não só no papel, mas
nos corações, pêra exemplo dos que proseguimos sua empresa. Passe em-
bora em silencio o presente anno : o certo lie, que não passarão aquellos
obreiros com huma mão sobre outra mão. Achei somente nos Apontamen-
tos do Padre Joseph, que padecera este anno na Bahia o Padre Nóbrega
largas e graves enfermidades. E sabemos nijs por outra via, que todas as
que a divina Magestade llie dava, sofria com tal paciência,* e conformidade
com Deos, que vinhão a ser igualmente de merecimento a elle, e edificação
aos súbditos.
26 Também com os annos entende a roda da fortuna, arbitna de tudo
o criado. No mez de Agosto do anno passado succedeo em Roma a morte
do bemaventurado Patriarcha nosso Ignacio de Loyola. No mez de Junho
do presente succedeo em Portugal a morte do Sereníssimo Rei D. João III.
Huma e oatra morte deu muito que sentir a nossos Missionários : porque
no primeiro perderão pai primeiro, e no segundo pai segundo. Como pai
chorarão a este Príncipe, por Ires razões : porque foi quasi confundador
da Companhia universal; porque foi fundador da Província de Portugal; o
porque foi fundador da mjssão do Brasil. Sabida cousa he das Chronícas
de nossa Companhia, assi communs, como particulares, o muito que con-
correo este Augusto Rei com nosso Patriarcha Ignacio porá a fundação uni-
versal de nossa Religião; já pela grande estimação que fazia de seu Instituto,
já por razões que sobre elle formava, já poi- cartas que em seu favor es-
crevia ao Summo Pontífice, e aos Príncipes de Ioda a Christandade, já por
DO ESTADO DO CUASIL (A.NNO DE !oa7) 1^9
L('','udos que enviava a Roma, já por despezas de sua fazenda real, man-
dando pagar lodos os gastos que necessários fossem, pêra com effeilo ad-
quirii' as Bulias de confirmação. Chegou a dizer nosso santo Patriarcha
Ignacio, que de todos os Príncipes, e Reis chrlstãos, a D. João ÍÍI tinha
l)or principal bcmfeitor da Companhia: e costumava accrescentar algumas
vezes, que era a Companhia mais d'El-R(,'i D. João, que sua. He exagera-
ção; mas he fundada em grandes prlncipiíjs de amor, mui estreito, e íirme
entre este grande Santo e este grande Príncipe. Muitos successos o mos-
trarão, em que me não detenho.
27 Segunda razão, por fundador da Pi'Ovincia de Portugal. Este Augusto
Rei foi o primeiro entre todos os Príncipes, que alcançou em Roma de
Santo Ignacio, e do Summo Pontífice, Padres da Companhia, aquelles dous
primeiros varões os Padres Francisco Xavier, e Simão Rodrigues, dos
quaes este fundou a província de Portugal, aquelle a da índia. Elle os re-
cebeo igualmente em suas casas, em seu palácio, e em seu coração. Em
suas casas, porque logo lhes fundou a primeira em que viverão em Lisboa:
pouco depois a notável Casa professa de S. Roque; e além doesta o insigne
Collegio de Coimbra, primeiro de toda a Companhia, magnifico em ren-
das, e sujeitos passante de duzentos, e illustrado com todas as escolas me-
nores annexas. Não fallo no Real Collegio de S. Paulo na índia, e outros
que ençheo igualmente de rendas, e favores de pai. Em seu palácio recc-
beo-os, fazendo mestre de seu filho Príncipe herdeiro de seu Reino, o Pa-
dre Simão Rodrigues : e em seu coração, fazendo-o Confessor seu, e quasl
adjunto do governo de seu palácio com fino amor até á morte; e depois
d'ella deixando em testamento eiicommendado á Rainha» D. Catharina sua
mulher, que desse a El-Rel D. Sebastião, seu neto. Mestre, e Confessor de
nossa Religião. Assl fundou a Companhia em Portugal; sendo por esta via
a i)rimeira Província do mundo, que teve nossa sagrada Religião; porque a
Romana n"aquelle tempo não se intitulava Província.
i8 Teiceira razão he, porque fundou a missão do Brasil na forma que
dissemos no principio d'esta historia, mandando a cila o Padre Nóbrega, a
seus primeiros companheiros, com os mesmos fav(jres, e despesas reaes,
com que mandara á índia o Padre Francisco Xavier, e com que depois
continuou com todos seus Misslonaritxs. Poi- estas três urgentes razões sen-
tio a Província do lirasil a falta de hum tão magnifico e ti'esdobrado fun-
dador. Fizeião-lhe os Religiosos delia as devidas exéquias, e repiesentárão
fúnebres orações de suas vliludes \eramente reaes. Não foi menor o seu-
voi,. i 9
130 LIVRO II DA CHRO.MCA DA COMPANHIA DE JESU
timento do Estado todo. Cobriíão-se de triste luto os Governadores, os
Capitães, e os nobres do povo : a todos chegou o sentimento, como a to-
dos abrangera o fervor de suas Armadas, com que os soccorria.
29 Por estas tão multiplicadas obrigações, era devida que na historia
d'esta Provincia se fizesse larga narração das excellencias d'este Principe :
porém como andão tão notórias, escrittas por tão graves authores, conten-
tar-me-hei com referir aqui somente o epilogo que prégarião das virtudes
reaes de seu animo os Oradores de suas exéquias : e são as seguintes. O
nascimento deste Principe vio juntamente os prognósticos de suas felici-
dade. No mesmo dia de 6 de Junho de 1302, em qué sahio á luz em Lis-
boa, sahio o Ceo com huma novidade insólita; porque movendo os elemen-
tos, fez que desfeitos em trovões, e relâmpagos atroassem o mundo, e fi-
zessem celebre o dia. Com effeito considerado no melhor do verão, e que
erão as vozes, e luzes somente festivaes, e a ninguém nocivas : tiverão os
prudentes, que forão applausos do Ceo, com que introduzia em seus Rei-
nos este Principe novamente nascido : costume seu em nascimentos ex-
traordinários. Ao successo referido foi feito o epigramma seguinte :
Nasceris, insequitur tempestas hórrida : nimdi
Insiieliy pliivia proecipilant cadunt.
De uper incipitint tonilus mugire, coruscant
Fulgura fulminibiis mista, flagrante Polo.
Certatim venti voluum maré, saxea laxat
jEohis arAolo põdere claustra notis.
Nullaque mturw pars non trcmefacta faliscit.
Dum novus Hesperio nasceris orbe piicr.
Natura immanes partus pariendo laòorans,
Significai qiiantum sic pariendo feral.
Chegado a idade de vinte annos, por fallecimento de seu pai o invicto Rei
D. Manoel, tomou o sceptro do governo do Reino em Dezembro de 1521,
desposado com a Sereníssima Rainha D. Catharina, filha de D. Philippe
1 Rei de Castella, irmãa do Imperador Carlos Quinto. Forão raras as vir-
tudes reaes d"este Principe: singular sua piedade pêra com Deos, e culto
divino : ardentíssimo seu zelo de inlrodirzii' a kiz da Fé de Christo nas,
DO ESTADO DO DllASlL (^A.NNO DIC {'Óúl) 131
nações l)ai'baras : Iransordinaria sua prudência, e sapiência em conservar
em paz e justiça seus vassall(js : louvável a humanidade, mansidão, e cle-
mência, com que salva a real magestade, se fazia respeitar de seus povos:
augusta, e verdadeiramente real a magniricencia, com que acudia a lugares
sagrados, e aos oppriniidos de necessidade : exacto, e vigilante em pro-
mover armadas, e expedições pêra a guerra.
31 Assistia aos oíTicios divinos com summa reverencia : traítava com
Deos os negócios de seu Reino com grande confiança : tomava tempos des-
tinados pêra a oração mental, e vocal : ardia em zelo de que todas as cou-
sas que servião nos divinos templos, especialmente Igrejas Catbedraes, an-
dassem compostas, e decentes : pêra cujo eíTeito foi o primeiro Rei, que
pedio Bispos ao Romano Pontifice pêra muitas partes de seus Reinos, que
carecião delles. Em Portugal pêra Portalegre, Leiria, Miranda: na xVsia
pêra Cochim, e Malacíi : na America pêra a Raliia de Todos os Santos : na
Africa pêra o Caboverde, e Guiné. Fez constituir na Etliiopia superior o
primeiro Patriarclia da Igreja Latina João Bermudio; depois d"este o Padre
João Nunes Barreto, da Companhia de Jesu ; dous Bispos pêra seus adju-
tores, e successores no Patriarchado, e outros religiosos varões Pregado-
res da fé, todos da mesma Companhia, cora grandes despesas de sua real
fazenda. Por todas as províncias de seus Reinos fez levantar sumptuosos
templos, provendo todos de Saoírdotes, ornamentos, e peças ricas. Os ma-
gníficos dons, que inda hoje existem em Jerusalém, em Galiza, e cm outros
lugares, são boas testemunhas. Entre todos se diz que leva a ventagem o
formoso alampadario do Templo de Santiago, inveja de todos os que alli
oíTerecêrão grandes Príncipes.
32 Foi grande exemplo de sua piedade o sentimento que mostrou no
caso do sacrílego herege, que em presença do próprio Rei, nas mesmas
festas do Príncipe seu filho, na m(jr celebridade do templo, arrebatou das
mãos do Sacci'dote (quando a mostrava ao povo) a divina Hóstia consagra-
da. Por muitos dias esteve encerrado sem ver a luz do dia, nem fallarcom
pessoa do seu palácio, suspirando, e derramando copiosas lagrimas: quando
sahií) foi vestido d(3 luto no meio de uma {)njcissão a pé descalço, a íim
de aplacar a ira divina. Tão intimamente st-nlia as offensas da divina Ma-
gestade, aquelle que nas occasiões do próprio sentimento da perda de dez
íiliios, e muitos ii-mãos, que a cruel morte lhe roubái"a, se havia com tão
plácido animo, que poucos dias dej)ois do transito do Priíicijje único her-
deiro de seus Reinos, de pouco desposado, sahio a jtublic^j de festa com
132 LlVnO II DA CimONICA DA COMPANHIA DE JESU
toda a sua côrtc a celebrar o dia dos Santos três Reis Magos. Oh coração
verdadeiramente catholico !
33 O zelo da Fé que ardia em seu peito fez que metesse em Portugal
o sagrado Tribunal da Inquisição contra a herética pravidade. D'elle se diz
que conquistou mais gentes com a Fé, que seu pai com as armas; e forão
estas assaz victoriosas. Fez exquisita diligencia porque se achasse na índia
o sagrado corpo do Apostolo S. Thomé, que alli era fama estava sepulta-
do: até que por meio de seu Yiso-rei Duarte de Meneses fui descoberto,
com singular consolação do Rei, e universal da Christandade. Mandou guar-
dar suas preciosas relíquias decentemente em hum cofre de prata de arti-
ficio mirífico da Cliína, á custa de sua real fazenda.
34 Chegou a ser chamado reformador das Religiões. Avocou a seu
Reino varões insignes em virtude, e observância religiosa, dé diversas na-
ções, que ajudassem a llorecer estes jardins príncípaes das virtudes em
JPortugal. Introduzío novas Religiões, além da Companhia, as duas mais
observantes do Patriarcha S. Francisco, da Piedade huma, outra da Ar-
rábida, com cujo exemplo de santa vida, e pobreza, ficou edificado o Reino.
35 Em nenhuma cousa mais campeava a prudência d"este grande Rei,
que na eleição acertada de Ministros inteiros, e incorruptos na justiça das
partes, e pacíficos no governo dos povos. Celebre foi o caso da sentença
que deu contra sua real fazenda, e sendo presente o mesmo Rei, o Desem-
bargador Francisco Dias de Amaral, em causa de trinta mil cruzados. Ao
segundo dia foi chamado o Desembargador a palácio, e quando podia ar-
recear acharia o Rei mal contente, experímentou-o muito ao contrario; por-
que lhe disse: «Eu vos chamo pêra agradecer-vos o animo com que cons-
tantemente julgastes contra mim o que a justiça vos ditava : fazei-o assl
sempre, e sempre me sereis agradável.»
36 A este Príncipe deve Portugal o augmento, e exercício apurado das
letras sagradas, e profanas. Restituio á cidade de Coimbra a Universidade,
alma das sciencias, que El-Rei D. Dinis alli tinha principiado. Chamou
pêra ella os mais celebres, e florentes Mestres de França, e Ilespanha, com
estipêndios, e mercês. Dotou-a de jiassante de trinta mil cruzados de ren-
da. Constituio n"ella Collegios de Religiosos estudantes, com rendas com-
petentes : e tudo isto com tão grande lustre da Universidade, que veio ella
a repartir pelo mundo varões insignes em todas as sciencias : em especial
a Universidade de Salamanca, mais nobi^e de toda a Europa, adornou com
três Cathedraticos de Prima do Direito Civil, successivamenlc hum apoz oulro.
DO ESTADO DO BRASIL (ANNO DE 15") 7) 133
37 Entre todos os dotes foi insigne o de sua demência. Com esta jun-
tamente animava, e alegrava seus vassallos; e parecia que queria metel-os
no i)roprio coração, ainda aquelles de quem recebia aggravos: deixo casos
singulares a este propósito celebres. Não era menor sua real liberalidade.
Todos os annos mandava pôr em estado de matrimonio hum grande mi-
mero de orfãas, dotadas do tliesouro real. Sustentava semelhante summa
de viuvas, e pobres. Fazia grossas esmolas a Mosteiros necessitados: e não
erão menores as que destinava pêra resgate de cattivos. De todo o género
de necessitado se compadecia intimamente. Procurava que as sentenças de
casos de morte não se dessem sem mui grande exame : nem era amigo de
Juizes que se prezavão de rigorosos. Assistia em Relação todas as sema-
nas huma vez: e sempre ahi se inclinava mais a absolver, que a condemnar
os réos. Havia lei dos Reis predecessores, que os ladiões que fossem con-
vencidos cm certa summa, fossem marcados em o rosto; porque fossem
conhecidos por taes, e se guardassem delles. Revogou esta lei, dizendo,
«que podião estes homens arrepender-se, e vir por tempo a vida louvável; e
não parecia justo que fossem estimados então pelo que forão, e não pelo que erão
de ])resente; nem fossem pêra com os homens reputados por mãos, os que pêra
com Deos erão tidos por bons. » Seguindo este mesmo ditamen resolveo, que se
fizesse eleição de hum Risjiado em sujeito, cm quem algum de seus Con-
sfílheiros duvidava dar voto, por dizer que tinha vivido em sua mocidade
mais livremente do que convinha, supposto que por então louvavelmente :
mandou comtudo fazer o provimento nelle, dizendo, «que diante da Ma-
gestade humana, não era bem fossem de impedimento defeitos, que diante
da divina já o não erão.» Seu palácio era hum abrigo commum de neces-
sitados. Chegou a propor o ^Mordomo Real, que se escusassem tão grande
numero de serventes nelle, pêra evitar os excessivos gastos : lido o rol
(los que se apontavão, respondeo o magnifico Rei : «Olhai, de huns destes
tem necessidade o Paço, os outros tem necessidade d"elle : pelo que dei-
xai-os ficar todos.» Com a mesjna lib(.'rali(lad(í gastou ita cidade de Évora
grandes summas d(? dinheiro n'aquelle aíTamado cano da Prata, obra que
fora de Quinto Sertório, e realeza daquelle povo. Por remate do muito
que na matéria poderíamos dizer, fechemos com o testenuinho do Svunmo
Pontifica! Romano, que Címfessou ingenuamente, que não só elle, mas tmlos
os mais Princi[)es daquella idade, Itcavão vencidos da magnilicencia ifal
d El-Rei 1). João IH.
38 Não só em matérias de espirito, mas lambem nas armas foi feliz :
I3i LIVRO II DA CHROMC.V DA COMPANHIA DE JESU
c junto com o nome de Rei pacifico, mereceo também o de guerreiro: assi
salíia promover a |)az, e assi sabia mover a guerra. Não liouve lempo de
m(Jr paz, que o seu: o não liouve tempo do mór apresto, e fortuna de
guerra. Em nenhum outro tempo se expedirão á conquista da índia mais
grossas Armadas. Em nenhum outro alcançarão os Portugueses victorias
de mór importância, nem sustentarão cercos de mór fama. Tocarei breve-
mente.
39 Não foi de importância aquelia victoria nunca assaz louvada, quando
depois de destruída a ilha de Bethel, tomadas as duas cidades de Baçaim,
e Damão, em toda a índia celeberrimas, depois de morto o potentíssimo
Sultão Baudur, Rei de Cambava, e edificada a notável fortaleza de Dio pelo
insigne Governador, e Gapitão-mór da índia, Nuno da Cunlia; vindo acom-
meter esta força, anno de 1538, o grão Baixa Soleimão, Viso-rei do Egypto,
conquistador de Rhodes, por mandado do Grão-Turco Solimão, com grossa
Armada de oitenta velas, cincoenta e cpiatro galés, seis galeões, quatro ga-
leaças, e outros navios de alto bordo, e quantidade proporcionada de Ja-
nizaros, e soldados velhos, com que poz o cerco apertadíssimo notório ao
mundo? Foi rebatida sobre forças liumanas do Capitão António da Silvei-
ra, da casa illustre dos Condes de Sortelha, com seiscentos soldados Por-
tugueses não mais, soffrendo batarias fortíssimas, e aggressões cruéis, até
com eíTeito desalojar o inimigo com fuga vergonhosa, deixando valias, li-
nhas, artclharia, e três mil corpos despojados da vida; admiração de toda
a Ásia, Africa, e Europa ; e causa pela qual o invicíissimó Rei de França,
prudente arbitro de semelhantes feitos, mandou tirar hum retrato ao vivo
do Capitão Silveira, e o fixou em seu palácio entre os varíjes famosos na
guerra.
40 Aqui succedérão dous portentos : hum d"aquelle soldado famoso Lu-
sitano, que vendo-se falto de pelouro, arrancou hum dente da boca, e com
elle carregou, e fez tiro. Outro d"aquelle portento da vida humana, hum
homem natural de Bengala, que aqui acharão os nossos, e tinha vivido tre-
zentos e trinia e cinco annos : conservava em sua memoria os successos da
antiguidade que vira: quatro ou cinco vezes mudara os dentes, e outras
tantas se vestira de cãas, e tornara ao vigor de mancebo. Seguia a seita
pérfida de Mafamede : tiiiha lium filho de noventa annos, outro de doze, vi-
via de esmolas, e certa porção que sempre lhe derão havia cem annos os
senhores que forão do lugar ; e pedia agora confirmação do Governador
pêra ella, que se lhe coucedeo por sua prodigiosa duração.
DO ESTADO DO BRASIL (ANNO DE loo7) 135
41 Não foi menos aííainado no mundo o segundo cerco de Dio do
anno de 1547, tempo de nosso Rei feliz; quando soldados Portugueses,
poucos cm numero, muitos em valor (que erão seiscentos não mais) capi-
taneados por João Mascarenhas, insigne Capitão, sustentarão o rigoroso
combate tão celebrado do poder d"El-Rei de Camljaya, Sultão Mamúde,
superior em forças ao de Solimão, de trinta mil soldados escolhidos de toda
a Europa, Africa, e Ásia, e entre elles seis mil Turcos. Porém era invicto
o animo do Capitão, e soldados: supportárão as frequentes c enfadonhas
batarias de tão grande poder, até que arrasadas as muralhas á força cruel
de cem peças de artelharia, servirão os peitos de muros (seguindo o con-
sellio de Lycurgo) de cento e (juarenta Portugueses não mais, que escapa-
rão de mortos, e feridos; quando passados quatro mezes inteiros de pele-
ja, veio a soccorrel-os o magnânimo Viso-rei D. João de Castro com mil e
quatrocentos Portugueses, e trezentos índios naturaes : e chegando áquella
fortaleza arruinada, e quasi arrasada, tomando maior animo á vista do maior
destroço, ousarão acommeter o inimigo em dous batalhões, com tão des-
usado valor, que he fama constante, que alcançarão n'este dia a victoria
mais famosa que vira o Oriente. ^lorrêrão n"ella oito mil dos contrários de
mais valor, e os outros forão forçados a fugir, faltando dos nossos cincoenta
e cinco somente. Concorroo a tão insigne feito, fora do pensamento dos
homens, o soccorro celeste, que favorecia as armas d"El-Rei de Portugal;
porque durante o conflicto foi vista sobre o templo da nossa fortaleza, cer-
cada de grande resplandor, huma mulher de grande magestade, que des-
pedia raios de luz, e pertui-bava os olhos dos infiéis; e era a Virgem Se-
nhora Nossa, que pugnava pv?la causa dos seus.
42 Na Afiica forão notórias as guerras ([ue sustentou, o os cercos que
defendeo com felicíssimos successos. Valha por todos o alfamado cerco de
Çafim, que por seis mezes (left3nderão os ní)ssos Portugueses contra o po-
der d'El-Rei Xarife, e cem mil soldados de pé, c cavallo, (]ue com conti-
imos e desesperados assaltos, e batarias de grossa artelharia de maquinas
c invençijes desusadas, os combatião com extraordinário aperto. Sahirão
comtudo com a victoria, que o mundo admira, e Cí^lebi-a até o tempo pre-
sente : onde o Xarife, de corrido, c desesperado, levantou o cerco, c foi
forçado confessar, (jue valia mais hum só Portuguez, que muitos Mou-
i'os. Não ])retendo a([iii contar as viclorias todas d"este Rei feliz: fora cousa
mui larga fi^ra de meu inteiiU», se houvera (1(3 rflatar os successos prosp(;ros
de suas armas na Ásia, Afiica, c America: as façanhas de seus Viso-reis,
\^C) LI\-RO 11 DA CIIRONICA DA COMPANHIA DE JESU
Governadores, Capitães: as fortalezas que rcndeo, c ns que fundou com
magnificência real inexpugnáveis. Andão cheas asMiistorias d"csta matéria,
onde poderão vel-as os curiosos largamente.
43 Temos pintado em breve rascunho os dotes reaes d"e5lc Augusto
Príncipe. E quando esperava o mundo vel-os perpetuados com successão
fecunda de compridos séculos, mostrou o Ceo a fecundidade, mas não con-
ceúeo a permanência d"ella: porque sendo não menos que de dez a nume-
rosa progénie dos filhos, dignos da monarchia de seu pai, quaes flores mi-
mosas de jardim real forão cortadas todas em agro no melhor de sua ver-
dura; murchas, e tornadas em terra, antes que vissem o fim de quem as
cultivara. Porei seus nascimentos, e mortes. O Príncipe D. Affonso nascido
em Almeirim em 23 de Fevereiro de lo26, morreo criança, A Princeza D.
Maria nascida em Coimbra em 15 de Outubro de 1527, casada com D. Phi-
lippe, Príncipe de Hespanha, filho do grande Imperador Carlos Quinto, do
parto do Príncipe primogénito; em 12 de Julho de 1545, de idade de
dezesete annos e meio. A Infanta D. Isabel nascida em Lisboa em 28 de
Abril do anno de 1520, espirou menina. A infanta D. Beatriz nascida em
Lisboa em 15 de Fevereiro de 1530, da mesma idade. O Príncipe D. Ma-
noel nascido na villa de Alvito em o 1.° de Novembro de 1531, acabou
de três annos. O Príncipe D. Philippe nascido em Évora em 25 de Maio
de 1533, também menino. O Infante D. Dinis nascido em Évora em 20 de
Abril de 1535, acabou em breve. O Príncipe D. João nascido em Évora em
3 de Junho de 1537, casado com a Infanta D. Joanna, filha do Imperador
Carlos Quinto, de que deixou o Príncipe D. Sebastião, que succ^deo a seu
avò no Reino, em 2 de Janeiro de 1554, de dezeseis annos e sete mezes
de idade. O Infimte D. António nascido em Lisboa em 9 de Março de 1539,
gozou mui pouco da luz da vida. Outro filho bastardo por nome D. Duar-
te, Arcebispo que foi de Braga, também morreo na flor da idade. E por
aqui se acabou tão desejada descendência.
44 Foi El-Reí D. João de medíocre estatura, de rosto fermoso, alvo, e
corado, negra, e densa barba, olhos da còr do Ceo, resplandecentes, e tão
cheios de magestade, que muitos se turbavão em sua presença, e com ser
tão grande a aulhoridade de sua pessoa, tinha huma- serenidade de aspecto
tão amável, que todos os que o víão se lhe aíTeiçoavão: e nem ainda os
próprios inimigos podião tcr-lhe ódio. Morreo cm Lisboa de hum accidente
de apoplexia em 11 de Junho de 1557, de idade de cincoenta e cinco an-
nos, tendo reinado trinta e cinco, e seis mczes; com geral sentimento, ainda
I
DO ESTADO DO BRASIL (aNNO DE loo") i37
(los Gslranlios. Jaz sepultado na capella-múr do Convento Real de Belém,
em companhia de seu pai El-Rei D. Manoel. E he bem que fiquem vivas
em nossas memorias estas breves lembranças.
45 Na Capitania de S. Vicente ia crescendo o arreceio do poder do
Francez, que o anno passado se apossara da enseada do Rio de Janeiro, e
cada vez hião aviltando mais suas cousas. A resolução de sua vinda
áquelle porto foi assi. Tiverão noticias os Franceses em suas terras de co-
mo a gente dos Tamoyos natural d"aquella paragem, muita em numero,
e guerreira, depois de haver estado em amizade com os Portugueses, e
guardado-lhes a fé promettida por algum tempo, vierão comtudo a que-
bral-a, irritados de aggravos que dizião ter recebido d"elles, e que de ami-
gos estavão feitos seus contrários : e como era o sitio do Rio tão acommo-
dado pêra tirar grandes proveitos das drogas principaes do Brasil, espe-
cialmente do páo vermelho, porque tanto suspirão as nações estrangeiras:
vendo por outra parte a pouca, ou nenhuma resistência que podia haver
na entrada, pois nem estava presidiada, nem n"ella havia Portuguez algum
que a defendesse : ao som de todas estas novas que corrião, se animou hum
Nicoláo Yillagailhon, homem nobre Francez, Cavalleiro de S. João, a fabri-
car huma Armada de soldados, e vir occupar inopinadamente a ditta en-
seada; como com elTeito fez, sem fjuem lhe resistisse : e já n*este tempo
em que imos tinha assentado liga com os índios, c com brandas palavras,
e dadivas hberaes, se tinha feito senhor de seus corações, e estavão uni-
dos em hum corpo contra os Portugueses, e de mão commum hião fortifi-
cando-se, dando assaz que entender aos de S. Vicente com sua vizinhança.
46 No anno de loo5 vimos a mudança que fez o grande Gatto, Prin-
cipal das povoações dos Temiminós, das terras do Rio de Janeiro pêra as
da Capitania do Espirito santo ; o gosto com que começarão alli a fabricar
suas aldeãs, e o com qne os Padres da Comi)anhia fazião com elles o fruto
desejado. E comtudo já no anno presente (seguindo seu curso ordinário a
variedade humana) se vêem grandes revoltas d'estes índios, entre si, e
com os Portugueses ; e taes, que vierão a romper em guerras soltas, em
qus se hião consumindo os pobres Temiminós, assalteados huns da cobiça
de alguns Portugueses, outros das frechadas dos de sua nação; com que
chegarão a ter por melhor partido retirar-se ás brenhas do sertão, e tor-
nar a viver como feras. Af|ui se dobrarão os trabalhos dos nossos obrei-
ros; porque não lhe soffreiído o coração que houvesse de sahir com a sua
o inimigo commum das almas, forão obrigados do zelo a entrar pelas bre-
138 LIVRO II r»A ciir.ONicA da companhia de jesu
nlias (quacs pastores em busca de ovelhas perdidas) c não sem fruto; por-
que reduzirão a muitos, e os tornarão a seu rebanho, e primeira concór-
dia, livres dos dentes do lobo infernal, e os apastorárão com o fértil pasto
da doutrina christãa. Os demais successos irá contando a hisloria dos ân-
uos seguintes.
47 No anno do Senhor de 1558 chegou á Bahia de Todos os Santos
Mem de Sá, terceiro Governador do Estado do Brasil, segundo o assento
authenlico do Livro dos Registos, que achei em poder do Escrivão da fa-
zenda real, onde está lançada a provisão de seu oíTicio, que se passou em
23 de Julho de 1556; mas está registada na Bahia no anno chtto de 1558 :
d'onde se convence o engano de Pedro de Maris, Dialogo 5.°, e outras Me-
morias manuscrittas, que vi, e dizem que esta chegada foi no anno de 1555.
O que sem duvida foi erro dos cômputos que fizerão, dando a cada Go-
vernador dos antecedentes três annos ajustados, que começando do aimo
1549, acabavão no anno que dizem de 1555: não advertindo que em partes
tão distantes, raramente, ou nunca pode ser certo aquelle seu ajustamento
mathematico. I\íenos razão de fundamento acho ao Padre Estevão Paterni-
na, liv. 2.'' da Vida do Padre Joseph de Anchieta cap. i, aonde suppõe ciuc
foi feito Governador Mem de Sá no anno de 1559: e tudo foi engano de
co-mputos de pessoas ausentes.
48 Merecia-nos n'este lugar este venturoso Capitão Mem de Sá hum
grande trattado de suas virtudes heróicas, por pai da Companhia, dos po-
bres, da répubhca, dos índios, e de todo o Estado. Mas como pretendo
brevidade, direi summariamente o que d"elle deixou escritto o venerável
Padre Joseph de Anchieta, testemunha contemporânea, e de mór qualida-
de; e outras relações fidedignas. Era o Governador Mem de Sá homem de
grande coração, zelo, e prudência, acompanhada de letras, e experiência
em paz, e guerra. Trazia elle por regimento do zelo dElRei D. João III,
de boa memoria, qne procurasse em seu governo por todos os meios pos-
siveis trazer á Fé de Christo os índios do Brasil: e porque este intento ti-
vesse melhor effeito, sendo-lhe manifesto o animo pio do Governador cjuo
escolhia, na provisão de sua eleição lhe dá a entender o mesmo Rei, que
havia de governar muitos annos, dizendo n'ella, que serviria além dos três
annos ordinários o mais tempo que El-Rei fosse servido : e com effeito ser-
Aio qualorze annos; cujos trabalhos lhe parecerão poucos dias pelo amor
que teve a esta Província, qual Jacob a Raquel fermosa.
49 A primeira cousa que fez este bom Capitão, saltando em terra, foi
DO ESTADO DO BILVSIL (ANNO DE 1538) 139
reeolher-se em hum cubiculo dos Religiosos da Companliia de Jesu, e to-
mar alii por oito dias os exercidos espiritnaes de nosso Santo Patriarcha
Ignacio, á instmcção do Padre Manoel da Nóbrega, consultando com Deos,
o com seu instructor (que conhecia por zeloso, e santo) os meios mais sua-
ves, com que poderia conseguir o intento d"El-Rei seu senhor, e o seu;
que era o mcjr bem do Estado, e conversão dos índios : e pêra todas as
acções que depois obrou, ficou d'aqui animadíssimo, começando em pri-
meiro lugar por sua pessoa, com vida exemplar, que uniformemente con-
tinuou até espirar. Rezava o officio divino todos os dias : infallivelmente
vinlia ouvir missa ante manhãa ao nosso Collegio: confessava, e commun-
gava todos os sabbados, por dias mais desoccupados pêra elle que os do-
mingos. Era continuo em assistir ás pregações, e dava aos Pregadores pias
advertências. Era brando, e benigno pêra com todos, e tão inchnado á vir-
tude, que a não ser a obrigação de seu cargo, escolhera de boa vontade
(como elle dizia) ser Imm dos particulares obreiros, e Missionários da Com-
panhia : mas se na profissão o não foi, parecia-o no tratto familiar, e res-
peito que tinha aos nossos, especialmente ao Padre Manoel da Nóbrega, a
quem consultava em tudo, e sem cujo conselho nada obrava.
50 O primeiro negocio que poz em execução foi o dos índios. Soube
que estes tinhão no tempo de seus antecessores assentado pazes com os
Portugueses, e que, não obstante ellas, vivião sem moderação nos ritos de
seu gentilismo, matando, e comendo seus contrai-ios, vivendo a modo de
feras espalliados pelas brenhas, e fazendo guerra huns a outros, seguindo
o ditamen de seu appetite somente, com prejuízo grande dos que já tinhão
abraçado á Fé, e do toda a republica. Consultou os meios do remédio; e
resolveo que era necessário pôr freio áquellas demasias com leis efRcazes;
e mandou promulgar as seguintes sob graves penas. Primeira, que nenhum
de nossos confederados ousasse d'alli em diante- comer carne humana. Se-
gunda, que não fizesse guerra, senão a)m causa justa approvada por elle,
e os de seu con.selIio. Terceira, que se ajuntassem em povoações grandes,
em forma de rèspublicas, levantassem n'ellas Igrejas, a que acudissem os
já (^hristãos a cumprir com as obrigações de seu estado, e os cathecume-
nos á doutrina da Fé; fazendo casas aos Padres da Companhia pêra que
residissem entre elics, a íim da instrucção dos que qr.izessem converter-se.
51 Promulgadas estas leis, f(ji cousa digna de espanto o como se al-
vorotou todo o vulgo, instigado, parece, das liaças do inferno, e do medo
covarde. Dizião, que todas estas leis vinhão traçadas pelo Padre Nóbrega,
140 LI\-RO II DA CHRONir.A DA COMPANHIA DE JESU
quG orão violentas, imprudentes, e pndião vir a ser cansa da destruição dn
republica. «Que Governador fez nunca tal (accrescentavão) querer prohibir
a gentios seus anliguos costumes? Quem pôde prohibir a hum tigre que
se ceve em carne humana? Quem quizer tirar-lha dos dentes, não ha de
incorrer seu rigor ? Pois não menos incorrerá nossa republica no de tan-
tos milhares de arcos, que pôde armar contra si n'esta prohiljição. Que se
nos dá que facão guerra huns a outros ? Não vemos que n"esta está nossa
paz, porque divertido poder tão grande não possa unir-se contra nós? Pois
obrigal-os que se ajuntem em povos grandes, não vem a ser o mesmo que
ajuntannos nós grandes exércitos sobre nossas cabeças ? Que facão Igrejas,
casas aos Padres, isto não he violentar a liberdade d'esta gente? des-
gostal-os ? metel-os em ira contra os Portugueses ? O Governador que tal
faz, não tem experiência : ha de arrepender-se, e queira Deos que quando
queira possa.»
52 Todas estas murmurações chegarão a ser propostas ao Governador:
porém oppoz-se contra ellas o valor de Nóbrega. Respondia, que os Gover-
nadores passados tinhão feito assaz em chegar com os bárbaros ao estado
presente : e que sendo agora já confederados, e tributários ao Rei de Por-
tugal, seria affronta do nome Portuguez sofrer que á vista das rèspublicas
estejão offendendo ao Criador em acções condemnadas por dii^eito da na-
tureza, como he a de comer hum liomem a outro. Que os tigres não offen-
dem a lei da razão em semelhantes actos, porém os homens sim; e n"este
crime devem e podem ser refreados: d'outra maneira, o rpie n"elles he
l.)arbaria, fica em uíjs sendo impiedade, ou medo. E da mesma maneira se
devem impedir as injustiças que commettem, fazendo guerra levemente a
outros nossos confederados, que vivem confiados em nossa protecção. Dei-
xem, deixem prohibir essa gula, essas guerras; ajuntem-se embora em po-
vos: que temos hum Deos grande, que não pôde deixar de estar .da parte
dos que acodem por sua honra e santa lei. Que os primeiros que aventu-
ravão as vidas vinhão a ser os Padres da Companhia, pois havião de ha-
bitar entre elles: que se houvessem por esta causa de levantar-se, sobre
suas cabeças em primeiro lugar havia de cahir o rigor : e pois c[ue elles
desarmados não temião seus arcos mais ao perto, não tinhão que temer ao
longe tantos armados Portugueses. O coração do Governador era pio, de
gi'andes esperanças em Deos : mandou executar seu bando cm rigorosa ob-
servância; e com effeito se forão reduzindo os bárbaros a cjuatro poderosas
aldeãs, de S. Paulo, de Santiago, S. João, e Espirito santo; e começarão
DO KSTADO DO lillASIL (A.N.NO DE loijH) 141
a viver com mais policia, accommodaiido-se aos novos preceitos, fazendo
Igrejas, e admittindo Padres.
S3 Havia comtudo hum índio grande Principal, por estremo sojjerbo,
e arrogante, assi pela multidão de seus arcos, como pelo sitio aspérrimo,
o defensável em que vivia : chamava-se eníi'e os seus Cururupebá, que em
nosso fallar vem a dizer «Capo buíador:» lançava grandes arrogâncias con-
tra os Portugueses : dizia que erão covardes, que não se atrevião a provar
suas forças, que não se lhe dava de seus mandatos, que havia conservar
seus antiguos ritos, matar, e comer em terreiro seus inimigos ; e que o
mesmo faria aos Portugueses, quando quizessem impedir-lhe acções tão
generosas.» Yierão estas arrogâncias ás orelhas do Governador Mem de
Sá, entendeo que era este Ijarbaro de mão exemplo aos mais; determinou
executar n'elle tal castigo, que servisse de abater os fumos a tão grando
soberba, e meter em espanto os que quizessem imital-o. Escolheo soldados
resolutos, deo-lhes ordens secretas, e quando menos o imaginou achou so-
jjre si o arcabuz dos Portugueses aquelle arrogante ; porque dando de re-
pente em suas aldeãs, enchendo os ares de estrondo, fogo, e pelouro,
meterão em confusão os que descuidados dormião, e quando quizerão
pôr-se em defensa, estavão prevenidos seus arcos, entradas suas casas,
mortos, e feridos os que podião fazer-lhes resistência: os mais fugindoi|)elo
escuro da noite se forão aos mattos, deixando só, e desamparado o pobre
Capo Principal, o qual desencovado donde pretendeo esconder-se, foi to-
mado ás mãos, posto cm prisões apertadas, e trazido á cidade, onde nem
já bufava, nem mordia, nem se inchava do vento de sua natural fantasia.
Foi presentado ao Governador, e metido em áspera, e comprida prisão.
iJivulgou-se a fama do castigo, sérvio de exemplo e terror a todos. Quaes
ovelhas, que virão com seus olhos o lobo fazer carniçaria da, que seguião
por mestre do rebanho, cheas de medo, vão como espantadas metcr-se
em seus curraes, não ousão saliir, nem dentro d'elles se dão por seguras:
assi ficarão todos os demais índios, á vista do castigo severo d'aquelle
maioral.
r>4 No mesmo t('mi)0 cm fjue mandara lançar bando das leis de rigor con-
tra os índios, piomulgou outras em favor dos mesmos, que fossem postos
em sua liberdade todos aquelles, que contia justiça estavão em servidão
f<.'itos escravos de Poi-liigucses : e na execução d"('Sla lei, mostrou finezas
em ílefensãíj dos índios. Estcví; i-ei}elde a este decreto hum homem pode-
roso da terra, reiíugnava largar de si os <iue já linha i»or escravos, cer-
142 LIVRO 11 DA CIIRONICA DA COMPANHIA DE JESU
cou-lhe a casa de soldados, chegou a dar ordem que fosse batida, c lan-
çada por terra; e se executara sem duvida, se convertido a melhor pare-
cer não obedecera o poderoso. Vião os índios esta igualdade no Go-
vernador, que tão constante era pêra enfrear seus excessos, como pêra
desafrontar seus aggravos, levarão em bem suas resoluções, e muito mais
a do successo seguinte.
55 Vierão queixas, que certos índios contrários aos que já vivião em
aldeãs, íizerão treição aos moradores d'ellas, matando Ires súbditos seus,
que sem máo dolo estavão pescando em huma praia, e depois de mortos
os comerão. Aqui entrou em zelo de justiça o christianissimo Governador,
sentindo mais o desacato da honra de Deos, que o de seu bando. Era em-
presa esta mais arriscada; porque por huma parte havia-o com gente fe-
roz, temerosa, senhora de muitos milhares de arcos, de mais de trezentas
aldeãs, que habitavão as ribeiras do rio Paraguaçú, que vem descendo do
mais interior do sertão, e se dão as mãos huns a outros (que d'estes erão
os aggressores do delicto.) Por outra parte estavão á mira os índios offen-
didos a ver como castigavão nossas armas caso que tanto prohibião. Era
força que quando estas não tomassem vingança, o fizessem as suas, com
vilipendio nosso, e maiores estrondos da teri'a. Tudo ponderou o destro
Capitão : mandou consolar os aggravados, e assegural-os, que descuidassem
da satisfação, que n'ella estavão empenhadas suas armas : e aos contrários
despedio mensageiros pedindo os delinquentes pêra que fossem castigados,
na mesma forma em que aggravárão; porque de outra maneira seria força
pagassem todos o delicto de poucos. Metteo em temor a resolução da em-
baixada, quizerão obedecer os Principaes, e entregar os homicidas: porém
elles apparentados, revolverão os povos vizinhos, fizerão-se com elles hum
corpo, apostados a defender-se antes, e libertar por armas costume tão
honrado, e acção tão heróica, como a de matar seus inimigos, e comer
suas carnes. A reposta foi, que não havião de entregar os delinquentes,
que fossem os Portugueses lá buscal-os.
56 Aqui torna agora a segunda desconfiança do vulgo. Sabião a grande
força d'aquelles bárbaros, e dizião, que estavão postos em armas, que ap-
pellidavão em seu favor o sertão, e que podia por aqui occasionar-se a
ruina de nossa gente, por desaggravar infiéis: que menos mal era que el-
les se desaggravassem a si, e não caliisse sobre nós o perigo. Porém o
Capitão Mem de Sá animado de seu esforço natural, e dos forçosos argu-
mentos de Nóbrega, que com grande conliança no Ceo lhe pronoslicava a
\
DO ESTADO DO BRASIL (anXO DE '15o8) li^
victoria; mandou formar exercito, e com ajuda dos mesmos aggravados
(acompanhados do Pad)'e António Rodrigues, grande lingoa brasilica) foi
clle mesmo accommeter os inimigos arrogantes. Desembarcou a soldadesca
em suas praias; mas o lugar onde liavião de começar a pelejar estava mui
distante, que tinhão retirado a gente mais ao interior do sertão entre mal-
tas espessas, por onde hum soldado síjmente não achava caminho, quanto
mais hum exercito : foi necessário ir abrindo estradas á força de machado,
e fouce, subindo montes, baxando valles, passando rios e alagoas moles-
tas por todo hum dia, e huma noite. Eis c]ue aos primeiros raios da
aurora apparece o lugar que buscavão. Era este a eminência de huma
serrania cercada toda em contorno de madeiros grossos, e muitos milha-
res de bárbaros a som de guerra, empenados, e arrogantes, c[ue batendo
os arcos, enchendo os montes de vozaria, assovios, e búzios, provocavão a
guerra. Nada porém acovardou o esforçado coração de IMem de Sá : man-
dou tocar a accommeter, dividido o esquadrão por dous lados, e logo por
hum, e por outro sentio o bárbaro apertadamente o rigor de nossa arca-
buzaria: resistião comtudo valentemente, tendo por si a melhoria do sitio,
e numero dos soldados, que erão iníinitos. Pelejou-se tempo considerável
com vários successos de fortuna, até que por fim enfraquecidos e diminuí-
dos os bárbaros, voltarão as costas, e derão a fugir i)elas mattas : porém
nem estas lhes forão de refugio; porque os índios aggravados, que pelejá-
vão de nossa parte, lhes seguirão o alcance, e quaes lobos assanhados em
ovelhas medrosas, desgarradas, fizerão estrago lastimoso, e tingirão a ver-
dura de sangue.
57 Pare aqui o furor militar : ponderemos hum caso, que mostra bem
o zelo christão do nosso Capitão Mem de Sá. Ouvio no meio doeste estron-
do, que hum dos corpos que jazião prostrados do inimigo tinha menos
hum l)raço : suspeitava-se que liio cortara outro índio contrário pêra co-
mel-o em vingança; foi esta a maior das [lenas (jue sentio na empresa;
parou com os ai)plausos da victoria, e refeição dos corpos, em quanto este
ponto de honra de Deos não se remediava : mandou lançar pregão, que
sob pena de morte fosse restituído o braçx) dentro em tantas horas: e foi
com cITeito; poríjue dentro do temjío destinado se achou o braço junto ao
cori)o do defunto, restituindo igualmeiit(5 com elle o alento ao (Capitão. En-
tão gozou dos vivas da victoria, louvou o esforço dos soldados, e ordenou
que tomassem refeição, e descanso.
08 Porém não parou aqui a \icú)riii : pai^sou a noite, e ao raiar da ai-
144 LIVI\0 II DA CHRONICA DA COMPANHIA DE JESU
va seguinte tornão a ir rompendo as maltas, passando altas serras, e pro-
fundos valles, abrindo vias por arte de aguliião, apostados os vencedores,
ou a perder a vida, ou a acabar de huma vez com aquella que chamavão
gadelha e ronco do gentilismo da Bahia. E na verdade acharão o que cui-
davão; porque estava feito em lium corpo o mais granado de duzentas al-
deãs, empenliados a vencer, ou morrer. A eminência de sua defensão es-
tava fundada sobre cabeços de altos montes, que parecia competião com
as nuvens : suas raizes estavão cercadas de liuma alagoa, qual outra Esly-
gia, chea de horror, e espanto, grossos vapores, e profundas agoas, que
se despenliavão em hum rio furioso, impossivel de vadear. A primeira
diíliculdade das agoas se venceo depois de algumas traças : a segunda pa-
recia insuperável; porque erão os montes alcantilados, como cortados á
enxada. Comtudo, fazendo primeiro huma breve falia o Capitão aos Por-
tugueses, e o Padre António Rodrigues aos índios, deu-se sinal a accom-
meter, debaixo do nome vivifico da Sant;\ Cruz, que arvorarão, e appelli-
dárão. Subião trepando de pés e mãos pegados a raizes que forão das
arvores. Bramia o furor do gentio, lançava penedos pelo monte abaixo, mas
com pouco effeito; porque prohibirão nossos arcabuzes a continuação de al-
gumas partes mais seguras. Chegarão por fim os primeiros aventureiros, de-
fenderão o passo da entrada a outros, estes aos últimos, e entrarão á força.
Representou-se aqui huma tormenta fera : a vozaria descomposta dos bár-
baros, e o estrondo de nossa arcabuzaria por entre aquellas mattas espes-
sas, enchíão tudo de pavor, e espanto-: a frecharia, a modo de nuvens, e
chuveiros, cobria o sol : até que vendo o inimigo o terreiro alastrado de
corpos mortos, de maneira que já impedião os vivos, largarão a força, va-
lendo-se dos pés, e das brenhas : porém debalde; porque forão seguidos,
com tão graníle terror, que se affirma, que matava o pai ao filho peque-
no, porque não fosse descobridor com seu choro da vereda por onde se
escondia : e que foi tão grande a mortandade, que não podião contar-se os
mortos.
59 Com estas victorias voltarão á cidade, e foi n'ella recebido o Go-
vernador Mem de Sá como homem mandado do Ceo, pêra honra, desag-
gravo, e quietação do Estado, e açoute do gentio rebelde. Fizerão publi-
cas acções de graças, e virão os que forão de contrario voto, que não era
debalde a confiança do Governador, e Padre Nóbrega, cuja prudência e
zelo ficou daqui em mais veneração : e com mais espanto quando depois
de passados três dias appareceo á vista da cidade embarcação de Para-
1)0 F.STADO DO BRASIL (annO DE iooQ) 145
guaçíi, e fez sinaes de paz. A embaixada era, que traziâo presos os delin-
quentes causa de todas estas revolta*, pêra que n"elles tomassem vingança
como lhes parecesse, e concedessem pazes á gente que restava, que se
obrigava a guardar dalli em diante as leis promulgadas, e todas as mais
condições, que quizessem impor-llie : que logo querião unir-se a aldeãs, e
admittir Padres, que lhes ensinassem a Fé, e fazer-lhes Igrejas, e casas.
Dobrou este successo a geral alegria, especialmente a de Nóbrega, como
mais empenhado; e não se fartava de fazer novas acções de graças.
GO Tornemos agora a nossos Missionários. Ajudados de tão boas ven-
turas, hião cada dia acrescentando as Igrejas dos índios, presidiando-as
com soldados da espiritual milícia, e produzião grandes frutos, convertendo
e bautizando copioso numero de almas. Á vista d"eslas melhorias parecia
que resuscitava o Padre Nóbrega das continuas enfermidades que padecia,
e com tal excesso, que a qualquer outro derribarão em terra : porém o
fervor do espirito era outra como segunda alma d"este varão, e esta lhe
dava o alento, com que corria, e discorria por todas as aldeãs (que erão já
muitas) visitando-as, anímando-as, eonsolando-as, e sempre a pé com seu
lx>rdão na mão, fazendo pasmar até os índios a eíDcacia de seu espirito-
incansável.
01 Da Capitania de S. Vicente vinhão cada dia apertados avisos, de
como 05 Franceses, que desde o anno de 1356 occupavão a enseada do
Rio de Janeiro, hião cada vez mais apoderando-se do sitio, drogas da ter-
ra, e commercio dos índios, os quaes â vista das armas de França hião
crescendo em suas insolências, e discorrião toda a costa em damno dos
nossos. Dizião, que tinhão já cercado, e entrincheirado todo o sitio: que
entravão por sua barra cada dia soccorros de França : que hião lavrando
fortaleza em huma ilha perto da barra, com que ficarião inexpugnáveis : e
outras cousas, que em semelhantes occasiões sempre se exaggerão, e me-
tião terror aos nossos.
02 Na Capitania do Espirito santo fx:cupavão-se os nossos em trazerem
das brenhas os Temiminós, que dissemos fugirão pêra ellas por máo tratto
de alguns Portugueses, e dissenções que tiverão entre si : e em concertar
as desordens dos índios do sertão; no (fue podião menos, por sua barbara
ferocidade, e menos conhecimento dos Padres. E nada mais achamos por
hora, nem desta, nem da Capitania de Porto seguro.
Gíi Não correo menos venturoso o ánno de loo9 que o antecedente de
r>j8; porque se no antecedente recebeu a Bahia hum;» cohunna secular do
VOL. I IO
i 46 LIVRO II DA ClíRONICA DA COMPANHIA BE JESU
Estado, e conversão da í,'entilidado ; n'este presente anno recebeo o Esta-
do, e conversão da gentilidade outra columiia ecdesiastica mui necessária,
o venerável Prelado D. Pedro Leitão, segundo Bispo do Brasil. Chegou este
Prelado á cidade da Bahia em 9 de Dezembro de 15u9, segundo o registo
de sua provisão, que achei lançada no Livro da fazenda real, por mais que
outros queirão variar este tempo. Suas saudosas memorias pregoão aos
que hoje vivemos grandes exemplos; principalmente no zelo eflicaz da con-
versão da gentilidade, em cuja execução sabemos que ajudou muito aos Pa-
dres da Companliia, chegando elle a bautizar por suas mesmas mãos mui-
tos índios em nossas aldeãs ; e fazendo outras muitas acçijes de Prelado
exemplar, e santo, que eu folgara de haver por menor, assi como me cons-
tão por fama.
C4 Em companhia do ditto Prelado vierão em soccorro d'esta seara do
Senhor sete obreiros : dous Padres, e cinco Irmãos : o Padre João de Mel-
lo, e o Padre Dicio, com os Irmãos Jorge Rodrigues, Ruy Pereira, Joseph,
Crasto, e Vicente Mestre. D"estes obreiros os menos servirão a Companhia
n'esta missão; porque o Padre Dicio não melhorando de certos accidentes
graves que tinha, foi tornado a mandar a Portugal : o Irmão Joseph falle-
ceo em breve no Collegio da Bahia; Crasto, Ruy Pereira, e Vicente Mes-
tre, não provarão no trabalho e zelo necessário das almas, e forão despe-
didos. Trazião novas como fora eleito em Roma por Geral de nossa Com-
panhia o Padre Diogo Laines, varão notável em letras, e santidade, em
lugar de nosso Santo Patriarcha Ignacio de boa memoria ; e juntamente
cartas suas, em que louvava os bons progressos dos que trabalhavão no
Brasil, e animava a proseguir a empresa. Trazião além d"isto patente, em
que fazia Provincial d'esta Província ao Padre Luis da Gram, que então
assistia em S. Vicente; porque se achava o Padre Nóbrega annos havia mui
quebrado, e opprimido de muitas doenças, e lançava sangue pela boca.
Com estas cousas todas, especialmente com a eleição do Padre Luis da
Gram, se alegrou intimamente o venerável velho, assi porcpie tinha grande
conceito dos dotes, zelo, e prudência do novo Provincial, como porque sua
grande humildade o fazia desconhecer os seus : condição sabida de varões
santos, em cujos olhos avultão os talentos alheos, e parecem argueiros os
próprios. Não era isto desejo de descansar, como n'esta historia veremos;
mas erão desejos de ver-se súbdito, e viver sujeito ao mandado d'outro,
por cujo estado havia annos suspirava, e o pedia com anciãs a Deos, e a
Roma.
to ESTADO DO BftASiL (aNNO DE Ioo9) 141
63 Já neste tempo passavão de quarenta os obreiros desta Província. Com
OS que de novo chegarão á medida do fervor de suas petições, foi reforçando
o Padre Nóbrega as residências dos Índios, pondo em todas eilas lium Pa-
dre, e hum Irmão; com que hia em grande crescimento o negocio das al-
mas. Já se achavão índios nas aldeãs, dos quaes se podia liar o serem mes-
tres do Gathecismo, e de outros o serem Pregadores da Fé. Entre estes
foi mui nomeado hum Principal por nome Garcia de Sá : a este concedeo
o Ceo, depois de convertido, a semelhança de hum espirito de S. Paulo
pêra converter os de sua nação; e poz tanta graça em suas palavras, que
suspendia aos índios, e os trazia como a l)andos a procurar o bem de suas
almas, em grande ajuda dos trabalhos dos Padres. Gom a pregação d'este índio
se mudarão pêra sitio mais commodo, e unirão em gente duas aldeãs, que em
tempo do Governador D. Duarte da Gosta se tinhão formado : a do Rio ver-
melho se passou pêra mais perto da cidade, e se unio alli com algumas
outras aldeãs pequenas, fazendo huma povoação grande, com casa de Pa-
dres, e Igreja; e a esta se poz por nome S. Paulo. Outra chamada de S.
Sebastião, com outras mais pequenas forão formar outra povoação nume-
rosa junto a Pirajá, três legoas da Gidade, com casa de Padres, e Igreja, a
que poserâo por nome San-Tiago.
G6 Em S. Vicente vivião n'este tempo os nossos com menos fruto que
desejos, por causa das perturbações da costa, nascidas da vizinliança dos
Franceses do Rio de Janeiro, que se bem até então não fazião per si guer-
ra offensiva, á sombra porém d'ellcs andavão insolentes os Tamoyos, dis-
corrião, e perturba vão toda a costa. Accrescentou-se aqui aos nossos ou-
tro trabalho, efoi o seguinte. Tinhão fugido do Rio de Janeiro ao GapitãoVil-
lagailhon, quatro soldados todos hereges, os quaes elle queria castigar por
erros commetidos (porque era Gapitão catholico, zeloso de justiça, e vin-
gador dos aggravos que se fazião aos índios, principalmentea mulheres:)
chegarão estes a S. Vicente, e forão alli bem recebidos dos Portugueses,
com titulo de estrangeiros, e também de catholicos, segundo ao principio
mostravão. Porém clles começarão logo a vomitar a peçonha que no peito
trazião escondida, da doutrina do pérfido Galvino; t)orque hum delles es-
pecialmente, por nome João Boles, homem douto na lingoa latina, grega,
e hebrea, versado na sagrada Escriltura, adulterada ao modo de sua falsa
seita, faltava sinistramente das Imagens santas, Indulgências, Bulias, Pon-
tífice, e Igreja Romana, diante de homens simples, ao principio em secre-
to, depois em pubhco, c tudo islo misturado com taes g['aças, o diltos,
1 18 u\nó II DA cnr.ONicA da companhia de tesv
que alegrava aos que o oiivião, o parocião bem aos ignorantes; porque fal-
iava destro liespanliol, e folgavão de ouvir sua lábia.
07 Chegarão estas noticias ao Padre Luis da Gram, que eslava em Pi-
ratininga, e em continente se partio por acudir ao principio d'esta peste,
que quando cliegou, já tinha inficionado as povoações maritimas, e levado
apôs si a gente ignorante. Soube o herege d'esta vinda, e como era astuto
e manhoso, e conhecia o zelo, e letras do Padre, arreceou-se, e fez logo
huma invectiva contra elle, cujo principio linha estas palavras : aAdeslemi-
hi Ccelites, afferle gládios anclpites ad fticiendam vlndidam In Liiduvicvm Dei
osorem, ele. Na qual o arguia gravemente, porque deixava de dar o pão da
íloutrina da palavra de Deos aos Portugueses, por dal-o aos gentios, con-
tra a doutrina de S.Paulo, que primeiro manda principiar a doutrina chris-
tãa pelos que são de nossa nação, e depois pelos que são estranhos. A in-
tenção d'este herege era, exasperar o animo do povo contra o Padre Gram,
por faltar á sua doutrina pela dar aos índios: e juntamente o animo do
Padre; porque se fosse reprehendido, ou accusado delle, lhe pudesse in-
tentar suspeições. Porém o espirito d'este servo de Deos, que ardia em vi-
vas chammas por acudir a sua honra ; o mesmo foi chegar, que declarar-
se nos púlpitos, nas praças, no publico e secreto, e confutar as heregias
do homem atrevido; desenganando ao povo rude de suas falsidades, amoes-
tando-o que se guardasse d'elle como da mesma peste.
68 Determinou o herege sagaz de ir visitar ao Padre, que estava n'ou.
tra villa vizinha, por ver se podia, ou abrandal-o, ou irrital-o totalmente
pêra seus intentos: porém não succedeo; porque chegou a tempo em que
estava pêra subir ao púlpito, e vendo-o, deo-lhe tal vigor seu espirito, que
de repente mudou a pregação, accoínmodando-a ao novo ouvinte, como se
muito tempo d"antes a estudara ao mesmo intento. Ficou suspenso o here-
ge, tornou-se ás boas, e acabada a pregação, foi praticar com o Pregador
familiarmente, fingindo-se em tudo Catholico, e dando escusas a seus dit-
tos frívolos. Porém Gram, que entendia bem seus embustes, e sabia que
lavrava a peste em occulto, e que já o vulgo ignorante chegava a dizer que
Boles era homem doutíssimo, que o Padre Gram não ousava disputar com
eUe, que o perseguia pela invectiva que lhe fizera, e cousas semelhantes :
apertou com a justiça ecclesiastica ; e depois de muitas exhortações, e pro-
testos, acabou que se intendesse contra elle, e fosse preso, e remettido ao
Bispo da Bahia. Assi se fez, e dous companheiros moços, e idiotas forão
DO ESTADO DO UHASIL (ANNO DE 1559) 149
com elle: c ficou na terra, onde vivco por muitos annos com mostras de
liei Catliolico.
()9 Em Dezembro, íim d"este mesmo anno, cliegou ás mãos do Padre
Gram a patente que acima dissemos, do cargo da Provincia, mandada da
Bailia pelo Padre Nóbrega. Houve de obedecer; porque nem as occasiurs
nem a distancia do lugar sofrião escusas : e ajuntando os Religiosos todos
na CapcUa do GoUegio; lha manifestou ; e por principio, e protestação da
amor fraterno, com que determinava governal-os, Unes beijou alli os pés,
e pedio com lagrimas ajudassem a suas fracas forças ; e logo leo também
a carta do novo eleito Geral o Padre Diogo Laines, na qual animava aos
que levavão ás costas a cruz da convereão dos natm-aes d>sta Provincia,
e os exliortava a vencer as difficuldades da empresa ; especialmente as dos
duros corações dos índios : e que tivesse cada hum pcra si, que n*este ne-
gocio toda a missão dependia s6 d'elle; e que tinrlia dado ordem em Roma,
que se fizessem especiaes sulTragios pela Provincia do Brasil. Com esla
carta, e com a pratica espiritual que o novo Provincial sobre ella fez, se
excitou em todos os Padres, e Irmãos d"aquella Capitania hum novo fervor
de espirito, com que fazia cada qual por ser primeiro em procurar o que
era mais trabalhoso.
70 Em Porto seguro vivia por este tempo o Padre Francisco Pires, Su-
perior d'aquella Residência, com fama de louvável virtude, e zelo, cujas
memorias ainda andão frescas nos corações d'aqiielles moradores. Este
seiTO de Deos foi aquelle, que com seus suores, e de alguns companheiros-
que comsigo tinha, edificou alli a Capella tão aíTamada de Nossa Senhora
da Ajuda, hum terço de legoa donde hoje se vê a villa, santuário o mais
respeitado e frequentado de todo o Brasil. N'esta Capella foi o Senhor ser-
vido avincular hum prodígio de maravilhas: e o principio d'ellas foi o suc-
cesso admirável seguinte. Ilião aquelles servos de Deos obrando a fabrica
da Ermida no alto de hum monte, e íicava-lhes a agoa, assi pêra a obrr,
como pêra beber, muito longe : havião de descer a buscal-a ao baixo do
valle, e entrar de força pelas terras de hum morador: levava-o este gravemente,
dizendo, que era devassar-lhe sua fazenda ; largava qucMxas contra os Padres,
B contra suas obras. Dobravão-lhe estas o trabalho, e sentião mais a pai-
xão do bom homem, que o cansaço de trazer ás costas a agoa.
71 No meio deste sentimento, he tradição desde aquelles tempos, que
entrarão os Religiosos em apertados i'eí|neriinentos coma Virgem. «OhSo-
iihora» (dimo)sc agora nos concedêreis aqui huma fonte, licáiamos nós ali-
í")0 LIVRO II DA CimOMCA DA COMPANHIA DE JESU
viados, aqiiclle homem assocegado, e vossa obra iria por diante!) «Eia irmãos»
(acrescentou o Padre Nóbrega, que então se aciíava presente) «sabei ter fé;
porque com esta nenhuma cousa he difficultosa : vamos a dizer missa.» Cou-
sa maravilhosa ! Eis que no meio do sacriíicio (que já se fazia na Gapella, pos-
to que imperfeita) ouve soar hum borbolhão de agoa, que brotando debai-
xo do altar, foi sahir por meatos da terra fora da Ermida perto delia ao pé
de huma arvore. Ficarão admirados vendo posto em obra o segundo mi-
lagre de S. Clemente, ou de hum Moysés no deserto. Concorreo a ver a
fonte milagrosa o recôncavo todo, e entre estes o senhor da fazenda, en-
vergonhado de quão mais liberal se lhes mostrara a Senhora aos Religio-
sos, e com agoa mais doce, e clara, sendo a sua de alagoa, e mui some-
nos : e com esta como reprehensão do Ceo, ficou trocado pêra com os Pa-
dres, e por toda a vida devoto especial da Comranhia.
72 Divulgou-se a fama desta maravilha por todo o Estado do Brasil, e
concorrerão d'ahi em diante a estas agoas milagrosas, e santa Ermida da
Senhora (qual a de Nazareth, ou Loreto) os povos todos, como a oíTicina
de milagres, que experimentavão a cada passo, e experimentão ainda hoje
os que com fé visitão aquelle santuário; e folgavão de ouvir os romeiros
do mesmo altar o ruido da agoa, que corre por debaixo da terra até sa-
liir a fonte. Seria cousa muito comprida querer trattar aqui por menor de
todas estas maravilhas : poderão bem sahir com ellas os moradores d'aquel-
las partes, e farião hum grande volume, em maior honra, e gloria da Se-
nhora. Deste prodigioso santuário escreve o Padre Joseph de Anchieta : e
já d'aquelle seu tempo antiguo reconhecia grandes milagres. Porei suas pa-
lavras, como de testemunha tão fidedigna, e porque recopila o que disse-
mos: são as seguintes. «O Padre Francisco Pires foi Superior de muitas Re-
sidências, e assistindo na de Porto seguro, na Ermida de Nossa Senhora,
que he da Companhia, e por sua ordem, e de seus companheiros se obrou,
lhe fez a Senhora mercê de abrir milagrosamente aqáella fonte tão aííama-
da por toda a costa do Brasil, em que se fizerão, e fazem muitos milagres,
sárão muitos de diversas enfermidades, aonde vão em romaria em busca de
saúde, e a achão: e outros pêra o mesmo effeito mandão por agoa delia.»
Até aqui Anchieta ; que mostra bem a fama das maravilhas d'aquelles tem-
pos. Escreveo também d'este milagre Orlandino liv. xi, n.° 76: e o Padre
Balthasar Telles na primeira parte dasChronicas de Portugal liv. iii, cap. 8.
Debaixo d'aquelle altar se experimentarão por outra via dobradas maravi-
lhas, e mercês da Senhora; porque sendo enterrada n'este mesmo lugar
DO ESTADO DO BRASIL (ANXO DE l-jOO) {^j^
luima Imagem sua na occasião em que o gentio sal vagem assolou a villa, íi-
cou aquella terra consagrada, e segundo santuário de maravilhas pêra os quo
a levão por relíquias, e usão d"ella em suas necessidades; que quiz a Virgem
conspirassem aqui em seus favores estes dous elementos, íeri-a, e agoa.
73 Também o anno de 13G0, cm que enti-amos, teve a Bahia soccorro
de obreiros, como no passado. Yierão dous Religiosos ambos irmãos, An-
tónio Gonçalves, e Luís Rodrigues; cujo auxilio, ainda que menor, foi de
consolação ; porque aos que militão, qualquer soccorro acrescenta o animo.
Continuava o Padre Nóbrega com seus achaques trabalh(i60s, mas não dei-
xava a continuação da cultura da seara do Senhor, que corria com fiuto
desejado, especialmente nas aldeãs, nas quaes se celebrái-ão este anno pas-
sante de trezentos bautismos, duzentos matrimónios da Lei da graça ; e se
descerão grandes levas de gentilidade de seus sertões, pêra a Igreja do Se-
nhor, não consta quantidade ao certo.
74 Fizerão em Portugal grande ecco as relações do que hião obrando
os Francezes na enseada do Rio de Janeiro, e de como nos quatro annos
antecedentes se tinlião fortificado com fortaleza de consideração, quasi inex-
pugnável ; e que cada dia crescia o poder em numero de índios Tamoyos
seus confederados, e soccorros fjue lhes vinhão de França; e de como alli
se aproveitavão e enriquecião das drogas do páo Brasil, c outras muitas, quo
pêra elles erão de grande valor, e a nós de damno: e que, segundo os Tamoyos
solicitaNlío as outras nações circunvizinhas, e crescia o numero de soldados
Francezes, se podia temer que accomrnetessem maiores empresas, movendo
dalti guerra ás mais partes da costa. As quaes razões consideradas nos Conse-
lhos de Guerra de Portugal, e communicadas a Sua Alteza a Senhora I). Ca-
Iherina de Ausíiia, irmãa do Impcradoí' Carlos Quinto, que por morte d"El-Rei
D. João seu marido, e de seu filho o Príncipe D. João, governava o Reino em lo-
gar de el-Rei D. Sebastiáíj seu neto, por ser ainda de pouca idade, man-
dou ao Brasil huma armada a seu Governador Mcm de Sá, pêra que com
todas as foiças procurasse lançar fora aquella ignominia do nome Portu-
guez.
75 O Governador, que de nenhuma outra cousn cuidava, como era de
coração generoso, zeloso da liberdade do Estado que lhe fora entregue, poz
em conselho o modo da execução do mandado real; e não faltarão pare-
ceres, que não convinha com tão pouco [)oder accommeter inimigo lãolõi'-
lilicado; que se devia dilatai- o elTeilíj até melhor occasião, em ijue hou-
vesse cabedal seguro. Menos mal hc (^dizião; sofrer o aggravo por algum
152 LIVRO lí DA CmiONlCA DA COMPANHIA DE JESU
tempo mais, que a ignominia de ser propulsados: que era já a potencia do
Francez de considerarão, o sitio quasi inexpugnável, os auxiliares quasi in-
finitos: que as náos, bastimentos, e aprestos de guerra entravão cada dia
de França, e não se gastavão. Por outra parte, que as nossas náos pêra
tanta empresa erão poucas, e a soldadesca de conta não podia ser muita,
nem demasiados os aprestos de guerra,
76 Estas erão as razões em contrario: porém o Governador prudente, e
christão, depois de haver consultado com Deos, e com o Padre Manoel da
Nóbrega (de cujcT virtude tinha grande conceito) que lhe persuadia a em-
presa, e cfuasi segurava a victoria; e vendo que quanto mais tardasse, mais se
difficultava, engrossando o tempo as forças, e a paciência dos nossos o
animo ao inimigo ; e que viria, não só a defender-se depois com mais facili-
dade, mas também a offender aos descuidados, e ganhar outras praças, com
maior ignominia do nome portuguez: resolveo-se em aprestar a armada,
aggregando-lhe os navios que pôde ajuntar, e barcos da costa, com a mór
quantidade possivel de soldados Portuguezes escolhidos, e alguns índios.
Erão os navios por todos (não faltando em barcos) dez, ou onze ; duas náos
de guerra principaes, oito ou nove navios ordinários. Com estes, entregando as
velas ao vento, e esperanças ao Ceo, se fez na volta do Rio de Janeiro, não obs-
tante que alguns fazião reparo na pessoa, que não parecia conveniente arriscar-
se com o mais cabedal, quando tanto necessitava delia todo o Brasil. Le-
vava eomsigo o seu fiel amigo Nóbrega, sem cujo conselho nada determi-
nava; e porque julgavão também os Médicos, ser necessário que mudasse
o clima da Bahia pêra o de S. Vicente mais frio, por razão dos muitos
achaques que padecia, especialmente do sangue que lançava, com perigo
da vida.
77 Chegou a armada á barra do Rio de Janeiro, com prospera viagem
(indicio de fortuna prospera) nos primeiros mezes do anno corrente ; e sup-
posto que o conselho era, que logo em chegando no mais escondido da noite
se entrasse a barra, e de repente se accommetesse o inimigo desacautelado:
com tudo, como successos do mar são incertos, forão constrangidos os nossos a
ser primeiro avisados dè suas sentinelas, e lançar ferro por então de fora. Os
Franceses se poserão em preparação ; e deixando todas suas náos, se recolhe-
rão á fortaleza com mais de oitocentos frecheiros Tamoyos; porque assi
com a multidão da gente, como das armas, resistissem melhor a nosso po-
der. Daqui paitio o Padre Nóbrega pêra S. Vicente, por parecer de Mem
de Sá, assi por chegar fraco do sangue que lançava, c ser necessário ap-
I
DO ESTADO DO BRASIL (aN.NO D1^ loOO) 153
plicar-llie remédio com tempo, como também pêra que lá solicitasse, por
Ião conhecido na terra, algum soccorro cie canoas, e índios. Não foi em vão
a esperança do Governador ; porque a poucos dias andados vio que vinhão
encorporar-se com seus navios hum fermoso bergantim artilhado, com al-
gumas canoas de guerra, e soldados destros em semelhante género, IMama-
lucos, e índios, guiados de dous Religiosos da Companhia, Fernão Luis, e
Gaspar Lourenço: com cuja vista se alentarão todos da armada. E com es-
te bom presagio mandou o Governador Mem de Sá embocar a barra da
enseada, apesar de toda a defensa, que llies impedia a entrada: e postas
dentro nossas embarcações, se forão preparando pêra accommeter a forta-
leza principal da ilha, que chamãoVillagailhon, e parecia inexpugnável ;por-
(jue tudo o que era ilha, era fortaleza, e tudo o que era fortaleza, era ilha ;
e toda (excepto hum pequeno porto de praia) era cercada de penedia brava,
onde bate o mar, com cem braças de comprido, cincoenta de largo, em cujas
ultimas duas pontas levantou a natureza dous cabeços talhados ao mar, c no
meio de ambos hum singular penedo, como de quatro braças em alto, e seis em
contorno. Da circunferência dos recifes, e penedia d"elles, tinhão feito defensá-
vel muralha: dos dous cabeços com pouco artificio, duas juntamente naturaes
e artificiaes fortalezas: e do penedo, hum pouco mais cavado ao picão,
caixa de pólvora segura, e constante contra toda a artilheria. Horror cau-
sou visto de perto, o que ao longe parecia mais fácil.
78 Soube porém o valor portugue?. huma vez empenhado dissimular
o medo. Accometeo a todo o poder, e em breve conflicto ganharão terra,
primeiro degráo de victoria: e assestando n'ella grossa artilharia, forão
batendo fortemente por dous dias c noites continuas as principaes partes da
força; porém debalde; porque era viva a penedia accommodada somente por
arte a poder de ferro, c não era possível ser rendida por esta via. Tratavão os
nossos já de recolher as náos, a artilharia, e retirar-se, por esta causa, e
porque cstavão feridos muitos soldados, e principalmente porque faltava já
o jielouro, c pólvora i>era o combate. Poiém vio-se aqui o favor do Ceo
ás claras: porque a força que pode resistir ao pelouro portuguez, não pode re-
sistir a seu bra<;^: levado este do brio natural, feitos em hum corpo, arremetté-
rão ao cabeço principal, que olha pêra a barra, chamado das Palmeiras, e o en-
trarão com morte de nmitos inimigos. Com este bom successo animados accom-
metêrão cm segundo lugar ao penedo, ([ue acima dissemos servia de casa de
pólvora, com tal valor, que dcsamjtarado dos seus, foi ganhado, e juntamente
com elle perdido de lodo o animo dos I-'iancezcs, e Índios, que fiados no
loi LIVRO 11 DA CMRUMCA DA COMPANHIA DE JESU
secreto, e escuro da iiuile, se Ibrão despeiihando pouco a pouco das
muralhas abaixo, e embarcados em bateis, e canoas, se acolherão, parle ás
náos, parle a suas jjreiílias, deixando nas mãos dos Portuguezes, com a
fortaleza, e aprestos de guerra, huma das insignes victorias d'aquelles tem-
pos. O dia seguinte fez o Governador ]Mem de Sá acção de graças a Deos
nosso Senhor por mercê tão grande, celebrando os Padres da Companhia
a primeira missa que vio aquella ilha.
79 Havida a victoria, poz-se em consulta, se se havia de conservar a
força, ou não? Resolveo-se, que convinha antes arrasal-a, pela razão notó-
ria aos prudentes, que as forças divididas necessariamehte se enfraquecem,
e as com que de presente nos achávamos, não erão taes que podessera pre-
sidiar a ilha, resistir ás náos do inimigo, que ficavão, e acodir ás necessi-
dades precisas da Bahia. O que visto, conduzida ás náos a artilharia, que
o Francez na força deixara em grande quantidade, e os mais despojos d'el-
la, posto por terra tudo o que era artificial, e podia servir de reparo, de-
terminou partir-se. Porem antes que dè á vela, he bem façamos menção do
fim que houve hum soldado, famoso entre muitos n'esta empresa, Capitão da
principal estancia do combate, e hum dos principaes anthores da victoria,
por seu grande valor, e prudência. Chamava-se Adão Gonçalves, era mo-
rador em S. Vicente, dos mais ricos e poderosos da terra: fora este sol-
dado á Bahia depois do successo da empresa, trattar com o Governador Mem de
Sá de certidões de seus serviços, a fim de requerer a el-Rei, premio d'el-
les. Porém são de admirar os meios que Deos tem destinados pêra predes-
tinação das almas. Quando andava mais occupado o nosso Adão nas pre-
tençijes que lhe prometíia o mundo, ouvio huma como voz suave interior,
que o obrigou a dar libello de repudio a todas as grandezas d"elle, e fa-
zer-se soldado humilde de outra milicia do Ceo na Companhia de Jesu. Tro-
cou as petições; e a que determinava fazer a outros Tribunaes, fez ao Pa-
dre Luis da Grani, Provincial que n'este tempo estava na Bahia, pedindo
eom grande humildade, e confusão da vida passada, ser admittido. Vio o
cumprimento de seus desejos, deo ultimo vale ao mundo, e a todos os ha-
veres que n"elle possuía (e erão estes de consideração na Capitania de S.
Vicente) e todos applicou pêra despesas de obras da Companhia ; encom-
mendando-lhe juntamente a educação de hum filho que tinha de pouca ida-
de, que desejava estudasse, e fosse participante com elle de tão santa mi-
licia. Tudo sahio á medida de seu desejo; porque era traça de Deos, pos-
|o que os meios parecessem humanos. Do íim d'este soldado que assi sou-
DO ESTADO DO HUASIL (aNNO DE lijGO) l5o
be trocar as armas, dirá a historia em seu lugar, quando tratar de sua re-
ligiosa mortí?, tal como a resolução cp^ie tomou.
80 Do lillio diremos agora brevemente. Cbamava-se este Bertholameu
Adão: encarregou-se delle o Padre Nóbrega em S. Vicente: era de boa
Índole, c ingenlio, e de melhor fortuna do Ceo; porque vio tudo quanto
delle pretendia o pai : estudou grammatica, entrou na Companhia, perse-
verou na Religião até o fim do curso da Philosophía, e acabado este con-
cluio o da vida, com alguns princípios já da Theologia, e com venturosos
sinaes de sua salvação, segundo o deo a entender o venerável Padre Jo-
sepli; porque pedindo-lhe seu pai Adão no collegio do Rio de Janeiro, que
applicasse algumas missas por seu filho Bertholameu, que era defunto na
Bahia, como então tivera por novas: respondeo Josepli: «Cinco lhe tenho já
oílerecido logo quando morreo; não tem necessidade de mais. «Contém a res-
posta duas profecias: porque nem podia saber humanamente quando morreo,
estando em distancia de duzentas legoas, e não tendo vindo navio antes que o
presente: e muito menos podia saber, sem particular communicação do Ceo,
que não tinha já o defunto necessidade de mais sacrificios.
81 Entre os índios se assinalarão alguns no combate da fortalesa. O
principal de todos foi hum, que depois do bautismo teve por nome Mar-
timAffonso.D'este publica a fama, que com os seus, de que foi Principal, e
Capitão, fez façanhas taes, que mereceo ser premiado pelo Governador ge-
ral, e por el-Rei, com habito de Christo, e tença, que depois gozarão tam-
bém alguns seus descendentes. Do mesmo grande M artim AíTonso, homem
reverá de coração, e valor, como mais ao diante veremos, accrescentão al-
guns, que no conflicto maior do accommetimento do penedo da pólvora,
elle lhe posera o fogo, attribuindo a este feito muito principalmente a cau-
sa de desmaiarem os Tamoyos, e apoz d'elles os Franc eses, desamparando
a fortalesa com a pressa que vimos. Porém não acho em escrittos este fei-
to notável. O certo he, que fez este soldado façanhas dignas de memoria,
que até hoje duião.
82 Acabou Mem de Sá do preparar a armada pêra partir-se, e n ão
sofreo o coração a este pio Governador tornar-S(; á Bahia, sem que pri-
meiro se fosse ver com seu amigo Nóbrega a S. Vicente, pêra agradecer"
lhe o conselho que nesta empresa lhe dera, e o soccorro que dalli lhe
mandara: e juntamente porque se adiava despeso de mantimentos, c n"a-
í|u<;IIa ('apitania havia delles abundância, e era breve a viagem, porque
ora tempo de monçOes do Nordeste. Deo á vela a aimada, e quando foi
lt)0 LlViíO n DA GimOMCA DA CaMPAMIlA DE JESL'
no ultimo ú(i Marro so adiou surta no porto de Santos. Levou comsígo o
Governador os doas Keligioâos, que tinlião vindo em soccorro, ambos de-
bilitados do trabalho, e ambos doentes das incoramodidadcs do mar, e
guerra: porém cm breve melhorarão, e convalescerão. Bem se deixa con-
siderar o gosto com que se avistarião aqui estes dous espirituaes amigos,
Mem de Sá, e Nóbrega. Deo-lhe Nóbrega os parabéns da victoria, e deo-Oi»
elle também a Nóbrega, dizendo, «que se ei^a *e havia de attribuir a ho-
mem algum como a instrumento de Deos, a elfo era justo que fosse, pois
tinha sido tão grande parte na resolução da c^nprcsa, c tinha primettido-
quasi de certo o effeito delia.»
83 Aqui obrou o Padre Nóbrega cousas d^msâ de' seu grande espirito.
Vinha a armada mui despesa de mantimentos, a gente maltratada dos frios-
e trabalhos da conquista, c grande parte d'eHa doente: a tudo se estendeo
a charidade daquelle, que não tinha nada de seu, e tinha muito pela grande
confiança em Deos, Era pêra vèr o venerável velho, carregado de annos,
e achaques, andar a pé de S. Vicente pêra Santo*, e de Santos pêra S. Vi-
cente, caminho como de duas legoas assas enfacVjdior ofa sobre agenciai*
mantimentos em soccorro da armada; ora sobre remediar famintos, neces-
sitados, e doentes delia; e as mais vezes a tra'ttar com & Governador so-
bre causas, litígios, e prisões de soldados. Punlia-lhe diante dos olhos o
muito que tinhão padecido, e a victoria que tinhão alcançado, a fim de ha-
ver-lhes perdões, livranças, e outros semelhantes favores, E foi de manei-
ra, que aqui ganhou Nóbrega, mais que em outra parte alguma, o ser
chamado Pai dos necessitados.
84 Em quanto aqui se deteve Mem de Sá, fez algumas witras cousas^
a petição de seu amigo Nóbrega, e do Padre Luís da Gram. Foi huma
delias, mandar mudar pêra Piratininga a villa de S. André, distante ca^
minho de três legoas, por razões que a isso moverão do servido de Deos,
e dcl-Rei ; especialmente porque estava esta villa junto ao matto, e por
essa causa era assai teada a cada passo dos índios inimigos, que habrtavã»
as ribeiras do rio Paraíba : e pelo contrario, depois de mudada, foi esta villa
a maior de todas as daquellas partes, por muitos annos adiante,- e mui
ajudada dos Padres da Companhia, que nella fazião muito fruto nas almas^
servindo-lhes de Parochos, abrindo n'ella escolas a seus filhos, e exerci-
tando com elles todos os outros ministérios da Companhia. A segunda obra
foi, que ajudou muito ao Padre Provincial Luís da Grani, e a Nóbrega, no
intento que tinhão de mudar o Collegío do lugar de Piratininga, onde es-
DO ESTADO DO DRASIL (aNNO DE iijGO) 157
tava, pêra S. Vicente, como com effeito sef começou a mudar eí;le anno,
por razões que de novo se oíTerecêrão, não obstantes as com que alli se
formara no anno de dooo. Fizerão-se logo n"eile classes, e abrirão-se estu-
dos, tudo á sombra do favor de Mem de Sá. E aqui torna agora o Padre
Joseph de Anchieta a renovar seus primeiros trabalhos, em ensinar os fi-
ihos dos moradores d*estas villas. Continuarão estes estudos por alguns
íinnos, até que (como depois veremos) por ordem do venerável Padre Igna-
ào de Azevedo, quando visitava a Província, fundado o Collegio no Rio de
Janeiro, e dotado pela magnificência do Sereníssimo Rei D. Sebastião de
saudosa menwria, se passarão pêra esta cidade, onde até lioje preseverão.
85 Outra terceira obra fizerão os Padres Luis da Gram, e Nóbrega,
•com o favor do Governador, que foi hum grande proveito da republica.
€orre entre as villas de S. Vicente ç a de Piratininga aquella espantosa
montanlia, de que já faltámos por vezes, chamada Piraná Piacaba; e como
«ra deserta, fragosa, e toda mattas bravas, e por ella de força se havia de
passar por caminho sabido ; os Tamoyos contrários que habitavão sobre o
rio Paraiba, n'este lugar vinhão esperar os caminhantes de huma e outra
parte, e os roubavão, cattivavão, e comião. A este damno sahirão os Padres
•com remédio : ajuntarão força de serviços, e com agencia de dons Irmãos
da Companhia ingcnhosos, e resolutos, mandarão abrir novo caminho por
parte diíTerente, furtado ao inimigo. Fizerão-no os Irmãos com grande tra-
balho, e perigo da vida : e por este passavão os moradores com seguran-
ra, dando ao Governador, e aos Padres os agradecimentos devidos áquel-
las rèspublicas, e permanece o caminho até o presente.
HG Não pararão aqui as occasiões de boas obras destes dous servos
do Senlior, Gram, e Noi^rega. N>ste comenos se levantou sobre todas
aquellas villas de S. Vicente huma tormenta, a mais desusada que virão os
liomens havia muitos tempos. De improviso, junto ao pôr do sol, se co-
meçou a desfazer o Ceo em ventos, chuvas, raios, e trovões, com espan-
toso estrondo, e tremor da terra horrível, que parecia desfazer-se a ma-
quina do universo toda ; e não com pequeno estrago, porque levava pelos
ares as casas, as anores, c os próprios homens, aonde muitos perecião.
No meio d'esta confusão, e perigo, repartem-se os Religiosos, acodem huns
a Deos, c outros ao próximo. O principal foi o Padre Provincial Luis da
Gram, o qual, desprezado o perigo em todo o tempo que durou a tor-
menta, e tremor da terra, andou correndo as casas dos moradores Portu-
gueses, c índios, animando-os, e preparando-os com o sacramento da coii-
1 58 LIVRO II DA CimOXICA DA COMPANHIA DE JESU
fissão, pêra esperar como Chíistãos qualquer fortuna adversa ; até que de
todo cessou o perigo.
87 Passado este successo, entra outro. Forão á guerra os índios de
huma aldeã, trouxerão delia hum menino filho de seus contrários, e logo,
segundo seu bárbaro costume, tratavão de metel-o em cordas, pêra ma-
tal-o em terreiro, e comel-o. Era distante a aldeã, e o caminho trabalhoso;
não foi porém bastante isso : em sabendo o caso O Padre Gram, caminhou
a pé com diligencia, e chegou a tempo do melhor da festa : e com ser acto
este, em que os corações d*esta gente estão mais intrattaveis, pararão to-
dos em vendo o Padre, derão ouvidos a suas palavras, e persuadidos de
sua proposta, lhe concederão o rapaz pêra o bautizar a modo dos Chris-
.tãos antes que morresse : isto somente lhe pedira o Padre. Porém depois
de bautizado, levado do fervor da divina graça, e condoído da innocencia
do menino, que padecia sem culpa alguma, levantou a voz no mesmo ter-
reiro, e começou a lhes propor as cousas seguintes. «Estou satisfeito (diz)
do intento principal a que vim; pelo que dou a todos as graças, porque
como homens de razão me ouvistes: porém, supposto que Deos vos fez
taes, ouvi-me agora outras poucas palavras. A todos os que aciui estaes
conlieço mui bem, a huns como Christãos, a outros como amigos: a huns
6 outros proponho assi: Que valentia intentais hoje? Que feito heróico?
Que nobreza cuidais de adquirir pêra vossas famílias? O sangue de hum
menino innocente, que nem faílar sabe, quanto mais offender-vos ? O ho-
mem valeroso com outro se ajusta; e vencido este, não he espanto publi-
que a gloria de sua valentia: porém com hum menino? Que nação ha que
tenha por gloria vencel-o? Por covardia o matal-o si. Estes ai áridos, estes
assovios, este bater de pés, e de arcos, este apresto de espada de vinga-
dor, e de feroz, contra quem se prepara ? Contra hum pobre innocente,
tão fraco, tão manso, tão pequeno, que nem sabe pedir-vos a vida, nem
tem mãos pêra defender-se da morte ! Que gloria he esta (infâmia direi eu)
que contrahis de empregar ânimos generosos na morte de tão pequeno in-
nocente? Não vos correis se quer do que ainda poderão dizer vossos mes-
mos contrários, que se pêra hum menino fraco de sua nação se ajuntarão
tantos valentes, que de valentes será necessário ajuntar-se pêra hum que
seja homem feito, que tenlia braços, mã(DS, e arco como vós, pêra defen-
der-se? Pelo que, quando tivesse este vosso costimie alguma apparencia de
acto valente, seria na morte de hum guerreiro como vós, contra quem ar-
mastes vosso arco, e a quem fez cattivo vosso valor; porém contra hum
I
1)0 ESTADO DO BRASIL (anNO DE l^GO) ITíO
menino, que contrariedade vos podia fazer, pêra ter nome ellc de vencido,
e vós de vencedores? elle a ignominia de cattivo, e vós a gloria de senho-
res? Assi que mais me empenho hoje por honra vossa, que pela vida d'este
innoccnte ; porque a pena d'este acabará em breve, mas vossa infâmia vi-
virá pêra eterno. Largai, largai, oh valentes guerreiros, este cordeiro man-
so : empenhai a espada, e arco em as onças bravas da matta, que tem gar-
ras, e dentes; e não em huma caça caseira, que cria huma mulher a seu
l)afo. Quanto mais que já estas carnes pela virtude d"aquella sagrada agoa
do bautismo ficarão dedicadas a Deos ; e o que as comer, esteja certo do
castigo,» Forão tão efficazes estas palavras, que á presença d"ellas ficarão
todos como mudos. Os que erão christãos como envergonhados forão sa-
liindo-se do terreiro: os que erão gentios, pararão com o sacrifício: e sup-
posto que houvesse apaixonado, que ás escondidas matou o preso, não se
comeo, nem repartio; que he entre esta barbara gente a prova do respeito
maior que podião ter ao Padre, como ponderámos já n"outras partes: man-
dárão-lhe entregar o corpo, e com isto se acabou a tragedia.
88 Não tinha passado muito tempo, quando da mesma guerra trouxe-
rão com semelhante festa outro prisioneiro, mancebo, robusto, rendido á
força de arco. N'este pêra com os gentios não tinhão igual força as razões
do Padre Gram. Obrarão comtudo duas cousas, consentirão que fosse bau-
tizado, e não fosse comido depois de morto, se não entregue ao Padre :
porque dizião elles bem explicados : «Em não ser bautizado, e ser comi-
do, podem ceder os particulares : porém cm ser morto em terreiro, não
he bera que ceda a communidade; porque he razão de estado, que deve
ser inviolável.» Era de vivo ingenho o prisioneiro, penetrou-lhe o coração
deveras a instrucção do Padre Gram quando o bautizára, c fez tal conceito
dos bens da outra vida, que desprezava já a do corpo; nem faltava já,
nem acodia por cousa sua, nem pedia ao Padre que o defendesse, já de-
sejava ver-se no conflicto. Rompendo a manhãa, ao som de seus costuma-
dos alaridos, bater de pé, e arco, que faz ati-oar as montanhas, junto o
povo, prestes as velhas repartidoras, fogo, e panellas, amarrado com com-
pridas ooixlas, sahe a terreiro o })adeccnte, e logo sahe a elle o valente
guerreiro que o prisionára, e diz-lhe, segundo seu costume, as ultimas pa-
lavras: «Por fim, ás minhas mãos victoriosas has de vir a acabar.» Ou-
vindo este ultimo vale de sua vida o animoso índio (segundo o que estava
industriado) píje-se de joelhos, levantando os olhos ao Ceo, e invocando o
santo nome de Jesu, recebe o golpe do fero carniceiro, evai gozar da vida
160 LIVRO 11 DA CimONiCA DA COMPAXUIA DE JEStT
sempiterna. Mandou o Principal entregar o corpo ao Padre, e ficoii
frustrado o inferno quanto á alma, e quanto ao corpo ficarão frustradas
aquellas sette harpyas infernaes das velhas, que determinavão despedaçal-o,
e comel-o.
89 Era chegado o tempo de monções, e achava-se Mem de Sá com a
armada fornecida de mantimentos, e aprestada do necx^ssario : cpiando em
vinte e cinco de Junho do presente anno, despedido do bom amigo Nó-
brega, e mais Padres, mandou dar á vela em demanda da Bahia de todos
os Santos. Embarcou-se em sna companhia o Padre Provincial Luis da
Gram, levando comsigo dous Irmãos grandes lingoas do Brasil, Gonçalo
de Oliveira, e Gaspar Lourenço, deixando por Superior da Capitania de S-,
Vicente, e juntamente da do Espirito santo, o Padre Nóbrega. Na viagem
não descansou o zelo do Padre Gram: pregava, confessava incansavelmente
a toda a gente da armada, e á tarde lhes fazia doutrina, a (}ue acodia o
próprio Governador desbarretado, dando exemplo aos demais : e com ser
elle tão perfeito letrado, dizia, que aprendia alli o que não sabia. Na mes-
ma forma se occupavão os Irmãos, fazendo doutrinas aos- índios por sua
lingoa.
90 Chegou a armada ao porto da Bahia aos primeiros de Agosto, e fo-
rão notáveis as alegrias, e parabéns do povo, com que foi recebido e- Go-
vernador, assi por ser amado de todos, como pela feliz victoria, que tinha
alcançado, e de que tantos prudentes duvidarão. Foi o Padre Gram rece-
bido em seu Collegio com amor de pai. E logo, seguindo as pisadas de
seu antecessor, no mez de Outubro seguinte foi visitar as aldeãs a pé, com
grande edificação dos que sabião suas poucas forças. No mesmo mez for-
mou huma aldeã, a que chamou de Santo António, ajuntando n:'ella grande
quantidade de gente, que vivia inculta em hum lugar chamado Ererabé,
nove legoas distante da cidade, praticando-llies das cousas do Ceo, e dando
principio a sua instrucção. Achou que nas outras aldeãs se tinha feito grande
frutOy e era tanto o numero de cathecumenos, que se bautizavão aos cen-
tos, e se casavão muitos na Lei da graça, com grande gloria do nome de
Chri&to ; e a'esta visita das aldeãs gastou o restante do presente anno, ani-
mando aos Religiosos, pregando aos índios, e acodindo a suas necessidades.
91 No fim do anno, desejando esle zeloso servo de Deos que não se
perdessem os princípios que tinha lançado seu antecessor na Capitania de
Pernambuco, mandou continuar com aquella missão o Padre Gonçalo de
Oliveira bom lingoa do Brasil, e outro Padre Pregador, pêra que hum at-
IJO ESTADO DO BRASIL (AN.NO DE IdGO) 101
tendesse aos Portugueses, outro aos índios, que erão innumeraveis, e
desamparados da doutrina cliristãa. Forão bem recebidos na villa de Olin-
da, e agasalhados nas casas que alli deixara feitas o Padre António Pires
no alto do sitio do CoUegio, que depois se fundou. D'aqui sahião como
volantes os dous Missionários, e era tanta a necessidade da terra, que mal
sabião a qual primeiro acodissem. Na villa fazia sermíjes o Padre Prega-
dor aos domingos, e dias santos, e o Padre Oliveira fazia doutrina aos ru-
des, índios, e Angolas, pela manliãa aos que não sahião da villa, á tarde
aos que liião a pescar; e com liuns e outros tinha bem que fazer: o mes-
mo obravão nas missões pelas viilas, e lugares circunvizinhos, d'onde erão
chamados com a instancia que pedia sua necessidade.
92 Outro tempo gastavão correndo as aldeãs dos índios, onde os re-
cebião como homens do Ceo, lembrados da primeira doutrina ({ue ao Pa-
dre Nóbrega ouvirão. N'estas aldeãs íizerão algum fruto; mas não podia ser
o que desejavão, por serem ellas muitas; e porque como não podíão as-
sistir-lhes como convinha, não ousavão a bautizal-os, com receios de que
tornassem depois a seu paganismo: contentavão-se com bautizar os que
achavão no ultimo da vida, e cathequizar os demais, pêra que o tempo
desse de si : e depois de trabalharem estes dous Missionários com «elo, c
religião, fazendo innumeraveis coníissões, acabando amizades, tirando mui-
tos de máo estado, e outras obras do serviço de Deos : passados dous ân-
uos voltarão â Bahia, a chamado dos Superiores, pêra depois tornarem com
mais copia de obreiros a tão grande seara.
93 Por este tempo houve nas Capitanias dos Ilheos, e Porto seguro
grandes perturbações nascidas de assaltos contínuos da nação Aymorê, que
tudo metia em temor. He esta casta de índios Aymorès a mais brutal, e
deshumana de todo o Brasil : descende dos Tapuyas antiguos ; porém por
occasião de guerras que houve entre elles, Succedeo que certos bandos me-
nos podenjsos, fugindo a seus inimigos se recolherão ao interior do sertão
a lugares hagosos, e montanhas estéreis, onde não podessem ser achados:
c como alli vivião separados do commercio de toda a mais gente, por dis-
curso do tempo viíírão seus filhos, e nutíjs a i)ei'der a noticia da lingor-^
gem própria, e formarão outra que de nenhuma outra nação era entendida,
fea, gutural, arrancada do peito. He genle agigantada, robusta, e forçosa :
não tem cabello algum em todo o corpo, mais que o da cabeça; todos os
mais ai-rancão. Usão de airos demasiadamente gi'andes: são tão destnjs
írecheiíos, (juc nem huma mosca lhes escapa: ligeiríssimos, grandes cor-
VOL. I M
1C2 LlVllO II DA GHIIOMCA DA COMPANHIA DE JESU
redores: não vivem em casas, ou aldeãs; nem alguém lhes achou jamais
morada : pelos mattos e cami)os andão a maneira de feras, de todo nús,
homens, e mulheres: dormem na terra, c escaçamente lhes servem algu-
mas folhas de colchão. As chuvas levão ao pé de huma arvore, ou com
qualquer ramo col)ertos. Não trattão de rossas, nem semeados : sustcntão-
se de frutas agrestes, e caça de feras, e aves, que parece obedecem a seus
arcos; e esta comem crua, ou quando muito mal assada. Machos, e fêmeas
andão trosquiados, e tem suas navalhas pêra este eífeito, feitas de certa
espécie de cana, que quasi igualão as de aço. Igualmente andão á caça das
feras, e da gente; e hé-lhes a carne d-esta ornais saboroso pasto. Accome-
tem sempre á treição, nunca em descoberto; e por isso poucos em numero
accometem a muitos, porque não trattão de defender o campo : mas não
vendo a sua, logo fogem cada hum por seu cabo : sem lealdade, ou poli-
cia de huns pêra outros, nem ainda pais pêra filhos.
94 Estes Aymorès pois, selvagens, e agrestes, por estes tempos co-
meçarão a descer de suas serras, em que vivião havia tantos annos : c guia-
dos das correntes dos rios, vinlião apoz elles sahir ao mar, o davão assal-
tos em tudo o que achavão, matando, e assolando os escravos, e fazendas
dos moradores, e ainda muitos dos senhores nas villas dos Ilheos, e Porto
seguro, com confusão geral, e mui especial das aldeãs dos índios dos Pa-
dres, que nem podião defender-se, nem ter o socego necessar'io pêra trat-
tar de sua conversão.
9o Chegou á Bahia a queixa d'esta oppressão tão grande, compadcceo-
se o Governador I\Iem de Scá, e tomando conselho, especialmente com seu
amigo Nóbrega, convierão que fosse o mesmo Governador em pessoa,
acudir á insolência d^aquelles bárbaros, por honra de Deos, e do nome das
armas de Portugal. Ajuntou navios ligeiros, escolheo soldados de satisfação
e alguns índios das aldeãs, e desembarcou em breve tempo no porto dos
llheoB. Chegou em occasião opportuna, porque informado dos moradores,
soube que estavão os delinquentes retirados a togares occultos, fragosos, e
inaccessiveis, onde se davão por seguros, e donde sahião a fazer seus assaltos.
Não houve demora: tomada guia, poz-se a caminho o Governador com to-
da a sua gente, antes que pudessem ser avisados ; e depois de corridas es-
j)essas mattas, altos rochedos, e profundos valles, derão em um laberinto
de agoas a modo de dique, ou represa, que parecia mar. Era força, pas-
sar-se este, não se via maneira; até que foi descuberto hum logar por
onde passavão os A) mores. Era este a modo de ponte de hum só páo es-
DO ESTAUl) DO ÍJllASiL (aN.\(J DK 1500) '|f),1
trcílo onde os pés mal se fimiavão, de comprimento mais de mil passos-,
por onde parecia impossível passar gente linmana: porém tudo vence o de-
sejo do coração do homem, quando he grande: passou o exercito estas agoas
Slygias, e logo com o mór silencio que pode subio de noite á fragosidade
do sitio; e quando se davão por mais seguros aquelles bravios selvagens,
deu sobre elle o Ímpeto dos nossos, degolando, ferindo, pondo por terra
todo o vivente, homens, mulheres, e meninos : taes houve, que do somno
nocturno passarão sem meio ao somno da morte ; e taes, que imaginando
fugir, se vinhão meter em nossas mãos. Acharão alguns refugio nas bre-
nhas, outros nem esse pudérão alcançar; porque foi todo hum o Ímpeto do
fen"0, e o do fogo: arderão as mattas por muitas legoas, e tornarão a noi-
te claro dia; e quando o Sol começava o seu, virão melhor os tristes bár-
baros seu grande estrago, por que seguindo a vereda do sangue, achavão
os pais aos filhos, os maridos as mulheres defuntos pelos caminhos, e o
abrigo de seus escondrigios tornados em cinza.
9tí Depois de descaiiçarem, tornarão em Ijusca das praias os victorio-
sos soldados, e vinhão cantando seus triumphos : se não que lhes restava
ainda (fue vencer; porque junto a ellas os esperavão as relíquias do destro-
ço passado. Sahírão das brenhas de improviso, quaes ursos assanhados a
quem os caçadores matarão os filhos; e com seus costumados alaridos cui-
darão espantar, e entre espanto c turbação fazer estrago : porém cedeo em
maior ruína sua; porque o prudente e experimentado Capitão, prevendo o
caso, tinha deixado de embuscada no malto conti"asilada, com ordem que
ouvindo sinal acudisse, e desse nas costas aos bárbaros. Succedeo como
o disposera : fingíi'ão os nossos que se retiravão, apressando o passo, e no
l)onto que vinhão sobre elles, sentirão nas costas os arcabuzes, e sobre as
cabeças as espadas dos Portugueses. Hum só remédio lhes ficava a esta
pobre gente, e foi lançar-se ao mar: mas como não são os d'esta nação pe-
ritos no nadar, e nossos índios sim, arremeçái'ão-se após elles (quaes nada-
dores tubarões), e afogarão luins, outros trouxerão á [)raia cattivos, com mi-
serando e egualmente merecido estrago, ('om estas viclorias entrou o capi-
tão Mem de Sá na villa dos IMieos, foi diíeilo ao tenqilo de Nossa SenhoiM
on<le fez pubhcas acções de graças, e foi levado de todo o í)ovo como em
triumpho, por libertador de suas terras, e vingador de seus aggravos.
07 Não linhão bem [)assado muitos dias cslando tudo em bella j)az, e
a villa occuj)ada em nspresenlações de alegiía: eis que do alto de suas (!mi-
ncncias vêem as fjiaias cubcrtas de baíidos de bárbaros em som de guer-
1G4 LIVRO II DA CHRONICA DA COMPANHIA DE JESU
ra, ferindo os ares com estrondo gcntilico. E foi o caso, que entrados em
desesperação, e afronta os Aymorés api)cl lidarão os moradores de todos os
montes circunvizinhos, de sua, ou de outras nações, incitandos-os contra
os Portugueses inimigo commum : e vinlião feitos em hum corpo aposta-
dos a levar comsigo cattivo o Governador Mem de Sá, ou acahar por huma
vez as vidas. Não pareceo mal ao Capitão esforçado : dizia que vinhão alli
entregar-se ao cutello juntas as rcliquias daquelles, que com tão excessivo
trabalho não pudera alcançar; que queria o Ceo de hum golpe extinguir
nação tão perversa, e aliviar de huma vez aquelle povo. Saio-lhes ao encon-
tro (levando diante, como costumava, o vivifico estandarte da Cruz) e acco-
melendo a cavallo armado o meio de seu esquadrão, ficarão attonitos os
bárbaros, que nunca virão tal modo de pelejar; desordenárão-se, e come-
çarão a sentir o rigor da arcabuzaria, que por parte do mar, e da terra os
cercava, e fazia matança cruel: porém era gente forçosa desesperada, e
muita em numero : os arcos dos Aymorés grandes i)or extremo, alcança-
vão também nossa infantaria, e não sem damno considerável, até que le-
vantando a voz o Capitão mór .Mem de Sá, animou os soldados, e mandou
arremettessem a todo poder e perigo por todas as partes. Cerrarão elles
quaes leões, fiados na justiça da guerra, e viclorias passadas, e em breve
espaço se virão as praias cubertas de corpos sem alma, e as escumas do
mar que as lavavão tornadas cor de sangue ; o resto dos inimigos entregue
â tori)e fugida, e com tal terror, que a poucos dias andados voltarão hu-
mildes a pedir pazes ; que se lhes concederão cora as mesmas condições
das primeiras: Que não comeriam carne humana, nem faiião guerra algu-
ma, ainda aos outros Brasis, sem approvação do Governador : que se ajun-
tarião em aldeãs grandes, onde vivessem com modo politico, levantassem
Igrejas, e casas aos Padres da Companhia, que vivirião entre elles, e en-
sinarião a doutrina da Fé aos qne quizessem converter-se. Dobrárão-se as
alegrias dos moradores d"aquella Capilania, e juntamente dos de Porto se-
guro igualmente interessados : e compostas as cousas voltou o Capitão Mem
de Sá a seu assento da cidade do Salvador da Bahia. Trezentas aldeãs se
contão, que destruio, e abrasou do gentio rebelde; e o que não quiz des-
cer á Igreja, retirou-se por essas brenhas por distancia de sessenta e mais
legoas ; onde ainda se não davão por seguros do ferro, e fogo porluguez .
98 Entrou o anuo de loGl, e concorrerão n"elle prenúncios de gran-
des colheitas na vinha do Senhor: a paz nascida da guerra passada, o zelo
da conversão do Governador Mem de Síi, c o do Bispo D. Pedro Leitãpi
• no ESTADO DO BRASIL (aNNO DE loGl) 163
quo so achavrio na Baliia juntos : c como estas causas universaes er3o be-
nignas, c influião com a industria de obreiros zelosos, não podia dei-
xar de ser o fruto proporcionado. Supposto que jà n'este tempo vivião na
Babia em paz geral Portugueses, e índios, e era esta boa occasião pêra
tratar da conversão de todos ; ficou comtudo grande multidão de gentio
das guerras passadas, tão dividido, e espalhado (por mais que se procurou
ajuntal-o) que parecia impossível poder-lhe acudir; principalmente aos que
babitavão nas partes mais fragosas, e alongadas da cidade. Porém o fervor
do espirito do Padre Luis da Gram, a primeira cousa que intentou no prin-
cipio d'este anno, foi despedir Religiosos de dous em dous a pregar a dou-
trina do Evangelho a esta gente, e a dispol-os, e convidal-os de sua parte
com boas palavras e presentes de cousas que elles estimão, a que quizes-
sem vir habitar em logares mais commodos, e ajuntar-se, a modo dos Por-
tugueses amigos seus, em povoações grandes com cabeça, republica, e go-
verno politico; porque alli serião doutrinados dos Padres, como os outros
das aldeãs primeiras.
99 Não vierão frustrados os Missionários, que erão peritos, e eloquen-
tes na lingoa do Brasil, e guarda aos taes grande respeito esta gente : por
cuja causa, e porque os estimulava o credito, e opinião em que vião os
que já estavão nas aldeãs á sombra dos Padres ; vierão todos facilmente em
que farião o mesmo. O que supposto, foi tudo dizer, e fazer, e a obra ma-
ravilhosa; porque dentro de espaço de hum anno se virão fundadas, pos-
tas em ordem, e com grandes princípios de Christandade, tantas, e tão po-
pulosas Igrejas, que em muitos annos não parecia possível ajuntar-se: tan-
to montou a cooperação dos que governavão a répuljlica, com o trabalho
dos operários industriosos. A primeira povoação que fundarão, foi a da
ilha de Itaparica três legoas da cidade, com invocação de Santa Cruz, no
mez de Junho do presente anno : pêra esta concorreo gentio em grande
quantiílade das ribeiras do rio Paraguaçíi: elegerão cabeça principal, íize-
rão casas, Igreja, e morada pêra Religiosos, e começarão a ser industria-
dos com a assistência de hum Padre, e hinn Irmão, António Pires, e Ma-
noel de Andrade. No mesmo mez de Junho fundarão a segunda em distan-
cia de doze legoas da cidade correndo ao Norte, em sitio fértil, por nome
Talúapara, com invocação de Jesu. Pêra esta concorreo não menor quanti-
dade de gentio, até então espalhado ao redor d'aquelle lio, na mesma for-
ma sobreditta, e com outios dous Iteligiosos de residência, o Padre An-
tónio Rodiigues, e o Irmão Paulo Rodrigues: e cm bieves dias chegarão
JCG LIVRO II n\ r.ilP.ONIC.V da companhia de JESfe'
aqui a quatrocentos os meninos que aprendião a doutrina. Pouco tempo
depois se fundou a terceira dez Jegoas [d"esta, correndo a costa do Norte,
vinte e duas da cidade, com invocação de S. Pedro, mais populosa que as
duas primeiras. Concorrerão pêra ella as aldeãs chamadas de Çaboyg, n'aquelle
tempo numerosas, e outras mais pequenas. A quarta foi mais adiante outras
dez legoas, trinta e duas da cidade, no sitio chamado Anliébyg, com invocação
de Santo André, e quantidade de gente barljara. Porém como estes estavão em
guerra com outro gentio, que habitava as terras do rio Itápicurú, oito legoas
distante, quarenta da cidade, e erão contrários poderosos, especialmente os de
Jmm Principal aííamado, por nome Arácaé, com grande impedimento da con-
versão: levado o Padre Luis da Gram do zelo do bem d'estas almas, com
assaz de trabalho, e perigo da vida (porque estava ainda bravia aquella
gente toda, e sem commercio de Portugueses) foi em missão a elles, e as-
si lhes soube faltar, e- converter os ânimos, que pondo de parte a feroci-
dade, assentou pazes entre elles, e os da Anliébyg : e ouvida a palavra de
Deos, lhe pedirão Padres, e Igreja na forma dos mais.
100 Em Novembro seguinte do mesmo anno passou o Padre Provin-
cial á empresa pêra a parte do Sul: e na paragem chamada Macamamú,
dezaseis legoas da cidade, fértil de terras, abundante de rios, fundou a
quinta povoação de muitos mil arcos, congregados de muitas mais peque-
nas de lugares distantes, e quasi inaccessiveis, e poz-lhe por nome Nossa
Senhora da Assumpção, presidiando-a de dous Religiosos, como todas as
outras. No mesmo mez fundou a sexta povoação em outro sitio pouco dis-
tante junto a Tinharé, chamado Taporagoá : a esta aggregou todo o gentio
que pelas matas circumvizinhas estava embrenhado, em quantidade consi-
derável: presidiou-a de Padre, e Irmão, e poz-lhe por nome S. Miguel.
101 Bem empregado trabalho o d'este anno! e não foi menos copiosa
a colheita que d'elle resultou. Dentro do mesmo quiz o Padre Provincial
ir visitar, e tornar a correr todas estas aldeãs, que já n'este tempo erão
onze (entrando em numero as cinco mais antiguas) porque queria elle mes-
mo ver com seus olhos, e consolar-se com o fruto espiritual, que espe-
rava de tão bem empregados suores de seus Missionários. Mandou antecipa-
damente aviso a todos os Padres que n^ellas residião, que suspendessem os
bautismos pêra sua ida, salvo os que fossem de necessidade; porque assi
com sua presença, e por ventura do Governador, c do Bispo, em algumas
partes se podessem celebrar com mais solemiiidade, maior applauso dos que ■
havião de ser bautizados, e imír estimulo dos que pretendião chegar ao
DO ESTADO DO BRASIL (ANNO DE 1561) 167
mesmo acto: fez-se assi. Cheirado o dia assinalado, poz-se o Padre Provin-
cial a caminho a pé com sen bordão (costume santo d*aquelle bom t<?mpo),
e aonde havia agoas doscalro; que tem estas coníianças o espirito Immilde,
sem perda alguma de reputação. Erão muito pêra ver os caminhos cuber-
tos de índios, huns com redes pretendendo levar ás costas o Padre, outros
com applansos festivaes a seu modo sylvestre, outros a pedir-lhe que fos-
sem elles os primeiros no bautismo; e houve tal, que determinou levar a
cousa per modo de peita, vindo pêra isso carregado de cera, e humbogio,
que offerecia ao Padre porque obautizasse entre os primeiros; dando junta-
mente por causa, que era velho, e podia faltar-lhe a vida, e perder a ditta
daquella agoa, rpie leva ao lugar do descanso. Abraçou o Padre a todos:
aos que trazião as redes, disse, que os pés dos servos de Deos não can-
savão : aos que festejavão, que celebrassem embora as vésperas do dia de
sua maior ventura (pelo bautismo que ao outro dia havião de receber:)
aos que pedião ser dos primeiros, disse, qm teria lembrança; mas fez-lhes
huma pratica sobre o presente da cera, e bogio, e declarou-lhes a grande
pureza dos sacramentos da Lei da graça, que sem sombra de interesse
permittem, como nem também também o instituto da Companhia : e em
penitencia ordenou ao velho, que tornasse carregado, e entregasse aquella*
cousas a sua mulher, e filhos.
102 N'esta maneira chegou o Padre Gram a huma das aldeãs mais an-
liguas, por onde llie pareceo começar, e foi a de S. Paulo. Achou feita a
Igreja hum bosque, armada de ramos, e flores, segundo a possibilidade
dos que a preparavão. Aqui lhes agradeceo o bem que se tinbão applicado
ás cousas d'ella; e lhes fez pratica do que mais importava a sua salvação,
da eíTicacia dos sacramentos da Igreja Catholica; e feito exame, achando
muitos instruidos nos mysterios da Fé, começou a bautizal-os com a mór
solemnidade possivel de ornamentos ccclesiaslicos, apparato de padrinhos,
e ceremonias santas da Igreja, porque fizessem elles conceito da grandeza
do que recejjião, e entrassem os outios em novo fervor de procurar o mes-
mo. Uesta j)assou á aldeã de San-Tiago pouco distante, aonde obrou na
mesma f(ji-nia: c dalii á d(3 S. João, onde achou o Padre Gaspar Louren-
ço, e o Irmão Simão Gonçalves. Aqui sahirão os cathecumenos com cruz
alçada a receber o Padre fora de povoado passante de meia legoa, com
musicas, festas, coroas na cabeça, como em symbolo da esperança do dia
feliz de seu J)aulismo. Chegou o Padre Provincial, baulizou em hum dia
Cíinlo setenta c três, e em outro cento c treze, depois dos (jiiaes ccleíjrou
Í68 LIVRO II DA CHRONin.V DA COMPANHIA DE JESU
grande numero de matrimónios na Lei da graea, renunciadas as mais mu-
llieres de seu geatilismo.
103 Partio a outra aldeã da invocação de Santo António, por caminhos
aspérrimos; e d"esta á do Espirito Santo, distante quatro legoas, sempre a
pé, por mais que os índios se condoíão de sua fraqueza, c lho pedião usas-
se de suas redes. Em ambas estas aldeãs lavou na fonte do bautismo quan-
tidade de cathecumenos, e celebrou muitos matrimónios com grande ale-
gria, por ver a boa disposição em que adiava aquellas novas plantas. D"es-
ta passou á ilha de Itàparica, aldeã que custara muitos suores, especialmen-
te do Padre António Pires, e do Irmão Manoel de Andrade, trazendo a
gente dos campos, e brenhas, com que se povoara. N'esta entrou na ves-
pora da Invenção da Santa Cruz de Maio; e aqui lançarão os catlrecume-
nos a barra sobre todas as outras aldeãs, porque sahirão grande espaç/) fora a
receber o Padre Provincial em forma de procissão mais devota que todas,
com Imma grande cruz que muitos d"elles levavão ás costas, e os demais
cantando a coros, ajoelhando-se a passos diante d"ella, adorando-a com de-
voção, e reverencia, até encontrar com o Padre Provincial ; aqui plantarão
a cruz na terra, fazendo diante d'eria devotas supplicas em sua lingoa, so-
bre haverem de ser admittidos ás agoas do sagrado bautismo. Á vista de
tão pio espectáculo, tão bem representado em plantas novas, ficou conso-
lado o Padre, e fundou daqui esperança, que não ficarião lialdados os
trabalhos dos que os cultivavão. Ao dia seguinte d a Invenção da Santa Cruz,
matriculou no livro da milicia d^ella pelo santo bautismo cento e setenta e
três cathecumenos, ordenou Escola, assinando Mestre, com quem os me-
ninos aprendessem, á volta de ler e escrever, a doutrina e costumes
christãos: e logo se ajuntarão a esta passante de trezentos.
104 Até aqui tinha chegado com sua visita o Padre Provincial, quando
chegou da Capitania dos Ilhéos hum índio por nome Henrique Luis, a quem
bautizára o Bispo D. Pedro Leitão hum anno havia, com outro companhei-
ro gentio, naturaes ambos, e Principaes d'aquella parte, a pedir Religiosos
que os doutrinassem, oííerecendo-se a fazer-lhes casas, e Igreja. E suppos-
to que era distancia de vinte e oito legoas, e o caminho de serranias gran-
des, rios difficultosos de vadear, e os obreiros poucos: comtudo não aca-
bou comsigo deixar passar occasião tão boa, pois no mesmo tempo éramos ro-
gados, em que andávamos rogando a outros. Não sabe descansar o espirito,
quando he fervoroso. Parlio o mesmo Padre Provincial com elies, apesar de ser-
DO ESTADO DO BUASIL (aNNO DE \i)(){) 1G9
ras, e rios; chegou, vio o sitio, assinalou-o pêra formar aldeã, e desde lo-
go o dedicou á Virgem Nossa Senhora da Assumpção.
lOo Isto feito, vendo que se chegava o dia da Cruz de Settembro, in-
vocação da Igreja de Itàparica, onde tinha promettido achar-se pêra novos
hautismos, partio a toda a pressa a esta aldeã. Aqui se achou com o Bispo
D. Pedro Leitão, que tinlia vindo da cidade, levado tanto de sua devação,
como da do Padre Provincial. No próprio dia de Santa Cruz, o descanso
do caminho tão largo foi começar em rompendo a alva a branquear os seus
cathecumenos na sagrada agoa do bautismo, e forão em numero quinhentos e
trinta, e no dia seguinte forão oitenta os pares que ligou com a graça da Lei do
matrimonio. Ficou admirado o Bispo, e os que o acompanhavão, da paciên-
cia d'este servo fiel; porcjue gastando o dia todo até alta noite, chamando
ora huns, ora outros, a estes instruindo, áquelles bautizando, já mais se
pôde acabar com elle que tomasse refeição corporal, ou descanso algum
entremeio, até ultimamente acabar: que n"estas obras tinha posto a satis-
fação de comer, e descanso.
106 Passou d"aqui este obreiro incansável outra vez á aldeã do Espiri-
to santo, onde o Padre António de Pina havia de dizer missa nova. Bauti-
zou duzentos e cincoenta. Desta passou á do Bom Jesu, pouco havia começada;
aqui fartou então seu espirito, porque celebrou oitocentos e noventa e dous bau-
tisraos em hum dia, e no seguinte setenta matrimónios na lei da graça. Po-
rém n'esta aldeã são muito pêra ouvir as ridicularias, com que o espirito
mahgno pretendeo estorvar esta obra: porque na vespora do dia em que
esperavão ser bautizados os cathecumenos, foi visto andar rodeando as ca-
sas hum homem feo, e esfarrapado, que induzia por sua lingoa aquella gen-
te fácil, dizendo-lhe, que a razão porque os Padres os ajuntavão com tan-
tas veras naquelle lugar, era pêra os matar a todos, com certa traça que
tinlião inventado, e elle lhes fingia, e mostiava ao vivo. Não houve mister
mais, acumulão-se huns com os outros, e trattão de fugir ao matto. Pre-
sentirão os padres o rumor, acodirão, dissuadirão-nos com razões; e foi
pêra eiles a mais eíficaz, que buscando-se com toda a dihgencia o author
do embuste, não se achou, nem (jucm pudesse dizer quem era, nem don-
de era, nem pcra onde fora. Dissera eu, que era o inimigo inlérnal ;
e assi foi crido de todos. Não parf)u arpii o embuste. O dia seguinte estando
juntos na Igreja, esperando já a iiora do bautismo, eis que de repente corre
liuma voz: «Acodi, acedi, que toda aldeã se queima!» Perturbão-se lodos,
no LIVRO ÍI DA CHP.OMCA DA COMPANHIA DE JESU
saem da Igreja, acode cada qual a seu lanço, achão ser tudo falso, tornão-sc
envergonhados, recebem o bautismo apesar do inferno.
107 Porém o inimigo não cansa : entra o outro dia, e com elle outro em-
buste. Ao tempo que estava o Padre Provincial celebrando o santo sacrifício
da missa, com a mór solemnidade possível, e pêra que com mais apparato
celebrasse também os matrimónios, que pêra então guardál^^: virando-se de-
pois do Offertorio ao povo, e tendo já tomado a mão a hum dos contrahen-
tes, hindo tomar a da esposa, de improviso todos quantos estavão na Igre-
ja estremecerão, e se levantarão, e derão a fugir, c|iial se fora hum bando
de aves á vista de algum fero gavião, e com tão desusado impulso, que não
atinando com as portas, sahião pelas próprias paredes (erão ellas de palma)
até ficar desamparado o Templo. Forão forçados sahir apoz elles os dous
Acólitos, que ajudavão á missa, assi revestidos como estavão, a reduzil-os,
e aquietal-os, deixando só no altar o missacantante pegado áquelle a quem
tinha tomado a mão, que escaçamente pôde reter. Porém nemn^esta terceira
tragedia pôde prevalecer o inferno; porque os dous Acólitos reduzirão a todos,
fazendo-os a seu modo capazes, que não havia fundamento algum pêra tal
desordem. Tornarão á Igreja, contínuárão-se os sacramentos, ficando frus-
trado o enganador, que posto que pode perturbar, não pode impedir. Yio-
se aqui hum ridículo espectáculo, que mostrou bem de quem procedia;
porque os noivos, que pêra esta festa so tinhão enfeitado, quando vol-
tarão vierão descompostos, sujos, esfarrapados, da desordem com que ti-
nhão fugido, e dos lugares em que se tinhão escondido.
1 08 Apenas tinha acabado com a povoação do Bom Jesu o Padre Provincial,
quando chegarão Embaixadores de certos gentios, que habitavão dezlegoasmais
ao Norte, a pedir Padres. Não commetia semelhantes empresas a outro o
nosso incansável obreiro ; partio elle mesmo com os Embaixadores, e por
mais que prevenio aviso, foi festejado d'esta gente sobre todas as outras ;
porque quando menos o cuidou, muito antes que chegasse a elia, ouvio que
atroavão as mattas multidão de vozes incompostas; reparou, e erão canti-
gas a modo do sertão, com que sahião a dar-lhe as boas vindas, homens,
mulheres e meninos. Yinhão em ordem, os meninos primeii'0, em segun-
do lugar os varões, e no terceiro as mulheres ; galanteados todos com en-
feites de pennas de pássaros, pedras nos beiços de cores differentes, e mar-
chando ao som de seus costumados instrumentos. Chegados a avistar-se,
depois de recebido o hospede com as mais finas ceremonias de sua corte-
sia, fez-lhes o Padre a primeira pratica do cathecismo, de que ficarão sa-
DO ESTADO DO DRASIL (aNNO DE 1561) 171
lisfeitos: G forão logo demarcar o sitio da povoação, era que havião de
aju!itar-se, e fazer Igreja, que logo d"alli intitularão com nome de S. Pe-
dro Apostolo. Assentado este, levarão outros o Padre com náo menos festas
d^alli oito legoas, e destinarão lugar pêra outra aldeã, e Igreja, que invoca-
rão de Santo André.
109 Tinha concluido; porém ficavão-lhe os olhos em Imma aldeã dis-
tante quasi outras dez legoas, a maior de todas, e do grande fama: mas
era de gente inimiga, e contraria ás outi-as. Que faria? Não acabou comsi-
go deixal-a : foi-se a ella, posto que não chamado: chegou, e achou hum
Principal assaz venerável entre os seus, homem de outro século, de cento e
vinte annos deidade, em cujo lugar pela muita velhice governava hum neto seu
de sessenta annos, por nome Capinno, homem de muita conta^ e authoridade.
E como d'esíe, e dos seus dependia em grande parte a propagação do Evan-
gelho, e paz de todas aquellas aldeãs, meteo o Padre cabedal por trazel-o
comsigo, que viesse a ver a cidade, e o modo do tratto dos Portugueses;
porque ficasse mais afeiçoado: e era tanta a authoridade que tinha ganha-
do entre elles, que não pode deixar de vir no que queria, não obstante o
fundado receio que tinha, por haver de passar por seus inimigos, dos quaes
não se fiava. Yeio com tudo, e com successo grande; porque de caminho
assentou pazes com os moradores de Santo André, principaes inimigos, por
meio do Padre : e na cidade foi recebido do Gov ernador com mostras de
grande benevolência, dando-lhe de vestir, e alguns dons de vinho de Por-
tugal, ferramentas, e outros; e sobre tudo provisão de Capitão dos seus a
modo portnguez: cousa digna de ser lançada em seus annaes, e que fez
inveja aos outros. E íicou n"esta forma em grande estado a conversão
d'aquellas partes. N"este anno chegou â Bahia soccorro de Portugal de hum
Padre por nome Francisco Viegas, e hum Irmão Italiano: porém não veio
a eíTeito fruto algum de sua missão, por serem ambos brevemente despe-
didos da Companhia; que supposto que forão dos chamados, não erão es-
colhidos.
110 Em quanto íia Bahia de todos os Santos, c seus districtos assi se
occupava o Padre Oram e os seus Religiosos, o Padi-e Nóbrega em S. Vi-
cente, com os quo com elle vivião, náo estava ocioso; porque supposro que
debilitado da saúde, e carregado dos annos, e achaques, era o espirito sem-
pre o mesmo : com este corria as vilias circunvizinhas pregando, praticando,
confessando, com assaz de trabalho, semiiro a pé; c quando subia lugares
altos, em vez de bordão, lhe servia de encosto o companheiro.
Í72 LIVRO II DA CHROXIC.V DA COMPANHIA DK JESU
Ml Trazião n'este tempo revolta toda a terra os contínuos assaltos dos
Tamoyos, inimigos dos Portugueses desde o tempo da entrada dos Fran-
ceses no Rio de Janeiro. Andavão á caça da nossa gente, como das feras,
pêra pasto da gula, e juntamente da vingança. Acommetião repentinamente,
ora das serras aos fjue vivião no sertão de Piratininga, ora das canoas aos
que vivião no marítimo; e não se dava alguém por livre de seus arcos, e
dentes. Entre tantas angustias o santo velho Nóbrega era alivio de todos,
ou per si, ou per seus Religiosos : fazia oíTicio do Propheta Jonas, amoes"
tava a todos, que se arrependessem, e confessassem, e andassem appare-
Ihados, como em perigo de morte : que prevenissem a justa indignação do
Senhor, que com os mesmos meios os castigava, com que o oíTenderão, e com
a mesma mão dos Tamoyos, que aggravárão, saltearão, e cattivárão sem
razão. Por esta causa mandava fazer aos Religiosos frequentes sacrifícios,
penitencias, e orações com que aplacassem o Ceo, e fizessem capazes aquel-
las villas de seus peccados.
