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Full text of "Chronica da Companhia de Jesu do estado do Brasil, e do que obraram seus filhos n'esta parte do Novo mundo. Em que se trata da entrada da Companhia de Jesu nas partes do Brasil, dos fundamentos que n'ellas lançaram e continuaram seus religiosos, e algumas Noticias antecedentes, curiosas e necessarias das cousas d'aquelle estado, pelo padre Simão de Vasconcellos. Tomo primeiro (e unico)"

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CHRONIGÂ 

DA  COMPANHIA  DE  JESU 


DO 


ESTADO  DO  BRASIL 


VOLUME  PRIMEIRO 


I 


iíôAfiú  yii  ÚUkiíá: 


Typo^raphia  do  l'anoraiiin,  rua  dos  Sanateífõà 
(vulgo  Kua  do  Arco  do  Bandeira,  112). 


CHRONICA 

DA  COMPANHIA  DE  JESU 

DO 

ESTADO  DO  BRASIL 

E  DO  QUE  OBRARAM  SEUS  FILHOS  N'ESTA  PARTE  DO  NOVO  MUNDO. 

EM  QUE  SE  TRATA 

1)1  míuu  u  GouPA^um  de  jesu  Nas  pautes  do  brasil, 

DOS  FUNDAMENTOS  QUE  n"eLLAS  LANÇARAM 

E  CONTINUARAM  SEUS  RELIGIOSOS,   E  ALGUMAS  NOTICIAS  ANTECEDENTES, 

CURIOSAS    E  NECESSÁRIAS  DAS  COUSAS  d'AQUELLE  ESTADO 

PELO    PADRE  TOn 

SIMÃO  DE  VASCONCELLOS, 

DA  MESMA  COMPANHIA. 

TOMO  PRIMEIRO  (e  UMCO) 

SEGUNDA  EDIÇÃO  CORRECTA  E  AUGMENTADA 

VOLUME  I    ;}    "X. 


lím  rasa  do  Editor  A.  J.  rcniandes  Lopes,  rua  Áurea,  132  —  134. 

MDCCCLXV. 


A31/íOflH3 


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M(M  ii\icáiiíiri  CLÁ  jcj:.    '. .  :;:;j/;luj  im  tmmm  IM 


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aOHTUA  nn  nT?3T0flS 
ELOGIUM 

In  Patre  Simonem  de  Vasconcellos  Societalis  Jesu,  ac  Brasiliae  olim  Provin- 
cialem  meritissimum, .  Autliorom ;  rodigens  ea  que  illius  Chronica  adeó 
eleganter  conlinet,  de  gestis  mirificê  à  Patribus  çj^i^sdejíi  Soçiçitalis  iu 
ipsa  Província,  dum'  tòt  gentes  Fidei  splen,doi'e  illusti^ant,  á  ,\:iUjs  rievo- 
cánt,  ad  virtutem  tranferunt,  ab  OrcÒ  extrahunt,  Olympo  restituunt, 
et  sic  tellurem  Avernum  olim,  totam  nunc  vertunt  in  floeium. 

Dum  calamo  signas  frateriía  insígnia,  Símo»  vn'\\f\t."í  '^v.  ,í:liOt 

Assumens  Orhis  façta  decora  novi:        ,'^    oiU^^Vl  «o  ,oU\vj<i 
Hcerere  Heroes  ad  qim  sibi^esta  pidentur  ^    w^rvsVm  mb')nKO'^ 

An  plausu  Imc  deceat  num  potiori  coli?  .  .^^y^ 

lios  si  prima  manus,  te  rcspicit  ultima:  .qw^me  \   .  u  .^\, 

Phiribus  incceptum  confieis  uniis  ppus^ 
Iilorum  palmis  Acheronta  suhegit  Ohjmpiis:      .   •    • 

Non  nisi  per  palmas  scd  data  palma  tua,í. 
Quce  semel  acta  sibi^  bis  per  te  rcddita:  virias 

Incrementa  tua  pcrcipit  ipsa  manu. 
Quid  mirum?  Hinc  cunciis  si  augeri,  provcnit,  una 

Hoc  você  inclamat  consona  Terra  Polo. 
Usque  ferax  operum  Scriptore  hoc  edita  Tellus? 

Prole  pari  felix  additus  usque  Polus? 
/Emula  Terra  Poli,  Terra  Polus  invicem:  ut  illam 

Ecocat  ista  quies,  hunc  vocat  ille  labor. 
JJefers  tanta  quidem  Telluri  encomia,  cwlo 

Par  vase  at  constei,  quin  prior  illa  tuo. 
Se  tali  ccelum  cognomine  prorogat :  olim 

Imanta  creans,  per  te  prwstila  quanta  fácil ! 
Non  Vasconcellos,  cura  cajlis  vas  es :  et  in  te 

Quem  henc  ccllasli,  jam  paíct  Aula  Poli. 


PROTESTO  DO  AUTHOR 


Pfáhihlú  nò^s^  Banclissimo  Padre  Urbano  VÍIÍ,  por  hum  Dccrelo  sen 
pnssddà  em  íõ  de  Março  de  IG31,  c  confirmado  em  5  de  Julho  de  1634, 
ifnprimifem-^se  livros  de  Varões  celebres  em  sanlidado,  e  fama  de  mar- 
tijriòy  '^Ue  ^cúiííiéèssem  feitos  milagrosos,  revelações,  ou  outros  quaes- 
fjuer' t ene ficiòs  alcançados  de  Deos ;  sem-  revista,  e  approação  do  Or- 
dinário: com  tudo,  como  o  mesmo  Sanctissimo  Padre  em  5  de  Junho  de 
1C32,  se  explicasse  uo  sentido  seguinte,  que  não  se  admitissem  elogios  de 
Santo,  ou  Beato  absolutamente,  que  caem  sobre  a  pessoa ,  ainda  que 
concedia  poderem-se  admitir  os  que  caem  sobre  os  costumes,  e  opinião, 
com  protestação  no  principio,  que  os  taes  elogios  não  tenhão  authorida- 
de  da  Igreja  Jlchnana,  senão  somente  a  fè  que  lhes  dá  o  Author.  O  que 
supposto,  protesto  que  tudo  o  que  trato  nesta  minha  obra,  entendo, 
e  quero  se  entenda,  na  forma  dos  sobreditos  Decretos,  c  sua  ultima  ex- 
plicação. IJsboaJ  de  Setembro  de  1002. 

Simau  do  Vascoiiccllos. 


EMPREZV  P\RA  A  UEPRODUCÇÃO  DOS  LIVROS  CLÁSSICOS 
PORTUGUEZES 

OBRAS  A  ENTUAR  >0  PRELO,    NO  FORMATO  DE  S."  GRANDE 

Preço  por  assicjmtura  800  rs.  cada  volume  de  400  paij.,  avulso  I^OOO  rs. 

Chronica  da  Companhia  de  Jcsu,  do  Estado  do  Rrasil,  pelo  Padre  Simâo  do 

Vasconcellos,  2  vol.  (Acha-se  quasi  concluída  a  impressão  do  volume  ii.) 
Historia  do  S.  Domingos,  particular  do  reino  e  conquistas,  por  Fr.  Luis  de 

Sousa. 
Chronica  d"El-Rei  D.  João  I,  por  Fernão  Lopes  e  Gomes  Eannes  dWzAirara. 
Nova  Lusitânia,  Historia  da  Guerra  Brasílica,  por  Francisco  de  Brito  Freire. 
Ethiopia  Oriental,  por  Fr.  João  dos  Santos. 
Ciironicas  dos  Reis  de  Portugal,  por  Duarte  Nunes  do  Leão. 
^íemorial  dos  Cavalleiros  da  Tabola  redonda,  e  mais  obras  de  Jorge  Ferreira 

de  Vasconcellos. 
Historia  da  índia,  por  António  Pinto  Pereira. 
Arte  do  Reinar,  por  António  Carvallio  Perada. 
Cartas  que  os  Padres  da  Companhia  de  Jesus  escreveram  da  China  e  Japão 

(Completas.) 
Apologos  Dialogaes,  por  D.  Francisco  Manuel  do  Mello. 
Espelho  do  Casados,  pelo  Doutor  João  do  Barros. 
Anlidoto  da  Lingua  Portugucza,  por  António  de  Mello  da  Fonseca. 
Verdadeira  informação  das  terras  doPreste  João,  pelo  Padre  Francisco  Alvares. 
Historia  do  F3rasil,  por  Sebastião  da  Roclia  l>ita. 
Comedias  do  Simão  Machado. 
Historia  Insulana,  pelo  Padre  António  Cordeiro, 
itinerário  da  Terra  Santa,  por  Fr.  Panlahião  d' Aveiro. — Dito  pelo  Padre 

Francisco  Guerreiro. 
Trabalhos  de  Jesus,  por  Fr.  Thomé  do  Jesus. 

Historia  das  vidas  o  f(;itos  heróicos  dos  Santos,  por  Fr.  Diogo  do  Rosário. 
(Chronica  d'El-Uoi  D.  João  Hl,  por  Francisco  do  Andradi;. 
Ni»biUarchia  P(jrtugueza,  por  António  do  Villas-b(ías  Sampaio. 
Vida  do  S.  Francisco  Xaviíir,  p(;l()  Padre  João  de  Lucena. 
Vida  do  venerável  Padre  JosédAnchiela,  pelo  l*adro  Simão  de  Vasconcellos. 
Obras  poéticas  de  Pedro  António  (iOrrèa  Garcãí),  nova  edição  correcta  c  ac- 

crescenlada  com  muitas  poesias  o  discursos  ainda  não  impressos. 


Escriptorio  da  Empreza:  Rua  Áurea,  ['.I2~[l\'i. 
Livraria  de  Anlonia  José  Fernandes  Lopes. 


ADVEiiTE^^CIA    PRELIllINAR 


ACERCA  DA  PRESENTE  EDIÇÃO 


A  progressiva  e  qiiasi  exlienm  raridade  a  que  teeni  chegado  entre  nós 
os  exemplares  da  Clironica  da  Companhia  de  Jesu  do  Estudado  Brasil,  jjéio 
Padre  Simão  de  Yasconcellos,  e  o  elevado  preço  a  que  subiram  modoriia- 
meiíte  os  poucos  que  a  casualidade  trouxe  ao  mercado  dos  livros  (o  ultimo 
de  que  sabemos  foi,  se  não  nos  enganamos,  vendido  por  18;5000  réis), 
justificam  de  ccrlo  modo  a  preferencia  com  que  o  editor  antepoz  a  publi- 
cação d'esta  á  de  t3ulras  obras  de  nossos  antigos  clássicos,  que  se  propõe 
vulgarisar  por  meio  da  reimpressão.  E  tanto  mais  que  esta  Chvonica  con- 
tinua a  ser  procurada  com  avidez,  quer  em  Portugal,  quer  no  Brasil,  como 
uma  das  mais  notáveis  e  estimadas  no  seu  género. 

Ninguém  ousará  negar  que,  á  parte  o  espií-ilo  de  exaggeração  e  pie- 
dosa credulidade,  dominantes  nò  século  em  que  foi  escripta,  e  de  que  o 
aucíor  mal  jiodia  sei'  exemplo,  esta  obra  iião  seja  uma  ampla  e  curiosíssima 
foule  de  noticias  i»ar;i   Indo  o  (pir,  dí/  i-cspcilo  ás  piimeiras  fon([uistas  b 


estabelecimcntoá  culoiiiaes  dus  poílugiiezus  ua  ÍL-na  de  Santa  Ciiiz;  á  (u- 
pograpliia  do  paiz;  e  ás  trabalhosas  fadigas  dos  primeiros  missionários  na 
catheqiiese  e  civilisarão  dos  Índios.  É  innegavcl  o  proveito  que  das  narra- 
tivas do  Padre  Vasconcellos  no  periodo,  em  verdade  mui  curl(j,  que  ellas 
comprehendem,  recollieram  os  qu(;  em  diversos  tempos  se  occuparam  mais 
detidamente  da  historia  do  Brasil,  como  o  antigo  Rocha  Pita,  e  o  m.oderno 
Southey. 

Rogado  pelo  editor  para  nos  incumbirmos  de  dirigir  esta  edição,  e  d 
que  mais  é,  da  enfadonha  e  molesta  revisão  das  provas  typographicas,  sen- 
timos sobremaneira  que  a  pressa  que  nos  foi  imposta,  e  a  necessidade  de 
conciliar  este  com  outros  encargos  a  que  temos  de  attender,  nos  não  dei- 
xasse livre  o  tempo  de  que  carecíamos.  Cumpria  fazer  sobre  a  Chronka 
um  estudo  mais  particular,  e  comparal-a  passo  a  passo  com  os  importantes 
trabalhos  históricos  de  recente  data,  pubhcados,  mormente  no  Brasil,  por 
illustrados  contemporâneos.  Poderíamos,  mediante  esse  exame  e  confronta- 
rão appensar  á  obra  as  observações  o  reparos  concernentes  a  rectificar  al- 
guns factos  e  datas,  em  que  a  ci'itica  moderna,  apoiada  nos  documentos  e 
provas  authenticas,  desconvèm  das  narrações  do  chronista;  porém  isto, 
que  de  algum  valor  seria,  para  obviar  futuras  pi'eoccupações  a  leitores  inex- 
perientes, foi-nos  de  todo  imiwssivel  na  actualidade. 

Limitámo-nos  portanto  a  reproduzir  liei  e  escrupulosíunente,  (juanto  cm 
nós  coube,  a  edição  primitiva  de  1GG3,  e  até  agora  única,  pelo  que 
respeita  á  Chronka,  propriamente  dita;  pois  que  díis  Noticias  que  a  ante- 
cedem, houve  segunda  em  16G8.  Á  primeira  nos  cingimos,  sem  nos  per- 
mittirmos  outra  liberdade,  que  não  fosse  a  de  restituir  íilguns  togares  do 
texto,  em  que  eram  manifestas  e  evidentes  as  incorrecções  typographicas: 
por  exeníplo,  entre  as  paginas  1^8  c  ii29  d'aquella  edição,  onde  em  todos 
os  exemplares  cfue  consultámos  existe  uma  lacuna  visivel.  Completámos 
ahi  o  sentido,  com  as  palavras  (juc  nos  ])areceu  faltavam. 

Fizeram-se  também  na  orthographia  assas  irregular  e  anómala,  como 
o  é  geralmente  em  nossas  antigas  edições,  algumas  leves  mudanças,  recla- 


niadas  pelo  uso  e  coinmodidade  dos  leitores,  ou  exigidas  pelo  estado  actual 
das  ollicinas  typographicas:  taes  como  a  da  conjuucção  (Jf)  em  (e);  a  do  (u) 
pur  (V)  quando  fere  vogal;  do  (y)  por  ((),  quando  o  emprego  da  primeira 
letra  não  é  determinado  por  alguma  razão  etymologica;  e  a  substituição  em 
alguns  casos  das  letras  minúsculas  ás  capitães,  de  que  nossos  maiores  se 
mostraram  tão  sobejamente  pródigos.  Supprimiu-se  o  (/)  dobrado  na  pre- 
posição pelo,  pela,  que  na  edição  antiga  é  pello,  pella;  e  nos  tempos  dos 
verbos,  v.  g.  ajudal-o,  fazei- o,  visital-o,  ctc,  que  alli  se  lêem  ajudallo,  fa- 
zello,  visitaUo,  etc. 

Afora  estas  alterações,  conservou-se  tudo  o  mais,  por  ser  este  em  nossa 
humilde  opinião,  o  modo  mais  azado  porque  convém  reproduzir  na  actua- 
lidade as  obras  impressas  de  antigos  escriptores.  Se  porém  o  acordo  do 
publico  se  mostrar  adverso  n"esla  parte,  a  elle  nos  subjeitaremos  nas  fu- 
turas reimpressões,  que  por  ventura  correrem  ainda  á  nossa  conta. 

Para  não  defraudar  em  cousa  alguma  os  leitores,  conservaram-se  inte- 
gralmente nesta,  que  por  conveniência  vai  dividida  em  dous  volumes,  a  de- 
dicatória, licenças  e  mais  apparato  da  edição  antiga.  Quanto  ás  rubrica 
marginaes  dos  capítulos,  ou  paragraphos,  que  não  podiam  entrar  commo 
(lamente  em  seus  logares  no  formato  em  que  esta  é  feita,  reduziram-se  a 
summarios  ou  Índices  geraes,  collocados  no  fim  dos  volumes,  onde  ficam 
sendo  da  mesma,  se  não  de  maior  utilidade. 

Quizeramos,  como  a  razão  aconselha,  e  o  uso  recommenda,  ajuntar  aqui 
algumas  noticias  individuaes  do  auctor,  ampliando  o  pouquíssimo  que  d  elle 
nos  transmittiram  os  nossos  bio-bibliographos;  porém  ficaram  frustrados 
n'essa  parte  os  nossos  desejos,  pois  que  mui  pouco  ou  nada  avançamos 
além  do  já  sabido. 

Foi  o  Padre  Simão  de  Vasconcellos  natuial  da  cidade  do  Porto,  onde 
nasceu  em  l.">97.  Tendo  passado  de  tenra  edade  á  da  Bahia,  então  capitai 
dos  estados  da  America  portugucza,  ahi  vestiu  a  roupeta  de  Santo  Ignacio 
no  Collegio  da  mesma  cidade  no  anno  de  lOlti,  ((uando  entrara  nos  deze- 
,,/,v,.    \o  i>.fyn,jo  Collngio  foi  successivamente  alumno  e  mestre,  dirlando 


por  muito  tempo  letras  luimanas,  juntamente  com  a  pbilosopiíia,  o  theolo- 
gia  especulativa  c  moral.  Terminada  esta  laboriosa  applicação,  voltou  para 
Portugal  em  companhia  do  Padro  António  Vieira,  no  anno  de  lOil;  c  de- 
pois de  curta  demora  em  Lisboa,  passou  a  Roma  no  exercício  de  Procu- 
rador da  sua  protincia.  Deixou  as  funcçíjes  d  esse  cargo  por  ser  assumpto 
ao  de  Provincial,  c  desempenhando  este  até  ser  n'e]le  substituído,  veia  de 
novo  a  Lisboa,  provavelmente  para  cuidar  da  impressão  da  sua  Chronka, 
pois  que  d'esta  cidade  é  datada  a  7  de  Septembro  do  1662  a  protestação 
que  na  mesma  fez  inserii*  segundo  j3  uso  então  estabelecido.  Recolhido  por 
íim  ao  Brasil,  ahi  vivia  no  Collegio  do  Rio  de  Janeiro,  quando  foi  accom- 
mettido  de  um  accidente  apopletico,  que  o  levou  do  mundo  aos  29  de 
Septembro  de  1071,  contando  74  annos  de  edade  e  53  de  Companhia.  Fi- 
xeram-se-lhe  decentes  exéquias,  a  que  assistiram  os  religiosos  mais  graves, 
e  pessoas  mais  auctorisadas  d^aquella  Capitania,  capitulando  o  officio  o  Vi- 
gário geral,  que  a  esse  tempo  servia  de  administrador  do  bispado. 

Eis  tudo  o  que- a  respeito  de  sua  pessoa  podemos  colligir,  consultando 
a  BibliotJteca  Lusitana  de  Barbosa  Machado,  tomo  nr;  a  Bibl.  Societ.  Jes., 
pag.  724 ;  a  Bibl.  Ilispan.  do  Nicolau  António,  tom.  n,  pag.  233;  e  a 
Bibl.  Occid.  do  Leão  Pinello,  tom.  ii.  Quanto  aos  seus  escriptos,  diremos 
succintamente  o  que  alcançámos  de  própria  investigação. 

A  obra  níais  considerável  do  Padre  Vasconcellos  é  sem  duvida  a  sua 
Chronica,  que  se  imprimiu  em  Lisboa,  na  officina  de  Henrique  Valente  de 
Oliveira,  em  magnifica  e  para  aquelle  tempo  luxuosa  edição  no  formato  de 
folio  grande,  formando  um  volume  de  xu— 188 — 528  paginas,  e  mais  doze 
innurneradas,  contendo  o  índice  final.  Este  primeiro  tomo  ficava  sendo,  co- 
mo diz  o  auctor,  introdacção  de  todos  os  que  se  haviam  de  seguir,  c  que  ha- 
viam de  ser  de  força  muitos.  Comtudo,  nem  imprimiu  mais  algum,  nem 
mesmo  consta  que  os  deixasse  manuscriptos. 

Dos  dous  livros  que  sob  o  titulo  Noticias  curiosas  e  necessárias  das  coti- 
sfís  do  Brasil  servem  de  apparalo  á  Chronica,  se  fez  nova  e  se[)arada  edi- 
ção em  Lisboa,  por  João  da  Costa,  1GG8,  volume  no  foiínato  de  4."  com 


Y(i[_291  pa^íinas,  e  mais  12  (iiiniimeradas)  de  indice,  tendo  uma  dedica- 
iDi-ia  especial  ao  capitão  Francisco  Gil  de  Araújo,  a  cujas  expensas  se  rea- 
lisára  a  impressão. 

Afora  estas,  imprimiram-se  antes  e  depois  as  seguintes,  todas  destina- 
das a  exaltar  a  gloria  da  Companhia  e  de  seus  filhos : 

Vida  do  Padre  João  de  Almeida,  da  Companhia  de  Jesu,  na  provinda 
do  Brasil.  Dedicada  ao  sr.  Salvador  Corrêa  de  Sd  c  Benevides,  dos  Conse- 
lhos de  Guerra  e  Ultramarino  de  Sua  Magcstade,  ctc.  Lisboa,  na  oíTicina 
Craesbeckiana  W)S.  Folio. 

Continuação  das  maraviihas  que  Deos  he servido  ohrarno  Estado  do  Bra- 
sil, por  intervenção  do  mui  religioso  e  penitente  servo  seu,  o  venerável  Pa- 
dre João  de  Almeida,  da  Companhia  do  Jesu.  Lisboa,  na  oíTicina  de  Do- 
mingos Carneiro  1CG2.  FoUo.  Consta  apenas  de  IG  paginas  sem  nume- 
ração. 

Sermão  que  pregou  na  Bahia  em  o  I ."  de  Janeiro  de  1G59,  na  festa  do 
nome  de  Jesu.  Lisboa,  na  oíllcina  do  Henrique  Valente  de  Oliveira  IGGI}, 
'i.'^  de  20  paginas. 

Vida  do  venerável  Padre  Joseph  de  Anchieta,  da  Companhia  de  Jesu, 
Ihaumaturgo  do  novo  mundo,  na  provinda  do  Brasil.  Dedicada  ao  Coronel 
Franciso  Gil  de  Araújo.  Lisboa,  na  ófficina  de  João  da  Costa  1672.  Folio. 
Volume  com  xxxi — o03  paginas,  a  que  se  segue  debaixo  de  nova  numera- 
ção, e  com  rosto  s  )lto,  Becopilação  da  vida  do  Padre  Joseph  de  Anchieta, 
contendo  9"i  paginas. — Advirla-se  (lac  a  parte  d'estc  livro,  que  corre  do 
paginas  443,  até  5i']  6  preenchida  com  os  versos  latinos  do  Padre  Anchie- 
ta, que  passaram  para  alli  reproduzidos  da  Chrunicã,  onde  já  haviam  sido 
impressos.  Esta  eJição,  como  se  vê  pela  dala,  só  se  concluiu  posthuma. 
tendo  o  auclor  fallccido  no  anno  antecedente. 

Os  exemplares  de  todas  estas  obras  competem  eidre  si  em  rai-ídade : 
poucas  vezes  se  deparam  de  venda;  e  os  que  apparecem  acham  pr'(»nipíos 
compradores,  e  ^lagam-se  por  preços  proporcionalmente  subidos. 

E  com  isto  cercaremos  as  prjscntes  linhas,  invocando  para  o  Iiv!'í)  u 


benévola  indulgência  do  publico  ilkistrado.  Desejamos  e  esperamos  que  do 
seu  favorável  acolhimento  resultem  para  o  editor  os  incentivos  que  ha  mis- 
ter, sem  os  quaes  mal  poderá  levar  por  dianle  commeUimento  tão  árduo 
quanto  dispendioso,  como  o  é  de  certo  aquelle  em  que  entrou,  e  que  st) 
assim  poderá  prosperar  com  os  mellioramentos  de  que  ó  susceptível.  Oxalá 
que  por  falta  de  protecção  animadora  não  venha  a  empreza  a  mallograr-se, 
participando  da  sorte  de  outras  do  mesmo  género ! 

Lisboa  4  de  Junho  de  1865. 


IxNOCENcio  Francisco  da  Sh.va, 
Sócio  effecíivo  da  Academia  Real  das  Sciencias  de  Lisboa. 


DEDICATÓRIA  DO  AUTHOR  NA  EDIÇÃO  DE  1663 


A  MAGESTADE 


DO  MUITO  ALTO,  E  PODF.HOSO  REI  DR  PORTUGAL 


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ÍÍK 


A  Chronica  de  hum  novo  mundo  por  tantos  annos  esperada,  em  nenhum 
tcwpo  podia  .mhir  á  luz  com  mais  felicidade,  que  no  em  que  sahe  a  reinar 
hum  Príncipe  esperado  pêra  tantas  venturas.  Este  he  Vossa  Magestade  oh 
poderoso  Rei;  porque  sendo  parle  essencial  da  decima  sexta  geração  do 
primeiro  Rei  J).  Ajfonso  Henriques,  tão  esperada  dos  Portugueses, 
conseguintemente  em  Vossa  Magestade  hão  de  ler  cumprimento  os  Orá- 
culos de  suas  esperanças,  e  hão  de  apparecer  em  o  mundo  as  felicida- 
des dos  tempos  dourados,  que  qual  outro  César  Augusto,  aguardão por 
Vossa  Magestade.  Eu  não  ];retendo  desenrolar  aqui  estas  òonsventnrast 
(pie  pedem  longa  escrilluni,  assumpto  grande  pêra  dedicatória :  sup- 
ponho-as  somente,  offerecido  comludo  a  proval-as,  se  mandado  me 
fosse.  E  fiqnr.  desde  logo  a  summa.  Primeira:  Que  he  Vossa  Magesta- 
de parle  essencial  da  decimi  sexta  geração  do  primeira  Bei  Portuguez 
I).  Affonso  Henriques.  Segunda:  Que  a  esta  estão  promellidas  as  fe- 
licidades que  esperamos  os  Portugueses,  referidas  por  Christo,  de  hum 
felicíssimo  Império,  quando  disse  áquclle  Príncipe  magnânimo  :  Volo  iii 


te,  et  in  seniine  tiio  imperiíim  milii  slabílirc  :  com  as  proezas,  e  vi- 
ctorias  da  sujeição  da  genlc  Ollom  na,  Jiidcos,  e  Hereges,  e  reducção 
de  todas  estas  seitas  a  hum  só  Pastor,  e  igreja.  Terceira:  Que  nem 
pêra  este  intento  tão  desejado,  devem  viver  nos  corações  dos  Portugu- 
gueses  esperanças  mortas,  ou  pensamentos  de  desenterrar  defunctos  Prin- 
cipes,  décimas  sextas  gerações  acabadas:  Non  enlis,  et  non  apparen- 
lis  eadem  est  legis  disposilio.  Ageraçã>  decima  sertã  por  linha  recta, 
que  alguns  esperavão,  não  apparcce.  A  parte  primeira  da  dechna 
sexta  gvrarào  transversal  portuguesa,  que  já  reinou,  não  hc  necessária. 
Gozou  esta  a  parle  primeira  d'csias  felicidades;  a  segunda  ha  de  go- 
zar a  outra  parle  da  mesma  geração  .-Non  siint  facieiída  miracula  sina 
necessitate.  Se  -sem  milagres  temos  viva  a  decima  sexta  geração,  se 
reina  hoje  sobre  nós  claramente,  que  necessidade  ha  de  portentos  no- 
vos? Se  fdho,  e  pai  fazem  a  mesma  geração,  se  são  dats  fartes  esscn- 
ciaes  (qual  alma  e  corpo  pêra  fazer  hum  himem)  pai  (jenerante,  e  filho 
gerado,  e  a  parle  primeira  doesta  gerarão  gozou  as  felicidades  primei- 
ras; a  segunda  parte  porque  7iCio  gozará  as  segundas  ? 

A  este  pois;  a  este  Priiicipe  venluroso,  que  claramente  reina  como  parte 
da  decima  sexta  geração,  c  com  esperanças  de  felicidades,  quaes  agora  con- 
vém esperar,  não  relatar;  a  este  dedico  minha  obra,  intitulada:  Chro- 
nica  da  Companhia  de  Jesus  do  Estado  do  Brasil.  Volis  assuosco  vocari. 
Acostuma i-vos,  oh  grande  Príncipe  [qual  outro  novo  imperador  Cé- 
sar Augusto,  disse  o  Poeta  Mauluano;)  acor^lumai-vos  a  ser  invocado, 
com  offertas  dignas  de  Vossa  3Iagestade,  Aceitai  o  obsequio  de  hum  vas- 
sallo,  que  com  igual  verdade  escreve  o  que  foi,  e  propõe   o   que  espera. 

Aceitai  mais  por  outra  via,  que  não  iienos  obriga:  e  he por  ser  Vossa 
Mageslade  successor  dos  Augustos,  e  sempre  memorareis  yenho:es]Reis 
D.  João  Terceiro,  e  Quarto  :  aquclle,  pai  da  Com.panhhi:  este,  vosso, 
e  nosso.  Aquelle,  pai  da  Companhia,  porque  foi  qaasi  confundador  da 
Companhia  universal,  fundador  da  de  Portugal,  e  fundador  da  do  Bra- 
sil. Que  pedra  não  moveo  na  fundarão  e  confirmação  doesta  Religião 
amada  sua?  Que  meios  não  tomou,  de  í^egados  seus,  de  Príncipes  estra- 
nhos, de  rogativas  affectuosas  ao  Summo  Pontífice'^:  Que  despesas  não 
fez  da  real  fazenda?  Que  advertências,  que  consdhos  não  leve  peva  sa- 


hlr  com  seu  intento?  Chegou  a  dizer  nosso  Pdtriarcha  Santo  Ignacio,  que 
de  todos  os  Príncipes  Chris!ão<i,  a  D.  João  o  Terceiro  tinha  por  hem- 
feitor  principal  da  Companhia.  E  talvez  subindo  mais  de  ponto,  disse, 
que  era  a  Companhia  mais  d^El-Rei  D.  João  o  Terceiro,  que  sua.  Em 
seu  Beino,  com  que  honras  não  recebeo  este  grande  Príncipe  os  fdhos  de 
Ignacio?  Que  sinaes  de  amor  não  mostrou?  Dizem-no  as  Historias  d'cste 
Monarcha,  e  mais  por  extenso  as  Chronicas  de  nossa  Companhia.  Fal- 
tem as  obras  pregoeiras  eternas,  as  fundações  das  grandes  fabricas,  que 
como  pyramidas  de  seu  bem  ([uerer  levantou  da  terra  ao  Ceo  :  da  ma- 
gnifica Casa  professa  de  S.  Roque  em  Lisboa:  do  insigne  Collegio  de 
Coimbra,  primeiro  de  toda  a  Companhia;  grandioso  cm  rendas,  illustra- 
do  com  todas  as  Escholas  menores  d'aquella  celebre  Universidade.  Estas 
sós  duas  obras  falte  a  por  todas:  as  do  Reino  de  Portugal,  índia,  e  Bra- 
sil, não  he  meu  intento  recontal-as  toda^,  agradecel-as  sim.  E  principal- 
mente testifique  esta  verdade  a  fundação  notável  do  Brasil  (sujeito  de  toda 
nossa  Chronica)  ordenadapor  este  Sereníssimo  Príncipe,  por  melo  do  vene- 
rável Padre  Manoel  da  Nóbrega,  com  os  mesmos  favores,  e  despesas,  com 
que  obrara  a  da  índia  Oriental,  por  meio  do  incansável  obreiro  S.  Fran- 
cisco Xavier. 

Seguio  os  intenios  doeste  Rei  amoroso  a  boa  memoria  d'El-Rei  D.  João 
o  Quarto,  pai  de  Vossa  Magestade,  e  pai  também  de  nossa  Companhia. 
Sabido  he  o  zelo  prudente,  com  que  dispo z  a  leva  espiritual  de  trinta  e 
tantos  sujeitos  da  Companhia  de  Jesus  de  diversas  províncias,  pêra  a 
conversão  do  Esta  'o  d>  Maranhão,  de  tão  immenso  numero  de  almas, 
e  nações  infiéis,  prevind  >  esta  de  favores  igualmente,  e  despesas  reaes. 
As  mesmas  foi  servido  fazer  com  os  Missionários  d>  Brasil.  Doou  com 
larga  mão  os  Collegios  de  Goa,  e  Cochiin  de  grande  summa  de  qunsí  vin- 
te e  quatro  mil  cruzados  de  renda,  que  os  Viso- Reis,  e  seu  Senado  lhes  ti- 
nhão  tirado:  á  Provinda  do  Japão  restituio  dous  mil  cruzados  anmiacs: 
a  da  China  dotou  com  mil  e  quinhentos  cruzados.  Ao  Collegio  de  Angola 
com  dous  mil  por  tempo  de  dez  annos.  Acrescentou  os  estipêndios  dos  Mís- 
nonarios  dos  índios,  sobre  todos  os  Reis  antepassados.  No  Collegio  de 
Elvwi  ín>^tituio  cadeira  de  Malhemalica  (c.rercicí)  dos  que  alli  miíitão) 
com  estipendio  annual  de  duzentos  cruzados,  mandando  juntamente  fa- 


hncar  a  aula  com  despesa  real.  Continuou  com  n  ediftcio  do  Templo  da 
Casa  professa  da  Companhia  de  Jesu  em  ViUa-viçosa;  com  consignarão 
pêra  esta  obra  todos  as  annos  de  mil  e  quinhentos  cruzados.  E  aliviou 
a  pobreza  das  mais  Casas  professas  com  esmolas  de  porte.  Por  todas 
as  razões  referidas,  justo  era  que  se  dedicasse  a  Vossa  Magestade  a  Chrc- 
nica  primeira  da  Companhia  de  Jesu  do  Brasil:  e  junto  com  ella  os  âni- 
mos de  todos  seus  Religiosos,  agradecidos,  prostrados,  e  como  admira- 
dos já  de  agora  das  idades  douradas,  que  esporão  gozar. 

Humilde  tmssallo  e  servo  de  Vossa  Magestade, 

Simão  de  Vasconcellos. 


APPROYACOES  DA  RELÍGIÂO 


Li  com  a  applicacão  devida  csla  primeira  parle  da  Clironica  da  Com- 
panhia de  Jesu  desta  Província  do  Brasil,  composta  peio  Padre  Simão  de 
Vasconr^ilos  da  mesma  Companhia  o  Provincia :  não  acliei  nada  que  rever 
pêra  a  censura,  achei  muito  que  ver  pêra  o  applauso:  porque  nesta  ohra 
se  admira  fácil,  o  que  em  todas  he  diíTicultoso:  brevidade  sem  confusão, 
curiosidade  sem  hyperboles,  gravidade  sem  artificio,  suavidade  sem  aíTe- 
ctação,  agudezas  escholásticas  sem  faltar  ásinceridadehistorica.  Fazem  pro- 
logo aos  illustres  feitos  dos  filhos  de  Ignacio  algumas  noticias  d'(3Síe_nova 
mundo:  que  não  era  bem  se  relatassem  acções  de  tanta  gloria,  sem  que  se 
propuzesse  o  íheatro  delias.  Em  Imma  ,c  outra  cousa  pi'ocede  o  Author  tão 
ajustado  com  a  verdade,  fjue  sendo  a  ]ienna  sua  (e  bastava  pêra  merecer  a 
maior  fé)  não  quiz  com  tudo  que  fosse  seu  o  credito.  Tudo  o  que  escreve 
ou  são  experiências  repetidas,  ou  tradições  constantes,  ou  escritturas  abo- 
nadas. Aíjui  se  achão  unidas  exhortação,  e  narrativa,  porque  historiando 
de  propósito,  inílamma  como  de  pensado.  Refere  o  que  obrarão  os  mortos, 
advertindo  o  que  hão  de  obrar  aos  vivos.  Não  serve  sua  leitura  somente 
pêra  occupar  os  olhos,  se  não  pêra  despertar  os  ânimos.  Com  a  lição  do 
outros  livros  engana-se,  c  quando  muito  não  se  perde,  o  tíMupo:  com  a  lição 
d'este  aproveita-se.  Quem  o  ler,  entenderá  são  estas  palavras  mais  dictame 
de  seu  merecimento,  quo  divida  de  meu  aííecto.  Finalmente  na  obra  toda 
não  ha  cousa  que  offiíuda,  muito  sim  quo  edifique,  em  beneficio  dos  fieis, 
serviço  de  Deos,  gloi ia  da  Cf)nipanliia,  e  lustre  desta  nossa  Provincia.  No 
Collegio  da  Bahia  18  de  Maio  de  1661. — A7itonio  de  Sd. 


Por  ordem  do  Padre  Provincial  Baltliasai-  de  Sequeira  vi  o  primeiro 
tomo  da  (lironica  da  Companhia  do  Estado  do  Brasil,  composta  pelo  Padre 
Simão  de  Yasconcellos  da  mesma  Companhia,  Provincial  que  foi  nesta  Pro- 
vincia: não  acho  nella  que  notar,  e  firo  que  acharão  muitos  que  aprender 
cm  tão  santa  leitura,  o  muito  que  admirar  em  tanta  variedade  de  cousas 


J'este  novo  mundo.  Ni!m  cuido  causará  todio  ao  quo  a  ler ;  i)orquo  o  csty- 
lo  he  doce,  e  sem  affectação :  e  sobre  tudo  certo,  verdadeiro,  e  conforme  ás 
experiências,  tradições,  e  apontamentos  fidedignos  do  venerável  Padre  Jo- 
sepli  Anchieta,  c  outros  varões,  pais  primeiros  desta  Pi'ovincia.  Pelo  que  lie 
muito  digna  de  que  se  imprima  esta  obra  a  gloria  de  Deos,  e  da  Compa- 
nhia. Bahia  20  de  Maio  de  16G1. — Jacinlo  de  CarcaJhnes. 


Por  mandado  do  Padre  Provincial  Balthasar  de  Sequeira  li,  c  ouvi  ler 
com  o  devido  gosto,  c  particular  attenção,  o  livro  da  CÍironica  da  Compa- 
nhia de  Jesu  d"esta  Província  do  Brasil,  composta,  e  ordenada  pelo  Padre 
Simão  de  Vasconcellos  da  mesma  Companhia,  e  Província :  parece-me  ser 
obra  de  grande  edificação,  proveito  espiritual,  e  consolação  pêra  toda  a  Com- 
panhia; por  se  referirem  n'ella  cousas  mais  admiráveis,  que  imitáveis,  e  de 
grande  confusão  pêra  alguns  dos  que  vivemos,  e  vemos  quão  longe  esta- 
mos d"aquelle  primeiro,  e  fervoroso  espirito,  com  que  se  fundou  esta  Pro- 
víncia do  Brasil.  O  estylo  da  obra  he  grave,  e  pouco  affectado,  como  deve 
ser  a  historia.  Contém  successos  grandes,  e  noticias  muito  curiosas  d'estc 
novo  mundo ;  e  tudo  mui  conforme  ás  tradições,  que  ha  n'cste  Estado.  Ao 
Autkor  deve  graiídes  obrigações  o  Estado,  e  a  nossa  Província  do  Brasil, 
pela  muita  diligencia,  e  certeza  com  que  escreve  do  Brasil,  e  da  Província; 
e  pelos  graves  termos,  com  que  tão  doutameiíte  entre  a  historia  trata  al- 
gumas questões  curiosas.  Pelo  que  me  parece  mui  digna  de  se  estam^par 
pêra  edificação  de  toda  a  Companhia,  e  quasi  reprehensão  dos  lilhos  d*esta 
Província.  Bahia  17  de  Abril  de  IGGl. — João  Pereira. 


JOANNES  PAULLS  OLIVA  SGCIETATIS  JF.SU 

Yicarius  Gene  ralis 

Cum  Hisforiam  Brasiliensem  noatrcs  Societalis  Lusitano  idiomale  â  P. 
Simone  de  Vasconcellos  ejiisdeni  Societutis  Saccrdole  conscriplani,  aliquot 
nostri  Theoíoyi  recoguoverint,  et  in  Incem  edi  posse  probaverint ;  poteslalem 
facimus,  iit  typis  mandetur,  si  it  a  ijs,  ad  quos  spectat,  videbitur;  cujus  rei 
gratiá  has  lUteras  nianunostra  subscriplas,  sirjilloque  nostro  munitas  damus, 
Romre  í  Julij  1662.— Joan.  Paulus  Oliva. 


LICENÇAS  DO  SAINTO  OFFICIO 


Vi  com  parlicuiar  gosto,  allenr.ão  e  curiosidade  a  primeira  parle  da 
Cliroiiica  da  Companhia  de  Jesu  do  Estado  do  Brasil,  composta  com  estvlo 
douto,  grave,  claro,  aprazivel,  pelo  muito  reverendo  Padre  Simão  de  Vas- 
concellos,  Provincial  (]uo  foi  d"aqui'i!a  Provincia.  Traía  dos  primeiros  cou- 
(juistadores,  e  descobi-idores  do  novo  nmndo,  e  mais  em  particular  do  Es- 
tado do  Brasil,  de  sua  grandeza,  e  cousas  mais  notáveis,  que  são  muitas, 
6  muito  pêra  saber ;  com  questões  agradáveis,  e  mui  curiosas,  em  que  tem 
bem  que  ver,  e  se  entreter  os  curiosos  antiquários.  Trata  também  dos  pri- 
meiros Conquistadores  espirituaes  da  Companhia,  que  forão  áquellas  par- 
tes, dos  grandes  trabalhos  que  padecerão,  e  perigos  que  passarão  na  con- 
versão de  gentes  tão  rudes,  barbai'as,  indómitas,  e  inhumanas  d^aquellas 
vastas,  agrestes,  e  incultas  regiões,  e  o  grande  fruito  espiritual  que 
em  ellas  íizerão,  em  que  tem  bem  que  imitar  os  que  por  oíTicio,  e  voto  es- 
tão dedicados  a  obra  tão  santa,  e  tanto  do  serviço  de  Deos.  Não  tem  cousa 
que  encontre  nossa  santa  Fé,  muitas  sim  de  sua  exaltação,  propagação,  e 
augmento;  nenhuma  contra  os  bons  costumes,  antes  nmitos  documentos 
im[)oríantissimos  pêra  os  introduzir,  e  desterrar  os  bárbaros,  agrestes,  e 
inhumanos  daquella  gentilidade ;  c  assi  a  julgo  por  digna  de  saliir  á  luz 
j)era  maior  gloria  de  Deos,  honra  e  credito  d'este  nosso  Reino,  do  qual  sa- 
liirão  os  primeiros,  o  sabem  de  continuo  os  obreiros  de  tão  santa  empresa. 
Com  tudo,  como  em  o  discurso  da  histoiia  trata  o  Aulhor  as  vidas  de  al- 
guns (raqu(^l!es  primeiros  Missionários,  e  n"ellas  de  algumas  revelações,  e 
obr-as  ao  parecer  milagrosas,  e  algumas  vezes  lhes  dá  o  titulo  de  Santos, 
e  também  do  martyi'io  do  Padre  Ignacio  de  Azevedo,  e  seus  companheiros, 
aos  quaes  nomeia  martyres,  contra  o  que  o  Breve,  e  Decreto  do  senhor  Pa- 
pa Ui-bano  VÍII  disjme;  he  necessário,  primeiro  que  se  lhe  dè  a  licença  pe- 
i'a  se  estami)ar,  lazer  o  Aulhor  em  o  i)rincipio  da  obra,  ouíim  d'ella,  pro- 
testação, e  reserva  do  dito  Breve,  conlbi-me  sua  explicação,  como  Hizem  to- 
dos os  que  depois  d(í  sua  daia  escreverão  vidas  o  leitos  de  varões  insignes 
em  virtude,  e  santidade.  Advirto  lambem,  que  íãKa  aíjui  a  licença  do  seu 
Padre  Provincial.  Lisboa  em  o  Convento  de  Nossa  Senhora  de  Jesus  em  15 
de  Janeiro  de  lOGá. — Fr.  Duarte  da  Conceição,  Leitor  jubilado,  c  Puãre 
da  Provinda. 


í)h('de('(Mid(»  ai)  iiiiindadi)  do  santo  Tribiiiiai,  re\i  csla  Chronica  da  sagrrt- 
da  Beligião  da  Companhia  de  Jesus,  pailicular  do  nosso  Ueino  de  Portugal, 


no  tocante  ao  descobrimento  d^aquella  parle  da  America  que  chamamos 
Brasil,  com  as  noticias  do  clima,  e  natural  do  terreno,  e  marítimo  d'ella ; 
e  mais  em  particular,  dos  })rincipios,  e  progressos  com  que  os  obreiros 
d'esta  Religião,  enviados  pelos  Reis  nossos  Senhores,  forão  manifestar  áquel- 
la  gentilidade  a  verdadeira  crença  do  Evangelho.  Por  appendice  da  obra  se 
oíTerece  hum  poema  do  prodigioso  Padre  Joseph  de  Anchieta  em  louvor 
da  Virgem  Maria  Senhora  nossa :  o  qual,  sendo  hum  dos  principaes  execu- 
tores d"aquella  missão,  soube  poupar  espaços  pêra  cantar,  entre  trabalhos 
tão  extraordinários,  os  louvores  que  se  devião  a  quem  lhe  servia  de  alivio 
n'elles. 

A  sobredita  bistoria,  e  o  poema,  além  de  serem  notáveis  pelas  noti- 
cias, artificio,  locução,  e  metro ;  contém  tão  deleitosa,  proveitosa,  e  sãa 
doutrina,  que  ainda  os  menos  affectos  á  Religião  Christãa,  e  Fé  Romana, 
se  encolherão  convencidos;  os  mais  escrupulosos  Históricos,  e  Geógrafos  se 
publicarão  allumiados,  e  os  mais  apurados  Poetas  confessarão  ficar  alonga- 
dos da  suavidade  singela,  com  que  mysterios  tão  elevados  devem  contar-se. 
Procede  tudo  tão  regulado  com  os  decretos  da  Catholica  Igreja,  e  resolu- 
ções dos  Summos  Pastores  d"ella,  que  não  falta  mais  pêra  acabar  de  afer- 
vorar ânimos  zelosos,  que  propor-lhes  na  estampa  este  incentivo  de  luzei- 
ros Evangélicos,  pêra  que  a  imitação  sua,  como  costumão  a  religião  da  Com- 
panliia,  e  outras  do  nosso  Portugal,  despidão  de  si  ramas,  que  vão  plantar 
a  mesma  Fé,  e  crença,  e  dirijão  suas  acções  pelos  dicfames,  e  execuções 
de  tão  bons  mestres.  Isto  he  o  que  sinto  na  matéria  presente.  Em  Nossa 
Senhora  do  Desterro  13  de  Outubro  (*)  de  1662. — O  Doutor  Fr.  Francis- 
co Brandão. 


Vistas  as  informações,  pôde-se  imprimir  este  livro,  cujo  titulo  he:  Chro- 
nica  da  Companhia  de  Jesus  do  Estado  do  Brasil,  author  o  Padre  Simão  de 
Vasconcellos:  e  impresso  tornará  ao  Conselho  pêra  se  conferir  com  o  ori- 
ginal, e  se  dar  licença  pêra  correr,  e  sem  ella  não  correrá.  Lisboa  17  de 
Outubro  de  166i. — Pacheco,  Sousa,  Fr.  Pedro  de  Magalhães.  Rocha^  Alva- 
rx)  Soares  de  Castro,  Manoel  de  Magalhães  de  Menezes. 


Pócle-se  imprimir.  Lisboa  30  de  Outubro  de  1662. — F.  Bispo  de  Targa. 


(-)     IJa  sciu  rluviílii  engano  lui  indiç.Tjão  do  mcz;  poRm  nfio  tabcniot  come  rc-^ulval  o. 


LÍCENCAS  DO  TACO 


Esla  Chroiiica  da  Companhia  de  Jesus  do  Estado  do  Brasil  revi  já  por 
mandado  do  Santo  OiTicio,  e  n'aqaella  approvação  declarei  o  que  d'ella  sen- 
tia: conl'ormando-me  com  o  que  então  disse,  posso  agora  certificar  a  Vossa 
Magestadc,  que  lie  huma  bem  trabalhada  escrittura;  e  que  além  das  miú- 
das noticias  daquella  parte  da  America,  principio,  e  progressos  de  seu  des- 
cobrimento, conquista,  e  conversão,  com  que  esta  nação  ficará  inteirada  da 
estimação  que  se  deve  fazer  de  parte  tão  principal  de  sua  conquista ;  Vos- 
sa Magestade,  e  os  Senhores  Reis  seus  predecessores  estão  bem  servidos 
pelo  zelo,  e  cuidado  que  applicárão  a  tão  grande  empresa;  e  o  mundo  to- 
do se  admirará  com  a  leitura  de  tão  notáveis  e  diíferentes  eíTeitos  chris- 
tãos,  mihtares,  c  políticos.  Em  Nossa  Senhora  do  Desterro  3  tle  Outubro 
de  iG6l2. — O  Doutor  Fr.  Francisco  Brandão,  Chronista  mor. 

r 

Pódc-se  imprimir,  vistas  as  licenças  do  Ordinai'io,  e  Santo  OÍTicio,  e 
impresso  tornará  á  Meza  pêra  se  taxar,  e  sem  isso  não  correrá.  Lisboa  7 
de  Novembro  de  IGGá.— J/o?/rrt  P.,  'Sousa,  Vcllio^  Gama,  Silva. 


Revi  esta  Chronica  do  Brasil,  e  lenho  entendido  que  está  conforme  com 
seu  original:  a  qual  tinha  revisto,  e  examinado  na  primeira  revisão,  que 
se  me  encommendou  desse  Santo  Tribunal,  e  na  segunda  que  do  Tribunal 
do  Paço  se  me  mandou.  E  conforme  a  esta  informação  pôde  o  Santo  Tribunal 
(lar-lhe  licença  para  a  publicação.  Em  Nossa  Senhora  do  Desterro,  ultimo 
de  Fevereiro  de  10G'i. — O  Doutor  Fr.  Francisco  Brandão,  Chronista  mor. 


Visto  estar  confoi-nií;  com  seu  original,  ])ó(l(!  correr  esla  Chronica  da 
Comj)anhia  de  Jesus  do  Estado  do  Brasil.  Lisboa  3  de  Março  de  1005. — 
Pacheco,  Sousa,  Fr.  Fedro  de  Magalhães,  Rocha,  D.  Vcrissimo  de  Alcncastro. 


Taxão  este  livro  cm  treze  tostões  em  papel,  visto  o  (pie  se  alloí^a. 
Lisboa  O  de  Março  de  \{\{V,\.-  1).  liodrigo  de  Menezes  /'.,  3Jonlviro,  Silva, 
Magalhães  de  Menezes,  Miranda. 


SCRIPTORI 

Reverendo  Patri  Simoiii  de  Vasconcellos  Societatis  Jesu,  Saciíe  Theologiíc 
Professori  sapienlissimo,  semel  ac  iterum  Reclori  religiosíssimo,  ac  tan- 
dem Propósito  Provinciali  expectatissimo,  Brasiliensis  Chronici  xVulori 
diligentíssimo,  qiiidam  ex  eadem  Societate  hoc  oífert 

EPIGRAMMA 

Brasilíditm  scrihis  popiilos,  et  fada  virorani 

Jesuadum  didis  áurea  fada  tuis. 
Áurea  maleries,  stilus  aureus,  áurea  fandi 

Copia :  cunda  auro  slant  pretiosa  suo 
Nam  cum  barhariem  calamo  depingis  incrmem, 

Exidat  á  culto  pollice  barbáries. 
Et  cum  divinos  manus  exarai  inchjta  mores, 

Non  nisi  divinum  est,  quod  tua  scripta  sonant. 
Mille  viros  cíbIo,  quos  penna  obscura  silebat. 

Das:  tua  mortales  ccelica  penna  beat. 
MíBoniiis  vates  fortem  dma  laudat  Achillem 

Virtutis  pneco  dicitur  eximius. 
Pncconem  virtutis  agis,  dum  scribis  Adãlles 

Jesuadum,  et  sacros  fers  super  astra  duces. 
Maior  Achilleá  est  virlus.,  quavi  laudibus  effers: 

Maior  Mwoniõ  tu  quoque  Scriptor  eris. 


LURO   PRIMEIRO 

DAS  NOTICIAS 

ANTECEDENTES,  CURIOSAS,  E  NECESSÁRIAS 

DAS  COISAS  DO  BRASIL 


INTRODUCCÃO 


Hei  tle  escrever  a  lieroica  missão,  (jiie  empreheiulèrão  os  Filhos  da  Com- 
panhia, a  fim  de  conquistar  o  i)odpr  do  inferno,  senhoreado  por  seis  mil 
e  tantos  annos  do  vasto  império  da  Gentilidade  Brasihca.  Hei  de  contar  os 
leitos  ilkistres  d*estes  religiosos  Varões,  as  regiões  que  descobrirão,  as 
campanhas  (jiie  talarão,  as  empresas  que  accommeterão,  as  victorias  que 
alcançarão,  as  nações  que  sujeitarão,  e  a  reputação  que  adquirirão  as  armas 
espirituaes  Portuguesas  do  Escjiiadrão,  ou  Companhia  de  Jesus.  E  como  o 
lugar  das  grandes  victorias  costuma  sempre  descrevcr-se,  pêra  maior  cla- 
reza delias;  eu,  que  desejo  declarar  estas  nossas  com  toda  a  inteireza  pos- 
sível, seguirei  o  estylo  commum :  mormente  sendo  o  campo  destas  hum 
mundo  novo,  ainda  em  o  tempo  presente  mal  conhecido,  quanto  mais  no 
d  afjiielias  euipresas  i)riiM('irns.  Jliv  força,  não  já  de  estylo  somente,  mas 
do  necessidade,  que  descreva  pi  ímeiro  este  lugar,  onde  as  I  atalhas  forão 

VOI,.    I  II 


XXVI 

por  Iiiima  parte  tão  feridas,  c  por  oiilra  tão  romoiitadas  dos  olhos  dos  liomcns, 
(lue  podem  pêra  credito  seu  toda  a  disliiicrão,  e  clareza.  Nem  será  razão 
])or  outi-a  via,  que  aquelles  que  hão  de  entrar  em  hum  tão  forte  desafio, 
l)artão  sem  saber  o  lugar,  onde  ha  de  ser  o  conflicto,  c  passem  de  hum 
mundo  a  outro  mundo,  sem  que  tenhão  i)rimeiro  noticias  d"eile;  que  região 
hc,  quando,  e  como  foi  descoljerla,  quaes  sejão  suas  qualidades,  seus  cli- 
mas, suas  gentes,  seus  costumes.  E  supposto  que  andem  jú  algumas 
d"estas  mesmas  noticias  em  outros  escrittos,  hc  acaso,  ou  por  curiosidade: 
aqui  vèm  por  obrigação  da  historia.  E  quem  comtudo  não  gostar  com  a 
leitura  d'esías  curiosas  advertências,  pôde  passar-  aos  livros  seguintes,  sem 
prejuízo  do  principal  intento.  As  noticias  que  hei  de  dar,  serão  ao  tosco,  se- 
gundo o  estado,  em  que  no  principio  acharão  as  cousas  nossos  missioná- 
rios ;  porque  á  vista  do  que  foi,  melhor  perceba  o  leitor  a  differença  do 
que  he,  quando  estas  Chronicas  lêr.  E  não  se  espante  o  leitor  de  que  seja 
tão  grande  este  principio;  porque  de  logo  liça  sendo  introducção  de  todos 
os  tomos  da  mesma  Chronica,  (lue  se  hão  de  seguir,  e  hão  de  ser  de  for^-a 
muitos. 


S-UMMA 


— =^§^i**S>— 


Cuníém  CíiLe  iicru  o  descobrimentu  admirável  do  novo  muudn,  assí 
por  parle  da  Nova  Ilespanha,  como  por  parte  do  Brasil.  O  modo  com 
que  se  rcpartio  enlre  os  dons  lieis  de  Portugal,  e  Caslella.  A  descri- 
pçào,  e  demarcação  geographica  de  suas  terras,  costas,  rios,  porcos, 
cabos,  enseadas,  c  serranias  fronteiras  ao  mar.  E  a  resolução  de  al- 
gumas duvidas  curiosas,  a  saber  :  (Juem  forào  os  primeiros  progenito- 
res dos  índios  ?  'Em  que  tempo  entrarão  neste  novo  mundo  '^  De  que 
parte  vierão  ?  De  que  nação  erão?  Por  onde,  e  de  que  maneira  entra- 
rão ?  Como  não  conservarão  suas  cores,  lingoa,  e  costumes,  seus  des- 
cendentes ? 


\  São  iii(:()m|)n,'ii(!iisivc'is  os  jaizos  de  Doos:  seis  mil  seisccnlos  e  iki 
Noiíla  e  liuiii  aiiiios  havia,  <iuo  aquclla  sua  iinmcrisa  buudade,  e  omiiipo- 
Ifiicia  inlliiita,  lirára  do  nada  ao  ser  esta  macliiiia  teiTeiia,  cfiic  vemos 
igualmente  hiimas  [)ailes,  e  outras,  as  do  Norli;,  as  do  Sul,  ,'is  do  Levanie, 
as  do  l'oenle,  igualmente  foririadas  em  !uuu  gloho,  o  assentadas  cm  hum 
mesmo  centro,  coma  mesma  íei'mosura  de  montes,  campos,  rios,  [danlas, 


XXVIII  I-IVnO   1   DAS   NOTICIAS 

e  aiiimaes,  pêra  perfeita  liabitação  dos  homens.  E  comtudo  nao  sei  com 
que  destino  lhe  cahio  mais  em  {rrara  ao  Criador  hiima  parte  d"esta  mesma 
terra,  que  outra ;  porque  aquella  (pie  de  três  partes,  Europa,  Africa,  o 
Ásia,  compõe  huma  só,  escolheo  Deos  pêra  ci-iar  o  liomem,  formar  paraíso 
terreno  (segundo  opinião  mais  commum)  authorizal-a  com  Pafriardias,  ca- 
beças dos  viventes  racionaes;  e  o  que  mais  lie,  com  sua  divina  presença  feita 
liumana,  hiz  verdadeira  de  nossa  bemaventurança.  Porém  a  outra  parte  da 
terra,  outro  mundo  igual,  não  menos  aprazível,  da  qual  dissera  o  mesmo 
Criador,  que  era  muito  boa;  deixou-a  ficar  em  esq\iecimenío,  sem  paraiso, 
sem  Patriarchas,  sem  sua  divina  presença  humana,  sem  luz  da  Fé,  e  salva- 
ção, até  que  depois  de  corridos  os  séculos  de  seis  mil  seiscentos  e  noventa 
e  hum  annos,  deu  ordem  como  apparecesse  este  novo,  e  encoberto  mun- 
do, e  foi  a  seguinte. 

2  N'aquella  parte  de  Andaluzia,  aonde  chamão  o  Condado  de  Niebla, 
havia  hum  homem  de  profissão  piloto;  seu  nome  era  Affonso  Sanches,  na- 
tural da  villa  de  Guelva;  traltava  este  em  navegar  ás  ilhas  da  Canária,  e 
(restas  á  ilha  da  Madeira,  onde  carregava  de  açucares,  conservas,  e  outros 
frutos  da  terra,  pêra  líespanha  (supposto  que  outros  querem  que  fosse  Por- 
tuguez  este  homem,  e  que  por  elle  se  deva  a  Portugal  o  primeiro  desco- 
brimento da  America.)  Succedeo  pois,  que  partindo  este  homem  (qualquer 
que  fosse)  no  anno  do  Senhor  de  1492  de  huma  (festas  ilhas,  foi  arreba- 
tado de  ventos  e  agoas  por  esse  mar  immenso  á  parte  do  Poente,  paragem 
f(jra  de  todo  o  connnercio  dos  navegantes,  desíroçado,  e  ({uasi  perdido ; 
até  que  passados  vinte  dias  chegou  a  avistar  certa  terra  desconhecida,  e 
nunca  d' antes  vista,  nem  sabida:  íicou  espantado  o  piloto,  e  não  se  atre- 
vendo buscal-a  mais  ao  perto,  porque  trattava  então  só  da  vida,  e  porque 
temia  que  de  todo  faltassem  os  mantimentos,  demarcoa-a  somente,  e  tor- 
nou a  buscar  seu  caminho,  e  demandar  a  ilha  da  Madeira,  aonde  firialmente 
cliegou,  mas  tão  consumido  da  fome,  e  trabalho,  que  em  breves  dias  aca- 
l)ou  a  vida.  Acertou  de  succeder  sua  morte  em  casa  de  Christovão  Cólon, 
(jenovez,  e  também  piloto :  com  este  (vendo  que  morria)  communicou  o 
segredo  que  vira,  dando-lhe  relação  por  extenso  de  tudo ;  e  deixando-liie 
em  agradecimento  da  hospedagem,  sua  mesma  carta  de  marear,  onde  ti- 
nha demarcado  a  terra. 

:\  Não  cahio  no  chão  a  Cólon  a  nova  noticia  de  cousas  tão  grande? : 
entrou  em  pensamentos  levantados  de  procurar  adquirir  honra  e  fama,  o 
fazer-sc  descobridor  de  aleuma  nova  parle  do  mundo.  Porem  como  era  homem 


DAS   COUSAS   no    BRASir.  XXIX 

commiim  c  sem  cabedal,  andou  procurando  ajuda  de  custo,  de  Reino  em 
Heino:  foi  a  Florença,  passou  a  Castella,  (resta  a  Portugal,  e  Inglaterra, 
e  em  todos  estes  Reinos  sem  effeito  algum,  porque  não  era  crido,  nem  ou- 
vido, senão  por  zomijaria,  reputado  por  homem  que  contava  sonhos.  Tor- 
nou segunda  vez  aos  Catholicos  Reis  de  Castella,  Fernando  e  Isabel  (que 
pêra  estes  tinha  o  Ceo  guardado  esta  boa  fortuna ) ;  e  supposto  que  tam- 
bém no  principio  zombavão  d'elle  seus  ministros,  venceo  íinalmente  o  tem- 
po, e  a  constância  de  Cólon.  Sahio  com  mandar  El-Rei,  que  se  dessem 
dezeseis  mil  cruzados  da  fazenda  real,  pêra  que  aprestasse  navios,  e  com 
promessa  da  decima  parle  de  tudo  quanto  descobrisse.  Animado  Colou 
com  esta  mercê,  partio  da  corte,  fez  companhia  com  Martim  Fernandes 
Pinron,  e  outro  irmão  do  mesmo  chamado  Affonso  Pinçon,.  c  armarão  três 
caravelas,  de  duas  delias  erão  Capitães  os  dous irmãos  Pinções,  e  da  ter- 
ceira Bertholameu  Golon,  irmão  de  Christovão  Cólon,  e  este  ptíi'  Gapilão- 
mór  de  todos. 

4  Derão  principio  a  sua  viagem,  sahindo  de  hum  porto  de  Castella, 
chamado  Pálios  de  Mugel,  com  até  cento  e  vinte  companheiros  sj'»mente  (a 
huma  empresa,  a  maior  que  o  mundo  vira  até  áquelle  tempo.)  A  3  de 
Agosto  do  anuo  do  Seiíhor  liOâ  cliiigárão  a  Gomeira,  huma  das  ilhas  For- 
tunadas, a  que  hoje  chamão  Canárias:  e  d'alli  ao  primeiro  de  Setembro  toma- 
rão a  derrota  caminho  do  Poente  (quaes  outros  Argonautas  em  busca  do  maior 
thesouro,  que  jamais  descobrirão  os  homens :)  engolfárão-se  no  largo  Oceano 
por  rumos  novos,  e  nunca  d"antes  intentados,  chegarão  a  entrai"  na  zona 
tórrida,  começarão  a  expeiimentar  a  inclemência  de  seus  immoderados  ca- 
lores; mas  nada  descobrií-ão  do  fim  de  seus  desejados  intentos.  Aqui  gas- 
tarão tempo  considerável  até  que,  vendo  que  a  viagem  se  dilatava,  e  não 
appareciDo  sinaes  do  (|ue  buscavão,  entrarão  em  desconhança  os  compa- 
nheiros, e  ai)f'>s  esta,  em  murmuração.  «.Já  i)arecc  temeridade,  dizião,  o 
que  até  agora  parecia  constância :  os  ardores  do  sol  são  excessivos,  os  man- 
timentos faltão,  a  gente  adoece,  a  viagem  dilata-se,  os  ventos  escasseão, 
sinaes  de  terra  não  ai)parccem,  he  incerto  o  intento,  e  certo  o  perigo :  a 
prudência  pede  que  desistamos  já,  antes  (pie  cheguemos  a  termo,  em  (pie 
pretendendo  fazel-o,  não  pussam(js,  e  fiíiuemos  [nn-  exemplo  ao  muudo  de 
escarneo,  e  faliula.w 

o  Podèráo  todas  estas  razões  fazer  desmaiarão  maior  valiu-:  ])orêm 
era  (>)lon  outro  .lason  famoso,  descobiidor  do  velo  de  ouio,  [)ru(lente,  o 
esforçado.  Dizia-lhes,  (jue  as  cousas  grandes  forão  sempre  em[»resa  de  ani- 


XIX  I.IYI',0   1    DAS   NOTICIAS 

mos  generosos,  c  que  não  ora  digno  de  muita  estima,  o  ({ue  não  era  alcan- 
çado com  milito  trabalho.  Que  no  caso  presente,  trnzião  entre  mãos  o  maior 
negocio  de  líesnaniia:  que  antes  de  passados  muitos  dias,  liavião  de  vrr 
cora  seus  olhos  o  que  agora  a  dilatada  esperança  liies  representava  im- 
íossivci.  Krão  as  palavras  de  Cólon  tão  cheas  de  certeza,  que  dayão  no- 
vos corações,  e  parecerão  d"ahi  a  pouco  tempo  propliecias  humanas;  por- 
que quando  mais  descuidados  estavão,  ao  romper  de  huma  manhãa  fermosa, 
11  de  Outubro,  começarão  a  ver  os  mareantes  claros  sinaes  da  desejada 
terra:  a  pouco  espaço  a  divisarão  claram.enle;  e  primeiro  que  todos  o  Ge- 
neral Cólon  (que  até  com  esta  circunstancia  quiz  Deos  galardoar  seu  valor.) 
Não  houve  nunca  baixel  Indiano  açoutado  de  rijos  temporaes,  e  dilatado  em 
viagem,  que  assi  se  alvoroçasse  á  vista  da  terra  que  buscava,  como  á  vista 
da  presente  se  alvoroçarão  os  nossos  navegantes.  Põem-Ihe  a  proa,  e  sal- 
tão em  terra  aquelles  Argonautas;  e  era  ella  hum.a  das  ilhas  a  que  chamão 
Lucayas,  e  tinha  por  nome  particular  Goaneami,  que  está  entre  a  Florida 
e  Cuba.  Corridas  estas  ilhas,  e  communicada  a  gente  d"ella3,  fera,  e  in- 
tratável, que  se  admirava  muito  de  ver  taes  hospedes  em  suas  terras;  edi- 
ficou Cólon  hum  casíello,  e  ])residiado  com  quarenta  soldados,  tomou  dez 
homens  dos  índios  naturaes,  quarenta  papagaios,  e  algumas  aves,  e  frutos 
nunca  vistos  em  nossa  Europa,  com  algumas  mostras  de  ouro  finíssimo,  e 
voltou  a  ííespanha. 

6  Entrou  na  corte  a  3  de  Abril  do  anno  de  1493:  houve  grande  alvo- 
roço de  festas;  l)autizárão-se  seis  dos  índios,  que  só  chegarão  vivos:  íorão 
padrinhos  seus  os  próprios  Reis,  e  honrarão  muito  ao  General,  dando-lhe 
titulo  de  Almirante  das  índias,  e  a  seu  irmão  Bertholameu  Cólon,  de  Adian- 
tado das  mesmas :  derão-Ihe  armas  de  Cavalleiros  e  poz  n"ellas  Cólon  por 
orla,  esta  letra:  <í  Por  CastUla,  y  Arafjon,  nuero  miiiulo  luilló  Cólon. t»  E  desta 
casa  descendem  hoje  os  Almirantes  das  índias  de  Castella,  com  titulo  de 
Duques  de  Beragua.  Poucos  annos  depois  voltou  Cólon  por  diversas  vezes, 
e  foi  descobrindo  a  terra  firme :  de  cujos  successos,  descripções,  povoa- 
ções, e  grandezas  d'esta  parte  do  novo  mundo,  se  podem  ver  os  authores 
à  margem  citados  (•). 

7  Este  foi  o  notável  descobrimento  do  novo  mundo  por  aquella  parte 

(')  Garcilfièso  de  la  Vega.  liv.  i,  cap.  3.— .lose|ib  da  Cosia,  De  Novo  Orbe,  liv.  i,  cap.  2. — Af- 
fonso  de  Ovalle.  Ili?:.  do  Cliilli,  liv.  iv,  cap.  4.— Gonçalo  lllcsci?,  EiM.  Pontif.  parf.  ii.  —  Hisl. 
iionú  das  Índias,  liv.  i,  foi.  «228.  —  Fraiici.sco  (Jnnzaga',  foi.  1Í98.  —  Oviedo,  liv.  ii,  cap.  23.  — 
llencia.  becada  i.  liv.  i,  cap.  8.  — ■  Tlieatro  Orbis,  na  dcsciipcão  da  America.  —  Abrubam  Orlclio 
na  incínii. 


n.VS    COUS.VS   DO    P.RASll.  XXXI 

(lo  Nort(\  qiio  (h\)o\<>  si^  intitulou  Nova  llospanha.  O  da  outra  parte  do  Sul, 
íjjtitulada  primeiro  Santa  (^ruz,  o  depois  Brasil,  matéria  principal  de  nossa 
íiisloria,  não  foi  menos  maravilhoso,  nem  menos  agradável:  e  foi  assi. 
Depois  de  três  aimos  de  principiada  a  famosa  empresa  da  índia  Oriental, 
querendo  El-Rei  D.  3Ianoel  de  santa  memoria,  dar  successor  aos  illustres 
feitos  do  Capitão  Vasco  da  Gama,  escolheo  pcra  eóta  elTeito  a  Pedro  Alva- 
rez Cabral,  Portuguez,  varão  nobre,  de  valor,  e  resolução.  O  qual  partindo 
de  Lisboa  pêra  aquellas  partes  da  índia  com  huma  frota  de  treze  náos  em 
^larço  do  anno  de  1300,  chegou  com  prospera  viagem  ás  ilhas  Canárias : 
porém  passadas  estas,  foi  arrebatado  de  força  de  ventos  tempestuosos,  e 
derrotados  seus  navios.  Hum  d'elles,  o  do  Capitão  Luis  Pires,  destroçado, 
tornou  a  arribar  a  Lisljoa:  'os  outros  doze  engolfados  demasiadamente  em 
o  Oceano  Austral,  depois  de  quasi  hum  mez  de  derrota,  aos  ál  de  Abril 
segunda  oitava  de  Paschoa  (segundo  o  computo  de  João  de  Barros,  Luis 
Coelho,  c  outros")  vierão  a  ter  vista  de  huma  terra  nunca  d"antes  sabida  do 
outro  mareante :  esta  reputarão  por  ilha  ao  principio,  mas  depois  de  na- 
vegarem alguns  dias  junto  a  suas  pi-aias,  averiguarão  ser  terra  lirme  (*). 
8  Foi  incrivel  a  alegi"ia  de  toda  a  armada:  porque  n"aquella  altura  ja- 
mais vii^ra  ao  iionsamento  que  podia  haver  teri-a.  Puzerão-lhe  a  proa,  o 
mandou  Cabral  ao  m3Síre  da  Capitania  rpie  entrasse  no  batel,  c  fosse  inves- 
tigar o  sitio,  e  a  natureza  da  terra :  tornou  alegre,  e  referindo  que  era 
fértil,  ainena,  vestida  de  erva  o  arvoredo,  e  cortada  de  rios:  e  que  vira 
andar  junto  ás  praias  Inins  homens  nús,  que  tirávão  de  vermelhos,  cabello 
corredio,  com  arco  e  freclias  nas  mãos.  Não  são  cridas  da  primeira  vez  as 
cousas  grandes :  tornou  a  mandar  Capitães,  e  ílzerão  estes  certo  tudo  o 
referido;  porque  trouxerão  comsigo  dous  pescadores,  que  apanharão  em 
huma  jangada  junto  á  praia:  entrados  íia  náo,  vinhão  a  vel-os  com  espan- 
to, (■{)]]]()  a  monstros  da  natinvza:  e  como  nem  elles  comnosco,  nem  nós 
com  elles  podíamos  fallai",  ]h)v  acenos  e  siiiaes  ])rocm'amos  tirar  noticias; 
porém  debalde,;  ])oi'(pji^  sua  rudeza,  e  o  medo  com  (}ue  estavão  era  tal, 
que  a  nada  acudião.  O  (pie  vendo  Cabral,  mandou  (jue  os  vestissem,  e  lan- 
çassem em  terra  com  bom  tratamento:  com  (jue  forão  contentes  aos  seu*., 
e  lhes  contarão  o  que  vn'ão,  (í  facilitarão  o  traito. 

{•)  Do  (Ic-rohiiniciilo  dn  Cnisil.  vid  MalTi-o,  liv.  ii.— (^Iirnn.  ile  Porliifíal,  parf.  i,  liv.  3,  f;i|i.  i. 
—  IJiiilu-,  llisl.  (las  Anil.  do  Brasil,  liv.  i.  (M|».  S. — TíhmIi'.  OiIjí^.  Dcsciipl.  do  Itiasil.— Aliiahaiii 
Orl;lio,  ii.-i  niKt-ina  Dfscrip.  — Oiland.  Cliion.  d.i  Ciniip.  liv.  iv,  n:"  »sl.— .I(iãi)  di-  Uai-n)<,  Dccad.  i, 
liv.  V. -Clirmiica  d'EI-llei  D.  ManoLl,  liv.  i,  cai).  íJ-'*— Osório,  liv.  ii,  \)dg;.  (!í. 


XXXII  i.nr.o  I  DAS  noticias 

U  Lançou  a  armada  fciTo  peia  (Ipscaiiçar  da  via<^i'ni,  u  oxperimenlar 
terra  tão  nova,  eni  lugar  a  ()ue  cliain;'irão  Porlo  sej,'uro,  oii  ponine  n'ello 
reconhecião  seguro  abrigo,  ou  ponfuc  nelle  consideravão  já  seguro  o  íim 
de  seus  maiores  traballios.  Saltarão  íinalniente  em  terra,  como  á  compe- 
tência de  quem  primeiro  punha  o  pé  em  tão  ditosas  praias.  Aqui  arvorarão 
aos  3  de  Maio  (como  querem  alguns)  o  primeiro  Iropheo  de  Portugueses  que 
o  Brasil  vio,  o  estandarte  da  Santa  Cruz,  ao  som  de  demonstrações  de  gran- 
des alegrias,  e  solemnidade  de  missa,  pregação,  e  salvas  de  artilharia  da 
armada  toda,  pondo  por  nomo  a  terra  tão  fermosa.  Terra  de  Santa  Cruz: 
titulo,  que  depois  converteo  a  cobiça  dos  homens  em  Brasil,  contentes  do 
nome  de  outro  pão  bem  difforente  do  da  Cruz,  e  de  eíTeitos  bem  diversos. 
Ao  estrondo  da  artilharia,  nunca  dantes  ouvido  ii"aquellas  regiões,  se  aba- 
larão, como  attonitos,  dos  arredores  de  suas  serranias,  liandos  de  barba- 
ria, suspensos  de  verem  que  sustentava  o  corpo 'das  agoas  maquinas  tão 
grandes,  como  a  de  nossas  náos  da  índia ;  e  muito  mais  de  verem  hospe- 
des tão  estranhos,  brancos,  com  barba,  e  vestidos,  cousas  entre  elles  nunca 
imaginadas. 

10  Descião  a  ver  como  em  manadas,  ordenados,  porém  a  seu  modo 
em  som  de  guerra;  e  erão  tantos  os  que  conciHMião,  que  ao  principio  da- 
vão  cuidado.  Porém  com  sinaes,  e  acenos,  e  muito  mais  com  dadivas  (a 
melhor  falia  do  todas  as  nações)  de  cascavéis,  manilhas,  pentes,  espelhos, 
cousas  pêra  elles  as  maiores  do  mundo,  vierão  a  conhecer  que  a  nossa  en- 
trada não  era  de  mão  titulo  :  fizerão  confiança,  trouxerão  mulheres,  e  filhos, 
e  trattárão  logo  com  os  Portugueses  íõra  de  todo  o  receio:  traçarão  em  sua 
presensa  mostras  de  alegria,  a  modo  de  sua  gentilidade,  galanteados  elles 
e  ellas  de  tintas  de  pãos,  e  pcnnas  de  pássaros,  fazendo  festas,  bailes,  e 
jogos,  lançando  frechas  ao  ar:  e  por  íim  vierão  carregados  de  animaes,  o 
aves  de  suas  caças  e  de  frutas  varias  da  terra,  que  por  não  vistas  outro 
tempo  dos  nossos,  não  podião  deixar  de  agradar.  Quando  se  embarcava  o 
General,  acompanha vão-no  com  mostras  de  prazer :  hião  com  elle  até  á 
praia,  huns  se  mettião  pela  agoa,  chegando  o  batel,  outros  nadavão  á  con- 
tenda com  elle,  outros  seguião-no  até  ás  náos  em  jangadas,  tudo  sinaes  de 
Timisade,  dando  a  entender  que  lhes  era  grata  sua  presença,  e  que  ficavão 
agradecidos  de  sua  boa  correspondência.  Sobre  tudo  mostrava  esta  gente 
natural  dócil,  e  domavel,  porque  assistindo  entre  os  nossos  ás  missas,  e 
mais  actos  christãos  dos  Religiosos  do  Scraphico  Padre  S.  Francisco,  que 
alli  se  acharão,  estavão  decentemente,  como  pasmados,  mostrando  fazer 


DAS  corsAs  no  brasii.  xxxiii 

conceito  ih  bondado  d'aquellasceremonias,  pondo-se  de  joelhos,  batendo  nos 
l)0itnií,  levantando  as  mãos,  e  fazendo  as  mais  acções,  que  vião  fazer  aos  Portu- 
gueses, como  pezarosos  de  não  entenderem  elles  também  o  que  signiíicavão. 

H  Aqui  no  meio  d'estes  applausos,  quiz  também  o  elemento  do  mar 
sahir  com  bum  seu :  e  foi,  que  vomitou  á  pi-aia  bum  monstro  marinlio, 
não  conbecido,  e  portentoso,  recreação  dos  Portugueses,  por  coiísa  insóli- 
ta, e  mui  aprazível  aos  índios,  por  pasto  de  seu  gosto.  Tinba  de  grossura 
mais  que  a  de  bum  tonel,  e  de  comprimento  mais  que  o  de  dous :  a  ca- 
beça, os  olhos,  a  pelle,  erão  como  de  porco,  e  a  grossura  da  pelle  era  do 
bum  dedo.  Não  tinha  dentes;  as  orelhas  tinbão  feições  de  elefante;  a  cauda 
de  bum  covado  de  comprido,  outro  de  largo.  IMostrava  já  desde  aqui  a 
novidade  deste  monstro,  as  muitas  que  andados  os  tempos  se  descobririão 
n'estas  regiões  do  Brasil. 

12  Gastado  em  todas  estas  mostras  cousa  de  bum  mez,  determinou  o 
General  Pedro  Alvares  Cabral  mandar  noticias  a  Sua  Alteza  das  novas  ter- 
ras que  descobrira,  dos  rumos,  e  das  paragens,  e  do  que  n"ellas  vira.  E 
como  era  força  proseguir  elle  sua  derrota,  que  era  pêra  a  índia,  despedio 
a  este  intento  bum  Capitão  de  etíeito  por  nome  Gaspar  de  Lemos:  o  qua[ 
junto  com  as  noticias,  levou  primícias  dos  frutos  da  terra,  e  hum  dos  ín- 
dios d'ella,  sinaes  indubitáveis.  Foi  recebido  em  Portugal  com  alegria  do 
Rei,  e  do  Reino.  Não  se  fartavão  os  grandes,  e  pequenos  de  vei',  c  ouvir 
a  falia,  gesto,  e  meneios  d"aquelle  novo  individuo  da  geração  humana.  Iluns 
o  vinhão  a  ter  por  hum  Semicapro,  outros  por  bum  Fauno,  ou  ])or  algum 
d"aquelles  monstros  antiguos,  entre  poetas  celebrados :  porém  alegravão-se 
todos  pela  esperança  que  concebião  da  fertilidade  d'aquellas  regiões. 

I.']  Descoberto  na  forma  referida  este  novo  mundo,  por  Castelhanos  da 
banda  do  Norte,  por  I*ortugiieses  da  banda  do  Sul,  pede  a  razão  que  ve- 
jamos, com  que  parte  ficou  cada  buma  d'eslas  duas  nações.  Pêra  decisão 
d"este  ponto,  porei  brevemente  o  fundamento  da  i-epartição.  Foi  este  buma 
Bulia  do  Santo  Padre  Alexandre  Vi.  Sabendo  este  Santo  Papa  como  tratta- 
vão  os  Portugueses  da  conquista  do  Africa,  do  estreito  do  Gibraltar  pêra 
fora  na  confoi-midade  dos  intentos  do  Infante  I).  flenri(iue,  filho  d'El-Rei 
D.  João  Primeiro,  que  a  sustentara,  e  amplificáia,  com  tanto  cabedal  do 
ingenbo,  industria,  e  fazenda;  o  que  senboreavão  especialmente  a  mina  de 
ouro  do  Guine,  descoberta  no  anno  de  1471,  sendo  Rei  de  Portugal  D. 
Affonso  V,  o  não  sem  algumas  diíTerenças  entro  bum  o  outro  Reino:  doter- 
niirjou  fazer  favor  a  El-Rej  de  Castolia,  concedendo-Jhe,  como  em  eíTeito 


XXXIV  I.IVUO    I    U\S    NOTICIAS 

roncedeo,  doarão  da  parlt3  das  índias  occidonlaes ;  porém  de  manoira, 
(jue  uão  prejudicasse  aos  Reis  de  Poiiiigal.  Pêra  esle  iiileatu  iiiaudoii  ii^a- 
quella  Bulia,  (jue  se  laiieasse  huma  linha  de  Norte  a  Sul,  desde  cem  legoas 
de  huma  das  ilhas  dos  Açores,  e  Cahoverde,  a  mais  occidenlal  pêra  o 
Poente;  e  que  esta  linha  fosse  marco  do  que  havia  de  conquistar  cada  qual 
dos  Reis,  sem  que  houvesse  contenda  entre  elles,  ficando  as  terras  da  con- 
quista de  Porlugal  pêra  o  Nascente,  e  as  da  conquista  de  Casíella  pêra  o 
Occidente.  Passoii-se  a  Bulia  em  Maio  do  armo  de  li93.  . 

14.  Porém  El-Rei  D.  João  o  Segundo,  que  n"este  tempo  reinava  em 
Portugal,  reclamou  esta  Bulia,  pedindo  ao  Summo  Pontiíice  outras  trezen- 
tas legoas  ao  Poente,  sohre  as  cento  que  tinha  destinado.  E  como  estavão 
os  Reis  de  Casíella  tão  aparentados  com  os  de  Porlugal,  c  o  esperavão  es- 
tar mais,  vierão  facilmeiííe  no  que  pedia  El-Rei  D.  João,  e  de  boa  confor- 
midade, e  parecer  do  Summo  Pontifice,  se  concederão  mais  duzentas  e 
setenta  legoas,  além  do  concedido  na  Bulia,  a  7  de  «Junho  de  liOi-.  O  que 
supposto,  aquella  linha  imaginaria,  lançada  de  Norte  a  Sul,  na  conformi- 
dade sobredita,  que  vem  a  ser  do  uUhiio  ponto  da  de  trezentas  e  setenta 
legoas  de  huma  das  Ilhas  dos  Açores,  e  Caboverde,  mais  occidental  (que 
dizem  foi  a  de  Santo  Antão)  ao  Poente,  he  o  fundamento  da  divisão  e  de- 
marcação do  Brasil.  E  na  mesma  conformidade  do  linhas  se  tornou  a  coi'- 
roborar  depois  por  sentença  de  doze  Juizes  Cosmographos,  e  ?^Ialhemati- 
cos,  110  ultimo  de  Maio  do  anuo  de  lui4  esta  demarcação;  por  occasião  de 
duvidas,  que  então  recrescerão  entre  o  Rei  de  Porlugal  e  o  Imperador  Car- 
los Quinto,  acerca  das  ilhas  Malucas  da  especiaria:  como  largamente  refere 
a  Historia  geral  das  índias,  cap.  20,  cuja  extensão  nos  não  serve. 

15  Suppostas  as  concordatas  sobreditas,  resta  descer  ao  modo  parti- 
cular da  repartição,  iisla  se  deve  averiguar  (segundo  o  dito)  pelo  que  corta 
a  linha  imaginaria,  ou  mental,  de  que  alli  falíamos,  que  vai  lançada  de  Norte 
a  Sul,  do  ultimo  ponto  da  linha  transversal  de  trezentas  e  setenta  legoas 
da  ilha  de  Santo  Antão  pêra  o  Poente.  ]\ías  como  n"esta  linha  transversal, 
os  compassos  de  huns  andarão  mais,  e  menos  liijeraes  os  de  outros,  ou  de 
propósito,  ou  levados  das  diversas  arrumações  das  cartas  geographicas, 
veio  a  occasionar-se  iresta  matéria  variedade :  porque  huns  correm  aquella 
linha  transversal  de  maneira,  que  a  mental  de  Norte  a  Sul,  vem  a  cortar 
da  America  pêra  o  Reino  de  Portugal  vinte  e  quatro  grãos  de  compiúmento 
somente,  outros  trinta  e  cinco,  outros  quarenta  e  cinco,  outros  cincoenta 
c  ciuco  (deixando  outras  opiniões  de  menos  conta)  e  todas  estas  varieda- 


DAS  COUSAS  DO  BRASIL  XXXV 

(los  nascem  das  causas  apontadas.  A  primeira  opinião  do  vinte  e  quatro 
gráos,  iie  escara,  nem  tom  fundamento  algum,  convence-se  com  a  expe- 
riência, posse,  e  vista  de  cartas  geograpliicas.  A  ultima  que  dá  cincoenta 
e  cinco  gráos,  lie  de  compasso  mais  liberal,  não  parece  tão  ajustada  aos 
jirincipios  referidos.  As  duas  entremeias  de  trinta  e  cinco  e  (juarenta  o 
ciiico  gi'áos,  me  parecem  ambas  verdadeiras  l)em  entendidas :  porque  a  que 
dá  trinta'  e  cinco  gráos,  falia  pelo  que  o  Brasil  está  de  posse  por  costa,  e 
a  que  dá  quarenta  e  cinco  falia  pelo  que  lhe  convém,  em  virtude  da  linha 
que  corre  o  sertão;  e  são  ambas  verdadeiras. 

.  IG  lluma  e  outra  parte  declaro.  Está  de  posse  o  Brasil  da  terra,  que 
corre  por  costa,  desde  o  grão  Rio  das  Almazonas,  até  o  da  Prata :  porque 
no  das  Almazonas  comoção  suas  povoações,  que  correm  até  passante  a  Ga- 
nanca,  e  senhoreão  d"alli  em  diante  todos  os  mais  portos  com  suas  embar- 
cações, e  commercio,  e  no  Rio  da  Prata  está  posto  hum  marco  na  ilha  do 
Lobos,  como  hc  notório.  Nem  (Foste  Rio  da  Prata  pêra  o  Norte  junto  á 
costa  possuem  cousa  alguma  Castelhanos,  como  se  deixa  ver  pela  expe- 
riência, o  mappas :  segura  falia  logo  a  opiuião  que  dá  trinta  e  cinco  gráos, 
pelo  que  estamos  de  posse  por  costa.  Pelo  que  convém  em  virtude  da  li- 
nha, (|ue  corre  o  sertão,  talião  ao  certo  os  que  dão  (piarenta  e  cinco  gráos. 
Esta  verdade  i)oderá  cxiierimentar  todo  o  Cosmographo  curioso;  porque 
se  com  exacta  diligencia  arrumar  as  terras  do  mundo,  e  depois  com  com- 
passo fiel  medir  a  linha  que  dissemos,  desde  a  ilha  do  Santo  Antão  tre- 
7X'ntas  e  setenta  legoas  ao  Poente,  achará  que  a  linha  de  Norte  a  Sul.  que 
(lo  ultimo  ponto  desta  divide  as  terras  da  America,  vai  cortando  direita 
junto  ao  Rio  das  Almazonas,  polo  riacho  que  chamão  de  Vincente  Pinçon, 
e  correndo  pelo  sertão  deste  Brasil  até  ir  sahir  no  Porto,  ou  Bahia  de  S. 
Mathias  quinze  gráos  pouco  mais  on  menos  da  Equinocial,  distante  da  boca 
do  grão  Rio  da  Prata  pêra  o  Sul  cento  e  setenta  legoas :  no  qual  lugar,  he 
constante  fiuna,  se  meteo  marco  da  Cor(ja  de  Portugal  (vei'dado  ho,  que 
doesta  linha  assi  lançada  poi'a  a  pai'te  do  mar  do  Oriente,  jwssuem  os 
Castelhanos  muita  teri^a,  não  por  costa,  mas  diiutro  do  sertão:  como  se  podo 
ver  claramente  na  demarcação  do  algumas  carias,  (|iio  dVsta  nossa  parte 
assentão  alguns  lugares  da  Província  do  Iiuonns-Ayros,  P;ii'aguay,  Coi'dova, 
e  outras.) 

'17  Pela  opinão  dos  (jue  dão  trinta  e  cincij  gráos  por  costa,  se  piwlo  vero 
Auclor  do  novo  livro  intitulado  Thoatrum  Oil )is,  na  taboa  do  Bi-asil,  com  Nicoláo 
de  Oliveira  ahi  citado.   E  dizem   assi:   (íliiiliim  sumit  (id  esl  JJrusilia)  a 


XXXVI  I.IVRO  I   DAS  NOTICIAS 

Paráqum  PorlncjaUorxim  arx  esl  in  ínlaario  maxn)u  flximlnis  Amazonum  mh 
ipso  pene  lequutore  sita:  et  definit  in  trigésimo  quinto  gradu  ab  wquatore  ver- 
sus Au^trum  :  quem  ingentemterrarumtraclum  Portugalli  stii  júris  esse  profi- 
tentur. 

O  mesmo  tom  Gotofredo  na  sua  Archontologia  cósmica,  folhas  318. 
Pela  opinião  dos  que  dão  quarenta  e  cinco  grãos,  está  Maíleo  no  livro  segundo 
da  Historia  da  índia,  no  principio :  aonde  faltando  da  Província  do  Brasil,  diz 
assi :  Hcec  d  duobus  ob  aíquatore  gradibus,  parttbusqae  aã  gradus  qnlnque  et 
quadraginta  in  Austrum  excurrit.  O  mesmo  segue  Orlandino  nas  Chronicas 
da  Companhia  de  Jesu  liv.  9,  n."  86.  E  o  doutíssimo  Pedro  Nunes  já  ci- 
tado nos  cap.  i,  2  e  3,  diz  assi.  «A  Província  do  Brasil  começa  a  correr 
junto  do  rio  das  Almazonas,  onde  se  principia  o  Norte  da  linha  de  demar- 
cação, e  repartição  (falia  da  nossa,  que  corta  o  sertão  do  Brasil )  e  vai  cor- 
rendo pelo  sertão  d'esta  Província  até  quarenta  e  cinco  grãos,  pouco  mais 
ou  menos:  ali  se  fixou  marco  pela  Coroa  de  Portugal.» 

18  O  diâmetro,  ou  largura  da  terra  do  Brasil,  pende  também  das  opi- 
niões referidas;  porque  as  que  apartão  mais  da  costa  do  mar  pêra  o  Poente 
aquella  linha  do  sertão,  conseguintemente  dão  maior  extensão  de  largura : 
as  (}ue  menos,  menor.  Porém  ainda,  segundo  o  computo  que  levamos,  não 
hc  fácil  averiguar  largura  certa,  por  respeito  da  varia  disposição,  e  figura 
da  terra.  O  que  parece  verisimil,  he,  que  terá  em  partes  de  largo  duzen- 
tas, em  partes  trezentas,  em  partes  quatrocentas  emais  legoas,  por  regiões  até 
hoje  inhabitadas  de  Europeos,  posto  que  fecundas  de  gentilidade.  Por  esta  par- 
te do  sertão  respeita  a  terra  do  Brasil  aquellas  aífamadas  serranias,  que 
vão  correndo  os  reinos  de  Chilli,  e  Peru  passante  de  mil  legoas,  de  tão 
immensa  altura,  que  são  hum  assombro  do  mundo,  e  delias  affirma  Maí- 
feo  liv,  2,  que  o  voo  das  mais  ligeiras  aves  não  pode  superal-as.  O  mes- 
ma afílrma  António  Herrera  tom.  3,  década  5,  e  o  Padre  AíTonso  de 
Ovalle  liv.  1,  cap.  o.  Logo  que  soarão  em  Portugal  as  primeiras  noticias 
do  descobrimento  nunca  imaginado,  de  terras  tão  espaçosas,  e  regiões  tão 
férteis,  enviou  El-Rei  D.  Manoel  com  a  mór  brevidade  possível,  hum  ho- 
mem grande  Mathematico,  e  Cosmographo,  de  nação  Florentino,  por  nome 
Américo  Vespucio,  a  reconhecer,  sondar,  e  demarcar  a  terra,  e  costa  marítima 
dCsle  novo  mundo.  O  que  fez  por  espaço  de  tempo,  entrando  portos  metendo 
balizas,  experimentando  varias  fortunas,  monções,  e  correntes  das  agoas, 
até  voltar  a  Poriugal  com  as  informações  do  que  vio,  e  fez.  D"este  homem 
tomou  a  terra  o  nome  de  America. 


DAS  COUSAS  DO  BllASIL  XXXVI l 

10    Depois  do  Américo,  mandou  o  mesmo  Rei  D.  Manoel  segunda  es- 
quadra de  seis  velas,  a  cargo  do  Capitão  Gonçalo  Coellio,  a  explorar  mais 
de  espaço  a  mesma  costa,  suas  correntes,  monções,  portos,  qualidade  do 
torrão,  e  da  gente.  Andou  este  Capitão  por  ella  muitos  mezes :  descobrio 
diversidade  de  portos,  rios,  e  enseadas:  em  muitas  destas  partes  sahio em 
terra,  e  tomou  informações  da  gente  d'ellas,  metendo  marcos  das  armas 
dEl-Rei  seu  senhor,  e  tomando  posse  por  elle.  Porém  pela  pouca  noticia 
que  até  então  se  tinha  da  corrente  das  agoas,  e  curso  dos  ventos  d"estas 
paragens,  padeceo  graves  infortúnios  na  especulação  d"esta  costa,  e  veio  a 
recolher-se  a  Lisboa  com  menos  dois  navios,  entregando  as  informações  do 
que  achara  a  El-Rei  D.  João  Terceiro,  que  já  então  reinava,  por  fallecimen- 
to  d"El-Rei  D.  Manoel  seu  pai.  Formou  este  Príncipe  grande  conceito  das 
informações  dittas,  e  enviou  logo  outra  esquadra,  pêra  que  de  todo  se  aca- 
basse de  explorar  a  costa,  e  por  capitão  delia  Christovão  Jaques,   fidalgo 
de  sua  Casa,  que  renovou  a  mesma  empresa,  e  acrescentou  noticias  de  no- 
vos portos,  e  de  novas  gentes,  com  grande  trabalho,  c  igual  serviço  d"El- 
Reí.  Este  fidalgo  foi  o  primeiro,   que  andando  correndo  esta  costa  veio  a 
dar  com  a  enseada  da  Bahia,  (jue  intitulou  de  Todos  os  Santos,  por  sua 
formosura  e  aprazível  vista.  E  andando  investigando  seus  recôncavos,  achou 
em  hum  delles,  ditto  Paraguaçú,  duas  nàos  Francesas,  que  tinhão  entrado 
a  resgatar  com  a  gente  da  terra.  Chegou  perto  a  ellas,  estranhou-lhc  o  fei- 
to, sendo  aquellas  terras  dodominio  e  conquista  dEl-Rei  de  Portugal,  eelles 
estrangeiros:   e  respondendo  os  Franceses  soberbos,  mostrando  acção  do 
resistir,  os  metteo  no  fundo  com  gente  e  fazenda,  em  pena  de  seu  atre- 
vimento. E  depois  de  tempo  considerável,  vários  discursos,  e  noticias  da 
costa  voltou  a  Poi'tugal,  e  deu  conta  de  tudo  a  El-Rei  D.  João:  como  tam- 
bém lha  dera  Pedro  Lopes  de  Sousa,  que  por  esta  costa  andara  com  Ar- 
mada, e  Martim  Affonso  de  Sousa,  de  quem  a  seu  tempo  se  fará  menção ; 
porque  correo  este  fidalgo  com  numero  d(!  nãos  á  sua  custa,  em  especial 
a  costa  ipie  corre  desde  a  Capitania  de  S.  Vicente  até  o  famoso  Rio  da 
Prata,  descobrindo  portos,  rios,  enseadas,  saindo  em  terra,  i)ondo  nomes, 
metendo  marcos,  e  investigando  particularmente  a  bondade  e  (pialidade 
das  gentes,  e  das  terras. 

áO  Das  noticias  dos  sobreditos  (Capitães,  e  do  (jue  disserão  ao8  Reis, 
elles,  e  seus  Cosmographos  acerca  do  (jue  explorarão,  virão,  e  ouvirão, 
Uivei  huma  breve  relação,  por  agoi"a  s('tmentt'  ao  tosco,  per-a  que  ])()i  cila 
se  veja  o  <]uc  será  quando  se  pinle  ao  vi\o:  c  he  a  seguinte.  Ouanto  ávis- 


XXXVllI  LIVRO  I  DAS  NOTICIAS 

ta  exterior  aos  que  vem  do  mar  cm  fúi-a,  deposorão  aquelles  Capitães,  e 
Cosmographos,  que  não  virão  cousa  igual  no  universo  todo,  á  perspectiva 
d'esta  nova  terra:  porque  ao  longe,  parece  iiuma  gloria  o  avultai-  dos  mon- 
tes e  serranias,  com  tal  compostura  e  altura,  que  representão  formas  muito 
pêra  ver,  e  sobem,  parece,  á  segunda  região  do  ar,  levando  comsigo  os  olhos 
e  os  corações  ao  Geo.  A  meia  vista,  começa  a  apparecer  o  alegre  dos  l)os- 
ques,  campos,  e  arvoredos  verdes  sempre,  e  sempre  aprazíveis.  Mais  ao  perto 
alvejão  as  praias  fermosas,  e  vão  logo  apparecendo  n'ellas  hiima  immensida- 
de  de  portos,  barras,  enseadas,  rios,  ribeiras  despenhadas,  e  com  tão  grande 
variedade,  que  lie  iuim  espanto  da  natureza.  De  tudo  disserão  alguma  cou- 
sa, que  tudo  não  lhes  era  possível. 

21  Estcá  sita  esta  região  do  Brasil  na  zona,  a  que  os  aníiguos  chamarão 
tórrida.  Começa  pontualmente  do  meio  d"ella  pêra  a  parte  Austral,  corren- 
do ao  Trópico  de  Capricórnio,  e  entrando  deste  na  zona  temperada  o  es- 
paço, que  já  consta  do  que  dissemos,  e  logo  mais  diremos.  Sua  forma  he 
triangular.  Pela  parte  do  Norte,  e  logo  pela  do  Oriente  que  respeita  aos 
Reinos  de  Congo  e  Angola,  he  lavada  das  agoas  do  Oceano.  Traz  seu 
principio  de  junto  ao  rio  das  Almazonas,  ou  Grão-Pará,  pela  terra  que  cha- 
mão  dos  Caribás,  da  banda  do  Loeste,  desde,  o  riacho  de  Vicente  Pinçon, 
que  demora  debaixo  da  linha  Equinocial,  e  vai  acabar  (segundo  o  que  es- 
tá de  posse)  em  outro  grande  rio,  a  que  chamão  da  Prata,  e  são  duas  fa- 
ces do  triangulo,  e  a  terceira  vem  a  fazer  a  linha  do  sertão. 

22  Estes  dous  rios,  o  das  Almazonas,  e  o  da  Prata,  principio  e  fim 
d"esta  costa,  são  dous  portentos  da  natureza,  que  não  he  justo  se  passem 
em  silencio.  Sào  como  duas  chaves  de  prata,  ou  de  ouro,  que  fechão  a  ter- 
ra do  Brasil.  Ou  são  como  duas  coiumnas  de  liquido  crystal,  que  a  demar- 
cão  entre  nós  e  Castella,  não  só  i)or  parte  do  mariíimo,  mas  também  do 
terreno.  Podem  também  chamar-se  dous  gigantes,  que  a  defendem,  e  de- 
marcão  em  comprimento,  e  circuito,  como  veremos.  Porque  he  cousa  ave- 
riguada, e  praticada  entre  os  naturaes  do  interior  do  sertão,  que  estes  dous 
rios  não  somente  presidem  ao  mar  com  a  vastidão  de  seus  corpos,  e  bo- 
cas; mas  também  com  a  extensão  de  seus  braços  abarcão  a  circuinferencia 
toda  da  terra  do  Brasil,  fazendo  n"ella  por  huma  parte  hum  semicírculo  de 
mais  de  mil  e  quinhentas  legoas;  e  por  outra  mais  ao  largo,  outro  de  mais 
de  duas  mil,  com  tão  desusadas  maravilhas,  como  logo  veremos. 

23  O  das  Almazonas,  por  outro  nome  Grão-Pará,  sem  exageração  al- 
guma, he  o  Imperador  de  todos  os  rios  do  mundo;  e  qualquer  dos  que  ce- 


DAS  COISAS  DO  liHASlf,  XXXIX 

lel)ra  a  aiiiiguiJade,  á  visla  desto  íica  stnido  iiiii  pequeno  pigmeo  em  com- 
pararão de  liiini  glande  gigante.  {^Iiainão-llie  os  ualiiraes  Paráguarú,  que 
quer  dizer  mar  grande:  c  tem  razão,  pois  para  ser  hum  mar,  falla-lhc  só 
serem  suas  agoas  salgadas.  Jacte-se  embora  o  antiguo  mundo  de  seus  famo- 
sos rios:  a  índia  do  seu  sagrado  Ganges,  a  Assyria  do  seu  ligeiro  Tigris, 
a  Arménia  do  seu  fecundo  Eiq)iu'ates,  a  Africa  do  seu  precioso  Nilo;  que 
todos  estes  juntos  em  hum  corpo,  são  pouca  agoa,  em  comparação  de  hum 
só  Grão-Pará:  c(jntendão  embora  sobre  o  principado,  os  rios  maia  antiguos. 
Aristóteles,  parece  dá  a  palma  ao  Indo,  jjorque  tem  de  largura  cincoenta 
estádios  italianos:  Arriaiio  a  dá  ao  daiiges:  Virgílio  dá  o  reinado  aoErida- 
110,  Diodoro  Siculo  ao  Nilo.  Poi'ém  os  nossos  grandes  rios  das  Almazonas, 
(!  da  Prata,  sem  controvérsia,  são  os  Imperadores  dos  rios.  Assi  o  resoiveo 
hum  douto  e  curioso  descobridor  das  obras  meteorológicas  da  natureza,  de  nos- 
sos tempos,  por  nome  Liberlo  Fromondo,  no  livro  quinto  de  seus  Meteo- 
ros, cai)ltulo  primeiro  |.  Verum,  por  estas  palavras.  aScd  coutroversiam 
fluviíis  Amazonum  in  Amevica  dirimit,  qni  laliludiuem  ad  70  ctinm  leucas 
diffunditi,  mnrevé^  nu.stjuum  f  avias  suppar  de  indc  ci  (lucius  Argenicus^  cul- 
go  liio  da  Prata,  quem  non  adcequanl  ]S'ilus,  Euphralcs,  Ganges,  cvnfusis  in 
v.iium  alveum  et  counnunicatis  aquis.*  Vem  a  dizer,  que  decide  esta  contro- 
vcrsia  o  rio  das  Almazonas,  mais  vertladeiramenle  mar  ([ue  rio;  porque 
chega  a  ter  de  largura  setenta  legoas;  cujo  semelhante  he  o  Rio  da  Prafa, 
com  quem  não  tem  compararão  os  rios  Nilo,  Euplwales,  Ganges,  juntas 
suas  agoas  em  hum  só. 

)l\  O  com[)rimento  d'este  grão  gigante  dos  lúos,  he  de  mil  e  li-ezentas, 
mil  e  seiscentas,  ou  mil  c  oitocentas  legoos,  segundo  cômputos  vários  dos 
(]ue  o  navegarão.  A  distancia  i)or  onde  estende  seus  iiraços  espaçosos,  di- 
reito, e  esquerdo,  soinma  passante  de  mil  legoas,  por  relação  das  gentes  que 
bebem  suas  agoas;  e  assi  deve  ser  de  razão,  pêra  ser  verdade  o  que  di- 
zem, que  chegão  no  meio  do  seilão  a  dar-se  as  mãos  estes  dous  rios  do 
Pará,  o  da  Prata. 

2;i  Da  grandeza  disforme  d"este  ri(j  se  colhe  facilmente  o  grosso  de  seu 
corpo,  e  o  largo  de  sua  boca.  O  grosso  de  seu  corpo  he  força  seja  mui 
crescido,  como  aíjuclle  (iiie  lu;  alimcnlado  de  tantos  rios,  quantos  se  con- 
slderão  pag;ir-lhe  o  tribulo  devido  de,  suas  agoas,  por  Ião  grande  espaço, 
como  he  o  de  mil  (;  irczentas  alé  mil  c  cilMCí.-iitas  legoas,  afora  a  extensão 
de  seus  braços;  pur(|uc  entiaiido  estes  com  mais  de  mil  legoas,  e  [tosto seu 
diamelio,  vem  a  formar  toda  ;;  circunfei-eiicia  de  seu  grande  dominio  so- 


XL 


LlVnO  I  lUS  NOTICIAS 


bre  quatro  mil  legoas,  em  boa  Aiitlimelica.  Donde  de  forra  ha  de  ser  de- 
masiado o  grosso  d"este  corpo,  ou  ern  largura,  ou  em  i)rofundidade,  onde 
os  montes  mais  o  opprimom ;  e  esta  lie  tal,  que  nao  se  lhe  acha  fundo  em 
partes,  e  por  espaço  de  seiscentas  legoas  da  barra  nunca  lhe  faltão  trinta 
ou  quarenta  braças  de  alto,  cousa  nunca  já  vista  em  rio.  Em  sua  largura 
o  que  se  experimenta  he,  que  posta  huma  náo  na  madre  deste  rio,  em 
muitas  paragens,  por  mais  livres  que  dos  altos  mastos  se  lancem  os  olhos 
a  huma  e  outra  parte,  não  apparece  mais  que  o  eco,  e  agoa ;  nem  he  pos- 
sível descobrir  os  cumes  dos  montes  mais  altos  que  cercão  suas  margens. 
2G  A  boca  vem  a  ser  conforme  o  corpo,  de  oitenta  ou  mais  legoas  de 
largo.  Desemboca  debaixo  da  Equinocial,  e  são  cortadas  d'ella  suas  agoas. 
Vomita  estas  com  tanta  força  em  o  mar,  que  de  longa  distancia  as  colhem 
doces  os  mareantes,  vinte  e  trinta  legoas  muitas  vezes  primeiro  que  avistem 
a  terra.  Em  lugar  de  trinta  e  dous  dentes  humanos,  tem  esta  boca  outras 
tantas  ilhas,  pequenas  humas,  outras  grandes :  demorão  todas  da  banda  do 
Sul,  o  terço  he  hum  grão.  São  innumeraveis  as  demais  ilhas  d'este  rio, 
com  variedade  aprazível.  As  ordinárias  são  de  duas,  quatro,  seis,  dez,  vin- 
te e  mais  legoas :  e  taes  ha,  que  tem  de  circunferência  mais  de  cento.  São 
outros  tantos  bosques  amenos,  com  todo  o  bom  da  natureza,  e  capacidade 
pêra  o  da  arte. 

27  Contão  os  índios  versados  no  sertão,  que  bem  no  meio  d'elle  são 
vistos  darem-se  as  mãos  estes  dous  rios,  em  huma  alagoa  famosa,  ou  lago 
profundo,  de  agoas  que  se  ajuntão  das  vertentes  das  grandes  serras  do 
Chilli,  e  Perii,  e  demora  sobre  as  cabeceiras  do  rio  que  chamão  S.  Fran- 
cisco, que  vem  desembocar  ao  mar  em  altura  de  dez  grãos  e  um  quarto ; 
e  que  d'esta  grande  alagoa  se  formão  os  braços  d"aquelles  grossos  corpos; 
o  direito,  ao  das  Almazonas  pêra  a  banda  do  Norte ;  o  esquerdo  ao  da 
Prata  pêra  a  banda  do  Sul;  e  que  com  estes  abarcão  e  torneâo  todo  o 
sertão  do  Brasil;  c  com  o  mais  grosso  do  peito,  pescoço,  e  boca,  presi- 
dem ao  mar.  Verdade  he,  (pie  com  mais  larga  volta,  se  avistão  mais  ao  interior 
da  terra;  encontrando-se  não  agoas  com  agoas,  mas  avistando-se  tanto 
ao  perto,  que  distão  somente  duas  pequenas  legoas :  donde  com  facilidade 
os  que  navegão  corrente  acima  de  hum  d*estes  rios,  levando  as  canoas  ás 
costas  aquella  distancia  entreposta,  tornão  a  navegar  corrente  abaixo  do  ou- 
tro: e  esta  he  a  volta,  com  que  abarcão  estes  dous  grandes  rios  duas  mil 
legoas  de  circuito. 

28  Mas  tornando  agoia  ao  Grão-Pará  somente,  deposerão  os  índios. 


DAS  COUSAS  DO   líUASlL 


XLI 


dos  quaes  tomarão  estas  noticias  aquelles  Exploradores  Cosmographos, 
grandezas  taes  qm  parecião  então  sonhadas,  e  hoje  não  só  verdadeiras,  mas 
muito  acrescentadas.  Dizião  pois,  que  aquelle  seu  grande  rio  trazia  a  pri- 
meira origem  de  humas  serranias  monstruosas,  e  nunca  jámai*  vistas  na 
terra,  de  comprimento  e  altura  immensa,  que  distavão  espaço  que  elles  não 
sabião  explicar,  mas  souberão  experimentar  seus  avós,  fugindo  infortúnios  de 
guerras,  junto  ao  mar:  e  que  aífaL-lias  serranias  estavão  cheias  de  metal 
amareilo,  e  branco,  e  de  pedras  de  cores  fermosas  (modo  de  fallar  seu, 
pêra  dizerem  ouro,  prata,  e  pedras  preciosas:)  que  as  agoas  do  rio  cor- 
rião  sobre  esses  mesmos  metaes,  e  com  elles  resplandecião  a  cada  passo 
seus  arredores,  montes,  e  valles  circunvizinhos :  e  que  em  sinal  disto,  tra- 
zião  aquelles  naturaes  por  ordinário  as  orellias  e  narizes  ornadas  com  pe- 
daços de  metal  amareilo,  que  derretião,  e  fazião  em  laminas;  e  que  do  bran- 
co fazião  certas  cunhas,  que  lhes  servião  em  lugar  de  machados  pêra  fen- 
der os  troncos  das  arvores. 

29  Dizião  mais,  que  as  agoas  do  rio  erão  fertilissimas  de  varias  castas 
de  pescado,  mas  mui  especial  de  tão  innumeravel  quantidade  de  peixes 
boyes,  e  tartarugas,  que  podião  aquelles  moradores  fazer  tamanhos  montes 
d"eUes,  e  d'ellas,  como  erão  as  mesmas  serranias  que  tinhão  explicado:  e 
que  na  mesma  conformidade,  erão  férteis  seus  arredores,  de  antas,  veados, 
porcos  monteses,  e  irmumeravel  outra  caça  montesinha. 

30  Que  as  nações  que  habitavão  a  circunferência  do  rio,  e  seus  grandes 
braços,  não  podião  contal-as,  não  só  pelos  dedos  das  mãos,  e  dos  pés,  por 
onde  costumão  contar,  mas  nem  ainda  com  os  seixos  da  praia:  c  indo  no- 
meando algumas  passavão  de  cento  e  cincoenta  só  asdelingoasdiíTerentes: 
e  fora  maior  a  multidão  de  gente,  a  não  ser  a  guerra  continua  e  insaciável, 
que  trazem  entre  si.  Dos  nomes  de  alginnas  (festas  nações  porei  exemplos; 
porém  será  á  margem  (*)  por  não  causar  fastio,  {)oi'que  seria  enfadonho  se 
quizesse  contar  todas  as  nações  d'estas  gentes.  Em  suas  guerras  contão  al- 
guns d'estes  hum  modo  gracioso,  de  que  usavão  os  menos  iwderosns,  quan- 
do qiierião  evitar  o  encontro;  que  como  ordinariamente  vivem  em  ilhas,  ou 
ribeiras  do  lio,  e  usão  de  canoas  mui  leves ;  no  tempo  em  que  hão  de  ser 

_  (•)  f.aganaris.  Miiriinés,  Ma|)iayjs,  Afiuinans,  lliiriinás.  Mariruás,  Samariiás,  Terariás,  Sigiiiáí, 
Gonapori»,  Mu|iiú:í,  YaRoararús,  Aturiariá,  M.iciigás,  Macipiás,  Andurás.  Safjuariis,  Maraimumás, 
íjanari»,  Cucliig«aiis,Cuniayri.s.  <juai|uiari.'»,  CiiriiLiirú»,  (iuataiieis,  Miituanis,  Curinqiieás  (estes  silo 
os  Kií,'anles  de  (jue  Ioro  dirénio->)  (laracanàs,  1'ocoaiuis,  IJrayaris,  fioarirú-!,  Ootorerianás.  Ororu- 
jiiiiús,  (iiiiiiacuinás.  Tuinámaiiiá.s,  Araí;oaiiaiiiás,  Marigiidanas,  Yariltaiás,  Yaievaj^iiarús.  (limiaru- 
vianis,  (I.Hiicoaris.  Yaiiumis,  Carapanari^,  (ioariarás,  Cagoás,  Aurabaiis,  Zurirús,  Anamari>.  (luina- 
más,  (Jiraiiaris,  Abacalií,  UrubuiiiiRás. 

VOI,.    I  111 


XLII  I IVRO  I  DAS  NOTICIAS 

acommetidos,  passão  â  outra  parte  do  rio,  e  logo  tomando  as  canoas  ás 
costas,  as  vão  esconder  em  algum  dos  muitos  lagos  que  ha  entro  as  mal- 
tas, e  fogem,  deixando  os  contrários  frustrados;  o  idos  estes,  toriiTío  a  res- 
tituir-se  a  suas  terras  com  as  mesmas  canoas. 

31  Dizião,  que  entre  as  nações  sobrediítas,  mora  vão  alginnns  monstruo- 
sas. Huma  he  de  anãos,  de  estatura  tão  pequena,  que  parecem  afronta  dos 
homens,  chamados  Goayazis.  Outra  he  de  casta  de  gente,  que  nasc^comos 
pés  às  avessas:  de  maneira,  que  (piem  houver  de  seguir  seu  caminho,  ha  de 
andar  ao  revés  do  que  vão  mostrando  as  pisadas :  chamão-se  estes  Matuyiis. 
Outra  nação  he  de  gigantes,  de  dezeseis  palmos  de  alto,  valentíssimos,  ador- 
nados de  pedaços  de  ouro  por  beiços  e  narizes,  aos  quaes  todos  os  ou- 
tros pagão  respeito:  tem  por  nome  Curinqueans.  Finalmente  que  ha  outra 
nação  de  mulheres  também  monstruosas  no  modo  de  viver  (são  as  que  ho- 
je chamamxos  Almazonas,  semelhantes  ás  da  antiguidade,  e  de  que  tomou  o 
nome  o  rio)  porque  são  mulheres  guerreiras,  que  vivem  per  si  sós,  sem 
commercio  de  homens:  habitão  grandes  povoações  de  huma  Província  in- 
teira, cultivando  as  terras,  sustentando-se  de  seus  próprios  trabalhos.  Vivem 
entre  grandes  montanhas:  são  mulheres  de  valor  conhecido,  que  sempre  se  hão 
conservado  sem  consorcio  ordinário  de  varões;  e  ainda  quando,  por  con- 
certo que  tem  entre  si,  vem  estes  certo  tempo  do  anno  a  suas  terras,  são 
recebidos  d^ellas  com  as  armas  nas  mãos,  que  são  arco,  e  frechas;  até  que 
certificadas  virem  de  paz,  deixando  elles  primeiro  as  armas,  acodem  cilas 
a  suas  canoas,  e  tomando  cada  qual  a  rede,  ou  cama  do  que  lhe  parece  me- 
lhor, a  leva  a  sua  casa,  e  com  ella  recebe  o  hospede,  aquelles  breves  dias, 
(}ue  ha  de  assistir :  depois  dos  quaes,  infallivelmente  se  tornão,  até  outro 
tempo  semelhante  do  anno  seguinte,  em  que  fazem  o  mesmo.  Crião  entre  si 
só  as  fêmeas  d"este  ajuntamento;  os  machos  matão,  ou  oseritregãoasmais 
piedosas  aos  pais  que  os  levem. 

32  Todas  estas  cousas  contavão  os  índios  aquelles  primeiros  descobri- 
dores: e  todas  ellas,  e  muito  maiores  descobrio  o  discurso  do  tempo.  Ve- 
jão-se  os  authores,  que  hoje  traltão  d'este  grande  rio,  tantas  vezes  depois 
navegado,  e  explorado  por  mandado  dos  Reis.  D"elle  fazem  menção  os  Geo- 
graplios  que  arrumam  as  partes  do  mundo:  Abraham  ilortelio,  Thcatrum 
orbis,  nas  taboas  do  Brasil:  e  fez  d"elle  hum  tratado  inteiro  o  Padre 
Chrislovão  da  Cunha,  da  Companhia  de  Jesu;  que  o  navegou,  e  explorou 
com  extraordinário  trabalho,  e  cuidado.  Tratta  delle  o  Padre  Affonso 
de  Ovalle  da  mesma  Companhia,  na  descripção  do  Reino  de  Chiilí,  lív.  4, 


DAS  COLSAS  DO  URASII.  XLIII 

cap.  Í2.  Varias  rclaçíjes  outras  live  diárias  em  meu  poder,  de  excursões, 
(jue  por  este  rio  fizerão  os  moradoi'es  da  Capitania  de  S.  Paulo;  e  lodos 
concordão,  e  dizorn  cousas  maravilhosas;  e  tão  grandes,  que  nenhum  pec- 
cado  commetíeriam  os  que  dissessem,  que  junto  a  este  rio  plantara  Deos  nos- 
so Senhor  o  Paraiso  terreal. 

33  Mas  como  estas  cousas  modernas  não  são  as  de  nosso  intento,  res- 
ta mostrar  agora  as  noticias  do  outro  grande  rio,  quasi  irmão  em  agoas,  e 
potencia,  chamado  da  Prata,  por  outro  nome  Paraguay  (*).  Dá  este  a  mão  ao 
Grão-Parã,  n"aquelle  grande  lago,  de  que  nascem,  como  já  dissemos :  ou 
seja  isto  em  sinal  da  conformidade  com  que  reinão,  ou  seja  como  dando  pa- 
lavra hum  ao  outro  da  resolução,  com  que  defendem  as  terras  do  Brasil. 
D"esta  mão  vai  formando-se  o  principal  dos  braços,  e  estendendo-se  por 
fermosas  campinas,  e  bosques  fertilissimos,  correndo  ao  Sul  de  doze  até 
vinte  e  quatro  grãos,  quasi  fronteiros  da  ilha  de  Santa  Catharina  ao  sertão: 
lugar  onde  se  acha  já  engrossado  o  tronco  de  seu  corpo  com  largura,  e  fun- 
do monstruoso,  pelo  continuo  e  liberal  tributo  das  agoas,  que  recebe  de  vários 
e  copiosos  rios,  quen'el!e  dcsembocão  por  espaço  tão  grande.  I)"esta  paragem 
vai  correndo  ao  mar,  e  desemboca  n"elle  entre  o  Promontório  de  Santa  Ma- 
ria, e  Cabo  branco,  ou  de  Santo  António,  cm  trinta  e  cinco  e  trinta  e  seis 
gráos  da  Equinocial  com  quarenta  legoas  de  boca,  e  com  tão  impetuosos 
vómitos,  que  lança  suas  agoas  (apesar  das  do  Oceano)  por  espaço  de  mui- 
tas legoas  da  praia,  tão  doces  como  as  da  própria  garganta ;  e  bebem  d'el- 
las  os  navegantes,  quando  ainda  não  avistão  terra  do  topo  dos  mostos  mais 
altos. 

34  Além  do  ditto,  tem  este  rio  outros  braços,  tantos,  e  taes  que  com 
razão  podemos  chamar-lhe  gigante  Briareo.  Com  alguns  d'esles  vai  penetran- 
do e  rodeando  mais  ao  interior  do  sertão,  ale  avizinhar-sc  a  pouca  distancia 
com  os  de  seu  confederado  o  Grão-Pará;  fazendo  com  elle  aquelle  cii"cuit0 
de  duas  mil  legoas,  que  acima  dissemos. 

3'i  Com  ser  mui  vasto  e  agigantado  seu  corpo  quando  vai  recolhido  á 
madre ;  he  muito  maior,  e  mais  fero  sem  comparação,  quando  a  tempos  sae 
fora  d"ella  (e  he  huma  vez  cada  anno:)  porque  cx)m  as  enchentes  do  sertão,  que 
vem  descendo  d'aí|ucllas  grandes  serranias  de  Chilli,  e  Porú,  qual  outro  mar, 
espraia  suas  agoas  tão  licencioso,  que  de  repente  toma  posse  de  campos,  se- 
menteiras, e  estancias  dos  homens  por  legoas  inteiras,  com  fúria  desusada. 

f.)  DVsli!  rio  vpjíiRp.  o  P.  Ovalle,  llist    fio  Cliilli.  liv.  iv,  f:\\>.  1 1  "— Abraham  Orlfilin,  Theairuin 

OrSis    na^  lahoas  do  Itio  P.-írnrM;.}'  --  J<)^r|i!i  rl,i  (losla.  dr  Nadiia  novi  Orbis.  liv,  n,  rap    fi  • 


XLIV  ÍAMKO  I  DAS  NOTICIAS 

De  cuja  condição  não  ignorantes  os  naturaes  da  terra,  estão  alerta;  e  tanto 
que  sentem  sinaes  de  sua  ira,  eml)arcão-se  a  toda  a  pressa  em  jangadas, 
que  sempre  tem  aparelhadas  pêra  este  effeíío,  a  modo  de  casas  portáteis ; 
n"ellas  fazem  sua  morada,  conservão  as  pessoas,  mantimentos,  e  alfaias, 
espaço  de  três  mezes,  que  ordinariamente  senhorea  a  inundação;  até  que 
tornando  a  recolher  suas  agoas,  tornão  também  os  moradores  a  suas  pri- 
meiras estancias. 

36  Por  estas  enchentes  em  especial,  parece  chamarão  os  índios  a  este 
grande  rio,  Paraguay;  ou  pela  semelhança  que  tem  com  o  Grão-Pará;  por- 
que abaixo  d'este,  a  nenhum  outro  do  mundo  cede.  Assi  o  julgam  já  hoje, 
os  que  tem  melhor  noticia  das  terras.  O  author  da  geographia  do  mundo,  in- 
titulada Theatrum  orbis,  na  taboa  dezenove  do  Paraguay,  diz  assi:  aPost 
fíuvium  Amazonum,  nulli  totius  terrarum  orhis  flumini  magnitiidine  cedit.y> 
Que  afora  o  rio  das  Almazonas,  a  nenhum  outro  do  orbe  cede.  Em  seu 
bojo  comprehende  muitas  e  grandes  ilhas,  todas  amenas,  e  enfeitadas  da 
natureza. 

37  Seus  arredores  são  fertilissimos,  campinas  estendidas,  até  cansar  os 
olhos,  capazes  de  searas,  vinhas,  frutaes,  e  de  toda  a  sorte  de  plantas,  ervas,  e 
flores  de  Europa;  e  de  tão  exhorbitante  copia  de  gado,  que  chega  a  não  ter 
estima  alguma.  Não  são  menores  as  riquezas  de  ouro,  prata,  e  pedraria, 
que  vem  descobrindo  suas  agoas  por  todos  seus  sertões.  Aqueíles  índios 
moradores  da  beiramar,  as  significavão  a  nossos  Cosmographos,  por  seus 
modos  toscos.  Mostravão-lhe  pedaços  de  ouro,  e  prata,  que  contratavão  com 
os  mais  interiores  da  terra :  e  afflrmavão,  que  d'aquGlles  metaes  fundião 
grandes  quantidades.  Contavão,  que  em  certa  paragem  d'aquelle  rio  mos- 
trava a  natureza  huma  cousa  monstruosa,  e  era  esta  hum  salto  altíssimo, 
ou  despenhadeiro,  donde  todas  aquellas  agoas  juntas  se  despenhãoemhum 
profundo  laga  medonho,  e  com  tão  espantoso  estrondo,  que'  faz  tremer  a 
todo  o  vivente,  e  perdem  o  tino  os  que  de  espaço  próximo  o  ouvem. 
Mostravão-lhes  arvores  inteiras  convertidas  em  pedra  por  virtude  das 
agoas  d'aquelle  rio:  certiíicavão-lhes,  que  todos  os  que  bebiam  d"ellas, 
andavão  isentos  de  humores  nocivos,  e  suas  vozes  limpas,  e  claras :  e  fi- 
'nalmente    que    erão    infinitas    as    nações,    que    habitavão    as    margens 

d'este  rio,  á  maneira  das  do  Grão-Parã.  Tudo  isto  referião  aquelles  índios 
aos  nossos  Cosmographos;  e  tudo  o  tempo,  descobridor  das  cousas, 
tem  mostrado  mais  claro.  Digão-no  hoje  os  Chillis,  as  Maldivas,  os  Po- 
tosis,  os  Perus,  e  os  mais  lugares  donde  se  tem  desentranhado  mais  quan- 


DAS  COUSAS  DO  BRASIL  XLV 

tidade  de  ouro  e  praia,  do  que  jamais  puderão  ajuntar  as  potencias  de  hum 
David,  e  de  hum  Salomão. 

38  Estas  são  em  Ijreve  as  noticias  toscas  e  summarias  dos  dous  gigan- 
tes dos  rios  do  Brasil,  e  Imperadores  sem  lisonja  de  todos  os  do  mundo; 
os  defensores  e  como  chaves,  e  balizas  de  todo  este  Estado.  Se  se  houve- 
rão  de  descrever  todos  os  outros  rios  d'esta  costa,  que  commummente  d"estes 
tem  descendência,  e  vem  do  sertão  com  poderosas  madres,  e  apressadas  agoas 
competir  com  o  mar,  serião  necessários  hvros  inteiros.  Basta  dizer,  que  todo  o 
sertão  está  feito  hum  bosque,  entretalhado  como  em  canteiros,  da  mesma  natu- 
reza, com  suas  agoas :  e  a  praia  toda  se  vê  autorizada  com  a  grandeza  e 
variedade  de  suas  bocas,  barras,  bahias,  enseadas,  e  alagoas;  fazendo  vista 
aprazível  aos  que  vem  de  mar  em  fora,  ou  nella  desembárcão :  passante 
de  duzentos  se  contão  como  mais  principaes,  todos  com  nomes  próprios,, 
e  todos  caudalosos,  e  com  tal  capacidade  de  recôncavos  abundantes  de  tudo 
o  necessário  pêra  a  vida  humana,  que  parece  se  poderião  alojar  só  n'esie 
Estado  os  homens  de  todo  o  universo.  De  alguns  d'estes  será  forçado  fazer 
-menção  na  leitura  seguinte. 

39  Corre  esta  espaçosa  praia  (segundo  notarão  nossos  Cosmographos) 
as  legoas  e  rumos  seguintes.  Desde  o  riacho  de  Vicente  Pinçon,  d"onde 
tem  seu  principio,  á  ponta  do  rio  Grão-Pará,  ou  Almazonas,  da  banda  do 
Loeste,  correm  quinze  legoas :  e  d'esta  á  ponta  do  Leste,  correm  as  legoas 
de  largura  do  rio,  que  segundo  mais  commum  parecer,  são  oitenta.  Da 
ponta  do  Leste,  que  íica  em  hum  gráo  da  l)anda  do  Sul,  vão  correndo  cin- 
coenta  e  oito  legoas  até  a  ponta  do  rio  Maranhão.  Está  o  rio  Maranhão  em 
altura  de  dous  gráos  da  linha :  he  hum  dos  fdhos  do  grão  rio  Pará :  tem 
dezesete  legoas  de  boca;  e  conforme  a  esta  he  o  corpo.  Não  me  detenho 
cm  suas  grandezas,  recôncavos,  e  ferieis  ribeiras;  que  vou  somente  mos- 
trando a  costa.  São  povoadas  as  terras  d'este  rio  do  gentio  Tapuya.  He 
navegável  muitas  legoas  pêra  o  sertão,  onde  abarca  fermosâs  ilhas,  cober- 
tas de  grande  arvoredo,  senhoreadas  dos  naturaes  da  terra.  Alguns  quise- 
rão  confundir  este  rio  com  o  das  Almazonas;  porém  sem  fundamento.  Corre 
a  costa  até  este  rio  Noroeste  Sueste,  e  toma  da  quait;»  do  Leste.  Entre  cllo 
e  o  das  Almazonas  ha  sete  rios  caudalosos. 

40  Da  [)onta  do  rio  Maranhão,  entrando  em  conta  as  dezesete  de  sua 
boca,  se  contão  noventa  o  quatro  legoas  até  ao  Rio  grande,  que  ciiamão 
dos  Tapuyas.  Está  este  em  dous  gráos,  pouco  mais,  e  desde  o  Maivuihãf) 
até  clle  coi're  a  costa  Leste  Oeste.  lie  poderoso  em  suas  agoas :  traz  seu 


\i.VI  -LIVRO  I  DAS  NOTICIAS 

nascimento  de  huma  alagoa  fermosa  do  viníe  legoas,  na  qual  aílirmão  os  na- 
taraes  ha  copia  de  preciosas  pérolas.  Todo  este  districto  até  este  rio,  ha- 
bita o  gentio  Tapuya,  gente  barbara,  tragadora  de  carne  humana,  amiga 
de  guerras,  e  treições :  e  por  isso  tratavão  com  elles  com  cautela,  nossos 
'^íxploradores. 

41  Do  Rio  grande  dos  Tapuyas  até  o  rio  Jagoaribi  vão  trinta  e  sete  le- 
goas. He  rio  de  poderosa  madre :  está  em  dous  gráos,  e  três  quartos.  Todo 
o  districto  d'esle  até  o  rio  chamado  Parahiba,  está  povoado  de  outra  na- 
ção de  gente,  chamada  Potigoar,  mais  bem  assombrada  que  a  dos  Tapuyas, 
e  menos  cautelosa. 

42  D"este  até  o  cabo  de  S.  Roque,  se  estende  a  costa  trinta  e  sete  le- 
goas. Está  em  altura  de  quatro  gráos,  e  hum  seismo  :  entre  o  qual  e  a  barra 
de  outro  rio  grande,  quatro  gráos  de  aUui'a,  ha  huma  fermosa  bahia,  em 
cujas  margens  se  acha  grande  quantidade  de  sal  feito  da  natureza.  Desde 
o  rio  Maranhão  até  este  Cabo  se  contão  outros  viníe  e  cinco  rios  caudaes. 

43  Do  Cabo  de  S.  Roque  vai  arqueando  a  ponta  mais  grossa  e  promi- 
nente,  que  lera  a  terra  do  Bi^asil,  em  giro  convexo  por  noventa  legoas,  até 
o  Cabo  de  Santo  Agostinho.  Está  este  em  oito  gráos  e  meio  da  Equinocial. 
E  na  distancia  d'estas  praias,  entre  cabo  e  cabo,  correm  ao  mar  treze  rios, 
entre  os  quaes  reina  o  rio  Parahiba,  por  outro  nome,  S.  Domingos,  onde 
por  tempos  se  veio  a  edificar  a  cidade  chamada  hoje  (do  mesmo  nome) 
Parahiba.  Está  este  rio  em  seis  gráos  e  três  quartos:  he  caudaloso;  vem  de  mui 
longe  do  sertão.  Todo  o  districto  do  Rio  grande  até  o  Parahiba  he  habitado 
da  nação  Potigoar,  que  com  os  Tapuyas  seus  comarcãos  trazem  intimas 
guerras.  Estes  Potigoares  tratavão  mais  liumanamente  com  os  nossos  Cos- 
mographos,  e  d'elles  houverão  grandes  segredos  de  seus  sertões.  Entra 
também  n"este  districto  o  rio  Bebiribe,  junto  ao  qual  vemos  fundada  a  villa 
do  Recife,  e  perto  d'eila  a  outra  de  Olinda. 

44  Do  Cabo  de  Santo  Agostinho,  até  o  fermoso  Rio  S.  Francisco, 
vai  correndo  a  costa  quarenta  e  duas  legoas,  Norte  e  Sul ;  e  desembocão 
n"ellas  dez  outros  rios :  porém  entre  elles  merece  ser  notado  o  que  cha- 
mamos S.  Francisco.  He  este  rio  hum  dos  mais  celebres  do  Brasil,  o  pri- 
mogénito d'aquelles  dois  primeiros,  e  como  marco  terceiro  do  meio  d'esta 
costa.  Está  em  altura  de  dez  gráos,  e  um  quarto.  He  copiosíssimo  em 
agoas,  desemboca  no  mar,  com  duas  legoas  de  largura,  com  tanta  violên- 
cia, que  bebem  d'ella3  os  mareantes  em  distancia  de  quatro  e  cinco  legoas 
antes  de  sua  barra.  Seu  nascimento  he  d'aquella  famosa  alagoa  feita  das 


DAS  COUSAS  DO  m-.ASIL  XI.Vll 

vorteutes  de  agoas  das  serranias  do  Cliilli,  e  Peru,  d  onde  dissemos  pro- 
redião  os  dois  principaes  rios,  Grão-Pará,  c  da  Prata.  São  seus  arredores 
fertilissimos,  e  por  este  respeito  forão  sempre  requestados  dos  índios,  que 
sobre  os  sitios  d"elles  trouxerão  entre  si  guerras  memoráveis ;  das  quaes 
contavão  grandes  successos  de  suas  armas,  áquelles  nossos  exploradores 
de  suas  terras,  que  folgavão  muito  de  ouvil-os,  e  ir  tirando  d'elles  as  cou- 
sas dignas  de  memoria,  que  desejavão  contar  a  seu  Rei  e  senhor.  Junto  á 
costa  da  banda  do  Norte  habita,  como  já  dissemos,  a  nação  Caeté:  da  banda 
do  Sul,  a  dos  Tupinambás :  pelo  rio  acima,  diversas  castas  de  Tapuyas: 
mais  pêra  o  sertão  Tupinaens,  Amoigpyras,  Ibirayaras,  Almazonas,  e  ou- 
tras, de  quem  dizião  os  índios  maritimos  que  se  ornavão  com  laminas  de 
ouro  (como  dissemos  dos  do  Grão-Pará)  por  dizer  que  erão  grandes  os 
thesouros  do  interior  daquelles  sertões.  He  navegável  este  rio  até  quarenta 
legoas  pela  terra  dentro :  no  fim  d'estas,  se  vè  precipitar  aquelle  mar  de 
agoas,  de  altura  medonha,  com  tão  grande  estrondo,  que  atroa  os  montes, 
e  ensurdece  a  gente :  cliamão  \-ulgarmente  a  este  precipício,  Cachoeira,  e 
a  outro  semelhante  que  faz  o  rio  Nilo,  despenhando-se  de  altissimos  mon- 
tes com  todas  as  suas  agoas,  chamarão  os  antiguos  Cataracta,  ouCatarrata. 
Desde  esta  Cachoeira  até  á  barra  se  contão  passante  de  trezentas  ilhas. 
Delia  (quehe  de  pedra  viva)  pêra  o  sertão,  se  podem  também  navegar  as 
agoas  d'este  rio,  se  lá  se  fizerem  accommodadas  embarcações,  até  chegai- 
ao  sumidouro,  que  dista  como  noventa  legoas  acima. 

45  lie  este  sumidouro  liuma  notável  invenção  com  que  sahio  a  natu- 
reza, porque  vai  sorvendo  todo  este  rio  com  suas  grandes  agoas  pelas  ca- 
vernas de  huma  furna  medonlia  subterrânea,  aonde  se  escondem  de  maneira, 
que  não  se  vê  mais  rasto  (relias,  se  não  quando,  depois  de  passadas  doze 
legoas,  lie  visto  tornar  a  rebentar  com  o  mesmo  brio,  e  poder  de  agoas. 
Fabula  foi,  que  o  rio  Aljilieo  se  introduzisse  por  debaixo  da  terra  em  busca 
da  fonte  Arelhusa.  O  que  alh  f(}i  fabula,  mini  he  i)ura  realidade  da  natu- 
reza, e  huma  monstruosidade  maior.  Do  sumidouro  pêra  cima  lie  da  mes- 
ma maneira  navegável,  fazendo-se  lá  embarcações :  c  com  effeito  fazem  os 
índios  alli  moradores  suas  costumadas  canoas,  de  que  se  servem  pêra  n'el- 
las  passar,  e  pescar.  Os  arvoredos  d'estas  ribeiras  vão-se  ás  nuvens;  tudo 
he  hum  bosque,  em  muitas  i)artes  tão  fecliado,  que  impede  o  ceo  e  a  luz. 

40  He  abundanlíi  de  páos  jireciosos,  especialmente  do  que  chamão  bra- 
sil: vecm-se  maltas  inteiras  desde  este  rio  até  o  rio  Parahiba,  o  he  o  mais 
íino  de  todo  o  Estado.  Tem  quaii! idade  d*^  caiiaíislolas,  ainda  que  bravias. 


xj.viir  i.ivno  i  das  noticias 

cujos  canudos  sâo  tão  grandes,  qne  basta  hnm  d'cllcs  a  dar  quantidade  de 
polpa  pêra  huma  valente  purga.  Suas  cam[)inas  vem  a  ser  outros  campos 
Elysios,  ameníssimas,  ferlilissimas  pêra  toda  a  sorte  de  gado ;  os  bosques 
abundantes  de  caça,  os  rios  de  pescaria,  e  a  terra  toda  de  mantimentos, 
e  frutas  brasílicas.  Foi  sempre  affamado  este  rio  entre  os  naturaes  (não  só 
até  o  tempo  em  que  contavão  estas  grandezas  a  aquelles  primeiros  Portu- 
gueses, mas  também  depois.)  Corre  por  terras  mineraes,  ricas  de  ouro, 
prata,  e  salitre;  e  tanto  mais,  quanto  mais  vão  entrando  ao  sertão.  Anda- 
dos os  tempos  forão  buscadas  estas  minas  por  mandado  de  alguns  Gover- 
nadores; mas  até  agora  não  achadas,  por  impedimento  das  nações  que  en- 
tremeião :  o  tempo  do  descobrimento  d'estas  riquezas  está  guardado  pêra 
quando  sabe  o  Auctor  da  natureza,  que  alli  as  criou.  Em  huma  enseada, 
junto  a  este  rio,  alguns  annos  depois,  succedeo  o  triste  desastre  do  naufrágio  do 
Bispo  D.  Pedro  Fernandes  Sardinha,  primeiro  do  Brasil,  que  dando  n'ella 
á  costa,  foi  cattivo  dos  índios  Caeíés,  cruéis,  e  deshumanos,  que  confor- 
me o  rito  de  sua  gentilidade,  sacrificarão  â  gula,  e  fizerão  pasto  de  seus 
ventres,  não  só  aquelle  santo  varão,  mas  também  a  cento  e  tantas  pessoas, 
gente  de  conta,  a  mais  d'ella  nobre,  que  lhe  fazião  companhia  voltando  ao 
Reino  de  Portugal.  Desde  o  rio  Grão-Parâ  até  o  de  S.  Francisco,  se  contão 
setenta  rios  caudalosos,  além  dos  que  aqui  toco :  dos  quaes  não  tratto,  por- 
que fora  larga  a  historia. 

47  Do  rio  S,  Francisco  corre  a  costa  setenta  legoas  até  á  ponta  do  Pa- 
drão da  Bahia  de  todos  os  Santos,  que  vem  a  ser  a  ponta  da  barra  da 
parte  do  Norte;  e  na  distancia  d'estas  setenta  legoas  fermoseão  as  praias  vinte 
rios  de  agoas  bellissimas ;  e  navegão-se  quasi  Norte  Sul.  D'estes  rios  os  mais 
affamados  vem  a  ser  o  rio  Sergy,  o  rio  Real,  e  o  rio  Itapucuru:  todos  três 
caudalosos,  e  todos  de  margens  fertilissimas,  especialmente  pêra  gado.  Erão 
mui  povoadas  suas  ribeiras,  por  causa  da  muita  fertilidade.  As  nações  que  se- 
nhoreavão  toda  esta  paragem  do  rio  S.  Francisco  até  á  Bahia,  ci-ão  princi- 
palmente Taboyarás,  Tupinambás,  e  Timiminós,  gente  toda  menos  agreste, 
de  mais  palavra,  e  fidelidade.  A  Baliia  de  todos  os  Santos,  se  houvéramos 
de  descrever  aqui  suas  grandezas,  largura  e  circunferência  de  suas  agoas, 
de  suas  ilhas,  de  seus  recôncavos,  e  dos  muitos  rios  caudalosos  que  des- 
cem a  pagar-lhe  tributo;  fora  cousa  mui  larga.  Baste  dizer,  que  esta  só 
parte  do  Brasil  com  seus  arredores,  he  capaz  de  hum  Reino.  Está  em  tre- 
ze gráos  escaços ;  sua  boca  tem  três  legoas  de  largo,  capaz  de  todas  as  ar- 
madas do  mundo.  Aqui  está  hoje  fundada  a  cidade  de  S.  Salvador,  cabeça 


DAS  COUSAS  DO  RRASII.  XLIX 

(lo  toílo  O  EsLado;  cuja  descripção  me  não  toca  por  ora,  que  vou  relatando 
S(')niente  o  estado  brutcsco  e  natural  das  cousas  que  virão  os  primeiros  ex- 
ploradores dos  Reis. 

48  Da  ponta  do  Padrão  da  Bahia  vão  correndo  as  praias  sessenta  le- 
goas  ao  Porto,  ou  Piio  de  Santa  Cruz.  Este  foi  o  lugar,  onde  desem.barcou 
o  capitão  Pedro  Alvares  Cabral,  quando  no  anno  de  1500  descobrio  o  Bra- 
sil, e  a  que  chamou  Porto  seguro.  Está  em  altura  de  dezeseis  grãos  e  meio; 
caminha  a  costa  desde  a  Bahia  quasi  Norte  Sal  até  o  Rio  Grande,  que  des- 
agoa  em  quinze  gráos  e  meio,  e  do  Rio  Grande  até  o  de  Santa  Cruz,  Nor- 
deste Sudoeste.  N'esta  distancia  desembocão  ao  mar  trinta  rios.  Os  prin- 
cipaes  são :  Jagoaripe,  Camamú,  Rio  de  S.  Jorge,  que  he  o  mesmo  que  dos 
Ilheos.  São  todos  rios  de  grossas  madres,  férteis  suas  agoas,  e  arredores. 
As  mattas  desde  o  Rio  das  Contas,  até  o  de  Santa  Cruz,  são  de  páos  pre- 
ciosos; especialmente  do  que  chamão  brasil. 

49  O  Rio  Grande  vem  de  mui  longe  do  sertão:  traz  copiosas  agoas, 
porque  se  mettem  n"el[e  quantidade  de  rios,  e  alagoas  grandes ;  tem  mais 
de  vinte  ilhas,  e  quarenta  legoas  do  mar  hum  sumidouro,  em  que  se  es- 
conde, qual  outro  Alpheo,  por  debaixo  da  terra  espaço  de  hunia  legoa,  no 
fim  da  qual  torna  a  apparecer:  e  d'este  sumidouro  para  cima  corre  com 
fundo  mais  notável  de  seis  e  sete  braças.  Achão-se  por  elle  grandes  minas 
de  pedraria,  segundo  então  informavão  os  índios:  e  logo  diremos  dos  Rios, 
Doce  e  das  Caravelas  (que  são  os  mesmos  seus  sertões.)  A  gente  que  po- 
voava então  a  terra,  era  huma  nação  de  Tupinaquis,  que  senlioreavão  a  cos- 
ta marítima  desde  o  rio  Camamú  até  o  rio  Quiricaré;  porque  o  sertão  se- 
nlioreavão nações  mais  terríveis,  e  assalvajadas,  de  Aimorés,  e  outros  Ta- 
puyas  semelhantes. 

50  Do  Rio  de  Santa  Cruz  até  o  Rio  Doce,  ha  distancia  de  quarenta  c 
cinco  legoas,  c  todas  estas  Norte  Sul.  Está  em  dezenove  gráos.  Tem  a  barra 
esparcelada  ao  mar  espaço  de  legoa  e  meia.  Traz  seu  nascimento  do  interior  do 
sertão,  precipilando-se  de  varias  cachoeiras,  e  correndo  quasi  Leste  Oeste  até 
chegar  ao  mar.  Recebe  em  si  vários  e  grossos  rios,  com  que  aiigmenta  suas 
agoas,  e  vem  fazendo  diversas  ilhas,  frescas,  e  habitáveis.  He  fértil  de  pes- 
carias, e  seus  arredores  de  caça. 

ol  Contavão  seus  naturaes  aos  nossos,  que  por  elle  arriba  se  descobrião 
grandes  riquezas:  e  davão  a  entender  por  seus  modos,  que  todo  aquelle 
tracto  de  terra  de  seus  sertões  era  huma  índia  Oriental  em  p(;draria.  E 
porque  vejamos  o  quão  bem  concordou  o  dillo  d"estes  índios  com  aex]ie- 


L  I.IVIIO  I  DAS  NOTICIAS 

riencia,  tresladarei  aqui  hum  roteiro  do  que  por  tempos  foi"ão  descobrindo 
os  Portugueses.  Por  este  mesmo  rio  subio  depois,  andados  alguns  tempos, 
hum  alentado  Portuguez,  por  nome  Sebastião  Fernandes  lourinho,  natural 
de  Porto  seguro,  com  outros  companheiros,  os  quaes  navegando  em  canoas 
até  onde  ajudou  a  maré,  entrarão  por  hum  braço  acima  chamado  Mandij,  e 
d'este  caminhando  pòr  terra  vinte  legoas  com  o  rosto  a  Loésudoeste,  fc- 
rão  dar  em  huma  alagoa,  a  que  o  gentio  chamava  Boca  do  Mandij,  grande, 
e  funda:  da  qual  nasce  hum  braço,  que  vai  entrar  no  Rio  Doce.  D'esta  ala- 
goa corre  o  rio  a  Loeste,  e  delle  a  quarenta  legoas  se  despenha  de  huma 
temerosa  cachoeira.  Andou  esta  gente  ao  longo  do  rio,  que  sahe  da  alagoa, 
melhor  de  trinta  legoas:  d'aqui  voltou  caminho  de  cpiarenta  dias  o  rosto  a 
Loeste,  e  no  fim  d>lles  chegou  a  hum  lugar,  onde  este  se  encorpora  com 
o  Rio  Doce  (dizem  que  andarião  n'estes  quarenta  dias  como  setlenta  le- 
goas.) 

52  Chegados  já  outra  vez  ao  Rio  Doce,  fizerão  alli  embarcações  de  casca  de 
arvores,  possantes  algumas  de  até  vinte  homens:  navegarão  com  estas  pela 
corrente  do  rio  acima  até  paragem  em  que  vai  meter-se  em  outro,  chama- 
do Aceci,  pelo  qual  subindo  quatro  legoas,  desembarcarão,  e  forão  por  terra 
rosto  ao  Noroeste  espaço  de  onze  dias,  e  atravessando  o  Aceci,  anda- 
rão mais  cincoenta  legoas  ao  longo  d'elle,  da  banda  do  Sul  trinta  d"ellas. 
Acjui  descobrirão  então  vários  mineraes  de  pedras  verdoengas,  que  tomavão 
de  azul,  e  parecem  turquescas:  é  lhes  alBrmou  o  gentio  circunvizinho  que 
no  alto  do  monte  se  descobrião  pedras  de  mais  fino  azul;  e  que  outro  ha- 
via, que  linha  em  si  copia  de  metal  amarello  (assi  chamão  o  ouro  ) 

53  Ao  passar  do  Aceci  a  derradeira  vez,  distancia  de  cinco,  ou  seis  le- 
goas pêra  a  banda  do  Norte,  descobrio  Sebastião  Fernandes  huma  gran- 
de e  fermosa  pedreira  de  esmeraldas,  e  outra  de  saphiras,  que  estão  junto 
a  huma  alagoa :  e  sessenta  ou  settenta  legoas  da  barra  do  Rio  Doce  pêra  o  sertão 
ao  redor  do  mesmo  rio,  vierão  a  dar  com  humas  serras  cheias  de  arvoredo,  onde 
também,  acharão  pedras  verdes.  Correndo  mais  acima  quatro  ou  cinco  legoas 
pêra  a  parte  do  Sul,  derão  em  outra  serra,  onde  lhes  aílirmou  o  gentio 
havia  pedras  verdes,  e  vermelhas  de  comprimento  de  hum  dedo,  e  outras 
azues,  todas  resplandecentes.  D  "esta  serra  correndo  ao  Leste  pouco  mais 
de  legoa,  derão  em  outra  de  fino  crystal,  que  cria  em  si  esmeraldas,  e  jun- 
tamente pedra?  azues. 

5i  Estas  informações  levou  contente  este  Portuguez  Sebastião  Fernan- 
des lourinho  ao  Governador  do  Brasil,  quarto  em  ordem,  Luis  de  Brito  de 


DAS  COrSAS  no  lUlASlI.  ti 

Almeida:  e  foi  occasião  porá  logo  Iratar  de  outra  entrada,  em  que  mandou 
o  Capitão  António  Dias  Adorno,  pêra  que  descobrisse  mais  em  forma  tão 
grande  empresa.  Partio  esto  com  cento  e  cincoenta  Portugueses,  e  quatro- 
centos índios,  e  com  eíTeito  chegou  ao  pé  da  serra  da  banda  do  Leste,  e 
achou  n'ella  as  esmeraldas;  e  da  banda  do  Loesíe  saphiras:  humas  e  ou- 
tras nascião  em  crystal,  e  trouxe  d"cllas  grande  quantidade,  algumas  mui 
grandes,  porém  somenos.  Presume-se  que  debaixo  da  terra  as  haverá  mais 
fmas.  Em  varias  paragens  encontrou  esta  tropa  pedras  de  peso  desusado, 
que  affirm.avão  terem  ouro  e  prata. 

55  Com  esle  achado  se  foi  recolhendo  ao  mar  esta  gente  pelo  Rio  Gran- 
de abaixo,  e  o  Capitão  António  Dias  Adorno  com  parte  dos  companheiros 
caminhou  por  terra,  talando  as  brenhas,  e  atravessando  naç(5es  de  índios 
varias;  Tupinães,  Tupinambás,  e  outras:  teve  com  ellas  grandes  encontros, 
até  chegar  á  Baliia,  onde  deu  conta  de  tudo  o  succedido,  e  entregou  ao 
Governador  os  haveres  cpie  achara.  Diversas  outras  vezes  se  peneírtárão  estes 
sertões,  em  busca  especialmente  d"aquellas  esmeraldas.  Hum  Diogo  Martins 
Cão,  o  Matante  negro  por  alcunha,  foi  o  prim.eiro  depois  dos  Capitães  referi- 
dos. E  depois  d'este,  o  Capitão  Marcos  de  Azeredo  Coutinho,  que  trouxe 
quantidade  considerável  d'ellas.  E  por  diversos  outros  tempos  fizerão  a  mes- 
ma jornada  seus  filhos,  c  outras  pessoas;  porém  sem  effeito,  por  terem  os 
tempos  cegado  os  caminhos,  crescendo  as  mattas,  e  escondendo  aos  homens 
estas  riquezas.  Agora  quando  isto  escrevemos  prepara  huma  grande  entrada  o 
General  Salvador  Corrêa  de  Sá  e  Benavides,  e  se  esperão  d"ella  boas  venturas. 
As  nações  que  dominão  o  sertão  d"estas  minas,  são  todas  de  Tapuyas,  Pata- 
chos, Aturaris,  Puris,  Aimorés,  e  outras  semelhantes,  toda  gente  agreste, 
porém  toda  hoje  de  paz.  Dos  Aimorés  são  tão  brancos  alguns  como  Portu- 
gueses. 

56  No  entremeio  das  quarenta  e  cinco  legoas  atraz,  ha  nesta  costa  vinte 
rios:  hum  dos  principaes  he  o  Rio  das  Caravelas.  Está  em  altura  de  dezoito 
gráos:  he  copioso,  tem  na  boca  atravessada  huma  illia  de  grandeza  de  hu- 
ma legoa,  que  causa  n'clla  duas  barras.  Suas  praias  abundão  de  thesouros 
do  dinheiro  do  Reino  de  Angola,  que  chamão  zimbo:  suas  margens  são  fer- 
ieis e  espaçosas,  traz  sua  corrente  do  mais  interior  do  sertão.  Aííirmavão 
os  índios,  que  guiava  pêra  grandes  haveres:  mostrou  o  eíTeito  na  entrada  do 
Capitão  António  Dias,  e  companheiros,  que  pela  corrente  d'este  rio  arriba 
navegarão  até  acharem  as  minas,  que  já  dissemos.  Outro  notável  rio  he  o 
a  que  cliamão  Quiricaré:  está  em  dezoito  gráos  o  Ires  quartos:  hcmuifer- 


LII  LIVRO   I   DAS   NOTICIAS 

til:  nasce  do  interior  do  sertão,  recebendo  em  si  grossos  braços,  qae  o  en- 
riquecem de  agoas.  Porém  eu  não  me  detenho  n'estas  grandezas:  que  só 
quero  mostrar  a  extensão,  fermosura,  e  rumos  da  costa.  Desde  o  Camamú 
até  este  rio  senhoreava  a  nação  do  gentio  cliamado  Tupinaqui,  de  que  já 
dissemos,  que  n'este  tempo  trazia  grandes  guerras  com  Tupinambás,  Ai- 
morés, tragadores  de  gente,  e  sobre  todos  atreiçoados. 

57  Do  Rio  Doce  até  o  Cabo  Frio  he  outra  porção  de  oitenta  legoas,  e 
quasi  todas  Norte  Sul,  exceptas  oito.  H6  Gabo  Frio  paragem  notável  em  to- 
da a  costa :  está  em  altura  de  vinte  e  três  gráos:  tem  junto  a  si  hum  saco, 
ou  bahia,  obra  particular  da  natureza,  cavada  como  de  propósito  entre  o 
duro  de  huma  penedia,  que  lhe  serve  de  muro  e  fortaleza  em  sua  entrada: 
está  lançada  ao  comprido;  he  capaz  de  grandes  Armadas,  que  ficão  dentro  co- 
mo em  huma  casa,  defendidas  de  todas  as  injurias  dos  ventos,  com  huma  só 
barra  pêra  o  mar.  As  agoas  doesta,  desde  Janeiro  até  ao  fim  do  mez  de 
Fevereiro,  se  vem  coalhadas  em  suas  margens  e  seios  mais  secretos,  e 
transformadas  em  perfeito  sal,  em  tanta  quantidade,  que  basta  a  carregar 
muitas,  e  grandes  náos. 

58  Ha  n'este  pedaço  de  costa  vinte  e  quatro  rios.  Podéra  dizer  muito 
das  grandezas  que  d  elles  contavão  os  índios  aos  nossos.  Dizião,  que  desde 
o  Rio  Doce  até  Cabo  Frio  todas  as  mattas  erão  preciosas  de  páo  brasil,  ja- 
carandá, copaigbas,  páo  rei,  bálsamos  finos,  cheirosíssimos,  medicinaes :  e 
tudo  em  tanta  quantidade,  que  poderão  carregar-se  as  náos  de  Euro- 
pa toda.  Dizião,  que  havia  hum  rio  entre  estes,  de  terras  férteis,  e  abun- 
dantes sobre  todas,  cobiçado  dos  índios,  por  essa  razão v  e  por  ser  defen- 
sável sobre  maneira  contra  seus  inimigos;  cercado  de  penedia  medonha. 
Era  este  o  rio,  que  hoje  chamamos  do  Espirito  santo:  está  em  altura  de 
vinte  gráos  e  um  terço,  abre  em  boca  cousa  de  meia  legoa;  e  tem  em  si  a 
villa,  que  toma  o  nome  do  mesmo  rio.  He  defensável  por  extremo;  porque 
de  huma  e  outra  parte  servem  de  praias  muralhas  altíssimas  de  penedia 
tosca  da  natureza,  assombro  de  inimigos. 

59  Gabaváo  mais  os  índios  a  bondade  dos  arredores  de  outro  rio,  cha- 
mado Parahiba;  cuja  corrente  desce  de  mui  longe  das  montanhas  de  Pirati- 
ninga  da  banda  do  sertão ;  e  como  acha  o  impedimento  dos  mesmos  mon- 
tes, atravessando  mais  de  noventa  legoas  do  sertão,  vem  desembocar  ao 
mar,  onde  à  natureza  lhe  concedeo  sabida;  em  altura  de  vinte  e  hum  gráos 
e  três  quartos.  Faz  grande  numero  de  ilhas  de  maçape  finíssimo,  cobertas 

arvoredo,  deque  sobe  ao  ceo.  Podéra  d'aquella  barra  pêra  dentro  fundar- 


DAS  COUSAS  DO  BRASIL  LIII 

se  hum  Reino,  a  ser  ella  capaz  de  embarcações  maiores.  Todo  o  districto 
que  corre  de  Reritygba  (outro  rio  distante  quinze  legoas  do  Espirito  santo) 
ao  Sul,  até  o  Cabo  de  S.  Tliomô,  era  senhoreado  de  três  nações  de  gente 
selvagem,  que  convínhão  em  género  Goaitacamopi,  Goaitacáguaçu,  Goaita- 
cajacoritó,  que  andavão  em  continuas  guerras,  e  se  comião  huns  aos  outros, 
com  mais  vontade,  que  as  feras  da  caça;  habitavão  humas  campinas,  cha- 
madas de  seu  nome,  e  poderão  chamar-se  Campos  Elysios,  na  fermosura, 
grandeza,  e  fertiUdade.  D'estes  pêra  o  sertão  habitavão  castas  de  gente  in- 
numeraveis,  Tapuyas  todos,  e  todos  intratáveis:  porém  pela  pela  parte  ma- 
ritima  partia  o  gentio  Goaitacá  com  os  Tamoyos  da  banda  do  Sul,  e  da  ban- 
da do  Norte  com  Tobayarás,  e  Tupinaquis,  com  quem  tri5izião  guerra. 

60  Do  Cabo  Frio,  dezoito  legoas  Leste  Oeste,  está  o  rio,  ou  enseada, 
a  que  os  índios  cbamavão  Nhiteroi,  e  nós  depois  chamámos  Rio  de  Janei- 
ro, em  altura  de  vinte  e  três  gráos.  He  huma  bahia  espaçosa  de  oito  le- 
goas de  diâmetro,  e  vinte  e  quatro  de  circunferência :  limpa,  segura,  e  on- 
de podem  alojar-se  todas  as  armadas  de  Portugal;  emula  da  de  Todos 
os  Santos:  cujos  recôncavos,  ilhas,  rios,  saccos,  enseadas,  se  quiséramos 
aqui  descrever,  seria  sahir  de  nosso  intento:  fique  só  ditto,  que  he  esta 
aquella  enseada,  a  quem  por  tempos  coube  por  sorte  que  fosse  n"ella  edi- 
ficada a  nobre  cidade  do  Rio  de  Janeiro. 

61  Correndo  avante  quarenta  e  duas  legoas,  descobre-se  a  barra  do 
Rio  S.  Vicente.  Está  em  altura  de  vinte  e  quatro  gráos  e  meio:  navega-se  a 
ella  Lésnordeste  Oéssuducste,  desde  a  Ilha  grande;  he  porto  capaz  de  todas 
as  náos.  Aq'ii  se  edificou  a  villa,  que  hoje  chamamos  S.  Vicente,  cabeça 
da  Capitania  de  Martim  AíTonso  de  Sousa.  Divide-se  esta  da  de  Santo  Ama- 
ro (que  foi  de  seu  irmão  Pedro  Lopes  de  Sousa)  mediante  o  esteiro  da 
villa  de  Santos.  Ha  n'esta  costa  muitas  ilhas,  algumas  de  conta:  trinta  rios 
de  agoas  puras,  d:is  melhores  do  mundo;  ponjue  vem  muitos  d^elles  des- 
penhados de  altas  serras,  e  por  entre  espessos  arvoredos,  sempre  frias. 
AlTirmavão  os  índios,  que  os  mais  dos  rios  d'este  districto  erão  copiosos  mi- 
neraes  do  ouro,  prata,  fíirro,  calaim,  <;  salitre,  até  o  Rio  Cananéa:  e  dista 
este  de  S.  Vicente  trinta  legoas,  quasi  Nordeste  Sudoeste.  Está  cm  altura  de 
vinte  cinco  gráos  e  meio:  he  abundante  todo  seu  districto  de  copiosas  ala- 
goas,  e  rios  ferieis  de  pescado,  c  a  terra  de  caça,  c  todo  o  género  de  man- 
timento brasílico.  Tem  grande  boca,  e  d'ella  pêra  dentro  huma  fermosa 
abra,  capaz  do,  toda  a  sorte  de  navios;  <•,  a(é  :iqni  chegão  hoje  as  povoações 
dos  Portugueses. 


Liy  LIVRO  I  DAS  NOTICIAS 

G2  Do  Rio  Cananêa  ao  Rio  da  Prata  vai  outra  fermosa  parte  da  terra 
do  Brasil  com  duzentas  legoas  por  costa,  que  compreliende  cousas  grandes, 
em  que  não  posso  deter-me :  porém  era  summa.  tem  vinte  rios  caudalosos 
estas  ultimas  praias.  Hum  dos  principaes  he  o  Rio  S.  Francisco:  está  em 
vinte  e  seis  gráos  e  dous  terços ;  tem  na  boca  três  ilhas :  he  capaz  de  na- 
vios ordinários,  muito  manso,  de  grandes  pescarias :  seus  arredores  férteis 
de  caça,  e  aptos  pêra  toda  a  planta  brasílica.  He  povoado  de  índios  Cari- 
jós, a  melhor  nação  do  Brasil. 

63  Outro  he  o  Rio  que  chamão  dos  Patos,  em  toda  a  costa  celebre.  Es- 
.tá  em  altura  de  vinte  e  oito  gráos;  he  mui  caudaloso;  a  que  pagão  tributo 
outros  menores.  ■Tem  por  fronteira  á  sua  barra  a  ilha  de  Santa  Catharina, 
que  vai  fazendo  abrigo  á  terra  a  modo  de  huma  fermosa  enseada,  de  com- 
primento de  oito  até  dez  legoas;  fertilissima,  coberta  de  arvoredo,  retalha- 
da de  correntes  de  agoas,  povoada  de  feras  somente,  e  em  tanta  quantida- 
de de  veados,  que  parece  coutada  de  algum  grande  Rei;  e  se  não  forão  os  ti- 
gres que  os  comem,  serão  infinitos.  Parece  hmn  viveiro  de  peixe  e  marisco 
pêra  todo  o  tempo,  c  de  toda  a  sorte.  D'aqui  dizem  foi  levado  aquelle  casco 
de  ostra,  no  qual  hum  Capitão  de  S.  Vicente  mandou  lavar  os  pés  a  hum 
Bispo  era  lugar  de  bacia,  pêra  que  desse  credito  ás  cousas  doesta  ilha.  E  o 
que  he  mais,  que  doestas  ostras  se  tiram  pérolas  ferraosas,  perfeitissiraas. 
Na  bahia  que  faz  entre  si,  e  a  terra  firme,  tem  grandes  surgidouros  pêra 
navios  de  qualquer  porte.  He  o  Rio  dos  Patos  fertilissimo,  e  abundantíssi- 
mas suas  terras,  e  por  isso  requestadas  dos  índios.  Este  fica  sendo  o  ter- 
mo do  districto  dos  Carijós,  que  correm  desde  o  rio  Cananêa,  onde  tem 
principio,  e  trazem  guerras  intestinas  com  os  Goaynás.  Dos  Carijós  pudera 
dizer  muito,  acerca  de  seus  ritos,  costumes  e  modos  de  viver;  porém  pre- 
tendo brevidade;  e  só  digo  agora,  que  he  a  mais  docíl,  e  accommodada 
nação  de  toda  esta  costa,  e  sobre  tudo  singular  em  não  comer  carne  hu- 
mana. 

64  D'esíe  rio  andadas  vinte  legoas,  se  vè  aquelle,  que  por  antonomásia 
chamarão  Alagoa,  cujas  bondades,  e  fertilidade  não  são  doeste  lugar.  He 
terra  toda  de  ferraosas  campinas,  que  apascentão  os  olhos  com  infinidade 
de  gado,  tal,  que  podéra  elle  só  sustentar  o  Brasil  todo.  He  possuída  da 
nação  dos  Tapuyas,  e  poderão  ser  povoações  mui  abundantes  de  gente  Por- 
tuguesa. Segue-se  além  d'esta  Alagoa  por  vinte  e  duas  legoos  o  Rio  de  Mar- 
tim  Alíonso.  Está  este  em  trinta  gráos  e  hum  quarto.  Chama-se  assi,  por- 
que nelíe  sahio  em  terra  o  Capitão  Martim  Affonso  de  Sousa,  quando  liia 


DAS  COISAS   DO   BUASIL  LV 

descobrindo  a  costa  atè  o  Rio  da  Prata,  c  deste  Capitão  tomou  o  rio 
nome. 

05  D'aqui  em  diante  até  o  Rio  da  Prata  seguem-se  as  campinas  já  dit- 
las,  cheias  de  immensidade  de  gado,  caça,  cavallos,  porcos  monteses,  e  mui- 
tos outros  géneros,  que  andão  a  bandos;  e  na  mesma  forma,  multidão  de 
espécies  de  fermosas  aves.  São  retalhadas  estas  campinas  de  ribeiras  de 
agoa,  e  adornadas  de  reboleiras  de  arvoredo,  que  as  fazem  vistosas,  e 
habitação  aprazível  pêra  a  vida  humana :  e  tudo  goza  a  nação  já  ditta  dos 
Tapuyas,  desde  o  fértil  Rio  dos  Patos,  até  á  boca  do  grão  Rio  da  Prata. 
Verdade  he,  que  são  estes  Tapuyas  genle  mais  domestica,  e  também  sin- 
gulares commummente  em  não  comer  carne  humana. 

66  Chegados  por  fira  nossos  exploradores  á  barra  d'este  rio,  que  admi- 
rarão, altura  de  trinta  e  seis  grãos,  em  luima  ilha  que  lhe  fica  á  parte  do  Nor- 
te, e  chamão  de  Maldonado,  metterão  marco,  com  as  armas  d"El-Rei  seu  se- 
nhor. E  por  aqui  temos  visto  a  costa  toda  do  Brasil  de  mil  ecincoenta  legoas, 
mais  ou  menos,  segundo  o  computo  de  vários,  pelo  que  estamos  de  posse.  Po- 
rém como  a  linlia  que  corta  o  sertão  (como  no  principio  dissemos)  vá  sahir  mais 
avante  junto  á  bahia  de  S.  Mathias,  corre  mais  a  terra  do  Brasil  da  boca  do 
Rio  da  Prata  cento  e  setenta  legoas  ao  Sul,  segundo  a  opinião  dos  que  conce- 
dem quarenta  e  cinco  gráos,  especialmente  do  Doutor  Pêro  Nunes,  Cosmo- 
grapho  d"El-Rei  D.  Sebastião,  o  mais  insigne  de  seus  tempos:  e  na  ultima 
ponta  da  bahia  de  S.  Mathias,  na  terra  que  chamão  do  marco,  he  tradição  se 
metteo  o  de  nossas  armas  de  Portugal ;  c  vem  a  ficar  em  quarenta  c  (juatro 
porá  quarenta  e  cinco  gráos  de  altura. 

67  Não  podião  deixar  de  ser  agradáveis  tios  Reis  sereníssimos  D.  Ma- 
nuel, e  D.  João  IIÍ,  as  relações  de  seus  Capitães,  e  Cosmographos,  assi  co- 
mo liião  ouvindo  d'elles  a  descripção  de  tão  lérmosa  costa,  de  tantos,  e  tão 
lennosos  rios,  portos,  bahias,  cabos,  enseadas,  e  todos  demarcados  em  pos- 
se pacifica  pela  Coroa  de  Portugal.  Porém  não  pararão  aqui  as  informações 
do  que  virão;  adiante  passarão,  dando  conta  daquellas  prodigiosas  monta- 
nhas, que  acima  dissemos  lhes  avuUavão  de  niiw  em  fora:  e  não  era  razão 
ficasse  em  silencio  cousa  tão  nota\el,  c  a  primeira  que  virão  n'estas  partes. 
Estas  montanhas  descrevemos  por  extenso  na  Historia  da  vida  do  Venerá- 
vel Padre  João  de  Almeida,  no  livro  4."  i)or  todo  o  capitulo  i2,  ;j,  e  4:  pe- 
io que  trataremos  somente  aqui  do  que  vírSo  aquelles  exploradores,  quan- 
to ás  apparencias  externas,  que  de  força  pede  a  historia. 

HR    (>)nieção  a  apparecer  estas  montanhas  aos  que  vão  correndo  a  costa, 


J.VI  LIVRO   I   DAS   NOTICIAS 

da  Capitama  dos  Ilheos  pêra  o  Sul.  Tem  seu  principio  poucas  legoas  an- 
dadas do  sitio  da  villa  de  S.  Jorge,  aonde  cliauião  as  serras  dos  Aimorés, 
por  outro  nome  as  Goaitarácas ;  e  vão  correndo  d"aqui  continuadas  todas 
como  por  corda,  por  toda  a  costa  do  Brasil,  á  vista  sempre  dos  navegan- 
tes, ora  metidas  mais  no  sertão  cousa  de  oito,  dez,  ou  quinze  legoas,  ora 
sobranceiras  ao  mesmo  mar,  que  em  paragens  lhes  lava  os  pés  caminhan- 
do quasi  até  o  Rio  da  Prata;  que  vem  a  ser  de  comprimento  passante  de 
quatrocentas  legoas.  Onde  parece  descansou  a  natureza  hum  pouco,  e  tor- 
nou logo  a  continuar  com  a  fabrica  d'esta  maquina  íiUal  do  terreno,  cor- 
rendo com  ellas  na  mesma  direitura  (passado  como  por  salto  aquelle  gran- 
de rio)  pelos  Reinos  de  ChiUi,  Quito,  Peru,  e  Granada,  por  espaço  de  mais 
de  mil  legoas,  além  das  nossas  quatrocentas.  E  esta  he  aquella  aífamada  cordi- 
lheira, assi  chamada  dos  Castelhanos,  da  qual  fazem  menção  António  Herrera  na 
Historia  das  índias,  tom.  3,  década  5,  e  o  Padre  Affonso  de  Ovalle  da 
Companhia  de  Jesu,  na  Historia  de  Chilli,  livro  i,  do  capitulo  5  por  dian- 
te. Tratem  aquelles  embora  da  parte  que  lhes  toca,  que  nós  tratamos  aqui 
do  que  cabe  ás  nossas  quatrocentas  legoas,  que  não  são  menos  prodigiosas. 

69  A  immensa  altura  d'estes  informes  montes,  he  semelhante  propor- 
cionalmente a  seu  comprimento;  parece  querem  competir  com  o  Ceo:  nem 
Pyrinéos,  nem  Alpes,  nem  outros  que  saibamos,  podem  correr  parelha  com 
elles ;  as  nuvens  íicão-lhes  servindo  de  faxa,  que  cingem  pelo  meio  aquel- 
les grandes  corpos,  ficando  a  parte  superior  isenta  dos  vapores,  e  exhala- 
ções  terrenas.  Os  que  sobem  a  elles,  pisão  nuvens  do  meio  por  diante :  e 
quando  chegão  ao  cume.  parece-lhes  andarem  sobre  a  terra  as  mesmas  nu- 
vens; as  chuvas,  os  ventos,  tis  tempestades,  os  arcos  da  íris,  exhalações, 
e  impressões  meteorológicas,  tudo  estão  vendo  de  cima  superiores,  gozan- 
do elles  no  mesmo  tempo  Sol,  e  bonança:  ficão  como  em  outro  mundo,  c 
como  isentos  da  jurisdição  dos  tempos;  qual  do  cume  do  monte  Olympo 
cantão  os  Poetas.  He  certo  occasião  pêra  louvar  ao  Criador,  pôr  alli  os  olhos 
no  Ceo,  que  como  então  se  vê  mais  livre  dos  impedimentos  que  soem  en- 
cobril-o,  apparece  mais  puro  e  fermoso.  Quando  vão  desenfaixando-se  as 
nuvens,  e  enxergando-se  entre  ellas  os  meios  corpos,  que  estavão  cobertos, 
he  cousa  de  grande  recreação  ir  vendo  do  mar  aquelles  agigantados  cumes 
as  figuras  e  apparencias  que  formão  de  serpentes,  gigantes,  cavallos,  leões, 
cidades,  castellos  e  torres  que  arrebatão  a  vista  aos  navegantes:  e  com 
mais  razão  o  farião  aos  exploradores  reaes,  novos  nas  taes  visões. 

70  Levava  os  olhos  sobre  tudo  aos  nossos  hospedes  ver  brotar  so- 


DAS    COUSAS    DO    Df.ASlL  LVH 

bre  aquelles  cumes  allissimos,  e  sobre  aquella  fragosa  penedia,  copia  í,Tan- 
(lissima  de  agoas  crystalinas,  que  arrebentando  em  fontes,  juntas  depois 
em  caudalosos  rios,  com  sua  coiTcnte  ]irecipitada,  e  com  estrondo  fu- 
rioso, vem  açoutando  os  penedos,  até  pagar  tributo  ao  mar.  De  Icnga 
distancia  ouvião  os  ruidos  de  suas  agoas,  lastimadas,  e  como  queixosas 
das  quebras  que  sentião  em  a  desigualdade  dos  penedos.  Deixáriío  por 
estas,  suas  agoas,  as  Musas  do  Parnaso,  em  caso  que  ti  verão  noticias 
d'ellas. 

71  Estas  externas  apparencias,  virão  os  exploradores  somente,  e  só  com 
ellas  ficarão  admirados:  que  farião,  se  vissem  seus  inferiores?  se  pene- 
trarão aquellas  maltas  solitárias,  e  virão  a  multidão  de  feras,  que  por 
alli  se  crião,  isentas  das  treições  da  gente  humana?  Canrarião  de  contar 
suas  espécies  somente.  Ilumas  verião  de  animaes  nocivos,  tigres,  onças, 
gatos  silvestres,  serpentes,  cobras,  crocodillos,  raposas.  Outras  do  ani- 
maes de  caça,  antas,  veados,  porcos  montezes,  e  aquários,  pacas,  tatus, 
tamanduás,  lebres,  coelhos,  e  estes  de  cinco  ou  seis  espécies.  Outras  de 
animaes  de  gosto,  e  recreação,  monos,  macacos,  bugios,  saguins,  pregui- 
ças, cotias,  e  outras  espécies  sem  conto.  Yerião  aves  as  mais  fermosas.  o 
numerosas,  que  se  vêm  em  outra  alguma  parte  do  mundo.  Só  seus  nomes 
sem  outra  descripção  lhes  gastaria  muito  papel;  [admiráveis  em  variedade, 
pennas,  cores,  e  formosura. 

72  Verião  seus  grandes  arvoredos,  espessas  matlas  que  sobem  ás  nu- 
vens, e  encobrem  o  Ceo:  a  grossura  monstruosa  de  seus  antiguos  troncos: 
a  variedade  de  suas  preciosas  espécies,  as  melhores  de  todo  o  Universo, 
dos  cedros,  vinhaticos,  jacarandás,  páos  reis,  páos  brasis,  vermelhos  e  ama- 
rellos,  bálsamos,  copaigbas,  almougas,  ibicuigbas,  ou  noz  noscadas,  o  ou- 
tras espécies  innumeraveis  de  páos  reaes,  preciosos.  1)>*  ervas  cheirosas  e 
medicinaes,  são  suas  espécies  sem  conto:  depositou  a  natureza  n"estas  mon- 
tanhas hum  Ihesouro  de  remédios  humanos  do  poucos  conhecido.  Verião 
finalmente  os  mineraes  de  pedras  finas,  forro,  chumbo,  calaim,  praia  e  ou- 
ro, de  seus  serros,  vargens,  arredores,  e  rios,  ({ue  podem  comparar-se  á 
mesma  índia,  Potosi,  M:íldivia,  e  I^ei-ú.  O  tempo,  descobridor  das  cousas, 
tem  mostrado  grande  parle  de  todas ;  e  os  séculos  ({ue  erilrarom  virão  a 
mostrar  mais.  Tudo  isto  verião  os  exploi-adoros,  se  então  llie  foi'a  {)ossi- 
vel  penetrar  estas  in)monsas  maltas:  porém  do  (\v,{\  virão,  e  do  (|uo  ouvi- 
rão aos  índios,  linhão  bem  (jiie  contar  a  s;mis  Heis.  Não  será  i.piii  coiiilu 
do  passar  em  silencio  algumas  perguntas  de  curiosidade,  qnr'  or,  cxiflrira- 

vor.  I  IV 


LVIII  LIVRO  I  DAS  NOTICIAS 

dores  tratarão  com  os  índios,  em  quanto  andavão  correndo  sua  costa :  por 
que  contém  diíTiculdades  dignas  de  se  saber.  Vião  aquelles  Capitães  e  Cos- 
mograplios  a  feniiosura,  e  varia  compostura  das  terras,  campos,  montes, 
arvoredos,  aves,  animaes,  peixes,  e  a  multidão  tão  grande  c  varia  de  na- 
ções de  gentes:  e  pasmavão,  como  de  cousa  nunca  vista  em  outra  alguma 
parte  do  mundo. 

73  E  como  a  curiosidade  do  liomem  em  procurar  saber,  lie  tão  natu- 
ral, pretenderão  (depois  de  adquirida  mais  noticia  das  iingoas)  tirar  dos 
índios  algumas  repostas  das  duvidas  que  tinhão :  e  fazião-llies  as  pergun- 
tas seguintes.  Em  que  tempo  entrarão  a  povoar  aquellas  suas  [terras  os 
primeiros  progenitores  de  suas  gentes?  De  que  parte  do  mundo  vierão? 
De  que  nação  erão  ?  Por  onde,  e  de  que  maneira  passarão  a  terras  tão  re- 
motas, sendo  que  não  havia  entre  os  antiguos  uso  de  embarcaçíjes  muito 
mais  capazes  que  as  de  suas  ordinárias  canoas?  Como  não  conservarão  suas 
cores?  Gomo  não  conservarão  suas  Iingoas  ?  Como  chegái^ão  a  degenerar  de 
seus  costumes,  e  a  estado  ião  grosseiro  alguns  dos  seus,  especialmente  Ta- 
puyas,  que  pôde  duvidar-se  delies,  se  nascei'ão  de  homens,  ou  são  indivi- 
duos  da  espécie  humana?  Que  Religião  seguião?  E  finalmente  í)erguntavão- 
Ihes,  que  bondades  erão  as  d'esta  sua  terra,  e  as  d"este  seu  clima  em  que 
vivião?  Estas,  e  outras  semelhantes  perguntas  hião  fazendo  os  nossos  explo- 
radores aos  índios,  segundo  as  occasiões  que  achavão. 

74  Porém  podião  mal  satisfazer  nações  tão  barbaras,  a  pergimtas  de 
líjnla  difficuldade.  A  seu  modo  grosseiro  protestarão  em  primeiro  lugar, 
que  elles  não  tinhão  uso  de  1ím-os,  nem  outros  archivos  mais  que  os  de 
suas  memorias,  e  que  somente  nestas  estampavão  as  historias  de  suas  an- 
tigualhas,  e  dos  successos  que  pelo  discurso  dos  tempos  liião  ouvindo  huns 
aos  outros.  E  vindo  a  responder,  quanto  á  primeira  pergunta,  dizião  os 
que  erão  mais  curiosos,  e  de  maior  experiência,  que  por  tradição  de  seus 
antepassados  correra  sempre,  que  houtera  no  mundo  hum  diluvio  univer- 
sal em  que  morrerão  os  homens  todos,  e  que  dos  poucos  que  d'elle  esca- 
parão SC  torneara  a  povoar  esta  sua  íerra,  e  forão  estes  os  primeii'os  seus 
progenitores,  depois  d'aquelle  grande  diluvio. 

7.J  E  contavão  a  historia  na  maneira  seguinte.  Que  antes  de  chegar  o 
diluvio  liavia  hum  homem  de  grande  saber,  a  que  elles  cliamavão  Payò 
(que  vai  o  me^mo  que  Mago,  ou  adivinhador,  e  entre  nós  Propheta)  o 
({ual  tinha  por  nome  Tamanduaré,  e  que  o  seu  grande  Tupá,  que  quer  dizer 
c.xcellencia  superior,  e  vem  a  ser  o  mesmo  que  Deo?,  falla^a  com  este,  e 


DAS  COUSAS  DO  BRASII.  [.IX 

Ilie  descobria  seus  segredos :  c  entre  outros  lho  communicára,  que  havia 
de  haver  huma  innundação  da  terra,  causada  de  agoas  do  Ceo,  e  alagar  o 
mundo,  sem  que  ficasse  monte  ou  arvore,  por  mais  alta  que  fosse.  Atéqui 
vão  rastejando  os  relatores;  porém  logo  varião.  Accrescenlavão,  que  exce- 
ptuara Deos  huma  palmeira  de  grande  altura,  que  estava  no  cume  de  certo 
monte,  e  se  hia  ás  nuvens,  e  dava  hum  fructo  a  modo  de  cocos;  e  que  es- 
ta palmeira  lhe  assinalou  Deos  pêra  que  se  salvasse  das  agoas  elle,  c  sua 
familia  somente:  e  que  no  ponto  -em  que  o  ditto  Payé^  ou  Propliela,  a  tal 
noticia  teve,  se  passou  logo  ao  monte,  que  havia  de  ser  sua  salvação,  com 
toda  sua  casa.  Ex  que  estando  n'este,  vio  certo  dia  que  começavão  a 
chover  grandes  agoas,  e  que  hião  crescendo  pouco  e  pouco,  e  alagando 
toda  a  terra,  e  quando  já  cobrião  o  monte  em  que  estava,  começou  a  su- 
bir elle,  e  sua  gente  aqaelía  i)a]mcira  sinalada,  e  estiverão  nella  todo  o 
tempo  que  durou  o  diluvio,  suslentando-se  com  a  fruta  delia ;  o  qual  aca- 
bado, descerão,  multiplicarão,  c  tornarão  a  povoar  a  terra.  Este  era  o  di- 
zer fabuloso  d'aquelles  naturaes ;  c  segundo  isto  têm  pêra  si,  que  antes 
do  diluvio  havia  já  povoadores  cm  sua  terra,  e  que  aquelle  Mago,  ou  adi- 
vinhador com  sua  familia  já  a  povoava  antes  das  agoas  do  diluvio,  e  ficou 
também  povoando  depois  d 'elle. 

76  Por  modo  ainda  mais  fabuloso  contão  a  tradição  de  sua  origem  os 
índios  das  outras  partes  da  Aniei'ica.  Porque  huns  dizem  (segundo  o  re- 
fere o  Padre  AÍTonso  de  Ovaile  de  nossa  Companhia  na  Historia  de  Chilii) 
que  em  tempos  antiquissimos,  quando  ainda  não  havia  Reis  Ingás,  houvera 
aquelle  diluvio  grande ;  mas  que  em  certas  concavidades  de  altas  serranias 
íicárão  alguns  homens,  que  tornarão  depois  a  povoar  a  terra;  e  a  mesma  tra- 
dição, diz  o  Autor,  tiverão  os  índios  de  Quito;  e  todos  estes  fazem  a  seus 
povoadores  antiquissimos,  ainda  de  antes  do  diluvio.  Yarião  outros  mais, 
e  dizem  que  naquelle  diluvio  não  pode  salvar-se  em  terra  pessoa  alguma, 
porque  cobrio  o  cume  dos  mais  altos  montes;  porém  que  alguns  se  salva- 
rão em  huma  balsa  que  fizerão,  e  dizião  (jue  forão  estes  seis  (menos  er- 
rarão SC  disserão  oito.;  Faz  menção  destas  opiniões,  ou  disbarales  d  esta 
gente,  António  Ilerrera  na  Historia  geral  das  índias;  e  ahi  escusa  a  igno- 
rância d"estes,  tanto  por  sua  natural  rudezri,  como  jtor  falta  de  archivos. 

77  De  outros  escreve  o  fiadre  .loseph  da  Cosia  ila  Conípanhia  de  Jesu 
de  Novo  Orbe,  que  têm  por  tradição  que  depois  (raquclle  grão  diluvio,  sá- 
bio de  hum  lago  hum  homem  portentoso,  chamado  Víracocha,  e  qm  deste 
livera  prinripio  a  geração  de  sua  gente.  Dufros  dizião.  rpjt'  *;ahir?>o  dn?: 


LX  LIVUO  1  DAS  NOTICIAS 

entranhas  de  huns  moiiles  liuns  tiomens  nunca  vistos,  feitos  pelo  Sol,  e  que 
(Fcstes  tiverão  seu  principio.  E  temos  visto  a  resposta  da  primeira  pergunta, 
que  os  Portugueses  fizcrão  aos  índios,  em  que  tempo  vierão  povoar  estas 
terras  os  primeiros  progenitores  de  suas  gentes. 

78  Ás  três  perguntas  seguintes :  de  qae  parte  do  mundo  vierão;  de  que 
nação  erão;  por  onde,  e  de  que  maneira  passarão  a  estas  terras  tão  remo- 
tas? i-espondião  que  a  tradição  de  seus  antepassados  era,  que  viei"ão  da  ou- 
tra parte  da  terra,  que  elles  não  sabião.  Que  era  gente  de  còr  branca :  e 
que  vierão  em  embarcações  pelo  mar,  e  aportarão  em  huma  paragem,  que 
elles  por  suas  semelhanças  descrevião,  e  os  Portugueses  entenderão  que 
vinha  a  ser  a  do  Cabo  Frio.  E  vindo  a  contar  a  historia,  dizião,  que  vierão 
a  este  seu  Brasil,  lá  da  outra  parle  da  terra  dous  irmãos  com  suas  famí- 
lias, em  tempos  antiquíssimos,  antes  que  algum  outro  nascido  entrasse 
n'elle,  quando  ainda  as  mattas  estavão  virgens,  os  campos  bravios,  e  as 
feras,e  aves  vivião  isentas  de  seus  arcos,  e  que  estes  vinhão  fugindo  das 
próprias  pátrias,  por  causa  de  guerras  que  tiverão.  E  que  chegarão  a  dar 
fundo  suas  embarcações  em  huma  bahia  segura,  e  fermosa,  que  depois  se 
chamou  do  Cabo  Frio.  Aqui  chegados  saltarão  em  terra,  e  começarão  a  fa- 
zer diligencia  por  varias  partes  divididos  cm  busca  de  gente,  com  quem 
faltassem,  e  de  quem  tomassem  noticias  donde  estavão,  e  do  que  devião 
fazer  ;  porém  debalde,  porque  a  terra  ainda  não  tinha  conhecido  ho- 
mem algum,  e  tudo  achavão  em  summa  solidão,  e  silencio,  senhoreado 
somente  das  feras,  e  das  aves:  mas  como  já  a  experiência  lhes  hia  ensi- 
nando o  que  os  homens  não  poderão ;  vendo  a  frescura  e  fertilidade  dos 
montes,  dos  campos,  dos  bosques,  e  rios,  vierão  a  resolver  entre  si,  que 
a  fortuna  os  tinha  conduzido  a  gosar  de  hum  achado  grande,  o  que  mais 
poderão  desejar  pêra  largueza  e  abundância  de  suas  famílias.  E  com  ef- 
feito  fundarão  alii  huma  povoação,  a  primeira  que  vio  o  Brasil,  e  ainda  a 
America;  de  que  já  se  acabou  a  memoria. 

79  Continuavão,  e  dizião  mais:  que  depois  de  assi  assentarem  n"esta 
povoação,  e  repartirem  entre  si  o  melhor  da  terra,  em  que  habitarão,  an- 
dado o  tempo  (pai  de  variedades)  vierão  aquellas  famílias  a  dividir-se  en- 
tre si.  Na  causa  variavão:  mas  dizião  os  mais,  que  fora  por  differenças  que 
tiverão  sobre  hum  papagaio,  pretendendo  a  mulher  do  irmão  mais  velho 
fazer-se  senhora  d'elle,  e  resistindo  a  mulher  do  irmão  mais  moço, 
que  o  ensinara  a  fallar  com  tal  propriedade,  que  parecia  i)essoa  humana 
(bastava  isto  entre  gente  rude)  chegarão  a  tanto  as  paixões,  que  dividirão 


DAS  COUSAS  DO  BRASIL  I.XI 

de  todo  as  familias:  a  do  mais  velho  ficou  na  terra,  e  a  do  mais  moço  cos- 
teando a  praia  foi  dar  comsigo  em  o  grande  rio  a  que  lioje  chamamos  da 
Prata,  c  embocando  sua  larga  barra,  foi  assentar  vivenda  da  parte  do 
Sul.  E  este  dizem  foi  o  primeiro  habitador  das  terras,  que  hoje  chama- 
mos Buenos-ayres,  Chilli,  Quito,  Peru,  e  as  de  mais  d'aquellas  partes. 

80  Mas  tornando  agora  aos  que  ficarão  em  o  nosso  Brasil ;  dizião  que  forão 
estes  multiplicando,  e  que  divididos  por  varias  partes  do  sertão,  e  marítimo, 
formarão  grandes  povoações,  que  depois  pelo  tempo  divididas  por  meio  do  dis- 
senções,  e  guerras,  vierão  a  fazer  nações  disíinctas,  e  lingoas  varias,  nunca  ou- 
vidas nem  aprendidas;  em  costumes,  modos,  e  religião  differentes,  e  que  des- 
ta  gente  viera  finalmente  a  povoar-se  o  Brasil  todo,  ed"elle  toda  a  America. 

81  Isto  dizião  aquelles  índios  acerca  das  perguntas,  sobre  que  forão 
consultados:  e  acerca  da  quinta  especialmente  de  como  não  conservarão  as 
cores?  responderão  com  a  graça  seguinte.  «Façamos  uma  experiência,  dizião: 
trocai  vós  outros  comnosco  os  trajos,  e  andai  nús  ao  sol,  e  á  chuva,  quaes 
nós  andamos;  e  vereis  logo,  que  de  brancos  vos  heis  de  tornar  da  nossa 
côr. »  E  quanto  á  mudança  das  lingoas,  dizião,  que  com  o  discurso  dos  tem- 
pos, a  variedade  de  lugares,  e  divisões  que  tinlião  feito  entre  si,  por  cau- 
sa de  seus  ódios,  e  guerras,  forão  forçados  chegar  a  esquecer-se  dos  voca- 
<)ulos  pátrios,  e  ajiidar-se  de  outros  de  novo  inventados. 

81  Quanto  á  religião,  convinhão  os  índios  de  todas  as  nações,  assim  do 
huma,  como  de  outra  parte  da  America,  que  havia  tradição  entre  elles  an- 
tiquíssima de  pais  a  filhos,  que  muitos  séculos  depois  do  diluvio  andarão 
por  suas  terras  huns  homens  brancos,  vestidos,  e  com  barba,  que  dizião 
cousas  de  hum  Deos,  e  da  outra  vida,  hum  dos  quaes  se  chamava  Sumo, 
que  quer  dizer  Thomé:  e  que  estes  não  forão  admittidos  de  seus  antepas- 
sados, e  se  acolherão  pêra  outras  partes  do  mundo;  ensinando-lhes  com- 
ludo  primeiro  o  modo  de  plantar  o  colher  o  fruto  do  princii)al  mantimen- 
to de  que  usão,  chamado  mandioca.  Finalmente  acerca  da  bondade  da  ter- 
ra SC  espraiavão  mais:  aqui  mostravão  com  longas  historias,  e  exemplos, 
as  descripções  das  cousas,  que  a  seu  modo  tinhão  por  de  maior  momento; 
como  a  de  seus  arcos,  e  frechas,  das  pennas  com  que  se  enfeitavão,  das 
frutas  agrestes  que  comião,  e  de  que  fazião  seus  vinhos;  c  erão  das  cousas 
fjiie  em  seus  olhos  avultavão  mais,  deixando  por  do  menos  conta,  a  prata, 
o  ouro,  o  âmbar,  e  as  pedras  preciosas;  As  quaes  tem  dado  titulo  de  gran- 
des, nossa  real  cubica. 

H'4    Estas  erão  as  repostas  dos  InHios  a  seu  modo  tosco,  e  gentílico. 


LIVRO  1  DAS  ?<OTICIAS 


Era  forra  que  fossem  defoiluosas,  e  )ic  necessário  que  demos  nós  satisfação 
por  outra  via  á  curiosidade  daquellas  perguntas,  segundo  a  capacidade  maior 
dos  entendimentos,  que  Deos  nosdeo,  e  da  policia  em  que  nos  criámos.  E 
seja  a  primeira  resolução.  Que  os  homens  que  começarão  a  povoar  esta 
America  depois  dos  annos  de  1G56  da  criação  do  mundo,  e  diluvio  geral 
da  terra  (quaesquer  que  fossem)  não  tinhão  antes  d'elle  povoado  a  mesma 
America.  Esta  resolução  he  certíssima:  consta  da  sagrada  Escrittura;  porque 
dos  homens  que  vivião  no  mundo  antes  do  diluvio,  nenhum  escapou,  exce- 
pto Oito  almas  da  Arca  de  Noé,  das  quaes  nenhum  tinha  passado  a  povoai" 
a  America:  posto  que  algims  de  seus  descendentes  era  força  passasse  de- 
pois pêra  este  eíTeito,  como  ás  mais  partes  do  mundo. 

84  Donde  se  vé,  que  são  ridículos  todos  os  outros  modos  com  que  os 
nossos  índios  sonharão  que  escaparão  do  diluvio,  ou  sobre  arvores,  ou  mon- 
tes, ou  de  outras  maneiras  seus  progenitores,  e  continuarão  a  povoar  depois 
de  passado.  Pelo  que,  supposío  que  as  noticias  que  dão  do  diluvio  pela 
constância  de  nações  tão  diversas,  que  aíru-mão  o  mesmo,  quanto  á  sustan- 
cia  possão  ser  verdadeiras,  e  do  verdadeiro  diluvio;  quanto  ás  circunstan- 
cias com  tudo  são  disbarates;  que  como  dependião  de  memorias,  depois  do  dis- 
curso de  tantos  séculos,  era  força  chegassem,  a  estes  nossos  tempos  muito 
adulteradas:  quando  não  sejão  de  outro  diluvio  dos  que  acontecerão  depois 
de  Noé,  como  bem  adverte  António  Herrera,  no  tom.  in  da  Historia  geral 
das  índias,  década  5.-'':  e  se  com  tudo  antes  do  diluvio  geral  de  Noé  houve 
n'estas  partes  habitadores,  nem  consta  da  sagrada  Escrittura,  nem  pôde  por 
outra  via  averiguar-se. 

85  Segunda  resolução.  Depois  do  diluvio  geral  do  mundo,  he  incerto 
em  que  tempo  passarão  a  estas  partes  os  primeiros  povoadores  d  ellas.  O 
que  se  vê  claramente;  porque  huns  dizem,  que  seu  primeiro  povoador  foi 
Ophir  Indico,  filho  de  .lectan,  netío  de  Ileber,  aquelle  de  quem  falia  a  Es- 
crittura no  capitulo  10. °  do  Génesis,  e  a  quem  coube  pêra  senhorear  o  ul- 
timo da  costa  da  índia  Oriental.  D"este  pois  dizem,  que  passou  d'aqui  a 
povoar  e  senhorear  a  região  da  America,  entrando  pela  parte  do  Peru,  e 
México,  e  dilatando  por  alli  seu  império.  Assi  o  traz  o  Padre  João  de 
Pineda  da  Companhia  de  Jesu,  de  Rebus  Salomonis,  onde  refere  por  esta 
opinião  Árias  Montano.  E  vem  mui  a  propósito  esta  entrada  de  Ophir  In- 
dico; porque  deste  seu  primeiro  povoador  (se  he  que  o  foi)  devião  tomar  o 
nome  de  índios  os  moradores  da  America,  e  toda  a  região  da  índia  Occi- 
dental. E  por  respeito  do  mesmo  nome  disserão  muitos  (como  logo  vere- 


DAS  COUSAS  DO  IIRASIL  l.^çill 

mos)  que  a  America  era  o  mesmo  que  o  Ophir  tao  celebrado  na  sagrada 
Kscriltura.  E  segundo  esta  opinião,  o  principio  da  povoação  d"esta  terra  foi 
pelos  annos  da  creação  do  mundo  de  1700,  quarenta  e  cinco  depois  do 
diluvio,  e  antes  da  vinda  de  Christo  ao  mundo  2088  annos. 

8C  Outros  tiverão  pêra  si,  que  os  primeiros  povoadores  d"eSta  America 
forão  daquelles  de  que  falia  o  Texto  divino  no  capitulo  xi  do  Génesis,  que 
pretenderão  edificar  a  torre  chamada  de  Babel,  cujas  ameas  querião  que 
chegassem  ao  Gco.  Porque  d"estes  dizem  alguns,  que  vendo-se  frustrados,  e 
e  confundidos  por  Deos  nas  lingoas,  porque  não  se  entendessem  na  obra, 
espalhados  depois  por  diversas  terras,  vierão  habitar  esta  nossa  America. 
E  se  assi  he,  são  muito  antigos  estes  povoadores:  porque  a  historia  da  tor- 
re passou  aos  cento  e  trinta  e  um  annos  depois  do  diluvio,  na  era  de 
1788  da  criação  do  mundo,  2174  antes  da  vinda  de  Christo  a  elle. 

87  Outros  disserão,  que  estes  primeiros  povoadores  forão  d'aquellas 
gentes  dos  Ilebreos,  as  quaes  o  sábio  Salomão  costumava  enviar  em  suas  náos 
do  mar  Vermelho  á  região  chamada  de  Ophir,  em  busca  de  ouro,  páos  pre- 
ciosos, simios,  e  cousas  semelhantes;  e  tem  pcra  si,  que  esta  região  de 
Ophir  he  a  da  America,  especialmente  o  Peru,  México,  e  Brasil.  Esta  opi- 
nião parece  a  alguns  muito  provável,  e  como  tal  a  defende  com  forçosos 
argumentos  o  Padre  João  de  Pineda  nossa  Companhia,  de  rebus  Salomonis  liv. 
4.",  cap.  XVI,  foi.  214,  retratando  o  parecer  contrario,  que  tinha  seguido 
em  seus  Commeiiíarios  sobi-e  Job.  Não  com  menos  eflicacia  a  defende  o  Pa- 
dre Frei  Gregório  Garcia,  da  sagrada  Rehgião  de  S.  Domingos,  uo  liv.  4." 
de  Indorum  occidentalium  Origine,  e  allega  por  si  os  Authores  seguintes : 
Vatablo  sobre  o  3."  livro  dos  Reis,  cap.  0."  (e  foi  o  primeiro  diífcnsor  d  es- 
ta opinião)  Postcllo,  Goropio,  Árias  Montano,  Geneberardo,  Marino  Lixia- 
no,  António  Possivino,  Rodrigo  Yepes,  Bosio,  Manoel  de  Sá,  e  outros  refe- 
ridos pelo  Padre  Pineda  no  lugar  já  citado. 

88  E  na  verdade,  os  fundamentos  que  trazem  por  si  estes  Authores 
fazem  a  cou.sa  muito  vtírisimil;  porque  ninguém  pôde  negar,  (|ueo  grande 
sábio  Salomão  com  sua  alta  sabedoria  teve  conhecimento  da  disposição  de 
todas  as  ti-nas  do  muudo,  como  elle  o  diz  no  capitulo  7."  da  Sabedoria. 
«Ipsecnimdidil  mikl  horum,  qiics  snnl,  scicnliam  vcram,ut  sciam  disposilio- 
nem  orbis  terrarum,  el  virliiles  clementorum.)^  Pois  se  tinha  conhecimento  do 
mundo,  e  sabia  consi^guintemente  os  thesoui'os  das  riquezas  da  America, 
especialmente  de  Maldivia,  ÍVrú,  Chilli,  e  as  da  terra  do  Brasil,  e  linha  tão 
grande  desejo  de  ajuntal-as  pêra  a  obra  do  Templo  de  Deos,  que  trazia 


LXIV  I.IVUO   í  BAS   NOTICIAS 

eutre  inãus,  por  qae  não  mandaria  cm  busra  d  cilas  ás  partes  sobredit- 
tas?  mormenle  tendo  sò  pêra  este  eííeito  fabricada  gi'0ssa  araiada  nos  por- 
tos do  mar  Vermellio,  com  gente  de  mar  destra,  instruida  por  elle,  como 
por  me.Ure  de  todas  as  artes.  E  correndo  esta  de  três  em  três  annos  o 
mnndo  em  busca  d'estas  drogas;  porque  não  poderia  n'este  tempo  pene- 
trar lambem  estas  ultimas  terras  do  Occideníe?  Nem  pêra  isto  o  acovarda- 
rião  carrancas  dos  antiguos  Philosoplios,  de  que  não  erão  navegáveis  estes 
mares,  nem  habitáveis  estas  terras:  porque  teve  scicncia  infusa  da  arte  da 
Cosmographia,  Geographia,  e  Hidrographia,  como  de  todas  as  mais  scien- 
cias.  Nem  a  viagem  era  mais  difficultosa  por  isso;  porque  partindo,  como 
costumavão  suas  armadas  do  mar  Vermelho,  vinhão  correndo  áquella  par- 
te da  índia  Oriental,  costeando  Malaqua,  e  Samatra,  e  daqui  direitas  á ilha 
âe  S.  Lourenço,  d'esta  ao  Cabo  da  Boa  Esperança,  e  d'ahi  caminho  direi- 
to ao  Brasil:  e  d'este  finalmente  correndo  as  costas,  buscando  as  ilhas  de 
Cuba,  S.  Domingos,  Hispaniola,  e  d'ellas  os  Reinos  de  Peru,  e  Chilli.  Na 
mesma  forma  pinta  a  viagem  d'esías  nãos  Genebrardo,  aOportuit  (diz  elle) 
solventes  ex  mari  Rubro,  etaliqua  índice  Orientalis  parte  -perlustr ala,  atta- 
ctis  Malaqua,  Samatra,  recta  deinde  contendere  ad  insulam  Sancti  Lauren- 
tij\  ex  qua  ad  Caput  bonx  Spei,  inde  ad  Brasiliam:  atque  legentes  illam  Bra- 
silioe  oram,  tanger e  Cubam  et  insulam  Sancti  Bominici  Hlspnnam ;  ex  qua 
tandem  paleret  accessus  ad  ^íexicanas  oras.n  E  muito  menos  ha  de  distan- 
cia do  Cabo  da  Boa  Esperança  á  costa  do  Brasil,  e  d'ahi  á  da  Nova  Ilespa- 
iiha,  que  á  de  Hespanha  antigua,  Africa,  e  Phenicia,  onde  commummente 
dizem  os  Authores  chega  vão  asnáos  de  Salomão,  como  se  deixa  ver  do 
computo  dos  grãos.  Se  isto  he  verdade,  os  primeiros  povoadores  destas 
partes  entrarão  n'ellas  depois  dos  annos  de  mil  nove  centos  e  trinta  e  três, 
da  creação  do  mundo,  que  foi  o  tempo  em  que  reinou  o  sábio  Salomão,  mil 
e  vinte  e  oito  annos  antes  do  Nascimento  de  Chrislo. 

89  Com  esta  mesma  opinião  vem  a  conceder  outros,  que  dizem  que 
Ophir  era  em  outra  parte  diversa,  ou  fosse  a  Mina,  ou  Angola,  ou  a  índia, 
segundo  diversos  pareceres :  mas  que  levadas  aquellas  náos  de  Salomão  de 
força  de  ventos,  desgarrarão  ás  praias  da  America,  e  ficando-se  n"ella  alguns 
dos  navegantes,  povoarão  aterra.En'este  modo  não  parece  ha  impossibili- 
dade alguma;  e  o  tem  por  provável  o  mesmo  Author  referido  no  cap.  19. 

90  Outros  disserão,  que  forão  estes  primeiros  povoadores  de  nação 
Troianos,  c  companheiros  de  Eneas;  porque  depois  de  desbaratados  estes 
pelos  Gregos  na  famosa  destruição  de  Tróia,  se  divic^irão  entre  si,  buscan- 


BAS  COUSAS  DO  BRASIL  LXV 

(lo  novas  terras,  om  que  habitassem,  como  bomens  envergonhados  do  mun- 
do, e  successo  das  armas.  Alguns  dos  quaes  dizem  se  engolfarão  no  largo 
Oceano,  e  passarão  ás  partes  da  America.  Assi  parece  o  dão  a  entender 
aquelles  celebres  versos  de  Virgílio. 

Poslquám  res  Asioe,  Priamique  evertere  gentem 
íinmeritam  vkum  siiperis,  ceciditque  superbum 
Iliiim,  et  omitis  humo  fumai  Neplunia  Tróia: 
Diversa  exilia,  cl  diversas  quoerere  terras 
Augurijs  agÍDiur  diiiàm:  cíassemque  sub  ipsa 
Antandro,  et  Phrygioe  rnolimur  montibus  Ida;, 
Incerli  qnj  fala  ferant  vbi  sistere  deliir. 

Veja-se  o  Padre  Frei  João  Pineda  á  margem  citado.  (*)  E  segundo  esta  opi- 
nião, os  povoadores  d'esía  terra  passarão  a  ella  pelos  annos  dous  mil  oito 
e  seis  da  creação  do  mundo,  e  antes  da  vinda  de  Christo  a  elle  mil  cento 
e  cincoenta  e  seis. 

91  Outros  tiverão  pêra  si  que  forão  Africanos  estes  primeiros  povoa- 
dores: os  quaes  depois  da  destruição  de  Carthago  feita  pelos  Romanos  em- 
barcados em  nãos  da  mesma  maneira  que  os  Troianos,  houverão  de  bus- 
car acolhida  por  diversas  terras,  e  alguns  d'elles  desgarrarão  á  força  de  ven- 
tos a  esta  costa  do  Brasil.  E  não  ha  que  espantar,  porque,  segundo  Stra- 
bão  lib.  17,  tinhão  os  ditos  Cartaginenses,  quando  forão  cercados  dos  Ro- 
manos, trezentas  cidades  na  Africa,  e  só  na  principal  de  Carthago  se  acha- 
rão no  cerco  setecentas  mil  pessoas.  Força  era  logo  buscasse  varias  terras  tão 
grande  multidão  de  gente,  onde  houvesse  de  ter  abrigo.  E  se  forão  estes  os 
primeiros  povoadores,  passarão  a  estas  partes  na  era  da  creação  do  mun- 
do de  três  mil  oito  centos  e  trinta  e  três,  segundo  o  computo  da  Monarchia 
Lusitana,  e  antes  da  Redompção  dos  homens,  cento  e  quarenta  e  nove. 

92  Outros  querem,  que  fossem  estes  daquellas  gentes  dos  dez  tribus  dos 
antiguos  Judeos,  que  ficarão  cattivos  no  tempo  do  Propheta  Ozéas,  segundo 
o  tem  a  Historia  do  Esdras  no  liv.  4."  cap.  13,  onde  diz  d'cllas,  que  pela 
virtude  divina  forão  guiados  a  uma  região  desconhecida,  onde  nunc^a  habi- 
tara gente  humana,  o  por  caminiios  muito  compridos  de  anno  c  meio  de 
viagem.  Esta  região  entendem  que  era  a  nossa  America,  c  estes  homens  os 

(.]  Lib.  3,  cap.  12,  §  .V,  c  lib.  14,  cap.  2'^  §  1.»     * 


LXVI  I.IVIIO  I  DAS  NOTICIAS 

primelres  povoadores  delia.  E  se  assi  lie,  passarão  a  esLis  partes  pelos  an- 
nos  da  crearão  do  mundo  Ires  mil  duzentos  e  vinte  e  seis.  e  antes  da  Re- 
dempção  dos  homens  setecentos  e  vinte  e  quatro.  E  na  verdade,  muito 
grande  prova  faz  por  esta  parte  a  semelhança  que  ha  de  costumes  entre 
estes  índios  e  acpieUes  antiguos  Judeos:  como  he  o  serem  medrosos,  co- 
vardes, supersticiosos,  mentirosos,  consen-adores  da  geração  de  seus  ir- 
mãos, casando-se  com  as  cunhadas,  quando  aquelles  morrem;  lavarem-se 
a  cada  passo  nos  rios ;  e  outros  usos,  em  que  conformão  com  esta  nação. 

93  Outros  seguem  a  opinião  de  Diodoro  Siculo,  que  tem  pêra  si,  que 
estes  primeiros  povoadores  forão  d"aquelles  Phenices  Africanos,  que  era 
tempos  antiquíssimos,  saindo  a  navegar  fora  das  CoUnnnas  de  Hercules,  e 
correndo  a  costa  de  Africa,  forão  levados  do  Ímpeto  de  ventos  a  huma  ter- 
ra nunca  vista,  de  notável  grandeza,  no  meio  do  Oceano,  que  defronte  de 
Africa  corria  á  parte  do  Poente ;  e  era  terra  ameníssima,  fertillissima,  cheia 
de  bosques,  campos,  rios,  e  fontes.  E  esta  terra  nenhuma  outra  podia  ser 
na  parte  demarcada,  se  não  a  grande  America.  E  segundo  esta  opinião, 
estes  primeiros  povoadores  Africanos  passarão  a  estas  partes  na  mesma 
era,  pouco  mais  ou  menos,  em  que  a  opinião  antecedente  faz  aportados  a 
elías  os  Cartaginenses.  Finalmente  PeroBercio.em  sua  Geographia,  e  Theo- 
doro  de  Bry,  coUigem  a  antiguidade  dos  povoadores  da  America  nas  paí'- 
les  da  Nova  Hespanha,  das  noticias  de  seus  antiquíssimos  Reis,  e  das  ruí- 
nas de  seus  grandes  edifícios,  e  de  outras  cousas  memoráveis,  que  n"aquel- 
las  partes  acharão  os  Hespanhoes;  porque  taes  cousas,  não  parece  podião 
fabricar-se  se  não  em  íempo  immemoravel.  Estas  são  as  opiniões  com  que  pro- 
vo a  segunda  resolução  que  propuz,  acerca  da  incerteza  do  tempo,  em  que 
passarão  a  estas  partes  os  primeiros  povoadores  d"ellas. 

04  Verdade  he,  que  tem  ainda  contra  si  todas  estas  opiniões  em  ge- 
ral huma  instancia  grande:  e  vem  a  ser  dos  anímaes  terrestres,  onças,  ti- 
gres, e  outros  semelhantes,  como  passarão  a  estas  partes?  pois  nem  era 
possível  nadarem  por  tão  grande  distancia  de  mares,  nem  parece  os  tra- 
rião  os  homens  comsigo  em  suas  nãos,  nem  sabemos  que  houvesse  pêra 
este  eífeito  segunda  Arca  de  Noé,  nem  também  que  Deos  fizesse  d'elles  se- 
gunda e  nova  criação  n'esta  terra.  Porque  então,  a  que  fim  mandara  o  Se- 
nhor a  Noé,  se  occupasse  em  salvar  na  Arca  as  castas  todas  de  anímaes, 
macho,  e  fêmea  "* 

95  Por  estas,  e  semelhantes  razões  tiverão  outros  Authores  pêra  si 
muito  differentc  parecer.  E  he/que  os  povoadores  primeiros  d'estas  par- 


DAS  COUSAS  DO   BRASIJ.  Í.XVIl 

tcs  passarão  a  ollas,  ou  por  terra  continua,  ou  dividida  com  algum  estrei- 
to breve,  que  lacilniiMile  podesse  ser  vencido,  assi  de  homens,  como  de 
animaes.  Depende  a  força  d"esta  opinião  da  pergunta  seguinte.  Se  he  a 
terra  d'este  novo  mundo,  ilha,  ou  terra  firme?  Jacobo  Ghineo  diz,  que  in- 
da  até  agora  não  consta  de  certo,  se  he  ilha,  ou  se  he  terra  firme:  suppos- 
to  que  por  voto  dos  melhores  Geographos  está  recebido  que  he  ilha.  Gem- 
ma  Phrisio  no  cap.  3.°  da  divisão  do  mundo,  deixa  a  pergunta  em  opinião,  mas 
inclina-se  mais  a  que  he  ilha.  Com  a  mesma  indiíTerença  se  fica  o  Author 
do  novo  livro  Theatrum  Orbis  na  taboa  da  America:  e  com  razão;  por- 
que até  nossos  tempos  ninguém  chegou  a  experimentar  o  sitio  da  terra  da 
America,  por  aquella  parte  do  Norte,  que  corre  contra  o  estreito  que  cha- 
mão  Fretum  Davis;  como  também  nem  por  aquella  parte  d'álem  do  estreito 
de  Magalhães,  que  corre  á  parte  do  Oriente. 

96  Supposta  a  indeterminação  dos  pareceres,  a  resolução  seja  também 
condicional.  Que  se  a  terra  d"este  novo  mundo  he  continuada  com  qualquer 
das  partes  do  antiguo,  por  ahi  se  ha  de  dizer,  que  continuou  n"ella  a  pro- 
pagação dos  homens,  e  dos  animaes  juntamente;  e  da  mesma  maneira,,  se 
he  ilha  com  entreposição  de  algum  breve  estreito;  porque  então  era  frus- 
traneo  o  apparato  de  nàos,  assi  pêra  homens,  como  pêra  animaes.  E  n"es- 
ta  supposição  tenho  esta  sentença  por  mais  provável;  e  por  tal  a  julga  o  Padre 
Joseph  da  Costa  da  Companhia  de  Jesu,  de  natura  Novi  Orbis:  e  estando n'ella 
se  vê  mais  ás  claras  a  verdade  da  resolução  principal  que  acima  tomamos,  a  sa- 
ber, que  depois  do  diluvio  geral  do  mundo,  he  incerto  em  que  tempo  passarão 
a  estas  partes  os  primeiros  povoadores  d*ellas:  porque  além  da  incerteza  de 
opiniões  tão  varias,  como  vimos,  com  esta  ultima  sentença  se  demostra  mais; 
porque  se  até  hoje  se  não  pjde  averiguar  se  pelas  partes  ultimas  d"esta  terra 
se  podia  passar  a  pé  enxuto,  ou  se  de  força  se  havia  de  passar  por  agoa,  nem 
que  distancia  tinha  esta:  como  se  poderia  averiguar,  quando  passarão  os 
primeiros  que  vierão  povoar  este  mundo? 

97  Do  acima  ditto  se  tira  também  a  resolução  das  outras  três  pergun- 
tas. Porque  á  segunda,  de  que  parte  do  mundo  vierão  aquelles  primeiros? 
poderá  responder  cada  hum  segundo  a  opinião  que  seguir,  ou  que  de  Ju- 
dea,  ou  que  de  Tróia,  ou  que  de  Carthago,  ou  que  da  Phenicia,  etc.  Á  ter- 
ceira: de  que  nação  erão?  responderão  huns,  (jue  dos  índios,  outros  que 
dos  Judeos,  outros  que  dos  Troianos,  outros  que  dos  Carthaginenses, 
outros  que  dos  Phenicios,  etc.  E  íinahnente  á  quarta  pergunta:  por  que 
parte,  e  de  que  maneira  passarão  a  estas  [lartes?  dirão  huns,  que  em  nãos 


Lxvm  Mvno  i  das  noticías 

a  isso  (leslinailas,  outros  que  em  náos  desgarradas,  outros  por  terra,  ou 
breve  esti'cito,  etc,  que  tudo  são  opiniões,  e  poderá  seguir  cada  hum  o 
que  mellior  lhe  parecer. 

98  Depois  de  todas  as  opiniões,  e  modos  de  responder  acima  dedu- 
zidos, me  parecco  referir  aqui  a  opinião  de  Platão,  e  de  outros  Philosophos 
seus  antecessores:  porque  por  meio  d'esta  (se  he  Yerdadeira)  se  responde 
com  muito  mais  facilidade,  c  brevidade,  a  todas  as  quatro  perguntas  venti- 
ladas. Diz  pois  Platão,  e  dizião  aquelles  gravíssimos  Philosophos,  que  hou- 
ve em  tempos  antiquíssimos  humailha  prodigiosa,  chamada  de  Atlante,  que 
começando  defronte  da  boca  do  mar  Mediterrâneo  e  das  Columnas  chama- 
das de  Hercules,  hia  correndo  por  esse  mar  immenso,  com  extensão  tão 
agigantada,  que  era  maior  que  toda  a  Africa,  e  Asía.  Porém  que  depois  an- 
dados os  séculos,  toda  esta  terra  foi  subvertida,  e  inundada  com  as 
agoas  do  Oceano,  por  occasião  de  hum  grande  terremoto,  e  alluvião  de  agoas 
de  hum  dia,  e  noite :  e  que  ficou  sendo  mar  navegável,  a  que  chamamos  hoje 
mar  Atlântico,  apparecendo  n'elle  somente  algumas  ilhas  (as  da  Madeira, 
dos  Açores,  do  Cabo  verde,  e  as  demais)  por  modo  de  ossos  de  defunto 
corpo  que  fora.  As  palavras  de  Platão  são  as  seguintes:  «2'm7íc  enimPelagus 
illud  innaoigabile  erat\  iasalam  cniin  ante  ostiiim  hahebat,  quocl  vos  Colum- 
nas Uerculis  appellatis :  at  insula  illa,  et  Libia,  et  Ásia  maior  erat,  etc. 
Posteriore  verd  tempore,  ferra}  motibus,  ac  diliio>jsingentibiisobortistmo  die, 
ac  nocle  gruvi  iiiciimbent,  etapiid  vos  totum  mildare  genits  acervatim  terra 
absorbuit^  et  Attanlis  insula  similiter  in  mari  submersa  disparuit.)y 

99  Segundo  a  opinião  doestes  philosophos,  esta  ilha  de  tão  agigantada 
e.xtensão,  era  n"aqueile  tempo  continua  com  a  que  hoje  chamamos  Ameri- 
ca, e  todo  hum  corpo  somente,  a  que  chamavão  iiha  de  Atlante.  E  a  razão 
está  manifesta:  porque  sendo  o  corpo  d'esta  ilha  maior  que  o  da  Africa, 
e  Ásia,  e  começando  das  Columnas  de  Hercules,  ou  boca  do  mar  Mediter- 
râneo, e  õicorrendo  por  aquelle  golfo,  chamado  ainda  hoje  Atlântico,  não 
era  possível  que  deixasse  de  ir  entestar  com  toda  a  costa,  chamada  agora 
da  Nova  Hespanha :  pois  até  esta  não  he  tal  o  espaço  do  mar  Atlântico, 
que  iguale  á  grandeza  da  terra  de  Africa,  e  Ásia;  e  pêra  o  ser,  se  devião 
necessariamente  juntar,  a  parte  do  corpo,  que  hoje  he  da  America,  com  a 
que  vinha  correndo  a  ella  pelo  espaço  do  mar  Atlântico;  porque  de  ambas 
saliisse  a  grandeza  mostruosa  que  lhe  davão. 

100  O  que  supposto,  respondendo  agora  á  primeira  pergunta  ha  se  de 
dizer,  que  os  primeiros  progenitores  dos  índios   da  America   (segundo 


DAS    COISAS   DO    BRASIL  LXIX 

esta  opinião)  enlráião  a  povoai- a  successivamente  com  os  que  entrarão  a 
povoar  a  illia  de  Atlante;  pois  tudo  era  a  mesma  terra,  mais,  ou  menos 
distante  das  Columnas  de  Hercules.  E  foi  muito  antes,  que  na  dita  ilha 
reinasse  o  Príncipe  Atlante,  que  succedeo  nos  annos  da  criação  do  mundo 
2334  segundo  o  computo  dos  autores  que  descrevem  este  seu  reinado,  e 
o  de  outro  seu  irmão,  n'esta  ilha.  Veja-se  a  Monarchia  Lusitana  tom.  i, 
cap.  13.  Á segunda  pergunta:  de  que  parte  do  mundo  vierão?  se  ha  de  res- 
ponder n"esta  opinião  (como  por  aquelles  tempos  era  hum  só  o  corpo  d"esta 
America,  e  o  da  ilha  Atlântica,  e  este  estava  tão  conjunto  ás  Columnas  de 
Hercules,  terra  de  Europa,  e  pela  parte  Oriental  á  terra  de  Africa)  que 
por  huma  e  outra  fronteira,  ou  de  Eiu^opa,  ou  de  Africa,  passarão  os  pri- 
meiros povoadores,  assi  da  Atlântica,  como  da  America,  que  erão  a  mesma 
cousa:  ou  estes  fossem  Judeos,  ou  Athenienses,  ou  Africanos,  segundo  as 
opiniões  sobreditas.  E  com  a  mesma  facilidade  se  pôde  responder  á  ter- 
ceira pergunta:  de  que  nação  erão?  segundo  as  mesmas  opiniões.  E  ulti- 
mamente a  quarta  pergunta :  de  que  maneira  passcárão  a  partes  tão  remo- 
tas ?  fica  patente :  porque  assi  das  Columnas  de  Hercules,  terra  de  Europa, 
como  de  Africa,  fácil  ficava  o  passar  á  ilha  de  Atlante,  e  a  brevidade  da 
distancia  mostra  Platão  em  suas  palavras:  ^ílnsulam  enimanleosHumhabe- 
hat,  fjuoã  vos  Columnas  Herculis  appeUaíis.n  Aquellas  palavras  :  Aníe  oí/íh/u 
liabebat,  não  denotão  grande  distancia. 

101  Marcilio  Porcino  sobre  este  lugar  de  Platão  no  Tima?o,  cap.  4.",  leni 
pêra  si,  que  toda  esta  historia  da  ilha  Atlântica  he  verdadeira.  O  mesmo 
parecer  tem  Diodoro  Siculo,  liv.  vi,  cap.  l/\  onde  diz  o  que  já  acima  re- 
ferimos, que  os  Phenices  em  tempos  antiquíssimos  navegando  íora  das  Co- 
lumnas de  Hercules,  e  correndo  a  costa  de  Africa,  forão  levados  da  força 
dos  ventos,  a  huma  ilha  de  notável  grandeza,  fronteira  a  Africa,  que  cor- 
ria á  parte  do  Poente,  amenissima,  fertilissima,  chea  de  })0sques,  de  rios, 
de  arvoredos,  de  cidades,  e  edifícios  sumptuosos.  Abraham  Hortelio  na  ta- 
hoa  da  America,  diz,  que  ha  muitos  (pie  tem  í)era  si,  (]ue  a  mesma  Ame- 
rica foi  descripta  por  Platão,  e  debaixo  de  nome  da  ilha  Atlântica,  e  que 
também  Plutarco  seguira  a  opinião  de  Platão :  e  não  diz  elle  cousa  alguma 
em  contrario.  O  autor  do  livro,  que  se  intitula  do  mundo  (e  outros  o  at- 
tribuem  a  Aristóteles,  ou  Theopiírasto)  diz,  que  neste  lugar  do  mar  Atlân- 
tico, aléin  da  de  Europa,  Ahica,  e  Ásia,  havia  outra  ilha  grande,  e  não  pôde 
ser  senão  esta.  Em  prova  do  mesmo  hc  trazido  commummenle  outro  lu- 
gar do  Aristóteles,  ou  Theophi-asto,  onde  diz,  que  o  Senado  dos  Alhenien- 


LXX  LIYUO  I  DAS  NOTICIAS 

ses  prohibio  em  tempos  antiguos  a  seus  navegantes,  o  navegarem  á  ilha 
de  Atlante,  por  não  desampararem  sua  pátria.  Parece  que  approva  Plinio 
esta  opinião  no  livro  n,  cap.  67,  e  no  livro  vi,  cap.  32,  onde  diz,  que  Ha- 
non  Carthaginense,  navegando  ás  partes  Occidentaes  do  Oceano,  foi  dar  em 
terras  novas,  nunca  d'antes  achadas.  Favorece  o  mesmo  Zarate  em  sua 
Historia,  e  o  mesmo  parece  faz  o  Curso  Conimbricense  sobre  o  segundo  do 
Geo,  quest.  i,  art.  2,  onde  refere  alguns  dos  autores  que  a  favorecem,  e 
elle  a  não  contradiz. 

102  Se  hei  de  dizer  o  que  sinto  n'esta  opinião  tão  discutida  da  ilha  de 
Atlante,  confesso  que  faz  alguma  força  a  meu  entendimento,  não  só  o  se- 
guil-a  Platão,  homem  de  tanta  auctoridade,  chamado  n^aquelles  tempos  por 
antonomásia,  o  Divino,  luz  de  toda  a  Philosophia,  e  de  todos  seus  segre- 
dos, e  tão  serio  em  todo  seu  dizer :  mas  também  o  modo  com  que  falia, 
quando  a  segue,  descrevendo-a  com  iodas  suas  particularidades,  da  gran- 
deza da  terra,  fertilidade  dos  sitios,  seus  bosques,  seus  rios,  suas  fontes, 
suas  gentes,  seus  costumes,  suas  façanhas,  suas  cidades,  seus  sumptuosos 
edifícios;  e  finalmente  os  Reis  que  n'ella  senhoreavão,  em  parte  d'ella  El- 
Rei  Atlante,  e  na  outra  parte  outro  seu  irmão,  chamado  Guadiro.  Tudo 
isto  parece  está  metendo  medo  a  duvidar  de  hum  liomeni  tão  serio,  pêra 
se  poder  cuidar  d'elle  que  escreveo  patranhas.  Alguns  comíudo  regeitão 
esta  doutrina  da  ilha  Atlântica  como  fabulosa :  outros  por  incerta,  ou  por 
impossível :  e  por  isso  propuz  em  primeiro  lugar  as  outras  opiniões  aci- 
ma :  cada  qual  siga  o  que  lhe  parecer. 

103  Restão  outras  quatro  perguntas  dos  Portugueses  aos  índios.  Era 
a  primeira  d'ellas:  como  não  conservarão  as  cores?  Porque  nenhum  dos 
seus  primeiros  pais  teria  côr  de  quasi  vermelho  tostado,  qual  he  a  dos 
índios  da  America.  Na  reposta  que  derão  attribuião  a  mudança  das  cores 
ao  demasiado  calor  que  fere  suas  carnes.  E  parece  faltarão  conforme  a  Phi- 
losophia, e  experiência;  porque  os  Philosophos  concordão,  que  a  côr  branca 
procede  de  summa  frialdade,  como  se  vê  na  neve :  e  a  negra  de  summo 
calor,  como  se  vê  no  pez.  Por  isso  Aristóteles  attribue  a  brancura  do  cis- 
-ne,  á  frialdade  do  ventre  da  mãi;  e  a  negrura  do  corvo,  ao  calor  do  ventre 
da  mesma.  E  doestes  dous  extremos  se  tirão  as  cores  entremeias,  verme- 
lha, amarelia,  verde,  etc.  segundo  diversa  intensão  do  calor,  ou  frio:  quanto 
mais  participão  do  calor,  tanto  mais  se  chegão  ao  preto;  e  quanto  mais  do 
frio,  tanto  mais  ao  branco :  assi  que  foi  a  opinião  dos  índios,  conforme  a 
Pliilosophia.  E  foi  também  conforme  a  experiência ;  porque  segundo  istr^. 


DAS  COUSAS  DO  UUASIL  LXXí 

vemos,  lançando  os  olhos  por  todos  os  climas  do  mundo,  lanla  diíTerença 
lie  cores  nos  homens;  c  tudo  nasce  do  temperamento  diverso  de  que  go- 
zão.  Os  Europeos,  quanto  mais  chegados  ao  Polo  gelado,  tanto  mais  bran- 
cos são;  como  Hollandezes,  Flamengos,  Alemães.  E  pelo  contrario  os  Afri- 
canos, Asianos,  Americanos,  quanto  mais  chegados  ao  tórrido  da  Zona,  onde 
mais  predomina  o  calor,  tanto  mais  pretos  são.  E  d"aqui  vem  que  huns 
nascem  alvíssimos,  outros  mais  baços,  outros  tostados,  outros  fulos,  ou- 
tros vermelhos,  outros  pretos,  outros  sobre  o  preto  azevichados. 

104  Porém,  não  obstante  toda  esta  doutrina,  nem  os  índios,  nem  os 
Philosophos,  nem  a  experiência,  parece  satisfazem  bastantemente,  por- 
que padece  as  instancias  seguintes.  Se  toda  a  causa  da  sua  côr  vermelha 
he  a  razão  do  clima,  e  calor,  os  Portugueses  que  vem  a  viver  entre  elles, 
no  mesmo  clima,  e  calor,  e  ainda  dentro  de  seus  mesmos  sertões,  e  talvez 
despidos,  como  elles,  por  toda  sua  vida;  porque  são  sempre  brancos?  E 
porque  de  suas  mulheres  brancas  gérão  brancos,  o  estes  gérão  outros 
Ijrancos,  e  não  vermelhos  como  elles  ?  E  pelo  contrario  os  Índios,  que  vão 
a  viver  entre  os  Europeos,  no  mesmo  clima,  e  no  mesmo  frio  como  elles, 
porque  íicão  sempre  vermelhos  ?  E  porque  de  suas  mulheres  gérão  tam- 
bém vermelhos,  e  estes  gérão  outros  semehiantes,  e  não  brancos,  como 
os  Europeos? 

103  Aristóteles  parece  que  attribue  a  diíTerença  d>stas  cores  á  imagi- 
nativa, segundo  aquelle  dito  seu:  «Imaginatio  facitcausum. 9  E  iwrque  úei- 
xemos  a  historia  celeberi'ima  da  sagrada  Escrittura,  Génesis  10,  num.  3 
das  cores  diversas  das  ovelhas  de  Jacob  nascidas  da  imaginação  das  mais, 
e  outras  historias  de  animaes,  que  trazern  os  autores :  vamos  aos  homens. 
Quintiliano  defendeo  de  adultério  a  huma  mulher  branca,  que  parira  criança 
preta,  só  com  mostrar  que  estava  em  seu  aposento  ao  tempo  da  conceição 
o  retrato  de  hum  Ethiope.  Tasso  escreve  da  Clorinda,  que  nasceo  branca 
de  pais  ])retos,  só  por  estar  onde  foi  concebida  a  pintura  de  huma  virgem 
i)ranca.  ih^liodoro  conta  o  mesmo  de  Cariclea,  que  nasceo  i)ranca,  só  por- 
que a  Rainha  de  Ethyopia  sua  mãi  costumava  olhar  pêra  hum  retrato  de 
Andromeda  branca.  Outros  casos  semelhantes  esci-evem  os  autores  a  cada 
passo.  E  não  ha  duvida,  que  tem  a  imaginação  eííicacia  pêra  maiores  mons- 
truosidades :  de  que  se  pode  ver  lium  livro  inteiro  do  Padre  João  Eusé- 
bio Nierembcrg  em  sua  curiosa  Philosoj)hia,  e  he  o  segundo.  Porém  a  meu 
ver,  esta  df)utriiia  não  tem  aqui  lugar;  jHJrípie  de  successos  singulares, 
uão  se  ai"gumenta  com  eííicacia  pcra  o  geral,  (juc  sempi'c  acontece:  porque 


LXXII  LIVRO   I   DAS   NOTICIAS 

era  necessário  provar  no  nosso  caso,  que  sempre  os  índios  d'esta  terra  ao 
tempo  da  conceição  tem  na  memoria  a  sua  côr  vermelha :  o  (jue  não  tem 
probabilidade  alguma. 

106  N'esta  pergunta,  depois  de  bem  considerada,  tenho  por  cousa  certa, 
que  a  causa  da  côr  vermelha  dos  índios  do  Brasil,  procede  sem  duvida  de 
calor;  mas  não  de  qualquer  modo,  se  não  depois  de  convertido  n'elles  ein 
natureza;  como  também  nos  naturaes  de  Angola,  e  semelhantes  partes,  onde 
os  homens  degenerão  da  côr.  Explico  na  forma  seguinte.  Tem-nos  mos- 
trado a  experiência  em  homens  brancos,  que  por  seu  successo  viverão  en- 
tre os  índios  por  toda  a  vida,  ou  grande  parte  d'ella,  sem  vestidos,  e 
expostos  ao  rigor  do  Sol,  como  elles;  que  supposto  que  na  verdade  des- 
lustrarão, e  embaçárão  em  parte  sua  côr,  comtudo  nem  chegarão  a  ser 
vermelhos  como  índios,  nem  gerarão  filhos  vermelhos  como  elles  (de  hum 
d'estes  exemplos  sou  testemunha  de  vista.) 

■107  Não  he  logo  a  causa  d'esta  côr,  calor  de  qualquer  modo,  senão 
que  he  necessário  calor  reconcentrado,  e  tal,  que  venha  a  ficar  em  natu- 
reza. Porém  aqui  consiste  o  ponto  todo  da  difficuldade,  em  explicar  o  modo 
com  que  o  calor  n'estes  homens  vem  a  ficar  em  natureza  de  pai  a  filhos. 
Explico  assi  (e  he  cousa  que  até  agora  não  achei  em  autor  algum 
por  mais  diligencia  que  fiz.)  Aquelle  primeiro  homem,  que  no  Brasil  come- 
çou a  cortir-se  ao  calor  do  sol  (e  o  mesmo  digo  em  Angola,  e  nas  outras 
partes,  onde  houve  mudança  de  cores)  pela  continuação  do  largo  tempo 
de  sua  vida  foi  adquirindo  temperamento  intrínseco,  e  natural,  mais  cálido 
que  d'antes :  o  qual,  supposto  que  não  foi  bastante  n'elle  pêra  mudar 
espécie  de  côr  total,  porque  está  necessita  de  gráo  de  calor  mais  intenso; 
foi  comtudo  bastante  pelo  menos  pêra  embaçar-lhe  as  cores,  e  adquirir 
temperamento  mais  cálido :  com  este  gerou  depois  o  filho;  e  o  filho  vivendo 
na  mesma  forma  que  o  pai,  acrescentou  outro  gráo  de  calor,  e  tempera- 
mento, e  o  neto  outro;  até  que  pouco,  e  pouco  veio  hum  d'estes  a  ter 
aquella  intensão  de  calor,  e  temperamento  necessário  pela  Philosophia  pêra 
espécie  de  côr  differente;  e  foi  a  vermelha,  a  que  somente  pode  chegar  o 
grào  de  calor,  e  temperamento  do  clima.  E  esse  tal  temperamento,  digo 
eu,  que  ohegou  a  ser  convertido  em  natureza;  e  que  he  força  que  se  trans- 
funda  pêra  isso  na  virtude  seminaria  no  macho,  e  na  fêmea,  e  que  por 
meio  d'ella  passe  a  toda  a  geração  de  pais  a  filhos. 

108  Fazem  prova  d'esta  doutrina  (que  até  agora  não  achei  explicada 
>'m  IhTOs)  a  de  Aristóteles,  em  quanto  atribue  a  brancura  do  cisne  á  frial- 


DAS  COISAS  DO  BHASIL  LXXIII 

dade  do  ventre  da  iiiài,  e  a  iiegiiira  do  corvo  ao  calor  do  ventre  da  mes- 
ma :  porque  em  atribuil-a  ao  ventre,  dá  a  entender  que  he  natural  aquella 
qualidade  de  frio,  ou  calor.  Porém  não  satisfoz  em  tudo :  porque  se  o  gráo 
do  frio  do  ventre  fora  a  causa  somente  d'este  effeito,  produzira  sempre 
branco  o  ventre  frio,  e  produzira  sempre  preto  o  ventre  cálido.  E  comtudo 
vemos  por  experiência  o  contrario :  porque  a  mulher  branca,  de  branco 
pare  branco,  e  de  negro  mulato;  seja  quente,  ou  fria  a  disposição  do  ven- 
tre. D'onde  se  lira  manifestamente,  que  não  está  somente  no  ventre  a  vir- 
tude do  grão  do  frio,  ou  calor  necessário;  se  não  na  virtude  scminaria, 
que  depende  de  ambos  os  gerantes :  porque  se  ambos  tem  virtude  fria, 
gerão  branco;  se  ambos  cálida,  gerão  preto;  e  se  hum  fria,  outro  cahda, 
gerão  mulato  de  côr  entremeia,  nem  perfeitamente  branca,  nem  preta. 

109  De  huma  preta  de  Ethyopia  se  vio,  não  ha  muitos  tempos,  em 
Pernambuco  (segundo  se  conta  na  Historia  natural  do  Brasil)  que  pario 
dous  gémeos,  hum  perfeitamente  branco,  c  outro  perfeitamente  preto:  de- 
vião  de  ser  de  dous  pais;  ou  de  hum  pai  branco,  que  devendo  de  gerar 
mulato,  participante  de  branco,  e  preto,  distinguio  a  natureza  em  dous  as 
cores  que  houverão  de  estar  confusamente  em  hum  só.  Vemos  também  a 
cada  passo,  de  pais  prelos  Ethyopes  nascerem  filhos  brancos.  Muitos  vi 
doestes,  assi  em  Angola,  corno  n"este  Brasil :  porém  estes  não  enlrão  em 
regra:  são  espécie  de  monstros  da  natureza.  E  temos  respondido  á  duvida 
das  cores  dos  índios. 

110  A  da  mudança,  e  variedade  das  lingoas,  he  lambem  duvida  curio- 
sa. Porque  se  aquoUes  primeiros  povoadores  do  Brasil  fallavão  huma  lin- 
goa  (porque  nem  podião  ser  muitas,  nem  quando  o  fossem,  podião  ser  tan- 
tas como  sabemos  tèm  os  índios,  que  chegão  a  contar-se  mais  de  cento 
diveí'sas)  como  se  multiplicou  em  tantas  Ião  diíferenles?  Q^iem  foi  o  autor 
d'ellas  ?  Em  que  escolas  aprenderão,  no  meio  dos  sertões.  Ião  acertadas 
regras  da  Grammatica,  que  não  falta  hum  ponto  na  perfeição  da  praxe,  de 
nomes,  verbos,  declinações,  conjugações,  activas,  e  í)assivas?  Não  dão  van- 
tagem H'isto  ás  mais  polidas  artes  dos  Gregos,  e  Latinos.  Vcja-se  por  exem- 
I)lo  a  Arte  da  lingoa  mais  commum  do  Brasil,  do  venerável  Padre  Joseph 
de  Anchieta,  e  os  louvores  que  ahi  traz  doesta  lingoa.  Por  estes  julgão  mui- 
tos, (juc  tem  a  perfeição  da  lingoa  grega:  e  na  verdade  tem-me  admirado 
especialmente  sua  delicadeza,  copia,  e  facilidade. 

Hl     A  esta  pergunta  i-esfiondêrão  os  índios,  dando  ))or  c;/usa  o  dis- 
curso do  tempo,  o  varjpfl.iíh'  do3  lugares.   1:^  certo,  que  se  forão  ))ei'í'eilos 
voi,.  1  V 


LXXIV  LIVRO  I  DAS  NOTICIAS 

politicos,  não  poderão  responder  mais  cm  forma.  Todas  as  cousas  d'esla 
vida,  ou  se  varião  com  o  tempo,  ou  com  elle  acal)ão :  quanto  mais  as  lin- 
goas  humanas,  que  além  de  dependerem  do  ar,  tem  seu  valor  do  arbítrio 
do  homem,  por  natureza  inquieto,  e  vario.  O  modo  comtudo  com  que 
huma  Ungoa  se  varia,  ou  muda  em  outra,  ou  cm  muitas,  não  souberão 
exphcar  os  índios;  e  nós  o  explicaremos  por  elles,  ajudados  porém  do  fun- 
damento que  elles  derão.  E  seja  a  primeira  reposta. 

112  Toda  a  variedade  da  lingoa,  ou  mudança  d  ella,  depende  necessa- 
i'iamente  da  corrupção  que  o  tempo  faz  em  os  vocábulos  da  primeira,  e 
introducção  de  outros  novos,  que  os  homens  inventão  pêra  segunda,  ou  to- 
mão  de  lingoas  diflerentes.  E  porque  esta  corrupção  de  huns  vocábulos,  e 
introducção  de  outros,  melhor  se  entenda,  porei  exemplo  em  huma  só  lin- 
goa, e  seja  esta  a  de  Portugal. 

113  ííe  commum.  entre  os  autores,  que  a  lingoa  que  fallavão  os  ho- 
mens Portugueses  no  tempo  em  que  os  Romanos  senlioreárão  a  Lusitânia, 
foi  a  latina  perfeita,  e  pura,  assi  como  os  mesmos  P\oman"o3  então  a  falla- 
vão em  Roma.  Yeja-se  Duarte  Nunes  de  Leão  na  sua  Origem  da  lingoa 
Portuguesa.  Os  modos  pois  com  que  esta  lingoa  se  foi  variando,  até  che- 
gar ao  estado  em  que  hoje  a  falíamos,  forãò  os  seguintes.  Primeiro,  por 
corrupção  da  terminação  das  palavras;  porque  em  lugar  de  sermo,  que  an- 
tes dizíamos,  dizemos  hoje  sermão :  em  lugar  de  servus,  servo :  de  pru~ 
ãens,  prudente.  Segundo,  por  corrupção  de  diminuição  de  letras,  ou  syl- 
labas;  porque  de  maré,  dizemos  mar :  de  nodum,  nó :  de  sagilta,  setta. 
Terceiro,  por  acrescentamento  de  letras,  ou  syllabas;  porque  de  umhra, 
dizemos  sombra:  de  mica,  migalha:  de  açus,  agulha.  Quarto,  por  troca  de 
humas  letras  em  outras;  como  de  Ecclesia,  igreja :  de  desiderimi,  desejo: 
de  cupiditas,  cubica.  Quinto,  por  trespasso  de  letras;  como  de  ftnes^ru, 
fresta :  de  capistrum,  cabresto :  de  feria,  feira.  Outra  casta  de  corrupção, 
he  por  metaphora,  muito  natural  aos  Portugueses,  como  chamando  assomado 
ao  acelerado,  ou  irado,  tomando  a  metaphora  dos  que  fazem  a  conta  em 
somma,  e  não  por  miúdo;  porque  o  assomado  não  lança  conta  ao  que  faz 
l)or  iniudo.  Da  mesma  maneira  chamamos  abelhudo  ao  que  anda  apressa- 
do, tomando  a  metaphora  da  abeliia :  c  lanipeiro  ao  que  faz  a  cousa  ante 
tempo,  tomando  a  metaphora  dos  figos  lampos :  talludo  ao  que  he  já  cresci- 
do, pela  metaphora  das  alfaces.  E  d"este  género  são  graúdo  quantidade.  Aju- 
dou além  d' is  lo  pêra  a  mudança  da  lingoa  portuguesa  a  ijivenção  de  voca- 


DAS  COUSAS  DO  liRASIL  LXXV 

l)uIos  próprios,  ou  t(3madús  das  nações  com  que  commiinicavão :  como  se 
pôde  ver  em  Duarte  Nunes  de  Leão  já  citado. 

114  Agora  viado  ao  nosso  iníouto.  Assi  como  a  lingoa  portuguesa  por 
corrupção  de  liuns  vocábulos,  c  iníroducção  de  outros,  veio  a  deixar  de 
ser  lingoa  latina,  c  ílcou  lingoa  portuguesa :  e  como  antes  de  chegar  ao 
estado,  em  que  hoje  a  vemos,  teve  tantas  mudanças  do  lingoas,  que  hoje 
não  são  entendidas :  porque  acabou  nos  Portugueses  a  lingoa  primeira,  que 
fallavão  em  tempo  do  Tubal,  que  dizem  ser  caldaica,  e  se  mudou  em  ou- 
tra, e  esta  em  outra,  e  depois  na  latina,  e  ultimamente  na  que  hoje  falía- 
mos: e  como  d'esta  latina  se  formarão  tantas  espécies,  como  são  caste- 
lhana, galega,  francesa,  e  outras :  assi  lambem  todas  estas  variedades  tem 
acontecido  nas  lingoas  do  Bi-asil,  que  por  semeíliantes  corrupções,  e  intro- 
ducções  de  vocábulos,  e  semelhante  mudança  de  lugares,  se  veio  sua  pri- 
meira lingoa  a  corromper,  e  mudar  em  tão  varias  espécies,  até  chegar  á 
multidão,  que  hoje  se  conta  de  mais  de  cem  diversas;  humas  de  nenhum 
modo  entendidas  das  outras,  outras  em  parte;  porque  debaixo  do  alguma 
cabeça  commua,  a  que  chamão  matriz,  se  comniunicão  algumas  palavras, 
qual  a  do  castelhano,  ou  galego,  com  a  do  portuguez.  E  tomos  respon- 
dido á  duvida  das  hngoas.  Respondamos  agora  á  dos  costumes  do  Brasil. 

115  Quem  considerasse  com  attenção  a  liberalidade  com  que  o  Autor 
do  universo  repartio  seus  bens  naturaes  com  esta  terra  do  Brasil,  a  ferti- 
lidade de  seu  torrão,  a  frescura  de  suas  campinas,  a  verdura  de  seus  mon- 
tes, o  ameno  de  seus  bosques,  a  riqueza  de  seus  thcsouros,  c  a  delicia  de 
seus  ares,  e  climas :  sem  duvida  que  julgaria,  que  á  medida  de  tão  bem 
adornado  palácio  faria  o  Senhor  a  escolha  dos  homens,  que  o  havião  de 
habitar:  qual  lá  escolheo  lium  Adão,  c  Eva  á  medida  do  terreal  Paraiso, 
que  pêra  elles  preparara.  Senão  que  tudo  verá  muito  ao  contrario.  Lançará 
os  olhos  por  esses  campos,  por  essas  brenhas,  por  essas  serranias;  c  verá 
n'ellas  espécies  de  gentes  innumeraveis,  que  vivem  a  modo  de  feras,  e  co- 
mo taes  contentes  cora  o  tosco  das  brenhas,  c  solidão  da  penedia,  despre- 
zando todo  o  polido  dos  palácios,  cidades,  c  graiulezas  de  todas  as  mais 
])artes  do  mundí). 

110  Todas  estas  nações  de  gentes,  fallando  e:n  geral,  c  em  ([uanto  ha. 
bitão  seus  sertões,  e  seguem  sua  gentilidade,  sã(j  feras,  selvagens,  monla- 
nhezas,  c  deshnmanas:  vivem  ao  son*!  da  natureza,  neín  seguem  fé,  nwn 
lei,  nem  Ueí  (freio  commnm  de  todo  o  homem  racional.)  E  em  sinal  (Testa 
sija  sing'!!aridado  lhos  negou   lambem  o  AM'i>r  da  natureza  as  k'tras  V, 


LXXVI  LIVRO  I   DAS  NOTICIAS 

L,  R.  Seu  Deos  he  seu  ventre,  segundo  a  frase  de  S.  Paulo :  sua  lei,  e  seu 
Rei,  são  seu  appelite,  e  gosto.  Andão  em  manadas  pelos  campos  de  todo 
nús,  assi  homens,  como  mulheres,  sem  empacho  algum  da  natureza.  Vive 
n'elles  tão  apagada  a  luz  da  razão,  quasi  como  nas  mesmas  feras.  Parecem 
mais  brutos  em  pé,  que  racionaes  humanados :  huns  semicai)ros,  huns  fau- 
nos, huns  satyros  dos  antiguos  poetas.  Nem  tem  arte,  nem  policia  alguma, 
nem  sabem  contar  mais  que  até  quatro:  os  demais  números  notão  pelos 
dedos  das  mãos,  e  pés ;  e  os  annos  da  vida  pelos  fi-utos  das  arvores  que 
chamão  acajús,  ou  pelo  Sette-estrello,  que  nasce  em  Maio,  a  que  chamão 
Ceixú.  andão  esburacados,^  muitos  d"elles,  pelas  orelhas,  faces,  e  beiços; 
e  ii'estes  buracos  engastão  pedras  de  varias  cores,  de  grossura  de  hum 
dedo.  Alguns  vi  com  cinco,  e  outros  com  sete  buracos,  nas  faces,  e  bei- 
ços; e  estes  são  os  mais  principaes  entre  elles,  e  os  que  mais  façanhas 
obrarão.  São  por  ordinário  membrudos,  corpulentos,  bem  dispostos,  ro- 
bustos, forçosos :  e  pêra  que  mais  o  sejão,  os  atão  pelas  pernas  quando 
nascem,  com  certas  faxas  mui  apertadas,  com  que  depois  de  grandes  ficão 
mais  vigorosos. 

117  Sua  morada  he  commummente,  como  de  gente  isenta  de  leis,  de- 
jurisdícção,  de  republica,  por  onde  quer  que  melhor  lhes  parece;  huns  pe- 
los montes,  outros  pelos  campos,  outros  pelas  brenhas;  vagabundos  ordi- 
nariamente, ora  em  huma,  ora  em  outra  parte,  segundo  os  tempos  do 
anno,  e  as  occasiões  de  suas  comedias,  caças,  e  pescas ;  sem  pátria  certa, 
sem  aíTeição  alguma,  fora  de  toda  a  outra  sorte  de  gentes.  Os  abrigos  de 
huns,  são  humas  pequenas  choupanas,  armadas  á  mão  em  quatro  páos,  co- 
bertas de  palha,  ou  palma,  como  aquellas  que  hoje  servem,  e  á  manhãa 
se  queimão.  Outros  que  tem  mais  semelhança  de  commuuidade  humana, 
formão  cabanas,  ou  barracas  compridas,  desde  o  principio  até  o  cabo,  sem 
repartimento  algum :  entremeio  alojão  dentro  vinte,  até  trinta  casaes:  d"es- 
tes  cada  qual  se  arrancha  de  hum  esteio  até  outro  com  seu  cão,  e  fogo, 
que  sempre  tem  comsigo;  e  aqui  vivem  juntos  todos  como  cevados  em  chi- 
queiro, sem  que  á  memoria  lhes  venha  pejar-se  huns  dos  outros  em  ac(^io 
alguma  natural.  Dormem"  sus^tensos  em  redes,  que  tecem  de  algodão,  as 
quaes  pendurão  por  duas  pontas  de  esteio  a  esteio  :  e  algumas  nações  dor- 
mem no  chão. 

118  Nos  nuiis  costumes  são  como  feras,  sem  policia,  sem  prudência, 
sem  quasi  rastro  de  humanidade,  preguiçosos,  mentirosos,  comilões,  dados 
a  vinhos;  e  só  iiesla  parte  esmerados,  porque  os  fazem  de  castas'  innume- 


DAS  COUSAS  DO  BI\.\S1L  LXXVil 

raveis,  como  logo  diremos.  Parece  que  d'esles  fallava  S.  Paulo,  quando 
dizia:  «iQuorum  Deusventer  est:  semper  mendaccs,  mala'  bestice,  ventres  pi- 
gri,  etc.» 

H9  He  gente  paupérrima;  cuja  mesa  lie  a  terra,  cujas  iguarias  pen- 
dem de  seu  arco;  e  n'es[e  são  tão  destros,  que  parece  que  obedecem  a 
suas  frechas,  não  somente  as  feras  da  terra,  mas  os  peixes  da  agoa :  com 
ellas  cação  juntamente  e  pescão;  ellas  lhes  servem  juntamente  de  laços, 
redes,  e  anzoes. 

120  Fora  d'este,  seu  maior  enxoval  vem  a  ser  huma  rede,  hum  pati- 
guá,  hum  pote.  hum  cabaço,  huma  cuya,  hum  cão.  Serve-lhe  a  rede  pêra 
dormir  no  ar,  atada,  como  já  dissemos,  de  tronco  a  tronco  :  o  patiguá  (que 
he  como  caixa  de  palhas)  pêra  guardar  pouco  mais  que  a  rede,  cabaço,  e 
cuya :  o  pote,  que  cliamão  igacába,  pêra  seus  vinhos :  o  cabaço  pêra  suas 
farinhas,  mantimento  seu  ordinário :  a  cuya  pêra  beber  por  ella :  e  o  cão 
pêra  descobridor  das  feras  quando  vão  a  caçar.  Estes  somente  vem  a  ser 
seus  bens,  moveis,  e  estes  levão  comsigo  aonde  quer  que  vão :  e  todos  a 
mulher  leva  ás  costas,  que  o  marido  só  leva  o  arco. 

121  Estas  são  todas  suas  alfaias,  sem  cuidado  de  mais  outra  cousa; 
porque  vestidos  sobejão-lhe  os  de  Adão,  e  Eva :  os  campos,  os  bosíjues, 
e  os  rios  lhes  dão  de  gi-aça  o  comer,  c  beber.  E  quando  faltão  rios,  c  fon- 
tes, não  falta  certa  casta  de  planta,  que  elles  chamão  caragoatá,  que  con- 
serva a  agoa  da  chuva  entre  as  folhas  (remédio  de  lugares  estéreis  pêra 
os  sequiosos.)  Onde  lhes  anoitece,  ahi  tem  facilmente  casa  certa,  fogo,  c 
cama;  porque  se  a  noite  he  chuvosa,  fincão  na  terra  quatro  páíJs,  e  n"estes 
armão  outros  por  tecto,  com  hum  modo  de  vimes,  a  que  chamão  cipós,  o 
cobrem-no  de  folhas,  ou  palmas :  de  leito  servem  suas  redes,  que  armão, 
ou  fie  tronco  a  tronco,  ou  de  páo  a  páo  (os  que  as  tem.)  O  fogo  tirão  de 
certos  páos,  hum  molle,  c  outro  duro,  que  roção  á  força  hum  com  o  ou- 
tro, e  com  o  movimento  concr-bem  calor,  c  com  o  calor  fogo;  c  feito  isto 
comem,  bebem,  c  dormem  contentes.  Nem  o  comer  lhes  he  diílicultoso, 
são  pouco  delicados,  contentão-sc  com  ratos  do  campo,  rãs,  cobras,  lagar- 
tos, jacarés,  e  outros  bichos  semolliantes. 

122  A  caça  tomão  de  diversas  maneiras;  ou  á  freclia,  ou  em  covas  co- 
bertas de  ramos  maiores,  c  menores,  ode  tantas  maneii'as,  que  não  lhes 
cscapão  as  feras  por  mais  ardilosas  que  sejão.  E  o  que  mais  he,  que  a  cada 
género  (]o  caça,   lem  sou  dislincto  morlo  de  nrniar :  a  hum  modo  chamão 


I.XXVIU  UVIIO  I  DAS  NOTiCÍAS 

Pataca,  a  ontro  Moiiíló  araíacá.  a  (vUrn  Poú,  a  ()ií!í'o  Moí!d;''gi.iaçú,  c  a  ou- 
tro Mondégoaya. 

123  Pêra  aves  tem  também  instrumentos  diversos,  principalmente  três: 
cliamão  a  hum .  Jnçana  bipiyara,  qne  caça  pelos  pés;  a  outro  Juçana  juri- 
piyara,  que  ra^a  pelos  pescoços;  e  a  outre  Juçana  pitereba,  que  caca  pelo 
meio  do  corpo.  He  pêra  ver  a  facilidade  de  algumas  d'estas  caças.  Huma 
de  muita  recreação  experimentei  eu  com' meus  olhos,  e  hea  seguinte.  Es 
tando  em  huina  aldeã,  vi  que  vinha  voando  huma  qaasi  nuvem  de  pássa- 
ros, a  que  cliamão  Tuins,  casta  de  papagaios  pequenos,  que  também  fallão, 
e  são  estimados."  Pousarão  estes  enchendo  certas  arvores,  que  chamão  ara- 
çazeiros :  chamei  alguns  íllhos  dos  índios,  que  os  fossem  caçar;  levavão 
elles  huma  vara  comprida,  e  na  ponta  d'ella  humlacinho,  forão-se  aos  pés 
das  arvores;  c  d"aqui  llies  hião  lançando  o  laço  ao  pescoço,  hum,  e  hum, 
o  sem  mais  resistência,  que  de  quando  em  quando  afastar  a  cabeça,  e  fazer 
hum  pequeno  gemido,  com  a  maior  facilidade,  e  destreza  do  mundo,  trou- 
xerão  muitos  d'elles,  e  todos  vivos. 

124  Nas  pescarias  usão  de  frecha,  com  que  atravessão  o  peixe,  que 
vai  nadando,  com  arte  estremada,  ou  de  ervas,  com  que  os  embebedão  de 
muitos  modos,  com  folhas,  que  chamão  japicay,  ou  com  cipó,  a  que  cha- 
mão timbo  putyana,  ou  com  outro  que  chamão  tinguy,  ou  tiniviry,  ou  com 
huma  fíiita  cjue  chamão  corurúapé,  ou  com  raiz  de  mangue:  ou  com  cor- 
tiça de  arvoro  anda.  Usão  tam-bem,  depois  dos  Portugueses,  de  anzoes,  e 
de  certa  casta  de  covos,  chamada  uruguy  boandipiá :  e  no  mar  usão  por 
emlDarcação  de  jangada,  que  vem  a  ser  ires  até  quatro  páos  boiantes  liga- 
dos entre  si,  onde  levão  linhas,  e  anzoes,  e  pescão  peixe  grosso. 

125  São  por  extremo  vingativos  com  crueldade  deshumana;  não  se 
esquecem  jamais  dos  aggravos,  até  tomar  vingança  d'eiles,  ainda  que  seja 
estando  espirando.  Nações  ha  d'estas,  que  em  colliendo  ás  mãos  o  inimigo, 
o  atão  a  hum  páo  pendurado,  como  se  pendurarão  huma  fera,  e  d"elle  a 
postas  vão  tirando,  e  comendo  pouco  a  pouco,  até  deixar-lhe  os  ossos  es- 
brugados,  ou  cozendo-as,  ou  assando-as,  ou  torrando-as  ao  sol  sobre  pe- 
dras; ou  quando  o  ódio  he  maior,  comendo-as  cruas,  palpitando  ainda  en- 
tre os  dentes,  e  correndo-llies  pelos  beiços  o  sangue  do  miserável  pade- 
cente, quaes  tigres  deslinmanos.  Outros  lhe  abrem  as  entranhas,  e  lhe 
bebem  o  sangue  em  satisfação  do'aggravo;  e  antes  que  espire  chega  a  elle 
o  aggravado,  ou  algum  seu  parente,  e  dando-lhe  com  huma  maça  na  ca- 
beça, acaba  de  matal-o:  e  fica  d'este  feito  affamado,  e  com  nome  de  gran- 


DAS  COUSAS  DO  BRASIL  I.XXiX. 

do,  ft  valonte  ontre  os  oulros.  Usão  lambem  paríir  o  padecente  em  quartos, 
(lual  caça  do  malío,  e  assados  estes,  ou  cozidos,  os  vão  comendo  em  seus 
l)anf[iietes,  com  grandes  bailes,  e  be1)idas  de  vinho ;  e  pêra  mais  cevarem 
o  ódio,  conservão  parte  d"cslas  carnes  ao  fumo,  pêra  dar  sabor  ás  mais 
carnes  das  feras,  quando  as  cozem,  como  costumamos  fazer  com  toucinho. 
Notável  foi  o  caso  de  hum  Tapuya  Goaytacá  de  nação ;  íinlia  este  por  ini- 
migo seu  a  hum  Principal  da  mesma  nação,  buscava  occasião  de  vingar-se 
d'e!le :  e  com  estar  certo,  que  se  acolliêra  pêra  huma  aldeã,  que  estava 
a  cargo  dos  Padres  da  Companhia,  com  quem  estavão  então  de  paz,  e  se 
vendião  por  amigos  seus;  não  descançou  de  vigial-o  de  noite,  e  de  dia, 
pêra  o  matar.  E  o  que  mais  he,  que  vindo  a  saber,  que  adoecera  o  Prin- 
cipal, na  mesma  aldeã,  e  morrera,  c  que  estava  enterrado,  não  assocegou. 
Teve  traça  pêra  ir  desenterral-o,  e  assí  morto  lhe  quebrou  a  cabeça  (que 
lie  o  modo  entre  elles  de  tomar  vingança,  e  fartar  o  ódio.)  E  então  se  deu 
por  satisfeito,  valente,  e  honrado. 

120  Suas  armas  são  arco,  c  frechas,  e  n"esías  são  tão  destros,  que 
podem  acertar  hum  mosquito  voando:  tem  mais  huma  maça,  ou  clava  de 
páo  rigissimo,  e  pesado  como  o  mesmo  ferro,  com  que  investem  huns 
aos  outros  em  suas  guerras ;  e  com  que  quebrão  a  cabeça  aos  que  n'eilas 
matão. 

127  As  consultas  de  suas  guerras  são  muito  pêra  ver.  Escolhcm-sc 
quatro,  ou  cinco  dos  mais  anciãos,  que  forão  aífamados  de  valentes.  Elei- 
tos estes,  assentão-se  em  roda,  em  lugar  separado,  e  pondo  primeiro  no 
meio  provimento  de  vinho  bastante,  vão  consultando,  c  bebendo ;  e  tanto 
dura  a  consulta,  como  a  bebida.  E  em  quanto  estão  n'este  conclave,  não 
he  licito  a  pessoa  alguma  fallar-lhes,  nem  ainda  chegar  a  avistal-os.  Por  fim 
de  contas,  o  (jue  estes  sábios  veneráveis,  e  bem  animados  do  Baccho,  alli 
concluem,  isso  sem  fallencia  se  cumpre,  ainda  que  saibão  que  a  execução 
lhes  ha  de  custar  a  jjropria  vida,  não  he  possivel  contradizer  a  tão  vene- 
rando consistório.  Elegem  sempre  estes  quatro  hum  dos  mais  valentes  do 
districto.  Este  governa  toda  a  guerra,  em  quanto  não  commcle  covardia  : 
porém  em  fazendo-a,  ou  ainda  sonhando-a,  he  logo  deposto,  nem  fazem 
mais  caso  algum  delle.  A  este  Capitão  compete  juntamente  o  officio  de 
Pregador  dos  seus:  corre  suas  estancias,  e  préga-lhes  certas  horas  do  dia, 
e  noite  a  altas  vozes,  o  que  hão  d(!  fazer.  Traz-llies  á  memoria  as  façanhas 
mais  illustres  de  seus  anle[)assados,  e  as  covardias  de  seus  contrários,  pêra 
animal-os.  Seus  acommelimenlos  são  de  assalto,  (j  por  cilailas. 


l\\\  JJVftO    1    D\S    NOTlCíAS 

128  Dos  que  tomão  na  guerra,  os  velhos  comem  logo  (carne  do  maior 
sabor  pêra  elles)  os  mancebos  levão  cattivos,  amarrados  em  cordas,  com 
grandes  algazaras,  á  maneira  de  triunfo.  O  modo  com  que  depois  os  ma- 
tão,  e  comem,  be  força  que  ponhamos  aqui;  porque  he  huma  mais  refinada 
de  suas  barbarias.  Logo  que  o  contrario  lie  tomado  vivo  em  guerra,  e 
aquelle  que  o  caltivou,  tem  intento  de  mostrar  n'elle  a  illustre  façanha  de 
guerreiro  valente;  reniete-o  á  povoação  do  maior  Principal,  e  aqui  em  lugar 
de  grilhões  se  faz  entrega  d"elle  solemne  a  huma  carcereira  fiel,  que  o  ce- 
ve, e  engorde  por  tempo :  pêra  isto  se  lhe  dão  caçadores,  pescadores,  e 
todo  o  mais  necessário  pêra  que  seja  bem  apascentado :  e  com  advertên- 
cia, que  se  lhe  não  dè  pena  em  nada,  antes  alivio,  e  descanço  em  tudo, 
porque  assi  se  vá  engordando,  qual  bruto  animal,  pêra  os  intentos  da  gula, 
e  ódio,  que  logo  ouviremos.  Quando  já,  a  parecer  da  carcereira,  está  grosso 
em  carnes,  despedem  m.ensageiros  por  todas  as  povoações  circunvizinhas, 
fazendo  a  saber  o  dia  da  festa,  pêra  que  todos  sejão  presentes  a  solemnidade 
tão  festival;  sob  pena  de  incorrerem  em  nota  de  avaros  os  que  não  convida- 
rem, e  de  mal  criados  os  que  não  acodirem. 

129  Congregada  na  forma  referida  esta  barbara  gente,  vai  sahindo 
aquelle  valente  soldado,  que  ha  de  matar  o  contrario,  a  hum  terreiro,  co- 
mo a  hum  palanque,  pisando  grave,  cercado  de  parentes,  e  amigos,  como 
se  fora  a  armar-se  Cavalleiro,  ou  a  passar  triunfo  no  mesmo  Capitólio  de 
Roma.  Vem  vestido  a  mil  maravilhas,- de  pennas  assentadas  em  bálsamo, 
todo  em  contorno,  desde  a  cabeça  até  os  pés.  Vem  a  cabeça  coroada  com 
hum  diadema  vermelho  aceso,  côr  de  guerra.  Do  pescoço  pendem  dous 
collares  da  mesma  côr  a  tiracoUo  encontrados,  que  vem  a  morrer  na  cin- 
tura. Os  braços  pelos  hombros,  cotovelos,  e  pulsos,  vão  enfeitados  com 
suas  plumagens,  a  feição  de  enrocados  grandes.  Pela  cintura  apertão  huma 
larga  zona;  d'esta  pende  até  os  joelhos  hum  largo  fraldão  a  modo  trágico, 
e  de  tão  grande  roda,  como  he  a  de  hum  ordinário  chapeo  de  sol.  E  final- 
mente n'esta  conformidade,  nos  joelhos,  pernas,  pés,  vai  continuando  a 
libré,  toda.  da  mesma  peça,  de  pennas  de  aves,  as  mais  fermosas,  e  lus- 
trosas em  cores,  que  pêra  este  eíieito  guardão  de  seus  antepassados. 

130  Assi  se  veste,  e  arrea  o  feroz  combatente  sahindo  a  terreiro.  Leva 
nas  mãos  huma  maça,  á  maneira  d'aquella3  com  que  se  combatião  os  ca- 
valleiros  da  anligua  idade ;  a  qual  desde  a  empunhadura  até  aquella  parte 
mais  grossa,  com  que  fere,  vai  toda  guarnecida  das  mais  luzidas  pennas;  e 


DAS  COISAS    DO    HhA.ML  I.XXXI 

he  esta  feita  de  páo  mui  pesado,  e  forte  como  o  mesmo  ferro.  Assi  se  apre- 
senta o  combatente  no  terreiro,  soberbo,  jactancioso,  e  bizarro. 

131  Entretanto  vem  sahindo  o  triste  preso,  que  ha  de  ser  sacrificado, 
atado  com  duas  cordas  pela  cintm\a,  e  por  estas  tirão  dous  mancebos  ro- 
bustos, porque  não  possa  divertir-se  pêra  huma,  ou  outra  parte :  os  braços 
soltos,  para  com  elles  tomar  os  golpes,  que  lhe  começa  a  tirar  o  contrario; 
o  qual  se  vai  detendo  n"estes  de  propósito,  pêra  mór  festa  dos  circunstan- 
tes, até  que  com  a  ultima  pancada  lhe  faz  em  pedaços  a  cabeça,  e  o  derriba " 
morto,  com  taes  applausos,  gritas,  assovios,  bater  de  arcos,  e  de  pés,  dos 
que  estão  á  vista,  que  atroão  os  ares. 

132  Mas  voltando  atraz,  lie  muito  de  advertir  outra  notável  ceremonia: 
porque  logo  que  o  triste  preso  vai  sahindo  do  cárcere  pêra  a  morte,  he 
costume  irem  recebel-o  á  porta  seis,  ou  sete  velhas  mais  feras  que  tigres, 
e  mais  immundas  que  liarpyas,  de  ordinário  tão  envelhecidas  no  ofticio, 
como  na  idade,  passante  de  cem  annos,  que  assi  as  escolhem.  Vão  cober- 
tas com  as  primeiras  roupas  de  nossos  pais  primeiros,  mas  pintadas  todas 
de  hum  verniz  vermelho,  e  amarello,  com  que  se  dão  por  muito  engraça- 
das :  vão  cingidas  pelo  pescoço,  e  cintura,  com  muitos,  c  compridos  col- 
lares  de  dentes  enfiados,  que  tem  tirado  das  caveiras  dos  mortos,  que  em 
semelhantes  solemnidades  tem  ajudado  a  comer :  e  pêra  mór  recreação  vão 
ellas  cantando,  e  dançando  ao  som  de  certos  alguidares,  que  levão  em  as 
mãos  pêra  effeito  de  receber  o  sangue,  e  juntamente  as  entranhas  do  pa- 
decente. Recebidas  estas,  e  o  sangue,  entra  o  Principal  feito  Almotacel,  a 
repartir  a  carne  do  defunto.  A  esta  manda  dividir  cm  tão  miúdas  parles, 
que  possão  todos  alcançar  huma  pequena  fevera  sequer.  E  he  tanto  assi, 
que  aíTirmão  índios  antiquíssimos,  que  como  commummcnte  he  impossível 
chegarem  a  provar  tantas  mil  alrnas  da  carne  de  hum  só  corpo,  se  coze 
muitas  vezes  hum  s(')  dedo  da  mão,  ou  do  pé,  em  hum  grande  azado,  até 
ser  bem  delido,  e  depois  se  reparte  o  caldo  em  tão  pequena  quantidade  a 
cada  hum,  que  possa  dizer-se  com  verdade,  qne  bcbeo  pelo  menos  do  cal- 
do, onde  fora  cozida  aqueila  parte  de  seu  contrario.  E  quando  algum  dos 
Principaos,  ou  [H)V  enfermo,  ou  por  muito  distante,  não  pôde  achar-se  pre- 
sente, lá  se  liie  manda  seu  ((uinhão,  que  de  ordinário  he  huma  mão,  ou 
pelo  menos  hum  dedo  do  defunto.  E  este  se  tem  pelo  maior  brazão,  e  mór 
nobreza  de  toda  a  geração,  o  haver  morto,  comido,  ou  bebido,  de  alguma 
parfc  cozida  de  ?r-n  í/infnrin  mor*'^  om  *^vr?\rr>.  A  summi  dp  todns  p?tns 


I.XXXH  LIVRO  I  DA!^  NOTICIAS 

crueldades,  c  gontilidades  descreve  hum  poeta  moderno  com  os  versos  se- 
guintes (*) 

Lignea  clava  ollí  in  dextra,  quo  maclnt  ohéssos, 
Atque  saginatos  homines,  captivaquc  bello 
Corpora,  quce  discisa  in  frusta  írementia,  lentis 
Vel  torret  flammis.  cálido  vel  lixai  alieno  : 
Vel  si  quando  famis  rabies  stimiilat,  viage  cruda, 
Edam  cwsa  recens,  nigroque  fuentia  íabo 
Membra  voral,  tcpidi  pavitanii  sub  denlibus  arlns  : 
Horrendum  facinus  visu,  horrendumcpie  raeltu. 

133  Em  seus  casamentos  não  lia  respeito  a  parentescos  por  via  femi- 
nina :  antes  a  filha  da  irmãa  he  commummente  a  mulher  do  tio,  ou  a  mu- 
lher que  foi  do  irmão  defunto.  Tomão  muitas  mulheres ;  e  como  entre 
elles  não  se  trata  de  dote,  cuidão  que  fazem  muita  graça  em  casarem  com 
ellas.  Nem  seu  amor  he  tal,  que  por  qualquer  desgosto  que  tenhão  as  não 
larguem,  com  a  mesma  fLicilidade  com  que  as  receberão :  nem  ellas  se  ma- 
tão  muito  por  esse  apartamento.  As  fecundas  acabão  de  parir,  e  com,o  se 
o  não  fizessem,  continuão  em  seu  mesmo  serviço,  e  occupação,  como  d"an- 
tes.  Porém  os  maridos  (cousa  ridícula)  em  seu  lugar,  lanção-se  na  rede,  e 
são  visitados  de  seus  amigos,  como  o  houvera  de  ser  a  mulher :  a  ellcs 
curão,  dão  as  potagens,  e  comidas  sadias;  e  tem  certo  tempo  de  recolhi- 
mento, no  qual  não  convém  sahir  fora,  nem  tral3alhar,  por  não  empecer  á 
criança.  Mas  não  hc  muito  pêra  espantar  que  se  ache  este  costume  no  Bra- 
sil, quando  cni  Hespanha,  Córsega,  e  outras  partes  de  nações  mais  politi- 
cas, diz  o  Padre  Frei  João  de  Pineda,  que  em  tempos  antiguos  se  usava  o 
mesmo  por  auctoridade  ds  Sírabo,  João  Bohemo,  c  outros,  que  cita  na  sua 
Monarchia  Ecclesiastica. 

134  São  inconslantes,  c  variáveis:  o  que  hoje  fizerão  por  adquirir, 
ainda  que  com  grande  trabalho,  e  com  suor  de  muitos  dias,  já  ámanhãa 
não  he  de  estima  pêra  elles.  .0  lugar  onde  fixarão  suas  casas  a  poder  de  bra- 
ço, e  suor,  d'alii  a  pouco  já  não  Ih  s  r>ervr',  e  o  largão,  fazendo  outras 
com  novo  suor,  e  trabalho. 

13.5    A  seus  mortos  fazem  exéquias  barbaras,  e  muito  pêra  ver.  Iluns 

(«)  Abraham  Oílclio,  sobre  a  explicação  da  figura  da  America,  no  priociítio. 


DAS  COl'SAS  DO  HRASir,  LXXXIIl 

OS  ontorríío  cm  hum  vaso  de  barro,  que  cliamão  igaçaba,  com  sua  íoucc, 
Ci  cnxa:la  ao  pescoço,  ou  semclhantii  inslrumeiílo  de  seu  trabalho,  pêra  que 
possão  na  ouíia  vida  fazer  suas  plantas,  e  não  morrão  de  fome.  Outros 
melhorão  a  sepultara,  porque  os  metem  em  suas  entranhas,  com  as  cere- 
monias  seguintes.  Tirão  o  corpo  do  defunto  a  Irum  campo,  acompanhado 
de  todos  seus  parentes;  e  chegados  alli,  tirão-lhe  as  entranhas  os  feiticei- 
ros, e  agoureiros  mais  veneráveis;  e  logo  o  vão  repartindo  em  partes,  a 
cada  qual  aquella  que  lhe  cabe,  segundo  o  gráo  maior,  ou  menor  do  pa 
rentesf.o.  Estas  partes  torrão  no  fogo  certas  velhas,  a  quem  pertence  por 
oíTicio :  torradas  ellas,  cada  hum  come  aquella  que  lhe  coube  com  grande 
seníim3nto :  e  tem  pêra  si,  que  lie  o  sinal  de  maior  amor  que  podem  os- 
tentar n'esta  vida  aos  que  se  ausentão  pêra  a  outra,  o  dar-lhes  sepultura 
em  seus  ventres,  e  encorporal-os  em  suas  entranhas.  Porém  com  esta  dif- 
ferença,  que  os  corpos  dos  que  são  Principaes  só  os  comem  outros  Prin- 
cipaes  como  elles,  e  repartem  os  ossos  pelos  demais  parentes,  os  quaes 
guardão  pêra  tempo  de  suas  grandes  festas,  como  de  vodas,  ou  outras  se- 
melhantes; onde  partidos  por  miúdo  a  modo  de  confeitos,  os  vão  comendo 
pouco,  e  pouco;  e  em  quanto  todos  aquclles  ossos  na  forma  ditta  não  são 
comidos,  aiidão  de  luto;  que  entre  huns  he  cortar  ós  cabellos,  e  enlre  ou- 
tros deixal-os  crescer.  E  quando  depois  levantão  o  dó,  he  com  festas  ex- 
traordinárias de  vinhos,  c  bailes.  Os  Tapuyas  em  particular  comem  os 
filhos,  quando  succede  morre rem-ihes  pouco  depois  de  serem  nascidos: 
tendo  pcra  si,  quc^está  posto  em  boa  razão,  tenhão  por  tumba  depois  de 
mortos,  o  mesmo  berço,  em  que  gozáião  a  primeira  vida. 

13G  Os  titules  de  sua  mór  nobreza,  pêra  huns,  consistem  nas  maiores 
ossadas  de  seus  inimigos,  que  depois  de  mortos,  e  comidos,  guardão  cm 
lugares  particulares,  junto  a  suas  casas,  quaes  nos  cartórios,  os  brazões 
das  mores  fidalguias :  e  tanto  mais  se  prezão  d  estes,  quanto  í^ão  maiores 
os  montes  de  caveiras,  e  ossos,  porque  são  sinal  de  maior  numeio  dos 
vencidos  em  guerra,  e  de  suas  maiores  valentias.  Pêra  com  outros,  con- 
siste este  titulo  cm  hum,  como  tusão,  ou  habito,  que  trazem  lançado  ao 
pescoço;  e  he  hum  coilar  do  dentes  enfiados,  dos  que  matarão  em  suas 
guerras,  e  desafios :  tanto  mais  de  estima,  quanto  consta  de  maior  numero 
dos  queixaes,  que  n'elle  enfião.  Pêra  com  outros  são  as  unhas  crescidas. 
Pêra  com  outros  o  cabello  tozado.  Pêra  com  outros  um  fraldão  de  pennas  lus- 
trosas. Pêra  com  outros,  o  maior  numero  de  buracos  nas  faces,  e  beiços.  Estes, 
c  outros  semelhantes,  são  seus  títulos  vários,  e  varias  suas  presumpções, 


LXXXIV  LIVRO  I  DAS  NOTICIAS 

e  timbres  da  nobreza  de  suas  casas,  de  que  niuilo  se  prezao,  e  por  cuja 
defensão  darão  as  vidas,  e  passarão  por  todos  os  inconvenientes  do  mun- 
do, por  não  desdizerem  do  que  pede  cada  hum  destes  ti  lulos:  dadahuma 
caveira  d'estas,  ou  íio  de  dentes,  ou  pedra  de  face,  ou  beiço,  em  penhor 
de  sua  palavra,  não  faltarão  com  ella,  ainda  que  lhes  custe  a  vida. 

137  A  vinda  dos  amigos  recebem  lançando-lhes  os  braços  ao  pescoço, 
e  apertando-lhes  a  cabeça  a  seus  peitos,  com  grande  pranto,  triste  senti- 
mento, altos  suspiros,  e  copiosas  lagrimas;  como  compadecendo-se  dos  in- 
commodos,  que  no  caminho  havião  de  passar.  E  feito  isto,  no  mesmo  ponto 
se  mostrão  festivaes,  desterrão  o  sentimento,  suspiros,  e  lagrimas,  como 
se  estas  estivessem  a  seu  mando,  e  pelo  tempo  que  quizessem  somente. 

138  Rarissimamente  se  acha  entre  elles  torto,  cego,  aleijado,  surdo, 
mudo,  corcovado,  ou  outro  género  de  monstruosidade :  cousa  tão  commum 
em  outras  partes  do  mundo.  Tem  os  olhos  pretos,  narizes  compressos, 
boca  grande,  cabellos  pretos,  corredios;  barba  nenhuma,  ou  mui  rara.  São 
vividouros,  e  passão  muitos  de  cem  annos,  e  cento  e  vinte;  nem  entrão  em 
cãs,  senão  depois  de  decrépita  idade.  Quando  meninos  são  dóceis,  enge- 
nhosos, espertos,  e  l:>em  aífeiçoados:  mas  em  chegando  a  ser  maiores, 
todas  aquellas  partes  vão  perdendo,  como  se  não  forão  elles  os  mesmos. 
Tratão  huns  aos  outros  com  mansidão,  quando  estão  sem  vinho;  porque 
com  elle  gritão,  e  saltão  todo  o  dia,  e  noite;  tudo  são  brigas,  e  desarranjos. 

139  Também  se  enfeitão  a  seu  modo  de  diversas  maneiras.  Huma  he 
pintar-se  todo  o  corpo  de  varias  cores,  commummeni*  de  preto,  verme- 
ho,  e  amarello,  com  sumo  de  frutas,  janipabo,  uracú,  e  outras.  Outros  se 
ornão  de  pennas  varias,  de  guarás,  araras,  canindés,  e  outros  pássaros 
mais  lustrosos.  D'es!as  fazem  grinaldas,  coroas,  braceletes,  franjões,  plu- 
magens, e  com  ellas  se  enfeitão,  por  cabeça,  braços,  cintura,  e  pernas;  e 
cuidão  que  enlevão  os  olhos  dos  que  os  vêm.  Já  se  vão  furadas  as  orelhas, 
faces,  e  beiços,  na  forma  que  acima  dissemos,  não  ha  mais  fermosura  no 
mundo.  Os  mais  poderosos  passão  ainda  a  mão :  tecem  huma  rede,  e  vão-na 
enchendo  de  pennas,  a  modo  de  mantilha  de  cores ;  e  logo  lauçando-a  so- 
bre a  cabeça,  cobrem  até  a  cintara,  e  ficão  excedendo  a  todos  na  fermo- 
sura d'esta  gala. 

140  No  comer  são  também  singulares.  E  supposto  que  todos  usem  dos 
mesntos  mantimentos  (commummente  faltando)  de  raizes  de  plantas,  man- 
dioca, aypi,  batata,  inhame,  cará,  mangará,  legumes,  carne  de  suas  caças, 
peixe  *de  suas  pescas,  c  frutas  dos  campos :  são  comtudo  diversos  os  mo- 


DAS  COLSAS  DO  BBASIL  LXXXV 

dus  eulre  elles;  porque  liiiiis  costumão  comer  assado,  e  cozido  ao  modo 
ordinário;  o  que  ha  de  assar-se  sobre  brazas,  e  o  que  ha  de  cozer-se  em 
panelas,  a  que  chamão  nhaempepó,  de  cujo  caldo  com  farinha  de  mandio- 
ca fazem  como  papas,  que  chamão  mingau,  ou  mindipiró.  Outros,  basta 
tostar  a  carne,  ou  peixe  ao  sol,  e  dal-a  por  cozida,  e  assada,  e  pasto  sa- 
boroso. Outros  usão  de  melhor  artificio,  e  que  em  verdade  torna  a  carne 
(e  ainda  o  peixej  saborosíssimo :  fazem  na  terra  huma  cova,  cobrem-Ihe  o 
fundo  com  folhas  de  arvores,  e  logo  lanção  sobre  estas  a  carne,  ou  peixe, 
que  querem  cozer,  ou  assar,  cobrem-na  de  folhas,  o  depois  de  terra:  feito 
isto,  fazem  fogo  sobre  a  cova,  até  que  se  dão  por  satisfeitos,  e  então  a  co- 
mem :  e  chamão  a  este  modo  Biariby.  Os  peixes  miúdos  embrulhão  em 
folhas,  e  metidos  debaixo  do  borralho,  em  breve  tempo  ficão  cozidos,  ou 
assados.  Pêra  farinha,  ou  legumes  não  usãD  de  colher  quando  comem,  mas 
servem-lhe  em  lugar  d'ella  três  -dedos  tão  adestrados,  qiie  fazendo  o  lanço 
á  boca  de  remesso,  não  perdem  hum  só  grão.  O  tempo  de  comer  deter- 
minado, he  quando  a  natureza  lho  pede,  como  qualquer  animal  do  campo; 
e  pede-lho  ella  tantas  vezes,  que  comem  de  dia,  e  de  noite,  se  tem  que. 
Em  quanto  comem  observão  raro  silencio,^  raramente  bebem;  mas  depois 
o  fazem  por  junto,  e  com  a  demasia  que  diremos.  São  sofredores  de  gran- 
des fomes,  quando  he  necessário;  mas  tendo  que  comer,  acabão  huma  an- 
ta inteira  sem  descançar.  O  mesmo  he  nos  vinhos:  gastão  muitos  dias  em 
fazer  quantidade  em  talhas  grandes,  que  chamão  igaçábas;  porém  no  ponto 
em  que  está  perfeito,  comerão  a  beber,  e  não  acabão  até  que  não  acabe  o 
vinho,  ainda  que  seja  vomitando-o,  e  ourinando-o;  andando  á  roda,  e  bai- 
lando em  quanto  dura  a  causa  de  sua  alegria. 

141  Só  em  fazer  varias  castas  de  vinho  são  engenhosos.  Parece  certo, 
que  algum  deos  Baccho  passou  a  estas  partes  a  ensinar-lhes  tantas  espé- 
cies d'elle,  que  alguns  contão  trinta  e  duas.  Huns  fazem  de  fruta  que  cha- 
mão aíjayá;  outros  de  aipy,  e  são  de  duas  castas,  a  huma  chamão  cauyca- 
raçú,  a  outra  cauymachaxéra ;  outros  de  pacóba,  a  que  chamão  pacouy ; 
outros  de  milho,  a  que  chamão  abatiuy;  outros  de  ananás,  que  chamão 
nanauy,  e  este  he  mais  elíicaz,  e  logo  embebeda;  outros  de  batata,  que 
chamão  jeliuy;  outros  de  janipabo;  outros  que  ciiamão  bacútinguy;  outros 
de  beijú,  ou  mandioca,  (jue  chamão  tepiocuy ;  outros  de  mel  silvestre,  ou 
de  açúcar,  a  que  chamão  garapa:  outros  de  acajú;  e  d"este  em  tão  grande 
quantidade,  que  j)odeni  encher-se  muitas  pi{)as,  de  côi"  a  modo  de  palhete. 
D  esto  vi  ou  huma  frasqueira,  c  se  não  fora  certificado  do  que  era,  affir- 


tXXXVI  LlVflO  I  DAS  NOTICIAS 

mára  que  era  vinho  de  Portugal.  Fazem-no  da  maneira  seguinte.  Espremem 
o  acajú  ém  vasos,  e  n'estes  o  deixão  estar  tanto  tempo,  que  ferva,  escume, 
e  fermente,  até  ílcar  com  sasíancia  de  vinho,  mais  ou  menos  azedo,  se- 
gundo a  quantidade  do  tempo.  lie  este  vinho  entre  elles  estimado  sobre 
todos  os  outros :  e  ser  senhor  de  hnm  d'estes  cajiiaes  pêra  eíTeito  d'elle, 
he  ter.  o  morgado  mais  pingue. 

142  Em  suas  curas  ri-se  esta  gente  de  medicamentos  compostos :  só 
nos  simples  dos  campos  tem  sua  confiança;  e  estes  lhes  ensinou  a  nature- 
za, e  o  uso,  como  a  arte  aos  melhores  médicos.  Cada  qual  he  mtedico  de 
si,  6  dos  seus;  e  apphcão  com  grande  destreza  os  remédios,  assi  interio- 
res, como  exteriores,  especialmente  contra-venenos.  Nos  enchimentos  eva- 
cuão  o  sangue  chupando-o  á  força  por  entremeios  de  certos  cabacinhos, 
ou  sarjando  o  corpo,  ou  rasgando  também  as  veas  com  hum  dente  de  pei- 
xe, que  serve  de  lanceta.  Ditoso  he  o  que  sara  com  estes  remédios:  porque 
cm  chegando  a  desconfiar  o  Medico  de  que  estes  não  bastão,  convocão  os 
parentes,  e  feito  pranto  sobre  o  enfermo,  lhe  dão  com  huma  maça  na  ca- 
beça, e  o  acabão,  e  feito  em  pedaços  o  fazem  pasto  de  seus  ventres;  e  tem 
por  gloria,  não  só  os  parentes,  -mas  tam.bem  o  que  ha  de  morrer,  que  che- 
gue a  acabar  com  huma  acção  de  tanto  valor,  e  por  esta  via  se  livre  das 
misérias  da  vida,  e  vá  gozar  dos  lugares  alegres,  que  só  se  concedem  na 
outra  aos  que  morrerão  valerosamente. 

143  Tem  também  seus  instrumentos  músicos.  Huns  os  fazem  de  ossos 
de  finados,  a  que  chamão  cangoéra:  outros  cliamão  murémuré:  outros 
maiores  commummente  de  conchas,  chamão  membyguaçú,  e  outros  uru- 
cá :  outros  de  cana  chamão  membyapára.  São  mui  dados  a  dançar,  e  sal- 
tar de  muitos  modos,  a  que  chamão  guaú  em  geral :  a  hum  dos  modos 
chamão  uracapy;  a  outro,  dos  de  menor  idade,  chamão  curupirára:  outro 
guaibipáye,  outro  guaibiâbucú.  Hum  doestes  géneros  de  danças  he  mui  so- 
iomne  entre  elles;  e  vem  a  ser,  que  andão  n'elle  todos  á  roda  sem  mmca 
mudarem  o  lugar  d'onde  começarão,  cantando  no  mesmo  tom  arengas  de 
suas  valentias,  e  feitos  de  guerra,  com  taes  assovios,  palmadas,  e  patadas, 
que  atroão  os  valles.  E  pêra  que  não  desfallcção  em  acção  tão  heróica,  as- 
sistem alli  ministros  destros  que  dão  de  beber  aos  dançantes  continuam.ente 
de  dia,  de  noite,  ate  que  vão  embebedando-se,  e  cahindo  ora  luim,  ora 
outro,  e  finalmente  quasi  todos. 

144  Estes  são  os  costumes  dos  índios  do  Brasil,  faltando  em  commum; 
senão  que  os  Tapuyas  tem  alguns  singulares.  Porei  aqui  somente  os  em 


DAS  COrSAS  DO  BRASIL  LXXXVII 

que  diííerem.  He  esta  gente  dos  Tapuyas  a  mais  vagaljimda  de  entre  to- 
das :  mudão  o  sitio  quasi  todos  os  dias  com  estas  cereraonias.  Á  vespora 
do  dia,  o  Principal  de  lodos  faz  ajuntar  a  relê  de  seus  feiticeiros,  e  adivi- 
iiiiadores,  que  sempre  têm  em  grande  quantidade;  e  feito  conselho  com 
elles,  pergunta,  aonde  será  bem  que  vão  assentar  rancho  o  dia  seguinte  ? 
e  o  que  hão  de  fazer  ivelle  ?  de  que  .maneira  hão  de  matar  as  feras  ?  ele. 
Ouvido  o  oráculo,  o  modo  que  tem  de  partir  he  n'esta  íórma.  Antes  que 
abalem,  vão  totlos  juntos  a  lavar-se  em  rio,  ou  em  outra  quakiuer  agoa ; 
feito  o  lavatório,  esfregão  os  corpos  peU  área,  lodo,  ou  terra,  e  tornão  se- 
gunda vez  a  lavar-se;  c  sabidos  da  agoa,  vão-se  ao  togo,  c  ao  ar  d'elle  vão 
sarjando  seus  corpos  com  dentes  de  animal  por  diversas  partes,  até  lança- 
çarem  sangue :  e  este  tem  por  remédio  único  pêra  evitar  o  cansaço  que 
haviãode  terno  caminho.  Chegados  ao  lugar  destinado  por  seus  feiticeiros, 
os  que  são  mais  mancebos  vão  logo  ao  mato,  cortão  ramos,  fazem  barra- 
cas toscas,  e  pequenas,  chamadas  como  elles  Tapuyas :  e  logo  estas  são 
povoadas  das  mulheres,  crianças,  e  bagagem  de  todos  os  haveres  que  com- 
sigo  trazem.  Isto  feito,  dY'Síe  lugar  (morada  que  ha  de  ser  de  imm  dia) 
partem  os  homens,  huns  á  caça,  outros  á  pesca,  outros  a  mel  silvestre;  e 
as  mulheres,  as  de  mais  idade,  humas  ás  raizes  de  ervas,  outras  ás  fru- 
tas, que  possão  servir-liies  de  pão,  e  juntamente  de  vinho.  As  de  menor 
idade  íicão  em  casa,  e  vão  preparando  as  cousas,  assi  como  vão  vindo  pêra 
sustento  commurn  de  toilos.  O  demais  tempo  cantão,  danção,  saltão,  o 
kl  tão. 

14.J  ile  pêra  ver  a  Ijrevidade,  c  facilidade  com  ([ue  cação.  Ajuntão-se 
os  caçadores  todos  (que  commummente  \em  a  ser  muitos  centos)  vão-sc 
ao  lugar  destinado,  seguindo  o  oráculo  de  áeus  feitictíiros,  despedem  al- 
guns delles,  os  mais  destros,  a  vigiar  as  covas,  e  jazigos  da  caça:  os  quaes 
achados,  voltão,  e  dado  ponto,  vão  todos,  c  cercão  o  lugar,  c  como  são  em 
tanta  ífuanlidade,  e  destros  na  arte,  não  lhes  escapa  fera  alguma,  por  mais 
ligeira,  ou  maniiosa  que  seja;  porque  se  fogem  das  mãos,  ou  dos  arcos, 
dão  na  boca  dos  cães  caçadores.  Concluída  a  caça,  logo  com  grande  festa 
dão  com  toda  ella  no  meio  de  seus  ranchos,  cantando,  e  bailando;  sahem- 
Itie  ao  encontro  na  mesma  forma,  as  fjue  licárão  em  guarda  das  choupa- 
nas, desentranhão  as  feras  (cento,  duzentas,  «  ás  vezes  mais,  segundo  o 
numero  dos  caçadores,  e  fertilidade  do  sitio)  e  feitas  gi-andes  covas  cober- 
tas por  dentro  de  folhas,  metem  n "ellas  os  animaes  em  })edaços,  e  cobertas 
de  terra,  pondo  fogo  sobre  ellas,  na  maneira  que  acima  dissemos,  íicão 


LXXXVUI  LIVUO  I  LAS  NOTICIAS 

cozidas,  ou  assadas,  como  em  forno.  Tem  pouco  que  trabalhar  no  assentar 
das  mesas,  que  quando  muito  são  folhas  de  arvores  sobre  a  mesma  terra : 
n'esta  mesma  se  assentão  em  roda,  c  com  as  raizes,  c  legumes,  que  li- 
nhão  ajuntado  as  de  casa,  comem  todos  até  mais  não  poder,  sem  provi- 
dencia dos  seguintes  dias,  porque  pêra  estes  estão  confiados  na  destreza 
dos  arcos,  e  de  seus  agoureiros. 

1 46  O  tempo  que  sobeja  do  dia,  gastão  em  jogos,  cantos,  e  bailes ;  e 
assi  vão  passando  a  vida,  sem  cuidado  algum  da  eterna,  ou  conta  alguma 
do  bem,  ou  mal  que  íizerão.  Sobre  a  tarde  torna  o  Principal  a  consultar 
seus  feiticeiros  acerca  do  dia  seguinte;  n'este  fazem  o  mesmo,  e  o  mesmo 
em  todos  os  demais;  e  este  he  seu  modo  continuo  de  viver. 

147  He  singularmente  fero  entre  esta  gente  o  modo  de  furar  as  ore- 
lhas, faces,  e  beiços.  Tomão  o  pobre  moço  padecente,  levão-no  como  em 
procissão  entre  cantos,  e  danças;  e  chegando  ao  lugar  destinado,  hum  dos 
mais  nobres  feiticeiros  amarra-o  de  pés,  e  mãos,  de  maneií-a  que  não  possa 
mover-se :  e  logo  entra  outro  feiticeiro,  e  com  hum  pâo  duro,  e  agudo  lhe 
fura  as  orelhas,  faces,  ou  beiços,  segundo  o  que  pedem  os  parentes,  ou 
suas  boas  obras  merecem;  planteando  entretanto  as  mais  á  vista  do  tor- 
mento dos  filhos;  porém  levando  tudo  cm  bem  por  ser  acção  de  gloria,  e 
honra  da  familia. 

148  O  que  he  Principal  dos  Tapuyas  he  conhecido  entre  os  outros, 
porque  traz  o  cabello  tosado  a  modo  de  coroa,  e  as  unhas  dos  dedos  po- 
legares muito  compridas;  insígnia  que  pertence  somente  ao  Príncipe,  e  ne- 
nhum he  ousado  trazer.  Os  mais  parentes  seus,  e  os  que  são  famosos  na 
guerra,  tem  privilegio  de  unhífs  compridas  nos  mais  dedos  das  mãos,  po- 
rém não  no  polegar.  Das  crianças  dos  Tapuyas  se  diz,  que  dentro  em  nove 
semanas  começão  juntamente  a  andar,  e  nadar :  pelo  que  nenhum  ha  entre 
elles,  macho,  ou  fêmea,  que  náo  seja  insigne  n"esta  arte.  Chegão  a  mais 
annos  de  idade  que  todas  as  outras  nações.  Aífirma-se  d"elles,  que  passão 
muitos  de  cento  e  trinta,  e  cento  e  quarenta  annos:  e  são  estes  antiguos 
tidos  entre  elles  em  grão  veneração,  e  como  oráculos. 

149  São  também  singulares  na  falia:  porque  se  aíBrma  terem  perto  de 
cem  lingoas  diversas.  E  da  mesma  maneira  excedem  em  numero  de  gente, 
que  alguns  tiverão  por  maior  que  o  de  toda  a  Europa  junta.  São  inimigos 
conhecidos  de  todas  as  mais  nações  de  índios :  com  estas,  e  ainda  com 
algumas  das  suas,  trazem  guerras  continuas.  E  d'esta  tão  conhecida  inimi- 
zade, lhe  veio  o  nome  de  Tapuyas,  que  vai  o  mesmo  que  de  contrários. 


DAS  COUSAS  DO  I5HASIL  LXXXIX 

OU  inimigos.  Além  creste  nome  geral  a  todos,  toma  outro  cada  qual  das 
suas  nações,  ou  do  lugar,  ou  de  seu  Principal :  costume  antiguo  dos  pri 
meiros  povoadores  do  mundo ;  como  de  Roma,  ou  de  llomulo  tomarão  o 
nome  os  Romanos :  de  Luso  os  Lusitanos :  de  Agar  os  Agarenos  :  de  Israel 
os  Israelitas.  Assi  também  entre  estes  índios,  de  hum  Principal  chamado 
Potygoár  tomarão  nome  qs  Potygoares :  de  Tupy  (que  dizciu  ser  o  d'onde 
procede  a  gente  de  todo  Brasil)  Immas  nações  tomarão  o  nome  de  Tupy- 
nambás,  outras  de  Tupynaquis,  outras  de  Tupygoaés,  e  outras  de  Tomi- 
minós. 

150  Concluo  este  livro  dos  índios  com  a  declaração  de  suas  espécies. 
As  nações  dos  índios  do  Brasil  todo,  reduzem  alguns  a  três:  Topayaras, 
Potigoares,  Tapuyas :  outros  a  quatro,  acrescentando  a  estas  a  de  Tupinam- 
bás :  outros  a  cinco,  acrescentando  mais  a  de  Tamoyos :  outros  a  seis, 
acrescentando  a  de  Carijós.  Porém  eu  fazendo  com  curiosidade  diligencia 
por  vários  escrittos  de  antiguos,  e  pessoas  de  experiência  entre  os  índios, 
com  mais  propriedade  julgo,  que  toda  esta  gente  se  deve  reduzir  a  duas 
nações  genéricas,  ou  a  dous  géneros  de  nações  somente,  as  quaes  se  divi- 
dão  depois  em  suas  espécies  na  maneira  seguinte. 

ioi  Todos  os  índios  quantos  ha  no  Brasil,  vemos  que  se  reduzem  a 
índios  mansos,  e  índios  bravos.  Mansos  chamamos,  aos  que  com  algum 
modo  de  ré[)ublica  (ainda  que  tosca)  são  mais  tratáveis,  e  perseveráveis 
entre  os  Portugueses,  deixando-se  instruir,  e  cultivar.  Chamamos  bravos, 
pelo  conti'ario,  aos  que  vivem  sem  modo  algum  de  republica,  são  intratá- 
veis, e  com  diíliculdade  se  deixão  instruir.  Aquella  nação  genérica  de  ín- 
dios mansos  divide-se  em  algumas  espécies,  e  a  principal  comprehende 
todos  os  bandos,  ou  ranchos  de  semelhantes  índios,  que  correm  ordina- 
riamente a  costa  do  Brasil,  e  fallão  aquella  lingoa  commum,  de  que  com- 
poz  a  Arte  Universal  o  Padre  Joseph  de  Anchieta,  da  Companhia  de  Josu, 
como  são  Tobayaras,  Tupis,  Tupinambás,  Tupinaquis,  Tupigoáes,  Tuminii- 
nós,  Amoigpyras,  Araboyarás,  Rariguoáras,  Potigoares,  Tamoyos,  Carijós, 
e  outras  quaesquer  que  houver  da  mesma  lingoa.  Todas  tenho  que  fazem 
só  huma  espécie,  ou  nação  especifica,  posto  que  accidentalmente  diversas, 
em  lugares,  e  ranchos. 

i5!2  A  outra  espécie  he  de  Goayanás,  índios  que  lambem  se  contão 
entre  os  mansos;  mas  diflerenle  lingoa ;  são  dos  mais  tratáveis,  e  habitãc»' 
pêra  a  ultima  parle  do  Sul,  fronteiros  aos  Carijós,  e  contrários  seus.  Ou- 
tras  espécies  muitas  ha  d'cstc5  índios  pelo  sertão  dentro;  especialmente 

VOL.    1  M 


XC  LIVRO  I  DAS  N0T1CL\S 

pelo  Rio  das  Almazonas  acima,  de  homens  não  só  nas  lingoas,  mas  na  còr, 
feilio,  e  cosTtimos  diversos:  mas  gente  mansa,  e  Iriítavei. 

lo3  A  outra  nação  genérica  lie  de  Tapiiyas.  Desta  afllrnião  muitos, 
que  comprehende  debaixo  de  si  perto  de  hum  cento  de  lingoas  diíTerentes; 
e  por  conseguinte  outras  tantas  espécies:  a  saber,  Aymorés,  Potentús, 
Guaitacás,  Guarámomis,  Goarégoarés,  JeçaruçúS;  Amanipaqués,  Payeás : 
seria  cansar  contar  todas. 

154  Esta  repartição  que  faço,  he  conforme  ao  uso  das  gentes,  entre  as 
quaes  não  se  chama  nação  diversa,  a  que  não  tem  diversa  lingoa,  nem  basta 
diversa  região,  nem  diverso  tratto,  nem  diverso  Principe;  como  por  induc- 
ção  se  pôde  ver,  discorrendo  pelas  nações  do  mundo:  porque  por  isso  a 
nação  Portuguesa  se  tem  por  distinta  da  Castelhana,  esta  da  Biscainha,  a 
Biscainha  da  Francesa,  a  Francesa  da  Hoilandesa,  etc.  porque  tem  diver- 
sas hngoas  humas  das  outras;  e  tanto  mais  diversas  são  as  nações,  quanto 
são  m.ais  diversas  as  lingoas.  Diversas  regiões  são  a  de  Roma,  e  a  de  Siciha; 
e  comtudo  porque  os  homens  delia;)  fallão  huma  só  lingoa,  he  huma  só 
nação.  Diverso  Principe  he  o  dos  Romanos,  que  lic  o  Papa,  e  o  dos  Sici- 
lianos, que  he  o  Rei  de  Hespanha;  e  comtudo  essa  diversidade  não  faz  di- 
versas a  nação  Romana,  e  Siciliana.  Diversa  religião,  e  costumes  tem  os 
Hollandeses  das  Províncias  sujeitas  a  Hespanha,  que  os  d"aquelias  que 
chamão  unidas :  huns  são  catholicos,  e  outros  hereges :  huns  seguem  os 
costumes  de  Christo,  outros  os  de  Lutero,  Calvino,  etc,  e  comíudo  a  na- 
ção he  a  mesma,  porque  a  lingoa  he  a  mesma. 

155  D'aqui  se  declara,  que  nenhuma  das  primeiras  divisões  que  refe- 
ri, que  alguns  fazião,  postas  no  principio,  he  ajustada  com  o  uso  das  gen- 
tes, porque  não  põem  a  diversidade  nas  lingoas :  os  Tobayaras  não  tem 
diversa  lingoa  dos  Potigoares,  nem  dos  Tupinambás,  nem  dos  Tamoyos, 
nem  dos  Carijós,  e  fazião-nas  comtudo  diversas  nações.  E  quando  se  hou- 
vessem de  diversillcar  pelas  regiões,  costumes,  ou  Príncipes  diversos ; 
ainda  então  não  era  próprio  o  numero  das  divisões,  de  três,  quatro,  cin- 
a.t,  nem  seis  espécies;  porque  nesse  sentido  são  muito  mais  sem  compa- 
ração suas  diversas  regiões,  costumes,  e  Príncipes. 

156  Tobayaras  são  os  índios  principaes  do  Brasil,  e  pretendem  elles 
ser  os  primeiros  povoadores,  e  senhores  da  terra.  O  nome  que  tomarão  o 
mostra ;  porque  yára  quer  dizer  senhores,  tol)á  quer  dizer  rosto;  c  vem  a 
dizer  (jue  são  os  senhores  do  rosto  da  terra,  que  elles  tem  pela  fronteira 
do  maritimo,  cm  comparação  do  sertão.  E  na  verdade,  elles  são  os  que  se- 


DAS   COUSAS    DO   BRASIÍ,  XCl 

nhoreái-ão  sempre  grande  parte  da  costa  do  mar.  Outros  d^zem  que  aquelle 
Tobá  allude  á  teiTa  da  Bahia,  que  sempre  foi  tida  entre  os  índios  por  rosto 
ou  cabeça  do  Brasil :  e  porque  estes  Tobayáras  senhorearão  piúncipalmente 
esta  parte,  por  isso  dizem  se  chamãQ  Tobayáras :  a  saber,  senhores  da  terra 
da  Bahia.  E  na  verdade  como  taes  forão  sempre  reverenciados  entre  os 
mais  índios,  por  primeiros,  de  grão  senliorio,  e  por  valentes,  e  fieis. 

157  Em  segundo  lugar  os  Potigoáres  forão  sempre  índios  de  valor,  e 
se  fizerão  estimar  pelas  armas,  que  por  longos  annos  moverão  contra  os 
Tobayáras :  nas  quaes  tiverãp  encontros  dignos,  de  Jiisíoria;  porém  não  me 
posso  deter  em  contal-os:  ficarão"  pêra  cpeú  de  professo  tratar  das  cousas 
do  Brasil.  Senhorearão  principalmente  da  Capitania  de  Pernambuco,  e  Ita- 
maraca  pêra  baixo  por  costa,  e  pelo  sertão,  grande  espaço  até  as  serras 
de  Copaoba  onde  puiihãq  enj  (saaMw^vi^ite/até  trinta.:  mU  «ircos.  O  terceiro 
lugar  na  valentia,'  cdnsilncijí  na  fudrra^,  ,è  outraf  boas  pahes,  tem  os  Ta- 
moyos  do  Rio  de  Janeiro :  de  cujos  successos  de  guerra  diremos  alguma 
»'ousa  quando  tratannos  d"esta  Capitania.  Tapuya  não  he  nome  propria- 
mente de  nação,  he  só  de  divisão;,  e  vai  tanto  como  dizer,  contrario;  por- 
que era  o  mesíno  ver  qualquer'  outr.rríáção  hiim  Taptiya,'que  vtír  hum 
inimigo  declarado,  por  nome,  e  effeito :  porque  como  a  nação  dos  Tapuyas 
he  gente  atrciçoada,  e  tragadora  que  igualmente  anda  á  caça  da  gente,  o 
das  feras,  pêra  paésto  da  gula :  a  t )  las  as  outras  tinha  feita  insultos,  quer 
no  secreto,  quer  no  publico,  c  por  isso  era  tida  de  iodas  por  inimiga,  e 
como  tal  chamada  Tapuya:  a  saber,  nação  contraria.  Tem  muito  mais  co- 
pia de  gente,  que  alguma  das  outras  nações;  e  alguns  cuidão  que  mais  que 
todas  juntas.  Forão  sempre  assi,  como  mais  feras,  mais  affciçoadas  ás  en- 
tranhas das  brenhas,  e  desertos.  Ordinariamente  quasi  todas  estas  suas 
nações  andão  com  guerra  entre  si;  porquê  Como  o  seu  mais  estimado  pasto 
seja  carne  humana,  [)or  esta  via  pretendem  havel-o. 


LIVRO  SEGlIPiDO 

DAS  NOTICIAS 

ANTECEDENTES,  CURIOSAS,  E  NECESSÁRIAS 

DAS  COUSAS  DO  BRASIL 


SUMNA 

Contém  outra  parte  da  resolução  das  perguntas  curiosas  das  cousas 
dos  índios.  Se  chegou  a  degenerar  alguma  de  suas  nações,  de  maneira 
que  perdesse  o  ser  de  humana  ?  Que  religião  seguem  ?  Se  he  certo  que 
veio  a  estas  partes  S.  Thomé,  ou  outro  Apostolo  de  Christo  ?  Se  estando 
na  ignorância  de  sua  gentilidade,  podião  salvar-se  alguns  d'ell€s?  Trata 
da  bondade  da  terra  do  Brasil.  Defende  esta  das  calumnias  que  os 
antiguos  lhe  impunhão  de  Zona  tórrida ^einhabitavel :  e por  fim  mostra 
d  bondade  do  clima,  e  duvida,  se  ndle  plantou  JJeos  o  paraíso  terreal? 


DAS  COUSAS  DO  BRASIL  XaU 

1  Moslrámos  no  livro  antecedente  os  costumes  dos  índios,  em  quanto 
habitão  seus  sertões,  e  seguem  sua  gentilidade.  E  he  bem  que  conheçâo 
elles,  e  o  mundo  as  monstruosidades  de  sua  natureza,  pêra  que  d'ellas 
mais  admirem  a  efficacia,  com  que  a  lei  de  Deos  de  toscas  pedras  faz  fi- 
lhos de  Adão,  e  de  rudes,  e  bárbaros,  homens  racionaes;  porque  he  cousa 
certa,  que  com  a  virtude,  e  boa  criação  d'esta  santa  lei  entre  os  Portugue- 
ses, tem  visto  o  Brasil  mudanças  mui  notáveis  nas  nações  d'esta  gente. 
D'estas  mudanças  iremos  vendo  successos  dignos  de  historia  em  seus  lu- 
gares, quando  venha  a  propósito  de  nosso  intento,  especialmente  nas  fun- 
dações das  Capitanias  da  Bahia,  Pernambuco,  Rio  de  Janeiro,  e  outras;  em 
cujas  conquistas  florecerão  muitos  em  numero,  que  forão  afíamados,  lou- 
vados, e  premiados  dos  Governadores,  e  Reis,  por  valerosos,  engenhosos, 
guerreiros,  e  fieis;  e  o  que  mais  he,  por  dóceis,  pios,  amorosos,  respu- 
blicos,  christãos,  sofredores  de  todos  os  contrastes:  tudo  ao  contrario  do 
que  no  livro  antecedente  vimos.  E  por  agora  seja  exemplo  hum  famoso 
Tabiá,  que  irmanando-se  com  os  Portugueses,  fez  proezas  em  armas,  em 
fé,  e  lealdade  christãa.  Hum  Itájibá,  que  quer  dizer  braço  de  ferro :  hum 
Pirajibá,  que  quer  dizer  braço  de  peixe :  hum  Exuig,  Jucúguaçú,  Tapéri- 
rij,  Taperibira,  Tapéroába,  Tarapápong,  Aparaitíçabucú,  Aparaiticamirí, 
Pindaguaçú,  Ibitinga,  Ibitingapeba,  todos  de  nação  Tobayáras,  famosos,  e 
christãos,  que  como  taes  acabarão  na  Fé  de  Christo,  cora  esperança  de 
sua  salvação. 

2  Da  mesma  maneira  dos  Potigoáres,  hum  antiguo  Potígoaçú,  Guiráo- 
pina,  Arárúna,  Cerobabé,  Meimguaçú,  Ibâtatá,  Abaiquija,  todos  famosos, 
e  Principaes  de  grandes  povos;  dos  quaes  se  afiirma,  punha  em  campo  cada 
qual  d'elles  de  vinte  até  trinta  mil  arcos,  que  forão  grande  presidio  nosso 
nas  Capitanias  de  Itamaracá,  Parahiba,  e  Rio  Grande.  Não  fallo  aquid'ou- 
tro  Potiguaçú,  maior  que  todos  estes,  assombro  que  foi  de  Hollandeses  em 
nossos  tempos,  nas  guerras  do  Brasil;  porque  pêra  suas  façanhas  hum 
tomo  inteiro  era  pouco  volume.  E  de  todo  o  dito  se  tira  claramente,  que 
não  nascem  os  costumes  avessos  d'esta  gente  do  clima  da  terra,  mas  so- 
mente da  corrupção  da  natureza,  e  falta  de  boa  criação,  em  verdadeira 
fé,  lei,  e  policia ;  pois  vemos  que  com  esta  luz  cultivados,  quasi  diíTerem 
de  si  mesmos. 

3  Vj  por  aqui  tínhamos  assas  respondido  á  pergunta  das  cousas  dos 
índios.  Porém  como  í»;  ajuntou  a  esta,  a<jnoll.i  ultima  adiniiação  dos  Por- 


XCIV  I.IVKO  II  DAS  NOTICIAS     . 

lugueses,  que  perguiitavão.  coiiio  chegarão  íi  eslado  tão  grosseiro  algumas 
nações  d'estas,  especialmente  Tapuyas,  que  pôde  duvidar-se  d'elles,  se 
nascerão  deliomons,  ou  conservão  a  hiunaua  espécie?  Por. satisfazer  a  esta 
pergunta  rem  mais  abono  desta; gente  pobre,  e.  miserável,  que  nem  cabe- 
dal tem  pêra  acudir  por  si;  de  boa  vontade  referirei  aqui  a  resolução  d'ésta 
pergunta,  antigaanienle  contestada  pelos  primei i'os  que  povoarão  esta  Ame- 
rica, pela  parte.,Setentíional  da  Nov;a  Hespanha,  e  sentenciada  polo  Summo 
Pontífice,  quo  no  mesmo  temp.o  regia  a  Igreja  de  Deos. 

4    Chegarão  a  ter  pêra  si  muiíos  daquelíes  primeiros  povoadores,  não 
só  idiotas,  inais  ainda  ÍGi.rad,03,  .-que  os; índios  da  Ameiica  não  erão  verda- 
deiramente homens.  racioEaes,._iíem  indivíduos  da  verdadeira  espécie  hu- 
mana ;  e  por  conseguinte,  que  erão  incapazes  dos  sacramentos  da  santa 
Igreja :  que  podia  toinal-os  pêra  si,  qualquer  que  os  houvesse,  e  servir-se 
delles,  da  mesma  maneira  qu^  de  hum  camelo,-  de  hum  cavallo,  ou, de  hum 
boi,  feril-os,  maltratal-os,  matal-os,  sem  injuria  alguma,  restituição,  ou 
peccado.  E  o  peor  he,  que  poz  o  interesse  dos  homens  em  praxe  usual 
tão  deshumana  opinião.  E  comççou  a ,  execução  d'esta  nova  doutrina  na 
ilha  Hespanhola,  primeira  que  foi  no  descobrimento  dos  índios,  e  pri- 
meira na  execução  da  ruina  d^elles ;  e  foi  lavrando  pelo  Reino  de  México, 
e  por  toda  a  Nova  Hespanha.  N'aquella  ilha, 'testemunha  Frei  Bartholameu 
de  las  Casas,  Bispo  de  Ciiiapa,  varão  de  grande  auctoridade,  que  chegarão 
os  Hespanhoes  a  sustentar  seus  libréos  com  carne  dos  pobres  índios,  que 
pêra  o  tal  eíTeito  matavão,  e  fazião  em  postas,  como  a  qualquer  bruto  do 
mato.  A  Historia  geral  das  índias,  cap.  xxxiii,  faltando  4a  mesma  ilha  Hes- 
panhola diz,  que  usavão  aquelles  moradores,  dos  índios  como  de  animaés 
de  serviço,  tendo  por  cousa,  sua  aquelies  que  podião  apanhar,  quaes  feras 
do  campo;  e  que  os  fazião  trabalhar  em  suas  minas,  maltratando^os,  aeu- 
tilando-os,  e  matando-os,  como  lhes  parecia.  E  que  chegara  a  ficar  a  ilha 
por  esta  razão  hum  deserto ;  porque  de  hum  milhão  e  meio  que  havia, 
chegou  a  não  haver  quinhentos.  E  Frei  Agostinho  de  Ávila,  na  sua  Chro- 
nica  da  Província  de  México  diz,  que  em  seu  tempo  chegara  a  não  haver 
hum  só;  çiorrendo  huns  á  fome,  outros  a  rigor  de  trabalho,  outros  a  mãos 
dos  Hespanhoes;  e  os  mais  se  matavão  a  si  mesmos  com  peçonhas,  ou  en- 
/jrcando-so  das  arvores  por  esses  campos,  as  mulheres  juntamente  com  os 
maridos,  e  a  ogando  também  os  próprios  ílihos,  antes  de  sahir  das  entra- 
nhas, poi'que  não  chegassem  a  ver,  e  experimentar  tempos  tão  infelices.  A 


DAS  COUSAS  DO  BRASIL  XCV 

lanlo  chega  a  cobii;a  dos  homens,  e  a  tanto  chegarão  aquelles  prmicn'os 
Hespanhocs,  segundo  a  relação  dos  autores  acima  citados ! 

5  A  tão  lastimoso  estado  aciidio  o  Ceo  (quando  já  os  brados  de  tanto 
sangue  chegarão  ao  Tribunal  do  Empino)  por  meio  de  hum  varão  espiri- 
tual, grande  Religioso  da  Ordem  sagrada  do  Patriarcha  S.  Domingos,  por 
nome  Fr.  Domingos  de  Betanços,  Provincial  que  foi  n*aquellas  partes.  Com- 
padecido este  de  males  tão  grandes,  e  tão  manifestos  impedimentos  da 
pregação  do  Evangelho,  mandou  a  Pioma  hum  Religioso  da  mesma  Ordem, 
por  nome  Fr.  Domingos  de  Minaja,  varão  de  grandes  partes,  a  tratar  esta 
causa  no  Tribunal  do  Summo  Pontífice  anno  de  1337,  no  qual  Tribunal, 
depois  de  vistas  as  informações  de  huma,  e  outra  parte,  se  determinou 
com  autoridade  apostólica,  como  cousa  tocante  â  Fé,  que  os  índios  da 
America  são  homens  racionaes,  da  mesma  espécie,  e  natureza  de  todos  os 
outros ;  capazes  dos  sacramentos  da  santa  Igreja;  e  ix)r  conseguinte  livres 
por  natureza,  e  senhores  de  suas  acções:  na  forma  que  se  vè  nas  mesmas 
Letras  Apostólicas,  que  são  as  seguintes. 

6  Paulus  Papa  Tertius,  ttnicersis  CIwisti  fidelibus,  prwsenfesUtteras  ins- 
pecttiris,  .mhdcm,  et  Aposfolicam  benedtctionem.  Et  infra.  Veritasipsa,  quce 
nec  falli,  nec  fallerc  potest,  cúm  pranUcalores  fidei  ad  officium  prajdicatioms 
destinaret,  dixisse  cognoscitur,  Euntesdocete  omnes  gentes.  Omnes  dixct,  abs~ 
que  omni  delectu,  càm  omnes  fidei  disciplina;  capaces  existant.  Quod  videiis, 
et  invidcns  ipsliis  Inimani  generis  wmvlus,  qtii  bonis  operibus,  uipcreant^sem- 
per  adversatur.,  modum  cxcogituvit  hudcnus  inauditum,  quo  impcdirct,  ne  ver- 
bum  Dei  gcntibus,  ut  salvw  fiercnt,  prccdicaretur:  ac  quosdam  suos  satellites 
commovit,  qui  suam  cnpiditatem  adimplere  cupientes,  Occidenfales,  et  Mcridio- 
nales  Indos,  et  alias  gentes,  qwe  temporibus  istis  ad  nostram  7wtiliiun  perve- 
nerunt,  sub  pr(ete.vtu  quód  fidei  Catholica:  expertes  existant,  xiti  bruta  animalia 
ad  nostra  obsequia  redlgendo^  esse  pasúni  assercre  prcesumant,  et  eos  in  seroi- 
tutem  redigunf,  tantis  afflidionibus  illos  urgente",,  quantis  vix  bruta  animalia 
illis  sercientia  urgent.  Nos  igitur,  qui  ejusdem  Domini  nostri  vices,  licèt  indi- 
gni,  gerimus  ia  terris,  et  oves  grcgis  sui  nobis  commissas,  quce  extra  ejus  ovile 
sunf,  nd  ipsum  ovile  totó  nixi  exquirimus :  attendenles  Indos  ipsos.,  ut  pote 
veros  homines,  non  solàin  Christiawe  Fidei  capaces  existere,  sedntnobis  in- 
notuit,  ad  fideni  ipsam  promplisaimé  currere;  ac  volentes  super  his  congruis 
remedijs  providere;  príxilictos  Indos,  et  omnes  alias  gentes  ad  nofiíiam  Cliris- 
tianorum  in  posterum  devenfuras,  licet  extra  fulom  Christi  existant,  sua  li- 
bertate,  ac  reruni  suarum  dominio  privatos,  seu  privandos  non  esse,  imó  li- 


XCYI  LIVRO  II  DAS  NOTICIAS 

lertale,  et  domínio  Jnijus  modi  nti,  et  potiri,  et  gaudere  libere^  et  licite  posse ^ 
nec  in  scrvitutem  redigi  dehere;  ac  quidquid  secus  fieri  contigcril,  irritum,  et 
inane,  ipsosque  Indos,  et  alias  gentes,  verbi  Dei prwdicatione,  et  exemplo  bonce 
vitíB,  ad  didam  (idem  Christi  invitandos  [ore,  aiitlioritate  Apostólica  per prce- 
sentes  lilteras  decernimus,  et  declaramus;  uon  obstantibus  proemissis^  cwteris- 
que  contrarijs  qiiibuscimque.  Datum  Romce  anno  1537.  Quarto  nonas  Junijj 
Pontificatus  nostri  anno  tertio. 

7    Em  portuguez  quer  dizer  o  seguinte.  «Paulo  Papa  Terceiro,  a  todos 
os  fieis  Chilstãos,  que  as  presentes  letras  virem,  saúde,  e  benção  Apostó- 
lica. A  mesma  Verdade,  que  nem  pôde  enganar,  nem  ser  enganada,  quando 
mandava  os  Pregadores  de  sua  Fé  a  exercitar  este  oíTicio,  sabemos  que  dis- 
se: «Ide,  e  ensinai  a  todas  as  gentes.»  A  todas  disse,  indiíTerentemente, 
porque  todas  são  capazes  de  receber  a  doutrina  de  nossa  Fé.  Vendo  isto, 
e  invejando-o  o  commum  inimigo  da  geração  humana,  que  sempre  se  op- 
põem  ás  boas  obras,  pêra  que  pereção,  inventou  hum  modo  nunca  d"antes 
ouvido,  pêra  estorvar  que  a  palavra  de  Deos  não  se  pregasse  ás  gentes, 
nem  ellas  se  salvassem.  Pêra  isto  moveo  alguns  ministros  seus,  que  dese- 
josos de  satisfazer  a  suas  cobiças,  presumem  aíTirmar  a  cada  passo,  que 
os  índios  das  partes  Occidentaes,  e  os  do  Meio  dia,  e  as  mais  gentes,  que 
n'estes  nossos  tempos  tem  chegado  a  nossa  noticia,  hão  de  ser  tratados,  e 
reduzidos  a  nosso  serviço  como  animaos  brutos,  a  titulo  de  que  são  inha- 
beis  pêra  a  Fé  Catholica :  e  sacapa  de  que  são  incapazes  de  recebel-a,  os 
põem  em  dura  servidão,  e  os  aííligem,  e  opprimem  tanto,  que  ainda  a 
servidão  em  que  tem  suas  bestas,  apenas  he  tão  grande,  como  aquella  com 
que  afíligem  a  esta  gente.  Nós  outros,  pois  que,  ainda  que  indignos,  te- 
mos as  vezes  de  Deos  na  terra,  e  procuramos  com  todas  as  forças  achar 
suas  ovelhas,  que  andão  perdidas  fora  de  seu  rebanho,  pêra  reduzil-as  a 
elle,  pois  este  ho  nosso  officio;  conhecendo  que  aquelles  mesmos  índios, 
como  verdadeiros  homens,  não  somente  são  capazes  da  Fé  de  Christo,  se- 
não que  acodem  a  ella,  correndo  com  grandissima  promptidão,  segundo 
nos  consta :  e  querendo  prover  n'estas  cousas  de  remédio  conveniente,  com 
autoridade  Apostólica,  pelo  teor  das  presentes,  determinamos,  e  declara- 
mos, que  os  ditos  índios,  e  todas  as  mais  gentes  que  d"aqui  em  diante 
vierem  á  noticia  dos  Christãos,  ainda  que  estejão  fora  da  Fé  de  Christo, 
não  estão  privados,  nem  devem  sel-o,  de  sua  liberdade,  nem  do  dominio 
de  seus  bens,  e  que  não  devem  ser  reduzidos  a  servidão.  Declarando  que 
os  ditos  índios,  e  as  demais  gentes  hão  de  ser  atrahidas,  e  convidadas  adita 


n\S   COUSAS   DO   BRASIL  XCVll 

Fé  de  Christo,  com  a  pregação  da  palavra  divina,  e  com  o  exemplo  de  boa 
vida.  E  tudo  o  que  em  contrario  d'esta  determinação  se  fizer,  seja  em  si 
de  nenhum  valor,  nem  firmeza;  não  obstantes  quaesquer  cousas  em  con- 
trario, nem  as  sobreditas,  nem  outras,  em  qualquer  maneira.  Dada  em  Ro- 
ma, anno  de  [íV.il  aos  nove  de  Junho,  no  anno  terceiro  de  nosso  Ponti- 
ficado, w 

8  De  todo  o  dito  se  vè,  e  confessamos,  que  degenerarão  os  índios  de 
seus  progenitores,  por  seus  costumes  bar])aros,  em  tal  maneira,  que  vie- 
rão  a  duvidar  os  homens,  se  conservavão  ainda  em  si  a  espécie  humana. 
Porém,  também  da  resolução  da  duvida  sentenciada  pelo  Summo  Pastor  da 
Igreja,  que  passou  em  cousa  julgada,  consta,  que  foi  a  presumpção  errada, 
e  que  são  elles  verdadeiros  indivíduos  da  espécie  humana,  e  verdadeiros 
homens  como  nós,  capazes  dos  sacramentos  da  santa  Igreja,  livres  por  na- 
tureza, e  senhores  de  seus  bens,  e  acções.  Verdade  lie,  que  pôde  o  leite, 
e  criação  agreste  deslustrar  a  hum  homem,  e  em  tal  grão,  que  pareça  hum 
bruto,  mas  não  que  chegue  ao  ser.  Quando  vião  aquelles  primeiros  Por- 
tugueses hum  índio  Tapuya,  hum  corpo  nú,  huns  couros,  e  cabellos  tos- 
tados das  injurias  do  tempo,  hum  habitador  das  l)renhas,  companheiro  das 
feras,  tragador  da  gente  humana,  armador  de  ciladas;  hum  selvagem  emfim 
cruel,  deshumano,  e  comedor  de  seus  próprios  filhos :  sem  Deos,  sem  lei, 
sem  Rei,  sem  pátria,  sem  republica,  sem  razão :  não  era  muito  que  duvi- 
dassem, se  era  antes  bruto  posto  em  pé,  ou  racional  em  carne  humana. 
A  criação  agreste  dentre  as  cabras,  não  pôde  tornar  semelhante  a  ellas  ao 
menino  Abidis,  reputado  por  fera  dos  caçadores  dEl-Rei  seu  pai?  Não  são 
innumeraveis  os  casos  semelhantes  a  este?  pois  tal  succcde  em  o  presen- 
te, e  a  razão  he,  porque  como  o  homem  racional  nesta  vida  depende  ne- 
cessariamente em  seu  obrar  dos  sentidos  exteriores ;  e  estes  he  força  que 
sejão  toscos,  e  grosseiros  n'aquelles  que  vivem  cm  os  montes  separados 
do  tratto,  e  policia  da  gente  :  d\iqui  vem  que  também  he  forçado,  que  n'es- 
tes  taes  todas  as  obras  que  pendem  da  razão,  sejão  por  conseguinte  tos- 
cas, e  grosseiras :  e  tanto  mais,  quanto  mais  os  sentidos  o  forão. 

9  Toda  esta  doutrina  he  certa;  porém  d'essa  mesma  tiro  cu  argumento 
forçoso  em  favor  da  causa  dos  índios.  Porque  na  mesma  forma  que  acha- 
mos possível,  que  hum  homem  verdadeiramente  racional,  por  meio  da  cria- 
ção agreste,  e  tosco  uso  dos  sentidos,  pôde  perder  o  lustre  de  racional,  e 
chegar  a  parecer  hum  bruto,  assi  também  pelo  contrario,  esse  mesmo,  d^^i- 
xando  a  criação  agreste,  e  tornando  ao  tratto  politico  dos  homens,  por  moio 


XCYIII  LIVRO    II  DAS  NOTICIAS 

d'este  poderá  apurar-se  nos  sentidos,  e  apurados  esles,  nas  obras  da  razão; 
e  não  me^parece  se  allegará  diversidade:  os  exemplos  o  mostrão;  porque 
o  moeo  Abidis,  verdade  he  que  de  filho  de  Príncipes  veio  a  ser  reputado 
por  bruto,  por  meio  da  criação  agreste;  porém  esse  mesmo,  criado  depois 
em  policia  na  corte  de  seu  pai,  de  tal  maneira  recobrou  o  perdido,  que 
chegou  a  reinar.  E  quem  duvida  que  o  Tapuya  mais  montanhez,  reduzido 
a  ti"atto  politico,  pôde  tornar  a  aperfeiçoar  o  lustre  perdido  da  humana  es- 
pécie ^  Muitos  vi  com  meus  olhos  trazidos  do  tosco  das  brenhas,  e  na  ap- 
parencia  huns  brutos :  e  comtudo  andados  os  annos,  com  a  criação,  e  dou- 
trina dos  Padres  da  Companhia,  os  achei  depois  tão  trocados,  que-  quasi 
os  não  conhecia. 

10  Nem  faz  em  contrario  o  ai-gumento  que  trazião  alguns,  de  indivi- 
dues, que  forão  vistos  com  corpos  humanos,  e  acções  humanas;  e  comtudo 
se  mostrou  serem  brutos;  veem-se  d'estes  muitas  espécies  na  Historia  na- 
tural do  Padre  Eusébio  Nieremberg:  não  o  posso  negar :  de  hum  tenho  por 
certo,  que  se  criou  com  nossos  Padi^s  da  Companhia  no  Cabo-verde:  era 
filho  de  huma  escrava,  e  de  hum  animal  d"aquellas  partes,  a  que  chamão 
mono:  era  rapaz  bem  formado  era  feições,  em  corpo,  estatura,  cabeça, 
mãos,  e  pés,  como  qualquer  filho  de  homem :  vivo,  esperto,  e  que  fazia  o 
que  era  mandado.  Poz-se  em  questão  se  era  capaz  dos  sacramentos,  resol- 
veo-se  que  não;  e  que  nem  devia  ser  bautizado.  Porém  n'este  era  mui  dif- 
ferente  a  razão;  porque  se  provou  que  o  principal  progenitor  não  era  ho- 
mem racional,  se  não  animal  bruto;  e  nor  conseguinte,  que  não  tinha  alma 
racional.  E  logo  os  sinaes  o  mostravão;  porque  não  fallava,  e  tinlia  hum 
vinculo  de  cabellos  pelos  lombos  abaixo,  indícios  claros  do  pai  que  o  ge- 
rou. Porém  nos  nossos  índios  he  diversa  a  razão,  porque  sabemos  que  seus 
progenitores  forão  homens  racionaes,  em  cuja  geração  he  cousa  certa  não 
nega  o  Auctor  da  natureza  a  infusão  de  alma  racional. 

1 1  Segu8-sc  por  ordem  a  pergunta  da  religião  dos  índios.  A  esta  res- 
]-)onderão  elles  somente  com  as  noticias  de  S.  Thomé  (de  que  logo  dire- 
mos, pois  se  nos  abre  occasião  tão  boa.)  E  na  verdade  he  questão  curiosa; 
porque  se  aquelles  seus  printeiros  povoadores,  pais,  e  mestres,  forão  Ju- 
deos,  segundo  a  opinião  de  alguns;  ou  erão  do  povo  escolhido,  e  adora- 
vão  ao  Deos  verdadeiro;  ou  erão  dos  Idolatras,  e  adora  vão  a  Deoses  falsos: 
se  forão  Troianos,  Athenienses,  Africanos,  ou  qualquer  outra  nação  d"aquel- 
les  tempos,  linhão  seus  Deoses  particulares,  Saturno,  Júpiter,  Marte,  Mer- 
cúrio, Hercules,  Atlante,  Palias,  Diana :  pois  logo  com  que  acontecimento 


DAS  COUSAS  DO  RRASIL  XCI?Í 

viérSo^os  Infáios  do  Brasil  a  dogetíerar  de  todo  o  culto  de  Deoses?  cousa 
l3o  f<')ra  dás  nações  do  mundo,  qiic  a  primeira  que  aprendem,  hc  algum 
Deos  superior  a  tudo,  segundo  a  luz  da  razão  natural,  refugio  de  seus  ma- 
leâ',"'fe  esperança  de  seus  bens. 

12  'N'esta  matéria  seja  a  primeira  resolução.  Os  índios  do  Brasil  de 
tampos  immemoraveis  a  esta  parte,  não  adorão  expressamente  Deos  al- 
gum :  nem  tem  templo,  nem  sacerdote,  nem  sacrifício,  nem  fé,  nem  lei 
alguma.  Leão-se  os  autores  á  margem  citados  (*)  onde  tratão  da  gente  d'esta 
Amertca,  e  achaifio  (posto  que  em  outros  termos)  esta  minha  conclusão. 
Consta  mais  em  segundo  lugar  da  experiência  de  todos  os  Portugueses, 
que  entre  elles  vivem  desde  o  principio  do  descobrimento  da  terra.  A  ra- 
zão porque  assi  degenerarão  de  seus  progenitores,  vem  a  ser  a  mesma 
que  a  de  seus  costumes  :  lie  porque  occupados  nas  guerras,  e  odíos  entra- 
nháveis, a  que. são  mui  propensos,  descuidarão  do  amor  devido  a  Deos,  e 
ultimamente  por  serem  no  commum  mais  agrestes,  que  todas  as  outras 
nações  da  America. 

•12  Disse  do  Brasil:  porque  dos  índios  de  quasi  todas  as  outras  partes 
da  Amé^íica,  do-  Perá,  México,  Nova  Hespanha,  etc.  sabemos  o  contrario  ; 
e  que  acharão  aquelles  primeiros  seus  descobridores  grandes  indicios,  e 
ruinas  de  templos  famosos,  de  variedade  de  ídolos,  Sacerdotes,  ceremo- 
ni'a8,  e  cultos.  Chega  a  ser- espanto  o  que  se  escreve  da  magestade  d'elles. 
Veja-se  Garrilasso  da  Veiga  em  seus  Commenlarios  Reaes,  liv.  ii,  cap.  2: 
Joaquim  Brulio,  Historia  Peruana,  liv.  i,  cap.  4.":  Fr.  Agostinho  de  Ávila, 
Historia  do  México,  liv.  i,  cap.  2i  e  25:  Historia  geral  das  índias,  cap. 
27,  e  i21:  o  Padre  AíTonso  de  Ovalle,  da  Companhia  de  Jesu,  Historia  de 
Chili,  liv.  VIU,  cap.  d.",  e  2.^ 

{'}  Disse  expressamente;  porque  supposto  que  claramente  por  commum 
não  reconhecem  Deidade  alguma;  têm  comtudo  huns  confusos  vestígios  de 
hum'i  Excelleucia  superior,  a  que  chamão  Tupá,  que  quer  dizer  Exccllen- 
cia  espantosa;  e  d"esla  mosirão  que  dependem;  pela  qual  razão  tem  grande 
medo  dos  trovões,  e  relâmpagos,  porque  dizem  são  effeitos  d'este  Tupá 
superior :  por  isso  chamão  ao  trovão  Tupáçununga,  que  quer  dizer  estfondo 
feito  peia  Excellencia  superior ;  e  ao  relâmpago  chamão  Tupáberaba,  que 
quer  dizer,  resplnndor  feito  pela  mesma.  Os  mesmos  vestígios  ha  entre 
elles  da  immortalidadc  da  alma  e  da  outra  vida;  porque  tôm  pêra  si,  que 

f']    Maffco,  D.'i  Iliàt.  nat.  da  Índia,  lib.  ii— ^lcoIáo  Orlaudino,  Francisco  Sacehino,  Abrahim 
Orlclio,  TheatruDQ  Orbis.-Oliveirj;  Dist   nal   do  Brasil. 


C  LIVRO  II  DAS  NOTICIAS 

OS  varões  valentes,  que  n'esta  vida  matarão  em  guerra,  e  comerão  muitos 
(los  inimigos;  e  da  mesma  maneira  as  fêmeas,  que  forâo  tão  ditosas,  que 
ajudarão  a  cozel-os,  assal-os,  e  comel-os;  depois  que  morrem  se  ajuntão  a 
ter  seu  paraíso  em  certos  valles,  que  elles  chamão  campos  alegres  (quaes 
outros  Elysios)  e  que  alli  fazem  grandes  banquetes,  cantos,  e  danças.  Po- 
rém os  que  forão  covardes,  e  que  em  vida  não  obrarão  façanhas,  vão  a 
penar  com  certos  mãos  espíritos,  a  que  chamão  Anhangás. 

14  A  esta  noticia  da  outra  vida  allude  aquelle  modo,  com  que  enter- 
rão  os  seus  defuntos,  com  sua  rede,  e  instrumentos  de  seu  trabalho  jun- 
tamente ;  porque  na  outra  vida  tenhão  á  mão  em  que  dormir,  e  com  que 
grangear  de  comer.  D'onde  não  cuidão  que  a  outra  vida  he  espiritual,  co- 
mo nós;  se  não  somente  corporal,  como  a  que  agora  vivemos;  e  põem  alli 
sua  bemaventurança  na  quietação,  e  paz  que  terão,  isenta  dos  trabalhos 
d"esta  vida.  Pelo  contrario  põem  a  desdita  nas  inquietações,  e  trabalhos  dos 
que  viverem  entre  aquelles  máos  espíritos,  que  chamão  Anhangás.  Estes  são 
os  vestígios  que  tem  esta  gente,  e  até  aqui  chega  o  cabedal  de  sua  fé:  nem 
sabem  claramente  outra  sorte  de  prémios,  ou  castigos  do  Ceo,  ou  inferno: 
nem  tem  clara  noticia  da  criação  do  mundo,  nem  de  algum  outro  mysterio 
da  Fé. 

15  Crêem  que  ha  huns  espíritos  malignos,  de  que  tem  grandíssimo 
medo  :  a  estes  chamão  por  vários  nomes :  Curupira,  aos  espíritos  dos  pen- 
samentos; Macachéra,  aos  espíritos  dos  caminhos;  Jurúpary,  ou  Anhangá, 
aos  espíritos  que  chamão  máos,  ou  diabos;  Maráguigána,  aos  espíritos,  ou 
almas  separadas,  que  denuncião  morte;  a  quem  dão  tanto  credito,  que  basta 
só  o  imaginarem  que  tem  algum  recado  d'este  espirito  agoureiro,  pêra  que 
logo  se  entreguem  á  morte,  e  com  effeíto  morrão  sem  remédio.  A  estes 
fazem  certas  ceremonías,  não  como  a  Deoses,  senão  como  a  mensageiros 
da  morte ;  offerecendo-lhes  presentes  com  certos  páosinhos  metidos  era  a 
terra;  e  tem  pêra  si  que  com  estes  se  aplacão. 

16  Tem  grande  canalha  de  feiticeiros,  agoureiros,  e  bruxos.  Aquelles 
a  que  chamão  Payes,  ou  Caraybas)  com  falsas  apparencias  os  enganão ;  e 

estes  os  embruxão  a  cada  passo.  Os  Tapuyas  n'este  particular  são  os  peo- 
res;  porque  além  de  não  conhecerem  a  Deos,  crêem  invisívelmente  o  diaba 
em  formas  ridículas  de  mosquitos,  çapos,  ratos,  e  outros  anímaes  despre- 
zíveis. Os  feitícoiros,  agoureiros,  e  curadores,  são  entre  elles  os  mais  es- 
timados; a  estes  dão  toda  a  veneração ;  e  o  que  dizem,  pêra  com  elles  he 
infallivel.  Os  modos  de  dar  seus  oráculos,  e  adivinhar  os  futuros,  são  va- 


DAS  COUSAS  DO  BRASIL  Cl 

rios,  e  ridículos :  porei  hum,  ou  dous,  por  exemplo.  Usão  alguns  de  hum 
cabaço  a  modo  de  cabeça  de  homem  fingida,  com  cabellos,  orelhas,  nari- 
zes, olhos,  e  boca :  estriba  esta  sobre  huma  frecha,  como  sobre  pescoço, 
e  quando  querem  dar  seus  oráculos,  fazem  fumo  dentro  d'èste  cabaço  com 
folhas  secas  de  tabaco  queimadas ;  e  do  fumo  que  sahe  pelos  olhos,  ouvi- 
dos, 6  boca  da  fingida  cabeça,  recebem  pelos  narizes  tanto,  até  que  com 
elle  ficão  perturbados,  e  como  tomados  do  vinho;  e  depois  de  assi  anima- 
dos, fazem  visagens,  e  ceremonias,  como  se  forão  indemoninhados :  dizem 
aos  outros  o  que  lhes  vem  á  boca,  ou  o  que  lhes  ministra  o  diabo;  e  tudo 
o  que  dizem  em  quanto  dura  aquelle  desatino,  crêem  firmemente,  qual  se 
fora  entre  nós  revelação  de  algum  Propheta.  A  huns  ameaçâo  a  morte,  a 
outros  más  venturas,  a  outros  boas;  e  tudo  recebe  o  vulgo  ignorante,  como 
ditto  de  alguma  Deidade.  Em  qualquer  lugar  que  apparece,  fazem-lhe  gran- 
des festas,  danças,  e  bailes,  como  áquelle  que  traz  comsigo  espirito  tão  puro. 
17  Vai  outro  exemplo.  Hum  troço  de  Soldados  Portugueses,  que  ti- 
nha partido  em  companhia  de  grande  quantidade  de  índios  a  fazer  guerra 
ao  sertão,  vio  com  seus  olhos,  e  depoz  uniformemente  o  caso  seguinte. 
Postos  em  fronteira  dos  inimigos  os  nossos,  entrarão  em  duvida,  se  se  ha- 
via de  acommeter,  ou  não,  porque  estavão  intrincheirados  fortemente,  e 
com  melhor  partido  de  defensores.  Ex  que  hum  dos  Iiulios,  qua  por  nós 
militavão,  sahe  a  hum  terreiro  fronteiro  ao  inimigo,  e  fixando  na  terra 
duas  forquilhas,  amarrou  fortemente  sobre  ellas  huma  clava,  ou  maça  de 
pão,  que  he  sua  espada,  e  chamão  tangapéma,  toda  galanteada  de  pennas 
de  pássaros  variadas  em  cores.  Depois  que  teve  amarrada  a  clava,  convo- 
cou a  muitos  dos  seus  pêra  que  dançassem,  e  cantassem  ao  redor  d'ella : 
c  acabadas  suas  danças,  e  cantos,  começou  o  mesmo  feiticeiro  a  fazer  as 
suas  per  si  só,  e  ao  redor  da  mesma  maça,  acrescentando  a  ellas  ridículas  ce- 
remonias, momos,  e  esgares.  Feito  isto,  chegando-se  á  espada,  ou  maça, 
disse  entre  dentes  certas  palavras  mal  pronunciadas,  e  peor  entendidas;  e 
ditas  estas,  soprando  além  d"ellas  três  vezes  sobre  a  espada,  de  improviso 
ficou  esta  solta  das  ligaduras  em  que  estava,  saltou  fora  das  forquilhas,  e 
foi  voando  pelos  ares  com  assaz  de  admiração  dos  Portugueses,  que  dese- 
josos de  ver  o  fim,  perseverarão  em  hum  lugar.  Cousa  espantosa  f  Dalli 
a  pouco  espaço  de  tempo,  virão  todos,  que  tornava  a  vir  a  mesma  espada 
voando  pelos  ares  pelo  mesmo  caminho,  e  á  vista  de  todos  se  tornava  a 
pòr  no  próprio  lugar,  e  sobre  as  mesmas  forquilhas;  porém  com  grande 
diversidade,  porque  vinha  toda  ensanguentada,  e  estillando  sangue,  qual  ^u 


cu  i.lVllO  U  DAS  NOTICIAS 

viera  de  grandes  inalanças.  Ficarão  confusos  os  Poilugueses,  porém  o  fei- 
ticeiro contente,  e  declarou-llies  o  pronostico  a  sinal  certo  de  vicloria : 
acrescentando,  que  podião  seguros  acomnieter,  porque  havião  de  matar  os 
contrários,  c  derramar  delles  muito  sangue.  Elle  o  disse,  e  o  successo  o 
mostrou  brevemente,  porque  matarão  sobre  quatro  mil,  e  pozerão  em  fugida 
innumeraveis.  Vejão-se  as  varias,  e  notáveis  espécies  de  feitiçerias,  que  es- 
crevemos no  livro  da  Vida  do  venei^avel  Paclre  João  de  Almeida, no  liv.  iv,  do 
cap.  6.''  por  diante,  que  são  mui  dignas  de  noíar,  e  eu  não  quero  repetil-as  aqui. 
18  Temos  dito  em  geral  quanto  á  Fé  de  Deos:  quanto  á  Fé  de  Cinislo 
em  particular,  he  cousa  digna  de  se  saber,  a  que  os  índios  apontarão 
em  sua  resposta  acerca  da  vinda  do  Apostolo  S.  Thomé  a  esta  sua  ter- 
ra, onde  dizião  linlião  por  tradição  lhes  ensinara  cousas  da  outra  vida;  mas 
que  não  fora  recebido  de  seus  antepassados.  Sobre  esta  duvida  curiosa 
pêra  maiop  çLveza,  direi  o  que  vi,  e  alcíincei  de  pessoas  fidedignas.  Jaz 
n"aquella  parle  da  praia  que  vem  correndo  ao  Norte  do  porto  do  S.  Vi- 
cente, não  muito  longe  delle,  hum  pedaço  de  arrecife,  ou  lagem,  (|ue  o  mar 
lava,  cobre,  e  descobre,  cora  a  variedade  de  suas  ordinárias  marés.  No 
meio  d'esta  são.  vistas  de  todos  os  que  ãquella  parte  se  chegão  (além  de 
outras  menos  principaes)  duas  pegadas  de  hum  homem  descalço,  direita, 
e  esquerda,  ambas  em  proporção  de  quem  passa  pêra  o  mar,  a  parte  pos- 
terior pêra  a  terra,  e  a  anterior  pêra  a  agoa  :  tão  vivas,  e  expressas,  como 
se  em  hum  mesmo  tempo  juntamente  se  fizerão,  e  virão:  e  de  tal  maneira 
permanentes,  que  nem  poderão  os  séculos  passados  descompol-as,  nem 
parece  poderão  os  futuros;  porque  supposto  que  não  entrão  de  impressão 
na  pedra,  são  como  de  pintura  tão  firme,  tão  natural,  e  viva,  que  o  me- 
lhor pintor  do  mundo  não  parece  poderia  fazer  obra  tão  acabada.  Doestas 
pegadas  pois  (que  forão  sempre  dos  Portugueses^  desde  sua  primeira  en- 
trada no  Brasil,  havidas  por  cousa  milagrosa,  e  respeitadas  por  cousa  san- 
ta, até  o  tempo  em  que  isto  escrevemos)  tirando  informação  aquelles  pri- 
meiros que  povoarão  esta  Capitania,  e  depois  d"elles  alguns  Padres  de  nossa 
Religião,  acharão  por  tradição  antigua  de  pais  a  filhos  dos  naíuraes  da  terra, 
que  erão  pegadas  de  hum  homem  branco,  barbado,  e  vestido,  ((uc  em  tem- 
pos antiquíssimos  andara  n"aqucilas  partes,  e  tinha  por  nome  Sumé  em  sua 
lingoa,  que  he.  o  mesmo  que  na  nossa  Thoiíii?;  e  ensinava  cousas  da  outra 
vida;  e  no  fundamento  da  dita  tradição,  e  da  mesma  cousa,  que  de  si  pa- 
rece milagrosa,  foi  sempre  tido  o  lugai'  por  santo,  e  venerado  como  Ud:  e 
com  razão;  porque  a  que  propósito  se  põem  a  natureza  a  pintar- imagen? 


l)AS  COISAS  DO  blUSlL  Clll 

tão  pi'oprias  dos  pés  de  hum  homem?  e  depois  a  que  propósito  as  con- 
serva por  tão  dilatados  tempos? 

19  Sobre  a  verdadj'  desta  tradição  dos  índios,  confesso  que  tive  eu  em 
tempos  passados  alguma  duvida ;  porém  desta  me  íoi  livrando  o  mesmo 
tempo,  e  a  experiência,  de  maneira  que  venlio  hoje  a  lel-a  por  certa.  Con- 
vencem-me  os  argumentos  dos  grandes  sinaes  que  se  acharão,  e  achão  de 
presente  por  toda  esta  costa  do  Brasil,  e  fora  d'ella  por  toda  a  America. 
N'esta  Bahia  fora  da  barra,  em  outra  praia  semelhante,  distante  como  duas 
legoas  da  cidade,  aonde  chamão  a  ítápoá,  vi  com  meus  olhos,  e  vêem  cada 
dia  os  nossos  Padres,  e  o  povo  todo,  em  outro  pedaço  de  recife,  ou  lagem, 
huma  pegada  de  homem  perfeitíssima,  metida  de  impressão  na  suslancia 
da  pedra,  e  a  parte  posterior  pêra  a  terra,  a  anterior  pêra  a  agoa.  A  esta 
vindo  eu  de  huma  aldeã  de  índios,  notei  que  concorrião  todos  os  que  tra- 
zíamos em  nossa  companhia,  ainda  os  que  liião  Com  cargas :  pergimtei  a 
hum  deites  a  causa  (que  ei'a  eu  novo  no  caminlioj  responderão-me  todos: 
(íPaij,  Siiiné  pijjuer  a  angãba  aé  :*  he  que  que  está  aih  a  pegada  de  S.  Tho- 
mé.  Então  lhes  {)edi  me  levassem  a  ella;  vi  a  pegada  que  disse,  de  hum  pé 
descalço,  esquerdo,  assi  e  da  maneira  que  se  fora  impresso  em  barro  bran- 
do. Tem-na  os  índios  em  grande  veneração,  e  nenhum  pass;i,  que  a  não 
visite,  se  pôde;  e  tem  pêra  si  que  pondo-liie  o  pé,  íica  melhorado  seu  corpo 
todo.  Não  he  esta  parte  frequentada,  como  a  outra  de  S.  Vicente,  dos  Por- 
tugueses, poríjue  está  a  mór  parte  do  tempo  coberta  com  o  mar,  e  só  ap- 
parecc  em  vazantes  maiores. 

20  Dentro  da  barra  da  mesma  Bahia,  como  Ires  legoas  de  distancia, 
em  a  paragem  que  chamão  S.  Thomé,  ou  Toque  Toque,  cm  outra  praia,  e 
em  outro  pedaço  de  lagem  semelhante,  deixou  o  mesmo  Santo  outras  duas 
pegadas  de  seus  pés  impressas  na  sustancia  da  pedi'a,  na  mesma  forma 
que  a  da  lagem  da  ítápoá,  e  em  distancia  iiuma  da  outra,  o  que  i"eí{uei'o 
a  proporção  dos  passos  ordinários  de  hum  homem  ([ue  caminha.  Forão 
sempre  em  todo  o  Bi'asil  tidas,  havidas,  e  veneradas  por  i)égadas  do  Santo 
Apostolo  milagrosas,  entre  os  Portugueses.  E  a  tradição  antiquíssima  dos 
índios  derivada  de  pais  a  íílhos,  iie  na  mesma  forma  que  acima  temos  ditto; 
(juo  são  pegadas  <1e  hum  homem  branco,  com  l)arba,  e  v(;stido,  que  na- 
queilas  partes  andara,  e  tratara  com  elles  de  outro  modo  de  viver  muito 
diíícrente,  ciiamado  por  nome  Thomé;  do  qual  allirmavão  estes  particular- 
Fuenlc,  que  certo  dia  exasperados  seus  avós  com  a  novidade  de  sua  dou- 
trina, ou  induzidos  de  seus  feiticeiros,  ou  do  inimigo  commum  da  geração 


CIV  LIVRO  II  DAS  .NOTICIAS 

humana,  arremetendo  pêra  prendel-o,  e  elle  se  fora  retirando  direito  á 
praia,  fazendo  caminho  por  um  monte  abaixo,  tão  ingrime,  que  era  im- 
possivel  seguil-o  por  alii ;  e  que  em  quanto  por  outra  parte  <:om  algum 
circuito  o  buscarão,  tivera  tempo  de  fugir;  e  o  virão  ir  pelo  mar,  deixando 
frustrados  seus  intentos,  e  por  memoria  de  sua  repugnância,  aquellas  pe- 
gadas impressas  na  pedra  sobredita.  Esta  tradição  he  constante:  averigua- 
rão-na  os  Padres  de  nossa  Companhia,  que  no  mesmo  lugar  residião  anti- 
guanaente;  os  quaes  reconhecerão  sempre,  e  venerarão  aquelles  sinaes  como 
do  Santo,  e  como  cousa  sobrenatural.  No  cume  do  monte,  por  onde  des- 
ceo,  fundou  a  devação  do  povo  huma  Igreja  em  honra  do  Santo,  e  em 
memoria  da  ditta  tradição ;  a  qual  Igreja  se  bem  foi  sempre  venerada,  e 
visitada  dos  fieis ;  no  tempo  presente  o  he  com  mais  continuação,  e  con- 
curso, pelos  eíTeitos  extraordinários,  tidos  por  milagrosos,  que  alli  expe- 
rimenta a  fé  commum  dos  enfermos,  e  necessitados. 

21  Aqui  pêra  maior  confirmação  do  sobredito,  obrou  a  divina  Potencia 
huma  circunstancia,  que  parece  traz  muito  de  sobrenatural.  He  esta  huma 
fonte  perenne  de  agoa  doce,  que  brota  de  outro  penedo  junto  ao  das  pe- 
gadas, poucos  passos  andados,  em  a  raiz  do  próprio  monte,  por  onde  he 
tradição  que  desceo  o  Santo.  A  esta  fonte  chama  o  vulgo  fonte  de  S.  Tho- 
mé  milagrosa;  e  a  razão  he  varia.  Huns  dizem  que  he  milagrosa,  porque 
nasce  milagrosamente  da  pedra  viva,  qual  lá  a  de  Moysés  no  deserto.  Ou- 
tros porque  milagrosamente  nascera  ao  toque  de  hum  pé  do  Santo,  cuja 
pegada  alli  se  vira,  qual  lá  a  do  pé  do  cordeiro  de  S.  Clemente :  De  sub 
cujus  pedes  fons  vivus  emanat.  E  d'aqui  querem  se  derive  o  nome  Toque 
Toque.  Outros  porque  milagrosamente  se  conserva  sempre  em  hum  mesmo 
teor  de  suas  agoas,  quer  de  verão,  quer  de  inverno,  sem  que  redunde  por 
mais  chuvas  que  haja,  e  sem  que  deixe  de  estar  chea,  por  mais  calmas 
que  abrazem  a  terra.  Outros  finalmente,  porque  cura  milagrosamente  com 
suas  agoas  a  todo  o  género  de  enfermidades. 

22  Isto  he  o  que  dizem.  Eu  direi  o  que  vi  com  meus  olhos,  e  o  que 
parece  mais  verisimil,  por  informação  que  tirei  de  homens  antiguos,  fide- 
dignos, e  moradores  do  lugar,  indo  a  elle  só  pêra  effeilo  de  averiguar  a 
verdade :  vi  que  he  certo,  que  nasce  aquella  fonte  da  pedra  ditta,  não  d'a- 
quelle  mesmo  lugar,  onde  sua  agoa  se  ajunta,  como  em  pia  de  agoa  ben- 
ta; senão  mais  acima  de  hum  como  olho  pequeno,  por  onde  sahe  em  tão 
pequena  quantidade,  que  escaçamente  se  vê,  se  não  he  de  quem  faz  refle- 
xão; porque  vem  como  lambendo  a  pedra,  e  como  mo!hando-a  não  mais ; 


DAS  COUSAS  DO  BRASIL  CV 

mas  enchendo  sempre  a  pia  :  e  o  que  tresborda  he  imperceplivel  também, 
porque  vai  da  mesma  maneira  lambendo  a  pedra  subtilmente;  e  como  he 
poucíi,  e  cahe  em  área,  nem  se  empoça,  nem  pôde  perceber-se. 

23  Com  razão,  de  tudo  o  que  vi  duvido;  se  se  ha  de  dizer  que  nasce  esta 
ajjfoa  da  mesma  pedra  viva:  ou  antes  que  por  aquelle  olho  que  disse,  vem 
atrahida  da  sustancia  do  monte  ?  E  a  razão  da  duvida  he,  porque  faz  força 
a  experiência,  que  mostra,  que  nem  mingua,  nem  redunda  jamais  a  agoa 
d'esta  fonte,  se  não  que  sempre  está  no  mesmo  ser.  Porque  sabemos  que 
o  natural  das  fontes  que  tom  seu  nascimento  da  terra,  he  que  redundão 
quando  ha  invernadas,  e  faltão  quando  ha  grandes  secas :  e  a  que  nasce  da 
pedra  viva  não  segue  estas  variedades;  porque  esta  não  depende  da  terra, 
que  se  ensope  com  grandes  invernadas,  ou  se  seque  com  grandes  calmas. 
Cada  qual  julgará  nesta  duvida  o  cjue  lhe  parecer;  que  eu  só  digo  o  que 
vi,  e  experimentei. 

24  Acerca  do  que  dizem,  que  nasceo  do  toque  de  hum  pé  do  Santo  ; 
supposto  que  não  achei  n"esta  pedra  sinal  de  pegada,  nem  quem  a  visse, 
formei  comtudo  hum  argumento  fíivoravel :  porque  supposla  a  tradição  re- 
ferida, que  veio  fugindo  o  Santo  por  aquelle  monte  abaixo,  observei  (pon- 
do-me  no  lugar  das  pegadas  da  lagem,  termo  onde  f<ji  j)arar,  e  olhando 
direito  ao  cume  do  monte,  aonde  dizem  que  estivera  a  aldeã,  e  donde  pa- 
rece par  tio)  que  fica  a  fonte  em  caminlio,  e  que  de  forra  vindo  direito, 
havia  de  passar  pelo  penedo  em  que  nasce.  E  por  aqui  se  faz  verisimel, 
que  indo  passando  pizaria  com  seus  pés  a  pedra,  a  cujo  toque  brotarião 
as  agoas.  Quanto  aos  cffeitos  das  agoas  d"esta  fonte,  bem  se  pôde  por  elles 
com  verdade  chamar  milagrosa.  He  cousa  mui  sabida,  e  publica,  que  em 
nome  do  Santo,  o  com  modo  havido  por  milagroso,  dão  saúde  aciuellas 
agoas  aos  enfermos,  que  cliegão  a  lavar-se  n"ellas,  ou  as  mandão  buscar 
pêra  isso.  Tudo  collegi  da  frequência  das  romarias  que  fazem  a  ellas,  dos 
sinaes  que  vi  pendurados  pelas  paredes  da  Igreja;  e  dos  vários,  e  diversos 
successos  milagrosos,  que  ouvi  contar  neste  género  a  homens  fidedignos. 

25  As  [)égadas  do  Santo,  que  no  i)rincipio  disse,  não  vi,  nem  hoje  so 
enxergão;  vi  a  lagem,  e  n'ella  me  mostrarão  os  antiguos  daquelle  lugar  a 
parte  aonde  ostiverão,  e  aonde  as  vii-ão  com  seus  olhos :  no  que  não  podo 
haver  duvida  alguma;  por({U(í  o  convence  a  fama,  e  o  testilicão  instrumen- 
tos antiquíssimos  de  datas  de  terras  (raquelles  primeiros  tempos,  em  os 
quaes  se  assina  pov  rnai-co  a  lagem  das  pegadas  do  Santo,  dizendo  assi. 
«Concedo  hunia  data  de  terra,  sita  nas  pegadas  de  S.  Thomé,  tanto  poia 

VOL.   f  vu 


CVI  LIVRO  II  DAS  NOTICIAS 

tal  parto,  e  tanto  pêra  outra,  etc.»  E  estes  instrumentos  vi,  e  lemos  Imm 
cm  nosso  cartório  (l"este  Collegio  da  Baiiia :  se  não  que  os  tempos  que 
tudo  gastão,  vierao,  passados  os  séculos  não  menos  que  de  mil  e  quinhen- 
tos annos,  a  cegar  estes  santos  sinaes.  Huns  dizem,  que  pela  continuação 
dos  devotos,  que  folgavão  de  levar  relíquias,  raspando  parte  d'elles:  ou- 
tros, que  ajudou  pêra  isso  a  disposição  do  lugar,  que  he  praia  de  área  mui 
movediça,  e  pôde  arrazar  os  vazios  conglutinando-se  com  a  mesma  pedra. 

26  Passando  eu  pela  cidade  de  Nossa  Senhora  da  Assumpção  do  Cabo 
Frio,  distante  da  do  Rio  de  Janeiro  dezoito  legoas  em  altura  de  vinte  e 
três  gráos,  e  hum  seismo  pêra  o  Sul :  o  Capitão  que  alli  governava  me  foi 
mostrar  huma  paragem  chamada  Itajurú  (nome  dos  índios)  entre  a  cidade, 
e  huma  fonte  extraordinária  de  agoas  vermelhas,  medicinaes,  especialmente 
contra  o  mal  de  pedra.  N'esta  paragem  me  mostrou  hum  penedo  grande 
amolgado  de  varias  bordoadas  (devem  de  ser  de  sete,  ou  oito  pêra  cima) 
tão  impressas  na  pedra,  como  se  o  mesmo  bordão  dera  com  força  em  branda 
cera;  porque  todas  as  moças  erão  iguaes.  E  a  tradição  dos  índios  he,  que 
são  do  bordão  de  S.  Thomé,  em  occasião  em  que  os  índios  resistião  á  dou- 
trina, que  alli  lhes  pregava :  e  lhes  quiz  mostrar  com  este  exemplo,  que 
quando  os  penedos  se  deixavão  penetrar  da  palavra  de  Deos,  seus  duros 
corações  resistião,  mais  obstinados  que  as  duras  penhas. 

27  He  também  digna  de  notar  aqui  a  historia  de  Mairapé,  lugar  dis- 
tante como  dez  legoas  no  interior  do  recôncavo  (Vesla  cidade.  He  hum  ca- 
minho feito  de  área  solida,  e  pura,  de  comprimento  de  meia  legoa  pelo 
mar  dentro ;  e  a  tradição  d'elle  he,  que  foi  feito  milagrosamente  por  S. 
Thomé,  quando  andando  n*esta  Bahia  pregando  aos  índios  d'aquella  para- 
gem, elles  se  amotinarão  contra  o  Santo,  ao  qual,  fugindo  da  fúria  de  seus 
arcos,  foi  levantando  o  mar  aquella  estrada  por  onde  passasse  a  pé  enxuto 
á  vista  sua,  cobrindo  logo  o  principio  d'ella  de  agoa,  porque  não  podessem 
seguil-o  os  gentios,  que  na  praia  ficarão  admirados  de  cousa  tão  extraor- 
dinária ;  c  chamarão  d^alli  em  diante  áquella  estrada  milagrosa,  Mairapé, 
que  vai  o  mesmo  em  lingoa  dos  Brasis,  que  caminho  de  homem  branco  : 
assi  chamavão  a  S.  Thomé,  porque  até  então  nenhum  outro  branco  entre 
si  tirihão  visto. 

28  Na  altura  da  cidade  de  Parahiba  em  sete  gráos  da  parte  do  Sul 
pêra  o  sertão,  em  hum  lugar  hoje  deserto,  e  solitário,  se  vê  outro  penedo 
com  duas  pegadas  de  hum  homem  maior,  e  outras  de  outro  mais  peque- 
no; e  certas  letras  esculpidas  na  pedra.  Este  lugar  he  achado  cada  passo 


DAS  COUSAS  DO  BRASIL  CVII 

dos  índios,  que  de  suas  aldeãs  vão  á  caça;  e  têm  pêra  si,  que  aquelias  pe- 
gadas são  de  S.  Thomé :  e  segundo  o  que  affirma  S.  Chrisostomo,  e  S.  Tho- 
más,  que  acompanhava  a  S.  Thomé  hum  dos  Discípulos  de  Christo,  as  se- 
gundas pegadas  menores  devem  ser  doeste.  As  letras  pretenderão  os  ín- 
dios arremedar  aos  nossos  Padres  nas  aldeãs,  mas  não  se  entendeo  até 
agora  sua  significação. 

29  Não  só  no  Brasil,  mas  por  toda  essa  Nova  Hespanha  ha  noticias  ad- 
miráveis :  direi  as  de  mór  conta.  Frei  Joaquim  Brulio,  na  Historia  do  Peru 
de  sua  Ordem  de  Santo  Agostinho,  hv.  i,  cap.  5  refere,  que  no  mar  do 
Sul,  em  huma  aldeã  chamada  Guatuleo,  tinhão  aquelles  índios  seus  natu- 
raes,  não  só  por  tradição  antiquíssima  de  seus  antepassados,  mas  ainda  por 
escritto  em  certas  pinturas,  de  que  usavão  em  lugar  de  letras ;  que  huma 
cruz  que  alli  adoravão  com  summa  veneração,  lhes  fòra  dada  por  S.  Tho- 
mé, cuja  imagem,  e  próprio  nome  tinhão  esculpido  em  pedra  viva  em  huma 
rocha,  pêra  memoria  perpetua  de  cousa  tão  santa.  O  mesmo  refere  o  Pa- 
dre Gregório  Garcia,  liv.  v,  cap.  fí,  onde  acrescenta,  que  esta  cruz  he  a 
mesma  que  pretendeo  queimar  aquelle  insigne  herege  Francisco  Draque, 
quando  descobrio  o  estreito  de  Magalhães ;  mas  sem  eíTeito,  e  com  exem- 
plo de  hum  portento  maravilhoso:  porque  a  cruz  lançada  nas  chammasnão 
se  queimou ;  antes  por  três  vezes  frustrou  a  pérfida  intenção  do  herege, 
que  por  outras  tantas  intentou  consumil-a  com  fogo,  cobei'ta  de  pez,  e  al- 
catrão. E  finalmente  esta  milagrosa  cruz  tresladou,  andados  os  tempos, 
pêra  Guaxãca,  hum  Prelado  zeloso,  João  de  Cervantes:  e  he  venerada  n"a- 
quelle  lugar  cx)m  grande  multidão  de  milagres. 

'JO  Frei  Bartholameu  de  las  Casas,  varão  fidedigno,  Bispo  de  Chíapa, 
depois  de  tirada  grave  informação  do  caso,  aííirma  em  huma  sua  Apolo- 
gia, que  consta  {)or  anli(]uissima  tradição  dos  índios  d"a(iuellas  })ai'tes,  que 
em  tempos  anliguos  forão  annunciados  a  seus  avós  os  mysterios  da  San- 
tíssima Trindade,  do  parto  da  Virgem,  e  da  [)aixão  de  Christo,  por  huns 
homens  brancos,  barbados,  o  vestidos  até  os  artelhos.  Condiz  com  o  que 
acima  dissemos,  (jiie  andava  com  o  Santo  Apostolo  Thomé  outi'0  Discípulo 
de  Christo. 

'M  Aquelles  [)rimeiros  Castelhanos,  {'ernão  Corlez,  e  seus  com[)anliei- 
ros,  quando  no  i)ríncipio  entrarão  na  ilha  de  Cozunicl  da  Nova  Hespanha, 
acháifio  himia  cousa,  que  os  meteo  em  admiração;  porque  virão  hum  fer- 
rnoso  muro  de  pedra  quadrada,  e  no  meio  (relle  arvorada  huma  cruz  de 
dez  palmos  em  alto,  venerada  por  toda  aquella  íjente  como  DeosUa  chuva: 


CVllI  LIVRO  II  DAS  NOTICIAS 

e  o  que  mais  he,  que  por  seu  meio  a  alcançavão  em  suas  secas,  fazendo 
per  isso  procissões,  e  preces  a  seu  modo  gentilico:  ou  por  milagre  de  S. 
Thomé,  que  alli  a  plantou  (segundo  nota  o  autor  da  Historia  do  Pem  aci- 
ma citado)  ou  por  traça  do  inimigo  infernal,  pêra  fazer  que  esta  gente  ido- 
latrasse no  excesso  da  veneração,  tendo  aquella  cruz  por  verdadeiro  Deos. 
Era  este  lugar  tido  por  commum  sacrário  de  todas  as  ilhas  circunvezinhas, 
e  não  havia  povo  algum,  que  n"elle  não  tivesse  sua  cruz  de  pedra  mármo- 
re, ou  de  outras  matérias.  Assi  o  affirma  também  Gomara,  segunda  parte, 
cap.  IV,  e  Justo  Lipsio  no  liv.  iii,  em  que  trata  da  Cruz. 

32  Finalmente,  prova-se  o  assumpto  que  pretendo,  de  qpie  andou  por 
estas  partes  o  Santo  Apostolo  Thomé,  por  testemunhos  infinitos,  de  todos 
os  Reinos  da  America,  e  de  todas  as  gentes,  e  nações  naturaes  do  Brasil, 
do  Paraguay,  do  Peru,  especialmente  de  Cuxco,  Quito,  e  México ;  como 
largamente  trata  e  confirma  o  Padre  Mestre  António  de  la  Calancha  no  liv. 
II  de  sua  Historia  Peruana,  cap.  2.  O  que  tudo  supposto :  quem  haverá 
que  negue  ainda  hoje  haver-se  de  ter  por  certa,  tradição  tão  constante  por 
tantas  vias,  por  tantos  Reinos,  por  tantas  nações,  c  casos  tão  extraordiná- 
rios ?  D"outra  maneira  negar-se-ha  a  fé  commum  da  tradição  humana  em 
todas  as  mais  cousas,  tanto  contra  o  estylo  do  mundo,  e  o  intento  da  sa- 
grada Escrittura,  que  diz,  Exod.  32.  íí Interroga  patrein  tuam,  e  amntntiabit 
tibi:  maiores  tuos,  et dicent  tibi.»  Se  não  pergunto  eu :  assi  como  no  papel 
as  letras,  porque  não  se  imprimirão  também  nas  memorias,  as  espécies 
das  cousas  memoráveis?  Neguemos  logo  as  façanhas  dos  Césares,  dos  Pom- 
peos,  dos  nossos  Yiriatos,  Sertorios,  e  outras  historias  semelhantes. 

33  Contarei  hum  caso  gracioso,  e  juntamente  mui  a  propósito  em  prova 
do  intento.  Refere  o  Padre  Affonso  de  Ovalle,  da  Companhia  de  Jesu,  no 
livro  que  compoz  da  Historia  do  Reino  de  Chilli,  que  ouvio  contar  muitas 
vezes  ao  Padre  Diogo  de  Torres,  da  mesma  Companhia,  Provincial,  e  fun- 
dador d'aquellas  Províncias,  varão  digno  de  todo  o  credito :  que  indo  elle 
dito  Provincial  caminhando  por  hum  valle  de  Quito,  vio  hum  dia  de  festa 
Imm  índio  já  de  idade,  que  tocando  seu  tamboril,  estava  ao  som  d'elle 
cantando  em  sua  lingoa  certas  historias,  e  estavão  ouvindo  altentos  outros 
mancebos.  Parou  o  Padre,  e  logo  acabando  elle  de  cantar,  perguntou,  que 
ceremonia  vinha  a  ser  aquella  ?  Respondeo  hum  dos  que  o  ouvirão,  que 
aquelle  índio  que  cantava,  era  o  Archivista  da  aldeã,  a  quem  corria  a  obri- 
gação de  sahir  ãquelle  lugar  todos  os  dias  santos,  e  repetir  cantando  as 
tradições,  e  cousas  memoráveis  de  seus  antepassados,  em  pi'esenra  dos 


DAS  COUSAS  DO   BRASIL  CIX 

([ue  alli  estavão,  que  por  morte  d'elle  estavão  destinados  porá  ficar  em  seit 
lugar:  porque  como  os  índios  não  tinlmo  livros,  usavão  d'esta  diligencia 
pêra  conservar  nas  memorias  as  historias  antiguas.  Passou  mais  o  Padre  a 
perguntar,  que  era  o  que  de  presente  cantava  ?  Respondeo,  que  cantara  em 
primeiro  lugar  a  historia  de  hum  diluvio,  que  houvera  no  mundo  antigua- 
mente,  e  innundára  toda  a  terra ;  e  que  passados  depois  d'este  diluvio 
muitos  séculos,  havendo-se  tornado  a  povoar  o  mundo,  veio  ao  Peru  hum 
homem  branco,  chamado  Thomé,  a  pregar  huma  lei  nova,  nunca  ouvida 
n"aquellas  regiões.  Exemplo  he  este,  que  mostra  com  evidencia  a  fé  que 
devemos  dar  ás  tradições  das  gentes,  ainda  que  barbaras.  Que  monta  mais 
que  o  escrivão  assente  no  papel  as  historias,  ou  que  aquelle  do  tamboril 
as  assente  nas  memorias  dos  que  o  estavão  ouvindo,  pêra  eíTeito  de  serem 
conservadas  cm  perpetua  lembrança?  E  porque  faremos  mais  caso  do  que 
se  imprime  no  papel,  que  do  que  se  imprime  nas  memorias  dos  homens? 
Pelo  que  de  todo  o  sobredito  discurso  tiro  por  cousa  certa,  que  se  deve 
dar  credito  á  tradição  que  affirma  haver  andado  n'estas  partes  o  Apostolo 
S.  Thomé. 

34  Quanto  mais  que,  porque  de  huma  vez  apertemos  este  assumpto, 
hei  de  mostral-o  com  argumentos  de  maior  profissão :  e  digo  assi.  Algum 
dos  sagrados  Apóstolos,  por  obrigação  de  preceito  divino,  passou  a  esta 
America  a  promulgar  o  Evangelho  da  Lei  da  graça,  em  que  os  homens  se 
havião  de  salvar:  este  Apostolo,  não  foi  S.  Pedro,  nem  S.  Paulo,  nem  S. 
João,  nem  Santo  André,  nem  S.  Philippe,  nem  Sant-Iago,  nem  S.  IMathcus, 
nem  S.  Thaddeo,  nem  S.  Simão,  nem  S.  Mathias,  nem  outro  Sant-Iago,  nem 
S.  Barlholameu :  resta  logo  que  fosse  S.  Thomé.  Só  a  primeira  d'estas 
proposições  tem  necessidade  de  prova  :  que  algum  dos  sagrados  Apóstolos 
por  obrigação  de  pi'eceito  divino  passou  a  esta  America  a  promulgar  o 
Evangelho  da  Lei  da  graça,  em  que  os  homens  se  havião  de  salvar.  Isto 
parece  fjiie  convencem  as  palavras  de  Chrislo,  por  S.  Marcos  no  cap.  xvr. 
aonde  antes  de  subir  ao  Ceo,  lançou  a  obrigação  que  tinha  sobre  os  Ap(js- 
tolos;  e  lhes  disse  assi:  «Ide  pelo  mundo  universo,  e  pregai  o  Evangelho 
a  toda  a  creatura:  o  que  crêi-,  e  fôr  bautizado,  salvar-sc-ha;  e  o  que  não 
crer,  condemnar-se-ha.»  Quem  diz,  pelo  mundo  universo,  não  deixa  de  fora 
a  America,  que  he  quasi  amelade  do  muiiílo.  (Jnem  diz  a  toda  a  creatura, 
íião  deixa  de  fora  as  da  America,  (jue  são  quasi  ametade  das  gentes :  c 
que  este  preceito  se  haja  de  exí)li('ai'  na  generalidade,  que  só  a  de  mundo, 
e  creaturas,  enteufleia  os  Santos  Padres,  e  Doutores  sagrados  á  margem 


CX  LlVnO  II  DAS  NOTICIAS 

ciladosf).  E  mostro  com  razão  efficaz :  pinique  Chrislo era Redemplor uni- 
versal, tanto  da  America,  como  das  outras  partes  do  mundo :  logo  tanta 
obrigação  lhe  corria  de  mandar  ensinar  o  Evangelho  á  parle  da  America, 
como  ás  outras  partes  do  mundo.  Assi  o  ponderou  Hugo  Cardeal,  tirando 
a  nossa  mesma  consequência.  «Ei"a  Christo  (diz  elle)  Redemptor  universal 
do  mundo:  logo  a  todos  devia  communicar  o  beneficio  da  Lei  Evangélica.» 
Declaro  mais  o  argumento :  porque  esta  Lei  da  graça,  tem  ser  graça,  e 
tem  ser  lei :  em  quanto  graça,  he  dom  universal  de  todos ;  porque  he  ga- 
nhado pela  morte,  e  sangue  de  Christo,  como  Redemptor  universal  de  to- 
das as  gentes,  sem  excepção  de  pessoas,  quanto  mais  de  meio  mundo  da 
America.  Em  quanto  lei,  deve  este  Evangelho  de  Christo  ser  promulgado 
segundo  o  direito  das  gentes  humano,  e  divino  em  todo  o  distrito  do  Le- 
gislador, e  este  he  o  nmndo  todo :  e  senão,  como  poderão  ser  havidos  por 
transgressores  da  dita  lei,  aquelles  a  quem  não  foi  denunciada?  ou  com 
que  razão  poderia  o  índio  da  America  ser  condemnado,  apparecendo  na 
outra  vida  sem  bautismo,  se  este  lho  não  fora  pregado? 

35  Consta  do  dito,  que  mandou  Christo  aos  Santos  Apóstolos,  que  pro- 
mulgassem a  Lei  da  graça  por  todo  o  mundo  universo,  sem  excepção  de 
parte  alguma :  porque  de  todas  era  Redemptor,  a  todos  tinha  igual  obri- 
gação, e  essa  mesma  obrigação  que  tinha  (indo-se  ao  Ceo)  deixava  aos  Após- 
tolos, como  successores  seus  no  officio.  Porém  não  fica  bastan temente 
provado,  que  com  effeito  corressem  os  Apóstolos  o  universo  mundo,  ou  to- 
das as  quatro  partes  d'elle,  que  o  mesmo  he.  Isto  provo  agora  com  os  ar- 
gumentos seguintes:  porque  a  doutrina  commua  dos  santos  Padres,  e 
Doutores  sagrados  he,  cpie  a  Lei  Evangélica  foi  promulgada  por  todo  o 
mundo  universo,  pelos  mesmos  Apóstolos,  dentro  de  espaço  de  quarenta 
annos  depois  da  morte,  e  paixão  de  Christo.  Assi  o  aíTirmão  expressamente 
S.  Thomás,  S.  João  Chrisostomo,  S.  Gregório  Papa,  Euthimio,  Theophilato, 
nos  lugares  citados  á  margem  (**),  com  grande  numero  de  Expositores  mo- 
dernos. Em  particular  Euthimio  citado  tem  pêra  si,  que  dentro  em  espaço 
de  vinte  até  trinta  annos  pregarão  os  Apóstolos  a  Lei  de  Christo  por  todo 
o  mundo.  O  Evangelista  S.  Marcos  quando  compoz  o  seu  Evangelho,  dizia 
já  então,   que  estava  divulgada  a  lei  de  Christo  pelos  Apóstolos  em  todas 

(•;  Gregor.  in  Ilomíl.  sup.  Marc.  16.  — Thenph.  Hugo,  Card.  Caetano  ibid.— Barratl.  in  Matt. 
28  et  Maic.  IS. 

(••)  S.  Tbcmas  ad  Bernard.  10  lect.  4.  —  S.  Grep.  Mag.  in  cap.  16.  fliarc.  —  S.  João  Cbrií. 
Homil.  76  sup.  Math.— £uth.  et  Theophil.  sup.  Math.'2í. 


DAS  COUSAS  DO  BRASIL  CXl 

as  partes  ilo  mundo  :  í(Pr(edicavi'nint  ubique,  eto^  Sendo  assi  cjiie  o  santo 
Evangelista  escreveo  seu  Evangelho  doze  annos  somente  depois  da  morte 
de  Cliristo,  segundo  diz  Gesar  Baronio.  S.  Paulo  faltando  do  seu  tempo 
diz,  que  já  então  estava  pregado  o  Evangelho  a  toda  a  criatura,  que  habita 
debaixo  do  Ceo:  «iProidicatum  est  Evangdium  in  omni  crcatura,  qme  sub 
Círio  est.»  E  quem  negará  que  está  a  nossa  America  debaixo  do  Ceo?  Só 
os  que  lhe  negão  o  mesmo  Ceo,  como  depois  veremos. 

36  Segue-se  de  todos  estes  argumentos,  que  algum  dos  sagrados  Após- 
tolos passou  a  esta  quarta  parte  do  mundo,  que  chamamos  America,  a 
promulgar  a  Lei  da  graça.  Consta  também,  que  este  Apostolo  não  foi  S. 
Pedro,  nem  S.  Paulo,  nem  algum  dos  que  referi  acima:  como  se  vê  na  re- 
lação de  suas  vidas :  e  porque  não  ha  autor  que  o  diga;  resta  logo,  que 
fosse  este  o  Apostolo  S.  Thomé.  Parece  que  assi  o  quizerão  significar  S. 
Chrisostomo,  bomil.  61,  e  S.  Thomás  em  sua  Catena  in  Joannem,  cap.  H, 
aonde  dizem:  «Tltomas  infirmior  erat,etin{idelior  aiijs;  postea  omnibus  for- 
tior  factus  esl^  et  irreprehensibilis.  qui  solus  ferrarum  orbem  percurrit,  et  tu 
inedljs  plebibus  volvebatur  volentibus  enm  inter ficere.y»  Nem  faz  contra  esta 
doutrina  a  exposição  de  alguns  Doutores,  que  dizem,  que  os  santos  Após- 
tolos, nem  erão  obrigados  a  correr,  nem  com  elTeito  correrão  \)0V  si  mes- 
mos o  mundo  universo;  que  isso  parecia  impossível,  sendo  tão  poucos,  e 
em  tão  breve  tempo.  Porque  esta  exposição  se  entende  (segundo  os  mes- 
mos Doutores  bem  estudados)  que  não  correrão  os  santos  Apóstolos  o  uni- 
verso mundo,  quanto  a  lugares  particulares,  e  indivíduos;  o  que  he  ver- 
dade, e  depois  se  fez,  e  vai  fazendo  por  seus  successores.  Porém  que  cor- 
ressem as  partes  do  mundo,  quanto  aos  lugares  principaes,  nem  o  negão, 
nem  o  podem  negar;  pois  sabemos  que  andarão  os  Apóstolos  nas  três  par- 
tes do  mundo  principaes,  Ásia-,  Europa,  e  Africa,  o  só  da  America  proce- 
dia a  nossa  questão,  cuja  parte  aíTirmativa  agora  demonstramos :  nem  cu  vi 
autor  algum,  que  o  negue  absolutamente ;  e  só  o  não  alhrmão,  porque 
lhes  não  erão  presentes  os  argumentos,  que  hoje  nos  são  manifestos. 

37  Achei  somente  o  doutíssimo  Cornelio  Alapide  sobre  o  cap.  46  de  S. 
Marcos,  que  diz  assi:  «que  não  parece  verisimil,  que  tão  poucos  Apósto- 
los por  si  corressem  o  mundo  todo :  principalmente  porque  na  America, 
de  novo  descoberta,  não  se  achão  vestígios  da  Fé.»  Se  soubera  este  dou- 
tíssimo Expositor  os  vestígios  d(;  Fó  prodigiosos,  que  temos  refeiido,  que 
dissera  ?  Sem  duvida  alguma  não  duvidaria.  Se  soubera  (laquella  tradição 
tão  constante,  e  averiguada  pelo  Bispo  de  Chiapa  acima  referido,  de  como 


CXir  LIVRO  II  DAS  NOTICIAS 

OS  índios  antigiios  cVaquellas  partes  forão  inslruidos  nos  mvsteriosda  San- 
lissima  Trindade,  parlo  da  Virgem,  morle,  e  i)aixão  de  Cliristo,  por  huns 
homens  brancos,  com  l)arba,  e  vestidos  até  os  artelhos :  dos  muitos  vestí- 
gios que  o  grande  Cólon,  descobridor  primeiro  das  terras  da  Nova  Hespa- 
iiha,  e  seus  companheiros,  acharão  em  as  primeiras  ilhas  d'ella,  qiic  seus 
moradores  reconhecião  hum  só  Deos  infinito,  e  omnipotente,  c  que  este  Deos 
tivera  mãi,  que  vem  a  ser  os  primeiros  dous  artigos  da  Fé.  Que  em  Cu- 
maná,  terra  não  mui  distante  da  sobredita,  entre  seus  Ídolos  adoravão 
aquelles  naluraes  liuma  cruz  com  ceremonias  de  grande  devação;  que  com 
ella  se  benzião  a  si,  e  aos  filhos  novamente  nascidos,  pêra  livrar-se,  e  lívral-os 
a  elles  de  males,  segundo  o  refere  Gomara,  part.  m,  cap.  83.  Se  todos 
estes,  e  outros  vestígios  da  magnificência  de  seus  templos,  da  diversidade 
de  suas  ceremonias,  de  seus  jejuns,  e  abstinências  rigorosas  de  carne,  e 
outros  semelhantes,  que  agora  deixo  por  brevidade,  e  se  podem  ver  em 
parte  no  Padre  António  de  la  Calancha,  Religioso  fidedigno  de  Santo  Agos- 
tinho, no  iiv.  II  da  Historia  do  Peru,  soubera  o  doutíssimo  Cornelio  Ala- 
pide,  n3o  duvidara  de  que  havia  na  America  vestígios  da  Fé,  e  de  que  pas- 
sara a  estas  partes  algum  dos  sagrados  Apóstolos;  e  por  conseguinte,  que 
este  fora  S.  Thomé. 

38  De  tudo  o  atraz  referido  se  colho  com  bastante  certeza,  que  passou 
a  esta  nossa  America  o  Apostolo  S.  Thomé,  e  que  correo  n"ella  os  lugares 
marítimos  que  temos  apontado,  e  são  as  principaes  d'estas  partes.  E  sobre 
esta  resolução,  são  dignas  de  ponderar  outras  duas  resoluções  moraes,  huma 
da  parte  da  justiça,  e  misericórdia  infinita  de  nosso  grande  Deos,  que  não 
permitio  dilatar  até  o  tempo  do  descobrimento  d"este  novo  mundo  (que  foi 
espaço  de  mil  e  quinhentos  annos)  a  graça  da  Lei  Evangehca ;  se  não  que 
logo  a  communicou  a  todas  suas  gentes,  igualmente  com  as  outras  partes 
do  mundo.  A  outra  da  parte  dos  naturaes  da  terra;  que  contra  estes,  que 
não  admittirão  aquelle  santo  Legado  Evangélico  estarão  gritando  até  o  dia 
ultimo  do  Juízo,  aquelles  sinaes  de  suas  pegadas,  de  seu  bordão,  e  de  sua 
doutrina,  que  em  testemunho  lhes  deixou  de  sua  pertinácia;  e  á  vista  d' el- 
les não  poderão  allegar  ignorância. 

39  Além  dos  autores  acima  referidos,  têm  também  pêra  si  que  veio  a 
estas  partes  o  santo  Apostolo,  o  Padre  Francisco  de  ]\Iendoça,  da  Compa- 
nhia de  Jesu,  em  seu  Yiridario  Probl.  44;  o  Padre  Ribadeneira,  da  mesma 
Companhia,  no  seu  Fios  Sanctorum,  na  vida  do  mesmo  S.  Thomé;  e  André 
Lucas  na  vida  de  Santo  Ignacío,  foi.  243,  onde  traz  huma  notável  prophe- 


DAí5  COUSAS  DO  BRASIL  CXIII 

cia  do  mesmo  santo,  que  pronosticando  aos  índios  disse,  «que  depois  do 
muitos  séculos  virião  a  suas  terras  huns  Sacerdotes,  successores  seus,  a 
jirégar-lhes  o  mesmo  Evangeliio,  que  elle  lhes  pregava :  c  trarião  por  di- 
visas cruzes  em  as  mãos :  e  que  estes  os  congregarião  em  povoações,  pêra 
que  vivessem  cm  ordem,  e  policia  christãa;  e  que  então  Tupis,  e  Garamo- 
mís  (que  comprehendem  todas  as  nações)  vivirião  em  paz. »  O  que  tudo  teve 
cumprimento  com  a  entrada  da  Companhia  de  Jesu  n'aquellas  partes, 
quando  virão  os  índios  os  Sacerdotes  d'ella  chegados  áquellas  regiões  com 
cruzes  em  as  mãos,  em  lugar  de  bordões,  e  que  erão  os  primeiros,  que 
depois  do  santo  Apostolo,  prégando-lhes  a  Christo,  os  união  em  varias 
christandades.  Prophecia,  que  sendo  com  a  mesma  uniformidade  achada 
entre  todos  os  índios  d'aquellas  partes,  de  tão  varias  nações,  lingoas,  e  ter- 
ritórios, e  com  distancia  de  duzentas,  trezentas,  e  mais  legoas,  sem  haver- 
se  jamais  communicado  entre  si ;  pareceo  ter  fundamento  sohdo,  e  como 
tal  (depois  de  feita  bastante  diligencia)  a  enxerirão  os  Padres  da  Compa- 
nhia nos  Annaes  d'aquel!as  Províncias. 

40  Os  autores  do  livro  intitulado.  Imago  swcuU,  foi.  G3  no  fim,  refe- 
rem a  mesma  prophecia ;  e  resolvem,  que  não  se  pôde  duvidar  de  que 
andasse  n'aquellas  partes  o  santo  Apostolo;  por  estas  sustanciaes  palavras: 
aln  remotissimis  illis  Peraguarloe  Provincijs  tanlam  uhique  inter  Bárbaros 
memoriam,  vestigiaque  Sancti  Thomoi  Áposloli  imenére  socij,  ut  duhitari  non 
possit  Apostolum  i.slic  oliin  fmsse.y>  Fazem  também  menção  d'esta  prophecia, 
Frei  Joaquim  Brulio,  já  citado,  liv.  i,  cap.  5.",  n.°  7,  e  João  Torquemada, 
part.  ni  da  sua  Historia,  liv.  xv,  cap.  49,  o  Padre  Affonso  de  Ovalle,  da 
Companhia  de  Jesu  acima  citado :  aonde  também  (hz,  que  em  muitas  par- 
tes do  Pcrú,  c  Paraguay  he  commum  tradição  haver  estado  n'ollas  o  Apos- 
tolo S.  Thomé,  c  que  d"isso  ha  grandes  sinacs ;  e  traz  outros  argumentos 
forçosos.  Primeiro,  os  sumptuosos,  c  magníficos  temi)los,  que  houve  nos 
dous  poderosos  Impérios  do  Peru,  e  IMexico,  muit(j  antes  que  fosse  a  elle 
gente  Ilespanhola;  dos  quaes  acharão  ainda  cm  sua  entrada  muitos,  mui 
ricos,  e  mui  adornados,  conforme  consta  dos  Historiadores.  Segundo,  o  co- 
nhecimento que  tiverão  do  verdadeiro  Deos,  Criador  do  mundo,  Remune- 
rador dos  bens,  o  Castigador  dos  males:  de  Christo  Hedemptor:  da  immor- 
talidade  da  alma,  como  tiverão  os  índios  Ingás,  Amautas;  e  da  resurreição 
dos  corpos,  como  tiverão  outros ;  do  que  tudo  traz  autores  no  mesmo  ca- 
pitulo citado.  E  por  terceiro  argumento  traz  huma  fcrmosa  cruz,  de  que 
conta  Garcilasso,  que  tinhão  os  Keis  Ingás  em  Cusco,  em  hum  de  seus  pa- 


r.XW  LIVRO  II  DAS  NOTICIAS 

lacios  reaes,  em  cerlo  apartamento  chamado  Htiâca,  lugar  sagrado,  c  de 
veneração.  O  que  tudo  mostra  nosso  intento,  que  de  força  havia  de  liaver 
pessoa,  que  lhes  communicasse  a  noticia  das  cousas  dittas,  antes  que  en- 
trassem n'aquellas  regiões  os  Castelhanos ;  e  não  parece  podia  ser  outro, 
que  o  Apostolo  S.  Thomé.  E  temos  mostrado  a  verdade  da  tradição  de  ha- 
ver vindo  ás  partes  da  America  este  santo  x\postolo.  Sobre  tudo  consta  da 
Igreja  Syriaca,  aonde  nas  lições  d'este  Santo  se  lê,  que  esteve  na  America, 
e  pregou  alli  áquelles  povos;  e  parece  se  não  pode  negar  já  hoje. 

41  Depois  de  tantas  duvidas  curiosas,  parece  bem  ponha  ílm  a  ellas 
huma  mui  necessária;  e  he  esta,  a  da  salvação  d'estes  índios:  se  no  meio 
de  sua  gentilidade  se  podião,  ou  podem  salvar  alguns  d'eUes  ?  ou  se  todos 
ss  perdem?  Na  verdade  que  quando  tomei  a  penna  pêra  tratar  esta  du- 
vida, me  pareceo  que  igualmente  a  tomava  pêra  tratar  de  huma  apologia 
em  defensão  da  misericórdia  de  nosso  grande  Deos;  porque  sem  duvida, 
dura  cousa  parece  aquella  voz  commua,  de  que  toda  esta  immensa  vastidão 
de  almas  de  hum  mundo  inteiro,  e  por  espaço  de  tantos  séculos  de  cinco 
mil,  seis  mil,  e  sete  mil  annos" depois  de  sua  creação,  até  a  vinda  dos  Pre- 
gadores Evangélicos,  houvesse  de  perder-se  toda:  sendo  certo  que  morreo 
Chrislo  por  salval-as;  e  quer  Deos  que  todas  se  salvem.  Ora  eu,  depois  de 
considerar  a  duvida,  e  ver  com  cuidado  os  Padres,  e  Doutores  sagrados ; 
tenho  concebido,  que  tem  havido  grandes  misericórdias  da  bondade  divina 
sobre  esta  desamparada  gente. 

42  E  digo  em  primeiro  lugar,  que  na  confusão  de  tantos  séculos,  quando 
ainda  a  terra  da  America  estava  escondida,  e  antes  que  a  ella  passasse  o 
Apostolo  S.  Thomé,  ou  outros  Pregadores;  os  homens  d'estas  partes  nas 
trevas  de  seu  gentilismo  vivião,  ordinariamente  fatiando,  com  ignorância 
invencível  da  Fé  divina ;  e  por  conseguinte  sem  peccado  de  infidelidade, 
porque  houvessem  de  ser  condemnados.  Esta  resolução,  supposto  que  foi 
refutada,  e  desfavorecida  de  muitos;  comtudo  he  recebida  hoje  dos  melho- 
res, e  mais  pios  Doutores,  como  S.  Thomás,  Secunda  secundoe  quíBst.  10, 
art.  1,  e  os  mais  á  margem  citados  (*).  E  a  razão  he  clara,  porque  estes  ho- 
mens não  tiverão  conhecimento  algum  da  Fé,  nem  souberão  que  cousa  he 
revelação,  e  porventura  nem  ainda  que  cousa  he  Deos  alguns d'elles:  logo 
mal  podião  peccar  contra  o  preceito  da  Fé,  que  não  sabião.  He  o  que  cla- 

(*]  Aitisiodorense  in  Summ.  lib.  iii,  tract.  3,  cap.  2.— Guilhelmo  Parisiense,  de  Fide,  cap.  2. 
—  Alcx.  Ualení,  2/  pari.  qucst.  1 12.  —  Gerson,  Tract.  de  Vita  Spir.  Ircí.  2. — È  todos  os  roai»;, 
citados  por  Soares,  de  Fide,  disp.  17,  scct.  1,  parag.  2,  e  n."  5. 


DAS  COUSAS  DO  BRASIL  CXV 

ramenio  diz  S.  Paulo,  ad  Roman.  10.  «Quomodo  craknt,  si  nov  audiernnt? 
aul  quomodo  auãienl  sine  predicante? )>  Como  havião  de  crer,  se  não  ouvião? 
ou  como  havião  de  ouvir,  sem  quem  lhes  pregasse?  O  pobre  do  Tapuya 
metido  em  suas  brenhas,  a  quem  nunca  veio  ao  pensamento  obrigação  da 
Fé,  com  que  razão  se  lhe  imputaria  a  peccado  a  falta  delia?  E  o  mesmo 
se  ha  de  dizer  dos  que  viverão,  e  vivem  ainda  hoje  depois  da  pregação 
do  Apostolo  S.  Thomé,  ou  outros  Pregadores  na  America;  se  não  ouvirão 
a  tal  pregação,  ou  lhes  não  foi  sufficientemente  proposta.  Porque,  como  diz 
S.  Thomás,  não  basta  que  os  Apóstolos  pregassem  a  Fé  em  todas  as  Provín- 
cias, ou  Reinos,  se  taes,  ou  taes  pessoas  em  particular  a  não  ouvirão.  Assi 
o  trata  com  provas  mais  extensas  Vitoria,  em  huma  relação  que  faz  dos  ín- 
dios moradores  das  ilhas;  e  o  Padre  Soares  citado  na  margem,  na  disp.  17, 
sect.  1,  n.°  9. 

43  Antes  acrescento,  que  podião,  e  podem  n"aquella  sua  gentilidade  ter 
ignorância  invencível,  não  só  dos  mysterios  sobrenaturaes  da  Fé,  Trindade, 
Encarnação,  e  Remuneração,  que  são  de  si  sobrenaturaes,  e  excedem  o  co- 
nhecimento natural  do  homem;  mas  também  dos  próprios  mysterios  natu- 
raes  de  Deos,  Autor  da  natureza :  como  de  haver  Deos,  ser  hum  só,  inde- 
pendente, omnipotente,  etc.  Pelo  menos  em  algumas  pessoas,  e  por  algum 
tempo  da  vida.  Porque  estas  verdades,  ainda  que  podem  conliecer-se  com 
a  luz  do  entendimento  natural,  comtudo  não  são  proposições  a  que  cha- 
mamos "per  se  notas,  nem  primeiros  princípios  quanto  a  nós,  posto  que  o 
sejão  em  si;  e  he  necessária,  ou  própria  invenção,  ou  doutrina  alhea;  pêra 
o  que  são  os  entendimentos  dos  índios  do  Brasil  tão  pouco  capazes  de  es- 
pecular n'estas  matérias,  que  o  a  que  mais  subirão  per  si,  foi  o  conheci- 
mento d'aquella  confusão,  que  por  vezes  dissemos,  de  huma  Excellencia 
superior,  a  que  chamão  Tupá,  que  tem  domínio  sobre  os  trovões,  e  coris- 
cos, e  a  quem  parece  attribuem  a  remuneração  dos  lugares  melhores,  ou 
pcores  da  outra  vida ;  e  até  aqui  sobe  de  ponto  o  discurso  d'esta  pobre 
gente.  Se  isto  he  conhecer  a  Deos,  ou  não,  deixo  eu  ao  juizo  dos  doutos. 

44  D^onde  se  dissermos,  que  alguns  destes  por  algum  tempo  tiverão 
ignorância  de  Deos;  seus  homicídios,  adultérios,  furtos,  e  semelhantes  obras, 
ainda  que  contra  o  lume  da  razão  natural,  e  materialmente  sejão  más;  não 
são  comtudo  peccados  mortaes  theologicos  que  chamão  os  Doutores,  nem 
por  elles  merecem  o  inferno,  senão  outra  pena  temporal;  porque  como  não 
conhecem  a  Deos,  não  commetem  contra  elle  injuria,  na  qual  consiste  o  ser 
infinita  a  culpa  do  peccado,  c  merecíidora  de  pena  eterna,  .\ntes  os  q^ie 


r.XVI  IJVRO  II  DAS  NOTICIAS 

entre  elles  tivessem  ignorância  semelhante  invencível  de  alguns  dos  princi- 
pies moraes  (o  que  não  repugna,  ao  menos  em  algumas  matérias,  não  tão 
conhecidas,  como  na  simples  fornicação,  vingança,  e  semelhantes,  segundo 
os  Doutores)  não  peccarião,  nem  ainda  physica,  e  materialmente ;  porque 
então  nem  offendião  o  ditame  da  razão.  Digo  mais,  que  todos  aquelles  que 
n'esta  sua  gentilidade  vivessem,  segundo  a  justa  lei  da  razão,  e  ditame  do 
bom,  e  honesto,  poderião  alcançar  de  Deos  graça,  e  salvar-sc ;  segundo 
aquelle  principio  dos  Theologos  :  (íFacienti  quod  in  se  est  Deus  non  denegai 
gratiam.y)  E  acrescento,  que  tenho  pêra  mim,  que  aquelle  principio  poderá 
ter  eíTeito  também  nos  que  peccárão  no  discurso  de  sua  vida,  se  no  fim 
d'ella  tiverem  efficaz  arrependimento,  e  lhes  pezar  deveras  de  haver  offen- 
dido  aquelle  que  conhecem  por  Deos,  ou  o  mesmo  lume  da  razão  :  porque 
fazem  o  que  em  si  he;  e  póde-se  crer  da  grandeza  da  misericórdia  do  Se- 
nhor, que  quer  que  todos  os  homens  se  salvem,  lhes  conceda  a  estes  po- 
bres assi  arrependidos,  o  mesmo  auxilio  da  graça,  que  no  primeiro  caso, 
pêra  que  se  salvem :  e  he  conforme  á  boa  razão,  e  os  Doutores  que  cito  á 
margem  (*). 

45  Resta  por  ver  a  bondade  da  terra,  e. clima,  segundo  a  ordem  das 
perguntas  passadas.  Por  esta  razão  sou  forçado  a  escrever  n'esta  matéria 
mais  o  seguinte.  E  também  porque  estou  vendo  os  curiosos  versados  em 
historias,  que  me  dizem,  que  sendo  esta  a  primeira  que  sahe  a  luz  de  cou- 
sas d'estas  partes,  não  satisfaço  nem  ao  gosto  de  quem  a  lê,  nem  ao  ofli- 
cio  de  quem  a  escreve,  se  n'ella  não  der  algum  maior  conhecimento,  ao 
menos  de  que  cousa  seja  Brasil :  por  quanto  tudo  o  que  até  agora  disse- 
mos, ou  he  seu  descobrimento,  ou  suas  gentes,  ou  seu?  exteriores  somente. 
Proseguirei,  vista  esta  razão;  será  porém  com  tal  brevidade,  que  não  se  en- 
fade quem  lêr,  nem  também  quem  escreve. 

46  ^  porque  comecemos  por  ordem  pêra  mostrar  que  cousa  he  Brasil, 
direi  primeiro  o  que  he  quanto  ao  nome;  e  depois  direi  o  que  he  quanto  á 
sustancia;  seguindo  a  doutrina  doPhilosopho,  que  diz,  que  (íDe  iinaquaque 
re  cognoscendum  est  quid  nominis,  et  quid  rei.y>  Quanto  ao  nome  :  o  primeiro 
que  teve  esta  parte  da  America,  de  que  escrevemos,  foi  Terra  de  Santa  Cruz: 
assi  lho  impoz  Pedro  Alvares  Cabral,  a  quem  de  uso,  e  como  direito  das  gen- 
tes esta  imposição  pertencia,  como  a  primeiro  descobridor.  A  occasião  foi, 
ou  a  do  mez  do  Maio,  em  que  arvorou  este  sinal  de  nossa  Redempção  nas 

(.)  Soares,  de  Fido,  disp.  12,  Icct.  2.  —  Dclugo,  de  Fide,  disp.  10,  Icct.  1- 


DAS  COUSAS  DO  BRASIL  CXVII 

praias  de  Porto  seguro  (e  porventura  que  foi  o  mesmo  dia  da  Santa  Cruz 
três  de  Maio,  segundo  o  escrevem  Pedro  de  Mariz,  de  varia  Historia,  dialogo 
V,  cap.  2.°,  e  João  de  Barros,  Década  i,  cap.  2.*^)  ou  também  o  costume  da 
nação  portuguesa,  affeiçoada  a  principiar  suas  empresas  debaixo  d"este  vivi- 
fico estandarte  de  Christo. 

47  O  segundo  nome  que  teve,  foi  o  de  America :  este  tomou  daquelle 
insigne  Geograplio,  chamado  Américo  Yespucio,  de  quem  dissemos,  que 
veio  por  mandado  d'El-Rei  D.  Manoel,  depois  de  Pedro  Alvares  Cabral,  a 
descobrir,  e  demarcar  em  segundo  lugar  a  costa  do  Brasil.  O  terceiro  foi 
o  de  Brasil,  em  que  fez  troca  a  cobiça  daquelles,  que  depois  vierão  ao  tratto 
do  páo,  que  agora  chamão  d'este  nome;  não  sem  algum  abatimento  da  im- 
posição do  primeiro,  substituindo-se  áquelle  madeiro  vermelho  com  o  San- 
gue de  Christo,  e  preço  de  nossa  Redempção,  outro  madeiro,  que  só  tem 
de  sangue  a  cor,  e  de  precioso  o  apparente  da  cobiça  dos  homens.  Com 
razão  se  queixa  d'esta  mudança  o  Historiador  Portuguez  na  Década  citada, 
6  Pedro  de  Mariz  em  seus  Diálogos.  No  quarto  lugar  chama -se  índia  Oc- 
cidental; ou  porque  foi  descoberta  no  mesmo  tempo  que  a  Oriental,  ou  pela 
semelhança  que  ha  entre  os  índios  de  huma,  e  outra  parte.  Assi  o  cuidou 
o  autor  do  livro  intitulado  Thoatrum  orbis,  na  descripção  da  America.  Ou 
também  do  nome  de  Ophirlndo,  primeiro  seu  povoador,  segundo  a  opinião 
que  atraz  puzcmos.  Outros  curiosos  lhe  quizerão  lambem  acommodar  o 
nome  de  Nova  Lusitânia,  á  imitação  do  de  Nova  Ilespanha :  não  era  mal 
acommodado;  porém  não  vemos  que  estfja  em  uso. 

48  Quanto  á  sustancia,  havia  muito  que  dizer  em  defensão,  e  abono 
da  terra  do  Brasil;  c  muito  mais  de  toda  a  America;  porém  por  escusar 
grandes  processos,  direi  summariamente,  e  somente  da  parte  que  toca  ao 
Brasil.  E  pêra  eu  haver  de  arrazoar  de  justiça  sobre  as  bondades  de  quo 
Deos  a  dotou,  he  necessário  desfazer  primeiro  suas  calumnias :  pêra  o 
que  protesto  que  em  lodo  o  direito  são  partes  suspeitas  as  outras  Ires  par- 
tes do  orbe ;  porque  he  certo  (pie  conspiíYirão  em  outro  tempo  lodos  os 
Sábios  da  Europa,  Africa,  c  Ásia,  em  aniquilar,  e  desacreditar  em  tudo 
esta  quarta  parte  do  mundo. 

49  Aristóteles  o  Priuci[)edos  Sábios,  no  segundo  livro  de  seus  Meteo- 
ros, cap.  V,  com  toda  a  escola  de  seus  (liscii)ulos,  foi  o  primeiro  que  infa- 
mou a  America,  apregoando  d"ella,  e  d»;  toda  a  mais  terra  que  corresponde 
ã  Zona,  a  íjiie  chamava  Tórrida  dentre  os  dous  circulos  solsticios  ãr  Cancro, 
e  (;aj)ricornioj  ser  leiTa  inútil,  seca,  reriueimada,  e  incapaz  de  fontes,  lios, 


CXVIII  LIVRO  11  DAS  NOTICÍAS 

pastos,  e  arvoredos;  e  por  conseguinte  deserta  pêra  sempre,  e  inhabitavel 
aos  homens,  pelos  excessivos  ardores  causados  da  proximidade  do  Sol, 
que  anda  sempre  sobre  ella.  A  este  Philosopho  seguirão  depois  Plinio,  liv. 
II,  cap.  68,  onde  desacredita  a  mesma  região  de  requeimada,  tórrida,  acesa 
dos  vehernentes  raios  do  Sol,  e  conscguinlemente  de  intratável  â  gente 
humana.  Virgílio  em  suas  Georgicas,  liv.  i,  toca  a  mesma  infâmia,  quando 
diz: 

Quinque  tenent  coeliim  Zonoe,  quariim  una  corusco 
Seinpcr  sole  rubens,  et  tórrida  semper  ab  igne. 

Ovidio  no  primeiro  de  suas  Metamorphoses : 

Totidemque  plagie  tellure  premuntur : 

Qiiarum  quw  media  est,  non  est  habitabilis  cestu. 

Cicero,  Philo  Judeo,  Beda,  S.  Thomás,  Escoto,  Durando  referidos  pelos 
Conimbricenses  2.  de  Coilo,  cap.  14,  qusest.  i,  art.  3,  tiverão  o  mesmo.  E 
foi  opinião  communissima  dos  Sábios  de  todas  aquellas  três  partes.  Que 
mais  infâmias  podião  dizer-se  de  huma  pobre  parte  ausente,  nunca  ouvida, 
nem  vista  até  então  em  juizo? 

50  O  Achilles  de  seus  arrazoados  vinha  a  ser  este.  O  Sol  he  a  causa 
total  do  calor :  logo  quanto  mais  de  perto  ferir,  tanto  mór  calor  causará : 
fere  a  região  da  Zona  tórrida  mais  de  perto  que  alguma  outra  do  mundo 
(porque  anda  sempre  sobre  ella,  e  reverberão  n'ella  seus  raios  direitos,  e 
a  modo  de  settas:)  pois  logo,  quem  haverá  que  aguarde  n'ella?  Este  he  o 
Achilles  dos  contrários,  que  parece  têm  vencida  a  causa :  e  a  força  que 
tem  no  calor,  milita  na  secura. 

51  Não  pàrão  aqui  os  contrários  da  nossa  Zona  tórrida;  pretendem 
negar-lhe  até  o  propí^io  Ceo,  commum  ás  crcaturas  todas.  Dizião  não  pou- 
cos, nem  menos  autorizados  Philosophos,  e  Astrólogos,  que  n'esta  nossa 
região,  como  em  toda  a  mais  Zona  tórrida,  não  havia  Ceo  correspondente; 
porque  afllrmavão  que  não  era  espherico,  se  não  que  era  a  modo  de  pinha, 
ou  de  hum  pavilhão,  ou  de  casa  fundada  em  columnas,  que  de  huma  parte 
tem  o  tecto,  da  outra  o  fundamento,  ficando  o  meio,  que  corresponde  á 
Zona  tórrida,  sem  parte  alguma  d'este  benigno  corpo.  Assi  o  considerou  o 
Padre  S.  Chrisostomo,  homil.  14  e  17,  sobre  a  Epistolados  Hebreos;  onde 
estranha  muito  a  opinião  dos  que  dizem,  que  he  o  Ceo  espherico,  corres- 


DAS  COUSAS  DO   BRASIL  CXIX 

poncleiíte  a  toda  a  terra;  e  cuida  que  lie  contra  a  sagrada  Escrittura,  quando 
diz,  que  he  o  Ceo  tabernáculo  fixo.  Com  S.  Chrisostomo  concordão  Theodo- 
reto,  e  Theophilato :  e  Lactancio  rio-se  dos  Philosophos,  que  cansão  seu 
engenho  ern  provar  que  o  Ceo  cerca  toda  a  terra.  E  o  que  he  mais,  que 
duvidou  S.  Agostinho  n'esta  matéria,  tão  grande  Philosopho,  e  Astrólogo, 
com  estas  palavras  :  aQuid  ad  me  pertinet  iitrúm  coBliim,  sicut  sphera^  undi- 
que  concludat  terram  in  media  mundi  mole  Ubratam,  ati  eam  ex iitraque  parte 
de  super,  velut  discus,  operiat?))  A  mim  que  me  pertence,  se  o  Ceo  como 
esphera  cerca  a  terra,  ou  somente  a  cobre  por  cima  como  tecto  ?  Sobretudo 
Procopio  aííirma,  que  he  contra  a  Escrittura  sagrada  a  sentença  de  Aristó- 
teles, que  diz,  que  o  Ceo  he  espherico,  e  que  se  move  ao  redor  da  terra. 
Formão  alguns  este  argumento  em  prova  doesta  opinião;  porque  olhando 
nós  pêra  as  estrellas  quando  estão  sobre  nossa  cabeça,  apparecem  meno- 
res :  e  quando  estão  no  horizonte  apparecem  maiores,  sendo  as  liiesmas : 
não  por  outra  razão,  senão  porque  apparecem  em  diversa  distancia,  me- 
nos longe  quando  maiores,  e  mais  quando  menores :  não  estão  logo  em 
CÃio  espherico,  porque  a  esphera  não  admite  lugares  menos,  e  mais  dis- 
tantes. 

52  Por  esta  via  pretendião  os  autores  citados  anitpiilar  a  terra  do  Bra- 
sil, e  da  America  toda,  negando  huns  poder  haver  terra,  onde  cuidavão, 
que  não  havia  Ceo.  Outros  negando-a  por  de  nenhum  eífeito;  porque  debalde 
criaria  o  Autor  da  natureza  terra  que  não  havia  de  ser  habitada,  pela  in- 
clemência dos  astros,  quando  nY'lla  admittissemos  ceo.  Outros  levavão  esta 
impossibilidade  pela  dos  mares,  que  tinhão  por  immensos,  e  impossíveis 
de  navegar  pêra  chegar  a  ella,  caso  que  tal  terra  houvesse.  E  finalmente 
os  que  a  concedião,  era  com  tantas  notas  de  inútil,  inhabitavel,  requei- 
mada,  etc.  que  era  o  mesmo  que  não  haver  tal  terra.  E  eis-aqui  a  nossa 
região  sem  ceo,  e  sem  terra,  tornada  em  ar,  o  em  agoa  áómente. 

53  Pêra  livrar  de  tantas  calumriias  tão  f(jra  da  razão  a  terra  do  Brasil, 
o  deste  novo  mundo,  hrxtvora  mister  muito  tempo,  se  a  experiência  de 
tantas  gentes,  ainda  das  partes  contrarias,  a  olhos  vistos  não  pregoara  hoje 
por  sonhos  todas  as  opiniões  dos  antiguos,  não  sem  algum  descrédito  seu. 
E  comtudo,  como  tbrão  as  calumnias  publicas,  sabidas  entre  todas  as  gen- 
tes; c  nem  todos  passão  ao  Brasil,  nem  tem  noticia  do  desagravo  d'ellas  ; 
antes  ainda  os  mesmos  que  a  têm,  e  a  vêem  com  seus  olhos,  não  sabem 
orílinariamente  as  causas;  será  agradável  a  todos  responder  mais  em  fói- 
ma:  assi  o  faremos;  mas  será  com  a  brevidade  possi\el. 


CXX  LIVRO  II  DAS  NOTICIAS 

54  E  primeiro  que  tudo  lancemos  fora  a  ignorância  dos  que  preten- 
dem tirar-nos  o  Ceo,  e  com  elle  seus  influxos  benignos.  Acodem  por  honra 
d'estas  partes  autores  sapientissimos;  ainda  dos  das  mesmas  partes  con- 
trarias, e  por  taes  dignos  de  mais  credito:  Thales  Milesio  da  parte  da  Jo- 
nia;  Pithagoras,  e  Licéto,  da  parte  da  Itália :  os  Sábios  da  Babilónia,  os  da 
Caldea,  os  do  Egypto,  os  da  Grécia  (Aristóteles,  Ptolomeo,  Alphragano,  e 
Platão  no  seu  Timeo)  provão  por  nossa  parte  com  razões  evidentes,  assi 
philosophicas,  como  astronómicas,  que  a  toda  a  terra,  em  qualquer  parte 
pue  esteja  responde  o  Ceo,  por  ser  este  espherico,  e  redondo.  Porém  por 
brevidade,  mostremol-o  somente  agora  com  a  experiência  do  movimento 
do  Sol,  Lua,  e  Elstrellas  errantes.  Todas  estas  vemos  com  nossos  olhos, 
ii'esta  mesma  região  calumniada,  irem  subindo  todos  os  dias  do  horizonte 
oriental  ao  meio  do  Ceo :  e  d'este  descer  até  o  do  Poente :  e  d'aqui  vol- 
tar outra  vez  em  perenne  movimento  ao  lugar  do  seu  Oriente.  E  se  o  Ceo 
não  fora  espherico,  e  espherica  a  terra,  não  tinlião  os  astros  porque  andar 
á  roda.  Na  mesma  forma,  com  nossos  olhos  estamos  vendo,  quo  vai  o  Ceo 
rodeando  a  terra  com  suas  estreitas  fixás  igualmente  distantes :  segundo  o 
confirma  a  sagrada  Escrittura  com  as  palavras  do  principio  do  Ecclesias- 
tés,  dizendo  assi:  «O  Sol  põe-se,  e  torna  a  seu  lugar;  e  tornando  ahi  a 
nascer,  volta  em  giro  pelo  Meio-dia,  e  rodea  pelo  Acpiilão  ao  Norte,  allu- 
míando  todas'as cousas  em  circuito,  e  torna  a  voltar  a  seus  círculos.»  Ea 
mesma  Escrittura  a  cada  passo  chama  ao  Ceo  âmbito,  cerco,  ou  giro,  que 
vai  o  mesmo  que  esphera;  como  também  á  terra  cliama  orbe:  aOrbi  ter- 
rarum,  e  quidqnid  cceli  ambitu  conlinetur.y>  Pois  logo  que  dizem  a  isto  os 
Astrólogos  ?  como  podem  negar  que  seja  espherico  o  Ceo  ? 

00  Nem  fazem  contra,  os  lugares  que  allegáo  da  sagrada  Escrittura ; 
porque  quando  chama  ao  Ceo  tabernáculo,  tenda,  casa,  pelle,  e  outros  no- 
mes semelhantes,  não  tem  respeito  á  figura,  se  não  ao  oíTicio  com  que 
abarca,  e  recolhe  todas  as  cousas  em  circuito.  E  ainda  a  pelle  abarca  o 
animal  em  redondo  á  maneira  do  Ceo. 

56  O  argumento  contrario  das  estrellas  menores,  e  maiores,  he  só 
apparente;  porque  estas  estão  sempre  em  a  mesma  distancia  da  terra,  oU 
em  respeito  da  superfície,  ou  centro  d'ella.  Eo  parecerem  maiores  quando 
estão  no  horizonte,  procede  da  crassidão  dos  ares,  e  vapores,  que  se  põem 
entre  ellas,  e  nós,  engrandecendo-as  tanto  mais,  quanto  mais,  c  mais  gros- 
sos são  os  vapores :  não  porque  na  verdade  o  sejão,  mas  porque  o  pare- 
cem aos  olhos :  assi  como  parecerá  maior  qualquer  cousa  metida  em  agoa. 


DAS  COUSAS  DO  GRASIL  CXXI 

que  fora  d"ella,  por  respeito  da  crassidão  do  meio  por  onde  passão  as  es- 
pécies. Verdade  lie,  que  lição  mais  longe  de  nossos  olhos  as  estrellas, 
quando  se  vêem  no  lionzonte,  que  (juando  no  meio  do  Geo;  porque  entre 
nós,  e  o  meio  do  Geo  entrepõem-se  somente  dous  elementos,  de  ar,  e  fogo: 
e  entre  nós,  e  o  Sol,  v.  g.  quando  está  no  horizonte,  além  d'estes  dous 
elementos  entre põe-so  mais  o  semidiamcíro  da  terra:  porém  a  quanti- 
dade d'esse  semidiametro,  e  ainda  a  terra  toda,  em  comparação  da  grande 
distancia  do  Geo  reputa-se  por  nada;  e  não  he  causa  da  maioria,  ou  meno- 
ria  das  estrellas  apparentes,  senão  a  dos  vapores  já  ditos,  segundo  a  dou- 
trina dos  Philosophos,  e  Perspectivos  Aristóteles,  Séneca,  Alphragano,  e 
outros.  Mal  negão  logo  com  este  argumento  os  autores  contrários  a  figura 
esplierica  do  Geo. 

57  Livres  já  das  principaes  calumnias  tocantes  ao  Geo;  tratemos  agorii 
das  da  terra.  Mas  primeiro  que  entremos  em  prova,  não  posso  deixar  de 
fazer  advertência  aos  que  estes  meus  escrittos  lerem,  que  não  passem  sem 
considerar  a  incerteza  das  cousas  d"esta  vida;  e  com  que  justiça  roubavão 
aquelles  bons  antiguos  a  toda  huma  região  não  menos  que  o  Geo  e  a  terra, 
com  provas  tão  pouco  concludentes.  Que  disserão,  se  resuscitárão  hoje 
comnosco,  e  ^irão  o  ({ue  vemos?  Sem  duvida  que  arrejiendidos  disserão, 
(jue  a  terra  do  Brasil,  toda  a  Aniei'ica,  e  toda  a  meia  Zona,  a  que  chama- 
vão  Tórrida,  não  só  não  he  teira  inútil,  seca,  requeimada,  deserta,  inhabi- 
tavel  pêra  gente  humana;  mas  pelo  contrario,  que  he  iiuma  região  tem])e- 
rada,  amena,  abundante  de  chuvas,  orvalhos,  fontes,  rios,  pastos,  verdura, 
arvoredos,  e  frutos  pêra  perfeita  habitação  de  viventes,  isto  virão,  e  expe- 
rimentarão primeiro  que  lodos  os  mortaes  da  Euix)pa,  hum  Cólon,  e  seus 
companheiros:  hum  Gabral  com 'toda  sua  armada,  que  com  seu  valor,  o 
trabalho  mais  rpie  iiumano,  descobrirão  as  parles  desta  Zona,  como  en- 
cantada aos  homens  dos  antiguos  séculos.  Isto  ^emos,  e  gozamos  nós  hoje 
os  que  as  habitamos,  com  tal  suavidade  de  temperamento,  como  em  hum 
paraíso  da  te  ira. 

58  Não  só  os  homens  de  nossos  séculos:  houve  tamijem  muitos  dos' 
antiguos,  que  acertarão  no  coniiecimento  doesta  verdade.  Assi  o  allirmavão 
Kralhostenes,  Polybio,  Ptolomeo,  Avicena,  o  não  i)oucos  de  nossos  Theo- 
logos,  de  (jue  faz  menção  S.  Thomás  na  sua  Teireira  i)arte,  qiiest.  10:2, 
art.  "2.",  e  em  tanto  grão,  (jue  chtigão  a  defender,  (|ue  n"esta  parte' debaixo 
fia  linha  Cífuinocial  criara  D(;os  o  I*araiso  l<írrestre;  [)or  ser  esía  a  parte 
do  mundo  inais  temperada,  deleitosa,   e  amena  [>era  a  \ida  lumiana.  Isto 

SOL.  I  vm 


CXXII  LIVRO  II  DAS  NOTICIAS 

clamavão  já  tanto  d*antos  estes  autores;  porém  não  erao  cridos.  E  ainda 
que  eu  agora  não  me  aproveite  do  que  acrescentão  do  Paraiso ;  não  me 
passa  comtudo  por  alto  pêra  quando  fôr  tempo.  Por  entretanto  não  posso 
deixar  de  agradecer-lhes  o  reconhecerem  nestas  partes  tal  temperamento, 
c  tão  suave,  que  sejão  forçados  a  passar  pêra  ellas  o  mesmo  Paraiso  da 
terra. 

59  Não  he  bastante  a  homens  de  bom  entendimento  ver,  e  experimen- 
tar :  sobretudo  será  gosto  saber  a  razão  fundamental  de  cousas  tão  notá- 
veis, e  ouvir  confutai'  os  maiores  Sábios  dos  séculos.  O  Achilles  de  suas 
razões  he  este :  O  Sol  quanto  mais  de  perto  fere,  e  quanto  com  raios  mais 
direitos,  e  a  perpendiculo,  tanto  com  mais  violência  aquenta,  e  seca:  logo 
ferindo  á  esta  nossa  região  de  muito  mais  perto  que  as  outras,  e  com  raios 
direitos,  que  depois  reflectem  sobre  si,  e  se  encontrão  liuns  com  outros, 
he  forca  intendão  o  calor,  aquentem,  sequem,  requeimem,  e  abrazem  a 
terra.  Fracas  são  as  forças  deste  Achilles,  sem  ser  necessário  feril-o  pela 
planta  do  pé,  como  fingião  os  Poetas :  com  o  engano  de  suas  mesmas  ra- 
zões, o  venceremos.  Os  homens  que  habitão  a  parte  do  Sul  do  Brasil,  que 
chamão  Rio  de  Janeiro,  vêem  por  experiência,  que  na  mór  ausência  do 
Sol,  e  quando  he  ferida  com  raios  mais  obUquos,  então  está  mais  seca, 
falta  de  chuvas,  e  humidades :  e  pelo  contrario,  em  presença  do  Sol,  e 
quando  mais  ferida  com  seus  raios  direitos,  então  está  mais  húmida,  abun- 
dante de  chuvas,  e  vapores :  logo  aqui  não  he  verdadeiro  aquelle  seu  prin- 
cipio, que  quanto  o  Sol  fere  mais  de  perto,  e  quanto  com  raios  mais  di- 
reitos, tanto  mais  aquenta,  e  seca;  e  por  conseguinte  nem  d'aqui  formão 
l)om  argumento,  que  seja  a  terra  do  Rio  de  Janeiro  seca,  tórrida,  requei- 
mada,  e  inliabitavel  aos  homens. 

GO  A  causa  he  muito  digna  de  advertir-se,  e  com  o  exemplo  de  hum 
alambique  fica  clara.  Quando  o  fogo,  que  cerca  o  alambique,  imprime  n"elle 
pouco  calor,  a  experiência. nos  mostra  que  ficão  as  hervas  que  hão  de  esti- 
lar-se,  quasi  secas :  nem  despedem  vapores  ao  alto,  que  depois  resolutos 
em  frotas  distillem  agoas  a  modo  de  chuvas;  e  a  razão  he  natural;  porque 
como  foi  pouca  a  força  do  calor,  pouco  licor  pode  desentranhar,  e  quando 
este  pouco  desentranhado  pretendia  subir  ao  alto,  pêra  n'aquella  segunda 
região  unir-se  em  gotas,  e  soltar-se  em  chuvas;  o  mesmo  calor  tornou  a 
consumíl-o,  e  deixou  frustrado  o  intento.  Pelo  contrario,  quando  o  fogo  do 
alambique  imprime  nelle  maior  calor,  maior  copia  de  vapores  levanta ;  e 
podem  estes  subir  ao  alto,  c  esphera  concava  do  instrumento,  en'ellacon- 


DAS  COUSAS  DO  DÍIASII,  f.XXIIl 

vertidos  em  golas,  resolvei-se  como  em  chuva,  e  dar  copia  de  agoa :  por- 
que o  calor,  ainda  que  giaride,  c  poderoso  a  levantar  vapores  grandes, 
não  he  comtudo  poderoso  pêra  gasíal-os  todos,  antes  que  cheguem  a  re- 
solver-se  era  agoa.  O  mesmo  passa  no  nosso  caso.  Quando  o  Sol  por  mais 
remoto  imprime  menos  calor  n\iquella  terra  do  Rio  de  Janeiro,  ou  outras 
semelhantes,  atrahe  menos  humidadcs;  e  como  são  poucas  pôde  gastal-as, 
deixando  a  terra  seca,  e  sem  as  chuvas  que  d'ella  nascem :  quando  porém 
o  calor  he  maior,  he  também  maior  a  copia  de  humidades;  e  como  o  Sol 
não  pôde  gastar  todas,  he  força  subão  ao  alto,  e  ahi  se  converlão  em 
agoa,  e  resolvão  em  chuvas,  reguem,  e  humedeção  a  terra,  e  por  conse- 
guinte moderem  os  calores.  E  ex-aqui  como  p(jde  o  Sol  estar  mui  perlo, 
o  ferir  a  terra  com  raios  direitos  sem  a  secar,  nem  ainda  aquentar  dema- 
siadamente :  e  esta  razão  milita,  não  só  n'esta,  mas  em  outras  partes  se- 
melhantes 'da  America.  O  que  supposto,  fique  por  conclusão,  que  a  Zona 
tórrida  (exceptas  algumas  parles  em  que  ha  causas  particulares)  então  he 
menos  seca,  quando  mais  presente  a  fere  o  Sol;  e  então  mais  seca,  quando 
mais  ausente  está :  e  por  conseguinte,  que  nunca  pode  torrar-se  de  seca, 
nem  abrazar-se  de  ardores ;  porque  a  refrescão,  e  humedecem  os  vapores 
desfeitos  em  chuvas :  e  mui  ao  contrario  se  philosopha  n'esta  matéria  fora 
dos  Trópicos :  porque  alli  a  chuva  com  o  frio,  o  calor  com  a  secura  andão 
inseparáveis. 

61  Outra  causa  ha  mais  commua,  ainda  a  toda  a  região  equinocial,  o 
he  :  porque  como  aqui  os  dias  são  iguaes  com  as  noites,  e  o  calor  do  dia 
mais  breve  que  nas  outras  partes  de  verão,  d'aqui  nasce  que  nas  partes 
equinociaes  o  frio  da  noite  diminue  o  calor  do  dia;  e  o  calor  do  dia,  o  frio 
da  noite ;  e  íicão  quasi  temperados  calor,  e  frio.  Muitas  outras  causas  se 
apontão :  como  he  o  sitio  da  terra,  mais  alta  commummenlu,  e  mais  vizi- 
nha á  meia  região  ilo  ai-,  que  he  mais  fria,  e  mais  isenta  da  repercussão 
dos  raios  do  Sol.  A  maior  vizinhança  do  mar,  as  virações  continuas  vitaes, 
e  benignas,  que  commummente  se  experimentão,  e  lie  força  mitiguem  o 
calor :  parece  este  hum  singular*  dom  de  Deos,  tirado  dos  thcsouros  de 
■sua  omnipotência.  E  sobre  todas  estas  causas,  tenho  pêra  mim  ajuda  lam- 
bem certa  condição,  ou  propriedade  da  terra  particular,  de  que  o  Autor 
da  natureza  dotou  a  esta  região  do  principio  do  mundo,  além  da  bondade 
(los  astros. 

(i2  Segundo  o  (|ue  temos  rlito,  Ixirn  si;  fica  livrando  de  calumnias  a 
região  do  Brasil,  e  de  toda  a  Ameri':.f.  E  íicvj  tombem  dcs.ipjwirtTendo , is 


CXXIV  LIVRO  II  DAS  NOTICIAS 

carrancas,  e  horrores  da  iinmcnsidade  dos  mares  do  Oceano  entre  a  Ame- 
rica, e  as  outras  partes  do  mundo,  que  pareciao  perpetuamente  innavega- 
veis.  Estes  temores  tem  desapparecido  como  fumo,  á  vista  dos  generosos 
corações  da  gente  Portuguesa,  e  Castelhana,  que  tem  corrido  o  mundo  to- 
do, experimentando  os  poios  mais  distantes,  Arlico,  c  Antarlico:  passado 
climas,  regiões,  e  zonas  nunca  d"antes  vistas.  Pêra  isto  souberão  achar  ins- 
trumentos, e  armar  vasos  em  o  mar,  que  pareciao  cidades  portáteis,  as- 
sombro das  nações  estrangeiras,  e  em  cuja  comparação  desapparecem  as 
aíTamadas  navegações  dos  Eneas,  Jasões,  Ulisses.  E  sobretudo  lique  assen- 
tado, que  a  nossa  região  nem  he  sem  Ceo,  nem  sem  terra,  nem  terra  inú- 
til, nem  por  extremo  seca,  tórrida,  e  requeimada :  nem  falta  de  chuvas, 
fontes,  rios,  pastos,  e  arvoredos :  e  por  conseguinte  nem  deserta,  e  inha- 
hitavel  à  gente  humana.  Antes  pêra  que  possa  ver  o  mundo,  o  quanto 
n"eslas  mesmas  cousas  (se  não  excede)  não  dá  vantagem  ás  demais  terras, 
e  regiões  do  universo ;  demonstraremos  cada  qual  de  suas  bondades,  e 
propriedades  de  por  si,  tratando  somente  do  Brasil,  que  por  ora  está  á 
nossa  conta. 

03  Negarão  huns  o  ser  a  esta  terra;  outros  lhe  negarão  as  proprieda- 
des: com  os  que  neg;irão  o  ser,  não  temos  que  cansar-nos:  cm  terra  do 
Brasil  estamos,  n"ella  escrevemos,  nossos  olhos  a  vêm,  e  nossos  pés  a  pi- 
são. Vemos  n'ellas  cidades  populosas,  muitas  villas,  muitos  lugares :  não 
ha  quem  negue  já  esta  verdade;  porque  assi  foi  ser.'ido  o  Autor  do  uni- 
verso, que  esta  obra  sua  viesse  a  ser  manifesta  aos  olhos  dos  homens,  e 
desenganasse  ella  mesma  a  sabedoria  do  mundo.  Confesso  que  andando 
correndo  esta  terra,  e  considerando  a  perfeição  de  sua  fermosura,  me  ria 
comigo  algumas  vezes,  lembrado  dos  ditos  dos  antiguos,  e  do  engano  em 
que  viverão  tantos  séculos :  e  baste  isto  pêra  os  que  negavão  o  ser  a  esta 
terra;  e  outros  dirão  que  não  mereciáo,  nem  ainda  esta  reposta.  Os  quo 
negavão  as  propriedades,  vinhão  ao  mesmo  que  a  negar  o  ser;  porque, 
secundo  Aristóteles,  as  propriedades  são  as  mostras  do  ser.  E  he  certo, 
que  a  mesma  experiência  que  nos  mostrou  o  ser  do  Brasil,  nos  mostra 
juntamente  a  perfeição  cks  propriedades  d"elle :  e  são  estas  taes,  que  pa- 
recerão incríveis  aos  que  as  não  virão.  E  por  esta  razão  estou  obrigado 
a  proval-as  mais  por  menor;  e  d"ahi  responderei  depois  aos  autores  que 
forão  cm  contrario. 

01  Em  toda  a  boa  Philoso})hia,  da  bondade  das  propriedades  se  coliie 
a  bondade  do  a-r.  Quatio  propriedades  são  necessárias  pêra  que  por  ei- 


DAS  COUSAS  no  MASIL  CXXV 

ias  huma  terra  tenha  nome  de  boa.  A  primeira  he :  Que  se  vista  de  verde : 
a  saber,  de  herva,  pastos,  e  arvoredos  de  vários  géneros.  A  segunda:  Que 
goze  de  bom  clima,  de  ])oas  influencias  do  Ceo,  do  Sol,  Lua,  e  Estrcllas. 
Terceira :  Que  sejão  suas  agoas  ainmdantes  de  peixes,  c  seus  ares  abun- 
dantes de  aves.  Quarta  :  Que  produza  todos  os  géneros  de  animaes,  e  bes- 
tas da  terra.  Consta  tudo  do  divino  Texto  na  criação  da  terra;  e  por  es- 
tas quatro  propriedades  a  approvou  por  boa  o  Autor  d"ella:  t^ProtuIit  terra 
herbam  virenteni,  et  facientem  sémen  juxtà  genus  suum :  lignumque  facicns 
fnidum,  c  hahens  unuiiiqiiodque  sementem  secundum  speciem  suam :  et  vidit 
Deus  quôd  esset  bonum.»  Diz  o  divino  Texto  no  cap.  i  do  Génesis:  «Pro- 
duzio  a  terra  herva  verde,  que  dava  semente,  segundo  seu  género:  e  jun- 
tamente arvores  frutíferas,  que  davão  semente,  segundo  sua  espécie,  e  vio 
Deos  que  era  boa  a  terra. »  Ex  a  primeira  propriedade,  e  por  ella  julga  Deos  a 
terra  por  boa.  (íFiant  himinaria  in  firmamento  cedi,  et  dicidant  diem,  ac 
noctem;  et  sint  in  signa,  et  têmpora,  et  dies,  et  annos;  et  vidit  Deus  quôd 
esset  honum.y>  Diz  o  mesmo  capitulo:  «Fação-se  luminárias  no  Ceo,  c  di- 
vidão  a  noite,  o  o  dia;  e  sirvão  de  sinaes,  de  tempos,  de  dias,  e  de  an- 
nos; e  vio  Deos  que  era  bom.»  Ex  a  segunda  propriedade,  e  he  a  do  bom 
clima,  por  onde  julga  a  terra  por  boa.  aProducant  aqvai  reptibile  anima:  vi- 
ventis,  et  volatilc  super  ferram:  et  vidit  Deus  quôd  esset  bonum.yi  Ex-aqui  a 
terceira,  que  produzão  suas  agoas  viventes  nadadores,  e  seus  ares  viven- 
tes voadores,  e  i)or  aqui  julgou  a  terra  por  boa:  <íProdncíit  terra  animam  vi- 
venteni  in  genere  suo,  jumenta,  et  reptilia,  et  beslias  terrce  secundum  specie- 
suas:  cl  vidit  Deus  quôd  esset  bomun.»  Ex  a  quarta  propriedade,  que  pro- 
duza a  terra  os  animaes,  «í  bestas  d'ella  em  varias  espécies;  produzio,  o 
vi(»  Deos  qu(í  era  boa. 

ihi  D'aqui  se  vc,  que  não  pinle  a  terra  deixai*  de  ser  boa,  em  que  houver 
estas  qualro  propriedades;  nem  i»oderã  deixar  de  d(í  ser  defcctuosa  aquclla. 
cm  que  faltarem  todas  qualro,  ou  parte  delias.  Pois  agora  irei  mostrando  to- 
das estas  (]uatro  propriedades  jior  excellencia  na  terra  do  Hrasil;  e  depois 
d"ellas  vistas,  liraríMiios  então  a  conseqiKnieia.  E  pêra  que  vamos  por  f»r- 
dem,  ponhamos  a  primeira  resoiíieão. 

fií)  Primeira  resolução.  Uo,  a  terra  d)  Hrasil  por  (*xcellencia  sempre 
verde,  chea  de  hervas,  e  arvoredos  de  vários  géneros,  entre  todas  as  mais 
terras  do  mundo,  na  conformidade  do  Texto  do  sua  primeira  criação. 
N'esta  pi-oposiffio  só  poderá  (hividai-,  ([uem  não  esteve  no  Hrasil,  nem 
teve  noticia  d"elle.  A  [trimeira  cousa  que  admirão  os  que  de  novo  vem  a 


CXX.V1  MVRO    II  DAS  NOTICIAS 

esta  terra,  tie  o  enfeite  de  sua  perpetua  verdura,  quer  de  inverno,  quer 
de  verão :  parece  estar  sempre  em  huma  eterna  primavera,  que  recrea  os 
olhos,  e  convida  as  almas  a  louvar  o  Autor  da  natureza;  porque  sem  du- 
vida excede  n^esta  formosura  a  todas  as  outras  partes  do  orbe;  a  essas  só 
enfeita  de  meias  a  natureza  na  primavera,  emprestando-lhes  a  tapeçaria, 
que  no  inverno  lhes  desarma.  Porém  a  nossa  parte  enfeita  de  todo  no  ve- 
rão, e  inverno. 

67  Dous  géneros  são  de  verdura,  os  que  requero  o  divino  Texto ;  a 
saber,  de  hervas  verdes,  e  verdes  arvoredos;  e  parecem  ser  estas  que  hoje 
tem  as  mesmas  hervas,  e  os  mesmos  arvoredos,  com  que  sahio  das  mãos 
do  Criador  esta  nossa  terra  :  «Protuht  terra  herbam  virentem,  lignumque, 
etc.»  Porque  todas  as  bondades  vemos  n'estas  hervas,  e  arvoredos,  que  o 
Criador  vio  n^aquellas,  pelas  quaes  deo  a  terra  por  boa:  (.cVidit  Demquôd 
esscl  bonum.»  Tema  verdura  das  hervas,  e  arvoredos  do  Brasil,  engraçada- 
mente  as  bondades  seguintes,  Enfeita  a  terra,  alegra  a  vista,  recrea  o  chei- 
ro, sustenta  o  gado,  cura  os  homens,  engrandece  os  edifícios,  farta  os  fa- 
mintos, enriquece  os  pobres:  não  sei  que  mais  bondades  houvesse  nas  da 
primeira  criação.  Treze  géneros  se  contão  só  de  herva,  que  serve  ao  sus- 
tento do  gado  por  montes,  e  canipinas  immensas,  que  Deos  criou  por  toda 
esta  costa ;  por  cuja  bondade  he  tão  grande  a  copia  de  gado,  que  pôde 
contar-se  por  milhões.  Campinas  vi,  não  de  muitas  legoas,  onde  pastavão 
oitenta  mil  cabeças  de  gado,  com  tal  fecundidade,  que  huns  se  comião  a 
outros,  e  outros  comião  os  cães,  feitos  lobos  de  puro  vicio.  Maior  excesso 
dizem  ha  nas  Capitanias  do  Rio  S.  Francisco,  Rio  Real,  Rio  Sergipe,  e 
Rio  Grande :  e  a  tudo  excedem  as  que  correm  do  Rio  dos  Patos,  altura  de 
vinte  e  nove  grcáos  até  o  grande  Rio  da  Prata.  He  notável  por  aqui  a  bon- 
dade da  herva,  os  campos  não  têm  fim,  o  numero  do  gado  são  milhões,  e 
milhões ;  d'onde  só  pelos  couros  se  mata,  e  se  carregão  muitos  navios 
d^elles,  deixando  a  carne  por  inútil.  Não  sei  que  melhores,  nem  que  mais 
géneros  de  herva  devia  produzir.  Á  risca  he  o  que  diz  o  Texto  sagrado : 
mProtulit  terra  herbam  virentem,  et  facientem  sémen  jiixta  genus  suiim.y)  Os 
mais  géneros  são  de  hervas  maiores,  todas  floridas,  todas  cheirosas,  todas 
boas  pêra  infinitos  remédios  dos  homens.  Contal-as  seria  iníinito  processo: 
nem  os  de  Dioscorides,  nem  outros  maiores  volumes  bastarião ;  logo  com- 
tudo  porei  alguns  exemplos. 

68    Os*  arvoredos  he  o  outro  género  de  verdura,  que  pede  o  sagrado 
Texto :  c  a  bondade  dos  do  Brasil  he  bem  conhecida  no  mundo,  por  sua 


DAS   COUSAS  DO   BRASIL  CXXVIl 

fermosura,  préstimo,  e  preço.  He  na  verdade  ornato  da  terra,  e  abono  das 
mãos  do  Criador,  ver  aqiiellas  mattas  immensas,  gloria,  e  coroa  de  todo  o 
arvoredo  do  universo,  os  pés  na  terra,  as  copas  no  Ceo,  formando  bos- 
ques deleitosos,  brutescos  sombrios,  os  mais  agradáveis  do  mundo.  Pelas 
maiores  calmas  do  verão  penetrei  o  interior  d  "estas  mattas,  legoas  inteiras, 
á  sombra  sempre,  sem  vista  de  Sol,  qual  se  fora  na  maior  frescura  da 
primavera  da  Europa.  Aqui  admirava  seus  grossos  troncos,  sua  procêra  al- 
tui'a,  a  diversidade  de  seus  géneros,  a  suavidade  de  seu  cheiro  dos  bálsa- 
mos, copaigbas,  almacegas,  salçafrazes,  etc.  Alli  a  composição  de  seus  sí- 
tios, ordem,  travação  :  apenas  em  partes  se  vè  distancia  porqne  caiba  hum 
homem  entre  tronco,  e  tronco;  com  tão  sôfrega  emulação,  que  se  vão  impe- 
dindo o  lugar  huns  a  outros.  Muitos  vi  abraçados  corpo  a  corpo,  outros  presos 
com  laçadas  de  cordas ;  e  quando  cuidáveis  que  eram  de  linho,  ou  esparto, 
erão  ellas  outra  casta  de  arvore,  a  que  chamão  cipó.  Em  prova  particular 
de  que  todas  as  hervas,  e  arvores  do  Brasil  são  boas,  cada  qual  em  síu 
género,  e  com  bondade  exquisita,  e  singular;  leão-sc  quatro  livros  inteiros 
da  Historia  natural  desta  terra  outras  vezes  citada;  e  folgará  de  ver  o  leitor 
(além  da  verdura)  o  thesouro  de  virtudes  medicinaes,  que  Deos  poz  n'esta 
parte  do  mundo.  Eu  somente  das  hervas  altas  porei  aqui  poucos,  mais  apra- 
zíveis exemplos,  e  depois  alguns  também  das  arvores. 

Gí)  Huma  espécie  mui  galante,  e  causa  de  louvar  o  Autor  da  natureza 
lie,  a  que  chamamos  aiKuiás ;  seu  fruto  he  a  modo  de  pinha  de  Portugal ; 
o  gosto,  e  cheiro  a  modo  de  maraciitão  o  mais  fmo;  suas  folhas  são  seme- 
lhantes a  herva  babosa.  A  cabeça  do  fruto  galanteou  a  natureza  com  hum 
penacho,  ou  grinalda  de  cores  aprazíveis :  esta  separada,  e  entregue  á  ter- 
ra, he  principio  di3  outro  ananás  semelhante:  além  de  i[ue  dentro  do  mesmo 
fruto  nasce;  semente  delle  cm  ([uantidadc.  Suas  bondades  servem  pêra  o 
gosto,  c  medicina,  come-se  em  fruta,  e  faz-se  em  conseiva  durável.  Do 
sumo  d"este  frutr)  misturadít  com  agoa  fazem  os  índios  medicina,  da  mes- 
ma maneiíM  que  nós  do  hydromel;  seu  licor  espiimido  de  fresco,  e  bebido, 
he  eíllcaz  remédio  pêra  supressão  de  ourina,  e  dór  de  rins,  e  juntamente 
contra  veneno,  especialmente  contra  o  sumo  da  mandioca,  ou  raiz  d'ella. 
I)'esta  herva,  e  fruto  trata  Monardes  cai).  ^-^  ^f^'^'^  largamente  :  nós  o  ((ue 
basta  pêra  nosso  intento. 

70  Outra  espécie,  á  vista  desj)rezivel,  mas  chca  d(;  préstimos  pêra  a 
vida  humana,  ho  a  da  herva  chamada  carágoalá.  He,  florida,  e  tem  varias,  e 
notáveis  espécies.   Huma  delias  he  a  verdadeira  herva  babosa  mediívinal, 


CXXVIír  LIVRO  II  DAS  XOTir.IAS 

conliecida,  de  que  iisão  nossas  boticas.  Oiiíia  cspocic  he  mais  silvoslrr, 
cresce  cm  grande  quantidade,  e  lança  de  si  espigões  de  comprimento  do 
huma  lança,  floridos  em  ajponta.  SeiTe^esta  planta  pêra  vários  nsos  dos 
homens;  porque  plantada  cm^cií-cuito,  serve  de  cerca  graciosa,  a  hortas, 
quintas,  e  qualquer  outra  soríe  do  fazenda.  As  folhas  em  pedaços  son-om  do 
telhas  ás  casas  dos  índios.  Do  corpo  das  mesmas  folhas  so  tirão  estrigas 
a  modo  de  linho,  e  mais  fortes  do  que  linho,  de  que  se  fazem  linhas,  cor- 
das,, e  pano,  especialmente  na  Nova  líespanha.  Ferido  o  espigão  d'esta 
p4anta  depois  de  bem  madura,  he  cousa  muito  pêra  ver  lançar  de  dentro 
de  sua  cavidade  tão  grande  quantidade  de  licor,  que  pôde  encher  hum 
grande  pote,  o  de  huma  somente.  D'este  licor  fazem  os  índios  vinho,  vi- 
nagre, mel,  e  assucar;  porque  he  muito  doce,  c  cozido,  coalha-se  a  modo 
de  torrões,  e  do  mesmo  sumo  misturado  com  agoa  fazem  vinho,  do  assu- 
car fazem  o  vinagre  desfeito  em  agoa,  e  exposto  ao  Sol,  tempo  de  nove 
dias.  Este  mesmo  sumo  move  o  ventre,  provoca  ourinas,  alimpa  os  rins, 
veas  ureteres,  c  bexiga;  desfaz  a  pedra,  e  serve  de  outras  curas,  se  o  mis- 
lurão  com  tabaco.  Com  o  sumo  de  huma  de  suas  folhas  assada,  espremi- 
do, e  misturado  com  hum  pequeno  de  salitro  bem  moido,  untados  os  si- 
naes,  ou  cicaírices  das  feridas,  se  são  modernas^  em  breves  dias  desappa- 
recem,  como  se  nunca  as-houvera.  As  mesmas  foilias  tostadas,  e  applicadas, 
são  medicina  efficaz  pêra  os  espasmos,  e  miligão  as  dores,  especialmente 
bebendo  juntamente  o  sumo,  porcp^ie  tornão  estúpido  o  sentido  do  tacto. 
D'esía  planta  escrevem  vários  autores,  e  principalmente  Carlos  Clusio  em 
sua  Historia  das  plantas,  liv.  v.  Outras  espécies  tem  esta  planta,  mas  são 
de  menos  conta. 

71  O  género  de  hcrva  de  raiz  mais  notável,  e  proveitosa  do  Brasil,  he 
a  que  chamão  mandioca.  Tem  debaixo  de  si  diversíssimas  espécies,  a  sa- 
ber: mandijbuçú,  mandijbimana,  mandijbibiyána,  mandijbiyuruçii,  apitiiiba, 
aipij ;  e  este  se  divide  em  mui  varias  espécies  apontadas  á  margem  (*).  O 
sumo  d" estas  raizes  verdes  (exceptas  as  dos  aipijs  todos)  he  venenoso,  e 
mortal  a  todo  o  género  de  vivente.  He  esta  planta  toda  a  fartura  do  Bra- 
sil, e  he  tradição,  que  a  ensinou  aos  índios  o  Apostolo  S.  Thomé,  cavando 
a  terra  em  montinlios,  e  metendo  em  cada  qaial  quatro  pedaços  da  vara 
de  certos  ramos,  que  chamão  manaiba,  de  comprimento  como  de  hum  pal- 
mo cada  hum  dos  pedaços,  cujas  três  partes  vão  metidas  em  terra,  que 

(*)  Aipijgoaçii.  aijjijarandó.  nipijcaba.  aipijeoananilja.  aipijiaborandi,  aipijcurumú,  aipijiuru- 
mÚDíiri,  aipjjiurucuya,  aipijniacliaxera,  aipijinaiuacaú,  aipijpoca,  aiuijtayapoya,  aipijpilanga. 


i 


DAS  COUSAS  DO  DRASII,  CXXIX 

fiquem  em  ftjmia  do  cruz :  o  d"alii  a  dez  dias  commummente  brolão  os 
pedaços  do  vara  por  lodos  os  nós  ípiu  Icm  ameudados,  c  dentro  cm  set(3 
ou  oilo  mezes  crescem  cm  altura  do  dous,  até  três  covados;  supposto  que 
he  necessário  ordinariamente  hum  anno  pêra  perfeição  de  seu  fruto,  que 
são  as  raizes,  duas,  quatro,  seis,  e  muitas  vezes  cliegão  a  dez,  mais  ou 
menos  compridas,  c  grossas,  conforme  a  fertilidade  da  terra. 

72  D"esta  raiz  tirada  da  terra,  raspada,  lavada,  e  depois  ralada,  espre- 
mida, o  cozida  em  alguidares  de  barro,  ou  metal,  a  que  os  Brasis  chamão 
vlmoyipaba,  os  Portugueses  forno,  se  faz  farinha  de  três  castas :  meio  co- 
zida, a  que  chamão  vylinga;  os  Portugueses  farinha  ralada :  mais  de  meio 
cozida,  que  chamão  vyéçacoatinga :  c  cozida  de  todo,  até  que  fique  seca, 
que  chamão  vyatá;  os  Portugueses  farinha  seca,  ou  de  guerra.  A  farinha 
ralada  dura  dous  dias,  a  meia  cozida  seis  mezes,  a  de  guerra,  ou  seca, 
hum  anno.  Todas  estas  servem  de  pão  aos  Brasis,  e  gente  ordinária  dos 
Portugueses,  e  a  juizo  de  muitos  que  correrão  o  mundo,  abaixo  de  pão 
de  Europa,  não  ha  outro  melhor.  He  muito  grande  a  abundância  d"estc 
mantimento :  não  farta  somente  o  Brasil,  mas  podéra  abranger  a  muitos 
Estados,  e  antiguamente  fartava  o  Reino  de  Angola,  antes  que  lá  usassem 
d'esta  planta.  Do  sumo  d'estas  raizes  quando  se  espremem,  fica  no  fundo 
lumi  como  pé,  ou  polme,  do  qual,  tirado,  c  seco  ao  Sol,  fazem  farinha  al- 
víssima, mui  mimosa,  chamada  tipyoca :  e  do  mesmo  polme  obreas  pêra 
cartas,  e  goma  pêra  a  roupa,  e  mantcos. 

73  Prepara-se  também  d'outras  maneiras  a  mandioca :  partem-se  as 
raizes  verdes  depois  de  limpas  em  diversos  pedaços,  estes  se  põem  a  se- 
car ao  Sol  por  dous  dias;  depois  de  secas,  pizão-sc  em  hum  pilão,  c  faz-se 
farinha,  a  que  os  índios  chamão  typyrati ;  os  Portugueses  farinha  crua. 
D'esta  fazem  huns  bollos  alvíssimos,  e  delicadíssimos,  que  he  o  comer 
mais  mimoso,  ou  em  (juanto  moUes,  e  fi'escos,  ou  depois  de  duros,  e  tor- 
rados: e  estes  se  guardão  j)or  muito  tempo,  e  chamão-lhe  os  bulios  mia- 
peatá,  que  vai  o  mesmo  (|uc  biscouto.  Lanção  tambimi  tle  molho  em  agoa 
estas  raizes  por  três,  quatro,  ou  cinco  dias,  até  que  amolleção,  c  (festas 
assi  molles,  chaniíidas  mandiópuba,  fazem  farinha  mais  mimosa,  chamada 
vypuba;  os  Portugueses  farinha  fresca:  e  he  o  crtmer  ordinário  da  gente 
Portuguesa  mais  limpa  em  lugar  de  pão,  feita  todos  os  dias;  ponjue  pas- 
sado hum  dia  não  hi;  já  tão  boa.  Seção  também  estas  raizos  ao  fogo,  C! 
guardão-nas  por  do  maior  estima  pêra  vários  usos :  chamão-lhe  carimá. 
l)"eslas  pizadas  fazem  huma  lai-inlia  alvissima,  e  (fella  os  mais  esíimados 


CXXX  I.IVRO  II  DAS  NOTICIAS 

mingaos;  que  he  a  modo  de  papas  siitis,  e  medicinaes,  frescas,  contra  pe- 
çonha. Também  se  fazem  d'ella  boUos  doces  com  manteiga,  e  assucar.  To- 
das eétas  espécies  de  mandioca  crua  sáo  peçonhentas  aos  homens  que  as 
comem,  excepto  o  aipijmachaxera;  o  qual  assado,  he  muito  gostoso,  e  sau- 
dável :  porém  os  animaes  brutos  todos  comem  estas  raizes  cruas  sem  pre- 
juízo algum ;  que  como  não  sabem  lançal-a  de  molho,  assal-a,  ou  cozel-a, 
accommodou  o  xVutor  da  natureza  as  cousas  á  necessidade  de  suas  cria- 
turas. 

74  Da  raiz  do  aipijmachaxera  fazem  também  os  índios  seus  vinhos,  a 
que  chamão  caúymachaxera ;  e  além  d'este  outra  casta  na  forma  seguinte. 
Mastigão  as  fêmeas  a  mandioca,  e  lançada  em  agoa  assi  mastigada,  fazem 
outra  espécie  de  vinho  cavícaraixú;  até  as  folhas  da  mesma  manayba  piza- 
das,  e  cozidas,  são  outro  pasto  gostoso  aos  índios.  A  farinha  ralada  posta 
sobre  feridas  velhas,  he  único,  e  mui  eíTicaz  remédio  pêra  alimpal-as,  e 
cural-as.  A  mandioca,  a  que  chamão  caaxima  pizada,  lançada  na  agoa,  e 
bebida  em  forma  de  xarope,  he  finissima  contrapeçonha.  De  outra  planta 
semelhante  a  esta,  de  que  se  faz  outro  género  de  pão  nas  partes  da  Nova 
Hespanha,  {ratão  ]\lonardes,  cap.  xxv,  e  Oviedo  no  Summario,  cap.  v;  po- 
rém não  he  de  tantos  usos  como  esta. 

73  Jamacarú,  ou  urumbeba,  ou  jarácatiyá,  he  género  do  cardo  agres- 
te, espinhoso,  informe,  amigo  de  lugares  mais  secos,  e  arenosos,  desprezo 
das  plantas,  quanto  à  vista  exterior;  mas  quanto  á  qualidade  interna,  honra 
da  natureza.  He  cousa  maravilhosa  ver  suas  muitas,  e  varias  figuras,  quaes 
as  de  hum  Protheo,  já  de  herva  rasteira,  já  de  arvore  erguida,  já  pequena, 
já  grande,  já  grosseira,  já  delicada,  já  sertaneja,  já  marítima,  sempre  ves- 
tida no  exterior  com  o  cilicio  de  seus  espinhos,  mas  sempre  no  interior 
nobre  nas  qualidades.  São  muitas  em  numero  suas  espécies  :  da  variedade, 
e  conveniência  de  duas  d"ellas  faltarei  aqui  somente.  Nasce  a  primeira  ordi- 
nariamente nas  praias,  e  lugares  secos:  o  tronco  humas  vezes  he  triangular, 
outras  quadrado,  grosseiro  sempre,  e  armado  de  espinhos :  d"este  (contra 
costume  da  natureza)  em  lugar  de  ramos,  nascem  outros  troncos,  os  quaes 
brotão  em  flores  muito  graciosas,  brancas,  e  de  cxcellente  cheiro :  a  estas 
succedem  no  tempo  de  verão  humas  frutas  vei-melhas,  na  grandeza,  e  fei- 
tio semelhantes  a  hum  ovo  de  pato ;  no  interior  branquíssimo,  mas  cheio 
de  sementes  pretas.  He  este  fruto  apetecido  dos  caminhantes  sequiosos, 
por  seu  bom  cheiro,  por  sua  humidade  gostosa,  que  satisfaz  a  sede:  e pêra 
este  effeito  se  applica  aos  febricitantes:  porque  resfria,  c  humedece  o  pa- 


DAS  COUSAS  DO  BRASIL  CXX\I 

lato,  lira  o  desejo  de  agoa,  e  recrea;  corrobora  o  coração:  e  com  mais 
força  o  sumo  espremido,  he  remédio  único  ás  febres  biliosas.  Outros  in- 
divíduos ha  da  mesma  espécie,  huns  rastando  por  terra,  outros  em  pé ; 
huns  a  modo  de  cobra,  outros  de  coroa,  outros  de  muitos  braços:  não  se 
fingem  mais  varias  formas  a  hum  Protheo.Nãohc  de  menos  admiração  a  se- 
gunda espécie,  chamada  dos  índios  urumbeba,  do  mesmo  género  de  cardo 
espinhoso.  Acha-se  esta  somente  em  mattas  desertas ;  o  tronco  todo  espi- 
nhoso, alto,  direito,  e  com  alguma  semelhança  de  pinheiro  de  Europa, 
ainda  nas  folhas.  A  esta  espécie  attribuem  os  índios  varias  bondades,  que 
como  entre  nós  não  estejão  em  uso,  não  me  detenho  em  contal-as. 

7G  Acabemos  estes  exemplos  com  duas  espécies  de  plantas  singulares 
no  mundo.  A  huma  d'ellas  chamão  herva  viva,  e  cuidarão  alguns  que  seno- 
mea  assi  por  capaz  de  vida  sensitiva,  pelos  raros  effeitos  que  vêem;  porque 
basta  tocar-lhe  na  ponta  de  hum  de  seus  ramos,  pêra  que  logo  toda  ella, 
e  todos  elles,  como  sentidos,  e  aggravados,  desordenem  a  pompa  de  suas 
folhas,  murchando-se  de  repente,  e  quasi  vestindo-se  de  luto  (quaes  se  fi- 
carão mortos,  ou  envergonhados)  até  que  passada  a  primeira  cólera,  torna 
em  si  a  planta,  estende  de  novo  seus  ramos,  e  tornão  a  ostentar  sua  pom- 
pa. He  planta  emula  do  Sol :  em  quanto  elle  vive,  vive  ella;  e  em  se  pon- 
do, com  elle  se  sepulta,  enrolando  a  gala  de  seus  ramos,  quasi  amortalha- 
dos em  suas  mesmas  folhas,  tornadas  de  côr  de  luto,  até  passar  o  triste 
da  noite,  e  tornar  o  alegre  do  dia :  segredo  só  do  Autor  qne  a  fez.  Ho 
outrosi  singular  esta  herva;  porque  he  juntamente  veneno,  e  contravc- 
neno  finíssimo.  Com  pequena  quantidade  feita  em  pó,  dada  em  qualquer 
convite,  matão  os  índios  com  grande  dissimulo  a  seus  contrários ;  e  á  fi- 
neza de  sua  peçonha  (sendo  tão  grandes  hervolarios)  não  têm  achado  antí- 
doto mais  próprio,  que  o  de  sua  mesma  raiz  bebida  em  pó,  ou  em  sumo. 

77  O  outro  portento  das  hervas,  graça  dos  prados,  brinco  da  natureza, 
e  devação  da  piedade  chrislãa,  he  aquella  a  que  chamão  os  Portugueses 
herva  da  Paixão,  os  índios  maracujá,  os  Castelhanos  da  Nova  Ilespanha  gra- 
nadilha.  Tem  nove  espécies,  maracujá  guaçú,  mirí,  satá,  elé,  mixira,  pe- 
roba, pirúna,  tcmacúja,  una.  IJuas  são  as  mais  principaes  de  que  só  fatia- 
rei, guaçú,  e  mirí.  Cresci;  a  maneira  de  hèrva,  em  breve  tempo  trepa  altas 
arvores,  grandes  tectos,  espaciosas  latadas,  a  modo  de  parreira,  cobrindo 
tudo  de  huma  verdura  graciosa,  c  varia,  cntreçachada  de  folhas,  flores, 
frutos  em  numerosa  quantidade.  He  a  folha  das  mais  agradáveis,  e  frescas 
do  Brasil,  e  por  este  respeito  sua  sombra  mui  apetecida. 


rXWU  LIVRO  II  DAS  NOTICIAS 

78  A  flor  lic  o  mysterio  único  das  flores.  Tem  o  tamanho  de  hnma 
grande  rosa;  e  n"estc  breve  campo  formou  a  natureza  lium  como  ttieatro 
dos  mysterios  da  P»edempção  domando.  Lançou  por  fundamento  cinco f(j- 
Ihas  mais  grossas,  no  exterior  verdes,  no  interior  sobrosadas:  sobre  estas, 
poslas  em  cruz  outras  cinco  purpúreas,  todas  de  liuma,  e  outra  parte.  F 
logo  doeste  como  tlirono  sanguineo,  vai  annando  hum  quasi  pavilhão  feito 
de  huns  semelhantes  a  fios  de  roxo,  com  mistura  de  branco.  Outros  lhe 
chamarão  coroa,  outros  míjlho  de  açoutes  aberto,  e  tudo  vem  a  ser.  No 
meio  d'este  pavilhão,  ou  coroa,  ou  molho,  se  vê  levantada  huma  columna 
branca,  como  de  mármore,  redonda,  quasi  feita  ao  torno,  e  rematada  pêra 
mais  graciosa  com  huma  maçãa,  ou  bola,  que  tira  a  ovada.  Do  remate  d'esta 
columna  nascem  cinco  quasi  expressas  chagas,  distintas  todas,  e  pendura- 
das cada  qual  de  seu  fio,  tão  perfeitas,  que  parece  as  não  poderia  pintar 
n'outra  forma  o  mais  destro  pintor:  se  não  que  em  lugar  de  sangue  tem 
por  cima  hum  como  pó  sutil,  ao  qual  se  applicaes  o  dedo,  fica  n"elle  pin- 
tada a  mesma  diaga,  formada  do  pó,  como  com  tinta  se  podéra  formar. 
Sobre  a  bola  ovada  do  remate,  se  vêem  três  cravos  perfeitíssimos,  as  pon- 
tas na  boUa,  os  corpos,  e  cabeças  no  ar :  mais  cuidareis  que  forão  alli  pre- 
gados de  industria,  se  a  experiência  vos  não  mostrara  o  contrario.  A  esta 
flor  por  isso  chamão  flor  da  Paixão,  porque  mostra  aos  homens  os  prin- 
cipaes  instrumentos  delia ;  quaes  são,  coroa,  columna,  açoutes,  cravos, 
chagas.  He  flor  que  vive  com  o  Sol,  e  morre  com  elle:  o  mesmo  he  se- 
pultar-se  o  Sol,  que  fazer  ella  sepulchro  daquelle  seu  pavilhão,  ou  coroa, 
já  então  côr  de  luto,  e  sepultai'  n'elle  isentos  os  instrumentos  da  Paixão 
sobreditos,  que  nascido  o  Sol  torna  a  ostentar  no  mundo.  Na  fermosura, 
e  no  cheiro  traz  esta  flor  contendas  com  a  rosa;  porque  no  artificio,  ma- 
nifesto he  que  a  excede.  Persevera  quasi  todo  o  anno,  com  succcssão  de 
humas  a  outras. 

79  Os  frutos  d"estas  duas  espécies  (deixo  os  das  outras  sete  menores) 
são  como  grandes  peros  de  Europa,  e  ainda  dobrados;  huns  redondos, 
outros  ovados :  a  côr  he  graciosa,  mete  de  verde,  amarella,  e  branca  :  a 
casca  grossa,  porém  não  dura.  Está  esta  cliea  de  huma  polpa  branca,  suc- 
cosa,  entrcçachada  de  sementes  pretas,  de  cheiro  c  gosto  suave.  He  re- 
frigério dos  febricitantes,  desafoga,  e  refrigera  o  coração,  finitos  a  derão 
em  lugar  de  xarope  cordial,  com  grande  efleito.  Reprime  os  ardores,  ex- 
cita o  appetite  do  cibo,  e  não  faz  damno  ao  enfermo,  posto  que  coma 
grande  quantidade,  antes  recrca,  e  apaga  a  sede.  Semelhante  effeito  tem 


DAS  COUSAS  DO  DRASIL  CXXXIII 

as  flores,  c  cascas  do  pomo,  postas  em  conserva.  Tem  outra  virtude  in- 
signe esta  i)lanta,  posto  que  a  muitos  incógnita;  porque  he  de  igual,  ou 
maior  eíTicacia,  que  a  salsaparrillia,  pêra  desoljstruir  por  Tia  de  suores, 
ou  ourinas;  porque  dada  a  beber  esta  herva  algum  tanto  pisada  em  vinho, 
ou  em  agoa,  sem  aballo  algum,  e  em  mui  breve  tempo,  expelle  as  immun- 
dicias  do  ventre,  e  corrobora  as  eníranlias.  E  as  mesmas  folhas  pizadas, 
lançadas  em  agoa  fervente,  até  que  íique  tépida,  são  remédio  eílicacissimo 
pêra  o  mal  das  almorreimas,  lavando-se  com  ella.  As  mais  hervas  não  posso 
descrever,  porei  só  os  nomes.  Camará  herva  de  seis  espécies,  e  todas 
regalo,  e  mezinha  dos  homens.  Philipodio  quatro  espécies.  Avenca,  herva 
de  cobras,  herva  dos  ratos,  herva  do  bicho,  herva  pulgueira,  salsaparrilha, 
cipó  de  camarás,  béthele,  pimenta  quatro  géneros;  gingibre,  cayapiá,  caa- 
péba,  caraóba,  caátimay,  caâtaya,  jetíca,  umcatú,  jaborandí,  nliambí,  tajó- 
ba,  jeçapé,  iiiimboya.  Todas  estas  são  hervas  medicinaes,  das  mais  conhe- 
cidas, e  usadas,  de  virtudes  tão  raras,  que  fora  necessário  hum  Dioscorides 
pcra  descrevel-as.  São  contrapeçonha  íinissima,  e  remédio  de  quasi  todos 
os  males  do  Brasil,  se  bem  se  soubessem  appHcar  a  modo  dos  índios  do 
sertão.  D'estas  poucas  hervas  referidas,  poderá  julgar  o  leitor,  se  se  ajusta 
bem  com  o  Texto  sagrado,  a  verdura,  e  i)ondade  da  tei"ia  do  Brasil.  Me- 
lhor julgara  se  de  todas  ouvira  a  relação:  porém  tanta  detença,  nem  hc 
de  meu  intento,  nem  assumpto  fácil.  O  curioso  que  mais  desejar,  veja  os 
livros  acima  referidos  de  Guilhelmo  Pinçon,  e  de  Jorge  Marcgravi,  e  verá 
huma  cousa  grande. 

80  Das  arvores,  que  hc  ouli'a  parte  não  menor  da  verdura,  e  bondade 
da  terra,  era  razão  que  víssemos  também  alguns  exemplos :  porém  hc  no- 
tório no  mundo  o  gráo  subido  da  ])erpeliiá  verdura  dos  arvoredos,  e  !)os- 
qiies  do  Brasil.  A  terra  toda  [lóde  chaniar-se  hum  só  l)us(jue.  Pelo  (pie, 
deixando  por  mão  a  frescura,  e  preciosidade  dos  ciídros,  angelins,  quasi 
ébanos,  caráj)iiiimas,  mocetaybas,  claraybas,  jacuybas,  maçaiandúi)as,  ci- 
bipyras,  vinhalicos,  [)idiunuyíis,  tapapinhoás,  peról)as,  çaj)ucáyas,  jacaran- 
dás, páos  reis  vermelhos,  amarellos,  palmeiras,  coqueiíos :  deixada  outro 
si  a  delicia  das  arvores,  os  bálsamos,  coi)aigbas,  ibicuybas,  icicatybas,  je- 
laybas,  salçafrazes,  canaíistolas,  tamarinhos,  (|uasi  cravos,  canelas,  ele, 
deixando  todas  eslas  espc-cies,  descrínerei  aigmnas  s()niente  das  (|ue  são 
fiHJctiferíis,  pêra  gosto  dos  qui;  são  i-uridsos. 

81  Ih;  o  acajú,  ou  cajueiro,  a  mais  aprazivel,  e  graciosa  de  todas  as 
arvores  da  America:  e  poi-  ventura  de  todas  as  de  Euiopa.  He  muito  peia 


CXXXIV  LIVHO  II  DAS  NOTICIAS 

vei'  a  pompa  d'esta  arvore,  quando  nos  mezes  de  Jiillio,  e  Agoslo  se  vai 
revestindo  do  verde  fino  de  suas  folhas :  nos  de  Setembro,  Outubro,  e 
Novembro,  do  branco  sobrosado  de  suas  flores;  e  nos  de  Dezembro,  Ja- 
neiro, e  Fevereiro,  das  jóias  pendentes  de  seus  frutos. 

82  Desde  a  raiz  até  a  ultima  vergontea,  tem  grandes  mysterios  esta 
pomposa  arvore.  O  vestido  mais  tosco  de  seu  tronco  serve  de  tintas  pre- 
tas :  o  mais  interior  a  modo  de  camisa,  he  buscado  dos  oíTiciaes  cortidores 
pêra  tinta  amarella :  a  madeira  do  tronco,  e  braços,  he  apetecida  dos  que 
fabricão  obra  naval;  tir5o  d'ella  curvas,  e  leames  fortíssimos.  As  folhas 
sao  dotadas  de  cheiro  aromático,  principalmente  em  tertipo  de  verão.  Brota 
em  flores  mui  galantes  de  branco  vivo  sobrosado,  de  cheiro  tão  suave, 
quando  o  Sol  as  fere  com  seus  raios,  que  enche  as  mattas,  e  recrea  os  ca- 
minhantes. A  sombra  d'esta  arvore  he  saudável :  tanto  atrahe  com  esta  os 
encalmados  caminhantes,  como  atrahe  com  sua  fermosura  os  olhos  curio- 
sos. Mas  o  que  mais  he  de  admirar,  que  nos  mezes  de  seu  maior  enfeite, 
esteja  esta  arvore  chorando :  não  sei  se  pela  vaidade  do  mundo  que  lhe 
sobeja,  se  pela  que  ainda  lhe  falta :  o  certo  he  (|ue  suas  lagrimas  são  la- 
grimas Sabéas  de  licor  crystalino,  perfeita  gomma  arábia,  e  não  sem  fra- 
grância de  cheiro.  Multiplicando-se  estas  humas  sobre  outras,  fazem  huns 
ramaes  a  modo  de  pendentes  chuveiros,  que  servem  de  ornato  a  ella,  e 
aos  curiosos  de  resina,  grude  mais  delicado.  Da  mesma  gomma  usão  tam- 
bém os  índios  pêra  remédio  de  muitos  seus  achaques,  desfeita  em  pó,  e 
bebida  em  agoa. 

83  He  singular  entre  todas  as  arvores :  parece  que  de  propósito  busca 
ranchos  estéreis,  alheios  de  consorcio  das  outras  :  nos  areaes  mais  çáfios, 
ahi  verdeja  mais,  alii  sahe  mais  alegre  com  sua  ufania,  enchendo  talvez 
legoas  inteiras  de  desertas  praias,  e  areaes  inúteis;  e  quanto  he  mais  secco 
o  lugar,  e  o  tempo,  tanto  he  maior  seu  vigor;  porque  parece  que  atraves- 
são  suas  raizes  o  profundo  da  terra,  e  d'ella  chupão  a  modo  de  esponjas, 
o  humor  de  que  se  alimentão. 

84  Os  pomos  d' esta  arvore  parecem  feitos  de  sobremão  da  natureza, 
(juando  mais  curiosa.  He  hum  feito  de  dous,  ou  dous  que  fazem  hum,  e 
ambos  de  diversas  espécies :  cousa  rara  no  mundo.  Ao  primeiro  chamão 
cayjú :  he  fruta  comprida,  a  modo  de  pêro  verdeal,  porém  maior :  huns 
são  amarellos,  outros  vermelhos,  outros  tirão  de  huma,  e  outra  côr;  todos 
succosos,  frescos,  e  doces,  quando  asazoados.  Igualmente  matão  aos  encal- 
mados a  sede,  c  aos  necessitados  a  fome :  a  sustancia  interior  hc  espon- 


DAS  COUSAS  DO  BRASIL  GXXXV 

josa,  succosa,  e  sem  caroço,  ou  pevide  alguma.  Pêra  os  índios  lie  toda  a 
lartui"a,  todo  o  seu  mimo,  e  regalo;  porque  he  seu  comer,  e  beber  mais 
prezado.  Quando  verdes,  ou  seccos  ao  Sol,  servem  _de  suas  comedias :  e 
d'elles  mesmos,  quando  maduros,  tirão  os  vinhos  mais  preciosos  seus, 
na  maneira  seguinte.  Vão-se  a  elles  como  á  vindima,  e  conduzida  grande 
quantidade,  juntão-se  logo  os  vinhateiros  destros  no  oíTicio,  em  quanto  es- 
tão frescos,  e  tirada  a  castanha  vão  espremendo  poucos,  e  poucos,  ou  ás 
mãos,  ou  á  força  de  certo  género  de  prensa  de  palma,  que  chamão  tipity, 
e  aparado  o  licor  em  alguidai-es,  o  vão  lançando  em  grandes  talhas  que- 
pêra  isso  obrão,  e  chamão  igaçábas,  onde  como  em  lagar  ferve,  e  se  torna 
em  vinho  puro,  e  generoso:  e  he  o  que  bebem  com  mais  gosto,  e  guai'- 
dão  largos  tempos,  e  quanto  mais  velho,  mais  eíTicaz.  Tem-se  por  felices 
aquelles,  cujos  distritos  abundão  doestas  arvores,  e  sobre  elles  armão  suas 
maiores  guerras.  Do  bagaço  secco  ao  Sol,  e  depois  pizado,  fazem  a  mais 
mimosa  fai'inha  que  pôde  servir  a  seu  regalo,  merecedora  de  ser  guardada 
em  cabaços  pêra  seus  maiores  banquetes. 

85  As  castanhas  tem  semelhança  de  rins  de  lebre.  Em  quanto  verdes 
fazem  d'ellas  guisados.  Depois  de  maduras,  assadas  são  comer  doce,  e 
suave,  iguaes  ás  nozes  de  Europa :  confeitão-se  a  modo  de  amêndoas,  e 
em  falta  d"estas  supprem  a  matéria  dos  iloces  secos.  Por  esta  fruía  contão 
os  naturaes  da  terra  seus  aniios :  o  mesmo  he  dizer  tantos  annos,  que  tan- 
tos acajús :  como  se  dos  acajús  dependesse  a  boa  fortuna  de  seus  annos : 
e  na  verdade,  parte  he  da  felicidade  natural  d'esta  gente. 

80  A  arvore  chamada  çapucáya,  he  lambem  digna  de  ser  notada,  pela 
galantaria  do  finto.  São  arvores  ordinariamente  de  troncos  grossos,  e  por 
extremo  altos.  Seus  pomos  são  do  tamanho  de  cocos  da  índia,  quando  es- 
tão com  a  prinieii'a  casca,  posto  que  mais  esphericos.  Dentro  nestes  (tos- 
cos, e  grosseiros  por  fora)  cria,  e  esconde  a  natureza  quantidade  de  frutos 
doces,  e  suaves,  que  podem  encher  hum  prato,  á  maneira  de  castanhas, 
mas  de  melhor  sabor,  enxeridos  em  certo  visgo  a  modo  de  J)agos  de  ro- 
mãa.  Remata-se  esta  como  caixa  com  hum  buraco  Ires,  ou  quati'0  dedos 
de  largo  na  cabeça  inferior,  porém  fechada  com  huma  como  rolha  da  pró- 
pria matéria,  tão  apertada,  e  armada  de  dureza,  ella,  e  toda  a  casca,  que 
com  diniculdade  se  rende  a  uiu  forte  machado.  Ensinou  comtudo  o  bogio 
sendo  animal  jjruto,  modo  mais  fácil  de  abril-a;  porque  pegando  com  as 
mãos  no  ramo,  em  cuja  ponta  nasce,  dá  com  o  pomo  no  tronco  da  arvore 
tantas  vezes,  até  que  por  si  se  desí)edc  a  rolha,  e  aberto  o  l)uraco  tira  as 


CXXXYI  LIVRO  II  DAS  NOTICIAS 

castanhas,  cujo  pasto  lhe  hc  muito  agradável:  como  também  a  índios,  c 
Portugueses.  D'estes  vasos  depois  de  secos,  usão  os  Tapuyas,  em  lugar 
de  pratos,  e  panelas.  Ha  tanta  quantidade  d"e5tas  arvores  em  alguns  ter- 
renos, que  podem  sustentar  com  seu  fruto  exércitos  inteiros.  lie  madeira 
a  d"esta  arvore  incorruptível,  e  por  tal  mui  buscada  pêra  eixos  de  enge- 
nhos. A  casca  de  seus  troncos  serve  de  estopa  pêra  calafeto  de  barcos.  Se 
houvéramos  de  descrever  em  particular  as  arvores  todas  do  Brasil,  íliría- 
mos  hum  grande  volume :  do  que  tantas  vezes  temos  dito,  ficão  bem  co- 
nhecidas as  infrutíferas.  Das  que  dão  fruto,  além  dos  dous  exemplos  iffe- 
ridos,  apontarei  pouco  mais  Cfue  os  nomes;  e  são  os  seguintes,  pela  lingoa 
brasílica  ordinariamente. 

83  Mangabeira,  cujo  fruto  em  suavidade  de  gosto,  e  cheiro,  não  con- 
cede vantagem  a  muitos  da  Europa.  Mocujé,  que  se  não  excede,  não  cede 
á  mangaba  na  doçura  do  fruto.  Pitangueira,  seus  frutos  são  como  ginjas 
de  Portugal  em  gosto,  e  qualidade.  Pitombeira^  seu  fruto  he  a  modo  de 
nespas;  porém  mui  doce,  e  de  cheiro  suave,  que  recende  a  almíscar.  Goia- 
beiras, e  ai^açamros  são  varias  espécies :  o  fruto  dos  que  chamão  miry  he 
como  perinhas,  e  tem  o  sabor  das  sanjoaneiras  de  Portugal.  Igbánemixama, 
tem  fruto  a  modo  de  ameixas  çaragoçanas,  de  bom  sabor.  Pocobeiras,  o 
])ananeiras;  seu  frato  he  de  todo  o  anno;  suas  folhas  por  muito  viçosas 
chegão  a  ter  de  comprimento  vinte  palmos,  e  até  quatro,  ou  cinco  de  lar- 
go. Jaboticaba;  seu  fruto  nasce  no  mesmo  pão  da  arvore,  desde  a  raiz  até 
o  ultimo  das  vergonteas;  he  preto,  redondo  do  tamanho  de  ameixas,  ede 
sabor  de  uvas,  suave,  até  pêra  enfermos.  Bachoripari,  he  seu  pomo  a  modo 
de  frutas  novas  de  Lisboa.  Umbu,  tem  fruto  a  modo  de  ameixas,  e  as 
raízes  como  balancias  esponjosas,  servem  de  comer,  e  beber  aos  cami- 
nliantes  sequiosos  em  falta  de  agoa.  Pinheiros  brasílicos,  arvores  altíssimas, 
cujas  pinhas  são  quasi  de  tamanho  de  botija;  cujos  pinhões  são  mais  com- 
pridos que  castanhas,  não  tão  largos,  mas  mais  gostosos :  comem-se  crus, 
assados,  ou  cozidos,  e  sustentão  exércitos  grandes.  Ha  outros  que  cha- 
mão pinhoeiros  mais  baixos,  cujos  pinhões  são  tão  saborosos  como  os  de 
Europa;  porém  são  purgativos.  Araticú  he  arvore  mui  fresca,  de  três  es- 
pécies, cujos  frutos  tem  feitio  de  pinha.  O  que  chamão  araticúapé,  lie  do- 
ce, e  suave:  o  a  que  chamão  araticúgoaçú,  toca  de  agro  doce,  mui  fresco 
pêra  tempo  de  calma.  A  terceira  espécie  não  se  come.  Guttís  são  arvores 
utilíssimas,  do  três  espécies ;  seu  fruto  tem  feitio  de  ovo,  mas  he  muito 
maior:  o  cheiro  bom,  o  sabor  medíocre.  Gaiazeiros  tem  a  mesma  grande- 


PAS-  COUSAS  DO  bRASIJ,  CXXXATt 

za ;  03  frntos  como  grandes  ameixas  reinoes,  verdes,  e  ainarullos.  Japina- 
beiro  he  semelhante  em  altura  :  seus  frutos  como  grandes  maçãas,  servem 
aos  índios  igualmente  de  comer,  e  enfeite  com  sua  tinta.  Tamarinhos,  ca- 
nafistolas  lioitenses,  e  bravias :  palmeiras  hortenses,  e  bravias :  coquei- 
i-os  hortenses,  e  bravios,  diversas  espécies,  com  diversas  castas  de  fruto. 
Por  evitar  fastio,  ponho  á  margem  os  nomes  dos  demais;  ahi  os  poderá 
ver  o  que  fòr  curioso  (*). 

88  Estas  sâo  as  arvores  do  Brasil  frutíferas,  verdes  em  todo  amio,  e 
aprazíveis  aos  olhos.  Não  fallo  aqui  das  que  são  próprias  de  Europa,  da^ 
quaes  por  maior  parte  se  dão  n'esta  terra.  Todas  estas  arvores  tem  muito, 
ou  pouco  de  virtude  medicinal,  como  vimos  nas  hervas :  grande  preroga- 
tiva  de  sua  bondade.  Algumas  d'estas  se  vêem  por  essas  mattas,  que  além 
da  natural  verdura,  se  vestem,  e  enfeitão  de  taes,  e  tão  fermosas  flores, 
que  representão  armações  aprazíveis,  humas  vermelhas,  outras  roxas,  ou- 
tras brancas,  outras  amarellas  a  modo  de  Maio  de  Portugal,  e  talvez  todas 
juntas,  e  com  tal  graça,  í[ue  parece  se  poz  a  natureza  a  debuxar  a  mais 
pintada  primavera.  Vi  muitas  destas  com  assas  de  recreação,  e  não  soube 
comparal-as  a  algumas  outras  do  nosso  mundo  velho.  Não  posso  aqui  de- 
ter-me  mais :  quem  quizer  ver  extensamente  a  bondade,  verdura,  e  fres- 
cura do  arvoredo  do  Brasil,  busque  os  autores  acima  citad(js;  que  eu  vou 
depressa,  e  hei  de  acudir  a  meu  intento. 

89  Segunda  resolução.^0  clima  do  Brasil  he  por  excellencia  bom  entre 
todas  as  mais  terras  do  mundo.  E  he  a  segunda  propriedade,  que  requere  o 
Texto  sagrado  na  bondade  da  terra  segundo  a(|uellas  palavras:  ^ifiant  lu- 
minária in  firmamento  cwli,  et  dividant  diein,  ac  noctem,  etc. »  Do  que  dis- 
semos no  principio,  quando  livramos  esta  terra  das  calunmias  dos  que 
querião  roubar-lhe  o  Ceo,  se  podem  tirar  as  excellencias,  que  n"este  lu- 
gar são  necessárias  pêra  mostrar  que  he  bom  este  clima;  porém  que  seja 
por  excellencia  bom,  também  não  será  difficultoso  mostral-o  a  quem  fizei- 
comparação  entre  elle,  e  os  climas  sabidos  da  Euroí)a,  Afi-ica,  e  Ásia.  Não 
quero  eu  ser  só  o  autor  d'esta  resolução.  Vejão-se  pr-inieiro  as  excellen- 
cias que  d'este  clima  engrandece  MalTeo,  liv.  n  da  Historia  da  índia,  onde 
diz  assi :  «/íer/jo  fcnne  tola  imprimis  amaina  esl;  coeli  admodàm  jucunda  aa- 
lubrisque  tcmperies:  leniam  (/uijipe  à  muri  vcnlornin  commodissimi  flalus  ma- 

(•)  Aiiflá,  engá,  joá,  mo(;ar.in(|iil»;i,  niiiricí,  amoreirn,  ncquiá,  ib;iraé,  Ruail)irab;i,  ihariiiia,  ibe- 
rába,  ib.ixmna,  japaraiidib.).  jabolapif,iha,  jaracatiá,  ibamrába,  ibaramuci,  ibapuruiij^a,  ftttHifrha^ 
raiúba  iimari:  5ão  fruilas  agrfíteí-,  servem  a  índio?,  ca  gado. 


VOL.   I 


IX 


CXXXVm  LIVRO  II  DAS  NOTICIAS 

tutinos  vapores,  ac  nehulas  tempesticè  disjiciunt,  soksque  puríssimos,  ac  ni- 
tidissimos  reddiint.  Scalet  ea  tota  fere  plaga  fontibus,  ac  syhis,  et  amnibus 
inclilis,  etc.»  Quer  dizer:  «He  esta  região  do  Brasil  sobretudo  amena;  o 
temperamento  do  clima  jucundo,  e  saudável ;  porque  a  viração  suave  dos 
ventos  mareiros  desfaz  os  vapores,  e  névoas  matutinas,  e  toma  os  astros 
puríssimos:  ffuasi  toda  está  adornada  de  variedade  de  fontes,  rios,  e  ar- 
voredos.» O  mesmo  tem  Theatrum  orbis  na  descripção  do  Brasil,  pelas 
mesmas  pala\Tas  de  Maffeo,  por  isso  as  não  treslado.  Gotofredo  em  sua 
Arcontologia  cósmica,  foi.  314,  diz  assi:  «Fruilur  Brasiliaaére  óptimo pro- 
pter  ventos  suavissimos,  qui  proper  semper  ibi  spirant:  abundai  fontibus,  flu- 
tijs,  sylvisque;  distinguiturque  in  plana,  et  leviter  edita  collibus;  seceper  amceno 
virore  spectanda,  et  varietate  plantarum,  et  animalium.*  Como  dizendo: 
«Goza  o  Brasil  de  ares  boníssimos,  por  razão  de  ventos  mui  suaves,  que 
n'elle  quasi  sempre  aspírão :  he  abundante  de  fontes,  rios,  e  bosques,  va- 
riado suavemente  de  valles,  e  outeiros,  e  revestido  de  verde,  sempre  apra- 
zível.» Guilhelmo  Pinçon  no  liv.  i  da  Medicina  do  Brasil,  diz  assi:  aBra- 
silia  autem  prcBstantissima  fitcile  totius  Americw  pars  penitus  introspecLa,  ju- 
cunda in  primis  salubrique  temperie  excellit  usque  aden,  tit  mcritô  cum  Eu- 
ropa atque  Ásia  de  clementia  aèris,  et  aquarum  cer/eí.»  Diz  que  o  Brasil, 
prestantissima  parte  da  America,  he  de  mui  agradável,  e  saudável  tempe- 
ramento, com  tanta  excellencia,  que  com  razão  pôde  contender  com  Eu- 
ropa, e  Ásia,  acerca  dos  ares,  e  das  agoas. 

90  Porém  eu  quero  mostral-o  ainda  com  razões.  Averiguada  cousa  he, 
que  a  bondade  do  clima  de  huma  região,  se  ha  de  contar  pela  maior  feli- 
cidade delia;  e  que  esta  só,  excede  a  todas;  e  que  todas  as  que  pôde  dar 
a  natureza,  cedem  á  bondade  daquelle.  Porque  como  da  bondade  do  cli- 
ma, e  da  concórdia  de  suas  quatro  qualidades,  dependa  a  vida,  saúde,  c 
contentamento  dos  viventes;  pouco  importarião  todas  as  mais  naturaes  fe- 
licidades, se  com  falta  da  vida,  saúde,  e  contentamento  se  houvessem  de 

lograr. 

91  A  medida  de  toda  a  felicidade  natural,  foi  o  estado  do  Paraíso  ter- 
reno, por  isso  chamado  de  deleites :  e  toda  esta  sua  felicidade  consistia  no 
temperamento  proporcionado  dos  quatro  humores  procedidos  das  quatro 
qualidades  do  clima;  com  que  o  homem  vivera  pêra  sempre,  e  sempre  com 
saúde,  e  gosto;  senão  o  impedira  a  amargura  do  peccado.  D'esta  medida 
tem  descaído  o  género  humano;  e  (pianto  mais  distante  está  cada  qual  das 
regiões  do  mundo  daquelle  clima,  c  temperamento  primeiro,  tanto  mais 


DAS  COiSAS  DO  lillASIL  CXXXIX 

distanle  está  d'aqiiella  primeira  felicidade.  Na  conformidade  d"esl,a  doutri- 
na certa,  dizem  alguns  Médicos,  que  não  ha  clima  no  estado  presente  da 
natureza  descaída,  que  não  seja  doentio,  nem  homem  que  não  seja  doente. 
E  dizem  bem;  porffiic  não  ha  clima,  nem  temperamento,  que  não  diminua 
daquelle  primeiro  do  Paraíso:  e  como  aquellc  era  a  regra  da  vida,  saúde,  e 
contentamento  do  homem ;  tudo  o  que  he  menos,  he  menos  vida,  menos 
saúde,  menos  contentamento.  Se  não  que,  como  fomos  gerados  com  essa 
mesma  des temperança,  e  não  gozámos  outra  melhor;  não  advertimos  no 
que  nos  falta:  mas  pode  advertil-o  o  douto  Medico,  que  considerar  nossas 
acções  destemperadas;  porque  não  ha  homem  que  possa  dizer  com  verdade 
(|ue  passa  isento  de  achaque,  ou  descontentamento,  sem  saber  dizer  o  por- 
que: e  o  porque,  he  a  falta  daproporção  requisita  pêra  a  saúde,  e  gosto  perfeito. 
92  He  logo  breve,  de  força,  nossa  vida :  quasi  doentes  somos  todos, 
c  todos  vivemos  com  menos  gosto  no  presente  estado.  Porém  ha  menos 
doestes  males,  aonde  o  clima  tem  menos  descaído.  O  Estado  do  Brasil, 
tenho  pêra  mim,  que  descaio  menos :  mostro  assi:  porque  a  bondade  do 
clima  compõem-se  da  bondade  dos  astros,  que  n'ellc  predominão,  e  jun- 
tamente da  bondade  dos  ares,  primeiro,  e  melhor  pasto  dos  viven- 
tes. Os  astros  que  predominão  n"esta  região  do  Brasil,  conhecidamente 
são  bons,  e  com  tal  bondade,  que  se  não  excedem,  não  cuido  dão  vanta- 
gem ás  mais  partes  do  mundo.  A  experiência  nol-o  mostra,  e  testificão-no 
grandes  Astrólogos,  que  computarão  humas,  e  outras  regiões  Articas,  e 
Antarticas ;  porque  n'esta  a  formosura,  candura,  pureza,  e  resplandor  do 
Sol,  Lua,  c  Estrellas,  parece  está  no  mesmo  ponto  de  sua  primeira  cria- 
ção. Nas  partes  de  Europa  vemos  ordinariamente  que  o  Sol,  depois  de  já 
nascido,  e  levantado  a  mais  de  huma  lança  da  terra,  não  oífende  os  olhos, 
nem  aquenta,  nem  despede  o  fermoso  resplandor  de  seus  raios,  com  que 
alegre  a  terra;  e  da  mesma  maneira  antes  de  se  pôr;  porque  a  grossura 
dos  ares  impede  todos  estes  cíleitos.  Pelo  contrario  nos  nossos  hoiizontes, 
vemos  a(|uellc  astro  de  ouro  sempre  puro,  e  no  mesmo  ser,  ou  nasça,  ou 
se  ponha,  que  com  a  mesma  luz,  e  resplandor  alegra  toda  a  terra.  Com 
a  mesma  excísllencia  de  luz  em  seu  género  preside  a  Lua  no  governo  da 
noite,  fazendo  tão  claros  os  objectos,  que  podem  lèr-sc  ao  lume  d"esla  ce- 
leste tocha,  os  segredos  das  mais  meudas  cartas.  O  mesmo  vemos  na  fer- 
mosura,  c-  claridade  das  estrellas.  lie  bem  conhecida  a  de  hum  Cruzeiro, 
f|uati'o  estrellas  puras  postas  em  cruz,  o  huma  mais  que  lhe  forma  o  \h\ 
princezas  d'estes  Ceos,  ornato  das  estrellas  Antarticas,  e  guia  se,!?ura  dor. 


CXL  LIVRO  II  DAS  NOTICIAS 

navegantes:  a  fermosiira,  pureza,  candura,  e  multidão  das  que  compOeui 
a  via  láctea,  c  da  mesma  maneira  das  que  compõem  as  mais  figuras  do 
nosso  hemispherio  Antartico;  de  que  faz  expressa  menção  Pêro  Theodoro, 
Asti'ologo  perito,  e  outros  que  correrão  estas  partes;  cujo  parecer,  e  de 
outros  referidos  pelo  doutíssimo  Mathematico  Theodoro  de  Bry,  na  \iii,  e 
IX  parte  de  suas  Observações,  não  quero  deixar  de  pôr  aqui ;  pois  o  traz 
ao  mesmo  intento  d^aquellas  suas  partes  de  Cliilli,  o  Padre  AlTonso  de 
Ovalle  da  Companhia  de  Jesu;  e  refere  assi.  «Os  que  dos  nossos  doutos 
sulcarão  o  mar  do  Sul,  nos  contão  muitas  cousas  d'aquelle  Geo,  e  de  suas 
estrellas,  assi  de  seu  numero,  como  de  sua  grandeza.  E  eu  julgo  que  em 
nenhuma  maneira  se  devem  antepor  ás  estrellas  Meridionaes,  estas  que  cá 
vemos :  antes  aííirmo,  sem  género  de  duvida,  que  são  muito  mais,  mais 
luzidas,  e  maiores  as  que  se  vêem  vizinhas  ao  Polo  Antartico. «  Até  aqui 
o  autor.  E  logo  continua  louvando  grandemente  as  do  Cruzeiro,  Via  láctea, 
e  as  outras.  O  que  por  ser  testemunho  de  homens  ,tão  doutos  na  Astro- 
logia, faz  muito  ao  nosso  caso. 

93  A  segunda  parte  do  clima  (como  dissemos)  são  os  ares :  e  pôde 
ser  questão  problemática,  qual  mais  depende  na  bondade  externa  de  sua 
pureza,  e  fermosura,  se  os  astros  dos  ares,  ou  os  ares  dos  astros  ?  Estes 
com  suas  influencias  purificão  os  ares :  os  ares  com  sua  pureza  tornão  pu- 
ros aquelles:  e  como  sem  bondade  dos  astros,  que  benignamente  consu- 
m3o  as  humidades,  e  exhalações  entremeias,  não  pôde  haver  pureza,  nem 
bondade  de  ares;  assi  sem  a  pureza,  e  bondade  dos  ares,  que  desimpida 
a  crassidão  do  meio,  não  pôde  haver  pureza,  nem  resplandor  dos  astros. 
E  he  o  a  que  vem  o  Padre  Maííeo  no  lugai"  acima  citado,  quando  diz,  que 
as  virações  dos  ares  do  Brasil,  desfazendo  os  vapores,  e  névoas,  tornão  as 
estrellas  puras,  e  limpas :  porém  onde  os  astros,  e  ares  confederados  cons- 
pirão  na  pureza,  he  sem  duvida  o  clima  puro,  e  vital  aos  homens.  O  pri- 
meiro mantimento  de  que  vivemos  he  o  ar :  se  este  he  puro,  he  força  que 
purifique  as  entranhas,  e  coração,  fonte  da  vida:  se  he  grosseiro,  ou  cor- 
rupto, he  força  que  engrosse,  e  corrompa  também  estas  fontes  vitaes.  Que 
importará  que  o  alimento  que  tomamos  duas  vezes  no  dia,  seja  mui  puro, 
c  delicado;  se  o  principal  alimento  de  cada  hora,  e  de  cada  momento,  fòr 
grosseiro,  e  corrupto? 

94  N"este  nosso  clima  do  Brasil  são  tão  puros  os  ares,  que  se  pôde 
dizer  com  razão  que  bebemos  espíritos  vitaes;  porque  nem  os  vicia  excesso 
de  frio,  nem  excesso  de  calma:  se  não  que  hc  huraa  j)rimavcra  perpetua. 


DAS  COUSAS  DO  BRASIL  fiXLI 

com  virações  tao  suaves,  e  puras,  quaes  descreve  Maffeo,  e  os  autores  já 
citados:  nem  eu  sei  parte  do  universo,  que  goze  o  mesmo.  Os  quo  nave- 
gão  pêra  estas  partes,  pela  pureza  dos  ares  descobrem  a  presença  da  ter- 
ra; quanto  mais  vem  chegando-se  a  ella,  tanto  vem  bebendo  os  ares  mais 
puros,  sensivelmente  diíTerentes  dos  com  que  começarão  a  viagem.  E  com 
os  ares  se  parecem  as  agoas  do  mar,  de  crystal  puríssimo,  sereníssimas : 
das  altas  popas  se  estão  vendo  ir  nadando  os  peixes  no  profundo  das 
agoas,  como  reverberando  em  ouro.  Raramente  exasperão  em  tempesta- 
des :  causa  porque  os  naturaes  da  terra  se  atrevem  a  navegal-as  legoas  in- 
teiras de  distancia  da  praia,  em  pequenas  canoas,  traves  cavadas,  ou  em 
três  páos  ligados  huns  com  outros,  a  que  chamão  jangadas.  Pois  se  con- 
cordão  na  f(}rma  sobredita  a  bondade  dos  ares  com  a  dos  astros,  que  bon- 
dade de  clima  não  terá  o  Brasil?  He  por  excellencia  bom  entre  todas  as 
terras  do  mundo :  e  não  aperto  mais  a  consequência,  porque  não  pretendo 
aggravar  outras  partes. 

95  Pôde  reforçar-se  esta  doutrina  com  este  fundamento.  As  estrellas 
(juanto  mais  de  perto  predominão,  e  quanto  com  raios  mais  direitos,  tanto 
mais  punTicão  os  ares  do  clima  (quanto  em  si  he:)  o  a  razão  he  natural, 
porque  quanto  mais  de  perto,  e  direitos  obrão  os  raios,  tanto  com  maior 
cfTicacia  consumem  as  névoas,  e  os  vapores  entremeios;  e  por  conseguinte 
purilicão  os  ares,  e  os  tornão  vitaes,  e  suaves.  O  Sol,  Lua,  e  principaes 
estrellas  do  Ceo  predominai)  sobre  o  Brasil,  como  sobre  as  mais  partes  da 
zona  tórrida,  mais  de  pculo,  c  com  raios  mais  direitos,  que  sobre  alguma 
outra  teiTa;  he  força  logo  que  tornem  os  ares  do  clima  do  Brasil  mais  pu- 
ros, e  vitaes,  que  os  das  mais  partes  do  mundo.  E  que  o  Sol,  Lua,  e 
principaes  estrellas  do  Ceo  predominem  sobre  o  Brasil  mais  de  perto,  e 
com  raios  mais  direitos,  não  pôde  duvidar-se;  porque  o  Sol,  Lua,  e  signos 
do  Zodiaco,  que  são  as  estrellas  principaes  do  governo  do  mundo,  tem 
e.ntre  si,  e  a  região  d'esta  zona  dous  elementos,  de  fogo,  e  ar:  cem  qual- 
quer outra  região  fora  da  zona  tórrida,  tem  entre  si,  e  ella  (atém  dos  ele- 
mentos fogo,  e  ar)  a  parte  da  terra  que  vai  de  mais  a  mais,  até  qualquer 
dos  climas  com  quem  fizermos  comparação.  He  fundamento  este  eíTicaz;  e 
claro  está,  que  sendo  a  zona  do  Zodiaco  o  palácio  commum  d'aquelles 
príncipes  das  luzes,  e  assentando  alli  o  throno  do  governo  do  universo, 
que  sempre  dentro  da  esphera  d'elle  devão  as  cousas  do  ir  mais  regula- 
res; como  cm  effcito  vão  os  tempos,  o  verão,  o  inverno;  os  dias,  e  as  noi- 
tes ;  o  frio,  e  a  calma ;  e  o  mais  que  pcrt^Micc  a  hum  perfeito  clima,  não 


cxí.ii  Liviio  i:  DAS  Nonr.iAS 

.sondo  assi  em  aá  outras  partes  da  terra.  A  isto  alludio  o  Texto  da  sagrada 
Escrittura,  quando  disse:  ^'Fiant  luminária  in  fimamenlu  cwli,  d  dimdant 
(liem,  (ic  noctem,  et  sint  in  sijna,  et  têmpora,  et  (lies,  et  annos.^  Como  dizen- 
do, que  são  sinaes  áos  climas  aquelles  astros,  pela  variedade,  e  igualdade 
dos  tempos,  dias,  e  anues.  Disse,  quanto  em  si  he;  porque  não  ha  duvida, 
que  ha  algumas  outras  causas,  que  impedem  esta  regra  commua,  que  pro- 
puzemos  em  algumas  partes  d"esla  zona,  onde  os  climas  se  sentem  incle- 
mentes ;  porém  d'estas  não  tomos  muitas  no  Brasil,  nem  convém  meter- 
mo-nos  agora  nos  porquês  d*e3ta  variedade. 

96  Terceira  resolução.  Produzem  as  agoas  do  Brasil  (a  modo  de  fallar 
da  sagrada  Escrittura)  viventes  nadadores ;  e  seus  ares  viventes  voadores, 
per  excellencia  bons  entre  todas  as  terras  do  mundo.  E  he  a  terceira  pro- 
priedade requerida  pela  sagrada  Escrittura:  «.ProdUcant  acimereptUeanimíB 
viventis,  et  volatile  super  terram.y*  Não  sei  se  pela  bondade  das  agoas  he- 
mos de  medir  a  bondade  dos  peixes;  ou  se  pela  bondade  dos  peixes  hemos 
de  medir  a  das  agoas?  E  da  mesma  maneira,  se  pela  bondade  dosares,  a 
bondade  das  aves;  ou  se  pela  bondade  das  aves,  a  bondade  dos  ares  ?  Ou 
façamos  huma  cousa,  ou  outra,  sempre  acharemos  grande  bondade  nos 
peixes,  e  aves  do  Brasil;  porque  das  agoas  temos  dito  cjue  são  das  melho- 
res, mais  puras,  o  mais  crystallinas  do  mundo,  tanto  salgadas,  como  do- 
ces. Em  partes  mui  distantes  da  praia,  se  olhares  pêra  o  fundo,  vereis  os 
seixos,  e  conchas  das  áreas  que  estão  branquejando,  quaes  pedaços  de 
prata.  Sendo  pois  o  elemento  tão  puro,  a  bondade  dos  peixes  he  tal,  que 
rara  he  a  espécie  nociva;  e  muitas  d"ellas  se  dão  a  comer  a  doentes  por 
mantimento  leve,  e  bom.  No  grande  numero  de  suas  espécies,  se  eu  me 
houvera  de  deter,  encheria  hum  volume.  Yeja-se  hum  livro  inteiro  com- 
posto com  curiosidade  por  Jorge  Marcgravi,  e  he  o  quarto  da  Historia  na- 
tural do  Brasil :  alii  se  acharão  tantas  espécies,  que  parece  não  devia  ha- 
ver mais  na  primeira  formação  das  agoas,  desde  a  grande  balea  até  o  peixe 
minimo,  e  se  verá  que  não  dão  n'esta  parte  vantagem  as  nossas  agoas  a 
algumas  do  orbe. 

97  Monstros  marinhos  têm  sabido  á  costa,  de  cuja  espécie,  nem  antes, 
nem  depois  sabemos  que  houvesse  noticia  em  outra  alguma  parte  do  mun- 
do. Aquelles  descobiidores  do  Brasil,  virão  o  primeiro  (de  que  já  falíamos) 
nas  praias  do  Porto  seguro :  e  depois  d^elles  forão  tão  vários  os  que  se  vi- 
rão, e  de  tão  monstruosas  espécies,  que  requerem  hum  tratado  mui  gran- 
de. Dos  peixes  homens,  e  peixes  mulheres  vi  grandes  lapas  junto  ao  mar 


BAS    COLS.VS  DO  IJhASlL  CXLIII 

clieas  de  ossadas  dos  mortos;  e  \i  suas  caveiras,  que  não  tinhão  mais  dif- 
ferença  de  homem,  ou  mulher,  que  iium  buraco  no  toutiço,  por  onde  di- 
zem que  respirão.  Os  peixes  bois  são  mui  ordinários :  cozem-se  a  maneira 
de  carne,  com  couves,  ou  arroz;  e  podem  enganar  aos  que  o  não  sabem, 
parecendo-ihes  vaca  na  vista,  e  no  sabor.  As  iDaleas  são  em  tão  grande  nu- 
mero, que  só  n'esta  Bahia  anda  hoje  o  contrato  real  sobre  ellas  em  qua- 
renta e  três  mil  cruzados  por  tempo  de  três  annos.  Revolve  a  multidão 
d'estes  peixes  o  profundo  das  agoas,  e  lança  a  praia  tão  grande  quantidade 
de  âmbar,  que  tem  enriquecido  a  muitos.  No  Seara  he  a  mór  abundância; 
acha-se  por  arrobas,  e  fazem  d"elle  menos  caso  os  índios  d'aquellas  partes, 
e  o  dão  por  retornos  mui  leves.  Tal  houve,  que  deo  por  huma  vez  arroba 
e  meia  de  graça  a  certo  Portuguez.  Chamão  os  índios  ao  âmbar  pirapua- 
ma  repoti,  porque  têm  pêra  si,  que  serve  de  pasto  da  balea,  e  sahe  d'ella 
ás  praias  por  vómitos.  Perto  d"esta  Bahia  sahio  á  costa  outro  monstro, 
posto  que  de  differente  espécie,  que  deo  prova  a  esta  opinião  dos  índios; 
porque  trouxe  no  ventre  não  meãos  que  dezaseis  arrobas  d'elle,  parte  cor- 
rupto, e  parte  são.  Quando  isto  escrevo  defronto  d'esta  cidade  da  Bahia, 
no  principio  da  praia  da  ilha  chamada  Itaparica,  se  descobre  grande  quan- 
tidade de  âmbar  linissimo,  a  modo  de  mineral;  porque  à  enxada  andão 
cavando  grande  numero  de  escravos  a  praia,  e  quasi  todos  achão  pedaços 
enterrados,  quaes  grandes,  quaes  pequenos,  alguns  de  muita  consideração. 
Muito  havia  que  dizer  no  género  de  peixes;  porém  eu  não  me  canso  d'aqui 
pêra  baixo  na  multidão  dos  d'estas  agoas :  remeto-me  ao  livro  citado. 

98  A  mesma  bondade  proporcional  se  acha  nas  aves  d'estes  ares.  Todo 
o  universo  não  parece  vio  espécies,  nem  mais  em  numero,  nem  mais  fer- 
mosas :  parecem  as  mesmas  dos  primitivos  ares,  antes  criadas  no  mesmo 
Paraíso  da  terra :  tal  he  a  bondade,  o  numero,  a  variedade  de  sua  fermo- 
sura:  só  n'aquell(í  pi'imeiro  Ceo  terreno  podíão  pintar-se  tão  finas  cores, 
como  são  as  de  hum  íjuorevaú,  de  hum  caiiindé,  de  hum  guai'á,  d(;  huma 
arara,  de  hum  papagaio,  quando  he  verdadeii'o,  de  hum  tyé,  e  outros  se- 
melhantes, que  eu  não  quero  descrever,  porque  me  remeto  a  outro  livro 
do  mesmo  autor  já  citado,  e  he  o  quinto  da  obra  do  Brasil :  veja-o  o  lei- 
tor curioso,  e  compare  estas  com  as  outras  aves  do  mundo.  Hum  só  exem- 
plo não  posso  deixar  de  referir,  que  mostia  muito  a  fecundidadi.',  e  varie- 
dade das  aves  d'estes  ares :  e  he  (jue  de  hum  passaiinlio  se  coiitão  nove 
e.species,  diversas  todas,  a  qual  mais  galarite,  e  enfeitada  da  natuieza;  cha- 
mão a  este  passarinho  em  geral  os  naturaes  da  torra  goanhamhig:  eaipaj- 


CXLIY  LIYUO  II  BAS  NOTiriAS 

ticular  a  humas  espécies,  cliamão  goaracyaba,  que  quer  dizer  raio  do  Sol; 
a  outras  quoaracyaba,  que  quer  dizer  cabello  do  Sol  a  outras  põem  ou- 
tros nomes,  segundo  o  modo  de  sua  fermosura,  que  he  tão  varia,  e  apra- 
zível, que  não  poderá  airemedal-a  o  mais  destro  pintor  com  as  mais  finas 
tintas :  rouba  o  verde  do  eólio  do  pavão,  o  amarello  do  pintacilgo,  o  louro 
do  papagaio,  e  o  vermelho  do  goará,  ou  tyé;  porém  quebradas  todas  estas 
cores,  e  modificadas  com  tal  primor,  que  parece  que  nem  são  aquellas, 
nem  d"ellas  deve  cousa  alguma  áquelles  pássaros.  Chamão-lhe  os  Portugue- 
ses picaílor.  He  ave  mui  pequena :  quatro  d'ellas  não  fazem  o  corpo  de  hum 
só  pintacilgo :  tem  cabeça  redonda,  bico  comprido,  vive  somente  do  orva- 
lho das  flores,  por  cuja  falta,  sendo  tomada  viva,  morre  logo.  Seu  vôo  he 
ligeiríssimo ;  quasi  não  se  enxerga  no  ar,  e  voando  pasce  nas  flores.  Esta 
avezinha  supposto  que  fomenta  seus  ovos,  e  d'eUes  nasce,  he  cousa  certa, 
que  he  produzida  muitas  vezes  de  borboletas.  Sou  testemunha,  que  vi  com 
meus  olhos  huma  d"ellas  meia  ave,  e  meia  borboleta,  ir-se  perfeiçoando 
debaixo  da  folha  de  huma  latada,  até  tomar  vigor,  e  voar.  Maior  milagre 
se  affirma  d'ella  constantemente,  e  por  tantos  autores,  que  parece  não  pôde 
duvidar-se,  que  como  só  vive  de  flores,  em  acabando  estas,  acaba  ella  na 
maneira  seguinte :  prega  o  biquinho  no  tronco  de  huma  arvore,  e  n'ella 
está  immovel  como  morta,  em  quanto  tornão  a  brotar  as  flores  (que  são 
seis  mezes)  passado  o  qual  tempo,  torna  a  viver,  e  voar.  E  este  exemplo 
baste  pêra  o  intento  de  rastejar  a  multidão,  e  variedade  das  espécies  das 
aves  d'estes  ares,  e  sua  fermosura. 

99  Quarta  resolução.  Produz  a  terra  do  Brasil  os  animaes,  e  bestas 
d'ella,  em  varias  espécies,  por  excellencia  boas  pêra  seus  usos  entre  todas 
as  terras  do  mundo,  na  conformidade  da  quarta  propriedade  da  terra  boa: 
tíProãucat  terra  animam  viventein  in  genere  suo ,  jumenta,  et  reptiUa,  ethestias 
terrcc  secundum  species  suas.y>  Fora  cousa  curiosa  pintar  aqui  as  qualidades 
de  cada  qual  das  espécies  de  animaes  d'estes  montes,  e  brenhas,  e  suas 
bondades,  pêra  serviço,  uso,  e  proveito  do  homem.  Porém  fora  obra  com- 
prida, fora  de  meu  intento.  Dous  livros  escreveo  Jorge  Marcgravi  na  His- 
toria natural  referida,  e  não  lorão  bastantes.  Não  deixarei  comtudo  de  apon- 
tar algumas  pêra  recreação  dos  que  lerem.  E  entrem  em  primeiro  lugar  os 
monos,  e  bogios.  São  estes  em  numero  sem  conto  por  estas  brenhas,  e 
maltas  do  Brasil ;  e  tão  sobejos,  que  no  sertão  são  as  guerras  ordinárias 
dos  índios ;  aos  quaes  destroem  suas  plantas,  c  perturbão  suas  sementei- 
ras. Iluns  são  grandes,  outros  pequenos;  huns  cora  barba,  outros  sem  ella; 


DAS  COUSAS  DO  BRASIL  CXLV 

huns  prelos,  outros  pardos,  outros  que  metem  de  amarellos :  differentes 
em  gestos,  condições,  e  propriedades;  huns  alegres,  outros  malenconlcos; 
huns  hgeiros,  outros  vagarosos;  huns  animosos,  outros  covardes.  De  ne- 
nhuma cousa  têm  tanto  medo  como  da  agoa,  e  do  lodo :  e  se  acertão  de 
molhar-se,  ou  enlodar-se,  entrão  logo  em  malenconia,  fazem  esgares,  e  es- 
pantos ridículos.  Recebem  seus  hospedes  com  sinaes  de  festa,  e  lamentão 
seus  mortos  com  sinaes  de  sentimento,  e  com  tão  grande  pranto,  que  atroão 
toda  huma  montanha.  Passão  a  vida  alegremente,  nas  mattas  mais  interio- 
res fazem  seus  cantos,  certas  horas  do  dia,  e  da  noite :  no  pino  d"ella,  ao 
romper  da  manhãa,  e  pelo  meio  dia  são  os  mais  ordinários.  Ajuntão-se  to 
dos  em  hum  lugar,  e  logo  hum  d'elles  mais  pequeno  posto  em  alto,  e  os 
demais  em  roda,  levanta  a  voz  a  modo  do  antiphona,  e  dado  sinal,  respon- 
dem todos  cantando  em  semelhante  tora;  e  em  tanto  conlinuão  o  canto,  em 
quanto  aquelle  que  começou  torna  a  dar  sinal  que  acabem.  São  cirurgiões 
de  suas  feridas,  e  sabem  cural-as  com  certas  hervas,  que  mastigão  na  boca, 
e  applicão  á  parte,  com  effeito  maravilhoso.  Em  frechando  algum  d'elles, 
tira  logo  com  sua  mão  a  frecha,  acode  á  herva,  e  applica  a  medicina,  como 
se  tivera  razão.  E  não  he  fabula,  mas  informação  certa  dos  índios  do  ser- 
tão, que  quando  os  frechão,  talvez  lanção  a  mão  a  algum  páo  seco  que 
achão,  e  atirão  com  elle;  ou  com  a  mesma  frecha.  O  artificio,  e  engenho, 
com  que  tração  seus  modos  de  viver,  he  tão  notável  entre  todos  os  ani- 
maes,  qne  parece  lhe  assiste  em  suas  acções  algum  alento  racional. 

100  Será  agradável  ouvir  as  condições  de  outro  animal  particular  so- 
mente d'esta  terra;  chamão-lhe  os  índios  aíg,  os  Portugueses  preguiça  do 
Brasil.  He  do  tamanho  de  huma  raposa,  de  còr  cinzenta,  cabeça  mui  pe- 
quena, redonda,  sem  orelhas,  dentes  de  cordeiro,  cabello  comprido,  mais 
curta  nos  pês  que  nas  mãos,  em  cada  hum  dos  pés  tem  três  unhas  mui 
longas.  He  animal  preguiçosíssimo ;  gasta  huma  hora  em  passar  de  hum 
ramo  a  outro :  das  folhas  d'este  se  sustenta,  porque  só  estes  não  podem 
fugir  a  seu  vagar.  Nunca  bebe :  rarissimamente  dá  voz;  e  quando  a  dá,  hc 
a  modo  de  gato  pequeno.  Pega  devagar,  mas  o  que  huma  vez  alcança, 
com  muita  diíTiculdade  o  larga. 

101  O  çarigué  hc  outra  admirável  compostura  de  animal :  hc  do  tama- 
nho de  hum  cachorro,  cabeça  de  raposa,  focinho  agudo,  dentes,  e  barba  a 
maneira  de  gato,  as  mãos  mais  curtas  que  os  pés,  negro  pela  mór  parte. 
O  que  he  mais  extraordinário  n'clle,  he  que  na  parte  inferior  do  ventre, 
lhe  formou  a  natureza  hum  bolso,  a  que  os  índios  chamão  tambeó,  e  ii'cste 


oxLM  Livno  II  jjas  noticias 

mesmo  lhe  induio  (js  peitos  com  oito  leias.  Aqui  concebe,  gera,  fónna,  e 
cria  os  fillios,  em  quanlo  per  si  não  são  capazes  de  buscar  de  comer :  o 
d'este  bolso  sahem  fora,  e  torrião  a  entrar  quando  querem.  He  animal  mor- 
daz, grande  amigo  de  gallinhas,  que  busca,  e  caça  a  modo  de  raposa,  em 
falta  das  quaes  arma  ciladas  pelas  arvores  pêra  caçar  as  aves.  A  cauda 
d'este  animal  he  prestaníissimo  remédio  pêra  doenças  de  rins,  e  pedra,  pi- 
sada, e  bebida  em  agoa,  quantidade  de  huma  onça  por  algumas  vezes  em 
jejum:  faz  gerar  leite,  serve  pêra  dores  de  cólica,  acelera  os  partos,  e 
lera.  outras  virtudes  admiráveis. 

•102  Os  porcos  monteses  sãò  oulra  espécie  digna  de  escrittura.  Enchem 
as  maltas  cm  tão  grande  quantidade,  que  descem  muitas  vezes  aos  valles, 
e  campos  exércitos  inteiros;  e  tão  ferozes  era  certos  tempos,  que  tudo  me- 
tem em  terror,  e  espanto;  porque  fazem  certo  trilhar  de  dentes,  que  atroa, 
e  assombra;  e  assanhados  despedação  a  gente.  He  admirável  seu  modo  de 
marchar;  porque  andão  juntos,  em  manadas,  ou  varas  diversas,  e  cada  huma 
traz  seu  capitão  conhecido,  ao  qual  no  marchar  têm  respeito,  não  ousando 
nenhum  ir  adiante.  He  impossível  vencer  huma  d'estas  varas,  sem  que  pri- 
meiro se  mate  o  capitão,  porque  em  quanto  vêem  a  este  vivo,  assi  se  unem, 
animão,  e  moslrão  valerosos  em  sua  defensa,  que  parecem  inexpugnáveis, 
e  pelo  contrario,  em  vendo  morto  o  capitão  desmaião,  e  lanção  a  fugir: 
He  rara  n'estes  animaes,  huma  cousa,  que  trazem  o  embigo  nas  costas  con- 
tra toda  a  mais  forma  da  natureza.  Como  estas  pudera  referir  muitas  es- 
pécies extraordinárias :  porém  não  me  dá  lugar  meu  intento.  Remeto-me 
aos  hvros  citados,  e  repito  somente  os  nomes :  onças,  tigres,  gatos  silves- 
tres, serpentes,  cobras,  lagartos,  crocodilos,  raposas,  antas,  veados,  porcos 
montezes,  aquários,  mansos,  pacas,  tátús,  tamanduás,  coelhos,  estes  de  seis 
espécies;  bogios,  ságuis,  macacos,  preguiças,  cotias,  coatís,  londras:  seria 
longo  contar  todos.  E  tenho  dado  breves  noticias  das  quatro  bondades  da 
terra  do  Brasil,  que  são  as  mesmas  com  que  Deos  a  criou  em  sua  primeira 
ormação,  e  pelas  quaes  julgou  que  era  boa. 

103  Por  conclusão  d'este  livro,  e  descripção  do  Brasil,  em  que  temos 
escritto  as  qualidades  da  terra,  o  temperamento  do  clima,  a  frescura  dos 
arvoredos,  a  variedade  de  plantas,  e  abundância  de  frutos,  as  hervas  me- 
dicinaes,  a  diversidade  de  viventes,  assi  nas  agoas,  como  na  terra,  e  aves 
tão  peregrinas,  e  mais  prodígios  da  natureza,  com  que  o  Autor  d'ella  en- 
ríqueceo  este  novo  mundo  :.  poderíamos  fazer  comparação,  ou  semelhança, 
de  alguma  parte  sua:  com  aquelle  Paraíso  da  terra,  em  que  Deos  nosso 


DAS  COUSAS   DO  HP.AálI.  CXLYU 

Senhor,  como  em  jardim,  poz  a  nosso  primeiro  pai  Adam,  conforme  a  ou- 
tros diligentes  autores,  Horta,  Argençola,  Ludovico  Romano,  c  o  nosso 
Padre  Eusébio  Niereniberg  nas  suas  Questões  naturaes,  liv.  i,  cap.  35. 

104  Porém  remeti?ndo  os  curiosos  a  vários  autores,  ainda  Escolásticos, 
S.  Thomâs,  i  part.,  quest.  102,  art.  2,  ad  4.  v-Credendnm  est  Paradysum 
in  temperatissimo  Inco  esse  cGnstítutum,  vel  sub  JEquinodiali^  vel  alibi. j>  S. 
Boaventura  2,  dist.  17,  dub.  3,  dá  a  razão:  <íQuia  secxis Mquinodiaest ihi 
magna  temperies  temporis.))  Soares  de  Opere  sex  dierum,  lib.  3,  cap.  6, 
n."  36.  Cornelio  Alapide  in  Genes.  cap.  2,  vers.  8,  §  4.  Deixo  a  seu  juizo 
considerem  a  vantagem  que  fazem  algumas  terras  do  mundo  novo  aos  fa- 
bulosos Cam.pos  Elysios,  hortos  pensiles,  ilha  de  Atlante ;  e  a  semelhança 
com  o  melhor  clima  da  terra,  e  avantajada  á  ilha  Tapobrana,  cujo  clima  he 
tão  infesto  á  saúde  dos  homens,  como  testifica  o  Padre  Lucena  na  Vida  de 
S.  Francisco  Xavier,  liv.  m,  cap.  10.  E  com  isto  damos  fim  ás  noticias  cu- 
riosas, e  necessárias  das  cousas  do  Brasil. 