112 De todos os trabalhos dos homens costuma Deos tirar algum fru-
to. N'esta occasião o tirou da salvação de duas celebres mulheres, que de-
rão a vida constantemente por defensão da castidade. Era sabido o depra-
vado costume dos Tamoyos, que além de usarem dos prisioneiros pêra pas-
to do ventre', usavão também das mulheres pêra matéria da lascívia. Corria
fama que trattavão de dar em certa paragem, em a qual era moradora hu-
ma mulher mestiça viuva, 6 de bom viver : esta faltando com suas amigas
disse as palavras seguintes: «Os contrários Tamoyos me hão de cattivar;
porém eu não me hei de deixar levar viva, porque me não tenhão por man-
ceba, como as demais.» E feita esta resolução, foi confessar, e commun-
gar, e recolheo-se a sua casa. Passara pouco tempo, quando derão n'ella
assalto os Tamoyos, e querendo leval-a a suas canoas, resistio com tanta
força a poder de braço, que houve de chegar a hum de dous extremos, ou
entregar-se á vontade dos bárbaros, ou entregar em suas mãos a vida : es-
colheo antes esta sorte, e atravessada a facadas deu constantemente a alma
a seu Criador.
113 Foi mais notável o caso da segunda mulher, t ambem mestiça, ca-
sada, e dotada de fermosura corporal, mas muito mais da espiritual; por-
que era assinalada em virtude, doutrina, e frequência dos sacramentos
entre todas suas iguaes. Esta prophetizou claramente o que lhe havia de
succeder; porque acabando de commungar hum domingo, chegando a casa
disse ás parentas, e amigas, como despedindo-ae d"ellas, estas palavras :
DO ESTADO DO BHASIL (aNNO DE 1501) 173
«Os Tamoyos me hão tio levai- em suas canoas, o eu passarei bradando
por tal parte (dizeiído-a por seu nome) e ninguém me acodirá.» Foi tudo
assi, porque derão os Tamoyos assalto, e cattivárão entre outros esta mu-
lher, embarcárão-na em suas canoas, e foi levada pela parte que tinha dit-
to, gritando, sem que alguém lhe acodisse. Chegou á terra dos Tamoyos,
e o senhor da presa fez a seu pai presente d'ella, como da melhor parte,
pêra sua manceba. Bem conhecia esta venturosa esposa do Senhor, que a
conservação de sua vida consistia na satisfação do intento do bárbaro, que
logo começou a mostrar-lhe affeição; porém ella animada d'aquelle, que
pôde descobrir-llie o successo futuro, resístio constantissimamente, e recha-
çou ao monstro lascivo. Natural era, vendo-se desprezado este bárbaro to-
mar logo vingança; porém levado da fermosura, e esperança que n'ella lhe
ficava, porque cria não poderia durar muito tempo constância de mulher,
deixou-a viver por mais tempo, servindo-se d'ella como escrava, mas tra-
tando-a como amiga por reduzil-a a seus intentos: porém ella constante
como huma rocha determinou entregar-se antes às feras, fugindo pelos mat-
tos : se não que, como era fraca, e andava pejada, não foi possível por
muito tempo sustentar o cerco da fome : passados três dias deixou as bre-
nhas, desceo aos semeados em busca de sustento; aqui foi sentida, e presa.
Furioso, e desesperado já o bárbaro, quiz tomar vingança dobrada; espe-
rou que parisse, e á vista da mãi matou, assou, e juntamente comeo o fi-
lho. Esta triste vista sentio, mas não consentio com o bárbaro, a resoluta
mãi : o que visto, a despedaçou também, fazendo matéria de sua gula a
que o não quizera ser de sua lascívia; querendo antes esta forte matrona
perder duas vidas, que commeter huma só offensa de Deos. Foi este caso
celebre, e com razão divulgada esta matrona por verdadeira martyr da
castidade; e pôde servir de exemplo illustre, honra, e coroa das mulheres na-
turaes do Brasil. A certeza d'elle he grande, porque o conta em sustancia,
quasi nos mesmos termos o venerável Padre Joseph de Anchieta, e diz que foi
notório, e que por relação dos mesmos Tamoyos teve certeza d'elle; e falia
d"esta memorável mulher como de alma bemaventurada, que goza do pre-
mio do martyrio : acrescentando, que o Tamoyo que a cattivou, e deu a
seu pai, foi logo castigado d(j Ceo, sendo cattivo, morto, e comido de seus
conti-arios.
\ll Outro caso sucixídeo n'esles assaltos dos Tamoyos, digno de ser
sabido. Ixvárão cattivo hum escravo dos l^idres, juntamente com hum li-
llio seu : i)edio-lhc's o escravo com humildade (]ue o não inatasscm, ou ao
174 LIVRO U DA CIIIIO.MCA DA CO.MFANHÍA DK JKSU
menos depois de moi-to (iiie não comessem suas carnes, que tivessem res-
peito a que era servo dos Padres, homens Ijons, que tem tratto com o Deos
verdadeiro, e podia castigal-os. Zombarão os bárbaros do dilto do cattivo,
mas não zombou o Ceo á vista de sua crueldade; porque cUes matarão o
pai, e o filho, e os comerão em seus convites; e o Ceo fez tal demonstra-
ção de castigo, que desceo logo soljre o lugar todo peste cruel, que co-
meçando pelo Capitão homicida, foi consumindo a todos miseravelmente,
deixando a aldea deserta, espanto, e exemplo dos vizinhos.
Ho Entre tantos assaltos dos inimigos fizerão também hum contra el-
les os índios que favorecião nossa parte. N'este tomarão por mar Imma
presa, que muito desejavão : era ella hum grande Principal, Capitão que
havia sido de muitos assaltos, e tinha morto e comido a muitos Portugue-
ses com grande crueldade. Trouxerão-no prisioneiro á villa, e tendo receio
alguns Portugueses que poderia acolher-se das mãos dos índios, fizerão que
o matassem logo em sangue frio; e pêra isso lhe derão dentro da villa ca-
sa, na qual não somente lhe tirarão a vida, mas usarão de crueldade des-
humana; porque depois de morto o fizerão em postas, assarão, e comerão
a modo gentílico : e tudo isto lhe consentirão aquelles Portugueses a fim
de os encarniçar contra seus inimigos. Estava n'este tempo o Padre Nó-
brega em Piratininga, e quando lhe chegou a relação de feito tão feio, sen-
tio-o por extremo, porque via que acrescentavão estes homens oflensas a
offensas. Lá onde estava chorou esta com lagrimas de sangue, e escreveo
logo aos Padres da villa, ordenando-lhes sahissem todos pela rua publica
tomando disciplina, e pedindo a brados misericórdia; porque os Portugue-
ses entrassem em si, conhecendo seu peccado, e o Ceo suspendesse o cas-
tigo, que considerava estar ameaçando sobre aquelle povo. Com que espi-
rito tomasse este servo de Deos tão áspera resolução, não o direi de certo;
mas sei que foi attribuida a impulso do Ceo : e na verdade, computado este
affecto com o que d'antes, e depois pregava nos púlpitos, a fim de que os
homens divertissem a Justiça divina, e vista outrosi a particular aíflicção
com que faltava na matéria, e a ultima resolução f^ue veio a tomar de ex-
por sua própria pessoa a manifesto perigo da vida entre inimigos, como
logo veremos, junto tudo em varão de tão grande espirito, faz prova cla-
ra, que não faltava acaso, senão que lhe era manifestado o castigo da des-
truição d'aquella terra, e que procurava por todos os meios evital-o.
H6 Outros indícios de castigo do Ceo tiverão logo os moradores da
villa de S. Vicente; porque veio sobre aquelle povo tal incêndio de doença
DO ESTADO DO UKASIL (A.XNO DE 1561) 175
ile descntcria de sangue, que poz a todos em grave aperto. Nâo erão bas-
tantes os Padres, trabalhando de dia, e de noite, a dar alcance ás confis-
sões dos que chegavão as portas da morte, nem ainda a sangrar, e curar;
que a tanto obrigava o aperto, charidade, e necessidade : por cuja causa,
o juntamente por grandes arreceios que tinhão do successo de certo as-
salto que havião ido dar a seus inimigos, andava a gente toda como assom-
brada: e por todas estas causas fazia o Padre Nóbrega frequentes procis-
sões pelas ruas publicas, e ordenou que dentro em casa tivessem os nossos
orarão nocturna perenne na maneira seguinte. Que estivesse cada qual dos
Padres, e Irmãos certas horas da noite em oração medidas por relógio de
área, e no fim d"elia tomasse disciplina, e passasse o relógio a outro, até
passar a noite toda : e perseverou o fervor d'esta devação toda huma Qua-
resma, não sem indicios de perdões do Ceo.
M7 No anno presente passou a melhor vida o Irmão Matheus Noguei-
ra, Coadjutor temporal, aquelle a quem dissemos recebera na Companhia
o Padre Leonardo Nunes na Capitania do Espirito §anto, e levara pêra a
de S. Vicente no anno de lo59. Desde secular foi Deos mostrando queso
contentava d'este Irmão. Passando de Portugal, pátria sua, aos lugares da
fronteira de Africa, sendo alli soldado, contava elle, que recebera do Se-
nhor grandes mercês; porque servindo de espia (oíficio n"aquellas partes
muito arriscado) o livrara de muitos perigos em que se vira, ora de Mou-
ros, ora de leões, a cujas mãos, e garras esteve a ponto de perecer : e
que estes perigos da morte, e outros que via cada dia nos encontros de
guerra, lhe servião de vivo espelho da morte eterna.
118 Das fronteiras de Afiica tornou á sua pátria; e quando cuidava des-
cansar, lhe offereceo a fortuna occasião pêra maior desterro. Achou que pelo
tempo de sua ausência tinha vivido erradamente a mulher com quem era
casado, em seu grande descrédito : e não acabando comsigo malal-a, nem
ainda accusal-a (levado da piedade natural, de que era dotado, e dos be-
neíicios que recebera da mão de l)(.'os) resolveo-se que era servido o Ceo
mortifical-o, e tiral-o da pátria. Fazião-sc levas de gente pêra povoar o Bra-
sil, achou que nelle viviria mais desconhecido da gente, assentou praça de
soldado, e veio demandar a Cap-ilania (h) Espií-ito santo. Aqui militou al-
guns annos, ajudando a defender aíjuella terra de grandes assaltos, com
que foi combatida por vezes de quantidade de bárbaros inimigos, onde Deos
sem[)re o livrou de perigos vários, o com nome de homem valeroso; por-
que era robusto, e de giandes forças cori)oraes. .No tenq»o (]ue lhe sobe.
!7G LIMIO II DA CHROMCA DA COMPANHIA DE JESU
java da guerra, trattava de ganhar sua vida exercitando officio de lerrciro-
mui necessário n'aíiuelle tempo, e estimado n"aquellas partes; vivendo sem-
pre n"elle o temor de Deos, c lembrança de bens, e males da outra vida :
servia-lhe de lembrança da morte os que via acabar na guerra, e das penas
do inferno o fogo da forja de seu oíTicio.
119 Neste tempo passou por aqucUa Capitania o Padre Leonardo Nu-
nes, e inílammado jã nosso Matheus no amor divino, e desejoso de largar
o mundo, e dar-se áquelle, de quem tantas mercês recebera, pedio-lhe a
Companhia, foi recebido n'ella, e depois approvado seu recebimento i)elo
Padre Provincial Manoel da Nóbrega, e por nosso Patriarcha Santo Igna-
cio. Geral então de nossa Religião, a quem foi proposto, não obstante ser
viva a mulher com quem era casado, e repudiara pelo adultério.
120 Feito Religioso, tratou mais deveras de agradecer a Deos as mer-
cês que d'elle havia recebido, e Deos de fazer-lhe a elle outras de novo.
Em o noviciado tomou por exemplar a seu mestre Leonardo Nunes, e
procureu de imital-O; especialmente na resolução efíicaz de castigar seu
corpo, o qual trattava como trattára hum jumento de carga. Era pobríssi-
ma a casa em que vivião, sustentava-se com muito trabalho de esmolas
pedidas aos fieis de porta em porta : pêra poder aliviar em parte esta ne-
cessidade, e acodir juntamente ao sustento do Seminário dos meninos fi-
lhos de índios, e Portugueses pobres, armou tenda de seu officio (com
beneplácito do Superior) e todo o tempo que sobrava dos exercícios espi-
rituaes, trabalhava n"elle, e aliviava n'elle, e aliviava com seu suor aquella
tão grande necessidade.
121 Nos princípios de seu noviciado foi combatido do inimigo com ten-
tações graves; mas sentio sempre n"ellas o favor divino. Estava certo dia
attribulado com huma rija bateria do infernal espirito, quando se llie offe-
receo aos olhos a luta de huma formiga e outro bichinho : pretendia esta
leval-o a seu formigueiro, relutava aquelle, e por maior prevalecia: des-
appareceo a formiga, e quando cuidava o Irmão que era acabada a conten-
da, começou com mais força; porque chegando a formiga ao lugar de seu
recolhimento, deo ponto da presa ás companheiras, pelos modos secretos
aos homens, qne a natureza lhes ensina, e logo juntas em enxame vindo
seguindo-a, e empolgando no bichinho, fizerão todas o que huma só não
podéra, e o arrastarão vencido á cova, onde fazião seu celleiro. Cahio então
em si o Irmão Nogueira, e ficou corrido; porque entendeo, que lhe mos-
trava Deos alli no exterior hum vivo exemplar do que passava dentro em
DO ESTADO DO DHA.SIL (a.\.\0 DE 1501) 177
sua alma; c qiiti assi procurava o deinuuio vencel-o, e não podendo só per
si, cliamava outros, que como formigas, multiplicando impulsos, o hião ie-
\ando á cova infernal. Lançou-se por terra o noviço, conheceo o engano,
agi-adeceo o favor, e resistio de todo á tentação, e a todas d"alli em diante
com mais espirito.
122 Foi permudado pêra Piratininga, e não mudou nunca de estylo,
([uer na virtude, quer no trabalho do oiricio. Importou muito o fruto que
fez com suas obras (além do remédio da casa;) porque como entre aquel-
les índios nenhuma cousa havia de mais estima que hum machado, huma
fouce, huma cunha, e outras peças semelhantes, acommodadas a seus tra-
balhos, e o Irmão as fazia com perfeição, e com boa vontade a todos, imico
na terra; era tido d'elles, qual outro Deos Vulcano, em grande reverencia:
e i)or este meio acabava com elles tudo quanto queria a lim de sua salva-
ção. Davão-lhe os íilhos com facilidade pêra lhos ensinar, acodião á dou-
trina do Galhecismo, e obedecião a todos seus mandados, como de homem
(jue tinha arte mais que humana, proveitosa pêra beneficio de todos. Man-
dava recados ao sertão, e lá ei'a pontualmente obedecido. EUe foi gi-ande
[)arte da causa de se íacihtar, e frequentar o Seminário da doutrina chris-
tãa dos meninos, e da conversão de muito numero dos grandes.
123 Hum anno antes que morresse este bom Irmão, foi aílligido com
continuas doenças, causadas do perejine trabalho, e penitencias rigorosas
com (juc moi'tihcava seu corpo, batendo n'elle como no mesmo ferro, até
(lúebrar de sua dureza de maneira, que não podia ter-se em pé, homem
(fue fora de tão grandes forças (que como não havia então ainda na Com-
])anhia constituições, e tomava cada hum as penitencias ([ue lhe parecia;
ciiegou a não ter mais que os ossos; c não deixava por isso, nem o trabalho,
nem a oração. N'esta era continuo, o devotíssimo: e quando já por fraqueza
do corpo chegou a não poder estar de joelhos, escreve d elle o venerável
Padre Josei)h de Anchieta contemporâneo seu, (juc tinha feito humas como
moletas em que se sustentava, e hum tirac(jllo ao pescoço, com que j^odia
ler as mãos levantadas, [)or ajudar com este sitio devoto a oração.
12i N'esta IVirma conliimou este servo fiel até cahii- em cama; n"ella
esteve cinco até seis dias não mais : n^estes com freiíuentes suspiros, e ja-
culatórias ao Ceo, se apparelhou devotamente pêra a pai-tida d'esla vida :
pedia aos Irmãos lhe fallassem de Deos muitas vezes: a outros que lhe
lessem lição espiritual; a qual ouvida, licando-se S(> meditava sobro cila, o
lazia f(;i-vor(Jsos colloquios, até que tomados os saci'amentos lodos, e dca-
VOL. i Ti
178 LIYUO 11 DA Ciir.OMCA DA COMPANHIA DE JESU
peuindo-se de seus Irmíios no dia penúltimo de sua vida, disse: «Ámanliãa
me irei.» E succedeo assi; porque ao seguinte dia 20 de Janeiro do anno
corrente de 1561 deo a alma a seu Criador, sendo de idade de quasi ses-
senta annos. Falia d'eiie com grande louvor o Padre Joseph de Anchieta :
e foi o iirimeiro da Companhia, que na Capitania dcS. Vicente morrco em
cama. Foi sepultado na Igreja de S. Paulo da villa de Piratininga.
425 Na Bahia não passarão as cousas menos felices o anno de
1562 que o antecedente; })orqae o Padre Luis da Oram com seus obrei-
ros não cessava momento na empresa começada. Passada a festa do nome
de Jesu, orago d'aquelle Collegio, partio a suas costumadas missões, e n"el-
las fez o fruto seguinte. Na aldea de S. Tiago lavou na agoa do sagrado
bautismo cento e vinte cathecumenos. Na de S. João quinhentos e cincoen-
ta. Na de Santo António quatrocentos, Na do Bom Jesu duzentos e vinte
quatro. E aqui parou, por traça do inimigo infernal, invejoso do bem d"es-
ías almas: porque tendo enviado diante a preparar os cathecumenos da
aldea de S. Pedro o Padre António Rodrigues, recebeo logo escritto seu,
em que dizia, que não só os índios d'aquella aldea, mas também os de
Santo André de mão commum se tinlião acolhido pêra o sertão (a torna
aqui o espirito invejoso do anno passado a fazer das suas.) O caso fui, que
os feiticeiros das brenhas, achando-se menos acompanhados de seus anti-
guos súbditos, e defraudados da honra, e proveito que d"elíes recebião,
entrarão em sentimento, e procurarão com embustes, e razões diabólicas
perverter os d"estas aldeãs, que erão mais modernas, e menos constantes
ainda na doutrina dos Padres; e forão ellas tão eíTicazes pêra com elles,
que os levarão todos após si : senão que parece prevenio o Ceo o espirito
presago do Padre Gram, mandando diante o Padre António Rodrigues, o
qual sabendo o desarranjo, supposto que fraco, e enfermo, se poz a cami-
nho por montes assaz ásperos em busca delles, com tal successo, que por
providencia divina a poucas jornadas encontrou com chusma de mais de.
três mil almas, homens, mulheres, e meninos, tão carregados de suas al-
faias, cabaços, cuyas, patigoás, ])Otes, bogios; e tão íamintos, e cansados
(fora do que cuidáifio, por ser grande a quantidade de gente, c o sertão
estéril) que foi fácil toiiiar a reduzil-os envergonhados, e fazel-os cíipazes
dos enganos d'aquel!es feiticeiros, rpie pretendião impedir-lhes a salvação,
a fim de seus interesses somente. Voltados elles, e compostos em suas al-
deãs, mandou recado o Padre António de tudo o que passara, de como
eslavão já reduzidos, arrependidos, e preparados. Qual se ouvira huma nova
DO ESTADO DO líílASIL (ANNO DE U')(')Í) 170
do Ceo, VOOU jiquelles povos o Padre Provincial : e foi o fiiilo como mila-
groso; porque forão mil cenlo o ciiicoenta os que novamente alistou na mi-
licia da Igreja Catholica d"estas duas aldeãs (outras tantas lançadas ciueis
d'aquellcs feiticeiros, e do autlior de seus cmijustes.) Feito este serviço de
Deos, instava o tempo da Quaresma; foi necessário acodir o Padre Provin-
cial ás pregações, e mais exer-cicios da cidade, assaz consolado do passado
successo.
126 Passou o trabalho da Quaresma, e as continuas confissões da Pas-
choa; e porque não se interrompesse o ganho das almas, sahio o Padre
Provincial com hum novo invento; traçou huma grave missão, que se bem
era de muito serviço de Deos, e de muitos milhares de almas, era com tu-
do mui arriscada, e commummente tida por impossível : a tudo porém se
atreve o fervor de espirito. Tinha o oUio em muitos milhares de gentios,
que habitavão as ribeiras do rio S. Francisco; e como estes trazião guer-
ras entre si, erão causa que não dessem ouvido ao Evangelho huns, e ou-
tros: pareceo ao espirito de Gram, que tudo alhanava, que com sua pre-
sença poderia concordar esta gente, e fazel-os capazes do bem de sua sal-
vação. Pôde o desejo intentar, tomar companheiro, por-se a caminho : po-
rém não foi possível o chegar; porque de[)ois de andadas muitas jornadas,
experimentados graves perigos de gente bravia, que assaltava os caminhos,
e de todo o animal, ou bruto, ou racional, sem distincção, fazia pasto : de
diversidade de fúria de rios, e sobre tudo da dura fome, que os chegou á
morte; houveifio de voltar, com a vida sim, porém não com as forças, e saú-
de ajm que partirão: mas se comtudo faltou a occasião, não faltou o de-
sejo, nem faltarião os merecimentos.
127 Torna em roda viva á visita de suas amadas aldeãs. Em Itaparica
baulizou cenlo e oito cathecumenos. Em S. Miguel, aldeã dos Ilheos oito
centos e noventa e sete. Na de Nossa Senhora da Assumpção junto a esta
mil e noventa. Primícias d'eslas duas Igrejas, e fruto de grandes suores,
trabalhos, e fomes com que passou estes caminhos em tempos de chuvas,
enchentes de rios, lugares desertos, onde nem abrigo, nem soccoito ha-
via de viatico, sempre a i)é. Dos Ilheos voltou ás aldeãs do Espirito sanío,
e branqueou na font(; da graça, em huma cento (! setenta, em outra cento
e tr'in[a e oito. Na de S. Tiago cenlo e ciiicoenta e Ires. Na de S. António
duzentos e dois. Na de S. Paido, onde como mais vizinha á cidade, poi'si'u
muito zelo se quiz achar |)r(;scM)le, o l{isj)o D. Pedro Leitão, duzentos e
doze. Mi 1 í Tismidí» ;i ideara do Senhor nesta forma c lidiava co[iia bas-
180 LIVUO II DA CHUOMCA DA C0MI'AMI1A DE JESLT
tante de segadores: quando proveo o pai dos oi)erai'ios, que no mez de
Julho do corrente anno chegassem á Bahia quatro Uchgiosos nossos, versa-
dos todos na hngoa brasilica, vindos de S. Vicente, a saber: o Padre Ma-
noel de Paiva, o Irmão Manoel de Ciiaves, o Irmão Gregório Serrão, e o
Irmão Diogo Jacome, que brevemente ordenou o Bispo D. Pedro Leitão de
ordens sacras ; íicando aptos todos pêra ajudar na colheita das almas.
128 N'este tempo despedio o Padre Provincial o Padre João de Mello por
Supei'ior á missão de Pernambuco, que alli tínhamos começada na villa de
Olinda, juntamente com o Padre António de Sá, perito na lingoa do Brasil.
Forão recebidos estes dous Missionários como dous Anjos vindos do Ceo,
porque andavão havia tempo em prejudiciaes revoltas o Governador, e
Principaes da terra, com bandos feitos de parte a parte, perigosos; e pro-
metia-se que por meio d"estes dous Beligiosos teiúão meio estas cousas. Foi
esta a primeií^a empresa que intentarão : visitarão liunse outros, ganhando
primeiro mão comelles, e brevemente com suas letras, praticas, e pregações,
decidirão as razões da contenda, e concluirão amigável composição. Á vista
deste caso forão buscados por medianeiros de dissenções i)articu}ares, de
ódios intranhaveis, c inveterados, a que derão remédio á força de industria,
sofrimento e trabalho. Avivarão com suas pregações e praticas, o uso dos
sacramentos da penitencia, e sagrada communhão, em que acharão grande
descuido. E n'esta matéria houve casos particulares de grande serviço de
Deos, que não achei singularizados.
129 Yivião os Padres de esmolas dos íieis, e recolhião-se no lugar e
morada de quatro cuIjícuIos, que alli deixarão os antecessores d'esta mis-
são: e pouco depois com novas esmolas que ajuntarão, llzerãí.) Igreja de
pedra c cal, com invocação de Nossa Senhora da Graça. Daqui sahião em
missões a todas as villas circunvizinhas, pregando, confessando, e doutrinan-
do pelas praças a brancos, e escravos: discori'ião pelas aldeãs, bautizavão
em artigo de morte, calhequizavão, e doutrinavão. N "estas, e outras obras
do serviço de Deos (segundo o que acho escritto) continuarão estes Missio-
nários até o anno de 1Í3G7: não deixarão porém lembrança alguma de mais
casos particulares, que alli obrassem; nem nós a faremos até o anno de
1568, em que tornaremos ao lio da historia: porque então se fará residên-
cia em forma n'este lugar.
ViO Continuavão em S. Vicente as revoltas dos annos i)aí>sados, e hião
cada dia ameaçando maior ruina; porque os índios inimigos com o exercí-
cio se achavão mais destros, cum as presas da carne humana mais encar-
DO KSTADO DO DRASÍI, (aNNO DE loG2) 181
nirados, c com n indiislri.) da gento francoza, qiic ficara no Rio de Janei-
ro, mais soberbos: não pretendião já assaltos somente, mas acal.»ar, e con-
sumir de todo os Portugueses, c lancal-os por bmna vez fora de seus dis-
tríctos. Ajuníava-se a todos estes males o infeliz successo, que de próximo
tinhão havido os Portugueses; porque accommetendo aos Tamoyos com o
mór poder que possuião, por justos juizos de Deos, ou por castigo das in-
justiças, que contra os mesmos índios tinbão commetido, tão choradas, e
pregadas de Nóbrega, forãí) vencidos, e desbaratados.
131 Estando as cousas n'este perigoso estado, á vista d'este ultimo
successo, sobreveio outro mais pêra temer ; porque os índios Tupis do ser-*
tão confederados nossos, f[ue jà andavão meios arruinados, com esta occa-
sião acabarão de se declarar por contrários, e hião cada vez mais reforçan-
do-sc com o poder de outras aldeãs circunvizinhas, que estavão neutraes,
e de muitos outros, que de nós fugião por descontentes, e buscavão a elles
l)or de melhor partido.
132 Não ficarão em vão os arreceios dos Portugueses: porque passado
pouco tempo, vendo-se os índios do sertão com grosso poder, se resolve-
rão em todo o segredo de ir dar sol)rc a villa de Piratininga, acabar os que
n'ella estavão, c fazer-se senhores d"aquelles campos, que cobiçavão por sua
fartura, e pela boa defensa que dalli tinhão contra os Portugueses, pelo
intermeio das serras Paranápiacába, que servião como de muralhas natu-
raes. Abalarão com eífeito por caminhos occultos multidão numerosa, mui-
tos milhares de gentilidade, e ainda de Christãos fugitivos, destros nas en-
tradas, e saídas da villa, e criados n'ella alguns, com intento de tomarem
os nossos descuidados. Porém o Senhor, que pretendia mais castigar, que
arruinar aquella Capitania, ondenou rpie hum índio cimipadecido de nossas
afllições, o l(ímbrado tia doutrina dos Padres, se apartasse de entre elles,
e viesse por caminhos mais breves, rompiíndo o matto, a dar recado aos
nossos de como descia' sobre elles tão grande poder.
■133 (>hegou a nova aos três de Julho do presente anuo, achando-sena
casa de Piratininga dez Ueligiosos, [)or Superior (Velles o Padre Vicente
Rodrigues: ficarão lodos metlidos em grandi; confusão; porque era muito
o poder do inimigo, o mui limitado o nosso: porÍMU aqui mostrou a mão
de Deos o como p()de, e sab(3 [lelejar pelos que seguem sua saída Fé. Foi
c(jusa muito pêra louvar o Senhor dos exércitos, ver o como moveo osco-
i-ações dos índios calhecunienos,'e bautizados, nossos discipulos, como se toca-
ra rfelles a larma, e lhes infundira brio gULirreiro peia nos defender, o tomar ar-
182 LIVÍIO II DA CÍIIIONICA DA COMPAMIIA DE JESU
mas contra os seus. Yierão-se logo recolhendo nossos amigos, e os fiuecom-
sigo poderão abalar de seis, ou sete aldeãs que meterão dentro das estan-
cias, pêra morrer, ou vencer comnosco juntamente, por mais que a vinda
dos das aldeãs lhes custava, não só perigo, mas grandes incommod idades
dos caminhos secretos, por onde por razão da pressa, e segredo, era for-
çado virem de noite, por geadas, e frios violentíssimos, não só pêra lio-
mens, mas pêra mulheres, e meninos :'e apesar de tudo vinhão a bandos,
como trazidos da mão de Deos, e quasi sem saber o que fozião, á vista de
huns, que se lançavão no mesmo tempo com o inimigo, e de outros que
se ficavão embrenhados nas matías.
134 Entre todos, o que deo mostras de maior valor, e lealdade, foi o
índio chamado em seu gentillsmo Tebyreçá, e no bautismo Martim AíTon-
80, Principal de Piratininga. Fez este índio maravilhas : recolheo logo sua
gente de ires aldeãs que tinha divididas, pondo-lhes as casas por terra, e
deixando suas granjas, e roças ao furor de seus contrários, porque perdes-
sem de huma vez- a esperança d'ellas. Por cinco dias que tardou o inimigo,
e durou a preparação do combate, andou sempre em viva roda, ora dis-
pondo as cousas da guerra, ora metendo em confiança os Padres, ora ani-
mando os Portugueses, que erão poucos, e doentes. Fazia pratica aos seus
de dia, e de noite, que defendessem a Igreja, e os Religiosos seus pais,
que os ensinarão, e criarão na Fé: que vissem que Deos estava de sua
parte; porque dos contrários, huns erão gentios, outros desleaes, e arrenega-
dos, que deixarão a doutrina dos Padres; e elles erão filhos da Igreja : que
vissem o como elle contra seu próprio irmão carnal conhecido de todos,
por nome Ararayg, e hum filho sobrinho seu, que vinha em favor do inimi-
go, eslava animado a pelejar pela Fé, que huma vez tomara, e pelos Padres
que lha ensinarão, arriscando a vida, mulher, filhos, e fazenda com espe-
rança de que Deos, a quem servia, liavia. de estar da sua parte ; e que as mes-
mas obrigaçijes occorrião aos que já erão Christãos, e aos que o não erão pelos
desejos que o Senhor lhes tinha dado de o ser. O caso d este sobrinho seu,
filiio de Ararayg, foi a maior fineza d'este índio: porque levado o sobrinho
doamornaturaKeconsiderandoqne vinha a fazer guerra contra hum tio seu.
Capitão da parte contraria, fez o possível por reduzil-o : fez-llie a saber a
multidão de arcos que contra elle vinhão, e cobrião os campos; que era
certa a victoria por parte dos seus : que não quizesse perder-se a si, e to-
da sua gente ; que como sobrinho, e sangue se condoia, e oíTerecia a fazer
de maneira, que se lhe desse boa evasão, e a todas suas cousas. De
DO KSTADO DO BRAÍ5IL (aNNO DE \')Cr}) 183
lodos estes oíTorecimentos zombou o tio Tebyreçá, respondendo, que con-
íiava em Deos voncel-o, e malal-o, por cansa da fé, e defensão da Igreja
santa; cuja bandeira arvorou logo daqnelle ponto em diante, ornando-se,
e vestindo-se todo de suas costumadas armas.
133 Estando as cousas n"estes termos, recolhidas as mullieres dos Por-
tugueses, e índios na Igreja, por lugar mais forte, e porque rogassem a
Deos pelo successo do confiicto : eis que ao romper da alva do dia, que foi
o da oitava da Visitação de Nossa Senhora, dão os inimigos de improviso
sobre a viila de Piratininga, com tão grande estrondo de gritos, assovios,
bater de pés, e arcos (como costumão) que parecia se vinha o mundo abai-
xo, e SC arruinavão os montes vizinhos. Todos elles pintados, e empenna-
dos, jactanciosos, prometendo-se a victoria, deixando nas costas canalha
de velhas carregadas de panellas, e azados, em que dizião havião de cozer a
carne dos cattivos, segundo as leis de seus costumes l^arbaros. Porém traçou
differentementeoCeo;porqueos nossos sahírão a recebel-os com não menos
brio, e esforço, com bandeiras da Igreja de Deos, pela qual pugnavão. Era pêra
ver pelejar ás frechadas irmãos contra irmãos, sobrinhos contra tios, pri-
mos contra primos, e filhos contra pais. Forão ^•arios os successos da guer-
ra: até que por íim cansados, e desbaratados se retirarão os contrários,
com morte de muitos, e muitos mais feridos; e sem que morresse hum só
da nossa parte, [)osto que ficarão muitos frechados, aos quaes acudirão os
Padres, curando-os ; e íizcrão todos acção de graças por tão grande suc-
cesso.
i3G Entre os que morrerão da parte do inimigo, foi hum o sobrinho
de JMarlim Alíonso Tebyreçá, chamado por sua valentia Jagoanhanj, que
vem a dizer, o Cão bravo, que capitaneava hum troço; este sabendo que
as mulheres se tinhão recolhido em nossa Igreja, e que havia alli que rou-
bar, veio a dar cíjmijate n'e!lapela parte da cerca da horta dos Padres, que
e!le bem sabia; pagou porém o atrevimento; ponpie d'al[i llie atirou huma
frecha hu[n escravo, tão bem empregada, que deo com elle em teri'a, e a
pouco espaço acabou a vida. Foi este successo grande parte de desm.aiar
o inimigo; {KH-ípuj considerando os nossos resolutos, o os seus feridos, c
mortos nmilos, ao segundi; dia do cerco, e combate, destruindo o ijue pu-
dérão nos arredores, soi)re a tardo derãíj a fugii' com tanta pressa, que
não esperava pai por íllno. Saliirão-lhes os nossos em alcance, e tomarão
dons deiles, qucvendo-seabai-bados com a morte, gritavão pelos Padres, e
allegavjo que erão cathecumenos seus; porém embaído; poi(ii;u x^^Jarlim
484 LIVRO II DA CimONICA DA COMPANHIA DE JESU
AíTonso Tebyrecá lhes qiieljrou a caíjfça com a espada, dizendo que tal
delicio não era merecedor de pei"dão.
137 Costume he de Deos tirar bens de males: assi os tirou do assalto
passado; porque ficarão mais firmes na fé os índios que já erão (úhristãos,
mais desejosos de o ser os que o não erão, e com maior commodo de sua
instrucção, porque com medo dos contrários erão forçados deixar os sitios
alongados, e vir viver dentro da cerca de Piratininga, que a toda a pressa
fizerão de taipa de mão a modo de muralha; e se trocou o estrondo das
armas em exercício da doutrina christãa. Outro bem se seguio; porque dos
escravos dos Portugueses das villas circunvizinhas, que tinhão vindo ajudar a
guerra, enfermarão muitos de pestilente desenteria de sangue perigosa:
estes indo ajudal-os os Padres, achavão commummente cjue só tinhão nome
de Christãos, por grande descuido dos senhores: e taes havia, que em to-
da sua vida não tinhão ouvido cousa da Fé : e foi necessário preparal-os de
de novo pêra sua salvação, morrendo muitos com esperanças d"ella, que
aliás bouverão de perder-se.
138 Porém huma lastima grande cortou aqui o coração dos Padres: e
be que no discurso d'esta doença foi Deos servido levar pêra si da vida
presente aquelle grande amigo nosso, protector d"aquella Igreja, e villa, o
esforçado Capitão Martim Affonso Tebyrecá. O qual depois de assi pelejar
valerosamente contra seus parentes, e irmãos, por defensão da Fé, com no-
vos fprepositos de levar por diante a causa de Cbristo, e defender Pirati-
ninga com seu poder, e autoridade, conhecendo a morte, mandou chamar
o Padre Fernão Luis, hum dos moradores da casa, e lhe disse assi : «Pa-
dre, conheço que minha vida acaba, sinto somente faltar aos Padres n'esta
occasião, em que a queria pôr por elles, e pela Fé de Cbristo: mas já que
o Senhor he servido traçar a cousa n"outra maneira, estou mui conforme,
e lhe dou muitas graças, e a Vossa Reverencia peço ajude a minha alma
n'este conílicto espiritual » Fez confissão mui devagar, tornou-se a reconci-
liar muitas vezes, com grande sentimento da vida passada, e de não ha-
ver guardado até o minimo dos conselhos dos Padres; com tanta constân-
cia o valor, que bem mostrava que obrava Deos n'aquelle coração predes-
tinado. Fez seu testamento, deixando nelle encommendado a sua mulher,
o íilhos, que seguissem sempre os Padres; e recebidos os sacramentos da
sagrada communhão, e unção, com hum santo Crucifixo em as mãos, lhe en-
tregou a alma, no próprio dia, em que o mesmo Cbristo houve por bem
nascer na terra, com grande edificação de todos. Foi chorada e sentida por
"DO ESTADO DO BRA=?IL (aNNO DF, '1SG2) 185
muitos t1in>; a morte cVoste grande índio, e foi sepultado na nossa Igreja
em lugar decente, aeompanliado de concurso de todos os Portugueses, ín-
dios, e Confrarias. E lambem podemos contar a ditosa morte d'este Capi-
tão entre os bens que Deos quiz colher do combate passado.
130 Muito deve a Companhia a este Principal, c a toda sua geração.
Elle foi o que alli a recebeo em seus princípios, assinalou-lhe lugar em suas
terras, ajudou a fazer-lhe casas, e Igreja, trabalhou que fossem obedecidos,
e respeitados os Padres : deo traças a seu sustento corporal : a elle emfim
tomou Deos por defensor da Fé, e doutrina christãa d'aquella parte, de dez
Religiosos, e de algum numero do Portugueses, que na occasião do com-
bate se acharão : porque he cousa certa, que todo o negocio esteve nas
mãos d*este índio; e se quizera elle consentir com os seus, Piratininga aca-
bara ás mãos d'aquellcs bárbaros.
I iO Ainda continuão os bens do assalto : porque os moradores das vil-
las circunvizinhas, á vista do perigo* passado, temendo outro semelhante
em suas casas, bascavão agora com mais desejo ministros espirituaes da
Companhia, e cada qual desejava tel-os comsigo. Os moradores de Itanhaé
derão-lhes em sua villa o melhor aposento que tinhão, pêra que residissem
com elles, ou pelo menos os visitassem com frequência : o que fazião com
fruto das almas de Portugueses, e escravos. No tempo das revoltas passa-
das tinhão vindo a fazer assento junto a esta villa duas aldeãs de gentio,
que não quizerão seguir o bando inimigo : passavão por ellas nossos Reli-
giosos quando liião a visitar a villa, e fazião também de caminho fruto com
esta gente, bautizando suas crianças in extremis, fallando-lhes de Deos, e
ganhando pêra o i)autisiTio ora iiuns, ora outros. Entre estes he digno de
ser historiado o caso seguinte.
lil Havia aqui hum índio por nome Piririgoà Obyg, -mui entrado cm
idade, que por contas de seu algarismo vinhão a ser cento c trinta annos,
todo enrugado, só com a pelle sobre os ossos, com mostras que fora antí-
guamente pintada, e galanteada, indirjos de índio Principal : os sentidos
de ver, e ouvir já mui dcsbai-ataflos: apenas emfmi podia ter-se sobre os
pés esta antigua estatua. Este índio pedio instantemente a hum dos dous
Padres que o visitavão, lhe concedesse com toda a pressa aquella agoa,
com que lavava os filhos de Deos ; porque elle por não morrer sem ella,
tinha deixado o seu sertão, e chegado-se á sombra dos brancos. Presentio
o Padre a força da predestinação daquella alma; porém entrava em des-
confiança, que pela extrema fi-aqueza dos sentidos cm que o achava, não
Í8() LIVRO II DA CimO.MCA DA COMPANHIA DE JESU
seria cnpaz de porcel>er a inlclligcncia dos mysterios necessários : tiroii-o
comtiido a exi)erieiicia da duvida; porque o vigor que a velhice llie tirara,
lhe restituirá o desejo que tinlia de salvar-se ; e o que a natureza lhe ne-
gara, liie concedera a graça que o predestinara: porque de tal maneira per-
ce[)ia, e peneirava os pontos de sua instrucção, que aíTirma lium Padre
íintiguo que isto relata (por ventura o mesmo por cujas mãos correo) que
excedia ifesla matéria todos os outros índios com quem trattára : basta-
va propôr-lhe o mysterio liuma só vez, pêra ficar-lhe impresso na alma
com capacidade mais que ordinária.
142 So])re o mysterio da Encarnação do Filho de Deos, reparou muito
em que a Senhora ficasse virgem depois do parto : alegrava-sc de ouvir
as razões, c perguntava muitas cousas sobre este mysterio, que nunca mais
lhe esqueceo, nem o nome da Virgem Maria: sobre todos se Iheimprimio
o da Resurreição do Senhor, e juizo final : repetia-os a cada passo, e cha-
mava pêra isso seus íilhos, netos, e bisnetos, e dizia-lhes assi a seu modo: «O
Deos verdadeiro he Jesu, que se sahio debaixo da terra, e se foi ao alto das
nuvens, e ha vir muito irado a queimar o mundo, e os mãos.» Depois de
instruído suíficien temente, e de maneira que parecia que o mesmo Deos
fadava n"clle, foi mandado levar a Igreja, e assentado em huma cadeira
por sua fracpieza, e sendo perguntado ante todos o que pretendia, fez alli
a pratica seguinte. «Que elle queria ser lavado naquella agoa que levava
ao Ceo; porque de continuo cuidava em sua alma na ira com que Deos ha-
via de vir a (pieimar o mundo, e os mãos, e resuscitar todos os homens
mortos pêra estar á conta com elles. Que detestava sua vida passada. Que
por falta de conhecimento da verdade comera muitas vezes carne humana,
e fizera taes, c taes peccados no tempo de sua mocidade : mas que já hoje
tudo aijorrecia, e queria que Deos lhe perdoasse; e que bastava estarem
no inferno tantos parentes seus por ignorância; que queria ser o ditoso,
em que cahisse esta boa fortuna.» Foi bautizado; e ao tempo que lhe lan-
ravão agoa, arrebentou em choro, e perguntado pela causa, respondeo,
«(|ue porque então lhe lembrara quantos de seus antepassados se forão ao
inferno, sem aquelle bem que gozava.» Parece-se muito o successo d"este
índio com o de outro, a quem poz por nome Adão o venerável Padre Jo-
seph : foi semelhante na idade, nos desejos, na efficacia de seu bautismo,
e successo da morte: porque também este nosso acabou a vida pouco de-
pois de bautizado, como aquelle de Joseph, com sinaes grandes da forçíj
da prG;^-c-'mação de sua alma.
DO ESTADO DO BRASIL (aN.NO DE lo(32) 187
143 No mesmo tempo qiio as cousas hião com este bom rosto no ser-
tão de Piratininga com os Tupys, anilava o marítimo cm perpetua lida com
os Tamoyos : porque os da parte do Rio de Janeiro tinlião vindo em suas
canoas, o assalteado toda a praia de BoyguaçúgoaJja, c varias outras i)ar-
tes, matando, e levando cattivos quantidade de mullieres, c meninos; estes
pêra pasto tenro de seu ventre, aquellas pêra o da lascívia. Não havia re-
médio a tantos males; por(pjc andavão em canoas volantes de quinze até
vinte remeiros por Ijanda, elles mui destros no remar, e não havia poder
prcvenil-as, nem dar-lhe alcance, nem forca nossa que os acovardasse.
14i Por este tempo tendo chegado de Portugal Vasco Fernandes Cou-
tinho, e vendo a sua Capitania do Espirito' santo desbaratada das guerras
do gentio, desejava tomar satisfação : porém achava-se impossibilitado de
gente, e aprestos, o o inimigo por estremo soberbo das passadas victorias:
viveo cora esta magoa como afrontado alguns annos, até que persuadido
de suas poucas forças, e queixas dos povos, ni andou pedir soccorro á Ba-
hia a Mem de Sá, Governador de todo o Estado, que como Capitão cui-
dadoso do bem de todo elie, aprestou huma armada de navios da costa
ligeiros, guarnecidos de gente, e armas; e por Capitão seu próprio fdho
Fernão de Sá, mancebo de grande coração, c digno herdeiro das partes de
seu pai. Fez-se á vela, c veio a embocar á foz do rio chamado Quiricaré,
que está em altura de dezonove gráos, como trinta legoas da villa do Es-
pirito santo. Aqui se foi encorporar com ello a gente de guerra da Capi-
tania. Fizerão em terra seus valos, c reparos; e derão em breve sobi-e o
gentio desacautelado, que facilmente pozerão em desbarate, com morte, e
cattiveiro do muitos. Porém a gloria d'este successo se converteo logo em
planto ; ponjuo reunidos os bárbaros, dispostos em bandos numerosos, e
apostados a desafrontar-sc ; quando ainda os nossos cantavao a victoria,
rompendo os mattos, enchendo os montes de alaridos, e os ares (k- fre-
chas, derão com tanto Ímpeto sol)re cllcs, quo fi}i forçado mandar Fernão
de Sá retirar ao mar: porém com tal desord;;!n, e piM'turbação dos seus,
que antes de poderem chegar ás embarcações, matarão a frechadas o pró-
prio Capitão, e muita outra gente. Foi scntidissimo o successo, assi pela
perda de hum mancebo tão brioso, empenliarlo na liberdade da terra, como
da consequência dos ijari)ar()S, que dalh tirarão maior eslimaçuo de seus
arcos: posto quo não licárão tão folgados com o roslo quo ficou ilo Sòc-
COITO.
I IM no i.iMuj m;(,íM'o.
J
SUMMAIUO CHRONOLOGICO
DOS
SUCCESSUS NOTÁVEIS QUE SE REFEREM NOS LIVROS I E II
DESTA CHRONICA
A.N.NO Dt: 1549 E ANTEIUOHLS
Em pouco tempo coito a Companhia muito imiudo, num. I.
Não pára no antiguo, busca o novo mundo, num. 2.
Começa-se a descobrir (jnasi no mesmo tempo em (|uo nosso Palriarcha
nasce ao inundo, ibi.
Desperta o Senlior o coração do Padre Mestre Simão Rodrigues pcra tra-
tar do remédio do Brasil, num. li.
Encómio do Padre Mestre Simão Rodrigues, num. 4.
Zelo com que procura a missãíj do Brasil, e razões por que não a alcança,
num. o.
l*arte-se a contenda, vai o P. M. Xavier pêra a índia, c íica o P. M. Si-
mão em Portugal, ibi.
Piatica (jue o P. M. Simão faz a El-Rei sobre a missão do Brasil, num. 0.
Pede licença pêra ir ao Jirasil, ibi.
Houve razões forçosas, que obiigárão a ficar o P. M. Simão, num. 7.
Caliio a sfjrte o sobre o P. Mantjel da Nóbrega jiera a empresa do Bra-
sil, ihi.
Nascimento e criação do P. Nnbrega, num. H.
Estuda em Coimbia. — Vai ai:abai' (js seus estudos em Sal;imanca. — Agra-
ílua-se de Bacharel formado em Cânones, ihi.
Meio de sua conversão, e entrada na Companhia no anno de iíj44,
num. í).
190 DOS SUCCESSOS NOTÁVEIS
Cresce em espirito, e lie escolhido pêra pai, e protector do próximo,
mim. 10.
CoriversSo de hum salleador obstinado, iimn. II.
Caso espantosa do castigo de huma peccadoraobslinada, num. 12.
Modo de suas peregrinações,* num. ili.
Solta dos laçog do demónio liuma antigua peccadora, num. 14 e 15.
Oonverá?.o de hum Ecclesiasíico inveteradij na torpeza, num. 10.
Raro zelo com qiie reprehendc a hum Cí.tnde Castelhano, fazendo-o tirar
de m<'io estado, num. 47.
Folgava de padecdr, e ser desprezado, num. 18.
ile maltratado c aíírontado de huns jogadores, num. ID.
Casiigo horrendo dado do Ceo a hum homem, que desprezou os conselhos
de Nóbrega, num. 20.
Affugenía o demónio de outra mulher em quem tinha fácil entrada, num. 21.
Yai em peregrinação a Galiza, e successos que teve com huns pobres, que
pedião esmola, num. 22.
Fervor de sua pregação, num. 23.
He mandado pêra o Brasil com cinco companheiros, num. 24.
Parte de Lisboa no 1.° de Fevereiro de 1541), num. 2o.
Como se portou na viagem — caso prodigioso, num. 20.
Avistão a terra da Bahia, num. 27.
Descripção da Bahia, num. 28 a 33.
Seu primeiro povoador, num. 34. '
Historia do grande Diogo Alvares, antecessor do povoador primeiro, num.
35 a 40.
Successão de filhos e netos de Diogo Alvares, num. 41.
Sahem em terra o Governador Thomé de Sousa, e soldados, num. 42.
Sabem também em terra os Religiosos da Companhia, num. 43.
Impedimentos da conversão, e primeiros trabalhos do Nóbrega, num. 44.
Traças empix-gadas pelos Padres pêra obterem a conversão dos índios,
num. 45.
Começa o Governador a reedificar a cidade, num. 46.
Largão o sitio de Nossa Senhora da Ajuda, c vão fazer assento em o Mon-
te Calvário, nmri. 47.
Difficuldade e perigo da conversão n'esíe lugar, num. 48.
O que mais se ap[uicoii a ap^render a lingoa foi João Aspilcueta Na-
varro, ibi.
Difficuldade proveniente do abuso da carne liumaiia, ibi.
Motivos que tem pêra este abuso, ecaso acontecido com huma velha índia,
num. 49.
Perigo notável com que os padres tirarão das mãos dos índios o corpo de
ImmTapuya, que queriam repartir, e coiner, num. 51.
Amotinão-se os índios contra os Padres, e murmuração dos Portugueses,
nmn. 52 ê 53.
I
SUMMAUIO CIíRONOLOflICO ' Í9I
Aqiiietão-se os índios, pedem perdão, e propõem de não comer carne iiii-
mana: ]iorém não tarda qne rescindão o contracto, ibi.
Traça de baiitizar os índios com agoa de hum lenço molhado, num. Ijí.
Converte o P. Nóbrega hum insigne feiticeiro, num. uo.
Rendido este, se rendem mais oitocentos dos feiticeiros, num. oC.
Invenção que faz o demónio de doença grave, num. 57.
Pedem-se obreiros da Companhia pêra remediar grandes necessidades da
Capitania de S. Vicente, num. 58.
Consulta o P. Nóbrega sobre i^sta petição: razijes que se oíTerecem pêra não
irem Religiosos, e razões de Nóbrega pela i)arte contraria, num. 50.
lia mandado o P. Leonardo Nunes pêra a empresa de S. Vicente, c parte
no 1." de Novembro de 1549, num. 01.
Descripção da Capitania de S. Vicente, num. 02.
Fundação da villa de Santos, e noções d"esta costa, num. 03 c 04.
Costumes dos primeiros povoadores, num. 05.
Chega o P. Leonardo a S. Vicente, e he recebido com grande applauso,
num. 00 e 07.
Exemplar vida do P. Leonardo, causa primeira da conversão de S;' Vicen-
te, num. 08 e 09.
Recebe alguns noviços na Companhia; penetra no sertão, e traz (felle os
filhos (los índios pêra calbequizal-os, num. 70 e 71.
Inventão os Padres oílicios mechanicos pêra sustentar-se a si, e os meni-
nos pobres com o seu trabalho, num. 72.
Arma-se o infeiTíO contra esíes Religiosos; começão a ser perseguidos os
Padres por causa da liberdade dos índios, num. 73.
Razões das queixas contra os Padres, e suas repostas, num. 74.
(jalitmi cm si os perseguidores, e pedem perdão, num. 75.
Prelíinde hum j)eccador esparicar ao Padre Leonardo; arrepende-se depois
e faz-se amigo da Companhia, num. 70.
lie accommetido segunda vez o P. Leonardo, e livre por modo extraordiná-
rio, num. 77.
Faz missão no sertão aos índios com perigo de vida, num. 78.
Faz s(.'gurida missão aos Patos, por liviar da morte a certos Castelhanos,
num. 79.
A.VNO BE 1550
Chega á Rahia huma aimada, em socorro da nova cidade, e nella íjuatio
Padres em soccr)iTO das almas, num. 80 e 81.
Exercita o P. Nobr.-ga aos i*adres ultimamente chegados em nioríiíicação,
e obediência, num. 82.
Manda pôr em pregão o P. Manoel de Pai\a, ibi.
Pratica íjue faz o P. Nóbrega aos novos Missionários, num. 84.
Reparte Nóbrega os Missionários em dous esquadrões, itera Portugueses, c
liidius, Jiinn. 85.
192 DOS SUCCKSSOS NOTÁVEIS
Conversão de um peccador publico e escandaloso, num. 80 a 88.
Traça de que usavão os Padres na conversão dos índios, num. 89 e 90.
O Padre Aspilcneta faz levantar dous Seminários para doutrina dos íilhos
dos índios, num. 91.
Desistem os índios de hum banquete, que tinham preparado de carne hu-
mana, a instancias do Padre Aspilcueta, num. 92.
Levanta o Padre Nóbrega com suas próprias mãos hum seminário junto á
cidade, num. 93. /
AXNO DE 1531
Chega do Reino huma armada com novas alegres de obreiros, que estavão
pêra vir ajudar, num. 94.
Manda o Padre Nóbrega ao P. Aífonso Braz, c hum companheiro á Capitania
do Espirito santo, num. 9o.
Fundação, e primeiro fundador d"esta Capitania — Chegada ao Brasil de
Vasco Fernandes Coutinho, e successo da guerra que teve com osnatu-
raes da terra, ibi.
Descripção da villa da Víctoria, e seus districtos e haveres, num. 9G.
De como foi recebido n'esta villa o Padre Afíbnso Braz, e do que n"ella
obrou, num. 97.
Trata o Padre Nóbrega de ir a Pernambuco, num. 98.
Descripção da Capitania de Pernambuco, e da villa de Olinda, num. 99.
Doação doesta Capitania a Duarte Coelho por El-Rei D. João III; desembar-
que do mesmo em Pernambuco, e vai'ios successos da guerra, de que
sahe vencedor, num. 100.
Forão de grande adjutorio os índios Taboyares pêra nossas victorias: fa-
çanhas cio capitão Tabyra, num. 101 e 102.
Yaíor grande de Piragibá e Itagybâ, imm. 103.
Digressão dos successos que por tempos ha de ter Pernambuco, e prognos-
tico de sua ruina, num. 104 a 106.
Estado espiritual dos moradores de Pernambuco n'aquelíe tempo; num. 107.
Chega o Padre Nóbrega a Olinda, e he bem recebido dos Portugueses e
dos índios, num. 108.
Começa a exercer os ministérios da Companhia, e o fruto que faz, num.
109.
Prega com grande zel(j contra certos Sacerdotes, que ensinavão a dou-
trina escandalosa, num. 110.
São os Padres recebidos com grandes festas nas aldeãs de Pernambuco :
comecão a ensinar os índios, e contrariedades que experimentão, num.
111.
Volta o P. Nóbrega á Bahia, deixando cm seu lugar o Padre António Pi-
res, num. \[2.
Chega á Bahia em tempo de quaresma^ e trabalha nella incansavelmente;
num. ií3.
sr.M.MAUiu cniiu.\0L0(;icu ' 193
A.N.NU DE looU
Cdegaihi á Bnlii;i do Bispo D. Pediu reniaiides Sarcliiilia, coin alguns S;icor-
dotes, num. 114.
Despacha provisão ao Padre Anlojiio Piíes, pêra que visile em seu nome
a diocese de Pernambuco, ibi.
Veio huma doença ciMel com pesle. .sobre certas aldeãs dos Índios: inven-
ções diabólicas de Satanaz })era a mina espiritual dos convertidos, num.
ilo e 110.
Acha o Padre Nóbrega que delinquião ainda muitos índios christãos no
uso da carne humana, num. 117.
Vai cm crescimento o Seminário dos meninos, num. 118 e 119.
Vai o Padi-e Navarro a huma missão gloiiosa, e trabalhosíssima, e o qufl
n'ella obra. num. liiO a i22.
Transito glorioso do grande Missionário, o santo Padre Francisco Xavier
num. 1:2.'{.
A.NNO dí: 1'jo'A
l*arte o Padre Noijrega a visitar a(/q)itanía de S. Vicente, e vai correndo
de caminlio as mais Capitanias, num. 121.
Teve grandes contrastes na costa de S. Vicente, e ultimamente, indo-se ao
fundo o navio, escapou por milagre, num. 12o.
Levanta-so contra os Padres em S. Vicente huma conjuração perniciosa,
num. 126.
Toma Nóbrega hunsa resohição agra, mas ])rudente, num. 127.
Causa da pre.sum[ição dos accusadores dos Padi'cs, num. 12í^'.
Castigo notável (|U(! ameaçou dar o Padre Nóbrega a hum mesliço, que com-
meteo deshonestidade,-num 129.
Trata Nóbrega de entrar i)elo seilão a Fundar novos povos, num. 130.
Impede o Governador o seu intento, ibi.
Entra [lelo .sertão rlentro (luarenta legoas, e funda huma nova povoação de
índios, ibi.
Descem grandes levas de ín<1ios dos sertões do Paragilay a ser doutrina-
dos do Padre Nóbrega, num. 131.
São accommetidos no caminho poi- seus inimigos, e nionem muitos com
sinal de sua salvação, ibi.
Successo de alguns Castelhanos: manda o Padre NoI)rega o Irmão Pedro
(Corrêa a tratar coju índias contrários, sobr(í a liberdade de alguns Ca.s-
lelhanos destinados á morte, c são-lhe concedidos, num. 132,
Inslilue o Padre Nobiega a Conharia do Menino Jesu, nmu 133.
Resolve Nóbrega ficar em S. Vicente, e mandar á Bahia mais obreiros,
num. 134.
Chega ri Bahia a ainiada dn GoNcrnador D. Duarte daCcsía, c em suarom-
\or.. I 13
104 DOS SUCCESSOS NOTÁVEIS
panliia o rtífuiro de lies Padres c quatro Irmãos, enire estes o Irmão
Joseph de Ancliieta, ibi, até num. 13G.
Hum só Sacerdote, e dous Irmãos se acliavão então na casa da Bahia, num.
137.
Abi-em classes de ler, escrever e latim, ibi.
Traça galante com que se l^autizou hum Tamoyo, que eslava para ser morto
e comido em terreiro, ibi.
Passa o Padre Salvador Bodrigues a melhor vida, com bem fundadas es-
.peranças de sua salvação, lami. 138.
Suas grandes virtudes e ditosa morte, ibi até, ninn. 139.
São mandados a Porto seguro os Padres Ambrósio Pires, c Gregório Ser-
rão, num. 140.
Obra Deos notáveis prodígios á medida do grande zelo do Padre xVspilcue-
ta, ibi.
Fundação da Capitania de Porto seguro, num. 142.
Passa esta Capitania ao Duque de Aveiro, por titulo de compra, ibi.
Torna o Padre Leonardo Nunes pêra S. Vicente, levando comsigo entre
outros Religiosos o Irmão .Tosepli de Anchieta, num. 143.
Padecem os Religiosos huma desfeita tempestade, e escapão naufragantes i)or
mercê de Nossa Senhora, num. 144.
Entrão no porto de S. Vicente, ibi.
Alegria de Nóbrega á vista do soccorro, num. 14G.
Recebe Nóbrega patente de Provincial do Biasil, e i)or Gollateral no gover-
no o Padre Luís da Gram, num. 147.
Fazem profissão solemne decjuatro votos os Padres Nóbrega e Luis da Gram,
ibi.
A ]jrimeira obra que fez depois de Provincial foi hum Coliegio em Pirati-
ninga, num. 148.
ANXO DE lo5i
Funda-se em Janeiro d"este anno o Coliegio de Piratininga, num. 149.
Excellencia dos campos de Piratininga, ibi.
Descripção da serra Paraná Piàcaba, num. 150.
Pinhas de cristal, num. 151.
Philosophia de como se formão e arrebentam estas i^inhas do centro de
hum penedo, num 152.
Pobreza religiosa com que vivião n"aquelles princípios estes obreiros do Se-
nhor, mnn 153.
Al)re-se em Piratininga a segunda classe de Grammalica (]ue teve o Brasil,
num. 154.
Desvela-se Joseph de Anchieta esci^evendo por ])ropria mão os quadernos
de grammalica pêra seus discij)ulos, num. í55.
No mesmo tempo ensina a lingoa latina e aprende a brasílica, e compõe a
Arte e outra? obras. num. 15G e 157.
SUMM.VrUO CIIRONOÍ.OGICO 193
Trabalham os Religiosoí; com suas próprias mãos em suas obras, e nas dos
índios, iium. ir>8.
-Maitim Aílbiíso Tebyrecá, e João Cai Uli)y forão os principaes índios que
se ajuntarão aos Padres em Piratiniiiga, deixando seus sertões, num.
100.
Os lilhos dos índios do SemJnario de S. Vicente ajudão muito a conversão
dos pais e parentes, 161.
Tiverão os Padres neste sitio três perseguições diabólicas, sendo a primei-
ra de huma pestilência, num. 16i.
He eleito o Padre Leonardo pêra ir a Roma por Procurador geral, ibi.
Segunda perseguição, num. 1G3.
Da guerra incitada ou do diabo, ou dos mamai ucos Ramalhos, terceira per-
seguição, num. 1G4.
Vencem os Christãos os gentios com o sinal da santa Cruz, num. 1G5.
Fazem-se os Padres sangradores dos índios, com maravilhosos eíTeitos,
num. 100.
Exemplo singular de aljstinencia de carne humana dos índios dos Padres,
nutíi. 1G7.
Parte pêra Roma o Padre Leonardo Nunes, e faz naufrágio, em que acabi
a vida, num. 1C8.
Epilogo de sua santa vida, num. 109.
Da morte gloriosa dos dons servos de Deos, Pedro CoiTèa, e João de Sou-
sa, num 170.
Occasião que liouve pêra ella, num. 171.
Parte o Irmão Pedro Corrêa, accompanhado do Irmão João de Sousa, e do
Irmão Fabiano, num. 174.
Chega aí) jiorto dos Tupis, he por elles bem recebido, e acaba com os Ca-
rijós tudo o que pretendia, num. 175.
Conjuram-se os índios, e rcsolvem-se em matar os Irmãos, persuadidos por
hum Castelhano, num. 17G.
]\ío(lo c/m\ (]W'. dcrão as vidas, num. 177 e 178.
Vida do Irmão Pedro Corrêa, primeiro como secular, e entrando depois
na Com[)anhia dedicou-se ao serviço dos índios, o que todo se occupára
em aggravos seus, num. 170.
Os empregos de sua eloquência na lingoa dos Brasis, num. 18").
Fizerão grandes plantos os índios de Piratinixiga pela morte d este seu pre-
gador, num. 181.
Algumas mercês que o Ceo fez em favor de suas missões, nimi. 182.
Vida do Irmão João de Sousa, nimi. 183.
Aulhores que escreverão d 'estes bemaventurados Irmãos, num. 18i.
Na casa do Espirito santo instituio o Padre Rraz Lourenço huma Confra-
ria de charidade, num. 18lj.
Exemplo i-aio d'esle Padre, indicio de sua segura consciência e obcdícncJa,
num. 180.
10<i sr.M.MAP.IU ClIllO.NOl.OíJiCO
Tral)alliava por miiilos, o rom imiilo íniín, niiiH. 187.
Morlc do íriHMU Domiiiifos Peci)i'(.'la, num. 18S.
Orandos erfeilí)sde sua siuipiicidado c obediência, ihi, e nmn. 189 a 101.
A.NNO DK looO
Morte sentidíssima do Padre João d"Aspiicueta Navarro, e epilogo de sua
santa vida, num. 193 a 193,
Castiga o Padre Nóbrega severamente os Índios, por matar em tíírreiro e
comer carne humana, num. lOG.
(^aso notável de outra reincidência dos Índios, em querei- matar o comer
lium cattivo, num. 197.
Chegão embaixadores dos sertões do Rio da Pivata e Paraguay ao Padre
Nóbrega, a pedir-lhe Padres, num. 198.
Chega a ponto de partir-se a missão, mas impede-se com a vinda do Pa-
dre Gram, num. 199.
Yai o Padre Gram a huma missão do seilão, e fica frustrada por causa de
guerra, num. 200. - /
Faz segunda missão, e n"ella grande fruto, num. 201.
He formado em Collegio perfeito o de Piratininga, que ató então era só
inchoado, num. 202.
Pretende o Padre Nóbrega voltar â Baliia com alguns companheiros, num.
203.
Principia o Padre Braz Lourenço a formar as aldeãs da Capitania do Es-
pirito santo, num. 204.
Conversão do Principal chamado o grande Gatto, e sua gente, ihi.
Conversão de outro chamado o Peixe verde, e dos Tupiuaíjuis de Porto se-
guro, num. 20-j,
LIVRO SEGUNDO
ANNO DE 135(3
Levantão-se os Tupinambas e Ta[)uyas contra os Portugueses, num. 1.
Julgão alguns que não he bom fazer-llies guerra: porém o (íovernador re-
solve-se pelo contrario parecer, num. 2.
Vários successos da guerra, e como os Portugueses a vencerão, num. 3.
Torna o Padre Nóbrega a visitar a casa da Bahia com quatrt» companheiros,
num. 4.
Reducção de quantidade de índios", e formação de quatro residências dos
Padres, num. 3.
.Modo que guardão os Padres na doutrina dos índios, nas aldeãs onde re-
sidem, num. G.
Modo como encommendão as almas do Purgatório os meninos das aldeãs,
num. 7.
DOS srCCESSOS NOTAVKiS 197
Occupaeão que os Padros leni com os índios, iimii. 8.
Occiípações dos Índios nas aideas dos Padres, num. 9.
l*rezã(j-se da jierníição do ciilío divino, mim. 10.
Dividem-se as aideas, e multiplicão-se os trabalhos dos Padres, mim. 11.
Cresce o fruto por meio do novo modo de drmlrina, disposta por diálo-
gos na liiigoa brasilica, iium 12.
Primeiras novas da entrada dos Franceses na enseada do Rio de Janeiro,
num. V.].
Naufj-agio de D. Pedro Fernandes Sardinha, primeiro Bispo do Brasil, nos
baixos de D. Fi"ancisco, num. 14.
Enganos de que usarão os índios Caêtes com os naufragantes, num. 15.
Morte cruel que tiverão os que escaparão do mar, num. IC.
Morte deshumana do Bispo, num. 17.
O lugar em que foi morto nunca- mais reverdeceo, num. 18.
Transito do Patriarcha Santo ígnacio, e commeinornção de suas virtudes,
num. 20 a 24.
AN.NO DE ioo7
Padece o Padre rsobrega na Bahia graves enfermidades, num. 2').
Morte (lEI-Rei D. João III, sentida especialmente da Companhia por três
razões, num. 20 a 28.
Nascimento d"esle Principe, seus dotes rcaes e piedade christãa: factos no-
táveis do seu governo, num. 29 a 37.
Mereceo com » nome de Bei pacifico também o de guorrreiro, num. 08.
(íerc/)s e victorias em Dio, num. 39 a 41.
Cerco de Çafim, num, 42.
Numerosa successão de dez filhos, todos defuntos na flor da idade, num. 'lo.
Feições de El-Uej D. João III, seu ultimo transito, num. 44.
Estado dos Franceses na enseada do Bio de Janeiro, num. 4^).
Mudança que houve entre a gente do grande Gatto, num. 'lO.
AN.NO DF-: ir);>8
Chegada á Bahia de Mem de S;i, terceiro Governador do Estado, num. 47.
Virtudes chrislãas do Governador ^Mem de Sá, num. 48.
Seus exercícios espiiiluaes,*e outras louváveis acções, num. 49.
O [)rimeiro negocio que põe em execução he o dos índios, num. />0.
Impõe-lhes leis racionáveis, ibi.
Alvoroça-se o vulgo por causa destas leis, num. ';!.
Oppõc-se Nob)-ega em defensão das leis, num. 52.
Obedecem os índios, e reduzfm-se a quatro aideas, ibi.
Castigo do arrogante Principal Ciirui-upcbá, num. M3.
Promulga oGovernadí)routra Ifi em favor da liberdaflc dos índios, num. o'».
Castií'ít dos Índios do Paraguaçú, num. .'>o.
108 DOS SX'CCFSSOS NOTÁVEIS
Medos do vulgo, num. fJG.
Ácommotimenlo c, boa fortuna do Governador, il)i.
Zelo christão de Mem de Sá, num. 57 e 58.
lie recebido com vivas da cidade, num. 59.
Pedem pazes os índios de Paraguacú, ibi.
(Cresce o fruto das almas nas aldeãs, com a industria dos Padres, num. GO.
ANNO DE 1550
Estado dos Franceses na enseada do Rio de Janeiro, num. Cl.
Occupação dos Padres no Espirito santo, num. 62.
Chega á Bahia o segundo Bispo, D. Pedro Leitão, num. G3.
Chega do Reino novo soccorro de sete Missionários, num. G4.
Havia n'este tempo na Província quarenta sujeitos, num. 65.
Mudança e união de a'gumas aldeãs, ibi.
Perturbão os Tamoyos a costa de S. Vicente, num. 66.
Successo do bum herege Francez, que perturbou a Capitania de S. Vicen-
te, ibi, e num. 67 e 68.
Recebe o Padre Gram a patente de Provincial, e o que sobre isso faz, num. 69.
O Padre Francisco Pires edifica a capella de Nossa Senhora d'Ajuda de
Porto seguro, num. 70.
Prodígio da fonte milagrosa, num. 71.
Maravilhas da agoa daquella fonte, num. 72.
Outro prodígio da terra d'aquella ermida, ibi.
ANNO DE 1560
Chegada á Bahia de novos obreiros, num. 73.
Fez grande abalo em Portugal a entrada da gente Francesa no Rio de Ja-
neiro, num. 74.
Manda-se buma armada pêra desalojal-os, ibi.
Põe o Governador em conselho a empresa do Rio, num. 75.
Resolve-se cm partir com a armada, num. 76.
Chega a armada á barra do Rio de Janeiro, num. 77.
Parte d"aqui o Padre Nóbrega pêra S. Vicente, ibi.
Descripção da fortaleza de Villagailhon, ibi.
Os Portugueses acommetem á forra, e alcanção victoria, num. 78.
Faz-se consulta, e arraza-se a fortaleza, num. 79.
Conversão de hum soldado d"esta empresa, por nome Adão Gonçalves, ilji.
Entrada na Companhia e morte feliz de Bertliolameu Adão, num. 80.
Profecia do Padre Joseph de Anchieta, ibi.
Valor do índio Martim AíTonso, num. 81.
Parte Mem de Sá com a armada pêra S. Vicente, num. 82.
Obrou aqui o Padre Nóbrega grandes obras de piedade, num. 83.
Fez aqui o Governador algumas obras do serviço de Deos e d'El-Rei, num. 8i.
Muda-se o Collegio de Piratininga pêra S. Vicente, ibi.
SniMARlO CHP.ONOL0GICO 199
Fizerão os Padres o camiiilio de Paraná Piacaba, com grande proveito dos
moradores, num. 85.
Boas obras do Padre Liiis da Gram, num. 80.
Caso notável que lhe aconteceo acerca de hum menino, que estava pêra
ser morto e comido em terreiro, num. 87.
Segundo caso, quasi semelhante, num. 88.
Parte a armada pêra a Bahia, e leva o Padre Luis da Gram, num. 89.
Chega á Bahia aos primeiros de Agosto, num. 90.
Vai á missão de Pernambuco o Padre Gonealo de Oliveira, e outro com-
panheiro, num. 91.
Seus trabalhos nas aldeãs, num. 9á.
Perturbações dos Aymoi'és nas Capitanias dos Ilheos e Porto seguro, num. 93,
Descripeão e costumes d"estes selvagens, ibi.
Assolão o i)erturbão ahi a conversão, num. 94.
Vingança que tomou IMem de Sá dos insultos ditos, num. 95,
Sahem-Ihe os inimigos de emboscada, e vence-os, num. 90.
Torna o inimigo reíorçado apresenlar batalha, e lie vencido, num. 97.
ANNO Di: 1501
Bons prenúncios do anno, num. 98.
Manda o Padre Gram Religiosos em missão de dous em dous, ibi.
Fundação de novas aldeãs, num. 99 o 100.
Parte o Provincial a visitar e correr as aldeãs, e he festejado dos Índios,
num. 101.
Nas aldeãs bauliza incansavelmente, e celebra muitos matrimónios, num. 102.
(iOntinua com a visita, num. 103.
Vai aos Ilheos, e assenta sitio ])era nova aldeã, num. 10'i.
Torna a Itai)arica; bautiza muitos, e celebia quantidade d(í matrimónios,
nimi. 105.
Passa á aldca do Espirito santo, o a outras, onde continua os seus traba-
lhos apostólicos com grande fruto, num. 100.
Embustes com que o espirito maligno pretendeo em vão estorvar o fruto
d'esle obreiro, ibi.
Parti! a outra gentilidade, e assenta sitio pei'a duas aldeãs, num. 108.
Do (jue obrou em outra aldea, e das pazes (]ue concluio entre os inimigos,
num. 109.
Soccorro inútil vindo de Portugal em dous Religiosos, que forão despedi-
dos, ibi.
Em S. Vicente continua Nóbrega com o fi"uto das almas, num, 110.
Trazem os Tamoyos icvollas as villas de S. Vicente com seus assaltos,
niMU. 111.
O Padre Ní)brega faz com os índios oflicio de pj-ojilujía .lonas, ibi.
De huma forte mulher, que dco a \ida por defensão da castidade, num. 1 12.
200 Dus slchkssuí; xot.wkis
Caso niíiis notável de oulra mulher, (lue (ieo duas vidas, a sua e a de liuin
seu íillio, num. ITJ.
(Castigo dos Tamoyos, quo comerão hum escravo dos Padi-es, num. 114.
De hum i'rincipal, que tomái'ão os nossos Índios, e castigo bárbaro ({ue
n'elle executarão, num. 115.
Sentimento que mostrou o Padre Nóbrega no caso dito, il)i.
Castigo de huma grave doença, que veio sobre as villas de S. Vicente,
num. 116.
Passa a melhor vida o Irmão Matheus Nogueira, epilome da sua vida, num.
117.
Kmbarca-se pêra o Brasil, e seu modo de viver alli, até ser recebido na
Companhia, num. 118 e 119.
Seus exercicios e boas obras na Companhia, num. liO.
(íaso notável do modo com que venceo huma grande tentação, num. 121.
Era muito reverenciado dos índios por suas obras, num. hl^-I.
Suas penitencias, e oração, num. 123.
Como se apai^elha pêra a morte, num. 124.
ANNO DE 1562
VisilaoPadre Oram as aldeãs, e celebra grande copia de bautismos, num. 12o.
Acolhem-se os índios íle duas aldeãs pêra o sertão, e são reduzidos, ibí.
Intenta o Padre Grani huma gloiiosa missão de grandes perigos e ti'aba-
Ihos, porém sem efíéito, num. 126.
Continua com grande numero de bautismos nas aldeãs, num. 127,
Missão de Pernambuco, e do cjue nella obrarão dous Religiosos, num. 128.
As guerras de S. Vicente vão ameaçando rniiia, num. KU).
Levantão-se os Tupis contra os Portugueses da vilia dePiratininga, num. 131 .
Descem os índios do sertão ;l dar assalto á villa de Piratininga, num. 132.
Preparão-se os nossos pêra o assalto, num. 133.
Valor do Principal Tebyreçá, num. 134.
Pretende pervertel-o hum sobrinho seu, resiste com constância, ibi.
Accommetem os Tupis a villa com bravo estrondo, num. 13o.
Sahem-lhe aos nossos ao encontro com feliz successo, ibi.
Venturoso caso da morte do sobrinho de ^íartini Allbnso, num. 136.
Bens que se seguirão do assalto passado, num. 137.
Da sentida morte do grão Principal Martim Aftonso Tebyreçá, num. 138.
Do muito ({ue deve a Companliia a este índio, num. 130.
Os moradores de Itanhaé assignam em sua vilia casa pêra os Padres.
num. 140.
Conversão e bautismo de hum índio de cento e trinta annos, num. 141.
íntelíigencia d'este índio, e sinaes de sua predestinação, num. 142.
Assalteão os Tamoyos o rio, c as praias de Boiguaçú boaba, num. 143.
Soccorre o Governador geral a Capitania do Espirito santo com huma ar
mada, e o successo d'ella, num. í i4.
riM no r FUMEIRO \olimf:.
GHRONIGA
DA COMPANHIA DE JESU
DO
ESTADO DO BRASIL
VOIAIMK SKGU.NDO
IHÍH. Kl AIII/AIWIi:) AM
mm OQ 00AT21
•Hl/ í;yA< :u/ I (.
Typographia do Panorama, rua dos Sapateiros
í vulgo Rua do Arco do Bandeira, 112).
CHRONICA
DA COMPANHIA DE JESU
DO
ESTADO DO BRASIL
É 1)0 OÚE OBRARAM SEUS FILHOS N'ESTA PARTE DO NOVO MUNDO.
EM QUE SE TRATA
Dl irnUM U COUPMHlil DE JESU NiS PARTES DO BKUSIL,
bOS FUNDAMENTOS QUE n'eLLAS LANÇARAM
E CONTINUARAM SEUS RELIGIOSOS, E ALGUMAS NOTICIAS ANTECEDENTES,
CURIOSAS E NECESSÁRIAS DAS COUSAS d'AQUELLE ESTADO
PELO PÀDRH
SMO DE VASCONCELLOS,
DA MESMA COMPANHIA.
TOMO PftlMEIRO (e UNICO)
SEGUNDA EDIÇÃO CORRECTA E AUGMENTADA
VOLIIME II
ícaSfe»
Èm casa do Editor A. J. Fernandes Lopes^ rua Áurea, 43á — 13i.
MDCCCLXV;
i Mi if
LiVRO TERCEIRO
DA
CHR0NIG4
DA COMPANHIA DE JESU
DO ESTADO DO BRASIL
-^Sê^Sê:^
^'SJASAS.d^
Contém a conlinuação da Ilisloria desde o anno de 1562 aló o da
1568. A notarei missão do Padre Nóbrega, e Joseph de Anchieta, a
fim de assentar pazes ás terras dos Tamotjus. A dotarão do Collerjio
da Bahia. A fundarão da Casa dos llheos. O progresso, e fim das
guerras do Rio de Janeiro, fundarão d' aquella cidade, e Collegiod^ella-
A visita que fez n'esta Provinda o Padre Jgnacio de Azevedo, até vol-
tar por Procurador a Roma. A morte do Padre Diogo Lagnes, segundo
Geral da Companhia, a quem succedeo o Santo Padre Francisco de
Borja: c a doi Padres Jjiogo Jacome, c António ilodrigucs.
LIVHO III DA CHUOMCA DA COMPANHIA DE JESU
1 Estão na mão do grande Pai dos celleiros os tempos prósperos, e sazão
das searas: e assi como acontece muitas vezes, que a annos férteis succe-
dem os estareis; assi lambem na nossa seara espiritual da Bahia, á fertili-
dade dos annos passados ^iiccede n'esfe de 1563 .colheita menos copiosa. Foi a
causa huma terrível intempérie de ares, ou corrupção, que a modo de peste
contaminou a mór parte da terra. Teve principio da banda da ilha de Itâ-
parica, deu sobre a cidade, e d'ahi pela costa marítima correndo ao Norte,
foi levando as aldeãs de S. Paulo, S. João, S. Miguel, e outras muitas, que
por aquella ^arte estavão de Cliristãos, e Gentips, e escaçamente deixou viva
a quarta psÉrte dòs moradores d'ellas: orçou-«e o numero i^ passante de
trinta mil ajteias, as da Capitania da Bahia somente, espectacào por huma
parte miserando, por outra pêra dar graças ao Ceo (etijos "SãD estes lanços)
porque parece esteve cubicando o fruto já assazoado dos dous annos passa-
dos, die tantas almas. reduzidas á graça por meio da. agoa bautismal; equiz
aprovéitar-se 4'ellas antes que por sua:'- natural inconstância podessfem per-
verterrse. Mas se faltou a occasião de crescimento dos bautizados, não foi
pequeno o serviço de Deos que estes servos seus obrarão em acudir aos
que cahirão doentes, e preparar os que acabavão; porque como forão dito-
sos nos principies de sua christandade, o fossem também nos fins d'ella.
Andavão volantes em varias estancias, onde á volta dos já chi'istãos, bau-
tizarão in extremis muitos milhares de adultos gentios, que provavelmente
correrião perigo, se não fossem em maré tão ditosa.
2 Começou a doença por graves dores do interior das entranhas, que
lhes fazia apodrecer os fígados, e bofes: e logo veio a dar em bexigas, tão
podres, e peçonhentas, que lhes cahião as carnes a pedaços cheas de bichos
mal-cheirosos, Não sabião os Padres a quem primeiro acudir; porque no
mesmo tempo espiravão muitos em diversos lugares, e não era possível
deixar o que já tinha posse, por acudir ao que a não tinha. Aconteceo ao
Padre Gregório Serrão, que assistia na aldeã de Itáparica, estando aju^
dando hum d'estes a bem morrer, dizer-lhe hum moço, que havia parido
huma índia n'aquella mesma hora no meio do terreiro (cousa commua no
tempo d'aquella doença, pelo aperto de dores que causava) e deixara o
parto desamparado, e se fora, e que a criança ficava a ponto de morrer ;
aíTligio-se o zeloso obreiro, porque era necessário ir acudir áquella alma,
e por outra parte havia perigo de deixar esfoutra. No meio d'estas anciãs
disse o hidio, que estava morrendo: «Não tomes pena, Padre, açude a esta
DO ESTADO DO BRASIL (anNO DE 1563) T»
alma, que eu esperarei por ti.» Foi o Padre, achou duas crianças gémeas,
buma já morta, outra a ponto de morrer: bautizou esta, foi ella ao Ceo, e
o Padre tornou ao seu doente, que achou ainda vivo, mas esperando por
momentos por elle. D'este exemplo se podem tirar muitos do aperto d es-
ta contagiosa doença.
3 N'este anno chegarão de Portugal mais quatro operários, o Padre
Quiricio Caxa, e os Irmãos Balthasar Alvares, Sebastião de Pina, e Luis Car-
valho. Este ultimo vinha só por doença experimentar os ares do Brasil, e
não achando melhoria voltou ao Reino. O Padre Quiricio começou a ler na'
Bahia huma classe de gramraatica. Os outros dous forão ajudar ás aldeãs.
4 Na Capitania de S. Vicente, especialmente na parte marítima, tudo
erão assaltos, mortes, e cattiveiros feitos pelos Tamoyos, que cada vez hião
crescendo em numero, e parecia que tiiilia a divina Justiça amarradas as
mãos d'aquelles moradores pêra sua defesa: não contentes os inimigos com
assaltos, trattavão já de acommeter toda a terra, e apoderar-se delia. Á
vista d'estas occasiões andava feito o Padre Nóbrega hum zeloso Propheta,
bradando dor púlpitos, e praças penitencia; porque estava persuadido o
santo velho, que tinhão os Tamoyos a justiça da sua parte, e que Deos pu-
gnava por elles, porque os Portugueses lhes quebrarão as pazes, os as-
salteárão, cattivárão, e entregarão alguns a outros índios seus contrários,
pêra que os miatassem, e comessem; e não havia arrependimento destes
peccados. Este cuidado lhe atravessava a alma; e depois de meditar annos
inteiros sobre elle, sentia em seu coração no tempo que trattava com Deos,
grandes impulsos de ir metter-se entre aquelles bárbaros, ou pêra acabar
pazes com elles, ou pêra acabar entre elles a vida.
5 Trattou Nóbrega este seu pensamento com os do governo da repu-
blica, e estava claro que havia de sahir approvado, pois o ganho vinha a
ser de todos, e o risco era do hum só, e de nenhum delles: quanto mais
que a resolução era sem duvida do alto, como por muitas provas se vio,
e o deu depois a entender o venerável Joseph de Anchieta companheiro seu,
dizendo que custara a Nóbrega dous annos inteiros de continuas, e fervo-
rosas orações este requerimento. Fiado pois em o poder divino, que tira
fontes de penedos duros, e nas causas tão justificadas que o movião, de-
pois de renovados os votos da Religião, na primeira oitava de Paschoa se
despedio de seus Religiosos, e escolheo por companheiro da missão tal su-
jeito, que com razão duvidarão depois, os homens, qual dos dous obra-
ra n'ella maiores maravilhas, se o superior, .se o súbdito? Era este o ve-
8' LIVRO m DA CimONlCA DA COMPANHIA DE JESU
neravel Irmão Joseph de Anchieta, bem conhecido, e respeitado já entâoi
até entre os índios; grande Ungoa brasiiica. Chegarão os dous Missionários
aos primeiro» lugares fronteiros dos Tamoyos, e daqui os levou em pes-
soa, e om barca própria Francisco Adorno, nobre genovez, homem rico da
terra, e grande amigo da Companhia; e tendo partido a 21 de Abril do
1563, chegarão aos lugares principaes das praias dos Tamoyos a quatro de
Maio do mesmo anno.
O Este lugar fronteiro dos Tamoyos, como cousa tão celebre, n*aquellc
tempo por terra barbara, inimigti, e tragadora da carne de christãos, e ho-
je por tor sido theatro das acções de dous varões tão illustres, que consa-
grarão aquetles montes, e aquellas praias com sua santidade; he justo que
como foi por elies assinalado, seja também por nós conhecido. Dista este
lugar-, por computo do mesmo Joseph, vinte e seis legoas de S. Vicente,
correndo ao Norte altura de vinte e três grãos, e hum quarto. Tem seu
principio vindo da villa de S. Sebastião da ultima popta da enseada que
chamão dos Mararaomís, fronteira ã ilha dos Porcos, coirendo ao Sul as
três enseadas seguintes, dos Portos, de Uubatyba, e Larangeiras, até en-.
testar com o, grão Cairuçu, penedias disfonnes, espanto dos nav-egantes; e
pelo sertão cerco horrível de altas serranias, incultas, impenetráveis, mu-
ros cm fim eternos da natureza. Este era o sitio daquelles bárbaros; d'aqui
sahia o mór terror dos Portugueses daquellas partes: e destas praias des-
pedião numero de canoas guerreiras formidável: e do sertão exércitos te--
mcrosos de frecheims, que como feras rompião as mattas, e trepavão a pene-
dia pêra acommetter, c não podião elles ser penetrados, nem acomme tidos,
7 Estas praias me trazem ã memoria as que lá fingião os poetas do rio
Acheronte: porque em chegando á noticia daquella gente barbara, que
tinha desembarcado çra as suas gente estranha, armarão logo suas ca-
noas a irnpedir-lhe o passo (qual outro Acheronte, e Cerbero;) chegan-
do porém aquellas veneradas presenças de Nóbrega, e Anchieta, já conhe-
cidos delles por fama do homens innocentes, amigos de Deos, e pais de
índios: o muito mais ouvindo a eloquência das saudações de Josepli em sua
própria Ungoa, ficíirão satisfeitos, ílárãorse d'elles, e entrarão na barca som
medo algum : ouvirão-nos, metêrão-nos em porto seguro junto a hum ilheo,
c despedirão-se. Ao dia seguinte vierão os Principaes de duas das aldeãs
pêra trattar principies das pazes, e deixando no barco doze mancebos em
reféns, mandarão que partissem estes a S. Vicente, o elles levarão per^
tfira os Píidres com mostras de devido respeito.
DO KSTADO DO BRASIL (ANNO DE 1563) 9
8 Forâo hospedados na casa de hum velho por nome Caoquíra, entre
os Tamoyos Principal, e posto que gentio, de boa Índole, capaz, e pêra
mm elles de grande authoridade. Antes de alguma outra cousa, armarão
os Padres Igreja entre hum arvoredo, coberta de palmas, pobre, mas lim-
pa, e decente: aqui fizerão aos nove de Maio o primeiro sacriticio que vira
entre si aquella gente baibara, primeira acção de graças dos nossos pelas
mercês até alli recebidas, e primeiro propiciatório pelas que esperavão re-
ceber em missão tanto do serviço de Deos. Com estes sacrifícios continua-
rão todos os dias; e era grande o espanto, e reverencia d'aquella gente,
que nunca vira cousa semelhante. Feita Igreja, em vez de sino, a vozes al-
tas convocavão á santa doutrina, primeiro os meninos, e depois os gran-
des, que concorrião a bandos, huns á novidade do acto, outros á noticia
dos filhos por curiosidade: porém logo passados breves dias, deveras; por-
que íicavão convencidos da eloquência de Joseph, e suas palavras, que co-
mo setas penetravão os corações, explicando-lhes com frases, semelhanças,
e metaphoras próprias de sua nação, de que elles muito gostão, os myste-
rios de nossa santa Fé; em forma, que refere o mesmo Joseph, que breve-
mente chegarão a ficar instruídos, e poderão ser bautizados, se estiverão
em parte segura; e que fazia n'elles grande imprcsão o rigor dos cas-
tigos eternos, com que havião de ser punidos os que comião carne huma-
na, e commetião semelhantes delictos: pasmavão e prometião emendar-se.
A mesma doutrina annunciárão nas aldeãs circunvizinhas, muitas, e nume-
rosas, e mostravão aíTeição aos Padres, tendo-os em conta de homens que
trattão com Deos, superiores a lodos seus Payés, que tem em conta de pro-
phetas.
O Já chegavão a descobrir-lhes todas suas traças de guerra; e as que
tinhão preparado pêra de novo acommeler aos Portugueses: por mar erão
as canoas duzentas, por terra erão todos os arcos que habitavão as ribei-
ras do rio Paraliiba, com pacto feito, que dessem todos juntos scfu cessar
até acabar com a Capitania, c senhorearem a terra. Kntão derão por mais
bem empregados os trabalhos e perigos de sua missão, quando â vista
destes aprestos consideravão os dos nossos tão diminuídos em forças,
10 Kslando as cousas nestes lermos tão bem assoml)rados,Jfoi corren-
do a costa a fama, sempre acresc/jntada, de como os Padres erão chega-
dos á paragem chamada por sua lingoagern Iperoyg, c o a (jue vinhão: ca
esla voz todos os (juc habilav,io nas {)arles do llio de Janein», interessados
lia mesma guerra, se alteráião, tomando mal o tralto das pazes. l'arlirão
10 LIVIIO III DA CIIROMCA DA COMPANHIA DE JESU
sem demora de diversas partes em suas canoas os mais zelozos, determi-
nados a matar os Padres, e com sua morte estorvar os concertos. Chegou
entre todos primeiro com dez canoas a ponto de guerra esquipadas, hum
grande Principal chamado Aimbiré, amigo dos Franceses, e sogro de hum
d'eiles, inimicissimo dos Portugueses, porque fora assalteado delies, meti-
do em huma barca c-om. huma ferropea nos pés, donde fugira a nado; lem-
brado semj)re da injuria, e de natureza tão cruel, que por hum erro que
commeteo contra elle huraa de vinte mulheres que tinha, a mandou abrir
viva pelo ventre até morrer. Este pois chegado á aldeã onde residião os Pa-
dres, tratou de noite com os seus, que sem duvida os matassem na melhor
occasião que pudessem, e apoz isso lançassem mão do barco, e dos Por-
tugueses que alll os trouxerão.
1 1 Feito este conselho secreto, ao dia seguinte desejando os anciãos da
terra tratar das pazes, quizerão se achasse presente este Principal das dez
canoas, por ser entre elles de grande authoridade: sendo avisado, veio á
Junta; porém com grande multidão de armados, mostrando bem sua ten-
ção sacrílega. Favorecia mais a occasião de sua maldade, que no mesmo
tempo se achava ausente a maior parte dos povos d'aquellas aldeãs, idos
a seus lavores. Tudo presentirão os dous servos de Deos; porém seu co-
ração estava forte, desejoso de padecer a mãos dos infleis por causa tão justa.
Chegados aos votos das pazes, o d'este Principal foi dirigido a seu intento; e a
primeira condição que propoz com grande arrogância foi, que lhe havião
de entregar primeiro três Principaes dos índios de S. Vicente, que se ti-,
nhão apartado dos seus, dando-lhe guerra em favor dos christãos, pêra os
matar, e comer. A esta proposta tão iníqua responderão os Padres com
grande quietação, e modéstia, dando razão da impossibihdade: porque os
que pedião, erão jã da Igreja de Deos, e amigos dos Portugueses; e sendo
assi, não era possível entregar-Uros, porque irião contra a lei de Deos, e
palavra dada: que entre christãos a primeira cousa que andava ante os
olhos, era a guarda da fé, e lealdade a quem a prometião, e que tendo a
promettido àquelles Principaes, como querião elles que a quebrassem? an-
tes daqui era bem que tomassem exemplo pêra folgar de ter por amigos
os que assi se mostrão constantes na palavra dada; e o contrario devião es-
tranhar, coUegindo que quando com àquelles se quebrava a fé, também se
quebraria com elles: que por outras vias poderião mostrar os Portugueses
seram amigos seus, mas que não convinha por esta.
12 Disserão os Padres, e moverão com suas razões os circunstantes,
DO ESTADO DO BUASIL (aNNO DE 1563) H
porém o peito deste bárbaro ficou tão duro, como de primeiro, e coíieluio
com mais soberba, e arrogância com estas palavras, em seu estylo: «Pois
que vós outros sois escaços de meus contrários, que têm morto, e comido
osmeus,e não os quereis entregar, não tenhamos pazes.» E virou-se descOT-
tezmente a outra parte, estando os que o seguião armados, com o oiio
n'elie, esperando o minimo aceno do que houvessem de fazer: porém n'es-
te estado tomou a mão o velho Pindobuçú, Capitão da aldeã, e com taes
palavras Uie mostrou sua pouca razão, que não ousou passar adiante, oa
por que entre esta gente he grande o respeito que se guarda aos velhos^
os quaes venerão como pais, ou porque Deos lhe intimou a eflicacia cora=
que fallava. Não era comtudo cousa fácil a desfazer a difficuldade d aquela
le apaixonado Principal, que dependião as pazes muito de seu voto ; por-
fallava em nome de muitos, que erão quasi todos os do Rio de Janeiro, mas
pêra divertir o negocio assentarão hum meio ditado, parece, do Geo, e foi
que o ponto dos três Principaes que pedia, se mandasse propor a S. Vi-
cente, ás cabeças maiores do governo. Aceitou o bárbaro a condição, e
quiz elle ser o embaixador da proposta, confiado que ou sahiria com a
sua, ou com suas canoas perturbaria o estado das pazes, assalteando os
lugares dos Portugueses. Porém Deos dispoz ao contrario; porque os Pa-
dres escreverão aos da republica, que de nenhum modo dessem ouvidos a
proposta tão impia, ainda que por negal-a pozessem em perigo seus Lega-
dos de serem mortos, e comidos dos bárbaros: segundo o que, não teve
eíTeito esta parte: nem também a outra da intenção do embaixador; por-
que foi recebido, e tratado dos Portugueses cora taes favores, que entrou
contente, e de paz.
13 Livres os Padres doeste perigo, entrarão no segundo mais apertado:
porque andando ambos na praia encommendando-se a Deos como costu-
mavão, virão que vinha liuma canoa a toda a pressa, esquipada com trinta
remairos, e demorava pêra o porto onde estavão. E era o caso que vinlia
n'esta Paranápucú, que quer dizer mar espaçoso, índio Principal, lilho do
Capitão que governava aquella mesma aldeã, onde os Padres então habita-
vão, por nome Pindobuçú, que significa palma grande, muito amigo nosso:
deixando atrás oito canoas que capitaneava, sabendo as novas de que tra-
tavão os Padres de pazes, e tinhão persuadido a ellas seu pai, vinha a to-
da a pressa resoluto a tirar a vida a taes embaixadores, por perniciosos
ao bem communi de sua narão: e tinha dado ordem aos seus, íjue em che-
gando lançassem mão dos Padres, e rpic elle os mataria. «Porque meu pai
12 LlVnO III DA CHROMCA DA COMPANHIA DE JESU
(dizia elle) he velho, e nem por isso me lia de matar. » Tudo isto tinha pas-
sado entre ellcs. Vendo pois os servos de Deos a canoa, sabendo mui bem
quão mal tomada fora sua vinda de todos os do Rio de Janeiro, e que ti-
nhão conspirado em sua morte, suspeitarão logo o que era, e começarão a
retirar-sc ao povoado da aldeã, distante como quinhentos passos (por não
dar occasião elles mesmos a seu mão intento, achando-os alli fora de po-
voado) senão que como era velho, e fraco o Padre Nóbrega, ú vista de tan-
tos remeiros hia mui devagar; e o ma)s foi, que havendo de passar hum
ribeiro ao fim da praia, cuja agoa dava pela cintura, fez menção de querer
tirar as botas, que por respeito de doença trazia; mas como havia de gas-
tar tempo, e a canoa vinha voando, a grande caridade do companheiro o
tomou ás costas, e como estas erão fracas por quebradas, quiz parece o Ceo
sahir alli com huma representação graciosa; porque a poucos passos andados
gemendo com a carga, deu ix)r fim com o pobre velho na agoa. Que farião
á vista do aperto da morte? Tomarão por conselho escouder-se entre o ar-
voredo, e descalçando aqui as botas, e despindo a mais roupa molhada,
por de grande peso. ficou somente com o interior, que não escusava a mo-
déstia, e descalço. Tomou Josepli o fato molhado ás costas, e tornarão a
intentar o caminho: porém era esta ladeira Íngreme, não podia Nóbrega su-
bil-a, e já hião ouvindo-se as vozes, e bater dos remos dos que chegavão:
foi força tornar a esconder-se no matto, e pôr-se em oração, tratando já
mais das almas, que das vidas. Eis que no meio desta afflicção succedc
outra; porque sentirão que entrava no matto huma pessoa que vinha pêra
elles: porém foi ajudada do Ceo; porque chegando mais ao perto, acharão
ser hum índio que descera da aldca, c a caso entrara. Este os ajudou a
levar quasi ás costas, e os pòz em salvo dentro da casa do Principal Pin-
dobuçú, pouco antes que os da canoa chegassem.
li Porém não se acabou a comedia; porque estava ausente da casa o
senhor d'ella, em quem confiavão os nossos, e vinhão chegando os contrá-
rios. Pois que remédio? O Ceo parece que andava de propósito compondo
scenas, pêra sahir depois com hum fim alegre: porque entrando o senhor
da canoa acompanhado de muitos seus em casa do pai, achando-o ausente,
e aos religiosos postos de joelhos, encx)mmendando-se a Deos, e rezando as
vesporas do Santo Sacramento (porque era o dia seguinte do Corpo de
Deos) esperando por seu ultimo trago: no tempo que chegou a sua pre-
sença aquelle animo damnado, concebeo tal terror, e respeito, que ficou pa-
rado, ConM'rtcu a fúria cm pratica; c ouvindo as i)alavras, especialmente
DO ESTADO DO DtlASIL (aNXO DE 1563) 13
de Josepli, eloquente em sua lingoa, acabou do mudar-se, confessou de pla-
no o intento com que partira, e com que entrara n'aquella casa; mas que
em vendo suas presenças, e ouvindo suas palavras, ficava já trocado, e per*
suadido que pessoas taes não vem com treição, ou engano.
15 Veio de fora o velho Pindoburú, senhor da casa, e sabendo do suc-
cesso do filho, mostrou rosto alegre, significando que sentiria muito se suc-
cedera algum mal aos Padres. Era índio de boa capacidade, e chamando o
filho á parte, lhe fez huma pratica sobre a gravidade de costumes que vira
em seus hospedes: gabou-lhe sua aprazivel presença, sua grande constância
de animo, desprezador de todos os trabalhos, e como entre tantos que pro-
curarão offendel-os nunca descomposerão sua serenidade; e concordou em
tudo com o conceito que formara o filho. Huma cousa sobre todas as outras
tinha admirado esta gente, e era esta a grande continência que guardavão;
porque tendo-lhe offerecido os Principaes daquellas aldeãs liberalmente fi-
lhas, e irmãs (costume commum entre elles, com a mesma chaneza, e fa-
cilidade, que se brindarão huma cuya, ou copo de vinho) vião que sem-
pre os Padres as regeitárão. Disto pasmavão; e chegarão a perguntar-lhes,
como era possivel aborrecerem o que todos os outros homens apetecião?
Respondeo-lhes a isto o Padre Nóbrega tirando da algibeira humas disci-
plinas, mostrando-lhas, e dizendo, que magoando com aquellas seu corpo,
asseguravão a continência, e se defendião de Ímpetos lascivos, e movimen-
tos desordenados da carne. Aqui ficarão elles mais atónitos de cousa tão
nova. Tinhão aos Padres por amigos de Deos; e entre todos Pindobuçú não
cessava de praticar aos seus, que erão homens que fallavão com Deos, aos
quaes elle descobria seus secretos: e aos do Rio de Janeiro dizia, que vis-
sem que se algum aggravo lhes fazião, havião de fazer vir do Ceo mortan-
dade de pestes contra elles. Punha-lhes exemplo: «Se nós outros temos me-
do de nossos Pavês (são seus feiticeiros) e não ousamos offendel-os: quanto
mais o devemos ter d'estes Abares (assi chamão aos Padres) que são ver-
dadeiros Payés, fallão com Deos, e nos lançarão (se quizerem) camarás de
sangue, e febres malignas, com que todos morrúmos?» Com estas praticas de
Pindobuçú, ninguém se atrevia a tratar mal os Padres, e tratava-os elle co-
mo filhos, e lhes pedia o cncommendassem a seu Deos: que não temessem;
que elle, e os seus se porião em terreiro por elles. Consultava-os todos os
dias, ouvindo com grande attenção especialmente os mysl(írios da creaçâo
do mundo, e encarnação do Filho de Deos: e sendo combatido poi" varias
ií4i LIVRO III DA CHRONICA DA COMPANHIA DE JESU
vezes dos que cada dia vinlmo do Rio, que matassem os Padres, sempre
os defendeo abominando a tal resolução. Achava-se sempre presente á missa,
e pasmava de ver aquellas sagradas ceremonias; e foi de maneira seu apro-
veitamento, que por premio do Ceo foi este venturoso índio Pindobuçu,
depois de perfeito calliecumeno dos Padres, hum grande christão,. notável
entre muitos; e como tal obrou até o fim da vida. ; <nt ■>í!f .'iMit >>('
16 Chegava-se o tempo de concluir o assento das pazes; entrarão ou-
tra vez em conselho, presentes os Padres. Aqui desabafarão então alguns
dos anciãos, queixando-se de antiguas magoas. Dizião, que os Portugueses
forão os primeiros que quebrarão as pazes firmadas de huma e outra par*
te, lhes íizerão guerra, e os cattivárão, e tratarão como bestas de carga :
«Vós outros (dizião elles) quando nós começámos a guerra contra Temiminós,
gente do grande Gato, confiados na multidão de arcos de nossos inimigos, os aju*
dastes, pelejando com elles contra nós; mas Deos nos ajudou, e podemos mais:
porém agora...» E aqui callárão. Sabia mui bem o Padre Nóbrega, que tudo o
que dizião era verdade: e parecendo-lhe fazia melhor negocio em conceder
com elles, disse-lhes assi: «Eu, porque sei que Deos está irado contra os
meus, me offereci a vir tratar pazes com vós outros, pêra com isso o aman-
sar: porém agora por sua parte não se hão de quebrar estas pazes; que
por isso trago eu cá a minha cabeça, e a de meu companheiro sem medo
algum, porque trato verdade. Mas também vos aífirmo d'aqui, que se vos
outros as quebrais, entendei que a ira de Deos se ha de virar contra vós,
e haveis de ser destruídos.» Este ditto de Nóbrega, aíDrma o Padre Joseph,
que não foi somente ameaça, mas prophecia, que depois se vio cumprida á ris-
ca; porque todos os que quebrarão estas pazes, experimentarão os amea-
çados castigos. Por prophecia a tiverão os mesmos índios, e como tal a fo-
rão publicando pelas aldeãs, e com ella metião medo aos que tinhão pen-
samento contra o que alli assentarão; no que sempre se acharão constan-
tes os moradores de Iperuy, e pelo contrario fraqueárão os do Rio de Janei-
ro, e Cabo Frio.
17 Havia dous mezes que residião os Padres entre os índios, e nâo se
acabavão de concluir as pazes, porque dependião ainda de algumas circuns-
tancias; pêra que estas tivessem effeito, pareceo ser mui necessária a presen-
ça dos Padres em S. Vicente, e assi lho significavão os do governo^ d'aquella
villa; porém os bárbaros, que ainda de todo se não davão por seguros, des-
confiarião sem duvida, se antes da ultima averiguação se lhe fossem os lega-
dos das pazes. Pelo que, feita n'esta diíTiculdade oração, resolveo o Padre Jo-
DO ESTADO DO BRASIL (aNNO DE 15G3) i5
Síípb comsigo, que seria serviço de Deos partir a contenda, e contentar a hu-
ma e outra parte, hindo o padre Nóbrega, e ficando elle; e assi lho intimou.
Sentia Nóbrega haver .de partirse sem ultimo eíTeito, e muito mais deixando
o companheiro só entre bárbaros: vendo comtudo a resolução que o mesmo
Joseph tomara, e tinha por de Deos, e a necessidade urgente de sua ida pêra
bem das pazes, e que ficavão assi contentes os índios, cujo desgosto seria oc-
casião de muito damno n'esta matéria, resolveo partir-se. n í
18 Havia de embarcar-se Nóbrega ao outro dia pela manhãa; na noite an-
tecedente teve Joseph conhecimento sobrenatural de três casos occulíos, que
Deos lhe revelou, e elle communicou ao Padre Nóbrega por causas justas. Foi
o primeiro, que n"aquella própria noite entrarão os bárbaros a fortaleza de S.
Vicente, matarão o Capitão d'ella, e sua mulher, e levarão cattiva sua família.
Segundo, que fulano (liomem conhecido, e amigo de Nóbrega) por desastre
4e hum carro que passou por cima delle, era fallecido. Terceiro, que chega-
ria cedo a S. Vicente hum galeão de Portugal carregado de fazendas. Com a
noticia d"estas três prophecias partio Nóbrega na manhãa destinada, não mui-
to espantado de que soubesse cousas tão occultas (pela experiência que tinha
do seu grande espirito) o companheiro que deixava. Chegou a S.Vicente no íim
deJuiiIio do corrente anno, e averiguou logo com magoa sua, serem verdadei-
ras as duas primeiras prophecias; porque os inimigos tinhão entrado a forta-
leza, morto o Capitão, e sua mulher, e levado cattiva toda sua familia; e o
amigo era morto pelo successo triste do carro. A terceira prophecia se cum-
prio logo; porque depois de chegado cinco dias, aportou o galeão que dis*-
será áquella villa, dando por tudo Nóbrega muitas graças a Deos. Foi re-
cebido em S. Vicente como aquelle que era pai de todos, e que de presen-.
te tinha acabado a 'cousa de mais importância d'aquella republica, tanto á
sua custa, e sem opressão alguma do povo. Começou a tratar com os do
governo acerca da ultima averiguação das pazes, informou-os, e concluio
tudo em bem. Aos Tamoyos que alli achou fez grandes mimos, e agasalha-
dos, levando-os a nossas aldeãs, e recreando-os, a íim de ficarem conten-
tes, e firmes na paz. Porém emquanto o Padre Nóbrega em S. Vicente
trata estas cousas, tornemos a acompanhar a Joseph, que ficou só entre
gente barbara, continuando reféns das pazes.
i9 JSão sei que maior prova podia fazer o Ceo em huma alma muito
mimosa sua, que de propósito quizesse lavrar pêra si, que a que fez cora
o nosso Joseph. Não he hum espectáculo de Deos, dos anjos, e dos homens,
ver hum mancebo na flor da idade, de trinta annos ainda não cabaes, no
16 LIVRO lll DA CHROMGA DA CONfPANHIA Dfi JESII
mór vigor da natureza, o quando a carne e sangue mais senhorea, raetído
em terra barbara, entre homens Jeras, entre mulheres nuas, elle comsigo
só, sem quem pudesse notar-lhe excessos, com combates contínuos, e qua-
si necessários, de olhos, de ouvidos, da carne, dos homens, do diabo, e
do próprio inferno ? Não sei em que Ur Caldeorum podia ser mais apura^
do hum Abrahão, nem em que terra Hus hum Job! Ai do só (diz oEspH
rito Santo) porque se cahir não tem qeum o levante. Aqui hum christâo só,
hum religioso só, entre tantas occasiões de peccado, c morte, onde se ca-
hir não tem quem o levante, nem quem o console, nem quem o anime, ou
communique sacramento algum ! O certo lie, que a não ser Jogeph, ao apar-
tardo companheiro se lhe apartaria o coração, e tremeria de pés, e mãos ou-
tro qualquer homem. Entregárão-se muitos ás Thebaidas, aos ermos, aos
desertos, : nestes porém, se erão sós, não erão tão mal acompanliados: po-
rém Joseph fica só em deserto, e fica acompanhado de gente péssima, de sua
infidelidade, de sua inconstância, e de sua crueldade. lie só no meio de
hum povo bárbaro, e de huma Babylonia.
20 Queria lavrar aqui o Ceo hum novo modo de Anííchoretft só, e
acompanhado; que juntamente vencesse o difficultoso da solidão, e da má
companhia: hum Santo Antão solitário no ermo, e hum Abrahão acompa-
nhado em Caldea: lavrava aqui hum homem raro, hmn santo único, hum
exemplar de varões illustres, compostos das perfeições de muitosn hum
Joseph na castidade, hum Abrahão na obediência, hum Moysés nos segre-
dos do Ceo, hum Job na paciência, lium Elias no zelo, e hum David na hu-
mildade : hum portento de maravilhas, e assombro do mundo. E este he
o companheiro que Nóbrega deixa só, e acompanhado de bárbaros.
21 Bem vio Joseph o estado em que ficava; bem sabia que era neces-
sário haver-se como só, e como mal acompanhado: trata de guardar-se de
si, e de guardar-se daquella gente barbara. Pêra tratar de guardar-se a
si, era força haver-se como morto ao tropel de objectos torpes, que erão
necessários onde a natureza não conhecia pejo, e a honestidade não era
conhecida; que he guerra mais forte. Era continua sua penitencia, cilicio,
)ejum, contemplação, que divertião a alma a Deos, e após ella os olhos, e
desejos. Em semelhantes exercícios he sabido que passava a mór parte das
noites, por que os dias podesse gastar em bem dos homens. Tomou em
primeiro lugar por advogada da empresa, e muito em especial de 'sua Cas-
tidade, a Virgem Senhora nossa, no meio d'este incêndio de Babylonia. 'E
DO ESTADO DO BRASIL (ANNO DE Í5G3) 17
era tal o eHeita dò sua protecção, que não chegou a elle o miniíiio calor,
nem ainda fumo traqiiolle fogo infernal.
2á Aqai fez promossa á Senhora de compor a sua vida em verso. Mas
como cantaria vei-sos do Sião em terra alheia, onde nem tinha livros, nem
papel, nem tinta, nem pearia? A tudo doo traças o amor da Senhora. Sa-
hía-se á praia do mar, e alli junto ao brando murmurar das agoas, pas-
seando com os olhos no Ceo compunha os versos, e logo virando-os á praia
fazia d'ella branco papel em que os escrevia, pêra molhor metel-os na me-
moria. Oh que sentimentos! oh qiie considerações, e que conceitos aqui di-
zia I Doo priacipio à obra por sua purissima Conceição, íbi seguindo todos
os passos do sua vida, chegou a sua felicissima Assumpção, e subio com
ella ao alto throno da sua gloria : não ficou passo da sagrada Escdítura,
prophecia, ou ditto celebre de Santo, que não enxerisse em seus cantos.
Foi depoimento commum dos índios, que virão por vezes nesta praia hu-
ma avezinha graciosamente pintada, que com brando voo andava como fa-
zendo festa, em quanto Joseph hia compondo, e escrevendo, e lhe saltava
brincando, ora nos houibros, ora nas mãos, ora na cabeça: ou porá mos-
trar a Joseph o cuidado que o Ceo tinha d'elle, ou pêra mostrar aos índios
o com que havião de respeital-o. Isto que os índios aílirmárão, depoz tam-
bém que vira hum homem Portuguoz, que áquelJas praias chegara. E não
será esta a vez derradeira, que vejamos em Joseph semelhantes favores.
23 O que eu tenho pêra mim sobre aquclla avezinha, hc, que descia
ella a trazer-lhe o despacho do que pretendia da Virgem, em galardão de
seu trabalho, e amor ; e era o dom da confirmação da pureza ; por que o
cantou assi o mesmo Joseph em seus versos, dizendo, que ella o guardara
puro, e limpo de todo o pensamento lascivo. E assi o disso depois do mui-
tos annos a hum Padre amigo, quoixando-se-lhc este de pensainentos in>
portunos, e tenta<;ões de sensualidade: aconselhou-lhc, que não pedisse a
Deos lh'as tirasse, mas que lhe desse vencimento n'ellas; e acrescentou:
«Porque eu sei outro (lie corto que fallava de si) que o pedio d'esta ma-
neira, e foi ouvido; porque combalido largo tempo de semelhantes tonta-
(;i3es, favorecido de Deos, c sua Mãi santíssima, não só não caliio, iras
rec^beo promessa segura de não cahir jamais. Fez o amigo o que Joseph
lhe aconselhara, e dentro de ti'es dias o assegurou, que d'alli em diante
cessaria aquella importuna batalha de suas tentações : e experimenlou-o
assi.
2i Não foi este somente o premio de seu doce cantar; leve também
voi.. n 2
18 Ll\1\0 III DA CHI\ONICA DA COMPANHIA DK JESU
revelação da Virgem, que passaria grandes assombros, e espantos da mor-
te entre aquelles bárbaros: porém que Dão o matarião; porque queria que
acabasse, e aperfeiçoasse sua Vida. Assi o disse o mesmo Joseph por sua
própria boca ; porque tardando a resposta da paz dos de S. Vicente, enfa-
dados os bárbaros, feitos feras cruéis, dizendo-ilie hum dia: «Joseph appa-
relha-te, e farta-te de ver o Sol ; porque tal dia temos assignado pêra fa-
zer banquete de ti, se até então não vier reposta dos teus.v Respondeo-
Ihes Joseph com o sorriso na boca : «Eu sei mui bem qae me não haveis
de matar.» E perguntado depois porque fallava com tanta confiança, disse
claramente, que pela palavra que a Virgem lhe dera, que não consentiria
que alguém o matasse antes de acabar sua Vida.
2-j Parece que hia igualmente poetisando, e prophetizando este servo
de Deos ; porque por este mesmo tempo, em quanto as pazes se acabavão
de averiguar, enfadados de esperar alguns Tamoyos, ou levados de sua na-
tural inconstância, não obstante as tregoas, derão assalto em certa parte
de S. Vicente, e trouxerão a Iperoyg alguns Portugueses cattivos. Tratou
Joseph sobre seu resgate ; e como o preço concertado tardasse mais do
que assentarão, resolverão os bárbaros fazer pasto dos Portugueses : que-
rendo executal-o chegou Joseph, e com espirito do Ceo lhes prometteo
assi: «O dia que vem, quando o Sol chegar a tal lugar (mostrando-lh'o com
o dedo) hão de vir sem duvida alguma os que trazem o preço do resgate;
só ate então peço que espereis. » E disse-lhes os nomes dos homens que o
trazião, o numero, e qualidade das peças de panno, e ferramenta (que este
he o dinheiro dos índios) e concluía, que empenhava sua cabeça, e se vissem
que não era verdade, lh'a quebrassem. Satisfeitos os bárbaros com a es-
perança de tão boas peças, dando inteiro credito a Joseph, que tinhão por
Payéguaçú dos Ghristãos, desistirão, e virão com seus olhos o effeito, assi co-
mo Joseph o pintara: tomarão seu resgate, e entregarão livrei os cattivos. D'es-
ta tão singular prophecia faz menção o Padre Estevão Paternina na Vida que
traduzio de latim em castelhano do Venerável Padre Joseph, hv. 2, cap' 5.
26 Chegara a esta terra barbara hum Ayres Fernandes, amigo de Joseph,
com certa occasião; trattavão os índios em segredo de cattival-o, e fazer d'elle
hum banquete: foi avisado o pobre homem, e desejava acolher-se d^aquel-
la praia avara: não tinha porém embarcação: assaz afíligido deo conta ao
irmão Joseph de seu grande perigo : respondeo-lhe elle : «Não tendes que
temer, amigo, por que em tal parteda praia haveis de achar amanhã huma
embarcação, em que vos salvareis.» Disse, e succedeo assi. Estas são as
DO ESTADO DO BRASIL (ANxNO DE !íJ63) 19
obras de Josepli só: as de acompanhado são as seguintes. O tempo lodo
que lhe sobejava de si, do trato de Deos, e da Virgem, empregava em pro-
veito dos bárbaros. Todos os dias tomava horas assinaladas pêra fallar
com elles do bem de suas ahnas, e declarar-lhes a doutrina chrislãa : di-
zia-lhes que havia outra vida, premio pêra bons, e castigo pêra máos, es-
pecialmente pêra os homicidas, e tragadores de carne humana: e houve
muitos que se abstiverão por tempo d'estes peccados (e não podia chegar
a mais a eíTicacia da doutrina.) Podéra bautizar quasi todas aquelias aldeãs;
mas attendendo ao perigo de retrocederem ficando sós, o não fazia : bau-
tizava somente os que estavão in exíremis. Entre estes he notável o caso
seguinte. Parira huma índia, e vinha expirando a creatura, tratavão sepul-
tal-a: a este tempo chegou Joseph, pedio-a, bautizou-a, e cobrou logo vi-
da: chamou-lhe Maria, entregou-a a seu pai, que era hum filho de Pindo-
buçú, por nome Quiraaobuçú. Foi caso este maravilhoso de que ficarão
pasmados os índios.
27 Mais espantoso foi outro caso, e mais celebrado dos índios. Tinha
certa vellia enterrado vivo hum menino filho de sua nora a que chamam .Mara-
bá (quer dizer de mistura) aborrecivel entre esta gente; e era que o pario a índia
em poder do marido, tendo sido gerado por outro, com quem fora casada
primeiro: e não era parto adulterino, como cuidou o Padre Paternina aci-
ma citado. Foi Joseph avisado do caso depois de passada mais de meia ho-
ra; e indo ao lugar, desenterrou-o, bautizou-o vivo, e são, e entregou-o a
mulher segura pêra que o criasse. Succedeo o caso a 28 de Junho do pre-
sente anno; e foi semeiliante a outro que lhe aconteceo em S. Vicente: foi
assi. Tivera noticia que huma gentia havia parido hum filho, e vendo quo
era mostruoso em algumas partes do corpo, envergonhada contra toda a
piedadêTle mãi, o escondera, e enterrara vivo: acudio á pressa, desenter-
rou-o ainda com vida, applicou-lhe a agoa do bautismo, e logo entre suas
mesmas mãos morreo, pêra viver eternamente. Vião os bárbaros estas ma-
ravilhas, e tinhão a Jooseph por mais que homem.
28 Porém não desiste o inferno. N"este meio tempo, primeiro de Julho
do corrente anno, chegarão do Rio de Janeiro oito canoas guerreiras de Ta-
moyos, com intenção ainda de matarem o Legado das pazes, de cujo trato
sempre se aggravárão : liorém d(;pois de sallai-em em terra, chegando a
fallar com Joseph, o ouvindo suas palavras, ficarão outros, e djsserão, que
tinhão razão os que dizião que este era o grão Payé guaçú dos Christãos,
que amarra\a as mãos aos homens.
20 LIVRO 111 DA CIIRONICA DA COMPANHIA DE JESU
29 Aos seis de Julho chegarão as canoas que tinhão ido a S. Vicente
com o Padre Nóbrega; e com a vinda d'estas intentou o inimigo, pai das
discórdias, armar hum enredo terrivel. Chegarão dizendo que vinhão fu-
gindo porque lhes dissera hum escravo, que os Portugueses os querião
matar; e que com effeito hum Domingos de Braga matara hum índio da
companhia de Aimbiré (aquelle Principal, que tinha ido sobre a proposta
da primeira junta) e fizera que hum seu irmão lhe quebrasse a cabeça.
Com estas mentiras ficarão triumphantes todos os moradores do Rio, que ti-
nhão vindo com má intenção contra Joseph; e dando-lhe credito, se levantarão
logo, e na seguinte madrugada fugirão, pretendendo levar comsigo a Jo-
seph, e certa gente que tinha vindo de S. Vicente. Porém Pindobuçú, e
outros Principaes de Iperoyg, os defenderão, reprehendendo aquelles de
maneira, que hum d'elles corrido cahio na conta de feito tão feio por dit-
to de hum só escravo, e se ficou dizendo quo queria antes morrer com os
Portugueses. Seguirão os outros seu caminho ; e hum por nome Caâoquira
o mais poderoso entre todos, teve ao menos poder pêra entrar de passa-
gem na casa de Joseph, e assombral-o, dizendo-lhe a modo de ameaça :
«Ex-aqui que imos fugindo, porque os teus nos querião matar : a isto nos
mandastes a S. Vicente, pêra que nos consumissem a todos?» Mas disse
e foi-se. Ficou Joseph turbado com taes novas, porém logo soube o fun-
damento d'ellas.
30 Ainda bem estes não tinhão ido, quando chegarão outras dez ca-
noas do Rio, cuja gente logo veio buscar a Joseph com grandes estrondos,
e carrancas: mas chegando a sua presença, nenhum se atreveo a lançar-lhe
a mão. Fizerão comtudo o pêra que só tinhão licença do Ceo, e da Virgem;
e por cinco dias continues o assombrarão, e roubarão a pobrez^que ti-
nha, intentando leval-o a suas terras, ou ao menos hum Portugxiez, que
alli estava á sua sombra, chamado António Dias, que tinha ido a resgatar
sua mulher, e filhos cattivos cm as guerras passadas. Resistirão porém os
da aldeã valerosamente ; até que o Principal Pindobuçú (que só por res-
peito de segurar as pazes, e serem elles hospedes, tivera paciência) enfa-
dado já, se foi a elles com a espada de pão na mão, a vozes altas dizendo
assi: «Não querem estes vagabundos senão quebrar cabeças de bran-
cos? pois eu o não hei de consentir, que tenho empenhado rainha palavra,
e hei de fazer pazes com elles: e saibão que este Payé que aqui tenho he
o grande Payé dos Christãos, conselheiro de Deos; e se alguém o oíTender,
ha de ver a inoríe sobre si, e os seus: e saibão também que aquelle Por-
DO ESTADO DO BRASIL (aNNO DE lo63) 21
tiiguez Aiilonio Dias faz as casas dos Padres, e do Deos dos Chrislãos (is-
to dizia porque era pedreiro) e se alguém lhe empecer, que ha Deos de
tornar-se contra elle, como se oíTendera aos Padres.» Isto dizia com tal
braveza, bater de pé, e palmas (sinal de desafio) que acudirão os seus ar-
mados, e houverão de vir ás frechadas : porém os contrários callárão. A
grande fidelidade d"este Principal, mostrava bem o que depois havia de
vir a ser. D'aqui foi ter com o irmão, e. lhe disse: «Filho Joseph, não te-
nhas medo; porque bem vês o como eu torno por ti : por isso falia tam-
bém com Deos, que me dê larga vida (não sabia ainda então mais pedir;)
não hajas medo que te deixe matar, ainda que os teus matem os meus em
S. Vicente; porque sei que tratas verdade. Será porém mal, se as cousas
que por aqui se dizem forem assi.» Agradeceo-lhe Joseph o officio de pai,
prometeo-lhe sua intercessão diante de Deos; e com animo assocegado lhe
assegurou, que cedo havia de ver que era falso tudo o que se dizia.
31 Não tardou Deos em acudir pelos seus; porque quando mais esta-
vão embravecidos aqiielles bárbaros, chegou á praia o próprio índio da
companhia d.3 Aimbiré, de quem dizião que fora morto por Domingos de
Braga, e declarou o fundamento do enredo todo: e foi, que este índio, por
hum medo mal fundado que teve, se meteo pelos mattos, c a cabo de hum
mez que por eiles andou, chegava então vivo, e sáo, como todos o vião ;
mostrando ser mentira tudo o que se dissera. E após este vierão logo ap-
parecendo outros índios, dos qnaes se tinhão semelhantes desconfianças ;
e contarão eates, como o padre Nóbrega os levara a ílanhaé, e fizera pa-
zes entre elles e aquelles moradores, abraçando-se de parte a parte na
igreja pêra mais segurança: c depois os ajuntara em Piratininga, e fizera
o mesmo: e logo assentarão as mesmas pazes com os do rio Parahíba, e os
Tupis discípulos dos Padres, de Piratininga, e Mayranhaya, também na
Igreja; e conversavão, e tratavão huns com os outros como amigos e ir-
mãos. Aqui acabarão de ficar envergonhados os que tão facilmente crerão
vencido o inimigo, íjue os perturbara; e todos se mostrarão satisfeitos das
pazes, e Joseph livTe de seus assombros e tido cada vez em mór conta de
Payé guaçú dos Chiistãos.
32 Dada por boa a confirmação das pazes, fez o Irmão Joseph com-
rauas e particulares demonstrações de acções de graças a Deos nosso Se-
nhor, que por espaço de cinco mezes de seu desterro tirara o flm deseja-
do de tantos. Sendo tempo de despedir-sc, segundo a ordem que tinha do
Padre Nóbrega, achava ainda diíliculdades; porque a aíTeição rpie lhe tinhão
22 LIVUO 111 DA CHRONICA DA COMPANHIA DE JKSU
e elle tinha áquelles bárbaros, fazia presa na vontade. Elles clioravão a fal-
ta de Joseph seu amigo, o Payé maior, que adivinliava seus successos fu-
turos, que lhes ensinava a boa doutrina, que os curava, sangrava, c con-
solava em suas doenças : e Joseph chorava mais sentidamente, ver ficar
tantas almas desamparadas do remédio de sua salvação, tão dóceis, e ins-
truídas já; e o que mais he, tão desejosas do sagrado bautismo. Cortava-
Ihe este sentimento a alma; e era tão forçosa n'elle a causa de partir-se
como a de ficar-se. Considerava também por outra via aquelle lugar, que
fora pêra elle outro como desterro de Patmos pêra o mimoso João Evan-
gelista; porque alli gozara entre o rigor do desterro, e assombros da mor-
te, tão mimosas illustrações, e favores de Deos, e de sua Mãi santíssima,
que podia chamar-lhe com razão lugar de suas consolações. Tudo isto vem
a dizer humas suas palavras, que deixou escrittas sobre este desterro: são
as seguintes, fallando na terceira pessoa. «Assi esteve o Irmão (a saber
Joseph) até meado Setembro entre os Tamoyos, entregue á providencia di-
vina, e muito consolado, passando muitos tragos da morte, que causavão
os que vinhão do Rio, e outros combates espirituaes, de que nosso Senhor
o livrou, etc.»
33 Houve por fim de partir-se este provado Abrahão do lugar de Vr
Caldeorum; este Moysés mimoso do cattiveiro do Egypto; e o perseguido
Joseph de seu desterro, aos 14 de Setembro dé 1563 em huma pobre canoa de
casca de hum madeiro, barca fraca pcra tão fortes mares: porém Joseph
tomara bons pilotos, a Christo, e a Virgem Senhora nossa, mãi sua, em
primeiro lugar. Além d'estes levavão á sua conta Cunhambéba, grande ami-
go seu, o que trouxera de S. Vicente as ultimas novas das pazes. A este
se entregou Joseph como a Superior na viagem, e por elle se deixou go-
vernar nos perigos grandes que teve. Ainda aqui não cessão embustes so-
bre as pazes: chegando a descansar á ilha dos Porcos, acharão alli huma
canoa de índios do Rio (causa de todas as contendas:) estes pretenderão
tornar arruinar contra Joseph o coração de Cunhambéba. «Tu donde vás?
(lhe dizem) Sabe que nós outros vimos fugindo, por que os moradores de
Piratininga quebrarão as pazes, matarão a hum nosso, e os Portugueses
vierão após nós até a Britioga, c pretendèrãe matar-nos ás arcabuzadas.»
Bastantes causas erão estas pêra mudar qualquer coração, quanto mais o
de índios: porém Cunhambéba respondeo-lhes assi: «Ide embora, que eu
bèm sei que os christãos são bons, e tratão verdade: se isso foi assi, vós
outros lhe daríeis a causa. » E deo ao remo com a mesma firmeza que dantes.
DO ESTADO DO BRASIL (aNXO DK 1563) 23
3i Passada esta, entra outra tormenta, conjurada parece pelo mesmo in-
ferno, por ver se poderia acabar no mar, o que não poderá na terra: brama
o vento, descompõe-se o mar, e as ondas açoutão a barca, e remeiros,
chegão a ponto de perder-se. Que faria Imma barquinha, casca de liuma ar-
vore, ainda não bem seca? Começa a gemer com o peso, a alagar-se com
a agoa, dando-se por perdidos os índios: porém não Joseph, que tíntia orá-
culo da Virgem Mai sua, que não havia de morrer antes de perfeiçoar sua
Vida. Animava os índios que tivessem confiança em Deos, lançassem fora a
agoa, não desamparassem o remo, porque sem duvida havião de ir a
salvamento. Tudo virão os índios (não sem admiração da confiança de Jo-
seph:) applacou a tormenta, chegarão ao porto, saltarão em terra, e forão *
recebidos com applausos aos 21 de Setembro: foi levado Joseph como em
triumpho por homem do Ceo, vencedor de tantas difíiculdades, que alcan-
çara victorias. Aqui se informou Cunliambéba, e achou ser embuste o que dis-
serão os da canoa do Rio de Janeiro, e ficou mais íirme na verdade dos Pa-
dres.
35 Restituido Joseph a sua casa, e a seus amados Irmãos, recreado, e
agasalhado nos próprios corações, especialmente do Padre Nóbrega, o supe-
rior, e companheiro de seus trabalhos, que não se fartava de abraçal-o, e
dar-lhe os parabéns da chegada, e do successo de seu desterro: o primei-
ro tempo que teve acabou de dar cumprimento á palavra que dera á Virgem
Senhora nossa, patrona sua, de perfeiçoar sua Vida. Começou a desenrolar
d^aquelle thesouro felicíssimo de sua memoria por ordem de livros, cantos e
capítulos, toda aquella comprida serie, não menos que de quatro mil cento c
setenta e dous versos, que fazem dous mil e oitenta e seis disticos: prodigio-
so parto de memoria! Acabado de limar, o escrever o poema, offerecco-o á
Virgem sua Mãi, com a dedicatória seguinte:
Én lihi qiKv vovi, Mater sanclissima, quondam
Carmina, cúm sobvo cingcrer hoste la tus.
Dum mea Tamuias' prwsentia miti(/at hostes.
Tracto que tranquiUum pnck incrmis opus:
Jlic tua materno me gral ia fonit amore,
Te corpus tulum, mcnsque regente fuit,
Sa^pius optavi. Domino inspirante, dulores,
25 LIVRO III DA CimONICA DA COMPANHIA DE JESU
Duraque cnm s<lvo funere vinda paíi.
Al sunt passa tamen meritam niea vota repulsam,
Scilicet líeroas gloria tanla decct.
36 Por osla dedicatória poderá ver o que entender da matéria, que lie
digno de comparar-se nosso poeta com qualquer dos melhores da antiguidade.
O sentido da dedicatória he este. «Eis aqui, Mãi Santíssima, os versos que of-
fereci a vossos louvores, quando me vi cercado de inimigos feros, e quando
socegava com minha presença os Tamoyos, e desarmado tratava de pazes en-
tre armados bárbaros. Aqui teve vossa benevolência com amor de mãi cuida-
' do de mim, em sombra de vosso amparo vivi seguro no corpo, e alma. IMuitas
vezes desejei, com divinas inspirações, padecer dores, prisões, e morte; po-
rém não forão admitiidos meus desejos, porque a gloria tão sublime chegão
só os grandes Heróas.» Pela facilidade, doçura, e devação cordial d'esta dedi-
citoria se poderá julgar o espirito de todos os mais versos: os quaes não po-
derei deixar de tresladar n'este volume sem oíTensa de tão grande author, e
de tão pia obra; e ainda do gosto dos que bem sabem de poesia. Porém
como não podem verter-se tantos versos em poríuguez, pêra os cpie não
entendem latim; contentem-se estes com aquelle breve exemplo da dedica-
tória: e os latinos acharão por extenso todo o poema fielmente escritto no
cabo d'este tomo, onde poderão vel-o: porque assi nem perdem os que
sabem este thesouro, nem ficão os que não sabem atalhados com elle sem
proveito, no meio da lição. E acabão-se aqui os reféns de Joseph.
37 No Espirito santo trabalhavão os Padres em aquietar as dissensões
prejudiciaes entre Portugueses, e índios, e especialmente cm reduzir ás al-
deãs os que d'ellas tinhão fugido com pretexto de aggravos; e já com o di-
vino favor se hião amansando aquelies corações magoados: muitos vencião
com boas razões, e muitos com ameaças dos castigos e penas da outra vi-
da; e tornavão assentar suas aldeãs com grande serviço de Deos, edobem
commimi; porque além do que importava a suas almas, fazião estes corpo
com os nossos, e erão ajuda de nossa defensão, e temor dos que ainda fi-
cavão inimigos. Entro estes se acabarão de recolher os que andavão espa-
lhados da gente do grande Gato: e por meio de todos os reduzidos, se es-
perava na Capitania grande melhoria de paz. N'estes sertões erão grandes
os traballios dos nossos, quando andavão, a modo de pastores, correndo as
maítas em busca de ovelhas fugidas; porque não sò tinhão contra si a re-
sistência dos mesmos que buscavão, mas também os perigos d'aquelles a
DO ESTADO DO BRASIL (aNNO DE 1304) 25
quem fugião, por estarem cm armas; e era força que quando os encontra-
vão, os tratassem, ao menos com disfavores, com assombros, e terrores da
morte. Vio-se aqui liuma protecção especial do Ceo; porque encontrando-se
muitas vezes por essas mattas os Padres com estes inimigos, e andando
assanhados como feras; nunca ousarão, não só matal-os, mas nem ainda a
pôr mãos n"elles, pelo respeito grande que llies tinhão, de homens que fal-
lavão com Deos, e fazião vida inculpável; antes dizião, que a ninguém ren-
derião seus arcos, senão a elles: e davão já esperanças d"isso; porém até
agora ficão em sua pertinácia, e com elles ainda alguns dos fugidos, que
pertencião ás aldeãs, a que não foi possível chegar.
38 Cousa commum he andarem os males acompanhados, equeahuma
peste se siga logo peste. Experimentarão este teor da natureza (bem á sua
custa) os moradores da Bahia: o anno passado de luG3 passou gemendo
toda esta Capitania com huma quasi peste, ou corrupção pestilente, que ti-
rou a vida a três partes dos índios (estrago miserável!) Entra o anno de
1564, e vemos que entra com elle huma terrível fome, com nova mortan-
dade, e não pequena angustia dos Padres que das aldeãs tinhão cuidado.
Foi a causa da fome a mesma que a da doença, a intempérie do ar, apph-
cada primeiros aos corpos,' agora aos frutos : era lastima grande ; porque
nascendo estes fermosos, alegrando a vista, e incitando a esperança, mor-
rião no melhor mal logrados; murchando primeiro vencidos da injuria dos
tempos, até caliir em terra, seguindo os passos de homens apestados. Erão
em grande quantidade os que acabavão cada dia por essas aldeãs a mãos
d'esta fome tyranna: e era necessário aos Padres trocar o género de traba-
lho; e o que dantes applicavão á conversão das almas, applical-o agora a
remédio dos corpos: buscavão-lhes o sustento da vida; porém o mais que
podião ajuntar, vinha ser nada entre tantos. Curavão-nos, animavão-nos,
preparavão-nos, sacramentavão-nos, sepultavão-nos; e n'estas obras andavão
em perenne lida, correndo as aldeãs adjutorcs volantes, porque os residen-
tes não basta vão.
39 N'esta fome tão deshumana, não acabavão os males com os que mor-
rião: porque os vivos das aldeãs vizinhas á cidade, levados do aperto, che-
gavão a vender-se a si mesmos por cousas de comer. Houve tal que entre-
gou a sua liberdade por huma só cuia de farinha pêra livrar a vida; outros
se alugavão pêra servir toda a vida ou parle d'eila: outros vend ião aos pró-
prios íilhos que gerarão; outros aos que não gerarão, fingindo os seus: a
ludo isto persuade a dura fome, o necessidade (que por isso lhe chamou o
26 LIVRO III DA CIIROXICA DA C0:MPANIIIA DE JESU
poeta, Malé suada fames^ et íurpis erjestas.) E o que lie mais, qnc semen-
Irevir contrato algum, com títulos somente suppostos, erão muitos senlio-
rcados dos Portugueses, ficando destruídas aldeãs numerosas, que com suo-
res de tantos annos tinlião recolhido os Padres, e reduzido ao grémio da
igreja das mattas luravas de sua gentilidade. Trcs aldeãs das mais remotas,
e das mais populosas, a de Nossa Senhora da Assumpção de Tapépítanga,
a de S. Miguel de Tapóragoá, e a de Santa Cruz de Jagoaripe, pêra onde
se liavia mudado a de Itaparica por causa da fome, e por lhe meterem em
cabeça seus feiticeiros, que procedia esta em castigo de se haverem sujei-
tado a Christãos, forão desamparadas, espalhando-se os moradores d'ellas
por suas antiguas mattas buscando comedia.
40 Todos estes desarranjos notáveis cortavão o coração aos Padres, es-
pecialmente ao Padre Gram, vendo se hião mallogrando frutos tão cresci-
dos, no mesmo tempo, em que houverão de madurar: deixando frustrados
os suores de tantos e tão incansáveis trabalhadores, que com tanto affe-
cto cavarão, plantarão, e podarão. Não perderão comtudo as esperanças os
obreiros do Senhor: tornão a penetrar as mattas, vão-se em busca dos que
fugião, e depois de feitos largo tempo habitadores das brenhas, converte-
rão seus feiticeiros, e convertidos estes, tornarão a reduzir os inconstantes
fugitivos. Os Padres João Pereira, Adão Gonçalves, Jorge Rodrigues, e ou-
tro Irmão, estiverão a ponto de serem mortos dos que fugirão das aldeãs
de Tapéragoá, e Tapépitanga, onde residião, por querer impedil-os, e es-
caparão por successo tido por milagroso. Com os presentes infortúnios, e
com os do anno passado, por mais diligencia que poserão os Padres, fica-
rão só cinco aldeãs, que depois se reduzirão a quatro, tendo chegado a ser
tantas, e tão florentes, como temos visto os annos passados. Outro traba-
lho resultou da fugida; porque foi descomposta, e cada qual tirava por on-
de bem lhe parecia, e n'ella morrerão alguns índios: voltarão muitos sem
mulheres, e querião casar; mas como se não soubesse se erão mortas estas,
ou se forão parar a outra parte, era força esperar talvez longo tempo por
averiguar a verdade, não sem grande moléstia dos índios, e dos Padres.
41 Houve grandes embaraços, e duviílas de consciência, nos que com-
prarão os índios na forma acima referida. Recorreo-se a Lisboa ao Tribu-
nal da Mesa da Consciência, e d"elle veio a resolução seguinte. «Que o pai
podia em direito vender ao filho em caso de apertada necessidade: e que qual-
quer se podia vender a si mesmo pêra gosar do preço. » Havida esta reso-
lução, entrarão tm consulta na cidade da Bahia o Bispo D. Pedro Leitão com
DO ESTADO DO BRASIL (aNNO DE 1564) 27
O Governador Mem de Sá, o Ouvidor geral Braz Fragoso, e o Padre Pro-
vincial Luís da Gram: e parecco bem que se publicasse ao povo a resolu-
ção da Mesa da Consciência, porque com ella ficassem quietos os que com-
prarão na forma conteúda, e os que forão comprados fora d'ella se tives-
sem por livres. Porém como os moradores da Bahia, e de toda a costa,
estavão feitos senhores de tão grande quantidade de índios vendidos fora
do direito por tios, e irmãos, e parentes, que não tinhão dominio sobre
elles; determinou-se que os taes erão livres: vistas com tudo as grandes
difficuldades que se allegavão de se largarem todos estes índios do serviço
dos Portugueses; e porque podião ir outra vez meter-se entre os gentios,
com dispêndio de suas almas, e não sem perigo da republica, foi permit-
tido que ficassem em casa dos que os tinhão, com os condições seguintes. Que
os ditos índios assi mal havidos fossem avisados de sua liberdade; mas que co-
mo livres servissem a aquelles que os resgatarão em suas vidas, por evitar os
inconvenientes que do contrario se podião seguir: e que fugindo os taes índios,
os podessem os amos mandar buscar, e castigar: e com condição que os amos,
em reconhecimento de sua liberdade, lhes pagassem em cada hum anno
por seu serviço aquillo que justamente lhes fosse taxado: com declaração,
que continuando elles a fugir pcra o gentio, sendo depois da primeira vez,
perdessem a soldada de hum anno, em recompensa do que os amos per-
derão em buscal-os. E outro si, que os possuidores dos ditos índios, os
não poderião vender, nem dar, nem trocar, nem levar fora do Brasil: e o
que os não quizesse possuir com as condiçijes apontadas, os podesse tor-
nar a dar aos que lhos venderão, sem titulo de dominio que tivesse sobre
elles, e estes lhe tornassem o preço.
42 Porém nem estas condições se guardarão, nem a resolução sérvio
de mais que de cattívarem mais índios com capa de vendidos por si mes-
mos, ou por seus pais; porque cnganavão os pobres, e quando hião ao re-
gistar, fazião que disscssm o que querião: sendo que (tirando poucos na
força da fome sobredita) raramente se achará que índio se vendesse a si,
ou a filho legitimo: nem suas necessidades são taes, que se não possão re-
mediar sem semelhanlo rigor de vendas, contrarias á liberdade natural, tão
estimada d'elíes, c de lodos os homens. Nem também a condição permit-
tida do serviço dos Índios por toda a vida; posto que por seu estipendio,
deixava de ser violenta, e quasi modo de cattiveiro, a não intervirem gran-
des razões verdadeiras, que a cohoncstassem.
43 No mesmo tempo se fez consulta sobre outra praga mais universal.
28 LIVRO III DA CIIROMC\ DA COMPANHIA DE JESU
que despovoava as aldeãs: e era esta a capa de huma sentença, que fora
promulgada conti'a os índios Cactés, dando a todos por escravos, o toda
a sua descendência (como já n'outra parte dissemos) pela morte quederão
ao Bispo D. Pedro Fernandes Sardinha. E como nas aldeãs da Bahia havia
grande quantidade de parentes dos Caetés, c não só estes se havião
por cattivos, mas á volta d'elles outros que o não erão, com qualquer
sombra de o ser; despovoavão-se as aldeãs de todo. A este grande mal
tendo respeito o mesmo Governador, e o Ouvidor geral, moderarão a sen-
tença dada, e exceptuarão os que se reduzissem ás igrejas onde havia ca-
thecismo da Fé: porque estes não poderião ser escravos. Porém a limitação
não foi de fruto; porque elles, ou se não acolhião ás Igrejas, ou se o fazião
não estavão ahi seguros dos Portugueses, e como desesperados fugião, e
morrião á fome, ou se meíião com seus próprios inimigos, e morrião a
mãos violentas: até que cahindo em tantos desarranjos os Ministros Reaes,
revogarão de todo a sentença; mas foi a tempo que poucos d'elles erão vi-
vos.
44 A estes excessos, e a outros semelhantes acudirão os Reis, como
verdadeiros Calhoiicos; o por descargo de consciência, mandarão que não
fossem cattivos, senão aquelles que fossem tomados em guerra justa (apon-
tando juntamente as condições da justiça da guerra) e aquelles que fossem
resgatados das cordas: com declaração, que tanto que estos servissem tem-
po bastante pêra satisfação do preço que por elles se deo, ficassem livres.
Porém por que ainda assi forão" informados os Reis de muitos enganos que
n'esta matéria se comraetião, El-Rei D. Phiiippe Segundo em 11 de Novembro
de 1595, revogando todas as leis de seus antecessores, mandou que so-
mente tossem cattivos os que fossem tomados em guerra justa, feita por
Real Provisão assinada por elle, e de outra maneira não. Em 30 de Julho
do anno de 1609 passou Sua Magestade outra lei, em que revoga todas
as passadas, c declara em que revoga todas as passadas, e declara todos
os índios do Brasil, assi bauíizados, como por bautizar, por livres, con-
forme a direito, e nascimento natural; e manda que por taes sejão tidos,
e havidos; e acrescenta assi: «E por quanto sou informado, que em tempo
de alguns Governadores se cattivavão muitos gentios contra a forma da lei
d'El-Rei meu senhor, e pai; hei por bem, e mando, que todos sejão pos-
tos em sua liberdade, e se tirem logo do poder de quaesquer pessoas que
os tiverem., sem embargo que digão que os comprarão, e que por cattivos
lhes forão julgados por sentença: as quaes compras, c sentenças declaro
DO ESTADO DO IJHASIL (aNNO DE 1564) 29
por nullas. por serem contra direito.» Á qual lei, supposlo que se veio com
embargos na cidade da Bahia á execução, e se replicou a Sua Magestade,
não obstantes os embargos, e replica, tornou a passar outra lei em 10 de
Setembro de 16! O, em que confirma a passada. E ultimamente esta mes-
ma foi confirmada por El-Rei B. Philippe Quarto, passada em Lisboa em 31
de Março de 1640, e registada na Bahia no mesmo anno; em que manda, que
nenhum índio de qualquer qualidade, ainda que seja infiel, possa ser cat-
itvo, nem posto em servidão, por nenhum modo, causa, ou titulo; nem
possa ser privado do domínio natural de seus bens, filhos, ou mulhei-,
aggravando apertadamente as penas passadas, como ahi se pôde \er.
45 Já n'este tempo era o numero de obreiros doesta Província mais ac-
crescentado: porque na Bahia erão os Padres dez, e os Irmãos quinze: em S.
Vicente, e Piraíininga, dezoito por todos; no Espirito santo dous, dous em
Porto seguro, dous em Pernambuco, e três nos Ilheos, como logo veremos.
E pêra que podessem com mais desembaraço empregar-se na cultura dos
índios, e Portugueses, n'este mesmo anno o Sereníssimo Rei D. Sebastião,
pai amoroso da Companhia, com animo não menos liberal que christão, do-
tou o Collegio da Bahia de hunia côngrua porção, pêra sustento de até ses-
senta Religiosos, appíicada na redizima d'esta Capitania, que pelo tempo
se reduzia a dinheiro, vinte mil réis pêra cada sujeito; que vem a fazer
três mil cruzados. Tudo consta de sua Real Provisão, passada em 7 de
Novembro de 1564. Pela qual mercê a este Príncipe reconhecemos por fun-
dador, com os suííragios costumados em nossa Religião. Verdade he que
teve El-Rei D. João seu avô vontade de fundar o ditto Collegio, e tinha
dado principio a clle quando falíeceo: o que sempre reconheceremos n'es-
te pio Rei, com os mais favores de pai, que fez á Companhia; em particu-
lar á de Portugal, e a -esta do Brasil. Com tudo, como a doação do dote
certo, e determinado, foi feita por El-Rei D. Sebastião, a elle temos por
fundador. O que quizemos advertir aqui, porque alguns Aulhores nomeão
a El-Rei D. João absolutamente fundador do Collegio da Bahia, igualmente
com o de Coimbra em Portugal, c o de S. Paulo na índia. Assi o tem o
Padre António de Vasconcellos na Descripção dos Reis de Portugal, na Vida
d"El-Rei D. João: o o Padre lialthasar Telles nas Chronicas de Portugal
parte u, liv. 6, cap. 54, num. .'], levados parece do fundamento que apon-
tei; porque teve vontarle de lundar o (Collegio, e deo principio a elle.
46 Este mesmo anno em o mez de Fevereiro passou a melhor vida na
Casa [trofessa do Roma o Padre Diogo Laincs, Geral de nossa (Companhia,
30 LIVRO III DA CIIRONICA DA COMPANHIA DE JESU
com sentimento, não só de toda ella, mas de toda a Corte Pontifical. N'es-
ta Província fizerão demonstrações do sentimento devido; porque era na
verdade pai amoroso d'ella, e mui zeloso da conversão de sua gentilidade.
Foi varão raro, igualmente nos dotes da graça, que nos da natureza: e de
quem disse o Cardeal Alexandrino, que logo foi eleito em Summo Pontiíi-
ce, chamado Pio V, que com sua morte perdera a Republica Chrislãahum dos
mais insignes defensores d'ella. Outro Illustrissimo Cardeal disse, que ha-
vendo estado em Roma quasi cincoenta annos, não vira morte mais senti-
da. Muitos Príncipes fora da Itália lhe fizerão exéquias sumptuosas. E o
Cardeal Augustano Otho Truches, nas que lhe celebrou em Delinga, emvez
de luto, vestio o sepulcro de purpura; porque dizia, que a memoria de
hum tão grande varão se havia de celebrar com festa, e não com luto. A
nós, em perda de cabeça tão grande, nos toca mais o sentimento de sua
morte, que o historial-a. Póde-se ver no Padre Francisco Sacchino, nas Chro-
nicas da Companhia de Jesus, liv. 8, desde o numero duzentos, adiante;
e no Padre Ribadeneira, dos quatro Geraes da Companhia; e no Padre Eu-
sébio Nieremberg, de Varoens illustres da Companhia; e outros.
47 Na villa da Capitania dos Ilheos se edificava este anno com grande
calor, Templo, e Casa pêra Religiosos da Companhia, com as esmolas, e
animo liberal dos moradores: e residião ahi três Religiosos d'ella com boa
aceitação, e-fruto. Verdade he que eram antíguos os desejos d'estes cida-
dãos desde o anno de 1553, em que por ali passou o Padre Nóbrega,
quando hia a visitar S. Vicente, e lhe pedirão Padres, que lhes assistissem,
como ahi dissemos. Porém como então erão ainda poucos os sujeitos n'es-
ta Provinda, só sabemos que forão a esta villa muitas vezes em missão, e
chegarão a estar de residência em huma aldeã perto d'ella; mas na villa
só d'este anno por diante temos noticia que estivessem de assento; e que
o primeiro que começou a residir foi o Padre Francisco Pires, depois de
ter sido Reitor do CoUegio da Baliia, com o Padre Balthasar Alvares: e es-
te achamos escripto que fizera alli grande fruto nos índios, cuja lingoa sa-
bia; mas não particularizão casos alguns.
48 E já que n'este anno começamos a ser moradores, será bem que
n'elle digamos alguma cousa dos primeiros princípios d'esta Capitania, e
villa. Tem seu principio esta Capitania dos Ilheos da ilha Tinharé, onze, ou
doze legoas da Bahia correndo ao Sul (como está julgado por sentença de
Mem de Sá, Governador do Estado, e de seu Ouvidor geral Braz Fragoso)
e vai correndo d'este lugar ao mesmo rumo cincoenta legoas por costa.
DO ESTADO DO DUASIL (aNNO DE 1504) 31
até acabar no porto e rio de Santa Cruz, tros legoas da villa de Porto se-
guro, pouco mais ou menos: porque ainda não estão demarcadas por esta
parte as duas capitanias de liheos, e Porto seguro. lie terra fértil, amena,
regadia, capaz de riquezas, de grandos canaveaes, e engenhos, de páos
preciosos, brasis, jacarandás, saçafrás, e outros, e de todo o género de man-
timentos brasilicos. He retalhada de grandes e caudalosos rios. (Deixando
os menores) o rio do Camamú, distante seis legoas de Tinharê, em altura
de quatorze grãos, he hum dos mais capazes rios de toda esta costa pêra
grandes povoações, e commercios. A barra he fácil e espaçosa, a modo de
duas, por respeito da ilha chamada de Quiépe, que tem junto á boca. En-
trão por ella grandes náos chegadas á ponta da banda do Sul nadão em
sete ou oito braças. Da barra pêra dentro ha huma formosa bahia, á qual
de diversas partes correm ribeiras de agoa doce a pagar-lhe tributo. Traz
suas agoas muito do interior da terra, posto que não he navegável inais
que até seis ou sete legoas, por impedimento de huma grande cachoeira.
49 Deste a seis legoas ha outro rio chamado das Contas. Vè-se na bo-
ca d'elle hum ilheo pequeno, he capaz de navios ordinários, he navegável
até oito legoas não mais, por respeito de huma cachoeira. D'esta pêra ci-
ma se pôde também navegar, se lá se fizerem acommodadas embarcações.
Está em quatorze gráos, e hum quarto. Em abono do arvoredo d'este rio,
he celebre aquelle espantoso cedro, que desceo por elle abaixo, e sahindo
pela barra fora se achou lançado á praia, de tão crescido tronco, e anno-
sos braços, que deo só elle a madeira toda á fabrica de huma Igreja da
Santa Misericórdia, que fez a villa dos liheos, sem que algum outro páo
entrasse n'ella: não chegão aqui os cedros tão gabados do Líbano.
riO Em distancia de outras seis legoas está o rio chamado Taygpe, cau-
daloso em agoas: rega grandes, e remontadas maltas; raetem-sc n'elle ou-
tros muitos de menos conta. Tem seu nascimento de huma alagoa formo-
sa, que contêm em si duas ilhas cheias de arvoredo. Não faço caso de ou-
tros dous somenos, que entre este e o rio das Contas desembocão ao mar,
Vemoão, e Japarapé.
ol De Taygpe ao rio de S. Jorge, que he o da villa dos liheos, ha duas
legoas de distancia, tem três ilheos na barra, e junto a estes ha surgidouro,
e os navios que hão de entrar vão pelo canal. Norte, eSul, com o ilheo gran-
de: são férteis seus arredores, está cm quinze gráos escaços: do de S.Jor-
ge a duas legoas está o rio Curuygpe, di; menos conta. l)"este a doze le-
goas desemboca no mar o rio chamado Patype, fecundíssimo de maltas do
32 UM\0 III DA CHRO.NICA DA COMPANHIA DE JESU
estimado pão brasil: se bem pêra enriquecer aos homens com este Ihe-
souro, não lie capaz de embarcações grandes, que fartem por huma vez
seus desejos; em barcos menores he força que o tragão dos interiores de
suas mattas, por falta de barra accommodada. Junto a este, menos distan-
cia que de duas legoas, corre o Rio Grande em quinze grács e meio de
altura: tem junto á boca três mattas de matto a modo de ilhas: bom sur-
gidouro de fora na ponta da barra do Norte, lugar seguro de navios pe-
quenos, que podem também entrar no rio, e achão na barra ao principio
duas braças do canal; logo huma, e d'ahi em diante três, quatro, e cinco.
He navegável até oito, dez legoas; de grandes pescarias, e férteis arredo-
res: entrão n'elle no sertão muitos rios, e alagoas, que fazem seu bojo di-
latado: achão-se n'elle mais de vinte ilhas habitáveis: e este he aquelle rio,
que guia a grandes haveres, e minas do seilão, como já n'outra parte dis-
semos; pelo qual abaixo descerão em canoas de cascas de arvores muitos
dos companheiros de António Dias Adorno, que subindo pelo rio das Cara-
vellas acima desentranhara estes sertões, e descobrira esmeraldas, saphiras,
e outros mineraes.
52 Depois do Rio Grande cinco legoas, desagoa no mar o rio Boygqui-
çába. Doeste a quatro legoas e meia o rio de Santo António; d"ahi a duas
o rio de Cernambitygba: todos três caudalosos, posto que de somenos bar-
ra, e d'este ultimo ao de Santa Cruz correra duas legoas, e he o em cujo
porto entrarão as nãos da índia de Pedro Alvares Cabral, que descobrirão
este novo mundo: está em altura de dezaseis gráos e meio. E temos des-
critto a costa d'esta Capitania.
53 D"esta fez mercê El-Rei D. João o Terceiro a Jorge de Figueiredo Cor-
rêa, Escrivão de sua Real Fazenda: mas como este por razão de seu cargo a
não podesse vir povoar em pessoa, mandou em seu lugar a Francisco Ro-
meiro, Cavalleiro Castelhano, homem prudente, e animoso, com huma frota,
provida de aprestos, e moradores necessários pêra a nova povoação; tudo
á custa do senhor da terra. Partio de Lisboa esta frota, chegou á costa, e foi
desembarcar no porto de Tinharé. Começou a povoar no alto do morro de
S. Paulo: mas desconteniando-lhe o sitio depois de descoberto o rio dos
llheos (chamado assi pelos três que tem junto á barra, dos quaes toma
não só a villa, mas toda a Capitania, o nome) passou-se pêra elle com Ioda
a gente; e era esta em grande parte da boa nobreza de Portugal, que por
vários respeitos vinhão a povoar estas partes.
5i >í'esla parte se íoi fortiíicando, e assentando a villa^ a (jue pòz por
DO ESTADO DO DRASIL (ANNO DE loC4) .'J3
nome S. Jorge, a contemplarão do senlior tia terra. Na mesma paragem
sustentou os primeiros annos importunas guerras do gentio selvagem Tu-
pinaquí, até que por tempos fez pazes com elles, e os trattou de tão boa
maneira, que elles mesmos lhe forão de grande ajuda pêra que a Capitania
fosse em crescimento. Abrio commercio com homens ricos de Portugal, e
fabricou quantidade de engenhos de assucar, com que em breve ennobreceo
a terra. Está esta villa em altura de quinze grãos escaços.
53 Andarão os tempos, e Jeronymo de Larcão, filho de Jorge de Fi-
gueiredo, vendeo, com licença d"El-Rei, esta Capitania a Lucas Gíraldes,
que meteo n'ella grande cabedal, e acrescentou o commercio, e fabrica de
engenhos. Porém como tudo varia o tempo, estando a villa n'este estado,
moveo o inferno, ou peccados dos homens, o gentio chamado Aimoré, o
mais bárbaro, e prejudicial de toda a costa, inimigo de Portugueses, etra-
gador de suas carnes; o qual descendo do intimo das brenhas, começou a
fazer assaltos nas fazendas dos campos, roubando, matando, e comendo
grandes, e pequenos, com tal fereza, e continuação, que tiverão por me-
lhor larga r-lhe os arredores, e acolher-se á villa; onde ainda não vivião se-
guros; e forão forçados muitos casaes acolher-se á Bahia, por escapar com
vida: até que o Governador Mem de Sá no anno de 15G0, foi desafrontar
este povo, e castigou severamente os delinquentes: tornando a ter melhoria,
posto que não a de seus princípios, até que haja cabedal de importância,
que excite commercio na terra, sem o qual não pude haver opulência.
36 No principio d'este anno preparou o Governador 3Iem de Sá na
Bahia huma frota, que enviou ao Rio de Janeiro. O fundamento d'esta di-
remos primeiro, o depois iremos após ella, a ver o fim que tem. O funda-
mento doesta expedição foi o seguinte. Tinha Mem de Sá escritto da Bahia
á Bainha D. Calharina, que governava Portugal, o successo da guerra que
fizera conti-a Villagailhon na enseada do Rio de Janeiro, rendendo-o, e pon-
do por terra a fortaleza que alli tinha, na forma que dissemos no anno de
1500. Foi festejada a nova como merecia, e approvado tudo o que alli se
obrou: huma só cousa deo a entender a Rainha, e Conselheiros, que não
satisfizera, e foi, o não deixar [iresidiada a fortaleza com gente Porluguez.
Por esta causa, e porque juntamente tinha chegado a nova das pazes, que
l)or meio de Nóbrega, e Joseph se assentarão entre Tamoyos e Portugue-
ses; chamou a Rainha a Estacio de Sá, sobrinho do Governador Mem de
Sá, homem de coração, e prudência; e mandando preparar dous galeíjes,
providos de aprestos de guerra, c soldadesca, mandou que tomasse eiilre-
YOL. II 3
34 Livno III DA cnr.oMCA da companhia de jesu
ga d'elles, e lhe ordenou que fosse á Bahia, e alii estivesse ás ordens do
Governador geral seu lio; porque queria que daquella cidade fosse a hu-
ma empreza de seu serviço á enseada do Rio de Janeiro.
o7 Chegou Estacio de Sá á Baliia, e abertas as cartas da Rainha, con-
tinhão (depois de dar-se por l)em servida do que com seu valor obrara
n'aquella enseada o Governador Mem de Sá) que considerando o tempo
accommodado, assi pelo bom successo passado de nossas armas, como pe-
las pazes, que depois d'isso se assentarão com os índios Tamoyos; parecia boa
occasião de meter gente nossa no Rio de Janeiro, senhorear a terra, lan-
çar de todo fora o Francez, e começar a povoar n'aquella parte: pêra o que
lhe mandava aquelle Capitão de effeito com duas náos de guerra, que ag-
gregadas ao poder do Estado, serião bastantes pêra a empreza; e tudo fi-
casse a sua ordem, e disposição. O cuidadoso Governador, que nenhuma
outra cousa mais desejava, vendo-se com tão bom Capitão, e soccorro, ag-
gregando a elle os navios da costa, e alguma gente militar, com a mór
presteza que pôde aviou a frota, e a despedio no principio do anno cor-
rente, com o regimento seguinte. Que fosse demandar a barra do Rio de
Janeiro, e entrasse n'ella a som de guerra, e observasse alli as disposi-
ções, e conselhos do inimigo, e se achasse occasião que prometesse es-
perança de victoria, procurasse tirar o inimigo ao mar alto, e ahi rompes-
se com elle, fazendo sempre por conservar as pazes com os índios Tamoyos:
e ordenando-lhe por fim do regimento, que podendo tomar conselho com
o Padre Nóbrega, não obrasse cousa de importância sem elle, pelo grande
conceito que tinha de sua virtude, e prudência.
S8 Chegou o Capitão mór Estacio de Sá á barra do Rio de Janeiro no
mez de Fevereiro: e a primeira cousa que fez, foi despedir d"alli hum bar-
co a S. Vicente com cartas ao Padre Nóbrega, pedindo-lhe quizesse avis-
tar-se com elle em pessoa, por serviço d"El-Rei, na conformidade que o
Governador seu tio o dispunha em seu regimento, o mais presto que fosse
possível. Entretanto foi correndo a costa, ft postos d'ella, e achou por ditto
de hum Francez que tomarão, que os Tamoyos do Rio de Janeiro Unhão
alterado as pazes, e estavão em guerra. Duvidarão os homens do mar, e
alguns soldados; mas logo á custa de seu sangue se desenganarão, porque
entrando em bateis da barra pêra dentro a fozer aguada em huma ribeira,
hum d"elles que mais se empenhou, foi acommetido de sete canoas de Ta-
moyos, de cujas mãos, supposto que escapou, foi com morte de quatro
marinheiros frechados. Declarou este successo a duvida, e logo a foi mos-
DO ESTADO DO lUlASIL (a.NXO HK IoGÍ) 35
trando mais ás claras a experiência; jjoniiuí estava ludo ardendo cm apres-
tos de guerra: os portos por onde podia ser acommeíido o inimigo, cober-
tos de canoas armadas: as praias cheias de Tiimoyos empennados, fei'indo
o chão, e os ares, ameaçando rompimento de guerra: tudo disposiçijes in-
(histriadas pela nação Francesa. Inteirado de tudo o Capitão mórEstacio de
Sá (depois de feita algnma experieíicia de menor empenho, sahindo dos en-
contros feridos alguns soldados, e outros mortos sem effeito) pondo em
conselho o que vião do grande poder do inimigo, e de como usava de cau-
tela, não querendo sahir ao mar a batalha; e como não era l)astante o po-
der com que se acbavão pêra saliir em terra, por falta principalmente de
embarcaçíjes pequenas: e sobre tudo porque teve noticia por via de hum
cattivo dos Tamoyos fugido, que estava S. Vicente em guerra (ditto que
concordava com a tardança do Padre Nóbrega;) resolveo (jue era bem ir
á([uella Capitania; porque de sua ida resulta vão muitos bens, soccorrer a
terra, avistar-se com o Padre Nóbrega, e prover-se de embarcações de re-
mo, e mantimentos.
39 Porém aconteceo aqui hum successo tido por mdagroso; porque parti-
da a armada no mez de Abril, emhmna quinta feira da semana santa, logo na
sexta seguinte á meia noite chegou o Padi-e Nóbrega em liuma lancha, com
mais dous companheiros, e como vinha com vento toi-menloso, desejosos
de abrigar-se d'elle, suppondo que tinha erdrado a armada, embocárão a
barra, c surgirão de dentro: senão que (juando contentes do successo, ao
primeiro arraiar da manhãa, começarão a descobrir o horizonte, em vez das
nossas náos de guerra, se vêem metidos entre infinidade de canoas arma-
das inimigas : e o que mais he, sem remédio de {)od(!r tornar pêra fora ;
porque o vento, que na entrada lhe fora favorável, á saiiída lhe licava con-
trario. Que faria hu ma lanchinha só desarmatloi enbe tão grandes estron-
dos de guerra entre gente, feroz, e deshumana, que nem o nome sabe de
bom quartel? Davão-se por perdidos os marinheiros, encommendando-se a
Deos os Padres, o sobre todos mostrava grande confiança Nóbrega. Ex que
no meio d'esta afíhção começão a apparecer os velames dos galeões, e em
pouco espaço enlrão a barra, e laiicãij feri'o junto aos nossos. E foi o caso,
que o mesmo contraste de tormenta (|ue ti'ouxera os l^adrcs, fez arribar os
galiõcs, que no dia antecedente tinhão partido. Á vista de tão grande suc-
cesso, se prostrarão de joelhos todos, reconhec^nido a mercê do Ceo: e logo
o seguinte Domingo de I'aschoa sairão em terra na ilha chamada Yillagailhon,
36 LIVRO III DA CIIRONICA DA COMPANHIA DE JESU
onde disserão missa, o kz Nol)rcga hum sermão ao povo, cm acção de graças.
GO Avistado aqui o Capitão m()r com o Padre Nóbrega, e tomando de no-
vo conselho com elle, convierão que era bem irem a S. Vicente refazcr-se,
assi de mantimentos, como de embarcações de remo, com que podessem as-
sistir o tempo necessário, e acommeter á ligeira os postos onde não podião che-
gar navios grandes. Derão á vela, e dentro em breves dias chegarão ao porto
de Santos. Achou o Capitão que continuavão aqui as pazes íirmes com os Ta-
moyos de Iperoyg, entre os quaes estivera Nóbrega, e Joseph; equemoravão
muitos d'elles entre os Portugueses, e com sua frecha os defendião de al-
guns Tupis inimigos: especialmente o fiel Cunhambêba, que assentara casa
com tuda sua gente fronteiro aos mesmos Tupis, só por nossa amizade. E
pelo contrario achou que os Tamoyos do Rio de Janeiro tinhão feito por
toda aquella costa varias hostilidades, inimigos de toda a paz, e socego.
Em S. Vicente começou o Capitão mór a experimentar graves diíTiculdades
acerca da empreza, movidas por varias pessoas da mesma armada, ás quaes
não parecia bem acommeter em tal occasião de tempo. Dizião que o ini-
migo era innumeravel, fortificado em casa própria, com mantimentos á mão,
com embarcaçí)es tão ligeiras, com o mesmo vento, com armas que jamais
lhe podião faltar, industriados na guerra pela gente Francesa, cujos princí-
pios tinhão experimentado: e que tudo o contrario achávamos em nós; porque
éramos poucos, acommetiamos com o peito á frecha, em terra alhea, onde não
sabíamos dos postos que podem fazer a nosso intento, os mantimentos acaba-
dos, a terra impossibilitada a dar-nos outros, pelos assaltos contínuos dos
inimigos, as embarcações grandes, e pesadas, a munição limitada, e nossa
gente Portuguesa pouco destra no pelejar dos índios: que poderia succeder
huma desgraça, que desse que chorar: que sempre foi prudência, não ar-
riscar a graves perigos, onde a empreza he voluntária, e pôde esperar oc-
casião segura. Isto dizião; e a esie fim movião muitas traças, huns com
zelo, outros com receio, outros por enfadados.
01 O Padre Nóbrega, que tinha gastado muitas noites em oração com
I)eos sobre o successo d'esta empreza, e tinha sentimento do Ceo, que ha-
via de sahir com effeito, que se havia de povoar o Rio, e que os estorvos
erão invenções do inferno: oppuz-se firmemente a todos os pareceres
contrários. Dizia que as emprezas grandes não se acabavão sem tra-
balho, nem sem perigo; e que á vista da importância d'esta, nenhum
trabalho, ou perigo devia reputar-se por grande: porque se pomos diante
dos olhos a Capitania dEl-Rei assolada; o inimigo pujante, c j-esoluto a
DO EBtADO tio I3RASIL (aN\0 T)E 1504) 37
ncal)al-a; a pouca potencia da terra pêra resistir-llie; c o poder de Portu-
!?al, c Brasil empcnliado pêra libertaí-a, parece qnc nem a Portugal, nem
ao Brasil, nem á Capitania, nem á reputarão portuguesa, convém que fique
mallogrado cabedal, que tem custado tanto, c tantos annos ha que que hc
esperado. Que dirá Portugal, o Brasil, esta Capitania, e os próprios inimi-
gos, se depois de tão grande fama de poder, virem que voltamos as costas
sem sangue? IMais honra seria em tal caso mostrar essas costas feridas na
peleja, cjue sans ,sem pelejar; poixpie feridas mostrariam desgraça da fortu-
na, e sans mostrarião desdouro da fama. Quanto mais, que nem o inimigo
he tão formidável, nem suas fortificações são muralhas, nem suas armas vo-
mitão fogo, como as nossas; somente excede em mantimentos, e canoas
ligeiras: porém eu (dizia clle) aindo que com tão poucas posses, me obrigo
a remediar esta falta a Vossa Senhoria. Concluía, que dilatasse o coração
com grandes esperanças em Deos, porque de sua parte lhe pronosticava
successo venturoso, e entendia que era servido o Ceo, que d'esta vez se edi-
ficasse cidade Real no P.io de Janeiro.
G2 Era grande o conceito que linha o Capitão mi)r da prudência, c
virtude de Nóbrega, até então por fama, agora já por experiência. Tomou
per modo de oráculo do Ceo as palavras do Pdare, c proiwz de cumpril-o
á risca. E na verdade a santidade do sujeito, a resolução com que faltou,
a impressão que fez no Capitão, o fim que teve no successo, tudo mostra
que foi mais que humana sua resolução. Joseph de Anchieta diz n'esta ma-
téria as palavras seguintes. «O Padre Nóbrega, como tinha por traçada de
Deos esta jornada, e grandíssima confiança, por não dizer certeza, que se
liavia de povoar o Rio de Janeiro, poz-se contra todos com grande cons-
tância.» Até aqui as palavras de Joseph. Mostrou ainda mais o i-ntcnto ou-
tra reposta que deo o mesmo Nóbrega n'csta oçcasião; porque dizendo-íhe
o Capitão mór no principio, entrado então, ao que parece, das razíjes con-
trarias: «Padre Nóbrega, e que conta (lai'ei a Deos, e a EI-Rei, se lan-
çar a perder esta armada?» Respondeo ell(! com confiança mais qw. huma-
na: «Senhor, eu darei conta a Deos de tudo; c se fôr necessário ii"elá pre-
sença do Rei, c respondorci ahi por vós.»
(j'-i Ficou com todas eslas cousas tão convencido, e resoluto o Capitão
mór, que nenhuma cousa da teri'a (dizia ell(;)jámaiso trocaria. Porém pêra
persuadir aos soldados descontentes, foi necessária nova lida de Nóbrega:
andava, c desandava aquellas (]uas legoas, (jiie ha de S. Vicente a Santos,
onde estavão cum o Capitão: i)rattcava cuni os de mais razão, mostrava-
38 I.I\-RO III DA CllROMCA DA COMPANHIA HE JF.SIT
llies a muita que havia pêra que não deixassem em flor esperanças de fru-
tos Ião {grandes, a ^doria que se lhes seguiiia da ^icloria, e o pesar que
contraliirião da relii'ada. Fazia-lhes fácil o apresto, oííereGÍa-se a grande
paite d'elle, ajudava-os, favorecía-os em suas petições, e coiivencia-lhes os
ânimos. Levou-os a recrear á nossa Casa de S. Vicente por alguns dias, e
ã villa de Piratininga outros; onde forão mui bem agasalhados, e aliviarão
os cuidados com tão grande variedade de vistas, e com verem os índios
de nossas aldeãs armados a seu modo, e animados pêra a mesma empre-
za. Aqui fez que se assentassem pazes na presença do Capitão mór, e em
nome do Govarnador geral seu tio, entre os nossos, e alguns Principaes do
sertão, que eslavão em guerra. Descerão seguros soJjre sua palavra, e ren-
derão os arcos, e se offerecêrão muitos delles â jornada, e ajudarão com
seus mantimentos: com que ficarão os Portugueses mais confirmados, que
Deos traçava o fim desejado: e na \erdade, d"aqui houverão grande parte
do que necessitavão, assi de gente, como de mantimentos. E veio a ser de
Ires efíeitos esta saliida a Piratininga: confirmou os ânimos dos soldados,
deixou cm paz aquelle sertão, e proveo do que necessitava a armada.
Gi Feito o sobredilto, desceo das serras Nóbrega, e no marilimo correo as
villas, e lugares todos, mais com espirito, que com forças da carne: prega-
va, e animava em publico, e em particular sobre o apresto de empreza tão
importante, publicando perdões de delitos em nome do Governador ge-
gral aos que se embarcassem; e com sua industria, e autlioridade ajuntou
hum soccorro considerável de Portugueses mestiços, e índios, e de canoas,
e bastimentos, que juntos a outros, que logo chegarão da Bahia, e Espiri-
to santo, fizeião provimento caljal, e bem tora do que suppunhão os que
votarão pela parte contraria; e com elle se aprestava a armada. Porém co-
mo esta não ha de sahir ao fim que pretende se não em principio do an-
uo seguinte; cheguemos primeiro á Baliia, c depois voltaremos a ser pre-
sentes ao successo d'ella.
05 Na Bahia dava cuidado o successo da armada: porque forão notórias
as razões que tivera no Rio pêra desistir da empreza, e não erão sabidas as
quetinhaperaremedial-as. Era entrado o princiíiio do arino de 156o, etudo
era rumores incertos. Trazia isto aílligido aMem de Sá, por Governador, por
tio, por zelador do serviço d'El-Rei, e do Estado que lhe tinha entregue.
Estando entre estes cuidados, chegarão cartas do sobrinho e Nóbrega; o sobri-
nho relatava o muiío quetiiiha obrado o Padre; o Padre e muito que tinha obra-
do o sobrinho: e ambos convinhão, em como estavão remediadas as faltas da
no ESTADO DO BRÂSIÍ. (aNNO DE 4505) 39
armada, que partiria a seu intento, contentes os soldados, e com esperan-
ça de vicloria. Com estas novas respirou a Baliia, que tinha metido empe-
nlios grandes, e arreceava vêl-os mallogrados.
66 No nosso Collcgio da Companhia, accrescenlou o Padre Provincial
os estudos com huma nova classe de Latim, e com huma lição de Theolo-
gia moral, a qual lia o Padre Quiricio Caxa, da matéria de virtudes, e vi-
dos. No cuidado da conversão dos índios não descansava o espirito do
Padre Gram: traçou fazer este anno nas aldeãs o mór apparato de celebri-
dade dos Olllcios da semana santa, que até então houvera, com jubileo,
que pedira a Roma, pêra os três dias últimos : porcpie quanto mais esta-
vão diminuídos aquelles povos das desgraças passadas, tanto mais lhe pa-
recia necessário animar esses poucos, porque tornassem ao fervor antiguo:
e não foi sem fruto ; porque os assistentes afervorárão-se ; e dos ausentes
muitos largarão o sertão, e acudirão á fama do celebridade.
G7 N'este mesmo anno houve em Roma Congregação dos Padres pro-
fessos da Companhia, e n"ella foi eleito em Geral perpetuo de toda ella o
santo Padre Francisco de Borja, Duque que fora de Gandia, e espelho que
então era de santidade, em lugar do Padre Diogo Laines de boa memoria,
que o anno antecedente passara a melhor vida. Logo que foi eleito á pri-
meira posse de seu generelado, elegeo por Visitador geral d'esta Província
do Brasil em nome seu o Padre ígnacio de Azevedo, que se achara na
Congregação por Procurador geral da índia, e Brasil: aquelle grande espe-
lho de perfeição religiosa, que depois veio a consagrar os mares com seu
próprio sangue, e de quarenta companheiros, derramado pela Fé Calholi-
ca, a mãos de hereges Ilugonotes, como em seu lugar se dirá; que por ora
somente se alegra esta Provinda com a boa nova de sua eleição, esperan-
do alegrar-se o anno seguinte com sua boa vinda.
68 Na villa do Espirito santo acabou o curso d"esta presente peregri-
nação o Padre Diogo Jacome. Foi este Padre Coadjutor espiritual na Com-
panhia, grande servo de Deos, c de abrasadas entranhas na salvação das
almas. Pela conversão d'estas deo o ultimo vale á pátria, e aos collegios
de Europa, e se veio metter nos desertos entre a gentilidade do Brasil,
cm companhia do Padiv, Manuel de Nóbrega no anno de IT)'!!). Na Bahia
experimentou com elle as ingratidões, e dureza d'aquella malta até então
bravia, dos corações dos índios, com muito fruto, e ganho seu de gran-
des actos de penitencia, e mortiíicação. Foi mandado pela obediência a
soccorrer a Capitania de S. Vicente em companhia do Padre Leonardo Nu-
40 LIVRO III PA CHRONICA DA COMPANHIA DE JESU
nes; e foi companheiro deveras nas asperezas dos principios d'a(juella
conversão, vivendo em estreita pobreza, e áspera penitencia : ajudando a
pedir de porta em porta o corporal sustento ; correndo valles, passando
rios, atravessando serras, por frios excessivos, e sempre roto, e a pé, por
bem das almas.
69 Este humilde servo do Senhor, foi dos primeiros que começarão a
introduzir com zelo santo o exercitarem-sc os nossos em obras manuaes
quando não linhão que fazer, por exercício de humildade, e occupação ho-
nesta do corpOi á imitação dos antiguos Padres do ermo. Á sua conta to-
mou elle o de torneiro (officio que por habilidade somente aprendeo) e
todo o tempo que lhe sobejava, lavrava rosários de contas, que repartia
aos que necessitavão, com interesse, c{ue por si e por elle rezassem a
Deos, c á Virgem Senhora nossa. E a exemplo d'este zeloso oíTicial, apren-
derão logo muitos dos nossos, qual a pedreiro, carpinteiro, sapateiro, etc.
com que ajudavão os Collegios, e edificavão os povos:
70 Ultimamente foi mandado á Capitania do Espirito santo, e encargado
alli da residência de huma aldeã (de duas q-ue havia) do índio Principal,
chamado o grande Gato. Aqui depois de trabalhar incansavelmente, com
zelo de varão apostólico, na cultura d'aquclla gente barbara, de trazer á
Fé, cathequizar, e bautizar grande numero d"elles, por fim de seus traba-
llios quiz o Senhor acabar de lavrar este servo seu com huma cruel pesti-
lência de bexigas que veio sobre aquellas aldeãs, tão deshumana, que con-
taminou quasi todos, e raros dos contaminados deixou com vida. Vio-se
alli hum espectáculo lastimoso; porque as casas igualmente servião dehos-
pitaes de enfermos, que de cimiterio de mortos: os vivos entre os mortos
erão quasi iguaes, e não sabieis de quaes havíeis de ter mais compaixão;
se dos vivos pêra acudir a seu remédio, ou se dos mortos pêra usar com
elles da commua piedade de huma sepultura, Aquelles vos chamavão a vo-
zes, estes com o cheiro pestífero de quatro em quatro huns sobre outros
podres, e corruptos. O Padre Diogo metido entre elles de dia, e de noite
com outro companheiro Pedro Gonçalves, erão os Sangradores, os Cirur-
giões, os Médicos, e juntamente os Parochos, e Recoveiros, e em tudo síjs;
porque á presença de tão grande miséria, apenas achavão quem ajudasse
a levar hum defunto a sagrado; ou porque todos erão enfermos, ou porque
fis que o não erão assi.fugião da corrupção, e máo cheiro d'elles, como
da mesma morte. Tal houve que em meio do caminho fiigio, deixan-
do o peso do defunto todo em as mãos dos Padres, que caliirão de fra-
DO ESTADO DO DRASIL (ANNO DE. ISO.j) 41
queza com ellc. Não lic novidade n'esta gente; cuja natureza lie tão endu-
recida por silvestre, que em qualquer doença trabalhosa desamparão os
pais aos filhos, e os filhos aos pais: assi o fizerão muitos n"esta, acolhen-
do-se o que pêra isso tinha forças, pêra o sertão, sem respeito algum da
natureza, ou da graça.
71 Cansado pois de tão excessivo trabalho, consumido a puro desgos-
to de tão triste successo, vendo tão brevemente desfeita, assolada, e des-
amparada Imma numerosa aldeã, que cordialmente amava, por quem sua-
ra, e trabalhara tanto, perdeo o alento, e forças, e entrou emhuma gran-
de febre. Com esta foi trazido á Casa davilla: e ainda aqui quiz Deuspro-
val-o com novo refmo de trabalho, e de obediência: porque cuidando o
Superior, passados alguns dias, que estava melhor, vendo a grande neces-
sidade d"aquella aldeã quasi despovoada, convidou só por alto o Padre pê-
ra tornar a ella: porém aquelle que em toda sua vida fora exemplo de obe-
diência, não quiz na morte diminuir o lustre d"ella. E supposto que o vi-
gor vital lhe significava o contrario, poz-se comtudo nas mãos do Superior
e foi. Porém sérvio a ida de voltar presto com mais hum acto de virtude
heróico; mas com o alento já tão perdido, que quasi chegou moctò. No
pouco tempo que lhe restou de vida, tudo era suspirar ao Ceo, com actos
abrazados, pedindo a Deos misericórdia, pêra si, e pêra os que vira aca-
bar n*aquella cruel peste, tão faltos de soccorro espiritual. Chegou o quinto
dia depois de sua vinda, e recebidos os Sacramentos todos, abraçado com
huma devota Imagem, deixou esta carne mortal, e foi, como se crê, go-
zar este bom servo do descanso eterno, no mez de Abril doannode 1305.
Jaz sepultado na nossa Igreja deSan-Tiagod'aquellavilla. D"este varão dei-
xou huma lembrança o Padre Joseph de Anchieta, e falia delle com pala-
vras maiores, chamando-lhe varão de muita obediência, de grande zelo da
salvação dos índios, que trabalhou muito entre elles, com grande charida-
de até acabar a vida; e finalmente (|ue veio a morrer por obediência. E
na verdade dois quilates enxergo grandes n'esta morte : que arriscou este
servo de Deos a vida pela charídade dos índios, a (|uem pretendeo acudir;
c pela obediência do Superior, a (jucm pretendeo satisfazer. Escrevem
deste servo fiel, o Padre Francisco Sacchiiio nas Chi'onicas de nossa Com-
panhia, part. ni, liv. i, do numero cento e cincoenla e oito por diante: o
padre Balthasar Telles nas Chronicas de Portugal, part. i, liv. ui, cap. 10.
E o Padre Joseph de Ancl^eta nos Notados, pag. 22.
72 Em S. Vicente achava-sc já o Capitão mór Estacio de Sá com sua
42 LlVnO III DA CIIROMCA DA COMPANHIA DE JESU
armada preparada, c prestes; seis navios de guerra, alguns barcos ligeiros
e nove canoas de Mestiços, e índios. Com estes mandava o Padre Nóbrega
dons Religiosos, Gonçalo de Oliveira, e Joseph de Anchieta, pêra aní-
mal-os e dirigil-os em huma e ontra lingoa, em que erão peritos. Partirão
do porto, chamado pela lingoa dos índios Buriqujóca, a vinte de Janeiro
d'este prcsenlo anno, dia dedicado a S. Sebastião, (jne por bom pronos-
tico tomarão por patrão da empresa, por ser tão grande martyr, e por
ser nome de sen Rei D. Sebastião. Chegarão a occnpar a barra do Rio de
Janeiro ao principio do mez de Março: aqui lançarão ferro junto ás ilhas
que. estão próximas a ella, esperando pela náo Capitania, que á medida de
sua grandeza, e contraste de mar, ede ventos pouco favoráveis, vinha mais
devagar.
73 Aconteceo aqui hum caso digno de ínemoria, demostrador do suc-
cesso futuro. Porque os índios do Espirito santo impacientes com a espe-
ra da Capitania, e mantimentos, que também tardavão, e sobre tudo de
sua natural inconstância, estavão amotinados pêra partir-se com suas ca-
noas pêra suas terras, e desamparar os Portugueses. Chegavão a ponto de
executar a tenção: ex que Joseph em lugar distante, sentio em si impul-
so de ir visital-os; c chegando á falia coin elles, sem ouvir-lhes nada, lhes
estranhou sua resolução. Vendo-se descobertos, derão a causa, que esta-
vão alli morrendo á fome, e não podião mais esperar. Então, com grande
confiança no Cco, lhes empenhou Joseph sua palavra : que não seria assi,
se não que antes que o Sol chegasse a tal parte do Ceo, mostrando-lh'a,
chegarião sem duvida os mantimentos, e após elles pouco depois a náo
Capitania. Cousa maravilhosa ! Não erão dittas as palavras, quando appa-
recèrão três barcos, que erão mandados a buscal-os ao Espirito santo.
Pasmarão os índios, e fizerão conceito do successo mais que humano: obe-
decerão a tudo, resolutos a ajudar na empresa: e logo em a manhãa se-
guinte chegou também a náo Capitania, tudo em cumprimento daditapro-
pliecia do Padre Joseph.
74 Juntas já as embarcações, entrarão todas a barra do Rio de Janei-
ro: salta em terra a infanteria, e começa a fortificar-se com trincheiras, é
fossos, no lugar onde depois chamarão Villa velha, junto a hum penedo al-
tíssimo, que pela forma se diz Pão de assucar, e outra penedia, que por
outro lado cercava, com que ficavão em parte defendidos. Iluma só cousa
descontentava do lagar, que depois de roçadas as mattas, acharão agoa de
alagoa, e ella tão grossa, e nociva, que arrecearão causasse doenças nos
DO ESTADO DO BRASIL (ANNO DE 1565) 43
soldados. O que considerando hum .Toseph Adorno, Genovez nobre, mora-
dor de S. Vicente, c hum Pedro Martins Namorado, tomarão á sua conta
(entre as mais occupacões) fazer com sua gente hum poço, ou cacimba,
donde beberão agoa doce. Deste lugar liavião de sahir a conquistar os
nossos, e havião de ser conquistados com desigual poder; porrpie' suppos-
to que erão espantosas aos índios nossas armas de fogo, e nossas náos
possantes: era muita mais formidável a grande multidão de canoas volan-
tes, e guerreiras, a centos, e infinidade de Tamoyos armados, que cobrião
os mares, e as praias todos a som de guerra: elles em seus lugares cer-
cados, valados, insolentes das victorias passadas, e sobre tudo ajudados,
e animados com náos de alto bordo da nação Francesa. São estes Tamoyos
entre todas as nações do Brasil ousados no acommeter, sagazes nas ciladas,
no arco destríssimos: despedem a seta com tal força, que passa o escu-
do, e chega ao braço: tal vez succede passado o corpo todo, continuar a
frecha, e pregar qualquer arvore ainda tremulando. Com esta gente o ha-
vião os nossos.
75 Joseph, e seu companiieiro Oliveira, fazião praticas aos soldados
Europeos, não costumados a tal modo de guerra. Dizião-lhes, que era uso
do gentio o que vião; mas que á vista d'aquelles estrondos, e ferocidade,
era vendo o fogo de nossos arcabuzes, se acobardão, e fogem: que aco-
metessem constantes, e experimentarião que erão verdadeiros os Padres.
Aos índios nossos confederados praticavão em sua lingoa própria: lembra-
vão-lhes a perfidia contraria, com que quel^rárão seus inimigos a palavra
das pazes; os insultos que não obstantes ellas lhes fizerão, cattivando, ma-
tando, e comendo as mulheres, e filhos de muitos d'elles, pretendendo as-
solar, e acabar sua Capitania: sobre tudo lhes traziãò á memoria os feitos
valentes de seus antepassados; que he o mais fino da rhetorica pêra per-
suadir esta gente.
7G O Capitão mór Estacio de Sá mandando ajuntar a infantaria, fiillou-
Ihes n'esta forma: «Soldados companheiros, poucas palavras bastão a âni-
mos resolutos: não he de hontem nossa empresa; depois de largo tempo
e de varias fortunas, vimos a ver o que havemos de gozar. A hum ponto
chegamos, que ou nos lia de custar a vida, ou nós havemos de tiral-a a
todos estes bárbaros. D'esta estancia não ha já fazer pé atraz: por hum lado
nos cercão estes penedos, por outro as agoas do Oceano; pela mão direita
e esquerda nossos contrários : se d'este cerco houvermos de sair, he
força que seja rompendo inimigos: estes não são Ião duros de vencer,
4i LlVnO III DA CHnONÍCA DA CO^IPAMIIA DE JESU
como os penedos; nem IHo diíTiciiltosos de passar, como o Oceano: aqtiellcs
seus estrondos calão os ouvidos, mas não os corações : o som de nossa
mosquetaria cala-lhes ouvidos, e peitos: á vista d'esta os vereis logo, ou
cair, ou fugir: não podem medir-se seus arcos com nossos arcabuzes, nem
suas frechas com nossos pelouros. Tenho por escusado pór diante dos olhos
as justas causas que aqui nos trouxerão: de todos he sabida a arrogância
d'estes selvagens licenciosos, os ódios antiguos, e presentes, com que sem'
pre nos quebrarão a fé, e lealdade, desprezando a confederação de nossa
gente, e admittindo a de nossos contrários: os intentos de destruir-nos, os
assaltos de mar, e terra, com que perturbão toda a costa, roubando, cat-
tivando, matando, e comendo como feras as carnes humanas dos nossos,
e bebendo-lhes o sangue. Assaz de justificada está nossa vingança ; não
será bem que continuem tantos damnos, nem que se diga pelo mundo, que
tendo metido na empresa tanto poder, Portugal, o Brasil, Rei e o Estado;
ficarão huns e outros frustrados. Acabe-se de huma vez com esta praga,
tirem-se de assombro os moradores, livrc-sc a terra, levantemos n'ella ci-
dade, e fique esta por memoria de nossa resolução e trabalhos; e pcra
exemplo dos vindouros, e freio de semelhantes bárbaros. »E como íicárão
animados os soldados, dirão os successos seguintes.
-77 O primeiro assalto que derão os inimigos aos nossos, foi pouco
depois de alojados, aos seis de ]\Iarço, qiiasi provando sua disposição e
valor. Acommeterão, segundo seu costume, empennados, com repentinos
alaridos, estrondo de vozes, e grcos, que entre aquella grande penedia do
sitio fazia pavor, e espanto. Acharão porém valor, e resistência, qual não
cuidavão : pelejou-se por huma e outra parte com esforço; e sabemos que
parou o estrondo na morte somente de hum índio nosso já Christão, dos
naturaes dos campos de Piratipinga, o qual poderão fazer prisioneiro, e
tanto que o houverão ás mãos, pêra terror de seus contrários, o amarrár-
rão em hum páo, fazendo d'elle alvo de suas frechas, a cujo rigor acabou a
vida. Saio-lhes com tudo cai^a a valentia; porque em lugar de se acovarda-
rem, ficarão os nossos com tanto brio á vista de tal crueldade, que rom-
pendo tranqueiras sairão fora após elles, matai^ão a muitos, poserão os vi-
vos era desconcertada fugida, e fizerão presa nas canoas em que tinhão
vindo, e se aproveitarão os índios de seus costumados despojos.
78 Aos doze yio mesmo mez tiverão noticia os nossos, que os Ta-
moyos estavão em cilada com vinte e sette canoas de guerra, em postos onde de
força havia de ir a dar nossa gente. Aprestarão dez canoas com duas lan-
DO ESTADO DO I3HASIL (aN.NO DE 1Í)G5) 45
chas de remo, e forão acommelel-os, com Ião boa fortuna, que ao primei-
ro encontro se íizcrão senliores de liuma das principaes canoas, e as de-
mais fugirão á forra de remo, quaes tímidas aves á vista de hum armado
gavião.
79 Forão estes dous successos principio de maiores victorias : á vista
delles se conta, que desprezavão já os nossos os arcos inimigos, e canta-
vão aquillo da Escrittura. (íArcus fortium superatus est, et infirmi accinti sunt
robore.yy Fortes podíamos chamar aos arcos de tanta muUidão de T amoyos,
que cobrião os campos; e h'aco se podia chamar nosso poder em compa-
ração do de tantos bárbaros; pelo que sendo tão grandes nossos successos
contra elles, era visto que sahía nosso valor da mão de Deos; e com esta
consideração animava Joseph, e seu companheiro, a nossa soldadesca. Foi
cousa notada, que quasi todas as semanas d'alli em diante alcançavam os
nossos successos felices, ou em emboscadas, uso commum de pelejar dos
bárbaros, ou a peito descoberto, mais conforme ao nosso; matando, e cat-
tivando muitos dos inimigos, sem perda considerável dos nossos.
80 Vio-se aqui hum favor conhecido do Geo, admirado não só entre nós,
mas entre os mesmos inimigos : ponpie muitos pelouros dos Franceses
davão em os peitos dos nossos, como se derão em duro ferro, caindo aos
pés, ou tornando frustrados pêra trás: e as feridas que alguns recebíão
ainda que mortaes, com tal facilidade saravão, que era força atlribuir-se a
cura ao favor divino. U que, porque mais claramente se visse, e não pu-
desse ser attribuido a arte humana de hum Cirurgião Ambrósio Fernandes,
que alli curava, e pretendia attribuir estes successos a sua gram pericia :
succedeo, que no primeiro encontro que depois houve, saindo clle ao con-
ílicto ficou morto; e comtudo, com a mesma facilidade viviam d'alli em
diante os soldados mortalmente feridos. He caso que refere o Padre Joseph
de Anchieta: e diz, que iiuns o attribuião a favor da Virgem nossa Senhora,
cm cuja devação andavão desti'0s os soldados: outros ao Mar tyr insigne S.
Sebastião, cujo favor por Padroeiro invocavão; e foi Jtiseph companheiro,
e testemunha de vista fidedigna. ui
81 Foi mais notável o successo, que aconleceo nos primeiros de Ju-^'
nho. Appareccrão á vista de nosso arraial três náos poderosas, e ])em ar-
tilhadas dos Franceses, c huma somma innumeravel de canoas de guemi,
que as acompanliavão ; contavão-se címiIo e trinta, quasi o resto de todo o
poder inimigo. Presenlarão batalha aos nossos, fcslivaes todos, com suas
costumadas libres de tintas, e pennas, alaridos de vozes, e búzios, qu(í
46
LI\1\0 III DA CimONICA DA COMPANHIA DE JESU
atroavão os mares, e os montes; e só pôde cuidal-os, quem sabe o costu-
me d'estes bárbaros. Lançava cada qual a frecha mais empennada, e de
mais estima, sobre o arraial, por principio de guerra, e como desafio. Não
desfallecem porém os corações dos nossos: e primeiro que tudo rece-
bem-os com semelhantes sinaes de festa, disparando sobre elles quantidade
de artilharia, e arcabuzaria, com tão bom emprego, que a capitania ini-
miga (feridos, e perturbados os marinheiros) foi dar á costa entre huma
penedia, donde apenas depois de grande força, e alguns mortos, a tirarão
pêra o mar. Salva a capitania, acommetêrão os inimigos em ordem de
guerra: as três nãos Francesas (qual outro Ethna) desfazendo-se em fogo
de pelouros, bombas, alçanzias: os Tamoyos cobrindo os ares com nuvens
de frechas, que vindo caindo sobre o arraial a som do estrondo da artilha-
ria, representava hum chuveiro entre trovões medonho. Porém sérvio de
amparo a procteção do insigne Maiiyr S. Sebastião, que cora fé invocarão;
porque passada a tormenta, correndo-se as estancias, não se achou morto
algum; sendo que da parte inimiga o forão muitos, e os vivos postos em fu-
gida; porque não estava também ociosa no mesmo tempo da tormenta nossa
artilharia.
82 Aqui refere o Padre Joseph de Anchieta hum caso tido por mila-
groso naquelle arraial. Estava no tempo do combate referido, na Igreja,
posto em oração o Padre Gonçalo de Oliveira, encommendando a Deos o
successo (qual Moyses o dos filhos de Israel:) era esta feita de palma; e
como as frechas vinhão de alto, trespassavão o tecto, e lados; e foi cousa
admirável, que sendo em grande quantidade, ficarão todas a redor do Pa-
dre, pregadas no chão, sem que alguma d'ellas lhe tocasse. Virão isto os
que recorrião de quando em quando á Igreja, e espantados do successo,
que tinhão por milagi^e, cobravão novo animo pêra tornar â guerra.
83 Tornando ao intento: o Capitão Estacio de Sa, não satisfeito de de-
fender-se dentro do arraial, quiz mostrar que tinha iwder pêra buscar o
inimigo fora d'elle: acommetêo as náos Francesas, e fez n^ellas destroço de
muitos mortos, e feridos com a artilharia de sua Capitania. Despedio no
mesmo tempo esquadras, que acommetessem as aldeãs dos contrários, ou-
tras as canoas de pesca, que erão grande numero; e em todas fizerão boas
presas: de duas aldeãs especialmente fizerão prisioneiros os moradores
todos: com que ficou assaz atormentado o inimigo.
8i- Aos quinze de Outubro seguinte foi outro successo digno de histo-
ria. Sahirão selte canoas nossas em busca de presa, mas virão-se a ponto
DO ESTADO DO BRASIL (aNNO DE 15GÍ) 47
serem ellas prisioneiras do inimigo: porque lhes sahirão do cilada sessenta
tí quatro, que dando ao remo velocissimo, em breve tempo as poserão em
cerco perigoso ; porque de todas as partes juntamente despedião frechas
contra elias: começou-se alli huma peleja bom ferida de huma e outra parte:
crão os nossos de resolução, e valor; porém no meio de tão grande poder
era força arreceassem o snccesso. E:v que nesta conflicto acodem de soc-
corro aos nossos outras settc canoas, á visía das quaes, como se forão cem,
tomaram animo os soldados contra sessenta e quatro: acommetcm já aquel-
les, dos quaes erão acommetidos; e depois de larga peleja, sahirão com vi-
ctoria, senhoreando quatro canoas, destroçando, c pondo em fugida as de-
mais.
85 Seja a ultima não menos illustre façanha deste anno. Sahira o capi-
tão mór Estacio de Sá com hum troço de seus soldados, com intento do
dar sobre huma aldeã : teve noticia no caminho, como em outra mais afa-
mada se tinha ajuntado numerosa quantidade de índios, por causa de certa
devação chamada a Santidade: converteo o açoute sobre esta, e pondo-a
em cerco assi a opprimio a ferro, e a fogo, que cxceptos poucos que po-
derão fugir, todos os outros, ou morrerão, ou se entregarão cattivos: pas-
sarão de trezentos. Forão feridos alguns dos nossos, entre os quaes hum
soldado por nome António da Lagea, querendo livrar huma mestiça de Sam
Vicente, que entre os inimigos estava cattiva, ficou cercado do incêndio; e
sahio d elle tão maltratado, que sendo levado ao arraial, em breves dias
acabou a vida.
80 Neste tempo foi chamado dentre o estrondo das armas pêra a ci-
dade da Bailia o Irmão Joseph de Anchieta a ordeiiar-se de ordens sacras:
e de caminho lhe ordenou o padre Mamei de Nóbrega (a cujo cuidado
estava o governo de Sam Vicente, e o da capitania do Espirito santo) que
visitasse a casa, e aldeãs, que alli tinha a Comj)anhia, e disposesse irei-
las o que melhor julgasse, afim de maior perfeição. Bem se deixa ver
deste feito, o grande conceito que tinhão os Superiores, da prudência,
authoridade, c virtude de Joseph; pois a hum liomem ainda não Sacerdote
oncarregão de oílicio de tanto i)orU; na Religião. Em higar de Joseph acu-
diu o padre Manoel de Nóbrega ao ari'aial com outros companheiros, para
o Padre ílonçalo de Oliveira, os quaes revezava por vezes, com occasião
de soccorros, (pjo mandava fi-efiuen temente ao Capitão mór, e soldados de
refrescfj, canoas o índios, animando-os, o consolando-os com suas cartas,
a levar por diante a empresa, que entendia era de Deus.
48 LIVRO III DA CimONICA DA COMPANHIA DE JESU
87 No Espirito santo fez Joseph de caminho o oíTicio a que fora man-
dado; e foi lium alivio geral de toda aqiiella villa. Em nossa Casa conso-
lou, e animou os Religiosos, tristes ainda da fresca morte do bom compa-
nheiro o Padre Diogo Jacome, e lastimados do rigor da cruel pestilên-
cia passada. Visitou as aldeãs, e chorou com os índios suas misérias, e
com sua costumada eloquência na própria lingoa brasílica, os animou a le-
var com paciência aquelle açoute, que Deos lhes quiz mandar por seus
altos juízos, e por ventura pêra salvação dos que n'elle acabarão a vida.
Dispoz e remediou muitas cousas na Casa, e aldeãs, de maior perfeição, c
serviço de Deos : e deixando edificada aquella villa com suas praticas, e
conhecida santidade, se embarcou, seguindo sua viagem pcra a cidade da
Bahia.
88 O anno de mil e quinhentos e sessenta e seis continuava na Bahia
o Padre Luis da Grani na reformação das aldeãs, que, como vimos, os
annos passados ficarão assoladas do doenças, e fomes: mas já com seu fa-
vor, e ajuda das duas cabeças, ccclesiastica e secular, ambas zelozas do
bem dos índios, tinhão tornado a seu teor antiguo, posto que não ao nu-
mero de sua gente, as cinco que ficarão. No CoUegio continuava o aumen-
to das classes de Latim, e Casos, com frequência de estudantes, e reforma-
ção de doutrina. Chegou a este CoUegio o Irmão Joseph de Anchieta, que
no fim do anno passado dissemos partira pêra esta cidade com escalla pela
capitania do Espirito santo. Foi recebido commummente de todos como me-
recião suas grandes virtudes, notórias já em todo o Brasil. Este hospede
conton mais por extenso ao Governador Mem de Sá (como quem fora tanta
parte em tudo) o estado da guerra do Rio, as maravilhas que Deos tinha
obrado por meio do Capitão mór Estacio de Sá, e seus soldados; porém
dizia, que como erão os inimigos innumeraveis, de força se havião de ir
extinguindo de vagar com tão limitado poder, como era o nosso: que se
queria Sua Senhoria, que a guerra se acabasse por huma vez, seria neces-
sário meter mais cabedal ; e que com este lhe parecia que estava certa a
ultima víeíoria: e poderíamos então fundar a cidade, que Sua Alteza preten-
dia, afugentados por huma vez os Tamoyos pêra seus sertiJes, o presidia-
das por algum tempo as estancias marítimas. Toda esta pratica de Joseph
agradou muito a Mem de Sá, i)or ser conformo ás mais verdadeiras noti-
cias, e experiência. O Bispo D. Pedro Leitão ordenou logo de ordens sa-
cras ao Irmão Joseph, com grande alegria dos corações de ambos : do
Bispo, porque estava vendo os serviços de Deos que havião de resultar
DO ESTADO DO BRASIL (a.\NO DE í5GG);;i ' 40
daquclKis ordens a toda a Igreja do Brasil : de Josepli, porque desejava
einpi'egar-se coiíi mais fructo no serviço das almas.
89 Espei'ava-se com grande cuidado o padi'e Ignacio de Azevedo, que
o anno passado dissemos fora eleito na Congregação de Roma por Visitador
geral desta Província (e foi o primeiro que teve) com grandes poderes, e
graças do Padre Geral, e de Sua Santidade o Papa Pio Quinto, que então
governava a Igreja de Deos. Por este tempo tinha chegado de Roma a
Portugal, buscado companheiros, embarcado-se pêra o Brasil, centro de
seus desejos; e achava-se então nas ilhas do Cabo verde. Aqui deo mostras
de quem era, no publico, e no particular, ajudando aquelles moradores no
exercício de nossos ministérios, per si, e per seus companlieíros, com lou-
vável fructo. Sabia pelas praças, à imitação de hum Xavier no Oriente; en-
toava o signal da Cruz, e após elle ensinava a Doutrina Chrislãa aos meni-
nos, e á volta destes aos grandes, com melhoramento de muitos peccado-
res. Ouvia-se como hum pregão do Ceo naquella terra, com grande agra-
do espiritual de todo o povo, e do Bispo que então era daíjuella Diecesi,
que pedio lhe deixasse por escrito a forma da doutrina que ensinava, pcra
ir continuando com ella.
90 Chegou finalmente á Bahia o Padre Ignacio de Azevedo em vinte o
quatro de Agosto do presente anno: f(ji tão bem recebido como desejado :
l)arece pronosticavão já os corações de todos a mór ventura a que havia
de subir, de consagrar seu sangue pela Fé de Christo. Trazia patente de
nosso Reverendo Padre Geral (grande affeiçoado seu, pelo tempo em que
o communicára em Portugal) com todos seus poderes pêra que visitasse a
Província, disposesse as cousas de nossa Companhia na forma das Consti
tuições que de novo se tinhão praticado, e voltasse a Roma, se bem lhe
parecesse, a dar [)lenaria informação; porque era esta lá desejada, e linha
fallecido na viagem o Padre Leonardo Nunes, que a levava. Tiazia comsigo
pêra soccorro d'esta seara do Brasil cinco obreiros, a saher: os Padres
Amaro Gonçalves, António da Rocha, e Ballhasar Fernandes, e os Iimãos
Pedro Dias, e Estevão Fernandes, além de outros dous, que trouxera pêra
cá receber na Companhia, Domingos Gonçalves, e António de Andrade; c
(luasi no mesmo tempo chegarão mais dous Padres, Miguel do Rego, e
António de Aranda.
91 O assento da patente, c o teor d"ella, que está lançada nf) livro das
Visitas do Collegio da Bahia, he o seguinte. «Aos vinte e (|uali-o dias do
mcz de Agosto de loGG chegou o Padre ignacio de Azevedo da Coiniianhia
\0L. II 4
50 LIVRO III DA ClIRONICA DA COMPANHIA DE JESU
de Jesu, professo de quatro votos, a este CoUegio da cidade do Salvador
Bahia de Todos os Santos, o qual por mandado, e ordem de nosso Padre
Geral Francisco de Borja, veio a visitar esta Provincia do Brasil: e estando
aqui o Padre Luis da Gram, Provincial, e os mais Padres do CoUegio, e os
que residião nas aldeãs dos índios, que pêra esse eíTeito íorão chamados, fal-
lou a todos e lhes deo razão de sua vinda, e fez ler a Patente que trazia
de nosso Padre Geral, cujo treslado era este : Francíscus de Borjea Societa-
tis Jesu Proepositus Generalis, cltarissimo in Ckristo fratri Domino Ignatio
de Azevedo Professo ejiisdem Societatis, sahilem in eo, qui est vera salus.
Cúm visitationis múnus ad profeetum, et bonam gobernationem nostrw Socie-
tatis per necessarium per nos ipsos oblre in Provincia Brasilim non possimus :
cúmque de tua infegritate, prudentia, et nostri Instituti plena cognitione
multíim in Domino confidamos: te nobis ad prcedictum múnus substituendwn
esse duximus. In prcedicta ergo Provincia te visítalorem cum omnia ea au-
thuritate, quam nos in pressentia habiluri essemus, et alioquin jiixta instru-
ctionem, qunm á nobis habes, tam in ipsum Provincialem^ et Redores (quos,
si videbitur, ofpciis suis Uberare, et alios subslituere possís) quam in alias
quásuis ]ier sonos, Collegia, ac Domos Societatis, constiluimus^ in nomine
Patris, et Filii, et Spirltus sancti: et ejns bonitatem precamur, ut luce sues
sapienti^e te in omnibus dirigere, et gralice sme donis juvare, ut ad ipsius
gloriam, et animarum profeetum transigas, dignetur. Romw 24 Februaril
io66. Franciscus.
92 O estado em que achou esta provincia, era o seguinte. No Gollegio
da Bahia havia trinta Beligiosos, huma Classe de ler, escrever, e doutrina
christãa dos meninos, duas de Latim, huma de Casos. Tinha annexas cin-
co aldeãs, e cada qual d'ellas hum Padre, e hum Irmão. Em Pernambuco
residião dous Religiosos. Na villa dos Ilheos três. Na de Porto seguro dous.
Na do Espirito santo quatro, com Classe de meninos de ler, escrever, e
doutrina, e duas aldeãs. Em S. Vicente doze com duas Classes, huma
de ler, escrever, e doutrina, e outra de Latim. Em Piratininga seis com
algumas aldeãs. Na guerra do Rio de Janeiro dous. Três mezes, depois
de chegado, gastou o Padre Ignacio em visitar o Gollegio da Bahia, e suas
aldeãs, dispondo as cousas com grande zelo, segundo as Constituições,
que trazia approvadas de novo pelo Summo Pontífice. Era n"este tempo Rei-
tor d'este Gollegio o Padre Gregório Serrão; e n'elle estava todo o poder,
e administração atéaquelle tempo: porém o Padre Visitador dislinguio os
DOESTADO DO BRASIL (aNNO DE loGG) t')\
oíTicios na forma das novas Constituições, fazendo Ministro, que cm segun-
do lugar governasse as cousas do Collegio, e Sottoministro Irmão coadju-
tor, que cuidasse das cousas mais meudas da Casa, e zelasse sobre a ob-
servância das Regras, como já estava em uso em outras partes da Compa-
nhia, com mais alivio dos Superiores ordinários, e mais facilidade do governo.
93 Dispostas estas, e semelhantes cousas, deixando o Padi"e Affonso
Pires, Religioso de provada virtude, em lugar do Padre Provincial, pêra
melhor observância das regras novamente introduzides, e pêra que. andan-
do volante pelas aldeãs, as visitasse, consolasse, e confessasse os que n"ellas
vivião; e deixando outrosi ordem, que se acrescentasse o edifício do Col-
legio, e começasse Casa de Noviciado: tratou de embarcar-se a visitar o
resto da Província, e ver-se com o Padre ^Manoel de Nóbrega, de cujo con-
selho tinha grande estima. Estava n'este tempo de partida pêra o Rio de
Janeiro o Governador Mem de Sá com soccorro a concluir as cousas da
guerra, e fundar alh huma cidade por ordem dEl-Rei D. Sebastião, na con-
formidade do parecer de Joseph. ília com elle o Bispo D. Pedro Leilão a
visitara sua Diecesi. Nesta tão boa occasião se embarcou o Padre Ignacio
de Azevedo, e levou comsigo o Padre Provincial Luis da Gram, e os Padres
Joseph de Anchieta de novo ordenado, António Rodrigues, Balthasar Fer-
nandes, e António da Rocha; e derão á vela em Novembro do presente an-
uo de 156G.
94 Em S. Vicente continuavão nossos Religiosos, e geralmente todos
os moradores, com mais quietação, com as pazes dos Tamoyos vizi-
nhos, e com a guerra dos mais aífastados, que os Portugu(.'ses lhes fazião
no Rio. O Padre Nóbrega, como tão empenhado no successo d'ella, desve-
lava-se apertando com Deos, e despedindo soccorros cada passo de canoas,
gente e maulimentos, que agenciava com o povo, e índios.
95 Os successos da guerra do Rio forão vários por todo este anuo, mas
de ordinário venturosos de nossa parle; porque continuava o favor de seu
padroeiro o invicto Martyr S. Sebastião. Desconfiavão já os Tamo3()s do
segredo de suas ciladas; porque até os pássaros, dizião ellcs, nos avisavão
delias: e foi o caso gracioso. Estavão estes bárbaros postos em cilada em
humas ilhas fora da barra, ofide coíitumavão ir a pescar as canoas: alli es-
condidos perseverarão alguns dias, esperando conjunção da chegada das
nossas: eis que no próprio dia em "cjue estas havião de partir, apparece so-
bre o arraial hum pássaro grande, chamado P.nl)ifoiçado,aliavessa(loc(im hu-
ma frecha, voando de huma i)era oulia [jarle. lanarão o;^ índios das canoas, e por
52 LIMIO II! DA CHRONICA DA COMPANHIA DE JESU
este pássaro, como se trouxera recado, soiiberão que nas diltas ilhas esta-
vão seus contrários; porque são aquelies pássaros natnraes d'elias, e de lá
viulia este voando; e collegirão que o frecharão os Tamoyos, que alli devião es-
tar em cilada; e logo do empennar da frecha o virão mais claro: pararão com
as canoas, c soíTrêrão antes a falta de peixe, por evitar as frechas de seus con-
trários.
90 Deixando outros de menos conta, direi o ultimo successo, digno da
memoria dos séculos. Aconteceo melado de Julho d'este corrente anno de
io66, e foi assi. Depois que experimentarão os Tamoyos o como ferião
nossas armas, e que pelejando em tantas occasiões, não lhes hia bem do
partido, determinarão, aconselhados dos Franceses, empenhar por huma vez
o poder. Meterão o resto de sua potencia em cento e oitenta canoas bem
armadas, guiadas pelos mais destros Capitães seus, e da nação Francesa
(cem d'estas capitaneava hum aíTamado bárbaro por nome Guaixará, senhor
de Cabo Frio.) Partio esta grande chusma mui em segredo até certa para-
gem, cousa de huma legoa distante do arraial dos Portugueses, e alli ficou em
escondida cilada no resaco detrás de huma ponta, que fazia o mar. D'aqui des-
pedirão hum pequeno numero d"ellas, industriadas n'esta forma; que fossem
oíTerecer batalha aos Portugueses defronte de seus alojamentos, e que sa-
hindo-lhes (como aquelies que não desprezão desafio algum) fingissem que
vinhão retirando-se, e os trouxessem pouco e pouco, até metêl-os na cila-
da, donde sahiria o resto das canoas, e matarião aquella parte de seus ini-
migos, que sempre serião os mais lustrosos, e esforçados; os quaes dimi-
nuídos, acommelerião o arraial com menos resistência.
97 Tinha partido de nosso arraial huma canoa, em que hia hum Fran-
cisco Velho, mordomo do Martyr S. Sebastião seu padroeiro, em busca de ma-
deira pêra huma Capella do Santo. Esta foi a primeira que encontrou as poucas
canoas, que a modo de negaça vinhão ao intento já ditto: poserão-na em
cerco, brigavão com ella com detença manhosa. Era á vista do arraial, en-
trou em zelo o Capitão mor, prelendeo soccorrel-a, e buscando canoas,
achou somente quatro (porque as demais, ou erão á pesca, ou se tinhão
acolhido enfadadas da guerra, especialmente as de dous lAIamalucos valen-
tes. Domingos Luis, e Domingos de Braga, que pouco antes tinhão partido pê-
ra S. Vicente.) N"estas quatro se embarcou o melhor dos Capitães da guerra,
e foi acommeter o inimigo: porém elle, que eslava bem industriado, aos
primeiros lanços do combate virou as costas, e deo a fugir: seguirão os
nossos o alcance com seu costumado valor; i)orém quando cuidavão que
DO ESTADO DO BRASIL (aNNO DE IÍJ60) f)3
levavão de vencida estas poucas, descobrirão a ponta, e d'ella virão que
saliia, rompendo os mares, o restante da maquina de canoas que faltavão
pêra cento e oitenta, ligeiras como vento, a vinte c trinta por banda, igual-
mente remeiros, e frecheiros, açoutando as agoas, atroando os ares, en-
chendo as nuvens de frechas, e como celebrando já a victoria, que davão
por ganhada. E na verdade assi fora sem duvida, se o Ceo com maravilha
clara, e o invicto padroeiro S. Sebastião, não acudirão com favor seu pro-
digioso; porque hindo resistindo-lhes os nossos valerosamente, appellidando
o Santo padroeiro, de improviso ao disparar de huma roqueira na fúria
maior da peleja, tomou fogo a pólvora da canoa, e levantou hum incêndio
grande, a cuja vista, como de portento insólito, levantou juntamente hum
grande alarido a mulher do Principal da canoa contraria, que seguia os
nossos (e estes costumão embarcar comsigo em semelhantes actos) dizendo
a vozes, que havia hum incêndio mortal, que havia de consumir aos seus,
que fugissem, fugissem á pressa. E foi bastante o espanto d"esta só índia
pêra meter tal terror em toda a chusma, que não só aquellas, mas todas
as outras canoas fizerão volta, e se pozerão em fugida desordenada, quaes
se viera sobre elles o fogo de hum monte Ethna. Ficarão desassombrados
os nossos, e então começarão a contar de espaço, o com mais advertência
o numero extraordinário de embarcações, com quem o havião, e não acaba-
vão de crer o perigo de que Deos os livrara por meio de seu Santo padroeiro.
98 Em desembarcando cm terra forão á Igreja, e fizerão acção de gra-
ças por tão evidente favor, que atlribuião commummcnte ao invicto Martyr
Padroeiro: e d'aqui ficou introduzida n"esta cidade a festa das Canoas, que
até o tempo presente costuma celebrar-se todos os anãos em dia do I\Iar-
tyr S. Sebastião. Aqui souberão mais em forma as circunstancias todas do
c^so; porque os Tamoyos todos na mesma conformidade perguntavão de-
pois aos nossos com grande espanto, quem era aquelle soldado giMitiliio-
raem, que andava armado no tempo do confiicto, e saltava iiitrepiílo em
nossas canoas? «Porque a vista deste (dizião) nos meleo terror. E foi a cau-
sa de fugirmos, igualmente á do incêndio. Foi tido o caso por milagroso.
Eu n'isto não determino nada; acho porém (|ue fazem Ibrça as palavias de
Joseph, que escrevendo delle diz assi. «A mão de Deos andou alli, e mos-
trou n'esta occasião sua misericórdia, e providencia: foi medo que Deos
nosso Senhor pôz aos índios ;i vista d*a(iiiell(^ incêndio; e particular favoí-
do glorioso Martyr S. Sebastião, que alli foi visto dos Tamoyos, que per-
guntavão depois, quem era hum soldado que andava armado, muito geu-
54 i.ivno ni da chronica da companhia de jesu
lilhomnm, saltando dfí ranoa em canoa, o osespantára,e fizera fugir?» Mui-
to faz em favor (Ycsio caso o ditto de tão parando varão.
99 Estando n'estes termos as cousas da guerra, entrou o anno de 15G7,
e com elle a armada do Governador Mem de Sá, que da Bahia tinha par-
tido em Novembro/' passado, no Rio de Janeiro. Foi a alegria geral dos sol-
dados, que tinhão' passado espaço do dous annos tão grandes perigos, c
trabalhos, conlo se deixa ver de guerra tão continua, e sitio tão incommo-
do, e falto de sustento humano. E nós, supposlo este encontro, escusare-
mos subir este anno á Bahia, como costumávamos: porque n"esta armada
vem o bom dos Religiosos d'aquelle Collegio; nem d'elle temos por hora
mais que as noticias do fruto ordinário.
100 Constava a armada de bom numero de navios, supposto que se não
diz o certo. Trazia soldados de valor, e entrou a barra aos dezoito de Ja-
neiro na antevespora do Martyr S. Sebastião (e já começa o favor do Santo
Padroeiro, e o bom pronostico de futuros successos;) o que não advirto sem
causa: porque entrando da barra pêra dentro, considerando Mem de Sá, e
seus adjuntos, a boa estreia da conjuncção do tempo, resolverão que no
próprio dia do Santo acommetessem sem mais demora as principaes forti-
ficações do inimigo (que vinhão a ser duas aldeãs de môr conta, abasteci-
das de gente, fossos, cavas, e artilharia, que parecião inexpugnáveis;) por
que era de crer, que quem lhes dava a boa fortuna do tempo, lhes daria
também a do sueccsso prospero. Saltarão em terra, proposerão-se outra
vez as razões, presente o Capitão mór Estacio de Sá, e os que tinhão voto
nas armas: e ajustando-as com as circunstancias presentes, parecerão boas,
e que o repente do assalto causaria maior terror no inimigo incerto do
poder, que não depois de certificado; e nos soldados vindos de novo seria
mais firme o esforço, antes de chegar a considerar o poder contrario. Lan-
çou o Bispo sua benção, encommendárão os Religiosos o negocio a Deos,
concordarão todos em hum voto feito, ao Padroeiro sagrado, e ficou firme
a resolução, porém em secreto.
101 Descansarão o dia da vespora do Santo (se descansar permitem
grandes cuidados) e ao romper da manhãa do seguinte dia estavão dispos-
tos a rompimento dous batalhões, tirados da flor da Infantaria da armada,
e arraial, a cargo do Capitão mór Estacio de Sá: e feita primeiro breve
falia com o nome do Santo Padroeiro na boca, acommetêrão igualmente a
ferro e fogo a fortificação principal: era esta a de Uraçúmiri, mais diíBcul-
:}osa por sitio, e presidio maior de Tamoyos, e soldados Franceses: e de-
DO ESTADO DO BRASIL (ANNO DE loG7) 55
pois de vários successos, encontros, e recontros (porque estava pertinaz, e
mui forte) fui entrada, c vencida, com estrago lastimoso, por que dos Ta-
moyos não ficou hum com vida. Dos Franceses morrerão dous no conílicto, e
cinco que houverão ás mãos os Portugueses, forão pendurados em hum
páo, pêra escarmenta de outros: á vista de tão triste espectáculo, ficarão
tremendo as demais aldeãs.
102 Morrerão dos nossos onze, ou doze; entre os quaes o de mais
conta foi hum Gaspar Barbosa, Capitão de mar e guerra, e juntamente da
jurisdição de Porto seguro, homem de grandes partes, de muito esforço, e
virtude, grande devoto da Companhia, cuja perfeição pretendia imitar: fi-
zera voto de não virar jamais as costas em guerra contra hereges, ou gen-
tios, mas aceitar antes as feridas a peito descoberto pela Fé de Christo :
no mesmo dia em que morreo^ recebera da mão de hum nosso o Corpo
consagrado de Christo. Porém o que meteo em intimo sentimento a todos
os soldados foi, que sahio da briga mal ferido o Capitão mór Estacio de
Sá, do qual, como não morreo na empreza, diremos depois de alcançada a
segunda victoria, por não misturar tristezas com alegrias.
103 Concluído com Uruçúmiri, acommeteo a nossa soldadesca o Prin-
cipal da segunda aldeã, por nome Paranápucuy: porém como estava esta
em ilha rasa, chamada do Gato, foi necessário conduzir artilharia, e bater-
Ihe as cercas, que erão dobradas, e fortíssimas: mas em breve tempo fo-
rão postas por terra com todas suas casas, e mortos quantidade dos bár-
baros. Fizerão muitos delles corpo em huma casa forte entrincheirada, e
valada: porém forão postos em cerco, e apertados de maneira, que se en-
tregarão a partido da vida, mas não da Uberdade. Morreo dos nossos hum
só Portuguez, e alguns dos índios. Á vista d"estas duas victorias, ficarão
os Tamoyos desenganados do nosso poder, e desconfiados do dos France-
ses, que os ajudavão: fugirão huns até parar no mais escondido de suas
brenhas; outros pedirão pazes, que forão concedidas, e constrangidos elles
a guardal-as por medo.
lO^t Fizerão os Portugueses acção de graças publicas ao invicto Miu^tyr
S. Sebastião seu Padroeiro, e tão em[)cnha(lo em seus favores. Tomarão
posse d"aquellas fermosas enseadas, moradas que forão de inimigo tão can-
sado, e pertinaz. Arrasarão as forças contrarias, e começarão a traçar fui*-
tificações poderosas de pedra e cal, com que por luima vez segurassem a
terra, e podessem edificar a cidade tão desejada.
iOo Porém no meio d'esles nossos applausos, cm quanto cavamos ali-
SO U^.-RO III DA CIIROMCA DA COMPANHIA DE JRSU
corsos, e se levanlão primeiras pedras, columnas de nossos vencimentos,
seguindo a varia condição da fortuna, e a lição da sagrada Escrittura, quan-
do diz: Extrema gaudij luctus occvpat; lie bem os celebremos juntamente
com lagrimas, cavando sepulturas, e entregando á terra o corpo do esfor-
çado, e magnânimo Capitão mór Estado de Sá; o qual, depois de passado
hum mez do primeiro conflicto, passou a meliior vida, da ferida mortal de
liuma frechada, que rccebeo no rosto no mesmo tempo em que alcançava
huma victoria de tanta importância, e em que houvera de começar a gozar
do fruto de seus grandes trabalhos. Deve o Rio de Janeiro a este Capitão eter-
nas saudades, por cujo sangue goza a liberdade em que hoje se vê. Foi varão
merecedor da nobreza de seus antepassados, lustre de sua descendência,
e exemplar de conquistadores valorosos. Sobrinho foi do Governador Mem
de Sá, mas foi herdeiro de seu valor, e christandade, sofredor de todos os
trabalhos; e na pureza, inteireza de vida, e de seu oíTicio, exactíssimo.
De quem refere o Padre Joseph de Anchieta, que sendo depois traslada-
dos seus ossos, experimentara hum servo de Deos de nossa Companhia
(atrevo-me a cuidar por conjecturas, que foi o mesmo Padre Joseph) que
sabia d"elles hum cheiro suave, como sinal de que goza sua alma da feli-
cidade da Gloria. Fizerão-lhe exéquias tristes militares, com pranto, e sen-
timento de todos: e tiverão os Padres oração fúnebre sobre suas virtudes.
E pêra mim o mais importante louvor, he o que dá d"este Capitão o Padre
Joseph de Anchieta, como aquelle que tanto o conhecia: e diz assi de sua
própria mão, e letra. «N'esta conquista, que durou alguns annos, andavão
os homens como religiosos, confiados em Deos, e na presença do Capitão
mór Estacio de Sá: o qual, além de seu grande esforço, e prudência, era
a todos exemplo de virtude, e religião christãa: e bem mostrou o Padre
Nóbrega, que foi regido n'esta matéria pelo divino Espirito, pelas muitas
e insignes victorias, que por misericórdia sua houverão tão poucos Portu-
gueses de tanta multidão de Tamoyos ferocíssimos, costumados por tantos
annos a ser vencedores ; e dos Franceses Lutheranos, que comsigo trazião,
etc.» São palavras do venerável Padre. E faltando da morte em particular
diz, que falleceo com grandes sinaes de virtude, que em toda aquella con-
quista tinha mostrado. Foi substituído no lugar deste Capitão Salvador Cor-
iTa de Sá, consobrinho seu, e sobrinho do mesmo Governador Mem de Sá,
que proseguio a empreza como logo veremos, c propagou a mui nobre fa-
mília dos Sás nesta Capitania; a qual por successão continua, qual se fora
DO ESTADO DO BRASIL (aNNO DE lt)G7) 57
herança, povoou, edificou, e dcfcndoo o que liuma vez conquistou por ar-
mas, sendo sempre terror do inimigo.
lOG N'cste lugar he tempo agora, quando já nos vemos senhores de
seus districtos, que demos noticia, ainda que breve, do sitio d'elles.
Entre o promontório, a que hoje chamamos Cal)o Frio, e aquella paragem
da terra, que correspondo ao Trópico Austral, a que chamamos da Ilha
Grande, corre hum pedaço da America, dos mais notáveis que fabricou
a natureza: porque no meio d'estes dous extremos, altura de vinte e três
gráos, e vinte e três e meio, parece tomou á sua conta a mesma natureza
industriosa, sahir com hum tal sitio, que igualmente fosse inexpugnável a
inimigos, seguro a amigos, e proveitoso a todos os viventes. Consta este
de huma bahia, e de hum recôncavo grandioso, na forma que logo diremos,
e tem por nome Rio de Janeiro. Foi este sitio sempre formidoloso a todo o
inimigo marítimo: porque na verdade he temerosa, e horrível aquella mu-
ralha natural, que vai cercando toda esta paragem junto ao mar, das mais
estranlias penedias, que jamais se virão. Assombro he das armadas mais for-
tes, quando chegando de mar em fora a ter vista da terra, em vez de praias
que alegrem, começão a ver apparencias disformes de rochedos tão altos,
que sobem ás nuvens, e espantão os homens. Segundo as figuras que fa-
zem, assi lhes põem os nomes, o Frade, a Gavia, a Cella, e outros seme-
lhantes. Quando já vem chegando á barra, se vêem levantados de hum, c
outro lado, quaes dous gigantes fortes, dous monstruosos corpos de solido
penedo, a que chamão Pães de assucar, que dando com as cabeças em as
nuvens, lavão os pés nas agoas. Vomita cada qual d"elles, quasi de suas
próprias entranhas, fogo, e pelouro, quando entrão em cólera, de duas for-
talezas reaes. Não ha capitania inimiga que ouse cmbocar; porque a barra
he de novecentas braças somente: o encostar a hum ou a outro penedo,
he naufragar: e o tomar o canal pelo meio, he esperar a fúria do canlião á
mão tente de huma c outra parle das forças: E quando fosse possível a en-
trada, não he possível a sabida; porque de força ha de voltar ao som da
maré, e obedecer aos pés de hum d'estes penedos, experimentando seus
perigosos tiros.
107 Pelo terreno vai rodeando toda a bahia, c recôncavo do Bio de
Janeiro, aquella espantosa seirania, que já por vezes temos ditto corre a
cosia toda: e com a parte d'ella mais áspera, chamada a montanha dos Ór-
gãos (porque á maneira d'aquclles instrumentos vão levajjíando em ordem
desigual montes sobre montes, fazendo a altura immensa, que excede as
58 LIVRO III DA CimONICA DA COMPANHIA DE JESU
nuvens, c chega parece á segunda região do ar) represenlãoaquelles gran-
des montes murallias, ou torres formidáveis, postas entre nós, e os bárba-
ros que habilão a outra parte: porque alli fulmina a natureza em tempos
tormentosos taes raios, coriscos, e estrondos disformes de trovões, que
assombrão a terra. Chegarão a suspeitar as nações agrestes, que estavão
armados de propósito pêra defensa dos homens Portugueses. São comtudo
alegres em tempos de bonança aquelles picos inaccessiveis, por sua forma,
altura, e fermosura, revestidos de verde arvoredo, e arrebentando em ribei-
ras de agoa, que despenhadas dos altos cumes, vem a pagar tributo ao
mar, e alegrão os olhos dos moradores.
108 He o alagamar da barra pêra dentro huraa estendida e fermosa bahia,
emula da de Todos os Santos, formada das enchentes do Oceano, que em-
bocando pela barra dentro, chegão quasi a lavar os pés d'aquelles montes
a que chamamos Órgãos. Tem este alagamar, ou bahia, como oito legoas
de diâmetro, e vinte e quatro de circunferência. Está entreçachada de ilhas,
boqueirões, e esteiros: estes ornados da verdura dos mangues, e vermelho
dos pássaros a que chamão goarazes, fazem a vista aprazível. As ilhas fa-
zem numero de quarenta entre maiores e menores, com grossas fazendas
de moradores. Desembocão n"ella vários e caudalosos rios, huns do sertão,
outros das serras circunvizinhas, que com o doce de suas agoas fazem
guerra continua ás do mar, querendo prevalecer cada qual d'ellas. He abun-
lissima de pescado, em tanta demasia, que houve tempo em que era ne-
cessário navegar com cautela em embarcações rasas, pêra evitar o perigo
dos peixes, que saltando de huma e oatra parte, cahião dentro: e succedia
ser talvez com dispêndio dos olhos e rosto dos que navegavão. He facilis-
simo o meneio e serviço dos arredores, que cortão estas agoas de dia e de
noite, fazendo alegre a vista, e suave o conmiercio. Todo o circuito d"esta ba-
hia está hoje povoado de moradores de fazendas grossas, entre as quaes avultão
mais as dos engenhos de assucar, que passão de cem quando isto escrevo,
supposto que não tão grandes maquinas comovas da Bahia de Todos os Santos.
109 Depois dos successos referidos, a que forão presentes, par tio o
Pí^lre Visitador Ignacio de Azevedo, e o Padre Provincial Luis da Gram,
3oseph de Anchieta, e os mais companheiros, com o Bispo D. Pedro Lei-
tão pêra S. Vicente. Aqui foi notável a alegria com que estes santos com-
panheiros se avistarão com o Padre Nóbrega ; porque o Bispo era seu
conhecido de Coimbra, e sabia de sua virtude, e prudência, e vinha
desejoso de communical-o, e ajudar-se de seu conselho: da mesma
DO ESTADO DO BRASIL (ANNO DE 4567) 59
maneira o Padre Visitador, Provincial; e Joseph de Anchieta, amigos Ínti-
mos seus cm o Senhor. Acharão o santo velho consumido de trabalhos, e
mortificaçijes, occasionadas parte do tempo, e parte que elle mesmo to-
mava por occasiões d'elle. Tratarão os Padres, Visitador, Provincial, e Nó-
brega, acerca do estado das cousas, e as que erão da Religião procurarão
ajustar na melhor ordem de perfeição, segundo as constituições de novo
approvadas, que já deixara introduzidas na Bahia; e entre as primeiras de-
terminarão, que se fundasse hum Collegio no Rio de Janeiro, na forma quo
o Sereníssimo Dom Sebastião desejava, com dotação de até cincoenta su-
jeitos. Virão as cousas do culto divino d'aquelle Collegio, a observância dos
Rehgiosos, o meneio da casa, e exemplo d'ella, o seminário, e escola da
doutrina christãa dos meninos, a classe de latim, e o modo de ajudar aos
próximos, interior, e exterior, acharão pouco que reformar : e era grande
a consolação de Ignacio, de que em tão breve tempo obrasse n'estas par-
les a Companhia tanto. Partio a visitar a Casa de Piratininga, e folgou mui-
to de ver o que os Padres alli tinhão feito, e padecido. Abrazava-se este
grande servo do Senhor, quando via, e ouvia a multidão de gentilidade
d"aquellas campinas, e mattas: e pelo fruto dos que já estavão domésticos,
debaixo do ensino dos Padres, tirava o que podia fazer-se com todos, se
houvesse bastante numero de obreiros; e já d"aUi hia acendendo em seu
peito desejo de ir por essa Europa toda, bradando, e congregando tra-
balhadores pêra tão estendida seara. Perguntava, e especulava o modo da
conversão dos índios, de sua natureza, costumes, doutrina, sujeição, e
aproveitamento: estas erão suas maiores praticas, e seus maiores pensa-
mentos. Com elles gastava o tempo, prégando-lhes por interprete, animan-
do-os, favorecendo-os: e erão estes seus principaes empenhos. Parecia que
queria metel-os dentro do coração; e mostral-o-ha mais algum dia, quando
chegue a dar a mesma vida por causa d'elles. Ordenadas, e dispostas as
cousas da casa, e aldeãs de hidios, voltou a S. Vicente ; e não se fartava
por aquelle caminho de dar gi-aças ao Autor da natureza, quando levanta-
va os olhos á compostura daquella penedia, daquelles bosques, e d"aquel-
las brenhas, por huma parte de tanta aspereza, e por outra de tanta va-
riedade de vistas; i)orque erão aquellas serras admiráveis, de que já lemos
ditto, e achava que excedião a própria fama, e lhe arrebatavão o espírito-
De S. Vicente resolveo partir-se i)era o Rio, e levar comsigo o Padre Nó-
brega, pêra cabeça do Collegrio, que alli determinava fundar, e pêra que
GO LIVRO III DA CIinONICA DA COMPANHIA DE JESU
gozasse alli do fnilo dos trabalhos, desvelos, c alílirões, com que procu-
rara, e ajudara a liberdade daquella terra.
110 Porém antes que parta, refiramos primeiro alguma* revelações de
cousas occultas, que Deos aqui cominunicou a seu servo Joseph. Fizera el-
le huma sabida fora do CoUegio, em companhia de seu amigo Nóbrega; e
succedeo aposcntarem-se huma noite em certa casa, onde tamljem se aga-
salhava hum certo Aires Fernandes secular, morador já do Rio de Janeiro:
quando a deshoras da noite, ouvio o secular, que fallava Joseph com Nó-
brega, e lhe dizia as palavras seguintes: «Padre meu, demos graças a Deos,
que. alcançarão os nossos agora huma victoria dos inimigos.» Notou Aires
Fernandes a pratica, e depois foi testemunha d"ella, além do Padre Nóbre-
ga. Não padece duvida que revelou Deos aqui a Joseph a victoria: a duvi-
da he que victoria fosse? Não achamos clareza; porque aquella maravilhosa
das cento e oitenta canoas da cilada dos Tamoyos, no Rio, succedeo estan-
do Joseph na Baliia, Irmão ainda ; e a revelação foi feita em S. Vicente,
depois de Sacerdote. Nem também foi a insigne victoria, que alii alcançou
o Governador, onde morreo Estacio de Sá seu sobrinho; porque a esta foi
presente Joseph, e os mais Padres, que tinhão vindo da Bahia, logo em
chegando: somos logo forçados a dizer, que foi de algum outro encontro
considerável, que succedeo no Rio, ou Cabo Frio, estando ausente : qual
este fosse, he incerto, e devia ser importante, pois o Ceo se empenhou em
communicar-lhe o successo d"elle.
111 Mais espantoso foi o caso seguinte. Na villa de S. Vicente, estan-
do huma índia Christãa, e casada, fazendo com outra irmãa sua, das mes-
mas qualidades, certa obra de cera (officio em que ganhava sua vida) fez
entre outras, duas velas da mesma cera pêra si, e sendo perguntada da
irmãa pêra que as fazia? Respondeo: «Faço-as pêra dar ao Padre Joseph,
pêra que diga huma missa por mim quando eu for santa : » queria dizer
martyr; e com effeilo levou as velas ao Padre, e lhe communicou o seu
intento. O que mais passarão, ou que coniiccimento tivesse d'esta resolu-
ção, não n os consta: constou porém, que dando assalto em S. Vicente os
Tamoyos do Cabo Frio, que estavão rebeldes, entre outras presas que fi-
zerão, levarão esta índia, a qual pretendeo o Capitão da empresa violar;
rcsistio valerosamente, dizendo em hngoa brasihca: «Eu sou christãa, e
casada; não hei de fiizer treição a Deos, e a meu marido: bem podes ma-
tar-me, e fazer de mim o que quizeres.» Deo-se por aífrontado o bárbaro,
em vingança Hie acabou a vida com grande' crueldade, fazendo-a santa.
DO ESTADO DO BRASIL (aNNO DE 4Í)G7) '61
OU martyr como ella dissera. Estava Joseph cm S. Vicente, distante d"aqiTcl-
Ic Ingar triiita legoas, e com tudo n'aquelle mesmo dia, illustrado do Ceo,
accendeo as duas velas que cila lhe dera, e com ellas disse missa de mar-
tyr, com as orações, e lições, que costuma dizer a Igreja, c com o nome
da mesma índia nos lugares, onde o ordena o Ceremonial, na missa de
huma Sanla marlyr. E perguntado por seu Superior Nóbrega, que santa
era aquella, por quem dissera missa; respondeo: «Por fulana (nomeando a
índia, bem conhecida em S. Vicente) que este mesmo dia foi morta a mãos
de hum Tamoyo bárbaro, por guarda liei da Lei de Deos, e da honesti-
dade, e subio logo ao Ceo.» E veio depois noticia pubUca do caso todo,
como o dissera, com todas suas circunstancias.
M2 He semelhante a este outro caso, quando dizendo missa de iium
defunto particular em dia de S. João Evangelista, huma das oitavavas do
Nascimento do Senhor, lhe perguntou o mesmo Nóbrega seu Superior,
porque causa cm dia festival dizia missa triste de defunto, fora das cere-
monias do missal? Respondeo assi: «Porque esta noite passada morreo no
Collegio da Companhia de Nossa Senhora de Loreto, hum Sacerdoíe cor.-
discipulo meu antiguo em Coimbra, e quiz ajudar aquella alma com esta
missa.» Perguntou mais o Padre Nóbrega pela estado d'aquella alma? Res-
pondeo: «Que depois do Offertorio, quando chegou ás palavras: Omnis ho-
nor, et gloria, entrara no Cq-o.-» Quem não se espantará da facilidade das
prophecias d'este servo de Deos, e da candura, e serenidade com que as
confessava, a seu Superior? ou porque a isso o constrangia o grande res-
peito da obediência: ou porque assi o obrigava o mesmo Espirito divino
})era doutrina nossa.
113 Partio o Padre Ignacio de Azevedo de S. Vicente no mez de Ju-
lho do presente auno de lo(J7, em companhia do mesmo Ris[)o D. Pedro
Leitão, e dos Padres Provincial, Nóbrega, e Joseph de Anchieta : e nesta
viagem aconteceo a estes conipanheii'os hum caso milagroso da protecção
da mão divina. Foi ancorar a embarcação defronte do porto a (]ue chama-
mos com nome corrupto Biilióga, i)or falta de ventos: eravespora do Apos-
tolo San-Tiago; qiiizerão os Padres ir dizer missa a terra, meterão-se em
o batel o Padre Ignacio, Oram, Nóbrega, e Joseph, com outros passagei-
ros: ex que chegando ao meio do caminho, levan(a-se huma grande balea
(se não dissermos serpente infernal) assanliada, ao que pareceo, de algu-
mas frechadas que Ihelirárão do navio; ou dolorida de algum íillio, íjue per-
dera: como quei' (jue fosse, ella le^antando a cabeça inedoiilia, e parle do
62 LVf^O III DA CHRONICA DA COMPANHIA DE JESU
corpo sobre a agoa, foi seguindo após o batel, liorrenda, e temerosa, le-
vando diante de si montes de agoa, e batendo as azas com tão disformes
gestos, que todos se derão por perdidos : e cora mais evidencia quando
chegando já ao batel, meteo a cabeça debaixo, e juntamente levantou a
cauda sobre elle, como pêra descarregar a pancada. Aqui se prostrarão to-
dos de joelhos, e com as mãos ao Geo levantadas, em termos • de morrer,
alagado já o batel com agoa, pedião a Deos misericórdia; e junto com elles
o Bispo e os mais do navio, que os estavão vendo. Não permiltio porém o Ceo
que acabassem desastradamente tão grandes e importantes servos seus; por-
que aquelle monstro marinho, como mandado de algum poder occulto, ou qual
se obedecera ás mãos levantadas ao Ceo, parou com o golpe da cauda, e se
foi escoando por proa, deixando o batel fora de afflições, posto que quasi
alagado.
H4 Este successo teve o Padre Joseph por milagre, com que Deos
amansou aquelle monstro, pêra que não descarregasse a pancada, e diz
assi: «Abalroou a balea o batel, e passando por debaixo d"elle levantou a
cauda sobre a popa, onde hião os Padres, como pêra dar a pancada; mas
amansou-a Deos nosso Senhor de maneira, que a tornou a pôr na agoa
quietamente.» São palavras suas. E attribuindo-se commummente o mila-
gre á intercessão de Joseph, o humilde servo o attiibue ao Padre Ignacio,
e mais companheiros, dizendo assi: «Estava o Bispo, e os mais do navio
a Ia mira, esperando o successo com grande temor; mas confiados que não
perigarião, por ir alli o Padre Ignacio com seus companheiros.» Todos os
quatro erão homens santos ; a cada qual d'elles se pode attribuir o favor
do Ceo: Joseph o attribue a todos, e todos o attribuem a Joseph. O Pa-
dre Joseph suspeitou que o monstro marinho viera assanhado das frechas
de alguns dos navios : outros tiverão pêra si que vinha embravecido por
perda do filho, que cuidando ser o batel, se fora a elle, metendo-se de-
baixo, como costumão, ao filho, dando-lhe as costas pêra leval-o, ou dar-lhe
de mamar: outros julgarão que era o macho, e buscava a consorte: qual-
quer das cousas podia ser a occasião natural; porém o espirito que insti-
gou o monstro (ao que se mostra) foi outro, tirado das palavras de Joseph,
e podemos cuidar que pretendia o Dragão infernal revestido no monstro
assanhado, tirar do mundo, e Igreja de Deos o mais florido da Companhia
do Brasil. Tomarão os Padres pêra o navio, e ao seguinte dia do bem-
aventurado Apostolo San-Tiago cantarão missa solemne em acção de gra-
ças, e derão á vella.
DO ESTADO DO RRASIL (anNO DE 1567) 03
115 Chegarão ao Rio, e acharão o Governador Mem de Sá occupado
na edificação da nova cidade, em lu^^ar distante do arraial huma lejíoa.
Esta mandou fortificar com algumas Forças, e a Ijarra com duas de huma
e outra parte, fechando a porta a inimigos. No coração da cidade deo si-
tio, onde os Padres escolherão, pêra fundação de hum Collegio; e logo em
nome de S. A. o Sereníssimo Rei D. Sebastião de saudosa memoria, Prín-
cipe liberal, lhe applicou dote de renda necessária pêra sustento de até
cincoenta Religiosos; que aceitou, e agradeceo em nome de toda a Com-
panhia, o Padre Visitador Ignacio de Azevedo. A escrittura authentica do
ditto dote se passou depois em Lisboa, firmada pela míío Real em G de
Fevereiro do seguinte anno de I0G8, e diz assi: «Por quanto nos consta
do fruto, e proveito, que a Republica Christãa recebe do Collegio da Ba-
hia, e que os Padres da Companhia de Jesu trabalhão, com a divina graça,
não só por afugentar as trevas da infidelidade com a luz evangélica, mas
também por promover os Christãos com doutrina, e exemplo : e porque
considerando nós o instituto d'esta Religião, e seu modo de viver, espera-
mos que estes frutos da divina gloria, e Repulilica Christãa, crescerão ca-
da dia mais, crescendo o numero dos ditos Religiosos, e edificando-se mais
Collegios, como sabemos que tinha intenção de fazer El-Rci meu avô e se-
nhor, que Deos haja: Havemos por bem, que se faça outro Collegio na Ca-
pitania de S.Vicente pêra cincoenta Religiosos da ditta Companhia, osquaes
n'esta Capitania, e nas outras vizinhas a ella, aonde os Religiosos do Col-
legio da Bahia, não podem abranger, se occupem em ensinar a doutrina
christãa aos fieis, e em converter os infiéis á nossa santa Fé, pêra que as-
si ajudando-se huns aos outros, espalhem o som da pregação Evangélica
por todos os termos de nossa jurisdicção no Brasil. E a cada hum dos dit-
tos Religiosos se dará tanto de minhas rendas pêra seu mantimento, e ves-
tido, quanto se dá a cada hum dos que no Collegio da Bahia vivem. Dada
em Lisboa em O de Fevereiro de I0G8.
HG Aquelle herege João Boles, de quem dissemos no anno de 1559,
que fora fugido do Rio a S. Vicente, e dera alli em que entender ao Pa-
dre Gram, em atalhar seus falsos dogmas: agora dá que fazer aqui ao Pa-
dre Joseph: porque depois de ser mandado preso á Bahia, foi trazido (não
se diz a causa ponjue) a este Rio de Janeiro, porventura pêra que fosse
castigado no lugar onde íx)meçára a fazer suas heregias, ou porque alli te-
j'ia commetido oiitio algum delito grave: como quer (jii<; seja: o Gover.
nador iMum de Sá mandou (jue fosse justiçado a mãos de hum algoz, o
64 LIMIO III DA CHRONÍCA DA COMPANHIA DE JESU
a olhos dos mesmos inimigos (que ainda restavão.) Pêra ajudal-o em tão
duro transe, íoi chamado o Padre Joseph de Ancliiela : achou o herege
pertinaz em seus errados fundamentos, pedio que se detivesse mais lem-
po a execução da justiça, e entre aquellas tregoas da vida fallou o no-
vo Sacerdote ao reo com tão grande espirito, e cflicacia de razões, que
converteo seu empedernido coração, e veio a reconcihar com a santa
Igreja aquella ovelha perdida, e quasi tragada do lobo infernal, com
applauso do Ceo, e dos homens. Porém aconteceo aqui hum caso digno
de ser sabido: porque o algoz, cjuando foi ã execução do castigo, como
era pouco destro no officio, detinha o penitente no tormento demasia-
damente, com agonia e impaciência conhecida. Joseph, que via este er-
ro tão grande, e receava que por impaciência se perdesse a alma de hum
homem, por natural colérico, e tão pouco havia convertido; entrou em
zelo, reprehendeo o algoz, e instruio-o de como havia de fazer seu
officio, com a brevidade desejada: acto de fina caridade. Sabia muito bem
Joseph a pena das leis ecclesiasticas, que suspendem seu ofificio a todo
aquelle que sendo sacerdote acelera a execução da morte, era qualquer
occasião que seja, inda que pia : porém preponderava com elle mais a ca-
ridade que devia ao próximo; e respondeo aos que lhe perguntarão a cau-
sa de tal resolução, d"esta maneira. «Porque o damno de minha suspensão
não he ofíensa de Deos, e tem remédio com a absolvição da Igreja: porém
o damno d"aquella alma, se alli se perdera por impaciência, era peccami-
noso, e não podia remediar-se : e pela salvação de huma alma vivera eu
suspenso toda a minha vida.» Oh resolução da engenhosa caridade! O Gover-
nador Mem de Sá depois d'este castigo partio pêra a Bahia, contente dos
successos que Deos lhe dera, deixando com o governo d"aquellas partes a
seu sobrinho Salvador Corrêa de Sá.
H7 Intitulou-se a cidade do Rio de Janeiro, cidade de S. Sebastião,
assi do nome de seu Rei, como do Santo seu defensor, de que havia re-
cebido tão grandes favores, e esperava outros. O Padre Visitador, depois
de postas em ordem as cousas importantes, deixando por cabeça, e Supe-
rior, assi do CoUegio do Rio, como das Casas de Sam Vicente, Santos,
Piratininga, e Espirito santo, com todas as aldeãs annexas, ao Padre Nó-
brega, pêra que todas fossem iníluidas do vigor, e espirito de tão grande
varão, com. o Padre Joseph, compahheiro antiguo de seus trabalhos; em-
barcou-se pêra a Baliia: indo visitando de caminlio as Capitanias do Espi-
rito santo. Porto seguro, e Ilheos, cujos Religiosos por todas aquellas es-
DO ESTADO DO DilASIL (a.NNO DE I0O8) O-")
íanciná consolava, animava, e S3 compadecia dos trabalhos qiiL! alli padcóião
com entranhas de pai.
118 No Espirito santo deo o grão de Coadjutor formado ao Padre An-
lonio da Rocha. N"esta, c em todas as Capitanias, visitou com grande cui-
(iado as aldeãs dos Índios, deixando n^ellas varias instrucçijes acerca de
sua conversão, e doutrina. Ai)provou, e reformou os Seminários da boa
criação dos meninos. Acerca dos bautismos dos índios, deixou as adver-
tências seguintes. Os innocentes, assi das aldeãs onde os nossos residem,
como das que visitão frequentemente, se podem bautizar: porém os filhos
dos que vivem pelo sertão em partes onde não são visitados, não se bau-
tizem, porque se ficão dei)0is entre seus pais, sem quem lhes ensine as
cousas de Deos: salvo quando estiverem pêra morrer, ou vierem vi^^er en-
tre nós. Os adultos das aldeãs onde os nossos residem, procurem orde-
nar-lhes que casem ao tempo que os bautizão, tendo idade pêra isso: po-
rém quando isto não poder ser, não lhes deixem de dar o bautismo, sendo
aliás idóneos. Nas aldeãs onde não residem os nossos, ainda que as visi-
tem, não parece que devem bautizar os grandes, senão quando os casa-
rem, não sendo velhos, ou doentes, ou tão pequenos, que se não presuma
que são já ruins, nem se irão pêra os gentios. Assi mesmo os que vem do
sertão, não devem ser bautizados, senão depois que estiverem fixos entre
os Chiistãos, e huns e outros se instruirão muito bem nas cousas da Fé,
antes do bautismo. Procure-se que todos os nossos aprendão a lingoa da
terra, e usem ensinar n"ella aos' índios.
1 ií) Chegou á Bahia o Padre Ignacio de Azevedo no mez de Março de
\l)()S, e foi n'eUa tão geral a alegria, quão geral era o conceito que de sua
santidade se tinha ; porque entre os nossos somente sua vista era refor-
mação, e entre os seculares era respeito, e reverencia : a huns e outros
ganhava (js corações de maneira, que o que ap[)rovava, era bom, e o (jue repro-
vava era mácí. (Chegou a dizer-se d-elle, que se sempre estivera presente, podia
ser Visitador sem regra, nem preceito: e dizião bem: porque he mais forçoso o
exenqdo, (pie o preceito: e o Padre Ignacio sendo jior geração tão ilhistre, eia
exemplo do humildade; sfsndo dt; compleição tão delicada, ei'a exenqdo de nior-
lificados; sendo antigno, exemplo de modernos: sendo mcsire, exemplo de.
noviços; sendo leti-ado. (;xí!mplo de discipulos : sendo adiantado na virtu-
de, exemplo de princii)iantes; e sendo Visitador, era vivo exemplo de súb-
ditos: bastava só entrar em hum Collegio, pcra logo ficar visiíaflo.
120 Seu enxoval era segundo sua.graridc ])obreza: trazia sempre <'oiii^
\0L. JI .")
CG LI\ I\0 III DA -CHIIO-MCA DA COMPANHIA DE JKSU
sigo liuiii sa(|uiiilio, e n"elle metidos os iiistruiuenlos de vários oíficios
mecânicos ; e em qualtiuer parte (jiie estivesse, elle era o çapateiro pêra
remendar seus çapatos, o alfaiate pêra remendar seus vestidos, e assi dos
demais. Estas erão as suas fidalguias, e á vista d"estas desapparecião os
fumos todos do lustre mundano. Ein outi'o sarpiinlio trazia os instrumen-
tos de suas mortificações, cilícios, disciplinas, cruzes espinhosas, etc, o
era tanto o rigor com que castigava seu corpo, e tal o ecco de seus açou-
tes quando entrava comsigo em juizo, que não podia esconder-se : e era
este o melhor espertador dos qne dormiãe á madrugada, Tinha graça par-
ticular pêra servir em oíTicios baixos : quando menos se imaginava, com
qualquer pequena occasião que occorria, e com a chaneza com que o po-
derá fazer hum noviço, Iiia ajudar á cosinha, dispensa, refeitório, servia ú
meza, e fazia acçíjes semelhantes; e era esta a melhor reprehensão de des-
cuidados, e huma reformação, ou visita pratica, que obrigava mais que as
Regras aos maiores, aos menores, aos superiores, aos súbditos, aos anti-
guos, aos modernos, aos mestres, aos discípulos, aos provectos, e princi-
piantes.