ÍNDICE 

DAS  NOTICIAS  DO  BRASIL 


Almazonas,  liv.  i,  num.  31. 

America,  sua  repartição,  liv.  i,  num.  \'ò. 

Seus  povoadores.  Vide  Opiniões. 

De  que  parte  víerão  ?  liv.  i,  num.  93. 

De  que  nação  erão,  porque  partes  passarão  ?  Ibidem. 

Américo  Vespucio  primeiro  explorador  do  Brasil,  liv.  i,  num.  15. 

António  Dias  Adorno,  descobridor  dos  mineraes  das  pedras  preciosas,  liv. 

I,  num.  54. 
Arvores  principaes  do  Brasil,  liv.  ii,  num.  80. 
Cajueiro,  e  seu  préstimo,  liv.  n,  num.  81  em  diante. 
Çapucaya,  sua  descripção,  liv.  n,  num.  86. 
Outras  arvores  frutíferas,  liv.  n,  num.  87. 
Atlante,  sua  ilha,  liv.  i,  num.  98. 
Opinião  de  Platão  sobre  esta  ilha,  liv.  i,  num.  98. 
Parecer  acerca  d'esta  opinião,  liv.  i,  num.  101,  e  10:*. 

B 

Bahia  de  Todos  os  Santos,  liv.  i,  num.  47. 

Brasil  que  cousa  seja?  liv.  ii,  num.  46  e  47. 

Nomes  do  Brasil,  liv.  n,  num.  47. 

Seu  diâmetro,  liv.  i,  num.  18. 

Seu  sitio,  liv.  I,  num.  21. 

Sua  demarcação,  liv.  i,  num.  14. 

Diversas  opiniões  sobre,  esta  demarcação,  liv.  i,  luim.  15. 

Sou  primeiro  explorador,  liv.  i,  num.  18. 


GL  í\ma: 

Segnndo  explorador,  liv.  i,  num.  19. 

Terceiro  explorador,  liv.  i,  num.  ibid. 

Noticias  que  derão  estes  do  Brasil  ao  Rei,  íiv.  i,  num.  20. 

A  relação  de  seu  descobrimento  foi  agradável  aos  Reis  de  Portugal,  lív.  i, 

num.  67. 
Seu  primeiro  Bispo,  liv.  i,  num.  46. 
Descriprão  de  suas  serras  marítimas,  liv.  i,  num.  68. 
Descripção,  grandeza,  e  fermosura  de  sua  costa,  liv,  i,  num.  39. 
Altura  (íe  seus  montes,  liv.  i,  num.  69. 
Frescura,  e  agoas  doestes  montes,  liv.  i,  num.  70, 
Suas  apparencias,  liv.  i,  num.  20. 
Seu  marco,  liv,  i,  num,  66. 
Bondade,  e  clima  de  suas  terras,  liv,  n,  num.  89.  Yeja-se  também  o 

verbo  Clima. 
Sua  boa  temperíe,  lív.  ir,  num.  61. 
Experiência  da  bondade  da  terra,  liv,  ii,  num.  57. 
Contra  os  que  negavão  o  ser  da  terra,  e  propriedades,  íiv.  ii,  mim.  63. 
Variedade,  e  origem  de  suas  lingoas,  liv.  i,  num.  ilO. 
Seus  ares  puros,  liv.  n,  num.  93. 
Bondade  de  suas  aves,  e  peixes,  íiv.  ii,  num.  96. 
Seus  animaes  terrestres,  liv.  n,  do  num.  99  por  diante. 
Bruto  com  espécie  humana,  liv.  ii,  num,  10. 

Bulia  do  Papa  Alexandre  VI  sobre  a  repartição  da  America,  íiv.  i,  nmn.  13. 
Bulia  do  Papa  Paulo  Hl  sobre  a  liberdade  dos  índios,  liv.  ii,  num.  6  e  7. 

C 

Cabo  de  S.  Roque,  íiv.  i,  num.  42. 

Cabo  de  S,  Agostinho,  liv,  i,  num.  43. 

Cabo  Frio,  liv.  i,  num.  57, 

Calumnias  da  Zona  tórrida.  Vide  Zona. 

Carijós,  liv,  i,  num.  63. 

Castelhanos  possuem  algumas  terras  pertencentes  á  demarcação  do  Brasil, 

liv.  I,  num,  16. 
Clima  do  Brasil  he  por  excellencia  bom  entre  todas  as  terras  do  mundo, 

liv.  n,  num.  89. 
Não  ha  clima  que  não  seja  doentio,  liv.  u,  num.  91, 
O  Brasil  está  menos  distante  em  seu  clima  do  clima  do  Paraíso  terreal, 

liv.  n,  num.  92. 
Cólon  trata  de  entabolar  o  descobrimento  do  novo  m.undo,  liv.  i,  num.  3. 
Dá  principio  a  sua  viagem,  liv.  i,  num.  4. 
Entrão  seus  companheiros  em  desconfiança  da  empreza,  ibidem. 
Confirma  Cólon  bcus  ânimos,  liv,  i,  num,  5, 
Começão  a  divisar  terra  aos  11  de  Outubro,  liv,  i,  num.  ii. 


DAS   NOTICIAS  Dl)  UKASIL  CU 

Edifica  hum  castello,  o  volta  a  Ilespanlia,  lív.  i,  num.  'ò. 

Enlra  na  Corte  em  3  de  Abril,  liv.  i,  luim.  G. 

Cores  dos  índios,  liv.  i,  num.  103. 

Parecer  dos  índios  sobre  suas  cores,  liv.  i,  num.  81. 

Experiência  sobre  ellas,  liv.  i,  num.  103. 

Dilliculdade  sobre  as  mesmas,  liv.  i,  num.  104. 

Requisitos  pêra  ellas.  liv.  i,  num.  107. 

Parecer  do  autor  sobre  este  ponto,  liv.  i,  num.  106. 

Costumes  dos  índios.  Vide  Judios. 

Costumes  dos  Tapuyas.  Vide  Tapuyas. 

D 

Descobrimento  no  novo  mundo.  Veja-se  Mundo  novo. 
Descobrimento  de  minas  de  pedras  preciosas,  liv.  i,  num.  51. 
Modo  fabuloso  dos  índios  acerca  do  diluvio,  liv.  i,  num.  84. 
Tradição  que  tem  sobre  o  diluvio,  liv.  i,  num.  74,  75,  e  7(1. 
Diogo  Martins  Cam,  descobridor  dos  mineracs  das  pedras  preciosas,  li\ .  r, 
num.  55. 

E 
Ervas  do  Brasil,  liv.  n,  ninn.  (i7. 
Erva  viva,  e  seus  effeitos,  liv.  u,  iium.  70. 
Erva  da  Paixão.  Veja-se  Maracujá. 
Ananás,  Caragoatá,  liv.  ii,  num.  00  e  70. 
Jamacurii,  liv.  ii,  num.  75. 
Mandioca,  liv.  n,  num.  71. 
Epilogo  das  mais  liervas,  liv.  ii,  num.  7y. 
Exploradores  do  Brasil.  Veja-se  Brasil. 

V 

Feiliçai'ias  dos  índios,  liv.  ii,  num.  10. 
Exemplo  d"ellas,  liv.  u,  num.  17. 

C 

Gaspar  de  LenidS,  parl(^  a  Portugal  levar  noticias  do  Brasil,  li\.  i,  num.  12. 
Goaitacascs,  liv.  i,  num.  5!}. 

II 

Hervas.  Veja-se  Ervas. 

Pôde  o  homem  por  mais  tosco  qm  seja,  por  íon;a  de  criação  politica  la- 

zer-se  politico,  liv.  ii,  num.  0. 
Pôde  o  leite,  c  criação  agreste  fa/er  que  o  homem  paieça  bruto,  eriãoíjuo 

o  seja,  liv.  H,  num.  8. 
Não  ha  homem  que  não  seja  doente,  liv.  u,  num.  01. 


CLIÍ  ÍNDICE 

I 

Os  que  tem  ignorância  invencível  de  Deos,  pelos  peccados  que  commetem 

não  merecem  pena  do  inferno,  senão  temporal,  lív.  n,  num.  44. 
Os  índios  do  Brasil  íiverão,  e  tem  geralmente  ignorância  invencível  de  Deos 

no  meio  de  sua  gentilidade,  liv.  n,  num.  42. 
Tem  alguns  d'elles  ignorância  invencível  dos  mysterios  sobrenaturaes,  e 

naturaes,  liv.  n,  num.  43. 
ilha  de  Santa  Catherina,  liv.  i,  num.  63. 
Ilha  Atlante.  Veja-se  Atlante. 
índios,  seu  natural,  liv.  i,  num.  10. 
Seus  progenitores,  liv.  i,  num.  78. 
Sua  divisão  em  povoações,  liv.  i,  num.  80. 
Reposta  que  derão  sobre  suas  línguas,  liv.  i,  num.  ÍM. 
Seus  costumes,  liv.  i,  num.  113. 
Semelhantes  aos  dos  Judeos,  liv.  i,  num.  92. 
Não  tem  humanidade,  nem  fé,  nem  lei,  nem  Rei,  liv.  i,  num.  116. 
Andão  nús,  não  tem  policia,  nem  arte,  ibidem. 
Furão  as  faces,  orelhas,  e  beiços,  ibidem. 
Sâo  paupérrimos,  liv.  i,  num.  119. 
São  preguiçosos,  mentirosos,  e  comilões,  liv.  i,  num.  118. 
Não  tem  morada  certa  muitos  d'elles,  liv.  i,  num.  117. 
Suas  alfaias,  e  modo  de  caminhar,  liv.  i,  num.  120. 
Modo  de  suas  caças,  liv.  i,  num.  122. 
Modo  de  suas  pescas,  liv,  i,  num.  124. 
Suas  armas,  e  modo  de  guerras,  liv.  i,  num.  126. 
Modo  com  que  cevão  o  que  foi  tomado  na  guerra,  liv.  i,  num.  128. 
Modo  com  que  o  matão,  liv.  i,  num.  131. 
São  inconstantes,  e  variáveis,  liv.  i,  num.  134. 
São  vingativos,  liv.  i,  num.  í2o. 
Exemplos  de  sua  vingança,  lív.  i,  num.  125. 
Títulos  de  sua  nobreza,  lív.  i,  num.  136. 
Seus  enterros,  liv.  i,  num.  135. 
Sua  hospedagem,  liv.  i,  num.  137. 
Modo  de  seu  comer,  liv.  i,  num.  140. 
Modo  de  suas  curas,  liv.  i,  num.  142. 
Seus  enfeites,  lív.  i,  num.  139. 
Instrumentos,  musicas,  e  danças,  liv.  i,  num.  143. 
Tem  a  verdadeira  Fé  de  Christo  feito  n'elles  grande  mudançii  de  costumes, 

hv.  n,  num.  1. 
Que  religião  seguem?  hv.  n,  num.  II. 

Tem  alguns  vestígios  de  Deos,  e  da  outra  vida,  liv.  n,  num.  13. 
Não  cuidão  que  a  outra  vida  he  espiritual,  mas  só  temporal,  lív.  ii,  num.  li. 
Crêem  que  ha  mãos  espíritos,  lív.  ii,  num.  lo. 


DAS  NOTICIAS  DO  nUASlL 

Veneravao  hiima  cruz  como  Deos  da  cliuva,  liv.  ir,  num.  .31. 
Tiverão  alguns  pêra  si,  que  os  Índios  não  eruo  humanos,  e  os  tratavão  co- 
mo brutos,  liv.  II,  num.  4. 
Sua  ignorância  invencível.  Veja-se  Ignorância. 

Se  se  podem  salvar  no  meio  de  sua  mora  gentilidade?  liv.  ii,  num.  41. 
'  (finq  ۇjI  k'j 

L 

)aO)  'jbíJ,íi;»jni(i 
Mudança  das  lingoas  de  que  circunstancias  dependa?  liv.  i,  num.  112. 
Lingoas  dos  Índios.  Veja-se  índios. 
Lingoas  dos  Tapuyas.  Veja-se  Tapuyas. 
Variedade  das  línguas  do  Brasil,  liv.  i,  num.  1 10. 

M 

Mandioca,  liv.  ii,  num.  71. 

Delia  se  faz  farinha  de  três  castas,  liv.  n,  num.  7á. 

De  outros  usos,  e  proveitos,  liv.  ii,  num.  7.3. 

Maracujá,  e  sua  descripção,  liv.  ii,  num.  77  e  78. 

Seu  fruto,  e  propriedades,  liv.  n,  num.  79. 

Marcos  de  Azevedo,  quarto  descobridor  dos  mineraes  das  esmeraldas,  liv. 

I,  num.  00. 
Mineraes  de  pedras,  liv.  i,  num.  52. 
De  esmeraldas,  saphyras,  pedras  verdes,  vermelhas,  e  crystal,   liv.  i, 

num.  53. 
Monstros  marinhos,  hv.  i,  num.  M,  c  liv.  ii,  num.  97.  níA  fíf.f>  «mÍI 

Montanhas  do  Brasil,  liv.  i,  num.  G9.  .    ,^.       .. 

Apparencias  exteriores  delias,  ibidem.  .      .  • 

Sua  frescura,  e  agoas,  liv.  i,  num.  70. 
Seus  anímaes,  liv.  i,  num.  71. 

Arvoredos,  e  mineraes  delias,  liv.  i,  num.  7!á.  ,(>í 

Mundo  novo  distinguc-se  notavelmente  do  mundo  antiguo,  liv.  i,  num.  il 
Seu  descobrimento  pela  parte  quj  foi  chamada  Nova  Hespanha,  liv.  i, 

num.  2. 
Seu  descobrimento  pela  parte  do  Brasil,  liv.  i,  num.  7. 
Se  he  ilha,  ou  terra  firme?  liv.  i,  num.  í)5.  ,« 

Resolução  sobre  este  ponto,  Uv.  i,  num.  90.  > 

N 

Nações  que  habitão  o  Rio  das  Almazonas,  liv.  i,  num.  .30,  e  37. 

iNações  que  habitão  o  Rio  S.  Francisco,  liv.  i,  num.  4i. 

Nações  de  três  Rios  diversos,  liv.  i,  num.  47. 

Nações  monstruosas,  liv.  i.  num.  31.  ,, 

Naíiôes  dos  índios  do  Brasil,  liv.  i,  num.  \òO.  ,>j 

VOL.  I  X 


CLIV  índice 

Reduzem-se  estas  a  dous  géneros,  liv.  i,  num.  iril.  ainí  f)í7irf'wi*í7 

Naíões  dos  Tapuyas  perto  de  cem  espécies,  liv.  i,  num.  io3. 

O 

Opiniões  acerca  dos  primeiros  povoadores  da  America,  liv.  i,  no  num.  85 

por  diante. 
Difliculdade  contra  estas  opiniões,  liv.  i,  num.  94. 

if 

P  ^ 

[ 

Paraíso  terreal  onde  está  situado?  liv.  ii,  num.  103  por  diante. 

Muitos  tem  pêra  si,  que  pêra  a  parle  da  linha  equinocial,  (jue  corresponde 

ao  Brasil,  liv.  n,  num.  104. 
Pedro  Alvares  Cabral  parte  de  Lisboa,  e  avista  terras  do  Brasil,  liv.  i, 

num.  7. 
Lança  ferro  sua  armada  em  Porto  seguro,  liv.  i,  num.  9. 
Põe  nome  á  terra  Santa  Cruz,  ibidem. 
Começa  a  tratar  com  os  índios,  liv.  i,  num.  10. 
Pêro  Fernandes  Sardinha,  primeiro  Bispo  do  Brasil,  liv.  i,  num.  4C. 
Potigoares,  suas  boas  partes,  liv.  i,  num.  157. 

K 

Rio  das  Almazonas,  liv.  i,  num.  22. 

lie  o  Imperador  dos  Rios,  liv.  i,  num.  23.  i 

Seu  comprimento,  liv.*i,  num.  24. 

Sua  largura,  liv.  i,  num.  25. 

Seu  principio,  e  riquezas,  liv.  i,  num.  28. 

Suas  agoas  fertilissimas,  liv.  i,  num.  29. 

Tem  grande  quantidade  de  ilhas,  liv.  i,  num.  20. 

Nações  que  o  habitão,  liv.  i,  num.  30,  e  37. 

Autores  que  delle  ira  tão,  liv.  i,  num.  32. 

Rio  da  Prata,  ou  Paraguay,  liv.  i,  num.  33.        .       ,      ,    ,, , 

Sua  largura,  liv.  i,  num.  35.  '.  mío til  riTíí  iio 

A  nenhum  do  mundo  cede,  excepto  o  Grão-Parj,  IK'.  i,  nom.  30. 

Suas  minas,  e  precipício,  liv,  i,  num.  37. 

Nações  que  o  habitão,  ibidem. 

Rios  principaes  da  costa  do  Brasil  são  cento  e  setenta,  liv.  i,  num.  38. 

Rio  Maranlião,  liv.  i,  num.  39. 

Rio  Grande  dos  Tapuyas,  liv.  i,  num.  40. 

Rio  Jagoaribi,  liv.  i,  lium.  41. 

Rio  Parahiba,  e  Beberibe,  liv.  i,  num.  43. 

Rio  S.  Francisco,  seu  nascimento,  fertilidade,  e  largura,  liv.  ij  mim.  44. 


I 


DAS  NOTICIAS  DO  BRASIL  CfcV 

Naçôos  quo  o  habilao,  iludem.  íd.i   .i  .n..  ii 

Seu  extraordinário  sumidouro,  liv.  i,  num.  4ô.  ■*>{>  í>LhI>í.i\ 

Suas  riquezas,  liv.  i,  num.  4(>. 

Rio  Sergí,  rio  Real,  rio  Itapucurú,  liv.  i,  num.  47. 

Narões  que  os  habitão,  ibidem. 

Rio  de  Santa  Cruz,  liv.  i,  num.  48.  >   •.,  ui    r,i.' 

Rio  Grande,  liv.  i,  num.  49.  di  írolqni  >    í 

Rio  Doce,  liv.  i,  num.  50. 

Descobridores  de  suas  minas,  liv.  i,  num.  51,  54,  «  55. 

Rio  das  Caravelas,  liv.  i,  num.  5(». 

Rio  0"inc3ré,  ibidem.  .....■.,,  tímA 

Rio  Parahiba,  liv.  i,  num.  50.  i   uiim  .n 

Rio  de  Janeiro,  liv.  i,  num.  G().  - 

Rio  S.  Vicente,  liv.  i,  num.  Gl. 

Itio  Cananéa,  ibidem. 

Outro  rio  S.  Francisco,  liv.  i,  num.  0:2. 

Rio  í\os  Patos,  liv.  i,  num.  ^)•^. 

Rio  da  Alagoíi,  c  de  Martim  AlTonso,  liv.  i,  num.  40. 


Sel)astião  Fernandes  lourinho,  descobridor  das  minas  do  Rio  Doce,  liv.  i, 

num.  51. 
Serras  marítimas  da  costa  do  Brasil,  c  seu  principio,  liv.  i,  num.  08. 


Tamoyos,  sen  natural,  liv.  i,  num.  !57. 

Tapuyas  são  inimigos  geraes  de  todas  as  narrM?s,  liv.  i,  num.  149. 

Ktymologia  de  seu  nomo,  liv.  i,  num.  157. 

Seus  costumes,  liv.  i,  num.  1 14. 

Modo  de  suas  caça5,  liv.  i,  num.  145. 

Tobayaras,  suas  boas  partes,  liv.  i,  num.  150. 

S.  Thomé  veio  á  America,  liv.  u,  num.  IH. 

Sinaes  de  S.  Thomé  no  Cabo  Frio,  liv.  ii,  num.  Í0, 

Sinaes  na  Nova  llespanha,  liv.  ii,  mim.  "iU. 

Suas  pegadas  em  S.  Vicente,   Itapoâ,  no  To(|uê  Toque,  liv.  h,  num.  18, 

10,  -ÀO. 
Suas  pegadas  na  Parahiba,  liv.  u,  num.  128. 

De  suas  pegadas  .se  conjertuia  nascer hunia  tolde  milagrosa,  liv.  ii,  lium.ii. 
Caminho  ntilagroso  do  Santo  Ajtosloh,  liv.  u,  num.  ^7. 
prova-se  coni  ra/õcs  di^'  direito  vir  S.  Thomé  ã  Amrrica,   li\.  ir,  do  num. 

I]V  até  o  num.  50. 


CLVI  íVIXJI      INDICK 


Tradição  humana  nâo  se  ha  de  negar,  Uv.  ii,  num.  32. 

Tradição  dos  Índios  acerca  da  vinda  de  S.  Thomé  á  America,  liv.  ii,  num.  82. 


Viagem  de  Cólon  pêra  o  Brasil,  Uv.  i,  num.  4. 
Exemplos  da  vingançs  dos  índios,  liv.  i,  num.  125. 


Zona  tórrida  foi  calumniada  pelos  Pliilosophos,  e  Astrólogos  antíguos,  liv. 

11,  num.  49. 
Houve  muitos  que  a  defenderão,  liv.  ii*  num.  54. 
Boa  temperie  da  Zona  tórrida,  liv.  ií,  num.  61. 


FIM   DAS  NOTICIAS  DO    BRASIL 


íirff 


^t      íriíii) 


.>*♦ 


LIVRO  PRIMEIRO 


'.'!>   r.iíliív.ui' 


CH RO  NICA 

DA  COMPANHIA  DE  JESU 
DO  ESTADO  DO  BRASIL 

PELO    PADRE. 

SIMÃO  DE  VASCONCELLOS 
D  A    .M  E  S  M'A  '■'CT.ilP.A 'N  H,,l  A 

NATURAL  DA  CIDADE  DO  POIITO 

LENTE  QUE  FOI  OA  SAGRADA  THEQLOGlA   E  PROVINCIAL 
NO  DITO  ESTADO 


Contém  a  cleirào,  principio  devida,  viagem,  e  chegada  ao  Bra- 
sil, do  Padre  Manoel  da  Nóbrega :  os  fundamentos  da  conversão  das 
almas,  que  nelle  lançou  p  r  si,  e  por  seus  companheiros,  desde  o  an- 
no  de  1549  alé  ó  de  íb^5;como$  princípios  da  fundar â»  do  Colle- 
gio  da  Bahia,  S.  Vicente,  Casas  do  Espirito  Santo,  Pernambuco, 
Porto- seguro  :  e  os  fins  bem-assombrados  dos  servos  de  Deus  Salvador 
Rodrigues,  Leonardo  Nunes,  Pedro  Corrêa,  João  de  Sousa,  Domin- 
gos Pecorela,  e  João  Aspikuela  Navarro. 

voi..  1  I 


2  LIVHO  1  DA  CIIROMCA  DA  COMPANHIA  DE  JES 

1  Conia  a  era  da  criação  do  mundo  em  G7i8  annos,  segundo  o  com- 
puto mais  verisímil;  e  a  era  da  Redempção  dos  homens  em  13i9;  eachava- 
se  neste  tempo  nossa  Companliia  de  tão  pouca  idade,  que  tinha  somente 
nove  annosj^porfiue  nascera  por  conflrmarão  de  Bulias  Apostólicas  no  an- 
no  de  lo4%  Porém  como  foi  sempre  timbre  das  traças  divinas,  com  meios 
pequenos  empreender  cousas  grandes;  tinha  esta  pequena  Ileli{íião  já  nes- 
ta puericia  de  sua  idade  corrido  quasi  toda  a  circunferência  do  antiguo  mun- 
do (cliamo-lhe  antiguo  por  distincção  do  novo  de  que  logo  diiemos :) acha- 
va-se  nas  partes  principaes  de  Itália,  tinha  jXMietrado  as  Alemanhas,  Alta, 
e  Baixa,  as  Galias,  as  Hespanhas,  Africa,  e  Ásia,  com  muitos  CoUegios, 
Casas,  e  Residências:  humas feitas,  outras  começadas;  e  todas  com  os  feli- 
ces  successos,  de  que  faz  menção  largamente  a  lenda  dos  ditos  nove  annos, 
e  nove  livros  primeiros  das  Chronicas  geraes  de  nossa  Companhia,  escri- 
tas pelo  Padre  Nicolao  Orlandino. 

2  Parara  aqui  neste  mundo  antiguo  oabrazado  zelo  do  nosso  Santo  Pa- 
triarcha  Ignacio  de  Loyola,  è  pararão  tainbem  arpii  as  divinas  traças;  se 
parara  só  nelle  a  matéria  de  conquistar:  havia  porém  outro  mundo  inteiro 
de  almas,  que  havendo  sido  criado  juntamente  com  as  outras  partes  da 
terra,  não  teve  a  dita  das  demais:  porque  as  aguas  inmiensas  do  Oceano 
o  dividirão  do  commercio  dos  homens,  e  o  privarão  do  meio  commum 
da  Fé,  e  salvação  eterna.  O  bojo  do  instituto  da  Companhia  não  se  limita 
a  região,  ou  nação  alguma,  por  mais  remota  e  desacommodada  que  pareça ; 
e  muito  mais  a  esta,  que  por  algumas  congniencias  se  considerava  parti- 
cular empresa  sua,  por  se  começar  a  descobrir  mysteriíjsamente  quasi  no 
mesmo  anno,  em  que  nosso  Santo  Patriarcha  tinha  nasc-ido  ao  mundo:  como 
se  Deos  o  empenhasse  desde  seu  nascimento  pêra  a  conquista  espiritual  d'es- 
ta  vastíssima  região,  que  nascia  por  noticia  juntamente  com  elle:  e  já  tan- 
to antecipadamente  se  lhe  preparasse,  e  assegurasse  o  campo,  onde  sua 
sagrada  Religião  havia  de  combater  e  luctar  com  o  inimigo  infenial,  privan- 
do-o  da  antiga  posse,  em  que  por  tantos  séculos  se  havia  injustamente  in- 
troduzido, e  feito  senlior  absoluto  de  tantos  milhares  de  almas:  logrando 
nesta  parte  divinamente  ambiciosa  a  Companhia,  aquella  dita  por  que  sus- 
pirava Alexandre,  ouvindo  dizer  ao  Philosopho  Anaxágoras,  que  havia  mui- 
tos mundos,  não  sendo  elle  ainda  senhor  de  hum;  e  guardando  Deos  este 
novo  (por  segredos  occultos  de  sua  providencia)  pêra  o  descobrir  neste 
lonqx),  e  dar  nova  matéria  de  conquistar  aos  soldados  daquelle  Capitão, 


DO  ESTADO  DO  BIIASIL  (ANXO  DE    loÍ9)  3 

qiic  soube  trocar  a  milícia  temporal  pela  do  espirito,  com  tão  seguros  acer- 
tos, e  nâo  menos  gloriosas  vlctorias. 

3  Succedeo  pois,  que  no  anno  sobredito  de  1549,  correndo  entre  as 
gentes  as  noticias  mais  claras  do  descobrimento  estranho  d'este  novo  mun- 
do, que  apparecera  entre  o  abysmo  das  aguas,  povoado  de  innumeravel 
gentilidade,  desemparado  de  todo  o  soccorro,  e  alheio  do  conhecimento  da 
Fé ;  despertou  Deos  nosso  Senhor  (como  autor  que  he  da  salvação  dos  ho- 
mens) o  coração  alto  e  generoso  do  venerável  Padre  Simão  Rodrigues  de 
Azevedo,  que  neste  tempo  assistia  em  Portugal,  pêra  que  tratasse  do  bem 
destas  almas.  Communicou  a  cousa  â  Alteza  de  el-Rei  Dom  João  o  III,  que 
então  vivia,  Príncipe  tão  pio,  e  inclinado  a  propagar  a  Fé,  que  se  lhe  ou- 
vira muitas  vozes,  que  desejava  mais  a  conversão  das  almas,  que  a  dilata- 
ção de  seu  império.  E  com  esta  disposição  da  parte  do  Rei,  e  obrigação 
do  nosso  instituto,  foi  fácil  ajustar  os  intentos,  e  concluir,  que  se  expedis- 
se huma  gloriosa  missão  a  partes  tão  necessitadas. 

4  Era  o  Padre  Mestre  Simão,  varão  apostólico  de  altos  espirites,  c 
apostadas  resoluções  pêra  emprezas  do  serviço  de  Deos,  e  do  próximo.  E 
merecia-nos  este  grande  pai  da  Companhia  Portugueza,  que  nesta  historia 
do  Brasil  enxerissemos  huma  comprida  narração  de  suasexcellentes  virtudes, 
e  raras  i)artes :  não  só  por  cabeça  primeira,  e  primeiro  Provincial  da  Com- 
panhia em  Portugal;  mas  também  pelos  grandes  desejos  que  teve,  e  logo 
veremos,  de  vir  empregar  seus  trabalhos  nesta  nossa  empresa  (que  he  ra- 
zão que  entre  os  homens  valhão  tamljem  desejos  por  obras,  pois  valem 
em  os  olhos  de  Deos.)  E  finalmente,  porque  ellc,  e  aquella  sua  Província 
foi  primeira  origem,  e  mmo  mãi  primeira  de  todos  nossos  Missionários,  e 
consegiiintementc.  dos  huctos,  que  com  seus  trabalhos  colherão  nesta  tão 
vasta  vinha  do  Seniior.  Este  tão  devido  reconhecimento  ficará  em  eterna 
memoria  pêra  os  (jue  hoje,  e  pêra  os  que  em  tempos  vindouros,  continuão 
e  coiitiriuarem  as  empresas  daquellcs  primeiros  varões,  que  foram  nossas 
guias.  E  quero  eu  da  minlia  parte,  íi<|ue  estaminado  nestes  escriltos,  este 
como  protesto  meu,  e  de  minha  Província;  e  fico  com  isto  satisfeito,  visto 
como  já  priin(Mro  que  nós,  c  com  jjenna  mais  alta,  tem  dado  á  estampa 
as  obras  heróicas  deste  varão  o  Autor  da  Historia  das  Chronicas  da  Com- 
panhia do  Reino  de  Portugal,  na  parte  primeira,  livro  primeiro,  capitulo 
íiuinlo.  Agora  somente  tocaremos  o  que  parecer  necessário  a  fim  do  inten- 
to que  levamos. 

5  Enlre  todas  as  outras  virtudes,  c  raro  zelo  deste  santo  varão,  só  o 


4  LIVRO  I  DA  CMUOMCA  DA  COMPAMIfA  DE  JESf 

fervor  cohi  que  pêra  si  procurou  a  missão  sobredita,  posto  que  sem  effeito, 
era  bastante  a  mostrar  ao  mundo  quão  bèm  ítprenden  daqnella  fonte  do 
fervor  de  espirito,  Igiiacio  Santo  I^triárclia  nosso,  do  quem  foi  companhei- 
ro por  muitos.annos,  e  dos  primeiros  que  mamaram  o  teite  de  sua  dou- 
trina, em  Paris,  Yeneza,  e  Roma;  até  rjíiP  P^^i' jiiizo  divino  ibi  escolhido 
por  conipanheiro  do  grande  Missionário  do  Oriente  o  Santo  Padre  Francis- 
co Xavier,  e  mandado  peTra  este  intento  a  Portugal.  As  razoes;  pelas  (fiiaes 
foi  forçado  ficar-se  em  Lisboa,  e  não  proseguir  a  missão  da  índia,  banha- 
do èrijijagiimas  por  ver  partir  ú  companheiro  somente  á  ditosa  empresa, 
què  ápõs  sMhò  levaSá  ò  boração;  trata  diffusãmente  o  livro  primeiro  das 
Chronicas  de  Portugal  ](r  citadas.  E  cm  siTmma  forão  os  clamores  do  Rei* 
e  do  povo,  -que  tetldò  áos  dòus  por  At)bstioIò8  etiviaílos  de  Deos  áffueíle 
Reino,  haviam'  qiie  não  estava  em  pradencía  prfVar-se  do  remédio  de  suas 
alnias  presente^,  pelo  futuro  dasalhtaâ:  e  vieram,  a  mais  não  pwler,  depois 
de  consultado  o  Summo  Pontífice,  e  Santo  Ignacio,  em  qnea  contenda  se  par- 
tisse; fosse  embora  o  Padre  Mestre  Xavier  pcra  a  índia,  è  ficasse  o  Padre  Mes- 
tre Simão  em  Portugal.  Pois  agora  ao  nosso  intento:  estas  mesmas  razões 
foram  a  causa  do  môr  empenho,  com  que  pretendeo  a  missão  do  Brasil; 
porque  á  vista  da  primeira  repulsa,  que  tanto  sentio  e  diorou,  lhe  parecia 
ter  niais  direito  nesta  ségtmda  occasião:  môi-mente  que  tinha  já  em  Por- 
tugal varões  de  espirito,  que  poderião  supprir  sua  ausência.  Representava- 
se-llie,  qiie  '  só  esta  miss"So  poderia  fartar  seus  desejos,  e  só  ella  igualar 
aquelia  primeira  do  Oriente.  Põe  toda  a  força  pêra  com  El-Rei,  de  quem 
pendia  toda  esta  contenda;  porque  não  aCabava  comsigo  aquelle  Príncipe 
ver  apartada  de  seu  palácio  a  prudência,  e  experiência  d>ste  varâó,  ique 
era  Mestre  juntamente  do  fitíio,  é  conselheiro  dos  maiores  negócios  dopai. 
A  eífícacia  dá  petição,  e  pratica  com  que  o  Padre  Mestre  Simão  pretendeo 
convencer  ao  ílei,  porqiie  contem  tudo  ó  (jue  referimos;  edeve  ser  a  pró- 
pria, póréi  aqui  ao  pé  ida  letra,  assi  como  a  traz  o 'Padre  Balthasar  Tel- 
les ha  piimeira  parte^  Íi\\  iii,  cap.  2.  de  sua  Chrôriica  de  Poi*tiigal:  «  he 
a  seguinte.       ,  ^   '       ""'  •      :    i 

'^^.o.  «Até  agora  (Senhor)  tendo  recebido  de  vossa  real  mão  muitas  e  mui 
grandes  mercês  pêra  a  ílompanhia  (que  todos  sabemos  reconhecer,  e  ne- 
nhum acabar  de  servir)  não  tenho  pedido  nada  pêra  mim  á  conta  da  gran- 
de vontade  com  que  vos  sirvo,  e  da  que  em  Vossa  Alteza  veja  pêra  me 
fazer  mercês.  Por  onde  agora,  com  toda  a  confiança  vos  quero  pedir  huma 
mercê,  que  segundo  confio  da  graça  diviíia,  será  para  vos  fazer  maiores 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (aN.NO  DE    loi9)  ti 

sorviros,  estando  ausente,  ensinando  os  gentios,  do  íjuc  vos  faro  com 
minlia  presenea,  sendo  mestre  do  Príncipe  meu  seniior.  Bem  salx;  Vossa 
A!teza,  como  de  Roma  vinha  destinado  paia  a  índia  por  companheiro  do 
Padre  M.  Francisco:  o  gosto  de  Vossa  Alteza  me  íez  ficar  eai  Euiopa,  cheio 
de  mil  saudades  da  índia,  e  grandes  invejas  de  meu  bom  companheiío: 
pelo  que  a  Vossa  Alteza,  como  a  Principe  tão  justo,  .perteoce  fazer-me  jus- 
tiçí»,  resíituindo-me  agora  ^  conversão  da  gentillidade,  que  entik)  por  bons 
respeitos  me  tirou.  Já  o  Coilegio  de  CoimI>ra,  que  Vossa  Alteza;  mandou 
fundar  (a  cuja  obra  até  agora  tenho  assistido)  esitá  em  altm^a,  que  sem  çaim 
pôde  ir  avante.  Bem  sei  que-liaverá  muitos,  que_ me  estranl^em  querer  dei- 
xar a  corte  de  Vossa  Alteza  pelas  choupanas  dos  Brasis;  deixar  o  mellior 
Principe,  pelos  peiores  gentios;  e  o  melhor  seetborpeio^.m^^baixQS  ser- 
voã:  mas  talvez  he  licito  deixan  a  Deos  por  i^iior  ds  D^&,í  líjrgaif  o,  Rei 
pelos  vassallos,  deixar  o  senhor  pelos  escravos.  lia  muitos  melhores  do  que 
eu  nesta  vossa  corte,  que  a^m  partes  mais  a\ant<ijadas  possão  acudir  ao 
vosso  real  serviço;  mas  Im  mui  poucos,  que  se  animem  a  deixar  os  Cor- 
tezãos  de  LisJ)oa,  pelos  Aim<jrés  do  Brasil.  Destes  ix>ucoa,  com  vossa  real 
licenea,  quero  eu  ser  o  primetio  no  Bi-asil,  pois  mo  mereci  sei"  o  segundo 
na  índia:  a  Vossa  Alteza  pertence'  por  muitos  titidos  conc«der-me  esta  U- 
ceuçaç  as*  porque  ha  muitos  annos,  quo  correm  por  sua  cogita  estes  gen- 
tios, como  também  porque^  a  peço  em  recompensa  de  serviços^  se  alguns 
tenho  feito  a  Vossa  Alteza ;  a  ouja  real  benignidade,  peitencoí acudir  como 
bom  Senhor  áquelles  servos,  &)mo  bom  Rei  «(laellrs  vassallos,  como  bom 
pastor  áqucHas  alma»,  e  comiii íPririct))e  ^ão  benigno  a  consolação  destij  hu- 
milde servo  seu.»  •  :    ;        ■.  ,    ■  :,  '  :  ,;i/       ,1    1 

7'  Desta  pratica  consta  do  grande  fervor,  cora  íjiie  intontou  a. empresa 
o  Padre  M.  Simão:  e  por  outras  vias  constay  íjue  léii  (5»  (jraade  a  Corça  de 
impedimentos  que  so  opposíTão,  de  dentro,  e  fora  da  Religião,  que  su^h 
posUi  que  o  Rei  já  se  inclinava  a  conwdcr-lhe  a  ida  por  lenq)o  de  Ires  an- 
noSj^nao^  foi  pOssiwI  e(T(.'itiiai%so  esta,  nem  acabar  cfimsigo  aquella  Provín- 
cia privar-Sí'  de  hum  i>ai  tão  amável.  O  que  supposto,  houve  de  ticar  o  Pa- 
dre M.  Simão,  e  escolher  pêra  ai[uella  eiiii>resa  hum  varão  tal,  (jue  pudes- 
se icori-eaponder  ao  gi-and©  MAstruI^Yàiiciseo  Xíivier,'  e  ser  hum  Apost/Mo  da 
America,  como  ellc;  o  era  «la  Ásia.  E  consult;«ido  o  negí)ciO'a)tti  o  meí>mo 
Rei  D.  João,  e  mais  ellicMizmentíí  com  a  Magestade  diviíw,  oatúo.  a;  sorte 
venturosa  sobre  o  Padre  .Manoel  da  Nóbrega  fuwiador^  K  C(imo  este  he  o 
varão,  stigeito  quG-'ha!de  ser  de  toda  esla  piiraoira  parte  do  nossa  Ilisto- 


6  LIVUO  I  DA  CIIHONICA  DA  COMI    ..Mil A  DE  JESU 

ria  com  os  feitos  raros,  e  obras  heróicas,  que  por  si  c  seus  companheiros, 
obrou  no  Estado  do  Brasil ;  he  força  que  já  desde  agora,  antes  que  parta, 
digamos  o  que  he,  pêra  que  d'ahi  vamos  vendo  o  (jue  será  depois  na  em- 
presa. E  advirto  aqui,  que  nas  cousas  particulares  deste  nosso  primeiro 
pai  da  Provincia,  e  seus  companheiros,  seguirei  com  principal  cuidado  huns 
apontamentos,  que  em  meu  poder  tenho,  do  venerável  Padre  Joseph  de 
Anchieta,  escriptos  de  sua  própria  mão,  e  letra :  volume  pecjueno  no  corpo, 
porque  he  só  de  quatro  cadernos;  mas  na  sustancia  grande,  porque  con- 
tém noticias  de  cousas  muito  grandes.  E  por  serem  de  tão  autorisado  va- 
rão, contemporâneo,  amigo,  e  companheiro  seu,  são  dignos  de  todo  o  cre- 
dito, e  da  verdade  que  nesta  matéria  se  pôde  desejar,  e  eu  sempre  pro- 
curarei seguir  em  toda  ella. 

8  Em  o  Padre  Manoel  da  Nóbrega  hia  traçando  a  divina  sabedoria  de 
Deos  nosso  Senhor,  hum  Apostolo  da  immensa  gentillidade  de  hum  novo  mun- 
do, que  por  espaço  de  séculos  tão  dilatados  como  temos  dito,  tivera  enco- 
berto, e  destituído,  por  occultos  juizos,  de  mestres  evangélicos,  que  lhe 
ensinassem  o  caminho  de  sua  salvação.  E  segundo  isto,  não  haverá  que  es- 
pantar, se  toda  a  vida,  e  costumes  deste,  que  assim  foi  eleito  pêra  fim  tão 
alto,  saírem  taes,  quaes  necessita  empresa  tão  grande :  porque  sempre  nas 
traças  divinas  concordão  entre  si  os  princípios,  meios  e  fins.  Os  princípios 
do  Padre  Manoel  da  Nóbrega  foram  os  seguintes.  Nasceo  no  século  de  pais 
nobres  e  virtuosos;  "primeiro  fundamento  dos  bons:  e  como  filho  de  taes 
foi  criado  em  santo  temor,  e  amor  de  Deos.  Chegado  a  idade  sufliciente, 
foi  levado  a  estudar  á  Universidade  de  Coimbra;  deu  mostras  de  bom  en- 
genho, e  habilidade,  e  não  de  menor  índole  pêra  a  virtude.  Perfeiçoado 
já  em  Humanidades,  entrou  em  desejos  de  passar  a  continuar  seus  estudos 
fora  da  pátria.  Partio-se  á  Universidade  de  Salamanca,  e  nesta  fez  tão  bom 
emprego  na  intellígencia  dos  Cânones  (a  que  sempre  foi  inclinado)  que  foi 
havido  conhecidamente  por  hum  dos  mais  avantajados  naquella  profissão. 
Feito  este  progresso,  voltou  a  Portugal,  e  á  sua  própria  Universidade  de 
Coimbra:  aqui  consummou  seus  estudos,  e  se  agraduou  de  Bacharel  for- 
mado em  Cânones,  com  grande  applauso,  e  opinião  de  letras ;  especialmente 
por  voto  de  seu  mestre  o  Doutor  Martim  Aspílcueta  Navarro,  que  o  pre- 
goava pelo  melhor  de  seus  discípulos.  Á  volta  desta  opinião  crescião  as 
esperanças  de  valer  no  serviço  dEl-Reí,  e  de  grandes  despachos,  assi  por 
suas  letras,  como  por  seus  virtuosos  costumes,  e  talentos  naturaes;  e  so- 
bre tudo  pelas  muitas  valias  que  tinha;  porque  seu  pai  era  Desembarga- 


DO  ESTADO  DO  Bll.VSIL  (.VN.NO  Dl-:    loiD)  7 

dor,  c  um  tio  Chanceller  mór,  e  ambos  mui  cabidos  com  a  Pessoa  Real, 
que  d  elles  fazia  grande  estimação,  e  lhes  commettia  negócios  de  muita  qua- 
lidade; por  cujo  respeito  tinha  já  dado  moradia  a  Nóbrega,  e  concedido- 
Ihe  outros  favores  pêra  seus  estudos. 

9  Porém  erão  as  traças  divinas  mui  difíerentes  das  humanas:  a  mui 
diverso  fim  atiravão  humas,  e  outras;  porque  pelo  mesmo  caminho  de  suas 
esperanças,  acharão  meio,  com  que  de  todo  lhe  aborrecesse  o  mundo:, e 
foi  assi.  Vagara  uma  Gollegiatura  na  Universidade :  era  costume  levar-se 
esta  por  opposição :  poz-se  a  ella  o  P.  Nóbrega,  já  então  Sacerdote  de  Mis- 
sa: e  supposto  que,  a  juizo  dos  melhores,  e  de  seu  mestre  o  Doutor  Na- 
varro, fazia  elle  a  seu  oppositor  conhecida  vantagem,  ficou  comtudo  aquel- 
le  victorioso,  e  Nóbrega  regeitado  (que  estes  são  os  juizos  dos  homens.) 
(Jonhec«o  o  soldado  já  destro  a  traça  do  Altissimo,  e  determinou  despicar- 
se  com  o  mundo,  aíFrontal-o,  e  repudial-o,  como  o  mundo  o  fizera  com  elle, 
entrando  em  huma  Religião,  em  que  por  via  de  obediência  lograsse  mais  segu- 
ros seus  lanços.  Escolheo  pêra  isto  a  Companhia  de  Jesu,  que  então  anda- 
va novamente  no  mundo  em  os  olhos  dos  homens  por  seu  instituto  da  sal- 
vação das  almas;  e  nesta  entrou  com  effeito,  no  Collegio  de  Coimbra  no 
anno  do  Senhor  de  1344,  no  tempo  mais  florido  de  sua  idade,  quando  o 
Rei  tinha  nelle  os  olhos,  c  quando  o  mundo  lhe  hia  promettendo  esperan- 
ças grandes. 

iO  Feito  já  Nóbrega  lieligioso  da  Companhia,  não  so  pòdc  facilmente 
explicar  o  zelo  que  começou  a  ferver  em  s(*u  peito  liera  cousas  de  Deos, 
e  do  próximo.  Em  huma  e  outra  cousa  foi  vivo  exemplar,  quando  noviço  de 
noviços,  quando  ajllegial  de  collegiaes:  e  conforme  a  isto  era  o  cona'ito 
que  delle  tinha  a  Religião;  porque  sendo  ainda  mui  moderno,  o  escolherão 
os  Superiores  pêra  pai,  e  pi"otector  do  próximo,  pobres,  viuvas,  orphãos, 
.  presos,  enfermos,  desemparados;  oflicio  dos  de  mais  importância,  e  con- 
fiança, que  tem  a  Companhia:  »'  fi'1-o  elle  de  maneira,  que  ficou  sendo  ver- 
dadeiro uKjIde  a  todos  os  (pie  depois  o  servirão.  Suava,  cansava,  não  dor- 
mia, por  ajudar  a  qualquer  necessitado,  ou  no  espirito,  ou  no  corpo.  K 
esta  era  a  matéria,  em  que  mais  frequentemente  fallava  Goiuibra  e  seus 
c/)nt()rnos,  ainda  depois  de  ausente  elle  muitos  aimos,  no  zelo  ardente  do 
Padre  gago;  que  assi  lhe  chamavam  alguns,  por  ter  alguma  cousa  de  im- 
poflimonto  no  faltar.  Os  succx?ssos  irão  mostrando  o  que  dizemos,  fhivrm 

í  \     Havia  na  comarca  de  Coimbra  hum  homem  valenlissimo,  grande 
salteador  de  caminhos,  e  de  quem  temia  toda  a  terra,  especialmente  os 


8  LIVUO  I  DA  CIinONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

Meirinhos,  t{iié  elle  trazia  amoaçados.  Depois  rte  vários  roubos,  e  assaltos 
foi  preso^  ò  Valente,  e  senteneiade -á  morte.  Aciidio  logo  o  Padre  Nóbrega 
a  íazer  seu  ofíicio,  e  palpando  o  estado  do  homem,  achou  que  estava  de- 
sesperado, e  obstinado  em  ódio  das  Justiças,  e  dos  que  lho  traçarão  a  pri- 
são: não  queria  otívh'  fallár  em  confissão,' t)U  sacramento,  ou  moio  alg«m 
de  salvação.  Que  faria 'o  fervoirDSo  zelador  das  almas?  Buscou  todos  os 
meios,  coírèo  todaá  as  traças  em' successo;  tão  triste ;  apphcou  missas,  ora- 
ções, ' jéjuílS'  ^'  'pratifeõu  huiná'  *e-  mnifeiè  s^zm  lai»  ■  obstinado,  e  nenlioma  cousa 
abrandava  áf/ilelfé 'duro  e«rfioãO:'Qnarí(;lo  desesperado  já  do  negocio,  ins- 
pirado do' keto' do  espirito,  deu  na  traça  seguinte,:  Pedio  atteiição  ao  ho- 
mem, e'Cóm' alta 'Vok,'e^og6l?iòs  no  Gèo,  lhe  disse  assi:  «Irmão  meu,  da- 
qui vos  drgo;  que' mi  tomo  sobre  mim  todos  vossos  peccados;  eu  darei 
conta  dei  lés 'no' Tributial  díAino;  e  cessai  já  com  vossa  obstinação.»  A  esta 
voz,  como  Se 'descera' 'dò  Ceo,  aquietou  logo  o  penitente,  e  iwndo  os  olhos 
no  Padre,  sem^  mái^í  ôtití'a  ^lavra,  lhe  disse:  «Padre  meu,. quero  confes- 
sar-me.»  Fel-di  assim',  assoí^ègtíu,  oUvio  a  sentença  de  suai  morte,  e  suppos- 
to  que  á'leiíura  ^esía  íesUscitavão  4\s  lembranças  de  seus  primeiros  ódios, 
com  só  ètqiiellà  cMsllletííçSo  da' promessa:  do*  Padi^e  forão  rebatidos ;  e  che- 
gou elle  áfpièlie  ultimo,  e '  terrível  snpplicid,banliado  em  lagrimas,  suspi- 
rando^ ao' (íleo  com  mostras  de  com-ersão  íioíaTelj  de  graixle  gloria  de  Deos 
e  de  seu  servo.  E  até  aqui  pode  chegar  o  fino  da  maior  charidade,  tomar 
sobre  siós  peecadòs  alheio^''- (''"••'''' f'-'»!!-'  ,..//,;_,.:,.;     ,; 

lâ  (GoTft  o  inestnòzelo;  {jost(y'que'n?lo^  mm  o  mesmo  ieífóiío,  succèdeo 
o  caso  seguinte,  qiie' lie  espantoso.  Foi"  chamado  o  Phárèl  Nóbrega  pêra 
huma  mulhéí  peccàdiòili',  tfuéi  estava  em '  aní^ias  dá  morte ':  tiníia  gastado  gran- 
de párteí  dá  vida  éftifhiâO' estado,  publica j  e  escandalosamente,  com  hum 
EcclesíáStiéo. 'Chegod  o  PMre,  api>licoH  os  remédios,  que  em  taes  casos 
seu  éfepírítoíhe  di-ltat&'5'e  depois' de  ^^randes  resoluções,  lagrimas,  e  mos- 
tras de  árre]!)endimentd,  veiòá'oúVil^a' de  confissão,  e  absolvel-a;  porém 
com  esta  ctímMinaçmi,  (^ue  Vissíe  oque  fàzia  j^lalli  ^.m  diante;'  porque  se 
agora  achafVa'prof)icià  a' 'misericórdia  de  Deos  í  retrocedendo  em  peccados 
de  tanto  escãftdalo,  acharia  depois 'rigorosa  a  divina  justiça.  Ficou  impres- 
sa na  alma  daquellapecOíadorá  esta' resolução  de  Nóbrega,  prometeo  pre- 
catar4e,  e  foi  mdStrando  dfue  cumpria  a  promessai,  espaço  de  hum  anno, 
vivendo  recolhida,  frequentando  os  sacramentos,  e  pondo  quasi  em  esque- 
cimento o  passftóòdescreditbíj  porém  he  grande  a  força  das  traças  do:  ini- 
migo do  género  humano.  Passarão  os  tempos,  mas  não  passou  a  vigilan- 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (ANNO  DE  4,^)49)  9 

cia  do  pai  da  sensualidade  ;  Ijastoii  o  discurso  daquelles  pêra  fazer  crer 
ao  povo,  que  estava  já  confirmada  a  mercê  de  Deos,  mas  não  bastou  porá 
apagar  naquelie  coração  o  incêndio  antiguo  de  Satanás:  tornou  ao  vomito 
com  o  maior  secreto  qíie  pode,  mas  com  deshonestidade  míaior.  Eis  que 
certo  dia,  estando  Nóbrega  Jjem  descuidado  de  caso  tão  esti'aíilio,  chamão 
á  portaria,  que  vá  com  toda  a  pressa  ajudar  a  morrer  liuma  mulher,  que 
está  em  passamento.  Apressa-se  o  servo  de  Deos,  chega  á  casa,  e  acha  que 
era  a  sua  primeira  convertida;  poi*ém  em  mui  dilíerente  : esjado ;  :poi*que 
achou  aquella  triste  alma  deses^jeradá :  não  quiz  fallar-lhe  a:proposito,  nem 
pôr  nelle  os  olhos,  nem  virar  o  rosto:  e  informando-se  das  pessoasque 
esta  vão  presentes,  ouvia -a  relação  do  desatino '  desastrado  enihqiie.  cléra ; 
porque  disserão,  que  aquella  mulher,  depois  de  lidar  só  coim^igo,  diante 
de  todos  os  que  alU  estavão  rompera  nas  palavras  seguintes;  «H^  veíi'da- 
de  que  por  estai'  eu  amancebada  por  vinte  aunos  com  hum  Ecclesiastico  me 
hei  de  condemnar?»  E  respondia  ella  mesma:  Sim,  repetindo  isto, tr^s  vezes 
coneluio  dizendo:  «Pois  eu  creio  que  Belzebu  ciiou  os  Geos,  e  a  terra,  e 
o  mar  e  as  áreas,  e  a  elle  me  entrego.»  Aqui  licámos  (continuarão  os  rela- 
tores) atónitos-,  e  pasmados;  acodimos-lhe  com,mn  cj/ucilixo,  o^qual  regei- 
tou  cí»m  escandalosas  visagcns:  e  neste  estado  mandámos  cjiamar  a  V.  Re- 
verencia.» Entrou  o  Padre  em  sen  costumado  íervor  dç>  eápiíito;,  e  ^ijipii- 
cou  aqui  tddas  as  traças;  de  que  usara  com  Q, salteador,  por,  ,>cn-.í>e  podia 
tirar  da  mão  de  Satanás  aquella  trishj  alma.  Bradava  ao  Ceo,  multiplicava 
lagrimas,  suspiros,  orações^  a]»i)licava  rehquias,  imagens,  <?,M>rcisnios ;,  po- 
rém todos  estes  remédios  não  bastarão ;, .quí?.  a  peccadoí'^(,morre9-  ^l^fga» 
surda,  o  muda,  e:  deu  a  alma  nas  mãos  de  Síitanátj :  por<|ue^|uiz  Deus,  com 
este  exemplo  msostrâr'  aos  pe(cadí)i'eS',  que  são  tão  verdadeiras  si'us  sorvos 
no  prometer  perdões  da  misíMicurdia,  como  no  ameaçai:  castig(ts  da  justi- 
ça: e  que  i^eocaidos-de  reincidência,  escandaljo^os,  e  ouno  de  ©iStado,  bra- 
dão  ao  Ceo,  e  grange^o  aç/)ut<^s  extraoriUnarios.  E(jí  igual  a  eslimpção.de 
Nóbrega  neslií  s<.^giMido,  que  no  prjnieiío  caso;  pc/ique  naqutillç  viiãí^  (^s 
homottSi  ;que  abria  o  thMSííuro  fia. graça; i«  nes^o,;  que  previa;  jo.^-.i^or  da 
justiça.  E  valiíão  esíies  dons  suceessoSi por  ipiíiíos,  que  dejxo;  i>oi:;,^uie- 
ihíffitesk   '  :       •;  ■■•  .'  \ .,     .;  .  •  -.  • ..,  ,-.,!  .- 

43  Não  cabia  em  hum  só  coilegio,  em  liuma  só  cvladu  Rejv»  tão  gr^iiidc'. 
Sabia  com  licença  dos  ■Su[)eriores  a  desafogar  lííu  nus^irHís  por  diversas  par- 
tes do  Reino,  ainda  dos  de  (I;illiza,  e  Caslella,  á  maneira  de  hqm  Santo 
Ignacio,  e  de  hum  Saôio  Xavier.  Partia  de  CoimJjia  com  hum  bordão  na  mão, 


•10  LIVRO  I  DA  CÍIHOMCA  DA  COMPANHIA  DK  JESU 

e  Breviário  pendurado  do  braço,  sem  mais  outro  viatico,  camiiiiiando  a 
pé :  o  vestido  mais  roto,  e  desprezivel :  discorrendo  por  aquelles  lugares, 
aonde  esperava  mais  fruto,  como  voz  de  Deus,  feito  hum  pregoeiro  do  Evan- 
gelho, pedindo  esmola  de  porta  em  porta,  e  agasalhando-se  nos  hospitaes 
com  os  demais  pobres  de  Christo.  Quando  entrava  nos  lugares,  gastava 
com  a  gente  mais  capaz  o  tempo  da  manha  em  pregações,  praticas,  e  con- 
versões particulares :  e  o  tempo  da  tarde  gastava  em  doutrinar  os  que  erão 
mais  rudes,  com  fruto,  e  eíTeitos  notáveis. 

14  Entrando  na  cidade  da  Guarda  (feita  primeiro  informação,  como 
costumava,  das  cousas  publicas,  e  de  mais  peso  daquelle  povo,  em  que 
houvesse  de  meter  cabedal)  achou  dous  casos  principaes.  O  primeiro  era 
de  huma  triste  peccadora,  a  quem  o  lobo  infernal,  hum  diabo  incubo,  (jiial 
ovelha  perdida,  tinha  tragado,  e  cobrado  tal  dominio  sobre  ella,  que  vivião 
de  portas  a  dentro,  como  marido,  e  mulher,  com  espanto,  e  escândalo  do 
povo,  e  sem  remédio,  havia  muifos  annos.  Aqui  vinha  nascendo  o  espirito 
de  nosso  peregrino ;  então  mais  forte,  quando  havia  mais  que  vencer.  Bus- 
cou occasião  de  sec  ouvido  desta  mulher,  prégou-lhe  tão  altamente  da  fe- 
aldade do  peccâdo,  que  a  peccadora  rendida  veio  logo  lançar-se  a  seus  pés 
e  perguntou-lhe,  se  havia  ainda  remédio  para  salvar-se  ?  E  ouvindo  muito 
da  grandeza  dos  thesouros  da  misericórdia  de  Deos,  banhada  em  lagrimas 
pedio  ao  Padre  tempo  acommodado,  e  começou-lhe  a  contar  do  principio 
toda  a  historia  de  sua  torpe  vida.  «Sendo  eu  moça  (lhe  dizia)  e  mulher 
simples,  veio-me  hum  dia  ao  pensamento  ir  buscar  por  esse  mundo  algum 
escolar,  dos  que  a  gente  ignorante  desta  terra  tem  pêra  si  que  andão  pe- 
las nuvens,  trovoadas,  e  pés  de  vento  grandes,  e  advinhão  os  successos 
futuros ;  pêra  que  me  dissesse  alguma  boa  dita  minha.  Com  este  néscio 
pensamento  sahi  com  effeito  de  minha  casa,  e  fui  por  caminhos  occultos,  e 
nunca  de  mim  antes  intentados,  sem  saber  eu  aonde  me  levava  o  destino. 
Estando  em  hum  destes  caminhos,  fez-se-me  encontradiço  hum  demónio  ves- 
tido em  hábitos  compridos,  como  de  estudante,  e  perguntou-me  aonde  hia? 
Não  queria  eu  descobrir  meu  propósito ;  porém  elle  mo  declarou  dizendo  : 
Tu  não  vens  com  tal,  e  tal  pensamento?  Pois  eu  sou  aquelle  escolar  que 
tu  buscas:  que  queres  que  faça  por  ti?  Vendo-me  descoberta,  lancei  fora 
de  mim  o  medo,  e  pejo,  e  confessei-lhe  a  verdade :  então  accrescentou  el- 
le o  seguinte :  Pois  porque  eu  possa  fazer-te  o  que  desejas,  he  necessário 
que  consintas  comigo  no  que  eu  te  direi.  E  apartando-me  em  hum  lugar 
'^ecreto,  entendi  logo  o  intento  do  espirito  immundo :  e  supposlo  que  ao 


DO  ESTADO  DO  MASIL  (aNNO  DE  d  540)  14 

principio  resisti,  vim  a  consentir  no  que  queria  por  pensamento,  mas  sem 
elTeito,  que  antes  delle  desappareceo  o  escolar,  e  fiquei  eu  frustrada,  mas 
não  arrependida ;  porque  tornando  pêra  minlia  casa,  me  tornou  a  apparecer 
o  demónio,  e  eu  me  entreguei  de  'tal  modo  a  elle,  que  ficou  sendo  como 
marido  meu,  vivendo  comigo  de  portas  a  dentro ;  e  com  tanto  dominio  so- 
bre mim,  que  me  obrigava  a  commeter  os  mais  torpes  e  nefandos  actos, 
que  pôde  inventar  a  natureza  depravada :  e  o  que  mais  he,  que  me  levava 
por  varias  partes  de  Portugal,  por  terras,  e  mares,  a  enganar  os  homens, 
induzindo-os,  e  constrangendo-os  eu  em  virtude  sua,  com  acções  deshones- 
tas,  a  commetter  torpezas  abomináveis.  Nesta  forma  me  trouxe  por  mui- 
tos annos ;  e  outros  tantos  ha  que  me  tornou  a  minha  casa,  onde  não  de- 
sistio,  mas  faz  que  acommetta  torpemente  os  mais  honestos,  e  virtuosos 
do  lugar ;  e  me  obriga  pêra  todos  estes  eíTeitos  como  besta  á  força  de  pan- 
cadas. N 

lo  Ouvindo  estas  cousas,  cada  vez  hia  entrando  em  mais  espirito  o 
nosso  peregrino ;  que  pêra  casos  semelhantes  tinha  mão  singular.  Animou 
a  pobre  peccadora,  declarou-lhe  a  eíficacia  do  Sangue  de  Christo,  que  a 
tudo  abrange,  e  ensinou-lhe  o  como  era  necessário  resistir  fortemente  aos 
enganos  do  diabo,  e  aparelhar-se  com  grande  dòr,  e  arrependimento  a 
huma  perfeita  confissão.  Aqui  foi  cousa  digna  de  espanto ;  porque  no  pon- 
to em  que  esta  mulher  se  resolveo  a  confessar-se,  nesse  mesmo  perdeo  o 
demónio  a  liberdade  com  que  a  possuía;  nem  já  a  mandava,  nem  chega- 
va a  ella,  nem  a  espancava ;  mas  somente  de  longe  lhe  fazia  ameaças,  que 
não  se  confessasse ;  com  tanta  eíTicacia,  que  até  estando  a  peccadora  pros- 
trada aos  pés  do  confessor,  era  assai teada  com  assombros  terríveis,  e  im- 
pressões cruéis,  tã(j  forç^jsas,  que  tremia,  suava,  e  se  apegava  por  vezes 
ao  Padre.  Porém,  oh  virtude  divina  f  o  mesmo  foi  acabar-se  o  sacramen- 
to, e  ser  absolta  de  seus  peccados  aquella  peccadora,  que  desapparecer  de 
improviso  o  infernal  espirito,  deixando  livre  a  morada  ao  Senhor,  que  a 
tinha  criado,  e  ao  servo  de  Deos  matéria  de  consolação ;  porque  na  obra 
em  que  Christo  Redemptor  nosso  çiais  suara  por  lançar  fora  hum  demónio 
encasado :  Erat  Jesus  ejiciens  dwmo  nium  ;  se  via  elle  favorecido  do  mesmo 
Senhor  com  tão  pouco  cabedal  de  trabalho,  e  suor  seu. 

16  O  segundo  caso  foi,  de  hum  homem  Ecclesiastico  dos  mais  nobres 
da  terra,  que  vivia,  íx)m  escândalo  grande  de  todo  aquelle  povo,  havia  mui- 
tos annos,  em  occasião  de  peccado  do  portas  a  dentro ;  e  tão  obstinado, 
íjue  nem  inspirações  do  Ceo,  nem  advertências  de  amigos,  nem  temor  do 


12  LIVRO  1  DA  CimONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESC 

inferno,  nem  censuras  de  Prelados,  nem  amearas  do  Rei,  forâo  bastantes 
a  refreado.  Avisado  de  todas  estas  ( ircimstancias,  rpe  faria  o  pobre  pere- 
grino? Com  que  authoridade  coml)ateria  hum  coração  igualmente  senhor  do 
lugar,  que  do  vicio?  Era  grande  o  animo  de  Nóbrega:  vai  visitar  huma  e 
outra  vez  o  nobre  Ecclesiastico,  como  acolhcndo-se  a  seu  amparo  em  ter- 
ra estranha:  serve-o,  acompanha-o,  chega  a  fazer-se  amigo  seu  familiar  (por- 
que na  boa  conformidade  das  vontades  assenta  melhor  a  persuação  dos 
entendimentos.)  Assi  succedeo  no  nossoi  cáásô;  pèrqne  em  sentindo  o 
destro  zelador  aíTeiçoada  aquella  A-ontade,  começon  logo  a  comhatel-a,  no 
principio  com  suavidade,  propondo-lhe  diante  dos  olhos  o  perigo  em  que 
vivia  •  á  vileza  do'  estado  em  que  esta^-â,  a  infâmia  de  huma  pessoa  tSo  Ijera 
nascida^  o  escândalo  de  todo  aqirelle  povo,  e  O' que  he'  mais,'0  risco  de 
sua  perdiçfiO  eterna.  Estava  porém  aquelle  coração  hum'  duro  bronze:  ouvia 
somente  por  respeito,  mas  não  o  penetravão  as  vozes  (que  ainda ns  do 
projpfrio  Deos  não  são  bastantes,  quando  não  quer  o  homem,  qiie  he-  se- 
nhor de  seu  alvedrio.)  Não  desiste  o- hospedo;  e  donw  temi  o.  ouvido  por 
si,  applica  razões  mais  elTicazes,  da  morte,  do  inferno,  de  castigos  aspér- 
rimos em  casos  semelhantes :  qiie^  a' tudo  dava  lugar -a  capa  de  boa  ami- 
zade: porém  á  vista  do  vinculo"  niais  forte  de  torpeza  tão  emielhecidaj  não 
tinha  forra  o  do  amizade  tão  moderna:  resolveo-se  o  bom  Eccleaia&ticOí, 
em  queioPadíe  lhe  não  fallassé  mais  na  "matéria,  sob  pena  de  lhe  tirar  a 
vida;  sem  respeito  a  amizade,  sacerdócio,  ou  rehgião.  Porém  com  tudo 
estas  mesmas  ameaças  forão  a  cawsa  da  conversão  deste  peccador;  por- 
que:  iVtista '  delias  cobrou  novas  forças  o  ^  zé-lo  de  Nobl'eg»r  (foe  i^enliunfâ 
fóusa- mais  desejava,  que  dará  vida  por  defensãoda  Castidade.  Insta  op- 
pòrttino,)  e  importuno,  qual  outro  S.  Paula,  com  maior  for-ça;-  entra  na  ca- 
sa, já:  prohibida,e  busca-o  lia  rua,  na  igreja, '  de  dia^  e  de  ríòite,  e  mos- 
tra-lhe^èoira  este  grande  ahimd  aUmportaiicia  do-  negocio,  qiiéemprende, 
e  qiianio  a  eHe  lhe  ímiwrte  resolução,  pela  qual  hum  homem  estranho  che- 
ga arriscar  a  propria-  vida.  Aqui  começa  a  eiitrar  em  si  o  combatido  lier- 
culosi-b  Cítffleí^*  í  consMerar  comsigó^isó-asirazSeg  seguintes,  dizendo  as- 
si: «Terrível  conflito,  que  ou  hei  de  malar  esto  Religiosa,  ou  hei  de  míh 
tar  meu  appetite!  A  grave  termo  hei  chegado!'  Se  mato  este  Religioso, 
mato  também  coin  elle  meu  appetite  ;'iM)rqiie  não  será  possi\^l;  ^aííando 
hum  tal  homem,  que  fique  viva  dentro  de  minha  casa  a  occasião  que  sus- 
tento :  será  força  fugir,  e  deixãl-a.  Pois  se  por  fim  hei  de  vir  a  deixar  meu 
appetite,  para  que  quero  matar  este  Religioso  ?  Morra,  pois  antes  meu  ap- 


I 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (aNXO  DE   lo49)  {^ 

petite,  c  com  esta  morte  viva  minha  alma,  viva  minha  lionra,  viva  meu 
credito j  e  viva  o  zelo  de  quem  também  me  soube  converter.»  Rendeo-se 
com  elTeito  á  forra  de  combates  este  grande  Hi^rcules  da  sensualidade,  en- 
trcígoiHse  rendido  a  seu  competidor,  lançou  de  Cíisa  a  occasião  de  seus 
males,  e  dallt  em  diante  Uá  exemplar <le  honestidade,  hum  raro  espelho  de 
virtude,  agradecido  sempre  ao  Padre  Nóbrega,  e  \mw  seu  resj^ito  a  toda  a 
Companhia. 

17  :i  Na  peregrinação  Que  fez  a  Gastellai!  ilie  aconteceo  outro  caso,  que 
por  semelhante  quero  meter  aqui.  Caminhando  pêra  Salamanca,  encontrou 
no  caminho  um  senhor  titular,  que  elle  conhecia  do  tempo  que  estudou 
naquella  Universidade.  Andava  este  á  montaria  oom  copia  de  criados,  e 
succedeo  estar  áquella  hora  jantando  jimto  a  huns  casaes :  tinlia  cooíisigo 
á  mesa  huma  moça,  com  «juiím  tinha  mao  trato  havia  muitos  annos,  e  com 
a  qual  tratava  actualmelito  i)raticas  deshonestas,  sem  i^ejo  dos  criados,  e 
com  menos  caboíde  seu  sangue  illustre.  Tinha  já  uotida  de  ifiOgQ  o  Padre 
Nóbrega  desta  infâmia;  c  vendo  agora  diante  de  seus  olhos  aquelle  ix>uco 
pejo  c  temor  de  i)eos,  entrou  em  zelo,  chegou-se  á  mesa,  e  começou  a 
reprehenderseu  atrevimento,  fallando-lhe  por  Vós,  aCfeando-lhe  as  Gii'cums- 
tancias  delle,  de  sua  nobreza,  de  seu  perigo^  e  do  escândalo  que  dava  aos 
que  o  servião,  com  tal  espiíito,  que  ficarão  todos  pasmados;  eesperavão 
os  criados  que  lho  mandasse  lançar  dalli,  ainda  ás  pancadas.  Porém  o  Con- 
de, lançando  a  cousa  a  graça,  lhe  foz  esta  pergunta :  dleniiano,  sois  de  los 
Alumbrados?  quereis  limosna?»  Respondeo  o  Padre  :  «.Pecunia  tua  lecim  fU 
inperditionem:  Sois  hum  [iordido,  pois  tão  ^ierdidamente  offendeis  a  Deos: 
olhai  não  se  cumpra  erá  vós  aqui  lio  da  Ksmttura  sagrada:  Vidi  impium 
superexattatunit  etc:  e  quo  daqui  a  breves  dias  vá  des  parar  em  o  nada  da 
morte,  e  penas  do  infeiiio.»  VUam  a)mo  as5K>mbrado  o.íJloiide:nem  já  co- 
mia, nem  ria,  Ddni  fa liava.  Foi  necessário  tomar  a  mão  un*  cíjacorreiro 
seu,  dizendo  ao  Padn):  «Hermano,  si  qu^^rcis  liniosna,  tomadla,  y  quando 
no,  id  en  f)ra  buena,  y  dexad  comer  a  Su  Seiíoria.»  iMas  contra  esto  con- 
verte© Nolwega  seu  Zelo  severamente,,  chamando-llMí  por  Tu,  estranhando- 
Ihe  as  chaa)rrices,  com  que  esluva  concorrendo  em  acto  de  tão  grande  es- 
cândalo. O  fim  dfsta  comedia  es[)orava  o  servo  de  Deos  que  desparasse 
em  i»ancadas,  dadas  por  seu  alievimento  ;  e  nenhuma  outra  cx>usa  mais 
desejava:  porém  foi  mui  dilTerenU; ;  jKirque  as  duas  íiguras  principaes  li- 
cárão  convertidas.  O  chacoireiro  lançou-s(}  logo  aos  pés  do  Padre,  protes- 
tando emenda :   o  Conde  callou  união,  e  fez  depois ;  i)orquc  lançou  de 


14  LIVRO  I  DA  CHRONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

si  a  occasiâo,  viveo  exemplarmente,  agradecido  sempre  a  Nóbrega,  por  cu- 
ja devaçâo  fundou  hum  collegio  â  Companhia  dentro  de  suas  terras. 

18  Discorreo  depois  por  varias  villas,  e  lugares  de  Portugal :  e  como 
o  modo  era  em  todas  semelhante,  direi  somente  algumas  cousas  em  pro- 
va de  seu  grande  espirito.  Era  estremado  seu  desejo  de  padecer ;  folgava 
que  tudo  lhe  faltasse,  que  todos  o  maltratassem,  e  tivessem  em  pouco, 
por  serviço  de  Deos,  e  das  almas :  e  o  contrario  disto  sentia  tanto,  como 
outros  podem  sentir  a  falta  de  honra,  e  regalos.  Teve  noticia  hum  fidalgo 
illustre,  Dom  Duarte  de  Castel-branco  (então  Alcaide  mór  da  villa  de  Sa- 
bugal, e  depois  Conde  delia)  que  vinha  o  Padre  peregrinando  a  pé,  e  qua- 
si  sem  çapatos,  gastados  do  largo  caminho ;  e  que  entrava  pela  villa  pe- 
dindo esmola  pelas  portas,  e  tratava  de  se  agasalhar  no  hospital.  Conhe- 
cia elle  o  sugeito,  e  compadecido  de  seu  máo  trato,  determinou  com  todo 
o  empenho  hospedal-o  em  casa,  e  mesa :  porém  debalde,  porque  resistio 
á  cortesia  do  fidalgo,  como  resistira  á  maior  tentação  do  diabo.  Crescia 
o  empenho  naquelle  senhor,  e  mandou  pôr  vigias  ás  portas  da  Igreja,  on- 
de havia  de  pregar,  para  que  dalli  o  trouxessem  a  jantar  a  sua  casa :  mas 
não  menos  crescia  a  resolução  do  obreiro  apostólico,  que  tinha  achado 
traça,  com  que  depois  da  precação  não  era  achado  dos  criados,  indo-se 
embrenhar  em  um  matto,  onde  escondido  escapava  dacjuella  como  afronta, 
e  perseguição.  Mas  a  graça  foi,  que  reforçou  a  charidade  do  fidalgo  as  tra- 
ças, e  poz  taes  vigias,  que  houve  de  ser  descoberto  seu  jazigo,  e  elle  acha- 
do no  meio  de  umas  sylvas,  mais  contente  entre  as  espinhas,  que  outros 
entre  panos  de  armar  do  palácio.  Achado  assi  com  o  furto  na  mão,  foi 
força  de  cortesia  (que  elle  também  sabia  usar)  acudir  ao  chamado  do  ami- 
go ;  chegou  a  casa,  agradeceo-lhe  os  termos  de  sua  muita  caridade,  mas 
significou-lhe  altamente  a  pena,  que  nesta  mesma  cortesia  lhe  dava,  e  o 
quanto  importava  a  seu  intento  ser  visto  viver  como  pobre,  e  não  entre 
mimos,  e  regalos.  Vierão  por  fim  neste  concerto ;  que  o  Padre  se  agasa- 
lhasse embora  no  hospital,  mas  que  nelle  receberia  por  esmola  o  sustento 
da  casa  do  fidalgo :  que  deste  modo  sabem  contender  os  varões  santos 
contra  os  mimos,  e  regalos  da  carne ;  e  com  semelhantes  exemplos  conven- 
cem as  almas  no  desprezo  do  mundo. 

19  Se  neste  lugar  recebeo  o  amigo  a  nosso  peregrino,  tanto  contra  von- 
tade ;  outros  houve,  que  o  receberão  muito  conforme  ao  que  desejava. 
Chegara  hum  dia  de  guarda  junto  a  hum  lugar,  onde  vio  que  estavão  huns 
homens  jogando  a  bóia,  c  ouvio  juntamente  pouca  decência  em  suas  pala- 


DO  ESTADO  DO  DIUSIL  (ANNO  DE   1549)  13 

vras  (como  costuma  gente  de  pouca  conta,  larga  na  vida)  cliegou-se  a  el- 
les,  começou  a  fallar-llies  de  Deos,  e  pretendeo  convertel-os  a  raellior 
compostura :  porém  os  homens  (quaes  se  ouvirão  hum  aggravo  grande)  en- 
cherão-no  de  injurias  enormes,  e  graves  afrontas,  e  faltou  pouco  que  não 
viessem  a  pancadas,  zombando  delle,  e  dando-lhe  vaia,  dizião :  «Este  he 
aquelle  estudantão,  que  o  outro  dia  furtou  a  mulher  casada ;  prendamol-o 
e  levemol-o  ao  Corregedor.»  Então  se  accendia  mais  o  servo  d^Deos  no 
desejo  de  ser  affrontado :  porém  elles  deix>is  de  satisfeitos  o  deixarão 
por  louco.  N  outro  lugar  chegarão  a  prendel-o  por  intentar  hum  serviço  de 
Deos.  Outros  lhe  negarão  a  esmola,  morrendo  de  fome  dias  inteiros: 
sempre  com  tudo  aquelle  seu  espirito  estava  forte,  e  apostado  a  trabalhar 
por  bem  das  almas. 

20  Porei  aqui  hmii  castigo  horrendo,  que  o  Geo  deu  a  certo  homem, 
por  desprezar  este  servo  seu,  e  o  mesmo  Deos,  blasfemando.  Hia  entran- 
do na  Igreja  de  hum  d'estes  lugares,  e  achou  que  se  fazia  nella  uma  folia 
descomposta,  que  com  musicas  mal  soantes,  e  bailes  deshonestos,  profa- 
navão  o  lugar  sagrado.  Reprehendeo  o  atrevimento  como  era  razão :  po- 
rém os  dançantes,  sentidos  de  se  lhe  interromper  a  festa,  perderão  o  res- 
peito ao  Prégad(jr,  com  acções  descompostas,  e  impacientes :  e  acrescen- 
tando maldade  a  maldade,  chegou  hum  delles  ao  desprezo  do  mesmo  Deos, 
soltando  palavras  blasfemas,  tão  horrendas,  que  ficou  pasmado  o  servo  do  Se- 
nhor. Poz-se  de  joelhos,  pedindo  a  Deos  não  ouvisse  tão  grandes  desatinos.  Se 
não  que,  acabada  a  folia,  c  posto  a  cavallo  o  blasfemo  para  ir  jantar  a  ca- 
sa, armou-se  o  Geo  contra  elle  com  tão  desusados  sinaes  de  tempestades, 
raios,  trovões,  e  com  tão  grande  perturbação  dos  elementos,  que  todos  en- 
tenderão ser  castigo  do  Alto :  e  com  mais  fundamento,  quando  virão  cair 
das  nuvens  hum  raio  com  l)ramido  horrível,  e  acommetter  o  triste  delin- 
quente, que  á  vista  do  mundo,  do  Geo,  e  dos  Anjos,  íicou  abrasado,  c 
c/jnvertldo  em  jx),  e  em  cinza :  castigo  horrendo,  mas  l)em  merecido  por 
tão  insolente  desacato.  Ficarão  atónitos  os  da  ftjlía,  e  á  vista  desta  festa 
do  Geo  tão  differentc,  temião  e  tremião ;  e  cobráião  alto  ajnceito  do  Pre- 
gador, e  da  razão,  com  í|ue  os  reprohendia.  Passarão .  palavra  de  lugar 
em  lugar,  e  reverenciavão  seus  ditos  dalli  em  diante,  como  de  hum  pro- 
])heta  de  Deos,  e  de  hum  Elias  vingadoí'.  Villa  houve,  que  com  hum  só  bra- 
do, que  levantou  este  servo  do  Senhor  no  meio  de  huma  praça,  contra  os 
peccadores  sem  mais  cabedal,  fir^)u  ref(jrmada,  temendo,  e  tremendo. 

'ii    Não  erão  só  os  homens,  lambem  os  demónios  tinhão  respeito  ao 


16  LIVUO  I  DA  CUnONICA  DA  CO^rPA^H^A  DÊ  JESU 

Padre  Nóbrega.  Vivia  por  estes  lugares  huma  mullier,  conhecida  de  to- 
dos pôr  atormentada  do  diabo,  o  qual  se  tinha  apoderado  delia  com  tão 
grande  familiaridade,  (fue  lhe  entrava  no  corpo  cada  vez  que  ípieria,  falla- 
A^-lhe  á  orelha,  e  dizia-lhe  cousas  admiráveis,  com  que  espantava  o  povo. 
Á  fama'  da  pregação  de  Nóbrega  começou  a  respirar  esta  mulher,  buscou-o, 
lanço«-se  a  seus  pés,  pedio  remédio  para  poder  afugentar  de  si  diabo  tão 
apoderád#.  Entrando  o  seiTO  de  Deos  em  zelo  de  espirito  contra  o  mali- 
gno, disse-lhe  só-  estas  palavras:  «Irmã,  (juando  o  diabo  tomar  a  ter  com- 
vosco,  dizel*lhe  que  vá  folliar  comigo,  e  deixai-o  vir,  que  eu  me  haverei  cá 
com  elle. »  CoUsa  estranha!  foi  tão  eíTicaz  só  este  remédio,  que  escolheo 
antes  acpielle  antiguo  possuidor  largar  a  posse  do  que  tinha  ganhado,  que 
ir  ouvir  as  palavras  de  Nóbrega,  que  o  ameaçava:  desappareceo  logo,  licou 
a  miilhér  com  victoria,  e  Nóbrega  com  a  fama,  que  afugentava  oídemonio 
só  com  siía  palavra. 

22  Na  peregrinação  que  fez  a  GaMiza,  teve  occâsião  de  padecer  muito, 
especiahnénte  de  fome,  por  ser  mui  pobre  aquella  terra.  Costumava  o  Pa- 
dre Nóbrega,  estancio  já  em  o  Brasil,  contar  aos  companheiros,  como  por 
graça,  ^c«8o  seguinte,  que  lhe  aconteceo  na  cidade  de  S.  TiagO;  E  foi  (di- 
zia elle:)  rf  Depois  de  pregar  certo  dia  de  guarda,  sahi  eu,  e  o  Irmão  meu 
companheiro  a  pedir  esmola  pelas  portas;  e  tendo  corrido  varias  ruas,  sem 
proveito  algum,  chegámos  a  huma  praça,  onde  vimos  hum  ajuntamento  de 
mulheres  Gallegas,  com  grande  risada,  e  galhofa;  e  querendo  o  Irmão  meu 
companheiro  pedir-lhe  esmola,  vio  que  estavão  todas  ouvindo  a  huma,  que 
feita  pregadora  arremedava,  como  por' zombaria,  o  sermão  que  eu  tinha 
pregado.  Teve  vergonha  de  chegar  o  Irmão,  e  ficou  sem  esmola ;  e  a  que 
eu  tinha  tirado,  não  chegava  a  quatro  ceitis:  pelo  qUe  todo  aquelle  dia  pas- 
sámos sem  comer.  Porém  acudio  Deos  na  maior  necessidade;  por  que  che- 
gando á  tíoite,  e  recolhendo-nos  aohosi>ital,  fomos  dar  acaso  em  hum  apo- 
sento' delle,  onde  achámos  quantidade  de  pobres  pedintes  -peregritlos,  com 
muitas  viandas,  e  cabaças  de  vinho,  comendo,  e  bebendo  alegremente;  e 
tinhão  grandes  contendas  entre  si:  no  ponto  em  que  nos  virão,  parecendo- 
Ihes  seriaftios  também  de  sua  relê,  chamarão  por  nós,  dizendo:  «Irmãos, 
sentai-vos,  e  èomei,  e  sereis  nossos  juizes,  porque  estamos  em  grande  dis- 
puta, sobre  tiiial  denóssabe  melhor  pedirpara  tirar  muito  dinheiro.  «Eu (dizia  o 
Padre)  como  estava  morto  de  fome,  aceitei  de  boa  vontade  o  oíferecimento,  como 
esmola  da  mão  de  Deos,  e  comecei  a  comer,  e  meu  companheiro.  Em  quanto  o 
faziamos,  contava  cada  qual  delles  o  modo  que  tinha  pêra  enganar.  E  por 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (A.N.NU  DE    1549)  17 

derradeiro  disse  iium:  «Vós  outros  não  sabeis  pedir:  olhai,  eu  tenho  esta 
traça :  nunca  peço  esmola ;  mas  chegando  a  huma  porta,  dou  ahi  hum  gran- 
de suspiro,  dizendo:  Bemdita  seja  a  Madre  de  Deos,  ou,  Bemdito  seja  tal 
Santo:  os  de  casa  tanto  que  ouvem  este  meu  sentido  suspiro,  acodem  lo- 
go a  saber  o  que  tenho :  então  eu  com  huma  voz  quebrada,  e  fraca  quanto 
posso,  começo  assi :  Senhores,  grandes  são  as  mercês,  que  N.  Senhor 
me  tem  feito.  Sabei  que  eu  estava  cativo  em  Turquia,  e  o  perro  do  Turco 
meu  amo  me  dava  muito  mcá  vida,  com  ásperos  açoutes,  pêra  que  arrene- 
gasse de  Christo:  ás  minhas  mãos  has  de  morrer  (dizia)  se  não  arrenega- 
res. E  eu  respondia,  oh  perro  não  hei  de  arrenegar  da  Fé  de  meu  Senhor; 
porque  Nossa  Senhora,  ou  S.  Tiago,  ou  outro  Santo,  conforme  o  lugar  em 
que  me  acho,  me  ha  de  livrar.  E  com  effeito,  irmãos,  assi  o  fez  com  este 
peccador,  que  aqui  vedes:  porque  estando  eu  huma  noite  mui  attribulado, 
carregado  de  ferros  em  huma  masmorra  escura,  encommendando-me  á  Se- 
nhora, ou  a  tal  Santo  (bemdita  seja  a  magestade  de  Deos)  achei-me  ao  ou- 
tro dia  ao  romper  da  alva,  em  terra  de  Christãos,  e  por  dar-lhe  as  graças 
de  tão  grande  mercê,  venho  agora  em  romaria  á  sua  santa  casa.»  Contada 
esta  historia,  concluío  dizendo:  «Com  esta  traça  todos  me  dão  grandes  es- 
molas:» e  disse  pêra  mim:  «Que  vos  parece  irmão?  não  tenho  ganhado  a 
aposta?»  Eu  que  até  então  tinha  soccorrido  minlia  necessidade,  e  de  meu 
companheiro,  com  zelo  da  honra  de  Deos ,  dei  a  sentença  na  forma  seguin- 
te. «Sois  huns  ladrões,  inimigos  de  Deos;  andais  roubando  as  esmolas  dos 
pobres,  e  enganando  o  povo  Christão;  e  mereceis  ser  todos  enforcados: 
hei-vos  de  accusar  á  Justiça.  Ficarão  pasmados  os  pobres;  porque  cuida- 
vão  que  tinhão  em  mim  hum  dos  seus :  huns  após  outros  se  forão  acolhen- 
do fora  do  hospital;  e  onde  quer  que  me  encontrava'  algum  delles,  fugia 
por  outra  rua,  temendo  e  tremendo.» 

23  N'outra  occasião,  chegara  Nóbrega  cansado,  e  faminto  a  certa  povoa- 
ção, e  vendo  gente  em  huma  Igreja,  não  pode  acabar  comsigo  descansar;  foi- 
se  a  ella,  subio  ao  púlpito,  e  como  vinha  com  poucas  forças  do  caminho, 
e  era  algum  tanto  impedido  da  Miigoa,  em  começando  a  pregar,  cí)mo  não 
era  conhecida  a  pessoa,  íizerão  pouco  caso,  e  todo  o  auditório  se  acolheo 
hum  após  outro.  Não  desanimou  o  servo  df)  Senhor,  descfo  do  púlpito,  e 
pedio  encarecidamente  ao  ParotJio,que  rogasse  ao  povo,  que  á  tarde  o  vies- 
se a  ouvir.  Fel-o  o  Parodio  com  modo  desprezível,  dizendo  assi:  «Quem 
quizer  pôde  vir  á  tarde  ouvir  aquelle  Clérigo  gago.»  Veio  o  povo,  mais  pelo 
ditto  de  seu  Vigário,  qnp  poi-  es[>erança  do  fruto.  Porém  o  gago  de  i;d 
vor..  I  "i 


18  LlVnO  I  DA  CimO.MC.V  da  companhia  de  JESl' 

maneira  se  explicou,  e  se  ascendeo  em  espirito,  que  deixou  abrasados  no 
fogo  do  amor  de  Deos  os  ouvintes,  com  tal  excesso,  que  pedião  instante- 
mente que  licasse  alli  aquelle  pregador,  pêra  remédio  de  sua  salvação:  que 
assi  íroca  Deos  corações,  e  assi  salje  concorrer  com  seus  servos.  Fora 
cousa  comprida  querer  relatar  por  menor  todos  os  casos  das  missões,  e 
peregrinações  d"este  servo  do  Senhor;  quantos  nellas  soube  alumiar,  quan- 
tos reduzir,  quantos  tirar  de  máo  estado,  e  trazer  ao  caminho  da  vida. 

24  Este  he  o  varão  que  escollieo  em  seu  lugar  o  Padre  Mestre  Simão 
Rodrigues  pêra  a  empresa  do  Brasil.  Bem  dava  mostras,  que  o  zelo,  que 
tão  bem  affinára  nos  povos  pequenos  de  Portugal,  com  maior  força  refina- 
ria entre  a  immensidade  de  bárbaros  de  hum  novo  mundo.  A  fama  de  seu 
grande  espirito  foi  a  causa  de  ser  pedido  em  particular  com  grandes  ve- 
ras, assi  da  Alteza  dEI-Rei  D.  João,  coi^io  também  de  seu  Governador, 
o  primeiro  que  vinlia  a  estas  partes.  Pelo  que  foi  força  ser  mandado  cha- 
mar pelos  Superiores  ás  peregrinações  acima  referidas,  Obedeceo  o  servo 
de  Deos,  veio  logo  a  pé  a  Lisboa,  aceitou  a  missão,  como  mercê  da  mão 
do  Altíssimo,  a  quem,  e  a  todas  as  almas  daquelle  novo  mundo,  desde  logo 
se  dedicou,  e  protestou  servir  até  a  ultima  boqueada.  Derão-lhe  mais  os 
Superiores  cinco  companheiros,  varões  de  provada  virtude,  e  desejosos 
de  empregar  seus  trabalhos,  e  dar  a  vida,  se  necessário  fosse,  por  bem  das 
mesmas  almas.  Erão  seus  nomes  os  seguintes:  o  Padre  Leonardo  Nunes, 
o  P.  João  de  Aspilcueta  Navarro,  o  P.  António  Pires;  e  dous  Irmãos,  Vi- 
cente Rodrigues,  e  Diogo  Jacome.  Não  foi  possível,  por  mais  pressa  que  se 
dera  o  P.  Nóbrega,  chegar  a  Lisboa  a  tempo  em  que  pudesse  embarcar-se 
com  o  Governador,  que  por  elle  esperava;  e  como  nem  elle,  nem  El-Rei, 
quisessem  aceitar  outro,  pelo  conceito  de  sua  virtude,  e  letras;  supposto  que 
partio  com  a  frota,  e  mais  Religiosos  companheiros,  deixou  coratudo  espe- 
rando por  elle  uma  fermosa  não  de  António  Cardoso  de  Barros,  que  tam- 
bém vinha  por  primeiro  Provedor  do  Brasil :  na  qual  se  embarcou,  e  veio 
a  alcançar  a  frota  a  poucas  sangraduras;  onde  foi  recebido  do  Governador 
em  sua  náo,  com  mostras  de  grande  alegria. 

2o  Era  este  primeiro  Governador  Thomé  de  Sousa,  fidalgo  de  gran- 
des partes,  mui  experimentado  nas  guerras  de  Africa,  e  da  índia;  nas 
quaes  partes  se  tinha  portado  valeroso  cavalleiro,  e  por  seus  serviços 
mereceo  fiar  delle  o  Rei  empresa  tão  grande,  de  dar  principio  a  hum 
Estado  em  que  pretendia  fundar  Império.  Trazia  poder  absoluto,  com  ju- 
risdição sobre  todas  as  mais  Capitanias.  Partio  da  barra  de  Lisboa  ao  i." 


DO  ESTADO  DO  DRASIL    (AN.NO  DE    loiO)  19 

de  Fevereiro  do  anno  de  1549.  Nesta  viagem  abrio  as  velas  de  seu  grande 
fervor  o  P.  Manuel  da  Nóbrega,  e  brevemente  pode  experimentar  o  Go- 
vernador o  que  delle  ouvia  só  por  fama,  porque  não  aquietou  seu  espirito, 
pregando,  praticando,  fazendo  procissões,  prohibindo  jogos,  juramentos, 
fazendo  amizades,  trazendo  aos  sacramentos,  e  estranhando  sobre  modo 
abusos.  Em  breve  tempo  se  vio  a  náo,  e  toda  a  frota  reformada  por  meio 
seu,  e  de  seus  companheiros,  que  todos  erão  varões  apostados,  como  de- 
pois contará  a  Historia. 

20  Entre  outros  succedeo  hum  caso  notável  nesta  viagem,  que  ficou 
impresso  na  memoria  ao  Governador,  e  depois  o  contava  muitas  vezes  em 
Portugal,  como  grande  prodígio :  foi  assi.  Veio  a  descobrir  o  Padre  'Nó- 
brega, que  o  Governador  guardava  na  viagem,  e  tinha  guardado  muitos 
annos  havia,  a  titulo  de  devação,  não  comer  cabeça  alguma  de  peixe,  ou 
carne,  em  honra  da  cabeça  de  S.  João  Bautista,  cortada  por  defensão  da  Cas- 
tidade: e  como  era  re-.soluto  seu  zelo,  e  mais  com  os  maiores,  e  por  esta 
via  parece  queria  Deos  acredital-o  já  dalli;  buscou  occasião  de  advertil-o; 
e  foi,  que  estando  hum  dia  com  elle  á  mesa,  o  vindo  a  ella  hum  peixe,  não 
quiz  comer  a  cabeça  delle:  então  lhe  declarou,  que  aquella  devação,  que 
fazia,  vinha  a  ser  espécie  de  superstição;  e  era  bem  que  Sua  Senhoria  a 
trocasse  em  outra  mais  aceita  a  Deos,  e  ao  Santo.  O  Governador,  que  ti- 
nha já  convertido  em  costume  aquella  devação,  e  i)or  v^entura  tinha  pêra 
si,  que  por  ella  lhe  tinha  o  Santo  feito  alguns  favores,  dissimulava  com  o  Pa- 
dre: porém  elle,  (pie  não  costumava  empreender  debalde  as  cousas,  vendo 
que  não  bastavão  palavras,  veio  á  obra ;  e  revestido  de  espirito  prophetico, 
intrepidamente  lhe  disse:  «Mande  Vossa  Senhoria  lançar  a  linha  ao  mar,  e 
do  que  pescar  verá  claramente  a  vontade  de  Di.-os,  e  essa  siga,  já  que 
não  ([uer  seguir  meus  conselhos.»  Lançou-se  a  linha,  com  grande  alvoroço 
de  muitos,  que  cstavão  presentes,  e  esperavão  o  fim  de  promessa  tão 
nova:  quando  vêem  todos  com  seus  olhos  (prodígio  milagroso!)  vir  presa 
no  anzol  huma  cabeça  de  peixe  só,  e  sem  corpo,  em  cumprimento  da  ver- 
dade de  Nóbrega.  Ficarão  pasmados,  e  sobre  todos  o  Governador;  e  foi 
tão  grande  a  força,  com  que  sentio  desenganar-se  á  vista  de  tão  claro  sinal 
do  Ceo,  que  mandou  logo  cozer  a  cabeça,  comeo-a  em  presença  de  todos, 
e  repartio  c/)m  algims,  como  de  peixe  milagroso.  Conciliou  o  caso,  assi 
pêra  com  o  Governador,  como  pêra  com  toda  a  náo,  conceito  de  santo  a 
Nóbrega ;  e  á  volta  d'esla  opinião  obrava  cm  bem  de  suas  almas  íjrandcs 
cousas.  Não  me  detenho  neste  caso  em  ponderar,  quem  foi  o  que  separou 


LIVHO  1  DA  CHUOMCA  DA  COMPANHIA  DE  JESl 


a  cabeça  áquelle  peixe?  com  que  instrumento?  ou  com  que  fim?  Porque 
quando  Deos  quer  fazer  milagres,  as  agoas  lhe  podem  servir  de  cutello,  e 
as  mais  leves  occasiões  de  matéria  pêra  prodígios  grandes.  A  occasião  não 
foi  grave;  porém  o  exemplo  que  delia  resultou,  foi  gravíssimo,  causa  do 
grande  conceito  do  servo  de  Deos,  e  principio  da  melhoria  de  muitas  almas, 
que  depois  se  renderão  á  sua  doutrina. 

27  Tempo  havia  que  navegava  a  frota  com  estes  auxílios  espirituaes 
de  Nóbrega,  e  de  seus  companheiros,  e  com  os  ventos  favoráveis,  que  o  Ceo 
lhe  dava;  quando  chegados  ao  ílm  de  Março,  ou  como  querem  outros,  prin- 
cipio de  Abril,  começarão  a  ver  os  sinaes  da  desejada  terra :  os  ares  claros, 
os  ventos  serenos,  as  agoas  de  prata;  e  após  estes  arrebatavão  os  olhos 
os  montes  altos,  verdes,  aprazíveis,  que  enlevavão  junto  com  a  vista  os 
corações  dos  Inavegantes:  mareão  as  jvelas,  buscão  porto,  e  chegão  por 
fim  a  lançar  ferro  (com  sessenta  e  seis  dias  de  viagem,  se  hemos  de  seguir 
Orlandino  nas  Chronicas  da  nossa  Companhia)  na  fermosa,  e  espaçosa  Bahia 
de  Todos  os  Santos;  assi  chamada,  ou  porque  parece  hum  Paraíso,  onde 
habitam  todos  os  Santos ;  ou  porque  parece  que  todos  os  Santos  do  Paraí- 
so míluem  nella  alguma  parte  de  suas  qulidades.  E  na  verdade  não  sei  eu 
se  haverá  em  todo  o  descuberto  paragem  mais  accomodada  pêra  o  com- 
mercio,  e  habitação  humana,  que  esta  da  Bahia,  e  seus  arredores  (que  tudo 
entra  em  nome  de  Bahia;)  nem  será  fácil  o  descrevel-a  eu  aqui  como  he. 

28  Quanto  ao  mar,  he  a  Bahia  huma  capacidade  de  agoas  de  muitas  le- 
goas  (dão-lhe  alguns  doze  de  diâmetro  com  seus  braços  mais  grossos,  e  por 
conseguinte  de  circunferência  trinta  e  seis.)  He  estancia  fiel  pêra  navios,  abri- 
gada dos  ventos  e  tempestades  do  Oceano.  Dentro  de  huma  barra  real  de 
mais  de  duas  legoas  de  largura  (o  que  he  limpo,  fundo,  e  navegável)  en- 
trada segura  de  galeões,  e  náos  da  índia,  suíTiciente  pêra  todas  as  Arma- 
das do  mundo,  entreçachada  de  aprazíveis  ilhas,  humas  grandes,  outras  pe- 
quenas, e  tantas  em  numero,  que  se  aífirma  que  passão  de  cento  da  barra 
pêra  dentro;  pela  mór  parte  enriquecidas  de  grossas  fazendas  de  morado- 
res; fermosa,  com  graciosa  variedade  em  brancas  praias,  toscos  penedos, 
verdes  arredores,  boqueirões,  entradas,  e  sabidas,  que  fazem  bahias  diffe- 
rentes,  e  enganão  facilmente  a  vista  humas  com  outras,  dos  que  não  tem 
experiência :  cercada  quasi  em  contorno  de  terra  firme,  de  cujo  sertão  vem 
a  pagar  tributo  grandes  rios ;  o  de  Piraia,  Matuim,  Parnamerim,  Seregipe, 
Paragnaçú,  Jagoarípe,  e  outros  que  nascem  d*estes,  ainda  que  menores, 
não  menos  aprazíveis,  e  todos  elles  navegáveis.  A'eem-se  hoje  todas  estas 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (ANNO  DE   loWj  24 

bahias,  e  margens  de  rios,  cercadas  das  ricos  lavouras  da  doce  planta  de 
canaveaes,  já  verdes,  já  louros,  quasi  innumeraveis.  Porém  o  que  mais 
admira,  e  faz  todo  este  recôncavo  mais  proveitoso,  h«  a  providencia  parti- 
cular, com  que  a  natureza  deu  portos,  e  commercio  a  todas  estas  la- 
vouras, e  fazendas,  ajuntando  a  qualquer  d'estes  rios  maiores  huma 
plebe  numerosa  de  riachos,  e  esteiros,  que  meteo  pela  terra,  de  maneira 
que  até  a  partes  muito  distantes,  e  situadas  no  coração  delia,  forão  buscar 
como  de  propósito  estes  riachos,  todos  navegáveis,  pêra  lhes  darem  porto, 
e  sabida,  com  tão  alegre  confusãe,  que  se  não  pode  facilmente  julgar,  se 
está  aqui  a  terra  no  mar,  se  o  mar  na  terra.  Avultão  entre  todas,  as  gran- 
des fazendas  dos  engenhos  de  açúcar,  maquinas  lustrosas;  porque  contém 
grandes  oíTicinas,  e  grandiosas  casarias  de  igrejas,  moradas  dos  Senhores, 
Vigários,  lavradores,  oíTiciaes,  serventes,  e  escravos.  E  vem  a  ser  estes  en- 
genhos em  numero,  quando  isto  escrevemos,  sessenta  e  nove,  que  representão 
outras  tantas  villas,  e  fazem  aquelles  arredores  sobre  maneira  nobres,  e 
aprazíveis.  He  notável  a  facilidade  do  trato,  commercio,  e  serventia  de  to- 
dos estes  moradores.  São  vistas  aquellas  bahias,  rios,  portos,  boqueirões,  en- 
tradas, e  sabidas,  continuamente  cheios  de  vellas,  quaes  grandes,  quaes  pe- 
quenas, todas  sem  conto:  os  arraes  brancos,  os  marinheiros  pretos;  são 
todo  o  serviço  necessário,  escusão  carros,  e  cavalgaduras,  e  vem  a  fazer  o 
commercio,  não  só  mui  fácil,  e  abreviado,  mas  proveitoso,  e"alegre :  e  a  fal- 
tar esta  grande  facilidade  de  meneio,  não  vejo  eu  como  fora  possível  de- 
sembocarem todos  os  annos  d'esta  Bahia  pêra  o  Reino  de  Portugal  tantos 
milhares  de  caixas  de  açúcar,  que  enchem  tão  grandiosas  frotas,  de  tanta 
quantidade  de  nãos,  como  vemos,  toda  a  doçura,  e  todo  riso  do  Rei,  c  do 
Reino. 

29  As  agoas  d'este  grande  lagamar,  ou  pequeno  Oceano,  da  barra  para 
dentro,  parecem  de  crystal.  Da  náo  mais  alongada  da  praia,  experimentei, 
que  olhando  pêra  o  fundo  das  áreas,  via  nelle  os  seixos,  e  as  conchas  bran- 
quejando a  modo  de  pedaços  de  prata.  As  margens,  e  ribeiras  dos  rios 
por  ordinário  estão  galanteadas  da  verdura  dos  mangues,  mui  engraçados, 
não  só  por  verdes,  mas  por  aquellas  singniares  laçadas,  com  que  a  nature- 
za vigorosa  os  enredou;  porque  do  mais  alto  de  seus  braços  lanção  ver- 
gonteas  a  beber  em  as  agoas,  e  nestas  como  luxuriando,  dos  braços  fazem 
pés,  arreigão  em  o  fundo,  crião  raizes,  e  tornão  a  brotar  ao  alto  troncos 
diversos,  e  diversos  ramos.  Não  dão  estas  arvores  fruto  algum;  recompen- 
são  porém  a  falta  delle,  com  vários  préstimos  em  proveito  maior  dos  mr* 


22  LIVRO  I  LA  CimOMCA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

radores;  porque  aqiielles  braços,  que  dissemos  lanção  do  alto  a  prender 
outra  vez  em  as  agoas,  formão  cada  hum  cinco  e  seis  raizes  antes  que  che- 
guem á  vasa,  as  quaes  naquelle  espaço  que  lhe  cliegou  a  agua  das  marés, 
se  cobrem  com  tanta  quantidade  de  ostras  humas  sobre  outras,  que  talyez 
he  bastante  hum  só  pé  d'estes  pêra  encher  hum  cesto.  Debaixo  d'estas 
mesmas  raizes  se  cria  tanta  copia  de  caranguejos,.  c[ue  sendo  muitos 
milhares  os  moradores,  principalmente  serventes,  e  escravos,  a  todos  dão 
pasto  quotidiano,  e  gostoso,  só  os  que  andão  pelas  margens  dos  rios.  Com 
a  folha  d'estas  arvores  pisada,  se  fazem  os  cortumes  de  toda  a  courama 
do  Brasil,  muito  mais  brevemente  que  com  o  somagre  do  Reino;  c  com  a 
casca  pisada  se  dá  a  tinta  vermelha,  e  engraçada,  que  tem  os  mesmos  cou- 
ros. De  seus  troncos  se  fazem  as  melhores,,  e  mais  incorruptíveis  madeiras 
pêra  todos  os  altos  das  casas,  como  são  caibros,  enchimentos,  e  pilares :  e 
vem  a  ser  esta  arvore  infrutífera  a  de  maiores  préstimos.  De  pescado  he 
toda  esta  paragem  de  mar,  e  rios  abundantíssima:  suas  espécies  são 
innumeraveis,  gostoso  todo,  e  sadio :  nem  he  menor  a  copia  de  géneros  de 
marisco,  regalo  de  ricos,  e  fartura  de  gente  ordinária. 

30  A  terra  he  hum  pintado  mapa,  sempre  verde,  e  sempre  alegre ;  por- 
que conservão  todo  o  anno  a  folha  seus  arvoredos.  Na  compostura  da  na- 
tureza, bem  assombrada,  levantada  em  outeiros,  estendida  em  campinas, 
povoada  de  bosques,  abundante  de  pastos,  retalhada  de  rios*  fecunda  d(í 
fontes,  sempre  a  mesma,  sempre  varia :  donde  nasce,  cjue  he  innumeravel 
o  gado,  e  todo  o  género  de  criação  abundantíssimo.  O  torrão  por  ordiná- 
rio he  fino,  maçapé,  feraz  e  vigoroso,  não  só  das  cousas  naturaes,  mas  das 
do  Reino :  na  fruta  de  espinho  não  dá  vantagem  á  melhor  de  Europa :  as  par- 
reiras todos  os  meses  sahirião  com  fruto,  se  todos  os  meses  forão  podadas, 
e  beneficiadas.  O  sitio  principal  d'esta  paragem,  \w  o  daquella  parte  junto 
á  barra,  onde  hoje  avulta. a  cidade,  prominente  a  toda  a  bahia,  e  donde  a 
hum  levar  de  olhos  se  estão  vendo  juntamente  aquellas  agoas,  ilhas,  praias, 
penedos,  verdura,  boqueirões,  entradas,  e  sabidas,  e  embarcações  innume- 
raveis, que  acima  dissemos:  huma  das  vistas  que  no  mundo  se  gabão. 
Os  moradores  naturaes  da  terra,  por  natureza  são  liberaes,  engenhosos, 
magnanimos,e  dadivosos.  Seria  cousa  grande  descer  ao  particular,  quer  de  esmo- 
las, quer  de  donativos  gratuitos.  Homem  houve,  que  despendeo  graciosamente 
quantia  de  fazenda,  com  que  pudérão  enriquecer  quatro:  ainda  vivem  successo- 
i"es  seus,  que  seguem  a  liberalidade  do  pai.  Occasião  vi,  em  que  tirando- 
ie  huma  esmola  pêra  principio  de  huma  obi-a  [«ia,  se  ajuntarão  só  na  cidade 


DO  ESTADO  DO  DRISIL  ÍAXNO  DF.   V}W}  23 

trinta  e  dons  mil  cruzados:  outra  houve  em  que  se  ajuntarão  pela  cidade, 
e  recôncavo,  pêra  a  fabrica  de  hum  templo,  sessenta  mil  cruzados,  dando 
hum  só  morador  os  trinta ;  em  agradecimento  dos  quaes  se  lhe  fez  escrit- 
tura  da  fundação  da  capélla  mór. 

;]1  A  região  do  ár  he  conhecidamente  vital,  hum  quasi  segundo  Paraí- 
so, huma  perpetua  primavera,  onde  raramente  se  sente  excesso  de  frio  ou 
de  calma,  donde  andão  desterradas  as  pestes,  e  ramos  delia,  as  doenças 
contagiosas;  e  sem  esta  injuria  dos  climas  morrem  os  homens  por  seus  ca- 
baes,  cheios  de  dias,  e  de  annos.  Estcá  em  altura  de  treze  grãos  e  meio, 
entre  a  linha,  e  trópico  Austral :  e  com  tudo  zombão  seus  naturaes  da  dou- 
trina dos  antigos  Philosophos,  que  tinhão  pêra  si,  que  era  inhabitavel  esta 
parte  do  mundo,  que  não  tinha  Ceo,  que  carecia  de  antípodas;  e  outros 
sonhos  contrários  do  que  hoje  nos  mostra  a  experiência.  Faltava  só  que 
fosse  também  mellior  o  Ceo  d'esta  parte:  e  não  será  temeridade  aíTirmal-o; 
segundo  a  doutrina  que  temos  assentado  no  Livro  segundo  das  Curio- 
sidades do  Brasil.  Parece  na  verdade  se  poz  a  natureza  a  formar  esta  par- 
te do  mundo,  quando  estava  com  a  mão  mais  folgada :  como  lá  disse  Plinio 
da  sua  Campania. 

Íj2  íle  a  Bahia  cabeça  do  Brasil,  c  he  este  na  compostura,  a  modo  de 
hum  gigante  gi-ande.  O  broco  esquerdo  lhe  vão  formando  as  Capitanias  de 
Sergipe,  Pernambuco,  Itamaracá,  Paraíba,  Rio-grande,  Seara,  Maranhão,  e 
Gr"ão-Pará.  O  braço  direito  lhe  formão  as  Capitanias  dos  liheosj  Porto-se- 
guro,  Espirito  Santo,  Uio  de  Janeiro,  S.  Vicente ;  e  doesta  até  ao  grão  Rio 
da  Prata :  de  maneira  que  vem  a  lavar-lhe  as  mãos  (por  não  dizer  os  pés) 
a  este  gi-ão  gigante,  da  parte  esquerda  as  immensas  agoas  do  rio  Grão-Pará: 
e  da  parte  direita  as  do  Rio  da  Prata. 

33  O  primeiro  descobridor  desta  Bahia  foi  Christovão  Jaques,  fidalgo 
da  Casa  Real,  aquelle  de  quem  dissemos  já  no  livro  primeiro  das  Cousas 
do  Brasil,  que  andando  d('scol)rindo,  e  demarcando  os  po?'tos  d'esta  costa, 
veio  a  dar  com  esta  Bahia  até  então  encoberta:  e  entrando  nella,  por 
sua  fermosura,  como  de  Paraíso,  lhe  poz  o  nome,  Bahia  de  Todos  os  San- 
tos. E  indo  correndo  seus  recôncavos,  em  hum  a  que  chamão  Paraguaçú 
achou  duas  nãos  de  Franceses,  fazendo  resgate  com  os  índios:  ás  quaes, 
pondo-se  ellas  em  resistência,  e  não  (jiierendo  largar  o  porto,  que  não  lhe 
pertencia,  por  ser  conquista  do  Rei  de  Portugal,  meteo  no  fundo  com  gen- 
te, e  fazenda:  que  assi  obravão  os  Capitães  daquèlle  tempo  cm  cousas  do 
síTviço  de  seu  Rei. 


24  LIVRO  I  DA  CnnONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

3i  o  primeiro  povoador  Portuguez  foi  outro  fidalgo  por  nome  Francisco 
Pereira  Coutinho;  e  foi  a  occasião  a  seguinte.  Voltara  este  fidalgo  da  índia, 
onde  fizera  serviços  grandes  á  Coroa  de  Portugal,  a  tempo  que  os  Capi- 
tães Gonçalo  Coelho,  Pêro  Lopes  de  Sousa,  e  Christovão  Jacques  (co- 
mo dissemos)  tinlião  informado  a  Sua  Alteza  das  cousas  do  Brasil,  e  das 
grandes  esperanças  que  prometião,  em  cujo  fundamento  se  tinka  o  Rei  re- 
soluto em  mandar  povoar  estas  terras.  N'esta  occasião  pedio  Francisco  Pe- 
reira Coutinho  parte  d^ellas,  offerecendo-se  a  cultival-as,  e  deffendel-as  á 
sua  custa  da  immensidade  de  Bárbaros,  que  alli  vivião.  Foi-lhe  feita  a  mer- 
cê, e  demarcou-se-lhe  a  costa,  que  corre  desde  o  Rio  S.  Francisco,  até  a 
ponta  do  padrão  da  Bahia,  que  vem  a  ser  a  ponta  da  barra  chamada  hoje 
de  Santo  António:  e  logo  depois  se  lhe  fez  mercê  da  própria  Bahia  de  To- 
dos os  Santos,  com  todos  seus  recôncavos.  Partido  pois  este  fidalgo  em 
pessoa,  com  boa  armada  feita  á  sua  custa,  pêra  estas  partes,  veio  a  de- 
sembocar da  ponta  do  padrão  pêra  dentro,  e  começou  a  fortificar-se,  e  po- 
voar junto  ao  mar,  onde  agora  chamão  Villa-velha.  Esteve  algum  tempo 
de  paz  com  os  índios,  e  chegou  a  fazer  dous  engenhos,  e  algumas  roças: 
se  não  que,  como  são  inconstantes  todas  as  felicidades  da  vida,  a  d'este  fi- 
dalgo teve  também  occasião  de  descair,  e  foi  esta  o  desastrado  caso  da 
morte  do  filho  de  hum  Principal  dos  índios  mais  guerreiros,  e  temidos 
em  todo  o  Brasil,  chamados  Tupínambás.  Levantou-se  aggravado  este  Prin- 
cipal com  toda  a  sua  gente,  começou  a  perturbar  a  paz,  e  fazer  cruel  guer- 
ra: matou  grande  quantidade  de  Portugueses  em  vingança  de  seu  aggravo, 
e  entre  elles  hum  filho  bastardo  do  mesmo  Capitão  Francisco  Pereira  Cou- 
tinho; destruindo  á  volta  da  guerra  os  engenhos,  roças,  e  tudo  quanto  pos- 
suião:  de  maneira,  que  dentro  de  sete  ou  oito  annos,  por  mais  industria, 
e  valor  que  soube  applicar  em  sua  defensa  hum  Capitão,  outro  tempo  tão 
destro  e  venturoso  nas  guerras  da  índia  (ou  por  justo  castigo,  ou  por  oc- 
culto  destino  de  sua  estreita)  veio  a  ficar  de  todo  destruido.  Houve  de  re- 
tirar-se  á  Capitania  dos  Ilheos:  porém  aqui,  se  pararão  as  armas,  não  pa- 
rou o  rigor  da  fortuna  d"este  fidalgo;  porque  embarcando-se  depois  de  al- 
gum tempo,  em  fé  de  certas  composições  de  paz  com  os  índios,  antes  de 
chegar  á  Bahia  fez  naufrágio  a  embarcação  em  que  vinlia;  e  o  mesmo  Ca- 
pitão, com  todos  os  que  com  elle  navegavão,  e  sahirão  á  praia,  forão  nel- 
la  cativos  dos  Tupínambás,  e  logo  mortos  com  barbara  crueldade,  e  con- 
vertidos em  pastos  de  seus  ventres.  E  este  foi  o  fim  do  primeiro  povoa- 
dor da  Bahia,   e  juntamente  a  causa,   que  moveo  a  El-Rei  a  tomal-a  por 


DO  KSTADO  DO  BRASIL  (ANNO  DE   1549)  2í) 

sua,  e  fabricar  n'ella  huma  cidade,  que  fosse  cabeça,  e  couio  coração  do 
Estado,  donde  pudessem  ser  socorridos  todos  os  mais  lugares  da  costa. 

35  Não  deixarei  com  tudo  de  referir  aqui  ao  breve  a  historia  notável 
do  celebrado  Diogo  Alvares;  por  que  são  dignas  de  ser  sabidas  suas  cir- 
cunstansias,  e  querem  alguns  contal-o  a  elle  pelo  primeiro  povoador  da 
Villa-velha.  Foi  Diogo  Alvares  Portuguez  de  nação,  natural  da  notável 
villa  de  Vianna,  de  gente  nobre,  e  generoso  coração.  Sendo  mancebo,  as- 
pirou a  ver  novas  teri'as;  embarcou-se  em  huma  náo,  que  segundo  alguns, 
fazia  viagem  peia  S.  Vicente,  Capitania  deste  Estado,  já  então  povoada  por 
Martim  Affonso  de  Sousa:  segundo  outros,  pêra  a  índia.  Fosse  qualquer 
das  duas  a  derrota,  a  náo  chegou  a  esta  costa  do  Brasil,  e  n'ella  constran- 
gida de  um  temporal  rigoroso,  depois  de  quebrados  os  mastos,  foi  dar  em 
os  baixos  que  hoje  vemos  junto  á  barra  da  Baliia  á  parte  do  Norte,  cha- 
mados do  Gentio  Maíragiquiig,  onde  fez  miserável  naufrágio,  e  pereceo 
parte  da  gente  ao  rigor  da  fereza  dos  mares,  parte  ao  da  fereza  dos  índios, 
que  sahindo  ás  praias  cativarão  os  pobres  naufragantes,  e  os  despojarão 
da  vida,  fazendo  d  elles  pasto.  Fntre  os  mais  cativos  notarão .  os  bárbaros 
a  singular  constância  do  nosso  Diogo  Alvares,  que  desi)rezando  o  golpe  da 
fortuna,  ajudava  ajuntar  as  cousas  do  naufrágio  comcoi'ação  intrépido  em 
favor  dos  que  já  tinha  por  senhores  (que  he  o  fino  da  prudência  saber  ac- 
comodar-se  hum  coração  aos  lanços  vários  da  fortuna:)  contentárão-se  d'el- 
le,  e  assentarão  entre  si,  que  aquelle  ficasse  com  a  vida:  traça  do  Alto 
pêra  os  fins  que  veremos  do  serviço  de  Deos,  do  Rei,  e  da  terra. 

36  Entre  a  fazenda  que  sahia  á  praia,  recollieo  Diogo  Alvares  alguns 
barris  de  pólvora,  e  com  elles  hum,  ou  dous  arcabuzes;  e  nestes  consis- 
tio  toda  a  felicidade,  e  senhorio  em  que  depois  se  vio:  porque  estando  já 
recolhidos  em  suas  aldeãs,  concertou  elle  um  dos  arcabuzes,  e  disparan- 
do-o  em  presença  de  todos,  á  vista  do  estrondo  que  fez,  do  fogo  que  lu- 
zio,  e  do  eíTeito  que  obrou  (devia  ser  a  morte  de  alguma  fera,  ou  ave)  fi- 
carão attonitos  os  barbaios  de  cousa  que  nunqua  já  mais  virão:  puzerão- 
se  em  fugida  mulheres,  e  meninos,  dizendo  a  vozes  que  era  hum  homem 
de  fogo,  que  queria  matal-os.  Apenas  pararão  os  varões:  a  estes  fez  capa- 
citarem-se  que  o  ífue  virão  era  arte  sua,  que  podia  wm  ella  ajudal-os  contra 
seus  inimigos;  que  não  havia  de  que  temer,  porque  seu  fogo  matava  somente 
os  contrários,  não  os  amigos,  e  ficarão  com  isto  desabafados.  No  mesmo 
tempo  trazião  guerra  com  os  Tapuyas  habitadores  do  sit»  de  Passe,  dis- 
tante como  seis  legoas  do  lugar  aonde  hoje  he  a  cidade:  quiserão  fazei- 


2G  Livro  i  da  curomca  da  companhia  de  iesu 

experiência,  juntarão  seus  arcos,  c  Icvando-o  por  guia  forão  dar  sobre  el- 
les,  e  virão  tudo  o  que  csperavão;  porque  no  ponto  que  tiverão  noticia 
aquelles  salvagens,  que  hia  contra  elles  o  homem  de  fogo  (que  assi  lhe  cha- 
mavão)  que  de  longe  feria,  e  matava,  quaes  se.  virão  a  fúria  de  hum  Vul- 
cano, ficarão  desmaiados,  e  derão  a  fugir  pelos  mattos;  ficando  assi  prova- 
do o  valor,  e  arte  mais  que  humana  (na  opinião  desta  gente)  de  Diogo 
Alvares,  cuja  fama  correo  em  breve  por  todos  os  sertões,  e  foi  tido  pn»' 
homem  portentoso,  contra  quem  não  erão  capazes  seus  arcos:  e  aqui  lhe 
acrescentarão  o  nome,  chamando-lhe  o  grande  Caramurú.  Os  Principaes 
maiores  prezavão-se  de  que  quizesse  acceitar  suas  filhas  por  mulheres,  e 
lhas  offerecião;  e  cuidava  que  alcançava  favor  grande  aiiuelle  de  quem  as 
recebia.  Em  contendas  de  guerra  que  se  offerecião,  Diogo  Alvares  era  o 
arbitro  de  todas  ellas:  foi  de  maneira,  que  em  breve  tempo  subio  de  ca- 
tivo a  senhor,  que  tudo  governava;  e  aquella  parte  pêra  onde  inclinava 
seu  fogo,  tudo  obedecia,  e  pagava  páreas. 

37  Assentou  suas  casas  naquelle  raso,  que  hoje  se  vè  em  Villa-velha, 
além  de  Nosí^a  Senhora  da  Vitoria,  cujas  ruínas  ainda  agora  dão  sinaes. 
Teve  aqui  grande  familia,  e  muitas  mulheres;  porque  não  se  havia  por  hon- 
rado o  Principal,  que  com  elle  se  não  tinha  apparentado.  Houve  muitos  fi- 
lhos e  filhas,  que  pelo  tempo  forão  cabeças  de  nobres  gerações.  Nestes  ter- 
mos estava,  quando  chegou  a  esta  Bahia  huma  não  francesa,  determinou 
passar  nella  a  Portugal  por  via  de  França,  e  carregando-a  de  pcáo  lirasil, 
embarcou  a  mais  querida  de  suas  mulheres,  dotada  de  fermosura,  e  Prin- 
cesa daquella  gente.  Fez-se  á  vella,  não  sem  grande  inveja  das  que  ficavão. 
Delias  contão  alguns,  que  chegarão  a  lançar-se  a  nado  seguindo  a  não, 
com  perda  de  huma,  que  ficou  afogada  nas  ondas.  Chegado  a  França,  foi  ou- 
vida sua  historia  do  Rei,  e  Rainha  com  satisfação,  como  cousa  tão  nova : 
folgavam  de  ver  a  esposa,  individuo  estranho  de  hum  novo  mundo.  Trata- 
ram de  bautizar  a  ella,  e  casar  a  ambos  na  face  da  Igreja.  Celebrou  este 
sacramentos  hum  Bispo,  dignando-se  de  serem  os  padrinhos  os  próprios 
Reis.  Houve  ella  por  nome  Catharina  Alvares,  sendo  o  do  Brasil  Paragua- 
çú.  Derão-lhe  a  Rainha,  e  outros  Senhores  titulares  ricos  vestidos,  e  mui- 
tas jóias,  mas  não  consentirão  passarem  a  Portugal.  O  (jue  visto,  por  meio 
de  hum  Portuguez  por  nome  Pedro  Fernandes  Sardinha,  que  acabara  em 
Paris  seus  estudos,  e  voltava  a  Lisboa,  fez  aviso  a  el-Rei  D.  João  o  Hl  da 
bondade  da  barra,  e  terra  da  Bahia,  a  fim  de  que  a  mandasse  povoar.  Este 
Pedro  Fernandes  Sardinha,  depois  de  feita  sua  recommendação,  foi  áe^yiv 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (ANNO  DE    l')Í9)  27 

chailo  por  El-Rei  pêra  a  índia,  por  Vigário  geral;- e.he  o  mesmo  que  de- 
pois veio  por  primeiro  Bispo  do  Brasil  D.  Pedro  Fernandes  Sardinhíi. 

38  Depois  de  algum  tempo  voltou  Diogo  Alvares  ao  Brasil,  concertan- 
do-se  em  França  com  hum  mercador  grosso,  que  carregando-llíe  duas  nãos 
com  quantidade  de  lY^sgates,  pólvora,  munições,  e  artelliaria,  e  trazendo-o 
a  elle,  e  a  sua  mulher,  em  ti^oco  disto  lhas  carregaria  de  páo  brasil.  Che- 
gou a  salvamento,  cumprio  a  obrigação,  carregando  as  nãos,  e  com  a  ar- 
telharia  formou  estancia  forte,  onde  seguro  habitasse,  â  sombra  da  qual,  e 
com  o  valor  dos  resgates,  começou  a  fazer-se  senhor  de  muitos  escravos,, 
e  vassallos,  temido,  e  respeitado  das  maiores  potencias  da  costa. 

30  Neste  comenos  succedeo,  que  navegando  huma  náo  pêra:  o  -Rio  da 
Pi'ata,  com  gente  Castelhana  (muitos  delles  nobres,  que  hião  povoar  aquel- 
la  parte)  levadív  de  tormenta,  foi  enxorar  junto  a  Boipeba  em  huma  ponta, 
onde  pelo  successo  ficou  o  nome  Ponta  dos  Castelhanos.  Soube  Diogo  Al- 
vares do  naufrágio,  e  como  já  experimentara  fortuna  semelhante,  foi  fácil 
condoer-se:  acudio  logo  áquella  parte  a  tempo  que  livrou  a  gente  dos  den- 
tes dos  bárbaros,  e  a  trouxe  comsigo,  e  hospedou  humanamente,  em  es- 
pecial alguns  cavalleiros  de  conta  que  entre  ella  vinlião;  os  íjuaos  torna- 
dos a  Espanha  pregoarão  o  lanço,  e  foram  causa  que  o  Imperador  Carlos 
V  mandasse  escrever  liuma  cai'ta,  em  (juíí  lhe  agí"adecia  o  serviço  que  lhe 
fizera  em  livrar  arjuelles  seus  vassallos,  offerecendo-lhe  por  isso  sua  graça. 

40  Na  occasião  do  naufrágio  houv(!  hum  caso  digno  de  historia :  porque 
voltando  Diogo  Alvarez  Caramuni  de  socorrer  aos  (^astelhauDS,  se  foi  a  elle 
sua  mulher  Catharina  xMvares  Paraguaçú,  e  lhe  pedio  com  instancias  gran- 
des que  tornasse  a  buscar-lhe  huma  mulher,  que  vieia  na  náo,  e  estava  en- 
tre os  índios,  po]'que  llie  api)arecia  em  visão,  e  lhe  dizia  que.  a  mandasse  vir 
})era  junto  a  si,  e  IIkí  fizesse  huma  casa.  Tornou  o  marido,  o  não  achando 
mulher  alguma  em  todas  as  aldèas,  não  se  aquitítou  a  devota  Catharina 
Alvaies,  instava  que  naqucllas  aldèas  a  tinhão,  jioi-que  não  cessavão  as  vi- 
sõi!s,  que  a  certiiiravão.  Feita  a  segunda,  e  terceira  diligencia,  se  veio  a 
dar  com  uma  imagem  da  Virgem  Senhora  nossa,  (]ue  hum  ludio  recolhera 
da  praia,  e  tinha  lançado  ao  cantíj  de  huma  casa.  lM»i-llie  apresentada,  e 
abraçando-se  com  ella  dis.se,  que  aquella  era  a  mulher  tpie  lhe  apparecia  : 
])edioao  maridíj  IIk;  mandasse  fazer  huma  casa,  fez-se  huma  entretanto  de  barro, 
e  pelo  terapo  outra  de  pedra  e  cal,  onde  foi  honrada  com  titulo  de  Nossa 
Senhfjj-a  da  Graça,  ,tmi(|iiecida  de  muitas  leliquias,  e  indulgências,  que  en- 
tão mandou  o  Summo  Ponliíice:  e  hoje  a  possuem  os  Religiosos  da  sagrada 


28  LIVRO  I  DA  CHRONICA  PA  COMPANHIA  DE  JESU 

Religião  do  Patriarcha  S.  Bento,  aos  quaes  fez  doação  esta  devota  matrona, 
assi  da  Igreja,  como  da  terra  do  circuito  delia,  e  alli  jaz  enterrado  seu  corpo. 

41  Por  este  tempo  partindo  pêra  a  índia  Martim  AÍTonso  de  Sousa, 
veio  de  arribada  a  tomar  porto  nesta  barra :  trazia  comsigo  Religiosos,  os 
quaes  entre  as  cousas  do  serviço  de  Deos,  que  aqui  fizerão,  foi  bautizar 
na  mesma  Igreja  os  filhos  e  filhas  d'estes  dous  devotos  da  Senhora :  das 
quaes  huma  casou  nesta  occasião  com  Aífonso  Rodrigues  natural  de  Óbidos; 
outra  com  Paulo  Dias  Adorno  fidalgo  Genovez,  que  tinha  vindo  de  S.  Vi- 
cente, por  causa  de  hum  homicídio.  Chegou  depois  disto  Francisco  Pereira 
Coutinho  (como  acima  vimos)  e  casou  outras  duas  filhas  legitimas  de  entre 
elle,  e  Catharina  Alvares  com  outros  dous  homens  Portugueses  nobres;  das 
quaes,  e  de  outras  muitas  que  logo  foi  casando  com  pessoas  de  conta,  as- 
si legitimas,  como  naturaes  vio  numerosa  e  feliz  successão,  tão  estendida, 
que  seria  cousa  larga  querer  contal-a  toda.  Digo  somente,  que  d'este  tron- 
co procederão  muitas  das  melhores,  e  mais  nobres  famílias  da  Bahia.  E 
este  he  o  antecessor  de  Francisco  Pereira  Coutinho ;  donde  dizemos  que  foi 
Coutinho  o  primeiro  povoador  por  data  d"El-Rei,  e  direito  Real:  porém 
Diogo  Alvares  foi  o  primeiro  por  data  dos  senhores  da  terra  naturaes,  e 
direito  das  gentes.  Qual  seja  mais,  julguem-nò  os  que  sabem. 

42  Nesta  pai^gem  pois  da  Bahia  sahio  em  terra ;  esta  escolheo  pêra  ca- 
beça do  Estado,  e  assento  perpetuo  dos  Governadores,  Bispos,  e  Ouvidores 
geraes,  aquelle  primeiro,  e  bem  afortunado  Governador  Thomé  de  Sousa. 
Foi  demandar  o  lugar  da  Yilla-velha,  sitio  aprazível,  donde  dissemos  se 
descobre  a  fermosura  de  toda  a  Bahia.  Veio  marchando  a  som  de  guerra, 
armados,  e  postos  em  forma  de  peleja  os  Portugueses:  assi  porque  não 
se  fiavão  dos  naturaes  da  terra,  como  por  ser  conveniente  que  vissem  es- 
tes o  poder  com  que  vinha,  e  começassem  a  fazer  conceito  do  braço  pode- 
roso do  Rei  de  Portugal.  Consta>^  o  grosso  da  gente  de  mil  homens,  os 
seiscentos  soldados,  os  quatrocentos  degradados :  afora  outros  muitos  mora- 
dores com  suas  casas;  e  alguns  crmdos  dEl-Rei,  que  vinlião  providos  em 
officios:  por  Ouvidor  geral  Pêro  Borges,  e  por  Provedor  mór  do  Estado 
António  Cardoso  de  Barros.  Neste  lugar  de  Villa-velha  estiverão  alojados 
em  boa  ordenança,  espaço  de  hmn  mez,  em  quanto  se  demarcava  o  sitio  pê- 
ra a  cidade,  que  de  novo  determinava©  edificar. 

43  Depois  do  Governador  sahirão  também  a  terra  os  Religiosos  da 
Companliia,  e  forão  agasalhados  junto  ao  arraial:  aqui  fazendo  o  seu  pri- 
meiro sacrificio,  o  mais  solemne  que  puderão,  em  acção  de  graças.  Man- 


DO  ESTADO   DO  BRASIL  (aNNO  DE   li) 49)  29 

dou  O  Padre  Nóbrega  arvorar  huma  fermosa  cruz,  sinal  propicio  áquelles 
infiéis  de  sua  salvação ;  e  logo  levantando  os  olhos  do  alto  daquella  emi- 
nência por  todo  o  grande  contorno  da  Bahia,  alcançou  que  tudo  erão  es- 
tancias de  índios  bárbaros,  e  que  com  a  mesma  frequência  habitavão  pelo 
interior  do  sertão,  em  tanta  cfiiantidade  que  podia  duvidar-se,  quaes  erão 
mais,  se  elles,  ou  as  folhas  das  arvores  ?  Ficou  por  huma  parte  como  cor- 
rido de  achar-se  com  tão  poucos  segadores  em  tão  grande  seara :  e  por 
outra  parte  não  cabia  em  si  de  prazer,  porque  via  já  com  seus  olhos  cam- 
po estendido,  em  que  fartasse  seu  generoso  coração.  Alegrava-se  com  a 
esperança  dos  que  havia  de  converter  a  Deos ;  e  enlristecia-se  com  a  lem- 
brança dos  que  já  se  lhe.  representavão  perdidos.  Bradava  ao  Ceo,  e  con 
fundia-se  na  consideração  de  tão  escondido  juizo,  que  criasse  Deos  tantas 
almas,  com  a  mesma  bondade,  e  amor,  que  todas  as  outras  do  universo,  e 
que  a  estas  acudisse  com  tantos  meios  de  sua  salvação,  e  deixasse  as  d'es- 
te  novo  mundo,  seis  mil  e  tantos  annos,  sem  noticia  de  Deos,  da  Fé,  ou 
da  outra  vida !  Desfazia-se  em  lagrimas,  e  quanto  mais  concebia  de  pesar 
pelos  já  perdidos,  tanto  mais  se  banhava  de  alegria  pelos  que  pretendia 
ganhar.  A  todas  as  partes  daquellas  grandes  brenhas  se  apostava  seu  ze- 
loso espirito. 

4í  Achava  porém  graves  impedimentosnestes  princípios  da  conversão. 
O  primeiro  era,  porque  não  tinhão  os  Portugueses  Sacerdote,  que  houves- 
se de  servir  de  Vigário,  e  foi  força  que  houvesse  de  fazer  este  officio,  á 
instancia  do  Governador,  e  do  povo,  confessando,  pregando,  desobrigando 
e  fazendo  as  mais  acções  de  Parocho.  Segundo,  porque  não  sabião  a  lin- 
goa  brasílica,  e  por  acenos  exprimem-se  mal  os  conceitos,  mormente  os 
que  tocão  á  alma :  nem  ainda  interpretes  havia  accomodados.  Terceiro, 
porque  andavão  peia  mór  parte  os  índios  inquietos  com  guerras  entre  si, 
e  com  os  Portugueses  muitos  delles,  e  era  cousa  diíTicultosa  imprimir  a 
doutrina  clirislã  em  entendimentos  tão  diversos.  Destas  guerras  não  pude 
achar  informação  particular :  a  raiz  delias  sabe-se  que  foi  mais  antigua, 
desde  os  primeiros  fundadores  das  Capitanias,  quando  tomavão  posse  del- 
ias por  mandado  dos  Reis  de  Portugal :  jwrque  forão  notando  os  naturaes 
da  terra  em  nossos  Portugueses  outra  intenção  mui  diíle rente  da  com  que 
aportarão  a  ella  em  Porto-seguro  :  então  tratavão  com  elles  como  hospe- 
des, mostravão  alcgrar-sc  com  sua  presença,  e  enchião-nos  de  favores,  e 
mimos :  porém  agora *havião-se  como  inimigos,  pretendião  desten'al-os  de 
sun«i  pátrias,  fazer-sc  senhores  delias,  eaindadesuasliboidades.Perareme- 


LIVRO  I  DA  CHUOMCA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 


dio  d>8tes  males,  e  defensão  sua  natural,  passarão  palavra  por  toda  a  cos- 
ta do  Brasil,  e  confederarão-se  as  nações,  suspendendo  os  arcos  que  ma- 
neavão  entre  si,  passando  a  força  delles  contra  os  Portugueses  inimigo 
commum. 

4o  Nestas  primeiras  guerras  houve  successos  dignos  de  historia ;  po- 
rém eu  nem  possoí  agora  deter-me  nelles,  nem  aqui  vem  tanto  ao  próprio 
como- quando  tratarmos  das  conquistas  das  Capitanias,  onde  forão  obrados. 
Digo  somente,  que  depois  de  tempo  de  experiência,  assentando  os  índios 
que  perdião  as  vidas,  e  não  restauravão  as  pátrias;  e  que  os  Portugue- 
ses, aindii  que  menos  em  numero,  erão  mais  venturosos  pela  vantagem 
de  suas  armas,  esforço,  industi-ia,  e  constância  ;  vierão  a  entender  que  lhes 
estava  melhor  a  paz.  Os  primeiros  que  tratarão  concertos  delias,  forão  os  To- 
bayaras,  e  f upinambás  da  Bahia ;  outros  Tobayaras  de  Pernambuco ;  e  os 
Tamoyos  do  Rio  de  Janeiro ;  os  quaes,  como  de  melhor  ientender,  vendo 
que  a  força  dos  Portugueses,  havia  de  vir  a  obrigal-os,  mais  cedo,  ou  mais 
tarde,  e  receosos  outro  si  dos  Puliguáres,  e  Tapuyas,  f|ue  lhes  íicavão  so- 
bre as  costas  (de  cuja  amizadô  jamais  se  fiavão)  andarão  primeiro,  e  feitas 
pazes  com  os  Portugueses,  virarão  contra  aquelles  os  arcos.  Ficarão  sen- 
tidos, e  exasperados  os  Potiguares,  e  Tapuyas:  porém  vendo-se  sós,  vierão 
por  tempo  a  imital-os.  Durarão  estas  pazes  em  quanto  durou  a  paciência 
dos  índios;  porque  a  gente  portuguesa,  não  contente  com  senhorear  a  ter- 
ra, passava  a  senhorear  as  pessoas:  e  como  em  caso  de  liberdade  natural, 
todo  o  hontem,  por  mais  tosco  que  seja,  acuda  por  si;  houverão  de  tor- 
nar a  rompimento  muitas  destas  nações.  E  estas  vinhão  a  ser  as  guerras 
que  de  presente  acharão  na  Bahia  os  Portugueses  ao  tempo  da  chegada 
dos  Padres,  e  algumas  outras  que  as  nações  trazião  entre  si.  Não  desmaia- 
rão comtudo  os  obreiros  zelosos  (que  onde  he  grande  o  desejo,  não  soem 
parecer  os  meios  difficultosos.)  A  primeira  traça  com  que  sahirão,  foi  fazer 
famiUares  de  casa  (ainda  á  custa  de  dadivas,  e  mimos)  os  meninos  íilhos 
dos  índios;  porque  estes,  por  menos  divertidos,  e  por  mais  hábeis  que  os 
grandes,  em  todas  as  nações  do  Brasil,  são  mais  fáceis  de  doutrinar;  e 
doutrinados  os  filhos,  por  elles  se  começarião  a  doutrinar  os  pais:  traça  que 
a  experiência  mostrou  ser  vinda  do  Ceo,  como  mostrará  o  discurso.  Pêra 
o  segundo  impedimento  da  falta  da  lingoa,  sérvio  também  a  traça  dos  me- 
ninos; porque  com  estes  fatiando  cada  dia,  á  volta  do  uso  da  doutrina  apren- 
dião  o  idioma  brasílico.  No  terceiro  principal  impedimento,  applicárão 
taes  traças,  por  meio  de  suas  orações,  penitencias,  e  industrias,  que  che- 


DO  KSTADO  DO  BRASIL  (ANNO   DE    V)W)  ;t| 

gârâo  a  conseguir  assento  de  pazes  entre  muitos  daquelles  bárbaros,  os 
qnaes  vierão  render  os  arcos  ao  novo  Governadijr,  ([ue  acceitou  os  meios 
delias,  c  os  recel)eo  com  mosti'as  de  benignidade.  Neste  entremeio  não  íi- 
cou  o  Ceo  sem  algumas  primicias ;  porque  grangeárão  os  padres  as  almas 
de  muitos  innocentes,  e  velhos,  que  bautizavão  in  extremis  (e  forão  em 
bom  numero)  porque  pêra  este  eíTeito  corrião  as  estancias,  e  punliuo  oUiei- 
ros,  ([ue  fielmente  avisavão  dos  doentes. 

4G  Nestas  cousas  se  occupavão  os  nossos,  quando  passado  o  mez .  de 
Abril,  mudou  de  sitio  o  Governador  pêra  distancia,  como  de  meia  legoa 
de  Yilla-velha,  lugar  cpie  tinha  demarcado,  e  começado  a  fundar  a  cidade 
a  que  poz  nome  de  S.  Salvador:  e  foi  força  mudarem-se  também  nossos 
Uehgiosos,  e  no  mesmo  tempo,  em  que  os  moradores  ediíicavão  casas,  fa- 
zer as  suas,  e  Igreja,  no  lugar  onde  hoje  se  vè  a  de  Nossa  Senhora  da 
Ajuda,  invocação  que  então  lhe  poserão;  e  foi  a  primeira  (jue  no  Brasil  te- 
ve a  Companhia.  Esta  obrárãrr  com  próprias  mãos,  e  suores;  por([ue  como 
andavão  os  moradores  occupados  em  semelhantes  obras,  e  principalmente 
em  cercar  a  cidade  pêra  defensão  de  alguns  gentios,  que  ainda  não  estavão 
sugeitos,  não  havia  quem  pudesse  ser-lhes  de  ajuda,  Elles  erão  os  mestres 
das  taipas,  liião  ao  matto,  cortavam  as  arvores,  trazião  as  madeiras  ás  cos- 
tas, e  o  mais  necessário:  e  o  mór  rigor  era,  que  havia  grande  falta  de  sus- 
tento corporal,  eerão  forçados  andar  pedindo  de  porta  em  porta  oqueha- 
vião  de  comer,  e  acha  vão  mui  pouco;  porque  era  a  todos  commua  a  ne- 
cessidade: hião  á  fonte  pela  ag(ja,  e  ao  matto  pela  lenha,  pêra  o  que  an- 
davão á  ligeira  em  coi'í)o:  cpie  não  havia  entre  tanta  pobreza  tratai*  de  ves- 
te, ou  manteo:  e  talvez  nem  çapatos  havia,  nem  camisa. 

47  Neste  sitio  de  Nossa  Senhora  da  Ajuda  persevei-arão,  exercitando 
na  forma  referida,  juntamente  com  os  ministérios  da  Companhia,  o  de  Pa- 
rodio dos  Portugueses;  até  que  chegando  do  Reino  hum  Sacerdote,  lhe  en- 
tregarão a  Vigairaria,  e  com  ella  a  casa,  e  Igreja,  í|ue  com  tanto  suor  ti- 
nhão  edificado;  e  se  forão  contentes  assentar  nova  habilação  liiia  da  cida- 
de em  hum  lugar  alto,  que  hoje  chamão  iMontc  Calvário,  com  novos  tra- 
balhos, semelhantes  aos  já  referidos.  Kra  o  sitio  (loMiinte  Calvário  aquel- 
le,  onde  hoje  vemos  fundadíj  o  mosteiro  da  sagrada  Religião  de  Nossa  Se- 
nhora do  Carmo.  Naquelle  tempo  era  o  principal  assento  das  aldeãs  dos 
índios  d(!  toda  esta  (Capitania,  jior  seus  bons  ares,  visinliança  do  mar,  e 
outi'as  melhorias,  íjiie  nelle  conhecião.  Kra  grande  a  (|uaillidade  de  Bar- 
baria, que  iicslas  povoaçijcs  habilavão,   c  diversos  os  Principaos,   que  as 


3Í  LIVRO  I  DA   CHHO.MCA   DA  COMPANHIA  DE  JESU 

governavão,  a  seu  modo  gentílico.  Aqui  acharão  os  nossos  missionários  em 
que  empregar  seus  desejos.  Começou  cada  qual  a  pôr  em  praxe  a  traça  que 
mais  lhe  parecia  accommodada  áquella  conversão. 

48  Se  bem,  poucos  dias  andados,  começarão  a  conhecer,  que  a  diífi- 
culdade  da  conversão  era  grande,  e  não  menor  o  perigo  delia ;  porque  es- 
tava esta  gente  bravia,  e  aiTeigada  em  seus  costumes  bárbaros,  principal- 
mente no  de  comer  carne  humana,  ter  muitas  mulheres,  ódios,  guerras, 
feitiçarias,  e  excesso  de  vinhos:  vicios  todos,  que  sobre  maneira  perturbão 
os  sentidos,  provocão  a  grandes  desarranjos,  e  divertem  de  tudo  o  que  he 
de  razão :  mormente  que  eslavão  fora  da  cidade  sem  coacção  alguma,  nem 
ainda  de  eíTicacia  de  razões,  em  quanto  os  nossos  ignoravão  a  lingoa.  Bem 
vião  os  servos  de  Deos  o  perigo:  e  a  primeira  resolução  que  tomarão  foi, 
que  aventurassem  a  vida  por  bem  daquellas  almas,  esperando  o  auxilio 
do  Ceo  onde  era  tão  grande  a  necessidade.  ^lettèrão  todo  o  cabedal  em 
aprender  a  hngoa,  e  o  que  mais  se  assignalou  nesta  empresa,  foi  o  Padre 
João  Aspilcueta  Navarro,  que  sahío  em  breve  tempo  suíTiciente  pêra  pregar 
nella,  e  confessar:  e  foi  o  primeiro  que  poz  na  lingoa  brasílica  algumas 
orações,  e  diálogos  da  nossa  santa  Fé,  a  fim  de  cathequizar  esta  gente. 
Corrião  todos  os  dias  as  aldeãs,  saudando-os,  sabendo  dos  doentes,  cu- 
rando-os,  e  acudindo  a  suas  necessidades  do  modo  que  podião.  E  foi  tão 
poderosa  esta  primeira  traça,  que  de  homens  feros  e  intratáveis,  vierão 
a  entrar  em  razão,  começando  a  ouvir  aos  Padres,  buscando-os,  confiando- 
se  delles,  e  abrandando  da  fereza  de  seus  ritos  agrestes  (que  até  brutos 
animaes  vimos  render-se  a  bem  fazer.)  Porém  he  cousa  digna  de  ser  no- 
tada, que  sendo  bastantes  estes  trabalhos  pêra  que  fossefn  remitindo  al- 
guns daquelles  bárbaros  de  outros  costumes  inveterados,  e  amigados  com 
a  natureza,  como  de  multidão  de  mulheres,  ódios,  guerras,  e  o  que  he 
mais  da  demasia  de  seus  vinhos,  com  que  de  pequenos  se  crião,  e  a  que 
são  sobre  maneira  inclinados:  com  tudo  do  vicio  abominável  da  torpe  gula 
da  carne  humana,  suavão,  e  trabalhavão  os  Padres,  e  não  podião  refreal-os, 
Desfazião-se  em  zelo  Nóbrega,  e  os  mais  companheiros,  porque  vião  a  ca- 
da passo  diante  de  seus  olhos  aquella  infanda  carniçaria,  nos  terreiros,  e 
ouvião  com  seus  ouvidos  a  solemnidade  das  festas  com  que  matavão,  e  re- 
partião  como  em  açougue  as  carnes  de  seus  inimigos;  e  não  podião  pôr 
remédio  a  tão  detestável  abuso,  deshonra  da  própria  natureza. 

49  Dous  motivos  principalmente  os  incitavão.  Primeiro,  porque  tinhão 
aquelle  pelo  manjar  mais  saboroso.,  vital,  e  proveitoso  á  natureza  huma- 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (aNNO  DE  1549)  33 

na,  de  quantos  ha  na  terra :  não  lia  carne  de  fera,  veado,  porco  montez, 
tatu,  paca,  apereyá,  comida  sua,  tão  prezada,  que  chegue  a  huma  só  posta 
de  carne  humana :  vem  a  ser  para  elles  o  fahuloso  néctar  dos  Deoses.  Com 
este  crião  os  meninos  mais  regalados ;  com  este  alimentão  os  fracos,  e 
os  enfermos  mais  enfastiados.  Contava  um  Padre  de  nossa  Companhia, 
grande  lingoa  brasílica,  que  penetrando  huma  vez  o  sertão,  chegando 
a  certa  aldeã,  achou  huma  Índia  velhíssima  no  ultimo  'da  vida;  cathe- 
quizou-a  naquellé  extremo,  ensinou-lhe  as  cousas  da  Fé,  e  fez  cumpri- 
damente  seu  oíficio.  Depois  de  haver-se  cansado  em  cousas  de  tanta 
importância,  attendendo  a  sua  fraqueza,  e  fastio,  lhe  disse  (fallando  a 
modo  seu  da  terra  : )  «Minha  avó  (assi  chamão  ás  que  são  muito 
velhas)  se  eu  vos  dera  agora  um  pequeno  de  açúcar,  ou  outro  bocado 
de  conforto  de  lá  das  nossas  partes  do  mar,  não  o  comeríeis?»  Respon- 
deo  a  velha,  cathequizada  já:  «Meu  neto,  nenliuma  cousa  da  vida  desejo, 
tudo  já  me  aborrece ;  só  huma  cousa  me  podéra  abrir  agora  o  fastio  : 
se  eu  tivera  huma  mãosínha  de  hum  rapaz  Tapuya  de  pouca  idade  ten- 
rinha,  e  lhe  chupara  aquelies  ossinhos,  então  me  parece  tomara  algum 
alento:  porém  eu  (coitada  de  mim)  não  tenho  quem  me  vá  frechar  a 
hum  d'estes.»  Parece  que  está  assas  explicado  o  appetíte  da  gente  do 
Brasil  pêra  carne  humana.  O  que  eu  tenho  para  mim  he,  que  cresce 
nelles  este  grande  desejo  de  pequenos,  á  medida  do  que  tem  de  vingar- 
se  de  seus  inimigos :  e  como  he  o  summo  da  vingança  comer-lhc  as  car- 
nes, daqui  vem  que  á  medida  do  gosto  da  vingança  nasce  com  clles  o 
da  comrida. 

oO  O  segundo  motivo  he,  o  ter-lhe  metido  em  cabeça  o  inimigo  do  gé- 
nero humano,  que  a  mór  gloria  a  que  pôde  chegar  nesta  vida  hum  homem 
valeroso,  he  cativar  vivo  na  guerra  hum  contrario  seu,  trazel-o  preso,  ma- 
tal-o,  e  comel-o  depois  em  terreiro,  com  aquellas  suas  gentílicas  ceremo- 
nias  de  ([ue  usão,  de  metel-o  em  ceva,  cntregal-o  a  velhas  que  o  engordem, 
sínalar-lhe  dia  solemne,  convidar  parentes,  o  amigos,  vestir-se  das  galas 
mais  íinas  de  suas  pennas,  sair  com  elle  a  terreiro,  jugar-lhe  as  feridas,  e 
deixal-o  morto  no  campo  a  som  de  npplausos,  c  vivas,  na  forma  que  por 
menor  dissemos  no  Livro  t."  das  (lousas  do  IJrasi  .  E  nesta  acção  tem  pêra 
si  consiste  o  m<jr  gráí)  de  nobreza  de  suas  casas,  e  famílias ;  tanto  mais 
exaillonte,  quantos  mais  forão  os  cativos,  mortos,  o  comidos,  na  forma  re- 
ferida. 

iil     Daqui  se  ptxlc  voi'  agora  a  dífíiculdade,  e  perigo,  com  que  os  nos- 

VOL.  I  '.\ 


34  LIVRO  I  DA  ClÍi\0.\ICA  DA  COMPANHIA  D12  JESC 

SOS  pretentiíão  desarreigar  desta  gciifc  tâa  inveterado  abuso  da  carne  Ííií- 
mana,  o  verse-liá  mais  em  praxe  no  caso  seguinte.  Eslavão  estes  índios  iium 
dia  celebrando  huma  das  festas  referidas,  da  morte  do  huniTapuya,  em  lumi 
terreiro  perto  de  nossos  aposentos,,  e  ouvião  os  Padres  os  gritos  descom- 
postos, os  assovios,  bater  de  pé,  e  arcos,  que  atr(j«vam  os  montes  vizi- 
nlios.  «Que  faremos?  diziam:  Cegar-nos-hemos?  Taparemos  os  ouvidos,  e  bo- 
cas ?  Seremos  como  consentidores  de  tão  enorme  offensa  de  Deos  cada  diaf 
Pêra  que  queremos  as  vidas  ?  Não  são  bem  empregadas  em  caso  tão  nota- 
veí,  tão  próprio  do  zelo  de  Christãos,  quanto  mais  do  do  Religiosos?»  Di- 
zendo isto,  remete  Kobrega,  e  seus  companheiro»:  vão-se  ao  terreiro,  bra- 
dâo  ao  Ceo,  allegão  grandes  queixas,  reprehendendo  asperamente,  e  com 
império  mais  que  humano  aquellas  infames  ceremonias,  e  detestáveis  car- 
nicerías.  Ficarão  pasmados  os  matadoi-es ;  e  em  quanto  paravão  suspen- 
sos, chegão-se  os  Padres  ao  corpo,  que  jazia  morto  entre  as  velhas,  que 
de  costume  o  havião  de  partir,  e  cozer,  arrancão-no  das  nnhas  daquelles 
íobos  carniceiros,  e  daquellas  liarpyas  cruéis.  Aqui  ficarão  mais  atónitos 
á  vista  de  resolução  tão  estranlia :  porém  então  não  houve  algum,  que  se 
atrevesse  oppor-se  aos  Padres,  que  o  levarão,  e  forão  enterrar  em  íium 
lugar  escondido  dentro  de  sua  cerca. 

52  Mas  convêm  que  esteíão  desagora  áterta  os  piedosos  roubadores, 
porque  arnía  o  inferno  contra  elles  furor  de  morte.  Aquellas  velhas  que 
dissemos,  de  cujos  dentes,  quaes  tigres  esfaimados  tirarão  os  Padres  a 
presa,  idos  elles,  levantarão  taes  alaridos  nac[uelle  terreiro,  fizerão  taes 
esgares,  disserão  taes  injurias  aos  homens,  de  infames,  covardes,  pêra 
pouco  que  deixarão  perder  a  honra  e  nobreza  de  sua  geração,  e  se- 
melhantes reprehensões ;  que  afrontados  elles,  levantarão  motim,  e  em 
forma  de  guerra  feitos  em  hum  corpo,  forão  demandar  os  Padres.  Tivera 
aviso  o  Governador  do  que  passava,  c  tinha  mandado  aos  mesmos,  que  se 
retirassem  â  cidade  (e  o  tinhão  feito  em  secreto  a  liumas  pobres  casas  do 
Ijarro,  onde  hoje  se  vê  o  Collegio ;)  e  foi  tão  fero  o  Ímpeto  com  que  dc- 
rão  os  bárbaros,  que  não  achando  já  os  Padres,  faltou  pouco  que  não  ar- 
rombassem os  muros,  o  destruíssem  a  mesma  cidade.  Foi  forçado  acudir 
o  Governador  com  todo  seu  presidio,  e  parte  com  espanto  das  armas  de 
fogo  (que  elles  admirão)  parle  com  razões  efficazes  de  eloquentes  lingoas 
houverão  de  ceder,  e  retirar-se. 

l)^  Porém  após  este,  seguio-sc  outro  acometimento  contra  os  nossos  ; 
porque  murmuravão  os  Portugueses,  e  dizião,  que  aquelle  zelo  era  indis- 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (ANNO  DE    loÍ9)  35 

creto,  que  posora  em  risco  a  cidade,  tirara  o  commercio,  e  resgate  dos 
índios,  que  era  o  remédio  dos  homens,  e  semelhantes  outras  queixas,  fun- 
dadas principahiiente  em  interesse.  Acudio  a  estas  calumnias  o  Governa- 
dor Tiiomé  de  Sousa,  como  tão  Christão:  e  logo  com  mais  eííicacia  o  mes- 
mo Deos,  de  cuja  causa  se  tratava ;  porque  passado  aquelle  nevoeiro,  e 
cólera,  despedidas  as  infames  velhas,  que  instigavão,  tornarão  em  si  aquel- 
les  bárbaros,  vierão  pedir  perdão  aos  Padres,  e  meter  terceiros  com  o 
Governador  pêra  que  lhos  mandasse,  porque  erão  seus  pais,  e  já  sabião 
que  tratavão  seu  bem,  e  prometião  emendar-se  do  abuso  da  carne  huma- 
na. Ficarão  satisfeitos  os  Portugueses,  e  ensinados  a  fiar  mais  em  Deos. 
Feito  concerto  com  esía  aldeã,  que  se  absterião  das  festas  referidas,  fica- 
rão os  Padres  contentíssimos :  porém  havia  outras  muitas,  independentes 
desta,  que  não  querião  estar  por  elle.  Que  remédio  ?  (lembrados  da  dou- 
trina de  S,  Paulo  a  Timotheo,  e  Tito,  que  no  emendar  erros  alheios  pro- 
cedamos com  suavidade ;  e  da  de  Christo  Redemptor  nosso,  que  quando  se 
vissem  os  Apóstolos  entre  lobos  tragadores  de  carne  humana,  então  se  hou- 
vessem como  cordeiros.)  Forão-se  ter  com  os  Prineipaes,  e  celebrarão 
amigável  contralto  com  elles,  que  pelo  menos  seria  licito  aos  Padres  entrar 
nas  cadeas  dos  presos  que  estavão  á  ceva  a  faltar  com  elles,  e  cathequi- 
zal-os.  Em  virtude  deste  consentimento,  tinlião  os  Padres  em  cada  aldeã 
posto  vigias,  e  andavão  alerta  de  huma  em  outra,  cathequizando,  pratican- 
do, e  bautizando  os  que  havião  de  sahir  a  terreiro ;  assi  como  entre  os 
Portugueses  tratão  os  mesmos  Padres  com  os  que  sahem  a  ser  justiçados, 
e  em  chegando  ao  lugar  do  sui)plicio,  deixão  fazer  o  algoz  sua  obrigação. 
Porém  isto  mesmo  invejou  o  inimigo  da  salvação  dos  homens :  meteo  em 
cabeça  a  esta  gente  ignorante,  que  aquella  agoa  do  bautismo  tirava  o  gos- 
to ás  caiTies  dos  padecentes,  por  mais  que  elles  os  engordassem :  c  apre- 
hendida  esta  persuação,  de  nenhuma  maneira  consentirão  mais  que  os  Pa- 
dres fizessem  tal  ofíicio,  rescindindo  lodo  o  contralto  ((pie  esta  hc  a  pala- 
vra de  bárbaros.) 

iii  Dura  cousa  parecia  aos  Padres  ver  com  seus  olhos  morrer  gente 
humana,  capaz  da  bemavenlurança,  e  não  poder  acudir-liie  com  o  remé- 
dio único  da  salvação:  pêra  mel(M'  mais  cabedal,  era  arriscar  maiores  es- 
peranças (lembrados  bem  das  revoltas  passadas;)  que  se  pêra  huma  aldeã 
em  que  só  residião,  teve  eITeito,  não  podia  prudentemente  esparar-se  o  ti- 
vesse cm  todas ;  poríjue  nem  s.íuipre  Deos  faz  milagres.  Gom  outra  traça 
sahirão  (dopois  do  encomnicndado  o  negfjcio  a  Deos)  c  foi  a  seguinte.  Qunn- 


;jfi 


LIVHO  I  DA  CimOMCA  DA  CO^IPAMIIA  DE  JESL' 


(lo  sabiao,  que  om  alguma  daquellas  aldeãs  havia  de  haver  padecente,  híáo 
então  a  visital-a,  e  estando  lá  como  acaso,  pedião  licença  pêra  ir  ao  ter- 
reiro, com  protesto  de  ver  aquellas  suas  musicas,  e  danças :  e  como  esta 
gente  se  preza  muito  de  que  os  A])arés  (i\sú  chamão  aos  Padres)  lhe  ga- 
bem seus  bailes,  e  vozes  quando  cantão,  c  muito  mais  que  se  dignem  de 
serem  presentes  a  ellas ;  no  ponto  que  alH  os  vião,  cheios  de  vangloria,  do 
tal  maneira  se  imbebião  na  festa,  que  descuidavão  por  algum  espaço  do 
padecente ;  e  logo  na  tal  occasião  chegava-se  algum  delles  ao  justiçado,  e 
dava-lhe  alli  brevemente  o  melhor  que  podia  noticia  de  nossa  Santa  Fé,  per- 
suadindo-o  á  contrição  de  seus  peccados,  e  a  pedir  o  sacramento  do  bau- 
íismo ;  e  feito  isto,  tirando  de  hum  lenço,  que  levava  ensopado  em  agoa, 
e  espremendo-lho  sobre  a  cabeça,  dizendo  a  forma  do  bautismo,  o  deixa- 
va Christão ;  e  triumphava  com  esta  santa  invenção  dos  embustes,  com 
que  o  inimigo  infernal  enganava  esta  pobre  gente  :  e  com  isto  por  então 
se  contentavão  estes  zelosos  trabalhadores,  até  melhor  occasião. 

Além  do  caso  do  perigo  acima  referido,  houve  outro,  em  que  os 


00 


índios  começarão  a  conceber  maior  conceito  das  cousas  dos  Padres.  Tinhão 
elles  outro  impedimento  notável  de  grandes  feiticeiros,  em  cujas  mãos  as$i 
&G  entregavão,  que  tudo  quanto  lhes  dizião,  tinhão  por  verdadeii-o,  e  zom- 
Ijavão  de  qualquer  outro  ditto  contrario,  com  prejuizo  grande  da  doutrina 
christãa.  Entre  estes,  hum  era  o  mais  estimado,  e  como  cabeça  de  todos 
respeitado,  qual  outro  oráculo  de  Apolo :  tinha-se  por  filho  de  Deos,  e 
cí)nio  tal  mudava  os  elementos,  dava  respostas  de  cousas  futuras,  tingia 
medicinas,  e  dominava  em  tudo  com  tal  império,  e  authoridade,  que  fa- 
zia tremer  hum  só  aceno  seu :  e  com  estes,  e  semelhantes  embustes,  des- 
viava os  simples  índios  da  doutrina  da  verdadeira  Fé.  A  este  tão  grande 
feiliceiro  chamou  a  desafio  o  Padre  Nóbrega,  obrigando-o  com  força  de 
in.iperio  superior,  a  que  sahisse  a  terreiro :  não  pode  escusar-se  o  fingido 
filho  de  Deos :  prepararão-se  as  cousas,  apellidou-se  gente,  que  concoiTco 
som  numero  a  ver  cousa  tão  nova.  Eis  que  chega  a  entrar  em  theatro  o 
grande  feiticeiro,  mui  autorizado,  e  acompanhado,  assoberbando  aqaelle 
ajuntamento,  batendo  pé,  fi  fazendo  visagens.  Sahio  pelo  contrario  o  Pa- 
dre Nóbrega  sem  companhia,  humilde,  e  sereno;  e  chegando-se  a  elle,  fez 
lhe  só  a  pergunta  seguinte,  mas  com  grande  espirito.  «Dize-me,  quem  te 
dou  o  poder,  com  que  obras  as  cousas  que  ouço  de  ti,  sendo  tu  criatura 
como  qualquer  das  mais  ?»  Sua  resposta  foi  chea  de  soberba,  e  com  voz 
arrogante :  Que  elle  tinha  o  poder  de  si  mesmo ;  porque  era  íliho  de  Disos, 


BO  ESTADO  DO  BRASII.  (aNNO  DE    loiO)  3|- 

que  mandava  os  elementos,  e  morava  no  alto ;  que  como  a  filho  o  reco- 
nhecia, e  se  lhe  mostrava  entre  as  nuvens,  e  entre  os  temerosos  trovões 
lhe  communicava  o  que  havia  de  dizer,  e  fazer.  Entrou  em  fervor  o  zelo 
abrazado  de  Nóbrega,  ouvindo  tal  blasphemia,  e  pondo  os  olhos  como  afo- 
gueados no  feiticeiro,  deu  hum  alto  brado,  exclamou  ao  Ceo,  e  arrazoou  em 
breves  palavras,  m;is  com  tal  eíTicacia,  que  ficou  convertido  o  bárbaro, 
lançou-se  a  seus  pés,  e  confeí^sou  em  publico  seus  erros,  pedindo  perdão, 
e  ser  admitido  á  doutrina  dos  Padres. 

56  Lançou-lhe  Nóbrega  os  braços,  e  feita  huma  pratica  ao  povo  sobre 
o  engano  da  seita  que  que  seguião,  e  desengano  da  Fé  que  professamos, 
recolheo  o  arrependido,  cathequizou-o,  bautizou-o,  e  perseverou  elle  por 
toda  a  vida,  com  esperanças  de  sua  salvaçãp.  E  o  que  foi  mais,  que  ren- 
dido este  Achilles,  se  renderão  com  elle  oitocentos  do  mais  granado  de 
seus  sequazes,  e  como  discípulos  na  mesma  arte  :  cento  dos  quaes,  pêra 
maior  solemnidade  o  acompanharão  no  bautismo  em  hum  mesmo  dia,  com 
a  mór  festa,  e  apparato,  que  dava  lugar  a  possibilidade  do  t«mpo.  E  foi 
este  o  primeiro  bautismo,  que  até  então  se  solemnizára  publicamente.  Os 
setecentos  ficarão  cathecumenos,  se  bem  violentados  por  então  seus  dese- 
jos, á  vista  daquella,  que  tinlião  já  por  grão  felicidade.  Virão  com  tudo, 
pouco  depois,  o  cumprimento  delles,  com  grande  jubilo  de  suas  almas,  e 
não  menor  exemplo  pêra  os  demais. 

í)7  Deu  muito  que  fazer  ao  inferno  ver  tantas  almas  convertidas  em 
tão  breve  espaço  :  receava  que  de  centos  viessem  a  milhares,  e  viesse  a 
ser  privado  elle  do  domínio  de  tão  grande  gentilidade.  Sahio  com  enredo 
terrível ;  porque  o  mesmo  foi  acabar  de  bautizar-se  a  primeira  centena, 
que,  descer  sobre  todos  tal  fogo  de  doença,  que  parecia  peste.  Aqui  co- 
meção  a  descorçoár  os  mais  fracos  ;  porque  os  que  ainda  não  esta  vão  ren- 
didos, os  remoqueavão  dizendo,  que  aqueíle  mal  vinha  do  Alto,  porque 
deixavão  seus  antiguos  costumes  ;  que  nascia  da  .agoa,  em  (|ue  forão  mo- 
lhados ;  que  havia  de  durar  muitos  tempos  ;  que  todos  havião  de  perecer 
(jue  o  remédio  era  fugir,  e  deixar  os  engaiKts  dos  Parhes.  Porém  ficou  o 
inferno  frustrado  ;  poique  se  lhe  op(jz  o  zelo  de  Nóbrega,  e  empenhou 
sua' palavra,  que  passaria  em  ])\v\v  tempo  a  doença:  e  virão-no  em  eíTeito; 
porque  applicaiido  (j  remédio  de  sangrias,  qu(^  esta  gente  até  então  não 
usava,  e  juntamente  de  procissões  ao  Ceo ;  antes  de  poucos  dia«  cassou  a 
oppressão,  ficou  convencida  a  mentira  dos  calumniadores,  e  a  verdade  de 
Nóbrega  autorizada. 


8g  LIYllO  I  DA  CIIRONíCA  DA  COMPANUÍA  DE  JESU 

58  Estando  as  cousas  da  Bahia  neste  estado,  chegarão  novas,  que  na 
Capitania  de  S.  Vicente,  distante  240  legoas,  correndo  a  costa  á  parte  do 
Sul,  havia  grande  desamparo  da  doutrina  christã ;  porque  os  Portugueses, 
que  alli  já  estavão,  e  começavão  a  povoar  lugares,  vivião  a  modo  de  gen- 
tios ;  6  os  gentios  com  o  exemplo  destes,  hião  fazendo  menos  conceito  da 
Lei  dos  Christãos :  e  sobre  tudo,  que  vivião  aquelles  Pprtugueses  de  hum 
trato  villissimo,  salteando  os  pobres  Índios,  ou  nos  caminhos  ou  em  suas 
terras,  sendo  muitos  destes  Christãos,  bautizados  por  certos  Religiosos  do 
Patriarcha  S.  Francisco,  Castelhanos,  que  por  successos  de  viagem,  tinhão 
estado  com  elles  algum  tempo,  na  paragem  a  que  chamão  dos  Patos :  que 
todos  estes  fazião  sous  escravos,  servindo-se  delles,  e  avexando-os  contra 
toda  a  lei  de  razão.  Pelo  que  pedião  homens  desinteressados ;  que  fossem 
alguns  Religiosos  a  compor  cousas  tão  importantes  de  Portugueses,  e  do 
índios. 

59  Magoou  altamente  o  coração  de  Nóbrega  esta  proposta :  poz  em 
consulta  a  resposta  delia:  representa  vão-se  razões  por  huma,  e  outra  par- 
te :  pêra  não  irem  se  arrazoou  assi.  Que  na  conquista  temporal,  a  pru- 
dência que  fosse  acommetendo  o  capitão,  segundo  o  numero  de  soldados 
que  tinha :  e  quando  este  era  pequeno,  que  hão  convinha  dividir-se,  por- 
que enerva  a  divisão  as  forças  do  exercito ;  e  a  victoria  que  junto  elle  se 
promete,  arrisca-se*  estando  di\idido.  Pois  logo,  se  de  conquista  a  conquis- 
ta, e  de  prudência  a  prudência,  se  argumenta  bem ;  nesta  nossa  conquis- 
ta espiritual,  achando-nos  nós  com  tão  pequeno  numero,  como  he  o  de  seis 
soldados  não  mais,  e  estando  em  campo,  á  vista  de  tão  immensa  barbaria, 
ainda  por  vencer ;  que  prudência  pede,  que  deixando  de  acommetler  to- 
dos em  hum  corpo,  pêra  alcançar  de  huma  vez  huma  boa  vitoria,  nos  di- 
vidamos, e  enfraqueçamos,  com  acommetimentos  diversos  ?  Vençamos  pri- 
meiro esta  empresa,  e  depois  voltaremos  as  armas  vitoriosas  a  outra.  Não 
pôde  ser  maior  em  nós,  que  em  Christo,  o  zelo  de  conquistar  .as  almas : 
pois  esta  mesma  foi  sua  praxe ;  não  acudio  ás  demais  províncias  do  mun- 
do, antes  de  haver  conquistado  a  de  Judea,  por  onde  começou.  Com  todos 
seus  Apóstolos  juntos  acommeíeo  aqaella  principal  parte  da  terra,  e  de- 
pois de  ganhada,  e  presidiada  então  dividio  o  exercito,  de  dous  em  dous 
soldados,  a  consquistar  as  outras  partes.  A  força  áe  toda  esta  razão  nos 
mostrará  o  exemplo  no  eíTeito.  Ponhamos,  que  de  seis  que  somos  vão  dous 
a  S.  Vicente :  com  quatro  que  ficão,  como  será  possível  acudir  ao  Gover- 
nador que  nos  trouxe,  a  Portugueses  que  nos  possuem,  a  pregações,  con- 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (a.NXO  DE    13'l-9)  39 

fissões,  e  mais  nocessidados  da  lerra  ?  E  como  sei'á  possivol  (que  lie  o  q«e 
mais  fóira)  poder  acudir  a  Ião  diversas,  e  numerosas  povoações  de  índi- 
as, que  só  peia  huma  vez  visitai-las,  são  necessários  muitos  obreiros,  quau- 
co  mais  i^eni  convertei-las  ?  Sobre  t#do,  porque  a  estes  da  Bahia  em  pri- 
meiro lugar  somos  mandados  por  nosso  Patriarclia  Ignacio,  c  |X)r  nosso 
Padre  ]\í.  Simão  ;  e  estando  elles  de  pos,se  de  nós,  e  nós  delles,  com  quo 
razão  faltaremos  a  estes  presentes,  por  acudir  a  outros  distantes,  e  a  quem 
não  estamos  ainda  obrigados  ?  Melhor  parece  que  esperemos  o  soccorro 
do  Reino,  que  não  pôde  tardar ;  e  com  melhor  acerto  então  acudiremos  a 
huma,  e  outra  parte. 

GO  Parecião  estas  razões  efficazes,  mas  não  aquietava  com  cilas  a  gran- 
de confiança  de  Nol)rega.  Ha  muita  dilTerença  (dizia  pela  parte  contraria) 
entre  a  conquista  temporal,  e  espií-itual :  naquella  depende  o  successo  do 
esforço,  e  braço  dos  soldados  :  na  espiritual,  do  esforço,  e  braço  de  Deos: 
aquella  conquista  he  violenta,  esta  he  voluntária.  Esforce  Deos  hum  cora- 
ção, e  com  hum  só  brado,  com  hum  só  pregão  do  Cco,  da  outra  vida,  e 
dos  bens,  e  males  eternos,  poderá  render  muitas  mil  almas,  sem  mais 
ajuda  de  companlieiro  algum,  querendo  ellas.  E  se  Deos  não  dér  o  esfor- 
ço, ou  ellas  não  quizerem,  não  bastarão  todos  os  coUegios  de  Europa.  Hum 
só  soldado  basta,  hum  só  vale  i)or  grandi^s  exércitos,  aonde  entra  o  esfor- 
ço de  Deos,  e  o  querer  dos  homens.  Hum  só  brado  de  hum  Bautista  foi 
!)astante  pêra  calhequizar  tantas  gentes,  pêra  o  recel)imento  de  Christo: 
hum  só  Apostolo  era  bastante  cm  cada  qual  das  provindas  do  mundo.  Haja 
em  nós  espirito  de  Apóstolos,  e  bastará  a  pregação  de  qualquer  pêra  con- 
verter a  gentilidade  toda  do  Brasil.  Não  pergunta  esta,  (juantos  são  os  ijue 
vem?  mas,  que  he  o  que  diz,  o  que  prega?  E  basta  que  "este  os  convença, 
pêra  que  logo  íiíjuem  ganhados.  Seis  somos  aqui,  que  podem  ir  a  seis  par- 
les diversas  do  Brasil,  a  gritar  })or  esses  campos,  essas  brenhas?  Salvação, 
salvação  eterna!  Quantomais,  (jtic  se  agora  damos  dous,  não  será  Deos  es- 
<-aço  em  dar-nus  dej)()is  quatro,  (juando  mentjs  cuidarmos. 

01  Imii  virtude  da  resolução  acima  referida,  avisou  o  Padre  .Manoel  de 
Nóbrega  pcra  a  empi-esa  de  S.  Vicente  ao  Padre  Leonardo  Nunes,  varão  de 
grande  satisfação,  e  provada  virtude,  de  íjiieni  esperava  grandi*  elfeitos,  e 
ao  Irmão  Diogo  Jacome  |>era  seu  compaiilieií-o.  Aceitou  elle  a  missão,  como 
da  parte  do  mesmo  Deos :  e  havidas  as  ordens,  c  diiecção  do  que  havia 
de  guardar,  assi  do  Superior,  como  também  do  Governador  Tlitmié  de  Sou- 
sa (í)  qual  lhe  encomendou  muito  a  liberdade  dos  Índios  salteados  e  llie 


40  LlVnO  I  DA  CIir.ONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

deu  provisões  eíTicazes  pêra  em  sen  nome  os  fazer  ajuntar,  e  restituir  á 
liberdade;)  partio  da  Bahia  ao  1."  de  Novembro  de  15i9,  fez  escala  á  po- 
voação do  Espirito  santo  (que  já  então  era  principiada;)  aqui  ajuntou  alguns 
índios  na  forma  das  provisões  referidns:  e  recebeo  pêra  noviço  ao  irmão 
MatheusNogueira,  ferreiro,  de  quem  depois  diremos,  e  tornou  a  partir-se. 
Porém  em  quanto  prosegue  viagem,  demos  noticia  da  Capitania  aonde  he 
mandado. 

62  Esta  Capitania  de  S.  Vicente  foi  das  primeiras  do  Brasil.  Está  em 
altura  de  24  grãos  e  meio,  correndo  pela  costa,  do  trópico  Austral  pêra 
a  parte  do  pólo. A  região  he  alegre,  aprazível,  e  saudável :  tem  variedade 
de  verão,  e  inverno,  fora  do  commum  de  toda  a  outra  terra  do  Brasil  del- 
ia pêra  o  Norte,  com  os  mesmos  frios,  e  calmas,  que  se  experimentão  na 
Europa,  com  mais  rigor  pela  terra  dentro :  trocadas  porém  as  cesões ;  por- 
que o  verão,  são  os  seis  mezes  do  inverno,  e  o  inverno  são  os  seis  mezes 
do  verão  do  clima  de  Europa  (que  assi  soube  trocar  as  mãos  o  Autor  da 
natureza  pêra  os  fins  que  pretendia.)  O  terreno  he  fertilissimo,  não  só  dos 
frutos  communs  do  Brasil,  mas  dos  frutos,  frutas,  e  flores  melhores  de  Eu- 
ropa :  especialmente  se  fermosea  de  abundantes  searas  de  trigo,  e  fecundas 
vinhas.  Os  campos  recreão  os  olhos,  igualmente  vestidos  de  erva,  flores, 
e  gado  em  numero  excessivo,  e  de  todos  os  géneros.  He  a  fartura  de  todo 
o  Estado  de  carnes,  e  trigo,  esta  Capitania :  e  pode  dizerse  delia  (o  que  lá 
disse  Itaha  da  fértil  Sicília  em  comparação  do  povo  Romano)  que  he  o  ce- 
leiro de  todo  o  Brasil.  As  entranhas  de  toda  aquella  terra,  são  minas  de 
todo  o  género  de  metaes,  principalmente  ouro,  e  deste  se  bate  hoje  m.oe- 
da,  e  se  espera  venha  a  ser  esta  parte,  outro  rico  Peru,  ou  Potosí. 

63  Seu  fundador  foi  Martim  Affonso  de  Sousa,  fidalgo  de  partes  co- 
nhecidas (que  depois  foi  Governador  na  índia,  levou  comsigo  pêra  ella  o 
grande  Apostolo  do  Oriente,  o  Santo  Padre  Francisco  Xavier,  e  nella  obrou 
cavallarias  dignas  de  historia.)  A  este  tinha  El  Rei  concedido  nesta  costa 
huma  Capitania  de  cincoenta  legoas,  e  outra  de  outras  tantas  a  seu  irmão 
Pêro  Lopes  de  Sousa.  A  povoar  a  sua  partio  Maríim  Affonso  com  huma 
Armada,  feita  á  própria  custa,  com  que  andou  sondando,  e  demarcando 
todos  os  portos,  rios,  e  enseadas,  que  correm  até  o  famoso  Rio  da  Prata 
(em  cujos  baixos  deixou  perdida  huma  náo)  saindo  em  terra,  pondo  nemes, 
metendo  marcos,  e  tomando  posse  por  El  Rei  de  Portugal.  Tornou  a  voltar 
á  paragem  já  ditta  de  24  grãos  e  meio,  e  nella  fundou  huma  villa,  a  que 
poz  nome  S.  Vicente  (donde  depois  o  tomou  toda  a  Capitania)  junto  a  hum 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (aNNO  DE   \í)'i9)  4| 

porto  capaz,  e  fermoso,  que  senhorea  duas  ilhas,  que  fazem  duas  barras: 
a  do  Norte  fortificou  com  Imma  torre,  que  chamão  da  Biritioga :  a  do  Sul 
com  outro  forte,  pêra  defensão  daquelle  tempo  ambas  bastantes.  Na  mes- 
ma ilha,  em  distancia  como  de  duas  legoas  da  de  S.  Vicente,  fundou  outra 
villa,  a  que  chamão  de  Santos:  e  outras  em  outras  paragens  com  gente  que 
trouxe  de  Portugal  (não  fallo  de  outra,  que  então  se  fez  em  Guibé,  porque 
esta  fundou-se  na  demarcação  da  data  de  seu  irmão  Pêro  Lopes  de  Sousa, 
que  com  elle  viera,  e  morreo  afogado  no  mar.)  Esta  villa  de  S.  Vicente 
foi  a  primeira,  em  que  se  fez  açúcar  na  costa  do  Brasil,  e  donde  as  outras 
Capitanias  se  proverão  de  cana  pêra  planta,  e  de  vacas  também  pêra  cria- 
ção. 

G4  Habitara  o  distrito  desta  Capitania  até  o  tempo  da  ditta  fundação, 
multidão  grande  de  índios  bárbaros,  os  quaes  á  força  das  armas  Portugue- 
sas se  forão  afastando,  e  habitando  como  hoje  habitão,  pêra  a  banda  do 
Sul,  até  as  correntes  do  Rio  da  Prata.  A  primeira  nação  destes,  he  a  dos 
Goayanazes;  a  segunda  dos  Carijós,  dos  Patos,  e  dahi  em  diante  nações 
de  Tapuyas  diversas,  de  cujos  sitios,  naturezas,  terras  fecundíssimas,  e 
abundantíssimas  de  gado,  sobre  todas  as  outras  do  Brasil,  dissemos  no 
Livro  primeiro  das  Cousas  curiosas  da  terra  do  Brasil. 

65  Os  costumes  dos  Portugueses  moradores,  que  então  se  achavão  nes- 
tas villas,  vinhão  a  ser  quasi  como  os  dos  índios;  porque  sendo  Christãos, 
vivião  a  modo  de  Gentios.  Na  sensualidade  era  grande  sua  devassidão,  aman- 
cebando-se  ordinariamente  de  portas  a  dentro  com  suas  mesmas  índias,  ou 
fossem  casados  ou  solteiros.  Não  se  estranhava  transgressão  dos  preceitos 
da  Igreja,  nem  havia  fallar  em  jejum,  nem  em  abstinência  de  carne,  e  mui- 
to pouco  nos  sacramentos  necessai-ios  pêra  a  salvação:  homens  havia  que 
desde  que  entrarão  na  terra,  se  não  tinhão  confessado,  nem  commungado. 
Vivia-se  de  rapto  dos  índios,  era  tido  o  ollicio  de  assalteal-os  por  valentia, 
e  por  elle  eião  os  homens  estimados;  o  sobretudo  sem  prelado,  sem  pre- 
gador, sem  quem  zelasse  da  parte  de  Deos  tantos  males. 

06  Fste  era  o  estado  das  cousas  daquella  Capitania,  quando  chegou  a 
ella  o  Padre  Leonardo  Nimes.  Lançou  ferro  no  porto  da  villa  de  S.  Vicen- 
te; e  tanto  que  foi  saíjida  a  nova,  que  eião  ciiegados  dous  Religiosos  da 
Companhia,  não  se  pôde  explicar  o  grande  alvoroço  de  todos  (qual  o  de 
perigosos  enfermos,  á  vista  do  Medico  de  fama.)  Ojnc^rrèrão  á  embarca- 
ção, forão  levados  com  applauso  de  grandes,  c  pequenos;  huns  lhes  beija- 
vão  o  bordão,  outros  a  roupeta,  outros  lhe  pediãí)  a  benção,  como  de  ho- 


42  LIVRO  I  DA  CHRO.NICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

mens  vindos  tio  Ceo  pêra  remédio  seu  (((iie  sempre  o  prudente  enfermo 
estima  o  Fisico,  ainda  que  seja  á  conta  de  mezinhas  penosas.)  Começarão 
a  fabricar-lhes  casas,  e  Igreja,  folgando  cada  hum  de  intervir  no  traballio 
delias,  trazendo  as  madeiras,  e  mais  matérias  a  seus  próprios  hombros,  ain- 
da os  mais  graves  da  terra,  como  pêra  cousa  sagrada. 

67  Já  tinha  sido  informado  o  novo  Missionário  do  estado  da  terra;  e 
considerando  a  muita  necessidade  daquelles  Portugueses,  resolveo-se  tratar 
em  primeiro  lugar  de  ajudal-os,  c  depois  aoslndios:  assi  porque  lie  conse- 
lho este  de  hum  dos  grandes  Missionários  que  teve  a  Igreja,  o  Apostolo 
S.  Paulo,  que  devemos  primeiro  trabalhar  pelos  que  são  de  nossa  Fé,  o 
depois  pelos  de  fora  delia ;  como  também  porque  da  conversão  dos  Portu- 
gueses dependia  em  muita  parte  a  dos  índios. 

68  Era  o  Padre  Leonardo  Nunes  varão  descarnado  de  todos  os  affe- 
ctos  humanos,  mortificado,  pobre,  humilde,  prudente,  paciente,  e  sobre  tu- 
do dotado  de  grande  zelo  de  espirito.  Este  foi  o  primeiro  motivo,  que  ti- 
verão  aquelles  moradores  pêra  entrar  em  mudança  de  vida,  o  testemunho 
inculpável  daquelle  seu  Mestre.  Vião  o  Padre  Leonardo  passar  por  suas 
portas  pedindo  de  esmola  o  de  que  havia  de  sustentar-se,  em  pobres  ves- 
tidos, e  talvez  descalço,  ou  com  alpargatas  de  cardos;  e  era  este  hum  es- 
pertador, que  lhes  batia  juntamente  á  porta,  e  ao  coração.  Vião-no  pelas 
praças,  pelas  praias,  pelos  campos,  ensinando  a  doutrina,  e  explicando  a 
obrigação  de  Ghristãos,  a  seus  filhos  e  escravos,  e  á  volta  destes  aos  se- 
nhores ;  e  envergonhavão-se  do  mal  que  tinbão  correspondido  nesta  matéria. 
Vião-no  na  casa  do  pobre,  do  rico,  do  justo,  do  peccador,  do  sensual,  do 
que  afrontou,  do  que  espancou,  do  que  salteou,  e  que  acabava  gi^andes 
effeitos  nas  emendas  das  vidas,  alcançava  perdoens,  fazia  amizades;  e  com- 
pungião-se  aquelles,  que  achavão  em  si  defeitos  iguaes,  e  não  vião  eííeitos 
semelhantes.  Vião-no  su  ir    ao  púlpito,  fallar  da  outra  vida,  do  premio 
dos  bons,  e  castigo  dos  máos,  da  fealdade  do  peccado,  e  seus  grandes 
perigos ;  e  dizião,  que  era  hum  S.  Paulo,  ou  hum  proplieta  mandado  de 
Deos  a  converter  aquelles  povos.  Vião  por  fim  aquella  caridade  solicita, 
com  que  acabava  de  dizer  missa,  e  pregar  a  hum  povo,  e  na  mesma  ma- 
nhãa  tornava  a  dizer  missa,  e  pregar  a  outro  distante  duas,  e  três  legoas, 
por  acudir  a  todos  na  grande  falta  que  havia  de  Sacerdotes:  e  era  tal 
o  espirito,  e  pressa,  com  que  corria  os  lugares  circunvizinhos,  a  pezar  de 
frios,  neves,  e  calmas  excessivas,  que  vierão  a  por-lhe  por  nome  na  lingoa 
do  Brasil.  Abaré  Bebé,  que  quer  dizer  «Padre  que  voa.» 


DO  KSTADO  DO  BRASIL  (aNNO  DE  1549)  43 

G9  Com  estes  exemplos  que  os  homens  vião,  e  como  com  outras  tan- 
tas vozes  di)  Ceo,  despertadoras  dos  corações,  assi  se  forão  melhorando 
as  vidas  daquelles  moradores,  que  dá  testemunho  o  venerável  Padre  Joseph 
de  Anchieta  contemporâneo  seu,  que  em  muito  breve  tempo  trocou  aquel- 
les  povos  de  maneira,  que  parecião  outros;  tirando  os  homens  da  ceguei- 
ra em  que  vivião,  desarreigando-os- da  sensualidade,  lançando-lhes  de  casa 
as  occasiões,  casando-os  com  as  próprias  amigas,  fazendo-lhes  largar  o  abu- 
so de  saltear  os  índios  (a  mór  fineza  a  que  então  podião  chegar:)  já  guar- 
da vão  os  preceitos  da  Igreja,  já  confessaváo,  e  commungavão  de  oito  em 
oito,  e  de  quinze  em  (phnze  dias,  com  tal  mudança,  que  se  estranhavão  a 
si  mesmos,  e  dizião,  que  se  espantavão  de  como  Deos  os  não  sovertéra  no 
estado  primeiro,  e  que  no  Padre  Leonardo  lhe  administrara  hum  propheta 
que  os  alumiara,  que  fora  aquella  a  conversão  de  Ninive,  etc.  Todas  reso- 
luções mostradoras  de  corações  trocados,  e  todas  em  substancia  testemu- 
nhadas pelo  Padre  Joseph  em  seus  apontamentos. 

70  Pêra  melhor  ajTida  dos  Portugueses,  e  pêra  melhor  acudir  também 
aos  índios,  que  perecião  em  sua  gentilidade,  começou  o  Padre  Leonardo 
a  receber  alguns  noviços,  dos  quê  sabião  bem  a  lingoa  brasílica,  ou  a  po- 
dião aprender  facilmente.  Admittio  em  primeiro  lugar  a  Pedro  Corrêa,  e 
Manoel  de  Chaves,  homens  principaes,  moradores  da  terra,  de  muitos  an- 
nos  do  Brasil,  e  muito  grandes  lingoas:  e  logo  após  estes,  alguns  moços 
pequenos,  iissi  Europeos,  como  mestiços.  Entre  estes,  os  que  principalmen- 
te provarão,  forão  dous,  Leonardo  do  Valle,  e  Gaspar  Lourenço.  De  todos 
irá  faltando  a  Historia  em  seus  lugares,  porque  forão  grandes  sogeitos  na 
conversão  dos  índios.  Com  estes  novos  companheiros  vivia  o  Padre  Leo- 
nardo em  grande  observância,  e  rigor  de  vida,  com  continua  pobreza,  e 
mortificação,  pedindo  pelas  ruaa  esmola  pêra  seu  sustento,  de  dous  em 
dous,  com  grande  edificação  do  povo.  Sahião  a  fazer  doutrina  pelos  luga- 
res, e  pelos  campos,  especialmente  a  mestiços,  e  índios:  pêra  cujo  effeito 
foi  pondo  o  Irmão  Pêro  Corrêa  em  eslylo  da  lingoa  nalui"al  da  lerra  a  sum- 
ma  da  doutrina  christãa,  pela  qual  ensinavão  com  fruto  das  almas. 

71  Não  havia  junto  ao  mar  povoações  de  índios  (principal  intento  da 
missão,)  nem  era  conveniente  ainda  largar  os  Portugueses:  deu  em  huma  tra- 
ça a  caridade  engenhosa  do  P.  Leonardo;  poz-sc  a  caminho  cm  companhia 
de  hum  dos  mais  robustos  Irmãos,  bom  lingoa,  e  atravessou  a  pé  aquellas 
fragosas  serranias,  de  que  já  falíamos,  naquelle  tempo  mais  bravias,  e  das 
aldeãs  de  gentios,  que  por  ariuellas  mattas  vivião:  teve  poder  com  sua  au- 


44  UYnO  I  DA  CHRONICA  DA  COMPANinA  DE  lESU 

taridade,  ajudada  da  lingoa  eloquente  do  companheiro,  pêra  negociar,  6|ue 
lhe  entregassem  os  filhos  pequenos,  porque  queria  trazel-os  comsigo  pêra  o 
mar,  e  ensinar-lhes  entre  os  Portugueses  as  cousas  da  Fé,  e  dar-lhes  a  agoa 
do  bautismo.  Dura  cousa  accommeteo  o  Padre ;  porque  o  mesmo  he  a  esta 
gente  arrancar-lhes  os  filhos,  que  arrancar-lhes  o  coração;  porém  entrava 
aqui  a  mão  de  Deos:  elles  os  entregarão,  e  o  Padre  os  trouxe  em  grande  nu- 
mero, quaes  ovelhinhas,  á  Casa  de  S.  Vicente,  em  a  qual  com  outros  mes- 
tiços da  terra,  e  alguns  órfãos  vindos  de  Portugal,  formou  hum  seminário, 
onde  os  nossos  lhes  ensinavão  a  fallar  portuguez,  ler,  escrever  e  ainda  la- 
tim a  alguns  mais  hábeis;  e  a  volta  de  tuda  os  bons  costumes,  e  doutrina 
christãa:  e  foi  traça  de  grande  importância;  porque  com  este  cevo,  ou  an- 
zol dos  filhos  dos  índios  feitos  Christãos,  se  atrahião  depois  os  pais  com 
mais  facilidade  a  imital-os,  e  deixar  os  ritos  de  sua  barbaria. 

72  Huma  diíTiculdade  se  offerecia :  que  pêra  sustentar  tanta  gente,  era 
grande  a  pobreza  da  Casa,  e  ainda  da  terra :  nem  erão  bastantes  as  esmo- 
las, que  de  porta  em  porta  pedião.  Pêra  remédio  d'esta  necessidade  acu- 
dirão os  Irmãos  com  suas  traças:  inventarão  oíTicios  mechanicos,  com  que 
pudessem  ajudar.  O  Irmão  Diogo  Jacomê  levantou  hum  torno  de  pé,  sem 
mais  noticia  do  oíTicio,  que  a  que  llie  deu  a  engenhosa  caridade ;  e  no  tem- 
po escuso  das  mais  occupacões,  fazia  coroas,  e  rosários  de  páo,  que  repar- 
tia por  devotos,  e  cedião  também  em  proveito  da  Casa.  Outros  Irmãos 
aprendião  a  fazer  alpargatas  (porque  então  erão  mui  poucos  os  çapatos) 
que  repartião  por  alguns  dos  homens  ordinários,  e  de  que  usavão  pêra  ca- 
minhos ásperos.  O  modo  de  as  fazer  era  este :  hião  ao  campo,  trazião  cer- 
tos cardos,  wi  caragoatás  bravos,  lançavam-nos  na  agoa  por  15  ou  20  dias, 
até  que  apodrecião :  doestes  tirávão  estrigas  grandes,  como  de  linho,  e  mais 
rijas  que  linho,  e  delias  fazião  as  dittas  alpargatas  que  erão  seus  çapatos. 
Outro  se  fez  official  de  carpintaria,  sem  (fue  nunqua  aprendesse,  com  tal  ha- 
bihdade,  que  fez  por  suas  mãos  muitas  casas,  e  Igrejas  nossas  em  S.  Vi- 
cente, e  depois  no  Rio  de  Janeiro,  sendo  já  Sacerdote.  O  Irmão  Matlteus 
Nogueira,  que  com  o  P.  Leonardo  viera  do  Espirito  santo,  usava  também 
do  officio  que  no  século  tinha  de  ferreiro,  fazendo  anzóes,  cunhas,  facas,  e 
o  mais  género  de  ferramenta,  com  que  acudia  gi\indemente  ao  sustento  dos 
meninos,  e  casa.  E  d'este  tempo  ficou  introduzido,  trabalharem  os  Irmãos 
em  alguns  oíficios  mecânicos,  e  proveitosos  á  communidade,  por  razão  da 
graade  pobreza,  em  que  então  vivião.  Nem  deve  parecer  cousa  nova,  e 
muito  menos  indecente,  que  Religiosos  se  occupem  em  oíficios  semelhantes; 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (aNNO  DE   1540)  45 

pois  nem  S.  Joseph  achou  que  era  cousa  indigna  da  dignidade  de  lium 
pai  de  Cliristo  (qual  elle  era  na  commum  estimação  "dos  homens ;)  nem  S. 
Paulo  de  hum  Apostolo  do  collegio  de  Jesu,  ganhar  o  que  havião  de  co- 
nter, pelo  trabalho  de  suas  mãos,  e  suor  de  seu  rosto :  antes  foi  exemplo, 
(jue  imitarão  os  mais  perfeitos  Religiosos  da  antiguidade,  acostumando,  com 
esta  traça,  o  corpo  ao  trabalho,  e  a  alma  á  humildade:  chegou  a  ser  re- 
gra vinda  do  Ceo,  que  os  Anjos  dittárão  a  Pacomio  Abbade  santo. 

73  No  meio  d'esta  paz,  e  socego  da  vida,  passavão  os  nossos  conten- 
tes em  sua  pobreza ;  vivendo  do  suor  do  seu  rosto,  e  trabalhando  no  bem 
daquellas  almas,  pelas  quaes  derão  de  mão  ao  mundo,  pátria,  parentes,  e 
tudo  o  que,  tirado  Deos,  possuião :  quando,  fora  de  todo  o  imaginado,  se 
começou  a  armar  o  inferno  contra  esta  pobre  casa:  e  a  causa  foi  aquella 
meSma,  que  hoje  persevera,  e  perseverará  em  quanto  durar  entre  os  Por- 
tugueses a  immoderada  cubica  de  cativar  os  índios,  e  nos  Padres  da  Compa- 
nhia o  zelo  de  sua  liberdade:  porque  (como  já  tocámos  acima)  tinha  tra- 
zido o  P.  Leonardo  provisão  do  Governador  geral,  em  que  mandava  fos- 
sem restituídos  os  índios,  que  os  Portugueses  havião  cativado  contra  jus- 
tiça, ou  em  caminhos,  ou  em  suas  terras,  ou  d'outro  qualquer  modo  (em 
especial  os  Christãos,  que  tinhão  doutrinado,  e  bautizado  os  Religiosos  de 
S.  Francisco  Castelhanos)  pêra  que  fossem  todos  postos  em  sua  liberdade. 
Alguns  d'estes  índios  tirara  o  Padre  logo  ao  principio,  das  casas  de  alguns 
moradores,  com  suavidade,  e  boas  razões,  tocantes  ao  bem  de  suas  cons- 
ciências: porém  depois,  andando  o  tempo,  esfriando  já  em  alguns  delles  a 
íjuelle  primeiro  espirito  com  que  os  doutrinara,  arrependidos,  e  tornados 
contrários,  começarão  primeiro  a  murmurar  dos  Padres,  e  logo  a  persegui  1-os, 
tirando-lhes  as  esmolas,  e  dizendo  delles  as  cousas,  que  sua  paixão  lhes 
dittava:  e  erão  cilas  taes,  que  andavão  como  envergonhados,  e  admirados, 
de  que  pudesse  tanto  o  inimigo  do  bem  dos  homens,  que  descompuses- 
se por  esta  via;  o  que  Deos  por  outra  via  tinha  obrado  cm  tantos  morado- 
res. 

74  O  fundamento  d'esta  pai.xão,  explicavão  com  a  queixa  seguinte.  Se 
os  Padres  fdizião  elles)  vem  a  tratar  das  almas,  poi-quc  não  tratãíj  delias,  e 
de  seu  instituto  somente?  Porque  se  metem  com  os  índios  dos  pobres? 
Porque  lhes  lião-de  tii-ar  seu  remédio?  Querem  que  vão  suas  mulheres  á 
fonte,  o  rio?  e  que  vind(j  de  suas  terras  a  senhorear  o  Brasil,  fiquen» 
iguaes  aos  natiu'a(!S  delle?Pai'ece  digna  decon)i)aixã()  aqueixa:  i)orém  acllarei- 
pondia  o  Padre  Leonardo  desta  maneira:  «Não  vejo  eu  (senhores)  cousa  mais  lo- 


46  LINHO  I  DA  CI1R<)M(JA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

cante  a  vossas  almas,  e  a  meu  instituto,  que  esta  detirar-vos  os  índios  mal  havi- 
dos de  casa.  Algum  dia  o  entendíeis  vós  assi,  quando  podiacomvosco  maisagra- 
ça  pêra  remediar  vossas  almas,  que  a  cobiça  pêra  acudir  a  vossos  corpos.  Que 
variedade  houve  agora?  Não  julgastes  então,  que  era  obrigação  vossa,  e  profis- 
são minha,  o  tratar  de  repor  estes  índios  em  sua  liberdade?  Ninguém  pôde  sal- 
var-se  sem  restituir  o  alheio :'  pois  se  estes  índios  são  seus  por  natural  direito, 
sem  quesejão  restituídos  asi  mesmos  como  podereis  salvar-vos?  Que  titulo 
houve,  que  os  fizesse  vossos?  o  querer  que  o  sejão,  o  catival-os  contra  sua 
vontade,  sem  aggravo  algum  precedente?  Não  toca  isto  a  vossas  almas?  E 
não  toca  a  meu  instituto  fazer  comvosco  que  restituaes  o  que  não  he  vosso, 
e  trabalhar,  que  os  que  são  roubados,  tornem  a  ser  seus?  He  tanto  de 
meu  instituto,  tanto  de  direito  divino,  natural,  e  humano,  e  tão  digna  em- 
presa de  religiosos  peitos,  que  só  por  esta  causa  perderemos  as  vidas,  eu, 
e  meils  companheiros,  e  cuidaremos  que  então  as  ganhamos.  Se  por  esta 
nos  faltarem  vossos  favores,  e  se  occasionarem  nossos  trabalhos,  afrontas, 
c  descréditos,  então  nos  teremos  por  ditosos.  Huma  só  cousa  sentiremos, 
e  he  a  que  toca  a  vossas  consciências;  porque  isto  he  tornar  ao  vomito,  e 
dar  por  terra  com  o  edifício,  que  até  agora  tinlieis  edificado.  Consola-nos 
comtudo,  que  não  são  os  mais,  os  que  acendem  este  novo  fogo,  e  que 
haveis  de  vir  a  conhecer,  que  procede  todo  de  huma  só  cabeça,  semeado- 
ra de  cizânia,  e  inimiga  de  todo  vosso  bem. 

75  Por  então  ficarão  como  em  seminário  estas  razões:  porém  andado 
pouco  tempo,  brotou  a  luz  o  desengano:  e  como  a  paixão  não  procedia  de 
malevolencia  das  pessoas,  se  não  do  sentimento  dos  índios,  de  cuja  servi- 
dão se  sentião  privados;  foi  fácil  o  desfazer-se  este  nevoeiro,  comporem- 
se  as  cousas,  reconciliarem-se  com  os  Padres,  e  pedir-lhes  perdão.  Estes 
índios  postos  em  sua  liberdade,  tinha  desejo  o  Padre  Leonardo  de  levar  a 
suas  terras,  e  n'ellas  fazer  huma  copiosa  Christandade:  o  que  também  de- 
sejou depois  o  Padre  Nóbrega  pêra  o  mesmo  fim;  e  porque  *á  vista  dos  Por- 
tugueses não  resuscitassem  as  lembranças  já  enterradas :  porém  impossibi- 
bilitou-se  o  effeito  com  vários  accidentes,  mas  não  se  acabarão  os  desejos, 
que  ficão  reservados  pêra  melhores  tempos. 

76  Não  foi  só  a  perseguição  sobreditta,  a  que  padeceo  o  Padre  Leo- 
nardo: quiz  o  inferno  desaíTrontar-se  d'elle  mais  ás  claras:  tomou  por  meio 
hum  homem,  não  tão  velho  na  idade,  como  envelhecido  em  vicios  da  car- 
ne. Tinha  o  Padre  trabalhado  com  este,  muito  tempo  havia,  porque  lar- 
gasse a  má  occasião  de  portas  a  dentro,  em  que  vivia,  com  muitos  filhos, 


DO  KSTADO  DO  BRASIL  (aNNO  DE   1549)  47 

O  iiâo  menos  escândalo  dos  qae  liavião  melhorado  a  vida:  deu-ihe  huma,  c 
muitas  bafarias,  primeiro  em  secreto,  e  depois  ao  claro;  porque  onde  to- 
mava forças  o  escândalo,  era  força  que  não  enfraquecessem  os  pregadores 
evangélicos.  Quando  hum  dia,  levado  de  furor  diabólico,  cego  do  amor  da 
lascívia,  esperou  o  Padre  no  meio  de  huma  rua  este  perdido  homem,  e 
tirou  de  hum  pão,  que  levava,  pêra  espancal-o:  sem  duvida  o  fizera;  por- 
({ue  o  seno  de  Deos,  estava  tao  fora  de  fugir,  que  antes  posto  de  joelhos, 
esperava  o  golpe,  como  da  parte  da  Justiça  divina  por  suas  faltas:  porém 
hum  filho,  que  se  achou  presente,  envergonhado  d'esta  acção,  reparou  a 
pancada,  e  lhe  tirou  o  páo  das  mãos,  frustrando  assi  a  intenção  -do  pai, 
mas  não  o  merecimento  do  Padre.  Não  tirou  o  inimigo  fnito  d'està  empresa; 
porque  o  homem  caindo  na  conta  do  mal  que  fizera,  corrido  de  si,  e  edi- 
licado  do  servo  de  Deos,  converteo  a  paixão  em  amor,  fez-se  amigo,  e  fa- 
voreceo  sobre  maneira  a  Companhia  naquellas  partes:  e  o  que  mais  importa, 
cahío  em  seu  perigo,  lançou  de  casa  a  occasião,  e  depois  de  bons  dias,  com 
cento  e  tantos  annos  de  idade  passou  a  melhor  vida,  com  bons  sinaes  de 
sua  salvação.  Hum  delles  foi,  que  emprestando-se-lhe  copia  de  cera  de  hu- 
mas  Confrarias  pêra  seu  enterro,  c  oflicio,  com  condição  que  depois  se  pa- 
gasse por  peso  o  dispêndio;  durou  o  acto  tempo  considerável;  e  com  es- 
tar sempre  acesa,  (|uando  depois  veio  ao  peso,  não  houve  que  pagar, 
porque  pesava  mais  então  (que  com  taes  tochas  sabe  morrer,  o  que  sou- 
be viver  com  taes  obras.)  Faz  menção  d'esta  maravilha  como  milagrosa 
o  Padre  Joseph  de  Anchieta,  attribuindo-a  a  sinal  da  salvação  d"este  ho- 
mem. 

77  Não  pararão  aqni  os  trabalhos.  Havia  em  S.  Vicente  hum  João  Ra- 
malho, homem  jior  graves  crimes  infame,  e  actualmente  escommungado. 
Mandou-lhc  oParli-e  Leonardo  pedir  com  cortesia,  fosse  servido  sahir-se  da 
Igreja,  porque  pudesse  elle  celebrar  sacrifício,  pois  não  podia  em  sua  pre- 
sença: fel-o  assi,  e  celebrou  o  Padre.  Pf^iYíin  dons  filhos  seus  Mamalucos, 
dados  por  afrontados,  detei-mináião  castigar  no  servo  do  Senhor  a  injuria 
que  Unhão  por  feita  ao  pai;  o  levados  de  sua  natural  barbaria  materna,  es- 
y)erárão-no  á  porta  da  Igrcjíi,  onde  chegando  hum  delles  fez  golpe  sobre  o 
Padre  com  a  espada  nua;  f)orém  em  vão,  porque  lançando-se  o  servo  de 
Deos  de  joelhos  pêra  apparal-o,  íicou-lhe  o  braço  suspenso  (qual  o  de  ou- 
tro Abrahão;)  ou  fosse  porque  ficou  atónito  com  tão  rara  espécie  de  pie- 
dade, ou  ])orque  Deos  então  o  quiz  evitar,  pêra  re[)arlil-o  depois  em  vario.s 
liagos,  í[ue  ainda  lhe  reslavão  poi-  [»adecer.  Fosse  huma,  ou  outra  cousa, 


48  LIVRO  I  DA  CHnONICA  DA  COMPANHIA  DK  JESU 

pareceo  provável  a  Oiiandino,  que  entrara  aqui  a  mão  de  Deos,  quando 
disse:  Sive  hoec  rara  pietatis  spccies,  sive  divina  vis  mulfaruin  prospiciens 
animarum  saluti,  sacrílegos  condtus  inhibuit,  facintts  perpetralum  non  est. 

78  Tinhão  neste  tempo  os  Portugueses  gravissimas  guerras  com  os  ín- 
dios chamados  Tamoyos,  e  tinhão  estes  tomado  em  assaltos  algumas  mu- 
lheres dos  mesmos  Portugueses  com  assas  lastima  dos  maridos,  e  não  me- 
nos perigo  da  honra,  vida,  e  alma  delias,  porque  o  costume  d'estes  bárba- 
ros he,  que  em  vingança  dos  maridos,  usão  mal  das  mulheres  prisioneiras, 
e  depois  servem-se  delias  como  de  escravas :  e  o  que  he  mais,  que  em  qual- 
quer sentimento  que  tem,  ou  lembrança  de  seus  ódios  passados,  as  matão 
como  rezes,  e  fazem  pasto  delias.  Sentia  muito  a  caridade  do  Padre  Leo- 
nardo o  risco  destas  almas';  e  fiado  no  auxilio  divino,  fez  missão  a  estes 
contrários,  levando  comsigo  o  Irmão  Pedro  Corrêa,  grande  talento,  e  estre- 
mado lingoa  do  Brasil.  Chegou  a  suas  terras,  foi  a  suas  aldeãs,  e  fiado  em 
Deos,  e  na  eloquência  da  lingoa  do  Irmão,  assi  suspendeo,  e  converteo  aquel- 
les  corações  sua  autoridade,  que  vierão  a  conceder-Ilie  todas  as  mulheres 
que  tinhão,  e  algumas  já  postas  em  ceva,  pêra  eíTeito  de  sua  gula,  e  com 
ellas  voltarão  aos  maridos,  que  não  acabavão  de  crer  cousa  tão  rara  de  se- 
melhantes bárbaros. 

79  Outra  viagem  fez  aos  índios  dos  Patos,  cem  legoas  de  distancia,  a 
semelhante  serviço  de  Deos ;  porque  indo  ter  áquella  paragem  certos  fidal- 
gos Castelhanos  com  suas  famílias,  que  navegavão  pêra  o  Rio  da  Prata,  e 
estavão  arriscados  a  serem  mortos  daquella  gente  (então  inimiga ;)  por  meio 
da  presença  do  Padre  Leonardo,  cuja  autoridade  era  venerada,  e  conheci- 
da entre  aquellas  gentes,  elles  se  amansarão :  agradecerão  muito  que  fosse 
visital-os ;  e  em  troco  doeste  favor  que  imaginavão  lhes  fazia,  lhe  derão  to- 
dos os  Castelhanos.  Com  elles  voltou  pêra  S.  Vicente,  onde  estiverão'  até 
que  houve  occasião  opportuna  de  proseguirem  sua  viagem,  agradecidos  sem- 
pre ao  Padre,  como  aqyielles  que  por  seu  respeito  escaparão  de  perigo  da 
vida  tão  provável.  Com  semelhantes  obras  de  caridade,  e  com  o  exempl  o  sin- 
gular de  sua  vida,  e  de  seus  companheiros,  testemunha  o  Padre  Anchieta, 
que  tinha  Leonardo  convertido  a  Capitania  de  S.  Vicente,  quando  no  anno 
de  mil  e  quinhentos  e  cincoenta  e  três  a  foi  visitar  da  vez  primeira  o  Pa- 
dre Nóbrega. 

80  Correndo  as  cousas  de  S.  Vicente  na  forma  sobreditta,  no  anno  se- 
guinte de  iooO  chegou  cá  Bahia  huma  armada,  e  por  capitania  o  galeão 
conhecido  por  fama,  que  chamavão  o  Velho,  e  outros  navios  menores,  com 


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DO  ESTADO  DO  BRASIL  (ANNO  DE    looO)  4^9 

gente,  e  mantimentos,  -  mandados  por  ElRei  pêra  soccorro  da  nova  cidade 
do  Salvador,  por  Capitão  Simão  da  Gama.  Alguns  tiverão  pêra  si,  que  vi- 
nha também  nesta  armada  Dom  Pedro  Fernandes  Sardinlia,  primeiro  Bis- 
po do  Brasil,  pessoa  de  grande  autoridade,  e  bom  pregador ;  com  Clérigos, 
e  quantidade  de  ornamentos  pêra  o  culto  de  sua  Sé:  segundo  o  escreve 
Pedro  de  Maris  nos  seus  Diálogos  de  varia  historia.  Supposto  cjue  eu  fa- 
zendo diligencia,  tenho  que  houve  erro  no  anno;  porque  achei  nos  livros 
dos  Registos  da  Fazenda  Real  desta  cidade,  que  foi  passada  a  Provisão  de 
seu  provimento  em  Lisboa  a  4  de  Dezembro  de  1551,  e  que  chegou  ao 
Brasil  no  principio  de  1552,  e  morreo  em  16  de  Junho  de  155G.  Donde 
se  vê  que  foi  erro  do  computo,  e  este  segundo  seguirei. 

81  Vierão  nesta  armada  quatro  Padres  de  nossa  Companhia:  a  saber, 
o  Padre  AíTonso  Braz,  o  Padre  Salvador  Rodrigues,  o  Padre  Manoel  de  Pai- 
va, e  o  Padre  Francisco  Pires,  mandados  por  ordem  de  nosso  Patriarcha 
Ignacio  de  Loyola,  em  soccorro  desta  vinha  do  Senhor:  e  juntamente  no- 
meava por  Yice-Provincial  do  Brasil  ao  Padre  Manoel  da  Nóbrega.  Forão 
recebidos  como  Anjos  vindos  do  Céo:  fizerão-se  por  sua  chegada  acções 
de  graças  ao  Senhor,  que  foi  servido  acudir  com  tão  opportuno  soccorro: 
e  já  se  davão  todos  por  bem  pagos  de  dous  que  derão  pêra  a  empresa  de 
S.  Virente,  e  aprendião  a  confiar  em  Deos,  lembrados  bem  da  promessa 
de  Nóbrega,  que  havia  de  pagal-os  em  dobro. 

82  Tinha  pêra  si  o  Padre  Nóbrega,  que  todo  o  espirito  dos  Missionários 
do  Brasil  se  devia  reduzir  a  dous  pontos.  Mortificação,  e  Obediência.  O  pri- 
meiro lanço  que  fez,  foi  exercitar  os  que  de  novo  vinhão  nos  actos  destas 
duas  virtudes.  Porei  poucos,  mas  serão  efficazes  exemplos.  Seja  o  primeiro 
o  do  Padre  Manoel  de  Paiva:  a  este,  com  pretexto  da  pobreza  em  que  en- 
tão vivião,  mandou  vender  a  pregão  pelas  praças;  entoando  o  porteiro  em 
voz  alta:  «Ouem  quer  comprar  este  homem?  que  he  já  Sacerdote,  e  p(jdc 
servir  em  muitos  usos.»  E  foi  tão  de  siso  o  pregão,  que  chegou  a  persuadir- 
se  o  povo,  que  hia  deveras  (porque  continuou  alguns  dias;)  e  já  somente 
se  duvidava,  se  era  acarto  desfazer-se  a  Companhia  deste  Religioso,  tendo 
tãí)  poucos.  O  governador  Thomé  de  Sousa  propoz  o  caso  ao  Ouvidor  Pê- 
ro Borges;  e  acrescentou:  «Eu  nunca  vi  vender  Sacenloto  de  missa;  mas 
como  vejo  que  os  Padres  o  fazem,  não  ouso  condenal-o.»  Não  faltava  (\mm 
])rometesse  já  até  cem  cruzaílos  pelo  Padre  Paiva;  o  os  moradores  de  Yil- 
la-v.;lhii  subirão  o  lanço,  poniuc  o  querião  pêra  seu  Capellão.  Espantavão- 
se  lodos  do  ver  espectáculo  tão  novo;  porém  o  vendido  Padre  aos  lançadores 

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30  UXnO  I  DA  CIIRONICA  DA  COMPANHIA  DE  JIÍSU 

desculpava  o  feito  por  via  da  poljrcza:  c  quando  ei'a  perguntado,  se  esta- 
va resoluto  a  servir?  respondia  que  sim;  porque  elie  era  dos  Superiores,  e 
que  podião  estes  dispor  do  seu,  como  melhor  lhes  parecíísse.  A  segunda 
figura  d'estc  acto  foi  o  Padre  Vicente  Rodrigues;  porque  este  era  o  pre- 
goeiro, que  hia  bradando  pelas  praças:  e  pode  por-se  em  questão,  qual  dos 
dous  ficou  mais  mortificado,  se  o  que  era  apregoado  calando,  ou  se  o  que 
apregoava  bradando?  Assentado  com  eíTeito  o  dia  em  que  se  havia  de  ar- 
rematar o  lanço,  quando  todos  esperavão  o  fim,  declarou  o  Padre  Nóbre- 
ga ao  Governador,  e  mais  amigos  da  Companhia,  o  espirito  com  que  aquel- 
la  fingida  venda  se  fazia,  por  exercício  de  mortificação,  e  obediência;  os 
quaes  ficarão  edificados,  e  não  menos  exercitados,  os  dous  Padres  que  fi- 
zcrão  a  figura  do  acto. 

83  Hia  o  Padre  Nóbrega  com  o  mesmo  Religioso  Paiva  caminhando  jun- 
to a  hum  monte  Íngreme,  (juiz  provar  mais  sua  obediência,  e  mandou-lhe 
que  se  lançasse  a  rodar  por  alli  abaixo.  Não  houve  mais  demora,  lançou-se 
mtrepidaraente  sem  considerar  o  perigo,  atê  que  foi  mandado  parar.  Ao  Pa- 
dre Vicente  Rodrigues  mandou  que  assentasse  soldada  com  hum  tecelão, 
com  quem  aprendesse  o  officio,  e  com  quem  morasse  a  suas  ordens  até 
sair  perfeito:  e  assi  se  fez.  Ao  Padre  João  Aspilcueta  Navarro  mandou  que 
fosse  disciplinando-se  pelas  ruas  até  chegar  á  praça  do  Governador  (cujo 
Confessor  era)  que  folgaria  de  ver  penitente  tão  destro.  Fel-o  Navarro  com 
obediência  rara,  e  não  menos  edificação  da  cidade.  Estas  e  outras  seme- 
lhantes mortificações,  e  obediências  erão  as  daquelle  bom  tempo,  que  con- 
tinuavão  as  memorias  de  outras,  a  que  alguns  chamarão  excessos,  em  que 
nossos  Religiosos  se  exercitavão  em  Coimbra  na  primitiva  Companhia  de 
Portugal:  e  prouvera  a  Deos  perseverarão  ainda  hoje  estes  excessos,  com 
o  mesmo  fervor  de  espirito!  Delias  faz  honorifica  menção  o  Padre  Joseph 
nos  lugares  á  margem  citados.  (Jos.  pag.  32,  Apontam,  lib.  w.) 

84  Feitas  as  dittas  experiências,  fez-lhes  o  Padre  Nóbrega  aos  nova- 
mente chegados  a  pratica  seguinte:  «Que  os  varões  que  vem  desterrados  da 
pátria,  parentes,  amigos,  e  Collegios  de  Europa,  postos  em  esta  nova  re- 
gião do  mundo,  hão  de  assentar  comsigo,  que  não  são  seus,  mas  que  são 
já  da  gentifidade;  cuja  salvação  vem  buscar.  Ha-lhes  de  andar  retinindo 
nas  orelhas  o  preceito  de  Christô:  Ide  pelo  mundo  universo,  e  pregai  o 
Evangelho  a  toda  a  criatura,  ctc.  Comnosco  falia,  successores  somos  dos 
Apóstolos,  cahe-nos  ás  costas  sua  obrigação.  E  que  criaturas  nos  coubérão  em 
sorte?  As  mais  esquecidas,  e  desamparadas  do  universo.  aond(í  por  espaço 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (aNNO  DE    looO)  51. 

de  mais  de  seis  mil  annos,  não  chegou  a  Lei  de  hum  só  Deos;  e  depois  por 
espaço  de  mil  e  quinhentos  não  chegou  a  Lei  Evangélica.  Por  esta  causa, 
e  porque  são  estas  as  mais  hrutaes,  e  agrestes  de  todas,  ficamos  sendo  nós 
mais  ditosos:  quanto  a  cruz  nos  íica  sendo  mais  pesada,  tanto  mais  nos 
parecemos  com  Christo:  lembremo-nos  que  a  carregou«este  Senhor  tanto 
por  estas  criaturas  mais  baixas,  como  pelas  mais  nobres.  Naquelle  lençol 
de  S.  Pedro  igualmente  se  lhe  representarão  os  géneros  de  animaes  mais 
nobres,  e  os  mais  vis  e  baixos,  por  dizer  o  Senhor  que  queria  que  todos  se 
salvassem,  nobres,  e  baixos  iguahnente;  porque  igualmente  de  todos  era  Re- 
demptor.  Não  se  podia  melhor  explicar  a  baixeza,  e  rudeza  de  huma  nação, 
que  com  o  nome  de  jumentos:  pois  destas  gentes  baixas,  e  rudes,  a  que  o 
Propheta  Rei  chamou  jumentos,  segundo  a  explica  Santo  Ambrósio,  diz,  que 
igualmente  se  hÃo  de  salvar  com  os  demais  homens:  Homines,  et  jumenta 
sakabis  Domine:  e  O  que  mais  he,  que  igualmente  os  conheceo,  entre  os  que 
se  salvarão  de  todas  as  gerações  do  mundo.  O  Evangelista  S.  João  no  seu  Apo- 
calypse:  Ex  omnihus  gentibiis,  et  íribuhus,  et  popuHs,  et  lingiiis  stanles  ante 
Tronum,  et  in  cunspectu  Arjni,  etc.  Pêra  csla  gentilidade  tão  remontada,  e 
novamente  descoberta,  trouxe  Deos  a  Companhia  ao  mundo:  então  quiz  que 
nascesse,  quando  ella  no  Nascente,  c  no  Poente  se  descobria:  e  não  são  in- 
dícios somente,  he  próprio  instituto,  a  conversão  da  gentilidade.  Levou-nos, 
he  verdade,  ventagem  o  grande  zelador  do  gentilismo  do  Oriente,  o  Padre 
Mestre  Francisco  Xavier,  no  ser  primeiro:  porém  não  na  sorte  de  gente; 
porque  quanto  esta  nossa  tem  de  mais  rude,  tanto  pôde  ter  de  mais  glo- 
ria. Estamos  feitos  (Padres,  e  Irmãos  cm  Christo)  hum  espectáculo  univer- 
sal á  vista  do  Ceo,  que  nos  moveo,  á  vista  do  Vigário  de  Deos  na  terra, 
íjue  nos  mandou  com  tantos  privilégios,  favores,  jubileos  do  Ihesouro  do 
Christo:  e  á  vista  de  nossa  mãi  a  Companhia,  que  nos  destinou  á  empresa, 
c  nos  prevenio  com  seus  meios,  dEl-Rei  de  Portugal,  que  nos  pedio;  e  do 
mundo  todo,  (y.ui  está  observando  como  cooperamos  com  a  gloria  de  Deos, 
lionra  da  Companhia,  credito  do  Rei,  e  obrigação  de  nossas  pessoas,  por 
tantas  vias  contrahida,  por  caridade,  por  promessa,  por  voto,  por  instituto, 
poi-  preceito  de  Christo,  e  por  vigor  da  própria  empresa  que  aceitámos.» 
85  Havia  ainda  neste  tempo  grande  corrupção  de  costumes,  assi  na 
gente  Portuguesa,  como  nos  índios,  Os  Portugueses  licenciosos  com  a  vida 
soldadesca  vecejavão  em  vicios  públicos,  que  servião  do  escândalo  a  toda 
a  terra.  Os  índios  eslavão  ainda  f)erlinazes  no  peior  de  seus  vicios,  e  com 
mais  força  nos  que  são  mais  confountís  á  rariii'.  Pei'a   reninlio  de  huns  e 


52  LIVRO  I  DA  CURONICA  DA  CO.^rPAMIIA  DE  JESU 

outros  males,  reparlío  Nóbrega  em  dons  cs(iuadr(3es  seus  soldados ;  Iiuns 
delles  principalmente  pêra  os  Portugueses,  outros  pêra  os  índios;  feita  pri- 
meiro lista  dos  mais  necessitados;  e  com  tal  ordem,  que  todos  os  dias  dessem 
bataria,  e  ajuntando-se  á  noite  fizessem  conferencia  do  que  tinhão  obrado 
entre  dia,  pêra  qae  á  medida  da  necessidade  fossem  applicando  as  armas 
de  penitencias,  orações,  jejuns,  disciplinas,  com  que  applacassem  a  divina 
Magesíade  oíTendida.  Não  foi  debalde;  porque  á  medida  do  fervor,  hiaDeos 
pondo  a  sua  mão. 

8G  Com  hum  Portuguez  degradado,  nobre  no  sangue,  mas  infame  nos 
vícios,  e  escandaloso  em  toda  a  cidade,  meteo  por  muitos  dias  cabedal 
hum.  d'estes  aventureiros,  indo  buscal-o  a  sua  casa  todas  as  manliãas  avi- 
sando-o,  amocstando-o,  opportuna,  e- importunamente,  segundo  a  doutrina 
do  Apostolo;  mas  não  aproveitava.  Dava  conta  do  succeditlo,  applicavão-se 
mais  e  mais  penitencias,  e  cada  vez  mais  indurecido  aquelle  coração.  Até 
que  chegou  hum  dia  por  Deos  destinado,  e  que  indo  amanhecer-lhe  á  porta 
o  seu  requerente,  em  abrindo  a  boca  pêra  lembrar-Ilie  o  estado  em  que 
vivia,  entrou  o  peccador  soberbOj  e  altivo  por  natureza,  em  tão  grande 
paixão,  que  brotou  nas  palavras  seguintes:  «Padre  perseguidor,  igual  tomá- 
reis vós  aquelle  serviço  que  está  sujo  (mostrando-lho  com  o  dedo)  e  o  le- 
vareis a  lavar;  e  aquelle  pote  que  está  vazio,  e  o  levareis  a  encher  de  agoa, 
que  não  queimar-me  as  entranhas  todos  os  dias  com  vossas  semsaborias. » 
Só  este  lanço  esperava  a  misericórdia  divina.  Vai-se  o  Padre  ao  vaso^  e 
leva-o  a  lavar;  toma  depois  o  pote,  vai  enchel-o  â  fonte,' e  pergunta-lhe, 
com  toda  a  boa  paz,  se  tem  mais  que  fazer  ?  Aqui  não  pôde  deixar  de  ren- 
der-se  este  Hercules  bravo  :  arrebentou-lhe  o  coração  pelos  olhos,  qual 
outra  pedra  do  deserto  em  agoas;  poz-se  de  joelhos,  abraçou-se  com  seu 
bemfeitor,  e  prometeo-lhe  mudança  resoluta :  assi  o  experimentou  a  cida- 
de, com  exemplo  igual  ao  que  tinha  recebido  de  escândalo;  porque  chegou 
a  viver  como  religioso,  recolher-se  á  sombra  dos  Padres,  e  empregar  dalli 
em  diante  suas  acções  em  ajuda  de  nossos  ministérios.  Da  conversão  d'este 
disse  Nicoláo  Orlandino  (lib.  n,  n."  78)  estas  palavras:  Omnium  prope  miracii- 
him,  qiiidam  in  Lusitânia,  et  in  BrasHia,  quo  deporialus  in  exilium  fiierat^ 
improhitate  nohiiis,  conversus  est  aã  insignem  virtutem  :  quasi  tendo  por  mi- 
lagrosa no  conceito  dos  homens,  mudança  de  tão  depravada  maldade,  pêra 
tão  insigne  virtude. 

87  Não  foi  só  este  o  rendido;  outro  andava  a  rol,  se  não  de  menor 
qualidade,  de  muito  maior  liberdade,  e  lambem  degradado.  Erão  mais  il- 


DO  ESTALO  DO  BRASIL  (aNNO  DE  looO)  53 

íiislros  quo  cUe  seus  vicios,  commetiOos  assi  em  Portugal,  como  no  Bra- 
sil; malfeitor,  arrogante,  soberbo,  desbocado,  sem  temor  de  Deos,  nem  dos 
homens,  cm  cabo  desalmado.  De  que  maneira  acommeteria  hum  soldado 
manso,  religioso,  a  hum  leão  tão  bravo  ?  Acovardar-se  não  convinha,  pois 
hia  de  propósito  á  empresa.  Entra  com  brandura  com  elle,  faz-lhe  obras 
de  amigo  (que  até  leões  doma);  porém  as  obras  de  amizade  tomava  o  homem 
arrogante  como  de  divida,  sem  cortesia,  ou  agradecimento  algum.  Mas  Deos, 
que  sabe  mudar  corações,  permitio  huma  occasião  opportuna.  Succedeo 
que  cahio  em  huma  enfermidade  este  homem  fera:  estava  em  huma  pobre 
choupana  fora  da  cidade,  desamparado,  sem  criado,  parente,  ou  amigo : 
porém  não  sem  o  seu  zeloso  pretendente,  que  teve  a  occasião  como  vinda 
do  Ceo.  Entrou  a  elle,  desabafou-o,  consolou-o,  que  alli  o  tinha  a  elle  por 
criado,  parente,  e  amigo :  que  não  havia  de  desamparal-o,  que  elle  bastava 
pêra  servil-o :  que  só  sentia  não  prestar  pêra  fazel-o  como  merecia  tal 
pessoa.  Aceitou  a  oíferta,  mas  não  a  agradeceo;  porque  tinha  tudo  por  de- 
vido aos  quilates  de  sua  qualidade.  Nem  foi  necessário  muito  tempo  pêra 
mostrar  a  mór  ingratidão,  que  virão  os  homens;  porque  continuando  a 
doença  por  tempo  largo,  e  não  menos  com  ella  a  paciência  do  seu  serven- 
te, que  como  escravo  trabalhava,  chamando-lhe  medico,  buscando-lhe  as 
mezinhas,  ftizendo-lhe  a  cama,  barrendo-lhe  a  casa,  lavando-lhe  os  pés  ; 
aíjuelle  peito  duro,  ingrato  a  todo  este  bemfazer,  correspondia  com  rcpre- 
hensões  descortezes,  c  baixas;  dizendo  ao  Padre,  que  devia  ser  mal  cria- 
do, e  de  baixo  solar,  quem  fazia  as  cousas  tão  toscamente,  e  mais  a  hum 
homem  de  sua  qualidade.  Não  desesperava  o  servo  de  Deos:  quanto  mais 
esbravejava  o  touro,  tanto  tinha  maiores  es[)eranças  de  rendel-o.  E  succe- 
deo assi;  porque  foi  huma  de  suas  reprehensõcs  a  causa  total  de  sua  re- 
pentina mudança.'  Entrou-lhe  huma  manhãa  o  sen-ente  pela  porta  dentro, 
e  parecf3ndo-lhe  ao  enft?rmo  (tanto  de  corpo,  como  de  soffrimento)  que  vi- 
nha, tarde;  sobre  esta  tardança  começou  a  lançar  sobre  elle  graves  injurias, 
dizendo  que  era  homem  baixo,  que  fazia  como  quem  era,  c  outras  não^ me- 
nores. Porém  o  soldado  d(^  Jesu  padecente,  que  não  espei'ava  outra  cousa, 
se  tornou  qual  jioviço  diante  de  seu  mestre;  poz-se  de  joelhos,  pedio  per- 
dão de  suas  faltas:  e  logo  tira  de  luimas  disciplinas  (que  pêra  o  elTeito 
levava  preparadas)  e  virando-se  pêra  um  Crucifixo,  começou  a  disciplinar- 
sc  com  tal  crueldade?,  que  em  breve  tempo  lhe  vio  o  enfermo  as  costas  la- 
vadas em  sangue;  o  levantando  o  disciplinante  a  voz,  disse:  «Estes  açoutes 
tomo  diante  daquelle  Senhor  Julgador  do  bem,  e  do  mal,  em  castigo  do 


54  LIVRO  I  DA  CÍIRONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESL' 

que  dizeis  lenho  faltado  a  vosso  serviço.»  E  era  este  que  assi  se  discipli- 
nava, c  era  reprehendido  de  liomenl  baixo,  hum  dos  mais  veneráveis  va- 
rões de  todos  quantos  o  Padre  Nóbrega  tinha  por  companheiros,  o  Padre 
João  Aspilcueta  Navarro,  não  somente  por  sua  virtude,  mas  também  por 
sua  nobreza  bem  conhecido  da  cajía,  e  solar  dos  Aspilcuelas  do  reino  de 
Navarra,  aparentados  com  a  illustre  casa  dos  Loyolas.  O  que  quiz  advertir, 
porque  vejamos  quem,  e  a  quem:  quem  era  o  que  servia,  e  quem  o  que 
era  servido :  quem  o  injuriado,  c  quem  o  que  injuriava. 

88    Aqui  com  tudo  á  vista  de  espectáculo  tão  raro,  se  abrandou  aquelle 
peito  de  diamante  duro;  e  lançado  da  cama  aos  pés  de  Navarro,  protestou 
com  breves,  se  bem  elTioazes,  palavras,  a  emenda  da  vida.  «Vencestes  (di- 
zia) vencestes.  Padre  meu,  com  vossa  humildade,  minha  soberba;  com  vosso 
primor,  minha  descortesia;  com  vosso  soíTrimento,  minha  arrogância;  com 
vossa  perseverança,  minha  obstinação;  c  com  vosso  exemplo,  meu  coração, 
c  alma.  Só  da  sabedoria  de  hum  Deos  podia  esperar-se  lanço  tão  oppor- 
tuno.  Todos  meus  erros  ficão  envergonhados,  e  convencidos  em  theatro. 
Eu  vos  prometto,  que  execute  em  mim  o  rigor  da  sentença  que  estão  me- 
recendo. Daqui  liie  confesso  por  rendido  vosso,  e  espero  que,  como  fostes 
causa  da  saúde  do  corpo,  o  sejaes  também  da  da  alma,  que  determino  en- 
tregar-vos.»  Levou  o  vencedor  o  seu  rendido  em  os  braços,  assentou-o  na 
cama,  foi-o  dispondo  até  o  mais  subido  gráo  de  dôr,  e  deu  principio  a 
huma  geral -confissão,  que  durou  por  mais  dias;  obrando  sempre  a  divina 
misericórdia  naquelle  coração  eíTeitos  de  verdadeiro  convertido.  Sarou  de 
todo,  m.ostrou-se  ao  povo,  e  nos  templos,  dando  exemplo  de  cabal  peni- 
tencia :  hcec  mxilaiio  dcxteroe  excelsi,  podemos  dizer  com  o  Propheta  Rei ; 
porque  mudança  tão  notável  não  podia  proceder  d'outra  mão,  que  da  de 
bum  Deos  excelso.  Senhor  de  coraçíjes.  O  d'este  peccador  ficou  tão  outro, 
que  era  já  reconhecido  por  de  homem,  o  que  dantes  era  aborrecido  por  de 
fera:  e  o  que  dantes  escandalizava  por  depravado,  ediíicava  agora  por  co- 
medido, por  pio,  por  arrependido,  por  trocado.  Foi  esta  victoria  muito  fes- 
tejada do  Padre  Nóbrega,  dos  companheiros,  e  de  toda  a  cidade :  e  á  vista 
delia  se  seguirão  outras  muitas  empresas  semelhantes  em  peccadores  pú- 
blicos, 6  apoz  estes  grande  conversão  de  gente  ordinária.  Perseverou  este 
nosso  insigne  peccador  convertido  em  seu  santo  arrependimento,  e  mudan- 
ça de  vida  (qual  outro  S.  Paulo)  por  muitos  annos,  seguindo  sempre  o 
conselho,  e  doutrina  dos  Padres,  e  acabou  com  grandes  esperanças,  e  si- 
naes  de  sua  salvai^ão. 


I 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (AXNO  DE    looO)  55 

R9  Os  das  aldêas  não  sahião  com  menores  empresas:  erão  muitas  em 
numero,  e  por  todas  discorrião  aquelles,  a  cujo  cargo  forão  distribuídas:  si- 
nalou-se  porém  entre  todos  o  Padre  João  Aspilcueta  Navarro  (que  andava 
volante  por  hum  e  outro  exercito  de  Portugueses,  e  de  índios)  assi  pela 
exceilencia  que  já  tinha  da  hngoa  brasiUca,  como  por  suas  grandes  traças 
em  toda  a  matéria  de  espirito.  A  primeira  cousa  que  procurarão  todos  es- 
tes pregoeiros  do  Evangellio  foi,  que  os  índios  cathecumenos  fizessem  Ca- 
pellas,  e  Igrejas  accommodadas  a  suas  aldeãs,  pêra  nellas  lhes  administrarem 
o  culto  divino,  e  necessários  sacramentos.  Segunda,  que  vivessem  em  for- 
ma de  Republica,  com  leis  mais  politicas,  e  accommodadas  ao  estado  em 
que  de  presente  se  achavão.  Poz-se  em  execução,  e  presavão-se  de  se  asse- 
melhar nesta  parte  aos  Portugueses:  e  os  que  dantes  vivião  vagos  pe- 
los campos  sem  assento  certo,  erão  obrigados  dalli  em  diante  a  redu- 
zir-se  a  (pjalquer  das  aldeãs,  e  ao  teor  das  sobredittas  leis,  cousa  mui 
importante,  porque  os  Padres  podessem  obrar  nelles  os  effeitos  da  dou- 
trina christãa. 

90  Huma  das  cousas,  que  difficultava  o  fruto  desejado,  era  o  costume 
que  ainda  hoje  ha  nesta  gente,  quasi  necessário  nos  que  não  estão  mui  do- 
mesticados; que  como  vivem  de  seu  arco,  em  amanhecendo  partem  á*caça 
das  aves,  e  feras  por  esses  campos;  e  como  de  natureza  são  andejos,  e 
vagabundos,  voltão  commummente  á  noite;  de  maneira  que  em  todo  o  dia 
não  ha  trattar  com  elles  com  socego.  Porém  este  inconveniente  vencia  o 
grande  fervor  de  Aspilcueta.  Hia  esperal-os  sobre  a  tarde,  a  tempo  que 
vinhão  carregados  com  suas  caças ;  dava-lhes  as  boas  vindas,  e  os  parabéns 
do  successo  aos  que  tiverão  boa  ditta.  Dizia-lhes,  que  descansassem,  e 
ceassem  muita  embora  com  suas  famílias :  e  quando  já  estavão  descansa- 
dos, e  satisfeitos,  em  começando  a  noite  a  desenrolar  seu  manto,  começa- 
va elle  a  despregar  a  torrente  de  sua  eloquência,  levantando  a  voz,  e  pré- 
gaiido-lhes  os  mysterios  da  Fé,  andando  em  roda  delles,  batendo  pé,  es- 
palmando mãos,  fazendo  as  mesmas  pausas,  qnebros,  e  espantos  costuma- 
dos entre  seus  prégadonís,  pci'a  mais  os  agradar,  e  persuadir.  Arrebata- 
vão-se  de  sua  grande  eloquência,  e  da  destreza  de  sua  liiigoa,  convencião- 
se,  domes ticavão-se,  e  adestravão-sc  d"esta  maneira  facilmente  peia  o  baii- 
tisrno,  que  recebião  quasi  aos  centos. 

91  Outra  cousa  acabou  com  os  índios  mui  necessária;  e  fui,  que  le- 
vantassem duas  casas  em  duas  aldêas  princii)aes,  pêra  que  fossem  como 
dous  Seminários,  aonde  se  ajuntassem  seus  filhos,  e  os  das  mais  aldêas, 


56  LIATiO  I  DA  CIIRONÍCA  DA  COMPANHIA  DE  JEÍIS 

pora  linvorem  do  ser  calheqiiizados  com  maior  rommodo,  e  perfeição:  ii 
imitarão  de  oulro  Seminário,  que  levantara  o  Padre  Noijrega  junto  á  cida- 
de, de  que  logo  diremos.  Forão  estes  Seminários  meio  efficaz ;  porque  em 
breve  ficarão  os  meninos  mestres  dos  pais  em  todo  o  género  de  doutrina 
cliristãa;  que  era  força  que  espalhados  elles  por  suas  casas,  cantando-a 
de  dia,  e  de  noite,  composta  em  sua  própria  lingoa,  a  communicassem  a 
todos.  E  o  que  foi  cousa  mais  notável,  que  tendo,  por  mandado  dos  Pa- 
dres, cuidado  cada  qual  dos  meninos  em  sua  casa  de  visitar  qualquer  que 
estivesse  doente,  e  rezar  sobre  elle  a  oração  do  Padre  nosSo;  aconteceo 
por  vezes,  com  a  boa  fé  d'estes  innocentes,  obrarem-se  curas  milagrosas, 
de  que  os  índios  ficavão  admirados,  e  com  maior  conceito  da  Fé  que  pro- 
fessamos. 

92  Correndo  certo  dia  as  casas  da  principal  aldéa  (como  era  costume) 
pêra  soccorreí'  os  doentes,  e  pêra  com  melhor  effeito  intimar  a  doutrina 
de  Chrisío ;  vio  o  Padre  João  de  Aspilcueta  seis,  ou  sete  velhas  igualmente 
maduras  na  idade,  e  refinadas  em  seus  ritos  gentílicos  (quaes  sete  harpias 
do  inferno)  que  rodeavao  huma  grande  fogueira,  ministrando  lenha,  e  ati- 
çando o  fogo  com  cantos  de  alegria  a  seu  modo  bárbaro:  entendeo  logo  o 
que  podia  ser,  e  chegando-se  vio  que  estavão  assando  muitos  quartos  de 
carne  humana,  e  outros  tantos  tinhão  a  cozer  em  hum  grande  azado,  em 
que  entravão  diversas  cabeças,  pés,  e  mãos ;  tudo  a  fim  de  celebrarem  cer- 
ta festa.  Que  faria  Navarro?  lembràrão-lhe  aqui  as  historias  do  monte  Cal- 
vário, e  a  resolução  que  daqui  fizerão  os  companheiros,  que  nesta  maté- 
ria se  ganha  tanto  mais  quanto  he  maior  a  brandura, 'e  paciência.  Abominou- lhes 
a  cozinha  infame  com  argumentos  deduzidos  pela  piedade  christãa :  porém  co- 
mo ainda  erão  gentios  os  d"esta  festa,  escusárão-se  com  seus  antepassados:  «Não 
sabes  tu  (dizião)  que  foi  sempre  este  o  regalo  maior  de  nossas  festas?  que 
nestes  nos  criámos  de  pecpenos,  e  estes  aprendemos  de  nossos  pais,  e 
avós?  Assi  te  parece  tão  fácil  largar  hum  costume  tão  antiguo?»  Ouvio  o 
Padre  a  escusa,  dissimulou,  e  tratou  por  então  de  cathequizal-os ;  porque 
bem  via,  que  sem  a  luz  da  Fé,  não  podião  conhecer-se  tão  grandes  trevas 
da  gentilidade :  e  por  fim  veio  a  acabar  com  os  da  festa,  e  com  as  velhas 
(que  he  o  que  mais  espanta)  trocassem  o  banquete  em  outras  espécies  de 
comida.  Por  estas,  e  outras  semelhantes  traças  de  espirito,  de  que  usava 
o  Padre  Aspilcueta  Navarro,  vierão  commummente  a  dizer  delle,  que  pa- 
recia que  andava  avinculada  a  conversão  da  gentilidade  na  gente  Aspilcue- 
ta Navarra;  alludlndo  á conversão  que  o  Padre  Mestre  Francisco  Xavier  no  mes- 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (anNO  DE   1351)  57 

mo  tempo  fazia  no  Oriente,  e  comparando-a  com  a  que  o  Padre  fazia  no 
Brasil,  ambos  da  gente  Aspilcueta  Navarra. 

93  Junto  á  cidade  tinha  também  a  industria  da  Padre  Nóbrega,  e  seus 
companheiros,  levantado  casa  de  Seminário  com  suas  'próprias  mãos,  e 
trabalho.  Neste  criavão,  e  sustentavão  c[uantidade  de  meninos  fdhos  dos  ín- 
dios, e  mestiços  da  terra,  em  bons  costumes,  e  doutrina  christãa,  com 
muito  fruto,  e  ajuda  das  almas :  porcjue  fazião  tanta  estima  d'este  Recolhi- 
mento, que  de  todas  as  partes  concorrião  meninos,  em  tal  numero,  que  pa- 
recia já  impossível  sustental-os.  Aqui  aprendião  a  ler,  escrever,  contar,  aju- 
dar á  missa,  e  doutrina  christãa:  e  os  que  estavão  mais  provectos  saiiião 
em  prociss(3es  pelas  ruas,  entoando  em  canto  de  solfa  as  orações,  e  mys- 
terios  da  Fé,  compostos  em  estylo.  Aqui  he  digno  de  notar  o  successo  se- 
guinte. Era  grande  a  seara,  e  erão  poucos  os  obreiros,  e  entre  esses  pou- 
cos continuava  hum,  que  era  o  Padre  Vicente  Rodrigues,  com  doença  de 
hum  anno  inteiro,  e  rpie  ainda  promettia  longos  vagares:  levado  hum  dia 
de  zelo  o  Padre  Nóbrega,  com  espirito,  ao  que  pareceo,  mais  que  ordiná- 
rio, fallou  ao  enfermo  d"esta maneira:  «Padre  Vicente,  a  doutrina  das  almas 
tem  necessidade  de  vós;  pelo  que  em  virtude  da  santa  obediência  vos  or- 
deno, que  lanceis  fora  essa  doença,  e  vades  acudir  ao  próximo.»  Cousa  ad- 
mirável! no  mesmo  ponto  foi  o  Padre  restituído  á  saúde,  e  forças  perfeitas, 
e  foi  logo  ajudar  aos  mais,  não  sem  fruto  das  almas. 

9i  Entrou  o  anno  de  1551,  e  chegou  á  Bahia  outra  Armada  igual  á  do 
anno  passado,  mandada  por  El-Rei  de  Portugal,  em  soccorro  de  sua  nova 
cidade  do  Salvador,  debaixo  do  governo  do  Capitão  António  de  Oliveira, 
homem  muito  nobre  (em  quem  encabeçou  a  Alcaidaría  mór  delia,  que  con- 
tinuou até  o  presente  em  sua  descendência)  porque  como  ainda  neste  tem- 
po não  havia  mercadores  de  conta  no  Brasil,  costumava  mandar  todos  os 
annos  nestas  nãos  fazendas,  gado,  cavallos,  e  outras  cousas  necessárias  ao 
provimento  abundante  da  terra.  Esta  Armada,  supposlo  que  não  trouxe 
soccorro  de  obreiros,  trouxe  comtudo  esperanças  alegres,  de  que  prelen- 
dião  a  missão  com  instancia  muitos,  cbons  sujeitos,  a  que  cedo  virião,  le- 
vados da  fama  da  multidão  de  almas,  e  fruto  qnc  nollas  se  fazia.  Vinha 
nestes  navios  quantidade  de  homens  degradados,  c  orfãas  mandadas  pela 
Rainha  D.  Catharina  pêra  cá  se  casarem,  e  povoarem  a  terra.  Com  esta 
gente  tiverão  os  Padres  assas  em  que  empregar  seus  desejos,  acudindo, 
assi  ao  remédio  espiritual  dos  degradados,  como  ao  estado  temporal  das 
orfãas,  com  zelo,  c  não  sem  o  esperado  fruto;  porque  tirarão  a  muitos 


58  LIVRO  I  DA  CimONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

de  péssimo  estado,  e  a  muitas  ajudarão  a  amparar,  com  iionra,  e  re- 
médio. 

95  Por  este  tempo  do  anno  em  que  imos  de  1551,  segundo  colijo 
do  computo,  e  de  humas  palavras  do  Padre  Josepli  de  Anchieta,  em  seus 
Apontamentos  (que  outra  noticia  não  pude  achar)  mandou  o  Padre  Nóbre- 
ga á  Capitania  do  Espirito  santo,  já  então  fundada,  mas  destituída  de  obrei- 
ros do  Evangelho,  o  Padre  Aííonso  Braz,  hum  dos  quatro  que  pouco  ha 
dissemos  vierão  de  Portugal  em  soccorro.  Está  esta  Capitania  em  altura 
de  20  grãos,  e  hum  terço,  distante  120  legoas  da  Bahia,  e  de  S.  Vicen- 
te outras  tantas:  foi  fundada  no  anno  de  1525  por  Vasco  Fernandes  Cou- 
tinho, fidalgo  de  igual  valor,  e  nobreza,  dos  mais  illustres  e  antigos,  solares 
de  Portugal.  Concedeo-lhe  o  Sereníssimo  Rei  D.  João  III  cincoenta  le- 
goas por  costa,  começando  donde  acabasse  a  data  de  Pedro  de  Campos, 
donatário  de  Porto-seguro,  correndo  ao  Sul ;  pelos  serviços  que  na  índia 
lhe  fizera.  Fez  em  Lisboa  huma  boa  Armada  á  sua  custa,  com  gente,  e 
aprestos  necessários  pêra  defensão  da  terra,  e  vinhão  com  elle  ajudal-o 
sessenta  homens  nobres  criados  d'El-Rei,  D.  Jorge  de  Meneses,  D.  Simão 
de  Castel-branco,  e  outros.  Chegou  a  salvamento  a  esta  costa  do  Brasil, 
onde  por  informações  (ao  que  parece)  dos  que  havião  demarcado  a  terra, 
forão  em  demanda  do  porto,  que  hoje  chamamos  do  Espirito  santo ;  e  en- 
trando da  barra  pêra  dentro  á  mão  esquerda,  junto  ao  monte  de  Nossa  Se- 
nhora, lançarão  gente,  ao  som  da  artelharia  de  seus  navios,  naquellas  praias 
occupadas  então  de  gentio  blirbaro :  e  nas  mesmas  começarão  a  fundhr  a 
villa,  que  agora  tem  nome  de  Villa-velha,  com  íiwocação  do  Espirito  santo, 
que  foi  depois  o  de  toda  a  Capitania.  Aqui  teve  apertadas  guerras  de  huma 
parte  com  a  nação  dos  Guayanás,  e  de  outra  com  a  de  Topinaquís  (cujos 
successos  vários  a  mim  me  não  pertencem  aqui;)  porém  he  certo  que  na- 
quelle  principio  mostrou  a  fortuna  bom  rosto  a  nossas  armas,  e  alcançou 
o  valor  d'este  Capitão  victorias  dignas  de  historia,  e  taes,  que  forão  causa 
de  que  pedissem  [pazes  parte  dos  inimigos,  outros  se  retirassem  a  seus 
sertões,  e  tivessem  lugar  os  nossos  de  mudar  de  sítio  pêra  outro  mais  se- 
guro, e  forte,  onde  hoje  vemos  a  villa  com  invocação  da  Victoria,  por  res- 
peito de  huma  que  então  alcançámos  considerável  de  numerosa  quantidade 
de  bárbaros,  que  no  lugar  estavão  situados. 

96  Está  esta  villa  em  lugar  igualmente  defensável,  e  commodo  pêra  a 
vida  humana :  cercado  de  agoa,  armado  de  penedia,  horrível  por  nature- 
za, habitável  por  arte :  junto  ao  rio,  perto  da  barra,  senhor  de  pescarias 


DO    ESTADO  DO  liRASIL  (aNNO   DE   1551)  59 

c  mariscos  sem  numero.  Seus  arredores  são  terra  fértil,  capaz  de  grandes 
canaviaes,  e  engenhos:  seus  campos  amenos,  relalliados  de  rios,  e  fontes: 
suas  mattas  recendem,  são  delicia  dos  cheiros,  bálsamos,  copaigbas,  alme- 
cecas,  salçafrazes :  seus  montes  estão  prenhes  de  minas  de  varia  sorte  de 
pedraria,  e  segundo  dizem,  de  prata,  e  ouro:  será  feliz  o  tempo  em  que 
saião  a  luz  com  seu  parto.  Todas  as  partes  referidas  prometem  boas  dittas: 
farão  relação  delias  os  que  ao  diante  escreverem;  que  eu  trato  somente  do 
que  pertence  ao  estado  presente,  em  que  vai  a  historia.  N'este  com  tudo 
darei  breve  noticia  do  modo  com  que  colhem,  e  usão  do  thesouro  dos  bál- 
samos aquelles  moradores.  São  arvores  altíssimas,  de  troncos  grossos,  e 
estendidas  ramas,  que  excedem  muito  as  do  celebre  bálsamo  da  Palestina. 
Hum  género  delias  chamão  os  naturaes  cabureigba,  de  còr  cinzenta,  folhas 
á  maneira  de  myrto,  e  casca  de  grossura  de  hum  dedo.  Esta  casca  pois, 
golpeada  no  mez  de  Fevereiro,  ou  Março,  em  conjunção  de  lua  chea,  lan- 
ça pelas  feridas,  em  vez  de  sangue,  copia  do  licor  amarello  fragantissimo, 
e  preciosíssimo,  a  que  chamamos  bálsamo,  em  tanta  quantidade,  que  corre 
o  mundo  todo,  ou  como  sahe  da  arvore,  ou  feito  em  obra  de  bola,  vasos^ 
contas,  e  semelhantes  peças  cheirosas,  e  prezadas.  He  admirável  sua  vir- 
tude medicinal:  elle  só  suppre  huma  botica  de  remédios  humanos :  resol- 
ve, digere,  e  conforta  por  intensão  cálida,  o  seca.  Duas  gotas  delle  leva- 
das em  jejum  pela  boca,  desfaz  a  asma,  e  cruezas  do  ventre,  e  conforta  as 
entranhas.  Com  elle  morno  esfregado  o  peito  se  desfazem  as  opilações 
frias:  e  esfregada  a  cabeça,  e  pescoço,  com  panno  vermelho,  corrobora  o 
cérebro,  presença  de  apoplexia,  e  espasmo.  Tem  elficacia  grande  pêra  sa- 
rar feridas,  e  mordeduras  de  animaes  peçonhentos.  Os  próprios  brutos  le- 
vados do  instincto  natural,  quando  estão  feridos  correm  a  esta  arvore,  e 
mordendo-lhe  a  casca  achão  remédio  a  seu  mal.  Em  diversas  partes  do  Bra- 
zil  nascem  estas  arvores,  no  Rio  de  Janeiro,  S.  Vicente,  Pernambuco ;  po- 
rém nem  em  tão  grande  copia,  nem  de  tão  fino  bálsamo,  como  na  capita- 
nia do  Espirito  Santo.  Ao  outro  género  chamão  os  naturaes  copaigba:  são 
lambem  grandes  arvores,  tanib(im  cinzentas,  porém  são  maiores  a's  fo- 
lhas. Ferido  o  tronco  até  a  medulla,  especialmente  em  conjunção  de  lua 
chea,  recebem-se  de  licor  grandes  cântaros :  chamão-lhe  (como  á  arvore) 
copaigba:  e  quando  cessa,  tapad(j  oburaco  por  oilo,  ou  mais  dias,  quando 
depois  se  torna  a  destapar,  sahe  com  a  mesma  liberalidade.  O  cheiro  d'este 
óleo  não  he  tão  precioso,  mas  he  igualmente  medicinal  cfue  o  primeiro. 
97    N"esta  capitania  pois,  c  villa  da  Vicloria,  foi  recebido  o  Padre  Af" 


CO  LIM^O  I  DA  CimONIC.V  D.\  COMPANHIA  BE  JESU 

fonso  Braz,  e  hum  irmão  companheiro  sen,  com  tão  íjrande  alvoroço  do 
povo,  quanta  era  a  necessidade  que  linha  de  (piem  administrasse  as  cousas 
do  espirito.  Edificarao-lhe  em  breve  tempo  casa,  e  Igreja,  na  (piai,  c  fora 
d'ella  pelas  ruas,  e  praças,  exerciíava  os  ministérios  do  nossa  Companhia, 
com  bom  fruto  das  almas.  De  casos  particulares  só  achei  conjecturas,  mas 
não  relação;  porque  naquelles  tempos  obrava-se  muito,  escrevia-se  pouco. 
Contentou-se  o  Padre  Joseph  com  dizer,  que  ajudava  este  varão  aos  próxi- 
mos com  confissões,  praticas,  e  exortaçíjes  espirituaes,  e  se  exercitava  tam- 
bém a  si  em  penitencias,  e  trabalho  do  corpo,  com  grande  edificação  de 
todos;  e  especialmente,  que  fazia  officio  de  carpinteiro,  que  nunqua  apren- 
dera: com  razão ;  porque  se  a  necessidade  faz  mestres,  com  maior  o  zelo 
de  ajudar  os  próximos. 

98  Este  progresso  hião  tendo  as  cousas :  porém  o  espirito  de  Nóbre- 
ga, que  aspirava  a  toda  a  gentilidade,  não  se  assocegava  em  tão  pequenos 
termos.  Resolveo-se  n'este  anno  de  mil  e  quinhentos  e  cincoenta  e  hum  ir 
em  pessoa  a  Pernambyco,  a  fim  de  ver  o  modo  que  poderia  ter  a  conver- 
são daquellas  almas,  que  erão  innumeraveis,  e  todas  faltas  de  doutrina. 
Porém  em  quanto  dispõe  a  viagem,  e  vem  por  caminho,  hc  bem  que  de- 
mos brevemente  noticia  d'esta  Capitania,  e  do  estada  era  que  então  estava. 

99  He  a  Capitania  de  Pernambuco  huma  das  primeiras,  e  mais  nobres 
d"esta  província.  Corre  cincoenta  legoas  por  costa  desde  o  rio  S.  Francisco, 
altura  de  dez  grãos,  e  hum  quarto,  até  entestar  com  outro  rio  chamado 
Igaruçú  em  oito  grãos  da  equinocial.  Pêra  o  sertão  não  tem  limite  certo, 
se  não  o  que  se  achar  por  divisão  das  terras  entre  Portugal  e  Castella,.  e 
devem  ser  como  trezentas  legoas,  mais  ou  menos,  segundo  o  computo  de 
alguns  dos  Geographos.  Toda  he  terra  bem  assentada,  com  moderada  com- 
postura de  montes,  e  campinas:  o  torrão  fértil,  feraz,  vigoroso,  e  que  pro- 
metle  desempenhar  os  desejos  dos  que  a  cultivarem,  por  mais  ambiciosos 
que  sejão.  Os  campos  são  fecundos  de  infinidade  de  gado,  regados  de  rios, 
abundantes  de  fontes,  e  agoas  salutiferas.  Só  de  rios  que  desembocão  em 
o  mar,  se  conta  numero  de  vinte  e  cinco :  n"esta  Capitania  os  mais  d'elles 
caudaes,  e  navegáveis.  Seu  arvoredo  compete  com  as  nuvens,  perpetuo  na 
verdura,  sem  numero  na  quantidade,  sem  preço  na  estima.  Os  páos  bra- 
sis, amarelos,  jacarandás,  caripinimás,  e  sobre  tudo  a  amenidade  de  seus 
fermosos  coqueiraes  he  singular.  Da  bondade  do  clima,  ares  vitaes,  e  mais 
commodidades  pêra  a  vida  humana,  basta  dizer  que  he  parte  principal  do 
Brasil.  Nesta  só  Capitania  podéra  bem  fundar-se  hum  reino. 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (aNNO  DE    lõol)  6i 

100  Foi  dada  esta  parte  do  Brasil  por  El-Rei  D.  João  a  Duarte  Coe- 
lho, o  velho :  a  occasião  foi  a  mesma  que  temos  dito  de  Martim  Affonso  de 
Sousa,  e  Vasco  Fernandes  Coutinho.  Tinha  elle  chegado  da  índia' rico  de 
bens,  e  de  serviços :  em  paga  delles  llie  foi  concedida  esta  Capitania,  pêra 
que  a  povoasse,  e  defendesse  á  sua  custa,  demarcada  na  forma  que  disse- 
mos, e  com  as  larguezas  que  constão  do  foral,  que  são  grandes.  Com 
este  despacho  animado  fez  huma  Armada,  e  embarcou-se  n'ella  com  toda 
sua  casa,  e  niuitos  parentes,  e  amigos,  que  quizerão  acompanlial-o,  provido 
de  soldadesca,  e  aprestos  de  guerra,  tudo  á  sua  custa.  Deu  á  vela  em  Lis- 
boa no  mez  de  ]\Iarço  de  1530.  Chegou  á  sua  Capitania,  e  tomando  pri- 
meiro noticias  necessárias,  e  experimentadas  outras  estancias,  veio  a  des- 
embarcar no  porto,  a  que  os  índios  chamão  Paranambuca,  e  nós  com  pouca 
corrupção  Pernambuco.  E  logo  indo-  roçando  as  mattas  ao  som  de  armas 
de  fogo,  terror  d'aquelles  bárbaros,  abrirão  caminho  de  huma  legoa;  e  con- 
tentando-se  de  hum  lugar  mais  alto  (sitio  que  depois  foi  da  villa)  livre  de 
padrastos,  e  defensável,  fundou-  huma  torre  de  pedra  e  cal  (cujas  ruinas 
ainda  hoje  perseverão  na  Rua  nova)  formou  valles,  dispoz  sua  gente  de 
guerra,  e  mostrou  bem  a  experiência  o  quanto  lhe  era  necessário  todo  este 
apresto;  porque  foi  aqui  acommettido  com  terríveis  assaltos  de  bárbaros 
sem  numero,  chamados  especialmente  Caetês,  capitaneados  por  Prancezes, 
que  trazião  comsigo.  Forão  postos  em  cerco  com  grandes  apertos  de  fome, 
e  sede;  em  cuja  defensão  foi  ferido  o  mesmo  Capitão,  morta  muita  gente, 
e  chegarão  a  ponto  de  pcrder-se.  Porém  era  Duarte  Coelho  homem  de 
grande  coração,  destro  em  guerra,  e  tirando  maiores  brios  dos  maiores 
apertos,  com  tal  valor  se  houve,  que  não  somente  veio  a  livrar-se  do  cer- 
co, mas  a  accommetter  o  inimigo,  com  tão  milagrosas  empresas,  que  erão 
dignas  de  huma  grande  narração.  Matou  infinidade  de  barbaria,  e  aos  que 
ficarão  obrigou,  ou  a  pazes,  ou  a  retirada  do  sitio  por  larga  distancia,  em 
que  podessem  viver  os  moradores,  e  assentar  fazendas.  As  mesmas  victo- 
rias  continuou  depois  Duarte  Ceelho,  o  moço,  filho  seu,  e  de  sou  valor,  em 
cujo  tempo  chegou  a  não  apparecer  inimigo  cincoenla  legoas  em  circuito, 
íjneJjrados  os  arcos,  c  os  brios;  com  que  puderão  continuar  os  nossos  a 
fundação  da  villa  de  Olinda,  com  quietação,  c  socego,  crescendo  esta  a 
grande  estado.  Porém  aqui  entre  tão  prosiieros  successos  de  guerra,  julgo 
que  he  conforme  a  razão  advertir,  <iue  pêra  estes  forão  de  grande  adjuto- 
rio  os  Índios  da  nação  Tobayár:  e  isto  lhes  sirva  sequer  por  agradeci- 
mento. 


G2  Lm\o  I  DA  cnnoNicA  da  companhia  de  jesu 

101  Foi  esta  nação  dos  Tobayâres  a  primeira,  que  (como  já  tocámos 
failando  da  Bahia)  se  poz  da  parte  dos  Portugueses;  apesar  de  Potiguáras, 
Tapuyas,  e  outros,  e  em  nossa  defensão  obrarão  grandes  cousas  em  todas 
as  conquistas.  Da  d"estas  parles  porei  alguns  exemplos.  Seja  o  primeiro  o 
de  hum  aíTamado  Tabyra,  Capitão  de  valor,  esforço,  e  arte:  chegou  a  ser 
terror,  e  assombro  de  nossos  inimigos;  venceo  batalhas,  matou  innumera- 
veis,  e  fez  taes  proezas  em  armas,  que  só  com  Tabyra  sonhavão.  O  mes- 
mo era  saber  que  vinha  no  exercito,  que  dar  a  empresa  por  perdida.  A 
modo  dos  Capitães  de  fama,  dispunlia  ciladas,  assaltos  nocturnos,  inopina- 
veis,  trazendo  areados  com  elles  seus  contrários.  Rondava  de  noite  disfar- 
çado os  arraiaes  do  inimigo,  e  ouvia  quanto  entre  si  tratavão,  e  no  se- 
guinte dia  pondo-se  em  fronteira  lhes  descobria  suas  traças  como  adivi- 
nhadas, mettendo-os  em  espanto,  e  medo.  E  tudo  certificão  certidões  au- 
tenticas dos  Capitães  d'aquelle  tempo. 

102  Exasperadas,  e  desesperadas  as  nações,  appellidárão  suas  gentes, 
metterão  o  resto  do  poder,  e  formarão  exercito  excessivo,  e  numeroso, 
ajuramentados  a  morrer,  ou  acabar  de  huma  vez  com  este  acoute  com- 
mum  de  todas.  Fizerão-se  fronteiros  a  seu  arraial,  e  mandarão-lhe  intimar 
desafio.  Sobio-se  a  hum  alto  o  mais  esforçado  de  seus  combatentes,  e  a 
grandes  vozes,  chamando  por  seu  nome,  dizia:  «Tabyra,  Tabyra,  só  a  pro- 
var forças  comligo,  he  nossa  vinda  a  este  lugar :  se  és  valente,  como  di- 
zes, convém  que  saias  com  toda  tua  gente  a  campo,  que  n'elle  nos  acha- 
rás sem  temor :  e  se  comtudo  não  sahires  de  tuas  covas  (em  que  encova- 
dos estaes  como  ratos)  não  te  jactes  mais  de  esforçado.»  Ouvio  Tabyra  o 
desafio,  e  levantando-se  a  huma  eminência,  vio  os  campos  cobertos  de  guer- 
reiros, qiie  batendo  os  ares  o  esperavão  arrogantes,  promettendo-se  d"esta 
vez  a  victoria,  cpie  perderão  por  tantas.  Outro  cpie  Tab3Ta  não  fora,  des- 
fallecera;  porque  não  tinha  comparação  alguma  exercito  com  exercito:  po- 
rém elle,  que  não  sabia  que  cousa  era  medo,  com  tanto  maior  brio,  quanto 
era  maior  a  empresa,  ajuntou  os  seus,  e  fallou-lhes  assi:  «Parentes,  e  ami- 
gos, bem  nos  dizião  a  nós  os  Portugueses,  que  o  Deos  que  adorão  favore- 
cia os  de  seu  bando:  aqui  nos  traz  agora  como  a  matadouro  juntos  os  ini- 
migos, que  tempo  ha  andávamos  pelas  mattas  buscando  pêra  huma  vez  aca- 
bal-os:  os  mesmos  são  a  quem  tantas  vezes  vencestes:  o  virem  unidos,  he 
que  quer  nossa  boa  fortuna  dar  de  hum  golpe  nome  a  nossas  armas:  não  ha 
que  temer:  cpanto  mais  que  no  caso  presente  não  he  voluntária  a  batalha, 
força  he  que  saiamos  a  quem  nos  desafia,  sob  pena  de  covardes.  Saião, 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (aNNO  DE   1551)  63 

saião  (las  covas  os  ratos,  e  vejamos  que  gato  he  este  que  pretentlc  co- 
mol-os  ?  Imitai  o  que  virdes  que  faço,  e  por  ventura  vejaes  liqje  que  deixa 
em  nossas  mãos  a  pelle.»  Disse,  e  fez:  em  breve  tempo  se  poz  fronteiro  ao 
inimigo,  que  presentoii  batalha.  Conta-se,  que  rompeo  n'esta  com  tal  fu- 
ror, e  estrondo  de  vozes,  bater  de  pés,  e  arcos,  que  atroadas  as  aves  que 
voavão,  cahião  em  terra.  O  famoso  Tabyra  (qual  a  exiialação  leve  na  região 
do  ar,  cercada  de  nuvens  inimigas,  concebe  fogo,  rompe  em  trovões,  e 
despede  coriscos)  assi  cercado  da  multidão  de  seus  inimigos,  concebe  ar- 
dor, brama  como  trovão,  e  corisco,  assolla,  e  põe  por  terra  o  que  mais 
lhe  resiste.  Era  porém  a  multidão  de  bárbaros  excessiva:  a  centenas  de 
mortos  succedião  milhares  de  vivos;  e  como  doestes  o  primeiro  cuidado 
era  tirar  da  vida  o  Capitão  Tabyra,  no  principal  fervor  do  conflicto  des- 
carregou sobre  elle  por  hum  lado  tal  nuvem  de  frechas,  que  correo  peri- 
go sua  vida,  e  ficou  pregado  em  hum  olho,  a  cuja  vista  esteve  suspenso 
seu  exercito.  Porém  Tabyra  arrancando  a  frecha,  e  com  ella  o  olho,  e  acu- 
dindo brevemente  a  certa  erva  que  lhe  estancou  o  sangue,  disse  aos  sol- 
dados que  fossem  por  diante,  que  ninguém  desmaiasse,  que  pêra  vencer 
seus  contrários  lhe  bastava  hum  olho  só.  Continuou  com  elle  quebrado, 
mas  inteiro  o  animo;  e  como  só  a  grandeza  do  numero  detinha  a  victoria, 
depois  de  mortos  e  frechados  tão  grande  quantidade  de  bárbaros,  que  lhe 
não  souberão  pôr  o  numero,  antes  que  o  sol  se  puzesse  ficarão  os  nossos 
senhores  do  campo,  e  de  huma  victoria  das  mais  famosas  de  todos  aquel- 
les  tempos. 

103  Não  foi  inferior  no  valor,  e  potencia,  o  grande  Piràgibá,  que  vai 
tanto  como  Braço  de  peixe.  Taes  façanhas  obrou  em  defensão  dos  Portu- 
gueses, que  mereceo  ser  appremiado  com  habito  de  Christo,  e  tença.  O 
mesmo  obrou  hum  Itagybâ,  Braço  de  ferro,  e  muitos  outros  Tobayáres,  em 
cuja  ajuda,  o  potencia  forão  os  Portugueses  remontando  as  demais  nações 
pêra  o  interior  das  bi-enhas,  e  se  ficarão  olles  nas  partes  marítimas  da 
terra,  indo  d'esta  maneira  sempre  a  conquista  com  prospeiidade,  e  em  cres- 
cimento a  villa  de  Olinda. 

104  Oh  quem  i)i-ophetizara  então  as  varias  fortunas,  que  tinhão  guar- 
dado os  tempos  a  esta  nobi-e  villa?  Quem  dissera  que  seria  Olinda,  anda- 
dos os  annos  de  hum  século,  o  thcalro  da  maior  inconstância  da  vida,  o 
campo  da  maior  variedade  humana,  (jue  virão  os  olhos  dos  mor! acs?  Cres- 
cerá, subirão  aos  aros  suas  maf|uinas,  chegai'á  a  ser  cabeça  do  hum  dos  Po- 
Innladiis  do  nrlic,  soberl);!  em  edificios,  iUusIrc  cm  cidadãos,  esmerada  em 


04  LIVUO  I  DA  CimOMCA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

policia,  culto,  fausto,  tratto,  riqueza;  conhecida,  applaudida,  buscada  de  to- 
das as  partes  do  mundo,  por  suas  ricas  drogas:  será  seu  corpo  agiganta- 
do, florente,  povoado  de  grandiosas  villas,  cheio  de  grandes  maquinas  de 
engenhos,  revestido  de  verdes  e  louros  canaviaes,  rico,  grandioso,  hum 
quasi  Paraiso  da  vida  humana. 

104  Porém  (oh  roda  da  fortuna!)  essa  mesma  grande  cabeça,  esse  mes- 
mo agigantado  corpo,  por  soberba,  e  outros  vícios,  ou  por  juizos  occultos 
do  Ceo,  cahirão  brevemente,  e  com  precipitada  ruína  serão  despedaçados, 
feitos  opprobrio,  e  ludibrio  de  gentes  infiéis  estrangeiras.  Aquella  sua  ca- 
beça de  ouro  será  abrazada  em  vivo  fogo;  tornada  (qual  de  primeiro)  lugar 
deserto,  e  matta  inhabitavel,  sem  lustre,  sem  nobreza,  sem  policia,  culto, 
fausto,  trâtto,  riqueza,  desconhecido,  e  deixado  de  todos.  Aquelle  seu  corpo 
de  metal  ferraoso,  braços,  e  pés,  serão  feitos  pedaços,  e  postos  por  terra. 
As  villas,  os  lugares,  as  maquinas,  os  engenhos,  as  doces  plantas,  senho- 
reado tudo  de  cultor  estranho:  os  homens  mortos,  martyrizados,  tyrani- 
zados,  com  crueldades  taes,  que  excederão  ás  dos  Decios,  e  Dioclecianos. 
Foi  visto  seu  incêndio  por  verdadeira  revelação  em  lugar  mui  distante,  e 
muito  antes  que  naturalmente  se  pudesse  saber,  por  hum  servo  de  Deos 
religioso,  que  posto  de  joelhos,  arrasado  em  lagrimas,  e  levantadas  as  mãos 
ao  Ceo,  me  certificou  a  mim  mesmo  que  isto  escrevo,  na  própria  hora  em 
que  succedia,  com  todas  suas  circunstancias,  o  triste,  e  lamentável  caso. 
He  pessoa  passada  já  da  presente  vida,  a  quem  se  devia  todo  o  credito ; 
porque  além  d'esta  foi  dotado  de  outras  muitas  visões  do  Ceo. 

106  Aqui  com  tudo,  oh  feliz  queda,  podemos  dizer  com  razão;  porque 
quanto  foi  maior  a  ruina,  tanto  com  mór  espanto  do  mundo  ha  de  resus- 
citar.  He  momentânea  a  resurreição  de  hum  corpo,  torna  novamente  a  alma 
cora  nova  graça  a  dar  vigor  aos  membros  mortos.  Aquelle  corpo,  aquella 
cabeça,  aquelles  membros  deslustrados  com  a  sombra  da  morte  por  vinte  e 
quatro  annos,  quasi  em  hum  momento  tomarão  nova  alma,  com  nova  graça,  e 
tal  vigor,  que  porá  em  esquecimento  sua  ruina:  será  coroa  das  idades  pas- 
sadas, inveja  das  presentes,  e  escarmento  das  futuras:  será  assombro  de 
estrangeiros,  labéo  de  suas  armas,  portento  de  valor,  exemplo  de  vence- 
dores, pregão  dos  séculos,  gloria  da  Lusitânia,  e  honra  da  gente  Pernam- 
bucense,  e  Capitães  internos,  e  externos  tão  valerosos,  que  serão  contados 
nos  annaes  futuros  entre  os  Martes  semideoses  da  guerra.  Tornemos  agora 
ao  fio  da  nossa  historia. 

107     O  (jue  acima  disse  foi  o  principio  da  fundação  da  Capitania  de 


DO  ESTADO  DO  RRASIL  (ANNO  DE   [-)-)\)  65 

Pernambuco:  e  cio  modo  de  viver  de  seus  moradores,  occupados  em  guer- 
ras licenciosas,  som  Pastores  ou  Pregadores,  que  lhes  pudessem  ir  á  mão, 
se  deixa  ver  o  eslado  em  que  se  acharia  iicei"ca  de  suas  consciências,  quan- 
do pêra  elle  vinha  o  Padre  Nóbrega.  Era  njuila  a  corrupção  da  sensuali- 
dade, mui  pouca  a  guarda  das  leis  ecciesiasticas,  e  raro  o  uso  dos  sacra- 
mentos. Homens  havia,  que  por  espaço  de  quinze,  e  vinte  annos,  nem  con- 
fessavão,  nem  commungavão,  nem  mais  tratlavão  de  I\Iissa,  ou  Pregação, 
que  os  próprios  Gentios.  A  estes  males  dava  mais  ousadia  o  escândalo  de 
alguns  Sacerdotes  seculares,  que  devendo  zelar  estes  vicios,  chegavão  a 
pregar  com  boca  atrevida,  não  ser  cousa  iUicita,  nem  prohibida  por  lei  al- 
guma, sustentar  cada  qual  dentro  de  sua  casa  índias,  ainda  coíii  máo  uso; 
nem  ter  por  cattivos  os  índios,  que  podião  grangear.  Este  era  o  estado  da 
Capitania  no  temporal,  e  espiritual. 

108  Neste  estado  pois,  se  resolveo  o  Padre  Noijrega  ir  intentar  remé- 
dio a  estas  almas.  Chegou  a  Olinda,  levando  por  companheiro  o  Padre  An- 
tónio Pires,  varão  provado  em  todo  o  género  de  espirito,  correndo  o  an- 
no  do  Senhor  de  lool,  sendo  ainda  Governador^eral  na  Bahia  Thomé  de 
Sousa,  c  Capitão  mór,  e  Governador  em  Pernambuco  Duarte  Coelho.  Does- 
te, e  de  toda  a  gente  do  povo  forão  bem  recebidos:  e  não  com  menos  ale- 
gria dos  In(hos;  por  que  em  soando  por  seus  arredores,  que  ei'ão  chegados 
â  terra  dous  daquelles  Abaréguaçús  (que  assi  chamão  aos  Padres)  dos  quaes 
elles  Unhão  por  fama,  que  na  liahia,  e  em  S.  Vicente,  erão  pais,  e  prote- 
ctores dos  índios,  e  lhes  ensinavão  os  meios  <le  sua  salvação,  descerão  logo 
de  suas  aldeãs  a  dar-lhes  a  boa  vinda,  carregados  de  caça,  legumes,  beijús, 
farinhas,  offertas  de  sua  possihilidade;  e  pcdir-lhes  quizessem  ser  hospedes 
seus,  e  levar-lhes  a  luz  da  doutrina  que  trazião  do  Ceo.  Ilece])erão-n()s  os 
Padres  com  mostras  de  benevolência,  e  despedirão-nos  com  esperanças  do 
que  desejavão. 

109  Porém  era  necessário  em  priFTieiro  lugar  dar  algum  meio  ás  cou- 
sas (\os  Portugueses.  Começou  o  Padre  Nóbrega  a  lançar  as  primeiras  re- 
des da  pregação  do  Evangelho  naquellc  vasto  mai",  e  não  sem  grande  fi-u- 
lo:  i)or(|uc  como  a  pessoa,  vida,  e  santidade  do  pregador  era  tão  conhe- 
cida, fazião  a  suas  p;ilavras  geral  applauso,  pedião  que  ficasse  com  elles, 
dizião  (\m  era  voz  do  Ceo,  que  por  seu  meio  se  havia  de  converter  a  ter- 
ra; e  lhe  offerecêrão  casa,  e  Igreja.  O  mesmo  fruto  hia  fazendo  o  compa- 
nheiro na  gente  ordinária.  Havia  [)oréin  duas  sí)rtes  de  gente  da  mais  avul- 
tada, (jue  necessitava  de  cabedal  mais  rjue  oiilinario.  Erão  estes  (|uan(ida- 

VOL.   I  .") 


66  LIVRO  I  DA  CIIROMCA  DA  COMPAXIIIA  DE  JESU       ~ 

de  de  amancebados  com  suas  mesmas  índias,  e  outra  não  menor  multidão 
dos  que  cativavão  os  índios  som  titulo  alííiim  justo;  ponjue  como  aquoUes 
não  podião  fazer-sc  capazes  dos  sacramentos  sem  que  largassem  as  índias 
lie  seu  mão  tratto,  nem  estes  sem  que  largassem  os  índios  de  seu  serviço; 
era-lhes  pela  hora  da  morte  ouvir  f;jllar,  quanto  mais  consentir,  na  tal  re- 
solução. Davão  por  desculpa,  que  sem  índias,  e  índios  ficavão  sem  remé- 
dio; que  era  opinião  de  seus  Sacerdotes,  e  a  usavão  elles;  que  era  licito 
rctel-os  especialmente  por  necessidade.  E  vem  a  ser  este  o  mór  impedi- 
mento, quando  aquelles  mesmos,  que  deverão  acudir  ao  mal,  são  o  exem- 
plo delle. 

110  Em  grandes  anciãs  se  via  mettido  o  servo  de  Deos:  representava- 
se-lhe  a  seu  grande  zelo  sair  a  publico  a  confutar  ás  claras  doutrina  tão 
injusta,  e  dar  a  vida,  se  necessário  fosse,  por  defensão  de  dous  pontos  tão 
graves,  pertencentes,  hum  á  honestidade,  outro  á  Uberdade  dos  índios. 
Pelos  púlpitos,  pelas  praças,  pelas  ruas,  em  praticas  publicas,  e  particula- 
res, trattava  de  ensinar  a  todos  a  verdadeira,  e  solida  doutrina:  e  como 
tinhão  os  homens  grande  conceito  de  suas  letras,  e  virtude,  hia  fazendo  o 
desejado  fruto:  davão  muitos  de  mão  ás  mancebas:  muitos  largavão  os  ín- 
dios mal  havidos,  ou  os  retinhão  com  condições  licitas,  e  suaves;  e  geral- 
mente acudião  á  frequência  necessária  dos  sacramentos,  até  alli  tão  i)ouco 
usada.  Senão  que  o  inimigo  das  almas,  por  seus  [sequazes,  aquelles  Sacer- 
dotes semeadores  da  falsa  doutrina  já  ditta,  por  causa  delia,  e  porque  vião 
que  nosso  instituto  era  contrario  a  seu  modo  de  vida,  e  impedimento  ma- 
nifesto aos  lucros  de  suas  pregações,  e  missas,  conceberão  tal  ódio  contra 
os  pregadores  da  verdade,  que  pretenderão  infamal-os,  expulsal-os,  ou  aca- 
bal-os  se  pudessem,  incitando  pêra  isto  o  povo,  e  os  que  erão  de  sua  fac- 
ção: e  chegarião  a  effeituar  seu  intento,  a  não  acudirem  á  maldade  (a  ponto 
jã  de  commetter-se)  os  homens  principaes  do  governo,  e  desapaixonados, 
que  reprehendêrão  a  insolência,  e  opprimirão  os  desarranjos  delia. 

111  Em  quanto  passavão  estas  cousas  entre  Portugueses;  os  índios 
não  cessavão  de  enviar  seus  embaixadores,  pedindo  aos  Padres  quises- 
sem ir  a  suas  aldeãs  denunciar-Ihes  a  palavra  de  Deos,  de  que  somen- 
te tinhão  noticias  confusas.  Acudirão  os  Padres  a  seu  justo  intento;  e 
forão  recebidos  daquella  gente  com  as  maiores  mostras  de  festas  de  sua 
gentilidade.  Era  a  multidão  grande,  e  os  obreiros  somente  dous,  pouco 
industriados  em  sua  lingoa,  e  era  impossível  acudir  a  lodos.  Tomarão  a 
traça  seguinte.  Escolherão  cento  dos  mais  babeis  porá  serem  cathequizados 


I 


DO  ESTADO  DO  BIíASIL  (ANXO  DE   150:2)  67 

e  depois  mestres  dos  demais :  tomarão  estes  com  íiicilidadc  a  duiilriíia,  e 
merecerão  cm  Ijreve  ser  aprovados  pêra  o  bautismo.  Porém  o  inimigo  das 
almas  não  dorme:  inspirou  fogo  de  inveja  em  alguns  dos  que  não  forão 
admittidos;  e  d'estes  Imm,  que  era  a  cabeça,  arrogante,  de  grande  opinião 
entre  elles,  e  de  quem  aprendião  falsas  doutrinas,  levantou  huma  pertur- 
barão perigosa:  bia  mettendo  em  cabeça  aos  simples  índios  catliequizados, 
que  elle  era  da  geração  dos  Padres,  por  certa  via,  que  lhes  bia  contando 
fabulosa,  que  delles  aprendera  antiguamente  a  doutrina,  que  dantes  lhes 
ensinava,  e  que  morrendo,  por  mandado  de  Deos,  resuscitára  pêra  lha  en- 
sinar, e  era  a  mesma  que  lhes  praticavão  os  Padres  (e  ensinava-lbes  elle 
cousas  bem  más)  pelo  que  concluía  deixassem  ir  os  Padres,  porque  elle  só 
bastava,  c  tinha  da  parte  de  Deos  o  lugar  prevenido  pêra  doutrinal-os.  Com 
este  estratagema  tinha  já  enganado  a  muitos,  quando  foi  avisado  Nóbrega  do 
que  passava  ;  e  com  toda  a  pressa,  e  zelo  pregou  contra  o  enganador,  e  desfez 
seus  embustes  com  tão  grande  effeito,  que  foi  desterrado  por  falso,  e  este- 
ve a  ponto  de  ser  morto  a  mãos  do  povo,  a  não  lhe  acudirem  os  Padres. 

112  Obradas  as  cousas  referidas,  e  tendo  tentado  o  Padre  Nóbrega  o 
estado  d"esta  Capitania,  fazendo  primeiro  capazes  os  moradores,  voltou  á 
Bahia  com  intenção  de  tornar,  ou  mandar  mais  numero  de  sujeitos,  bem 
necessários  a  tão  grande  seara.  E  pêra  que  por  entretanto  se  conservassem 
os  princípios  lançados,  deixou  na  terra,  e  como  em  reféns,  o  Padre  Antó- 
nio Pires  seu  companheiro,  porque  além  de  sua  grande  virtude,  era  bem 
quisto,  assi  de  Portugueses,  como  de  índios.  E  não  se  enganou;  ponjue  foi 
conservando  a  missão  no  mesmo  teor  começado:  pêra  cujo  effeito  lhe  con- 
cedeo  o  Governador  Duarte  Coelho  huma  Ermida  de  N.  Senhora  da  Gra- 
ça, que  edificara  com  intenção  de  trazer  pêra  ella  Religiosos  de  S.  Agosti- 
nho. Estava  esta  situada  no  próprio  monte,  em  que  ao  presente  vemos  edi- 
ficado o  Collegio  da  Companhia.  Nesta  Ermida  trabalhou  com  grande  cui- 
dado o  servo  de  Deos,  porque  neila  passaA  a  os  dias,  e  parte  ^\s  Jioites  em 
confissões  continuas,  e  administração  dos  mais  ministérios  de  seu  institu- 
to: e  o  pouco  tem[)o  (jue  lhe  sobejava,  occupava  em  arrasar  o  monte  a  po- 
der de  seu  braço;  e  como  era  homem  de  grandes  forças,  chegou  a  lazer 
bum  largo  terreiro,  no  (\\u\  edificou  por  suas  mesmas  mãos  casas  de  tai[)a, 
em  ({ue  se  agasalhou  religiosamente,  com  recolhimento  estremado;  porque 
era  mui  dado  á  oração,  e  lamiliar  tratto  com  Deos. 

M.'{  (Chegou  o  Padre  Manoel  de  Nol)rega  de  Pernambuco  á  cidade  da 
Bahia  no  mez  de  Março  de  V')o'2,  e  visitando  o  pequeno  reljanho  de  seus 


G8  LIVRO  I  DA  CHROMCA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

Religiosos,  achou  que  tinlião  não  só  conservado,  mas  muito  augmentado  o 
estado  das  cousas  espirituaes,  entre  os  Portugueses,  e  índios.  Acliou  com- 
tudo  que  cstavão  sentidos  de  que  como  erão  em  grande  quantidade,  nuo 
podião  acudir-lhes  como  quizerão  cm  todas  as  aldeãs  com  a  frequência  de 
missas,  pregações,  e  doutrinas,  de  que  já  estavão  capazes.  Era  principio 
de  Quaresma,  e  como  se  viera  mui  folgado  da  missão,  e  viagem  de  Per- 
nambuco, se  oííereceo  (supposto  o  não  ser  tão  versado  na  lingoa  dos  índios) 
tomar  á  sua  conta  as  missas  conventuaes,  pregações,  e  confissões  de  todos 
os  dias  de  guarda  daquelle  santo  tempo,  assi  da  nossa  Igreja  da  cidade, 
como  de  Yilla-velha;  porque  assi  podessem  ficar  desoccupados  os  lingoas, 
que  havião  de  acudir  ás  aldeãs.  O  que  cumprio  á  risca,  e  não  sem  grande 
edificação  do  povo.  No  dia  santo  pela  manhãa  dizia  missa  na  nossa  Igreja  da 
cidade;  depois  delia,  pregava,  e  confessava  até  certas  horas:  e  logo  a  pé  com 
seu  bordão  na  mão  (por  haver  então  falta  de  Sacerdotes)  hia  a  Yilla-velha, 
dizia  missa  outra  vez,  e  ditta  ella  pregava,  e  confessava  até  mais  não  ha- 
ver. Oh  se  houvera  em  todos  os  Collegios  muitos  d'estes  obreiros!  O  cer- 
to he  que  todas  estas  difliculdades  facilita  o  zelo  verdadeiro  da  salvação 
das  almas. 

114  N"esta  necessidade  de  obi'eiros  acudio  o  Ceo,  com  a  chegada  de 
Dom  Pedro  Fernandes  Sardinha,  primeiro  Bispo  do  Brasil,  que  trouxe  com- 
sigo  alguns  Sacerdotes,  Cónegos,  e  Dignidades,  pêra  formar  sua  Sé  e  Igreja 
Cathedral  n'esta  cabeça  do  Estado,  na  forma  que  tocámos  no  principio  do 
anno  de  15o0,  onde  só  reparámos  no  anno,  que  pelas  razões  abi  dittas 
averiguámos  ser  este,  e  não  aquelle.  Foi  este  Prelado  varão  insigne  em  le- 
tras, e  virtude,  affamado  pregador  de  seus  tempos:  estudara  na  Universi- 
dade de  Paris,  onde  se  agraduou  de  Doutor:  foi  mandado  á  índia  com  o 
offlcio  de  Vigário  geral,  e  pelo  bem  que  nelle  se  jiouve,  mereceo  ser  elei- 
to Bispo  do  Brasil,  por  líll-Rei  D.  João  o  Terceiro.  Era  dotado  de  grande 
zelo  do  servjfo  de  Deos,  e  das  almas;  e  nelle  tiiihão  posto  os  olhos,  e  es- 
peranças os  moradores  de  sua  Diocese.  Se  não  que  envejoso  o  inimigo  com- 
mum  do  bem  das  almas,  traçou  como  se  reduzisse  a  breves  annos  sua 
vida  com  morte  deshumana,  de  que  no  anno  de  1556  tocaremos  huma  bre- 
ve noticia.  Tinha  grande  conceito  do  procedimento  dos  Padres  da  Compa- 
nhia, de  cujos  traltalhos  desejava  ajudar-se  em  suas  obrigações  pastoraes. 
Logo  que  chegou  á  Bailia,  com  beneplácito  do  Padre  Nóbrega,  despachou 
provisão  ao  Padi-e  António  Pires,  que  tinha  ficado  em  Pernambuco,  pêra 
que  visitasse  cm  seu  nome  aquella  Diocese.  Aceitou  a  coinmissão  por  obe- 


DO  ESTADO  DO  BRASIL   (aNXO  DE   l."."2)  69 

(Vioncia,  c  foz  o  oíficio  com  grande  prudência,  dando  remédio  a  muitos  ne- 
gócios, que  parecia  impossivel  acabarem-se  em  tempos  tão  licenciosos;  tu- 
do com  grande  satisfação  c  agradecimento  do  Bispo.  Feita  esta  visita,  foi 
mandado  vir  á  Bali  ia  o  mesmo  Padre,  assi  pêra  dar  conta  ao  Prelado  do  já 
obrado,  como  pêra  que  com  sua  nova  informação  se  dispusessem  em  me- 
Uior  forma  as  cousas  daquella  Capitania. 

lio  N'este  meio  tempo,  cm  que  as  aldeãs  da  Bahia  começavão  a  fio- 
recer,  sobreveio  hum  açoute,  que  juntamente  foi  castigo  de  màos,  e  aílicção 
de  bons:  acendeo-se  quasi  de  repente  huma  como  peste  terrivel  de  tosse, 
e  catarro  mortal,  sobre  certas  casas  de  índios  já  bautizados,  mas  pouco  lem- 
brados das  obrigações  christãas,  dados  ainda,  com  publico  escândalo,  a  seus 
antiguos  vicios;  e  com  evidentes  sinaes,  (jue  vinha  do  Ceo  destinada  a  es- 
tes; porque  somente  elles  morrião,  com  todos  seus  filhos,  e  famílias,  não 
tocando  a  peste  nos  bons,  e  tementes  a  Deos.  Porém  d'este  açoute,  com 
que  o  Ceo  quiz  tirar  a  emenda  de  huns,  pretendeo  tirar  Satanás  a  ruína 
de  outros:  e  foi  assi.  Metteo  na  cabeça  áquella  gente  rude,  que  a  tal  doen- 
ça era  causada  pelos  Padres;,  porque  onde  quer  que  punhão  a  mão,  por 
meio  da  agoa,  com  que  lavavão  os  corpos,  punha  a  peste  seu  rigor.  E  foi 
tão  de  veras,  que  o  pobre  povo  ignorante,  levado  do  embuste,  começou 
logo  não  só  a  fugir,  mas  como  a  benzer-se  dos  Padres;  os  catecumenos  de 
seus  instructores,  e  os  discípulos  (V3  seus  mestres,  como  se  forão  huns  dia- 
bos: o  mesmo  ora  vel-os  em  hum  caminho,  que  voltarem  por  outro.  Che- 
garão a  usar  do  ultimo  remédio,  que  quando  ouvião  que  havião  de  vir  por 
hum  caminho,  ajuntava-se  toda  a  communidade,  e  nelle  queimavão  pimen- 
tas, e  sal  pêra  retol-os,  e  como  esconjural-os,  não  fossem  por  diante,  se- 
gundo costumavão  fazer  por  ritos  antiguos  de  sua  gentilidade,  quando  que- 
rião  afugentar  ináos  prodígios,  pestes,  ou  animaes  nocivos:  c  não  podião 
chegar  a  mais. 

110  Porém  esta  infernal  invenção  desfez  em  vento  o  mesmo  successo 
contrario.  Tt)mavão  os  Padres  por  remédio  ir  correndo  as  casas  dos  doen- 
tes, levando  comsigo  os  meninos  innocentes  de  sua  doutrina,  cantando  La- 
dainhas dos  Santos,  e  benzendo  os  enfermos  com  agoa  benta.  E  como  com 
esta  santa  ccremonia  somente,  vissem  os  índios,  que  se  levantavão  algims 
sãos  (ou  pela  fé  (faíiuclies  innocentes,  ou  pela  dos  enfermos)  pasmavão  de 
tão  repentina  mudança,  foi^mavão  conceito  dos  Padres,  e  desmentião  com 
estes  casos  a  falsidade  do  aleive  contrario.  O  caso  mais  urgente  foi,  (|ue 
oílereceo  huma  destas  ald(3as  aos  Padres  hum  menino  desconfiado  j;i  da 


70  LIVRO  I  DA  CíIRONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

vida :  ora  este  íillio  de  gentio,  ])edirão  licença  ao  pai  pêra  baiitizal-o,  e 
deo-a  de  má  vontade,  mas  com  effeilo  venturoso;  ponjue  o  mesmo  foi  ser 
molliado  na  agoa  do  bautismo,  que  entregar-ilio  vivo,  e  são.  E  com  este 
ultimo  caso,  espanto  de  toda  aquella  casa,  se  acabarão  de  convencer,  pedirão 
perilão,  e  vierão  oíTerecer-se  aos  Padres,  como  a  pais,  e  mestres  verdadeiros. 
117  Visitou  mais  o  Padre  Nóbrega  sobre  aquelle  rol  antiguo  dos  vicios 
dos  índios,  que  dissemos  fizera,  como  também  dos  Portugueses,  pêra  que 
repartidamente  tratassem  de  desarreigal-os :  e  conhecendo-se  notável  me- 
lhoria em  todos  os  mais  erros,  só  no  abominável  abuso  da  carne  humana, 
não  estavão  seus  protectores  satisfeitos;  porque  achavão  convencidos  a  mui- 
tos, ainda  dos  já  bautizados,  com  escândalo,  e  tentação  dos  outros,  tanto 
mais  forte,  quanto  mais  este  vicio  he  n'elles  quasi  natural:  e  vião  que  esta 
vinha  a  ser  a  porta  mais  fácil  do  inferno,  que  tinhão  de  presente  os  índios. 
Ficou  magoado  o  Padre  Nóbrega,  e  querendo  pôr  em  consulta  o  remédio, 
entrou  o  fervor  em  hum  dos  companheiros  (segundo  conjecturo,  devia  ser 
o  Padre  Navarro;  porque  he  este  o  metal  de  suas  traças,  e  não  pude  achar 
quem  trouxesse  nome  expresso:)  tomou  logo  debaixo  da  sotaina  huma  dis- 
ciplina, e  veste,  e  foi  a  fazer-se  penitente,  correndo  as  aldeãs  na  maneira 
seguinte.  Chegava  á  primeira  aldeã  vestido  naquelle  sacco  de  supplicio, 
passeava  huma  e  muitas  vezes  seu  terreiro,  e  o  arredor  de  suas  casas, 
quando  mais  cheas  de  moradores,  com  a  disciplina  na  mão  desfazendo-se 
em  sangue,  até  tingir  a  veste,  e  molhar  a  terra.  Pasmavão  os  índios  de  por- 
tento tão  novo,  ajuntavão-se  a  ver  o  que  nunqua  virão;  e  os  que  tinhão 
mais  sinaes  de  razão,  compadecião-se,  e  pedião  ao  Padre  não  quizessema- 
tar-se  por  suas  mãos,  e  lhes  dissesse  que  he  o  que  pretendia  com  acto  tão 
cruel?  Então  respondia  o  penitente,  levantando  a  mão  ao  Ceo,  e  junta- 
mente a  voz  quanto  podia:  «Que  o  intento  daquelle  acto  era  applacar  a  ira 
divina,  que  sabia  estava  aparelhada  pêra  descarregar  sobre  aquelles,  que 
sendo  já  filhos  dos  Padres,  e  ensinados  em  sua  doutrina,  continuavão  o  in- 
fame vicio  do  appetite  da  carne  humana;  de  que  já  era  o  primeiro  aviso, 
a  grave  doença  que  tinhão  padecido.»  O  mesmo  fazia  na  segunda,  terceira, 
e  mais  aldeãs:  até  que  os  pobres  delinquentes,  entendendo  que  era  desco- 
berto seu  crime,  e  que  eia  causa  de  tanto  damno,  cheios  de  terror  e  es- 
panto sahirão  a  publico,  pedirão  perdão,  e  assentarão  cbm  lei  penal  entre 
todos  de  não  tornar  a  vicio  semelhante,  sob  pena  de  serem  gravemente 
castigados.  E  não  ficou  em  vão  a  promessa :  porque  correndo  os  meninos 
do  Recolhimento  as  casas  dalli  em  diante  (costume  seu)  pêra  testemunhas 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (aN.NO  DE    Vi^i^)  71 

(la  oljservancia  creste  preceito,  raros  erão  os  que  acharão  comprehendidos 
na  pena  da  lei  que  propuserão. 

118    O  Seminário,  ou  Confraria  dos  meninos  fdhos  dos  índios,  c  mes- 
tiços, ia  em  crescimento  maravilhoso.  Tinha  cuidado  delle  o  Padre  Salva- 
dor Rodrigues,  com  cuja  doutrina  fkjrecia  com  louvor  de  todas  as  virtudes. 
Sahião  em  procissões  todos  juntos  pela  cidade,  cantando  as  Ladainhas,  e 
orações  da  doutrina  christãa  em  canto  de  solfa,  com  tal  modéstia,  e  reli- 
gião, que  levavão  os  olhos  de  todos:  c  começavão  a  pretender  os  Portu- 
gueses aggregar  seos  filhos  a  clles,  pêra  sahirem  bem  doutrinados.  Outras 
vezes  hião  em  procissão  da  cidade  até  suas  próprias  aldeãs,  levando  sua  cruz 
levantada,  e  cantando  as  mesmas  devações  em  lingoa  brasílica ;  com  sum- 
mo  gosto  e  alegria  dos  pais,  que  de  nenhuma  cousa  mais  se  prezavão.  Ne- 
nhuma outra  satisfaz  tanto   a  esta  gente,  como  a  doçura  do  canto :  n'ella 
põe  a  felicidade  humana.  Chegou  a  ser  opinião  de  Nóbrega,  que  era  hum 
dos  meios,  com  que  podia  converter-se  a  gentilidade  do  Brasil,  a  doce  har- 
monia do  canto;  e  por  esta  causa  ordenou  se  lhe  pusessem  em  solfa  as  ora- 
ções, e  documentos  mais  necessários  de  nossa  santa  Fé;  porque  â  volta  da 
suavidade  do  canto  entrasse  cm  suas  almas  a  intelligencia  das  cousas  do  Ceo. 
Succedeo,  que  dirigirão  certo  dia  sua  procissão  a  casa  de  hum  Principal  de 
grande  nome,  amigo  dos  (^hrislãos,  mas  Gentio  ainda.  Tinha  este  huma  fi- 
lha sua  doente,  e  desconliada  da  vida :  hum  dos  meninos  entrou  em  zelo, 
e  com  fé  disse  ao  pai,  que  sua  filha  logo  havia  de  sarar :  cUe  o  disse,  e  o 
pai  o  vio;  porque  fazendo  o  menino,  e  os  companheiros  suas  orações  sobre 
a  enferma,  melhorou  logo,  e  sarou  brevemente;  de  que  ficou  espantado  o 
Gentio,  e  tão  contente  do  successo,  que  desde  logo  olíereceo  aos  próprios 
meninos  hum  filho  seu,  a  quem  queria  muito,  pêra  que  ellesoinslruissem 
n*a(iuella  doutrina  dos  Padres,  qu(j  ensinava  a  fazer  maravilhas:  fizerão-no 
ellcs  melhor  do  que  Ih.)  encommendára  o  pai,  e  em  breve  tempo  o  bau- 
tiz;irão,   e  aggregarão  ao  mais  numero  de  seu  Seminário.  Chegava  a  ser 
demasiada  a  ((piniãu  (jue  se  tinha  d'esl(!S  meninos  entre  os  Índios;  poi-fjue 
os  respeitavãíj  como  cousa  sagrada :  jienlumi  ousava  obrar  cousa  alguma 
roulra  sua  vontade,  crião  no  que  dizião,  e  cuidavão  que  nV.'l!es  estava  posta 
alguma  divindade:   até  os  caminhos  enramavão,  por  onde  havião  de  pas- 
sai'. Foi  finalmente  tão  applaudida  a  traça  ilesle  Seminário,  que  á  imitação 
delle  levantarão  os  Portugueses  outros  em  diversas  i)(jvoações,  pedindo  aos 
Padres  alguns  dos  meninos  jxti-  mestres  delles,  assignando  renda,  que  bas- 
tava i>era  o  su;tenlo  de  lod(js, 


/2  LIVRO  I  T)\  CIIRONICA  DA  COMPANHIA   CE  JESU 

120  N'éste  tempo  aprestava  o  Governador  geral,  por  ordem  d'El-Rei 

vinda  de  Portugal,  liuma  missão  em  descobrimento  de  certas  minas  do  ser- 
tão da  banda  do  Sul  da  P>aliia,  distante  mais  de  200  legoas  (segundo  con- 
jecturo, éra  ehtrè  a  Capitania  do  Espirito  santo,  e  Porto  seguro,  pela  terra 
dentro:)  mandava  luima  tropa  de  soldados  sertanejos,  capazes  de  aturar 
aquellas  asperezas.  Ao  som  do  tambor  d'esía  leva  não  aquietou  o  espirito 
do  bom  Padre  Navarro :  era  seu  animo  converter  a  gentilidade  do  Brasil 
toda,  e  des  que  viera  a  elle  suspirava  pela  que  estava  escondida,  e  remon- 
tada por  essas  brenhas,  aonde  não  podia  chegar.  Agora  que  vê  esta  porta 
aberta,  abraza-se  em  desejos,  pede  ao  Padre  Nóbrega  se  aproveite  da  occa- 
sião,  e  o  mande  a  elle  com  titulo  de  Capellão  d^arpiella  gente  em  busca  de 
almas  (pois  outra  semelhante  não  se  acharia  facilmente)  e  a  explorar  aquel- 
les  sertí5es,  e  denunciar  por  elles  a  Fé  de  Christo:  e  que  por  esta  via  se 
fazião  dous  serviços,  juntamente  a  Deos,  e  ao  Rei,  que  não  tinha  Capellão 
que  mandar. 

121  Agro  pareceo  ao  Padre  Nóbrega  o  haver  de  laj-gar  hum  tão  grande 
obreiro  de  si,  e  dos  índios  presentes,  pelos  futuros,  distantes,  e  incertos: 
porém  concordavão  no  mesmo  zelo  estes  dous  varões,  aos  quaes  parecia  mui 
pouca  a  gentilidade  da  Bahia  pêra  seu  grande  animo.  Encommendou  Nóbrega 
o  negocio  ao  Geo,  e  houve  de  conceder-lhe  licença,  entrevindo  também 
pêra  isso  petição  do  Governador  por  parle  do  serviço  d"El-Rei.  Havida  esta, 
partio  á  empresa  Navarro,  explicada  primeiro  a  condição  de  seu  intento 
principal,  que  era  o  das  almas,  que  á  somÍ)ra  dos  mesmos  soldados  deter- 
minava conduzir.  Achou  n'essa  empresa  o  servo  do  Senhor  o  que  desejava 
seu  espirito,  porque  erão  aquelles  sertões  ainda  virgens,  intrattaveis  a  pés 
de  Portugueses,  diíTiculíosissimos  de  penetrar;  era  necessário  abrir  cami- 
nho á  força  de  braço:  erão  continuas  as  alagoas,  e  rios;  o  caminhar  sem- 
pre a  pé,  e  pela  mór  parte  sempre  descalços;  os  montes  fragosissimos,  as 
maítas  espessas,  que  chegavão  a  impedir-lhes  o  dia.  Entre  todos  estes  tra- 
balhos muitos  desfallecião,  e  muitos  acabavão  a  vida  por  essas  brenhas:  po- 
rém entre  tão  grandes  necessidades  não  desmaiou  nunca  o  grande  coração 
de  Navarro,  pêra  grandes  empresas  criado :  animava  aos  fracos,  servia  aos 
doentes,  dava  sepultura  aos  corpos  dos  que  morrião,  e  todas  estas  misé- 
rias, doenças,  e  m.ortes  chorava  como  próprias;  e  fazião  tanto  effeito  n'elle, 
que  chegou  a  não  poder  ter-se  em  pé  de  fraqueza;  porque  (qual  outro 
Apostolo  das  gentes)  com  os  fracos  enfraquecia,,  e  com  os  enfermos,  enfer- 
mava. 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (aNXO  DE   loSS)  ÍZ 

122  Chegados  por  fim  ao  termo  da  viagem,  os  soldados  não  descobri- 
rão os  haveres  que  bnscavão,  ou  por  folta  de  guias,  ou  por  traça  do  Ceo. 
Descobrio  porém  Navarro  seu  thesouro,  teve  falia  de  muitas  nações  de  gen- 
te, ás  quaes  pregou  a  doutrina  de  Christo,  que  todos  ouvião  de  boa  von- 
tade; mas  nem  todos  a  podião  seguir,  assi  pela  pressa  que  a  tropa  levava, 
como  porque  nem  todos  entendião  a  lingoa,  e  por  outras  razões.  Trouxe 
com  tudo  grande  quantidade  de  almas,  que  vierão  rompendo  as  mattas,  até 
saliir  ao  mar,  na  Capitania  de  Porto  seguro,  onde  Navarro  os  assentou  em 
aldeã:  por  cuja  causa,  e  pela  fraqueza,  e  achaques,  com  que  se  sentia,  se 
ficou  alli  até  nova  ordem  dos  Superiores.  Fazem  menção  d'esía  missão  do 
Padre  Navarro  o  Padre  Nicoláo  Orlandino  no  livro  13,  n.°  71  das  Chroni- 
cas  da  Companhia,  e  o  Padre  Balíhasar  Telles  tom.  i,  liv.  3,  cap.  9  das 
Clironicas  de  Portugal;  e  algumas  lembranças  que  achei  de  apontamentos 
antigos;  nenhum  com  tudo  declara  o  tempo  d'ella :  porém  como  por  outra 
via  consta  que  no  principio  do  anno  seguinte  de  1353  se  avistou  o  Padre 
Nóbrega  com  elle  em  Porto  seguro  (como  logo  veremos)  fica  provado  que 
foi  a  partida  no  anno  de  1332  em  que  a  escrevemos.  ' 

123  Pelos  fins  d'este  anno  a  dous  de  Dezembro  aconteceo  o  transito 
sentidíssimo,  se  bem  gloriosíssimo,  do  maior  dos  Missionários  da  Compa- 
nhia, Pregador  das  gentes  Indianas,  Apostolo  do  Oriente,  o  Santo  Padre 
Francisco  Xavier.  Com  razão  causaria  grande  abalo  nos  Missionários  d'esta 
província  o  echo  d'esta  nova  inesperada;  porque  era  único  exemplar  este, 
a  cuja  medida  oljravão,  e  com  cujos  augmentos  crescíão,  animados  com  a 
semelhança  da  empresa,  e  mais  com  a  excellencia  das  obras.  Porém  não  faltará 
nunqua  que  imitar  n"aquelle  portento  de  obreiros  Evangélicos;  porque  se  a 
morte  invejosa  lhe  abbrcviou  o  tempo,  a  vida  prodigiosa  deixou  exemplos, 
que  podem  estender-se  a  longos  séculos,  e  a  todos  os  obreiros  do  mundo. 
Em  breve  termo,  não  mais  que  de  onze  annos,  correo  trinta  mil  iegoas 
por  aquellcs  novos  reinos  do  Oriente,  a  pé,  talvez  descalço,  pegado  á  cauda 
dos  cavallos,  com  os  ornamentos  ás  costas,  em  busca  de  almas.  Convertco 
doestas  numero  sem  conto,  derribou  templos  de  Gentios,  destruio  conven- 
tos de  Bonzos,  lançou  por  teira  (juarí-nla  mil  Ídolos,  edificou  Igrejas  innu- 
meraveis,  e  l)autizou  por  suas  mesmas  mãos  hum  millião  e  quasi  meio  de 
ÍFiíieís.  E  baste  por  rnaíor  elogio  d'esle  grande  Apostolo  do  Oriente,  o  que 
diz  d'elle  Bossío,  autor  gravíssimo,  que  fez  mais  fruto  n'a(]uel!a  gentilidade 
elle  só  n'estes  onze  annos  ainda  não  cumpridos,  do  que  foi  o  damno  que 
lizerão  os  Hereges  uo  resto  do  mundo  por  espaço  de  mil  e  cjuinhcutos 


y4  LIVRO  I  DA  CIIRONICA  DA  COMPANHIA  DE  JKSlT 

ílosde  a  vinda  de  Christo  até  o  tempo  de  sua  ])régaf'ão.  Confundio  os  Bra- 
cmeries,  os  Cacizes,  os  Bonzos,  qual  outro  Apostolo  S.  Paulo,  entre  enfer- 
midades, trabalhos,  necessidades,  perigos,  naufrágios.  Foi  três  vezes  sub- 
mergido das  agoas,  pei'seguido  de  infleis,  ladrões,  demónios,  falsos  irmãos, 
tido  por  louco,  afrontado,  entregue  a  assassinos,  apedrejado:  e  depois  de 
fazer  nos  elementos  todos  prodigiosas  maravilhas,  abalar  a  terra,  armar  o 
ar,  refrear  o  fogo,  e  amansar  o  mar;  depois  de  em  todas  as  criaturas  obrar 
portentosos  milagres,  dando  vista  a  cegos,  saúde  a  enfermos,  vida  a  mor- 
tos; á  vista  do  vasto  Império  da  China,  aonde  pretendia  entrar,  qual  outro 
Moysés  á  vi6ta  da  Terra  da  promissão,  arrebentando  em  puras  saudades  do 
Ceo  em  summo  desemparo  de  todas  as  cousas  humanas,  na  ilha  de  San- 
cháo,  em  huma  pobre  choça  de  ramos,  e  torrões,  rota,  e  aberta  ás  inju- 
rias do  tempo,  em  Imma  sexta  feira,  era  de  1532,  dezannos,  settemezes, 
e  quatro  dias  depois  de  haver  entrado  na  Iiulia,  aos  oo  de  sua  idade,  com 
lium  Crucilixo  em  as  mãos,  e  os  nomes  de  Jesus  e  Maria  na  boca,  entre- 
gou a  alma  ao  Senhor,  que  pêra  tanta  perfeição  a  criara.  Celeijrárão  os 
Missionários  d''esta  [)rovincia,  entre  plantos  e  alegrias,  suas  exéquias,  na 
maneira  que  erão  devidas  a  virtude  tão  rara;  e  ficarão-lhes  estas  mortas 
lembranças  servindo  de  vivos  espertadores  pêra  melhor  obrar. 

124  Entrava  o  anno  do  Senhor  de  1553,  e  era  tempo  de  que  o  Padre 
Nóbrega  fosse  visitar  os  princípios  da  Christandade,  que  tinhão  lançado  em 
S.  Vicente  os  dous  obreiros  que  alli  mandara,  assi  por  zelo,  como  por  of- 
ficio.  Partio  em  Janeiro  do  corrente  anno  em  companhia  do  Governador 
geral  Thomé  de  Sousa,  que  n'este  tempo  foi  visitar  toda  a  costa  do  Sul. 
Levou  comsigo  o  Padre  Francisco  Pires,  e  quatro  órfãos,  que  tinhão  vindo 
de  Portugal,  e  vivião  á  doutrina  dos  Padres,  pêra  aggregar  ao  Seminário. 
Foi  correndo  as  Cai)itanias:  na  dos  Ilheos,  no  breve  tempo  que  alli  esteve, 
levou  os  olhos  de  lodo  aquelle  povo  o  zelo  de  suas  pregações,  e  pedio-lhe 
assistência  de  Padres.  Na  de  Porto  seguro  achou  o  zeloso  Padre  João  As- 
pilcueta  Navarro,  que,  como  dissemos,  tinha  mandado  ao  sertão  em  com- 
panhia de  huma  tropa  de  soldados,  e  se  havia  recolhido  á(:{uella  villa,  e 
n"ella  linha  obrado  cousas  grandes,  segundo  seu  espirito :  do  qual  ediíicado 
p.edio  o  povo  com  instancia  fundasse  alli  residência ;  e  alcançou  promessa 
de  Nóbrega  (sendo  também  medianeiro  a  isso  o  Governador  Tljomé  de 
Sousa,  que  desde  logo  destinou  lugar  pêra  casa,  e  Igreja).  Na  Capitania  do 
Espirito  santo  achou  já  casa,  e  Seminário  de  meninos  da  nossa  doutrina,  a 
que  presidia  o  Padre  Affonso  Braz,  com  bua  criação  d'aquellas  tenras  plan- 


DO  ESTADO  DO  DUASIL  (aNNO  DE   í^io^)  7S 

tns,  e  ajuda  do  Portugueses,  o  índios.  Visitou,  c  deu  ordens  do  que  se 
devia  fazer. 

125  Do  porto  do  Espiíito  santo  partio  a  frota  do  Governador,  e  foi 
avistar  o  Rio  de  Janeiro:  não  entrou  porém  esta  da  barra  pêra  dentro,  por 
ter  noticias  que  eslavão  de  guerra  os  naturaes  da  terra,  c  não  consentião 
commercio  de  Portugueses :  pelo  que  proseguio  a  viagem  a  S.  Vicente,  em 
cuja  costa  teve  vários  contrastes;  porém  o  ultimo  foi  perigosíssimo,  porque 
a  pouca  distancia  do  porto  se  levantou  de  improviso  huma  terrível  tem- 
pestade, com  cuja  fúria  chegarão  alguns  dos  navios  a  ponto  de  perder-se; 
e  com  effeito,  por  juizo  occulto  do  Alto,  o  em  que  hia  o  Padre  Nóbrega,  ú 
vista  de  todos  foi  ao  fundo :  porém  (cousa  maravilhosa,  e  ao  que  parece 
traçada  pelo  Ceo)  vindo  este  servo  do  Senhor  com  mui  poucas  forças  do 
largo  trabalho  da  viagem,  em  que  lidara  de  dia,  e  de  noite  no  bem  das  al- 
mas de  toda  aquella  frota,  e  não  tendo  iisò  algum  de  nadar,  foi  visto  an- 
dar sobre  as  ondas  com  grande  assocego  (que  tem  os  varões  justos  pre- 
sente sempre  o  auxilio  divino,  tanto  na  terra,  como  no  mar)  até  que  houve 
occasião,  em  que  lançados  liuns  índios  ás  ondas  o  tomarão  em  braços,  c 
puserão  a  salvo  na  terra  de  lium  ilhote  que  alli  faz  o  Oceano:  a  este  o  vie- 
rão  depois  buscar,  e  foi  levado  á  villa  de  S.  Vicente  pelas  ruas  e  praças, 
com  appiauso  do  povo,  e  cidadãos,  e  não  menor  alegria  dos  Padres,  que 
o  receberão  com  Te  Dexim  laudamus,  como  a  homem  concedido  do  Ceo. 

12G  Porém  nem  ainda  pêra  os  justos  ha  nesta  vida  inconstante,  alegria 
segura.  Aconteceo  aqui  huma  semelhança  da  variedade,  com  que  os  homens 
do  povo  Judaico  trattàrão  a  Christo  em  dia  de  Ramos.  Aquelle  famoso  João 
Ramalho,  homem  rico  na  terra,  mas  infame  nos  vicios,  amancebado  publi- 
co i)or  quasi  quarenta  annos,  c  de  ordinário  por  essa  causa  escommunga- 
do  (cujos  filhos  dissemos  acima  intentarão  pôr  as  mãos  no  servo  de  Deos 
Leonardo  Nunes)  lembrado  agora  de  seus  antiguos  ódios,  c  tendo  ainda 
vivo  em  seu  peito  o  aggravo  que  cuidou  lhe  íizera  o  Padre,  quando  o  man- 
dou avisar  se  sahisse  da  Igreja,  i)í)rque  presente  elle  não  podia  exercer  o 
sacrifício  do  altar,  por  estar  censurado:  entre  as  alegrias,  e  parabéns,  com 
que  o  povo  recebi»  ]ior  hospede  o  Padre  Nóbrega,  andava  elle  com  a  ca- 
terva de  seus  filhos,  muitos  em  numero,  e  todos  de  má  casta,  Mamalucos 
i Ilegítimos,  e  desalmados,  com  arcos,  frechas,  e  gritarias,  fazendo  gente,  c 
desinquietando  a  villa  contra  os  Padres,  espalhando  de  alguns  delles  crimes 
péssimos,  e  indignos  de  seculaies,  quanto  mais  de  pessoas  religiosas ;  e 


76  I.IVUO  I  DA  CimONICA  DA  COMPANHIA  DF>  JESlT 

(Vestes  mesmos  furão  accusados  por  elles  ante  o  mesmo  Padre  Nóbrega, 
porque  todos  injuriassem  de  hum  golpe  no  dia  de  seus  maiores  vivas. 

127  Ouvio  o  humilde  servo  de  Deos  envergonhado,  e  postos  os  olhos 
em  terra,  a  accusar-ão;  e  tomou  nella  huma  resolurão  digna  de  sua  pru- 
dência, e  zelo.  Respondeo,  que  faria  justiça:  mas  logo,  ponjue  visse  o  mun- 
do o  zelo  com  que  a  Companhia  cria  seus  súbditos,  e  a  severidade  com 
que  castiga  aos  que  acha  defectuosos;  e  porque  outro  si  o  accusador  era 
homem  tão  conhecido,  e  tinha  espalhado  no  povo  as  propostas  calumnias; 
mandou  sahir  de  casa  primeiro  que  tudo  os  Religiosos  calumniados;  que 
vinhão  a  ser,  o  Padre  Manoel  de  Paiva,  Francisco  Pires,  Manoel  de  Chaves, 
e  alguns  Irmãos:  e  poz  em  juizo  diante  do  Vigário  geral  a  decisão  do  caso, 
mandando  cpie  as  partes  o  provassem,  e  se  julgasse  severissimamente ;  por- 
que se  erão  taes  os  calumniados,  não  servião  á  Companhia;  e  se  o  não  erão, 
seria  justo  que  o  mundo  soubesse  as  invenções  daquelles  homens  apaixo- 
nados. Fez-se  assi,  tirárão-se  as  testemunhas  da  mór  parte  do  povo;  po- 
rém nellas  tirarão  os  accusadores  hum  libello  dilfamatorio  de  suas  mesmas 
vidas;  porque  conformemente  os  •  condemnárão  todas  de  homens  desal- 
mados, sol)erbos,  vingativos,  calumniadores;  c  aos  Religiosos  abonarão  de 
servos  de  Deos  puros,  limpos  e  exemplares.  Publicou-se  a  sentença,  forão 
restituídos  a  sua  casa  com  applauso,  e  acompanhamento  de  toda  a  villa,  e 
louvor  dobrado  (rpie  assi  sabe  o  Ceo  acudir  por  seus  servos,  e  confundir 
os  que  o  são  de  Satanás.)  Foi  semelhante  aqui  a  prudência  de  Nóbrega, 
á  com  que  Santo  Ignacio  fez  que  fossem  julgadas  as  calumnias  que  outros 
homens  apaixonados  impuserãõ  a  seus  companlieiros  (que  não  he  nova  na 
Companhia  esta  contradição  do  inimigo  do  bem  das  almas.) 

128  A  pi-esumpção  temerária  daquelles  accusadores,  ao  que  se  pôde 
colligir,  foi  a  seguinte.  Considerado  entre  os  Padres  quão  grande  impedi- 
mento era  á  salvação  das  almas  da  gentilidade,  a  falta  de  lingoas  do  Bra- 
sil, que  com  destreza  lhe  explicassem  o  Evangelho;  determinarão  metter 
em  casa  alguns  mestiços  filhos  de  índias,  pêra  cpie  provados  primeiro  em 
a  doutrina  religiosa  (aproveitando)  fossem  recebidos  na  Companhia;  e  quan- 
do não,  servissem  pelo  menos  de  interpretes.  D'estes  havia  alguns  recolhi- 
dos, quando  chegou  a  visitar  o  Padre  Nóbrega,  occupados  em  serviço  da 
Casa:  e  como  não  erão  da  Companhia,  sahião  algumas  vezes  fora.  D'estas 
sabidas  vierão  a  sentir  mal,  e  recear-se  os  Mamalucos  accusadores,  que 
devião  cuidar  hião  a  suas  casas,  ou  de  seus  interesses  (e  erão  todos  da 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (aNNO  DE   1553)  77 

mesma  casta,  e  relê)  e  como  tiiihão  paixão  cora  os  Padres,  impuserão-lliiís 
os  crimes  dos  mestiços. 

129  Porém  aqui  he  digno  de  notar  o  siiccesso  de  hum  doestes  mesti^ 
ços.  Tirada  severa  informação,  achou  o  Padre  Nohrega,  qne  delinquira: 
convenceo-o,  exagerou-lhe  a  culpa,  e  a  pureza  da  Companhia,  em  cuja  ca- 
sa estava;  e  depois  de  feito  capaz,  disse-llie  assi:  «Irmão  meu,  a  fealdade 
dopeccado  que  commetestes,  e  o  aggravo  que  com  elle  fizestes  á  Compa- 
nhia, só  pôde  salisfazer-se  com  que  sejais  enterrado  vivo :  tende  paciência, 
pedi  perdão  a  Deos,  confessai,  e  commungai;  porque  ámanhãa  a  taes  ho- 
ras se  ha  de  ahrir  sepultura  na  Igreja,  e  se  vos  ha  de  fazer  oííicio,  e  cantar 
missa  de  defuntos,  e  haveis  de  ser  enterrado  vivo. »  Começou  a  tremer  o  po- 
bre mestiço;  e  como  conhecia  a  inteireza,  e  resolução  de  Nóbrega,  deo-se 
por  acabado :  confessou,  commungou,  e  ao  tempo  assinalado  dobrárão-se 
os  sinos,  celebrou-se  o  Officio  de  defuntos,  e  disse  a  missa  o  Padre  Manoel 
de  Paiva  de  corpo  i)resente  amorlalhado  (suspensa  ao  tal  espectáculo  mui- 
ta gente  Portugueses,  e  índios,  e  ainda  parentes  do  penitenciado :)  e  sendo 
acabado  o  Officio,  e  Responsorio  ultimo  (como  he  costume)  foi  botado  na 
cova,  e  depois  de  alguma  terra  em  cima  lançou-se  de  joelhos  o  Irmão  Pe- 
dro Corrêa  (que  só  sabia  em  segredo  a  intenção  de  Nóbrega)  pedindo  com 
lagrimas  perdão  por  aíjuelle  peccador,  de  quem  já  podia  esperar-se  que  vi- 
viria  como  resuscitado  dalli  em  diante.  Ao  Irmão  seguirão  todos  os  pre- 
sentes; a  cujos  rogos  o  Servo  zeloso,  que  não  pretendia  mais  que  metter 
espanto,  e  mostrar  a  pureza  da  Companhia,  usou  de  misericórdia,  e  man- 
dou que  fosse  desenterrado,  e  desamortalhado,  deixando-o  livre,  porém 
despedido  da  companhia  dos  Religiosos,  que  dalli  em  diante  se  abstiverão 
de  receber  semelhante  gente,  nem  ainda  í)era  o  serviço  da  Casa.  E  ficou  o 
sujeito  presente  por  toda  a  sua  vida  com  o  nome  de  Fulano  da  Cova, 

130  Compostas  estas  cousas,  vendo  Nóbrega  (pie  a  conversão  dos  ín- 
dios hia  mui  devagar,  não  só  por  razão  de  sua  rud(!za,  mas  principalmente 
por  razão  das  conlentlas,  e  (jdios  dos  Portugueses,  que  pi'elendião  catti- 
val-os  sem  titulo  algum  justo,  o  erão  causa  de  desassocego  a  elles,  e  aos 
Padres:  e  sobre  tudo  considerando  os  obstinados  ânimos  de  muitos  pecca- 
dores  escandalosos  puljlicos,  (pie  não  deixavão  com  sua  devassidão  melho- 
rar o  rebanho  do  Senhor;  encomendando  primeiro  o  negocio  a  Deos,  com 
o  fervor  de  seu  costumado  zelo,  determinou  ir-se  pelo  sertão  dentro  como 
cem  legoas,  busear  lug;ir  acconimodado,  e  fundar  de  novo  hum  j»ovo  prin- 
cipiado em  sinceridade,  e  verdadeiía  religião,  e  amor  de  Chrislo,  Favore- 


78  LlVnO  I  DA  CHRO.MCA  DA  COMPANHIA  DE  JICSÚ 

cião  os  votos  dos  companheiros,  c  trattava  já  de  apresto;  quando  chegando 
a  resolução  á  noticia  do  Governador,  impeíUo  o  eíreilo  com  todas  as  véras> 
por  largas  razões,  parte  christãas,  c  parte  politicas.  Tinha  recebido  por  no- 
viço pouco  havia  o  Irmão  António  Rodrigues,  homem  que  havia  sido  solda- 
do nos  partes  do  Paraguai,  e  mui  versado  nos  costumes  da  gente  Carij(3, 
entre  a  qual  estivera  muitos  annos.  A  este  tomou  por  companheiro,  e  com 
mais  alguns  cathecumenos  dos  índios  de  Pirátinínga,  ao  menos  entrou  pelo 
sertão  como  quarenta  legoas  até  a  aldeã  de  Japyuba,  ou  Maniçoba,  a  fim 
de  fazer  experiência  do  que  trazia  em  seu  pensamento.  Fez  aqui  huma  pe- 
quena Igreja,  e  começou  n'ella  a  ensinar  a  doutrina  christãa,  dando  prin- 
cipio a  huma  residência,  que  continuou  alguns  annos,  com  muito  fruto  da- 
quellas  almas,  principalmente  de  innocentes,  e  bautizados  in  extremis,  que 
com  a  graça  d'aquelle  sacramento  voavão  ao  Ceo. 

131  Á  fama  d'este  grão  zelo  de  Nóbrega,  mui  conhecido  pelos  sertões 
do  Paraguai  (nos  quaes  era  chamado  Barcaclué,  que  vai  o  mesmo  que  ho- 
mem santo)  se  aballárão  grandes  levas  de  Carijós  em  busca  d'elle,  pêra  se- 
rem doutrinados  na  aldeã  já  ditta,  que  ficava  mais  perto;  pois  não  forão 
tão  ditosos  que  tivessem  eíTeito  os  desejos  que  o  Padre  tivera  de  ir  a  suas 
terras,  donde  fora  chamado  por  elles  tantas  vezes.  Era  este  hum  grande 
principio  pêra  os  intentos  de  Nóbrega;  e  parecia-lhe  que  por  aqui  abria  o  Ceo 
caminho  áquella  gentilidade  tão  desamparada.  Senão  que  as  traças  de  Deos 
erão  outras:  mostrou-as  hum  caso  lastimoso,  ainda  que  por  outra  parte  feliz. 
E  foi,  que  indo  chegando  esta  gente  á  desejada  aldeã,  foi  á  traição  acommet- 
tida  dos  Tupis  seus  contrários;  roubados,  feridos,  e  mortos  muitos  d'el- 
les:  mas  não  sem  esperança  grande  de  salvação,  pelo  que  então  se  publicou, 
que  quando  os  estavão  matando  seus  contrários,  dizião,  como  em  fé  do  sa- 
grado bautismo,  que  desejavão,  e  yinhão  buscar:  «Matai-nos,  e  comei-nos  em- 
bora como  cães;  que  nossas  almas  hãode  ir  ao  Ceo,  áquelle  lugar  que  os  Pa 
dres  ensinão.»  Ditoso  esquadrão!  Semelhante  foi  sua  resolução  á  dos  an- 
tiguos  e  esforçados  Machabeos,  quando,  segundo  sua  Historia  do  liv.  2,  cap. 
7,  derão  as  vidas  temporaes  com  alegria,  protestando  a  firme  esperança  que 
tinhão  da  eterna. 

132  Sentio  por  extremo  o  Padre  Nóbrega  este  successo;  mas  punha  a 
confiança  em  Deos,  que  sabe  bem  o  tempo,  e  hora  da  salvação  dos  que  tem 
escolhido.  Alguns  Castelhanos  vinhão  em  companhia  dos  dittos  Carijós:  es- 
tes ao  tempo  do  combate,  como  erão  poucos,  e  hão  podião  resistir-lhes,  se 
acolherão  pelos  ma t tos;  dos  quaes,  passada  a  fúria  dos  bárbaros,  vierão 


DO  ESTADO  DO  ItRASIL  (aNNO  DE   15í).3)  7Ó 

liiins  ter  á  aldeã  de  Maniçoba,  c  alli  forão  recolhidos  com  toda  a  cliaridade 
<1<)  Padre  António  Pires:  outros  cahírão  nas  mãos  dos  inimigos,  que  os  giiar- 
davão  porá  ostentação  do  seus  arcos,  e  pasto  de  sua  gula  depois  quo  fos- 
sem gordos,  segundo  seu  costume  bárbaro.  Porém  sai)endo  do  successo 
miserável  d'estes  pobres  homens,  o  Padre  Nóbrega,  não  lhe  sofreo  o  cora- 
rão deixal-os  perecer:  mandou  o  Irmão  Pedro  Corroa  a  Paranâitú  por  em- 
l)aixador  seu  aos  Tupis;  e  por  seu  respeito,  e  pela  eloquência,  e  zelo  com 
qne  o  Irmão  lhes  soube  ííillar,  lhe  mandarão  de  presente  todos  os  Caste- 
lhanos: cousa  bem  digna  de  espanto  a  quem  sabe  o  grande  empenho  d'es- 
tes  bárbaros  em  qualquer  seu  prisioneiro,  quanto  mais  em  pessoas  de  conta, 

133  N'este  tempo  instituío  o  Padre  Nóbrega  a  Confraria  chamada  do 
IMenino  Jesu  (como  já  na  Bahia  instituirá  outra,  e  outra  achara  no  Espiri- 
to santo)  por  virtude  de  bulias  pontifícias,  que  pêra  isso  houve;  aggregan- 
do  a  ella  aquelles  moços  órfãos,  que  tomos  ditto  vierão  do  Reino  á  sombra 
dos  Padres;  com  intenção  do  fazer  d'elles  dignos  obreiros  da  vinha  do  Se- 
nhor: e  juntamente  os  meninos  filhos  dos  índios,  que  o  Padre  Leonardo 
Nune^  havia  congregado:  porá  que  todos  em  boa  conformidade  se  crias- 
sem na  doutrina  da  Fé,  e  aprendessem  a  ler,  escrever,  e  contar:  e  os  ór- 
fãos além  do  sobreditto  aprendessem  a  lingoa  brasílica,  e  os  lilhos  dos 
índios  a  portuguesa. 

134  Tomado  já  o  pulso  á  terra,  e  vendo  Nóbrega  quão  larga  porta  se 
abria  ifella  pêra  os  hitentos  da  Companhia,  no  grande  numero  de  i)ovoa- 
ções  Portuguesas,  que  cada  dia  se  hião  levantando,  e  na  immensidade  do 
ahuas  de  varia  sorte  de  gentilidade,  (pie  estavão  gritando  por  remédio  : 
determinou  ficar-se  alli  com  demora,  antes  mandar  chamar  á  Bahia  mais 
numero  de  obi'oiros,  que  viessem  a  ajudar  ifesta  seara.  Porá  este  eíTeito 
partio  o  Padre  Lotjnardo  Nunes,  i)ossoa  de  tanta  confiança,  como  temos 
mostrado,  e  mostra  também  a  importância  do  negocio  a  que  he  mandado. 
Porém  não  monos  caso  fez  o  Coo  d"esta  traça  de  Nóbrega;  ponjue  n"aquello 
mesmo  anno  em  13  do  inez  de  Julho  chegara  á  líahia  o  mais  importante 
soccorro,  que  até  então  vira,  nem  por  ventura  veria  dei)ois,  a  Comi)anhia 
do  Brasil.  Erão  sette  sujeitos,  e  estes  de  maneira,  que  promettião  ser  sette 
cabeças  contrarias  aos  sette  vicios  ])rincipaos.  Era  o  i)rimeiro,  e  por  então 
Superior  de  todos,  o  Padie  Luiz  da  Crain,  Uoitor  que  fora  do  Collegio  de 
(íoimbra  (o  maior  ria  província  de  Portugal)  e  cedo  veremos  Provincial 
(Fosta:  tão  venerado,  e  dota(h)  do  Coo  em  talentos  da  natureza,  v,  graça, 
que  dará  bem  que  fazer  a  nossa  penna.  Erão  os  outros  dous  Saci'idotes,  o 


80  LIVRO  I  DA  CHRONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

Padre  Braz  Lourenço,  e  o  Padre  Ambrósio  Pires,  e  quatro  Irmãos,  João 
Gonçalves,  António  Blasques  Castelhano,  Gregório  Serrão;  e  sobre  todos, 
como  entre  planetas,  aquelle  que  foi  sol  da  America,  luz  da  gentilidade,  glo- 
ria de  seus  irmãos,  honra  da  Companhia,  e  exemplar  de  Missionários ; 
aquelle  que  só  podia  fartar  os  desejos  de  Nóbrega,  o  grande  Joseph  de 
Anchieta,  assas  conhecido  hoje  no  mundo  por  portento  de  santidade,  se- 
gundo Taumaturgo  de  maravilhas,  e  Apostolo  d'este  novo  orbe :  cujos  lou- 
vores em  particular  agora  callo,  porque  quero  primeiro  seguir  seus  pas- 
sos, e  notar  suas  obras,  pêra  depois  fallar  por  junto  em  singular  volume, 
se  primeiro  Deos,  ou  a  obediência  não  disposcrem  de  mim,  ou  de  minha 
pemia. 

135  Partira  de  Lisboa  este  tão  grandioso  soccorro  no  anno  corrente  de 
1553  a  8  de  Maio,  em  companhia  de  D.  Duarte  da  Costa,  fidalgo  illustre, 
filho  d'aquelle  D.  Álvaro  da  Costa,  Embaixador  que  foi  d'El-Rei  D.  Manoel 
ao  Emperador  Carlos  Quinto,  e  grande  amigo  da  Companhia.  Vinha  por 
Governador  geral,  o  segundo  d'este  Estado.  Chegarão  a  lançar  ferro  na  Ba- 
hia de  Todos  os  Santos  no  dia  referido  de  13  de  Julho  do  mesmo  anno, 
com  alegria  dos  que  vinlião,  e  dos  que  esperavão,  costumados  a  ver  todos 
os  annos  Armadas  de  seu  Rei. 

136  Bem  sei  que  dizem  alguns  que  foi  esta  partida  e  chegada  do  Go- 
vernador D,  Duarte  da  Costa  (e  por  .conseguinte  do  nosso  soccorro)  no  anno 
de  1552.  Assi  o  tem  Pedro  de  ]\Iaris,  de  Varia  historia,  Dialogo  5,  cap.  2. 
E  o  que  mais  he,  que  o  livro  dos  assentos  d'este  Collegio  da  Bahia,  em 
que  se  escrevem  por  ordem  de  annos,  e  dias  os  Missionários  que  vem  pêra 
esta  província,  tem  assentado  a  vinda  dos  presentes  no  anno  de  1552,  o 
que  revela  foi  erro  de  computo,  ou  de  penna;  cpie  achei  também  em  ou- 
tras lembranças  de  mão  antiguas,  fundadas  todas  (ao  que  parece)  no  ditto 
assento.  E  que  seja  erro,  averiguei  claramente  por  outro  assento  mais  certo 
do  Padre  Joseph  de  Anchieta,  que  como  vimos,  foi  hum  dos  que  chegarão 
em  companhia  de  D.  Duarte,  e  tem  de  sua  própria  letra  em  partes  diver- 
sas de  seus  Apontamentos  pagina  37  e  38,  que  foi  esta  chegada  no  anno 
de  1553,  partindo  de  Lisboa  em  companliia  do  segundo  Governador  D. 
Duarte  da  Costa,  a  8  de  Maio;  e  chegando  á  Baliia  a  i3  de  Julho  do  ditto 
anno.  O  mesmo  seguem  Nicoláo  Oiiandino  nas  Chronicas  gerães  da  nossa 
Companhia,  liv.  13,  n.°  68,  e  o  Padre  Estevão  de  Paternina  na  Vida  do 
Padre  Joseph  de  Anchieta,  pag.  23  e  43,  e  o  Padre  Balthasar  Telles  nas 
Chronicas  de  Portugal,  part.  2,  liv.  5,  cap.  6,  e  outras  memorias  de  mão. 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (ANNO  DE  1533)  81 

que  vi  antígnas.  Porém  o  que  tira  de  todo  a  duvida,  he  a  diligencia  que 
fiz  no  livro  antiguo  dos  Registos  da  Fazenda  Real  d'esta  cidade  da  Bahia, 
pelo  qual  consta  que  D.  Duarte  da  Costa  foi  provido  em  Governador  doeste 
Estado  em  o  1."  de  Março  de  1553,  em  cujo  assento,  etreslado  de  sua  mes- 
ma Provisão  não  pôde  haver  duvida.  E  d'esta  diligencia  ficão  confutadas 
com  mais  razão  as  opiniões  de  alguns  que  dizem,  que  veio  no  anno  de 
1556,  eque  seu  antecessor  governou  sete  annos(({iie  vem  ao  mesmo)  e  tudo 
fora  da  verdade.  '-M 

137  Forão  recebidos  os  nossos  de  hum  Sacerdote,  e  dous  Irmãos,  de 
que  constava  somente  nossa  Communidade:  erão  o  Padre  Salvador  Rodri- 
gues, e  os  Irmãos  Vicente  Rodrigues,  e  Domingos  Pecorela,  assi  chamado  • 
por  sua  estremada  candura.  Estes  erão  todos  os  operários  de  hum  lugar, 
onde  havia  tão  grande  seara.  Começarão  logo  a  pregar,  ainda  os  que  nãò 
erão  Sacerdotes,  e  a  ensinar  a  ler,  e  escrever  a  grande  numero  de  meni- 
nos, e  grammatica  aos  mais  provectos.  O  primeiro  exemplo  que  vio  no  Bra- 
sil hum  dos  Sacerdotes  novamente  chegados,  foi  o  seguinte.  Acompanhou 
o  Irmão  Vicente  Rodrigues  a  huma  aldèa  de  Cíue  tinha  cuidado,  a  fim  de 
bautizar  hum  Tapuya,  cjne  os  índios  d'ella  tinhão  em  cordas  pêra  matar,  é 
comer  em  terreiro  com  as  ceremonias  tantas  vezes  já  ditas,  e  n'esta  aldèa 
por  nova  ainda  observadas.  Tinha  o  Tapuya  custado  ao  Irmão  bem  de  tra- 
balho em  o  instruir,  e  estava  apto  pêra  ser  bautizado:  porém  a  malicia  do 
Principal  da  aldèa,  que  era  Gentio,  conjecturando  o  a  cjue  podião  ir  os 
.  Padres,  proliibio  aos  seus  que  lhe  não  dessem  agoa;  porque  tem  pêra  si 
esta  gentilidade,  que  a  agoa  bautismal  eml)ota  o  gosto  ás  carnes  dos  que 
com  ella  são  lavados.  Ficou  admirado  o  novo  companheiro  de  tanta  barba- 
ria. Que  remédio?  Fingirão  os  dous  que  comião,  e  pedirão  lhe  dessem  pelo 
menos  pêra  beber  hum  púcaro  de  agoa:  mas  não  pudcrão  enganar  a  sa- 
gacidade do  bárbaro,  o  foi-llie  negada.  Porém  não  faltou  o  Ceo  com  favor 
a  tão  pios  desejos;  porque  acaso  passou  huma  índia  vinda  da  fonte  com 
bum  cabaço  grande  de  agoa:  a  esta  ignorante  da  prohíbiíj^o  pedirão  de  be- 
ber; e  em  quanto  fingia  hum  d"elles  que  bebia,  ensopou  na  agoa  o  lenço; 
e  foi  esta  bastante,  porque  com  ella  esi)remida  sobre  o  corpo  do  que  ha- 
via de  padecer,  o  api^iicada  juntamente  a  fòi-ma  daquelle  santo  sacramento, 
mandarão  aqiiella  alma  ao  Ceo. 

138    Hum  mez  andado  depois  da  chegada  d'este  soccorro,  passou  a  me- 
lhor vi(Ja  na  casa  da  Bahia  o  Parire  Salvador  Rodrigues.  E  foi  esta  outra 
providencia  do  Ceo;  poniue  só  elle  era  Sacerdote  (como  vimos)  c  a  tardar 
VOL.  I  •  (i 


82  LIYRO  I  DA  CHRONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

mais  o  soccorro,  ficaria  em  grande  falta  a  casa  com  dous  Irmãos  somente. 
Foi  este  Padre  o  primeiro  dos  da  Companhia,  que  chegou  a  gozar  o  pre- 
mio dos  trabalhos  d'esta  penosa  vinha.  Foi  rara  sua  sinceridade,  e  obe- 
diência :  tal,  que  dizendo-lhe  (despedindo-se  d'elle  pêra  S.  Vicente)  o  Pa- 
dre Nóbrega,  por  modo  de  hyperbole :  «Vossa  Reverendíssima  não  morra 
em  quanto  eu  não  tornar;»  recebeo  este  ditto  como  preceito  de  obediên- 
cia: e  chegando  depois  ás  portas  da  morte,  dava-lhe  isto  grande  cuidado, 
parecendo-lhe  que  não  poderia  ir  ver  a  Deos  sem  que  houvesse  quem  o  ab- 
solvesse d'este  preceito :  e  na  verdade  teve  respeito  a  morte,  que  a  nada 
perdoa,  a  tão  santa  sinceridade;  porque  esteve  desconfiado  dos  médicos 
tempo  notável,  fora  do  que  parecia  natural,  sustentando  a  vida,  até  que 
chegou  o  Padre  Luis  da  Gram,  que  com  poderes  de  Collateral  do  Provin- 
cial absolveo  aquella  alma  retida  em  laços  de  obediência  só  imaginados;  e 
o  mesmo  foi  livral-o  do  escrúpulo,  que  dar  a  alma  ao  Criador.  Com  razão 
lhe  chamava  o  venerável  Padre  Joseph,  homem  de  simplicidade,  e  obe- 
diência. 

139  Varão  além  d'isto  verdadeiramente  humilde.  Somente  elle  era  Sa- 
cerdote (como  dissemos)  e  não  lhe  foi  comtudo  pesado  ficar  debaixo  da 
obediência,  e  superioridade  do  Irmão  Vicente  Rodrigues,  que  ainda  o  não 
era.  (E  que  de  estrondo  podia  causar  n'outro  tempo,  e  n'outro  coração, 
esta  só  sombra  de  desprezo!)  Em  todas  as^virtudes  religiosas  foi  exemplar; 
em  todo  o  género  de  occupação  incansável;  em  todo  o  bem  do  próximo  di- 
ligente; e  em  toda  a  sorte  de  devação  aífectuoso;  especialmente  devotíssi- 
mo da  Virgem  Senliora  Nossa  da  Assumpção:  em  nenhuma  cousa  fallava 
com  mais  gosto,  que  nos  mysterios  d'esta  sua  Mãi.  Pagou-lhe  ella  este 
amor  com  o  mimo  c{ue  muito  desejava;  e  foi  desatal-o  d'esta  vida  em  seu 
próprio  dia;  depois  de  padecidos  com  grande  paciência  os  traballios  de  sua 
enfermidade,  cheio  de  fé,  e  esperança,  recebidos  todos  os  sacramentos  da 
santa  Igreja,  espirou  no  ponto  em  que  o  relógio  dava  a  meia  noite,  que 
foi  principio  do  dia  da  Assumpção  do  anno  presente  de  1553  com  hum 
Crucifixo  na  mão,  e  na  boca  o  santo  nome  de  Jesu,  e  Maria,  com  grande 
consolação  de  seus  Irmãos,  que  n'este  primeiro  exemplar  da  morte  toma- 
rão animo  pêra  fazer  menos  caso  da  vida. 

140  Do  novo  soccorro  forão  mandados  a  Porto  seguro  o  P.  Ambrósio 
Pires,  e  o  Padre  Gregório  Serrão  (na  conformidade  da  promessa  que  alli 
dissemos  deixara  feita  o  Padre  Nóbrega,  quando  passava  pêra  S.  Vicente) 
em  lugar  do  Padre  João  Aspilcueta  Navarro,  que  depois  da  missão  do  ser- 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (ANNO  DE  1S53)  83 

tâo  acima  referida,  alli  ficara  debilitado  nas  forças  do  corpo.  Porém  a  for- 
taleza do  espirito  d'este  servo  de  Deos  era  tal,  e  obrou  taes  cousas  no 
pouco  tempo  que  aqui  se  deteve,  que  não  faria  eu  bem  deixal-as  em  si- 
lencio, por  mais  depressa  que  vá  escrevendo,  por  acompanhar  o  soccorro 
tão  esperado  do  Padre  Nóbrega.  Dizem  d'este  varão  as  noticias  antiguas, 
e  o  Padre  Nicoláo  Orlandino  na  Historia  geral  de  nossa  sagrada  Religião, 
seguindo  as  mesmas  noticias  que  chegarão  a  Roma;  que  n'este  lugar  obrara 
o  Ceo  muitos  prodígios  á  medida  do  grande  fervor  d'este  zeloso  Padre,  e 
que  aquillo  que  nos  ânimos  mal  cultivados,  e  endurecidos  d'aquelles  ho- 
mens não  acabava  sua  palavra,  acabavão  castigos  prodigiosos  repentinos  do 
Ceo :  e  forão  assi.  Havia  em  hum  lugar  d'aquelles  hmna  antigua  e  preju- 
dicial contenda,  e  entre  partes  obstinadas:  tomou  Navarro  á  sua  conta  des- 
arreigar  estes  Íntimos  ódios :  não  respeitarão  elles  a  pessoa  do  medianei- 
ro :  ameaçou  elle  o  castigo  do  Ceo,  e  deixou-os.  Cousa  maravilhosa !  De 
repente  se  vio  levantar  hum  incêndio  horrível,  que  em  breve  espaço  con- 
sumio  a  mór  parte  das  casas  do  lugar,  sem  jamais  se  saber  donde  viera, 
ou  donde  tivera  principio :  que  pêra  Deos  haver  de  castigar  hum  incêndio 
de  ódios,  julgou  que  era  opportuno  outro  de  fogo.  Não  pára  aqui :  n'outro 
lugar  licencioso  em  vicios  com  demasia,  pregava  o  Padre  penitencia  (qual 
em  outra  Ninive)  antes  que  vissem  sobre  si  o  castigo  de  Deos :  fazião  ore- 
lhas surdas:  eis  que  de  improviso  se  levanta  outro  semelhante  incêndio,  e 
tão  atroz,  que  sem  valerem  traças  de  homens,  tornou  em  cinza  quasi  todo 
o  lugar.  E  o  que  mais  meteo  em  espanto,  foi  a  circunstancia  seguinte.  Es- 
caparão do  incêndio  as  casas  de  hum  homem  rico,  peccador  publico  em 
usuras,  e  sensualidade ;  gloriando-se,  e  jactando-se  elle  de  innocente  dos 
crimes  que  lhe  attribuião,  e  de  que  o  reprehendia  o  Pregador,  dizendo  que 
o  mostrava  o  Ceo,  pois  suas  casas  não  merecerão  fogo.  Assi  se  jactava ; 
quando  ao  segundo  dia  desceo  (o  donde  não  se  sabe)  sobre  o  tecto  de  sua 
morada  tão  horrendo  fogo,  que  em  breve  espaço  tornou  em  cinza,  e  car- 
vão os  haveres  d'aquelle  peccador,  e  com  elles  a  casa  toda,  sem  ficar  mais 
que  o  lugar  que  fura  d'ellas.  Com  estes  portentos  do  Ceo,  e  com  o  cxem- 
I)Io  raro  de  sua  vida,  e  doutrina,  trazia  o  Padre  Aspilcueta  Navarro  aquel- 
les  lugares  ja  mais  arrendados,  c  descidos  da  dureza  antigua.  N'este  tempo 
pois  chegarão  os  dous  Missionários  referidos,  que  á  vista  de  tantas  demons- 
trações do  espirito  dò  seu  antecessor,  forão  recebidos  com  veneração,  e 
respeito.  Do  que  obrarão,  dirão  os  annos  subsequentes. 

4ii2    Porém  entretanto  digamos  nós  algimia  cousa  d'csta  Capitania.  Foi 


84  LIVRO  I  DA  CrmO.MCA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

seu  primeiro  fundador,  e  povoador,  Pedro  de  Campos  lourinho,  homem 
nobre,  natural  de  Yianna  do  Lima  ( segundo  outros  de  Villa  do  Conde  )a 
quem  El-Í\ei  D.  João  o  Terceiro  concedeo  cincoenta  legoas  por  costa.  Ven- 
deo  este  Capitão  sua  fazenda,  e  á  custa  d'elia  ajuntou  huma  Frota,  na  qual 
embarcado  com  mulher  e  fdhos,  e  outras  famílias,  parentes,  e  amigos,  que 
quiserão  vir  povoar  esta  nova  terra,  partio  do  porto  de  Vianna,  e  veio  a 
demandar  o  Brasil,  e  lançar  ferro  em  Porto  seguro,  no  mesmo  lugar,  onde 
aportou  Pedro  Alvarez  Cabral.  Aqui  desembarcou  sua  gente,  e  começou  a 
edificar  a  villa  que  hoje  alli  vemos,  cabeça  da  Capitania;  e  depois  d*ella  as 
de  Santa  Cruz,  e  Santo  Amaro.  Teve  tfaquelles  primeiros  annos  guerras  com 
a  nação  dos  Tupinaquis,  que  levavão  mal  ver  gente  estranha  cultivar  suas 
terras;  e  depois  de  successos  de  armas  (de  que  não  acho  mais  que  gene- 
ralidades) chegarão  a  meter  nossa  gente  em  sacco  apertado.  Porém  acabou 
tudo  o  tempo;  e  depois  de  alguns  annos  foi  florecendo  aquella  villa  em  mo- 
radores, e  a  terra  em  fazendas  de  canaviaes,  e  engenhos.  Por  fallecimento 
de  Pedro  de  Campos  herdou  a  Capitania  huma  filha  sua,  Leonor  de  Cam- 
pos, que  com  licença  d'El-Rei  a  vendeo  a  D.  João  de  Alencastre,  Duque  de 
Aveiro,  por  cem  mil  réis  de  juro.  Este  Príncipe  a  favoreceo  com  nãos, 
gente,  e  mercadorias,  que  mandava  a  ella  todos  os  annos;  e  chegou  a  ter 
sette  engenhos.  Está  esta  villa  em  16  gráos  e  meio  de  altura.  He  toda  a 
Capitania  terra  fresca,  vestida  de  arvoredo,  e  abundante  de  rios  caudalo- 
sos, e  férteis.  De  suas  maítas  se  colhe  a  maior  quantidade  de  pão  brasil, 
e  do  mais  fino  de  toda  esta  costa.  Parte  esta  Capitania  pela  banda  do  Norte 
com  a  dos  Ilheos  por  meio  do  Rio  grande;  e  pela  do  Sul  com  a  do  Espi- 
rito santo  por  meio  do  rio  Maruy  pouco  mais  ou  menos.  E  esta  he  a  fun- 
dação d'esta  Capitania. 

143  Tornemos  agora  ao  Padre  Leonardo  Nunes:  o  qual  depois  de  es- 
tar na  Bahia  até  Outubro  do  presente  anno,  tornou  a  voltar  pêra  S.  Vicente, 
sef^undo  a  ordem  que  trouxera  de  Nóbrega ;  levando  comsigo  hum  bom 
soccorro  de  obreiros,  a  saber:  Vicente  Rodrigues,  que  já  então  era  Sacer- 
dote, e  outros  quatro  Rehgiosos  dos  que  vierão  de  Portugal,  e  entre  estes 
o  Irmão  Joseph  de  Anchieta. 

144  Não  sentia  bem  Satanás  d'este  soccorro,  segundo  procurou  des- 
truil-o :  porque  chegando  aos  baixos  dos  Abrolhos,  o  assaltou  com  tão  des- 
apoderada  tormenta,  que  se  virão  perdidas  as  duas  embarcações  em  que 
hião  repartidos,  rotas  as  velas,  cortados  os  mastros,  perdidas  ancoras,  e  ba- 
tel: a  em  que  hia  o  Irmão  Joseph,  foi  dar  através  entre  os  arrecifes,  onde 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (ANNO  DE  1S53)  85 

padecendo  por  toda  luima  noite  o  l)ater  das  ondas  alteradas,  poderão  estas 
viral-a,  e  quebral-a;  mas  não  poderão  contrastar  a  confiança  de  Joseph,  e 
seus  companheiros,  que  com  as  reliquias  dos  Santos,  e  com  huma  imagem 
da  Virgem  Senhora  Nossa  em  as  mãos,  em  cuja  vespora  de  sua  Presenta- 
ção se  achavão,  clamavão  ao  Ceo,  e  pedião  misericórdia;  até  que  rompendo 
a  alva  do  alegre  dia  da  Virgem,  por  maravilha  de  seu  grande  favor,  sahi- 
rão  todos  vivos  á  praia,  e  poderão  depois  levar  o  navio,  ainda  que  que- 
brado, e  destroçado,  ao  porto  que  chamão  das  Caravelas.  A  embarcação  em 
que  hia  o  Padre  Leonardo  enxorou  em  a  praia,  e  fez-se  em  pedaços,  sal- 
vando-se  a  gente,  e  algumas  cousas  d'ella;  e  d'esta  foi  força  restaurar  a 
quebrada.  Porém  em  quanto  a  obra  se  fazia,  forão  combatidos  de  outro 
aperto  de  fome,  que  pêra  tanta  gente,  e  em  praia  estéril  chegou  a  ser  ex- 
trema ;  e  só  com  fruta  buscada  com  trabalho  pelos  mattos  conservarão  as 
vidas.  Não  se  pôde  negar  que  entreveio  em  tão  grandes  perigos  favor  mi- 
lagroso da  Senhora,  e  vai  Joseph  experimentando  a  particular  protecção, 
que  toda  a  vida  gosará.  Concertado  o  navio,  proseguirão  viagem  ao  porto 
do  Espirito  santo,  aonde  depois  de  alguma  refeição,  embarcarão  comsigo 
o  Padre  Affonso  Braz,  que  n'aquella  casa  estava,  e  deixando  em  seu  lugar 
o  Padre  Braz  Lourenço,  largando  a  vela,  chegarão  a  salvamento  a  lançar 
ferro  no  porto  de  S.  Vicente  desejado,  em  24  de  Dezembro  do  mesmo  anno 
de  1533.  •'■' 

146  Não  ha  cubiçoso  cjue  assi  se  alegre  com  a  chegada  de  náos  da  ín- 
dia, em  que  espera  os  retornos  de  seus  grossos  empregos,  como  aqui  se 
alegrou  o  coração  de  Nóbrega  com  a  chegada  d'este  seu  soccorro,  em  que 
empregara  tanto  cabedal.  Não  se  fartava  de  abraçal-os  luima  e  outra  vez, 
especialmente  ao  Irmão  Joseph;  que  parece  lhe  dizia  já  desde  alli  o  cora- 
ção, quem  por  tempos  havia  de  vir  a  ser  este  sujeito:  qual  de  outro  Ja- 
cob o  seu  Joseph  mimoso,  companheiro  de  seus  caminhos,  consorte  do  seus 
trabalhos,  alivio  de  seus  cuidados,  desempenho  de  suas  cãas,  e  honra  da 
missão  do  Brasil. 

147  Até  este  tempo  governava  Nóbrega  com  titulo  somente  de  Vice- 
Provincial,  subordinado  á  Província  de  Portugal,  donde  partira.  Porém 
considerando  nosso  PatriaiTha  Ignacio  a  gi-ande  distancia  dos  lugares,  e 
os  inconvenientes  que  podião  occasionar-se  de  consultar  tão  longe  negó- 
cios, que  pedião  ordinariamente  presta  resolução  (com  o  acerto  que  cm 
to(l;is  suas  cousas  costumava),  desjjedio  patente  n'este  jmno  ao' Padre  Nó- 
brega pêra  que  fosse  Pi-ovincial  com  jurisdicção  dividida,  e  in(loi)endent(! 


86  LIVRO  I  DA  CimO.NiCA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

de  Portugal;  assinalando-lhe  por  companheií-o  Collateral  com  os  mesmos 
poderes  (porque  assi  o  pedia  o  governo,  e  circunstancias  d'aquelle  tempo) 
o  Padre  Luis  da  Gram,  varão  das  partes,  e  esperanças,  que  já  dissemos ; 
cora  ordem  outro  si,  que  de  seus  companheiros  escolhesse  alguns  de  mais 
experiência  pêra  Consultores  dos  negócios  de  mais  momento,  cujos  votos 
serião  somente  consultivos,  e  não  difinitivos :  e  d'estes  hum  (qual  elle  ele- 
gesse) seria  o  companheiro  de  seus  caminhos.  Veio  com  esta  juntamente 
outra  ordem  pêra  que  o  mesmo  Padre  Nóbrega,  e  o  Padre  Luis  da  Gram, 
fizessem  profissão  solemne  dos  quatro  votos,  ultimo  grão  dos  da  Compa- 
nhia, nas  mãos  de  qualquer  Ordinário  d'estas  partes. 

148  A  primeira  cousa  que  intentou  o  Padre  Manoel  da  Nóbrega,  depois 
do  novo  titulo  de  Provincial,  e  da  chegada  de  tão  bom  e  desejado  soccorro, 
foi  a  fundação  de  hum  Collegio  nos  campos  de  Piratininga,  pêra  onde  ti- 
nha já  feito  mudar  alguns  índios  principaes  com  suas  aldeãs,  deixando  o 
lugar  das  antiguas.  Poz  em  consulta  seus  intentos;  e  era  das  razões  a 
primeira :  que  d'aquelle  lugar  poderião  mais  commodamente  acudir,  não 
§ó  ás  aldeãs  dos  índios,  que  alli  já  mora  vão,  mas  a  outro  grande  numero 
de  almas,  que  hal3Ítavão  por  esse  sertão  em  circuito;  e  com  esta  vizinhança 
dos  Padres  se  poderião  mais  facilmente  avocar,  ou  pelo  menos  remediar 
por  meio  de  missões  dos  lingoas,  que  já  então  havia  mui  peritos.  Segunda 
razão:  porque  no  lugar  onde  estavão,  erão  já  muitos,  e  tinhão  á  sua  conta 
para  sustentar  grande  numero  de  meninos  do  Seminário,  assi  brancos,  co- 
mo filhos  de  índios,  e  a  terra  estava  mui  pobre,  e  não  podião  as  esmolas 
abranger  a  tantos;  e  poderião,  repartindo-se.  Terceira :  porque  era  neces- 
sário, sendo  já  o  Brasil  Província  de  per  si,  haver  Estudos,  e  criar  sujei- 
los  era  tal  cumero,  que  acudissem  a  tão  diversas  partes,  como  as  de  que 
consta,  todas  necessitadas;  ás  quaes  não  poderia  acudir  com  soccorros  bas- 
tantes a  de  Portugal,  vistas  as  empresas  com  que  de  presente  se  achava 
pêra  varias  partes  do  mundo. 

149  Contentarão  as  razões :  e  logo,  na  conformidade  d'ellas,  no  prin- 
cipio de  Janeiro  do  anno  seguinte  de  1554  (deixados  na  villa  os  que  pare- 
cerão necessários  pêra  os  ministérios  dos  Portugueses),  forão  mandados 
treze  ou  quatorze  sujeitos  Padres,  e  Irmãos  debaixo  da  obediência  do  Pa- 
dre Manoel  de  Paiva  fundar  o  Collegio  já  dítto  nos  campos  de  Piratininga. 
Estes  campos  merecem  nome  de  Elysios,  ou  bem  afortunados ;  assi  pela 
ventura  que  lhes  coube  de  que  fossem  elles  o  primeiro  Seminário  da  con- 
versão da  gentilidade  n'aquellas  partes,  e  o  maior  de  toda  a  Província : 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (ANNO  DE  1554)  87 

como  porque  partio  com  elles  a  natureza  do  melhor  do  mundo.  De  toda  a 
al)undancia  de  cousas  necessárias  pêra  uso  da  vida  humana  são  capazes;  e 
ainda  pêra  recreação,  e  deUcia,  a  quem  a  procurar.  Reveste-se  de  flores  do 
cravos,  rosas,  açucenas,  Urios:  he  fértil  de  uvas,  maçans,  pêssegos,  nozes, 
ginjas,  figos,  marmelos,  amoras,  melões,  balancias,  e  quasi  todas  as  frutas 
de  Europa.  De  searas  de  trigo,  grandes  vinhas,  abundância  de  gado,  ca- 
vallos,  carneiros,  cabras,  porcos  mansos,  monteses,  e  aquários.  Caça  infi- 
nita de  animaes,  aves,  galinhas,  perus,  perdizes,  rolas  :  seria  longo  contar 
só  as  espécies  de  todas  estas  cousas.  Distão  como  dez  legoas  do  mar,  po- 
rém do  porto  de  S.  Vicente  doze  ou  treze:  ficão  quasi  na  segunda  região 
do  ar,  depois  de  atravessada  aquella  notável  serrania,  de  que-dissemos  al- 
guma cousa  no  Livro  primeiro  das  Cousas  do  Brasil ;  que  sempre  vai  su- 
bindo, acumulando  montes  sobre  montes ;  e  tem  bem  que  suar  os  que 
houverem  de  chegar  a  vencel-os,  pêra  gozar  do  raso  das  campinas. 

150  A  própria  aspereza  das  serras  faz  mais  aprazível  a  benignidade  dos 
campos :  da  qual  aspereza  só  digo,  que  a  paragem  por  onde  se  atravessão 
estas  serras,  he  a  mais  fácil,  que  depois  de  experiência,  e  discurso  dos 
tempos  puderão  achar  os  moradores  da  outra  parte  do  sertão  de  Pirati- 
ninga  pêra  passarem  ao  mar  (chamando-lhe  os  índios  Paranâpiacaba),  e 
com  ser  parte  escolhida,  e  o  caminho  feito  por  arte,  he  elle  tal,  que  põe 
assombro  aos  que  hão  de  subir,  ou  descer.  O  mais  do  espaço  não^he  ca- 
minhar, he  trepar  de  pés,  a  de  mãos,  aferrados  ás  raizes  das  arvores,  e 
por  entre  quebradas  taes,  e  taes  despenhadeiros,  que  confesso  de  mim,  que 
a  primeira  vez  que  passei  por  aqui,  me  tremerão  as  carnes,  olhando  pêra 
baixo.  A  profundeza  dos  valles  he  espantosa :  a  diversidade  dos  montes 
huns  sobre  outros,  parece  tira  a  esperança  de  chegar  ao  fim :  ^ando  cui- 
dais que  chegais  ao  cume  de  hum,  achais-vos  ao  pé  de  outro  não  menor : 
e  he  isto  na  parte  já  trilhada,  e  escolhida.  Verdade  he,  que  recompensava 
eu  o  trabalho  d'esta  subida  de  quando  em  quando ;  porque  assentado  so- 
bre hum  d'aquelles  penedos,  donde  via  o  mais  alto  cume,  lançando  os 
olhos  pêra  baixo  me  parecia  que  olhava  do  ceo  da  lua,  e  que  via  todo  o 
globo  da  terra  posto  dcl)aixo  de  meus  pés  :  e  com  notável  fermosura,  pela 
variedade  de  vistas,  do  mar,  da  terra,  dos  campos,  dos  bosques,  e  serra- 
nias, tudo  vario,  e  sobremaneira  aprazível.  Se  se  houvera  do  medir  o 
grande  diâmetro  d'esta  serra,  houvéramos  de  achar  melhor  de  oito  legoas: 
porque  supposlo  que  vai  fazendo  em  paragens  algumas  chans  a  modo  de 
leljoleiros,  sempre  vai  subindo,  e  tornando  á  mesma  aspereza ;  ainda  que 


88  Lr\T\o  í  DA  cimoNiCA  da  companhia  de  jesu 

em  nome  diversa,  chamada  em  Imma  das  paragens,  Paraná  Piacá  Mirí,  e 
logo  em  outra  Cabarú  Pararàngaba;  e  tudo  lie  a  mesma  serrania.  E  final- 
mente vai  subindo  sempre  até  chegar  ao  raso  dos  campos,  e  á  segunda 
região  do  ar,  e  onde  corre  tão  delgado,  que  parece  se  não  podem  fartar 
os  que  de  novo  vão  a  eila.  Á  grande  copia  de  alagôas,  fontes,  e  rios ;  a 
fermosura  de  bosques,  brutescos,  e  arvoredos;  a  diversidade  de  ervas,  e 
flores;  a  variedade  de  animaes  terrenos,  e  voadores;  as  apparencias  admi- 
ráveis da  compostura  da  penedia  posta  em  ordem  desigual,  desde  o  prin- 
cipio .  (parece)  da  criação  do  mundo ;  a  riqueza  dos  mineraes  de  ferro, 
cobre^  chumbo,  e  ainda  ouro,  prata,  e  pedraria ;  tudo  isto,  se  se  houvera 
de  escrever  em  particular,  pediria  leitura  mui  diffusa. 

151  Indo  eu  subindo  com  meu  companheiro  o  meio  d'esta  serra,  nos 
divertio  hum  estrondo  extraordinário,  e  desusado,  do  mais  intimo  delia. 
Parecia-nos  que  ouvíamos  o  grande  boato  de  muitas  peças  de  artelharie 
juntas,  que  pelas  quebradas  dos  montes  fazia  o  som  mais  medonho.  E  per- 
guntando nós  hum  ao  outro  o  que  seria?  não  soubemos  a  que  attribuir 
cousa  tão  nova:  mas  perguntando  logo  aos  índios  que  comnosco  vinhão, 
disserão  pela  Ungoa  brasihca:  «Itá  aé  cera:»  Parece  que  he  estrondo  de 
pedra.  E  foi  assi;  porque  passados  dias  se  achou  o  logar,  onde  arrebenta- 
ra hum  penedo  de  circunferência  considerável,  que  das  entranhas,  com  o 
estrondo  diíto,  como  gemidos  de  parto,  brotou  á  luz  hum  thesouro  peque- 
no. Era  este  huma  pinha,  do  tamanho  e  forma  do  coração  de  hum  touto, 
ctiea  por  dentro  de  pedraria  de  diversas  cores :  humas  brancas  de  trans- 
parente crystal,  outras  roxas  de  fina  côr,  outras  entre  branco  e  roxo,  ain- 
da imperfeitas,  ao  que  parecia,  e  não  acaljadas  de  formar  da  natureza.  To- 
das estas  estavão  dispostas  em  ordem,  quaes  bagos  de  romãa  em  seu  po- 
mo, dentro  de  huma  caixa,  ou  casca  tão  dura,  que  excedia  o  mesmo  duro 
ferro.  E  como  he  arremeçada  á  forca,  ou  com  a  violência  do  bojo  donde 
sahe,  ou  com  o  golpe  dos  penedos  com  que  encontra,  se  desfaz  em  pedaços, 
e  mostra  aos  homens  seus  haveres. 

152  A  philosophia  d'estes  successos  he  sabida;  porque  como  a  opera- 
ção do  sol,  e  natureza,  pêra  haver  de  vir  a  formar  o  parto  mais  pohdo 
darjuefia  fina  pedraria  nas. entranhas  de  hum  penedo  tosco,  he  força  que 
reduza  algmna  maior  quantidade  de  seu  interior  a  menor  qualidade  da 
pedra  que  pretende  gerar,  que  quanto  he  mais  fina,  tanto  mais  dura  he ; 
e  quanto  mais  dura,  tanto  mais  partes  he  força  que  comprehenda  em  me- 
nor espaço;  e  como  não  sofre  a  natureza  vácuo,  nem  he  possivel  passar  o 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (aJsTíO  DE  1534)  80 

ar  o  grosso  do  penedo  pêra  soccorrel-o :  no  mesmo  ponto  em  que  a  força 
do  sol  he  tanta,  que  chega  a  querer  causar  vazio  em  prol  da  obra,  f|ue 
tem  entre  mlíns;  resiste  por  outra  via  a  natureza,  e  nesta  luta  arrebenta 
o  bojo  da  pedra,  e  fica  a  obra  imperfeita.  Aqui  no  mais  patente  d'estes 
campos,  junto  a  hum  rio,  e  perto  da  vivenda  dos  índios,  escolherão  os 
Padres _o  sitio  pêra  seu  Collegio,  e  por  bom  annuncio  do  futuro,  disserão 
nelle  a  primeira  missa  aos  25  de  Janeiro,  dia  da  conversão  do  sagrado 
Apostolo  S.  Paulo;  de  cujo  nome  quiserão  todos  se  denominasse  o  sitio, 
e  depois  se  denominou  a  villa,  e  teiritorio  todo. 

153    O  modo  da  pobreza,  e  edificação  religiosa,  com  que  aqui  começa- 
rão a  viver  estes  obreiros  da  vinha  do  Senhor,  descreverei  pelas  mesmas 
palavras,  com  que  o  pinta  o  mesmo  Irmão  Joseph  de  Anchieta:  e  diz  assi 
á  letra.  «Aqui  se  fez  uma  casinha  de  palha,  com  uma  esteira  de  canas  por 
porta,  em  que  morarão  algum  tempo  bem  apertados  os  Irmãos;  mas  este 
aperto  era  ajuda  contra  o  frio,  que  naquella  terra  he  grande  com  muitas 
geadas.  As  camas  erão  redes,  que  os  índios  costumão ;  os  cobertores  o  fo- 
go, pêra  o  qual  os  Irmãos  commummente,  acabada  a  lição  da  tarde,  hião 
ix)r  lenha  ao  matto,  e  a  trazião  ás  costas  pêra  passar  a  noite.   O  vestido 
era  muito  pouco,  e  pol)re,  sem  calças,  nem  çapatos,  de  panno  de  algodão. 
Pêra  mesa  usarão  algum  tempo  de  folhas  largas  de  arvores  em  lugar  de 
guardanapos ;  mas  bem  se  escusavão  toalhas,  onde  faltava  o  comer,  o  qual 
não  tinhão  donde  lhes  viesse,  senão  dos  índios,  c[ue  lhes  davão  alguma  es- 
mola de  farinha,  e  algumas  vezes  (mas  raras)  alguns  peixinhos  do  rio,  e 
caça  do  matto.  Muito  tempo  passarão  grande  fome,  e  frio :  e  com  tudo  pro- 
seguirão  seu  estudo  com  fervor,  lendo  ás  vezes  a  lição  fora  no  frio,  com  o 
qual  se  havião  melhor,  que  com  o  fumo  dentro  de  casa.»  Até  aqui  Joseph. 
Esta  mesma  sustancia  com  pouca  mudança  escreveo  o  mesmo  a  Roma  a 
nosso  Padre  Ignacio  de  Loyola,  em  carta  sua  feita  em  Agosto  do  mesmo 
anno,  em  que  liimos  de  1554.  E  diz  assi  no  mesmo  latim  em  que  a  es- 
creveo. A  Januário  usque  ad  prccsens  nonniimquam  pliis  vifjinti  (simul  enim 
fueri  catichest(B  degebant)  in  paupercula  domo  luto  et  lignis  contexta,  puleis 
cooperln,  qnaíuor  decim  passus  lonfjn,  decem   lala  mansimus.  Jhi  schola,  ibi 
valetudinariuniy  ibidornúlorium,  crenacidiim  item,  et  coriuina,  et  penus  simul 
sunt:  nec  tamen  amplarum  ítnbitationum^  quibus  alibi  fratres  nostri  utuntur, 
nos  mouet  desiderium;  siquidem  Dominus  noster  Jesus  Chrisfus  in  arctiore 
loco  positus  est,   ciim    in  paupere  pnesepi  interduo   bruta  animalia  voluit 
nasci;  multo  vero  arclissimo  cum  in  Cruce  pro  nobis  dignatus  est  mori. 


90  LIVRO  I  DA  CHRONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

134  Aqui  nesta  pobreza  se  abrio  a  segunda  classe  de  Grammatica  que 
teve  o  Brasil  (porque  já  na  Bahia  se  tinha  aberto  liuma).  Frequentavão-na 
nossos  Irmãos,  e  bom  numero  de  estudantes  brancos,  e  mamalucos,  que 
acudião  das  villas  circunvizinhas.  Lia  esta  classe  o  Irmão  Joseph  de  An- 
chieta: occupacão  em  que  perseverou  alguns  annos,  com  grande  aprovei- 
tamento de  seus  discípulos,  e  com  maior  opinião  de  sua  santidade.  O  tra- 
balho era  excessivo:  ainda  naquelle  tempo  não  havia  nestas  partes  copia 
de  livros,  por  onde  pudessem  os  discípulos  aprender  os  preceitos  da  Gram- 
matica. 

155  Esta  grande  falta  remediava  a  charidade  de  Joseph  á  custa  de  seu 
suor,  e  trabalho,  escrevendo  por  própria  mão  tantos  quadernos  dos  dittos 
preceitos,  quantos  erão  os  discípulos  que  ensinava ;  passando  nisto  as  noi- 
tes sem  dormir,  porque  os  dias  occupava  inteiros  nas  obrigações  do  officio: 
e  acontecia  não  poucas  vezes  romper  a  manhãa,  e  achar  a  Joseph  com  a 
penna  na  mão. 

15G  Não  parávão  aqui  seus  trabalhos;  era  de  vivo  ingenho,  e  era  insa- 
ciável sua  charidade,  e  de  huma,  e  outra  cousa  tirava  grandes  forças.  No 
mesmo  tempo  era  mestre,  e  era  discípulo,  e  os  mesmos  lhe  servião  de  dis- 
cípulos, e  mestres;  porque  na  mesma  classe  fallando  latim,  alcançou  da 
falia  dos  que  o  ouvião  a  mór  parte  da  lingoa  do  Brasil,  que  brevemente 
perfeiçoou  com  tal  excellencia,  que  pode  reduzir  aquelle  idioma  bárbaro 
a  modo  e  regras  grammaticaes,  compondo  Arte  delias,  tão  perfeita,  que 
approvada  dos  mais  famosos  lingoas,  foi  dada  á  impressão,  e  tem  servido 
de  guia,  e  mestra  daquella  faculdade  aos  que  depois  vierão,  com  proveito, 
e  facilidade;  e  delia  ha  lição  particular  em  alguns  CoUegios  da  Provincia. 
Além  da  Arte,  fez  Vocabulário  da  mesma  lingoa :  traduzio  a  doutrina  chris- 
tãa,  e  mysterios  da  Fé,  dispostos  a  modo  de  dialogo,  em  beneficio  dos 
índios  cathecumenos :  e  fez  trattado,  interrogatórios,  e  avisos  necessários 
pêra  os  que  houvessem  de  confessar,  e  instruir,  principalmente  no  tempo 
da  morte,  aos  já  bautizados;  deixando  alivio  com  seus  trabalhos  aos  que 
em  tempos  vindouros  se  houvessem  de  occupar  no  tratto  de  salvar  estas 
almas. 

157  Era  destro  em  quatro  lingoas,  portuguesa,  castelhana,  latina,  e 
brasílica:  em  todas  ellas  traduzio  em  romances  pios,  com  muita  graça,  e 
delicadeza,  as  cantigas  profanas,  que  então  andavão  em  uso;  com  fruto  das 
almas,  porque  deixadas  as  lascivas  não  se  ouvia  pelos  caminhos  outra  cou- 
sa senão  cantigas  ao  divino,  convidados  os  entendimentos  a  isso  do  suav» 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (ANNO  DE  1554)  9| 

metro  de  Joseph.  Aprendeo  a  fazer  alpargatas  de  cardos  bravos,  que  ser- 
vião  em  lugar  de  rapatos.  Juntamente  a  sangrador;  com  que  foi  causa  da 
vida  a  muitos,  porque  não  havia  na  terra  o  tal  officio.  Aprendia  em  fim  em 
hum  mesmo  tempo  Joseph  todas  as  artes,  modos,  e  traças,  com  que  podia 
ser  de  alivio  a  seus  Irmãos  n'aquelle  desterro  do  mundo,  e  a  qualquer  dos 
outros  homens  sem  differença;  porque  a  todos  se  estendia  aquelle  seu  di- 
latado bojo  da  charidade:  a  todos  ensinava,  consolava,  e  metia  em  seu  cora- 
ção; e  tudo  são  princípios,  depois  verá  o  mundo  seus  prodigios. 

158  Não  era  este  com  tudo  o  principal  intento  de  Joseph,  e  mais  obrei- 
ros: a  conversão  da  gentiUdade  era  a  que  alli  os  trouxera  em  primeiro  lu- 
gar. Todos  em  casa,  todos  fora  d'ella,  todos  volantes  andavão  no  serviço  dos 
índios;  levantavão  elles  então  suas  casas,  que  por  mandado  de  Nóbrega  ti- 
nhão  começado:  estas  também  ajudarão  a  fazer  os  Religiosos  com  suas  pró- 
prias mãos:  crescia  a  obra,  e  crescia  á  medida  d'ella  o  fervor  da  doutrina 
christãa.  Fizerão  juntamente  Igreja  de  taipa  de  mão,  cuberta  de  palha,  ac- 
commodada  á  occasião  de  tempo. 

159  Aqui  começarão  a  fazer  os  oíTicios  divinos,  ensinar  a  doutrina  duas 
vezes  no  dia,  instruir  os  que  havião  de  ser  bautizados,  e  celebrar  os  casa- 
mentos á  lei  dos  Christãos,  dando  de  mão  á  multidão  das  mulheres  dos 
contrattos  de  sua  gentihdade.  Pasmavão  os  índios  de  ver  a  perfeição  das 
cousas  sagcadas;  e  á  fama  d'esta  Igreja,  e  d'aquella  agoa  que  leva  ao  Ceo, 
como  dizem,  crescião  cada  dia,  deixando  seus  sertões. 

160  Dos  primeiros  c[ue  alli  principiarão,  e  aperfeiçoarão  suas  aldeãs, 
os  dous  principaes  forão  Martim  AíTonso  Tebyreçá,  e  João  Caí  Uby,  Senhor 
de  Jaraibatygba  já  muito  velho,  o  qual  deixando  no  sertão  parentes,  casas, 
e  roças,  veio  a  viver  junto  aos  Padres  em  huma  pequena  choupana,  pêra 
bem  de  sua  alma.  Daqui  partia,  não  sem  grande  trajjalho  por  sua  idade, 
ao  lugar  primeiro  em  ijusca  de  mantimento,  e  colhido  este  tornava  sem  de- 
mora: e  o  que  he  mais  de  admirar,  que  não  hia  vez  alguma,  sem  pedir  li- 
cença aos  Padi"es,  e  sem  se  despedir  de  N.  Senhora  na  Igreja;  e  levava  des- 
tinados os  dias,  no  fim  dos  quaes  apparecia  diante  dos  Padres  a  dar  razão 
de  si:  e  n'esta  boa  fé,  e  simpUcidade,  sendo  doutrinado,  cathequizado,  e 
jjaulizado,  perseverou  este  honrado  velho  até  sua  morte,  semelhante  á  vi- 
da, com  esperanças  de  sua  salvação.  O  mesmo  foi  de  Martim  Affonso,  co- 
mo depois  veremos:  e  a  exemplo  d'estes  famosos  índios  descerão  tantos 
de  seus  sertões,  que  não  cabião  já  cm  a  aldeã. 

161  Pêra  mais  fácil  catliecismo  de  tanta  gente,  ordenou  o  Padre  No- 


92  LIVRO  I  DA  CURONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

brega  que  viessem  da  villa  de  S.  Vicente  aquelles  meninos  fillios  dos  ín- 
dios, que  como  já  dissemos,  tinhão  alli  criado  os  Padres  cm  Sentinario  de 
boa  doutrina,  e  sal^ião  já  ler,  escrever,  c  cantar  muitos  d'clles:  forão  estes 
de  grande  ajuda  a  toda  a  sua  gente,  continuando  na  nova  aldeã  sua  esco- 
la, e  ajudando  a  beneficiar  os  OíTicios  sagrados  em  canto  de  órgão,  com 
destreza,  e  instrumentos  músicos  (o  mór  gosto,  e  incitamento,  que  podia 
haver  pêra  os  pais.)  As  traças  que  usavâo,  erão  as  seguintes.  Juntavão-se 
á  noite  a  cantar  pelas  casas  cantigas  de  Deos  em  própria  lingoa,  contrapos- 
tas'ás  que  elles  costumavão  cantar  vãas,  c  gentílicas:  com  os  Padres  ajuda- 
vão  a  cathequizar:  na  escola  instruião  aos  seus  iguaes,  assi  em  doutrina, 
como  em  ler,  escrever,  e  cantar;  e  vinhão  a  ser  quasi  mestres  d'estes.  To- 
dos os  dias  pela  manliãa  no  fim  da  escola  cantavão  na  Igreja  as  Ladainhas 
dos  Santos,  e  á  tarde  a  Salve  Rainha,  com  outras  pias  orações  em  canto 
de  órgão:  ás  sextas  feiras  açoutavão-se  com  disciplinas,  que  todos  fazião  de 
linho  de  cardos:  duas  vezes  no  dia  davão  lição  da  doutrina  christãa,  e  em 
breve  tempo  n"esta  forma  forão  bautizados  com  toda  a  solemnidade  possí- 
vel passante  de  trinta  d'estes  meninos  (e  erão  mais  de  cento  os  que  espe- 
ravão  semelhante  fortuna)  com  grande  festa,  e  applauso,  e  não  menos  exem- 
plo dos  pais:  com  os  quaes  com  tudo  os  Padres  liião  mais  devagar,  porque 
arreigassem  bem  nas  cousas  da  Fé,  e  desarreigassem  de  seus  ritos  gentí- 
licos, especialmente  das  muitas  mulheres,  e  vinhos,  que  são  os-vicios  que 
mais  costumão  perturbal-os,  e  instigal-os  a  grandes  desarranjos.  N'estes  ví- 
cios a  nenhuns  tinháo  mais  contrários  que  seus  próprios  filhos;  porque  es- 
tes, com  zelo  já  christão,  vigiavão  os  pais,  e  os  accusavão  aos  Padres,  e 
ajudavão  a  lhes  quebrar  as  talhas  de  vinho  em  suas  bebedices. 

162  Em  todos  os  bons  princípios  costuma  Satanás  entrepor  seus  em- 
bustes na  matéria  da  salvação  das  almas:  assi  o  fez  aqui,  primeiro  com  doen- 
ças, logo  com  ódios,  e  por  fim  com  guerras:  e  foi  d'esta  maneira.  Estando 
as  cousas  n'esta  bella  paz,  começou  a  apoderar-se  dos  pobres  índios  huma 
como  peste  terrível  de  priorizes,  com  tal  rigor,  que  era  o  mesmo  acom- 
metter,  que  derribar,  privar  dos  sentidos,  e  dentro  de  três  ou  quatro  dias 
levar  á  sepultura.  Doeste  trabalho  se  ajudou  o  inimigo,  mettendo  em  cabeça 
a  esta  gente  simples  (como  já  em  outras  occasiões)  que  os  Padres  lhes  cau- 
savão  a  morte,  que  não  morrião  assi  em  seus  sertões,  e  outros  semelhan- 
tes embustes,  sem  razão,  mas  com  effeito,  e  tal,  que  se  virão  os  Padres 
em  grande  aperto,  e  o  discurso  da  conversão  em  perigo.  Recorrerão  a  Deos, 
e  ordenarão  nove  Procissões  aos  nove  Choros  dos  Anjos,  com  a  mór  so- 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (ANNO  DE   1554)  9^ 

lemnidade  possível:  hião  n'ellas  todos  os  sãos,  homens  e  mulheres  com 
luzes  de  cera  em  as  mãos,  os  meninos  da  escola  com  cruzes  ás  costas,  e 
disciplinando-se  muitos  até  derramar  sangue:  e  á  vista  d'esta  piedade 
hião  trocando  aquelles  bárbaros  os  conceitos,  porque  á  medida  d'ella 
parava  a  fúria  da  doença.  Outro  meio  liumano  entreveio,  e  foi,  que  ven- 
do os  Padres  que  o  mal  era  força  de  sangue,  e  não  havendo  na  terra 
Medico,  ou  Sangrador,  nem  ainda  lancetas,  começarão  alguns,  e  o  Ir- 
mão Joseph  o  primeiro,  a  aguçar  seus  canivetes  de  aparar  pennas;  e  com 
elles,  e  com  o  zelo  da  charidade  sangrando-os,  fizerão  tal  effeito,  que  raro 
foi  o  que  d'alli  em  diante  morreo:  e  os  perigosos  em  breves  dias  melhora- 
rão. Á  vista  de  hum  e  outro  exemplo  íicárão  os  Índios  de  todo  satisfeitos, 
e  dizião,  que  a  doença  dava  o  diabo,  e  a  saúde  davão  os  Padres.  Este  meio 
de  charidade,  que  com  esta  gente  usamos,  onde  quer  que  com  elles  vivemos, 
em  suas  doenças,  he  huma  das  razões  mais  forçosas,  que  abranda  sua  na- 
tural fereza.  Algum  escrúpulo  houve  entre  os  Religiosos  do  exercício  das 
sangrias,  pelo  perigo  de  irregularidade:  mandou-se  perguntar  a  questão  a 
Roma  a  nosso  Santo  Patriarcha  Ignacio  pêra  successos  semelliantes:  a  res- 
posta foi  por  estas  palavras:  «Quanto  ás  sangrias  digo,  cpie  a  tudo  se  esten- 
de o  bojo  da  charidade:»  pelo  que  com  mais  resolução  o  fazião  dalli  em  dian- 
te, até  o  mesmo  Padre  Nóbrega  por  sua  mão  em  casos  de  necessidade. 

1G3  A  segunda  perseguição  foi  de  ódios.  Aquelles  Mamalucos  Rama- 
lhos, de  arvore  ruim  peiores  frutos,  tornão  agora  a  resuscitar  seus  ranco- 
res; e  forão  maiores  os  males,  que  excitarão,  que  a  própria  peste.  Mora- 
vão  estes  era  hum  lugar  três  legoas  distante  de  Piratininga  por  nome  Santo 
André :  daqui  tramavão  seus  embustes,  e  despedião  a  peçonha,  que  concebe- 
rão contra  os  Padi^es,  amotinando  toda  a  criatura,  que  conjurasse  contra 
elles,  como  contra  os  mores  inimigos,  em  vingança  de  suas,  que  elles  cha- 
mavam, injurias,  e  em  liberdade  do  uso  da  terra  de  assaltear,  e  cattivar 
os  índios.  Aos  próprios  índios  persuadião  com  argumento  de  niór  força, 
que  pôde  haver  entre  esta  gente;  e  era  lançar-lhes  em  rosto,  que  se  aco- 
Ihião  á  Igreja  por  covardes,  e  por  não  prestarem  pêra  a  guerra  contra  seus 
inimigos:  e  era  este  o  maior  impropério  de  que  os  podião  cahimniar,  e 
Cíjm  que  de  feito  hião  [)erigando  alguns  mais  fracos.  Não  párão  aqui ;  vão- 
se  á  aldôa  de  Maniçoba,  residência  moderna  dos  nossos,  pertui'bão  tudo, 
e  persuadem  com  a  destreza  de  sua  lingoa  áquelle  rebanlio  ignorante,  que 
larguem  os  Padres,  homens  estrangeiros,  e  rlegradadospei-a  estas  jiartes  por 
gente  vadia:  e  (luc  meilior  honra  lhes  seria  sujeitai -se  a  homens  destros 


94  LIVRO  I  DA  CHRONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

em  arco  e  frecha  como  elles,  que  a  huns  estranhos  covardes.  Nâo  só  dis- 
serâo,  mas  fizerão ;  porque  os  pobres  índios,  supposto  que  mansos  por  na- 
tureza, enganados  da  eloquência  e  efficacia  dos  Mamalucos,  em  cujos  cor- 
pos parece  fallava  o  diabo,  assi  se  forão  embravecendo,  e  amotinando,  que 
houverão  os  Padres  de  deixal-os,  em  quanto  não  se  esperava  mais  fruto.  Não 
permittio  com  tudo  o  Ceo,  que  estes  homens  enganadores  rendessem  os 
de  Piratininga,  que  prometião  morrer  com  os  Padres,  por  mais  combates 
que  pêra  isto  derão. 

i64  A  terceira  perseguição  foi  de  guerra.  Esta  excitou,  ou  o  espirito 
infernal,  ou  o  daquelles  mesmos  Mamalucos :  de  qual  nascesse,  não  ha  no- 
ticia certa.  O  certo  he,  que  se  accendeo  entre  os  índios  moradores  de  Pi- 
ratininga e  seus  comarcãos ;  e  que  estes  feitos  em  hum  corpo  vierão  a  aco- 
mettel-os.  Sahirão  contra  elles  os  Piratininganos  armados  de  seus  arcos,  e 
frechas,  e  não  menos  de  confiança  em  Deos,  a  quem  já  conliecião,  porque 
erão  Christãos,  ou  cathecumenos  grande  parte  delles.  Porém  chegados  á 
vista  do  inimigo,  entrarão  em  pavor,  e  desconfiança,  de  commeter  huma 
tão  grande  multidão  de  gente,  qual  nunca  tinhão  imaginado.  Esta  descon- 
fiança notou  a  mulher  do  Capitão  mór  de  todos,  a  qual  (segundo  costu- 
me antiguo  desta  gente)  hia  ao  lado  do  marido ;  e  era  bautizada,  grande 
Christãa,  e  de  animo  varonil :  e  voltando-se  aos  soldados  receosos,  os  ani- 
mou, e  lhes  disse  assi:  «Que  covardia  he  esta,  oh  soldados?  Não  vos  lem- 
braes,  que  pelejamos  já  da  parte  de  Christo,  e  como  pessoas  pertencentes 
ao  Ceo  ?  E  que  estes  que  vedes  são  Gentios,  tragadores  da  carne  humana  ? 
Fazei  todos  aquelle  signal  que  os  Padres  vos  tem  ensinado,  da  santa  Cruz, 
e  com  elle  confiados  acommetei ;  que  o  Deos  que  seguimos  nos  ha  de  dar 
victoria  contra  estes  Pagãos.» 

165  Forão  palavras  parece  de  espirito  superior;  porque  foi  cousa  de 
espanto  ver,  depois  de  feito  o  signal  da  Cruz,  o  grande  animo  com  que  ar- 
remeterão, tão  conhecido,  que  desmaiarão  logo  os  contrários,  e  se  pose- 
rão  em  torpe  fugida,  com  miserável  estrago,  de  mortos,  e  cattivos :  attri- 
buindo  os  nossos  a  victoria  ao  sinal  da  santa  Cruz.  De  nossa  parte  forão 
mortos  só  dous,  e  estes,  dizião  commummente,  que  por  não  darem  cre- 
dito ao  dito  da  índia.  Com  todos  estes  três  géneros  de  perseguições  foi 
neste  tempo  combatida  esta  tão  tenra  vinha  do  Senhor :  não  desconfiavão 
com  tudo  seus  operários,  applicando  suores,  sacrifícios,  e  orações  pêra 
cultura  destas  almas. 

166  Desta  guerra  se  conta,  que  depois  de  retirados  os  inimigos  do 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (aNNO  DE   1554)  95 

campo,  a  noite  seguinte  voltarão  sobre  elle,  a  ver  se  achavão  alguns  cor- 
pos mortos  dos  contrários,  aos  quaes  quebrassem  a  cabeça,  despedaçassem 
e  comessem,  em  vingança  de  seus  ódios,  segundo  seu  costume  bárbaro. 
Porém  como  em  lugar  de  corpos,  achassem  somente  montes  de  terra  le- 
vantados de  fresco,  entenderão  que  erão  os  corpos  que  buscavão,  e  que 
alli  os  tinhão  sepultados ;  porque  não  crião,  que  sendo  dos  seus,  os  não 
tivessem  comido  os  contrários,  e  usassem  com  elles  tão  pio  beneficio.  Des- 
enterrârão-nos,  e  levárão-nos  ás  costas  a  suas  aldeãs,  contentes  com  a  pre- 
sa :  se  não  que  que  lhes  mostrou  a  luz  da  manhãa  o  engano ;  e  vendo-se 
com  os  corpos  dos  seus,  chorarão  o  trabalho  perdido,  e  admirárão-se  de 
que  em  tão  breve  tempo  estivessem  tão  trocados  seus  inimigos,  que  se  abs- 
tivessem das  carnes  dos  corpos  que  matarão,  e  usassem  com  elles  de  hum 
beneficio  tão  contrario  a  seus  antiguos  ritos.  Bom  exemplo  he  este  da  abs* 
tinencia  que  já  usavão  os  discípulos  dos  Padres  de  carne  humana. 

167  Havia  já  seis  annos  que  continuava  a  cultura  desta  Província,  com 
os  successos  que  temos  referido :  e  era  razão,  segundo  o  modo  de  nosso 
Instituto,  especialmente  sendo  Província  já  separada,  eleger  Religioso  que 
fosse  a  Roma  informar  dos  negócios  delia,  a  N.  R.  P.  Geral,  que  então 
era  o  Padre  Ignacio  de  Loyola.  Feita  consulta  sahio  eleito  pêra  esta  missão 
o  Padre  Leonardo  Nunes,  primeiro  companheiro  do  Padre  Nóbrega,  primeiro 
pai,  e  fundador  em  espirito  da  Capitania  de  S.  Vicente,  e  o  mais  pratico  de  todo 
o  Estado.  Aceitou  a  missão  como  obediência,  não  como  dignidade ;  porque 
igualmente  era  resignado  a  seus  superiores,  que  desapegado  de  honras, 
este  varão.  Preparou  a  disposição  dos  negócios,  recebeo  as  ordens,  e  ben- 
ção de  seu  Superior;  c  com  o  apparato  de  viatico,  que  bem  se  deixa  con- 
siderar da  estremada  pobreza  daquelles  tempos,  parlio  alegre  no  mcz  de 
Junho  de  mil  e  quinhentos  e  cincoenla  e  quatro. 

168  São  porém  diflerentes  as  traças  de  Deos,  e  dos  homens :  porque 
o  navio  em  que  hia,  fez  lastimoso  naufrágio,  e  acabarão  nelle  as  vidas  qua- 
si  todos  os  que  se  embarcarão,  e  com  elles  o  Padre  Leonardo.  Escaparão 
mui  poucos,  mas  bastantes  pêra  testificar  o  grande  zelo  com  que  aquellé 
servo  de  Deos  neste  ultimo  conílicto,  e  despedida  da  vida  mortal,  empe- 
nhou seu  trabalho  em  ajudar  os  companheiros  a  levar  com  animo  chrislão 
trago  tão  violento,  e  confessando,  animando,  e  pregando  em  voz  alta  com 
hum  Crucifixo  em  a  mão  até  a  ultima  boqueada. 

109  Assi  morreo  por  obediência  sobre  as  ondas  do  Oceano,  aquello, 
que  entre  os  sertões  do  Brasil  foi  a  vida  do  tantos.  Chorarão  sua  morte 


96  LIMIO  I  DA  CHRONTCA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

OS  Religiosos,  privados  de  seus  grandes  exemplos:  os  povos  de  S.  Vicente 
privados  de  sua  saudável  doutrina :  e  os  desei-tos  da  gentilidade  órfãos  de 
pai,  defensor,  e  libertador.  Não  pretendo  recontar  de  novo  a  vida  d'este 
grande  varão,  porque  he  tornar  a  repetir  grande  pai'te  da  leitura  passada; 
a  quem  já  a  tem  lido,  bastará  refrescar-lhe  a  memoria  de  que  foi  elle,  de- 
pois do  Padre  Nóbrega,  o  primeiro  obreiro  da  missão  do  Brasil,  hum  Vi- 
ce-Nobrega  de  S.  Vicente,  hum  Apostolo  daquellas  partes,  hum  exemplar 
de  bem  viver  dos  Portugueses,  hum  pai  dos  índios,  himi  alivio  de  toda 
a  sorte  de  criaturas,  benigno,  affavel,  e  incansável  pêra  o  bem  de  todos. 
Era  espelho  de  pobreza,  pureza,  aspereza,  obediência,  e  de  todas  as  ou- 
tras virtudes  religiosas :  no  amor  de  Deos,  e  do  próximo  hum  Seraphim. 
Estas  virtudes  forão  o  meio  da  conversão  mais  que  ordinária  dos  morado- 
res de  S.  Vicente.  Diz  delle  assi  o  venerável  Padre  Joseph  de  Anchieta : 
«Com  as  pregações,  e  vida  exemplar  do  Padre  Leonardo  Nunes,  começou 
Deos  a  mover,  e  trazer  a  tal  confusão  de  seus  peccados  os  moradores  daquel- 
la  Capitania,  que  os  mais  delles  trabalharão  por  se  apartar  de  seus  vicios : 
huns  casando-se  com  as  índias  que  tinhão  por  mancebas,  outros  apartan- 
do-se  delias  buscando-lhes  maridos,  outros  vivendo  bem  em  seu  estado  ma- 
trimonial, e  todos  com  grande  espanto  de  si,  vendo  a  cegueira  em  que  ti- 
nhão vivido. »  Tudo  isto  são  palavras  do  Padre  Joseph,  testemunha  qualifi- 
cada daquelles  mesmos  tempos.  Este  espirito  lhe  dava  o  acerto  das  traças 
eíTicazes  da  conversão  dos  próximos :  aquella  do  Seminário  dos  meninos, 
discípulos  primeiro,  e  mestres  depois  de  seus  pais :  aquella  grande  agili- 
dade como  de  .\njo,  com  que  voava,  em  vez  de  caminhar,  ao  maior  servi- 
ço dos  homens,  e  por  isso  chamado  Padre  que  voa.  Voou  atravessando  as 
grandes  serras  da  Paraná  Piacaba  em  busca  dos  filhos  dos  índios,  pêra  ca- 
thequizal-os.  Voou  penetrando  os  sertões  mais  distantes  do  feroz  Tamoyo, 
em  busca  das  mulheres  dos  Portugueses,  que  tinhão  cattivas  pêra  pasto  da 
gula.  Voou  a  terras  ainda  mais  remotas  do  gentio  Carij(j,  em  livramento 
dos  Castelhanos,  que  estavão  entre  elles,  em  perigo  da  morte.  A  muitas  e 
insignes  missões  semelhantes  voou.  Estas  virtudes  forão  as  que  soíTrêrão 
as  ameaças,  aggravos,  contumelias,  e  aíTrontas  daquelles  mesmos,  a  quem 
procurava  o  lustre  da  alma  (que  esta  vem  a  ser  a  moeda,  em  que  o  mundo 
paga.)  Nem  cuide  alguém,  que  pareceria  menos  bem  assombrado  a  este  va- 
rão aquelle  género  de  morte,  com  que  acabou :  porque  quem  desejava  morrer 
por  obediência  ao  pé  de  hum  pào  (como  dizia  muitas  vezes)  por  ajudar  liuma 
só  alma:  mais  estimaria  morrer  em  occasião  de  ajudar  a  tantas,  quantas 


I 


DO  ESTADO  DO  RRASIL  (aNNO  DE   looí)  97 

forão  as  que  ensinou  a  despedir  da  vida  mortal,  e  entrar  na  eterna,  naquel- 
la  embarcação.  Pois  a  si  mesma,  como  se  disporia  aquella  alma  pêra  a  eter- 
nidade? Que  contas  saberia  lançar  nesta  bora,  o  que  por  todo  o  tempo  da 
vida  as  trouxe  apuradas  ?  Com  o  Crucifixo  na  mão,  e  a  disciplina  na  ou- 
tra, pedindo  ora  misericórdia,  ora  oíTerecendo  penitencia  pelos  que  morrião, 
fixos  os  olbos  em  o  Ceo,  se  diz,  que  obrigado  da  fereza  dos  mares,  cla- 
mando em  alta  voz:  «.Miserere  mei  Deus»,  acabou  a  vida,  e  começaria  a 
gozar  da  eterna.  D"este  servo  de  Deos  escreve  o  Padre  Balthasar  Telles  na 
primeira  parte  das  Chronicas  de  Portug.  liv.  3,  cap.  10. 

170  He  Deos  admirável  em  todas  suas  disposições:  não  pôde  o  homem 
perguntar-lhe  os  porquês  d'ellas.  Ainda  estavão  retinindo  nas  orelhas  os 
balidos  do  justo  sentim.ento  de  hum  rebanho  tão  diminuído,  por  morte  de 
hum  pastor  tão  vigilante,  principio,  e  pai  de  tão  importante  empresa : 
quando  começão  a  soar  da  parte  do  sertão  os  eccos  sentidíssimos  da  morte 
de  outros  dons  Irmãos,  filhos  ambos  primogénitos  do  mesmo  Padre  Leo- 
nardo, que  recebera,  e  formara  em  Christo  na  Companhia,  duas  luzes  das 
trevas  da  gentihdade,  ambos  nos  annos  mais  floridos,  guias  dos  mais  oc- 
cultos  sertões,  exemplares  de  Missionários,  espelhos  de  toda  a  virtude : 
chamava-se  hum  Pedro  Corrêa,  outro  João  de  Sousa. 

171  A  occasião  de  sua  morte  (segundo  a  conta  o  venerável  Padre  Jo- 
seph  de  Anchieta,  que  seguirei  á  letra  na  sustancia,  assi  pela  authoridade 
de  sua  pessoa,  como  por  suas  noticias  mais  certas,  por  ser  elle  actualmente 
mestre,  contemporâneo,  ecohabítador  do  mesmo  Collegio,  quando  derão  as 
vidas  estes  dous  servos  do  Senhor)  foi  a  seguinte.  Corria  fama  de  huma 
nação  de  gente,  que  habitava  além  dos  Carijós,  a  que  chamavão  Igbiraya- 
ras  os  naturaes,  e  os  Portugueses  Bilreíros:  dízia-se  que  era  dotada  de  bons 
costumes,  de  huma  só  mulher,  de  não  comerem  carne  humana,  de  sujei- 
ção a  huma  só  cabeça,  que  não  erão  amigos  de  matar,  e  outros  raros  en- 
tre os  m.ais  índios:  c  parecia  tinhão  já  bom  caminho  andado  pêra  aceitar 
a  doutrina  de  Cbristo.  Ao  som  doesta  fama,  (jue  voava,  ardia  em  zelo  o  Ir- 
mão Pedro  Corrêa  por  ir  levar-llies  luz  do  Evangelho :  tinba  já  tomado  por 
(iscritto  os  vocábulos,  e  modos  de  fallar  d'esta  gente,  de  bum  índio,  que 
tinha  estado  entre  elles  cattivo,  e  certificava  estas  noticias.  Este  foi  o  pri- 
meiro motivo  d'(?sta  missão,  o  zelo  de  converter  á  Fé  aquelles  índios. 

172  Outro  motivo  houve  pertencente  ácliaridade;  e  foi,  que  alguns  d'a- 
quelles  nobres  Ilespaiihoes,  (jue  acima  dissc-inos,  que  bindo  pêra  o  Bio  da 
í'i"ata  forão  dar  ao  Porto  dos  Patos,  c  forão  trazidos  dalli  pelo  Padre  Leo- 

VOL.  1  7 


08  LIVRO  I  DA  CrmONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

nardo  a  S.  Vicente  com  suas  mulheres,  e  famílias :  determinarão  depois 
proseguir  viagem  cm  canoas  até  o  mesmo  Porto  dos  Patos,  pêra  dahi  pas- 
sarem por  terra  ao  Rio  da  Prata.  E  porque  tinhão  fundados  arreceios,  que 
os  índios  Tupis  entre-meios,  chegando  a  seus  portos  (que  com  prol)abiH- 
dade  seria  necessário)  lhos  farião  traição,  e  os  matarião  por  ódio  que  lhes 
tinhão ;  pedirão  instantemente  ao  Padre  Nóbrega  mandasse  api)lacar  estes 
bárbaros  pelo  Irmão  Corrêa,  que  dominava  a  todos  pela  excellencia  de  sua 
lingoa. 

173  Houve  ainda  terceiro  motivo;  e  foi,  que  havia  guerras  acesas  en- 
tre aquellas  duas  nações  Tupis,  e  Carijós  dos  Patos,  destruindo-se,  e  asso- 
lando-se  huns  aos  outros :  e  era  grande  inconveniente  este  pêra  os  intentos 
da  conversão  da  Fé,  que  desejavão  introduzir  os  Padres  em  huma  e  outra 
gente:  e  só  Corrêa  poderia  acabar  com  estes  barliaros  depozessem  os  ar- 
cos. Por  estes  fins,  ou  motivos  se  resolveo  o  Padre  Nóbrega  mandar  o  Ir- 
mão Pedro  Corrêa  a  esta  gloriosa  missão,  confiando  d'elle  que  com  sua 
grande  eloquência,  e  fervor  de  espirito  acabaria  todas  estas  três  cousas; 
que  de  propósito  quiz  eu  distinguir,  porque  se  veja  que  todos  os  fins,  e 
motivos  d'esta  missão  forão  santos,  e  dignos  de  se  derramar  sangue  por 
ehes. 

■174  Pêra  esta  missão  pois,  e  pêra  estes  fins,  foi  avisado  o  Irmão  Pedro 
Corrêa  com  grande  jubilo  de  sua  alma  (porque  estes  erão  seus  mais  esti- 
mados empregos.)  Partio  a  ella  a  24  do  Agosto,  dia  de  S.  Bertholameu  do 
anno  corrente  de  1554,  tomando  a  benção,  e  abraçando  a  seus  Irmãos  com 
lagrimas  de  alegria  (que  parece  lhe  adivinliava  o  coração  a  boa  ventura, 
que  por  aquellas  mattas  lhe  tinha  guardado  o  Ceo.)  Acompanhárão-no  o  Irmão 
João  de  Sousa,  e  o  Irmão  Fabiano :  os  cavallos  erão  seus  bordões,  o  via- 
tico  a  grande  providencia  de  Deos,  e  dos  campos.  Chegados  ao  porto  pi-in- 
cipal  dos  Tupis  (era  então  o  a  que  hoje  chamão  Cananéa,  e  o  donde  se 
arreceavão  os  Castelhanos)  entrou  pregando  áquella  gente,  e  com  sua  gra- 
ça, e  eloquência  catíivou  os  ânimos  de  todos,  fez  oílicio  de  Anjo  da  paz; 
prometterão  de  não  fazer  mal  aos  Hespanhoes,  e  assi  o  cumprirão  á  risca. 
E  he  hum  dos  motivos  da  ida.  Tratou  logo  da  paz,  c  negocio  da  Fé,  e  de- 
rão  palavra  de  fazer  hum  lugar  sei)arado,  onde  lodos  pudessem  ajuntar-se 
a  ouvir  a  doutrina  christãa;  e  o  que  ho  espanto,  que  chegarão  a  entregar- 
gar-lhes  os  cattivos,  que  tinhão  já  em  cordas,  como  a  engordar  pêra  pasto: 
pi'imor  mais  raro,  a  que  podem  chegar.  Entre  estes  lhe  derão  hum  Caste- 
lhano, que  linlia  vindo  com  os  Carijós  contra  elles  á  guerra ;  e  com  este 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (aNXO   DE   1554)  99 

(além  de  iivral-o  da  morte,  porque  estava  mal  ferido  de  Imma  frechada, 
que  houvera  na  guerra)  deixou  o  Irmão  Fabiano  pêra  que  o  curasse,  e  con- 
solasse; como  fez,  até  que  passando  outros  Castelhanos,  que  hião  nas  ca- 
noas, o  levcárão  comsigo?  ficando-se  só  o  Irmão  ensinando  a  doutrina  da 
Fé,  e  esperando  o  companheiro,  que  tinha  partido  em  5  de  Outubro. 

173  Chegou  o  Irmão  Corrêa,  depois  de  largos  e  ásperos  caminhos,  á 
terra  dos  Carijós :  e  como  era  tão  conhecido  seu  nome,  graça,  e  eloquên- 
cia, ouvirão  dç  boa  vontade  seus  sermijes,  e  vierão  em  tudo  o  que  pedia, 
assi  das  pazes  com  os  Tupis,  como  'de  receber  a  doutrina  da  Fé ;  com  tat 
facilidade,  que  disse  o  mesmo  Irmão  a  hum  Portuguez,  que  alli  se  achou, 
que  nunca  vira  índios  tão  dispostos.  Acjui  se  informou  devagar  acerca  do 
primeiro  intento  que  levava  dos  índios  ígbiráyaras,  e  achou  que  não  podia 
Iiaver  por  então  entrada  pêra  elles  (por  inconvenientes,  parece,  de  guerras 
das  nações  entremeias.)  O  que  supposto,  vendo  como  cessava  aquelle  in- 
tento, e  como  já  íinlião  passado  livres  dos  Carijós  os  Hespanhoes,  em  cujo 
favor  tinha  vindo,  se  poz  outra  vez  a  caminho,  com  intenção  de  tornar  aos 
Tupis  com  a  boa  nova  da  paz  que  com  elles  querião  os  Carijós,  a  assentar 
as  condições  d"ella,  e  introduzir  de  espaço  a  pregação  da  Fé  n"estas  duas 
nações. 

176  Senão  ({ue  são  ineomprehensiveis  os  juizos  de  Deos:  entrou  aqui 
o  inimigo  infernal,  invejoso  de  tão  grandes  princípios:  amotinou  de  impro- 
viso os  bari)aros  contra  os  pregadores  d.a  verdade,  e  determinárão-se  em 
dar  a  morte  aos  que  pretendião  dar-lhes  a  vida.  A  causa  de  tão  grande 
variedade,  hc  certo  que  foi  hum  Castelhano,  homem  perverso,  que  alli  se 
achara  com  o  Irmão  Corrêa:  porém  que  Castelhano  he  este?  Direi  pri- 
meiro o  que  segue  o  Padre  JosOph  de  Anchieta,  e  tenho  por  mais  certo, 
e  o  segui  na  Relação  da  Vida  do  Padre  João  de  Almeida :  depois  direi  o 
que  seguem  outros.  Tinha  hum  Padre  de  nossa  Companhia  dos  que  mo- 
ravão  no  mesmo  CoUcgio'  de  Pij-atininga,  por  nome  Manoel  de  Chaves,  li- 
vrado das  cordas  e  dentes  dos  Tupis  a  este  Castelhano,  que  eslava  cattivo: 
o  da  mesma  maneira  tinha  livi-ado  huma  índia  Carijó,  com  quem  audava 
em  máo  estado,  dando  remédio  aos  dous,  a  elle  com  liberdade  da  vida,  a 
ella  com  sujeição  do  estado  do  matrimonio.  Este  pois  foi,  segundo  a  re- 
lação de  Joseph,  o  Castelhano,  causa  da  conjuração  dos  Carijós,  pelo  sen- 
timento que  teve  de  vcr-sc  apartado  da  índia,  que  tinha  por  amiga.  E 
l)()rque  este  lie  ponto  suslancia!,  |)0!-oi  as  palavras  de  Joseph.  cEsle  homem 
(diz  elle)  que  os  fez  matai-  era  hum  Castelhano,  que  estava  cattivo  cmi)0- 


100  LlVnO  I  DA  CHRONICA  DA  COMPANHIA  DK  JESU 

(ler  dos  Tupis,  e  o  Padre  Manoel  de  Chaves  livrou  da  morle :  da  qual  lam- 
bem livrou  huma  índia  Carijó,  que  elle  tinha  por  manceba,  a  qual  casarão 
os  Padres :  e  porque  não  t[uizerão  dal-a  ao  barregão,  como  elle  pretendia 
pêra  tornar  a  seu  peccado,  tomou  tanto  ódio  aos- Padres,  que  veio  a  parar 
em  fazer  matar  aos  Irmãos.»  Todas  são  palavras  de  Joseph.  O  mesmo  se- 
guem certos  Apontamentos  antiguos,  que  achei  em  nosso  Archivo  :  e  o 
mesmo  o  Padre  Balthasar  Telles  no  lugar  abaixo  citado  n.*^  C  e  7.  Outros 
dizem,  que  foi  aquelle  mesmo  Castelhano,  que  o  Irmão  Pêro  Corrêa  livrara 
âo  poder  dos  Tupis,  entre  outros  prisioneiros,  como  vimos;  e  que  o  mes- 
mo Irmão  lhe  tirara  a  amiga,  causa  do  sentimento.  Assi  o  escreve  Orlan- 
dino  nas  Ghronicas  de  nossa  Companhia,  tom.  i,  liv,  14,  n.°  125,  e  o  Padre 
Eusébio  Nieremberg,  dos  Varões  illustres,  abaixo  citado.  Fosse  a  causa  por 
qualquer  dos  dous  modos,  não  vem  a  fazer  diversidade  na  historia;  supposto 
que  pareça  o  faz  no  fim  do  martyrio.  O  certo  he,  que  impaciente  aquelle 
pobre  homem  de  ver-se  apartar  de  sua  má  consorte,  ou  por  via  do  Irmão, 
ou  do  Padre,  cobrou  tal  ódio  aos  da  Companhia,  que  detei-minou  vingar 
seu  sentimento  nos  dous  innocentes,  e  desacautelados  Irmãos :  e  como  era 
sagaz,  manhoso,  e  destro  na  lingoa  brasílica,  meteo  em  cabeça  aos  simples 
índios,  que  os  Irmãos  vinhão  por  espias  da  parte  dos  Tupis  seus  con- 
trários, e  que  convinha  tirar-lhes  as  vidas  muito  á  pressa,  antes  que  ex- 
perimentassem em  si  as  frechas,  e  dentes  de  seus  inimigos.  Não  forão 
necessárias  mais  palavras  a  gente  tão  barbara,  e  variável :  sahem  a  terrei- 
ro, appelidão  gente,  batem  os  pés,  os  arcos,  e  as  frechas,  sinaes  de  amo- 
tinados, e  arremetem  ao  caminho  em  busca  dos  dous  servos  de  Deos. 

177  Tinhão  elles  chegado,  bem  fora  do  successo,  a  huma  campina, 
rezando  suas  devaçíjes,  a  pé,  e  com  seus  bordões  em  as  mãos,  quando  ou- 
virão alaridos  e  vozes,  que  atroavão  osmontes  vizinhos,  e  de  improviso  veem-se 
cercados  de  bandos  de  seus  mesmos  hospedes,  e  juntamente  de  hum  cliu- 
veiro  de  suas  frechas.  Encontrarão  primeiro  com  o  Irmão  João  de  Sousa, 
com  hum  cestinho  de  pinhões  i)endurado  do  braço  (viatico  que  devia  ser 
do  caminho)  o  qual  vendo  os  bárbaros  conheceo  seu  damnado  intento ;  e 
posto  de  joelhos,  invocando  os  santos  nomes  de  Jesu,  e  Maria,  foi  trespas- 
sado de  suas  cruéis  frechas,  até  que  cahindo  desmaiado  em  terra,  deu  o 
espirito  ao  Criador.  Tudo  via  o  Irmão  companheiro  Pedro  Corrêa ;  e  em 
quanto  durava  aquelle  espectáculo  sanguíneo,  pregava  em  voz  alta,  repre- 
hendenlo  tão  grande  desatino,  com  aqiiella  sui  costumada  eloquência,  que 
abrr.ndâra  os  mais  duros  penedos.  Porém  não  erão  já  ouvidas  suas  pala- 


DO  ESTADO  DO  RRASIL  (aNNO  DE   loí)4)  101 

vras,  liem  erão  aqaelles  corações  os  mesmos ;  trocárão-se  em  corações  de 
feras;  endurecêra-os  o  logo  ardente  do  inferno:  carrega  logo  o  cordeiro 
manso  liuma  nuvem  de  frechas,  e  feito  o  corpo  todo  em  hum  crivo  (qual 
outro  martyr  S.  Sehastião)  passado  o  peito  e  entranhas,  não  pôde  ter-se 
em  o  bordão,  cahindo  de  joelhos,  levantadas  as  mãos  ao  Ceo,  rompeo 
aquella  alma  dittosa  as  ataduras  da  carne  mortal,  e  voou  á  terra  dos  vi- 
ventes, por  quem  tanto  havia  suspirado,  e  padecido  n"este  desterro.  Ficá- 
'Yio  os  corpos  defuntos  no  mesmo  lugar  do  martyrio,  pêra  serem  comidos 
das  aves,  e  feras,  e  ficarão  até  o  dia  derradeiro  seus  ossos,  por  testemu" 
nhãs  de  tão  grande  maldade. 

178  Oh  fera.s  cruéis!  oh  tigres  hircanos!  a  dous  cordeiros  mansos! 
oh  Castelhano  duro!  pagas  com  morte  a  quem  te  deu  a  vida?  Que  impor- 
ta, que  com  mão  escondida  obres  o  homicídio  ?  Com  mão  alhea  o  obrou 
hum  Herodes,  e  foi  com  tudo  martyr  illustre  o  zelador  da  castidade.  Em 
tua  mão  não  está  a  causa  do  martyrio,  está  em  tua  intenção ;  e  esta  foi  a 
detestarão  da  pureza.  Oh  almas  ditosas !  oli  martyres  felices !  Primícias  do 
Brasil,  espelho  de  Missionários,  lustre  de  Confessores,  esmalte  dos  que 
pregão,  honra  dos  Irmãos,  gloria  da  Companhia :  com  vosso  sangue  íerli- 
lizastes  aquellas  mattas,  com  vosso  exemplo  ficão  appeteciveis ;  e  virá  dia, 
em  que  este  sangue  brote  em  grandes  colheitas  d'esta  gentilidade.  Taes 
forão  os  motivos  da  morte  d'estes  serves  de  Deos :  a  pregação  da  Fé,  a 
castidade,  e  a  obediência;  c  todos  excellentes. 

170  Foi  o  Irmão  Pedro  Cori'ca  no  século  de  geração  nobre  dos  Correas 
do  Reino  de  Portugal.  Passou-sc  ao  Brasil  naquelles  princípios  da  Capita- 
nia de  S.  Vicente,  e  foi  nella  o  mais  poderoso  dos  moradores.  Gastou  mui- 
tos annos  de  sua  vida  accomodando-se  ao  modo  de  viver  do  lugar,  saltean- 
do, e  cattivando  índios  por  mar,  e  por  terra,  de  que  enriquecia  sua  casa: 
não  entendendo  a  gi'ande  injuria,  que  nisso  fazia  aquellas  creaturas  racio- 
naes,  por  natureza  livres;  antes  parccendo-lhe  fazia  serviço  a  Deos,  com 
capa  de  qm  entre  Christãos  poderião  reduzir-se  a  Christo.  Chegou  aquel- 
la Capitania  o  Padre  Leonardo  Nunes  no  anno  de  mil  e  quinhentos  c  qua- 
renta e  nove:  e  ouvindo  Pedro  Corrêa  sua  doutrina,  e  as  razões,  pelas 
quacs  estranhava  aquellc  modo  de  viver  de  saltear,  o  catlivar  os  índios; 
como  era  homem  capaz  e  bem  entendido,  fez  nelle  tanta  impressão,  que 
deliherou,  não  só  deixar  o  oflicio,  mas  com  elle  o  mundo,  c  dedicíu'-sc  to- 
do a  hum  perpetuo  sacrilicio,  entrando  em  Religião.  Julgava,  que  só  d'e5ta 
maneira  i)oderia  [)agar  seus  i)eccados.  Trattou  com  o  Padre  Leonardo,  foi 


102  LIVRO  I  DA  CnnOMC.V  DA  CO.MPA?;;UA  DE  JESU 

(ielle  com  cffeito  recebido  na  Companhia  (como  era  seu  lugar  dissemos) 
e  foi  semelhante  sua  conversão  á  de  hum  S.  Paulo;  porcfue  foi  insigne  o 
zelo  com  que  trattou  os  índios  dalli  em  diante,  padecendo  pela  liberdade 
de  seus  corpos,  e  vida  de  suas  almas,  fomes,  sedes,  frios,  calmas,  malque- 
renças, perigos  de  mar,  e  de  terra,  e  todo  o  género  de  trabalhos,  com  a 
constância  do  outro  Apostolo  das  gentes.  Foi  ouvido  dizer  muitas  vezes, 
(jiie  não  poderia  alcançar  perdão  dos  grandes  males  que  tinha  obrado  con- 
tra os  Brasis,  senão  empregando-se  todo  em  seu  serviço  até  morrer.  Assi 
o  cumprio;  porque  cinco  annos  que  lhe  restou  de  vida,  forão  outros  tan- 
tos que  teve  de  cattivo  de  índios. 

180  Não  podem  contar-se  facilmente  os  sertões  que  correo,  os  mares 
que  navegou,  os  rios  que  passou,  as  brenhas  que  rompeo  em  busca  de  seus 
amados  índios.  Por  toda  a  historia  atrazada  encontramos  com  estes  seus  • 
trabalhos.  Passou  intrépido  aos  arraiaes  dos  Tamoyos,  ás  terras  dos  Tupis, 
dos  Tupinac[uis,  dos  Carijós :  suspendeo  seus  arcos,  e  muito  mais  seus  co- 
rações, o  grande  espirito,  c  eloquência  de  Corrêa:  (não  torno  a  repetir 
passos  particulares.)  He  cousa  averiguada,  que  foi  o  melhor  lingoa  daquel- 
le  t^mpo :  dil-o  expressamente  o  Padre  Joseph ;  e  que  era  tal  a  corrente 
de  sua  eloquência,  que  em  começando  a  fallar,  suspendia  os  ânimos.  En- 
trava pelas  casas  dos  índios  pregando,  como  se  entrara  pelas  suas,  ainda 
que  fossem  gentios.  A  pregação  era  comraummeníe  de  noite,  e  succedia 
começar  antes  do  meio  delia,  e  acabar  alta  manhã,  sem  que  alguém  dor- 
misse. Com  este  dom,  e  seu  grande  espirito,  não  podem  reduzir-se  a  nu- 
mero os  muitos  que  trouxe  de  seus  sertões  ao  grémio  da  Igreja:  e  os 
muitos  que  cathequizou,  que  bauíizou,  que  curou,  e  livrou  da  morte.  Foi 
discípulo  do  Padre  Joseph,  não  menos  na  Arte  da  Grammatica,  que  da  vir- 
tude; e  de  sua  classe  foi  mandado  por  obediência  a  esta  ultima,  e  ditosa 
missão.  O  que  quiz  advertir  aqui ;  porque  se  veja,  que  o  Irmão  Pedro  Cor- 
rêa foi  estudante  em  nossa  Companhia,  e  não  Coadjutor  temporal,  como 
escreve  o  Padre  Balthasar  Telles  na  sua  Segunda  parte  das  Chronicas  liv. 
5,  cap.  o2,  n.°  13;  enganado,  parece,  ou  de  que  não  chegou  a  ser  Padre, 
ou  dos  oílicios  baixos,  que  no  serviço  da  Companhia  exercitou  por  sua  hu- 
mildade. O  contrario  he  certo:  dil-o  expressamente  seu  mesmo  mestre  da 
Grammatica,  o  Padre  Joseph,  .por  esías  palavras.  «Começou  o  Irmão  Pedro 
Corrêa  o  estudo  de  Grammatica,  com  muita  diligencia,  e  fervor,  por  ser 
ordem  da  obediência,  e  com  zelo  das  almas,  pêra  poder  ser  ordenado,  e 
empregar-se  mais  em  seu  serviço. 


DO  ESTADO   DO  DRASII.  (aNNO  DE    1*351)  103 

181  Sal)i(la  a  morte  d'estc  santo  Irmão  em  Piratininga,  houve  planto  ge- 
ral entre  os  índios:  enchião  os  montes  oseccos  de  seus  ais  lastimosos:  jamais 
íizerrio  a  seu  modo  exéquias  mais  sentidos.  Não  faltou  pregador:  ao  redor 
dos  tristes  enojados  andava  hum  dos  mais  escolhidos,  e  este  em  altas  vo- 
zes se  queixava  assi :  «Aonde  está  o  nosso  pai?  o  nosso  mestre?  o  nosso 
pregador?  Aquelle  que  com  sua  eloquência  suspendia  por  inteiras  noites 
nosso  somno,  e  nossos  corações?  Aquelle  que  era  Medico  de  nossas  enfer- 
midades, e  consolarão  em  nossos  trabalhos?  Aonde  está?  Aonde  está?»  Per- 
guntavão  a  seu  modo  aos  caminhos,  aos  montes,  aos  rios,  aos  desertos,  que 
feito  era  do  seu  Corrêa?  Chamavão  cruéis  e  ingratos  aos  corações,  aos  bra- 
ços, e  aos  arcos,  dos  que  lhe  tirarão  a  vida.  E  a  não  serem  Christãos  al- 
guns delles,  c  todos  discípulos  dos  Padres,  armarão  suas  frechas  contra 
gente  tão  fera. 

182  Algumas  mercês  do  Ceo  se  conlão  feitas  a  este  servo  seu  em  fa- 
vor de  suas  missões:  huma  de  duas  vigas  de  notável  grandeza,  que  no 
meio  de  hum  de  seus  caminiios  lhe  cahírão  sobre  a  cabeça,  com  ferida  mor- 
tal :  e  quando  davão  os  companheiros  por  desfeita  a  missão,  o  acharão  são 
de  repente,  com  espanto  grande.  O  mesmo  se  diz  de  huma  dor  de  olhos 
vehemente,  que  lhe  impedia  o  caminhar:  mas  posto  em  oração,  foi  livi^e  de 
improviso,  e  continuou  a  empresa.  Não  são  Uvovas  estas  preservações  do  Ceo 
aos  que  assi  trabalhão  por  elle. 

183  O  Irmão  João  de  Sousa  foi  dos  primeiros  povoadores  da  Capitania 
de  S.  Vicente,  e  dos  primeiros  que  recebeo  na  Companhia  o  Padre  Nó- 
brega. Foi  de  honesta  geração,  da  casa  do  primeiro  Governador  do  BrasilThomé 
de  Sousa.  Estando  ainda  em  o  século,  vivia  como  em  religião,  virtuosa  e 
santamente.  Jejuava  todas  as  quartas,  sextas  leiras,  e  sabbados  do  anno. 
Não  consentia  onde  quer  (jue  estava,  cousa  que  parecesse  oíTensa  de  Deos. 
Padeceo  por  esta  causa  alguns  desprezos,  c  vitupérios;  e  tudo  levava  com 
alegria.  Entrando  na  Companhia,  diz  o  venei-avel  Padre  Josei)h,  que  exce- 
dia a  todos  seus  iguaes  em  charidade,  sim[)licidade,  humildade,  o  peniten- 
cia: e  he  este  hum  grande  testemunho.  Folgava  de  servir  na  cozinha,  c 
mais  olíicios  baixos,  por  agradar  a  todos,  e  ilesprezar-se  a  si:  e  d'estes  lu- 
gares sabe  Deos  tirar  seus  mimosos,  pêra  favores  semelhantes  ao  que  fez 
a  este  servo  seu. 

184  Destes  dous  ditosos  mancebos  escreverão  muitos  autores:  o  Pa- 
dre Nicolao  Orlandino  na  Primeira  pai'le  das  Chronicas  (h  Companhia,  liv. 
14,  desde  o  n."  118.  Maííeo  liv.  10  das  Cousas  da  índia.  O  Paiii-e  Pedro 


104  LIVRO  I  DA  CimONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

Jarich,  tom.  2."  de  seu  Thesouro  Indico,  liv.  1,  cap.  24.  O  Padre  Pedro  de 
Ribadeneira,  liv.  4  da  Vida  de  Santo  Ignacio,  cap.  12.  O  Padre  Spinelo, 
na  Vida  da  Virgem  Senhora  Nossa,  cap.  20.  O  Padre  BaUliasar  Telles,  nas 
Chronicas  de  Portugal,  part.  2.°  liv.  5,  cap.  u2.  O  Catalogo  dos  Martyres 
da  Companhia  de  .lesu.  António  de  Vasconcellos,  na  Descripção  de  Portu- 
gal. O  P.  Eusébio  Niereml^erg,  tom.  2."  dos  Vari3es  illustres  da  Companhia. 
E  primeiro  que  todos  o  Padre  Joseph  de  Anchieta  em  seus  notados  ma- 
nuscritos. 

185  Na  Casa  do  Espirito  santo  continuava  o  Padre  Braz  Lourenço,  que 
alli  deixámos  em  lugar  do  Padre  AíTonso  Braz  o  anno  antecedente,  quan- 
do passámos  com  o  Padre  Leonardo  Nunes.  Entre  as  cousas  do  augmento 
espiritual  que  alli  fez,  foi  huma  devota  Confraria,  com  invocação  da  Chari- 
dade:  o  instituto  o  mostrava;  e  era  elle,  que  além  da  confissão,  e  com- 
munhão  nas  festas  principaes  do  anno,  e  de  Nossa  Senliora,  todos  os  que 
nella  entravão,  ílcavão  obrigados  a  procurar  com  todas  as  forças  desarrei- 
gar  dous  vícios  (os  mais  communs  na  terra)  juramentos,  e  murmurações ; 
com  pena  destinada  por  regra,  que  pagaria  certa  quantia  de  dinheiro  pêra 
ajuda  de  casar  huma  orfãa,  todo  aquelle,  que  ou  em  sua  pessoa  fosse  achado 
commeter  os  taes  vicios,  ou  os  consentisse  nos  outros  sem  trattar  de  lhe 
applicar  remédio  conveniente  assinado  na  mesma  regra. 

186  Porém  entre  todas  as  obras  que  aqui  fez  este  varão,  huma  tenho 
por  rara,  e  que  denota  seu  grande  espirito,  e  obediência;  por  que  consta, 
que  residindo  n'esta  casa  por  alguns  annos,  não  teve  nunca  í^adre  compa- 
nheiro, nem.  ainda  Sacerdote  de  fora,  que  o  aliviasse  nas  obrigações 
exteriores  do  povo,  ou  nas  interiores  de  sua  consciência:  e  só  tinha  por 
companheiros  Irmãos  (pela  grande  falta  que  havia  de  Padres.)  Bem  se  dei- 
xa ver  quanta  pureza  d"alma  he  necessária,  e  quanta  confiança  em  si,  e  em 
Deos,  a  hum  homem,  que  ha  de  administrar  sacramentos  a  outros,  e  não 
tem  quem  lhos  administre  a  elle:  e  quanto  zelo  seja  necessário  pêra  que 
tendo  por  ofllcio  levantar  os  outros,  não  tenha,  se  cahir,  quem  o  levante: 
ou  he  que  sua  consciência  lhe  dá  confiança  de  «não  cahir;  ou  que  com  ris- 
co de  seu  remédio  (caso  que  caia)  quer  acudir  aos  outros  cabidos:  e  isto 
he  mais. 

187  Este  só  Sacerdote  era  o  Parocho  daquelle  povo  todo:  nem  na  nos- 
sa, nem  em  alguma  outra  Igreja,  havia  quem  pregasse,  ou  confessasse,  ou  dou- 
trinasse, ou  administrasse  sacramento  algum:  a  tudo  acudia  hum  só  Braz  Lou- 
renço incansavelmente,  e  com  tal  fruto,  que  disse  d"elle  o  venerável  Padre  José- 


DO   ESTADO  DO  BRASIL  (aNNO  DE   13^)4)  105 

ph,  que  d'aquelle  bom  tempo  durava  ainda  em  o  seu,  sendo  elle  já  velho,  na  vil- 
la  do  Espirito  santo  o  eíTeito  da  doutrina  do  Padre,  por  estas  palavras:  «Doutri- 
nava, eprêgava  (diz)  com  tanto  fruto,  que  além  do  aproveitamento  dos  pais, 
ficarão  os  filhos  com  tanta  luz,  e  tão  aíTeiçoados  á  virtude,  como  ainda  ago- 
ra se  enxerga,  especialmente  nas  mulheres,  as  quaes  n'aquella  pequena  idade 
ganharão  pêra  o  tempo  futuro  pêra  si,  e  pêra  suas  filhas,  continuando  qua- 
si  todo  o  femineo  sexo  a  confissão,  e  communhão  cada  oito,  e  quinze  dias, 
com  notável  fama  de  honestidade  entre  todas  as  do  Brasil.»  São  palavras 
do  venerável  Padre,  que  he  bem  lhe  agradeça  esta  nobre  villa. 

188  Não  estava  satisfeito  o  Ceo  com  os  obreiros  que  tinha  levado  pêra 
si:  hia  também  fazendo  sua  colheita  quasi  cada  dous  mezes.  No  Collegio  da 
Bahia  chamou  a  melhor  vida  aquelle  Irmão  simplicíssimo,  por  nome  Do- 
mingos, a  quem  (como  dissemos)  por  respeito  de  sua  grande  simplicidade 
poserão  por  sobrenome  Pecorela.  N'este  servo  de  Deos  andava  em  ques- 
tão, qual  florecia  mais,  se  a  simplicidade,  ou  a  obediência?  He  certo  que 
forão  ambas  insignes  n'elle  estas  virtudes.  Cinco  annos  sérvio  este  servo 
fiel  a  Companhia,  e  em  todos  elles  se  teve  sempre  por  hum  escravo  com- 
prado por  dinheiro  pêra  o  serviço  da  casa;  sem  mais  querer,  nem  mais  pre- 
tender, que  o  de  hum  escravo  leal.  Entre  os  mais  olTicios  da  obediência,  o 
principal  era  ter  cuidado  em  hum  jumentinho,  e  ir  com  elle  a  todas  as  par- 
tes onde  era  mandado  em  busca  do  sustento  da  casa,  que  era  pobrissima. 
Bastava  significar-lhe  o  Superior:  «Irmão  Domingos,  ide  á  lenha  pêra  a 
cozinha:»  sem  mais  demora,  a  pó  descalço,  roupeta  a  meia  perna,  esem  bar- 
rete, nem  sombreiro  ordinariamente,  aparelliava  seu  jumentinho,  e  hia  ao 
matto  a  carregar  de  lenha;  e  da  mesma  maneira  á  fonte  a  carregar  de  agoa; 
Não  era  necessário  pêra  elle  doscançar:  tornava  ao  matto,  tornava  á  fonte 
pelo  meio  das  ruas  da  Cidade,  e  tinha  por  gloria  o  trabalhar  pêra  servos 
de  Deos. 

189  Quando  faltava  de  comer  na  Casa  (que  era  muitas  vezes)  não  des- 
maiava Domingos  Pecorela:  ornava  seu  jumento,  liia-se  ás  aldeãs  dos  índios, 
e  entrava  com  elles  com  tal  graça,  fallando-lhes  pela  própria  lingoa,  cm 
que  era  perito,  que  estes  lhe  fazião  a  carga  do  mais  eslimado  de  seus  ha- 
veres, farinha,  caça  do  matto,  batatas,  bananas,  carás,  que  he  o  que  pos- 
sue  esta  gente  quando  mais  rica:  e  era  n'aquclle  temi)o  o  comer  de  mais 
estima  dos  Padres.  Era  tal  a  humildade  simples,  c  simplicidade  humilde 
d'este  bom  Irmão,  que  cliegava  a  tcr-se  por  obrigarlo  a  servir  ao  próprio 
jumento:  assi  curava  d"elle,  assi  se  compadecia  de  seu  trabalho,  como  se 


106  LIVRO  I  DA  CUROMCV  DA  COJIPAMIÍA  DE  JESU 

fora  criatura  racional:  chegava  a  descuidar  de  si,  por  cuidar  o  asninho- 
Pareceo-lhe  algumas  vezes  que  vinha  carregado  sobre  suas  forças;  e  logo 
compadecido  tirou  parte  da  carga  das  costas  do  jumento,  e  a  poz  ás  suas, 
e  caminharão  ambos  carregados:  e  aos  que  lhe  perguntavão,  porque  toma- 
va aquclle  trabalho?  respondia  cheio  de  compaixão:  «Porque  esta  pobre  cria- 
tura não  pôde  mais:  e  que  se  diria  de  mim,  se  viesse  ella  arrebentando 
com  a  carga,  e  o  Irmão  Domingos  folgando?» 

190  Aém  das  referidas,  era  perfeito  em  todas  as  mais  virtudes  religiosas^ 
puro,  pobre,  manso,  devoto,  mortificado,  sofredor  de  trabalhos,  e  de  gran- 
de zelo.  Não  lhe  sofria  o  coração  ver  falta  alguma,  que  não  estranhasse;  e 
avisava  logo  ao  que  vio  faltar,  com  santo  amor,  e  simplicidade.  Como  era 
perito  na  lingoa  brasílica,  fazia  pelas  aldeãs  grande  fruto  nos  índios,  com 
aqiielle  seu  modo  chão,  e  simples,  de  que  elles  gostavão.  Foi  dos  primei- 
ros que  recebeo  o  Padre  Nóbrega  na  Bahia. 

191  Adoeceo  este  servo  fiel  do  Senhor,  de  hum  accidente  extraordiná- 
rio de  pedra,  tal  que  em  breve  o  chegou  ás  portas  da  morte.  N'estas  do^ 
res  foi  rara  sua  paciência,  e  conformidade  com  Deos.  Perdeo  antes  que  ex- 
pirasse os  sentidos  todos,  com  o  grande  tormento  das  dores;  porque  não 
tivesse  lugar  o  inimigo  entre  ellas  de  perturljar  sua  simplicidade.  Acabou 
o  curso  doesta  vida  em  24  de  Dezembro  de  1534  com  geral  sentimento-, 
e  não  menos  opinião  de  santidade:  de  quem  podemos  com  verdade  dizer 
o  que  lá  disse  Santo  Agostinho:  Veniunt  indocti,  et  rapiunt  regnum  coelorum, 
etc.  Jaz  sepultado  na  Igreja  anligua  da  Bahia. 

192  Com  o  Irmão  Domingos  Pecorela  espirou  juntamente  o  anno  de 
mil  e  quinhentos  e  cincoenta  e  quatro;  e  começou  o  de  mil  e  quinhentos  e 
cincoenta  e  cin;^o,  Neste  se  acha  vão  em  toda  a  província  vinte  e  seis  su- 
jeitos da  Companhia :  quatro  na  Bahia,  dous  em  Porto  seguro,  dous  no 
Espirito  santo,  cinco  em  S.  Vicente,  treze  em  Piratininga :  pequeno  nu- 
mero de  segadoras  pêra  tão  grande  seara.  Residia  ainda  na  Bahia  o  Padre 
Luís  da  Gram,  CoUateral,  igual  em  poderes  com  o  Padre  Nóbrega,  donde 
dispunha  os  negócios,  que  succedião  d'esta  parte  do  Norte,  com  grande 
nome  de  santidade,  e  muito  fruto,  que  tinha  feito,  e  fazia  nas  almas  de 
Portugueses,  e  de  índios;  levando  por  diante  os  fundamentos  lançados  por 
Nóbrega,  cujas  ordens  reverenciava  como  de  santo.  Não"  acho  apontados 
casos  particulares  dos  muitos  que  he  certo  obrou  este  varão,  e  seus  com- 
panheiros o  anno  presente. 

193    Ainda  n"este  tempo  se  não  tinhão  avistado  estas  duas  columnas  da 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (aNNO  DE  1535)  107 

Companhia  do  Brasil,  Nóbrega,  e  Gram;  e  parecia  necessário  fazel-o,  assi 
pêra  communicar  o  passado,  como  pêra  consultar  o  futuro.  Pelo  que  par- 
tio  Gram  a  ver-ss  com  Nóbrega  a  S.  Vicente :  nós  porém  não  poderemos 
acompaiihal-o,  porque  somos  chamados  a  celebrar  as  exéquias  sentidas  de 
hum  incomparável  obreiro.  Se  algum'hora  tive  paixão  contra  o  império 
violento  da  morte,  he  na  presente,  quando  vejo,  que  de  hum  tão  contado 
numero  como  he  o  de  três,  e  dedicado  esse  á  cultura  de  huma  vinha  tão 
estendida;  chamado  pêra  o  trabalho  d'ella  por  tão  grande  Senhor,  de  tão 
distantes  terras,  por  tão  imniensos  mares;  roube  a  morte  rigorosa,  cruel, 
tyranna,  hum  d'esses  três  obreiros,  e  o  mais  principal;  sem  respeito  a  an- 
nos,  partes,  talentos,  ou  necessidade  de  fim  tão  grande.  Com  razão  leio 
que  chorarão  ínconsolavelmente,  os  dous  que  somente  ficarão,  o  saudoso 
apartamento  de  hum  companheiro,  que  era  a  luz,  lustre,  e  exemplo  da  mis- 
são do  Brasil,  o  incansável  trabalhador  João  de  Aspilcueta  Navarro.  Aquelle 
tantas  vezes  nomeado  n'esta  historia,  e  nunca  assas  louvado.  Aquelle  que 
com  suas  traças,  zelo,  espirito,  paciência,  c  sangue,  tirou  tantas  almas  da 
garganta  do  dragão  infernal.  Que  combaíeo  o  duro  peito  d'aquelle  homem 
nobre  no  sangue,  mas  infame  nos  vicios,  escandaloso  na  cidade :  a  quem 
não  poderão  render  os  annos,  o  Rei,  as  Justiças,  as  prisões,  os  castigos ; 
venceo  comtudo  a  perseverança,  e  paciência  rara  de  João  Aspilcueta.  EUe 
venceo  o  outro  Hercules  famoso  (caso  n'aquelle  tempo  celebre,  e  pêra  os 
séculos  exemplo  dos  que  trattão  de  almas) :  era  outro  não  menos  duro  co- 
ração, d"aquelle  antes  fora  que  homem,  malfeitor  pubUco,  degradado,  so- 
berbo, arrogante,  desbocado;  de  quem  foliámos  no  anno  de  mil  e  quinhentos 
e  cincoenta,  a  quem  servindo  por  largo  tempo  de  criado,  chegando  a  lavar- 
Ihe  o  serviço,  e  trazer-lhe  da  fonte  o  pote  de  agoa,  ultimamente  polo  san- 
gue de  huma  cruel  disciplina  acabou  de  ganhal-o. 

104  Esto  foi  aquelle  grande  zelador,  que  vestido  de  disciplinante  sahio 
pelas  ruas  e  praças  da  cidade  da  Bahia,  lavando-se  cm  sangue,  até  as  por- 
tas do  Palácio  do  Governador,  cujo  Confessor  era :  espanto,  o  edificação  do 
muitos  peccadores.  Este,  o  que  sabia  pelas  aldeãs  em  semelhante  trajo, 
qual  hcce  homo  banhado  cm  seu  sangue,  pregando,  ameaçando,  c  espan- 
tando 03  índios :  com  cujo  novo  espectáculo,  e  nunca  d'elles  visto,  deixarão 
o  abuso  cruel  da  aivm  humana.  Foi  aquelle  tão  conhecido,  e  respeitado 
entre  Portugueses  o  índios,  que  chegava  a  ser  bastante  só  sua  presença 
pêra  compor  a  todos,  ainda  quando  mais  alterados :  de  cujas  ])régações,  c 
doutrinas  íicavão  suspensas  as  almas :  por  cujo  meio  se  converlerão  innu- 


108  LIVRO  I  DA  CFIHOMCA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

meraveis  peccadores :  a  cujas  ameaças  ti-emião  os  mais  endurecidos.  Forão 
exemplo  os  povos  de  Porto  seguro,  quando  virão  os  incêndios  do  Geo, 
vingadores  em  favor  da  verdade  de  sua  palavra.  Este  varão  foi  o  primeiro 
que  sahio  com  a  empresa  da  lingoa  dos  Brasis,  com  que  suspendia  seus 
ânimos.  Ilum  dos  primeiros  que  sahio  com  a  traça  de  alistar  os  peccado- 
res públicos,  e  combatel-os  todos  os  dias,  até  rendel-os.  (^om  a  de  pregar 
aos  índios  de  noite,  quando  estavão  mais  desoccupados,  e  talvez  a  noite 
inteira.  Com  a  do  modo  de  viver  mais  politico,  e  humano  dos  índios.  Com 
a  de  levantarem  altares,  e  capellas  em  suas  aldeãs.  Com  a  de  formar  Se- 
minário de  meninos  filhos  de  índios,  donde  saliião  n'aquella  idade  tão  bons 
discípulos,  que  vinhão  a  ser  mestres  dos  pais.  Com  a  de  pôr  ,em  canto  de 
órgão  as  cantigas  dos  índios,  que  continhão  a  doutrina  christãa ;  íicando 
elles  instruídos  á  volta  da  suavidade  do  canto.  EUe  traçou  os  modos,  com 
que  foi  facilmente  largando  aquella  geqte  seus  ritos  bárbaros,  multidão  de 
mulheres,  feitiçarias,  vinhos,  e  abuso  da  carne  humana.  Foi  dos  primeiros 
cpie  pêra  este  intento  arremeteo  ao  Tapuya  morto  em  terreiro  a  tempo  já 
de  ser  repartido,  e  comido,  desprezando  o  perigo  da  morte,  que  previa  de 
bárbaros  ainda  então  não  cultivados.  Foi  finalmente  o  inventor  primeiro 
d"aquelia  traça  de  bautizar  com  a  agoa  de  lenço  molhado,  espremido  so- 
bre a  cabeça  dos  que  estavão  em  prisões  pêra  serem  comidos.  Com  estas, 
e  outras  traças  semelhantes,  dignas  de  seu  fervor,  e  espirito,  converteo 
aquelle  varão  milhares  de  almas,  com  tal  facilidade,  que  corria  d'elle  o  dít- 
tado:  «Que  parecia  andava  avínculada  a  conversão  de  hurae  outro  mundo. 
Oriental,  e  Occidental,  á  gente  Aspilcueta  Navarra.»  Este  zelo  por  fim  veio 
a  custar-lhe  a  vida;  porque  acommetendo  aquella  missão  (que  atraz  disse- 
mos) de  duzentas  legoas  do  sertão,  até  então  só  de  feras,  e  gente  silvestre 
penetrado,  depois  de  acabados  muitos  dos  companheiros  na  empresa,  es- 
capou elle  tal,  que  parecia  a  mesma  morte,  e  veio  a  pagar  o  tributo  com- 
mum.não  muito  depois  d'elles. 

195  Foi  o  Padre  João  Aspilcueta  Navarro  de  geração  illustre,  natu- 
ral do  Reino  de  Navarra,  da  casa,  e  tronco  dos  Aspilcuetas,  aparenta- 
dos com  a  fomilia  nobilíssima  dos  Xavieres,  e  Loyolas,  sobrinho  d'aquelle 
celebre  Doutor  Martim  Aspilcueta  Navarro,  Caíhedraíico  de  Prima  da  fa- 
culdade de  Cânones  na  insigne  Universidade  de  Coimbra,  de  cuja  casa  en- 
trou na  Companhia  no  anno  de  húi\,  pessoa  já  então  de  conhecido  exem- 
plo. Era  de  generosos  espíritos ;  e  como  tal  foi  escolhido  pêra  a  maior 
empresa  que  então  se  considerava  da  conversão  d"este  novo  mundo,  em 


DO  ESTADO  DO  liRASIL  (AN.NO  DE    1555)  109 

companhia  do  Padre  Nóbrega,  e  como  a  segunda  pessoa  após  elle.  Varão 
verdadeiramente  humilde,  simples,  e  de  grande  obediência  :  em  cuja  prova 
succederão  casos  notáveis,  como  beber  hum  copo  de  azeite  ao  aceno  do 
mandado  do  Superior,  qual  se  íora  de  agoa;  e  todos  os  mais  que  pelo  dis- 
curso d'esta  historia  vimos.  D'elle  se  diz,  que  mandando  escrever  em  lium 
papel  a  oraçTuj  do  Padre  nosso,  e  pôl-a  sobre  os  enfermos,  saravão  de  seus 
males  só  com  esta  mezinha  santa.  Cansado  pois,  e  consumido  este  servo 
de  Deos  de  seus  excessivos  traljallios,  o  mais  que  tudo  da  missão  sobre- 
ditta,  passou  a  meliior  vida  no  CoUegio  da  Bahia  no  anno  da  redempção 
do  mundo  de  1555,  recebidos  todos  os  sacramentos  da  Santa  Igreja,  com 
sentimento  geral  de  todos,  e  mais  excessivo  dos  que  erão  maiores  pecca- 
dores.  Jaz  sei>ultado  na  Igreja  velha  do  ditto  CoUegio,  aonde  esperão  seus 
ossos  a  resurreição  geral  dos  defuntos.  Faz  menção  honorifica  d"este  servo 
do  Senhor  o  venerável  Padre  Josepli  de  Anchieta  em  varias  partes  de  seus 
Apontamentos;  Orlandino  em  muitos  lugares  das  Chronicas  de  nossa  Com- 
panhia; Eusébio  Nieremberg,  dos  Varões  illustres,  pag.  092:  E  o  Padre 
Balthasar  Telles  nas  Chronicas  de  Portugal  liv.  3,  cap.  9,  da  parte  i. 

196    Nâo  se  acovardava  comtudo  o  pequeno  rebanho  dos  vivos,  á  vista 
de  tantos,  e  taes  mortos.  Tinhão  íe  viva  que  hião  estes  fundar  na  outra 
vida  novos  Collegios,  e  nova  Republica  na  Cidade  de  Deos,  cujo  costume  he 
sustituir  iguaes,  ou  mais  aventajados  aos  que  leva  em  empresas  semelhan- 
tes. Lidava  n"este  tempo  o  espirito  de  Nóbrega  incansável  na  conversão  dos 
índios  em  S.  Vicente,  e  experimentava  nelles  vários  eITeitos  á  medida  da 
variedade  de  sua  natureza  inconstante;  especialmente  sobre  o  vicio  de  matar, 
e  comer  em  terreiro  os  inimigos.  He  notável  u*esta  matéria  o  caso  seguinte. 
Corria  o  principio  de  Janeiro  do  presente  anno,  e  forão-se  ás  escondidas 
dos  Padres  quantidade  de  índios  das  aldeãs  de  Piratininga  a  hum  lugar 
])or  nome  Jaraibatígba,  aonde  tinhão  jH-eparado  grandes  vinhos  pêra  brin- 
darem sobre  as  carnes  de  hum  Tapuya,  que  havião  de  malar,  e  comer  em 
terreiro.  Obrarão  seu  intento  livremente,  porque  ficavão  muito  distantes 
dos  Padres  :  porém  voltando  não  se  acharão  tão  folgados;  porque  o  Padre 
Nóbrega  revestido  da  ira  do  zelo  de  S.  Paulo,  depois  de  i-eprehender  gra- 
vemente o  atrevimento  em  hom(!ns  já  Christãos,  os  mais  d'elles,  lhes  deu 
penitencias  mui  graves;  e  entre  eilas,  (luc  não  entrassem  na  igreja  até  não 
irem  todos  disciplinados  de  mão  commum  (como  o  foi'ão  em  suas  festas 
abomináveis)  pedindo  i)erdão  ao  Senhor,  (jue  tinhão  olíi.-ndido.  Quem  vira 
o  arrependimento  destes  Índios,  e  a  facilidade  com  que  aceitáiíio  as  [)e- 


lio  LIVRO  I  DA  CIIUONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

nilencias,  diria,  que  não  havia  gcnle  mais  apta  pêra  o  reino  de  Deos.  Po- 
rão todos  sem  repugnância  alguma,  disciplinando-se :  liião  diante  d'elles 
seus  filhos  canlando-lhes  as  Ladainhas,  e  Psaimo  Misererc :  e  depois  de 
feita  a  penitencia,  e  reconciliados  á  antigua  graça  dos  Padres,  voltarão  logo 
ao  vomito. 

197  Não  tinhão  passado  muitos  dias,  quando  indo  estes  mesmos  á 
guerra,  tomarão  n"ella  hum  Goayaná  contrario;  e  voltando-se  com  elle  pêra 
a  aldeã,  convidados  parece  de  suas  boas  carnes,  determinarão  fazer  o  mes- 
mo que  tinhão  feito  em  Jaraihatigba :  e  o  que  he  mais  que  pêra  prova,  que 
era  a  causa  publica,  o  próprio  Principal  já  Christão,  por  nome  Martim  Af- 
fonso  de  Mello,  mandou  alimpar  o  terreiro  defronte  das  casas  dos  Padres, 
com  tal  resolução,  festa,  e  alarido,  como  se  em  seu  sertão  estiverão  (que 
parece  não  ficão  em  si  n^estes  casos,  ou  arrebatados  do  ódio  do  inimigo, 
ou  do  amor  da  carne  humana,  ou  do  appetite  da  honra,  que  cuidão  ganlião 
em  semelhante  acto).  Já  chegava  a  ser  preso  em  cordas  o  pobre  Goayaná, 
já  corrião  os  brindes,  já  se  aprestavão  as  velhas,  repartidoras  que  havião 
de  ser  das  carnes  do  triste  padecente :  prevenião  fogo,  lenha,  panelas  em 
que  cozel-as:  já  finalmente  se  enfeitava  aquelle  valente  triumphador,  que 
havia  de  ser  obrador  de  tão  illustre  feito.  Quando  n'este  comenos  sentio  o 
descomedido  e  arrogante  Principal  a  força  do  espirito  de  Nóbrega:  o  qual, 
depois  de  tentados  os  meios  de  brandura  sem  effeito,  mandou  Religiosos 
resolutos,  que  quebrarão  as  cordas,  largarão  o  preso,  afugentarão  as  ve- 
lhas, desfizerão  o  fogo,  quebrarão  as  panelas,  e  tallias  de  vinho;  e  o  que 
mais  espanta,  senhoreárão-se  da  própria  maça,  ou  espada,  com  que  costu- 
mão  esgrimir,  ferir,  e  matar  n'esta3  occasiões;  e  he  entre  elles-o  maior 
aggravo.  Aqui  se  deo  por  afrontado  o  bom  Principal  Martim  Affonso:  gri- 
tou, assoviou,  bateo  o  arco,  e  o  pé,  appellidou  os  seus,  e  ameaçou  que 
lançaria  de  suas  terras  gente  que  não  deixava  desafrontar-se  hum  Princi- 
pal de  seus  inimigos.  Pretendeo  tornar  ao  intento;  e  em  lugar  da  maça, 
ou  espada;  houve  huma  fouce  ás  mãos,  e  quiz  obrar  com  ella  a  morte, 
que  com  a  espada  não  podia:  porém  foi-lhe  tirada  com  tal  industria,  que 
ficou  frustrado  seu  intento,  e  o  Goayaná  livre.  E  o  fim  mais  espantoso  foi, 
cpie  quando  se  podia  esperar  de  hum  Principal  aggravado,  e  vassallos  tão 
inconstantes,  hum  grande  desatino;  posto  distante  de  todos  elles  Nóbrega, 
lhes  estranhou  com  tal  resolução,  e  espirito  a  fealdade  do  deliíto  que  com- 
metião  homens  já  da  Igreja  de  Deos,  que  voltando  todos  as  costas  se  forão 
como  envergonhados  meter  em  suas  casas;  e  passado  o  furor,  e  reprehen- 


DO  ESTADO  DO  BIL\.SIL  (ANNO  DE    looo)  III 

dido  também  o  Principal  de  sua  sogra,  c  mulher,  índias  Christãas,  e  de 
bom  respeito,  tornou  em  si  elle,  e  os  demais  caiiirão  no  mal  que  íizerão, 
c  forão  lançar-se  aos  pés  dos  Padres  a  pedir-Uies  perdão  de  sua  ignorância. 

198    Trazia  o  Padre  No])rega  tempo  havia  era  seu  peito  (como  já  tocá- 
mos) grandes  fervores  de  ir  assentar  sua  residência  com  alguns  compa- 
nheiros entre  os  índios  Carijós,  que  habitavão  a  mór  parte  da  costa  maritima 
até  o  Rio  da  Prata,  e  era  grande  multidão  de  gente  accommodada  pêra  a 
Fé;  e  cercada  de  outras  nações,  das  quaes  todas  se  esperava  grande  co- 
lheita. Estes  pensamentos  revolvia  em  séu  entendimento,  quando  chegarão 
Embaixadores  de  todas  aquellas  partes  do  Paraguai,  e  Rio  da  Prata,  onde 
por  fama  era  mui  conhecido  o  zelo  de  Nóbrega,  e  de  seus  companheiros 
como  de  homens  santos:  e  pedião  que  quizesse  ir,  ou  mandar  alguns  dos 
seus  a  ensinar-lhes  o  caminho  da  verdade.  Vinha  entre  os  mais  índios  hum 
grande  Principal  já  Ghristão,  por  nome  António  de  Leiva,  cujos  desejos  de 
levar  os  Padres  erão  tão  grandes,  que  depois  de  atravessar  com  muitos 
trabalhos  sertões  de  duzentas  legoas  com  seus  vassallos,  dizia,  que  ou  ha- 
vião  de  ir  com  eUe  os  Padres,  ou  elle  com  todos  os  seus  liavia  de  ficar 
entre  elles.  Dava  por  razão,  que  todas  as  nações  d'aquellas  suas  partes  es- 
tavão  compromettidas  n'elle,  e  seria  afronta  sua  tornar  com  mãos  lavadas: 
e  que  se  os  Padres  fossem  com  elle,  todos  havião  de  ouvir  sua  doutrina, 
e  sem  elles  ficavão  sem  remédio  de  quem  lhes  pregasse  desenganadamen- 
te,  e  fora  de  cobiça.  Facilitava  a  petição  do  Principal,  outra  occasião  op- 
portuna  de  serviço  de  Deos:  porque  pretendião  passar  poios  mesmos  ser- 
tões ao  Rio  da  Prata  parte  da-juelles  Castelhanos,  que  o  Padre  Leonardo^ 
Nunes  de  boa  memoria  tinlia  trazido,  na  forma  que  dissemos,  d'entre  o 
Gentio  dos  Patos,  e  não  poderão  ir  com  os  primeiros.  Pt.'dião  estes  agora 
ao  Padre  Nóbrega,  quizesse  mandar-lhes  dar  escolta  por  alguns  Religiosos 
lingoas,  que  franqueassem  a  passagem  entre  as  nações  por  onde  havião  de 
passar,  que  só  aos  Padres  conhecião,  e  respeitavão. 

190  Todas  estas  razoes  erão  settas  de  fogo,  que  incendião  em  chari- 
dade  o  coração  de  N(jbrega :  i)or  todas  ellas  esteve  resoluto  a  partir-se,  e 
a  ponto  já  de  embarcar-se  com  alguns  companheiros  em  canoa  pelo  rio 
abaixo,  que  retalhando  a([uelle  vasto  sertão,  vai  a  desembocar  no  rio  Pa- 
raguai, e  da  Prata.  Porém  o  Ceo  traçava  cousas  diversas,  e  foi  servido  que 
no  í)roprio  dia  15  de  Maio  de  itròo  em  que  havia  de  partir,  chegasse  nova 
que  liniia  aportado  á  villa  de  S.  Vicente  o  Padre  Luis  da  Gram  seu  Golla- 
teral,  i)oi'  (juem  esperava.  E  foi  ordem  parece  do  Ceo ;  porque  n'esla  de- 


112  LIVRO  I  DA  CimOMCA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

mora  leve  lugar  clc  saber  em  como  os  Tupis,  nação  bellicosa,  e  pela  qual 
de  força  liavião  de  passar,  estavão  em  guerra,  e  impedião  o  caminho  :  e 
não  era  prudência  assegurar  a  passagem  aos  que  lha  pedião,  nem  as  pró- 
prias pessoas  ifesta  occasião.  Pelo  que  houve  de  ficar  (que  onde  o  Ceo 
não  favorece,  as  traças  dos  homens  são  nenhumas). 

200  Impedirão-se  os  fervores  de  Nobi-ega,  porém  não  se  impedirão  os 
do  Padre  Luis  da  Gram.  Poucos  dias  havia  que  era  chegado,  e  parecia-lhe 
que  gastava  o  tempo  debalde.  Trattou  com  o  Padre  Nóbrega  o  animo  que 
trazia  de  se  empregar  com  os  índios:  foi  fácil  concordarem  tão  semelhan- 
tes ânimos.  Penetrou  logo  o  sertão,  levando  por  companheiro  o  Irmão  Ma- 
noel de  Chaves,  perito  na  lingoa  do  Brasil,  com  intento  de  fazer  residência 
em  liuma  grande  povoação  de  índios,  em  que  parecia  poderia  satisfazer  seu 
desejo,  e  fazer  muito  fruto  nas  almas.  Porém  este  intento  ficou  frustrado; 
porque  ardia  em  guerra  esta  gente,  e  trattava  de  outros  cuidados.  Não  fi- 
cou comtudo  frustrado  o  trabalho  de  tão  grande  caminho,  a  pé,  e  sem  pre- 
venção de  viatico,  mais  que  o  que  davão  os  campos,  e  rios  que  passavão. 

201  Frustrada  esta,  mudou  a  empresa  a  outra  povoação  não  menos  po- 
pulosa, que  estava  em  paz.  Ac[ui  foi  recebido  com  igual  alegria  sua,  e  dos 
índios.  Propoz-lhes  pratica  da  outra  vida,  dos  bens,  e  males  que  esperamos, 
e  tememos,  e  da  necessidade  que  tinhão  da  doutrina  da  Fé  pêra  salvar-se. 
Vierão  facilmente  em  tudo,  fizerão  Igreja,  e  n'ella  lhes  administrava  os  sa- 
cramentos, e  ensinava  a  doutrina  duas  vezes  no  dia,  e  todas  as  noites  (tempo 
mais  a  propósito  entre  elles)  sabia  o  Padre,  e  hum  menino  com  liuma  cam- 
painha diante  fazendo  sinal,  e  corria  as  casas  da  aldeã,  ensinando  em  alta 
"voz  as  orações  três  vezes  em  cada  huma  delias :  traça  com  que  ficarão  cathe- 

quizados  em  breve  tempo,  e  voarão  ao  Ceo  muitas  almas,  assi  de  innocen- 
tes,  como  de  adultos;  trocando  estes  com  gran  facilidade  seus  antiguos 
costumes,  de  muitas  mulheres,  excessos  de  vinhos,  e  mais  ritos  genlilicos. 
Foi  grande  numero  o  dos  que  acabarão  a  vida  bautizados,  e  com  grandes 
esperanças  do  fructo  da  divina  graça ;  e  o  que  mais  andava  por  espanto 
era,  que  além  de  em  breve  tempo  forão  todos  os  desta  aldeã  Christãos,  e 
dos  melhores  daquellas  partes,  jamais  hião  á  guerra,  sem  que  primeiro 
confessassem,  e  commungassem ;  e  nunca  nella  forão  vencidos. 

202  No  fim  d'este  presente  anno  determinou  o  Padre  Nóbrega,  com 
conselho  do  Padre  Luis  da  Gram,  e  mais  adjuntos  seus,  formar  em  per- 
feito Collegio  o  que  só  era  inchoado  cm  Piratininga,  pelas  razões  que  já 
apontámos,  de  ser  o  lugar  o  coração  da  gentilidade  daquella  Capitania, 


DO  ESTADO  DO  DUASIL  (ANXO  DE    1555)  113 

donde  mais  facilmente  podião  acudir  a  grande  multidão  de  gentio,  que  ha- 
bitava aquellcs  arredores :  e  porque  era  mais  aljundante  a  terra  pêra  se- 
gundo a  pobreza  daqueiles  tempos  passarem  a  vida  humana.  E  teve  prin- 
cipio a  execução  desta  solemnidade  nos  primeiros  de  Janeiro  do  anno  se- 
guinte de  Í55C.  E  este  foi  o  primeiro  CoUegio  formado  que  teve  aProvin- 
cia  do  Brasil.  Já  neste  tempo  tinhão  quasi  acabado  as  casas,  e  Igreja  de 
taipa  de  pilão,  e  não  com  pequeno  suor  dos  nossos  estudantes,  que  pêra 
a  obra  trazião  ás  costas  os  cestos  de  terra  e  potes  de  agoa,  no  tempo  que 
podião  poupar  de  seu  estudo.  Notavelmente  luzio  aqui  o  trabalho  do  bom 
Padre  Alfonso  Braz,  que  foi  o  mestre,  e  juntamente  obreiro,  assi  das  tai- 
pas, como  da  cari)intaria.  Com  esta  ultima  resolução  se  accommodárão 
Classes  mais  em  forma,  pêra  ler,  escrever,  e  latim :  e  applicárão-se  a  este 
Coljegio  os  poucos  bens  de  raiz  que  possuía  a  Casa  de  S.  Vicente,  ficando 
esta  vivendo  de  esmolas  somente. 

203  Considerando  o  Padre  Nóbrega  o  zelo,  e  espirito  do  Padre  Gram 
seu  Collateral,  e  como  com  sua  presença  ficavão  amparadas  as  cousas  de 
S.  Vicente,  tratíou  de  voltar  á  Bahia,  e  visitar  a  conversão  destas  partes, 
que  necessitavão  de  ol)reiros,  e  trazer  comsigo  alguns,  especialmente  lin- 
goas  pêra  as  aldeãs.  Communica  o  intento  ao  Padre  Gram,  e  dispõe  via- 
gem pêra  o  principio  do  anno  seguinte,  onde  o  iremos  esperar. 

204  Na  Casa  da  villa  do  Esi)irito  Santo  perseverava  o  Padre  Braz  Lou- 
renço com  a  mesma  satisfação,  trabalho,  e  zelo,  que  nos  annos  passados. 
Era  por  extremo  desejoso  da  conversão  dos  índios,  e  offereceo-se-lhe  neste 
tempo  huma  boa  occasião.  Teve  noticia  que  nas  partes  do  Rio  de  Janeiro 
nndavão  em  guerras  cruéis  duas  nações  delles,  chamados  huns  Temimínós, 
outros  Tamoyos,  (}ue  se  destruião,  e  comião  huns  aos  outros :  a[)rovcitan- 
do-se  da  occasião  (ijor  industria  lambem,  e  autoridade  do  Padre  Luis  da  Gram) 
trattou  com  o  Senhor,  e  Governador  da  terra,  que  então  era  Vasco  Fer- 
nandes Coutinho,  que  offerecesse  agasalhado  ao  Principal  dos  Temiminós, 
(jue  estava  de  peior  partido,  e  se  chamava  Maracayaguaçú,  que  vem  a  di- 
zer em  nossa  linguagem  o  grande  Gatto.  Fez-se  a  embaixada,  propondo- 
se-lhe  prudentemente,  não  sua  menor  força  (porque  também  em  peitos 
tão  agrestes  entrão  desconfianças)  se  não  os  inconvenientes,  e  moléstia  da 
guerra;  e  que  supposto  qua  já  em  outras  outras  occasiões  linha  dado  mos- 
tras do  valor  de  seus  arcos,  quizesse  agora  descansar,  e  tratar  de  vida 
mais  í|MÍ(!la :  e  que  pcra  isso  lhe  olíerecia  suas  terras,  favor,  e  anipai-o,  e 
o  dos  Padres  da  (j>miinnhia.  (|ue  lambem  desejavão  exercitar  com  elles  o 

VOL.  1  8 


114  LIVRO  I  DA  CnnOMCA  DA  COMPANHIA  DE  JESÚ 

que  com  todas  as  nações  do  Brasil.  Aceitou  o  grande  Gatto  o  oíTerecimen- 
to :  mandou  Vasco  Fcrruindcs  Coutinlio  embarcações,  o  veio  com  todos  seus 
vassallos  recolher-sc  ao  amparo  de  seu  Ijenigno  protector,  e  dos  Padres 
que  já  por  fama  conliecião.  Desta  gente  se  formou  huma  populosa  aldeã, 
onde  pelo  tempo  em  diante  liouve  grande  conversão  de  Chrislãos :  e  seu 
Principal,  o  grande  Gatto,  alem  de  perfeito  Christão,  foi  homem  mui  pru- 
dente em  cousas  da  paz,  e  da  guerra,  e  em  seu  tratto  pouco  differente  de 
quakpier  bem  governado  Portuguez. 

205  Á  fama  d"estes  índios  Temiminós,  e  do  fruto  que  com  elles  obra- 
vão  os  Padres,  descerão  de  seus  sertões  grandes  levas  de  gente ;  e  enti-e 
estas  o  affamado  Pirá  Obyg,  que  vai  o  mesmo,  que  o  Peixe  verde,  com 
grandes  aldeãs  de  que  era  Principal.  E  logo  da  parte  de  Porto  seguro  des- 
cerão muitos  d"outra  nação  dos  Tupinacpiis,  e  fizerão  todos  grossas  povoa- 
ções ;  a  cuja  multidão  forão  acudindo  necessários  obreiros  da  Companliia, 
que  ganliárão  depois  muitas  atoas,  como  a  historia  a  seus  tempos  dirá.  E 
forão  também  de  grande  adjutorio  estas  aldeãs  na  conquista  que  depois  in- 
tentamos na  enseada  do  Rio  de  Janeiro,  indo  a  ella  em  companliia  do  Go- 
vernador Mem  de  Sá.  e  seu  sobrinho  Eslacio  de  Sá. 


LiVeO  SEGUNDO 


DA 


CHRONICA 

DA  COMPANHIA  DE  JESU 
DO  ESTADO  DO  BRASIL 


■^Mf*'^— 


Conlmuão  os  trabalhos  do  Padre  ManoeÀ  da  Nóbrega^  c  seus  com- 
panheiros, ja  mais  em  numero,  com  grande  fruto  na  cultura  das  al- 
mas, desde  o  anno  de  1555  alú  o  de  15G2.  Entre  os  mais  obreiros 
avulta  o  Irmão  Joseph  de  Anchieta,  prodigioso ;  e  o  Padre  Luis  da 
(iram,  segundo  Provincial  do  Brasil.  Dá-se  noticia  das  guerras  dos 
Portugueses  contra  Franceses  na  enseada  do  Rio  de  Janeiro.  Da  fun- 
dação daquella  Cidade^  e  CoUegio  delia.  E  tocão-se  os  trânsitos  a  me- 
lhor vida  de  nosso  Santo  Patriarcla  Jgnacio  de  Loyola,  d^el-fíei  Dom 
João  6  terceiro,  c  dos  Irmiios  Dertholameu  Adam,  c  Mathcus  No- 
gueira. 


HG  LIVRO  II  DA  CimOMCA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 


1  Na  cidade  da  Bahia  andava  neste  tempo  occupado  o  Governador  Dom 
Duarte  da  Costa  em  guerras  com  todos  os  índios.  E  a  occasião  foi  o  ale- 
vantamento  de  alguns  Principaes  descontentes.  Erão  estes  poderosos  em  ar- 
cos, e  soíTrião  mal  a  soberania  dos  Portugueses,  que  cada  dia  entravão  pela 
terra  dentro  com  suas  fazendas,  e  liião  fazendo-se  senhores  até  do  sertão. 
E  como  era  gente  valente  a  dos  Tupinambas,  victoriosos  em  muitas  occa- 
siões,  e  confederados  pêra  este  effeito  com  as  nações  dos  Tapuyas  mais  in- 
teriores ;  feitos  em  hum  corpo,  confiados  na  multidão  de  suas  frechas,  fa- 
zendo menos  caso  de  antiguos  concertos,  levantarão-se,  e  pondo-se  em  ar- 
mas, fizerão  assaltos  em  diversas  partes,  matando,  e  roubando  nellas,  o 
pelos  caminhos  tudo  quanto  aclíavão,  com  confusão  desordenada  dos  mo- 
radores todos,  e  não  menos  detrimento  das  aldeãs  dos  Padres.  Derão  que 
cuidar  no  principio  ao  Governador ;  porque  as  queixas  dos  oííendidos  se 
exageravão :  os  da  cidade  cansados  ainda  das  guerras  passadas,  fazia-se-lhes 
de  mal  tornar  a  ellas;  e  persuadião  a  paz,  ainda  com  condições  desiguaes. 
Dizião  que  os  tempos  não  eram  todos  huns,  e  que  os  aprestos  primeiros 
erão  já  consumidos,  as  despezas  deminuidas,  a  gente  pouca,  e  desigual  a 
tão  pujante  inimigo :  e  sobre  tudo,  que  devia  arrecear-se  a  commum  in- 
constância da  fortuna;  e  que  vencendo  nós  os  presentes,  não  íicavão  por 
isso  vencidos  os  inimigos  todos :  e  vencendo  elles  a  nós,  ficava  arriscado 
todo  o  Estado  do  Brasil,  que  dependia  mais  da  fama,  que  da  potencia  da  Bahia. 

2  Podião  quebrar  o  coração  estas  desconfianças  a  outro,  que  o  de  D. 
Duarte  não  fora :  porém  era  este  fidalgo  dotado  de  grande  prudência,  ex- 
periência, e  constância  de  animo :  e  aos  que  exageravão  a  multidão  de  fre- 
chas do  inimigo,  respondia  o  que  lá  o  outro  celebre  Capitão,  que  sendo 
tantas  que  cobrissem  o  Sol,  á  sombra  delias  pelejaríamos  mais  desencal- 
mados :  á  falta  de  aprestos  e  soldados,  dizia,  que  poucos  homens  de  fogo 
bastavão  pêra  queimar  a  frecharia  toda  do  Brasil:  e  á  falta  de  despesas, 
dizia,  que  não  erão  muitas  necessárias;  porque  esperava  comer  dos  semea- 
dos das  terras  dos  bárbaros.  Mas  chegando  mais  ao  vivo,  acrescentava,  que 
no  caso  presente  a  guerra  vinha  a  ser  forçosa,  não  voluntária ;  porque  era 
força  castigar  a  rebeldia  de  vassallos  levantados,  sob  pena  de  injuria,  e  afron- 
ta própria.  Fez-se  emílm  a  guerra ;  porém  com  tal  prudência,  que  se  visse 
o  intento  de  castigar,  e  não  podesse  ver-se  perigo  de  sermos  vencidos.  ]Mon- 
tou  muito  pêra  este  efíeito  a  boa  industria  do  Capitão  Álvaro  da  Costa,  fi- 
lho em  tudo  da  prudência,  c  constância  do  pai. 


1)0  ESTADO  DO  BRASIL  (ANNO  DE  1356)  117 

n  Forão  vários  os  successos  da  guerra:  não  he  de  meu  instituto  contal- 
os  1)01"  extenso.  Digo  S()mente,  que  teve  nella  mais  lugar  nosso  esforço, 
que  nossa  Ibrea:  com  poucos  acommetiamos  a  muitos;  mas  como  erão  nos- 
sas armas  avantejadas,  cursavão  mais  que  suas  freclias,  e  contentavão-se  os 
nossos  com  derril^ar  aquelles  que  de  mais  a  mais  alcançavão,  e  desistião 
(los  de  maior  distancia.  E  nesta  íorma  ficavão  sempre  vencedores,  sempre 
temidos,  não  perdião  gente,  e  vinlião  a  ter  o  mesmo  effeito,  ainda  que  mais 
detençosa  a  guerra.  Porém  como  era  grande  o  numero  dos  contrários,  usou 
o  Governador  de  hum  ardil  de  muita  importância.  Fingio  que  trattava  con- 
certos com  Sí)  a  nação  dos  Tupinambcàs:  e  como  as  nações  dos  Tapuyas  se 
não  confiavão  d'esta  gente,  por  ter  sido  seus  inimigos  declarados,  e  só  se 
unirão  nesta  occasião  a  fim  de  evitar  o  inimigo  commum;  facilmente  deu 
credito  ao  engano,  e  concebeo,  que  querião  fazer-lhes  treição,  lançar-se 
com  os  nossos,  e  desamparal-os  a  elles;  e  foi  o  mesmo  começarem  a  des- 
confiar, que  fugir  pelos  mattos,  deixando  S(3s  os  TupinamLàs.  Aqui  consistio 
nosso  bem;  porque  os  Tupinambàs,  vendo-se  faltos  de  tão  grande  quanti- 
dade de  arcos,  e  que  ou  mais  tarde,  ou  mais  cedo  havião  de  ser  vencidos; 
trattárão  deveras  o  que  fingidamente  cuidarão  os  Tapuyas:  e  os  mais  ad- 
vertidos pedirão  pazes,  e  se  lhes  concederão:  os  que  as  não  pedirão  já 
menos  fortes  forão  vencidos,  parte  mortos,  e  parte  cattivos;  e  erão  estes 
muitos  milhares:  e  assi  teve  fim  esta  molesta,  mas  bem  afortunada  guerra, 
no  mez  de  Maio  do  anno  do  Senhor  de  1550. 

4  Neste  comenos  chegou  á  Bahia  o  Padre  Nol)rega,  que  o  anno  passado 
deixámos  em  S.  Vicente  trattando  da  viagem,  e  se  aproveitou  da  monção 
da  costa.  Trouxe  comsigo  quatro  companheiros  estremados  lingoas  dos  Índios: 
o  Padre  Francjsco  Pires,  c  os  Irmãos  António  Rodrigues,  António  de  Sou- 
sa, o  Fabiano  de  Lucena.  Recébeo-o  aquella  sua  Casa  com  alegre  rosto; 
ponjue  tornava  a  ver  seu  Provincial,  o  numero  de  seus  sujeitos  augmen- 
tado,  e  o  credito  da  lingoa  brasílica  pêra  as  aldeãs  restaurado.  Não  foi  ne- 
cessário muito  descanso  áfiuelle,  que  todo  seu  espirito  e  vida  tinha  dédi- 
cadí)  á  salvação  das  almas.  Foi  informado  do  successo  da  guerra  passada 
dos  índios,  que  castigara,  e  sujeitara  com  animo  chrislão  varonil  D.  Duar- 
t(í  da  Costa:  pareceo-llie  disposta  a  sasão,  e  trattou  logo  com  o  Gover- 
nador, que  de  si  era  pio,  e  z(3loso  do  bem  da  Christandade,  que  reduzisse 
ás  aldeãs  os  índios  novamente  sujeitos,  assi  os  já  Cliristãos,  como  os  que 
o  ftnitendião  ser,  em  lugares  acommodados,  onde  os  Padres  podessem  dou- 
trinal-os,  e  estar  com  elles  de  assento;  fazendo-lhes  Igrejas  capazes  (porque 


H8  LIVRO  II  DA  CUROMCA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

as  que  aíé  finlão  linliãn,  erão  Capellas  de  visila  somente.)  Nfío  foi  necessá- 
ria muita  força:  a  tudo  deu  ordem  o  Governador,  e  com  effeilo  ijrevemente 
se  formarão  muitas  aldeãs,  e  se  poserão  Religiosos  nellas. 

5  A  primeira  aldeã  cjue  assentarão  os  Padres,  foi  junto  ao  Rio  verme- 
lho :  residirão  nella  os  Padres,  António  Rodrigues,  ordenado  de  próximo, 
e  Leonardo  do  Valle,  ambos  peritos  na  lingoa  do  Brasil  (posto  que  esta 
gente  se  mudou  depois  pelo  tempo  pêra  outra  aldeã  de  S.  Paulo.)  A  se- 
gunda chamada  de  S.  Sebastião,  assentarão  por  então  n'outro  sitio  meia  legoa 
da  cidade;  e  logo  por  boas  razões  ella,  e  outras  se  unirão  em  huma,  inti- 
tulada S.  Tiago.  A  terceira  foi  a  do  Espirito  santo,  não  muito  longe 
do  rio  de  Joanne,  que  hoje  ainda  pei^severa,  mas  não  naquella  antigua  gran- 
deza, que  era  de  mais  de  mil  arcos.  A  quarta  foi  a  de  S.  João,  no  sitio, 
que  depois  veio  a  chamar-se  Tapera  de  Boyrangaoba.  Todas  estas  quatro 
aldeãs  presidiou  Nóbrega  com  Padres  e  Irmãos  residentes,  pêra  melhor 
ensino  dos  índios.  E  huma  das  cousas,  que  muito  alegrou  ao  novo  Visita- 
dor foi,  não  achar  já  por  estas  aldeãs  entre  os  Christãos  mais  antiguos  o 
infame  abuso  da  carne  humana. 

6  D'este  tenpo  em  diante  se  começarão  a  meter  nas  aldeãs  Escolas  de 
meninos,  de  ler,  escrever,  cantar,  c  doutrina  christãa,  com  a  mesma  per- 
feição dos  que  estavão  no  Seminário:  de  cujo  aproveitamento  já  dissemos. 
O  modo  de  ensinar,  que  nellas  se  usava,  e  ainda  hoje  preservera  nas  al- 
deãs do  Brasil  (com  pouca  variedade  em  algumas  delias)  he  o  seguinte. 
Rompendo  a  manhãa,  em  se  ouvindo  pela  aldeã  o  sino  que  tange  á  Missa, 
todos  os  meninos  delia  se  vão  ajuntar  na  Capella  môr  da  Igreja,  aonde  pos- 
tos de  joelhos,  em  coros  iguaes,  entoão  em  voz  alta  louvores  de  Jesu,  e 
da  Virgem;  dizendo  os  de  hum  coro  :  «Bemdito,  e  louvado  seja  o  santís- 
simo nome  de  Jesu:»  e  respondendo  os  do  outro:  «E  o  da  bemaventurada 
Virgem  Maria  mãi  sua  pêra  sempre  Amen:»  e  logo  todos  juntos:  «Gloria  Pa- 
tri,  et  Filio,  et  Spiritui  sanefa,  Amen.  E  nisto  continuão  até  chegar  a  mis- 
sa. Chegada  esta,  a  ouvem  era  silencio ;  e  acabada  ella  (idos  os  mais  índios) 
esperão  elles  no  mesmo  lugar  o  Religioso  que  tem  cuidado  delles,  o  cpial 
lhes  ensina  as  orações  da  doutrina  christãa  em  voz  alta,  e  após  esta  da 
mesma  maneira  os  mysterios  de  nossa  santa  Fé,  em  diálogos  de  pergun- 
tas e  repostas,  compostos  pêra  este  effciío  cm  lingoa  do  Brasil,  da  santís- 
sima Trindade,  criação  do  mundo,  primeiro  liomem.  Encarnação,  Morte,  e 
Paixão,  Resurreição,  e  mais  mysterios  do  Filho  de  Deos,  do  Juizo  univer- 
sal, Limbo,  Purgatório,  Inferno,  Igreja  Catholica,  etc.  E  ficão  tão  destros. 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  ("ANNO  DE   \iJoG)  \\9 

qiip  podem  ensinar,  c  ensinão  com  eíTeito  em  suas  casas  aos  pais,  que  sãu 
mais  rudes  ordinariamente  (supposto  que  também  estes,  e  as  mais  tem 
sua  particular  doutrina  todos  os  dias  santos,  e  domingos  na  mesma  Igreja, 
com  praticas  accommodadas  sobre  ella.)  Acabada  a  Doutrina,  tornão  a  di- 
zer os  meninos  a  coros:  «Louvado  seja  o  santissimo  nome  de  Jesu.»  Respon- 
dem os  outros:  «E  o  da  santissima  Virgem  Maria  mãi  sua  pêra  sempre: 
Amen. »  E  logo  esperão  que  os  mandem,  e  vão  todos  juntos  a  suas  escolas, 
a  ler,  escrever,  ou  cantar:  outros  a  instrumentas  músicos,  segundo  o 
talento  de  cada  hum:  e  saem  no  canto,  e  instrumentos  tão  destros,  que 
ajudão  a  beneficiar  as  missas,  e  procissões  de  suas  Igrejas,  com  a  mesma 
perfeição  que  os  Portugueses.  (A  cuja  vista  aclíando-se  presente  hum  Bis- 
po, não  pôde  ter  as  lagrimas,  considerando  a  capacidade  que  nunca  ima- 
ginara em  taes  sujeitos.)  Nestas  escolas  gastão  duas  horas  da  manhãa,  e 
outros  duas  horas  da  tarde,  tornando-se-lhes  a  tanger  o  sino,  a  que  pon- 
tualmente acodem. 

7  Tangendo  ás  Ave  Marias  da  noite,  tornão-se  ajuntar  aporta  da  Igreja, 
e  darpi  formão  procissão  com  cruz  levantada  diante,  e  postos  em  ordem 
vão  cantando  pelas  ruas  em  alta  voz  cantigas  santas  em  sualingoa,  até  che- 
garem a  huma  Cruz  destinada,  a  cujo  pé  postos  de  joelhos  encomendão  as 
almas  do  Purgatório  na  forma  seguinte,  cm  sua  lingoa  própria.  «Fieis  Chris- 
tãos,  amigos  de  Jesu  Chrisío,  lembrai-vos  das  almas,  que  estão  penando 
no  fogo  do  Purgatório :  ajudai-as  com  hum  Padre  nosso,  e  Ave  Maria,  pêra 
(]ue  Deos  as  tire  das  penas  que  padecem.»  E  respondem  todos:  «Amen». 
Kézão  em  alta  voz  o  Padre  nosso,  e  Ave  Maria,  e  voltam  com  a  mesma 
procissão,  o  canto  até  a  portaria  dos  Padres  onde  por  fim  entoão,  e  res- 
pondem como  assima :  «Bcradito  e  louvado  seja  o  santissimo  nome  de  Je- 
su, etc.»  esperâo  que  os  mandem,  e  mandados  se  vão  a  suas  casas. 

8  Este  he  o  exercício  dos  meninos :  o  dos  Padres  he  o  que  se  segue. 
Bautizão  os  innocentes,  cathequizão  os  adultos,  administrão-lhes  o  sacra- 
mento de  Matrimonio  na  Lei  da  graça,  e  o  da  Eucharislia  aos  que  são  ca- 
[lazes :  ensinão-lhes  a  boa  intelligencia,  observância,  c  perfeição  de  todas 

.  estas  cousas.  Defendem  sua  liLerdade,  curão  suas  rloenças,  prepárão-os 
pêra  b(ím  nioi'rer,  sepulífto  em  suas  Igrejas  os  (jue  morrem,  com  asolem- 
1  lidado  de  enterro  dos  mais  pontuaes  Portugueses,  com  tumba,  procissão, 
cruzes,  velas  acesas,  Ojnfrarias.  E  sobre  tudo  discorrem,  e  penetrão  os 
sertões,  prégando-lhes  o  caminho  do  Ceo,  trazend'.»-os,  e  inlroduziíido-os 
na  santa  Igreja. 


120  LIVRO  II  DA  CimOXICA  DA  CO.^^ÍPANHIA  DE  JESU 

9  IIg  bem  que  digamos  também  o  que  os  índios  fazem.  lie  esta  gente 
tanto  mais  íiicil  em  aceitar  a  Fé  do  vei^dadeiro  Deos,  quanto  menos  empe- 
nhada está  com  os  falsos ;  porque  nenhum  conhece  ou  ama,  que  possa  rou- 
bar-lhe  a  affeirão.  Seus  Ídolos  são  os  ritos  avessos  de  sua  gentilidade,  mul- 
tidão de  mulheres,  vinhos,  ódios,  agouros,  feitiçarias,  e  gula  de  carne  hu- 
mana: vencidos  estes  nenhuma  repugnância  lhes  fica  pêra  cousas  da  Fé: 
e  porque  he  tão  admirável  a  magestade,  e  consonância  das  obras  do  ver- 
dadeiro Deos,  que  ellas  mesmas  estão  pregando  ao  entendimento  mais  ru- 
de (quando  a  affeição  não  está  impedida)  que  são  dignas  de  toda  a  cren- 
ça. Assi  que  vencidas  as  difficuldades  dos  ritos  he  muito  pêra  louvar  a 
Deos,  ver  nesta  gente  o  cuidado  com  que  os  já  Christãos,  acodem  a  cele- 
brar as  Festas,  e  Officios  divinos.  São  afeiçoadíssimos  a  musica ;  e  os  que 
são  escolhidos  pêra  Cantores  da  Igreja,  prezão-se  muito  do  oíTicio,  e  gas- 
tão  os  dias,  e  as  noites  em  aprender,  e  ensinar  outros.  Saem  destros  em 
todos  os  instrumentos  músicos,  charamelas,  frautas,  trombetas,  baixões, 
cornetas,  e  fagotes :  com  elles  beneficião  em  canto  de  órgão  Vésperas,  Com- 
pletas, Missas,  Procissões,  tão  solemnes  como  entre  os  Portugueses. 

10  Prezão-se  de  que  andem  suas  igrejas  bem  adornadas  de  paramen- 
tos, cruzes,  alampadas.  Confrarias,  e  tudo  o  mais  do  culto  divino  das  ci- 
dades. Glorião-se  de  serem  os  primeiros  que  contribuão  perã  estas  peças, 
por  mais  qne  empenhem  pêra  isso  seu  suor,  e  trabalho.  Será  entre  elles 
falta  mui  notada,  possuírem  cousa  de  preço,  sem  que  repartão  com  sua 
Igreja.  Em  certas  aldeãs  visinhas  ao  mar,  sabiam  ao  mar  em  tempos  de 
tormenta,  pedaços  de  âmbar,  que  os  Índios  achavão :  de  raro  se  sabe,  que 
não  levasse  o  achado  a  oíierecer  á  Igreja,  deixando  pêra  ella  alguma  parte. 
Sei  eu  que  com  huma  dadiva  destas  se  fez  huma  boa  custodia  de  prata 
dourada,,  frontaes  ricos,  e  outras  peças  do  divino  culto,  em  certa  aldeã.  Nos 
dias  de  Oragos,  e  Festas,  ornão  com  grande  curiosidade  suas  Igrejas  com 
enramados  aprazáveis  de  ervas,  e  flores,  que  talvez  excedem  as  sedas :  traba- 
lham todos  á  porfia;  e  não  ha  algum  por  mais  respeitado  c[ue  seja,  que  em  seme- 
lhante ocasião  não  canse.  Será  tido  por  sacrilégio  entre  elles,  deixar  de  acudir 
a  huma  destas  festas,  por  mais  distantes  que  estejão.  He  pêra  agradecer 
ver  partir  carregadas  as  pobres  índias  com  os  filhos  aos  peitos,  e  o  cesto 
da  provisão  á  cabeça,  caminho  de  huma,  duas,  e  três  legoas,  pêra  chegar 
na  mesma  manhã  á  Missa,  até  a  qual  (por  mais  tarde  que  cheguem)  não 
hão  de  comer  cousa  alguma.  Os  sabbados  á  tarde  acodem  á  Igreja,  e  can- 
tão devotamente  a  Salve  da  Virgem  Senhora  nossa  em  canto  de  órgão,  com 


DO  ESTADO   DO  BRASIL  (aNNO  DE    looG)  121 

seus  cirios  nas  mííos:  c  todas  ns  segundas  feiras  pela  manliãa  os  Respon- 
sorios  dos  defiinlos,  encomendando  com  o  Sacerdote  suas  almas  a  Deos  ao 
íini  da  Missa.  Da  paixão  de  Christo  são  mui  devotos:  celebrão  seus  passos 
com  sentimento,  fazem  sepulchros  curiosos,  que  muitos  delles  pintão:  to- 
mão  disciplinas  de  sangue  correndo  os  passos  na  semana  santa :  até  os  fi- 
llios  de  pequena  idade  levão  nas  procissões  suas  cruzes  ás  costas.  São  so- 
lícitos de  confessar,  e  commungar;  e  envergonhão-sc  muito  entre' os  outros 
os  que  não  tem,  ou  idade  ou  capacidade  pêra  isso :  e  os  que  chegam  a 
commungar,  vão  com  decência,  e  seus  rosários  ao  pescoço.  Dilatava-se  a 
huma  índia  a  communhão:  depois  de  varias  diligencias,  ajuntou  hum  gran- 
de pão  de  cera,  levou-o  ao  Padre  Confessor,  pedindo-lhe  com  grande  ins- 
tancia, e  com  não  menos  simplicidade,  lhe  concedesse  o  commungar :  in- 
dícios de  seus  desejos  grandes.  A  outro  índio  dilatava  o  Padre  a  confissão: 
poz-se  de  joelhos  com  mãos  levantadas,  e  lagrimas  nos  olhos,  dizendo  :  hia 
ao  malto,  e  podia  caliir-lhe  hum  páo  na  cabeça,  ou  mordel-o  huma  cobra, 
e  matal-o,  e  ficar  baldado  o  trabalho  que  com  elle  tinha  tomado,  indo-se 
sua  alma  ao  inferno :  e  soube  dizer  tanto,  que  ficou  com  escrúpulo  o  Pa- 
dre, e  logo  alli  foi  confessado. 

11  No  Collegio  de  Piratininga  cresceo  este  anno  o  trabalho  dos  obrei- 
ros dos  índios:  portpie  estes,  levados  de  sua  natural  inconstância,  e  tam- 
bém da  nec«BSSidade  de  terras  pêra  suas  lavouras,  dividirão-se  do  lugar  em 
que  o  Padre  Nóbrega  os  deixara  junto  ao  Collegio,  em  sette  distintas  po- 
voações, e  todas  distantes ;  das  quaes  supposto  que  acudião  á  Igreja  nas  fes- 
tas do  anno  principaes,  e  quaresmas,  a  suas  praticas,  confissões,  e  com- 
munhões;  não  era  com  tudo  bastante  isso  pêra  sua  cultura,  e  era  força 
multiplicar-se  quasi  as  mesmas  sette  vezes  o  trabalho  dos  Religiosos,  cujo 
espirito  não  sofria  seu  desamparo.  Tinhão,  além  destas  sette  povoações,  ou- 
tra maior  a  que  acudir  distante  duas  legoas:  e  em  distancia  de  três  huma 
villa  de  Portugueses,  que  commummenfe  não  tinhão  outro  Cura,  senão  os 
Padres  da  Companhia,  (jue  a  visitavão  os  domingos,  o  festas,  com  missa, 
pregação,  e  doutrina.  Era  este  trabalho  excessivo,  e  poucos  os  obreiros; 
e  o  que  subia  de  ponto,  que  erão  os  caminhos  aspérrimos,  cheios  de  mal- 
tas, e  de  alagoas,  que  de  força  havião  de  passar  a  pé,  e  descalços,  com 
excessivas  calmas  liumas  vezes,  outras  com  excessos  de  frios,  naquellas 
})artes  mui  rigorosos.  Delles  diz  o  Padre  Joseph  de  Anchieta,  que  d'estcs 
caminhos  andavão  commummenle  com  os  pés  esfolados,  e  escaldados  do 
rigoj-  das  neves,  e  geadas:  e  succedia  a  cada  passo  chamarem  de  -noite  pe- 


122  LIVRO  II  DA  CHRONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

ra  doeiíles  necessitados,  e  acudirem  os  servos  de  Deqs  com  faciíos  acesos 
pelo  meio  das  maltas  cerradas,  tropeçando,  e  cahindo  a  cada  passo  com 
assas  de  perigo.  Palavras  são  de  Anchieta:  e  a  tanto  se  estendia  naquelle 
tempo  o  bojo  da  charidade.  «Era  tão  grande  o  desvelo  (continua  Josepli)  que 
era  força  fazerem  aquelles  bons  obreiros  da  noite  dia  pêra  si;  porque  en- 
tão se  ajuntavão  a  rezar  as  Horas  Canónicas,  que  devião  do  dia;  então  fa- 
zião  suas  praticas  espirituaes;  então  tomavão  disciplina,  e  fazião  todos  os 
mais  actos  de  suas  devações,  e  mortificações,  com  tanto  gosto,  que  não 
sentião  a  falta  do  somno.»  Tudo  lie  do  Padre  Joseph,  que  nas  mesmas  obr^s 
teve  tão  grande  parte. 

Í2  Na  Casa  de  S.  Vicente  meteo  o  Padre  Luis  da  Gram  este  aiino  hum 
novo  modo  de  doutrina  das  cousas  da  Fé,  por  diálogos  de  perguntas,  e 
repostas  (fiue  já  nas  aldeãs  tinha  metido  entre  os  índios)  na  lingoa  bra- 
sílica :  e  como  naquellas  villas  os  mais  dos  homens,  e  mulheres  sabião  esta 
lingoa,  e  este  modo  de  diálogos  he  mui  conforme  ao  costume  natural  do 
fallar  dos  Brasis;  foi  pêra  ver  o  muito  que  contentou  esta  nova  traça  de 
ensinar,  e  o  grande  cuidado  com  que  se  davão  a  aprender:  especialmente 
as  mulheres  mestiças  em  breve  tempo  ficarão  mestras,  e  prezavão-se  de 
ensinar  seus  filhos,  e  escravos  com  a  mesma  doutrina;  e  se  vião  naquellas 
villas  tantas  escolas,  c{uantas  erão  as  casas,  onde  ellas  moravão,  com  mu- 
dança notável  de  costumes,  e  frequência  maior  do  sacramento  da  confis- 
são pela  lingoa  brasílica:  porque  ficando-lhes  impressas  no  entendimento, 
depois  de  estudadas,  as  verdades  da  Fé,  era  força  que  obrigassem  a  von- 
tade com  mais  eírlcacia,^que  ({uando  erão  somente  ouvidas.  Residião  então 
na  Casa  de  S.  Vicente  dous  Sacerdotes:  estes  tinhão  cuidado,  não  só  d'esta 
villa,  mas  t:ímbem  das  outras  circunvizinhas,  onde  não  havia  Clérigos,  e 
só  elles  erão  os  Curas  de  necessidade. 

13  Neste  tempo  chegarão  novas,  que  metorão  em  perturbação  toda  a 
costa,  em  como  naqiiella  enseada,  a  que  os  índios  chamavão  Nhiteroy,  e 
os  Portugueses  Rio  de  Janeiro,  distante  de  S.  Vicente  24  legoas  correndo 
ao  Norte,  tinha  entrado  huma  esquadra  de  náos  francesas,  e  comcçavão  a 
se  fortificar.  Deu  esta  nova  muito  em  que  entender,  assi  a  Portugueses, 
como  a  índios,  e  par  conseguinte  aos  Padres,  que  consideravão  introduzi- 
da guerra,  perturbadora  de  todo  o  bem,  e  do  socego  necessário  pêra  per- 
feita conversão  das  almas.  Na  Capitania  do  Espirito  santo,  tendo  partido 
pêra  Portugal  o  senhor  da  terra  Vasco  Fernandes  Coutinho,  e  deixado  en- 
tregue o  governo  delia  a  D.  Jorge  de  Meneses,  se  levantarão  os  índios  de 


DO   ESTADO  DO  BHASIL  (AN.NO  DE  \i)i)(i)  i^i',', 

diVor.sas  partos  do  sortão,  especialmente  Tnpinaquís,  e  derão  tão  cruéis  as- 
saltos na  terra,  que  destruirão,  e  queimarão  os  engenhos,  e  fazendas,  com 
morte  de  muitos  Portugueses,  e  do  mesmo  D.  Jorge,  eD.  Simão  de Castel- 
branco,  que  lhe  succedco  no  governo ;  e  chegarão  a  por  a  villa  em  tal  a- 
perto,  que  forão  forçados  muitos  moradores  a  despovoal-a,  e  ir  viver  a  ou- 
tros lugares. 

14  Não  posso  deixar  de  contar  aqui  (supposto  que  repugne  a  penna) 
o  successo  mais  triste,  que  até  estes  tempos  virão  as  partes  do  Brasil,  e 
chorarão  os  Portugueses  d'elle.  Foi  este  o  naufrágio,  e  morte  cruel  de  D. 
Pedro  Fernandes  Sardinha,  Bispo  primeiro  d'este  Estado,  e  dos  que  com 
elle  navegavão.  Chegara  oste  grande  Prelado  á  Bahia  de  Todos  os  Santos, 
cabeça  de  sua  diocese,  no  principio  do  anno  de  1352,  e  procedera  com  o 
zelo,  e  aceitação  que  n'aquelle  anno  tocamos :  até  cjue  no  presente  em  que 
imos  (não  sei  se  chamado  do  Ceo,  se  do  Rei :  dizem  alguns,  que  da  me- 
lhoria das  almas)  se  embarcou  pêra  Portugal  em  companliia  de  António 
Cardoso  de  Barros,  Provedor-mór  que  fora  do  Estado,  e  de  outras  pessoas 
nobres,  que  levavão  Airaiilias  de  mulheres,  e  filhos.  Derão  á  vela  nos  pri- 
meiros de  Junho;  e  havendo  navegado  quatorze  dias,  armou-sc  contra  elles 
o  horizonte  com  i"era  tempestade  de  ventos  de  travessia  envoltos  em  escu- 
ridão, trov(3es,  e  relâmpagos;  tão  furiosa,  que  logo  se  derão  por  perdidos; 
porque  distava  perto  a  terra,  e  não  podia  contrastar  a  náo  a  fúria  dos  ma- 
res. Mandou  ferrar  o  piloto  o  panno;  e  quando  qiiizerão  lançar  ferro  ao 
mar  (remédio  único  de  suas  esperanças)  tendo  a  amarra  entre  mãos,  lavou 
o  convés  tal  pancada  de  mar,  que  levou  comsigo  ancoras,  e  amarras,  c 
faltou  pouco  que  não  levasse  os  pobres  navegantes.  A  tudo  se  achava  pre- 
sente o  santo  Prelado,  e  vendo  as  poucas  esperanças  que  restavão  de  vida 
(porque  já  hião  avistando  as  praias,  e  pêra  ellas  levavão  a  náo  como  con- 
jurados agoas,  ventos,  e  mares,  que  batíão  furiosamente  o  costado)  posto 
de  joelhos,  depíjis  de  exclamar  ao  Ceo,  começou  hunia  pratica  aos  compa- 
nheiros, porém  não  acabou;  porque  foi  atalhada  com  confusão  de  vozes,  e 
alaridos  dos  tristes  navegantes,  que  vião  a  náo  ir  descaindo  sobre  hum 
disforme  penedo  que  por  entre  as  nuvens,  e  relâmpagos  então  mal  divisa- 
vão,  mas  logo  conhecerão  ás  claras,  hindo  dar  sobre  elle,  e  fazendo  mise- 
rável naufrágio,  nos  baixos  chamados  de  D.  Francisco;  por  outro  nomo 
enseada  do  porto  dos  Francezes,  altura  ílc  dez  gráos  e  hum  quarto,  entre 
dous  rios,  o  de  S.  Francisco,  e  outro  por  nome  Cururúig,  a  dezeseis  de 
Junho  do  corrente  anno. 


124  LIVRO  II  DA  CHRONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

15  Porém  aqui  (oh  fereza  de  corarôes  liiimanos !)  quando  os  ventos, 
mares,  e  penedos  dcrão  como  perdão  aos  aílligidos  naufragantes,  sahindo 
a  terra,  huns  a  nado,  outros  em  o  batel,  todos  debilitados,  quasi  no  ulti- 
mo alento,  a  mãos  de  selvagens  chamados  Caétes,  que  n'aquella  paragem 
habitavão,  acabarão  as  vidas  com  naufrágio  muito  mais  deshumano.  Em 
vendo  estes  o  destroço  da  náo  do  alto  de  suas  serranias,  descerão  ás  praias, 
a  aguardando  alli  fingirão-se  amigos,  mostrando  compadeccr-sc  de  seu  es- 
tado; levárão-nos  a  hospedar  a  suas  pequenas  choupanas,  fizerão  fogo,  trou- 
xerão  mantimento,  alentarão  os  corpos  debilitados;  mas  com  cautela  atrai- 
çoada, porque  fizerão  no  mesmo  tempo  aviso  a  seus  circunvizinhos  pêra 
o  que  havião  de  obrar,  e  veremos  logo.  O  coração  do  homem  he  leal,  e 
mais  em  occasiões  de  tanto  aperto.  Nunca  se  derão  por  seguros  os  pobres 
Portugueses :  olhavão  pêra  os  hospedes,  parecião-lhes  feras  tragadoras ; 
pêra  os  quintaes  de  suas  pousadas,  vião  rumas  de  ossos,  e  caveiras  de 
mortos,  sinaes  dos  muitos  que  tinhão  comido,  insígnias  prezadas  de  seu 
esforço,  e  valentia.  Elles  em  quantidade  innumeraveis,  os  nossos  poucos, 
os  mais  mulheres,  e  meninos,  desarmados,  e  alguns  som  camisa,  assi  como 
o  mar  os  deixara.  Fazião  da  necessidade  virtude,  cariciavão  os  que  conhe- 
cião  por  mortaes  inimigos,  mostravão-lhes  sinaes  de  agradecimento  debaixo 
de  tão  fundados  arreceies. 

16  Despedirão-se  ultimamente  de  seus  hospedes,  e  forão  seguindo  o 
caminho  que  elles  lhes  mostrarão  a  fim  de  seu  engano.  Eis  que  chegando 
ao  descoberto  das  praias,  junto  a  hum  rio,  que  de  força  havião  de  passar, 
sahem  de  emboscada  chusmas  de  ferozes  selvagens,  atroando  aquellas  en- 
seadas com  seus  costumados  alaridos  (menos  bastava  pêra  hum  exercito 
tão  fraco.)  Cahirão  logo  desmaiadas  mulheres,  e  crianças  com  vista  tão  ter- 
rível. Dos  homens  poucos  podião  íer-se  em  pé :  fizerão  aquella  gente  fera 
dos  peitos  immoveis  alvo  de  suas  frechas,  e  das  cabeças  prova  de  suas  ma- 
ças, sem  resistência  alguma.  Hião  matando  huns,  e  outros  carregando,  qual 
caça  do  matto,  pêra  fazer  banquetes  a  toda  a  sua  gente.  Oh  tigres  hirca- 
nos !  Que  crueldades  vossas  não  virão  hoje  estas  avaras  praias  ?  Nem  cho- 
ros das  crianças,  nem  abraços  das  mais,  nem  despedidas  tristes  dos  des- 
posados, pais,  e  filhos,  commovião  aquelles  peitos  duros.  As  mais  tenras 
crianças  tomavão  pelo  braço,  e  despedaçavão  em  hum  penedo,  e  ás  mais 
que  as  choravão,  abrião  a  cabeça,  ou  rasgavão  os  peitos  com  facões  de  páos 
duros.  Não  chegou  aqui  a  crueldade  de  hum  Herodes,  ou  a  de  hum  Dio- 
cleciano. 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (ANNO  DE  155G)  125 

17  Resta  poròm  o  caso  mais  triste.  Tinha  passado  o  rio  em  balsa  o 
Prelado,  e  estava  vendo  da  outra  parte  toda  esta  tragedia  sanguinolenta, 
ouvindo  os  alaridos  dos  lobos  feros,  e  os  balidos  das  ovelhas  mansas,  que 
a  seus  dentes  acabavão,  e  padecia  outras  tantas  lançadas  em  seu  coração: 
quando  pregado  com  os  olhos  no  Ceo,  e  consultando  o  que  faria,  sahirão 
do  mar  ás  ribeiras  do  rio  multidão  dos  mesmos  selvagens  nadadores,  que 
em  busca  d'elle,  c  dos  que  o  levarão,  tinlião  passado.  Signiíicárão-lhe  es- 
tes por  acenos,  que  era  aquelle  o  grande  Prelado  dos  Portugueses,  Sacer- 
dote consagrado  a  Deos,  cjue  havia  tomar  vingança  de  seus  excessos.  Não 
peneirava  porém  cousa  alguma  tão  duros  corações  :  derão  com  huma  maça 
no  santo  Prelado,  abrirão-ihe  a  cabeça  pelo  meio.  O  mesmo  fizerão  aos 
companheiros,  e  levárão-nos  pêra  pasto  prezado  de  seus  ventres,  e  seus  os- 
sos por  insignia  de  tão  grande  façanha.  E  este  foi  o  lim  do  primeiro  Bispo 
do  Brasil  D.  Pedro  Fernandes  Sardinha. 

•18  O  lugar  onde  foi  morto  este  virtuoso  Prelado,  he  tradição  commum 
que  nunqua  mais  vio  em  si  fermosura,  ou  ornato  algum  natural ;  porque 
vestindo-se  antes  de  herva,  e  de  arvoredo,  ficou  dahi  em  diante  estéril, 
escalvado,  e  secco,  quaes  outros  montes  de  Gelboé  pela  maldição  de  Da- 
vid, e  morrerem  n"elles  os  insignes  varões  de  Israel,  Saul,  e  Jonathas.  Do 
castigo  que  houverão  na  terra  estes  insolentes  selvagens,  noutro  lugar  di- 
remos. 

19  A  este  estado  tinhão  chegado  as  cousas  da  Província,  quando  em 
Uoma  houve  por  bòm  o  Ceo  de  chamar  pêra  si  a  primeira  cabeça,  e  mo- 
vimento de  toda  a  machina  da  Companhia,  o  bemaventurado  Padre,  e 
Patriarcha  nosso  Ignacio  de  Loyola,  servo  liei,  pêra  que  fosse  entrar  no 
gozo  de  seu  Senhor.  Espirou  esta  alma  ditosa  ao  nascer  do  sol  de  huma 
sexta  feira  31  de  Julho  do  anno  corrente  da  Redempção  dos  homens  155G, 
de  idade  de  Co,  dezeseis  depois  de  fundada  a  Companhia,  e  propagada 
por  quasi  o  orbe  todo,  com  hum  cento  de  Casas,  e  Collegios  de  Religiosos 
em  ti-eze  Províncias  (não  entrando  em  conta  a  de  Roma.) 

20  Varão  verdadeiramente  prodigioso,  c  pai  de  entranhas  suavíssimas, 
(í  amorosíssimas :  cujas  palavras,  não  sij  ouvidas,  mas  somente  lidas,  antes 
huma  s(j  letra  de  S(;u  nome,  era  bastante  a  eiiciuír  de  doçura,  e  zelo  os 
súbditos  pêra  dai-  d(5  mão  á  pátria,  parentes,  amigos,  e  desterrar-se  por 
l)(!m  das  almas  i)era  as  mais  duras  brenhas  do  mundo.  A(|ui  poderá  eu  en- 
xtji-ir  a  liistoi-ia  i'ara  de  sua  santa  vida,  por  pai  conunuin  da  Cíjmpanhia,  o 
l)articular  da  missão  d'este  novo  mundo,  não  menos  que  da  do  Oriente, 


126  LIVUO  II  DA  CHUOMCA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

que  encommeiídou  a  seu  amado  companheiro  Xavier :  porém  anda  e,la  es- 
critta  por  tantas,  e  tão  diversas  pennas,  que  dão  escusa  bastante,  pêra  que 
eu  occupe  antes  a  minha  em  cousas  mais  occultas  d'esta  Província.  Não 
poderei  comtudo  deixar  de  fazer  d'ella  algum  Ijreve  epilogo. 

21  He  cousa  digna  de  se  notar  n'este  grande  santo,  que  no  mesmo  an- 
no,  em  que  traçava  a  divina  providencia  descobrir  aos  homens  a  machina 
segunda  d'este  novo  mundo,  que  por  tantos  mil  annos  tivera  escondida : 
n'este  mesmo,  que  foi  o  de  1491,  sahio  a  luz  com  o  prodigioso  parto  de 
Ignacio,  em  Ilespanha,  província  de  Guipuscoa,  de  troncos  nobilíssimos, 
sendo  Pontífice  Innocencio  VIII,  Imperador  Federico  III,  Rei  de  Castella 
D.  Fernando  Catholico,  invicto,  e  de  Portugal  o  felicíssimo  Rei  D.  Manoel, 
de  boa  memoria.  Porque  queria  a  sabedoria  de  Deos  Nosso  Senhor,  que 
quando  se  hia  descobrindo  hum  mundo  de  almas  necessitadas,  se  fosse  jun- 
tamente criando  hum  novo  portento  de  santidade,  que  houvesse  de  redu- 
zil-as  ao  Ceo.  Assi  o  notarão  as  Bulias  Apostólicas,  e  o  Concilio  Tarraco- 
nense  celebrado  no  anno  de  1602,  que  depois  de  chamar  a  Ignacio  Capitão 
grande,  que  Deos  mandou  a  sua  Igreja  com  singular  providencia  pêra  que 
nos  tempos  presentes,  qual  outro  Atlante,  sustentasse  o  mundo  aos  hom- 
bros  de  sua  doutrina,  e  piedade:  accrescentou,  que  este  era  aquelle  anjo 
homem,  e  homem  anjo  do  Apocalypse,  com  corpo  de  nuvem,  rosto  de  sol, 
e  pés  de  columnas  de  bronze  afogueadas,  hum  sobre  o  mar,  outro  sobre  a 
terra. 

22  Com  razão  mostra  Deos  ao  mundo  o  nosso  santo  Patriarcha  em  fi- 
gura de  anjo  homem,  e  de  homem  anjo,  por  dizer  que  houve  n'elle  duas 
origens,  angélica  huma,  outra  humana.  Na  terra  nasceo,  humanos  forão 
seus  progenitores,  humano  seu  illustre  sangue,  e  aquella  generosa  criação 
que  o  perfeiçoou,  até  ser  digno  dos  palácios  dos  Reis  mais  illustres.  A 
força  da  predestinação  fez  cjue  subisse  ao  ser  quasi  angélico,  por  destino 
de  hum  tiro  ditoso,  que  deu  por  terra  com  o  ser  de  homem,  e  o  subio  ao 
ser  de  quasi  anjo.  Como  homem  conheceo  seus  defeitos,  e  os  castigou  se- 
veramente com  lagrimas,  e  penitencias  aspérrimas  de  cadeas,  saccos,  cilí- 
cios, pés  descalços,  cabeça  desgrenliada,  e  habitação  de  huma  cova  hórrida, 
mais  de  feras,  cjue  de  gent^  humana.  Vivia  de  esmolas,  jejuava  continua- 
mente a  pão  e  agoa  (exceptos  os  domingos.)  A  cama  era  a  dura  terra,  fi- 
cando apenas  em  sujeito  tão  descarnado  a  semelhança  do  ser  humano.  E 
contra  este  homem  assi  desfigurado  assestou  o  inferno  suas  machinas,  per- 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (aNNO  DE   1556)  1^7 

seguio-0,  aíírontou-o,  aroufou-o,  espancou-o,  esbofeteou-o,  acciísou-o,  fez 
que  fosse  tido  por  louco,  por  herege,  e  enganador  dos  povos. 

23  Como  anjo  parece  que  gozava  da  continua  vista  do  Ceo,  da  face  do 
Senlior,  da  Virgem  Santíssima,  e  Bemaventurados.  Que  segredos  lhe  não 
communicárão  ?  Que  favores,  e  mimos  não  fizerão  a  este  seu  anjo  huma- 
nado? Vio  cm  summos  deleites  a  Trindade  Santíssima,  a  presença  de  Christo, 
c  de  sua  Mãi  sacratíssima.  Esta  Senhora  lhe  concedeo  a  pureza  angélica : 
e  forão  mais  de  trinta  'as  vezes  cfue  se  lhe  communicárão,  ella,  e  seu  Fillio 
Santíssimo,  e  Trindade  divina,  banhando  aquella  alma  ditosa  das  doçuras 
da  gloria.  Foi-lhe  mostrado  o  modo  admirável  com  que  a  divina  Sabedoria 
criara  do  nada  todas  as  criaturas :  a  intelligencia  verdadeira  de  muitos  mys- 
terios  de  nossa  santa  Fé :  os  princípios  de  muitas  sciencias  humanas,  e  o 
conhecimento  sobrenatural  de  cousas  futuras,  e  ausentes,  como  se  com  os 
olhos  as  vira.  Conheceo  os  pensamentos  de  peitos  humanos,  assocegou  co- 
rações aiíligidos,  descobrio  enredos  do  demónio.  Foi  arrebatado  a  ver  as 
cousas  celestíaes,  o  que  havia  de  padecer  por  amor  de  Christo,  e  o  pro- 
gresso que  havia  de  ter  a  religião  da  Companhia,  que  havia  de  fundar,  o 
da  infinidade  de  almas  (jue  por  meio  d'ella  liavião  de  salvar-se.  Tudo  isto 
querião  significar  os  resplandores  daquelle  seu  rosto  de  sol;  e juntamente 
o  amor  abrazado  de  Seraphim,  em  que  se  accendia  da  gloria  de  Deos,  e 
salvação  do  próximo.  E  que  virtudes  sobrenaturaes  não  resultarão  doesta 
união  de  amor?  Que  de  maravilhas  insólitas,  e  portentosas  não  obrou? 
Foi  visto  levantar-se  no  ar,  acudir  a  diversas  parles,  juntamente  senhorear 
os  elementos,  sopear  os  esí)íritos  malignos,  sarar  enfermos,  e  resuscitar 
mortos. 

24  Porém  sojjre  todas  estas  grandes  cousas,  nos  quizerão  dar  a  enten- 
der aquelles  veneráveis  Padres,  e  Doutores  sagrados  do  santo  Concilio  Tar- 
raconense  nos  pés  de  columnas  de  bronze  arfogu(\ados,  hum  posto  no  mar, 
outro  na  terra,  o  espirito  particular  das  missões  deste  homem  anjo,  ex- 
posto sempre,  e  como  em  camíniio,  por  terra,  e  por  mar,  em  busca  de 
almas.  Oh  que  formosos  pés!  Quám  pulchri  pedes  euanqelizanlium!  Que  pe- 
regrinações não  acommeteo?  A  Monserrate,  a  Roma,  a  .Jerusalém,  por  lles- 
panha,  por  França,  por  Flandres,  por  Inglaterra,  i)or  Itália,  a  pé  sempre, 
e  sempre  descalço,  quasí  se  forão  pés  de  bronze.  Qne  direi  do  fogo  de  sua 
charidade?  Por  ajnverler  lium  manciíbo  lascivo,  s(;  m(!t(M)em  liuma  alagoa 
gelada  no  meio  do  inverno.  l*or  converter  as  almas  esc<ilhia  pôr-se  a  pe- 
rigo da  própria  salvação,  e  da  i)erda  da  gloria,  i)or  ganliar  do  inferno  os 


128  LiVHO  II  DA  CHUOMCA  DA  COMPAMllA  DE  JESU 

próximos.  E  como  ora  impossível  correr  [)er  si  o  mundo  totlo,  correo  o 
do  Oriento  por  meio  d'aqaelies  seus  i)rimeiros  Missionaiios,  e  este  do  Oc- 
cidente  por  meio  dos  segundos,  significados  huns  e  outros  polo  pé  do  mar. 
Se  mais  mundos  se  descobrirão,  a  mais  aspirara :  por  este  zelo  grande  das 
almas,  e  missões  do  mar,  e  da  terra,  quiz  o  Senhor  que  fosse  conhecido; 
e  será  servido  que  seja  imitado  de  seus  zelosos  filhos.  E  basta  por  ora  esta 
breve  noticia  pêra  nosso  intento. 

25  Na  Bahia  passara  estéril  o  anno  que  começa  de  1557,  pela  queixa 
que  já  fiz  muitas  vezes,  de  que  não  se  occupavão  em  escrever  nossos  an- 
tiguos :  he  necessário  andar  mendigando  de  anno  em  anno  noticias,  como 
havidas  por  esmola,  de  papelinhos  velhos,  achados  acaso :  porque  os  Apon- 
tamentos do  Padre  Joseph,  e  alguns  outros  que  n'elles  estribão,  e  vem  a 
ser  o  mesmo,  nem  tem  os  annos  todos,  nem  tudo;  antes  nem  a  centissima 
parte  dos  feitos  chgnos  de  memoria  d^aquelles  ditosos  tempos  da  Compa- 
nhia, que  pêra  bem  houverão  de  andar  impressos,  não  só  no  papel,  mas 
nos  corações,  pêra  exemplo  dos  que  proseguimos  sua  empresa.  Passe  em- 
bora em  silencio  o  presente  anno :  o  certo  lie,  que  não  passarão  aquellos 
obreiros  com  huma  mão  sobre  outra  mão.  Achei  somente  nos  Apontamen- 
tos do  Padre  Joseph,  que  padecera  este  anno  na  Bahia  o  Padre  Nóbrega 
largas  e  graves  enfermidades.  E  sabemos  nijs  por  outra  via,  que  todas  as 
que  a  divina  Magestade  llie  dava,  sofria  com  tal  paciência,*  e  conformidade 
com  Deos,  que  vinhão  a  ser  igualmente  de  merecimento  a  elle,  e  edificação 
aos  súbditos. 

26  Também  com  os  annos  entende  a  roda  da  fortuna,  arbitna  de  tudo 
o  criado.  No  mez  de  Agosto  do  anno  passado  succedeo  em  Roma  a  morte 
do  bemaventurado  Patriarcha  nosso  Ignacio  de  Loyola.  No  mez  de  Junho 
do  presente  succedeo  em  Portugal  a  morte  do  Sereníssimo  Rei  D.  João  III. 
Huma  e  oatra  morte  deu  muito  que  sentir  a  nossos  Missionários :  porque 
no  primeiro  perderão  pai  primeiro,  e  no  segundo  pai  segundo.  Como  pai 
chorarão  a  este  Príncipe,  por  Ires  razões :  porque  foi  quasi  confundador 
da  Companhia  universal;  porque  foi  fundador  da  Província  de  Portugal;  o 
porque  foi  fundador  da  mjssão  do  Brasil.  Sabida  cousa  he  das  Chronícas 
de  nossa  Companhia,  assi  communs,  como  particulares,  o  muito  que  con- 
correo  este  Augusto  Rei  com  nosso  Patriarcha  Ignacio  porá  a  fundação  uni- 
versal de  nossa  Religião;  já  pela  grande  estimação  que  fazia  de  seu  Instituto, 
já  por  razões  que  sobre  elle  formava,  já  poi-  cartas  que  em  seu  favor  es- 
crevia ao  Summo  Pontífice,  e  aos  Príncipes  de  Ioda  a  Christandade,  já  por 


DO  ESTADO  DO  CUASIL  (A.NNO  DE    !oa7)  1^9 

L('','udos  que  enviava  a  Roma,  já  por  despezas  de  sua  fazenda  real,  man- 
dando pagar  lodos  os  gastos  que  necessários  fossem,  pêra  com  effeilo  ad- 
quirii'  as  Bulias  de  confirmação.  Chegou  a  dizer  nosso  santo  Patriarcha 
Ignacio,  que  de  todos  os  Príncipes,  e  Reis  chrlstãos,  a  D.  João  ÍÍI  tinha 
l)or  principal  bcmfeitor  da  Companhia:  e  costumava  accrescentar  algumas 
vezes,  que  era  a  Companhia  mais  d'El-R(,'i  D.  João,  que  sua.  He  exagera- 
ção; mas  he  fundada  em  grandes  prlncipiíjs  de  amor,  mui  estreito,  e  íirme 
entre  este  grande  Santo  e  este  grande  Príncipe.  Muitos  successos  o  mos- 
trarão, em  que  me  não  detenho. 