121 Iluma das primeiras cousas que trazia assentado na alma, era o
promover a boa criação da mocidade, assi no estudo das letras, como no
noviciado, escola do espirito: em huma e outra cousa poz os olhos, e ap-
plicou seu patrocínio, não sem fruto; porque crescerão com eíleito a gran-
de estado : visitando, reformando e augmentando as classes, e casa de
noviços; deixando instrucções pêra ellas mui accommodadas. As aldeãs
dos índios visitou com especial aíTeclo ; e era grande a força do espirito,
«lue o movia a procurar a salvação da Gentihdade: rompião-se-lhe as
fiilranhas de ver í[ue não podião os nossos acudir a toda, o cuida-
va de dia, c de noite nos meios (\m teria i)era a cultura de ião vasta
seara.
líi A quatro do mez de yimo deo grão de Coadjutores espiriluae.s
formados aos Padres Diogo de Freitas, e João de Mello; e de Coadjutor
temporal formado ao Irmão Duarte Fernandes : os primeiros que vio a
Companhia do Brasil, segundo as novas Constituições approvadas. Logo
no mez de Junho seguinte celebrou Congregação Provincial, e assentou com
us Padres professos algumas declarações necessárias, assi ao modo da pro-
pagação da Fé Catholica, como da boa conservação da Companhia neste
Estado. Afiui sahirão tãobem conlirmados seus desejos; i)orque supposto que
nosso Jlevcrendo Padre Geral deixada só cm sua eleição o voltar a Roma
DO ESTADO DO Bli.VSíL (A.N.NO DE lf)()8) ()7
a (lar relação da Província, ou inaudar outro, como melhor líie parecesse,
»! tendo elle em matéria de padecer pela salvação dos Brasis ardente zelo,
parecendo-lhe que em semelhante viagem podia fartar-se de trabalhos e
arriscar a própria vida por bem de suas ahnas: e representando-llie seu
grande espirito, que era bem ir apresentar-se diante do Summo Pastor
d"estas ovelhas, e do Geral de nossa Companhia, gritando por soccorro %
obreiros pêra ellas, inclinando-se por esta razão a tornar a Roma: não quiz
conliar-se comtudo de seu parecer em matéria tão grave, e (|uiz que en-
trasse na Congregação a escolha do que fosse mais a propósito pêra este
intento: porque sendo elle o eleito, iria pela obediência ; e sendo outro,
entenderia que o Ceo o ordenou por melhor. Sahirão da Congregação con-
lirmados em tudo seus desejos, e foi nomeado por Procurador geral da
Província, com applauso de todos: não foi necessário mais. Aparelhou em
breve as cousas, c partio com effeito a quatorze de Agosto do presente
anno de 1368, deixando a todos igualmente cheios de saudades, que de
esperanças: o fructo d"Qstas dirão os successos futuros,
\%\ Deixara ordenado o Padre Visitador, que visto instar o tempo de
sua partida pêra Pioma, e não poder ir elle em pessoa, como desejava, fos-
se o Padre Provincial Luis da Gram a Pernambuco, entabolar alli a resi-
dência por tantas vezes começada, e pedida de novo com instancia daqncl-
les povos. Levou comsigo o Provincial os Padres Diogo de Freitas, e
Amaro Gonçalves, e outros Religiosos, cujo numero não consla. Chegou no
mez de Julho, e depois de haver empregado-se no bem d'aquella gente, e
exercitado cm ella com seu costumado espirito os ministci'ios da Com-
panhia, com grande aceitação, e fruto, deixou por Superior da residência
o Padre Diogo de Freitas, e voltou ao Collegio da Bahia a exercitar obri-
gações de seu oílicio. A brio o Padre Superior classe de ler, escrever, c
doutrina dos meninos, fundamentf) primeiro da vida de hum Chrístão. E
})oiico depois chegando alli de Portugal o Padre Affonso Gonçalves, e o li -
mão João Martins, encarregou o cuidado da escola ao Padre Alíbiíso (Gon-
çalves, e o de huma classe de Latim ao Padi-e Amaro Gonçalves; com que
os moradores ficarão contentes, porque desejavão havia tempo esta boa cria-
ção de seus filhos: e como já erão mais em numero os Religiosos, acudião,
não somente ás necessidades da villaem que lesidião, senão lambem volantes
ás vizinhas donde erão chamados, e neilas a grandes necessidades espiriluaes.
12i No Rio da Janeiro continuava o (itjvernador Salvador Corroa de
Si com í) novo edifício da cidade, e o Padre Nóbrega com o do Collegio
68 IJVKO 111 DA CHHOMCA DA COMPANHIA DE JliSU
(le nossa Companhia: porém eslava já inui debilitado o vigor corporal des-
te anliguo obreiro; padecia grandes accidentes de sangue, e malencolia, que
o cliegavão a apertos grandes: e o fjne ultimamente lhe causou sentimento
maior, foi ver-se cm ])reve tempo destituído de hum dos companheiros,
que muito o ajudava. Era este o Padre António Rodrigues, que no princi-
pio d"este anno, em 20 de Janeiro passou d"esta vida a gozar da eterna. Era
este bom Padre Portuguez, natural de Lisboa: seguia no mundo as armas;
e embarcado em huma Armada Castelhana, passou ás partes do Rio da Pra-
ia, onde esteve alguns annos. Porém aqui (a tempo que menos o cuidava)
lhe offereceo o Ceo occasião ao parecer dos homens errada, mas muito a
propósito a sua salvação, que por esta via lhe estava traçada. E foi, que
entrou em huma resolução temerosa de deixar a vida que seguia, e vir-se
por terra do Rio da Prata a S. Vicente, distante duzentas legoas, por ca-
minhos solitários, asperrrimos, usados só do feras ou índios montanheses,
com perigo evidente de dar em suas mãos, e ser comido d"elles. Tudo ven-
cia o amor da pátria, que por este meio determinava tornar a ver, não tra-
tando então da celeste a que Deos o guiava.
125 Todos estes perigos não obstantes, chegou o nosso peregrino sol-
dado, guiado mais da fortuna desua predestinação, que de cuidados próprios,
á villa de S. Vicente. N"esta tentava pôr em execução os pensamentos de pas-
sar a Lisboa pátria sua, onde tinha ainda vivo o pai: senão que a força da
predestinação traçava outra cousa; e entre os maiores fervores de seus
aprestos, sentio ferido o coração como de agudas settas, e á volta d'estas
huma força interior, quo^lhe batia i'ijamente á porta, e liie propunha ante
os olhos a inconstância das cousas doesta vida, seus perigos, trabalhos, e
(inganos: occorrião-lhe os que tinha passado na guerra, e os do ultimo seu
caminho, e dizia comsigo: «Quem .me promelte melhorias no tempo que me
i-esta de vida? Não se costumão a emendar os tempos; raramente os vemos
melhorados, peiorados si: alem de que parece ingratidão não saber agra-
decer a Deos o passado, nem saber escarmentar pêra o futuro. N"estes pen-
samentos labutava só comsigo o bom soldado, sem tregoas, nem comer,
nem dormir de suspenso. Communicou-os ao Padre Manoel da Nóbrega,
arbitro n'aquella terra commum de todas as questões de espirito; e pedin-
do-lhe com força interior a Companhia, foi admittido nella pelo mesmo
l*adre na era de mil e quinhentos e cincoenta e três, como já dis-
semos.
126 Logo ({uc entrou na Religião este servo bel da vinha do Senhor,
DO ESTADO DO BRASIL TaNNO DK '15G8) fiO
romeçoii a Iraballiar irdla, como aqiielle que se adiava devedor do jornal
recebido. Foi levado ainda noviço a Piralininga, atravessando a pé descal-
ço a({iiellas fragosas serranias; e como sabia o Padre Nóbrega o que n'elle
linha, e juntamente a perícia da lingoa brasilica, e zelo dos índios, de que
Deos o dotárs, largou-llie a mão a que trabalhasse no bem d'eslas almas.
Foi notável o Iruto que fez o Irmão António Rodrigues: cattivava os índios
com sua boa graça, penetrava o sertão trinta c quarenta legoas de cami-
nho, com summa pobreza de todo o necessário, confiado na providencia do
Senhor que servia. Aqui tratou com grande quantidade de índios, fez-lhes
Igreja, catheciuizou-os, e converteo a muitos, vivendo entre elles três ou
(jualro annos, bautizando os que morrião, e dispondo os \ivos: a estes pre-
gava dos bens, e males da outra vida, com tanta eloquência, por suas mes-
mas frases, e uso de fallar do sertão (cousa que este gentio mais venera)
que suspendia os coraçijes, e era estimado c querido de todos. Tornou poi-
obediência pêra Piratininga: aqui lhe coube grande parte da carga, e trabaliios,
com que n'aquelle lugar se ajuntarão no principio as aldeãs dos gentios.
Ajudou a trazer muitos do sertão, feito pregoeiro da Fé evangélica, por
mattos e serras, por frios e geadas cruéis d'aquclle clima, pobre sempre,
sempre descalço, e sempre alegre.
127 Na instrucção dos filhos dos índios foi estremado: ensinava-lhes
por sna mesma lingoa a policia de que evTio capazes, e á volta da doutrina
christãa, ler, escrever, cantar, e tanger instrumentos músicos pêra o culto
divino; porque em tudo ei-a destro: e era em tal forma, que elles sós ofli-
ciavão destramente todas as festas da Igreja. Faltavão lingoas na Bahia, ([uíí
ajudassem a cultivar a matta brava de sua grande gentilidade em seus prin-
cípios: cnti"e outros foi chamado a ella o Irmão António Rodrigues, e jun-
tamente pêra se ordenar ile ordens sacras. Feito Sacerdote, capaz já de
maiores empresas, forão sem numero os trabalhos e perigos da vida, que.
padeceu em amansar aquelles feros coraçrx?s: r^luzio grandes bandos das
brenhas do sertão á Igreja de Deos, domesticou seus bárbaros mstumes,
allumiou seus rudes entendimentos, cathe(iuizou, o illustrou nas agoas sa-
cramentaes da vida eterna, incrível multidão de. Pagãos. A elle em fim se
attribue gi-ande parte da c<jnversão de cincoenta mil almas, e formação de
todas as aldeãs, que se assentarão n"aí|uellas [)artes, desde o Camamú, (Ui-
zoito legoas da banda do Sul da cidade, até ijiiasi o Rio Real, quarenta le-
goas d'ella ao Norte. Assi o dá a entendei" (» Padre .Ios('[)h de Ancliielaem
huma saudosa lembrança, que deixou escritta d*esle servo liei, por estas
70 LIVRO III DA CHnOMCA DA COMPANHIA DE JESL"
palavras: «O Patlre António Rodrigues tomou pí^la ol)cdicncia a bandeira da
Ci-nz de Ghristo, c elle era o segundo que como alferes hia diante pregan-
do aos índios, o ajunlando-os em aldeãs grandes, onde se fizcrão todas as
Igrejas que houve na Bahia, desde o Gamamú, até perto do Rio Real; das
quaes se colheo tanto fruto, salvando-se muitos milhares de almas. «Atéqui
as palavras do venerável Padre.
128 Da Bahia voltou este grande obreiro da vinha do Senhor ao Rio
de Janeiro, em companhia do Governador Mem de Sá, no anno de lo67.
Aqui refinou o fervor, parece que advinhando já quão pouco lhe restava do
vida; porque tendo assentado pazes o Governador com alguns dos Tamoyos,
e estando ainda mui frescas, e elles mui vários por sua natureza, e sem-
pre infestos aos Portugueses: talou com tudo seus sertões, e foi tratar com
elles intrépido as cousas de sua salvação; resolvendo, que sempre fazia
cousa grata a Deos, ou vivo convertendo as almas, ou morto padecendo por ■
ellas. Não morreo a mãos de Tamoyos, porque d'estes foi bem ouvido; fi-
zerão grande conceito d^elle, e lhe ajudái^ão a levantar Igreja, e Gasa em
suas terras, ouvindo todos suas pregações, e doutrinas. Morreo porém por
juízos do Geo; porque quando havia de esperar os mores frutos de seus
trabalhos, cahio em cama gravemente, e se recolheo ao Collegio: onde no
tempo que lhe restou de vida, foi hum exemplo de paciência, e conformi-
dade com o querer divino. Passava os dias, e as noites em contínuos sus-
piros, e jaculatórias ao Geo: pedia do intimo das entranhas perdão, junta-
mente a Deos, e aos homens, de seus erros passados, e do mal que sou-
bera aproveitar-se dos meios que lhe dera a tleligião. Depois de muitas ve-
zes confessado, e reconciliado em dia de S. Sebastião de mil e quinhentos
e sessenta e oito, foi visitar a Igreja por seu pé, e logo tornando-se ao cu-
bículo, n^aquelle mesmo dia, depois de recebidos os Sacramentos, entre fer-
vorosos coUoquios deo a alma a seu Griador, sendo de idade de cincoenla
e dous annos, tendo quatorze da Gompanhia, e levantado em louvor do cul-
to divino nove templos em diversas aldeãs de índios. Foi sepultado na Igre-
ja do mesmo GoUegio do Rio de Janeiro, com sentimento geral de todos,
havendo hum anno que tinha chegado da Bahia. Foi sempre homem de
grande coração, e igualmente tenro, e devoto. Tinha familiar trato com
Deos, tratava asperamente seu corpo, e ainda quando soldado no século
era exemplo nestas matérias aos companheiros; e quando fazia entradas,
e postas, gastava grande parte da noite cm oração mental, c vocal, donde
DO ESTADO DO BRASIL (aNNO DE l-jGS) 71
sempre conccl)CO esperanças de que o Ceo lhe tinha guardado meioeíTicaz
de sua salvação; como vio em eíTeito.
129 O Padre Nóbrega, ainda que já mui quebrado, e doente, acudia
com força do espirito a remediar muitas necessidades, que o tempo, e lu-
gar occasionavão em hum Collegio, que começava a ediíicar-se em huma
cidade, que escaçameute linha lançado primeiros fundamentos, e entre gen-
te nova no sitio, que tratava somente de principiar modo de vida, e esco-
colher sorte de terra, de cujas plantas pudesse sustentar-se. Ajudava jun-
tamente ao Capitão mór, que o Governador Mem de Sá seu tio lhe deixa-
ra encommeudado (segundo costumava) e ao ditto Capitão ordenado, que
não fizesse cousa de sustancia sem conselho do Padre. Acudia á doutrina,
e instrucção dos índios que tinhão vindo das Capitanias, especialmnnte do
Espirito santo, em ajuda da guerra; fazendo-os ajuntar nas terras do Col-
legio em huma grande aldeã, que depois íloreceo, e foi em augmento, assi
em christandadc, como em numero de gente, que se lhe aggregou; e sér-
vio sempre de baluarte, o defensão da cidade contra Tamoyos, Franceses,
e Ingleses.
130 Aqui por fim d'este anuo porei hum caso digno de memoria, ain-
da que com duvida, se foi n"este ou n^outro anno dos seguintes; o que im-
porta pouco. Vivia n"esta terra hum índio, homem de grande coração, a
esforço, e na destreza, e prudência militar superior a todos; fiel aos Por-
tugueses, e perfeito Christão. Tinha obrado grandes façanhas nas guerras
passadas em defensão dos Portugueses, primeiro em S. Vicente contra os
gentios Tamoyos, que tinhão posto em grande aperto a terra. Ajudara a
defender a Capitania do Espirito santo com sua gente (cujo Principal era)
contra os Franceses, que pretenderão fazer entrada naquella villa; com tão
boa opinião de soldado, que veio a ser assombro do inimigo. Era sou
nome, quando gentio Ararigboya, depois de bautizado foi Martim Aífonsode
Sousa. Na primeira guerra, em que Mem de Sá rcndeo a força de Yillagai-
Ihon, ouvindo o valor d'este índio, o levou comsigo do Espirito santo com
toda sua gente; e fez taes façanhas em armas, aqui, e em todos os succos-
sos seguintes de muitos aimos, que mereceo ser reputado entre os princi-
paes Capitães de conta.
líH Este índio pois, acabadas as guerras, mandou o Governador Mem
de Sá assistir com sua gente em huma paragem fronteira á cidade, distan-
cia de huma legoa, por nome hoje S. Lourenço. Aqui, depois de assenta-
da sua aldeã, intentarão as relíquias dos Tamoyos vencidas, que possuião
7'2 i.ivno iií DA ciinoNicA da companhia df. JF.sr
o Cabo Fi-io, ininii},'os seus capitães, liavel-o ás maus, c fazer d"elle hum
alegre bani[uete. Adiái-ão occasião a proiiosito; porque havendo de carre-
gar em seu distrito de páo brasil quatro náos de Franceses, pedirão-lhes
que antes de partirem fossem seus Capitães n'este acommelimento: c como
dependião os Fi'anceses em suas drogas d"estes bárbaros, houverão de con-
descender com seus intentos. Derão á vela as qnatro náos, oito lanchas
guerreiras, e hum numero de canoas sem conto. Entrarão a som de guerra
a barra do Rio de Janeiro, ainda então sem forças, nem artilharia que lhe
impedisse o passo; e com3 nem a mesma cidade estava cercada, teve-se
por perigoso o caso, porque o inimigo chegou inopinadamente: seu poder
era grande, o nosso mui fraco; e se acommelêrão corria risco n'aquelle dia
a cidade. Fizerão os nossos coração, mandái'ão Embaixadores aos France-
ses sobre o inteiito de sua vinda: responderão que elles hião a entregar nas
mãos dos Tamoyos a Martim Aflbnso de Sousa. Ficou mais desassombrada
a cidade, posto que receosa que levando victoria do índio voltassem sobre
ella. :Mandou o Governador a toda a pressa a S. Vicente em busca de soc-
corro de canoas, e gente, preparou trincheiras, ordenou que todos estives-
sem em armas, e despachou aviso a toda a pressa, com algum soccorro
que pôde, a Martim Affonso de Sousa, do cujo successo dependia o nosso,
e a quem devíamos favorecer por benemérito da republica toda.
132 Ao som do aviso não desmaiou o valeroso índio: pòz logo em cer-
ca de vallos e estacada sua aldeã, e recolhendo somente os que erão de guer-
ra, e os Padres da Companhia Gonçalo de Oliveira, e Balthasar Alvares, que
com elles estavão, mandou sahir toda a gente inútil a lugares seguros, e
esperou com grande coração, o esforço o inimigo. Desembarcou este em
terra, e virão então que era seu poder formidável em comparação do com
que se achavão; porque as quatro náosjogavão muita artilharia, as oito lan-
chas lançarão de si sunima de Franceses de armas de fogo: as canoas tão gran-
de multidão de Tamoyos, que cobrrão as praias, apercebidos todos, como
aquelles que vinhão a elfeito.
133 Porém no meio d'esta perplexidade, traçava o Ceo hum successo
de fama; e foi assi, que os inimigos dando por certa a victoria, aquelle dia
que sahirão em terra quizerão descansar, e não fizerão nada. Succedeo que
aquella mesma noite entrou n'ellao soccorro que tinha despedido o Governa-
dor da Cidade, de poucos Portugueses, mas de effeito, com alguns índios: tudo
capitaneava Duarte Martins Mourão, homem de valor. Visto este soccorro,
chorou de alegria o Capitão Martim AíTonso, e depois de exagerai' aos seus
DO ESTADO DO BRASIL ('aNNO DF. 13G8) 71]
grandes louvores da lealdade dos PorUigiiesos, que em tão apertada occa-
sião so não esquecerão d"ellcs, e depois de trazer-lhes á memoria as fara-
nhas de seus antepassados, e as que elles tinhão obrado na continuação
(Vaquellas guen-as tão prolongadas, tomou Imma resolução digna de coração
esforçado; e confiado no valor dos seus, e no silencio e escuro da noite,
mandou romper as cercas, c appellidando o nome de Jesu, e do Martyr S.
Sebastião, acommeteo o inimigo de improviso. Travou-se aqui huma bem
ferida batalha; porque os nossos, ú voz e exenq)lo de seu Capitão, parecião
leões; c como derão em corpo desconcertado, fazião no inimigo grande es-
trago: por outra parte a mesma multidão fazia resistência, e pelejavão forte-
mente os mais esforçados; mas como sem ordem, e entre a confusão da noi-
te, houverão por fim de voltar as costas, e pôr-se em fugida. Seguirão os
nossos o alcance, e com pouco damno recebido, fizerão huma grande ma-
tança, castigando o atrevimento dos bárbaros, e desafrontando sua gente.
134 Em quanto huns e outros soldados andavão occupados na briga, as
náos francesas que estavão junto á praia, com a vazante da maré ficarão em se-
co, e fizerão pendor de maneira, que não podião jogar artilharia; o que adver-
tindo alguns dos nossos, assestarão contra ellas hum falcão pedreiro, que
tinha vindo no soccorro, e vomitando nos convezes virados a terra á mão
tente nuvens de pedras, matarão muitos dos Franceses, e destroçarão al-
guma enxarcea miúda. Acabada esta memorável victoria, clareou a manhãa,
e virão então suas magoas; e mal puderão as relíquias dos Franceses re-
duzir-se a suas náos, e as dos Tamoyos a algumas de suas canoas. Assi
confusos, e envergonhados desembocarão a barra, com menos brios dos
com que entrarão. Fizerão resenha, e achárão-se mui raros, e que levavão
que chorar largos tempos; e aquclles que sahindo soberbos, vinhão amea-
çando banquetes das carnes dos contrários, deixavão agora semeadas as
praias de seus defuntos corpos. Chegarão ao Cabo Frio, planteárão os Ta-
moyos seus mortos, e os Franceses repararão seus navios, e se partirão
menos alegres a suas terras, deixando com esta ultima victoria o Rio de Ja-
neiro desassombrado. Soube do caso El-Rci D. Sebastião, louvou o esforço
do índio, mandou-Uie peças de estima, e entre ellas hum habito de Chris-
to com tença, e hum vestido de seu próprio corpo.
13t) N'estc tempo chegou o soccorro que o Governador mandara pedir
a S. Vicente ; c achando concluído o a que vinhão, tomarão cm ponto de
honra voltar-se sem fazer cffeito de guerra. IMandou o Governador quo fos-
sem ao Cabo Frio, fazer alguns assaltos n'aquelles inimigos, menos pujan-
74 I.IVRO III DA CHP.ONICA DA COMPANHIA DE SEUV
tes já, e tomassem lingoa do que se passava entre elles. Acliárãoqiie erão
partidas as qual ro náos Francesas, e que em seu lugar tinha chegado huma
bem artilhada,' carregada de mercadorias : voUárão com a noticia; e como
estavão os do Rio victoriosos, e os de S. Vicente desejosos de pelejar, vie-
ifio todos facilmente em que fossem com suas canoas acommeter e render
aquella náo Francesa. Partio o mesmo Governador em pessoa com g(nile
de eíTeito, e chegando a ser avistados dos montes do Cabo Frio, fizerão os
Tamoyos aviso aos Franceses, entre os qiiaes sérvio de riso o poder de
pequenas canoas contra limna náo artilhada, de porte de mais de duzentas
toneladas. Porém chorarão logo o que rirão; porque as canoas acommete-
rão huma madrugada por huma e outra parte, e ganharão de repente os
costados; d"onde por mais que a náo estava preparada de artilharia, enxa-
retada, e guarnecida de soldados armados, e artifícios de fogo, a artilharia
não fazia etíeito, porque jogava pelo alto, e ficavão-lhe as canoas debaixo:
e da mesma maneira todas as mais armas de fogo íicárão frustradas; por-
que as frechas varejavão os bordos de maneira, que não era possivel che-
gar a elles sob pena de morte. Já n'este tempo sentião os Franceses a forra
das pequenas canoas, e julgavão que não era cousa de riso. Acommeterão
os nossos a subida três vezes ; mas como ao entrar ficavão a peito desco-
berto, forão rebatidos com os piques, e com alcanzias de fogo : e n^estes
encontros três vezes cahio o Governador ao mar armado, sem saber nadar,
e três vezes foi livre pelos índios, que no mar são o mesmo que peixes
nadadores. •
136 Durava a briga mui travada de parte a parte: o principal que de-
fendia o convés esforçadamente, era o Capitão da náo, vestido de armas
brancas, jogando de duas espadas, e acudindo com valor a todos os suc-
cessos : entenderão os nossos, que n'esíe consistia a gadelha do inimigo ;
mas como andava armado todo, não podião as frechas penetral-o. Entrou
em zelo hum destro frecheiro, perguntou se tinhão aquellas armas algum
lugar, por onde entrasse huma frecha? Disserão-lhe que pela viseira: bas-
tou o ditto, disparou a frecha, deo no mesmo lugar, penetrou-lhe o olho,
e o interior da cabeça, e deo com o armado Capitão no convés, e com os
corações dos soldados por terra; porque vendo defunto seu Capitão, e mui-
tos soldados mal feridos, desmaiados se recolherão a baixo da coberta. En-
trarão os nossos, e a breves lanços rendidos os Franceses, se fizerão se-
nliores da náo, á vista dos mesmos Tamoyos contrários, que como escal-
dados, não se atreverão a ajudar seus amigos. Mandou o Governador dar
DO ESTADO DO BRASIL fAWO DE 15G8) 75
á vela, e enlroii rom a náo em o Rio. Deo saco aos soldados, que em breve
tempo apparecèrão todos vestidos dos melhores panos. A artilharia applicou
pêra defensa da cidade, e veem-se hoje algumas das pecas na fortaleza de
Santa Cruz na barra. A náo mandou ao Governador Mem de Sá seu tio.
com relação do ca^o; e ficou elle com gloria de tão grande empresa, não
tomando cousa alguma de despojo pêra si. Estes últimos feitos acrescenta-
rão grande terror ás naç(5es estranhas, c vierão d'alli em diante com mais
cautela a estas parles.
t 'I
LIVRO QUARTO
DA
GHRON
DA COMPANHIA DE JESU
DO ESTADO DO BRASIL
^íi^^^
^mjmmmmjm.
Contém a historia nolaoel dê marlyrio insigne dos quarenta Mar lij-
res da Companhia de Jcsii do Brasil, Ignacio do Azevedo, e seus com-
panheiros, com breve summa de suas vidas. A morlc ditosa do vene-
rável Padre Manoel da Nóbrega, fundador, e primeiro Provincial d' esta
Provincia, e suas heróicas virtudes. E o Poema da Vida da Virgem
Senhora nossa, composto por modo admirável, pek venerável Padre Joseph
de Anchieta > prometido no livro terceiro cVesta obra pêra este lugar.
DO ESTADO DO BUASIL (AN.NO DE 1569) 77
1 No aiino de lo09 nenhuma oulra cousa achamos na Bahia, nem ainda
nas mais Cai)ilanias, senão saudades, o esperanças. Saudades, da ausência
do bom Padre ígnacio de Azevedo, Visitador que fôia seu, e depois en-
viado a Roma por Procurador, e protector geral da Provincia, que levara
comsigo as alfeições de todos. Esperanças, porque nelle fundavão augmen-
tos grandes do bem do Estado : e não sabião fallar n"outra cousa, corações
tão grandemente empenhados.
"-2 Mas já que o anno está desoccupado, em lugar de correr a Provincia
(segundo costumamos) façamos digressão fora delia, e arrebate comsigo a
historia, aquelleque leva após si as vontades; que bem lie íenlião vespo-
ras, solemnidades grandes; e que este anno as faça ás do seguinte. Chegou
ígnacio a Lisboa, e chegou com elle hum trasordinario fervor, com que se
abalou Portugal á voz das cousas do Brasil, ainda então novas, e á voz da
vinda de huma pessoa tão conhecida e amada naquelle Reino. Seu antiguo
(! intimo amigo o Illustrissimo Arcebispo de Braga, D. Frei Bertholameu
dos Martyres lhe mandou as boas vindas por escrilto, animando-o a levar
a diante a empresa começada, significando-lhe a inveja grande que tinha
(relia : e como sabia que hia á santa cidade de Roma, lhe mandou huma
carta pêra Sua Santidade o Santo Padre Pio Quinto: que me pareceu trasla-
dar, porque se veja o grande conceito que este excellente Prelado tinha da
pessoa do Padre ígnacio de Azevedo. O teor da carta he o seguinte.
Carla do Arcebispo de Draga 1). Frei Bertholameu dos Martyres pêra o Papa
Pio Quinto.
Beatíssimo Padre.
;{ «Dei)ois de beijar os bemaventurados pés de Vossa Santidade: ígna-
cio de Azevedo, Saceidote da Companhia de Jesu, Visitador e Preposito
Provincial da mesma C(jm})anhia nas paiLes do Brasil, vai a Roma tratar
com Vossa Santidade alguns negócios de muita importância, tocantes á
mesma Com[)anhia : e porque eu lenho bem conhecido sua gi-ande viilude,
e o desejo que tt.-m de sofrer trabalhos, e levar sobre si a Cruz de Chris-
to, de que elle (desprezada a nobicza do mundo) se quiz fazer verdadeiro
imitador, a.ssi na pobi(,'za, abnegação, e des[)rezo de si mesmo, como lam-
bem no zelo, e ajtroveitamíMilo «las almas, o no augmento da religião chris-
tãa, do que tem dado a todos boas mostras, assi nesta Diecesi de Braga,
78 LIVRO IV DA CHRONICA DA COMPANHIA DE JESU
onde por alguns annos me ajudou muito, como nas partes do Brasil, d"oiidu
pouco ha veio : rne pareceo cousa muito pia pedir a Vossa Santidade o queira
favorecer, e o receba com aquellas paternaes entranhas, e amoroso animo,
com que costuma receber e abraçar todas aquellas cousas que ajudão ao
culto divino, e á salvação das almas : assi que Vossa Santidade o pôde ter
por hum varão apostólico, e cheio do Espirito santo ; porque n'essa conta
o tem todos aquelles que n'esta Província de Portugal o conhecem : pelo
qual todo o favor que Vossa Santidade lhe mostrar, e toda a ajuda que lho
der pêra seus ministérios, tudo tenho pêra mim será muito agradável e
aceito diante de nosso Senhor, cujas vezes Vossa Santidade tem em a terra;
ao qual clementíssimo Senhor, peço acrescente os annos de vida a Vossa San-
tidade, com os quaes lhe faça muito serviço em a terra. De Braga, em qua-
tro de Março de mil e quinhentos e sessenta e nove. O Arcebispo Primaz.»
Este he o traslado da carta, que até hoje se guarda no Cartório do Colle-
gio de Coimbra; e hum dos maiores testemunhos da virtude de Ignacio de
Azevedo, onde vemos que hum Prelado tão excellente lhe chama varão
apostólico, cheio do Espirito santo.
4 Os Religiosos de nossos CoUegios, parece querião despovoal-os ; os
estudantes seculares, seus estudos ; os oíliciaes suas tendas, e pátrias, a
fira de serem recebidos, e irem-se com elle á empresa das almas : até fa-
mílias inteiras se offerecião passar â sua sombra a povoar a terra : e o que
mais he, . que pêra todas estas cousas se mostrava prompto o favor, e li-
beralidade real do Sereníssimo Rei D. Sebastião, a quem foi grata sua che-
gada, e santos intentos : de todo este alvoroço era causa, a opinião da grande
virtude e nobres talentos do Padre Ignacio de Azevedo, que cattivava aos
que o ouvião, e a com que obrava o Ceo, pêra os fins que tinha decretado.
5 Deixando era flor de esperanças todos estes desejos, partio Ignacio
pêra Roma, no mez de Maio do corrente anno de 1569, e foi segunda ad-
miração, o como n^esta Corte Pontifícia foi recebido do Papa, Cardcaes, e
nosso Reverendo Padre Geral, assi pela fama de sua muita qualidade, e
igual \irtude, como das cousas que relatava das partes do Brasil, até então
pouco conhecido. O Summo Pontífice Pio Quinto lhe deo benévolas audiên-
cias, e concedeo privilégios largos, e entre estes todos aquelles que tinha
concedido á índia: indulgência plenária pêra todos os que o acompanhassera:
corpos de Santos de estima, e entre estes a santa cabeça de huma das
onze mil Virgens : e sobretudo lhe deo licença pêra tirar retrato da santa
imagem da Virgeni Senhora nossa, que pintou S. Lucas ao natural; da qual
DO KSTADU DO BKASIL (aNNO DE 15G9) 79
nenliuni dos Sumaios Pontifices passados o deixarão tirar, porque só esta fosse
no inundo de maior reverencia. Não só do Papa era notável agrara e benevolên-
cia corn que eia tratado, mas também dos Cardeaes, e de todos aqueiles se-
nhores estrangeiros. De nosso Reverendo Padre Geral Francisco de Borja
foi recebido com tanto alvoroço, quantos erão os desejos que tinha havia
muitos annos de ouvir plenária relação do que chamavão novo mundo, o
(|uaijto era o conceito que tinha dos dotes doeste grande varão. Mostrava
receber particular consolação de tudo o que ouvia da conversão da genti-
lidade d'estas partes : e persuadia-se, que era grande a empresa, e não
men(jr a necessidade de obreiros delia. Resolveo, que pêra este íhn era
mui a propósito o zelo de Ignacio, e a gi'ande experiência que tinha; e feita
consulta com seus assistentes, o elegeo por Provincial do estado : e pêra
(jue tão bom Capitão juntasse soldados em quantidade, e qualidade, quaes
por então se representava serem necessários, deo licença que podesse tra-
zer da Província de Portugal todos aqueiles (}ue ella podesse conceder-lhe;
c das mais Províncias por onde passasse, três dos que pedissem em cada
liuma delias, e seu Provincial eelleapprovassem. Deo-lhe ultimamente hum
retrato da santa imagem de S. Lucas, pêra que o oíTerecesse de sua parte
á Piainha D. Catherina, que governava Poi'tugal. Nenhuma cousa empren-
deo em Roma pêra bem de seus santos intentos, por grandes dilFiculdadis
(í^e tivesse, que com effeito não conseguisse. Bastava somente dizer migsa
por seu intento, e vel-o posto em effeito.
G De Roma chegou ignacio a Portugal, e chegarão com elle, e após
(ille, hum numero grande de companheiros, (íue segundo as condições da
licença se aggregárão das Províncias estranhas á voz da milícia do Ceo ;
Theologos huns, outros Philosophos, outros Humanistas, outros olílciaes
de varias artes, todos mui necessários. Vinha entre elles hum insigne pin-
tor Aragonez : este em quaiito esteve em Portugal tirou quatro retratos da
sagrada imagem de S. Lucas muito ao natural : tros lieârão nos Collegios
de Coimbra, Évora, e Santo Antão, o quarto veio pêra o da Bahia, e n'elle
se conserva : ponjue o principal original, foi apresentado á Rainha pelo Pa-
dre Torres, em nome do Santo Padre Francisco de Borja, como tinha man-
dado : a qual mostrou alegrai-se muito de tão pei"leita peça, e [)rometeo
(lue por sua morte a deixaria á (^asa de S. Roque, como com effeito dei-
xou. Não descansava o esi)iiito de ignacio, tratou de alistar companheií-os,
(' aceitou pí)r seus af|uelles aquém tinlia dado ))alavi-a, quando partira pêra
Roma, corn beneplácito de seus Su[)erioi'es, além de oulios que de no\o
80 LIVRO IV DA CURONICA DA COMPANHIA DE JESU
pediSo; c despejaria os Collegíos, se só seguira desejos próprios, e do5
que qiierião segiiil-o. D"estes, e de alguns que cscolheo estudantes, e mes-
tres de oíBcios de muitas partes de Portugal, formou Jiuma Ijoa compa-
nhia de setenta escolhidos soldados, apostados a toda a fortuna : não me-
tendo em conta muitos outros, que aceitou pêra irem á prova senindo na
viagem, e serem recebidos no Brasil.
7 Hia já chegando a peste, que tinha entrado em Portugal, a alguns
dos bairros de Lisboa : nem era segura a Cidade; nem o CoUegio, e Casa
de S. Roque d"e}la, podião reter tantos hospedes commodamente. Foi for-
ça, ou da occasião, ou do Ceo, retirar-se Ignacio com os seus, aonde pa-
rece que o guiava o espirito, a hum lugar deserto, separado como duas
legoas do reboliço da cidade, no meio de huma charrieca entre Caparica e
Azeitão, vestido de hervas cheirosas, alecrim, rosmarinho, e grandes pi-
Kheiraes, aonde além do balido do gado, susurro das abelhas, e ecco do
Oceano, que por huma parte o cerca, poucas outras vozes se ouvem: seus
arredores são toscos, e silvestres, cercados parte de medos de área infor-
mes, parte de moutas de silvado, e tojo, covas de feras, e horror de gente
humana. Aqui comtudo se deixa conhecer a concórdia discorde da sagaz
natureza; porque onde o sitio per si he tão desabrido, ahi mesmo dos cu-
mes d'esses medos, e eminências toscas, se descobre huma das mais fer-
mosas vistas que podem ter olhos humanos : iwrque olhando pêra o terre-
no, descobre toda a circunferência d"aquelle grande valle, cujo diâmetro
corre desde a montanha de Palmela até Nossa Senliora do Cabo, de muitas
legoas, e varias apparencias. Avultão daili a penitente serra da Arrábida,
a fresca montanha de Cintra, o famoso monte de S. Luis, e os escalvados
de área, que vão morrer na fértil pescaria da grande alagoa Albofeira.
Avulta pêra outra banda muita parte da fermosura da cidade de Lisboa, o
mais aprazível de seus altos, torres, guaritas, cimborios, e eirados. Avul-
tão por fim d'aquellas eminências, o espaçoso do mar Atlântico, suas im-
mensas agoas, seus bem assombrados horizontes, o arqueado de suas lon-
gas enseadas, que até perder-se de vista vão alvejando desde a ponta da
Trafaria até o cabo chamado do Espichel. Sitio he este por todas as con-
dições apontadas acommodado pêra retiro de quem quer contemplar. Fi-
zera mercê d'elle aos Padres da Companhia de Lisboa, o sempre saudoso
Rei D. Sebastião, cujo era. Pêra este lugar tão natural a sua inclinação, e
intento, se retirou Ignacio, com gosto seu, e de seus companheiros. Aqui
fez resenha este bom Capitão, e foi provando em primeiro lugar, qual ou-
DO ESTADO DO BUASir. (aN.NO UE 1560) 81
Iro Gedeão, os soldados que iia empresa scrião de elíeito: ,c como íãoe:-
perimeiítado iia milícia do Ceo, ao primeiro jjebcr das agoas conheceo rs
esforçados, e os pusilanimos: a estes tornou a restituir aos lii.í^iresd'oride
vierão; com os ouiros eiilroii em exercício, como logo veremos.
8 A solidão foi sempre mííi de bons espíritos; 09 Antonios, os ílila-
riões, os Arseiiios, e todos aqiielles santos Padres habitadores das Thebaí-
das, e outros semelhantes desertos, o estão mostrando. Considerava-se
Inácio como em Thebaídas. pelo solitário do sitio; como cm Paraíso ter-
reno, pelo deleitoso dos campos: e como em Religião regular, pelo commu-
nicavel dos companheiros; e apostava-se a ajuntar em lium todos estes três
modos de viver. Se tivera este santo varão revelação expressa deDeos(dí'.
que não consta,- posto qne se duvida) do alto fim a que o tinha destinado,
de derramar o sangue por Christo, não se apostara com mais fervor a
preparar a si, e aos seus em espirito, oração, cruzes, trabalhos, e mortifica-
ção. Foi um ensaio este antecedente, d"aquella ultima tragedia. Dispoz alli
liuma officina de t(xla a pratica do espirito : e começando elle por si, fez-se
noviço, com capa de ensinar a n()víços. Repartio aquella l»reve Casa, e re-
duzío a dous géneros somente quantos n"ella estavão, noviços, e antlguos.
Erão quarenta os noviços ; separou estes em os altos da Casa, nos baixos
os demais. Tomou á sua conta o ofiicio de .Mestre, mas com razão duvi-
dava (jueni o via, se era Mestre, ou noviço: seu ensino era todo pralico:
o (pie ([iieria fizessem os noviços, fazia elle : mais era alli necessai-io o
olho, que o ouvido: recolhia-se, porque esíivessem rcH*.olhi(li)s; orava, por-
({ue orasseui : elle era o primeiro nos olficios baixos, no varrer a casa,
limpar a cozinha, servir á mesa, trazer lenha do matto, e agoa da fonte.
í) lie admirável a força do exemplo: não tinhão passado mui los dias,
([uando á vista de seu Superior feito noviço, qiierião todos ser noviços: os
mais antigu(js forão os primeiros que começarão a pedir de joelhos, serem
principiantes. Fazia-se rogar o [)rudent-c Mestre, e concedia depois de
muitos rogos o (|ii(' desejava dar no ))rimeiro, e como ;i força o quí> dava
com toda a libcidade; [lonpie assi Iizí3sse elle [trova das vontades, e lizi's-
sem ellas estimação do í[iie se concedia. Vierão todos a alcançar ò mesmo,
e veio toda a (^asa a ser Noviciado: só na morada havia dislinçlo enln^
noviços e antiguos, e no ílemais erão conmiuns os exercícios. Havia duas
horas de oração menlal com campa langida pêra todos, hiima pela manhãa,'
á tarde oiilra : duas vezes se tangia ao exame (\r, const-iencia, segundo o
cosluuK' cf)i'nmum da (Companhia ; e o reslanlc da manhãa se gaslava fia
\0L. u (;
82 LIVKO IV DA CHRONICA DA COMPANHIA DE JESU
reza das Horas Canónicas, confissões, missa, commiinliões, e recoliii-
mento.
•10 O refeitório era casa mais de mortificação, que de refeição: alli se
vião huns prostrados por terra, outros em cruz, outros de joellios, outros
disciplinando-se, outros dizendo suas culpas em piil)lico; c os que comião,
sentidos, e envergonhados de não fazerem elles o mesmo. Acabada a mesa,
juntavão-se igualmente a fali ar de Deos que a continuar penitencias, huns
de bruços com a boca no chão, outros com o lenço nos olhos, outros com
mordaça na boca, e peias em os pés, dizendo suas faltas, e recebendo re-
prehensões por ellas : costume santo dos noviços da Companhia ; porém
aqui estylo vigoroso.
11 As praticas, e conferencias fazião-se quasi quotidianas. Era pêra ver
aquelle religioso Consistório de setenta Padres, e Irmãos, assentados por
terra, ouvindo mais dictames de espirito, que conceitos de entendimento.
Praticava-lhes ordinariamente o Padre Ignacio, e erão suas praticas todas
da Cruz, e trabalhos, do apparelho pêra a morte, e da verdadeira humil-
dade : e como condizião as praticas com as acç'ões do que praticava, ac-
cendia em os mesmos desejos os que o ouvião. Erão setas de fogo os sen-
timentos que exprimia a altas vozes muitas vezes, levado do espirito: «Ir-
mãos (dizia) haveis de sentir com lagrimas de sangue passar por vós occa-
sião de mortificação, e não lançar mão d'ella : haveis de envergonhar-vos,
levar-vos o outro o merecimento da obra de humildade, lançar jirimeiro mão
á vassoura no refeitório, e ao esfregão na cozinha.» Aqui lhes dava desenga-
nos do que havião de padecer em sua empresa ; dos perigos dos mares, dos
trabalhos do Brasil, dos duros corações com que havião de ti-atar, dos ser-
tões que ha\ião de penetrar, e das fomes, calmas, e tragos da morte, (pie
havião de passar : que havião de achar-se muitas vezes sós entre gentios bár-
baros, no meio de occasiões de perigo, sem testemunha de suas acções, sem
sacramentos, e sem consolação alguma humana : que se d'alli não levavão
espirito, podião desmaiar, e perder-se : e quem pêra isto não sentisse ani-
mo, era melhor não se pôr a perigo.
12 Alli n"aquella habitação, limitada pêra quasi cem homens, achava a
industria do Pach-e Ignacio lugar, em que de ordinário estavão recolhidos
em espirituaes exercícios, separados do tratto dos outros, seis, sete, e mais
ReUgiosos, por espaço de oito ou dez dias; sabidos estes, enlravão outros,
sem interpola f^ão. Além de todos estes exercícios, pedião outros os que
(èúo mais fervorosos, que se lhe concedião segando seu espirito, e talvez
DO ií:^vrAi)0 DO diíasil (axxo di: 1509) 8:>
se negavâo por cvilar excessos. Tiiihão em casa coiilinuamenle o Santissi-
mo Sacramento presente: e costumaivá a dizer Ignacío, qiíe não teiia por
hoviço o que não visitasse este Seiííior novo vozes ao menos no dia: flianle
d'elle se vião commiinimente lieligiosos postos em oração. E por(|ue se
veja bem a sede com que nY'lia entravão, porei hum exemplo. Andava aju-
dando á cozinha o Irmão Francisco Peres Godoi :■ era dia, em que havia
mais qiíe fazer, e não havia tido ainda sua oração : significou-ílie ò cozi-
nheiro que continuasse, porque eile lhe assinaria tempo : houve que tra-
balhar até huma hora depois do meio dia; então lhe disse: «Irmão Godoi,
vá ter agora sua oração, ate que eu o chame.» Foi, com tal sede, que en-
leve n'ella sete horas inteiras, desde a huma até ás oito hontó da noite,
diante do Santíssimo SacrdmeutOj até f|ue notando o refeitório,- que fol-
iara na cea, feita diligencia o acharão continuando no mesmo lugar: sendo
chamado do Superior, e perguntado por aquelle excesso; rtspondeo, que
o cozinheiro, a c[uem servia, lhe dissera, que fosse ter sOa oraçlío até que
o chamasse, e que o não tinha cliamado. Com esta santa simplicidade, o
com esta fíjrma de espirito se procedia n;aquella escola de virtude.
13 No louvável cos lume dá Companhia de tirar os Santos por sorte,
lodos os mez€S, achava grandes ganhos. Introduzio, qiJe o Santo que cada
hum tirasse, o celebrasse C(mi singulares devações, fallando de seus lou-
vores no próprio dia, tomando n^elle disciplina, dizendo a culpa, e fazendo
outras mortificações, cada hum segundo seu fervor.
14 Os oílicios baixos erão appetecidos comi aquella industria, com quo
os allos são buscados no mundo. Verieis huns trabalhar no Refeitório, ou-
tros na cozinha, outros varrer os aposentos; c os que erão oíTicios mais
humildes, mais desejados, e pedidos á competência de joelhos, o concedi-
dos por favor.
IV) dom outra invenção, e juntamente fecreação deespirito, sahio aquelle
mestre (Telle. Todos os dias de manhãa, antes, ou depois da missa, levava
a Gommunida(l(5 em procissão pelos campos; porípie á vista do ameno dos
arvoredos, e das ílores, espertasse os ânimos ao louvor do Criador (Kellas.
Sahião lodos cantando as Ladainhas, correndo eerlas cruzes distantes, e ao
pé d'eslas postos de joelhos, acahavão entoando em canto de órgão, <i Dulce
licjnum, dtílccs clavos, ele.» e concluía o Padre Ignacio com Ires orações,
huma da Cruz, outra do lb?i, e a teíTcira, «Ite.spice, quai sumas Domine,
ele.» Os merecimentos Ao, Iodas nslas obras afiplicava pelas necessidades
da Igreja, con\ei-?ão dos infiei.s i"edu''ção dos lierege,^ pelo I'apa, prlo Rei,
84 LIVRO IV I)A CimOMCA DA COMPANHIA DE JESU
e pelos que estavão em peccado mortal : e costumava este santo varão di-
zer, que já não esperava n"esta vida ter mellior tempo, que o que passava
n"aquelle seu Vai de rosal.
10 Estes erão os exercícios espirituaes da escola de perfeição de Igna-
cio : o tempo que sobejava d'elles (porque nenhum instante cessasse) em-
pregava em exercícios corporaes. íluns lião, outros escrevião, outros es-
tudavão, outros pintavão, outros fazião obras de carpinteiro, rapateiro,
alliiiate. Saliião com peças necessárias pêra o Brasil, e occupavão santamente
o tempo. Partião huns a buscar lenha ao matto, outros agoa, outros car-
queja, outros rosmaninho, e grãa. Da grãa fazião finas tintas; da carqueja
camas em que dormião, e huma cortiça por cabeceira; porque colchões
de lãa não se usavão, senão pêra doentes, ou achacosos. Estes colchões
lhes ensinou a fazer Ignacio, ingenlioso em tudo pela charidade : e logo á
vista de hum que fizera, ficarão muitos feitos mestres. Despedia-os outras
vezes de dous em dous, qual Christo seus Discípulos, a doutrinar, e pe-
regrinar por diversos lugares. Partião vestidos pobremente, a pé, e pedindo
esmola de porta em porta nas villas, e lugares por ondepassavão; e exer-
citavão n'estas missões diversos actos de pobreza, e mortificação, e fazião
fruto no próximo.
17 Tinha entrado o anno de 1570, tempo acommodado pi?ra a viagem
do Brasil, e era força deixar aquella santa Companhia seu Vai de rosal,
que pela solidão do lugar, e largo uso de cinco mezes, lhes parecia já Pa-
raiso : passarão, não sem lagrimas, á Casa de S. Roque; e em quinze dias,
que alii se detiverão, vio aquella cidade hum raro exemplo de perfeição.
Encontravão-se pelas praças, e ruas a cada passQ Padres, e Irmãos da mis-
são do Brasil ; huns com ceirinhas ás costas, levando da Ribeira o peixe,
do açougue" a carne : outros nos Hospitaes fazendo as camas aos enfermos,
varrendo-lhes a casa, e praticando-lhes da paciência, e da conformidade
com Deos : outros nas cadeas : outros fazendo doutrinas aos meninos: pre-
paraçíio de viagem tão santa.
18 Fazia-se prestes com calor a frota (jue aquelle anno havia de ir m
Brasil, e com ella o Governador daquelle Estado D. Luis de Vasconcellos,
e não chegava a náo San-Tiago, que o Padi-e Ignacio fretara de meias na
cidade do Porto pêra esta viagem. Tinha isto dado cuidado ; porque erão
muitos os Religiosos, e forçoso accoramodal-os com violência nos outros na-
vios da frota. Porém no meio dos maiores cuidados, ex que ai)parece a
não desejada, lança ferro no porto, e lança ióra nuvens de magoas do Pa-
no ESTADO DO RP.ASir. (ANNO DE \t)~0) 8o
«Ire Ignacio, o de seus companlieiros. N'çsla não se embarcou logo com
trinta e nove d\'l!es, e fazião por todos quarenta: o Padre Pedi-o Dias na
não do Governador com vinte, e o Padre Francisco de Casti'o com dons
íimãos na não das Orphãas (chamada assi pelas que levava por mandado
(rEI-Rei D. Sebastião, desamparadas do tempo da peste, pêra no Brasil se
casarem, e povoarem aíiuella nova terra) não entrando em conta outros
que liião em todas as três náos pêra receber no Brasil, se procedessem
bem na viagem. Deixou em terra outros, de cujo espirito conlieceo que
não erão pêra esta empresa, ou por falta de animo, ou de virtude; tornando
a mandar a seus Collegios os que erão da Companliia, por mais talentos
outros que tivessem, e a suas teiras os que ainda erão seculares: pêra cuja
distinção, e conhecimento, lhe tinha dado o Ceo dom particular.
10 Despregarão as náos as velas aos ventos, c despregarão nossos Re-
ligiosos ás lagrimas as portas : não por saudades da pátria, e CoUegios de
Europa, a quem davão o ultimo vale; mas por ver-se postos em caminho
da grande empresa, que desejavão. O coração do homem he leal: parece
adivinliava já o conflicto em que passado pouco tempo se havia de ver. A
cíipitania do Governador era huma fermosa náo da índia ; a sotto capita-
nia a náo San-Tiago. N'esta náo formáifio hum Gollegio os nossos, da invo-
cação do mesmo Santo: e como levavão fretada ametade delia, traçarão
hum corredor, ou dormitório debaixo da coberta, com camarotes de huma
(' outra parte, do masto do meio até a poi)a, cujo entrevão servia de Re-
feitório. Tomarão posse do fogão, fizerão n"elle de tahoas huma cozinha,
pêra que podessem os Irmãos exercitar olficio de humildade, e chandade,
fazendo elles de comer pêra toda a náo, sem trabalho algum dos outros
pa.ssageiros. Aqui tiiilião todos os mais olíicios dií Refeitoreiro, Despenseiro,
Enfermeiro, Sacristão; e todos os exercícios espirituaes costumados, com
c^ampa tangida, a mesma perfeição dos (CoUegios.
20 Não S') entre si, também no convés, exercitavão os nossos pios of-
ficios. Todos os dias ensinavão a doutriua cliristãa : acudião a cila todos os
da náo, desde o Gapitão até o gurumete menor: folgavão de responder,
levados de prémios que lhes davão. Á tarde cantavão as Ladainhas em mu-
sica de órgão: os domingos, e festas levantavão altares com ricos para-
mentos, e com a imagiMn santíssima [)i!itada por S. Lucas; e dizia o Padre
Ignacio missa, se não consagrando ([)or consideração dos perigos do mar,
e uso d"af|uelles tempos; fazendo comtudo no mais aqiielle santo sacrifício
com a mór solemnídade possível. Assislíão os mareantes com círios bentos
8t)
l.IVRO IV BA CHROMCA DA COMPANHIA DK JKSU
nas maus; e no fim da missa, tirada a casula, fazia Igiiacio pregação, ordi-
nariamenlu da cíjaridado, com que nos havemos de amar huns aos outros.
Com estas, e cora praticas particulares, e principalmente com o exemplo
de tantos Religiosos, andava toda a náo tão composta, como se fora huma
Religião : raramente se vião n"ella jogos, nem jmamentos, nem outras pa-
lavras descompostas. Cobrou tanto dominio sobro os coraçijes, que acabou
com elles que lhe entregassem as cartas, dados, e livros profanos, de que
usavão : e era pêra ver diante d'elle hmii grande numero de maços, de da-
dos, autos, coplas, e comedias profanas, lazer d"elles publico cadafalso,
queimando-os, e lançando-os ao mar, sem repugnância alguma dos donos:
em cujo lugar dava Contemptus mundis, Cartilhas da doutrina, Horas da
Senhora, e pcra a Corftmunidade deo hum Fios Sanctorum, que pozerão
em publico, por onde todos lião. Tirou Santos hum dia, e ensinou aquell a
gente como se havia de encommendar cada hum ao que lhe coubesse por
sorte. E os mesmos exercicios fazião, o Padre Pedro Dias, e Francisco de
Castro nas nãos em que hião.
21 Constava a frota de sette nãos, e huma caravela: hia toda junta em
conserva, e tanto á falia, que podião communicar-se huns com os outros :
de dia festejavão-se com salvas de artilharia: e porque de noite houvesse lam-
bem algum alivio do espirito, mandaya o Padre Ignacio cantar alguns Mú-
sicos cpie levava, os Irmãos Magalhães, Álvaro Mendes, e Francisco Peres
Godoi, ao soni de huma harpa, prosas devotas ; e era a musica tão sen-
tida e saudosa de noite sobre o mar, que fazia levantar os espíritos, e atra-
ída a si os navios, que pêra ouvil-a se chegavão mais perto : o Padre Igna-
cio subia ao Ceo, rompia em lagrimas, e parecião-lhe aquellas as vesporas
das alegrias que cedo esperava.
22 Chegarão á ilha da Madeira, e aqui forão os nossos agasalhados no
Collegio novo, que tinha mandado fundar n"esta cidade El-Rei D. Sebastião,
pelos Padres Manuel de Siqueira, Belchior de Oliveira, e Pedro Coresma, que
tinhão sido companheiros em Vai de rosal. Abraçárão-se com grande ale-
gria, renovarão alli as saudades d*aquella solidão, c recreárão-se era o Se-
nhor, segundo a possibilidade da Casa. Houve em toda aquella terra refor-
mação espiritual, cmquanto alli estiverão estes hospedes: chegarão em tem-
po Ue jubileo, e concurso de gente, e quando vião tantos 'da Companhia
exercitar seus ministérios, sua modéstia, e mortificação, todos folgavão de
confessar-se cora clies, e anrovcitar-se de seus conselhos, e espirito, iou-
DO ESTADO DO BRASII, (aN?\0 DE 1570) 87
vando ao Ceo por ver tantos sujeitos desterrados das pátrias ir habitar ne-
tre gentios bárbaros.
23 Detinha-se o Governador com saa frota, esperando tempos accom-
modados, por arrecear as calmarias de Guiné: porém a náo San-Tiago pe-
dia instantaneamente licença pêra chegar á ilha da Palma, Imma das Caná-
rias: não parecia bem ao Governador a resolução do mestre d'ella, pelo
perigo dos inimigos cossarios, que commummente infestavâo aqaella para-
gem: mas como allegasse que era forçosa sua ida, porque trazia fazendas
de partes, e havia de carregar outras n"aquella ilha pêra o Brasil, segundo
as ordens e contractos de seus correspondentes ; e que emquanto alli se
detinha a frota, podUa fazer seu negocio, e ir encontrar-se com ella ao mar,
houve de alcançar licença. Havida esta, propuserão os Religiosos, que não
convinha ir n"esta náo o Padre Ignacio, cabeça de todos, e em quem es-
tribava o ])eso da missão: que mandasse outro em seu lugar, e fosse ello
em companhia da Armada. Porém não era este o varão, que havia de me-
ter aos outros em trabalhos, e perigos de morte, e ficar-se elle de fora :
era o mesmo, que em Vai de rosal ensinava, que havia hum Religioso de
chorar com lagrimas de sangue levar-lhe outro a occasião de humildade,
e mortificação.
'±'i Tradição he, que foi dizer missa a Nossa Senhora do Monte, e tor-
nou d'ella resoluto, não só a ir elle, mas a representar o perigo aos com-
panheiros, e não levar comsigo senão aquelles, nos quaes se visse animo
apostado. (Sc foi sentimento, ou revelação de Deos, não o resolvo ; que
houve suspeitas disso, si.) O publico foi, que chamou a todos, Padres, e
Iimãos, e lhes fez huma pratica eílicaz, na qual, com i)alavras sabidas do
intimo da alma, lhes propoz as razões do perigo, e o fez tão presente, co-
mo se já o vira com os olhos: que quem não sentia em si animo pêra dar
a vida a mãos de hereges, valia mais ficar-sc com a frota. A esta pratica
se inflamarão os corações dos companheiros em dobrado fervor: responde-
rão, que crão mui contentes de dar a vida por quem a deo por elles; (jue
isto era o que vinhão buscar; que perdel-a entre gentios no Brasil, ou en-
tre hereges no mai-, o mesmo vinha a ser, senão que por mãos d'estes se-
ria mais gloriosa sua coroa. Traqueárão comtudo quatro Noviços avistado
encarecimento do perigo da morte; aos quaes com nmito boa vou tade con-
cedeo licença pêra íicarem com o Padi'e i*edro Dias. (K aqui so virão os
secretos dos juizos divinos, que nenhum d"estcs Noviços perseverou na
Companhia; porque os que não tiveião coração pêra mei-ecei' o dom futu-
88
J.IYP.O IV DA CURUMCA DA COMPANHIA DK JESL'
ro, fossem despojados do pi'esente, que já possuiãij.^ A mesma pratica fez
aos mariíilieinis, e passageiros, [)n)poiido-Hi(í (*(jm igual eíficacia a coiilin-
geiícia em que estavão de encontrar cossarios inimigos, e arriscar as vidas:
e aos vinte e nove de Junho, dia consagrado aos bemaventm^ados Apósto-
los S. Pedro, c S. Paulo, disse missa na Igreja de San-Tiago, e sacramen-
tou a todos, assi Religiosos, como seculares da náo, pêra a partida.
25 Erão já trinta do mez de Junho do anno presente de mil e quinhen-
tos e setenta, quando depois de despedidos com lagrimas dos companhei-
ros que licavão, como aquelles que mais se não liavião de ver n'esta vida,
do Governador, • e de toda a mais frota, recebidos na náo San-Tiago os
Irmãos João de Majorca, António Fernandes, xiffonso de Bayena, e outro
«]ue quizerão ir em lugar dos que fraqueárão, partio, como a sacrifício,
aquelle rebanho de cordeiros do Senhor, levando após si os corações de
todos. Hum dia só havia que tinha dado á vela, quando chegou recado ao
Governador D. Luis, que apparecião sobre Santa Cruz, porto da mesma
ilha, cinco náos francesas, vindas da Rochela, por capitão Jaques Soria,
inimigo capital de Gatholicos, e infestissimo de Jesuítas. Prevendo elle o
perigo dos nosso:|;, com zelo christão procurou entretel-os, ou rendel-os
se podesse. Mandou preparar alguns navios a toda a pressa, e ao romper
da alva sahio em pessoa contra os inimigos: porém elles, ou por que an-
davão occupados com presas que havião tomado, ou porque sentirão a foi"-
ça de nossas náos, não acceitárão o conllicto, fazendo-se á vela pêra o mar
na volta das Canárias.
26 Hia n^este tempo a náo San-Tiago conquistando os mafes, e os nos-
sos o Ceo com suspiros: não se ouvião outras vozes n'aquelle cenáculo,
onde se recolherão, se não da morte, de dar a vida pela Fé (e he cons-
tante fama, que houve aqui revelação divina da coroa de Maríyres de qu(5
havião de gozar.) O Padre Ignacio especialmente a este ílm dirigia todas
suas praticas. «Oh Irmãos (dizia) se fosse o Ceo servido, que nos tirassem
estag vidas pelo amor de Deos! Oh quem fora tão ditoso, que se vira já
derramando sangue a mãos de hum herege pela Fé Catholica!» Depoz o
Irmão Sanclies, que forão mais de cincoenta vezes, as que lhe ouvio estas
e semelhantes palavras. Sette dias gastarão até chegar á terra, e forão
clles sette dias de aparelho pêra a morte : assi tratavão d"ella, como se já
a virão presente: nem consentião que na náo se fallasse n'ouíra matéria.
Vigiavão seu quarto dous mareantes, quando já alta noite, imaginando
que dormião os Padres, e não erão ouvidos, começarão a travar entre si
DO ESTADO DO BRASIL (aNXO DE 1570) 89
praticas pouco convenientes. Ouvio-os o Irmão Bento de Castro, que esta-
va eni vela, e pousava d(;baixo: e respondeo-lhcs com o som de huma dis-
ciplina tão rigorosa, que os fez callar envergonhados. O mesmo fez com
outros o Irmão Domingos Fernandes ; e ficarão dalli tão ensinados, que
não faUárão mais cousas desconcertadas.
á7 Avistarão ao settimo dia a terra desejada; mas era o vento rijo, e
escaco, e não poderão tomar a Cidade: foi força recoUier-se em hum porto
junto a Terça corte, por não desgarrar. Morava aqui hum fidalgo Francez,
abundante de bens de fortuna, que se criara na cidade do Porto com o Pa-
dre Ignacio: este lembrado da antigua amizade, e conhecimento, orecebeo
e hospedou humanissimamente. Mostrou-lhe a grandeza de sua casa, quasi
j)alacio de hum Príncipe, as peças ricas de seu uso, especialmente as de
huma fermosa Igreja que tinha, adornada de ricos paramentos de seda, e
borcado ; e depois disso seu jardim : cousas todas que podião recrear a
vista de qualquer hospede. Tudo lhe agradecia Ignacio, e os companheiros;
6 muito mais o animo com que desejava recreal-os: porém n'outros praze-
res tinhão postos os olhos, a cuja vista ficavão estes mui atraz. Tratou Igna-
cio de cousas do espirito com seu hospede : era elle igualmente magni-
fico e pio; confessou-se com elle, disse-lhe missa, c commungou-o em sua
Igreja.
28 Profundos são os segredos de Deos; não pôde o homem dar alcan-
ce aos secretos de sua divina providencia: cinco dias gastou n"esta pai agem
este santo varão, e todos elles empregou aquelle bom amigo empersuadir-lhe,
que fosse por terra d"al!i acidado da Palma, porque era somente caminho de
treslegoas, epor mar tinha grandes rodeios, c enseadas, e havia perigo de
encontrar cossarios, ordinários em aquella paragem; que elle daria caval-
gaduras, camelos e todo o necessário pêra os Religiosos, e todas suas
cousas: e comtudo não pôde sahir com seu intento. Ao principio esteve
duvidoso, Ignacio; porfjuc por huma parle obrigava-o a charidade do amigo,
])or outra fazia-se-lhi; dillicuUoso deixai- a náo, e sua companhia: e depois
de maiores instancias, chegou a mandar preparar pêra ir por terra, desem-
barcando pêra isso elle, e os companheiros: a este fim se foi a diziBr mis-
sa, e commungou-os por despedida: porém aqui o que Deos lhe doo a sen-
tir não se sabe ao certo: o que se vio foi que d'aqiiella missa ficou troca-
do, e tratou logo de embarcar-se, cir por mar. Costumava este santo varão
nas cousas de maior importância consultar na missa com Deos, e dava-Ihe
cll(^ a sentir muitas vezes o que queria se fizesse: era sabido entre os Re-
90 LIVRO IV DA CHRONICA DA COMPANÍIIA DE JKSU
ligiosos este sou cosUime; e fFesta vez notárãi) qiiR saliio comoliomem en-
vergonhado, qual se houvera consenlido em alguma tentarão : e juntos os
Religiosos ilies disse: «Eu estava em irmos por terra, pelo perigo que ha
de cossarios; porém, irmãos, estes que nos podem fazer, senão mandar-nos
mais cedo ao Ceo? Estou resoluto em que vamos por mar: assi o sinto em
o Senhor.» Que homem houvera que, levando esta resolução por prudên-
cia humana, não julgara que era acto menos discreto, querer antes entre-
gar-se a riscos tão grandes, indo por mar, que ir por terra, com tanta se-
gurança, e commodidade? Comtudo assi o destinava o Ceo, cjue por este
meio hia traçando a seus servos a coroa que logo veremos. Foi despedir-
se do amigo, que n'este fim mostrou mais fma a liberalidade de animo.
Mandou prover todos os Religiosos do necessário, e a náo de refrescos, e
matolotagem de carneiros, galinhas, coelhos, favos de mel, pães de assucar,
tudo com abundância. Acompanhou-os ao mar, onde foi festejado com to-
da a salva da artilheria, e convidado com huma religiosa merenda de cousas
da ilha da Madeira; e abraçando todos os nossos, se despedio com lagrimas.
29 Partio aquella Gompanhia do Porto de Terça Corte, huma quinta feira
pela manhã: e como o vento era pouco favorável, depois de feito vagaroso
circuito, ao romper da manhãa do sabbado, se acharão defronte de Palma
com três legoas ao mar. Porém outro era o porto, e outra era a palma
mais feliz, pêra onde Deos os guiava; porque quando com alegria dos ma-
reantes preparavão o bordo pêra terra clamou do alto topo do maslo gi'an-
de o gageiro: «Yela, vela:» e emquanto asseguravão a vista os debaixo,
tornou a clamar: «Apparecem mais quatro menores, demorão a tal parte.»
Foi grande a perturbação dos mareantes, como soem em semelhantes ca-
sos: huns lançavão discursos, que seria a frota de D. Luis de Yasconcel-
los, que deixarão na i\Iadeira; porque a Capitania representava a náo da
ladia: porém passou pouco espaço, e desenganárão-se que erãonâos Francesas.
39 E porque desde logo saibamos que esquadra he esta, e que intento
traz; he de saber, que depois das notórias revoltas do tempo do Christia-
nissimo Rei de França Carlos Nono com os hereges Hugonotes, da treição
com que tirarão a vida ao Catholico Duque de Guisa, e da com que pre-
tendião prender ao próprio Rei, e a Rainha sua mãi, por defender a Fé
Romana; e ultimamente do castigo que n'elles executou o mesmo Carlos
Nono, com morte de trinta mil do mais granado*; levantando-se o restante
{•) Segundo o computo do Pa'lrc Guerreiro da Companhia de Jesu. na sua terceira parto
dos «Elogioi-j, cap. viii, foi. 328.
DO ESTADO DO BRASIL (ANNO DE 1370) 01
dos Iliigonotes com algumas das forças de França, Rochela, Montalvão,
Montpelier, e outras; os que vlvião junto ao mar, faltando-Ihes a extensão
(la terra, tomarão o orilcio de piratas; e e itre estes, hum dos mais famo-
sos cossarios daquelle tempo, foi Jaques Soria, grande herege, inimigo
capital de Papistas, e sobro tudo de Jesuitas, que assi lhe chamavão: ti-
nha sido Almirante do affamado Pé de pão, quando saqueou a ilha de Pal-
ma, e era agora Almirante da Rainha de Navarra Madama Joanna de la
Brit, e por ordem sua infestava os mares com quatro náos fortemente ar-
madas, e com ellas sahira este anno da Rochela. Este cossario pois, era o
que vião os da nossa náo San-Tiago; este o que foi visto na ilha da Madeira,
onde roubou, e abrasou alguns navios ; contra quem sahio o Governador
D. Luis: devia ter falia de como era partida a náo San-Tiago; e qual o lobo
carniceiro, que deixa o rebanho vindo com medo dos rafeiros, e vai bus-
car a ovelha que se apartou: tal o cossario Jaques Soria, não usando aco-
metter as náos de D, Luis, busca e acomette a de San-Tiago, só e desgar-
rada. Chamava-se a sua capitania a náo Príncipe : era hum galeão, trazia
trezentos liomens armados de saias de malha, e armas brancas, e a arti-
lharia toda era de bronze.
31 Á vista de tão poderoso inimigo, que podia fazer a náo San-Tiago
de pequeno porte, fraca artilharia, e quarenta homens de peleja quasi des-
armados? Parecia huma pequena casa em comparação de huma grande tor-
re. Comtudo não perderão os ânimos os Portugueses, e íizerão resolução
entre si de defender como esforçados seu partido, até perder as vidas, ou
alcançar victoria. Prepararão a toda a pressa as cousas necessárias,- desfize-
rão o refeitório dos Padi-es pêra jamais o não tornar a ser, assestarão
n'ella a artilharia, fizorão xareta, lançarão paveses, e bandeira de guerra,
e esperarão o inimigo. Porém entre preparações tão acesas, c em quanto
o impulso da guerra rompe aposentos, desfaz retiros, toca caixa, torna ao
convés, praça de armas militares, vejamos o que fazem os soldados da
milicia de Christo.
32 Era pêra ver o coração intrépido de Ignacio no meio dos seus,
como estavão juntos, no fim das Ladainhas, com a Imagem da Virgem nas
mãos, fallando-lhesassi: «Oh Irmãos de minhas entranhas! segundo mo diz o
coração, será esta a ultima pratica que n'esta vida mortal vos faça: não são
necessárias muitas palavras, onde o tempo he tão bi'eve, e os corações tão
dispostos. Temos chegado ao fim de nossos desejos: á vista estamos do
porto, e palma da mor estima, (}ue podião esperar nossos trabalhos; hoje,
92 i.iVRO IV DA rnr.oxicA da coMPAXiirA df. jfsu
hoje, nos tem a ventura gnanlado que entremos juntos, como estamos, a
gozar d'a(]uella terra venturosa, e (raquella compantiia feliz do Senlior, que
nos redemio com seu sangue; d'esta Senliora, que até aqui nos favoreceo,
e dos Santos, que sempre invocámos. E que meliior porto que este? e que
melhor palma? Oh bem afortunados trabalhos! quão bem empregadas acha-
reis agora as penitencias da solidão de Yal de rosal, vossos cilícios, vossas
disciplinas, vossas vigílias! agora vos abrem estas o porto, agora vos for-
mão a palma, com que haveis de entrar triumphando n"aqaellas praças
eternaes, que tanto desejáveis. Oh Irmãos meus, que ventura tão grande!
pêra tão ditosa fortuna vos formou a natureza, lavrou o espirito, predes-
tinou a graça. Oh ^Uz sorte! Que venha esta a reduzir-nos a hum breve momen-
to de tempo, os annos largos do Brasil, de seus sertijes, de seus gentios, e
de suas dilatadas cruzes? e jâ, e já morramos todos, pêra que queremos
a vida, senão pêra" comprar em hum momento o eterno peso da gloria?» Ao
som d'esta pratica ultima, ultima manda, e como testamento de pai, assi como
estavão de joelhos, levantados os olhos e as mãos ao Ceo, romperão todos ein
voz alta, n'estas palavras: «Faça-se em nós a vontade do Senhor: d'aqui lhe
dedicamos nossas vidas, e estamos preparados a dar o sangue por seu
amor. »
33 Vinha n'este comenos infunadas as velas a capitania de Jaques So-
ria, qual ave de rapina, seguindo a presa da pomba, com curso velocíssi-
mo. Pedio o Capitão da náo ao Padre Ignacio alguns dos companheiros
pêra ajudar a peleja, supposto o numero limitado de sua gente; animou-os
o servo de Deos; e já que estavão determinados, os advertio, que peleja-
vão contra hereges inimigos da Fé, e da Santa Igreja Romana, em cuja
briga sempre ficavão com victoria, ou vencendo aos inimigos, ou morrendo
a mãos de hereges pela Fé de Christo. E supposto que seus companheiros
por Religiosos não erão aptos pêra armas, deo-lhes para os ain'mar na bri-
ga, dos mais esforçados, que pêra isto se offerecêrão, o Irmão Manoel Alva-
res, João de iMajorga, Gonçalo Henriques, Manoel Pacheco, Domingos Fer-
nandes, Francisco Peres, António Soares, o padre Pedro de Andrade, Es-
tevão Zurara, João de S. Marlim, e João de Bayena: assinou-lhes seu oíTi-
cio, animar e esforçar aos que i)elejassem, acudir com conforto aos cansa-
dos, retirar os feridos, cural-os, confessal-os, e protestar a altas vozes, en-
tre as armas, a Fé de Christo, e Igreja Romana.
34 Chegava já a tiro de peça a náo de Jaques Soria : deo principio
DO ESTADO DO BRASIL (aNNO DE 1570) 93
com himi pelouro, a qrie ainaiiiasso a nossa; foi a reposta disparar n^ella
toda a artilharia; que como a não era grande, c a soldadesca basta, fez
bom emprego, c matou a muitos. Aqui começou a acceiíder-se a peleja,
(lesfazcndo-se em fogo de parte a parte ambas as nãos. Prepai-ou Jaques
pela nossa, e pi'eteudeo meter-lhe gente ; mas como não podia aferral-a,
sallái'ão dentro ti'es homens armados siJmeiite, entre os quaes hia o Sotto
capitão, segunda pessoa de Jaques, tida em grande conta. Brigarão estes
no convés valentemente; e como bem armados poderão resistir algum tem-
po, até que vencidos, meio vivos forão lançados ao mar, com grande sen
timento de Soria, que estava á vista. Instigado da dor, acometteo a se-
gunda c terceira vez, mas também sem effeiío; porque querendo saltar al-
guns na náo, cahirão ao mar armados, e foi"ão ao fundo. Comia-se de rai-
va Jaques Soria, vendo frustrados seus intentos; resolveu-se, que era ne-
cessário mais força; voltou a quai'la vez, trazendo comsigo as outras qua-
tro nãos, cercou a nossa, e atravessando elle por proa, as quatro pelos
lados, dispararão sobro ella toda a artilharia, com damno, e morte de al-
guns Portugueses: acabada a fumaça, botanrlo arpéo, lançon-lhe dentro
cincoenta soldados do armas brancas, e dando por certa a victoria, pela
dilTerença conhecida de poder a poder, poz-se de largo a ver o snccesso
do alto da popa de seu galeão.
',yò Travou-se a briga cruelissima, pelejando esforçadamente de huma e
outra parte; huns defendendo a causa de sua lib(n'dade, vida e fé; outros
a de sua cobiça, impiedade, e mortal ódio. Porém aqui he bem se veja
agora o esforço do capitão Ignacio, por tantas vezes prometido, e pêra aqui
guardado. Non sicut mori sicut solent iynavi mortuus cst Abner. Aquelle
posto, que huma vez escolhco vivo, esse mesmo cobrio na guerra seu cor-
po morto, esse mesmo lavou com seu sangue. No meio da náo ao pé do mas-
to |)rincipal o acharão os inimigos, ahi o acabarão a pé quedo. Poderão
tirar-lhe a vida, mas não as armas; porque o escudo da santa imagem da
Virgem, que pintou S. Lucas, e tinha embraçadíj, nenhum lho pode tirar
das mãos, por mais que pretendco fazel-o o rancor dos hereges. Dalli pro-
testava a Fé llomana, dalli erão ouvidas poi' cima do estrondo das armas,
estas suas palavras : «Irmãos, defendei a Fé de Christo, pelejai esforçada-
mente pela Igreja Catholica Itornana; contra hereges o haveis, que andão
errados, e f(')ra do caminho da verdade.» Alli recebco a pé quedo da mão
ílc hum hei-ege, que ouvia suas vozes, e via seu sagrado escudo, mettido
cm ódio, c furor, huma cutilada cruel, com que lhe fendeo a cabeça, o
94 LIVRO IV DA CiÍRO.MCA DA COMPAMÍÍA DE JESlí
ílescol)río 03 cérebros. Aqui outras quatro lançada^, a cujo rigor desfaíeceo
o corpo, mds não o brio. Cahio sobre seu sauguc no mesmo lugar, onde
cantara Ladainhas, fizera falia aos Irmãos, tivera oração, esperara o confli-
cto, animara os soldados, prostestara a Fé, e reprehendera os hereges. Po-
rém estava ainda forte o espirito, e por mais que o ruido era grande, fo-
rão ouvidas em todo o convés estas suas palavras: «Sejão-me testemunhas
o mundo, e os Anjos, e os homens, que morro pela Fé Catliolica, e Igreja
Romana, e por tudo o que ella confessa!...»
36 Aqui acodirão os companheiros á voz de seu pastor ferido. O Pa-
dre Andrade se abraçou com elle, com laços tão fortes de amor, que não
poderão apartal^os: ambos foi força retirar a hum camarote junto ao
leme, onde ultimamente éq reconciliou com o mesmo Padre. Chegavão to-
dos banhados em lagrimas de sangue, e easanguentavão-se no bemdito Mar-=
tyr, abraçavão, e beijavão suas feridas: elle porém despedia-se d"elles ba-
nhado de alegria, e por seu ultimo amor lhes rogava, que não chorassem
por sua morte, antes se alegrassem: «Fez-me Deos pastor vosso (dizia) he
bem que vá aparelhar-vos o lugar: o mesmo disse Christo a seus Discípu-
los: Vado par are vobis lociim: Oh filhos meos, quão suave he a morte por
Christo! nenhum desmaie^ morrei todos por elle!» E n'estas palavras escoado
do sangue, fixos os olhos na santa Imagem da Virgem, que nunca largara ,
sem sinal de sentimento algum, passou a gozar do premio de seus grandes
trabalhos.
37 Seguio a seu pastor immedia lamente o esforçado Irmão Bento de
Castro: o qual ao primeiro furor do inimigo despedido dos mais Irmãos,
se foi meter entre os que brigavão, armado só com a espada vencedora
da santa Cruz, porque por ellíí fosse conhecido, e desse claro testemunho
da Fé que professava: e animando a altas vozes aos nossos, que pelejas--
sem pela Igreja Romana, e desenganando os hereges de sua cegueira, foi
passado com três arcabuzadas: e não sendo bastantes pêra que cahisse tão
grande constância, carregou sobre elle o o(íio mortal dos hereges, e a for-
ça de sette punhaladas, dadas á mão tente, no mesmo lugar, onde come-
çara, com a mesma constância de espirito, protestando a Fé em que mor-
ria, e abraçado com a Cruz de Christo, cahio desmaiado, envolto em seu
sangue, e meio vivo foi logo lançado ao mar. O terceiro em ordem foi o
Irmão Diogo Pires de Nicéa, chamado de antes o ]\Iimoso, nunca mais que
agora do Ceo, cjue junto ao lugar donde morrera seu capitão, deo cons-
tantemente a vida a mãos de hum cruel soldado, que aceso em ódio de
DO ESTADO DO UUASIL (ANNO DE 1570) 95
ouvir sua3 vozes com que protestava a Fé Romana, o buscou com huma
lança, c atravessado de parle a parte o lançou ao mar.
',iH A estes seguirão na [lalma da victoria aquelles apostados soldados,
que seu bemdito Padre Ignacio havia destinado á guerra. Estes, e outros
gueri-eiros valerosos, que se lhe ajuntarão, de[)ois de despedidos de seu
pastor, tomada sua benção, e composto aquelle santo corpo defunto, tor-
narão â briga,, com novo brio, quaes elephantes á vista do sangue, de que
vinlião tingidos. «Eia Irmãos (dizião) morramos todos, sigamos a nosso ca-
pitão.» O Irmão João deMayorga pintor, cançado iguabnente de animai", e
protestar a Fé, entre os combates, por espaço grande, conhecido pela rou-
peta, e barrete que trazia da Companhia, acommetido não menos qiie de
seis ou sete soldados da seita pérfida, foi lançado vivo, e sem ferida algu-
ma, mas com mais crueldade, ao mar. Os Irmãos Gonçalo Henriques do
Porto, Manoel Rodrigues de Alcochete, Manoel Pacheco de Ceita, o Este-
vão de Zurara Biscainho, emljebidos no vivo da peleja, acudindo a huma
c outra parte, animando os soldados, protestando a Fé, e o ser de filhos
da Com|janhia, nem souberão da morte de seu pai Ignacio, nem os que
concorrerão a despedir-se d'elle, souberão da sua; só conhecerão que forão
lançados ao mar, como tinha feito aos outros o furor herético ; porque
tornando á peleja, nunca mais os virão na náo.
39 O irmão ^Manoel Alvares não tem a menor parte em tão grande em-
presa: defeiideo sempre sobre a xareta, c castellos de popa: seu valor foi
insigne: igualmente desprezava a morte, que os inimigos: aquella procura-
va, protestando a Fé a vivas vozes, que atroavão todo o convés, e erão
ouvidas até nas nãos distantes : estes detestava por cegos, errados filhos
de perdição. Cessava já o furor da briga, mas não cessava o esforçado sol-
dado de Christo com a protestação de sua Fé : arremetem os infernaes
saiões, e fartão nelle seu rancor: retalhão-lhe o rosto, estendem-lhe as
pernas, e fazoin-lho em pedaços as canelas com os canos de arcabuzes ; e
não quizerão acabal-o, por que não acabass(3 sua pena. Retiráião-no os Irmãos
pêra si, c vendo que sentião seu tormento, virado a elles, lhes disse: «Ir-
mãos, tende-me inveja, não lastima; que eu confesso que nunca mereci a
Deos tão grande bem: quinze annos ha que estou na Companhia, passão
de dez que peço a viagem do Brasil, (i me aparelho pêra ella, e com só
esta morte me dou por bem pago de todos meus serviços.»
40 A este tempo o Capitão da náo mortalmente ferido, vindo-se reti-
rando do casíello de i>opa, onde pelejai a animosamente, entrou no camaro-
96 I.IYRO IV DA ClIRONICA DA COMPAMIIA DE JESU
te em que estavão os Irmãos postos em oração diante das sagradas Ima-
gens: o que vendo o furor dos hereiD^es que o vinhão seguindo, do[)ois de
acabarem de matar o Capitão, detestando o aclo dos servos de Deos como
idolatria, fizerão Ímpeto sobre elles. Ao Irmão Braz Ribeiro Bracbarense, de
vinte e quatro annos de idade, sete mezes não mais da Companbia, que-
brarão o casco da cabeça, até lhe espalharem os cérebros com as maçãs de
suas espadas, deixando-o morto. Ao Irmão Pedro de Fontoura, também
Bracbarense, cortarão com huma cutilada o queixo inferior da boca, e com
elle a lingoa. Ao Irmão António Corrêa Portuense derão huma grande pan-
cada na cabeça com os cabos de outra espada, queixando-se elle aos de-
mais Irmãos por ser tão duro, que ficava ainda com vida.
41 Morto o Capitão, que pelejava com valor, e mortos os Irmãos, que
metião coração no conflicto, acabou-se a briga, e rendeo-se a náo San-Ttago.
Dos nossos morrerão quinze ou dezaseis, os mais d'e}les forão depois lan-
çados ao mar pelos Franceses ainda vivos, mas mal feridos, por escusar
trabalho em cural-os. Dos hereges morrerão trinta; entrando em conta os
que acabarão com a artilharia nas nãos inimigas: e não foi maior o nume-
ro porque vinhão armados por todo o corpo. Seja exemplo o de bum ho-
mem do mar natural do Porto: era esforçado, não tinha outra arma mais que
huma lança, com esta fez bote a hum d'estes armados, e deo com alie no
convés, foi sobre elle, e querendo matal-o, nem achou com que, nem por
onde: tirou-lhe a espada da mão, mas não pode tirar-lha do braço, onde
vinha amarrada. Que remédio? Lembrou-se o l)om Portalés, que trazia hu-
ma faca pendurada á ilharga, tirou-a da bainha, mas não achava por onde
empregal-a, até que descobrio certa junta em huma das ilhargas, por ahi
a meteo, e lhe acabou a vida; mostrando seu esforço, o juntamente a dif-
ficuldade de matar hum homem bem armado.
42 Espalhárão-se logo os vencedores a tomar posse por varias partes
da náo, e a saquear, segundo seu costume, pelos baixos, e camarás. Aqui
se vio mais que em outra parte o ódio d'estes inhumanos hereges pêra com
os nossos: porque sendo assi que acabada a guerra, por commum direito
das gentes, em sangue frio, nem se mala, nem se afronta rendido algum,
aem o fazião aos que o ferirão, e matarão: com tudo, quaes lobos Hircanos
em rebanhe só sem pastor, nem rafeiros que possão defendel-o, achando
debaixo das cobertas os Padres, e Irmãos, que ficarão acompanhando a
corpo defunto de seu mestre Ignacio, curando os feridos, c todos elles taes
do trabalho, que erão dignos de compaixão, usarão com elles então da maior
T)0 ESTA1)0 DO iJRASIL (ANNO DíC 1570) 97
c-raekhde: vendo alli vivo ainda o esforçado Irmão Manoel Alvaivs lidando
com a morto á forra de dores excessivas das fendas mortaes que ilie de-
rão, conhecendo que era aqiielle que animava, c ])roteslava a Fé, do cas*
tello da popa o lançarão assi meio vivo ao mai\ O mesmo íizerão ao Ir-
mão Fontoura no meio das penas de seu queixo, e lingoa Cortada, ainda
vivo.
43 Porém o que sobre tudo intimamente lhes magoou as almas, foi que
dentre os braços lhe tirarão a(|uelles algozes do inferno, o venerável c san-
to corpo defunto de seu amado pai Ignacio, relíquia ultima de sua consc'
laçãOj e consolação derradeira de seus vivos exemplos^ e o lançarão tam-
bém ao mar: nrrancárão-lho dos bríiços, mas não dos olhos; porque com
estes o seguirão ainda do alto do bordo, até desapparecer; e forão teste-
munhas de hum caso insólito, notório em toda aquella não* que andava o
santo cadáver lioinnfe sobre as agoas com os braços a])ertos em forma de
cruz; porque aíiuelle que vivera em cruz, em cruz morresse; nem fosse
ao fundo aquellc, que não tivera o commum peso sensual da carne. Jul-
gárão-no por portento todos os da náo, que com cuidadíj o notarão ale o
perderem de vista, sabendo mui bem, que hum cadáver fiio se vai ao fun-
do da mesma maneira que hum sacco de terra. Oh se nunca perdêramos de
vista, os que somos íilhos d'esta sua Província do Brasil, tão grande exem-
})lo d'aquelle, que não só em vida, mas ainda na morte, nos ensinou a ver-
dadeira mortilicação da Cruz! 13em sei que diz Richardo Yestegano no seu
Theatro da crueldade hci^ctica foi. 54, que até lançado ao mar levou Igna-
cio a Imagem da Yii'gem comsigo, sem que lha í)udessem tirai-: porém nós
sabemos, (jue depois de lançado ás agoas, andou sempre em cruz sem
Imagem: podia ser que lançado com ella, alli a largasse ás ondas, antes
que a hereges; e trocasse então a que fora com[)anhia na vida, por seguir
a Imagem do Filho na morte. K assi parece o entendem muilos aulhoi-es,
quando fallão d"esta Imagem santa. Aos que ficarão vivos morliíiiáifio es-
tes hereges de maneira, que fora menos pena lançal-os logo a morrer com
o pai morto: gozáião no menos até espirar, da vista e eompanliia de(|Ut!m
tanto amavão. Porém (.'Ui ípianto esta hora sua não chegava ([>oi'que não
(jusavão íis algozes tudo o que querião) afrontavão-nos de palavras, e obras,
chamando-lhes i)en'os, diabos, Papistas, Jesuítas, Presí)yt(M-os (as maiores
afrontas a seu [lareccr) dando-lhes bolctadas, e punhadas [un- desprezo: <;
d'este modo apremiados, lhes enln-gárão o Irahalho da bonilja, ponpie se
hia a náo ao fundo, aberta das bombardadas do principio da liriga.
\0L. u 7
98 LIVRO IV DA ClIRONICA DA COMPANHIA DE JESU
44 Façamos aqui Imma digressão, cm quanto por ora se occupão com
a bomba. .laques Soria, a quem do peito não sabira o sentimento da mor-
te do seu Sotto Capitão, que da popa de sua náo vira matar no principio
da guerra, mandou que fossem levados a sua pi-esenea, o Mestre, e Cala-
fate da náo San-Tíago, que o ajudarão a matar: levárão-lbe lambem entre
estes o Irmão Simão da Costa, mancebo como de vinte annos. Noviço que
começava a ser da Companhia, mas debaixo ainda de trajes seculares: não
se sabia a causa; suspeitava-se, que como era de boas partes, e bem apes-
soado, cuidarião que era fdlio de algum grosso mercador, e quererião ti-
rar d'elle o porte das fazendas da náo. A este em primeiro lugar chamou Ja-
ques Soria; e a primeira pergunta foi: «Se era Jesuíta, ou não?» Porém Simãít,
supposto que negando sabia que escaparia da morte, foi filho leal, confes-
sou claramente que era Religioso, irmão daquelles, que pouco havia derão
a vida pela Fé Romana: do que indignado Jaques Soria, logo alli lhe man-
dou cortar a cabeça, e lançar ao mar. Ditosa almal Comummatus in brevi
cxplci-it têmpora multa. Em segundo lugar tratou do caso do Mestre da náo,
e Calafate, e forão sentenciados a morrer cortadas as cabeças, por matado-
res de huma pessoa principal.
45 Tornemos agora aos Irmãos que estão á bomba, cansados igualmen-
te de trabalhar, e de esperar sua ultima sorte. Chegavão jã a desfallecer, leve
líistima d'elles o Padre Andrade, e vendo estar o (Capitão, que então era
jumi sobrinho de Jaques, l^Ionsicur Marlim, no castelío de popa, conversan-
do igualmente com os seus e os nossos homens da náo, humana e amiga-
velmente; foi-se a elle, e pedio-lhe tivesse compaixão dos Irmãos, que che-
gavão a não poder ter-se em pé de fraqueza. A reposta foi cruelissima, bem
parecida ao ódio que logo veremos do tio: arremeterão quaes lobos feros
ao cordeiro manso, pisárão-no a couces e punhadas, lançáião-lhe por des-
prezo o barrete ao mar, e a elte por derradeiro da xareta abaixo, tão pisado,
que lançava sangue por boca, e narizes. Oh feras desiiumanas! a hum ho-
mem rendido, desarmado, confiado em vossa presença? Que humanidade,
que cortesia lie esta? Não sabe o ódio, quando he entranhavei, usar de leis
de cortesia, nem de misericórdia. Esta impiedade lhes acendeo os corações
pêra outra maior. Quiserão que todos os Irmãos passassem pelo mesmo
contraste; levárão-nos da bomba pêra o castelío de proa, com as mesmas
injurias, e tormento. Aqui se apparelhavão já os servos do Senhor pêra se-
rem lançados ao mar: porém não era chegada a hora do poder dos minis-
tros das trevas; erão somente preparações da morte: lirárão-lhe a todos
I
DO ESTADO DO DRASiL (aNXO DE 1570) 00
roupetas, e barretes, c não 'se farleivão de afrontar e maltratar de novo
com mais rancor aos que vião com coroa na cabeça, pei'a com elles cousa
abominável.
40 No meio d"estc transe, levo a sorte que desejava o irmão .Manoel
Fernandes, o (jual quando hia passando pêra o casíelio de proa, collieo-o
a seu íícito hum d"aquell(?s algozes (impaciente da tardança da sentença que
esperava) junto ao bordo, e tomando-o nos braços, deo com elle ao mar;
sem mais outra causa, que a de seu ódio herético. Feito este ensaio, des-
pidos todos, e desbarretados, os tornarão á bomba. Aqui tem lugar o pe-
queno Aleixo, de quatorzeaté quinze annos na idade, de muitos no juizo:
a este tomarão quatro hereges, e o pisarão a paiicadas, até lhe arrebentar
o sangue pelos narizes: veio-sea os outros Irmãos, sua vuhvra jactans, d -
zendo estas palavras: nOmnia possttm in co, qui me conforlat.)^ Era sabbado,
fizerão os hereges seu jantar, como quem elles erão, de galinhas, e outras
carnes que acharão na não: c quando foi ao comer, ou porque houve en-
tre elles algum com rasto de humanidad»,-, ou por quererem experimentar
(e hc o mais certo) o que logo virão; mandarão ao Padre Andrade alguma
parte da dítta carne, pêra comer elle, e os companheiros. Porém o reso-
hito observante da lei da Igreja Romana, (|iial outro íorte Eleazaro, querendo
antes morrer á fome, que ser visto consentir em seu herético abuso, to-
mou a carne, e lançou-a logo ao mar, em presença do uK^snio Francez que
a trouxera: tomarão por descortezia o que era fineza da Fé; mas como es-
peravão por horas a ultima vingança, contentárão-se por então, com amca-
çal-os de morte somente.
47 N'aquelle mesmo dia á tarde, cansados já os servos do Senhor do
trabalho da bomba, c desejosos de experimentar o ultimo acto de Ião lar-
ga tragedia, c os hereges igualmente de tirar do mundo aquelles que íinhão
por escoria delle; depois de varias idas e vindas do batel, Jaques Soria,
infestissimo inimigo de Jesuítas (pelas razões que atrás dissemos, das re-
voltas de França, flesde a morte do Catholico Duque de Guisa, rebellião
contra o Uei, e castigo de trinta mil dos Hugonoles, em que os Pa-
dres da Companhia de .lesu, como senqire, fizerão as parles dos Catholi-
i-í)s, que defendião a liomaua Igreja contra estes heivges) no seu galeão
deo sentença, (jue fossem mortos os Jcsuiías da não San-Tiago, pdr serem
seus contrários, e ponpK! hião pivgar falsa doiUrina ao Brasil: acrescen-
tando, que se estes não forão, já clliís con» os demais Franceses serião lo-
dos huns. Dada esta sentença, qual homem que preleude dar grande nó\a,
400 LIVRO IV DA CHUOMCA DA COMPANHIA DE JESU
e pedir alviçaras por ella, vai primeiro que todos a leval-a; tal se houve no
caso este Juiz iniquo, quiz elle mesmo pronunciar sentença por sua boca,
e ser o primeiro que levasse esta grande nova de morte aos ministros de
sua profissão, que a desejavão como a vida. Estende as velas ao galeão,
prepara pela náo San-Tiago, e diz a altas vozes: «Lançai, lançai ao mar estes
perros Jesuítas, que vão pregar falsa doutrina ao Brasil.»
48 Ouvida a sentença (oh furor carniceiro!) verieis de improviso aquelle
convés cheio dos ministros das trevas licenciosos. Raras são as historias,
ainda dos tyrannos mais severos, onde a sede do sangue dos martyres fos-
se tão refinada. Não cabem na náo de prazer: preparão os algozes seus
instrumentos, dividem o manso rebanho em duas partes, bombordo, e es-
tibordo, e vão fartando-se do sangue innocente aquelles lobos carniceiros;
com esta differença, que os de mais idade, ou sinalados com tonsura cleri-
cal na cabeça, passavão primeiro a punhaladas, e depois os lançavão ao mar;
e os que erão de menos idade, e sem os taes sinaes, lançavão sem feridas.
O Padre Diogo de Andrade, assi como era principal entre todos, foi o pri-
meiro no padecer, passado a cruéis punhaladas, e meio vivo entregue ás
ondas vorazes. Da mesma maneira os Irmãos Domingos Fernandes, Antó-
nio Soares, Francisco Pires Godoi, e todos os outros, ou tonsurados, ou
maiores: e não sei eu onde foi a crueldade mais severa, se n'estes, ou nos
que forão de todo vivos ao mar.
49 Aqui se vio hum espectáculo, ao Ceo festival, e aos homens lasti-
moso: pouco menos de trinta nadadores representando varias mudanças,
protestando a Fé em que morrião, invocando os ceies tiaes moradores, ani-
mando-se huns aos outros, e despedindo-se os que acabavão dos que ainda
lutavão com as ondas; e estes depois de enfraquecidos de nadar, seguindo
ultimamente os demais. Oh mar Atlântico! Com mais razão te chamarias
desde agora mar Vermelho! Ditoso porto, e ilha da Palma, cujas praias fo-
rão lavadas com ondas de sangue de tão felices triumphadores! Estavão
vendo toda esta tragedia os homens Portugueses, que da náo San-Tiago no-
tavão todas estas variedades, e as referião depois com copia de lagrimas.
Forão trinta e nove os que n'este ultimo acto, e nos antecedentes derão as
vidas ; porque o quadragésimo guardou o Senhor, por especial providen-
cia sua, pêra que como testemunha de vista, entre as mais, pudesse rela-
tar-nos por menor toda esta historia.
50 Era este o Irmão João Sanches, pouco mais que de quatorze anhos
de idade: na occasião em que os Franceses fizerão exame dos Religiosos,
DO ESTADO DO BRASIL (aNNO DE iolO) iOl
foi conhecido crelles por cozinheiro: disserão: «Bon garçon, vete, vete a la
cocina. Fallou-llic a occasião, mas não o animo. Porém lie o numero de
quarenta sagrado: e aconteceo aqui o que lá aos outros quarenta, que pa-
decerão pela Fé n'aquella celebre alagoa frigidissima, onde faltando hum,
supprio o Ceo com outro, que foi o quadragésimo. Entre os Irmãos que
os hereges arrebatarão da bomlja pêra a morte, levarão de mistura dous man-
cebos seculares, cuidando serem da Companhia: e como taes, comellesos
lançarão ao mar: porém com sorte mui diversa; porque hum d"elles, cla-
mando quanto pôde que não era Religioso, morreo contra sua vontade : o
outro consentindo no erro, morreo voluntariamente, e mereceo ser o qua-
dragésimo dos Religiosos, recebido na Companhia do Ceo, antes que o
fosse na da terra. Chamava-se dantes S. João, nome usado na Província de
Entre-Douro e Minho, donde era natural, e nome quasi de João Sanches
lido ao contrario, como pronostico de que havia de ser Santo, e de que
havia de supprir as vezes do Irmão João Sanches: virá a chamar-se S. João
Adauto; Santo por sua morte, adauto por ser acrescentado a trinta e no-
ve, fechando o numero quarenta. O que se entende da resohição d'este
bemaventurado mancebo, he : como pedia a Companhia, e erão grandes os
desejos de ver-se filho d'ella, acompanhando sempre os Religiosos em suas
afllicções, e trabalhos; entendeo que era também obrigado seguil-os n"aquel-
le trago ultimo; ou persuadido que era já da Companhia, ou que pêra o
ser bastava morrer como elles: e com razão por estes desejos, e effeitos,
he contado entre os íilhos da Companliia.
51 Oh venturoso dia 15 de Julho de 1570! digno que se escreva na
memoria dos homens, pois nos livros da Etíírnidade está escritto: n'este
enti'ou nos palácios celestes este esquadrão de vencedores com palmas em
as mãos, saiiindo do mar, vermelhos em seu sangue. Aiiuella grande serva de
Deos, a Madre Theresa de Jesu, posta em grande contemplação, e arreba-
tada em espií-ito, os vio ir entrando no Ceo com laureolas todos (1(3 Mar-
tyres gloi-iosos; e entre elles conheceo especialmente hum, que lhe era
propinquo em sangue, com jtailicular alegria, e favor do Senlwr. Descobrio
ella o caso a seu confessor. Escreveo-o Padre Er. Diogo de Yepes, liispo de
Taraçona, na Vida d'esla Santa: e o Padre- António d(! VasconcellosnaDes-
ci-ipção d(; Portugal. O Padr(! Eusébio Nien>mberg diz, (jue houve outras
semelhantes revelaçijes sobre a entrada no Ceo d'estas almas ditosas: posto
que não diM^lara quai^s fossem. E no tomo iv dos Vaiões illustres refere, que
a[t[)an.'cérão em conq)anliia do ditoso Iiiuão Pedro Aldca de nossa Com[)a-
i02 LIVRO IV DA CUnOMCA DA COMPANHIA DK JESU
iihia em grande resplaiidor com coroas de llores, e palmas em as mãos,
a certos casados de bom viver; e com circunstancias dignas de todo o cre-
dito. 'Foi appiaiidida pelo mundo esta tão insigne victoria, depois de tão
ferida batalha: e chegando ao Smiimo Pontiiice Tio Quinto, diz humas pa-
lavras, com que parece que os canonizava; porque passando n"aquelle mes-
mo tempo hum Motu próprio em favor dos filhos da Companhia, disse d'el-
les assi: «Os quaes não contentes com os fins da terra, penetrarão até as
índias Orientaes, e Occidentaes: e alguns d'elles de tal maneira forão cons-
trangidos do amor de Deos, que pródigos de seu próprio sangue pêra
plantarem mais eíTicazmente n"aquellas partes a palavra do Senhor, se sub-
meterão a martyrío voluntário.
52 O Poeta Francisco Eentío celebra o triumpho d'cstes Martvres no
liv. 3, e G de seu Poema; e diz assi :
Huc ibant: his Diictor erat tum nomine fdix
Tum pietate igetis Ignatius: extulit illum
Azebeda domus: Sor ias oppressit cuntes:
Crude! is Sorias, tetram ciii tabida mentem
Ex Iirebo sublata lues infcceral, et se
Hoslem Ponlijici magno, sacr isque ferebat
Ritibus, infeclumque tenebat navibus aquor.
Nam quia non prociil á terra defecerat afjlans
A tergo, puppimque ffíre?is, et linlea ventus:
Accipiter velut imbellem tellure columbam
Càm sedit, leporemvé cilus venator in altis
Montibus, et niveo vallatis aggere campis:
Assequitur Prcedo, ratibusque inslructus, et armis
Cominus invadit, circunstant scilicet unam
Quinque rates, ncc opus longo certamine: plurei
Vicere, irrumpit Sorias, recipitque tenetque
Navigium, et vullu, verbisque minamtibus instat,
Mox studium ratus extingui sic posse virorum.
Quos docuit Romana (ides: saturare cruore,
Utere serie data: Romanam iulerfice viessem:
Jpse suis clamai, Sumerge cadavera ponto:
DO ESTADO DO BR.VSIL (ANNO DE 1570) 10'J
Et simul hoc, simul Ignatij, qui amplexus hahebat
Virginis efjigiem Marice, veramqiie lueri
Seque suosque fidem suprema in morle professus.
Et socijs ânimos addebat, et hostibus iras,
Peetora transadigit tcllo^ vaslumqiie per a^quor
Cum sacra jacit effigie, quam mula revellit
Vis admola viro: hinc sócios faribundus ad unum
Ter que quaterque addens exiita in corpora fernim,
Christum implorantes pelagi projecit inundas,
Hos circiun ejfuso rubuerunl sangtúne; at illi
Protlnus et médio petienmt aquore cwliim,
Í)ÍJ Depois de tomada vingança nos corpos, passarão aquelles ministros
do inferno a tomal-a nas cousas religiosas, e santas. Adiarão entre outras,
quantidade de reliquias, rosários, Agnus Dei, e óleos sagrados, que o bem-
díto Padre Ignacio levava pêra o Brasil: tudo isto espalharão com furor
diabólico pelo convés da náo, pisando-o a couces, c depois lançando-o ao
mar. Era huma d'estas reliquias meia cabeça de huma das Santas Virgens
onze mil, encaixada em hum meio corpo de feitio lustroso. A santa cabe-
ça trilharão aos pés: o corpo trouxerão por desprezo pendurado da gavia,
dizendo o Capitão por zombaria, que o levava, porque se parecia com hu-
ma sua íilha: porém pagou a descortesia; porque veio sobre elle huma
grande tormenta de muitos dias, e foi forçado lançal-a ao mar, ou por en-
trar em consideração da santidade d'aquella Imagem oíTendida, ou por ter
pêra si (jue procedia aquelle infortúnio de levar comsigo peça tão detestá-
vel a seu parecer; e he o mais certo. liam fermoso pedaço do sagrado
lenho tia Cruz de Christo lançarão em o fogo, com lastima e lagrimas do
limão Sanches, (]ue estava á vista, a quem dissei-ão por escariieo: «Olha,
í)llia, Papista, como arde!» Em hinn sagi^ado Crucilixo íizerão opprol)rios
inauditos: levaiitárão-no em alto, ariemedando o canto dosClei-igosUoma-
jios; e logo (lerão com elle sobre hinrinmesa, Et super vulnera dolonim ejus
(tddiderunt, ílcrum crucifujenle.s Filiuia Dei^ não cessando aípiellcs cães rai-
vosos de (lar-lhc punhaladas, <; ía/.er-lhi! afrontas, alé lornal-o em pedaços.
Ai'márão htnu altar, reveslirão-se dos ornamentos santos, conh"ií;i/.(Mido e
arremedando o sacratíssimo sacrilicio da missa, e ceremonias da Igreja Ilo-
mana, levantando por hóstia huin giande Ágnus Dei, que depois pisarão a
104 I.IVRO IV DA CHRONICA DA COMPANHIA DE JF.SU
couces, o òesfizerão n punhaladas, l)ol>cntlo, c l)rindanílo luins a outros pe-
los sagrados cálices.
54 Tremem as carnes só de ouvir tão grandes sacrilégios, e não Ire-
mião aquelles corações obstinados. Ileluim dos milagres da Omnipotência
divina, que á vista de semelhantes desacatos seus, suspenda os raios de
^sua justíssima vingança: e he por ensinar-nos aquelle Senhor das misericór-
dias o soffrimento, que devem ter as criaturas á vista do de seu Criador: e pêra
mostrar-nos quão caro lhe custa castigar almas que redimio: virá porém o
tempo da vingança: « Dies enim uUionis in cor de meo-» diz o SenhoT*. Perdoarão
comtudo osheregos aos ornamentos mais ricos, não por misericórdia, mas por
cubica: da mesma maneira a duas Imagens da Virgem, por curiosidade so-
mente da pintura, ambas tiradas do próprio retrato que pintou S. Lucas.
Huma d'estas foi a com que morreo o bemaventurado Ignacio, ainda chea de
seu sangue : e esta por divino mysterio com as nódoas ainda do sangue,
veio ter ás mãos dos Padres do Brasil, que no CoUegio da Bahia a guarda-
rão até o anno de 1368(*), com a veneração que merece peça tão santa.
33 Acabada esta sacrílega tragedia, depois de recreados três dias na
Gomeira, huma das ilhas das Canárias, do trabalho de tão grandes façanhas,
partio a esquadra dos ministros da iniquidade pêra sua terra. A náo San-
Tiago, depois de cinco mezes de viagem, e fazer nove presas no mar, che-
gou á Rochela, cidade de abominação de todas as seitas, e heregias: hou-
ve noticias das muitas presas que trazia, efoi bem- recebida da Rainha Ma-
dama Joanna de la Brit ; mas reprovada delia, e de todos os povos, a
crueldade de que usara Jaques Soria com os da Companhia: f[ue até entre
hereges se estranhão desatinos tamanhos. O Irmão Sanches houve licença,
e se partio d\alli a Bayona : foi hospedado no CoUegio da Companhia de
Jesu de Unhaté, onde contava esta historia, e tremião as carnes dos que
a ouvião. Chegou ultimamente a Lisboa, e ouvida a longa narração da tra-
gedia, não houve quem tivesse as lagrimas, já de mágoa, já de alegria:
renovavão então os amigos a memoria do passado tempo de Vai de rosal,
e conferião aquelles princípios santos com estes fins ditosos. Bem se diz,
que o cutello do sangue dos Martyres faz mais fecunda a Igreja de Deos :
assi se vio aqui; porque em lugar de quarenta que padecerão, se offereceo
dobrado numero pêra ir ao Brasil, a ver se alcançavão semelhante sorte
por esses mares, magoados os que na primeira a não pudérão alcançar em
companhia de tão grande pastor.
[•) Esta data é evidonteraente errada: porem nilo sabemos cumo lestituil-a. (I. F da S.)
DO ESTADO DO BRASIL (aNNO DF. loTO) 105
íiG Fui O Padre Ignacio do Azevedo natural da illustre cidade do Por-
to: era sen pai Dom Manoel de Azevedo, Comendador de S. Martinho ;
des antigLias e claras lamilias dos Malafayas, e Azevedos, que obrarão fa-
eaiihas conhecidas em defensão do Reino, no tempo d'El-Rel Dom João o
Primeiro, e conquistas de Africa. Sua criação mostrou bem o que Deo^
havia de vir a fazer nelle: parece que do ventre da mãi trouxe comsigo
a devação da Virgem. Entre os regalos da casa de seus pais, sendo ainda
de pequena idade Dom Ignacio de Azevedo, trazia hum sacco de cilicio
branco conti luamente á raiz das carnes, dedicado por voto, que pêra isso
fez á Vii"gin(lade da Senhora, devação que ainda continuou depois de en-
trado na Companhia, até que sabida dos Superiores, lhe irritarão o voto,
em cujo lugar começou a rezar o Rosário, e OíTicio da Immaculada Con-
ceição por toda sua vida, com tão cordial amor á Virgem, como bem mos-
trou o alTecto, mais que natural com que o vimos morrer apertado com
sua santa Imagem, sem que alguém lh"a pudesse tirar. E d"esta se pode
Gollegir as demais devações e espirito de nosso Dom Iguacio, ainda quan-
do moço, e secular.
57 Sendo já de idade mais crescida, como era filho mais velho, fez
n'elle casa e morgado seu pai, e muito moço entrou de posse d'elle. Era
discreto, prudente, amável, c digno de maiores estados: lustroso no fausto
de sua casa, a seus criados nada penoso: no trato de sua pessoa, trajos,
cavallos, arreios, e o mais necessário a hum mancebo tão bem dotado da
natureza e da furtuna, brioso, porém não soberbo: porque toda esta appa-
rencia tinha já então por figura do mundo, que como a de breve tragedia ha-
via dé acabar. Não só os de dentro da casa, mas tamljem os de fora, enxer-
gavão em Dom Ignacio este animo. Havia na mesma cidade do Porto hum
homem nobre, visinho seu, por nome Ileniique de Gouvea (nomeado por
vezes nas Chronicas da Companhia de Portugal) em quem infundirão gran-
de espirito as pregações do f(>rvoroso Padre Francisco de Estrada, quando
n"aquella cidade pregava, e desejava elle imitar o espirito de seu Mestre,
convertendo almas, por meio da entrada da Religião da Companhia, então
nova no mundf), e de que elle tinha feito grande conceito. Por visinhança
conhecia mui bem este varão o bom espirito de Dom Ignacio, c sua boa
disposição: foi a tratar com elle a imma quinla, cabeça de seu morgado,
distante cinco legoas, junto a Paço de Sousa, chamada a quinta de Barbo-
sa: e aqui a breves palavras de Deos, c da vaidade do mundo, qual fogo
em pólvora disposta, se accendêrão cm grandes labaredas de maior per-
■100 LINHO IV DA CmiOMCA DA COMPANHIA DE JRSU
fei(;ão. Pnrliião ambos pêra Coiml»i-a, tfjmáilío alli os exerricios do Santo
Ignacio por trinta dias, e saliio d"(3lles Dom Ignacio de todo resoluto : re-
nunciou o morgado em Dom Francisco de Azevedo, ou Attaide, seu ir-
mão, por ser mais velho que Dom Jeronymo de Azevedo, tamliem irmão
seu (aquelle tão conhecido nas historias por conquistador da ilha de Ceilão,
e seis annos Viso-Rey da índia) e livre dos cuidados e impedimentos do
século, retirou-se ao lugar deserto da Companhia, na flor da idade de
vinte e hum annos, e na era do Senhor de mil e quinhentos e quarenta e
sete.
58 Entrando no noviciado, lançou na virtude tão fecundas raizes, que
foi exemplo de Noviços: era faltado entre todos o fervor de D. Ignacio. E
porque este Dom que trazia corasigo (permittido então nos princípios da
Companhia) se não chamasse ao foro antiguo, procurou com todas as veras
abnegar-se, e transformar-se em homem plebeo, por actos de verdadeira
humildade, e mortificação. Aprendeo officios mechanicos com tal applicaçãò.
como se por elles houvera de ganliar sua vida : chegou a ser perfeito ça-
pateiro, alfaiate, colxoeiro, etc, e d'estes se prezou de maneira, que por
toda sua vida trouxe corasigo os instrumentos d'elles: e era elle o melhor
remendão de seus çapatos e vestidos, antepondo o dom uUimo d"este olll-
cio ao primeiro Dom da nobreza, e ajustando-se com aquelle principio do
espirito, Ama nesciri, et pró nihilo reputari. A este tom erão OS demais exer-
cícios de humildade, e mortificação: nesta parece hia já desde aquelle tempo
começando a martyrisar«seu corpo: cobrio-se de perpetuo cilicio: suas cos-
tas andavão sempre inchadas, cheias de pisaduras, e vergões dos açoutes '
chegou a tanto grão o ódio com que o perseguia, que foi necessário reti"
ral-o do noviciado ao campo do Casal de Sanfins, porque tivesse algumas
tregoas comsigo mesmo.
59 Foi-lhe concedido aqui aquelle dom de lagrimas, porque tanto sus-
pirava Santo Agostinho porsignal evidente do divino amor: erão n'elle tão co-
piosas, qae deixava ordinariamente regada a terra aonde tinha oração : e
era tal o effoito d"cllas, que se abrasava entre essas agoas na charidade de
De os, e do próximo. Pcdía-lhe o espirito desterrar-se pêra partes mais re-
motas do mundo, onde dado vale a tudo o que chamamos carne, e sangue,
se empregasse somente com o Criador, e com as criaturas mais bucais da
terra, por respeito dellc: este espirito era o com que depois procurou a
missão da índia, Brasil, ou outras parles semelhantes entre gentios, ou here-
ges. Não determino tratar por menor seus grandes pensamentos, c suas
DO ESTADO DO DIUSIL (aNNO DE 1,^70) 107
grandes oliras: direi só algumas mais necessárias pêra nosso exemplo, e
som ordem do tempos.
60 He digno da memoria de todos os filhos da Companhia o caso cele-
l:)re, (jiie lhe acontcceo quando tornava da missão de Barcellos. Trazião só hum
jumento em que se revesavão elle e o companheiro: chegados a Braga, on-
de já era Heitor, e tão conhecido do Arcebispo, e de toda a cidade, como
veremos, foi a questão, qual d'elles havia de ir a cavallo, e qual a pé pela
cidade até nosso Collegio? Deo á escolha, que fosse o Irmão no jumento»
e que elle o levaria de cabresto; ou qne o Padre fosse a cavallo, e o Irmão
o levasse de rédea. Não soube o companheiro deliberar-se ; resolveo-se o
Padre, que fosse o Irmão o cavalleiro, e elle o lacaio. Entrou D. Ignacio de
Azevedo pelas portas da cidade, passou a praça, e as mais ruas até che-
gar á nossa portaria, qual moco de mulas, levando o jumento em que hia
o Irmão pelo cabresto. Oh exemplo raro! Julgou por melhor este varão en-
trar homem de pé, que de cavallo, por não parecer-se em alguma maneira
com o antiguo D. Ignacio. Em todos seus caminhos ou hia a pé, ou com
taes traças de mortificação, que vinhão a entrar em mais custo : e d'este
modo visitou a Província, sendo Vice-Provincial: e quando hia a cavallo,
era em jumento, do qual elle mesmo pelo caminho, c quando chegava á
estrebaria, tinha cuidado.
01 Corrião em estreita amizade este santo varão, e o notável D. Frei
Bertholameu dos Martyres Arcebispo de Braga, Pi-imaz das Hespanhas
(que logo se conhecem, e amão os santos:) quiz aquelle venerável Arcebis-
po, que o acompanhasse Ignacio á sua igualmente celebre e trabalhosa vi-
sita das terras do Bai-roso. N'este caminho era de ver o como ambos se mor-
lificavão á contenda estes servos de Deos; o que toca ao Primaz, relata a lenda
de sua vida; o que toca a Ignacio, relatava depois, como testemunha fidedigna,
o mesmo Arcebispo, com honra do Padre, e da Companhia. Comião ambos
em huma nieza, e com titulo de primor de polidos, mais gastavão em mor-
tificar o apetite, que em satisfazer a natureza. Não havia pão alvo por aquelles
lugares, achou-se hum só pêra a meza do Arcebispo, andou este nameza a
titulo de primor de hum pêra outro, tanto tempo, que quando já chegarão
a comel-o, era peor que a própria broa, por duro, e bolorento: a este teor
levavão as cousas da mesa, e poi' aqui hião as da cama, c do mais trata-
mento do corpo.
62 Voltando da visita, despedio-se Ignacio do Arcebispo em seu palá-
cio na cidade de Bi-aga pêra o Collegio do Porto; mas como não pudesse
108 LlVnO IV DA CHRONICA DA COMPANHIA DE JESU
partir-se n'aqiiellc dia, foi a recolher-se ao Hospital de S. Marcos com seu com-
panheiro o Padre Pedro Lopes, pretendendo fazel-o na manhã seguinte: poivm
foi tão grande o ajuntamento de penitentes, que concorreo a elle, que foi ne-
cessário confessar até passado meio dia (que não perdia occasião de ganhar al-
mas, ainda á conta de perder jornada.) Nesta mesma hora estava á meza o Arce-
bispo, e faltando pêra os creados que assistião, disse: «Aonde irá agora o
nosso bom companheiro Ignacio?» «Eu o deixei no Hospital de S. Marcos
pouco ha», respondeo hum d"elles: ficou edificado sobre maneira o santo
Prelado, mandou chamar os Padres, levou-osnos braços, e resolveo-se aqui
em fundar o Collegio que temos n"aquelia cidade, cortando por inconvenien-
tes grandes, que n'isso entrevinhão: dizendo, que estes diligentes obreiros
mandara Deos á sua Igreja pêra Coadjutores dos Bispos, que têm sobre si a
carga das almas: e foi o primeiro Reitor daquelle Collegio o mesmo Pa-
dre Ignacio, que não menos o edificou no material das obras, que no es-
piritual dos sujeitos, e a toda a cidade com exemplo.
63 Erão princípios, estava o Collegio falto de alfaias de casa, e pas-
savão a cada passo hospedes por elle: a cama do Reitor, boa ou má, era
de hum d'elles, e elle se agasalhava sobre huma taboa. O mesmo era na chari-
dade com os necessitados de casa, ou de fora: repartia com estes as pe-
ças de seu vestido, até ficar-se elle exposto ao frio. Representou-lhe hum
súbdito, que tinha necessidade de hum gibão: que era tempo de grandes
frios: despedio-o com boas esperanças, despio o seu, e mandou-o ao súb-
dito: mas como ficasse muito mal enroupado, e erão rigorosos os frios, e
por ventura tinha já dado também a camisa, entrou em escrúpulo de po-
der contrahir alguma doença entre tanto rigor; foi-se á estrebaria, tomou
huma coberta que servia de hum jumento, fez-llie hum buraco no meio,
meteo-o na cabeça, e fez d'elle gibão, com mais alivio contra o tempo :
mas como fosse descoberto o furto da alfaia do jumento pelo que d"elle ti-
nha cuidado, esendo-lhe imputado, respondeo queaquellejubão se mudara
de hum jumento pêra outro: e a este teor erão sem conto suas mortifica-
mes. Era incansável no confessionário, e púlpito: nem pêra estas occupa-
ções era impedimento n"elle, o ser Superior. Sendo Reitor de Braga, de Santo
Antão, e Yice-Provincial, do mesmo modo se applicava a estes oíTicios, que
se o não fora. Pedirão-lhe os moradores da villa de Barcellos, sendo Rei-
tor de Braga, hum pregador, e confessor pêra toda a quaresma ; não ha-
via quem fosse, entregou o oíficio de Reitor a outro, e foi elle mesmo, jul-
gando por mais forçosa aquella occupação (]ue esta. N"aquclla quaresma
DO ESTADO DO BRASIL (aNNO DE 1570) 100
pregou todos os domingos, quartas, e sextas feiras, navilla de Barcellos, g
depois de pregar descia do púlpito ao confessionário, e n^elle aturava até
a hunia hora depois do meio dia: os demais dias da semana discorria pe-
los lugares visinhos a pé, com seu bordão na mão, a pregar, fazer doutri-
nas, e confessar aquella gente.
04 Tinha notável e conliecido dom de Deos pêra sahir com tudo o que
emprehendia de serviço seu: e em chegando a leval-o ao santo sacrilicio da
missa, ou oração mental, onde todo se enlevava na presença de seu Senhor,
nenhuma cousa despintava de seus desejos, por mais que parecesse difficil;
e f(jrão algumas tidas por milagrosas. Nem faltavão outros favores exte-
riores, que Deos fazia por seu servo. Indo pêra Barcellos, achou o rio que
hia de monte a monte; e em quanto cuidavão como havião de passal-o, de-
poz o companheiro, que se acharão da outra parte, sem saber como; por-
que aílirmava, que nem vira barca, nem entrara em rio, nem se molhara.
Passavão outra \et o mesmo rio em hum barquinho em tempo de enchen-
tes, e com a mesma força de agoas : ex que chegando á veia d'elle mais
furiosa, vinha descendo com a mesma fúria liunia grande arvore inteira,
que a tempestade trouxera das mattas ao rio: deo-se o barqueiro por per-
dido, começou a lastimar seu infortúnio: o servo de Deos o animou que
não temesse; e chegando-se ao bordo da barfpiinha, pegou de hum ramo
da arvore, e desviou delia toda aquella machina, como se fora huma palha.
Semelhante caso foi este ao da oulra grande arvore, que S. Martinho des-
viou do caminho na cidade de Turon, o de que faz tanta estima S. Grego-
iio: aquella era só de estorvo ao uso da gente, e esta nossa de perigo da
barca, e passageiros. Foi trazido ao Collegio de Évora hum endemoninha-
do, sobi"e o qual os Padres íizerão todos os exorcismos que costuma a Igreja,
sem eífeito algum: eslava fgnacio no coro posto em oração, veio-se d'elle,
chegou ao homem endemoninhado, lançou-lhe as contas que trazia na mão
ao pescoço, e logo huma benção; e foi o mesmo que desamparar logo o
corpo o espirito infernal. !)o mesmo seno de Deos se refere, que tendo
o Collegio de Braga falta de i)ão, e sendo avisado do Uefeitoreiro, mandou
comtudo que tangesse á meza, e tivesse conliança em Deos: no ponto que
tangerão, chegou á porlai-ia huma mulher coui huma alcofa de j)ães, e
entregues elles, não f(»i mais vista, nem conhecida; e foi tido o caso como
sobrenatural. Celebra-o Sacchino no liv. vi, da jiarl. iiidas Ghronicas, n." 261.
Como estes erão os domais poiísamenlos, c (»bras (Teste grande varão, das
quaes como em outras partesdc Portugal, Brasil, Itália, c \iagem ultima, lemos
ilO
LIVRO IV DA CHRONICA DA COMPANHIA DE JESU
feito menção, julgamos ser bastante o ditto: especialmente, porque sua mor-
te insigne canonizou os feitos e obras de toda sua vida, segundo aquclla
sentença italiana: «Cirun bel morir tutta la vita bonora.»
05 Não deixarei de apontar aqui o fim' que ti verão alguns dos tyrannos
que tirarão a vida a este varão santo, e a seus santos companheiros. Ja-
ques Soria principal tyranno, morreo raivando, qual perro furioso, com
temor e espanto dos que o vião. Assi o escreve Pedro Jaricii, c o confir-
ma hum Francez Calvinista Rochelense, na Recopilação que fez das cousas
dos Portugueses no capitulo 20. Dom Rodrigo da Cunha, Arcebispo digníssi-
mo que foi de Braga, e depois de Lisboa, na segunda parte que fez dos
Arcebispos Bracharenses, capitulo nono, diz, que quatro soldados (devião
ser os das quatro lançadas de Ignacio) ficarão subitamente cegos; e que as-
si o testemunhou de vista hum Simão Cabreira, que se achou presente.
Por outra via foi milagrosa a conversão de hum d'estes monstros; porque en-
trando em huma Igreja de Catholicos a fazer zombaria das ceremonias san-
tas, foi de repente ferido da mão de Deos com tremor horrendo de coi-po,
qual de outro Caim: mas começando a padecel-o, reconheceo o castigo do
Ceo, pedio favor á Virgem, cuja era a Igreja, foi ouvido, e sarou no cor-
po, e na alma; porque confessou seu peccado publicamente, abjurou sua
heregia, e pedio perdão com contrição, e lagrimas. Conta o caso Pedro Ja-
rich: e o trazem também as Cartas annuas da Companhia do anno de 1594,
em que aconteceo.
66 Do bemdito Padre Ignacio de Azevedo escreverão, o Padre Ribade-
neira no livro 3 da Vida do Santo Padre Francisco de Borja, cap. 10. O
Padre Orlandino, e o Padre Sacchino na primeira, e segunda parte das
Chronicas da Companhia: e mais largamente o mesmo Sacchino, na terceira
parte, liv. 6, do num. 208 por diante. O Padre Luis Gusmão em sua His-
toria das missões, liv. 2, cap. 45. Pedro Jarich no segundo tomo de seu
Thesouro Indico, liv. 1 cap. 25. O Padre Frei Luis de Sousa na Vida do
Arcebispo Frei Bertholameu dos Martyres, liv. 1, cap. 19. Jacobo Damião
liv. 3, cap. 9. 0 Padre André Escoto na Vida do Beato Padre Francisco de Borja
em latim, liv. 3, cap, 10. Bencio em seu poema dos três Martyres, liv. 6.
Eusébio Nieremberg dos Varões iUustres da Companhia, tom. 2, foi., 245.
Bertholameu Guerreiro, em sua Gloriosa Coroa, parte terceira do cap. 3. Bal-
thesar Tehes na primeira parte das Chronicas de Portugal, liv. 2, cap. AS, e
na segunda parte das mesmas, liv. 4, cap. 6. E o Padre Maurício de nos-
sa Companhia, que por relação do Irmão Sanches, que escapou, e outras
LIVRO IV DA CHROMCA DA COMPANHIA DE JESU 1 1 1
pessoas ridedigiias, escreveo miudaiueiUc esta liisloria cm liuiii livro ma-
nuscriplu, fuiidamenlo piiiicipal, donde se liioii o ipie trazem os demais
aiitliores.
()7 Celebra Geraldo Moiitano em sua Ceuluria o santo varão Ignacio de
Azevedo com os versos seguintes:
Qui novus ille piigil, cujus de pcclore fasus
Nercus in medij-; ixsliial ignis nquis?
Non nndiP, jlucliisqne viram, (erefesqiie sarissw
Ohruerfí, ingeslo nac vaLl amue Thelis.
Effigiem Diice manibus lenel ille potenlis,
Vellere, nec ferrum hanc, nec Lihitina polest.
Alma fides, pielasquQ sacros de vértice crines
Solvit, et (pquoreas fletibus aurjct aquas.
Sed charis anie omnes, sed nec charis ipsa. nec onínes
Flexeruut ânimos pérfida lurba tuas.