27  Segunda  razão,  por  fundador  da  Pi'Ovincia  de  Portugal.  Este  Augusto 
Rei  foi  o  primeiro  entre  todos  os  Príncipes,  que  alcançou  em  Roma  de 
Santo  Ignacio,  e  do  Summo  Pontífice,  Padres  da  Companhia,  aquelles  dous 
primeiros  varões  os  Padres  Francisco  Xavier,  e  Simão  Rodrigues,  dos 
quaes  este  fundou  a  província  de  Portugal,  aquelle  a  da  índia.  Elle  os  re- 
cebeo  igualmente  em  suas  casas,  em  seu  palácio,  e  em  seu  coração.  Em 
suas  casas,  porque  logo  lhes  fundou  a  primeira  em  que  viverão  em  Lisboa: 
pouco  depois  a  notável  Casa  professa  de  S.  Roque;  e  além  doesta  o  insigne 
Collegio  de  Coimbra,  primeiro  de  toda  a  Companhia,  magnifico  em  ren- 
das, e  sujeitos  passante  de  duzentos,  e  illustrado  com  todas  as  escolas  me- 
nores annexas.  Não  fallo  no  Real  Collegio  de  S.  Paulo  na  índia,  e  outros 
que  ençheo  igualmente  de  rendas,  e  favores  de  pai.  Em  seu  palácio  recc- 
beo-os,  fazendo  mestre  de  seu  filho  Príncipe  herdeiro  de  seu  Reino,  o  Pa- 
dre Simão  Rodrigues  :  e  em  seu  coração,  fazendo-o  Confessor  seu,  e  quasl 
adjunto  do  governo  de  seu  palácio  com  fino  amor  até  á  morte;  e  depois 
d'ella  deixando  em  testamento  eiicommendado  á  Rainha»  D.  Catharina  sua 
mulher,  que  desse  a  El-Rel  D.  Sebastião,  seu  neto.  Mestre,  e  Confessor  de 
nossa  Religião.  Assl  fundou  a  Companhia  em  Portugal;  sendo  por  esta  via 
a  i)rimeira  Província  do  mundo,  que  teve  nossa  sagrada  Religião;  porque  a 
Romana  n"aquelle  tempo  não  se  intitulava  Província. 

i8  Teiceira  razão  he,  porque  fundou  a  missão  do  Brasil  na  forma  que 
dissemos  no  principio  d'esta  historia,  mandando  a  cila  o  Padre  Nóbrega,  a 
seus  primeiros  companheiros,  com  os  mesmos  fav(jres,  e  despesas  reaes, 
com  que  mandara  á  índia  o  Padre  Francisco  Xavier,  e  com  que  depois 
continuou  com  todos  seus  Misslonaritxs.  Poi-  estas  três  urgentes  razões  sen- 
tio  a  Província  do  lirasil  a  falta  de  hum  tão  magnifico  e  ti'esdobrado  fun- 
dador. Fizeião-lhe  os  Religiosos  delia  as  devidas  exéquias,  e  repiesentárão 
fúnebres  orações  de  suas  vliludes  \eramente  reaes.  Não  foi  menor  o  seu- 
voi,.  i  9 


130  LIVRO  II  DA  CHRO.MCA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

timento  do  Estado  todo.  Cobriíão-se  de  triste  luto  os  Governadores,  os 
Capitães,  e  os  nobres  do  povo :  a  todos  chegou  o  sentimento,  como  a  to- 
dos abrangera  o  fervor  de  suas  Armadas,  com  que  os  soccorria. 

29  Por  estas  tão  multiplicadas  obrigações,  era  devida  que  na  historia 
d'esta  Provincia  se  fizesse  larga  narração  das  excellencias  d'este  Principe : 
porém  como  andão  tão  notórias,  escrittas  por  tão  graves  authores,  conten- 
tar-me-hei  com  referir  aqui  somente  o  epilogo  que  prégarião  das  virtudes 
reaes  de  seu  animo  os  Oradores  de  suas  exéquias :  e  são  as  seguintes.  O 
nascimento  deste  Principe  vio  juntamente  os  prognósticos  de  suas  felici- 
dade. No  mesmo  dia  de  6  de  Junho  de  1302,  em  qué  sahio  á  luz  em  Lis- 
boa, sahio  o  Ceo  com  huma  novidade  insólita;  porque  movendo  os  elemen- 
tos, fez  que  desfeitos  em  trovões,  e  relâmpagos  atroassem  o  mundo,  e  fi- 
zessem celebre  o  dia.  Com  effeito  considerado  no  melhor  do  verão,  e  que 
erão  as  vozes,  e  luzes  somente  festivaes,  e  a  ninguém  nocivas :  tiverão  os 
prudentes,  que  forão  applausos  do  Ceo,  com  que  introduzia  em  seus  Rei- 
nos este  Principe  novamente  nascido :  costume  seu  em  nascimentos  ex- 
traordinários. Ao  successo  referido  foi  feito  o  epigramma  seguinte : 

Nasceris,  insequitur  tempestas  hórrida  :  nimdi 
Insiieliy  pliivia  proecipilant  cadunt. 
De  uper  incipitint  tonilus  mugire,  coruscant 
Fulgura  fulminibiis  mista,  flagrante  Polo. 
Certatim  venti  voluum  maré,  saxea  laxat 
jEohis  arAolo  põdere  claustra  notis. 
Nullaque  mturw  pars  non  trcmefacta  faliscit. 
Dum  novus  Hesperio  nasceris  orbe  piicr. 
Natura  immanes  partus  pariendo  laòorans, 
Significai  qiiantum  sic  pariendo  feral. 

Chegado  a  idade  de  vinte  annos,  por  fallecimento  de  seu  pai  o  invicto  Rei 
D.  Manoel,  tomou  o  sceptro  do  governo  do  Reino  em  Dezembro  de  1521, 
desposado  com  a  Sereníssima  Rainha  D.  Catharina,  filha  de  D.  Philippe 
1  Rei  de  Castella,  irmãa  do  Imperador  Carlos  Quinto.  Forão  raras  as  vir- 
tudes reaes  d"este  Principe:  singular  sua  piedade  pêra  com  Deos,  e  culto 
divino :  ardentíssimo  seu  zelo  de  inlrodirzii'  a  kiz  da  Fé  de  Christo  nas, 


DO  ESTADO  DO  DllASlL  (^A.NNO  DIC    {'Óúl)  131 

nações  l)ai'baras :  Iransordinaria  sua  prudência,  e  sapiência  em  conservar 
em  paz  e  justiça  seus  vassall(js :  louvável  a  humanidade,  mansidão,  e  cle- 
mência, com  que  salva  a  real  magestade,  se  fazia  respeitar  de  seus  povos: 
augusta,  e  verdadeiramente  real  a  magniricencia,  com  que  acudia  a  lugares 
sagrados,  e  aos  oppriniidos  de  necessidade :  exacto,  e  vigilante  em  pro- 
mover armadas,  e  expedições  pêra  a  guerra. 

31  Assistia  aos  oíTicios  divinos  com  summa  reverencia :  traítava  com 
Deos  os  negócios  de  seu  Reino  com  grande  confiança :  tomava  tempos  des- 
tinados pêra  a  oração  mental,  e  vocal :  ardia  em  zelo  de  que  todas  as  cou- 
sas que  servião  nos  divinos  templos,  especialmente  Igrejas  Catbedraes,  an- 
dassem compostas,  e  decentes :  pêra  cujo  eíTeito  foi  o  primeiro  Rei,  que 
pedio  Bispos  ao  Romano  Pontifice  pêra  muitas  partes  de  seus  Reinos,  que 
carecião  delles.  Em  Portugal  pêra  Portalegre,  Leiria,  Miranda:  na  xVsia 
pêra  Cochim,  e  Malacíi :  na  America  pêra  a  Raliia  de  Todos  os  Santos :  na 
Africa  pêra  o  Caboverde,  e  Guiné.  Fez  constituir  na  Etliiopia  superior  o 
primeiro  Patriarclia  da  Igreja  Latina  João  Bermudio;  depois  d"este  o  Padre 
João  Nunes  Barreto,  da  Companhia  de  Jesu ;  dous  Bispos  pêra  seus  adju- 
tores,  e  successores  no  Patriarchado,  e  outros  religiosos  varões  Pregado- 
res da  fé,  todos  da  mesma  Companhia,  cora  grandes  despesas  de  sua  real 
fazenda.  Por  todas  as  províncias  de  seus  Reinos  fez  levantar  sumptuosos 
templos,  provendo  todos  de  Saoírdotes,  ornamentos,  e  peças  ricas.  Os  ma- 
gníficos dons,  que  inda  hoje  existem  em  Jerusalém,  em  Galiza,  e  cm  outros 
lugares,  são  boas  testemunhas.  Entre  todos  se  diz  que  leva  a  ventagem  o 
formoso  alampadario  do  Templo  de  Santiago,  inveja  de  todos  os  que  alli 
oíTerecêrão  grandes  Príncipes. 

32  Foi  grande  exemplo  de  sua  piedade  o  sentimento  que  mostrou  no 
caso  do  sacrílego  herege,  que  em  presença  do  próprio  Rei,  nas  mesmas 
festas  do  Príncipe  seu  filho,  na  m(jr  celebridade  do  templo,  arrebatou  das 
mãos  do  Sacci'dote  (quando  a  mostrava  ao  povo)  a  divina  Hóstia  consagra- 
da. Por  muitos  dias  esteve  encerrado  sem  ver  a  luz  do  dia,  nem  fallarcom 
pessoa  do  seu  palácio,  suspirando,  e  derramando  copiosas  lagrimas:  quando 
sahií)  foi  vestido  d(3  luto  no  meio  de  uma  {)njcissão  a  pé  descalço,  a  íim 
de  aplacar  a  ira  divina.  Tão  intimamente  st-nlia  as  offensas  da  divina  Ma- 
gestade,  aquelle  que  nas  occasiões  do  próprio  sentimento  da  perda  de  dez 
íiliios,  e  muitos  ii-mãos,  que  a  cruel  morte  lhe  roubái"a,  se  havia  com  tão 
plácido  animo,  que  poucos  dias  dej)ois  do  transito  do  Priíicijje  único  her- 
deiro de  seus  Reinos,  de  pouco  desposado,  sahio  a  jtublic^j  de  festa  com 


132  LlVnO  II  DA  CimONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

toda  a  sua  côrtc  a  celebrar  o  dia  dos  Santos  três  Reis  Magos.  Oh  coração 
verdadeiramente  catholico ! 

33  O  zelo  da  Fé  que  ardia  em  seu  peito  fez  que  metesse  em  Portugal 
o  sagrado  Tribunal  da  Inquisição  contra  a  herética  pravidade.  D'elle  se  diz 
que  conquistou  mais  gentes  com  a  Fé,  que  seu  pai  com  as  armas;  e  forão 
estas  assaz  victoriosas.  Fez  exquisita  diligencia  porque  se  achasse  na  índia 
o  sagrado  corpo  do  Apostolo  S.  Thomé,  que  alli  era  fama  estava  sepulta- 
do: até  que  por  meio  de  seu  Yiso-rei  Duarte  de  Meneses  fui  descoberto, 
com  singular  consolação  do  Rei,  e  universal  da  Christandade.  Mandou  guar- 
dar suas  preciosas  relíquias  decentemente  em  hum  cofre  de  prata  de  arti- 
ficio mirífico  da  Cliína,  á  custa  de  sua  real  fazenda. 

34  Chegou  a  ser  chamado  reformador  das  Religiões.  Avocou  a  seu 
Reino  varões  insignes  em  virtude,  e  observância  religiosa,  dé  diversas  na- 
ções, que  ajudassem  a  llorecer  estes  jardins  príncípaes  das  virtudes  em 
JPortugal.  Introduzío  novas  Religiões,   além  da  Companhia,  as  duas  mais 

observantes  do  Patriarcha  S.  Francisco,  da  Piedade  huma,  outra  da  Ar- 
rábida, com  cujo  exemplo  de  santa  vida,  e  pobreza,  ficou  edificado  o  Reino. 

35  Em  nenhuma  cousa  mais  campeava  a  prudência  d"este  grande  Rei, 
que  na  eleição  acertada  de  Ministros  inteiros,  e  incorruptos  na  justiça  das 
partes,  e  pacíficos  no  governo  dos  povos.  Celebre  foi  o  caso  da  sentença 
que  deu  contra  sua  real  fazenda,  e  sendo  presente  o  mesmo  Rei,  o  Desem- 
bargador Francisco  Dias  de  Amaral,  em  causa  de  trinta  mil  cruzados.  Ao 
segundo  dia  foi  chamado  o  Desembargador  a  palácio,  e  quando  podia  ar- 
recear acharia  o  Rei  mal  contente,  experímentou-o  muito  ao  contrario;  por- 
que lhe  disse:  «Eu  vos  chamo  pêra  agradecer-vos  o  animo  com  que  cons- 
tantemente julgastes  contra  mim  o  que  a  justiça  vos  ditava :  fazei-o  assl 
sempre,  e  sempre  me  sereis  agradável.» 

36  A  este  Príncipe  deve  Portugal  o  augmento,  e  exercício  apurado  das 
letras  sagradas,  e  profanas.  Restituio  á  cidade  de  Coimbra  a  Universidade, 
alma  das  sciencias,  que  El-Rei  D.  Dinis  alli  tinha  principiado.  Chamou 
pêra  ella  os  mais  celebres,  e  florentes  Mestres  de  França,  e  Ilespanha,  com 
estipêndios,  e  mercês.  Dotou-a  de  jiassante  de  trinta  mil  cruzados  de  ren- 
da. Constituio  n"ella  Collegios  de  Religiosos  estudantes,  com  rendas  com- 
petentes :  e  tudo  isto  com  tão  grande  lustre  da  Universidade,  que  veio  ella 
a  repartir  pelo  mundo  varões  insignes  em  todas  as  sciencias :  em  especial 
a  Universidade  de  Salamanca,  mais  nobi^e  de  toda  a  Europa,  adornou  com 
três  Cathedraticos  de  Prima  do  Direito  Civil,  successivamenlc  hum  apoz  oulro. 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (ANNO  DE    15") 7)  133 

37  Entre  todos  os  dotes  foi  insigne  o  de  sua  demência.  Com  esta  jun- 
tamente animava,  e  alegrava  seus  vassallos;  e  parecia  que  queria  metel-os 
no  i)roprio  coração,  ainda  aquelles  de  quem  recebia  aggravos:  deixo  casos 
singulares  a  este  propósito  celebres.  Não  era  menor  sua  real  liberalidade. 
Todos  os  annos  mandava  pôr  em  estado  de  matrimonio  hum  grande  mi- 
mero  de  orfãas,  dotadas  do  tliesouro  real.  Sustentava  semelhante  summa 
de  viuvas,  e  pobres.  Fazia  grossas  esmolas  a  Mosteiros  necessitados:  e  não 
erão  menores  as  que  destinava  pêra  resgate  de  cattivos.  De  todo  o  género 
de  necessitado  se  compadecia  intimamente.  Procurava  que  as  sentenças  de 
casos  de  morte  não  se  dessem  sem  mui  grande  exame :  nem  era  amigo  de 
Juizes  que  se  prezavão  de  rigorosos.  Assistia  em  Relação  todas  as  sema- 
nas huma  vez:  e  sempre  ahi  se  inclinava  mais  a  absolver,  que  a  condemnar 
os  réos.  Havia  lei  dos  Reis  predecessores,  que  os  ladiões  que  fossem  con- 
vencidos cm  certa  summa,  fossem  marcados  em  o  rosto;  porque  fossem 
conhecidos  por  taes,  e  se  guardassem  delles.  Revogou  esta  lei,  dizendo, 
«que  podião  estes  homens  arrepender-se,  e  vir  por  tempo  a  vida  louvável;  e 
não  parecia  justo  que  fossem  estimados  então  pelo  que  forão,  e  não  pelo  que  erão 
de  ])resente;  nem  fossem  pêra  com  os  homens  reputados  por  mãos,  os  que  pêra 
com  Deos  erão  tidos  por  bons. »  Seguindo  este  mesmo  ditamen  resolveo,  que  se 
fizesse  eleição  de  hum  Risjiado  em  sujeito,  cm  quem  algum  de  seus  Con- 
sfílheiros  duvidava  dar  voto,  por  dizer  que  tinha  vivido  em  sua  mocidade 
mais  livremente  do  que  convinha,  supposto  que  por  então  louvavelmente : 
mandou  comtudo  fazer  o  provimento  nelle,  dizendo,  «que  diante  da  Ma- 
gestade  humana,  não  era  bem  fossem  de  impedimento  defeitos,  que  diante 
da  divina  já  o  não  erão.»  Seu  palácio  era  hum  abrigo  commum  de  neces- 
sitados. Chegou  a  propor  o  ^Mordomo  Real,  que  se  escusassem  tão  grande 
numero  de  serventes  nelle,  pêra  evitar  os  excessivos  gastos :  lido  o  rol 
(los  que  se  apontavão,  respondeo  o  magnifico  Rei :  «Olhai,  de  huns  destes 
tem  necessidade  o  Paço,  os  outros  tem  necessidade  d"elle :  pelo  que  dei- 
xai-os  ficar  todos.»  Com  a  mesjna  lib(.'rali(lad(í  gastou  ita  cidade  de  Évora 
grandes  summas  d(?  dinheiro  n'aquelle  aíTamado  cano  da  Prata,  obra  que 
fora  de  Quinto  Sertório,  e  realeza  daquelle  povo.  Por  remate  do  muito 
que  na  matéria  poderíamos  dizer,  fechemos  com  o  testenuinho  do  Svunmo 
Pontifica!  Romano,  que  Címfessou  ingenuamente,  que  não  só  elle,  mas  tmlos 
os  mais  Princi[)es  daquella  idade,  Itcavão  vencidos  da  magnilicencia  ifal 
d  El-Rei  1).  João  IH. 
38    Não  só  em  matérias  de  espirito,  mas  lambem  nas  armas  foi  feliz : 


I3i  LIVRO  II  DA  CHROMC.V  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

c  junto  com  o  nome  de  Rei  pacifico,  mereceo  também  o  de  guerreiro:  assi 
salíia  promover  a  |)az,  e  assi  sabia  mover  a  guerra.  Não  liouve  lempo  de 
m(Jr  paz,  que  o  seu:  o  não  liouve  tempo  do  mór  apresto,  e  fortuna  de 
guerra.  Em  nenhum  outro  tempo  se  expedirão  á  conquista  da  índia  mais 
grossas  Armadas.  Em  nenhum  outro  alcançarão  os  Portugueses  victorias 
de  mór  importância,  nem  sustentarão  cercos  de  mór  fama.  Tocarei  breve- 
mente. 

39  Não  foi  de  importância  aquelia  victoria  nunca  assaz  louvada,  quando 
depois  de  destruída  a  ilha  de  Bethel,  tomadas  as  duas  cidades  de  Baçaim, 
e  Damão,  em  toda  a  índia  celeberrimas,  depois  de  morto  o  potentíssimo 
Sultão  Baudur,  Rei  de  Cambava,  e  edificada  a  notável  fortaleza  de  Dio  pelo 
insigne  Governador,  e  Gapitão-mór  da  índia,  Nuno  da  Cunlia;  vindo  acom- 
meter  esta  força,  anno  de  1538,  o  grão  Baixa  Soleimão,  Viso-rei  do  Egypto, 
conquistador  de  Rhodes,  por  mandado  do  Grão-Turco  Solimão,  com  grossa 
Armada  de  oitenta  velas,  cincoenta  e  cpiatro  galés,  seis  galeões,  quatro  ga- 
leaças,  e  outros  navios  de  alto  bordo,  e  quantidade  proporcionada  de  Ja- 
nizaros,  e  soldados  velhos,  com  que  poz  o  cerco  apertadíssimo  notório  ao 
mundo?  Foi  rebatida  sobre  forças  liumanas  do  Capitão  António  da  Silvei- 
ra, da  casa  illustre  dos  Condes  de  Sortelha,  com  seiscentos  soldados  Por- 
tugueses não  mais,  soffrendo  batarias  fortíssimas,  e  aggressões  cruéis,  até 
com  eíTeito  desalojar  o  inimigo  com  fuga  vergonhosa,  deixando  valias,  li- 
nhas, artclharia,  e  três  mil  corpos  despojados  da  vida;  admiração  de  toda 
a  Ásia,  Africa,  e  Europa ;  e  causa  pela  qual  o  invicíissimó  Rei  de  França, 
prudente  arbitro  de  semelhantes  feitos,  mandou  tirar  hum  retrato  ao  vivo 
do  Capitão  Silveira,  e  o  fixou  em  seu  palácio  entre  os  varíjes  famosos  na 
guerra. 

40  Aqui  succedérão  dous  portentos :  hum  d"aquelle  soldado  famoso  Lu- 
sitano, que  vendo-se  falto  de  pelouro,  arrancou  hum  dente  da  boca,  e  com 
elle  carregou,  e  fez  tiro.  Outro  d"aquelle  portento  da  vida  humana,  hum 
homem  natural  de  Bengala,  que  aqui  acharão  os  nossos,  e  tinha  vivido  tre- 
zentos e  trinia  e  cinco  annos :  conservava  em  sua  memoria  os  successos  da 
antiguidade  que  vira:  quatro  ou  cinco  vezes  mudara  os  dentes,  e  outras 
tantas  se  vestira  de  cãas,  e  tornara  ao  vigor  de  mancebo.  Seguia  a  seita 
pérfida  de  Mafamede :  tiiiha  lium  filho  de  noventa  annos,  outro  de  doze,  vi- 
via de  esmolas,  e  certa  porção  que  sempre  lhe  derão  havia  cem  annos  os 
senhores  que  forão  do  lugar ;  e  pedia  agora  confirmação  do  Governador 
pêra  ella,  que  se  lhe  coucedeo  por  sua  prodigiosa  duração. 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (ANNO  DE  loo7)  135 

41  Não  foi  menos  aííainado  no  mundo  o  segundo  cerco  de  Dio  do 
anno  de  1547,  tempo  de  nosso  Rei  feliz;  quando  soldados  Portugueses, 
poucos  cm  numero,  muitos  em  valor  (que  erão  seiscentos  não  mais)  capi- 
taneados por  João  Mascarenhas,  insigne  Capitão,  sustentarão  o  rigoroso 
combate  tão  celebrado  do  poder  d"El-Rei  de  Camljaya,  Sultão  Mamúde, 
superior  em  forças  ao  de  Solimão,  de  trinta  mil  soldados  escolhidos  de  toda 
a  Europa,  Africa,  e  Ásia,  e  entre  elles  seis  mil  Turcos.  Porém  era  invicto 
o  animo  do  Capitão,  e  soldados:  supportárão  as  frequentes  c  enfadonhas 
batarias  de  tão  grande  poder,  até  que  arrasadas  as  muralhas  á  força  cruel 
de  cem  peças  de  artelharia,  servirão  os  peitos  de  muros  (seguindo  o  con- 
sellio  de  Lycurgo)  de  cento  e  (juarenta  Portugueses  não  mais,  que  escapa- 
rão de  mortos,  e  feridos;  quando  passados  quatro  mezes  inteiros  de  pele- 
ja, veio  a  soccorrel-os  o  magnânimo  Viso-rei  D.  João  de  Castro  com  mil  e 
quatrocentos  Portugueses,  e  trezentos  índios  naturaes :  e  chegando  áquella 
fortaleza  arruinada,  e  quasi  arrasada,  tomando  maior  animo  á  vista  do  maior 
destroço,  ousarão  acommeter  o  inimigo  em  dous  batalhões,  com  tão  des- 
usado valor,  que  he  fama  constante,  que  alcançarão  n'este  dia  a  victoria 
mais  famosa  que  vira  o  Oriente.  ^lorrêrão  n"ella  oito  mil  dos  contrários  de 
mais  valor,  e  os  outros  forão  forçados  a  fugir,  faltando  dos  nossos  cincoenta 
e  cinco  somente.  Concorroo  a  tão  insigne  feito,  fora  do  pensamento  dos 
homens,  o  soccorro  celeste,  que  favorecia  as  armas  d"El-Rei  de  Portugal; 
porque  durante  o  conflicto  foi  vista  sobre  o  templo  da  nossa  fortaleza,  cer- 
cada de  grande  resplandor,  huma  mulher  de  grande  magestade,  que  des- 
pedia raios  de  luz,  e  pertui-bava  os  olhos  dos  infiéis;  e  era  a  Virgem  Se- 
nhora Nossa,  que  pugnava  pv?la  causa  dos  seus. 

42  Na  Afiica  forão  notórias  as  guerras  ([ue  sustentou,  o  os  cercos  que 
defendeo  com  felicíssimos  successos.  Valha  por  todos  o  alfamado  cerco  de 
Çafim,  que  por  seis  mezes  (left3nderão  os  ní)ssos  Portugueses  contra  o  po- 
der d'El-Rei  Xarife,  e  cem  mil  soldados  de  pé,  c  cavallo,  (]ue  com  conti- 
imos  e  desesperados  assaltos,  e  batarias  de  grossa  artelharia  de  maquinas 
c  invençijes  desusadas,  os  combatião  com  extraordinário  aperto.  Sahirão 
comtudo  com  a  victoria,  que  o  mundo  admira,  e  Cí^lebi-a  até  o  tempo  pre- 
sente :  onde  o  Xarife,  de  corrido,  c  desesperado,  levantou  o  cerco,  c  foi 
forçado  confessar,  (jue  valia  mais  hum  só  Portuguez,  que  muitos  Mou- 
i'os.  Não  ])retendo  a([iii  contar  as  viclorias  todas  d"este  Rei  feliz:  fora  cousa 
mui  larga  fi^ra  de  meu  inteiiU»,  se  houvera  (1(3  rflatar  os  successos  prosp(;ros 
de  suas  armas  na  Ásia,  Afiica,  c  America:  as  façanhas  de  seus  Viso-reis, 


\^C)  LI\-RO  11  DA  CIIRONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

Governadores,  Capitães:  as  fortalezas  que  rcndeo,  c  ns  que  fundou  com 
magnificência  real  inexpugnáveis.  Andão  cheas  asMiistorias  d"csta  matéria, 
onde  poderão  vel-as  os  curiosos  largamente. 

43  Temos  pintado  em  breve  rascunho  os  dotes  reaes  d"e5lc  Augusto 
Príncipe.  E  quando  esperava  o  mundo  vel-os  perpetuados  com  successão 
fecunda  de  compridos  séculos,  mostrou  o  Ceo  a  fecundidade,  mas  não  con- 
ceúeo  a  permanência  d"ella:  porque  sendo  não  menos  que  de  dez  a  nume- 
rosa progénie  dos  filhos,  dignos  da  monarchia  de  seu  pai,  quaes  flores  mi- 
mosas de  jardim  real  forão  cortadas  todas  em  agro  no  melhor  de  sua  ver- 
dura; murchas,  e  tornadas  em  terra,  antes  que  vissem  o  fim  de  quem  as 
cultivara.  Porei  seus  nascimentos,  e  mortes.  O  Príncipe  D.  Affonso  nascido 
em  Almeirim  em  23  de  Fevereiro  de  lo26,  morreo  criança,  A  Princeza  D. 
Maria  nascida  em  Coimbra  em  15  de  Outubro  de  1527,  casada  com  D.  Phi- 
lippe,  Príncipe  de  Hespanha,  filho  do  grande  Imperador  Carlos  Quinto,  do 
parto  do  Príncipe  primogénito;  em  12  de  Julho  de  1545,  de  idade  de 
dezesete  annos  e  meio.  A  Infanta  D.  Isabel  nascida  em  Lisboa  em  28  de 
Abril  do  anno  de  1520,  espirou  menina.  A  infanta  D.  Beatriz  nascida  em 
Lisboa  em  15  de  Fevereiro  de  1530,  da  mesma  idade.  O  Príncipe  D.  Ma- 
noel nascido  na  villa  de  Alvito  em  o  1.°  de  Novembro  de  1531,  acabou 
de  três  annos.  O  Príncipe  D.  Philippe  nascido  em  Évora  em  25  de  Maio 
de  1533,  também  menino.  O  Infante  D.  Dinis  nascido  em  Évora  em  20  de 
Abril  de  1535,  acabou  em  breve.  O  Príncipe  D.  João  nascido  em  Évora  em 
3  de  Junho  de  1537,  casado  com  a  Infanta  D.  Joanna,  filha  do  Imperador 
Carlos  Quinto,  de  que  deixou  o  Príncipe  D.  Sebastião,  que  succ^deo  a  seu 
avò  no  Reino,  em  2  de  Janeiro  de  1554,  de  dezeseis  annos  e  sete  mezes 
de  idade.  O  Infimte  D.  António  nascido  em  Lisboa  em  9  de  Março  de  1539, 
gozou  mui  pouco  da  luz  da  vida.  Outro  filho  bastardo  por  nome  D.  Duar- 
te, Arcebispo  que  foi  de  Braga,  também  morreo  na  flor  da  idade.  E  por 
aqui  se  acabou  tão  desejada  descendência. 

44  Foi  El-Reí  D.  João  de  medíocre  estatura,  de  rosto  fermoso,  alvo,  e 
corado,  negra,  e  densa  barba,  olhos  da  còr  do  Ceo,  resplandecentes,  e  tão 
cheios  de  magestade,  que  muitos  se  turbavão  em  sua  presença,  e  com  ser 
tão  grande  a  aulhoridade  de  sua  pessoa,  tinha  huma- serenidade  de  aspecto 
tão  amável,  que  todos  os  que  o  víão  se  lhe  aíTeiçoavão:  e  nem  ainda  os 
próprios  inimigos  podião  tcr-lhe  ódio.  Morreo  cm  Lisboa  de  hum  accidente 
de  apoplexia  em  11  de  Junho  de  1557,  de  idade  de  cincoenta  e  cinco  an- 
nos, tendo  reinado  trinta  e  cinco,  e  seis  mczes;  com  geral  sentimento,  ainda 


I 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (aNNO  DE   loo")  i37 

(los  Gslranlios.  Jaz  sepultado  na  capella-múr  do  Convento  Real  de  Belém, 
em  companhia  de  seu  pai  El-Rei  D.  Manoel.  E  he  bem  que  fiquem  vivas 
em  nossas  memorias  estas  breves  lembranças. 

45  Na  Capitania  de  S.  Vicente  ia  crescendo  o  arreceio  do  poder  do 
Francez,  que  o  anno  passado  se  apossara  da  enseada  do  Rio  de  Janeiro,  e 
cada  vez  hião  aviltando  mais  suas  cousas.  A  resolução  de  sua  vinda 
áquelle  porto  foi  assi.  Tiverão  noticias  os  Franceses  em  suas  terras  de  co- 
mo a  gente  dos  Tamoyos  natural  d"aquella  paragem,  muita  em  numero, 
e  guerreira,  depois  de  haver  estado  em  amizade  com  os  Portugueses,  e 
guardado-lhes  a  fé  promettida  por  algum  tempo,  vierão  comtudo  a  que- 
bral-a,  irritados  de  aggravos  que  dizião  ter  recebido  d"elles,  e  que  de  ami- 
gos estavão  feitos  seus  contrários :  e  como  era  o  sitio  do  Rio  tão  acommo- 
dado  pêra  tirar  grandes  proveitos  das  drogas  principaes  do  Brasil,  espe- 
cialmente do  páo  vermelho,  porque  tanto  suspirão  as  nações  estrangeiras: 
vendo  por  outra  parte  a  pouca,  ou  nenhuma  resistência  que  podia  haver 
na  entrada,  pois  nem  estava  presidiada,  nem  n"ella  havia  Portuguez  algum 
que  a  defendesse :  ao  som  de  todas  estas  novas  que  corrião,  se  animou  hum 
Nicoláo  Yillagailhon,  homem  nobre  Francez,  Cavalleiro  de  S.  João,  a  fabri- 
car huma  Armada  de  soldados,  e  vir  occupar  inopinadamente  a  ditta  en- 
seada; como  com  elTeito  fez,  sem  fjuem  lhe  resistisse :  e  já  n*este  tempo 
em  que  imos  tinha  assentado  liga  com  os  índios,  c  com  brandas  palavras, 
e  dadivas  hberaes,  se  tinha  feito  senhor  de  seus  corações,  e  estavão  uni- 
dos em  hum  corpo  contra  os  Portugueses,  e  de  mão  commum  hião  fortifi- 
cando-se,  dando  assaz  que  entender  aos  de  S.  Vicente  com  sua  vizinhança. 

46  No  anno  de  loo5  vimos  a  mudança  que  fez  o  grande  Gatto,  Prin- 
cipal das  povoações  dos  Temiminós,  das  terras  do  Rio  de  Janeiro  pêra  as 
da  Capitania  do  Espirito  santo ;  o  gosto  com  que  começarão  alli  a  fabricar 
suas  aldeãs,  e  o  com  qne  os  Padres  da  Comi)anhia  fazião  com  elles  o  fruto 
desejado.  E  comtudo  já  no  anno  presente  (seguindo  seu  curso  ordinário  a 
variedade  humana)  se  vêem  grandes  revoltas  d'estes  índios,  entre  si,  e 
com  os  Portugueses ;  e  taes,  que  vierão  a  romper  em  guerras  soltas,  em 
qus  se  hião  consumindo  os  pobres  Temiminós,  assalteados  huns  da  cobiça 
de  alguns  Portugueses,  outros  das  frechadas  dos  de  sua  nação;  com  que 
chegarão  a  ter  por  melhor  partido  retirar-se  ás  brenhas  do  sertão,  e  tor- 
nar a  viver  como  feras.  Af|ui  se  dobrarão  os  trabalhos  dos  nossos  obrei- 
ros; porque  não  lhe  soffreiído  o  coração  que  houvesse  de  sahir  com  a  sua 
o  inimigo  commum  das  almas,  forão  obrigados  do  zelo  a  entrar  pelas  bre- 


138  LIVRO  II  r»A  ciir.ONicA  da  companhia  de  jesu 

nlias  (quacs  pastores  em  busca  de  ovelhas  perdidas)  c  não  sem  fruto;  por- 
que reduzirão  a  muitos,  e  os  tornarão  a  seu  rebanho,  e  primeira  concór- 
dia, livres  dos  dentes  do  lobo  infernal,  e  os  apastorárão  com  o  fértil  pasto 
da  doutrina  christãa.  Os  demais  successos  irá  contando  a  hisloria  dos  ân- 
uos seguintes. 

47  No  anno  do  Senhor  de  1558  chegou  á  Bahia  de  Todos  os  Santos 
Mem  de  Sá,  terceiro  Governador  do  Estado  do  Brasil,  segundo  o  assento 
authenlico  do  Livro  dos  Registos,  que  achei  em  poder  do  Escrivão  da  fa- 
zenda real,  onde  está  lançada  a  provisão  de  seu  oíTicio,  que  se  passou  em 
23  de  Julho  de  1556;  mas  está  registada  na  Bahia  no  anno  chtto  de  1558  : 
d'onde  se  convence  o  engano  de  Pedro  de  Maris,  Dialogo  5.°,  e  outras  Me- 
morias manuscrittas,  que  vi,  e  dizem  que  esta  chegada  foi  no  anno  de  1555. 
O  que  sem  duvida  foi  erro  dos  cômputos  que  fizerão,  dando  a  cada  Go- 
vernador dos  antecedentes  três  annos  ajustados,  que  começando  do  aimo 
1549,  acabavão  no  anno  que  dizem  de  1555:  não  advertindo  que  em  partes 
tão  distantes,  raramente,  ou  nunca  pode  ser  certo  aquelle  seu  ajustamento 
mathematico.  I\íenos  razão  de  fundamento  acho  ao  Padre  Estevão  Paterni- 
na,  liv.  2.''  da  Vida  do  Padre  Joseph  de  Anchieta  cap.  i,  aonde  suppõe  ciuc 
foi  feito  Governador  Mem  de  Sá  no  anno  de  1559:  e  tudo  foi  engano  de 
co-mputos  de  pessoas  ausentes. 

48  Merecia-nos  n'este  lugar  este  venturoso  Capitão  Mem  de  Sá  hum 
grande  trattado  de  suas  virtudes  heróicas,  por  pai  da  Companhia,  dos  po- 
bres, da  répubhca,  dos  índios,  e  de  todo  o  Estado.  Mas  como  pretendo 
brevidade,  direi  summariamente  o  que  d"elle  deixou  escritto  o  venerável 
Padre  Joseph  de  Anchieta,  testemunha  contemporânea,  e  de  mór  qualida- 
de; e  outras  relações  fidedignas.  Era  o  Governador  Mem  de  Sá  homem  de 
grande  coração,  zelo,  e  prudência,  acompanhada  de  letras,  e  experiência 
em  paz,  e  guerra.  Trazia  elle  por  regimento  do  zelo  dElRei  D.  João  III, 
de  boa  memoria,  qne  procurasse  em  seu  governo  por  todos  os  meios  pos- 
siveis  trazer  á  Fé  de  Christo  os  índios  do  Brasil:  e  porque  este  intento  ti- 
vesse melhor  effeito,  sendo-lhe  manifesto  o  animo  pio  do  Governador  cjuo 
escolhia,  na  provisão  de  sua  eleição  lhe  dá  a  entender  o  mesmo  Rei,  que 
havia  de  governar  muitos  annos,  dizendo  n'ella,  que  serviria  além  dos  três 
annos  ordinários  o  mais  tempo  que  El-Rei  fosse  servido :  e  com  effeito  ser- 
Aio  qualorze  annos;  cujos  trabalhos  lhe  parecerão  poucos  dias  pelo  amor 
que  teve  a  esta  Província,  qual  Jacob  a  Raquel  fermosa. 

49  A  primeira  cousa  que  fez  este  bom  Capitão,  saltando  em  terra,  foi 


DO  ESTADO  DO  BILVSIL  (ANNO  DE   1538)  139 

reeolher-se  em  hum  cubiculo  dos  Religiosos  da  Companliia  de  Jesu,  e  to- 
mar alii  por  oito  dias  os  exercidos  espiritnaes  de  nosso  Santo  Patriarcha 
Ignacio,  á  instmcção  do  Padre  Manoel  da  Nóbrega,  consultando  com  Deos, 
o  com  seu  instructor  (que  conhecia  por  zeloso,  e  santo)  os  meios  mais  sua- 
ves, com  que  poderia  conseguir  o  intento  d"El-Rei  seu  senhor,  e  o  seu; 
que  era  o  mcjr  bem  do  Estado,  e  conversão  dos  índios :  e  pêra  todas  as 
acções  que  depois  obrou,  ficou  d'aqui  animadíssimo,  começando  em  pri- 
meiro lugar  por  sua  pessoa,  com  vida  exemplar,  que  uniformemente  con- 
tinuou até  espirar.  Rezava  o  officio  divino  todos  os  dias :  infallivelmente 
vinlia  ouvir  missa  ante  manhãa  ao  nosso  Collegio:  confessava,  e  commun- 
gava  todos  os  sabbados,  por  dias  mais  desoccupados  pêra  elle  que  os  do- 
mingos. Era  continuo  em  assistir  ás  pregações,  e  dava  aos  Pregadores  pias 
advertências.  Era  brando,  e  benigno  pêra  com  todos,  e  tão  inchnado  á  vir- 
tude, que  a  não  ser  a  obrigação  de  seu  cargo,  escolhera  de  boa  vontade 
(como  elle  dizia)  ser  Imm  dos  particulares  obreiros,  e  Missionários  da  Com- 
panhia :  mas  se  na  profissão  o  não  foi,  parecia-o  no  tratto  familiar,  e  res- 
peito que  tinha  aos  nossos,  especialmente  ao  Padre  Manoel  da  Nóbrega,  a 
quem  consultava  em  tudo,  e  sem  cujo  conselho  nada  obrava. 

50  O  primeiro  negocio  que  poz  em  execução  foi  o  dos  índios.  Soube 
que  estes  tinhão  no  tempo  de  seus  antecessores  assentado  pazes  com  os 
Portugueses,  e  que,  não  obstante  ellas,  vivião  sem  moderação  nos  ritos  de 
seu  gentilismo,  matando,  e  comendo  seus  contrai-ios,  vivendo  a  modo  de 
feras  espalliados  pelas  brenhas,  e  fazendo  guerra  huns  a  outros,  seguindo 
o  ditamen  de  seu  appetite  somente,  com  prejuízo  grande  dos  que  já  tinhão 
abraçado  á  Fé,  e  do  toda  a  republica.  Consultou  os  meios  do  remédio;  e 
resolveo  que  era  necessário  pôr  freio  áquellas  demasias  com  leis  efRcazes; 
e  mandou  promulgar  as  seguintes  sob  graves  penas.  Primeira,  que  nenhum 
de  nossos  confederados  ousasse  d'alli  em  diante-  comer  carne  humana.  Se- 
gunda, que  não  fizesse  guerra,  senão  a)m  causa  justa  approvada  por  elle, 
e  os  de  seu  con.selIio.  Terceira,  que  se  ajuntassem  em  povoações  grandes, 
em  forma  de  rèspublicas,  levantassem  n'ellas  Igrejas,  a  que  acudissem  os 
já  (^hristãos  a  cumprir  com  as  obrigações  de  seu  estado,  e  os  cathecume- 
nos  á  doutrina  da  Fé;  fazendo  casas  aos  Padres  da  Companhia  pêra  que 
residissem  entre  elics,  a  íim  da  instrucção  dos  que  qr.izessem  converter-se. 

51  Promulgadas  estas  leis,  f(ji  cousa  digna  de  espanto  o  como  se  al- 
vorotou todo  o  vulgo,  instigado,  parece,  das  liaças  do  inferno,  e  do  medo 
covarde.  Dizião,  que  todas  estas  leis  vinhão  traçadas  pelo  Padre  Nóbrega, 


140  LI\-RO  II  DA  CHRONir.A  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

quG  orão  violentas,  imprudentes,  e  pndião  vir  a  ser  cansa  da  destruição  dn 
republica.  «Que  Governador  fez  nunca  tal  (accrescentavão)  querer  prohibir 
a  gentios  seus  anliguos  costumes?  Quem  pôde  prohibir  a  hum  tigre  que 
se  ceve  em  carne  humana?  Quem  quizer  tirar-lha  dos  dentes,  não  ha  de 
incorrer  seu  rigor  ?  Pois  não  menos  incorrerá  nossa  republica  no  de  tan- 
tos milhares  de  arcos,  que  pôde  armar  contra  si  n'esta  prohiljição.  Que  se 
nos  dá  que  facão  guerra  huns  a  outros  ?  Não  vemos  que  n"esta  está  nossa 
paz,  porque  divertido  poder  tão  grande  não  possa  unir-se  contra  nós?  Pois 
obrigal-os  que  se  ajuntem  em  povos  grandes,  não  vem  a  ser  o  mesmo  que 
ajuntannos  nós  grandes  exércitos  sobre  nossas  cabeças  ?  Que  facão  Igrejas, 

casas  aos  Padres,  isto  não  he  violentar  a  liberdade  d'esta  gente?  des- 
gostal-os  ?  metel-os  em  ira  contra  os  Portugueses  ?  O  Governador  que  tal 
faz,  não  tem  experiência :  ha  de  arrepender-se,  e  queira  Deos  que  quando 
queira  possa.» 

52  Todas  estas  murmurações  chegarão  a  ser  propostas  ao  Governador: 
porém  oppoz-se  contra  ellas  o  valor  de  Nóbrega.  Respondia,  que  os  Gover- 
nadores passados  tinhão  feito  assaz  em  chegar  com  os  bárbaros  ao  estado 
presente :  e  que  sendo  agora  já  confederados,  e  tributários  ao  Rei  de  Por- 
tugal, seria  affronta  do  nome  Portuguez  sofrer  que  á  vista  das  rèspublicas 
estejão  offendendo  ao  Criador  em  acções  condemnadas  por  dii^eito  da  na- 
tureza, como  he  a  de  comer  hum  liomem  a  outro.  Que  os  tigres  não  offen- 
dem  a  lei  da  razão  em  semelhantes  actos,  porém  os  homens  sim;  e  n"este 
crime  devem  e  podem  ser  refreados:  d'outra  maneira,  o  rpie  n"elles  he 
l.)arbaria,  fica  em  uíjs  sendo  impiedade,  ou  medo.  E  da  mesma  maneira  se 
devem  impedir  as  injustiças  que  commettem,  fazendo  guerra  levemente  a 
outros  nossos  confederados,  que  vivem  confiados  em  nossa  protecção.  Dei- 
xem, deixem  prohibir  essa  gula,  essas  guerras;  ajuntem-se  embora  em  po- 
vos: que  temos  hum  Deos  grande,  que  não  pôde  deixar  de  estar  .da  parte 
dos  que  acodem  por  sua  honra  e  santa  lei.  Que  os  primeiros  que  aventu- 
ravão  as  vidas  vinhão  a  ser  os  Padres  da  Companhia,  pois  havião  de  ha- 
bitar entre  elles:  que  se  houvessem  por  esta  causa  de  levantar-se,  sobre 
suas  cabeças  em  primeiro  lugar  havia  de  cahir  o  rigor :  e  pois  c[ue  elles 
desarmados  não  temião  seus  arcos  mais  ao  perto,  não  tinhão  que  temer  ao 
longe  tantos  armados  Portugueses.  O  coração  do  Governador  era  pio,  de 
gi'andes  esperanças  em  Deos :  mandou  executar  seu  bando  cm  rigorosa  ob- 
servância; e  com  effeito  se  forão  reduzindo  os  bárbaros  a  cjuatro  poderosas 
aldeãs,  de  S.  Paulo,  de  Santiago,  S.  João,  e  Espirito  santo;  e  começarão 


DO  KSTADO  DO  lillASIL  (A.N.NO  DE   loijH)  141 

a  viver  com  mais  policia,  accommodaiido-se  aos  novos  preceitos,  fazendo 
Igrejas,  e  admittindo  Padres. 

S3  Havia  comtudo  hum  índio  grande  Principal,  por  estremo  sojjerbo, 
e  arrogante,  assi  pela  multidão  de  seus  arcos,  como  pelo  sitio  aspérrimo, 
o  defensável  em  que  vivia :  chamava-se  eníi'e  os  seus  Cururupebá,  que  em 
nosso  fallar  vem  a  dizer  «Capo  buíador:»  lançava  grandes  arrogâncias  con- 
tra os  Portugueses :  dizia  que  erão  covardes,  que  não  se  atrevião  a  provar 
suas  forças,  que  não  se  lhe  dava  de  seus  mandatos,  que  havia  conservar 
seus  antiguos  ritos,  matar,  e  comer  em  terreiro  seus  inimigos ;  e  que  o 
mesmo  faria  aos  Portugueses,  quando  quizessem  impedir-lhe  acções  tão 
generosas.»  Yierão  estas  arrogâncias  ás  orelhas  do  Governador  Mem  de 
Sá,  entendeo  que  era  este  Ijarbaro  de  mão  exemplo  aos  mais;  determinou 
executar  n'elle  tal  castigo,  que  servisse  de  abater  os  fumos  a  tão  grando 
soberba,  e  meter  em  espanto  os  que  quizessem  imital-o.  Escolheo  soldados 
resolutos,  deo-lhes  ordens  secretas,  e  quando  menos  o  imaginou  achou  so- 
jjre  si  o  arcabuz  dos  Portugueses  aquelle  arrogante ;  porque  dando  de  re- 
pente em  suas  aldeãs,  enchendo  os  ares  de  estrondo,  fogo,  e  pelouro, 
meterão  em  confusão  os  que  descuidados  dormião,  e  quando  quizerão 
pôr-se  em  defensa,  estavão  prevenidos  seus  arcos,  entradas  suas  casas, 
mortos,  e  feridos  os  que  podião  fazer-lhes  resistência:  os  mais  fugindoi|)elo 
escuro  da  noite  se  forão  aos  mattos,  deixando  só,  e  desamparado  o  pobre 
Capo  Principal,  o  qual  desencovado  donde  pretendeo  esconder-se,  foi  to- 
mado ás  mãos,  posto  cm  prisões  apertadas,  e  trazido  á  cidade,  onde  nem 
já  bufava,  nem  mordia,  nem  se  inchava  do  vento  de  sua  natural  fantasia. 
Foi  presentado  ao  Governador,  e  metido  em  áspera,  e  comprida  prisão. 
iJivulgou-se  a  fama  do  castigo,  sérvio  de  exemplo  e  terror  a  todos.  Quaes 
ovelhas,  que  virão  com  seus  olhos  o  lobo  fazer  carniçaria  da, que  seguião 
por  mestre  do  rebanho,  cheas  de  medo,  vão  como  espantadas  metcr-se 
em  seus  curraes,  não  ousão  saliir,  nem  dentro  d'elles  se  dão  por  seguras: 
assi  ficarão  todos  os  demais  índios,  á  vista  do  castigo  severo  d'aquelle 
maioral. 

r>4  No  mesmo  t('mi)0  cm  fjue  mandara  lançar  bando  das  leis  de  rigor  con- 
tra os  índios,  piomulgou  outras  em  favor  dos  mesmos,  que  fossem  postos 
em  sua  liberdade  todos  aquelles,  que  contia  justiça  estavão  em  servidão 
f<.'itos  escravos  de  Poi-liigucses :  e  na  execução  d"('Sla  lei,  mostrou  finezas 
em  ílefensãíj  dos  índios.  Estcví;  i-ei}elde  a  este  decreto  hum  homem  pode- 
roso da  terra,   reiíugnava  largar  de  si  os  <iue  já  linha  i»or  escravos,  cer- 


142  LIVRO  11  DA  CIIRONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

cou-lhe  a  casa  de  soldados,  chegou  a  dar  ordem  que  fosse  batida,  c  lan- 
çada por  terra;  e  se  executara  sem  duvida,  se  convertido  a  melhor  pare- 
cer não  obedecera  o  poderoso.  Vião  os  índios  esta  igualdade  no  Go- 
vernador, que  tão  constante  era  pêra  enfrear  seus  excessos,  como  pêra 
desafrontar  seus  aggravos,  levarão  em  bem  suas  resoluções,  e  muito  mais 
a  do  successo  seguinte. 

55  Vierão  queixas,  que  certos  índios  contrários  aos  que  já  vivião  em 
aldeãs,  íizerão  treição  aos  moradores  d'ellas,  matando  Ires  súbditos  seus, 
que  sem  máo  dolo  estavão  pescando  em  huma  praia,  e  depois  de  mortos 
os  comerão.  Aqui  entrou  em  zelo  de  justiça  o  christianissimo  Governador, 
sentindo  mais  o  desacato  da  honra  de  Deos,  que  o  de  seu  bando.  Era  em- 
presa esta  mais  arriscada;  porque  por  huma  parte  havia-o  com  gente  fe- 
roz, temerosa,  senhora  de  muitos  milhares  de  arcos,  de  mais  de  trezentas 
aldeãs,  que  habitavão  as  ribeiras  do  rio  Paraguaçú,  que  vem  descendo  do 
mais  interior  do  sertão,  e  se  dão  as  mãos  huns  a  outros  (que  d'estes  erão 
os  aggressores  do  delicto.)  Por  outra  parte  estavão  á  mira  os  índios  offen- 
didos  a  ver  como  castigavão  nossas  armas  caso  que  tanto  prohibião.  Era 
força  que  quando  estas  não  tomassem  vingança,  o  fizessem  as  suas,  com 
vilipendio  nosso,  e  maiores  estrondos  da  teri'a.  Tudo  ponderou  o  destro 
Capitão :  mandou  consolar  os  aggravados,  e  assegural-os,  que  descuidassem 
da  satisfação,  que  n'ella  estavão  empenhadas  suas  armas :  e  aos  contrários 
despedio  mensageiros  pedindo  os  delinquentes  pêra  que  fossem  castigados, 
na  mesma  forma  em  que  aggravárão;  porque  de  outra  maneira  seria  força 
pagassem  todos  o  delicto  de  poucos.  Metteo  em  temor  a  resolução  da  em- 
baixada, quizerão  obedecer  os  Principaes,  e  entregar  os  homicidas:  porém 
elles  apparentados,  revolverão  os  povos  vizinhos,  fizerão-se  com  elles  hum 
corpo,  apostados  a  defender-se  antes,  e  libertar  por  armas  costume  tão 
honrado,  e  acção  tão  heróica,  como  a  de  matar  seus  inimigos,  e  comer 
suas  carnes.  A  reposta  foi,  que  não  havião  de  entregar  os  delinquentes, 
que  fossem  os  Portugueses  lá  buscal-os. 

56  Aqui  torna  agora  a  segunda  desconfiança  do  vulgo.  Sabião  a  grande 
força  d'aquelles  bárbaros,  e  dizião,  que  estavão  postos  em  armas,  que  ap- 
pellidavão  em  seu  favor  o  sertão,  e  que  podia  por  aqui  occasionar-se  a 
ruina  de  nossa  gente,  por  desaggravar  infiéis:  que  menos  mal  era  que  el- 
les se  desaggravassem  a  si,  e  não  caliisse  sobre  nós  o  perigo.  Porém  o 
Capitão  Mem  de  Sá  animado  de  seu  esforço  natural,  e  dos  forçosos  argu- 
mentos de  Nóbrega,  que  com  grande  conliança  no  Ceo  lhe  pronoslicava  a 


\ 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (anXO   DE   '15o8)  li^ 

victoria;  mandou  formar  exercito,  e  com  ajuda  dos  mesmos  aggravados 
(acompanhados  do  Pad)'e  António  Rodrigues,  grande  lingoa  brasilica)  foi 
clle  mesmo  accommeter  os  inimigos  arrogantes.  Desembarcou  a  soldadesca 
em  suas  praias;  mas  o  lugar  onde  liavião  de  começar  a  pelejar  estava  mui 
distante,  que  tinhão  retirado  a  gente  mais  ao  interior  do  sertão  entre  mal- 
tas espessas,  por  onde  hum  soldado  síjmente  não  achava  caminho,  quanto 
mais  hum  exercito :  foi  necessário  ir  abrindo  estradas  á  força  de  machado, 
e  fouce,  subindo  montes,  baxando  valles,  passando  rios  e  alagoas  moles- 
tas por  todo  hum  dia,  e  huma  noite.  Eis  c]ue  aos  primeiros  raios  da 
aurora  apparece  o  lugar  que  buscavão.  Era  este  a  eminência  de  huma 
serrania  cercada  toda  em  contorno  de  madeiros  grossos,  e  muitos  milha- 
res de  bárbaros  a  som  de  guerra,  empenados,  e  arrogantes,  c[ue  batendo 
os  arcos,  enchendo  os  montes  de  vozaria,  assovios,  e  búzios,  provocavão  a 
guerra.  Nada  porém  acovardou  o  esforçado  coração  de  IMem  de  Sá :  man- 
dou tocar  a  accommeter,  dividido  o  esquadrão  por  dous  lados,  e  logo  por 
hum,  e  por  outro  sentio  o  bárbaro  apertadamente  o  rigor  de  nossa  arca- 
buzaria: resistião  comtudo  valentemente,  tendo  por  si  a  melhoria  do  sitio, 
e  numero  dos  soldados,  que  erão  iníinitos.  Pelejou-se  tempo  considerável 
com  vários  successos  de  fortuna,  até  que  por  fim  enfraquecidos  e  diminuí- 
dos os  bárbaros,  voltarão  as  costas,  e  derão  a  fugir  i)elas  mattas :  porém 
nem  estas  lhes  forão  de  refugio;  porque  os  índios  aggravados,  que  pelejá- 
vão  de  nossa  parte,  lhes  seguirão  o  alcance,  e  quaes  lobos  assanhados  em 
ovelhas  medrosas,  desgarradas,  fizerão  estrago  lastimoso,  e  tingirão  a  ver- 
dura de  sangue. 

57  Pare  aqui  o  furor  militar :  ponderemos  hum  caso,  que  mostra  bem 
o  zelo  christão  do  nosso  Capitão  Mem  de  Sá.  Ouvio  no  meio  doeste  estron- 
do, que  hum  dos  corpos  que  jazião  prostrados  do  inimigo  tinha  menos 
hum  l)raço :  suspeitava-se  que  liio  cortara  outro  índio  contrário  pêra  co- 
mel-o  em  vingança;  foi  esta  a  maior  das  [lenas  (jue  sentio  na  empresa; 
parou  com  os  ai)plausos  da  victoria,  e  refeição  dos  corpos,  em  quanto  este 
ponto  de  honra  de  Deos  não  se  remediava :  mandou  lançar  pregão,  que 
sob  pena  de  morte  fosse  restituído  o  braçx)  dentro  em  tantas  horas:  e  foi 
com  cITeito;  poríjue  dentro  do  temjío  destinado  se  achou  o  braço  junto  ao 
cori)o  do  defunto,  restituindo  igualmeiit(5  com  elle  o  alento  ao  (Capitão.  En- 
tão gozou  dos  vivas  da  victoria,  louvou  o  esforço  dos  soldados,  e  ordenou 
que  tomassem  refeição,  e  descanso. 

08    Porém  não  parou  aqui  a  \icú)riii :  pai^sou  a  noite,  e  ao  raiar  da  ai- 


144  LIVI\0  II  DA  CHRONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

va  seguinte  tornão  a  ir  rompendo  as  maltas,  passando  altas  serras,  e  pro- 
fundos valles,  abrindo  vias  por  arte  de  aguliião,  apostados  os  vencedores, 
ou  a  perder  a  vida,  ou  a  acabar  de  huma  vez  com  aquella  que  chamavão 
gadelha  e  ronco  do  gentilismo  da  Bahia.  E  na  verdade  acharão  o  que  cui- 
davão;  porque  estava  feito  em  lium  corpo  o  mais  granado  de  duzentas  al- 
deãs, empenliados  a  vencer,  ou  morrer.  A  eminência  de  sua  defensão  es- 
tava fundada  sobre  cabeços  de  altos  montes,  que  parecia  competião  com 
as  nuvens :  suas  raizes  estavão  cercadas  de  liuma  alagoa,  qual  outra  Esly- 
gia,  chea  de  horror,  e  espanto,  grossos  vapores,  e  profundas  agoas,  que 
se  despenliavão  em  hum  rio  furioso,  impossivel  de  vadear.  A  primeira 
diíliculdade  das  agoas  se  venceo  depois  de  algumas  traças :  a  segunda  pa- 
recia insuperável;  porque  erão  os  montes  alcantilados,  como  cortados  á 
enxada.  Comtudo,  fazendo  primeiro  huma  breve  falia  o  Capitão  aos  Por- 
tugueses, e  o  Padre  António  Rodrigues  aos  índios,  deu-se  sinal  a  accom- 
meter,  debaixo  do  nome  vivifico  da  Sant;\  Cruz,  que  arvorarão,  e  appelli- 
dárão.  Subião  trepando  de  pés  e  mãos  pegados  a  raizes  que  forão  das 
arvores.  Bramia  o  furor  do  gentio,  lançava  penedos  pelo  monte  abaixo,  mas 
com  pouco  effeito;  porque  prohibirão  nossos  arcabuzes  a  continuação  de  al- 
gumas partes  mais  seguras.  Chegarão  por  fim  os  primeiros  aventureiros,  de- 
fenderão o  passo  da  entrada  a  outros,  estes  aos  últimos,  e  entrarão  á  força. 
Representou-se  aqui  huma  tormenta  fera :  a  vozaria  descomposta  dos  bár- 
baros, e  o  estrondo  de  nossa  arcabuzaria  por  entre  aquellas  mattas  espes- 
sas, enchíão  tudo  de  pavor,  e  espanto-:  a  frecharia,  a  modo  de  nuvens,  e 
chuveiros,  cobria  o  sol :  até  que  vendo  o  inimigo  o  terreiro  alastrado  de 
corpos  mortos,  de  maneira  que  já  impedião  os  vivos,  largarão  a  força,  va- 
lendo-se  dos  pés,  e  das  brenhas :  porém  debalde;  porque  forão  seguidos, 
com  tão  graníle  terror,  que  se  affirma,  que  matava  o  pai  ao  filho  peque- 
no, porque  não  fosse  descobridor  com  seu  choro  da  vereda  por  onde  se 
escondia :  e  que  foi  tão  grande  a  mortandade,  que  não  podião  contar-se  os 
mortos. 

59  Com  estas  victorias  voltarão  á  cidade,  e  foi  n'ella  recebido  o  Go- 
vernador Mem  de  Sá  como  homem  mandado  do  Ceo,  pêra  honra,  desag- 
gravo,  e  quietação  do  Estado,  e  açoute  do  gentio  rebelde.  Fizerão  publi- 
cas acções  de  graças,  e  virão  os  que  forão  de  contrario  voto,  que  não  era 
debalde  a  confiança  do  Governador,  e  Padre  Nóbrega,  cuja  prudência  e 
zelo  ficou  daqui  em  mais  veneração :  e  com  mais  espanto  quando  depois 
de  passados  três  dias  appareceo  á  vista  da  cidade  embarcação  de  Para- 


1)0  F.STADO  DO  BRASIL  (annO  DE  iooQ)  145 

guaçíi,  e  fez  sinaes  de  paz.  A  embaixada  era,  que  traziâo  presos  os  delin- 
quentes causa  de  todas  estas  revolta*,  pêra  que  n"elles  tomassem  vingança 
como  lhes  parecesse,  e  concedessem  pazes  á  gente  que  restava,  que  se 
obrigava  a  guardar  dalli  em  diante  as  leis  promulgadas,  e  todas  as  mais 
condições,  que  quizessem  impor-llie :  que  logo  querião  unir-se  a  aldeãs,  e 
admittir  Padres,  que  lhes  ensinassem  a  Fé,  e  fazer-lhes  Igrejas,  e  casas. 
Dobrou  este  successo  a  geral  alegria,  especialmente  a  de  Nóbrega,  como 
mais  empenhado;  e  não  se  fartava  de  fazer  novas  acções  de  graças. 

GO  Tornemos  agora  a  nossos  Missionários.  Ajudados  de  tão  boas  ven- 
turas, hião  cada  dia  acrescentando  as  Igrejas  dos  índios,  presidiando-as 
com  soldados  da  espiritual  milícia,  e  produzião  grandes  frutos,  convertendo 
e  bautizando  copioso  numero  de  almas.  Á  vista  d"eslas  melhorias  parecia 
que  resuscitava  o  Padre  Nóbrega  das  continuas  enfermidades  que  padecia, 
e  com  tal  excesso,  que  a  qualquer  outro  derribarão  em  terra :  porém  o 
fervor  do  espirito  era  outra  como  segunda  alma  d"este  varão,  e  esta  lhe 
dava  o  alento,  com  que  corria,  e  discorria  por  todas  as  aldeãs  (que  erão  já 
muitas)  visitando-as,  anímando-as,  eonsolando-as,  e  sempre  a  pé  com  seu 
lx>rdão  na  mão,  fazendo  pasmar  até  os  índios  a  eíDcacia  de  seu  espirito- 
incansável. 

01  Da  Capitania  de  S.  Vicente  vinhão  cada  dia  apertados  avisos,  de 
como  05  Franceses,  que  desde  o  anno  de  1356  occupavão  a  enseada  do 
Rio  de  Janeiro,  hião  cada  vez  mais  apoderando-se  do  sitio,  drogas  da  ter- 
ra, e  commercio  dos  índios,  os  quaes  â  vista  das  armas  de  França  hião 
crescendo  em  suas  insolências,  e  discorrião  toda  a  costa  em  damno  dos 
nossos.  Dizião,  que  tinhão  já  cercado,  e  entrincheirado  todo  o  sitio:  que 
entravão  por  sua  barra  cada  dia  soccorros  de  França :  que  hião  lavrando 
fortaleza  em  huma  ilha  perto  da  barra,  com  que  ficarião  inexpugnáveis :  e 
outras  cousas,  que  em  semelhantes  occasiões  sempre  se  exaggerão,  e  me- 
tião  terror  aos  nossos. 

02  Na  Capitania  do  Espirito  santo  fx:cupavão-se  os  nossos  em  trazerem 
das  brenhas  os  Temiminós,  que  dissemos  fugirão  pêra  ellas  por  máo  tratto 
de  alguns  Portugueses,  e  dissenções  que  tiverão  entre  si :  e  em  concertar 
as  desordens  dos  índios  do  sertão;  no  (fue  podião  menos,  por  sua  barbara 
ferocidade,  e  menos  conhecimento  dos  Padres.  E  nada  mais  achamos  por 
hora,  nem  desta,  nem  da  Capitania  de  Porto  seguro. 

Gíi    Não  correo  menos  venturoso  o  ánno  de  loo9  que  o  antecedente  de 
r>j8;  porque  se  no  antecedente  recebeu  a  Bahia  hum;»  cohunna  secular  do 
VOL.  I  IO 


i  46  LIVRO  II  DA  ClíRONICA  DA  COMPANHIA  BE  JESU 

Estado,  e  conversão  da  í,'entilidado ;  n'este  presente  anno  recebeo  o  Esta- 
do, e  conversão  da  gentilidade  outra  columiia  ecdesiastica  mui  necessária, 
o  venerável  Prelado  D.  Pedro  Leitão,  segundo  Bispo  do  Brasil.  Chegou  este 
Prelado  á  cidade  da  Bahia  em  9  de  Dezembro  de  15u9,  segundo  o  registo 
de  sua  provisão,  que  achei  lançada  no  Livro  da  fazenda  real,  por  mais  que 
outros  queirão  variar  este  tempo.  Suas  saudosas  memorias  pregoão  aos 
que  hoje  vivemos  grandes  exemplos;  principalmente  no  zelo  eflicaz  da  con- 
versão da  gentilidade,  em  cuja  execução  sabemos  que  ajudou  muito  aos  Pa- 
dres da  Companliia,  chegando  elle  a  bautizar  por  suas  mesmas  mãos  mui- 
tos índios  em  nossas  aldeãs ;  e  fazendo  outras  muitas  acçijes  de  Prelado 
exemplar,  e  santo,  que  eu  folgara  de  haver  por  menor,  assi  como  me  cons- 
tão  por  fama. 

C4  Em  companhia  do  ditto  Prelado  vierão  em  soccorro  d'esta  seara  do 
Senhor  sete  obreiros :  dous  Padres,  e  cinco  Irmãos :  o  Padre  João  de  Mel- 
lo, e  o  Padre  Dicio,  com  os  Irmãos  Jorge  Rodrigues,  Ruy  Pereira,  Joseph, 
Crasto,  e  Vicente  Mestre.  D"estes  obreiros  os  menos  servirão  a  Companhia 
n'esta  missão;  porque  o  Padre  Dicio  não  melhorando  de  certos  accidentes 
graves  que  tinha,  foi  tornado  a  mandar  a  Portugal :  o  Irmão  Joseph  falle- 
ceo  em  breve  no  Collegio  da  Bahia;  Crasto,  Ruy  Pereira,  e  Vicente  Mes- 
tre, não  provarão  no  trabalho  e  zelo  necessário  das  almas,  e  forão  despe- 
didos. Trazião  novas  como  fora  eleito  em  Roma  por  Geral  de  nossa  Com- 
panhia o  Padre  Diogo  Laines,  varão  notável  em  letras,  e  santidade,  em 
lugar  de  nosso  Santo  Patriarcha  Ignacio  de  boa  memoria ;  e  juntamente 
cartas  suas,  em  que  louvava  os  bons  progressos  dos  que  trabalhavão  no 
Brasil,  e  animava  a  proseguir  a  empresa.  Trazião  além  d"isto  patente,  em 
que  fazia  Provincial  d'esta  Província  ao  Padre  Luis  da  Gram,  que  então 
assistia  em  S.  Vicente;  porque  se  achava  o  Padre  Nóbrega  annos  havia  mui 
quebrado,  e  opprimido  de  muitas  doenças,  e  lançava  sangue  pela  boca. 
Com  estas  cousas  todas,  especialmente  com  a  eleição  do  Padre  Luis  da 
Gram,  se  alegrou  intimamente  o  venerável  velho,  assi  porcpie  tinha  grande 
conceito  dos  dotes,  zelo,  e  prudência  do  novo  Provincial,  como  porque  sua 
grande  humildade  o  fazia  desconhecer  os  seus :  condição  sabida  de  varões 
santos,  em  cujos  olhos  avultão  os  talentos  alheos,  e  parecem  argueiros  os 
próprios.  Não  era  isto  desejo  de  descansar,  como  n'esta  historia  veremos; 
mas  erão  desejos  de  ver-se  súbdito,  e  viver  sujeito  ao  mandado  d'outro, 
por  cujo  estado  havia  annos  suspirava,  e  o  pedia  com  anciãs  a  Deos,  e  a 
Roma. 


to  ESTADO  DO  BftASiL  (aNNO  DE   Ioo9)  141 

63  Já  neste  tempo  passavão  de  quarenta  os  obreiros  desta  Província.  Com 
OS  que  de  novo  chegarão  á  medida  do  fervor  de  suas  petições,  foi  reforçando 
o  Padre  Nóbrega  as  residências  dos  Índios,  pondo  em  todas  eilas  lium  Pa- 
dre, e  hum  Irmão;  com  que  hia  em  grande  crescimento  o  negocio  das  al- 
mas. Já  se  achavão  índios  nas  aldeãs,  dos  quaes  se  podia  liar  o  serem  mes- 
tres do  Gathecismo,  e  de  outros  o  serem  Pregadores  da  Fé.  Entre  estes 
foi  mui  nomeado  hum  Principal  por  nome  Garcia  de  Sá :  a  este  concedeo 
o  Ceo,  depois  de  convertido,  a  semelhança  de  hum  espirito  de  S.  Paulo 
pêra  converter  os  de  sua  nação;  e  poz  tanta  graça  em  suas  palavras,  que 
suspendia  aos  índios,  e  os  trazia  como  a  l)andos  a  procurar  o  bem  de  suas 
almas,  em  grande  ajuda  dos  trabalhos  dos  Padres.  Gom  a  pregação  d'este  índio 
se  mudarão  pêra  sitio  mais  commodo,  e  unirão  em  gente  duas  aldeãs,  que  em 
tempo  do  Governador  D.  Duarte  da  Gosta  se  tinhão  formado :  a  do  Rio  ver- 
melho se  passou  pêra  mais  perto  da  cidade,  e  se  unio  alli  com  algumas 
outras  aldeãs  pequenas,  fazendo  huma  povoação  grande,  com  casa  de  Pa- 
dres, e  Igreja;  e  a  esta  se  poz  por  nome  S.  Paulo.  Outra  chamada  de  S. 
Sebastião,  com  outras  mais  pequenas  forão  formar  outra  povoação  nume- 
rosa junto  a  Pirajá,  três  legoas  da  Gidade,  com  casa  de  Padres,  e  Igreja,  a 
que  poserâo  por  nome  San-Tiago. 

G6  Em  S.  Vicente  vivião  n'este  tempo  os  nossos  com  menos  fruto  que 
desejos,  por  causa  das  perturbações  da  costa,  nascidas  da  vizinliança  dos 
Franceses  do  Rio  de  Janeiro,  que  se  bem  até  então  não  fazião  per  si  guer- 
ra offensiva,  á  sombra  porém  d'ellcs  andavão  insolentes  os  Tamoyos,  dis- 
corrião,  e  perturba  vão  toda  a  costa.  Accrescentou-se  aqui  aos  nossos  ou- 
tro trabalho,  efoi  o  seguinte.  Tinhão  fugido  do  Rio  de  Janeiro  ao  GapitãoVil- 
lagailhon,  quatro  soldados  todos  hereges,  os  quaes  elle  queria  castigar  por 
erros  commetidos  (porque  era  Gapitão  catholico,  zeloso  de  justiça,  e  vin- 
gador dos  aggravos  que  se  fazião  aos  índios,  principalmentea  mulheres:) 
chegarão  estes  a  S.  Vicente,  e  forão  alli  bem  recebidos  dos  Portugueses, 
com  titulo  de  estrangeiros,  e  também  de  catholicos,  segundo  ao  principio 
mostravão.  Porém  clles  começarão  logo  a  vomitar  a  peçonha  que  no  peito 
trazião  escondida,  da  doutrina  do  pérfido  Galvino;  t)orque  hum  delles  es- 
pecialmente, por  nome  João  Boles,  homem  douto  na  lingoa  latina,  grega, 
e  hebrea,  versado  na  sagrada  Escriltura,  adulterada  ao  modo  de  sua  falsa 
seita,  faltava  sinistramente  das  Imagens  santas,  Indulgências,  Bulias,  Pon- 
tífice, e  Igreja  Romana,  diante  de  homens  simples,  ao  principio  em  secre- 
to, depois  em  pubhco,  c  tudo  islo  misturado  com  taes  g['aças,  o  diltos, 


1 18  u\nó  II  DA  cnr.ONicA  da  companhia  de  tesv 

que  alegrava  aos  que  o  oiivião,  o  parocião  bem  aos  ignorantes;  porque  fal- 
iava  destro  liespanliol,  e  folgavão  de  ouvir  sua  lábia. 

07  Chegarão  estas  noticias  ao  Padre  Luis  da  Gram,  que  eslava  em  Pi- 
ratininga,  e  em  continente  se  partio  por  acudir  ao  principio  d'esta  peste, 
que  quando  cliegou,  já  tinha  inficionado  as  povoações  maritimas,  e  levado 
apôs  si  a  gente  ignorante.  Soube  o  herege  d'esta  vinda,  e  como  era  astuto 
e  manhoso,  e  conhecia  o  zelo,  e  letras  do  Padre,  arreceou-se,  e  fez  logo 
huma  invectiva  contra  elle,  cujo  principio  linha  estas  palavras :  aAdeslemi- 
hi  Ccelites,  afferle  gládios  anclpites  ad  fticiendam  vlndidam  In  Liiduvicvm  Dei 
osorem,  ele.  Na  qual  o  arguia  gravemente,  porque  deixava  de  dar  o  pão  da 
íloutrina  da  palavra  de  Deos  aos  Portugueses,  por  dal-o  aos  gentios,  con- 
tra a  doutrina  de  S.Paulo,  que  primeiro  manda  principiar  a  doutrina  chris- 
tãa  pelos  que  são  de  nossa  nação,  e  depois  pelos  que  são  estranhos.  A  in- 
tenção d'este  herege  era,  exasperar  o  animo  do  povo  contra  o  Padre  Gram, 
por  faltar  á  sua  doutrina  pela  dar  aos  índios:  e  juntamente  o  animo  do 
Padre;  porque  se  fosse  reprehendido,  ou  accusado  delle,  lhe  pudesse  in- 
tentar suspeições.  Porém  o  espirito  d'este  servo  de  Deos,  que  ardia  em  vi- 
vas chammas  por  acudir  a  sua  honra ;  o  mesmo  foi  chegar,  que  declarar- 
se  nos  púlpitos,  nas  praças,  no  publico  e  secreto,  e  confutar  as  heregias 
do  homem  atrevido;  desenganando  ao  povo  rude  de  suas  falsidades,  amoes- 
tando-o  que  se  guardasse  d'elle  como  da  mesma  peste. 

68  Determinou  o  herege  sagaz  de  ir  visitar  ao  Padre,  que  estava  n'ou. 
tra  villa  vizinha,  por  ver  se  podia,  ou  abrandal-o,  ou  irrital-o  totalmente 
pêra  seus  intentos:  porém  não  succedeo;  porque  chegou  a  tempo  em  que 
estava  pêra  subir  ao  púlpito,  e  vendo-o,  deo-lhe  tal  vigor  seu  espirito,  que 
de  repente  mudou  a  pregação,  accoínmodando-a  ao  novo  ouvinte,  como  se 
muito  tempo  d"antes  a  estudara  ao  mesmo  intento.  Ficou  suspenso  o  here- 
ge, tornou-se  ás  boas,  e  acabada  a  pregação,  foi  praticar  com  o  Pregador 
familiarmente,  fingindo-se  em  tudo  Catholico,  e  dando  escusas  a  seus  dit- 
tos  frívolos.  Porém  Gram,  que  entendia  bem  seus  embustes,  e  sabia  que 
lavrava  a  peste  em  occulto,  e  que  já  o  vulgo  ignorante  chegava  a  dizer  que 
Boles  era  homem  doutíssimo,  que  o  Padre  Gram  não  ousava  disputar  com 
eUe,  que  o  perseguia  pela  invectiva  que  lhe  fizera,  e  cousas  semelhantes : 
apertou  com  a  justiça  ecclesiastica ;  e  depois  de  muitas  exhortações,  e  pro- 
testos, acabou  que  se  intendesse  contra  elle,  e  fosse  preso,  e  remettido  ao 
Bispo  da  Bahia.  Assi  se  fez,  e  dous  companheiros  moços,  e  idiotas  forão 


DO  ESTADO  DO  UHASIL  (ANNO  DE   1559)  149 

com  elle:  c  ficou  na  terra,  onde  vivco  por  muitos  annos  com  mostras  de 
liei  Catliolico. 

()9  Em  Dezembro,  íim  d"este  mesmo  anno,  cliegou  ás  mãos  do  Padre 
Gram  a  patente  que  acima  dissemos,  do  cargo  da  Provincia,  mandada  da 
Bailia  pelo  Padre  Nóbrega.  Houve  de  obedecer;  porque  nem  as  occasiurs 
nem  a  distancia  do  lugar  sofrião  escusas :  e  ajuntando  os  Religiosos  todos 
na  CapcUa  do  GoUegio;  lha  manifestou ;  e  por  principio,  e  protestação  da 
amor  fraterno,  com  que  determinava  governal-os,  Unes  beijou  alli  os  pés, 
e  pedio  com  lagrimas  ajudassem  a  suas  fracas  forças ;  e  logo  leo  também 
a  carta  do  novo  eleito  Geral  o  Padre  Diogo  Laines,  na  qual  animava  aos 
que  levavão  ás  costas  a  cruz  da  convereão  dos  natm-aes  d>sta  Provincia, 
e  os  exliortava  a  vencer  as  difficuldades  da  empresa ;  especialmente  as  dos 
duros  corações  dos  índios :  e  que  tivesse  cada  hum  pcra  si,  que  n*este  ne- 
gocio toda  a  missão  dependia  s6  d'elle;  e  que  tinrlia  dado  ordem  em  Roma, 
que  se  fizessem  especiaes  sulTragios  pela  Provincia  do  Brasil.  Com  esla 
carta,  e  com  a  pratica  espiritual  que  o  novo  Provincial  sobre  ella  fez,  se 
excitou  em  todos  os  Padres,  e  Irmãos  d"aquella  Capitania  hum  novo  fervor 
de  espirito,  com  que  fazia  cada  qual  por  ser  primeiro  em  procurar  o  que 
era  mais  trabalhoso. 

70  Em  Porto  seguro  vivia  por  este  tempo  o  Padre  Francisco  Pires,  Su- 
perior d'aquella  Residência,  com  fama  de  louvável  virtude,  e  zelo,  cujas 
memorias  ainda  andão  frescas  nos  corações  d'aqiielles  moradores.  Este 
seiTO  de  Deos  foi  aquelle,  que  com  seus  suores,  e  de  alguns  companheiros- 
que  comsigo  tinha,  edificou  alli  a  Capella  tão  aíTamada  de  Nossa  Senhora 
da  Ajuda,  hum  terço  de  legoa  donde  hoje  se  vê  a  villa,  santuário  o  mais 
respeitado  e  frequentado  de  todo  o  Brasil.  N'esta  Capella  foi  o  Senhor  ser- 
vido avincular  hum  prodígio  de  maravilhas:  e  o  principio  d'ellas  foi  o  suc- 
cesso  admirável  seguinte.  Ilião  aquelles  servos  de  Deos  obrando  a  fabrica 
da  Ermida  no  alto  de  hum  monte,  e  íicava-lhes  a  agoa,  assi  pêra  a  obrr, 
como  pêra  beber,  muito  longe :  havião  de  descer  a  buscal-a  ao  baixo  do 
valle,  e  entrar  de  força  pelas  terras  de  hum  morador:  levava-o  este  gravemente, 
dizendo,  que  era  devassar-lhe  sua  fazenda ;  largava  qucMxas  contra  os  Padres, 
B  contra  suas  obras.  Dobravão-lhe  estas  o  trabalho,  e  sentião  mais  a  pai- 
xão do  bom  homem,  que  o  cansaço  de  trazer  ás  costas  a  agoa. 

71  No  meio  deste  sentimento,  he  tradição  desde  aquelles  tempos,  que 
entrarão  os  Religiosos  em  apertados  i'eí|neriinentos  coma  Virgem.  «OhSo- 
iihora»  (dimo)sc  agora  nos  concedêreis  aqui  huma  fonte,  licáiamos nós  ali- 


í")0  LIVRO  II  DA  CimOMCA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

viados,  aqiiclle  homem  assocegado,  e  vossa  obra  iria  por  diante!)  «Eia  irmãos» 
(acrescentou  o  Padre  Nóbrega,  que  então  se  aciíava  presente)  «sabei  ter  fé; 
porque  com  esta  nenhuma  cousa  he  difficultosa :  vamos  a  dizer  missa.»  Cou- 
sa maravilhosa !  Eis  que  no  meio  do  sacriíicio  (que  já  se  fazia  na  Gapella,  pos- 
to que  imperfeita)  ouve  soar  hum  borbolhão  de  agoa,  que  brotando  debai- 
xo do  altar,  foi  sahir  por  meatos  da  terra  fora  da  Ermida  perto  delia  ao  pé 
de  huma  arvore.  Ficarão  admirados  vendo  posto  em  obra  o  segundo  mi- 
lagre de  S.  Clemente,  ou  de  hum  Moysés  no  deserto.  Concorreo  a  ver  a 
fonte  milagrosa  o  recôncavo  todo,  e  entre  estes  o  senhor  da  fazenda,  en- 
vergonhado de  quão  mais  liberal  se  lhes  mostrara  a  Senhora  aos  Religio- 
sos, e  com  agoa  mais  doce,  e  clara,  sendo  a  sua  de  alagoa,  e  mui  some- 
nos :  e  com  esta  como  reprehensão  do  Ceo,  ficou  trocado  pêra  com  os  Pa- 
dres, e  por  toda  a  vida  devoto  especial  da  Comranhia. 

72  Divulgou-se  a  fama  desta  maravilha  por  todo  o  Estado  do  Brasil,  e 
concorrerão  d'ahi  em  diante  a  estas  agoas  milagrosas,  e  santa  Ermida  da 
Senhora  (qual  a  de  Nazareth,  ou  Loreto)  os  povos  todos,  como  a  oíTicina 
de  milagres,  que  experimentavão  a  cada  passo,  e  experimentão  ainda  hoje 
os  que  com  fé  visitão  aquelle  santuário;  e  folgavão  de  ouvir  os  romeiros 
do  mesmo  altar  o  ruido  da  agoa,  que  corre  por  debaixo  da  terra  até  sa- 
liir  a  fonte.  Seria  cousa  muito  comprida  querer  trattar  aqui  por  menor  de 
todas  estas  maravilhas :  poderão  bem  sahir  com  ellas  os  moradores  d'aquel- 
las  partes,  e  farião  hum  grande  volume,  em  maior  honra,  e  gloria  da  Se- 
nhora. Deste  prodigioso  santuário  escreve  o  Padre  Joseph  de  Anchieta :  e 
já  d'aquelle  seu  tempo  antiguo  reconhecia  grandes  milagres.  Porei  suas  pa- 
lavras, como  de  testemunha  tão  fidedigna,  e  porque  recopila  o  que  disse- 
mos: são  as  seguintes.  «O  Padre  Francisco  Pires  foi  Superior  de  muitas  Re- 
sidências, e  assistindo  na  de  Porto  seguro,  na  Ermida  de  Nossa  Senhora, 
que  he  da  Companhia,  e  por  sua  ordem,  e  de  seus  companheiros  se  obrou, 
lhe  fez  a  Senhora  mercê  de  abrir  milagrosamente  aqáella  fonte  tão  aííama- 
da  por  toda  a  costa  do  Brasil,  em  que  se  fizerão,  e  fazem  muitos  milagres, 
sárão  muitos  de  diversas  enfermidades,  aonde  vão  em  romaria  em  busca  de 
saúde,  e  a  achão:  e  outros  pêra  o  mesmo  effeito  mandão  por  agoa  delia.» 
Até  aqui  Anchieta ;  que  mostra  bem  a  fama  das  maravilhas  d'aquelles  tem- 
pos. Escreveo  também  d'este  milagre  Orlandino  liv.  xi,  n.°  76:  e  o  Padre 
Balthasar  Telles  na  primeira  parte  dasChronicas  de  Portugal  liv.  iii,  cap.  8. 
Debaixo  d'aquelle  altar  se  experimentarão  por  outra  via  dobradas  maravi- 
lhas, e  mercês  da  Senhora;  porque  sendo  enterrada  n'este  mesmo  lugar 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (ANXO  DE    l-jOO)  {^j^ 

luima  Imagem  sua  na  occasião  em  que  o  gentio  sal  vagem  assolou  a  villa,  íi- 
cou  aquella  terra  consagrada,  e  segundo  santuário  de  maravilhas  pêra  os  quo 
a  levão  por  relíquias,  e  usão  d"ella  em  suas  necessidades;  que  quiz  a  Virgem 
conspirassem  aqui  em  seus  favores  estes  dous  elementos,  íeri-a,  e  agoa. 

73  Também  o  anno  de  13G0,  cm  que  enti-amos,  teve  a  Bahia  soccorro 
de  obreiros,  como  no  passado.  Yierão  dous  Religiosos  ambos  irmãos,  An- 
tónio Gonçalves,  e  Luís  Rodrigues;  cujo  auxilio,  ainda  que  menor,  foi  de 
consolação ;  porque  aos  que  militão,  qualquer  soccorro  acrescenta  o  animo. 
Continuava  o  Padre  Nóbrega  com  seus  achaques  trabalh(i60s,  mas  não  dei- 
xava a  continuação  da  cultura  da  seara  do  Senhor,  que  corria  com  fiuto 
desejado,  especialmente  nas  aldeãs,  nas  quaes  se  celebrái-ão  este  anno  pas- 
sante de  trezentos  bautismos,  duzentos  matrimónios  da  Lei  da  graça ;  e  se 
descerão  grandes  levas  de  gentilidade  de  seus  sertões,  pêra  a  Igreja  do  Se- 
nhor, não  consta  quantidade  ao  certo. 

74  Fizerão  em  Portugal  grande  ecco  as  relações  do  que  hião  obrando 
os  Francezes  na  enseada  do  Rio  de  Janeiro,  e  de  como  nos  quatro  annos 
antecedentes  se  tinlião  fortificado  com  fortaleza  de  consideração,  quasi  inex- 
pugnável ;  e  que  cada  dia  crescia  o  poder  em  numero  de  índios  Tamoyos 
seus  confederados,  e  soccorros  fjue  lhes  vinhão  de  França;  e  de  como  alli 
se  aproveitavão  e  enriquecião  das  drogas  do  páo  Brasil,  c  outras  muitas,  quo 
pêra  elles  erão  de  grande  valor,  e  a  nós  de  damno:  e  que,  segundo  os  Tamoyos 
solicitaNlío  as  outras  nações  circunvizinhas,  e  crescia  o  numero  de  soldados 
Francezes,  se  podia  temer  que  accomrnetessem  maiores  empresas,  movendo 
dalti  guerra  ás  mais  partes  da  costa.  As  quaes  razões  consideradas  nos  Conse- 
lhos de  Guerra  de  Portugal,  e  communicadas  a  Sua  Alteza  a  Senhora  I).  Ca- 
Iherina  de  Ausíiia,  irmãa  do  Impcradoí'  Carlos  Quinto,  que  por  morte d"El-Rei 
D.  João  seu  marido,  e  de  seu  filho  o  Príncipe  D.  João,  governava  o  Reino  em  lo- 
gar  de  el-Rei  D.  Sebastiáíj  seu  neto,  por  ser  ainda  de  pouca  idade,  man- 
dou ao  Brasil  huma  armada  a  seu  Governador  Mcm  de  Sá,  pêra  que  com 
todas  as  foiças  procurasse  lançar  fora  aquella  ignominia  do  nome  Portu- 
guez. 

75  O  Governador,  que  de  nenhuma  outra  cousn  cuidava,  como  era  de 
coração  generoso,  zeloso  da  liberdade  do  Estado  que  lhe  fora  entregue,  poz 
em  conselho  o  modo  da  execução  do  mandado  real;  e  não  faltarão  pare- 
ceres, que  não  convinha  com  tão  pouco  [)oder  accommeter  inimigo  lãolõi'- 
lilicado;  que  se  devia  dilatai-  o  elTeilíj  até  melhor  occasião,  em  ijue  hou- 
vesse cabedal  seguro.  Menos  mal  hc  (^dizião;  sofrer  o  aggravo  por  algum 


152  LIVRO  lí  DA  CmiONlCA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

tempo  mais,  que  a  ignominia  de  ser  propulsados:  que  era  já  a  potencia  do 
Francez  de  considerarão,  o  sitio  quasi  inexpugnável,  os  auxiliares  quasi  in- 
finitos: que  as  náos,  bastimentos,  e  aprestos  de  guerra  entravão  cada  dia 
de  França,  e  não  se  gastavão.  Por  outra  parte,  que  as  nossas  náos  pêra 
tanta  empresa  erão  poucas,  e  a  soldadesca  de  conta  não  podia  ser  muita, 
nem  demasiados  os  aprestos  de  guerra, 

76  Estas  erão  as  razões  em  contrario:  porém  o  Governador  prudente,  e 
christão,  depois  de  haver  consultado  com  Deos,  e  com  o  Padre  Manoel  da 
Nóbrega  (de  cujcT  virtude  tinha  grande  conceito)  que  lhe  persuadia  a  em- 
presa, e  cfuasi  segurava  a  victoria;  e  vendo  que  quanto  mais  tardasse,  mais  se 
difficultava,  engrossando  o  tempo  as  forças,  e  a  paciência  dos  nossos  o 
animo  ao  inimigo ;  e  que  viria,  não  só  a  defender-se  depois  com  mais  facili- 
dade, mas  também  a  offender  aos  descuidados,  e  ganhar  outras  praças,  com 
maior  ignominia  do  nome  portuguez:  resolveo-se  em  aprestar  a  armada, 
aggregando-lhe  os  navios  que  pôde  ajuntar,  e  barcos  da  costa,  com  a  mór 
quantidade  possivel  de  soldados  Portuguezes  escolhidos,  e  alguns  índios. 
Erão  os  navios  por  todos  (não  faltando  em  barcos)  dez,  ou  onze ;  duas  náos 
de  guerra  principaes,  oito  ou  nove  navios  ordinários.  Com  estes,  entregando  as 
velas  ao  vento,  e  esperanças  ao  Ceo,  se  fez  na  volta  do  Rio  de  Janeiro,  não  obs- 
tante que  alguns  fazião  reparo  na  pessoa,  que  não  parecia  conveniente  arriscar- 
se  com  o  mais  cabedal,  quando  tanto  necessitava  delia  todo  o  Brasil.  Le- 
vava eomsigo  o  seu  fiel  amigo  Nóbrega,  sem  cujo  conselho  nada  determi- 
nava; e  porque  julgavão  também  os  Médicos,  ser  necessário  que  mudasse 
o  clima  da  Bahia  pêra  o  de  S.  Vicente  mais  frio,  por  razão  dos  muitos 
achaques  que  padecia,  especialmente  do  sangue  que  lançava,  com  perigo 
da  vida. 

77  Chegou  a  armada  á  barra  do  Rio  de  Janeiro,  com  prospera  viagem 
(indicio  de  fortuna  prospera)  nos  primeiros  mezes  do  anno  corrente ;  e  sup- 
posto  que  o  conselho  era,  que  logo  em  chegando  no  mais  escondido  da  noite 
se  entrasse  a  barra,  e  de  repente  se  accommetesse  o  inimigo  desacautelado: 
com  tudo,  como  successos  do  mar  são  incertos,  forão  constrangidos  os  nossos  a 
ser  primeiro  avisados  dè  suas  sentinelas,  e  lançar  ferro  por  então  de  fora.  Os 
Franceses  se  poserão  em  preparação ;  e  deixando  todas  suas  náos,  se  recolhe- 
rão á  fortaleza  com  mais  de  oitocentos  frecheiros  Tamoyos;  porque  assi 
com  a  multidão  da  gente,  como  das  armas,  resistissem  melhor  a  nosso  po- 
der. Daqui  paitio  o  Padre  Nóbrega  pêra  S.  Vicente,  por  parecer  de  Mem 
de  Sá,  assi  por  chegar  fraco  do  sangue  que  lançava,  c  ser  necessário  ap- 


I 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (aN.NO  D1^    loOO)  153 

plicar-llie  remédio  com  tempo,  como  também  pêra  que  lá  solicitasse,  por 
Ião  conhecido  na  terra,  algum  soccorro  cie  canoas,  e  índios.  Não  foi  em  vão 
a  esperança  do  Governador ;  porque  a  poucos  dias  andados  vio  que  vinhão 
encorporar-se  com  seus  navios  hum  fermoso  bergantim  artilhado,  com  al- 
gumas canoas  de  guerra,  e  soldados  destros  em  semelhante  género,  IMama- 
lucos,  e  índios,  guiados  de  dous  Religiosos  da  Companhia,  Fernão  Luis,  e 
Gaspar  Lourenço:  com  cuja  vista  se  alentarão  todos  da  armada.  E  com  es- 
te bom  presagio  mandou  o  Governador  Mem  de  Sá  embocar  a  barra  da 
enseada,  apesar  de  toda  a  defensa,  que  llies  impedia  a  entrada:  e  postas 
dentro  nossas  embarcações,  se  forão  preparando  pêra  accommeter  a  forta- 
leza principal  da  ilha,  que  chamãoVillagailhon,  e  parecia  inexpugnável  ;por- 
(jue  tudo  o  que  era  ilha,  era  fortaleza,  e  tudo  o  que  era  fortaleza,  era  ilha  ; 
e  toda  (excepto  hum  pequeno  porto  de  praia)  era  cercada  de  penedia  brava, 
onde  bate  o  mar,  com  cem  braças  de  comprido,  cincoenta  de  largo,  em  cujas 
ultimas  duas  pontas  levantou  a  natureza  dous  cabeços  talhados  ao  mar,  c  no 
meio  de  ambos  hum  singular  penedo,  como  de  quatro  braças  em  alto,  e  seis  em 
contorno.  Da  circunferência  dos  recifes,  e  penedia  d"elles,  tinhão  feito  defensá- 
vel muralha:  dos  dous  cabeços  com  pouco  artificio,  duas  juntamente  naturaes 
e  artificiaes  fortalezas:  e  do  penedo,  hum  pouco  mais  cavado  ao  picão, 
caixa  de  pólvora  segura,  e  constante  contra  toda  a  artilheria.  Horror  cau- 
sou visto  de  perto,  o  que  ao  longe  parecia  mais  fácil. 

78  Soube  porém  o  valor  portugue?.  huma  vez  empenhado  dissimular 
o  medo.  Accometeo  a  todo  o  poder,  e  em  breve  conflicto  ganharão  terra, 
primeiro  degráo  de  victoria:  e  assestando  n'ella  grossa  artilharia,  forão 
batendo  fortemente  por  dous  dias  c  noites  continuas  as  principaes  partes  da 
força;  porém  debalde;  porque  era  viva  a  penedia  accommodada  somente  por 
arte  a  poder  de  ferro,  c  não  era  possível  ser  rendida  por  esta  via.  Tratavão  os 
nossos  já  de  recolher  as  náos,  a  artilharia,  e  retirar-se,  por  esta  causa,  e 
porque  cstavão  feridos  muitos  soldados,  e  principalmente  porque  faltava  já 
o  jielouro,  c  pólvora  i>era  o  combate.  Poiém  vio-se  aqui  o  favor  do  Ceo 
ás  claras:  porque  a  força  que  pode  resistir  ao  pelouro  portuguez,  não  pode  re- 
sistir a  seu  bra<;^:  levado  este  do  brio  natural,  feitos  em  hum  corpo,  arremetté- 
rão  ao  cabeço  principal,  que  olha  pêra  a  barra,  chamado  das  Palmeiras,  e  o  en- 
trarão com  morte  de  nmitos  inimigos.  Com  este  bom  successo  animados accom- 
metêrão  cm  segundo  lugar  ao  penedo,  ([ue  acima  dissemos  servia  de  casa  de 
pólvora,  com  tal  valor,  que  dcsamjtarado  dos  seus,  foi  ganhado,  e  juntamente 
com  elle  perdido  de  lodo  o  animo  dos  I-'iancezcs,  e  Índios,  que  fiados  no 


loi  LIVRO  11  DA  CMRUMCA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

secreto,  e  escuro  da  iiuile,  se  Ibrão  despeiihando  pouco  a  pouco  das 
muralhas  abaixo,  e  embarcados  em  bateis,  e  canoas,  se  acolherão,  parle  ás 
náos,  parle  a  suas  jjreiílias,  deixando  nas  mãos  dos  Portuguezes,  com  a 
fortaleza,  e  aprestos  de  guerra,  huma  das  insignes  victorias  d'aquelles  tem- 
pos. O  dia  seguinte  fez  o  Governador  ]Mem  de  Sá  acção  de  graças  a  Deos 
nosso  Senhor  por  mercê  tão  grande,  celebrando  os  Padres  da  Companhia 
a  primeira  missa  que  vio  aquella  ilha. 

79  Havida  a  victoria,  poz-se  em  consulta,  se  se  havia  de  conservar  a 
força,  ou  não?  Resolveo-se,  que  convinha  antes  arrasal-a,  pela  razão  notó- 
ria aos  prudentes,  que  as  forças  divididas  necessariamehte  se  enfraquecem, 
e  as  com  que  de  presente  nos  achávamos,  não  erão  taes  que  podessera  pre- 
sidiar a  ilha,  resistir  ás  náos  do  inimigo,  que  ficavão,  e  acodir  ás  necessi- 
dades precisas  da  Bahia.  O  que  visto,  conduzida  ás  náos  a  artilharia,  que 
o  Francez  na  força  deixara  em  grande  quantidade,  e  os  mais  despojos  d'el- 
la,  posto  por  terra  tudo  o  que  era  artificial,  e  podia  servir  de  reparo,  de- 
terminou partir-se.  Porem  antes  que  dè  á  vela,  he  bem  façamos  menção  do 
fim  que  houve  hum  soldado,  famoso  entre  muitos  n'esta  empresa,  Capitão  da 
principal  estancia  do  combate,  e  hum  dos  principaes  anthores  da  victoria, 
por  seu  grande  valor,  e  prudência.  Chamava-se  Adão  Gonçalves,  era  mo- 
rador em  S.  Vicente,  dos  mais  ricos  e  poderosos  da  terra:  fora  este  sol- 
dado á  Bahia  depois  do  successo  da  empresa,  trattar  com  o  Governador  Mem  de 
Sá  de  certidões  de  seus  serviços,  a  fim  de  requerer  a  el-Rei,  premio  d'el- 
les.  Porém  são  de  admirar  os  meios  que  Deos  tem  destinados  pêra  predes- 
tinação das  almas.  Quando  andava  mais  occupado  o  nosso  Adão  nas  pre- 
tençijes  que  lhe  prometíia  o  mundo,  ouvio  huma  como  voz  suave  interior, 
que  o  obrigou  a  dar  libello  de  repudio  a  todas  as  grandezas  d"elle,  e  fa- 
zer-se  soldado  humilde  de  outra  milicia  do  Ceo  na  Companhia  de  Jesu.  Tro- 
cou as  petições;  e  a  que  determinava  fazer  a  outros  Tribunaes,  fez  ao  Pa- 
dre Luis  da  Grani,  Provincial  que  n'este  tempo  estava  na  Bahia,  pedindo 
eom  grande  humildade,  e  confusão  da  vida  passada,  ser  admittido.  Vio  o 
cumprimento  de  seus  desejos,  deo  ultimo  vale  ao  mundo,  e  a  todos  os  ha- 
veres que  n"elle  possuía  (e  erão  estes  de  consideração  na  Capitania  de  S. 
Vicente)  e  todos  applicou  pêra  despesas  de  obras  da  Companhia ;  encom- 
mendando-lhe  juntamente  a  educação  de  hum  filho  que  tinha  de  pouca  ida- 
de, que  desejava  estudasse,  e  fosse  participante  com  elle  de  tão  santa  mi- 
licia. Tudo  sahio  á  medida  de  seu  desejo;  porque  era  traça  de  Deos,  pos- 
|o  que  os  meios  parecessem  humanos.  Do  íim  d'este  soldado  que  assi  sou- 


DO  ESTADO  DO  HUASIL  (aNNO  DE    lijGO)  l5o 

be  trocar  as  armas,  dirá  a  historia  em  seu  lugar,  quando  tratar  de  sua  re- 
ligiosa mortí?,  tal  como  a  resolução  cp^ie  tomou. 

80  Do  lillio  diremos  agora  brevemente.  Cbamava-se  este  Bertholameu 
Adão:  encarregou-se  delle  o  Padre  Nóbrega  em  S.  Vicente:  era  de  boa 
Índole,  c  ingenlio,  e  de  melhor  fortuna  do  Ceo;  porque  vio  tudo  quanto 
delle  pretendia  o  pai :  estudou  grammatica,  entrou  na  Companhia,  perse- 
verou na  Religião  até  o  fim  do  curso  da  Philosophía,  e  acabado  este  con- 
cluio  o  da  vida,  com  alguns  princípios  já  da  Theologia,  e  com  venturosos 
sinaes  de  sua  salvação,  segundo  o  deo  a  entender  o  venerável  Padre  Jo- 
sepli;  porque  pedindo-lhe  seu  pai  Adão  no  collegio  do  Rio  de  Janeiro,  que 
applicasse  algumas  missas  por  seu  filho  Bertholameu,  que  era  defunto  na 
Bahia,  como  então  tivera  por  novas:  respondeo  Josepli:  «Cinco  lhe  tenho  já 
oílerecido  logo  quando  morreo;  não  tem  necessidade  de  mais.  «Contém  a  res- 
posta duas  profecias:  porque  nem  podia  saber  humanamente  quando  morreo, 
estando  em  distancia  de  duzentas  legoas,  e  não  tendo  vindo  navio  antes  que  o 
presente:  e  muito  menos  podia  saber,  sem  particular  communicação  do  Ceo, 
que  não  tinha  já  o  defunto  necessidade  de  mais  sacrificios. 

81  Entre  os  índios  se  assinalarão  alguns  no  combate  da  fortalesa.  O 
principal  de  todos  foi  hum,  que  depois  do  bautismo  teve  por  nome  Mar- 
timAffonso.D'este  publica  a  fama,  que  com  os  seus,  de  que  foi  Principal,  e 
Capitão,  fez  façanhas  taes,  que  mereceo  ser  premiado  pelo  Governador  ge- 
ral, e  por  el-Rei,  com  habito  de  Christo,  e  tença,  que  depois  gozarão  tam- 
bém alguns  seus  descendentes.  Do  mesmo  grande  M  artim  AíTonso,  homem 
reverá  de  coração,  e  valor,  como  mais  ao  diante  veremos,  accrescentão  al- 
guns, que  no  conflicto  maior  do  accommetimento  do  penedo  da  pólvora, 
elle  lhe  posera  o  fogo,  attribuindo  a  este  feito  muito  principalmente  a  cau- 
sa de  desmaiarem  os  Tamoyos,  e  apoz  d'elles  os  Franc  eses,  desamparando 
a  fortalesa  com  a  pressa  que  vimos.  Porém  não  acho  em  escrittos  este  fei- 
to notável.  O  certo  he,  que  fez  este  soldado  façanhas  dignas  de  memoria, 
que  até  hoje  duião. 

82  Acabou  Mem  de  Sá  do  preparar  a  armada  pêra  partir-se,  e  n  ão 
sofreo  o  coração  a  este  pio  Governador  tornar-S(;  á  Bahia,  sem  que  pri- 
meiro se  fosse  ver  com  seu  amigo  Nóbrega  a  S.  Vicente,  pêra  agradecer" 

lhe  o  conselho  que  nesta  empresa  lhe  dera,  e  o  soccorro  que  dalli  lhe 

mandara:  e  juntamente  porque  se  adiava  despeso  de  mantimentos,  c  n"a- 

í|u<;IIa  ('apitania  havia  delles  abundância,  e  era  breve  a  viagem,  porque 

ora  tempo  de  monçOes  do  Nordeste.  Deo  á    vela  a  aimada,  e  quando  foi 


lt)0  LlViíO  n  DA  GimOMCA  DA  CaMPAMIlA  DE  JESL' 

no  ultimo  ú(i  Marro  so  adiou  surta  no  porto  de  Santos.  Levou  comsígo  o 
Governador  os  doas  Keligioâos,  que  tinlião  vindo  em  soccorro,  ambos  de- 
bilitados do  trabalho,  e  ambos  doentes  das  incoramodidadcs  do  mar,  e 
guerra:  porém  cm  breve  melhorarão,  e  convalescerão.  Bem  se  deixa  con- 
siderar o  gosto  com  que  se  avistarião  aqui  estes  dous  espirituaes  amigos, 
Mem  de  Sá,  e  Nóbrega.  Deo-lhe  Nóbrega  os  parabéns  da  victoria,  e  deo-Oi» 
elle  também  a  Nóbrega,  dizendo,  «que  se  ei^a  *e  havia  de  attribuir  a  ho- 
mem algum  como  a  instrumento  de  Deos,  a  elfo  era  justo  que  fosse,  pois 
tinha  sido  tão  grande  parte  na  resolução  da  c^nprcsa,  c  tinha  primettido- 
quasi  de  certo  o  effeito  delia.» 

83  Aqui  obrou  o  Padre  Nóbrega  cousas  d^msâ  de' seu  grande  espirito. 
Vinha  a  armada  mui  despesa  de  mantimentos,  a  gente  maltratada  dos  frios- 
e  trabalhos  da  conquista,  c  grande  parte  d'eHa  doente:  a  tudo  se  estendeo 
a  charidade  daquelle,  que  não  tinha  nada  de  seu,  e  tinha  muito  pela  grande 
confiança  em  Deos,  Era  pêra  vèr  o  venerável  velho,  carregado  de  annos, 
e  achaques,  andar  a  pé  de  S.  Vicente  pêra  Santo*,  e  de  Santos  pêra  S.  Vi- 
cente, caminho  como  de  duas  legoas  assas  enfacVjdior  ofa  sobre  agenciai* 
mantimentos  em  soccorro  da  armada;  ora  sobre  remediar  famintos,  neces- 
sitados, e  doentes  delia;  e  as  mais  vezes  a  tra'ttar  com  &  Governador  so- 
bre causas,  litígios,  e  prisões  de  soldados.  Punlia-lhe  diante  dos  olhos  o 
muito  que  tinhão  padecido,  e  a  victoria  que  tinhão  alcançado,  a  fim  de  ha- 
ver-lhes  perdões,  livranças,  e  outros  semelhantes  favores,  E  foi  de  manei- 
ra, que  aqui  ganhou  Nóbrega,  mais  que  em  outra  parte  alguma,  o  ser 
chamado  Pai  dos  necessitados. 

84  Em  quanto  aqui  se  deteve  Mem  de  Sá,  fez  algumas  witras  cousas^ 
a  petição  de  seu  amigo  Nóbrega,  e  do  Padre  Luís  da  Gram.  Foi  huma 
delias,  mandar  mudar  pêra  Piratininga  a  villa  de  S.  André,  distante  ca^ 
minho  de  três  legoas,  por  razões  que  a  isso  moverão  do  servido  de  Deos, 
e  dcl-Rei ;  especialmente  porque  estava  esta  villa  junto  ao  matto,  e  por 
essa  causa  era  assai teada  a  cada  passo  dos  índios  inimigos,  que  habrtavã» 
as  ribeiras  do  rio  Paraíba :  e  pelo  contrario,  depois  de  mudada,  foi  esta  villa 
a  maior  de  todas  as  daquellas  partes,  por  muitos  annos  adiante,-  e  mui 
ajudada  dos  Padres  da  Companhia,  que  nella  fazião  muito  fruto  nas  almas^ 
servindo-lhes  de  Parochos,  abrindo  n'ella  escolas  a  seus  filhos,  e  exerci- 
tando com  elles  todos  os  outros  ministérios  da  Companhia.  A  segunda  obra 
foi,  que  ajudou  muito  ao  Padre  Provincial  Luís  da  Grani,  e  a  Nóbrega,  no 
intento  que  tinhão  de  mudar  o  Collegío  do  lugar  de  Piratininga,  onde  es- 


DO  ESTADO  DO  DRASIL  (aNNO  DE  iijGO)  157 

tava,  pêra  S.  Vicente,  como  com  effeito  sef  começou  a  mudar  eí;le  anno, 
por  razões  que  de  novo  se  oíTerecêrão,  não  obstantes  as  com  que  alli  se 
formara  no  anno  de  dooo.  Fizerão-se  logo  n"eile  classes,  e  abrirão-se  estu- 
dos, tudo  á  sombra  do  favor  de  Mem  de  Sá.  E  aqui  torna  agora  o  Padre 
Joseph  de  Anchieta  a  renovar  seus  primeiros  trabalhos,  em  ensinar  os  fi- 
ihos  dos  moradores  d*estas  villas.  Continuarão  estes  estudos  por  alguns 
íinnos,  até  que  (como  depois  veremos)  por  ordem  do  venerável  Padre  Igna- 
ào  de  Azevedo,  quando  visitava  a  Província,  fundado  o  Collegio  no  Rio  de 
Janeiro,  e  dotado  pela  magnificência  do  Sereníssimo  Rei  D.  Sebastião  de 
saudosa  menwria,  se  passarão  pêra  esta  cidade,  onde  até  lioje  preseverão. 

85  Outra  terceira  obra  fizerão  os  Padres  Luis  da  Gram,  e  Nóbrega, 
•com  o  favor  do  Governador,  que  foi  hum  grande  proveito  da  republica. 
€orre  entre  as  villas  de  S.  Vicente  ç  a  de  Piratininga  aquella  espantosa 
montanlia,  de  que  já  faltámos  por  vezes,  chamada  Piraná  Piacaba;  e  como 
«ra  deserta,  fragosa,  e  toda  mattas  bravas,  e  por  ella  de  força  se  havia  de 
passar  por  caminho  sabido ;  os  Tamoyos  contrários  que  habitavão  sobre  o 
rio  Paraiba,  n'este  lugar  vinhão  esperar  os  caminhantes  de  huma  e  outra 
parte,  e  os  roubavão,  cattivavão,  e  comião.  A  este  damno  sahirão  os  Padres 
•com  remédio :  ajuntarão  força  de  serviços,  e  com  agencia  de  dons  Irmãos 
da  Companhia  ingcnhosos,  e  resolutos,  mandarão  abrir  novo  caminho  por 
parte  diíTerente,  furtado  ao  inimigo.  Fizerão-no  os  Irmãos  com  grande  tra- 
balho, e  perigo  da  vida :  e  por  este  passavão  os  moradores  com  seguran- 
ra,  dando  ao  Governador,  e  aos  Padres  os  agradecimentos  devidos  áquel- 
las  rèspublicas,  e  permanece  o  caminho  até  o  presente. 

HG  Não  pararão  aqui  as  occasiões  de  boas  obras  destes  dous  servos 
do  Senlior,  Gram,  e  Noi^rega.  N>ste  comenos  se  levantou  sobre  todas 
aquellas  villas  de  S.  Vicente  huma  tormenta,  a  mais  desusada  que  virão  os 
liomens  havia  muitos  tempos.  De  improviso,  junto  ao  pôr  do  sol,  se  co- 
meçou a  desfazer  o  Ceo  em  ventos,  chuvas,  raios,  e  trovões,  com  espan- 
toso estrondo,  e  tremor  da  terra  horrível,  que  parecia  desfazer-se  a  ma- 
quina do  universo  toda ;  e  não  com  pequeno  estrago,  porque  levava  pelos 
ares  as  casas,  as  anores,  c  os  próprios  homens,  aonde  muitos  perecião. 
No  meio  d'esta  confusão,  e  perigo,  repartem-se  os  Religiosos,  acodem  huns 
a  Deos,  c  outros  ao  próximo.  O  principal  foi  o  Padre  Provincial  Luis  da 
Gram,  o  qual,  desprezado  o  perigo  em  todo  o  tempo  que  durou  a  tor- 
menta, e  tremor  da  terra,  andou  correndo  as  casas  dos  moradores  Portu- 
gueses, c  índios,  animando-os,  e  preparando-os  com  o  sacramento  da  coii- 


1 58  LIVRO  II  DA  CimOXICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

fissão,  pêra  esperar  como  Chíistãos  qualquer  fortuna  adversa ;  até  que  de 
todo  cessou  o  perigo. 

87  Passado  este  successo,  entra  outro.  Forão  á  guerra  os  índios  de 
huma  aldeã,  trouxerão  delia  hum  menino  filho  de  seus  contrários,  e  logo, 
segundo  seu  bárbaro  costume,  tratavão  de  metel-o  em  cordas,  pêra  ma- 
tal-o  em  terreiro,  e  comel-o.  Era  distante  a  aldeã,  e  o  caminho  trabalhoso; 
não  foi  porém  bastante  isso :  em  sabendo  o  caso  O  Padre  Gram,  caminhou 
a  pé  com  diligencia,  e  chegou  a  tempo  do  melhor  da  festa :  e  com  ser  acto 
este,  em  que  os  corações  d*esta  gente  estão  mais  intrattaveis,  pararão  to- 
dos em  vendo  o  Padre,  derão  ouvidos  a  suas  palavras,  e  persuadidos  de 
sua  proposta,  lhe  concederão  o  rapaz  pêra  o  bautizar  a  modo  dos  Chris- 
.tãos  antes  que  morresse :  isto  somente  lhe  pedira  o  Padre.  Porém  depois 
de  bautizado,  levado  do  fervor  da  divina  graça,  e  condoído  da  innocencia 
do  menino,  que  padecia  sem  culpa  alguma,  levantou  a  voz  no  mesmo  ter- 
reiro, e  começou  a  lhes  propor  as  cousas  seguintes.  «Estou  satisfeito  (diz) 
do  intento  principal  a  que  vim;  pelo  que  dou  a  todos  as  graças,  porque 
como  homens  de  razão  me  ouvistes:  porém,  supposto  que  Deos  vos  fez 
taes,  ouvi-me  agora  outras  poucas  palavras.  A  todos  os  que  aciui  estaes 
conlieço  mui  bem,  a  huns  como  Christãos,  a  outros  como  amigos:  a  huns 
6  outros  proponho  assi:  Que  valentia  intentais  hoje?  Que  feito  heróico? 
Que  nobreza  cuidais  de  adquirir  pêra  vossas  famílias?  O  sangue  de  hum 
menino  innocente,  que  nem  faílar  sabe,  quanto  mais  offender-vos  ?  O  ho- 
mem valeroso  com  outro  se  ajusta;  e  vencido  este,  não  he  espanto  publi- 
que a  gloria  de  sua  valentia:  porém  com  hum  menino?  Que  nação  ha  que 
tenha  por  gloria  vencel-o?  Por  covardia  o  matal-o  si.  Estes  ai  áridos,  estes 
assovios,  este  bater  de  pés,  e  de  arcos,  este  apresto  de  espada  de  vinga- 
dor, e  de  feroz,  contra  quem  se  prepara  ?  Contra  hum  pobre  innocente, 
tão  fraco,  tão  manso,  tão  pequeno,  que  nem  sabe  pedir-vos  a  vida,  nem 
tem  mãos  pêra  defender-se  da  morte !  Que  gloria  he  esta  (infâmia  direi  eu) 
que  contrahis  de  empregar  ânimos  generosos  na  morte  de  tão  pequeno  in- 
nocente? Não  vos  correis  se  quer  do  que  ainda  poderão  dizer  vossos  mes- 
mos contrários,  que  se  pêra  hum  menino  fraco  de  sua  nação  se  ajuntarão 
tantos  valentes,  que  de  valentes  será  necessário  ajuntar-se  pêra  hum  que 
seja  homem  feito,  que  tenlia  braços,  mã(DS,  e  arco  como  vós,  pêra  defen- 
der-se? Pelo  que,  quando  tivesse  este  vosso  costimie  alguma  apparencia  de 
acto  valente,  seria  na  morte  de  hum  guerreiro  como  vós,  contra  quem  ar- 
mastes vosso  arco,  e  a  quem  fez  cattivo  vosso  valor;  porém  contra  hum 


I 


1)0  ESTADO  DO  BRASIL  (anNO  DE  l^GO)  ITíO 

menino,  que  contrariedade  vos  podia  fazer,  pêra  ter  nome  ellc  de  vencido, 
e  vós  de  vencedores?  elle  a  ignominia  de  cattivo,  e  vós  a  gloria  de  senho- 
res? Assi  que  mais  me  empenho  hoje  por  honra  vossa,  que  pela  vida  d'este 
innoccnte ;  porque  a  pena  d'este  acabará  em  breve,  mas  vossa  infâmia  vi- 
virá  pêra  eterno.  Largai,  largai,  oh  valentes  guerreiros,  este  cordeiro  man- 
so :  empenhai  a  espada,  e  arco  em  as  onças  bravas  da  matta,  que  tem  gar- 
ras, e  dentes;  e  não  em  huma  caça  caseira,  que  cria  huma  mulher  a  seu 
l)afo.  Quanto  mais  que  já  estas  carnes  pela  virtude  d"aquella  sagrada  agoa 
do  bautismo  ficarão  dedicadas  a  Deos ;  e  o  que  as  comer,  esteja  certo  do 
castigo,»  Forão  tão  efficazes  estas  palavras,  que  á  presença  d"ellas  ficarão 
todos  como  mudos.  Os  que  erão  christãos  como  envergonhados  forão  sa- 
liindo-se  do  terreiro:  os  que  erão  gentios,  pararão  com  o  sacrifício:  e  sup- 
posto  que  houvesse  apaixonado,  que  ás  escondidas  matou  o  preso,  não  se 
comeo,  nem  repartio;  que  he  entre  esta  barbara  gente  a  prova  do  respeito 
maior  que  podião  ter  ao  Padre,  como  ponderámos  já  n"outras  partes:  man- 
dárão-lhe  entregar  o  corpo,  e  com  isto  se  acabou  a  tragedia. 

88  Não  tinha  passado  muito  tempo,  quando  da  mesma  guerra  trouxe- 
rão  com  semelhante  festa  outro  prisioneiro,  mancebo,  robusto,  rendido  á 
força  de  arco.  N'este  pêra  com  os  gentios  não  tinhão  igual  força  as  razões 
do  Padre  Gram.  Obrarão  comtudo  duas  cousas,  consentirão  que  fosse  bau- 
tizado,  e  não  fosse  comido  depois  de  morto,  se  não  entregue  ao  Padre : 
porque  dizião  elles  bem  explicados :  «Em  não  ser  bautizado,  e  ser  comi- 
do, podem  ceder  os  particulares :  porém  cm  ser  morto  em  terreiro,  não 
he  bera  que  ceda  a  communidade;  porque  he  razão  de  estado,  que  deve 
ser  inviolável.»  Era  de  vivo  ingenho  o  prisioneiro,  penetrou-lhe  o  coração 
deveras  a  instrucção  do  Padre  Gram  quando  o  bautizára,  c  fez  tal  conceito 
dos  bens  da  outra  vida,  que  desprezava  já  a  do  corpo;  nem  faltava  já, 
nem  acodia  por  cousa  sua,  nem  pedia  ao  Padre  que  o  defendesse,  já  de- 
sejava ver-se  no  conflicto.  Rompendo  a  manhãa,  ao  som  de  seus  costuma- 
dos alaridos,  bater  de  pé,  e  arco,  que  faz  ati-oar  as  montanhas,  junto  o 
povo,  prestes  as  velhas  repartidoras,  fogo,  e  panellas,  amarrado  com  com- 
pridas ooixlas,  sahe  a  terreiro  o  })adeccnte,  e  logo  sahe  a  elle  o  valente 
guerreiro  que  o  prisionára,  e  diz-lhe,  segundo  seu  costume,  as  ultimas  pa- 
lavras: «Por  fim,  ás  minhas  mãos  victoriosas  has  de  vir  a  acabar.»  Ou- 
vindo este  ultimo  vale  de  sua  vida  o  animoso  índio  (segundo  o  que  estava 
industriado)  píje-se  de  joelhos,  levantando  os  olhos  ao  Ceo,  e  invocando  o 
santo  nome  de  Jesu,  recebe  o  golpe  do  fero  carniceiro,  evai  gozar  da  vida 


160  LIVRO  11  DA  CimONiCA  DA  COMPAXUIA  DE  JEStT 

sempiterna.  Mandou  o  Principal  entregar  o  corpo  ao  Padre,  e  ficoii 
frustrado  o  inferno  quanto  á  alma,  e  quanto  ao  corpo  ficarão  frustradas 
aquellas  sette  harpyas  infernaes  das  velhas,  que  determinavão  despedaçal-o, 
e  comel-o. 

89  Era  chegado  o  tempo  de  monções,  e  achava-se  Mem  de  Sá  com  a 
armada  fornecida  de  mantimentos,  e  aprestada  do  necx^ssario :  cpiando  em 
vinte  e  cinco  de  Junho  do  presente  anno,  despedido  do  bom  amigo  Nó- 
brega, e  mais  Padres,  mandou  dar  á  vela  em  demanda  da  Bahia  de  todos 
os  Santos.  Embarcou-se  em  sna  companhia  o  Padre  Provincial  Luis  da 
Gram,  levando  comsigo  dous  Irmãos  grandes  lingoas  do  Brasil,  Gonçalo 
de  Oliveira,  e  Gaspar  Lourenço,  deixando  por  Superior  da  Capitania  de  S-, 
Vicente,  e  juntamente  da  do  Espirito  santo,  o  Padre  Nóbrega.  Na  viagem 
não  descansou  o  zelo  do  Padre  Gram:  pregava,  confessava  incansavelmente 
a  toda  a  gente  da  armada,  e  á  tarde  lhes  fazia  doutrina,  a  (}ue  acodia  o 
próprio  Governador  desbarretado,  dando  exemplo  aos  demais :  e  com  ser 
elle  tão  perfeito  letrado,  dizia,  que  aprendia  alli  o  que  não  sabia.  Na  mes- 
ma forma  se  occupavão  os  Irmãos,  fazendo  doutrinas  aos-  índios  por  sua 
lingoa. 

90  Chegou  a  armada  ao  porto  da  Bahia  aos  primeiros  de  Agosto,  e  fo- 
rão  notáveis  as  alegrias,  e  parabéns  do  povo,  com  que  foi  recebido  e-  Go- 
vernador, assi  por  ser  amado  de  todos,  como  pela  feliz  victoria,  que  tinha 
alcançado,  e  de  que  tantos  prudentes  duvidarão.  Foi  o  Padre  Gram  rece- 
bido em  seu  Collegio  com  amor  de  pai.  E  logo,  seguindo  as  pisadas  de 
seu  antecessor,  no  mez  de  Outubro  seguinte  foi  visitar  as  aldeãs  a  pé,  com 
grande  edificação  dos  que  sabião  suas  poucas  forças.  No  mesmo  mez  for- 
mou huma  aldeã,  a  que  chamou  de  Santo  António,  ajuntando  n:'ella  grande 
quantidade  de  gente,  que  vivia  inculta  em  hum  lugar  chamado  Ererabé, 
nove  legoas  distante  da  cidade,  praticando-llies  das  cousas  do  Ceo,  e  dando 
principio  a  sua  instrucção.  Achou  que  nas  outras  aldeãs  se  tinha  feito  grande 
frutOy  e  era  tanto  o  numero  de  cathecumenos,  que  se  bautizavão  aos  cen- 
tos, e  se  casavão  muitos  na  Lei  da  graça,  com  grande  gloria  do  nome  de 
Chri&to ;  e  a'esta  visita  das  aldeãs  gastou  o  restante  do  presente  anno,  ani- 
mando aos  Religiosos,  pregando  aos  índios,  e  acodindo  a  suas  necessidades. 

91  No  fim  do  anno,  desejando  esle  zeloso  servo  de  Deos  que  não  se 
perdessem  os  princípios  que  tinha  lançado  seu  antecessor  na  Capitania  de 
Pernambuco,  mandou  continuar  com  aquella  missão  o  Padre  Gonçalo  de 
Oliveira  bom  lingoa  do  Brasil,  e  outro  Padre  Pregador,  pêra  que  hum  at- 


IJO  ESTADO  DO  BRASIL    (AN.NO  DE    IdGO)  101 

tendesse  aos  Portugueses,  outro  aos  índios,  que  erão  innumeraveis,  e 
desamparados  da  doutrina  cliristãa.  Forão  bem  recebidos  na  villa  de  Olin- 
da, e  agasalhados  nas  casas  que  alli  deixara  feitas  o  Padre  António  Pires 
no  alto  do  sitio  do  CoUegio,  que  depois  se  fundou.  D'aqui  sahião  como 
volantes  os  dous  Missionários,  e  era  tanta  a  necessidade  da  terra,  que  mal 
sabião  a  qual  primeiro  acodissem.  Na  villa  fazia  sermíjes  o  Padre  Prega- 
dor aos  domingos,  e  dias  santos,  e  o  Padre  Oliveira  fazia  doutrina  aos  ru- 
des, índios,  e  Angolas,  pela  manliãa  aos  que  não  sahião  da  villa,  á  tarde 
aos  que  liião  a  pescar;  e  com  liuns  e  outros  tinha  bem  que  fazer:  o  mes- 
mo obravão  nas  missões  pelas  viilas,  e  lugares  circunvizinhos,  d'onde  erão 
chamados  com  a  instancia  que  pedia  sua  necessidade. 

92  Outro  tempo  gastavão  correndo  as  aldeãs  dos  índios,  onde  os  re- 
cebião  como  homens  do  Ceo,  lembrados  da  primeira  doutrina  ({ue  ao  Pa- 
dre Nóbrega  ouvirão.  N'estas  aldeãs  íizerão  algum  fruto;  mas  não  podia  ser 
o  que  desejavão,  por  serem  ellas  muitas;  e  porque  como  não  podíão  as- 
sistir-lhes  como  convinha,  não  ousavão  a  bautizal-os,  com  receios  de  que 
tornassem  depois  a  seu  paganismo:  contentavão-se  com  bautizar  os  que 
achavão  no  ultimo  da  vida,  e  cathequizar  os  demais,  pêra  que  o  tempo 
desse  de  si :  e  depois  de  trabalharem  estes  dous  Missionários  com  «elo,  c 
religião,  fazendo  innumeraveis  coníissões,  acabando  amizades,  tirando  mui- 
tos de  máo  estado,  e  outras  obras  do  serviço  de  Deos :  passados  dous  ân- 
uos voltarão  â  Bahia,  a  chamado  dos  Superiores,  pêra  depois  tornarem  com 
mais  copia  de  obreiros  a  tão  grande  seara. 

93  Por  este  tempo  houve  nas  Capitanias  dos  Ilheos,  e  Porto  seguro 
grandes  perturbações  nascidas  de  assaltos  contínuos  da  nação  Aymorê,  que 
tudo  metia  em  temor.  He  esta  casta  de  índios  Aymorès  a  mais  brutal,  e 
deshumana  de  todo  o  Brasil :  descende  dos  Tapuyas  antiguos ;  porém  por 
occasião  de  guerras  que  houve  entre  elles,  Succedeo  que  certos  bandos  me- 
nos podenjsos,  fugindo  a  seus  inimigos  se  recolherão  ao  interior  do  sertão 
a  lugares  hagosos,  e  montanhas  estéreis,  onde  não  podessem  ser  achados: 
c  como  alli  vivião  separados  do  commercio  de  toda  a  mais  gente,  por  dis- 
curso do  tempo  viíírão  seus  filhos,  e  nutíjs  a  i)ei'der  a  noticia  da  lingor-^ 
gem  própria,  e  formarão  outra  que  de  nenhuma  outra  nação  era  entendida, 
fea,  gutural,  arrancada  do  peito.  He  genle  agigantada,  robusta,  e  forçosa : 
não  tem  cabello  algum  em  todo  o  corpo,  mais  que  o  da  cabeça;  todos  os 
mais  ai-rancão.  Usão  de  airos  demasiadamente  gi'andes:  são  tão  destnjs 
írecheiíos,  (juc  nem  huma  mosca  lhes  escapa:  ligeiríssimos,  grandes  cor- 

VOL.  I  M 


1C2  LlVllO  II  DA  GHIIOMCA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

redores:  não  vivem  em  casas,  ou  aldeãs;  nem  alguém  lhes  achou  jamais 
morada :  pelos  mattos  e  cami)os  andão  a  maneira  de  feras,  de  todo  nús, 
homens,  e  mulheres:  dormem  na  terra,  c  escaçamente  lhes  servem  algu- 
mas folhas  de  colchão.  As  chuvas  levão  ao  pé  de  huma  arvore,  ou  com 
qualquer  ramo  col)ertos.  Não  trattão  de  rossas,  nem  semeados :  sustcntão- 
se  de  frutas  agrestes,  e  caça  de  feras,  e  aves,  que  parece  obedecem  a  seus 
arcos;  e  esta  comem  crua,  ou  quando  muito  mal  assada.  Machos,  e  fêmeas 
andão  trosquiados,  e  tem  suas  navalhas  pêra  este  eífeito,  feitas  de  certa 
espécie  de  cana,  que  quasi  igualão  as  de  aço.  Igualmente  andão  á  caça  das 
feras,  e  da  gente;  e  hé-lhes  a  carne  d-esta  ornais  saboroso  pasto.  Accome- 
tem  sempre  á  treição,  nunca  em  descoberto;  e  por  isso  poucos  em  numero 
accometem  a  muitos,  porque  não  trattão  de  defender  o  campo :  mas  não 
vendo  a  sua,  logo  fogem  cada  hum  por  seu  cabo :  sem  lealdade,  ou  poli- 
cia de  huns  pêra  outros,  nem  ainda  pais  pêra  filhos. 

94  Estes  Aymorès  pois,  selvagens,  e  agrestes,  por  estes  tempos  co- 
meçarão a  descer  de  suas  serras,  em  que  vivião  havia  tantos  annos :  c  guia- 
dos das  correntes  dos  rios,  vinlião  apoz  elles  sahir  ao  mar,  o  davão  assal- 
tos em  tudo  o  que  achavão,  matando,  e  assolando  os  escravos,  e  fazendas 
dos  moradores,  e  ainda  muitos  dos  senhores  nas  villas  dos  Ilheos,  e  Porto 
seguro,  com  confusão  geral,  e  mui  especial  das  aldeãs  dos  índios  dos  Pa- 
dres, que  nem  podião  defender-se,  nem  ter  o  socego  necessar'io  pêra  trat- 
tar  de  sua  conversão. 

9o  Chegou  á  Bahia  a  queixa  d'esta  oppressão  tão  grande,  compadcceo- 
se  o  Governador  I\Iem  de  Scá,  e  tomando  conselho,  especialmente  com  seu 
amigo  Nóbrega,  convierão  que  fosse  o  mesmo  Governador  em  pessoa, 
acudir  á  insolência  d^aquelles  bárbaros,  por  honra  de  Deos,  e  do  nome  das 
armas  de  Portugal.  Ajuntou  navios  ligeiros,  escolheo  soldados  de  satisfação 
e  alguns  índios  das  aldeãs,  e  desembarcou  em  breve  tempo  no  porto  dos 
llheoB.  Chegou  em  occasião  opportuna,  porque  informado  dos  moradores, 
soube  que  estavão  os  delinquentes  retirados  a  togares  occultos,  fragosos,  e 
inaccessiveis,  onde  se  davão  por  seguros,  e  donde  sahião  a  fazer  seus  assaltos. 
Não  houve  demora:  tomada  guia,  poz-se  a  caminho  o  Governador  com  to- 
da a  sua  gente,  antes  que  pudessem  ser  avisados ;  e  depois  de  corridas  es- 
j)essas  mattas,  altos  rochedos,  e  profundos  valles,  derão  em  um  laberinto 
de  agoas  a  modo  de  dique,  ou  represa,  que  parecia  mar.  Era  força,  pas- 
sar-se  este,  não  se  via  maneira;  até  que  foi  descuberto  hum  logar  por 
onde  passavão  os  A)  mores.  Era  este  a  modo  de  ponte  de  hum  só  páo  es- 


DO  ESTAUl)    DO  ÍJllASiL  (aN.\(J  DK    1500)  '|f),1 

trcílo  onde  os  pés  mal  se  fimiavão,  de  comprimento  mais  de  mil  passos-, 
por  onde  parecia  impossível  passar  gente  linmana:  porém  tudo  vence  o  de- 
sejo do  coração  do  homem,  quando  he  grande:  passou  o  exercito  estas  agoas 
Slygias,  e  logo  com  o  mór  silencio  que  pode  subio  de  noite  á  fragosidade 
do  sitio;  e  quando  se  davão  por  mais  seguros  aquelles  bravios  selvagens, 
deu  sobre  elle  o  Ímpeto  dos  nossos,  degolando,  ferindo,  pondo  por  terra 
todo  o  vivente,  homens,  mulheres,  e  meninos :  taes  houve,  que  do  somno 
nocturno  passarão  sem  meio  ao  somno  da  morte ;  e  taes,  que  imaginando 
fugir,  se  vinhão  meter  em  nossas  mãos.  Acharão  alguns  refugio  nas  bre- 
nhas, outros  nem  esse  pudérão  alcançar;  porque  foi  todo  hum  o  Ímpeto  do 
fen"0,  e  o  do  fogo:  arderão  as  mattas  por  muitas  legoas,  e  tornarão  a  noi- 
te claro  dia;  e  quando  o  Sol  começava  o  seu,  virão  melhor  os  tristes  bár- 
baros seu  grande  estrago,  por  que  seguindo  a  vereda  do  sangue,  achavão 
os  pais  aos  filhos,  os  maridos  as  mulheres  defuntos  pelos  caminhos,  e  o 
abrigo  de  seus  escondrigios  tornados  em  cinza. 

9tí  Depois  de  descaiiçarem,  tornarão  em  Ijusca  das  praias  os  victorio- 
sos  soldados,  e  vinhão  cantando  seus  triumphos :  se  não  que  lhes  restava 
ainda  (fue  vencer;  porque  junto  a  ellas  os  esperavão  as  relíquias  do  destro- 
ço passado.  Sahírão  das  brenhas  de  improviso,  quaes  ursos  assanhados  a 
quem  os  caçadores  matarão  os  filhos;  e  com  seus  costumados  alaridos  cui- 
darão espantar,  e  entre  espanto  c  turbação  fazer  estrago :  porém  cedeo  em 
maior  ruína  sua;  porque  o  prudente  e  experimentado  Capitão,  prevendo  o 
caso,  tinha  deixado  de  embuscada  no  malto  conti"asilada,  com  ordem  que 
ouvindo  sinal  acudisse,  e  desse  nas  costas  aos  bárbaros.  Succedeo  como 
o  disposera :  fingíi'ão  os  nossos  que  se  retiravão,  apressando  o  passo,  e  no 
l)onto  que  vinhão  sobre  elles,  sentirão  nas  costas  os  arcabuzes,  e  sobre  as 
cabeças  as  espadas  dos  Portugueses.  Hum  só  remédio  lhes  ficava  a  esta 
pobre  gente,  e  foi  lançar-se  ao  mar:  mas  como  não  são  os  d'esta  nação  pe- 
ritos no  nadar,  e  nossos  índios  sim,  arremeçái'ão-se  após  elles  (quaes  nada- 
dores tubarões),  e  afogarão  luins,  outros  trouxerão  á  [)raia  cattivos,  com  mi- 
serando e  egualmente  merecido  estrago,  ('om  estas  viclorias  entrou  o  capi- 
tão Mem  de  Sá  na  villa  dos  IMieos,  foi  diíeilo  ao  tenqilo  de  Nossa  SenhoiM 
on<le  fez  pubhcas  acções  de  graças,  e  foi  levado  de  todo  o  í)ovo  como  em 
triumpho,  por  libertador  de  suas  terras,  e  vingador  de  seus  aggravos. 

07  Não  linhão  bem  [)assado  muitos  dias  cslando  tudo  em  bella  j)az,  e 
a  villa  occuj)ada  em  nspresenlações  de  alegiía:  eis  que  do  alto  de  suas  (!mi- 
ncncias  vêem  as  fjiaias  cubcrtas  de  baíidos  de  bárbaros  em  som  de  guer- 


1G4  LIVRO  II  DA  CHRONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

ra,  ferindo  os  ares  com  estrondo  gcntilico.  E  foi  o  caso,  que  entrados  em 
desesperação,  e  afronta  os  Aymorés  api)cl lidarão  os  moradores  de  todos  os 
montes  circunvizinhos,  de  sua,  ou  de  outras  nações,  incitandos-os  contra 
os  Portugueses  inimigo  commum :  e  vinlião  feitos  em  hum  corpo  aposta- 
dos a  levar  comsigo  cattivo  o  Governador  Mem  de  Sá,  ou  acahar  por  huma 
vez  as  vidas.  Não  pareceo  mal  ao  Capitão  esforçado :  dizia  que  vinhão  alli 
entregar-se  ao  cutello  juntas  as  rcliquias  daquelles,  que  com  tão  excessivo 
trabalho  não  pudera  alcançar;  que  queria  o  Ceo  de  hum  golpe  extinguir 
nação  tão  perversa,  e  aliviar  de  huma  vez  aquelle  povo.  Saio-lhes  ao  encon- 
tro (levando  diante,  como  costumava,  o  vivifico  estandarte  da  Cruz)  e  acco- 
melendo  a  cavallo  armado  o  meio  de  seu  esquadrão,  ficarão  attonitos  os 
bárbaros,  que  nunca  virão  tal  modo  de  pelejar;  desordenárão-se,  e  come- 
çarão a  sentir  o  rigor  da  arcabuzaria,  que  por  parte  do  mar,  e  da  terra  os 
cercava,  e  fazia  matança  cruel:  porém  era  gente  forçosa  desesperada,  e 
muita  em  numero :  os  arcos  dos  Aymorés  grandes  i)or  extremo,  alcança- 
vão  também  nossa  infantaria,  e  não  sem  damno  considerável,  até  que  le- 
vantando a  voz  o  Capitão  mór  .Mem  de  Sá,  animou  os  soldados,  e  mandou 
arremettessem  a  todo  poder  e  perigo  por  todas  as  partes.  Cerrarão  elles 
quaes  leões,  fiados  na  justiça  da  guerra,  e  viclorias  passadas,  e  em  breve 
espaço  se  virão  as  praias  cubertas  de  corpos  sem  alma,  e  as  escumas  do 
mar  que  as  lavavão  tornadas  cor  de  sangue ;  o  resto  dos  inimigos  entregue 
â  tori)e  fugida,  e  com  tal  terror,  que  a  poucos  dias  andados  voltarão  hu- 
mildes a  pedir  pazes ;  que  se  lhes  concederão  cora  as  mesmas  condições 
das  primeiras:  Que  não  comeriam  carne  humana,  nem  faiião  guerra  algu- 
ma, ainda  aos  outros  Brasis,  sem  approvação  do  Governador :  que  se  ajun- 
tarião  em  aldeãs  grandes,  onde  vivessem  com  modo  politico,  levantassem 
Igrejas,  e  casas  aos  Padres  da  Companhia,  que  vivirião  entre  elles,  e  en- 
sinarião  a  doutrina  da  Fé  aos  qne  quizessem  converter-se.  Dobrárão-se  as 
alegrias  dos  moradores  d"aquella  Capilania,  e  juntamente  dos  de  Porto  se- 
guro igualmente  interessados :  e  compostas  as  cousas  voltou  o  Capitão  Mem 
de  Sá  a  seu  assento  da  cidade  do  Salvador  da  Bahia.  Trezentas  aldeãs  se 
contão,  que  destruio,  e  abrasou  do  gentio  rebelde;  e  o  que  não  quiz  des- 
cer á  Igreja,  retirou-se  por  essas  brenhas  por  distancia  de  sessenta  e  mais 
legoas ;  onde  ainda  se  não  davão  por  seguros  do  ferro,  e  fogo  porluguez . 
98  Entrou  o  anuo  de  loGl,  e  concorrerão  n"elle  prenúncios  de  gran- 
des colheitas  na  vinha  do  Senhor:  a  paz  nascida  da  guerra  passada,  o  zelo 
da  conversão  do  Governador  Mem  de  Síi,  c  o  do  Bispo  D.  Pedro  Leitãpi 


•      no  ESTADO  DO  BRASIL  (aNNO  DE  loGl)  163 

quo  so  achavrio  na  Baliia  juntos :  c  como  estas  causas  universaes  er3o  be- 
nignas, c  influião  com  a  industria  de  obreiros  zelosos,  não  podia  dei- 
xar de  ser  o  fruto  proporcionado.  Supposto  que  jà  n'este  tempo  vivião  na 
Babia  em  paz  geral  Portugueses,  e  índios,  e  era  esta  boa  occasião  pêra 
tratar  da  conversão  de  todos ;  ficou  comtudo  grande  multidão  de  gentio 
das  guerras  passadas,  tão  dividido,  e  espalhado  (por  mais  que  se  procurou 
ajuntal-o)  que  parecia  impossível  poder-lhe  acudir;  principalmente  aos  que 
babitavão  nas  partes  mais  fragosas,  e  alongadas  da  cidade.  Porém  o  fervor 
do  espirito  do  Padre  Luis  da  Gram,  a  primeira  cousa  que  intentou  no  prin- 
cipio d'este  anno,  foi  despedir  Religiosos  de  dous  em  dous  a  pregar  a  dou- 
trina do  Evangelho  a  esta  gente,  e  a  dispol-os,  e  convidal-os  de  sua  parte 
com  boas  palavras  e  presentes  de  cousas  que  elles  estimão,  a  que  quizes- 
sem  vir  habitar  em  logares  mais  commodos,  e  ajuntar-se,  a  modo  dos  Por- 
tugueses amigos  seus,  em  povoações  grandes  com  cabeça,  republica,  e  go- 
verno politico;  porque  alli  serião  doutrinados  dos  Padres,  como  os  outros 
das  aldeãs  primeiras. 

99    Não  vierão  frustrados  os  Missionários,  que  erão  peritos,  e  eloquen- 
tes na  lingoa  do  Brasil,  e  guarda  aos  taes  grande  respeito  esta  gente  :  por 
cuja  causa,  e  porque  os  estimulava  o  credito,  e  opinião  em  que  vião  os 
que  já  estavão  nas  aldeãs  á  sombra  dos  Padres ;  vierão  todos  facilmente  em 
que  farião  o  mesmo.  O  que  supposto,  foi  tudo  dizer,  e  fazer,  e  a  obra  ma- 
ravilhosa; porque  dentro  de  espaço  de  hum  anno  se  virão  fundadas,  pos- 
tas em  ordem,  e  com  grandes  princípios  de  Christandade,  tantas,  e  tão  po- 
pulosas Igrejas,  que  em  muitos  annos  não  parecia  possível  ajuntar-se:  tan- 
to montou  a  cooperação  dos  que  governavão  a  répuljlica,  com  o  trabalho 
dos  operários  industriosos.  A  primeira  povoação  que  fundarão,  foi  a  da 
ilha  de  Itaparica  três  legoas  da  cidade,  com  invocação  de  Santa  Cruz,  no 
mez  de  Junho  do  presente  anno :  pêra  esta  concorreo  gentio  em  grande 
quantiílade  das  ribeiras  do  rio  Paraguaçíi:  elegerão  cabeça  principal,  íize- 
rão  casas,  Igreja,  e  morada  pêra  Religiosos,  e  começarão  a  ser  industria- 
dos com  a  assistência  de  hum  Padre,  e  hinn  Irmão,  António  Pires,  e  Ma- 
noel de  Andrade.  No  mesmo  mez  de  Junho  fundarão  a  segunda  em  distan- 
cia de  doze  legoas  da  cidade  correndo  ao  Norte,  em  sitio  fértil,  por  nome 
Talúapara,  com  invocação  de  Jesu.  Pêra  esta  concorreo  não  menor  quanti- 
dade de  gentio,  até  então  espalhado  ao  redor  d'aquelle  lio,  na  mesma  for- 
ma sobreditta,  e  com  outios  dous  Iteligiosos  de  residência,  o  Padre  An- 
tónio Rodiigues,  e  o  Irmão  Paulo  Rodrigues:  e  cm  bieves  dias  chegarão 


JCG  LIVRO  II  n\  r.ilP.ONIC.V  da  companhia  de  JESfe' 

aqui  a  quatrocentos  os  meninos  que  aprendião  a  doutrina.  Pouco  tempo 
depois  se  fundou  a  terceira  dez  Jegoas  [d"esta,  correndo  a  costa  do  Norte, 
vinte  e  duas  da  cidade,  com  invocação  de  S.  Pedro,  mais  populosa  que  as 
duas  primeiras.  Concorrerão  pêra  ella  as  aldeãs  chamadas  de  Çaboyg,  n'aquelle 
tempo  numerosas,  e  outras  mais  pequenas.  A  quarta  foi  mais  adiante  outras 
dez  legoas,  trinta  e  duas  da  cidade,  no  sitio  chamado  Anliébyg,  com  invocação 
de  Santo  André,  e  quantidade  de  gente  barljara.  Porém  como  estes  estavão  em 
guerra  com  outro  gentio,  que  habitava  as  terras  do  rio  Itápicurú,  oito  legoas 
distante,  quarenta  da  cidade,  e  erão  contrários  poderosos,  especialmente  os  de 
Jmm  Principal  aííamado,  por  nome  Arácaé,  com  grande  impedimento  da  con- 
versão: levado  o  Padre  Luis  da  Gram  do  zelo  do  bem  d'estas  almas,  com 
assaz  de  trabalho,  e  perigo  da  vida  (porque  estava  ainda  bravia  aquella 
gente  toda,  e  sem  commercio  de  Portugueses)  foi  em  missão  a  elles,  e  as- 
si  lhes  soube  faltar,  e-  converter  os  ânimos,  que  pondo  de  parte  a  feroci- 
dade, assentou  pazes  entre  elles,  e  os  da  Anliébyg :  e  ouvida  a  palavra  de 
Deos,  lhe  pedirão  Padres,  e  Igreja  na  forma  dos  mais. 

100  Em  Novembro  seguinte  do  mesmo  anno  passou  o  Padre  Provin- 
cial á  empresa  pêra  a  parte  do  Sul:  e  na  paragem  chamada  Macamamú, 
dezaseis  legoas  da  cidade,  fértil  de  terras,  abundante  de  rios,  fundou  a 
quinta  povoação  de  muitos  mil  arcos,  congregados  de  muitas  mais  peque- 
nas de  lugares  distantes,  e  quasi  inaccessiveis,  e  poz-lhe  por  nome  Nossa 
Senhora  da  Assumpção,  presidiando-a  de  dous  Religiosos,  como  todas  as 
outras.  No  mesmo  mez  fundou  a  sexta  povoação  em  outro  sitio  pouco  dis- 
tante junto  a  Tinharé,  chamado  Taporagoá :  a  esta  aggregou  todo  o  gentio 
que  pelas  matas  circumvizinhas  estava  embrenhado,  em  quantidade  consi- 
derável: presidiou-a  de  Padre,  e  Irmão,  e  poz-lhe  por  nome  S.  Miguel. 

101  Bem  empregado  trabalho  o  d'este  anno!  e  não  foi  menos  copiosa 
a  colheita  que  d'elle  resultou.  Dentro  do  mesmo  quiz  o  Padre  Provincial 
ir  visitar,  e  tornar  a  correr  todas  estas  aldeãs,  que  já  n'este  tempo  erão 
onze  (entrando  em  numero  as  cinco  mais  antiguas)  porque  queria  elle  mes- 
mo ver  com  seus  olhos,  e  consolar-se  com  o  fruto  espiritual,  que  espe- 
rava de  tão  bem  empregados  suores  de  seus  Missionários.  Mandou  antecipa- 
damente aviso  a  todos  os  Padres  que  n^ellas  residião,  que  suspendessem  os 
bautismos  pêra  sua  ida,  salvo  os  que  fossem  de  necessidade;  porque  assi 
com  sua  presença,  e  por  ventura  do  Governador,  c  do  Bispo,  em  algumas 
partes  se  podessem  celebrar  com  mais  solemiiidade,  maior  applauso  dos  que  ■ 
havião  de  ser  bautizados,  e  imír  estimulo  dos  que  pretendião  chegar  ao 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (ANNO  DE   1561)  167 

mesmo  acto:  fez-se  assi.  Cheirado  o  dia  assinalado,  poz-se  o  Padre  Provin- 
cial a  caminho  a  pé  com  sen  bordão  (costume  santo  d*aquelle  bom  t<?mpo), 
e  aonde  havia  agoas  doscalro;  que  tem  estas  coníianças  o  espirito  Immilde, 
sem  perda  alguma  de  reputação.  Erão  muito  pêra  ver  os  caminhos  cuber- 
tos  de  índios,  huns  com  redes  pretendendo  levar  ás  costas  o  Padre,  outros 
com  applansos  festivaes  a  seu  modo  sylvestre,  outros  a  pedir-lhe  que  fos- 
sem elles  os  primeiros  no  bautismo;  e  houve  tal,  que  determinou  levar  a 
cousa  per  modo  de  peita,  vindo  pêra  isso  carregado  de  cera,  e  humbogio, 
que  offerecia  ao  Padre  porque  obautizasse  entre  os  primeiros;  dando  junta- 
mente por  causa,  que  era  velho,  e  podia  faltar-lhe  a  vida,  e  perder  a  ditta 
daquella  agoa,  rpie  leva  ao  lugar  do  descanso.  Abraçou  o  Padre  a  todos: 
aos  que  trazião  as  redes,  disse,  que  os  pés  dos  servos  de  Deos  não  can- 
savão :  aos  que  festejavão,  que  celebrassem  embora  as  vésperas  do  dia  de 
sua  maior  ventura  (pelo  bautismo  que  ao  outro  dia  havião  de  receber:) 
aos  que  pedião  ser  dos  primeiros,  disse,  qm  teria  lembrança;  mas  fez-lhes 
huma  pratica  sobre  o  presente  da  cera,  e  bogio,  e  declarou-lhes  a  grande 
pureza  dos  sacramentos  da  Lei  da  graça,  que  sem  sombra  de  interesse 
permittem,  como  nem  também  também  o  instituto  da  Companhia :  e  em 
penitencia  ordenou  ao  velho,  que  tornasse  carregado,  e  entregasse  aquella* 
cousas  a  sua  mulher,  e  filhos. 

102  N'esta  maneira  chegou  o  Padre  Gram  a  huma  das  aldeãs  mais  an- 
liguas,  por  onde  llie  pareceo  começar,  e  foi  a  de  S.  Paulo.  Achou  feita  a 
Igreja  hum  bosque,  armada  de  ramos,  e  flores,  segundo  a  possibilidade 
dos  que  a  preparavão.  Aqui  lhes  agradeceo  o  bem  que  se  tinbão  applicado 
ás  cousas  d'ella;  e  lhes  fez  pratica  do  que  mais  importava  a  sua  salvação, 
da  eíTicacia  dos  sacramentos  da  Igreja  Catholica;  e  feito  exame,  achando 
muitos  instruidos  nos  mysterios  da  Fé,  começou  a  bautizal-os  com  a  mór 
solemnidade  possivel  de  ornamentos  ccclesiaslicos,  apparato  de  padrinhos, 
e  ceremonias  santas  da  Igreja,  porque  fizessem  elles  conceito  da  grandeza 
do  que  recejjião,  e  entrassem  os  outios  em  novo  fervor  de  procurar  o  mes- 
mo. Uesta  j)assou  á  aldeã  de  San-Tiago  pouco  distante,  aonde  obrou  na 
mesma  f(ji-nia:  c  dalii  á  d(3  S.  João,  onde  achou  o  Padre  Gaspar  Louren- 
ço, e  o  Irmão  Simão  Gonçalves.  Aqui  sahirão  os  cathecumenos  com  cruz 
alçada  a  receber  o  Padre  fora  de  povoado  passante  de  meia  legoa,  com 
musicas,  festas,  coroas  na  cabeça,  como  em  symbolo  da  esperança  do  dia 
feliz  de  seu  J)aulismo.  Chegou  o  Padre  Provincial,  baulizou  em  hum  dia 
Cíinlo  setenta  c  três,  e  em  outro  cento  c  treze,  depois  dos  (jiiaes  ccleíjrou 


Í68  LIVRO  II  DA  CHRONin.V  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

grande  numero  de  matrimónios  na  Lei  da  graea,  renunciadas  as  mais  mu- 
llieres  de  seu  geatilismo. 

103  Partio  a  outra  aldeã  da  invocação  de  Santo  António,  por  caminhos 
aspérrimos;  e  d"esta  á  do  Espirito  Santo,  distante  quatro  legoas,  sempre  a 
pé,  por  mais  que  os  índios  se  condoíão  de  sua  fraqueza,  c  lho  pedião  usas- 
se de  suas  redes.  Em  ambas  estas  aldeãs  lavou  na  fonte  do  bautismo  quan- 
tidade de  cathecumenos,  e  celebrou  muitos  matrimónios  com  grande  ale- 
gria, por  ver  a  boa  disposição  em  que  adiava  aquellas  novas  plantas.  D"es- 
ta  passou  á  ilha  de  Itàparica,  aldeã  que  custara  muitos  suores,  especialmen- 
te do  Padre  António  Pires,  e  do  Irmão  Manoel  de  Andrade,  trazendo  a 
gente  dos  campos,  e  brenhas,  com  que  se  povoara.  N'esta  entrou  na  ves- 
pora  da  Invenção  da  Santa  Cruz  de  Maio;  e  aqui  lançarão  os  catlrecume- 
nos  a  barra  sobre  todas  as  outras  aldeãs,  porque  sahirão  grande  espaç/)  fora  a 
receber  o  Padre  Provincial  em  forma  de  procissão  mais  devota  que  todas, 
com  Imma  grande  cruz  que  muitos  d"elles  levavão  ás  costas,  e  os  demais 
cantando  a  coros,  ajoelhando-se  a  passos  diante  d"ella,  adorando-a  com  de- 
voção, e  reverencia,  até  encontrar  com  o  Padre  Provincial ;  aqui  plantarão 
a  cruz  na  terra,  fazendo  diante  d'eria  devotas  supplicas  em  sua  lingoa,  so- 
bre haverem  de  ser  admittidos  ás  agoas  do  sagrado  bautismo.  Á  vista  de 
tão  pio  espectáculo,  tão  bem  representado  em  plantas  novas,  ficou  conso- 
lado o  Padre,  e  fundou  daqui  esperança,  que  não  ficarião  lialdados  os 
trabalhos  dos  que  os  cultivavão.  Ao  dia  seguinte  d  a  Invenção  da  Santa  Cruz, 
matriculou  no  livro  da  milicia  d^ella  pelo  santo  bautismo  cento  e  setenta  e 
três  cathecumenos,  ordenou  Escola,  assinando  Mestre,  com  quem  os  me- 
ninos aprendessem,  á  volta  de  ler  e  escrever,  a  doutrina  e  costumes 
christãos:  e  logo  se  ajuntarão  a  esta  passante  de  trezentos. 

104  Até  aqui  tinha  chegado  com  sua  visita  o  Padre  Provincial,  quando 
chegou  da  Capitania  dos  Ilhéos  hum  índio  por  nome  Henrique  Luis,  a  quem 
bautizára  o  Bispo  D.  Pedro  Leitão  hum  anno  havia,  com  outro  companhei- 
ro gentio,  naturaes  ambos,  e  Principaes  d'aquella  parte,  a  pedir  Religiosos 
que  os  doutrinassem,  oííerecendo-se  a  fazer-lhes  casas,  e  Igreja.  E  suppos- 
to  que  era  distancia  de  vinte  e  oito  legoas,  e  o  caminho  de  serranias  gran- 
des, rios  difficultosos  de  vadear,  e  os  obreiros  poucos:  comtudo  não  aca- 
bou comsigo  deixar  passar  occasião  tão  boa,  pois  no  mesmo  tempo  éramos  ro- 
gados, em  que  andávamos  rogando  a  outros.  Não  sabe  descansar  o  espirito, 
quando  he  fervoroso.  Parlio  o  mesmo  Padre  Provincial  com  elies,  apesar  de  ser- 


DO  ESTADO  DO  BUASIL   (aNNO  DE    \i)(){)  1G9 

ras,  e  rios;  chegou,  vio  o  sitio,  assinalou-o  pêra  formar  aldeã,  e  desde  lo- 
go o  dedicou  á  Virgem  Nossa  Senhora  da  Assumpção. 

lOo  Isto  feito,  vendo  que  se  chegava  o  dia  da  Cruz  de  Settembro,  in- 
vocação da  Igreja  de  Itàparica,  onde  tinha  promettido  achar-se  pêra  novos 
hautismos,  partio  a  toda  a  pressa  a  esta  aldeã.  Aqui  se  achou  com  o  Bispo 
D.  Pedro  Leitão,  que  tinlia  vindo  da  cidade,  levado  tanto  de  sua  devação, 
como  da  do  Padre  Provincial.  No  próprio  dia  de  Santa  Cruz,  o  descanso 
do  caminho  tão  largo  foi  começar  em  rompendo  a  alva  a  branquear  os  seus 
cathecumenos  na  sagrada  agoa  do  bautismo,  e  forão  em  numero  quinhentos  e 
trinta,  e  no  dia  seguinte  forão  oitenta  os  pares  que  ligou  com  a  graça  da  Lei  do 
matrimonio.  Ficou  admirado  o  Bispo,  e  os  que  o  acompanhavão,  da  paciên- 
cia d'este  servo  fiel;  porcjue  gastando  o  dia  todo  até  alta  noite,  chamando 
ora  huns,  ora  outros,  a  estes  instruindo,  áquelles  bautizando,  já  mais  se 
pôde  acabar  com  elle  que  tomasse  refeição  corporal,  ou  descanso  algum 
entremeio,  até  ultimamente  acabar:  que  n"estas  obras  tinha  posto  a  satis- 
fação de  comer,  e  descanso. 

106  Passou  d"aqui  este  obreiro  incansável  outra  vez  á  aldeã  do  Espiri- 
to santo,  onde  o  Padre  António  de  Pina  havia  de  dizer  missa  nova.  Bauti- 
zou  duzentos  e  cincoenta.  Desta  passou  á  do  Bom  Jesu,  pouco  havia  começada; 
aqui  fartou  então  seu  espirito,  porque  celebrou  oitocentos  e  noventa  e  dous  bau- 
tisraos  em  hum  dia,  e  no  seguinte  setenta  matrimónios  na  lei  da  graça.  Po- 
rém n'esta  aldeã  são  muito  pêra  ouvir  as  ridicularias,  com  que  o  espirito 
mahgno  pretendeo  estorvar  esta  obra:  porque  na  vespora  do  dia  em  que 
esperavão  ser  bautizados  os  cathecumenos,  foi  visto  andar  rodeando  as  ca- 
sas hum  homem  feo,  e  esfarrapado,  que  induzia  por  sua  lingoa  aquella  gen- 
te fácil,  dizendo-lhe,  que  a  razão  porque  os  Padres  os  ajuntavão  com  tan- 
tas veras  naquelle  lugar,  era  pêra  os  matar  a  todos,  com  certa  traça  que 
tinlião  inventado,  e  elle  lhes  fingia,  e  mostiava  ao  vivo.  Não  houve  mister 
mais,  acumulão-se  huns  com  os  outros,  e  trattão  de  fugir  ao  matto.  Pre- 
sentirão  os  padres  o  rumor,  acodirão,  dissuadirão-nos  com  razões;  e  foi 
pêra  eiles  a  mais  eíficaz,  que  buscando-se  com  toda  a  dihgencia  o  author 
do  embuste,  não  se  achou,  nem  (jucm  pudesse  dizer  quem  era,  nem  don- 
de era,  nem  pcra  onde  fora.  Dissera  eu,  que  era  o  inimigo  inlérnal ; 
e  assi  foi  crido  de  todos.  Não  parf)u  arpii  o  embuste.  O  dia  seguinte  estando 
juntos  na  Igreja,  esperando  já  a  iiora  do  bautismo,  eis  que  de  repente  corre 
liuma  voz:  «Acodi,  acedi,  que  toda  aldeã  se  queima!»  Perturbão-se  lodos, 


no  LIVRO  ÍI  DA  CHP.OMCA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

saem  da  Igreja,  acode  cada  qual  a  seu  lanço,  achão  ser  tudo  falso,  tornão-sc 
envergonhados,  recebem  o  bautismo  apesar  do  inferno. 

107  Porém  o  inimigo  não  cansa :  entra  o  outro  dia,  e  com  elle  outro  em- 
buste. Ao  tempo  que  estava  o  Padre  Provincial  celebrando  o  santo  sacrifício 
da  missa,  com  a  mór  solemnidade  possível,  e  pêra  que  com  mais  apparato 
celebrasse  também  os  matrimónios,  que  pêra  então  guardál^^:  virando-se  de- 
pois do  Offertorio  ao  povo,  e  tendo  já  tomado  a  mão  a  hum  dos  contrahen- 
tes,  hindo  tomar  a  da  esposa,  de  improviso  todos  quantos  estavão  na  Igre- 
ja estremecerão,  e  se  levantarão,  e  derão  a  fugir,  c|iial  se  fora  hum  bando 
de  aves  á  vista  de  algum  fero  gavião,  e  com  tão  desusado  impulso,  que  não 
atinando  com  as  portas,  sahião  pelas  próprias  paredes  (erão  ellas  de  palma) 
até  ficar  desamparado  o  Templo.  Forão  forçados  sahir  apoz  elles  os  dous 
Acólitos,  que  ajudavão  á  missa,  assi  revestidos  como  estavão,  a  reduzil-os, 
e  aquietal-os,  deixando  só  no  altar  o  missacantante  pegado  áquelle  a  quem 
tinha  tomado  a  mão,  que  escaçamente  pôde  reter.  Porém  nemn^esta  terceira 
tragedia  pôde  prevalecer  o  inferno;  porque  os  dous  Acólitos  reduzirão  a  todos, 
fazendo-os  a  seu  modo  capazes,  que  não  havia  fundamento  algum  pêra  tal 
desordem.  Tornarão  á  Igreja,  contínuárão-se  os  sacramentos,  ficando  frus- 
trado o  enganador,  que  posto  que  pode  perturbar,  não  pode  impedir.  Yio- 
se  aqui  hum  ridículo  espectáculo,  que  mostrou  bem  de  quem  procedia; 
porque  os  noivos,  que  pêra  esta  festa  so  tinhão  enfeitado,  quando  vol- 
tarão vierão  descompostos,  sujos,  esfarrapados,  da  desordem  com  que  ti- 
nhão fugido,  e  dos  lugares  em  que  se  tinhão  escondido. 

1 08  Apenas  tinha  acabado  com  a  povoação  do  Bom  Jesu  o  Padre  Provincial, 
quando  chegarão  Embaixadores  de  certos  gentios,  que  habitavão  dezlegoasmais 
ao  Norte,  a  pedir  Padres.  Não  commetia  semelhantes  empresas  a  outro  o 
nosso  incansável  obreiro ;  partio  elle  mesmo  com  os  Embaixadores,  e  por 
mais  que  prevenio  aviso,  foi  festejado  d'esta  gente  sobre  todas  as  outras ; 
porque  quando  menos  o  cuidou,  muito  antes  que  chegasse  a  elia,  ouvio  que 
atroavão  as  mattas  multidão  de  vozes  incompostas;  reparou,  e  erão  canti- 
gas a  modo  do  sertão,  com  que  sahião  a  dar-lhe  as  boas  vindas,  homens, 
mulheres  e  meninos.  Yinhão  em  ordem,  os  meninos  primeii'0,  em  segun- 
do lugar  os  varões,  e  no  terceiro  as  mulheres ;  galanteados  todos  com  en- 
feites de  pennas  de  pássaros,  pedras  nos  beiços  de  cores  differentes,  e  mar- 
chando ao  som  de  seus  costumados  instrumentos.  Chegados  a  avistar-se, 
depois  de  recebido  o  hospede  com  as  mais  finas  ceremonias  de  sua  corte- 
sia, fez-lhes  o  Padre  a  primeira  pratica  do  cathecismo,  de  que  ficarão  sa- 


DO  ESTADO  DO  DRASIL  (aNNO    DE    1561)  171 

lisfeitos:  G  forão  logo  demarcar  o  sitio  da  povoação,  era  que  havião  de 
aju!itar-se,  e  fazer  Igreja,  que  logo  d"alli  intitularão  com  nome  de  S.  Pe- 
dro Apostolo.  Assentado  este,  levarão  outros  o  Padre  com  náo  menos  festas 
d^alli  oito  legoas,  e  destinarão  lugar  pêra  outra  aldeã,  e  Igreja,  que  invoca- 
rão de  Santo  André. 

109  Tinha  concluido;  porém  ficavão-lhe  os  olhos  em  Imma  aldeã  dis- 
tante quasi  outras  dez  legoas,  a  maior  de  todas,  e  do  grande  fama:  mas 
era  de  gente  inimiga,  e  contraria  ás  outi-as.  Que  faria?  Não  acabou  comsi- 
go  deixal-a :  foi-se  a  ella,  posto  que  não  chamado:  chegou,  e  achou  hum 
Principal  assaz  venerável  entre  os  seus,  homem  de  outro  século,  de  cento  e 
vinte  annos  deidade,  em  cujo  lugar  pela  muita  velhice  governava  hum  neto  seu 
de  sessenta  annos,  por  nome  Capinno,  homem  de  muita  conta^  e  authoridade. 
E  como  d'esíe,  e  dos  seus  dependia  em  grande  parte  a  propagação  do  Evan- 
gelho, e  paz  de  todas  aquellas  aldeãs,  meteo  o  Padre  cabedal  por  trazel-o 
comsigo,  que  viesse  a  ver  a  cidade,  e  o  modo  do  tratto  dos  Portugueses; 
porque  ficasse  mais  afeiçoado:  e  era  tanta  a  authoridade  que  tinha  ganha- 
do entre  elles,  que  não  pode  deixar  de  vir  no  que  queria,  não  obstante  o 
fundado  receio  que  tinha,  por  haver  de  passar  por  seus  inimigos,  dos  quaes 
não  se  fiava.  Yeio  com  tudo,  e  com  successo  grande;  porque  de  caminho 
assentou  pazes  com  os  moradores  de  Santo  André,  principaes  inimigos,  por 
meio  do  Padre :  e  na  cidade  foi  recebido  do  Gov  ernador  com  mostras  de 
grande  benevolência,  dando-lhe  de  vestir,  e  alguns  dons  de  vinho  de  Por- 
tugal, ferramentas,  e  outros;  e  sobre  tudo  provisão  de  Capitão  dos  seus  a 
modo  portnguez:  cousa  digna  de  ser  lançada  em  seus  annaes,  e  que  fez 
inveja  aos  outros.  E  íicou  n"esta  forma  em  grande  estado  a  conversão 
d'aquellas  partes.  N"este  anno  chegou  â  Bahia  soccorro  de  Portugal  de  hum 
Padre  por  nome  Francisco  Viegas,  e  hum  Irmão  Italiano:  porém  não  veio 
a  eíTeito  fruto  algum  de  sua  missão,  por  serem  ambos  brevemente  despe- 
didos da  Companhia;  que  supposto  que  forão  dos  chamados,  não  erão  es- 
colhidos. 

110  Em  quanto  íia  Bahia  de  todos  os  Santos,  c  seus  districtos  assi  se 
occupava  o  Padre  Oram  e  os  seus  Religiosos,  o  Padi-e  Nóbrega  em  S.  Vi- 
cente, com  os  quo  com  elle  vivião,  náo  estava  ocioso;  porque  supposro  que 
debilitado  da  saúde,  e  carregado  dos  annos,  e  achaques,  era  o  espirito  sem- 
pre o  mesmo :  com  este  corria  as  vilias  circunvizinhas  pregando,  praticando, 
confessando,  com  assaz  de  trabalho,  semiiro  a  pé;  c  quando  subia  lugares 
altos,  em  vez  de  bordão,  lhe  servia  de  encosto  o  companheiro. 


Í72  LIVRO  II  DA  CHROXIC.V  DA  COMPANHIA  DK  JESU 

Ml  Trazião  n'este  tempo  revolta  toda  a  terra  os  contínuos  assaltos  dos 
Tamoyos,  inimigos  dos  Portugueses  desde  o  tempo  da  entrada  dos  Fran- 
ceses no  Rio  de  Janeiro.  Andavão  á  caça  da  nossa  gente,  como  das  feras, 
pêra  pasto  da  gula,  e  juntamente  da  vingança.  Acommetião  repentinamente, 
ora  das  serras  aos  fjue  vivião  no  sertão  de  Piratininga,  ora  das  canoas  aos 
que  vivião  no  marítimo;  e  não  se  dava  alguém  por  livre  de  seus  arcos,  e 
dentes.  Entre  tantas  angustias  o  santo  velho  Nóbrega  era  alivio  de  todos, 
ou  per  si,  ou  per  seus  Religiosos :  fazia  oíTicio  do  Propheta  Jonas,  amoes" 
tava  a  todos,  que  se  arrependessem,  e  confessassem,  e  andassem  appare- 
Ihados,  como  em  perigo  de  morte :  que  prevenissem  a  justa  indignação  do 
Senhor,  que  com  os  mesmos  meios  os  castigava,  com  que  o  oíTenderão,  e  com 
a  mesma  mão  dos  Tamoyos,  que  aggravárão,  saltearão,  e  cattivárão  sem 
razão.  Por  esta  causa  mandava  fazer  aos  Religiosos  frequentes  sacrifícios, 
penitencias,  e  orações  com  que  aplacassem  o  Ceo,  e  fizessem  capazes  aquel- 
las  villas  de  seus  peccados. 

112  De  todos  os  trabalhos  dos  homens  costuma  Deos  tirar  algum  fru- 
to. N'esta  occasião  o  tirou  da  salvação  de  duas  celebres  mulheres,  que  de- 
rão  a  vida  constantemente  por  defensão  da  castidade.  Era  sabido  o  depra- 
vado costume  dos  Tamoyos,  que  além  de  usarem  dos  prisioneiros  pêra  pas- 
to do  ventre',  usavão  também  das  mulheres  pêra  matéria  da  lascívia.  Corria 
fama  que  trattavão  de  dar  em  certa  paragem,  em  a  qual  era  moradora  hu- 
ma  mulher  mestiça  viuva,  6  de  bom  viver :  esta  faltando  com  suas  amigas 
disse  as  palavras  seguintes:  «Os  contrários  Tamoyos  me  hão  de  cattivar; 
porém  eu  não  me  hei  de  deixar  levar  viva,  porque  me  não  tenhão  por  man- 
ceba, como  as  demais.»  E  feita  esta  resolução,  foi  confessar,  e  commun- 
gar,  e  recolheo-se  a  sua  casa.  Passara  pouco  tempo,  quando  derão  n'ella 
assalto  os  Tamoyos,  e  querendo  leval-a  a  suas  canoas,  resistio  com  tanta 
força  a  poder  de  braço,  que  houve  de  chegar  a  hum  de  dous  extremos,  ou 
entregar-se  á  vontade  dos  bárbaros,  ou  entregar  em  suas  mãos  a  vida :  es- 
colheo  antes  esta  sorte,  e  atravessada  a  facadas  deu  constantemente  a  alma 
a  seu  Criador. 

113  Foi  mais  notável  o  caso  da  segunda  mulher,  t  ambem  mestiça,  ca- 
sada, e  dotada  de  fermosura  corporal,  mas  muito  mais  da  espiritual;  por- 
que era  assinalada  em  virtude,  doutrina,  e  frequência  dos  sacramentos 
entre  todas  suas  iguaes.  Esta  prophetizou  claramente  o  que  lhe  havia  de 
succeder;  porque  acabando  de  commungar  hum  domingo,  chegando  a  casa 
disse  ás  parentas,  e  amigas,  como  despedindo-ae  d"ellas,  estas  palavras : 


DO  ESTADO  DO  BHASIL  (aNNO  DE  1501)  173 

«Os  Tamoyos  me  hão  tio  levai-  em  suas  canoas,  o  eu  passarei  bradando 
por  tal  parte  (dizeiído-a  por  seu  nome)  e  ninguém  me  acodirá.»  Foi  tudo 
assi,  porque  derão  os  Tamoyos  assalto,  e  cattivárão  entre  outros  esta  mu- 
lher, embarcárão-na  em  suas  canoas,  e  foi  levada  pela  parte  que  tinha  dit- 
to,  gritando,  sem  que  alguém  lhe  acodisse.  Chegou  á  terra  dos  Tamoyos, 
e  o  senhor  da  presa  fez  a  seu  pai  presente  d'ella,  como  da  melhor  parte, 
pêra  sua  manceba.  Bem  conhecia  esta  venturosa  esposa  do  Senhor,  que  a 
conservação  de  sua  vida  consistia  na  satisfação  do  intento  do  bárbaro,  que 
logo  começou  a  mostrar-lhe  affeição;  porém  ella  animada  d'aquelle,  que 
pôde  descobrir-llie  o  successo  futuro,  resístio  constantissimamente,  e  recha- 
çou ao  monstro  lascivo.  Natural  era,  vendo-se  desprezado  este  bárbaro  to- 
mar logo  vingança;  porém  levado  da  fermosura,  e  esperança  que  n'ella  lhe 
ficava,  porque  cria  não  poderia  durar  muito  tempo  constância  de  mulher, 
deixou-a  viver  por  mais  tempo,  servindo-se  d'ella  como  escrava,  mas  tra- 
tando-a  como  amiga  por  reduzil-a  a  seus  intentos:  porém  ella  constante 
como  huma  rocha  determinou  entregar-se  antes  às  feras,  fugindo  pelos  mat- 
tos :  se  não  que,  como  era  fraca,  e  andava  pejada,  não  foi  possível  por 
muito  tempo  sustentar  o  cerco  da  fome :  passados  três  dias  deixou  as  bre- 
nhas, desceo  aos  semeados  em  busca  de  sustento;  aqui  foi  sentida,  e  presa. 
Furioso,  e  desesperado  já  o  bárbaro,  quiz  tomar  vingança  dobrada;  espe- 
rou que  parisse,  e  á  vista  da  mãi  matou,  assou,  e  juntamente  comeo  o  fi- 
lho. Esta  triste  vista  sentio,  mas  não  consentio  com  o  bárbaro,  a  resoluta 
mãi :  o  que  visto,  a  despedaçou  também,  fazendo  matéria  de  sua  gula  a 
que  o  não  quizera  ser  de  sua  lascívia;  querendo  antes  esta  forte  matrona 
perder  duas  vidas,  que  commeter  huma  só  offensa  de  Deos.  Foi  este  caso 
celebre,  e  com  razão  divulgada  esta  matrona  por  verdadeira  martyr  da 
castidade;  e  pôde  servir  de  exemplo  illustre,  honra,  e  coroa  das  mulheres  na- 
turaes  do  Brasil.  A  certeza  d'elle  he  grande,  porque  o  conta  em  sustancia, 
quasi  nos  mesmos  termos  o  venerável  Padre  Joseph  de  Anchieta,  e  diz  que  foi 
notório,  e  que  por  relação  dos  mesmos  Tamoyos  teve  certeza  d'elle;  e  falia 
d"esta  memorável  mulher  como  de  alma  bemaventurada,  que  goza  do  pre- 
mio do  martyrio :  acrescentando,  que  o  Tamoyo  que  a  cattivou,  e  deu  a 
seu  pai,  foi  logo  castigado  d(j  Ceo,  sendo  cattivo,  morto,  e  comido  de  seus 
conti-arios. 

\ll  Outro  caso  sucixídeo  n'esles  assaltos  dos  Tamoyos,  digno  de  ser 
sabido.  Ixvárão  cattivo  hum  escravo  dos  l^idres,  juntamente  com  hum  li- 
llio  seu :  i)edio-lhc's  o  escravo  com  humildade  (]ue  o  não  inatasscm,  ou  ao 


174  LIVRO  U  DA  CIIIIO.MCA  DA  CO.MFANHÍA  DK  JKSU 

menos  depois  de  moi-to  (iiie  não  comessem  suas  carnes,  que  tivessem  res- 
peito a  que  era  servo  dos  Padres,  homens  Ijons,  que  tem  tratto  com  o  Deos 
verdadeiro,  e  podia  castigal-os.  Zombarão  os  bárbaros  do  dilto  do  cattivo, 
mas  não  zombou  o  Ceo  á  vista  de  sua  crueldade;  porque  cUes  matarão  o 
pai,  e  o  filho,  e  os  comerão  em  seus  convites;  e  o  Ceo  fez  tal  demonstra- 
ção de  castigo,  que  desceo  logo  soljre  o  lugar  todo  peste  cruel,  que  co- 
meçando pelo  Capitão  homicida,  foi  consumindo  a  todos  miseravelmente, 
deixando  a  aldea  deserta,  espanto,  e  exemplo  dos  vizinhos. 

Ho  Entre  tantos  assaltos  dos  inimigos  fizerão  também  hum  contra  el- 
les  os  índios  que  favorecião  nossa  parte.  N'este  tomarão  por  mar  Imma 
presa,  que  muito  desejavão :  era  ella  hum  grande  Principal,  Capitão  que 
havia  sido  de  muitos  assaltos,  e  tinha  morto  e  comido  a  muitos  Portugue- 
ses com  grande  crueldade.  Trouxerão-no  prisioneiro  á  villa,  e  tendo  receio 
alguns  Portugueses  que  poderia  acolher-se  das  mãos  dos  índios,  fizerão  que 
o  matassem  logo  em  sangue  frio;  e  pêra  isso  lhe  derão  dentro  da  villa  ca- 
sa, na  qual  não  somente  lhe  tirarão  a  vida,  mas  usarão  de  crueldade  des- 
humana;  porque  depois  de  morto  o  fizerão  em  postas,  assarão,  e  comerão 
a  modo  gentílico :  e  tudo  isto  lhe  consentirão  aquelles  Portugueses  a  fim 
de  os  encarniçar  contra  seus  inimigos.  Estava  n'este  tempo  o  Padre  Nó- 
brega em  Piratininga,  e  quando  lhe  chegou  a  relação  de  feito  tão  feio,  sen- 
tio-o  por  extremo,  porque  via  que  acrescentavão  estes  homens  oflensas  a 
offensas.  Lá  onde  estava  chorou  esta  com  lagrimas  de  sangue,  e  escreveo 
logo  aos  Padres  da  villa,  ordenando-lhes  sahissem  todos  pela  rua  publica 
tomando  disciplina,  e  pedindo  a  brados  misericórdia;  porque  os  Portugue- 
ses entrassem  em  si,  conhecendo  seu  peccado,  e  o  Ceo  suspendesse  o  cas- 
tigo, que  considerava  estar  ameaçando  sobre  aquelle  povo.  Com  que  espi- 
rito tomasse  este  servo  de  Deos  tão  áspera  resolução,  não  o  direi  de  certo; 
mas  sei  que  foi  attribuida  a  impulso  do  Ceo :  e  na  verdade,  computado  este 
affecto  com  o  que  d'antes,  e  depois  pregava  nos  púlpitos,  a  fim  de  que  os 
homens  divertissem  a  Justiça  divina,  e  vista  outrosi  a  particular  aíflicção 
com  que  faltava  na  matéria,  e  a  ultima  resolução  f^ue  veio  a  tomar  de  ex- 
por sua  própria  pessoa  a  manifesto  perigo  da  vida  entre  inimigos,  como 
logo  veremos,  junto  tudo  em  varão  de  tão  grande  espirito,  faz  prova  cla- 
ra, que  não  faltava  acaso,  senão  que  lhe  era  manifestado  o  castigo  da  des- 
truição d'aquella  terra,  e  que  procurava  por  todos  os  meios  evital-o. 

H6  Outros  indícios  de  castigo  do  Ceo  tiverão  logo  os  moradores  da 
villa  de  S.  Vicente;  porque  veio  sobre  aquelle  povo  tal  incêndio  de  doença 


DO  ESTADO  DO  UKASIL  (A.XNO  DE   1561)  175 

ile  descntcria  de  sangue,  que  poz  a  todos  em  grave  aperto.  Nâo  erão  bas- 
tantes os  Padres,  trabalhando  de  dia,  e  de  noite,  a  dar  alcance  ás  confis- 
sões dos  que  chegavão  as  portas  da  morte,  nem  ainda  a  sangrar,  e  curar; 
que  a  tanto  obrigava  o  aperto,  charidade,  e  necessidade :  por  cuja  causa, 
o  juntamente  por  grandes  arreceios  que  tinhão  do  successo  de  certo  as- 
salto que  havião  ido  dar  a  seus  inimigos,  andava  a  gente  toda  como  assom- 
brada: e  por  todas  estas  causas  fazia  o  Padre  Nóbrega  frequentes  procis- 
sões pelas  ruas  publicas,  e  ordenou  que  dentro  em  casa  tivessem  os  nossos 
orarão  nocturna  perenne  na  maneira  seguinte.  Que  estivesse  cada  qual  dos 
Padres,  e  Irmãos  certas  horas  da  noite  em  oração  medidas  por  relógio  de 
área,  e  no  fim  d"elia  tomasse  disciplina,  e  passasse  o  relógio  a  outro,  até 
passar  a  noite  toda :  e  perseverou  o  fervor  d'esta  devação  toda  huma  Qua- 
resma, não  sem  indicios  de  perdões  do  Ceo. 

M7  No  anno  presente  passou  a  melhor  vida  o  Irmão  Matheus  Noguei- 
ra, Coadjutor  temporal,  aquelle  a  quem  dissemos  recebera  na  Companhia 
o  Padre  Leonardo  Nunes  na  Capitania  do  Espirito  §anto,  e  levara  pêra  a 
de  S.  Vicente  no  anno  de  lo59.  Desde  secular  foi  Deos  mostrando  queso 
contentava  d'este  Irmão.  Passando  de  Portugal,  pátria  sua,  aos  lugares  da 
fronteira  de  Africa,  sendo  alli  soldado,  contava  elle,  que  recebera  do  Se- 
nhor grandes  mercês;  porque  servindo  de  espia  (oíficio  n"aquellas  partes 
muito  arriscado)  o  livrara  de  muitos  perigos  em  que  se  vira,  ora  de  Mou- 
ros, ora  de  leões,  a  cujas  mãos,  e  garras  esteve  a  ponto  de  perecer :  e 
que  estes  perigos  da  morte,  e  outros  que  via  cada  dia  nos  encontros  de 
guerra,  lhe  servião  de  vivo  espelho  da  morte  eterna. 

118  Das  fronteiras  de  Afiica  tornou  á  sua  pátria;  e  quando  cuidava  des- 
cansar, lhe  offereceo  a  fortuna  occasião  pêra  maior  desterro.  Achou  que  pelo 
tempo  de  sua  ausência  tinha  vivido  erradamente  a  mulher  com  quem  era 
casado,  em  seu  grande  descrédito :  e  não  acabando  comsigo  malal-a,  nem 
ainda  accusal-a  (levado  da  piedade  natural,  de  que  era  dotado,  e  dos  be- 
neíicios  que  recebera  da  mão  de  l)(.'os)  resolveo-se  que  era  servido  o  Ceo 
mortifical-o,  e  tiral-o  da  pátria.  Fazião-sc  levas  de  gente  pêra  povoar  o  Bra- 
sil, achou  que  nelle  viviria  mais  desconhecido  da  gente,  assentou  praça  de 
soldado,  e  veio  demandar  a  Cap-ilania  (h)  Espií-ito  santo.  Aqui  militou  al- 
guns annos,  ajudando  a  defender  aíjuella  terra  de  grandes  assaltos,  com 
que  foi  combatida  por  vezes  de  quantidade  de  bárbaros  inimigos,  onde  Deos 
sem[)re  o  livrou  de  perigos  vários,  o  com  nome  de  homem  valeroso;  por- 
que era  robusto,  e  de  giandes  forças  cori)oraes.  .No  tenq»o  (]ue  lhe  sobe. 


!7G  LIMIO  II  DA  CHROMCA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

java  da  guerra,  trattava  de  ganhar  sua  vida  exercitando  officio  de  lerrciro- 
mui  necessário  n'aíiuelle  tempo,  e  estimado  n"aquellas  partes;  vivendo  sem- 
pre n"elle  o  temor  de  Deos,  c  lembrança  de  bens,  e  males  da  outra  vida : 
servia-lhe  de  lembrança  da  morte  os  que  via  acabar  na  guerra,  e  das  penas 
do  inferno  o  fogo  da  forja  de  seu  oíTicio. 

119  Neste  tempo  passou  por  aqucUa  Capitania  o  Padre  Leonardo  Nu- 
nes, e  inílammado  jã  nosso  Matheus  no  amor  divino,  e  desejoso  de  largar 
o  mundo,  e  dar-se  áquelle,  de  quem  tantas  mercês  recebera,  pedio-lhe  a 
Companhia,  foi  recebido  n'ella,  e  depois  approvado  seu  recebimento  i)elo 
Padre  Provincial  Manoel  da  Nóbrega,  e  por  nosso  Patriarcha  Santo  Igna- 
cio.  Geral  então  de  nossa  Religião,  a  quem  foi  proposto,  não  obstante  ser 
viva  a  mulher  com  quem  era  casado,  e  repudiara  pelo  adultério. 

120  Feito  Religioso,  tratou  mais  deveras  de  agradecer  a  Deos  as  mer- 
cês que  d'elle  havia  recebido,  e  Deos  de  fazer-lhe  a  elle  outras  de  novo. 
Em  o  noviciado  tomou  por  exemplar  a  seu  mestre  Leonardo  Nunes,  e 
procureu  de  imital-O;  especialmente  na  resolução  efíicaz  de  castigar  seu 
corpo,  o  qual  trattava  como  trattára  hum  jumento  de  carga.  Era  pobríssi- 
ma a  casa  em  que  vivião,  sustentava-se  com  muito  trabalho  de  esmolas 
pedidas  aos  fieis  de  porta  em  porta :  pêra  poder  aliviar  em  parte  esta  ne- 
cessidade, e  acodir  juntamente  ao  sustento  do  Seminário  dos  meninos  fi- 
lhos de  índios,  e  Portugueses  pobres,  armou  tenda  de  seu  officio  (com 
beneplácito  do  Superior)  e  todo  o  tempo  que  sobrava  dos  exercícios  espi- 
rituaes,  trabalhava  n"elle,  e  aliviava  n'elle,  e  aliviava  com  seu  suor  aquella 
tão  grande  necessidade. 

121  Nos  princípios  de  seu  noviciado  foi  combatido  do  inimigo  com  ten- 
tações graves;  mas  sentio  sempre  n"ellas  o  favor  divino.  Estava  certo  dia 
attribulado  com  huma  rija  bateria  do  infernal  espirito,  quando  se  llie  offe- 
receo  aos  olhos  a  luta  de  huma  formiga  e  outro  bichinho :  pretendia  esta 
leval-o  a  seu  formigueiro,  relutava  aquelle,  e  por  maior  prevalecia:  des- 
appareceo  a  formiga,  e  quando  cuidava  o  Irmão  que  era  acabada  a  conten- 
da, começou  com  mais  força;  porque  chegando  a  formiga  ao  lugar  de  seu 
recolhimento,  deo  ponto  da  presa  ás  companheiras,  pelos  modos  secretos 
aos  homens,  qne  a  natureza  lhes  ensina,  e  logo  juntas  em  enxame  vindo 
seguindo-a,  e  empolgando  no  bichinho,  fizerão  todas  o  que  huma  só  não 
podéra,  e  o  arrastarão  vencido  á  cova,  onde  fazião  seu  celleiro.  Cahio  então 
em  si  o  Irmão  Nogueira,  e  ficou  corrido;  porque  entendeo,  que  lhe  mos- 
trava Deos  alli  no  exterior  hum  vivo  exemplar  do  que  passava  dentro  em 


DO  ESTADO  DO  DHA.SIL  (a.\.\0  DE    1501)  177 

sua  alma;  c  qiiti  assi  procurava  o  deinuuio  vencel-o,  e  não  podendo  só  per 
si,  cliamava  outros,  que  como  formigas,  multiplicando  impulsos,  o  hião  ie- 
\ando  á  cova  infernal.  Lançou-se  por  terra  o  noviço,  conheceo  o  engano, 
agi-adeceo  o  favor,  e  resistio  de  todo  á  tentação,  e  a  todas  d"alli  em  diante 
com  mais  espirito. 

122  Foi  permudado  pêra  Piratininga,  e  não  mudou  nunca  de  estylo, 
([uer  na  virtude,  quer  no  trabalho  do  oiricio.  Importou  muito  o  fruto  que 
fez  com  suas  obras  (além  do  remédio  da  casa;)  porque  como  entre  aquel- 
les  índios  nenhuma  cousa  havia  de  mais  estima  que  hum  machado,  huma 
fouce,  huma  cunha,  e  outras  peças  semelhantes,  acommodadas  a  seus  tra- 
balhos, e  o  Irmão  as  fazia  com  perfeição,  e  com  boa  vontade  a  todos,  imico 
na  terra;  era  tido  d'elles,  qual  outro  Deos  Vulcano,  em  grande  reverencia: 
e  i)or  este  meio  acabava  com  elles  tudo  quanto  queria  a  lim  de  sua  salva- 
ção. Davão-lhe  os  íilhos  com  facilidade  pêra  lhos  ensinar,  acodião  á  dou- 
trina do  Galhecismo,  e  obedecião  a  todos  seus  mandados,  como  de  homem 
(jue  tinha  arte  mais  que  humana,  proveitosa  pêra  beneficio  de  todos.  Man- 
dava recados  ao  sertão,  e  lá  ei'a  pontualmente  obedecido.  EUe  foi  gi-ande 
[)arte  da  causa  de  se  íacihtar,  e  frequentar  o  Seminário  da  doutrina  chris- 
tãa  dos  meninos,  e  da  conversão  de  muito  numero  dos  grandes. 

123  Hum  anno  antes  que  morresse  este  bom  Irmão,  foi  aílligido  com 
continuas  doenças,  causadas  do  perejine  trabalho,  e  penitencias  rigorosas 
com  (juc  moi'tihcava  seu  corpo,  batendo  n'elle  como  no  mesmo  ferro,  até 
(lúebrar  de  sua  dureza  de  maneira,  que  não  podia  ter-se  em  pé,  homem 
(fue  fora  de  tão  grandes  forças  (que  como  não  havia  então  ainda  na  Com- 
])anhia  constituições,  e  tomava  cada  hum  as  penitencias  ([ue  lhe  parecia; 
ciiegou  a  não  ter  mais  que  os  ossos;  c  não  deixava  por  isso,  nem  o  trabalho, 
nem  a  oração.  N'esta  era  continuo,  o  devotíssimo:  e  quando  já  por  fraqueza 
do  corpo  chegou  a  não  poder  estar  de  joelhos,  escreve  d  elle  o  venerável 
Padre  Josei)h  de  Anchieta  contemporâneo  seu,  (juc  tinha  feito  humas  como 
moletas  em  que  se  sustentava,  e  hum  tirac(jllo  ao  pescoço,  com  que  j^odia 
ler  as  mãos  levantadas,  [)or  ajudar  com  este  sitio  devoto  a  oração. 

12i  N'esta  IVirma  conliimou  este  servo  fiel  até  cahii-  em  cama;  n"ella 
esteve  cinco  até  seis  dias  não  mais :  n^estes  com  freiíuentes  suspiros,  e  ja- 
culatórias ao  Ceo,  se  apparelhou  devotamente  pêra  a  pai-tida  d'esla  vida : 
pedia  aos  Irmãos  lhe  fallassem  de  Deos  muitas  vezes:  a  outros  que  lhe 
lessem  lição  espiritual;  a  qual  ouvida,  licando-se  S(>  meditava  sobro  cila,  o 
lazia  f(;i-vor(Jsos  colloquios,  até  que  tomados  os  saci'amentos  lodos,  e  dca- 

VOL.  i  Ti 


178  LIYUO  11  DA  Ciir.OMCA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

peuindo-se  de  seus  Irmíios  no  dia  penúltimo  de  sua  vida,  disse:  «Ámanliãa 
me  irei.»  E  succedeo  assi;  porque  ao  seguinte  dia  20  de  Janeiro  do  anno 
corrente  de  1561  deo  a  alma  a  seu  Criador,  sendo  de  idade  de  quasi  ses- 
senta annos.  Falia  d'eiie  com  grande  louvor  o  Padre  Joseph  de  Anchieta : 
e  foi  o  iirimeiro  da  Companhia,  que  na  Capitania  dcS.  Vicente  morrco  em 
cama.  Foi  sepultado  na  Igreja  de  S.  Paulo  da  villa  de  Piratininga. 

425  Na  Bahia  não  passarão  as  cousas  menos  felices  o  anno  de 
1562  que  o  antecedente;  })orqae  o  Padre  Luis  da  Oram  com  seus  obrei- 
ros não  cessava  momento  na  empresa  começada.  Passada  a  festa  do  nome 
de  Jesu,  orago  d'aquelle  Collegio,  partio  a  suas  costumadas  missões,  e  n"el- 
las  fez  o  fruto  seguinte.  Na  aldea  de  S.  Tiago  lavou  na  agoa  do  sagrado 
bautismo  cento  e  vinte  cathecumenos.  Na  de  S.  João  quinhentos  e  cincoen- 
ta.  Na  de  Santo  António  quatrocentos,  Na  do  Bom  Jesu  duzentos  e  vinte 
quatro.  E  aqui  parou,  por  traça  do  inimigo  infernal,  invejoso  do  bem  d"es- 
ías  almas:  porque  tendo  enviado  diante  a  preparar  os  cathecumenos  da 
aldea  de  S.  Pedro  o  Padre  António  Rodrigues,  recebeo  logo  escritto  seu, 
em  que  dizia,  que  não  só  os  índios  d'aquella  aldea,  mas  também  os  de 
Santo  André  de  mão  commum  se  tinlião  acolhido  pêra  o  sertão  (a  torna 
aqui  o  espirito  invejoso  do  anno  passado  a  fazer  das  suas.)  O  caso  fui,  que 
os  feiticeiros  das  brenhas,  achando-se  menos  acompanhados  de  seus  anti- 
guos  súbditos,  e  defraudados  da  honra,  e  proveito  que  d"elíes  recebião, 
entrarão  em  sentimento,  e  procurarão  com  embustes,  e  razões  diabólicas 
perverter  os  d"estas  aldeãs,  que  erão  mais  modernas,  e  menos  constantes 
ainda  na  doutrina  dos  Padres;  e  forão  ellas  tão  eíTicazes  pêra  com  elles, 
que  os  levarão  todos  após  si :  senão  que  parece  prevenio  o  Ceo  o  espirito 
presago  do  Padre  Gram,  mandando  diante  o  Padre  António  Rodrigues,  o 
qual  sabendo  o  desarranjo,  supposto  que  fraco,  e  enfermo,  se  poz  a  cami- 
nho por  montes  assaz  ásperos  em  busca  delles,  com  tal  successo,  que  por 
providencia  divina  a  poucas  jornadas  encontrou  com  chusma  de  mais  de. 
três  mil  almas,  homens,  mulheres,  e  meninos,  tão  carregados  de  suas  al- 
faias, cabaços,  cuyas,  patigoás,  ])Otes,  bogios;  e  tão  íamintos,  e  cansados 
(fora  do  que  cuidáifio,  por  ser  grande  a  quantidade  de  gente,  c  o  sertão 
estéril)  que  foi  fácil  toiiiar  a  reduzil-os  envergonhados,  e  fazel-os  cíipazes 
dos  enganos  d'aquel!es  feiticeiros,  rpie  pretendião  impedir-lhes  a  salvação, 
a  fim  de  seus  interesses  somente.  Voltados  elles,  e  compostos  em  suas  al- 
deãs, mandou  recado  o  Padre  António  de  tudo  o  que  passara,  de  como 
eslavão  já  reduzidos,  arrependidos,  e  preparados.  Qual  se  ouvira  huma  nova 


DO  ESTADO  DO  líílASIL  (ANNO  DE   U')(')Í)  170 

do  Ceo,  VOOU  jiquelles  povos  o  Padre  Provincial :  e  foi  o  fiiilo  como  mila- 
groso; porque  forão  mil  cenlo  o  ciiicoenta  os  que  novamente  alistou  na  mi- 
licia  da  Igreja  Catholica  d"estas  duas  aldeãs  (outras  tantas  lançadas  ciueis 
d'aquellcs  feiticeiros,  e  do  autlior  de  seus  cmijustes.)  Feito  este  serviço  de 
Deos,  instava  o  tempo  da  Quaresma;  foi  necessário  acodir  o  Padre  Provin- 
cial ás  pregações,  e  mais  exer-cicios  da  cidade,  assaz  consolado  do  passado 
successo. 

126  Passou  o  trabalho  da  Quaresma,  e  as  continuas  confissões  da  Pas- 
choa;  e  porque  não  se  interrompesse  o  ganho  das  almas,  sahio  o  Padre 
Provincial  com  hum  novo  invento;  traçou  huma  grave  missão,  que  se  bem 
era  de  muito  serviço  de  Deos,  e  de  muitos  milhares  de  almas,  era  com  tu- 
do mui  arriscada,  e  commummente  tida  por  impossível :  a  tudo  porém  se 
atreve  o  fervor  de  espirito.  Tinha  o  oUio  em  muitos  milhares  de  gentios, 
que  habitavão  as  ribeiras  do  rio  S.  Francisco;  e  como  estes  trazião  guer- 
ras entre  si,  erão  causa  que  não  dessem  ouvido  ao  Evangelho  huns,  e  ou- 
tros: pareceo  ao  espirito  de  Gram,  que  tudo  alhanava,  que  com  sua  pre- 
sença poderia  concordar  esta  gente,  e  fazel-os  capazes  do  bem  de  sua  sal- 
vação. Pôde  o  desejo  intentar,  tomar  companheiro,  por-se  a  caminho :  po- 
rém não  foi  possível  o  chegar;  porque  de[)ois  de  andadas  muitas  jornadas, 
experimentados  graves  perigos  de  gente  bravia,  que  assaltava  os  caminhos, 
e  de  todo  o  animal,  ou  bruto,  ou  racional,  sem  distincção,  fazia  pasto :  de 
diversidade  de  fúria  de  rios,  e  sobre  tudo  da  dura  fome,  que  os  chegou  á 
morte;  houveifio  de  voltar,  com  a  vida  sim,  porém  não  com  as  forças,  e  saú- 
de ajm  que  partirão:  mas  se  comtudo  faltou  a  occasião,  não  faltou  o  de- 
sejo, nem  faltarião  os  merecimentos. 

127  Torna  em  roda  viva  á  visita  de  suas  amadas  aldeãs.  Em  Itaparica 
baulizou  cenlo  e  oito  cathecumenos.  Em  S.  Miguel,  aldeã  dos  Ilheos  oito 
centos  e  noventa  e  sete.  Na  de  Nossa  Senhora  da  Assumpção  junto  a  esta 
mil  e  noventa.  Primícias  d'eslas  duas  Igrejas,  e  fruto  de  grandes  suores, 
trabalhos,  e  fomes  com  que  passou  estes  caminhos  em  tempos  de  chuvas, 
enchentes  de  rios,  lugares  desertos,  onde  nem  abrigo,  nem  soccoito  ha- 
via de  viatico,  sempre  a  i)é.  Dos  Ilheos  voltou  ás  aldeãs  do  Espirito  sanío, 
e  branqueou  na  font(;  da  graça,  em  huma  cento  (!  setenta,  em  outra  cento 
e  tr'in[a  e  oito.  Na  de  S.  Tiago  cenlo  e  ciiicoenta  e  Ires.  Na  de  S.  António 
duzentos  e  dois.  Na  de  S.  Paido,  onde  como  mais  vizinha  á  cidade,  poi'si'u 
muito  zelo  se  quiz  achar  |)r(;scM)le,  o  l{isj)o  D.  Pedro  Leitão,  duzentos  e 
doze.   Mi  1  í  Tismidí»    ;i  ideara  do  Senhor  nesta  forma  c  lidiava  co[iia  bas- 


180  LIVUO  II  DA  CHUOMCA  DA  C0MI'AMI1A  DE  JESLT 

tante  de  segadores:  quando  proveo  o  pai  dos  oi)erai'ios,  que  no  mez  de 
Julho  do  corrente  anno  chegassem  á  Bahia  quatro  Uchgiosos  nossos,  versa- 
dos todos  na  hngoa  brasilica,  vindos  de  S.  Vicente,  a  saber:  o  Padre  Ma- 
noel de  Paiva,  o  Irmão  Manoel  de  Ciiaves,  o  Irmão  Gregório  Serrão,  e  o 
Irmão  Diogo  Jacome,  que  brevemente  ordenou  o  Bispo  D.  Pedro  Leitão  de 
ordens  sacras ;  íicando  aptos  todos  pêra  ajudar  na  colheita  das  almas. 

128  N'este  tempo  despedio  o  Padre  Provincial  o  Padre  João  de  Mello  por 
Supei'ior  á  missão  de  Pernambuco,  que  alli  tínhamos  começada  na  villa  de 
Olinda,  juntamente  com  o  Padre  António  de  Sá,  perito  na  lingoa  do  Brasil. 
Forão  recebidos  estes  dous  Missionários  como  dous  Anjos  vindos  do  Ceo, 
porque  andavão  havia  tempo  em  prejudiciaes  revoltas  o  Governador,  e 
Principaes  da  terra,  com  bandos  feitos  de  parte  a  parte,  perigosos;  e  pro- 
metia-se  que  por  meio  d"estes  dous  Beligiosos  teiúão  meio  estas  cousas.  Foi 
esta  a  primeií^a  empresa  que  intentarão :  visitarão  liunse  outros,  ganhando 
primeiro  mão  comelles,  e  brevemente  com  suas  letras,  praticas,  e  pregações, 
decidirão  as  razões  da  contenda,  e  concluirão  amigável  composição.  Á  vista 
deste  caso  forão  buscados  por  medianeiros  de  dissenções  i)articu}ares,  de 
ódios  intranhaveis,  c  inveterados,  a  que  derão  remédio  á  força  de  industria, 
sofrimento  e  trabalho.  Avivarão  com  suas  pregações  e  praticas,  o  uso  dos 
sacramentos  da  penitencia,  e  sagrada  communhão,  em  que  acharão  grande 
descuido.  E  n'esta  matéria  houve  casos  particulares  de  grande  serviço  de 
Deos,  que  não  achei  singularizados. 

129  Yivião  os  Padres  de  esmolas  dos  íieis,  e  recolhião-se  no  lugar  e 
morada  de  quatro  cuIjícuIos,  que  alli  deixarão  os  antecessores  d'esta  mis- 
são: e  pouco  depois  com  novas  esmolas  que  ajuntarão,  llzerãí.)  Igreja  de 
pedra  c  cal,  com  invocação  de  Nossa  Senhora  da  Graça.  Daqui  sahião  em 
missões  a  todas  as  villas  circunvizinhas,  pregando,  confessando,  e  doutrinan- 
do pelas  praças  a  brancos,  e  escravos:  discori'ião  pelas  aldeãs,  bautizavão 
em  artigo  de  morte,  calhequizavão,  e  doutrinavão.  N "estas,  e  outras  obras 
do  serviço  de  Deos  (segundo  o  que  acho  escritto)  continuarão  estes  Missio- 
nários até  o  anno  de  1Í3G7:  não  deixarão  porém  lembrança  alguma  de  mais 
casos  particulares,  que  alli  obrassem;  nem  nós  a  faremos  até  o  anno  de 
1568,  em  que  tornaremos  ao  lio  da  historia:  porque  então  se  fará  residên- 
cia em  forma  n'este  lugar. 

ViO  Continuavão  em  S.  Vicente  as  revoltas  dos  annos  i)aí>sados,  e  hião 
cada  dia  ameaçando  maior  ruina;  porque  os  índios  inimigos  com  o  exercí- 
cio se  achavão  mais  destros,  cum  as  presas  da  carne  humana  mais  encar- 


DO  KSTADO  DO  DRASÍI,  (aNNO  DE    loG2)  181 

nirados,  c  com  n  indiislri.)  da  gento  francoza,  qiic  ficara  no  Rio  de  Janei- 
ro, mais  soberbos:  não  pretendião  já  assaltos  somente,  mas  acal.»ar,  e  con- 
sumir de  todo  os  Portugueses,  c  lancal-os  por  bmna  vez  fora  de  seus  dis- 
tríctos.  Ajuníava-se  a  todos  estes  males  o  infeliz  successo,  que  de  próximo 
tinhão  havido  os  Portugueses;  porque  accommetendo  aos  Tamoyos  com  o 
mór  poder  que  possuião,  por  justos  juizos  de  Deos,  ou  por  castigo  das  in- 
justiças, que  contra  os  mesmos  índios  tinbão  commetido,  tão  choradas,  e 
pregadas  de  Nóbrega,  forãí)  vencidos,  e  desbaratados. 

131  Estando  as  cousas  n'este  perigoso  estado,  á  vista  d'este  ultimo 
successo,  sobreveio  outro  mais  pêra  temer ;  porque  os  índios  Tupis  do  ser-* 
tão  confederados  nossos,  f[ue  jà  andavão  meios  arruinados,  com  esta  occa- 
sião  acabarão  de  se  declarar  por  contrários,  e  hião  cada  vez  mais  reforçan- 
do-sc  com  o  poder  de  outras  aldeãs  circunvizinhas,  que  estavão  neutraes, 
e  de  muitos  outros,  que  de  nós  fugião  por  descontentes,  e  buscavão  a  elles 
l)or  de  melhor  partido. 

132  Não  ficarão  em  vão  os  arreceios  dos  Portugueses:  porque  passado 
pouco  tempo,  vendo-se  os  índios  do  sertão  com  grosso  poder,  se  resolve- 
rão em  todo  o  segredo  de  ir  dar  sol)rc  a  villa  de  Piratininga,  acabar  os  que 
n'ella  estavão,  c  fazer-se  senhores  d"aquelles  campos,  que  cobiçavão  por  sua 
fartura,  e  pela  boa  defensa  que  dalli  tinhão  contra  os  Portugueses,  pelo 
intermeio  das  serras  Paranápiacába,  que  servião  como  de  muralhas  natu- 
raes.  Abalarão  com  eífeito  por  caminhos  occultos  multidão  numerosa,  mui- 
tos milhares  de  gentilidade,  e  ainda  de  Christãos  fugitivos,  destros  nas  en- 
tradas, e  saídas  da  villa,  e  criados  n'ella  alguns,  com  intento  de  tomarem 
os  nossos  descuidados.  Porém  o  Senhor,  que  pretendia  mais  castigar,  que 
arruinar  aquella  Capitania,  ondenou  rpie  hum  índio  cimipadecido  de  nossas 
afllições,  o  l(ímbrado  tia  doutrina  dos  Padres,  se  apartasse  de  entre  elles, 
e  viesse  por  caminhos  mais  breves,  rompiíndo  o  matto,  a  dar  recado  aos 
nossos  de  como  descia'  sobre  elles  tão  grande  poder. 

■133  (>hegou  a  nova  aos  três  de  Julho  do  presente  anuo,  achando-sena 
casa  de  Piratininga  dez  Ueligiosos,  [)or  Superior  (Velles  o  Padre  Vicente 
Rodrigues:  ficarão  lodos  metlidos  em  grandi;  confusão;  porque  era  muito 
o  poder  do  inimigo,  o  mui  limitado  o  nosso:  porÍMU  aqui  mostrou  a  mão 
de  Deos  o  como  p()de,  e  sab(3  [lelejar  pelos  que  seguem  sua  saída  Fé.  Foi 
c(jusa  muito  pêra  louvar  o  Senhor  dos  exércitos,  ver  o  como  moveo  osco- 
i-ações  dos  índios  calhecunienos,'e  bautizados,  nossos  discipulos,  como  se  toca- 
ra rfelles  a  larma,  e  lhes  infundira  brio  gULirreiro  peia  nos  defender,  o  tomar  ar- 


182  LIVÍIO  II  DA  CÍIIIONICA  DA  COMPAMIIA  DE  JESU 

mas  contra  os  seus.  Yierão-se  logo  recolhendo  nossos  amigos,  e  os  fiuecom- 
sigo  poderão  abalar  de  seis,  ou  sete  aldeãs  que  meterão  dentro  das  estan- 
cias, pêra  morrer,  ou  vencer  comnosco  juntamente,  por  mais  que  a  vinda 
dos  das  aldeãs  lhes  custava,  não  só  perigo,  mas  grandes  incommod idades 
dos  caminhos  secretos,  por  onde  por  razão  da  pressa,  e  segredo,  era  for- 
çado virem  de  noite,  por  geadas,  e  frios  violentíssimos,  não  só  pêra  lio- 
mens,  mas  pêra  mulheres,  e  meninos  :'e  apesar  de  tudo  vinhão  a  bandos, 
como  trazidos  da  mão  de  Deos,  e  quasi  sem  saber  o  que  fozião,  á  vista  de 
huns,  que  se  lançavão  no  mesmo  tempo  com  o  inimigo,  e  de  outros  que 
se  ficavão  embrenhados  nas  matías. 

134  Entre  todos,  o  que  deo  mostras  de  maior  valor,  e  lealdade,  foi  o 
índio  chamado  em  seu  gentillsmo  Tebyreçá,  e  no  bautismo  Martim  AíTon- 
80,  Principal  de  Piratininga.  Fez  este  índio  maravilhas :  recolheo  logo  sua 
gente  de  ires  aldeãs  que  tinha  divididas,  pondo-lhes  as  casas  por  terra,  e 
deixando  suas  granjas,  e  roças  ao  furor  de  seus  contrários,  porque  perdes- 
sem de  huma  vez-  a  esperança  d'ellas.  Por  cinco  dias  que  tardou  o  inimigo, 
e  durou  a  preparação  do  combate,  andou  sempre  em  viva  roda,  ora  dis- 
pondo as  cousas  da  guerra,  ora  metendo  em  confiança  os  Padres,  ora  ani- 
mando os  Portugueses,  que  erão  poucos,  e  doentes.  Fazia  pratica  aos  seus 
de  dia,  e  de  noite,  que  defendessem  a  Igreja,  e  os  Religiosos  seus  pais, 
que  os  ensinarão,  e  criarão  na  Fé:  que  vissem  que  Deos  estava  de  sua 
parte;  porque  dos  contrários,  huns  erão  gentios,  outros  desleaes,  e  arrenega- 
dos, que  deixarão  a  doutrina  dos  Padres;  e  elles  erão  filhos  da  Igreja :  que 
vissem  o  como  elle  contra  seu  próprio  irmão  carnal  conhecido  de  todos, 
por  nome  Ararayg,  e  hum  filho  sobrinho  seu,  que  vinha  em  favor  do  inimi- 
go, eslava  animado  a  pelejar  pela  Fé,  que  huma  vez  tomara,  e  pelos  Padres 
que  lha  ensinarão,  arriscando  a  vida,  mulher,  filhos,  e  fazenda  com  espe- 
rança de  que  Deos,  a  quem  servia,  liavia.  de  estar  da  sua  parte ;  e  que  as  mes- 
mas obrigaçijes  occorrião  aos  que  já  erão  Christãos,  e  aos  que  o  não  erão  pelos 
desejos  que  o  Senhor  lhes  tinha  dado  de  o  ser.  O  caso  d  este  sobrinho  seu, 
filiio  de  Ararayg,  foi  a  maior  fineza  d'este  índio:  porque  levado  o  sobrinho 
doamornaturaKeconsiderandoqne  vinha  a  fazer  guerra  contra  hum  tio  seu. 
Capitão  da  parte  contraria,  fez  o  possível  por  reduzil-o :  fez-llie  a  saber  a 
multidão  de  arcos  que  contra  elle  vinhão,  e  cobrião  os  campos;  que  era 
certa  a  victoria  por  parte  dos  seus :  que  não  quizesse  perder-se  a  si,  e  to- 
da sua  gente ;  que  como  sobrinho,  e  sangue  se  condoia,  e  oíTerecia  a  fazer 
de  maneira,  que  se  lhe  desse  boa  evasão,  e  a  todas  suas  cousas.  De 


DO  KSTADO  DO  BRAÍ5IL  (aNNO  DE    \')Cr})  183 

lodos  estes  oíTorecimentos  zombou  o  tio  Tebyreçá,  respondendo,  que  con- 
íiava  em  Deos  voncel-o,  e  malal-o,  por  cansa  da  fé,  e  defensão  da  Igreja 
santa;  cuja  bandeira  arvorou  logo  daqnelle  ponto  em  diante,  ornando-se, 
e  vestindo-se  todo  de  suas  costumadas  armas. 

133  Estando  as  cousas  n"estes  termos,  recolhidas  as  mullieres  dos  Por- 
tugueses, e  índios  na  Igreja,  por  lugar  mais  forte,  e  porque  rogassem  a 
Deos  pelo  successo  do  confiicto :  eis  que  ao  romper  da  alva  do  dia,  que  foi 
o  da  oitava  da  Visitação  de  Nossa  Senhora,  dão  os  inimigos  de  improviso 
sobre  a  viila  de  Piratininga,  com  tão  grande  estrondo  de  gritos,  assovios, 
bater  de  pés,  e  arcos  (como  costumão)  que  parecia  se  vinha  o  mundo  abai- 
xo, e  SC  arruinavão  os  montes  vizinhos.  Todos  elles  pintados,  e  empenna- 
dos,  jactanciosos,  prometendo-se  a  victoria,  deixando  nas  costas  canalha 
de  velhas  carregadas  de  panellas,  e  azados,  em  que  dizião  havião  de  cozer  a 
carne  dos  cattivos,  segundo  as  leis  de  seus  costumes  l^arbaros.  Porém  traçou 
differentementeoCeo;porqueos  nossos  sahírão  a  recebel-os  com  não  menos 
brio,  e  esforço,  com  bandeiras  da  Igreja  de  Deos,  pela  qual  pugnavão.  Era  pêra 
ver  pelejar  ás  frechadas  irmãos  contra  irmãos,  sobrinhos  contra  tios,  pri- 
mos contra  primos,  e  filhos  contra  pais.  Forão  ^•arios  os  successos  da  guer- 
ra: até  que  por  íim  cansados,  e  desbaratados  se  retirarão  os  contrários, 
com  morte  de  muitos,  e  muitos  mais  feridos;  e  sem  que  morresse  hum  só 
da  nossa  parte,  [)osto  que  ficarão  muitos  frechados,  aos  quaes  acudirão  os 
Padres,  curando-os ;  e  íizcrão  todos  acção  de  graças  por  tão  grande  suc- 
cesso. 

i3G  Entre  os  que  morrerão  da  parte  do  inimigo,  foi  hum  o  sobrinho 
de  JMarlim  Alíonso  Tebyreçá,  chamado  por  sua  valentia  Jagoanhanj,  que 
vem  a  dizer,  o  Cão  bravo,  que  capitaneava  hum  troço;  este  sabendo  que 
as  mulheres  se  tinhão  recolhido  em  nossa  Igreja,  e  que  havia  alli  que  rou- 
bar, veio  a  dar  cíjmijate  n'e!lapela  parte  da  cerca  da  horta  dos  Padres,  que 
e!le  bem  sabia;  pagou  porém  o  atrevimento;  ponpie  d'al[i  llie  atirou huma 
frecha  hu[n  escravo,  tão  bem  empregada,  que  deo  com  elle  em  teri'a,  e  a 
pouco  espaço  acabou  a  vida.  Foi  este  successo  grande  parte  de  desm.aiar 
o  inimigo;  {KH-ípuj  considerando  os  nossos  resolutos,  o  os  seus  feridos,  c 
mortos  nmilos,  ao  segundi;  dia  do  cerco,  e  combate,  destruindo  o  ijue  pu- 
dérão  nos  arredores,  soi)re  a  tardo  derãíj  a  fugii'  com  tanta  pressa,  que 
não  esperava  pai  por  íllno.  Saliirão-lhes  os  nossos  em  alcance,  e  tomarão 
dons  deiles,  qucvendo-seabai-bados  com  a  morte,  gritavão  pelos  Padres,  e 
allegavjo  que  erão  cathecumenos  seus;  porém  embaído;  poi(ii;u  x^^Jarlim 


484  LIVRO  II  DA  CimONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

AíTonso  Tebyrecá  lhes  qiieljrou  a  caíjfça  com  a  espada,  dizendo  que  tal 
delicio  não  era  merecedor  de  pei"dão. 

137  Costume  he  de  Deos  tirar  bens  de  males:  assi  os  tirou  do  assalto 
passado;  porque  ficarão  mais  firmes  na  fé  os  índios  que  já  erão  (úhristãos, 
mais  desejosos  de  o  ser  os  que  o  não  erão,  e  com  maior  commodo  de  sua 
instrucção,  porque  com  medo  dos  contrários  erão  forçados  deixar  os  sitios 
alongados,  e  vir  viver  dentro  da  cerca  de  Piratininga,  que  a  toda  a  pressa 
fizerão  de  taipa  de  mão  a  modo  de  muralha;  e  se  trocou  o  estrondo  das 
armas  em  exercício  da  doutrina  christãa.  Outro  bem  se  seguio;  porque  dos 
escravos  dos  Portugueses  das  villas  circunvizinhas,  que  tinhão  vindo  ajudar  a 
guerra,  enfermarão  muitos  de  pestilente  desenteria  de  sangue  perigosa: 
estes  indo  ajudal-os  os  Padres,  achavão  commummente  cjue  só  tinhão  nome 
de  Christãos,  por  grande  descuido  dos  senhores:  e  taes  havia,  que  em  to- 
da sua  vida  não  tinhão  ouvido  cousa  da  Fé :  e  foi  necessário  preparal-os  de 
de  novo  pêra  sua  salvação,  morrendo  muitos  com  esperanças  d"ella,  que 
aliás  bouverão  de  perder-se. 

138  Porém  huma  lastima  grande  cortou  aqui  o  coração  dos  Padres:  e 
be  que  no  discurso  d'esta  doença  foi  Deos  servido  levar  pêra  si  da  vida 
presente  aquelle  grande  amigo  nosso,  protector  d"aquella  Igreja,  e  villa,  o 
esforçado  Capitão  Martim  Affonso  Tebyrecá.  O  qual  depois  de  assi  pelejar 
valerosamente  contra  seus  parentes,  e  irmãos,  por  defensão  da  Fé,  com  no- 
vos fprepositos  de  levar  por  diante  a  causa  de  Cbristo,  e  defender  Pirati- 
ninga com  seu  poder,  e  autoridade,  conhecendo  a  morte,  mandou  chamar 
o  Padre  Fernão  Luis,  hum  dos  moradores  da  casa,  e  lhe  disse  assi :  «Pa- 
dre, conheço  que  minha  vida  acaba,  sinto  somente  faltar  aos  Padres  n'esta 
occasião,  em  que  a  queria  pôr  por  elles,  e  pela  Fé  de  Cbristo:  mas  já  que 
o  Senhor  he  servido  traçar  a  cousa  n"outra  maneira,  estou  mui  conforme, 
e  lhe  dou  muitas  graças,  e  a  Vossa  Reverencia  peço  ajude  a  minha  alma 
n'este  conílicto  espiritual  »  Fez  confissão  mui  devagar,  tornou-se  a  reconci- 
liar muitas  vezes,  com  grande  sentimento  da  vida  passada,  e  de  não  ha- 
ver guardado  até  o  minimo  dos  conselhos  dos  Padres;  com  tanta  constân- 
cia o  valor,  que  bem  mostrava  que  obrava  Deos  n'aquelle  coração  predes- 
tinado. Fez  seu  testamento,  deixando  nelle  encommendado  a  sua  mulher, 
o  íilhos,  que  seguissem  sempre  os  Padres;  e  recebidos  os  sacramentos  da 
sagrada  communhão,  e  unção,  com  hum  santo  Crucifixo  em  as  mãos,  lhe  en- 
tregou a  alma,  no  próprio  dia,  em  que  o  mesmo  Cbristo  houve  por  bem 
nascer  na  terra,  com  grande  edificação  de  todos.  Foi  chorada  e  sentida  por 


"DO  ESTADO  DO  BRA=?IL  (aNNO  DF,   '1SG2)  185 

muitos  t1in>;  a  morte  cVoste  grande  índio,  e  foi  sepultado  na  nossa  Igreja 
em  lugar  decente,  aeompanliado  de  concurso  de  todos  os  Portugueses,  ín- 
dios, e  Confrarias.  E  lambem  podemos  contar  a  ditosa  morte  d'este  Capi- 
tão entre  os  bens  que  Deos  quiz  colher  do  combate  passado. 

130  Muito  deve  a  Companhia  a  este  Principal,  c  a  toda  sua  geração. 
Elle  foi  o  que  alli  a  recebeo  em  seus  princípios,  assinalou-lhe  lugar  em  suas 
terras,  ajudou  a  fazer-lhe  casas,  e  Igreja,  trabalhou  que  fossem  obedecidos, 
e  respeitados  os  Padres :  deo  traças  a  seu  sustento  corporal :  a  elle  emfim 
tomou  Deos  por  defensor  da  Fé,  e  doutrina  christãa  d'aquella  parte,  de  dez 
Religiosos,  e  de  algum  numero  do  Portugueses,  que  na  occasião  do  com- 
bate se  acharão :  porque  he  cousa  certa,  que  todo  o  negocio  esteve  nas 
mãos  d*este  índio;  e  se  quizera  elle  consentir  com  os  seus,  Piratininga  aca- 
bara ás  mãos  d'aquellcs  bárbaros. 

I  iO  Ainda  continuão  os  bens  do  assalto :  porque  os  moradores  das  vil- 
las  circunvizinhas,  á  vista  do  perigo*  passado,  temendo  outro  semelhante 
em  suas  casas,  bascavão  agora  com  mais  desejo  ministros  espirituaes  da 
Companhia,  e  cada  qual  desejava  tel-os  comsigo.  Os  moradores  de  Itanhaé 
derão-lhes  em  sua  villa  o  melhor  aposento  que  tinhão,  pêra  que  residissem 
com  elles,  ou  pelo  menos  os  visitassem  com  frequência :  o  que  fazião  com 
fruto  das  almas  de  Portugueses,  e  escravos.  No  tempo  das  revoltas  passa- 
das tinhão  vindo  a  fazer  assento  junto  a  esta  villa  duas  aldeãs  de  gentio, 
que  não  quizerão  seguir  o  bando  inimigo :  passavão  por  ellas  nossos  Reli- 
giosos quando  liião  a  visitar  a  villa,  e  fazião  também  de  caminho  fruto  com 
esta  gente,  bautizando  suas  crianças  in  extremis,  fallando-lhes  de  Deos,  e 
ganhando  pêra  o  i)autisiTio  ora  iiuns,  ora  outros.  Entre  estes  he  digno  de 
ser  historiado  o  caso  seguinte. 

lil  Havia  aqui  hum  índio  por  nome  Piririgoà  Obyg,  -mui  entrado  cm 
idade,  que  por  contas  de  seu  algarismo  vinhão  a  ser  cento  c  trinta  annos, 
todo  enrugado,  só  com  a  pelle  sobre  os  ossos,  com  mostras  que  fora  antí- 
guamente  pintada,  e  galanteada,  indirjos  de  índio  Principal :  os  sentidos 
de  ver,  e  ouvir  já  mui  dcsbai-ataflos:  apenas  emfmi  podia  ter-se  sobre  os 
pés  esta  antigua  estatua.  Este  índio  pedio  instantemente  a  hum  dos  dous 
Padres  que  o  visitavão,  lhe  concedesse  com  toda  a  pressa  aquella  agoa, 
com  que  lavava  os  filhos  de  Deos ;  porque  elle  por  não  morrer  sem  ella, 
tinha  deixado  o  seu  sertão,  e  chegado-se  á  sombra  dos  brancos.  Presentio 
o  Padre  a  força  da  predestinação  daquella  alma;  porém  entrava  em  des- 
confiança, que  pela  extrema  fi-aqueza  dos  sentidos  cm  que  o  achava,  não 


Í8()  LIVRO  II  DA  CimO.MCA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

seria  cnpaz  de  porcel>er  a  inlclligcncia  dos  mysterios  necessários :  tiroii-o 
comtiido  a  exi)erieiicia  da  duvida;  porque  o  vigor  que  a  velhice  llie  tirara, 
lhe  restituirá  o  desejo  que  tinlia  de  salvar-se ;  e  o  que  a  natureza  lhe  ne- 
gara, liie  concedera  a  graça  que  o  predestinara:  porque  de  tal  maneira  per- 
ce[)ia,  e  peneirava  os  pontos  de  sua  instrucção,  que  aíTirma  lium  Padre 
íintiguo  que  isto  relata  (por  ventura  o  mesmo  por  cujas  mãos  correo)  que 
excedia  ifesla  matéria  todos  os  outros  índios  com  quem  trattára :  basta- 
va propôr-lhe  o  mysterio  liuma  só  vez,  pêra  ficar-lhe  impresso  na  alma 
com  capacidade  mais  que  ordinária. 

142  So])re  o  mysterio  da  Encarnação  do  Filho  de  Deos,  reparou  muito 
em  que  a  Senhora  ficasse  virgem  depois  do  parto :  alegrava-sc  de  ouvir 
as  razões,  c  perguntava  muitas  cousas  sobre  este  mysterio,  que  nunca  mais 
lhe  esqueceo,  nem  o  nome  da  Virgem  Maria:  sobre  todos  se  Iheimprimio 
o  da  Resurreição  do  Senhor,  e  juizo  final :  repetia-os  a  cada  passo,  e  cha- 
mava pêra  isso  seus  íilhos,  netos,  e bisnetos,  e  dizia-lhes  assi  a  seu  modo:  «O 
Deos  verdadeiro  he  Jesu,  que  se  sahio  debaixo  da  terra,  e  se  foi  ao  alto  das 
nuvens,  e  ha  vir  muito  irado  a  queimar  o  mundo,  e  os  mãos.»  Depois  de 
instruído  suíficien temente,  e  de  maneira  que  parecia  que  o  mesmo  Deos 
fadava  n"clle,  foi  mandado  levar  a  Igreja,  e  assentado  em  huma  cadeira 
por  sua  fracpieza,  e  sendo  perguntado  ante  todos  o  que  pretendia,  fez  alli 
a  pratica  seguinte.  «Que  elle  queria  ser  lavado  naquella  agoa  que  levava 
ao  Ceo;  porque  de  continuo  cuidava  em  sua  alma  na  ira  com  que  Deos  ha- 
via de  vir  a  (pieimar  o  mundo,  e  os  mãos,  e  resuscitar  todos  os  homens 
mortos  pêra  estar  á  conta  com  elles.  Que  detestava  sua  vida  passada.  Que 
por  falta  de  conhecimento  da  verdade  comera  muitas  vezes  carne  humana, 
e  fizera  taes,  c  taes  peccados  no  tempo  de  sua  mocidade :  mas  que  já  hoje 
tudo  aijorrecia,  e  queria  que  Deos  lhe  perdoasse;  e  que  bastava  estarem 
no  inferno  tantos  parentes  seus  por  ignorância;  que  queria  ser  o  ditoso, 
em  que  cahisse  esta  boa  fortuna.»  Foi  bautizado;  e  ao  tempo  que  lhe  lan- 
ravão  agoa,  arrebentou  em  choro,  e  perguntado  pela  causa,  respondeo, 
«(|ue  porque  então  lhe  lembrara  quantos  de  seus  antepassados  se  forão  ao 
inferno,  sem  aquelle  bem  que  gozava.»  Parece-se  muito  o  successo  d"este 
índio  com  o  de  outro,  a  quem  poz  por  nome  Adão  o  venerável  Padre  Jo- 
seph :  foi  semelhante  na  idade,  nos  desejos,  na  efficacia  de  seu  bautismo, 
e  successo  da  morte:  porque  também  este  nosso  acabou  a  vida  pouco  de- 
pois de  bautizado,  como  aquelle  de  Joseph,  com  sinaes  grandes  da  forçíj 
da  prG;^-c-'mação  de  sua  alma. 


DO   ESTADO  DO  BRASIL  (aN.NO  DE   lo(32)  187 

143  No  mesmo  tempo  qiio  as  cousas  hião  com  este  bom  rosto  no  ser- 
tão de  Piratininga  com  os  Tupys,  anilava  o  marítimo  cm  perpetua  lida  com 
os  Tamoyos :  porque  os  da  parte  do  Rio  de  Janeiro  tinlião  vindo  em  suas 
canoas,  o  assalteado  toda  a  praia  de  BoyguaçúgoaJja,  c  varias  outras  i)ar- 
tes,  matando,  e  levando  cattivos  quantidade  de  mullieres,  c  meninos;  estes 
pêra  pasto  tenro  de  seu  ventre,  aquellas  pêra  o  da  lascívia.  Não  havia  re- 
médio a  tantos  males;  por(pjc  andavão  em  canoas  volantes  de  quinze  até 
vinte  remeiros  por  Ijanda,  elles  mui  destros  no  remar,  e  não  havia  poder 
prcvenil-as,  nem  dar-lhe  alcance,  nem  forca  nossa  que  os  acovardasse. 

14i  Por  este  tempo  tendo  chegado  de  Portugal  Vasco  Fernandes  Cou- 
tinho, e  vendo  a  sua  Capitania  do  Espirito'  santo  desbaratada  das  guerras 
do  gentio,  desejava  tomar  satisfação :  porém  achava-se  impossibilitado  de 
gente,  e  aprestos,  o  o  inimigo  por  estremo  soberbo  das  passadas  victorias: 
viveo  cora  esta  magoa  como  afrontado  alguns  annos,  até  que  persuadido 
de  suas  poucas  forças,  e  queixas  dos  povos,  ni andou  pedir  soccorro  á  Ba- 
hia a  Mem  de  Sá,  Governador  de  todo  o  Estado,  que  como  Capitão  cui- 
dadoso do  bem  de  todo  elie,  aprestou  huma  armada  de  navios  da  costa 
ligeiros,  guarnecidos  de  gente,  e  armas;  e  por  Capitão  seu  próprio  fdho 
Fernão  de  Sá,  mancebo  de  grande  coração,  c  digno  herdeiro  das  partes  de 
seu  pai.  Fez-se  á  vela,  c  veio  a  embocar  á  foz  do  rio  chamado  Quiricaré, 
que  está  em  altura  de  dezonove  gráos,  como  trinta  legoas  da  villa  do  Es- 
pirito santo.  Aqui  se  foi  encorporar  com  ello  a  gente  de  guerra  da  Capi- 
tania. Fizerão  em  terra  seus  valos,  c  reparos;  e  derão  em  breve  sobi-e  o 
gentio  desacautelado,  que  facilmente  pozerão  em  desbarate,  com  morte,  e 
cattiveiro  do  muitos.  Porém  a  gloria  d'este  successo  se  converteo  logo  em 
planto ;  ponjuo  reunidos  os  bárbaros,  dispostos  em  bandos  numerosos,  e 
apostados  a  desafrontar-sc ;  quando  ainda  os  nossos  cantavao  a  victoria, 
rompendo  os  mattos,  enchendo  os  montes  de  alaridos,  e  os  ares  (k-  fre- 
chas, derão  com  tanto  Ímpeto  sol)re  cllcs,  quo  fi}i  forçado  mandar  Fernão 
de  Sá  retirar  ao  mar:  porém  com  tal  desord;;!n,  e  piM'turbação  dos  seus, 
que  antes  de  poderem  chegar  ás  embarcações,  matarão  a  frechadas  o  pró- 
prio Capitão,  e  muita  outra  gente.  Foi  scntidissimo  o  successo,  assi  pela 
perda  de  hum  mancebo  tão  brioso,  empenliarlo  na  liberdade  da  terra,  como 
da  consequência  dos  ijari)ar()S,  que  dalh  tirarão  maior  eslimaçuo  de  seus 
arcos:  posto  quo  não  licárão  tão  folgados  com  o  roslo  quo  ficou  ilo  Sòc- 

COITO. 

I IM  no  i.iMuj  m;(,íM'o. 


J 


SUMMAIUO   CHRONOLOGICO 

DOS 

SUCCESSUS  NOTÁVEIS  QUE  SE  REFEREM  NOS  LIVROS  I  E  II 

DESTA  CHRONICA 


A.N.NO    Dt:    1549    E    ANTEIUOHLS 

Em  pouco  tempo  coito  a  Companhia  muito  imiudo,  num.  I. 

Não  pára  no  antiguo,  busca  o  novo  mundo,  num.  2. 

Começa-se  a  descobrir  (jnasi  no  mesmo  tempo  em  (|uo  nosso  Palriarcha 
nasce  ao  inundo,  ibi. 

Desperta  o  Senlior  o  coração  do  Padre  Mestre  Simão  Rodrigues  pcra  tra- 
tar do  remédio  do  Brasil,  num.  li. 

Encómio  do  Padre  Mestre  Simão  Rodrigues,  num.  4. 

Zelo  com  que  procura  a  missãíj  do  Brasil,  e  razões  por  que  não  a  alcança, 
num.  o. 

l*arte-se  a  contenda,  vai  o  P.  M.  Xavier  pêra  a  índia,  c  íica  o  P.  M.  Si- 
mão em  Portugal,  ibi. 

Piatica  (jue  o  P.  M.  Simão  faz  a  El-Rei  sobre  a  missão  do  Brasil,  num.  0. 

Pede  licença  pêra  ir  ao  Jirasil,  ibi. 

Houve  razões  forçosas,  que  obiigárão  a  ficar  o  P.  M.  Simão,  num.  7. 

Caliio  a  sfjrte  o  sobre  o  P.  Mantjel  da  Nóbrega  jiera  a  empresa  do  Bra- 
sil, ihi. 

Nascimento  e  criação  do  P.  Nnbrega,  num.  H. 

Estuda  em  Coimbia.  —  Vai  ai:abai'  (js  seus  estudos  em  Sal;imanca. — Agra- 
ílua-se  de  Bacharel  formado  em  Cânones,  ihi. 

Meio  de  sua  conversão,  e  entrada  na  Companhia  no  anno  de  iíj44, 
num.  í). 


190  DOS  SUCCESSOS  NOTÁVEIS 

Cresce  em  espirito,  e  lie  escolhido  pêra  pai,  e  protector  do  próximo, 
mim.  10. 

CoriversSo  de  hum  salleador  obstinado,  iimn.  II. 

Caso  espantosa  do  castigo  de  huma  peccadoraobslinada,  num.  12. 

Modo  de  suas  peregrinações,*  num.  ili. 

Solta  dos  laçog  do  demónio  liuma  antigua  peccadora,  num.  14  e  15. 

Oonverá?.o  de  hum  Ecclesiasíico  inveteradij  na  torpeza,  num.  10. 

Raro  zelo  com  qiie  reprehendc  a  hum  Cí.tnde  Castelhano,  fazendo-o  tirar 
de  m<'io  estado,  num.  47. 

Folgava  de  padecdr,  e  ser  desprezado,  num.  18. 

ile  maltratado  c  aíírontado  de  huns  jogadores,  num.  ID. 

Casiigo  horrendo  dado  do  Ceo  a  hum  homem,  que  desprezou  os  conselhos 
de  Nóbrega,  num.  20. 

Affugenía  o  demónio  de  outra  mulher  em  quem  tinha  fácil  entrada,  num.  21. 

Yai  em  peregrinação  a  Galiza,  e  successos  que  teve  com  huns  pobres,  que 
pedião  esmola,  num.  22. 

Fervor  de  sua  pregação,  num.  23. 

He  mandado  pêra  o  Brasil  com  cinco  companheiros,  num.  24. 

Parte  de  Lisboa  no  1.°  de  Fevereiro  de  1541),  num.  2o. 

Como  se  portou  na  viagem — caso  prodigioso,  num.  20. 

Avistão  a  terra  da  Bahia,  num.  27. 

Descripção  da  Bahia,  num.  28  a  33. 

Seu  primeiro  povoador,  num.  34.    ' 

Historia  do  grande  Diogo  Alvares,  antecessor  do  povoador  primeiro,  num. 
35  a  40. 

Successão  de  filhos  e  netos  de  Diogo  Alvares,  num.  41. 

Sahem  em  terra  o  Governador  Thomé  de  Sousa,  e  soldados,  num.  42. 

Sabem  também  em  terra  os  Religiosos  da  Companhia,  num.  43. 

Impedimentos  da  conversão,  e  primeiros  trabalhos  do  Nóbrega,  num.  44. 

Traças  empix-gadas  pelos  Padres  pêra  obterem  a  conversão  dos  índios, 
num.  45. 

Começa  o  Governador  a  reedificar  a  cidade,  num.  46. 

Largão  o  sitio  de  Nossa  Senhora  da  Ajuda,  c  vão  fazer  assento  em  o  Mon- 
te Calvário,  nmri.  47. 

Difficuldade  e  perigo  da  conversão  n'esíe  lugar,  num.  48. 

O  que  mais  se  ap[uicoii  a  ap^render   a  lingoa  foi  João  Aspilcueta  Na- 
varro, ibi. 

Difficuldade  proveniente  do  abuso  da  carne  liumaiia,  ibi. 

Motivos  que  tem  pêra  este  abuso,  ecaso  acontecido  com  huma  velha  índia, 
num.  49. 

Perigo  notável  com  que  os  padres  tirarão  das  mãos  dos  índios  o  corpo  de 
ImmTapuya,  que  queriam  repartir,  e  coiner,  num.  51. 

Amotinão-se  os  índios  contra  os  Padres,  e  murmuração  dos  Portugueses, 
nmn.  52  ê  53. 


I 


SUMMAUIO  CIíRONOLOflICO  '  Í9I 

Aqiiietão-se  os  índios,  pedem  perdão,  e  propõem  de  não  comer  carne  iiii- 
mana:  ]iorém  não  tarda  qne  rescindão  o  contracto,  ibi. 

Traça  de  baiitizar  os  índios  com  agoa  de  hum  lenço  molhado,  num.  Ijí. 

Converte  o  P.  Nóbrega  hum  insigne  feiticeiro,  num.  uo. 

Rendido  este,  se  rendem  mais  oitocentos  dos  feiticeiros,  num.  oC. 

Invenção  que  faz  o  demónio  de  doença  grave,  num.  57. 

Pedem-se  obreiros  da  Companhia  pêra  remediar  grandes  necessidades  da 
Capitania  de  S.  Vicente,  num.  58. 

Consulta  o  P.  Nóbrega  sobre  i^sta  petição:  razijes  que  se  oíTerecem  pêra  não 
irem  Religiosos,  e  razões  de  Nóbrega  pela  i)arte  contraria,  num.  50. 

lia  mandado  o  P.  Leonardo  Nunes  pêra  a  empresa  de  S.  Vicente,  c  parte 
no  1."  de  Novembro  de  1549,  num.  01. 

Descripção  da  Capitania  de  S.  Vicente,  num.  02. 

Fundação  da  villa  de  Santos,  e  noções  d"esta  costa,  num.  03  c  04. 

Costumes  dos  primeiros  povoadores,  num.  05. 

Chega  o  P.  Leonardo  a  S.  Vicente,  e  he  recebido  com  grande  applauso, 
num.  00  e  07. 

Exemplar  vida  do  P.  Leonardo,  causa  primeira  da  conversão  de  S;' Vicen- 
te, num.  08  e  09. 

Recebe  alguns  noviços  na  Companhia;  penetra  no  sertão,  e  traz  (felle  os 
filhos  (los  índios  pêra  calbequizal-os,  num.  70  e  71. 

Inventão  os  Padres  oílicios  mechanicos  pêra  sustentar-se  a  si,  e  os  meni- 
nos pobres  com  o  seu  trabalho,  num.  72. 

Arma-se  o  infeiTíO  contra  esíes  Religiosos;  começão  a  ser  perseguidos  os 
Padres  por  causa  da  liberdade  dos  índios,  num.  73. 

Razões  das  queixas  contra  os  Padres,  e  suas  repostas,  num.  74. 

(jalitmi  cm  si  os  perseguidores,  e  pedem  perdão,  num.  75. 

Prelíinde  hum  j)eccador  esparicar  ao  Padre  Leonardo;  arrepende-se  depois 
e  faz-se  amigo  da  Companhia,  num.  70. 

lie  accommetido  segunda  vez  o  P.  Leonardo,  e  livre  por  modo  extraordiná- 
rio, num.  77. 

Faz  missão  no  sertão  aos  índios  com  perigo  de  vida,  num.  78. 

Faz  s(.'gurida  missão  aos  Patos,  por  liviar  da  morte  a  certos  Castelhanos, 
num.  79. 

A.VNO  BE  1550 

Chega  á  Rahia  huma  aimada,  em  socorro  da  nova  cidade,  e  nella  íjuatio 

Padres  em  soccr)iTO  das  almas,  num.  80  e  81. 
Exercita  o  P.  Nobr.-ga  aos  i*adres  ultimamente  chegados  em  nioríiíicação, 

e  obediência,  num.  82. 
Manda  pôr  em  pregão  o  P.  Manoel  de  Pai\a,  ibi. 
Pratica  íjue  faz  o  P.  Nóbrega  aos  novos  Missionários,  num.  84. 
Reparte  Nóbrega  os  Missionários  em  dous  esquadrões,  itera  Portugueses,  c 

liidius,  Jiinn.  85. 


192  DOS  SUCCKSSOS  NOTÁVEIS 

Conversão  de  um  peccador  publico  e  escandaloso,  num.  80  a  88. 

Traça  de  que  usavão  os  Padres  na  conversão  dos  índios,  num.  89  e  90. 

O  Padre  Aspilcneta  faz  levantar  dous  Seminários  para  doutrina  dos  íilhos 
dos  índios,  num.  91. 

Desistem  os  índios  de  hum  banquete,  que  tinham  preparado  de  carne  hu- 
mana, a  instancias  do  Padre  Aspilcueta,  num.  92. 

Levanta  o  Padre  Nóbrega  com  suas  próprias  mãos  hum  seminário  junto  á 
cidade,  num.  93.        / 

AXNO  DE  1531 

Chega  do  Reino  huma  armada  com  novas  alegres  de  obreiros,  que  estavão 
pêra  vir  ajudar,  num.  94. 

Manda  o  Padre  Nóbrega  ao  P.  Aífonso  Braz,  c  hum  companheiro  á  Capitania 
do  Espirito  santo,  num.  9o. 

Fundação,  e  primeiro  fundador  d"esta  Capitania — Chegada  ao  Brasil  de 
Vasco  Fernandes  Coutinho,  e  successo  da  guerra  que  teve  com  osnatu- 
raes  da  terra,  ibi. 

Descripção  da  villa  da  Víctoria,  e  seus  districtos  e  haveres,  num.  9G. 

De  como  foi  recebido  n'esta  villa  o  Padre  Afíbnso  Braz,  e  do  que  n"ella 
obrou,  num.  97. 

Trata  o  Padre  Nóbrega  de  ir  a  Pernambuco,  num.  98. 

Descripção  da  Capitania  de  Pernambuco,  e  da  villa  de  Olinda,  num.  99. 

Doação  doesta  Capitania  a  Duarte  Coelho  por  El-Rei  D.  João  III;  desembar- 
que do  mesmo  em  Pernambuco,  e  vai'ios  successos  da  guerra,  de  que 
sahe  vencedor,  num.  100. 

Forão  de  grande  adjutorio  os  índios  Taboyares  pêra  nossas  victorias:  fa- 
çanhas cio  capitão  Tabyra,  num.  101  e  102. 

Yaíor  grande  de  Piragibá  e  Itagybâ,  imm.  103. 

Digressão  dos  successos  que  por  tempos  ha  de  ter  Pernambuco,  e  prognos- 
tico de  sua  ruina,  num.  104  a  106. 

Estado  espiritual  dos  moradores  de  Pernambuco  n'aquelíe  tempo;  num.  107. 

Chega  o  Padre  Nóbrega  a  Olinda,  e  he  bem  recebido  dos  Portugueses  e 
dos  índios,  num.  108. 

Começa  a  exercer  os  ministérios  da  Companhia,  e  o  fruto  que  faz,  num. 
109. 

Prega  com  grande  zel(j  contra  certos  Sacerdotes,  que  ensinavão  a  dou- 
trina escandalosa,  num.  110. 

São  os  Padres  recebidos  com  grandes  festas  nas  aldeãs  de  Pernambuco : 
comecão  a  ensinar  os  índios,  e  contrariedades  que  experimentão,  num. 
111. 

Volta  o  P.  Nóbrega  á  Bahia,  deixando  cm  seu  lugar  o  Padre  António  Pi- 
res, num.  \[2. 

Chega  á  Bahia  em  tempo  de  quaresma^  e  trabalha  nella  incansavelmente; 
num.  ií3. 


sr.M.MAUiu  cniiu.\0L0(;icu  '  193 

A.N.NU   DE    looU 

Cdegaihi  á  Bnlii;i  do  Bispo  D.  Pediu reniaiides  Sarcliiilia,  coin  alguns  S;icor- 

dotes,  num.  114. 
Despacha  provisão  ao  Padre  Anlojiio  Piíes,  pêra  que  visile  em  seu  nome 

a  diocese  de  Pernambuco,  ibi. 
Veio  huma  doença  ciMel  com  pesle.  .sobre  certas  aldeãs  dos  Índios:  inven- 
ções diabólicas  de  Satanaz  })era  a  mina  espiritual  dos  convertidos,  num. 

ilo  e  110. 
Acha  o  Padre  Nóbrega  que  delinquião  ainda  muitos  índios  christãos  no 

uso  da  carne  humana,  num.  117. 
Vai  cm  crescimento  o  Seminário  dos  meninos,  num.  118  e  119. 
Vai  o  Padi-e  Navarro  a  huma  missão  gloiiosa,  e  trabalhosíssima,  e  o  qufl 

n'ella  obra.  num.  liiO  a  i22. 
Transito  glorioso  do  grande  Missionário,  o  santo  Padre  Francisco  Xavier 

num.  1:2.'{. 

A.NNO  dí:  1'jo'A 

l*arte  o  Padre  Noijrega  a  visitar  a(/q)itanía  de  S.  Vicente,  e  vai  correndo 

de  caminlio  as  mais  Capitanias,  num.  121. 
Teve  grandes  contrastes  na  costa  de  S.  Vicente,  e  ultimamente,  indo-se  ao 

fundo  o  navio,  escapou  por  milagre,  num.  12o. 
Levanta-so  contra  os  Padres  em  S.  Vicente  huma  conjuração  perniciosa, 

num.  126. 
Toma  Nóbrega  hunsa  resohição  agra,  mas  ])rudente,  num.  127. 
Causa  da  pre.sum[ição  dos  accusadores  dos  Padi'cs,  num.  12í^'. 
Castigo  notável  (|U(!  ameaçou  dar  o  Padre  Nóbrega  a  hum  mesliço,  que  com- 

meteo  deshonestidade,-num  129. 
Trata  Nóbrega  de  entrar  i)elo  seilão  a  Fundar  novos  povos,  num.  130. 
Impede  o  Governador  o  seu  intento,  ibi. 
Entra  [lelo  .sertão  rlentro  (luarenta  legoas,  e  funda  huma  nova  povoação  de 

índios,  ibi. 
Descem  grandes  levas  de  ín<1ios  dos  sertões  do  Paragilay  a  ser  doutrina- 
dos do  Padre  Nóbrega,  num.  131. 
São  accommetidos  no  caminho  poi-  seus  inimigos,  e  nionem  muitos  com 

sinal  de  sua  salvação,  ibi. 
Successo  de  alguns  Castelhanos:  manda  o  Padre  NoI)rega  o  Irmão  Pedro 

(Corrêa  a  tratar  coju  índias  contrários,  sobr(í  a  liberdade  de  alguns  Ca.s- 

lelhanos  destinados  á  morte,  c  são-lhe  concedidos,  num.  132, 
Inslilue  o  Padre  Nobiega  a  Conharia  do  Menino  Jesu,  nmu  133. 
Resolve  Nóbrega  ficar  em  S.  Vicente,  e  mandar  á    Bahia    mais   obreiros, 

num.  134. 
Chega  ri  Bahia  a  ainiada  dn  GoNcrnador  D.  Duarte  daCcsía,  c  em  suarom- 
\or..  I  13 


104  DOS  SUCCESSOS  NOTÁVEIS 

panliia  o  rtífuiro  de  lies  Padres  c  quatro  Irmãos,  enire  estes  o  Irmão 
Joseph  de  Ancliieta,  ibi,  até  num.  13G. 

Hum  só  Sacerdote,  e  dous  Irmãos  se  acliavão  então  na  casa  da  Bahia,  num. 
137. 

Abi-em  classes  de  ler,  escrever  e  latim,  ibi. 

Traça  galante  com  que  se  l^autizou  hum  Tamoyo,  que  eslava  para  ser  morto 
e  comido  em  terreiro,  ibi. 

Passa  o  Padre  Salvador  Bodrigues  a  melhor  vida,  com  bem  fundadas  es- 
.peranças  de  sua  salvação,  lami.  138. 

Suas  grandes  virtudes  e  ditosa  morte,  ibi  até,  ninn.  139. 

São  mandados  a  Porto  seguro  os  Padres  Ambrósio  Pires,  c  Gregório  Ser- 
rão, num.  140. 

Obra  Deos  notáveis  prodígios  á  medida  do  grande  zelo  do  Padre  xVspilcue- 
ta,  ibi. 

Fundação  da  Capitania  de  Porto  seguro,  num.  142. 

Passa  esta  Capitania  ao  Duque  de  Aveiro,  por  titulo  de  compra,  ibi. 

Torna  o  Padre  Leonardo  Nunes  pêra  S.  Vicente,  levando  comsigo  entre 
outros  Religiosos  o  Irmão  .Tosepli  de  Anchieta,  num.  143. 

Padecem  os  Religiosos  huma  desfeita  tempestade,  e  escapão  naufragantes  i)or 
mercê  de  Nossa  Senhora,  num.  144. 

Entrão  no  porto  de  S.  Vicente,  ibi. 

Alegria  de  Nóbrega  á  vista  do  soccorro,  num.  14G. 

Recebe  Nóbrega  patente  de  Provincial  do  Biasil,  e  i)or  Gollateral  no  gover- 
no o  Padre  Luís  da  Gram,  num.  147. 

Fazem  profissão  solemne  decjuatro  votos  os  Padres  Nóbrega  e  Luis  da  Gram, 
ibi. 

A  ]jrimeira  obra  que  fez  depois  de  Provincial  foi  hum  Coliegio  em  Pirati- 
ninga,  num.  148. 

ANXO  DE  lo5i 

Funda-se  em  Janeiro  d"este  anno  o  Coliegio  de  Piratininga,  num.  149. 

Excellencia  dos  campos  de  Piratininga,  ibi. 

Descripção  da  serra  Paraná  Piàcaba,  num.  150. 

Pinhas  de  cristal,  num.  151. 

Philosophia  de  como  se  formão  e  arrebentam  estas  i^inhas  do  centro  de 
hum  penedo,  num  152. 

Pobreza  religiosa  com  que  vivião  n"aquelles  princípios  estes  obreiros  do  Se- 
nhor, mnn  153. 

Al)re-se  em  Piratininga  a  segunda  classe  de  Grammalica  (]ue  teve  o  Brasil, 
num.  154. 

Desvela-se  Joseph  de  Anchieta  esci^evendo  por  ])ropria  mão  os  quadernos 
de  grammalica  pêra  seus  discij)ulos,  num.  í55. 

No  mesmo  tempo  ensina  a  lingoa  latina  e  aprende  a  brasílica,  e  compõe  a 
Arte  e  outra?  obras.  num.  15G  e  157. 


SUMM.VrUO  CIIRONOÍ.OGICO  193 

Trabalham  os  Religiosoí;  com  suas  próprias  mãos  em  suas  obras,  e  nas  dos 
índios,  iium.  ir>8. 

-Maitim  Aílbiíso  Tebyrecá,  e  João  Cai  Uli)y  forão  os  principaes  índios  que 
se  ajuntarão  aos  Padres  em  Piratiniiiga,  deixando  seus  sertões,  num. 
100. 

Os  lilhos  dos  índios  do  SemJnario  de  S.  Vicente  ajudão  muito  a  conversão 
dos  pais  e  parentes,  161. 

Tiverão  os  Padres  neste  sitio  três  perseguições  diabólicas,  sendo  a  primei- 
ra de  huma  pestilência,  num.  16i. 

He  eleito  o  Padre  Leonardo  pêra  ir  a  Roma  por  Procurador  geral,  ibi. 

Segunda  perseguição,  num.  1G3. 

Da  guerra  incitada  ou  do  diabo,  ou  dos  mamai ucos  Ramalhos,  terceira  per- 
seguição, num.  1G4. 

Vencem  os  Christãos  os  gentios  com  o  sinal  da  santa  Cruz,  num.  1G5. 

Fazem-se  os  Padres  sangradores  dos  índios,  com  maravilhosos  eíTeitos, 
num.  100. 

Exemplo  singular  de  aljstinencia  de  carne  humana  dos  índios  dos  Padres, 
nutíi.  1G7. 

Parte  pêra  Roma  o  Padre  Leonardo  Nunes,  e  faz  naufrágio,  em  que  acabi 
a  vida,  num.  1C8. 

Epilogo  de  sua  santa  vida,  num.  109. 

Da  morte  gloriosa  dos  dons  servos  de  Deos,  Pedro  CoiTèa,  e  João  de  Sou- 
sa, num  170. 

Occasião  que  liouve  pêra  ella,  num.  171. 

Parte  o  Irmão  Pedro  Corrêa,  accompanhado  do  Irmão  João  de  Sousa,  e  do 
Irmão  Fabiano,  num.  174. 

Chega  aí)  jiorto  dos  Tupis,  he  por  elles  bem  recebido,  e  acaba  com  os  Ca- 
rijós tudo  o  que  pretendia,  num.  175. 

Conjuram-se  os  índios,  e  rcsolvem-se  em  matar  os  Irmãos,  persuadidos  por 
hum  Castelhano,  num.  17G. 

]\ío(lo  c/m\  (]W'.  dcrão  as  vidas,  num.  177  e  178. 

Vida  do  Irmão  Pedro  Corrêa,  primeiro  como  secular,  e  entrando  depois 
na  Com[)anhia  dedicou-se  ao  serviço  dos  índios,  o  que  todo  se  occupára 
em  aggravos  seus,  num.  170. 

Os  empregos  de  sua  eloquência  na  lingoa  dos  Brasis,  num.  18"). 

Fizerão  grandes  plantos  os  índios  de  Piratinixiga  pela  morte  d  este  seu  pre- 
gador, num.  181. 

Algumas  mercês  que  o  Ceo  fez  em  favor  de  suas  missões,  nimi.  182. 

Vida  do  Irmão  João  de  Sousa,  nimi.  183. 

Aulhores  que  escreverão  d 'estes  bemaventurados  Irmãos,  num.  18i. 

Na  casa  do  Espirito  santo  instituio  o  Padre  Rraz  Lourenço  huma  Confra- 
ria de  charidade,  num.  18lj. 

Exemplo  i-aio  d'esle  Padre,  indicio  de  sua  segura  consciência e obcdícncJa, 
num.  180. 


10<i  sr.M.MAP.IU  ClIllO.NOl.OíJiCO 

Tral)alliava  por  miiilos,  o  rom  imiilo  íniín,  niiiH.  187. 

Morlc  do  íriHMU  Domiiiifos  Peci)i'(.'la,  num.  18S. 

Orandos  erfeilí)sde  sua  siuipiicidado  c  obediência,  ihi,  e  nmn.  189  a  101. 

A.NNO  DK    looO 

Morte  sentidíssima  do  Padre  João  d"Aspiicueta  Navarro,  e  epilogo  de  sua 
santa  vida,  num.  193  a  193, 

Castiga  o  Padre  Nóbrega  severamente  os  Índios,  por  matar  em  tíírreiro  e 
comer  carne  humana,  num.  lOG. 

(^aso  notável  de  outra  reincidência  dos  Índios,  em  querei-  matar  o  comer 
lium  cattivo,  num.  197. 

Chegão  embaixadores  dos  sertões  do  Rio  da  Pivata  e  Paraguay  ao  Padre 
Nóbrega,  a  pedir-lhe  Padres,  num.  198. 

Chega  a  ponto  de  partir-se  a  missão,  mas  impede-se  com  a  vinda  do  Pa- 
dre Gram,  num.  199. 

Yai  o  Padre  Gram  a  huma  missão  do  seilão,  e  fica  frustrada  por  causa  de 
guerra,  num.  200.        -  / 

Faz  segunda  missão,  e  n"ella  grande  fruto,  num.  201. 

He  formado  em  Collegio  perfeito  o  de  Piratininga,  que  ató  então  era  só 
inchoado,  num.  202. 

Pretende  o  Padre  Nóbrega  voltar  â  Baliia  com  alguns  companheiros,  num. 
203. 

Principia  o  Padre  Braz  Lourenço  a  formar  as  aldeãs  da  Capitania  do  Es- 
pirito santo,  num.  204. 

Conversão  do  Principal  chamado  o  grande  Gatto,  e  sua  gente,  ihi. 

Conversão  de  outro  chamado  o  Peixe  verde,  e  dos  Tupiuaíjuis  de  Porto  se- 
guro, num.  20-j, 

LIVRO  SEGUNDO 

ANNO  DE    135(3 

Levantão-se  os  Tupinambas  e  Ta[)uyas  contra  os  Portugueses,  num.  1. 

Julgão  alguns  que  não  he  bom  fazer-llies  guerra:  porém  o  (íovernador  re- 
solve-se  pelo  contrario  parecer,  num.  2. 

Vários  successos  da  guerra,  e  como  os  Portugueses  a  vencerão,  num.  3. 

Torna  o  Padre  Nóbrega  a  visitar  a  casa  da  Bahia  com  quatrt»  companheiros, 
num.  4. 

Reducção  de  quantidade  de  índios",  e  formação  de  quatro  residências  dos 
Padres,  num.  3. 

.Modo  que  guardão  os  Padres  na  doutrina  dos  índios,  nas  aldeãs  onde  re- 
sidem, num.  G. 

Modo  como  encommendão  as  almas  do  Purgatório  os  meninos  das  aldeãs, 
num.  7. 


DOS  srCCESSOS  NOTAVKiS  197 

Occupaeão  que  os  Padros  leni  com  os  índios,  iimii.  8. 

Occiípações  dos  Índios  nas  aideas  dos  Padres,  num.  9. 

l*rezã(j-se  da  jierníição  do  ciilío  divino,  mim.  10. 

Dividem-se  as  aideas,  e  multiplicão-se  os  trabalhos  dos  Padres,  mim.  11. 

Cresce  o  fruto  por  meio  do  novo  modo  de  drmlrina,  disposta  por  diálo- 
gos na  liiigoa  brasilica,  iium  12. 

Primeiras  novas  da  entrada  dos  Franceses  na  enseada  do  Rio  de  Janeiro, 
num.  V.]. 

Naufj-agio  de  D.  Pedro  Fernandes  Sardinha,  primeiro  Bispo  do  Brasil,  nos 
baixos  de  D.  Fi"ancisco,  num.  14. 

Enganos  de  que  usarão  os  índios  Caêtes  com  os  naufragantes,  num.  15. 

Morte  cruel  que  tiverão  os  que  escaparão  do  mar,  num.  IC. 

Morte  deshumana  do  Bispo,  num.  17. 

O  lugar  em  que  foi  morto  nunca- mais  reverdeceo,  num.  18. 

Transito  do  Patriarcha  Santo  ígnacio,  e  commeinornção  de  suas  virtudes, 
num.  20  a  24. 

AN.NO  DE    ioo7 

Padece  o  Padre  rsobrega  na  Bahia  graves  enfermidades,  num.  2'). 

Morte  (lEI-Rei  D.  João  III,  sentida  especialmente  da  Companhia  por  três 
razões,  num.  20  a  28. 

Nascimento  d"esle  Principe,  seus  dotes  rcaes  e  piedade  christãa:  factos  no- 
táveis do  seu  governo,  num.  29  a  37. 

Mereceo  com  »  nome  de  Bei  pacifico  também  o  de  guorrreiro,  num.  08. 

(íerc/)s  e  victorias  em  Dio,  num.  39  a  41. 

Cerco  de  Çafim,  num,  42. 

Numerosa  successão  de  dez  filhos,  todos  defuntos  na  flor  da  idade,  num.  'lo. 

Feições  de  El-Uej  D.  João  III,  seu  ultimo  transito,  num.  44. 

Estado  dos  Franceses  na  enseada  do  Bio  de  Janeiro,  num.  4^). 

Mudança  que  houve  entre  a  gente  do  grande  Gatto,  num.  'lO. 

AN.NO  DF-:  ir);>8 

Chegada  á  Bahia  de  Mem  de  S;i,  terceiro  Governador  do  Estado,  num.  47. 

Virtudes  chrislãas  do  Governador  ^Mem  de  Sá,  num.  48. 

Seus  exercícios  espiiiluaes,*e  outras  louváveis  acções,  num.  49. 

O  [)rimeiro  negocio  que  põe  em  execução  he  o  dos  índios,  num.  />0. 

Impõe-lhes  leis  racionáveis,  ibi. 

Alvoroça-se  o  vulgo  por  causa  destas  leis,  num.  ';!. 

Oppõc-se  Nob)-ega  em  defensão  das  leis,  num.  52. 

Obedecem  os  índios,  e  reduzfm-se  a  quatro  aideas,  ibi. 

Castigo  do  arrogante  Principal  Ciirui-upcbá,  num.  M3. 

Promulga  oGovernadí)routra  Ifi  em  favor  da  liberdaflc  dos  índios,  num.  o'». 

Castií'ít  dos  Índios  do  Paraguaçú,  num.  .'>o. 


108  DOS  SX'CCFSSOS  NOTÁVEIS 

Medos  do  vulgo,  num.  fJG. 

Ácommotimenlo  c,  boa  fortuna  do  Governador,  il)i. 

Zelo  christão  de  Mem  de  Sá,  num.  57  e  58. 

lie  recebido  com  vivas  da  cidade,  num.  59. 

Pedem  pazes  os  índios  de  Paraguacú,  ibi. 

(Cresce  o  fruto  das  almas  nas  aldeãs,  com  a  industria  dos  Padres,  num.  GO. 

ANNO  DE  1550 

Estado  dos  Franceses  na  enseada  do  Rio  de  Janeiro,  num.  Cl. 

Occupação  dos  Padres  no  Espirito  santo,  num.  62. 

Chega  á  Bahia  o  segundo  Bispo,  D.  Pedro  Leitão,  num.  G3. 

Chega  do  Reino  novo  soccorro  de  sete  Missionários,  num.  G4. 

Havia  n'este  tempo  na  Província  quarenta  sujeitos,  num.  65. 

Mudança  e  união  de  a'gumas  aldeãs,  ibi. 

Perturbão  os  Tamoyos  a  costa  de  S.  Vicente,  num.  66. 

Successo  do  bum  herege  Francez,  que  perturbou  a  Capitania  de  S.  Vicen- 
te, ibi,  e  num.  67  e  68. 

Recebe  o  Padre  Gram  a  patente  de  Provincial,  e  o  que  sobre  isso  faz,  num.  69. 

O  Padre  Francisco  Pires  edifica  a  capella  de  Nossa  Senhora  d'Ajuda  de 
Porto  seguro,  num.  70. 

Prodígio  da  fonte  milagrosa,  num.  71. 

Maravilhas  da  agoa  daquella  fonte,  num.  72. 

Outro  prodígio  da  terra  d'aquella  ermida,  ibi. 

ANNO   DE   1560 

Chegada  á  Bahia  de  novos  obreiros,  num.  73. 

Fez  grande  abalo  em  Portugal  a  entrada  da  gente  Francesa  no  Rio  de  Ja- 
neiro, num.  74. 
Manda-se  buma  armada  pêra  desalojal-os,  ibi. 
Põe  o  Governador  em  conselho  a  empresa  do  Rio,  num.  75. 
Resolve-se  cm  partir  com  a  armada,  num.  76. 
Chega  a  armada  á  barra  do  Rio  de  Janeiro,  num.  77. 
Parte  d"aqui  o  Padre  Nóbrega  pêra  S.  Vicente,  ibi. 
Descripção  da  fortaleza  de  Villagailhon,  ibi. 
Os  Portugueses  acommetem  á  forra,  e  alcanção  victoria,  num.  78. 
Faz-se  consulta,  e  arraza-se  a  fortaleza,  num.  79. 

Conversão  de  hum  soldado  d"esta  empresa,  por  nome  Adão  Gonçalves,  ilji. 
Entrada  na  Companhia  e  morte  feliz  de  Bertliolameu  Adão,  num.  80. 
Profecia  do  Padre  Joseph  de  Anchieta,  ibi. 
Valor  do  índio  Martim  AíTonso,  num.  81. 
Parte  Mem  de  Sá  com  a  armada  pêra  S.  Vicente,  num.  82. 
Obrou  aqui  o  Padre  Nóbrega  grandes  obras  de  piedade,  num.  83. 
Fez  aqui  o  Governador  algumas  obras  do  serviço  de  Deos  e  d'El-Rei,  num.  8i. 
Muda-se  o  Collegio  de  Piratininga  pêra  S.  Vicente,  ibi. 


SniMARlO  CHP.ONOL0GICO  199 

Fizerão  os  Padres  o  camiiilio  de  Paraná  Piacaba,  com  grande  proveito  dos 
moradores,  num.  85. 

Boas  obras  do  Padre  Liiis  da  Gram,  num.  80. 

Caso  notável  que  lhe  aconteceo  acerca  de  hum  menino,  que  estava  pêra 
ser  morto  e  comido  em  terreiro,  num.  87. 

Segundo  caso,  quasi  semelhante,  num.  88. 

Parte  a  armada  pêra  a  Bahia,  e  leva  o  Padre  Luis  da  Gram,  num.  89. 

Chega  á  Bahia  aos  primeiros  de  Agosto,  num.  90. 

Vai  á  missão  de  Pernambuco  o  Padre  Gonealo  de  Oliveira,  e  outro  com- 
panheiro, num.  91. 

Seus  trabalhos  nas  aldeãs,  num.  9á. 

Perturbações  dos  Aymoi'és  nas  Capitanias  dos  Ilheos  e  Porto  seguro,  num.  93, 

Descripeão  e  costumes  d"estes  selvagens,  ibi. 

Assolão  o  i)erturbão  ahi  a  conversão,  num.  94. 

Vingança  que  tomou  IMem  de  Sá  dos  insultos  ditos,  num.  95, 

Sahem-Ihe  os  inimigos  de  emboscada,  e  vence-os,  num.  90. 

Torna  o  inimigo  reíorçado  apresenlar  batalha,  e  lie  vencido,  num.  97. 

ANNO  Di:  1501 

Bons  prenúncios  do  anno,  num.  98. 

Manda  o  Padre  Gram  Religiosos  em  missão  de  dous  em  dous,  ibi. 

Fundação  de  novas  aldeãs,  num.  99  o  100. 

Parte  o  Provincial  a  visitar  e  correr  as  aldeãs,  e  he  festejado  dos  Índios, 
num.  101. 

Nas  aldeãs  bauliza  incansavelmente,  e  celebra  muitos  matrimónios,  num.  102. 

(iOntinua  com  a  visita,  num.  103. 

Vai  aos  Ilheos,  e  assenta  sitio  ])era  nova  aldeã,  num.  10'i. 

Torna  a  Itai)arica;  bautiza  muitos,  e  celebia  quantidade  d(í  matrimónios, 
nimi.  105. 

Passa  á  aldca  do  Espirito  santo,  o  a  outras,  onde  continua  os  seus  traba- 
lhos apostólicos  com  grande  fruto,  num.  100. 

Embustes  com  que  o  espirito  maligno  pretendeo  em  vão  estorvar  o  fruto 
d'esle  obreiro,  ibi. 

Parti!  a  outra  gentilidade,  e  assenta  sitio  pei'a  duas  aldeãs,  num.  108. 

Do  (jue  obrou  em  outra  aldea,  e  das  pazes  (]ue  concluio  entre  os  inimigos, 
num.  109. 

Soccorro  inútil  vindo  de  Portugal  em  dous  Religiosos,  que  forão  despedi- 
dos, ibi. 

Em  S.  Vicente  continua  Nóbrega  com  o  fi"uto  das  almas,  num,  110. 

Trazem  os  Tamoyos  icvollas  as  villas  de  S.  Vicente  com  seus  assaltos, 
niMU.  111. 

O  Padre  Ní)brega  faz  com  os  índios  oflicio  de  pj-ojilujía  .lonas,  ibi. 

De  huma  forte  mulher,  que  dco  a  \ida  por  defensão  da  castidade,  num.  1 12. 


200  Dus  slchkssuí;  xot.wkis 

Caso  niíiis  notável  de  oulra  mulher,  (lue  (ieo  duas  vidas,  a  sua  e  a  de  liuin 

seu  íillio,  num.  ITJ. 
(Castigo  dos  Tamoyos,  quo  comerão  hum  escravo  dos  Padi-es,  num.  114. 
De  hum  i'rincipal,  que  tomái'ão  os  nossos  Índios,  e  castigo  bárbaro  ({ue 

n'elle  executarão,  num.  115. 
Sentimento  que  mostrou  o  Padre  Nóbrega  no  caso  dito,  il)i. 
Castigo  de  huma  grave  doença,  que  veio  sobre  as  villas  de  S.  Vicente, 

num.  116. 
Passa  a  melhor  vida  o  Irmão  Matheus  Nogueira,  epilome  da  sua  vida,  num. 

117. 
Kmbarca-se  pêra  o  Brasil,  e  seu  modo  de  viver  alli,  até  ser  recebido  na 

Companhia,  num.  118  e  119. 
Seus  exercicios  e  boas  obras  na  Companhia,  num.  liO. 
(íaso  notável  do  modo  com  que  venceo  huma  grande  tentação,  num.  121. 
Era  muito  reverenciado  dos  índios  por  suas  obras,  num.  hl^-I. 
Suas  penitencias,  e  oração,  num.  123. 
Como  se  apai^elha  pêra  a  morte,  num.  124. 

ANNO  DE  1562 

VisilaoPadre  Oram  as  aldeãs,  e  celebra  grande  copia  de  bautismos,  num.  12o. 
Acolhem-se  os  índios  íle  duas  aldeãs  pêra  o  sertão,  e  são  reduzidos,  ibí. 
Intenta  o  Padre  Grani  huma  gloiiosa  missão  de  grandes  perigos  e  ti'aba- 

Ihos,  porém  sem  efíéito,  num.  126. 
Continua  com  grande  numero  de  bautismos  nas  aldeãs,  num.  127, 
Missão  de  Pernambuco,  e  do cjue  nella obrarão  dous  Religiosos,  num.  128. 
As  guerras  de  S.  Vicente  vão  ameaçando  rniiia,  num.  KU). 
Levantão-se  os  Tupis  contra  os  Portugueses  da  vilia  dePiratininga,  num.  131 . 
Descem  os  índios  do  sertão  ;l  dar  assalto  á  villa  de  Piratininga,  num.  132. 
Preparão-se  os  nossos  pêra  o  assalto,  num.  133. 
Valor  do  Principal  Tebyreçá,  num.  134. 

Pretende  pervertel-o  hum  sobrinho  seu,  resiste  com  constância,  ibi. 
Accommetem  os  Tupis  a  villa  com  bravo  estrondo,  num.  13o. 
Sahem-lhe  aos  nossos  ao  encontro  com  feliz  successo,  ibi. 
Venturoso  caso  da  morte  do  sobrinho  de  ^íartini  Allbnso,  num.  136. 
Bens  que  se  seguirão  do  assalto  passado,  num.  137. 
Da  sentida  morte  do  grão  Principal  Martim  Aftonso  Tebyreçá,  num.  138. 
Do  muito  ({ue  deve  a  Companliia  a  este  índio,  num.  130. 
Os  moradores  de  Itanhaé  assignam  em  sua  vilia  casa  pêra  os  Padres. 

num.  140. 
Conversão  e  bautismo  de  hum  índio  de  cento  e  trinta  annos,  num.  141. 
íntelíigencia  d'este  índio,  e  sinaes  de  sua  predestinação,  num.  142. 
Assalteão  os  Tamoyos  o  rio,  c  as  praias  de  Boiguaçú  boaba,  num.  143. 
Soccorre  o  Governador  geral  a  Capitania  do  Espirito  santo  com  huma  ar 

mada,  e  o  successo  d'ella,  num.  í  i4. 

riM  no  r FUMEIRO  \olimf:. 


GHRONIGA 

DA  COMPANHIA  DE  JESU 


DO 


ESTADO  DO  BRASIL 


VOIAIMK    SKGU.NDO 


IHÍH.   Kl  AIII/AIWIi:)  AM 


mm  OQ  00AT21 


•Hl/  í;yA<   :u/  I  (. 


Typographia  do  Panorama,  rua  dos  Sapateiros 
í  vulgo  Rua  do  Arco  do  Bandeira,  112). 


CHRONICA 

DA  COMPANHIA  DE  JESU 

DO 

ESTADO  DO  BRASIL 

É  1)0  OÚE  OBRARAM  SEUS  FILHOS  N'ESTA  PARTE  DO  NOVO  MUNDO. 

EM  QUE  SE  TRATA 

Dl  irnUM  U  COUPMHlil  DE  JESU  NiS  PARTES  DO  BKUSIL, 

bOS  FUNDAMENTOS  QUE  n'eLLAS  LANÇARAM 

E  CONTINUARAM  SEUS  RELIGIOSOS,   E  ALGUMAS  NOTICIAS  ANTECEDENTES, 

CURIOSAS   E  NECESSÁRIAS  DAS  COUSAS  d'AQUELLE  ESTADO 


PELO  PÀDRH 


SMO  DE  VASCONCELLOS, 

DA  MESMA  COMPANHIA. 

TOMO  PftlMEIRO  (e  UNICO) 

SEGUNDA  EDIÇÃO  CORRECTA  E  AUGMENTADA 


VOLIIME  II 


ícaSfe» 


Èm  casa  do  Editor  A.  J.  Fernandes  Lopes^  rua  Áurea,  43á  —  13i. 

MDCCCLXV; 


i  Mi  if 


LiVRO  TERCEIRO 

DA 

CHR0NIG4 

DA  COMPANHIA  DE  JESU 
DO  ESTADO  DO  BRASIL 


-^Sê^Sê:^ 


^'SJASAS.d^ 


Contém  a  conlinuação  da  Ilisloria  desde  o  anno  de  1562  aló  o  da 
1568.  A  notarei  missão  do  Padre  Nóbrega,  e  Joseph  de  Anchieta,  a 
fim  de  assentar  pazes  ás  terras  dos  Tamotjus.  A  dotarão  do  Collerjio 
da  Bahia.  A  fundarão  da  Casa  dos  llheos.  O  progresso,  e  fim  das 
guerras  do  Rio  de  Janeiro,  fundarão  d' aquella  cidade,  e  Collegiod^ella- 
A  visita  que  fez  n'esta  Provinda  o  Padre  Jgnacio  de  Azevedo,  até  vol- 
tar por  Procurador  a  Roma.  A  morte  do  Padre  Diogo  Lagnes,  segundo 
Geral  da  Companhia,  a  quem  succedeo  o  Santo  Padre  Francisco  de 
Borja:  c  a  doi  Padres  Jjiogo  Jacome,  c  António  ilodrigucs. 


LIVHO  III  DA  CHUOMCA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 


1  Estão  na  mão  do  grande  Pai  dos  celleiros  os  tempos  prósperos,  e  sazão 
das  searas:  e  assi  como  acontece  muitas  vezes,  que  a  annos  férteis  succe- 
dem  os  estareis;  assi  lambem  na  nossa  seara  espiritual  da  Bahia,  á  fertili- 
dade dos  annos  passados  ^iiccede  n'esfe  de  1563  .colheita  menos  copiosa.  Foi  a 
causa  huma  terrível  intempérie  de  ares,  ou  corrupção,  que  a  modo  de  peste 
contaminou  a  mór  parte  da  terra.  Teve  principio  da  banda  da  ilha  de  Itâ- 
parica,  deu  sobre  a  cidade,  e  d'ahi  pela  costa  marítima  correndo  ao  Norte, 
foi  levando  as  aldeãs  de  S.  Paulo,  S.  João,  S.  Miguel,  e  outras  muitas,  que 
por  aquella  ^arte  estavão  de  Cliristãos,  e  Gentips,  e  escaçamente  deixou  viva 
a  quarta  psÉrte  dòs  moradores  d'ellas:  orçou-«e  o  numero  i^  passante  de 
trinta  mil  ajteias,  as  da  Capitania  da  Bahia  somente,  espectacào  por  huma 
parte  miserando,  por  outra  pêra  dar  graças  ao  Ceo  (etijos  "SãD  estes  lanços) 
porque  parece  esteve  cubicando  o  fruto  já  assazoado  dos  dous  annos  passa- 
dos, die  tantas  almas. reduzidas  á  graça  por  meio  da.  agoa  bautismal;  equiz 
aprovéitar-se  4'ellas  antes  que  por  sua:'-  natural  inconstância  podessfem  per- 
verterrse.  Mas  se  faltou  a  occasião  de  crescimento  dos  bautizados,  não  foi 
pequeno  o  serviço  de  Deos  que  estes  servos  seus  obrarão  em  acudir  aos 
que  cahirão  doentes,  e  preparar  os  que  acabavão;  porque  como  forão  dito- 
sos nos  principies  de  sua  christandade,  o  fossem  também  nos  fins  d'ella. 
Andavão  volantes  em  varias  estancias,  onde  á  volta  dos  já  chi'istãos,  bau- 
tizarão  in  extremis  muitos  milhares  de  adultos  gentios,  que  provavelmente 
correrião  perigo,  se  não  fossem  em  maré  tão  ditosa. 

2  Começou  a  doença  por  graves  dores  do  interior  das  entranhas,  que 
lhes  fazia  apodrecer  os  fígados,  e  bofes:  e  logo  veio  a  dar  em  bexigas,  tão 
podres,  e  peçonhentas,  que  lhes  cahião  as  carnes  a  pedaços  cheas  de  bichos 
mal-cheirosos,  Não  sabião  os  Padres  a  quem  primeiro  acudir;  porque  no 
mesmo  tempo  espiravão  muitos  em  diversos  lugares,  e  não  era  possível 
deixar  o  que  já  tinha  posse,  por  acudir  ao  que  a  não  tinha.  Aconteceo  ao 
Padre  Gregório  Serrão,  que  assistia  na  aldeã  de  Itáparica,  estando  aju^ 
dando  hum  d'estes  a  bem  morrer,  dizer-lhe  hum  moço,  que  havia  parido 
huma  índia  n'aquella  mesma  hora  no  meio  do  terreiro  (cousa  commua  no 
tempo  d'aquella  doença,  pelo  aperto  de  dores  que  causava)  e  deixara  o 
parto  desamparado,  e  se  fora,  e  que  a  criança  ficava  a  ponto  de  morrer ; 
aíTligio-se  o  zeloso  obreiro,  porque  era  necessário  ir  acudir  áquella  alma, 
e  por  outra  parte  havia  perigo  de  deixar  esfoutra.  No  meio  d'estas  anciãs 
disse  o  hidio,  que  estava  morrendo:  «Não  tomes  pena,  Padre,  açude  a  esta 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (anNO  DE    1563)  T» 

alma,  que  eu  esperarei  por  ti.»  Foi  o  Padre,  achou  duas  crianças  gémeas, 
buma  já  morta,  outra  a  ponto  de  morrer:  bautizou  esta,  foi  ella  ao  Ceo,  e 
o  Padre  tornou  ao  seu  doente,  que  achou  ainda  vivo,  mas  esperando  por 
momentos  por  elle.  D'este  exemplo  se  podem  tirar  muitos  do  aperto  d  es- 
ta contagiosa  doença. 

3  N'este  anno  chegarão  de  Portugal  mais  quatro  operários,  o  Padre 
Quiricio  Caxa,  e  os  Irmãos  Balthasar  Alvares,  Sebastião  de  Pina,  e  Luis  Car- 
valho. Este  ultimo  vinha  só  por  doença  experimentar  os  ares  do  Brasil,  e 
não  achando  melhoria  voltou  ao  Reino.  O  Padre  Quiricio  começou  a  ler  na' 
Bahia  huma  classe  de  gramraatica.  Os  outros  dous  forão  ajudar  ás  aldeãs. 

4  Na  Capitania  de  S.  Vicente,  especialmente  na  parte  marítima,  tudo 
erão  assaltos,  mortes,  e  cattiveiros  feitos  pelos  Tamoyos,  que  cada  vez  hião 
crescendo  em  numero,  e  parecia  que  tiiilia  a  divina  Justiça  amarradas  as 
mãos  d'aquelles  moradores  pêra  sua  defesa:  não  contentes  os  inimigos  com 
assaltos,  trattavão  já  de  acommeter  toda  a  terra,  e  apoderar-se  delia.  Á 
vista  d'estas  occasiões  andava  feito  o  Padre  Nóbrega  hum  zeloso  Propheta, 
bradando  dor  púlpitos,  e  praças  penitencia;  porque  estava  persuadido  o 
santo  velho,  que  tinhão  os  Tamoyos  a  justiça  da  sua  parte,  e  que  Deos  pu- 
gnava por  elles,  porque  os  Portugueses  lhes  quebrarão  as  pazes,  os  as- 
salteárão,  cattivárão,  e  entregarão  alguns  a  outros  índios  seus  contrários, 
pêra  que  os  miatassem,  e  comessem;  e  não  havia  arrependimento  destes 
peccados.  Este  cuidado  lhe  atravessava  a  alma;  e  depois  de  meditar  annos 
inteiros  sobre  elle,  sentia  em  seu  coração  no  tempo  que  trattava  com  Deos, 
grandes  impulsos  de  ir  metter-se  entre  aquelles  bárbaros,  ou  pêra  acabar 
pazes  com  elles,  ou  pêra  acabar  entre  elles  a  vida. 

5  Trattou  Nóbrega  este  seu  pensamento  com  os  do  governo  da  repu- 
blica, e  estava  claro  que  havia  de  sahir  approvado,  pois  o  ganho  vinha  a 
ser  de  todos,  e  o  risco  era  do  hum  só,  e  de  nenhum  delles:  quanto  mais 
que  a  resolução  era  sem  duvida  do  alto,  como  por  muitas  provas  se  vio, 
e  o  deu  depois  a  entender  o  venerável  Joseph  de  Anchieta  companheiro  seu, 
dizendo  que  custara  a  Nóbrega  dous  annos  inteiros  de  continuas,  e  fervo- 
rosas orações  este  requerimento.  Fiado  pois  em  o  poder  divino,  que  tira 
fontes  de  penedos  duros,  e  nas  causas  tão  justificadas  que  o  movião,  de- 
pois de  renovados  os  votos  da  Religião,  na  primeira  oitava  de  Paschoa  se 
despedio  de  seus  Religiosos,  e  escolheo  por  companheiro  da  missão  tal  su- 
jeito, que  com  razão  duvidarão  depois,  os  homens,  qual  dos  dous  obra- 
ra n'ella  maiores  maravilhas,  se  o  superior,  .se  o  súbdito?  Era  este  o  ve- 


8'  LIVRO  m  DA  CimONlCA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

neravel  Irmão  Joseph  de  Anchieta,  bem  conhecido,  e  respeitado  já  entâoi 
até  entre  os  índios;  grande  Ungoa  brasiiica.  Chegarão  os  dous  Missionários 
aos  primeiro»  lugares  fronteiros  dos  Tamoyos,  e  daqui  os  levou  em  pes- 
soa, e  om  barca  própria  Francisco  Adorno,  nobre  genovez,  homem  rico  da 
terra,  e  grande  amigo  da  Companhia;  e  tendo  partido  a  21  de  Abril  do 
1563,  chegarão  aos  lugares  principaes  das  praias  dos  Tamoyos  a  quatro  de 
Maio  do  mesmo  anno. 

O  Este  lugar  fronteiro  dos  Tamoyos,  como  cousa  tão  celebre,  n*aquellc 
tempo  por  terra  barbara,  inimigti,  e  tragadora  da  carne  de  christãos,  e  ho- 
je por  tor  sido  theatro  das  acções  de  dous  varões  tão  illustres,  que  consa- 
grarão aquetles  montes,  e  aquellas  praias  com  sua  santidade;  he  justo  que 
como  foi  por  elies  assinalado,  seja  também  por  nós  conhecido.  Dista  este 
lugar-,  por  computo  do  mesmo  Joseph,  vinte  e  seis  legoas  de  S.  Vicente, 
correndo  ao  Norte  altura  de  vinte  e  três  grãos,  e  hum  quarto.  Tem  seu 
principio  vindo  da  villa  de  S.  Sebastião  da  ultima  popta  da  enseada  que 
chamão  dos  Mararaomís,  fronteira  ã  ilha  dos  Porcos,  coirendo  ao  Sul  as 
três  enseadas  seguintes,  dos  Portos,  de  Uubatyba,  e  Larangeiras,  até  en-. 
testar  com  o,  grão  Cairuçu,  penedias  disfonnes,  espanto  dos  nav-egantes;  e 
pelo  sertão  cerco  horrível  de  altas  serranias,  incultas,  impenetráveis,  mu- 
ros cm  fim  eternos  da  natureza.  Este  era  o  sitio  daquelles  bárbaros;  d'aqui 
sahia  o  mór  terror  dos  Portugueses  daquellas  partes:  e  destas  praias  des- 
pedião  numero  de  canoas  guerreiras  formidável:  e  do  sertão  exércitos  te-- 
mcrosos  de  frecheims,  que  como  feras  rompião  as  mattas,  e  trepavão  a  pene- 
dia pêra  acommetter,  c  não  podião  elles  ser  penetrados,  nem  acomme tidos, 

7  Estas  praias  me  trazem  ã  memoria  as  que  lá  fingião  os  poetas  do  rio 
Acheronte:  porque  em  chegando  á  noticia  daquella  gente  barbara,  que 
tinha  desembarcado  çra  as  suas  gente  estranha,  armarão  logo  suas  ca- 
noas a  irnpedir-lhe  o  passo  (qual  outro  Acheronte,  e  Cerbero;)  chegan- 
do porém  aquellas  veneradas  presenças  de  Nóbrega,  e  Anchieta,  já  conhe- 
cidos delles  por  fama  do  homens  innocentes,  amigos  de  Deos,  e  pais  de 
índios:  o  muito  mais  ouvindo  a  eloquência  das  saudações  de  Josepli  em  sua 
própria  Ungoa,  ficíirão  satisfeitos,  ílárãorse  d'elles,  e  entrarão  na  barca  som 
medo  algum :  ouvirão-nos,  metêrão-nos  em  porto  seguro  junto  a  hum  ilheo, 
c  despedirão-se.  Ao  dia  seguinte  vierão  os  Principaes  de  duas  das  aldeãs 
pêra  trattar  principies  das  pazes,  e  deixando  no  barco  doze  mancebos  em 
reféns,  mandarão  que  partissem  estes  a  S.  Vicente,  o  elles  levarão  per^ 
tfira  os  Píidres  com  mostras  de  devido  respeito. 


DO  KSTADO  DO  BRASIL  (ANNO  DE    1563)  9 

8  Forâo  hospedados  na  casa  de  hum  velho  por  nome  Caoquíra,  entre 
os  Tamoyos  Principal,  e  posto  que  gentio,  de  boa  Índole,  capaz,  e  pêra 
mm  elles  de  grande  authoridade.  Antes  de  alguma  outra  cousa,  armarão 
os  Padres  Igreja  entre  hum  arvoredo,  coberta  de  palmas,  pobre,  mas  lim- 
pa, e  decente:  aqui  fizerão  aos  nove  de  Maio  o  primeiro  sacriticio  que  vira 
entre  si  aquella  gente  baibara,  primeira  acção  de  graças  dos  nossos  pelas 
mercês  até  alli  recebidas,  e  primeiro  propiciatório  pelas  que  esperavão  re- 
ceber em  missão  tanto  do  serviço  de  Deos.  Com  estes  sacrifícios  continua- 
rão todos  os  dias;  e  era  grande  o  espanto,  e  reverencia  d'aquella  gente, 
que  nunca  vira  cousa  semelhante.  Feita  Igreja,  em  vez  de  sino,  a  vozes  al- 
tas convocavão  á  santa  doutrina,  primeiro  os  meninos,  e  depois  os  gran- 
des, que  concorrião  a  bandos,  huns  á  novidade  do  acto,  outros  á  noticia 
dos  filhos  por  curiosidade:  porém  logo  passados  breves  dias,  deveras;  por- 
que íicavão  convencidos  da  eloquência  de  Joseph,  e  suas  palavras,  que  co- 
mo setas  penetravão  os  corações,  explicando-lhes  com  frases,  semelhanças, 
e  metaphoras  próprias  de  sua  nação,  de  que  elles  muito  gostão,  os  myste- 
rios  de  nossa  santa  Fé;  em  forma,  que  refere  o  mesmo  Joseph,  que  breve- 
mente chegarão  a  ficar  instruídos,  e  poderão  ser  bautizados,  se  estiverão 
em  parte  segura;  e  que  fazia  n'elles  grande  imprcsão  o  rigor  dos  cas- 
tigos eternos,  com  que  havião  de  ser  punidos  os  que  comião  carne  huma- 
na, e  commetião  semelhantes  delictos:  pasmavão  e  prometião  emendar-se. 
A  mesma  doutrina  annunciárão  nas  aldeãs  circunvizinhas,  muitas,  e  nume- 
rosas, e  mostravão  aíTeição  aos  Padres,  tendo-os  em  conta  de  homens  que 
trattão  com  Deos,  superiores  a  lodos  seus  Payés,  que  tem  em  conta  de  pro- 
phetas. 

O  Já  chegavão  a  descobrir-lhes  todas  suas  traças  de  guerra;  e  as  que 
tinhão  preparado  pêra  de  novo  acommeler  aos  Portugueses:  por  mar  erão 
as  canoas  duzentas,  por  terra  erão  todos  os  arcos  que  habitavão  as  ribei- 
ras do  rio  Paraliiba,  com  pacto  feito,  que  dessem  todos  juntos  scfu  cessar 
até  acabar  com  a  Capitania,  c  senhorearem  a  terra.  Kntão  derão  por  mais 
bem  empregados  os  trabalhos  e  perigos  de  sua  missão,  quando  â  vista 
destes  aprestos  consideravão  os  dos  nossos  tão  diminuídos  em  forças, 

10  Kslando  as  cousas  nestes  lermos  tão  bem  assoml)rados,Jfoi corren- 
do a  costa  a  fama,  sempre  acresc/jntada,  de  como  os  Padres  erão  chega- 
dos á  paragem  chamada  por  sua  lingoagern  Iperoyg,  c  o  a  (jue  vinhão:  ca 
esla  voz  todos  os  (juc  habilav,io  nas  {)arles  do  llio  de  Janein»,  interessados 
lia  mesma  guerra,  se  alteráião,  tomando  mal  o  tralto  das  pazes.  l'arlirão 


10  LIVIIO  III  DA  CIIROMCA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

sem  demora  de  diversas  partes  em  suas  canoas  os  mais  zelozos,  determi- 
nados a  matar  os  Padres,  e  com  sua  morte  estorvar  os  concertos.  Chegou 
entre  todos  primeiro  com  dez  canoas  a  ponto  de  guerra  esquipadas,  hum 
grande  Principal  chamado  Aimbiré,  amigo  dos  Franceses,  e  sogro  de  hum 
d'eiles,  inimicissimo  dos  Portugueses,  porque  fora  assalteado  delies,  meti- 
do em  huma  barca  c-om.  huma  ferropea  nos  pés,  donde  fugira  a  nado;  lem- 
brado semj)re  da  injuria,  e  de  natureza  tão  cruel,  que  por  hum  erro  que 
commeteo  contra  elle  huraa  de  vinte  mulheres  que  tinha,  a  mandou  abrir 
viva  pelo  ventre  até  morrer.  Este  pois  chegado  á  aldeã  onde  residião  os  Pa- 
dres, tratou  de  noite  com  os  seus,  que  sem  duvida  os  matassem  na  melhor 
occasião  que  pudessem,  e  apoz  isso  lançassem  mão  do  barco,  e  dos  Por- 
tugueses que  alll  os  trouxerão. 

1 1  Feito  este  conselho  secreto,  ao  dia  seguinte  desejando  os  anciãos  da 
terra  tratar  das  pazes,  quizerão  se  achasse  presente  este  Principal  das  dez 
canoas,  por  ser  entre  elles  de  grande  authoridade:  sendo  avisado,  veio  á 
Junta;  porém  com  grande  multidão  de  armados,  mostrando  bem  sua  ten- 
ção sacrílega.  Favorecia  mais  a  occasião  de  sua  maldade,  que  no  mesmo 
tempo  se  achava  ausente  a  maior  parte  dos  povos  d'aquellas  aldeãs,  idos 
a  seus  lavores.  Tudo  presentirão  os  dous  servos  de  Deos;  porém  seu  co- 
ração estava  forte,  desejoso  de  padecer  a  mãos  dos  infleis  por  causa  tão  justa. 
Chegados  aos  votos  das  pazes,  o  d'este  Principal  foi  dirigido  a  seu  intento;  e  a 
primeira  condição  que  propoz  com  grande  arrogância  foi,  que  lhe  havião 
de  entregar  primeiro  três  Principaes  dos  índios  de  S.  Vicente,  que  se  ti-, 
nhão  apartado  dos  seus,  dando-lhe  guerra  em  favor  dos  christãos,  pêra  os 
matar,  e  comer.  A  esta  proposta  tão  iníqua  responderão  os  Padres  com 
grande  quietação,  e  modéstia,  dando  razão  da  impossibihdade:  porque  os 
que  pedião,  erão  jã  da  Igreja  de  Deos,  e  amigos  dos  Portugueses;  e  sendo 
assi,  não  era  possível  entregar-Uros,  porque  irião  contra  a  lei  de  Deos,  e 
palavra  dada:  que  entre  christãos  a  primeira  cousa  que  andava  ante  os 
olhos,  era  a  guarda  da  fé,  e  lealdade  a  quem  a  prometião,  e  que  tendo  a 
promettido  àquelles  Principaes,  como  querião  elles  que  a  quebrassem?  an- 
tes daqui  era  bem  que  tomassem  exemplo  pêra  folgar  de  ter  por  amigos 
os  que  assi  se  mostrão  constantes  na  palavra  dada;  e  o  contrario  devião  es- 
tranhar, coUegindo  que  quando  com  àquelles  se  quebrava  a  fé,  também  se 
quebraria  com  elles:  que  por  outras  vias  poderião  mostrar  os  Portugueses 
seram  amigos  seus,  mas  que  não  convinha  por  esta. 

12  Disserão  os  Padres,  e  moverão  com  suas  razões  os  circunstantes, 


DO  ESTADO  DO  BUASIL  (aNNO  DE   1563)  H 

porém  o  peito  deste  bárbaro  ficou  tão  duro,  como  de  primeiro,  e  coíieluio 
com  mais  soberba,  e  arrogância  com  estas  palavras,  em  seu  estylo:  «Pois 
que  vós  outros  sois  escaços  de  meus  contrários,  que  têm  morto,  e  comido 
osmeus,e  não  os  quereis  entregar,  não  tenhamos  pazes.»  E  virou-se  descOT- 
tezmente  a  outra  parte,  estando  os  que  o  seguião  armados,  com  o  oiio 
n'elie,  esperando  o  minimo  aceno  do  que  houvessem  de  fazer:  porém  n'es- 
te  estado  tomou  a  mão  o  velho  Pindobuçú,  Capitão  da  aldeã,  e  com  taes 
palavras  Uie  mostrou  sua  pouca  razão,  que  não  ousou  passar  adiante,  oa 
por  que  entre  esta  gente  he  grande  o  respeito  que  se  guarda  aos  velhos^ 
os  quaes  venerão  como  pais,  ou  porque  Deos  lhe  intimou  a  eflicacia  cora= 
que  fallava.  Não  era  comtudo  cousa  fácil  a  desfazer  a  difficuldade  d  aquela 
le  apaixonado  Principal,  que  dependião  as  pazes  muito  de  seu  voto ;  por- 
fallava  em  nome  de  muitos,  que  erão  quasi  todos  os  do  Rio  de  Janeiro,  mas 
pêra  divertir  o  negocio  assentarão  hum  meio  ditado,  parece,  do  Geo,  e  foi 
que  o  ponto  dos  três  Principaes  que  pedia,  se  mandasse  propor  a  S.  Vi- 
cente, ás  cabeças  maiores  do  governo.  Aceitou  o  bárbaro  a  condição,  e 
quiz  elle  ser  o  embaixador  da  proposta,  confiado  que  ou  sahiria  com  a 
sua,  ou  com  suas  canoas  perturbaria  o  estado  das  pazes,  assalteando  os 
lugares  dos  Portugueses.  Porém  Deos  dispoz  ao  contrario;  porque  os  Pa- 
dres escreverão  aos  da  republica,  que  de  nenhum  modo  dessem  ouvidos  a 
proposta  tão  impia,  ainda  que  por  negal-a  pozessem  em  perigo  seus  Lega- 
dos de  serem  mortos,  e  comidos  dos  bárbaros:  segundo  o  que,  não  teve 
eíTeito  esta  parte:  nem  também  a  outra  da  intenção  do  embaixador;  por- 
que foi  recebido,  e  tratado  dos  Portugueses  cora  taes  favores,  que  entrou 
contente,  e  de  paz. 

13  Livres  os  Padres  doeste  perigo,  entrarão  no  segundo  mais  apertado: 
porque  andando  ambos  na  praia  encommendando-se  a  Deos  como  costu- 
mavão,  virão  que  vinha  liuma  canoa  a  toda  a  pressa,  esquipada  com  trinta 
remairos,  e  demorava  pêra  o  porto  onde  estavão.  E  era  o  caso  que  vinlia 
n'esta  Paranápucú,  que  quer  dizer  mar  espaçoso,  índio  Principal,  lilho  do 
Capitão  que  governava  aquella  mesma  aldeã,  onde  os  Padres  então  habita- 
vão,  por  nome  Pindobuçú,  que  significa  palma  grande,  muito  amigo  nosso: 
deixando  atrás  oito  canoas  que  capitaneava,  sabendo  as  novas  de  que  tra- 
tavão  os  Padres  de  pazes,  e  tinhão  persuadido  a  ellas  seu  pai,  vinha  a  to- 
da a  pressa  resoluto  a  tirar  a  vida  a  taes  embaixadores,  por  perniciosos 
ao  bem  communi  de  sua  narão:  e  tinha  dado  ordem  aos  seus,  íjue  em  che- 
gando lançassem  mão  dos  Padres,  e  rpic  elle  os  mataria.  «Porque  meu  pai 


12  LlVnO  III  DA  CHROMCA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

(dizia  elle)  he  velho,  e  nem  por  isso  me  lia  de  matar. »  Tudo  isto  tinha  pas- 
sado entre  ellcs.  Vendo  pois  os  servos  de  Deos  a  canoa,  sabendo  mui  bem 
quão  mal  tomada  fora  sua  vinda  de  todos  os  do  Rio  de  Janeiro,  e  que  ti- 
nhão  conspirado  em  sua  morte,  suspeitarão  logo  o  que  era,  e  começarão  a 
retirar-sc  ao  povoado  da  aldeã,  distante  como  quinhentos  passos  (por  não 
dar  occasião  elles  mesmos  a  seu  mão  intento,  achando-os  alli  fora  de  po- 
voado) senão  que  como  era  velho,  e  fraco  o  Padre  Nóbrega,  ú  vista  de  tan- 
tos remeiros  hia  mui  devagar;  e  o  ma)s  foi,  que  havendo  de  passar  hum 
ribeiro  ao  fim  da  praia,  cuja  agoa  dava  pela  cintura,  fez  menção  de  querer 
tirar  as  botas,  que  por  respeito  de  doença  trazia;  mas  como  havia  de  gas- 
tar tempo,  e  a  canoa  vinha  voando,  a  grande  caridade  do  companheiro  o 
tomou  ás  costas,  e  como  estas  erão  fracas  por  quebradas,  quiz  parece  o  Ceo 
sahir  alli  com  huma  representação  graciosa;  porque  a  poucos  passos  andados 
gemendo  com  a  carga,  deu  ix)r  fim  com  o  pobre  velho  na  agoa.  Que  farião 
á  vista  do  aperto  da  morte?  Tomarão  por  conselho  escouder-se  entre  o  ar- 
voredo, e  descalçando  aqui  as  botas,  e  despindo  a  mais  roupa  molhada, 
por  de  grande  peso.  ficou  somente  com  o  interior,  que  não  escusava  a  mo- 
déstia, e  descalço.  Tomou  Josepli  o  fato  molhado  ás  costas,  e  tornarão  a 
intentar  o  caminho:  porém  era  esta  ladeira  Íngreme,  não  podia  Nóbrega  su- 
bil-a,  e  já  hião  ouvindo-se  as  vozes,  e  bater  dos  remos  dos  que  chegavão: 
foi  força  tornar  a  esconder-se  no  matto,  e  pôr-se  em  oração,  tratando  já 
mais  das  almas,  que  das  vidas.  Eis  que  no  meio  desta  afflicção  succedc 
outra;  porque  sentirão  que  entrava  no  matto  huma  pessoa  que  vinha  pêra 
elles:  porém  foi  ajudada  do  Ceo;  porque  chegando  mais  ao  perto,  acharão 
ser  hum  índio  que  descera  da  aldca,  c  a  caso  entrara.  Este  os  ajudou  a 
levar  quasi  ás  costas,  e  os  pòz  em  salvo  dentro  da  casa  do  Principal  Pin- 
dobuçú,  pouco  antes  que  os  da  canoa  chegassem. 

li  Porém  não  se  acabou  a  comedia;  porque  estava  ausente  da  casa  o 
senhor  d'ella,  em  quem  confiavão  os  nossos,  e  vinhão  chegando  os  contrá- 
rios. Pois  que  remédio?  O  Ceo  parece  que  andava  de  propósito  compondo 
scenas,  pêra  sahir  depois  com  hum  fim  alegre:  porque  entrando  o  senhor 
da  canoa  acompanhado  de  muitos  seus  em  casa  do  pai,  achando-o  ausente, 
e  aos  religiosos  postos  de  joelhos,  encx)mmendando-se  a  Deos,  e  rezando  as 
vesporas  do  Santo  Sacramento  (porque  era  o  dia  seguinte  do  Corpo  de 
Deos)  esperando  por  seu  ultimo  trago:  no  tempo  que  chegou  a  sua  pre- 
sença aquelle  animo  damnado,  concebeo  tal  terror,  e  respeito,  que  ficou  pa- 
rado, ConM'rtcu  a  fúria  cm  pratica;  c  ouvindo  as  i)alavras,  especialmente 


DO  ESTADO  DO  DtlASIL  (aNXO  DE  1563)  13 

de  Josepli,  eloquente  em  sua  lingoa,  acabou  do  mudar-se,  confessou  de  pla- 
no o  intento  com  que  partira,  e  com  que  entrara  n'aquella  casa;  mas  que 
em  vendo  suas  presenças,  e  ouvindo  suas  palavras,  ficava  já  trocado,  e  per* 
suadido  que  pessoas  taes  não  vem  com  treição,  ou  engano. 

15  Veio  de  fora  o  velho  Pindoburú,  senhor  da  casa,  e  sabendo  do  suc- 
cesso  do  filho,  mostrou  rosto  alegre,  significando  que  sentiria  muito  se  suc- 
cedera  algum  mal  aos  Padres.  Era  índio  de  boa  capacidade,  e  chamando  o 
filho  á  parte,  lhe  fez  huma  pratica  sobre  a  gravidade  de  costumes  que  vira 
em  seus  hospedes:  gabou-lhe  sua  aprazivel  presença,  sua  grande  constância 
de  animo,  desprezador  de  todos  os  trabalhos,  e  como  entre  tantos  que  pro- 
curarão offendel-os  nunca  descomposerão  sua  serenidade;  e  concordou  em 
tudo  com  o  conceito  que  formara  o  filho.  Huma  cousa  sobre  todas  as  outras 
tinha  admirado  esta  gente,  e  era  esta  a  grande  continência  que  guardavão; 
porque  tendo-lhe  offerecido  os  Principaes  daquellas  aldeãs  liberalmente  fi- 
lhas, e  irmãs  (costume  commum  entre  elles,  com  a  mesma  chaneza,  e  fa- 
cilidade, que  se  brindarão  huma  cuya,  ou  copo  de  vinho)  vião  que  sem- 
pre os  Padres  as  regeitárão.  Disto  pasmavão;  e  chegarão  a  perguntar-lhes, 
como  era  possivel  aborrecerem  o  que  todos  os  outros  homens  apetecião? 
Respondeo-lhes  a  isto  o  Padre  Nóbrega  tirando  da  algibeira  humas  disci- 
plinas, mostrando-lhas,  e  dizendo,  que  magoando  com  aquellas  seu  corpo, 
asseguravão  a  continência,  e  se  defendião  de  Ímpetos  lascivos,  e  movimen- 
tos desordenados  da  carne.  Aqui  ficarão  elles  mais  atónitos  de  cousa  tão 
nova.  Tinhão  aos  Padres  por  amigos  de  Deos;  e  entre  todos  Pindobuçú  não 
cessava  de  praticar  aos  seus,  que  erão  homens  que  fallavão  com  Deos,  aos 
quaes  elle  descobria  seus  secretos:  e  aos  do  Rio  de  Janeiro  dizia,  que  vis- 
sem que  se  algum  aggravo  lhes  fazião,  havião  de  fazer  vir  do  Ceo  mortan- 
dade de  pestes  contra  elles.  Punha-lhes  exemplo:  «Se  nós  outros  temos  me- 
do de  nossos  Pavês  (são  seus  feiticeiros)  e  não  ousamos  offendel-os:  quanto 
mais  o  devemos  ter  d'estes  Abares  (assi  chamão  aos  Padres)  que  são  ver- 
dadeiros Payés,  fallão  com  Deos,  e  nos  lançarão  (se  quizerem)  camarás  de 
sangue,  e  febres  malignas,  com  que  todos  morrúmos?»  Com  estas  praticas  de 
Pindobuçú,  ninguém  se  atrevia  a  tratar  mal  os  Padres,  e  tratava-os  elle  co- 
mo filhos,  e  lhes  pedia  o  cncommendassem  a  seu  Deos:  que  não  temessem; 
que  elle,  e  os  seus  se  porião  em  terreiro  por  elles.  Consultava-os  todos  os 
dias,  ouvindo  com  grande  attenção  especialmente  os  mysl(írios  da  creaçâo 
do  mundo,  e  encarnação  do  Filho  de  Deos:  e  sendo  combatido  poi"  varias 


ií4i  LIVRO  III  DA  CHRONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

vezes  dos  que  cada  dia  vinlmo  do  Rio,  que  matassem  os  Padres,  sempre 
os  defendeo  abominando  a  tal  resolução.  Achava-se  sempre  presente  á  missa, 
e  pasmava  de  ver  aquellas  sagradas  ceremonias;  e  foi  de  maneira  seu  apro- 
veitamento, que  por  premio  do  Ceo  foi  este  venturoso  índio  Pindobuçu, 
depois  de  perfeito  calliecumeno  dos  Padres,  hum  grande  christão,. notável 
entre  muitos;  e  como  tal  obrou  até  o  fim  da  vida.  ;  <nt  ■>í!f  .'iMit  >>(' 

16  Chegava-se  o  tempo  de  concluir  o  assento  das  pazes;  entrarão  ou- 
tra vez  em  conselho,  presentes  os  Padres.  Aqui  desabafarão  então  alguns 
dos  anciãos,  queixando-se  de  antiguas  magoas.  Dizião,  que  os  Portugueses 
forão  os  primeiros  que  quebrarão  as  pazes  firmadas  de  huma  e  outra  par* 
te,  lhes  íizerão  guerra,  e  os  cattivárão,  e  tratarão  como  bestas  de  carga : 
«Vós  outros  (dizião  elles)  quando  nós  começámos  a  guerra  contra  Temiminós, 
gente  do  grande  Gato,  confiados  na  multidão  de  arcos  de  nossos  inimigos,  os  aju* 
dastes,  pelejando  com  elles  contra  nós;  mas  Deos  nos  ajudou,  e  podemos  mais: 
porém  agora...»  E  aqui  callárão.  Sabia  mui  bem  o  Padre  Nóbrega,  que  tudo  o 
que  dizião  era  verdade:  e  parecendo-lhe  fazia  melhor  negocio  em  conceder 
com  elles,  disse-lhes  assi:  «Eu,  porque  sei  que  Deos  está  irado  contra  os 
meus,  me  offereci  a  vir  tratar  pazes  com  vós  outros,  pêra  com  isso  o  aman- 
sar: porém  agora  por  sua  parte  não  se  hão  de  quebrar  estas  pazes;  que 
por  isso  trago  eu  cá  a  minha  cabeça,  e  a  de  meu  companheiro  sem  medo 
algum,  porque  trato  verdade.  Mas  também  vos  aífirmo  d'aqui,  que  se  vos 
outros  as  quebrais,  entendei  que  a  ira  de  Deos  se  ha  de  virar  contra  vós, 
e  haveis  de  ser  destruídos.»  Este  ditto  de  Nóbrega,  aíDrma  o  Padre  Joseph, 
que  não  foi  somente  ameaça,  mas  prophecia,  que  depois  se  vio  cumprida  á  ris- 
ca; porque  todos  os  que  quebrarão  estas  pazes,  experimentarão  os  amea- 
çados castigos.  Por  prophecia  a  tiverão  os  mesmos  índios,  e  como  tal  a  fo- 
rão publicando  pelas  aldeãs,  e  com  ella  metião  medo  aos  que  tinhão  pen- 
samento contra  o  que  alli  assentarão;  no  que  sempre  se  acharão  constan- 
tes os  moradores  de  Iperuy,  e  pelo  contrario  fraqueárão  os  do  Rio  de  Janei- 
ro, e  Cabo  Frio. 

17  Havia  dous  mezes  que  residião  os  Padres  entre  os  índios,  e  nâo  se 
acabavão  de  concluir  as  pazes,  porque  dependião  ainda  de  algumas  circuns- 
tancias; pêra  que  estas  tivessem  effeito,  pareceo  ser  mui  necessária  a  presen- 
ça dos  Padres  em  S.  Vicente,  e  assi  lho  significavão  os  do  governo^  d'aquella 
villa;  porém  os  bárbaros,  que  ainda  de  todo  se  não  davão  por  seguros,  des- 
confiarião  sem  duvida,  se  antes  da  ultima  averiguação  se  lhe  fossem  os  lega- 
dos das  pazes.  Pelo  que,  feita  n'esta  diíTiculdade  oração,  resolveo  o  Padre  Jo- 


DO   ESTADO  DO  BRASIL  (aNNO  DE  15G3)  i5 

Síípb  comsigo,  que  seria  serviço  de  Deos  partir  a  contenda,  e  contentar  a  hu- 
ma  e  outra  parte,  hindo  o  padre  Nóbrega,  e  ficando  elle;  e  assi  lho  intimou. 
Sentia  Nóbrega  haver  .de  partirse  sem  ultimo  eíTeito,  e  muito  mais  deixando 
o  companheiro  só  entre  bárbaros:  vendo  comtudo  a  resolução  que  o  mesmo 
Joseph  tomara,  e  tinha  por  de  Deos,  e  a  necessidade  urgente  de  sua  ida  pêra 
bem  das  pazes,  e  que  ficavão  assi  contentes  os  índios,  cujo  desgosto  seria  oc- 
casião  de  muito  damno  n'esta  matéria,  resolveo  partir-se.  n  í 

18  Havia  de  embarcar-se  Nóbrega  ao  outro  dia  pela  manhãa;  na  noite  an- 
tecedente teve  Joseph  conhecimento  sobrenatural  de  três  casos  occulíos,  que 
Deos  lhe  revelou,  e  elle  communicou  ao  Padre  Nóbrega  por  causas  justas.  Foi 
o  primeiro,  que  n"aquella  própria  noite  entrarão  os  bárbaros  a  fortaleza  de  S. 
Vicente,  matarão  o  Capitão  d'ella,  e  sua  mulher,  e  levarão  cattiva  sua  família. 
Segundo,  que  fulano  (liomem  conhecido,  e  amigo  de  Nóbrega)  por  desastre 
4e  hum  carro  que  passou  por  cima  delle,  era  fallecido.  Terceiro,  que  chega- 
ria cedo  a  S.  Vicente  hum  galeão  de  Portugal  carregado  de  fazendas.  Com  a 
noticia  d"estas  três  prophecias  partio  Nóbrega  na  manhãa  destinada,  não  mui- 
to espantado  de  que  soubesse  cousas  tão  occultas  (pela  experiência  que  tinha 
do  seu  grande  espirito)  o  companheiro  que  deixava.  Chegou  a  S.Vicente  no  íim 
deJuiiIio  do  corrente  anno,  e  averiguou  logo  com  magoa  sua,  serem  verdadei- 
ras as  duas  primeiras  prophecias;  porque  os  inimigos  tinhão  entrado  a  forta- 
leza, morto  o  Capitão,  e  sua  mulher,  e  levado  cattiva  toda  sua  familia;  e  o 
amigo  era  morto  pelo  successo  triste  do  carro.  A  terceira  prophecia  se  cum- 
prio  logo;  porque  depois  de  chegado  cinco  dias,  aportou  o  galeão  que  dis*- 
será  áquella  villa,  dando  por  tudo  Nóbrega  muitas  graças  a  Deos.  Foi  re- 
cebido em  S.  Vicente  como  aquelle  que  era  pai  de  todos,  e  que  de  presen-. 
te  tinha  acabado  a 'cousa  de  mais  importância  d'aquella  republica,  tanto  á 
sua  custa,  e  sem  opressão  alguma  do  povo.  Começou  a  tratar  com  os  do 
governo  acerca  da  ultima  averiguação  das  pazes,  informou-os,  e  concluio 
tudo  em  bem.  Aos  Tamoyos  que  alli  achou  fez  grandes  mimos,  e  agasalha- 
dos, levando-os  a  nossas  aldeãs,  e  recreando-os,  a  íim  de  ficarem  conten- 
tes, e  firmes  na  paz.  Porém  emquanto  o  Padre  Nóbrega  em  S.  Vicente 
trata  estas  cousas,  tornemos  a  acompanhar  a  Joseph,  que  ficou  só  entre 
gente  barbara,  continuando  reféns  das  pazes. 

i9  JSão  sei  que  maior  prova  podia  fazer  o  Ceo  em  huma  alma  muito 
mimosa  sua,  que  de  propósito  quizesse  lavrar  pêra  si,  que  a  que  fez  cora 
o  nosso  Joseph.  Não  he  hum  espectáculo  de  Deos,  dos  anjos,  e  dos  homens, 
ver  hum  mancebo  na  flor  da  idade,  de  trinta  annos  ainda  não  cabaes,  no 


16  LIVRO  lll  DA  CHROMGA  DA  CONfPANHIA  Dfi  JESII 

mór  vigor  da  natureza,  o  quando  a  carne  e  sangue  mais  senhorea,  raetído 
em  terra  barbara,  entre  homens Jeras,  entre  mulheres  nuas,  elle  comsigo 
só,  sem  quem  pudesse  notar-lhe  excessos,  com  combates  contínuos,  e  qua- 
si  necessários,  de  olhos,  de  ouvidos,  da  carne,  dos  homens,  do  diabo,  e 
do  próprio  inferno  ?  Não  sei  em  que  Ur  Caldeorum  podia  ser  mais  apura^ 
do  hum  Abrahão,  nem  em  que  terra  Hus  hum  Job!  Ai  do  só  (diz  oEspH 
rito  Santo)  porque  se  cahir  não  tem  qeum  o  levante.  Aqui  hum  christâo  só, 
hum  religioso  só,  entre  tantas  occasiões  de  peccado,  c  morte,  onde  se  ca- 
hir não  tem  quem  o  levante,  nem  quem  o  console,  nem  quem  o  anime,  ou 
communique  sacramento  algum !  O  certo  lie,  que  a  não  ser  Jogeph,  ao  apar- 
tardo  companheiro  se  lhe  apartaria  o  coração,  e  tremeria  de  pés,  e  mãos  ou- 
tro qualquer  homem.  Entregárão-se  muitos  ás  Thebaidas,  aos  ermos,  aos 
desertos, :  nestes  porém,  se  erão  sós,  não  erão  tão  mal acompanliados: po- 
rém Joseph  fica  só  em  deserto,  e  fica  acompanhado  de  gente  péssima,  de  sua 
infidelidade,  de  sua  inconstância,  e  de  sua  crueldade.  lie  só  no  meio  de 
hum  povo  bárbaro,  e  de  huma  Babylonia. 

20  Queria  lavrar  aqui  o  Ceo  hum  novo  modo  de  Anííchoretft  só,  e 
acompanhado;  que  juntamente  vencesse  o  difficultoso  da  solidão,  e  da  má 
companhia:  hum  Santo  Antão  solitário  no  ermo,  e  hum  Abrahão  acompa- 
nhado em  Caldea:  lavrava  aqui  hum  homem  raro,  hmn  santo  único,  hum 
exemplar  de  varões  illustres,  compostos  das  perfeições  de  muitosn  hum 
Joseph  na  castidade,  hum  Abrahão  na  obediência,  hum  Moysés  nos  segre- 
dos do  Ceo,  hum  Job  na  paciência,  lium  Elias  no  zelo,  e  hum  David  na  hu- 
mildade :  hum  portento  de  maravilhas,  e  assombro  do  mundo.  E  este  he 
o  companheiro  que  Nóbrega  deixa  só,  e  acompanhado  de  bárbaros. 

21  Bem  vio  Joseph  o  estado  em  que  ficava;  bem  sabia  que  era  neces- 
sário haver-se  como  só,  e  como  mal  acompanhado:  trata  de  guardar-se  de 
si,  e  de  guardar-se  daquella  gente  barbara.  Pêra  tratar  de  guardar-se  a 
si,  era  força  haver-se  como  morto  ao  tropel  de  objectos  torpes,  que  erão 
necessários  onde  a  natureza  não  conhecia  pejo,  e  a  honestidade  não  era 
conhecida;  que  he  guerra  mais  forte.  Era  continua  sua  penitencia,  cilicio, 
)ejum,  contemplação,  que  divertião  a  alma  a  Deos,  e  após  ella  os  olhos,  e 
desejos.  Em  semelhantes  exercícios  he  sabido  que  passava  a  mór  parte  das 
noites,  por  que  os  dias  podesse  gastar  em  bem  dos  homens.  Tomou  em 
primeiro  lugar  por  advogada  da  empresa,  e  muito  em  especial  de 'sua  Cas- 
tidade, a  Virgem  Senhora  nossa,  no  meio  d'este  incêndio  de  Babylonia. 'E 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (ANNO  DE    Í5G3)  17 

era  tal  o  eHeita  dò  sua  protecção,  que  não  chegou  a  elle  o  miniíiio  calor, 
nem  ainda  fumo  traqiiolle  fogo  infernal. 

2á  Aqai  fez  promossa  á  Senhora  de  compor  a  sua  vida  em  verso.  Mas 
como  cantaria  vei-sos  do  Sião  em  terra  alheia,  onde  nem  tinha  livros,  nem 
papel,  nem  tinta,  nem  pearia?  A  tudo  doo  traças  o  amor  da  Senhora.  Sa- 
hía-se  á  praia  do  mar,  e  alli  junto  ao  brando  murmurar  das  agoas,  pas- 
seando com  os  olhos  no  Ceo  compunha  os  versos,  e  logo  virando-os  á  praia 
fazia  d'ella  branco  papel  em  que  os  escrevia,  pêra  molhor  metel-os  na  me- 
moria. Oh  que  sentimentos!  oh  qiie  considerações,  e  que  conceitos  aqui  di- 
zia I  Doo  priacipio  à  obra  por  sua  purissima  Conceição,  íbi  seguindo  todos 
os  passos  do  sua  vida,  chegou  a  sua  felicissima  Assumpção,  e  subio  com 
ella  ao  alto  throno  da  sua  gloria :  não  ficou  passo  da  sagrada  Escdítura, 
prophecia,  ou  ditto  celebre  de  Santo,  que  não  enxerisse  em  seus  cantos. 
Foi  depoimento  commum  dos  índios,  que  virão  por  vezes  nesta  praia  hu- 
ma  avezinha  graciosamente  pintada,  que  com  brando  voo  andava  como  fa- 
zendo festa,  em  quanto  Joseph  hia  compondo,  e  escrevendo,  e  lhe  saltava 
brincando,  ora  nos  houibros,  ora  nas  mãos,  ora  na  cabeça:  ou  porá  mos- 
trar a  Joseph  o  cuidado  que  o  Ceo  tinha  d'elle,  ou  pêra  mostrar  aos  índios 
o  com  que  havião  de  respeital-o.  Isto  que  os  índios  aílirmárão,  depoz  tam- 
bém que  vira  hum  homem  Portuguoz,  que  áquelJas  praias  chegara.  E  não 
será  esta  a  vez  derradeira,  que  vejamos  em  Joseph  semelhantes  favores. 

23  O  que  eu  tenho  pêra  mim  sobre  aquclla  avezinha,  hc,  que  descia 
ella  a  trazer-lhe  o  despacho  do  que  pretendia  da  Virgem,  em  galardão  de 
seu  trabalho,  e  amor ;  e  era  o  dom  da  confirmação  da  pureza ;  por  que  o 
cantou  assi  o  mesmo  Joseph  em  seus  versos,  dizendo,  que  ella  o  guardara 
puro,  e  limpo  de  todo  o  pensamento  lascivo.  E  assi  o  disso  depois  do  mui- 
tos annos  a  hum  Padre  amigo,  quoixando-se-lhc  este  de  pensainentos  in> 
portunos,  e  tenta<;ões  de  sensualidade:  aconselhou-lhc,  que  não  pedisse  a 
Deos  lh'as  tirasse,  mas  que  lhe  desse  vencimento  n'ellas;  e  acrescentou: 
«Porque  eu  sei  outro  (lie  corto  que  fallava  de  si)  que  o  pedio  d'esta  ma- 
neira, e  foi  ouvido;  porque  combalido  largo  tempo  de  semelhantes  tonta- 
(;i3es,  favorecido  de  Deos,  c  sua  Mãi  santíssima,  não  só  não  caliio,  iras 
rec^beo  promessa  segura  de  não  cahir  jamais.  Fez  o  amigo  o  que  Joseph 
lhe  aconselhara,  e  dentro  de  ti'es  dias  o  assegurou,  que  d'alli  em  diante 
cessaria  aquella  importuna  batalha  de  suas  tentações :  e  experimenlou-o 
assi. 

2i    Não  foi  este  somente  o  premio  de  seu  doce  cantar;  leve  também 
voi..  n  2 


18  Ll\1\0  III  DA  CHI\ONICA  DA  COMPANHIA  DK  JESU 

revelação  da  Virgem,  que  passaria  grandes  assombros,  e  espantos  da  mor- 
te entre  aquelles  bárbaros:  porém  que  Dão  o  matarião;  porque  queria  que 
acabasse,  e  aperfeiçoasse  sua  Vida.  Assi  o  disse  o  mesmo  Joseph  por  sua 
própria  boca ;  porque  tardando  a  resposta  da  paz  dos  de  S.  Vicente,  enfa- 
dados os  bárbaros,  feitos  feras  cruéis,  dizendo-ilie  hum  dia:  «Joseph  appa- 
relha-te,  e  farta-te  de  ver  o  Sol ;  porque  tal  dia  temos  assignado  pêra  fa- 
zer banquete  de  ti,  se  até  então  não  vier  reposta  dos  teus.v  Respondeo- 
Ihes  Joseph  com  o  sorriso  na  boca :  «Eu  sei  mui  bem  qae  me  não  haveis 
de  matar.»  E  perguntado  depois  porque  fallava  com  tanta  confiança,  disse 
claramente,  que  pela  palavra  que  a  Virgem  lhe  dera,  que  não  consentiria 
que  alguém  o  matasse  antes  de  acabar  sua  Vida. 

2-j  Parece  que  hia  igualmente  poetisando,  e  prophetizando  este  servo 
de  Deos ;  porque  por  este  mesmo  tempo,  em  quanto  as  pazes  se  acabavão 
de  averiguar,  enfadados  de  esperar  alguns  Tamoyos,  ou  levados  de  sua  na- 
tural inconstância,  não  obstante  as  tregoas,  derão  assalto  em  certa  parte 
de  S.  Vicente,  e  trouxerão  a  Iperoyg  alguns  Portugueses  cattivos.  Tratou 
Joseph  sobre  seu  resgate ;  e  como  o  preço  concertado  tardasse  mais  do 
que  assentarão,  resolverão  os  bárbaros  fazer  pasto  dos  Portugueses :  que- 
rendo executal-o  chegou  Joseph,  e  com  espirito  do  Ceo  lhes  prometteo 
assi:  «O  dia  que  vem,  quando  o  Sol  chegar  a  tal  lugar  (mostrando-lh'o  com 
o  dedo)  hão  de  vir  sem  duvida  alguma  os  que  trazem  o  preço  do  resgate; 
só  ate  então  peço  que  espereis. »  E  disse-lhes  os  nomes  dos  homens  que  o 
trazião,  o  numero,  e  qualidade  das  peças  de  panno,  e  ferramenta  (que  este 
he  o  dinheiro  dos  índios)  e  concluía,  que  empenhava  sua  cabeça,  e  se  vissem 
que  não  era  verdade,  lh'a  quebrassem.  Satisfeitos  os  bárbaros  com  a  es- 
perança de  tão  boas  peças,  dando  inteiro  credito  a  Joseph,  que  tinhão  por 
Payéguaçú  dos  Ghristãos,  desistirão,  e  virão  com  seus  olhos  o  effeito,  assi  co- 
mo Joseph  o  pintara:  tomarão  seu  resgate,  e  entregarão  livrei  os  cattivos.  D'es- 
ta  tão  singular  prophecia  faz  menção  o  Padre  Estevão  Paternina  na  Vida  que 
traduzio  de  latim  em  castelhano  do  Venerável  Padre  Joseph,  hv.  2,  cap'  5. 

26  Chegara  a  esta  terra  barbara  hum  Ayres  Fernandes,  amigo  de  Joseph, 
com  certa  occasião;  trattavão  os  índios  em  segredo  de  cattival-o,  e  fazer  d'elle 
hum  banquete:  foi  avisado  o  pobre  homem,  e  desejava  acolher-se  d^aquel- 
la  praia  avara:  não  tinha  porém  embarcação:  assaz  afíligido  deo  conta  ao 
irmão  Joseph  de  seu  grande  perigo :  respondeo-lhe  elle :  «Não  tendes  que 
temer,  amigo,  por  que  em  tal  parteda  praia  haveis  de  achar  amanhã  huma 
embarcação,  em  que  vos  salvareis.»  Disse,  e  succedeo  assi.  Estas  são  as 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (ANxNO  DE    !íJ63)  19 

obras  de  Josepli  só:  as  de  acompanhado  são  as  seguintes.  O  tempo  lodo 
que  lhe  sobejava  de  si,  do  trato  de  Deos,  e  da  Virgem,  empregava  em  pro- 
veito dos  bárbaros.  Todos  os  dias  tomava  horas  assinaladas  pêra  fallar 
com  elles  do  bem  de  suas  ahnas,  e  declarar-lhes  a  doutrina  chrislãa :  di- 
zia-lhes  que  havia  outra  vida,  premio  pêra  bons,  e  castigo  pêra  máos,  es- 
pecialmente pêra  os  homicidas,  e  tragadores  de  carne  humana:  e  houve 
muitos  que  se  abstiverão  por  tempo  d'estes  peccados  (e  não  podia  chegar 
a  mais  a  eíTicacia  da  doutrina.)  Podéra  bautizar  quasi  todas  aquelias  aldeãs; 
mas  attendendo  ao  perigo  de  retrocederem  ficando  sós,  o  não  fazia :  bau- 
tizava  somente  os  que  estavão  in  exíremis.  Entre  estes  he  notável  o  caso 
seguinte.  Parira  huma  índia,  e  vinha  expirando  a  creatura,  tratavão  sepul- 
tal-a:  a  este  tempo  chegou  Joseph,  pedio-a,  bautizou-a,  e  cobrou  logo  vi- 
da: chamou-lhe  Maria,  entregou-a  a  seu  pai,  que  era  hum  filho  de  Pindo- 
buçú,  por  nome  Quiraaobuçú.  Foi  caso  este  maravilhoso  de  que  ficarão 
pasmados  os  índios. 

27  Mais  espantoso  foi  outro  caso,  e  mais  celebrado  dos  índios.  Tinha 
certa  vellia  enterrado  vivo  hum  menino  filho  de  sua  nora  a  que  chamam  .Mara- 
bá (quer  dizer  de  mistura)  aborrecivel  entre  esta  gente;  e  era  que  o  pario  a  índia 
em  poder  do  marido,  tendo  sido  gerado  por  outro,  com  quem  fora  casada 
primeiro:  e  não  era  parto  adulterino,  como  cuidou  o  Padre  Paternina  aci- 
ma citado.  Foi  Joseph  avisado  do  caso  depois  de  passada  mais  de  meia  ho- 
ra; e  indo  ao  lugar,  desenterrou-o,  bautizou-o  vivo,  e  são,  e  entregou-o  a 
mulher  segura  pêra  que  o  criasse.  Succedeo  o  caso  a  28  de  Junho  do  pre- 
sente anno;  e  foi  semeiliante  a  outro  que  lhe  aconteceo  em  S.  Vicente:  foi 
assi.  Tivera  noticia  que  huma  gentia  havia  parido  hum  filho,  e  vendo  quo 
era  mostruoso  em  algumas  partes  do  corpo,  envergonhada  contra  toda  a 
piedadêTle  mãi,  o  escondera,  e  enterrara  vivo:  acudio  á  pressa,  desenter- 
rou-o ainda  com  vida,  applicou-lhe  a  agoa  do  bautismo,  e  logo  entre  suas 
mesmas  mãos  morreo,  pêra  viver  eternamente.  Vião  os  bárbaros  estas  ma- 
ravilhas, e  tinhão  a  Jooseph  por  mais  que  homem. 

28  Porém  não  desiste  o  inferno.  N"este  meio  tempo,  primeiro  de  Julho 
do  corrente  anno,  chegarão  do  Rio  de  Janeiro  oito  canoas  guerreiras  de  Ta- 
moyos,  com  intenção  ainda  de  matarem  o  Legado  das  pazes,  de  cujo  trato 
sempre  se  aggravárão :  liorém  d(;pois  de  sallai-em  em  terra,  chegando  a 
fallar  com  Joseph,  o  ouvindo  suas  palavras,  ficarão  outros,  e  djsserão,  que 
tinhão  razão  os  que  dizião  que  este  era  o  grão  Payé  guaçú  dos  Christãos, 
que  amarra\a  as  mãos  aos  homens. 


20  LIVRO  111  DA  CIIRONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

29  Aos  seis  de  Julho  chegarão  as  canoas  que  tinhão  ido  a  S.  Vicente 
com  o  Padre  Nóbrega;  e  com  a  vinda  d'estas  intentou  o  inimigo,  pai  das 
discórdias,  armar  hum  enredo  terrivel.  Chegarão  dizendo  que  vinhão  fu- 
gindo porque  lhes  dissera  hum  escravo,  que  os  Portugueses  os  querião 
matar;  e  que  com  effeito  hum  Domingos  de  Braga  matara  hum  índio  da 
companhia  de  Aimbiré  (aquelle  Principal,  que  tinha  ido  sobre  a  proposta 
da  primeira  junta)  e  fizera  que  hum  seu  irmão  lhe  quebrasse  a  cabeça. 
Com  estas  mentiras  ficarão  triumphantes  todos  os  moradores  do  Rio,  que  ti- 
nhão vindo  com  má  intenção  contra  Joseph;  e  dando-lhe  credito,  se  levantarão 
logo,  e  na  seguinte  madrugada  fugirão,  pretendendo  levar  comsigo  a  Jo- 
seph, e  certa  gente  que  tinha  vindo  de  S.  Vicente.  Porém  Pindobuçú,  e 
outros  Principaes  de  Iperoyg,  os  defenderão,  reprehendendo  aquelles  de 
maneira,  que  hum  d'elles  corrido  cahio  na  conta  de  feito  tão  feio  por  dit- 
to  de  hum  só  escravo,  e  se  ficou  dizendo  quo  queria  antes  morrer  com  os 
Portugueses.  Seguirão  os  outros  seu  caminho ;  e  hum  por  nome  Caâoquira 
o  mais  poderoso  entre  todos,  teve  ao  menos  poder  pêra  entrar  de  passa- 
gem na  casa  de  Joseph,  e  assombral-o,  dizendo-lhe  a  modo  de  ameaça  : 
«Ex-aqui  que  imos  fugindo,  porque  os  teus  nos  querião  matar :  a  isto  nos 
mandastes  a  S.  Vicente,  pêra  que  nos  consumissem  a  todos?»  Mas  disse 
e  foi-se.  Ficou  Joseph  turbado  com  taes  novas,  porém  logo  soube  o  fun- 
damento d'ellas. 

30  Ainda  bem  estes  não  tinhão  ido,  quando  chegarão  outras  dez  ca- 
noas do  Rio,  cuja  gente  logo  veio  buscar  a  Joseph  com  grandes  estrondos, 
e  carrancas:  mas  chegando  a  sua  presença,  nenhum  se  atreveo  a  lançar-lhe 
a  mão.  Fizerão  comtudo  o  pêra  que  só  tinhão  licença  do  Ceo,  e  da  Virgem; 
e  por  cinco  dias  continues  o  assombrarão,  e  roubarão  a  pobrez^que  ti- 
nha, intentando  leval-o  a  suas  terras,  ou  ao  menos  hum  Portugxiez,  que 
alli  estava  á  sua  sombra,  chamado  António  Dias,  que  tinha  ido  a  resgatar 
sua  mulher,  e  filhos  cattivos  cm  as  guerras  passadas.  Resistirão  porém  os 
da  aldeã  valerosamente ;  até  que  o  Principal  Pindobuçú  (que  só  por  res- 
peito de  segurar  as  pazes,  e  serem  elles  hospedes,  tivera  paciência)  enfa- 
dado já,  se  foi  a  elles  com  a  espada  de  pão  na  mão,  a  vozes  altas  dizendo 
assi:  «Não  querem  estes  vagabundos  senão  quebrar  cabeças  de  bran- 
cos? pois  eu  o  não  hei  de  consentir,  que  tenho  empenhado  rainha  palavra, 
e  hei  de  fazer  pazes  com  elles:  e  saibão  que  este  Payé  que  aqui  tenho  he 
o  grande  Payé  dos  Christãos,  conselheiro  de  Deos;  e  se  alguém  o  oíTender, 
ha  de  ver  a  inoríe  sobre  si,  e  os  seus:  e  saibão  também  que  aquelle  Por- 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (aNNO   DE   lo63)  21 

tiiguez  Aiilonio  Dias  faz  as  casas  dos  Padres,  e  do  Deos  dos  Chrislãos  (is- 
to dizia  porque  era  pedreiro)  e  se  alguém  lhe  empecer,  que  ha  Deos  de 
tornar-se  contra  elle,  como  se  oíTendera  aos  Padres.»  Isto  dizia  com  tal 
braveza,  bater  de  pé,  e  palmas  (sinal  de  desafio)  que  acudirão  os  seus  ar- 
mados, e  houverão  de  vir  ás  frechadas :  porém  os  contrários  callárão.  A 
grande  fidelidade  d"este  Principal,  mostrava  bem  o  que  depois  havia  de 
vir  a  ser.  D'aqui  foi  ter  com  o  irmão,  e.  lhe  disse:  «Filho  Joseph,  não  te- 
nhas medo;  porque  bem  vês  o  como  eu  torno  por  ti :  por  isso  falia  tam- 
bém com  Deos,  que  me  dê  larga  vida  (não  sabia  ainda  então  mais  pedir;) 
não  hajas  medo  que  te  deixe  matar,  ainda  que  os  teus  matem  os  meus  em 
S.  Vicente;  porque  sei  que  tratas  verdade.  Será  porém  mal,  se  as  cousas 
que  por  aqui  se  dizem  forem  assi.»  Agradeceo-lhe  Joseph  o  officio  de  pai, 
prometeo-lhe  sua  intercessão  diante  de  Deos;  e  com  animo  assocegado  lhe 
assegurou,  que  cedo  havia  de  ver  que  era  falso  tudo  o  que  se  dizia. 

31  Não  tardou  Deos  em  acudir  pelos  seus;  porque  quando  mais  esta- 
vão  embravecidos  aqiielles  bárbaros,  chegou  á  praia  o  próprio  índio  da 
companhia  d.3  Aimbiré,  de  quem  dizião  que  fora  morto  por  Domingos  de 
Braga,  e  declarou  o  fundamento  do  enredo  todo:  e  foi,  que  este  índio,  por 
hum  medo  mal  fundado  que  teve,  se  meteo  pelos  mattos,  c  a  cabo  de  hum 
mez  que  por  eiles  andou,  chegava  então  vivo,  e  sáo,  como  todos  o  vião ; 
mostrando  ser  mentira  tudo  o  que  se  dissera.  E  após  este  vierão  logo  ap- 
parecendo  outros  índios,  dos  qnaes  se  tinhão  semelhantes  desconfianças ; 
e  contarão  eates,  como  o  padre  Nóbrega  os  levara  a  ílanhaé,  e  fizera  pa- 
zes entre  elles  e  aquelles  moradores,  abraçando-se  de  parte  a  parte  na 
igreja  pêra  mais  segurança:  c  depois  os  ajuntara  em  Piratininga,  e  fizera 
o  mesmo:  e  logo  assentarão  as  mesmas  pazes  com  os  do  rio  Parahíba,  e  os 
Tupis  discípulos  dos  Padres,  de  Piratininga,  e  Mayranhaya,  também  na 
Igreja;  e  conversavão,  e  tratavão  huns  com  os  outros  como  amigos  e  ir- 
mãos. Aqui  acabarão  de  ficar  envergonhados  os  que  tão  facilmente  crerão 
vencido  o  inimigo,  íjue  os  perturbara;  e  todos  se  mostrarão  satisfeitos  das 
pazes,  e  Joseph  livTe  de  seus  assombros  e  tido  cada  vez  em  mór  conta  de 
Payé  guaçú  dos  Chiistãos. 

32  Dada  por  boa  a  confirmação  das  pazes,  fez  o  Irmão  Joseph  com- 
rauas  e  particulares  demonstrações  de  acções  de  graças  a  Deos  nosso  Se- 
nhor, que  por  espaço  de  cinco  mezes  de  seu  desterro  tirara  o  flm  deseja- 
do de  tantos.  Sendo  tempo  de  despedir-sc,  segundo  a  ordem  que  tinha  do 
Padre  Nóbrega,  achava  ainda  diíliculdades;  porque  a  aíTeição  rpie  lhe  tinhão 


22  LIVUO  111  DA  CHRONICA    DA  COMPANHIA  DE  JKSU 

e  elle  tinha  áquelles  bárbaros,  fazia  presa  na  vontade.  Elles  clioravão  a  fal- 
ta de  Joseph  seu  amigo,  o  Payé  maior,  que  adivinliava  seus  successos  fu- 
turos, que  lhes  ensinava  a  boa  doutrina,  que  os  curava,  sangrava,  c  con- 
solava em  suas  doenças :  e  Joseph  chorava  mais  sentidamente,  ver  ficar 
tantas  almas  desamparadas  do  remédio  de  sua  salvação,  tão  dóceis,  e  ins- 
truídas já;  e  o  que  mais  he,  tão  desejosas  do  sagrado  bautismo.  Cortava- 
Ihe  este  sentimento  a  alma;  e  era  tão  forçosa  n'elle  a  causa  de  partir-se 
como  a  de  ficar-se.  Considerava  também  por  outra  via  aquelle  lugar,  que 
fora  pêra  elle  outro  como  desterro  de  Patmos  pêra  o  mimoso  João  Evan- 
gelista; porque  alli  gozara  entre  o  rigor  do  desterro,  e  assombros  da  mor- 
te, tão  mimosas  illustrações,  e  favores  de  Deos,  e  de  sua  Mãi  santíssima, 
que  podia  chamar-lhe  com  razão  lugar  de  suas  consolações.  Tudo  isto  vem 
a  dizer  humas  suas  palavras,  que  deixou  escrittas  sobre  este  desterro:  são 
as  seguintes,  fallando  na  terceira  pessoa.  «Assi  esteve  o  Irmão  (a  saber 
Joseph)  até  meado  Setembro  entre  os  Tamoyos,  entregue  á  providencia  di- 
vina, e  muito  consolado,  passando  muitos  tragos  da  morte,  que  causavão 
os  que  vinhão  do  Rio,  e  outros  combates  espirituaes,  de  que  nosso  Senhor 
o  livrou,  etc.» 

33  Houve  por  fim  de  partir-se  este  provado  Abrahão  do  lugar  de  Vr 
Caldeorum;  este  Moysés  mimoso  do  cattiveiro  do  Egypto;  e  o  perseguido 
Joseph  de  seu  desterro,  aos  14  de  Setembro  dé  1563  em  huma  pobre  canoa  de 
casca  de  hum  madeiro,  barca  fraca  pcra  tão  fortes  mares:  porém  Joseph 
tomara  bons  pilotos,  a  Christo,  e  a  Virgem  Senhora  nossa,  mãi  sua,  em 
primeiro  lugar.  Além  d'estes  levavão  á  sua  conta  Cunhambéba,  grande  ami- 
go seu,  o  que  trouxera  de  S.  Vicente  as  ultimas  novas  das  pazes.  A  este 
se  entregou  Joseph  como  a  Superior  na  viagem,  e  por  elle  se  deixou  go- 
vernar nos  perigos  grandes  que  teve.  Ainda  aqui  não  cessão  embustes  so- 
bre as  pazes:  chegando  a  descansar  á  ilha  dos  Porcos,  acharão  alli  huma 
canoa  de  índios  do  Rio  (causa  de  todas  as  contendas:)  estes  pretenderão 
tornar  arruinar  contra  Joseph  o  coração  de  Cunhambéba.  «Tu  donde  vás? 
(lhe  dizem)  Sabe  que  nós  outros  vimos  fugindo,  por  que  os  moradores  de 
Piratininga  quebrarão  as  pazes,  matarão  a  hum  nosso,  e  os  Portugueses 
vierão  após  nós  até  a  Britioga,  c  pretendèrãe  matar-nos  ás  arcabuzadas.» 
Bastantes  causas  erão  estas  pêra  mudar  qualquer  coração,  quanto  mais  o 
de  índios:  porém  Cunhambéba  respondeo-lhes  assi:  «Ide  embora,  que  eu 
bèm  sei  que  os  christãos  são  bons,  e  tratão  verdade:  se  isso  foi  assi,  vós 
outros  lhe  daríeis  a  causa. »  E  deo  ao  remo  com  a  mesma  firmeza  que  dantes. 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (aNXO  DK  1563)  23 

3i  Passada  esta,  entra  outra  tormenta,  conjurada  parece  pelo  mesmo  in- 
ferno, por  ver  se  poderia  acabar  no  mar,  o  que  não  poderá  na  terra:  brama 
o  vento,  descompõe-se  o  mar,  e  as  ondas  açoutão  a  barca,  e  remeiros, 
chegão  a  ponto  de  perder-se.  Que  faria  Imma  barquinha,  casca  de  liuma  ar- 
vore, ainda  não  bem  seca?  Começa  a  gemer  com  o  peso,  a  alagar-se  com 
a  agoa,  dando-se  por  perdidos  os  índios:  porém  não  Joseph,  que  tíntia  orá- 
culo da  Virgem  Mai  sua,  que  não  havia  de  morrer  antes  de  perfeiçoar  sua 
Vida.  Animava  os  índios  que  tivessem  confiança  em  Deos,  lançassem  fora  a 
agoa,  não  desamparassem  o  remo,  porque  sem  duvida  havião  de  ir  a 
salvamento.  Tudo  virão  os  índios  (não  sem  admiração  da  confiança  de  Jo- 
seph:) applacou  a  tormenta,  chegarão  ao  porto,  saltarão  em  terra,  e  forão  * 
recebidos  com  applausos  aos  21  de  Setembro:  foi  levado  Joseph  como  em 
triumpho  por  homem  do  Ceo,  vencedor  de  tantas  difíiculdades,  que  alcan- 
çara victorias.  Aqui  se  informou  Cunliambéba,  e  achou  ser  embuste  o  que  dis- 
serão  os  da  canoa  do  Rio  de  Janeiro,  e  ficou  mais  íirme  na  verdade  dos  Pa- 
dres. 

35  Restituido  Joseph  a  sua  casa,  e  a  seus  amados  Irmãos,  recreado,  e 
agasalhado  nos  próprios  corações,  especialmente  do  Padre  Nóbrega,  o  supe- 
rior, e  companheiro  de  seus  trabalhos,  que  não  se  fartava  de  abraçal-o,  e 
dar-lhe  os  parabéns  da  chegada,  e  do  successo  de  seu  desterro:  o  primei- 
ro tempo  que  teve  acabou  de  dar  cumprimento  á  palavra  que  dera  á  Virgem 
Senhora  nossa,  patrona  sua,  de  perfeiçoar  sua  Vida.  Começou  a  desenrolar 
d^aquelle  thesouro  felicíssimo  de  sua  memoria  por  ordem  de  livros,  cantos  e 
capítulos,  toda  aquella  comprida  serie,  não  menos  que  de  quatro  mil  cento  c 
setenta  e  dous  versos,  que  fazem  dous  mil  e  oitenta  e  seis  disticos:  prodigio- 
so parto  de  memoria!  Acabado  de  limar,  o  escrever  o  poema,  offerecco-o  á 
Virgem  sua  Mãi,  com  a  dedicatória  seguinte: 

Én  lihi  qiKv  vovi,  Mater  sanclissima,  quondam 
Carmina,  cúm  sobvo  cingcrer  hoste  la  tus. 
Dum  mea  Tamuias' prwsentia  miti(/at  hostes. 
Tracto  que  tranquiUum  pnck  incrmis  opus: 
Jlic  tua  materno  me  gral  ia  fonit  amore, 
Te  corpus  tulum,  mcnsque  regente  fuit, 
Sa^pius  optavi.  Domino  inspirante,  dulores, 


25  LIVRO  III  DA  CimONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

Duraque  cnm  s<lvo  funere  vinda  paíi. 

Al  sunt  passa  tamen  meritam  niea  vota  repulsam, 

Scilicet  líeroas  gloria  tanla  decct. 

36  Por  osla  dedicatória  poderá  ver  o  que  entender  da  matéria,  que  lie 
digno  de  comparar-se  nosso  poeta  com  qualquer  dos  melhores  da  antiguidade. 
O  sentido  da  dedicatória  he  este.  «Eis  aqui,  Mãi  Santíssima,  os  versos  que  of- 
fereci  a  vossos  louvores,  quando  me  vi  cercado  de  inimigos  feros,  e  quando 
socegava  com  minha  presença  os  Tamoyos,  e  desarmado  tratava  de  pazes  en- 
tre armados  bárbaros.  Aqui  teve  vossa  benevolência  com  amor  de  mãi  cuida- 

'  do  de  mim,  em  sombra  de  vosso  amparo  vivi  seguro  no  corpo,  e  alma.  IMuitas 
vezes  desejei,  com  divinas  inspirações,  padecer  dores,  prisões,  e  morte;  po- 
rém não  forão  admitiidos  meus  desejos,  porque  a  gloria  tão  sublime  chegão 
só  os  grandes  Heróas.»  Pela  facilidade,  doçura,  e  devação  cordial  d'esta  dedi- 
citoria  se  poderá  julgar  o  espirito  de  todos  os  mais  versos:  os  quaes  não  po- 
derei deixar  de  tresladar  n'este  volume  sem  oíTensa  de  tão  grande  author,  e 
de  tão  pia  obra;  e  ainda  do  gosto  dos  que  bem  sabem  de  poesia.  Porém 
como  não  podem  verter-se  tantos  versos  em  poríuguez,  pêra  os  cpie  não 
entendem  latim;  contentem-se  estes  com  aquelle  breve  exemplo  da  dedica- 
tória: e  os  latinos  acharão  por  extenso  todo  o  poema  fielmente  escritto  no 
cabo  d'este  tomo,  onde  poderão  vel-o:  porque  assi  nem  perdem  os  que 
sabem  este  thesouro,  nem  ficão  os  que  não  sabem  atalhados  com  elle  sem 
proveito,  no  meio  da  lição.  E  acabão-se  aqui  os  reféns  de  Joseph. 

37  No  Espirito  santo  trabalhavão  os  Padres  em  aquietar  as  dissensões 
prejudiciaes  entre  Portugueses,  e  índios,  e  especialmente  cm  reduzir  ás  al- 
deãs os  que  d'ellas  tinhão  fugido  com  pretexto  de  aggravos;  e  já  com  o  di- 
vino favor  se  hião  amansando  aquelies  corações  magoados:  muitos  vencião 
com  boas  razões,  e  muitos  com  ameaças  dos  castigos  e  penas  da  outra  vi- 
da; e  tornavão  assentar  suas  aldeãs  com  grande  serviço  de  Deos,  edobem 
commimi;  porque  além  do  que  importava  a  suas  almas,  fazião  estes  corpo 
com  os  nossos,  e  erão  ajuda  de  nossa  defensão,  e  temor  dos  que  ainda  fi- 
cavão  inimigos.  Entro  estes  se  acabarão  de  recolher  os  que  andavão  espa- 
lhados da  gente  do  grande  Gato:  e  por  meio  de  todos  os  reduzidos,  se  es- 
perava na  Capitania  grande  melhoria  de  paz.  N'estes  sertões  erão  grandes 
os  traballios  dos  nossos,  quando  andavão,  a  modo  de  pastores,  correndo  as 
maítas  em  busca  de  ovelhas  fugidas;  porque  não  sò  tinhão  contra  si  a  re- 
sistência dos  mesmos  que  buscavão,  mas  também  os  perigos  d'aquelles  a 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (aNNO  DE   1304)  25 

quem  fugião,  por  estarem  cm  armas;  e  era  força  que  quando  os  encontra- 
vão,  os  tratassem,  ao  menos  com  disfavores,  com  assombros,  e  terrores  da 
morte.  Vio-se  aqui  liuma  protecção  especial  do  Ceo;  porque  encontrando-se 
muitas  vezes  por  essas  mattas  os  Padres  com  estes  inimigos,  e  andando 
assanhados  como  feras;  nunca  ousarão,  não  só  matal-os,  mas  nem  ainda  a 
pôr  mãos  n"elles,  pelo  respeito  grande  que  llies  tinhão,  de  homens  que  fal- 
lavão  com  Deos,  e  fazião  vida  inculpável;  antes  dizião,  que  a  ninguém  ren- 
derião  seus  arcos,  senão  a  elles:  e  davão  já  esperanças  d"isso;  porém  até 
agora  ficão  em  sua  pertinácia,  e  com  elles  ainda  alguns  dos  fugidos,  que 
pertencião  ás  aldeãs,  a  que  não  foi  possível  chegar. 

38  Cousa  commum  he  andarem  os  males  acompanhados,  equeahuma 
peste  se  siga  logo  peste.  Experimentarão  este  teor  da  natureza  (bem  á  sua 
custa)  os  moradores  da  Bahia:  o  anno  passado  de  luG3  passou  gemendo 
toda  esta  Capitania  com  huma  quasi  peste,  ou  corrupção  pestilente,  que  ti- 
rou a  vida  a  três  partes  dos  índios  (estrago  miserável!)  Entra  o  anno  de 
1564,  e  vemos  que  entra  com  elle  huma  terrível  fome,  com  nova  mortan- 
dade, e  não  pequena  angustia  dos  Padres  que  das  aldeãs  tinhão  cuidado. 
Foi  a  causa  da  fome  a  mesma  que  a  da  doença,  a  intempérie  do  ar,  apph- 
cada  primeiros  aos  corpos,'  agora  aos  frutos  :  era  lastima  grande ;  porque 
nascendo  estes  fermosos,  alegrando  a  vista,  e  incitando  a  esperança,  mor- 
rião  no  melhor  mal  logrados;  murchando  primeiro  vencidos  da  injuria  dos 
tempos,  até  caliir  em  terra,  seguindo  os  passos  de  homens  apestados.  Erão 
em  grande  quantidade  os  que  acabavão  cada  dia  por  essas  aldeãs  a  mãos 
d'esta  fome  tyranna:  e  era  necessário  aos  Padres  trocar  o  género  de  traba- 
lho; e  o  que  dantes  applicavão  á  conversão  das  almas,  applical-o  agora  a 
remédio  dos  corpos:  buscavão-lhes  o  sustento  da  vida;  porém  o  mais  que 
podião  ajuntar,  vinha  ser  nada  entre  tantos.  Curavão-nos,  animavão-nos, 
preparavão-nos,  sacramentavão-nos,  sepultavão-nos;  e  n'estas  obras  andavão 
em  perenne  lida,  correndo  as  aldeãs  adjutorcs  volantes,  porque  os  residen- 
tes não  basta  vão. 

39  N'esta  fome  tão  deshumana,  não  acabavão  os  males  com  os  que  mor- 
rião:  porque  os  vivos  das  aldeãs  vizinhas  á  cidade,  levados  do  aperto,  che- 
gavão  a  vender-se  a  si  mesmos  por  cousas  de  comer.  Houve  tal  que  entre- 
gou a  sua  liberdade  por  huma  só  cuia  de  farinha  pêra  livrar  a  vida;  outros 
se  alugavão  pêra  servir  toda  a  vida  ou  parle  d'eila:  outros  vend ião  aos  pró- 
prios íilhos  que  gerarão;  outros  aos  que  não  gerarão,  fingindo  os  seus:  a 
ludo  isto  persuade  a  dura  fome,  o  necessidade  (que  por  isso  lhe  chamou  o 


26  LIVRO  III  DA  CIIROXICA  DA  C0:MPANIIIA  DE  JESU 

poeta,  Malé  suada  fames^  et  íurpis  erjestas.)  E  o  que  lie  mais,  qnc  semen- 
Irevir  contrato  algum,  com  títulos  somente  suppostos,  erão  muitos  senlio- 
rcados  dos  Portugueses,  ficando  destruídas  aldeãs  numerosas,  que  com  suo- 
res de  tantos  annos  tinlião  recolhido  os  Padres,  e  reduzido  ao  grémio  da 
igreja  das  mattas  luravas  de  sua  gentilidade.  Trcs  aldeãs  das  mais  remotas, 
e  das  mais  populosas,  a  de  Nossa  Senhora  da  Assumpção  de  Tapépítanga, 
a  de  S.  Miguel  de  Tapóragoá,  e  a  de  Santa  Cruz  de  Jagoaripe,  pêra  onde 
se  liavia  mudado  a  de  Itaparica  por  causa  da  fome,  e  por  lhe  meterem  em 
cabeça  seus  feiticeiros,  que  procedia  esta  em  castigo  de  se  haverem  sujei- 
tado a  Christãos,  forão  desamparadas,  espalhando-se  os  moradores  d'ellas 
por  suas  antiguas  mattas  buscando  comedia. 

40  Todos  estes  desarranjos  notáveis  cortavão  o  coração  aos  Padres,  es- 
pecialmente ao  Padre  Gram,  vendo  se  hião  mallogrando  frutos  tão  cresci- 
dos, no  mesmo  tempo,  em  que  houverão  de  madurar:  deixando  frustrados 
os  suores  de  tantos  e  tão  incansáveis  trabalhadores,  que  com  tanto  affe- 
cto  cavarão,  plantarão,  e  podarão.  Não  perderão  comtudo  as  esperanças  os 
obreiros  do  Senhor:  tornão  a  penetrar  as  mattas,  vão-se  em  busca  dos  que 
fugião,  e  depois  de  feitos  largo  tempo  habitadores  das  brenhas,  converte- 
rão seus  feiticeiros,  e  convertidos  estes,  tornarão  a  reduzir  os  inconstantes 
fugitivos.  Os  Padres  João  Pereira,  Adão  Gonçalves,  Jorge  Rodrigues,  e  ou- 
tro Irmão,  estiverão  a  ponto  de  serem  mortos  dos  que  fugirão  das  aldeãs 
de  Tapéragoá,  e  Tapépitanga,  onde  residião,  por  querer  impedil-os,  e  es- 
caparão por  successo  tido  por  milagroso.  Com  os  presentes  infortúnios,  e 
com  os  do  anno  passado,  por  mais  diligencia  que  poserão  os  Padres,  fica- 
rão só  cinco  aldeãs,  que  depois  se  reduzirão  a  quatro,  tendo  chegado  a  ser 
tantas,  e  tão  florentes,  como  temos  visto  os  annos  passados.  Outro  traba- 
lho resultou  da  fugida;  porque  foi  descomposta,  e  cada  qual  tirava  por  on- 
de bem  lhe  parecia,  e  n'ella  morrerão  alguns  índios:  voltarão  muitos  sem 
mulheres,  e  querião  casar;  mas  como  se  não  soubesse  se  erão  mortas  estas, 
ou  se  forão  parar  a  outra  parte,  era  força  esperar  talvez  longo  tempo  por 
averiguar  a  verdade,  não  sem  grande  moléstia  dos  índios,  e  dos  Padres. 

41  Houve  grandes  embaraços,  e  duviílas  de  consciência,  nos  que  com- 
prarão os  índios  na  forma  acima  referida.  Recorreo-se  a  Lisboa  ao  Tribu- 
nal da  Mesa  da  Consciência,  e  d"elle  veio  a  resolução  seguinte.  «Que  o  pai 
podia  em  direito  vender  ao  filho  em  caso  de  apertada  necessidade:  e  que  qual- 
quer se  podia  vender  a  si  mesmo  pêra  gosar  do  preço. »  Havida  esta  reso- 
lução, entrarão  tm  consulta  na  cidade  da  Bahia  o  Bispo  D.  Pedro  Leitão  com 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (aNNO  DE  1564)  27 

O  Governador  Mem  de  Sá,  o  Ouvidor  geral  Braz  Fragoso,  e  o  Padre  Pro- 
vincial Luís  da  Gram:  e  parecco  bem  que  se  publicasse  ao  povo  a  resolu- 
ção da  Mesa  da  Consciência,  porque  com  ella  ficassem  quietos  os  que  com- 
prarão na  forma  conteúda,  e  os  que  forão  comprados  fora  d'ella  se  tives- 
sem por  livres.  Porém  como  os  moradores  da  Bahia,  e  de  toda  a  costa, 
estavão  feitos  senhores  de  tão  grande  quantidade  de  índios  vendidos  fora 
do  direito  por  tios,  e  irmãos,  e  parentes,  que  não  tinhão  dominio  sobre 
elles;  determinou-se  que  os  taes  erão  livres:  vistas  com  tudo  as  grandes 
difficuldades  que  se  allegavão  de  se  largarem  todos  estes  índios  do  serviço 
dos  Portugueses;  e  porque  podião  ir  outra  vez  meter-se  entre  os  gentios, 
com  dispêndio  de  suas  almas,  e  não  sem  perigo  da  republica,  foi  permit- 
tido  que  ficassem  em  casa  dos  que  os  tinhão,  com  os  condições  seguintes.  Que 
os  ditos  índios  assi  mal  havidos  fossem  avisados  de  sua  liberdade;  mas  que  co- 
mo livres  servissem  a  aquelles  que  os  resgatarão  em  suas  vidas,  por  evitar  os 
inconvenientes  que  do  contrario  se  podião  seguir:  e  que  fugindo  os  taes  índios, 
os  podessem  os  amos  mandar  buscar,  e  castigar:  e  com  condição  que  os  amos, 
em  reconhecimento  de  sua  liberdade,  lhes  pagassem  em  cada  hum  anno 
por  seu  serviço  aquillo  que  justamente  lhes  fosse  taxado:  com  declaração, 
que  continuando  elles  a  fugir  pcra  o  gentio,  sendo  depois  da  primeira  vez, 
perdessem  a  soldada  de  hum  anno,  em  recompensa  do  que  os  amos  per- 
derão em  buscal-os.  E  outro  si,  que  os  possuidores  dos  ditos  índios,  os 
não  poderião  vender,  nem  dar,  nem  trocar,  nem  levar  fora  do  Brasil:  e  o 
que  os  não  quizesse  possuir  com  as  condiçijes  apontadas,  os  podesse  tor- 
nar a  dar  aos  que  lhos  venderão,  sem  titulo  de  dominio  que  tivesse  sobre 
elles,  e  estes  lhe  tornassem  o  preço. 

42  Porém  nem  estas  condições  se  guardarão,  nem  a  resolução  sérvio 
de  mais  que  de  cattívarem  mais  índios  com  capa  de  vendidos  por  si  mes- 
mos, ou  por  seus  pais;  porque  cnganavão  os  pobres,  e  quando  hião  ao  re- 
gistar, fazião  que  disscssm  o  que  querião:  sendo  que  (tirando  poucos  na 
força  da  fome  sobredita)  raramente  se  achará  que  índio  se  vendesse  a  si, 
ou  a  filho  legitimo:  nem  suas  necessidades  são  taes,  que  se  não  possão  re- 
mediar sem  semelhanlo  rigor  de  vendas,  contrarias  á  liberdade  natural,  tão 
estimada  d'elíes,  c  de  lodos  os  homens.  Nem  também  a  condição  permit- 
tida  do  serviço  dos  Índios  por  toda  a  vida;  posto  que  por  seu  estipendio, 
deixava  de  ser  violenta,  e  quasi  modo  de  cattiveiro,  a  não  intervirem  gran- 
des razões  verdadeiras,  que  a  cohoncstassem. 

43  No  mesmo  tempo  se  fez  consulta  sobre  outra  praga  mais  universal. 


28  LIVRO  III  DA  CIIROMC\  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

que  despovoava  as  aldeãs:  e  era  esta  a  capa  de  huma  sentença,  que  fora 
promulgada  conti'a  os  índios  Cactés,  dando  a  todos  por  escravos,  o  toda 
a  sua  descendência  (como  já  n'outra  parte  dissemos)  pela  morte  quederão 
ao  Bispo  D.  Pedro  Fernandes  Sardinha.  E  como  nas  aldeãs  da  Bahia  havia 
grande  quantidade  de  parentes  dos  Caetés,  c  não  só  estes  se  havião 
por  cattivos,  mas  á  volta  d'elles  outros  que  o  não  erão,  com  qualquer 
sombra  de  o  ser;  despovoavão-se  as  aldeãs  de  todo.  A  este  grande  mal 
tendo  respeito  o  mesmo  Governador,  e  o  Ouvidor  geral,  moderarão  a  sen- 
tença dada,  e  exceptuarão  os  que  se  reduzissem  ás  igrejas  onde  havia  ca- 
thecismo  da  Fé:  porque  estes  não  poderião  ser  escravos.  Porém  a  limitação 
não  foi  de  fruto;  porque  elles,  ou  se  não  acolhião  ás  Igrejas,  ou  se  o  fazião 
não  estavão  ahi  seguros  dos  Portugueses,  e  como  desesperados  fugião,  e 
morrião  á  fome,  ou  se  meíião  com  seus  próprios  inimigos,  e  morrião  a 
mãos  violentas:  até  que  cahindo  em  tantos  desarranjos  os  Ministros  Reaes, 
revogarão  de  todo  a  sentença;  mas  foi  a  tempo  que  poucos  d'elles  erão  vi- 
vos. 

44  A  estes  excessos,  e  a  outros  semelhantes  acudirão  os  Reis,  como 
verdadeiros  Calhoiicos;  o  por  descargo  de  consciência,  mandarão  que  não 
fossem  cattivos,  senão  aquelles  que  fossem  tomados  em  guerra  justa  (apon- 
tando juntamente  as  condições  da  justiça  da  guerra)  e  aquelles  que  fossem 
resgatados  das  cordas:  com  declaração,  que  tanto  que  estos  servissem  tem- 
po bastante  pêra  satisfação  do  preço  que  por  elles  se  deo,  ficassem  livres. 
Porém  por  que  ainda  assi  forão"  informados  os  Reis  de  muitos  enganos  que 
n'esta  matéria  se  comraetião,  El-Rei  D.  Phiiippe  Segundo  em  11  de  Novembro 
de  1595,  revogando  todas  as  leis  de  seus  antecessores,  mandou  que  so- 
mente tossem  cattivos  os  que  fossem  tomados  em  guerra  justa,  feita  por 
Real  Provisão  assinada  por  elle,  e  de  outra  maneira  não.  Em  30  de  Julho 
do  anno  de  1609  passou  Sua  Magestade  outra  lei,  em  que  revoga  todas 
as  passadas,  c  declara  em  que  revoga  todas  as  passadas,  e  declara  todos 
os  índios  do  Brasil,  assi  bauíizados,  como  por  bautizar,  por  livres,  con- 
forme a  direito,  e  nascimento  natural;  e  manda  que  por  taes  sejão  tidos, 
e  havidos;  e  acrescenta  assi:  «E  por  quanto  sou  informado,  que  em  tempo 
de  alguns  Governadores  se  cattivavão  muitos  gentios  contra  a  forma  da  lei 
d'El-Rei  meu  senhor,  e  pai;  hei  por  bem,  e  mando,  que  todos  sejão  pos- 
tos em  sua  liberdade,  e  se  tirem  logo  do  poder  de  quaesquer  pessoas  que 
os  tiverem.,  sem  embargo  que  digão  que  os  comprarão,  e  que  por  cattivos 
lhes  forão  julgados  por  sentença:  as  quaes  compras,  c  sentenças  declaro 


DO  ESTADO  DO  IJHASIL  (aNNO  DE   1564)  29 

por  nullas.  por  serem  contra  direito.»  Á  qual  lei,  supposlo  que  se  veio  com 
embargos  na  cidade  da  Bahia  á  execução,  e  se  replicou  a  Sua  Magestade, 
não  obstantes  os  embargos,  e  replica,  tornou  a  passar  outra  lei  em  10  de 
Setembro  de  16! O,  em  que  confirma  a  passada.  E  ultimamente  esta  mes- 
ma foi  confirmada  por  El-Rei  B.  Philippe  Quarto,  passada  em  Lisboa  em  31 
de  Março  de  1640,  e  registada  na  Bahia  no  mesmo  anno;  em  que  manda,  que 
nenhum  índio  de  qualquer  qualidade,  ainda  que  seja  infiel,  possa  ser  cat- 
itvo,  nem  posto  em  servidão,  por  nenhum  modo,  causa,  ou  titulo;  nem 
possa  ser  privado  do  domínio  natural  de  seus  bens,  filhos,  ou  mulhei-, 
aggravando  apertadamente  as  penas  passadas,  como  ahi  se  pôde  \er. 

45  Já  n'este  tempo  era  o  numero  de  obreiros  doesta  Província  mais  ac- 
crescentado:  porque  na  Bahia  erão  os  Padres  dez,  e  os  Irmãos  quinze:  em  S. 
Vicente,  e  Piraíininga,  dezoito  por  todos;  no  Espirito  santo  dous,  dous  em 
Porto  seguro,  dous  em  Pernambuco,  e  três  nos  Ilheos,  como  logo  veremos. 
E  pêra  que  podessem  com  mais  desembaraço  empregar-se  na  cultura  dos 
índios,  e  Portugueses,  n'este  mesmo  anno  o  Sereníssimo  Rei  D.  Sebastião, 
pai  amoroso  da  Companhia,  com  animo  não  menos  liberal  que  christão,  do- 
tou o  Collegio  da  Bahia  de  hunia  côngrua  porção,  pêra  sustento  de  até  ses- 
senta Religiosos,  appíicada  na  redizima  d'esta  Capitania,  que  pelo  tempo 
se  reduzia  a  dinheiro,  vinte  mil  réis  pêra  cada  sujeito;  que  vem  a  fazer 
três  mil  cruzados.  Tudo  consta  de  sua  Real  Provisão,  passada  em  7  de 
Novembro  de  1564.  Pela  qual  mercê  a  este  Príncipe  reconhecemos  por  fun- 
dador, com  os  suííragios  costumados  em  nossa  Religião.  Verdade  he  que 
teve  El-Rei  D.  João  seu  avô  vontade  de  fundar  o  ditto  Collegio,  e  tinha 
dado  principio  a  clle  quando  falíeceo:  o  que  sempre  reconheceremos  n'es- 
te  pio  Rei,  com  os  mais  favores  de  pai,  que  fez  á  Companhia;  em  particu- 
lar á  de  Portugal,  e  a  -esta  do  Brasil.  Com  tudo,  como  a  doação  do  dote 
certo,  e  determinado,  foi  feita  por  El-Rei  D.  Sebastião,  a  elle  temos  por 
fundador.  O  que  quizemos  advertir  aqui,  porque  alguns  Aulhores  nomeão 
a  El-Rei  D.  João  absolutamente  fundador  do  Collegio  da  Bahia,  igualmente 
com  o  de  Coimbra  em  Portugal,  c  o  de  S.  Paulo  na  índia.  Assi  o  tem  o 
Padre  António  de  Vasconcellos  na  Descripção  dos  Reis  de  Portugal,  na  Vida 
d"El-Rei  D.  João:  o  o  Padre  lialthasar  Telles  nas  Chronicas  de  Portugal 
parte  u,  liv.  6,  cap.  54,  num.  .'],  levados  parece  do  fundamento  que  apon- 
tei; porque  teve  vontarle  de  lundar  o  (Collegio,  e  deo  principio  a  elle. 

46  Este  mesmo  anno  em  o  mez  de  Fevereiro  passou  a  melhor  vida  na 
Casa  [trofessa  do  Roma  o  Padre  Diogo  Laincs,  Geral  de  nossa  (Companhia, 


30  LIVRO  III  DA  CIIRONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

com  sentimento,  não  só  de  toda  ella,  mas  de  toda  a  Corte  Pontifical.  N'es- 
ta  Província  fizerão  demonstrações  do  sentimento  devido;  porque  era  na 
verdade  pai  amoroso  d'ella,  e  mui  zeloso  da  conversão  de  sua  gentilidade. 
Foi  varão  raro,  igualmente  nos  dotes  da  graça,  que  nos  da  natureza:  e  de 
quem  disse  o  Cardeal  Alexandrino,  que  logo  foi  eleito  em  Summo  Pontiíi- 
ce,  chamado  Pio  V,  que  com  sua  morte  perdera  a  Republica  Chrislãahum  dos 
mais  insignes  defensores  d'ella.  Outro  Illustrissimo  Cardeal  disse,  que  ha- 
vendo estado  em  Roma  quasi  cincoenta  annos,  não  vira  morte  mais  senti- 
da. Muitos  Príncipes  fora  da  Itália  lhe  fizerão  exéquias  sumptuosas.  E  o 
Cardeal  Augustano  Otho  Truches,  nas  que  lhe  celebrou  em  Delinga,  emvez 
de  luto,  vestio  o  sepulcro  de  purpura;  porque  dizia,  que  a  memoria  de 
hum  tão  grande  varão  se  havia  de  celebrar  com  festa,  e  não  com  luto.  A 
nós,  em  perda  de  cabeça  tão  grande,  nos  toca  mais  o  sentimento  de  sua 
morte,  que  o  historial-a.  Póde-se  ver  no  Padre  Francisco  Sacchino,  nas  Chro- 
nicas  da  Companhia  de  Jesus,  liv.  8,  desde  o  numero  duzentos,  adiante; 
e  no  Padre  Ribadeneira,  dos  quatro  Geraes  da  Companhia;  e  no  Padre  Eu- 
sébio Nieremberg,  de  Varoens  illustres  da  Companhia;  e  outros. 

47  Na  villa  da  Capitania  dos  Ilheos  se  edificava  este  anno  com  grande 
calor,  Templo,  e  Casa  pêra  Religiosos  da  Companhia,  com  as  esmolas,  e 
animo  liberal  dos  moradores:  e  residião  ahi  três  Religiosos  d'ella  com  boa 
aceitação,  e-fruto.  Verdade  he  que  eram  antíguos  os  desejos  d'estes  cida- 
dãos desde  o  anno  de  1553,  em  que  por  ali  passou  o  Padre  Nóbrega, 
quando  hia  a  visitar  S.  Vicente,  e  lhe  pedirão  Padres,  que  lhes  assistissem, 
como  ahi  dissemos.  Porém  como  então  erão  ainda  poucos  os  sujeitos  n'es- 
ta  Provinda,  só  sabemos  que  forão  a  esta  villa  muitas  vezes  em  missão,  e 
chegarão  a  estar  de  residência  em  huma  aldeã  perto  d'ella;  mas  na  villa 
só  d'este  anno  por  diante  temos  noticia  que  estivessem  de  assento;  e  que 
o  primeiro  que  começou  a  residir  foi  o  Padre  Francisco  Pires,  depois  de 
ter  sido  Reitor  do  CoUegio  da  Baliia,  com  o  Padre  Balthasar  Alvares:  e  es- 
te achamos  escripto  que  fizera  alli  grande  fruto  nos  índios,  cuja  lingoa  sa- 
bia; mas  não  particularizão  casos  alguns. 

48  E  já  que  n'este  anno  começamos  a  ser  moradores,  será  bem  que 
n'elle  digamos  alguma  cousa  dos  primeiros  princípios  d'esta  Capitania,  e 
villa.  Tem  seu  principio  esta  Capitania  dos  Ilheos  da  ilha  Tinharé,  onze,  ou 
doze  legoas  da  Bahia  correndo  ao  Sul  (como  está  julgado  por  sentença  de 
Mem  de  Sá,  Governador  do  Estado,  e  de  seu  Ouvidor  geral  Braz  Fragoso) 
e  vai  correndo  d'este  lugar  ao  mesmo  rumo  cincoenta  legoas  por  costa. 


DO   ESTADO  DO  DUASIL  (aNNO  DE   1504)  31 

até  acabar  no  porto  e  rio  de  Santa  Cruz,  tros  legoas  da  villa  de  Porto  se- 
guro, pouco  mais  ou  menos:  porque  ainda  não  estão  demarcadas  por  esta 
parte  as  duas  capitanias  de  liheos,  e  Porto  seguro.  lie  terra  fértil,  amena, 
regadia,  capaz  de  riquezas,  de  grandos  canaveaes,  e  engenhos,  de  páos 
preciosos,  brasis,  jacarandás,  saçafrás,  e  outros,  e  de  todo  o  género  de  man- 
timentos brasilicos.  He  retalhada  de  grandes  e  caudalosos  rios.  (Deixando 
os  menores)  o  rio  do  Camamú,  distante  seis  legoas  de  Tinharê,  em  altura 
de  quatorze  grãos,  he  hum  dos  mais  capazes  rios  de  toda  esta  costa  pêra 
grandes  povoações,  e  commercios.  A  barra  he  fácil  e  espaçosa,  a  modo  de 
duas,  por  respeito  da  ilha  chamada  de  Quiépe,  que  tem  junto  á  boca.  En- 
trão  por  ella  grandes  náos  chegadas  á  ponta  da  banda  do  Sul  nadão  em 
sete  ou  oito  braças.  Da  barra  pêra  dentro  ha  huma  formosa  bahia,  á  qual 
de  diversas  partes  correm  ribeiras  de  agoa  doce  a  pagar-lhe  tributo.  Traz 
suas  agoas  muito  do  interior  da  terra,  posto  que  não  he  navegável  inais 
que  até  seis  ou  sete  legoas,  por  impedimento  de  huma  grande  cachoeira. 

49  Deste  a  seis  legoas  ha  outro  rio  chamado  das  Contas.  Vè-se  na  bo- 
ca d'elle  hum  ilheo  pequeno,  he  capaz  de  navios  ordinários,  he  navegável 
até  oito  legoas  não  mais,  por  respeito  de  huma  cachoeira.  D'esta  pêra  ci- 
ma se  pôde  também  navegar,  se  lá  se  fizerem  acommodadas  embarcações. 
Está  em  quatorze  gráos,  e  hum  quarto.  Em  abono  do  arvoredo  d'este  rio, 
he  celebre  aquelle  espantoso  cedro,  que  desceo  por  elle  abaixo,  e  sahindo 
pela  barra  fora  se  achou  lançado  á  praia,  de  tão  crescido  tronco,  e  anno- 
sos  braços,  que  deo  só  elle  a  madeira  toda  á  fabrica  de  huma  Igreja  da 
Santa  Misericórdia,  que  fez  a  villa  dos  liheos,  sem  que  algum  outro  páo 
entrasse  n'ella:  não  chegão  aqui  os  cedros  tão  gabados  do  Líbano. 

riO  Em  distancia  de  outras  seis  legoas  está  o  rio  chamado  Taygpe,  cau- 
daloso em  agoas:  rega  grandes,  e  remontadas  maltas;  raetem-sc  n'elle  ou- 
tros muitos  de  menos  conta.  Tem  seu  nascimento  de  huma  alagoa  formo- 
sa, que  contêm  em  si  duas  ilhas  cheias  de  arvoredo.  Não  faço  caso  de  ou- 
tros dous  somenos,  que  entre  este  e  o  rio  das  Contas  desembocão  ao  mar, 
Vemoão,  e  Japarapé. 

ol  De  Taygpe  ao  rio  de  S.  Jorge,  que  he  o  da  villa  dos  liheos,  ha  duas 
legoas  de  distancia,  tem  três  ilheos  na  barra,  e  junto  a  estes  ha  surgidouro, 
e  os  navios  que  hão  de  entrar  vão  pelo  canal.  Norte,  eSul,  com  o  ilheo  gran- 
de: são  férteis  seus  arredores,  está  cm  quinze  gráos  escaços:  do  de  S.Jor- 
ge a  duas  legoas  está  o  rio  Curuygpe,  di;  menos  conta.  l)"este  a  doze  le- 
goas desemboca  no  mar  o  rio  chamado  Patype,  fecundíssimo  de  maltas  do 


32  UM\0  III  DA  CHRO.NICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

estimado  pão  brasil:  se  bem  pêra  enriquecer  aos  homens  com  este  Ihe- 
souro,  não  lie  capaz  de  embarcações  grandes,  que  fartem  por  huma  vez 
seus  desejos;  em  barcos  menores  he  força  que  o  tragão  dos  interiores  de 
suas  mattas,  por  falta  de  barra  accommodada.  Junto  a  este,  menos  distan- 
cia que  de  duas  legoas,  corre  o  Rio  Grande  em  quinze  grács  e  meio  de 
altura:  tem  junto  á  boca  três  mattas  de  matto  a  modo  de  ilhas:  bom  sur- 
gidouro de  fora  na  ponta  da  barra  do  Norte,  lugar  seguro  de  navios  pe- 
quenos, que  podem  também  entrar  no  rio,  e  achão  na  barra  ao  principio 
duas  braças  do  canal;  logo  huma,  e  d'ahi  em  diante  três,  quatro,  e  cinco. 
He  navegável  até  oito,  dez  legoas;  de  grandes  pescarias,  e  férteis  arredo- 
res: entrão  n'elle  no  sertão  muitos  rios,  e  alagoas,  que  fazem  seu  bojo  di- 
latado: achão-se  n'elle  mais  de  vinte  ilhas  habitáveis:  e  este  he  aquelle  rio, 
que  guia  a  grandes  haveres,  e  minas  do  seilão,  como  já  n'outra  parte  dis- 
semos; pelo  qual  abaixo  descerão  em  canoas  de  cascas  de  arvores  muitos 
dos  companheiros  de  António  Dias  Adorno,  que  subindo  pelo  rio  das  Cara- 
vellas  acima  desentranhara  estes  sertões,  e  descobrira  esmeraldas,  saphiras, 
e  outros  mineraes. 

52  Depois  do  Rio  Grande  cinco  legoas,  desagoa  no  mar  o  rio  Boygqui- 
çába.  Doeste  a  quatro  legoas  e  meia  o  rio  de  Santo  António;  d"ahi  a  duas 
o  rio  de  Cernambitygba:  todos  três  caudalosos,  posto  que  de  somenos  bar- 
ra, e  d'este  ultimo  ao  de  Santa  Cruz  correra  duas  legoas,  e  he  o  em  cujo 
porto  entrarão  as  nãos  da  índia  de  Pedro  Alvares  Cabral,  que  descobrirão 
este  novo  mundo:  está  em  altura  de  dezaseis  gráos  e  meio.  E  temos  des- 
critto  a  costa  d'esta  Capitania. 

53  D"esta  fez  mercê  El-Rei  D.  João  o  Terceiro  a  Jorge  de  Figueiredo  Cor- 
rêa, Escrivão  de  sua  Real  Fazenda:  mas  como  este  por  razão  de  seu  cargo  a 
não  podesse  vir  povoar  em  pessoa,  mandou  em  seu  lugar  a  Francisco  Ro- 
meiro, Cavalleiro  Castelhano,  homem  prudente,  e  animoso,  com  huma  frota, 
provida  de  aprestos,  e  moradores  necessários  pêra  a  nova  povoação;  tudo 
á  custa  do  senhor  da  terra.  Partio  de  Lisboa  esta  frota,  chegou  á  costa,  e  foi 
desembarcar  no  porto  de  Tinharé.  Começou  a  povoar  no  alto  do  morro  de 
S.  Paulo:  mas  desconteniando-lhe  o  sitio  depois  de  descoberto  o  rio  dos 
llheos  (chamado  assi  pelos  três  que  tem  junto  á  barra,  dos  quaes  toma 
não  só  a  villa,  mas  toda  a  Capitania,  o  nome)  passou-se  pêra  elle  com  Ioda 
a  gente;  e  era  esta  em  grande  parte  da  boa  nobreza  de  Portugal,  que  por 
vários  respeitos  vinhão  a  povoar  estas  partes. 

5i    >í'esla  parte  se  íoi  fortiíicando,  e  assentando  a  villa^  a  (jue  pòz  por 


DO   ESTADO  DO  DRASIL  (ANNO  DE   loC4)  .'J3 

nome  S.  Jorge,  a  contemplarão  do  senlior  tia  terra.  Na  mesma  paragem 
sustentou  os  primeiros  annos  importunas  guerras  do  gentio  selvagem  Tu- 
pinaquí,  até  que  por  tempos  fez  pazes  com  elles,  e  os  trattou  de  tão  boa 
maneira,  que  elles  mesmos  lhe  forão  de  grande  ajuda  pêra  que  a  Capitania 
fosse  em  crescimento.  Abrio  commercio  com  homens  ricos  de  Portugal,  e 
fabricou  quantidade  de  engenhos  de  assucar,  com  que  em  breve  ennobreceo 
a  terra.  Está  esta  villa  em  altura  de  quinze  grãos  escaços. 

53  Andarão  os  tempos,  e  Jeronymo  de  Larcão,  filho  de  Jorge  de  Fi- 
gueiredo, vendeo,  com  licença  d"El-Rei,  esta  Capitania  a  Lucas  Gíraldes, 
que  meteo  n'ella  grande  cabedal,  e  acrescentou  o  commercio,  e  fabrica  de 
engenhos.  Porém  como  tudo  varia  o  tempo,  estando  a  villa  n'este  estado, 
moveo  o  inferno,  ou  peccados  dos  homens,  o  gentio  chamado  Aimoré,  o 
mais  bárbaro,  e  prejudicial  de  toda  a  costa,  inimigo  de  Portugueses,  etra- 
gador  de  suas  carnes;  o  qual  descendo  do  intimo  das  brenhas,  começou  a 
fazer  assaltos  nas  fazendas  dos  campos,  roubando,  matando,  e  comendo 
grandes,  e  pequenos,  com  tal  fereza,  e  continuação,  que  tiverão  por  me- 
lhor larga r-lhe  os  arredores,  e  acolher-se  á  villa;  onde  ainda  não  vivião  se- 
guros; e  forão  forçados  muitos  casaes  acolher-se  á  Bahia,  por  escapar  com 
vida:  até  que  o  Governador  Mem  de  Sá  no  anno  de  15G0,  foi  desafrontar 
este  povo,  e  castigou  severamente  os  delinquentes:  tornando  a  ter  melhoria, 
posto  que  não  a  de  seus  princípios,  até  que  haja  cabedal  de  importância, 
que  excite  commercio  na  terra,  sem  o  qual  não  pude  haver  opulência. 

36  No  principio  d'este  anno  preparou  o  Governador  3Iem  de  Sá  na 
Bahia  huma  frota,  que  enviou  ao  Rio  de  Janeiro.  O  fundamento  d'esta  di- 
remos primeiro,  o  depois  iremos  após  ella,  a  ver  o  fim  que  tem.  O  funda- 
mento doesta  expedição  foi  o  seguinte.  Tinha  Mem  de  Sá  escritto  da  Bahia 
á  Bainha  D.  Calharina,  que  governava  Portugal,  o  successo  da  guerra  que 
fizera  conti-a  Villagailhon  na  enseada  do  Rio  de  Janeiro,  rendendo-o,  e  pon- 
do por  terra  a  fortaleza  que  alli  tinha,  na  forma  que  dissemos  no  anno  de 
1500.  Foi  festejada  a  nova  como  merecia,  e  approvado  tudo  o  que  alli  se 
obrou:  huma  só  cousa  deo  a  entender  a  Rainha,  e  Conselheiros,  que  não 
satisfizera,  e  foi,  o  não  deixar  [iresidiada  a  fortaleza  com  gente  Porluguez. 
Por  esta  causa,  e  porque  juntamente  tinha  chegado  a  nova  das  pazes,  que 
l)or  meio  de  Nóbrega,  e  Joseph  se  assentarão  entre  Tamoyos  e  Portugue- 
ses; chamou  a  Rainha  a  Estacio  de  Sá,  sobrinho  do  Governador  Mem  de 
Sá,  homem  de  coração,  e  prudência;  e  mandando  preparar  dous  galeíjes, 
providos  de  aprestos  de  guerra,  c  soldadesca,  mandou  que  tomasse  eiilre- 

YOL.   II  3 


34  Livno  III  DA  cnr.oMCA  da  companhia  de  jesu 

ga  d'elles,  e  lhe  ordenou  que  fosse  á  Bahia,  e  alii  estivesse  ás  ordens  do 
Governador  geral  seu  lio;  porque  queria  que  daquella  cidade  fosse  a  hu- 
ma  empreza  de  seu  serviço  á  enseada  do  Rio  de  Janeiro. 

o7  Chegou  Estacio  de  Sá  á  Baliia,  e  abertas  as  cartas  da  Rainha,  con- 
tinhão  (depois  de  dar-se  por  l)em  servida  do  que  com  seu  valor  obrara 
n'aquella  enseada  o  Governador  Mem  de  Sá)  que  considerando  o  tempo 
accommodado,  assi  pelo  bom  successo  passado  de  nossas  armas,  como  pe- 
las pazes,  que  depois  d'isso  se  assentarão  com  os  índios  Tamoyos;  parecia  boa 
occasião  de  meter  gente  nossa  no  Rio  de  Janeiro,  senhorear  a  terra,  lan- 
çar de  todo  fora  o  Francez,  e  começar  a  povoar  n'aquella  parte:  pêra  o  que 
lhe  mandava  aquelle  Capitão  de  effeito  com  duas  náos  de  guerra,  que  ag- 
gregadas  ao  poder  do  Estado,  serião  bastantes  pêra  a  empreza;  e  tudo  fi- 
casse a  sua  ordem,  e  disposição.  O  cuidadoso  Governador,  que  nenhuma 
outra  cousa  mais  desejava,  vendo-se  com  tão  bom  Capitão,  e  soccorro,  ag- 
gregando  a  elle  os  navios  da  costa,  e  alguma  gente  militar,  com  a  mór 
presteza  que  pôde  aviou  a  frota,  e  a  despedio  no  principio  do  anno  cor- 
rente, com  o  regimento  seguinte.  Que  fosse  demandar  a  barra  do  Rio  de 
Janeiro,  e  entrasse  n'ella  a  som  de  guerra,  e  observasse  alli  as  disposi- 
ções, e  conselhos  do  inimigo,  e  se  achasse  occasião  que  prometesse  es- 
perança de  victoria,  procurasse  tirar  o  inimigo  ao  mar  alto,  e  ahi  rompes- 
se com  elle,  fazendo  sempre  por  conservar  as  pazes  com  os  índios  Tamoyos: 
e  ordenando-lhe  por  fim  do  regimento,  que  podendo  tomar  conselho  com 
o  Padre  Nóbrega,  não  obrasse  cousa  de  importância  sem  elle,  pelo  grande 
conceito  que  tinha  de  sua  virtude,  e  prudência. 

S8  Chegou  o  Capitão  mór  Estacio  de  Sá  á  barra  do  Rio  de  Janeiro  no 
mez  de  Fevereiro:  e  a  primeira  cousa  que  fez,  foi  despedir  d"alli  hum  bar- 
co a  S.  Vicente  com  cartas  ao  Padre  Nóbrega,  pedindo-lhe  quizesse  avis- 
tar-se  com  elle  em  pessoa,  por  serviço  d"El-Rei,  na  conformidade  que  o 
Governador  seu  tio  o  dispunha  em  seu  regimento,  o  mais  presto  que  fosse 
possível.  Entretanto  foi  correndo  a  costa,  ft  postos  d'ella,  e  achou  por  ditto 
de  hum  Francez  que  tomarão,  que  os  Tamoyos  do  Rio  de  Janeiro  Unhão 
alterado  as  pazes,  e  estavão  em  guerra.  Duvidarão  os  homens  do  mar,  e 
alguns  soldados;  mas  logo  á  custa  de  seu  sangue  se  desenganarão,  porque 
entrando  em  bateis  da  barra  pêra  dentro  a  fozer  aguada  em  huma  ribeira, 
hum  d"elles  que  mais  se  empenhou,  foi  acommetido  de  sete  canoas  de  Ta- 
moyos, de  cujas  mãos,  supposto  que  escapou,  foi  com  morte  de  quatro 
marinheiros  frechados.  Declarou  este  successo  a  duvida,  e  logo  a  foi  mos- 


DO  ESTADO  DO  lUlASIL  (a.NXO  HK    IoGÍ)  35 

trando  mais  ás  claras  a  experiência;  jjoniiuí  estava  ludo  ardendo  cm  apres- 
tos de  guerra:  os  portos  por  onde  podia  ser  acommeíido  o  inimigo,  cober- 
tos de  canoas  armadas:  as  praias  cheias  de  Tiimoyos  empennados,  fei'indo 
o  chão,  e  os  ares,  ameaçando  rompimento  de  guerra:  tudo  disposiçijes  in- 
(histriadas  pela  nação  Francesa.  Inteirado  de  tudo  o  Capitão  mórEstacio  de 
Sá  (depois  de  feita  algnma  experieíicia  de  menor  empenho,  sahindo  dos  en- 
contros feridos  alguns  soldados,  e  outros  mortos  sem  effeito)  pondo  em 
conselho  o  que  vião  do  grande  poder  do  inimigo,  e  de  como  usava  de  cau- 
tela, não  querendo  sahir  ao  mar  a  batalha;  e  como  não  era  l)astante  o  po- 
der com  que  se  acbavão  pêra  saliir  em  terra,  por  falta  principalmente  de 
embarcaçíjes  pequenas:  e  sobre  tudo  porque  teve  noticia  por  via  de  hum 
cattivo  dos  Tamoyos  fugido,  que  estava  S.  Vicente  em  guerra  (ditto  que 
concordava  com  a  tardança  do  Padre  Nóbrega;)  resolveo  (jue  era  bem  ir 
á([uella  Capitania;  porque  de  sua  ida  resulta  vão  muitos  bens,  soccorrer  a 
terra,  avistar-se  com  o  Padre  Nóbrega,  e  prover-se  de  embarcações  de  re- 
mo, e  mantimentos. 

39  Porém  aconteceo  aqui  hum  successo  tido  por  mdagroso;  porque  parti- 
da a  armada  no  mez  de  Abril,  emhmna  quinta  feira  da  semana  santa,  logo  na 
sexta  seguinte  á  meia  noite  chegou  o  Padi-e  Nóbrega  em  liuma  lancha,  com 
mais  dous  companheiros,  e  como  vinha  com  vento  toi-menloso,  desejosos 
de  abrigar-se  d'elle,  suppondo  que  tinha  erdrado  a  armada,  embocárão  a 
barra,  c  surgirão  de  dentro:  senão  que  (juando  contentes  do  successo,  ao 
primeiro  arraiar  da  manhãa,  começarão  a  descobrir  o  horizonte,  em  vez  das 
nossas  náos  de  guerra,  se  vêem  metidos  entre  infinidade  de  canoas  arma- 
das inimigas :  e  o  que  mais  he,  sem  remédio  de  {)od(!r  tornar  pêra  fora ; 
porque  o  vento,  que  na  entrada  lhe  fora  favorável,  á  saiiída  lhe  licava  con- 
trario. Que  faria  hu ma  lanchinha  só  desarmatloi  enbe  tão  grandes  estron- 
dos de  guerra  entre  gente,  feroz,  e  deshumana,  que  nem  o  nome  sabe  de 
bom  quartel?  Davão-se  por  perdidos  os  marinheiros,  encommendando-se  a 
Deos  os  Padres,  o  sobre  todos  mostrava  grande  confiança  Nóbrega.  Ex  que 
no  meio  d'esta  afíhção  começão  a  apparecer  os  velames  dos  galeões,  e  em 
pouco  espaço  enlrão  a  barra,  e  laiicãij  feri'o  junto  aos  nossos.  E  foi  o  caso, 
que  o  mesmo  contraste  de  tormenta  (|ue  ti'ouxera  os  l^adrcs,  fez  arribar  os 
galiõcs,  que  no  dia  antecedente  tinhão  partido.  Á  vista  de  tão  grande  suc- 
cesso, se  prostrarão  de  joelhos  todos,  reconhec^nido  a  mercê  do  Ceo:  e  logo 
o  seguinte  Domingo  de  I'aschoa  sairão  em  terra  na  ilha  chamada  Yillagailhon, 


36  LIVRO  III  DA  CIIRONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

onde  disserão  missa,  o  kz  Nol)rcga  hum  sermão  ao  povo,  cm  acção  de  graças. 

GO  Avistado  aqui  o  Capitão  m()r  com  o  Padre  Nóbrega,  e  tomando  de  no- 
vo conselho  com  elle,  convierão  que  era  bem  irem  a  S.  Vicente  refazcr-se, 
assi  de  mantimentos,  como  de  embarcações  de  remo,  com  que  podessem  as- 
sistir o  tempo  necessário,  e  acommeter  á  ligeira  os  postos  onde  não  podião  che- 
gar navios  grandes.  Derão  á  vela,  e  dentro  em  breves  dias  chegarão  ao  porto 
de  Santos.  Achou  o  Capitão  que  continuavão  aqui  as  pazes  íirmes  com  os  Ta- 
moyos  de  Iperoyg,  entre  os  quaes  estivera  Nóbrega,  e  Joseph;  equemoravão 
muitos  d'elles  entre  os  Portugueses,  e  com  sua  frecha  os  defendião  de  al- 
guns Tupis  inimigos:  especialmente  o  fiel  Cunhambêba,  que  assentara  casa 
com  tuda  sua  gente  fronteiro  aos  mesmos  Tupis,  só  por  nossa  amizade.  E 
pelo  contrario  achou  que  os  Tamoyos  do  Rio  de  Janeiro  tinhão  feito  por 
toda  aquella  costa  varias  hostilidades,  inimigos  de  toda  a  paz,  e  socego. 
Em  S.  Vicente  começou  o  Capitão  mór  a  experimentar  graves  diíTiculdades 
acerca  da  empreza,  movidas  por  varias  pessoas  da  mesma  armada,  ás  quaes 
não  parecia  bem  acommeter  em  tal  occasião  de  tempo.  Dizião  que  o  ini- 
migo era  innumeravel,  fortificado  em  casa  própria,  com  mantimentos  á  mão, 
com  embarcaçí)es  tão  ligeiras,  com  o  mesmo  vento,  com  armas  que  jamais 
lhe  podião  faltar,  industriados  na  guerra  pela  gente  Francesa,  cujos  princí- 
pios tinhão  experimentado:  e  que  tudo  o  contrario  achávamos  em  nós;  porque 
éramos  poucos,  acommetiamos  com  o  peito  á  frecha,  em  terra  alhea,  onde  não 
sabíamos  dos  postos  que  podem  fazer  a  nosso  intento,  os  mantimentos  acaba- 
dos, a  terra  impossibilitada  a  dar-nos  outros,  pelos  assaltos  contínuos  dos 
inimigos,  as  embarcações  grandes,  e  pesadas,  a  munição  limitada,  e  nossa 
gente  Portuguesa  pouco  destra  no  pelejar  dos  índios:  que  poderia  succeder 
huma  desgraça,  que  desse  que  chorar:  que  sempre  foi  prudência,  não  ar- 
riscar a  graves  perigos,  onde  a  empreza  he  voluntária,  e  pôde  esperar  oc- 
casião segura.  Isto  dizião;  e  a  esie  fim  movião  muitas  traças,  huns  com 
zelo,  outros  com  receio,  outros  por  enfadados. 

01  O  Padre  Nóbrega,  que  tinha  gastado  muitas  noites  em  oração  com 
I)eos  sobre  o  successo  d'esta  empreza,  e  tinha  sentimento  do  Ceo,  que  ha- 
via de  sahir  com  effeito,  que  se  havia  de  povoar  o  Rio,  e  que  os  estorvos 
erão  invenções  do  inferno:  oppuz-se  firmemente  a  todos  os  pareceres 
contrários.  Dizia  que  as  emprezas  grandes  não  se  acabavão  sem  tra- 
balho, nem  sem  perigo;  e  que  á  vista  da  importância  d'esta,  nenhum 
trabalho,  ou  perigo  devia  reputar-se  por  grande:  porque  se  pomos  diante 
dos  olhos  a  Capitania  dEl-Rei  assolada;  o  inimigo  pujante,  c  j-esoluto  a 


DO  EBtADO  tio  I3RASIL  (aN\0  T)E   1504)  37 

ncal)al-a;  a  pouca  potencia  da  terra  pêra  resistir-llie;  c  o  poder  de  Portu- 
!?al,  c  Brasil  empcnliado  pêra  libertaí-a,  parece  qnc  nem  a  Portugal,  nem 
ao  Brasil,  nem  á  Capitania,  nem  á  reputarão  portuguesa,  convém  que  fique 
mallogrado  cabedal,  que  tem  custado  tanto,  c  tantos  annos  ha  que  que  hc 
esperado.  Que  dirá  Portugal,  o  Brasil,  esta  Capitania,  e  os  próprios  inimi- 
gos, se  depois  de  tão  grande  fama  de  poder,  virem  que  voltamos  as  costas 
sem  sangue?  IMais  honra  seria  em  tal  caso  mostrar  essas  costas  feridas  na 
peleja,  cjue  sans  ,sem  pelejar;  poixpie  feridas  mostrariam  desgraça  da  fortu- 
na, e  sans  mostrarião  desdouro  da  fama.  Quanto  mais,  que  nem  o  inimigo 
he  tão  formidável,  nem  suas  fortificações  são  muralhas,  nem  suas  armas  vo- 
mitão  fogo,  como  as  nossas;  somente  excede  em  mantimentos,  e  canoas 
ligeiras:  porém  eu  (dizia  clle)  aindo  que  com  tão  poucas  posses,  me  obrigo 
a  remediar  esta  falta  a  Vossa  Senhoria.  Concluía,  que  dilatasse  o  coração 
com  grandes  esperanças  em  Deos,  porque  de  sua  parte  lhe  pronosticava 
successo  venturoso,  e  entendia  que  era  servido  o  Ceo,  que  d'esta  vez  se  edi- 
ficasse cidade  Real  no  P.io  de  Janeiro. 

G2  Era  grande  o  conceito  que  linha  o  Capitão  mi)r  da  prudência,  c 
virtude  de  Nóbrega,  até  então  por  fama,  agora  já  por  experiência.  Tomou 
per  modo  de  oráculo  do  Ceo  as  palavras  do  Pdare,  c  proiwz  de  cumpril-o 
á  risca.  E  na  verdade  a  santidade  do  sujeito,  a  resolução  com  que  faltou, 
a  impressão  que  fez  no  Capitão,  o  fim  que  teve  no  successo,  tudo  mostra 
que  foi  mais  que  humana  sua  resolução.  Joseph  de  Anchieta  diz  n'esta  ma- 
téria as  palavras  seguintes.  «O  Padre  Nóbrega,  como  tinha  por  traçada  de 
Deos  esta  jornada,  e  grandíssima  confiança,  por  não  dizer  certeza,  que  se 
liavia  de  povoar  o  Rio  de  Janeiro,  poz-se  contra  todos  com  grande  cons- 
tância.» Até  aqui  as  palavras  de  Joseph.  Mostrou  ainda  mais  o  i-ntcnto  ou- 
tra reposta  que  deo  o  mesmo  Nóbrega  n'csta  oçcasião;  porque  dizendo-íhe 
o  Capitão  mór  no  principio,  entrado  então,  ao  que  parece,  das  razíjes  con- 
trarias: «Padre  Nóbrega,  e  que  conta  (lai'ei  a  Deos,  e  a  EI-Rei,  se  lan- 
çar a  perder  esta  armada?»  Respondeo  ell(!  com  confiança  mais  qw.  huma- 
na: «Senhor,  eu  darei  conta  a  Deos  de  tudo;  c  se  fôr  necessário  ii"elá  pre- 
sença do  Rei,  c  respondorci  ahi  por  vós.» 

(j'-i  Ficou  com  todas  eslas  cousas  tão  convencido,  e  resoluto  o  Capitão 
mór,  que  nenhuma  cousa  da  teri'a  (dizia  ell(;)jámaiso  trocaria.  Porém  pêra 
persuadir  aos  soldados  descontentes,  foi  necessária  nova  lida  de  Nóbrega: 
andava,  c  desandava  aquellas  (]uas  legoas,  (jiie  ha  de  S.  Vicente  a  Santos, 
onde  estavão  cum  o  Capitão:  i)rattcava  cuni  os  de  mais  razão,  mostrava- 


38  I.I\-RO  III  DA  CllROMCA  DA  COMPANHIA  HE  JF.SIT 

llies  a  muita  que  havia  pêra  que  não  deixassem  em  flor  esperanças  de  fru- 
tos Ião  {grandes,  a  ^doria  que  se  lhes  seguiiia  da  ^icloria,  e  o  pesar  que 
contraliirião  da  relii'ada.  Fazia-lhes  fácil  o  apresto,  oííereGÍa-se  a  grande 
paite  d'elle,  ajudava-os,  favorecía-os  em  suas  petições,  e  coiivencia-lhes os 
ânimos.  Levou-os  a  recrear  á  nossa  Casa  de  S.  Vicente  por  alguns  dias,  e 
ã  villa  de  Piratininga  outros;  onde  forão  mui  bem  agasalhados,  e  aliviarão 
os  cuidados  com  tão  grande  variedade  de  vistas,  e  com  verem  os  índios 
de  nossas  aldeãs  armados  a  seu  modo,  e  animados  pêra  a  mesma  empre- 
za.  Aqui  fez  que  se  assentassem  pazes  na  presença  do  Capitão  mór,  e  em 
nome  do  Govarnador  geral  seu  tio,  entre  os  nossos,  e  alguns  Principaes  do 
sertão,  que  eslavão  em  guerra.  Descerão  seguros  soJjre  sua  palavra,  e  ren- 
derão os  arcos,  e  se  offerecêrão  muitos  delles  â  jornada,  e  ajudarão  com 
seus  mantimentos:  com  que  ficarão  os  Portugueses  mais  confirmados,  que 
Deos  traçava  o  fim  desejado:  e  na  \erdade,  d"aqui  houverão  grande  parte 
do  que  necessitavão,  assi  de  gente,  como  de  mantimentos.  E  veio  a  ser  de 
Ires  efíeitos  esta  saliida  a  Piratininga:  confirmou  os  ânimos  dos  soldados, 
deixou  cm  paz  aquelle  sertão,  e  proveo  do  que  necessitava  a  armada. 

Gi  Feito  o  sobredilto,  desceo  das  serras  Nóbrega,  e  no  marilimo  correo  as 
villas,  e  lugares  todos,  mais  com  espirito,  que  com  forças  da  carne:  prega- 
va, e  animava  em  publico,  e  em  particular  sobre  o  apresto  de  empreza  tão 
importante,  publicando  perdões  de  delitos  em  nome  do  Governador  ge- 
gral  aos  que  se  embarcassem;  e  com  sua  industria,  e  autlioridade  ajuntou 
hum  soccorro  considerável  de  Portugueses  mestiços,  e  índios,  e  de  canoas, 
e  bastimentos,  que  juntos  a  outros,  que  logo  chegarão  da  Bahia,  e  Espiri- 
to santo,  fizeião  provimento  caljal,  e  bem  tora  do  que  suppunhão  os  que 
votarão  pela  parte  contraria;  e  com  elle  se  aprestava  a  armada.  Porém  co- 
mo esta  não  ha  de  sahir  ao  fim  que  pretende  se  não  em  principio  do  an- 
uo seguinte;  cheguemos  primeiro  á  Baliia,  c  depois  voltaremos  a  ser  pre- 
sentes ao  successo  d'ella. 

05  Na  Bahia  dava  cuidado  o  successo  da  armada:  porque  forão  notórias 
as  razões  que  tivera  no  Rio  pêra  desistir  da  empreza,  e  não  erão  sabidas  as 
quetinhaperaremedial-as.  Era  entrado  o  princiíiio  do  arino  de  156o,  etudo 
era  rumores  incertos.  Trazia  isto  aílligido  aMem  de  Sá,  por  Governador,  por 
tio,  por  zelador  do  serviço  d'El-Rei,  e  do  Estado  que  lhe  tinha  entregue. 
Estando  entre  estes  cuidados,  chegarão  cartas  do  sobrinho  e  Nóbrega;  o  sobri- 
nho relatava  o  muiío  quetiiiha  obrado  o  Padre;  o  Padre  e  muito  que  tinha  obra- 
do o  sobrinho:  e  ambos  convinhão,  em  como  estavão  remediadas  as  faltas  da 


no  ESTADO  DO  BRÂSIÍ.  (aNNO  DE  4505)  39 

armada,  que  partiria  a  seu  intento,  contentes  os  soldados,  e  com  esperan- 
ça de  vicloria.  Com  estas  novas  respirou  a  Baliia,  que  tinha  metido  empe- 
nlios  grandes,  e  arreceava  vêl-os  mallogrados. 

66  No  nosso  Collcgio  da  Companhia,  accrescenlou  o  Padre  Provincial 
os  estudos  com  huma  nova  classe  de  Latim,  e  com  huma  lição  de  Theolo- 
gia  moral,  a  qual  lia  o  Padre  Quiricio  Caxa,  da  matéria  de  virtudes,  e  vi- 
dos. No  cuidado  da  conversão  dos  índios  não  descansava  o  espirito  do 
Padre  Gram:  traçou  fazer  este  anno  nas  aldeãs  o  mór  apparato  de  celebri- 
dade dos  Olllcios  da  semana  santa,  que  até  então  houvera,  com  jubileo, 
que  pedira  a  Roma,  pêra  os  três  dias  últimos :  porcpie  quanto  mais  esta- 
vão  diminuídos  aquelles  povos  das  desgraças  passadas,  tanto  mais  lhe  pa- 
recia necessário  animar  esses  poucos,  porque  tornassem  ao  fervor  antiguo: 
e  não  foi  sem  fruto ;  porque  os  assistentes  afervorárão-se ;  e  dos  ausentes 
muitos  largarão  o  sertão,  e  acudirão  á  fama  do  celebridade. 

G7  N'este  mesmo  anno  houve  em  Roma  Congregação  dos  Padres  pro- 
fessos da  Companhia,  e  n"ella  foi  eleito  em  Geral  perpetuo  de  toda  ella  o 
santo  Padre  Francisco  de  Borja,  Duque  que  fora  de  Gandia,  e  espelho  que 
então  era  de  santidade,  em  lugar  do  Padre  Diogo  Laines  de  boa  memoria, 
que  o  anno  antecedente  passara  a  melhor  vida.  Logo  que  foi  eleito  á  pri- 
meira posse  de  seu  generelado,  elegeo  por  Visitador  geral  d'esta  Província 
do  Brasil  em  nome  seu  o  Padre  ígnacio  de  Azevedo,  que  se  achara  na 
Congregação  por  Procurador  geral  da  índia,  e  Brasil:  aquelle  grande  espe- 
lho de  perfeição  religiosa,  que  depois  veio  a  consagrar  os  mares  com  seu 
próprio  sangue,  e  de  quarenta  companheiros,  derramado  pela  Fé  Calholi- 
ca,  a  mãos  de  hereges  Ilugonotes,  como  em  seu  lugar  se  dirá;  que  por  ora 
somente  se  alegra  esta  Provinda  com  a  boa  nova  de  sua  eleição,  esperan- 
do alegrar-se  o  anno  seguinte  com  sua  boa  vinda. 

68  Na  villa  do  Espirito  santo  acabou  o  curso  d"esta  presente  peregri- 
nação o  Padre  Diogo  Jacome.  Foi  este  Padre  Coadjutor  espiritual  na  Com- 
panhia, grande  servo  de  Deos,  c  de  abrasadas  entranhas  na  salvação  das 
almas.  Pela  conversão  d'estas  deo  o  ultimo  vale  á  pátria,  e  aos  collegios 
de  Europa,  e  se  veio  metter  nos  desertos  entre  a  gentilidade  do  Brasil, 
cm  companhia  do  Padiv,  Manuel  de  Nóbrega  no  anno  de  IT)'!!).  Na  Bahia 
experimentou  com  elle  as  ingratidões,  e  dureza  d'aquella  malta  até  então 
bravia,  dos  corações  dos  índios,  com  muito  fruto,  e  ganho  seu  de  gran- 
des actos  de  penitencia,  e  mortiíicação.  Foi  mandado  pela  obediência  a 
soccorrer  a  Capitania  de  S.  Vicente  em  companhia  do  Padre  Leonardo  Nu- 


40  LIVRO  III  PA  CHRONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

nes;  e  foi  companheiro  deveras  nas  asperezas  dos  principios  d'a(juella 
conversão,  vivendo  em  estreita  pobreza,  e  áspera  penitencia :  ajudando  a 
pedir  de  porta  em  porta  o  corporal  sustento ;  correndo  valles,  passando 
rios,  atravessando  serras,  por  frios  excessivos,  e  sempre  roto,  e  a  pé,  por 
bem  das  almas. 

69  Este  humilde  servo  do  Senhor,  foi  dos  primeiros  que  começarão  a 
introduzir  com  zelo  santo  o  exercitarem-sc  os  nossos  em  obras  manuaes 
quando  não  linhão  que  fazer,  por  exercício  de  humildade,  e  occupação  ho- 
nesta do  corpOi  á  imitação  dos  antiguos  Padres  do  ermo.  Á  sua  conta  to- 
mou elle  o  de  torneiro  (officio  que  por  habilidade  somente  aprendeo)  e 
todo  o  tempo  que  lhe  sobejava,  lavrava  rosários  de  contas,  que  repartia 
aos  que  necessitavão,  com  interesse,  c{ue  por  si  e  por  elle  rezassem  a 
Deos,  c  á  Virgem  Senhora  nossa.  E  a  exemplo  d'este  zeloso  oíTicial,  apren- 
derão logo  muitos  dos  nossos,  qual  a  pedreiro,  carpinteiro,  sapateiro,  etc. 
com  que  ajudavão  os  Collegios,  e  edificavão  os  povos: 

70  Ultimamente  foi  mandado  á  Capitania  do  Espirito  santo,  e  encargado 
alli  da  residência  de  huma  aldeã  (de  duas  q-ue  havia)  do  índio  Principal, 
chamado  o  grande  Gato.  Aqui  depois  de  trabalhar  incansavelmente,  com 
zelo  de  varão  apostólico,  na  cultura  d'aquclla  gente  barbara,  de  trazer  á 
Fé,  cathequizar,  e  bautizar  grande  numero  d"elles,  por  fim  de  seus  traba- 
llios  quiz  o  Senhor  acabar  de  lavrar  este  servo  seu  com  huma  cruel  pesti- 
lência de  bexigas  que  veio  sobre  aquellas  aldeãs,  tão  deshumana,  que  con- 
taminou quasi  todos,  e  raros  dos  contaminados  deixou  com  vida.  Vio-se 
alli  hum  espectáculo  lastimoso;  porque  as  casas  igualmente  servião  dehos- 
pitaes  de  enfermos,  que  de  cimiterio  de  mortos:  os  vivos  entre  os  mortos 
erão  quasi  iguaes,  e  não  sabieis  de  quaes  havíeis  de  ter  mais  compaixão; 
se  dos  vivos  pêra  acudir  a  seu  remédio,  ou  se  dos  mortos  pêra  usar  com 
elles  da  commua  piedade  de  huma  sepultura,  Aquelles  vos  chamavão  a  vo- 
zes, estes  com  o  cheiro  pestífero  de  quatro  em  quatro  huns  sobre  outros 
podres,  e  corruptos.  O  Padre  Diogo  metido  entre  elles  de  dia,  e  de  noite 
com  outro  companheiro  Pedro  Gonçalves,  erão  os  Sangradores,  os  Cirur- 
giões, os  Médicos,  e  juntamente  os  Parochos,  e  Recoveiros,  e  em  tudo  síjs; 
porque  á  presença  de  tão  grande  miséria,  apenas  achavão  quem  ajudasse 
a  levar  hum  defunto  a  sagrado;  ou  porque  todos  erão  enfermos,  ou  porque 
fis  que  o  não  erão  assi.fugião  da  corrupção,  e  máo  cheiro  d'elles,  como 
da  mesma  morte.  Tal  houve  que  em  meio  do  caminho  fiigio,  deixan- 
do o  peso  do  defunto  todo  em  as  mãos  dos  Padres,  que  caliirão  de  fra- 


DO  ESTADO  DO  DRASIL  (ANNO  DE.  ISO.j)  41 

queza  com  ellc.  Não  lic  novidade  n'esta  gente;  cuja  natureza  lie  tão  endu- 
recida por  silvestre,  que  em  qualquer  doença  trabalhosa  desamparão  os 
pais  aos  filhos,  e  os  filhos  aos  pais:  assi  o  fizerão  muitos  n"esta,  acolhen- 
do-se  o  que  pêra  isso  tinha  forças,  pêra  o  sertão,  sem  respeito  algum  da 
natureza,  ou  da  graça. 

71  Cansado  pois  de  tão  excessivo  trabalho,  consumido  a  puro  desgos- 
to de  tão  triste  successo,  vendo  tão  brevemente  desfeita,  assolada,  e  des- 
amparada Imma  numerosa  aldeã,  que  cordialmente  amava,  por  quem  sua- 
ra, e  trabalhara  tanto,  perdeo  o  alento,  e  forças,  e  entrou  emhuma  gran- 
de febre.  Com  esta  foi  trazido  á  Casa  davilla:  e  ainda  aqui  quiz  Deuspro- 
val-o  com  novo  refmo  de  trabalho,  e  de  obediência:  porque  cuidando  o 
Superior,  passados  alguns  dias,  que  estava  melhor,  vendo  a  grande  neces- 
sidade d"aquella  aldeã  quasi  despovoada,  convidou  só  por  alto  o  Padre  pê- 
ra tornar  a  ella:  porém  aquelle  que  em  toda  sua  vida  fora  exemplo  de  obe- 
diência, não  quiz  na  morte  diminuir  o  lustre  d"ella.  E  supposto  que  o  vi- 
gor vital  lhe  significava  o  contrario,  poz-se  comtudo  nas  mãos  do  Superior 
e  foi.  Porém  sérvio  a  ida  de  voltar  presto  com  mais  hum  acto  de  virtude 
heróico;  mas  com  o  alento  já  tão  perdido,  que  quasi  chegou  moctò.  No 
pouco  tempo  que  lhe  restou  de  vida,  tudo  era  suspirar  ao  Ceo,  com  actos 
abrazados,  pedindo  a  Deos  misericórdia,  pêra  si,  e  pêra  os  que  vira  aca- 
bar n*aquella  cruel  peste,  tão  faltos  de  soccorro  espiritual.  Chegou  o  quinto 
dia  depois  de  sua  vinda,  e  recebidos  os  Sacramentos  todos,  abraçado  com 
huma  devota  Imagem,  deixou  esta  carne  mortal,  e  foi,  como  se  crê,  go- 
zar este  bom  servo  do  descanso  eterno,  no  mez  de  Abril  doannode  1305. 
Jaz  sepultado  na  nossa  Igreja  deSan-Tiagod'aquellavilla.  D"este  varão  dei- 
xou huma  lembrança  o  Padre  Joseph  de  Anchieta,  e  falia  delle  com  pala- 
vras maiores,  chamando-lhe  varão  de  muita  obediência,  de  grande  zelo  da 
salvação  dos  índios,  que  trabalhou  muito  entre  elles,  com  grande  charida- 
de  até  acabar  a  vida;  e  finalmente  (|ue  veio  a  morrer  por  obediência.  E 
na  verdade  dois  quilates  enxergo  grandes  n'esta  morte :  que  arriscou  este 
servo  de  Deos  a  vida  pela  charídade  dos  índios,  a  (|uem  pretendeo  acudir; 
c  pela  obediência  do  Superior,  a  (jucm  pretendeo  satisfazer.  Escrevem 
deste  servo  fiel,  o  Padre  Francisco  Sacchiiio  nas  Chi'onicas  de  nossa  Com- 
panhia, part.  ni,  liv.  i,  do  numero  cento  e  cincoenla  e  oito  por  diante:  o 
padre  Balthasar  Telles  nas  Chronicas  de  Portugal,  part.  i,  liv.  ui,  cap.  10. 
E  o  Padre  Joseph  de  Ancl^eta  nos  Notados,  pag.  22. 

72  Em  S.  Vicente  achava-sc  já  o  Capitão  mór  Estacio  de  Sá  com  sua 


42  LlVnO  III  DA  CIIROMCA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

armada  preparada,  c  prestes;  seis  navios  de  guerra,  alguns  barcos  ligeiros 
e  nove  canoas  de  Mestiços,  e  índios.  Com  estes  mandava  o  Padre  Nóbrega 
dons  Religiosos,  Gonçalo  de  Oliveira,  e  Joseph  de  Anchieta,  pêra  aní- 
mal-os  e  dirigil-os  em  huma  e  ontra  lingoa,  em  que  erão  peritos.  Partirão 
do  porto,  chamado  pela  lingoa  dos  índios  Buriqujóca,  a  vinte  de  Janeiro 
d'este  prcsenlo  anno,  dia  dedicado  a  S.  Sebastião,  (jne  por  bom  pronos- 
tico  tomarão  por  patrão  da  empresa,  por  ser  tão  grande  martyr,  e  por 
ser  nome  de  sen  Rei  D.  Sebastião.  Chegarão  a  occnpar  a  barra  do  Rio  de 
Janeiro  ao  principio  do  mez  de  Março:  aqui  lançarão  ferro  junto  ás  ilhas 
que.  estão  próximas  a  ella,  esperando  pela  náo  Capitania,  que  á  medida  de 
sua  grandeza,  e  contraste  de  mar,  ede  ventos  pouco  favoráveis,  vinha  mais 
devagar. 

73  Aconteceo  aqui  hum  caso  digno  de  ínemoria,  demostrador  do  suc- 
cesso  futuro.  Porque  os  índios  do  Espirito  santo  impacientes  com  a  espe- 
ra da  Capitania,  e  mantimentos,  que  também  tardavão,  e  sobre  tudo  de 
sua  natural  inconstância,  estavão  amotinados  pêra  partir-se  com  suas  ca- 
noas pêra  suas  terras,  e  desamparar  os  Portugueses.  Chegavão  a  ponto  de 
executar  a  tenção:  ex  que  Joseph  em  lugar  distante,  sentio  em  si  impul- 
so de  ir  visital-os;  c  chegando  á  falia  coin  elles,  sem  ouvir-lhes  nada,  lhes 
estranhou  sua  resolução.  Vendo-se  descobertos,  derão  a  causa,  que  esta- 
vão alli  morrendo  á  fome,  e  não  podião  mais  esperar.  Então,  com  grande 
confiança  no  Cco,  lhes  empenhou  Joseph  sua  palavra :  que  não  seria  assi, 
se  não  que  antes  que  o  Sol  chegasse  a  tal  parte  do  Ceo,  mostrando-lh'a, 
chegarião  sem  duvida  os  mantimentos,  e  após  elles  pouco  depois  a  náo 
Capitania.  Cousa  maravilhosa !  Não  erão  dittas  as  palavras,  quando  appa- 
recèrão  três  barcos,  que  erão  mandados  a  buscal-os  ao  Espirito  santo. 
Pasmarão  os  índios,  e  fizerão  conceito  do  successo  mais  que  humano:  obe- 
decerão a  tudo,  resolutos  a  ajudar  na  empresa:  e  logo  em  a  manhãa  se- 
guinte chegou  também  a  náo  Capitania,  tudo  em  cumprimento  daditapro- 
pliecia  do  Padre  Joseph. 

74  Juntas  já  as  embarcações,  entrarão  todas  a  barra  do  Rio  de  Janei- 
ro: salta  em  terra  a  infanteria,  e  começa  a  fortificar-se  com  trincheiras,  é 
fossos,  no  lugar  onde  depois  chamarão  Villa  velha,  junto  a  hum  penedo  al- 
tíssimo, que  pela  forma  se  diz  Pão  de  assucar,  e  outra  penedia,  que  por 
outro  lado  cercava,  com  que  ficavão  em  parte  defendidos.  Iluma  só  cousa 
descontentava  do  lagar,  que  depois  de  roçadas  as  mattas,  acharão  agoa  de 
alagoa,  e  ella  tão  grossa,  e  nociva,  que  arrecearão  causasse  doenças  nos 


DO  ESTADO   DO  BRASIL  (ANNO  DE   1565)  43 

soldados.  O  que  considerando  hum  .Toseph  Adorno,  Genovez  nobre,  mora- 
dor de  S.  Vicente,  c  hum  Pedro  Martins  Namorado,  tomarão  á  sua  conta 
(entre  as  mais  occupacões)  fazer  com  sua  gente  hum  poço,  ou  cacimba, 
donde  beberão  agoa  doce.  Deste  lugar  liavião  de  sahir  a  conquistar  os 
nossos,  e  havião  de  ser  conquistados  com  desigual  poder;  porrpie'  suppos- 
to  que  erão  espantosas  aos  índios  nossas  armas  de  fogo,  e  nossas  náos 
possantes:  era  muita  mais  formidável  a  grande  multidão  de  canoas  volan- 
tes, e  guerreiras,  a  centos,  e  infinidade  de  Tamoyos  armados,  que  cobrião 
os  mares,  e  as  praias  todos  a  som  de  guerra:  elles  em  seus  lugares  cer- 
cados, valados,  insolentes  das  victorias  passadas,  e  sobre  tudo  ajudados, 
e  animados  com  náos  de  alto  bordo  da  nação  Francesa.  São  estes  Tamoyos 
entre  todas  as  nações  do  Brasil  ousados  no  acommeter,  sagazes  nas  ciladas, 
no  arco  destríssimos:  despedem  a  seta  com  tal  força,  que  passa  o  escu- 
do, e  chega  ao  braço:  tal  vez  succede  passado  o  corpo  todo,  continuar  a 
frecha,  e  pregar  qualquer  arvore  ainda  tremulando.  Com  esta  gente  o  ha- 
vião os  nossos. 

75  Joseph,  e  seu  companiieiro  Oliveira,  fazião  praticas  aos  soldados 
Europeos,  não  costumados  a  tal  modo  de  guerra.  Dizião-lhes,  que  era  uso 
do  gentio  o  que  vião;  mas  que  á  vista  d'aquelles  estrondos,  e  ferocidade, 
era  vendo  o  fogo  de  nossos  arcabuzes,  se  acobardão,  e  fogem:  que  aco- 
metessem constantes,  e  experimentarião  que  erão  verdadeiros  os  Padres. 
Aos  índios  nossos  confederados  praticavão  em  sua  lingoa  própria:  lembra- 
vão-lhes  a  perfidia  contraria,  com  que  quel^rárão  seus  inimigos  a  palavra 
das  pazes;  os  insultos  que  não  obstantes  ellas  lhes  fizerão,  cattivando,  ma- 
tando, e  comendo  as  mulheres,  e  filhos  de  muitos  d'elles,  pretendendo  as- 
solar, e  acabar  sua  Capitania:  sobre  tudo  lhes  traziãò  á  memoria  os  feitos 
valentes  de  seus  antepassados;  que  he  o  mais  fino  da  rhetorica  pêra  per- 
suadir esta  gente. 

7G  O  Capitão  mór  Estacio  de  Sá  mandando  ajuntar  a  infantaria,  fiillou- 
Ihes  n'esta  forma:  «Soldados  companheiros,  poucas  palavras  bastão  a  âni- 
mos resolutos:  não  he  de  hontem  nossa  empresa;  depois  de  largo  tempo 
e  de  varias  fortunas,  vimos  a  ver  o  que  havemos  de  gozar.  A  hum  ponto 
chegamos,  que  ou  nos  lia  de  custar  a  vida,  ou  nós  havemos  de  tiral-a  a 
todos  estes  bárbaros.  D'esta  estancia  não  ha  já  fazer  pé  atraz:  por  hum  lado 
nos  cercão  estes  penedos,  por  outro  as  agoas  do  Oceano;  pela  mão  direita 
e  esquerda  nossos  contrários :  se  d'este  cerco  houvermos  de  sair,  he 
força  que  seja  rompendo  inimigos:  estes  não  são  Ião  duros  de  vencer, 


4i  LlVnO  III  DA  CHnONÍCA  DA  CO^IPAMIIA  DE  JESU 

como  os  penedos;  nem  IHo  diíTiciiltosos  de  passar,  como  o  Oceano:  aqtiellcs 
seus  estrondos  calão  os  ouvidos,  mas  não  os  corações :  o  som  de  nossa 
mosquetaria  cala-lhes  ouvidos,  e  peitos:  á  vista  d'esta  os  vereis  logo,  ou 
cair,  ou  fugir:  não  podem  medir-se  seus  arcos  com  nossos  arcabuzes,  nem 
suas  frechas  com  nossos  pelouros.  Tenho  por  escusado  pór  diante  dos  olhos 
as  justas  causas  que  aqui  nos  trouxerão:  de  todos  he  sabida  a  arrogância 
d'estes  selvagens  licenciosos,  os  ódios  antiguos,  e  presentes,  com  que  sem' 
pre  nos  quebrarão  a  fé,  e  lealdade,  desprezando  a  confederação  de  nossa 
gente,  e  admittindo  a  de  nossos  contrários:  os  intentos  de  destruir-nos,  os 
assaltos  de  mar,  e  terra,  com  que  perturbão  toda  a  costa,  roubando,  cat- 
tivando,  matando,  e  comendo  como  feras  as  carnes  humanas  dos  nossos, 
e  bebendo-lhes  o  sangue.  Assaz  de  justificada  está  nossa  vingança ;  não 
será  bem  que  continuem  tantos  damnos,  nem  que  se  diga  pelo  mundo,  que 
tendo  metido  na  empresa  tanto  poder,  Portugal,  o  Brasil,  Rei  e  o  Estado; 
ficarão  huns  e  outros  frustrados.  Acabe-se  de  huma  vez  com  esta  praga, 
tirem-se  de  assombro  os  moradores,  livrc-sc  a  terra,  levantemos  n'ella  ci- 
dade, e  fique  esta  por  memoria  de  nossa  resolução  e  trabalhos;  e  pcra 
exemplo  dos  vindouros,  e  freio  de  semelhantes  bárbaros.  »E  como  íicárão 
animados  os  soldados,  dirão  os  successos  seguintes. 
-77  O  primeiro  assalto  que  derão  os  inimigos  aos  nossos,  foi  pouco 
depois  de  alojados,  aos  seis  de  ]\Iarço,  qiiasi  provando  sua  disposição  e 
valor.  Acommeterão,  segundo  seu  costume,  empennados,  com  repentinos 
alaridos,  estrondo  de  vozes,  e  grcos,  que  entre  aquella  grande  penedia  do 
sitio  fazia  pavor,  e  espanto.  Acharão  porém  valor,  e  resistência,  qual  não 
cuidavão :  pelejou-se  por  huma  e  outra  parte  com  esforço;  e  sabemos  que 
parou  o  estrondo  na  morte  somente  de  hum  índio  nosso  já  Christão,  dos 
naturaes  dos  campos  de  Piratipinga,  o  qual  poderão  fazer  prisioneiro,  e 
tanto  que  o  houverão  ás  mãos,  pêra  terror  de  seus  contrários,  o  amarrár- 
rão  em  hum  páo,  fazendo  d'elle  alvo  de  suas  frechas,  a  cujo  rigor  acabou  a 
vida.  Saio-lhes  com  tudo  cai^a  a  valentia;  porque  em  lugar  de  se  acovarda- 
rem, ficarão  os  nossos  com  tanto  brio  á  vista  de  tal  crueldade,  que  rom- 
pendo tranqueiras  sairão  fora  após  elles,  matai^ão  a  muitos,  poserão  os  vi- 
vos era  desconcertada  fugida,  e  fizerão  presa  nas  canoas  em  que  tinhão 
vindo,  e  se  aproveitarão  os  índios  de  seus  costumados  despojos. 

78  Aos  doze  yio  mesmo  mez  tiverão  noticia  os  nossos,  que  os  Ta- 
moyos  estavão  em  cilada  com  vinte  e  sette  canoas  de  guerra,  em  postos  onde  de 
força  havia  de  ir  a  dar  nossa  gente.  Aprestarão  dez  canoas  com  duas  lan- 


DO  ESTADO  DO  I3HASIL  (aN.NO  DE   1Í)G5)  45 

chas  de  remo,  e  forão  acommelel-os,  com  Ião  boa  fortuna,  que  ao  primei- 
ro encontro  se  íizcrão  senliores  de  liuma  das  principaes  canoas,  e  as  de- 
mais fugirão  á  forra  de  remo,  quaes  tímidas  aves  á  vista  de  hum  armado 
gavião. 

79  Forão  estes  dous  successos  principio  de  maiores  victorias :  á  vista 
delles  se  conta,  que  desprezavão  já  os  nossos  os  arcos  inimigos,  e  canta- 
vão  aquillo  da  Escrittura.  (íArcus  fortium  superatus  est,  et  infirmi  accinti  sunt 
robore.yy  Fortes  podíamos  chamar  aos  arcos  de  tanta  muUidão  de  T  amoyos, 
que  cobrião  os  campos;  e  h'aco  se  podia  chamar  nosso  poder  em  compa- 
ração do  de  tantos  bárbaros;  pelo  que  sendo  tão  grandes  nossos  successos 
contra  elles,  era  visto  que  sahía  nosso  valor  da  mão  de  Deos;  e  com  esta 
consideração  animava  Joseph,  e  seu  companheiro,  a  nossa  soldadesca.  Foi 
cousa  notada,  que  quasi  todas  as  semanas  d'alli  em  diante  alcançavam  os 
nossos  successos  felices,  ou  em  emboscadas,  uso  commum  de  pelejar  dos 
bárbaros,  ou  a  peito  descoberto,  mais  conforme  ao  nosso;  matando,  e  cat- 
tivando  muitos  dos  inimigos,  sem  perda  considerável  dos  nossos. 

80  Vio-se  aqui  hum  favor  conhecido  do  Geo,  admirado  não  só  entre  nós, 
mas  entre  os  mesmos  inimigos :  ponpie  muitos  pelouros  dos  Franceses 
davão  em  os  peitos  dos  nossos,  como  se  derão  em  duro  ferro,  caindo  aos 
pés,  ou  tornando  frustrados  pêra  trás:  e  as  feridas  que  alguns  recebíão 
ainda  que  mortaes,  com  tal  facilidade  saravão,  que  era  força  atlribuir-se  a 
cura  ao  favor  divino.  U  que,  porque  mais  claramente  se  visse,  e  não  pu- 
desse ser  attribuido  a  arte  humana  de  hum  Cirurgião  Ambrósio  Fernandes, 
que  alli  curava,  e  pretendia  attribuir  estes  successos  a  sua  gram  pericia : 
succedeo,  que  no  primeiro  encontro  que  depois  houve,  saindo  clle  ao  con- 
ílicto  ficou  morto;  e  comtudo,  com  a  mesma  facilidade  viviam  d'alli  em 
diante  os  soldados  mortalmente  feridos.  He  caso  que  refere  o  Padre  Joseph 
de  Anchieta:  e  diz,  que  iiuns  o  attribuião  a  favor  da  Virgem  nossa  Senhora, 
cm  cuja  devação  andavão  desti'0s  os  soldados:  outros  ao  Mar tyr  insigne  S. 
Sebastião,  cujo  favor  por  Padroeiro  invocavão;  e  foi  Jtiseph  companheiro, 
e  testemunha  de  vista  fidedigna.  ui 

81  Foi  mais  notável  o  successo,  que  aconleceo  nos  primeiros  de  Ju-^' 
nho.  Appareccrão  á  vista  de  nosso  arraial  três  náos  poderosas,  e  ])em  ar- 
tilhadas dos  Franceses,  c  huma  somma  innumeravel  de  canoas  de  guemi, 
que  as  acompanliavão ;  contavão-se  címiIo  e  trinta,  quasi  o  resto  de  todo  o 
poder  inimigo.  Presenlarão  batalha  aos  nossos,  fcslivaes  todos,  com  suas 
costumadas  libres  de  tintas,  e  pennas,  alaridos  de  vozes,  e  búzios,  qu(í 


46 


LI\1\0  III  DA  CimONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 


atroavão  os  mares,  e  os  montes;  e  só  pôde  cuidal-os,  quem  sabe  o  costu- 
me d'estes  bárbaros.  Lançava  cada  qual  a  frecha  mais  empennada,  e  de 
mais  estima,  sobre  o  arraial,  por  principio  de  guerra,  e  como  desafio.  Não 
desfallecem  porém  os  corações  dos  nossos:  e  primeiro  que  tudo  rece- 
bem-os  com  semelhantes  sinaes  de  festa,  disparando  sobre  elles  quantidade 
de  artilharia,  e  arcabuzaria,  com  tão  bom  emprego,  que  a  capitania  ini- 
miga (feridos,  e  perturbados  os  marinheiros)  foi  dar  á  costa  entre  huma 
penedia,  donde  apenas  depois  de  grande  força,  e  alguns  mortos,  a  tirarão 
pêra  o  mar.  Salva  a  capitania,  acommetêrão  os  inimigos  em  ordem  de 
guerra:  as  três  nãos  Francesas  (qual  outro  Ethna)  desfazendo-se  em  fogo 
de  pelouros,  bombas,  alçanzias:  os  Tamoyos  cobrindo  os  ares  com  nuvens 
de  frechas,  que  vindo  caindo  sobre  o  arraial  a  som  do  estrondo  da  artilha- 
ria, representava  hum  chuveiro  entre  trovões  medonho.  Porém  sérvio  de 
amparo  a  procteção  do  insigne  Maiiyr  S.  Sebastião,  que  cora  fé  invocarão; 
porque  passada  a  tormenta,  correndo-se  as  estancias,  não  se  achou  morto 
algum;  sendo  que  da  parte  inimiga  o  forão  muitos,  e  os  vivos  postos  em  fu- 
gida; porque  não  estava  também  ociosa  no  mesmo  tempo  da  tormenta  nossa 
artilharia. 

82  Aqui  refere  o  Padre  Joseph  de  Anchieta  hum  caso  tido  por  mila- 
groso naquelle  arraial.  Estava  no  tempo  do  combate  referido,  na  Igreja, 
posto  em  oração  o  Padre  Gonçalo  de  Oliveira,  encommendando  a  Deos  o 
successo  (qual  Moyses  o  dos  filhos  de  Israel:)  era  esta  feita  de  palma;  e 
como  as  frechas  vinhão  de  alto,  trespassavão  o  tecto,  e  lados;  e  foi  cousa 
admirável,  que  sendo  em  grande  quantidade,  ficarão  todas  a  redor  do  Pa- 
dre, pregadas  no  chão,  sem  que  alguma  d'ellas  lhe  tocasse.  Virão  isto  os 
que  recorrião  de  quando  em  quando  á  Igreja,  e  espantados  do  successo, 
que  tinhão  por  milagi^e,  cobravão  novo  animo  pêra  tornar  â  guerra. 

83  Tornando  ao  intento:  o  Capitão  Estacio  de  Sa,  não  satisfeito  de  de- 
fender-se  dentro  do  arraial,  quiz  mostrar  que  tinha  iwder  pêra  buscar  o 
inimigo  fora  d'elle:  acommetêo  as  náos  Francesas,  e  fez  n^ellas  destroço  de 
muitos  mortos,  e  feridos  com  a  artilharia  de  sua  Capitania.  Despedio  no 
mesmo  tempo  esquadras,  que  acommetessem  as  aldeãs  dos  contrários,  ou- 
tras as  canoas  de  pesca,  que  erão  grande  numero;  e  em  todas  fizerão  boas 
presas:  de  duas  aldeãs  especialmente  fizerão  prisioneiros  os  moradores 
todos:  com  que  ficou  assaz  atormentado  o  inimigo. 

8i-    Aos  quinze  de  Outubro  seguinte  foi  outro  successo  digno  de  histo- 
ria. Sahirão  selte  canoas  nossas  em  busca  de  presa,  mas  virão-se  a  ponto 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (aNNO  DE   15GÍ)  47 

serem  ellas  prisioneiras  do  inimigo:  porque  lhes  sahirão  do  cilada  sessenta 
tí  quatro,  que  dando  ao  remo  velocissimo,  em  breve  tempo  as  poserão  em 
cerco  perigoso ;  porque  de  todas  as  partes  juntamente  despedião  frechas 
contra  elias:  começou-se  alli  huma  peleja  bom  ferida  de  huma  e  outra  parte: 
crão  os  nossos  de  resolução,  e  valor;  porém  no  meio  de  tão  grande  poder 
era  força  arreceassem  o  snccesso.  E:v  que  nesta  conflicto  acodem  de  soc- 
corro  aos  nossos  outras  settc  canoas,  á  visía  das  quaes,  como  se  forão  cem, 
tomaram  animo  os  soldados  contra  sessenta  e  quatro:  acommetcm  já  aquel- 
les,  dos  quaes  erão  acommetidos;  e  depois  de  larga  peleja,  sahirão  com  vi- 
ctoria,  senhoreando  quatro  canoas,  destroçando,  c  pondo  em  fugida  as  de- 
mais. 

85  Seja  a  ultima  não  menos  illustre  façanha  deste  anno.  Sahira  o  capi- 
tão mór  Estacio  de  Sá  com  hum  troço  de  seus  soldados,  com  intento  do 
dar  sobre  huma  aldeã :  teve  noticia  no  caminho,  como  em  outra  mais  afa- 
mada se  tinha  ajuntado  numerosa  quantidade  de  índios,  por  causa  de  certa 
devação  chamada  a  Santidade:  converteo  o  açoute  sobre  esta,  e  pondo-a 
em  cerco  assi  a  opprimio  a  ferro,  e  a  fogo,  que  cxceptos  poucos  que  po- 
derão fugir,  todos  os  outros,  ou  morrerão,  ou  se  entregarão  cattivos:  pas- 
sarão de  trezentos.  Forão  feridos  alguns  dos  nossos,  entre  os  quaes  hum 
soldado  por  nome  António  da  Lagea,  querendo  livrar  huma  mestiça  de  Sam 
Vicente,  que  entre  os  inimigos  estava  cattiva,  ficou  cercado  do  incêndio;  e 
sahio  d  elle  tão  maltratado,  que  sendo  levado  ao  arraial,  em  breves  dias 
acabou  a  vida. 

80  Neste  tempo  foi  chamado  dentre  o  estrondo  das  armas  pêra  a  ci- 
dade da  Bailia  o  Irmão  Joseph  de  Anchieta  a  ordeiiar-se  de  ordens  sacras: 
e  de  caminho  lhe  ordenou  o  padre  Mamei  de  Nóbrega  (a  cujo  cuidado 
estava  o  governo  de  Sam  Vicente,  e  o  da  capitania  do  Espirito  santo)  que 
visitasse  a  casa,  e  aldeãs,  que  alli  tinha  a  Comj)anhia,  e  disposesse  irei- 
las  o  que  melhor  julgasse,  afim  de  maior  perfeição.  Bem  se  deixa  ver 
deste  feito,  o  grande  conceito  que  tinhão  os  Superiores,  da  prudência, 
authoridade,  c  virtude  de  Joseph;  pois  a  hum  liomem  ainda  não  Sacerdote 
oncarregão  de  oílicio  de  tanto  i)orU;  na  Religião.  Em  higar  de  Joseph  acu- 
diu o  padre  Manoel  de  Nóbrega  ao  ari'aial  com  outros  companheiros,  para 
o  Padre  ílonçalo  de  Oliveira,  os  quaes  revezava  por  vezes,  com  occasião 
de  soccorros,  (pjo  mandava  fi-efiuen temente  ao  Capitão  mór,  e  soldados  de 
refrescfj,  canoas  o  índios,  animando-os,  o  consolando-os  com  suas  cartas, 
a  levar  por  diante  a  empresa,  que  entendia  era  de  Deus. 


48  LIVRO  III  DA  CimONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

87  No  Espirito  santo  fez  Joseph  de  caminho  o  oíTicio  a  que  fora  man- 
dado; e  foi  lium  alivio  geral  de  toda  aqiiella  villa.  Em  nossa  Casa  conso- 
lou, e  animou  os  Religiosos,  tristes  ainda  da  fresca  morte  do  bom  compa- 
nheiro o  Padre  Diogo  Jacome,  e  lastimados  do  rigor  da  cruel  pestilên- 
cia passada.  Visitou  as  aldeãs,  e  chorou  com  os  índios  suas  misérias,  e 
com  sua  costumada  eloquência  na  própria  lingoa  brasílica,  os  animou  a  le- 
var com  paciência  aquelle  açoute,  que  Deos  lhes  quiz  mandar  por  seus 
altos  juízos,  e  por  ventura  pêra  salvação  dos  que  n'elle  acabarão  a  vida. 
Dispoz  e  remediou  muitas  cousas  na  Casa,  e  aldeãs,  de  maior  perfeição,  c 
serviço  de  Deos :  e  deixando  edificada  aquella  villa  com  suas  praticas,  e 
conhecida  santidade,  se  embarcou,  seguindo  sua  viagem  pcra  a  cidade  da 
Bahia. 

88  O  anno  de  mil  e  quinhentos  e  sessenta  e  seis  continuava  na  Bahia 
o  Padre  Luis  da  Grani  na  reformação  das  aldeãs,  que,  como  vimos,  os 
annos  passados  ficarão  assoladas  do  doenças,  e  fomes:  mas  já  com  seu  fa- 
vor, e  ajuda  das  duas  cabeças,  ccclesiastica  e  secular,  ambas  zelozas  do 
bem  dos  índios,  tinhão  tornado  a  seu  teor  antiguo,  posto  que  não  ao  nu- 
mero de  sua  gente,  as  cinco  que  ficarão.  No  CoUegio  continuava  o  aumen- 
to das  classes  de  Latim,  e  Casos,  com  frequência  de  estudantes,  e  reforma- 
ção de  doutrina.  Chegou  a  este  CoUegio  o  Irmão  Joseph  de  Anchieta,  que 
no  fim  do  anno  passado  dissemos  partira  pêra  esta  cidade  com  escalla  pela 
capitania  do  Espirito  santo.  Foi  recebido  commummente  de  todos  como  me- 
recião  suas  grandes  virtudes,  notórias  já  em  todo  o  Brasil.  Este  hospede 
conton  mais  por  extenso  ao  Governador  Mem  de  Sá  (como  quem  fora  tanta 
parte  em  tudo)  o  estado  da  guerra  do  Rio,  as  maravilhas  que  Deos  tinha 
obrado  por  meio  do  Capitão  mór  Estacio  de  Sá,  e  seus  soldados;  porém 
dizia,  que  como  erão  os  inimigos  innumeraveis,  de  força  se  havião  de  ir 
extinguindo  de  vagar  com  tão  limitado  poder,  como  era  o  nosso:  que  se 
queria  Sua  Senhoria,  que  a  guerra  se  acabasse  por  huma  vez,  seria  neces- 
sário meter  mais  cabedal ;  e  que  com  este  lhe  parecia  que  estava  certa  a 
ultima  víeíoria:  e  poderíamos  então  fundar  a  cidade,  que  Sua  Alteza  preten- 
dia, afugentados  por  huma  vez  os  Tamoyos  pêra  seus  sertiJes,  o  presidia- 
das por  algum  tempo  as  estancias  marítimas.  Toda  esta  pratica  de  Joseph 
agradou  muito  a  Mem  de  Sá,  i)or  ser  conformo  ás  mais  verdadeiras  noti- 
cias, e  experiência.  O  Bispo  D.  Pedro  Leitão  ordenou  logo  de  ordens  sa- 
cras ao  Irmão  Joseph,  com  grande  alegria  dos  corações  de  ambos :  do 
Bispo,  porque  estava  vendo  os  serviços  de  Deos  que  havião  de  resultar 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (a.\NO  DE   í5GG);;i  '  40 

daquclKis  ordens  a  toda  a  Igreja  do  Brasil :  de  Josepli,  porque  desejava 
einpi'egar-se  coiíi  mais  fructo  no  serviço  das  almas. 

89  Espei'ava-se  com  grande  cuidado  o  padi'e  Ignacio  de  Azevedo,  que 
o  anno  passado  dissemos  fora  eleito  na  Congregação  de  Roma  por  Visitador 
geral  desta  Província  (e  foi  o  primeiro  que  teve)  com  grandes  poderes,  e 
graças  do  Padre  Geral,  e  de  Sua  Santidade  o  Papa  Pio  Quinto,  que  então 
governava  a  Igreja  de  Deos.  Por  este  tempo  tinha  chegado  de  Roma  a 
Portugal,  buscado  companheiros,  embarcado-se  pêra  o  Brasil,  centro  de 
seus  desejos;  e  achava-se  então  nas  ilhas  do  Cabo  verde.  Aqui  deo  mostras 
de  quem  era,  no  publico,  e  no  particular,  ajudando  aquelles  moradores  no 
exercício  de  nossos  ministérios,  per  si,  e  per  seus  companlieíros,  com  lou- 
vável fructo.  Sabia  pelas  praças,  à  imitação  de  hum  Xavier  no  Oriente;  en- 
toava o  signal  da  Cruz,  e  após  elle  ensinava  a  Doutrina  Chrislãa  aos  meni- 
nos, e  á  volta  destes  aos  grandes,  com  melhoramento  de  muitos  peccado- 
res.  Ouvia-se  como  hum  pregão  do  Ceo  naquella  terra,  com  grande  agra- 
do espiritual  de  todo  o  povo,  e  do  Bispo  que  então  era  daíjuella  Diecesi, 
que  pedio  lhe  deixasse  por  escrito  a  forma  da  doutrina  que  ensinava,  pcra 
ir  continuando  com  ella. 

90  Chegou  finalmente  á  Bahia  o  Padre  Ignacio  de  Azevedo  em  vinte  o 
quatro  de  Agosto  do  presente  anno:  f(ji  tão  bem  recebido  como  desejado  : 
l)arece  pronosticavão  já  os  corações  de  todos  a  mór  ventura  a  que  havia 
de  subir,  de  consagrar  seu  sangue  pela  Fé  de  Christo.  Trazia  patente  de 
nosso  Reverendo  Padre  Geral  (grande  affeiçoado  seu,  pelo  tempo  em  que 
o  communicára  em  Portugal)  com  todos  seus  poderes  pêra  que  visitasse  a 
Província,  disposesse  as  cousas  de  nossa  Companhia  na  forma  das  Consti 
tuições  que  de  novo  se  tinhão  praticado,  e  voltasse  a  Roma,  se  bem  lhe 
parecesse,  a  dar  [)lenaria  informação;  porque  era  esta  lá  desejada,  e  linha 
fallecido  na  viagem  o  Padre  Leonardo  Nunes,  que  a  levava.  Tiazia  comsigo 
pêra  soccorro  d'esta  seara  do  Brasil  cinco  obreiros,  a  saher:  os  Padres 
Amaro  Gonçalves,  António  da  Rocha,  e  Ballhasar  Fernandes,  e  os  Iimãos 
Pedro  Dias,  e  Estevão  Fernandes,  além  de  outros  dous,  que  trouxera  pêra 
cá  receber  na  Companhia,  Domingos  Gonçalves,  e  António  de  Andrade;  c 
(luasi  no  mesmo  tempo  chegarão  mais  dous  Padres,  Miguel  do  Rego,  e 
António  de  Aranda. 

91  O  assento  da  patente,  c  o  teor  d"ella,  que  está  lançada  nf)  livro  das 
Visitas  do  Collegio  da  Bahia,  he  o  seguinte.  «Aos  vinte  e  (|uali-o  dias  do 
mcz  de  Agosto  de  loGG  chegou  o  Padre  ignacio  de  Azevedo  da  Coiniianhia 

\0L.  II  4 


50  LIVRO  III  DA  ClIRONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

de  Jesu,  professo  de  quatro  votos,  a  este  CoUegio  da  cidade  do  Salvador 
Bahia  de  Todos  os  Santos,  o  qual  por  mandado,  e  ordem  de  nosso  Padre 
Geral  Francisco  de  Borja,  veio  a  visitar  esta  Provincia  do  Brasil:  e  estando 
aqui  o  Padre  Luis  da  Gram,  Provincial,  e  os  mais  Padres  do  CoUegio,  e  os 
que  residião  nas  aldeãs  dos  índios,  que  pêra  esse  eíTeito  íorão  chamados,  fal- 
lou  a  todos  e  lhes  deo  razão  de  sua  vinda,  e  fez  ler  a  Patente  que  trazia 
de  nosso  Padre  Geral,  cujo  treslado  era  este :  Francíscus  de  Borjea  Societa- 
tis  Jesu  Proepositus  Generalis,  cltarissimo  in  Ckristo  fratri  Domino  Ignatio 
de  Azevedo  Professo  ejiisdem  Societatis,  sahilem  in  eo,  qui  est  vera  salus. 
Cúm  visitationis  múnus  ad  profeetum,  et  bonam  gobernationem  nostrw  Socie- 
tatis  per  necessarium  per  nos  ipsos  oblre  in  Provincia  Brasilim  non  possimus : 
cúmque  de  tua  infegritate,  prudentia,  et  nostri  Instituti  plena  cognitione 
multíim  in  Domino  confidamos:  te  nobis  ad  prcedictum  múnus  substituendwn 
esse  duximus.  In  prcedicta  ergo  Provincia  te  visítalorem  cum  omnia  ea  au- 
thuritate,  quam  nos  in  pressentia  habiluri  essemus,  et  alioquin  jiixta  instru- 
ctionem,  qunm  á  nobis  habes,  tam  in  ipsum  Provincialem^  et  Redores  (quos, 
si  videbitur,  ofpciis  suis  Uberare,  et  alios  subslituere  possís)  quam  in  alias 
quásuis  ]ier sonos,  Collegia,  ac  Domos  Societatis,  constiluimus^  in  nomine 
Patris,  et  Filii,  et  Spirltus  sancti:  et  ejns  bonitatem  precamur,  ut  luce  sues 
sapienti^e  te  in  omnibus  dirigere,  et  gralice  sme  donis  juvare,  ut  ad  ipsius 
gloriam,  et  animarum  profeetum  transigas,  dignetur.  Romw  24  Februaril 
io66.  Franciscus. 

92  O  estado  em  que  achou  esta  provincia,  era  o  seguinte.  No  Gollegio 
da  Bahia  havia  trinta  Beligiosos,  huma  Classe  de  ler,  escrever,  e  doutrina 
christãa  dos  meninos,  duas  de  Latim,  huma  de  Casos.  Tinha  annexas  cin- 
co aldeãs,  e  cada  qual  d'ellas  hum  Padre,  e  hum  Irmão.  Em  Pernambuco 
residião  dous  Religiosos.  Na  villa  dos  Ilheos  três.  Na  de  Porto  seguro  dous. 
Na  do  Espirito  santo  quatro,  com  Classe  de  meninos  de  ler,  escrever,  e 
doutrina,  e  duas  aldeãs.  Em  S.  Vicente  doze  com  duas  Classes,  huma 
de  ler,  escrever,  e  doutrina,  e  outra  de  Latim.  Em  Piratininga  seis  com 
algumas  aldeãs.  Na  guerra  do  Rio  de  Janeiro  dous.  Três  mezes,  depois 
de  chegado,  gastou  o  Padre  Ignacio  em  visitar  o  Gollegio  da  Bahia,  e  suas 
aldeãs,  dispondo  as  cousas  com  grande  zelo,  segundo  as  Constituições, 
que  trazia  approvadas  de  novo  pelo  Summo  Pontífice.  Era  n"este  tempo  Rei- 
tor d'este  Gollegio  o  Padre  Gregório  Serrão;  e  n'elle  estava  todo  o  poder, 
e  administração  atéaquelle  tempo:  porém  o  Padre  Visitador  dislinguio  os 


DOESTADO  DO  BRASIL  (aNNO   DE    loGG)  t')\ 

oíTicios  na  forma  das  novas  Constituições,  fazendo  Ministro,  que  cm  segun- 
do lugar  governasse  as  cousas  do  Collegio,  e  Sottoministro  Irmão  coadju- 
tor, que  cuidasse  das  cousas  mais  meudas  da  Casa,  e  zelasse  sobre  a  ob- 
servância das  Regras,  como  já  estava  em  uso  em  outras  partes  da  Compa- 
nhia, com  mais  alivio  dos  Superiores  ordinários,  e  mais  facilidade  do  governo. 

93  Dispostas  estas,  e  semelhantes  cousas,  deixando  o  Padi"e  Affonso 
Pires,  Religioso  de  provada  virtude,  em  lugar  do  Padre  Provincial,  pêra 
melhor  observância  das  regras  novamente  introduzides,  e  pêra  que.  andan- 
do volante  pelas  aldeãs,  as  visitasse,  consolasse,  e  confessasse  os  que  n"ellas 
vivião;  e  deixando  outrosi  ordem,  que  se  acrescentasse  o  edifício  do  Col- 
legio, e  começasse  Casa  de  Noviciado:  tratou  de  embarcar-se  a  visitar  o 
resto  da  Província,  e  ver-se  com  o  Padre  ^Manoel  de  Nóbrega,  de  cujo  con- 
selho tinha  grande  estima.  Estava  n'este  tempo  de  partida  pêra  o  Rio  de 
Janeiro  o  Governador  Mem  de  Sá  com  soccorro  a  concluir  as  cousas  da 
guerra,  e  fundar  alh  huma  cidade  por  ordem  dEl-Rei  D.  Sebastião,  na  con- 
formidade do  parecer  de  Joseph.  ília  com  elle  o  Bispo  D.  Pedro  Leilão  a 
visitara  sua  Diecesi.  Nesta  tão  boa  occasião  se  embarcou  o  Padre  Ignacio 
de  Azevedo,  e  levou  comsigo  o  Padre  Provincial  Luis  da  Gram,  e  os  Padres 
Joseph  de  Anchieta  de  novo  ordenado,  António  Rodrigues,  Balthasar  Fer- 
nandes, e  António  da  Rocha;  e  derão  á  vela  em  Novembro  do  presente  an- 
uo de  156G. 

94  Em  S.  Vicente  continuavão  nossos  Religiosos,  e  geralmente  todos 
os  moradores,  com  mais  quietação,  com  as  pazes  dos  Tamoyos  vizi- 
nhos, e  com  a  guerra  dos  mais  aífastados,  que  os  Portugu(.'ses  lhes  fazião 
no  Rio.  O  Padre  Nóbrega,  como  tão  empenhado  no  successo  d'ella,  desve- 
lava-se  apertando  com  Deos,  e  despedindo  soccorros  cada  passo  de  canoas, 
gente  e  maulimentos,  que  agenciava  com  o  povo,  e  índios. 

95  Os  successos  da  guerra  do  Rio  forão  vários  por  todo  este  anuo,  mas 
de  ordinário  venturosos  de  nossa  parle;  porque  continuava  o  favor  de  seu 
padroeiro  o  invicto  Martyr  S.  Sebastião.  Desconfiavão  já  os  Tamo3()s  do 
segredo  de  suas  ciladas;  porque  até  os  pássaros,  dizião  ellcs,  nos  avisavão 
delias:  e  foi  o  caso  gracioso.  Estavão  estes  bárbaros  postos  em  cilada  em 
humas  ilhas  fora  da  barra,  ofide  coíitumavão  ir  a  pescar  as  canoas:  alli  es- 
condidos perseverarão  alguns  dias,  esperando  conjunção  da  chegada  das 
nossas:  eis  que  no  próprio  dia  em  "cjue  estas  havião  de  partir,  apparece  so- 
bre o  arraial  hum  pássaro  grande,  chamado  P.nl)ifoiçado,aliavessa(loc(im hu- 
ma frecha,  voando  de  huma  i)era  oulia  [jarle.  lanarão  o;^  índios  das  canoas,  e  por 


52  LIMIO  II!  DA  CHRONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

este  pássaro,  como  se  trouxera  recado,  soiiberão  que  nas  diltas  ilhas  esta- 
vão  seus  contrários;  porque  são  aquelies  pássaros  natnraes  d'elias,  e  de  lá 
viulia  este  voando;  e  collegirão  que  o  frecharão  os  Tamoyos,  que  alli  devião  es- 
tar em  cilada;  e  logo  do  empennar  da  frecha  o  virão  mais  claro:  pararão  com 
as  canoas,  c  soíTrêrão  antes  a  falta  de  peixe,  por  evitar  as  frechas  de  seus  con- 
trários. 

90  Deixando  outros  de  menos  conta,  direi  o  ultimo  successo,  digno  da 
memoria  dos  séculos.  Aconteceo  melado  de  Julho  d'este  corrente  anno  de 
io66,  e  foi  assi.  Depois  que  experimentarão  os  Tamoyos  o  como  ferião 
nossas  armas,  e  que  pelejando  em  tantas  occasiões,  não  lhes  hia  bem  do 
partido,  determinarão,  aconselhados  dos  Franceses,  empenhar  por  huma  vez 
o  poder.  Meterão  o  resto  de  sua  potencia  em  cento  e  oitenta  canoas  bem 
armadas,  guiadas  pelos  mais  destros  Capitães  seus,  e  da  nação  Francesa 
(cem  d'estas  capitaneava  hum  aíTamado  bárbaro  por  nome  Guaixará,  senhor 
de  Cabo  Frio.)  Partio  esta  grande  chusma  mui  em  segredo  até  certa  para- 
gem, cousa  de  huma  legoa  distante  do  arraial  dos  Portugueses,  e  alli  ficou  em 
escondida  cilada  no  resaco  detrás  de  huma  ponta,  que  fazia  o  mar.  D'aqui  des- 
pedirão hum  pequeno  numero  d"ellas,  industriadas  n'esta  forma;  que  fossem 
oíTerecer  batalha  aos  Portugueses  defronte  de  seus  alojamentos,  e  que  sa- 
hindo-lhes  (como  aquelies  que  não  desprezão  desafio  algum)  fingissem  que 
vinhão  retirando-se,  e  os  trouxessem  pouco  e  pouco,  até  metêl-os  na  cila- 
da, donde  sahiria  o  resto  das  canoas,  e  matarião  aquella  parte  de  seus  ini- 
migos, que  sempre  serião  os  mais  lustrosos,  e  esforçados;  os  quaes  dimi- 
nuídos, acommelerião  o  arraial  com  menos  resistência. 

97  Tinha  partido  de  nosso  arraial  huma  canoa,  em  que  hia  hum  Fran- 
cisco Velho,  mordomo  do  Martyr  S.  Sebastião  seu  padroeiro,  em  busca  de  ma- 
deira pêra  huma  Capella  do  Santo.  Esta  foi  a  primeira  que  encontrou  as  poucas 
canoas,  que  a  modo  de  negaça  vinhão  ao  intento  já  ditto:  poserão-na  em 
cerco,  brigavão  com  ella  com  detença  manhosa.  Era  á  vista  do  arraial,  en- 
trou em  zelo  o  Capitão  mor,  prelendeo  soccorrel-a,  e  buscando  canoas, 
achou  somente  quatro  (porque  as  demais,  ou  erão  á  pesca,  ou  se  tinhão 
acolhido  enfadadas  da  guerra,  especialmente  as  de  dous  lAIamalucos  valen- 
tes. Domingos  Luis,  e  Domingos  de  Braga,  que  pouco  antes  tinhão  partido  pê- 
ra S.  Vicente.)  N"estas  quatro  se  embarcou  o  melhor  dos  Capitães  da  guerra, 
e  foi  acommeter  o  inimigo:  porém  elle,  que  eslava  bem  industriado,  aos 
primeiros  lanços  do  combate  virou  as  costas,  e  deo  a  fugir:  seguirão  os 
nossos  o  alcance  com  seu  costumado  valor;  i)orém  quando  cuidavão  que 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (aNNO  DE    IÍJ60)  f)3 

levavão  de  vencida  estas  poucas,  descobrirão  a  ponta,  e  d'ella  virão  que 
saliia,  rompendo  os  mares,  o  restante  da  maquina  de  canoas  que  faltavão 
pêra  cento  e  oitenta,  ligeiras  como  vento,  a  vinte  c  trinta  por  banda,  igual- 
mente remeiros,  e  frecheiros,  açoutando  as  agoas,  atroando  os  ares,  en- 
chendo as  nuvens  de  frechas,  e  como  celebrando  já  a  victoria,  que  davão 
por  ganhada.  E  na  verdade  assi  fora  sem  duvida,  se  o  Ceo  com  maravilha 
clara,  e  o  invicto  padroeiro  S.  Sebastião,  não  acudirão  com  favor  seu  pro- 
digioso; porque  hindo  resistindo-lhes  os  nossos  valerosamente,  appellidando 
o  Santo  padroeiro,  de  improviso  ao  disparar  de  huma  roqueira  na  fúria 
maior  da  peleja,  tomou  fogo  a  pólvora  da  canoa,  e  levantou  hum  incêndio 
grande,  a  cuja  vista,  como  de  portento  insólito,  levantou  juntamente  hum 
grande  alarido  a  mulher  do  Principal  da  canoa  contraria,  que  seguia  os 
nossos  (e  estes  costumão  embarcar  comsigo  em  semelhantes  actos)  dizendo 
a  vozes,  que  havia  hum  incêndio  mortal,  que  havia  de  consumir  aos  seus, 
que  fugissem,  fugissem  á  pressa.  E  foi  bastante  o  espanto  d"esta  só  índia 
pêra  meter  tal  terror  em  toda  a  chusma,  que  não  só  aquellas,  mas  todas 
as  outras  canoas  fizerão  volta,  e  se  pozerão  em  fugida  desordenada,  quaes 
se  viera  sobre  elles  o  fogo  de  hum  monte  Ethna.  Ficarão  desassombrados 
os  nossos,  e  então  começarão  a  contar  de  espaço,  o  com  mais  advertência 
o  numero  extraordinário  de  embarcações,  com  quem  o  havião,  e  não  acaba- 
vão  de  crer  o  perigo  de  que  Deos  os  livrara  por  meio  de  seu  Santo  padroeiro. 
98  Em  desembarcando  cm  terra  forão  á  Igreja,  e  fizerão  acção  de  gra- 
ças por  tão  evidente  favor,  que  atlribuião  commummcnte  ao  invicto  Martyr 
Padroeiro:  e  d'aqui  ficou  introduzida  n"esta  cidade  a  festa  das  Canoas,  que 
até  o  tempo  presente  costuma  celebrar-se  todos  os  anãos  em  dia  do  I\Iar- 
tyr  S.  Sebastião.  Aqui  souberão  mais  em  forma  as  circunstancias  todas  do 
c^so;  porque  os  Tamoyos  todos  na  mesma  conformidade  perguntavão  de- 
pois aos  nossos  com  grande  espanto,  quem  era  aquelle  soldado  giMitiliio- 
raem,  que  andava  armado  no  tempo  do  confiicto,  e  saltava  iiitrepiílo  em 
nossas  canoas?  «Porque  a  vista  deste  (dizião)  nos  meleo  terror.  E  foi  a  cau- 
sa de  fugirmos,  igualmente  á  do  incêndio.  Foi  tido  o  caso  por  milagroso. 
Eu  n'isto  não  determino  nada;  acho  porém  (|ue  fazem  Ibrça  as  palavias  de 
Joseph,  que  escrevendo  delle  diz  assi.  «A  mão  de  Deos  andou  alli,  e  mos- 
trou n'esta  occasião  sua  misericórdia,  e  providencia:  foi  medo  que  Deos 
nosso  Senhor  pôz  aos  índios  ;i  vista  d*a(iiiell(^  incêndio;  e  particular  favoí- 
do  glorioso  Martyr  S.  Sebastião,  que  alli  foi  visto  dos  Tamoyos,  que  per- 
guntavão depois,  quem  era  hum  soldado  que  andava  armado,  muito  geu- 


54  i.ivno  ni  da  chronica  da  companhia  de  jesu 

lilhomnm,  saltando  dfí  ranoa  em  canoa,  o  osespantára,e  fizera  fugir?»  Mui- 
to faz  em  favor  (Ycsio  caso  o  ditto  de  tão  parando  varão. 

99  Estando  n'estes  termos  as  cousas  da  guerra,  entrou  o  anno  de  15G7, 
e  com  elle  a  armada  do  Governador  Mem  de  Sá,  que  da  Bahia  tinha  par- 
tido em  Novembro/' passado,  no  Rio  de  Janeiro.  Foi  a  alegria  geral  dos  sol- 
dados, que  tinhão' passado  espaço  do  dous  annos  tão  grandes  perigos,  c 
trabalhos,  conlo  se  deixa  ver  de  guerra  tão  continua,  e  sitio  tão  incommo- 
do,  e  falto  de  sustento  humano. E  nós,  supposlo  este  encontro,  escusare- 
mos subir  este  anno  á  Bahia,  como  costumávamos:  porque  n"esta  armada 
vem  o  bom  dos  Religiosos  d'aquelle  Collegio;  nem  d'elle  temos  por  hora 
mais  que  as  noticias  do  fruto  ordinário. 

100  Constava  a  armada  de  bom  numero  de  navios,  supposto  que  se  não 
diz  o  certo.  Trazia  soldados  de  valor,  e  entrou  a  barra  aos  dezoito  de  Ja- 
neiro na  antevespora  do  Martyr  S.  Sebastião  (e  já  começa  o  favor  do  Santo 
Padroeiro,  e  o  bom  pronostico  de  futuros  successos;)  o  que  não  advirto  sem 
causa:  porque  entrando  da  barra  pêra  dentro,  considerando  Mem  de  Sá,  e 
seus  adjuntos,  a  boa  estreia  da  conjuncção  do  tempo,  resolverão  que  no 
próprio  dia  do  Santo  acommetessem  sem  mais  demora  as  principaes  forti- 
ficações do  inimigo  (que  vinhão  a  ser  duas  aldeãs  de  môr  conta,  abasteci- 
das de  gente,  fossos,  cavas,  e  artilharia,  que  parecião  inexpugnáveis;)  por 
que  era  de  crer,  que  quem  lhes  dava  a  boa  fortuna  do  tempo,  lhes  daria 
também  a  do  sueccsso  prospero.  Saltarão  em  terra,  proposerão-se  outra 
vez  as  razões,  presente  o  Capitão  mór  Estacio  de  Sá,  e  os  que  tinhão  voto 
nas  armas:  e  ajustando-as  com  as  circunstancias  presentes,  parecerão  boas, 
e  que  o  repente  do  assalto  causaria  maior  terror  no  inimigo  incerto  do 
poder,  que  não  depois  de  certificado;  e  nos  soldados  vindos  de  novo  seria 
mais  firme  o  esforço,  antes  de  chegar  a  considerar  o  poder  contrario.  Lan- 
çou o  Bispo  sua  benção,  encommendárão  os  Religiosos  o  negocio  a  Deos, 
concordarão  todos  em  hum  voto  feito,  ao  Padroeiro  sagrado,  e  ficou  firme 
a  resolução,  porém  em  secreto. 

101  Descansarão  o  dia  da  vespora  do  Santo  (se  descansar  permitem 
grandes  cuidados)  e  ao  romper  da  manhãa  do  seguinte  dia  estavão  dispos- 
tos a  rompimento  dous  batalhões,  tirados  da  flor  da  Infantaria  da  armada, 
e  arraial,  a  cargo  do  Capitão  mór  Estacio  de  Sá:  e  feita  primeiro  breve 
falia  com  o  nome  do  Santo  Padroeiro  na  boca,  acommetêrão  igualmente  a 
ferro  e  fogo  a  fortificação  principal:  era  esta  a  de  Uraçúmiri,  mais  diíBcul- 
:}osa  por  sitio,  e  presidio  maior  de  Tamoyos,  e  soldados  Franceses:  e  de- 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (ANNO  DE    loG7)  55 

pois  de  vários  successos,  encontros,  e  recontros  (porque  estava  pertinaz,  e 
mui  forte)  fui  entrada,  c  vencida,  com  estrago  lastimoso,  por  que  dos  Ta- 
moyos  não  ficou  hum  com  vida.  Dos  Franceses  morrerão  dous  no  conílicto,  e 
cinco  que  houverão  ás  mãos  os  Portugueses,  forão  pendurados  em  hum 
páo,  pêra  escarmenta  de  outros:  á  vista  de  tão  triste  espectáculo,  ficarão 
tremendo  as  demais  aldeãs. 

102  Morrerão  dos  nossos  onze,  ou  doze;  entre  os  quaes  o  de  mais 
conta  foi  hum  Gaspar  Barbosa,  Capitão  de  mar  e  guerra,  e  juntamente  da 
jurisdição  de  Porto  seguro,  homem  de  grandes  partes,  de  muito  esforço,  e 
virtude,  grande  devoto  da  Companhia,  cuja  perfeição  pretendia  imitar:  fi- 
zera voto  de  não  virar  jamais  as  costas  em  guerra  contra  hereges,  ou  gen- 
tios, mas  aceitar  antes  as  feridas  a  peito  descoberto  pela  Fé  de  Christo : 
no  mesmo  dia  em  que  morreo^  recebera  da  mão  de  hum  nosso  o  Corpo 
consagrado  de  Christo.  Porém  o  que  meteo  em  intimo  sentimento  a  todos 
os  soldados  foi,  que  sahio  da  briga  mal  ferido  o  Capitão  mór  Estacio  de 
Sá,  do  qual,  como  não  morreo  na  empreza,  diremos  depois  de  alcançada  a 
segunda  victoria,  por  não  misturar  tristezas  com  alegrias. 

103  Concluído  com  Uruçúmiri,  acommeteo  a  nossa  soldadesca  o  Prin- 
cipal da  segunda  aldeã,  por  nome  Paranápucuy:  porém  como  estava  esta 
em  ilha  rasa,  chamada  do  Gato,  foi  necessário  conduzir  artilharia,  e  bater- 
Ihe  as  cercas,  que  erão  dobradas,  e  fortíssimas:  mas  em  breve  tempo  fo- 
rão postas  por  terra  com  todas  suas  casas,  e  mortos  quantidade  dos  bár- 
baros. Fizerão  muitos  delles  corpo  em  huma  casa  forte  entrincheirada,  e 
valada:  porém  forão  postos  em  cerco,  e  apertados  de  maneira,  que  se  en- 
tregarão a  partido  da  vida,  mas  não  da  Uberdade.  Morreo  dos  nossos  hum 
só  Portuguez,  e  alguns  dos  índios.  Á  vista  d"estas  duas  victorias,  ficarão 
os  Tamoyos  desenganados  do  nosso  poder,  e  desconfiados  do  dos  France- 
ses, que  os  ajudavão:  fugirão  huns  até  parar  no  mais  escondido  de  suas 
brenhas;  outros  pedirão  pazes,  que  forão  concedidas,  e  constrangidos  elles 
a  guardal-as  por  medo. 

lO^t  Fizerão  os  Portugueses  acção  de  graças  publicas  ao  invicto  Miu^tyr 
S.  Sebastião  seu  Padroeiro,  e  tão  em[)cnha(lo  em  seus  favores.  Tomarão 
posse  d"aquellas  fermosas  enseadas,  moradas  que  forão  de  inimigo  tão  can- 
sado, e  pertinaz.  Arrasarão  as  forças  contrarias,  e  começarão  a  traçar  fui*- 
tificações  poderosas  de  pedra  e  cal,  com  que  por  luima  vez  segurassem  a 
terra,  e  podessem  edificar  a  cidade  tão  desejada. 

iOo    Porém  no  meio  d'esles  nossos  applausos,  cm  quanto  cavamos  ali- 


SO  U^.-RO  III  DA  CIIROMCA  DA  COMPANHIA  DE  JRSU 

corsos,  e  se  levanlão  primeiras  pedras,  columnas  de  nossos  vencimentos, 
seguindo  a  varia  condição  da  fortuna,  e  a  lição  da  sagrada  Escrittura,  quan- 
do diz:  Extrema  gaudij  luctus  occvpat;  lie  bem  os  celebremos  juntamente 
com  lagrimas,  cavando  sepulturas,  e  entregando  á  terra  o  corpo  do  esfor- 
çado, e  magnânimo  Capitão  mór  Estado  de  Sá;  o  qual,  depois  de  passado 
hum  mez  do  primeiro  conflicto,  passou  a  meliior  vida,  da  ferida  mortal  de 
liuma  frechada,  que  rccebeo  no  rosto  no  mesmo  tempo  em  que  alcançava 
huma  victoria  de  tanta  importância,  e  em  que  houvera  de  começar  a  gozar 
do  fruto  de  seus  grandes  trabalhos.  Deve  o  Rio  de  Janeiro  a  este  Capitão  eter- 
nas saudades,  por  cujo  sangue  goza  a  liberdade  em  que  hoje  se  vê.  Foi  varão 
merecedor  da  nobreza  de  seus  antepassados,  lustre  de  sua  descendência, 
e  exemplar  de  conquistadores  valorosos.  Sobrinho  foi  do  Governador  Mem 
de  Sá,  mas  foi  herdeiro  de  seu  valor,  e  christandade,  sofredor  de  todos  os 
trabalhos;  e  na  pureza,  inteireza  de  vida,  e  de  seu  oíTicio,  exactíssimo. 
De  quem  refere  o  Padre  Joseph  de  Anchieta,  que  sendo  depois  traslada- 
dos seus  ossos,  experimentara  hum  servo  de  Deos  de  nossa  Companhia 
(atrevo-me  a  cuidar  por  conjecturas,  que  foi  o  mesmo  Padre  Joseph)  que 
sabia  d"elles  hum  cheiro  suave,  como  sinal  de  que  goza  sua  alma  da  feli- 
cidade da  Gloria.  Fizerão-lhe  exéquias  tristes  militares,  com  pranto,  e  sen- 
timento de  todos:  e  tiverão  os  Padres  oração  fúnebre  sobre  suas  virtudes. 
E  pêra  mim  o  mais  importante  louvor,  he  o  que  dá  d"este  Capitão  o  Padre 
Joseph  de  Anchieta,  como  aquelle  que  tanto  o  conhecia:  e  diz  assi  de  sua 
própria  mão,  e  letra.  «N'esta  conquista,  que  durou  alguns  annos,  andavão 
os  homens  como  religiosos,  confiados  em  Deos,  e  na  presença  do  Capitão 
mór  Estacio  de  Sá:  o  qual,  além  de  seu  grande  esforço,  e  prudência,  era 
a  todos  exemplo  de  virtude,  e  religião  christãa:  e  bem  mostrou  o  Padre 
Nóbrega,  que  foi  regido  n'esta  matéria  pelo  divino  Espirito,  pelas  muitas 
e  insignes  victorias,  que  por  misericórdia  sua  houverão  tão  poucos  Portu- 
gueses de  tanta  multidão  de  Tamoyos  ferocíssimos,  costumados  por  tantos 
annos  a  ser  vencedores ;  e  dos  Franceses  Lutheranos,  que  comsigo  trazião, 
etc.»  São  palavras  do  venerável  Padre.  E  faltando  da  morte  em  particular 
diz,  que  falleceo  com  grandes  sinaes  de  virtude,  que  em  toda  aquella  con- 
quista tinha  mostrado.  Foi  substituído  no  lugar  deste  Capitão  Salvador  Cor- 
iTa  de  Sá,  consobrinho  seu,  e  sobrinho  do  mesmo  Governador  Mem  de  Sá, 
que  proseguio  a  empreza  como  logo  veremos,  c  propagou  a  mui  nobre  fa- 
mília dos  Sás  nesta  Capitania;  a  qual  por  successão  continua,  qual  se  fora 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (aNNO  DE    lt)G7)  57 

herança,  povoou,  edificou,  e  dcfcndoo  o  que  liuma  vez  conquistou  por  ar- 
mas, sendo  sempre  terror  do  inimigo. 

lOG  N'cste  lugar  he  tempo  agora,  quando  já  nos  vemos  senhores  de 
seus  districtos,  que  demos  noticia,  ainda  que  breve,  do  sitio  d'elles. 
Entre  o  promontório,  a  que  hoje  chamamos  Cal)o  Frio,  e  aquella  paragem 
da  terra,  que  correspondo  ao  Trópico  Austral,  a  que  chamamos  da  Ilha 
Grande,  corre  hum  pedaço  da  America,  dos  mais  notáveis  que  fabricou 
a  natureza:  porque  no  meio  d'estes  dous  extremos,  altura  de  vinte  e  três 
gráos,  e  vinte  e  três  e  meio,  parece  tomou  á  sua  conta  a  mesma  natureza 
industriosa,  sahir  com  hum  tal  sitio,  que  igualmente  fosse  inexpugnável  a 
inimigos,  seguro  a  amigos,  e  proveitoso  a  todos  os  viventes.  Consta  este 
de  huma  bahia,  e  de  hum  recôncavo  grandioso,  na  forma  que  logo  diremos, 
e  tem  por  nome  Rio  de  Janeiro.  Foi  este  sitio  sempre  formidoloso  a  todo  o 
inimigo  marítimo:  porque  na  verdade  he  temerosa,  e  horrível  aquella  mu- 
ralha natural,  que  vai  cercando  toda  esta  paragem  junto  ao  mar,  das  mais 
estranlias  penedias,  que  jamais  se  virão.  Assombro  he  das  armadas  mais  for- 
tes, quando  chegando  de  mar  em  fora  a  ter  vista  da  terra,  em  vez  de  praias 
que  alegrem,  começão  a  ver  apparencias  disformes  de  rochedos  tão  altos, 
que  sobem  ás  nuvens,  e  espantão  os  homens.  Segundo  as  figuras  que  fa- 
zem, assi  lhes  põem  os  nomes,  o  Frade,  a  Gavia,  a  Cella,  e  outros  seme- 
lhantes. Quando  já  vem  chegando  á  barra,  se  vêem  levantados  de  hum,  c 
outro  lado,  quaes  dous  gigantes  fortes,  dous  monstruosos  corpos  de  solido 
penedo,  a  que  chamão  Pães  de  assucar,  que  dando  com  as  cabeças  em  as 
nuvens,  lavão  os  pés  nas  agoas.  Vomita  cada  qual  d"elles,  quasi  de  suas 
próprias  entranhas,  fogo,  e  pelouro,  quando  entrão  em  cólera,  de  duas  for- 
talezas reaes.  Não  ha  capitania  inimiga  que  ouse  cmbocar;  porque  a  barra 
he  de  novecentas  braças  somente:  o  encostar  a  hum  ou  a  outro  penedo, 
he  naufragar:  e  o  tomar  o  canal  pelo  meio,  he  esperar  a  fúria  do  canlião  á 
mão  tente  de  huma  c  outra  parle  das  forças:  E  quando  fosse  possível  a  en- 
trada, não  he  possível  a  sabida;  porque  de  força  ha  de  voltar  ao  som  da 
maré,  e  obedecer  aos  pés  de  hum  d'estes  penedos,  experimentando  seus 
perigosos  tiros. 

107  Pelo  terreno  vai  rodeando  toda  a  bahia,  c  recôncavo  do  Bio  de 
Janeiro,  aquella  espantosa  seirania,  que  já  por  vezes  temos  ditto  corre  a 
cosia  toda:  e  com  a  parte  d'ella  mais  áspera,  chamada  a  montanha  dos  Ór- 
gãos (porque  á  maneira  d'aquclles  instrumentos  vão  levajjíando  em  ordem 
desigual  montes  sobre  montes,  fazendo  a  altura  immensa,  que  excede  as 


58  LIVRO  III  DA  CimONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

nuvens,  c  chega  parece  á  segunda  região  do  ar)  represenlãoaquelles  gran- 
des montes  murallias,  ou  torres  formidáveis,  postas  entre  nós,  e  os  bárba- 
ros que  habilão  a  outra  parte:  porque  alli  fulmina  a  natureza  em  tempos 
tormentosos  taes  raios,  coriscos,  e  estrondos  disformes  de  trovões,  que 
assombrão  a  terra.  Chegarão  a  suspeitar  as  nações  agrestes,  que  estavão 
armados  de  propósito  pêra  defensa  dos  homens  Portugueses.  São  comtudo 
alegres  em  tempos  de  bonança  aquelles  picos  inaccessiveis,  por  sua  forma, 
altura,  e  fermosura,  revestidos  de  verde  arvoredo,  e  arrebentando  em  ribei- 
ras de  agoa,  que  despenhadas  dos  altos  cumes,  vem  a  pagar  tributo  ao 
mar,  e  alegrão  os  olhos  dos  moradores. 

108  He  o  alagamar  da  barra  pêra  dentro  huraa  estendida  e  fermosa  bahia, 
emula  da  de  Todos  os  Santos,  formada  das  enchentes  do  Oceano,  que  em- 
bocando  pela  barra  dentro,  chegão  quasi  a  lavar  os  pés  d'aquelles  montes 
a  que  chamamos  Órgãos.  Tem  este  alagamar,  ou  bahia,  como  oito  legoas 
de  diâmetro,  e  vinte  e  quatro  de  circunferência.  Está  entreçachada  de  ilhas, 
boqueirões,  e  esteiros:  estes  ornados  da  verdura  dos  mangues,  e  vermelho 
dos  pássaros  a  que  chamão  goarazes,  fazem  a  vista  aprazível.  As  ilhas  fa- 
zem numero  de  quarenta  entre  maiores  e  menores,  com  grossas  fazendas 
de  moradores.  Desembocão  n"ella  vários  e  caudalosos  rios,  huns  do  sertão, 
outros  das  serras  circunvizinhas,  que  com  o  doce  de  suas  agoas  fazem 
guerra  continua  ás  do  mar,  querendo  prevalecer  cada  qual  d'ellas.  He  abun- 
lissima  de  pescado,  em  tanta  demasia,  que  houve  tempo  em  que  era  ne- 
cessário navegar  com  cautela  em  embarcações  rasas,  pêra  evitar  o  perigo 
dos  peixes,  que  saltando  de  huma  e  oatra  parte,  cahião  dentro:  e  succedia 
ser  talvez  com  dispêndio  dos  olhos  e  rosto  dos  que  navegavão.  He  facilis- 
simo  o  meneio  e  serviço  dos  arredores,  que  cortão  estas  agoas  de  dia  e  de 
noite,  fazendo  alegre  a  vista,  e  suave  o  conmiercio.  Todo  o  circuito  d"esta  ba- 
hia está  hoje  povoado  de  moradores  de  fazendas  grossas,  entre  as  quaes  avultão 
mais  as  dos  engenhos  de  assucar,  que  passão  de  cem  quando  isto  escrevo, 
supposto  que  não  tão  grandes  maquinas  comovas  da  Bahia  de  Todos  os  Santos. 

109  Depois  dos  successos  referidos,  a  que  forão  presentes,  par  tio  o 
Pí^lre  Visitador  Ignacio  de  Azevedo,  e  o  Padre  Provincial  Luis  da  Gram, 
3oseph  de  Anchieta,  e  os  mais  companheiros,  com  o  Bispo  D.  Pedro  Lei- 
tão pêra  S.  Vicente.  Aqui  foi  notável  a  alegria  com  que  estes  santos  com- 
panheiros se  avistarão  com  o  Padre  Nóbrega ;  porque  o  Bispo  era  seu 
conhecido  de  Coimbra,  e  sabia  de  sua  virtude,  e  prudência,  e  vinha 
desejoso   de   communical-o,  e  ajudar-se  de  seu  conselho:  da   mesma 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (ANNO  DE  4567)  59 

maneira  o  Padre  Visitador,  Provincial;  e  Joseph  de  Anchieta,  amigos  Ínti- 
mos seus  cm  o  Senhor.  Acharão  o  santo  velho  consumido  de  trabalhos,  e 
mortificaçijes,  occasionadas  parte  do  tempo,  e  parte  que  elle  mesmo  to- 
mava por  occasiões  d'elle.  Tratarão  os  Padres,  Visitador,  Provincial,  e  Nó- 
brega, acerca  do  estado  das  cousas,  e  as  que  erão  da  Religião  procurarão 
ajustar  na  melhor  ordem  de  perfeição,  segundo  as  constituições  de  novo 
approvadas,  que  já  deixara  introduzidas  na  Bahia;  e  entre  as  primeiras  de- 
terminarão, que  se  fundasse  hum  Collegio  no  Rio  de  Janeiro,  na  forma  quo 
o  Sereníssimo  Dom  Sebastião  desejava,  com  dotação  de  até  cincoenta  su- 
jeitos. Virão  as  cousas  do  culto  divino  d'aquelle  Collegio,  a  observância  dos 
Rehgiosos,  o  meneio  da  casa,  e  exemplo  d'ella,  o  seminário,  e  escola  da 
doutrina  christãa  dos  meninos,  a  classe  de  latim,  e  o  modo  de  ajudar  aos 
próximos,  interior,  e  exterior,  acharão  pouco  que  reformar :  e  era  grande 
a  consolação  de  Ignacio,  de  que  em  tão  breve  tempo  obrasse  n'estas  par- 
les a  Companhia  tanto.  Partio  a  visitar  a  Casa  de  Piratininga,  e  folgou  mui- 
to de  ver  o  que  os  Padres  alli  tinhão  feito,  e  padecido.  Abrazava-se  este 
grande  servo  do  Senhor,  quando  via,  e  ouvia  a  multidão  de  gentilidade 
d"aquellas  campinas,  e  mattas:  e  pelo  fruto  dos  que  já  estavão  domésticos, 
debaixo  do  ensino  dos  Padres,  tirava  o  que  podia  fazer-se  com  todos,  se 
houvesse  bastante  numero  de  obreiros;  e  já  d"aUi  hia  acendendo  em  seu 
peito  desejo  de  ir  por  essa  Europa  toda,  bradando,  e  congregando  tra- 
balhadores pêra  tão  estendida  seara.  Perguntava,  e  especulava  o  modo  da 
conversão  dos  índios,  de  sua  natureza,  costumes,  doutrina,  sujeição,  e 
aproveitamento:  estas  erão  suas  maiores  praticas,  e  seus  maiores  pensa- 
mentos. Com  elles  gastava  o  tempo,  prégando-lhes  por  interprete,  animan- 
do-os,  favorecendo-os:  e  erão  estes  seus  principaes  empenhos.  Parecia  que 
queria  metel-os  dentro  do  coração;  e  mostral-o-ha  mais  algum  dia,  quando 
chegue  a  dar  a  mesma  vida  por  causa  d'elles.  Ordenadas,  e  dispostas  as 
cousas  da  casa,  e  aldeãs  de  hidios,  voltou  a  S.  Vicente ;  e  não  se  fartava 
por  aquelle  caminho  de  dar  gi-aças  ao  Autor  da  natureza,  quando  levanta- 
va os  olhos  á  compostura daquella  penedia,  daquelles  bosques,  e  d"aquel- 
las  brenhas,  por  huma  parte  de  tanta  aspereza,  e  por  outra  de  tanta  va- 
riedade de  vistas;  i)orque  erão  aquellas  serras  admiráveis,  de  que  já  lemos 
ditto,  e  achava  que  excedião  a  própria  fama,  e  lhe  arrebatavão  o  espírito- 
De  S.  Vicente  resolveo  partir-se  i)era  o  Rio,  e  levar  comsigo  o  Padre  Nó- 
brega, pêra  cabeça  do  Collegrio,  que  alli  determinava  fundar,  e  pêra    que 


GO  LIVRO  III  DA  CIinONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

gozasse  alli  do  fnilo  dos  trabalhos,  desvelos,   c  alílirões,  com  que  procu- 
rara, e  ajudara  a  liberdade  daquella  terra. 

110  Porém  antes  que  parta,  refiramos  primeiro  alguma*  revelações  de 
cousas  occultas,  que  Deos  aqui  cominunicou  a  seu  servo  Joseph.  Fizera  el- 
le  huma  sabida  fora  do  CoUegio,  em  companhia  de  seu  amigo  Nóbrega;  e 
succedeo  aposcntarem-se  huma  noite  em  certa  casa,  onde  tamljem  se  aga- 
salhava hum  certo  Aires  Fernandes  secular,  morador  já  do  Rio  de  Janeiro: 
quando  a  deshoras  da  noite,  ouvio  o  secular,  que  fallava  Joseph  com  Nó- 
brega, e  lhe  dizia  as  palavras  seguintes:  «Padre  meu,  demos  graças  a  Deos, 
que. alcançarão  os  nossos  agora  huma  victoria  dos  inimigos.»  Notou  Aires 
Fernandes  a  pratica,  e  depois  foi  testemunha  d"ella,  além  do  Padre  Nóbre- 
ga. Não  padece  duvida  que  revelou  Deos  aqui  a  Joseph  a  victoria:  a  duvi- 
da he  que  victoria  fosse?  Não  achamos  clareza;  porque  aquella  maravilhosa 
das  cento  e  oitenta  canoas  da  cilada  dos  Tamoyos,  no  Rio,  succedeo  estan- 
do Joseph  na  Baliia,  Irmão  ainda ;  e  a  revelação  foi  feita  em  S.  Vicente, 
depois  de  Sacerdote.  Nem  também  foi  a  insigne  victoria,  que  alii  alcançou 
o  Governador,  onde  morreo  Estacio  de  Sá  seu  sobrinho;  porque  a  esta  foi 
presente  Joseph,  e  os  mais  Padres,  que  tinhão  vindo  da  Bahia,  logo  em 
chegando:  somos  logo  forçados  a  dizer,  que  foi  de  algum  outro  encontro 
considerável,  que  succedeo  no  Rio,  ou  Cabo  Frio,  estando  ausente :  qual 
este  fosse,  he  incerto,  e  devia  ser  importante,  pois  o  Ceo  se  empenhou  em 
communicar-lhe  o  successo  d"elle. 

111  Mais  espantoso  foi  o  caso  seguinte.  Na  villa  de  S.  Vicente,  estan- 
do huma  índia  Christãa,  e  casada,  fazendo  com  outra  irmãa  sua,  das  mes- 
mas qualidades,  certa  obra  de  cera  (officio  em  que  ganhava  sua  vida)  fez 
entre  outras,  duas  velas  da  mesma  cera  pêra  si,  e  sendo  perguntada  da 
irmãa  pêra  que  as  fazia?  Respondeo:  «Faço-as  pêra  dar  ao  Padre  Joseph, 
pêra  que  diga  huma  missa  por  mim  quando  eu  for  santa : »  queria  dizer 
martyr;  e  com  effeilo  levou  as  velas  ao  Padre,  e  lhe  communicou  o  seu 
intento.  O  que  mais  passarão,  ou  que  coniiccimento  tivesse  d'esta  resolu- 
ção, não  n  os  consta:  constou  porém,  que  dando  assalto  em  S.  Vicente  os 
Tamoyos  do  Cabo  Frio,  que  estavão  rebeldes,  entre  outras  presas  que  fi- 
zerão,  levarão  esta  índia,  a  qual  pretendeo  o  Capitão  da  empresa  violar; 
rcsistio  valerosamente,  dizendo  em  hngoa  brasihca:  «Eu  sou  christãa,  e 
casada;  não  hei  de  fiizer  treição  a  Deos,  e  a  meu  marido:  bem  podes  ma- 
tar-me,  e  fazer  de  mim  o  que  quizeres.»  Deo-se  por  aífrontado  o  bárbaro, 

em  vingança  Hie  acabou  a  vida  com  grande'  crueldade,  fazendo-a  santa. 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (aNNO  DE    4Í)G7)  '61 

OU  martyr  como  ella  dissera.  Estava  Joseph  cm  S.  Vicente,  distante  d"aqiTcl- 
Ic  Ingar  triiita  legoas,  e  com  tudo  n'aquelle  mesmo  dia,  illustrado  do  Ceo, 
accendeo  as  duas  velas  que  cila  lhe  dera,  e  com  ellas  disse  missa  de  mar- 
tyr, com  as  orações,  e  lições,  que  costuma  dizer  a  Igreja,  c  com  o  nome 
da  mesma  índia  nos  lugares,  onde  o  ordena  o  Ceremonial,  na  missa  de 
huma  Sanla  marlyr.  E  perguntado  por  seu  Superior  Nóbrega,  que  santa 
era  aquella,  por  quem  dissera  missa;  respondeo:  «Por  fulana  (nomeando  a 
índia,  bem  conhecida  em  S.  Vicente)  que  este  mesmo  dia  foi  morta  a  mãos 
de  hum  Tamoyo  bárbaro,  por  guarda  liei  da  Lei  de  Deos,  e  da  honesti- 
dade, e  subio  logo  ao  Ceo.»  E  veio  depois  noticia  pubUca  do  caso  todo, 
como  o  dissera,  com  todas  suas  circunstancias. 

M2  He  semelhante  a  este  outro  caso,  quando  dizendo  missa  de  iium 
defunto  particular  em  dia  de  S.  João  Evangelista,  huma  das  oitavavas  do 
Nascimento  do  Senhor,  lhe  perguntou  o  mesmo  Nóbrega  seu  Superior, 
porque  causa  cm  dia  festival  dizia  missa  triste  de  defunto,  fora  das  cere- 
monias  do  missal?  Respondeo  assi:  «Porque  esta  noite  passada  morreo  no 
Collegio  da  Companhia  de  Nossa  Senhora  de  Loreto,  hum  Sacerdoíe  cor.- 
discipulo  meu  antiguo  em  Coimbra,  e  quiz  ajudar  aquella  alma  com  esta 
missa.»  Perguntou  mais  o  Padre  Nóbrega  pela  estado  d'aquella  alma? Res- 
pondeo: «Que  depois  do  Offertorio,  quando  chegou  ás  palavras:  Omnis  ho- 
nor, et  gloria,  entrara  no  Cq-o.-»  Quem  não  se  espantará  da  facilidade  das 
prophecias  d'este  servo  de  Deos,  e  da  candura,  e  serenidade  com  que  as 
confessava,  a  seu  Superior?  ou  porque  a  isso  o  constrangia  o  grande  res- 
peito da  obediência:  ou  porque  assi  o  obrigava  o  mesmo  Espirito  divino 
})era  doutrina  nossa. 

113  Partio  o  Padre  Ignacio  de  Azevedo  de  S.  Vicente  no  mez  de  Ju- 
lho do  presente  auno  de  lo(J7,  em  companhia  do  mesmo  Ris[)o  D.  Pedro 
Leitão,  e  dos  Padres  Provincial,  Nóbrega,  e  Joseph  de  Anchieta :  e  nesta 
viagem  aconteceo  a  estes  conipanheii'os  hum  caso  milagroso  da  protecção 
da  mão  divina.  Foi  ancorar  a  embarcação  defronte  do  porto  a  (]ue  chama- 
mos com  nome  corrupto  Biilióga, i)or  falta  de  ventos:  eravespora  do  Apos- 
tolo San-Tiago;  qiiizerão  os  Padres  ir  dizer  missa  a  terra,  meterão-se  em 
o  batel  o  Padre  Ignacio,  Oram,  Nóbrega,  e  Joseph,  com  outros  passagei- 
ros: ex  que  chegando  ao  meio  do  caminho,  levan(a-se  huma  grande  balea 
(se  não  dissermos  serpente  infernal)  assanliada,  ao  que  pareceo,  de  algu- 
mas frechadas  que  Ihelirárão  do  navio;  ou  dolorida  de  algum  íillio,  íjue  per- 
dera: como  quei'  (jue  fosse,  ella  le^antando  a  cabeça  inedoiilia,  e  parle  do 


62  LVf^O  III  DA  CHRONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

corpo  sobre  a  agoa,  foi  seguindo  após  o  batel,  liorrenda,  e  temerosa,  le- 
vando diante  de  si  montes  de  agoa,  e  batendo  as  azas  com  tão  disformes 
gestos,  que  todos  se  derão  por  perdidos :  e  cora  mais  evidencia  quando 
chegando  já  ao  batel,  meteo  a  cabeça  debaixo,  e  juntamente  levantou  a 
cauda  sobre  elle,  como  pêra  descarregar  a  pancada.  Aqui  se  prostrarão  to- 
dos de  joelhos,  e  com  as  mãos  ao  Geo  levantadas,  em  termos  •  de  morrer, 
alagado  já  o  batel  com  agoa,  pedião  a  Deos  misericórdia;  e  junto  com  elles 
o  Bispo  e  os  mais  do  navio,  que  os  estavão  vendo.  Não  permiltio  porém  o  Ceo 
que  acabassem  desastradamente  tão  grandes  e  importantes  servos  seus;  por- 
que aquelle  monstro  marinho,  como  mandado  de  algum  poder  occulto,  ou  qual 
se  obedecera  ás  mãos  levantadas  ao  Ceo,  parou  com  o  golpe  da  cauda,  e  se 
foi  escoando  por  proa,  deixando  o  batel  fora  de  afflições,  posto  que  quasi 
alagado. 

H4  Este  successo  teve  o  Padre  Joseph  por  milagre,  com  que  Deos 
amansou  aquelle  monstro,  pêra  que  não  descarregasse  a  pancada,  e  diz 
assi:  «Abalroou  a  balea  o  batel,  e  passando  por  debaixo  d"elle  levantou  a 
cauda  sobre  a  popa,  onde  hião  os  Padres,  como  pêra  dar  a  pancada;  mas 
amansou-a  Deos  nosso  Senhor  de  maneira,  que  a  tornou  a  pôr  na  agoa 
quietamente.»  São  palavras  suas.  E  attribuindo-se  commummente  o  mila- 
gre á  intercessão  de  Joseph,  o  humilde  servo  o  attiibue  ao  Padre  Ignacio, 
e  mais  companheiros,  dizendo  assi:  «Estava  o  Bispo,  e  os  mais  do  navio 
a  Ia  mira,  esperando  o  successo  com  grande  temor;  mas  confiados  que  não 
perigarião,  por  ir  alli  o  Padre  Ignacio  com  seus  companheiros.»  Todos  os 
quatro  erão  homens  santos ;  a  cada  qual  d'elles  se  pode  attribuir  o  favor 
do  Ceo:  Joseph  o  attribue  a  todos,  e  todos  o  attribuem  a  Joseph.  O  Pa- 
dre Joseph  suspeitou  que  o  monstro  marinho  viera  assanhado  das  frechas 
de  alguns  dos  navios :  outros  tiverão  pêra  si  que  vinha  embravecido  por 
perda  do  filho,  que  cuidando  ser  o  batel,  se  fora  a  elle,  metendo-se  de- 
baixo, como  costumão,  ao  filho,  dando-lhe  as  costas  pêra  leval-o,  ou  dar-lhe 
de  mamar:  outros  julgarão  que  era  o  macho,  e  buscava  a  consorte:  qual- 
quer das  cousas  podia  ser  a  occasião  natural;  porém  o  espirito  que  insti- 
gou o  monstro  (ao  que  se  mostra)  foi  outro,  tirado  das  palavras  de  Joseph, 
e  podemos  cuidar  que  pretendia  o  Dragão  infernal  revestido  no  monstro 
assanhado,  tirar  do  mundo,  e  Igreja  de  Deos  o  mais  florido  da  Companhia 
do  Brasil.  Tomarão  os  Padres  pêra  o  navio,  e  ao  seguinte  dia  do  bem- 
aventurado  Apostolo  San-Tiago  cantarão  missa  solemne  em  acção  de  gra- 
ças, e  derão  á  vella. 


DO  ESTADO  DO  RRASIL  (anNO  DE  1567)  03 

115  Chegarão  ao  Rio,  e  acharão  o  Governador  Mem  de  Sá  occupado 
na  edificação  da  nova  cidade,  em  lu^^ar  distante  do  arraial  huma  lejíoa. 
Esta  mandou  fortificar  com  algumas  Forças,  e  a  Ijarra  com  duas  de  huma 
e  outra  parte,  fechando  a  porta  a  inimigos.  No  coração  da  cidade  deo  si- 
tio, onde  os  Padres  escolherão,  pêra  fundação  de  hum  Collegio;  e  logo  em 
nome  de  S.  A.  o  Sereníssimo  Rei  D.  Sebastião  de  saudosa  memoria,  Prín- 
cipe liberal,  lhe  applicou  dote  de  renda  necessária  pêra  sustento  de  até 
cincoenta  Religiosos;  que  aceitou,  e  agradeceo  em  nome  de  toda  a  Com- 
panhia, o  Padre  Visitador  Ignacio  de  Azevedo.  A  escrittura  authentica  do 
ditto  dote  se  passou  depois  em  Lisboa,  firmada  pela  míío  Real  em  G  de 
Fevereiro  do  seguinte  anno  de  I0G8,  e  diz  assi:  «Por  quanto  nos  consta 
do  fruto,  e  proveito,  que  a  Republica  Christãa  recebe  do  Collegio  da  Ba- 
hia, e  que  os  Padres  da  Companhia  de  Jesu  trabalhão,  com  a  divina  graça, 
não  só  por  afugentar  as  trevas  da  infidelidade  com  a  luz  evangélica,  mas 
também  por  promover  os  Christãos  com  doutrina,  e  exemplo  :  e  porque 
considerando  nós  o  instituto  d'esta  Religião,  e  seu  modo  de  viver,  espera- 
mos que  estes  frutos  da  divina  gloria,  e  Repulilica  Christãa,  crescerão  ca- 
da dia  mais,  crescendo  o  numero  dos  ditos  Religiosos,  e  edificando-se  mais 
Collegios,  como  sabemos  que  tinha  intenção  de  fazer  El-Rci  meu  avô  e  se- 
nhor, que  Deos  haja:  Havemos  por  bem,  que  se  faça  outro  Collegio  na  Ca- 
pitania de  S.Vicente  pêra  cincoenta  Religiosos  da  ditta  Companhia,  osquaes 
n'esta  Capitania,  e  nas  outras  vizinhas  a  ella,  aonde  os  Religiosos  do  Col- 
legio da  Bahia,  não  podem  abranger,  se  occupem  em  ensinar  a  doutrina 
christãa  aos  fieis,  e  em  converter  os  infiéis  á  nossa  santa  Fé,  pêra  que  as- 
si ajudando-se  huns  aos  outros,  espalhem  o  som  da  pregação  Evangélica 
por  todos  os  termos  de  nossa  jurisdicção  no  Brasil.  E  a  cada  hum  dos  dit- 
tos  Religiosos  se  dará  tanto  de  minhas  rendas  pêra  seu  mantimento,  e  ves- 
tido, quanto  se  dá  a  cada  hum  dos  que  no  Collegio  da  Bahia  vivem.  Dada 
em  Lisboa  em  O  de  Fevereiro  de  I0G8. 

HG  Aquelle  herege  João  Boles,  de  quem  dissemos  no  anno  de  1559, 
que  fora  fugido  do  Rio  a  S.  Vicente,  e  dera  alli  em  que  entender  ao  Pa- 
dre Gram,  em  atalhar  seus  falsos  dogmas:  agora  dá  que  fazer  aqui  ao  Pa- 
dre Joseph:  porque  depois  de  ser  mandado  preso  á  Bahia,  foi  trazido  (não 
se  diz  a  causa  ponjue)  a  este  Rio  de  Janeiro,  porventura  pêra  que  fosse 
castigado  no  lugar  onde  íx)meçára  a  fazer  suas  heregias,  ou  porque  alli  te- 
j'ia  commetido  oiitio  algum  delito  grave:  como  quer  (jii<;  seja:  o  Gover. 
nador  iMum  de  Sá  mandou  (jue  fosse  justiçado  a  mãos  de  hum  algoz,  o 


64  LIMIO  III  DA  CHRONÍCA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

a  olhos  dos  mesmos  inimigos  (que  ainda  restavão.)  Pêra  ajudal-o  em  tão 
duro  transe,  íoi  chamado  o  Padre  Joseph  de  Ancliiela :  achou  o  herege 
pertinaz  em  seus  errados  fundamentos,  pedio  que  se  detivesse  mais  lem- 
po  a  execução  da  justiça,  e  entre  aquellas  tregoas  da  vida  fallou  o  no- 
vo Sacerdote  ao  reo  com  tão  grande  espirito,  e  cflicacia  de  razões,  que 
converteo  seu  empedernido  coração,  e  veio  a  reconcihar  com  a  santa 
Igreja  aquella  ovelha  perdida,  e  quasi  tragada  do  lobo  infernal,  com 
applauso  do  Ceo,  e  dos  homens.  Porém  aconteceo  aqui  hum  caso  digno 
de  ser  sabido:  porque  o  algoz,  cjuando  foi  ã  execução  do  castigo,  como 
era  pouco  destro  no  officio,  detinha  o  penitente  no  tormento  demasia- 
damente, com  agonia  e  impaciência  conhecida.  Joseph,  que  via  este  er- 
ro tão  grande,  e  receava  que  por  impaciência  se  perdesse  a  alma  de  hum 
homem,  por  natural  colérico,  e  tão  pouco  havia  convertido;  entrou  em 
zelo,  reprehendeo  o  algoz,  e  instruio-o  de  como  havia  de  fazer  seu 
officio,  com  a  brevidade  desejada:  acto  de  fina  caridade.  Sabia  muito  bem 
Joseph  a  pena  das  leis  ecclesiasticas,  que  suspendem  seu  ofificio  a  todo 
aquelle  que  sendo  sacerdote  acelera  a  execução  da  morte,  era  qualquer 
occasião  que  seja,  inda  que  pia :  porém  preponderava  com  elle  mais  a  ca- 
ridade que  devia  ao  próximo;  e  respondeo  aos  que  lhe  perguntarão  a  cau- 
sa de  tal  resolução,  d"esta  maneira.  «Porque  o  damno  de  minha  suspensão 
não  he  ofíensa  de  Deos,  e  tem  remédio  com  a  absolvição  da  Igreja:  porém 
o  damno  d"aquella  alma,  se  alli  se  perdera  por  impaciência,  era  peccami- 
noso,  e  não  podia  remediar-se :  e  pela  salvação  de  huma  alma  vivera  eu 
suspenso  toda  a  minha  vida.»  Oh  resolução  da  engenhosa  caridade!  O  Gover- 
nador Mem  de  Sá  depois  d'este  castigo  partio  pêra  a  Bahia,  contente  dos 
successos  que  Deos  lhe  dera,  deixando  com  o  governo  d"aquellas  partes  a 
seu  sobrinho  Salvador  Corrêa  de  Sá. 

H7  Intitulou-se  a  cidade  do  Rio  de  Janeiro,  cidade  de  S.  Sebastião, 
assi  do  nome  de  seu  Rei,  como  do  Santo  seu  defensor,  de  que  havia  re- 
cebido tão  grandes  favores,  e  esperava  outros.  O  Padre  Visitador,  depois 
de  postas  em  ordem  as  cousas  importantes,  deixando  por  cabeça,  e  Supe- 
rior, assi  do  CoUegio  do  Rio,  como  das  Casas  de  Sam  Vicente,  Santos, 
Piratininga,  e  Espirito  santo,  com  todas  as  aldeãs  annexas,  ao  Padre  Nó- 
brega, pêra  que  todas  fossem  iníluidas  do  vigor,  e  espirito  de  tão  grande 
varão,  com.  o  Padre  Joseph,  compahheiro  antiguo  de  seus  trabalhos;  em- 
barcou-se  pêra  a  Baliia:  indo  visitando  de  caminlio  as  Capitanias  do  Espi- 
rito santo.  Porto  seguro,  e  Ilheos,  cujos  Religiosos  por  todas  aquellas  es- 


DO  ESTADO  DO  DilASIL  (a.NNO  DE   I0O8)  O-") 

íanciná  consolava,  animava,  e  S3  compadecia  dos  trabalhos  qiiL!  alli  padcóião 
com  entranhas  de  pai. 

118  No  Espirito  santo  deo  o  grão  de  Coadjutor  formado  ao  Padre  An- 
lonio  da  Rocha.  N"esta,  c  em  todas  as  Capitanias,  visitou  com  grande  cui- 
(iado  as  aldeãs  dos  Índios,  deixando  n^ellas  varias  instrucçijes  acerca  de 
sua  conversão,  e  doutrina.  Ai)provou,  e  reformou  os  Seminários  da  boa 
criação  dos  meninos.  Acerca  dos  bautismos  dos  índios,  deixou  as  adver- 
tências seguintes.  Os  innocentes,  assi  das  aldeãs  onde  os  nossos  residem, 
como  das  que  visitão  frequentemente,  se  podem  bautizar:  porém  os  filhos 
dos  que  vivem  pelo  sertão  em  partes  onde  não  são  visitados,  não  se  bau- 
tizem,  porque  se  ficão  dei)0is  entre  seus  pais,  sem  quem  lhes  ensine  as 
cousas  de  Deos:  salvo  quando  estiverem  pêra  morrer,  ou  vierem  vi^^er  en- 
tre nós.  Os  adultos  das  aldeãs  onde  os  nossos  residem,  procurem  orde- 
nar-lhes  que  casem  ao  tempo  que  os  bautizão,  tendo  idade  pêra  isso:  po- 
rém quando  isto  não  poder  ser,  não  lhes  deixem  de  dar  o  bautismo,  sendo 
aliás  idóneos.  Nas  aldeãs  onde  não  residem  os  nossos,  ainda  que  as  visi- 
tem, não  parece  que  devem  bautizar  os  grandes,  senão  quando  os  casa- 
rem, não  sendo  velhos,  ou  doentes,  ou  tão  pequenos,  que  se  não  presuma 
que  são  já  ruins,  nem  se  irão  pêra  os  gentios.  Assi  mesmo  os  que  vem  do 
sertão,  não  devem  ser  bautizados,  senão  depois  que  estiverem  fixos  entre 
os  Chiistãos,  e  huns  e  outros  se  instruirão  muito  bem  nas  cousas  da  Fé, 
antes  do  bautismo.  Procure-se  que  todos  os  nossos  aprendão  a  lingoa  da 
terra,  e  usem  ensinar  n"ella  aos'  índios. 

1  ií)  Chegou  á  Bahia  o  Padre  Ignacio  de  Azevedo  no  mez  de  Março  de 
\l)()S,  e  foi  n'eUa  tão  geral  a  alegria,  quão  geral  era  o  conceito  que  de  sua 
santidade  se  tinha ;  porque  entre  os  nossos  somente  sua  vista  era  refor- 
mação, e  entre  os  seculares  era  respeito,  e  reverencia :  a  huns  e  outros 
ganhava  (js  corações  de  maneira,  que  o  que  ap[)rovava,  era  bom,  e  o  (jue  repro- 
vava era  mácí.  (Chegou  a  dizer-se  d-elle,  que  se  sempre  estivera  presente,  podia 
ser  Visitador  sem  regra,  nem  preceito:  e  dizião  bem:  porque  he  mais  forçoso  o 
exenqdo,  (pie  o  preceito:  e  o  Padre  Ignacio  sendo  jior  geração  tão  ilhistre,  eia 
exemplo  do  humildade;  sfsndo  dt;  compleição  tão  delicada,  ei'a  exenqdo  de  nior- 
lificados;  sendo  antigno,  exemplo  de  modernos:  sendo  mcsire,  exemplo  de. 
noviços;  sendo  leti-ado.  (;xí!mplo  de  discipulos :  sendo  adiantado  na  virtu- 
de, exemplo  de  princii)iantes;  e  sendo  Visitador,  era  vivo  exemplo  de  súb- 
ditos: bastava  só  entrar  em  hum  Collegio,  pcra  logo  ficar  visiíaflo. 

120    Seu  enxoval  era  segundo  sua.graridc  ])obreza:  trazia  sempre  <'oiii^ 

\0L.   JI  .") 


CG  LI\  I\0  III  DA  -CHIIO-MCA    DA  COMPANHIA  DE  JKSU 

sigo  liuiii  sa(|uiiilio,  e  n"elle  metidos  os  iiistruiuenlos  de  vários  oíficios 
mecânicos ;  e  em  qualtiuer  parte  (jiie  estivesse,  elle  era  o  çapateiro  pêra 
remendar  seus  çapatos,  o  alfaiate  pêra  remendar  seus  vestidos,  e  assi  dos 
demais.  Estas  erão  as  suas  fidalguias,  e  á  vista  d"estas  desapparecião  os 
fumos  todos  do  lustre  mundano.  Ein  outi'o  sarpiinlio  trazia  os  instrumen- 
tos de  suas  mortificações,  cilícios,  disciplinas,  cruzes  espinhosas,  etc,  o 
era  tanto  o  rigor  com  que  castigava  seu  corpo,  e  tal  o  ecco  de  seus  açou- 
tes quando  entrava  comsigo  em  juizo,  que  não  podia  esconder-se :  e  era 
este  o  melhor  espertador  dos  qne  dormiãe  á  madrugada,  Tinha  graça  par- 
ticular pêra  servir  em  oíTicios  baixos :  quando  menos  se  imaginava,  com 
qualquer  pequena  occasião  que  occorria,  e  com  a  chaneza  com  que  o  po- 
derá fazer  hum  noviço,  Iiia  ajudar  á  cosinha,  dispensa,  refeitório,  servia  ú 
meza,  e  fazia  acçíjes  semelhantes;  e  era  esta  a  melhor  reprehensão  de  des- 
cuidados, e  huma  reformação,  ou  visita  pratica,  que  obrigava  mais  que  as 
Regras  aos  maiores,  aos  menores,  aos  superiores,  aos  súbditos,  aos  anti- 
guos,  aos  modernos,  aos  mestres,  aos  discípulos,  aos  provectos,  e  princi- 
piantes. 

121  Iluma  das  primeiras  cousas  que  trazia  assentado  na  alma,  era  o 
promover  a  boa  criação  da  mocidade,  assi  no  estudo  das  letras,  como  no 
noviciado,  escola  do  espirito:  em  huma  e  outra  cousa  poz  os  olhos,  e  ap- 
plicou  seu  patrocínio,  não  sem  fruto;  porque  crescerão  com  eíleito  a  gran- 
de estado :  visitando,  reformando  e  augmentando  as  classes,  e  casa  de 
noviços;  deixando  instrucções  pêra  ellas  mui  accommodadas.  As  aldeãs 
dos  índios  visitou  com  especial  aíTeclo ;  e  era  grande  a  força  do  espirito, 
«lue  o  movia  a  procurar  a  salvação  da  Gentihdade:  rompião-se-lhe  as 
fiilranhas  de  ver  í[ue  não  podião  os  nossos  acudir  a  toda,  o  cuida- 
va de  dia,  c  de  noite  nos  meios  (\m  teria  i)era  a  cultura  de  ião  vasta 
seara. 

líi  A  quatro  do  mez  de  yimo  deo  grão  de  Coadjutores  espiriluae.s 
formados  aos  Padres  Diogo  de  Freitas,  e  João  de  Mello;  e  de  Coadjutor 
temporal  formado  ao  Irmão  Duarte  Fernandes :  os  primeiros  que  vio  a 
Companhia  do  Brasil,  segundo  as  novas  Constituições  approvadas.  Logo 
no  mez  de  Junho  seguinte  celebrou  Congregação  Provincial,  e  assentou  com 
us  Padres  professos  algumas  declarações  necessárias,  assi  ao  modo  da  pro- 
pagação da  Fé  Catholica,  como  da  boa  conservação  da  Companhia  neste 
Estado.  Afiui  sahirão  tãobem  conlirmados  seus  desejos;  i)orque  supposto  que 
nosso  Jlevcrendo  Padre  Geral  deixada  só  cm  sua  eleição  o  voltar  a  Roma 


DO   ESTADO  DO   Bli.VSíL  (A.N.NO   DE    lf)()8)  ()7 

a  (lar  relação  da  Província,  ou  inaudar  outro,  como  melhor  líie  parecesse, 
»!  tendo  elle  em  matéria  de  padecer  pela  salvação  dos  Brasis  ardente  zelo, 
parecendo-lhe  que  em  semelhante  viagem  podia  fartar-se  de  trabalhos  e 
arriscar  a  própria  vida  por  bem  de  suas  ahnas:  e  representando-llie  seu 
grande  espirito,  que  era  bem  ir  apresentar-se  diante  do  Summo  Pastor 
d"estas  ovelhas,  e  do  Geral  de  nossa  Companhia,  gritando  por  soccorro  % 
obreiros  pêra  ellas,  inclinando-se  por  esta  razão  a  tornar  a  Roma:  não  quiz 
conliar-se  comtudo  de  seu  parecer  em  matéria  tão  grave,  e  (|uiz  que  en- 
trasse na  Congregação  a  escolha  do  que  fosse  mais  a  propósito  pêra  este 
intento:  porque  sendo  elle  o  eleito,  iria  pela  obediência ;  e  sendo  outro, 
entenderia  que  o  Ceo  o  ordenou  por  melhor.  Sahirão  da  Congregação  con- 
lirmados  em  tudo  seus  desejos,  e  foi  nomeado  por  Procurador  geral  da 
Província,  com  applauso  de  todos:  não  foi  necessário  mais.  Aparelhou  em 
breve  as  cousas,  c  partio  com  effeito  a  quatorze  de  Agosto  do  presente 
anno  de  1368,  deixando  a  todos  igualmente  cheios  de  saudades,  que  de 
esperanças:  o  fructo  d"Qstas  dirão  os  successos  futuros, 

\%\  Deixara  ordenado  o  Padre  Visitador,  que  visto  instar  o  tempo  de 
sua  partida  pêra  Pioma,  e  não  poder  ir  elle  em  pessoa,  como  desejava,  fos- 
se o  Padre  Provincial  Luis  da  Gram  a  Pernambuco,  entabolar  alli  a  resi- 
dência por  tantas  vezes  começada,  e  pedida  de  novo  com  instancia  daqncl- 
les  povos.  Levou  comsigo  o  Provincial  os  Padres  Diogo  de  Freitas,  e 
Amaro  Gonçalves,  e  outros  Religiosos,  cujo  numero  não  consla.  Chegou  no 
mez  de  Julho,  e  depois  de  haver  empregado-se  no  bem  d'aquella  gente,  e 
exercitado  cm  ella  com  seu  costumado  espirito  os  ministci'ios  da  Com- 
panhia, com  grande  aceitação,  e  fruto,  deixou  por  Superior  da  residência 
o  Padre  Diogo  de  Freitas,  e  voltou  ao  Collegio  da  Bahia  a  exercitar  obri- 
gações de  seu  oílicio.  A  brio  o  Padre  Superior  classe  de  ler,  escrever,  c 
doutrina  dos  meninos,  fundamentf)  primeiro  da  vida  de  hum  Chrístão.  E 
})oiico  depois  chegando  alli  de  Portugal  o  Padre  Affonso  Gonçalves,  e  o  li  - 
mão  João  Martins,  encarregou  o  cuidado  da  escola  ao  Padre  Alíbiíso  (Gon- 
çalves, e  o  de  huma  classe  de  Latim  ao  Padi-e  Amaro  Gonçalves;  com  que 
os  moradores  ficarão  contentes,  porque  desejavão  havia  tempo  esta  boa  cria- 
ção de  seus  filhos:  e  como  já  erão  mais  em  numero  os  Religiosos,  acudião, 
não  somente  ás  necessidades  da  villaem  que  lesidião,  senão  lambem  volantes 
ás  vizinhas  donde  erão  chamados,  e  neilas  a  grandes  necessidades  espiriluaes. 

12i  No  Rio  da  Janeiro  continuava  o  (itjvernador  Salvador  Corroa  de 
Si  com  í)  novo  edifício  da  cidade,  e  o  Padre  Nóbrega  com  o  do  Collegio 


68  IJVKO  111  DA  CHHOMCA  DA  COMPANHIA  DE  JliSU 

(le  nossa  Companhia:  porém  eslava  já  inui  debilitado  o  vigor  corporal  des- 
te anliguo  obreiro;  padecia  grandes  accidentes  de  sangue,  e  malencolia,  que 
o  cliegavão  a  apertos  grandes:  e  o  fjne  ultimamente  lhe  causou  sentimento 
maior,  foi  ver-se  cm  ])reve  tempo  destituído  de  hum  dos  companheiros, 
que  muito  o  ajudava.  Era  este  o  Padre  António  Rodrigues,  que  no  princi- 
pio d"este  anno,  em  20  de  Janeiro  passou  d"esta  vida  a  gozar  da  eterna.  Era 
este  bom  Padre  Portuguez,  natural  de  Lisboa:  seguia  no  mundo  as  armas; 
e  embarcado  em  huma  Armada  Castelhana,  passou  ás  partes  do  Rio  da  Pra- 
ia, onde  esteve  alguns  annos.  Porém  aqui  (a  tempo  que  menos  o  cuidava) 
lhe  offereceo  o  Ceo  occasião  ao  parecer  dos  homens  errada,  mas  muito  a 
propósito  a  sua  salvação,  que  por  esta  via  lhe  estava  traçada.  E  foi,  que 
entrou  em  huma  resolução  temerosa  de  deixar  a  vida  que  seguia,  e  vir-se 
por  terra  do  Rio  da  Prata  a  S.  Vicente,  distante  duzentas  legoas,  por  ca- 
minhos solitários,  asperrrimos,  usados  só  do  feras  ou  índios  montanheses, 
com  perigo  evidente  de  dar  em  suas  mãos,  e  ser  comido  d"elles.  Tudo  ven- 
cia o  amor  da  pátria,  que  por  este  meio  determinava  tornar  a  ver,  não  tra- 
tando então  da  celeste  a  que  Deos  o  guiava. 

125  Todos  estes  perigos  não  obstantes,  chegou  o  nosso  peregrino  sol- 
dado, guiado  mais  da  fortuna  desua  predestinação,  que  de  cuidados  próprios, 
á  villa  de  S.  Vicente.  N"esta  tentava  pôr  em  execução  os  pensamentos  de  pas- 
sar a  Lisboa  pátria  sua,  onde  tinha  ainda  vivo  o  pai:  senão  que  a  força  da 
predestinação  traçava  outra  cousa;  e  entre  os  maiores  fervores  de  seus 
aprestos,  sentio  ferido  o  coração  como  de  agudas  settas,  e  á  volta  d'estas 
huma  força  interior,  quo^lhe  batia  i'ijamente  á  porta,  e  liie  propunha  ante 
os  olhos  a  inconstância  das  cousas  doesta  vida,  seus  perigos,  trabalhos,  e 
(inganos:  occorrião-lhe  os  que  tinha  passado  na  guerra,  e  os  do  ultimo  seu 
caminho,  e  dizia  comsigo:  «Quem  .me  promelte  melhorias  no  tempo  que  me 
i-esta  de  vida?  Não  se  costumão  a  emendar  os  tempos;  raramente  os  vemos 
melhorados,  peiorados  si:  alem  de  que  parece  ingratidão  não  saber  agra- 
decer a  Deos  o  passado,  nem  saber  escarmentar  pêra  o  futuro.  N"estes  pen- 
samentos labutava  só  comsigo  o  bom  soldado,  sem  tregoas,  nem  comer, 
nem  dormir  de  suspenso.  Communicou-os  ao  Padre  Manoel  da  Nóbrega, 
arbitro  n'aquella  terra  commum  de  todas  as  questões  de  espirito;  e  pedin- 
do-lhe  com  força  interior  a  Companhia,  foi  admittido  nella  pelo  mesmo 
l*adre  na  era  de  mil  e  quinhentos  e  cincoenta  e  três,  como  já  dis- 
semos. 

126  Logo  ({uc  entrou  na  Religião  este  servo  bel  da  vinha  do  Senhor, 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  TaNNO  DK   '15G8)  fiO 

romeçoii  a  Iraballiar  irdla,  como  aqiielle  que  se  adiava  devedor  do  jornal 
recebido.  Foi  levado  ainda  noviço  a  Piralininga,  atravessando  a  pé  descal- 
ço a({iiellas  fragosas  serranias;  e  como  sabia  o  Padre  Nóbrega  o  que  n'elle 
linha,  e  juntamente  a  perícia  da  lingoa  brasilica,  e  zelo  dos  índios,  de  que 
Deos  o  dotárs,  largou-llie  a  mão  a  que  trabalhasse  no  bem  d'eslas  almas. 
Foi  notável  o  Iruto  que  fez  o  Irmão  António  Rodrigues:  cattivava  os  índios 
com  sua  boa  graça,  penetrava  o  sertão  trinta  c  quarenta  legoas  de  cami- 
nho, com  summa  pobreza  de  todo  o  necessário,  confiado  na  providencia  do 
Senhor  que  servia.  Aqui  tratou  com  grande  quantidade  de  índios,  fez-lhes 
Igreja,  catheciuizou-os,  e  converteo  a  muitos,  vivendo  entre  elles  três  ou 
(jualro  annos,  bautizando  os  que  morrião,  e  dispondo  os  \ivos:  a  estes  pre- 
gava dos  bens,  e  males  da  outra  vida,  com  tanta  eloquência,  por  suas  mes- 
mas frases,  e  uso  de  fallar  do  sertão  (cousa  que  este  gentio  mais  venera) 
que  suspendia  os  coraçijes,  e  era  estimado  c  querido  de  todos.  Tornou  poi- 
obediência  pêra  Piratininga:  aqui  lhe  coube  grande  parte  da  carga,  e  trabaliios, 
com  que  n'aquelle  lugar  se  ajuntarão  no  principio  as  aldeãs  dos  gentios. 
Ajudou  a  trazer  muitos  do  sertão,  feito  pregoeiro  da  Fé  evangélica,  por 
mattos  e  serras,  por  frios  e  geadas  cruéis  d'aquclle  clima,  pobre  sempre, 
sempre  descalço,  e  sempre  alegre. 