EPILOGO DOS MAIS COMPANHEIROS QUE MORRERÃO PELA FÈ DE CHRISIO
(iS O Irmão Bento de Castro, Purtugnez, natural de Chacim do Bispa-
do de Miranda, de 27 annos de idade, nove da Companhia, estudante, com
Ires arcabuzadas, e sete punhaladas, meio vivo lançado ao mar: foi o pri-
meiro de todo este santo esquadrão que deo a vida pela Fé Romana, hin-
do meter-se qual soldado valeroso entre os inimigos que entravão a náo,
só com a cruz na mão, insígnia das armas dtí Ghristo. Desde Noviço pe-
dia a occasião de maríyrio. Fazia na náo oííicio de Mestre de noviços, em
virtude e charidade insigne. 'i
09 O Irmão Diogo Pires de Nicea, Portiiguez, nalui'al daVilla dcNisa,
Priorado do Ciato, estudante i)hil(jsopho, atravessado de huma lançada, íoi
lançado ao mar. Este bemaventurado mancebo teve a occasião de seu di-
toso íim, seguintií. Faltando hum dia em sua classe, mandou-o o Mestre cas-»
ligai', recebeo o castigo com sujeição, mas depois d"elle deo a escusa que
livera pêra faltar a sua obrigação; dizendo, (|iie fora ao Mosteiío de Val-
verde, legoa e meia da cidiide de Évora, pedii- áquelles Religiosos f» ad-
mitissem poi' Irmão. Senlio-se o Mestre di; não lei' diido Ião sa/il;i escusa,
louvou-lhe o inlentí», e conlou-Ihc acas(j a escolha que oulros estudantes
112 LIVRO IV DA CHROMCA DA COMPANHIA DE JESU
fizerão de acompanhar o Padre Ignacio de Azevedo pêra Lisboa, e d"aíii
feitos Religiosos pêra o Brasil. Foi este o meio da predestinação do nosso
estudante; bastou tocar-se, e logo assentou em seu coração caminhar em
busca de Ignacio, e ser hum de seus companheiros, e de eíleito foi rece-
bido d'elle, e hum dos mais fervorosos que chegarão a alcançar a ditoiía
palma.
70 O Iraião João de Mayorga^ Pintor, Castelhano, natural do Reino de
Aragão, de trinta e cinco annos de idade, três da Companhia^ vivo a(j mar.
71 O limão Gonçalo Hemiques, Portuguez, natural da cidade do Por-
to, Diácono, ao mar.
72 O Irmão Manoel Rodrigues, natural da villa de Alcochete, estudan-
te, ao mar.
73 O Innão Manoel Pacheco, Portuguez, natural da cidade de Ceita,
ao mar.
74 O limão Estevão Zurara, natural de Biscaya, Coadjutor, ao mar.
Era este Irmão Roupeiro no Collegio de Placencia, de grande virtude, e
amado de todos : seguio de boa vontade ao Padre Ignacio, por que estan-
do em exercidos espirituaes, lhe mostrou o Ceo, que nesta missão havia de
dar a vida pela Fé Catholica. Assi o declarou depois seu Confessor, a quem
ells descobrio a revelação, que era n'aquelle tempo o Padre Joseph da Cos-
ta. Refere este successo o Padre Sacchino, na ifi parte das Chronicas da
Companhia, liv. O, n.° 233; e Eusébio Nieremberg no tomo ii dos Varões
illustres da Companhia, foi. 234, columna 2.-'', no principio. Estes quatro Ir-
mãos acima iramediatos forâo lançados dos hereges ao mar no tempo da
briga, não se sabe se mortos, ou vivos, ou feridos: nem elles souberão
da morte de seu pai Ignacio, impedidos do estrondo das armas.
75 O Irmão Manoel Alvares, Portuguez, natural da cidade de Évora,
Coadjutor, retalhado o rosto a cutiladas, e feitas em pedaços as canelas das
pernas, e ossos dos braços com canos de arcabuzes, ainda vivo foi lançado
ao mar. Era este Irmão pastor, guardava seu gado na simplicidade do cam-
po quando entrou na Religião: havia quinze annos que vivia n"ella com bom
exemplo: não sabia as especulações do espirito, porém sabia a praxe d'el-
le, e com tanto acerto, que mereceo revelar-lhe Deos a ditosa morte que
havia de padecer por seu amor. Sahia hum dia de seu cubículo, a tempo
que os Religiosos acabavão a hora da oração mental que usa a Companhia,
como arrebentando do peito, ora pondo os olhos no Ceo, ora cruzando os
braços, e outros semelhantes fervores, r^otou acaso hum Padre gravissi-
no EoTADO DO IJUASIL (A.N.NO DE 1570) 11 li
mo poi' nome Pedro Liiis, que enllío era Irmão, suas acções; eperguntan-
do-llie a causa, respondeo cheio de alegria: «Irmão Pedro Luis, não se es-
pante; porque n'esta hora de oração (pie tivemos, me mostrou o Senhor,
que hei de ir pêra o Brasil, e «pie no caminho hei de morrer mailyr, e
que me hão de quebrar os braços, e as pernas por seu amor. » Antiguo he
communicar-se Deos aos pastores: e esle favor excedeo o de muitos, do
hum Moysés, de hum Jacob, e de hum David. Esta revelação corria como
cousa certissima no CoUegio de Évora, e se combinou com o eííeito, com
espanto dos que a sabião. Podemos comparar este santo Irmão ahumSan-
Tiago Interciso, pelo modo com que foi retalhado, e despedaçado em ros-
to, braços, c pernas.
70 O Irmão Simão da Costa, Portuguez, natural da cidade do Porto,
(Coadjutor, noviço, de vinte annos de idade, degolado e lançado ao mar.
77 O Irmão Manoel Fernandes, Portuguez, natural da villa de Celori-
co, Bispado da Guarda, estudante, vivo ao mar.
78 O Irmão Braz Ribeiío, Portuguez, natural de Braga, Coadjutor, de
vinte e quatro annos de idade, e sete meses não mais da Companhia, que-
brada a cabeça com a maçã da espada, até lhe saltarem os cérebros, log(3 es-
pirou.
79 O Padre Diogo de Andrade, Portuguez, Ministro Sacerdi^te de oi-
dens sacras, natural da villa de Pedrógão, foi o primeiro que depois da
sentença de Soria, passado a punhaladas, meio vivo foi lançado ao mar.
80 O Irmão António Soares, Poilugucz, natural da villa de Pedrógão,
Soto Ministro, iiassado a punhaladas, meio vivo lançado ao mar.
81 O Irmão João Fernandes, Portuguez, natural da cidade de Lisboa,
estudante, com dous annos da Companhia, passado a punhaladas, meio
vivo lançado ao mar.
82 O Irmão Pedro de Fontoura, Portuguez, natural da cidade de Bra-
ga, Coadjutor, cortado o queixo, e a língua, lançado vivo ao mar.
83 O Irmão Luis Corrêa, Portuguez, natural da cidade d(í Évora, es-
tudante, passado a punhaladas, meio vivo lançado ao mar.
8i O Irmão Luis Rodrigues, Portuguez, natural da cidade de Évora,
estudante, passado a jxinhalailas, meio vivo lançado ao mar.
Si) O irmão André Gonçalves. Portuguez, natural de Vianna, do Arce-
bispado de Évora, estudante, passado a punhaladas, meio vivo lançado ao mar.
80 O Irmão AlTonso Bayena, Coadjutor, mal ferido, e lançado ao mar.
87 O Irmrio Francisco Peres de Godoi, Ca.jleliiano, natural de Torri-
voi.. n S
114 LWRO IV DA CHRONICA DA COMPANHIA DE JESU
jos, Bispado de Salamanca, com muitas feridas lançado vivo ao mar. D'este
santo Irmão escreve o Padre Lu is da Ponte, na Vida do Padre Balthesar
Alvares, cujo noviço foi, que estudando em Salamanca, se recollieo a nosso
CoUegio a fazer os exercícios espirituaes de Santo Ignacio, e foi tocado de
Deos pêra deixar o mundo, e recolher-se na Companhia. Era homem ga-
lhardo, e valente, prczava-se m.uito de seus bigodes, que trazia crescidos,
e autorizados: por estes pretendeo o inimigo de nosso bem prendel-o, qual
outro Absalam dos cabellos, com tanta força, que foi o mór impedimento
que se lhe oppunlia, e vencendo facilmente os outros, este perseverava ;
porque n'aquelles seus cabellos cuidava que consistia o sinal da generosi-
dade do homem. Com este pensamento lutava, quando com a mesma ge-
nerosidade, tornando sobre si, obrou hunia acção digna de seu valor: to-
mou a tezoura, e alli mesmo por sua mão se cortou os bigodes, degolando
juntamente com este golpe o líolofernes que o combatia : e d'esta maneira
inhabilitado pêra tornar a sua casa, pcdio o recebessem logo : e com ef-
feito, considerado acto tão fervoroso, foi recebido pelos Superiores, e man-
dado a Medina ao noviciado. Aqui procedeo segundo prometia o fervor do
espirito que o chamava, fazendo as cousas de obediência com grande per-
feição. Andando na cozinha esfregava as panelas, tachos, e até as próprias
sertãs de ferro, com tanta exacção, que as deixava não só limpas, mas re-
luzentes : e dizendo-lhe o Irmão Cozinheiro, pêra que era cansar-se tanto
em peças que logo tornavão ao fogo, e a denegrir-se? Respondeo o per-
feito noviço : «Eu offereço cada noite á Virgem Senhora nossa todas as
obras que faço entre dia, e tenho vergonha de offerecer-lhe huma peça mal
esfregada, e pouco limpa.» Oh que bom exemplo pêra nossas obras! Era
homem de todo descarnado, e mortificado : em vez de guardanapo branco,
e mimoso, de que no século costumava usar, quando comia no chão no Re-
feitório, ou cm pé, ou de joelhos, como he costume entre noviços, por
acto de humildade, e mortificação: levava elle huma rodilha, ou espanador
da cozinha mais sujo, e com este alimpava, não só as mãos, mas a boca,
e rosto, folgando de parecer desprezível aos olhos dos homens, por pare-
cer fermoso nos de Deos. Na oração mental, basta dizer que era aquelle
de quem contámos, que em Vai de rosal perseverou de huma vez sette
horas continuas de joelhos ante o Santíssimo Sacramento, só ao sinal de
huma palavra do Cozinheiro, que interpretou em seu favor.
88 Andava peregrinando, e doutrinando em companhia do Irmão João
de Sá, que depois foi hum grande obreiro do Evangelho ; vio-lhe o com-
DO ESTADO DO BRASH, (A.WO DE lo70) H»
panheiro hum queixo inchado, e cheio tle sangue, porque huina grande
bespa lho estava picando tempo havia ; e a não acudir o Irmão, a deixara
continuar ; porque já de então hia cosíumando-so tão bom soldado a der-
ramar seu sangue por Christo. Era seu Mestre no noviciado aquellc grande
varão de espirito, bem conhecido em toda a Companhia, e fora d'ella, o
santo Padre ÍJaltliesar Alvares: este nas praticas que fazia a seus noviços,
procurava intimar-lhes sentenças espirituaes com tal força, que ficavão im-
pressas na alma por toda a vida: entre ellas foi huma esta : «Irmãos meus,
não degeneremos dos altos pensamentos de filhos de Deos. » Esta sentença
se imprimio tilo intimamente no coração do nosso noviço, que lho veio a
servir na occasião de mór aperto que podia tern"esta vida; porque no meio
d'aquella cruel carniçaria dos hereges, a vozes alias brotava o fervor de
Godoi, animando a seus Irmãos com ellas, como vimos: «Ermanos mios,
no degeneremos de los altos pensamientos.»
89 A occasião com que foi escolhido pêra esta empresa, he também
digna de ser contada entre a» mais traças divinas. Estava hum dia este
servo de Deos ao lado de seu santo Mestre Balthesar Alvares, chamou por
elle pêra lhe mostrar certa cousa, e notou que pêra liaver de vel-a, foi ne-
cessário virar o Irmão o corpo todo a huma parte ; d"onde colheo o pru-
dente Mestre que padecia falta de vista de hum dos olhos, e vinha a ser
o esquerdo, chamado da sacra : certificou-se d"elle, e não negou, dizendo
que havia encoberto aquelle deleito no exame primeiro que se lhe fizera,
por temer que seria de impedimento pêra ser recebido. Ficou com tanto
sentimento o Mestre, quão grande era a affeição que tinha ao noviço; por-
que sabia que os Superiores o despedirião por aquelle defeito substancial
pêra o Sacerdócio : declarou-lhe este seu sentimento; e considerando seus
grandes desejos de perseverar na Companhia, deo em huma traça; e foi,
que pediria ao Padre Ignacio de Azevedo quizesse leval-o pêra o Brasil,
onde mais se sofria defeito semelhante, e se recompensava com o espirito
que sentia de ajudar aquella gentilidade, e outras partes de boa sciencia
de Direito Canónico, e canto de órgão, em que era versado. Tratou com
eíTeito com o Padre Ignacio, informou-o de tudo, e acabou com elle fosse
admittido; servindo-llie aquella falta natural de occasião de tão grande glo-
ria, e palma. Tudo isto diz cm sustancia o Padre Luis da Ponte no cap. 20
da Vida do Padre Balthesai- Alvares; e o traz também com pouca differença
o Padre Sacchino na ni parte das Chi*onicas da Companhia, liv. 6, desde
o n." 2\'í. Eusébio NicrcmbíTg, [ow. 2 dos Varões illustres, foi. ií;)8. ííe-
110
I.ivno IV DA CUnONICA DA COMPANHIA DE JESU
rardo Montano dedica a este venturoso íiinão, o eiiigramma que se se-
gue.
Liiscus erat, cceliique Peres ne cedat Jesu
Verlit cid occiduos lumina Solis Equos.
Ecce procul rnedijs surgcnlem conspicil undis
Laurcolam in crines fronde virente suos.
Oceamimque secai properala pii,ppe, rapiíque :
Tam bene quis liiscum posse videre putat ?
90 O Irmão António Corroa, Portuguez, natural da cidade do Poi'to,
de idade de quatoi'ze annos, noviço, estudante, foi íanr-ado vivo ao mar.
Tinlia este Irmão hum natural de Anjo; era mui dado á oração : estando
n'ella diante do Santíssimo Sacramento, llie i-evelou o Senhor f[ue havia de
ser martyr ; pelo qual favor viveo consoladissimo o tempo que lhe restou
de vida. Nos exercícios santos de Vai de rosal, foi dos miis fervorosos.
Entre o rigor dos hereges, queixava-se aos Irmãos de que tardasse sua
hora : chegou porém o cumprimento de seus grandes desejos, com extraor-
dinária consolação de seu espirito.
91 O Irmão Gregório Escribano, Ilespanhol, natural de Logronho,
Coadjutor, ao mar vivo. Este Irmão em todo o tempo que os hereges mal-
tratavão os nossos, esteve doente em cama, sem que entendessem cora
clle : porém vendo que, dada a sentença de Jaques Soria, lançavãò os com-
panheiros ao mar, se levantou da cama, e se veio meter entre elles, que-
rendo morrer animosamente pela mesma causa da Fé Romana.
92 O Irmão Álvaro Mendes, Portuguez, natural da cidade de Elvas,
estudante, ao mar vivo. Também este Irmão esteve doente em cama no
tempo em que os hereges executavão suas maldades, e taml)em veio apre-
sentar-se aos tyrannos ao ponto da morte.
93 O Irmão Nicoláo Dinis, Portuguez, natural da cidade de Bragança,
de dezesete annos, estudante, vivo ao mar. Sendo ainda estudante de fora,
dizia muitas vezes a seu Mestre, que o coração lhe adivinhava que havia
de ser martyr. D'esta maneira se explicava : porém depois de recebido,
teve outra certeza mais alta; porque estando esperando no Collegio de Bra-
gança recado do Padre Ignacio de iVzevedo pêra a viagem que tinhão con-
certado, entrou na casa onde fazia seu officio o Irmão Despenseiro, e o
achou rebentando de prazer, e como alienado de si de pura alegria: c per-
guntado pela causa, disse : «que porijue n"aque!la Ijoi-a lhe tinha revelado
1)0 ESTADO DO DUASlí, (ANNO DE 1^)70) il7
O Senhor, qno dahi a poiico tempo havia de ser martyr.» Pêra este fim
tão ditoso se foi depois aperfeiçoando em Yal de rosal : e claro está, qae
debaixo da promessa de premio tão grande, nenhuma cousa lhe seria dif-
ficultosa. Deixou Yal de rosal, commeteo a viagem, vio o cumprimento
de seus desejos, e promessa; e virão também os de Bragança a certeza
do que elle lhes disse. Chegarão estas novas áquella cidade, a tempo em
que n'ella assistia o Bispo de Miranda D. António Pinheiro, o qual pregando
ao povo, depois de dar graças ao Senhor, T[ue quizera servir-se das vidas
de tantos servos seus; discorrendo em especial sobre o Irmão Nicoláo Di-
nis, diz assi : «O nosso Nicoláo que aqui vistes andar pelas ruas de Bra-
gança, he martyr glorioso de Christo, com grande coroa de gloria pêra
sempre; e eu Bispo não sei se me hei de salvar.» Está testemunhado todo
este successo com juramento nos processos authenticos, que se fizerão por
virtude das Remissorias de Sua Santidade, a fim de canonização do Padre
Ignacio, c seus companheiros.
95- O Irmão Domingos Fernandes, Portuguez, natural de Yillaviçosa,
Coadjutor, com muitas punhaladas ao mar vivo.
9o O Irmão António Fernandes, Portuguez, natural de Montem(3r o
novo, carpinteiro, com punhaladas ao mar vivo.
96 O Irmão Francisco Alvares, Portuguez, natural de Covilhãa, Coadju-
tor, com punlialadas ao mar vivo.
97 O Irmão João Çafra, Castelhano, natural de Toledo, Coadjutor, ao'
mar.
98 O Irmão Marcos Caldeira, Portuguez, ao mar.
99 O Irmão Francisco de Magalhães, Portuguez, natural davilladeAl-
caçar do sal, estudante, ao mar vivo. Era de nol)re geração; provou lou-
vavelmente nos exercícios de Yal de rosal, com satisfação de seu Mestre
Ignacio : da mesma maneira na náo San-Tiago; c foi o que sentio sua morte
sobre todos os outros Irmãos, abraçando-se com seu corpo morto, e en-
sanguentado-se com elle, até morrer a exemplo seu.
100 O Irmão Simão Lopes, Portuguez, natural da villa de Oui'em, es-
tudante, ao mar vivo.
101 O Irmão Aleixo Delgado, Portuguez, natural da cidade di; Elvas,
de idad(; de ({uatorze annos, estudante, pisado a pancadas, até lançar san-
gue por narizes e boca, ao mai- vivo.
102 O irmão Pedro Ninies, Portuguez, natural da villa <le Fi'Oiiteira,
bispado de Elvas, estudante, nial ferido, ao mai' vivo.
118
LIVHO IV DA CIIROMCA DA COMPANHIA DE JESU
103 O Irmão Fornão Sanches, Castelhano, estudante, mal ferido, ao
mar vivo.
104 O Irmão João de S. Martim, Castelhano, natural de Juncos de To-
ledo, estudante, mal ferido, ao mar vivo.
105 O Irmão Gaspar Alvares, Portuguez, natural da cidade do Porto,
Coadjutor, ao mar vivo.
106 O Irmão Amaro Yaz, Portuguez, natural da cidade do Porto, Coad-
jutor, ao mar vivo. •
107 O Irmão João Adauto, sobrinho do Capitão da náo, aceitando a
morte como Irmão da Companhia, ao mar vivo.
108 He de notar n'esta historia, as muitas vezes que Deos nosso Se-
nhor revelou a diversos servos seus o successo que havião de ter : que
parece andava ensaiando por varias partes do mundo as figuras que havião
de representar n'esta tragedia sua, e o que n'ella havião de dizer. Digno
he de advertência ; porém não de espanto aos que sabem, que são estes
mui usados meios de Deos era obras suas grandes : porque como seria pos-
sível ajuntar em hum theatro glorioso ao mundo, anjos, e homens, qua-
renta figuras tão conformes em obrar, e dizer, em hum acto de represen-
tação tão sentida, e tão repugnante á humana natureza, sem discrepância
alguma em acção, gesto, palavra, ou meneio; se não estiverão fatiados no
espirito, que costuma illustrar e unir os corações dos homens? Este espi-
rito foi o que ensaiou tanto d'antes por palavras expressas hum Padre
Ignacio, hum Irmão Estevão Zurara, hum Irmão Manoel Alvares, hum Ir-
mão António Corrêa, hum Irmão Nicolúo Dinis, e os demais companheiros,
senão expressa, tacitamente por sentimentos de coração interiores, onde
não pôde haver erro. Aquella efficacia, e uniformidade com que obravão,
e fallavão em morrer por Deos, em derramar sangue pela fé, em Vai de
rosal, na viagem, na ilha da Madeira, em Terça corte, e com mais força
quando mais juntos á occasíão, como se com os olhos virão o cutelo, e o
tyranno já diante de si, d'onde lhe veio a estes soldados? Que espirito
podia infundir-lha, senão aquelle que ensina as mãos dos seus á guerra, e
dá o esforço que necessitão pêra a victoria? Tudo a fim de nos mostrar
que he particulai' obra sua, dirigida a fins grandes, que os homens sabem
ouvir, e ver, mas não entender.
109 Pela mesma razão, não ha que espantar traçasse o Senhor tantos
outros prodígios n"esta mesma historia: que morra raivando o tyranno Ja-
ques Soria : que ceguem quarenta dos mais cruéis algozes : que se conver-
DO KSTADO DO BRASIL (ANNO DE ^"íTO) 1 iO
Ião alguns (l'ellos : e que mostre no mesmo tempo a seus escolhidos em
alegre vista o illustre triumpho, com que entrou no Ceo aquelle feliz es-
quadrão : são traças da divina Providencia, mui ordinárias em cousas suas
grandes ! De que outra maneira se havia de mover hum Pontífice a for-
mar processos jurídicos, a fim de declarar aquella batalha, e sua victoria,
como empresa do Espirito santo, e seus soldados como vencedores do Rei ■
da Gloria, "senão levado de tão forçosos, e efTic^zes argumentos? No caso
presente não só estão formados estes processos, jurados, e authenticos por
ordem dos Summos Pontifices, mas já em vesporas (como de sua clemên-
cia paternal esperamos) de declararem ao mundo o premio merecido dos
que tão bem correrão, e pelejarão.
110 São tão cfUcazes os argumentos d'esíes processos, que já antes
d'esta declaração, que só pertence ao Summo Pontífice na terra, tem o
mundo dado a estes esforçados varões o titulo de martyres; não porque
queirão com elle canonizal-os, mas porque entendem que he tão justa a
causa, que se atrevem as gentes a pronosticar a sentença.
Hl Assi os intitulão a cada passo os autores nos livros que imprimem,
o Padre Luís de Gusmão, o Padre Frei Luis de Sousa na Vida do Arcebispo
Frei Bertholameu dos Martyres, o Padre Orlandino, Historia da Companhia
de Jesu, o Padre Gordon in Chronol., o Arcebispo D. Rodrigo da Cunha,
o Padre Luis da Ponte, António Blosio de Signis EcclesiíT,- o Padre Pedro
de Ribadeneira, o Padre Frei Pedro Calvo, o Padre António deVasconcel-
los, o Padre Maffeo ha sua Historia da índia, oPadrcRichardoVersagano,
e outros muitos a cada passo. E tu, oh Companhia de Jesu do Brasil, com
razão podes prezar-te de tão insignes filhos, com cujos nobres procedi-
mentos te honraste, c com cujo sangue cresceste. Se á vista de seu san-
gue, dizem os autores naturaes, toma novos brios o generoso elephante: á
vista de tanto sangue seu, de filhos seus, e quasi veas suas, como não
açommctei'á generosa a Companhia do Brasil em occasiõcs de padecer? Fi-
zeiãj-no já, a exemplo destes quarenta, os Correas, os Sonsas, os Pintos,
os Bellavias; e fal-o-hão, pondo os olhos n"este sangue, os demais Irmãos
seus, que esperão no Ceo não faltará n'clles o mesmo esforço, se não fal-
tar a mesma occasião.
112 Tornando agora ás náos do Governador D. Luis de Vasconcellos,
de cuja frota nos apartámos com a náo San-Tiago, diremos o successo que
tiverão, tocante ao presente anno de 1570 em que estamos, deixando o mais
pêra o seguinte; que na verdade não cabe cm tão breve discurso de hum
\^0 LI\T,0 IV DA CIIRONICA DA COMPANHIA DE JESU
SÓ anno, historia de tragedias tão grandes. Saljidas novas da ilha da Ma-
deira do successo da morte gloriosa dos quarenta soldados de Christo; os
Padres Pedro Dias, Francisco de Castro, e mais companheiros qnc alli fi-
carão, entrando em inveja santa de semelhante sor^e, em lugar de chorar
o pai, e irmãos, choravão-se a si mesmos; chamavão-se pouco venturosos,
porque ficarão ; e não sabião já o dia em que partissem, pêra ir buscar
por esses mares em segunda instancia a boa dita que na primeira lhes fal-
tara. Mas oh incomprehensiveis juizes do Senhor ! Quem não cuidara, que
por apartar^se das mais a náo San-Tiago, dera em mãos de inimigos, e quo
por esperarem as companheiras ficarão salvas? Porém não foi assi, senão
que i)or aquella se apartar alcançou mais brevemente a coroa, que com
mais dilatados rodeos, estas que esperarão, hão de vir a alcançar depois
açoutadas dos mares por quatorze mezcs inteiros de infortúnios, tormen-
tas, e doenças.
113 Chegado o tempo, em que, a parecer dos homens domar, serião
favoráveis os ventos, dando-lhe as velas, sahio ao mar a dilatada frota: fez
sua derrota pelo golfão Atlântico, endereçada á ilha que chamão do Cabo-
verde. Nesta terra, por causa dos ares inclementes aos que de novo aper-
tão, hião contraindo doenças todos os navios, de maneira, que houverão
por melhor fugir d"ella, quaes terras, e praias avaras. Porém não ha fugir
a destinos do Ceo : queria este que padecesse aquella frota, e que só no
porto da Gloria tivesse descanso grande parte dos que n"ella navegavão :
porque no ponto que começarão a tomar a volta de Guiné, lugar de calma-
rias, e chuveiros de agoas pouco sãs, o mal, que vinha apoderado de mui-
tos, tomou maiores forças, e ficarão em breve tantos navios, como liospi-
taes de enfermos sobre aquelíes mares. líião os nossos Religiosos divididos
em duas nãos : o Padre Pedro Dias com parte dos Irmãos em huma d'el-
las, e o Padre Francisco de Castro com outra parte na capitania, com a
mesma ordem em tudo, que trazião os da náo San-Tiago. Tiverão aqui bem
cm que empregar seus desejos; porque ellcs erão os enfermeiros, elles os
médicos, e surgiões de todos, acudindo com igual charidade a corpos, e
almqs; porque a huns chegava a contagião ás portas da morte, a outros des-
pojava da vida ; e huns e outros necessitavão de amparo, e vigilância de
todo o dia, e toda a noite.
1 1 \ Passado o rigor da costa de Guiné, não passou o dos ventos, que
parecião conjurar-se contra os pobres navegantes, padecerão desfeitas tem-
pestades, e apesar de agoas, e ventos, depois de tempo largo, chegarão a
DO ESTADO DO DRASIL (ANNO DE V>10) 121
avistar terra do Drasi!:. mas foi porá dultrada magoa; porque quando to-
mava algum alento a perseguida frota, e queria ir pondo em esquecimento
os tral>allios passados, á vista do descanso imaginado : ex que de novo so
vô coml)atida de terríveis brizas, e corrente de mares, cora que por mais
que preparou em liuma c outra volta, não foi possivel não só passar o
Cabo de Santo Agostinho, ou tomar terra sua, mas nem ainda aguardar
junto a ella; senão que foi forca seguir a dos ventos, e agoas, correndo a
costa até parar na Nova Hespanha : o Padre Francisco de Castro, que na
Madeira se embarcara com os seus na não capitania do Governador D. Luis,
foi aportar á ilha de S. Domingos: o Padre Pedro Dias, que liia em outra
náo, á ilha de Cuba, destroçados, doentes, e quasi sem alento. Nos quaes
lugares, porque hão de invernar, e concertar as nãos, e se acaba junta-
mente o anno com a viagem, os deixaremos até principio do seguinte, por
tornar á Província, que magoada está chorando a perda de tantos, c tão
grandes obreiros; se bem contente por outra via, com a sorte ditosa de tão
honrados filhos.
113 Sobre golpes tão grandes, outro cruel e deshumano está a ponto
de descarregar com rigor. Aquelle lustre da Comi)anliia do Brasil, alivio
de cansados, e amparo de aílligidos, o venerável Padre Manoel de Nóbre-
ga, consumido de enfermidades e trabalhos no seu Collegio do Rio de Ja-
neiro, sentia ir-se arruinando a estatua terrena de sua frágil carne: despe-
dia-se de seus filhos ausentes por cartas, e dizia nellas, que desejava des-
atar-se de tão i)enoso cárcere, e que esperava ver-se com Deos dentro em
breves dias : que não se esquecessem diante da divina Magestade d'aquelle,
que com titulo do pai n'esta Província os amara. Julgou-se por cousa ave-
riguada, que tivera conhecimento de Deos do dia certo de sua morte; como
se deixou ver do effeito. Gastava os dias e as noites em suspiros e lagri-
mas, batendo ás portas do Ceo, tanto com mór fervor, quanto via ajtres-
sar-se o tempo de sua liberdade. Trazia de continuo na memoiia as Medi-
tações de Santo Agostinho, e abrazava-se em pi-ofimdo amor da celeste
pátria, dando ultimo vale a tudo o que era criatura. N*esta f()rma hia che-
gando-se á terra aquelle aiitiguo edilicio, c hia Nóbrega contando os dias,
como aquelle que sabia o numero : até que chegada a antevespora do que
havia de ser o derradeiro tão desejado, sahio a despedir-se pela cidade, de casa '
em casa, abraçando os amigos, agradocendo-llies suas boas correspondências,
dizendo se íii-;issom eniboin, c o onconiniciíbisscm n Doo-;. K rHT-.nmlado
i22 LIVRO IV DA CHRONICA. DA COMPANHIA DK JESU
pêra onde partia? (porque não vião que iiouvcsse embarcação pêra fora)
respondia com os olhos no Ceo: «Á nossa pátria, á nossa pátria.»
116 O seguinte dia vespora do ultimo da vida, disse missa, e com-
raungou n'ella por viatico. Acabado o jantar, achou-se presente na confe-
rencia ordinária daCommunidade, faltando com intimo sentimento das cousas
das moradas eternas. Sobre a tarde lhe sobreveio huma dòr iutensa, re-
conciliou-se, e lanoou-se em cama pêra morrer. Aqui era muito de notar
a ardente fragoa d"aquelle devoto peito, o como então scintilava em amor
divino, invocando toda a corte celestiah as três Pessoas da Santíssima Trin-
dade, a santa Humanidade de Ghristo, por varias maneiras de suas deva-
ções, a Virgem Senhora nossa, a quem amava ternamente, e entre os mai s
Santos da Gloria, o invicto Martyr S. Sebastião, em cujo padroado morria;
com tal copia de lagrimas, de que sempre teve dom particular, que enter-
necia os corações mais duros. Chamou os Padres, e Irmãos presentes,
abraçou-se com elles, e lançou-lhes a benção, dizendo: «que folgara muito
de ver n'aquella hora os outros que estavão ausentes; mas que lá os veria
do Ceo, d'onde era chamado pêra o dia seguinte de S. Lucas.» Amanhe-
ceo o dia desejado, pedio a hum dos Padres que fosse apressa dizer missa
por elle, antes que espirasse, e com a mesma brevidade pedio o sacramento
da sagrada unção, cujos passos foi acompanhando com oraç(5es devotíssi-
mas, que provocavão a lagrimas os presentes : e acabado o acto da unção,
e o da Ladainha dos Santos, a que sempre respondeo pontualmente, disse
estas palavras : «Louvado sejaes meu Senhor, fortaleza minha, refugio meu,
e meu libertador, que tendes por bem leva r-me n'este dia, e em vossa santa
Casa da Companhia de Jesu.» Ditas estas palavras, pondo os olhos nas Ima-
gens santas, com admirável paz, e socego deo a alma ao Senhor, que a ti-
nha criado, no"anno de 1570, em 18 de Outubro, consagrado ao Evange-
lista S. Lucas, dia pêra elle de conta, porqueno mesmo nascera ao mundo,
entrando n"esta vida; e nascera também a Deos, entrando em sua Compa-
nhia; de idade de cincoenta e três annos, vinte e oito de Religião, no Col-
legio do Rio de Janeiro. Foi sepultado na Igreja d'elle, com solemnes exé-
quias, lagrimas, e saudades, não só dos Filhos e Irmãos, mas de grande
concurso do povo que concorreo a seu enterro. Estão seus ossos esperando
a ultima resurreição da carne; e sua alma, como cremos, está gozando da
eternidade na pátria dos viventes.
■117 A vida d'este servo do Senhor foi merecedora de sua feliz morte,
ç toda digna de mui dilatada historia, pêra exemplo dos que trabalhão n'est a
DO ESTADO DO BRASIL (XSSO DE 1570) 123
Província, mothodo do porfuilos Religiosos, e cdiru\a(;ão de seculares: po-
rém não sofre o estylo que levo a exacção com que devia escrever-se : a
seu tempo se lhe dará livro particular : por entretanto reduziremos a com-
pendio breve suas largas virtudes. Foi fdho do pais nobres, criado em toda
a perfeição christãa : versou os estudos das Universidades de Coimbra, e
Salamanca, cora os augmentos que no principio d'esta obra temos referido.
Deo vale ao mundo, depois de experimentar sua pouca firmeza, e a occa-
sião com que pretendeo afrontal-o, iiegando-lhe o premio da Coílegiatura
a que se oppuzera, e merecia por suas letras, segundo opinião dos melho-
res Lelrades : meio ordinário, que o Ceo costuma tomai' na conversão de
homens importantes, que experimentem primeiro o fel do mundo, porque
depois saibão aborrecer seu leite enganoso. Entrou na Companhia iia flor da
idade de vinte *e cinco annos, já Sacerdote de ordens sacras, e Bacharel formado
cm Cânones, na era do Senhor de 15 ii, em o CoUegio da cidadede Coimbra.
118 O venerável Padre Joseph de Anchieta, companheiro seu tão fa-
miliar, em seus apontamentos, tratando das virtudes deste servo de Deos,
diz estas palavras:» A vida do P. Manoel da Nóbrega foi insigne, e tanto
mais, quanto menos conhecida dos homens ; os quaes elle amava intima-
mente, desiíjando e procurando a salvação de todos pêra gloria de Deos,
que cheio de seu amor sobre tudo, tinha diante dos olhos ; pêra dilatação
da qual, e conhecimento- de seu santo nome, todo o Brasil lhe parecia pou-
co.» Çomprehende o venerável Padre nestas poucas palavras em summa (se-
gundo seu costume) as duas príncipaes virtudes do amor de Deos, e do
próximo: porém he necessário que expliquemos nós estes dous amores
(porque nem todos têm a comprehensão de Joseph.) Nas palavras «cheio
de seu amor sobre tudo,» comprehendia elle os mais finos gráos de amor.
D"cstes diremos, e depois do amor do próximo. -
119 líum dos indícios do amor de Deos, he quando hum coração se
sente como ferido da sela do divino arco de tal maneira, que se acccnde
em labaredas amorosas em todas as cousas de honra e gloria de seu ama-
do. Assi o sent!.' Santo Agostinho. Quem considerar com attenção a vida does-
te servo de Deos desde sua entrada na Companhia até dar o espirito a seu
Criador, conhecerá que trazia em seu coração esta como ferida incurável
da seta do amor divino ; e que esta o accendia em vivo fogo de servir a
Deos, e em vivo zelo de augmentar, procurar, defender sua honra, o glo-
ria. Esta o constrangia a sahir por esses campos, villas, cidades de Por-
tugal, e fora d'elle, gritando aos homens, como íiavião de amar e honrar
■lál LIVRO IV DA nimoNin.v da companhia de jesu
a seu Deos. A este fim liravão Ião continuas missões, tão contínuos fer-
vores, tão contínuos zelos : não reparando em trabalhos, fomes, prisões,
afrontas, e chegar a ser tido por doudo, á conta de poder atear este amo-
roso incêndio nos corações dos homens.
120 Outro grande indicio d"este amor divino constituem os Santos no
continuo fervor de fallar de Deos ; porque he certo, que a boca falia do
coração. Que maior e mais continuo fervor de fallar de Deos, qne o que
vimos n"este \arão? Era bem conhecido em todo o Portugal seu ardente
zelo: era chamado o fervoroso Gago, quando ainda estava em seus princí-
pi)s; e cresceo muito este fogo entre os tições do Brasil: parece sabia de
si com fervor, e ({ue vomitava chammas de zelo: toda sua historia está cheia
de passos semelhantes.
121 Santo Agostinho no capitulo 36 de suas Meditações, chama ás la-
grimas evidente signal do amor divino: «Da-me Senhor (diz elle) o evidente
signal do teu amor, que continuamente de meus olhos como de duas fon-
tes saião rios de lagrimas, etc.» Estas são as testemunhas mais abonadas
do amor: d"estas colligião Phariseos ode Christo pêra com Lazaro: «Ecre
quomodo «máftáí eum.» São lingoas, que callando fallão, e pregoão o quan-
to nosso coração está cheio d'esta doçura, que chega a derretel-o em
agoas. Este concedeo o Senhor a seu servo Nóbrega: seus olhos andavão
commummente feitos duas fontes de lagrimas, acompanhadas de suspiros.
lie testemunha d"esta verdade seu fiel companheiro Joseph em muitas par-
tes de seus Apontamentos. E por esta razão trazia Nóbrega as cousas d"es-
ta vida desterradas do coração, com hum como fastio de todas ellas: ne-
nhuma queria possuir, que Deos não fosse, ou em ordem a elle.
122 O amor do próximo he outro eíTicacissimo indicio, e como irmão
inseparável do amor de Deos; e este foi insigne em Nóbrega. Quando ain-
da era moderno na Companhia, foi escolhido pelos Superiores pêra pai
do próximo : e foi com tão grande eífeito, qual temos visto no principio
desta historia. Muitos annos depois andou era provérbio, especialmente
em Coimbra, seu ardente zelo. Fazia de conta, que n'aquelle oíTicio se lhe
entregavão as necessidades de todos os homens, das cadeas, dos hospi-
taes, dos pobres, das viuvas, dos órfãos: todos trazia como a rol em seu
coração, com todos se compadecia, e por todos suava igualmente. Que ca-
bedal não meteo na conversão daquelle famoso salteador desesperado de
sua salvação? Depois de esgotadas todas as suas traças não sahio com o
mais tino do amor do próximo? «irmão meu (lhe disse) eu tomo sobre
DO 1:STAD0 DO HUASIL (.VNNO DE 1570) 1-25
mim lodos vossos peccados; eu darei delles conta a Deos, e pagarei por
vós.» Que mais fazia hum S. Paulo, quando dizia: ^Ojitabam anathenia esse
pro fratribus méis?» Não foi este o maior effeito do amor de hum Deos hu-
manado, tomar sobre si os peccados dos liomens: ((Qui peccata nosfra ipse
portavil?» Que não zelou sobre a melhoria da outra mulher desesperada,
que protestava que Beelzebub criara o Ceo e a terra, o mar, e as áreas, e
que a elle se entregava? Vejão-se os casos do livro primeiro d'esta histo-
ria, e vejão-se os de toda a serie de annos que vivco no Brasil, e verão
grande numero de actos semelhantes, que eu não posso agora repetir.
123 Quem pozer diante dos olhos este varão a pé, com hum bordão
na mão, e o Breviário pendurado do braço, correndo os lugares, villas, ci-
dades, e ainda os Reinos de Portugal, Castella, Galliza, e Mundo novo : jul-
gará que vê hum Apostolo S. Paulo abrazado em zelo da conversão dos
homens. Não houve anciã de caçador, que assi atravessasse montes, e val-
les por alcançar a presa; nem avarento, que assi cavasse a terra por achar
thesouros; ou sequioso, que assi buscasse os rios pêra fartar a sede: como
a anciã, cubica, e sede, com que o nosso servo de Deos atravessava mon-
tes, valles, rios, mares, reinos inteiros, por ganhar almas. Todos esses
lugares, villas, cidades, reinos, e todo o Novo mundo Brasilico (como d'elle
disse Joseph) era pouco pêra seu ardente amor. Por grande indicio de
amor se reputarão os trabalhos que padeceo Jacob por Racchel, cifrados
em sette annos somente: por todo o tempo de sua religiosa vida trabalhou
Nóbrega pelo amor dos homens hjdos. Passou calmas, frios, fomes, sedes,
cansaços : foi afrontado dos jogadores, maltratado dos caminhantes, morto
de fome dos Gallegos, ameaçado dos Castelhanos, e preso dos vadios.
I2i Que de trabalhos não sopportou por livrar d(j poder tyrannico de
hum diabo incubo a pobre alma daquella mulher, com quem havia tantos
annos fazia vida como mai'ital, até desapossal-o da presa ? Que de suores
lhe não custou a outra alma, que estando da mão de Satanaz por nmitos
annos possuída, a tornou a reconciliar com Deos e Senhor verdadeiro, to-
mando sobre si os acommecimento : d"aquelle péssimo espirito, desallan-
do-o só por só; o qual não se atrevendo ao desaíio, tomou por partido
desamparar a casa cpie injustamento possuía.
\T.'i Pelos seus Brasis em i)arlicular, qne de trabalhos não ])adeceo?
Que agoas. que rios, que mares não passou? Qik.' seilões, que seri'as, que
])r('nhas não atravessou, p(jr salvar suas almas? P(jdta fazer com S. Paulo
li uma perfeita ladainha de seus trabalhos, cansaços, fomes, sedes, calmas,
126 LIVRO IV DA CnnOMCA BA COMPANHIA DE JESU
frios, ingratidões, máos tratamentos, afrontas, treições, e perigos da vida.
Bastava pêra prova de tudo, o exemplo d"aquella sua gloriosa missão, nunca
assas louvada, quando só com seu companheiro Josepli se foi meter entre os
bárbaros, actualmente inimigos, postos em armas, queixosos, e irritados das
injustiças, e aggravos dos Portugueses. Que não padecerão? Que transes
não passarão? Que de vezes não sentirão o arco armado, e a maça do bra-
ço fero sobre sua cabeça? Que de vezos não esteve a ponto de ser sacrifi-
cado Nóbrega aos dentes e gula daquelia gente barbara, por estranhar-lhes
o abuso da carne bumana, de feitiçarias, de ódios, de vinhos, de multidão
de mulheres, e outros sem.eihantes erros de sua Gentilidade? Se vem a ser
o mór sinal do amor do próximo pôr a vida por elle : quem tantas vezes
a poz, como Nóbrega, que quilates de amor não teria?
126 Havia entre os índios contrários muitos filhos, e filhas de Portu-
gueses, que alli hião dar, por causa da guerra, e outros successos : lasti-
mava o coração de Nóbrega, o ver que estivessem perdidos entre infiéis :
buscava traças pêra seus resgates, e livrava-os dos dentes e lascivia dos
bárbaros: os de maior idade punha em estado de matrimonio, com esmolas
que pêra isso buscava: os menores accomodava em casas virtuosas, ou em
Seminários, onde aprendessem a doutrina christãa. Com os enfermos cam-
peava com especial charidade: visitava-os, e soccorria-os com tanto amor e
affecto, quanto mais erão desamparados, e desprezíveis : tinha por gloria
assistir-lhes a todas suas necessidades. Yierão alta noite á nossa portaria
em busca de hum confessor a toda a pressa, pêra hum homem que es-
tava morrendo, e já sem falia, atravessado de estocadas : não quiz perder
a occasião, foi eile mesmo acudir-lhe, apesar de seus muitos achaques ;
chegou, achou que erão as feridas penetrantes, e lhe tinhão roto as tripas:
tomou resolução eíBcaz, mandou que lh'as cozessem, e no mesmo ponto
em que começarão a coser, começou o ferido a fallar: tomou juramento de
segredo ao surgião, e ajudante, necessários instrumentos da cura, e no mes-
mo tempo diante d'elles o confessou: e foi tudo hum, ficar o homem cura-
do na alma, e corpo, e juntamente com a vida não sem espanto dos que
o vião. Celebra o caso Joseph; não sei se só pela boa fortuna do successo,
se porque o julgou mais que humano.
127 Teve noticia que na villa de Santos fallecera hum morador rico mui
conhecido, mas pouco devoto da Companhia por menos arrendado em sua
consciência: na manhãa seguinte celebrou Nóbrega na Igreja do Collegio de
S. Vicente hum solemne Officio de nove lições por sua alma còm demons-
1)0 ESTADO DO DRASIL (ANNO DL io70) 127
trações de amor, c sentimento. Assistirão a elle algumas pessoas, as quaes
indo depois á villa de Santos, acharão que o homem estava vivo, c que fo-
ra errada a noticia da morte, equivocada com outro morador: referirão ao
reputado defunto o que Nóbrega tinha feito por elle: e foi esta noticia hu-
raa voz do Ceo, com que de repente ficou trocado aquelle coração : bro-
tou estas palavras: «Quem isto me faz cuidando que sou morto, não pre-
tende herdar minha fazenda, mas só a salvação de minha alma.» Com este
conhecimento deo volta á vida, fez-se grande devoto da Companhia, e es-
colheo d"ella confessores com os quaes chorou por largo tempo os tratos
passados de sua consciência, e vivco com exemplo de todos, e com espe-
ranças fundadas de sua salvação. Toda esta grande mudança attribue Jo-
seph áquella boa obra de Nóbrega: e acrescenta, que não duvida que foi este
homem particularmente favorecido da Virgem Senhora nossa; porque tinha
tão especial reverencia ao nome sagrado de Maria, que fez resolução de nâo
chegar em toda sua vida a mulher de semelhante nome, ainda por via do
matrimonio. E o que mais he, que por esta causa regeitou o casamento de
algumas mulheres, só porque Unhão aquelle santo nome. Refere mais, que
chegou a ser tão ajustado, este homem em sua consciência, que só por
evitar os transtornos que comsigo pôde trazer o oíTicio de Juiz da Repu-
blica, o recusou, a troco de fazer antes á sua custa a obra de huma pon-
te de pedra e cal, com considerável despeza, pêra bem da mesma Repu-
blica.
128 Deste grande amor de Deos, e do próximo lhe nascia a este ser-
vo do Senhor, hum zelo constante, e severo, qual o do Propheta Elias, em
todas as cousas que pertencião á honra de Deos, e amor do próximo. Toda
sua lenda está cheia d'estes exemplos, Note-se aquella constância com que
lá reprehendeo o Conde Castelhano ; o Ecclesiastico incontinente, a quem
não pudérão render tantos outros remédios; os pobres fingidos deGalliza;
os que profanavão a igreja com festas indecentes. Não interveio n'este ca-
so o próprio zelo de Elias? No Brasil seria infinito contar os casos de seu
ardente zelo. Chegou a pacecer temeridade o com que sahio a reprehender
os Índios bárbaros, gentios ainda, armados, e postos em terreiro no mon-
te da Bahia que depois chamarão Calvário, quando estavão pêra repartir e
com.er o corpo do Tapuya, tirando-lh'o de entre as mãos c dentes; sem que
ousassem levantar mão, (}ii arco, em caso de huma afíronta, a mais dura
que podia imaginar-se entre aíjuella gente. O mesmo fez em Piratininga: h
'A cada passo se vecm -actos seus semelhantes.
4á8 LIVIU) IV DA CimOMCA DA COMPANHIA Dli JESU
129 Adiou-se hum dia no mar em liuma grande tempestade, e ouvio que
hum dos marhiheíros, tomando a vela, pronunciou a Ijlasphemia seguinte:
«Haveis de entrar a pesar de S. Lourenço:» sahio do camarote, reprehen-
deo o marinheiro asperamente, e virado ao santo, posto de joelhos disse :
«Sejais bemdito glorioso santo: rogai a Deos que nos não castigue pela blas-
phemia, que diz contra vós este indiscreto homem. Com esta acção ficou o
marinheiro castigado, os presentes escarmentados, e acudio logo o Santo
com bonança. Era acérrimo defensor da liberdade dos Brasis : não queria
ouvir de confissão pessoa alguma, que contra ella tivesse obrado, sem que
restituísse. Sentia summamente os roubos, e assaltos que n^ellcsse fazião;
chorava-os com lagrimas de sangue, bradava sobre etles no publico, e no
particular: e pêra remédio destes males se foi entregar, como vimos, aos Ta-
moyos, pêra applacar a divina Justiça, ou fazendo pazes com elles, ou acabando
a suas mãos emsatisfação dos peccados dos Portugueses. No tempo em que
exhortava o Capitão Esíacio deSáahbertar oRiodeJaneiro do poder dos Ta-
moyos, pregando hum dia diante d'elle, e dos soldados de sua armada, inci-
tando-osa que applacassern a ira de Deos, pelos roubos feitos aos índios,
que forão gravíssimos: trazendo a este propósito a historia dos Gabaonitas, que
pedirão sette da geração de Saul pêra enforcal-os, e com elles applacar a ira
de Deos; concluio com grande efficacia: «Oh se agora tomassem sette des-
tes ladrões que tem destruído os pobres índios da Bahia, e de toda a costa
e os enforcassem! Nosso Senhor se applacaria, e se mostraria favorável ao
que pretendemos.»
130 Em nenhum modo de cativeiro de índios consentia, excepto so-
mente no de justa guerra : todos os mais que então se usavão, tinha
por injustos. Dizia que raramente se achou que pai Brasil vendesse seu ver-
dadeiro filho ; porque os amão de todo o coração. E os que dizem que
se vendem a si mesmos, fazem-n'o porque não entendem que cousa hc
vender liberdade ; ou porque são induzidos com enganos, ou medo : don-
de nasce, que achando-se depois os pobres alcançados, fogem, c antes
querem ir a morrer pelos mattos a mãos de seus inimigos que sofi^er
cattiveiro. Dizia mais, que obrigal-os a servir com titulo de forros (como
outros fazem) era o mesmo que cattiveiro; porque só tem o nome de li-
vres, e são deixados em testamentos de pais a filhos, e vendidos como
verdadeiros escravos, com titulo de vender o serviço. E concluía n'esta
matéria com estas palavras: «Praza a Deos, que por remediar os comprc-
hendidos n"eslos peccados, não vão alguns letrados com elles ao infernoí»
DO ESTADO DO BHASIL (aNiNO DE i570) 139
131 Era tão inteiro no ponto em que se resolvia diante de Deos em
alguma verdade, que não era bastante pêra se desdizer pôr-se contra e\'&
o mundo todo, ou ser por isso afrontado, e maltratado; como foi muitas
vezes, com a mesma constância, e animo. Com esta defendeo contra
todos os povos da Bahia, que era bem reduzirem-se a aldeãs, e Igre-
jas os índios, pêra que nellas fossem doutrinados, como com effeito o fo-
ram no tempo do Governador Mem de Sá, com grande fruto de suas al-
mas. Com a mesma defendeo contra tantos, assi na Bahia como em S.
Vicente, que era bem que se acommetesse a enseada do Rio de Janeiro; com
tal resolução, como quem a tinha de DeoSj e com o fim que vimos. São
sem conto os casos semelhantes.
132 Por estes zelos foi murmurado, e perseguido em diversos tempos
e de diversos modos. De hum homem poderoso, actual Ouvidor da Capitania
de S. Vicente, porque reprehendia com zelo do Bautista o caso feio de
adultério, que commetia com huma miilher, que tinha tomado a hum mora-
dor pobre, se lhe maquinava a morte, por meios, de que o Padre teve no-
ticia; porém não desistio de seu zelo, dizendo claramente aos Irmãos, que
sabião de tudo, que morreria por boa causa. E dava-se por tão pouco of-
lendido, que a este mesmo homem, vindo depois a ser preso, e a estado
miserável, ajudou, e remediou com tal charidade, como se nada soubera dtí
seu intento: e era este timbre seu, servir aos que o maltratavão com
tanto mór vontade, quanto era a iJiaior o aggravo.
133 Notável foi o grande espirito de trabalhar (Veste servo de Deos.
Na Bahia dissemos, que dizia missa, pregava, c confessava todos os dias
santos da Quaresma no nosso Collegio da cidade; elogo a pé na mesma ma-
nhãa, indo a Villa velha meia legoa distante, tornava a dizer missa, pre-
gar, e confessar, até não haver quem. De S. Vicente dissemos, ({ue anda-
va em Cíjntinua volta de huma villa pêra outra vilia, exercitando semelhan-
tes ministérios á(|uelles povos necessitados de Sacerdotes. Vimos a lida
em que alli andou no tempo da armada de Mem de Sà, assi em seu socr
corro, como em remédio de pobres necessitados. Que de vezes o vinios
atravessar as grandes serras do Paraná Piacába? Que de vezes caminhos ás-
peros, e mattas fechadas n'aqucllas partes rigorosas, e sempre a pé, por
mais carregado que andasse de acliaques? Seria historia grande ijuerer con-
tar os trabalhos todos deste varão: veja-se comattençã(» sua vida, e achar-
se-ha, que foi hum continuo traballio.
i3i. Em lodo o género de culto divino era exaclissim(j: faltavãoiraqu»-'!-
VOL. II 1)
{30
LIVRO IV DA CIIROXICA DA rOMPAMIIA DE JESU
le tempo ornamentos ricos, mas com os pobres de que usava nossa Igreja,
se esmerava sua limpeza, e perfeição. Frequentemente dizia missa solem-
ne em canto de órgão, pêra maior louvor de Deos, e exercício santo dos
índios, que ajudavão a official-a com suas vozes, e instrumentos músicos,
em que andavão destros. Em cjiiinta feira da Cea do Senhor, não deixou
jamais de lavar os pés aos Irmãos publicamente na Igreja: no fim do qual
acto pregava o Mandato, á imitação de Christo, e muitas vezes também a
Paixão. Era zelozissimo que se pregasse sempre, e a todos a palavra de
Deos: até os Irmãos que não de missa (*) mandava exercitar este ministério
em lingoa portuguesa, e brasílica. Zelava com cuidado sobre as indecencias das
Igrejas: e pêra impedir as que se commetião em alguns actos que se re-
presentavão n"ellas, introduzio, com parecer dos moradores de S. Vicente,
em lugar d'estes, hum muito devoto, a que chamava Pregação universal;
porque servia pêra todos. Portugueses, e índios, e constava de huma e ou-
tra lingoa: concorria a elle toda a Capitania, e representava-se na vespora
do Jubileo de dia de Jesu, que á volta do acto ganhava grande numero de
povo. Aconteceo n"esta representação hum caso tido por milagroso :fazia-sc
ella huma tarde em lugar descoberto do adro da Igreja; e foi o mesmo co-
meçar, que acommeter o theatro, e todo o horisonte, huma tempestade me-
donha; e sobre os ouvintes se pôz huma nuvem carregada de ?igoa, que
começava a gotejar grossas pingas, e metia medo a todos: queria recolher-
se o auditório; porém aquelle Religioso que tinha cuidado das figuras, le-
vantando a voz pedio a todos que se socegassem, e deo a sua palavra, que
não choveria antes que a comedia se acabasse: e assi succedeo. Gon-
tinuou-se com a obra, que durou três horas, com quietação, e socego, até
perfeitamente se acabar, e recolherem a suas casas os ouvintes: e feito is-
to, desfechou a mais horrenda tempestade de chuvas, ventos, e trovões
que até alli se vira; e deo que cuidar aos homens quem a originara, e quem
a refreara por tanto espaço de tempo, servindo mais de toldo ao acto, que
de impedimento. Este caso traz o Padre Joseph a fim de mostrar o zelo
com que o Padre Nóbrega procurava evitar as indecencias das Igrejas, e
actos profanos: porém a maravilha que n'elle entreveio na suspensão da
tempestade, attribuio-se commummente ao mesmo Joseph; porque elle foi o
que fez a comedia, e assegurou o auditório. Assi o escreve o Padre Pater-
nina, liv. i, cap. 7, e o Padre Pedro Rodrigues em sua Vida manuscripta.
(•) Evidentemente l^a aqui falia de palavras, que cada hum supprirá como entender.
(I. F. da SJ
DO ESTADO DO BRASIL (aNNO DE lo"0) 13Í
133 Dizia a missa com grande devação, e copiosas lagrimas: gastava
n'ella Imma liora: e alli se lhe communicava o Senhor intimamente, e al-
cançava de sua divina Magestade muitas mercês. Rezava com a mesma per-
feição o oíTicio divino, sempre com companheiro para mais distincção, e
por suprir o defeito que tinha na lingoa balbuciente. Suas pregações erão
fogo de puro zelo da perfeição christãa; e por outra parte devoto, suave,
e aífectuoso; que facilmente se soltava em lagrimas, e provoava com ellas
ao povo. Na oração era continuo, e fervoroso, especialmente em S. Vicen-
te, escreve d'elle seu amigo Joseph, " que gastava n'ella a mór parte da
noite, e que n'ella tratava do remédio das cousas, não só tocantes á Com-
panhia, mas também ao bem dos próximos, e augmentos da christandade,
e salvação das almas: em cujos negócios tratava depois com tão grande
acerto, que dizião delle pessoas graves, que era pêra governar todo o mundo.
Era terníssimo nas lagrimas: qualquer sentimento do Ceo, ou tocar de vio-
la, ou musica devota, o constrangia a desfazer-se nellas. Teve fundados
arreceios, que os Tamoyos lhe matarião o Companheiro que com elles dei-
xou quando esteve em reféns: todo aquelle tempo chorava amargamente,
arrebentando em suspiros sentidíssimos, por haver deixado o Irmão: pros-
trava-se na presença de Deos, e alli fallando com elle, dizia: «Ah Irmão meu,
como te deixei só entre bárbaros? Como não fui eu merecedor de morrer
comtigo?» E escrevendo-lhe nesta occasião, começava assi: «Irmão, se ainda
esta minha vos achar com vida, etc.,» e molhava o corpo do papel de lagri-
mas, mais que de tinta.
136 Foi estremado na observância dos votos religiosos: trazia sempre
diante dos olhos mui especialmente a guarda da pureza virginal. Achando-
se no meio de huma tempestade, disse: que huma das cousas que mais o
consolava no meio daquelle perigo, era a guarda do voto de castidade.
Todo o resguardo n"esta matéria lhe parecia pouco; por terra, por mar, por
sertões, por aldeãs de índios, sempre era o mesmo, e sempre com a mes-
ma cautela: castigava, e mortificava sua carne com rigor de cilícios, e dis-
ciplinas. Pasmavão os bárbaros, quando entre elles vivia aquelles ires me-
zes de seus reféns, de que offerecendo-lhe mulheres a modo de sua genti-
lidade, as não aceitasse; e que vivendo entre corpos nús, e objectos lascivos,
os não appetecesse. Fazião-lhe a pergunta que alli dissemos: «Se tu hes ho-
mem como os outros, como he possível que não tenhas as paixões dos de-
mais?» Ao que Nóbrega respondeo, tirando da algibeira a disciplina ensan
guentada; de que ficarão admirados, c formarão conceito d 'elle, mais que
i32 LIVRO IV DA CHRONICA DA COMPANHIA DE JESU
de homem. O santo varão Ignacio de Azevedo costumava dizer, que era mi-
lagrosa a pureza da Companhia entre as occasiucs do Brasil. Milagrosa pa-
rece na verdade a pureza de Nóbrega: que andasse o mais do tempo de sua
vida metido entre occasiões por caminhos, por casas alheas, por sertões, por al-
deãs de índios, gente não só lasciva, mas costumada a convidar a ella; e que
alli vivesse tão sem carne, com tão rara cautela, que nem por sonhos vies-
se jamais ao pensamento a alguém hum menos recato de Nóbrega n'esta
matéria. Isto não he milagre? viver em carne em pureza de Anjo!
137 indicio grande de seu interior virginal pôde ser a severidade, com
que estranhava, e castigava as faltas contra esta virtude. Brotava muitas ve-
zes em zelo, e dizia: «Malaventurado será aquelle, por quem se quebrar o
sello virginal da Companhia.» Quando no anno de 1553, foi visitar a pri-
meira vez a Capitania de S. Vicente, vimos alli aquella severidade com que
se houve contra alguns nossos, que com falsos indícios forão calumniados
por homens seculares mal affectos, e menos fieis n"esta matéria. Estava cer-
to que nestes sujeitos não cabia semelhante maldade: e com tudo assi as-
sombrou seu coração hum só rumor de cousa tão fea, que logo despedio
da Companhia todos aquelles em quem puzerão boca (e erão dos mais virtuo-
sos) em quanto o Vigário Ecclesiastico, a quem commetéra o conhecimento
do caso, não averiguou sua innoceneia por sentença, como alli dissemos.
í;' 138 Não foi menor a severidade do segundo caso, com que n'aquella
mesma \isita em Piratininga castigou a outro delinquente secular Mamaluco,
não menos que com enterral-o vivo, abrindo cova, celebrando oíTicio, do-
brando sinos, e chegando a ser lançado na sepultura : e quando houve
de alcançar perdão, foi detestando primeiro seu delito (porque era sabido)
pedindo perdão do aggravo que fizera á pureza da Casa em que morara, que
era de portas a dentro com os Religiosos.
139 A perfeição de sua religiosa obediência era semelhante á de sua
pureza: não foi nunca necessário pêra elle mais que o sinal da vontade de
qualquer, ([Uíí tivesse apparencia de Superior: bastava este pêra dispòr-se
á mais difficultosa empreza: com este aceitou aspérrimas missões, sem mais
demora, que a de tomar bordão, e Breviário; e sendo huma d'ellas tão es-
pantosa, não menos que de hum novo mundo, em que havia de dar o ul-
timo vale á pátria, e a tudo o que tinha em Europa; com a mesma facilida-
de se embarcou, com que outros se embarcarião pêra lugar de huma gran-
de recreação: No Brasil, quando não tinha Superior, folgava de esperar que
as cousas de mais momento lhe fossem mandadas pelos de Portugal, ou
DO ESTADO DO BRASIL (A\N0 DE 1370) 133
lie Roma; e estes mandados executava com muito gosto seu, por intervir
n'elles a obediência. Tinha grande desejo (como em seu lugar vimos) do
ir acudir á gente de Paraguay, que o chamava, e padecia estreita necessida-
de da doutrina da Fé: e comtudo (depois de deliberado muitas vezes, que era
obra do serviço de Deos, e chegando a estar aprestado pêra partir ao dia se-
guinte) bastou significar-lhe que sentia o contrario o Padre Luis da Gram,
pêra logo no mesmo instante desistir; julgando que aquella seria a mór glo-
ria de Deos, só por ser o Padre adjunto seu dado pelos Superiores; e com
maior promptidão lhe obedecia á risca a qualquer aceno depois que entrou
por Provincial. Ficando em sua ausência por Commissario com o governo
da Capitania de S. Vicente, e Espirito santo, desejava que hum Irmão de
suíTiciencia o ajudasse a pregar n'aquellas partes, onde havia muita neces-
sidade da palavra de Deos, e lhe ordenara o fizesse: porém significando-lhe
rt Irmão, que o Padre Provincial antes de partir dera a entender, não -era
de opinião que pregassem Irmãos a Portugueses, foi bastante este só sinal
da vontade de seu Superior pêra desistir logo, contra o que entendia: mor-
mente que era o Irmão bem digno de subir ao púlpito, porque, segundo
conjecturas, era o venerável Joseph de Anchieta. Não somente aos Superio-
res, aos mesmos súbditos folgava de dar mostras de obedecer, todas as ve-
zes que contra seu dictame davão razão digna de aceitar-se. Mostrava-se a
delicadeza de sua obediência, não só no que obrava, mas no que ensinava:
por toda esta historia vimos n'esta matéria casos raros. Não chegou a ser
o mais fino da obediência, o exercício com que provava seus Missionários?
O com que provou o Padre Manoel de Paiva, deixando-se vender a pregão
pelas praças"? O com que provou o Padre Vicente Rodrigues, sendo elle o
porteiro da venda, levantando pregão, e dizendo em alta voz pelas ruas :
«Quem quer comprar este Sacerdote, venha-se a mim, receber-lhe-hei o lan-
ço?» Provou o mesmo Padre Paiva, mandou-lhe que se lançasse a rodar por
hum monte aliaixo. Ao Padre João Aspilcueta Navarro, que bebessíí liunia
tigella cheia de azeite, que fosse tomando huma disciplina jielo meio das
ruas da cidade, vestido em trajos de penitente. Estes e outros senielliantcs
exercícios da obediência não sui)puiihão a mór íineza d"el[a? E com tudo
n^ão era por querer ser pontualmente obedecido; senão que era fervor do
espirito da perfeição de tão grande virtude, olhos da Companhia, e como
ahna dVíha. Até na doença, o morte fazia piovas deobodienciii; porífuepor
esta ínesma virtude soubessem adoecer, e uiorrer os verdadeiros liliios da
Companhia. «Pare aqui vossa doença,» disse a Vicente Rodrigues; «Nãomor-
raes até eu não tornar, « disse a Salvador Rotlrigues: c obcdeceohum, e outro.
134 LIVRO IV DA CHRONICA DA COMPANHIA DE JESU
140 Que direi de sua religiosa pobreza? Seu enxoval era hum Breviá-
rio, humas contas, hum bordão, disciplina, cilicio, e poucas outras peças
semelhantes. A matalotagem dos caminhos era a providencia do Ceo, que
nunca lhe faltou: qualquer comida pêra elle era banquete; ou fosse as hervas
4o campo, ou legumes, e cuja de farinha, que os índios lhe davão, tudo
pêra elle era regalo. Entre os mais religiosos nenhuma singularidade ad-
mitia: seguia sempre a communidade. Po que deixámos dito de suas lar-
gas e continuas missões, e apparato d'ellas, se deixa ver o que aqui dize-
mos. Os hospitaes, as cabanas, os palheiros, os lugares desertos, as chou-
panas dos índios, dão testemunho de sua estremada pobreza. Estremada
foi a com que viveo em Villa velha (quando a principio chegou á Bahia)
em Nossa Senhora da Ajuda, e Monte Calvário, fazendo as casas por suas
mesmas mãos, indo ao matto, e fonte, trazendo a lenha, e agoa ás costas;
pedindo esmola pêra se sustentar de porta em porta : a com que ajudou
a viver em Piratininga, e descreveo Joseph de Anchieta u'aquella sua Car-
ta que atrás puzemos. Não era esta a verdadeira pobreza evangélica? Seu
vestido não tinha diíferença vivendo, do com que foi á cova morto : sem
manteo, sem roupão, huma roupeta velha remendada, alpargatas de car-
dos por çapatos, e talvez descalço: humas botas, que por achaques de sua
mór idade lhe receitarão os médicos, houverão de custar-lhe a vida, quan-
do fugindo aos Tamoyos, cahio no rio, e cheas de agoa lhe impedião o
caminhar. Não poucas vezes lhe faltou a camisa ; e pêra supprir o defeito
d ella estando na Bahia, quando hia o Governador geral a nosso Collegio,
pedia hum lenço pêra acommodar ao pescoço; a que chamava sua hypocri-
sia; e sobre tudo louva muito o Padre Joseph de Anchieta a pobreza com
que viveo nos fins de sua vida, no mór rigor de suas enfermidades no Rio
de Janeiro, terra de novo habitada, até o ultimo transe de sua morte, em
hum quasi desamparo de consolo humano.
141 Junto com sua religiosa pobreza, a vida Ioda d'este servo de Deos
foi pura mortificação, e humildade. Estas duas irmãas companheiras o ti-
rarão do berço de seu primeiro noviciado, e o levarão por lugares alheios,
por hospitaes, cadeas, enxovias ; por desprezos, afrontas, injurias, fomes,
sedes, frios, calmas, feito ludibrio das creaturas, como temos visto: fazião
estas jogo d'elle, e elle d'ellas : talvez o buscavão pêra afrontal-o, talvez
pêra lisongeal-o ; e as afrontas o achavão a pé quedo: fugindo como da
morte as lisonjas. Quando vierão a buscal-o os jogadores, os que profana-
vão o templo, c outros pêra maltratal-o, constante o acharão: mas quando
DO ESTADO DO BRASIL (aNNO DE lo70) 135
vierão os criados cVaquelle fidalgo Castelbranco, que queria agasalhaí-o em s^ua
casa, e regalal-o em sua mesa, acharão-no escondido entre as moulas do sil-
vado: porque com tão bom rosto esperava os trabalhos, como fugia dos re-
galos. Mostrou bem o espirito de sua mortificação, quando em vigor de
certo diploma, havendo de declarar de sua letra entre os mais Padres da Com-
panhia, que gráo escolhia pêra n"elle viver, so de Professo, ou de Coadju-
tor: assignou com estas palavras dignas de memoria: « Velim nescire quid-
quam velle: sed in omnibus Cknstum, et huno crucifixiini, velle.» Quisera
(diz) não saber querer alguma cousa : mas em todas as cousas querer a
Christo, e este crucificado. Foi sempre hum dos mais aíTervorados entro
aquelles exercícios primeiros de mortificação, tão celebrados da primitiva
Companhia dos Religiosos do Collegio de Coimbra. Sabia pelas ruas em
trajos vis, esfarrapados, porque fosse ludibrio da gente, e objecto de des-
prezo a todos. Tinha ordinariamente dous confessores; hum era Padre, ou-
tro Irmão: ao Padre confessava suas faltas, c recebia d'elle a absolvição: ao
Irmão referia as mesmas, e recebia d"elle reprehensão. E quando andava
somente com Irmão, sem Padre a quem se confessasse (como trcs mezes en-
tre os Tamoyos com o Irmão Jos3ph) confessava-se e consolava-se com elle, di-
zendo-lhe inteiramente todos seus pensamentos, omissões, e faltas; e rece-
bia d'elle absolvição geral da missa, que posto que não faz sacramento,
cahe sobre actos de humilhação, e mortificação, que são agradáveis ao Se-
nhor, e podem chegar a merecimento de contrição, e amor de Deos ; se-
gundo o espirito com que forem feitos.
1 4:2 Tinha firme confiança no Ceo: e levado d'esta acommetia cousas gran-
des, que ás vezes parecião excessos: em rcsolvendo-se na oração, ou na missa,
que algum negocio era serviço e gloria de Deos, nenlium poder o retirava de
emprehendel-o, nem inconvenientes, nem ameaças, nem trabalhos, nem diíli-
culdades algumas. Quando principiava a grande obra da conversão do Brasil,
apartou de si o Padre Leonardo Nunes com outro Irmão, pêra acudir a
S. Vicente, sendo tão somenos cm numero os companheiros, como ahi vi-
mos: e por mais votos, e dilliculdades que em contrario se oí)puserão,
não cedeo; por que julgou, que o negocio era de Deos, e que os pagaria
dobrados: como reverá succedeo; porque vierão logo quatro do Reino. (íom
a mesma confiança a])artou de si hum dos mais notáveis obreiros quando
dclle muito necessitava, o Padre João de As[)ilcuela Navarro, peia a em-
j)reza do mais interior do sertão ; e deo-lhe Ocos [)or elle outros breve-
meutc. A coníiança com que acommeteo a empresa de reduzir a iiovoações
130 LIVHO IV DA CHHOMCA DA COMPANinA DE JE3U
OS índios da Bahia, no meio de tantas dilTiculdades : a com que empre-
hendeo a insigne obra das pazes dos Tamoyos: e a da conquista, e povoa-
ção do Rio de Janeiro, contra toda a prudência dos homens, foi grande
prova 'lio proposto intento.
143 Não fírttárão a este insigne varão casos maravilhosos, cora' que o
Ceo mostrou approvar seu espirito. Não foi milagroso aquelle caso, quan-
do a modo de desencaixados os elementos, vingarão indignados a lançadas
de raios, as indecencias do culto divino, e o desprezo do servo do Senhor?
Que mais fez em favor de EUas?
144 Na viagem do Brasil, em prova da resolução que dera ao Gover-
nador Thomé de Sousa, que não era agradável a Deos aquella sua deva-
ç3o que fazia, de não comer cabeça alguma, em veneração da do Bautista;
não foi assas sobrenatural aquelle prodigioso desengano, com que traçou
o Ceo, que viesse na linha lançada ao mar, huma só cabeça de peixe ;
porque fosse forçado o fidalgo a comer cabeça? Aquelle império com que
mandou ao Padre Vicente Rodrigues enfermo de hum anno, e perseve-
rante na doença, em virtude da santa obediência, que se levantasse, e fos-
se ajudar ao próximo; não foi confiança milagrosa, em que exercitou acto
de império sobre accidente tão pertinaz? e em que desiste por obedi-
ência o mal ? Este caso colebra Orlandino no livro xi de nossas Chroni-
cas, n.*^ 78, com titulo de instinsto divino, a Divino prorsus, ut videtur, ins-
íindu, impcrat cegrnlanti, nt obedientioe nomine movhum abigat, et se pro-
ximis reddai:y> como dizendo, que obrou aqui Nóbrega com instincto divino,
E mais claro o disse Anchieta em seus Apontamentos.
145 Com a mesma efficacia acudia o Ceo por sua vida, que por sua
palavra. Não foi menos admirável o successo com que Deos o livrou do
perigo d'aquella medonha tempestade, quando indo visitar a Província em
companhia do Governador Mem de Sá, se foi o navio ao fundo, e andou
elle sobre as agoas tempo considerável, não sabendo nadar. Imitou aqui
Nóbrega a fé de Pedro sobre o mar : e Christo com elle o favor de não se
afundir em as agoas. Com outra maravilha guardou segunda vez a vida de
seu servo, na occasião da balea, monstro assanhado, que o assaltou no mes-
mo lugar, em companhia do Padre Ignacio de Azevedo, Luis da Gram, c
Joseph de Anchieta. A Nóbrega se attribuio também o milagre da fonte
prodigiosa de Porto seguro, e muitos outros em diversos lugares.
146 A seu espirito de prophecia attribue o mesmo Joseph, o com que
affirmou aos Tamoyos de Igperoig, que no ponto que quebrassem as pazes
DO ESTADO DO BRASIL (AN.\0 DR in70)'" 137
aos Portugueses, havião de ser destruídos: o com que ameaçou graves cas-
tigos aos moradores de S. Vicente, pelas injustiças que commetião contra
os índios; com tanta certeza, como se já os vira, mandando que os Padres,
e Irmãos sabissem pelas ruas publicas tomando disciplina, e pedindo ao
Ceo misericórdia. Ao irmão Vicente Rodrigues, enfermo de graves, e con-
tinuas dores de cabeça bavia muitos annos sem remédio algum, disse: «Vós
Irmão não liáveis de sarar, senão cjuando faltar todo o necessário, e então
vos bão de cahir os dentes.» Aconteceo assi, diz Joseph; porque sendo
mandado á missão do Rio de Janeiro, padecendo alli gravíssimas fomes, e
falta de tudo o necessário no aperto da guerra, então sarou perfeitamente;
e sarando, Ibe começarão a cabir os doentes, até despovoarem a boca, co-
mo dissera o servo de Deos. Em muitos outros casos reconhecerão seu
espirito de prophecia, Josepb de Ancbieta, e outros varões graves d'aquelle
tempo. E supposto que não depende a santidade de prophecias, ou mila-
gres; he comtudo indicio de varões excellentcs, e com que costuma o Ceo
approvar suas obras.
147 E temos visto em breve summa as cousas notáveis do servo do Se-
nhor o Padre Manoel da Nóbrega, fundador, e primeiro Apostolo da Pro-
vinda do Brasil : a cujo exemplo proseguirão os que após elle trabalharão
na conversão da gentilidade doeste novo mundo. Cuja santidade foi tão rara,
que sendo que concorrerão com elle varões em todo o género tão illustres;
hum Joseph de Anciíieta, Luis da Gram, Leonardo Nunes, João Aspilcueta
Navarro, e tantos outros, quantos tem mostrado a historia, e venera hoje
a Província : todos esses em comparação de Nóbrega se reputavão a si mes-
mos na virtude pygmeos, á vista de hum gigante : assi seguião a luz de seu
exemplo, assi imítavão seus dictames, assi punhão em execução suas or-
dens, como se n'aquelle só espirito reconhecessem juntas as excellencias
de todos. E não somente no Brasil; em Roma, em Portugal, em o mundo
todo foi conhecida sua santidade; ao menos pela empresa que tomou a seus
hombros, igual á de hum Xavier : ficando partida entre estes dous varões
apostólicos a conversão da gentilidade do mundo : a Xavier ficou a do
Oriente; a Nóbrega a do Occidente. Tratarão d'cste servo de Deos, o ve-
nerável Padre Joseph de Anchieta em seus Apontamentos. O Padre Orlan-
dino, primeii'a parle das Chronicas da Companhia emmuitos higares de seus
livros. Sacchino ni part,, liv. G, n," 2Go. O Padre Balthesar Telles nas Chro-
nicas de Portugal, part. i, liv. 3, cap. á, c dahi cm diante. E nós nada
mais trataremos por hora : pare a penna em escrevei', onde pára Nóbrega
Í38 LIVRO IV DA CHROMCA DA COMPAMIIA DE JESU
em oljraf : a suas empresas especialmente se dedica este tomo primeiro
por primeiro Apostolo do Brasil; como outro se dedicou a Xavier, por primeiro
Apostolo da índia; outro a Ignacio Patriarcha nosso, por primeiro Geral da
Companhia. Andarão os tempos, e irão sahindo tomos vários, devidos a
varões da mesma empresa, que se bem não forão n'ella os primeiros, não
forão segundos nas virtudes.
FLMS LALS DtO VIUGIMQLE .IJATRI-
I
Os VCVSO& quê se seguem são os que prometi no livro iii, folha 310
desta oòrii ['),pornão interromper a leitura; e são os que o venerável
Padre Joseph de Anchieta compoz, quando esteve em reféns entre os
índios bárbaros, com ajuda da Virgem, escrevcndo-os na praia em
lugar de papel, que alli não tinha, nem tinta.
JESUS MARIA
• DE BEATA YIRGINE DEI
MITRE HilRIA.
Eloquar? an sileam, sanctissima Mater Je.su?
Num sileam? laudes eloquar annò tuas?
Mens agitata pij stimulis hortatur amoris
Ut Dominae cantem carmina paucae meac.
Sed timet impura tua promere nomina linguâ,
Quae sordet multis contemerat malis.
Scilicet illius, quae clausit ventre Tonantem
Audcbit laudes língua profana loqui?
Mens stupefacta fugit, nisi quòd tuus óptima Virgo
Corde metum pávido ccdere cogit amor.
Quid faciam ? quarc trepidem ? cur nostra rigesccnt
Pectora? cur de te lingua silebit iners?
Ipsa loqui cogis, tu vires suíTicis ipsa
Dicere conanli, rcíTicis ipsa manus.
Tu pictate fovcs materna, animumque jacentem
Erigis, aethereis accumulasque bonis.
Sydereae tangar si non ego Matris amorc,
Si mea non dicant Yirginis ora decus ;
Duritiâ silicJs, ferrique aerisque rigorem
Vincnt, et invictum cor adamanta meiím.
Quis milii virgíneos sub iiectoi-e clnuderc vultuá
Praeslet, ut ardenter te pia Mater amem?
Tu milii çiim chara sis única Prole volúpias,
Tu desiderium cordis, amorijue mei.
(•J Concspondc ao vol. ii, png. 2i da prcsoiilc edição.
140 tersos do padre joseph de anchieta
De Gonceptione Virginis MauIíK
Te priús aethereos verbo quam conderel orbes.
Ante Deus latam quam labricaret humurn.
Te priús aeterna concepit mente futuram
Cum pura Matrem virginitate suam.
Ó tu qualis eras divini ante ora parenlis
Cum mundum coeli condita turma foret?
Nondum lativagi diííluxerat aequoris unda,
Nec vagus obliquis íluxerat amnis aquis ;
Nondum faecundo manarant gurgite fontes,
Nec juga constiterant árdua mole gravi :
Et tu jam summi concepta in mente Parentis,
Cujus ventre Deus conciperetur, eras.
Quae foedis mundum purgares sordil3us omnem,
Et fieres plagis vera medella méis.
Qualis es ó Virgo ! quantum dilecta superno
Artifici I qualis forma decorque tuus !
Tu ventura salus primo promissa parenti,
Quae Vitam casto viscera nixa fores.
Ut quos mortiferis infecerat l^va venenis,
Concepta Antidotum tu sine labe dares.
Foemineo expavit versutus nomine serpens,
Cujus capta fuit foemina prima dolis.
Scilicet ipsa tuae concepta in ventre parentis
Quod maculat cunctas crimine sola cares.
Comminuisque caput sinuosi calce Draconis,
Et depressa tuo sub pede coUa tenes.
Tota refulgenti resplendes pulchra decore,
Tota cares naevo, dalcis amica Dei.
NuUa tuo labes peccati pectori inhaeret :
Num laedit specimen vel nota parva luam?
Ó speciosa nimis, virtutum compta nitore,
Quae potes angélicos exuperarc choros,
Fige tuum nostro Yirgo immaculata decorem
Pectore, forma óculos attraliat ista meos.
Scilicet haec magnos capiebat forma Prophetas,
Qui te carminibus praecinuerc suis.
Illi te variis praesignavera figuris,
Optantes Proles ut tua ferret opem.
Quam cuperent illi coeli splcndore nitentis
Ó formosa óculos cernere Yirgo tuos !
Quam voUent coram divinam haurire loquelani,
" Manabatque tuo dulce quod ore meios !
KM LOLVOIl DA VIIUiEM 141
Foeliccs igiliir, qiii le genuere parentes,
E coelis ortum qiii didicere luum,
O íbelix .loacliim, ciijiis de semiiie Virgo
Progenita est Natiini progenitura Dei.
Foelix Anna parens, cujus conclusa sub alvo est
Ventre t)euni Virgo compositura suo.
Cui facta es gravidi dulcíssima sarcina ventris,
Chara patris soboles, et leve matris ónus.
Clausa niancns útero nulli patefacta priorum
Ostia coepisti jam reserare poli.
Jure supernorum meritas jam praeparat agmen
Quas referat grates, sancta puella, tibi.
Jure nova exultans per coeli templa celebrai
Gaiidia, quod gigni te sine labe videt.
Per quam nmndetur primorum noxa parenlum,
ílumanum maculas contraliit unde genus.
Per quam pars nostri contractas máxima sordes
Eluat, aethereis annumeranda choris.
Jubilet aula poU, sine crimine gignitur uilo
Aula futura Dei, jubilet aula poli.
Aloerat orcus edax, nulla est in Virgine labes
Quae modo concepta est, moerat orcus edax.
Deprime sanguíneas coluber foedissime cristas,
Caudaque contracto palpitet aegra sinu.
(^onde superbe tuam sinuato corpore írontcm,
Protege cervicem, conde superno caput.
Ecce venit mulier laqueos ruptura dolosos,
Ecce viro mulier fortior, ecce venit.
Ouid miser exultas, quod retia miserit olim
In tua non cautos foemina prima pedes?
Improbc quid gaudes, mulier quia prima mai'iluni
Movit, ut iníiceret sordibus omne genus ?
Gignitur en Virgo primi de carne parentis,
Quae tamen ipsius nesciit una scelus.
Ecce venit maculis mundata, ac lege prioris
Libera, sola tuas non subitura plagas.
Ilaec inimicitias, et bella borientia sempor
Terribilis contra teque tuosque geret.
Tu niveo ipsius malus insidiabere calei
Pestífero verrens pedore lajjsus bumuni;
Sanguíneo ut facias letiialia vulnera nioi-su,
Dirá venenoso dente venena voniens.
llln tibi insultans nec flira aíllabilur auia,
Nec dente icetui-, sanguinolente, tuo.
442 VERSOS DO PADRE JOSEPII DE ANCHIETA
Cervicemqne premct planta victrícc siiporbam,
ConfringctciLic tuiim coinmiiiuetquo cai)ut.
Tártara iiigra tremant : cqiiitem turbavit, eqiiumquo
Tartaroum Virgo, larlara iiigra tremant.
Gaiuleat ad tantae Conceplum Virginis omnis
Quae gemuit tristi terra sub axc diíi.
En rertit illc nitor coeli, faciesqiie serena,
Ciii primi obdiíxit nubila culpa viri,
Coelica purgatis en rident alria nimbis,
Laetaque placatus protulit ora polus.
Nam tuus ò foelix primae Conceptiis honorem
Justitiae retinet munere Virgo Dei.
Ut coelum illustres, coelesti luce coruscas,
Et mundum ut mundes, crimine munda venis.
Et dolor, et crimen, diuturni causa doloris,
Corripient celerem te vcniente fiigarn.
Jure polus gaudet, cujus digníssima Princeps
Concipcris, Dominum post paritura suum.
Jure solum gaudet, quia terrae è semine nata :
Laus eris astrigeri luxque decorque poli.
Ciim terra pontus, cum ponto exultat Olympus,
Cumque creaturis condi tor ipse suis.
Maximus immenso laetatur amore Creator
Mira suae spectat cum monimenta manus:
Contínuos vasto cum cernit in aequore motus,
Et varia aequoreis ludere monstra viis :
Cum videt immotam tam grandi pondere terram,
Cunctaque materno quae fovet alma sinu :
Astrigeros pulchro cum temperat ordine coelos,
Innumeris florent quae loca spiritibus.
Si de perfecto, quem verbo condidit, orbe
lUe Opifex rerum gaudia summus habet :
Tu certè ex omni, speciosa puellula, parte
Gaudij eris summo máxima causa Patri.
Jubilat ille fovens immoto gaudia corde
Quòd fecere suae te sine labe manus.
Perfecit manuum super omnia facta suarum
Hoc unum, et relíquis praetulit Autor opus.
Nec tibi jam tellus, nec jam tibi certet Olympus:
Goncedunt forma terra polusque tuae.
Coelica inassuetum miratur turba decorem,
Quo nova materno foemina ventre nites.
Scilicet efTinxit si te natura minorem,
At divina tibi gratia maior in est.
FM LOUVOR DA VIRGEM 143
(') opus eximinm, divinae 6 fabrica dextrae
Nobilis, 6 totó grandior orbe domiis.
Cíim tua laetilicet totiim Conceptio mundum,
Expers laetitiae ciir ego solus ero?
An qiiia detiirpant foedae mea pectora culpae,
Et maciilata dolent sordibus ipsa siiis ?
Munditiamque lutum, hicemqiie odere tenebrae ?
Et virtus animo semper acerba maio est ?
Luminaque exborrent faciem lasciva pudicam?
Toiquet et impuros integritatis honos?
Nec mihi (coníiteor) corruptam pondere mentem
Tristitiae poterant mergere ad ima gravi ;
Ni tuo reficeret lacerum clementia pectus,
Totaque materno mens foret orba sinu.
Nam tua lux tenebras pellit, coenumque repurgat
Munditia, et virtus eflugat omne scelus.
Te sequar impurus puram, tibi pectora nostra
Hacrebunt vitiis expolianda suis.
Nam quis de immundo conceptum semine mundet?
Et puro foedas abluat amne notas ?
Nonnè tua hoc faciet, Virgo mundissima, virtus,
Conciperis primo quae sine sola maio?
Ecce ego flagitij consors vilesco paterni,
Primaque de matris crimina ventre tuli.
Totus in immundi submersus gurgite coeni,
Et mea vita suis est putrefacta malis.
Tu fons munditia purus, scelerumque fugatrix,
Tu mihi cor vivis purificabis aquis.
Foelices illi, quorum pia pectora amore.
Et desiderium conflagrat omne tui.
Foelix qui tacitae per amica silentia noctis
Te meditatur amans, te meditatus amat.
Foelix Virgineae qui observai limina portae,
Assiduusque tuas excubat ante fores.
Qui decora alta tui Conceptus voluit amanli
Pectore, quae vita est áurea porta tuae;
Ille tui dulcem curam cxperietur amoris,
Menteque cum munda corporc castus crit.
Ilauriet á Domino veram donante salutem,
, Et vitae inveniet munere dona tuo,
Ó amor, ó bonitas supremi immensa Parcntis,
Cujus te mirum dextra poliuit opus.
Laudet eum tanto decorandum numinc coelum,
Gratiílcoques liymnos pcrsonet ore novos.
144
VKRSOS DO PADRK JOSEFIl DE AXCHIETA
Laudet eum tanto jam foclix muiíere terra,
Terra biniim gerans, qiiod feret omne boniim,
Mens quoque, summe Pater, mea te vencratur adoraris,
Progenitaque meus Virgine laudat amor.
Ó decus, ò generjs piílcherrima gloria nostri,
Splendor honestatis, mumlitiaeque nitor,
Hei mihi, cur sprevi te, formosíssima rerum,
Spurcitiae turpi caecus amore meae?
Cur non videruiit tantum mea lumina lúmen?
Cur mea non traxit pectora tantus odor?
Me miserum! carnis prodegi animaeque pudorem,
Contulerat Genitor quas milii summus opes.
Et procul aufugiens^ patrem matremque reliqui,
Offendens factis teque Deumque raeis.
Et tandem redeo patrem matremque requirens,
Inveniam ut meritis teque Deumque tuis.
Ante tuos miserum sine me procumbere postes,
Nec mihi clamanti duriter obde fores.
Istic integras sine me traducere noctes,
Istic Íntegros me sine flere dies.
Sit tua visceribus Conceptio munda voluptas,
Deliciae, requies, gustus amorque méis.
Hanc ego contemplans^ memorique in mente revelveiís
Munder, et abscedat turpis imago procul.
Hujus amor foedum protudet castus amorem,
Foetorem pellet pectoris hujus odor.
Ó tu, quae nivei, bona Yirgo, pudoris amantes
Diligis, exemplo quem didicere tuo:
Me tibi qui serò mentem corruptus adhaesi,
Seminecem miíes cum tetigere manus;
Me refovere tui ne desine pectoris aestu,
Flamma tuo tepeat carnis ut igne meae:
Et tibi pollicitum reddaí sine faece pudorem,
Juratam servans tempus in omne fidem.
Percipis (an fallor) tremulae vaga murmura voeis?
An sopita jaces tegmine ventris adhuc?
Et fortasse tuas obstruxit fertilis aures
Sordibus, et vitiis mens mea foeta suis:
Sed timeo immeritò: vani procul esto timores:
Non fallií Matris dulcis imago piae.
Non talem expertus te sum, mitissima: non sic
Ingenij pictas est mihi tota tui.
Desinet ante leves nox húmida fundere rores.
Et cadere è gravidis nubibus humor arpiae;
K.M LOUVOU DA VIRGEM 14J
Ante ncgent liquidi diílcissima pocula fontes,
Ante ílacns vitreo non eat omne látex :
Quam tua non manet pielalis vena liquores,
Et stent dulcoris lata fluenta tui.
Ó utinam forti nostras sine fine medullas
Concrement igne tui dulcis amoris amor.
De Ortu Beat.e Virgims Marle
Quis novus astrigera scintillat lucifer arce?
Quis novus Eoo splendet ab axe nitor?
Quis novus aethereo de culmine fulgurat ignis ?
Quae nova inassueto lumine ílamma micat ?
Quae nova lux rádios caecimi diíTundit in orbem?
Quae nova lux óculos verberat orta meos ?
Maior adest fulgor, rutilantior exit Eous,
Clarins erumptit per juga celsa jubar.
Maiori video roseam nituisse rubore,
Auroram, nitidis et rubuisse comis.
Pulchrior invebitur croceo spectabilis aethra
Tegmine, flammiferis irrequieta rotis.
Sed quid ago insipiens? óculos caligine mersi
Decipiens nimia lux nova luce meos.
Nunc etenim primiim cunctis claríssima rebus
Haec oritur lampas, lux ubi nulla fuit.
Omnia ab antiqua nascentis origine mundi
Texerat horrífico turba Erebea chão.
Omnia nox late nebuloso eaeca pavore
Terruerat, tenebris obrueratque nigris.
Nulla polo densas aurora amoverat umbras,
yEthere nocturnos nulla fugarat equos.
En primum placidi sub vértice lúmen Olympi,
Quo caruit tenebris obruta terra videt.
Terminat haec noctis tenebras, lucemque divinam
Producit radijs Stella corusca novis.
Praevenit immensum Solis pulcherrima lúmen,
Perpetuumque praeit nobile mane diem.
Haec Stella est, oritur quae magni ò stirpe Jacobi,
Luxque tenebrarum non habitura vicem.
Ec^juid adhuc densis mea mens obduceris umbris?
Ecquid adhuc óculos nox tenet atra tuos?
Así)ice nascentem íormà praestant Puellam,
Cujus ab obs<'ui'e hix fugal or be chãos.
voL. n 10
146 VERSOS DO PADRE JOSEPH DE ANCHIETA
Ut tua coritigerit fulgenli lamina ílamma,
Aspectam retine tempiis in omne semel.
Ipsius cximius si delectabere amorc,
Ipsiiis eximius te refoiíebit amor.
Ejus honor verum tibi conciliabit bonorem,
Auferet opprobrium scibcet ipsa tuum.
Haec est, si nescis, magni nova gloria miindi.
Gloria magna pob, gloria magna soli,
Haec est, infames quae nobibtate parentes
Donat, et amissas crimine reddit opes.
Haec est, quae patrum tollit maledicta priorum,
Et generis delet dedecus omne sui.
Hujus in exortu veteses cestere querela,
Et dolor, ò Joacbim, íletus, et Anna, tuus.
Jam nunc, sancte senex, nullam patiere repulsam
In Templum Domini cum tua dona feres,
Jam non ad caulas indultum íletibus ibis,
Nec duces inter têmpora moesta greges.
En tibi laetitiam mundo paritura perennem
Tristitiae pariter Filia meta tuae.
Inter foecundos multo foecundior omnes.
Et foelix tali prole ferere pater.
Inter foecundas multo foecundior Anna,
Et foelix tanto pignore mater erit.
Foelices nimium foelici sorte parentes,
Quos tanto ornavit summus honorc Deus.
Foelix tam longo patientia tempore constans,
Quae talem fructum, ceu bona terra, tubt.
Foelix tam mitis, tam néscia vi ta querelae,
Cui dedit omnipotens praemia tanta manus.
Foelix ò pietas Templo miserisque benigna
Pauperibus, tanto magnificaía bono.
Foelices lacrymae tam dulce levamen adepta :
Ó foelix nactus gaudia tanta dolor !
Laetare ó Joacbim, tua quondam Filia Mater
Facta Dei magnum te quoque reddet avum.
Gaude Anna, efficiet tua jam tibi Nata Nepotem,
Quem pariet salva vjrginilate, Deum.
Quo feror impulsu demens? quo turbine raptor?
Quo céleres properant tam sine more pedes?
Cur oculis eíTluitis, nec Virginis ora videtis.
Ora verecundis plus rubicunda rosis?
Cur vos non retinent natae formosa Puella
Lumina, Phcbeo lumine clara magis ?
EM LOUVOR DA VIRGEM 147
Fallor? an el nostras vagitus jiercutit aures?
Quae mihi tam diílces attulit aura sonos?
Fallor ? an et nomen somiit mihi dulce Mariao,
Et dedit ad nomen machina signa triplex ?
Súbdita virgineum venerantur sydera nomen :
Súbdita virgineum nomen adorat húmus.
Terribih pavitant Erebei nomen caetus,
Saevus et in Stygijs abditur anguis aquís.
Ó mihi melUfluâ plenum dulcedine nomen!
Ó nomen miris dulce Mariae modis !
Si fmis, ante tuas pro munere paucula Cunas
Captus amore tui carmina, Virgo, canam.
Salve divino tam compta Maria decore,
Ut tuus angélicos sit nitor ante choros.
Ó salve humano tam nobilis ore Maria,
Transeat humanos nt tua forma modos.
Tu male confractum fortis solidabis Olympum,
Antiqua renovans integritate poios.
Humana aethereas implebis gente ruinas
Invicto Nati robore freta tui.
Nempe Dei paries intacto viscere natum:
Ille salus cunctis única rebus erit.
Ó Muher fortis, quae post tot temporis annos
Inventa es tandem foemina fortis. Ave.
Ó Urbs divini moles operosa laboris!
Ó Domus Artificem compositura tuumf
Ó nova progénies! divinae ó nobile donum,
Quod meruit Joachim, mater, et Anna, manus!
Exoreris claro magnorum ò sanguine Regum ;
Sed genus exuperas nobilitate tuum.
Non ideo es foelix, magnis quia Regibus orta,
Ista nec à patribus gloiia, Virgo, venit:
Sed quia te tantam neptem gcnucre, bcati,
Dequè tuà patrum gloria íaudct íluit.
Si bené contemplor, tu sancta infanlula vitae
Arbor es aeterna fértil itate gravis.
Cujus in est radix humih benè condila terrae.
Árdua sublimis sydera tangit apex,
Cujus utramque domum cíjntingunt brachia solis,,
Pertingunt rami cujos utrumíjue polum.
Subque tuis foliis oporis genus omne animantum:
Protegit Timbra homines, prolegit umbra feras.
Quippe bonos i)Iacida milissima prolegis umbra,
148
VERSOS DO PADRE JOSEPli DE ANCHIETA
Nec tua cum veniimt respicit iimbra maios.
En mea continuo mens aestuat igne malorum:
Protege me sparsis, arbor amoena, comis.
Inque tuis possim, volucris ceu caelica, ramis
Divinos laeta promere você modos;
Quales multiplici fundunt modulamine cantus,
Quos tuus assiduis ignibus urit amor:
Quos juvat ambages vtrtutum ambire tuarum,
Perquò tua incessus figere facta suos.
Tu Baculus fragiles sustentans robore vires,
In laqueum dúbios nec sinis ire pedes.
Non metuant casum, tibi qui inniluntur et liaerent,
Qui sua committunt omnia, seque tibi.
Respice ut omnis abit, vigor, et genua aegra labascunl,
Gonfirmet tremuium ne tua dextra cadam.
Tu coliis, stillat pingues ubi syha liquores,
Puraque de matris cortice odora fluunt.
Cujus odor vivos reficit, vitaeque reducit
•Quos rapuit fati mors fera lege sui.
Ille mihi Stygio mentem foetore putrentem,
Foedaque de turpi sustulit ora fimo.
Tu ductus vivae latòque fluentis aqnalis.
Per quem divini ilumina fontis eunt:
Currit inexhausto per quem sacra gurgite iymplia,
^ Uber, et in steriles labitur amnis agros.
Ó mihi vitalís per te, precor, influat humor,
Ne nocuo pectus conílagret igne meum.
Tu vera effigies, divini et imago decoris,
Cujus sydereus splendor in ore nitet.
In qua ceu speculo magni perfectio lucet,
Virtutesque omnes, ingeniumque Dei.
Imprime formosam nostris, benedicta, figuram
Pectoribus vitae munditiaeque tuae.
Tu Fulmen rapidis comburens crimina ílamrais,
Tartareosque cremans sub Plilegetlionte duces.
Nomen avernales, ó Virgo Maria, phalanges
Fundit, et aííligit, praecipitaqiie, tuum.
Hoc mihi pro telo, beilo insurgente, Maria,
Hoc mihi pro forti fulmine nomen erit.
Tu Genmia ignitos vincens fulgore pyropos.
Áurea qua magni fulgurat aula Dei.
Tu pretiosa nimis perlucida margarita,
Unde sibi ornatimi terra polusfjue petunt.
Pectura quae vario pingis tibi dedila cultu,
EM LOUVOR DA VIRGEM 149
Pictaque divino digna favore facis.
Tu latices ole facundos Ilydria fundis,
Oníniaque pingui vasa liquore reples;
Debitor unde miser, postquam suo debita soluit,
Unde in perpetuum vivere possit, habet.
Languoresque meos óleo pietatis inungens
Efficis ad luctam fortia mcmbra mihi.
Tu Jaculura dulci laedens praecordia amore,
Quae. nostra ut sanes interiora feris.
Quae rumpis molli penetralia pectoris íctu,
Vulneraque solo lumine magna facis.
Nam quemcumque pijs spectabilis mitis ocellis,
Ille tuo graviter saucius ense gemit.
Tu Luna illustri nunquam variabilis ore,
Cui jugis impleto praestat inorbe nitor.
Quae luces tenebras inter versantibus atras,
Et lux in caecà nocte diurna micas.
Qui sua luce tua vestigia rexerit, ille
Laetus in occidui lumine solis erit.
Tu Mari, tu magnum, tu magna maior abysso,
Agmina quae condis non muneranda sinu:
Magna ubi cum parvis animalia piscibus errant,
Cunctaque sunt matris tegmine tuta suae.
Sub tua tecta boni fugiunt; nec dura repellis,
Cum miseri fugiunt sub tua tecta mali.
Tu Navjs, nuUis quam motibus aequora jactant,
Hórrida quam nullo turbine quassat hyems,
Cujus in hospitio tranquillum navita cursum
Conficit, et pedibus littora tuta premit.
Tu, sacra ne indomiti vastent altaria lauri,
Perpétuos Templi lumina claudis Obex:
Quem neque tartareae poterunt infringere portae,
Nec malus ostcntis haeresiarcha novis.
Obsigna validis nostri precor ostia cordis
Veclibus, ut soli sint adaperta Deo.
Tu placidus Porlus, slacio secura carinis,
Quas agit insani vis furrosa frelí,
En mea, quae diris agilatur òymba procellis,
Ad te jam fesso remige tarda venit.
Torva reluctatur cum sacvis marmora vontis:
Porrige, ne pereat, Virgo benigna, manuni.
Tu Qnaílriga Dei, (jiiac justo excila furore
Protoris liostilcs impetuosa maniis.
Indu jam robur, dignas accendere in iras.
ioO VERSOS DO PADRE JOSEPII DF, ANCHIETA
Obrue quae surgiint agmina saova milii.
Tu Rosa do spinis, nec spinis pungeris orta
Perpetuo primi veris liorioro riilens.
Quam nec tristis liyems, liiisutaquc frigora laedunt,
Nec malus aestivo marcidat igui polus.
Quae aeterno seros ornabis flore nepotes,
Quae aeterno primos flore fouebis avos.
Tu Speculum, Signum, Sydus, Stimulusque, Salusque,
Justitiae, fidei, lucis, amoris, bumi.
Justitia illustra, fidei pugnantia signo
Castra rege, aeíernae fundito lucis opes.
Divino stimula tandem mihi pectus amore, .
Pande salutares ad sacra templa vias.
Tu Tegmen rapidi ferventi solis ab aestu,
A rígida glacie, frigoribusque nivis :
Quo pater Adamus probrum, quo prima pudorem
ília parens culpae conteget Eva suae:
Quo mens mída mihi velamine, nuda tegantur
Membra Creatori grata futura suo.
Tu generosa virens Jessaea ex arbore Virga,
Yirga carens nodo, cortice Virga carens.
A prima modum nec ducis origine culpae,
Cortice nec proprij criminis aspra riges.
Tartareum duro torquebis fuste tyrannum,
De malé possessa projiciesque domo.
Ipsa tuos molli castigas verbere amicos,
Percussosque tuo dulcis amore foues.
Caede meãs crebro pia verbere virgula costas :
Dulce tuae fuerit ferre flagella manus,
Caede, nihil parcas; debentur verbera culpis:
Caede, nihil parcas; leviter illa feram.
Si tibi dilectos clementi viscere amoris
Percutis, ut charus sim tibi, caedar ego.
Caede, nihil vereor nê Virga occidar ab ista:
Non novere tuae pernecuisse manus.
Caedis enim sanans, et sanas vulnera caedens,
Et redit ad plagas vita perempta tuas.
Ó Virga intacto tacíura cacumine coelos,
Augmentique tui vix habitura modum.
Exultate poli, coUes gaudere perennes,
Plaudite syderibus florida regna rubris.
Angelici properate chori, properate ministrij
Alternis céleres ite, redite vijs.
Festivas natae choreas celebrate puellae,
E.M I,OUVOR DA VIRr.EM íi)l
Carmina fundentes Virginis ante torum.
ília venit vestras olini sarlura minas,
lUa decus vestris sedibus orla vehit.
Sternite aromaticis ciinabula Virginis herbis.
Pingile purpureis molle cubile rosis.
Balsameis teneros perfundite odoril)iis artus.
Regales gemmis el decorate comas,
Formosis Annae consternite floribus ulnas,
Quosque sedet dulci pondere pressa fmus,
Ó vero foelix, cassumque gravamine pondus,
Qod sedet in grémio nobilis Anna tuo.
Nec gravis in gravido fuit baec tibi sarcina ventre,
Ulla nec in partu poena dolorvé fuit:
Jure ne qiiae mimdi venit ablatura dolores
Tristitia ciim tristi damna dolore daret.
Conceptus dulcis dulcem quoqiie praevenit ortmii:
lile carens maculis, iste dolore fuit.
Dulce tibi teneros involvere vestibus ai1us,
Amplectique ulnis membra tenelia pijs.
Dulce verecundis infingere basia malis,
Dulce labris Natae labra fouere tuis.
Dulce tibi plenas ori inservisse mamillas,
Pellerc lacte famem, pellere lacle sitim.
Dulce tibi incompto cantu sopire puellam
Árida nectarens dum rigat ora liq vor.
Omnia cum dulci tibi sunt dulcíssima Prole,
Plusquc tui, quam tu, pectoris illa tenet.
Huc omnes properalc, gravis quos sarcina culpae
Deprimit, et pressos tártara versus agit.
ísta Uedemptorem pariet moclò nata Puella,
Qui grave sublato crimine tollet ónus.
Ferte pedem pueri, juveniles currite caetus;
Munera ferte viri, munera ferte senes.
Currite, quí nivei fastigia ad alta pudoris
Ritè per acclives quaeritcs ire vias.
Ilaec molli ducens ad cana cacumina clivo
Yirgineum Irito tramito pandet itcr.
() Domina, ò Virgo formosi zona pudoi'is:
Si bene quos vincis solverc nomo polesl.
Stringe meos casía, benedicta, ligamine lumbos,
Vincula circunda rcniluis arda móis.
Haec cape, quão cecini, Virgo i)ulcberi'ima, cunis
Turpis abortivus, paupor inops(iuc tuis.
Lília plura meus, florum tibi laeta nibentum
15Í VERSOS DO PADRE JOSKPH DE ANCHIETA
Stemmata nascenli piara pararat amor.
Nunc tamen illa tibi pariturae numera servo,
Cum Deus in grémio sederit ipse tiio.
Interea dulci distentas lacte mamillas.
Et bene praemansos sume tenella cibos:
J5t Domini in Templum cresças portanda sacratum,
Grande decus, mimus nobile, clarus honos.
Me quoque ut in casto pulcbri mibi crescat amoris
Pectore flamma, tui pabulo amoris ale.
De Pr^sematione Virgims Mari.e
Prodit odorífero fragrans nova Virgula fumo,
Altaque aromaticus sydera tangit odor.
Ostia jam resera divini grandia Templi
Janitor, et verso cardine pande fores.
Deme sacris adytis velamina summe sacerdos,
Incensum ut Joachim ponat, et Anna suum:
Divinamque pio suCfimine adoret ad aram
Summa novo venerans numina tlmre Dei,
Atria taurino non poUuet ille cruore,
Nec coquet accensis cárnea frusta focis:
Nec summum hircorum placabit sanguine Patrem,
Ante nec aeratas concidet agna fores.
Scilicet Omnipotens, quaecumque in montibus errant
Jumenta, et pingues lata per arva boves,
Quasque feras densis abscondit sylva latebris,
Aèrias volucres, lanigerosque greges,
Granimaque, et pulchris vestitos floribus agros
Condidit, et domina temperat ipse manu.
Non haec iratum placabit victima coelum,
Munera, nec sanctus praeparat ista senex:
Sed merita fundet médio de pectore laudes,
Reddet, et excelso jam sua vota Deo:
Quae pius emisit, maesíum cum degerit aevum
Prole carens dulci, probraque multa ferens.
Ecce venit tandem foelici pignore íoelix,
Et cum dono aras divité dives adit.
A Domino acceptam Domino dabit ipse Mariam,
Et Templi tanto munere crescet honor.
Hujus enim moUes nardi pubeníis aristas,
Galbana, thus, myrrliam, bal sarna, vincet odor.
Haec dabit innocuum, qui crimina deleat, Agnum,
Hóstia pro cunctis qui cadet una reis.
EM LOUVOR DA VIRGEM 4 53
Qui simiil ac diro milissimus occidet ense.
Cessabunt caedi pinguia colla boiím.
Ille suo veíeres delebit sanguine sordes,
Ille cruor puro piirior amne íluet.
Ille semel sacra mactabitiir Agniis in ara,
Yictimaqiie aeternum toliiis orbis erit.
Ergo veni, foelix, ó Virgo tenerrima, donum,
Accipiant adytis te sacra Templa suis.
Egredere insignis, sedesqiie relinqiie paternas;
Tecta manent veri te speciosa Patris.
Desine de collo dulcis pendere parentis:
Mater eris Domini jani sine labe tui.
Sperne puellares, divina Infantula, mores:
Maturus mentis jam tibi sensus erit.
Namque tiiimi summus Rex aetheris optat amorem,
Igne Deus formae carpitur ipse tuae.
Sensibus ille tuos maturis períicit annos,
Arcanique arcam te cupit esse sui.
Rumpe moras omnes charos comitata parentes;
Incipe divinum Virgo triennis opus.
Ecce venis rutilans: acies properate polorum,
Virgíneas vario pingite flore vias.
Ecce venis multis electa ex millibus una,
Sol ut it ignivomis pulchra per astra rotis.
Ecce venis miro spectabilis ora nitore,
Lucet ut impleto cândida luna globo.
Duceris in Templum magni nova sponsa Tonantis,
Et terit insuetas planta tenella vias: • •
Imparibusque patris vestigia passibus aequa,
Maternamque premis paiTula Virgo manum.
DePLORATIO ANIMyE VIRGIMTATIS, IN CONSPECTU
VlRGINIS
Ut pátrio profers divinum è limine vultum,
Spargitur ambnjsius moenibus urbis odor.
Et sensi, aut certe credens sensisse cucurri,
Oblatum calcans qua rapiebar iter.
Et dixi: Quid agis, inea mens? age curre, videre
Sicubi forte sacrae Virginis ora potes.
Nec mora, festinis dum cursibus emico, vidi
Ante sacros Tompli Virginis ora gradus.
Ut vidi, ut perij jaculo confessus amoris,
Ut mea Iraxisti lumina, Virgo, tuis:
454 VERSOS DO PADRE JOSEPH DE ANCHIETA
Ut milii inassuetis ardoribiis intima carpsit
Pectora formosae virginilalis amor:
Certus eram niveo circundare fraena pudori,
Claustraque perpeluis redderc firma scris:
Perque luos passu foelici incendere gressus,
Moril)iis exultans, cândido Virgo, tuis.
Hei mihi, fugisti celeri mea lumina planta,
Tardarei gressus cum mora longa meos.
Eccc ferus telis oppugnans mollibus hostis
Expugnat robur pectoris omne mci:
Claustraqiie confringens male custodita serasque,
Corporis atque animae depopiilavit opes.
Time ego jam sero mea tristia damna rependens,
Heu perijt, dixi, virginitatis honos!
Moesta que percutiens geminatis pectora pugnis
Fata dolens planxi talibus atra sonis.
Hei mihi, quis laesit nunquam reparal)ile clauslrum?
Quae vis obstructas fregit iniqua fores?
Quae tam saeva tuam rupit, mea vinea, sepem
Bestia? maceriam quis lacera vi t aper?
Ecce carens muro fis omnia praeda latroni,
Ecce patês cunctis pervia íiicta feris.
Cur me, summe Parens, eduxti in limiiinis oras?
Cur tetigi ex matris viscere na tus humum?
Atque utinam, aspicerent ne mea tua lumina turpem,
Consumpta in primo limine vita foret.
Ó utinam pulchri labem visura pudoris
Ultima venisset funeris hora mei.
Quippe foret levius consumi funere, et omnes
Sulphureo poenas sub Phlegethonte pati,
Quam tua, sancte Pater, bonitas immensa, potestas
Suprema, aeterno agnus amore decor,
Quam tua, sancte Pater, factis laesisse nefandis
Numina, et inter óculos foeda patrasse tuos.
Ó anima infoelix, deformis, adultera, faetens,
Turpis, et in turpi corpore clausa manens.
Excute torporem, corruptum concute pectus,
Horrorem sceleris sórdida volue tui.
Quis formam pulchri tibi (proh dolor!) abstulit oris?
Quis tua tam turpi polluit era luto?
Tunc illa es, quondam quam vitreus abluit amnis,
Crystallo pectus candidiusque dedit?
Quam sacer aethereo purgavit Spiritus ígne,
Excocta ut ílammis áurea tota fores?
EM LOUVOR DA VIRGEM
Tene rato Sponsiis junxit sibi foedere siimmus
Cum tua loecundis crimina lavit aquis?
Dic ubi sacra fides, jurataque federa quondam?
Dic ubi promissiis, nec violandiis amor?
Pérfida poUiciti temerasti jura pudoris:
Sprelus amor maeret, facta doletque fides.
Displicuit Sponsiis, placuit tibi tm"pis adulter:
Hospitíum Domini fnr scelerosus habet.
Sprevisti Regem, Stygium complexa tyrannum;
Hic heriis infamis, nobilis ille Pater.
Linqiiis amatorem, syncerum pellis amicum;
Accipis osorem, te íerus hostis habet.
Sórdida quin plagis Patrem offendisse benignum,
Debuit esse tuus qui tibi solus amor.
Quin scelerata gemis Dominum tempsisse potentem,
A te cui fuerat summus habendus honor.
Quin perjura doles Sponsi violasse suavis
Foedera, adulterijs et maculasse torum.
Sorde lupanaris turpasti foeda cubile:
Sponsus abest dulcis, torfor acerbus adest.
Quae rabies miseram, quae te tam dirá hbido
Abstulit amentem? quae rapuere faces?
Turbo tuum veliemens foedarum mersit aquarum
(Proh dolor!) in faecis stagna profunda caput.
Ecce jaces Regi superorum invisa polorum;
Ecce cares Sponsi coelico amore tui.
Sordibus implicitam turpis, quem turpis amasti,
Te tenet in foedo perditor ille sinu.
Ó jactura gravis nullo reparanda labore!
Ó grande, amissum tcmpus in omne, bonum!
Ó decor abjecti nunquam rediture pudoris!
Ó decus, 6 nunquam restituendus honor!
Ó bona virginitas, Sponso tam grata decoro,
Quis mihi te casus, quae fera aderait hyems?
Sola tui restat nuper mihi dulcis imago;
Tu scmel infoelix perdita proi'Sus abes.
Flete ocuU tantam vultu squallente ruinam,
Fusaque lascivas sordidet unde genas.
Huc lacrymac, huc gcmitus, planctus; formido, pavores;
Huc ddor, huc pallor, terror, et horror ades.
Obruite insano curarum vórtice mentem;
Mergite trislitia tártara ad ima caput.
Aut tu, summe Pater, vel me Stygis abdc lacunis,
Oífendant óculos ne mca fada tuo:^.
iS6 VERSOS DO PADRE JOSEP DE ANCHIETA
Vel tere contrito carnem cnm corde procacem,
Ut jam gi\ita suo sit mea vi ta Patri.
Haec ego cuni gemerem, trisli et meiís aegra doloro
Plangeret ad sponsum certa redire suum;
Delicljs uti tm^jis suadebat adulter,
Et dare nequitiae libera fraena meae.
Niilla tibi, ajebat, capienda in morte volúpias:
Dum licet, in medijs diíílue laxus aquis.
Credere visus eram, victumque libido traliebal
In consueta meãs vincla datura manus,
Inque tenebroso vitiorum mersa baratliro
Jam prope laeta suis mens erat ipsa malis.
Cum prope mors esset, nec spes foret ulla salutis,
Vellet et in lecto foeda j acere suo:
Néscio quis lenis placidae mihi sibilus aurae
Hos dedit inspirans cordis in ore sonos.
Quam voluere diu coeno lutulentus in isto,
Surge, veni sacros Virginis ante pedes.
Si turpem vultu te exceperit illa sereno,
Ne timeas, sordes abluet illa tuas.
Surgo gravis metem multorum mole malorum.
Et vetus in túmido corpore torpor erat.
Dejectusque caput, faciemque tegente pudore,
Vix vení ante óculos, Virgo benigna, tuos.
Nec visus oculis, nec erat data copia íletus;
Condebant pressae lumina gesta genae.
Nec quibus aíTarer noram te, cândida, verbis;
Haerebat gélido torpida lingua, metu.
Mens sibi luxuriae pavitabat cônscia turpis;
Attonítus multo crimine totus eram.
Captabam sola divinas aure loquelas,
Dulce tuo flueret si quid ab ore mihi.
Ecce labris prodit (nisi falsa illusit imago
Indignum) talis vox mihi nota tuis.
Surge, veni mecum sacrata in templa Tonanlis:
Tu mihi perpetuo tempore servus eris.
Audivi, et vita simul ac sermone resumpto,
Ecce sequor, dixi, quo benedicta venis.
Mors odiumque méis, sanctique aversio vultus,
Poenaque debetur non moritura malis.
Sed vitam indigno, et dulcem si reddis amorem,
Ista tuae maior laus pietatis erit.
Haec ego, tu facili visa es risisse favore,
Et subijt menti spes inopina meae:
EM LOUVOR DA MRGEM 187
IncreviKíue tuos imitaiidi audácia mores,
Teqiie vol à longe quà licet usque sequi.
Inghessus Viro IMS in Templu.m
Scande gradus igitur quindenos párvula Temi)li
Sola, nec auxilijs utere, Yijgo, patris.
Jam tua marmóreas superant solidata columuas
Crura, quibus Templi grande sedebit opus.
Quanta tuos gressus, ò filia Principis, ornat
Gloria! dissimiles quam tulit Eva suos!
lUa voluptatis pascens vaga lumina in horto,
Infausto movit calle superba pedes;
Lethale ut verita decerperet arbore pomum,
Unde hominum premeret mors truculenta genus,
Tu hastura óculos divina luce modestos.
Sacra humilis fausto tramite Templa petis:
Vitalem ut gignas arbos ubérrima Fructum,
Unde salus mundo, veraque vita fluat.
Exit Isacides, quas claro è sanguine natas
Maenia regalis celsa Sionis alunt.
Abdita sacrati penetralia linquite Templi,
Currite ad auratae limina prima foris.
Aspicite intento Reginam lumine vestram,
Cândida cui decorat coelicus ora rubor.
Cujus divinum solis rota pulchra decorem
Suspicit, et radijs Cintliía clara suis.
Quae matutinis foelix laudatur ab astris,
Cui magni exultant pignora cuucta Dei.
Haec, modo quam certos Domino servatis in anuo»,
Perpetuae doctrix virginitatis erit,
Dirigite bane ânimos, óculos hanc íingite in unam:
ília manus vestras dirigat, illa pedes.
Ilaec illa est ctenim fortíssima Foemina, cujus
De extremo pretium fine, proculque venit.
Quam Deus omni[K)tens post saecula multa repertam
Sanguine connectet, conjugioque sibi
Namque erit aeterni conjux puicherrima Palris,
Et Nati illaeso sancta pudore parens.
Vir sus invictis coníidit viribus ojus,
Correptura cilam castra inimica fiigam.
Victoremque diu victrix cum vincet Avernum,
Exuvias allis inferet alta i)olis.
Nulla mali lacílenl ejiis contagia j)ectus,
Sed tola incodet splendida vila bonis,
158 VERSOS DO PADRE JOSEPlí DE ANCHIETA
Sed rogo vcl minimam lanloriim Virgo bonorum^
Quae facis in templo, dic mihi particulam.
Si quis enim cunctas virtutes dicere verbis,
Aut sola vellet volvere mente tuas:
Mentis inops fureret, citiusque ingentis arenas
Aequoris, aut herbas enumeraret agri;
Aut pluviae guttas, aut vasti sydera coeli,
Aut sylvae densas, quam tua facta, comas.
O foelixTemplimi Templo formosius isto,
Perpetuus cujus pectore fumat odor.
Da mihi, si nequeo sanctae primordia vitae
Dicere, at interno prosequi amore, tuae.
Ille tuam referet pulchram mihi saepe figuram^
Nec procul à facie te sinet esse mea.
ViTA VmGiNis IN Templo
Tu Domini supplex humilisque Ancilla superni
Virgíneas aptas ad pia dona mamis.
Aut niveas tenero deducis poUice lanas;
Aut trahis ò plena moUia lina colo.
Nunc quatis arguto bombycina pectine fda,
Serica nunc tenui pallia pinguis acu.
Nunc intertexto velamina perficis auro.
Cortinas, mappas, purpureasque togas.
Tenuia multiplici vel texis retia modo,
Aut nectis varijs byssina pensa modis.
Albave distinguis bis tincto carbasa cocco,
Lute ave aéreo texta colore notas.
Assuis aut sacris redimicula pêndula mithris,
Carbunclos rútilos, sardonycesque rubros:
Unde tabernaculum, sacrumque altare teguntur,
Tegmina sacrificans unde minister habet.
Amphficat cultum sancti tua dextera Templi,
Nec tibi fit multe lassa labore manus:
Extendisque pias inopi mitissima palmas,
Dextraque pauperibus semper aperta tua est.
Mollia virgineís non praestas otia membris,
Curaque terreni non subit uUa cibi.
Nam tibi de coelo coelorum Conditor escas
Mittit, et aetherea pasceris, usque dape.
Servitiumque tibi chorus exhibiturus amicum
Aliger aereis itque reditque vijs:
Teque Dei matrem quasi jam praesagiat alti.
EM LOUVOU DA VIRGEM 159
Slat Dominae vultiim subdilus ante sua.
Nun extinguetur caecà tua noctc lucerua;
Est tibi nox claro clarior ipsa die.
Ut tua de mulsit tantillus lumiiia somrius,
In tacita surgis paupere noctc toro.
ínque tui dulci conclavi sedul acordis
Quem tua dilectum mens pia quaeris amat.
Quaeris, et invento strictis amplexibus haeres,
In charique jaces deliciata sinu.
Ilic de divinae clarissima lumina lucis,
Largaque de vitae gaudia fonte bibis.
ílic tibi magnarum reserat mysteria rerum,
Deliciis recreat dum tua corda suis.
Pascitur ille tui fragrantia pectoris inter.
Lilia, odoriferis decubat inque rosis.
Ille tibi charus, tu multo charior illi:
Exuperat que suo for tis amore tuum.
Ipsa tuos valida firmas virtute lacertos
Constrictumque tenes, nec procul ire sinis.
Clausa nec spectas ut pulset ad ostia mentis,
' Sed patet illi animus nocte dieque tuus.
Cor tibi perpetuo vigilat sine pondere somni.
Ipsa licet jaceas pressa soporc genas:
Plenaque perpetui tua chrismate lampas olivi
Non extinguendo lumina clara micat.
() vigilans Virgo muliebris gloria sexus,
Ó juge solari pulclirius orbe jubar.
Dum tibi delitiae replent, dum lumina mentem,
Dilecti, huc óculos flecte modesta tuos.
Percute nostra tuis radiis languentia somno
Lumina, divinis unguinibusque line :
Te tacita ut videam dilecto nocte fruentcm.
Et meus aspeclu ferveat cjus amor;
Nec secreta mei subeam penetralia tecti,
Excipiat stratus nec mea membra torus;
Munera luminibus nec dem placidissima somni,
Nec reqiiies fessas mulceat ulla genas:
Ni prius inveniam Domino sedemque torumque,
Ilospilio Christum suscipiamque meum.
Quam dilecta Deo lua sunl liabilacula Virgo!
Quam lua vila illi, quam tua forma i)laccl!
Mens erat acta tuafí [)ercurr(!re plurima vitae,
Ut tua vila meaií regula rccla foret:
Sed superas numero virlulum ac pondere sensum.
IGO VERSOS DO PADHi: JOSEPII DL ANCHIETA
Mensque ávida in tantis deficit hausta bónus.
Congressere licèt multa boiía plurima natae,
Ingentes, et opes, divitiasque sibi:
Tu regale tamen supra caput exeris, omnes
Summaque thesauros vix capit ulla tuos.
Multiplicique tuum locupletas munere pectus,
Innumerasque hauris, nec satiaris opes.
Virgíneo castos accingis robore luuibos,
Et tua divinis legibus ora patent:
Ut decet aeterni templumque aramque futuram,
Quem maré, quem tellus nec capit aethra Dei.
Obstupeo tanta perculsus imagine matrem
Cum video patris te fore Virgo tui.
Hinc tua tam grandi incremento gloria surgit,
Ut cessem victus jam tua facta loqui.
Sat mihi, torque tui divinctmn, et compede amoris
Perpetuo plantas ante jaeere tuas.
Et quia me spectans clementi lumine tandem
Post te traxisti sub sacra templa Dei:
Et socijs junctum Domine dignaris Jesu
Yivere, nec sancta me proculae de fugas:
Hic tua me foueat pietas, servetque ruinis
Constrictum triplici me tua fune manus.
Sed trahor invictus, contemplarique tuarum
Máxima virtutum lumina cogor adhuc.
Qualiter amplexus divinaque basia linguis
Rosida cum clarum retulit hora diem.
Extendique iterum solertem ad fortia dextram.
Et digiti fusum corripuere tui. ^
Circunstant aliae ducentes fila sorores, t
Et sibi mandatum quaeque laborat opus. <
Miranturque in te jactantes ora, tuaeque {
Se gaudent vinci dexteritate manus.
Tu tamen assurgis cunctis, vultuque modesto
Accipis extremum súbdita Yirgo locum.
Obsequioque sacris humili servire puellis
Haec tibi cura prior, hic tibi primiis honor,
His humihs tergis vestes, sternisque cubile;
His ancilla paras officiosa cibos:
Everrisque domos hilaris, mundasque catinos,
Et facis abjectum quicquid in aede jacet.
Siquam langor habet, curas solaris, et omnes
Dulciter oííicio servitioque foves,
Quid facis ò Virgo servil ia munera tractans?
KM LOUVOU DA VIIUJEM Hil
Quod (lecet ancillas, cur operaris opus?
An iiescis quod eris supei'iim regiiia polorum,
Cuiictaqiie suiit pedibus siibjidieiítla tuis?
Linque minislerium servis: te purpura, bissus.
Imperiuin, solium, seepta corona decent.
Sed quid ego stultus meditor? lu máxima tcnmis,
Iníima subque humili pectorc claudis amans:
El minimi gaudes fieri, cunctisque subesse.
Et credis maguum praeter id esse nihil.
Altus enim (nosti) summa de sede suberbos
Dejicit, alque humiles tollit iu alta Deus.
Cum nibil ignores, paleris le cuncla doceri
Parere, abjicies, discere, dulce libi.
Uegiaque occullas animo secreta sub imo,
Quique tibi replet plurimus ora Deum.
Sed male dissimulas; nec enim bene clauditur igni*.
Ipsa suo prodit lumine ílamma foras.
Elucet splendor lacie divinas in ista,
Et tua te sócias lacta silente docent.
Proptera sanctam te concio sacra sororum,
Foelicemque omnes praedicat esse super.
Inque tuis oculis óculos et pector ligunt,
Tolius speculum quam bonitatis liabent.
Te juvat atíari, tua gaudent ura tueri,
Teque putant Dominara te decus esse suum.
Tu vero indignam tanto te credis bonore:
Fis oculis vilis plus nimioque tuis.
Inque dies animam veris virlulibus ornas,
Quod verum esl lemplum vcraque tlieca Dei.
Corpus lionestatis niveique esl íoi-ma pudoris;
Unde Deo unilum nobile corfms erit.
Cor libi cum repleat virlutum ílumen inundans,
Credis adbúc vácuo, pectori inesse nihil.
Cumque creatarum meiilo sis máxima rerum.
Deberi censes intima jure tibi.
Tanta luam Virgo possedit gi'ulia mentem.
Tanta tuo virlus j)ectore clausa lalei.
Clausa latfíl noslros, quos (eiria siípcrbia sensus
Tam clar((ni caecos i'edilidit ante dicm.
Sed nilet anle óculos summi claríssima 1'abis,
Sydeream((ue n'pl('t Iucií micante domum.
Quo magis abjiceris, tanto essubtimior iili.
Postmodo qui llialamum le volct esse suum
.Iam Ic lospicíe:: po-trema sede locatani,
VOL. II 41
1G2 VERSOS DO PADRE JOSEPH DE ANCHIETA
Inque lua dulces hos dabit aure sonos.
Scandc humilis sursum digníssima sede priori,
Accipe jam primum dulcis arnica Jocum.
lUa tibi foelix, et nostris prospera rebus
Adveniet, talem quae feret hora sonum.