127  Na  instrucção  dos  filhos  dos  índios  foi  estremado:  ensinava-lhes 
por  sna  mesma  lingoa  a  policia  de  que  evTio  capazes,  e  á  volta  da  doutrina 
christãa,  ler,  escrever,  cantar,  e  tanger  instrumentos  músicos  pêra  o  culto 
divino;  porque  em  tudo  ei-a  destro:  e  era  em  tal  forma,  que  elles  sós  ofli- 
ciavão  destramente  todas  as  festas  da  Igreja.  Faltavão  lingoas  na  Bahia,  ([uíí 
ajudassem  a  cultivar  a  matta  brava  de  sua  grande  gentilidade  em  seus  prin- 
cípios: cnti"e  outros  foi  chamado  a  ella  o  Irmão  António  Rodrigues,  e  jun- 
tamente pêra  se  ordenar  ile  ordens  sacras.  Feito  Sacerdote,  capaz  já  de 
maiores  empresas,  forão  sem  numero  os  trabalhos  e  perigos  da  vida,  que. 
padeceu  em  amansar  aquelles  feros  coraçrx?s:  r^luzio  grandes  bandos  das 
brenhas  do  sertão  á  Igreja  de  Deos,  domesticou  seus  bárbaros  mstumes, 
allumiou  seus  rudes  entendimentos,  cathe(iuizou,  o  illustrou  nas  agoas  sa- 
cramentaes  da  vida  eterna,  incrível  multidão  de.  Pagãos.  A  elle  em  fim  se 
attribue  gi-ande  parte  da  c<jnversão  de  cincoenta  mil  almas,  e  formação  de 
todas  as  aldeãs,  que  se  assentarão  n"aí|uellas  [)artes,  desde  o  Camamú,  (Ui- 
zoito  legoas  da  banda  do  Sul  da  cidade,  até  ijiiasi  o  Rio  Real,  quarenta  le- 
goas d'ella  ao  Norte.  Assi  o  dá  a  entendei"  (»  Padre  .Ios('[)h  de  Ancliielaem 
huma  saudosa  lembrança,  que  deixou  escritta  d*esle  servo  liei,  por  estas 


70  LIVRO  III  DA  CHnOMCA  DA  COMPANHIA  DE  JESL" 

palavras:  «O  Patlre  António  Rodrigues  tomou  pí^la  ol)cdicncia  a  bandeira  da 
Ci-nz  de  Ghristo,  c  elle  era  o  segundo  que  como  alferes  hia  diante  pregan- 
do aos  índios,  o  ajunlando-os  em  aldeãs  grandes,  onde  se  fizcrão  todas  as 
Igrejas  que  houve  na  Bahia,  desde  o  Gamamú,  até  perto  do  Rio  Real;  das 
quaes  se  colheo  tanto  fruto,  salvando-se  muitos  milhares  de  almas.  «Atéqui 
as  palavras  do  venerável  Padre. 

128  Da  Bahia  voltou  este  grande  obreiro  da  vinha  do  Senhor  ao  Rio 
de  Janeiro,  em  companhia  do  Governador  Mem  de  Sá,  no  anno  de  lo67. 
Aqui  refinou  o  fervor,  parece  que  advinhando  já  quão  pouco  lhe  restava  do 
vida;  porque  tendo  assentado  pazes  o  Governador  com  alguns  dos  Tamoyos, 
e  estando  ainda  mui  frescas,  e  elles  mui  vários  por  sua  natureza,  e  sem- 
pre infestos  aos  Portugueses:  talou  com  tudo  seus  sertões,  e  foi  tratar  com 
elles  intrépido  as  cousas  de  sua  salvação;  resolvendo,  que  sempre  fazia 
cousa  grata  a  Deos,  ou  vivo  convertendo  as  almas,  ou  morto  padecendo  por  ■ 
ellas.  Não  morreo  a  mãos  de  Tamoyos,  porque  d'estes  foi  bem  ouvido;  fi- 
zerão  grande  conceito  d^elle,  e  lhe  ajudái^ão  a  levantar  Igreja,  e  Gasa  em 
suas  terras,  ouvindo  todos  suas  pregações,  e  doutrinas.  Morreo  porém  por 
juízos  do  Geo;  porque  quando  havia  de  esperar  os  mores  frutos  de  seus 
trabalhos,  cahio  em  cama  gravemente,  e  se  recolheo  ao  Collegio:  onde  no 
tempo  que  lhe  restou  de  vida,  foi  hum  exemplo  de  paciência,  e  conformi- 
dade com  o  querer  divino.  Passava  os  dias,  e  as  noites  em  contínuos  sus- 
piros, e  jaculatórias  ao  Geo:  pedia  do  intimo  das  entranhas  perdão,  junta- 
mente a  Deos,  e  aos  homens,  de  seus  erros  passados,  e  do  mal  que  sou- 
bera aproveitar-se  dos  meios  que  lhe  dera  a  tleligião.  Depois  de  muitas  ve- 
zes confessado,  e  reconciliado  em  dia  de  S.  Sebastião  de  mil  e  quinhentos 
e  sessenta  e  oito,  foi  visitar  a  Igreja  por  seu  pé,  e  logo  tornando-se  ao  cu- 
bículo, n^aquelle  mesmo  dia,  depois  de  recebidos  os  Sacramentos,  entre  fer- 
vorosos coUoquios  deo  a  alma  a  seu  Griador,  sendo  de  idade  de  cincoenla 
e  dous  annos,  tendo  quatorze  da  Gompanhia,  e  levantado  em  louvor  do  cul- 
to divino  nove  templos  em  diversas  aldeãs  de  índios.  Foi  sepultado  na  Igre- 
ja do  mesmo  GoUegio  do  Rio  de  Janeiro,  com  sentimento  geral  de  todos, 
havendo  hum  anno  que  tinha  chegado  da  Bahia.  Foi  sempre  homem  de 
grande  coração,  e  igualmente  tenro,  e  devoto.  Tinha  familiar  trato  com 
Deos,  tratava  asperamente  seu  corpo,  e  ainda  quando  soldado  no  século 
era  exemplo  nestas  matérias  aos  companheiros;  e  quando  fazia  entradas, 
e  postas,  gastava  grande  parte  da  noite  cm  oração  mental,  c  vocal,  donde 


DO  ESTADO    DO  BRASIL  (aNNO  DE    l-jGS)  71 

sempre  conccl)CO  esperanças  de  que  o  Ceo  lhe  tinha  guardado  meioeíTicaz 
de  sua  salvação;  como  vio  em  eíTeito. 

129  O  Padre  Nóbrega,  ainda  que  já  mui  quebrado,  e  doente,  acudia 
com  força  do  espirito  a  remediar  muitas  necessidades,  que  o  tempo,  e  lu- 
gar occasionavão  em  hum  Collegio,  que  começava  a  ediíicar-se  em  huma 
cidade,  que  escaçameute  linha  lançado  primeiros  fundamentos,  e  entre  gen- 
te nova  no  sitio,  que  tratava  somente  de  principiar  modo  de  vida,  e  esco- 
colher  sorte  de  terra,  de  cujas  plantas  pudesse  sustentar-se.  Ajudava  jun- 
tamente ao  Capitão  mór,  que  o  Governador  Mem  de  Sá  seu  tio  lhe  deixa- 
ra encommeudado  (segundo  costumava)  e  ao  ditto  Capitão  ordenado,  que 
não  fizesse  cousa  de  sustancia  sem  conselho  do  Padre.  Acudia  á  doutrina, 
e  instrucção  dos  índios  que  tinhão  vindo  das  Capitanias,  especialmnnte  do 
Espirito  santo,  em  ajuda  da  guerra;  fazendo-os  ajuntar  nas  terras  do  Col- 
legio em  huma  grande  aldeã,  que  depois  íloreceo,  e  foi  em  augmento,  assi 
em  christandadc,  como  em  numero  de  gente,  que  se  lhe  aggregou;  e  sér- 
vio sempre  de  baluarte,  o  defensão  da  cidade  contra  Tamoyos,  Franceses, 
e  Ingleses. 

130  Aqui  por  fim  d'este  anuo  porei  hum  caso  digno  de  memoria,  ain- 
da que  com  duvida,  se  foi  n"este  ou  n^outro  anno  dos  seguintes;  o  que  im- 
porta pouco.  Vivia  n"esta  terra  hum  índio,  homem  de  grande  coração,  a 
esforço,  e  na  destreza,  e  prudência  militar  superior  a  todos;  fiel  aos  Por- 
tugueses, e  perfeito  Christão.  Tinha  obrado  grandes  façanhas  nas  guerras 
passadas  em  defensão  dos  Portugueses,  primeiro  em  S.  Vicente  contra  os 
gentios  Tamoyos,  que  tinhão  posto  em  grande  aperto  a  terra.  Ajudara  a 
defender  a  Capitania  do  Espirito  santo  com  sua  gente  (cujo  Principal  era) 
contra  os  Franceses,  que  pretenderão  fazer  entrada  naquella  villa;  com  tão 
boa  opinião  de  soldado,  que  veio  a  ser  assombro  do  inimigo.  Era  sou 
nome,  quando  gentio  Ararigboya,  depois  de  bautizado  foi  Martim  Aífonsode 
Sousa.  Na  primeira  guerra,  em  que  Mem  de  Sá  rcndeo  a  força  de  Yillagai- 
Ihon,  ouvindo  o  valor  d'este  índio,  o  levou  comsigo  do  Espirito  santo  com 
toda  sua  gente;  e  fez  taes  façanhas  em  armas,  aqui,  e  em  todos  os  succos- 
sos  seguintes  de  muitos  aimos,  que  mereceo  ser  reputado  entre  os  princi- 
paes  Capitães  de  conta. 

líH  Este  índio  pois,  acabadas  as  guerras,  mandou  o  Governador  Mem 
de  Sá  assistir  com  sua  gente  em  huma  paragem  fronteira  á  cidade,  distan- 
cia de  huma  legoa,  por  nome  hoje  S.  Lourenço.  Aqui,  depois  de  assenta- 
da sua  aldeã,  intentarão  as  relíquias  dos  Tamoyos  vencidas,  que  possuião 


7'2  i.ivno  iií  DA  ciinoNicA  da  companhia  df.  JF.sr 

o  Cabo  Fi-io,  ininii},'os  seus  capitães,  liavel-o  ás  maus,  c  fazer  d"elle  hum 
alegre  bani[uete.  Adiái-ão  occasião  a  proiiosito;  porque  havendo  de  carre- 
gar em  seu  distrito  de  páo  brasil  quatro  náos  de  Franceses,  pedirão-lhes 
que  antes  de  partirem  fossem  seus  Capitães  n'este  acommelimento:  c  como 
dependião  os  Fi'anceses  em  suas  drogas  d"estes  bárbaros,  houverão  de  con- 
descender com  seus  intentos.  Derão  á  vela  as  qnatro  náos,  oito  lanchas 
guerreiras,  e  hum  numero  de  canoas  sem  conto.  Entrarão  a  som  de  guerra 
a  barra  do  Rio  de  Janeiro,  ainda  então  sem  forças,  nem  artilharia  que  lhe 
impedisse  o  passo;  e  com3  nem  a  mesma  cidade  estava  cercada,  teve-se 
por  perigoso  o  caso,  porque  o  inimigo  chegou  inopinadamente:  seu  poder 
era  grande,  o  nosso  mui  fraco;  e  se  acommelêrão  corria  risco  n'aquelle  dia 
a  cidade.  Fizerão  os  nossos  coração,  mandái'ão  Embaixadores  aos  France- 
ses sobre  o  inteiito  de  sua  vinda:  responderão  que  elles  hião  a  entregar  nas 
mãos  dos  Tamoyos  a  Martim  Aflbnso  de  Sousa.  Ficou  mais  desassombrada 
a  cidade,  posto  que  receosa  que  levando  victoria  do  índio  voltassem  sobre 
ella.  :Mandou  o  Governador  a  toda  a  pressa  a  S.  Vicente  em  busca  de  soc- 
corro  de  canoas,  e  gente,  preparou  trincheiras,  ordenou  que  todos  estives- 
sem em  armas,  e  despachou  aviso  a  toda  a  pressa,  com  algum  soccorro 
que  pôde,  a  Martim  Affonso  de  Sousa,  do  cujo  successo  dependia  o  nosso, 
e  a  quem  devíamos  favorecer  por  benemérito  da  republica  toda. 

132  Ao  som  do  aviso  não  desmaiou  o  valeroso  índio:  pòz  logo  em  cer- 
ca de  vallos  e  estacada  sua  aldeã,  e  recolhendo  somente  os  que  erão  de  guer- 
ra, e  os  Padres  da  Companhia  Gonçalo  de  Oliveira,  e  Balthasar  Alvares,  que 
com  elles  estavão,  mandou  sahir  toda  a  gente  inútil  a  lugares  seguros,  e 
esperou  com  grande  coração,  o  esforço  o  inimigo.  Desembarcou  este  em 
terra,  e  virão  então  que  era  seu  poder  formidável  em  comparação  do  com 
que  se  achavão;  porque  as  quatro  náosjogavão  muita  artilharia,  as  oito  lan- 
chas lançarão  de  si  sunima  de  Franceses  de  armas  de  fogo:  as  canoas  tão  gran- 
de multidão  de  Tamoyos,  que  cobrrão  as  praias,  apercebidos  todos,  como 
aquelles  que  vinhão  a  elfeito. 

133  Porém  no  meio  d'esta  perplexidade,  traçava  o  Ceo  hum  successo 
de  fama;  e  foi  assi,  que  os  inimigos  dando  por  certa  a  victoria,  aquelle  dia 
que  sahirão  em  terra  quizerão  descansar,  e  não  fizerão  nada.  Succedeo  que 
aquella  mesma  noite  entrou  n'ellao  soccorro  que  tinha  despedido  o  Governa- 
dor da  Cidade,  de  poucos  Portugueses,  mas  de  effeito,  com  alguns  índios:  tudo 
capitaneava  Duarte  Martins  Mourão,  homem  de  valor.  Visto  este  soccorro, 
chorou  de  alegria  o  Capitão  Martim  AíTonso,  e  depois  de  exagerai'  aos  seus 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  ('aNNO  DF.    13G8)  71] 

grandes  louvores  da  lealdade  dos  PorUigiiesos,  que  em  tão  apertada  occa- 
sião  so  não  esquecerão  d"ellcs,  e  depois  de  trazer-lhes  á  memoria  as  fara- 
nhas  de  seus  antepassados,  e  as  que  elles  tinhão  obrado  na  continuação 
(Vaquellas  guen-as  tão  prolongadas,  tomou  Imma  resolução  digna  de  coração 
esforçado;  e  confiado  no  valor  dos  seus,  e  no  silencio  e  escuro  da  noite, 
mandou  romper  as  cercas,  c  appellidando  o  nome  de  Jesu,  e  do  Martyr  S. 
Sebastião,  acommeteo  o  inimigo  de  improviso.  Travou-se  aqui  huma  bem 
ferida  batalha;  porque  os  nossos,  ú  voz  e  exenq)lo  de  seu  Capitão,  parecião 
leões;  c  como  derão  em  corpo  desconcertado,  fazião  no  inimigo  grande  es- 
trago: por  outra  parte  a  mesma  multidão  fazia  resistência,  e  pelejavão  forte- 
mente os  mais  esforçados;  mas  como  sem  ordem,  e  entre  a  confusão  da  noi- 
te, houverão  por  fim  de  voltar  as  costas,  e  pôr-se  em  fugida.  Seguirão  os 
nossos  o  alcance,  e  com  pouco  damno  recebido,  fizerão  huma  grande  ma- 
tança, castigando  o  atrevimento  dos  bárbaros,  e  desafrontando  sua  gente. 

134  Em  quanto  huns  e  outros  soldados  andavão  occupados  na  briga,  as 
náos  francesas  que  estavão  junto  á  praia,  com  a  vazante  da  maré  ficarão  em  se- 
co, e  fizerão  pendor  de  maneira,  que  não  podião  jogar  artilharia;  o  que  adver- 
tindo alguns  dos  nossos,  assestarão  contra  ellas  hum  falcão  pedreiro,  que 
tinha  vindo  no  soccorro,  e  vomitando  nos  convezes  virados  a  terra  á  mão 
tente  nuvens  de  pedras,  matarão  muitos  dos  Franceses,  e  destroçarão  al- 
guma enxarcea  miúda.  Acabada  esta  memorável  victoria,  clareou  a  manhãa, 
e  virão  então  suas  magoas;  e  mal  puderão  as  relíquias  dos  Franceses  re- 
duzir-se  a  suas  náos,  e  as  dos  Tamoyos  a  algumas  de  suas  canoas.  Assi 
confusos,  e  envergonhados  desembocarão  a  barra,  com  menos  brios  dos 
com  que  entrarão.  Fizerão  resenha,  e  achárão-se  mui  raros,  e  que  levavão 
que  chorar  largos  tempos;  e  aquclles  que  sahindo  soberbos,  vinhão  amea- 
çando banquetes  das  carnes  dos  contrários,  deixavão  agora  semeadas  as 
praias  de  seus  defuntos  corpos.  Chegarão  ao  Cabo  Frio,  planteárão  os  Ta- 
moyos seus  mortos,  e  os  Franceses  repararão  seus  navios,  e  se  partirão 
menos  alegres  a  suas  terras,  deixando  com  esta  ultima  victoria  o  Rio  de  Ja- 
neiro desassombrado.  Soube  do  caso  El-Rci  D.  Sebastião,  louvou  o  esforço 
do  índio,  mandou-Uie  peças  de  estima,  e  entre  ellas  hum  habito  de  Chris- 
to  com  tença,  e  hum  vestido  de  seu  próprio  corpo. 

13t)  N'estc  tempo  chegou  o  soccorro  que  o  Governador  mandara  pedir 
a  S.  Vicente ;  c  achando  concluído  o  a  que  vinhão,  tomarão  cm  ponto  de 
honra  voltar-se  sem  fazer  cffeito  de  guerra.  IMandou  o  Governador  quo  fos- 
sem ao  Cabo  Frio,  fazer  alguns  assaltos  n'aquelles  inimigos,  menos  pujan- 


74  I.IVRO  III  DA  CHP.ONICA  DA  COMPANHIA  DE  SEUV 

tes  já,  e  tomassem  lingoa  do  que  se  passava  entre  elles.  Acliárãoqiie  erão 
partidas  as  qual ro  náos  Francesas,  e  que  em  seu  lugar  tinha  chegado  huma 
bem  artilhada,'  carregada  de  mercadorias :  voUárão  com  a  noticia;  e  como 
estavão  os  do  Rio  victoriosos,  e  os  de  S.  Vicente  desejosos  de  pelejar,  vie- 
ifio  todos  facilmente  em  que  fossem  com  suas  canoas  acommeter  e  render 
aquella  náo  Francesa.  Partio  o  mesmo  Governador  em  pessoa  com  g(nile 
de  eíTeito,  e  chegando  a  ser  avistados  dos  montes  do  Cabo  Frio,  fizerão  os 
Tamoyos  aviso  aos  Franceses,  entre  os  qiiaes  sérvio  de  riso  o  poder  de 
pequenas  canoas  contra  limna  náo  artilhada,  de  porte  de  mais  de  duzentas 
toneladas.  Porém  chorarão  logo  o  que  rirão;  porque  as  canoas  acommete- 
rão  huma  madrugada  por  huma  e  outra  parte,  e  ganharão  de  repente  os 
costados;  d"onde  por  mais  que  a  náo  estava  preparada  de  artilharia,  enxa- 
retada,  e  guarnecida  de  soldados  armados,  e  artifícios  de  fogo,  a  artilharia 
não  fazia  etíeito,  porque  jogava  pelo  alto,  e  ficavão-lhe  as  canoas  debaixo: 
e  da  mesma  maneira  todas  as  mais  armas  de  fogo  íicárão  frustradas;  por- 
que as  frechas  varejavão  os  bordos  de  maneira,  que  não  era  possivel  che- 
gar a  elles  sob  pena  de  morte.  Já  n'este  tempo  sentião  os  Franceses  a  forra 
das  pequenas  canoas,  e  julgavão  que  não  era  cousa  de  riso.  Acommeterão 
os  nossos  a  subida  três  vezes ;  mas  como  ao  entrar  ficavão  a  peito  desco- 
berto, forão  rebatidos  com  os  piques,  e  com  alcanzias  de  fogo :  e  n^estes 
encontros  três  vezes  cahio  o  Governador  ao  mar  armado,  sem  saber  nadar, 
e  três  vezes  foi  livre  pelos  índios,  que  no  mar  são  o  mesmo  que  peixes 
nadadores.     • 

136  Durava  a  briga  mui  travada  de  parte  a  parte:  o  principal  que  de- 
fendia o  convés  esforçadamente,  era  o  Capitão  da  náo,  vestido  de  armas 
brancas,  jogando  de  duas  espadas,  e  acudindo  com  valor  a  todos  os  suc- 
cessos :  entenderão  os  nossos,  que  n'esíe  consistia  a  gadelha  do  inimigo ; 
mas  como  andava  armado  todo,  não  podião  as  frechas  penetral-o.  Entrou 
em  zelo  hum  destro  frecheiro,  perguntou  se  tinhão  aquellas  armas  algum 
lugar,  por  onde  entrasse  huma  frecha?  Disserão-lhe  que  pela  viseira:  bas- 
tou o  ditto,  disparou  a  frecha,  deo  no  mesmo  lugar,  penetrou-lhe  o  olho, 
e  o  interior  da  cabeça,  e  deo  com  o  armado  Capitão  no  convés,  e  com  os 
corações  dos  soldados  por  terra;  porque  vendo  defunto  seu  Capitão,  e mui- 
tos soldados  mal  feridos,  desmaiados  se  recolherão  a  baixo  da  coberta.  En- 
trarão os  nossos,  e  a  breves  lanços  rendidos  os  Franceses,  se  fizerão  se- 
nliores  da  náo,  á  vista  dos  mesmos  Tamoyos  contrários,  que  como  escal- 
dados, não  se  atreverão  a  ajudar  seus  amigos.  Mandou  o  Governador  dar 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  fAWO  DE    15G8)  75 

á  vela,  e  enlroii  rom  a  náo  em  o  Rio.  Deo  saco  aos  soldados,  que  em  breve 
tempo  apparecèrão  todos  vestidos  dos  melhores  panos.  A  artilharia  applicou 
pêra  defensa  da  cidade,  e  veem-se  hoje  algumas  das  pecas  na  fortaleza  de 
Santa  Cruz  na  barra.  A  náo  mandou  ao  Governador  Mem  de  Sá  seu  tio. 
com  relação  do  ca^o;  e  ficou  elle  com  gloria  de  tão  grande  empresa,  não 
tomando  cousa  alguma  de  despojo  pêra  si.  Estes  últimos  feitos  acrescenta- 
rão grande  terror  ás  naç(5es  estranhas,  c  vierão  d'alli  em  diante  com  mais 
cautela  a  estas  parles. 


t  'I 


LIVRO   QUARTO 

DA 


GHRON 


DA  COMPANHIA  DE  JESU 
DO  ESTADO  DO  BRASIL 


^íi^^^ 


^mjmmmmjm. 


Contém  a  historia  nolaoel  dê  marlyrio  insigne  dos  quarenta  Mar lij- 
res  da  Companhia  de  Jcsii  do  Brasil,  Ignacio  do  Azevedo,  e  seus  com- 
panheiros, com  breve  summa  de  suas  vidas.  A  morlc  ditosa  do  vene- 
rável Padre  Manoel  da  Nóbrega,  fundador,  e  primeiro  Provincial  d' esta 
Provincia,  e  suas  heróicas  virtudes.  E  o  Poema  da  Vida  da  Virgem 
Senhora  nossa,  composto  por  modo  admirável,  pek  venerável  Padre  Joseph 
de  Anchieta >  prometido  no  livro  terceiro  cVesta  obra  pêra  este  lugar. 


DO  ESTADO  DO  BUASIL  (AN.NO  DE    1569)  77 

1  No  aiino  de  lo09  nenhuma  oulra  cousa  achamos  na  Bahia,  nem  ainda 
nas  mais  Cai)ilanias,  senão  saudades,  o  esperanças.  Saudades,  da  ausência 
do  bom  Padre  ígnacio  de  Azevedo,  Visitador  que  fôia  seu,  e  depois  en- 
viado a  Roma  por  Procurador,  e  protector  geral  da  Provincia,  que  levara 
comsigo  as  alfeições  de  todos.  Esperanças,  porque  nelle  fundavão  augmen- 
tos  grandes  do  bem  do  Estado  :  e  não  sabião  fallar  n"outra  cousa,  corações 
tão  grandemente  empenhados. 

"-2  Mas  já  que  o  anno  está  desoccupado,  em  lugar  de  correr  a  Provincia 
(segundo  costumamos)  façamos  digressão  fora  delia,  e  arrebate  comsigo  a 
historia,  aquelleque  leva  após  si  as  vontades;  que  bem  lie  íenlião  vespo- 
ras,  solemnidades  grandes;  e  que  este  anno  as  faça  ás  do  seguinte.  Chegou 
ígnacio  a  Lisboa,  e  chegou  com  elle  hum  trasordinario  fervor,  com  que  se 
abalou  Portugal  á  voz  das  cousas  do  Brasil,  ainda  então  novas,  e  á  voz  da 
vinda  de  huma  pessoa  tão  conhecida  e  amada  naquelle  Reino.  Seu  antiguo 
(!  intimo  amigo  o  Illustrissimo  Arcebispo  de  Braga,  D.  Frei  Bertholameu 
dos  Martyres  lhe  mandou  as  boas  vindas  por  escrilto,  animando-o  a  levar 
a  diante  a  empresa  começada,  significando-lhe  a  inveja  grande  que  tinha 
(relia :  e  como  sabia  que  hia  á  santa  cidade  de  Roma,  lhe  mandou  huma 
carta  pêra  Sua  Santidade  o  Santo  Padre  Pio  Quinto:  que  me  pareceu  trasla- 
dar, porque  se  veja  o  grande  conceito  que  este  excellente  Prelado  tinha  da 
pessoa  do  Padre  ígnacio  de  Azevedo.  O  teor  da  carta  he  o  seguinte. 

Carla  do  Arcebispo  de  Draga  1).  Frei  Bertholameu  dos  Martyres  pêra  o  Papa 

Pio  Quinto. 

Beatíssimo  Padre. 

;{  «Dei)ois  de  beijar  os  bemaventurados  pés  de  Vossa  Santidade:  ígna- 
cio de  Azevedo,  Saceidote  da  Companhia  de  Jesu,  Visitador  e  Preposito 
Provincial  da  mesma  C(jm})anhia  nas  paiLes  do  Brasil,  vai  a  Roma  tratar 
com  Vossa  Santidade  alguns  negócios  de  muita  importância,  tocantes  á 
mesma  Com[)anhia  :  e  porque  eu  lenho  bem  conhecido  sua  gi-ande  viilude, 
e  o  desejo  que  tt.-m  de  sofrer  trabalhos,  e  levar  sobre  si  a  Cruz  de  Chris- 
to,  de  que  elle  (desprezada  a  nobicza  do  mundo)  se  quiz  fazer  verdadeiro 
imitador,  a.ssi  na  pobi(,'za,  abnegação,  e  des[)rezo  de  si  mesmo,  como  lam- 
bem no  zelo,  e  ajtroveitamíMilo  «las  almas,  o  no  augmento  da  religião  chris- 
tãa,  do  que  tem  dado  a  todos  boas  mostras,  assi  nesta  Diecesi  de  Braga, 


78  LIVRO  IV  DA  CHRONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

onde  por  alguns  annos  me  ajudou  muito,  como  nas  partes  do  Brasil,  d"oiidu 
pouco  ha  veio  :  rne  pareceo  cousa  muito  pia  pedir  a  Vossa  Santidade  o  queira 
favorecer,  e  o  receba  com  aquellas  paternaes  entranhas,  e  amoroso  animo, 
com  que  costuma  receber  e  abraçar  todas  aquellas  cousas  que  ajudão  ao 
culto  divino,  e  á  salvação  das  almas :  assi  que  Vossa  Santidade  o  pôde  ter 
por  hum  varão  apostólico,  e  cheio  do  Espirito  santo ;  porque  n'essa  conta 
o  tem  todos  aquelles  que  n'esta  Província  de  Portugal  o  conhecem :  pelo 
qual  todo  o  favor  que  Vossa  Santidade  lhe  mostrar,  e  toda  a  ajuda  que  lho 
der  pêra  seus  ministérios,  tudo  tenho  pêra  mim  será  muito  agradável  e 
aceito  diante  de  nosso  Senhor,  cujas  vezes  Vossa  Santidade  tem  em  a  terra; 
ao  qual  clementíssimo  Senhor,  peço  acrescente  os  annos  de  vida  a  Vossa  San- 
tidade, com  os  quaes  lhe  faça  muito  serviço  em  a  terra.  De  Braga,  em  qua- 
tro de  Março  de  mil  e  quinhentos  e  sessenta  e  nove.  O  Arcebispo  Primaz.» 
Este  he  o  traslado  da  carta,  que  até  hoje  se  guarda  no  Cartório  do  Colle- 
gio  de  Coimbra;  e  hum  dos  maiores  testemunhos  da  virtude  de  Ignacio  de 
Azevedo,  onde  vemos  que  hum  Prelado  tão  excellente  lhe  chama  varão 
apostólico,  cheio  do  Espirito  santo. 

4  Os  Religiosos  de  nossos  CoUegios,  parece  querião  despovoal-os ;  os 
estudantes  seculares,  seus  estudos ;  os  oíliciaes  suas  tendas,  e  pátrias,  a 
fira  de  serem  recebidos,  e  irem-se  com  elle  á  empresa  das  almas :  até  fa- 
mílias inteiras  se  offerecião  passar  â  sua  sombra  a  povoar  a  terra :  e  o  que 
mais  he, .  que  pêra  todas  estas  cousas  se  mostrava  prompto  o  favor,  e  li- 
beralidade real  do  Sereníssimo  Rei  D.  Sebastião,  a  quem  foi  grata  sua  che- 
gada, e  santos  intentos :  de  todo  este  alvoroço  era  causa,  a  opinião  da  grande 
virtude  e  nobres  talentos  do  Padre  Ignacio  de  Azevedo,  que  cattivava  aos 
que  o  ouvião,  e  a  com  que  obrava  o  Ceo,  pêra  os  fins  que  tinha  decretado. 

5  Deixando  era  flor  de  esperanças  todos  estes  desejos,  partio  Ignacio 
pêra  Roma,  no  mez  de  Maio  do  corrente  anno  de  1569,  e  foi  segunda  ad- 
miração, o  como  n^esta  Corte  Pontifícia  foi  recebido  do  Papa,  Cardcaes,  e 
nosso  Reverendo  Padre  Geral,  assi  pela  fama  de  sua  muita  qualidade,  e 
igual  \irtude,  como  das  cousas  que  relatava  das  partes  do  Brasil,  até  então 
pouco  conhecido.  O  Summo  Pontífice  Pio  Quinto  lhe  deo  benévolas  audiên- 
cias, e  concedeo  privilégios  largos,  e  entre  estes  todos  aquelles  que  tinha 
concedido  á  índia:  indulgência  plenária  pêra  todos  os  que  o  acompanhassera: 
corpos  de  Santos  de  estima,  e  entre  estes  a  santa  cabeça  de  huma  das 
onze  mil  Virgens :  e  sobretudo  lhe  deo  licença  pêra  tirar  retrato  da  santa 
imagem  da  Virgeni  Senhora  nossa,  que  pintou  S.  Lucas  ao  natural;  da  qual 


DO  KSTADU  DO  BKASIL  (aNNO  DE   15G9)  79 

nenliuni  dos  Sumaios  Pontifices  passados  o  deixarão  tirar,  porque  só  esta  fosse 
no  inundo  de  maior  reverencia.  Não  só  do  Papa  era  notável  agrara  e  benevolên- 
cia corn  que  eia  tratado,  mas  também  dos  Cardeaes,  e  de  todos  aqueiles  se- 
nhores estrangeiros.  De  nosso  Reverendo  Padre  Geral  Francisco  de  Borja 
foi  recebido  com  tanto  alvoroço,  quantos  erão  os  desejos  que  tinha  havia 
muitos  annos  de  ouvir  plenária  relação  do  que  chamavão  novo  mundo,  o 
(|uaijto  era  o  conceito  que  tinha  dos  dotes  doeste  grande  varão.  Mostrava 
receber  particular  consolação  de  tudo  o  que  ouvia  da  conversão  da  genti- 
lidade d'estas  partes :  e  persuadia-se,  que  era  grande  a  empresa,  e  não 
men(jr  a  necessidade  de  obreiros  delia.  Resolveo,  que  pêra  este  íhn  era 
mui  a  propósito  o  zelo  de  Ignacio,  e  a  gi'ande  experiência  que  tinha;  e  feita 
consulta  com  seus  assistentes,  o  elegeo  por  Provincial  do  estado :  e  pêra 
(jue  tão  bom  Capitão  juntasse  soldados  em  quantidade,  e  qualidade,  quaes 
por  então  se  representava  serem  necessários,  deo  licença  que  podesse  tra- 
zer da  Província  de  Portugal  todos  aqueiles  (}ue  ella  podesse  conceder-lhe; 
c  das  mais  Províncias  por  onde  passasse,  três  dos  que  pedissem  em  cada 
liuma  delias,  e  seu  Provincial  eelleapprovassem.  Deo-lhe  ultimamente  hum 
retrato  da  santa  imagem  de  S.  Lucas,  pêra  que  o  oíTerecesse  de  sua  parte 
á  Piainha  D.  Catherina,  que  governava  Poi'tugal.  Nenhuma  cousa  empren- 
deo  em  Roma  pêra  bem  de  seus  santos  intentos,  por  grandes  dilFiculdadis 
(í^e  tivesse,  que  com  effeito  não  conseguisse.  Bastava  somente  dizer  migsa 
por  seu  intento,  e  vel-o  posto  em  effeito. 

G  De  Roma  chegou  ignacio  a  Portugal,  e  chegarão  com  elle,  e  após 
(ille,  hum  numero  grande  de  companheiros,  (íue  segundo  as  condições  da 
licença  se  aggregárão  das  Províncias  estranhas  á  voz  da  milícia  do  Ceo ; 
Theologos  huns,  outros  Philosophos,  outros  Humanistas,  outros  olílciaes 
de  varias  artes,  todos  mui  necessários.  Vinha  entre  elles  hum  insigne  pin- 
tor Aragonez :  este  em  quaiito  esteve  em  Portugal  tirou  quatro  retratos  da 
sagrada  imagem  de  S.  Lucas  muito  ao  natural :  tros  lieârão  nos  Collegios 
de  Coimbra,  Évora,  e  Santo  Antão,  o  quarto  veio  pêra  o  da  Bahia,  e  n'elle 
se  conserva :  ponjue  o  principal  original,  foi  apresentado  á  Rainha  pelo  Pa- 
dre Torres,  em  nome  do  Santo  Padre  Francisco  de  Borja,  como  tinha  man- 
dado :  a  qual  mostrou  alegrai-se  muito  de  tão  pei"leita  peça,  e  [)rometeo 
(lue  por  sua  morte  a  deixaria  á  (^asa  de  S.  Roque,  como  com  effeito  dei- 
xou. Não  descansava  o  esi)iiito  de  ignacio,  tratou  de  alistar  companheií-os, 
('  aceitou  pí)r  seus  af|uelles  aquém  tinlia  dado  ))alavi-a,  quando  partira  pêra 
Roma,  corn  beneplácito  de  seus  Su[)erioi'es,  além  de  oulios  que  de  no\o 


80  LIVRO  IV  DA  CURONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

pediSo;  c  despejaria  os  Collegíos,  se  só  seguira  desejos  próprios,  e  do5 
que  qiierião  segiiil-o.  D"estes,  e  de  alguns  que  cscolheo  estudantes,  e  mes- 
tres de  oíBcios  de  muitas  partes  de  Portugal,  formou  Jiuma  Ijoa  compa- 
nhia de  setenta  escolhidos  soldados,  apostados  a  toda  a  fortuna :  não  me- 
tendo em  conta  muitos  outros,  que  aceitou  pêra  irem  á  prova  senindo  na 
viagem,  e  serem  recebidos  no  Brasil. 

7  Hia  já  chegando  a  peste,  que  tinha  entrado  em  Portugal,  a  alguns 
dos  bairros  de  Lisboa :  nem  era  segura  a  Cidade;  nem  o  CoUegio,  e  Casa 
de  S.  Roque  d"e}la,  podião  reter  tantos  hospedes  commodamente.  Foi  for- 
ça, ou  da  occasião,  ou  do  Ceo,  retirar-se  Ignacio  com  os  seus,  aonde  pa- 
rece que  o  guiava  o  espirito,  a  hum  lugar  deserto,  separado  como  duas 
legoas  do  reboliço  da  cidade,  no  meio  de  huma  charrieca  entre  Caparica  e 
Azeitão,  vestido  de  hervas  cheirosas,  alecrim,  rosmarinho,  e  grandes  pi- 
Kheiraes,  aonde  além  do  balido  do  gado,  susurro  das  abelhas,  e  ecco  do 
Oceano,  que  por  huma  parte  o  cerca,  poucas  outras  vozes  se  ouvem:  seus 
arredores  são  toscos,  e  silvestres,  cercados  parte  de  medos  de  área  infor- 
mes, parte  de  moutas  de  silvado,  e  tojo,  covas  de  feras,  e  horror  de  gente 
humana.  Aqui  comtudo  se  deixa  conhecer  a  concórdia  discorde  da  sagaz 
natureza;  porque  onde  o  sitio  per  si  he  tão  desabrido,  ahi  mesmo  dos  cu- 
mes d'esses  medos,  e  eminências  toscas,  se  descobre  huma  das  mais  fer- 
mosas  vistas  que  podem  ter  olhos  humanos :  iwrque  olhando  pêra  o  terre- 
no, descobre  toda  a  circunferência  d"aquelle  grande  valle,  cujo  diâmetro 
corre  desde  a  montanha  de  Palmela  até  Nossa  Senliora  do  Cabo,  de  muitas 
legoas,  e  varias  apparencias.  Avultão  daili  a  penitente  serra  da  Arrábida, 
a  fresca  montanha  de  Cintra,  o  famoso  monte  de  S.  Luis,  e  os  escalvados 
de  área,  que  vão  morrer  na  fértil  pescaria  da  grande  alagoa  Albofeira. 
Avulta  pêra  outra  banda  muita  parte  da  fermosura  da  cidade  de  Lisboa,  o 
mais  aprazível  de  seus  altos,  torres,  guaritas,  cimborios,  e  eirados.  Avul- 
tão por  fim  d'aquellas  eminências,  o  espaçoso  do  mar  Atlântico,  suas  im- 
mensas  agoas,  seus  bem  assombrados  horizontes,  o  arqueado  de  suas  lon- 
gas enseadas,  que  até  perder-se  de  vista  vão  alvejando  desde  a  ponta  da 
Trafaria  até  o  cabo  chamado  do  Espichel.  Sitio  he  este  por  todas  as  con- 
dições apontadas  acommodado  pêra  retiro  de  quem  quer  contemplar.  Fi- 
zera mercê  d'elle  aos  Padres  da  Companhia  de  Lisboa,  o  sempre  saudoso 
Rei  D.  Sebastião,  cujo  era.  Pêra  este  lugar  tão  natural  a  sua  inclinação,  e 
intento,  se  retirou  Ignacio,  com  gosto  seu,  e  de  seus  companheiros.  Aqui 
fez  resenha  este  bom  Capitão,  e  foi  provando  em  primeiro  lugar,  qual  ou- 


DO    ESTADO  DO  BUASir.  (aN.NO  UE   1560)  81 

Iro  Gedeão,  os  soldados  que  iia  empresa  scrião  de  elíeito:  ,c  como  íãoe:- 
perimeiítado  iia  milícia  do  Ceo,  ao  primeiro  jjebcr  das  agoas  conheceo  rs 
esforçados,  e  os  pusilanimos:  a  estes  tornou  a  restituir  aos  lii.í^iresd'oride 
vierão;  com  os  ouiros  eiilroii  em  exercício,  como  logo  veremos. 

8  A  solidão  foi  sempre  mííi  de  bons  espíritos;  09  Antonios,  os  ílila- 
riões,  os  Arseiiios,  e  todos  aqiielles  santos  Padres  habitadores  das  Thebaí- 
das,  e  outros  semelhantes  desertos,  o  estão  mostrando.  Considerava-se 
Inácio  como  em  Thebaídas.  pelo  solitário  do  sitio;  como  cm  Paraíso  ter- 
reno, pelo  deleitoso  dos  campos:  e  como  em  Religião  regular,  pelo  commu- 
nicavel  dos  companheiros;  e  apostava-se  a  ajuntar  em  lium  todos  estes  três 
modos  de  viver.  Se  tivera  este  santo  varão  revelação  expressa  deDeos(dí'. 
que  não  consta,- posto  qne  se  duvida)  do  alto  fim  a  que  o  tinha  destinado, 
de  derramar  o  sangue  por  Christo,  não  se  apostara  com  mais  fervor  a 
preparar  a  si,  e  aos  seus  em  espirito,  oração,  cruzes,  trabalhos,  e  mortifica- 
ção. Foi  um  ensaio  este  antecedente,  d"aquella  ultima  tragedia.  Dispoz  alli 
liuma  officina  de  t(xla  a  pratica  do  espirito :  e  começando  elle  por  si,  fez-se 
noviço,  com  capa  de  ensinar  a  n()víços.  Repartio  aquella  l»reve  Casa,  e  re- 
duzío  a  dous  géneros  somente  quantos  n"ella  estavão,  noviços,  e  antlguos. 
Erão  quarenta  os  noviços ;  separou  estes  em  os  altos  da  Casa,  nos  baixos 
os  demais.  Tomou  á  sua  conta  o  ofiicio  de  .Mestre,  mas  com  razão  duvi- 
dava (jueni  o  via,  se  era  Mestre,  ou  noviço:  seu  ensino  era  todo  pralico: 
o  (pie  ([iieria  fizessem  os  noviços,  fazia  elle :  mais  era  alli  necessai-io  o 
olho,  que  o  ouvido:  recolhia-se,  porque  esíivessem  rcH*.olhi(li)s;  orava,  por- 
({ue  orasseui :  elle  era  o  primeiro  nos  olficios  baixos,  no  varrer  a  casa, 
limpar  a  cozinha,  servir  á  mesa,  trazer  lenha  do  matto,  e  agoa  da  fonte. 

í)    lie  admirável  a  força  do  exemplo:  não  tinhão  passado  mui  los  dias, 

([uando  á  vista  de  seu  Superior  feito  noviço,  qiierião  todos  ser  noviços:  os 

mais  antigu(js  forão  os  primeiros  que  começarão  a  pedir  de  joelhos,  serem 

principiantes.  Fazia-se  rogar  o  [)rudent-c  Mestre,  e  concedia  depois  de 

muitos  rogos  o  (|ii('  desejava  dar  no  ))rimeiro,  e  como  ;i  força  o  quí>  dava 

com  toda  a  libcidade;  [lonpie  assi  Iizí3sse  elle  [trova  das  vontades,  e  lizi's- 

sem  ellas  estimação  do  í[iie  se  concedia.  Vierão  todos  a  alcançar  ò  mesmo, 

e  veio  toda  a  (^asa  a  ser  Noviciado:  só  na  morada  havia  dislinçlo  enln^ 

noviços  e  antiguos,  e  no  ílemais  erão  conmiuns  os  exercícios.  Havia  duas 

horas  de  oração  menlal  com  campa  langida  pêra  todos,  hiima  pela  manhãa,' 

á   tarde  oiilra :  duas  vezes  se  tangia  ao  exame  (\r,  const-iencia,  segundo  o 

cosluuK'  cf)i'nmum  da  (Companhia ;  e  o  reslanlc  da  manhãa  se  gaslava  fia 
\0L.  u  (; 


82  LIVKO  IV  DA  CHRONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

reza  das  Horas  Canónicas,  confissões,   missa,  commiinliões,   e  recoliii- 
mento. 

•10  O  refeitório  era  casa  mais  de  mortificação,  que  de  refeição:  alli  se 
vião  huns  prostrados  por  terra,  outros  em  cruz,  outros  de  joellios,  outros 
disciplinando-se,  outros  dizendo  suas  culpas  em  piil)lico;  c  os  que  comião, 
sentidos,  e  envergonhados  de  não  fazerem  elles  o  mesmo.  Acabada  a  mesa, 
juntavão-se  igualmente  a  fali  ar  de  Deos  que  a  continuar  penitencias,  huns 
de  bruços  com  a  boca  no  chão,  outros  com  o  lenço  nos  olhos,  outros  com 
mordaça  na  boca,  e  peias  em  os  pés,  dizendo  suas  faltas,  e  recebendo  re- 
prehensões  por  ellas :  costume  santo  dos  noviços  da  Companhia ;  porém 
aqui  estylo  vigoroso. 

11  As  praticas,  e  conferencias  fazião-se  quasi  quotidianas.  Era  pêra  ver 
aquelle  religioso  Consistório  de  setenta  Padres,  e  Irmãos,  assentados  por 
terra,  ouvindo  mais  dictames  de  espirito,  que  conceitos  de  entendimento. 
Praticava-lhes  ordinariamente  o  Padre  Ignacio,  e  erão  suas  praticas  todas 
da  Cruz,  e  trabalhos,  do  apparelho  pêra  a  morte,  e  da  verdadeira  humil- 
dade :  e  como  condizião  as  praticas  com  as  acç'ões  do  que  praticava,  ac- 
cendia  em  os  mesmos  desejos  os  que  o  ouvião.  Erão  setas  de  fogo  os  sen- 
timentos que  exprimia  a  altas  vozes  muitas  vezes,  levado  do  espirito:  «Ir- 
mãos (dizia)  haveis  de  sentir  com  lagrimas  de  sangue  passar  por  vós  occa- 
sião  de  mortificação,  e  não  lançar  mão  d'ella :  haveis  de  envergonhar-vos, 
levar-vos  o  outro  o  merecimento  da  obra  de  humildade,  lançar  jirimeiro  mão 
á  vassoura  no  refeitório,  e  ao  esfregão  na  cozinha.»  Aqui  lhes  dava  desenga- 
nos do  que  havião  de  padecer  em  sua  empresa ;  dos  perigos  dos  mares,  dos 
trabalhos  do  Brasil,  dos  duros  corações  com  que  havião  de  ti-atar,  dos  ser- 
tões que  ha\ião  de  penetrar,  e  das  fomes,  calmas,  e  tragos  da  morte,  (pie 
havião  de  passar :  que  havião  de  achar-se  muitas  vezes  sós  entre  gentios  bár- 
baros, no  meio  de  occasiões  de  perigo,  sem  testemunha  de  suas  acções,  sem 
sacramentos,  e  sem  consolação  alguma  humana :  que  se  d'alli  não  levavão 
espirito,  podião  desmaiar,  e  perder-se :  e  quem  pêra  isto  não  sentisse  ani- 
mo, era  melhor  não  se  pôr  a  perigo. 

12  Alli  n"aquella  habitação,  limitada  pêra  quasi  cem  homens,  achava  a 
industria  do  Pach-e  Ignacio  lugar,  em  que  de  ordinário  estavão  recolhidos 
em  espirituaes  exercícios,  separados  do  tratto  dos  outros,  seis,  sete,  e  mais 
ReUgiosos,  por  espaço  de  oito  ou  dez  dias;  sabidos  estes,  enlravão  outros, 
sem  interpola f^ão.  Além  de  todos  estes  exercícios,  pedião  outros  os  que 
(èúo  mais  fervorosos,  que  se  lhe  concedião  segando  seu  espirito,  e  talvez 


DO  ií:^vrAi)0  DO  diíasil  (axxo  di:  1509)  8:> 

se  negavâo  por  cvilar  excessos.  Tiiihão  em  casa  coiilinuamenle  o  Santissi- 
mo  Sacramento  presente:  e  costumaivá  a  dizer  Ignacío,  qiíe  não  teiia  por 
hoviço  o  que  não  visitasse  este  Seiííior  novo  vozes  ao  menos  no  dia:  flianle 
d'elle  se  vião  commiinimente  lieligiosos  postos  em  oração.  E  por(|ue  se 
veja  bem  a  sede  com  que  nY'lia  entravão,  porei  hum  exemplo.  Andava  aju- 
dando á  cozinha  o  Irmão  Francisco  Peres  Godoi  :■  era  dia,  em  que  havia 
mais  qiíe  fazer,  e  não  havia  tido  ainda  sua  oração :  significou-ílie  ò  cozi- 
nheiro que  continuasse,  porque  eile  lhe  assinaria  tempo :  houve  que  tra- 
balhar até  huma  hora  depois  do  meio  dia;  então  lhe  disse:  «Irmão  Godoi, 
vá  ter  agora  sua  oração,  ate  que  eu  o  chame.»  Foi,  com  tal  sede,  que  en- 
leve n'ella  sete  horas  inteiras,  desde  a  huma  até  ás  oito  hontó  da  noite, 
diante  do  Santíssimo  SacrdmeutOj  até  f|ue  notando  o  refeitório,-  que  fol- 
iara na  cea,  feita  diligencia  o  acharão  continuando  no  mesmo  lugar:  sendo 
chamado  do  Superior,  e  perguntado  por  aquelle  excesso;  rtspondeo,  que 
o  cozinheiro,  a  c[uem  servia,  lhe  dissera,  que  fosse  ter  sOa  oraçlío  até  que 
o  chamasse,  e  que  o  não  tinha  cliamado.  Com  esta  santa  simplicidade,  o 
com  esta  fíjrma  de  espirito  se  procedia  n;aquella  escola  de  virtude. 

13  No  louvável  cos  lume  dá  Companhia  de  tirar  os  Santos  por  sorte, 
lodos  os  mez€S,  achava  grandes  ganhos.  Introduzio,  qiJe  o  Santo  que  cada 
hum  tirasse,  o  celebrasse  C(mi  singulares  devações,  fallando  de  seus  lou- 
vores no  próprio  dia,  tomando  n^elle  disciplina,  dizendo  a  culpa,  e  fazendo 
outras  mortificações,  cada  hum  segundo  seu  fervor. 

14  Os  oílicios  baixos  erão  appetecidos  comi  aquella  industria,  com  quo 
os  allos  são  buscados  no  mundo.  Verieis  huns  trabalhar  no  Refeitório,  ou- 
tros na  cozinha,  outros  varrer  os  aposentos;  c  os  que  erão  oíTicios  mais 
humildes,  mais  desejados,  e  pedidos  á  competência  de  joelhos,  o  concedi- 
dos por  favor. 

IV)  dom  outra  invenção,  e  juntamente  fecreação  deespirito,  sahio  aquelle 
mestre  (Telle.  Todos  os  dias  de  manhãa,  antes,  ou  depois  da  missa,  levava 
a  Gommunida(l(5  em  procissão  pelos  campos;  porípie  á  vista  do  ameno  dos 
arvoredos,  e  das  ílores,  espertasse  os  ânimos  ao  louvor  do  Criador  (Kellas. 
Sahião  lodos  cantando  as  Ladainhas,  correndo  eerlas  cruzes  distantes,  e  ao 
pé  d'eslas  postos  de  joelhos,  acahavão  entoando  em  canto  de  órgão,  <i  Dulce 
licjnum,  dtílccs  clavos,  ele.»  e  concluía  o  Padre  Ignacio  com  Ires  orações, 
huma  da  Cruz,  outra  do  lb?i,  e  a  teíTcira,  «Ite.spice,  quai  sumas  Domine, 
ele.»  Os  merecimentos  Ao,  Iodas  nslas  obras  afiplicava  pelas  necessidades 
da  Igreja,  con\ei-?ão  dos  infiei.s  i"edu''ção  dos  lierege,^  pelo  I'apa,  prlo  Rei, 


84  LIVRO  IV  I)A  CimOMCA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

e  pelos  que  estavão  em  peccado  mortal :  e  costumava  este  santo  varão  di- 
zer, que  já  não  esperava  n"esta  vida  ter  mellior  tempo,  que  o  que  passava 
n"aquelle  seu  Vai  de  rosal. 

10  Estes  erão  os  exercícios  espirituaes  da  escola  de  perfeição  de  Igna- 
cio :  o  tempo  que  sobejava  d'elles  (porque  nenhum  instante  cessasse)  em- 
pregava em  exercícios  corporaes.  íluns  lião,  outros  escrevião,  outros  es- 
tudavão,  outros  pintavão,  outros  fazião  obras  de  carpinteiro,  rapateiro, 
alliiiate.  Saliião  com  peças  necessárias  pêra  o  Brasil,  e  occupavão  santamente 
o  tempo.  Partião  huns  a  buscar  lenha  ao  matto,  outros  agoa,  outros  car- 
queja, outros  rosmaninho,  e  grãa.  Da  grãa  fazião  finas  tintas;  da  carqueja 
camas  em  que  dormião,  e  huma  cortiça  por  cabeceira;  porque  colchões 
de  lãa  não  se  usavão,  senão  pêra  doentes,  ou  achacosos.  Estes  colchões 
lhes  ensinou  a  fazer  Ignacio,  ingenlioso  em  tudo  pela  charidade :  e  logo  á 
vista  de  hum  que  fizera,  ficarão  muitos  feitos  mestres.  Despedia-os  outras 
vezes  de  dous  em  dous,  qual  Christo  seus  Discípulos,  a  doutrinar,  e  pe- 
regrinar por  diversos  lugares.  Partião  vestidos  pobremente,  a  pé,  e  pedindo 
esmola  de  porta  em  porta  nas  villas,  e  lugares  por  ondepassavão;  e  exer- 
citavão  n'estas  missões  diversos  actos  de  pobreza,  e  mortificação,  e  fazião 
fruto  no  próximo. 

17  Tinha  entrado  o  anno  de  1570,  tempo  acommodado  pi?ra  a  viagem 
do  Brasil,  e  era  força  deixar  aquella  santa  Companhia  seu  Vai  de  rosal, 
que  pela  solidão  do  lugar,  e  largo  uso  de  cinco  mezes,  lhes  parecia  já  Pa- 
raiso :  passarão,  não  sem  lagrimas,  á  Casa  de  S.  Roque;  e  em  quinze  dias, 
que  alii  se  detiverão,  vio  aquella  cidade  hum  raro  exemplo  de  perfeição. 
Encontravão-se  pelas  praças,  e  ruas  a  cada  passQ  Padres,  e  Irmãos  da  mis- 
são do  Brasil ;  huns  com  ceirinhas  ás  costas,  levando  da  Ribeira  o  peixe, 
do  açougue"  a  carne  :  outros  nos  Hospitaes  fazendo  as  camas  aos  enfermos, 
varrendo-lhes  a  casa,  e  praticando-lhes  da  paciência,  e  da  conformidade 
com  Deos  :  outros  nas  cadeas  :  outros  fazendo  doutrinas  aos  meninos:  pre- 
paraçíio  de  viagem  tão  santa. 

18  Fazia-se  prestes  com  calor  a  frota  (jue  aquelle  anno  havia  de  ir  m 
Brasil,  e  com  ella  o  Governador  daquelle  Estado  D.  Luis  de  Vasconcellos, 
e  não  chegava  a  náo  San-Tiago,  que  o  Padi-e  Ignacio  fretara  de  meias  na 
cidade  do  Porto  pêra  esta  viagem.  Tinha  isto  dado  cuidado ;  porque  erão 
muitos  os  Religiosos,  e  forçoso  accoramodal-os  com  violência  nos  outros  na- 
vios da  frota.  Porém  no  meio  dos  maiores  cuidados,  ex  que  ai)parece  a 
não  desejada,  lança  ferro  no  porto,  e  lança  ióra  nuvens  de  magoas  do  Pa- 


no  ESTADO  DO  RP.ASir.  (ANNO  DE   \t)~0)  8o 

«Ire  Ignacio,  o  de  seus  companlieiros.  N'çsla  não  se  embarcou  logo  com 
trinta  e  nove  d\'l!es,  e  fazião  por  todos  quarenta:  o  Padre  Pedi-o  Dias  na 
não  do  Governador  com  vinte,  e  o  Padre  Francisco  de  Casti'o  com  dons 
íimãos  na  não  das  Orphãas  (chamada  assi  pelas  que  levava  por  mandado 
(rEI-Rei  D.  Sebastião,  desamparadas  do  tempo  da  peste,  pêra  no  Brasil  se 
casarem,  e  povoarem  aíiuella  nova  terra)  não  entrando  em  conta  outros 
que  liião  em  todas  as  três  náos  pêra  receber  no  Brasil,  se  procedessem 
bem  na  viagem.  Deixou  em  terra  outros,  de  cujo  espirito  conlieceo  que 
não  erão  pêra  esta  empresa,  ou  por  falta  de  animo,  ou  de  virtude;  tornando 
a  mandar  a  seus  Collegios  os  que  erão  da  Companliia,  por  mais  talentos 
outros  que  tivessem,  e  a  suas  teiras  os  que  ainda  erão  seculares:  pêra  cuja 
distinção,  e  conhecimento,  lhe  tinha  dado  o  Ceo  dom  particular. 

10  Despregarão  as  náos  as  velas  aos  ventos,  c  despregarão  nossos  Re- 
ligiosos ás  lagrimas  as  portas :  não  por  saudades  da  pátria,  e  CoUegios  de 
Europa,  a  quem  davão  o  ultimo  vale;  mas  por  ver-se  postos  em  caminho 
da  grande  empresa,  que  desejavão.  O  coração  do  homem  he  leal:  parece 
adivinliava  já  o  conflicto  em  que  passado  pouco  tempo  se  havia  de  ver.  A 
cíipitania  do  Governador  era  huma  fermosa  náo  da  índia ;  a  sotto  capita- 
nia a  náo  San-Tiago.  N'esta  náo  formáifio  hum  Gollegio  os  nossos,  da  invo- 
cação do  mesmo  Santo:  e  como  levavão  fretada  ametade  delia,  traçarão 
hum  corredor,  ou  dormitório  debaixo  da  coberta,  com  camarotes  de  huma 
('  outra  parte,  do  masto  do  meio  até  a  poi)a,  cujo  entrevão  servia  de  Re- 
feitório. Tomarão  posse  do  fogão,  fizerão  n"elle  de  tahoas  huma  cozinha, 
pêra  que  podessem  os  Irmãos  exercitar  olficio  de  humildade,  e  chandade, 
fazendo  elles  de  comer  pêra  toda  a  náo,  sem  trabalho  algum  dos  outros 
pa.ssageiros.  Aqui  tiiilião  todos  os  mais  olíicios  dií  Refeitoreiro,  Despenseiro, 
Enfermeiro,  Sacristão;  e  todos  os  exercícios  espirituaes  costumados,  com 
c^ampa  tangida,  a  mesma  perfeição  dos  (CoUegios. 

20  Não  S')  entre  si,  também  no  convés,  exercitavão  os  nossos  pios  of- 
ficios.  Todos  os  dias  ensinavão  a  doutriua  cliristãa :  acudião  a  cila  todos  os 
da  náo,  desde  o  Gapitão  até  o  gurumete  menor:  folgavão  de  responder, 
levados  de  prémios  que  lhes  davão.  Á  tarde  cantavão  as  Ladainhas  em  mu- 
sica de  órgão:  os  domingos,  e  festas  levantavão  altares  com  ricos  para- 
mentos, e  com  a  imagiMn  santíssima  [)i!itada  por  S.  Lucas;  e  dizia  o  Padre 
Ignacio  missa,  se  não  consagrando  ([)or  consideração  dos  perigos  do  mar, 
e  uso  d"af|uelles  tempos;  fazendo  comtudo  no  mais  aqiielle  santo  sacrifício 
com  a  mór  solemnídade  possível.  Assislíão  os  mareantes  com  círios  bentos 


8t) 


l.IVRO  IV  BA  CHROMCA  DA  COMPANHIA  DK  JKSU 


nas  maus;  e  no  fim  da  missa,  tirada  a  casula,  fazia  Igiiacio  pregação,  ordi- 
nariamenlu  da  cíjaridado,  com  que  nos  havemos  de  amar  huns  aos  outros. 
Com  estas,  e  cora  praticas  particulares,  e  principalmente  com  o  exemplo 
de  tantos  Religiosos,  andava  toda  a  náo  tão  composta,  como  se  fora  huma 
Religião :  raramente  se  vião  n"ella  jogos,  nem  jmamentos,  nem  outras  pa- 
lavras descompostas.  Cobrou  tanto  dominio  sobro  os  coraçijes,  que  acabou 
com  elles  que  lhe  entregassem  as  cartas,  dados,  e  livros  profanos,  de  que 
usavão :  e  era  pêra  ver  diante  d'elle  hmii  grande  numero  de  maços,  de  da- 
dos, autos,  coplas,  e  comedias  profanas,  lazer  d"elles  publico  cadafalso, 
queimando-os,  e  lançando-os  ao  mar,  sem  repugnância  alguma  dos  donos: 
em  cujo  lugar  dava  Contemptus  mundis,  Cartilhas  da  doutrina,  Horas  da 
Senhora,  e  pcra  a  Corftmunidade  deo  hum  Fios  Sanctorum,  que  pozerão 
em  publico,  por  onde  todos  lião.  Tirou  Santos  hum  dia,  e  ensinou  aquell a 
gente  como  se  havia  de  encommendar  cada  hum  ao  que  lhe  coubesse  por 
sorte.  E  os  mesmos  exercicios  fazião,  o  Padre  Pedro  Dias,  e  Francisco  de 
Castro  nas  nãos  em  que  hião. 

21  Constava  a  frota  de  sette  nãos,  e  huma  caravela:  hia  toda  junta  em 
conserva,  e  tanto  á  falia,  que  podião  communicar-se  huns  com  os  outros : 
de  dia  festejavão-se  com  salvas  de  artilharia:  e  porque  de  noite  houvesse  lam- 
bem algum  alivio  do  espirito,  mandaya  o  Padre  Ignacio  cantar  alguns  Mú- 
sicos cpie  levava,  os  Irmãos  Magalhães,  Álvaro  Mendes,  e  Francisco  Peres 
Godoi,  ao  soni  de  huma  harpa,  prosas  devotas ;  e  era  a  musica  tão  sen- 
tida e  saudosa  de  noite  sobre  o  mar,  que  fazia  levantar  os  espíritos,  e  atra- 
ída a  si  os  navios,  que  pêra  ouvil-a  se  chegavão  mais  perto :  o  Padre  Igna- 
cio subia  ao  Ceo,  rompia  em  lagrimas,  e  parecião-lhe  aquellas  as  vesporas 
das  alegrias  que  cedo  esperava. 

22  Chegarão  á  ilha  da  Madeira,  e  aqui  forão  os  nossos  agasalhados  no 
Collegio  novo,  que  tinha  mandado  fundar  n"esta  cidade  El-Rei  D.  Sebastião, 
pelos  Padres  Manuel  de  Siqueira,  Belchior  de  Oliveira,  e  Pedro  Coresma,  que 
tinhão  sido  companheiros  em  Vai  de  rosal.  Abraçárão-se  com  grande  ale- 
gria, renovarão  alli  as  saudades  d*aquella  solidão,  c  recreárão-se  era  o  Se- 
nhor, segundo  a  possibilidade  da  Casa.  Houve  em  toda  aquella  terra  refor- 
mação espiritual,  cmquanto  alli  estiverão  estes  hospedes:  chegarão  em  tem- 
po Ue  jubileo,  e  concurso  de  gente,  e  quando  vião  tantos 'da  Companhia 
exercitar  seus  ministérios,  sua  modéstia,  e  mortificação,  todos  folgavão  de 
confessar-se  cora  clies,  e  anrovcitar-se  de  seus  conselhos,  e  espirito,  iou- 


DO  ESTADO  DO  BRASII,  (aN?\0  DE    1570)  87 

vando  ao  Ceo  por  ver  tantos  sujeitos  desterrados  das  pátrias  ir  habitar  ne- 
tre  gentios  bárbaros. 

23  Detinha-se  o  Governador  com  saa  frota,  esperando  tempos  accom- 
modados,  por  arrecear  as  calmarias  de  Guiné:  porém  a  náo  San-Tiago  pe- 
dia instantaneamente  licença  pêra  chegar  á  ilha  da  Palma,  Imma  das  Caná- 
rias: não  parecia  bem  ao  Governador  a  resolução  do  mestre  d'ella,  pelo 
perigo  dos  inimigos  cossarios,  que  commummente  infestavâo  aqaella  para- 
gem: mas  como  allegasse  que  era  forçosa  sua  ida,  porque  trazia  fazendas 
de  partes,  e  havia  de  carregar  outras  n"aquella  ilha  pêra  o  Brasil,  segundo 
as  ordens  e  contractos  de  seus  correspondentes ;  e  que  emquanto  alli  se 
detinha  a  frota,  podUa  fazer  seu  negocio,  e  ir  encontrar-se  com  ella  ao  mar, 
houve  de  alcançar  licença.  Havida  esta,  propuserão  os  Religiosos,  que  não 
convinha  ir  n"esta  náo  o  Padre  Ignacio,  cabeça  de  todos,  e  em  quem  es- 
tribava o  ])eso  da  missão:  que  mandasse  outro  em  seu  lugar,  e  fosse  ello 
em  companhia  da  Armada.  Porém  não  era  este  o  varão,  que  havia  de  me- 
ter aos  outros  em  trabalhos,  e  perigos  de  morte,  e  ficar-se  elle  de  fora : 
era  o  mesmo,  que  em  Vai  de  rosal  ensinava,  que  havia  hum  Religioso  de 
chorar  com  lagrimas  de  sangue  levar-lhe  outro  a  occasião  de  humildade, 
e  mortificação. 

'±'i  Tradição  he,  que  foi  dizer  missa  a  Nossa  Senhora  do  Monte,  e  tor- 
nou d'ella  resoluto,  não  só  a  ir  elle,  mas  a  representar  o  perigo  aos  com- 
panheiros, e  não  levar  comsigo  senão  aquelles,  nos  quaes  se  visse  animo 
apostado.  (Sc  foi  sentimento,  ou  revelação  de  Deos,  não  o  resolvo ;  que 
houve  suspeitas  disso,  si.)  O  publico  foi,  que  chamou  a  todos,  Padres,  e 
Iimãos,  e  lhes  fez  huma  pratica  eílicaz,  na  qual,  com  i)alavras  sabidas  do 
intimo  da  alma,  lhes  propoz  as  razões  do  perigo,  e  o  fez  tão  presente,  co- 
mo se  já  o  vira  com  os  olhos:  que  quem  não  sentia  em  si  animo  pêra  dar 
a  vida  a  mãos  de  hereges,  valia  mais  ficar-sc  com  a  frota.  A  esta  pratica 
se  inflamarão  os  corações  dos  companheiros  em  dobrado  fervor:  responde- 
rão, que  crão  mui  contentes  de  dar  a  vida  por  quem  a  deo  por  elles;  (jue 
isto  era  o  que  vinhão  buscar;  que  perdel-a  entre  gentios  no  Brasil,  ou  en- 
tre hereges  no  mai-,  o  mesmo  vinha  a  ser,  senão  que  por  mãos  d'estes  se- 
ria mais  gloriosa  sua  coroa.  Traqueárão  comtudo  quatro  Noviços  avistado 
encarecimento  do  perigo  da  morte;  aos  quaes  com  nmito  boa  vou  tade  con- 
cedeo  licença  pêra  íicarem  com  o  Padi'e  i*edro  Dias.  (K  aqui  so  virão  os 
secretos  dos  juizos  divinos,  que  nenhum  d"estcs  Noviços  perseverou  na 
Companhia;  porque  os  que  não  tiveião  coração  pêra  mei-ecei'  o  dom  futu- 


88 


J.IYP.O  IV  DA  CURUMCA  DA  COMPANHIA  DK  JESL' 


ro,  fossem  despojados  do  pi'esente,  que  já  possuiãij.^  A  mesma  pratica  fez 
aos  mariíilieinis,  e  passageiros,  [)n)poiido-Hi(í  (*(jm  igual  eíficacia  a  coiilin- 
geiícia  em  que  estavão  de  encontrar  cossarios  inimigos,  e  arriscar  as  vidas: 
e  aos  vinte  e  nove  de  Junho,  dia  consagrado  aos  bemaventm^ados  Apósto- 
los S.  Pedro,  c  S.  Paulo,  disse  missa  na  Igreja  de  San-Tiago,  e  sacramen- 
tou a  todos,  assi  Religiosos,  como  seculares  da  náo,  pêra  a  partida. 

25  Erão  já  trinta  do  mez  de  Junho  do  anno  presente  de  mil  e  quinhen- 
tos e  setenta,  quando  depois  de  despedidos  com  lagrimas  dos  companhei- 
ros que  licavão,  como  aquelles  que  mais  se  não  liavião  de  ver  n'esta  vida, 
do  Governador,  •  e  de  toda  a  mais  frota,  recebidos  na  náo  San-Tiago  os 
Irmãos  João  de  Majorca,  António  Fernandes,  xiffonso  de  Bayena,  e  outro 
«]ue  quizerão  ir  em  lugar  dos  que  fraqueárão,  partio,  como  a  sacrifício, 
aquelle  rebanho  de  cordeiros  do  Senhor,  levando  após  si  os  corações  de 
todos.  Hum  dia  só  havia  que  tinha  dado  á  vela,  quando  chegou  recado  ao 
Governador  D.  Luis,  que  apparecião  sobre  Santa  Cruz,  porto  da  mesma 
ilha,  cinco  náos  francesas,  vindas  da  Rochela,  por  capitão  Jaques  Soria, 
inimigo  capital  de  Gatholicos,  e  infestissimo  de  Jesuítas.  Prevendo  elle  o 
perigo  dos  nosso:|;,  com  zelo  christão  procurou  entretel-os,  ou  rendel-os 
se  podesse.  Mandou  preparar  alguns  navios  a  toda  a  pressa,  e  ao  romper 
da  alva  sahio  em  pessoa  contra  os  inimigos:  porém  elles,  ou  por  que  an- 
davão  occupados  com  presas  que  havião  tomado,  ou  porque  sentirão  a  foi"- 
ça  de  nossas  náos,  não  acceitárão  o  conllicto,  fazendo-se  á  vela  pêra  o  mar 
na  volta  das  Canárias. 

26  Hia  n^este  tempo  a  náo  San-Tiago  conquistando  os  mafes,  e  os  nos- 
sos o  Ceo  com  suspiros:  não  se  ouvião  outras  vozes  n'aquelle  cenáculo, 
onde  se  recolherão,  se  não  da  morte,  de  dar  a  vida  pela  Fé  (e  he  cons- 
tante fama,  que  houve  aqui  revelação  divina  da  coroa  de  Maríyres  de  qu(5 
havião  de  gozar.)  O  Padre  Ignacio  especialmente  a  este  ílm  dirigia  todas 
suas  praticas.  «Oh  Irmãos  (dizia)  se  fosse  o  Ceo  servido,  que  nos  tirassem 
estag  vidas  pelo  amor  de  Deos!  Oh  quem  fora  tão  ditoso,  que  se  vira  já 
derramando  sangue  a  mãos  de  hum  herege  pela  Fé  Catholica!»  Depoz  o 
Irmão  Sanclies,  que  forão  mais  de  cincoenta  vezes,  as  que  lhe  ouvio  estas 
e  semelhantes  palavras.  Sette  dias  gastarão  até  chegar  á  terra,  e  forão 
clles  sette  dias  de  aparelho  pêra  a  morte :  assi  tratavão  d"ella,  como  se  já 
a  virão  presente:  nem  consentião  que  na  náo  se  fallasse  n'ouíra  matéria. 
Vigiavão  seu  quarto  dous  mareantes,  quando  já  alta  noite,  imaginando 
que  dormião  os  Padres,  e  não  erão  ouvidos,  começarão  a  travar  entre  si 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (aNXO  DE  1570)  89 

praticas  pouco  convenientes.  Ouvio-os  o  Irmão  Bento  de  Castro,  que  esta- 
va eni  vela,  e  pousava  d(;baixo:  e  respondeo-lhcs  com  o  som  de  huma  dis- 
ciplina tão  rigorosa,  que  os  fez  callar  envergonhados.  O  mesmo  fez  com 
outros  o  Irmão  Domingos  Fernandes ;  e  ficarão  dalli  tão  ensinados,  que 
não  faUárão  mais  cousas  desconcertadas. 

á7  Avistarão  ao  settimo  dia  a  terra  desejada;  mas  era  o  vento  rijo,  e 
escaco,  e  não  poderão  tomar  a  Cidade:  foi  força  recoUier-se  em  hum  porto 
junto  a  Terça  corte,  por  não  desgarrar.  Morava  aqui  hum  fidalgo  Francez, 
abundante  de  bens  de  fortuna,  que  se  criara  na  cidade  do  Porto  com  o  Pa- 
dre Ignacio:  este  lembrado  da  antigua  amizade,  e  conhecimento,  orecebeo 
e  hospedou  humanissimamente.  Mostrou-lhe  a  grandeza  de  sua  casa,  quasi 
j)alacio  de  hum  Príncipe,  as  peças  ricas  de  seu  uso,  especialmente  as  de 
huma  fermosa  Igreja  que  tinha,  adornada  de  ricos  paramentos  de  seda,  e 
borcado ;  e  depois  disso  seu  jardim :  cousas  todas  que  podião  recrear  a 
vista  de  qualquer  hospede.  Tudo  lhe  agradecia  Ignacio,  e  os  companheiros; 
6  muito  mais  o  animo  com  que  desejava  recreal-os:  porém  n'outros  praze- 
res tinhão  postos  os  olhos,  a  cuja  vista  ficavão  estes  mui  atraz.  Tratou  Igna- 
cio de  cousas  do  espirito  com  seu  hospede :  era  elle  igualmente  magni- 
fico e  pio;  confessou-se  com  elle,  disse-lhe  missa,  c  commungou-o  em  sua 
Igreja. 

28  Profundos  são  os  segredos  de  Deos;  não  pôde  o  homem  dar  alcan- 
ce aos  secretos  de  sua  divina  providencia:  cinco  dias  gastou  n"esta  pai  agem 
este  santo  varão,  e  todos  elles  empregou  aquelle  bom  amigo  empersuadir-lhe, 
que  fosse  por  terra  d"al!i  acidado  da  Palma,  porque  era  somente  caminho  de 
treslegoas,  epor  mar  tinha  grandes  rodeios,  c  enseadas,  e  havia  perigo  de 
encontrar  cossarios,  ordinários  em  aquella  paragem;  que  elle  daria  caval- 
gaduras, camelos  e  todo  o  necessário  pêra  os  Religiosos,  e  todas  suas 
cousas:  e  comtudo  não  pôde  sahir  com  seu  intento.  Ao  principio  esteve 
duvidoso,  Ignacio;  porfjuc  por  huma  parle  obrigava-o  a  charidade  do  amigo, 
])or  outra  fazia-se-lhi;  dillicuUoso  deixai-  a  náo,  e  sua  companhia:  e  depois 
de  maiores  instancias,  chegou  a  mandar  preparar  pêra  ir  por  terra,  desem- 
barcando pêra  isso  elle,  e  os  companheiros:  a  este  fim  se  foi  a  diziBr  mis- 
sa, e  commungou-os  por  despedida:  porém  aqui  o  que  Deos  lhe  doo  a  sen- 
tir não  se  sabe  ao  certo:  o  que  se  vio  foi  que  d'aqiiella  missa  ficou  troca- 
do, e  tratou  logo  de  embarcar-se,  cir  por  mar.  Costumava  este  santo  varão 
nas  cousas  de  maior  importância  consultar  na  missa  com  Deos,  e  dava-Ihe 
cll(^  a  sentir  muitas  vezes  o  que  queria  se  fizesse:  era  sabido  entre  os  Re- 


90  LIVRO  IV  DA  CHRONICA    DA  COMPANÍIIA  DE  JKSU 

ligiosos  este  sou  cosUime;  e  fFesta  vez  notárãi)  qiiR  saliio  comoliomem  en- 
vergonhado, qual  se  houvera  consenlido  em  alguma  tentarão :  e  juntos  os 
Religiosos  ilies  disse:  «Eu  estava  em  irmos  por  terra,  pelo  perigo  que  ha 
de  cossarios;  porém,  irmãos,  estes  que  nos  podem  fazer,  senão  mandar-nos 
mais  cedo  ao  Ceo?  Estou  resoluto  em  que  vamos  por  mar:  assi  o  sinto  em 
o  Senhor.»  Que  homem  houvera  que,  levando  esta  resolução  por  prudên- 
cia humana,  não  julgara  que  era  acto  menos  discreto,  querer  antes  entre- 
gar-se  a  riscos  tão  grandes,  indo  por  mar,  que  ir  por  terra,  com  tanta  se- 
gurança, e  commodidade?  Comtudo  assi  o  destinava  o  Ceo,  cjue  por  este 
meio  hia  traçando  a  seus  servos  a  coroa  que  logo  veremos.  Foi  despedir- 
se  do  amigo,  que  n'este  fim  mostrou  mais  fma  a  liberalidade  de  animo. 
Mandou  prover  todos  os  Religiosos  do  necessário,  e  a  náo  de  refrescos,  e 
matolotagem  de  carneiros,  galinhas,  coelhos,  favos  de  mel,  pães  de  assucar, 
tudo  com  abundância.  Acompanhou-os  ao  mar,  onde  foi  festejado  com  to- 
da a  salva  da  artilheria,  e  convidado  com  huma  religiosa  merenda  de  cousas 
da  ilha  da  Madeira;  e  abraçando  todos  os  nossos,  se  despedio  com  lagrimas. 

29  Partio  aquella  Gompanhia  do  Porto  de  Terça  Corte,  huma  quinta  feira 
pela  manhã:  e  como  o  vento  era  pouco  favorável,  depois  de  feito  vagaroso 
circuito,  ao  romper  da  manhãa  do  sabbado,  se  acharão  defronte  de  Palma 
com  três  legoas  ao  mar.  Porém  outro  era  o  porto,  e  outra  era  a  palma 
mais  feliz,  pêra  onde  Deos  os  guiava;  porque  quando  com  alegria  dos  ma- 
reantes preparavão  o  bordo  pêra  terra  clamou  do  alto  topo  do  maslo  gi'an- 
de  o  gageiro:  «Yela,  vela:»  e  emquanto  asseguravão  a  vista  os  debaixo, 
tornou  a  clamar:  «Apparecem  mais  quatro  menores,  demorão  a  tal  parte.» 
Foi  grande  a  perturbação  dos  mareantes,  como  soem  em  semelhantes  ca- 
sos: huns  lançavão  discursos,  que  seria  a  frota  de  D.  Luis  de  Yasconcel- 
los,  que  deixarão  na  i\Iadeira;  porque  a  Capitania  representava  a  náo  da 
ladia:  porém  passou  pouco  espaço,  e  desenganárão-se  que  erãonâos  Francesas. 

39  E  porque  desde  logo  saibamos  que  esquadra  he  esta,  e  que  intento 
traz;  he  de  saber,  que  depois  das  notórias  revoltas  do  tempo  do  Christia- 
nissimo  Rei  de  França  Carlos  Nono  com  os  hereges  Hugonotes,  da  treição 
com  que  tirarão  a  vida  ao  Catholico  Duque  de  Guisa,  e  da  com  que  pre- 
tendião  prender  ao  próprio  Rei,  e  a  Rainha  sua  mãi,  por  defender  a  Fé 
Romana;  e  ultimamente  do  castigo  que  n'elles  executou  o  mesmo  Carlos 
Nono,  com  morte  de  trinta  mil  do  mais  granado*;  levantando-se  o  restante 

{•)    Segundo    o  computo  do  Pa'lrc  Guerreiro  da  Companhia  de  Jesu.  na  sua  terceira  parto 
dos  «Elogioi-j,  cap.  viii,  foi.  328. 


DO  ESTADO   DO  BRASIL  (ANNO  DE   1370)  01 

dos  Iliigonotes  com  algumas  das  forças  de  França,  Rochela,  Montalvão, 
Montpelier,  e  outras;  os  que  vlvião  junto  ao  mar,  faltando-Ihes  a  extensão 
(la  terra,  tomarão  o  orilcio  de  piratas;  e  e  itre  estes,  hum  dos  mais  famo- 
sos cossarios  daquelle  tempo,  foi  Jaques  Soria,  grande  herege,  inimigo 
capital  de  Papistas,  e  sobro  tudo  de  Jesuitas,  que  assi  lhe  chamavão:  ti- 
nha sido  Almirante  do  affamado  Pé  de  pão,  quando  saqueou  a  ilha  de  Pal- 
ma, e  era  agora  Almirante  da  Rainha  de  Navarra  Madama  Joanna  de  la 
Brit,  e  por  ordem  sua  infestava  os  mares  com  quatro  náos  fortemente  ar- 
madas, e  com  ellas  sahira  este  anno  da  Rochela.  Este  cossario  pois,  era  o 
que  vião  os  da  nossa  náo  San-Tiago;  este  o  que  foi  visto  na  ilha  da  Madeira, 
onde  roubou,  e  abrasou  alguns  navios ;  contra  quem  sahio  o  Governador 
D.  Luis:  devia  ter  falia  de  como  era  partida  a  náo  San-Tiago;  e  qual  o  lobo 
carniceiro,  que  deixa  o  rebanho  vindo  com  medo  dos  rafeiros,  e  vai  bus- 
car a  ovelha  que  se  apartou:  tal  o  cossario  Jaques  Soria,  não  usando  aco- 
metter  as  náos  de  D,  Luis,  busca  e  acomette  a  de  San-Tiago,  só  e  desgar- 
rada. Chamava-se  a  sua  capitania  a  náo  Príncipe :  era  hum  galeão,  trazia 
trezentos  liomens  armados  de  saias  de  malha,  e  armas  brancas,  e  a  arti- 
lharia toda  era  de  bronze. 

31  Á  vista  de  tão  poderoso  inimigo,  que  podia  fazer  a  náo  San-Tiago 
de  pequeno  porte,  fraca  artilharia,  e  quarenta  homens  de  peleja  quasi  des- 
armados? Parecia  huma  pequena  casa  em  comparação  de  huma  grande  tor- 
re. Comtudo  não  perderão  os  ânimos  os  Portugueses,  e  íizerão  resolução 
entre  si  de  defender  como  esforçados  seu  partido,  até  perder  as  vidas,  ou 
alcançar  victoria.  Prepararão  a  toda  a  pressa  as  cousas  necessárias,-  desfize- 
rão  o  refeitório  dos  Padi-es  pêra  jamais  o  não  tornar  a  ser,  assestarão 
n'ella  a  artilharia,  fizorão  xareta,  lançarão  paveses,  e  bandeira  de  guerra, 
e  esperarão  o  inimigo.  Porém  entre  preparações  tão  acesas,  c  em  quanto 
o  impulso  da  guerra  rompe  aposentos,  desfaz  retiros,  toca  caixa,  torna  ao 
convés,  praça  de  armas  militares,  vejamos  o  que  fazem  os  soldados  da 
milicia  de  Christo. 

32  Era  pêra  ver  o  coração  intrépido  de  Ignacio  no  meio  dos  seus, 
como  estavão  juntos,  no  fim  das  Ladainhas,  com  a  Imagem  da  Virgem  nas 
mãos,  fallando-lhesassi:  «Oh  Irmãos  de  minhas  entranhas!  segundo  mo  diz  o 
coração,  será  esta  a  ultima  pratica  que  n'esta  vida  mortal  vos  faça:  não  são 
necessárias  muitas  palavras,  onde  o  tempo  he  tão  bi'eve,  e  os  corações  tão 
dispostos.  Temos  chegado  ao  fim  de  nossos  desejos:  á  vista  estamos  do 
porto,  e  palma  da  mor  estima,  (}ue  podião  esperar  nossos  trabalhos;  hoje, 


92  i.iVRO  IV  DA  rnr.oxicA  da  coMPAXiirA  df.  jfsu 

hoje,  nos  tem  a  ventura  gnanlado  que  entremos  juntos,  como  estamos,  a 
gozar  d'a(]uella  terra  venturosa,  e  (raquella  compantiia  feliz  do  Senlior,  que 
nos  redemio  com  seu  sangue;  d'esta  Senliora,  que  até  aqui  nos  favoreceo, 
e  dos  Santos,  que  sempre  invocámos.  E  que  meliior  porto  que  este?  e  que 
melhor  palma?  Oh  bem  afortunados  trabalhos!  quão  bem  empregadas  acha- 
reis agora  as  penitencias  da  solidão  de  Yal  de  rosal,  vossos  cilícios,  vossas 
disciplinas,  vossas  vigílias!  agora  vos  abrem  estas  o  porto,  agora  vos  for- 
mão a  palma,  com  que  haveis  de  entrar  triumphando  n"aqaellas  praças 
eternaes,  que  tanto  desejáveis.  Oh  Irmãos  meus,  que  ventura  tão  grande! 
pêra  tão  ditosa  fortuna  vos  formou  a  natureza,  lavrou  o  espirito,  predes- 
tinou a  graça.  Oh  ^Uz  sorte!  Que  venha  esta  a  reduzir-nos  a  hum  breve  momen- 
to de  tempo,  os  annos  largos  do  Brasil,  de  seus  sertijes,  de  seus  gentios,  e 
de  suas  dilatadas  cruzes?  e  jâ,  e  já  morramos  todos,  pêra  que  queremos 
a  vida,  senão  pêra"  comprar  em  hum  momento  o  eterno  peso  da  gloria?»  Ao 
som  d'esta  pratica  ultima,  ultima  manda,  e  como  testamento  de  pai,  assi  como 
estavão  de  joelhos,  levantados  os  olhos  e  as  mãos  ao  Ceo,  romperão  todos  ein 
voz  alta,  n'estas  palavras:  «Faça-se  em  nós  a  vontade  do  Senhor:  d'aqui  lhe 
dedicamos  nossas  vidas,  e  estamos  preparados  a  dar  o  sangue  por  seu 
amor. » 

33  Vinha  n'este  comenos  infunadas  as  velas  a  capitania  de  Jaques  So- 
ria,  qual  ave  de  rapina,  seguindo  a  presa  da  pomba,  com  curso  velocíssi- 
mo. Pedio  o  Capitão  da  náo  ao  Padre  Ignacio  alguns  dos  companheiros 
pêra  ajudar  a  peleja,  supposto  o  numero  limitado  de  sua  gente;  animou-os 
o  servo  de  Deos;  e  já  que  estavão  determinados,  os  advertio,  que  peleja- 
vão  contra  hereges  inimigos  da  Fé,  e  da  Santa  Igreja  Romana,  em  cuja 
briga  sempre  ficavão  com  victoria,  ou  vencendo  aos  inimigos,  ou  morrendo 
a  mãos  de  hereges  pela  Fé  de  Christo.  E  supposto  que  seus  companheiros 
por  Religiosos  não  erão  aptos  pêra  armas,  deo-lhes  para  os  ain'mar  na  bri- 
ga, dos  mais  esforçados,  que  pêra  isto  se  offerecêrão,  o  Irmão  Manoel  Alva- 
res, João  de  iMajorga,  Gonçalo  Henriques,  Manoel  Pacheco,  Domingos  Fer- 
nandes, Francisco  Peres,  António  Soares,  o  padre  Pedro  de  Andrade,  Es- 
tevão Zurara,  João  de  S.  Marlim,  e  João  de  Bayena:  assinou-lhes  seu  oíTi- 
cio,  animar  e  esforçar  aos  que  i)elejassem,  acudir  com  conforto  aos  cansa- 
dos, retirar  os  feridos,  cural-os,  confessal-os,  e  protestar  a  altas  vozes,  en- 
tre as  armas,  a  Fé  de  Christo,  e  Igreja  Romana. 

34  Chegava  já  a  tiro  de  peça  a  náo  de  Jaques  Soria :  deo  principio 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (aNNO  DE    1570)  93 

com  himi  pelouro,  a  qrie  ainaiiiasso  a  nossa;  foi  a  reposta  disparar  n^ella 
toda  a  artilharia;  que  como  a  não  era  grande,  c  a  soldadesca  basta,  fez 
bom  emprego,  c  matou  a  muitos.  Aqui  começou  a  acceiíder-se  a  peleja, 
(lesfazcndo-se  em  fogo  de  parte  a  parte  ambas  as  nãos.  Prepai-ou  Jaques 
pela  nossa,  e  pi'eteudeo  meter-lhe  gente ;  mas  como  não  podia  aferral-a, 
sallái'ão  dentro  ti'es  homens  armados  siJmeiite,  entre  os  quaes  hia  o  Sotto 
capitão,  segunda  pessoa  de  Jaques,  tida  em  grande  conta.  Brigarão  estes 
no  convés  valentemente;  e  como  bem  armados  poderão  resistir  algum  tem- 
po, até  que  vencidos,  meio  vivos  forão  lançados  ao  mar,  com  grande  sen 
timento  de  Soria,  que  estava  á  vista.  Instigado  da  dor,  acometteo  a  se- 
gunda c  terceira  vez,  mas  também  sem  effeiío;  porque  querendo  saltar  al- 
guns na  náo,  cahirão  ao  mar  armados,  e  foi"ão  ao  fundo.  Comia-se  de  rai- 
va Jaques  Soria,  vendo  frustrados  seus  intentos;  resolveu-se,  que  era  ne- 
cessário mais  força;  voltou  a  quai'la  vez,  trazendo  comsigo  as  outras  qua- 
tro nãos,  cercou  a  nossa,  e  atravessando  elle  por  proa,  as  quatro   pelos 
lados,  dispararão  sobro  ella  toda  a  artilharia,  com  damno,  e  morte  de   al- 
guns Portugueses:  acabada  a  fumaça,  botanrlo  arpéo,  lançon-lhe  dentro 
cincoenta  soldados  do  armas  brancas,  e  dando  por  certa  a  victoria,  pela 
dilTerença  conhecida  de  poder  a  poder,  poz-se  de  largo  a  ver  o  snccesso 
do  alto  da  popa  de  seu  galeão. 

',yò  Travou-se  a  briga  cruelissima,  pelejando  esforçadamente  de  huma  e 
outra  parte;  huns  defendendo  a  causa  de  sua  lib(n'dade,  vida  e  fé;  outros 
a  de  sua  cobiça,  impiedade,  e  mortal  ódio.  Porém  aqui  he  bem  se  veja 
agora  o  esforço  do  capitão  Ignacio,  por  tantas  vezes  prometido,  e  pêra  aqui 
guardado.  Non  sicut  mori  sicut  solent  iynavi  mortuus  cst  Abner.  Aquelle 
posto,  que  huma  vez  escolhco  vivo,  esse  mesmo  cobrio  na  guerra  seu  cor- 
po morto,  esse  mesmo  lavou  com  seu  sangue.  No  meio  da  náo  ao  pé  do  mas- 
to  |)rincipal  o  acharão  os  inimigos,  ahi  o  acabarão  a  pé  quedo.  Poderão 
tirar-lhe  a  vida,  mas  não  as  armas;  porque  o  escudo  da  santa  imagem  da 
Virgem,  que  pintou  S.  Lucas,  e  tinha  embraçadíj,  nenhum  lho  pode  tirar 
das  mãos,  por  mais  que  pretendco  fazel-o  o  rancor  dos  hereges.  Dalli  pro- 
testava a  Fé  llomana,  dalli  erão  ouvidas  poi'  cima  do  estrondo  das  armas, 
estas  suas  palavras :  «Irmãos,  defendei  a  Fé  de  Christo,  pelejai  esforçada- 
mente pela  Igreja  Catholica  Itornana;  contra  hereges  o  haveis,  que  andão 
errados,  e  f(')ra  do  caminho  da  verdade.»  Alli  recebco  a  pé  quedo  da  mão 
ílc  hum  hei-ege,  que  ouvia  suas  vozes,  e  via  seu  sagrado  escudo,  mettido 
cm  ódio,  c  furor,  huma  cutilada  cruel,  com  que  lhe  fendeo  a  cabeça,  o 


94  LIVRO  IV  DA  CiÍRO.MCA  DA  COMPAMÍÍA  DE  JESlí 

ílescol)río  03  cérebros.  Aqui  outras  quatro  lançada^,  a  cujo  rigor  desfaíeceo 
o  corpo,  mds  não  o  brio.  Cahio  sobre  seu  sauguc  no  mesmo  lugar,  onde 
cantara  Ladainhas,  fizera  falia  aos  Irmãos,  tivera  oração,  esperara  o  confli- 
cto,  animara  os  soldados,  prostestara  a  Fé,  e  reprehendera  os  hereges.  Po- 
rém estava  ainda  forte  o  espirito,  e  por  mais  que  o  ruido  era  grande,  fo- 
rão  ouvidas  em  todo  o  convés  estas  suas  palavras:  «Sejão-me  testemunhas 
o  mundo,  e  os  Anjos,  e  os  homens,  que  morro  pela  Fé  Catliolica,  e  Igreja 
Romana,  e  por  tudo  o  que  ella  confessa!...» 

36  Aqui  acodirão  os  companheiros  á  voz  de  seu  pastor  ferido.  O  Pa- 
dre Andrade  se  abraçou  com  elle,  com  laços  tão  fortes  de  amor,  que  não 
poderão  apartal^os:  ambos  foi  força  retirar  a  hum  camarote  junto  ao 
leme,  onde  ultimamente  éq  reconciliou  com  o  mesmo  Padre.  Chegavão  to- 
dos banhados  em  lagrimas  de  sangue,  e  easanguentavão-se  no  bemdito  Mar-= 
tyr,  abraçavão,  e  beijavão  suas  feridas:  elle  porém  despedia-se  d"elles  ba- 
nhado de  alegria,  e  por  seu  ultimo  amor  lhes  rogava,  que  não  chorassem 
por  sua  morte,  antes  se  alegrassem:  «Fez-me  Deos  pastor  vosso  (dizia)  he 
bem  que  vá  aparelhar-vos  o  lugar:  o  mesmo  disse  Christo  a  seus  Discípu- 
los: Vado  par  are  vobis  lociim:  Oh  filhos  meos,  quão  suave  he  a  morte  por 
Christo!  nenhum  desmaie^  morrei  todos  por  elle!»  E  n'estas  palavras  escoado 
do  sangue,  fixos  os  olhos  na  santa  Imagem  da  Virgem,  que  nunca  largara , 
sem  sinal  de  sentimento  algum,  passou  a  gozar  do  premio  de  seus  grandes 
trabalhos. 

37  Seguio  a  seu  pastor  immedia lamente  o  esforçado  Irmão  Bento  de 
Castro:  o  qual  ao  primeiro  furor  do  inimigo  despedido  dos  mais  Irmãos, 
se  foi  meter  entre  os  que  brigavão,  armado  só  com  a  espada  vencedora 
da  santa  Cruz,  porque  por  ellíí  fosse  conhecido,  e  desse  claro  testemunho 
da  Fé  que  professava:  e  animando  a  altas  vozes  aos  nossos,  que  pelejas-- 
sem  pela  Igreja  Romana,  e  desenganando  os  hereges  de  sua  cegueira,  foi 
passado  com  três  arcabuzadas:  e  não  sendo  bastantes  pêra  que  cahisse  tão 
grande  constância,  carregou  sobre  elle  o  o(íio  mortal  dos  hereges,  e  a  for- 
ça de  sette  punhaladas,  dadas  á  mão  tente,  no  mesmo  lugar,  onde  come- 
çara, com  a  mesma  constância  de  espirito,  protestando  a  Fé  em  que  mor- 
ria, e  abraçado  com  a  Cruz  de  Christo,  cahio  desmaiado,  envolto  em  seu 
sangue,  e  meio  vivo  foi  logo  lançado  ao  mar.  O  terceiro  em  ordem  foi  o 
Irmão  Diogo  Pires  de  Nicéa,  chamado  de  antes  o  ]\Iimoso,  nunca  mais  que 
agora  do  Ceo,  cjue  junto  ao  lugar  donde  morrera  seu  capitão,  deo  cons- 
tantemente a  vida  a  mãos  de  hum  cruel  soldado,  que  aceso  em  ódio  de 


DO  ESTADO  DO  UUASIL  (ANNO  DE   1570)  95 

ouvir  sua3  vozes  com  que  protestava  a  Fé  Romana,  o  buscou  com  huma 
lança,  c  atravessado  de  parle  a  parte  o  lançou  ao  mar. 

',iH  A  estes  seguirão  na  [lalma  da  victoria  aquelles  apostados  soldados, 
que  seu  bemdito  Padre  Ignacio  havia  destinado  á  guerra.  Estes,  e  outros 
gueri-eiros  valerosos,  que  se  lhe  ajuntarão,  de[)ois  de  despedidos  de  seu 
pastor,  tomada  sua  benção,  e  composto  aquelle  santo  corpo  defunto,  tor- 
narão â  briga,,  com  novo  brio,  quaes  elephantes  á  vista  do  sangue,  de  que 
vinlião  tingidos.  «Eia  Irmãos  (dizião)  morramos  todos,  sigamos  a  nosso  ca- 
pitão.» O  Irmão  João  deMayorga  pintor,  cançado  iguabnente  de  animai",  e 
protestar  a  Fé,  entre  os  combates,  por  espaço  grande,  conhecido  pela  rou- 
peta, e  barrete  que  trazia  da  Companhia,  acommetido  não  menos  qiie  de 
seis  ou  sete  soldados  da  seita  pérfida,  foi  lançado  vivo,  e  sem  ferida  algu- 
ma, mas  com  mais  crueldade,  ao  mar.  Os  Irmãos  Gonçalo  Henriques  do 
Porto,  Manoel  Rodrigues  de  Alcochete,  Manoel  Pacheco  de  Ceita,  o  Este- 
vão de  Zurara  Biscainho,  emljebidos  no  vivo  da  peleja,  acudindo  a  huma 
c  outra  parte,  animando  os  soldados,  protestando  a  Fé,  e  o  ser  de  filhos 
da  Com|janhia,  nem  souberão  da  morte  de  seu  pai  Ignacio,  nem  os  que 
concorrerão  a  despedir-se  d'elle,  souberão  da  sua;  só  conhecerão  que  forão 
lançados  ao  mar,  como  tinha  feito  aos  outros  o  furor  herético ;  porque 
tornando  á  peleja,  nunca  mais  os  virão  na  náo. 

39  O  irmão  ^Manoel  Alvares  não  tem  a  menor  parte  em  tão  grande  em- 
presa: defeiideo  sempre  sobre  a  xareta,  c  castellos  de  popa:  seu  valor  foi 
insigne:  igualmente  desprezava  a  morte,  que  os  inimigos:  aquella  procura- 
va, protestando  a  Fé  a  vivas  vozes,  que  atroavão  todo  o  convés,  e  erão 
ouvidas  até  nas  nãos  distantes :  estes  detestava  por  cegos,  errados  filhos 
de  perdição.  Cessava  já  o  furor  da  briga,  mas  não  cessava  o  esforçado  sol- 
dado de  Christo  com  a  protestação  de  sua  Fé :  arremetem  os  infernaes 
saiões,  e  fartão  nelle  seu  rancor:  retalhão-lhe  o  rosto,  estendem-lhe  as 
pernas,  e  fazoin-lho  em  pedaços  as  canelas  com  os  canos  de  arcabuzes ;  e 
não  quizerão  acabal-o,  por  que  não  acabass(3  sua  pena.  Retiráião-no  os  Irmãos 
pêra  si,  c  vendo  que  sentião  seu  tormento,  virado  a  elles,  lhes  disse:  «Ir- 
mãos, tende-me  inveja,  não  lastima;  que  eu  confesso  que  nunca  mereci  a 
Deos  tão  grande  bem:  quinze  annos  ha  que  estou  na  Companhia,  passão 
de  dez  que  peço  a  viagem  do  Brasil,  (i  me  aparelho  pêra  ella,  e  com  só 
esta  morte  me  dou  por  bem  pago  de  todos  meus  serviços.» 

40  A  este  tempo  o  Capitão  da  náo  mortalmente  ferido,  vindo-se  reti- 
rando do  casíello  de  i>opa,  onde  pelejai  a  animosamente,  entrou  no  camaro- 


96  I.IYRO  IV   DA  ClIRONICA  DA  COMPAMIIA  DE  JESU 

te  em  que  estavão  os  Irmãos  postos  em  oração  diante  das  sagradas  Ima- 
gens: o  que  vendo  o  furor  dos  hereiD^es  que  o  vinhão  seguindo,  do[)ois  de 
acabarem  de  matar  o  Capitão,  detestando  o  aclo  dos  servos  de  Deos  como 
idolatria,  fizerão  Ímpeto  sobre  elles.  Ao  Irmão  Braz  Ribeiro  Bracbarense,  de 
vinte  e  quatro  annos  de  idade,  sete  mezes  não  mais  da  Companbia,  que- 
brarão o  casco  da  cabeça,  até  lhe  espalharem  os  cérebros  com  as  maçãs  de 
suas  espadas,  deixando-o  morto.  Ao  Irmão  Pedro  de  Fontoura,  também 
Bracbarense,  cortarão  com  huma  cutilada  o  queixo  inferior  da  boca,  e  com 
elle  a  lingoa.  Ao  Irmão  António  Corrêa  Portuense  derão  huma  grande  pan- 
cada na  cabeça  com  os  cabos  de  outra  espada,  queixando-se  elle  aos  de- 
mais Irmãos  por  ser  tão  duro,  que  ficava  ainda  com  vida. 

41  Morto  o  Capitão,  que  pelejava  com  valor,  e  mortos  os  Irmãos,  que 
metião  coração  no  conflicto,  acabou-se  a  briga,  e  rendeo-se  a  náo  San-Ttago. 
Dos  nossos  morrerão  quinze  ou  dezaseis,  os  mais  d'e}les  forão  depois  lan- 
çados ao  mar  pelos  Franceses  ainda  vivos,  mas  mal  feridos,  por  escusar 
trabalho  em  cural-os.  Dos  hereges  morrerão  trinta;  entrando  em  conta  os 
que  acabarão  com  a  artilharia  nas  nãos  inimigas:  e  não  foi  maior  o  nume- 
ro porque  vinhão  armados  por  todo  o  corpo.  Seja  exemplo  o  de  bum  ho- 
mem do  mar  natural  do  Porto:  era  esforçado,  não  tinha  outra  arma  mais  que 
huma  lança,  com  esta  fez  bote  a  hum  d'estes  armados,  e  deo  com  alie  no 
convés,  foi  sobre  elle,  e  querendo  matal-o,  nem  achou  com  que,  nem  por 
onde:  tirou-lhe  a  espada  da  mão,  mas  não  pode  tirar-lha  do  braço,  onde 
vinha  amarrada.  Que  remédio?  Lembrou-se  o  l)om  Portalés,  que  trazia  hu- 
ma faca  pendurada  á  ilharga,  tirou-a  da  bainha,  mas  não  achava  por  onde 
empregal-a,  até  que  descobrio  certa  junta  em  huma  das  ilhargas,  por  ahi 
a  meteo,  e  lhe  acabou  a  vida;  mostrando  seu  esforço,  o  juntamente  a  dif- 
ficuldade  de  matar  hum  homem  bem  armado. 

42  Espalhárão-se  logo  os  vencedores  a  tomar  posse  por  varias  partes 
da  náo,  e  a  saquear,  segundo  seu  costume,  pelos  baixos,  e  camarás.  Aqui 
se  vio  mais  que  em  outra  parte  o  ódio  d'estes  inhumanos  hereges  pêra  com 
os  nossos:  porque  sendo  assi  que  acabada  a  guerra,  por  commum  direito 
das  gentes,  em  sangue  frio,  nem  se  mala,  nem  se  afronta  rendido  algum, 
aem  o  fazião  aos  que  o  ferirão,  e  matarão:  com  tudo,  quaes  lobos  Hircanos 
em  rebanhe  só  sem  pastor,  nem  rafeiros  que  possão  defendel-o,  achando 
debaixo  das  cobertas  os  Padres,  e  Irmãos,  que  ficarão  acompanhando  a 
corpo  defunto  de  seu  mestre  Ignacio,  curando  os  feridos,  c  todos  elles  taes 
do  trabalho,  que  erão  dignos  de  compaixão,  usarão  com  elles  então  da  maior 


T)0  ESTA1)0  DO  iJRASIL  (ANNO  DíC    1570)  97 

c-raekhde:  vendo  alli  vivo  ainda  o  esforçado  Irmão  Manoel  Alvaivs  lidando 
com  a  morto  á  forra  de  dores  excessivas  das  fendas  mortaes  que  ilie  de- 
rão,  conhecendo  que  era  aqiielle  que  animava,  c  ])roteslava  a  Fé,  do  cas* 
tello  da  popa  o  lançarão  assi  meio  vivo  ao  mai\  O  mesmo  íizerão  ao  Ir- 
mão Fontoura  no  meio  das  penas  de  seu  queixo,  e  lingoa  Cortada,  ainda 
vivo. 

43  Porém  o  que  sobre  tudo  intimamente  lhes  magoou  as  almas,  foi  que 
dentre  os  braços  lhe  tirarão  a(|uelles  algozes  do  inferno,  o  venerável  c  san- 
to corpo  defunto  de  seu  amado  pai  Ignacio,  relíquia  ultima  de  sua  consc' 
laçãOj  e  consolação  derradeira  de  seus  vivos  exemplos^  e  o  lançarão  tam- 
bém ao  mar:  nrrancárão-lho  dos  bríiços,  mas  não  dos  olhos;  porque  com 
estes  o  seguirão  ainda  do  alto  do  bordo,  até  desapparecer;  e  forão  teste- 
munhas de  hum  caso  insólito,  notório  em  toda  aquella  não*  que  andava  o 
santo  cadáver  lioinnfe  sobre  as  agoas  com  os  braços  a])ertos  em  forma  de 
cruz;  porque  aíiuelle  que  vivera  em  cruz,  em  cruz  morresse;  nem  fosse 
ao  fundo  aquellc,  que  não  tivera  o  commum  peso  sensual  da  carne.  Jul- 
gárão-no  por  portento  todos  os  da  náo,  que  com  cuidadíj  o  notarão  ale  o 
perderem  de  vista,  sabendo  mui  bem,  que  hum  cadáver  fiio  se  vai  ao  fun- 
do da  mesma  maneira  que  hum  sacco  de  terra.  Oh  se  nunca  perdêramos  de 
vista,  os  que  somos  íilhos  d'esta  sua  Província  do  Brasil,  tão  grande  exem- 
})lo  d'aquelle,  que  não  só  em  vida,  mas  ainda  na  morte,  nos  ensinou  a  ver- 
dadeira mortilicação  da  Cruz!  13em  sei  que  diz  Richardo  Yestegano  no  seu 
Theatro  da  crueldade  hci^ctica  foi.  54,  que  até  lançado  ao  mar  levou  Igna- 
cio a  Imagem  da  Yii'gem  comsigo,  sem  que  lha  í)udessem  tirai-:  porém  nós 
sabemos,  (jue  depois  de  lançado  ás  agoas,  andou  sempre  em  cruz  sem 
Imagem:  podia  ser  que  lançado  com  ella,  alli  a  largasse  ás  ondas,  antes 
que  a  hereges;  e  trocasse  então  a  que  fora  com[)anhia  na  vida,  por  seguir 
a  Imagem  do  Filho  na  morte.  K  assi  parece  o  entendem  muilos  aulhoi-es, 
quando  fallão  d"esta  Imagem  santa.  Aos  que  ficarão  vivos  morliíiiáifio  es- 
tes hereges  de  maneira,  que  fora  menos  pena  lançal-os  logo  a  morrer  com 
o  pai  morto:  gozáião  no  menos  até  espirar,  da  vista  e  eompanliia  de(|Ut!m 
tanto  amavão.  Porém  (.'Ui  ípianto  esta  hora  sua  não  chegava  ([>oi'que  não 
(jusavão  íis  algozes  tudo  o  que  querião)  afrontavão-nos  de  palavras,  e  obras, 
chamando-lhes  i)en'os,  diabos,  Papistas,  Jesuítas,  Presí)yt(M-os  (as  maiores 
afrontas  a  seu  [lareccr)  dando-lhes  bolctadas,  e  punhadas  [un-  desprezo:  <; 
d'este  modo  apremiados,  lhes  enln-gárão  o  Irahalho  da  bonilja,  ponpie  se 
hia  a  náo  ao  fundo,  aberta  das  bombardadas  do  principio  da  liriga. 
\0L.  u  7 


98  LIVRO  IV  DA  ClIRONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

44  Façamos  aqui  Imma  digressão,  cm  quanto  por  ora  se  occupão  com 
a  bomba.  .laques  Soria,  a  quem  do  peito  não  sabira  o  sentimento  da  mor- 
te do  seu  Sotto  Capitão,  que  da  popa  de  sua  náo  vira  matar  no  principio 
da  guerra,  mandou  que  fossem  levados  a  sua  pi-esenea,  o  Mestre,  e  Cala- 
fate da  náo  San-Tíago,  que  o  ajudarão  a  matar:  levárão-lbe  lambem  entre 
estes  o  Irmão  Simão  da  Costa,  mancebo  como  de  vinte  annos.  Noviço  que 
começava  a  ser  da  Companhia,  mas  debaixo  ainda  de  trajes  seculares:  não 
se  sabia  a  causa;  suspeitava-se,  que  como  era  de  boas  partes,  e  bem  apes- 
soado, cuidarião  que  era  fdlio  de  algum  grosso  mercador,  e  quererião  ti- 
rar d'elle  o  porte  das  fazendas  da  náo.  A  este  em  primeiro  lugar  chamou  Ja- 
ques  Soria;  e  a  primeira  pergunta  foi:  «Se  era  Jesuíta,  ou  não?»  Porém  Simãít, 
supposto  que  negando  sabia  que  escaparia  da  morte,  foi  filho  leal,  confes- 
sou claramente  que  era  Religioso,  irmão  daquelles,  que  pouco  havia  derão 
a  vida  pela  Fé  Romana:  do  que  indignado  Jaques  Soria,  logo  alli  lhe  man- 
dou cortar  a  cabeça,  e  lançar  ao  mar.  Ditosa  almal  Comummatus  in  brevi 
cxplci-it  têmpora  multa.  Em  segundo  lugar  tratou  do  caso  do  Mestre  da  náo, 
e  Calafate,  e  forão  sentenciados  a  morrer  cortadas  as  cabeças,  por  matado- 
res de  huma  pessoa  principal. 

45  Tornemos  agora  aos  Irmãos  que  estão  á  bomba,  cansados  igualmen- 
te de  trabalhar,  e  de  esperar  sua  ultima  sorte.  Chegavão  jã  a  desfallecer,  leve 
líistima  d'elles  o  Padre  Andrade,  e  vendo  estar  o  (Capitão,  que  então  era 
jumi  sobrinho  de  Jaques,  l^Ionsicur  Marlim,  no  castelío  de  popa,  conversan- 
do igualmente  com  os  seus  e  os  nossos  homens  da  náo,  humana  e  amiga- 
velmente; foi-se  a  elle,  e  pedio-lhe  tivesse  compaixão  dos  Irmãos,  que  che- 
gavão a  não  poder  ter-se  em  pé  de  fraqueza.  A  reposta  foi  cruelissima,  bem 
parecida  ao  ódio  que  logo  veremos  do  tio:  arremeterão  quaes  lobos  feros 
ao  cordeiro  manso,  pisárão-no  a  couces  e  punhadas,  lançáião-lhe  por  des- 
prezo o  barrete  ao  mar,  e  a  elte  por  derradeiro  da  xareta  abaixo,  tão  pisado, 
que  lançava  sangue  por  boca,  e  narizes.  Oh  feras  desiiumanas!  a  hum  ho- 
mem rendido,  desarmado,  confiado  em  vossa  presença?  Que  humanidade, 
que  cortesia  lie  esta?  Não  sabe  o  ódio,  quando  he  entranhavei,  usar  de  leis 
de  cortesia,  nem  de  misericórdia.  Esta  impiedade  lhes  acendeo  os  corações 
pêra  outra  maior.  Quiserão  que  todos  os  Irmãos  passassem  pelo  mesmo 
contraste;  levárão-nos  da  bomba  pêra  o  castelío  de  proa,  com  as  mesmas 
injurias,  e  tormento.  Aqui  se  apparelhavão  já  os  servos  do  Senhor  pêra  se- 
rem lançados  ao  mar:  porém  não  era  chegada  a  hora  do  poder  dos  minis- 
tros das  trevas;  erão  somente  preparações  da  morte:   lirárão-lhe  a  todos 


I 


DO  ESTADO  DO  DRASiL  (aNXO  DE   1570)  00 

roupetas,  e  barretes,  c  não  'se  farleivão  de  afrontar  e  maltratar  de  novo 
com  mais  rancor  aos  que  vião  com  coroa  na  cabeça,  pei'a  com  elles  cousa 
abominável. 

40  No  meio  d"estc  transe,  levo  a  sorte  que  desejava  o  irmão  .Manoel 
Fernandes,  o  (jual  quando  hia  passando  pêra  o  casíelio  de  proa,  collieo-o 
a  seu  íícito  hum  d"aquell(?s  algozes  (impaciente  da  tardança  da  sentença  que 
esperava)  junto  ao  bordo,  e  tomando-o  nos  braços,  deo  com  elle  ao  mar; 
sem  mais  outra  causa,  que  a  de  seu  ódio  herético.  Feito  este  ensaio,  des- 
pidos todos,  e  desbarretados,  os  tornarão  á  bomba.  Aqui  tem  lugar  o  pe- 
queno Aleixo,  de  quatorzeaté  quinze  annos  na  idade,  de  muitos  no  juizo: 
a  este  tomarão  quatro  hereges,  e  o  pisarão  a  paiicadas,  até  lhe  arrebentar 
o  sangue  pelos  narizes:  veio-sea  os  outros  Irmãos,  sua  vuhvra  jactans,  d - 
zendo  estas  palavras:  nOmnia  possttm  in  co,  qui  me  conforlat.)^  Era  sabbado, 
fizerão  os  hereges  seu  jantar,  como  quem  elles  erão,  de  galinhas,  e  outras 
carnes  que  acharão  na  não:  c  quando  foi  ao  comer,  ou  porque  houve  en- 
tre elles  algum  com  rasto  de  humanidad»,-,  ou  por  quererem  experimentar 
(e  hc  o  mais  certo)  o  que  logo  virão;  mandarão  ao  Padre  Andrade  alguma 
parte  da  dítta  carne,  pêra  comer  elle,  e  os  companheiros.  Porém  o  reso- 
hito  observante  da  lei  da  Igreja  Romana,  (|iial  outro  íorte  Eleazaro,  querendo 
antes  morrer  á  fome,  que  ser  visto  consentir  em  seu  herético  abuso,  to- 
mou a  carne,  e  lançou-a  logo  ao  mar,  em  presença  do  uK^snio  Francez  que 
a  trouxera:  tomarão  por  descortezia  o  que  era  fineza  da  Fé;  mas  como  es- 
peravão  por  horas  a  ultima  vingança,  contentárão-se  por  então,  com  amca- 
çal-os  de  morte  somente. 

47  N'aquelle  mesmo  dia  á  tarde,  cansados  já  os  servos  do  Senhor  do 
trabalho  da  bomba,  c  desejosos  de  experimentar  o  ultimo  acto  de  Ião  lar- 
ga tragedia,  c  os  hereges  igualmente  de  tirar  do  mundo  aquelles  que  íinhão 
por  escoria  delle;  depois  de  varias  idas  e  vindas  do  batel,  Jaques  Soria, 
infestissimo  inimigo  de  Jesuítas  (pelas  razões  que  atrás  dissemos,  das  re- 
voltas de  França,  flesde  a  morte  do  Catholico  Duque  de  Guisa,  rebellião 
contra  o  Uei,  e  castigo  de  trinta  mil  dos  Hugonoles,  em  que  os  Pa- 
dres da  Companhia  de  .lesu,  como  senqire,  fizerão  as  parles  dos  Catholi- 
i-í)s,  que  defendião  a  liomaua  Igreja  contra  estes  heivges)  no  seu  galeão 
deo  sentença,  (jue  fossem  mortos  os  Jcsuiías  da  não  San-Tiago,  pdr  serem 
seus  contrários,  e  ponpK!  hião  pivgar  falsa  doiUrina  ao  Brasil:  acrescen- 
tando, que  se  estes  não  forão,  já  clliís  con»  os  demais  Franceses  serião  lo- 
dos huns.  Dada  esta  sentença,  qual  homem  que  preleude  dar  grande  nó\a, 


400  LIVRO  IV  DA  CHUOMCA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

e  pedir  alviçaras  por  ella,  vai  primeiro  que  todos  a  leval-a;  tal  se  houve  no 
caso  este  Juiz  iniquo,  quiz  elle  mesmo  pronunciar  sentença  por  sua  boca, 
e  ser  o  primeiro  que  levasse  esta  grande  nova  de  morte  aos  ministros  de 
sua  profissão,  que  a  desejavão  como  a  vida.  Estende  as  velas  ao  galeão, 
prepara  pela  náo  San-Tiago,  e  diz  a  altas  vozes:  «Lançai,  lançai  ao  mar  estes 
perros  Jesuítas,  que  vão  pregar  falsa  doutrina  ao  Brasil.» 

48  Ouvida  a  sentença  (oh  furor  carniceiro!)  verieis  de  improviso  aquelle 
convés  cheio  dos  ministros  das  trevas  licenciosos.  Raras  são  as  historias, 
ainda  dos  tyrannos  mais  severos,  onde  a  sede  do  sangue  dos  martyres  fos- 
se tão  refinada.  Não  cabem  na  náo  de  prazer:  preparão  os  algozes  seus 
instrumentos,  dividem  o  manso  rebanho  em  duas  partes,  bombordo,  e  es- 
tibordo, e  vão  fartando-se  do  sangue  innocente  aquelles  lobos  carniceiros; 
com  esta  differença,  que  os  de  mais  idade,  ou  sinalados  com  tonsura  cleri- 
cal na  cabeça,  passavão  primeiro  a  punhaladas,  e  depois  os  lançavão  ao  mar; 
e  os  que  erão  de  menos  idade,  e  sem  os  taes  sinaes,  lançavão  sem  feridas. 
O  Padre  Diogo  de  Andrade,  assi  como  era  principal  entre  todos,  foi  o  pri- 
meiro no  padecer,  passado  a  cruéis  punhaladas,  e  meio  vivo  entregue  ás 
ondas  vorazes.  Da  mesma  maneira  os  Irmãos  Domingos  Fernandes,  Antó- 
nio Soares,  Francisco  Pires  Godoi,  e  todos  os  outros,  ou  tonsurados,  ou 
maiores:  e  não  sei  eu  onde  foi  a  crueldade  mais  severa,  se  n'estes,  ou  nos 
que  forão  de  todo  vivos  ao  mar. 

49  Aqui  se  vio  hum  espectáculo,  ao  Ceo  festival,  e  aos  homens  lasti- 
moso: pouco  menos  de  trinta  nadadores  representando  varias  mudanças, 
protestando  a  Fé  em  que  morrião,  invocando  os  ceies tiaes  moradores,  ani- 
mando-se  huns  aos  outros,  e  despedindo-se  os  que  acabavão  dos  que  ainda 
lutavão  com  as  ondas;  e  estes  depois  de  enfraquecidos  de  nadar,  seguindo 
ultimamente  os  demais.  Oh  mar  Atlântico!  Com  mais  razão  te  chamarias 
desde  agora  mar  Vermelho!  Ditoso  porto,  e  ilha  da  Palma,  cujas  praias  fo- 
rão lavadas  com  ondas  de  sangue  de  tão  felices  triumphadores!  Estavão 
vendo  toda  esta  tragedia  os  homens  Portugueses,  que  da  náo  San-Tiago  no- 
tavão  todas  estas  variedades,  e  as  referião  depois  com  copia  de  lagrimas. 
Forão  trinta  e  nove  os  que  n'este  ultimo  acto,  e  nos  antecedentes  derão  as 
vidas ;  porque  o  quadragésimo  guardou  o  Senhor,  por  especial  providen- 
cia sua,  pêra  que  como  testemunha  de  vista,  entre  as  mais,  pudesse  rela- 
tar-nos  por  menor  toda  esta  historia. 

50  Era  este  o  Irmão  João  Sanches,  pouco  mais  que  de  quatorze  anhos 
de  idade:  na  occasião  em  que  os  Franceses  fizerão  exame  dos  Religiosos, 


DO  ESTADO   DO  BRASIL  (aNNO  DE   iolO)  iOl 

foi  conhecido  crelles  por  cozinheiro:  disserão:  «Bon  garçon,  vete,  vete  a  la 
cocina.  Fallou-llic  a  occasião,  mas  não  o  animo.  Porém  lie  o  numero  de 
quarenta  sagrado:  e  aconteceo  aqui  o  que  lá  aos  outros  quarenta,  que  pa- 
decerão pela  Fé  n'aquella  celebre  alagoa  frigidissima,  onde  faltando  hum, 
supprio  o  Ceo  com  outro,  que  foi  o  quadragésimo.  Entre  os  Irmãos  que 
os  hereges  arrebatarão  da  bomlja  pêra  a  morte,  levarão  de  mistura  dous  man- 
cebos seculares,  cuidando  serem  da  Companhia:  e  como  taes,  comellesos 
lançarão  ao  mar:  porém  com  sorte  mui  diversa;  porque  hum  d"elles,  cla- 
mando quanto  pôde  que  não  era  Religioso,  morreo  contra  sua  vontade :  o 
outro  consentindo  no  erro,  morreo  voluntariamente,  e  mereceo  ser  o  qua- 
dragésimo dos  Religiosos,  recebido  na  Companhia  do  Ceo,  antes  que  o 
fosse  na  da  terra.  Chamava-se  dantes  S.  João,  nome  usado  na  Província  de 
Entre-Douro  e  Minho,  donde  era  natural,  e  nome  quasi  de  João  Sanches 
lido  ao  contrario,  como  pronostico  de  que  havia  de  ser  Santo,  e  de  que 
havia  de  supprir  as  vezes  do  Irmão  João  Sanches:  virá  a  chamar-se  S.  João 
Adauto;  Santo  por  sua  morte,  adauto  por  ser  acrescentado  a  trinta  e  no- 
ve, fechando  o  numero  quarenta.  O  que  se  entende  da  resohição  d'este 
bemaventurado  mancebo,  he :  como  pedia  a  Companhia,  e  erão  grandes  os 
desejos  de  ver-se  filho  d'ella,  acompanhando  sempre  os  Religiosos  em  suas 
afllicções,  e  trabalhos;  entendeo  que  era  também  obrigado  seguil-os  n"aquel- 
le  trago  ultimo;  ou  persuadido  que  era  já  da  Companhia,  ou  que  pêra  o 
ser  bastava  morrer  como  elles:  e  com  razão  por  estes  desejos,  e  effeitos, 
he  contado  entre  os  íilhos  da  Companliia. 

51  Oh  venturoso  dia  15  de  Julho  de  1570!  digno  que  se  escreva  na 
memoria  dos  homens,  pois  nos  livros  da  Etíírnidade  está  escritto:  n'este 
enti'ou  nos  palácios  celestes  este  esquadrão  de  vencedores  com  palmas  em 
as  mãos,  saiiindo  do  mar,  vermelhos  em  seu  sangue.  Aiiuella  grande  serva  de 
Deos,  a  Madre  Theresa  de  Jesu,  posta  em  grande  contemplação,  e  arreba- 
tada em  espií-ito,  os  vio  ir  entrando  no  Ceo  com  laureolas  todos  (1(3  Mar- 
tyres  gloi-iosos;  e  entre  elles  conheceo  especialmente  hum,  que  lhe  era 
propinquo  em  sangue,  com  jtailicular  alegria,  e  favor  do  Senlwr.  Descobrio 
ella  o  caso  a  seu  confessor.  Escreveo-o  Padre  Er.  Diogo  de  Yepes,  liispo  de 
Taraçona,  na  Vida  d'esla  Santa:  e  o  Padre-  António  d(!  VasconcellosnaDes- 
ci-ipção  d(;  Portugal.  O  Padr(!  Eusébio  Nien>mberg  diz,  (jue  houve  outras 
semelhantes  revelaçijes  sobre  a  entrada  no  Ceo  d'estas  almas  ditosas:  posto 
que  não  diM^lara  quai^s  fossem.  E  no  tomo  iv  dos  Vaiões  illustres  refere,  que 
a[t[)an.'cérão  em  conq)anliia  do  ditoso  Iiiuão  Pedro  Aldca  de  nossa Com[)a- 


i02  LIVRO  IV  DA  CUnOMCA    DA  COMPANHIA  DK  JESU 

iihia  em  grande  resplaiidor  com  coroas  de  llores,  e  palmas  em  as  mãos, 
a  certos  casados  de  bom  viver;  e  com  circunstancias  dignas  de  todo  o  cre- 
dito. 'Foi  appiaiidida  pelo  mundo  esta  tão  insigne  victoria,  depois  de  tão 
ferida  batalha:  e  chegando  ao  Smiimo  Pontiiice  Tio  Quinto,  diz  humas  pa- 
lavras, com  que  parece  que  os  canonizava;  porque  passando  n"aquelle  mes- 
mo tempo  hum  Motu  próprio  em  favor  dos  filhos  da  Companhia,  disse  d'el- 
les  assi:  «Os  quaes  não  contentes  com  os  fins  da  terra,  penetrarão  até  as 
índias  Orientaes,  e  Occidentaes:  e  alguns  d'elles  de  tal  maneira  forão  cons- 
trangidos do  amor  de  Deos,  que  pródigos  de  seu  próprio  sangue  pêra 
plantarem  mais  eíTicazmente  n"aquellas  partes  a  palavra  do  Senhor,  se  sub- 
meterão a  martyrío  voluntário. 

52    O  Poeta  Francisco  Eentío  celebra  o  triumpho  d'cstes  Martvres  no 
liv.  3,  e  G  de  seu  Poema;  e  diz  assi : 

Huc  ibant:  his  Diictor  erat  tum  nomine  fdix 
Tum  pietate  igetis  Ignatius:  extulit  illum 
Azebeda  domus:  Sor  ias  oppressit  cuntes: 
Crude! is  Sorias,  tetram  ciii  tabida  mentem 
Ex  Iirebo  sublata  lues  infcceral,  et  se 
Hoslem  Ponlijici  magno,  sacr isque  ferebat 
Ritibus,  infeclumque  tenebat  navibus  aquor. 
Nam  quia  non  prociil  á  terra  defecerat  afjlans 
A  tergo,  puppimque  ffíre?is,  et  linlea  ventus: 
Accipiter  velut  imbellem  tellure  columbam 
Càm  sedit,  leporemvé  cilus  venator  in  altis 
Montibus,  et  niveo  vallatis  aggere  campis: 
Assequitur  Prcedo,  ratibusque  inslructus,   et  armis 
Cominus  invadit,  circunstant  scilicet  unam 
Quinque  rates,  ncc  opus  longo  certamine:  plurei 
Vicere,   irrumpit  Sorias,  recipitque  tenetque 
Navigium,  et  vullu,  verbisque  minamtibus  instat, 
Mox  studium  ratus  extingui  sic  posse  virorum. 
Quos  docuit  Romana  (ides:  saturare  cruore, 
Utere  serie  data:  Romanam  iulerfice  viessem: 
Jpse  suis  clamai,  Sumerge  cadavera  ponto: 


DO  ESTADO  DO  BR.VSIL  (ANNO    DE    1570)  10'J 

Et  simul  hoc,  simul  Ignatij,  qui  amplexus  hahebat 
Virginis  efjigiem  Marice,  veramqiie  lueri 
Seque  suosque  fidem  suprema  in  morle  professus. 
Et  socijs  ânimos  addebat,  et  hostibus  iras, 
Peetora  transadigit  tcllo^  vaslumqiie  per  a^quor 
Cum  sacra  jacit  effigie,  quam  mula  revellit 
Vis  admola  viro:  hinc  sócios  faribundus  ad  unum 
Ter  que  quaterque  addens  exiita  in  corpora  fernim, 
Christum  implorantes  pelagi  projecit  inundas, 
Hos  circiun  ejfuso  rubuerunl  sangtúne;  at  illi 
Protlnus  et  médio  petienmt  aquore  cwliim, 

Í)ÍJ    Depois  de  tomada  vingança  nos  corpos,  passarão  aquelles  ministros 
do  inferno  a  tomal-a  nas  cousas  religiosas,  e  santas.  Adiarão  entre  outras, 
quantidade  de  reliquias,  rosários,  Agnus  Dei,  e  óleos  sagrados,  que  o  bem- 
díto  Padre  Ignacio  levava  pêra  o  Brasil:  tudo  isto  espalharão  com  furor 
diabólico  pelo  convés  da  náo,  pisando-o  a  couces,  c  depois  lançando-o  ao 
mar.  Era  huma  d'estas  reliquias  meia  cabeça  de  huma  das  Santas  Virgens 
onze  mil,  encaixada  em  hum  meio  corpo  de  feitio  lustroso.  A  santa  cabe- 
ça trilharão  aos  pés:  o  corpo  trouxerão  por  desprezo  pendurado  da  gavia, 
dizendo  o  Capitão  por  zombaria,  que  o  levava,  porque  se  parecia  com  hu- 
ma sua  íilha:  porém  pagou  a  descortesia;  porque  veio  sobre  elle  huma 
grande  tormenta  de  muitos  dias,  e  foi  forçado  lançal-a  ao  mar,  ou  por  en- 
trar em  consideração  da  santidade  d'aquella  Imagem  oíTendida,  ou  por  ter 
pêra  si  (jue  procedia  aquelle  infortúnio  de  levar  comsigo  peça  tão  detestá- 
vel a  seu  parecer;  e  he  o  mais  certo.  liam  fermoso  pedaço  do  sagrado 
lenho  tia  Cruz  de  Christo  lançarão  em  o  fogo,  com  lastima  e  lagrimas  do 
limão  Sanches,  (]ue  estava  á  vista,  a  quem  dissei-ão  por  escariieo:  «Olha, 
í)llia,  Papista,  como  arde!»  Em  hinn  sagi^ado  Crucilixo  íizerão  opprol)rios 
inauditos:  levaiitárão-no  em  alto,  ariemedando  o  canto  dosClei-igosUoma- 
jios;  e  logo  (lerão  com  elle  sobre  hinrinmesa,  Et  super  vulnera  dolonim  ejus 
(tddiderunt,  ílcrum  crucifujenle.s  Filiuia  Dei^  não  cessando  aípiellcs  cães  rai- 
vosos de  (lar-lhc  punhaladas,  <;  ía/.er-lhi!  afrontas,  alé  lornal-o  em  pedaços. 
Ai'márão  htnu  altar,  reveslirão-se  dos  ornamentos  santos,  conh"ií;i/.(Mido  e 
arremedando  o  sacratíssimo  sacrilicio  da  missa,  e  ceremonias  da  Igreja  Ilo- 
mana,  levantando  por  hóstia  huin  giande  Ágnus  Dei,  que  depois  pisarão  a 


104  I.IVRO  IV  DA  CHRONICA  DA  COMPANHIA  DE  JF.SU 

couces,  o  òesfizerão  n  punhaladas,  l)ol>cntlo,  c  l)rindanílo  luins  a  outros  pe- 
los sagrados  cálices. 

54  Tremem  as  carnes  só  de  ouvir  tão  grandes  sacrilégios,  e  não  Ire- 
mião  aquelles  corações  obstinados.  Ileluim  dos  milagres  da  Omnipotência 
divina,  que  á  vista  de  semelhantes  desacatos  seus,  suspenda  os  raios  de 
^sua  justíssima  vingança:  e  he  por  ensinar-nos  aquelle  Senhor  das  misericór- 
dias o  soffrimento,  que  devem  ter  as  criaturas  á  vista  do  de  seu  Criador:  e  pêra 
mostrar-nos  quão  caro  lhe  custa  castigar  almas  que  redimio:  virá  porém  o 
tempo  da  vingança:  « Dies  enim  uUionis  in  cor  de  meo-»  diz  o  SenhoT*.  Perdoarão 
comtudo  osheregos  aos  ornamentos  mais  ricos,  não  por  misericórdia,  mas  por 
cubica:  da  mesma  maneira  a  duas  Imagens  da  Virgem,  por  curiosidade  so- 
mente da  pintura,  ambas  tiradas  do  próprio  retrato  que  pintou  S.  Lucas. 
Huma  d'estas  foi  a  com  que  morreo  o  bemaventurado  Ignacio,  ainda  chea  de 
seu  sangue :  e  esta  por  divino  mysterio  com  as  nódoas  ainda  do  sangue, 
veio  ter  ás  mãos  dos  Padres  do  Brasil,  que  no  CoUegio  da  Bahia  a  guarda- 
rão até  o  anno  de  1368(*),  com  a  veneração  que  merece  peça  tão  santa. 

33  Acabada  esta  sacrílega  tragedia,  depois  de  recreados  três  dias  na 
Gomeira,  huma  das  ilhas  das  Canárias,  do  trabalho  de  tão  grandes  façanhas, 
partio  a  esquadra  dos  ministros  da  iniquidade  pêra  sua  terra.  A  náo  San- 
Tiago,  depois  de  cinco  mezes  de  viagem,  e  fazer  nove  presas  no  mar,  che- 
gou á  Rochela,  cidade  de  abominação  de  todas  as  seitas,  e  heregias:  hou- 
ve noticias  das  muitas  presas  que  trazia,  efoi  bem- recebida  da  Rainha  Ma- 
dama  Joanna  de  la  Brit ;  mas  reprovada  delia,  e  de  todos  os  povos,  a 
crueldade  de  que  usara  Jaques  Soria  com  os  da  Companhia:  f[ue  até  entre 
hereges  se  estranhão  desatinos  tamanhos.  O  Irmão  Sanches  houve  licença, 
e  se  partio  d\alli  a  Bayona :  foi  hospedado  no  CoUegio  da  Companhia  de 
Jesu  de  Unhaté,  onde  contava  esta  historia,  e  tremião  as  carnes  dos  que 
a  ouvião.  Chegou  ultimamente  a  Lisboa,  e  ouvida  a  longa  narração  da  tra- 
gedia, não  houve  quem  tivesse  as  lagrimas,  já  de  mágoa,  já  de  alegria: 
renovavão  então  os  amigos  a  memoria  do  passado  tempo  de  Vai  de  rosal, 
e  conferião  aquelles  princípios  santos  com  estes  fins  ditosos.  Bem  se  diz, 
que  o  cutello  do  sangue  dos  Martyres  faz  mais  fecunda  a  Igreja  de  Deos : 
assi  se  vio  aqui;  porque  em  lugar  de  quarenta  que  padecerão,  se  offereceo 
dobrado  numero  pêra  ir  ao  Brasil,  a  ver  se  alcançavão  semelhante  sorte 
por  esses  mares,  magoados  os  que  na  primeira  a  não  pudérão  alcançar  em 
companhia  de  tão  grande  pastor. 

[•)    Esta  data  é  evidonteraente  errada:  porem  nilo  sabemos  cumo  lestituil-a.  (I.  F  da  S.) 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (aNNO  DF.   loTO)  105 

íiG  Fui  O  Padre  Ignacio  do  Azevedo  natural  da  illustre  cidade  do  Por- 
to: era  sen  pai  Dom  Manoel  de  Azevedo,  Comendador  de  S.  Martinho  ; 
des  antigLias  e  claras  lamilias  dos  Malafayas,  e  Azevedos,  que  obrarão  fa- 
eaiihas  conhecidas  em  defensão  do  Reino,  no  tempo  d'El-Rel  Dom  João  o 
Primeiro,  e  conquistas  de  Africa.  Sua  criação  mostrou  bem  o  que  Deo^ 
havia  de  vir  a  fazer  nelle:  parece  que  do  ventre  da  mãi  trouxe  comsigo 
a  devação  da  Virgem.  Entre  os  regalos  da  casa  de  seus  pais,  sendo  ainda 
de  pequena  idade  Dom  Ignacio  de  Azevedo,  trazia  hum  sacco  de  cilicio 
branco  conti  luamente  á  raiz  das  carnes,  dedicado  por  voto,  que  pêra  isso 
fez  á  Vii"gin(lade  da  Senhora,  devação  que  ainda  continuou  depois  de  en- 
trado na  Companhia,  até  que  sabida  dos  Superiores,  lhe  irritarão  o  voto, 
em  cujo  lugar  começou  a  rezar  o  Rosário,  e  OíTicio  da  Immaculada  Con- 
ceição por  toda  sua  vida,  com  tão  cordial  amor  á  Virgem,  como  bem  mos- 
trou o  alTecto,  mais  que  natural  com  que  o  vimos  morrer  apertado  com 
sua  santa  Imagem,  sem  que  alguém  lh"a  pudesse  tirar.  E  d"esta  se  pode 
Gollegir  as  demais  devações  e  espirito  de  nosso  Dom  Iguacio,  ainda  quan- 
do moço,  e  secular. 

57  Sendo  já  de  idade  mais  crescida,  como  era  filho  mais  velho,  fez 
n'elle  casa  e  morgado  seu  pai,  e  muito  moço  entrou  de  posse  d'elle.  Era 
discreto,  prudente,  amável,  c  digno  de  maiores  estados:  lustroso  no  fausto 
de  sua  casa,  a  seus  criados  nada  penoso:  no  trato  de  sua  pessoa,  trajos, 
cavallos,  arreios,  e  o  mais  necessário  a  hum  mancebo  tão  bem  dotado  da 
natureza  e  da  furtuna,  brioso,  porém  não  soberbo:  porque  toda  esta  appa- 
rencia  tinha  já  então  por  figura  do  mundo,  que  como  a  de  breve  tragedia  ha- 
via dé  acabar.  Não  só  os  de  dentro  da  casa,  mas  tamljem  os  de  fora,  enxer- 
gavão  em  Dom  Ignacio  este  animo.  Havia  na  mesma  cidade  do  Porto  hum 
homem  nobre,  visinho  seu,  por  nome  Ileniique  de  Gouvea  (nomeado  por 
vezes  nas  Chronicas  da  Companhia  de  Portugal)  em  quem  infundirão  gran- 
de espirito  as  pregações  do  f(>rvoroso  Padre  Francisco  de  Estrada,  quando 
n"aquella  cidade  pregava,  e  desejava  elle  imitar  o  espirito  de  seu  Mestre, 
convertendo  almas,  por  meio  da  entrada  da  Religião  da  Companhia,  então 
nova  no  mundf),  e  de  que  elle  tinha  feito  grande  conceito.  Por  visinhança 
conhecia  mui  bem  este  varão  o  bom  espirito  de  Dom  Ignacio,  c  sua  boa 
disposição:  foi  a  tratar  com  elle  a  imma  quinla,  cabeça  de  seu  morgado, 
distante  cinco  legoas,  junto  a  Paço  de  Sousa,  chamada  a  quinta  de  Barbo- 
sa: e  aqui  a  breves  palavras  de  Deos,  c  da  vaidade  do  mundo,  qual  fogo 
em  pólvora  disposta,  se  accendêrão  cm  grandes  labaredas  de  maior  per- 


■100  LINHO  IV  DA  CmiOMCA  DA  COMPANHIA  DE  JRSU 

fei(;ão.  Pnrliião  ambos  pêra  Coiml»i-a,  tfjmáilío  alli  os  exerricios  do  Santo 
Ignacio  por  trinta  dias,  e  saliio  d"(3lles  Dom  Ignacio  de  todo  resoluto  :  re- 
nunciou o  morgado  em  Dom  Francisco  de  Azevedo,  ou  Attaide,  seu  ir- 
mão, por  ser  mais  velho  que  Dom  Jeronymo  de  Azevedo,  tamliem  irmão 
seu  (aquelle  tão  conhecido  nas  historias  por  conquistador  da  ilha  de  Ceilão, 
e  seis  annos  Viso-Rey  da  índia)  e  livre  dos  cuidados  e  impedimentos  do 
século,  retirou-se  ao  lugar  deserto  da  Companhia,  na  flor  da  idade  de 
vinte  e  hum  annos,  e  na  era  do  Senhor  de  mil  e  quinhentos  e  quarenta  e 
sete. 

58  Entrando  no  noviciado,  lançou  na  virtude  tão  fecundas  raizes,  que 
foi  exemplo  de  Noviços:  era  faltado  entre  todos  o  fervor  de  D.  Ignacio.  E 
porque  este  Dom  que  trazia  corasigo  (permittido  então  nos  princípios  da 
Companhia)  se  não  chamasse  ao  foro  antiguo,  procurou  com  todas  as  veras 
abnegar-se,  e  transformar-se  em  homem  plebeo,  por  actos  de  verdadeira 
humildade,  e  mortificação.  Aprendeo  officios  mechanicos  com  tal  applicaçãò. 
como  se  por  elles  houvera  de  ganliar  sua  vida :  chegou  a  ser  perfeito  ça- 
pateiro,  alfaiate,  colxoeiro,  etc,  e  d'estes  se  prezou  de  maneira,  que  por 
toda  sua  vida  trouxe  corasigo  os  instrumentos  d'elles:  e  era  elle  o  melhor 
remendão  de  seus  çapatos  e  vestidos,  antepondo  o  dom  uUimo  d"este  olll- 
cio  ao  primeiro  Dom  da  nobreza,  e  ajustando-se  com  aquelle  principio  do 
espirito,  Ama  nesciri,  et  pró  nihilo  reputari.  A  este  tom  erão  OS  demais  exer- 
cícios de  humildade,  e  mortificação:  nesta  parece  hia  já  desde  aquelle  tempo 
começando  a  martyrisar«seu  corpo:  cobrio-se  de  perpetuo  cilicio:  suas  cos- 
tas andavão  sempre  inchadas,  cheias  de  pisaduras,  e  vergões  dos  açoutes  ' 
chegou  a  tanto  grão  o  ódio  com  que  o  perseguia,  que  foi  necessário  reti" 
ral-o  do  noviciado  ao  campo  do  Casal  de  Sanfins,  porque  tivesse  algumas 
tregoas  comsigo  mesmo. 

59  Foi-lhe  concedido  aqui  aquelle  dom  de  lagrimas,  porque  tanto  sus- 
pirava Santo  Agostinho  porsignal  evidente  do  divino  amor:  erão  n'elle  tão  co- 
piosas, qae  deixava  ordinariamente  regada  a  terra  aonde  tinha  oração :  e 
era  tal  o  effoito  d"cllas,  que  se  abrasava  entre  essas  agoas  na  charidade  de 
De  os,  e  do  próximo.  Pcdía-lhe  o  espirito  desterrar-se  pêra  partes  mais  re- 
motas do  mundo,  onde  dado  vale  a  tudo  o  que  chamamos  carne,  e  sangue, 
se  empregasse  somente  com  o  Criador,  e  com  as  criaturas  mais  bucais  da 
terra,  por  respeito  dellc:  este  espirito  era  o  com  que  depois  procurou  a 
missão  da  índia,  Brasil,  ou  outras  parles  semelhantes  entre  gentios,  ou  here- 
ges. Não  determino  tratar  por  menor  seus  grandes  pensamentos,  c  suas 


DO  ESTADO  DO  DIUSIL  (aNNO  DE   1,^70)  107 

grandes  oliras:  direi  só  algumas  mais  necessárias  pêra  nosso  exemplo,  e 
som  ordem  do  tempos. 

60  He  digno  da  memoria  de  todos  os  filhos  da  Companhia  o  caso  cele- 
l:)re,  (jiie  lhe  acontcceo  quando  tornava  da  missão  de  Barcellos.  Trazião  só  hum 
jumento  em  que  se  revesavão  elle  e  o  companheiro:  chegados  a  Braga,  on- 
de já  era  Heitor,  e  tão  conhecido  do  Arcebispo,  e  de  toda  a  cidade,  como 
veremos,  foi  a  questão,  qual  d'elles  havia  de  ir  a  cavallo,  e  qual  a  pé  pela 
cidade  até  nosso  Collegio?  Deo  á  escolha,  que  fosse  o  Irmão  no  jumento» 
e  que  elle  o  levaria  de  cabresto;  ou  qne  o  Padre  fosse  a  cavallo,  e  o  Irmão 
o  levasse  de  rédea.  Não  soube  o  companheiro  deliberar-se ;  resolveo-se  o 
Padre,  que  fosse  o  Irmão  o  cavalleiro,  e  elle  o  lacaio.  Entrou  D.  Ignacio  de 
Azevedo  pelas  portas  da  cidade,  passou  a  praça,  e  as  mais  ruas  até  che- 
gar á  nossa  portaria,  qual  moco  de  mulas,  levando  o  jumento  em  que  hia 
o  Irmão  pelo  cabresto.  Oh  exemplo  raro!  Julgou  por  melhor  este  varão  en- 
trar homem  de  pé,  que  de  cavallo,  por  não  parecer-se  em  alguma  maneira 
com  o  antiguo  D.  Ignacio.  Em  todos  seus  caminhos  ou  hia  a  pé,  ou  com 
taes  traças  de  mortificação,  que  vinhão  a  entrar  em  mais  custo :  e  d'este 
modo  visitou  a  Província,  sendo  Vice-Provincial:  e  quando  hia  a  cavallo, 
era  em  jumento,  do  qual  elle  mesmo  pelo  caminho,  c  quando  chegava  á 
estrebaria,  tinha  cuidado. 

01  Corrião  em  estreita  amizade  este  santo  varão,  e  o  notável  D.  Frei 
Bertholameu  dos  Martyres  Arcebispo  de  Braga,  Pi-imaz  das  Hespanhas 
(que  logo  se  conhecem,  e  amão  os  santos:)  quiz  aquelle  venerável  Arcebis- 
po, que  o  acompanhasse  Ignacio  á  sua  igualmente  celebre  e  trabalhosa  vi- 
sita das  terras  do  Bai-roso.  N'este  caminho  era  de  ver  o  como  ambos  se  mor- 
lificavão  á  contenda  estes  servos  de  Deos;  o  que  toca  ao  Primaz,  relata  a  lenda 
de  sua  vida;  o  que  toca  a  Ignacio,  relatava  depois,  como  testemunha  fidedigna, 
o  mesmo  Arcebispo,  com  honra  do  Padre,  e  da  Companhia.  Comião  ambos 
em  huma  nieza,  e  com  titulo  de  primor  de  polidos,  mais  gastavão  em  mor- 
tificar o  apetite,  que  em  satisfazer  a  natureza.  Não  havia  pão  alvo  por  aquelles 
lugares,  achou-se  hum  só  pêra  a  meza  do  Arcebispo,  andou  este  nameza  a 
titulo  de  primor  de  hum  pêra  outro,  tanto  tempo,  que  quando  já  chegarão 
a  comel-o,  era  peor  que  a  própria  broa,  por  duro,  e  bolorento:  a  este  teor 
levavão  as  cousas  da  mesa,  e  poi'  aqui  hião  as  da  cama,  c  do  mais  trata- 
mento do  corpo. 

62  Voltando  da  visita,  despedio-se  Ignacio  do  Arcebispo  em  seu  palá- 
cio na  cidade  de  Bi-aga  pêra  o  Collegio  do  Porto;  mas  como  não  pudesse 


108  LlVnO  IV  DA  CHRONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

partir-se  n'aqiiellc  dia,  foi  a  recolher-se  ao  Hospital  de  S.  Marcos  com  seu  com- 
panheiro o  Padre  Pedro  Lopes,  pretendendo  fazel-o  na  manhã  seguinte:  poivm 
foi  tão  grande  o  ajuntamento  de  penitentes,  que  concorreo  a  elle,  que  foi  ne- 
cessário confessar  até  passado  meio  dia  (que  não  perdia  occasião  de  ganhar  al- 
mas, ainda  á  conta  de  perder  jornada.)  Nesta  mesma  hora  estava  á  meza  o  Arce- 
bispo, e  faltando  pêra  os  creados  que  assistião,  disse:  «Aonde  irá  agora  o 
nosso  bom  companheiro  Ignacio?»  «Eu  o  deixei  no  Hospital  de  S.  Marcos 
pouco  ha»,  respondeo  hum  d"elles:  ficou  edificado  sobre  maneira  o  santo 
Prelado,  mandou  chamar  os  Padres,  levou-osnos  braços,  e  resolveo-se  aqui 
em  fundar  o  Collegio  que  temos  n"aquelia  cidade,  cortando  por  inconvenien- 
tes grandes,  que  n'isso  entrevinhão:  dizendo,  que  estes  diligentes  obreiros 
mandara  Deos  á  sua  Igreja  pêra  Coadjutores  dos  Bispos,  que  têm  sobre  si  a 
carga  das  almas:  e  foi  o  primeiro  Reitor  daquelle  Collegio  o  mesmo  Pa- 
dre Ignacio,  que  não  menos  o  edificou  no  material  das  obras,  que  no  es- 
piritual dos  sujeitos,  e  a  toda  a  cidade  com  exemplo. 

63  Erão  princípios,  estava  o  Collegio  falto  de  alfaias  de  casa,  e  pas- 
savão  a  cada  passo  hospedes  por  elle:  a  cama  do  Reitor,  boa  ou  má,  era 
de  hum  d'elles,  e  elle  se  agasalhava  sobre  huma  taboa.  O  mesmo  era  na  chari- 
dade  com  os  necessitados  de  casa,  ou  de  fora:  repartia  com  estes  as  pe- 
ças de  seu  vestido,  até  ficar-se  elle  exposto  ao  frio.  Representou-lhe  hum 
súbdito,  que  tinha  necessidade  de  hum  gibão:  que  era  tempo  de  grandes 
frios:  despedio-o  com  boas  esperanças,  despio  o  seu,  e  mandou-o  ao  súb- 
dito: mas  como  ficasse  muito  mal  enroupado,  e  erão  rigorosos  os  frios,  e 
por  ventura  tinha  já  dado  também  a  camisa,  entrou  em  escrúpulo  de  po- 
der contrahir  alguma  doença  entre  tanto  rigor;  foi-se  á  estrebaria,  tomou 
huma  coberta  que  servia  de  hum  jumento,  fez-llie  hum  buraco  no  meio, 
meteo-o  na  cabeça,  e  fez  d'elle  gibão,  com  mais  alivio  contra  o  tempo : 
mas  como  fosse  descoberto  o  furto  da  alfaia  do  jumento  pelo  que  d"elle  ti- 
nha cuidado,  esendo-lhe  imputado,  respondeo  queaquellejubão  se  mudara 
de  hum  jumento  pêra  outro:  e  a  este  teor  erão  sem  conto  suas  mortifica- 
mes.  Era  incansável  no  confessionário,  e  púlpito:  nem  pêra  estas  occupa- 
ções  era  impedimento  n"elle,  o  ser  Superior.  Sendo  Reitor  de  Braga,  de  Santo 
Antão,  e  Yice-Provincial,  do  mesmo  modo  se  applicava  a  estes  oíTicios,  que 
se  o  não  fora.  Pedirão-lhe  os  moradores  da  villa  de  Barcellos,  sendo  Rei- 
tor de  Braga,  hum  pregador,  e  confessor  pêra  toda  a  quaresma ;  não  ha- 
via quem  fosse,  entregou  o  oíficio  de  Reitor  a  outro,  e  foi  elle  mesmo,  jul- 
gando por  mais  forçosa  aquella  occupação  (]ue  esta.  N"aquclla  quaresma 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (aNNO  DE    1570)  100 

pregou  todos  os  domingos,  quartas,  e  sextas  feiras,  navilla  de  Barcellos,  g 
depois  de  pregar  descia  do  púlpito  ao  confessionário,  e  n^elle  aturava  até 
a  hunia  hora  depois  do  meio  dia:  os  demais  dias  da  semana  discorria  pe- 
los lugares  visinhos  a  pé,  com  seu  bordão  na  mão,  a  pregar,  fazer  doutri- 
nas, e  confessar  aquella  gente. 

04  Tinha  notável  e  conliecido  dom  de  Deos  pêra  sahir  com  tudo  o  que 
emprehendia  de  serviço  seu:  e  em  chegando  a  leval-o  ao  santo  sacrilicio  da 
missa,  ou  oração  mental,  onde  todo  se  enlevava  na  presença  de  seu  Senhor, 
nenhuma  cousa  despintava  de  seus  desejos,  por  mais  que  parecesse  difficil; 
e  f(jrão  algumas  tidas  por  milagrosas.  Nem  faltavão  outros  favores  exte- 
riores, que  Deos  fazia  por  seu  servo.  Indo  pêra  Barcellos,  achou  o  rio  que 
hia  de  monte  a  monte;  e  em  quanto  cuidavão  como  havião  de  passal-o,  de- 
poz  o  companheiro,  que  se  acharão  da  outra  parte,  sem  saber  como;  por- 
que aílirmava,  que  nem  vira  barca,  nem  entrara  em  rio,  nem  se  molhara. 
Passavão  outra  \et  o  mesmo  rio  em  hum  barquinho  em  tempo  de  enchen- 
tes, e  com  a  mesma  força  de  agoas :  ex  que  chegando  á  veia  d'elle  mais 
furiosa,  vinha  descendo  com  a  mesma  fúria  liunia  grande  arvore  inteira, 
que  a  tempestade  trouxera  das  mattas  ao  rio:  deo-se  o  barqueiro  por  per- 
dido, começou  a  lastimar  seu  infortúnio:  o  servo  de  Deos  o  animou  que 
não  temesse;  e  chegando-se  ao  bordo  da  barfpiinha,  pegou  de  hum  ramo 
da  arvore,  e  desviou  delia  toda  aquella machina,  como  se  fora huma  palha. 
Semelhante  caso  foi  este  ao  da  oulra  grande  arvore,  que  S.  Martinho  des- 
viou do  caminho  na  cidade  de  Turon,  o  de  que  faz  tanta  estima  S.  Grego- 
iio:  aquella  era  só  de  estorvo  ao  uso  da  gente,  e  esta  nossa  de  perigo  da 
barca,  e  passageiros.  Foi  trazido  ao  Collegio  de  Évora  hum  endemoninha- 
do, sobi"e  o  qual  os  Padres  íizerão  todos  os  exorcismos  que  costuma  a  Igreja, 
sem  eífeito  algum:  eslava  fgnacio  no  coro  posto  em  oração,  veio-se  d'elle, 
chegou  ao  homem  endemoninhado,  lançou-lhe  as  contas  que  trazia  na  mão 
ao  pescoço,  e  logo  huma  benção;  e  foi  o  mesmo  que  desamparar  logo  o 
corpo  o  espirito  infernal.  !)o  mesmo  seno  de  Deos  se  refere,  que  tendo 
o  Collegio  de  Braga  falta  de  i)ão,  e  sendo  avisado  do  Uefeitoreiro,  mandou 
comtudo  que  tangesse  á  meza,  e  tivesse  conliança  em  Deos:  no  ponto  que 
tangerão,  chegou  á  porlai-ia  huma  mulher  coui  huma  alcofa  de  j)ães,  e 
entregues  elles,  não  f(»i  mais  vista,  nem  conhecida;  e  foi  tido  o  caso  como 
sobrenatural.  Celebra-o  Sacchino  no  liv.  vi,  da  jiarl.  iiidas  Ghronicas,  n."  261. 
Como  estes  erão  os  domais  poiísamenlos,  c  (»bras  (Teste  grande  varão,  das 
quaes  como  em  outras  partesdc  Portugal,  Brasil,  Itália,  c  \iagem  ultima,  lemos 


ilO 


LIVRO  IV  DA  CHRONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 


feito  menção,  julgamos  ser  bastante  o  ditto:  especialmente,  porque  sua  mor- 
te insigne  canonizou  os  feitos  e  obras  de  toda  sua  vida,  segundo  aquclla 
sentença  italiana:  «Cirun  bel  morir  tutta  la  vita  bonora.» 

05  Não  deixarei  de  apontar  aqui  o  fim' que  ti  verão  alguns  dos  tyrannos 
que  tirarão  a  vida  a  este  varão  santo,  e  a  seus  santos  companheiros.  Ja- 
ques  Soria  principal  tyranno,  morreo  raivando,  qual  perro  furioso,  com 
temor  e  espanto  dos  que  o  vião.  Assi  o  escreve  Pedro  Jaricii,  c  o  confir- 
ma hum  Francez  Calvinista  Rochelense,  na  Recopilação  que  fez  das  cousas 
dos  Portugueses  no  capitulo  20.  Dom  Rodrigo  da  Cunha,  Arcebispo  digníssi- 
mo que  foi  de  Braga,  e  depois  de  Lisboa,  na  segunda  parte  que  fez  dos 
Arcebispos  Bracharenses,  capitulo  nono,  diz,  que  quatro  soldados  (devião 
ser  os  das  quatro  lançadas  de  Ignacio)  ficarão  subitamente  cegos;  e  que  as- 
si o  testemunhou  de  vista  hum  Simão  Cabreira,  que  se  achou  presente. 
Por  outra  via  foi  milagrosa  a  conversão  de  hum  d'estes  monstros;  porque  en- 
trando em  huma  Igreja  de  Catholicos  a  fazer  zombaria  das  ceremonias  san- 
tas, foi  de  repente  ferido  da  mão  de  Deos  com  tremor  horrendo  de  coi-po, 
qual  de  outro  Caim:  mas  começando  a  padecel-o,  reconheceo  o  castigo  do 
Ceo,  pedio  favor  á  Virgem,  cuja  era  a  Igreja,  foi  ouvido,  e  sarou  no  cor- 
po, e  na  alma;  porque  confessou  seu  peccado  publicamente,  abjurou  sua 
heregia,  e  pedio  perdão  com  contrição,  e  lagrimas.  Conta  o  caso  Pedro  Ja- 
rich:  e  o  trazem  também  as  Cartas  annuas  da  Companhia  do  anno  de  1594, 
em  que  aconteceo. 

66  Do  bemdito  Padre  Ignacio  de  Azevedo  escreverão,  o  Padre  Ribade- 
neira  no  livro  3  da  Vida  do  Santo  Padre  Francisco  de  Borja,  cap.  10.  O 
Padre  Orlandino,  e  o  Padre  Sacchino  na  primeira,  e  segunda  parte  das 
Chronicas  da  Companhia:  e  mais  largamente  o  mesmo  Sacchino,  na  terceira 
parte,  liv.  6,  do  num.  208  por  diante.  O  Padre  Luis  Gusmão  em  sua  His- 
toria das  missões,  liv.  2,  cap.  45.  Pedro  Jarich  no  segundo  tomo  de  seu 
Thesouro  Indico,  liv.  1  cap.  25.  O  Padre  Frei  Luis  de  Sousa  na  Vida  do 
Arcebispo  Frei  Bertholameu  dos  Martyres,  liv.  1,  cap.  19.  Jacobo  Damião 
liv.  3,  cap.  9. 0  Padre  André  Escoto  na  Vida  do  Beato  Padre  Francisco  de  Borja 
em  latim,  liv.  3,  cap,  10.  Bencio  em  seu  poema  dos  três  Martyres,  liv.  6. 
Eusébio  Nieremberg  dos  Varões  iUustres  da  Companhia,  tom.  2,  foi.,  245. 
Bertholameu  Guerreiro,  em  sua  Gloriosa  Coroa,  parte  terceira  do  cap.  3.  Bal- 
thesar  Tehes  na  primeira  parte  das  Chronicas  de  Portugal,  liv.  2,  cap.  AS,  e 
na  segunda  parte  das  mesmas,  liv.  4,  cap.  6.  E  o  Padre  Maurício  de  nos- 
sa Companhia,  que  por  relação  do  Irmão  Sanches,  que  escapou,  e  outras 


LIVRO  IV  DA  CHROMCA  DA  COMPANHIA  DE  JESU  1 1  1 

pessoas  ridedigiias,  escreveo  miudaiueiUc  esta  liisloria  cm  liuiii  livro  ma- 
nuscriplu,  fuiidamenlo  piiiicipal,  donde  se  liioii  o  ipie  trazem  os  demais 
aiitliores. 

()7  Celebra  Geraldo  Moiitano  em  sua  Ceuluria  o  santo  varão  Ignacio  de 
Azevedo  com  os  versos  seguintes: 

Qui  novus  ille  piigil,  cujus  de  pcclore  fasus 

Nercus  in  medij-;  ixsliial  ignis  nquis? 

Non  nndiP,  jlucliisqne  viram,  (erefesqiie  sarissw 

Ohruerfí,  ingeslo  nac  vaLl  amue  Thelis. 

Effigiem  Diice  manibus  lenel  ille  potenlis, 

Vellere,  nec  ferrum  hanc,  nec  Lihitina  polest. 

Alma  fides,  pielasquQ  sacros  de  vértice  crines 

Solvit,  et  (pquoreas  fletibus  aurjct  aquas. 

Sed  charis  anie  omnes,  sed  nec  charis  ipsa.  nec  onínes 

Flexeruut  ânimos  pérfida  lurba  tuas. 

EPILOGO  DOS  MAIS  COMPANHEIROS  QUE  MORRERÃO  PELA  FÈ  DE  CHRISIO 

(iS  O  Irmão  Bento  de  Castro,  Purtugnez,  natural  de  Chacim  do  Bispa- 
do de  Miranda,  de  27  annos  de  idade,  nove  da  Companhia,  estudante,  com 
Ires  arcabuzadas,  e  sete  punhaladas,  meio  vivo  lançado  ao  mar:  foi  o  pri- 
meiro de  todo  este  santo  esquadrão  que  deo  a  vida  pela  Fé  Romana,  hin- 
do  meter-se  qual  soldado  valeroso  entre  os  inimigos  que  entravão  a  náo, 
só  com  a  cruz  na  mão,  insígnia  das  armas  dtí  Ghristo.  Desde  Noviço  pe- 
dia a  occasião  de  maríyrio.  Fazia  na  náo  oííicio  de  Mestre  de  noviços,  em 
virtude  e  charidade  insigne.  'i 

09  O  Irmão  Diogo  Pires  de  Nicea,  Portiiguez,  nalui'al  daVilla  dcNisa, 
Priorado  do  Ciato,  estudante  i)hil(jsopho,  atravessado  de  huma  lançada,  íoi 
lançado  ao  mar.  Este  bemaventurado  mancebo  teve  a  occasião  de  seu  di- 
toso íim,  seguintií.  Faltando  hum  dia  em  sua  classe,  mandou-o  o  Mestre  cas-» 
ligai',  recebeo  o  castigo  com  sujeição,  mas  depois  d"elle  deo  a  escusa  que 
livera  pêra  faltar  a  sua  obrigação;  dizendo,  (|iie  fora  ao  Mosteiío  de  Val- 
verde, legoa  e  meia  da  cidiide  de  Évora,  pedii-  áquelles  Religiosos  f»  ad- 
mitissem poi'  Irmão.  Senlio-se  o  Mestre  di;  não  lei'  diido  Ião  sa/il;i  escusa, 
louvou-lhe  o  inlentí»,  e  conlou-Ihc  acas(j  a  escolha  que  oulros  estudantes 


112  LIVRO  IV  DA  CHROMCA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

fizerão  de  acompanhar  o  Padre  Ignacio  de  Azevedo  pêra  Lisboa,  e  d"aíii 
feitos  Religiosos  pêra  o  Brasil.  Foi  este  o  meio  da  predestinação  do  nosso 
estudante;  bastou  tocar-se,  e  logo  assentou  em  seu  coração  caminhar  em 
busca  de  Ignacio,  e  ser  hum  de  seus  companheiros,  e  de  eíleito  foi  rece- 
bido d'elle,  e  hum  dos  mais  fervorosos  que  chegarão  a  alcançar  a  ditoiía 
palma. 

70  O  Iraião  João  de  Mayorga^  Pintor,  Castelhano,  natural  do  Reino  de 
Aragão,  de  trinta  e  cinco  annos  de  idade,  três  da  Companhia^  vivo  a(j  mar. 

71  O  limão  Gonçalo  Hemiques,  Portuguez,  natural  da  cidade  do  Por- 
to, Diácono,  ao  mar. 

72  O  Irmão  Manoel  Rodrigues,  natural  da  villa  de  Alcochete,  estudan- 
te, ao  mar. 

73  O  Innão  Manoel  Pacheco,  Portuguez,  natural  da  cidade  de  Ceita, 
ao  mar. 

74  O  limão  Estevão  Zurara,  natural  de  Biscaya,  Coadjutor,  ao  mar. 
Era  este  Irmão  Roupeiro  no  Collegio  de  Placencia,  de  grande  virtude,  e 
amado  de  todos :  seguio  de  boa  vontade  ao  Padre  Ignacio,  por  que  estan- 
do em  exercidos  espirituaes,  lhe  mostrou  o  Ceo,  que  nesta  missão  havia  de 
dar  a  vida  pela  Fé  Catholica.  Assi  o  declarou  depois  seu  Confessor,  a  quem 
ells  descobrio  a  revelação,  que  era  n'aquelle  tempo  o  Padre  Joseph  da  Cos- 
ta. Refere  este  successo  o  Padre  Sacchino,  na  ifi  parte  das  Chronicas  da 
Companhia,  liv.  O,  n.°  233;  e  Eusébio  Nieremberg  no  tomo  ii  dos  Varões 
illustres  da  Companhia,  foi.  234,  columna  2.-'',  no  principio.  Estes  quatro  Ir- 
mãos acima  iramediatos  forâo  lançados  dos  hereges  ao  mar  no  tempo  da 
briga,  não  se  sabe  se  mortos,  ou  vivos,  ou  feridos:  nem  elles  souberão 
da  morte  de  seu  pai  Ignacio,  impedidos  do  estrondo  das  armas. 

75  O  Irmão  Manoel  Alvares,  Portuguez,  natural  da  cidade  de  Évora, 
Coadjutor,  retalhado  o  rosto  a  cutiladas,  e  feitas  em  pedaços  as  canelas  das 
pernas,  e  ossos  dos  braços  com  canos  de  arcabuzes,  ainda  vivo  foi  lançado 
ao  mar.  Era  este  Irmão  pastor,  guardava  seu  gado  na  simplicidade  do  cam- 
po quando  entrou  na  Religião:  havia  quinze  annos  que  vivia  n"ella  com  bom 
exemplo:  não  sabia  as  especulações  do  espirito,  porém  sabia  a  praxe  d'el- 
le,  e  com  tanto  acerto,  que  mereceo  revelar-lhe  Deos  a  ditosa  morte  que 
havia  de  padecer  por  seu  amor.  Sahia  hum  dia  de  seu  cubículo,  a  tempo 
que  os  Religiosos  acabavão  a  hora  da  oração  mental  que  usa  a  Companhia, 
como  arrebentando  do  peito,  ora  pondo  os  olhos  no  Ceo,  ora  cruzando  os 
braços,  e  outros  semelhantes  fervores,  r^otou  acaso  hum  Padre  gravissi- 


no  EoTADO  DO   IJUASIL  (A.N.NO    DE    1570)  11  li 

mo  poi'  nome  Pedro  Liiis,  que  enllío  era  Irmão,  suas  acções;  eperguntan- 
do-llie  a  causa,  respondeo  cheio  de  alegria:  «Irmão  Pedro  Luis,  não  se  es- 
pante; porque  n'esta  hora  de  oração  (pie  tivemos,  me  mostrou  o  Senhor, 
que  hei  de  ir  pêra  o  Brasil,  e  «pie  no  caminho  hei  de  morrer  mailyr,  e 
que  me  hão  de  quebrar  os  braços,  e  as  pernas  por  seu  amor. » Antiguo  he 
communicar-se  Deos  aos  pastores:  e  esle  favor  excedeo  o  de  muitos,  do 
hum  Moysés,  de  hum  Jacob,  e  de  hum  David.  Esta  revelação  corria  como 
cousa  certissima  no  CoUegio  de  Évora,  e  se  combinou  com  o  eííeito,  com 
espanto  dos  que  a  sabião.  Podemos  comparar  este  santo  Irmão  ahumSan- 
Tiago  Interciso,  pelo  modo  com  que  foi  retalhado,  e  despedaçado  em  ros- 
to, braços,  c  pernas. 

70  O  Irmão  Simão  da  Costa,  Portuguez,  natural  da  cidade  do  Porto, 
(Coadjutor,  noviço,  de  vinte  annos  de  idade,  degolado  e  lançado  ao  mar. 

77  O  Irmão  Manoel  Fernandes,  Portuguez,  natural  da  villa  de  Celori- 
co, Bispado  da  Guarda,  estudante,  vivo  ao  mar. 

78  O  Irmão  Braz  Ribeiío,  Portuguez,  natural  de  Braga,  Coadjutor,  de 
vinte  e  quatro  annos  de  idade,  e  sete  meses  não  mais  da  Companhia,  que- 
brada a  cabeça  com  a  maçã  da  espada,  até  lhe  saltarem  os  cérebros,  log(3  es- 
pirou. 

79  O  Padre  Diogo  de  Andrade,  Portuguez,  Ministro  Sacerdi^te  de  oi- 
dens  sacras,  natural  da  villa  de  Pedrógão,  foi  o  primeiro  que  depois  da 
sentença  de  Soria,  passado  a  punhaladas,  meio  vivo  foi  lançado  ao  mar. 

80  O  Irmão  António  Soares,  Poilugucz,  natural  da  villa  de  Pedrógão, 
Soto  Ministro,  iiassado  a  punhaladas,  meio  vivo  lançado  ao  mar. 

81  O  Irmão  João  Fernandes,  Portuguez,  natural  da  cidade  de  Lisboa, 
estudante,  com  dous  annos  da  Companhia,  passado  a  punhaladas,  meio 
vivo  lançado  ao  mar. 

82  O  Irmão  Pedro  de  Fontoura,  Portuguez,  natural  da  cidade  de  Bra- 
ga, Coadjutor,  cortado  o  queixo,  e  a  língua,  lançado  vivo  ao  mar. 

83  O  Irmão  Luis  Corrêa,  Portuguez,  natural  da  cidade  d(í  Évora,  es- 
tudante, passado  a  punhaladas,  meio  vivo  lançado  ao  mar. 

8i  O  Irmão  Luis  Rodrigues,  Portuguez,  natural  da  cidade  de  Évora, 
estudante,  passado  a  jxinhalailas,  meio  vivo  lançado  ao  mar. 

Si)  O  irmão  André  Gonçalves.  Portuguez,  natural  de  Vianna,  do  Arce- 
bispado de  Évora,  estudante,  passado  a  punhaladas,  meio  vivo  lançado  ao  mar. 

80     O  Irmão  AlTonso  Bayena,  Coadjutor,  mal  ferido,  e  lançado  ao  mar. 

87  O  Irmrio  Francisco  Peres  de  Godoi,  Ca.jleliiano,  natural  de  Torri- 
voi..  n  S 


114  LWRO  IV  DA  CHRONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

jos,  Bispado  de  Salamanca,  com  muitas  feridas  lançado  vivo  ao  mar.  D'este 
santo  Irmão  escreve  o  Padre  Lu  is  da  Ponte,  na  Vida  do  Padre  Balthesar 
Alvares,  cujo  noviço  foi,  que  estudando  em  Salamanca,  se  recollieo  a  nosso 
CoUegio  a  fazer  os  exercícios  espirituaes  de  Santo  Ignacio,  e  foi  tocado  de 
Deos  pêra  deixar  o  mundo,  e  recolher-se  na  Companhia.  Era  homem  ga- 
lhardo, e  valente,  prczava-se  m.uito  de  seus  bigodes,  que  trazia  crescidos, 
e  autorizados:  por  estes  pretendeo  o  inimigo  de  nosso  bem  prendel-o,  qual 
outro  Absalam  dos  cabellos,  com  tanta  força,  que  foi  o  mór  impedimento 
que  se  lhe  oppunlia,  e  vencendo  facilmente  os  outros,  este  perseverava ; 
porque  n'aquelles  seus  cabellos  cuidava  que  consistia  o  sinal  da  generosi- 
dade do  homem.  Com  este  pensamento  lutava,  quando  com  a  mesma  ge- 
nerosidade, tornando  sobre  si,  obrou  hunia  acção  digna  de  seu  valor:  to- 
mou a  tezoura,  e  alli  mesmo  por  sua  mão  se  cortou  os  bigodes,  degolando 
juntamente  com  este  golpe  o  líolofernes  que  o  combatia :  e  d'esta  maneira 
inhabilitado  pêra  tornar  a  sua  casa,  pcdio  o  recebessem  logo :  e  com  ef- 
feito,  considerado  acto  tão  fervoroso,  foi  recebido  pelos  Superiores,  e  man- 
dado a  Medina  ao  noviciado.  Aqui  procedeo  segundo  prometia  o  fervor  do 
espirito  que  o  chamava,  fazendo  as  cousas  de  obediência  com  grande  per- 
feição. Andando  na  cozinha  esfregava  as  panelas,  tachos,  e  até  as  próprias 
sertãs  de  ferro,  com  tanta  exacção,  que  as  deixava  não  só  limpas,  mas  re- 
luzentes :  e  dizendo-lhe  o  Irmão  Cozinheiro,  pêra  que  era  cansar-se  tanto 
em  peças  que  logo  tornavão  ao  fogo,  e  a  denegrir-se?  Respondeo  o  per- 
feito noviço :  «Eu  offereço  cada  noite  á  Virgem  Senhora  nossa  todas  as 
obras  que  faço  entre  dia,  e  tenho  vergonha  de  offerecer-lhe  huma  peça  mal 
esfregada,  e  pouco  limpa.»  Oh  que  bom  exemplo  pêra  nossas  obras!  Era 
homem  de  todo  descarnado,  e  mortificado :  em  vez  de  guardanapo  branco, 
e  mimoso,  de  que  no  século  costumava  usar,  quando  comia  no  chão  no  Re- 
feitório, ou  cm  pé,  ou  de  joelhos,  como  he  costume  entre  noviços,  por 
acto  de  humildade,  e  mortificação:  levava  elle  huma  rodilha,  ou  espanador 
da  cozinha  mais  sujo,  e  com  este  alimpava,  não  só  as  mãos,  mas  a  boca, 
e  rosto,  folgando  de  parecer  desprezível  aos  olhos  dos  homens,  por  pare- 
cer fermoso  nos  de  Deos.  Na  oração  mental,  basta  dizer  que  era  aquelle 
de  quem  contámos,  que  em  Vai  de  rosal  perseverou  de  huma  vez  sette 
horas  continuas  de  joelhos  ante  o  Santíssimo  Sacramento,  só  ao  sinal  de 
huma  palavra  do  Cozinheiro,  que  interpretou  em  seu  favor. 

88    Andava  peregrinando,  e  doutrinando  em  companhia  do  Irmão  João 
de  Sá,  que  depois  foi  hum  grande  obreiro  do  Evangelho ;  vio-lhe  o  com- 


DO  ESTADO  DO  BRASH,  (A.WO    DE    lo70)  H» 

panheiro  hum  queixo  inchado,  e  cheio  tle  sangue,  porque  huina  grande 
bespa  lho  estava  picando  tempo  havia ;  e  a  não  acudir  o  Irmão,  a  deixara 
continuar ;  porque  já  de  então  hia  cosíumando-so  tão  bom  soldado  a  der- 
ramar seu  sangue  por  Christo.  Era  seu  Mestre  no  noviciado  aquellc  grande 
varão  de  espirito,  bem  conhecido  em  toda  a  Companhia,  e  fora  d'ella,  o 
santo  Padre  ÍJaltliesar  Alvares:  este  nas  praticas  que  fazia  a  seus  noviços, 
procurava  intimar-lhes  sentenças  espirituaes  com  tal  força,  que  ficavão  im- 
pressas na  alma  por  toda  a  vida:  entre  ellas foi huma esta  :  «Irmãos meus, 
não  degeneremos  dos  altos  pensamentos  de  filhos  de  Deos. »  Esta  sentença 
se  imprimio  tilo  intimamente  no  coração  do  nosso  noviço,  que  lho  veio  a 
servir  na  occasião  de  mór  aperto  que  podia  tern"esta  vida;  porque  no  meio 
d'aquella  cruel  carniçaria  dos  hereges,  a  vozes  alias  brotava  o  fervor  de 
Godoi,  animando  a  seus  Irmãos  com  ellas,  como  vimos:  «Ermanos  mios, 
no  degeneremos  de  los  altos  pensamientos.» 

89  A  occasião  com  que  foi  escolhido  pêra  esta  empresa,  he  também 
digna  de  ser  contada  entre  a»  mais  traças  divinas.  Estava  hum  dia  este 
servo  de  Deos  ao  lado  de  seu  santo  Mestre  Balthesar  Alvares,  chamou  por 
elle  pêra  lhe  mostrar  certa  cousa,  e  notou  que  pêra  liaver  de  vel-a,  foi  ne- 
cessário virar  o  Irmão  o  corpo  todo  a  huma  parte ;  d"onde  colheo  o  pru- 
dente Mestre  que  padecia  falta  de  vista  de  hum  dos  olhos,  e  vinha  a  ser 
o  esquerdo,  chamado  da  sacra :  certificou-se  d"elle,  e  não  negou,  dizendo 
que  havia  encoberto  aquelle  deleito  no  exame  primeiro  que  se  lhe  fizera, 
por  temer  que  seria  de  impedimento  pêra  ser  recebido.  Ficou  com  tanto 
sentimento  o  Mestre,  quão  grande  era  a  affeição  que  tinha  ao  noviço;  por- 
que sabia  que  os  Superiores  o  despedirião  por  aquelle  defeito  substancial 
pêra  o  Sacerdócio :  declarou-lhe  este  seu  sentimento;  e  considerando  seus 
grandes  desejos  de  perseverar  na  Companhia,  deo  em  huma  traça;  e  foi, 
que  pediria  ao  Padre  Ignacio  de  Azevedo  quizesse  leval-o  pêra  o  Brasil, 
onde  mais  se  sofria  defeito  semelhante,  e  se  recompensava  com  o  espirito 
que  sentia  de  ajudar  aquella  gentilidade,  e  outras  partes  de  boa  sciencia 
de  Direito  Canónico,  e  canto  de  órgão,  em  que  era  versado.  Tratou  com 
eíTeito  com  o  Padre  Ignacio,  informou-o  de  tudo,  e  acabou  com  elle  fosse 
admittido;  servindo-llie  aquella  falta  natural  de  occasião  de  tão  grande  glo- 
ria, e  palma.  Tudo  isto  diz  cm  sustancia  o  Padre  Luis  da  Ponte  no  cap.  20 
da  Vida  do  Padre  Balthesai-  Alvares;  e  o  traz  também  com  pouca  differença 
o  Padre  Sacchino  na  ni  parte  das  Chi*onicas  da  Companhia,  liv.  6,  desde 
o  n."  2\'í.  Eusébio  NicrcmbíTg,  [ow.  2  dos  Varões  illustres,  foi.  ií;)8.  ííe- 


110 


I.ivno  IV  DA  CUnONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 


rardo  Montano  dedica  a  este  venturoso  íiinão,  o  eiiigramma  que  se  se- 
gue. 

Liiscus  erat,  cceliique  Peres  ne  cedat  Jesu 

Verlit  cid  occiduos  lumina  Solis  Equos. 
Ecce  procul  rnedijs  surgcnlem  conspicil  undis 
Laurcolam  in  crines  fronde  virente  suos. 
Oceamimque  secai  properala  pii,ppe,  rapiíque  : 
Tam  bene  quis  liiscum  posse  videre  putat  ? 

90  O  Irmão  António  Corroa,  Portuguez,  natural  da  cidade  do  Poi'to, 
de  idade  de  quatoi'ze  annos,  noviço,  estudante,  foi  íanr-ado  vivo  ao  mar. 
Tinlia  este  Irmão  hum  natural  de  Anjo;  era  mui  dado  á  oração :  estando 
n'ella  diante  do  Santíssimo  Sacramento,  llie  i-evelou  o  Senhor  f[ue  havia  de 
ser  martyr ;  pelo  qual  favor  viveo  consoladissimo  o  tempo  que  lhe  restou 
de  vida.  Nos  exercícios  santos  de  Vai  de  rosal,  foi  dos  miis  fervorosos. 
Entre  o  rigor  dos  hereges,  queixava-se  aos  Irmãos  de  que  tardasse  sua 
hora :  chegou  porém  o  cumprimento  de  seus  grandes  desejos,  com  extraor- 
dinária consolação  de  seu  espirito. 

91  O  Irmão  Gregório  Escribano,  Ilespanhol,  natural  de  Logronho, 
Coadjutor,  ao  mar  vivo.  Este  Irmão  em  todo  o  tempo  que  os  hereges  mal- 
tratavão  os  nossos,  esteve  doente  em  cama,  sem  que  entendessem  cora 
clle :  porém  vendo  que,  dada  a  sentença  de  Jaques  Soria,  lançavãò  os  com- 
panheiros ao  mar,  se  levantou  da  cama,  e  se  veio  meter  entre  elles,  que- 
rendo morrer  animosamente  pela  mesma  causa  da  Fé  Romana. 

92  O  Irmão  Álvaro  Mendes,  Portuguez,  natural  da  cidade  de  Elvas, 
estudante,  ao  mar  vivo.  Também  este  Irmão  esteve  doente  em  cama  no 
tempo  em  que  os  hereges  executavão  suas  maldades,  e  taml)em  veio  apre- 
sentar-se  aos  tyrannos  ao  ponto  da  morte. 

93  O  Irmão  Nicoláo  Dinis,  Portuguez,  natural  da  cidade  de  Bragança, 
de  dezesete  annos,  estudante,  vivo  ao  mar.  Sendo  ainda  estudante  de  fora, 
dizia  muitas  vezes  a  seu  Mestre,  que  o  coração  lhe  adivinhava  que  havia 
de  ser  martyr.  D'esta  maneira  se  explicava :  porém  depois  de  recebido, 
teve  outra  certeza  mais  alta;  porque  estando  esperando  no  Collegio  de  Bra- 
gança recado  do  Padre  Ignacio  de  iVzevedo  pêra  a  viagem  que  tinhão  con- 
certado, entrou  na  casa  onde  fazia  seu  officio  o  Irmão  Despenseiro,  e  o 
achou  rebentando  de  prazer,  e  como  alienado  de  si  de  pura  alegria:  c  per- 
guntado pela  causa,  disse :  «que  porijue  n"aque!la  Ijoi-a  lhe  tinha  revelado 


1)0  ESTADO  DO  DUASlí,  (ANNO  DE  1^)70)  il7 

O  Senhor,  qno  dahi  a  poiico  tempo  havia  de  ser  martyr.»  Pêra  este  fim 
tão  ditoso  se  foi  depois  aperfeiçoando  em  Yal  de  rosal :  e  claro  está,  qae 
debaixo  da  promessa  de  premio  tão  grande,  nenhuma  cousa  lhe  seria  dif- 
ficultosa.  Deixou  Yal  de  rosal,  commeteo  a  viagem,  vio  o  cumprimento 
de  seus  desejos,  e  promessa;  e  virão  também  os  de  Bragança  a  certeza 
do  que  elle  lhes  disse.  Chegarão  estas  novas  áquella  cidade,  a  tempo  em 
que  n'ella  assistia  o  Bispo  de  Miranda  D.  António  Pinheiro,  o  qual  pregando 
ao  povo,  depois  de  dar  graças  ao  Senhor,  T[ue  quizera  servir-se  das  vidas 
de  tantos  servos  seus;  discorrendo  em  especial  sobre  o  Irmão  Nicoláo  Di- 
nis, diz  assi :  «O  nosso  Nicoláo  que  aqui  vistes  andar  pelas  ruas  de  Bra- 
gança, he  martyr  glorioso  de  Christo,  com  grande  coroa  de  gloria  pêra 
sempre;  e  eu  Bispo  não  sei  se  me  hei  de  salvar.»  Está  testemunhado  todo 
este  successo  com  juramento  nos  processos  authenticos,  que  se  fizerão  por 
virtude  das  Remissorias  de  Sua  Santidade,  a  fim  de  canonização  do  Padre 
Ignacio,  c  seus  companheiros. 

95-  O  Irmão  Domingos  Fernandes,  Portuguez,  natural  de  Yillaviçosa, 
Coadjutor,  com  muitas  punhaladas  ao  mar  vivo. 

9o  O  Irmão  António  Fernandes,  Portuguez,  natural  de  Montem(3r  o 
novo,  carpinteiro,  com  punhaladas  ao  mar  vivo. 

96  O  Irmão  Francisco  Alvares,  Portuguez,  natural  de  Covilhãa,  Coadju- 
tor, com  punlialadas  ao  mar  vivo. 

97  O  Irmão  João  Çafra,  Castelhano,  natural  de  Toledo,  Coadjutor,  ao' 
mar. 

98  O  Irmão  Marcos  Caldeira,  Portuguez,  ao  mar. 

99  O  Irmão  Francisco  de  Magalhães,  Portuguez,  natural  davilladeAl- 
caçar  do  sal,  estudante,  ao  mar  vivo.  Era  de  nol)re  geração;  provou  lou- 
vavelmente nos  exercícios  de  Yal  de  rosal,  com  satisfação  de  seu  Mestre 
Ignacio  :  da  mesma  maneira  na  náo  San-Tiago;  c  foi  o  que  sentio  sua  morte 
sobre  todos  os  outros  Irmãos,  abraçando-se  com  seu  corpo  morto,  e  en- 
sanguentado-se  com  elle,  até  morrer  a  exemplo  seu. 

100  O  Irmão  Simão  Lopes,  Portuguez,  natural  da  villa  de  Oui'em,  es- 
tudante, ao  mar  vivo. 

101  O  Irmão  Aleixo  Delgado,  Portuguez,  natural  da  cidade  di;  Elvas, 
de  idad(;  de  ({uatorze  annos,  estudante,  pisado  a  pancadas,  até  lançar  san- 
gue por  narizes  e  boca,  ao  mai-  vivo. 

102  O  irmão  Pedro  Ninies,  Portuguez,  natural  da  villa  <le  Fi'Oiiteira, 
bispado  de  Elvas,  estudante,  nial  ferido,  ao  mai'  vivo. 


118 


LIVHO  IV  DA  CIIROMCA    DA  COMPANHIA  DE  JESU 


103  O  Irmão  Fornão  Sanches,  Castelhano,  estudante,  mal  ferido,  ao 
mar  vivo. 

104  O  Irmão  João  de  S.  Martim,  Castelhano,  natural  de  Juncos  de  To- 
ledo, estudante,  mal  ferido,  ao  mar  vivo. 

105  O  Irmão  Gaspar  Alvares,  Portuguez,  natural  da  cidade  do  Porto, 
Coadjutor,  ao  mar  vivo. 

106  O  Irmão  Amaro  Yaz,  Portuguez,  natural  da  cidade  do  Porto,  Coad- 
jutor, ao  mar  vivo.  • 

107  O  Irmão  João  Adauto,  sobrinho  do  Capitão  da  náo,  aceitando  a 
morte  como  Irmão  da  Companhia,  ao  mar  vivo. 

108  He  de  notar  n'esta  historia,  as  muitas  vezes  que  Deos  nosso  Se- 
nhor revelou  a  diversos  servos  seus  o  successo  que  havião  de  ter :  que 
parece  andava  ensaiando  por  varias  partes  do  mundo  as  figuras  que  havião 
de  representar  n'esta  tragedia  sua,  e  o  que  n'ella  havião  de  dizer.  Digno 
he  de  advertência ;  porém  não  de  espanto  aos  que  sabem,  que  são  estes 
mui  usados  meios  de  Deos  era  obras  suas  grandes :  porque  como  seria  pos- 
sível ajuntar  em  hum  theatro  glorioso  ao  mundo,  anjos,  e  homens,  qua- 
renta figuras  tão  conformes  em  obrar,  e  dizer,  em  hum  acto  de  represen- 
tação tão  sentida,  e  tão  repugnante  á  humana  natureza,  sem  discrepância 
alguma  em  acção,  gesto,  palavra,  ou  meneio;  se  não  estiverão  fatiados  no 
espirito,  que  costuma  illustrar  e  unir  os  corações  dos  homens?  Este  espi- 
rito foi  o  que  ensaiou  tanto  d'antes  por  palavras  expressas  hum  Padre 
Ignacio,  hum  Irmão  Estevão  Zurara,  hum  Irmão  Manoel  Alvares,  hum  Ir- 
mão António  Corrêa,  hum  Irmão  Nicolúo  Dinis,  e  os  demais  companheiros, 
senão  expressa,  tacitamente  por  sentimentos  de  coração  interiores,  onde 
não  pôde  haver  erro.  Aquella  efficacia,  e  uniformidade  com  que  obravão, 
e  fallavão  em  morrer  por  Deos,  em  derramar  sangue  pela  fé,  em  Vai  de 
rosal,  na  viagem,  na  ilha  da  Madeira,  em  Terça  corte,  e  com  mais  força 
quando  mais  juntos  á  occasíão,  como  se  com  os  olhos  virão  o  cutelo,  e  o 
tyranno  já  diante  de  si,  d'onde  lhe  veio  a  estes  soldados?  Que  espirito 
podia  infundir-lha,  senão  aquelle  que  ensina  as  mãos  dos  seus  á  guerra,  e 
dá  o  esforço  que  necessitão  pêra  a  victoria?  Tudo  a  fim  de  nos  mostrar 
que  he  particulai'  obra  sua,  dirigida  a  fins  grandes,  que  os  homens  sabem 
ouvir,  e  ver,  mas  não  entender. 

109  Pela  mesma  razão,  não  ha  que  espantar  traçasse  o  Senhor  tantos 
outros  prodígios  n"esta  mesma  historia:  que  morra  raivando  o  tyranno  Ja- 
ques  Soria  :  que  ceguem  quarenta  dos  mais  cruéis  algozes :  que  se  conver- 


DO  KSTADO  DO  BRASIL  (ANNO  DE    ^"íTO)  1  iO 

Ião  alguns  (l'ellos :  e  que  mostre  no  mesmo  tempo  a  seus  escolhidos  em 
alegre  vista  o  illustre  triumpho,  com  que  entrou  no  Ceo  aquelle  feliz  es- 
quadrão :  são  traças  da  divina  Providencia,  mui  ordinárias  em  cousas  suas 
grandes !  De  que  outra  maneira  se  havia  de  mover  hum  Pontífice  a  for- 
mar processos  jurídicos,  a  fim  de  declarar  aquella  batalha,  e  sua  victoria, 
como  empresa  do  Espirito  santo,  e  seus  soldados  como  vencedores  do  Rei  ■ 
da  Gloria, "senão  levado  de  tão  forçosos,  e  efTic^zes  argumentos?  No  caso 
presente  não  só  estão  formados  estes  processos,  jurados,  e  authenticos  por 
ordem  dos  Summos  Pontifices,  mas  já  em  vesporas  (como  de  sua  clemên- 
cia paternal  esperamos)  de  declararem  ao  mundo  o  premio  merecido  dos 
que  tão  bem  correrão,  e  pelejarão. 

110  São  tão  cfUcazes  os  argumentos  d'esíes  processos,  que  já  antes 
d'esta  declaração,  que  só  pertence  ao  Summo  Pontífice  na  terra,  tem  o 
mundo  dado  a  estes  esforçados  varões  o  titulo  de  martyres;  não  porque 
queirão  com  elle  canonizal-os,  mas  porque  entendem  que  he  tão  justa  a 
causa,  que  se  atrevem  as  gentes  a  pronosticar  a  sentença. 

Hl  Assi  os  intitulão  a  cada  passo  os  autores  nos  livros  que  imprimem, 
o  Padre  Luís  de  Gusmão,  o  Padre  Frei  Luis  de  Sousa  na  Vida  do  Arcebispo 
Frei  Bertholameu  dos  Martyres,  o  Padre  Orlandino,  Historia  da  Companhia 
de  Jesu,  o  Padre  Gordon  in  Chronol.,  o  Arcebispo  D.  Rodrigo  da  Cunha, 
o  Padre  Luis  da  Ponte,  António  Blosio  de  Signis  EcclesiíT,-  o  Padre  Pedro 
de  Ribadeneira,  o  Padre  Frei  Pedro  Calvo,  o  Padre  António  deVasconcel- 
los,  o  Padre  Maffeo  ha  sua  Historia  da  índia,  oPadrcRichardoVersagano, 
e  outros  muitos  a  cada  passo.  E  tu,  oh  Companhia  de  Jesu  do  Brasil,  com 
razão  podes  prezar-te  de  tão  insignes  filhos,  com  cujos  nobres  procedi- 
mentos te  honraste,  c  com  cujo  sangue  cresceste.  Se  á  vista  de  seu  san- 
gue, dizem  os  autores  naturaes,  toma  novos  brios  o  generoso  elephante:  á 
vista  de  tanto  sangue  seu,  de  filhos  seus,  e  quasi  veas  suas,  como  não 
açommctei'á  generosa  a  Companhia  do  Brasil  em  occasiõcs  de  padecer?  Fi- 
zeiãj-no  já,  a  exemplo  destes  quarenta,  os  Correas,  os  Sonsas,  os  Pintos, 
os  Bellavias;  e  fal-o-hão,  pondo  os  olhos  n"este  sangue,  os  demais  Irmãos 
seus,  que  esperão  no  Ceo  não  faltará  n'clles  o  mesmo  esforço,  se  não  fal- 
tar a  mesma  occasião. 

112  Tornando  agora  ás  náos  do  Governador  D.  Luis  de  Vasconcellos, 
de  cuja  frota  nos  apartámos  com  a  náo  San-Tiago,  diremos  o  successo  que 
tiverão,  tocante  ao  presente  anno  de  1570  em  que  estamos,  deixando  o  mais 
pêra  o  seguinte;  que  na  verdade  não  cabe  cm  tão  breve  discurso  de  hum 


\^0  LI\T,0  IV  DA  CIIRONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

SÓ  anno,  historia  de  tragedias  tão  grandes.  Saljidas  novas  da  ilha  da  Ma- 
deira do  successo  da  morte  gloriosa  dos  quarenta  soldados  de  Christo;  os 
Padres  Pedro  Dias,  Francisco  de  Castro,  e  mais  companheiros  qnc  alli  fi- 
carão, entrando  em  inveja  santa  de  semelhante  sor^e,  em  lugar  de  chorar 
o  pai,  e  irmãos,  choravão-se  a  si  mesmos;  chamavão-se  pouco  venturosos, 
porque  ficarão ;  e  não  sabião  já  o  dia  em  que  partissem,  pêra  ir  buscar 
por  esses  mares  em  segunda  instancia  a  boa  dita  que  na  primeira  lhes  fal- 
tara. Mas  oh  incomprehensiveis  juizes  do  Senhor !  Quem  não  cuidara,  que 
por  apartar^se  das  mais  a  náo  San-Tiago,  dera  em  mãos  de  inimigos,  e  quo 
por  esperarem  as  companheiras  ficarão  salvas?  Porém  não  foi  assi,  senão 
que  i)or  aquella  se  apartar  alcançou  mais  brevemente  a  coroa,  que  com 
mais  dilatados  rodeos,  estas  que  esperarão,  hão  de  vir  a  alcançar  depois 
açoutadas  dos  mares  por  quatorze  mezcs  inteiros  de  infortúnios,  tormen- 
tas, e  doenças. 

113  Chegado  o  tempo,  em  que,  a  parecer  dos  homens  domar,  serião 
favoráveis  os  ventos,  dando-lhe  as  velas,  sahio  ao  mar  a  dilatada  frota:  fez 
sua  derrota  pelo  golfão  Atlântico,  endereçada  á  ilha  que  chamão  do  Cabo- 
verde.  Nesta  terra,  por  causa  dos  ares  inclementes  aos  que  de  novo  aper- 
tão, hião  contraindo  doenças  todos  os  navios,  de  maneira,  que  houverão 
por  melhor  fugir  d"ella,  quaes  terras,  e  praias  avaras.  Porém  não  ha  fugir 
a  destinos  do  Ceo :  queria  este  que  padecesse  aquella  frota,  e  que  só  no 
porto  da  Gloria  tivesse  descanso  grande  parte  dos  que  n"ella  navegavão : 
porque  no  ponto  que  começarão  a  tomar  a  volta  de  Guiné,  lugar  de  calma- 
rias, e  chuveiros  de  agoas  pouco  sãs,  o  mal,  que  vinha  apoderado  de  mui- 
tos, tomou  maiores  forças,  e  ficarão  em  breve  tantos  navios,  como  liospi- 
taes  de  enfermos  sobre  aquelíes  mares.  líião  os  nossos  Religiosos  divididos 
em  duas  nãos :  o  Padre  Pedro  Dias  com  parte  dos  Irmãos  em  huma  d'el- 
las,  e  o  Padre  Francisco  de  Castro  com  outra  parte  na  capitania,  com  a 
mesma  ordem  em  tudo,  que  trazião  os  da  náo  San-Tiago.  Tiverão  aqui  bem 
cm  que  empregar  seus  desejos;  porque  ellcs  erão  os  enfermeiros,  elles  os 
médicos,  e  surgiões  de  todos,  acudindo  com  igual  charidade  a  corpos,  e 
almqs;  porque  a  huns  chegava  a  contagião  ás  portas  da  morte,  a  outros  des- 
pojava da  vida ;  e  huns  e  outros  necessitavão  de  amparo,  e  vigilância  de 
todo  o  dia,  e  toda  a  noite. 

1 1  \  Passado  o  rigor  da  costa  de  Guiné,  não  passou  o  dos  ventos,  que 
parecião  conjurar-se  contra  os  pobres  navegantes,  padecerão  desfeitas  tem- 
pestades, e  apesar  de  agoas,  e  ventos,  depois  de  tempo  largo,  chegarão  a 


DO  ESTADO  DO  DRASIL  (ANNO  DE  V>10)  121 

avistar  terra  do  Drasi!:.  mas  foi  porá  dultrada  magoa;  porque  quando  to- 
mava algum  alento  a  perseguida  frota,  e  queria  ir  pondo  em  esquecimento 
os  tral>allios  passados,  á  vista  do  descanso  imaginado :  ex  que  de  novo  so 
vô  coml)atida  de  terríveis  brizas,  e  corrente  de  mares,  cora  que  por  mais 
que  preparou  em  liuma  c  outra  volta,  não  foi  possivel  não  só  passar  o 
Cabo  de  Santo  Agostinho,  ou  tomar  terra  sua,  mas  nem  ainda  aguardar 
junto  a  ella;  senão  que  foi  forca  seguir  a  dos  ventos,  e  agoas,  correndo  a 
costa  até  parar  na  Nova  Hespanha :  o  Padre  Francisco  de  Castro,  que  na 
Madeira  se  embarcara  com  os  seus  na  não  capitania  do  Governador  D.  Luis, 
foi  aportar  á  ilha  de  S.  Domingos:  o  Padre  Pedro  Dias,  que  liia  em  outra 
náo,  á  ilha  de  Cuba,  destroçados,  doentes,  e  quasi  sem  alento.  Nos  quaes 
lugares,  porque  hão  de  invernar,  e  concertar  as  nãos,  e  se  acaba  junta- 
mente o  anno  com  a  viagem,  os  deixaremos  até  principio  do  seguinte,  por 
tornar  á  Província,  que  magoada  está  chorando  a  perda  de  tantos,  c  tão 
grandes  obreiros;  se  bem  contente  por  outra  via,  com  a  sorte  ditosa  de  tão 
honrados  filhos. 

113  Sobre  golpes  tão  grandes,  outro  cruel  e  deshumano  está  a  ponto 
de  descarregar  com  rigor.  Aquelle  lustre  da  Comi)anliia  do  Brasil,  alivio 
de  cansados,  e  amparo  de  aílligidos,  o  venerável  Padre  Manoel  de  Nóbre- 
ga, consumido  de  enfermidades  e  trabalhos  no  seu  Collegio  do  Rio  de  Ja- 
neiro, sentia  ir-se  arruinando  a  estatua  terrena  de  sua  frágil  carne:  despe- 
dia-se  de  seus  filhos  ausentes  por  cartas,  e  dizia  nellas,  que  desejava  des- 
atar-se  de  tão  i)enoso  cárcere,  e  que  esperava  ver-se  com  Deos  dentro  em 
breves  dias :  que  não  se  esquecessem  diante  da  divina  Magestade  d'aquelle, 
que  com  titulo  do  pai  n'esta  Província  os  amara.  Julgou-se  por  cousa  ave- 
riguada, que  tivera  conhecimento  de  Deos  do  dia  certo  de  sua  morte;  como 
se  deixou  ver  do  effeito.  Gastava  os  dias  e  as  noites  em  suspiros  e  lagri- 
mas, batendo  ás  portas  do  Ceo,  tanto  com  mór  fervor,  quanto  via  ajtres- 
sar-se  o  tempo  de  sua  liberdade.  Trazia  de  continuo  na  memoiia  as  Medi- 
tações de  Santo  Agostinho,  e  abrazava-se  em  pi-ofimdo  amor  da  celeste 
pátria,  dando  ultimo  vale  a  tudo  o  que  era  criatura.  N*esta  f()rma  hia  che- 
gando-se  á  terra  aquelle  aiitiguo  edilicio,  c  hia  Nóbrega  contando  os  dias, 
como  aquelle  que  sabia  o  numero :  até  que  chegada  a  antevespora  do  que 
havia  de  ser  o  derradeiro  tão  desejado,  sahio  a  despedir-se  pela  cidade,  de  casa ' 
em  casa,  abraçando  os  amigos,  agradocendo-llies  suas  boas  correspondências, 
dizendo  se  íii-;issom  eniboin,  c  o  onconiniciíbisscm  n  Doo-;.  K  rHT-.nmlado 


i22  LIVRO  IV  DA  CHRONICA.  DA  COMPANHIA  DK  JESU 

pêra  onde  partia?  (porque  não  vião  que  iiouvcsse  embarcação  pêra  fora) 
respondia  com  os  olhos  no  Ceo:  «Á  nossa  pátria,  á  nossa  pátria.» 

116  O  seguinte  dia  vespora  do  ultimo  da  vida,  disse  missa,  e  com- 
raungou  n'ella  por  viatico.  Acabado  o  jantar,  achou-se  presente  na  confe- 
rencia ordinária  daCommunidade,  faltando  com  intimo  sentimento  das  cousas 
das  moradas  eternas.  Sobre  a  tarde  lhe  sobreveio  huma  dòr  iutensa,  re- 
conciliou-se,  e  lanoou-se  em  cama  pêra  morrer.  Aqui  era  muito  de  notar 
a  ardente  fragoa  d"aquelle  devoto  peito,  o  como  então  scintilava  em  amor 
divino,  invocando  toda  a  corte  celestiah  as  três  Pessoas  da  Santíssima  Trin- 
dade, a  santa  Humanidade  de  Ghristo,  por  varias  maneiras  de  suas  deva- 
ções,  a  Virgem  Senhora  nossa,  a  quem  amava  ternamente,  e  entre  os  mai  s 
Santos  da  Gloria,  o  invicto  Martyr  S.  Sebastião,  em  cujo  padroado  morria; 
com  tal  copia  de  lagrimas,  de  que  sempre  teve  dom  particular,  que  enter- 
necia os  corações  mais  duros.  Chamou  os  Padres,  e  Irmãos  presentes, 
abraçou-se  com  elles,  e  lançou-lhes  a  benção,  dizendo:  «que folgara  muito 
de  ver  n'aquella  hora  os  outros  que  estavão  ausentes;  mas  que  lá  os  veria 
do  Ceo,  d'onde  era  chamado  pêra  o  dia  seguinte  de  S.  Lucas.»  Amanhe- 
ceo  o  dia  desejado,  pedio  a  hum  dos  Padres  que  fosse  apressa  dizer  missa 
por  elle,  antes  que  espirasse,  e  com  a  mesma  brevidade  pedio  o  sacramento 
da  sagrada  unção,  cujos  passos  foi  acompanhando  com  oraç(5es  devotíssi- 
mas, que  provocavão  a  lagrimas  os  presentes :  e  acabado  o  acto  da  unção, 
e  o  da  Ladainha  dos  Santos,  a  que  sempre  respondeo  pontualmente,  disse 
estas  palavras :  «Louvado  sejaes  meu  Senhor,  fortaleza  minha,  refugio  meu, 
e  meu  libertador,  que  tendes  por  bem  leva r-me  n'este  dia,  e  em  vossa  santa 
Casa  da  Companhia  de  Jesu.»  Ditas  estas  palavras,  pondo  os  olhos  nas  Ima- 
gens santas,  com  admirável  paz,  e  socego  deo  a  alma  ao  Senhor,  que  a  ti- 
nha criado,  no"anno  de  1570,  em  18  de  Outubro,  consagrado  ao  Evange- 
lista S.  Lucas,  dia  pêra  elle  de  conta,  porqueno  mesmo  nascera  ao  mundo, 
entrando  n"esta  vida;  e  nascera  também  a  Deos,  entrando  em  sua  Compa- 
nhia; de  idade  de  cincoenta  e  três  annos,  vinte  e  oito  de  Religião,  no  Col- 
legio  do  Rio  de  Janeiro.  Foi  sepultado  na  Igreja  d'elle,  com  solemnes  exé- 
quias, lagrimas,  e  saudades,  não  só  dos  Filhos  e  Irmãos,  mas  de  grande 
concurso  do  povo  que  concorreo  a  seu  enterro.  Estão  seus  ossos  esperando 
a  ultima  resurreição  da  carne;  e  sua  alma,  como  cremos,  está  gozando  da 
eternidade  na  pátria  dos  viventes. 

■117    A  vida  d'este  servo  do  Senhor  foi  merecedora  de  sua  feliz  morte, 
ç  toda  digna  de  mui  dilatada  historia,  pêra  exemplo  dos  que  trabalhão  n'est a 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (XSSO  DE   1570)  123 

Província,  mothodo  do  porfuilos  Religiosos,  e  cdiru\a(;ão  de  seculares:  po- 
rém não  sofre  o  estylo  que  levo  a  exacção  com  que  devia  escrever-se :  a 
seu  tempo  se  lhe  dará  livro  particular :  por  entretanto  reduziremos  a  com- 
pendio breve  suas  largas  virtudes.  Foi  fdho  do  pais  nobres,  criado  em  toda 
a  perfeição  christãa :  versou  os  estudos  das  Universidades  de  Coimbra,  e 
Salamanca,  cora  os  augmentos  que  no  principio  d'esta  obra  temos  referido. 
Deo  vale  ao  mundo,  depois  de  experimentar  sua  pouca  firmeza,  e  a  occa- 
sião  com  que  pretendeo  afrontal-o,  iiegando-lhe  o  premio  da  Coílegiatura 
a  que  se  oppuzera,  e  merecia  por  suas  letras,  segundo  opinião  dos  melho- 
res Lelrades :  meio  ordinário,  que  o  Ceo  costuma  tomai'  na  conversão  de 
homens  importantes,  que  experimentem  primeiro  o  fel  do  mundo,  porque 
depois  saibão  aborrecer  seu  leite  enganoso.  Entrou  na  Companhia  iia  flor  da 
idade  de  vinte *e  cinco  annos,  já  Sacerdote  de  ordens  sacras,  e  Bacharel  formado 
cm  Cânones,  na  era  do  Senhor  de  15  ii,  em  o  CoUegio  da  cidadede  Coimbra. 

118  O  venerável  Padre  Joseph  de  Anchieta,  companheiro  seu  tão  fa- 
miliar, em  seus  apontamentos,  tratando  das  virtudes  deste  servo  de  Deos, 
diz  estas  palavras:»  A  vida  do  P.  Manoel  da  Nóbrega  foi  insigne,  e  tanto 
mais,  quanto  menos  conhecida  dos  homens ;  os  quaes  elle  amava  intima- 
mente, desiíjando  e  procurando  a  salvação  de  todos  pêra  gloria  de  Deos, 
que  cheio  de  seu  amor  sobre  tudo,  tinha  diante  dos  olhos ;  pêra  dilatação 
da  qual,  e  conhecimento-  de  seu  santo  nome,  todo  o  Brasil  lhe  parecia  pou- 
co.» Çomprehende  o  venerável  Padre  nestas  poucas  palavras  em  summa  (se- 
gundo seu  costume)  as  duas  príncipaes  virtudes  do  amor  de  Deos,  e  do 
próximo:  porém  he  necessário  que  expliquemos  nós  estes  dous  amores 
(porque  nem  todos  têm  a  comprehensão  de  Joseph.)  Nas  palavras  «cheio 
de  seu  amor  sobre  tudo,»  comprehendia  elle  os  mais  finos  gráos  de  amor. 
D"cstes  diremos,  e  depois  do  amor  do  próximo.  - 

119  líum  dos  indícios  do  amor  de  Deos,  he  quando  hum  coração  se 
sente  como  ferido  da  sela  do  divino  arco  de  tal  maneira,  que  se  acccnde 
em  labaredas  amorosas  em  todas  as  cousas  de  honra  e  gloria  de  seu  ama- 
do. Assi  o  sent!.'  Santo  Agostinho.  Quem  considerar  com  attenção  a  vida  does- 
te servo  de  Deos  desde  sua  entrada  na  Companhia  até  dar  o  espirito  a  seu 
Criador,  conhecerá  que  trazia  em  seu  coração  esta  como  ferida  incurável 
da  seta  do  amor  divino ;  e  que  esta  o  accendia  em  vivo  fogo  de  servir  a 
Deos,  e  em  vivo  zelo  de  augmentar,  procurar,  defender  sua  honra,  o  glo- 
ria. Esta  o  constrangia  a  sahir  por  esses  campos,  villas,  cidades  de  Por- 
tugal, e  fora  d'elle,  gritando  aos  homens,  como  íiavião  de  amar  e  honrar 


■lál  LIVRO  IV  DA  nimoNin.v  da  companhia  de  jesu 

a  seu  Deos.  A  este  fim  liravão  Ião  continuas  missões,  tão  contínuos  fer- 
vores, tão  contínuos  zelos :  não  reparando  em  trabalhos,  fomes,  prisões, 
afrontas,  e  chegar  a  ser  tido  por  doudo,  á  conta  de  poder  atear  este  amo- 
roso incêndio  nos  corações  dos  homens. 

120  Outro  grande  indicio  d"este  amor  divino  constituem  os  Santos  no 
continuo  fervor  de  fallar  de  Deos ;  porque  he  certo,  que  a  boca  falia  do 
coração.  Que  maior  e  mais  continuo  fervor  de  fallar  de  Deos,  qne  o  que 
vimos  n"este  \arão?  Era  bem  conhecido  em  todo  o  Portugal  seu  ardente 
zelo:  era  chamado  o  fervoroso  Gago,  quando  ainda  estava  em  seus  princí- 
pi)s;  e  cresceo  muito  este  fogo  entre  os  tições  do  Brasil:  parece  sabia  de 
si  com  fervor,  e  ({ue  vomitava  chammas  de  zelo:  toda  sua  historia  está  cheia 
de  passos  semelhantes. 

121  Santo  Agostinho  no  capitulo  36  de  suas  Meditações,  chama  ás  la- 
grimas evidente  signal  do  amor  divino:  «Da-me  Senhor  (diz  elle)  o  evidente 
signal  do  teu  amor,  que  continuamente  de  meus  olhos  como  de  duas  fon- 
tes saião  rios  de  lagrimas,  etc.»  Estas  são  as  testemunhas  mais  abonadas 
do  amor:  d"estas  colligião  Phariseos  ode  Christo  pêra  com  Lazaro:  «Ecre 
quomodo  «máftáí  eum.»  São  lingoas,  que  callando  fallão,  e  pregoão  o  quan- 
to nosso  coração  está  cheio  d'esta  doçura,  que  chega  a  derretel-o  em 
agoas.  Este  concedeo  o  Senhor  a  seu  servo  Nóbrega:  seus  olhos  andavão 
commummente  feitos  duas  fontes  de  lagrimas,  acompanhadas  de  suspiros. 
lie  testemunha  d"esta  verdade  seu  fiel  companheiro  Joseph  em  muitas  par- 
tes de  seus  Apontamentos.  E  por  esta  razão  trazia  Nóbrega  as  cousas  d"es- 
ta  vida  desterradas  do  coração,  com  hum  como  fastio  de  todas  ellas:  ne- 
nhuma queria  possuir,  que  Deos  não  fosse,  ou  em  ordem  a  elle. 

122  O  amor  do  próximo  he  outro  eíTicacissimo  indicio,  e  como  irmão 
inseparável  do  amor  de  Deos;  e  este  foi  insigne  em  Nóbrega.  Quando  ain- 
da era  moderno  na  Companhia,  foi  escolhido  pelos  Superiores  pêra  pai 
do  próximo :  e  foi  com  tão  grande  eífeito,  qual  temos  visto  no  principio 
desta  historia.  Muitos  annos  depois  andou  era  provérbio,  especialmente 
em  Coimbra,  seu  ardente  zelo.  Fazia  de  conta,  que  n'aquelle  oíTicio  se  lhe 
entregavão  as  necessidades  de  todos  os  homens,  das  cadeas,  dos  hospi- 
taes,  dos  pobres,  das  viuvas,  dos  órfãos:  todos  trazia  como  a  rol  em  seu 
coração,  com  todos  se  compadecia,  e  por  todos  suava  igualmente.  Que  ca- 
bedal não  meteo  na  conversão  daquelle  famoso  salteador  desesperado  de 
sua  salvação?  Depois  de  esgotadas  todas  as  suas  traças  não  sahio  com  o 
mais  tino  do  amor  do  próximo?  «irmão  meu  (lhe  disse)  eu  tomo  sobre 


DO  1:STAD0  DO  HUASIL  (.VNNO  DE    1570)  1-25 

mim  lodos  vossos  peccados;  eu  darei  delles  conta  a  Deos,  e  pagarei  por 
vós.»  Que  mais  fazia  hum  S.  Paulo,  quando  dizia:  ^Ojitabam  anathenia  esse 
pro  fratribus  méis?»  Não  foi  este  o  maior  effeito  do  amor  de  hum  Deos  hu- 
manado, tomar  sobre  si  os  peccados  dos  liomens:  ((Qui  peccata  nosfra  ipse 
portavil?»  Que  não  zelou  sobre  a  melhoria  da  outra  mulher  desesperada, 
que  protestava  que  Beelzebub  criara  o  Ceo  e  a  terra,  o  mar,  e  as  áreas,  e 
que  a  elle  se  entregava?  Vejão-se  os  casos  do  livro  primeiro  d'esta  histo- 
ria, e  vejão-se  os  de  toda  a  serie  de  annos  que  vivco  no  Brasil,  e  verão 
grande  numero  de  actos  semelhantes,  que  eu  não  posso  agora  repetir. 

123  Quem  pozer  diante  dos  olhos  este  varão  a  pé,  com  hum  bordão 
na  mão,  e  o  Breviário  pendurado  do  braço,  correndo  os  lugares,  villas,  ci- 
dades, e  ainda  os  Reinos  de  Portugal,  Castella,  Galliza,  e  Mundo  novo  :  jul- 
gará que  vê  hum  Apostolo  S.  Paulo  abrazado  em  zelo  da  conversão  dos 
homens.  Não  houve  anciã  de  caçador,  que  assi  atravessasse  montes,  e  val- 
les  por  alcançar  a  presa;  nem  avarento,  que  assi  cavasse  a  terra  por  achar 
thesouros;  ou  sequioso,  que  assi  buscasse  os  rios  pêra  fartar  a  sede:  como 
a  anciã,  cubica,  e  sede,  com  que  o  nosso  servo  de  Deos  atravessava  mon- 
tes, valles,  rios,  mares,  reinos  inteiros,  por  ganhar  almas.  Todos  esses 
lugares,  villas,  cidades,  reinos,  e  todo  o  Novo  mundo  Brasilico  (como  d'elle 
disse  Joseph)  era  pouco  pêra  seu  ardente  amor.  Por  grande  indicio  de 
amor  se  reputarão  os  trabalhos  que  padeceo  Jacob  por  Racchel,  cifrados 
em  sette  annos  somente:  por  todo  o  tempo  de  sua  religiosa  vida  trabalhou 
Nóbrega  pelo  amor  dos  homens  hjdos.  Passou  calmas,  frios,  fomes,  sedes, 
cansaços :  foi  afrontado  dos  jogadores,  maltratado  dos  caminhantes,  morto 
de  fome  dos  Gallegos,  ameaçado  dos  Castelhanos,  e  preso  dos  vadios. 

I2i  Que  de  trabalhos  não  sopportou  por  livrar  d(j  poder  tyrannico  de 
hum  diabo  incubo  a  pobre  alma  daquella  mulher,  com  quem  havia  tantos 
annos  fazia  vida  como  mai'ital,  até  desapossal-o  da  presa  ?  Que  de  suores 
lhe  não  custou  a  outra  alma,  que  estando  da  mão  de  Satanaz  por  nmitos 
annos  possuída,  a  tornou  a  reconciliar  com  Deos  e  Senhor  verdadeiro,  to- 
mando sobre  si  os  acommecimento :  d"aquelle  péssimo  espirito,  desallan- 
do-o  só  por  só;  o  qual  não  se  atrevendo  ao  desaíio,  tomou  por  partido 
desamparar  a  casa  cpie  injustamento  possuía. 

\T.'i  Pelos  seus  Brasis  em  i)arlicular,  qne  de  trabalhos  não  ])adeceo? 
Que  agoas.  que  rios,  que  mares  não  passou?  Qik.'  seilões,  que  seri'as,  que 
])r('nhas  não  atravessou,  p(jr  salvar  suas  almas?  P(jdta  fazer  com  S.  Paulo 
li  uma  perfeita  ladainha  de  seus  trabalhos,  cansaços,  fomes,  sedes,  calmas, 


126  LIVRO  IV  DA  CnnOMCA  BA   COMPANHIA  DE  JESU 

frios,  ingratidões,  máos  tratamentos,  afrontas,  treições,  e  perigos  da  vida. 
Bastava  pêra  prova  de  tudo,  o  exemplo  d"aquella  sua  gloriosa  missão,  nunca 
assas  louvada,  quando  só  com  seu  companheiro  Josepli  se  foi  meter  entre  os 
bárbaros,  actualmente  inimigos,  postos  em  armas,  queixosos,  e  irritados  das 
injustiças,  e  aggravos  dos  Portugueses.  Que  não  padecerão?  Que  transes 
não  passarão?  Que  de  vezes  não  sentirão  o  arco  armado,  e  a  maça  do  bra- 
ço fero  sobre  sua  cabeça?  Que  de  vezos  não  esteve  a  ponto  de  ser  sacrifi- 
cado Nóbrega  aos  dentes  e  gula  daquelia  gente  barbara,  por  estranhar-lhes 
o  abuso  da  carne  bumana,  de  feitiçarias,  de  ódios,  de  vinhos,  de  multidão 
de  mulheres,  e  outros  sem.eihantes  erros  de  sua  Gentilidade?  Se  vem  a  ser 
o  mór  sinal  do  amor  do  próximo  pôr  a  vida  por  elle :  quem  tantas  vezes 
a  poz,  como  Nóbrega,  que  quilates  de  amor  não  teria? 

126  Havia  entre  os  índios  contrários  muitos  filhos,  e  filhas  de  Portu- 
gueses, que  alli  hião  dar,  por  causa  da  guerra,  e  outros  successos :  lasti- 
mava o  coração  de  Nóbrega,  o  ver  que  estivessem  perdidos  entre  infiéis : 
buscava  traças  pêra  seus  resgates,  e  livrava-os  dos  dentes  e  lascivia  dos 
bárbaros:  os  de  maior  idade  punha  em  estado  de  matrimonio,  com  esmolas 
que  pêra  isso  buscava:  os  menores  accomodava  em  casas  virtuosas,  ou  em 
Seminários,  onde  aprendessem  a  doutrina  christãa.  Com  os  enfermos  cam- 
peava com  especial  charidade:  visitava-os,  e  soccorria-os  com  tanto  amor  e 
affecto,  quanto  mais  erão  desamparados,  e  desprezíveis :  tinha  por  gloria 
assistir-lhes  a  todas  suas  necessidades.  Yierão  alta  noite  á  nossa  portaria 
em  busca  de  hum  confessor  a  toda  a  pressa,  pêra  hum  homem  que  es- 
tava morrendo,  e  já  sem  falia,  atravessado  de  estocadas :  não  quiz  perder 
a  occasião,  foi  eile  mesmo  acudir-lhe,  apesar  de  seus  muitos  achaques ; 
chegou,  achou  que  erão  as  feridas  penetrantes,  e  lhe  tinhão  roto  as  tripas: 
tomou  resolução  eíBcaz,  mandou  que  lh'as  cozessem,  e  no  mesmo  ponto 
em  que  começarão  a  coser,  começou  o  ferido  a  fallar:  tomou  juramento  de 
segredo  ao  surgião,  e  ajudante,  necessários  instrumentos  da  cura,  e  no  mes- 
mo tempo  diante  d'elles  o  confessou:  e  foi  tudo  hum,  ficar  o  homem  cura- 
do na  alma,  e  corpo,  e  juntamente  com  a  vida  não  sem  espanto  dos  que 
o  vião.  Celebra  o  caso  Joseph;  não  sei  se  só  pela  boa  fortuna  do  successo, 
se  porque  o  julgou  mais  que  humano. 

127  Teve  noticia  que  na  villa  de  Santos  fallecera  hum  morador  rico  mui 
conhecido,  mas  pouco  devoto  da  Companhia  por  menos  arrendado  em  sua 
consciência:  na  manhãa  seguinte  celebrou  Nóbrega  na  Igreja  do  Collegio  de 
S.  Vicente  hum  solemne  Officio  de  nove  lições  por  sua  alma  còm  demons- 


1)0  ESTADO  DO  DRASIL  (ANNO  DL   io70)  127 

trações  de  amor,  c  sentimento.  Assistirão  a  elle  algumas  pessoas,  as  quaes 
indo  depois  á  villa  de  Santos,  acharão  que  o  homem  estava  vivo,  c  que  fo- 
ra errada  a  noticia  da  morte,  equivocada  com  outro  morador:  referirão  ao 
reputado  defunto  o  que  Nóbrega  tinha  feito  por  elle:  e  foi  esta  noticia  hu- 
raa  voz  do  Ceo,  com  que  de  repente  ficou  trocado  aquelle  coração :  bro- 
tou estas  palavras:  «Quem  isto  me  faz  cuidando  que  sou  morto,  não  pre- 
tende herdar  minha  fazenda,  mas  só  a  salvação  de  minha  alma.»  Com  este 
conhecimento  deo  volta  á  vida,  fez-se  grande  devoto  da  Companhia,  e  es- 
colheo  d"ella  confessores  com  os  quaes  chorou  por  largo  tempo  os  tratos 
passados  de  sua  consciência,  e  vivco  com  exemplo  de  todos,  e  com  espe- 
ranças fundadas  de  sua  salvação.  Toda  esta  grande  mudança  attribue  Jo- 
seph  áquella  boa  obra  de  Nóbrega:  e  acrescenta,  que  não  duvida  que  foi  este 
homem  particularmente  favorecido  da  Virgem  Senhora  nossa;  porque  tinha 
tão  especial  reverencia  ao  nome  sagrado  de  Maria,  que  fez  resolução  de  nâo 
chegar  em  toda  sua  vida  a  mulher  de  semelhante  nome,  ainda  por  via  do 
matrimonio.  E  o  que  mais  he,  que  por  esta  causa  regeitou  o  casamento  de 
algumas  mulheres,  só  porque  Unhão  aquelle  santo  nome.  Refere  mais,  que 
chegou  a  ser  tão  ajustado,  este  homem  em  sua  consciência,  que  só  por 
evitar  os  transtornos  que  comsigo  pôde  trazer  o  oíTicio  de  Juiz  da  Repu- 
blica, o  recusou,  a  troco  de  fazer  antes  á  sua  custa  a  obra  de  huma  pon- 
te de  pedra  e  cal,  com  considerável  despeza,  pêra  bem  da  mesma  Repu- 
blica. 

128  Deste  grande  amor  de  Deos,  e  do  próximo  lhe  nascia  a  este  ser- 
vo do  Senhor,  hum  zelo  constante,  e  severo,  qual  o  do  Propheta  Elias,  em 
todas  as  cousas  que  pertencião  á  honra  de  Deos,  e  amor  do  próximo.  Toda 
sua  lenda  está  cheia  d'estes  exemplos,  Note-se  aquella  constância  com  que 
lá  reprehendeo  o  Conde  Castelhano ;  o  Ecclesiastico  incontinente,  a  quem 
não  pudérão  render  tantos  outros  remédios;  os  pobres  fingidos  deGalliza; 
os  que  profanavão  a  igreja  com  festas  indecentes.  Não  interveio  n'este  ca- 
so o  próprio  zelo  de  Elias?  No  Brasil  seria  infinito  contar  os  casos  de  seu 
ardente  zelo.  Chegou  a  pacecer  temeridade  o  com  que  sahio  a  reprehender 
os  Índios  bárbaros,  gentios  ainda,  armados,  e  postos  em  terreiro  no  mon- 
te da  Bahia  que  depois  chamarão  Calvário,  quando  estavão  pêra  repartir  e 
com.er  o  corpo  do  Tapuya,  tirando-lh'o  de  entre  as  mãos  c  dentes;  sem  que 
ousassem  levantar  mão,  (}ii  arco,  em  caso  de  huma  afíronta,  a  mais  dura 
que  podia  imaginar-se  entre  aíjuella  gente.  O  mesmo  fez  em  Piratininga:  h 
'A  cada  passo  se  vecm -actos  seus  semelhantes. 


4á8  LIVIU)  IV  DA  CimOMCA  DA  COMPANHIA  Dli  JESU 

129  Adiou-se  hum  dia  no  mar  em  liuma  grande  tempestade,  e  ouvio  que 
hum  dos  marhiheíros,  tomando  a  vela,  pronunciou  a  Ijlasphemia  seguinte: 
«Haveis  de  entrar  a  pesar  de  S.  Lourenço:»  sahio  do  camarote,  reprehen- 
deo  o  marinheiro  asperamente,  e  virado  ao  santo,  posto  de  joelhos  disse  : 
«Sejais  bemdito  glorioso  santo:  rogai  a  Deos  que  nos  não  castigue  pela  blas- 
phemia,  que  diz  contra  vós  este  indiscreto  homem.  Com  esta  acção  ficou  o 
marinheiro  castigado,  os  presentes  escarmentados,  e  acudio  logo  o  Santo 
com  bonança.  Era  acérrimo  defensor  da  liberdade  dos  Brasis :  não  queria 
ouvir  de  confissão  pessoa  alguma,  que  contra  ella  tivesse  obrado,  sem  que 
restituísse.  Sentia  summamente  os  roubos,  e  assaltos  que  n^ellcsse  fazião; 
chorava-os  com  lagrimas  de  sangue,  bradava  sobre  etles  no  publico,  e  no 
particular:  e  pêra  remédio  destes  males  se  foi  entregar,  como  vimos,  aos  Ta- 
moyos,  pêra  applacar  a  divina  Justiça,  ou  fazendo  pazes  com  elles,  ou  acabando 
a  suas  mãos  emsatisfação  dos  peccados  dos  Portugueses.  No  tempo  em  que 
exhortava  o  Capitão  Esíacio  deSáahbertar  oRiodeJaneiro  do  poder  dos  Ta- 
moyos,  pregando  hum  dia  diante  d'elle,  e  dos  soldados  de  sua  armada,  inci- 
tando-osa  que  applacassern  a  ira  de  Deos,  pelos  roubos  feitos  aos  índios, 
que  forão  gravíssimos:  trazendo  a  este  propósito  a  historia  dos  Gabaonitas,  que 
pedirão  sette  da  geração  de  Saul  pêra  enforcal-os,  e  com  elles  applacar  a  ira 
de  Deos;  concluio  com  grande  efficacia:  «Oh  se  agora  tomassem  sette  des- 
tes ladrões  que  tem  destruído  os  pobres  índios  da  Bahia,  e  de  toda  a  costa 
e  os  enforcassem!  Nosso  Senhor  se  applacaria,  e  se  mostraria  favorável  ao 
que  pretendemos.» 

130  Em  nenhum  modo  de  cativeiro  de  índios  consentia,  excepto  so- 
mente no  de  justa  guerra :  todos  os  mais  que  então  se  usavão,  tinha 
por  injustos.  Dizia  que  raramente  se  achou  que  pai  Brasil  vendesse  seu  ver- 
dadeiro filho ;  porque  os  amão  de  todo  o  coração.  E  os  que  dizem  que 
se  vendem  a  si  mesmos,  fazem-n'o  porque  não  entendem  que  cousa  hc 
vender  liberdade  ;  ou  porque  são  induzidos  com  enganos,  ou  medo :  don- 
de nasce,  que  achando-se  depois  os  pobres  alcançados,  fogem,  c  antes 
querem  ir  a  morrer  pelos  mattos  a  mãos  de  seus  inimigos  que  sofi^er 
cattiveiro.  Dizia  mais,  que  obrigal-os  a  servir  com  titulo  de  forros  (como 
outros  fazem)  era  o  mesmo  que  cattiveiro;  porque  só  tem  o  nome  de  li- 
vres, e  são  deixados  em  testamentos  de  pais  a  filhos,  e  vendidos  como 
verdadeiros  escravos,  com  titulo  de  vender  o  serviço.  E  concluía  n'esta 
matéria  com  estas  palavras:  «Praza  a  Deos,  que  por  remediar  os  comprc- 
hendidos  n"eslos  peccados,  não  vão  alguns  letrados  com  elles  ao  infernoí» 


DO  ESTADO  DO  BHASIL  (aNiNO  DE   i570)  139 

131  Era  tão  inteiro  no  ponto  em  que  se  resolvia  diante  de  Deos  em 
alguma  verdade,  que  não  era  bastante  pêra  se  desdizer  pôr-se  contra  e\'& 
o  mundo  todo,  ou  ser  por  isso  afrontado,  e  maltratado;  como  foi  muitas 
vezes,  com  a  mesma  constância,  e  animo.  Com  esta  defendeo  contra 
todos  os  povos  da  Bahia,  que  era  bem  reduzirem-se  a  aldeãs,  e  Igre- 
jas os  índios,  pêra  que  nellas  fossem  doutrinados,  como  com  effeito  o  fo- 
ram no  tempo  do  Governador  Mem  de  Sá,  com  grande  fruto  de  suas  al- 
mas. Com  a  mesma  defendeo  contra  tantos,  assi  na  Bahia  como  em  S. 
Vicente,  que  era  bem  que  se  acommetesse  a  enseada  do  Rio  de  Janeiro;  com 
tal  resolução,  como  quem  a  tinha  de  DeoSj  e  com  o  fim  que  vimos.  São 
sem  conto  os  casos  semelhantes. 

132  Por  estes  zelos  foi  murmurado,  e  perseguido  em  diversos  tempos 
e  de  diversos  modos.  De  hum  homem  poderoso,  actual  Ouvidor  da  Capitania 
de  S.  Vicente,  porque  reprehendia  com  zelo  do  Bautista  o  caso  feio  de 
adultério,  que  commetia  com  huma  miilher,  que  tinha  tomado  a  hum  mora- 
dor pobre,  se  lhe  maquinava  a  morte,  por  meios,  de  que  o  Padre  teve  no- 
ticia; porém  não  desistio  de  seu  zelo,  dizendo  claramente  aos  Irmãos,  que 
sabião  de  tudo,  que  morreria  por  boa  causa.  E  dava-se  por  tão  pouco  of- 
lendido,  que  a  este  mesmo  homem,  vindo  depois  a  ser  preso,  e  a  estado 
miserável,  ajudou,  e  remediou  com  tal  charidade,  como  se  nada  soubera  dtí 
seu  intento:  e  era  este  timbre  seu,  servir  aos  que  o  maltratavão  com 
tanto  mór  vontade,  quanto  era  a  iJiaior  o  aggravo. 

133  Notável  foi  o  grande  espirito  de  trabalhar  (Veste  servo  de  Deos. 
Na  Bahia  dissemos,  que  dizia  missa,  pregava,  c  confessava  todos  os  dias 
santos  da  Quaresma  no  nosso  Collegio  da  cidade;  elogo  a  pé  na  mesma  ma- 
nhãa,  indo  a  Villa  velha  meia  legoa  distante,  tornava  a  dizer  missa,  pre- 
gar, e  confessar,  até  não  haver  quem.  De  S.  Vicente  dissemos,  ({ue  anda- 
va em  Cíjntinua  volta  de  huma  villa  pêra  outra  vilia,  exercitando  semelhan- 
tes ministérios  á(|uelles  povos  necessitados  de  Sacerdotes.  Vimos  a  lida 
em  que  alli  andou  no  tempo  da  armada  de  Mem  de  Sà,  assi  em  seu  socr 
corro,  como  em  remédio  de  pobres  necessitados.  Que  de  vezes  o  vinios 
atravessar  as  grandes  serras  do  Paraná  Piacába?  Que  de  vezes  caminhos  ás- 
peros, e  mattas  fechadas  n'aqucllas  partes  rigorosas,  e  sempre  a  pé,  por 
mais  carregado  que  andasse  de  acliaques?  Seria  historia  grande  ijuerer  con- 
tar os  trabalhos  todos  deste  varão:  veja-se  comattençã(»  sua  vida,  e  achar- 
se-ha,  que  foi  hum  continuo  traballio. 

i3i.    Em  lodo  o  género  de  culto  divino  era  exaclissim(j:  faltavãoiraqu»-'!- 

VOL.   II  1) 


{30 


LIVRO  IV  DA  CIIROXICA  DA  rOMPAMIIA  DE  JESU 


le  tempo  ornamentos  ricos,  mas  com  os  pobres  de  que  usava  nossa  Igreja, 
se  esmerava  sua  limpeza,  e  perfeição.  Frequentemente  dizia  missa  solem- 
ne  em  canto  de  órgão,  pêra  maior  louvor  de  Deos,  e  exercício  santo  dos 
índios,  que  ajudavão  a  official-a  com  suas  vozes,  e  instrumentos  músicos, 
em  que  andavão  destros.  Em  cjiiinta  feira  da  Cea  do  Senhor,  não  deixou 
jamais  de  lavar  os  pés  aos  Irmãos  publicamente  na  Igreja:  no  fim  do  qual 
acto  pregava  o  Mandato,  á  imitação  de  Christo,  e  muitas  vezes  também  a 
Paixão.  Era  zelozissimo  que  se  pregasse  sempre,  e  a  todos  a  palavra  de 
Deos:  até  os  Irmãos  que  não  de  missa  (*)  mandava  exercitar  este  ministério 
em  lingoa  portuguesa,  e  brasílica.  Zelava  com  cuidado  sobre  as  indecencias  das 
Igrejas:  e  pêra  impedir  as  que  se  commetião  em  alguns  actos  que  se  re- 
presentavão  n"ellas,  introduzio,  com  parecer  dos  moradores  de  S.  Vicente, 
em  lugar  d'estes,  hum  muito  devoto,  a  que  chamava  Pregação  universal; 
porque  servia  pêra  todos.  Portugueses,  e  índios,  e  constava  de  huma  e  ou- 
tra lingoa:  concorria  a  elle  toda  a  Capitania,  e  representava-se  na  vespora 
do  Jubileo  de  dia  de  Jesu,  que  á  volta  do  acto  ganhava  grande  numero  de 
povo.  Aconteceo  n"esta  representação  hum  caso  tido  por  milagroso :fazia-sc 
ella  huma  tarde  em  lugar  descoberto  do  adro  da  Igreja;  e  foi  o  mesmo  co- 
meçar, que  acommeter  o  theatro,  e  todo  o  horisonte,  huma  tempestade  me- 
donha; e  sobre  os  ouvintes  se  pôz  huma  nuvem  carregada  de  ?igoa,  que 
começava  a  gotejar  grossas  pingas,  e  metia  medo  a  todos:  queria  recolher- 
se  o  auditório;  porém  aquelle  Religioso  que  tinha  cuidado  das  figuras,  le- 
vantando a  voz  pedio  a  todos  que  se  socegassem,  e  deo  a  sua  palavra,  que 
não  choveria  antes  que  a  comedia  se  acabasse:  e  assi  succedeo.  Gon- 
tinuou-se  com  a  obra,  que  durou  três  horas,  com  quietação,  e  socego,  até 
perfeitamente  se  acabar,  e  recolherem  a  suas  casas  os  ouvintes:  e  feito  is- 
to, desfechou  a  mais  horrenda  tempestade  de  chuvas,  ventos,  e  trovões 
que  até  alli  se  vira;  e  deo  que  cuidar  aos  homens  quem  a  originara,  e  quem 
a  refreara  por  tanto  espaço  de  tempo,  servindo  mais  de  toldo  ao  acto,  que 
de  impedimento.  Este  caso  traz  o  Padre  Joseph  a  fim  de  mostrar  o  zelo 
com  que  o  Padre  Nóbrega  procurava  evitar  as  indecencias  das  Igrejas,  e 
actos  profanos:  porém  a  maravilha  que  n'elle  entreveio  na  suspensão  da 
tempestade,  attribuio-se  commummente  ao  mesmo  Joseph;  porque  elle  foi  o 
que  fez  a  comedia,  e  assegurou  o  auditório.  Assi  o  escreve  o  Padre  Pater- 
nina,  liv.  i,  cap.  7,  e  o  Padre  Pedro  Rodrigues  em  sua  Vida  manuscripta. 

(•)  Evidentemente  l^a  aqui  falia  de  palavras,  que  cada  hum  supprirá  como  entender. 

(I.  F.  da  SJ 


DO  ESTADO   DO  BRASIL  (aNNO  DE  lo"0)  13Í 

133    Dizia  a  missa  com  grande  devação,  e  copiosas  lagrimas:  gastava 
n'ella  Imma  liora:  e  alli  se  lhe  communicava  o  Senhor  intimamente,  e  al- 
cançava de  sua  divina  Magestade  muitas  mercês.  Rezava  com  a  mesma  per- 
feição o  oíTicio  divino,  sempre  com  companheiro  para  mais  distincção,  e 
por  suprir  o  defeito  que  tinha  na  lingoa  balbuciente.  Suas  pregações  erão 
fogo  de  puro  zelo  da  perfeição  christãa;  e  por  outra  parte  devoto,  suave, 
e  aífectuoso;  que  facilmente  se  soltava  em  lagrimas,  e  provoava  com  ellas 
ao  povo.  Na  oração  era  continuo,  e  fervoroso,  especialmente  em  S.  Vicen- 
te, escreve  d'elle  seu  amigo  Joseph, "  que  gastava  n'ella  a  mór  parte  da 
noite,  e  que  n'ella  tratava  do  remédio  das  cousas,  não  só  tocantes  á  Com- 
panhia, mas  também  ao  bem  dos  próximos,  e  augmentos  da  christandade, 
e  salvação  das  almas:  em  cujos  negócios  tratava  depois  com  tão  grande 
acerto,  que  dizião  delle  pessoas  graves,  que  era  pêra  governar  todo  o  mundo. 
Era  terníssimo  nas  lagrimas:  qualquer  sentimento  do  Ceo,  ou  tocar  de  vio- 
la, ou  musica  devota,  o  constrangia  a  desfazer-se  nellas.  Teve  fundados 
arreceios,  que  os  Tamoyos  lhe  matarião  o  Companheiro  que  com  elles  dei- 
xou quando  esteve  em  reféns:  todo  aquelle  tempo  chorava  amargamente, 
arrebentando  em  suspiros  sentidíssimos,  por  haver  deixado  o  Irmão:  pros- 
trava-se  na  presença  de  Deos,  e  alli  fallando  com  elle,  dizia:  «Ah  Irmão  meu, 
como  te  deixei  só  entre  bárbaros?  Como  não  fui  eu  merecedor  de  morrer 
comtigo?»  E  escrevendo-lhe  nesta occasião,  começava  assi:  «Irmão,  se  ainda 
esta  minha  vos  achar  com  vida,  etc.,»  e  molhava  o  corpo  do  papel  de  lagri- 
mas, mais  que  de  tinta. 

136  Foi  estremado  na  observância  dos  votos  religiosos:  trazia  sempre 
diante  dos  olhos  mui  especialmente  a  guarda  da  pureza  virginal.  Achando- 
se  no  meio  de  huma  tempestade,  disse:  que  huma  das  cousas  que  mais  o 
consolava  no  meio  daquelle  perigo,  era  a  guarda  do  voto  de  castidade. 
Todo  o  resguardo  n"esta  matéria  lhe  parecia  pouco;  por  terra,  por  mar,  por 
sertões,  por  aldeãs  de  índios,  sempre  era  o  mesmo,  e  sempre  com  a  mes- 
ma cautela:  castigava,  e  mortificava  sua  carne  com  rigor  de  cilícios,  e  dis- 
ciplinas. Pasmavão  os  bárbaros,  quando  entre  elles  vivia  aquelles  ires  me- 
zes  de  seus  reféns,  de  que  offerecendo-lhe  mulheres  a  modo  de  sua  genti- 
lidade, as  não  aceitasse;  e  que  vivendo  entre  corpos  nús,  e  objectos  lascivos, 
os  não  appetecesse.  Fazião-lhe  a  pergunta  que  alli  dissemos:  «Se  tu  hes  ho- 
mem como  os  outros,  como  he  possível  que  não  tenhas  as  paixões  dos  de- 
mais?» Ao  que  Nóbrega  respondeo,  tirando  da  algibeira  a  disciplina  ensan 
guentada;  de  que  ficarão  admirados,  c  formarão  conceito  d 'elle,  mais  que 


i32  LIVRO  IV  DA  CHRONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

de  homem.  O  santo  varão  Ignacio  de  Azevedo  costumava  dizer,  que  era  mi- 
lagrosa a  pureza  da  Companhia  entre  as  occasiucs  do  Brasil.  Milagrosa  pa- 
rece na  verdade  a  pureza  de  Nóbrega:  que  andasse  o  mais  do  tempo  de  sua 
vida  metido  entre  occasiões  por  caminhos,  por  casas  alheas,  por  sertões,  por  al- 
deãs de  índios,  gente  não  só  lasciva,  mas  costumada  a  convidar  a  ella;  e  que 
alli  vivesse  tão  sem  carne,  com  tão  rara  cautela,  que  nem  por  sonhos  vies- 
se jamais  ao  pensamento  a  alguém  hum  menos  recato  de  Nóbrega  n'esta 
matéria.  Isto  não  he  milagre?  viver  em  carne  em  pureza  de  Anjo! 

137  indicio  grande  de  seu  interior  virginal  pôde  ser  a  severidade,  com 
que  estranhava,  e  castigava  as  faltas  contra  esta  virtude.  Brotava  muitas  ve- 
zes em  zelo,  e  dizia:  «Malaventurado  será  aquelle,  por  quem  se  quebrar  o 
sello  virginal  da  Companhia.»  Quando  no  anno  de  1553,  foi  visitar  a  pri- 
meira vez  a  Capitania  de  S.  Vicente,  vimos  alli  aquella  severidade  com  que 
se  houve  contra  alguns  nossos,  que  com  falsos  indícios  forão  calumniados 
por  homens  seculares  mal  affectos,  e  menos  fieis  n"esta  matéria.  Estava  cer- 
to que  nestes  sujeitos  não  cabia  semelhante  maldade:  e  com  tudo  assi  as- 
sombrou seu  coração  hum  só  rumor  de  cousa  tão  fea,  que  logo  despedio 
da  Companhia  todos  aquelles  em  quem  puzerão  boca  (e  erão  dos  mais  virtuo- 
sos) em  quanto  o  Vigário  Ecclesiastico,  a  quem  commetéra  o  conhecimento 
do  caso,  não  averiguou  sua  innoceneia  por  sentença,  como  alli  dissemos. 
í;' 138  Não  foi  menor  a  severidade  do  segundo  caso,  com  que  n'aquella 
mesma  \isita  em  Piratininga  castigou  a  outro  delinquente  secular  Mamaluco, 
não  menos  que  com  enterral-o  vivo,  abrindo  cova,  celebrando  oíTicio,  do- 
brando sinos,  e  chegando  a  ser  lançado  na  sepultura :  e  quando  houve 
de  alcançar  perdão,  foi  detestando  primeiro  seu  delito  (porque  era  sabido) 
pedindo  perdão  do  aggravo  que  fizera  á  pureza  da  Casa  em  que  morara,  que 
era  de  portas  a  dentro  com  os  Religiosos. 

139  A  perfeição  de  sua  religiosa  obediência  era  semelhante  á  de  sua 
pureza:  não  foi  nunca  necessário  pêra  elle  mais  que  o  sinal  da  vontade  de 
qualquer,  ([Uíí  tivesse  apparencia  de  Superior:  bastava  este  pêra  dispòr-se 
á  mais  difficultosa  empreza:  com  este  aceitou  aspérrimas  missões,  sem  mais 
demora,  que  a  de  tomar  bordão,  e  Breviário;  e  sendo  huma  d'ellas  tão  es- 
pantosa, não  menos  que  de  hum  novo  mundo,  em  que  havia  de  dar  o  ul- 
timo vale  á  pátria,  e  a  tudo  o  que  tinha  em  Europa;  com  a  mesma  facilida- 
de se  embarcou,  com  que  outros  se  embarcarião  pêra  lugar  de  huma  gran- 
de recreação:  No  Brasil,  quando  não  tinha  Superior,  folgava  de  esperar  que 
as  cousas  de  mais  momento  lhe  fossem  mandadas  pelos  de  Portugal,  ou 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (A\N0   DE   1370)  133 

lie  Roma;  e  estes  mandados  executava  com  muito  gosto  seu,  por  intervir 
n'elles  a  obediência.  Tinha  grande  desejo  (como  em  seu  lugar  vimos)  do 
ir  acudir  á  gente  de  Paraguay,  que  o  chamava,  e  padecia  estreita  necessida- 
de da  doutrina  da  Fé:  e  comtudo  (depois  de  deliberado  muitas  vezes,  que  era 
obra  do  serviço  de  Deos,  e  chegando  a  estar  aprestado  pêra  partir  ao  dia  se- 
guinte) bastou  significar-lhe  que  sentia  o  contrario  o  Padre  Luis  da  Gram, 
pêra  logo  no  mesmo  instante  desistir;  julgando  que  aquella  seria  a  mór  glo- 
ria de  Deos,  só  por  ser  o  Padre  adjunto  seu  dado  pelos  Superiores;  e  com 
maior  promptidão  lhe  obedecia  á  risca  a  qualquer  aceno  depois  que  entrou 
por  Provincial.  Ficando  em  sua  ausência  por  Commissario  com  o  governo 
da  Capitania  de  S.  Vicente,  e  Espirito  santo,  desejava  que  hum  Irmão  de 
suíTiciencia  o  ajudasse  a  pregar  n'aquellas  partes,  onde  havia  muita  neces- 
sidade da  palavra  de  Deos,  e  lhe  ordenara  o  fizesse:  porém  significando-lhe 
rt  Irmão,  que  o  Padre  Provincial  antes  de  partir  dera  a  entender,  não  -era 
de  opinião  que  pregassem  Irmãos  a  Portugueses,  foi  bastante  este  só  sinal 
da  vontade  de  seu  Superior  pêra  desistir  logo,  contra  o  que  entendia:  mor- 
mente que  era  o  Irmão  bem  digno  de  subir  ao  púlpito,  porque,  segundo 
conjecturas,  era  o  venerável  Joseph  de  Anchieta.  Não  somente  aos  Superio- 
res, aos  mesmos  súbditos  folgava  de  dar  mostras  de  obedecer,  todas  as  ve- 
zes que  contra  seu  dictame  davão  razão  digna  de  aceitar-se.  Mostrava-se  a 
delicadeza  de  sua  obediência,  não  só  no  que  obrava,  mas  no  que  ensinava: 
por  toda  esta  historia  vimos  n'esta  matéria  casos  raros.  Não  chegou  a  ser 
o  mais  fino  da  obediência,  o  exercício  com  que  provava  seus  Missionários? 
O  com  que  provou  o  Padre  Manoel  de  Paiva,  deixando-se  vender  a  pregão 
pelas  praças"?  O  com  que  provou  o  Padre  Vicente  Rodrigues,  sendo  elle  o 
porteiro  da  venda,  levantando  pregão,  e  dizendo  em  alta  voz  pelas  ruas : 
«Quem  quer  comprar  este  Sacerdote,  venha-se  a  mim,  receber-lhe-hei  o  lan- 
ço?» Provou  o  mesmo  Padre  Paiva,  mandou-lhe  que  se  lançasse  a  rodar  por 
hum  monte  aliaixo.  Ao  Padre  João  Aspilcueta  Navarro,  que  bebessíí  liunia 
tigella  cheia  de  azeite,  que  fosse  tomando  huma  disciplina  jielo  meio  das 
ruas  da  cidade,  vestido  em  trajos  de  penitente.  Estes  e  outros  senielliantcs 
exercícios  da  obediência  não  sui)puiihão  a  mór  íineza  d"el[a?  E  com  tudo 
n^ão  era  por  querer  ser  pontualmente  obedecido;  senão  que  era  fervor  do 
espirito  da  perfeição  de  tão  grande  virtude,  olhos  da  Companhia,  e  como 
ahna  dVíha.  Até  na  doença,  o  morte  fazia  piovas  deobodienciii;  porífuepor 
esta  ínesma  virtude  soubessem  adoecer,  e  uiorrer  os  verdadeiros  liliios  da 
Companhia.  «Pare  aqui  vossa  doença,»  disse  a  Vicente  Rodrigues;  «Nãomor- 
raes  até  eu  não  tornar, « disse  a  Salvador  Rotlrigues:  c  obcdeceohum,  e  outro. 


134  LIVRO  IV  DA  CHRONICA  DA  COMPANHIA  DE  JESU 

140    Que  direi  de  sua  religiosa  pobreza?  Seu  enxoval  era  hum  Breviá- 
rio, humas  contas,  hum  bordão,  disciplina,  cilicio,  e  poucas  outras  peças 
semelhantes.  A  matalotagem  dos  caminhos  era  a  providencia  do  Ceo,  que 
nunca  lhe  faltou:  qualquer  comida  pêra  elle  era  banquete;  ou  fosse  as  hervas 
4o  campo,  ou  legumes,  e  cuja  de  farinha,  que  os  índios  lhe  davão,  tudo 
pêra  elle  era  regalo.  Entre  os  mais  religiosos  nenhuma  singularidade  ad- 
mitia: seguia  sempre  a  communidade.  Po  que  deixámos  dito  de  suas  lar- 
gas e  continuas  missões,  e  apparato  d'ellas,  se  deixa  ver  o  que  aqui  dize- 
mos. Os  hospitaes,  as  cabanas,  os  palheiros,  os  lugares  desertos,  as  chou- 
panas dos  índios,  dão  testemunho  de  sua  estremada  pobreza.  Estremada 
foi  a  com  que  viveo  em  Villa  velha  (quando  a  principio  chegou  á  Bahia) 
em  Nossa  Senhora  da  Ajuda,  e  Monte  Calvário,  fazendo  as  casas  por  suas 
mesmas  mãos,  indo  ao  matto,  e  fonte,  trazendo  a  lenha,  e  agoa  ás  costas; 
pedindo  esmola  pêra  se  sustentar  de  porta  em  porta :  a  com  que  ajudou 
a  viver  em  Piratininga,  e  descreveo  Joseph  de  Anchieta  u'aquella  sua  Car- 
ta que  atrás  puzemos.  Não  era  esta  a  verdadeira  pobreza  evangélica?  Seu 
vestido  não  tinha  diíferença  vivendo,  do  com  que  foi  á  cova  morto :    sem 
manteo,  sem  roupão,  huma  roupeta  velha  remendada,  alpargatas  de  car- 
dos por  çapatos,  e  talvez  descalço:  humas  botas,  que  por  achaques  de  sua 
mór  idade  lhe  receitarão  os  médicos,  houverão  de  custar-lhe  a  vida,  quan- 
do fugindo  aos  Tamoyos,  cahio  no  rio,  e  cheas  de  agoa  lhe  impedião  o 
caminhar.  Não  poucas  vezes  lhe  faltou  a  camisa ;  e  pêra  supprir  o  defeito 
d  ella  estando  na  Bahia,  quando  hia  o  Governador  geral  a  nosso  Collegio, 
pedia  hum  lenço  pêra  acommodar  ao  pescoço;  a  que  chamava  sua  hypocri- 
sia;  e  sobre  tudo  louva  muito  o  Padre  Joseph  de  Anchieta  a  pobreza  com 
que  viveo  nos  fins  de  sua  vida,  no  mór  rigor  de  suas  enfermidades  no  Rio 
de  Janeiro,  terra  de  novo  habitada,  até  o  ultimo  transe  de  sua  morte,  em 
hum  quasi  desamparo  de  consolo  humano. 

141  Junto  com  sua  religiosa  pobreza,  a  vida  Ioda  d'este  servo  de  Deos 
foi  pura  mortificação,  e  humildade.  Estas  duas  irmãas  companheiras  o  ti- 
rarão do  berço  de  seu  primeiro  noviciado,  e  o  levarão  por  lugares  alheios, 
por  hospitaes,  cadeas,  enxovias ;  por  desprezos,  afrontas,  injurias,  fomes, 
sedes,  frios,  calmas,  feito  ludibrio  das  creaturas,  como  temos  visto:  fazião 
estas  jogo  d'elle,  e  elle  d'ellas :  talvez  o  buscavão  pêra  afrontal-o,  talvez 
pêra  lisongeal-o ;  e  as  afrontas  o  achavão  a  pé  quedo:  fugindo  como  da 
morte  as  lisonjas.  Quando  vierão  a  buscal-o  os  jogadores,  os  que  profana- 
vão  o  templo,  c  outros  pêra  maltratal-o,  constante  o  acharão:  mas  quando 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (aNNO  DE  lo70)  135 

vierão  os  criados  cVaquelle  fidalgo  Castelbranco,  que  queria  agasalhaí-o  em  s^ua 
casa,  e  regalal-o  em  sua  mesa,  acharão-no  escondido  entre  as  moulas  do  sil- 
vado: porque  com  tão  bom  rosto  esperava  os  trabalhos,  como  fugia  dos  re- 
galos. Mostrou  bem  o  espirito  de  sua  mortificação,  quando  em  vigor  de 
certo  diploma,  havendo  de  declarar  de  sua  letra  entre  os  mais  Padres  da  Com- 
panhia, que  gráo  escolhia  pêra  n"elle  viver,  so  de  Professo,  ou  de  Coadju- 
tor: assignou  com  estas  palavras  dignas  de  memoria:  « Velim  nescire  quid- 
quam  velle:  sed  in  omnibus  Cknstum,  et  huno  crucifixiini,  velle.»  Quisera 
(diz)  não  saber  querer  alguma  cousa :  mas  em  todas  as  cousas  querer  a 
Christo,  e  este  crucificado.  Foi  sempre  hum  dos  mais  aíTervorados  entro 
aquelles  exercícios  primeiros  de  mortificação,  tão  celebrados  da  primitiva 
Companhia  dos  Religiosos  do  Collegio  de  Coimbra.  Sabia  pelas  ruas  em 
trajos  vis,  esfarrapados,  porque  fosse  ludibrio  da  gente,  e  objecto  de  des- 
prezo a  todos.  Tinha  ordinariamente  dous  confessores;  hum  era  Padre,  ou- 
tro Irmão:  ao  Padre  confessava  suas  faltas,  c  recebia  d'elle  a  absolvição:  ao 
Irmão  referia  as  mesmas,  e  recebia  d"elle  reprehensão.  E  quando  andava 
somente  com  Irmão,  sem  Padre  a  quem  se  confessasse  (como  trcs  mezes  en- 
tre os  Tamoyos  com  o  Irmão  Jos3ph)  confessava-se  e  consolava-se  com  elle,  di- 
zendo-lhe  inteiramente  todos  seus  pensamentos,  omissões,  e  faltas;  e  rece- 
bia d'elle  absolvição  geral  da  missa,  que  posto  que  não  faz  sacramento, 
cahe  sobre  actos  de  humilhação,  e  mortificação,  que  são  agradáveis  ao  Se- 
nhor, e  podem  chegar  a  merecimento  de  contrição,  e  amor  de  Deos ;  se- 
gundo o  espirito  com  que  forem  feitos. 

1 4:2  Tinha  firme  confiança  no  Ceo:  e  levado  d'esta  acommetia  cousas  gran- 
des, que  ás  vezes  parecião  excessos:  em  rcsolvendo-se  na  oração,  ou  na  missa, 
que  algum  negocio  era  serviço  e  gloria  de  Deos,  nenlium  poder  o  retirava  de 
emprehendel-o,  nem  inconvenientes,  nem  ameaças,  nem  trabalhos,  nem  diíli- 
culdades  algumas.  Quando  principiava  a  grande  obra  da  conversão  do  Brasil, 
apartou  de  si  o  Padre  Leonardo  Nunes  com  outro  Irmão,  pêra  acudir  a 
S.  Vicente,  sendo  tão  somenos  cm  numero  os  companheiros,  como  ahi  vi- 
mos: e  por  mais  votos,  e  dilliculdades  que  em  contrario  se  oí)puserão, 
não  cedeo;  por  que  julgou,  que  o  negocio  era  de  Deos,  e  que  os  pagaria 
dobrados:  como  reverá  succedeo;  porque  vierão  logo  quatro  do  Reino.  (íom 
a  mesma  confiança  a])artou  de  si  hum  dos  mais  notáveis  obreiros  quando 
dclle  muito  necessitava,  o  Padre  João  de  As[)ilcuela  Navarro,  peia  a  em- 
j)reza  do  mais  interior  do  sertão  ;  e  deo-lhe  Ocos  [)or  elle  outros  breve- 
meutc.  A  coníiança  com  que  acommeteo  a  empresa  de  reduzir  a  iiovoações 


130  LIVHO  IV  DA  CHHOMCA  DA  COMPANinA  DE  JE3U 

OS  índios  da  Bahia,  no  meio  de  tantas  dilTiculdades :  a  com  que  empre- 
hendeo  a  insigne  obra  das  pazes  dos  Tamoyos:  e  a  da  conquista,  e  povoa- 
ção do  Rio  de  Janeiro,  contra  toda  a  prudência  dos  homens,  foi  grande 
prova 'lio  proposto  intento. 

143  Não  fírttárão  a  este  insigne  varão  casos  maravilhosos,  cora'  que  o 
Ceo  mostrou  approvar  seu  espirito.  Não  foi  milagroso  aquelle  caso,  quan- 
do a  modo  de  desencaixados  os  elementos,  vingarão  indignados  a  lançadas 
de  raios,  as  indecencias  do  culto  divino,  e  o  desprezo  do  servo  do  Senhor? 
Que  mais  fez  em  favor  de  EUas? 

144  Na  viagem  do  Brasil,  em  prova  da  resolução  que  dera  ao  Gover- 
nador Thomé  de  Sousa,  que  não  era  agradável  a  Deos  aquella  sua  deva- 
ç3o  que  fazia,  de  não  comer  cabeça  alguma,  em  veneração  da  do  Bautista; 
não  foi  assas  sobrenatural  aquelle  prodigioso  desengano,  com  que  traçou 
o  Ceo,  que  viesse  na  linha  lançada  ao  mar,  huma  só  cabeça  de  peixe  ; 
porque  fosse  forçado  o  fidalgo  a  comer  cabeça?  Aquelle  império  com  que 
mandou  ao  Padre  Vicente  Rodrigues  enfermo  de  hum  anno,  e  perseve- 
rante na  doença,  em  virtude  da  santa  obediência,  que  se  levantasse,  e  fos- 
se ajudar  ao  próximo;  não  foi  confiança  milagrosa,  em  que  exercitou  acto 
de  império  sobre  accidente  tão  pertinaz?  e  em  que  desiste  por  obedi- 
ência o  mal  ?  Este  caso  colebra  Orlandino  no  livro  xi  de  nossas  Chroni- 
cas,  n.*^  78,  com  titulo  de  instinsto  divino,  a  Divino  prorsus,  ut  videtur,  ins- 
íindu,  impcrat  cegrnlanti,  nt  obedientioe  nomine  movhum  abigat,  et  se  pro- 
ximis  reddai:y>  como  dizendo,  que  obrou  aqui  Nóbrega  com  instincto  divino, 
E  mais  claro  o  disse  Anchieta  em  seus  Apontamentos. 

145  Com  a  mesma  efficacia  acudia  o  Ceo  por  sua  vida,  que  por  sua 
palavra.  Não  foi  menos  admirável  o  successo  com  que  Deos  o  livrou  do 
perigo  d'aquella  medonha  tempestade,  quando  indo  visitar  a  Província  em 
companhia  do  Governador  Mem  de  Sá,  se  foi  o  navio  ao  fundo,  e  andou 
elle  sobre  as  agoas  tempo  considerável,  não  sabendo  nadar.  Imitou  aqui 
Nóbrega  a  fé  de  Pedro  sobre  o  mar :  e  Christo  com  elle  o  favor  de  não  se 
afundir  em  as  agoas.  Com  outra  maravilha  guardou  segunda  vez  a  vida  de 
seu  servo,  na  occasião  da  balea,  monstro  assanhado,  que  o  assaltou  no  mes- 
mo lugar,  em  companhia  do  Padre  Ignacio  de  Azevedo,  Luis  da  Gram,  c 
Joseph  de  Anchieta.  A  Nóbrega  se  attribuio  também  o  milagre  da  fonte 
prodigiosa  de  Porto  seguro,  e  muitos  outros  em  diversos  lugares. 

146  A  seu  espirito  de  prophecia  attribue  o  mesmo  Joseph,  o  com  que 
affirmou  aos  Tamoyos  de  Igperoig,  que  no  ponto  que  quebrassem  as  pazes 


DO  ESTADO  DO  BRASIL  (AN.\0  DR  in70)'"  137 

aos  Portugueses,  havião  de  ser  destruídos:  o  com  que  ameaçou  graves  cas- 
tigos aos  moradores  de  S.  Vicente,  pelas  injustiças  que  commetião  contra 
os  índios;  com  tanta  certeza,  como  se  já  os  vira,  mandando  que  os  Padres, 
e  Irmãos  sabissem  pelas  ruas  publicas  tomando  disciplina,  e  pedindo  ao 
Ceo  misericórdia.  Ao  irmão  Vicente  Rodrigues,  enfermo  de  graves,  e  con- 
tinuas dores  de  cabeça  bavia  muitos  annos  sem  remédio  algum,  disse:  «Vós 
Irmão  não  liáveis  de  sarar,  senão  cjuando  faltar  todo  o  necessário,  e  então 
vos  bão  de  cahir  os  dentes.»  Aconteceo  assi,  diz  Joseph;  porque  sendo 
mandado  á  missão  do  Rio  de  Janeiro,  padecendo  alli  gravíssimas  fomes,  e 
falta  de  tudo  o  necessário  no  aperto  da  guerra,  então  sarou  perfeitamente; 
e  sarando,  Ibe  começarão  a  cabir  os  doentes,  até  despovoarem  a  boca,  co- 
mo dissera  o  servo  de  Deos.  Em  muitos  outros  casos  reconhecerão  seu 
espirito  de  prophecia,  Josepb  de  Ancbieta,  e  outros  varões  graves  d'aquelle 
tempo.  E  supposto  que  não  depende  a  santidade  de  prophecias,  ou  mila- 
gres; he  comtudo  indicio  de  varões  excellentcs,  e  com  que  costuma  o  Ceo 
approvar  suas  obras. 