Quae tibi Virgo humilis de te nil tale putanti
Sis Domini ut Mater máxima dicet Ave.
Yive precor, vitam nobis lucemque datura,
Vive precor, foelix imminet ista dies.
Meque humili exorna servum virtute misellum,
Qua sine nec Domino, nec tibi gratus ero.
Ilac mihi componet pectus, Dominoque parabit
Venturo hospitium dulce domumque tibi.
Ó iitinam placidis Dominae sim dignus ocellis
Aspici, et in servis ultimus esse meae.
Be Anisuntiatione Virginis Marine
In tua fert animus pallatia sancta venire,
Virgo Sioneae gloria prima domus.
Submissoque pias contingere murmure portas,
Pulsanti pandas si mihi forte fores.
Si me forte tua vel parvulus angulus acdis
Excipiat módico detque sedere loco.
Nam juvat aethereos intento lumine vultus
Spectare, itque óculos si patiare tuos.
Pande precor facili, soror ò pulcherima, fronte
Ostia, nec generis despice jura tui.
Si sordet mens nostra, suis mundabitur undis:
Munditia est maior sordibus ista méis.
Mens mea virginei quoniam tibi janua tecti
Jam patet, hic humili cum pietate sede.
Hic sacra pendentur cunctis mysíeria saeclis,
Abdita divinae consiliumque manus.
Percipe quid faciat sapíentí pectore Virgo,
Quasque sacro vocês proferet ore nota.
Dic, quibus insudas studijs? quae cura, laborque
Instimulat pectus, provida Virgo, tuum?
Scilicet aetherea vocitas super aetliera mente,
Coelestesque ávido pectore quaeris opes.
Et divina omnes meditaris foedera noctes,
Et divina omnes pascere lege dies.
Per tractasque humili sacrata volumina corde,
Priscorum scrutans mvstica dieta Patrum.
EM LOUVOR DA VIRGEM 1(33
Et clausi exoptas solui signacula libri
Áurea, coelestes ut reserentur opes.
Cum recolis primos transgressos jussa parentes, ■
Et Domini pactum iioe tenuisse Dei;
Et miseros pátria maculatos labe nepotes.
Serviu culpae conditione premi;
Promissumque suo qui mundet sanguine mundum,
Vincula captivis demat et arcta ducem:
Ingemis, et justo pectus concussa dolore,
Virgineos lachrimis et madefacta sinus,
Attellis coelo palmas, pedibusqiie voluta
Divina liis orans vocibus ora pijs.
Quam, Pater alme, diu capiet te oblivio nostri,
Ex ardensque tuus zelus ut ignis erit?
Cur tua ab antiquis immanis regna tyrannus
Occupat, injusto servitioque premif?
Cur lanianda damur crudeli praeda leoni"?
Péssima cur niiseras bestia glutit oves?
Cur truculenta suum dilatant Tártara ventrem
Invida? cur rábido mors vorat ore gregem?
Cur tua, quam própria plantasti vinea dextra
Deseritur cunctis suffodienda feris?
Cur factura tui vultus signata decore :
Tam faedata malis, tam sine bonore jacct?
Parce, benigne Pater, justumque remitto furorem,
Nostrique luminibus respice damna pijs.
Mitte tuam tandem coeli de culmine dextram,
Mitte precor lucis lumina vera tuae.
Iste tuus instus supera mittendus ab arce
Jam veniat pluvij de regione Noti.
Egredere in populi Christo cum Rege salulem,
Et sceleris duro percute fuste caput.
Trade tua summo virgam. Deus optime, Regia;
Judicium Nato trade perenne tuo:
Ut male possesso depellat ab orbe tyrannum,
Judicioque inopes, juslitiaqiic regat. '
Mitte salutiferum, qui terrac linibus Agiium
Praesit, et im|)erio coiitei-at arma suo;
Moeniaque aeterna circundei pace Sionis,
Compósito vinclis solvat et orbe roos.
Adveniat fractum í[ui Pastor ovile íidelis,
AUiget, iriíirmum consoliiietqiie pecjs.
De varijsque gregem dispíMsniFi [larlibus orbis
Colligat, in len-ani reslilualiiuc suam.
'164 VERSOS DO PADRE JOSEPH DE ANCHIETA
Pingiiil)us inqiie locis, et ilumina propter opimis,
Pascal oves berbis, ubere, polet aqua.
Eniteat imindi Servator ut ignea lampas,
Et velull splendor progrediatur ovans,
Ut videaiit omnes felicía saecula gentes,
Inclytus in totó quae dabit orbe tuas,
Ú Rex Emmanuel, magni expecta tio mundi,
Omnia qui recto têmpora jm'e regis.
Sm'ge, veni tandem praecinctus robore dextram,
Induc jam vires inclyti Nate Dei.
Ò utinam vasti disrumpas moenia coeli.
Inque liumiliem vénias, saneie Redemptor, humum.
Ante tmim fluerent liquefacta cacumina vultum,
Terraque contremeret cardine mota suo.
Agmina morderent sordentem hostilia terram,
Lingeret et luteum turba superba solum.
Fundite divinum in coelestia templa liquorem,
Stillate ò dites ubere rore poli.
Depluite ò nubes pleno de viscere Justum,
Flumina viva sacro cujus ab ore fluant.
Imber inexhaustis foecundet hic omnia lympliit,
Aridaque aetliereus temperet arva látex.
Imbibat è gravidis demissum nubibus imbrem,
Germinet et fructum terra benigna suum.
Quando erit ut vénias tenebris evolvere mundum,
O Sol Occiduas non subiture domos?
Quando Sioneae maculata cubilia natae
Conjugij fácies munda decore tui?
Quando dabis pacem, pacis mitissime Princeps?
Quando tuam mundus sentiet aeger opem?
Quando erit ut dirimas litem mediator acerbam,
Quam natura gerit cum Patre nostra tuo?
Quando erit ut sanctae soleris moesta Sionis
Moenia, Ingentes laetiíicesque vias?
Quando humili omnipotens Verbum breviabere terra.
Jura docens Patris nomen opusque tui?
Sis memor antiquos, Genitor sanctissime, Patrcs
Qui tibi cum vera vota tulere lide:
Cum quibus astricto pepegisti foedera nodo,
Foedera non uUo dissolvenda die. '
Per tua, perquc tui jurans sacra numina Nati,
Quos sanctum aeterno Flamen amore ligat,
Ipsorum Regem venturum è semine Cbiistum,
Qui [lopulis leges jusque perenne daret.
EM LOUVOR DA VlRfiEM f65
Ciijus in aetenium ciinctas bencdiclio gentes
Dicet, et obscuro cárcere solvat avos.
Aspice nos plácido, mititissime Conditor, ore:
Aspice nos diilci cum pietate, Pater.
Nos licet indignus natoriim uomine simus.
Vila qiiibus miiltis est maciilata malis;
Tu tamen es Patris dignissimus unus lionore,
Cui scatet innumeris dextra benigna bonis.
Nos meritis quamuis tua verberet ira flagellis,
Ipse tamen noster non Pater esse nequis.
Non decet, ó Genitor, nomen gravis ira paternum:
Ferto memor nobis nominis hujus openi.
Te dulçor clemens decet, et clementia dulcis,
Et facilis pietas, atque benignus amor.
Si poterit mater quem gessit viscere nati,
Nutrist et mammis, immemor esse sul:
Tu poteris nostri, tua quos sapientia verbo
Condidit, ò clemens, immemor esse, Pater.
I^íater acerba tamen; sed tu dulcissimus ipse:
ímpia mater erit, tu sino tine pius.
Ergo Pater noster laceratum reflice dextra
Quod tua de limo dextera fmxit opus.
.Iam salis isto furor laxis so effudit habenis:
Jam satis bumani sanguinis ira bibif.
.Iam satis ancipitem furibunda exercuit enseni
Justilia, oífensas scilicet ulta suas.
yEqua suum mitti clementia postulat ore
In Patris irato pectorc babere locum.
ínvenint tandem: teque, ò bonitatis origo,
Paeniteat tantis nos agitaro malis.
Prodeat é pátrio pietas placidissima corde
Foelices olea cinda virente comas:
Iratamquc diu dulcedine plena sororem
Placet, et eloquio mitiget aequa pio.
.Materno miserum despectans lumine mundum
Laetiíicet vultu saecula moesta suo.
EíTlue puro lal(v\, penelrabile fundere olivum.
Vivat ul ad tactum morlua terra tuum.
His tua mens sludijs vacaf, liaec níysteria voluif:
Ilaec sacra sunl aiiinii [Kibula, \'irgo. lui:
Cum legis, ignilus cui cnlciilus ora Propbetam
ílontigil, lios magna promere você sonos:
Integia concipi et sine semine Virgo virili,
Foeliciqne tumens pondere venter prit.
100 VERSOS DO PADRE JOSEPH DE ANCHIETA
Virgoquc perpotuiim paricns illaesa puderem
Yirgineo foelix ubere pignus alet:
Ciijus et in terris, superique per atria notum
yEtlieris Emmanuel nobile nomen erit.
Ilaec iibi, Virgo, tuam tetigere oracula mentem.
Et tácito tantum pectore voluis opus;
Ardet amans animus, tantamque videre puellam
Gestit, et haec humili voce profata gemis.
Ó quae te talem foelicia saecla videbunt,
Virgo Jacobeae splendida gentis honos?
Qui te foelices gignent, speciosa, parentes,
Et digni tantae munere prolis erunt?
Quae te tam foelix portabit mater in alvo,
Molliet, et fauces nectaris imbre tuas?
Sed te quae vírtus, quod te decus inclyta quondam
Foemina, quantos honos, gloria quanta maneti
Quae Dominum clausi concludes tegmine ventris.
Que sobolem clauso viscere foeta dabis.
Yirgineo vitae quae pasces ubere Yerbum,
Materna tractans membra beata manu.
Ó utinam summus Genitor mihi proroget annos
Ut videam exortus tempoi-a laeta tui!
Ó me foelicem, si tantae ancilla parentis,
Si tantae merear Yirginis esse comes!
Plura luquuturam suspiria crebra morantur,
Castaque virgineus pecíora mordet amor:
Et gemitus iterans laclirimarum liqueris ibre,
Templa replens coeli questibus alta piis.
Perque genas rivus calidarum manat aquarum,
Dum justa humanum conterit ira genus.
Quid pia contereris iam duro, Yirgo dolore?
Excrucias teneros cur gemebunda sinus?
Parce precor tantis onorare tenerrima curis
Pectora, virgíneas laedere parce genas.
Parce verecundum lacrymis violare colorem,
Splendida ne fletus sordidet ora flaens.
Ecce venit plácida Rex mansuetudine cinctus,
Destructum Soliraae qui reparabii; opus.
Nescis quanta tibi servala cst gloria, Yirgo?
Ignoras quantus sit tibi dcndus honor?
Quid gemis absentem, quae non violata puellam
Indu&t immensum cárnea membra Deum?
Te decus expectat, Mulier digníssima, tantum:
Sola tui genitrix integra Patris eris.
KM LOUVOR DA VIRGEM 167
Sterne tiuim thalamiim pulcherrima nata Sionis,
Tende tabernacli byssína vela tui.
Senlio converso torqneri cardine coelum,
Miirmuraque angelicis laeta sonare choris.
Jam Palris aeterni, castissime turtur, ad aures
Divinus gemitus introiere tui.
Confortare Sion, túnicas vestire decoris:
Indue te vires, regia Virgo, novas:
Ut coeleste queas comprehendere viscere robur,
Cuni divina tuas iníluet aura sinus.
Sponsus ab aetberea descendit Olympicus aula,
Impleat ut Sponsae grande cubile suae.
Res nova, ne capiat languens tua lumina somnus
Mens raea, patrari grande videbis opus.
De Ingressu Angeli ad Mariam Virginem
Jam pia divinam vicis miseratio mentem,
Et pax iratos lenijt alma sinus.
Jam facilis scindit veteres concórdia rixas,
Justaque pacificus jurgia pellit amor.
Jam Deus antiquas bónus obliviscitur iras,
líumanumque pio respicit ore genus.
Scilicet agnovit quod vili è semine natum
(>)rpora de sterili luilvere ficta gerit:
Inque malum pronos, stimulante cupidine, scnsus
Diííluere, ut mollis labilur untla, videt.
Utque paterna solenl miserari viscera natos,
Ira nec errantes punit acerba diu:
Sic movet aetcrnum pietas dulcíssima Patrem,
Cumquc gravi semper mista furore venit.
Tam procul à nobis scelerum difiecit acervos.
Et mala patratis debita criminibus;
Quàm procul excelso se jungitur aetliere tellus.
Et plaga ab occidua distat Eoa domo.
Jam solium virides pingunt coeleste smaragdi,
Allaqne jaspideo tecla colore nitent:
Diviniimque Ibroniim pulcliro ciicundat amíctu
íris, et ignivomiim discolor ornat opus :
Spesque datur nmndo certam pi'ope ad(!sse salutem,
Quae jam cum plácida pacc lignta venit.
Coelica terrenis jungenlur, et intima snmmis,
Duraljunlíjue omnes foedera tanta (li(!S.
Nam Deus unigenum missurus ab aclhere Natum
168 VERÍOS DO PADRE JOSEPH DE ANCHIETA
Verus ut è sacra Virgino fiat homo :
Milia deíiiíens Calilaeis luniiiia lorris.
Nol)ile Nazarelh despicit iirbis opu.s.
Hic tibi parva qiiideni, sod magno insignis lioiiore,
Stat domus, excelsis aequa fiiíura [lolis :
Degit iibi exiguis laribus contenta Puella,
iEthere quac magno postm.odo maior erit.
Qiia latet in terris Immilis sine nomine Virgo,
Qua tamen ampla nihil clarins aethra videnl.
Servat ubi iníacti signacula claiisa pudoris
Quae geret augusto vcntris in orbe Deum.
Servat nbi obductis diuturna silentia portis,
Cujus opem mundo paucula verba ferent.
Quae, precor, es raulier, cui talia servat Olympus?
Quis tuus est conjux? quod tibi nomen in est?
Vir tuus est Joseph, cui nobilitatis origo
Clarior à magno missa David venit.
Yir tuus ille quidem vera cum cônjuge junctus,
Virginei consors non íamen illc tori.
Cui sedet immoto votum inviolaljile corde
Perpetua tecum virginiíate fiui.
Conjugij quem jura tui, tbalamiquè pudici,
Haeredem facient norainis esse tui.
Nam cui mater eris, pater esse putabilur ille;
Et reget, arbitrio qui regit astra suo.
Talis es, et lateas? nimiumque iilustre Maria
Nomen in obscuro sit sine laude íuum?
Scilicet in celsi constructo cacumine montis
Urbs coelo eductas osculat alma domos?
Cur lateat rosei spectabilis orbita solis?
Cyntbia cur lúmen deneget alma suum?
Cur óculos fugiat, ílammis quae accensa coruscis
Ponitur in media clara iucerna domo?
Ó urbs alta, nequis, cupias licèt ipsa, latere,
Sol radians, Phaebe splendida, ílamma micans.
Ut lateas terram, tamen es notissima coelo :
Sydera te prodent, prodet et ipsc Deus.
Jam* supera aligerum demittens arce ministrum,
Qui secreta tibi magna recludat, ait.
Vade salutatum quam post tot saecla Mariam
ínveni, arcani fiat ut arca mei.
ília mei Nati cum virginilatis honore
Mater, et aeternae causa salutis erit.
Dixit : at ille volat rutilo per inane volatu.
EM LOUVOR DA VIRGEM ifiO
Igneiis III radiaiiíí aolhore vesper al)ií:
Eyregioqiic iiiteiis jiivtMiis ])iiIchiíiTÍmus on*
ínoTe»iitni' tlialami tecla pudica lui:
Miratiisqiit) ttiae divina, iiisii^nia mentis,
Talia cnrvato dal liiii verl)a genu.
Ó sola immonso gratissima Ibemina Patri,
Ó prima aeterni cura Parentis, Ave.
Cni divina liumilem re|)!evit gralia montem,
C.iii sacra diviniis pectora innndat amor.
Omnipotens Dominns lecum esl, qui máxima Olympi
Moenia, qui terras solus et aequor habet.
Ille tui Dominus fuit omni lemporo cordis,
Solus habet regimen pectoris omne tui.
Non tibi culpa prior, non est dominata fecunda :
Omnipotens Dominus jus habet omne tui.
Nec tibi mors unquam, nec mortis praefuit author :
Omnipotens Dominus jus liabet omne tui.
Ille tuum semper possedit solus amorem,
Ille tui curas pectoris unus habet.
Propterea lata dominaberis inclyta terrae,
Arduaque impcriis serviet aethra íuis.
Tu sola ante omnes digníssima Foemina matres.
Tu sola ante omnes es benedicta nurus.
Gloria Ibeminei spectaberis ultima sexus :
Gloria foeminei j^rima decoris eris.
Quem til)i tunc animurn credam, sensumquo fuisse,
Quis tibi tunc vultus, Vii'go modesta, fuit,
Cum tibi coelestis tam mira referret ad aures
Nuntius, aspectum cernuus ante tuum?
Fixa solo castos óculos immobilis haei'es,
Pulcliraque virgineus contegit ora rubor.
F^t turbat novam prudens miraic salutem,
Et pavitans humili talia mente putas.
Quis novus hic sermo timidas mihi pertigit aures?
Uode salutandi Iam nova forma venit?
Tanta nc ab excelsis venial revei^entia coelis?
Tantus honor humili? gloria tanta mihi?
Scilicet indignam lerrâ venerctur Olympus ?
Laudibus immodicis magnificer módica ?
Juncta fabro parva vix noscoí" in urbe marito,
Et jam magnilica noscar in urbe Dei ?
Foemina muneribus cumuler paupercula tantis?
Tot mihi diviliae, lol Iribuantur opes ?
Me ne pohis claio Dominae dignctur honore,
170 YKnSOS DO PADRE JOSEPII DE ANCHIETA
Quac vix ancillae sum satis apta loco ?
Summus iii oriíatae Dominus ferat Íncola mentis,
Perpetuusque hospes pectoris esse mei ?
Jure mihi video insperata ex laude timendum.
Cônscia nullius, vilis, inopsqne boni.
Ó humilis, simplex, et prudentissima Yirgo.
Quae tibi tam dubij causa timoris adest?
Cuncta times humilis, meritò; quia cuncta timenda
Sunt humili, qui se judicat esse nihil.
Cuncta times simplex; quia símpliciora puella
Saepe solent varia pectora fraude capi.
Cmicta times pradens, prudenti examine pensans
Ne moveat sensum quaelibet aura tumii :
Ne faciles praebens aures, velut Eva draconi.
Crédula compositis illaqueere plagis.
Sed nihil hic fraudis : non nouit fallere coelum :
Non est in supera fraudibus urbe locus.
Non hic te verbis deludet dulcibus anguis,
Nec levis iit mulier decipiere prior.
Jam te respexit Dominus, quia siimmus ab altae
Inflma coelorum respicit axe Deus.
Quo magis indignam te credis, dignor alto
Exei'is, et surgit dejiciendo caput.
Simplicitas humilis, simplexque abjectio mentis
Spiritui gratam te facit esse Dei.
Quid summam fieri, quid te mirare priorem.
Intima si extremmii sumis in orbe locum?
Hoc esset mirum, si inflata superbia haberet
Pectus, et à Domino respicerere tumn.
Audi igitur coeli securo nuntia ccrde,
Ut te digna magis, sic metuenda minus.
Audisti laudum primordia sola luarum;
Summus adhuc summi desit honoris apex.
Máxima jam dixit, dicet maiora deinceps
Qui tibi suspensae coelicus Ales ait.
Parce Maria metu : nihil hic tibi, Virgò, timendum
Poneverecundum, Virgo 3Iaria, metum.
Non refero mimdi vanos legatus honores:
Indigna est tanta Yirgine vilis húmus :
Sv-^d qiios aeterni sapientia summa Parentis
Ante tibi mundi grande reservet opus.
Cur pudeí aetherei laudari você ministri,
Nec dignam alloquio te facis esse meo ?
Cui gens ílaramanlis curvabitur Íncola coeli,,
EM LOUVOR DA Vmr. EM 17Í
Omnis ot obsequiam servitiumque dabit.
Tandem siipremi repeiisti Patris amorem;
Est tibi apiid magnum gratia magna Deum :
Quam pater amisit lethali crimine primiis,
Quam qiiondam prisci non reperére Patres :
Tempore quam longo cupidé suspirai Olympus,
Quam lachrymans quaerit languida terra diu.
Condita in immensi secreto corde Parentis,
Inventa est tandem gratia amorque tibi.
Non nostram appendit Domini sapientia gentem,
Quae te naturae condi lione praeit:
Sed te, quam nostra maiorem gratia gente
Fecit, ut hoc summum perficiatur opus.
En tua concepto turgebunt viscere Faetu,
Et Natum exacto tempore nixa dabis.
Cujus inauditum sanctumque vocabis Jesum
Nomen : erit titulo nobilis ille novo.
Hic erit excelsae Rex majestatis, et omnem
Ipsius excedei gloria magna modum.
Qui tibi Natus erit, summi Patris unicus idem
Filius, et compar nomine numen erit.
Cui dabit omnipotens solum regali Davidig
Patris, et ímpcrij fraena tenenda Deus :
Isacidaeque domum moderaljitur inclytus amplam,
Juraque in aeternos sanciet aequa díes.
Ejus erit latis dilfusa potentia terris,
Ultima quàquc vagum terminai ora frelum.
Quaque jubar pandit, qua vesper claudit Olympum,
Qua polus aethereum voluit utcrquc globum.
Margine totius (certo sine limite) mundi
Porrigei Imperij brachia longa sui.
Quiu et legitimus regnis dominabitur hacres,
Sydereis vero cum geniiore Deus:
Sceptraquc perpetuum princeps gestabit in acvum
Maximus, et dempto saecula fme regei.
De nomine Jesu obiteu et Circunsione
Ilaec cooli Intcrpres: iu dum taciiurna sub alio
Pcctore responsum praemediiata siles,
Ne milii succense, ne sim tibi, Virgo, pudorí,
Si famulus Dominais paura loculus ero.
Movit cnim mira dulcedinc, pcctus amoris
Quem paries Nali nomen amorque meum.
|7á VEllSO-í DO PADlAi: JOSEPH DE ANCHIETA
Nomeii inaudítuni, mirabilo nnmon Jesus:
Nomeii, quod próprio nominal ore Deus.
Quod siiie principio Verbum eructavit ah alto,
Corde quod cxortum permanet ante diem.
Dulcis amor cordis, dulcedinis autor Jesus
Cuncta procul gustu pellit amara suo.
Vera sagina animi, panis vitalis Jesus
Languida mortifora liberal ora fame.
Fons indeficiens, fliiviusque perennis Jesus
Mentis inexhausto temperai amne sitim:
Mellifluoque rapit potalos neclare sensus,
Nec sinit immemores nominis esse sui.
.'Eternae lucis divinus candor Jesus
Nigra repurgato nubila corde fugat.
Forma nitens semper decor immortalis Jesus.
Quo sine rcs ullum non habet ulla decus:
Quo sine nil pulchrum, cum quo sunt omnia pulchra:
Cujus ab aspectu perdila forma rcdif.
Unguea aromaticum, medicina suavis Jesus
Foeda salutnri vuhiei'a sanai ope.
Ornnipotens virtus. invictum robur Jesus
Fortia dal fanmlis vincere castra suis.
Infinita Dei sapientia Patris Jesus
Justitiae recto tramite monstrat iter.
Non secus ac olei pinguis tluit bumor Jesus,
Impinguat cordis icniter ima flaens.
Ignis edax coivlis consumens Ignis Jesus,
Ardentis gélidos urit amorc sinus.
Omno decus terrae, coeli nitor omnis Jesus
Vestit lionore solum, veslit honore polum.
Imber inexiiauslae largus pielalis Jesus
Saxea faecundis pectora mollit aquis.
Flammea divini restinguit tela furoris,
Ignescit sonteni qui populatus humum.
í.aetitiae puteus, bonitatis abyssus Jesus.
Ultima meia mali primaque origo boni.
Deliciosuá amor, medicamen amantis Jesus,
Qui grave sub venis vulnus amoris alil.
Una salus mundi, libertas única .Jesus,
Quo sino libertas nulla, nec ulla salus.
Auferet armati fortissimus arma tyranni.
Et manicis solvei compedibusque reos.
Pellet Avernalis contagia dirá veneni,
Pfimorumque nefas exitiale patrurn.
EM LOIVOH DA VIRGEM 173
Vila peremplui'mn, queis mors doniinatiir, Josu^
Vila gravem murli morle daliira iiccem.
Nomen adorandiim, venerabile iiomeii Jesus,
Coelica subiiixo quod colil aula geiíu.
Nomen terrificum, quod perliiiiet Urcus, Jesus,
Turba quod exultaiis Tisiplioiiea tremit.
Mile, saluliferum, mellilmn iioineii Jesus,
Poplitibus flexis quod reveretur húmus.
Tempore deliciar, si noniinis hujus Jesu
Iminensum vili prosequar ore decus.
I\ec magè proíiciam quam si sino meule laboi\im
Exiguo vastuni condere vase íreíum.
Ecce tuo qualis claudelur viscere Nalus,
Qualis erit ventris fructus honorque lui.
Talis erit Nalus. próprio quem nomíue Jesum
Laeturum mundo, Vii'go, vocabis opem.
Tale erit lioc nomen: sed quando vocabis Jesum
Dic mihi; quando hujus nominis hora venif?
Nempe tener saxo cum circunsisus acuto
Vulnus in innocua pergrave carne íereí:
Purpureoque pij slillabit rore cruoris,
linde aeterna salus, vila, medeia ílual:
Vagilusque dabit, dulcisquc suavia matris
Ubera captabil moUiculosque suos:
Dequc tuis currel laclirymarum llumen ocellis,
Ah Virgo, et scindet car tibi i»laga pium;
Sanguineumque ligans turbabere pallida vuhms,
Dum menti occurret tiistior hora luae:
Cum lacerata tiuci dilecli lunere Nali
Membra fovens gladio tragiciere sinus.
Intera llentem super ubera blanda puellum,
Osquc gcmens pulchro pulchrius oi"e premos.
Vii'gineoque dabis roranles lacte jiapillas
,£gra recusantis nectai-e labi'a rigans:
El conala gi"avem frustra leniin dolorem
Saucia sub tenero pecloi-e vulnus ales.
IJonec adinqjlelo coalcscal lemi)oi'e i)laga:
Quae pueri angebat memhra, animanupie luam.
Namque pij nostram facielis uten|ue salulem,
Cum i)uero(|ue ijarcns, cuukiuc parente i)uer.
Ecce tuum quando Nalum appellahis Jesum,
Nempe novum multo sanguine nomen emel,
Quis divina luum possil sapieniia seiisum.
Quis mil anda luae noícere lacla manus?
174 \TRSOS DO PADRE JOSEPH DE ANCHIETA
Circuncidetur Puer, et dicetur Jesus:
Convenient justi nomen opusque rei.
Accipiet caeso peccati in corpore signum.
Et servatoris nomine clarus erit.
Sed nil divino non est superabile amori:
Cuncta potest pietes: omnia vincit amor.
Victus enim nimio, quo nos dilexit amore
Ille boni aeternus fons, et origo Deus,
Donabit proprium tibi, foelicissima, Natum,
Qui per te nobis frater, et ultor erit:
Assimilisque suae sine labe per omnia genti,
Pcccatique, carens crimine, signa geret:
Destruat ut verus peccati corpus Jesus,
Filius ille Dei, Filius ille tuus.
Ó nomen pulchrum, per amabile nomen Jesus,
Matris amor, Patris gloria, fratris honor.
Lucidior Phoebo, sublimior aethere Jesus,
Igne magis calidus, frigidiorque nive,
Ense magis rigidus, leni mago Icnis olivo,
Durior et scopulis, et magè moUis aquis,
Mitior et miti succumbes omnibus agno
Fortior, è forti cuncta leone domans.
iEre emeris nullo, cum sis pretioslor auro:
Das, nihil accipiens; non redamatus, amas,
Tristior es tristi corruplis crimine acceto: •
Laetior es puris faece carente mero.
Felle maios potas cum sis dulcedo perennis,
Melle bonos dulci fel bibiturus alis.
Ó iterum at quae iterum jucundum nomen Jesus,
Mille bonum miris, mille suave modis.
Quis mihi te pulchris sugentem belle labellis
Ubera det matris túrgida lacta puer?
Quis mihi te timeam praestet, quem castra polorum
Absque tremore tremunt, absque timore timent?
Quis mihi te tribuat prostrato pectore adorem,
Nomen honor coeli, gloria nomen humi?
Quis mihi te junget, quis me tibi jungat ampre?
" Nil nisi dulcedo, nil nisi nomen amor.
Tu benedicta dabis cui se dabit ille, suique
Patris ut est totus, sic quoque Matris erit.
Quem petet, ut primae furiosa incendia culpae
Temperet in nostro pectore, acuta silex.
Ergo manus inopi jam nunc extende benignas:
Si mihi das Jesum, satque superque mihi est.
EM LOUVOR DA VIRGEM 173
Extinguat flammas lumborum, ò Viigo, meorum,
Et durum Piieri vuluus, et ista manus.
Cor mihi scinde petrá, scissoquò iiiscribito Jesum
Indelebilibus saiiguineisquc notis.
Ilaeret eaternúin dulcíssima nomina cordi,
Ó Jesu pulcher, pulcbra Maria, meo.
Me violentos amor formosi raptet Jesu,
Me raptet bellae Virginis a! tus amor.
Sed nimiúm longo sum te sermone mora tus
Nominis insólito raptus amore novi.
Penniger expectai cupidè tua verba minister;
Prome animi tandem grandia sensa tui.
Responsio Virgims ad Angelum, Qlomodo fiet istld?
Virgo, quod in tanto tantarum cardine rerum
Consilium vigili provida mente capis?
Ad primas humili pavitabas pectore laudes,
Dum tibi nil modicae credis inesse boni.
Quid fácies, summi dum te ad fastigia lionoris
Supra liomines tolli caelicolasque vides?
Dum íore te Matrem supremi Nurninis audis,
Quod vix mensuram laudis babebit opus?
Nam quo te in coelum plus evebit Angelus allum,
IIoc te ad vile magis deprimis ipsa solum.
Non tamen ulla tuum turbat dubitatio pectus,
Nec mens mutanti claudicai aegra lide:
Posse sed id fieri credis, certoque liiturum
Perspicis, ut Vates praecinuere pij.
Et maiora capit crescens tua roboi-a virtus:
Plus tibi lis vibs, plus tibi lis bumilis,
Dum pensans tantam sapienti pectore moiem
Maiorem liumanis viiibus esse vides.
Omnia nam superai meritoruin pondera, sumnium
Vestire bumano corpore posse Deum.
Unde Deo Iribuens, cujus sunt omnia, tolum
Usurpas bumilis tu tibi, Virgo, nibil.
Plena íide saneiam, divino et ílamine mentem
Ascisci ad tantum te modo credis opus:
MaionuTique íidem magno lua iiondcre laudum
Maguanima superai credulilale lides.
(Credis, et inclinas divinis vftcibiis auniin,
Absque more |)arr,t meus facilisípie Deo.
Sed dum Virginei amor, máxima cura subil:
176 >í:rsos do padre joseph de Anchieta
Qui tibi magnus amor, máxima cura subit:
Haeret adhuc animus: Domiiiique lacessere certus»
Jussa, pudicitiae consulit, adquc limclj
Quoque modo possint ficii Iam mira requirens,
Ora verccundi plena ruboris, ais.
Quanam. saiicte puer, íiet rationc quod inquis?
Quis modus, istud opus quo peragatus eiit?
Intumeatne meus concepto pignore venter,
Ullane sit soboles ubere alenda meo;
Quae semper tactus hominum et commercia fugi,
Permaneoque exors impatiensque viri,
Immaculatus adhuc, misti sine foedere lecli,
Vivit in illaesa virginitate pudor.
Quin etiam mecum primis accrevit ab annis
Perpetuae vehemens integritatis amor:
Immotumque animo, nunquam violare pudorem,
Nec sacra munditiae solvere jura, sedet.
Si tamen hoc jubeor, Dominique lutara reposcor
Qualibet iramensi conditione Parens;
Gaudeo tam grandi quoniam dotabor lionore,
ímperium Domini jam subit urae Dei.
Sed doleo, pulchro dilecli floie pudoris,
Ut fiam mater, si spolianda vocor.
Ergo ne tam miris tam longa silentia verbis,
Tam miro laxas ora modesta modo?
Conceptur a Deum summo invitaris honore.
Et tu cunctando plura requiris adhuc?
Te vocat omnipotens, tua sugat ut ubera, Verbum,
Et te sacrati cura pudoris liabet?
Tantanè munditiae cura esl? tantinè pudoris
Gloria? virginitas tam pretiosa tibi?
Quid tua solicitant istae puríssima curae
Corda? quid hoc liat qua ratione rogas?
Quid refert Matrem, dum sit modo Conditor orbis
Ipse tuus Natus, quolibet esse modo?
Sed fallor demens: sapiontia carnis in alto
Desipit excessus gurgite mersa tuí.
Sic tua cacuminis excedit gratia mores.
Solis ut astrorum lux radiosa globos,'
Non te primorum docuere exempla parentum
Talibus intrépido currcre calce vijs.
Nulla tuos unquam praecessit íbemiiia gressus,
Hoc tibi mostrando, quo gradereris iter.
Sola sine exemplo sublimia sydcra tranans,
f
EM LOUVOU DA VIRGEM 177
Iiiíima pulveret despicis arva soli.
Diluvio sceleruni cum iion daret ojjrula magno
Terra locum pedibus, pulchra ('oluinba, tuis:
Nec tibi quaerenti per avoi'uin fada prioiuin
Digna reperta foret, qiia sequerere via:
Linquis liumum, celeri transecndis et aelhera penna,
Ut tibi dent superi, quod negat iUa, poli:
Munditiamque bibens moresque nitentis Olympi,
Non tamen angelicis exastiaris aquis.
Altius excedis fonteni bibitura perennem,
Unde boniun jugiter prostuit oníne, Deiiin.
Jílle suae apprensam dextra bonilatis ia arcam
Mittit, inexhaustas et tibi pandil opes,
Hic pretimii nivei reperisti insigne pudoris,
Inde pudicitae veuit origo tiiae.
Hinc sitiens hauris foex^undi plena meraci
Pocula, virgirteus pullulat unde chorus.
Nem sine principio qui te praevidit ut esses
Vita, salus, castae duxque comesque viae;
Esse sui voluit non quoliíjet ordine Nati,
Sed mira Matrem sorte, decore, modo.
Ilic tibi prima dedit sacri documenta pudoris;
Hoc duce vita tibi, mens, caro labecaret.
Ut tua virginitas locupletei feríilis orbem,
Gastaque fertilitas sit decus oníne poli.
Prima per oceultos graderis dux inclyta ralíes,
Prima per insólitas tendis ad aslra vias.
Prima iter irrumpens spineta per aspeia latum
Pandis, et incedis per loca senta si tu.
Prima salebroso tenuisti tramite cursum.
Prima teris niveo scrupea saxapede.
Prima per anfractus, scabraeqne per avia rnpis
Árdua ad intacti culmina monlis abis:
Virgiaeique locas in vértice signa decoris,
Splendida sole rnagis, candidiore nive.
Quae modo dura fuit, mollissima semita liet;
Asperaíjuae fuerat, te duce lenis eiit.
Jam tua virgineae vestigia pulclira cohortes
Ad tua currentes fulgida signa Ií.tciiI.
Jam pia munditiae religatus pcctoia voto
Curret ad exem[)luni vir, inulierciiie tuum.
<Ó stirps, ò doctrix servandi prima pudoiis,
Mater bonestalis, virginilalis iter.
Nymi)lia depus terrae, su[(erum i>raeclara polurum
VOL. II 12
178 VERSOS DO PADRE JOSEPII DE ANCHIETA
Gloria, virtiitum forma decoris apex.
vEtlira tibi debet, quod vili in corpore coeli
Munditiam fragilis te duce terra tenet.
Terra tibi debet, quod sedum moribus aethra . ''
Imbuit, aethereis redditur aequa thronis. '''ii^ií*
In Elvidium Calmnum, quorum ille perpetl'am Mari.e virginitatem^
hig yotum virginitatis negat
Sed tumet inflato mundana superbia sensu,
Turbat, et insanus lumina caeca furor.
Nec te splendentis velamine solis amictam
iEterna clarum virginitate videt.
Nec tibi calcanti corpus variabile lunae
Nii animi votum posse movere videt.
Nec te Titanis portam radiantis in ortu
Invictis clausam vectil)us esse videt.
Nec de signato divinis Fonte sigíllis
Praeter aquam vivam nil íluitassé videt.
Nec te conclusum muris sublimibus Ilortum
Ulli calcandum non patuisse videt.
Cum nequeat rádios divinae cernere lucis,
Unde tuae carnis lux animaeque *íluit:
Detrahit aeternae tibi virginitatis honorem.
Et negat attactum te renuisse viri.
Sed furit invidia tetri stimulante draconis '
Lividus Elvidius, perfidus Elvidius. '■
Li vida pestífero tabescens corda veneno, '
lllita vipereo specula felle jacit. ■ '
Foede, quid antiqui turges livore colubrí?
Quid rábido rodis Virginis ore decus?
Ausus es accensis, carnale, cupidine flammis ' ■■ •
Tradere, qui in médio non ílagrat igne, rubum?,
Ausus es illimem signati fontis in amnem •' •'
Ducere coenosos, sus luculente, lacus?
Ausus es intactum scelerata tangere lingua,
Numinis aeterni, pestifer bydre, torum?
Ausus es expresso coelesti rore pudicum
Rumpere, et immundis tingere vellus aquis? -
Aasus es Eoae divina repagula portae
Demere, signaías et reserare fores?
Conaris cautos sinuosa involvere cauda ' "
Yirgmis, et saevo lacdere dente pedes?
Num poteris primi virus superare chelydrí?
. í M ; EM LOUVOR DA VIRGEM 1 79
Num tibi plus sceleris, plus tibi fraudis inest?
Insidias sanctae posiiit prior ille Puelia,
Ut trifido niveos iceret ore pedes.
Tu violare sacrum colubrino dente pudorem
Niteris, et turpi contemerare lue.
Sed caput invicto serpentis calce vetusti
Contudit illa, caput conteret illa tuum.
Tu Stygis aeternum mergere paludibus, illi
Perpetua intactae gloria carnis erit.
Proh scelus infandum! mortalis seminis unquam
Vas foret aeterni lectus, et arca Dei?
Illa libidinibus substet, cui substat Olympus?
Illa colet Venerem, quam colit aula poli?
Appetat illa virum, cujus decus atque nitorem
Appetit aetherei Rex Dominusque throni?
Illud honestatis templum, conclave pudoris,
Munditiae thalamus, justitiaeque domus:
Illa serenato fácies mago lúcida coelo,
Ullo esset naevo, vel maculanda nota?
Obmutesce canis, linguam compesce malignam:
Surdescunt aures ad tua verba meae.
Non homines inter, sed spurcos vivere porcos
Dignus es, immundo spurcior ipse sue.
Dignus es Eumenides inter Stygiosque dracones
Sibila Tartareis edere tetra rogis.
Tu mihi sola tuiim, Virgo integra, fige decorem:
EÍTunde eloquinm tu mibi sola tuum.
Sed novus ecce draco squamato pectore terram
Verrit, et ingenti concavai orbe sinus.
Taliane ambiguum telluris monstra cavernae.
An nigra Cocyti stagna lacusque vomarít.
Credo equidcm talem Stygio de gurgite pestem
Prodisse, et fofedis ex Aclicrontis aquis.
Pandit liians fauces, pecudes procul ite, cruentas,
Ne vos sanguíneo bellua dente nccet.
Lelhifer c tetro prodit Calvinus Averno,
Mortiferosque affert de Plilegetlionte cibos.
Quem cibat ille, perit: procul liinc, procul este, percnnem
Qui cupilis vitam: quem cibat ill(í, perit.
Ccdite, Tartarea ílagrans sitit ignc Cbelydrus,
Viroso strages edit et ore graves.
Nec terrae parcit, supero nec parcít Olympo,
N(ic tibi summe Deus, n(!C sacra Virgo tibi.
Si parcit carnis, mentis lamcn ille pudori
180 VERSOS DO PADRE JOSEPH DE ANCHIETA
'" Et decus, et pretium detraliit omnc tuae:
Perpetuaeque animum, et nunquam violabile corpus
Lege puditiae te religasse negat.
Non mirum, authoris ciim factis dieta colierent:
Non indigna referte moribus ille siiis.
Quid tua língua potest mundum, Oalvinc, sonare,
Mersa sit immundo cum tua vita lacu?
Mutasti insano Cliristum, Calvine, Lyaeo;
Jure Deus linguae Bacchus amorque tuae est.
Mutasti Venere immunda, Calvine, IMariam;
Jure vénus vitae dux dea lexque tuae est.
liaec colis, liaec totó complectere numina corde,
Nomine et ingenio numina digna tuo.
Haec, Calvine, tibi sunt praestò numina Bacchus
Lingua tibi est omni tempore, vita Vénus.
Qui tibi sint mores, nomen manifestat aperte,
Qualis odor vitae, quae documenta, tuum.
Namque meãs quoties fertur Calvinus ad aures,
Nil nisi cum Veneris vina colore sonat.
Nempe cales semper vino Calvine, furitque
Luxuries uimij fota calore meri.
Inde fit, ut gemina succensus pectora flamma
Turpia vinoso potus ab ore vomas:
Inque volutabro caeni, spurcissimus ut sus,
Foede jaces mane, vespere, nocte, ciie.
Utque alij tecum pariter voluantur eodem
Stercore, per similes quos cupis esse tibi:
Proteris immundo pulchram pede IMargaritam,
Virginis integrum dilacerasque decus:
Ejus ad exemplum ne quis sua pectora castis
Aloribus astringat, rejiciatque tuos.
Ebric deliras, vino, Calvine, madescis,
Talia non mirum si temulente fremis.
Lingua calens regitur vino: meliora profari
Ut, Calvine, velis, non meliora potes.
Cum nomen, Calvine, tuum, moresque superbi
Spurcitiaeque subit turpis imago tuae;
l^e variatum olíers tam multis ora figuris,
Quot vitia in foedo foelida corde geris.
Kunc te calce puto deducere nomen ab alba.
Et vino: mores signat utrumque tuos.
Calce dealbaris falsa pietale nitescens,
Teque álbum vulgus credit, et esse pium:
Sed furor exbausti, quo totus mei-gere, viiú
nrji
• > EM LOUVOR BA VIRGKM 181
Proílit, in immnnrta qnod tibi mente latet.
Nunc tibi quod calviis sitie mente fideqne per omnes
Calvere sis cnpidus, noraen adesse reor.
Nunc te conspicio sub ovina pelle latentem,
Guttura laxantem sanguinolenta, lupum;
Et miseras multo populantem funere caulas
Nulla famis pulsae vel darc signa si tis.
Jam mihi sus horrens setis immunda videris,
Terga volutaberis qui recreare luti.
Qui foetore tno, contactuque omnia foedas
Immnndo, et mundos polluis ore cibos.
Interdum reptas immanis more Chelydri,
Squamea pestífero pectora felle tumens:
Sulphureusque oculis de scintillantibus ignis
Dissilit, et terras iirit, et urit aquas:
Et lethale vommis blasphemo ex ore venenum,
Stridet ei horrífico flammea lingua sono.
Hos perimis spiris, tortaequc volumine caudae:
Illos dente necas, mortiferaque lue.
Foetidus innumeros interficit halitus oris,
Spirante inílcitur quo levis aura, tui.
Nunc mihi pelle refers, facie, gestuque ílguram
Vulpis, et instructis insidiare dolis:
Compositisquc capis male provida pectora tcchnis.
Atque alios siniilí fallere fraudo doces.
Jam te vulpinis cxutum pellibus olíers,
Et rabiosa trucis induis ora canis:
Quam dedit illc tibi spcciem, qui dccubat ante
Ostia Tartarae Corberus atra domus.
Tergiminis sontes hic terret faucibus umbras,
Egressuque arcet sulphurei putei.
Tu marc latratu obtundis terramque trifauci,
Et pavet ad vocês impia turba tuas.
Et legis divinae homines ac mentis inanes
Non sinis è tetro mortis abire chão.
Ignis avaritiae, tumidaeqiie su[)erbia vitae
Te rapit, et carnis focda Mbido tuae.
Haec tria continuo latratu guttura laxas,
Inde tibi rabies dirá furor([ue venil:
Cerbereisquc pias discerpis dentibus aras.
Et pandis rictus in sacra templa feros:
Numinaque immani laceras coeleslia morsii,
Erula de lumuli rodis et ossa sacris.
Utque tibi aeternae restct spes nulla salutis,
J82 VERSOS DO PADRE JOSEPII DE ANCHIETA
Certior ad Stygios sitqu(3 ruiria laciis; .
Virginis intactae rábido teris ore decorem, : li-
Vota negans animi religiosa pij: '' ' ,
Unde venire tiiis possent medicamina morbis, ; 1/
Ejus honoranda si tibi cura foret. uiiiijf)
Mensuram scelerum cumulasti hac labo taoruHKii^iíii id
Accessit culpis haec modo summa Iuís;'Ííííi;I f;IlnVI
His ubi te vidi variantem lurpia formis ' í' : ■■/■^
Ora, perit vultus prorsus irnago tui:
Et monstrum invisum. truculentum, informe viderisi;,n
Immane, infandum, milleque turpe modis. • :■,!
Denique sive cales vini, Calvine, calore,
Lenaeoque furií turpis in igne Vénus:
Sive dealbatus celaris calce, meroque
Proderis, et cunctos calvere calviis aves; -: .•;
Seu lúpus, aut porcus coenosus, truxuè GbelydruSil j:i
Seu fallax vulpes sis, rabidusue canis: .1 i-.) .<')hi'j}8
Sive aliud monstrum varijs deforme figurisj^^h-.-f ^i.H
Denique quidquid eris, nil nisi pestis eris.
Sed fertur tua magna fides, Calvine, fatemur,
In vinum, et sordes est tua magna fides.
Spe tibi mens certa gaudet secura, fatemur, .
Spe tibi Tartareis certa flagrai-e rogis.
Est tua apud Gallos sapienlia magna, fatemur,
Insano Gallus poíus ab amne furit. .,
Cum, Calvine, tibi cordis nihil adsit et oris, ii íuiil
Ut Gallis sapiens sís, mílii Gallus eris. •;!;;,•[ \'A
Quo rapior? justae quo me tulit impetus irae? Ji !í'ní;í^>
Mens mea miíte canem, mens mea mitte suera^ r
Jam pudet immundum, qui nil nisi turpia novit :
AÍTari: ad Dominam vela reflecte tuam,
Altaque virgineis mulcentibus aequora ventis vi uf
Virgineae caeptmn confice laudis iter. }'f
SpIRITUS SANCTUS SUPERVENIET IX TE, de.
VSQUE AD FINEM {
Me tua jam revocat clarissima lumina Virgo, ]\
Et dulcedo piae voeis, et oris honos.
Sed stupor ingenti religat mihi frigore pectus,
Nilque mea in tanta lumina luce vident.
Audio sydereum vera tibi você ministrum
Dicere, clausuram te fore ventre Deum.
Audio você humili te respondere, pudoris
EM LOUVOR DA VIRGEM 183
Esse tui firmis estia claiisa seris.
Mer^íor in immenso tantamm gurgite rcriim,
01)ruitur nimijs et mihi guttur aqiiis.
Tu pia divino suLmittens pectora nutii
Qiia fieri expectas hoc Deus arte velit.
Audi ergo attenta responsa interpreíis aure
Qui tibi quaerenti quomodo fiet, ait.
Non hoc communi natura lege palrandum
Virgo, nec attactus experiere viri.
Spiritus adveniens tibi desuper, induet almiis
Víscera, et omnipotens conteget umbra sinus.
Cumque alvi aethereum claudes penetralibus ignem
Munditiae labes non erit uUa tuae.
Atque ideo paries quem nuUo nixa dolore
Magnus erit magni filius ille Dei,
Nulla tuo fiet vis iílo oriente pudori:
Illae tuae custos \irginitatis erit.
En quae prole carens per aniles labitur annos
Sanguinis Elisabeth foedere juncta tibi.
Concepit sunima natura in foecunda senecta,
Menseque sub sexto jam grave portat ónus.
Usque adfio divina nihii sapientia nescit,
Usque adeo virtus nil nequit alta Dei.
Audisti ne pia divina oracula tandem
Aure, dedit praepes quae tibi Virgo puer?
Virgo deeus nostrae super admirabilc gentis,
Virgo salus animae, vita, quiesque meae.
Audisti, et dulci saliunt tibi pectora motu,
Exultatqiie sacro spiritus igne tuus.
En jactura seris obrepct nulla piidoris,
De que tua genitus carne Redemptor erit.
Turgebit gravidus divino pondere venter,
Nec gravis exccptum sentict alvus ónus.
Utrumquc optabas avide, donatur utrumquc,
Maternumquc decus, virgincusquc nitor.
Noli igitur Virgo cunctandi innectero causas,
Ansa tibi superest postmodo nulla morae.
Omnia tuia vides, immolo cardine valvas
Mansuras iitcri, claustraque íiima tui.
Pande tuae citius secreta oracula mentis,
Et resera fauslis dulcia labra sonis.
Annuat actorno Patri tua pi'ompla vohintas,
Jam (ludurn asscnsuni [H)stulat ilhí tuiim.
Non ne audis, qiiales cííundit ab aethere vocês?
dá¥^ \T.r.SOS DO PADRE JOSFPIl DE ANCHIEfA
Qua til>i (luU*o Píftcr clamnt in ore Deus?
(3 milii dilectas inter charissima natas,
Ouae VerJjo es carnem soía datura meo.
Da inilii, da citiiis vel páncula verba, vel unum
Fac me aiidii'e oris meilea verba tui.
Audin. ut aníe tiios pernoctans talia postes
Verba tonat magno filiiis ore Deus?
Eloquere ò duleis soror, et pulcherrima laxa
Guttura, consensus ostia pande tui.
Nulla meo íngressu paíiere incendia soiíSv
Fiet in egressa vis tibi nulía meo.
Nam mea tíoctnrnis humescunt têmpora gultis,
Ecce gero plenum Ros ego rore caput.
Audiri ut aspirans divinus lenibus auris
Spiritus aeterno victus amore sonat.
Ó tu, pomiferis cjuae delitiaris in bortis
Casta verecundis tcmpoi'a picta rosis.
Eia age fare, mea tuas vox jam personet aures,
Lao tibi de lingua melqiíe suave fíuat.
Ecquid adbuc Yirgo nostra spes una síthitis,
Ista pudorí color reprimit ora metus.
Fare, quid expectas? totus tibi supplicat orbis,
Tendit et evinctas ad tua tecta manus.
Ad tua se incurvat sublimis limina Olympus
Substernens pedibus sydera seque tuis.
Ante tuum Aiilfum coi^lestis turma senatus
Procidit, innumeras ingemmatque preces.
Diruta ut antiqui sei^oentis moenia cauda
Consurgant urbis te pariente suae-
En tibi crebra pij mittunt suspiria maneg.
Quos gravis obscuro cárcere terra tegit.
Ingrato .fructus ínamabilis aegra sapore
Singultans aperit guttura primus bomo.
Explicai antiquos muHer tibi prima dolores,
yErumnas uteri damnaque multa sui.
Respice iugentum lacbrymantia luraina Patrum,
Perque catenatas plurima lustra manus.
Percipe quae fimdit lamenta gravíssima tellus
Obruta flagitijs, vulneribusque tumens.^
Criminibus veniam, saniosis balsama plagis,
Et finem tantis ílagitat aegra malis.
Quae sub u troque polo tolerant incommoda gentes
Mille, geraunt Phoebi quae sub utraque domo.
Tristia sordentes diuturnis íletibus ora
à
TM LOUVOR DA VIRC.ÈM Í85'
Ante tuas plangiint exululanlqiio fores.
OfTerlur iiostrae pretium tibi grande saliilist
Si capís, eíFecta est illico nostra salus.
Nos divina suo fecit sapientia verbo
Ocius ad verbum reficietque tuum.
Ergo age, responde paranympho Virgo loquenti,
Non nisi cum verbo scandet in astra tuo.
Sit mora parva licet, qua non elíabere verbum;
Taba quae diíTert gaudia, longa mora est.
Sat tuo supremo placuere silentia Patri,
Nuno tua verba Deo sunt piacitura magís.
Mors fera grassatur, tu condis gutture vitam?
Você tua occumbet, tu taciturna siles?
Fare resolve moras, da verbum, suscipe; Verbum
Dívinum ut capias, da, pia Virgo, tuum.
Mens mea, quid sacram turbas ctamore puellam?
Quid strepis ingratis lingua molesta sonis?
ília opus hoc ingens animo rimata profundo
Mira suo prudens tempore verba dabit.
Tu tantum ausculta, nihil baec nisi dulce sonabit,
Exuperant dulces illius ora favus.
Jam reserat dulci labra distillantia melle,
Nectareique, íluens imbre saporis ait.
Ecr^ ego supremi postrema ancilla Tonantis,
Ecce ego de ancillis intima serva Dei.
Âccipio medijs domíni mandata medullis,
Ausculto clictis obsequiosa tuis.
Fiat sancte tuum juxta milii nuntie verbum:
Est mibi prompta fides, est mibi promptus amor.
Tantum effata silet Virgo, totos((uc i)er artus
Dulcis inassueti flamma caloris abit.
Rosida virgíneas amplectitur umbra medullas,
Et tenuis clausus permeat aura sinus.
Ilicet arcanum replet sacra víscera verbum,
Et Virgo Auctorem concípit alma suum.
Divina bumanam vestit subslantia formam,
Perfectumque ambit foemina ventre virum.
Tantum dívíni potuit violenlia amoris,
Tantum bumilís meruit Vírginis alta fidos.
Quid scnsere tui, Virgo, penetrai ia cordís,
Quis tibi sub sancto ])eclore motus erat,
Insolitis gravidam cum molibus íni[)ulít alvum
(]onccptus miro vi\- bene mor(! l'iior!
Víscera cum sentis tua dilalala potenti
iS^ \-ERSOS DO PADRE JOSEPII DE ANCHIETA
Pignore, signatas nec patuisse fores!
Admirans natura pavent, tantique silescit
Conceptus quaerens obstupefacta modiim.
Naturae superavit amor communia jura,
Concipitur carais lege silente Deus.
Majestas immensa tuo se víscera claudit,
Claudere quam mundí machina magna nequit.
Exulta, ó Yirgo, summi domus áurea Regis,
Et dulces pleno gutture plange modos.
Funde Deo laudes liabiíatio sancta Sionis,
Maximus in médio jam cubat ipse tui:
Invictoque tuas praemnijt óbice portas.
Virgíneas signans tempus in omne serás.
Quí te frumentí satiat pínguedine vivi,
Quod tuus haud uUo semine fundit ager.
Inque tuo cunctis benedicit pignore natis,
Quos sibi coelestis Patris adoptat amor.
Eloquiumque suum, quo saecula fecit, et orbem
Inculta emittit ventris in arva tui.
Salve plena Deo Virgo, ditissima Vírgo,
Yirgo concubitus néscia, plena Deo.
Salve regale Accubitum, Paradysus amaena,
Pacifici Jesu delitiosa domus.
Salve divini Templum Salomonis lionestum,
In quo nil strepuit ingrediente Deo.
Salve divini Requies gratíssima Yerbi,
Aula voluptatís, laetítiaeque Torus.
Salve labe carens venter, salvete beata
Yiscera, virgínei Matris avete sínu.
Salve perpetuo vellem tibi dicere venter,
Perpetuo vellem dicere venter ave.
Tu prima Immanae naturae gloria venter
Aspectu dives conspicuusque Dei.
In te divinum dempto velamine viiltum
Mens servatoris glorificata videt,
A te prima salus, a te venit ultima mundo,
A te libertas, gratia, vita fluit.
Salve iterum foelix sancto cum pignore Mater
Yirginitate nitens, fertilitate potens.
Dextra tuas dudum tentat mea claudere laudes,
Sed claudunt laudes oslia nuUa tuas:
Erumpitque alio landis de gurgite gurges,
Néscio quis tantis obviet ager aquis.
Nêc mensura tuo, nec adest modus ullus lionori,
EM LOU\OR DA VIUGEM 187Í
Materiaque meae vincitur arlis opus.
Cum maniis à cepto tentat cessare labore,
Cessantem revocas protiniis ipsa manimi,
Sed revoca, sine fme tuo revocemur amore
Regna vocês Nati donec ad alta toi.
Ó intacta Parens, Virgo foecunda, beato .>;
Ventre Redemptorem quae sine iabe geris. ! luO
Te precor aeternae per virginitatis amorem, il
Et per conceptus gaudia tanta tui. "í
Luxuriae mundes immundum crimine miindum,
Corda trahatque tui nostra pudoris odor; ■■ ■^■>^
Yirgineique meus mysteria máxima ventris ■'.(
Credere discat amor, discat amare íides. ; '-III
r
De Visitatione Virginis Marle
Ut concepta tuo soboles divina sub alvo . • '1
Implevit ventris grande cubile tui: ,,,:i jj
Perque tuam mentem splendoris imago paterni '« iii"
Illuxit, radijs emicuitque novis: :, •«)
Pectoribusque tuis jam sacro ílamine plenis !•■*
Est data maior adhuc gratia, maior amor:
Surgis, et ad celsos ascendis concita montes,
Urbis ubi Solymae nobile fulget opus.
Virgo, quid exurgis? quis te movet ardor euntem?
Dulce tuae linquis cur penetrale domus?
Quae semper plácido foviste gaudia nido,
Cur montana velut turtur in alta volas?
Jam tibi se immensus coelorum tradidit Autlior,
Et pedibus regnum subdidit omne tuis,
Surgis ad obsequium famulae Regina? Deumque
Servitio, atque humiles subdis ut abra manus?
Cumquc ministeríum totus libi debeat orbis,
Quae facta est Domini lectus, et ara sui;
Tu tanti titulos oblita, et pondus honoris,
Ancilla properas ut famulere tuae?
Siste gradum Virgo, Regina revertere cocli;
Ecce tibi ílectit terra polusque genu.
In te verte óculos. Deus est, quem viscere gestas, /
Gloria quem solum, quem decet omnis bonos.
Quid loquor ah demens? non sunt mihi cognita sacra
Consilia, atque animi vis generosa tui.
Utque luíbetant aciem radianlia lumina nostram
Dum Phoebi intento suspicil ore rolam:
188 VERSOS DO PADUE JOSEPII DE ANCHIETA
Sic ego rimari, Phoobi ò radiosior orbe ''
Stella, volo mentis dum jubar omno liiae. ■•>
Me tua diradians obnubilai undique virtus,
Tantaque lux óculos obruit usque raeos. '^
Scilicet alta fugis, cum sis altíssima Virgd,
Et capis alta magís, quo magis ima petis.
Qui Patris aeteriio manans de pectore summi
Hospitia, introijt ventris in arcta tui;
Viseret ut mundum culpae languore jacentem,
Cordarpie mortiferis solverei aegra malis:
Hic tua (iivinis cumulat pia víscera donis,
Monstrat et insuetam, qua gradiere, viam. '^iY
llle tibi tant^e dux est pietatis, et author, ■ 'i''i.>
Teque bumilem dum se dejicit esse docet.
Quid facias Virgo, si summa potentia magni
Se tibi majestas subdit et alta Dei?
llle tuam summo descendit ab aethere in alniimi
Ut Dominus servis serviat ipse suis.
Tu se snbdentem subdis, dum subderis, atque
OlTicium servi, quod geris ipsa, gerit.
Quodquo olim faciet, matura iit venerit aetas
Divina tractans ínfima qnaeque manu.
Protenus exequeris tu, Mater liumillima, vili
Servítio tradens te Puerimique tmim.
Mira Dei bonitas, bumilis qui ventre puellae
Clauditur; atque bomJnum postmodo serxTis erit
Mira Dei Matris sapi^ntia, deinde futurum ■')
Continuo servum quae facít esse Deum.
Ergo ego servi tium Domino famulante recusem, -isJ mel
ínfima rejiciam turgidus, alta petam? • • -í í^i
Serviat aeterni Genitrix digníssima Yerbi > bs íiiii-iorí
Visa hiimilí famiilae víx sibi digna loco : •
Ipse húmus, et cinerís vilissima sarcina nuUo ''^
Inferior, cunctis altior esse velím?
Ante precor tristi tabescant vilia letlw '
^Membra, míhi vili contumulanda solo.
Quam Domini império dura cervice repugnem
Idque méis humeris exculíatur ónus:
Yirtutis vè tuae, speciosa et humílima Virgo,
E fluat ex oculis dulcis imago meís.
Sed perge, et montis pulchro juga trajice gressu,
Divínae effundas ut pietajís aijuas.
Omnia namque tibi cum Nalo munera summo
Summus ab aetherea contulit íirce Pater.
EM LOUVOR DA VIRGEM 189
Qui pius ut ciinctis placidissima lumina rebus
Figit, et aíllictis fert miseratus opem;
Inqiic tua iinigeiíum demisit víscera Natum,
Visitet ut culpae quos grave laedit ónus.
Sic quoque totius curam tibi tradidit orbis,
Auxilium miseris ut miserata serás.
Gum te materno decoravit honore, benígrium
Oflicium matris fecit liabere piae.
Yisis enim cunctos miti bona lumina Mater,
Et tua nequicquam numina nemo veeat.
Invisis quorum serpunt saniosa per artus
Ulcera, conspoctu mox coeuntque tuo.
Respicis et saevo cruciatos membra dolore,
Teque fugit sacvus respiciente dolor,
Yisis et horrisonis quibus aequora mota procelli* ■
Funera insanis dirá minantur aquis:
Torvaque sedatis componis marmora ventis,
Tranquillo aspirans aura secunda mari.
Yisis et obsessas turmis hostilibus arces,
Incussoque fugas castra inimica metu.
Yisis et instructas acies, pugnasque cruentas,
llosticaque invicta conteris arma ir anu.
Yisis in obscuro conclusos cárcere sontes,
Speque bona miseris taedia longa levas.
Yisis et evinctos immitibus aegra catenis
Corpora, et bostiii squalida colla jugo:
Pallidaque infractis exolvis corpora vindis.
Et duro túmidos êxuis aere pedes.
Yisis in extremo positos discrimine vitae,
Auxilium dextrae qui petiere tuae.
Inslantemque arcens longe morienlibus Orcum
Dcfunctis facilem pandis in astraviam.
Yisis in obscoenis immersos pectore culpis,
Quos vitae incepit poenituisse suai?:
Maternoque foves solamine, íbedaque imper
Oírda Deum jjlacans jam S[)eciosa facin.
Yísís et aelerni gravidus qui iiuminis iram
Flagitijs, ])oenas nec timuei'e, niovent.
lios prece victa tua Domini clcmenlia gratos
Heddit, et ignito car|)it amore siii.
Yisis et immenso (pioj-iini j)ia vita ]iarenti
Labe carens (innii criniíiio munda placet.
Servilio Domini í|ui se a(ldj\('i'(! jter(;niii
Lcgibus aslricti membra animunique pus:
•190 VERSOS DO PADRE JOSEPH DE ANCHIETA
Hos tua delicijs pietas coelestibus implet
Moribus exornans pectora casta bonis.
Hos tua maternis pietas amplectilur ulnis,
Inque tuo degunt absque timore sirm.
Cuncta referre libet; sed nec mihi lingua, nec ora,
Nec manus, aut mentis sufTicit ipse vigor.
Desipiamque magis, quam si comprendere coner
Littora planguntur quod sinuosa fretis.
Nam quaecunque tenet vel terra perícia, vel aequor,
Quaeque ferus Stygijs evomit Orcus aquis,
Cuncta tua superas pietate; nec abfuit unquam
Ista manus miseris, cum petereris opem.
Caetera uti sileam pietatis clara benignae
Signa Dei genitrix, et monimenta tuae.
Me quoque cpiem penitus vitiorum merserat altus-: /
Gurges, et ad Stygios truserat usqne lacus. l
Me quoque visisti miserum, cui nulla futuri
Supplicij, aut verae cura salulis erat.
Me quoque visisti, cum nec coelestie mentem
Dona mihi, aut Domini tangeret ullus amor.
Me quoque visisti, quam nec miser ipse vocabam,
Nec me praesidio rebar egere tuo.
Me quoque visisti, me tu prior ipsa vocasti?
Sed tacui stupidus, surdus inersque diu.
Me miserum, quotíes curis acuebar honestis
Te stimulis pectus sollicitante meum!
Sed mihi nec virtus, nec vis stimulantis amoris,
Nec pietas Matris nota vocantis erat.
Sed tua vox tandem surdas penetravit in aures, • '
Noxque mei cordis lumine victa tuo est.
Exextique gravi culpae sub mole jacentem,
Redditaque est per te vita salusque mihi.
Ergo quod audivi, quod coeli lumina cerno,
Quod redij ad vitam, quod modo vivo, tuum est.
Quaeque data est per te, per te quoque vita manebil
Integra, et aeternae néscia mortis erit.
Hoc sperare tui facilis clementia Nati,
Hoc tua me pietas dulcis amorque jubet,
Adde quod est ingens tua cum bonitate potestasy íí
Cui dedit omnipotens omnia posse Deus. -
Ergo gravem visis foelici prole parentem
Sedula, nec longum te remoratur itcr.
Nec montana piam deterrent áspera mentem.
Semita ^virgíneos nec lapidosa pedes.
I
EM LOUVOR DA VIRGEM .191
Ó vehemens pietas, dulcis vehementia amoris,
Flammea vis animi, vivaqae flamma pij. <
Perge, precor, Dominam famulus comitabor euntem, .
Si licet, et pateris, per juga celsa meam.
Si tamen indignum me dedignabere forsan,
Qui comes inceptae sim, sociusqiie viae:
At patiere pedmn vestigia sacra tuorum
A longe observans post tua terga premam.
Ibo legens gressiis pronus, figam oscula terrae,
Pulveream signat qua tua planta viam:
Imcumbensque solo suspirijs intima pulsans
Huic, mea mens, dicam, lumine fige loco.
Hoc impressa tuae vestigia pulvere matris
Aspicis, hic humilis vis pietatis ínest.
Áurea si sacrae vix moenia adire Sionis, ;! ;
Hoc sequitur, praeit quo tua mater iter.
Ilaec sacra virginei praecessit Sarcina ventris;
Si sapis, hoc properos tramite fige gradus.
Haec sola est, saneiam quae te perducet in urbem
Semita, qua Natum praetulit illa suum.
Sed jam, Yirgo, sui nimium tibi causa morandi,
Clivosum tarde dum tero lentus iter.
Vos igitur levibus qui curritis ocyus Austris ,;
Aligeri coetus, incola turma poli. ;
Vos ruite ò superi celeri pede culmine coeli,
Cingite virgincum sedula turba latus.
Haec Thronus est Domini sedesque altíssima vestri,
Altior aethereas transgredi turque domos.
Dignior hoc vobis in vértice fulget Olympus,
Altior est coelo, quem gerit illa sinu.
Per juga praegnantem deducite celsa puellam,
Sternentes varij floris odore viam.
Si cum foeda malus lacin-ymis rigat ore profusis
Pectora ílagilijs, contumerata gemens.
Si vos magna modis pertenlant gaudia miris,
Funditis et summo cantica laeta Patri:
Haec dabit, haec mulier vestris nova gaudia turmis
Corda lavaturum jam i)aritura Deum.
Haec properat Pueri nondinii dctergerí5 nali,
Primus homo infecit quo genus omne, notam;
Illic prima dabit venturae signa salutis,
Qua rala divini pignoia amoris erunl.
Scilicet ipsius placidis ut vocibus iiifans
Matris adhuc clausus viscere laetus cril:
192 VERSOS DO PADRE JOSEPH DE ANCHIETA
Authorisque siii numen praesentis adorans
Deponeí patrij crimen onusíiue mali.
Sic iibi virgíneo suraptiim de corpore corpus
Interimet diris mors truculenta modis:
Omnia surdentis purgabit crimina mundi^
Et vetus in sacro diluet amnc scelus.
Ergo tibi nostrae jam nunc pia Yirgo, salulis,
Saevaque curandi vulnera cura datur,
Jam nunc, quae multa squaleljant sorde repurgans:
Efficies summo pectora grata Deo.
Quid magis admirer dubito, Patris ne benignam,
Qui te tam grandi donat honore, manum:
An ne tuum tanto firmatum robore pectus
Authoris posses mater ut esse tui.
Utrumque admiror; sed cum tua pectora cerno,
Tcmpla pudicitiae, justitiaeque domum;
Cuncta tibi à summa video bonitate profecta,
Súbdita cui semper mens tua, Yirgo, fuit.
lUius est quod halies, nec te pudet, inclyta Mater.
Accepta authori cuncta referre tuo.
Ille ú\À prirai genitae sine crimine patris
Gorporis, atque animae labe carere dedit.
Ille tui requiem ventris sibi legit, ut orbem
Sanctificet, longis eripiatque malis.
Nunc clausus clausum mundabit ventre puellum
Matre pium matris percipiente sonum.
Post tua vel lento cur non vestigia gressu
Acclivis calcem per juga montis iter?
Quid miror? emensi jam transis árdua montis
Culmina, quae est longae meta suprema viae:
Moeniaque ingrederis regalis sacra Sionis,
Excipit et tectis te Solyma alta suis.
Excipit urbs Urbem, divinam arx aspecit Arcem
Cominus. et Portae pervia porta patet.
Zacchariaeque domum festinis passibus intras,
Et tua vox gravidam dulce salutat anum.
Sensit, et exiguo vix gaudia concipit infans
Pectore, dum dulces dat tua iiiigua sonos.
Sensit Joannes, subitiscjue parentis in alvo
Gestibus exultans párvula niembra movet:
Gonspectumque Dei ílexis venientis adorat
Poplitibus, pátrias exviturque notas.
Jubilat admirans vultum vocemque benigna
llospitis Elisabeth, laetiliaque fremit.
EM LOUVOR DA VIRGEM 193
Nec capit insiietos gravida intra víscera inotus,
Qiiae sacro implevit plurimus igne Deus.
Exilit aetliereis agitatala caloribiis intus,
Et petit amplexus, Virgo beata, tuos.
Virgineamque parens tenet infoecunda parentem,
Juncta sinurn sinui, pectora pectoribus.
Et ílammae impatiens implet clamorlbus aedem;
Fundi t, et ingenti talia vocc tibi.
O decus, ó nostri claríssima gloria sexus,
Contuiit immensus cui l)0Da cuncla Deus,
Tu varijs matres vincís virtutil^us omnes,
Tu superas omnes conditione nurus.
Mille tuae fructus cumulatur dotibus alvi,
Máxima cui virtus, cui sine fine decus.
Máxima totius cui raachina serviet orbís
Cuncta dabit Genitor cui moderanda suus.
Quo merui facto tam grandis múnus honoris?
Unde mihi indígnae gratia tanta venit?
Tu Domina atque mei Domini digníssima mater
Ad famulam vénias obsequiosa tuam?
Te ne ego supremi foecundam prole parentis
Excipiam laribus vilis inopsque méis?
Ecce salutantis tua vox ut pertigit aures,
Audire ut licui tam pia verba mihi;
Gestijt insolitis exultans motibus infans,
Et mea sunt pulsu viscera mota novo.
Tu nimium foelix, tu miro more beata,
Cujus capta fnit pectore tanta fides.
Namque tibi à Domino quae sunt promissa superno
Stant rata temporibus perficienda suis.
Ilaec anus ardenti de pectore prompsit honores,
Ó Virgo, et laudes vaticinata tuas:
Inque tuo vultu fixis obtutibus haeret.
Et tua quo splendent vix capit ora decus.
At tu, Virgo, tuae non immemor óptima sortis
Excutis ex bumeris tam grave landis ónus.
Nec virtus humilis, roseique modéstia vuKus,
Nec pudor ingenuus, nc dccor oris abest.
Omniaque in summi referens praeconia Patris
Talia melliflua carmina você canis.
M«ns mea divinas humilis de pectore laudes
Depromit, Dominum magniíicatque suum.
Spiritus inque Deo meus oxultavit amalo,
Qui sohis vitae vita, sahisque meae est.
VOL. 11 13
194 VERSOS DO PADRE JOSEPH DE ANCHIETA
Nam placidis Immilem respexií ab aethere servam
Luminibus nimio victus amore suam.
Propterea foelix, geutesque beata per omnes
Semper ab aeterna postcritate ferar.
Nam mihi magnificis immcnsia potentia dextrae
Divinae ornavit pcctora nuda bonis.
Est illi omnipotens sanctum, et venerabile nomen:
Illius aeternum gloria numen habet.
Ipsius pietas natos fovet atque nepotes,
Qui Domini casto nomen amore timent.
Ipse suo fortis robur dedit omne lacerto,
Invicta vires exercuitque manus.
Perdidit insana tumefactos mente superbos,
Quos furor elati cordis inanis aget.
Deposuit summa convulsos sede potentes,
Sublimenque bumiles fecit habere locum.
Quos violenta fames, quos dura cxercet egestas
Implevit veris perpetuisque bonis.
Divitijs plenos vácuos demisit, et omnes
Funditus agestas depopulavit opes.
Mente suam recolens pietatam dulciter altae
Isacidam puerum suscipit ipse suum.
Quae quondam nostris promisit patribus implens,
Priscaque cum vera foedera pacta fide,
Qualia jm-avit magno immntabilis Abrae,
Et soboli ipsius tempus in omne Deus.
Sic ais, atque óculos íellure morata pudicos
Occultas humili gaudia dona sinu.
Virgineasque paras mox ad servilia palmas;
Nec famulam famulae te pudet esse tuac.
lUa sibi matrem Domini servire supremi
Nec fert, nec novit qua ratione vetet.
Si Dominam servire sinat, cui servit Olympus
Sydereus, contra jusque piumque putat.
Si Dominam servire velat, cui caetera parent,
Ut Dominae império pareat ipsa, timet.
Quid facíat? probibere grave est, permiltere durum:
Utraque poena gravis, sed tolerare minor.
Obsequitur libens Dominae servire volenti
Serva, ministerijs perfruiturque tuis.
Tantaque sub tácito myisteria pectore voluit i»
Plena Dei muto cum sene mater anus.
Foelix prole parens, foelicior bospite tanta,
Quae nato et matri seque Deumque dedit.
KM LOl VOH DA VIRGEM 195
Foelix mule senex, hujus tibi munere vocem
Jam dabit immissus corda per ima Deus.
Foelix sarictae puer, cujiis foelicior altis
Auspicijs tactu Virginis ortus erit.
Quem teneroque sinu, placidisque fovebit in ulnis,
Membra quibus Domini sjot refovenda tui.
Ó ego si possem spectator adesse, tuasque
Sancta ministrantes cernere, Yirgo, manus.
Ó milii liceat íecum simul esse ministro,
Exequereis tantae dum pieíatis opus.
Dum te submJsso tranctantem viiia corde
Munera ter jungens cornua luna vident.
Quae quoniam non est opis omnia dicere iioslrae,
Et tibi plus verbis integra vita placet:
Da, tua sit virtus rnihi semper humillima cordi.
Ire inoíTenso per tua facta pede.
Ó Regina, pios ânimos complexa labores
Pectore, tene animo cedere posse meo?
Sed quis erit, mitem qui te mihi praestet egeno?
Qua tuus est misero conciliandus amor?
Omnia cum lustro, vel quae plaga lúcida coeli,
Yel tenet abstruso terrae íretumque sinu:
Tu prima ante omnes aegrae fis obvia menti
Pignora praesidij certa datura tui.
Nec pietate aliquis, nec nostri aequarit amore,
Que tibi maternus visccra replet amor.
Cuncta tuus (fateor) dulcedinc vincit Jesus,
Quo sine jucuncum est, quo sine dulce nihil.
Sed licet invitet pietas divina, repellit
Majestas justo sontia corda metu.
Tu precibus moíam componis mitibus iram,
Nec tua formidat perditus ora réus.
Ante tuos igitur, Mater mitissima, vultus
Mens mea subnixo procidit ccce genu.
Nudus, iriops, aeger, crudelibus undeque plagis
Saucius, innumeris uror agorque malis.
Tu quibus iridigeant unguentis vulnera nosti.
Ante tuos acgro sat gemuisse pedes.
Ventre tuo nostri clausa esi medicina doloris,
Perpetuum(|uc tuus drt medicanion amoi'.
Ad me si mites converlis, Alatcr, ocelios,
Suííicit in NTiItu spes mihi corta tuo est.
196 \'ersos do padre joseph de anchieta
De Partu Virginis Marine
Tandem, sancta Parens, revolulis ordine seclis
x\dvenit partus hora beata Ini.
Hora tibi iotis animae exoptata medullis,
Nox sacrae, nox omiii clarior nna die.
Ó nox, ò cunctis speciosior una diebus:
Ó nox, natalis piílclira decore novi.
Ó nox, qiiae verae radiant claríssima lucis
Lumino, Phoebeis splendidiora rolis.
Ó uox, caligo qna pellitur atra, suusque
Redditur immenso rebns in orbe color.
Qua Deus egrediíur pnerili carne volutus.
Quem menses clausit Virginis arca novem.
Quae, precor, ò foelix, quae gaudia, Virgo, medullas
Pulsarant cordis nocte silente tui,
Ante tuos óculos jacuit cum parvulus Infans,
Qui Patris ante novum fluxit ab ore jubar;
Processitque tua carnem vestitus ab alvo,
Damna fuit passus nec tuus iiUa pudor?
Haec tibi sydereus pavitanti nuntius olim
Promisit laetum cum tibi dixit Ave.
Haec tu submissa cepisti oracala mente,
Kec tua credulitas vana fidesque fuit.
Nam tua continuo non marcescente pudoris
Intravit summus víscera flore Deus.
Nunc idem egreditur materni veníris ab aula,
Nec thalamí reserat osíia sacra sui.
Ultima respondent primis mysteria caepíís,
Veraqne sub tacita gaudia mente foves.
Tunc formosa nimis, cum se decor ipse silenter
Clausit in hospitij tecta pudica tui.
Nunc formosa magis, cum jam sine murmure viq
Claustra pudiciíae transijt arcta tuae.
Haec tibi nox foelix, haec formosíssima venit,
Haec tua lucídius sparsit in ora jubar.
Nempe verecundo qiiamvís aurora colore
Fulgeat, et radijs vesiiat aura novis:
Pulchrius ília íamen Phoebeo splcndet in ortu,
Cum sua sol liqnidis exerlt ora vadís.
Ut primum nata est Vcrbum paritnra paternum,
Aurora effulsit, noxque peracía fuit.
Virgínea sed enim cum nondnm accumberet alvo,
Deorat adhuc lucí gloria magna tuae.
1
EM LOUVOR DA VIUGEM 197
Ut vero accnbiiit, crevit tua gratia, luxque
Incluso Solis lumine maior erat.
Nunc ubi divini rádios difíudit honoris
Editus in lucem kicis origo Deus;
Emicat in totó tua lux nitidissima mundo,
Virgineique decus mater honoris liabes.
Sed juvat iníerea taníi primordia partus,
Nascentisque urbem voluere mente Dei;
Quae domus excepií Dominum, quae regia Ghristum,
Quae dedit Infanti culcita blanda torum.
Quae comités sacrae, famulae vò fuere Parenti,
Qui Puero cantus, qui sonucre modi.
Nascitur in Bethíeem, veteris sub culmine tecti,
Nascentem nudum nuda receptai húmus.
Fit praesepe torus, hinc bos, hinc tardus asellus,
Hinc tacitus pueri pendet in ora senex.
Jubilat alma Parens, Infantulus ore tenello
Vagit, inauditis personat aethra modis.
Cur mea mens torpes ? cur non magnalia visis
Regia ? quin gressus ad sacra tecta moves ?
Perge age, non illo pellet te lumine durus
Janitor, obsíructas objicietve fores,
ília caret poríis, statio est aptissima brutis,
Pervia frigoribus porticus illa patet.
Intrabis tuguri squalentia culmina vilis
Congestà culmis excipiere casa.
Ut Matrem aspicies divino lumine plenam,
Percipe quid partus tempore dulcis agat.
Tu sine, tu sacrae recolam mysteria noclis,
Ó Virgo, et mentis gaudia pura tuae.
Tu sine, pracseníi spectem tua lumine facta,
Et cúpida excipiam quos dabis aure sonos.
Tempus adest partus, nox intempesta silcscit,
Et juga jam medij dividit alia poli:
Omnia somnus habet plácida resoluta quiete ;
At tua seu lampas lumina clara micant :
AUaque jam dudum miracula monle volutas,
Ora cui)is Puití pulchra vidcro tui.
Amplexura sacruni jam miíia bracliia corpus,
Foturosque paras frigida mcnibra sinus.
Osculam ja gestis roseis libare labellis,
Et rubra candidulis íigere labra gcnis.
Nectare turgentes jam pressus pollico mammas,
Quas tenero sugat parvulus ore Puer.
198
VERSOS DO PADRE JOSEPH DE ANCHIETA
Niinc huniili pulsas irnmensiim você Parentem,
Nunc Natum Liando dulciter ore vocas.
En prope, ais, partiis jam foelix hora propinquat,
Ó deciis, ó i-equies, ó moa cura Deus.
Jam^^tuus exibit Natus sub luminis auras,
Et nudam tanget corpore tecíus humum.
Kú mihi non verum tuus altulit ales ab alto
Mihere, credenti nec mihi verba dedit.
Inclinavi aurem, concepi viscere Verbum
Tutaque seruata virgiiiitate fui.
Consule mine Genitor paricntis summe pudori :
Sit sine vi partus, sit sine labe, meus.
Tenò ego, chare Puer, compíexu sedula moUi,
Tenè ego materno bellc fovebo sinu?
Tenè meo pulcher lactaberis ubere Nate,
Mistaque cum niveo basia lacte feres?
Nascere summe Deus, mea magna future voluptas,
Basiolumque oris da mihi diiíce tui.
Haec dum divini succensa cupidine amoris
Voluis, et expectas pignoris ora sacri ;
Nascitur humano vestitum corpore Verbum,
Et tua virginiías intemerata manet.
Ut viridis profert nitidum virguncula florem,
Nec trusufloris laeditur ipsa sui,
Ut Sol subtili penetrans specularia luce
Illaeso radians itque reditque vitro.
Egreditur porta princeps sublimis Eoa
Limina signatae, nec patuere fores.
Candidus è thalamo procedit Sponsus honesto
Conjugis aeterno vinctus amore nova.
Quae tibi nunc sanctum pertentant gaudia pectus?
Quae tua laetitiam mens pia Mater habet?
Quae tibi divini cernenti Numinis ortum
Lux nova perfundít lumina ! quale decus f
Quid facis in dura Puero tellure jacenti.
Áspera quem duro frigore vexat hyems?
Surgis, et aethereo vultum perfusa nitore
Ante Dei fiexo procidis ora genu.
Flexa genu, et|toto venerabile Numen adoras
Corpore, in amplexus jam rutura pios.
Mellifluumque bibis divini Infantis amorem,
Taltaque é médio pectore verba sonas.
I
EM LOUVOR DA VIRGEM lUSl
On.VTio Matris ad Plerum reci:.\s natum.
Ó Deus omnipotens, vasli quem machina mundi
Authorem ac Dominum praedicat esse suum.
Cujus inaccessam tenet ingens gloria lucem,
Cui velut innatus lúmen amictus inest.
Quem nequit immenso comprendere corpore mundus
Conclusit ventris te brevis arca mei.
Egressusque meae tener è penetralibus alvi,
In vili recubas, lux mea, Na te, solo.
Non, ne tua ingentem manus inclyta condidit orbem?
Nonnc polus Domino servit uterque tibi ?
Cur tibi tam vílem nascenli deligis aedem?
Regia cur oríum non capit aula tuum?
Tu coelum stellis, variis animalia villis
Induis, et viridi gramine pingis agros.
At tu nudus hurai vagis, lachrymasque treraenti
Exprimit è teneris áspera bruma genis.
Naíe decus coeli, soboles Patris aec{ua superni,
Edite visceribus Nate decore méis.
Quantus bic est matri dolor, ó mea Nate voluptas,
Viscera te aíllicto qui pracmit aegra mihi !
Quo te Nate modo dura tellure levabo?
Qua tua contingam membra beata manu ?
Indignam terret, probibeíque aítingere corpus
Me tua majestas, unice Nate Dei.
Sed te si patiar cruciari frigore nudum,
Et tenera in duro membra jacere solo :
Asperius fueril rigido mihi frigore pectus,
Nec superet durus viscera dura lápis.
Ergo tuam tangam, Soboles dulcíssima, carncm,
Sola ego de pura quam tibi carne dedi :
Expleboqiie meãs rofovens tua membra medullas,
Quoque miíii pectus flagrat amore fruar :
Maternaeque parcns pielatis munera obibo,
Quae licet in cunas oííiciosa tuas.
Ergo veni ò pulcher (simul baec, simul erigis ipsum,
Involvis pannis, guttura lacte rigas)
Ergo veni ò pulcher, mea lux, mea gloria, Fili,
Brachia nec matris respue cliara tuae.
His tua panniculis rorum Dominalor, et author,
His tua panniculis membra tenella tegam.
Ut tua nos inopes duríssima ditet egestas
Divinis replens pertora egena bonis.
200 YEHSOS DO PADRE JOSEPIi DE ANCHIETA
Per te vivit homo, pecudcs pasaintiir, avcsque,
Vermicuiis suum dat tua dextra cibum.
Deqiie tuis mieis eives satianlur Olympi,
Omiiibus èqiie tua provenit esca manu.
Nunc te dura fames, njinc te silis áspera vexat,
Uberaque exiguum darit tibi nostra cibum.
Eia age, turgentes, Infans bellissime, mammas,
Accipe : maternura lac, Puer alme, bibe.
Lac, mea quo Genitor tuus ubera, Nate, replevit
Quod tibi de íenero pelleret ore sitim.
Ne pete piara, satis tibi sunt liaec munera, quando
Me tibi vis matrem, tu meus esse puer.
Uror amore tui dulci liquefacía medulias,
Et mea melliíluus serpii in ossa calor ;
Cúm te, vitae Autlior, dlvinis specto labellls
Sugere de manimis parva alimenta méis.
En ego te biandis homineraque Deumque lacertis
Sustineo, ò summi gloria vera poli.
En ego te Natum mater, te filia Patrem,
Te Dominum molli servula gesto sinu.
Ó Infans formose, mei Deus intime cordis,
Ó amor, ò vitae vi ta beata meae.
Verè ego te nate foelix, ex millibus una
Electa, ut tanto pignore plena forem.
Nunc mihi laetitiae curaulus super additur ingens,
Melaque vix laudi figitur ulla meae.
Cum te, summe Deus, peperi, niveusque pudoris
Cum maíris pariter mansit honore nitor,
Cum tamen abjecta Dominum coníemplor in aede
Frigore tam duro, pauperieque premi.
Desertum, atque inopem, nudum, cunctisque carentem
Rebus, et hunc arctum vix reperisse locum ;
Vix mea compescunt lachrymas (simul imber honestits
Largus abit malis) lumina, chare Puer.
Quo tua Majesías requiesceí regia lecto?
Unde parem Domino molle cubile tibi ?
Non hic pulchra rubent Tyrio perfusa colore
Tegamina, non auro serica texta rigent.
Non est blanda mihi molli lis culcitra lanis,
Qua tua te, fili, mater egena locem.
Non avibus nidi desunt, non vulpibus antra
Tuta, quibus foveant se sobolemque suam.
At tibi coelorum Domino, rerurnque parenti
Deest, ubi reclines têmpora sacra, locus..
EM LOUVOU DA VIRGEM 20!
Inter maternas reciibare suaviter ulnas,
Inquc meo posses moUiter esse sinii.
Sed tu dura ciipis, perpessiimque áspera ferre ;
Mollia regalis scilicet aula íenct.
Vis angusta tibi liant praesepia cima,
Aridaque incultum praebeat herba torum. ,
ílis ergo in stipuiis inter jirnienía reciimbe :
Hic sopor in sicco gramine duicis erit.
Hic tibi, dum teneros mulcebit somnus ocellos
Utraquc turgebit lacte maníilla tibi.
Hic benò virgíneo serval^itiir nbere potns,
Hic tibi non deerit, belle Paelle, cibus.
Dormi, summe Deus, ml duicis amator, amorque,
Ó fácies oculis deliciosa méis.
His blandirc piae, mater dulcíssima, proli,
Yixque animo claudis gaudia tanta tuo.
Parvulus in foeno recubat, tua gloria, Natus :
Tu juxta aethereo lamine plena sedes.
Sydereum plaudit divinis vocibus agmen,
Na talem Domini concelebratque sui.
Ingeminant laudes, resonat vox clara per auras?
Sit decus in superis, gloria, lausque Deo,
Et placidae telUis exultei munere pacis,
Mittitur è coelo mentibus illa piis.
Díffugiunt tenebra fulgeí splendoribus aèr,
Et vero exoritur Sole oriente tlies.
Pastores currunt. nalumque rec enler adoram,
Quem vox coelestis dixerat esse Deum.
Haec te laetitia cumulant, hacc laudibus ornant,
Omniaquc liaec servas pectore verba tuo.
Si sinis, ipse etiani nati ad praesepia Regis
Corpore prostcrnar, menteque fusus humi :
Ut referam sacras cxili carmine laudes
Infanti tenero, vel tibi casta Parens.
Audebo, acccdam, neque enim me dura repelles,
Nec Puei'i ficnt lumina torva milii.
Sed quis ab aeterni manantem pectore Patris
Ante creaturas saeclaque facta canet?
Tutius csl ejus laudes siluisse : silendo
Kedditur immenso laus quoque magna Deo.
Ergo tibi pauper rnunuscula paivula servus
Ò Genitrix, Nato non reiuieiite feram.
Cur lamcn ajjnuerit, tibi qui dcdit omnia, seque
Qui tibi tolius fons et origo boni ost?
202 VERSOS DO PADRE JOSEPII DE ANCHIETA
Sed quis percipiet seiisus, quaevc ora sonabunt
Quae tibi sint carnis, quae tibi mentis opes ?
Tanta tuo fulget coelestis gratia corde,
Ut stupeant formam cimcta creata tuam.
Agmina mirantur coelestia claudere puris
Visceribiis summiim te potuisse Denm.
Laudes VraciMS ordine alphabetico.
Tu sacra es, qua se divinum condidit aunim,
Quae mundo largas Arca refundis opes.
Unde catenatus Stygij sub jure tyranni
Venditus beu misere jam redimatur homo.
Hoc ego thesauro redimam mea crimina, et olini
Captivus, tanto munere liber ero.
Nec tua, quae cunctis reserata est semper egenis
Claudetur soli dextra benigna mihi.
Non docet esse tuus, Natus te, Mater avaram :
Ut mihi se donet, se dedit ille tibi.
Divitiis post hàc nemo se jacíet opimis,
Nemo sibi laxas condat avarus opes.
A te qui purum supplex non ceperit aurum,
Pauper in aeternum vilis, egenus erit.
B
Tu nive candidior Byssus, candorque pudoris
Unde sibi sumpsit tegmina digna Deus.
Quae nec corrumpet consumens cuncto» vetustas,
Nec mors terribili sanguine lenta manu.
Hoc verum acquiret velamine mundus honorem,
Opprobriique teget signa noíasque sui.
Ilac tege me túnica. Mater; nam corripit aeslus,
Laedit hyems, telis dextra inimica ferif.
Tu plena es Domini suavíssima fercula seruans
Cella, salutaris premitur unde cibus.
Hoc superi vivunt, foelicia flamina, libo
Hoc corda humanum pascitur aegra genus.
O verp vivus, qui venit ab aethere, panis.
EM LOUVOR DA VIRGEM 203
Quem tua suscepit cella, dcditqne cibum.
Qui nisi materna sic se minuisset in alvo
Nullus in orbe locus, quo caperetur crat.
Jam medicam sumpsit de te, pulcherrima, formair-,
Undeque at menti totus inesse meae.
Ó mea divinum coricludite viscera pastura,
Ne vos sicca sitis perdat, inersque fames.
D
Tu Dumus rutulis circumdatus undique flammis,
Qui tamen ardenti lacderis igne nihil.
Quem tua divinum purissima condidit ignem
Alvus, et in médio tuta calore fuit.
Jam sine ut flamma peperisti, amplecteris ulnis,
Et roseis praebes iibera plena labris.
En ego mortífero tabesco frigore pectus,
Nec mea divinus corripit ossa' calor.
Ure tuis gélidas flammis mihi, Virgo, meduUas,
Cordaque torpenti quae riguere gelii :
Perpetuoque tui Pueri succendar amore,
Et combm-at amor me sine fine tuus.
E
Tu vitae Exemplum, purissima Mater, honesta,
Ignivomo solis clarius orl)e micans.
Tu sola intrépido deserta per avia gressu
Ignotas aperis diííicilcsque vias.
A te virgineae nivei dedicerc Phalanges
Quod tcrerent acto calle pudoris iter.
In te sanctorum fixerunt lumina turmae,
Perque tuos mores cumposuere suos.
Ut qu» oculis radians ad se traliit orbita solis,
Sic tua lux mentes, sic tua vita trahit.
A te vana puer discit contemnere carnis
Gaudia, divinas deliciasque sequi.
Per te conjugij facta est via foedare vinctis,
Quique rnagis puri dona pudoris amant.
Denique forma bonos ad se tua pellicit omnes,
Ad se forma potens allraliit ista maios;
Nam lasciva tuum cum spectant lumina vultum
Aspectos fiunt luce pudica tui.
204 VERSOS DO PADRE JOSEPII DE ANCHIETA
Ó radiosa meae tenebras lux disjice noctis,
Ut videain Incem, qiia rapientc traíiar.
Forma modesta tiii, et formosa modéstia viiltus
Slt via, et exemplam, rectaque norma milii.
Ad te se qiíoties mea mens convertei amandam.
Da fiigiat carnis, da tuus intret amor.
Tu Fons, quem sylvac decoratum fronde virentis
Divina aeíerno gemma pudore notat.
Quae fiuit acíerna viniis dulcedine torrens,
Unda voluptatis, laetitiaeque liquor.
Unde jugis manat, coelestemqiie irrigai urbem
Amnis inexhaustis impetuosus aquis.
HuJQS ab infliixu divinis arbor in hortis
Consita producit tempore poma suo.
Me miserum, nocuo toíus comburor ab aestu,
Asperaqiie arescens opprimit ora sitis.
Nec peto divinis à te, Fons puré, liquores,
Vixque animam tanto tabidus igne traho.
Ó pia sinceri Fons dulcis Mater amoris,
Fac moribunda látex irrigei ora tuus.
Fontibus è vívis largus fluat imber Jesu
Ut de ventre fluant viva fluenta meo.
G
Tu Gleba in médio sterilis pinguissima terrae,
Gui nulla aestatis vis, hyemisve nocet.
Quão nuUo incurvi procissa es vomere aratri,
Semina nec grémio suscipis ulla tuo.
Unde oritur vivi frumenti nobile granum,
Grassantem totó quod fugat orbe famem.
Hoc molet immanis pugnis, flagrisque satellos '
Mentibus ut fiai panis, et esca pijs.
Quem coquei aeterni fiammis Pater almus amoris
Instrue nodosae, quam fereí ipse, crucis.
Fac pia, ceu granum duro molar ipse labore,
Divinoque meum pectus amore coqui.
Dignus ut adjiciar divina ad fercula panis,
Et Domino ílam mundior esca meo.
I
EM LOUVOR DA VIRGEM 20í)
Tu pulcher muris sublimibus undiqiic septus
Hortus est uberibus deliciosiis aqnis.
Floribus hic ridet diversi coloribus arbor,
Et curvant ramos pondere poma suo.
Hic casiac mites, hic ílagrans spirat amomum,
Balsamaque, et rubei pallida fiila croci.
Cândida jucundum diffundunt lilia odorem,
Rubraque perpetuo splendet honore rosa.
Nam tua virginitas materno insignis lionore
Floret, et aeternis fructibus aucta nitet.
Nascitur bic verus vitae sine semine fructus,
Et sevae infringit jura severa necis.
Hoc ego delicias, boc quaeram gaudia in horto;
Ista voluptatis sola sit aula meae.
Hoc mea, da Mater, pinguescant pectora fructu,
Unde aeterna mihi vita saiusque íluat.
í
Tu Jubar immcnsum concludens viscerc Solem,
Cum Patre inocciduus qui micat ante díem,
Tectaque incxtincta coelestis Sionis
Ambit et aeterno lumine clara facit.
Et tibi praecipuum tribuit splendoris honorem,
Lúcida cum thalamis protulit ora tuis:
Luxque nova in tenebris mortisque sedentibus uiiibra
Splenduit, et noctem depulit, atque necem.
Pelle procul tenebras, pulcherrime Lúcifer orbis,
Pelle animi noctem, Stella corusca, mei.
Tu Lcctus florens, in quo Rex otia cepit
Pacificus placide mensibus alta novem.
In quo naturam generis (mirabile) noslri
Assumpsit sponsam tempus in omnc sibi.
Hic liomini Deus unitus, Deus alfus, et idem
.Iam de ventre tuo parvulus exit homo.
Alliget ille sibi firmo mea pectora nodo,
Ne violent sponsi jura fidemque sui.
âOC >'i:rsos do padre josepii de Anchieta
M
Tu pia, tu dulcis, tu clfimentissima Mater:
Convenit hoc digno nomen honorc tibi.
Mater amicitiae, per quam, quem fecerat hostem
Culpa, Deo tandem jam íit amicus homo.
Mater honestatis, formosi Mater amoris
Cândida, totus justitiaeque parens.
Mater es, et Virgo, vitae dulcissimae Mater:
Quid moror? immensi Mater es alma Dei.
Unigenum summi peperisti Patris, cumque
Credimus unigenum primigenumque tuum,
Nempe tuo solus natus de ventre reliquit
Illae sum Intacíae virginitatis iter.
Divinique simul ílammis correptus amoris
Ipse sua fratres nos bonitate facit.
Quosque sibi fratres, tibi mansuetissima natos
Reddit, et accumulat pignora chara tibi,
Non bine pauperie, non bine larguore gravaíus
Pellitur, aut vitijs turpia corda nocens.
Mater ut es justis, injustis sic qnoque Mater :
Omnibus una parens, omnibus una salus.
Ergo age, filiolis matris pia víscera pande
Te mea mens Matrem scntiat esse suam.
Audiat ille preces per te, milissima, nostras.
Pro nobis Natus qui tulit esse íuus.
Tu, benè construxit Domini quem dextera Nidus,
Passer ubi, et íurtur collocet ova pius.
Passer ubi innumeros edat cum tuilure pullos,
Humano indutus corporc nempe Deus.
Spiritus hanc nosier cbaram sibi deligit aedem,
Hac infirma caro tuia sub arce manet.
Mittimus ad Natum per te pia vota, precesque,
Perque tuas nobis dat sua dona manus.
Tu mihi nidus eris, per te mea munera sumet
jEihra, nisi ex meritis non valitura tuis.
O
Tu simplex, bumilis, tu mansuetudine plena,
Labe carens, cunctae, qua maculantur, Ovis,
I
KM LOLVOK DA VIHGE.M 20^
Quae paris, humanas qui surdes abluet, Agiiuni,
Fluiiiiiia cum fundet sanguiiiis alta sui.
Qui cum dura geret nodosi pondera ligni
Fiat iit immani victima sacra nece ;
Et dirè innocuiis tondebitur, obmutescet,
Et tácito plagas perferet ore graves :
Morteque devicta Stygij de fauce leonis
Innocuus fontes eruet Agnus oves.
Da mihi, sim mitis, placidoque opprobría vultu,
Saevaque pacato funera corde feram.
Ut lavei ille m.eas pretioso sanguine surdes,
Qui dabit immiti mitia memJjra cruci.
Tu Porta es róseo Solis radiantis in ortu
Signala invictis perpetuisque seris :
Qua soli aeterno patefacta est semita Regi,
Solus ea jngreditur, egrediturque via :
Incessusque sui vestigia nulla relinquens
Per clausas Princeps itque redit que feres.
Effice, uti soli pateant mea pectora Jesu,
íncola sit mentis solus ut ille meae.
Q
Tu tranípiilla Quies, in qua Deus immemor iia
Accubuit, nobis gaudia vera ferens.
Te parienle Dcum, totus requievit Olympus
Vera data est terrae, te pariente, (juies.
Esto mei requies, expellens crimina cordis,
Tuque, tuusque simul, Virgo quieta, Puer.
R
Tu Robur populo pugnanti, lioslique ruina,
Cujus ope erecti vincimus, ille cadit.
Nempe tui virtus nos Nati invicta jacentes
Erigit, et Stygios pellit ab orbe duces.
Imbeiíis post hac in me, te pi'aeside, saevu*
Hostis, ego tutus tpgmine Matris ero.
206 VEP.SOS DO PADRE JOSEPH DE AXCHIETA
S
Tu Sepes, qua se Domini substantia sepsit,
Et qua munitur vinea magna Dei.
Quae sepla incursus Ecdesia fortis aprorum
Arcet, et audaci territat ore lupos.
Propagesque suas postremum extendit ad aequor,
Transit et Eupliratis panrpinus ejus aquas.
Fac precor, hanc intra mnr.eam, dum vixero, sepim,
Ne voret inventum bestia saeva foris.
Simque ferens fructus, et vi ti semper inhaerens
Palmes, et in Domini tempus in omne manens.
Tu Turris veri, tectum regale, Davidis,
Unde gerit summus bella cruenta Deus.
Hinc fragilem sumpsit puro de sanguine carnem,
Qua cum tartareo conferat hoste manum:
Tradat et aeternis fracta cervice catenis
Ad coeli pandens gaudia victor iter.
Quisquis ad hanc cursu veloci confugit arcem,
Pugnat, avernales dilaceratque manus.
Ad te confugio, tutissima Turris, anhelans;
Sis, precor, Arx animae praesidiumqiie meae.
Tu foecmida nimis supremi Vinea Patris,
Quam própria sevit, sepsit et ipse manu.
Ex qua coíiigitur pinguissimus iile racemus,
Qui in gremium venií Patris ab ore tuum.
Cujus nectareos dulcedo immensa hquores
Yincit, et Hyblaeis mella coacta favis.
Cujus inexhaustus sitientia guttura succus
Temperat, et vitae fonte perenne rigat.
Cujus aromáticos ílagranlia vincit odores,
Reddit et ad viíara, quos fera mors rapuit.
Cujus ab humano fugat omnia nubila corde,
Gaudiaque accumulat laetiíiamque liquor.
Cujus inauditus cordis penetralia gestus.
Et sensus dulci raptat amore sui.
Cujus amor ílammas charissim.a pectora carpit.
Et facit cpoti pota calore mcri.
L.M lolvoí; da viiiíjoi 203
Ó fpelix Domini plantatio, Vinca íoelix,
Ó splendens Virgo, splendidiorquc Pai-cn?;.
Nenio tibi pulchrae formosam conierat Hcstlicr,
Nemo tibi JudiLh fortia lacta canat.
Nam superat íictam quo res magis ipsa íigurani,
IIoc superas onínes tu speciosa magis.
Omnia cessarurit Evae jam tristia matris,
Omnis abest partu visque dolorque tuo.
Eva vcnenosi decepta est fraudibus anguis,
Túrgida tu colubri têmpora calce teris.
Eva novum vetita destruxit in arbore muridum,
Tu renovas fructu saecula cuncta tuo.
Eva per ille cebras Adamum ex aethere primum
Dejectum culpae sub juga dura dedit.
Tu supera Adamum detíucis ab arce secundam,
Soluis et è culpae nosque patresque jugo.
Eva mali inventrix, allatrix Eva dolorum,
Gaudia tu mundo, tu paris omne bonum.
Eva polum clausit, per te reseratur Olympus:
Eva Orei pandit, obstruis ipsa fores.
Eva dedit mortem, tu das sanctissima vitam:
Abstulit haec vitam, tu benedicta necem.
Eva notas nos.tro maculasquc imprcssit honori,
A te jam nobis redditur auctus honor.
Eva suo speciem fuedavit crimine nostram,
Tu laeso turpis abluis ore notas.
Ó formosa Parens, divini forma dccoris,
Ore ferens speciem pulclira figura Dei.
Nec te laudando mea mens expletur abunde,
Nec mea sulficíunt laudibus ora tuis. *
(^oncipiens Virgo, pariens puríssima Virgo,
Pwst partum Virgo saecula cuncta manens.
Quis milii virgineis stringéntem pulchra lacertis
Mcmbra det Infantis te veliementer amem !
Quis milii maternum, Dominum quod daudit Jesum
Cor dederit médio clnudcixí corde tuum !
Ó dulce, ó plenum divino alveare liípiore,
Unde oritur superans dulcia cuncta favus.
Foelices mentes, foelicia |»ectoi'a, quorum
Solus liic oblectat munda palala cibus.
Ille tuam mira pascit dulcedine mentem,
Pascilur è mammis dulciler ille luis:
líiter et ambrosios vinccnlia dorniit (»dores
Ubera, quac anliquu sunt mcliura mero:
VOL. II 14
210 VERSOS DO PADIIE JOSEPll DE ANCHIETA
Tu tenero blandos capientem pcctore somnos
Inspicis, et tacitam ílammciis urit amor.
Jam divina tua reclinas têmpora laeva,
Amplcxu Pnerum- dextra fovetqne pio.
Ut sacra deservit jucundas lumina somnus,
Nectarco fauces tu pia lacte rigas.
Nunc labra purpureis infigis púnica malis,
Nuno rósea osciUis dulcibus ora prennis.
Quid superest? vincor: laudo esl tua gloria maior;
Nec mibi dicendi meta m.odiisque suljit.
Ut superem linguis quot voluit pontns arenas,
Tu numero laudum meque freíumque praeis.
Digna tibi superi resonent praeconia caetus,
Nec tamen bi possunt reddere digna tibi.
Ille aequale dabit meriíi tibi pondus bonoris,
Qui Yoluit famulam Matris liabero locum.
Salve Virgo Parens, Genitrix foecunda salutis,
Cui sedet in molli sarcina grata sinu.
Ó formose Puer, labijs tibi gratia plenis
Eííluit, et pulclu^o summus ab ore decor.
Cujus inest patrij splendoris gloria vultu,
Cujas laeta pio luminc ridet liumus.
In te cuncta suos óculos fixere Parente,
Ut des antiquam quae fuget esca famem.
Tu reseras dextram facili pius ore benignam,
Eífundens largas munera Paíris, opes.
Cumque homini dederis quicquid maris educat unda,
Qaidquid alii facilis divite terra sinu:
Te rerum Autborem, te das super omnia nobis:
Hic erat aeterni summus amoris apex.
Parvaque te immensum quem non capit aetberis aula
Ut nostri capiant pectoris bospitia:
Fis Puer exiguus materna clausus in alvo,
ília tibi dignuni praebuit aula torum.
ó decor, ò forma speciosior omnibus unus,
Ora, Puer, Matris respice cliara tuae.
Respice, ubi recubas maternas molli ter ulnas,
Yirgineosque, fovent qui tua membra, sinus.
Respice, quas sugis mananíes nectare mammas.
Et labra, quae labijs figit bonesta tuis.
Da milii, te ampleclar; tu sis mibi solus semper amori;
Da milii, te loto pectore semper amem.
Cumque tua, per quam descendit ad ima. Parente
Esto quies animi, vitaque parsque mei.
EM LOUVOR DA VIRGEM 2 1 1
Ó tu foeminei Mater piílcliGrrima sexus,
Quae vitam nobis sola Deiimque paris.
Pande tui miseris raaterni visccra amoris,
Coiicipere immensum quae potúere Deum.
Quaeque nianus facta es dilecti amplíssima Nati,
Per quam largitur omnia, seque, tni:
Esto milii semper (decet hoc tua víscera) Mater,
Me Puero aelernum dans, Puerumque ríiilii.
De Magorum Adventu, et adoratione
Cum Sol jusíítiae, cum Patris splendor Jesus
Edilus in vili jam foret aede Puer:
Et tua, diva Parens, inter jucunda moratus
Ubera jam paucos cerneret iredies.
Ecce Magos, magna famulum stipante caterva,
Ducit ab Eois slella corusca plagis:
Numen ut aeterni venerabile Regis adorent,
Et sua dent nato dona animosque Deo
Moenia jam Solymae subeunt excelsa superbae,
Atque ubi sit natus Rex Dominusque, rogant,
Quid Justum, ó Reges, in iniqua quaeritis urbe?
Non benefactorem plebs colit islã suuni.
Regnat Idmiíeus tali violentos in aula,
Quique malis metam non possuere suis.
Odit avaritlam, quem quaeritis, odit iníquos;
Ditia pauperiem regna reliquit amans.
Vile sibi hospitium nascenti elegit, et urbem,
Natus in exígua pauper, inopsque casa.
Rex ferus audito turbatur nomine Regis,
Et sequitur Regem turba superba suum,
Insidíasque parat tenero lúpus improbus Agno,
Jamque ávidas fauces bestia pandit bians.
Stulte, quid ínsanis? non est sapientia contra
Dívinae robur, consiliumque manus.
Regnabit soboles tua crudelissima quondam,
llaeres saevitiae, dire tyranne, tuae.
Hic alba Dominum iiridfíbit veste volutum;
Non tamcn addicet, qaod cu[)is ipsc, neci.
Procedunt Reges, iníidaque url)e relicta
Retblaei quaerunt moenia parva soli.
Hic vero vates predixerat ore futurum
Ut darot aelernum Virgo sacrata ducem.
Vix urbem ogressis, quae nuper tecla lalebal
^12 VEllSOS DO 1'ADRE JOSEPH DE ANCHIETA
StfUa niicans ciaram prauvia nioustiat iter.
Ó Solyma infoelix, Domirium Kegeinque polorum
Spernis, Idumaei jura superba colens.
Externi qiiaerunt, vastaeque per áspera eremi
Tam longum peragimt, ut venerentur, iter.
Vos nati Dominum vestro de sanguine uatuin
Teiiinitis, et vultis perdere morte Deum.
lUos stella micans Eois traxit ab oris,
Nec vox exortum prodidit iilla Diicem.
Vobis tot quondam Christum cecinere prophetae,
Sermo quibus Domini veras in ore fuit.
Ó miserum! vestrum carpet gens extera fructum.
Vos perdei saevae mortis arnica fames.
Vos, ò foelices Reges, quos summus ab omni
Rex sibi primitias donaque gente vocat:
Pergite, vos claro dediicet tramite sydus,
Ad videm Pueri constituetque domum.
Jamque propinqiiabant congesto cespite tecto,
Stella supra Infantis síat radiosa caput.
Agnoscunt signum Reges, foribusque ])ropinquanl.
Porta sed bane claudit vix tamen iilla casam.
Intus egena sedet cum Nato iMater egeno,
Et laeto intrantes excipit ore Magos.
Hi sternuntur humi facie genibusque voluti,
Regiaqiie excepit corpora vile solum:
Inventumque Deum mortali in iprpore adoranl,
Virgo tenet blandò quem speciosa sinu.
Mira lides! quaenam vestri penetralia cordis
Gratia? quis Pueri vos penetravit amo)-?
Anrea non ornant Pbrygiae pallatia vestes,
Quasvè facit tenui decolor Indus acu.
Non cum gemmato diademate pm-pura fulget;
Non bic turba frequens, non famulatus adest.
Villibus indutum cum paupere Matre sedentem,
Cui vile bospitium est, panpereriorque torus.
Qui módico Matris nutritur ab ubere lacte,
Ilunc bominem, Regem creditis, atque Deum.
Foelices, nam vos nullo delebilis aevo
Gloria vos vitae praemia certa manent.
Vestra fides vestrum superai formissima seclum,
Nec vestram vincet seda futura lidem.
Protinus è tectis ingentia munera plenis
Depromit larga quisque bilarique manu.
El Pueri ante pedes prctiosum projicil aurum.
EM LOUVOR DA VIRGEM 21ít
Et myrrham, et fragrans tluiris aroma sacri.
Quid facis interea pulcherrima Virgo? quod alto
Pectore, quod plura menlo rcvolvis opns?
Deficíam, si mira tni solalia cordis,
Si referam mentis máxima sensa tnac.
Tli tibi congaudens Domino grataris Jesii,
Cui meritmn externo jam venit orbe deciis,
Nam divina tui gentes jam niimina Nati
Âgnoscunt, credunt, et reverenter amant.
Illius hi clara praeconia você sonabimt,
Procidet ad Jesu nobile nomen Arabs.
Haec sunt illa, tuo quae regia lingiia Puello
Fudit ad argutae tila canora lyrae.
Illa, ait, in totum solas dominabitur acqiior.
Et qua Sol amplum fmit uterque solum.
TEthiopes flexo spectabimt ipsius ora
Poplite, et hostilis turba relinget Immum.
Insula marmoreis quae circiimcingitiir imdis
Munera pacatum per maré larga feret.
Quique tenent xVrabum foelicia Regna supremo
Et sua dona dabunt sceptra Sabae Duci.
Illi omnes subdent sceptrum diademaque Reges,
Omnis eí totó serviet orbe tribus.
Vivat in aeternum clarum super aethera nomen
Venturi in terras, gloriaque alta Dei.
Sortiri haec finem dum cernis, et omnia, quondam
Quae vates Nato praecinuere tuo:
Larga tibi exundat per latum gratia pectus,
Membra quoque exultant, intimaquc ossa tibi.
Nec facili Infantcm non praebes Regibus oiv,
Ut pcdibus íigant oscula multa sacris.
Hi fidei plenum referentes lumine pectus
In patriam rcnioant, concio sancta, suam.
Sed ne infida feri repetant pallalia Regis
Coelicus aelliereo spirilus orè monet.
Ergo Magi veniant longin(juo ex orbe, tuaequo
Grandia dent Proli numera, seque pij:
Et mihi tam rigido slrigatur frigore pectus,
Ut manus iiacc Domino nil det avara suo?
Sed quid impuro libi Fiupc réus oííeret on;,
Prodegit Patris qui bona cuncta sui?
En mea quae tantam fecerunl crimina labem
Tu Sobobs dele cuni |)ietate Parens.
Quaeque libens olim promisi vota, trinodi
2ii ATRSOS DO PADRE JOSEPIÍ DE ANCHIETA
Fune ligans animum, cuncíaque membra Deo .
ília, precor, Mater, pro mynha, Ihureque et auro
Accipiat plácido Filius ore tuus.
Tu queque, quae misero curasti Yirgo salutem,
Cúm mea mens varia sórdida labe íoret :
Me. vinctum retine dulci, pia ííiater, amore,
Ut mea sit Domino vicíima vita mco.
De Puríficatio.ne Víp.gims Mari.e.
Expectaíus adest sacri post têmpora partus
Laetitiae mater trisíitiaeque dies;
Cum tua in excelso Soboles sanctissima templo
Sisteíur Patri múnus, honorcjue suo.
Nempe quaterdenum jam Sol revolutus in orbem
Te monet hospitij linquere tecia brevis.
Sed cur tam vili, puríssima Mater, in aede
Tot retinet clausum te locus iste dies ?
Scilicet, ut legis juxta purgere tenoiem,
Inque Dei vénias purificaía domum.
Anne tibi naevus primi paíris uUus adhaessit?
Anne Evae attingit te queque poena grans?
Num tua communi -concepta est ordine Proles?
Anne uteri pandit claustra, serasque tui?
Haec lex enixas humano ex semine matres,
Non te, cui soboles est Deus ipsc, ligat.
Subderis ut quaevis communi foemina legi,
Curaque te famae non movet ulla tuae ?
Virgineumque decus, Natique exponis bonorem,
Nemo quid ut vobis maius inesse putet?
Divinae te sola movet reverentia legis,
Quaeris et extremura qualibet arte locum.
Humanaeque simul pieíaíis vena saluti
Consulis, innumeris esque medeia malis.
Non tu munditia, mundissimae Mater, egebat,
Ut sis in jgtabulo tot remorata dies :
Cum tuus impuri maculas purgaverit Orbis
Partus, et immundas laverit Agnus oves :
Sed foedata mei mundentur ut intima cordis,
Polluit innumeris quod mea vita malis.
Ergo venis magni sacraía ad íempla Tonantis
Oblatura Patri te, Puerumque Deo.
Quem geris exultans blandis, leve pondus, in ulnis,
Reddit iter durum mellius ille tibi.
i
EM LOUVOU DA VIRGEM 21 H
It Comes, ct sponsam deducit sponsus Josepli,
Non illc ad tantum deskliosus opas.
Sed quibus ornabis divina aliaria donis,
No vácua aiiíc aras iiigrediaro Doi?
Turturibus ne liii gemiiiis oblalio Nati
Fiet et exíguo munere notus erit?
OíTerres mitem sacris altaribus agnum,
Absimilis Nato non erat ille tuo.
Qui nunc in servum se dat sine labe Parentí,
Quem redimas parvo protinus aere Parens:
Post crucis horrenda figendus ut agnus in ara,
Ut redimat raundi sanguine danina suo,
Nec qua merceris fortasse pecunia desit,
Dona libi nuper detulit ampla Magus.
Dic, ubi snnt auri tam grandia pondera, Eoi
Quas Ârabum tellus áurea misit opes?
Desipio insanus; nec enim tibi pectora taugit
Gemmarum, aut auri cura, furensque fames,
Protinus Eoas studio pietans egenis
Sedula divitias partijt ista m.anus.
Cum Nato ampicctcns paupérrima panper Mater
Inftma, cum gemino lurture templa petis.
Ó pietalis apex, 6 paupertatis amaírix,
Abjectam nuper quam super astra veliis:
Da contemnere opes, et lionoris nomina vana,
Meque siue in templnm te, Puerumque sequi,
Forsitan abjecum non dedignahere servum,
Perpetuo júris qui cupit esse tuií
Quiqui tuos servet nutus: su forsitan olim
Ille tuo per te pignorc dignus erit.
Jamque sacri int^edis spatiosa per atria tenipli,
Tangis et auratas, limina sancta, fores.
Ecce senex foeiix, seris venerabilis annis,
Intima cui replet Spiritus ossa Dei:
Qui pius optabat populi mundi(|ue saiutem
Ora volens Nati cerncre pulchra tui: k
Jumque diii è coelis iiac você animatus agebat
Vix jam deci'Ci)itos spcfiue íideque dies.
Ante Dei cernes, renovei (jui saecula, Cbristum,
Quam postrema óculos comprimat hora tuQS.
Ecce ubi diviní) praesensit nuniine adesse
Jam desiderij têmpora laeta sui:
Iramemor ille sui, canac immemor ille senectae,
Corripit in Templi limina sacra viam.
21 C VERSOS DO PADIiF. JOSEPII DE ANCHIETA
Ul Puerum vidif, divinaquc limiina novit,
Unde suum cocli sydcra lumoTi habcnl:
Liquitur in lachrymas, et diílci elaii^niot amorc,
Mierno incurvans languida mcHilira Deo:
Deque tuis Dominum rapit in sua braclíia Jesiim.
Utque olor extrema talia você canit.
NUNC DIMITTIS
Ó Domine, ccce dies plácida me in pace resolvens,
Statque tul Verbi firma, tenaxque fides.
Lumina namque tuam mea jam viderc. salutem,
A te quae populis omnibiis una venit.
Gentibus hic lúmen nimis admirabile caecis,
Inclytaque Israel gloria plebis orit.
Haec ubi dieta senex, et sacris ritè peractis,
Praecinuit vera gaudia você tibi:
Canitiem menti lacbrymis alque ora madescens,
Haec quoque moestitiae dat tibi verba gemens.
Moesta dies veniet, cum te lamenta gravesque
Circunstent lachrymae, sangiiinensque dolor:
Et tua transadiget gladius praecordia acutns.
Haec velut instantis vulnera mortis erunt.
Nam truculenta tuus patietur funera Natus,
Plurima quo surget. plurima turba cadet.
Quid tibi nunc cordis Yirgo! quo lixa dolore
Ingemis horrenda saucia você senis!
Jam metus Puero materno sedula amore,
Sollicilamque gravis te facit esse timor.
Ante óculos charae crudelia prolis oberrant
Supplícia, et dirae têmpora acerba necis.
Quodque olim lethum mitis patietur ufagnus
Pectore jam pateris mitis ut agna pio.
Ó Virgo Genitrix vitae puríssima rerum,
Respice, foeda animi stagna lacusque mei
Evacua, *et mundis reple mihi corda flnentis.
Quae è Libano veniunt impetuosa tibi.
Atque aliquid mecum tanti partire doloris,
Protinus ut possim servulus esse tuus:
Haerescensque tibi Domini fera funera. quaequo
Vulnera cum, Domino perpetiere, íleam.
Nec mihi tam dirae de pectore mortis imago,
Nec cedat cordis poena dolorque tui.
EM LOUVOP. DA VIRGEM 2!/
De fuga IX jEgyptoi
Eríío orat, ò Mater, sententia firma Tonantis,
Ut lanais vultiis cernoret ora tuos:
Carnificisque tenor cnm Matre edicta criienti
Niliaca eíTuj^iens viseret arva Piier.
Nox erat, et siimmiis teneriim cum Matrc Puellum
Presserat, et fidei lumina fessa senis.
Ecce Dei jussu sopitum afíatus Joseph
iEthere demissiis nuntiiis ales ait.
Surge citus, rábidos boné custos effuge morsus,
Guttura pandit hians sanguinolenta lúpus.
Instat Idumaeus sitíenti fauce tyrannus,
Funera molitur Rex truculenta ferus.
Jam Puerum quaeret, lethum medi tatus iniquum,
Haeredem Regni quem timet esse sui.
Eia age, venturis Puerum Matremque periolis
Eripe, et ./J^gypti protinus arva peto.
Surgit ad aetherei vocês tremcfactus Joseph
Alitis, et Matri coelica jussa refert.
Quo tuo,,quo credam subitus, dulcissima Mater,
Pectora perculerit nuntius isto metu!
Scilicet alta animi fibris infixa timoris
Expertem penitus te facit esse fides. ,
Et vitae authorem, qui condidit omnia, nosti
Non nisi laturum cum volet ipse neccm.
Sed pietas Matrem formidine pulsat amantem,
Omnia maternus damna veretur amor:
SoUicitusque timet graviora pericula veris,
Oppugnant varijs qui tua corda modis.
Cogit amor Matrem, famulam divina perurgcnt
Jussa relucíantes ne patiare moras:
Complexuquc fovens dulcem tua viscera Natnm,
Acceleras tacitam nocte silente ftigam:
Fasciculusqiie inter materna sit ubera myrrhae,
Qui tibi nunc dnlcis botrus amoris oral.
Ecquis in exilio solatia vera, quis uUa
Gaudia promittat firma fntura sibi?
Ecce luus, solo qiii torquet sydera nulii,
Natus, et immotns cuncla- creala movei:
Jam patitur pressus terrenao pftndere carnís
Humana vários condi tiono modos.
Tu fpioqiie cum Nato, cui mente immobilis haeres,
Torqueris subitis oxagilata mnlis.
218 W.RSOS DO PADRE JOSEPH DE ANCHIETA
Scilicet aeternae sedes secura quietis
Coelum est, instabiles non subitura vices.
Foeta malis vários producit terra labores,
Firma tamen justis nascilur uride qiii es.
Hos tuos amplectens expulsas in c?:tera Natus
Regna, Palestinae deserit arva ferae.
Nec satis est illi, dum nostri flagrat amore.
Delicias Regni deservisse sui.
Dulcia nunc etiam profugus cunabula linquit,
Et natale solum, nolaque tecta Pu cr.
Utque voluptatis vetus est ejectus ab horto,
Et damna exilij plurima passus homo:
Sic novus iste Puer, profugis ut perdita reddat
Gaudia, coelestis quae Paradysus habet:
Êxul in ignotas cum Matre expelliíur oras.
Et novus externam visit Alumnus humum.
Sed mihi quis referat, cjuac te, quae incommoda Natum
Per longas fuerint concomitaía vias?
Scilicet infenso passurus in orbe labores,
Qui supera aeterni venit ab arce Patris.
Ipse sibi teneros aerumnis annos,
Ne pars tnrbinibus temporis uUa vacet.
Ut tua jam dirus praecordia vuinerat ensis,
Praedixit vero quem gravis ore senex.
Ut memorare v&lim per inhospita littora Nili
Et Pueri, et Matris dura fereníis iter;
Me mea deficiet scribentem singula dextra,
Nec linguae, aut mentis vis satis ulla foret.
Ut rogiíem superos Pueri ]\Iatrisque ministros,
Quae cinxit vestrum sedula turma latus.
Plurima uti referant rogitaníi plura reriuiram,
Exuperant curae quaelibet ora tuae.
Scilicet ut narrent, quae incommoda, quosque labores
Sis perpessa foris tuque tuusque Puer.
At tua quae vario torserunt pectora curas
Sola Parens nostri, tuquo tuusque Puer.
Ergo hbens taceo quae non satis eloquar unquam, ?
Visceribus maneant dummodo fixa méis.
Teque scquens miti praesentia damna libenter
Pectora cum Nato, cumque Parente firam.
Haec aut illa feras paulum nescissc noccbit,
Profuerit plácido corde tulisse nimis.
Non tamen omnino fas est mystcria, Mater
EM LOUVOR DA VIRGEM 219
Inclyta, tam mirae praeterijsse fugae.
Noctc íiigam properas, incrédula regna relinquens
Divinuin lidei non aditura jiibar.
Qucmque siiis pellet gens própria crimine caeca
IMenlibiis, lume capient extera Regna sais.
Sed (jiiid in /Egypíi Solem caecam invehis arvam?
Quid íibi cmii tenebris, lux radiosa, nigris?
Sole quia iEgypti nox ingrediente recedet,
Condetur Judae Sole abeunte dies.
lUa tribus tácito dum Sol meat axe diebus,
Perque suis fertur nox tenebrosa rotis:
Obstupuit densa caiigine tecta, suaque
Perfídia poenas nocte nigrante luit.
Tu modo nocturnis verum secura tenebris
Ad tenebras Solem Stella corusca vehís.
Utque te liospitio capiet cum prole, suosque
OÍTeret exulibus officiosa lares.
Postmodo te, et Prolem mentis penetralibus abdat,
Cum sua de tenebris exeret ora fides.
Cum tuus in totó Natus memorabitur orbe,
Cum Patre. cura saneio Flamine numen idem.
Ó mea mens, caeca si te caiigine texit
• Culpa, tenebrosis implicuitque malis:
Hanc propera ad Matrem, cujus divina lacertis
Tegmine sub carnis lucis origo sedet.
Hinc tibi cbara fidos, bine spes pulchcrrima, et uUo
Non defecturus tempore surget amor.
Lux ergo ad tenebras, et portentosa deorurn
Ducitur omnipotens ad simulacra Deus.
Ut tencbrae luci cedant, mentitaque veri
Numinis ingressu numina fiacta ruant.
Desinet infausti celebrari planclus Osíris,
Plangetur Nati inors pretiosa lui.
Ncc tribuet Sorapi divinos Memphis honores,
Cum pressus Domini calce Serapis erit.
Cumque salutiferi celcbrabit nomcn Jesu,
Sórdida Nih"aci respuet ora bovis.
Sculptile latrantes stupefiel guttur Anubis,
Et vetus immundi corruet ara canis.
Cum Deus atra canum lativitu ílcgna suonim
Teri-ebií, Slygios cjicietque kipos.
Alta nec Inacliij stabunt vestigia templi,
Bubastisque aris decidet aegra suis.
Scilicct ad nomcn cum maximus orbis Jesu
2!áO VERSOS DO PADRE JOSEMI DE ANCHIETA
Cerniia curvato straverit ora gemi:
Dulci etiam magnao nomen Genitricis Jesn
Maximiis insigni mnndus honore colet:
Intactamque omnis nulla non parte bcatam
Posteritas Matrem você sonante feret.
Eia age, praecipites torrentes siste nefandas
Haeresis, .Egypti quae simulacra tcris.
Nam tua quae voei coelestis corde ministri
Praebuit assensum non dubilante íides.
Extinxit loto flammas grassantis in orbe
Pestis, et aethereis crimina lavit aquis.
Cernis, ut ingentem Germânia vasta ruinam
Tartareis dederit praecipitata dolis.
Cernis, ut exustis altaribus Anglia sacris
Monstra colat Stygijs perniciosa modis.
Aspicis, ut noctis tenebris immersa profundae
Gallia portentis corruit usa novis,
Infandae exurgunt alijs regionibus arae,
Quaeque sibi informes construit ora Deus.
Destrue foeda manus Genitrix altaria forti,
Ora superborum claude proterva canum.
Quaeque corusca diu fidei splendore tenebris
Abdita nunc caecis regna decore carent.
Infer eis verum divini Solis honorem.
Quem gestas ulnis, splendida Stella, tuis. i
Sola fides pulchro Romana ut fulgeat ore, i
Mortífera invicto calce venena terens.
Me quoque, me densa tenebrarum nocte sepultum y,
Cerne oculis Mater luminis alma pijs.
Vera quidem mecum primis accrevit ab annis.
Et Nato, et dulci dante Parente, fides.
Quae tamen, ut primis aetas excessit ab annis,
Protinus est culpis morte sepulta méis.
Ut vero occubuit deformi funere rapta,
Exervit vires dirá cupido suas.
Haec mihí vae misero dominatrix praefuit olim,
Pressit et injusto mollia coUa jugo.
Haec subigens tristi deforme tyrannide pectus
Raptabat varijs ad sua vota vijs.
Haec mihi tartareis obtexerat aegra tenebris
Lumina, luce ignis deficiente tui.
Nil miser ipse minus quam própria damna videbam,
Nil miser horrebam quam mea damna minus.
Nil miser ipse magis quam vitae dona timebam,
EM LOUVOR DA VIRGEM 221
Nil miser optabani qiiam fera fata magis,
Gratia sordeiiles defecerat alma medullas,
Cesserat et foedo pectore sanctus amor.
Sed quac servitio iiímium dominala premebat
Pectore captivo dirá libido mihi,
IIoc scelus, atqiio illud posito patrare pudorô
Cogebat jussis imperiosa suis.
Parebam lacilis vilissima maiíera servus
Saepò obiens, proprijs laetior ipse malis.
Quam prociil illud erat pectiis, quod pectore sacro
Emarians Nati laverat unda tui!
Hei mihi primaevi fácies maculata decoris
Nulla sui poterat signa referre Patris,
Ília Dei species, et imago spleiídida vivi,
In facie, et factis non erat uUa méis.
Intima inortiferis sqnalebant pectora sensu,
Igne furens tuipi quae paiúebat amor.
Extera corruptis sordebant sensibus ora:
Sic mea vita omni sórdida parte fuit.
Tot sibi fingebat turpis simulaci-a volúpias,
Nequitiae aptabat quot sua membra modis.
Quot sibi caplal.)at delectamenta, tot aras, ^
Tot sibi condebat caeca libido deos.
Quid petis .'Egji^tum, lidei quae lumine cassa,
Numina si veri respicit alma Dei?
Ecce ego, vera lides cui qrimo elfulsil ab ortu,
Jussa Dei turpi caecus amore premor.
ília ignara Dei, cui soli gloria, veri
ímpia dat falsis thura precesqiie dijs.
Ipse sciens verum falsos miserandus adoro
Gaudia cum vero praefero falsa Dco.
Si celebrat .Mempliis ])rofugae solemnia vaccae,
Turpis ego immundi prosequor acta sui.
liei milii qualis eram divinum exutus bonorem,
Cum foedi indueram sordibus ora canis!
Siste gradum Mater, non instat Alumnus Idumes
Prosequi turve tuum sanguinolentus iter.
Te miser liic sequitur longo squalore situ(iuc,
Elfecit tardos cui mala culfta gradus.
Non seíjuor ut Puerum perdam, sed ut unctus ab illo
Uestituar vitae perdiUis ipse novae.
Non sequor ut spobcm jucundo Pignore Malrcm,
Sed spoliet vilijs ut mihi corda Parens.
Siste Parens gressus dulcissima, resiiicc Ikntcm:
222 VERSOS DO PADRE JOSEPII DE ANCHIETA
Flecte, precor, vultas ad mea damna pios,
Nil tibi, Diva, subest cernenti retro pericli,
Te quocunqiie fíagrans siilphuris i.irne seqiiar.
Omnia iiamque tuo extinctura incendia culpa
Fertiir inexhaasíi íliiminis unda sinu.
In me sunt tenebrae, quas tetro è pectore pellas,
ínfundens Solis Iiimina clara tui.
In me foeda latent variarum monstra fcrarum,
Niimina quae quondam sacra fuere milii.
Nempe railii ut claro splendore refalserit omni
Tempore divino nmnere vera fides;
111a tamen multo sine claris mortua factis
Tempore flagitijs obruta pene fuit.
Hórrida si cessant scelermn poríenta meornm,
Absíiniiitque sais mensque manusque malis;
Si tamen haec odi, si te compleíor amore,
Tu, ciii nota mei pectoris acta, vides.
Certo ego sanguíneo potius juccumbere letho
Eligo, quam culpae vel semel esse réus.
Esto tamen repleat, quod me latet, inclyta pectus
Gratia, te Natum sollicitante, meum;
Anxia soUicitae lacerant praecordia curae.
Ultima quo claudet têmpora vi ta modo.
Nam mala quae colui validis ceu viribus hostes
Oppugnant vaiuas impetuosa meãs:
Qualiavè insanis turgentia ílatibus instant,
Iníirmamque petunt aequora saeva ratem:
Obsiíaque horrendis iEgyptia regna tenebris
Cum fugiam, Solymae splendida regna peíens;
Persequitur saevi furiosa superbia Regis,
Obsidet angustis et mea castra locis.
Qua miser evadam? Rex bine cervicibus instai
EíTerus, bine claudunt aequora rubra viam.
Tu pia, tu tantis fautrix accede periclis,
Ferque mihi afflicto Foemina foríis opem.
Nam te (nec fallor) Virgo solidissima, signat
Virga illa ^Egypti, quam fera regna tremunt.
Te tenet ille manu, cujus tenet omnia dextra,
Praebuit humanas cui tua vulva manus,
Cum victore Deo, quem carrieis induis armis
Expugnas stravit quas Pharaonis opes.
Stare rubrum iudeas si immoto vértice poníum.
Evadam tu]o per freta sicca pede.
./Equora si rursum jubeas tnrgentia volui,
EM LOUVOU DA VIRGEM 223
Volveiur medijs elYerus hostis aquis.
Nempe libi liac olim coeli clamarat ab axe
Agmina victurae fortia você Deus,
Talis arnica raea es, qualis Pharaonica qiiondam
Merseraiit Eqiiiles cimi fera plaustro mei.
Scilicet ut qaondam virgae virtute profandi
Tranavit populos per vada sicca maris;
Grudeiisque suo tumidis exercitus undis
Submersus poenas cum Pbaraone dedit.
Sic modo te Stigiae pereunt pugnante phalanges,
Ellugit et servas cuncta pericla tuus.
Non te nequicquam duici cum pignore summus
Ad Nili ripas imperat ire Deus,
Ille olium teneros edicto Regis iniquo
infantes diris interimebat aquis.
Sed qui fistella latuit bellissimus infans
Eripuit duris seque suosque malis.
Tu fistella illa es, scirpo contexta paluslri,
Quam pix, ne penetret flurainis unda, livit.
Quis velit m scirpo malesanus quaerere nodum?
Quis tibi vel minimam dicat inesse notam?
Nec scirpo nodus, mitidae nec noxa Parenti
UUa est: sic vitae scirpus imago tuae est.
Quod nullis fueris carnis penetrabilis undis
Sola furens rabies Elvidiana negat.
Perpetuo mentem corpusque bitumine livit
Glarus inolfensae virginitatis iionor.
Pix nigra te obsturat, dum tu tibi vilis haberis:
Undique contemptu claudiris ipsa tui.
Soli ille ingressus, cui terra siiperl)ia semper
Desplicet in Matris viscera clausa patet.
Ille novem sacro celatur viscera menses,
Aula pudicitae nec reserata tuae est.
ille tiiís latitans fistella siiavis in ulnis
Niliacas prófugos nunc petit êxul aquas.
Cumque fero varij vos pulsent turbine íluctus,
Sicca manes intus tu tamcn, atque Puer.
Nam nulla victa est patientia vesti'a labore,
Exeruitque suum lluctibus alta caput.
llic Puer, bic Moyso est multo formosior Infans,
Quem sibi praedives íilia liegis alet.
Quem non ignotum Mater dulcíssima nutris,
Ut pcragat tutus têmpora j)rima Puer.
Poslmodo cum vires matura adduxerit actas,
224 VERSOS DO PADRE J0SE1'H DE ANCHIETA
Monstrabit manus robora firma suae,
Vulnere prosternet, sabulo tumulabit et liosteni,
Qui dura Hcbraei percutit ora maiiii.
Ille quibus premi mors est inflicta parontis
Crimine lethiferis ervet ultus aquis:
Humadumque genus melioribus obruet undis,
Cum largas íisso pectore fundet aqaas.
Ille tumente feros involvet gurgite currus
Victor, et ostendet Regna beata suis.
Regna quibus pulsi poenas Pharaone luebant
Sub Stygio, admissis quas meruere malis.
Tunc tibi, quae latitas cum Nato ignota latente
Nobile perpetuo tempore nomen erit:
Sanctaque divinae venerabitur ora Parentis,
Ut lateat stirpis foemiua, virque tuis.
Ó ílstella brevis, magni domus ampla Tonantis,
Omnia quae claudis, me quoque clande sinu.
Conde reurn tuto pietatis tegmine, dones
Abscondat gladium Judieis ira suum.
Conde fretis, dulcis fiscella, furentibus altum,
Ne pereat medijs qui tibi fidit aquis.
Seu te fiscellam, seu malim dicere íiscum,
Quidquid eris, nobis Arca salutis cris.
Si íistella Deum servas fluvialibus undis.
Crimina qui largo flumine nostrá lavet;
Sic etiam fiscus custodis Principis aurnm,
Unde inope veras gralia fundat opes.
Jam sibi divitias promittere pauper opimas,
Quaeque auro repleat vasa parare potest.
Post tua jam mundns vestigia currat egenus.
Et terrat assiduo vi tia tecta pede.
Publica virgíneo servata pecunia fisco
ToUet egestatis prorsus ab ore malum.
Quisquis habere cupis, ílexo pete poplite Ma trem,
Regis inexhaustas illa recondit opes.
Si te saeva fames alieno conficit aere
Oppressum, nec adest qui tua damna levet: í
Huc ades, argentum simul, et frumenta dabuntur, y
Debita queis solvas cuncta, levesque famem.
Portat in .Egyptum divinum ÍMater Joseph,
Invida quem fratrum perdere turba cupit.
Filius accrescens alienis errat in arvis.
Dum bónus errantes quaererc coepit oves.
Quo properas Genitrix? quo se pulctierrimus Infans
j
EM LOUVOR DA VIRGEM 225
Pro ripit A(?lt,'rni liixque decorqiie Palris?
Si fiigit iit laleat, Patris latitabit in oris:
Bestia iiolentem milla vocare polest.
Itamen, ire cupit qiii postmodo venditus orbem,
Largiíluo redimet sanguinis imbre sui.
Non Madianitae, sed tu dulcíssima portas,
Ira licet fratrum cogat inere fugam.
Scilicet ipse libens Memphitica pergit in arva,
Ut saevam totó pellat ab orbe famem.
Quem tecum portas placidis amplexa lacertis,
Ipse est frumentum panis et esca Deus,
Non magna hacc septem tantum modo panes in anno?
Copia durabit, quem sacra theca vehis.
Sed quam fata diu volvet mortalia tempus
Quamque erit in coelo vita beata diu.
Hoc sacra servarunt casti penetralia ventris,
IIoc grémio condis regia cella tuo.
Ipse est frumentum, tu frumentaria vita,
Non defecturas cella reconudis opes.
Ipse tua aeternam se condit in horrea messem.
Et seges, et sapiens conditor ipse sui.
Ipse sui grátis largitor in omnia largus
Regna, sino argento pabula larga dabit.
Tu sacrata domus nullo reserabilis aevo,
Cui jugis obsignat fortia claustra apudor;
Lata peregrinas revocabis ad ostia gentes,
Ostia maternus quae reserabit amor.
Quamquo pudor claudit, miseratio pandet; eritquc
Virgínea hospítibus semper aperta domus,
Ilinc sibi frumentum Cbananitides íncola terra
Isacidae soboles êxul inopsque petet: '
Agnoscetcpie suum longo post lempore fratrem,
Quem modo in iEgyptum sanguinolento fugat.
IIuc agitante famis stimulo citus undique totus
Conlluet oplalam quaerat ut orbis opem.
Pabula tu vultu pandes divina benigno,
Quaeque penetrali conditur esca tuo.
Nam qui te cellam, qua se bene conderet, amplam
Condidit, ipse sua te facit esse manu,
Ó relia, ó veri servatrix integra panis:
Ó larga, ó miseris semper aperta manus.
Ilinc me focda gravi mendicum pondere egestas
Opprimil, Ilinc stimulis pungit acerda fames.
Qiiid moror? cccc vocas ut dites divos egonum,
VOL, 11 ib
22G TERSOS DO PADRE JOSEPH DE ANCHIETA
Divinoque famem panem benigna fuges.
Ad tua jam curro vacuus cellaria pauper;
Panis enim nuUo venditur aere luus.
Non timeo iEgypti tenebras, notemque profundam:
Tu mihi eum Nati luraine lúmen eris.
Ne per senta situ deserta ignarus aberrem.
Trita viam pedibus signat arena tuis.
Igne licet nocuo canis aestifer urat arenas,
Me tua roranti protegei umbra sinu.
Non ignota fuit sacro tua gloria vati,
Nobile eum Nati vaticinatur iter.
llle levis Matrem designai nomine nubis,
Cui Deus innixus Memphis in arva venit.
Ul sobolem summi vestires carne Parentis,
Nube novum sanctum Flamen obumbral opus.
Nubere ul summo natura humana Tonanti,
Nube legis carnis Virgo parensque Deum.
Si caro quam praebes levis esl el lúcida nubes.
Tu quoque clara levis nomine nubis eris.
Ilanc super ascendil eum blandis moUiler ulnis
Accubat, et vehilur lata per arva Puer.
Sed si fers totum superai qui pondere mundum,
Quomodo te quisquis dixerit esse levem?
Nempe quia exutam veteris quoque pondere noxa
Te creat, el vectus portitor ipse tui est.
Si te nuUa gravai terrenae sarcina culpae,
Qui potius Nalum sydera ad alta vehis.
Ipse quia humanas loturus sanguine sordes
Feri humeris scelerum grande libenter ónus.
Alque ideo yEgyptum, tenebris loca foeta malorum,
.-Estus ubi multum crimine fervei, abis:
Ut tenebras splendore fuges, umbraque calori
Obsistas, et opem nubis utramque feras.
Ut domus Isacidae durum cervicibus olim
Excuteret linquens Regna superba jugimi;
Nocte columna novum spargebat flammea lúmen,
Perque diem nubes rosida tegmen eral.
Ut réus in palriam redeal, saevique tyranni
Effugiat dirás per freta vasta manus:
Ecce columna tuis rutilans portatur in ulnis,
Unde ignem capiunl sydera Solque suum.
Tu Puero nubes, Puer est libi lucidus ignis,
llle tuus manai cujus ab ore nitor,
lUe decor smumi, lux cl clarissima Patris,
FM LOUVOR DA VIRGEM 327
Gloria quem factum protiilit ante jubar;
Nube tamen carnis celat splendoris honorem,
Ut duplici hostiles robore sternat opes.
Nam nec homo aeterno sine nomine vincera ir.ortem,
Nec sine carne necem posset obire Deus.
Sic totum yEgyptum tetro de cárcere raundum
Eripiet mortis per freta rubra suae:
Teque tegente tuos rapidi servabit ab aestu,
Solis, et ad Coeli gaudia pandet iter.
Ó nubes, míseros dulci quae protegis umbra.
Sidereis levior lucidiorque choris.
Nam superara tui figmenta humana decoris
Naturae ut possint conditione suae;
Te divina facit leviorem gratia nubem,
Sic tua suspiciunt sedibus ora suis.
Densa quoque es, crassae quae tegmine protegis umbra&
Infirmis, nocuo ne ílagret igne, caput:
Divinae et rapidiis opponeris ignibus irae,
Ne voret infectos crimina flamma reos.
Si gravidam dicam, gravis es, quae arentia nostri
Intima largifluo pectoris imbre rigas.
Qua te cumque tamen designet quisque figura.
Tu certe es nubes nocte dieque levis.
Nam te vel minimo gemitu quicumque vocarit,
Protinus ad gemitus ceu levis aura venis.
Poscat opem, varijs cui mutat vi ta perichs
Poscenti celerem fers, pia Mater, opem.
Te vocet oppressus corpus vè animumvè labore,
Ocior ad vocês aere flentis ades.
Singula ne narrem, facilis potes unde vocari,
Testis pro cunctis sum satis unus ego.
Nam magna obruere cum coUuvione malorum,
Vixque tuam tacita você precarer opem:
Aííluit indigno rapidis velocior Euris
Sedula, quae misero nunc quoque Mater adesf.
Si indignum penitus levis, et festina tueris,
Quis nubem insanus te negat esse levem?
lUe neget Matris praecordia blanda precanli,
Cui tua defuerit dextera, si quis erit.
Clara, gravis, facilis simul et dcnsissima nubes
Crimina materno tegmine noslra tegis.
Nunc tener infirmis dum cingitur artubus Infans
Malernis vehitur nube volante sinus.
Postmodo discussa caligine sparget in urbcm
â!íJ8 VlillSOS DO PAD!!£ JOSKPÍl DK ANCHKTA
Luiíiina fiilgoris clara coliimna siii:
Quamquc tuu simipsit sinc labe ò viscere nubem
lUustrem miris leddet in orbe modis.
Cum tamen aeternis mundiim eix'ptiirus a)) iimbris
/Equora sanguínea dividit alta nece:
Nubila fulgentera condent tenebrosa colnmnarn,
Solque teget nitidum nocte nigrante capiit.
Tunc decora alta tui, nubes pulcherrima, vultus
Tristia sufíusa nubila nocte prement.
Onaeqiie neci fugiens de tot modo matribus una
Subtrahis Infantem nocte silente tuum:
Obruta tunc tenebris planges crudelia Nati
Funera, de cunctis matribus una, pij.
Et misera occisi mater credere latronis,
i Quam summi Matrem credimus esse Dei.
Nocte tamen media medias gens salva per undas
Transibit raedijs, occidet bostis, aquis
Tertia cum densas aurora fugaverit umbras,
Exeret et nitidum íliictibus ora jubar:
Pulclira resurgentis radiabit ílamma columnae,
Atque noYum nubis vestiet ora decus,
ília novos populos per vastam ducet eremum
Urbis in aeternae luce micante domos.
Tu rorem, et mitem sparges pergentibus umbram,
Auxiliumque levis dura per arva feres.
Utque paret nobis tua lux et gloria Jesus
In superis sedes, et loca digna polis:
Ipse sua vetus Patris petet atria uube,
Quam caro foecundae Virginis alma dedit.
Ergo tua est nubes qua tectus vivit, et olim
Occidet, et surgens aetereis alta petet.
Perge Parens igitur; nec te deterreat ingens
Pignore cum dulci quem patiere labor.
Opprimet anliquos mundi labor iste labores,
Quodque cupis veniet mentibus alta petet.
Neu grave sit longum septem duxisse per annos
Exilium duri caeca per arva Phari.
Sic profugus repetet patriae dulcíssima quondam
Regna, Dei jussu tempus in omne réus.
Confice Mater iter durum, trabe Memphis in oris
Exule cum Nato quas volet ille moras.
Factus bomo egreditur noctu Deus êxul ab Urbe,
Cumque pio ex terris pignore Mater abis.
Ut flagrante die Solymae extra moenia aptus,
EM LOUVOR DA VIIlGEM 229
Matre vicleníc siium vospere paret opus.
Perge ergo, et Piienim varijs ale casiijus actuni,
Mors nostra iit Nati fimcro victa cadat.
Et mihi mendico, patrijs procul êxul ab oris
Fer modicam pauis dum remoral)or opem.
Nulla mihi iígypti maculent contagia pectus,
Sed patriae aspiret mens peregrina suae.
Utque, ubi lethalis venas penetravit arundo,
Cervus ad algentes currit anhelus aqiias:
Sic ego divini percussus arandine amoris,
Saucius ad vivi flumina fonlis eam.
Absentisque absens Nati Matrisque requiram
Ora oculis tandem conspicienda méis.
Exulat interea medijs obsessa periclis
Vita; sed illa tuae est múnus opusque manus.
Cui vitam prestas, fac, clementissima, semper
Vivere, sed soli vivere, Virgo, Deo.
De ReDITU IN TERRAM ISRAEL
.Iam satis iEgypti tenebrosis, Mater, in oris
Delituit pardi raptus ab ore Puer.
.Iam remeare potes, magni jultet author Olympi,
Tectaque Nazareae viscere chara tuae.
Infantes rigido qui perdidit ense teni.Mlos.
Ne tuus evadat tela cruenta Puer:
Jpse sibi cunctis in se crude! ior hostis
Conscivit própria funora dirá manu.
Occubuitque lúpus Ictho multalus aceri)o,
Tartareo et pocnas sub Phlegethonto luil.
Quaeque necem Pucro cum crudo turba tyranuo
Molita est, jaciilis occidit liausta necis.
Suppliciumcjue imi caligine mersa barathri
Pendit, et in Stygijs abdite luget aquis.
Jam secura potes duici cum Prole reverti,
Jam satis extremo crevit in orbe Puer.
Quod superest vitae stirpi del)etnr Judae.
Vera lluet cunctis gentibus unde saliis.
Hoc sacra Jessael cecinerunt organa valis,
Grandia qui Nati personal acta tui.
Quac mihi cum santo fas sit repelisse prophela,
Dum sacrum lali carmine [lulsal cbin-.
Exit ab ;Egypto ísraelis sanguine nahis,
Linquit et ísacidos barbara r('.L'na 1'uei"
230 VERSOS DO PADRE JOSEPH DE ANCHIETA
Ut nova Judae miracula sanctus in oris
Edat, et occulti signa stupenda Dei.
Hic divina novam generabit gratia proleni,
Fiet et in sanctis sanctior ipse suis.
Quaecjue olim toti dominabitur inclytus orbi,
Principium Solymae sumet ab arce fides,
Hic maré patrantem nova signa videbit, et undas
Ipsus ponet você jubente suas.
Squamigeram subitò (dictu mirabile) praedam
Ejus ad imperium Sole oriente dabit.
Agnoscentque sui Domini freta túrgida plantas,
Unda quibus solidum strata parabit iter.
Hic rábido fluctus agitante A.quilone marinos
Divinum merget dirá procella caput:
Peractumque altas crudeli funere in undas
Faucibus excipiet bellua vasta suis.
Donec saeva suos compescant aequora motus.
Et fugiat refluis mobile marmor aquis:
Et vomat in siccum cum bestia littus Jonam,
Jam nullo hausturum temporc mortis aquas.
Ipsius adventu Jordanís laeta fluenta
Ceu cursum retrahent obstupefacta suum.
Cum clamore siii, qui non erat agnitus uUi,
Proeconis súbito proditus Agnus erit.
En Deus, ecce Dei, dicet, sanctissimus Agnus,
Qui toUet mundi funditus omne scelus.
Innocuus puro tingetur in amne, suaeque
Contactu carnis sanctificabit aquas.
Quique ut homo culpae sese réus occulit, illum
Ostendent verum coelica signa Deum.
Hic meus aeterno est Natus mihi junctus amore,
Dicet enim summi vox manifesta Patris.
Sanctus in ablutum foecundae more columbae
A supera veniet Spiritus arce caput.
Ille bónus dexírae male grátis dona benignae,
Mellifluique amplas dividet oris opes.
Humanamque gerens sub iniquo judice causam
Infandam murtò perferet ore necem.
Mox tamen ut victor superata morte resurget,
Jordanis celeri retro redibit aqua.
Seclaque judicio rectae reget omnia virgae,
Qui veluti sulijt judieis ora réus.
Tun6 alti incipient attolere culmina montes,
Qaos maré turbatis obruit, ante fretis.
EM LOUVOR DA VIRGEM 231
Scilicet illa viriim prodibit turma potentam,
Doctorcs voliiit qnos gregis esse suí.
Subsistem tcneri foetis cum matribus agni,
Quos per laela pius pascua pastor aget.
Dic maré cur refugis? cur retro flueiita retorques?
Jordane et refluo corripis amne fugam?
Cur moto ó alti saliistis vértice montes,
Pascentes aries ut salit inter oves?
Cur vos pulsarunt súbito nova gaudia colles,
Agnus ut in laetis luxuriatur agris?
A Domine hoc venit factum admirabile magno:
lUe est laetitiae causa, et origo novae.
lUe Dei Natus, cui magni natae Jacobi
Cárnea de intacto viscere membra dabit.
llle ubi mansueto populis te proferet ore,
Moribus exiliet concita terra suis.
llle Jacobae praecordia saxea gentis
Repleri ut liquidis stagna jubebit aquis.
llle velut puro manantes gurgite fontes
E dura eíTiciet ilumina rupe fluant.
Duritia rigidas viventia peclora cautes
Cum sacer in totó moiliet orbe látex.
Nemo sibi hinc laudis praeconia judicet ulla,
Non opus bumani roboris illud erit.
Hoc, Domine, invicto facict tua robore dextra,
Laus erit atque, Deus, nominis omne tui.
Barbara nam forlis cum regna invadet Jesus,
Tota cadot ílexo terra subacla genu.
Non huminum mcritis (nam nullus crimis expers)
EÍTundes larga munera tanta manu.
Sed própria virtute bónus mitissima pandes,
Pectora, divinus viscera fundet amor.
Omnibus ut praestes aeternae dona .salulis,
Et rata sint oris vcraque verba tui.
Ne quando auxilium tectae caligine gentes
Causentur dextrac non habuisse tuae.
Ne quando insanis caecus clamoribus orbis
Mugia t, cl vcrum te neget esse Deum.
At Deus in summo coclorum vértice noster
Regnat, et in cunctos jus liabct omne Deus.
Omniaquc omnipotens qui fecit saecula verbo,
Authorcm ut noscant cuncla cn-ata suum:
Ipse suo tandem vestito corpore Verbo
Ueficiet laccrum qiiod fabricavit opus.
232 vilUSOs do iwdul: joskpii dk axcíiirta
Ciimque fides mundnm Domini penotrabit Jesu,
Omnibus exurget gentibiis una salus.
At simulacra Deiim, quae cassae lumine gentes
Esse Deos falsa regione putant;
ília vel argento sunt signa eíTicta, vel aiiro,
Quae facit humaniis qualibet arte labor.
Os habeant qiiamiiis, non possunt edere verba:
Percipiunt oculis lumina nulla siiis.
At Dominns diílci penetrai sermone meduUas,
Cunctaque praesenli lamine nuda videt.
Vox milla illonim surdas penetrabit ad aures,
Nare sub ipsorum non erit ullus odor.
At Dominus prona gemitum capit aure suoruni,
Cui pietas suavis vis ut odoris olet.
lUa nihil poterunt stupídis contingere palmis,
Non pedibus gressum planta movebit iners.
At Dominus fecit, reficit, regit omnia dextra,
Lustrat et immoto cuncta creata pede.
Illorum rigidis stupuerunt rictibus ora,
Non edent ullum guttura muta sonum.
At Deus horrendo sonitu perterret iniquos,
Et dulci electos allicit ore bonos.
lllis persimiles fiant qui talia íingunt,
Quique in eis miseri spem posuere suam,
At Domus Isacidae Dommo se credidií. uni,
Ilie optata illos protegit almus ope.
Sémen Aaronis Domine se credidit uni,
Illos invicta protegit ille manu.
Quae se cumque pia formidinc credit Jesu
Obsequio Dominum gens venera ta pio:
Ipsius ei^pulso protecta timore sub alis
Divinae vivet tuta favore manus.
Ille memor nostri coeli descendi t ab arce,
Muneraque indignis contulit ampla bónus.
Seu quos Israel genuit, seu sanctus Aaron,
Et veri redimet néscia regna Dei.
Larga suit magnis manus ejus, larga pusillis,
Qui Domini casto nomen amore timení.
Et majora dabit nobis, natisque fuíuris,
Splendida cum vultus panderit ora sui.
Vos cumulei donis magni fabricator Olympi,
Cujus et ingentem dextra creavit humum,
Ipse sibi Dominus coelorum condidit arcem,
Ast homini terrac regna habitanda dedit.
KM LOUVOR DA VIIIGEM 233
Donec inhumanum tcrrao sub pondere lethum
Passus, iu coeli culmina pandat orans.
Non reddent Domino praeconia laudis Jesu,
Debita quos culpae mors truculenta vocat:
Nec quos aeternis cruciandos hórrida flammis
Sorbet in obscoeno Styx Phlegethonque lacu.
Sed quos divinus vitali Spiritus aura
Influit, et vivos gratia mater alit.
Gloria ab his Domino dabitur sincera superno
Nunc, et in aethereis jam sine íine polis.
Ecce rcversuro Memphis, pia Mater, ab arvis
Quae cecinit Puero regia lingua tuo.
Quae repetisse, tuas cupidus dum concino laudes.
Indigno licuit te tribuente mihi.
Sit mihi fas etiam Dominam rogitare benignam,
Paucula, dum tantum mens mea voluit opus.
Et quid in iEgypto sepfem tibi tempus in annos
Volvitur, Herodis dum fugit arma Puer?
Magna tuus mundi compegit moenia Natus,
Perfecit tantum sexque diebus opus.
Dixit, et absque ullo sunt condita cuncta labore,
Dat requiem facto septimus orbe dies.
Nunc hominem magno confractum pondere culpae
Ut reparet, vitae restituat que novae;
Commoda non numero paucorum humana dierum
Ponderai, excedit pondera cujus amor.
Nempe dies septem tempus velut omne volutat,
Hcraque perpetuis itque reditque rotis;
Omnipotens laxas donec Deus angat habenas,
Et mitis claudat têmpora cuncta suis:
Sic tuus á pátria septem Puer' exultat annos,
Nec Puero requies septimus annus erit;
Sed totó exilium durabit tempore vitae,
In patriae redeat nunc licet arva suae:
Donec regalem coeli subiturus in aulam
Exilij claudat têmpora morte sui.
Ilic ergo reditus non Nato meta lal)oris.
Ultima non .Matri meta laboris erit.
Hic opus, hic labor est, hic longae incommoda vitae.
Per reliquos vobis sunt obennda dies.
Hic Judaea ferox septem circiindata muris
Ad fera jam septem praeparat arma dulcis.
Instructus teHs scrvat ferus afria custos,
Moeniaquo assiduis invetorata malis.
234 VERSOS DO PADRE JOSEPH DE ANCHIETA
Hic septem vims rulTus draco faiicibus halat,
Septemplexque vomit dirá venena caput.
Nam vitia ut foveat capitalia pectore septem,
Pugnaiiti obsistet geus male fida Deo.
Ó quod probra tuus Mater mitissima, Natus,
Ut vitia expellat cordibus ista, feret!
Arguet inflatos hiimiii cum você superbos,'
Despicient hurailem corda saperba Deum.
Pontifices probris insectabuntur avari,
Pauperibus largam dum valet esse manum,
Suadebit nivei donum coeleste pudoris,
Id turba indigne luxuriosa feret.
Si volet á duris expellere cordibus iras,
Dulceque fraternae condere pacis opus;
Divini penitus fraterni et nomen amoris,
Immemor in mitem saeva caterva fremet.
Quo cernet vultu damnantera turpia ventris
Gaudia degeneri dedita turba gulae!
Invídía exacuet tabescens bestia dentes.
Pastorem ut rábido devoret ore pium.
Denique, cum proprijs studeat plebs impigra rebus,
In Domini obsequium desidiosa sui:
Divinum crebra cum você docebit honorem,
Et jussa aeterni non violanda Dei.
Infremet, assuetis obsistet et impius anuis,
Fataque doctori reddet acerba furor.
Ille nece oppressus, sed mortis victor acerbae.
Septemplex frange t calce premente caput.
Quoque anguem possint, et septem vincera jnonstra,
Praestabit, famulis robur opemque suis.
Scilicet illa suis diffundet munera septem
Flamini, hostiles quae populentur opes.
Tuque tui servis Genetrix dulcissima Nati
Praesidium, murus, janua, turris eris.
Splendida namque tua vitae, et virtutis imago
Attrahet ad mores pectora nostra suos. '^
Teque tui dulci pellectus araore sequetur, j
Discere quem Nati juverit acta tui. v
Têmpora tu, Mater septemplicis atra draconis
Conteris, et victrix ad tua signa vocas:
Ut quos exemplo vitae illustraris honestae
Maternae pietas protegat ampla manus.
Foelix si talis defendar tegmina Matris,
Si tantae ducar lumine lucis ego.
EM LOUVOR DA VIRGEM 235
Eia''age, post septem remea foelíciter annos,
Septennis videat pátria regna Puer.
Carpat iter longiim mansueto vectns asello,
Immotus magni qui vehit orbis oníis.
Et sua nonniinquam vestigia figat arenis,
Árida foecundans grissibiis arva siiis.
Ut quae iiunc spinis squalet male foeda malorum,
Pinguescat fructu postmodo terra bono.
Obsequio Nati, et Matris cum têmpora vitae
, Per deserta patrum turma dicabit ovans.
tunc foecunda fides fructus producet opimos,
Et verus vestri mira patrabit amor.
Ergo Puer remea dulci cum Matre benigne,
Cum dulcique Parens prole benigna redi.
Sed cave ne infidam Solymorum tendat in urbem,
Declinet mitis tecta cruenta Puer.
Hoc sanctum divina monent oracula Joseph,
Custodit cujus te Puerumque fides.
Regnat adliuc baeres patriae feritatis, et aulam
Jessidae contra jusque piumque tenet.
Quo tamen ire jubent? cantate ad sancta Prophetis
Moenia Nazareth, cur speciosa Parens?
Scilicet ut nequeant sanctorum nuntia veri
Sancta Prophetarum verba carere fide.
Nam Nazaraeum mortales cum geret artus
Dicendum, oraculis praecinuere suis.
Non ille à pátria virtutem nominis urbe
Accipiet, sanctus cum sit ubique Deus:
Sed propriam ut totum virtutem fundat inorbem,
Saeculaque illustret nomine cuncta suo,
Ouo nisi^ Nazareth veniat pulchcrrimus iste
Fios campi, in Matris Virginis ortus agro?
Ilic primum emittet vitae florontis odorem,
Imperijs Matris subditus ipse suae.
Postmodo maturus pcndebit ab arbore fructus,
Ut damna antiqui pellat acerba sibi.
Quaeque olim primi noxa patris arguit arbor
Florebit, fructum parturietque novum;
Cum Judaeorum Rex Nazarenus Jesus
In ligno ligui prima piada luct:
Et mortem mitis patictur ut agnus atrocem,
Conferat ut vitae funerc donae suo.
Ilaec médio interea meditabcrc pectorc Mater,
Ima tibi ut scnsim serpat in ossa dolor.
23ft VKRiOS DO PADRE JOSEPH DE ANCHIETA
Donec in innocuum Natum qui saeviet ensis
Transadigat penitus pectoris ima tui.
Interea Solymae regalia moenia linquet,
Moenia, quae falso nomina pacis habent.
Nam pepigit foedus cum morte, et faucibus Orei,
Devoret ut Natum sanguinolenta tuum.
Non tibi pax Dominura tranquilla, quisque laborum,
Sed fera tempestas, saevaquc bella manent.
Bella Puer renuit, pulchra quia prima Juventa
Têmpora tranquillae têmpora pacis erant.
Têmpora cum duri venient horrentia belli,
Vibrabit forti tela corusca manu:
Percutietque sui verbi virtute superbos,
Quosque ligat laqueis caeca cupido suis.
Insurgat Solymae dum truculentior hoste,
Inque decem demens congeret arma piam.
Foederaque iratus conjunget pacis in unum
Crudelem Herodem, Romuleumque ducem.
Ut totum belli pugnantem pondus Jesum
Opprimat, et nullo morte juvante cadat.
Nempe ut adulterij foedum celare pudorem
Dum cupit infaustum turpis adulter opus;
Hetheus subijt crudelia funera miles,
Cui fratrum ad pugnam dextra negavit opem:
Sic tuus hostiles inter patietor Jesus
Funera desertus sanguinolenta manus.
Ut tegat incestus, et quae patravit adulter
Crimina, et obscoenum quicquid in orbe patet,
Scilicet immensum divini tegmen amoris
Cuncta suo celat facta nefanda sinu.
Florem igitur pulchrae Nazareth sancta juventae
Possidet, haec sedes florida pacis erit.
Ilic mihi cum dulci, Mater pulcherrima, Nato
Da tacitus plácida têmpora pace terram.
Hic mea virtutem producant pectora flores.
Sertã sibi faciat floridus unde Puer.
Hic tentra oblectet gustu quorum ora suavi,
Fac mea det fructus mens bene culta bonos.
Postmodo cum veniet Solymam perimendus in urbem,
Figendus spinis têmpora, membra cruci:
Et mihi forte dabit, Matris prece victus amantis,
Posse simul secum vivere, posse mori.
^
tM LOUVOR DA VIRGEM 237
Remansit Puer IN Templo
En nova praeteritis accedunt taedia crucis,
Occupat ecco iiovus te, pia Virgo, dolor.
Cum tiuis, ut vitae duodenum venit ad annuin,
Restitit in Templo Matre abeunte Puer.
Anxia quis teneraerimetur viscera Matris,
Dum pars materni máxima cordis abest?
Scandis ad augustum dulci cum pignore Templum,
Hoc jubet autiquus mos pietatis opus.
Mente genuque sacris suplex provolueris aris.
Et pia fers summo dona precesque Deo.
Ut peragis statis solemnia sacra diebus,
Hospitij repetis dulciae tecta tui.
Sed quo Mater abis? non est tua gloria tecum,
Occultus Solymae restat in urbe Puer.
Si Natum fido dilectum reddis Joseph,
Credit eum Matri justius ille piae.
Sive tamen dacit via vos diversa Parentes,
Sive pares uno calle tenetis iter:
Quod Puer ignaris subtraxit lumina vobis,
Non tua, non Patris culpa, soporve fuit.
Sed latet ipse volens, ut vera patescere Patris
Incipiat summi gloria bonorque sui.
Sed latet, ut cbarae caput exerat inclyta Matris
Gloria, quem quaeris nocte dieque dolens.
Nam quis percipiat quali indefessa labore,
Quali illum quaeras aegra dolore Parens?
Vix primi spatium fueras emensa diei,
Cum sua Sol mersis conderet ora rotis.
Lux tua non aderat, cujus splendore coruscai
yEtliera, sibi ílammas mutuat unde jubar,
Cujus ApoUineis radiat splendoribus axis.
Et placidus loto lucet in orbe dies.
Quid laceres Mater veri sine lumine Solis?
Quam fuít illa oculis nox tenebrosa tuis!
Quas te crediderim moesto de corde querelas
Fudisse ad superos ore gemente poios?
Quis libi per malas lacrymarum íliixit honestas.
Quis mádido in teneros imber ab ore sinus?
Ut forti cures animo celare dolnrem,
Corda magis forlis fortia vincit amor.
Et fios ábsentem, qnique intima pecloris angit,
Et premi t ex oculis flumina larga dolor,
238 VERSOS DO PADRE JOSEPH DE ANCHIETA
Ó quolies coelum replesti quassibus altum I
Ó quoties voces audiit aethra tuas!
Ó quoties summi tua mens ante ora Tonaalis
Procidit! et tales edidit aegra sonos.
Redde tuum Natum ílenti, Pater optime, Matri,
Corque mihi affligi ne patiare diu.
Sint satis horrendi cnm venerit ultima lethi
Hora, manent animo quae toleranda meo.
Haec mihi tranquilla dederas modo tempore pacis.
Dum ventura meus cresci t ad arma Puer.
Ó quali, alma Parens, curarum fluctuat aestu
Cor tibi, dum Nati cuncta perícia times !
Non ignota tibi est immensa potentia Nati,
Cujus habet vitae jura necisque manus.
Sed quae non timeat dilectae incommoda proli,
Omnia qui cogit fingere, Matris amor ?
Ille oculis fácies praesens absentis Jesu
Haeret ApoUineo pulchrior ore tuis.
Teque quod est absens, nec dulcia lumina cernis.
Arguis et pugnis pectora moesta feris.
Nam tibi sis quamvis nullius cônscia culpae,
To ta tamen fuerit ne tua culpa times.
Quid metuis Mater perfecto ornata decore?
NuUa potest animum laedere noxa tuum.
Ecce repentini qui sum tibi causa doloris:
Additur haec culpis nunc quoque culpa méis,
Me miserum expectai delicti absentia Nati,
Dulci dum Matris subtrahit ora pia.
Ecce ego qui perij, Dominumque Deumque reliqui.
Dum vitia insanus foeda latenter amo.
Ecce ego, qui à facie jucundae Matris aberrans,
Quaesivi varijs gaudia vana vijs.
Nec mea tangebant Náti divina voluptas
Pectora, nec Matris deliciosus amor.
Huc miser, atque iiluc profugus pastoris ab ore
Perditus errantes more vagabar ovis.
Ergo latet charae dulcissimus ora relinquens -
Matris, et amissus creditur esse Puer; 1
Ut miser inveniar, quem vere perdidit hostis,
Et procul à Domino fecit abesse meo.
Scilicet ille mei si non perijsset amore
Perditus, omnino non reperirer ego.
Ille vagam quaerens deserta per avia tandem
Reperit, ad caulas ille reduxit ovem.
EM LOUVOR DA VIRGEM 239
Ille domiim verrens accenso lumine drachmam
Quaerit, et inventa gaudia magna capit.
Et ne sis exors tanti pia Mater honoris,
Huc animo anguorem da lacrhymasque tuo.
Tu domus ampla Dei, quem mente, et viscere claudis,
Quam soli authori vendicat ipse sibi.
Si domus es Nati, Natus te verrat oportet,
Quaerat ut amissos qui periere reos.
Ecce tui vexat puríssima gaudia cordis,
Et dat tristitiae pocula amara tibi.
In lachrymas duicem risum convertit acerbas,
Taedia pro laetis lusibus aegra dedit.
Delitias blandi rapuit bruma áspera veris,
Evertit clarum nox tenebrosa diem.
Túrbida bella animi pacem evertere serenam,
Sic tuta eversa est prole latente domus.
Et qui nunc vivus celat tribus ora dlebus.
Cum maneat vultus forma decorque prior;
Postmodo mutato condet divina decore
Lumina cum mortis tela cruenta feret.
Saxeaque inclusum triduo teget urna cadáver,
Nec tibi lugenti qui medeatur erit;
Donec ab infernis liominem quem perdidit error
Inventum evehat cujus amore peris.
Sic me mors Nati reperit Matrisque dolores,
Qui perij, et vitae causa fuere meae.
Ergo tibi absentem ne sit grave flerc parumper.
Dum latitat cordis gloria luxque tui.
Et mea fac coelum suspiria crebra lacessant:
Nec sileat cordis vox lachrymosa mei.
Et desiderio Domini super astra latentis
Torquear, à Pátria dum procul êxul ago.
Sed quid agis Mater? nunc totam al)sorbuit ingens,
Nec memorem oíTicij te sinit esse, dolor.
Imò amor absentis crudelis causa doloris
Mira animuni stimulat sedulitate tuum:
Cognatosque inter puerum notosque requirens,
Sollicita buc illuc lumina voluis amans.
Ilunc illumque rogas, num Natum viderit usque;
Nec semel est eundem sat petijssc tibi.
Saepius inquiris quod terquc quaterque rogaras;
Quoque magis repetis, plus repetisse juvat.
Num vídistis, ais, duicem mea viscera Natum,
Qui mea vila mihi est, qui mihi soius amor?
240 VERSOS DO PADRE JOSEPH DE ANCHIETA
Ó una ante omnes mulier piikherrima, qualis
Est liius iste Puer, qiii tibi solas amor?
Est ne ille obriso cujus pretiosius aiiro,
Ciii terra ad nutum servit, et astra, caput?
Cujus in audito guttur sermone suave
Ora velut dulci nectare nostra rigat?
Cujus ceu Libani forma est palcherrima, candor
Coelicus electis omnibus unde venit?
Ille ne melifluus totusque optandus amanti,
Qui desiderio cor trahit omne sui?
Hic est quem crebris singultibus anxia quaeris,
Ipse idem Matris Filius, atque Dei.
Quis Dominum'tamen talem non quaerat amicum
Impiger, et totó cordis amore ílagrans?
Si sinis, ibo simul tecum, moestissima Mater,
Forsitan inventus proferet ora mihi.
Sed non invenies inter vestigia notos,
Qui fratres inter ceu peregrinus erit.
Non Natum inveniunt, stimulat quos gloria carnis^
Sed quos Patris amor, nomen, bonorque movet.
Ecce latet Solymae, sacrae pete celsa Sionis
Moenia, pacificus Rex tibi jure sedet:
Donec ut optatam superans será praelia pacem
Visuris summi lumina pulcbra Dei.
Non tamen aut Regis petiít, vel praesidis aulam,
Delicijs illa est moUibus ampla domus.
Gloria cui Patris cordi est, durique labores,
Templum Patris adit quem locus ille decet.
Hic illum invenies bumanis pectora curís
Exutum, paires immemoremque suos.
Hic residet medius doctorum astante corona,
Eloqaij fundens prima íluenta sui.
Multa super sacris divina ex lege Prophetis
Oraculis quondam quae cecinere rogat.
Audit et ipse libens seniores multa rogantes,
Explanans miris verba rogata modis.
Eructat sensu mysteria magna profundo,
Ignarosque diu quae latuere docet.
Obstupet admirans doctorum turba loquentem,
Verbaque doctoris non capit alta novi.
Tanta fluit Pueri sapientia pectore ab alto,
Tantum divino stillat ab ore meios.
Quis tibi, Diva, fuit post tot suspiria sensus,
Lumina cum Pueri deliciosa vides?
EM LOUVOR DA VIIIGEM 2il
Quis novus illuxit splendor, ciim clarior astris
Lux sua Inminibus praeljuit ora tuis?
Quo tua laetitiae praeconlia ilumine inundant,
Cum lil)i de próprio gaudia fonte ílaunl?
Quis tibi pectus amans ignis succendit amoris,
Cum tua replerit corda repertus amor?
Tu pia, tu nosti, tu seis experta dolorem,
Maternus pariat gaudia quanta dolor.
Tu pia, tu sentis; sed nec potes ore profari,
Audire indigno nec licet ista mihi.
Sed potes optanti laclirymas inferre, quod ipsum,
Gaudia, perdiderim, cum malè quaero miser.
Sed potes amissum meritis mihi reddere Natum,
Inventum et lachrymis, Yirgo benigna, tuis.
Et mihi vel minimum gaudij praestare, replevit
Inventus Matris quo pia corda Puer.
Hoc mihi si praestas, luctu vacuabis amaro.
Addicta aeternum pectora nostra tibi.
Intereà dulcem Matrem Patremque sequatur,
Nazarelh repetens florida tecta suae:
Mitis ubi vestris divínum Numen obumbrans
Pareat imperijs têmpora longa latens:
Donec terdeno Solymorum in maenibus anno
.Tussa palam Patris praedicet alta sui.
Ó Puer immensi soboles verissima Patris;
Ó decor, ò Matris luxque decusque piae.
Esto Deus cordis sola, ó sine faece volui)tas,
Gloriaque aeterniini parsquc beata mei.
Ó formosa Dei genitrix, miseranda miselli
Luminibus servi refice corda tui.
Solus amor, sola mihi sit cum Matrc Puellus,
Pignore cum solo tu mihi solus amor.
De compassione, et planctu Virgims in morte Filii
Mens mea, quid tanto torpes absorpta sopore?
Quid stertis somno desidiosa gravi?
Nec te cura movot lachrymabilis ulla l\arentis,
Funera quae Nali ílel truculenía sui?
Viscera cui duro tabescunl aogja dolore.
Vulnera dum praescns quae lulit ille videi.
En quocunque óculos convorleris, omnia Jesu
Occurrent oculis sanguine plena tuis.
Respice, ut aelerni proslrato ante ora Pareulis
VOL. II iC
242 VERSOS DO PADHE JOSEPII DE ANCHIETA
Sanguineus totó corpore siidor abit.
Respice, iit immanis caplum qiiasi turba latronem
Proterit, et laqueis colla manusque ligat.
Respice, ut ante Annam saevus divina satelles
Duriter armata percutit ora manu.
Cernis, ut in Caipbae conspectu mille superbi
Probra bumibs, colapbos, sputaque foeda tulit.
Nec faciem avertit, cum percutèretur; et bosti
Vellendam barbam, caesariemque dedií.
Aspice, quam diro crudelis verbere tortor
Dilaniet Domini mitia membra tui.
Aspice, quam duri lacerent sacra têmpora vepres,
Diíluat et purus pulchra per ora criior.
Nonne vides totós lacerum crudeliter artus
Grandia vix humeris pondera ferre suis?
Cernis ut innocuas peracuta cúspide ligno
Dextera tortoris íigit iniqua manus.
Cernis ut innocuas peracuta cúspide plantas,
Tortoris figit dexlera saeva cruce.
Aspicis ut dura laceratus in arbore pendet,
Et tua divino sanguine furta luit.
Aspice quam dirum transfosso in pectore vulnus,
Unde immista luit sanguine lympba, patet.
OmnJa si nescis, Mater sibi vendicat aegra
Vulnera, quae Natum sustinuisse vides.
Namque cjuot innocuo tulit ille in corpore poenas,
Pectore tot Mater fert miseranda pio.
Surge, age, et infensae per mocnia iniqua Sionis
Sollicito Matrem pectore quaere Dei.
Signa tibi passim notissima liquit uíerque,
Clara tibi certis est via facta notis.
Ille viam multo raptatus sanguine tinxit,
ília piis laclirymis moesta rigavit bumum.
Quaere piam Matrem, forsan solabere flentem, 1
Indulget lacbrymis sicubi moesta piis. "
Si tanto admittit soUatia nuUa dolori,
Quod vitam vitae mors tulit atra suae:
At "saltem elfundes lacbrymas tua crimina plangens.
Crimina, quae dirac causa fuere necis.
Sed quo te, Mater, turbo tulit is te doloris?
Quae te plangentem funera terra lenet?
Num capit ille tuos gemitus lamentaque collis,
Putris ubi bumanis ossibus albct bumus?
Numíiuid odiferae cruciaris in arboris umbra.
EM LOUVOR DA VIRGEM 243
Unde lims Jesus, iinde popeiidit amor?
Ilic lachrymosa sedes, et primae noxia malris,
Gaudia crudeli fixa dolore luis,
ília fuit velita corrupta sub arbore, fruetum
Dum legit audaci stulta loquaxque manu.
Iste tui veutris preliosus ab arbore Fructus
Dat vitam Matri tempus in omne piae.
Quaeque maio primi sueco periere veneni
Suscitat et tradit pignora chara tibi.
Sed perijt tua vi ta, tui peramabile cordis
Delilium, vires occubuere tuae.
Raptus ab infesto crudeliter occidit hoste,
Qui tibi de mammie dulce pependit ónus.
Occubuit diris plagis confossus Jesus,
Ille decor mentis, gloria, luxque tuae.
Quotque illum plagae, tot te aliixere dolores;
Una etenim vobis vita duobus erat.
Scilicct liunc médio cum serves cerde, nec unquam
Líquerit hospitium pectoris ille tui:
Ut sic discerptus lethum crudele subiret,
Scindendum rigido cor fuit ense tibi.
Cor tibi dirá pium misere rupere flagella,
Spina cruentavit cor tibi dirá pium.
In te cum clavis conjuravere cruentis
Omnia, fíiiae in ligno Natus acerba tulit.
Sed cur vivis adhuc vita moriente, Deoque,
Cur non es simili tu quoque rapta nece?
Quando non illo est animam exhalente revulsum
Cor tibi, si vindos mens tenet una duos?
Non posset, fateor, tantos tua vita dolores
Ferre, nec id nimius sustinuisset amor.
Ni te divino firmaret robore Natus,
Linqueret ut cordi plura ferenda tuo.
Vivis adhuc Mater plurcs passura labores.
Ultima te in saevo jam pelet unda mari.
Sed tege maternum vultum, pia lumína conde,
Eccc furens auras verberai hasta leves:
Et sacra defuncti discindit pectora Nati
Insupcr in médio lancea cordc tremcns.
Scilicet haec ctiam tantorum summa doloruni
Dcfuerat plagis adjicionda tuis.
IIoc te supplicium, vulnus crudclo manchai:
llaec tibi servala ost poena gravisfjue dulur.
In crucc dulci figi tibi Prole volebas
244 AT.RSOS DO PADIVE JOSEPH DE ANCHIETA
Virgineasque manns, virgincosqiic pedes.
Ille sibi accepit rígidos ciim stipite clavos,
Servata est cordi lancea dirá tuo.
Jam potes, ò Mater, compôs rcquiescere voíi,
Hic tibi totiis abit cordis in ima dolor.
Quod gélida exccpit corpus jam morte solutiim
Sola pio crudum pectore vulnus babes.
Ó sacrum vulnus, quod non tam férrea cuspis,
Quam nimi.us nostri fecit amoris amor.
Ó flumen médio Paradisi è fonte refusum,
Cujus ab iiberibus terra tumescit aquis.
Ó via regalis, gemmataque janua coeli,
Praesidij turris, confugijque locus.
Ó rosa divinae spirans virtutis odorem,
Gemma, Poli solium qua sibi pauper emit.
Nidus, ubi purae sua ponunt ova columbae,
Castus ubi tenere pignora turtur alit.
Ó plaga immensi splendoris honore rubescens,
Quae pia divino pectora amore feris.
Ó vulnus dulci praecordia vulnere findens,
Qua patet ad Cbristi cor via lata pium.
Testis inauditi, quo nos sibi junxit, amoris:
Portus ab aequoribus quo fugit icta ratis.
Ad te confugiunt, bostís quibus instat iniquas;
Tu praesens morbis es medicina malis.
In te tristitia pressus solamina carpit,
Et grave de moesto pectore ponit ónus.
Per te rejecto, spe non fallente, timore
Ingreditur coeli tecti beata réus.
Ó pacis sedes, ò vivae vena perennis
jEternam in vitam sub silientis aquae.
IIoc est, ò Mater, soli tibi vulnus apertum
Tu sola hoc pateris, tu dare sola potes.
Da mihi, ut ingrediar per apertum cúspide pectus,
Ut possim in Domini vivere corde mei.
Hac pia divini penetrabo ad viscera amoris,
Hic mibi erit requies, bic mibi certa domus.
Ilic mea sanguíneo redimam delicta liquore,
Hic animi sordes munda lavabit aqua.
His mihi sub tectis erit, bis in sedibus omnes
Yivcre dulce dies, hic mihi dulce mori.
em louvor da virgem 243
Planctus Matuis
SeJ tibi cur stultis ferio damoribus aures,
Si immemorem cogit te dolor esse tiii?
Obruta tristitia, gladio transfixa cruento,
Lugubrisque sedes, et gemebunda solo:
Inque pio lacerum plagis diroque cadáver
Funere, Virgo tenes heu miseranda sinu:
Ingeminasque graves planctus, lamentaque fundens
Membra rigas lachrymis sanguinolenta piis:
Inque pios questus singultibus intima pulsans
Rumpis, et hos profers ore gemente sonos.
Nate nimis misera vulnus crudelo Parentis,
Hei mihi, tam saevis dilacerate modis.
Ó jubar, ó caeca tectum caligine lúmen,
Ó lux, ò dirá Yita perempta nece.
Quae manus indignos ausa est inferre dolores?
Têmpora cur duris sentibus ista rigent?
Quis niveas rupit rigida tibi cúspide palmas?
Quid sacrum vasto vulnere pectus liiat?
Quis tibi de pulchro roseum tulit ore colorem?
Quid periit vultus forma decora tui ?
Hoc ne caput, cujus mundi íirmissima nutu
Moenia, cumque sua sydera mole tremunt?
His ne oculis coeli sedebant astra sereni,
Solque nitens, médium cum secat axe diem?
His ne mel exibat, divinaque balsama labris?
Hoccine fons vivis ore íluebat aquis?
Haene illae, ad quarum morbis languentm toctum,
Mersaque surgebant corpora morte, manus ?
Heu quem te aspicio! non est tibi gloria, Fili,
Prima, nec in pulchro pristinus ore dccor.
Saeva cruentarunt formosum verbera corpus,
Dissiluere suis omnibus ossa locis.
Squalidus irrepsit liventia pallor in ora,
liarba riget vulsis sanguinelenla pilis.
Bracbia confossis stupucre rigentia j)almis,
Frigidus invasi crura pedesíjue rigor.
Unde rei)entinis tumuerunl aequora venlis?
Quae caput immersit dirá i)roc(3lla liium?
Nate decus coeli, quis te milii casus ademil?
Quae fera te ex ulnis abslulit unda méis?
Quo formosus abit supremi s|)Iendor Jesus
Palris? ubi est Matris oui liiit ante Puer?
24G VERSOS DO PADRE JOSEPII DE ANCHIETA
Tu míseros diílcis consolabarc parentos,
Pignorc restituens matribiis liauista pijs,
At mihi quis raptum íc funcrc reddct acerbo?
Quis lachrymas tergct I\Ialris ab ore tuae?
Quid faciam sine te, dulclssime Nate? quis aegrae
Confugium Matri, quis milii portus erit?
Tu mihi eras omni plenus dulcedine Nalus,
Tu Pater, et Sponsus, tu mihi Frater eras.
Nuuc Mater, jam non Mater, te Nate perempto,
Fratre, Patre, et Sponso mmc viduata íleo.
Non ego te posthac lassatum sohs ab nestu
Excipiam lectis, Agne benigne, méis.
Dulce nec iiUerlus Matris sine pignore nomcn
Gaudia maternis auribus alta dabit.
Traditus es canibus, mea víscera, Nate cruentis:
Praeda datus saevís es lanianda lupis.
Hei míhí, nulla subít crudo medicina dolori:
Sola gemo lachrymis exatíata méis.
Abstuht una dies maternae gaudia menti:
Tormenta, et luctus attulít una dies.
Nate quies nuper, gladíus modo Nate doloris;
Ante salus animí, nimc fera plaga mei.
Quod scelus aethereís patrasti lapsus ab oris?
Innocua admisit quod tua vita nefas?
Quid caput augustum meruit? quo crimine tortor
Supphcio aíilixit têmpora sacra novo?
Quid pia cum puro peccavit lingua palato,
Tristia ut admisto pocnla felle bibat?
Qua tibi pro culpa ferro tcrebantur aculae
Cuspidis? innocuae quid meruere manus ?
Qua tibi pro noxa rumpunt crudelia plantas
Vulnera? quid sancti commeruere pedes?
Quod fidit ob facinus divinum lancea pectus?
Yiscera quid ccrdis commeruere pii?
Tu nihil es meritus: meruere ingentia mundi
Flagitia, infundam cpia peperere necem.
Tantum humana salus nostraque redemptio vitae,
Tantus in aeterno pectore vivit amor.
Nate siles? miserae nec te lamenta Parentis
Viscera, nec tanto rupta dolore, movent?
Quis Patris imposuit tam moesta silentia Verbo?
Cur tua vox flenti non venit uUa mihi ?
Cur tua, quae mutis solvebat vincula linguis,
Muta mihi soli nunc tua lingua tacet?
FM LOUVOR DA VIRGEM 247
Qua meriii culpa tantis cruciatibus angi?
Ilacc^lc te Matri gaudia Nato rcfers?
An qiiia te blandis rccreavi mollilcr ulnis, "
Et tenor in grémio sarei na dal eis eras:
Nunc gero te totós laniatiim flebilis artus,
Et lacer in grémio sarcina tristis ades ?
An quia punireis fixi oscula blanda labellis.
Rubra mihi reddit nunc tuus ora cruor ?
Anne fuit crimen distentas nectare mammas
Dulce diu labijs inservisse tuis?
Tristia cur charam voluisti absynthia Maírem
Sumere? cur hausto cor mihi felle tumet?
Quaenara culpa fuit, quod nuUa in pectore amantis
Meta tui, nullus limes amoris erat ?
Ecce suavis amor faclus mihi tortor acerbus,
Vulneraque iníligit ossibus alta mais.
Quae dona occumbens inopi postrema Parenti,
Quas mihi legitimas Nate relinquis opes?
Hei mihi, confossae palmae, plantaeque rigentes,
Temporaque, et dire pectora rupta dabunt.
Verbera cum clavis, nodosum robur, et hastam
Sortiar, et capitis sertã cruenta tui.
Haec ego jure meo mihi debita munera saumam,
Succedamque haeres rebus egena tuis.
Hoc cultu incedam spectabilis, his ero dives
Dotibus, haec condam pectore dona meo.
Et prius hanc animam rigido mors auferet ense,
Quam médio Matris subtrahat illa sinu,
Scilicet est dcnsis mea lux immersa tenebris,
Yitaque crudeli concidit hausta nece?
Quo meus oífcndit lacto piíis Agnus Jesus,
Quid laesit Natus te, Pater alme, tuus?
Scilicet illc luat sontis perjuria mundi ?
Ille ferat poenas, quas meruerc rei?
Ne pereant sontes, ar) mortem tiaditur insons,
Dilectus servi crimine Natus obil?
Jam duro no hominum mercctur funere vitam?
.Iam saeva fuerit morte paranda salus?
Non fuit haec tanti, tua lo clcmeiília ad<'git:
Omnia ([ui vincil, te fiuof|uc viiicil amoi".
Plarige Sion dulcis crudelia lata Parenlis,
Qui mortem pro te, ne morerere, tulil.
Sic mea lux moreris? Sic te, dulcissime Jesu,
Ut vivam, sic te mors truculenta rapil?
248 VERSOS DO PADllE JOSí:PII de ANCHIETA
Tone Delira diro poluisse occiímljerc leího,
Et tua vivai, adliiic te pereunte Parens?
Certe ego eram vivens quae te vivente beata,
Nunc foelix moríens te moriente forem.
Foelix marmoreum, quo jam condere, sepnlclirum,
Accipiet Matris qiiod tua membra vice.
Ipse mea genitus cubuisli dulciter alvo,
Extincto saxum nunc tibi lectus erit.
Sed quis te rapiet Matris violentos ab ubiis?
Cur oculis aberit moesta figura méis?
Non potes avelli, tumulo condemur in uno,
Saxeaque excipiet nos simul arca duos.
riic ego complexu refovens miseraJjile corpus
Contumulanda simul, si patereris, eram.
Sed qnia non possum crudelem abrumpere vitam.
Et dolor à facie magnus abesse tua;
Tu pectus Matris servabis, Nate, sepulcbro,
Teque suo Mater pectore condet amans.
Ó mors, cur gladio mea viscera rumpis aeuto?
Sospite cur sobolem 3Iaíre cruenta rapis?
Crudelis, cur me sublato pignorc linquis?
Cur tuus in Maírem non jacit arma furor?
Blanda fores uno si telo utrumque ferires,
Cruxque sibi fixns perderet una duos.
Saeva necans Natum, parccns mage saeva Parenti,
Mitis uterque simul, si moreremur, eras.
Ultima in afllictam jam torque spicula Matrem ;
Quam sine prole facis vivere, coge morí.
Haec et plura gemis Nato, pia Mater, adempto,
Nec superest plagis ulla medella tuis.
Quis tua funesto turbavit pectora luctu?
Unde tuo cordi maeror acerbus inest?
Cur tua sordescunt effusis fletibus ora?
Cur oculis manant ilumina larga tuis?
Unde tibi gemitus tanti, tantique dolores?
Viscera quis Matris reddidit aegra piae?
Quis tua tam diro praecordia vulnerat ense?
Spicula quis venis fixit acuta tuis?
Has mea, si nescis, fecerunt crimina plagas,
Ista dedere meae vulnera saeva manus.
Corpus ego torsis ílagris, ego têmpora sertis,
Ipse fidi palmas, innocuosque pedes.
Ipse latus ferro, divinaque viscera rupi:
Causa fui Nato funeris ipse tuo, .
EM LOUVOU DA VIUGEM
Scilicet ista meão meruerunt vulnera culpae:
ílaec erat, haec noxis debita poena méis.
Legis ego fractor, puro piat ille cruore :
Patris ego laesi riumen, et ilie luit.
Crimen ego admisi, duros tulit ille dolores:
Mortis ego justa sum réus, ille perit.
Sic ego crudeiis Natum Matremque peremi,
Ille tui cordis vita suavis erat.
Me miserum, quid agam? justo tumet ille furore.
Nec tua rion meritas coricipit ira minas,
Certe ego respicio manuum cum facta mearum,
Spes mihi placandae non subit ulla tui.
Ast ubi faia tui subeunt crudelia Nati,
Spes mihi cum dirá máxima morte subit.
Non eris aspecto torvae mihi sanguine froníis,
Te pius immítem non sinit esse cruor.
Ad fera confogiam íMaterni vulnera cordis.
ília cruci affixum continet aula Deum.
Nec tua, quae hcent reseratis undique portis
Occludi poterunt mitia corda mihi.
Ut partem cx)ndas, non omnia vulnera claudes;
Surit data, quara posis condere, plura tibi.
Ipse dolor lethi, quam movit, leniet iram:
Iste pii vires sangnis amoris habet.
Tu mites lachrymis absterge parumper ocellos,
Ora tuens Nati sanguinolenta tui :
Et tristi aspectu fusi placare cruoris.
Te facili durus non crit ille mihi.
Nil tamen hic parcas, parcet mihi Filius olim,
Injice pectoribus tela cruenta méis.
Ut quod multiplici confossum cst vulnere pectus
Hora mco vellat pectore nulla tuum.
Ilas peto per plagas, mitissima, quas ego Nato,
Crudeiis Nati quas tibi fecit amor.
Fac me vulneribus, fac me fera sanguine fuso
Funera pro Domino, cum Dominoque pati.
De gáudio Mathis hesurgente Domino.
Ecce resurgit ovans tetri populator averni,
Nobilis exuvijs, et ditione potens.
Excute, moesta Parens, turbala tristia mentis
Nubila, quae Nati mors truculenta tulit.
Ecce tuus vivit tua vita suavis Jesus,
2?jO versos do padre JOSEPH de ANCHIETA
Dulcis amor cordis, deliciumquc tui.
Victor ab infernis remeat, saevique draconis
Contudit invicto squamea colla pede.
Ille sibi saevam devinxit foedere mortem,
líiimaniim rapiens in sua regna genus.
Al)sortamqiie alto retinebat viscera praedam
Pervigil ante laciis férrea claiislra sai.
Diimque fera authori molitum ílmera vitae
ímpia tartareo pectora felle livent :
Occubuit virtus victi nece jusque nocendi
Perdidit innocuo dum sine jure nocet:
Fractaque grassantis sunt jura nocentia mortis.
Et pactum, et Stygij vincula rupta jugi.
In cruce nam pendens anguem suspendit Jesus,
Et moriens morti fata suprema dedit.
Ut laceros artus, et livida membra reliquit,
Spiritus infernum luce coruscus adit.
Corripit aeratae ferrata repaguia portae,
Pandit et obscuri limina tetra lacus.
Diffugiunt tenebrae divine lumine vulíus,
Caeca tenebrosis carceris umbra perit.
Obstupet Orcus edax, vasíoque absorpta barathro
Agmina victoris calce prement vomit.
Exultans spolijs praedaque potitus opima,
Ad tumuli carpens claustra íriumphatiter.
Deformescjue artus corpusque exangue revisens.
Hórrida vulneribus membra resumit ovans,
Non jam foeda tameii, non jam passura dolorem,
Non jam sanguineis contemerata notis.
Cessit hyems rigidis poenarum dura pruinis.
Noxque procelloso sanguinis imbre rigens.
Clara dies plácido rediit cum vere, novusque
Pulchrn resurgentis possidet ora decor,
Non sic Evo cum matutinus ab ortu
Egreditur rutilo Lúcifer orbe micat.
Non sic Sol splendet radioso lucidus orbe,
Scilicet authori cedit uterque suo.
Surgi t ab obscuro radians Lux ipsa sepulchro,
iEthereus lucet qua rutilante polus.
Surgit homo ablatis specioso cà corpore plagis,
Quaque necem potuit conditione pati.
Jam non formosum deturpant hórrida vullum
Sputa, nec augustim spina cruenta caput.
Squalidus aufugit pallor, livorque tumescens.
EM LOUVOR DA VIRGEM 251
Viilneraque iníortis ingeminata flagris.
Quidquid erat foedum, reddit nova gloria pulchrum,
Gloria viventis jam sine morte Dei,
Non tamen omiiino testes abolevit amoris
Divini, et dirá signa cruenta necis.
Vulnera confossis radiant illustria palmis,
Confessos decorant vulnera rubra pedes,
Quae mucrone pii pandit penetralia cordis,
Pulchrior in médio pectore plaga rubet.
Surgit homo invictus mortis prostraíor, et Orei,
Et Deus, et Natus, Virgo beata, tuus.
Quid facis? an defles etiam nunc funns acerbum,
Crudaque quae lacero vulnera corde geris?
Desine flere, Parens, vivit regnator Jesus,
Supplicimnque animi substulit omne tui.
Nonne audis dulci coelestes você choreas,
Quae tibi victrici carmina fundit ovans?
Percipe laetitiam coeli Regina perennem
Nobilis, et palmae gaudia mira novae.
Ecce Deus, carnem cui Mater digna dedisti,
Nec pepulit castae limina clausa.domus.
Splendidus et clausi non laedens signa sepulcliri
Exiit, ut sociis dixerat ante suis.
Si tibi compescit nondum satis iste dolorem.
Et tormenta criicis nuncius atra necis:
Respice, Natus adest insigni clara triumpbi
Signa, Patrum turmas in tua tecta ferens.
Ut tua praesenti conspexit lumina vultu,
Replevit radijs ut tua corda novis:
Quis capiat, qualis tenuit materna voluptas
Pectora, quis Malris vestijt ora decor?
Ut liquefacta tibi mens est, cum dulciter aures,
Mellea vox Nati perculit illa tuas!
Ecce resurrexit nunquam moriturus, et alti
Perficit extincta morte Parcntis opus.
Una omnes gemilus, suspiria crebra, gravcsquc
Singultus, celerem corripucre fugam.
Quo magis in Matrem saevas exercuit iras
Saeva necis Nato damna ferente dolor:
Hoc magis alta tuis sese efluderc medulis
Gaudia, cum Nati mofs necc vida fuit.
Primam Natus- adit, quoniam reverentia tanlam
Jure prior Matrem gloria prima decet.
Prima vides vi rum, quia sempcr vixit in alto
252 VERSOS DO PADRE JOSEPH DE ANCHIETA
Pectore, quam primo donat honore fides,
Prima triumphantem rccipis, quia jure dolori
Debentm' cordis gaudia prima tui.
Agnoscis Natum, divinumque iiitus adoras
Numen, et apprensos procidis ante ])edes.
Agnoscit Maíris vultum, gonibusgue volutam
Erigit, oííicio fanctus et ipse pio.
Tu Dominum verum, veram colit ille Parentem:
Sic pietas múnus praestat utrinque suum.
Excipis amplexus viventis et oscula Nati,
Dulceque divino quod fluit ore meios.
Undique mira tuos absorbent gaudia sensus,
Undique laelitiae flumina larga fluunt.
Scilicet exultas, animas quod tártara Patrum
Nigra Redemptori restituere tuo.
Quod saevam extinxit Nati mors hórrida mortem.
Et redijt miseris vita salusque reis.
Quod novus exurgit fatis melioribus orbis,
Cunctaque sunt miris jam reparaía modis.
Cum subit aeterni reverentia summa Tonantis,
Quanta venit Nato gloria, quantus lionorl
Hic tua distentis penitus praecordia venis
Laetitiae norunt vix tenuisse modum.
Nempe Dei summi summa est libi gloria cordi,
Ille volnptatis solus origo tuae est. '
Fortunata Parens, mérito te magnus Olympus,
Terraque curvato suspicit ampla genu.
Cujus et aethereas domito serpente ruinas
Filius, et victa morte refecit humum.
Haec jam veridici divino pectore vatis
Concinuit Nato regia lingua tuo.
Scilicet, occumbens infamis funere ligni
Totius Imperium Rex Deus orbis babei.
Foelix quae proli tales infâmia honores,
Talia quae Matri gaudia poena dedit.
Jam secura potes cunctis gaudere diebus,
Viribus occubuit mors spoliata suis.
Quo modo procubuit sine você, ut mitis ad aram
Agnus, et innocuo sanguine tinxit humum.
Jam nunc rugitu terrens Stygia antra tremendo
Surgit, ut impavidus dum fremit ore leo.
Nuper ut imbellis sine robore captus ab hoste
Captivas dederat vincula ia arcta manus.
Nunc velut insultans armato calce tvranni
EM LOUVOR DA VIUGEM 253
Calcai Avcrnalis colla snperlja ííigas.
Hic est ill(3 bónus, cui (iir|)is adultera Joscph
Casla furens caeco cárcere membra ligat.
Jam jussu eductum magni stola byssina Regis
Ornat, et aeternam pellit ab orbe famem.
Abjectum nuper jam tota ^gyptus adorat,
Praedicat, et Dominum terra polusque suum.
Jam sua mandabit pandanlur ut liorrea cunctis
Gentibus, aggesías et reserabit opes.
Jam venlent populi síimulante cupidine edendi,
Undique frumenti quos nova fama trabit.
Ipsi cliam fratres, quorum livore peremplus,
Ut vivant buniili pabula você pelunt.
lUc ream oblltus plácido spectabilis ore.
Distribuit miserjs larga alimenta manu.
Provectum súbito mirabitur orbis lionore,
Subjicietque novo mitia cola jugo.
Submiltcnt alti sublimia sceptra tyranni.
Et ponent fastus omnia regna suos.
Soliis in immenso charum sine fine Iriumpbum
Orl)e triumphalor liex Dominusque geret.
Jam splendent alti victricia sceptra tropbaei,
Signa salutiferac non superanda crucis.
Vicit enim magni de sanguine Natus Judac
Ad praedam surgens castra inimica leo.
Dumque resurgentis celebi'is victoria Nati
Fuigebit titiilis nobilitata suis:
Tu quoquc magna Parens celebrabere, dulceque Malris
Nominc cum Nati nobile nomen erit.
Eia age, melliíluis quoniam largissima rivis
Ilac tibi j)iaudenli gaudia Ince íluunt.
Ó pia Inrbatis moerorcm mentibus alruni,
Assiduae sordes quem peperere, fuga.
Jure quidem patitur moeroris foeda voluptas
Damna, voluptali est debita poena dolor.
Sed qui crudelem culpao sine crimine poenam,
Ceu latro cum sonti sponle lalrone tulit:
Abluit insonti culpam ])oenamque cruore,
Gaudiaque ablutis mentibus alia dedit.
Jure maliis fateor vincenti subditur Orço,
Poirexit vicias cui sine jure mamis.
Sed mortis victoi- vicit quoípn; ciiniina morlis,
PerpeliKie pariunt quac nocnmenla necis.
Omniaque exciusit dextra victrice t.Manni
254 VERSOS DO PADRE JOSEPH DE ANCHIETA
Arma, qiiibiis fretus funera saeva dabat.
Quas illi invictas vires pugnator ademit,
Contulis ereptis ad fera bella reis.
Jam jacet infractus, populique adversa fidelis
Legitimo victus praeíia Marte timet.
Ergo jiibe ne quos fecit victoria Nali
Victores, victus coUa manusque liget.
Ille resurgit ovan^ nulla morituras in aevo,
Nam sat pro culpis occubuissc semel.
Spemquc resurgendi cunctis post fata reliqiiil,
Et vivit vita jam meliore Deo.
Ablaía est justis mortis formido perennis,
Nam benè pro vita vita caduca díitur.
Hac ego ne priver, culpae qui saepe ruinis
Prostratus suljij tristia jura necis:
Te semel, ò IMater, dextram pracbente resurgam
Victm^us Nato jam sino labe tuo:
Saevaque cum Domini pretioso funere jungens
Funera, viventis perfruar ore Dei.
De desíderio, et gáudio Matris in
ASCENSIONE FiLII
Emicat alma dies divino iliustris honore,
Janua qua superi panditur ampla poli.
Quae tuus, ò Mater, conscendit Natus Oiympum,
Carneaque aethereis invehit ora jugis.
Quis tua, quis sensus; quis versat viscera motus.
Dum se luminibus subtraliit ille tuis?
Hinc desiderium vehemens absentia Nati
Excitat, et médio pectore vulnus alit.
ília luo species vultus divina decori, ■
Ille animo occursat splendidus oris honor. I
Illi oculi, multa qui vincunt sydera luce,
i Unde suum coeli mutuat aula jubar. i
Illud inexhausto repletum nectarc guttur, Jj
Quaeque suave dabat lingua benigna meios: P
Cum tua mellifiuo mira eructantis ab ore
Pendebat miris mens stupefacta modis.
Hunc procul ab duci vehemens est angor amanti.
Et tali Matrem prole carere diu.
Scilicet amplexus dilecti exopíat, et omni
Tempore praesentem cernerc giiscit amor.
Ergo tuum reprimet qui íluminis impotus igneni
im LOUVOR DA VIHGEM 2i')'6
Islc quibiis Icpeat fervor amoris aqiiis.
Figis iii unanimem dearaanlia lumina Natum,
Ascensiim coeli dum snper aslra parat:
Dulciaquc cx alto suspiria pectore ducens,
Pulclira recessiiri suspicis ora gemens.
Ille piae blandis Matris praecordia vcrbis
Mollit, et eloquij temperai ora sui.
Sed quo sermo flnit divino dulcior ore,
Saucia qui leni flumine corda rigat;
Hoc maiora tuis serpimt incendia venís.
Flammaque siint ílammae dulcia verba tuae
Atamen ire sinis, desideriumque Parentis
In coelum Nati vincit euntis honor.
Taliaque exmidant maternis gaudia fibris,
Qualia quae santis, nec potes ipsa loqui.
Nam qui de Patris grémio descendit in alvum
Matris, et infernae venit in antra domus;
Ilic subit ex imis Patris ad consortia terris.
Et sua paulisper subtrahit ora tibi.
Ilic vir, hic est niveo quem foemina viscere claudis,
Ubere quem sacro cândida Mater alis.
Qui fera fata tulit, divinaque prorsus ut aeger
Carne sub infirma robora texit liomo.
Hic idem ascendit, quaequc ilU sola dedisti
Sydereis infert cárnea mcmbra polis.
Quodque diu clausit primi tenebrosa parentis
Culpa, novo tandem luminc pandit iter:
Ereptamque Orei truculento è gutture praedam
Inserit Angelicis agmina casta clioiis:
Mocnia disjecta restaurei ut alta Sionis,
Cauda quod anliqui diruit anguis opus.
Ipsc choros superans patriae consortia dcxtrae
Appelit, et summi debita jura loci;
Ilegnct ubi immenso cumulatus honore, suoque
Victa superborum conleral ora pede.
Viderat hae Psaltes, cum sacro (lamine plcnus
Falidico lales edidit ore sonos.
Dixit, et acternac íirma est sententia mentis,
Ad Dominum Dominus taba verJja meum.
Altus in aeterna regna mecum arce, mcamquc
Ad dextram aequalis dariis honoi'e sede.
Donec victa tuis siip|)onani iiostilia sccptris
Agmina, ceu prdibus sírala scabclla tuis.
Proferct Imperium sublimi cx aice Sionis
256 VERSOS DO PADRIí: JOSEPII de ANCHIETA
Virga poícstatis per loca cuncta tiiae.
In médios Princeps dominaberis inclytus hostes,
Ncmo tiio nusqiiam victus ab ense cadit.
A te cunctaruni manant primordia rerum,
Sumque tibi aeqaali numinc junctiis ego.
Ilac sancti aeterno cmitti splendorc videbunt,
Quo tua monstraris ora beata dit.
Tu sine princípio médio de pectore, et alto
Ex iitero genuit te Deus ante jabar.
Juravit Dominus, nec eum jurasse pigebit,
Nec poterit verbi poenituisse sui.
Tu sine fme manes aeterna lege, sacerdos
Ordine pacifici Melcbisedecis eris.
Ipse tibi á dextris Dominus, tu regia franges
Sceptra, dies irae cum volet ampla tuae.
Jucidiique tui demissis vultibus omnes
Horrendum gentes ante tribunal erunt.
Antiquas totó reparabis in orbe ruinas,
Multorum in terra communiesque caput.
Torrentes ávido potabis gutture lymplias,
Calce terea arctam dum properante viam.
Nobilis id circo super alta cacumina coeli
Divinum tolles Rex Dominusque caput.
Haec, generosa Parens, magni sacra lingua Proplietae
Dixit, opus Nali vaíicinata tui.
Cujus ad aspectum cupide licet igne ílagranti
Pectoris aspires uon patiente moras;'
Laeta tamen remanes placidis fotura sub alis
Pignora delicijs lactis alenda tuis.
Scilicet aspicient vultum Genitricis alumnum,
Quae colere incepit turma sacrata Me:
Insolitumque tui reverebitur oris honorem,
Et tantumx fidei luce micabit opus.
Quaque Deum mundo peperisti, ut mortis iniquae
ímpia deleret funere jura suo:
Nunc quoque viventi paries sacra pignora Nato,
Exulat à vultu dum tua vita Dei.
Plurimaque advenient ad veram concita vitam
Agmina, vivorum tu pia Mater eris.
Sic amor, et pietas pacato augescet in orbe,
Et Domini crescet gloria, crescet honos.
Ne tamen abscedens dilectae dulcia Matris
Liquerit omninò Filius, ora pius:
lUe vehit secum Matris super aetliera mentem:
VM LOUVOU DA VIUOEM 2a7
Est ariimi reqiiies scilicct illo lui.
Ta rcliiiens Nalum cordis pcnctralibus abdis;
llic lucus est illi diílcis et alta quics.
Sic abiens remanet praeseiis in pectore Matris,
Sic is, cum diílci tu quoque Prole inanes.
Posce precor sursum diílcis mea raptet Jesus
Pectora, dum carnis me remoraíur ónus.
Fac DoraÍQum médio conclavi cordis amatum
Complectar, coeli dum super alta sedet.
Te quoque, dum longi Natas mihi tarda relicto
Prorogat auxilij têmpora, iMater, amem.
Forsitan mdignum placidis spectabis ocellis:
Sic pietas Matris major amantis erit.
Allectumque trahes operum splcndore tuorum:
Foelix si Matris chartis alumnus ego.
Foelix pro dulci si das milii Prole subire
Pectore sanguineam non trepidante necem.
De Spiritu saxcto
Jam super aethereas Dominas consccnderat arces,
Victor ab infernis ampla trophaea ferens:
Ad dextram([ue Patris sólio sublimis in alto
Sub stratum mundi despiciebat opus.
Praecipuè Solymam defixus lamina in urbem,
Tecta Sionae spectat, arnica domus; •
Cactus ubi tecum, Mater dignissima, Fratuni
Degit, et assíduas fundit ad astra preces;
Flagrantemque alto suspensus ab aethero mentem,
Expectat Domini grandia dona sui.
Jamipie aderat decimas, postqaam penetrarat Olympum
Pontiíicis siimmi splendida Ibi-ma dies:
Cum Pater omnipotens divinam, et Filias, aaram
Aspirant superi de regione Poli.
Utque ruens denso quatit impetuosas ab axe
Alta repctino tarbinc tecla notas:
Mocnia sic tonilru terrens excelsa tremendo
Irruit à summo Spiritas ore Patris:
ímplevitque sacram divinis ílatiijas aedem,
Oua sacer ille clioras, taqae beala sedes.
Flamma simul crebris vibranti lamine linguis
Aítliereo exurens coida caloi-e mical.
Incalvere aiiimi, serpil divinas in altis
Visceribus íibi'as [tertoris Ignis edcns.
VOL. !l 17
258 VERSOS DO PADRE JOSEPH DE ANCHIETA
Vix capiunt tantos flammantia pectora motus,
Intima dum penetrat Spirilus ora ruens.
Erumpunt adytis siibitó, linguisque profantur
Omnibns aeterni faeta stiipenda Dei.
At tua quis capiat quod pectora ílumen inundet,
Quae repleat mentem gratia, Virgo, tuam?
Sed te quae repleat divino numine plenam,
Alma Parens, meritis gratia adaucta tuis?
In tua se nondum concluscrat author Olympi,
Vera Patris soboles, viscera factos Iiomo:
Et jam divinus mentis possessor, et autlior
Spiritus implerat grandia tecta tuae.
Quid non adducit, tbalami ciim clausíra pudici
Implevit sumens cárnea membra Deus?
Ergo quid accipias, cum sis plenissima? namque
Undique vas plenum plenius esse nequit.
Sed tibi plena satis cumulo repleris amoris,
Ut per te nobis det sua dona Deus:
Quaeque tibi superest, in nos divina redundet
" Per Matrem Natis gratia danda tuis.
Spiritus ergo borms per te suae praestet egenis
Munera, dum tali você prccamur opem.
Spiritus alme veni, coelique elapsus ab arce
Mitte bónus lucis lumina clara tuae.
Huc ades, ó inopum Pater optime, cujus egenis
Natorum ornari nomine praeslat amor. .
Huc, ades, aethereis cumulas qui pectora donis,
Cordis inextinctum lúmen, et ignis edax.
Huc ânimos miti recreans solamine, mentis
Dulce refrigerium, dulcis et hospes, ades.
Tu bona temperies saevo ferventis in aestu .
Solis, et in duro grata labore quies.
Dulcia pro fletu solatia reddis acerbo,
^ Tristia ab afflicto nubila corde lugans.
Ó lux alma, tuos ruliío splendore fideles
Illustra, ex auimis nubila densa fugans.
Te sine nil pulchrum, niliil est sine labe, tuoque.
Si quid babet vitae, numine vivit Iiomo.
Ablue continuis sordentia pectora culpis,
Aridaque effusis imbribus ora riges.
Vulnera percussae sana lethalia mentis,
Flecteque duritia quae malé colla rigent.
Divino refove frigentia corda calore,
Obliquum errantis dirige mentis iler.
KM LOlVOa DA VIRGEM 2o0
Da soplenna tiiis, quorum es spcs única, servis
Dona, quibus sanctum viscera Flamen aiis.
Da tibi quae placcat virtutem, ac íine beato
Gaudcrc, aeterua laetitiaque frui.
Ilac tu, dum sanctus pulsatur você gemenlum
Spiritus, aíllicíos respice Mater amans:
Teque precante tuis divini donet amoris
Divitias famulis dextera larga Dei.
Quaeque semei dederit, longum conservei in aeuum;
Et nullo noster lempore cesset amor.
De tp.ansitu Beat.e Marl*:
Clarior Eois effulget splendor ab oris:
Pulchrior haec rutilis initet hora comis,
Hunc fermosa Parens Solis rota clara micanlis
Axe libi revehit splendiore diem.
Ilaec tibi syderei jani limina pandit Olympi,
Per te quae miseris jam patuere reis.
Regia te ínvilat tuus ad convivia Natus,
Flumina ubi lactis, flumina mellis eunt.
Te vocat ad patriam coeli, libi debita regna,
Finit et exilij têmpora longa tui.
lUe abijt vida formosus in aetliei-a morte,
Imperiumque Pauis victor in arce tenet.
Tu Mater nostris remoraris provida rebus,
Exerccsque piae dulce Parentis opus.
Pascis adliuc teneros jucundo nectare natos.
Ora carent solidis donec inepta cibis.
Dum tua crèdentes populos praesentia firmai,
Crescit in ignitis cordíbus aucta íides
Christiadum celeber tua currit ad ostia caetus,
Quos tua pellectos undique fama trahil.
Miranlur sacrae divinum frontis honorem,
Quodquc tua aetbereum possidet ora decus.
Vix explerc queunt ânimos oculosque, tuendo
Lumina solari lucidiora face.
Vix humana tui majestas praedicat oris
Quis fuerit venliis fructus lionorque tui.
Et nisi jam noscat Dominum sacra turba Deumque,
Tc veri numen ci'edat liabere Dei.
Tanta tuo virtus divino elíulgel in ore, *
Tantus honor vitae, gloria tanta tiiae. '
Foeliccm dirunt, omniquo cx parle bealam,
2G0 w.RSOS DO PAonE josiipn de Anchieta
Cui sacra virginitas, gloria Matris adest.
Et te foelices coram divina videre
Lumina Reginae qui meruere siiae.
Verba qiiibus licuit coelcstis diílcia liiiguae
Audire, et sacrum Matris ab ore meios.
Quis tibi, quis seiísjs, cum Nati numeii adorans
Coníluit ad portas plebs numerosa tuas?
Quae pedibus calcans simulacbra obscoena deorum
Ante tues humili procidit ore pedes?
Crescit honor Nati, crescunt tibi gaudia mentis:
Hic est laetitiae fons et origo tuae.
Dum te terra procul coeii remoratur ab aula,
Quae tibi servata est debita jure domus:
Aut raperis sursum, superisque immista quiescis,
Divinoque ignis pascitur igne tuus:
Aut trahis è coelo materni cordis amorem,
Inque tuo Natum pectore voluis amans.
Nunc animo versas foelicia têmpora, menses
Cum tua conceptum condidit aula novem.
Nunc recolis sacri laetissima têmpora partus,
Exivit claustri cum síne labe tui:
Virgineoque infans exuxit ab ubere néctar,
Libasti et roseis oscula blanda genis.
Interdum sequeris lassi vestigia Nati,
Dum lacerum humeris praegave portat ónus.
Jam repetis fusum teuera de carne cruorem,
Octavo cultrum cum tulit aegra die:
Et tua manarunt laclirymaruni lumina rivos,
Yagilus querulo cum darct ore Puer.
Jam subeunt menti, quae munera praestiíit agris,
IMunera funestis invidiosa viris.
Jam juvat amplecti conspersum sanguine lignum,
Unde Deus moriens, unde pependit homo.
Quo virtus lassa est, extinctaque vita, saíusque
Languit, et vicírix mors superata fuit.
Jam repetis tunmlum, sanctumque amplexa cadáver,
Solvitur in lachrymas mens liquefacta pias.
llaec desíderio dulcis meditaris Jesu,
Si qua animi fiammam temperet unda tui.
Acrius illa tamen suffusa accenditur unda,
Quemque foyes semper foríius urit amor.
Ilaeret adhuc oculis Nati ascendentis imago,
Qui secum mentem vexit in astra tuam.
lllius nmplexus, divinaque postulat ora,
EM LOUVOr. DA VII5GEM 2G!
Quac nisi non aliiid novit amare Deum.
Cr,el)raqiin posl dulccm mittit suspiria Natiini}
Oiialiaqno ò médio peclore promit amor.
Qualis, iibi venis penetral)ilis liaesit arundo,
Fhimineas cerviis faiiciíis optat aqiias:
Tal is incxhaustas, Deus alme, aspirai ad undas
Mens mea, qiiam crudo vulnere loesit amor.
Quando erit ut carnis vinclis ac mole solutus
Ante sui venial spiritus ora Dei?
Luce madent lachrymis mea lumina nocte:
Isle rneo sempcr volvi lur ore cibus:
Dum mea mens crebro quem diligit aegra requirens
Dicil, Ubi est vitae luxque Deusque meae?
Quam formosa diu condit mihi Filius ora!
Quam procul aufugit Malris ab ore suaef
Haec ego dum crebris medilor singultibus absens.
Deficit, et nimio languet amore sinus.
IIuc ades, ò Fili, lua te suspirai, el orat
Mater, in aetliereos egrcdiamur agros.
Sydereos lecum cupio simul ire per bortos,
Et trahere ae ternas le remorante moras.
Te sitil iiic animus, te mens liaec esurit aegra,
Te cupit intuilu liberiore frui.
Surge age, nec charae difter medicamina Malri
Vulnus alo venis, nec palienter amo.
Tc sine nec vivo, nec te sine, Nale, quicsco;
IIuc ades, ò i\Ialris vila quiesque tuae.
Pande tuam faciem, divinaijue lumina tandem
Detege luminibus conspicienda méis.
Talia dum jactas coeliim suspiria in allnm,
Ultima ut exilij luceat bora lui:
Blanda pium Natum pietas, amor urgel amantem:
Frangilur, et Malris viclus amore venit.
Siste pios gemilus, lacbrymas abslergc fluentes.
Ultima per róseas baec íluat unda genas.
Ecc^, tui .lesus, el ílamma, et flumen amoris,
Erce venit flelus causa modusque tui:
Inque tuam septus lurmis coelestibus aediun
Intrat, et bos dnlci dal libi você sonos.
En tibi, quem quaeris tam longis queslibus, adsum.
Et Deus, et vilae vita ])eata tuae.
Rumpe columba moras levibus pulclieri-ima pennis,
Nata Patri, Nato Mater arnica veni.
IníiMc méis landcm recuba íbeliciler ulnis,
262 VERSOS DO PADRE JOSEPII DE ANCíIlETA
Ilic locus est ulnac quem meriiere tiiac.
Tristis hyems abijt, venerunt florida veris ,
Têmpora, purpureis deliciosa rosis.
Hac tibi lux tandem transacta nocte perennis
Luxit, et aeterno clarus honore dies.
Rumpe moras, veri Mater cape gaudia Nati,
Inque sinu Patris nata recumbe tui.
Quis capiat, Virgo, Dominum dum cernis, et audis,
Quae fuerit mentis gloria luxque tuae?
En venio, dulci respondes você, Deumque
Mens tua corpórea libera m.ole petit.
Inque tui recubat Nati sopita lacertis,
Dulcis et irrepsit per sacra membra sopor.
Et moreris vitae. Mater, mortisque subactrix
Cogeris humana conditione mori.
Sed dolor omnis abest, et sensus mortis, ut omnis
Abfuit à partu visque dolorque tuo.
Virgineum nitido servatur mármore corpus,
Et níveus condit cândida membra lápis.
Turba frequens Patrum sanctum comitata cadáver
Astat in exéquias oííl ciosa pias.
Pro lachrymis flores, pco tristi carmina planctu
Fundit, et bos laeto concinit ore modos.
Salve saucta Dei genitrix, Regina triumphans
iEtheris, aeternae nobile mentis opus.
Quod Pater ex útero, medioque è pectore Verbum
Flammiferum solus protulit ante jubar:
Hoc sola intacto tu Mater ventre tulisti.
Dura médium tacite nox peragebac iter.
Aula poli Mater, divini foederis arca,
Quae miseros miti pectore condis, Ave.
Tu basis es, sanctum quae fulcis áurea Templum,
Robur, et aetherea flrma columna domus.
Quae mens cumque tuae virtuti innititur, hostes
Yincit, et immoto stat bene firma gradu.
Nata tuum pariens intacto ventre Parentem,
Splendida Yirginei forma pudoris. Ave.
Virgíneo nemo tibi, Virgo, suasit honorem
Dehcijs moesti praeposuisse tori.
Sed tu virtutum doctrix, dux óptima vita est,
Et sequitur gressus foemina, virque tuos,
Janua clausa Poli, soli via pervia Regi,
Quae coeli nobis ostia pandis, Ave.
•Per te crudelis miseri servamur ab Orço,
EM LOUVOR DA VIRGEM ^^
Redditur et saluus, qui fuit ante réus.
Natoriimque Dei pulchro laetamur honore,
Hoc domi, hoc nobis dat tua vita decus.
Flamma corusca Poli splendorem Solis obumbrans,
Tristia quac pellis iiubila cordis, Ave.
Jam tua sydereos caetus, et caetera vincit
Gloria, quain radians astro minora jubar.
Laudibus ut Matris funus maioribus ornent,
Omnia sunt meritis inferiora tuis,
Cur tamen angusto remoratur corpus in antro?
Ampla qiiid in saxo clauditar aula brevi?
Surge Dei templum, totó domus amplior orbe:
Non bene lata brevi conditur aethra loco.
Non decet ut viles rodant puríssima vermes
Viscera, factorem quae genuere suum.
Nfjn decet ut putri tabescat pulvere corpus,
Corpus honcstatis forma, pudoris honor.
Tártara qui pedibus calcans post funera victor
Vivit, et infregit jura severa necis.
Hic te de tumulo divina luce coruscam
Suscitai, inque ulnis tollit ad astra suis.
De mihi te levibus, pulcherrima, prosequar alis,
Sydereae penetras dum loca summa domus.
Ó utinam semper mea mens tibi serviat uni,
Perpetuusqiie tui me remuretur amor!
De Exaltatione r.LORios.i: Virgims Mari e super omnes
CHOROS AnCELORUM
Jam super excelsi radiosa cacumina Olympi
Tolleris, ô Yirgo Mater, et alma Dei.
Jam super Angélicas, assumeris inclyta sedes,
Accipis et pi'iinum gloriíicata locum.
Sydera resplendent, spatiosiis panditur aethcr,
Agmina concedunt inferiora tibi:
Et merilae reddunt subeunti munera landis,
Taliaqiie ingenti carmina você canunt.
Salve Yirgo Parens Domini digníssima nostri:
Ó Dominae, ó nostri gloria prima chori.
Qui vastum mundi pugno rom[)l('ctil!ir orbem,
Visceribus clausit se, bencdicla, luís.
ília suo nostras reparavit funcre sedes,
Refecitque, draco quod laceravit opns.
Eriíit, in tenebris qnos Tnrfaius abdidit imis.
2C4 VERSOS DO PADRIi JOSEPH Dl;: AXCIIIETA
HuraanamquG sibi jiinxit amoro genus.
Salve itcrum nosíri castíssima ]Mat(3r .Tnsii,
Ó (lecus, ò splendor, delicininqnc l\)!i.
Has tibi dnni resonant dulci modulaminc landes,
Ultorius tcndis tu spcciosa gradam.
Virtutes Dominam sursum vcncrantiir euntcm,
PerquG Potestates fit via lata tibi.
Te sanctum aeterni tíialamimifiiic íiironumque Parentis
]\íagniricant, laudant, gloriíicantque Throni.
Quam" sibi delegit Patris Sapicntia sedem
Imiumeris Clierubim laii(lil)us accumiilant.
Ardorem nimij Seraphim mirantur amoris,
Quo repleta tibi pectora saneia ílagrant:
CiiJLis adusta tibi liquefiant viscera ílammis,
Ignis iit admoío cera calore flnit.
Corporis integritas nivei sine labe piidoris,
Et mens, virtuíum qiiam replet omne genus;
Reginam superam te constitucre Polorum,
Cuncta tibi ut flecíat coelica turba genu.
Qui te veridici post têmpora longa Propbetae
Viscere clausuram praecinuere Deum;
Jam te divinis regnantem laudibus ornant,
Es cum Prole canunt te sine fine tua.
Turba Ducum ac Regum, soniorumquc iuclyta Palrum,
Imperiale tibi ducitur unde genus,
Te colit, et magni titubs exaltai bonoris,
Te Matrem Domini progenuisse sai.
Subdit Apostoíicus tibi se, pulcherrima, caetus,
Et pleno laudes iníonat ore tuas.
Quique suas Agni lavere in sanguine vestes,
Martyrij exornat quos rubicundas lionor:
Cândida purpureis incincti têmpora sertis,
Ante tuos gaudent procubuisse pedes.
Cujus ope adjuti tantos meruere triumpbos.
Hórrida vicerunt praelia cujus ope.
Sacra Sacerdotum Coníessorumque caterva
Lumine lata tuo te veneratur amans.
Dulcia Yirgineae modulantur jubila turmae.
Laetitiaque hymnos liberiore canunt.
Victrices pulchfo tibi tendunt ordine palmas,
Reginam et gaudent ante ferendo suam.
Tu specie intemerata tua pulcberrima Kegis
Filia, fers pulcbros prospere ad alta gradus :
Regnandum ut capias justo moderamine coelum,
EM LOUVOR DA VIRGEM 265
Sccptra gorons miti saeciila aincta manu.
Et tanto Ari![íelicis sedeas siipercdita turmis.
Quanto ilHs nomen dignius alta geres.
Illi obcimt etenim Domini mandata ministri,
Tu Mater magni dicerfs esque Dei.
Innumerae pergimt post te, inviolata, puellae,
Pectora portantes Principis ante thronum.
Quas sibi perpetuo divini Natus anioris
Conjunxit sponsas foedere, Virgo, tuus.
Ipsa sed ante omnes super exaltata beatè
Ante thronum Triadis praemia digna capis.
Omnipotcns Natam placidis amplectitur ulnis
Lumine circundans splendidiore Pater:
Et tibi pius cunctis coelestia muiíera donat,
Mensura ut laudis sit prope nulla tuae.
Nempe (minor qiiamvis tua sit) tamen ista superno est
Cum Paire communis gloria, Virgo, tibi.
Quod tuus est Natus superi Patris única proles,
Estque idem Natus, qui tuus ipse, Patris.
Filius insigni vestit virtute Parentem,
Et sedem juxta te jubet esse suam.
Cujus in aspectu regali splendida cultu
Virginis effulgot gloria, "vlatris lionos.
Ipse amplum vasti Sol verus temperat orbis,
Justitiae claro lumine cinctus, opus.
Ipsa velut plenac fácies perfecta Dianae
In celso resides nobilitata throno:
Regius ut cecinit divino carmino Psaltes,
Ante tuum clamans saecula multa decus:
jEternumque manes testis super aslra fidelis,
Quod carnem ex útero sumpserit ipse tuo.
Ut carne aeterno raperet de funerc carnem,
Donaretque liomini sydera verus homo.
Tequc creaturis praeponeret omnibus unam,
Imperiuni et Matri traderet omne suac.
Spiritus oximio te incendit sanctus amore,
Providit Sponsam quam sine labe sibi.
Cujus amplexu tu strictius omnibus haeres
Dum frueris vultu deliciosa Dei.
Malorum pulchri te stipant undique fruclus.
Et fulciurit rubris languida amore rosis
Virlutum cultu llorens, el amabilis omni
Pingeris, el varijs dotibus aucta nites.
Jam geris aeternum, coeli Regina, triumphum,
366 VERSOS DO PADRE JOSEPH DE ANCHIETA
Regale in pulchris et diadema comis.
Terra, maré, et magni servit tibi regia coeli,
Paret et ad niitum macliina tota tibi.
Tgnivomi rutilo vestris solis amictii,
Sternitur et pedibus lúcida luna tiiis.
Bissinae exornant stella radiante capillos
Luce, corona tuum nam decet ista caput.
Quae superas ©mnes multo santíssima sanctos,
Vincis et angélicos purior ipsa choros :
Post vários sancta requiescis in urbe labores,
Coelestemque rcgis sanctificata domum.
Electo in populo divinae munere dextrae
Consita radices altior arbor agis.
Estque aeterna tibi summa cum pace potestas
Moenia qua Solymae religiosa nitent,
Et velut in Libani procera cacumina cedrus
Tollit odori feris sidera ad alta jugis:
Sic tuus ambrosios late diífundil odores
In nivea coeli candidus arce pudor.
Surgit ut in celso cypressus monte Sionis,
Sic tibi sublimem suspicit alta Sion,
Et summae immensam speculans deitatis abyssum
Clara vides cunctis clarius ora Dei.
Ut nocte irradiat transacta lucifer orbem,
Sic tuus aethereo splendor in axe micat:
Diffundisque Polo rádios, et clarius aula
Coelestis rutilat lampadis igne tuae.
Virgíneas ducis per Olympica templa choreas,
Utque satae redoles in Jerichuníe rosae .
Ut crocus, et nardus fragans, ut spirat amomum,
Balsamaque, et cálido thura cremata foco:
Sic tua divinis unguenta flagrantia ílammis;
Sidereae replent urbis odore vias.
Distillant mirrhae tua vestimenta liquorem,
Qui non corrumpi pecíora nostra sinit.
Cuncta fluunt late de te pigmenta, tuique
Virginei Coelum recreat oris odor.
Ut viror eíTulget speciosae gratus olivae,
Quae gravida in latis brachia jactat agris :
Datque olei pingues blandis foecunda liquores,
Quod tactu sanat languida membra suo:
Sic tu pulcbra nimis coelestibus Ínsita campis
Fertilis aeterno planta virore nites:
Maternaeque oleum fundens pietatis abunde
il
EM LOUVOR DA VIUGEM 267
Mortiferis curas saneia corda malis:
Mollificoque ungis faetentes ungnine plagas,
Et medica sanas ulcera tacta manu.
Jure petunt omnes à te, pia Virgo, salutem,
Quae cunctis omni es tempore certa salus.
Jure tibi gemitus, lachrymasque effundimus omnes,
Omnes materna cum tuearis ope.
Funde, precor, nobis coeli, mitissima, rorem,
Et largo steriles de super imbre ríga.
Quae satã perpetuac juxta torrentia vitae.
Flumina, divinis usque virescis aquis.
Qualis ad undantis decursus confita riví:
Stat platanuSj densis luxuriansque comis:
Tu veniam culpis pieíate referta precaris,
Et relevas nocuos, quos mala multa gravant:;
Et tua divinas clemeníia mitigat iras,
Subque alis míseros occulit aequa reos:
Luminaque abstergis lachrymis sordentia moestis,
Solamen duris dasquè benigna malis:
Tu nos ad coelum directo tramite ducens
Dirigis, et prava non sinis ire via.
Per tua qui intrépidos íigit vestigia gressus,
Amplectens vitae facta decora tuae:
Hic palmam laudis victo feret boste triumplians
Perpetuae, et veras pacis liabebit opes.
Per te tartareis Cacodemonis aegra caminis
Ira suis penitus viiibus orba jacet.
Qui quondam bumanae possessor mentis iniquus
Regnabat cunctis imperiosus equis:
Caecaque multipliri coiivoluens pectora gyro
Reddebat Stygijs libera corda malis:
Tu saevum expugiias cquitem, nimiumque furentes
In nigra praecipites tártara trudis equos:
Virgineoque teris íaliacom calce colubrum,
Keddis et á Stygijs libera corda malis.
Quae totum immani rugi tu circuil orbem,
Comprimitur pedibus bestia saeva tuis.
Et ne sanguineis miseiiun terat Ímproba malis,
Sorbeat et vasto ventre cruenta pecus.
Tu vírtute tui nitens fortíssima Nali
Bella patrúm fortes ut tueare geris.
Et praedam excutiens conlringis more molares,
Gutturaque elidis sanguinolenta ferae:
Victriccmque refers pugnatrix inciyla palmam. '••
268 VERSOS DO PADRE JOSEPII DE ANCHIETA
vElliereae pandis estia lata domus.
Quin eliam, ut siimmo íiat via lil)era coelo,
Ipsa pates famulis ampla fenestra tuis.
Omnia qui mortem perimentem morte peremit
Victor, et infernas dilaceravit opes.
Hic tibi dat regnum qiià coeli amplíssima moles.
Máxima qiià tellus aequora vasta patent.
Hic tibi taríareas dat conculcare catervas
Victore, et moríis colla snperba, pede.
Ó foelix tua sors, ó foelicissima vita
Corporis, atqiie animac gratia tanta tuae.
Ó foelicem istum, quo te Rex gloria Jesus
Ad dextram in supero collocat orbe, diem.
Divina resonat coeii tibi Cúria laudes,
Mellifluumque uno concinit ore meios.
Tota tuo exultans tellus gratatur honori,
Quaque potest pangit carmina você tibi.
Nos quoque te Dominam coeli super alta sedenlem
Laudamus servi pectore et ore tui.
Laetamur Matrcm te praemisisse benignam,
Quae nostris fauírix provida rebus cris.
Quaeque recepisíi scandens sublimis ín altum,
Quae divina tibi dextera dona dedit:
Haec pia distribuas nobis, et semper habebis
Munera, quae pueris des pretiosa tuis.
Gaudemus, quoniam speramus posse remitti
Ó clemens per te. debita nostra.Parcns.
Gaudemus, quoniam nostrae turpissima vitae
Crimina nunc meritis sunt abolenda tuis.
Gaudemus, quoniam nescit tua gloria linem.
Gloria virtuli debita prima tuae.
Jam Regina tenes dextram, dulcique quiescis
Amplexu Nati colloquioque fruens:
Exultasque modis miris, mensuraque amoris
Ista tui nullum novií babere modum.
Quò magis Authori grata est tua forma supremo,
Quò magis artificem diligis ipsa tuum:
Hoc te, Virgo, magis colimus, veneramur, amamus.
Et per te cupimus posse pi acere Deo.
De mi-dioque altum laudamus pectore Pairem,
Laetaque carminibus solvimus ora novis.
Quòd talem fmxit, talem te fecit, ut olira
Nec simibs fuerií, sit vè futura tibi.
Ergo prccare tuum, cbarissima Filia Patrem,
EM LOUVOU DA VIItUEM 26í)
Namquc dabii, Natae quae volet ipsa suae.
Ergo precaro tuimi. Mater mitissiiiia, Natum
Namque dabit Malri quae volet ipsa suae.
Ergo precare tuum, Yirgo puichei'iima, Sponsum,
Namque dabit Sponsae quae volet ipsa suae.
Posce, feres quaccumque voles, riiliil ille negabit,
Cum dederit veiitri se manibusque tuis.
Cuncta Pater Nato, Natus dedit omnia Matri
Virgínea miseris distribuenda manu.
Effice jam septem repleri pectora donis
Nostra, quibus mentis Spiritus intus alit.
ToUe, precor, sursum nos trás de pulvere mentes,
Ut cupiant superi gaudia vera Poli.
Fac desidcrio divini ardescere vultus,
Quem requies summa cst, summa videre salus.
Da Triadem nobis credendo nosse beatam,
Nascendoque unum semper amare Deum.
Ó Jubar aetliereum, coelestis lucifer urbis,
Lucidior media stella corusca die.
Monstra Virgo tuum noJjis formosa decorem,
Ostende ò faciem tota decora tuam.
Monstra virginei laetissima lumina vultus,
Quorum lacipoli ciariíis aula micat.
Lux radict nobis oculorum pm-a toorum,
Lumina te ut solam nostra videre juveí.
Eloquere, in nosíris vox intonet auribus ista,
Vox pia quae dulci dulcis ab ore íluit.
Insere le nostrae [)lacido cum pignore menti,
Ut nequeat vultus non Aeminisse tui.
Ut Dominam casto veneretur amore potentem,
Diligat et Matrem debito lionore piam.
Liber ut aethereas conscendat spiritus Arces
Corpórea postquam mole solutus erit.
Tequè duce, et tecum Domino sine íine fruamui-.
Quem trinum, aíque unum credimus esse Deum. ^
Lauta ubi divjnae cai)iamus fercula mcnsae,
Inque epulis laudem vox modulala sonfU:
Perpetuo et Sanctus repetaiuus carmitie, Sanclus,
Sanctus cum Nato Spiritus, atípie Pater:
Et per cuncta tuas caní(!mus saecula laudes,
Nobilis ò Mater, nobilis aula Dei.
270 VERSOS DO PADRE JOSEPH DE ANCHIETA
UlTIMLM CoLLOQUIUM AD VmC.INEM GLORIO?AM,
Ó mea mens, quid adluic torponti pigra sopore
Stertis, et iii médio puhere lenta jaccs?
Surge age, riimpc moras, superi penelralia coeli,
Ut Dominam propius conluearis, adi.
Funde preces, lachrymasque pias, et Matris adorans
Numina, virgíneos ante recumbe pedes.
Scilicet in coelum sine me, mea Mater, abisti?
Juisti in coekrni me sine, Yirgo Parens?
Nec potui vidisse óculos, quibus ignea cedunt
Astra, quibus casti splendor amoris inest?
Pulcbra nec audivi labiorum verba tuorum,
Gratia melle favo dulcior unde fluit?
Nec misero licuit suavi mihi .Aíatris ab ore
Excipere extremum, dum petis astra, vale?
Quam mea mens foelix audita hac você valeretf
Quam mihi vita foret, quam mihi certa salus?
Hei mihi, cur neqnij superis tam nota ministris
Introijsse tuae hmina sancta domus?
Auderem miti prosterni lumina coram,
Ampíecíique tuos, si paterete, pedes:
Plurimaque imprimerem matcrnis oscula plantis^
Pectoris exponens intima vota mei.
Et si muta mihi cum gutture lingua taceret,
At manifesta sui mens tibi signat daret.
-• Audires certè, nec dedignata, misellum,
Agnosceres famuli vota precesque tui:
Aspiceresque oculis indignunt laeta benignis,
Largaque, quam peteret, plus daret ista manus.
Nunc ego desertus, charisque parentibus orbus,
Unde mihi vitae mi te juvamen erat:
Flebilis incedo, procul hinc quia dulcis Jesus;
Flebihs incedo, tu quia duicis abes.
Ille volans nuper rapidus velut hinnulus, ivit
Ad juga Bethelis deliciosa suae:
Inque sua regnat cinctus virtutibus aula,
Cumque Patre imperium Rex habet altus idem.
Tu modo me miserum lachr3"marum in valle relinquens,
Ad collem thuris pulchra Columba venis:
Inque tui requie foelicia gaudia Nati
Percipis, innumeris accumulata bonis.
Lumina divino pacis radiosa decore,
In médio recubans lumine cincta die.
KM LOUVOU DA MUGEM 271
Qua lo Virgo sequar, qua le pulcherrima qiiaram?
Nam sine te sui)erant gaudia nuUa milii.
Forsitan obdormis divino absoila sopore,
Nec tibi cura tui, nec tibi cura mei esl?
Cogit ut obtundam multis libi vocibus aures,
Qui me sollicitat niistus ainore dolor.
Sed tibi ne rumpam jucundi gaudia somni,
Et timor, et chari vox vetat ípsa tui.
Nemo meam clamans dilectam suscitet, inquit,
Ipsa quousque libcns evigiiare velit.
Ó dilecta Dei, ne sim tibi furte molestus,
Dic mibi quando voles evigiiare libens?
Sed quid adhuc dubito? quoties labor urget iniquus
Pectora, te toties vis benedicta vocem.
Surge igitur citius, quia me mea crimina semper
Excruciant multis noctc dieque modis.
Surge, quid obdormis curarum cura mearum,
Ó arx tuta animae confugiumque meae?
Quare Yirgo tuum averlis mitissima vultum,
Nec quam sim vilis, pauper, inopsque vides?
Surge Dei genitrix, faciem converte benignam,
Ut mea mens oculis obviet aegra tuis.
Sed quid ago? en audis; sed vox mea laucibus haeret,
Mens stupet, algescunt pectora, lingua silet.
Quid poscam ignoro, posco tamen omnia Mater,
Ó Mater, mea spes, gloria, vita, salus.
Posco tuum Natum Mater, tuiis omnia Natus,
Ipse Deus cordis Kex Domiriusque mei.
Spiritus hic solum desiderat ager Jesum,
lUe ctenim nobis omnia solus erit.
Sit mea lux, requies, dulcedo, gloria, virtus,
Sitque meae mentis, sicut amator, amor.
Hanc milii, quem médio concludis corde,. videre
Da post exilij têmpora dui-a mei.
Te quoque cum pulclna desidero Prole videi'C
Post acta exilij têmpora dura mei.
Iloi milii, quam muitos durat mea vita per annos!
Quam nimium longas diicit acerba moras!
Quando erit illa dies, misera qua sarcina carnis.
De qua sumi)ta fuit, lestilualur liumo?
Quando erit, ut coelum mens libera lendat in altum,.
Amplexu Domini porfruitura sui?
Quando videbo tuum, coeli H('giii;i. decorem,
Nobilis ó animae te cui»ienlis amor?
272 VERSOS DO PADRE JOSEPH DE ANCÍIIETA
Sed qiioniam Jesus, ciijiis mibi vita voluntas,
Me tuus iii terris Filiiis esse jubet:
Dum moror in terris, óculos super astra levabo,
Inviscns Dominae íumina pulclira meae.
Speque gemens dulci cupidum solabor amorem.
Et desiderio conterar usquc tui.
Si potero non esse tui mernor, inclyta Mater,
Si te non totó pectore semper amem.
Si possis non esse méis dulcedo medullis
Intima, laetitiae principiumque meae:
Haereat arenti cúm gutture lingua palato,
Immemor et penitus sit mea dextra sui.
Tu tibi commissum, mitissima, protege servum,
Deque tua tolli ne patiare manu.
Tu clypeus fortis, murus, será, janua, turris,
Óptima tu custos pectoris una mei.
Sed videam citiús duicem, mea gaudia, Jesum,
Nec miserum lentis me, precor, ure moris.
Pande tuum tandem dulci cum pignore vultum.
Sola meam pellet visio vestra faraem.
Si mihi, quam cupio, viventi cernere formam,
Fas prohibet vestram, cogor et ante mori.
Protinus ut videam, moriar, jam vivere nolo,
Opto mori: vera est vita videre Deum.
Sed te per Nati communem obtestor amorem,
Quo tibi non aliquid dnlcius esse potest.
Ut jubeas (tibi posse dedit tuus omnia quando,
Nec tibi nequicquam est Filius ipse Deus)
Ut jubeas sancto Domini })ro nomine Jesu
EíTuso claudi sanguine fata mihi.
Ut qui me redimens lethum crudole su])ivit
Sanguinis effundens ilumina larga sui;
Me quoque pei^pessum crudelia funera servum
Noscat, et aeterno jungat amore sibi.
Qui me plusquam se mitissimus Agnus amavit,
Ut summo offerret me sine lalje Patri;
Ille meae novit mortis tempusque modumque:
Nec secus id fieri, quam volet ille, volo.
Sed quoniam quoduis íieri vult ille, facitque,
Te precor hoc, clemens, ut velit ille, velis.
Ut quae labe carens omni concepta fuisti,
Concludi facias hoc mea fata die.
Aut (hoc si mavis) tibi quo super aethera Natus
Tradidit ad dextram regia scentra suam.
EM LOUVOR DA VIUGEM 273
Tiinc ego, tunc foelix, tunc omni ex parte beatus,
, Tunc venicnt aiiimae gaudia plena meae.
Ilacc spes igna\iim pellet jucunda timorem,
Quae manat Nati de bonitate tui.
Ilacc spes reficiet mihi languida pectora dulcis,
Quae manat Matris de pietate meae.
Quae licet aegra cadat, cum me, et mea turpia facta;
Cum tamen aspicio te, snblt alta mihi.
Ilaec mihi, Yirgo, Parens, in pectorae fixa manebit,
Inque meo vivet non peritura sinu:
Donec, quam spero, venial praesentia Jesu,
Aspectusque tiius, quo sine fine fruar.
Foelices, quos sancta tui praesentia Miltus
Jam fouet, aeternos laetificatque dies.
Qui cura vacui, dubioque timore soluti
Jam tuti Dominam, quam coluere, rident.
Noster adhuc vario jacta tur turbine lembus.
Et vix adversas remige sulcat aquas.
Teque voluptatis pota torrente perennis,
Ilaec sitit in médio mens agitata sale.
Foelix illa dies, qua pleno è flumine totum,
Et Nati, et Matris me satiabit, Amen.
Petitiones ple ad Virginem Mariam per ordlnem
ALPHABETl.
Ara Dei vivcns, divini foederis Arca,
Conde luo miserum me benedicta sinu.
Basis adorandum quae fulcis áurea templum,
Pectora sustenta robore noslra tuo.
Cerva, alitur cujus gravissimus ubere foetus,
Pasc« tuo mentem lacte benigna meam.
Dume flagrans, paradise Dei, dulcisque voluptaâ,
Sis calor, et requies, dilitiaeque mihi.
EfOgies referens divinum pulchra decorem,
In me perpetuo vivat imago Dei.
Flamma corusca Poli splendori Solis obumbrans,
Pelle mei tenebras cordis, et omne Chãos.
Gutta gravis fluvio, dulçor fluit unde perennis,
Mentem arere meam ne patiare siti.
Hydria, qua pinguis llumen juge manat olivae,
Unge animi plagas pinguis oliva mei.
Janua clausa Poli, soli via pervia Regi,
Sydereas pandat jam tua dextra fores.
VOL. 11 18
274 VERSOS DO PADRE JOSEPH DE ANCHIETA
Lana verecundo cocei Lis lincta colore,
Tinge tuo, et Jesu pectus amore mihi.
Mensa referta cibo, qui coelum nutrit, humum((iie,
Me tuus exsatiet, me creet iste cibiis.
Nata tuum pariens intacto ventre Parcntem,
Sit mihi cum partu vita pudica tuo.
Ora maris, statio jactalis fida carinis,
Excipe me, tumidi quem ferit unda freti.
Purpura, Rex sumpsit de qua sibi tegmina summus,
Exue me culpa, justitiaque tege.
Quadriga, et currus, ferclumque ultoris Jesu,
Da mihi sublimem Virgo suprema manum.
Regina astrigeros orbes, terramque gubernans,
Facta tua sit vitae regula vita meae.
Sylva virore jugi divini ubérrima íructus.
Me tua foecundis protegat umbra comis.
Turris in aetherea sublimior orbe Sionis,
Sis arx à saevis liostibus alta mihi.
Vua merum fundens omnis non pressa saporis.
Me rape, me absorbe, tuque tuusque liquor.
Christigena exhalans divinos área odores,
Nostra tui recreet víscera cordis odor.
Zona pudicitiae, castique ligamen amoris.
Perpetuo renes cinge pudore meos.
Dedicatio operis
En tibi quae vovi, Mater sanctissima, quondam
Carmina, cum saevo cingerer hoste latus.
Dum mea Tamuyas praesentia mitigat hostes.
Tractoque tranquillum pacis inermis opus.
Hic tua materno me gratia fovit amore,
Te corpus tutum mensque regente fuit.
Saepius optavit Domino inspirante dolores.
Duraque cum saevo funere vincla pati.
At sunt passa tamen meritam mea vota repulsam,
Scilicet Heròas gloria tanta decet.
EM LOUVOR DA VIRGEM 27J
IIoR.^ Immaculatissim.e Conceptionis ViRGiNis IMari^
Ad Matutinum
Temporis íongi miseratus orbis
Condítor fletum, senio gravatam
Angelum summo sólio Polorum
Mittit ad Annam.
llle supremae paries senectae
Filiam dicit superi Parentis,
Quae suo claudet genitum beato
Viscere Verbam.
Haec creaturas superabit omnes,
Omnibus foelix memoranda seclis,
Nuntio gaudet Joachim beatus
Certus eodem.
Sit Patri, Nato decus, et beato
Flamini, et sanctae meritae Puellae^
Quae carens omni macula creatur
Múnus honoris.
Ad Primam
Terminal noctis tenebras Maria,
Gaudium mundi jubar exoritur
Praevium Solis, decoratque coelum
Mane rcbcscens.
Jam maris pulchra mediante Stclla
Gaudeat tellus, maré, noxijquc
Criminum, Jesu Genitrix benigna
Nascitur orbi.
Jubilant eives, superi, stupescit
Ordo naturae sterilem Parentem;
Virginem nasci sine labe saevus
Ingemit Orcus.
Sit Patri, Nato decus, et beato
Flamini, et mira specic decorae
Virgini, cujus radiatur ortu
Maciíina landis.
270 mirsos do padre joseph dl£ anchieta
Ad Tertiam
Missus è coelo Gabriel Mariae
Nuntiat Yerbura Ibre virginali
Ventre clausui^am Patris. unde manet
Gratia mundo.
Hic Ave canta t, reparatur Eva,
Gratiae Virgo fideique plena
Credit, et magni sobolem Parentis
Concipit alvo.
Spiritus sanctus refovens obumbrat
Quae Dei sese famulam profatur,
Gumque sacrata gravidam coaptat
Virgine 3\Iatrem.
Sit Patri, Nato decus, et beato
Flamini, et laudes meritae Mariae,
Quae Dei Natum meruit sub arca
Claudere ventris.
Ad Sextam.
Surgit in montes propcrans Judae
Virgo praeconem Domini gerentem
Visitans matrem, plácida propinquam
Você salutans.
Audit ut vocem genitrix Mariae,
Ventris exultat puer in cubili
Virginis clausum thalamo supremum
Numen adorans.
Virginem mater resonat beatam,
Sed Greatori referens Maria
Gloram, digno modulatur ore
Jubila landis.
Sit Patri, Nato decus, et beato
Flamini, et dignae tibi Virgo laudes,
Cujus ad vocês hilaratur infans
Viscere clausus.
Ad Nonam.
Sol refulgescit, tenebrae fugantur,
Lux Polum vestit, radiatque terris,
Exit effectum caro de Parente
Virgine Verbum.
EM LOUVOR DA VIRGlm 277
Gloriam canlant acies Poloriim
Ijumíiium Patri, placidamque terrae
Nuntiant pacem, Puerumque natuni
Urbe Davidis.
Pastor accurrens videt involutum
Parvulum pannis, paleis, jacentem,
Quem sedet juxta, niveoque lactat
Ubere Mater.
Sit Patri, Nato decus, et beato
Flamini, intactae gravido pudori,
Oiiae Patris Verbum peperit superni
Gloria Matris.
Ad Vésperas,
Ô tuum qiianti gladius doloris
Cor penetravit Genitrix salutis,
Dum vides dalcem perimi cruento
Funere Natuml
Nempe ciim serves médio repostum
Corde, quos senti t, toleras dolores,
Quae tuum Natum, tibi perforarunt
Vulnera pectus.
Fac simul tecum crucier dolore
Eiuians plagas Domini cruentas,
Vcpribus, ílagris, cruce, morte, dirá,
Vulnerer hasta.
Laus Patri, Nato, paritcrque sancto
Flamini, et Matri decus ingementi,
Cuí dolor Nati penetravit alto
Corda dolore.
Ad Completorium
ToHit ad coelos animam Redemptor
In siiis ulnis Genitricis almae:
Candidum Fratres niveo recondunt
Mármore corpus.
Guria Jesus comitante Olympi
Portat è coelis animam, suoqiio
Corpori jungit, meritumquo Matri
Pendit lionorem.
278 VERSOS DO PADUE JOSEPII DE ANCHIETA
Manna de saneio tumulo scalurit,
Trinitas Matrcm super Angelorum
Ordines tollit, Dominamque toti
Praeficit orbi.
Sit Patri, Nato, pariterque sancto
Flamini virtus; Dominaeque mundi,
Quae Deum juxta residet pereniiis
Munera laudis.
Recommendatio
Has preces fundo tibi, Virgo Mater,
Quae cares naevo speciosa tota,
Ut mihi in casto tribuas pudicam
Corpore mentem.
Amen.
LAUS DEO.
SUMMAUIO CIIRONOLOGICO
DOS
SUCCESSOS NOTÁVEIS QUE SE REFEREM NOS LIVROS III E IV
DESTA CHRONICA
ANNO DE 15G3
Foi a colheita n'este anno menos copiosa, por occasiao de huma grande
pestilência, num. 1.
Qualidade da doença, força do mal, exemplo notável, num. 2.
Cliegão de Portugal quatro obreiros, num. 3.
Vão por diante com maior força os assaltos dos Tamoyos em S. Vicente,
num. 4.
Prega o Padre Nóbrega por púlpitos e praças penitencia, ibid.
Tem sentimento de ir meter-se entre os l)arbaros, pêra acabar com elles
pazes, ou pêra acabar entre elles a vida, num. 5.
Parte, levando por companheiro o Irmão Anchieta, ibid.
Doscripção do lugar fronteiro dos Tamoyos, num. 7.
São hospedados os Padres; levautúo Igreja e sacriíicão com espanto
dos bárbaros, num. 8.
Ensinão a doutrina christãa, são bem ouvidos, ibid.
Descobrem os índios a Joseph suas traças e forças de guerra,. num. 9.
Eoi mal tomado o tracto das pazes no Rio de .Janeiro. Partem diversos
Priíicipacs a matar os Padres, e estorval-os, num. 10.
Entrão em conselho das pazes; proposta de Almbirè, reposta dos Pa-
dres, num. 11.
Segundo perigo dc-vida, quí.' liverão os Padres, num. 13.
280 SuMMARio Chronolooico
Acaba em bem o intento de Paranapuçu num. 14.
Chega de fora Pindobuçu, e pratica que fez ao filho, num. 13.
Fim ditoso de Pindobuçu, ibid.
Segundo conselho, razões dos Padres e dos anciãos, num. IC.
Resolve Nóbrega partir-se pêra S. Vicente, e deixar Joseph entro os bár-
baros, num. 17.
Trata em S. Vicente do ultimo fim das pazes, num. 18.
Perigo e segurança, Joseph só e acompanhado, num. 19.
Toma Joseph por advogada a Virgem Nossa Senhora, e compõe a vida
da mesma Senhora em verso, num. 21 e Í22.
Maravilhas, revelações, e profecias, num. 22 a 2o.
Bautiza huma criança a ponto de morrer, e dá-lhe com a graça a vida —
Segundo caso de outro, que bautizou depois de enterrado, num. 2C e 27.
Enredo diabohco pêra estorvar as pazes, levantamento dos do Rio,
num. 29.
Chegão índios de S. Vicente, descobre-se o fundamento do enredo, ac-
ceitão-se as pazes, num. 31.
Parle Joseph em huma canoa de casca, num. 33.
Ultimo embuste contra as pazes, ibid.
Padece Joseph huma fera tormenta, num. 34.
Dá Joseph cumprimemo á palavra que dera à Senhora de perfeiçoar sua
vid:. num. 35.
No Espirito santo trabalhão os Padres em aquietar as dissenções entre
Portugueses e índios, num. 37.
ANNO DE 1564
Fome geral e extraordinária, suas consequências, num. 38 a 40.
Compras dos índios, duvidas que houve, e resolução da Meza da Con-
sciência, num. 41.
Dão-se por livres os índios comprados, fora da resolução referida, e o
mais que sobre isto houve, num. 41a 44,
Fundação do CoUegío da Bahia por El-Rei D. Sebastião, num. 45.
Passa a melhor vida o Padre Diogo Laines, Geral da Companhia, num. 46.
Edifica-se Templo e Casa pêra os Padres na villa dos liheos, num. 47.
Descripção da capitania e villa dos Ilheos, num. 48.
Rio das Contas, num. 49.
Rios Taygpe, de S. Jorge, e outros, num. 50 a 52.
O senhor da capitania Jorge de Figueiredo Corrêa, manda em seu lugar
Francisco Romeiro, num. 53.
Fortiíica-se, e assenta a villa dos Ilheos, num. 54.
Segundo senhor da capitania Lucas Geraldes, guerra dos Aimorés, num. 55.
Despede Mem de Sá huma frota ao Rio de Janeiro, num. 56.
Apresta e despede a frota, num. 57.
DOS SUCCESSOS NOTÁVEIS 281
Chega o Capitão mór á barra do Rio, e manda chamar o Padre Nóbre-
ga, num. 58.
Successo maravilhoso com que forão salvos os nossos d'entre os Ta-
moyos, num. 59.
Sahem os Padres a terra, e fazem acção de graças, ibid.
Parte o Capitão mór Estacio de Sá pêra S. Vicente, num. 60.
Difíiculdades da empreza, ibid.
Sentimento e pratica do Padre Nóbrega sobre a empreza, num. 61.
Determina o Capitão mór seguir as palavras de Nóbrega, num. 62.
Traças com que Nóbrega convence á empreza os ânimos dos soldados,
num. 63.
Assenta pazes com alguns Principaes do sertão, e ajudão estes a empreza,
ibid.
Ajunta Nóbrega soccorros consideráveis, num. 64.
ANNO DE 1565
Acha-se a Bahia em grande cuidado do successo da Armada, num. 65.
Acrescentão-se na Bahia duas classes, huma de Latim, outra de Theología
moral, num. 66.
He eleito em Roma por Geral da Companhia o Santo Padre Francisco de
Borja, num. 67.
He eleito o Padre Ignacio d' Azevedo por Visitador geral d'esta Província,
ibid.
Transito do Padre Diogo Jacome na villa do Espirito santo. Epitome de
suas acções, num. 68 a 71.
Parte a Armada de Estacio de Sá, e chega á barra do Rio, num. 72.
Conhece Josepli o animo dos Índios, e aquieta-os com suas promessas,
num. 73.
Entra a Armada no Rio, começão a fortificar-se em terra, num. 74.
Fazem os Religiosos pratica aos soldados Europeos e índios, num. 75.
Faz pratica o Capitão mór, num. 76.
Primeiro assalto do inimigo, e primeira victoria dos nossos, num. 77.
Segunda victoria, e casos maravilhosos, num. 78 a 80.
De hum notável acommetimenlo dos inimigos, e victoria que tivemos d'el-
les, num. 81.
Como foi guardado o Padre Gonçalo de Oliveira entre muitas frechas dos
bárbaros, num. 82.
Sabe o Capitão mór, e faz grande destroço, num. 83.
Outra victoria de sessenta e (piatro canoas inimigos, num. 84.
Ultima victoria deste anno, num. 85.
Parte Joseph pcra a Bahia, a ordenar-se de ordens sacras, num. 86.
Visita a casa e aldeãs do Espirito santo, num. 87.
282 SuMMAnio Chronologio
ANNO DE 15(56
Continua o Padre Gram com o seu costumado fervor do bem das aldeãs,
num. 88.
Chega o Irmão Joseph á Bahia, e ordena-se, ibid.
Desejos com que na Bahia se esperava o Padre Ignacio de Azevedo,
num. 89.
Sua viagem, e fruito que fez no Cabo verde, ibid.
Chega o Padre Ignacio á Bahia com cinco religiosos, num. 90.
Assento da visita, e forma da patente, num. 91.
Estado em que achou a Província, num. 92.
Parte a visitar a Província em companhia do Governador e do Bispo, e
leva comsigo o Provincial, Joseph de Anchieta e outros três Padres,
num. 93.
Em S. Vicente gozão da quietação das pazes, num. 94.
Descobrem os nossos índios a cilada de seus contrários, num. 95.
Successo maravilhoso, obtido por intercessão do martyr S. Sebastião,
num. 96.
Primeiro encontro de huma canoa de Francisco Velho, num. 97.
Segundo encontro de quatro canoas do Capitão mór: livra Deos os nos-
sos, ibid.
Origem da festa das canoas, na cidade do Rio de Janeiro, num. 98.
ANNO DE 1567
Chega Mem de Sá com sua armada segunda vez ao Rio de Janeiro,
num. 100.
Aconmaete Estado de Sá a fortificação de Uraçumiri, põe-na por terra
com grande estrago, num. 101.
Morte de onze ou doze dos nossos, e ferimento grave do Capitão mór,
num. 102.
Acommete-se a segunda fortificação, e põe-se por terra com ultimo des-
troço dos inimigos, num. 103.
Fazem os Portuguezes acção de graças, e começão a edificar nas ensea-
das, num. 104.
Passa o Capitão mór Estacio de Sá a melhor vida; suas virtudes, num.
105.
Descripção do Rio de Janeiro, num. 106.
Serrania dos Órgãos, num. 107.
Bahia do Rio de Janeiro, num. 108.
Parte o Padre Visitador com os mais companheiros pêra S. Vicente,
num. 109.
Tratao os Padres Visitador e Provincial de sua visita, ibid.
Revelações do Padre Joseph, num. 110.
DOS SUCCESSOS NOTANTÍS 283
Segunda revelação de liuma índia, que deo a vida pela castidade, num.
111.
Outro caso semelhante, num. 112.
Parte o Padre Ignacio de Azevedo de S. Vicente, num. 113.
Livra Deos a Ignacio e seus companheiros do perigo de huma baléa,
ibid.
Chegão ao Rio, e aceilão o sitio pêra nosso CoUegio no meio da cidade,
num. lio.
Faz-se justiça do herege João Boles, num. 116.
Converte o Padre Josepli este herege, e incorre em suspensão do seu
oíncio sacerdotal, ibid.
Parte o Padre Visitador pêra a Bahia, deixando no Rio de Janeiro os
Padres Nóbrega e Joseph, num. 117.
Visita de caminho as capitanias do Espirito santo, e outras, num. 118.
Chega á Bahia, e he recebido com alegria de todos, num. 119.
Promove a boa creação da mocidade, num. 121.
Fazem dous Padres e hum Irmão a primeira profissão de formatura que
vio o Brasil, num. 122.
Celebra o Padre Ignacio Congregação Provincial, em qiie he eleito Pro-
curador geral da Província em Roma; parte pêra ahi a 14 de Agosto,
ibid.
Vai o Provincial Luis da Gram a entabolar a residência de Pernambu-
co, num. 123.
Continua o Governador Salvador Corrêa de Sá com o edifício da nova
cidade no Rio de Janeiro, e o Padre Nóbrega com o do CoUegio, num.
124.
Morte do Padre António Rodrigues, epitome da sua vida, ibid. até num.
128.
Estado do Padre Nóbrega, num. 129.
Do valeroso índio Martim Aííonso de Sousa, num. 130.
Vem contra elle grande força de inimigos Tamoyos e Francczcs, num.
131.
Prepara-se pêra o conflicto, faz pratica aos seus; matança dos inimigos,
num. 132 a 134.
Chega o soccorro de S. Vicente, c parte a tomar falia do inimigo de Cabo-
frio, num. 13.j.
Parte o Governador a acommeter huma náo artilhada no Cabo-frip, ibid.
Esforço do Capitão da náo, e successo da sua morte, num. 13C.
Entrão os nossos a náo, rendem-na, c fazcm-sc á vela, ibid.
584 SUMMARIO CfmONOLOíUO
LIVRO QUARTO
ANNO DE 1569
Tudo n*este anno na Bahia são saudades e esperanças do Padre Ignacio,
num. 1.
Chega Ignacio a Portugal, causa grande abalo a voz das cousas do Bra-
sil, e da sua santidade, num. 2.
Carta do Arcebispo D. Frei Bartholomeu dos Martyres pêra o Papa Pio
V, num. 3.
Foi grato ao Rei, parte pêra Roma, e do que alli obra, num. 4 e 5.
Chega a Portugal, e com elle muitos companheiros, num. 0.
Alista outros companheiros, e retira-se com elles pêra Vai de Rosal,
num. 7.
Dispõe aUi huma como oíTicina do espirito, num. 8.
Força do exemplo, mortificações, exercícios e devações, num. 9 a 16.
ANNO DE 1570
Passa O Padre Ignacio com os seus de Vai do Rosal pêra a Casa de S.
Roque; edificação que derão na cidade, num. 17.
Embarcão-se, e parte a frota, num. 18.
Formão os nossos hum coUegio na náo San-Tiago, num. 19.
Seus exercícios a bordo, num. 20 e 21.
Chegão á ilha da Madeira, onde são agasalhados, num. 22.
Alcança licença o Mestre da náo San-Tiago pêra ir á ilha da Palma,
num. 23.
Partem da ilha da Madeira, num. 25.
Apparece Jacques Soria com cinco nãos, sahe contra elle o Governador
Vasconcellos, e não aceita o conflicto, ibid.
Todo o tratto dos nossos são desejos do martyrio, num. 26.
Desembarcão junto a Terçar Corte, num. 27.
Ahi gastão cinco dias; resolve-se Ignacio a partir por mar, num. 28.
Partem do porto de Terça Corte, num. 29.
Avistão cinco náos, que esquadra era, e que intentos traz, ibid. até num. 31 .
Preparações pêra o combate : pratica do Padre Ignacio a seus companhei-
ros, num. 32.
Anima o Padre Ignacio os soldados, num. 33.
Principio da peleja e successos d'ella, num. 34.
Esforço de Ignacio, e protestação da sua fé, num. 35.
He ferido pelos hereges, e cabe desmaiado, ibid.
Acodem os companheiros, e despedem-se do seu pastor, que passa a me-
lhor vida, num. 36.
Successo do Irmão Bento de Castro, num. 37.
DOS SUCC12SS0S NOTAVKIS 28ô
E (lo Irmão Diogo Pires de Nicea, 37.
Sliccesso de outros Irmãos, num. 38, 39 e 40.
Rende-se a náo San-Tiago, num. 41.
Exemplo de hum soldado esforçado, ibid.
Saque da náo pelos hereges, num. 42.
Lanção ao mar o corpo defunto do Padre Ignacio, num. 43.
Enlregão aos Irmãos o trabalho da bomba, com aífrontas e máo tratamen-
to, ibid.
São levados á presença de Jacques Soria o Mestre e Calafate da náo, e o
Irmão Simão da Costa, num. 44.
Sentença de morte contra os matadores do soto-Capitão, ibid.
São levados os Irmãos pêra o castello de proa, despojados de seus vesti-
dos, e carregados de affrontas, num. 4o.
Dá sentença Jacques Soria contra os Religiosos, num. 47.
Execução da abominável sentença, num. 48.
Como se houverão no mar, num. 49.
He escolhido o Irmão Sanches Cozinheiro, num. 50.
O Irmão S. João encheo o numero de quarenta, supprindo a falta do Ir-
mão Sanches, ibid.
Revelação da Madre S. Thereza de Jesu, num. 51.
Poema do triumpho dos Martyres, num. 52.
Desacato sacrílego com que os hereges tratarão as cousas sagradas,
num. 53.
Parte a esquadra inimiga pêra a sua terra, num. 55.
Parte o Irmão Sanches pêra Bayona, e chega a Lisboa, ibid.
Resumo da vida do Padre Ignacio de Azevedo, num. 5G a 04.
Fim desgraçado de Jacques Soria, e de alguns de seus companheiros,
num. 65.
Authores que escreverão do santo varão Ignacio, num. 66.
Epilogo dos mais companheiros, que morrerão pela fé de Christo, num.
08 a 109.
Já o mundo llies dá o titulo de Martyres, antes de declarados pelo Sum-
mo Pontiíice, num. 110.
Successo do Governador D. Luis de Vasconceilos, num. 112.
Parte a frota pêra o Cabo Verde, onde contrahe doenças, num. 113.
Avistão terra do Brasil, e arribão a Nova Hespanha, num. 114.
Dispõe-sc o Padre Nóbrega pêra morrer, num. 115.
Sabe a despedir-se pela cidade pcra a outra vida, ibid.
Como se houve no ultimo dia de vida, num. IK).
Recopiiação da vida e virtudes do Padre Manoel da Nóbrega, num. 117
a 142.
Casos maravilhosos que lhe acontecerão, num. 143.
Epilogo finai, num. 147.
Poema latino do Padre Josephd'Anchiela em louvor da Santíssima Vicgem
APPENDICE
A
CHRONICA DA COMPANHIA
DE
JESU
DO ESTADO DO BRASIL
NESTA SEGUNDA EDIÇÃO
Como documenlos comprobativos, preciosas e inleressanlcs por wais
de hum respeito, pareceu convefiiente enriquecer a presente edição
com as seguintes cartas escriptas do Brasil pelo Padre Manoel da
Nóbrega, zeloso e incansável obreiro da vinha do Senhor, e cujos
trabalhos apostólicos figuram tão notavelmente n esta Chronica. Para
aqui as trasladamos, transcrevendo-as de diversos volumes da Re-
YiSTA DO Institcto HiSTORico E Geogíiapuico do Brasil, onde fo-
ram publicadas pela primeira vez, copiadas dos respectivos originaes,
que se conservam nos Archivos de Lisboa e Rio de Janeiro.
CAUTA 1
AO P. M. SIMÃO RODRIGUES, PROVINCIAL DA COMPANHIA
DE JESUS EM PORTUGAL
A graça e amor de Nosso Senhor Jesu Clirislo seja sempre cm nosso
favor c ajuda. — Amen.
Sómonte darei conta a Y. R. de nossa chegada a esta terra, e do
que n'ella fizemos e esperamos fazer em o Senhor Nosso, deixando os
fervores de nossa prospera viagem aos Irmãos, que mais em particular a
notaram.
Chegámos a esta Bahia a 29 dias do mez de Março de 1449. Andámos
na viagem oito semanas. Adiámos a terra de paz, e quarenta ou cinco-
enta moradores na povoação «jue antes era. Receberam-nos com grande
alegria. E achámos uma maneira de Igreja junto da qual logo nos apo-
sentámos os Padres e Irmãos cm umas casas a par d'ella, que não foi
pouca consolação para nós- para dizermos missas e confessarmos. E n"isto
nos occupamos agora.
Confessa-se toda a gente da armada, digo a que vinha nos outros
navios. Porque os nossos d;it(.'rminámos de os cfnífessar na não. O pi'imeiro
domingo que dissemos missa foi a (juarta dominga da (juadragesima.
Disse eu missa cedo, e todos os Padres c Irmãos confirmámos os votos
que tínhamos feito, e outros de novo com muita devoção c conheci-
mento de Nosso Senhor, segundo pelo exterior é licito conheoer. Eu
prego ao Governador, e á sua gente na nova cidade (jue se comera, e o
VOL, II IV
290 AÍ'1'I£.ND1CE
Padre NavaiTO á gente tia leiTít. Espero em Nosso Senhor fazer-se fruilo,
posto que a gente da terra vive toda em peccado mortal. E não lia ne-
nhum que deixe de ter muitas negras, das qiiaes estão cheios de íillios
c he grande mal. Nenhum d"elles se vem confessar, ainda queira Nosso
Senhor que o façam depois. O Irmão Vicente, rijo ensina a doutrina aos
meninos cada dia, e lambem tem eschola de ler e escrever; parece-me
l)om modo este para trazer os índios d'está terra, os quaes tem gi-andes
desejos de aprender, c perguntados se querem, mostram grandes dese-
jos.
D'esta maneira ir-lhes-hei ensinando as orações e doutrinando-os na fè
até serem hábeis para o báutismo. Todos estes que tratam comnosco,
dizem que querem ser como nós, senão que não tem com que se cu-
bram como nós. E este só inconveniente tem. Se ouvem tanger á missa
já acodem, e quanto nos vêem tazcr, tudo fazem, assentam-se de giolhos,
batem nos peitos, levantam ^is mãos ao Ceo. E já um dos principaes
d'elles aprende A ler, e tema lição cada dia com grande cuidado, e em
dous dias soube o a, b* c todo, e o ensinámos a benzer, tomando tudo
com grandes desejos. Diz que quer ser Christão, e não comer carne hu-
mana, nem ler mais de uma mulher, e outras cousas, somente que ha-
de ir á guena, e os que captivar, vendel-os e servir-se d'elles. Poi-quo
estes d'esta terra sempre tem guerra com outros, e assim andam todos
em discórdia, comem-se uns aos outros, digo os contrários. ííe gente
que nenhum conhecimento tem de Deos. Sem Ídolos, fazem tudo quanto
lhes dizem. Trabalhamos de saber a lingua d'elles, e uMsto o Padre Na-
varro nos leva a vantagem a todos. Temos determinado ir viver com as
aldeãs como estivermos mais assentados e seguros, e aprender com
elles a lingua, e ir-lhes doutrinando pouco a pouco. Ti-abalhei por tirar
em sua lingua as orações e algumas praticas de Nosso Senhor, e não
posso achar lingua que m'o saiba dizer, porque são elles tão brutos que
nem vocábulos tem. Espero de os tirar o melhor que puder com um
homem que n'esta terra se creou de moço, o qual agora anda muito oc-
cupado em o que o Governador lhe manda, e não está aqui. Este ho-
mem com um seu genro he o que mais conlirma as pazes com esta gen-
te, por serem elles seus amigos antigos. Também achámos um Princi-
pal d"elles já Christão bautizado, o qual me disseram, que muitas vezes
o pedira; e por i§so está mal com todos seus parentes. Um dia, achan-
do-me eu perto d'ellc, deu uma liofelada grande a um dos seus por
CAUTAS íiO PADliJC NOUHKCA 291
Uic (lizLTin.il d3 MÓS, Oii outra cousa semulliaatc. Auda muito fervente
c grande nosso amigo. Demos-lhe um barrete vermelho que nos ficou do
mar, e humas calças. Traz-nos peixe e outras cousas da terra com
grande amor. Não tem ainda noticia de nossa fé, en8Ínamos-lli'a; Madru-
ga milito cedo a tomar lição, e depois vai aos moços a ajudal-os ás
obras. Este diz, que fará CUristãos a seus irmãos e mulheres, e quantos
puder. Espero em o Senh.or que esfeha de ser um grande meio e exem-
plo para todos os outros, os quaes lhe vão já tendo grande inveja por
verem os mimos e favores que lhe fazemos. Um dia comeu comnosco
á meza perante dez ou onze, ou mais, dos seus, os quaes se espantaram
do favor que lhe dávamos. Parece-me que não podemos deixar de dar a
roupa que trouxemos a estes que (pierem ser Christãos, repartindo-lh"a
até ficarmos todos iguacs com elles, ao menos por não escandalisar aos
meus Irmãos de Coimbra, sj souberem que por falta de algumas ciroulas
íleixa uma alma de ser chrislãa, e conhecer a seu Creador e Senhor, e
dar-lhe gloria. Ego pro mi ia tanto positus irjne charitatis non cremor.
Certo o Senhor quer ser conhecido d"estas gentes, e communicar com
elles os tliesouros dos merecimentos da sua paixão sicut aliquem te au-
lUvi prophctautem. E por tanto mi per compelle multas intrare naves et venire
aã Itanc, quam plantat Dominus vineam suam. Lá não são necessárias le-
tras mais que para entre os Christãos nossos, porém, virtude e zelo da
honra de Nosso Senhor he cá mui necessário. O Padre Leonardo Nunes
mando aos Ilheos e Porto Seguro, a confessar aquella gente que tem no-
me de Christãos, porque me disseram de lá muitas misérias, e assim a
saber o fruito que na terra se pôde fazer. Eile escreverá a Vossa Reve-
rendíssima de cá largo. Leva por companheiro a Diogo Jacome, para en-
sinar a doutrina aos meninos, o que elle sabe bem fazer. Eu o fiz já en-
saiar na náo, he um bom filiio. Ntjs todos três confessaremos esta gen-
te, e depois espero que Irá um de nós a uma povoação grande, das
maiores c melhores d"esta terra, que se chama Pernambuco, e assim
em muitas panes apresentaremos e convidaremos com o Cruxificado.
lista me parece agora a maior em[)reza de todas, segundo vejo a gente
dócil. S(')mente tomo o mátj exemplo que o nosso (^iiristianismo Hk.-s dá,
porque ha homens que lia nove e dez annos (pie se não confessam. E pa-
rece-me que põe a febcidade cm ler muitas mulheres. Dos Sacerdotes
ouço cousas feas. Parecc-me que devia Vossa ileverendissima de lem-
l)rar a Sua Alteza um Vigário Geral, porque sei que mais moverá o te-
20á APPEiNDICE
mor da justiça qae o amor do Senhor. E nSo ha óleos para ungir, nem
para bautizar, faça-os Vossa Reverendissima vir no primeiro navio; e pa-
rece-me que os havia de trazer um Padre dos nossos. Também me pa-
rece que Mestre João aproveitaria cá muito, porque a sua hngua he se-
melhante a esta, e mais aproveitar-nos-hemos cá da sua Theologia. A terra
cá acharaol-a boa e sãa. Todos estamos de saúde; Deos seja louvado, mais
sãos do que partimos. As mais novas da terra, e da nossa Cidade os Ir-
mãos escreverão largo, e eu também pelas nãos quando partirem. Crie
Vossa Reverendissima muitos íilhos para cá que todos são necessários.
Eu um bem acho n"esta terra, eque não ajudará pouco a permanecerem
depois na fé, que he será terra grossa. E todos tem bem o que hão mi-
ter, e a necessidade lhes não fará prejuízo algum. Estão espantados de
ver a magestade com que entrámos e estamos, e temem-nos muito, .o
que também ajuda. Muito ha que dizer desta terra; mas deixo-o ao co-
mento dos Charissimos Irmãos. O Governador he escolhido de Deos para
isto, faz tudo com muito tento e siso. Nosso Senhor o conservará para
reger este seu povo de Israel. — Tu autem per ora pro omnibus et presentim
pro filiis quos enutristi. — Lance-nos a todos a benção de ChristoJesu Dul-
císsimo. D'esta Bahia^ 15i9.
Manoel da Nóbrega.
(Revista do Instituto, tom. v, pag. 328.)
CARTA n
AO PADRE MESTRE SIMÃO RODRIGUES
A graça e amor de Nosso Scnlior Jesu Christo seja sempre em nos-
so favor — Amen.
Pela primeira via escrevi a V. R. e aos Irmãos largo, e agora tor-
narei a repetir algumas cousas, ao menos em somma, porque o por*
tador d'esta, como testemunha de vista, me escusará de me alargar
muito, e algumas cousas mais se poderão ver pela carta que escre-
vo ao Doutor Navarro. N'esta terra ha um grande peccado, que he te-
rem os homens quasi todos suas negras por mancebas, e outras livres,
que pedem aos negros por mulheres, segundo o costume da terra, que
he terem muitas mulheres. E estas deixam-as quando lhes apraz, o
que he grande escândalo para a nova Igreja que o Senhor quer fundar.
Todos se me escusam que não tem mulheres com que casem. E conhe-
ço eu que casariam se achassem com quem; era tanto qua uma mulher,
ama de um homem casado, que veio n'esta armada, pelejavam sobre
cila a quem a haveria por mulher. E uma escrava do Governador lhe pe-
diam por mullior, e diziam que lh'a queriam forrar. Pareco-me cousa
mui conveniente mandar Sua Alteza algumas mulheres que lá tem pouco re-
médio de casamento a cslas partes, ainda que fossem erradas, porque
casarão todas niiii bem, com tanto que não sejam taes o que de todo te-
nliam perdido a vergonha a Deos, e ao mundo. E digo que todas casarão
mtii l»em, por que he feiTa muito grossa e larga, e uma i»lanta que se
204 APPKNDÍCn
faz uma vez dura dez annos aquella novidailo, por que assim como vão
apanhando as raizes plantam logo os ramos, e logo arrebcnlam. De ma-
neira que logo as mulheres teriam remédio de vida, e estes homens re-
mediariam suas almas, e facilmente se povoaria a terra. E estes aman-
cebados tenho amoestado por vezes, assi era pregações em geral, co-
mo em particular. E uns casam com algumas mulheres se se acham,
outros com as mesmas negras, e outros pedem tempo para venderem
as negras, ou se casarem. De maneira que todos, gloria ao Senhor, se
põem em algum bom meio.^ somente um que veio n*esía armada, o qual
como chegou logo tomou uma índia gentia, pedindo-a a seu pai, fazen-
do-a christãa, porque este he o costume dosPortuguezes d"esía terra, e cui-
dão n'isto — olsequium se fveslare Dco, — porcjue dizem não ser pec-
cado tão grande, não olhando a grande irreverência (jue se faz ao sa-
cramento do bautismo. E este amancebado, não dando par muitas amoes-
taçijes que lhe tinha feito, se poz a permanecer com ella, o qual eu amoes-
tei no púlpito que dentro d"aquella semana a deitasse fora, sob pena de
lhe prohibir o ingresso da Igreja; o que fiz por ser peccado mui notó-
rio, e escandaloso, e elle pessoa de quem se esperava outra cousa. E
muitos tomavão occasião de tomarem outras. O que tudo Nosso Senhor
remediou com isto que lhe fiz. Porque logo a deitou de casa, e os ou-
tros que Q tinhnm imitado no mal, o imitaram também uisto, que bola-
ram também as suas, antes que mais se soubesse. E agora ficou grande
meu amigo. Agora ninguém de que se presuma mal merca estas es-
cravas. N"este oíTicio me metti em ausência do Vigário Geral, pare-
cendo^me que em cousas de tanta necessidade, Nosso Senhor me dava
cuidado d'estas ovelhas. Alguns blasfemadores públicos do nome do Se-
nhor havia, os quaes amoestamos por vezes em os sermões, lendo-lhes as
peqas do direito, eamoestando ao Ouvidor Geral que aítentasse por isso.
Gloria ao Senhor, vai-se já perdendo este máo costume. E se acontece cahir
algum pelo máo costume, veni-se a mim pedir-mo penitencia. Nestes
termos está esta gente. Agora temo que, vindo o Vigário Gerai, que
já he chegado a uma povoação aqui perto, se ousem alargar mais. Eu la-
drarei quanto puder. Escrevi a Vossa Reverenchssima acerca dos saltos
que se fazem n"esta terra, e de maravilha se acha cá escravo que não
fosse tomado de salto; e he d"esía maneira c]ue fazem pazes com os ne^
gros para lhe trazerem a vender o que tem, e por engano enchem os
naviqs cVelles, e fogem com elles; e alguns dizem que o podem fazer por
CARTAS DO PADHE NOliUEGA 205
OS negros terem já feito mal aos Christãos. O que posto que seja assi,
foi depois de terem muitos escândalos recebidos de nós. De maravilha
se adiará cá terra, onde os Christãos não fossem causa da guerra e dis-
senção, e tanto que n'esta Bahia, que he tido por um gentio dos
peiores de todos, se levantou a guerra por Christãos, Porque um Pa-
dre, por lhe um Principal d"estes negros não dar o que lhe pedia, lhe
lançou a morte, no que tanto imaginou que morreu, e mandou aos fi-
lhos que o vingassem. De maneira que os primeiros escândalos são por
causa de Christãos: e certo que, deixando os máos costumes que eram
de seus avós, em muitas cousas fazem avantagem aos Christãos, por-
que melhor moralmente vivem, e guardam melhor a lei da natureza. Al-
guns d'estes escravos mt parece que seria bom juntal-os, e tornal-os á
sua terra, e ficar cá um dos nossos para os ensinar, porque por aqui
se ordenaria grande entrada com todo este gentio. Entre outros saltos
que n'esta costa são feitos, um se fez ha dous annos muito cruel, que
foi irem uns navios a um gentio, que chamam os Chacios, que estão além
de S.Vicente; o qual todos dizem que heo melhor gentio d'esta costa, c
mais apparelhado para se fazer froito. Elle somente tem duzentas legoas de
terra; entre elles estavam convertidos e baiitizados muitos. Morreo
um d'estes clérigos: e ficou o outro, e proseguio o fruilo: foram alli
ter estes navios que digo, e tomaram o padre dentro em um dos navios
com outros que com elle vinham, e levantaram as velas: os outros que
ficaram em terra vieram em pâos a bordo do navio, que levassem embo-
ra os negros, e que deixassem o seu padre; e por não quererem os dos
navios, tornaram a dizer que, pois levavam o seu padre, que levassem
também a elles. c logo os recolheram c os trouxeram, e o padre puze-
rão em terra; e os negros desembarcaram em uma capitania, para ven-
derem alguns d'elles, e todos se acolheram á Igreja, dizendo que eran\
Christãos, e que sabiam as orarõos, e ajudar a missa, pedindo misericór-
dia. Não lhes valeo, mas foram tirados e vendidos pelas capilaniís d'('S-
ta costa. Agora me dizem que he lá ido o Padre a fazer queixumes.
D'elle poderá saber mais largo o que passa. Agora temos assentado com
o Governador, que nos mandi; dar estes negros, para os tornarmos á sua
terra, e ficar lá Leonardo Nunes para os ensinai-.
Desejo muito que Sua Alteza encommendasse isto nniitoao Governa-
dor, digo, que mandasse provisão i)ara que entregasse todos os escravos
salteados para os toruai-rnos a sua (erra, c qui; por parii' da justiça se sai-
29C , APPENDICK
ba G se tire a liiapo, posto ({uo não liaja parlo, pjis disto depende tan-
to a paz e conversão d'eslo gentio, E Vossa Reverendissima não seja
avarento d"esses irmãos, e mande muitos para soccorrerom a tantas e
tão grandes necessidades, que se perdem estas almas á mingna. petenle
panem et non est qiii frangat eis. Lá bem bastam tantos religiosos e pre-
gadores, muitos Moyses e Prophetas ha lá. Esta terra he nossa empresa,
e o mais gentio do mundo. Não deixe lá Vossa Reverendissima mais
que uns poucos para aprender, os mais venham. Tudo cá he miséria
quanto se faz. Quando muito ganhão-se cem almas, posto que corram todo
o reino: cá he grande manchêa. Será cousa muito conveniente liaver do
Papa ao menos os poderes que temos do Núncio, e outros maiores; e
podermos levantar altar em qualquer parte, porque os do Núncio não
são perpétuos, E assi que nos commetta seus poderes acerca d'estes
saltos, para podermos commutar algumas restituições, e quietar cons-
ciências e ameaços que cada dia acontecem, E assi também que as leis
positivas não obriguem ainda este gentio, atè que vão aprendendo de
nós por tempo s, jejuar, confessar cada anno, e outras cousas seme-
lhantes; e assi também outras graças e indulgências, e a bulia do San-
tíssimo Sacramento rara esta cidade da Bahia, e que se possa communi-
car a todas as partes d'esta costa, e o mais que a Vossa Reverendíssima
parecer. He muito necessário cá um Bispo para consagrar óleos para
os bautizados e doentes, e também para confirmar os Christãos que se
bautisam, ou ao menos hum Vigário Geral, para castigar e emendar grandes
mates, que assi no ecdesiaslico como no secular se commettem n'esta costa,
porque os seculares tomão exemplo dos Sacerdotes, e o gentio de todos, e
tem-se cá cjue o vicio da carne que não he peccado, como não he notavel-
mente grande e consente a heresia que se reprova na Igreja de Deos —
quod est delendnm. ôs oleos que mandamos pedir nos mande, E vindo
Bispo^não seja dos quarunl sv.a, sed cjuod Jesu Christi. Venha para tra-
balhar'e não para ganhar.
Eu trabalhei por escolher um bom lugar para o nosso collegio den-
tro na cerca, e somente achei um, que lá vai por mostra a Sua Alte-
za, o qual tem muitos inconvenientes, porque fica muito junto da Sé,
e duas Igrejas juntas não he bom; e he pequeno, porque onde se ha
de fazer a casa não tem mais que dez braças, posto que tenha ao com-
prido da costa quarenta, e não tem onde se possa fazer horta, nem ou-
tra causa, por ser tudo costa mui Íngreme, e com muita sujeição da ci-
CARTAS DO PADRE NORREGA 297
(lade. E poríanlo a lodos nos parece muilo melhor um toso que está
logo alúm da cerca, para a parlo donde se ha de estender a cidade, de
maneira que antes do muitos annos podemos ficar no meio, ou pouco
menos da gente, e está logo ahi uma aldeã perto, onde nós começámos
a bautizar, em a qual já temos nossa habitação. Está sobre o mar, tem
agua ao redor do collegio, e dentro (Felle tem muito lugar para hortas,
e pomares. lio perto dos Chrislãos, assi velhos como novos. Sómenle mo
põe um inconveniente o Governador, não ficar dentro na cidade, e po-
der haver guerra com o gentio, o que me parece que não convence,
porque os que hão de estar no collegio hão de ser filhos de todo este
gentio, que nór5 não temos necessidade de casa. E posto que haja guer-
ra, não lhes podo fazer mal : e quando agora nós andámos, lá dormi-
mos e comemos, que lie tempo de mais temor, e nos parece que esta-
mos seguros, quanto mais depois que a terra se povoar. Quanto mais
que primeiro hão do fazer mal nos engenhos, que hão de estar entre
ellcs e nós, e quando o mal for muito, tudo he recolher á cidade. Mór-
menti? que eu creio que ainda que façam mal a todos, a nós nos guar-
darão, pela aíTeição que já nos começam a ter; e ainda havendo guerra,
me pareceria a mim poder estar seguro entre ellosn'este começo, quanto
roais depois. De maneira que, cá todos somos de opinião que se faça alli.
E Vossa Reverondissima devia de trabalhar por lhe fazer dar logo prin-
cipio, pois disto resulta tanta gloria ao Senhor, e proveito a esta terra.
A mais custa he fazer a casa, por causa dos oíTiciaes que hão de vir de
lá, porque a inaníença dos estudantes, ainda que sejão duzentos, he
muito pouco, porque com o terem cinco escravos que plantem mantimen-
tos, e outros que pesquem com barcos, e redes, com pouco se mante-
rão; e para se vestir farão um algodoal, que cá ha muito. Os escravos
são cá baratos, e os mesmos pais hão de ser cá seus escravos. IIc grande
obra esta e de pouco custo; nós vindo agora o Vigário nos passamos
para lá, por causa dos convertidos, onde estaremos, Vicente Rodrigues,
eu, e um soldado que se metteo comnosco para nos servir, e está agora
em exercícios, de que eu estou mui contente. Faremos nossa Igreja,
onde ensinaremos os nossos novos Christãos; e aos domingos e festas vi-
sitarei a cidade, e pregarei. O Padre António Pires, e o Padre Navarro
estarão em outras aldeãs longe, onde já lhes fazem casas. E portanto, he
necessário Vossa Reverendíssima mandar oíTiciaes, e hão de vir já com
a paga, porque cá diz o Governador, que ainda que venha alvará de Sua
"298 APPE.NDICF,
Alteza para nos dar o necessário, que não o haverá para isto. Os oííi-
ciaes que cá estão tem mui lo que fazer, e que o não tenham estão com
grande saudade do Reino, porque deixam lá suas mulheres e filhos, e
não aceitarão a nossa obra depois que cumprirem com Sua Alteza, e
também o trabalho que tem com as viandas e o mais os tira dMsso. Por
tanto me parece que haviam de vir de lá, e se possível fosse com suas
mulheres e filhos, e alguns que façam taipas, c carpinteiros. Cá está nm
mestre para as obras, que he um sobrinho de Luiz Dias, mestre das obras
d"El-Rei, o qual veioxom 30;>000 réis de partido, este não he necessário,
porque basta o tio para as obras de Sua AUeza; a este haviam de dar o
cuidado do nosso collegio, he bom official.
Serão cá muito necessárias pessoas que teçam algodão, que cá ha
muito, e outros officiaes. Traballio Vossa Reverendíssima por virem a
esta terra pessoas casadas, porque certo he mal empregada esta terra em
degradados, que cá fazem muito mal; e j;\ que cá viessem, havia de ser
para andarem afeiTolhados nas obras de Sua Alteza. Também peça Vossa
Reverendissima algum peditório para roupa, para entretanto cobrirmos
estes novos convertidos, ao menos uma camisa a cada mulher pela ho-
nestidade da Religião Christãa, porque vem todas a esta cidade á missa
aos domingos e festas, que faz muita devoção, e vem rezando as orações
que lhe ensinamos, e não parece honesta estarem nuas entre os Chris-
tãos na Igreja, e quando as ensinamos. E disto peço ao Padre Mestre
João tome cuidado por elle.ser parte na conversão destes gentios, e não
fique senhora nem parenta a que não importune para cousa tão santa,
e a isto.se haviani de applicar todas as restituições quelá se houvessem
dfi fazer, e isto agora somente no começo, que elles farão algodões para
se vestirem ao diante. Os Irmãos todos estão de saúde, e fazem o oíTi-
cio a que foram enviados: somente António Pires se acha mal das per-
nas, que lhe arrebentaram das maleitas que teve, e não acaba de ser
bem são. Leonardo Nunes mandei aos ílheos, huma povoação d"aqui per-
to, onde dá muito exemplo de si, e faz muito fruilo, e todos se espantam
de sua vida e doutrina: foi com e!ie Diogo Jacome, que faz muito fruito
cm ensinar os moços e escravos. Agora pouco ha vieram aqui a consultar-
me algumas duvidas, e estiveram aqui por dia do Anjo, onde bautizámos
muitos, tivemos missa cantada com Diácono e sub-Diacono; eu disse mis-
sa, e o Padre Navarro a Epistola, outro o Evangelho. Leonardo Nunes e
outr-o clérigo com leigos de boas vozes regiam o coro; fizemos procissão
CARTAS DO PADRE NÓBREGA 290
comgramlc musica, a ({ííc respondiam as trombetas. Ficaram os índios es-
pantados do tal maneira,, quo dopois podiam ao Padre Navarro, que lhes
cantasse como na procissão fazia. Outra procissão se fez dia de Corpus-
Christi mui solemne, em que jogou toda a artilharia, que estava na cerca,
as ruas muito enramadas, houve danças e invenções á maneira de Portu-
gal. Agora he já partido Leonardo Nunes com Diogo Jacome, e lá me hão
de esperar quando cu fòr com o Ouvidor, que irá d"aqui a dous mezes
pouco mais ou menos. O Padre Navarro faz muito fruito entre estes gen-
tios, lá está toda a semana. Vicente Rodrigues tem cuidado de todos bauti-
zados. António Pires e eu estamos o mais do tempo na cidade para os
Christãos, enão para mais que até chegar o Vigário. Todos são bons e
proveitosos, senão cu que nunca faço nada; e assaz devoção ha, pois meu
máo exemplo os não cscandalisa.
Temos muita necessidade deBautisterios, porque os que cá vieram não
valiam nada, e hão de ser Romanos, e Bracharenses, porque os que vieram
eram Venezianos; e assi de muitas capas e ornamentos, porque liavemos
de ter altares em muitas partes, e imagens e crucifixos, e outras cousas
semelhantes o mais que poder: tudo o que nos mandaram que lá ficara, veio
a muito bom recado. Folgaríamos de ver novas do Congo, mande-nol-as
Vossa Reverendíssima. A todos estes senhores devemos muito pelo muito
amor que nos tem, posto que o de algims seja servil. O Governador nos
mostra muita vontade. Pêro de Góes nos faz muitas charidades. O Ou-
vidor Geral he muito virtuoso, e ajuda-nos muito. Não fallo em António
Cardoso que he nosso pai. A todos mande Vossa Revcrendissima os
agradecimentos. António Pires pede a Vossa Revcrendissima alguma fer-
ramenta de carpinteiro, porque ellc he nosso oíTicial de tudo. Vicente
Rodrigues porque he hermiíão, pede muitas sementes; o Padre Navarro
e eu os livros, que já lá pedi, ponjuc nos fazem muita mingoa para du-
vidas que cá ha, que todas se perguntam a mim. E todos pedimos *sim
benção, e ser favorecidos em suas orações com Nosso Senhor. Agora vi-
vemos de maneira quo temos disciplina ás sextas feiras, c alguns nos aju-
dam a disciplinar; he por os que estão em peccado mortal c conversão
d"cste gentio, c por as almas do Purgatório, c o mesmo se diz pelas ruas
com uma campainha segundas e quaitas feiras, assi como nos llheos.
Temos nossos exames á noute, e anltí manhãa uma iiora de oração, c
o mais tempo visitar o próximo, c celebrar, c outros serviços da casa.
Resla-mc pedir que rogue a Nosso Senhor por seus filhos e por mim.
300 APPEXDICE
Ut quos dedisli non perdam ex eis quem qttam. Pedimos SUa benção. D'esta
Bahia a ix de Agosto de 1íj40, Manokl da Nobreça.
(Revista do Insliluto, vol. v, pag. 43õ.)
CARTA III
AO PADRE :\IESTRE SIMÃO
A graça e amor de Christo Nosso Senhor seja sempre em nosso fa-
vor.— Amen.
Depois de ter escripto a Vossa Reverendíssima posto que brevemen-
te, segundo meus desejos, succedeo não se partir a caravella, e deo-me
■ logar para fazer esta, e tornar-lhe a encommendar as necessidades da
terra, e o aparelho que tem para se muitos converterem. E certo he muito
necessário haver homens qui quosrant Jesnm Chrislum solum erucifixum. Cá
ha Clérigos, mas he a escoria que de lá vem. — Omnes qucorunt qnce sua sitnf.
Não se devia consentir embarcar Sacerdote sem ser sua vida muito ap-
provada, porque estes destruem quanto se edifica — sed mitfe pater filius
tuos in Domino nutritos fratres meos, ul in omnem Jianc terram exeat sonns
eornm. Hontcm que foi Domingo de Ramos, apresentei ao Governador
um para se bautizar depois de doutrinado, o qual era o maior contra-
rio que os Christãos até agora tiveram, recebeo-o com amor. Espero em
Nosso Senhor de se fazer muito fruito. Também me contou pessoa fide-
digna que as raizes de que cá se faz o pão, que S. Thomé as deo, porque
cá não tinham pão nenhum. E isto se sabe da fama que anda entre elles,
quia patres eorum imntiaverunt eis. Estão daqui perto umas pisadas fi-
guradas em uma rocha, que todos dizem serem suas. Como tivermos
mais vagar havemol-as de ir ver. Estão estes negros mui espantados de
nossos oflicios divinos. Estão na igreja som lhes ninguém ensinar, mais
devotos que os nossos Chi-istãos. Finalmente perdem-se á mingua. Mitte
CAUTAS DO 1'ADUL: NÓBREGA 301
igilur operários quiajaiu sali alba est mesis. O Governador nos temesco-
Uiido hum bom valle para nós, parecc-me que leremos agua, e assim
m'o dizem lodos. Aqui devíamos de fazer nosso valhacouto, e daqui com-
bater todas as outras partes. lia cá muita necessidade de Vigário Geral
l)ara que elie com temor, e nós com amor procedendo, se busque a glo-
ria do Senhor. O mais verá pelas cartas dos Irmãos.
Vale semper in Domino mi pr. Et hcneiic nos omnes in Chrislo Jesu.
-^Da Bahia 1549.
Manoel da Noduega.
(Revista do Instituto^ vul. v, pag. 433.)
CAHTA IV
INFORMAÇÃO DAS TEUUAS DO BRASIL,
DIRIGIDA AOS PADRES DA PROVÍNCIA DE PORTUGAL
A informação que d"eslas partes do Brasil vos posso dar, Padres e
Irmãos charissimos, he que tem esta terra nnl legoas de costa, toda po-
voada de gente, que anda nua, assim mullicres como homens, tirando al-
gumas partes mui longe d"onde estamos, onde as mulheres andam vesti-
das á maneira de siganas, com panos de algodão, pela terra ser mais
fria que esta, a (jual aqui he mui temi)erada, de tal maneira, que o in-
verno não he frio nem quente, e o verão, ainda que seja mais quente,
bem se pôde soffrer; porém he terra mui húmida, pelas muitas aguas
que chovem em todo tempo mui a miúdo, pelo (jual as arvores easher-
vas estão semi)re verdes. Em partes he nmi áspera, por causa dos mon-
tes e matas, que sempre estão verdes.
Ha n'ellas diversas fruilas (pie comem os da terra, ainda que não
são tão boas como as de lá, as «luaes lambem creio se dariam cá, se se
[)lantassem; porque vejo que se dão uvas, e ainda duas vezes no anno;
l)orém são poucas, p(jr causa das formigas, (jue fazem muito damno, as-
302 APPENt)lCK
si n'isto como cm outras cousas. Cidras, laranjas, limões, dão-se era
rauita quantidade, e figos tão bons como os de lá. O mantimento com-
mum da terra ho uma raiz de pâo, que chamam mandioca, da qual fa-
zem uma farinha de que comem todos, e dá taml)em vinho, o qual mis-
turado com a farinha, faz hum pão que escusa o de trigo. lía muito pes-
cada, e também muito marisco, de que se mantém os da terra, e muita
caça de mato, e patos que criam os íi hIíos; bois, vaccas, ovelhas, cabras,
e galinhas se dão também na terra, e ha d"ellas grande quantidade.
Os gentios são de diversas castas, uns chamam-se Goyanazcs, ou-
tros Carijós. Este he hum gentio melhor que nenhum d"esta costa.
Os quaes foram, não ha muitos annos, dous frades Castelhanos ensi-
nar, e tomaram tão bem sua doutrina, que tem já casas de recolhimento
para mulheres, como de freiras, e outras de homens, como de frades.
E isto durou muito tempo, até que o diabo levou lá uma náo de sal-
teadores e cativaram muitos d"elles. Trabalhámos por recolher os toma-
dos, e alguns temos já para os levar á sua terra, com os quaes irá um
Padre dos nossos. lia outra casta de gentios que chamam Calmares; hc
gente que mora pelos matos, e nenhuma communicarão tem com os Chris-
tãos, pelo que se espantam quando nos vêm, e dizem que somos seus
irmãos, porque trazemos barbas como elles, as quaes não trazem lo-
dos os outros, antes se rapão até as pestanas, e fazem buracos nos bei-
ços, e nas ventas dos narizes, e põem uns ossos n"elles, que parecem de-
mónios. E assi alguns, principalmente os feiticeiros, trazem todo o
rosto cheio d"elles. Estes gentios são como gigantes, trazem hum arco
mui forte na mão, e em a outra hum páo mui grosso, com cpie pelejam
com os contrários, e facilmente os espedaçam, fogem pelos matos, e são
mui temidos entre todos os outros. Os que communicam com nós outros
até agora são de duas castas, uns se chamam Topinaquis, e os outros Topi-
nanibás. Estes tem casas de palmas mui grandes, e d"ellas em que pou-
sarão cincóenta índios com suas mulheres e filhos. Dormem em redes
de algodão junto do fogo, que toda a noute tem aceso, assim por amor
do frio, porque andão nús, como também pelos demónios que dizem fu-
gir do fogo. Pela qual causa trazem tições de noute quando vão fora.
Esta gentilidade nenhuma cousa adora, nem conhecem a Deos; somente
aos trovões chamão Titpane, que he como quem diz cousa divina. E as-
sim nos não temos outro vocábulo mais conveniente para os trazer ao
conliecimento de Deos, que chamar-lhc «Pai-Tupane^^.
CAUTAS 1)0 VXDnJH iNOUnEGA 303
Somente entre ellcsse íiizem umas ceremonias da maneira seguinte.
De certos em certos annos vem uns feiticeiros de mui longes terras, fingin-
do trazer santidade, e ao tempo de sua vinda lhe mandam alimpar os
caminhos, e vão recebcl-os com danças e festas, segundo seu costume; c an-
tes que cheguem ao lugar andam as mulheres de duas em- duas pelas casas,
dizendo publicamente as faltas que ílzeram a seus maridos umas ás outras,
c pedindo perdão d"el!as. Em cliei;ando o feiticeiro com muita festa ao
lugar, entra em uma casa escura, e põe huma cabaça, que traz em fi-
gura humana, em i)arte mais conveniente para seus enganos, e mudando
sua própria voz em a de menino junto da cabaça, lhes diz que não curem
de trabalhar, nem vão á roça, que o mantimento por si crescerá, e que
nunca lhes faltará que comer, e cpae por si virá a casa, e que as encha-
das irão a cavar, c as fi"echas irão ao mato por caça para seu senhor, e
que lião de matar muitos de seus contrários, e cativarão muitos para
seus com-ores, e promette-lhes larga vida, e que as velhas se hão de
tornar moças, e as filhas que as dêem a quem qiiizerem: e outras cou-
sas semelhantes lhes diz c promette, com que os engana, de maneira que
cí^êem haver dentro na caljeça alguma cousa santa e divina, que lhes diz
aqucUas cousas, as quaes crêem. Acabando de faltar o feiticeiro, come-
çam a tremer, principalmente as mulheres, com grandes tremores em seu
corpo, que parecem demoninhadas (como de certo o são), deilando-se
em terr^, escumando pelas bocas, e nisto lhes persuade o feiticeiro que
então lhe entra a santidade; e a quem isto não faz tem-o a mal. Depois
lhe oíferecem muitas cousas, e em as enfermidades dos gentios usam
também estes feiticeiros de muitos enganos, e feitiçarias. Estes são os
mtjres contrários que cá temos, e fazem crer algumas vezes aos doentes
que nós outros lhes mettemos em o corpo facas, tesouras, e cousas se-
melhantes, e qne com isto os matamos. Em suas guerras aconselham-sc
com elles, alem dos agouros qne tem de certas aves.
Quando cativam algum, trazem-no com grande festa com uma corda
pela garganta, e dão-lhe por mulher a íilha do Principal, ou qualquer
outra que mais o contente, e jíõe-no acevar como [»orco, até que o hajam
de malar. Para o que se ajuntam todos os da comarca a ver a festa, o
um dia antes que o matem lavani-no todo, e o dia seguinte o tiram, e
põono em um terreiro atado pela cinta com uma coi'da, o vem um
dVlles mui bem ataviado, í; lhe. faz unia [iratica de seus anle})assados; e aca-
bada, o (jue está i)ara moi-rer lhe responde, dizendo (]ue dos valentes
304 APPEXDICE
h6 não temer a morte, e que elte também matara muitos dos seus, c
que cá ficam seus parentes que o vingarão, c outras cousas semelhantes.
E morto cortam-ltie logo o dedo polegar, porque com aquelle tirava as
frechas, e o demais fazem cm postas para o comer, assado c cosido.
Quando morre algum dos seus, põem-lhe sobre a sepultura bacios
cheios de viandas, e huma rede, em qne elles dormem, mui bem lava-
da; e isto porque crêem, segundo dizem, que depois que morrem tornam a
comer e descançar sobre a sepultura, Deitam-os em umas covas redon-
das, e se são Principaes fazem-lhes uma choça de palma. Não tem co-
nhecimento de Gloria, nem Inferno, somente dizem que depois de mor-
rer vão a descançar a um bom lugar, e em muitas cousas guardam a
lei natural. Nenhimaa cousa própria tem que não seja commum, e o que
um tem ha de partir com os outros, principalmente se são cousas de
comer, das quaes nenhuma cousa guardam para o outro dia, nem curam
■ de enthesourar riquezas.
A suas filhas nenhuma cousa dão em casamento, antes os genros
ficam obrigados a servir os sogros- Qualquer Cbristão que entra em suas
casas dão-lhe de comer do que tem, e huma rede lavada em que durma.
São castas as mulheres a seus maridos. Tem memoria do diluvio, po-
rém falsamente, porque dizem que cobrindo-se a terra de agua, uma
mulher com seu marido subiram em um pinheiro e depois de mingoa-
das as aguas, se desceram, e d'estes procederam todos os homens e mu-
lheres. Tem mui poucos vocábulos para lhes poder bem declarar nossa
fé. Mas comtudo damos-lh'a a entender o melhor que podemos, e algu-
mas cousas lhes declaramos por rodeios. Estão mui apegados com as cou-
sas sensuaes. Muitas vezes me perguntam se Deos tem cabeça e corpo, e
mulher; e se come, e de que se veste, e outras cousas semelhantes.
Dizem elles que S. Thomé, a quem elles chamão Zomè, passou por
- aqui, e isto lhes ficou por dito de seus passados, e que suas pisadas estão
signaladas junto de um rio, as quaes eu fui ver por mais certeza da ver-
dade, e vi com os próprios olhos, quatro pisadas mui signaladas com
seus dedos, as quaes algumas vezes cobre o rio quando enche. Dizem
também que, quando deixou estas pisadas ia fugindo dos índios, que o
queriam frechar, e chegando alli se lhe abrira o rio, e passara por meio
d'elle sem se molhar, e d'alli foi para a índia. Assi mesmo contam
que, quando o queriam frechar os índios, as frechas se tornavam para
elles, e os matos lhes faziam caminho por d'onde passasse: outros contam
CARTAS DO PADRE NÓBREGA 305
isto como por cscarneo. Dizem também que lhes promctteo que liavia
de tornar outra vez avêl-os. Elle os veja do Ceo, e seja intercessor por
elles a Deos, para que venham a seu conhecimento, e recebam a Santa
Fè como esperamos. Isto he o que em breve, Charissimos Irmãos meus,
vos posso informar d"esta terra: como vier a mais conhecimento das ou-
tras cousas, que n"clla ha, não o deixarei mui particularmente de fazer.
Manoel da Nóbrega.
{Revista do InsliltUo, vol. Vi, pag. 91.)
CARTA V
A EL-REI D. JOÃO IH
I H V S
Ha graça c amor de Xpõ nosso senhor seía com V. A. sempre anien.
Logo que a esta capitania de duarte coelho achegamos outro padre
c eu, escrevi a V. A. dando-lhe aigúa informação das cousas desta
terra, e por ser novo n^esta capitania o não ter tanta experiência dela
me fiquaram por escrever alguas cousas que nesta suprirei.
Nesta capitania se vivia muito seguramente nos peccados de todo o
género, c tinhão ho pcccar por lei e costume lios mais ou quasi todos nam
comungavam nunqa e ha absolvição sacramental ha recebião perseuerando
em seus peccados, hos eclesiásticos que achei que são cimqo ou seis vi-
uiam a mesma vida c com mais escândalo e algus apóstatas, e por to-
dos assi veuerem nam se estranha pecar ha ignorância das cousas da nos-
voL. II 20
300 APPENDICK
sa fé catholica hs qa muita e parecellies novidade a pregação d"ellas,
quasi todos tem negras forras do gentio e quando querem se vão pêra
os seus, fazer-se grandes injurias aos sacramentos que qa se ministrão,
o sertão esta cheo de fillios de Xpãos grandes c pequenos, machos c fê-
meas com viuercm e se criarem nos costumes do gentio; avia grandes
ódios e bandos: as cousas da igreja mui mal regidas. E as da justiça pelo
conseguinte, finalmente commixti snnt inter (jentcs et didiccrunt opera eo-
rum. Começamos com a ajuda de noso senhor a emtender cm Iodas es-
tas cousas c faz-se multo fructo e já se c vi tão muitos peccados de todo
ho género vam-sc confessando e emendando c lodos querem mudar seu
máo" estado e vestir a Jhú Xpõ nosso Sor. Os que estavam em ódio se
reconciharão com muito amor, vam-se ajuntando os filhos dos Christãos
que andão perdidos pelo sertão e já são tirados algíjs, e espero que os-
tiraremos todos.
E posto que por todas as outras capitanias ouvesse os mesmos pec-
cados e porém não tão arreigados, como n esta, edeue ser a causa porque,
forão ia mui castigados de nosso senhor, e peccavão mais a medo, e es-
ta não. Duarte Coelho e sua mulher são tão vertuosos quanto he ha fama
que tem, c certo creo que por elles não castigou a justiça do altissimo
tantos males até agora e porém lie ia velho e falía-lhe muito pêra hu
boo regimento da justiça e por isso ha jurisdicção de toda a Gosta de-
uia de ser de V. A.
Com os escravos qiie são muitos se faz muito fructo, os quaes viuião co-
mo gentios sem terem mais que serem baptizados com pouqa reverencia
do sacramento, das pregações e doutrina que lhes fazem corre ha fama
a todo o gentio da terra e muitos nos vem ver e ouvir ho que de Xpõ
lhe dizemos c segimdo ho fervor e vontade que trazem parecem dizer ho
aue outros gentios desião ha S. Filippe, volumus Jesumvideri; esi^erSím-
nos em suas aldeãs e prometem fazerem quanto ihe disermos.
Este gentio está mui aparelhado a se nelle fructificar por estar iú
mais domestico e ter a terra capitão, que não consentio fazerem-lhe
ao-rauos como nas outras partes. lio converter todo este gentio he mui fá-
cil cousa, mas ho susteníalò em boos costumes nam pode ser senam
cora muitos obreiros porque em cousa nenhuma crem e estão papel
branco pêra n" elles se escrever ha vontade se com exemplo e continua
conversação os sustentarem. Eu quando vij os poucos que somos, e que
nem pêra acudir aos Xpãos abastamos, e veio perder meus próximos
CAUTAS íiO PADHfc: NOURIiGA 307
O criatui'as do stíiilior, lia niiíigua lomo jior remédio clamar ao criador
de lodos e a V. A. que mandem f)])reiros e a meus padres e irmãos que ve-
iilião. Damos ordem a que se faça Iiiima casa pêra recolher todas as moças e
imilheres do gentio da terra que ha muitos annos que vivem entre os Xpãos
e não tem filhos dos homens branquose os mesmos homens que as tinhão
ordenão esta casa porque ahi doutrinadas e governadas por algumas velliase
elas mesmas pelo tempo em diante muitas casarão e ao menos viuirão com
menos occasião de peccados, e este ho ho melhor meio que nos pareceo por
se não tornarem ao gentio, cutre estas ha muitas de muito conhecimento e se
confessão e sabem bem conhecer os peccados em que viuerão e as que
mais fervor tem pregão as outras e assi d"estas como dos escravos so-
mos importunados de continuo para os ensinar de maneira que asi os
meninos órfãos que comnosco temos como nos ho principal exercício he
ensinal-os. Com estas forras se ganharão muitas ia Xpãs que pelo ser-
tão andão e asi muitos meninos seus parentes do gentio pêra em nos-
sa casa se ensinarem além de outros muitos proveitos que disto ha glo-
ria de nosso Sor resultará e ha terra se povoará em temor o conheci-
mento do criador.
Por toda esta costa ha muitos liomès casados era Portugal e viuem
qâ em grandes peccados com muito perjuiso de suas molheres e filhos
devia V. A. mandar aos Capitães que n"isto tenhão muito cuidado.
Nestas partes ha muitos escravos e todos viuem em peccado com
outras escravas, alguns dos tais fazemos casar outros areceam ficarem
seus escravos forros e não oúsão casalos. Seria serviço de nosso senhor
mandar Y. A. hua prouisão em que declare nam fiquarem forros casan-
do, e ho mesmo se deuia prover em Santo Tliomé, e outras partes on-
de ha fazendas com muitos escravos. Com ha vinda do bispo ho espera-
uamos remediar e agora me parece sir necessário V. A. prouer niso
por se euitarem grandes peccados.
Os moradores destas capitanias ajudão com ho que podem ha faze-
rem-se estas casas pei^a os meninos do gentio se ciiarem nelas c será
grande meio e breve [)era a conversão do gentio. lio colégio da Bahia
seia de V. A. pêra o favorecer porque está ia bem principiado e averá
nele vinte meninos pouqo mais ou menos, e mande ao gouernador que
faça casas pêra os meninos porque as (iuí; tem sam feitas por nossas mãos
(3 são de poufja dura, e mande dar algiis escravos de (jine ha casa pêra
fazerem mantimentos porque ha terra he Iam fértil (jue facilmente se
308 APPENDicr:
manterão e vestirão muitos meninos se tiverem algOs escravos que fa-
cão roças de mantimentos, e algodoais, e pêra nos não lie necessário
nada porque ha teri^a lie tal que liuú soo morador he poderoso ha man-
ter a hú de nos.
Para as outras capitanias mande V. A. molheres orfãas porque todas
casarão: nesta nam são necessárias por agora por haverem muitas filhas
de homens hrancos e de índias da terra as quaes todas agora casarão com
ha ajuda do senhor, e se nam casauão dantes era porque consentiam vi-
uer os homens em seus peccados livremente, e por isso nam se cura-
iiam tanto de cazar, e alguns dizião que nam peccavão, porque ho ar-
cebispo do Funchal lhes dava licença.
O governador Thomé de Sousa me pedio hum padre pêra ir com cer-
ta gente que V. A. manda a descobrir ouro: eu lho prometi porque tam-
bém nos releva descobrilo pêra lio thisouro de Ihu Xpõ nosso senhor,
e ser cousa de que tanto proveito resultará ha gloria do mesmo senhor,
e bem ha todo ho reino, e consolação a V. A. c porque hai muitas no-
vas d"elle e parecem certas, pareceme que irão seia isto também em ha-
juda pêra V. A; mandar padres porque qualquer que for fará muita falta
no começado se nam vierem padres pêra o sustentar: e porque por
outra tenho dado mais larga conta e com a vinda do bispo, que espe-
ramos, a quem tenho escripto ho mais aguardamos ser soccorridos.
Cesso pedindo a nosso senhor lhe dê sempre a conhecer sua vontade
santa, pêra qiie cumprindo seia augmentada sua fé catholica pêra gloria
do nome santo de Ihu Xpõ, nosso senhoi* qui est henedidus in sceculu.
Desta vila de Olmda a zvij de Setembro de looi annos.
JLVNOEL DA NÓBREGA.
(Revista do Instituto, vol. ii, pag. 279, copiada com a ortographia
que se diz ser conforme á do manuscripto original, existente no Archivo
Nacional de Lisboa.)
CAHTA Vi
AOS P.SDRES DA PROVÍNCIA DE PORTUGAL
Em estas partes depois que cá estamos charissimos Padros e Irmãos,
se fez muito fruito. Os gentios, que parece que punham sua bemavenlu-
rança em matar os contrários, e comer carne humana, e ter muitas mu-
lheres, se vão muito emendando, e todo nosso trabalho consiste em os
apartar d^isto, porque todo o demais ho fácil, pois não tem Ídolos; ainda
que ha entre elles alguns que se fazem Santos, e lhes promcttem
saúde, e victoria contra seus imigos. Com quantos gentios lenho falta-
do n'esta costa cm nenhum achei repugnância ao que lhes dizia. Todos que-
rem e desejam ser chrístãos; mas deixar seus costumes lhes parece ás-
pero. Vão comtudo pouco a pouco caliindo na verdade. Os escravos dos
Chrislãos, e os mesmos Christãus muito se tem emendado, e certo que
as Capitanias, que temos visitado, tem tanta diíTerença do que d"antes
estavam, assim no conhecimento de Deos, como em obrar virtude,
que parece uma Religião. Fazem-se muitos casamentos entre os Gentios,
òs quacs cm a Bahia estão junto á cidade, e tem sua Igreja junto a huma
casa, onde nos recolhemos, em a (piai reside agora o Padre Navarro.
Estes determinámos tomar por meio de outros muitos, os quacs espe-
ramos com a ajuda do Senhor fazer Chrislãos. Também procuramos de
haver casamentos entre clles c os Chrislãos. Nosso Senhor se sirva de
tudo, e nos ajude com sua graça, que trabalhemos que todos vcnhuni ao
conhecimento de nossa Santa Fé, e a lodos a ensinemos que a (jueiram
ouvii-, c d"ella aproveitar-se. Principalmente prclejidemos ensinar bem
310 APfE.NDinK
03 moc")S, porque estes bom doiilrinados, c acostumadas e:n viiludi;,
serão firmes o constantes, os quaes seus pais deixam ensinar, e folgam
com isso, e por isso nos repartimos pelas Capitanias, e com as linguas
que nos acompanham nos occupamos n"isto, aprendendo pouco a pouco
a lingna, para que entremos pelo serl^ío denti"o, onde ainda não chega-
ram os Christãos, e lenho sabido de hum homem Gentio, que está n'es!a
terra, que vivem era obediência de quem os rege, e não comem carne hu-
mana. Andam ves!ido3 de peites. O que tudo he huraa disposição para
mais facilmente se converterem e sustentarem. Isto será o primeiro que
com-meteremos como V. R. mandar quem sustente esfoulras partes, o
as quaes por cada huma das Capitanias tenho ordenado que se façam ca-
sas pêra se recolherem e ensinarem os moços dos Gentios, e também
dos Christãos: e para n"eilas recolhermos algumas linguas para este ef-
feito. Os meninos órfãos, que nos mandaram de Lisboa, com seus can-
tares aíírahem os ílihos dos Gentios, e ediíicam muito os Christãos Em
esta Capitania de Pe^-^nambuco, onde agora estou, tenho esperança que
S3 fará muito proveito porque, como he povoada de muita gente, ha
grandes males, e peccados n'ella. Andam muitos filhos dos Christãos
pelo sertão perdidos, entre os Gentios, e sendo Christãos vivem em seus
bestiaes costumes. Espero cm Nosso Senhor de os tornar a todos á vir-
tude christãa, e tiral-os da vida c costume gentílico, e "o primeiro quo
tenho tirado he esse que lá mando, para que se acharem seu pai lii'o
dêem. Os Gentios aqui vem de mui longe a ver-nos pela fama, e todos
mostram grandes desejos. íle muito para folgar de os ver na doutrina,
e não contentes com a g^eral, sempre nos estão pedindo em casa que os
ensinemos, e muitos d"elles com lagrimas nos olhos. Escreveram-me
agora da Bahia que á partida se haviam peixhdo dous barcos de ín-
dios, que iam a pescar, em os quaes iam muitos, assi dos quo eram
já Christãos como dos Gentios. E acontecco que todos os Gentios mor-
reram, e escaparam os Christãos todos, até os meninos, que levavam
comsigo. Parece que Nosso .Senhor faz tudo isto para mais augmentar
sna Santa Fé. O Governador determina de ir cedo a correr esta costa, e
eu ird com elle, e dos Padres que V. R. mandar levarei alguns comigo,
para deixar as Capitanias providas. El-Rei Nosso Senhor escreveo ao Go-
vernad jr que lhe escrevesse se havia já Padres em todas, as quaes sem
licar nenhuma, as temos visitadas, e em todas estão Padres, senão em
esta de Pernambuco, quQ he a principal e mais povoada, e onde mais
CARTAS DO PADHE NÓBREGA 311
abciia está a porta, á qual até aqui não tialiamos vindo por falta (1(3 em-
barcação, e por sermos poucos. Os Clérigos d'csta terra tem mais offi-
cio d.3 demónios, que de clérigos: porque, além do seu máo exemplo, e cos-
tumes, querem contrariar a doutrina de Gliristo, e dizem publicamente
aos homens que lhes he licito estar em peccado com suas negras, pois
que são suas escravas, c que podem ter os salteados, pois que são cães,
e outras cousas semelliaaíes, por escusar seus peccados, e abominações.
De maneira que nenhum demónio temos agora que nos persiga, senão
estes, Querem-nos mal porque lhes somos contrários a seus máos cos-
tumas, e não podem soíTrer que digamos as missas de graça, em detri-
mento de seus interesses. Cuido que, se não fora pelo favor que temos
do Governador e principaes da terra, e assi porque Deos não o quer
permittir, que nos tiveram jà tiradas as vidas. Esperamos que venha o
Bispo, que proveja isto com temor, pois nòs outros não podemos por
amor.
A casa da Bahia que fizemos para recolher e ensinar os moços, vai
mui adiante, sem El-Rei ajudar a neniiuma cousa, somente as esmolas
do Governador, e de outros homens virtuosos. Quiz-nos o Senhor de-
parar hum oíTicial pedreiro, e este a vai fazendo pouco a pouco; tem já
feito grande parle da casa, e tem também, cercadas as casas de huma
taipa mui forte. Christo Nosso Senhor nos cerque coma sua graça rresta
vida, para que na outra sejamos recebidos cm sua gloria. Amen. De
Pernambuco 4oií).
Manoel da Nobueca.
(Revida do Inslilulo, voj. vi, pag. \()'t.)
CARTA VH
AO CARDEAL INFANTE D. HENRIQUE
A paz de Christo Nosso Senhor seja sempre em continuo favor e ajuda
de V. A..
O anno passado de 1359 me derão huma de V. A. em que mo
me manda que lhe escreva e avise das cousas desta terra, que elle de-
ve saher. E pois assim me manda, lhe darei conta do que V. A. mais
folgará de saher, que he da conversão do gentio, a qual, depois da
vinda d'este Governador Mem de Sá, crosceo tanto, que por falta de
operários muitos deixamos de fazer muito fruito, e todavia com esses
poucos, que somos, se fizeram quatro Igrejas em povoações grandes, on-
de se ajuntou muito numero de gentio, pela boa ordem que a isso deo
Mem de Sá, com os quaes se faz muito fruito, pela sujeição e obediên-
cia que tem ao Governador, e em mentes durar o zelo d'elle se irão
ganhando muitos; mas, cessando em breve se acabará tudo, ao menos
entretanto que não tem ainda lançadas boas raizes na fé, e bons costu-
mes.
A causa porque no tempo d'esíe Governador se faz isto, e não an-
tes, não he por agora haver mais gente na Bahia; mas porque pôde ven-
cer Mem de Sá a contradição de todos os Christãos d'esta terra, que
era quererem que os índios se comessem, por que n'isso punham
a segurança da terra; e quererem que os índios se furtassem huns
aos outros, para elles terem escravos; e querem tomar as terras aos
índios contra razão e justiça, e tyranisarem-nos por todas vias, e não
^ lercm que so ajuntem paia serem doutrinados, por os lerem mais a
CAnTAS DO PADRE NOBIlEGA 313
seu propósito, e do seus serviços, c outros inconvenientes cVesla maneira
os quacs todos clle vence, a qual eu não tenho por menor victoria que
as outras que Nosso Senlior lhe deo, e defendeo a carne humana aos
índios, tão longe quanto seu i)oder se estendia, a qual antes se comia ao
redor da cidade, e as vezes dentro n'ella; prendendo aos culpados, e
tendo-os presos até que elles bem conhecessem seu erro, sem nunca man-
dar matar ninguém; e isto só abastou para subjugar a muitos, e obri-
gal-os a viver segundo lei de natura, como agora se obrigam a viver;
mas isto custou-lhe descontentar a muitos, e por isso ganhar inimigos:
e certifico a Y. A. que n"esta terra, mais que nenhuma outra, não po-
derá hum Governador e hum Bispo, e outras pessoas publicas, contentar
a Deos Nosso Senhor, e aos homens; e o mais certo signal de não con-
tentar a Nosso Senhor he contentar a todos, por estar o mal mui intro-
duzido na terra por costume. Depois succedeo a guerra dos Ilheos, a
qual começou por matarem hum índio no caminho do Porto seguro, e
creio que foi por desastre, ou por melhor dizer, quci'er Nosso Senhor
castigar aquelles Ilheos, e ferií-os para os curar e sarar; e foi assi que,
estando os engenhos todos quatro queimados e roubados, c a gente recolhi-
da na villa em mui to aperto, foi lá o Governador a soccorrer com lhe contra-
dizerem 03 mais, ou todos da Bahia por temerem que, indo clle, se poder
iam levantar os da Bahia; mas com elle levar muitos índios da Bahia comsi-
go, cessava lodo este inconveniente: e o que he muito para louvar a Nosso
Senlior he que, sendo isto no inverno em tempo de monções contrarias para
ir aos Ilheos, na hora que foi embarcado lhe concertou o tempo, e lhe veio
vento prospero, tanto quanto lhe era necessário, e não mais, nem menos, e
lá deo-se tão boa mão, que em menos de dous mezes, que lá esteve, deixou os
índios sujeitos e tributários, e restituíram o mal todo, que tinham feito, as-
sim aquelle presente, como todo o 'passado, e obrigados a refazerem os en-
genhos, e não comerem carne humana, e receberem a doutrina, quando hou-
vessem Padres para lha dar. De maneira que já agora a geração dosTupi-
naquins, que he muito grande, poderá também entrar no reino dos Ceos.
N'este tempo, que o Governador era ido ao soccorro dos Ilheos, suc-
cedeo que uns pescadores da Baliia se desmandaram, e foram pescar ás
terras dos índios do Parouassú, os quaes sempre foram inimigos dos
Ghristãos, posto que a eslt3 leiíqjo aiguíis tinham feito pazes com o Go-
vernador, e lá foram tomados, e mortas (juatro pessoas.
Depois, tornando o Governador, Ibes mandou [ledir os maladoies, e
3iÍ APPFADinK
por lh'os não quererem dar, lhes apregoou guerra, e foi a elles com to-
da a gente da Bahia, que era para pelejar, e com muitos índios entrou
pelo Parouassú, matando muitos, queimando muitas aldeãs, entrando
m.uitas cercas, destruindo-lhes seus mantimentos, cousa nunca imagina-
da que podia ser, porque geralmente, quando se n"isso fallava, diziam
que nem todo o poder de Portugal abastaria, por ser terra mui fragosa,
c cheia de muita gente, e foi a vexação que lh'as deram, que eiles ganha-
ram entendimento para pedir pazes, e deram-lli'as com elles darem
dous matadores que tinham, e com reslituirem aos Christãos quantos es-
cravos lhes tinham comido, e com ficarem tributários e sujeitos e obriga-
dos a receberem a palavra de Nosso Senhor, quando lh'a pregassem. Es-
ta gente está agora mui disposta para n'e}la se fructificar muito. D isto
poderá V. A. entender quantos operários da nossa Companhia ha mister
tão grande messe como esta, que cada dia se irá fazendo maior, tanto
quanto a sujeição dos gentios se continuar. Depois, sendo o Governador
de muitos requerido que fosse vingar a morte do Bispo, e dos que com
elle iam, por ser hum grande opprobrio dos Christãos, ser causa dos ín-
dios ganharem muita soberba: porque morreram alli muita gente, e nmi-
to principal; elle se fiizia prestes appareliiando muitos índios da Bahia ;
mas isto estorvou a vinda da armada que veio, com a vinda da qual se
determinou de ir livrar o Rio de Janeiro do poder dos Francezes todos
Lutheranos. E partio, visitando algumas capitanias da costa até chegar ao
Espirito santo, capitania de Vasco Fernandes Coutinho, onde achou liuma
pouca de gente cm grande perigo de ser comida pelos índios, c toma-
dos dos Francezes, os quaes todos pediram que, ou tomasse a terra por
El-I\ei, ou os levasse d'alli, por não poderem já mais sustentar; e o
mesmo requeria Vasco Fernandes Coutinho por suas cartas ao Governa-
dor: depois de tomado sobre isto cofiselho, a aceitou, dando esperanças
que da tornada a fortaleceria, e favoreceria no que pudesse, por não ter
tempo para mais, e por não se estorvar do negocio a que vinha do Bio
de Janeiro. Esta capitania se tem por a melhor cousa do Brasil depois
do Bio de Janeiro, n'ella temos huma casa, onde se faz fruito com Chris-
tãos, e com escravos, e com uma geraçíío de índios, que alli está, que
se chamam do Gato, que alli mandou vir Vasco Fernandes do Rio de
Janeiro; entendem-se também com alguns Tupinaquins: c se Nosso Senhor
der tão boa mão ao Governador á tornada, como lhe deo cm todas as
outras partes, que os ponha a todos em sujeição e ol)ediencia, poder-
CARTAS DO PADRE NÓBREGA 315
ss-lia fazer muito fruito, porque este lie o melhor meio que pôde haver
para a sua convcrslío.
D'alU nos partimos ao Rio de Janeiro, c assentou-se no conselho que
dariam de suplío no Rio de noite, para tomarem osFrancezes desaper-
cebidos; e mandou o Governador a hum que sabia bem aquelle Rio, que
fosse adiante guiando a armada, c que ancorasse perto d'onde pudessem
os bateis deitar gente cm terra, a qual havia de ir por certo lugar; mas
isto aconteceo doutra maneira do que se ordenava, porque esta guia,
ou por não saber, ou por não querer, fez ancorar a armada tão longe
do porto que não pudéramos bateis chegar senão de dia, com andarem
muita parte da noite, e foi logo vista e sentida a armada.
No mesmo dia que chegámos, se tomoii huma náo que estava no Rio
para carregar de brasil : a gente d'ella fugio para terra, e recolheo-se
na fortaleza: tomou-sc conselho no que se faria, e vendo todos a fortaleza
do sitio em que estavam os Francezes, e que tinham comsigo os índios
dl íeif a, temeram de a combaterem, e mandaram pedir ajuda do gente a
S-Vicentc: mas os de S. Vicente sabendo primeiro da vinda do Governa-
dor ao Rio, já vinham por caminlio, e como cliegavam determinou o Go-
vernador de os combater; mas toda a sua gente Ih o contradizia, por-
que tinhão já bem espiado tudo, c parecia-lhes cousa impossível entrar-
so cou.5a tão forte, e sobre isso lhe fizeram muitos desacatamentos c
desobediências. Mas eu sobro isto tudo a maior dilTiculdade que lhe
achava era ver aos Christãos da armada tão pouco unidos com o Go-
vernador, c ver tão pouca obediência em muitos, toda aquella viagem
em que me achei presente ; c isto nasceo de se dizer publicamente, e
sabei\Mn que o Governador eslava mal acreditado no Reino com Vossa Al-
teza, e que se havião lá dado capitules delle por pessoas que, com pai-
xão, informarão lá mal a V. A., e parece qiie com pouca razão,
porque as mais das cousas me passavam pela mão como terceiro que era
n'ellas para as remediar, e por isso quem quer se lho atrevia, e por
dizer que tinha lá inimigos no Reino, c poucos que favorecessem sua
causa, o que lhe tirou muito a liberdade do bem governar; mas agora
ouça V. A. as grandezas de Nosso Seniior.
A primeira, me parece que foi dar Nosso Senhor graça ao Governador
para saber soffrer tudo, e dar-llie prudência para em tal tempo saber
trazer as vontades de todos tão contrarias a sua, condescenderem com
aquillo que elle entendia, e Nosso Senhor lhe inspirava; e fui assim, (pie
316
APPK.NDICK
a huns por vergonha, a outros por vontade lho pareceo bem de com-
metterem a fortaleza.
A segunda maravilha de Nosso Senhor, foi, que depois de combalida
dous dias, e não so podendo entrar, c não tendo já os nossos pólvora,
mais que a que linhão nas camarás para atirar ; e tratando-se já como
se poderiam recolher aos navios sem os matarem todos, o como pode-
riam recolher a artilheria, que haviam posto em terra, sabendo que na
fortaleza estavam passante de sessenta Francezes de peleja, c mais de
oitocentos índios, e eram já mortos dos nossos dez ou doze homens
com bombardas, e espingardas, mostrou então Nosso Senhor a sua mi-
sericórdia, e deo tão grande medo nos Francezes e nos índios, que com
elles estavam, que se acolheram da fortaleza, e fugiram todos, deixandy
o que tinham sem o poderem levar.
Estes Francezes seguiam as heresias de Alemanha, principalmente as
de Calvino, que está em Genebra, e segundo soube d cUes mesmos, e
pelos livros que lhe acharam, muitos vinham a esta terra a semear estas
heresias pelo Gentio; c segundo soube tinham mandado muitos meninos
do gentio a aprendel-as ao mesmo Calvino, c outras partes para depois
serem mestres, e d'esíes levou alguns a Villagallion, que era o que íi-
zera aquella fortaleza, e se intitulava Rei do Brasil.
D'este se conta que dizia, que quando' El-Rei de França o não qui-
zesse favorecer para poder ganhar esta torra, que se havia de ir confe-
derar cora o Turco, promettendo-lhe de lhe dar por esta parte a con-
quista da índia, e as náos dos Portiiguezes que de là viessem, porque po-
deria aqui fazer o Turco suas armadas com a multa madeira da terra;
mas o Senhor olhou do alto tanta maldade, e houve misericórdia da
terra e de tanta perdição, de almas, e mentita cst iniquitas sibi, e des-
fez-lhe o ninho, e deo sua fortaleza em mão dos Portuguezes, a qual
se destruio o que d'ella se podia derrubar, por não ter o Governador gen-
te para logo povoar e fortiíicar como convinha.
Esta gente ficou entro os índios, e esperam gente e soccorro de
França, maiormente que dizem, que por El-Uei de França o mandar es-
tavam alli para descobrirem os metaes que houvesse na terra: assim ha
muitos Francezes espalhados por diversas partes, para melhor buscarem.
Parece muito necessário povoar-se o Ilio de Janeiro, e ííizer-se n'elle
outra cidade como a da Bahia, porque com eila ílcará tudo guardado,
assim esta Capitania de S. Vicente, como a do Esnii-ito santo, que agora
CARTAS DO PADRE NORRKGA 317
cslão bom fracas, c os Francezes lançados de lodo fora, e os índios se
poderem melhor subjeilar, c para isso mandar mais moradores que sol-
dados, porque do outra maneira pode-se temer com razão ne redcat im-
mundus spiritus cum aliis septem nequioribus se, et sint novíssima peiora
prioribus — ; porque a fortaleza que se desmanchou, como era de pedras
c rochas, que cavaram a picão, facilmente se pode tornar a reedificar, e
fortalecer muito melhor.
Depois de tomada a fortaleza doo o Governador em uma aldeã de
índios, e matou muitos, e não pôde fazor mais porque linha necessidade
de concertar os navios que das Lombardas ficaram mal aviados, e fa-
zel-os prestes para se tornarem, o que veio fazer a estar capitania de
S. Vicente, onde eu fico por assim o ordenar a obediência; o mais que
houver para escrever ao Provincial, que agora é o Padre Luiz de Grãa
fará da Bahia. Nosso Senhor Jesus Christo dê a V. A. sempre a sua gra-
ça. Amen. De S. Vicente o 1.° de Junho de 15G0.
Manoel da Nobrkga.
(Revista do Instituto, vol. v, pag. 328.)
riM DAS CAUTAS
índice geral
E AMPLÍSSIMO
»A^ CO^^i^S MAl^ HO^I^^WE^I S
DESTA CHRONICA
A
PADRE AlFONSO IJUAZ
He O pi-imoiro da (^(jmpanliia que Un á Capilania do iíspii'tí,o saiilo
liv. I, num. [Ky.
lie recebido com gi"aiide festa dos moradores, liv. i, num. 97.
ALCAIDK M(')n
Vide Anloiiio de Oliveira.
PADnK AMOMO i'uu:s
Vai pêra o Brasil por companlieiío do Padre Manuel da Nóbrega, liv, i,
num. 2i.
Visita rernamljLico por commissão do Bispo, liv. i, num 114.
320 IXDlCIi GERAL
ANTOMO CAIIDOSO DE BAIIUOS
lie O primeiro Provedor do Brasil, liv. i, num. 2i.
Na sua náo se embarcão os primeiros Padres da Companhia que forão ao
ao Brasil, ibid.
Faz naufrágio, e morre a mãos dos índios Cactés, liv. ii, num. 17.
ANTÓNIO DE OLIVEIRA
Capitão de huma armada pêra a Bahia, hv. i, num. 9i.
He Alcaide mór da Bahia, ibid.
PADRE ANTÓNIO RODRIGUES
Sua morte, e discurso da vida, liv. iii, num. 12 i.
ANTÓNIO DA SILVEIRA
Defende com grande valor a fortaleza de Dio, liv. ii, num. 39.
He posto por El-Rei de França entre os varões famosos, ibid.
PADRE A.NCHIETA
Vide Padre Joseph d' Anchieta.
ARMADA
Chega huma armíida de Portugal á Bahia, liv. i, num. 80.
Chega outra ã Bahia, liv. num. 91.
Manda a Rainha D. Catherina huma armada ao Brasil pêra lançar fora do
Rio de Janeiro aos Franceses, liv. ii, num. 7i.
Vide Mein de Sá, e Estacio de Sá.
ASPILGUETA
Yide Padre João de Aspilcueta.
AGUA BENTA
' EÍTàtos maravilhosos da agua benta, liv. i, num. 116.
IRMÃO ADAM GONÇALVES
Quem foi, como entrou na Companhia, e procedeo n'ella, liv. ii, num. 7Í>
DESTA CHROMCA 321
ASSUCAR
Onde SC fez a primeira vez no Brasil, liv. i, num. G3.
AYMORÉS
Costumes (l"estes índios, liv. ii, num. 93.
Inquietão aos moradores dos Ilheos, e Porto seguro com assaltos, liv. ii,
num. 94.
Fazem guerra aos moradores dos Ilheos, liv. iii, num 55.
PADUE AZEVEDO
Vido Padre Ignacio de Azevedo.
B
BRASIL
Seu descobrimento, liv. i, num. 2.
Avista a froía terra do Brasil, liv. i, num. 27.
Vide Páo brasil.
BLASFEMO
Castiga Deos com hum raio a hum blasfemo, liv. i, num. 20.
Vide Castigo.
BAHIA
Quem foi seu primeiro descobridor, liv. i, num. 33.
Seu primeiro povoador por ordem d'El-Uei, liv. i, num. 3i.
Chega o Governador ao porto da Bahia de lodos os Santos, liv. i, num. 27.
Descripção da Bahia, liv. i, num. 28.
Começa-se a edilicar a cidade da Bahia, liv. i, num. 46.
Vide Padres da Companhia.
Vide Governador.
B AUTISMO
Bautismo solemne de ccin feiticeiros, liv. i, nun». 50.
Vide Padre Luis da GrauL
BÁLSAMO
Bálsamo, liv. i, num. 00.
BISI'0
D. Pedro Fernandes Sardinha i)rim(,'ir() Bispo do Brasil, liv. i, num. 37.
D. Pedro Leitão segundo Bispo do Brasil, liv. ii, num. 03.
VOL. II 21
322 índice glual
banquete
Em seus banquetes nsão os índios de canie humana, liv. i, nnm. 48, e
49, c num. 92.
Dissuadem-nos os Padres da Companhia d'este costume, ibid.
BERTHOLAMEU ADAM
Entra na Companhia de Jesu, sua vida, e morte, hv. n, num. 80.
C
CASTIGO
Castiga Deos a huma peccadora obstinada, liv. i, num. 12.
Castiga Deos com hum raio a hum blasfemo, hv. i, num. i£0.
Castigo que o Padre Nóbrega deo a hum dehnquente, liv. ii, num. 129.
Castiga Deos aos índios Tamoyos, hv. ii, num. Ii4.
Castigo que Deos deo aos moradores de S. Vicente, liv. ii, num. 16.
CONVERSÃO
Convertef o Padre Nóbrega huma grande peccadora, liv. i, num. 14.
Converte outros peccadores o mesmo Padre, liv. i, nnm. IG, e 17.
Converte o mesmo Padre hum grande salteador, liv. i, num. 11.
Converte a melhor vida hum grande pcccador, liv. i, num. 86 e 87.
Converte-se, e bautiza-se hum índio de cento e trinta annos, liv. ii,
num. 141.
CONFISSÃO
EíTicacia da confissão contra o demónio, liv. i, num. 25.
COMPANHIA DE JESU
Em que tempo começou, liv. i, num 2.
Quando foi ao Brasil, liv. i, num. 3.
Vide Padres da Companhia de Jesu.
COMPANHEIROS
Companheiros que forão pêra o Brasil com o Padre Nóbrega, hV. i, num.
24.
Companheiros na viagem, e morte do Padre Ignacio de Azevedo, liv. iv,
mm. 35.
DESTA CHROXICA 323
Vò Santa Theresa entrar no Ceo aos companheiros com o Padre Azevedo^
liv. IV, nmn. 51.
São celebrados por vários authores, liv. iv, num. 51 e 52.
Seus nomes e elogios, liv. iv, num. G4 usque ad num. 107.
Authores que lhes derão titulo de Martyres, liv. iv, num. 110.
Vide Padre Azevedo.
Vide Padre Nóbrega.
CHÍUSTOVÃO JAQUES
lie o primeiro descobridor da Bahia, liv. i, num. 33.
COSTUMES
Costumes bárbaros dos índios, liv. i, num. 44 e 48.
Aos Portugueses se tinhão pegado muitos costumes dos índios, liv. u
num. 05.
Vide índios.
Vide Carne humana.
CmADE
Cidade da Bahia de todos os Santos, liv. i, num. 30.
Funda-se a cidade do lUo de Janeiro, liv. ni, num. 115.
Chama-se de S. Sebastião, liv. iii, num. 117.
GOLLEGIO
Vide S. Vicente.
Funda-se Collegio em Piratininga, ou S. Paulo, liv. i, num 148 c 149.
Aperfeiçoa-se, liv. i, num. 202.
Funda-se o Collegio do Rio de Janeiro, liv. ni, num.. 115.
Vide Nossa Senhora da Grara.
Funda El-Hei D. Sebastião o Collegio da Bahia, liv. ui, imm. 45.
COPAír.iJA
Que cousa seja, liv. i, num. Oí».
CATIVEIHO
Padecem os Padres da Companhia de Jesu por prohibirem o cativeiro in-
justo dos índios, liv. i, num. 73, c liv. ni, num. 41 a 43.
Pregão os Padres contra o cntivciro dos índios, liv. i, num. 110.
Leis (lue sobre a liberdade dos índios lizerão os Keis de Portugal, liv.
UF, num. 44.
324 ÍNDICE GEUAL
CATIVOS
Resgatão-se hiiiis Caslellianos que estavão cativos pêra ser comidos dos
índios, liv, I, num. 132.
Yai hum Padre livrar os cativos, liv. i, num. 78 e 79.
CASTIDADE
Morrem duas multieres por defensão da castidade, liv. ii, num. 112 o
143.
CONFRARIA
Confraria do Menino Jesu, liv. i, num. 133.
Confraria do Espirito santo, liv. i, num. 185.
CONGREGAÇÃO
Primeira Congregação Provincial no Brasil, liv. iii, num. 112.
CAETÉS
Dão cruel morte a huns naufragantes, liv. u, num. IG.
CERIIA
Cerra notável de Paraná Piacaba, liv. i, num. 150.
CAMLMIO
Caminho de S. Vicente pêra Piratininga, liv. ii, num. 85.
CILADA
Descobre-se huma cilada que os inimigos linhão armado, por meio de
hum pássaro, liv. iii, num. 95.
Successo de outra, liv. iii, num. 96.
Frustra-se outra quasi milagrosamente, liv. iii, num. 97.
CARIJÓS
Mandão Embaixadores a pedir Padres, liv. i, num. 198.
d'esta chromc.v 325
d. catherina rainha de portugal
Manda liuma armada ao Brasil pcra lançar d'cllc aos FraHCOses, liv. ii,
num. 74.
D
DIOGO ALVAJIES
Como foi ao Brasil, liv. i, num. 35.
Como se fez respeitado dos índios, ibid, num. 36.
Faz huma povoação, liv. i, num. 37.
Sua descendência, liv. i, num. 41.
DEMÓNIO
Com as palavras afugenta o Padre Nóbrega os demónios, liv. i, num. 21.
Pretende desviar os índios da conversão com enganos, liv. i, num. 115,
e liv. II, num. 100.
DUARTE COELHO
Dá-Uic El-Rei D. João o III Pernambuco pêra o povoar, liv. i, num. 100.
Successos que teve com os índios, ibid.
D. DUARTE DA COSTA
Segundo Governador do Brasil, liv. i, num. 133.
Chega ao Brasil com armada, ibid.
Vide Tapuyas.
DIOGO JACOME
Sua morte, c elogio, liv. iii, num. G8 c seg.
DIO
Primeiro cerco de Dio, e seus successos, liv. ii, num. 39.
Segundo cerco de Dio, defende D. João Mascarenhas, liv. ii, num. 41.
IRMÃO DOMINGOS PECORELLA
Sun morte, o vida inrioccnle, hv. i, num. 188.
326 INDICF. r.KRAL
DISCIPLINA
Toma u Padre Aspilcueta liunia disciplina publica, liv. i,,num. 83.
Tomando os Padres huma disciplina pujjlica tirão os índios de comer car-
ne humana, liv. I, num. 117.
PADRE DIOGO LALNES
lie eleito segundo Geral da Companhia, liv. ii, num. G3,
Sua morte, liv. iii, num. 46.
E
ENGENHOS DE ASSUCAR
Quantos ha nos arredores da Bahia, liv. i, num. 28.
ESPIRITO SANTO
Descreve-se a Capitania do Espirito santo, liv. i, num, 95.
Quem foi seu primeiro fundador, ibid.
Padre Affonso Braz he o primeiro da Companhia que foi a ella, ibid,
IIc recebido com grande festa dos moradores, liv. i, num. 97.
ESTAGIO DE SÁ
Yai com huma armada ao Rio de Janeiro, e o que lá lhe succedeo, liv.
Ill, num. 56 e seg.
Morre de huma ferida, liv. iii, num. 105.
F
t
FRANCISCO PEREIRA COUTINHO
Morte, e infortúnios de Francisco Pereira Coutinho, liv. i, num. 33.
Yide Bahia.
,, FEITICEIROS
Convertem-ee á Fé oitenta e hum feiticeiros, liv. i, num. 55 e 56.
S. FRANCISCO XAVIER
Morre na índia oriental: elogio de sua vida, Hv. i, num, 123.
d"i:sta CHRONir.A 3i7
FRANCESES
Enlrão no Rio de Janeiro, e fortificão-se, liv. ii, num. 13.
Quem foi o primeiro Francez que foi ao Brasil, liv. ii, num. 45.
Retirão-se aos matos, liv. ii, num. 46,
Vide Mem de Sd
PADRE FRANCISCO P1RE3
Levanta a Gapella de Nossa Senhora da Ajuda, liv. ii, num, 70.
FERNÃO DE SÁ
Vai com armada contra os Tamoyos, vence-os, e depois he vencido, e
morto, liv. 11, num. 143.
S. FRANCISCO DE BORJA
He eleito terceiro Geral da Companhia, liv. m, num. 67.
FESTA DAS CANOAS
Sua origem, liv. lu, num. 98.
FILHOS
Quantos, e quaes filhos teve El-Rei D. João o Terceiro, liv. ir, num. 43.
G
G0^'ERNAD0R
Primeiro Governador do Brasil, liv. i, num. 35.
Vide D. Duarte da Costa.
Vide Mem de Sá.
GUERRAS
Guerras com os índios de S. Vicente, liv. ii, num. MO.
Vide Tupis.
Vide Franceses.
Vide Tamoyos.
H
HEREGES
Desacato com que tratarão as cousas sagradas, liv. iv, num. 57.
Vide João Boles.
328 índice c.vawl
padue josepii de anchieta
Parte (le Lisboa pora O Brasil, liv. i, nun-í. í3o.
Chega ao Brasil, Má.
Escreve as obras, c virtudes do Padre Nóbrega, liv. i, num. 7.
Vai pêra S. Vicente, liv. i, num. 143.
Siiccessos da viagem, liv. i, num. 14i.
Escreve por sua mão os cadernos pêra os discípulos, liv. i, num, 155.
Juntamente ensina a lingoa Latina, aprende a do Brasil, compõe a Arte,
e Caíhecismo, liv. i, num. 150.
Traduz na lingoa Brasílica cantigas honestas, ibid. num. 57.
Profecias suas, liv. n, num. 80, e liv. iii, num. Í24 a 26.
I\Laravilhas que obrou, liv. iii, num. 26 e 27.
Vai com o Padre Nóbrega assentar as pazes com os Tamoyos, e o que
alli lhe succedeo até voltar, liv. i:i, num. 5 e seg.
Voltados Tamoyos pêra S. Vicente, liv. m, num. 33.
Outras profecias, liv. ui, num. 18, enum. 34.
Vai em huma armada, e profetiza cousas futuras, liv. m, num. 73.
Vai-se ordenar Sacerdote á Bahia, liv. in, num. 86 a 88.
Visita de caminho a casa, e aldeãs do Espirito santo, ibid.
Vai pêra o Rio com o Padre Visitador, ibid.
Varias outras profecias suas, liv. m, num. 110 e seg.
Converte a hum herege que foi justiçado, liv. m, num. 110.
Compõem a Vida de Nossa Senhora, liv. m, num. 22.
PADRE IGNACIO DE AZEVEDO
He eleito Visitador do Brasil, liv. ni, num. 07.
Chega á Bahia, liv. ni, num. 88.
Sua viagem, e fruto que fez em Cabo-verde, liv. ni, num. 89.
Leva consigo cinco Rehgiosos, liv. m, num. 9<K
Estado em que achou a Província, liv. ni, num. 92.
Parte a visitar a Província em companhia do Governador, liv. ni, num. 93.
Parte do Rio pêra S. Vicente com o Bispo, liv. ni, num. 109.
Livra-o Deos, e aos companheiros, de hum grande perigo, liv. ui, num.
113
Volta da visita á Bahia, he recebido com grandes applausos, e seu gran-
de exemplo, hv. ui, num. il9.
Parte do Brasil pêra Roma, liv. ni, num. 112.
Chega a Portugal de volta do Brasil, liv. iv, num. 2.
Parte dahi pêra Roma, liv. iv, num. 5.
Volta a Portugal com muitos companheiros, liv. iv, num. 6,
Retira-se a Vai de Rosal com os companheiros : descreve-se este sitio, liv.
IV, num. 7.
d"f:sta cimo.Nir.A 320
Como ahi se occupavão, liv. iv. num. 8.
Parte segunda vez porá o Brasil com trinta e nove companheiros, liv..
IV, num. 18.
Como se lioiiverão na viagem, liv. iv, num. 19 e 20.
São acometidos dos hereges no mar, liv. iv, num. 3i.
Ríorre com seus companheiros á míio dos hereges, liv. iv, num. 35.
Crueldades que os hereges usarão com o Padre Azevedo, e seus com-
panheiros, ibid.
Vé-o Santa Theresa entrar no Ceo com os quarenta companheiros, liv. iv,
num. ol.
Elogio da vida, c virtudes do Padre ígnacio de Azevedo, hv. iv,
num. 56.
SANTO IGNAClO.
Nasce no mesmo tempo em que se descobrio o Brasil, liv. i, num. 2.
Morre em Roma, liv. ii, num. 19 c seg.
REI D. JOÃO o TERCEIRO.
Zelo que tinha da dilatação da Fé, liv. i, num. 3.
Sua morte, e quanto foi sentida de toda a Companhia, Hv. u, num. 26.
Elogio de sua vida, e virtudes, liv. n, num. 29 e seg.
Filhos que teve, liv. n, num. 43.
PADUE JOÃO ASPILCUETa.
O primeiro da Companhia que pregou na lingoa do Brasil, c verteo al-
gumas oraçijes n'ella, liv. i, num. 48.
Vai pêra o Brasil, liv. i, num. 24.
Traça com que rcduzio hum grande peccador, liv. i, num. 87.
Entra ao sertão, e o que lhe siiccedeo, liv. i, num. 120.
Confirma Deos sua doutrina com milagres, liv. i, num. 141.
Sua morte, elogio da vida, liv. i, num. 195.
índios
Impedimentos que tinhão pcra sua conversão, liv. i, num. 43.
Vide Costumes.
Causas de comerem carne humana, liv. i, num. 49.
Querem matar aos Padres por lha prohibirem, liv. i, num. 50. c seg.
Cuidão que o haulisrao lhe lira o gosto, liv. i, num. 51.
Como concorrião a ser doutrinados, liv. i, num. 131.
]\Iatão os contrários muitos (juandu vinhão, ibid.
Os primeiros que em S. Paulo se ajuntarão, liv. i, num. iCO.
330 índice geral
Vide Lei«.
Converte-se hum de 130 annos, liv. ii, num. 141.
Piedade, e modo com que os índios vivem nas aldeãs, liv. ii, num. 9.
ITAGYDA
índio esforçado, liv. i, num. 103.
JOÃO CAIUBI
Converscio, e vida cliristâa deste índio, liv. i, num. 160.
IRMÃÕ JOÃO DE SOUSA
Morte gloriosa deste irmão, liv. i, num. 170, e 177.
Quem foi, e sua vida, liv. i, num. 183.
D. JORGE DE MENESES
lie morto pelos índios Tupinaquis, liv. ii, num. 13.
ILHA DE VILLAGAILHON
Sua descripção, liv. n, num. 77.
ILHEOS
DescripçIIo, e povoação dos Ilheos, liv. m, num. 48, e seg.
Funda-se n'elles Casa da Companhia de Jesu, liv. iii, num. 47.
JORGE DE FIGLTIREDO
Senhor dos Ilheos, c a quem passaram, liv. m, num. 53.
JOÃO BOLES
He justiçado no Rio de Janeiro, liv. m, num. IIC.
JAQUES SORIA
Apparece com cinco velas, e foge, liv. iv, num. 25.
Fim que teve este herege, liv. iv, num. 6o.
d'ksta cfmoNiCA 331
L
PADRE LEONARDO NUNES
Vai pêra o Brasil com os primeiros Padres, liv. i, mim. 24.
Vai á Capitania de S. Vi cerne, liv. i, mim. 01.
Seu exemplo, e zelo apostólico, liv. i, num. 64.
Hum peccador a quem reprehendia o quiz espancar, liv. i, num. 70.
Livra-o Deos da morte que lhe querião dar, liv. i, num. 77.
Vai ao sertão a livrar cativos Europeos, liv. i, num. 78 e 79.
He eleito Procurador geral a Roma, liv. i, num. 107.
Parte, e morre em hum naufrágio, liv. i, num. 1C8.
Epilogo de sua vida, ibid.
LIBERALIDADE
Liberalidade dos naturaes da Bahia, hv. i, num. 30.
PADRE LUIS DA GRAM
Chega ao Brasil, liv. i, num. 143.
Tem os mesmos poderes de Provincial, liv. i, num. 147.
Faz profissão solemne, ibid.
Vê-sc a primeira vez com o Padre Nóbrega, liv. i, num. 193.
Vai ao sertão, liv. i, num. 200 e 201.
Vem-lhe patente de Provincial, liv. ii, num. 03.
Prega contra hum herege, liv, ii, num. 07.
Edifica a Capella de Nossa Senhora da Ajuda, liv. ii, num. 70.
Bautiza, e livra dous índios, que estavão pêra ser comidos, liv. ii,
num. 87.
Vai visitar as Aldeãs, he festejado dos índios, e faz muitos bautismos,
fiv. II, num. 101 e 123.
Vai visitar Pernambuco, e abre alli Classes, liv. iii, num. 123.
D. LUIS DE VASCONCELLOS
Succcsso das náos de sua Armida, liv. iv, num. 112 e seg.
M
PADRE MANOEL DA NÓBREGA
Converte huma grande peccadora, liv. i, num. 14 a 17.
Quanto folgava de padecer, c ser desprezado, liv. i, num. 18.
Afugenta os demónios com as palavras, liv. i, num. 21.
332 INDECE GERAL
Faz em Portugal varias missões, e fruto d"ellas, liv. i, mim. H.
Fervor com que pregava, liv. i, mim. 23.
He mandado pêra o Brasil, liv. i, mim. 2i.
Como se houve na viagem, liv. i, num. 42.
Faz officio de Parocho, liv. i, num. 44.
Primeira pratica que faz aos Missionários, liv. i, num. 84.
Emprega-se na reformação dos Portugueses, e conversão dos índios, liv.
I, num. 85.
He nomeado Vice-provincial, liv. i, num. 8!.
Actos de heróicas virtudes em que exercitava os súbditos, liv. i, num. 82.
Sara hum Padre doente por seu mandado, liv. i, num. 93.
Vai a Pernambuco, liv. i, num. 107.
O que alli obrou, liv. i, num. 110.
Volta á Bahia, liv. i, num. 112.
Visita as Capitanias, liv. i, num. 124.
Livra-o Deos milagrosamente de hum naufrágio, liv. i, num. 125.
Entra no sertão, e funda huina Residência, hv. i, num. 130.
Institue a Confraria do Menino Jesu, liv. i, num. 133.
He declarado Provincial, liv. i, num. 147.
Escreve o Padre Anchieta suas insignes obras, liv. i, num. 7.
Seu nascimento, pais, e estudos, liv. i, num. 8.
Resolve-se a ser Religioso, liv. i, num. 9.
Entra na Companhia de Jesu, liv. i, num. 9.
Fazem-no em Coimbra pai do próximo, liv. i, num. 10.
He chamado Pai dos necessitados por sua muita charidade, liv. ii,
num. 83.
Visita a pé as aldeãs da Bahia, e faz a de S. António, liv. ii, num. 90.
Cultiva os índios de S. Vicente, liv. ii, num. 110.
Vai em missão aos índios Tamoyos, liv. iii, num. 5 e seg.
Tratão os índios de o matar, liv. in, num. 10.
Volta daqui a S. Vicente, liv. m, num. 17.
Dispõe-se pêra a morte, e tem conhecimento d'ella, hv. iv, num. 115.
Epilogo de sua santa vida, liv. iv, num. 117.
Testemunho que d'elle deo o Padre Anchieta, liv. iv, num. 118.
Raro exemplo de sua charidade, liv. iv, num. 126.
Casos maravilhosos, com que Deos mostrou quam aceito lhe era este
seu servo, liv. iv, num. 134 e 143.
Arvores do Brasil, liv. i, num. 28.
Usos doesta arvore, ibid.
MANGUES
d'esta chromca íi33
MA.RTLM AFFONSO DE SOUSA
Primeiro fundador da Capitania de S. Vicente, liv. i, num. G3.
MARTIM AFFONSO ÍNDIO
Valor com que se liouve na tomada do Rio aos Franceses, liv. n,
nmn. 81.
Sua fidelidade, liv. ii, num. 134.
Alcança huma grande victoria, liv. iii, num. 130.
MARTIM AFFONSO TAinniCA
Morre grande Chrístão, liv. ii, num. 138.
MUSICA
Levão-se os índios muito da musica, liv. i, num. 18.
MINAS
Ha muitas na serra de Pirana Piacaba, liv. i, num. 130.
MENINOS índios
Ajudão muito á conversão dos naturaes, liv. i, num. IGl.
Fazem-se Seminários d'elles, liv. i, num. 91 a 93.
Rezando elles as Oraçijes sarão os enfermos, ibid. e 118.
MENDO DE SA
Vai por terceiro Governador do Brasil, liv. ii, num. 4.
Quem foi, c como se houve no governo, liv. ii, num. 48.
lie Governador quatorze annos, ibid.
Toma os exercícios espirituaes na Companhia, liv. ii, num. 43.
Dá leis aos índios, liv. ii, num. 8.
Vence, e prende a hum índio poderoso, que não obedecia, liv. ii,
num. 55.
• Promulga leis cm favor da liberdade dos índios, liv. n, num, 44.
Castiga asperamente aos índios que não guardavão as leis, liv. ii,
num. 55.
• Alcança dos índios de Peragunçú huma insigne victoria, liv. n. num. 57,
Parte com huma armada peia o Rio de. Janeiro, liv. ii, num. 70.
Chega com cila ao Rio, liv. ii, num. 77.
334 índice gkhal
Entra a barra a pesar dos inimigos, ibid.
Ganlia a fortaleza, liv. ii, num. 78.
Volta com a Armada pêra S. Vicente, liv. ii, num. 82.
Volta d"ahi pêra a Bahia, liv. ii, num. 89.
Manda outra armada ao Rio, e successos d'ella, liv. iii, num. 36.
Vai segunda vez ao Rio com armada, c concluc a guerra, liv. iii, num.
100, e seg.
P. .MATHEUS NOGUEIRA
Sua vida, o virtudes, liv. ii, num. 119.
N
NOVIÇOS
Os primeiros que no Brasil entrarão na Companhia, liv. i, num. 70.
NAUFRÁGIO
Naufrágio miserável, liv. ii, num. li.
Vide Leonardo Nunes.
Vide D. Pedro Fernandes.
NÁO
Rendem os nossos huma náo francesa, hv. iii, num. 13C.
Náo San-Tiago he rendida dos Hugonoíes, liv. iv, num. 41.
NICOLAO VILLAGAILHON
He O primeiro Francez que foi ao Brasil: alcançou terra no Rio de Ja-
neiro, liv. II, num. 45.
NOSSA SENHORA
Nossa Senhora da Graça da Bahia, como se achou, liv. i, num. 40.
Dá-se a sua Ermida aos Rehgiosos de S. Bento, liv. i. num. 40.
Em Nossa Senhora dAjuda ediíicão a primeira Casa os Padres da Com-
panhia de Jesu, liv. i, num. 40.
Vide Collegio,
Rebenta huma fonte milagrosa cm Nossa Senhora dWjuda, liv. n, num. 70,
d'i:sta ciinoMCA 335
P
1'ADUES DA CO.MPAMHA DE JESIT
Vão ao Brasil, c quaes forão os primeiros, liv. i, mim. 24.
Saem a primeira vez em terra do Brasil, e dizem missa, liv. i, num. 43.
Como forão recebidos em S. Vicente, liv. i, num. GO.
Seu exemplo, e zelo apostólico, liv. i, num. 07.
São perseguidos por proliibirem o cativeiro injusto dos índios, liv. i.
num. 73.
Chegão á Bahia outros Padres, liv. i, num. 81.
Empregão-se na reformação dos Portugueses, e conversão dos índios,
liv. I, num. 8o.
Vão a Pernambuco, e o que alii obrarão, liv. i, num. 107.
Vão a varias missões ás aldeias dos índios, liv. i, num. 1 íl.
São calumniados por inimigos, liv. i, num. 120.
Chegão outros mais ao Brasil, liv i, num. 134.
São perseguidos em S. Paulo, liv. i, num. 102.
Como estas perseguições se aplacarão, ibid.
Modo com que doutrinão os índios das aldeias, liv. n, num. O, 7, e 8.
Chegão outros {mais ao Brasil, liv. n, num. 03.
Tratão de reduzir os índios, e estão quatro arriscados a ser mortos, liv.
ni, num. 40.
POBRES
Enganos com que huns perlião, liv. i, num. 22.
D. I'EDr,0 FERNANDES SAUDINHA
Primeiro Bispo do Brasil, liv. i, num. 37.
Chega á Bahia liv. i, num. 114.
Suas partes, e talentos, ibid.
Faz naufrágio voltando ao Beino, liv. n, num. 14.
POHTO SEfiUUO
Quem foi seu primeiro povoador, liv. i, num. 142.
Sua descripcão, ibid.
Vão a esta Capitania os Padres da Companliia de Jesu, liv. i, num. 140.
PEDIIO DE CAMPOS TOIHINIIO
Primeiro povoadoí- de Porto seguro, liv. i, num. 142.
336 ÍNDICE oi:ral
PEDRO BORGES
Primeiro Ouvidor geral do Brasil, iiv. i, num. 42.
IRMÃO PEDRO CORRÊA
Entra na Companhia, e lie o primeiro Noviço que cnlrou no Brasil, liv.
I, num. 70.
Sua ditosa morte, liv. i, num. 170 e 170.
Vai ao sertão, liv. i 174.
Chega á terra dos Carijós, e o que alli fez, liv. i, num. 175.
Quem foi, e os progressos de sua vida, liv. i, num. 175.
Como os índios sentirão sua morte, liv. i, num. 181.
D. PEDRO LEITÃO
He eleito segundo Bispo do Brasil, liv. ii, num. C3.
POBREZA
Vivem os Padres da Companhia pelo trabalho de suas mãos, liv. i,
num. 72.
PARAGYBÁ
índio muito esforçado, liv. i, num. 103.
PERNAMBUCO
Suas desgraças forão d^antemão vistas, liv. i, num. 104.
O que n'elle obrarão os Padres da Companhia de Jesu, liv. ii, num. 01.
Sua descripção, hv. i, num. 99.
Quem foi seu primeiro povoador, liv. i, num. 100.
Vide Duarte Coelho.
PÃO
Páo brasil, liv. i, num. 99.
PIRATININGA
Vide S. Paulo.
S. PAULO
Faz-se Collegio da Companhia cm S, Paulo, liv. i, num. 148.
DescrevG-sc o sitio da \illa de S. Paulo, e excellencias de seu districto,
liv. i, num. 128 e 129.
Muda-se o caminho de S. Paulo pêra S. Vicente, liv. ii, num. 8o.
d'ESTA CIIRONICA ^37
província
lie erigida a Província do Brasil, liv. i, num. 47.
R
RIO
Rios que entrão na Bahia, liv. i, num. 28.
Rio de Janeiro, seu Padroeiro S. Sebastião, liv. iii, num. 72 e 97.
Dcscripção do Rio de Janeiro, liv. ui, num. 106.
RESIDÊNCIA
Fundão-se varias Residências, liv. n, num. 3.
S
SEMINÁRIO
Faz-se Seminário de meninos índios, liv. i, num. 71.
Fanda-se outro, liv. i, num. 91 e 93.
Vão em grande crecimento, liv. i, num. 118.
PADRE SALVADOR RODRIGUES
lie o primeiro da Companhia que faleceo no Brasil, liv. i, num. 138.
D. SIMÃO DE CASTELBRANCO
Malão os índios Tupinaquis a D. Simão de Castelbranco, liv. ii, num. 13.
D. SEBASTIÃO REI DE PORTUGAL
Funda o CoUegio da Bahia dos Padres da Companhia, liv. m, num. 45.
S. SEBASTIÃO
Inlitula-se a cidade do RiocomappelidodeS. Sebastião, liv. iii, num. 117.
Padroeiro do Bio de Janeiro, liv. iii, num. 72.
PADRE SIMÃO RODRIGUES
Quem foi, hv. i, num. 4.
VOL. II 22
338 iNDici: f; Eli AL
Trata da conversão dos Brasis, liv. i, num. 3 c 5.
Razões porque El-Rei o não deixou ir a e!le, liv. i, num. 7.
SALVADOR CORKF.A dc SÁ
Succede no lugar, e [losto de Estacio de Sá. liv. m, num. 103.
T
TUOMÉ DE SOUSA
Primeiro Governador do Brasil, liv. i, num. 25.
Parte de Lisboa, ibid.
TOBAYARES
São OS primeiros índios que fizerão pazes com os Portugueses, liv.
I, num. 101.
TABIRA
Esforço, e façanhas deste índio, liv. r, num. 101.
TEMLMINÓS
Vem estes índios povoar junto á Capitania do Espirito santo, liv. i,
num. 240.
TAPUYAS, TITINAMBAS
Levantão-se estas nações contra os Portugueses, liv. ii, num. 1.
TORMENTA
Espantosa tormenta, e terremoto, liv. ii, num. 8C.
TITIS
Levantão-sc estes índios contra os Portugueses, liv. n, num, 13.
TAMOYOS
Descripção da ttrra dos Tamoyos, liv. iii, num. G e 7.
Inquietão estes índios com seus assaltos aos Portugueses, o confedera-
dos, liv. u, num. 111 c 14-3; e liv. ni. num. 5.
Castiga Deos estes bárbaros, liv. ii, num. Mi.
d'i:sta ciiRO.Mc.v í]39
TUICO
Dá-se em S. Vioeiíto, liv. i, num. Oii.
V
VILF.A DE SANTOS
Sua fundarão, liv. i. num. G3.
VASCO FERNANDES COUTINUO
Primeiro povoador do Espirito santo, liv. i, num. 95.
Faz armada á sua custa, e vai com outros fidalgos, ibid.
VICTORIA VUJ.A
<S'ua descripção, liv. i, num. 90.
VICTORIA
Alcanção os índios Cliristãos liuma grande victoria, liv. t, num. 1C5.
Victoria insigne, liv. ii, num. 135: e liv. ni, num. 81, e seg.
S. VICE.NTE
Descrevc-se a Capitania de S. Vicente, liv. r, num. Oá.
FIM
SATISFAÇÃO AÕS QUE LÉM
Bem quizeramos qiio esta edição sahisse tão correcta e expurgada de
erros, que dispensasse a tabeliã de erratas, a que entre nós raras vezes
escapam ainda as mais aprimoradas. A esse propósito applicámos toda
a diligencia e cuidado que em nós cabiam, revendo miudamente primei-
ra e segunda vez as provas lypographicas de cada folha, e de boa von-
tade veriamos a chamada de prelo, se nol-o consentisse a celeridade com
que o editor se empenhava em concluir a impressão da obra. Com-
tudo, apezar do trabalho e sacriíicios qvxa empregámos, sò em parte con-
seguimos lograr o nosso intento, vencendo as diíliculdades de mais de
um género que se nos oppunham.
Examinado agora o livro já todo impresso, e conferido escrupulosa-
mente com a primeira edição, que servira de norma, achámos que na
parte portugueza se tornava a erraía de todo desnecessária, pois apenas
se encontrou a troca de uma ou outra letra, e algumas voltadas, o que
em nada deturpa o sentido do texto, e pode ser íacilimamente supprido
pelo leitor benévolo c intelligenle. Quanto porém ao poema latino do
Padre Anchieta, que n"e,ste volume corre de pag. 130 a pag. 278, nota-
ram-se discrepâncias assas numerosas, bem que de pouco momento, as
quaes nos julgamos obrigado a aponlar, com a explicação das causas que
as produziram.
Forçado a corrigir á pressa, quasi sempre de noite c mal ajudado da
vista (que cada vez mais nos falia) as provas da composição lypographi-
ca, entregue a compositores ípie por menos peritos e totalmente igno-
rantes do latim, trocavam o alteravam as letras a cada ])asso, achámo-nos
seriamente embaraçado ao entrar na nívisão pelos versos do l'adre An-
chieta, que na edição da Cfironica de ICÁ^i são impressos em caracteres
itálicos, e Ião miúdos, que se nos (ornavam de noite inintelligiveis. N'es-
te embaraço occorreu-nos o expediente de corrigir as provas [)ela outra
edição do jnesnio poema, (jue inqiresso em typos mais graúdos sahiu
com a Vida do Padre Anchicla, pelo mesmo auctor da Cltrouicn, eslam-
pada em 1072. Assim o pralicámos. Porém oresiillatlofui, que confron-
tada agora a edição actual com o texto da Chronka, appareceram mui-
tíssimas variantes (são as que na tabeliã seguinte vão marcadas com as-
teriscos). D"estas, c de lodos os erros que escaparam á correcção damos
pois conta exacta e minuciosíssima, para inteiro descargo de nossa cons-
ciência.
Pag.
Lin
h.
139
12
paucae meae
li
contemerat
1Í0
19
víscera
li2
40
forma
143
13
tuo
27
niundítia
44
GialiOcoques
143
6
ConciemcDt
15
eruniptit
18
invebilur
aelhra
20
mersi
32
divinani
40
pracstant
41
obscure
or be
líC
3
eximiu?
13
vctescs ceste-
re querela
41
nculis
147
34
laudet
1i8
12
metuant
37
|)ruecepi'a;utí
149
2
ole facuiiilu»
12
speclíibilis
31
l'erpeluos
4Í
Indu
150
1
surgunt
18
legantur
lol
23
netlarens
132
31
merita
133
31
A^UIAE
134
6
cândido
32
agnus
34
inter
40
era
41
Tunc
103
1
Tene
137
12
verita
18
Exil
38
sus
138
33
mul(e
1.^9
«
sedul
ICO
1
bonus •
2
(iongressere
2Í
procila cd
28
Extendique
ir.i
3
subjiflicuda
103
4
nne
11
Altellis
pcdibiisque
Lca-se
pauca niea
contumerata
viscere
foioiae
tua
iiiunditiae
Giatificoque
Concreniet
erumpit
invehitur
aetlirae
mersit
diurnam
praestante
obscuro
orbe
cximio
velcics ccssc-
rc qucrelae
nculi
lande
metuunt
prnecipifatquc
ciei faecundos
spcctabis
Perpeíuus
Indue
insur^unt
tegentur
ncctarcus
niorilas
Amissae
cândida
dignus
ante
ora
Tune
Tune
vetila
Exite
suus
multo
sedula
bonis
Congcsscre
procul acd
Extendisi(ue
subjicienda
non
AftoUis
gi'nibu.sr(ue
Pag. Linh.
1G3 12
29
33
12
21
16
43
16G 27
Lca-se
164
1C3
10
17
28
li
20
170 20
167
168
169
171
173
174
173
176
177
178
182
10
14
21
22
16
20
31
O
29
32
3
22
41
42
38
41
9
11
13
6
31
179 40
180 3
181
9
43
17
36
183 8
17
183 21
18(J 2
6
29
orans
oras
inslus
juslus
tua
tuam
humilieni
humilem
Ivmphit
hniphis
Nutrist
ISuiriit
concipi et
concipiet
ibre
imbre
vicis
vicit
David
Davide
conslruclo
constructa
fecunda
secunda
lata
latae
altae
alto
appendit
apprendit
■viscere
víscera
nomiiie
numíiio
regai i
regale
Laeturum
Laturum
car
cor
In terá
Interea
pieles
pictas
at quae
atque
lacta
lacte
Haeret
Hacrete
evcbit
evehit
more
mora
amor, máxima
discrimengran
cura subit
depudoris
peragatus
peragatur
cacuminis
communís
vijs
pijs
nxastiaris
exatians
prostuit
profluit
pudicitae
IJudicítiac
El.VIDIUM
Elvidiu.m et-
ffagrat
flagrat
Tartarea
Tartareo
refeito
refert
Nulla
^ullac
volutaberis
volutabris
tumuii
lumulis
bonoranda
bonorandae
rabidusue
rabidusquc
revocat
revucant
natura
naturac
lllae
llle
favus
favos
pavent
pavct
■viscera
viscere
sinu
sinus
Pag.
187
188
189
1í)0
1'JI
192
193
19Í
19o
19C
197
198
2C0
201
203
20 í
2o:;
20(>
207
208
209
210
211
212
213
Lính.
23 fovijte
32 Cít
34 Aiicilla
17 alvuum
6 serus
10 vecal
37 gravitius
8 quod
12 luininc
l"i \ix
•i3 benigna
7 chinior!l)US
24 licui
38 ne
I i agct
IC sublinicn
23 allae
10 Exequereis
II tranclanlL-m
40 csi
41 drl
5 sacrae
40 est
43 Deorat
21 luniinc
31! seu
7 alie
30 nova
40 rutnra
42 Talta
2 Vormiculiá
33 honcslits
38 Tegamina
U cu na
2;> tenebra
27 adoram
.'i Un (leque af
27 acto
32 foedaic
10 Quan
14 divinis
3 csl
7 to tus
10 cum(|ue
13 lllae sum
19 fen-j
4 Ouae
8 !<c[)iin
3() gestus
13 ille ccbias
8 rircnnis
10 liabero
28 ulii
1 í caterva
23 possucre
17 vilcin
33 pau|)ercrior
li Ília
Lca-se
Pag. Linh.
fovisli
213
es
214
Ancill.ie
215
alvuin
•
feras
216
vocat
•
giavibus
217
(jUOt
lumina
218
vis
benignao
•
cl a 11)0 ri bus
licuit
221
nec
222
"{■'it.
sublimem
alta
Exequcris
223
tractantem
cst
dãt
sacra
es
Decrat
22Í
liminc
ceu
alto
novae
225
ruitura
Talia
Vermiculisquc
•
lioncslis
• 22fi
Tegmina
227
cunae
228
tencbrae
229
adoranl
Undc queal
210
ardo
foederc
232
Ouo
• 233
divinos
23 i
CS
totius
cumquc
23K
Jllacsum
fures
• S3G
Qua
»
se|((!m
237
guslus
illcccbras
prcMiis
238
liabcre
alit
239
caterva
2i3
posueiu
V idem
pauiierior
2 ia
lllu
2i0
21 Sabac
19 ailbaessit
27 abjecum
29 su
9 lul
20 inetus
O summus
17 periolis
4 qui es
2! aerumnis
23 vulnerai
41 firam
20 qrimo
4 culpa
18 juccumbcre
4í jubeas tnrgcn-
tia
"t plaustro
7 populos
29 claudiris
31 Desplicet
32 víscera
38 nulla
í premi
parontis
G llumadum
27 inope
18 vila
19 reconudis
23 a pudor
30 terra
10 Nubere
4 vincera
31 aetcreis
10 arandinc
32 abdilc
9 Ipsus
37 murto
41 cumulei
40 obcunda
i geus
29 vincera
43 tegmina
6 grissibus
42 uotiau
7 quisque
9 Juventa
G tencraerime-
tur
13 dulciac
27 delicli
28 Dulci
17 diobus
13 niammic
18 cerde
28 cxbalcntc
37 invasi
2 Pignore
Lea-se
Saliíieac
adbaesit
abjectum
sic
tuí
metuiá
somnus
pcriclis
quies
aerumnis obruit
vulnerei
ferani
primo
culpae
succumberc
jndeaslurgen-
tia
plauslra
populus
clauderis
Displicet
viscerc
nullo
primi
parentis
Ihimanum
inupi
vilae
recondis
Itudor
Icrrae
Nuberet
vincere
aelberis
arundinc
abdita
Ipsius
mulo
cumulei
obcundae
gens
vincero
tegmino
gresíibus
do na
quicsquc
juvenlac
tenerae rime-
tur
d u leia
dilccti
Dulciac
diebiis
manmiis
corde
cxbalanie
inv;isit
Pignora
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Lca-sc
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C
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3
contulis
8
nulia
2Í
Quae
203
15
santis
2oG
7
dit
8
Tu
16
Jucidiique
tcrebraiitur
238
21
suac
siiinan
239
13
splendiorc
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2(;o
9
tUPS
fixos
2G2
2í
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F Vasconcellos, Simão de
2528 Chronica da Companhia de
V38 Jesu do estado do Brasil
I865 2. ed., corr. e augm.
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