147  E  temos  visto  em  breve  summa  as  cousas  notáveis  do  servo  do  Se- 
nhor o  Padre  Manoel  da  Nóbrega,  fundador,  e  primeiro  Apostolo  da  Pro- 
vinda do  Brasil :  a  cujo  exemplo  proseguirão  os  que  após  elle  trabalharão 
na  conversão  da  gentilidade  doeste  novo  mundo.  Cuja  santidade  foi  tão  rara, 
que  sendo  que  concorrerão  com  elle  varões  em  todo  o  género  tão  illustres; 
hum  Joseph  de  Anciíieta,  Luis  da  Gram,  Leonardo  Nunes,  João  Aspilcueta 
Navarro,  e  tantos  outros,  quantos  tem  mostrado  a  historia,  e  venera  hoje 
a  Província  :  todos  esses  em  comparação  de  Nóbrega  se  reputavão  a  si  mes- 
mos na  virtude  pygmeos,  á  vista  de  hum  gigante  :  assi  seguião  a  luz  de  seu 
exemplo,  assi  imítavão  seus  dictames,  assi  punhão  em  execução  suas  or- 
dens, como  se  n'aquelle  só  espirito  reconhecessem  juntas  as  excellencias 
de  todos.  E  não  somente  no  Brasil;  em  Roma,  em  Portugal,  em  o  mundo 
todo  foi  conhecida  sua  santidade;  ao  menos  pela  empresa  que  tomou  a  seus 
hombros,  igual  á  de  hum  Xavier :  ficando  partida  entre  estes  dous  varões 
apostólicos  a  conversão  da  gentilidade  do  mundo :  a  Xavier  ficou  a  do 
Oriente;  a  Nóbrega  a  do  Occidente.  Tratarão  d'cste  servo  de  Deos,  o  ve- 
nerável Padre  Joseph  de  Anchieta  em  seus  Apontamentos.  O  Padre  Orlan- 
dino,  primeii'a  parle  das  Chronicas  da  Companhia  emmuitos  higares  de  seus 
livros.  Sacchino  ni  part,,  liv.  G,  n,"  2Go.  O  Padre  Balthesar  Telles  nas  Chro- 
nicas de  Portugal,  part.  i,  liv.  3,  cap.  á,  c  dahi  cm  diante.  E  nós  nada 
mais  trataremos  por  hora :  pare  a  penna  em  escrevei',  onde  pára  Nóbrega 


Í38  LIVRO  IV  DA  CHROMCA  DA  COMPAMIIA  DE  JESU 

em  oljraf :  a  suas  empresas  especialmente  se  dedica  este  tomo  primeiro 
por  primeiro  Apostolo  do  Brasil;  como  outro  se  dedicou  a  Xavier,  por  primeiro 
Apostolo  da  índia;  outro  a  Ignacio  Patriarcha  nosso,  por  primeiro  Geral  da 
Companhia.  Andarão  os  tempos,  e  irão  sahindo  tomos  vários,  devidos  a 
varões  da  mesma  empresa,  que  se  bem  não  forão  n'ella  os  primeiros,  não 
forão  segundos  nas  virtudes. 


FLMS  LALS  DtO  VIUGIMQLE  .IJATRI- 


I 


Os  VCVSO&  quê  se  seguem  são  os  que  prometi  no  livro  iii,  folha  310 
desta  oòrii  ['),pornão  interromper  a  leitura;  e  são  os  que  o  venerável 
Padre  Joseph  de  Anchieta  compoz,  quando  esteve  em  reféns  entre  os 
índios  bárbaros,  com  ajuda  da  Virgem,  escrevcndo-os  na  praia  em 
lugar  de  papel,  que  alli  não  tinha,  nem  tinta. 

JESUS  MARIA 

•  DE  BEATA   YIRGINE   DEI 
MITRE  HilRIA. 

Eloquar?  an  sileam,  sanctissima  Mater  Je.su? 

Num  sileam?  laudes  eloquar  annò  tuas? 
Mens  agitata  pij  stimulis  hortatur  amoris 

Ut  Dominae  cantem  carmina  paucae  meac. 
Sed  timet  impura  tua  promere  nomina  linguâ, 

Quae  sordet  multis  contemerat  malis. 
Scilicet  illius,  quae  clausit  ventre  Tonantem 

Audcbit  laudes  língua  profana  loqui? 
Mens  stupefacta  fugit,  nisi  quòd  tuus  óptima  Virgo 

Corde  metum  pávido  ccdere  cogit  amor. 
Quid  faciam  ?  quarc  trepidem  ?  cur  nostra  rigesccnt 

Pectora?  cur  de  te  lingua  silebit  iners? 
Ipsa  loqui  cogis,  tu  vires  suíTicis  ipsa 

Dicere  conanli,  rcíTicis  ipsa  manus. 
Tu  pictate  fovcs  materna,  animumque  jacentem 

Erigis,  aethereis  accumulasque  bonis. 
Sydereae  tangar  si  non  ego  Matris  amorc, 

Si  mea  non  dicant  Yirginis  ora  decus ; 
Duritiâ  silicJs,  ferrique  aerisque  rigorem 

Vincnt,  et  invictum  cor  adamanta  meiím. 
Quis  milii  virgíneos  sub  iiectoi-e  clnuderc  vultuá 

Praeslet,  ut  ardenter  te  pia  Mater  amem? 
Tu  milii  çiim  chara  sis  única  Prole  volúpias, 

Tu  desiderium  cordis,  amorijue  mei. 

(•J  Concspondc  ao  vol.  ii,  png.  2i  da  prcsoiilc  edição. 


140  tersos  do  padre  joseph  de  anchieta 

De  Gonceptione  Virginis  MauIíK 

Te  priús  aethereos  verbo  quam  conderel  orbes. 

Ante  Deus  latam  quam  labricaret  humurn. 
Te  priús  aeterna  concepit  mente  futuram 

Cum  pura  Matrem  virginitate  suam. 
Ó  tu  qualis  eras  divini  ante  ora  parenlis 

Cum  mundum  coeli  condita  turma  foret? 
Nondum  lativagi  diííluxerat  aequoris  unda, 

Nec  vagus  obliquis  íluxerat  amnis  aquis ; 
Nondum  faecundo  manarant  gurgite  fontes, 

Nec  juga  constiterant  árdua  mole  gravi : 
Et  tu  jam  summi  concepta  in  mente  Parentis, 

Cujus  ventre  Deus  conciperetur,  eras. 
Quae  foedis  mundum  purgares  sordil3us  omnem, 

Et  fieres  plagis  vera  medella  méis. 
Qualis  es  ó  Virgo !  quantum  dilecta  superno 

Artifici  I  qualis  forma  decorque  tuus  ! 
Tu  ventura  salus  primo  promissa  parenti, 

Quae  Vitam  casto  viscera  nixa  fores. 
Ut  quos  mortiferis  infecerat  l^va  venenis, 

Concepta  Antidotum  tu  sine  labe  dares. 
Foemineo  expavit  versutus  nomine  serpens, 

Cujus  capta  fuit  foemina  prima  dolis. 
Scilicet  ipsa  tuae  concepta  in  ventre  parentis 

Quod  maculat  cunctas  crimine  sola  cares. 
Comminuisque  caput  sinuosi  calce  Draconis, 

Et  depressa  tuo  sub  pede  coUa  tenes. 
Tota  refulgenti  resplendes  pulchra  decore, 

Tota  cares  naevo,  dalcis  amica  Dei. 
NuUa  tuo  labes  peccati  pectori  inhaeret : 

Num  laedit  specimen  vel  nota  parva  luam? 
Ó  speciosa  nimis,  virtutum  compta  nitore, 

Quae  potes  angélicos  exuperarc  choros, 
Fige  tuum  nostro  Yirgo  immaculata  decorem 

Pectore,  forma  óculos  attraliat  ista  meos. 
Scilicet  haec  magnos  capiebat  forma  Prophetas, 

Qui  te  carminibus  praecinuerc  suis. 
Illi  te  variis  praesignavera  figuris, 

Optantes  Proles  ut  tua  ferret  opem. 
Quam  cuperent  illi  coeli  splcndore  nitentis 

Ó  formosa  óculos  cernere  Yirgo  tuos ! 
Quam  voUent  coram  divinam  haurire  loquelani, 
"  Manabatque  tuo  dulce  quod  ore  meios ! 


KM    LOLVOIl    DA    VIIUiEM  141 

Foeliccs  igiliir,  qiii  le  genuere  parentes, 

E  coelis  ortum  qiii  didicere  luum, 
O  íbelix  .loacliim,  ciijiis  de  semiiie  Virgo 

Progenita  est  Natiini  progenitura  Dei. 
Foelix  Anna  parens,  cujus  conclusa  sub  alvo  est 

Ventre  t)euni  Virgo  compositura  suo. 
Cui  facta  es  gravidi  dulcíssima  sarcina  ventris, 

Chara  patris  soboles,  et  leve  matris  ónus. 
Clausa  niancns  útero  nulli  patefacta  priorum 

Ostia  coepisti  jam  reserare  poli. 
Jure  supernorum  meritas  jam  praeparat  agmen 

Quas  referat  grates,  sancta  puella,  tibi. 
Jure  nova  exultans  per  coeli  templa  celebrai 

Gaiidia,  quod  gigni  te  sine  labe  videt. 
Per  quam  nmndetur  primorum  noxa  parenlum, 

ílumanum  maculas  contraliit  unde  genus. 
Per  quam  pars  nostri  contractas  máxima  sordes 

Eluat,  aethereis  annumeranda  choris. 
Jubilet  aula  poU,  sine  crimine  gignitur  uilo 

Aula  futura  Dei,  jubilet  aula  poli. 
Aloerat  orcus  edax,  nulla  est  in  Virgine  labes 

Quae  modo  concepta  est,  moerat  orcus  edax. 
Deprime  sanguíneas  coluber  foedissime  cristas, 

Caudaque  contracto  palpitet  aegra  sinu. 
(^onde  superbe  tuam  sinuato  corpore  írontcm, 

Protege  cervicem,  conde  superno  caput. 
Ecce  venit  mulier  laqueos  ruptura  dolosos, 

Ecce  viro  mulier  fortior,  ecce  venit. 
Ouid  miser  exultas,  quod  retia  miserit  olim 

In  tua  non  cautos  foemina  prima  pedes? 
Improbc  quid  gaudes,  mulier  quia  prima  mai'iluni 

Movit,  ut  iníiceret  sordibus  omne  genus  ? 
Gignitur  en  Virgo  primi  de  carne  parentis, 

Quae  tamen  ipsius  nesciit  una  scelus. 
Ecce  venit  maculis  mundata,  ac  lege  prioris 

Libera,  sola  tuas  non  subitura  plagas. 
Ilaec  inimicitias,  et  bella  borientia  sempor 

Terribilis  contra  teque  tuosque  geret. 
Tu  niveo  ipsius  malus  insidiabere  calei 

Pestífero  verrens  pedore  lajjsus  bumuni; 
Sanguíneo  ut  facias  letiialia  vulnera  nioi-su, 

Dirá  venenoso  dente  venena  voniens. 
llln  tibi  insultans  nec  flira  aíllabilur  auia, 

Nec  dente  icetui-,  sanguinolente,  tuo. 


442  VERSOS   DO   PADRE   JOSEPII   DE   ANCHIETA 

Cervicemqne  premct  planta  victrícc  siiporbam, 

ConfringctciLic  tuiim  coinmiiiuetquo  cai)ut. 
Tártara  iiigra  tremant :  cqiiitem  turbavit,  eqiiumquo 

Tartaroum  Virgo,  larlara  iiigra  tremant. 
Gaiuleat  ad  tantae  Conceplum  Virginis  omnis 

Quae  gemuit  tristi  terra  sub  axc  diíi. 
En  rertit  illc  nitor  coeli,  faciesqiie  serena, 

Ciii  primi  obdiíxit  nubila  culpa  viri, 
Coelica  purgatis  en  rident  alria  nimbis, 

Laetaque  placatus  protulit  ora  polus. 
Nam  tuus  ò  foelix  primae  Conceptiis  honorem 

Justitiae  retinet  munere  Virgo  Dei. 
Ut  coelum  illustres,  coelesti  luce  coruscas, 

Et  mundum  ut  mundes,  crimine  munda  venis. 
Et  dolor,  et  crimen,  diuturni  causa  doloris, 

Corripient  celerem  te  vcniente  fiigarn. 
Jure  polus  gaudet,  cujus  digníssima  Princeps 

Concipcris,  Dominum  post  paritura  suum. 
Jure  solum  gaudet,  quia  terrae  è  semine  nata  : 

Laus  eris  astrigeri  luxque  decorque  poli. 
Ciim  terra  pontus,  cum  ponto  exultat  Olympus, 

Cumque  creaturis  condi tor  ipse  suis. 
Maximus  immenso  laetatur  amore  Creator 

Mira  suae  spectat  cum  monimenta  manus: 
Contínuos  vasto  cum  cernit  in  aequore  motus, 

Et  varia  aequoreis  ludere  monstra  viis : 
Cum  videt  immotam  tam  grandi  pondere  terram, 

Cunctaque  materno  quae  fovet  alma  sinu : 
Astrigeros  pulchro  cum  temperat  ordine  coelos, 

Innumeris  florent  quae  loca  spiritibus. 
Si  de  perfecto,  quem  verbo  condidit,  orbe 

lUe  Opifex  rerum  gaudia  summus  habet : 
Tu  certè  ex  omni,  speciosa  puellula,  parte 

Gaudij  eris  summo  máxima  causa  Patri. 
Jubilat  ille  fovens  immoto  gaudia  corde 

Quòd  fecere  suae  te  sine  labe  manus. 
Perfecit  manuum  super  omnia  facta  suarum 

Hoc  unum,  et  relíquis  praetulit  Autor  opus. 
Nec  tibi  jam  tellus,  nec  jam  tibi  certet  Olympus: 

Goncedunt  forma  terra  polusque  tuae. 
Coelica  inassuetum  miratur  turba  decorem, 

Quo  nova  materno  foemina  ventre  nites. 
Scilicet  efTinxit  si  te  natura  minorem, 

At  divina  tibi  gratia  maior  in  est. 


FM   LOUVOR   DA   VIRGEM  143 

(')  opus  eximinm,  divinae  6  fabrica  dextrae 

Nobilis,  6  totó  grandior  orbe  domiis. 
Cíim  tua  laetilicet  totiim  Conceptio  mundum, 

Expers  laetitiae  ciir  ego  solus  ero? 
An  qiiia  detiirpant  foedae  mea  pectora  culpae, 

Et  maciilata  dolent  sordibus  ipsa  siiis  ? 
Munditiamque  lutum,  hicemqiie  odere  tenebrae  ? 

Et  virtus  animo  semper  acerba  maio  est  ? 
Luminaque  exborrent  faciem  lasciva  pudicam? 

Toiquet  et  impuros  integritatis  honos? 
Nec  mihi  (coníiteor)  corruptam  pondere  mentem 

Tristitiae  poterant  mergere  ad  ima  gravi ; 
Ni  tuo  reficeret  lacerum  clementia  pectus, 

Totaque  materno  mens  foret  orba  sinu. 
Nam  tua  lux  tenebras  pellit,  coenumque  repurgat 

Munditia,  et  virtus  eflugat  omne  scelus. 
Te  sequar  impurus  puram,  tibi  pectora  nostra 

Hacrebunt  vitiis  expolianda  suis. 
Nam  quis  de  immundo  conceptum  semine  mundet? 

Et  puro  foedas  abluat  amne  notas  ? 
Nonnè  tua  hoc  faciet,  Virgo  mundissima,  virtus, 

Conciperis  primo  quae  sine  sola  maio? 
Ecce  ego  flagitij  consors  vilesco  paterni, 

Primaque  de  matris  crimina  ventre  tuli. 
Totus  in  immundi  submersus  gurgite  coeni, 

Et  mea  vita  suis  est  putrefacta  malis. 
Tu  fons  munditia  purus,  scelerumque  fugatrix, 

Tu  mihi  cor  vivis  purificabis  aquis. 
Foelices  illi,  quorum  pia  pectora  amore. 

Et  desiderium  conflagrat  omne  tui. 
Foelix  qui  tacitae  per  amica  silentia  noctis 

Te  meditatur  amans,  te  meditatus  amat. 
Foelix  Virgineae  qui  observai  limina  portae, 

Assiduusque  tuas  excubat  ante  fores. 
Qui  decora  alta  tui  Conceptus  voluit  amanli 

Pectore,  quae  vita  est  áurea  porta  tuae; 
Ille  tui  dulcem  curam  cxperietur  amoris, 

Menteque  cum  munda  corporc  castus  crit. 
Ilauriet  á  Domino  veram  donante  salutem, 
,  Et  vitae  inveniet  munere  dona  tuo, 
Ó  amor,  ó  bonitas  supremi  immensa  Parcntis, 

Cujus  te  mirum  dextra  poliuit  opus. 
Laudet  eum  tanto  decorandum  numinc  coelum, 

Gratiílcoques  liymnos  pcrsonet  ore  novos. 


144 


VKRSOS  DO  PADRK   JOSEFIl  DE  AXCHIETA 


Laudet  eum  tanto  jam  foclix  muiíere  terra, 

Terra  biniim  gerans,  qiiod  feret  omne  boniim, 
Mens  quoque,  summe  Pater,  mea  te  vencratur  adoraris, 

Progenitaque  meus  Virgine  laudat  amor. 
Ó  decus,  ò  generjs  piílcherrima  gloria  nostri, 

Splendor  honestatis,  mumlitiaeque  nitor, 
Hei  mihi,  cur  sprevi  te,  formosíssima  rerum, 

Spurcitiae  turpi  caecus  amore  meae? 
Cur  non  videruiit  tantum  mea  lumina  lúmen? 

Cur  mea  non  traxit  pectora  tantus  odor? 
Me  miserum!  carnis  prodegi  animaeque  pudorem, 

Contulerat  Genitor  quas  milii  summus  opes. 
Et  procul  aufugiens^  patrem  matremque  reliqui, 

Offendens  factis  teque  Deumque  raeis. 
Et  tandem  redeo  patrem  matremque  requirens, 

Inveniam  ut  meritis  teque  Deumque  tuis. 
Ante  tuos  miserum  sine  me  procumbere  postes, 

Nec  mihi  clamanti  duriter  obde  fores. 
Istic  integras  sine  me  traducere  noctes, 

Istic  Íntegros  me  sine  flere  dies. 
Sit  tua  visceribus  Conceptio  munda  voluptas, 

Deliciae,  requies,  gustus  amorque  méis. 
Hanc  ego  contemplans^  memorique  in  mente  revelveiís 

Munder,  et  abscedat  turpis  imago  procul. 
Hujus  amor  foedum  protudet  castus  amorem, 

Foetorem  pellet  pectoris  hujus  odor. 
Ó  tu,  quae  nivei,  bona  Yirgo,  pudoris  amantes 

Diligis,  exemplo  quem  didicere  tuo: 
Me  tibi  qui  serò  mentem  corruptus  adhaesi, 

Seminecem  miíes  cum  tetigere  manus; 
Me  refovere  tui  ne  desine  pectoris  aestu, 

Flamma  tuo  tepeat  carnis  ut  igne  meae: 
Et  tibi  pollicitum  reddaí  sine  faece  pudorem, 

Juratam  servans  tempus  in  omne  fidem. 
Percipis  (an  fallor)  tremulae  vaga  murmura  voeis? 

An  sopita  jaces  tegmine  ventris  adhuc? 
Et  fortasse  tuas  obstruxit  fertilis  aures 

Sordibus,  et  vitiis  mens  mea  foeta  suis: 
Sed  timeo  immeritò:  vani  procul  esto  timores: 

Non  fallií  Matris  dulcis  imago  piae. 
Non  talem  expertus  te  sum,  mitissima:  non  sic 

Ingenij  pictas  est  mihi  tota  tui. 
Desinet  ante  leves  nox  húmida  fundere  rores. 

Et  cadere  è  gravidis  nubibus  humor  arpiae; 


K.M    LOUVOU    DA    VIRGEM  14J 

Ante  ncgent  liquidi  diílcissima  pocula  fontes, 

Ante  ílacns  vitreo  non  eat  omne  látex : 
Quam  tua  non  manet  pielalis  vena  liquores, 

Et  stent  dulcoris  lata  fluenta  tui. 
Ó  utinam  forti  nostras  sine  fine  medullas 

Concrement  igne  tui  dulcis  amoris  amor. 

De  Ortu  Beat.e  Virgims  Marle 

Quis  novus  astrigera  scintillat  lucifer  arce? 

Quis  novus  Eoo  splendet  ab  axe  nitor? 
Quis  novus  aethereo  de  culmine  fulgurat  ignis  ? 

Quae  nova  inassueto  lumine  ílamma  micat  ? 
Quae  nova  lux  rádios  caecimi  diíTundit  in  orbem? 

Quae  nova  lux  óculos  verberat  orta  meos  ? 
Maior  adest  fulgor,  rutilantior  exit  Eous, 

Clarins  erumptit  per  juga  celsa  jubar. 
Maiori  video  roseam  nituisse  rubore, 

Auroram,  nitidis  et  rubuisse  comis. 
Pulchrior  invebitur  croceo  spectabilis  aethra 

Tegmine,  flammiferis  irrequieta  rotis. 
Sed  quid  ago  insipiens?  óculos  caligine  mersi 

Decipiens  nimia  lux  nova  luce  meos. 
Nunc  etenim  primiim  cunctis  claríssima  rebus 

Haec  oritur  lampas,  lux  ubi  nulla  fuit. 
Omnia  ab  antiqua  nascentis  origine  mundi 

Texerat  horrífico  turba  Erebea  chão. 
Omnia  nox  late  nebuloso  eaeca  pavore 

Terruerat,  tenebris  obrueratque  nigris. 
Nulla  polo  densas  aurora  amoverat  umbras, 

yEthere  nocturnos  nulla  fugarat  equos. 
En  primum  placidi  sub  vértice  lúmen  Olympi, 

Quo  caruit  tenebris  obruta  terra  videt. 
Terminat  haec  noctis  tenebras,  lucemque  divinam 

Producit  radijs  Stella  corusca  novis. 
Praevenit  immensum  Solis  pulcherrima  lúmen, 

Perpetuumque  praeit  nobile  mane  diem. 
Haec  Stella  est,  oritur  quae  magni  ò  stirpe  Jacobi, 

Luxque  tenebrarum  non  habitura  vicem. 
Ec^juid  adhuc  densis  mea  mens  obduceris  umbris? 

Ecquid  adhuc  óculos  nox  tenet  atra  tuos? 
Así)ice  nascentem  íormà  praestant  Puellam, 

Cujus  ab  obs<'ui'e  hix  fugal  or  be  chãos. 

voL.  n  10 


146  VERSOS  DO   PADRE  JOSEPH    DE    ANCHIETA 

Ut  tua  coritigerit  fulgenli  lamina  ílamma, 

Aspectam  retine  tempiis  in  omne  semel. 
Ipsius  cximius  si  delectabere  amorc, 

Ipsiiis  eximius  te  refoiíebit  amor. 
Ejus  honor  verum  tibi  conciliabit  bonorem, 

Auferet  opprobrium  scibcet  ipsa  tuum. 
Haec  est,  si  nescis,  magni  nova  gloria  miindi. 

Gloria  magna  pob,  gloria  magna  soli, 
Haec  est,  infames  quae  nobibtate  parentes 

Donat,  et  amissas  crimine  reddit  opes. 
Haec  est,  quae  patrum  tollit  maledicta  priorum, 

Et  generis  delet  dedecus  omne  sui. 
Hujus  in  exortu  veteses  cestere  querela, 

Et  dolor,  ò  Joacbim,  íletus,  et  Anna,  tuus. 
Jam  nunc,  sancte  senex,  nullam  patiere  repulsam 

In  Templum  Domini  cum  tua  dona  feres, 
Jam  non  ad  caulas  indultum  íletibus  ibis, 

Nec  duces  inter  têmpora  moesta  greges. 
En  tibi  laetitiam  mundo  paritura  perennem 

Tristitiae  pariter  Filia  meta  tuae. 
Inter  foecundos  multo  foecundior  omnes. 

Et  foelix  tali  prole  ferere  pater. 
Inter  foecundas  multo  foecundior  Anna, 

Et  foelix  tanto  pignore  mater  erit. 
Foelices  nimium  foelici  sorte  parentes, 

Quos  tanto  ornavit  summus  honorc  Deus. 
Foelix  tam  longo  patientia  tempore  constans, 

Quae  talem  fructum,  ceu  bona  terra,  tubt. 
Foelix  tam  mitis,  tam  néscia  vi  ta  querelae, 

Cui  dedit  omnipotens  praemia  tanta  manus. 
Foelix  ò  pietas  Templo  miserisque  benigna 

Pauperibus,  tanto  magnificaía  bono. 
Foelices  lacrymae  tam  dulce  levamen  adepta  : 

Ó  foelix  nactus  gaudia  tanta  dolor ! 
Laetare  ó  Joacbim,  tua  quondam  Filia  Mater 

Facta  Dei  magnum  te  quoque  reddet  avum. 
Gaude  Anna,  efficiet  tua  jam  tibi  Nata  Nepotem, 

Quem  pariet  salva  vjrginilate,  Deum. 
Quo  feror  impulsu  demens?  quo  turbine  raptor? 

Quo  céleres  properant  tam  sine  more  pedes? 
Cur  oculis  eíTluitis,  nec  Virginis  ora  videtis. 

Ora  verecundis  plus  rubicunda  rosis? 
Cur  vos  non  retinent  natae  formosa  Puella 

Lumina,  Phcbeo  lumine  clara  magis  ? 


EM   LOUVOR   DA   VIRGEM  147 

Fallor?  an  el  nostras  vagitus  jiercutit  aures? 

Quae  mihi  tam  diílces  attulit  aura  sonos? 
Fallor  ?  an  et  nomen  somiit  mihi  dulce  Mariao, 

Et  dedit  ad  nomen  machina  signa  triplex  ? 
Súbdita  virgineum  venerantur  sydera  nomen : 

Súbdita  virgineum  nomen  adorat  húmus. 
Terribih  pavitant  Erebei  nomen  caetus, 

Saevus  et  in  Stygijs  abditur  anguis  aquís. 
Ó  mihi  melUfluâ  plenum  dulcedine  nomen! 

Ó  nomen  miris  dulce  Mariae  modis ! 
Si  fmis,  ante  tuas  pro  munere  paucula  Cunas 

Captus  amore  tui  carmina,  Virgo,  canam. 

Salve  divino  tam  compta  Maria  decore, 

Ut  tuus  angélicos  sit  nitor  ante  choros. 
Ó  salve  humano  tam  nobilis  ore  Maria, 

Transeat  humanos  nt  tua  forma  modos. 
Tu  male  confractum  fortis  solidabis  Olympum, 

Antiqua  renovans  integritate  poios. 
Humana  aethereas  implebis  gente  ruinas 

Invicto  Nati  robore  freta  tui. 
Nempe  Dei  paries  intacto  viscere  natum: 

Ille  salus  cunctis  única  rebus  erit. 
Ó  Muher  fortis,  quae  post  tot  temporis  annos 

Inventa  es  tandem  foemina  fortis.  Ave. 
Ó  Urbs  divini  moles  operosa  laboris! 

Ó  Domus  Artificem  compositura  tuumf 
Ó  nova  progénies!  divinae  ó  nobile  donum, 

Quod  meruit  Joachim,  mater,  et  Anna,  manus! 
Exoreris  claro  magnorum  ò  sanguine  Regum ; 

Sed  genus  exuperas  nobilitate  tuum. 
Non  ideo  es  foelix,  magnis  quia  Regibus  orta, 

Ista  nec  à  patribus  gloiia,  Virgo,  venit: 
Sed  quia  te  tantam  neptem  gcnucre,  bcati, 

Dequè  tuà  patrum  gloria  íaudct  íluit. 
Si  bené  contemplor,  tu  sancta  infanlula  vitae 

Arbor  es  aeterna  fértil itate  gravis. 
Cujus  in  est  radix  humih  benè  condila  terrae. 

Árdua  sublimis  sydera  tangit  apex, 
Cujus  utramque  domum  cíjntingunt  brachia  solis,, 

Pertingunt  rami  cujos  utrumíjue  polum. 
Subque  tuis  foliis  oporis  genus  omne  animantum: 

Protegit  Timbra  homines,  prolegit  umbra  feras. 
Quippe  bonos  i)Iacida  milissima  prolegis  umbra, 


148 


VERSOS   DO   PADRE   JOSEPli   DE   ANCHIETA 


Nec  tua  cum  veniimt  respicit  iimbra  maios. 
En  mea  continuo  mens  aestuat  igne  malorum: 

Protege  me  sparsis,  arbor  amoena,  comis. 
Inque  tuis  possim,  volucris  ceu  caelica,  ramis 

Divinos  laeta  promere  você  modos; 
Quales  multiplici  fundunt  modulamine  cantus, 

Quos  tuus  assiduis  ignibus  urit  amor: 
Quos  juvat  ambages  vtrtutum  ambire  tuarum, 

Perquò  tua  incessus  figere  facta  suos. 
Tu  Baculus  fragiles  sustentans  robore  vires, 

In  laqueum  dúbios  nec  sinis  ire  pedes. 
Non  metuant  casum,  tibi  qui  inniluntur  et  liaerent, 

Qui  sua  committunt  omnia,  seque  tibi. 
Respice  ut  omnis  abit,  vigor,  et  genua  aegra  labascunl, 

Gonfirmet  tremuium  ne  tua  dextra  cadam. 
Tu  coliis,  stillat  pingues  ubi  syha  liquores, 

Puraque  de  matris  cortice  odora  fluunt. 
Cujus  odor  vivos  reficit,  vitaeque  reducit 

•Quos  rapuit  fati  mors  fera  lege  sui. 
Ille  mihi  Stygio  mentem  foetore  putrentem, 

Foedaque  de  turpi  sustulit  ora  fimo. 
Tu  ductus  vivae  latòque  fluentis  aqnalis. 

Per  quem  divini  ilumina  fontis  eunt: 
Currit  inexhausto  per  quem  sacra  gurgite  iymplia, 
^  Uber,  et  in  steriles  labitur  amnis  agros. 
Ó  mihi  vitalís  per  te,  precor,  influat  humor, 

Ne  nocuo  pectus  conílagret  igne  meum. 
Tu  vera  effigies,  divini  et  imago  decoris, 

Cujus  sydereus  splendor  in  ore  nitet. 
In  qua  ceu  speculo  magni  perfectio  lucet, 

Virtutesque  omnes,  ingeniumque  Dei. 
Imprime  formosam  nostris,  benedicta,  figuram 

Pectoribus  vitae  munditiaeque  tuae. 
Tu  Fulmen  rapidis  comburens  crimina  ílamrais, 

Tartareosque  cremans  sub  Plilegetlionte  duces. 
Nomen  avernales,  ó  Virgo  Maria,  phalanges 

Fundit,  et  aííligit,  praecipitaqiie,  tuum. 
Hoc  mihi  pro  telo,  beilo  insurgente,  Maria, 

Hoc  mihi  pro  forti  fulmine  nomen  erit. 
Tu  Genmia  ignitos  vincens  fulgore  pyropos. 

Áurea  qua  magni  fulgurat  aula  Dei. 
Tu  pretiosa  nimis  perlucida  margarita, 

Unde  sibi  ornatimi  terra  polusfjue  petunt. 
Pectura  quae  vario  pingis  tibi  dedila  cultu, 


EM  LOUVOR  DA  VIRGEM  149 

Pictaque  divino  digna  favore  facis. 
Tu  latices  ole  facundos  Ilydria  fundis, 

Oníniaque  pingui  vasa  liquore  reples; 
Debitor  unde  miser,  postquam  suo  debita  soluit, 

Unde  in  perpetuum  vivere  possit,  habet. 
Languoresque  meos  óleo  pietatis  inungens 

Efficis  ad  luctam  fortia  mcmbra  mihi. 
Tu  Jaculura  dulci  laedens  praecordia  amore, 

Quae.  nostra  ut  sanes  interiora  feris. 
Quae  rumpis  molli  penetralia  pectoris  íctu, 

Vulneraque  solo  lumine  magna  facis. 
Nam  quemcumque  pijs  spectabilis  mitis  ocellis, 

Ille  tuo  graviter  saucius  ense  gemit. 
Tu  Luna  illustri  nunquam  variabilis  ore, 

Cui  jugis  impleto  praestat  inorbe  nitor. 
Quae  luces  tenebras  inter  versantibus  atras, 

Et  lux  in  caecà  nocte  diurna  micas. 
Qui  sua  luce  tua  vestigia  rexerit,  ille 

Laetus  in  occidui  lumine  solis  erit. 
Tu  Mari,  tu  magnum,  tu  magna  maior  abysso, 

Agmina  quae  condis  non  muneranda  sinu: 
Magna  ubi  cum  parvis  animalia  piscibus  errant, 

Cunctaque  sunt  matris  tegmine  tuta  suae. 
Sub  tua  tecta  boni  fugiunt;  nec  dura  repellis, 

Cum  miseri  fugiunt  sub  tua  tecta  mali. 
Tu  Navjs,  nuUis  quam  motibus  aequora  jactant, 

Hórrida  quam  nullo  turbine  quassat  hyems, 
Cujus  in  hospitio  tranquillum  navita  cursum 

Conficit,  et  pedibus  littora  tuta  premit. 
Tu,  sacra  ne  indomiti  vastent  altaria  lauri, 

Perpétuos  Templi  lumina  claudis  Obex: 
Quem  neque  tartareae  poterunt  infringere  portae, 

Nec  malus  ostcntis  haeresiarcha  novis. 
Obsigna  validis  nostri  precor  ostia  cordis 

Veclibus,  ut  soli  sint  adaperta  Deo. 
Tu  placidus  Porlus,  slacio  secura  carinis, 

Quas  agit  insani  vis  furrosa  frelí, 
En  mea,  quae  diris  agilatur  òymba  procellis, 

Ad  te  jam  fesso  remige  tarda  venit. 
Torva  reluctatur  cum  sacvis  marmora  vontis: 

Porrige,  ne  pereat,  Virgo  benigna,  manuni. 
Tu  Qnaílriga  Dei,  (jiiac  justo  excila  furore 

Protoris  liostilcs  impetuosa  maniis. 
Indu  jam  robur,  dignas  accendere  in  iras. 


ioO  VERSOS  DO  PADRE  JOSEPII  DF,  ANCHIETA 

Obrue  quae  surgiint  agmina  saova  milii. 
Tu  Rosa  do  spinis,  nec  spinis  pungeris  orta 

Perpetuo  primi  veris  liorioro  riilens. 
Quam  nec  tristis  liyems,  liiisutaquc  frigora  laedunt, 

Nec  malus  aestivo  marcidat  igui  polus. 
Quae  aeterno  seros  ornabis  flore  nepotes, 

Quae  aeterno  primos  flore  fouebis  avos. 
Tu  Speculum,  Signum,  Sydus,  Stimulusque,  Salusque, 

Justitiae,  fidei,  lucis,  amoris,  bumi. 
Justitia  illustra,  fidei  pugnantia  signo 

Castra  rege,  aeíernae  fundito  lucis  opes. 
Divino  stimula  tandem  mihi  pectus  amore,  . 

Pande  salutares  ad  sacra  templa  vias. 
Tu  Tegmen  rapidi  ferventi  solis  ab  aestu, 

A  rígida  glacie,  frigoribusque  nivis : 
Quo  pater  Adamus  probrum,  quo  prima  pudorem 

ília  parens  culpae  conteget  Eva  suae: 
Quo  mens  mída  mihi  velamine,  nuda  tegantur 

Membra  Creatori  grata  futura  suo. 
Tu  generosa  virens  Jessaea  ex  arbore  Virga, 

Yirga  carens  nodo,  cortice  Virga  carens. 
A  prima  modum  nec  ducis  origine  culpae, 

Cortice  nec  proprij  criminis  aspra  riges. 
Tartareum  duro  torquebis  fuste  tyrannum, 

De  malé  possessa  projiciesque  domo. 
Ipsa  tuos  molli  castigas  verbere  amicos, 

Percussosque  tuo  dulcis  amore  foues. 
Caede  meãs  crebro  pia  verbere  virgula  costas : 

Dulce  tuae  fuerit  ferre  flagella  manus, 
Caede,  nihil  parcas;  debentur  verbera  culpis: 

Caede,  nihil  parcas;  leviter  illa  feram. 
Si  tibi  dilectos  clementi  viscere  amoris 

Percutis,  ut  charus  sim  tibi,  caedar  ego. 
Caede,  nihil  vereor  nê  Virga  occidar  ab  ista: 

Non  novere  tuae  pernecuisse  manus. 
Caedis  enim  sanans,  et  sanas  vulnera  caedens, 

Et  redit  ad  plagas  vita  perempta  tuas. 
Ó  Virga  intacto  tacíura  cacumine  coelos, 

Augmentique  tui  vix  habitura  modum. 
Exultate  poli,  coUes  gaudere  perennes, 

Plaudite  syderibus  florida  regna  rubris. 
Angelici  properate  chori,  properate  ministrij 

Alternis  céleres  ite,  redite  vijs. 
Festivas  natae  choreas  celebrate  puellae, 


E.M  I,OUVOR  DA  VIRr.EM  íi)l 

Carmina  fundentes  Virginis  ante  torum. 
ília  venit  vestras  olini  sarlura  minas, 

lUa  decus  vestris  sedibus  orla  vehit. 
Sternite  aromaticis  ciinabula  Virginis  herbis. 

Pingile  purpureis  molle  cubile  rosis. 
Balsameis  teneros  perfundite  odoril)iis  artus. 

Regales  gemmis  el  decorate  comas, 
Formosis  Annae  consternite  floribus  ulnas, 

Quosque  sedet  dulci  pondere  pressa  fmus, 
Ó  vero  foelix,  cassumque  gravamine  pondus, 

Qod  sedet  in  grémio  nobilis  Anna  tuo. 
Nec  gravis  in  gravido  fuit  baec  tibi  sarcina  ventre, 

Ulla  nec  in  partu  poena  dolorvé  fuit: 
Jure  ne  qiiae  mimdi  venit  ablatura  dolores 

Tristitia  ciim  tristi  damna  dolore  daret. 
Conceptus  dulcis  dulcem  quoqiie  praevenit  ortmii: 

lile  carens  maculis,  iste  dolore  fuit. 
Dulce  tibi  teneros  involvere  vestibus  ai1us, 

Amplectique  ulnis  membra  tenelia  pijs. 
Dulce  verecundis  infingere  basia  malis, 

Dulce  labris  Natae  labra  fouere  tuis. 
Dulce  tibi  plenas  ori  inservisse  mamillas, 

Pellerc  lacte  famem,  pellere  lacle  sitim. 
Dulce  tibi  incompto  cantu  sopire  puellam 

Árida  nectarens  dum  rigat  ora  liq  vor. 
Omnia  cum  dulci  tibi  sunt  dulcíssima  Prole, 

Plusquc  tui,  quam  tu,  pectoris  illa  tenet. 
Huc  omnes  properalc,  gravis  quos  sarcina  culpae 

Deprimit,  et  pressos  tártara  versus  agit. 
ísta  Uedemptorem  pariet  moclò  nata  Puella, 

Qui  grave  sublato  crimine  tollet  ónus. 
Ferte  pedem  pueri,  juveniles  currite  caetus; 

Munera  ferte  viri,  munera  ferte  senes. 
Currite,  quí  nivei  fastigia  ad  alta  pudoris 

Ritè  per  acclives  quaeritcs  ire  vias. 
Ilaec  molli  ducens  ad  cana  cacumina  clivo 

Yirgineum  Irito  tramito  pandet  itcr. 
()  Domina,  ò  Virgo  formosi  zona  pudoi'is: 

Si  bene  quos  vincis  solverc  nomo  polesl. 
Stringe  meos  casía,  benedicta,  ligamine  lumbos, 

Vincula  circunda  rcniluis  arda  móis. 
Haec  cape,  quão  cecini,  Virgo  i)ulcberi'ima,  cunis 

Turpis  abortivus,  paupor  inops(iuc  tuis. 
Lília  plura  meus,  florum  tibi  laeta  nibentum 


15Í  VERSOS  DO  PADRE  JOSKPH  DE  ANCHIETA 

Stemmata  nascenli  piara  pararat  amor. 
Nunc  tamen  illa  tibi  pariturae  numera  servo, 

Cum  Deus  in  grémio  sederit  ipse  tiio. 
Interea  dulci  distentas  lacte  mamillas. 

Et  bene  praemansos  sume  tenella  cibos: 
J5t  Domini  in  Templum  cresças  portanda  sacratum, 

Grande  decus,  mimus  nobile,  clarus  honos. 
Me  quoque  ut  in  casto  pulcbri  mibi  crescat  amoris 

Pectore  flamma,  tui  pabulo  amoris  ale. 

De  Pr^sematione  Virgims  Mari.e 

Prodit  odorífero  fragrans  nova  Virgula  fumo, 

Altaque  aromaticus  sydera  tangit  odor. 
Ostia  jam  resera  divini  grandia  Templi 

Janitor,  et  verso  cardine  pande  fores. 
Deme  sacris  adytis  velamina  summe  sacerdos, 

Incensum  ut  Joachim  ponat,  et  Anna  suum: 
Divinamque  pio  suCfimine  adoret  ad  aram 

Summa  novo  venerans  numina  tlmre  Dei, 
Atria  taurino  non  poUuet  ille  cruore, 

Nec  coquet  accensis  cárnea  frusta  focis: 
Nec  summum  hircorum  placabit  sanguine  Patrem, 

Ante  nec  aeratas  concidet  agna  fores. 
Scilicet  Omnipotens,  quaecumque  in  montibus  errant 

Jumenta,  et  pingues  lata  per  arva  boves, 
Quasque  feras  densis  abscondit  sylva  latebris, 

Aèrias  volucres,  lanigerosque  greges, 
Granimaque,  et  pulchris  vestitos  floribus  agros 

Condidit,  et  domina  temperat  ipse  manu. 
Non  haec  iratum  placabit  victima  coelum, 

Munera,  nec  sanctus  praeparat  ista  senex: 
Sed  merita  fundet  médio  de  pectore  laudes, 

Reddet,  et  excelso  jam  sua  vota  Deo: 
Quae  pius  emisit,  maesíum  cum  degerit  aevum 

Prole  carens  dulci,  probraque  multa  ferens. 
Ecce  venit  tandem  foelici  pignore  íoelix, 

Et  cum  dono  aras  divité  dives  adit. 
A  Domino  acceptam  Domino  dabit  ipse  Mariam, 

Et  Templi  tanto  munere  crescet  honor. 
Hujus  enim  moUes  nardi  pubeníis  aristas, 

Galbana,  thus,  myrrliam,  bal sarna,  vincet  odor. 
Haec  dabit  innocuum,  qui  crimina  deleat,  Agnum, 

Hóstia  pro  cunctis  qui  cadet  una  reis. 


EM  LOUVOR  DA  VIRGEM  4  53 

Qui  simiil  ac  diro  milissimus  occidet  ense. 

Cessabunt  caedi  pinguia  colla  boiím. 
Ille  suo  veíeres  delebit  sanguine  sordes, 

Ille  cruor  puro  piirior  amne  íluet. 
Ille  semel  sacra  mactabitiir  Agniis  in  ara, 

Yictimaqiie  aeternum  toliiis  orbis  erit. 
Ergo  veni,  foelix,  ó  Virgo  tenerrima,  donum, 

Accipiant  adytis  te  sacra  Templa  suis. 
Egredere  insignis,  sedesqiie  relinqiie  paternas; 

Tecta  manent  veri  te  speciosa  Patris. 
Desine  de  collo  dulcis  pendere  parentis: 

Mater  eris  Domini  jani  sine  labe  tui. 
Sperne  puellares,  divina  Infantula,  mores: 

Maturus  mentis  jam  tibi  sensus  erit. 
Namque  tiiimi  summus  Rex  aetheris  optat  amorem, 

Igne  Deus  formae  carpitur  ipse  tuae. 
Sensibus  ille  tuos  maturis  períicit  annos, 

Arcanique  arcam  te  cupit  esse  sui. 
Rumpe  moras  omnes  charos  comitata  parentes; 

Incipe  divinum  Virgo  triennis  opus. 
Ecce  venis  rutilans:  acies  properate  polorum, 

Virgíneas  vario  pingite  flore  vias. 
Ecce  venis  multis  electa  ex  millibus  una, 

Sol  ut  it  ignivomis  pulchra  per  astra  rotis. 
Ecce  venis  miro  spectabilis  ora  nitore, 

Lucet  ut  impleto  cândida  luna  globo. 
Duceris  in  Templum  magni  nova  sponsa  Tonantis, 

Et  terit  insuetas  planta  tenella  vias:  •    • 

Imparibusque  patris  vestigia  passibus  aequa, 

Maternamque  premis  paiTula  Virgo  manum. 

DePLORATIO  ANIMyE  VIRGIMTATIS,  IN  CONSPECTU 
VlRGINIS 

Ut  pátrio  profers  divinum  è  limine  vultum, 

Spargitur  ambnjsius  moenibus  urbis  odor. 
Et  sensi,  aut  certe  credens  sensisse  cucurri, 

Oblatum  calcans  qua  rapiebar  iter. 
Et  dixi:  Quid  agis,  inea  mens?  age  curre,  videre 

Sicubi  forte  sacrae  Virginis  ora  potes. 
Nec  mora,  festinis  dum  cursibus  emico,  vidi 

Ante  sacros  Tompli  Virginis  ora  gradus. 
Ut  vidi,  ut  perij  jaculo  confessus  amoris, 

Ut  mea  Iraxisti  lumina,  Virgo,  tuis: 


454  VERSOS  DO  PADRE  JOSEPH  DE  ANCHIETA 

Ut  milii  inassuetis  ardoribiis  intima  carpsit 

Pectora  formosae  virginilalis  amor: 
Certus  eram  niveo  circundare  fraena  pudori, 

Claustraque  perpeluis  redderc  firma  scris: 
Perque  luos  passu  foelici  incendere  gressus, 

Moril)iis  exultans,  cândido  Virgo,  tuis. 
Hei  mihi,  fugisti  celeri  mea  lumina  planta, 

Tardarei  gressus  cum  mora  longa  meos. 
Eccc  ferus  telis  oppugnans  mollibus  hostis 

Expugnat  robur  pectoris  omne  mci: 
Claustraqiie  confringens  male  custodita  serasque, 

Corporis  atque  animae  depopiilavit  opes. 
Time  ego  jam  sero  mea  tristia  damna  rependens, 

Heu  perijt,  dixi,  virginitatis  honos! 
Moesta  que  percutiens  geminatis  pectora  pugnis 

Fata  dolens  planxi  talibus  atra  sonis. 
Hei  mihi,  quis  laesit  nunquam  reparal)ile  clauslrum? 

Quae  vis  obstructas  fregit  iniqua  fores? 
Quae  tam  saeva  tuam  rupit,  mea  vinea,  sepem 

Bestia?  maceriam  quis  lacera  vi  t  aper? 
Ecce  carens  muro  fis  omnia  praeda  latroni, 

Ecce  patês  cunctis  pervia  íiicta  feris. 
Cur  me,  summe  Parens,  eduxti  in  limiiinis  oras? 

Cur  tetigi  ex  matris  viscere  na  tus  humum? 
Atque  utinam,  aspicerent  ne  mea  tua  lumina  turpem, 

Consumpta  in  primo  limine  vita  foret. 
Ó  utinam  pulchri  labem  visura  pudoris 

Ultima  venisset  funeris  hora  mei. 
Quippe  foret  levius  consumi  funere,  et  omnes 

Sulphureo  poenas  sub  Phlegethonte  pati, 
Quam  tua,  sancte  Pater,  bonitas  immensa,  potestas 

Suprema,  aeterno  agnus  amore  decor, 
Quam  tua,  sancte  Pater,  factis  laesisse  nefandis 

Numina,  et  inter  óculos  foeda  patrasse  tuos. 
Ó  anima  infoelix,  deformis,  adultera,  faetens, 

Turpis,  et  in  turpi  corpore  clausa  manens. 
Excute  torporem,  corruptum  concute  pectus, 

Horrorem  sceleris  sórdida  volue  tui. 
Quis  formam  pulchri  tibi  (proh  dolor!)  abstulit  oris? 

Quis  tua  tam  turpi  polluit  era  luto? 
Tunc  illa  es,  quondam  quam  vitreus  abluit  amnis, 

Crystallo  pectus  candidiusque  dedit? 
Quam  sacer  aethereo  purgavit  Spiritus  ígne, 

Excocta  ut  ílammis  áurea  tota  fores? 


EM  LOUVOR  DA  VIRGEM 

Tene  rato  Sponsiis  junxit  sibi  foedere  siimmus 

Cum  tua  loecundis  crimina  lavit  aquis? 
Dic  ubi  sacra  fides,  jurataque  federa  quondam? 

Dic  ubi  promissiis,  nec  violandiis  amor? 
Pérfida  poUiciti  temerasti  jura  pudoris: 

Sprelus  amor  maeret,  facta  doletque  fides. 
Displicuit  Sponsiis,  placuit  tibi  tm"pis  adulter: 

Hospitíum  Domini  fnr  scelerosus  habet. 
Sprevisti  Regem,  Stygium  complexa  tyrannum; 

Hic  heriis  infamis,  nobilis  ille  Pater. 
Linqiiis  amatorem,  syncerum  pellis  amicum; 

Accipis  osorem,  te  íerus  hostis  habet. 
Sórdida  quin  plagis  Patrem  offendisse  benignum, 

Debuit  esse  tuus  qui  tibi  solus  amor. 
Quin  scelerata  gemis  Dominum  tempsisse  potentem, 

A  te  cui  fuerat  summus  habendus  honor. 
Quin  perjura  doles  Sponsi  violasse  suavis 

Foedera,  adulterijs  et  maculasse  torum. 
Sorde  lupanaris  turpasti  foeda  cubile: 

Sponsus  abest  dulcis,  torfor  acerbus  adest. 
Quae  rabies  miseram,  quae  te  tam  dirá  hbido 

Abstulit  amentem?  quae  rapuere  faces? 
Turbo  tuum  veliemens  foedarum  mersit  aquarum 

(Proh  dolor!)  in  faecis  stagna  profunda  caput. 
Ecce  jaces  Regi  superorum  invisa  polorum; 

Ecce  cares  Sponsi  coelico  amore  tui. 
Sordibus  implicitam  turpis,  quem  turpis  amasti, 

Te  tenet  in  foedo  perditor  ille  sinu. 
Ó  jactura  gravis  nullo  reparanda  labore! 

Ó  grande,  amissum  tcmpus  in  omne,  bonum! 
Ó  decor  abjecti  nunquam  rediture  pudoris! 

Ó  decus,  6  nunquam  restituendus  honor! 
Ó  bona  virginitas,  Sponso  tam  grata  decoro, 

Quis  mihi  te  casus,  quae  fera  aderait  hyems? 
Sola  tui  restat  nuper  mihi  dulcis  imago; 

Tu  scmel  infoelix  perdita  proi'Sus  abes. 
Flete  ocuU  tantam  vultu  squallente  ruinam, 

Fusaque  lascivas  sordidet  unde  genas. 
Huc  lacrymac,  huc  gcmitus,  planctus;  formido,  pavores; 

Huc  ddor,  huc  pallor,  terror,  et  horror  ades. 
Obruite  insano  curarum  vórtice  mentem; 

Mergite  trislitia  tártara  ad  ima  caput. 
Aut  tu,  summe  Pater,  vel  me  Stygis  abdc  lacunis, 

Oífendant  óculos  ne  mca  fada  tuo:^. 


iS6  VERSOS  DO  PADRE  JOSEP  DE  ANCHIETA 

Vel  tere  contrito  carnem  cnm  corde  procacem, 

Ut  jam  gi\ita  suo  sit  mea  vi  ta  Patri. 
Haec  ego  cuni  gemerem,  trisli  et  meiís  aegra  doloro 

Plangeret  ad  sponsum  certa  redire  suum; 
Delicljs  uti  tm^jis  suadebat  adulter, 

Et  dare  nequitiae  libera  fraena  meae. 
Niilla  tibi,  ajebat,  capienda  in  morte  volúpias: 

Dum  licet,  in  medijs  diíílue  laxus  aquis. 
Credere  visus  eram,  victumque  libido  traliebal 

In  consueta  meãs  vincla  datura  manus, 
Inque  tenebroso  vitiorum  mersa  baratliro 

Jam  prope  laeta  suis  mens  erat  ipsa  malis. 
Cum  prope  mors  esset,  nec  spes  foret  ulla  salutis, 

Vellet  et  in  lecto  foeda  j acere  suo: 
Néscio  quis  lenis  placidae  mihi  sibilus  aurae 

Hos  dedit  inspirans  cordis  in  ore  sonos. 
Quam  voluere  diu  coeno  lutulentus  in  isto, 

Surge,  veni  sacros  Virginis  ante  pedes. 
Si  turpem  vultu  te  exceperit  illa  sereno, 

Ne  timeas,  sordes  abluet  illa  tuas. 
Surgo  gravis  metem  multorum  mole  malorum. 

Et  vetus  in  túmido  corpore  torpor  erat. 
Dejectusque  caput,  faciemque  tegente  pudore, 

Vix  vení  ante  óculos,  Virgo  benigna,  tuos. 
Nec  visus  oculis,  nec  erat  data  copia  íletus; 

Condebant  pressae  lumina  gesta  genae. 
Nec  quibus  aíTarer  noram  te,  cândida,  verbis; 

Haerebat  gélido  torpida  lingua,  metu. 
Mens  sibi  luxuriae  pavitabat  cônscia  turpis; 

Attonítus  multo  crimine  totus  eram. 
Captabam  sola  divinas  aure  loquelas, 

Dulce  tuo  flueret  si  quid  ab  ore  mihi. 
Ecce  labris  prodit  (nisi  falsa  illusit  imago 

Indignum)  talis  vox  mihi  nota  tuis. 
Surge,  veni  mecum  sacrata  in  templa  Tonanlis: 

Tu  mihi  perpetuo  tempore  servus  eris. 
Audivi,  et  vita  simul  ac  sermone  resumpto, 

Ecce  sequor,  dixi,  quo  benedicta  venis. 
Mors  odiumque  méis,  sanctique  aversio  vultus, 

Poenaque  debetur  non  moritura  malis. 
Sed  vitam  indigno,  et  dulcem  si  reddis  amorem, 

Ista  tuae  maior  laus  pietatis  erit. 
Haec  ego,  tu  facili  visa  es  risisse  favore, 

Et  subijt  menti  spes  inopina  meae: 


EM  LOUVOR   DA  MRGEM  187 

IncreviKíue  tuos  imitaiidi  audácia  mores, 
Teqiie  vol  à  longe  quà  licet  usque  sequi. 

Inghessus  Viro  IMS  in  Templu.m 

Scande  gradus  igitur  quindenos  párvula  Temi)li 

Sola,  nec  auxilijs  utere,  Yijgo,  patris. 
Jam  tua  marmóreas  superant  solidata  columuas 

Crura,  quibus  Templi  grande  sedebit  opus. 
Quanta  tuos  gressus,  ò  filia  Principis,  ornat 

Gloria!  dissimiles  quam  tulit  Eva  suos! 
lUa  voluptatis  pascens  vaga  lumina  in  horto, 

Infausto  movit  calle  superba  pedes; 
Lethale  ut  verita  decerperet  arbore  pomum, 

Unde  hominum  premeret  mors  truculenta  genus, 
Tu  hastura  óculos  divina  luce  modestos. 

Sacra  humilis  fausto  tramite  Templa  petis: 
Vitalem  ut  gignas  arbos  ubérrima  Fructum, 

Unde  salus  mundo,  veraque  vita  fluat. 
Exit  Isacides,  quas  claro  è  sanguine  natas 

Maenia  regalis  celsa  Sionis  alunt. 
Abdita  sacrati  penetralia  linquite  Templi, 

Currite  ad  auratae  limina  prima  foris. 
Aspicite  intento  Reginam  lumine  vestram, 

Cândida  cui  decorat  coelicus  ora  rubor. 
Cujus  divinum  solis  rota  pulchra  decorem 

Suspicit,  et  radijs  Cintliía  clara  suis. 
Quae  matutinis  foelix  laudatur  ab  astris, 

Cui  magni  exultant  pignora  cuucta  Dei. 
Haec,  modo  quam  certos  Domino  servatis  in  anuo», 

Perpetuae  doctrix  virginitatis  erit, 
Dirigite  bane  ânimos,  óculos  hanc  íingite  in  unam: 

ília  manus  vestras  dirigat,  illa  pedes. 
Ilaec  illa  est  ctenim  fortíssima  Foemina,  cujus 

De  extremo  pretium  fine,  proculque  venit. 
Quam  Deus  omni[K)tens  post  saecula  multa  repertam 

Sanguine  connectet,  conjugioque  sibi 
Namque  erit  aeterni  conjux  puicherrima  Palris, 

Et  Nati  illaeso  sancta  pudore  parens. 
Vir  sus  invictis  coníidit  viribus  ojus, 

Correptura  cilam  castra  inimica  fiigam. 
Victoremque  diu  victrix  cum  vincet  Avernum, 

Exuvias  allis  inferet  alta  i)olis. 
Nulla  mali  lacílenl  ejiis  contagia  j)ectus, 

Sed  tola  incodet  splendida  vila  bonis, 


158  VERSOS  DO  PADRE  JOSEPlí  DE  ANCHIETA 

Sed  rogo  vcl  minimam  lanloriim  Virgo  bonorum^ 

Quae  facis  in  templo,  dic  mihi  particulam. 
Si  quis  enim  cunctas  virtutes  dicere  verbis, 

Aut  sola  vellet  volvere  mente  tuas: 
Mentis  inops  fureret,  citiusque  ingentis  arenas 

Aequoris,  aut  herbas  enumeraret  agri; 
Aut  pluviae  guttas,  aut  vasti  sydera  coeli, 

Aut  sylvae  densas,  quam  tua  facta,  comas. 
O  foelixTemplimi  Templo  formosius  isto, 

Perpetuus  cujus  pectore  fumat  odor. 
Da  mihi,  si  nequeo  sanctae  primordia  vitae 

Dicere,  at  interno  prosequi  amore,  tuae. 
Ille  tuam  referet  pulchram  mihi  saepe  figuram^ 

Nec  procul  à  facie  te  sinet  esse  mea. 

ViTA  VmGiNis  IN  Templo 

Tu  Domini  supplex  humilisque  Ancilla  superni 

Virgíneas  aptas  ad  pia  dona  mamis. 
Aut  niveas  tenero  deducis  poUice  lanas; 

Aut  trahis  ò  plena  moUia  lina  colo. 
Nunc  quatis  arguto  bombycina  pectine  fda, 

Serica  nunc  tenui  pallia  pinguis  acu. 
Nunc  intertexto  velamina  perficis  auro. 

Cortinas,  mappas,  purpureasque  togas. 
Tenuia  multiplici  vel  texis  retia  modo, 

Aut  nectis  varijs  byssina  pensa  modis. 
Albave  distinguis  bis  tincto  carbasa  cocco, 

Lute  ave  aéreo  texta  colore  notas. 
Assuis  aut  sacris  redimicula  pêndula  mithris, 

Carbunclos  rútilos,  sardonycesque  rubros: 
Unde  tabernaculum,  sacrumque  altare  teguntur, 

Tegmina  sacrificans  unde  minister  habet. 
Amphficat  cultum  sancti  tua  dextera  Templi, 

Nec  tibi  fit  multe  lassa  labore  manus: 
Extendisque  pias  inopi  mitissima  palmas, 

Dextraque  pauperibus  semper  aperta  tua  est. 
Mollia  virgineís  non  praestas  otia  membris, 

Curaque  terreni  non  subit  uUa  cibi. 
Nam  tibi  de  coelo  coelorum  Conditor  escas 

Mittit,  et  aetherea  pasceris,  usque  dape. 
Servitiumque  tibi  chorus  exhibiturus  amicum 

Aliger  aereis  itque  reditque  vijs: 
Teque  Dei  matrem  quasi  jam  praesagiat  alti. 


EM  LOUVOU  DA  VIRGEM  159 

Slat  Dominae  vultiim  subdilus  ante  sua. 
Nun  extinguetur  caecà  tua  noctc  lucerua; 

Est  tibi  nox  claro  clarior  ipsa  die. 
Ut  tua  de  mulsit  tantillus  lumiiia  somrius, 

In  tacita  surgis  paupere  noctc  toro. 
ínque  tui  dulci  conclavi  sedul  acordis 

Quem  tua  dilectum  mens  pia  quaeris  amat. 
Quaeris,  et  invento  strictis  amplexibus  haeres, 

In  charique  jaces  deliciata  sinu. 
Ilic  de  divinae  clarissima  lumina  lucis, 

Largaque  de  vitae  gaudia  fonte  bibis. 
ílic  tibi  magnarum  reserat  mysteria  rerum, 

Deliciis  recreat  dum  tua  corda  suis. 
Pascitur  ille  tui  fragrantia  pectoris  inter. 

Lilia,  odoriferis  decubat  inque  rosis. 
Ille  tibi  charus,  tu  multo  charior  illi: 

Exuperat  que  suo  for  tis  amore  tuum. 
Ipsa  tuos  valida  firmas  virtute  lacertos 

Constrictumque  tenes,  nec  procul  ire  sinis. 
Clausa  nec  spectas  ut  pulset  ad  ostia  mentis, 
'  Sed  patet  illi  animus  nocte  dieque  tuus. 
Cor  tibi  perpetuo  vigilat  sine  pondere  somni. 

Ipsa  licet  jaceas  pressa  soporc  genas: 
Plenaque  perpetui  tua  chrismate  lampas  olivi 

Non  extinguendo  lumina  clara  micat. 
()  vigilans  Virgo  muliebris  gloria  sexus, 

Ó  juge  solari  pulclirius  orbe  jubar. 
Dum  tibi  delitiae  replent,  dum  lumina  mentem, 

Dilecti,  huc  óculos  flecte  modesta  tuos. 
Percute  nostra  tuis  radiis  languentia  somno 

Lumina,  divinis  unguinibusque  line : 
Te  tacita  ut  videam  dilecto  nocte  fruentcm. 

Et  meus  aspeclu  ferveat  cjus  amor; 
Nec  secreta  mei  subeam  penetralia  tecti, 

Excipiat  stratus  nec  mea  membra  torus; 
Munera  luminibus  nec  dem  placidissima  somni, 

Nec  reqiiies  fessas  mulceat  ulla  genas: 
Ni  prius  inveniam  Domino  sedemque  torumque, 

Ilospilio  Christum  suscipiamque  meum. 
Quam  dilecta  Deo  lua  sunl  liabilacula  Virgo! 

Quam  lua  vila  illi,  quam  tua  forma  i)laccl! 
Mens  erat  acta  tuafí  [)ercurr(!re  plurima  vitae, 

Ut  tua  vila  meaií  regula  rccla  foret: 
Sed  superas  numero  virlulum  ac  pondere  sensum. 


IGO  VERSOS  DO  PADHi:  JOSEPII  DL  ANCHIETA 

Mensque  ávida  in  tantis  deficit  hausta  bónus. 
Congressere  licèt  multa  boiía  plurima  natae, 

Ingentes,  et  opes,  divitiasque  sibi: 
Tu  regale  tamen  supra  caput  exeris,  omnes 

Summaque  thesauros  vix  capit  ulla  tuos. 
Multiplicique  tuum  locupletas  munere  pectus, 

Innumerasque  hauris,  nec  satiaris  opes. 
Virgíneo  castos  accingis  robore  luuibos, 

Et  tua  divinis  legibus  ora  patent: 
Ut  decet  aeterni  templumque  aramque  futuram, 

Quem  maré,  quem  tellus  nec  capit  aethra  Dei. 
Obstupeo  tanta  perculsus  imagine  matrem 

Cum  video  patris  te  fore  Virgo  tui. 
Hinc  tua  tam  grandi  incremento  gloria  surgit, 

Ut  cessem  victus  jam  tua  facta  loqui. 
Sat  mihi,  torque  tui  divinctmn,  et  compede  amoris 

Perpetuo  plantas  ante  jaeere  tuas. 
Et  quia  me  spectans  clementi  lumine  tandem 

Post  te  traxisti  sub  sacra  templa  Dei: 
Et  socijs  junctum  Domine  dignaris  Jesu 

Yivere,  nec  sancta  me  proculae  de  fugas: 
Hic  tua  me  foueat  pietas,  servetque  ruinis 

Constrictum  triplici  me  tua  fune  manus. 
Sed  trahor  invictus,  contemplarique  tuarum 

Máxima  virtutum  lumina  cogor  adhuc. 
Qualiter  amplexus  divinaque  basia  linguis 

Rosida  cum  clarum  retulit  hora  diem. 
Extendique  iterum  solertem  ad  fortia  dextram. 

Et  digiti  fusum  corripuere  tui.  ^ 

Circunstant  aliae  ducentes  fila  sorores,  t 

Et  sibi  mandatum  quaeque  laborat  opus.  < 

Miranturque  in  te  jactantes  ora,  tuaeque  { 

Se  gaudent  vinci  dexteritate  manus. 
Tu  tamen  assurgis  cunctis,  vultuque  modesto 

Accipis  extremum  súbdita  Yirgo  locum. 
Obsequioque  sacris  humili  servire  puellis 

Haec  tibi  cura  prior,  hic  tibi  primiis  honor, 
His  humihs  tergis  vestes,  sternisque  cubile; 

His  ancilla  paras  officiosa  cibos: 
Everrisque  domos  hilaris,  mundasque  catinos, 

Et  facis  abjectum  quicquid  in  aede  jacet. 
Siquam  langor  habet,  curas  solaris,  et  omnes 

Dulciter  oííicio  servitioque  foves, 
Quid  facis  ò  Virgo  servil  ia  munera  tractans? 


KM  LOUVOU  DA  VIIUJEM  Hil 

Quod  (lecet  ancillas,  cur  operaris  opus? 
An  iiescis  quod  eris  supei'iim  regiiia  polorum, 

Cuiictaqiie  suiit  pedibus  siibjidieiítla  tuis? 
Linque  minislerium  servis:  te  purpura,  bissus. 

Imperiuin,  solium,  seepta  corona  decent. 
Sed  quid  ego  stultus  meditor?  lu  máxima  tcnmis, 

Iníima  subque  humili  pectorc  claudis  amans: 
El  minimi  gaudes  fieri,  cunctisque  subesse. 

Et  credis  maguum  praeter  id  esse  nihil. 
Altus  enim  (nosti)  summa  de  sede  suberbos 

Dejicit,  alque  humiles  tollit  iu  alta  Deus. 
Cum  nibil  ignores,  paleris  le  cuncla  doceri 

Parere,  abjicies,  discere,  dulce  libi. 
Uegiaque  occullas  animo  secreta  sub  imo, 

Quique  tibi  replet  plurimus  ora  Deum. 
Sed  male  dissimulas;  nec  enim  bene  clauditur  igni*. 

Ipsa  suo  prodit  lumine  ílamma  foras. 
Elucet  splendor  lacie  divinas  in  ista, 

Et  tua  te  sócias  lacta  silente  docent. 
Proptera  sanctam  te  concio  sacra  sororum, 

Foelicemque  omnes  praedicat  esse  super. 
Inque  tuis  oculis  óculos  et  pector  ligunt, 

Tolius  speculum  quam  bonitatis  liabent. 
Te  juvat  atíari,  tua  gaudent  ura  tueri, 

Teque  putant  Dominara  te  decus  esse  suum. 
Tu  vero  indignam  tanto  te  credis  bonore: 

Fis  oculis  vilis  plus  nimioque  tuis. 
Inque  dies  animam  veris  virlulibus  ornas, 

Quod  verum  esl  lemplum  vcraque  tlieca  Dei. 
Corpus  lionestatis  niveique  esl  íoi-ma  pudoris; 

Unde  Deo  unilum  nobile  corfms  erit. 
Cor  libi  cum  repleat  virlutum  ílumen  inundans, 

Credis  adbúc  vácuo,  pectori  inesse  nihil. 
Cumque  creatarum  meiilo  sis  máxima  rerum. 

Deberi  censes  intima  jure  tibi. 
Tanta  luam  Virgo  possedit  gi'ulia  mentem. 

Tanta  tuo  virlus  j)ectore  clausa  lalei. 
Clausa  latfíl  noslros,  quos  (eiria  siípcrbia  sensus 

Tam  clar((ni  caecos  i'edilidit  ante  dicm. 
Sed  nilet  anle  óculos  summi  claríssima  1'abis, 

Sydeream((ue  n'pl('t  Iucií  micante  domum. 
Quo  magis  abjiceris,  tanto  essubtimior  iili. 

Postmodo  qui  llialamum  le  volct  esse  suum 
.Iam  Ic  lospicíe::  po-trema  sede  locatani, 
VOL.    II  41 


1G2  VERSOS  DO   PADRE   JOSEPH   DE   ANCHIETA 

Inque  lua  dulces  hos  dabit  aure  sonos. 
Scandc  humilis  sursum  digníssima  sede  priori, 

Accipe  jam  primum  dulcis  arnica  Jocum. 
lUa  tibi  foelix,  et  nostris  prospera  rebus 

Adveniet,  talem  quae  feret  hora  sonum. 
Quae  tibi  Virgo  humilis  de  te  nil  tale  putanti 

Sis  Domini  ut  Mater  máxima  dicet  Ave. 
Yive  precor,  vitam  nobis  lucemque  datura, 

Vive  precor,  foelix  imminet  ista  dies. 
Meque  humili  exorna  servum  virtute  misellum, 

Qua  sine  nec  Domino,  nec  tibi  gratus  ero. 
Ilac  mihi  componet  pectus,  Dominoque  parabit 

Venturo  hospitium  dulce  domumque  tibi. 
Ó  iitinam  placidis  Dominae  sim  dignus  ocellis 

Aspici,  et  in  servis  ultimus  esse  meae. 

Be  Anisuntiatione  Virginis  Marine 

In  tua  fert  animus  pallatia  sancta  venire, 

Virgo  Sioneae  gloria  prima  domus. 
Submissoque  pias  contingere  murmure  portas, 

Pulsanti  pandas  si  mihi  forte  fores. 
Si  me  forte  tua  vel  parvulus  angulus  acdis 

Excipiat  módico  detque  sedere  loco. 
Nam  juvat  aethereos  intento  lumine  vultus 

Spectare,  itque  óculos  si  patiare  tuos. 
Pande  precor  facili,  soror  ò  pulcherima,  fronte 

Ostia,  nec  generis  despice  jura  tui. 
Si  sordet  mens  nostra,  suis  mundabitur  undis: 

Munditia  est  maior  sordibus  ista  méis. 
Mens  mea  virginei  quoniam  tibi  janua  tecti 

Jam  patet,  hic  humili  cum  pietate  sede. 
Hic  sacra  pendentur  cunctis  mysíeria  saeclis, 

Abdita  divinae  consiliumque  manus. 
Percipe  quid  faciat  sapíentí  pectore  Virgo, 

Quasque  sacro  vocês  proferet  ore  nota. 
Dic,  quibus  insudas  studijs?  quae  cura,  laborque 

Instimulat  pectus,  provida  Virgo,  tuum? 
Scilicet  aetherea  vocitas  super  aetliera  mente, 

Coelestesque  ávido  pectore  quaeris  opes. 
Et  divina  omnes  meditaris  foedera  noctes, 

Et  divina  omnes  pascere  lege  dies. 
Per  tractasque  humili  sacrata  volumina  corde, 

Priscorum  scrutans  mvstica  dieta  Patrum. 


EM  LOUVOR  DA  VIRGEM  1(33 

Et  clausi  exoptas  solui  signacula  libri 

Áurea,  coelestes  ut  reserentur  opes. 
Cum  recolis  primos  transgressos  jussa  parentes,  ■ 

Et  Domini  pactum  iioe  tenuisse  Dei; 
Et  miseros  pátria  maculatos  labe  nepotes. 

Serviu  culpae  conditione  premi; 
Promissumque  suo  qui  mundet  sanguine  mundum, 

Vincula  captivis  demat  et  arcta  ducem: 
Ingemis,  et  justo  pectus  concussa  dolore, 

Virgineos  lachrimis  et  madefacta  sinus, 
Attellis  coelo  palmas,  pedibusqiie  voluta 

Divina  liis  orans  vocibus  ora  pijs. 
Quam,  Pater  alme,  diu  capiet  te  oblivio  nostri, 

Ex  ardensque  tuus  zelus  ut  ignis  erit? 
Cur  tua  ab  antiquis  immanis  regna  tyrannus 

Occupat,  injusto  servitioque  premif? 
Cur  lanianda  damur  crudeli  praeda  leoni"? 

Péssima  cur  niiseras  bestia  glutit  oves? 
Cur  truculenta  suum  dilatant  Tártara  ventrem 

Invida?  cur  rábido  mors  vorat  ore  gregem? 
Cur  tua,  quam  própria  plantasti  vinea  dextra 

Deseritur  cunctis  suffodienda  feris? 
Cur  factura  tui  vultus  signata  decore  : 

Tam  faedata  malis,  tam  sine  bonore  jacct? 
Parce,  benigne  Pater,  justumque  remitto  furorem, 

Nostrique  luminibus  respice  damna  pijs. 
Mitte  tuam  tandem  coeli  de  culmine  dextram, 

Mitte  precor  lucis  lumina  vera  tuae. 
Iste  tuus  instus  supera  mittendus  ab  arce 

Jam  veniat  pluvij  de  regione  Noti. 
Egredere  in  populi  Christo  cum  Rege  salulem, 

Et  sceleris  duro  percute  fuste  caput. 
Trade  tua  summo  virgam.  Deus  optime,  Regia; 

Judicium  Nato  trade  perenne  tuo: 
Ut  male  possesso  depellat  ab  orbe  tyrannum, 

Judicioque  inopes,  juslitiaqiic  regat.    ' 
Mitte  salutiferum,  qui  terrac  linibus  Agiium 

Praesit,  et  im|)erio  coiitei-at  arma  suo; 
Moeniaque  aeterna  circundei  pace  Sionis, 

Compósito  vinclis  solvat  et  orbe  roos. 
Adveniat  fractum  í[ui  Pastor  ovile  íidelis, 

AUiget,  iriíirmum  consoliiietqiie  pecjs. 
De  varijsque  gregem  dispíMsniFi  [larlibus  orbis 

Colligat,  in  len-ani  reslilualiiuc  suam. 


'164  VERSOS  DO  PADRE  JOSEPH  DE  ANCHIETA 

Pingiiil)us  inqiie  locis,  et  ilumina  propter  opimis, 

Pascal  oves  berbis,  ubere,  polet  aqua. 
Eniteat  imindi  Servator  ut  ignea  lampas, 

Et  velull  splendor  progrediatur  ovans, 
Ut  videaiit  omnes  felicía  saecula  gentes, 

Inclytus  in  totó  quae  dabit  orbe  tuas, 
Ú  Rex  Emmanuel,  magni  expecta  tio  mundi, 

Omnia  qui  recto  têmpora  jm'e  regis. 
Sm'ge,  veni  tandem  praecinctus  robore  dextram, 

Induc  jam  vires  inclyti  Nate  Dei. 
Ò  utinam  vasti  disrumpas  moenia  coeli. 

Inque  liumiliem  vénias,  saneie  Redemptor,  humum. 
Ante  tmim  fluerent  liquefacta  cacumina  vultum, 

Terraque  contremeret  cardine  mota  suo. 
Agmina  morderent  sordentem  hostilia  terram, 

Lingeret  et  luteum  turba  superba  solum. 
Fundite  divinum  in  coelestia  templa  liquorem, 

Stillate  ò  dites  ubere  rore  poli. 
Depluite  ò  nubes  pleno  de  viscere  Justum, 

Flumina  viva  sacro  cujus  ab  ore  fluant. 
Imber  inexhaustis  foecundet  hic  omnia  lympliit, 

Aridaque  aetliereus  temperet  arva  látex. 
Imbibat  è  gravidis  demissum  nubibus  imbrem, 

Germinet  et  fructum  terra  benigna  suum. 
Quando  erit  ut  vénias  tenebris  evolvere  mundum, 

O  Sol  Occiduas  non  subiture  domos? 
Quando  Sioneae  maculata  cubilia  natae 

Conjugij  fácies  munda  decore  tui? 
Quando  dabis  pacem,  pacis  mitissime  Princeps? 

Quando  tuam  mundus  sentiet  aeger  opem? 
Quando  erit  ut  dirimas  litem  mediator  acerbam, 

Quam  natura  gerit  cum  Patre  nostra  tuo? 
Quando  erit  ut  sanctae  soleris  moesta  Sionis 

Moenia,  Ingentes  laetiíicesque  vias? 
Quando  humili  omnipotens  Verbum  breviabere  terra. 

Jura  docens  Patris  nomen  opusque  tui? 
Sis  memor  antiquos,  Genitor  sanctissime,  Patrcs 

Qui  tibi  cum  vera  vota  tulere  lide: 
Cum  quibus  astricto  pepegisti  foedera  nodo, 

Foedera  non  uUo  dissolvenda  die.  ' 
Per  tua,  perquc  tui  jurans  sacra  numina  Nati, 

Quos  sanctum  aeterno  Flamen  amore  ligat, 
Ipsorum  Regem  venturum  è  semine  Cbiistum, 

Qui  [lopulis  leges  jusque  perenne  daret. 


EM  LOUVOR  DA  VlRfiEM  f65 

Ciijus  in  aetenium  ciinctas  bencdiclio  gentes 

Dicet,  et  obscuro  cárcere  solvat  avos. 
Aspice  nos  plácido,  mititissime  Conditor,  ore: 

Aspice  nos  diilci  cum  pietate,  Pater. 
Nos  licet  indignus  natoriim  uomine  simus. 

Vila  qiiibus  miiltis  est  maciilata  malis; 
Tu  tamen  es  Patris  dignissimus  unus  lionore, 

Cui  scatet  innumeris  dextra  benigna  bonis. 
Nos  meritis  quamuis  tua  verberet  ira  flagellis, 

Ipse  tamen  noster  non  Pater  esse  nequis. 
Non  decet,  ó  Genitor,  nomen  gravis  ira  paternum: 

Ferto  memor  nobis  nominis  hujus  openi. 
Te  dulçor  clemens  decet,  et  clementia  dulcis, 

Et  facilis  pietas,  atque  benignus  amor. 
Si  poterit  mater  quem  gessit  viscere  nati, 

Nutrist  et  mammis,  immemor  esse  sul: 
Tu  poteris  nostri,  tua  quos  sapientia  verbo 

Condidit,  ò  clemens,  immemor  esse,  Pater. 
I^íater  acerba  tamen;  sed  tu  dulcissimus  ipse: 

ímpia  mater  erit,  tu  sino  tine  pius. 
Ergo  Pater  noster  laceratum  reflice  dextra 

Quod  tua  de  limo  dextera  fmxit  opus. 
.Iam  salis  isto  furor  laxis  so  effudit  habenis: 

Jam  satis  bumani  sanguinis  ira  bibif. 
.Iam  satis  ancipitem  furibunda  exercuit  enseni 

Justilia,  oífensas  scilicet  ulta  suas. 
yEqua  suum  mitti  clementia  postulat  ore 

In  Patris  irato  pectorc  babere  locum. 
ínvenint  tandem:  teque,  ò  bonitatis  origo, 

Paeniteat  tantis  nos  agitaro  malis. 
Prodeat  é  pátrio  pietas  placidissima  corde 

Foelices  olea  cinda  virente  comas: 
Iratamquc  diu  dulcedine  plena  sororem 

Placet,  et  eloquio  mitiget  aequa  pio. 
.Materno  miserum  despectans  lumine  mundum 

Laetiíicet  vultu  saecula  moesta  suo. 
EíTlue  puro  lal(v\,  penelrabile  fundere  olivum. 

Vivat  ul  ad  tactum  morlua  terra  tuum. 
His  tua  mens  sludijs  vacaf,  liaec  níysteria  voluif: 

Ilaec  sacra  sunl  aiiinii  [Kibula,  \'irgo.  lui: 
Cum  legis,  ignilus  cui  cnlciilus  ora  Propbetam 

ílontigil,  lios  magna  promere  você  sonos: 
Integia  concipi  et  sine  semine  Virgo  virili, 

Foeliciqne  tumens  pondere  venter  prit. 


100  VERSOS  DO  PADRE  JOSEPH  DE  ANCHIETA 

Virgoquc  perpotuiim  paricns  illaesa  puderem 

Yirgineo  foelix  ubere  pignus  alet: 
Ciijus  et  in  terris,  superique  per  atria  notum 

yEtlieris  Emmanuel  nobile  nomen  erit. 
Ilaec  iibi,  Virgo,  tuam  tetigere  oracula  mentem. 

Et  tácito  tantum  pectore  voluis  opus; 
Ardet  amans  animus,  tantamque  videre  puellam 

Gestit,  et  haec  humili  voce  profata  gemis. 
Ó  quae  te  talem  foelicia  saecla  videbunt, 

Virgo  Jacobeae  splendida  gentis  honos? 
Qui  te  foelices  gignent,  speciosa,  parentes, 

Et  digni  tantae  munere  prolis  erunt? 
Quae  te  tam  foelix  portabit  mater  in  alvo, 

Molliet,  et  fauces  nectaris  imbre  tuas? 
Sed  te  quae  vírtus,  quod  te  decus  inclyta  quondam 

Foemina,  quantos  honos,  gloria  quanta  maneti 
Quae  Dominum  clausi  concludes  tegmine  ventris. 

Que  sobolem  clauso  viscere  foeta  dabis. 
Yirgineo  vitae  quae  pasces  ubere  Yerbum, 

Materna  tractans  membra  beata  manu. 
Ó  utinam  summus  Genitor  mihi  proroget  annos 

Ut  videam  exortus  tempoi-a  laeta  tui! 
Ó  me  foelicem,  si  tantae  ancilla  parentis, 

Si  tantae  merear  Yirginis  esse  comes! 
Plura  luquuturam  suspiria  crebra  morantur, 

Castaque  virgineus  pecíora  mordet  amor: 
Et  gemitus  iterans  laclirimarum  liqueris  ibre, 

Templa  replens  coeli  questibus  alta  piis. 
Perque  genas  rivus  calidarum  manat  aquarum, 

Dum  justa  humanum  conterit  ira  genus. 
Quid  pia  contereris  iam  duro,  Yirgo  dolore? 

Excrucias  teneros  cur  gemebunda  sinus? 
Parce  precor  tantis  onorare  tenerrima  curis 

Pectora,  virgíneas  laedere  parce  genas. 
Parce  verecundum  lacrymis  violare  colorem, 

Splendida  ne  fletus  sordidet  ora  flaens. 
Ecce  venit  plácida  Rex  mansuetudine  cinctus, 

Destructum  Soliraae  qui  reparabii;  opus. 
Nescis  quanta  tibi  servala  cst  gloria,  Yirgo? 

Ignoras  quantus  sit  tibi  dcndus  honor? 
Quid  gemis  absentem,  quae  non  violata  puellam 

Indu&t  immensum  cárnea  membra  Deum? 
Te  decus  expectat,  Mulier  digníssima,  tantum: 

Sola  tui  genitrix  integra  Patris  eris. 


KM   LOUVOR   DA   VIRGEM  167 

Sterne  tiuim  thalamiim  pulcherrima  nata  Sionis, 

Tende  tabernacli  byssína  vela  tui. 
Senlio  converso  torqneri  cardine  coelum, 

Miirmuraque  angelicis  laeta  sonare  choris. 
Jam  Palris  aeterni,  castissime  turtur,  ad  aures 

Divinus  gemitus  introiere  tui. 
Confortare  Sion,  túnicas  vestire  decoris: 

Indue  te  vires,  regia  Virgo,  novas: 
Ut  coeleste  queas  comprehendere  viscere  robur, 

Cuni  divina  tuas  iníluet  aura  sinus. 
Sponsus  ab  aetberea  descendit  Olympicus  aula, 

Impleat  ut  Sponsae  grande  cubile  suae. 
Res  nova,  ne  capiat  languens  tua  lumina  somnus 

Mens  raea,  patrari  grande  videbis  opus. 

De  Ingressu  Angeli  ad  Mariam  Virginem 

Jam  pia  divinam  vicis  miseratio  mentem, 

Et  pax  iratos  lenijt  alma  sinus. 
Jam  facilis  scindit  veteres  concórdia  rixas, 

Justaque  pacificus  jurgia  pellit  amor. 
Jam  Deus  antiquas  bónus  obliviscitur  iras, 

líumanumque  pio  respicit  ore  genus. 
Scilicet  agnovit  quod  vili  è  semine  natum 

(>)rpora  de  sterili  luilvere  ficta  gerit: 
Inque  malum  pronos,  stimulante  cupidine,  scnsus 

Diííluere,  ut  mollis  labilur  untla,  videt. 
Utque  paterna  solenl  miserari  viscera  natos, 

Ira  nec  errantes  punit  acerba  diu: 
Sic  movet  aetcrnum  pietas  dulcíssima  Patrem, 

Cumquc  gravi  semper  mista  furore  venit. 
Tam  procul  à  nobis  scelerum  difiecit  acervos. 

Et  mala  patratis  debita  criminibus; 
Quàm  procul  excelso  se  jungitur  aetliere  tellus. 

Et  plaga  ab  occidua  distat  Eoa  domo. 
Jam  solium  virides  pingunt  coeleste  smaragdi, 

Allaqne  jaspideo  tecla  colore  nitent: 
Diviniimque  Ibroniim  pulcliro  ciicundat  amíctu 

íris,  et  ignivomiim  discolor  ornat  opus : 
Spesque  datur  nmndo  certam  pi'ope  ad(!sse  salutem, 

Quae  jam  cum  plácida  pacc  lignta  venit. 
Coelica  terrenis  jungenlur,  et  intima  snmmis, 

Duraljunlíjue  omnes  foedera  tanta  (li(!S. 
Nam  Deus  unigenum  missurus  ab  aclhere  Natum 


168  VERÍOS  DO  PADRE  JOSEPH  DE  ANCHIETA 

Verus  ut  è  sacra  Virgino  fiat  homo : 
Milia  deíiiíens  Calilaeis  luniiiia  lorris. 

Nol)ile  Nazarelh  despicit  iirbis  opu.s. 
Hic  tibi  parva  qiiideni,  sod  magno  insignis  lioiiore, 

Stat  domus,  excelsis  aequa  fiiíura  [lolis : 
Degit  iibi  exiguis  laribus  contenta  Puella, 

iEthere  quac  magno  postm.odo  maior  erit. 
Qiia  latet  in  terris  Immilis  sine  nomine  Virgo, 

Qua  tamen  ampla  nihil  clarins  aethra  videnl. 
Servat  ubi  iníacti  signacula  claiisa  pudoris 

Quae  geret  augusto  vcntris  in  orbe  Deum. 
Servat  nbi  obductis  diuturna  silentia  portis, 

Cujus  opem  mundo  paucula  verba  ferent. 
Quae,  precor,  es  raulier,  cui  talia  servat  Olympus? 

Quis  tuus  est  conjux?  quod  tibi  nomen  in  est? 
Vir  tuus  est  Joseph,  cui  nobilitatis  origo 

Clarior  à  magno  missa  David  venit. 
Yir  tuus  ille  quidem  vera  cum  cônjuge  junctus, 

Virginei  consors  non  íamen  illc  tori. 
Cui  sedet  immoto  votum  inviolaljile  corde 

Perpetua  tecum  virginiíate  fiui. 
Conjugij  quem  jura  tui,  tbalamiquè  pudici, 

Haeredem  facient  norainis  esse  tui. 
Nam  cui  mater  eris,  pater  esse  putabilur  ille; 

Et  reget,  arbitrio  qui  regit  astra  suo. 
Talis  es,  et  lateas?  nimiumque  iilustre  Maria 

Nomen  in  obscuro  sit  sine  laude  íuum? 
Scilicet  in  celsi  constructo  cacumine  montis 

Urbs  coelo  eductas  osculat  alma  domos? 
Cur  lateat  rosei  spectabilis  orbita  solis? 

Cyntbia  cur  lúmen  deneget  alma  suum? 
Cur  óculos  fugiat,  ílammis  quae  accensa  coruscis 

Ponitur  in  media  clara  iucerna  domo? 
Ó  urbs  alta,  nequis,  cupias  licèt  ipsa,  latere, 

Sol  radians,  Phaebe  splendida,  ílamma  micans. 
Ut  lateas  terram,  tamen  es  notissima  coelo : 

Sydera  te  prodent,  prodet  et  ipsc  Deus. 
Jam*  supera  aligerum  demittens  arce  ministrum, 

Qui  secreta  tibi  magna  recludat,  ait. 
Vade  salutatum  quam  post  tot  saecla  Mariam 

ínveni,  arcani  fiat  ut  arca  mei. 
ília  mei  Nati  cum  virginilatis  honore 

Mater,  et  aeternae  causa  salutis  erit. 
Dixit :  at  ille  volat  rutilo  per  inane  volatu. 


EM   LOUVOR    DA   VIRGEM  ifiO 

Igneiis  III  radiaiiíí  aolhore  vesper  al)ií: 
Eyregioqiic  iiiteiis  jiivtMiis  ])iiIchiíiTÍmus  on* 

ínoTe»iitni'  tlialami  tecla  pudica  lui: 
Miratiisqiit)  ttiae  divina,  iiisii^nia  mentis, 

Talia  cnrvato  dal  liiii  verl)a  genu. 
Ó  sola  immonso  gratissima  Ibemina  Patri, 

Ó  prima  aeterni  cura  Parentis,  Ave. 
Cni  divina  liumilem  re|)!evit  gralia  montem, 

C.iii  sacra  diviniis  pectora  innndat  amor. 
Omnipotens  Dominns  lecum  esl,  qui  máxima  Olympi 

Moenia,  qui  terras  solus  et  aequor  habet. 
Ille  tui  Dominus  fuit  omni  lemporo  cordis, 

Solus  habet  regimen  pectoris  omne  tui. 
Non  tibi  culpa  prior,  non  est  dominata  fecunda : 

Omnipotens  Dominus  jus  habet  omne  tui. 
Nec  tibi  mors  unquam,  nec  mortis  praefuit  author : 

Omnipotens  Dominus  jus  liabet  omne  tui. 
Ille  tuum  semper  possedit  solus  amorem, 

Ille  tui  curas  pectoris  unus  habet. 
Propterea  lata  dominaberis  inclyta  terrae, 

Arduaque  impcriis  serviet  aethra  íuis. 
Tu  sola  ante  omnes  digníssima  Foemina  matres. 

Tu  sola  ante  omnes  es  benedicta  nurus. 
Gloria  Ibeminei  spectaberis  ultima  sexus : 

Gloria  foeminei  j^rima  decoris  eris. 
Quem  til)i  tunc  animurn  credam,  sensumquo  fuisse, 

Quis  tibi  tunc  vultus,  Vii'go  modesta,  fuit, 
Cum  tibi  coelestis  tam  mira  referret  ad  aures 

Nuntius,  aspectum  cernuus  ante  tuum? 
Fixa  solo  castos  óculos  immobilis  haei'es, 

Pulcliraque  virgineus  contegit  ora  rubor. 
F^t  turbat  novam  prudens  miraic  salutem, 

Et  pavitans  humili  talia  mente  putas. 
Quis  novus  hic  sermo  timidas  mihi  pertigit  aures? 

Uode  salutandi  Iam  nova  forma  venit? 
Tanta  nc  ab  excelsis  venial  revei^entia  coelis? 

Tantus  honor  humili?  gloria  tanta  mihi? 
Scilicet  indignam  lerrâ  venerctur  Olympus  ? 

Laudibus  immodicis  magnificer  módica  ? 
Juncta  fabro  parva  vix  noscoí"  in  urbe  marito, 

Et  jam  magnilica  noscar  in  urbe  Dei  ? 
Foemina  muneribus  cumuler  paupercula  tantis? 

Tot  mihi  diviliae,  lol  Iribuantur  opes  ? 
Me  ne  pohis  claio  Dominae  dignctur  honore, 


170  YKnSOS  DO  PADRE  JOSEPII  DE  ANCHIETA 

Quac  vix  ancillae  sum  satis  apta  loco  ? 
Summus  iii  oriíatae  Dominus  ferat  Íncola  mentis, 

Perpetuusque  hospes  pectoris  esse  mei  ? 
Jure  mihi  video  insperata  ex  laude  timendum. 

Cônscia  nullius,  vilis,  inopsqne  boni. 
Ó  humilis,  simplex,  et  prudentissima  Yirgo. 

Quae  tibi  tam  dubij  causa  timoris  adest? 
Cuncta  times  humilis,  meritò;  quia  cuncta  timenda 

Sunt  humili,  qui  se  judicat  esse  nihil. 
Cuncta  times  simplex;  quia  símpliciora  puella 

Saepe  solent  varia  pectora  fraude  capi. 
Cmicta  times  pradens,  prudenti  examine  pensans 

Ne  moveat  sensum  quaelibet  aura  tumii : 
Ne  faciles  praebens  aures,  velut  Eva  draconi. 

Crédula  compositis  illaqueere  plagis. 
Sed  nihil  hic  fraudis :  non  nouit  fallere  coelum : 

Non  est  in  supera  fraudibus  urbe  locus. 
Non  hic  te  verbis  deludet  dulcibus  anguis, 

Nec  levis  iit  mulier  decipiere  prior. 
Jam  te  respexit  Dominus,  quia  siimmus  ab  altae 

Inflma  coelorum  respicit  axe  Deus. 
Quo  magis  indignam  te  credis,  dignor  alto 

Exei'is,  et  surgit  dejiciendo  caput. 
Simplicitas  humilis,  simplexque  abjectio  mentis 

Spiritui  gratam  te  facit  esse  Dei. 
Quid  summam  fieri,  quid  te  mirare  priorem. 

Intima  si  extremmii  sumis  in  orbe  locum? 
Hoc  esset  mirum,  si  inflata  superbia  haberet 

Pectus,  et  à  Domino  respicerere  tumn. 
Audi  igitur  coeli  securo  nuntia  ccrde, 

Ut  te  digna  magis,  sic  metuenda  minus. 
Audisti  laudum  primordia  sola  luarum; 

Summus  adhuc  summi  desit  honoris  apex. 
Máxima  jam  dixit,  dicet  maiora  deinceps 

Qui  tibi  suspensae  coelicus  Ales  ait. 
Parce  Maria  metu :  nihil  hic  tibi,  Virgò,  timendum 

Poneverecundum,  Virgo  3Iaria,  metum. 
Non  refero  mimdi  vanos  legatus  honores: 

Indigna  est  tanta  Yirgine  vilis  húmus : 
Sv-^d  qiios  aeterni  sapientia  summa  Parentis 

Ante  tibi  mundi  grande  reservet  opus. 
Cur  pudeí  aetherei  laudari  você  ministri, 

Nec  dignam  alloquio  te  facis  esse  meo  ? 
Cui  gens  ílaramanlis  curvabitur  Íncola  coeli,, 


EM  LOUVOR  DA  Vmr.  EM  17Í 

Omnis  ot  obsequiam  servitiumque  dabit. 
Tandem  siipremi  repeiisti  Patris  amorem; 

Est  tibi  apiid  magnum  gratia  magna  Deum : 
Quam  pater  amisit  lethali  crimine  primiis, 

Quam  qiiondam  prisci  non  reperére  Patres : 
Tempore  quam  longo  cupidé  suspirai  Olympus, 

Quam  lachrymans  quaerit  languida  terra  diu. 
Condita  in  immensi  secreto  corde  Parentis, 

Inventa  est  tandem  gratia  amorque  tibi. 
Non  nostram  appendit  Domini  sapientia  gentem, 

Quae  te  naturae  condi lione  praeit: 
Sed  te,  quam  nostra  maiorem  gratia  gente 

Fecit,  ut  hoc  summum  perficiatur  opus. 
En  tua  concepto  turgebunt  viscere  Faetu, 

Et  Natum  exacto  tempore  nixa  dabis. 
Cujus  inauditum  sanctumque  vocabis  Jesum 

Nomen :  erit  titulo  nobilis  ille  novo. 
Hic  erit  excelsae  Rex  majestatis,  et  omnem 

Ipsius  excedei  gloria  magna  modum. 
Qui  tibi  Natus  erit,  summi  Patris  unicus  idem 

Filius,  et  compar  nomine  numen  erit. 
Cui  dabit  omnipotens  solum  regali  Davidig 

Patris,  et  ímpcrij  fraena  tenenda  Deus : 
Isacidaeque  domum  moderaljitur  inclytus  amplam, 

Juraque  in  aeternos  sanciet  aequa  díes. 
Ejus  erit  latis  dilfusa  potentia  terris, 

Ultima  quàquc  vagum  terminai  ora  frelum. 
Quaque  jubar  pandit,  qua  vesper  claudit  Olympum, 

Qua  polus  aethereum  voluit  utcrquc  globum. 
Margine  totius  (certo  sine  limite)  mundi 

Porrigei  Imperij  brachia  longa  sui. 
Quiu  et  legitimus  regnis  dominabitur  hacres, 

Sydereis  vero  cum  geniiore  Deus: 
Sceptraquc  perpetuum  princeps  gestabit  in  acvum 

Maximus,  et  dempto  saecula  fme  regei. 

De  nomine  Jesu  obiteu  et  Circunsione 

Ilaec  cooli  Intcrpres:  iu  dum  taciiurna  sub  alio 

Pcctore  responsum  praemediiata  siles, 
Ne  milii  succense,  ne  sim  tibi,  Virgo,  pudorí, 

Si  famulus  Dominais  paura  loculus  ero. 
Movit  cnim  mira  dulcedinc,  pcctus  amoris 

Quem  paries  Nali  nomen  amorque  meum. 


|7á  VEllSO-í  DO  PADlAi:  JOSEPH  DE  ANCHIETA 

Nomeii  inaudítuni,  mirabilo  nnmon  Jesus: 

Nomeii,  quod  próprio  nominal  ore  Deus. 
Quod  siiie  principio  Verbum  eructavit  ah  alto, 

Corde  quod  cxortum  permanet  ante  diem. 
Dulcis  amor  cordis,  dulcedinis  autor  Jesus 

Cuncta  procul  gustu  pellit  amara  suo. 
Vera  sagina  animi,  panis  vitalis  Jesus 

Languida  mortifora  liberal  ora  fame. 
Fons  indeficiens,  fliiviusque  perennis  Jesus 

Mentis  inexhausto  temperai  amne  sitim: 
Mellifluoque  rapit  potalos  neclare  sensus, 

Nec  sinit  immemores  nominis  esse  sui. 
.'Eternae  lucis  divinus  candor  Jesus 

Nigra  repurgato  nubila  corde  fugat. 
Forma  nitens  semper  decor  immortalis  Jesus. 

Quo  sine  rcs  ullum  non  habet  ulla  decus: 
Quo  sine  nil  pulchrum,  cum  quo  sunt  omnia  pulchra: 

Cujus  ab  aspectu  perdila  forma  rcdif. 
Unguea  aromaticum,  medicina  suavis  Jesus 

Foeda  salutnri  vuhiei'a  sanai  ope. 
Ornnipotens  virtus.  invictum  robur  Jesus 

Fortia  dal  fanmlis  vincere  castra  suis. 
Infinita  Dei  sapientia  Patris  Jesus 

Justitiae  recto  tramite  monstrat  iter. 
Non  secus  ac  olei  pinguis  tluit  bumor  Jesus, 

Impinguat  cordis  icniter  ima  flaens. 
Ignis  edax  coivlis  consumens  Ignis  Jesus, 

Ardentis  gélidos  urit  amorc  sinus. 
Omno  decus  terrae,  coeli  nitor  omnis  Jesus 

Vestit  lionore  solum,  veslit  honore  polum. 
Imber  inexiiauslae  largus  pielalis  Jesus 

Saxea  faecundis  pectora  mollit  aquis. 
Flammea  divini  restinguit  tela  furoris, 

Ignescit  sonteni  qui  populatus  humum. 
í.aetitiae  puteus,  bonitatis  abyssus  Jesus. 

Ultima  meia  mali  primaque  origo  boni. 
Deliciosuá  amor,  medicamen  amantis  Jesus, 

Qui  grave  sub  venis  vulnus  amoris  alil. 
Una  salus  mundi,  libertas  única  .Jesus, 

Quo  sino  libertas  nulla,  nec  ulla  salus. 
Auferet  armati  fortissimus  arma  tyranni. 

Et  manicis  solvei  compedibusque  reos. 
Pellet  Avernalis  contagia  dirá  veneni, 

Pfimorumque  nefas  exitiale  patrurn. 


EM  LOIVOH    DA  VIRGEM  173 

Vila  peremplui'mn,  queis  mors  doniinatiir,  Josu^ 

Vila  gravem  murli  morle  daliira  iiccem. 
Nomen  adorandiim,  venerabile  iiomeii  Jesus, 

Coelica  subiiixo  quod  colil  aula  geiíu. 
Nomen  terrificum,  quod  perliiiiet  Urcus,  Jesus, 

Turba  quod  exultaiis  Tisiplioiiea  tremit. 
Mile,  saluliferum,  mellilmn  iioineii  Jesus, 
Poplitibus  flexis  quod  reveretur  húmus. 
Tempore  deliciar,  si  noniinis  hujus  Jesu 
Iminensum  vili  prosequar  ore  decus. 
I\ec  magè  proíiciam  quam  si  sino  meule  laboi\im 

Exiguo  vastuni  condere  vase  íreíum. 
Ecce  tuo  qualis  claudelur  viscere  Nalus, 

Qualis  erit  ventris  fructus  honorque  lui. 
Talis  erit  Nalus.  próprio  quem  nomíue  Jesum 

Laeturum  mundo,  Vii'go,  vocabis  opem. 
Tale  erit  lioc  nomen:  sed  quando  vocabis  Jesum 

Dic  mihi;  quando  hujus  nominis  hora  venif? 
Nempe  tener  saxo  cum  circunsisus  acuto 

Vulnus  in  innocua  pergrave  carne  íereí: 
Purpureoque  pij  slillabit  rore  cruoris, 

linde  aeterna  salus,  vila,  medeia  ílual: 
Vagilusque  dabit,  dulcisquc  suavia  matris 

Ubera  captabil  moUiculosque  suos: 
Dequc  tuis  currel  laclirymarum  llumen  ocellis, 

Ah  Virgo,  et  scindet  car  tibi  i»laga  pium; 
Sanguineumque  ligans  turbabere  pallida  vuhms, 

Dum  menti  occurret  tiistior  hora  luae: 
Cum  lacerata  tiuci  dilecli  lunere  Nali 

Membra  fovens  gladio  tragiciere  sinus. 
Intera  llentem  super  ubera  blanda  puellum, 

Osquc  gcmens  pulchro  pulchrius  oi"e  premos. 
Vii'gineoque  dabis  roranles  lacte  jiapillas 
,£gra  recusantis  nectai-e  labi'a  rigans: 
El  conala  gi"avem  frustra  leniin  dolorem 
Saucia  sub  tenero  pecloi-e  vulnus  ales. 
IJonec  adinqjlelo  coalcscal  lemi)oi'e  i)laga: 

Quae  pueri  angebat  memhra,  animanupie  luam. 
Namque  pij  nostram  facielis  uten|ue  salulem, 

Cum  i)uero(|ue  ijarcns,  cuukiuc  parente  i)uer. 
Ecce  tuum  quando  Nalum  appellahis  Jesum, 

Nempe  novum  multo  sanguine  nomen  emel, 
Quis  divina  luum  possil  sapieniia  seiisum. 
Quis  mil  anda  luae  noícere  lacla  manus? 


174  \TRSOS  DO  PADRE  JOSEPH  DE  ANCHIETA 

Circuncidetur  Puer,  et  dicetur  Jesus: 

Convenient  justi  nomen  opusque  rei. 
Accipiet  caeso  peccati  in  corpore  signum. 

Et  servatoris  nomine  clarus  erit. 
Sed  nil  divino  non  est  superabile  amori: 

Cuncta  potest  pietes:  omnia  vincit  amor. 
Victus  enim  nimio,  quo  nos  dilexit  amore 

Ille  boni  aeternus  fons,  et  origo  Deus, 
Donabit  proprium  tibi,  foelicissima,  Natum, 

Qui  per  te  nobis  frater,  et  ultor  erit: 
Assimilisque  suae  sine  labe  per  omnia  genti, 

Pcccatique,  carens  crimine,  signa  geret: 
Destruat  ut  verus  peccati  corpus  Jesus, 

Filius  ille  Dei,  Filius  ille  tuus. 
Ó  nomen  pulchrum,  per  amabile  nomen  Jesus, 

Matris  amor,  Patris  gloria,  fratris  honor. 
Lucidior  Phoebo,  sublimior  aethere  Jesus, 

Igne  magis  calidus,  frigidiorque  nive, 
Ense  magis  rigidus,  leni  mago  Icnis  olivo, 

Durior  et  scopulis,  et  magè  moUis  aquis, 
Mitior  et  miti  succumbes  omnibus  agno 

Fortior,  è  forti  cuncta  leone  domans. 
iEre  emeris  nullo,  cum  sis  pretioslor  auro: 

Das,  nihil  accipiens;  non  redamatus,  amas, 
Tristior  es  tristi  corruplis  crimine  acceto:    • 

Laetior  es  puris  faece  carente  mero. 
Felle  maios  potas  cum  sis  dulcedo  perennis, 

Melle  bonos  dulci  fel  bibiturus  alis. 
Ó  iterum  at  quae  iterum  jucundum  nomen  Jesus, 

Mille  bonum  miris,  mille  suave  modis. 
Quis  mihi  te  pulchris  sugentem  belle  labellis 

Ubera  det  matris  túrgida  lacta  puer? 
Quis  mihi  te  timeam  praestet,  quem  castra  polorum 

Absque  tremore  tremunt,  absque  timore  timent? 
Quis  mihi  te  tribuat  prostrato  pectore  adorem, 

Nomen  honor  coeli,  gloria  nomen  humi? 
Quis  mihi  te  junget,  quis  me  tibi  jungat  ampre? 
"  Nil  nisi  dulcedo,  nil  nisi  nomen  amor. 
Tu  benedicta  dabis  cui  se  dabit  ille,  suique 

Patris  ut  est  totus,  sic  quoque  Matris  erit. 
Quem  petet,  ut  primae  furiosa  incendia  culpae 

Temperet  in  nostro  pectore,  acuta  silex. 
Ergo  manus  inopi  jam  nunc  extende  benignas: 

Si  mihi  das  Jesum,  satque  superque  mihi  est. 


EM  LOUVOR  DA  VIRGEM  173 

Extinguat  flammas  lumborum,  ò  Viigo,  meorum, 

Et  durum  Piieri  vuluus,  et  ista  manus. 
Cor  mihi  scinde  petrá,  scissoquò  iiiscribito  Jesum 

Indelebilibus  saiiguineisquc  notis. 
Ilaeret  eaternúin  dulcíssima  nomina  cordi, 

Ó  Jesu  pulcher,  pulcbra  Maria,  meo. 
Me  violentos  amor  formosi  raptet  Jesu, 

Me  raptet  bellae  Virginis  a! tus  amor. 
Sed  nimiúm  longo  sum  te  sermone  mora  tus 

Nominis  insólito  raptus  amore  novi. 
Penniger  expectai  cupidè  tua  verba  minister; 

Prome  animi  tandem  grandia  sensa  tui. 

Responsio  Virgims  ad  Angelum,  Qlomodo  fiet  istld? 

Virgo,  quod  in  tanto  tantarum  cardine  rerum 

Consilium  vigili  provida  mente  capis? 
Ad  primas  humili  pavitabas  pectore  laudes, 

Dum  tibi  nil  modicae  credis  inesse  boni. 
Quid  fácies,  summi  dum  te  ad  fastigia  lionoris 

Supra  liomines  tolli  caelicolasque  vides? 
Dum  íore  te  Matrem  supremi  Nurninis  audis, 

Quod  vix  mensuram  laudis  babebit  opus? 
Nam  quo  te  in  coelum  plus  evebit  Angelus  allum, 

IIoc  te  ad  vile  magis  deprimis  ipsa  solum. 
Non  tamen  ulla  tuum  turbat  dubitatio  pectus, 

Nec  mens  mutanti  claudicai  aegra  lide: 
Posse  sed  id  fieri  credis,  certoque  liiturum 

Perspicis,  ut  Vates  praecinuere  pij. 
Et  maiora  capit  crescens  tua  roboi-a  virtus: 

Plus  tibi  lis  vibs,  plus  tibi  lis  bumilis, 
Dum  pensans  tantam  sapienti  pectore  moiem 

Maiorem  liumanis  viiibus  esse  vides. 
Omnia  nam  superai  meritoruin  pondera,  sumnium 

Vestire  bumano  corpore  posse  Deum. 
Unde  Deo  Iribuens,  cujus  sunt  omnia,  tolum 

Usurpas  bumilis  tu  tibi,  Virgo,  nibil. 
Plena  íide  saneiam,  divino  et  ílamine  mentem 

Ascisci  ad  tantum  te  modo  credis  opus: 
MaionuTique  íidem  magno  lua  iiondcre  laudum 

Maguanima  superai  credulilale  lides. 
(Credis,  et  inclinas  divinis  vftcibiis  auniin, 

Absque  more  |)arr,t  meus  facilisípie  Deo. 
Sed  dum  Virginei  amor,  máxima  cura  subil: 


176  >í:rsos  do  padre  joseph  de  Anchieta 

Qui  tibi  magnus  amor,  máxima  cura  subit: 
Haeret  adhuc  animus:  Domiiiique  lacessere  certus» 

Jussa,  pudicitiae  consulit,  adquc  limclj 
Quoque  modo  possint  ficii  Iam  mira  requirens, 

Ora  verccundi  plena  ruboris,  ais. 
Quanam.  saiicte  puer,  íiet  rationc  quod  inquis? 

Quis  modus,  istud  opus  quo  peragatus  eiit? 
Intumeatne  meus  concepto  pignore  venter, 

Ullane  sit  soboles  ubere  alenda  meo; 
Quae  semper  tactus  hominum  et  commercia  fugi, 

Permaneoque  exors  impatiensque  viri, 
Immaculatus  adhuc,  misti  sine  foedere  lecli, 

Vivit  in  illaesa  virginitate  pudor. 
Quin  etiam  mecum  primis  accrevit  ab  annis 

Perpetuae  vehemens  integritatis  amor: 
Immotumque  animo,  nunquam  violare  pudorem, 

Nec  sacra  munditiae  solvere  jura,  sedet. 
Si  tamen  hoc  jubeor,  Dominique  lutara  reposcor 

Qualibet  iramensi  conditione  Parens; 
Gaudeo  tam  grandi  quoniam  dotabor  lionore, 

ímperium  Domini  jam  subit urae  Dei. 
Sed  doleo,  pulchro  dilecli  floie  pudoris, 

Ut  fiam  mater,  si  spolianda  vocor. 
Ergo  ne  tam  miris  tam  longa  silentia  verbis, 

Tam  miro  laxas  ora  modesta  modo? 
Conceptur  a  Deum  summo  invitaris  honore. 

Et  tu  cunctando  plura  requiris  adhuc? 
Te  vocat  omnipotens,  tua  sugat  ut  ubera,  Verbum, 

Et  te  sacrati  cura  pudoris  liabet? 
Tantanè  munditiae  cura  esl?  tantinè  pudoris 

Gloria?  virginitas  tam  pretiosa  tibi? 
Quid  tua  solicitant  istae  puríssima  curae 

Corda?  quid  hoc  liat  qua  ratione  rogas? 
Quid  refert  Matrem,  dum  sit  modo  Conditor  orbis 

Ipse  tuus  Natus,  quolibet  esse  modo? 
Sed  fallor  demens:  sapiontia  carnis  in  alto 

Desipit  excessus  gurgite  mersa  tuí. 
Sic  tua  cacuminis  excedit  gratia  mores. 

Solis  ut  astrorum  lux  radiosa  globos,' 
Non  te  primorum  docuere  exempla  parentum 

Talibus  intrépido  currcre  calce  vijs. 
Nulla  tuos  unquam  praecessit  íbemiiia  gressus, 

Hoc  tibi  mostrando,  quo  gradereris  iter. 
Sola  sine  exemplo  sublimia  sydcra  tranans, 


f 


EM    LOUVOU    DA    VIRGEM  177 

Iiiíima  pulveret  despicis  arva  soli. 
Diluvio  sceleruni  cum  iion  daret  ojjrula  magno 

Terra  locum  pedibus,  pulchra  ('oluinba,  tuis: 
Nec  tibi  quaerenti  per  avoi'uin  fada  prioiuin 

Digna  reperta  foret,  qiia  sequerere  via: 
Linquis  liumum,  celeri  transecndis  et  aelhera  penna, 

Ut  tibi  dent  superi,  quod  negat  iUa,  poli: 
Munditiamque  bibens  moresque  nitentis  Olympi, 

Non  tamen  angelicis  exastiaris  aquis. 
Altius  excedis  fonteni  bibitura  perennem, 

Unde  boniun  jugiter  prostuit  oníne,  Deiiin. 
Jílle  suae  apprensam  dextra  bonilatis  ia  arcam 

Mittit,  inexhaustas  et  tibi  pandil  opes, 
Hic  pretimii  nivei  reperisti  insigne  pudoris, 

Inde  pudicitae  veuit  origo  tiiae. 
Hinc  sitiens  hauris  foex^undi  plena  meraci 

Pocula,  virgirteus  pullulat  unde  chorus. 
Nem  sine  principio  qui  te  praevidit  ut  esses 

Vita,  salus,  castae  duxque  comesque  viae; 
Esse  sui  voluit  non  quoliíjet  ordine  Nati, 

Sed  mira  Matrem  sorte,  decore,  modo. 
Ilic  tibi  prima  dedit  sacri  documenta  pudoris; 

Hoc  duce  vita  tibi,  mens,  caro  labecaret. 
Ut  tua  virginitas  locupletei  feríilis  orbem, 

Gastaque  fertilitas  sit  decus  oníne  poli. 
Prima  per  oceultos  graderis  dux  inclyta  ralíes, 

Prima  per  insólitas  tendis  ad  aslra  vias. 
Prima  iter  irrumpens  spineta  per  aspeia  latum 

Pandis,  et  incedis  per  loca  senta  si  tu. 
Prima  salebroso  tenuisti  tramite  cursum. 

Prima  teris  niveo  scrupea  saxapede. 
Prima  per  anfractus,  scabraeqne  per  avia  rnpis 

Árdua  ad  intacti  culmina  monlis  abis: 
Virgiaeique  locas  in  vértice  signa  decoris, 

Splendida  sole  rnagis,  candidiore  nive. 
Quae  modo  dura  fuit,  mollissima  semita  liet; 

Asperaíjuae  fuerat,  te  duce  lenis  eiit. 
Jam  tua  virgineae  vestigia  pulclira  cohortes 

Ad  tua  currentes  fulgida  signa  Ií.tciiI. 
Jam  pia  munditiae  religatus  pcctoia  voto 

Curret  ad  exem[)luni  vir,  inulierciiie  tuum. 
<Ó  stirps,  ò  doctrix  servandi  prima  pudoiis, 

Mater  bonestalis,  virginilalis  iter. 
Nymi)lia  depus  terrae,  su[(erum  i>raeclara  polurum 
VOL.   II  12 


178  VERSOS  DO  PADRE  JOSEPII  DE  ANCHIETA 

Gloria,  virtiitum  forma  decoris  apex. 
vEtlira  tibi  debet,  quod  vili  in  corpore  coeli 

Munditiam  fragilis  te  duce  terra  tenet. 
Terra  tibi  debet,  quod  sedum  moribus  aethra    .     '' 

Imbuit,  aethereis  redditur  aequa  thronis.   '''ii^ií* 

In  Elvidium  Calmnum,  quorum  ille  perpetl'am  Mari.e  virginitatem^ 
hig  yotum  virginitatis  negat 

Sed  tumet  inflato  mundana  superbia  sensu, 

Turbat,  et  insanus  lumina  caeca  furor. 
Nec  te  splendentis  velamine  solis  amictam 

iEterna  clarum  virginitate  videt. 
Nec  tibi  calcanti  corpus  variabile  lunae 

Nii  animi  votum  posse  movere  videt. 
Nec  te  Titanis  portam  radiantis  in  ortu 

Invictis  clausam  vectil)us  esse  videt. 
Nec  de  signato  divinis  Fonte  sigíllis 

Praeter  aquam  vivam  nil  íluitassé  videt. 
Nec  te  conclusum  muris  sublimibus  Ilortum 

Ulli  calcandum  non  patuisse  videt. 
Cum  nequeat  rádios  divinae  cernere  lucis, 

Unde  tuae  carnis  lux  animaeque  *íluit: 
Detrahit  aeternae  tibi  virginitatis  honorem. 

Et  negat  attactum  te  renuisse  viri. 
Sed  furit  invidia  tetri  stimulante  draconis  ' 

Lividus  Elvidius,  perfidus  Elvidius.  '■ 

Li  vida  pestífero  tabescens  corda  veneno,  ' 

lllita  vipereo  specula  felle  jacit.  ■     ' 

Foede,  quid  antiqui  turges  livore  colubrí? 

Quid  rábido  rodis  Virginis  ore  decus? 
Ausus  es  accensis,  carnale,  cupidine  flammis    '    ■■  • 

Tradere,  qui  in  médio  non  ílagrat  igne,  rubum?, 
Ausus  es  illimem  signati  fontis  in  amnem  •'  •' 

Ducere  coenosos,  sus  luculente,  lacus? 
Ausus  es  intactum  scelerata  tangere  lingua, 

Numinis  aeterni,  pestifer  bydre,  torum? 
Ausus  es  expresso  coelesti  rore  pudicum 

Rumpere,  et  immundis  tingere  vellus  aquis?    - 
Aasus  es  Eoae  divina  repagula  portae 

Demere,  signaías  et  reserare  fores? 
Conaris  cautos  sinuosa  involvere  cauda  '      " 

Yirgmis,  et  saevo  lacdere  dente  pedes? 
Num  poteris  primi  virus  superare  chelydrí? 


.  í  M ; EM  LOUVOR  DA  VIRGEM  1 79 

Num  tibi  plus  sceleris,  plus  tibi  fraudis  inest? 
Insidias  sanctae  posiiit  prior  ille  Puelia, 

Ut  trifido  niveos  iceret  ore  pedes. 
Tu  violare  sacrum  colubrino  dente  pudorem 

Niteris,  et  turpi  contemerare  lue. 
Sed  caput  invicto  serpentis  calce  vetusti 

Contudit  illa,  caput  conteret  illa  tuum. 
Tu  Stygis  aeternum  mergere  paludibus,  illi 

Perpetua  intactae  gloria  carnis  erit. 
Proh  scelus  infandum!  mortalis  seminis  unquam 

Vas  foret  aeterni  lectus,  et  arca  Dei? 
Illa  libidinibus  substet,  cui  substat  Olympus? 

Illa  colet  Venerem,  quam  colit  aula  poli? 
Appetat  illa  virum,  cujus  decus  atque  nitorem 

Appetit  aetherei  Rex  Dominusque  throni? 
Illud  honestatis  templum,  conclave  pudoris, 

Munditiae  thalamus,  justitiaeque  domus: 
Illa  serenato  fácies  mago  lúcida  coelo, 

Ullo  esset  naevo,  vel  maculanda  nota? 
Obmutesce  canis,  linguam  compesce  malignam: 

Surdescunt  aures  ad  tua  verba  meae. 
Non  homines  inter,  sed  spurcos  vivere  porcos 

Dignus  es,  immundo  spurcior  ipse  sue. 
Dignus  es  Eumenides  inter  Stygiosque  dracones 

Sibila  Tartareis  edere  tetra  rogis. 
Tu  mihi  sola  tuiim,  Virgo  integra,  fige  decorem: 

EÍTunde  eloquinm  tu  mibi  sola  tuum. 
Sed  novus  ecce  draco  squamato  pectore  terram 

Verrit,  et  ingenti  concavai  orbe  sinus. 
Taliane  ambiguum  telluris  monstra  cavernae. 

An  nigra  Cocyti  stagna  lacusque  vomarít. 
Credo  equidcm  talem  Stygio  de  gurgite  pestem 

Prodisse,  et  fofedis  ex  Aclicrontis  aquis. 
Pandit  liians  fauces,  pecudes  procul  ite,  cruentas, 

Ne  vos  sanguíneo  bellua  dente  nccet. 
Lelhifer  c  tetro  prodit  Calvinus  Averno, 

Mortiferosque  affert  de  Plilegetlionte  cibos. 
Quem  cibat  ille,  perit:  procul  liinc,  procul  este,  percnnem 

Qui  cupilis  vitam:  quem  cibat  ill(í,  perit. 
Ccdite,  Tartarea  ílagrans  sitit  ignc  Cbelydrus, 

Viroso  strages  edit  et  ore  graves. 
Nec  terrae  parcit,  supero  nec  parcít  Olympo, 
N(ic  tibi  summe  Deus,  n(!C  sacra  Virgo  tibi. 
Si  parcit  carnis,  mentis  lamcn  ille  pudori 


180  VERSOS  DO  PADRE  JOSEPH  DE  ANCHIETA 

'"  Et  decus,  et  pretium  detraliit  omnc  tuae: 
Perpetuaeque  animum,  et  nunquam  violabile  corpus 

Lege  puditiae  te  religasse  negat. 
Non  mirum,  authoris  ciim  factis  dieta  colierent: 

Non  indigna  referte  moribus  ille  siiis. 
Quid  tua  língua  potest  mundum,  Oalvinc,  sonare, 

Mersa  sit  immundo  cum  tua  vita  lacu? 
Mutasti  insano  Cliristum,  Calvine,  Lyaeo; 

Jure  Deus  linguae  Bacchus  amorque  tuae  est. 
Mutasti  Venere  immunda,  Calvine,  IMariam; 

Jure  vénus  vitae  dux  dea  lexque  tuae  est. 
liaec  colis,  liaec  totó  complectere  numina  corde, 

Nomine  et  ingenio  numina  digna  tuo. 
Haec,  Calvine,  tibi  sunt  praestò  numina  Bacchus 

Lingua  tibi  est  omni  tempore,  vita  Vénus. 
Qui  tibi  sint  mores,  nomen  manifestat  aperte, 

Qualis  odor  vitae,  quae  documenta,  tuum. 
Namque  meãs  quoties  fertur  Calvinus  ad  aures, 

Nil  nisi  cum  Veneris  vina  colore  sonat. 
Nempe  cales  semper  vino  Calvine,  furitque 

Luxuries  uimij  fota  calore  meri. 
Inde  fit,  ut  gemina  succensus  pectora  flamma 

Turpia  vinoso  potus  ab  ore  vomas: 
Inque  volutabro  caeni,  spurcissimus  ut  sus, 

Foede  jaces  mane,  vespere,  nocte,  ciie. 
Utque  alij  tecum  pariter  voluantur  eodem 

Stercore,  per  similes  quos  cupis  esse  tibi: 
Proteris  immundo  pulchram  pede  IMargaritam, 

Virginis  integrum  dilacerasque  decus: 
Ejus  ad  exemplum  ne  quis  sua  pectora  castis 

Aloribus  astringat,  rejiciatque  tuos. 
Ebric  deliras,  vino,  Calvine,  madescis, 

Talia  non  mirum  si  temulente  fremis. 
Lingua  calens  regitur  vino:  meliora  profari 

Ut,  Calvine,  velis,  non  meliora  potes. 
Cum  nomen,  Calvine,  tuum,  moresque  superbi 

Spurcitiaeque  subit  turpis  imago  tuae; 
l^e  variatum  olíers  tam  multis  ora  figuris, 

Quot  vitia  in  foedo  foelida  corde  geris. 
Kunc  te  calce  puto  deducere  nomen  ab  alba. 

Et  vino:  mores  signat  utrumque  tuos. 
Calce  dealbaris  falsa  pietale  nitescens, 

Teque  álbum  vulgus  credit,  et  esse  pium: 
Sed  furor  exbausti,  quo  totus  mei-gere,  viiú 


nrji 


•      >  EM  LOUVOR  BA  VIRGKM  181 

Proílit,  in  immnnrta  qnod  tibi  mente  latet. 
Nunc  tibi  quod  calviis  sitie  mente  fideqne  per  omnes 

Calvere  sis  cnpidus,  noraen  adesse  reor. 
Nunc  te  conspicio  sub  ovina  pelle  latentem, 

Guttura  laxantem  sanguinolenta,  lupum; 
Et  miseras  multo  populantem  funere  caulas 

Nulla  famis  pulsae  vel  darc  signa  si  tis. 
Jam  mihi  sus  horrens  setis  immunda  videris, 

Terga  volutaberis  qui  recreare  luti. 
Qui  foetore  tno,  contactuque  omnia  foedas 

Immnndo,  et  mundos  polluis  ore  cibos. 
Interdum  reptas  immanis  more  Chelydri, 

Squamea  pestífero  pectora  felle  tumens: 
Sulphureusque  oculis  de  scintillantibus  ignis 

Dissilit,  et  terras  iirit,  et  urit  aquas: 
Et  lethale  vommis  blasphemo  ex  ore  venenum, 

Stridet  ei  horrífico  flammea  lingua  sono. 
Hos  perimis  spiris,  tortaequc  volumine  caudae: 

Illos  dente  necas,  mortiferaque  lue. 
Foetidus  innumeros  interficit  halitus  oris, 

Spirante  inílcitur  quo  levis  aura,  tui. 
Nunc  mihi  pelle  refers,  facie,  gestuque  ílguram 

Vulpis,  et  instructis  insidiare  dolis: 
Compositisquc  capis  male  provida  pectora  tcchnis. 

Atque  alios  siniilí  fallere  fraudo  doces. 
Jam  te  vulpinis  cxutum  pellibus  olíers, 

Et  rabiosa  trucis  induis  ora  canis: 
Quam  dedit  illc  tibi  spcciem,  qui  dccubat  ante 

Ostia  Tartarae  Corberus  atra  domus. 
Tergiminis  sontes  hic  terret  faucibus  umbras, 

Egressuque  arcet  sulphurei  putei. 
Tu  marc  latratu  obtundis  terramque  trifauci, 

Et  pavet  ad  vocês  impia  turba  tuas. 
Et  legis  divinae  homines  ac  mentis  inanes 

Non  sinis  è  tetro  mortis  abire  chão. 
Ignis  avaritiae,  tumidaeqiie  su[)erbia  vitae 

Te  rapit,  et  carnis  focda  Mbido  tuae. 
Haec  tria  continuo  latratu  guttura  laxas, 

Inde  tibi  rabies  dirá  furor([ue  venil: 
Cerbereisquc  pias  discerpis  dentibus  aras. 

Et  pandis  rictus  in  sacra  templa  feros: 
Numinaque  immani  laceras  coeleslia  morsii, 

Erula  de  lumuli  rodis  et  ossa  sacris. 
Utque  tibi  aeternae  restct  spes  nulla  salutis, 


J82  VERSOS  DO  PADRE  JOSEPII  DE  ANCHIETA 

Certior  ad  Stygios  sitqu(3  ruiria  laciis;  . 

Virginis  intactae  rábido  teris  ore  decorem,  :      li- 

Vota  negans  animi  religiosa  pij:  ''  '  , 

Unde  venire  tiiis  possent  medicamina  morbis,         ;  1/ 

Ejus  honoranda  si  tibi  cura  foret.  uiiiijf) 

Mensuram  scelerum  cumulasti  hac  labo  taoruHKii^iíii  id 

Accessit  culpis  haec  modo  summa  Iuís;'Ííííi;I  f;IlnVI 
His  ubi  te  vidi  variantem  lurpia  formis  '  í' :    ■■/■^ 

Ora,  perit  vultus  prorsus  irnago  tui: 
Et  monstrum  invisum.  truculentum,  informe  viderisi;,n 

Immane,  infandum,  milleque  turpe  modis.       •  :■,! 
Denique  sive  cales  vini,  Calvine,  calore, 

Lenaeoque  furií  turpis  in  igne  Vénus: 
Sive  dealbatus  celaris  calce,  meroque 

Proderis,  et  cunctos  calvere  calviis  aves;  -:  .•; 

Seu  lúpus,  aut  porcus  coenosus,  truxuè  GbelydruSil  j:i 

Seu  fallax  vulpes  sis,  rabidusue  canis:  .1  i-.)  .<')hi'j}8 
Sive  aliud  monstrum  varijs  deforme  figurisj^^h-.-f  ^i.H 

Denique  quidquid  eris,  nil  nisi  pestis  eris. 
Sed  fertur  tua  magna  fides,  Calvine,  fatemur, 

In  vinum,  et  sordes  est  tua  magna  fides. 
Spe  tibi  mens  certa  gaudet  secura,  fatemur,     . 

Spe  tibi  Tartareis  certa  flagrai-e  rogis. 
Est  tua  apud  Gallos  sapienlia  magna,  fatemur, 

Insano  Gallus  poíus  ab  amne  furit.  ., 

Cum,  Calvine,  tibi  cordis  nihil  adsit  et  oris,        ii  íuiil 

Ut  Gallis  sapiens  sís,  mílii  Gallus  eris.      •;!;;,•[  \'A 
Quo  rapior?  justae  quo  me  tulit  impetus  irae?  Ji  !í'ní;í^> 

Mens  mea  miíte  canem,  mens  mea  mitte  suera^  r 
Jam  pudet  immundum,  qui  nil  nisi  turpia  novit  : 

AÍTari:  ad  Dominam  vela  reflecte  tuam, 
Altaque  virgineis  mulcentibus  aequora  ventis       vi  uf 

Virgineae  caeptmn  confice  laudis  iter.  }'f 

SpIRITUS  SANCTUS  SUPERVENIET  IX  TE,  de. 

VSQUE  AD  FINEM  { 

Me  tua  jam  revocat  clarissima  lumina  Virgo,  ]\ 

Et  dulcedo  piae  voeis,  et  oris  honos. 

Sed  stupor  ingenti  religat  mihi  frigore  pectus, 
Nilque  mea  in  tanta  lumina  luce  vident. 

Audio  sydereum  vera  tibi  você  ministrum 
Dicere,  clausuram  te  fore  ventre  Deum. 

Audio  você  humili  te  respondere,  pudoris 


EM   LOUVOR   DA   VIRGEM  183 

Esse  tui  firmis  estia  claiisa  seris. 
Mer^íor  in  immenso  tantamm  gurgite  rcriim, 

01)ruitur  nimijs  et  mihi  guttur  aqiiis. 
Tu  pia  divino  suLmittens  pectora  nutii 

Qiia  fieri  expectas  hoc  Deus  arte  velit. 
Audi  ergo  attenta  responsa  interpreíis  aure 

Qui  tibi  quaerenti  quomodo  fiet,  ait. 
Non  hoc  communi  natura  lege  palrandum 

Virgo,  nec  attactus  experiere  viri. 
Spiritus  adveniens  tibi  desuper,  induet  almiis 

Víscera,  et  omnipotens  conteget  umbra  sinus. 
Cumque  alvi  aethereum  claudes  penetralibus  ignem 

Munditiae  labes  non  erit  uUa  tuae. 
Atque  ideo  paries  quem  nuUo  nixa  dolore 

Magnus  erit  magni  filius  ille  Dei, 
Nulla  tuo  fiet  vis  iílo  oriente  pudori: 

Illae  tuae  custos  \irginitatis  erit. 
En  quae  prole  carens  per  aniles  labitur  annos 

Sanguinis  Elisabeth  foedere  juncta  tibi. 
Concepit  sunima  natura  in  foecunda  senecta, 

Menseque  sub  sexto  jam  grave  portat  ónus. 
Usque  adfio  divina  nihii  sapientia  nescit, 

Usque  adeo  virtus  nil  nequit  alta  Dei. 
Audisti  ne  pia  divina  oracula  tandem 

Aure,  dedit  praepes  quae  tibi  Virgo  puer? 
Virgo  deeus  nostrae  super  admirabilc  gentis, 

Virgo  salus  animae,  vita,  quiesque  meae. 
Audisti,  et  dulci  saliunt  tibi  pectora  motu, 

Exultatqiie  sacro  spiritus  igne  tuus. 
En  jactura  seris  obrepct  nulla  piidoris, 

De  que  tua  genitus  carne  Redemptor  erit. 
Turgebit  gravidus  divino  pondere  venter, 

Nec  gravis  exccptum  sentict  alvus  ónus. 
Utrumquc  optabas  avide,  donatur  utrumquc, 

Maternumquc  decus,  virgincusquc  nitor. 
Noli  igitur  Virgo  cunctandi  innectero  causas, 

Ansa  tibi  superest  postmodo  nulla  morae. 
Omnia  tuia  vides,  immolo  cardine  valvas 

Mansuras  iitcri,  claustraque  íiima  tui. 
Pande  tuae  citius  secreta  oracula  mentis, 

Et  resera  fauslis  dulcia  labra  sonis. 
Annuat  actorno  Patri  tua  pi'ompla  vohintas, 

Jam  (ludurn  asscnsuni  [H)stulat  ilhí  tuiim. 
Non  ne  audis,  qiiales  cííundit  ab  aethere  vocês? 


dá¥^  \T.r.SOS  DO  PADRE  JOSFPIl  DE  ANCHIEfA 

Qua  til>i  (luU*o  Píftcr  clamnt  in  ore  Deus? 
(3  milii  dilectas  inter  charissima  natas, 

Ouae  VerJjo  es  carnem  soía  datura  meo. 
Da  inilii,  da  citiiis  vel  páncula  verba,  vel  unum 

Fac  me  aiidii'e  oris  meilea  verba  tui. 
Audin.  ut  aníe  tiios  pernoctans  talia  postes 

Verba  tonat  magno  filiiis  ore  Deus? 
Eloquere  ò  duleis  soror,  et  pulcherrima  laxa 

Guttura,  consensus  ostia  pande  tui. 
Nulla  meo  íngressu  paíiere  incendia  soiíSv 

Fiet  in  egressa  vis  tibi  nulía  meo. 
Nam  mea  tíoctnrnis  humescunt  têmpora  gultis, 

Ecce  gero  plenum  Ros  ego  rore  caput. 
Audiri  ut  aspirans  divinus  lenibus  auris 

Spiritus  aeterno  victus  amore  sonat. 
Ó  tu,  pomiferis  cjuae  delitiaris  in  bortis 

Casta  verecundis  tcmpoi'a  picta  rosis. 
Eia  age  fare,  mea  tuas  vox  jam  personet  aures, 

Lao  tibi  de  lingua  melqiíe  suave  fíuat. 
Ecquid  adbuc  Yirgo  nostra  spes  una  síthitis, 

Ista  pudorí  color  reprimit  ora  metus. 
Fare,  quid  expectas?  totus  tibi  supplicat  orbis, 

Tendit  et  evinctas  ad  tua  tecta  manus. 
Ad  tua  se  incurvat  sublimis  limina  Olympus 

Substernens  pedibus  sydera  seque  tuis. 
Ante  tuum  Aiilfum  coi^lestis  turma  senatus 

Procidit,  innumeras  ingemmatque  preces. 
Diruta  ut  antiqui  sei^oentis  moenia  cauda 

Consurgant  urbis  te  pariente  suae- 
En  tibi  crebra  pij  mittunt  suspiria  maneg. 

Quos  gravis  obscuro  cárcere  terra  tegit. 
Ingrato  .fructus  ínamabilis  aegra  sapore 

Singultans  aperit  guttura  primus  bomo. 
Explicai  antiquos  muHer  tibi  prima  dolores, 

yErumnas  uteri  damnaque  multa  sui. 
Respice  iugentum  lacbrymantia  luraina  Patrum, 

Perque  catenatas  plurima  lustra  manus. 
Percipe  quae  fimdit  lamenta  gravíssima  tellus 

Obruta  flagitijs,  vulneribusque  tumens.^ 
Criminibus  veniam,  saniosis  balsama  plagis, 

Et  finem  tantis  ílagitat  aegra  malis. 
Quae  sub  u  troque  polo  tolerant  incommoda  gentes 

Mille,  geraunt  Phoebi  quae  sub  utraque  domo. 
Tristia  sordentes  diuturnis  íletibus  ora 


à 


TM  LOUVOR  DA  VIRC.ÈM  Í85' 

Ante  tuas  plangiint  exululanlqiio  fores. 
OfTerlur  iiostrae  pretium  tibi  grande  saliilist 

Si  capís,  eíFecta  est  illico  nostra  salus. 
Nos  divina  suo  fecit  sapientia  verbo 

Ocius  ad  verbum  reficietque  tuum. 
Ergo  age,  responde  paranympho  Virgo  loquenti, 

Non  nisi  cum  verbo  scandet  in  astra  tuo. 
Sit  mora  parva  licet,  qua  non  elíabere  verbum; 

Taba  quae  diíTert  gaudia,  longa  mora  est. 
Sat  tuo  supremo  placuere  silentia  Patri, 

Nuno  tua  verba  Deo  sunt  piacitura  magís. 
Mors  fera  grassatur,  tu  condis  gutture  vitam? 

Você  tua  occumbet,  tu  taciturna  siles? 
Fare  resolve  moras,  da  verbum,  suscipe;  Verbum 

Dívinum  ut  capias,  da,  pia  Virgo,  tuum. 
Mens  mea,  quid  sacram  turbas  ctamore  puellam? 

Quid  strepis  ingratis  lingua  molesta  sonis? 
ília  opus  hoc  ingens  animo  rimata  profundo 

Mira  suo  prudens  tempore  verba  dabit. 
Tu  tantum  ausculta,  nihil  baec  nisi  dulce  sonabit, 

Exuperant  dulces  illius  ora  favus. 
Jam  reserat  dulci  labra  distillantia  melle, 

Nectareique,  íluens  imbre  saporis  ait. 
Ecr^  ego  supremi  postrema  ancilla  Tonantis, 

Ecce  ego  de  ancillis  intima  serva  Dei. 
Âccipio  medijs  domíni  mandata  medullis, 

Ausculto  clictis  obsequiosa  tuis. 
Fiat  sancte  tuum  juxta  milii  nuntie  verbum: 

Est  mibi  prompta  fides,  est  mibi  promptus  amor. 
Tantum  effata  silet  Virgo,  totos((uc  i)er  artus 

Dulcis  inassueti  flamma  caloris  abit. 
Rosida  virgíneas  amplectitur  umbra  medullas, 

Et  tenuis  clausus  permeat  aura  sinus. 
Ilicet  arcanum  replet  sacra  víscera  verbum, 

Et  Virgo  Auctorem  concípit  alma  suum. 
Divina  bumanam  vestit  subslantia  formam, 

Perfectumque  ambit  foemina  ventre  virum. 
Tantum  dívíni  potuit  violenlia  amoris, 

Tantum  bumilís  meruit  Vírginis  alta  fidos. 
Quid  scnsere  tui,  Virgo,  penetrai  ia  cordís, 

Quis  tibi  sub  sancto  ])eclore  motus  erat, 
Insolitis  gravidam  cum  molibus  íni[)ulít  alvum 

(]onccptus  miro  vi\-  bene  mor(!  l'iior! 
Víscera  cum  sentis  tua  dilalala  potenti 


iS^  \-ERSOS  DO  PADRE  JOSEPII  DE  ANCHIETA 

Pignore,  signatas  nec  patuisse  fores! 
Admirans  natura  pavent,  tantique  silescit 

Conceptus  quaerens  obstupefacta  modiim. 
Naturae  superavit  amor  communia  jura, 

Concipitur  carais  lege  silente  Deus. 
Majestas  immensa  tuo  se  víscera  claudit, 

Claudere  quam  mundí  machina  magna  nequit. 
Exulta,  ó  Yirgo,  summi  domus  áurea  Regis, 

Et  dulces  pleno  gutture  plange  modos. 
Funde  Deo  laudes  liabiíatio  sancta  Sionis, 

Maximus  in  médio  jam  cubat  ipse  tui: 
Invictoque  tuas  praemnijt  óbice  portas. 

Virgíneas  signans  tempus  in  omne  serás. 
Quí  te  frumentí  satiat  pínguedine  vivi, 

Quod  tuus  haud  uUo  semine  fundit  ager. 
Inque  tuo  cunctis  benedicit  pignore  natis, 

Quos  sibi  coelestis  Patris  adoptat  amor. 
Eloquiumque  suum,  quo  saecula  fecit,  et  orbem 

Inculta  emittit  ventris  in  arva  tui. 
Salve  plena  Deo  Virgo,  ditissima  Vírgo, 

Yirgo  concubitus  néscia,  plena  Deo. 
Salve  regale  Accubitum,  Paradysus  amaena, 

Pacifici  Jesu  delitiosa  domus. 
Salve  divini  Templum  Salomonis  lionestum, 

In  quo  nil  strepuit  ingrediente  Deo. 
Salve  divini  Requies  gratíssima  Yerbi, 

Aula  voluptatís,  laetítiaeque  Torus. 
Salve  labe  carens  venter,  salvete  beata 

Yiscera,  virgínei  Matris  avete  sínu. 
Salve  perpetuo  vellem  tibi  dicere  venter, 

Perpetuo  vellem  dicere  venter  ave. 
Tu  prima  Immanae  naturae  gloria  venter 

Aspectu  dives  conspicuusque  Dei. 
In  te  divinum  dempto  velamine  viiltum 

Mens  servatoris  glorificata  videt, 
A  te  prima  salus,  a  te  venit  ultima  mundo, 

A  te  libertas,  gratia,  vita  fluit. 
Salve  iterum  foelix  sancto  cum  pignore  Mater 

Yirginitate  nitens,  fertilitate  potens. 
Dextra  tuas  dudum  tentat  mea  claudere  laudes, 

Sed  claudunt  laudes  oslia  nuUa  tuas: 
Erumpitque  alio  landis  de  gurgite  gurges, 

Néscio  quis  tantis  obviet  ager  aquis. 
Nêc  mensura  tuo,  nec  adest  modus  ullus  lionori, 


EM  LOU\OR  DA  VIUGEM  187Í 

Materiaque  meae  vincitur  arlis  opus. 
Cum  maniis  à  cepto  tentat  cessare  labore, 

Cessantem  revocas  protiniis  ipsa  manimi, 
Sed  revoca,  sine  fme  tuo  revocemur  amore 

Regna  vocês  Nati  donec  ad  alta  toi. 
Ó  intacta  Parens,  Virgo  foecunda,  beato  .>; 

Ventre  Redemptorem  quae  sine  iabe  geris.        !  luO 
Te  precor  aeternae  per  virginitatis  amorem,  il 

Et  per  conceptus  gaudia  tanta  tui.  "í 

Luxuriae  mundes  immundum  crimine  miindum, 

Corda  trahatque  tui  nostra  pudoris  odor;  ■■  ■^■>^ 

Yirgineique  meus  mysteria  máxima  ventris  ■'.( 

Credere  discat  amor,  discat  amare  íides.  ;  '-III 


r 


De  Visitatione  Virginis  Marle 


Ut  concepta  tuo  soboles  divina  sub  alvo  .    •  '1 

Implevit  ventris  grande  cubile  tui:  ,,,:i  jj 

Perque  tuam  mentem  splendoris  imago  paterni    '«  iii" 

Illuxit,  radijs  emicuitque  novis:  :,  •«) 

Pectoribusque  tuis  jam  sacro  ílamine  plenis  !•■* 

Est  data  maior  adhuc  gratia,  maior  amor: 
Surgis,  et  ad  celsos  ascendis  concita  montes, 

Urbis  ubi  Solymae  nobile  fulget  opus. 
Virgo,  quid  exurgis?  quis  te  movet  ardor  euntem? 

Dulce  tuae  linquis  cur  penetrale  domus? 
Quae  semper  plácido  foviste  gaudia  nido, 

Cur  montana  velut  turtur  in  alta  volas? 
Jam  tibi  se  immensus  coelorum  tradidit  Autlior, 

Et  pedibus  regnum  subdidit  omne  tuis, 
Surgis  ad  obsequium  famulae  Regina?  Deumque 

Servitio,  atque  humiles  subdis  ut  abra  manus? 
Cumquc  ministeríum  totus  libi  debeat  orbis, 

Quae  facta  est  Domini  lectus,  et  ara  sui; 
Tu  tanti  titulos  oblita,  et  pondus  honoris, 

Ancilla  properas  ut  famulere  tuae? 
Siste  gradum  Virgo,  Regina  revertere  cocli; 

Ecce  tibi  ílectit  terra  polusque  genu. 
In  te  verte  óculos.  Deus  est,  quem  viscere  gestas,      / 

Gloria  quem  solum,  quem  decet  omnis  bonos. 
Quid  loquor  ah  demens?  non  sunt  mihi  cognita  sacra 

Consilia,  atque  animi  vis  generosa  tui. 
Utque  luíbetant  aciem  radianlia  lumina  nostram 

Dum  Phoebi  intento  suspicil  ore  rolam: 


188  VERSOS   DO    PADUE   JOSEPII   DE   ANCHIETA 

Sic  ego  rimari,  Phoobi  ò  radiosior  orbe  '' 

Stella,  volo  mentis  dum  jubar  omno  liiae.  ■•> 

Me  tua  diradians  obnubilai  undique  virtus, 

Tantaque  lux  óculos  obruit  usque  raeos.  '^ 

Scilicet  alta  fugis,  cum  sis  altíssima  Virgd, 

Et  capis  alta  magís,  quo  magis  ima  petis. 
Qui  Patris  aeteriio  manans  de  pectore  summi 

Hospitia,  introijt  ventris  in  arcta  tui; 
Viseret  ut  mundum  culpae  languore  jacentem, 

Cordarpie  mortiferis  solverei  aegra  malis: 
Hic  tua  (iivinis  cumulat  pia  víscera  donis, 

Monstrat  et  insuetam,  qua  gradiere,  viam.  '^iY 

llle  tibi  tant^e  dux  est  pietatis,  et  author,    ■  'i''i.> 

Teque  bumilem  dum  se  dejicit  esse  docet. 
Quid  facias  Virgo,  si  summa  potentia  magni 

Se  tibi  majestas  subdit  et  alta  Dei? 
llle  tuam  summo  descendit  ab  aethere  in  alniimi 

Ut  Dominus  servis  serviat  ipse  suis. 
Tu  se  snbdentem  subdis,  dum  subderis,  atque 

OlTicium  servi,  quod  geris  ipsa,  gerit. 
Quodquo  olim  faciet,  matura  iit  venerit  aetas 

Divina  tractans  ínfima  qnaeque  manu. 
Protenus  exequeris  tu,  Mater  liumillima,  vili 

Servítio  tradens  te  Puerimique  tmim. 
Mira  Dei  bonitas,  bumilis  qui  ventre  puellae 

Clauditur;  atque  bomJnum  postmodo  serxTis  erit 
Mira  Dei  Matris  sapi^ntia,  deinde  futurum  ■') 

Continuo  servum  quae  facít  esse  Deum. 
Ergo  ego  servi tium  Domino  famulante  recusem,  -isJ  mel 

ínfima  rejiciam  turgidus,  alta  petam?         •  •  -í  í^i 
Serviat  aeterni  Genitrix  digníssima  Yerbi      >  bs  íiiii-iorí 

Visa  hiimilí  famiilae  víx  sibi  digna  loco :  • 

Ipse  húmus,  et  cinerís  vilissima  sarcina  nuUo  ''^ 

Inferior,  cunctis  altior  esse  velím? 
Ante  precor  tristi  tabescant  vilia  letlw  ' 

^Membra,  míhi  vili  contumulanda  solo. 
Quam  Domini  império  dura  cervice  repugnem 

Idque  méis  humeris  exculíatur  ónus: 
Yirtutis  vè  tuae,  speciosa  et  humílima  Virgo, 

E  fluat  ex  oculis  dulcis  imago  meís. 
Sed  perge,  et  montis  pulchro  juga  trajice  gressu, 

Divínae  effundas  ut  pietajís  aijuas. 
Omnia  namque  tibi  cum  Nalo  munera  summo 

Summus  ab  aetherea  contulit  íirce  Pater. 


EM  LOUVOR  DA  VIRGEM  189 

Qui  pius  ut  ciinctis  placidissima  lumina  rebus 

Figit,  et  aíllictis  fert  miseratus  opem; 
Inqiic  tua  iinigeiíum  demisit  víscera  Natum, 

Visitet  ut  culpae  quos  grave  laedit  ónus. 
Sic  quoque  totius  curam  tibi  tradidit  orbis, 

Auxilium  miseris  ut  miserata  serás. 
Gum  te  materno  decoravit  honore,  benígrium 

Oflicium  matris  fecit  liabere  piae. 
Yisis  enim  cunctos  miti  bona  lumina  Mater, 

Et  tua  nequicquam  numina  nemo  veeat. 
Invisis  quorum  serpunt  saniosa  per  artus 

Ulcera,  conspoctu  mox  coeuntque  tuo. 
Respicis  et  saevo  cruciatos  membra  dolore, 

Teque  fugit  sacvus  respiciente  dolor, 
Yisis  et  horrisonis  quibus  aequora  mota  procelli*    ■ 

Funera  insanis  dirá  minantur  aquis: 
Torvaque  sedatis  componis  marmora  ventis, 

Tranquillo  aspirans  aura  secunda  mari. 
Yisis  et  obsessas  turmis  hostilibus  arces, 

Incussoque  fugas  castra  inimica  metu. 
Yisis  et  instructas  acies,  pugnasque  cruentas, 

llosticaque  invicta  conteris  arma  ir  anu. 
Yisis  in  obscuro  conclusos  cárcere  sontes, 

Speque  bona  miseris  taedia  longa  levas. 
Yisis  et  evinctos  immitibus  aegra  catenis 

Corpora,  et  bostiii  squalida  colla  jugo: 
Pallidaque  infractis  exolvis  corpora  vindis. 

Et  duro  túmidos  êxuis  aere  pedes. 
Yisis  in  extremo  positos  discrimine  vitae, 

Auxilium  dextrae  qui  petiere  tuae. 
Inslantemque  arcens  longe  morienlibus  Orcum 

Dcfunctis  facilem  pandis  in  astraviam. 
Yisis  in  obscoenis  immersos  pectore  culpis, 

Quos  vitae  incepit  poenituisse  suai?: 
Maternoque  foves  solamine,  íbedaque  imper 

Oírda  Deum  jjlacans  jam  S[)eciosa  facin. 
Yísís  et  aelerni  gravidus  qui  iiuminis  iram 

Flagitijs,  ])oenas  nec  timuei'e,  niovent. 
lios  prece  victa  tua  Domini  clcmenlia  gratos 

Heddit,  et  ignito  car|)it  amore  siii. 
Yisis  et  immenso  (pioj-iini  j)ia  vita  ]iarenti 

Labe  carens  (innii  criniíiio  munda  placet. 
Servilio  Domini  í|ui  se  a(ldj\('i'(!  jter(;niii 

Lcgibus  aslricti  membra  animunique  pus: 


•190  VERSOS  DO   PADRE   JOSEPH   DE   ANCHIETA 

Hos  tua  delicijs  pietas  coelestibus  implet 
Moribus  exornans  pectora  casta  bonis. 
Hos  tua  maternis  pietas  amplectilur  ulnis, 
Inque  tuo  degunt  absque  timore  sirm. 
Cuncta  referre  libet;  sed  nec  mihi  lingua,  nec  ora, 

Nec  manus,  aut  mentis  sufTicit  ipse  vigor. 
Desipiamque  magis,  quam  si  comprendere  coner 

Littora  planguntur  quod  sinuosa  fretis. 
Nam  quaecunque  tenet  vel  terra  perícia,  vel  aequor, 

Quaeque  ferus  Stygijs  evomit  Orcus  aquis, 
Cuncta  tua  superas  pietate;  nec  abfuit  unquam 

Ista  manus  miseris,  cum  petereris  opem. 
Caetera  uti  sileam  pietatis  clara  benignae 
Signa  Dei  genitrix,  et  monimenta  tuae. 
Me  quoque  cpiem  penitus  vitiorum  merserat  altus-:  / 

Gurges,  et  ad  Stygios  truserat  usqne  lacus.      l 
Me  quoque  visisti  miserum,  cui  nulla  futuri 

Supplicij,  aut  verae  cura  salulis  erat. 
Me  quoque  visisti,  cum  nec  coelestie  mentem 
Dona  mihi,  aut  Domini  tangeret  ullus  amor. 
Me  quoque  visisti,  quam  nec  miser  ipse  vocabam, 

Nec  me  praesidio  rebar  egere  tuo. 
Me  quoque  visisti,  me  tu  prior  ipsa  vocasti? 

Sed  tacui  stupidus,  surdus  inersque  diu. 
Me  miserum,  quotíes  curis  acuebar  honestis 

Te  stimulis  pectus  sollicitante  meum! 
Sed  mihi  nec  virtus,  nec  vis  stimulantis  amoris, 

Nec  pietas  Matris  nota  vocantis  erat. 
Sed  tua  vox  tandem  surdas  penetravit  in  aures,     • ' 

Noxque  mei  cordis  lumine  victa  tuo  est. 
Exextique  gravi  culpae  sub  mole  jacentem, 
Redditaque  est  per  te  vita  salusque  mihi. 
Ergo  quod  audivi,  quod  coeli  lumina  cerno, 

Quod  redij  ad  vitam,  quod  modo  vivo,  tuum  est. 
Quaeque  data  est  per  te,  per  te  quoque  vita  manebil 

Integra,  et  aeternae  néscia  mortis  erit. 
Hoc  sperare  tui  facilis  clementia  Nati, 

Hoc  tua  me  pietas  dulcis  amorque  jubet, 
Adde  quod  est  ingens  tua  cum  bonitate  potestasy  íí 

Cui  dedit  omnipotens  omnia  posse  Deus.        - 
Ergo  gravem  visis  foelici  prole  parentem 
Sedula,  nec  longum  te  remoratur  itcr. 
Nec  montana  piam  deterrent  áspera  mentem. 
Semita  ^virgíneos  nec  lapidosa  pedes. 


I 


EM  LOUVOR  DA  VIRGEM  .191 

Ó  vehemens  pietas,  dulcis  vehementia  amoris, 

Flammea  vis  animi,  vivaqae  flamma  pij.  < 

Perge,  precor,  Dominam  famulus  comitabor  euntem,     . 

Si  licet,  et  pateris,  per  juga  celsa  meam. 
Si  tamen  indignum  me  dedignabere  forsan, 

Qui  comes  inceptae  sim,  sociusqiie  viae: 
At  patiere  pedmn  vestigia  sacra  tuorum 

A  longe  observans  post  tua  terga  premam. 
Ibo  legens  gressiis  pronus,  figam  oscula  terrae, 

Pulveream  signat  qua  tua  planta  viam: 
Imcumbensque  solo  suspirijs  intima  pulsans 

Huic,  mea  mens,  dicam,  lumine  fige  loco. 
Hoc  impressa  tuae  vestigia  pulvere  matris 

Aspicis,  hic  humilis  vis  pietatis  ínest. 
Áurea  si  sacrae  vix  moenia  adire  Sionis,  ;!  ; 

Hoc  sequitur,  praeit  quo  tua  mater  iter. 
Ilaec  sacra  virginei  praecessit  Sarcina  ventris; 

Si  sapis,  hoc  properos  tramite  fige  gradus. 
Haec  sola  est,  saneiam  quae  te  perducet  in  urbem 

Semita,  qua  Natum  praetulit  illa  suum. 
Sed  jam,  Yirgo,  sui  nimium  tibi  causa  morandi, 

Clivosum  tarde  dum  tero  lentus  iter. 
Vos  igitur  levibus  qui  curritis  ocyus  Austris  ,; 

Aligeri  coetus,  incola  turma  poli.  ; 

Vos  ruite  ò  superi  celeri  pede  culmine  coeli, 

Cingite  virgincum  sedula  turba  latus. 
Haec  Thronus  est  Domini  sedesque  altíssima  vestri, 

Altior  aethereas  transgredi turque  domos. 
Dignior  hoc  vobis  in  vértice  fulget  Olympus, 

Altior  est  coelo,  quem  gerit  illa  sinu. 
Per  juga  praegnantem  deducite  celsa  puellam, 

Sternentes  varij  floris  odore  viam. 
Si  cum  foeda  malus  lacin-ymis  rigat  ore  profusis 

Pectora  ílagilijs,  contumerata  gemens. 
Si  vos  magna  modis  pertenlant  gaudia  miris, 

Funditis  et  summo  cantica  laeta  Patri: 
Haec  dabit,  haec  mulier  vestris  nova  gaudia  turmis 

Corda  lavaturum  jam  i)aritura  Deum. 
Haec  properat  Pueri  nondinii  dctergerí5  nali, 

Primus  homo  infecit  quo  genus  omne,  notam; 
Illic  prima  dabit  venturae  signa  salutis, 

Qua  rala  divini  pignoia  amoris  erunl. 
Scilicet  ipsius  placidis  ut  vocibus  iiifans 

Matris  adhuc  clausus  viscere  laetus  cril: 


192  VERSOS  DO  PADRE  JOSEPH  DE  ANCHIETA 

Authorisque  siii  numen  praesentis  adorans 

Deponeí  patrij  crimen  onusíiue  mali. 
Sic  iibi  virgíneo  suraptiim  de  corpore  corpus 

Interimet  diris  mors  truculenta  modis: 
Omnia  surdentis  purgabit  crimina  mundi^ 

Et  vetus  in  sacro  diluet  amnc  scelus. 
Ergo  tibi  nostrae  jam  nunc  pia  Yirgo,  salulis, 

Saevaque  curandi  vulnera  cura  datur, 
Jam  nunc,  quae  multa  squaleljant  sorde  repurgans: 

Efficies  summo  pectora  grata  Deo. 
Quid  magis  admirer  dubito,  Patris  ne  benignam, 

Qui  te  tam  grandi  donat  honore,  manum: 
An  ne  tuum  tanto  firmatum  robore  pectus 

Authoris  posses  mater  ut  esse  tui. 
Utrumque  admiror;  sed  cum  tua  pectora  cerno, 

Tcmpla  pudicitiae,  justitiaeque  domum; 
Cuncta  tibi  à  summa  video  bonitate  profecta, 

Súbdita  cui  semper  mens  tua,  Yirgo,  fuit. 
lUius  est  quod  halies,  nec  te  pudet,  inclyta  Mater. 

Accepta  authori  cuncta  referre  tuo. 
Ille  ú\À  prirai  genitae  sine  crimine  patris 

Gorporis,  atque  animae  labe  carere  dedit. 
Ille  tui  requiem  ventris  sibi  legit,  ut  orbem 

Sanctificet,  longis  eripiatque  malis. 
Nunc  clausus  clausum  mundabit  ventre  puellum 

Matre  pium  matris  percipiente  sonum. 
Post  tua  vel  lento  cur  non  vestigia  gressu 

Acclivis  calcem  per  juga  montis  iter? 
Quid  miror?  emensi  jam  transis  árdua  montis 

Culmina,  quae  est  longae  meta  suprema  viae: 
Moeniaque  ingrederis  regalis  sacra  Sionis, 

Excipit  et  tectis  te  Solyma  alta  suis. 
Excipit  urbs  Urbem,  divinam  arx  aspecit  Arcem 

Cominus.  et  Portae  pervia  porta  patet. 
Zacchariaeque  domum  festinis  passibus  intras, 

Et  tua  vox  gravidam  dulce  salutat  anum. 
Sensit,  et  exiguo  vix  gaudia  concipit  infans 

Pectore,  dum  dulces  dat  tua  iiiigua  sonos. 
Sensit  Joannes,  subitiscjue  parentis  in  alvo 

Gestibus  exultans  párvula  niembra  movet: 
Gonspectumque  Dei  ílexis  venientis  adorat 

Poplitibus,  pátrias  exviturque  notas. 
Jubilat  admirans  vultum  vocemque  benigna 

llospitis  Elisabeth,  laetiliaque  fremit. 


EM  LOUVOR  DA  VIRGEM  193 

Nec  capit  insiietos  gravida  intra  víscera  inotus, 

Qiiae  sacro  implevit  plurimus  igne  Deus. 
Exilit  aetliereis  agitatala  caloribiis  intus, 

Et  petit  amplexus,  Virgo  beata,  tuos. 
Virgineamque  parens  tenet  infoecunda  parentem, 

Juncta  sinurn  sinui,  pectora  pectoribus. 
Et  ílammae  impatiens  implet  clamorlbus  aedem; 

Fundi t,  et  ingenti  talia  vocc  tibi. 
O  decus,  ó  nostri  claríssima  gloria  sexus, 

Contuiit  immensus  cui  l)0Da  cuncla  Deus, 
Tu  varijs  matres  vincís  virtutil^us  omnes, 

Tu  superas  omnes  conditione  nurus. 
Mille  tuae  fructus  cumulatur  dotibus  alvi, 

Máxima  cui  virtus,  cui  sine  fine  decus. 
Máxima  totius  cui  raachina  serviet  orbís 

Cuncta  dabit  Genitor  cui  moderanda  suus. 
Quo  merui  facto  tam  grandis  múnus  honoris? 

Unde  mihi  indígnae  gratia  tanta  venit? 
Tu  Domina  atque  mei  Domini  digníssima  mater 

Ad  famulam  vénias  obsequiosa  tuam? 
Te  ne  ego  supremi  foecundam  prole  parentis 

Excipiam  laribus  vilis  inopsque  méis? 
Ecce  salutantis  tua  vox  ut  pertigit  aures, 

Audire  ut  licui  tam  pia  verba  mihi; 
Gestijt  insolitis  exultans  motibus  infans, 

Et  mea  sunt  pulsu  viscera  mota  novo. 
Tu  nimium  foelix,  tu  miro  more  beata, 

Cujus  capta  fnit  pectore  tanta  fides. 
Namque  tibi  à  Domino  quae  sunt  promissa  superno 

Stant  rata  temporibus  perficienda  suis. 
Ilaec  anus  ardenti  de  pectore  prompsit  honores, 

Ó  Virgo,  et  laudes  vaticinata  tuas: 
Inque  tuo  vultu  fixis  obtutibus  haeret. 

Et  tua  quo  splendent  vix  capit  ora  decus. 
At  tu,  Virgo,  tuae  non  immemor  óptima  sortis 

Excutis  ex  bumeris  tam  grave  landis  ónus. 
Nec  virtus  humilis,  roseique  modéstia  vuKus, 

Nec  pudor  ingenuus,  nc  dccor  oris  abest. 
Omniaque  in  summi  referens  praeconia  Patris 

Talia  melliflua  carmina  você  canis. 
M«ns  mea  divinas  humilis  de  pectore  laudes 

Depromit,  Dominum  magniíicatque  suum. 
Spiritus  inque  Deo  meus  oxultavit  amalo, 

Qui  sohis  vitae  vita,  sahisque  meae  est. 

VOL.    11  13 


194  VERSOS  DO  PADRE  JOSEPH  DE  ANCHIETA 

Nam  placidis  Immilem  respexií  ab  aethere  servam 

Luminibus  nimio  victus  amore  suam. 
Propterea  foelix,  geutesque  beata  per  omnes 

Semper  ab  aeterna  postcritate  ferar. 
Nam  mihi  magnificis  immcnsia  potentia  dextrae 

Divinae  ornavit  pcctora  nuda  bonis. 
Est  illi  omnipotens  sanctum,  et  venerabile  nomen: 

Illius  aeternum  gloria  numen  habet. 
Ipsius  pietas  natos  fovet  atque  nepotes, 

Qui  Domini  casto  nomen  amore  timent. 
Ipse  suo  fortis  robur  dedit  omne  lacerto, 

Invicta  vires  exercuitque  manus. 
Perdidit  insana  tumefactos  mente  superbos, 

Quos  furor  elati  cordis  inanis  aget. 
Deposuit  summa  convulsos  sede  potentes, 

Sublimenque  bumiles  fecit  habere  locum. 
Quos  violenta  fames,  quos  dura  cxercet  egestas 

Implevit  veris  perpetuisque  bonis. 
Divitijs  plenos  vácuos  demisit,  et  omnes 

Funditus  agestas  depopulavit  opes. 
Mente  suam  recolens  pietatam  dulciter  altae 

Isacidam  puerum  suscipit  ipse  suum. 
Quae  quondam  nostris  promisit  patribus  implens, 

Priscaque  cum  vera  foedera  pacta  fide, 
Qualia  jm-avit  magno  immntabilis  Abrae, 

Et  soboli  ipsius  tempus  in  omne  Deus. 
Sic  ais,  atque  óculos  íellure  morata  pudicos 

Occultas  humili  gaudia  dona  sinu. 
Virgineasque  paras  mox  ad  servilia  palmas; 

Nec  famulam  famulae  te  pudet  esse  tuac. 
lUa  sibi  matrem  Domini  servire  supremi 

Nec  fert,  nec  novit  qua  ratione  vetet. 
Si  Dominam  servire  sinat,  cui  servit  Olympus 

Sydereus,  contra  jusque  piumque  putat. 
Si  Dominam  servire  velat,  cui  caetera  parent, 

Ut  Dominae  império  pareat  ipsa,  timet. 
Quid  facíat?  probibere  grave  est,  permiltere  durum: 

Utraque  poena  gravis,  sed  tolerare  minor. 
Obsequitur  libens  Dominae  servire  volenti 

Serva,  ministerijs  perfruiturque  tuis. 
Tantaque  sub  tácito  myisteria  pectore  voluit  i» 

Plena  Dei  muto  cum  sene  mater  anus. 
Foelix  prole  parens,  foelicior  bospite  tanta, 

Quae  nato  et  matri  seque  Deumque  dedit. 


KM  LOl  VOH  DA   VIRGEM  195 

Foelix  mule  senex,  hujus  tibi  munere  vocem 

Jam  dabit  immissus  corda  per  ima  Deus. 
Foelix  sarictae  puer,  cujiis  foelicior  altis 

Auspicijs  tactu  Virginis  ortus  erit. 
Quem  teneroque  sinu,  placidisque  fovebit  in  ulnis, 

Membra  quibus  Domini  sjot  refovenda  tui. 
Ó  ego  si  possem  spectator  adesse,  tuasque 

Sancta  ministrantes  cernere,  Yirgo,  manus. 
Ó  milii  liceat  íecum  simul  esse  ministro, 

Exequereis  tantae  dum  pieíatis  opus. 
Dum  te  submJsso  tranctantem  viiia  corde 

Munera  ter  jungens  cornua  luna  vident. 
Quae  quoniam  non  est  opis  omnia  dicere  iioslrae, 

Et  tibi  plus  verbis  integra  vita  placet: 
Da,  tua  sit  virtus  rnihi  semper  humillima  cordi. 

Ire  inoíTenso  per  tua  facta  pede. 
Ó  Regina,  pios  ânimos  complexa  labores 

Pectore,  tene  animo  cedere  posse  meo? 
Sed  quis  erit,  mitem  qui  te  mihi  praestet  egeno? 

Qua  tuus  est  misero  conciliandus  amor? 
Omnia  cum  lustro,  vel  quae  plaga  lúcida  coeli, 

Yel  tenet  abstruso  terrae  íretumque  sinu: 
Tu  prima  ante  omnes  aegrae  fis  obvia  menti 

Pignora  praesidij  certa  datura  tui. 
Nec  pietate  aliquis,  nec  nostri  aequarit  amore, 

Que  tibi  maternus  visccra  replet  amor. 
Cuncta  tuus  (fateor)  dulcedinc  vincit  Jesus, 

Quo  sine  jucuncum  est,  quo  sine  dulce  nihil. 
Sed  licet  invitet  pietas  divina,  repellit 

Majestas  justo  sontia  corda  metu. 
Tu  precibus  moíam  componis  mitibus  iram, 

Nec  tua  formidat  perditus  ora  réus. 
Ante  tuos  igitur,  Mater  mitissima,  vultus 

Mens  mea  subnixo  procidit  ccce  genu. 
Nudus,  iriops,  aeger,  crudelibus  undeque  plagis 

Saucius,  innumeris  uror  agorque  malis. 
Tu  quibus  iridigeant  unguentis  vulnera  nosti. 

Ante  tuos  acgro  sat  gemuisse  pedes. 
Ventre  tuo  nostri  clausa  esi  medicina  doloris, 

Perpetuum(|uc  tuus  drt  medicanion  amoi'. 
Ad  me  si  mites  converlis,  Alatcr,  ocelios, 

Suííicit  in  NTiItu  spes  mihi  corta  tuo  est. 


196  \'ersos  do  padre  joseph  de  anchieta 

De  Partu  Virginis  Marine 

Tandem,  sancta  Parens,  revolulis  ordine  seclis 

x\dvenit  partus  hora  beata  Ini. 
Hora  tibi  iotis  animae  exoptata  medullis, 

Nox  sacrae,  nox  omiii  clarior  nna  die. 
Ó  nox,  ò  cunctis  speciosior  una  diebus: 

Ó  nox,  natalis  piílclira  decore  novi. 
Ó  nox,  qiiae  verae  radiant  claríssima  lucis 

Lumino,  Phoebeis  splendidiora  rolis. 
Ó  uox,  caligo  qna  pellitur  atra,  suusque 

Redditur  immenso  rebns  in  orbe  color. 
Qua  Deus  egrediíur  pnerili  carne  volutus. 

Quem  menses  clausit  Virginis  arca  novem. 
Quae,  precor,  ò  foelix,  quae  gaudia,  Virgo,  medullas 

Pulsarant  cordis  nocte  silente  tui, 
Ante  tuos  óculos  jacuit  cum  parvulus  Infans, 

Qui  Patris  ante  novum  fluxit  ab  ore  jubar; 
Processitque  tua  carnem  vestitus  ab  alvo, 

Damna  fuit  passus  nec  tuus  iiUa  pudor? 
Haec  tibi  sydereus  pavitanti  nuntius  olim 

Promisit  laetum  cum  tibi  dixit  Ave. 
Haec  tu  submissa  cepisti  oracala  mente, 

Kec  tua  credulitas  vana  fidesque  fuit. 
Nam  tua  continuo  non  marcescente  pudoris 

Intravit  summus  víscera  flore  Deus. 
Nunc  idem  egreditur  materni  veníris  ab  aula, 

Nec  thalamí  reserat  osíia  sacra  sui. 
Ultima  respondent  primis  mysteria  caepíís, 

Veraqne  sub  tacita  gaudia  mente  foves. 
Tunc  formosa  nimis,  cum  se  decor  ipse  silenter 

Clausit  in  hospitij  tecta  pudica  tui. 
Nunc  formosa  magis,  cum  jam  sine  murmure  viq 

Claustra  pudiciíae  transijt  arcta  tuae. 
Haec  tibi  nox  foelix,  haec  formosíssima  venit, 

Haec  tua  lucídius  sparsit  in  ora  jubar. 
Nempe  verecundo  qiiamvís  aurora  colore 

Fulgeat,  et  radijs  vesiiat  aura  novis: 
Pulchrius  ília  íamen  Phoebeo  splcndet  in  ortu, 

Cum  sua  sol  liqnidis  exerlt  ora  vadís. 
Ut  primum  nata  est  Vcrbum  paritnra  paternum, 

Aurora  effulsit,  noxque  peracía  fuit. 
Virgínea  sed  enim  cum  nondnm  accumberet  alvo, 

Deorat  adhuc  lucí  gloria  magna  tuae. 


1 


EM  LOUVOR  DA  VIUGEM  197 

Ut  vero  accnbiiit,  crevit  tua  gratia,  luxque 

Incluso  Solis  lumine  maior  erat. 
Nunc  ubi  divini  rádios  difíudit  honoris 

Editus  in  lucem  kicis  origo  Deus; 
Emicat  in  totó  tua  lux  nitidissima  mundo, 

Virgineique  decus  mater  honoris  liabes. 
Sed  juvat  iníerea  taníi  primordia  partus, 

Nascentisque  urbem  voluere  mente  Dei; 
Quae  domus  excepií  Dominum,  quae  regia  Ghristum, 

Quae  dedit  Infanti  culcita  blanda  torum. 
Quae  comités  sacrae,  famulae  vò  fuere  Parenti, 

Qui  Puero  cantus,  qui  sonucre  modi. 
Nascitur  in  Bethíeem,  veteris  sub  culmine  tecti, 

Nascentem  nudum  nuda  receptai  húmus. 
Fit  praesepe  torus,  hinc  bos,  hinc  tardus  asellus, 

Hinc  tacitus  pueri  pendet  in  ora  senex. 
Jubilat  alma  Parens,  Infantulus  ore  tenello 

Vagit,  inauditis  personat  aethra  modis. 
Cur  mea  mens  torpes  ?  cur  non  magnalia  visis 

Regia  ?  quin  gressus  ad  sacra  tecta  moves  ? 
Perge  age,  non  illo  pellet  te  lumine  durus 

Janitor,  obsíructas  objicietve  fores, 
ília  caret  poríis,  statio  est  aptissima  brutis, 

Pervia  frigoribus  porticus  illa  patet. 
Intrabis  tuguri  squalentia  culmina  vilis 

Congestà  culmis  excipiere  casa. 
Ut  Matrem  aspicies  divino  lumine  plenam, 

Percipe  quid  partus  tempore  dulcis  agat. 
Tu  sine,  tu  sacrae  recolam  mysteria  noclis, 

Ó  Virgo,  et  mentis  gaudia  pura  tuae. 
Tu  sine,  pracseníi  spectem  tua  lumine  facta, 

Et  cúpida  excipiam  quos  dabis  aure  sonos. 
Tempus  adest  partus,  nox  intempesta  silcscit, 

Et  juga  jam  medij  dividit  alia  poli: 
Omnia  somnus  habet  plácida  resoluta  quiete ; 

At  tua  seu  lampas  lumina  clara  micant : 
AUaque  jam  dudum  miracula  monle  volutas, 

Ora  cui)is  Puití  pulchra  vidcro  tui. 
Amplexura  sacruni  jam  miíia  bracliia  corpus, 

Foturosque  paras  frigida  mcnibra  sinus. 
Osculam  ja  gestis  roseis  libare  labellis, 

Et  rubra  candidulis  íigere  labra  gcnis. 
Nectare  turgentes  jam  pressus  pollico  mammas, 

Quas  tenero  sugat  parvulus  ore  Puer. 


198 


VERSOS  DO  PADRE  JOSEPH   DE  ANCHIETA 

Niinc  huniili  pulsas  irnmensiim  você  Parentem, 

Nunc  Natum  Liando  dulciter  ore  vocas. 
En  prope,  ais,  partiis  jam  foelix  hora  propinquat, 

Ó  deciis,  ó  i-equies,  ó  moa  cura  Deus. 
Jam^^tuus  exibit  Natus  sub  luminis  auras, 

Et  nudam  tanget  corpore  tecíus  humum. 
Kú  mihi  non  verum  tuus  altulit  ales  ab  alto 

Mihere,  credenti  nec  mihi  verba  dedit. 
Inclinavi  aurem,  concepi  viscere  Verbum 

Tutaque  seruata  virgiiiitate  fui. 
Consule  mine  Genitor  paricntis  summe  pudori : 

Sit  sine  vi  partus,  sit  sine  labe,  meus. 
Tenò  ego,  chare  Puer,  compíexu  sedula  moUi, 

Tenè  ego  materno  bellc  fovebo  sinu? 
Tenè  meo  pulcher  lactaberis  ubere  Nate, 

Mistaque  cum  niveo  basia  lacte  feres? 
Nascere  summe  Deus,  mea  magna  future  voluptas, 

Basiolumque  oris  da  mihi  diiíce  tui. 
Haec  dum  divini  succensa  cupidine  amoris 

Voluis,  et  expectas  pignoris  ora  sacri ; 
Nascitur  humano  vestitum  corpore  Verbum, 

Et  tua  virginiías  intemerata  manet. 
Ut  viridis  profert  nitidum  virguncula  florem, 

Nec  trusufloris  laeditur  ipsa  sui, 
Ut  Sol  subtili  penetrans  specularia  luce 

Illaeso  radians  itque  reditque  vitro. 
Egreditur  porta  princeps  sublimis  Eoa 

Limina  signatae,  nec  patuere  fores. 
Candidus  è  thalamo  procedit  Sponsus  honesto 

Conjugis  aeterno  vinctus  amore  nova. 
Quae  tibi  nunc  sanctum  pertentant  gaudia  pectus? 

Quae  tua  laetitiam  mens  pia  Mater  habet? 
Quae  tibi  divini  cernenti  Numinis  ortum 

Lux  nova  perfundít  lumina  !  quale  decus  f 
Quid  facis  in  dura  Puero  tellure  jacenti. 

Áspera  quem  duro  frigore  vexat  hyems? 
Surgis,  et  aethereo  vultum  perfusa  nitore 

Ante  Dei  fiexo  procidis  ora  genu. 
Flexa  genu,  et|toto  venerabile  Numen  adoras 

Corpore,  in  amplexus  jam  rutura  pios. 
Mellifluumque  bibis  divini  Infantis  amorem, 

Taltaque  é  médio  pectore  verba  sonas. 


I 


EM    LOUVOR    DA    VIRGEM  lUSl 

On.VTio  Matris  ad  Plerum  reci:.\s  natum. 

Ó  Deus  omnipotens,  vasli  quem  machina  mundi 

Authorem  ac  Dominum  praedicat  esse  suum. 
Cujus  inaccessam  tenet  ingens  gloria  lucem, 

Cui  velut  innatus  lúmen  amictus  inest. 
Quem  nequit  immenso  comprendere  corpore  mundus 

Conclusit  ventris  te  brevis  arca  mei. 
Egressusque  meae  tener  è  penetralibus  alvi, 

In  vili  recubas,  lux  mea,  Na  te,  solo. 
Non,  ne  tua  ingentem  manus  inclyta  condidit  orbem? 

Nonnc  polus  Domino  servit  uterque  tibi  ? 
Cur  tibi  tam  vílem  nascenli  deligis  aedem? 

Regia  cur  oríum  non  capit  aula  tuum? 
Tu  coelum  stellis,  variis  animalia  villis 

Induis,  et  viridi  gramine  pingis  agros. 
At  tu  nudus  hurai  vagis,  lachrymasque  treraenti 

Exprimit  è  teneris  áspera  bruma  genis. 
Naíe  decus  coeli,  soboles  Patris  aec{ua  superni, 

Edite  visceribus  Nate  decore  méis. 
Quantus  bic  est  matri  dolor,  ó  mea  Nate  voluptas, 

Viscera  te  aíllicto  qui  pracmit  aegra  mihi ! 
Quo  te  Nate  modo  dura  tellure  levabo? 

Qua  tua  contingam  membra  beata  manu  ? 
Indignam  terret,  probibeíque  aítingere  corpus 

Me  tua  majestas,  unice  Nate  Dei. 
Sed  te  si  patiar  cruciari  frigore  nudum, 

Et  tenera  in  duro  membra  jacere  solo : 
Asperius  fueril  rigido  mihi  frigore  pectus, 

Nec  superet  durus  viscera  dura  lápis. 
Ergo  tuam  tangam,  Soboles  dulcíssima,  carncm, 

Sola  ego  de  pura  quam  tibi  carne  dedi : 
Expleboqiie  meãs  rofovens  tua  membra  medullas, 

Quoque  miíii  pectus  flagrat  amore  fruar : 
Maternaeque  parcns  pielatis  munera  obibo, 

Quae  licet  in  cunas  oííiciosa  tuas. 
Ergo  veni  ò  pulcher  (simul  baec,  simul  erigis  ipsum, 

Involvis  pannis,  guttura  lacte  rigas) 
Ergo  veni  ò  pulcher,  mea  lux,  mea  gloria,  Fili, 

Brachia  nec  matris  respue  cliara  tuae. 
His  tua  panniculis  rorum  Dominalor,  et  author, 

His  tua  panniculis  membra  tenella  tegam. 
Ut  tua  nos  inopes  duríssima  ditet  egestas 

Divinis  replens  pertora  egena  bonis. 


200  YEHSOS  DO  PADRE  JOSEPIi  DE  ANCHIETA 

Per  te  vivit  homo,  pecudcs  pasaintiir,  avcsque, 

Vermicuiis  suum  dat  tua  dextra  cibum. 
Deqiie  tuis  mieis  eives  satianlur  Olympi, 

Omiiibus  èqiie  tua  provenit  esca  manu. 
Nunc  te  dura  fames,  njinc  te  silis  áspera  vexat, 

Uberaque  exiguum  darit  tibi  nostra  cibum. 
Eia  age,  turgentes,  Infans  bellissime,  mammas, 

Accipe :  maternura  lac,  Puer  alme,  bibe. 
Lac,  mea  quo  Genitor  tuus  ubera,  Nate,  replevit 

Quod  tibi  de  íenero  pelleret  ore  sitim. 
Ne  pete  piara,  satis  tibi  sunt  liaec  munera,  quando 

Me  tibi  vis  matrem,  tu  meus  esse  puer. 
Uror  amore  tui  dulci  liquefacía  medulias, 

Et  mea  melliíluus  serpii  in  ossa  calor ; 
Cúm  te,  vitae  Autlior,  dlvinis  specto  labellls 

Sugere  de  manimis  parva  alimenta  méis. 
En  ego  te  biandis  homineraque  Deumque  lacertis 

Sustineo,  ò  summi  gloria  vera  poli. 
En  ego  te  Natum  mater,  te  filia  Patrem, 

Te  Dominum  molli  servula  gesto  sinu. 
Ó  Infans  formose,  mei  Deus  intime  cordis, 

Ó  amor,  ò  vitae  vi  ta  beata  meae. 
Verè  ego  te  nate  foelix,  ex  millibus  una 

Electa,  ut  tanto  pignore  plena  forem. 
Nunc  mihi  laetitiae  curaulus  super  additur  ingens, 

Melaque  vix  laudi  figitur  ulla  meae. 
Cum  te,  summe  Deus,  peperi,  niveusque  pudoris 

Cum  maíris  pariter  mansit  honore  nitor, 
Cum  tamen  abjecta  Dominum  coníemplor  in  aede 

Frigore  tam  duro,  pauperieque  premi. 
Desertum,  atque  inopem,  nudum,  cunctisque  carentem 

Rebus,  et  hunc  arctum  vix  reperisse  locum ; 
Vix  mea  compescunt  lachrymas  (simul  imber  honestits 

Largus  abit  malis)  lumina,  chare  Puer. 
Quo  tua  Majesías  requiesceí  regia  lecto? 

Unde  parem  Domino  molle  cubile  tibi  ? 
Non  hic  pulchra  rubent  Tyrio  perfusa  colore 

Tegamina,  non  auro  serica  texta  rigent. 
Non  est  blanda  mihi  molli  lis  culcitra  lanis, 

Qua  tua  te,  fili,  mater  egena  locem. 
Non  avibus  nidi  desunt,  non  vulpibus  antra 

Tuta,  quibus  foveant  se  sobolemque  suam. 
At  tibi  coelorum  Domino,  rerurnque  parenti 

Deest,  ubi  reclines  têmpora  sacra,  locus.. 


EM  LOUVOU   DA   VIRGEM  20! 

Inter  maternas  reciibare  suaviter  ulnas, 

Inquc  meo  posses  moUiter  esse  sinii. 
Sed  tu  dura  ciipis,  perpessiimque  áspera  ferre ; 

Mollia  regalis  scilicet  aula  íenct. 
Vis  angusta  tibi  liant  praesepia  cima, 

Aridaque  incultum  praebeat  herba  torum. , 
ílis  ergo  in  stipuiis  inter  jirnienía  reciimbe : 

Hic  sopor  in  sicco  gramine  duicis  erit. 
Hic  tibi,  dum  teneros  mulcebit  somnus  ocellos 

Utraquc  turgebit  lacte  maníilla  tibi. 
Hic  benò  virgíneo  serval^itiir  nbere  potns, 

Hic  tibi  non  deerit,  belle  Paelle,  cibus. 
Dormi,  summe  Deus,  ml  duicis  amator,  amorque, 

Ó  fácies  oculis  deliciosa  méis. 
His  blandirc  piae,  mater  dulcíssima,  proli, 

Yixque  animo  claudis  gaudia  tanta  tuo. 
Parvulus  in  foeno  recubat,  tua  gloria,  Natus : 

Tu  juxta  aethereo  lamine  plena  sedes. 
Sydereum  plaudit  divinis  vocibus  agmen, 

Na  talem  Domini  concelebratque  sui. 
Ingeminant  laudes,  resonat  vox  clara  per  auras? 

Sit  decus  in  superis,  gloria,  lausque  Deo, 
Et  placidae  telUis  exultei  munere  pacis, 

Mittitur  è  coelo  mentibus  illa  piis. 
Díffugiunt  tenebra  fulgeí  splendoribus  aèr, 

Et  vero  exoritur  Sole  oriente  tlies. 
Pastores  currunt.  nalumque  rec  enler  adoram, 

Quem  vox  coelestis  dixerat  esse  Deum. 
Haec  te  laetitia  cumulant,  hacc  laudibus  ornant, 

Omniaquc  liaec  servas  pectore  verba  tuo. 
Si  sinis,  ipse  etiani  nati  ad  praesepia  Regis 

Corpore  prostcrnar,  menteque  fusus  humi : 
Ut  referam  sacras  cxili  carmine  laudes 

Infanti  tenero,  vel  tibi  casta  Parens. 
Audebo,  acccdam,  neque  enim  me  dura  repelles, 

Nec  Puei'i  ficnt  lumina  torva  milii. 
Sed  quis  ab  aeterni  manantem  pectore  Patris 

Ante  creaturas  saeclaque  facta  canet? 
Tutius  csl  ejus  laudes  siluisse :  silendo 

Kedditur  immenso  laus  quoque  magna  Deo. 
Ergo  tibi  pauper  rnunuscula  paivula  servus 

Ò  Genitrix,  Nato  non  reiuieiite  feram. 
Cur  lamcn  ajjnuerit,  tibi  qui  dcdit  omnia,  seque 

Qui  tibi  tolius  fons  et  origo  boni  ost? 


202  VERSOS  DO   PADRE   JOSEPII   DE   ANCHIETA 

Sed  quis  percipiet  seiisus,  quaevc  ora  sonabunt 
Quae  tibi  sint  carnis,  quae  tibi  mentis  opes  ? 

Tanta  tuo  fulget  coelestis  gratia  corde, 
Ut  stupeant  formam  cimcta  creata  tuam. 

Agmina  mirantur  coelestia  claudere  puris 
Visceribiis  summiim  te  potuisse  Denm. 

Laudes  VraciMS  ordine  alphabetico. 


Tu  sacra  es,  qua  se  divinum  condidit  aunim, 

Quae  mundo  largas  Arca  refundis  opes. 
Unde  catenatus  Stygij  sub  jure  tyranni 

Venditus  beu  misere  jam  redimatur  homo. 
Hoc  ego  thesauro  redimam  mea  crimina,  et  olini 

Captivus,  tanto  munere  liber  ero. 
Nec  tua,  quae  cunctis  reserata  est  semper  egenis 

Claudetur  soli  dextra  benigna  mihi. 
Non  docet  esse  tuus,  Natus  te,  Mater  avaram : 

Ut  mihi  se  donet,  se  dedit  ille  tibi. 
Divitiis  post  hàc  nemo  se  jacíet  opimis, 

Nemo  sibi  laxas  condat  avarus  opes. 
A  te  qui  purum  supplex  non  ceperit  aurum, 

Pauper  in  aeternum  vilis,  egenus  erit. 

B 

Tu  nive  candidior  Byssus,  candorque  pudoris 

Unde  sibi  sumpsit  tegmina  digna  Deus. 
Quae  nec  corrumpet  consumens  cuncto»  vetustas, 

Nec  mors  terribili  sanguine  lenta  manu. 
Hoc  verum  acquiret  velamine  mundus  honorem, 

Opprobriique  teget  signa  noíasque  sui. 
Ilac  tege  me  túnica.  Mater;  nam  corripit  aeslus, 

Laedit  hyems,  telis  dextra  inimica  ferif. 


Tu  plena  es  Domini  suavíssima  fercula  seruans 
Cella,  salutaris  premitur  unde  cibus. 

Hoc  superi  vivunt,  foelicia  flamina,  libo 
Hoc  corda  humanum  pascitur  aegra  genus. 

O  verp  vivus,  qui  venit  ab  aethere,  panis. 


EM  LOUVOR  DA  VIRGEM  203 

Quem  tua  suscepit  cella,  dcditqne  cibum. 
Qui  nisi  materna  sic  se  minuisset  in  alvo 

Nullus  in  orbe  locus,  quo  caperetur  crat. 
Jam  medicam  sumpsit  de  te,  pulcherrima,  formair-, 

Undeque  at  menti  totus  inesse  meae. 
Ó  mea  divinum  coricludite  viscera  pastura, 

Ne  vos  sicca  sitis  perdat,  inersque  fames. 

D 

Tu  Dumus  rutulis  circumdatus  undique  flammis, 

Qui  tamen  ardenti  lacderis  igne  nihil. 
Quem  tua  divinum  purissima  condidit  ignem 

Alvus,  et  in  médio  tuta  calore  fuit. 
Jam  sine  ut  flamma  peperisti,  amplecteris  ulnis, 

Et  roseis  praebes  iibera  plena  labris. 
En  ego  mortífero  tabesco  frigore  pectus, 

Nec  mea  divinus  corripit  ossa'  calor. 
Ure  tuis  gélidas  flammis  mihi,  Virgo,  meduUas, 

Cordaque  torpenti  quae  riguere  gelii : 
Perpetuoque  tui  Pueri  succendar  amore, 

Et  combm-at  amor  me  sine  fine  tuus. 


E 


Tu  vitae  Exemplum,  purissima  Mater,  honesta, 

Ignivomo  solis  clarius  orl)e  micans. 
Tu  sola  intrépido  deserta  per  avia  gressu 

Ignotas  aperis  diííicilcsque  vias. 
A  te  virgineae  nivei  dedicerc  Phalanges 

Quod  tcrerent  acto  calle  pudoris  iter. 
In  te  sanctorum  fixerunt  lumina  turmae, 

Perque  tuos  mores  cumposuere  suos. 
Ut  qu»  oculis  radians  ad  se  traliit  orbita  solis, 

Sic  tua  lux  mentes,  sic  tua  vita  trahit. 
A  te  vana  puer  discit  contemnere  carnis 

Gaudia,  divinas  deliciasque  sequi. 
Per  te  conjugij  facta  est  via  foedare  vinctis, 

Quique  rnagis  puri  dona  pudoris  amant. 
Denique  forma  bonos  ad  se  tua  pellicit  omnes, 

Ad  se  forma  potens  allraliit  ista  maios; 
Nam  lasciva  tuum  cum  spectant  lumina  vultum 

Aspectos  fiunt  luce  pudica  tui. 


204  VERSOS  DO  PADRE  JOSEPII  DE  ANCHIETA 

Ó  radiosa  meae  tenebras  lux  disjice  noctis, 
Ut  videain  Incem,  qiia  rapientc  traíiar. 

Forma  modesta  tiii,  et  formosa  modéstia  viiltus 
Slt  via,  et  exemplam,  rectaque  norma  milii. 

Ad  te  se  qiíoties  mea  mens  convertei  amandam. 
Da  fiigiat  carnis,  da  tuus  intret  amor. 


Tu  Fons,  quem  sylvac  decoratum  fronde  virentis 

Divina  aeíerno  gemma  pudore  notat. 
Quae  fiuit  acíerna  viniis  dulcedine  torrens, 

Unda  voluptatis,  laetitiaeque  liquor. 
Unde  jugis  manat,  coelestemqiie  irrigai  urbem 

Amnis  inexhaustis  impetuosus  aquis. 
HuJQS  ab  infliixu  divinis  arbor  in  hortis 

Consita  producit  tempore  poma  suo. 
Me  miserum,  nocuo  toíus  comburor  ab  aestu, 

Asperaqiie  arescens  opprimit  ora  sitis. 
Nec  peto  divinis  à  te,  Fons  puré,  liquores, 

Vixque  animam  tanto  tabidus  igne  traho. 
Ó  pia  sinceri  Fons  dulcis  Mater  amoris, 

Fac  moribunda  látex  irrigei  ora  tuus. 
Fontibus  è  vívis  largus  fluat  imber  Jesu 

Ut  de  ventre  fluant  viva  fluenta  meo. 

G 

Tu  Gleba  in  médio  sterilis  pinguissima  terrae, 

Gui  nulla  aestatis  vis,  hyemisve  nocet. 
Quão  nuUo  incurvi  procissa  es  vomere  aratri, 

Semina  nec  grémio  suscipis  ulla  tuo. 
Unde  oritur  vivi  frumenti  nobile  granum, 

Grassantem  totó  quod  fugat  orbe  famem. 
Hoc  molet  immanis  pugnis,  flagrisque  satellos     ' 

Mentibus  ut  fiai  panis,  et  esca  pijs. 
Quem  coquei  aeterni  fiammis  Pater  almus  amoris 

Instrue  nodosae,  quam  fereí  ipse,  crucis. 
Fac  pia,  ceu  granum  duro  molar  ipse  labore, 

Divinoque  meum  pectus  amore  coqui. 
Dignus  ut  adjiciar  divina  ad  fercula  panis, 

Et  Domino  ílam  mundior  esca  meo. 


I 


EM  LOUVOR   DA  VIRGEM  20í) 

Tu  pulcher  muris  sublimibus  undiqiic  septus 

Hortus  est  uberibus  deliciosiis  aqnis. 
Floribus  hic  ridet  diversi  coloribus  arbor, 

Et  curvant  ramos  pondere  poma  suo. 
Hic  casiac  mites,  hic  ílagrans  spirat  amomum, 

Balsamaque,  et  rubei  pallida  fiila  croci. 
Cândida  jucundum  diffundunt  lilia  odorem, 

Rubraque  perpetuo  splendet  honore  rosa. 
Nam  tua  virginitas  materno  insignis  lionore 

Floret,  et  aeternis  fructibus  aucta  nitet. 
Nascitur  bic  verus  vitae  sine  semine  fructus, 

Et  sevae  infringit  jura  severa  necis. 
Hoc  ego  delicias,  boc  quaeram  gaudia  in  horto; 

Ista  voluptatis  sola  sit  aula  meae. 
Hoc  mea,  da  Mater,  pinguescant  pectora  fructu, 

Unde  aeterna  mihi  vita  saiusque  íluat. 

í 

Tu  Jubar  immcnsum  concludens  viscerc  Solem, 

Cum  Patre  inocciduus  qui  micat  ante  díem, 
Tectaque  incxtincta  coelestis  Sionis 

Ambit  et  aeterno  lumine  clara  facit. 
Et  tibi  praecipuum  tribuit  splendoris  honorem, 

Lúcida  cum  thalamis  protulit  ora  tuis: 
Luxque  nova  in  tenebris  mortisque  sedentibus  uiiibra 

Splenduit,  et  noctem  depulit,  atque  necem. 
Pelle  procul  tenebras,  pulcherrime  Lúcifer  orbis, 

Pelle  animi  noctem,  Stella  corusca,  mei. 


Tu  Lcctus  florens,  in  quo  Rex  otia  cepit 

Pacificus  placide  mensibus  alta  novem. 
In  quo  naturam  generis  (mirabile)  noslri 

Assumpsit  sponsam  tempus  in  omnc  sibi. 
Hic  liomini  Deus  unitus,  Deus  alfus,  et  idem 

.Iam  de  ventre  tuo  parvulus  exit  homo. 
Alliget  ille  sibi  firmo  mea  pectora  nodo, 

Ne  violent  sponsi  jura  fidemque  sui. 


âOC  >'i:rsos  do  padre  josepii  de  Anchieta 

M 

Tu  pia,  tu  dulcis,  tu  clfimentissima  Mater: 

Convenit  hoc  digno  nomen  honorc  tibi. 
Mater  amicitiae,  per  quam,  quem  fecerat  hostem 

Culpa,  Deo  tandem  jam  íit  amicus  homo. 
Mater  honestatis,  formosi  Mater  amoris 

Cândida,  totus  justitiaeque  parens. 
Mater  es,  et  Virgo,  vitae  dulcissimae  Mater: 

Quid  moror?  immensi  Mater  es  alma  Dei. 
Unigenum  summi  peperisti  Patris,  cumque 

Credimus  unigenum  primigenumque  tuum, 
Nempe  tuo  solus  natus  de  ventre  reliquit 

Illae  sum  Intacíae  virginitatis  iter. 
Divinique  simul  ílammis  correptus  amoris 

Ipse  sua  fratres  nos  bonitate  facit. 
Quosque  sibi  fratres,  tibi  mansuetissima  natos 

Reddit,  et  accumulat  pignora  chara  tibi, 
Non  bine  pauperie,  non  bine  larguore  gravaíus 

Pellitur,  aut  vitijs  turpia  corda  nocens. 
Mater  ut  es  justis,  injustis  sic  qnoque  Mater : 

Omnibus  una  parens,  omnibus  una  salus. 
Ergo  age,  filiolis  matris  pia  víscera  pande 

Te  mea  mens  Matrem  scntiat  esse  suam. 
Audiat  ille  preces  per  te,  milissima,  nostras. 

Pro  nobis  Natus  qui  tulit  esse  íuus. 


Tu,  benè  construxit  Domini  quem  dextera  Nidus, 

Passer  ubi,  et  íurtur  collocet  ova  pius. 
Passer  ubi  innumeros  edat  cum  tuilure  pullos, 

Humano  indutus  corporc  nempe  Deus. 
Spiritus  hanc  nosier  cbaram  sibi  deligit  aedem, 

Hac  infirma  caro  tuia  sub  arce  manet. 
Mittimus  ad  Natum  per  te  pia  vota,  precesque, 

Perque  tuas  nobis  dat  sua  dona  manus. 
Tu  mihi  nidus  eris,  per  te  mea  munera  sumet 

jEihra,  nisi  ex  meritis  non  valitura  tuis. 

O 

Tu  simplex,  bumilis,  tu  mansuetudine  plena, 
Labe  carens,  cunctae,  qua  maculantur,  Ovis, 


I 


KM  LOLVOK  DA  VIHGE.M  20^ 

Quae  paris,  humanas  qui  surdes  abluet,  Agiiuni, 

Fluiiiiiia  cum  fundet  sanguiiiis  alta  sui. 
Qui  cum  dura  geret  nodosi  pondera  ligni 

Fiat  iit  immani  victima  sacra  nece ; 
Et  dirè  innocuiis  tondebitur,  obmutescet, 

Et  tácito  plagas  perferet  ore  graves : 
Morteque  devicta  Stygij  de  fauce  leonis 

Innocuus  fontes  eruet  Agnus  oves. 
Da  mihi,  sim  mitis,  placidoque  opprobría  vultu, 

Saevaque  pacato  funera  corde  feram. 
Ut  lavei  ille  m.eas  pretioso  sanguine  surdes, 

Qui  dabit  immiti  mitia  memJjra  cruci. 


Tu  Porta  es  róseo  Solis  radiantis  in  ortu 

Signala  invictis  perpetuisque  seris  : 
Qua  soli  aeterno  patefacta  est  semita  Regi, 

Solus  ea  jngreditur,  egrediturque  via  : 
Incessusque  sui  vestigia  nulla  relinquens 

Per  clausas  Princeps  itque  redit  que  feres. 
Effice,  uti  soli  pateant  mea  pectora  Jesu, 

íncola  sit  mentis  solus  ut  ille  meae. 

Q 

Tu  tranípiilla  Quies,  in  qua  Deus  immemor  iia 
Accubuit,  nobis  gaudia  vera  ferens. 

Te  parienle  Dcum,  totus  requievit  Olympus 
Vera  data  est  terrae,  te  pariente,  (juies. 

Esto  mei  requies,  expellens  crimina  cordis, 
Tuque,  tuusque  simul,  Virgo  quieta,  Puer. 

R 

Tu  Robur  populo  pugnanti,  lioslique  ruina, 
Cujus  ope  erecti  vincimus,  ille  cadit. 

Nempe  tui  virtus  nos  Nati  invicta  jacentes 
Erigit,  et  Stygios  pellit  ab  orbe  duces. 

Imbeiíis  post  hac  in  me,  te  pi'aeside,  saevu* 
Hostis,  ego  tutus  tpgmine  Matris  ero. 


206  VEP.SOS  DO   PADRE   JOSEPH   DE   AXCHIETA 

S 

Tu  Sepes,  qua  se  Domini  substantia  sepsit, 

Et  qua  munitur  vinea  magna  Dei. 
Quae  sepla  incursus  Ecdesia  fortis  aprorum 

Arcet,  et  audaci  territat  ore  lupos. 
Propagesque  suas  postremum  extendit  ad  aequor, 

Transit  et  Eupliratis  panrpinus  ejus  aquas. 
Fac  precor,  hanc  intra  mnr.eam,  dum  vixero,  sepim, 

Ne  voret  inventum  bestia  saeva  foris. 
Simque  ferens  fructus,  et  vi  ti  semper  inhaerens 

Palmes,  et  in  Domini  tempus  in  omne  manens. 


Tu  Turris  veri,  tectum  regale,  Davidis, 

Unde  gerit  summus  bella  cruenta  Deus. 
Hinc  fragilem  sumpsit  puro  de  sanguine  carnem, 

Qua  cum  tartareo  conferat  hoste  manum: 
Tradat  et  aeternis  fracta  cervice  catenis 

Ad  coeli  pandens  gaudia  victor  iter. 
Quisquis  ad  hanc  cursu  veloci  confugit  arcem, 

Pugnat,  avernales  dilaceratque  manus. 
Ad  te  confugio,  tutissima  Turris,  anhelans; 

Sis,  precor,  Arx  animae  praesidiumqiie  meae. 


Tu  foecmida  nimis  supremi  Vinea  Patris, 

Quam  própria  sevit,  sepsit  et  ipse  manu. 
Ex  qua  coíiigitur  pinguissimus  iile  racemus, 

Qui  in  gremium  venií  Patris  ab  ore  tuum. 
Cujus  nectareos  dulcedo  immensa  hquores 

Yincit,  et  Hyblaeis  mella  coacta  favis. 
Cujus  inexhaustus  sitientia  guttura  succus 

Temperat,  et  vitae  fonte  perenne  rigat. 
Cujus  aromáticos  ílagranlia  vincit  odores, 

Reddit  et  ad  viíara,  quos  fera  mors  rapuit. 
Cujus  ab  humano  fugat  omnia  nubila  corde, 

Gaudiaque  accumulat  laetiíiamque  liquor. 
Cujus  inauditus  cordis  penetralia  gestus. 

Et  sensus  dulci  raptat  amore  sui. 
Cujus  amor  ílammas  charissim.a  pectora  carpit. 

Et  facit  cpoti  pota  calore  mcri. 


L.M  lolvoí;  da  viiiíjoi  203 

Ó  fpelix  Domini  plantatio,  Vinca  íoelix, 

Ó  splendens  Virgo,  splendidiorquc  Pai-cn?;. 
Nenio  tibi  pulchrae  formosam  conierat  Hcstlicr, 

Nemo  tibi  JudiLh  fortia  lacta  canat. 
Nam  superat  íictam  quo  res  magis  ipsa  íigurani, 

IIoc  superas  onínes  tu  speciosa  magis. 
Omnia  cessarurit  Evae  jam  tristia  matris, 

Omnis  abest  partu  visque  dolorque  tuo. 
Eva  vcnenosi  decepta  est  fraudibus  anguis, 

Túrgida  tu  colubri  têmpora  calce  teris. 
Eva  novum  vetita  destruxit  in  arbore  muridum, 

Tu  renovas  fructu  saecula  cuncta  tuo. 
Eva  per  ille  cebras  Adamum  ex  aethere  primum 

Dejectum  culpae  sub  juga  dura  dedit. 
Tu  supera  Adamum  detíucis  ab  arce  secundam, 

Soluis  et  è  culpae  nosque  patresque  jugo. 
Eva  mali  inventrix,  allatrix  Eva  dolorum, 

Gaudia  tu  mundo,  tu  paris  omne  bonum. 
Eva  polum  clausit,  per  te  reseratur  Olympus: 

Eva  Orei  pandit,  obstruis  ipsa  fores. 
Eva  dedit  mortem,  tu  das  sanctissima  vitam: 

Abstulit  haec  vitam,  tu  benedicta  necem. 
Eva  notas  nos.tro  maculasquc  imprcssit  honori, 

A  te  jam  nobis  redditur  auctus  honor. 
Eva  suo  speciem  fuedavit  crimine  nostram, 

Tu  laeso  turpis  abluis  ore  notas. 
Ó  formosa  Parens,  divini  forma  dccoris, 

Ore  ferens  speciem  pulclira  figura  Dei. 
Nec  te  laudando  mea  mens  expletur  abunde, 

Nec  mea  sulficíunt  laudibus  ora  tuis.  * 

(^oncipiens  Virgo,  pariens  puríssima  Virgo, 

Pwst  partum  Virgo  saecula  cuncta  manens. 
Quis  milii  virgineis  stringéntem  pulchra  lacertis 

Mcmbra  det  Infantis  te  veliementer  amem ! 
Quis  milii  maternum,  Dominum  quod  daudit  Jesum 

Cor  dederit  médio  clnudcixí  corde  tuum ! 
Ó  dulce,  ó  plenum  divino  alveare  liípiore, 

Unde  oritur  superans  dulcia  cuncta  favus. 
Foelices  mentes,  foelicia  |»ectoi'a,  quorum 

Solus  liic  oblectat  munda  palala  cibus. 
Ille  tuam  mira  pascit  dulcedine  mentem, 

Pascilur  è  mammis  dulciler  ille  luis: 
líiter  et  ambrosios  vinccnlia  dorniit  (»dores 

Ubera,  quac  anliquu  sunt  mcliura  mero: 

VOL.    II  14 


210  VERSOS  DO  PADIIE  JOSEPll  DE  ANCHIETA 

Tu  tenero  blandos  capientem  pcctore  somnos 

Inspicis,  et  tacitam  ílammciis  urit  amor. 
Jam  divina  tua  reclinas  têmpora  laeva, 

Amplcxu  Pnerum- dextra  fovetqne  pio. 
Ut  sacra  deservit  jucundas  lumina  somnus, 

Nectarco  fauces  tu  pia  lacte  rigas. 
Nunc  labra  purpureis  infigis  púnica  malis, 

Nuno  rósea  osciUis  dulcibus  ora  prennis. 
Quid  superest?  vincor:  laudo  esl  tua  gloria  maior; 

Nec  mibi  dicendi  meta  m.odiisque  suljit. 
Ut  superem  linguis  quot  voluit  pontns  arenas, 

Tu  numero  laudum  meque  freíumque  praeis. 
Digna  tibi  superi  resonent  praeconia  caetus, 

Nec  tamen  bi  possunt  reddere  digna  tibi. 
Ille  aequale  dabit  meriíi  tibi  pondus  bonoris, 

Qui  Yoluit  famulam  Matris  liabero  locum. 
Salve  Virgo  Parens,  Genitrix  foecunda  salutis, 

Cui  sedet  in  molli  sarcina  grata  sinu. 
Ó  formose  Puer,  labijs  tibi  gratia  plenis 

Eííluit,  et  pulclu^o  summus  ab  ore  decor. 
Cujus  inest  patrij  splendoris  gloria  vultu, 

Cujas  laeta  pio  luminc  ridet  liumus. 
In  te  cuncta  suos  óculos  fixere  Parente, 

Ut  des  antiquam  quae  fuget  esca  famem. 
Tu  reseras  dextram  facili  pius  ore  benignam, 

Eífundens  largas  munera  Paíris,  opes. 
Cumque  homini  dederis  quicquid  maris  educat  unda, 

Qaidquid  alii  facilis  divite  terra  sinu: 
Te  rerum  Autborem,  te  das  super  omnia  nobis: 

Hic  erat  aeterni  summus  amoris  apex. 
Parvaque  te  immensum  quem  non  capit  aetberis  aula 

Ut  nostri  capiant  pectoris  bospitia: 
Fis  Puer  exiguus  materna  clausus  in  alvo, 

ília  tibi  dignuni  praebuit  aula  torum. 
ó  decor,  ò  forma  speciosior  omnibus  unus, 

Ora,  Puer,  Matris  respice  cliara  tuae. 
Respice,  ubi  recubas  maternas  molli  ter  ulnas, 

Yirgineosque,  fovent  qui  tua  membra,  sinus. 
Respice,  quas  sugis  mananíes  nectare  mammas. 

Et  labra,  quae  labijs  figit  bonesta  tuis. 
Da  milii,  te  ampleclar;  tu  sis  mibi  solus  semper  amori; 

Da  milii,  te  loto  pectore  semper  amem. 
Cumque  tua,  per  quam  descendit  ad  ima.  Parente 

Esto  quies  animi,  vitaque  parsque  mei. 


EM  LOUVOR  DA  VIRGEM  2  1 1 

Ó  tu  foeminei  Mater  piílcliGrrima  sexus, 

Quae  vitam  nobis  sola  Deiimque  paris. 
Pande  tui  miseris  raaterni  visccra  amoris, 

Coiicipere  immensum  quae  potúere  Deum. 
Quaeque  nianus  facta  es  dilecti  amplíssima  Nati, 

Per  quam  largitur  omnia,  seque,  tni: 
Esto  milii  semper  (decet  hoc  tua  víscera)  Mater, 

Me  Puero  aelernum  dans,  Puerumque  ríiilii. 

De  Magorum  Adventu,  et  adoratione 

Cum  Sol  jusíítiae,  cum  Patris  splendor  Jesus 

Edilus  in  vili  jam  foret  aede  Puer: 
Et  tua,  diva  Parens,  inter  jucunda  moratus 

Ubera  jam  paucos  cerneret  iredies. 
Ecce  Magos,  magna  famulum  stipante  caterva, 

Ducit  ab  Eois  slella  corusca  plagis: 
Numen  ut  aeterni  venerabile  Regis  adorent, 

Et  sua  dent  nato  dona  animosque  Deo 
Moenia  jam  Solymae  subeunt  excelsa  superbae, 

Atque  ubi  sit  natus  Rex  Dominusque,  rogant, 
Quid  Justum,  ó  Reges,  in  iniqua  quaeritis  urbe? 

Non  benefactorem  plebs  colit  islã  suuni. 
Regnat  Idmiíeus  tali  violentos  in  aula, 

Quique  malis  metam  non  possuere  suis. 
Odit  avaritlam,  quem  quaeritis,  odit  iníquos; 

Ditia  pauperiem  regna  reliquit  amans. 
Vile  sibi  hospitium  nascenti  elegit,  et  urbem, 

Natus  in  exígua  pauper,  inopsque  casa. 
Rex  ferus  audito  turbatur  nomine  Regis, 

Et  sequitur  Regem  turba  superba  suum, 
Insidíasque  parat  tenero  lúpus  improbus  Agno, 

Jamque  ávidas  fauces  bestia  pandit  bians. 
Stulte,  quid  ínsanis?  non  est  sapientia  contra 

Dívinae  robur,  consiliumque  manus. 
Regnabit  soboles  tua  crudelissima  quondam, 

llaeres  saevitiae,  dire  tyranne,  tuae. 
Hic  alba  Dominum  iiridfíbit  veste  volutum; 

Non  tamcn  addicet,  qaod  cu[)is  ipsc,  neci. 
Procedunt  Reges,  iníidaque  url)e  relicta 

Retblaei  quaerunt  moenia  parva  soli. 
Hic  vero  vates  predixerat  ore  futurum 

Ut  darot  aelernum  Virgo  sacrata  ducem. 
Vix  urbem  ogressis,  quae  nuper  tecla  lalebal 


^12  VEllSOS   DO   1'ADRE   JOSEPH   DE   ANCHIETA 

StfUa  niicans  ciaram  prauvia  nioustiat  iter. 
Ó  Solyma  infoelix,  Domirium  Kegeinque  polorum 

Spernis,  Idumaei  jura  superba  colens. 
Externi  qiiaerunt,  vastaeque  per  áspera  eremi 

Tam  longum  peragimt,  ut  venerentur,  iter. 
Vos  nati  Dominum  vestro  de  sanguine  uatuin 

Teiiinitis,  et  vultis  perdere  morte  Deum. 
lUos  stella  micans  Eois  traxit  ab  oris, 

Nec  vox  exortum  prodidit  iilla  Diicem. 
Vobis  tot  quondam  Christum  cecinere  prophetae, 

Sermo  quibus  Domini  veras  in  ore  fuit. 
Ó  miserum!  vestrum  carpet  gens  extera  fructum. 

Vos  perdei  saevae  mortis  arnica  fames. 
Vos,  ò  foelices  Reges,  quos  summus  ab  omni 

Rex  sibi  primitias  donaque  gente  vocat: 
Pergite,  vos  claro  dediicet  tramite  sydus, 

Ad  videm  Pueri  constituetque  domum. 
Jamque  propinqiiabant  congesto  cespite  tecto, 

Stella  supra  Infantis  síat  radiosa  caput. 
Agnoscunt  signum  Reges,  foribusque  ])ropinquanl. 

Porta  sed  bane  claudit  vix  tamen  iilla  casam. 
Intus  egena  sedet  cum  Nato  iMater  egeno, 

Et  laeto  intrantes  excipit  ore  Magos. 
Hi  sternuntur  humi  facie  genibusque  voluti, 

Regiaqiie  excepit  corpora  vile  solum: 
Inventumque  Deum  mortali  in  iprpore  adoranl, 

Virgo  tenet  blandò  quem  speciosa  sinu. 
Mira  lides!  quaenam  vestri  penetralia  cordis 

Gratia?  quis  Pueri  vos  penetravit  amo)-? 
Anrea  non  ornant  Pbrygiae  pallatia  vestes, 

Quasvè  facit  tenui  decolor  Indus  acu. 
Non  cum  gemmato  diademate  pm-pura  fulget; 

Non  bic  turba  frequens,  non  famulatus  adest. 
Villibus  indutum  cum  paupere  Matre  sedentem, 

Cui  vile  bospitium  est,  panpereriorque  torus. 
Qui  módico  Matris  nutritur  ab  ubere  lacte, 

Ilunc  bominem,  Regem  creditis,  atque  Deum. 
Foelices,  nam  vos  nullo  delebilis  aevo 

Gloria  vos  vitae  praemia  certa  manent. 
Vestra  fides  vestrum  superai  formissima  seclum, 

Nec  vestram  vincet  seda  futura  lidem. 
Protinus  è  tectis  ingentia  munera  plenis 

Depromit  larga  quisque  bilarique  manu. 
El  Pueri  ante  pedes  prctiosum  projicil  aurum. 


EM  LOUVOR  DA  VIRGEM  21ít 

Et  myrrham,  et  fragrans  tluiris  aroma  sacri. 
Quid  facis  interea  pulcherrima  Virgo?  quod  alto 

Pectore,  quod  plura  menlo  rcvolvis  opns? 
Deficíam,  si  mira  tni  solalia  cordis, 

Si  referam  mentis  máxima  sensa  tnac. 
Tli  tibi  congaudens  Domino  grataris  Jesii, 

Cui  meritmn  externo  jam  venit  orbe  deciis, 
Nam  divina  tui  gentes  jam  niimina  Nati 

Âgnoscunt,  credunt,  et  reverenter  amant. 
Illius  hi  clara  praeconia  você  sonabimt, 

Procidet  ad  Jesu  nobile  nomen  Arabs. 
Haec  sunt  illa,  tuo  quae  regia  lingiia  Puello 

Fudit  ad  argutae  tila  canora  lyrae. 
Illa,  ait,  in  totum  solas  dominabitur  acqiior. 

Et  qua  Sol  amplum  fmit  uterque  solum. 
TEthiopes  flexo  spectabimt  ipsius  ora 

Poplite,  et  hostilis  turba  relinget  Immum. 
Insula  marmoreis  quae  circiimcingitiir  imdis 

Munera  pacatum  per  maré  larga  feret. 
Quique  tenent  xVrabum  foelicia  Regna  supremo 

Et  sua  dona  dabunt  sceptra  Sabae  Duci. 
Illi  omnes  subdent  sceptrum  diademaque  Reges, 

Omnis  eí  totó  serviet  orbe  tribus. 
Vivat  in  aeternum  clarum  super  aethera  nomen 

Venturi  in  terras,  gloriaque  alta  Dei. 
Sortiri  haec  finem  dum  cernis,  et  omnia,  quondam 

Quae  vates  Nato  praecinuere  tuo: 
Larga  tibi  exundat  per  latum  gratia  pectus, 

Membra  quoque  exultant,  intimaquc  ossa  tibi. 
Nec  facili  Infantcm  non  praebes  Regibus  oiv, 

Ut  pcdibus  íigant  oscula  multa  sacris. 
Hi  fidei  plenum  referentes  lumine  pectus 

In  patriam  rcnioant,  concio  sancta,  suam. 
Sed  ne  infida  feri  repetant  pallalia  Regis 

Coelicus  aelliereo  spirilus  orè  monet. 
Ergo  Magi  veniant  longin(juo  ex  orbe,  tuaequo 

Grandia  dent  Proli  numera,  seque  pij: 
Et  mihi  tam  rigido  slrigatur  frigore  pectus, 

Ut  manus  iiacc  Domino  nil  det  avara  suo? 
Sed  quid  impuro  libi  Fiupc  réus  oííeret  on;, 

Prodegit  Patris  qui  bona  cuncta  sui? 
En  mea  quae  tantam  fecerunl  crimina  labem 

Tu  Sobobs  dele  cuni  |)ietate  Parens. 
Quaeque  libens  olim  promisi  vota,  trinodi 


2ii  ATRSOS  DO  PADRE  JOSEPIÍ  DE  ANCHIETA 

Fune  ligans  animum,  cuncíaque  membra  Deo . 
ília,  precor,  Mater,  pro  mynha,  Ihureque  et  auro 

Accipiat  plácido  Filius  ore  tuus. 
Tu  queque,  quae  misero  curasti  Yirgo  salutem, 

Cúm  mea  mens  varia  sórdida  labe  íoret : 
Me.  vinctum  retine  dulci,  pia  ííiater,  amore, 

Ut  mea  sit  Domino  vicíima  vita  mco. 

De  Puríficatio.ne  Víp.gims  Mari.e. 

Expectaíus  adest  sacri  post  têmpora  partus 

Laetitiae  mater  trisíitiaeque  dies; 
Cum  tua  in  excelso  Soboles  sanctissima  templo 

Sisteíur  Patri  múnus,  honorcjue  suo. 
Nempe  quaterdenum  jam  Sol  revolutus  in  orbem 

Te  monet  hospitij  linquere  tecia  brevis. 
Sed  cur  tam  vili,  puríssima  Mater,  in  aede 

Tot  retinet  clausum  te  locus  iste  dies  ? 
Scilicet,  ut  legis  juxta  purgere  tenoiem, 

Inque  Dei  vénias  purificaía  domum. 
Anne  tibi  naevus  primi  paíris  uUus  adhaessit? 

Anne  Evae  attingit  te  queque  poena  grans? 
Num  tua  communi -concepta  est  ordine  Proles? 

Anne  uteri  pandit  claustra,  serasque  tui? 
Haec  lex  enixas  humano  ex  semine  matres, 

Non  te,  cui  soboles  est  Deus  ipsc,  ligat. 
Subderis  ut  quaevis  communi  foemina  legi, 

Curaque  te  famae  non  movet  ulla  tuae  ? 
Virgineumque  decus,  Natique  exponis  bonorem, 

Nemo  quid  ut  vobis  maius  inesse  putet? 
Divinae  te  sola  movet  reverentia  legis, 

Quaeris  et  extremura  qualibet  arte  locum. 
Humanaeque  simul  pieíaíis  vena  saluti 

Consulis,  innumeris  esque  medeia  malis. 
Non  tu  munditia,  mundissimae  Mater,  egebat, 

Ut  sis  in  jgtabulo  tot  remorata  dies  : 
Cum  tuus  impuri  maculas  purgaverit  Orbis 

Partus,  et  immundas  laverit  Agnus  oves  : 
Sed  foedata  mei  mundentur  ut  intima  cordis, 

Polluit  innumeris  quod  mea  vita  malis. 
Ergo  venis  magni  sacraía  ad  íempla  Tonantis 

Oblatura  Patri  te,  Puerumque  Deo. 
Quem  geris  exultans  blandis,  leve  pondus,  in  ulnis, 

Reddit  iter  durum  mellius  ille  tibi. 


i 


EM   LOUVOU    DA    VIRGEM  21 H 

It  Comes,  ct  sponsam  deducit  sponsus  Josepli, 

Non  illc  ad  tantum  deskliosus  opas. 
Sed  quibus  ornabis  divina  aliaria  donis, 

No  vácua  aiiíc  aras  iiigrediaro  Doi? 
Turturibus  ne  liii  gemiiiis  oblalio  Nati 

Fiet  et  exíguo  munere  notus  erit? 
OíTerres  mitem  sacris  altaribus  agnum, 

Absimilis  Nato  non  erat  ille  tuo. 
Qui  nunc  in  servum  se  dat  sine  labe  Parentí, 

Quem  redimas  parvo  protinus  aere  Parens: 
Post  crucis  horrenda  figendus  ut  agnus  in  ara, 

Ut  redimat  raundi  sanguine  danina  suo, 
Nec  qua  merceris  fortasse  pecunia  desit, 

Dona  libi  nuper  detulit  ampla  Magus. 
Dic,  ubi  snnt  auri  tam  grandia  pondera,  Eoi 

Quas  Ârabum  tellus  áurea  misit  opes? 
Desipio  insanus;  nec  enim  tibi  pectora  taugit 

Gemmarum,  aut  auri  cura,  furensque  fames, 
Protinus  Eoas  studio  pietans  egenis 

Sedula  divitias  partijt  ista  m.anus. 
Cum  Nato  ampicctcns  paupérrima  panper  Mater 

Inftma,  cum  gemino  lurture  templa  petis. 
Ó  pietalis  apex,  6  paupertatis  amaírix, 

Abjectam  nuper  quam  super  astra  veliis: 
Da  contemnere  opes,  et  lionoris  nomina  vana, 

Meque  siue  in  templnm  te,  Puerumque  sequi, 
Forsitan  abjecum  non  dedignahere  servum, 

Perpetuo  júris  qui  cupit  esse  tuií 
Quiqui  tuos  servet  nutus:  su  forsitan  olim 

Ille  tuo  per  te  pignorc  dignus  erit. 
Jamque  sacri  int^edis  spatiosa  per  atria  tenipli, 

Tangis  et  auratas,  limina  sancta,  fores. 
Ecce  senex  foeiix,  seris  venerabilis  annis, 

Intima  cui  replet  Spiritus  ossa  Dei: 
Qui  pius  optabat  populi  mundi(|ue  saiutem 

Ora  volens  Nati  cerncre  pulchra  tui:  k 

Jumque  diii  è  coelis  iiac  você  animatus  agebat 

Vix  jam  deci'Ci)itos  spcfiue  íideque  dies. 
Ante  Dei  cernes,  renovei  (jui  saecula,  Cbristum, 

Quam  postrema  óculos  comprimat  hora  tuQS. 
Ecce  ubi  diviní)  praesensit  nuniine  adesse 

Jam  desiderij  têmpora  laeta  sui: 
Iramemor  ille  sui,  canac  immemor  ille  senectae, 

Corripit  in  Templi  limina  sacra  viam. 


21 C  VERSOS  DO  PADIiF.  JOSEPII  DE  ANCHIETA 


Ul  Puerum  vidif,  divinaquc  limiina  novit, 
Unde  suum  cocli  sydcra  lumoTi  habcnl: 

Liquitur  in  lachrymas,  et  diílci  elaii^niot  amorc, 
Mierno  incurvans  languida  mcHilira  Deo: 

Deque  tuis  Dominum  rapit  in  sua  braclíia  Jesiim. 
Utque  olor  extrema  talia  você  canit. 

NUNC  DIMITTIS 

Ó  Domine,  ccce  dies  plácida  me  in  pace  resolvens, 

Statque  tul  Verbi  firma,  tenaxque  fides. 
Lumina  namque  tuam  mea  jam  viderc.  salutem, 

A  te  quae  populis  omnibiis  una  venit. 
Gentibus  hic  lúmen  nimis  admirabile  caecis, 

Inclytaque  Israel  gloria  plebis  orit. 
Haec  ubi  dieta  senex,  et  sacris  ritè  peractis, 

Praecinuit  vera  gaudia  você  tibi: 
Canitiem  menti  lacbrymis  alque  ora  madescens, 

Haec  quoque  moestitiae  dat  tibi  verba  gemens. 
Moesta  dies  veniet,  cum  te  lamenta  gravesque 

Circunstent  lachrymae,  sangiiinensque  dolor: 
Et  tua  transadiget  gladius  praecordia  acutns. 

Haec  velut  instantis  vulnera  mortis  erunt. 
Nam  truculenta  tuus  patietur  funera  Natus, 

Plurima  quo  surget.  plurima  turba  cadet. 
Quid  tibi  nunc  cordis  Yirgo!  quo  lixa  dolore 

Ingemis  horrenda  saucia  você  senis! 
Jam  metus  Puero  materno  sedula  amore, 

Sollicilamque  gravis  te  facit  esse  timor. 
Ante  óculos  charae  crudelia  prolis  oberrant 

Supplícia,  et  dirae  têmpora  acerba  necis. 
Quodque  olim  lethum  mitis  patietur  ufagnus 

Pectore  jam  pateris  mitis  ut  agna  pio. 
Ó  Virgo  Genitrix  vitae  puríssima  rerum, 

Respice,  foeda  animi  stagna  lacusque  mei 
Evacua,  *et  mundis  reple  mihi  corda  flnentis. 

Quae  è  Libano  veniunt  impetuosa  tibi. 
Atque  aliquid  mecum  tanti  partire  doloris, 

Protinus  ut  possim  servulus  esse  tuus: 
Haerescensque  tibi  Domini  fera  funera.  quaequo 

Vulnera  cum,  Domino  perpetiere,  íleam. 
Nec  mihi  tam  dirae  de  pectore  mortis  imago, 

Nec  cedat  cordis  poena  dolorque  tui. 


EM  LOUVOP.    DA  VIRGEM  2!/ 

De  fuga  IX  jEgyptoi 

Eríío  orat,  ò  Mater,  sententia  firma  Tonantis, 

Ut  lanais  vultiis  cernoret  ora  tuos: 
Carnificisque  tenor  cnm  Matre  edicta  criienti 

Niliaca  eíTuj^iens  viseret  arva  Piier. 
Nox  erat,  et  siimmiis  teneriim  cum  Matrc  Puellum 

Presserat,  et  fidei  lumina  fessa  senis. 
Ecce  Dei  jussu  sopitum  afíatus  Joseph 

iEthere  demissiis  nuntiiis  ales  ait. 
Surge  citus,  rábidos  boné  custos  effuge  morsus, 

Guttura  pandit  hians  sanguinolenta  lúpus. 
Instat  Idumaeus  sitíenti  fauce  tyrannus, 

Funera  molitur  Rex  truculenta  ferus. 
Jam  Puerum  quaeret,  lethum  medi  tatus  iniquum, 

Haeredem  Regni  quem  timet  esse  sui. 
Eia  age,  venturis  Puerum  Matremque  periolis 

Eripe,  et  ./J^gypti  protinus  arva  peto. 
Surgit  ad  aetherei  vocês  tremcfactus  Joseph 

Alitis,  et  Matri  coelica  jussa  refert. 
Quo  tuo,,quo  credam  subitus,  dulcissima  Mater, 

Pectora  perculerit  nuntius  isto  metu! 
Scilicet  alta  animi  fibris  infixa  timoris 

Expertem  penitus  te  facit  esse  fides.  , 
Et  vitae  authorem,  qui  condidit  omnia,  nosti 

Non  nisi  laturum  cum  volet  ipse  neccm. 
Sed  pietas  Matrem  formidine  pulsat  amantem, 

Omnia  maternus  damna  veretur  amor: 
SoUicitusque  timet  graviora  pericula  veris, 

Oppugnant  varijs  qui  tua  corda  modis. 
Cogit  amor  Matrem,  famulam  divina  perurgcnt 

Jussa  relucíantes  ne  patiare  moras: 
Complexuquc  fovens  dulcem  tua  viscera  Natnm, 

Acceleras  tacitam  nocte  silente  ftigam: 
Fasciculusqiie  inter  materna  sit  ubera  myrrhae, 

Qui  tibi  nunc  dnlcis  botrus  amoris  oral. 
Ecquis  in  exilio  solatia  vera,  quis  uUa 

Gaudia  promittat  firma  fntura  sibi? 
Ecce  luus,  solo  qiii  torquet  sydera  nulii, 

Natus,  et  immotns  cuncla-  creala  movei: 
Jam  patitur  pressus  terrenao  pftndere  carnís 

Humana  vários  condi tiono  modos. 
Tu  fpioqiie  cum  Nato,  cui  mente  immobilis  haeres, 

Torqueris  subitis  oxagilata  mnlis. 


218  W.RSOS  DO   PADRE   JOSEPH   DE   ANCHIETA 

Scilicet  aeternae  sedes  secura  quietis 

Coelum  est,  instabiles  non  subitura  vices. 
Foeta  malis  vários  producit  terra  labores, 

Firma  tamen  justis  nascilur  uride  qiii  es. 
Hos  tuos  amplectens  expulsas  in  c?:tera  Natus 

Regna,  Palestinae  deserit  arva  ferae. 
Nec  satis  est  illi,  dum  nostri  flagrat  amore. 

Delicias  Regni  deservisse  sui. 
Dulcia  nunc  etiam  profugus  cunabula  linquit, 

Et  natale  solum,  nolaque  tecta  Pu  cr. 
Utque  voluptatis  vetus  est  ejectus  ab  horto, 

Et  damna  exilij  plurima  passus  homo: 
Sic  novus  iste  Puer,  profugis  ut  perdita  reddat 

Gaudia,  coelestis  quae  Paradysus  habet: 
Êxul  in  ignotas  cum  Matre  expelliíur  oras. 

Et  novus  externam  visit  Alumnus  humum. 
Sed  mihi  quis  referat,  cjuac  te,  quae  incommoda  Natum 

Per  longas  fuerint  concomitaía  vias? 
Scilicet  infenso  passurus  in  orbe  labores, 

Qui  supera  aeterni  venit  ab  arce  Patris. 
Ipse  sibi  teneros  aerumnis  annos, 

Ne  pars  tnrbinibus  temporis  uUa  vacet. 
Ut  tua  jam  dirus  praecordia  vuinerat  ensis, 

Praedixit  vero  quem  gravis  ore  senex. 
Ut  memorare  v&lim  per  inhospita  littora  Nili 

Et  Pueri,  et  Matris  dura  fereníis  iter; 
Me  mea  deficiet  scribentem  singula  dextra, 

Nec  linguae,  aut  mentis  vis  satis  ulla  foret. 
Ut  rogiíem  superos  Pueri  ]\Iatrisque  ministros, 

Quae  cinxit  vestrum  sedula  turma  latus. 
Plurima  uti  referant  rogitaníi  plura  reriuiram, 

Exuperant  curae  quaelibet  ora  tuae. 
Scilicet  ut  narrent,  quae  incommoda,  quosque  labores 

Sis  perpessa  foris  tuque  tuusque  Puer. 
At  tua  quae  vario  torserunt  pectora  curas 

Sola  Parens  nostri,  tuquo  tuusque  Puer. 
Ergo  hbens  taceo  quae  non  satis  eloquar  unquam,  ? 

Visceribus  maneant  dummodo  fixa  méis. 
Teque  scquens  miti  praesentia  damna  libenter 

Pectora  cum  Nato,  cumque  Parente  firam. 
Haec  aut  illa  feras  paulum  nescissc  noccbit, 

Profuerit  plácido  corde  tulisse  nimis. 
Non  tamen  omnino  fas  est  mystcria,  Mater 


EM  LOUVOR  DA  VIRGEM  219 

Inclyta,  tam  mirae  praeterijsse  fugae. 
Noctc  íiigam  properas,  incrédula  regna  relinquens 

Divinuin  lidei  non  aditura  jiibar. 
Qucmque  siiis  pellet  gens  própria  crimine  caeca 

IMenlibiis,  lume  capient  extera  Regna  sais. 
Sed  (jiiid  in  /Egypíi  Solem  caecam  invehis  arvam? 

Quid  íibi  cmii  tenebris,  lux  radiosa,  nigris? 
Sole  quia  iEgypti  nox  ingrediente  recedet, 

Condetur  Judae  Sole  abeunte  dies. 
lUa  tribus  tácito  dum  Sol  meat  axe  diebus, 

Perque  suis  fertur  nox  tenebrosa  rotis: 
Obstupuit  densa  caiigine  tecta,  suaque 

Perfídia  poenas  nocte  nigrante  luit. 
Tu  modo  nocturnis  verum  secura  tenebris 

Ad  tenebras  Solem  Stella  corusca  vehís. 
Utque  te  liospitio  capiet  cum  prole,  suosque 

OÍTeret  exulibus  officiosa  lares. 
Postmodo  te,  et  Prolem  mentis  penetralibus  abdat, 

Cum  sua  de  tenebris  exeret  ora  fides. 
Cum  tuus  in  totó  Natus  memorabitur  orbe, 

Cum  Patre.  cura  saneio  Flamine  numen  idem. 
Ó  mea  mens,  caeca  si  te  caiigine  texit 
•    Culpa,  tenebrosis  implicuitque  malis: 
Hanc  propera  ad  Matrem,  cujus  divina  lacertis 

Tegmine  sub  carnis  lucis  origo  sedet. 
Hinc  tibi  cbara  fidos,  bine  spes  pulchcrrima,  et  uUo 

Non  defecturus  tempore  surget  amor. 
Lux  ergo  ad  tenebras,  et  portentosa  deorurn 

Ducitur  omnipotens  ad  simulacra  Deus. 
Ut  tencbrae  luci  cedant,  mentitaque  veri 

Numinis  ingressu  numina  fiacta  ruant. 
Desinet  infausti  celebrari  planclus  Osíris, 

Plangetur  Nati  inors  pretiosa  lui. 
Ncc  tribuet  Sorapi  divinos  Memphis  honores, 

Cum  pressus  Domini  calce  Serapis  erit. 
Cumque  salutiferi  celcbrabit  nomcn  Jesu, 

Sórdida  Nih"aci  respuet  ora  bovis. 
Sculptile  latrantes  stupefiel  guttur  Anubis, 

Et  vetus  immundi  corruet  ara  canis. 
Cum  Deus  atra  canum  lativitu  ílcgna  suonim 

Teri-ebií,  Slygios  cjicietque  kipos. 
Alta  nec  Inacliij  stabunt  vestigia  templi, 

Bubastisque  aris  decidet  aegra  suis. 
Scilicct  ad  nomcn  cum  maximus  orbis  Jesu 


2!áO  VERSOS  DO  PADRE  JOSEMI  DE  ANCHIETA 

Cerniia  curvato  straverit  ora  gemi: 
Dulci  etiam  magnao  nomen  Genitricis  Jesn 

Maximiis  insigni  mnndus  honore  colet: 
Intactamque  omnis  nulla  non  parte  bcatam 

Posteritas  Matrem  você  sonante  feret. 
Eia  age,  praecipites  torrentes  siste  nefandas 

Haeresis,  .Egypti  quae  simulacra  tcris. 
Nam  tua  quae  voei  coelestis  corde  ministri 

Praebuit  assensum  non  dubilante  íides. 
Extinxit  loto  flammas  grassantis  in  orbe 

Pestis,  et  aethereis  crimina  lavit  aquis. 
Cernis,  ut  ingentem  Germânia  vasta  ruinam 

Tartareis  dederit  praecipitata  dolis. 
Cernis,  ut  exustis  altaribus  Anglia  sacris 

Monstra  colat  Stygijs  perniciosa  modis. 
Aspicis,  ut  noctis  tenebris  immersa  profundae 

Gallia  portentis  corruit  usa  novis, 
Infandae  exurgunt  alijs  regionibus  arae, 

Quaeque  sibi  informes  construit  ora  Deus. 
Destrue  foeda  manus  Genitrix  altaria  forti, 

Ora  superborum  claude  proterva  canum. 
Quaeque  corusca  diu  fidei  splendore  tenebris 

Abdita  nunc  caecis  regna  decore  carent. 
Infer  eis  verum  divini  Solis  honorem. 

Quem  gestas  ulnis,  splendida  Stella,  tuis.  i 

Sola  fides  pulchro  Romana  ut  fulgeat  ore,  i 

Mortífera  invicto  calce  venena  terens. 
Me  quoque,  me  densa  tenebrarum  nocte  sepultum  y, 

Cerne  oculis  Mater  luminis  alma  pijs. 
Vera  quidem  mecum  primis  accrevit  ab  annis. 

Et  Nato,  et  dulci  dante  Parente,  fides. 
Quae  tamen,  ut  primis  aetas  excessit  ab  annis, 

Protinus  est  culpis  morte  sepulta  méis. 
Ut  vero  occubuit  deformi  funere  rapta, 

Exervit  vires  dirá  cupido  suas. 
Haec  mihí  vae  misero  dominatrix  praefuit  olim, 

Pressit  et  injusto  mollia  coUa  jugo. 
Haec  subigens  tristi  deforme  tyrannide  pectus 

Raptabat  varijs  ad  sua  vota  vijs. 
Haec  mihi  tartareis  obtexerat  aegra  tenebris 

Lumina,  luce  ignis  deficiente  tui. 
Nil  miser  ipse  minus  quam  própria  damna  videbam, 

Nil  miser  horrebam  quam  mea  damna  minus. 
Nil  miser  ipse  magis  quam  vitae  dona  timebam, 


EM  LOUVOR  DA  VIRGEM  221 

Nil  miser  optabani  qiiam  fera  fata  magis, 
Gratia  sordeiiles  defecerat  alma  medullas, 

Cesserat  et  foedo  pectore  sanctus  amor. 
Sed  quac  servitio  iiímium  dominala  premebat 

Pectore  captivo  dirá  libido  mihi, 
IIoc  scelus,  atqiio  illud  posito  patrare  pudorô 

Cogebat  jussis  imperiosa  suis. 
Parebam  lacilis  vilissima  maiíera  servus 

Saepò  obiens,  proprijs  laetior  ipse  malis. 
Quam  prociil  illud  erat  pectiis,  quod  pectore  sacro 

Emarians  Nati  laverat  unda  tui! 
Hei  mihi  primaevi  fácies  maculata  decoris 

Nulla  sui  poterat  signa  referre  Patris, 
Ília  Dei  species,  et  imago  spleiídida  vivi, 

In  facie,  et  factis  non  erat  uUa  méis. 
Intima  inortiferis  sqnalebant  pectora  sensu, 

Igne  furens  tuipi  quae  paiúebat  amor. 
Extera  corruptis  sordebant  sensibus  ora: 

Sic  mea  vita  omni  sórdida  parte  fuit. 
Tot  sibi  fingebat  turpis  simulaci-a  volúpias, 

Nequitiae  aptabat  quot  sua  membra  modis. 
Quot  sibi  caplal.)at  delectamenta,  tot  aras,  ^ 

Tot  sibi  condebat  caeca  libido  deos. 
Quid  petis  .'Egji^tum,  lidei  quae  lumine  cassa, 

Numina  si  veri  respicit  alma  Dei? 
Ecce  ego,  vera  lides  cui  qrimo  elfulsil  ab  ortu, 

Jussa  Dei  turpi  caecus  amore  premor. 
ília  ignara  Dei,  cui  soli  gloria,  veri 

ímpia  dat  falsis  thura  precesqiie  dijs. 
Ipse  sciens  verum  falsos  miserandus  adoro 

Gaudia  cum  vero  praefero  falsa  Dco. 
Si  celebrat  .Mempliis  ])rofugae  solemnia  vaccae, 

Turpis  ego  immundi  prosequor  acta  sui. 
liei  milii  qualis  eram  divinum  exutus  bonorem, 

Cum  foedi  indueram  sordibus  ora  canis! 
Siste  gradum  Mater,  non  instat  Alumnus  Idumes 

Prosequi turve  tuum  sanguinolentus  iter. 
Te  miser  liic  sequitur  longo  squalore  situ(iuc, 

Elfecit  tardos  cui  mala  culfta  gradus. 
Non  seíjuor  ut  Puerum  perdam,  sed  ut  unctus  ab  illo 

Uestituar  vitae  perdiUis  ipse  novae. 
Non  sequor  ut  spobcm  jucundo  Pignore  Malrcm, 

Sed  spoliet  vilijs  ut  mihi  corda  Parens. 
Siste  Parens  gressus  dulcissima,  resiiicc  Ikntcm: 


222  VERSOS  DO  PADRE  JOSEPII  DE  ANCHIETA 

Flecte,  precor,  vultas  ad  mea  damna  pios, 
Nil  tibi,  Diva,  subest  cernenti  retro  pericli, 

Te  quocunqiie  fíagrans  siilphuris  i.irne  seqiiar. 
Omnia  iiamque  tuo  extinctura  incendia  culpa 

Fertiir  inexhaasíi  íliiminis  unda  sinu. 
In  me  sunt  tenebrae,  quas  tetro  è  pectore  pellas, 

ínfundens  Solis  Iiimina  clara  tui. 
In  me  foeda  latent  variarum  monstra  fcrarum, 

Niimina  quae  quondam  sacra  fuere  milii. 
Nempe  railii  ut  claro  splendore  refalserit  omni 

Tempore  divino  nmnere  vera  fides; 
111a  tamen  multo  sine  claris  mortua  factis 

Tempore  flagitijs  obruta  pene  fuit. 
Hórrida  si  cessant  scelermn  poríenta  meornm, 

Absíiniiitque  sais  mensque  manusque  malis; 
Si  tamen  haec  odi,  si  te  compleíor  amore, 

Tu,  ciii  nota  mei  pectoris  acta,  vides. 
Certo  ego  sanguíneo  potius  juccumbere  letho 

Eligo,  quam  culpae  vel  semel  esse  réus. 
Esto  tamen  repleat,  quod  me  latet,  inclyta  pectus 

Gratia,  te  Natum  sollicitante,  meum; 
Anxia  soUicitae  lacerant  praecordia  curae. 

Ultima  quo  claudet  têmpora  vi  ta  modo. 
Nam  mala  quae  colui  validis  ceu  viribus  hostes 

Oppugnant  vaiuas  impetuosa  meãs: 
Qualiavè  insanis  turgentia  ílatibus  instant, 

Iníirmamque  petunt  aequora  saeva  ratem: 
Obsiíaque  horrendis  iEgyptia  regna  tenebris 

Cum  fugiam,  Solymae  splendida  regna  peíens; 
Persequitur  saevi  furiosa  superbia  Regis, 

Obsidet  angustis  et  mea  castra  locis. 
Qua  miser  evadam?  Rex  bine  cervicibus  instai 

EíTerus,  bine  claudunt  aequora  rubra  viam. 
Tu  pia,  tu  tantis  fautrix  accede  periclis, 

Ferque  mihi  afflicto  Foemina  foríis  opem. 
Nam  te  (nec  fallor)  Virgo  solidissima,  signat 

Virga  illa  ^Egypti,  quam  fera  regna  tremunt. 
Te  tenet  ille  manu,  cujus  tenet  omnia  dextra, 

Praebuit  humanas  cui  tua  vulva  manus, 
Cum  victore  Deo,  quem  carrieis  induis  armis 

Expugnas  stravit  quas  Pharaonis  opes. 
Stare  rubrum  iudeas  si  immoto  vértice  poníum. 

Evadam  tu]o  per  freta  sicca  pede. 
./Equora  si  rursum  jubeas  tnrgentia  volui, 


EM  LOUVOU  DA  VIRGEM  223 

Volveiur  medijs  elYerus  hostis  aquis. 
Nempe  libi  liac  olim  coeli  clamarat  ab  axe 

Agmina  victurae  fortia  você  Deus, 
Talis  arnica  raea  es,  qualis  Pharaonica  qiiondam 

Merseraiit  Eqiiiles  cimi  fera  plaustro  mei. 
Scilicet  ut  qaondam  virgae  virtute  profandi 

Tranavit  populos  per  vada  sicca  maris; 
Grudeiisque  suo  tumidis  exercitus  undis 

Submersus  poenas  cum  Pbaraone  dedit. 
Sic  modo  te  Stigiae  pereunt  pugnante  phalanges, 

Ellugit  et  servas  cuncta  pericla  tuus. 
Non  te  nequicquam  duici  cum  pignore  summus 

Ad  Nili  ripas  imperat  ire  Deus, 
Ille  olium  teneros  edicto  Regis  iniquo 

infantes  diris  interimebat  aquis. 
Sed  qui  fistella  latuit  bellissimus  infans 

Eripuit  duris  seque  suosque  malis. 
Tu  fistella  illa  es,  scirpo  contexta  paluslri, 

Quam  pix,  ne  penetret  flurainis  unda,  livit. 
Quis  velit  m  scirpo  malesanus  quaerere  nodum? 

Quis  tibi  vel  minimam  dicat  inesse  notam? 
Nec  scirpo  nodus,  mitidae  nec  noxa  Parenti 

UUa  est:  sic  vitae  scirpus  imago  tuae  est. 
Quod  nullis  fueris  carnis  penetrabilis  undis 

Sola  furens  rabies  Elvidiana  negat. 
Perpetuo  mentem  corpusque  bitumine  livit 

Glarus  inolfensae  virginitatis  iionor. 
Pix  nigra  te  obsturat,  dum  tu  tibi  vilis  haberis: 

Undique  contemptu  claudiris  ipsa  tui. 
Soli  ille  ingressus,  cui  terra  siiperl)ia  semper 

Desplicet  in  Matris  viscera  clausa  patet. 
Ille  novem  sacro  celatur  viscera  menses, 

Aula  pudicitae  nec  reserata  tuae  est. 
ille  tiiís  latitans  fistella  siiavis  in  ulnis 

Niliacas  prófugos  nunc  petit  êxul  aquas. 
Cumque  fero  varij  vos  pulsent  turbine  íluctus, 

Sicca  manes  intus  tu  tamcn,  atque  Puer. 
Nam  nulla  victa  est  patientia  vesti'a  labore, 

Exeruitque  suum  lluctibus  alta  caput. 
llic  Puer,  bic  Moyso  est  multo  formosior  Infans, 

Quem  sibi  praedives  íilia  liegis  alet. 
Quem  non  ignotum  Mater  dulcíssima  nutris, 

Ut  pcragat  tutus  têmpora  j)rima  Puer. 
Poslmodo  cum  vires  matura  adduxerit  actas, 


224  VERSOS  DO  PADRE  J0SE1'H  DE  ANCHIETA 

Monstrabit  manus  robora  firma  suae, 
Vulnere  prosternet,  sabulo  tumulabit  et  liosteni, 

Qui  dura  Hcbraei  percutit  ora  maiiii. 
Ille  quibus  premi  mors  est  inflicta  parontis 

Crimine  lethiferis  ervet  ultus  aquis: 
Humadumque  genus  melioribus  obruet  undis, 

Cum  largas  íisso  pectore  fundet  aqaas. 
Ille  tumente  feros  involvet  gurgite  currus 

Victor,  et  ostendet  Regna  beata  suis. 
Regna  quibus  pulsi  poenas  Pharaone  luebant 

Sub  Stygio,  admissis  quas  meruere  malis. 
Tunc  tibi,  quae  latitas  cum  Nato  ignota  latente 

Nobile  perpetuo  tempore  nomen  erit: 
Sanctaque  divinae  venerabitur  ora  Parentis, 

Ut  lateat  stirpis  foemiua,  virque  tuis. 
Ó  ílstella  brevis,  magni  domus  ampla  Tonantis, 

Omnia  quae  claudis,  me  quoque  clande  sinu. 
Conde  reurn  tuto  pietatis  tegmine,  dones 

Abscondat  gladium  Judieis  ira  suum. 
Conde  fretis,  dulcis  fiscella,  furentibus  altum, 

Ne  pereat  medijs  qui  tibi  fidit  aquis. 
Seu  te  fiscellam,  seu  malim  dicere  íiscum, 

Quidquid  eris,  nobis  Arca  salutis  cris. 
Si  íistella  Deum  servas  fluvialibus  undis. 

Crimina  qui  largo  flumine  nostrá  lavet; 
Sic  etiam  fiscus  custodis  Principis  aurnm, 

Unde  inope  veras  gralia  fundat  opes. 
Jam  sibi  divitias  promittere  pauper  opimas, 

Quaeque  auro  repleat  vasa  parare  potest. 
Post  tua  jam  mundns  vestigia  currat  egenus. 

Et  terrat  assiduo  vi  tia  tecta  pede. 
Publica  virgíneo  servata  pecunia  fisco 

ToUet  egestatis  prorsus  ab  ore  malum. 
Quisquis  habere  cupis,  ílexo  pete  poplite  Ma  trem, 

Regis  inexhaustas  illa  recondit  opes. 
Si  te  saeva  fames  alieno  conficit  aere 

Oppressum,  nec  adest  qui  tua  damna  levet:  í 

Huc  ades,  argentum  simul,  et  frumenta  dabuntur,  y 

Debita  queis  solvas  cuncta,  levesque  famem. 
Portat  in  .Egyptum  divinum  ÍMater  Joseph, 

Invida  quem  fratrum  perdere  turba  cupit. 
Filius  accrescens  alienis  errat  in  arvis. 

Dum  bónus  errantes  quaererc  coepit  oves. 
Quo  properas  Genitrix?  quo  se  pulctierrimus  Infans 


j 


EM  LOUVOR  DA  VIRGEM  225 

Pro  ripit  A(?lt,'rni  liixque  decorqiie  Palris? 
Si  fiigit  iit  laleat,  Patris  latitabit  in  oris: 

Bestia  iiolentem  milla  vocare  polest. 
Itamen,  ire  cupit  qiii  postmodo  venditus  orbem, 

Largiíluo  redimet  sanguinis  imbre  sui. 
Non  Madianitae,  sed  tu  dulcíssima  portas, 

Ira  licet  fratrum  cogat  inere  fugam. 
Scilicet  ipse  libens  Memphitica  pergit  in  arva, 

Ut  saevam  totó  pellat  ab  orbe  famem. 
Quem  tecum  portas  placidis  amplexa  lacertis, 

Ipse  est  frumentum  panis  et  esca  Deus, 
Non  magna  hacc  septem  tantum  modo  panes  in  anno? 

Copia  durabit,  quem  sacra  theca  vehis. 
Sed  quam  fata  diu  volvet  mortalia  tempus 

Quamque  erit  in  coelo  vita  beata  diu. 
Hoc  sacra  servarunt  casti  penetralia  ventris, 

IIoc  grémio  condis  regia  cella  tuo. 
Ipse  est  frumentum,  tu  frumentaria  vita, 

Non  defecturas  cella  reconudis  opes. 
Ipse  tua  aeternam  se  condit  in  horrea  messem. 

Et  seges,  et  sapiens  conditor  ipse  sui. 
Ipse  sui  grátis  largitor  in  omnia  largus 

Regna,  sino  argento  pabula  larga  dabit. 
Tu  sacrata  domus  nullo  reserabilis  aevo, 

Cui  jugis  obsignat  fortia  claustra  apudor; 
Lata  peregrinas  revocabis  ad  ostia  gentes, 

Ostia  maternus  quae  reserabit  amor. 
Quamquo  pudor  claudit,  miseratio  pandet;  eritquc 

Virgínea  hospítibus  semper  aperta  domus, 
Ilinc  sibi  frumentum  Cbananitides  íncola  terra 

Isacidae  soboles  êxul  inopsque  petet:    ' 
Agnoscetcpie  suum  longo  post  lempore  fratrem, 

Quem  modo  in  iEgyptum  sanguinolento  fugat. 
IIuc  agitante  famis  stimulo  citus  undique  totus 

Conlluet  oplalam  quaerat  ut  orbis  opem. 
Pabula  tu  vultu  pandes  divina  benigno, 

Quaeque  penetrali  conditur  esca  tuo. 
Nam  qui  te  cellam,  qua  se  bene  conderet,  amplam 

Condidit,  ipse  sua  te  facit  esse  manu, 
Ó  relia,  ó  veri  servatrix  integra  panis: 

Ó  larga,  ó  miseris  semper  aperta  manus. 
Ilinc  me  focda  gravi  mendicum  pondere  egestas 

Opprimil,  Ilinc  stimulis  pungit  acerda  fames. 
Qiiid  moror?  cccc  vocas  ut  dites  divos  egonum, 

VOL,    11  ib 


22G  TERSOS   DO   PADRE   JOSEPH   DE   ANCHIETA 

Divinoque  famem  panem  benigna  fuges. 
Ad  tua  jam  curro  vacuus  cellaria  pauper; 

Panis  enim  nuUo  venditur  aere  luus. 
Non  timeo  iEgypti  tenebras,  notemque  profundam: 

Tu  mihi  eum  Nati  luraine  lúmen  eris. 
Ne  per  senta  situ  deserta  ignarus  aberrem. 

Trita  viam  pedibus  signat  arena  tuis. 
Igne  licet  nocuo  canis  aestifer  urat  arenas, 

Me  tua  roranti  protegei  umbra  sinu. 
Non  ignota  fuit  sacro  tua  gloria  vati, 

Nobile  eum  Nati  vaticinatur  iter. 
llle  levis  Matrem  designai  nomine  nubis, 

Cui  Deus  innixus  Memphis  in  arva  venit. 
Ul  sobolem  summi  vestires  carne  Parentis, 

Nube  novum  sanctum  Flamen  obumbral  opus. 
Nubere  ul  summo  natura  humana  Tonanti, 

Nube  legis  carnis  Virgo  parensque  Deum. 
Si  caro  quam  praebes  levis  esl  el  lúcida  nubes. 

Tu  quoque  clara  levis  nomine  nubis  eris. 
Ilanc  super  ascendil  eum  blandis  moUiler  ulnis 

Accubat,  et  vehilur  lata  per  arva  Puer. 
Sed  si  fers  totum  superai  qui  pondere  mundum, 

Quomodo  te  quisquis  dixerit  esse  levem? 
Nempe  quia  exutam  veteris  quoque  pondere  noxa 

Te  creat,  el  vectus  portitor  ipse  tui  est. 
Si  te  nuUa  gravai  terrenae  sarcina  culpae, 

Qui  potius  Nalum  sydera  ad  alta  vehis. 
Ipse  quia  humanas  loturus  sanguine  sordes 

Feri  humeris  scelerum  grande  libenter  ónus. 
Alque  ideo  yEgyptum,  tenebris  loca  foeta  malorum, 

.-Estus  ubi  multum  crimine  fervei,  abis: 
Ut  tenebras  splendore  fuges,  umbraque  calori 

Obsistas,  et  opem  nubis  utramque  feras. 
Ut  domus  Isacidae  durum  cervicibus  olim 

Excuteret  linquens  Regna  superba  jugimi; 
Nocte  columna  novum  spargebat  flammea  lúmen, 

Perque  diem  nubes  rosida  tegmen  eral. 
Ut  réus  in  palriam  redeal,  saevique  tyranni 

Effugiat  dirás  per  freta  vasta  manus: 
Ecce  columna  tuis  rutilans  portatur  in  ulnis, 

Unde  ignem  capiunl  sydera  Solque  suum. 
Tu  Puero  nubes,  Puer  est  libi  lucidus  ignis, 

llle  tuus  manai  cujus  ab  ore  nitor, 
lUe  decor  smumi,  lux  cl  clarissima  Patris, 


FM  LOUVOR  DA  VIRGEM  327 

Gloria  quem  factum  protiilit  ante  jubar; 
Nube  tamen  carnis  celat  splendoris  honorem, 

Ut  duplici  hostiles  robore  sternat  opes. 
Nam  nec  homo  aeterno  sine  nomine  vincera  ir.ortem, 

Nec  sine  carne  necem  posset  obire  Deus. 
Sic  totum  yEgyptum  tetro  de  cárcere  raundum 

Eripiet  mortis  per  freta  rubra  suae: 
Teque  tegente  tuos  rapidi  servabit  ab  aestu, 

Solis,  et  ad  Coeli  gaudia  pandet  iter. 
Ó  nubes,  míseros  dulci  quae  protegis  umbra. 

Sidereis  levior  lucidiorque  choris. 
Nam  superara  tui  figmenta  humana  decoris 

Naturae  ut  possint  conditione  suae; 
Te  divina  facit  leviorem  gratia  nubem, 

Sic  tua  suspiciunt  sedibus  ora  suis. 
Densa  quoque  es,  crassae  quae  tegmine  protegis  umbra& 

Infirmis,  nocuo  ne  ílagret  igne,  caput: 
Divinae  et  rapidiis  opponeris  ignibus  irae, 

Ne  voret  infectos  crimina  flamma  reos. 
Si  gravidam  dicam,  gravis  es,  quae  arentia  nostri 

Intima  largifluo  pectoris  imbre  rigas. 
Qua  te  cumque  tamen  designet  quisque  figura. 

Tu  certe  es  nubes  nocte  dieque  levis. 
Nam  te  vel  minimo  gemitu  quicumque  vocarit, 

Protinus  ad  gemitus  ceu  levis  aura  venis. 
Poscat  opem,  varijs  cui  mutat  vi  ta  perichs 

Poscenti  celerem  fers,  pia  Mater,  opem. 
Te  vocet  oppressus  corpus  vè  animumvè  labore, 

Ocior  ad  vocês  aere  flentis  ades. 
Singula  ne  narrem,  facilis  potes  unde  vocari, 

Testis  pro  cunctis  sum  satis  unus  ego. 
Nam  magna  obruere  cum  coUuvione  malorum, 

Vixque  tuam  tacita  você  precarer  opem: 
Aííluit  indigno  rapidis  velocior  Euris 

Sedula,  quae  misero  nunc  quoque  Mater  adesf. 
Si  indignum  penitus  levis,  et  festina  tueris, 

Quis  nubem  insanus  te  negat  esse  levem? 
lUe  neget  Matris  praecordia  blanda  precanli, 

Cui  tua  defuerit  dextera,  si  quis  erit. 
Clara,  gravis,  facilis  simul  et  dcnsissima  nubes 

Crimina  materno  tegmine  noslra  tegis. 
Nunc  tener  infirmis  dum  cingitur  artubus  Infans 

Malernis  vehitur  nube  volante  sinus. 
Postmodo  discussa  caligine  sparget  in  urbcm 


â!íJ8  VlillSOS  DO  PAD!!£  JOSKPÍl  DK  ANCHKTA 

Luiíiina  fiilgoris  clara  coliimna  siii: 
Quamquc  tuu  simipsit  sinc  labe  ò  viscere  nubem 

lUustrem  miris  leddet  in  orbe  modis. 
Cum  tamen  aeternis  mundiim  eix'ptiirus  a))  iimbris 

/Equora  sanguínea  dividit  alta  nece: 
Nubila  fulgentera  condent  tenebrosa  colnmnarn, 

Solque  teget  nitidum  nocte  nigrante  capiit. 
Tunc  decora  alta  tui,  nubes  pulcherrima,  vultus 

Tristia  sufíusa  nubila  nocte  prement. 
Onaeqiie  neci  fugiens  de  tot  modo  matribus  una 

Subtrahis  Infantem  nocte  silente  tuum: 
Obruta  tunc  tenebris  planges  crudelia  Nati 

Funera,  de  cunctis  matribus  una,  pij. 
Et  misera  occisi  mater  credere  latronis, 
i    Quam  summi  Matrem  credimus  esse  Dei. 
Nocte  tamen  media  medias  gens  salva  per  undas 

Transibit  raedijs,  occidet  bostis,  aquis 
Tertia  cum  densas  aurora  fugaverit  umbras, 

Exeret  et  nitidum  íliictibus  ora  jubar: 
Pulclira  resurgentis  radiabit  ílamma  columnae, 

Atque  noYum  nubis  vestiet  ora  decus, 
ília  novos  populos  per  vastam  ducet  eremum 

Urbis  in  aeternae  luce  micante  domos. 
Tu  rorem,  et  mitem  sparges  pergentibus  umbram, 

Auxiliumque  levis  dura  per  arva  feres. 
Utque  paret  nobis  tua  lux  et  gloria  Jesus 

In  superis  sedes,  et  loca  digna  polis: 
Ipse  sua  vetus  Patris  petet  atria  uube, 

Quam  caro  foecundae  Virginis  alma  dedit. 
Ergo  tua  est  nubes  qua  tectus  vivit,  et  olim 

Occidet,  et  surgens  aetereis  alta  petet. 
Perge  Parens  igitur;  nec  te  deterreat  ingens 

Pignore  cum  dulci  quem  patiere  labor. 
Opprimet  anliquos  mundi  labor  iste  labores, 

Quodque  cupis  veniet  mentibus  alta  petet. 
Neu  grave  sit  longum  septem  duxisse  per  annos 

Exilium  duri  caeca  per  arva  Phari. 
Sic  profugus  repetet  patriae  dulcíssima  quondam 

Regna,  Dei  jussu  tempus  in  omne  réus. 
Confice  Mater  iter  durum,  trabe  Memphis  in  oris 

Exule  cum  Nato  quas  volet  ille  moras. 
Factus  bomo  egreditur  noctu  Deus  êxul  ab  Urbe, 

Cumque  pio  ex  terris  pignore  Mater  abis. 
Ut  flagrante  die  Solymae  extra  moenia  aptus, 


EM  LOUVOR  DA  VIIlGEM  229 

Matre  vicleníc  siium  vospere  paret  opus. 
Perge  ergo,  et  Piienim  varijs  ale  casiijus  actuni, 

Mors  nostra  iit  Nati  fimcro  victa  cadat. 
Et  mihi  mendico,  patrijs  procul  êxul  ab  oris 

Fer  modicam  pauis  dum  remoral)or  opem. 
Nulla  mihi  iígypti  maculent  contagia  pectus, 

Sed  patriae  aspiret  mens  peregrina  suae. 
Utque,  ubi  lethalis  venas  penetravit  arundo, 

Cervus  ad  algentes  currit  anhelus  aqiias: 
Sic  ego  divini  percussus  arandine  amoris, 

Saucius  ad  vivi  flumina  fonlis  eam. 
Absentisque  absens  Nati  Matrisque  requiram 

Ora  oculis  tandem  conspicienda  méis. 
Exulat  interea  medijs  obsessa  periclis 

Vita;  sed  illa  tuae  est  múnus  opusque  manus. 
Cui  vitam  prestas,  fac,  clementissima,  semper 

Vivere,  sed  soli  vivere,  Virgo,  Deo. 

De  ReDITU  IN  TERRAM  ISRAEL 

.Iam  satis  iEgypti  tenebrosis,  Mater,  in  oris 

Delituit  pardi  raptus  ab  ore  Puer. 
.Iam  remeare  potes,  magni  jultet  author  Olympi, 

Tectaque  Nazareae  viscere  chara  tuae. 
Infantes  rigido  qui  perdidit  ense  teni.Mlos. 

Ne  tuus  evadat  tela  cruenta  Puer: 
Jpse  sibi  cunctis  in  se  crude! ior  hostis 

Conscivit  própria  funora  dirá  manu. 
Occubuitque  lúpus  Ictho  multalus  aceri)o, 

Tartareo  et  pocnas  sub  Phlegethonto  luil. 
Quaeque  necem  Pucro  cum  crudo  turba  tyranuo 

Molita  est,  jaciilis  occidit  liausta  necis. 
Suppliciumcjue  imi  caligine  mersa  barathri 

Pendit,  et  in  Stygijs  abdite  luget  aquis. 
Jam  secura  potes  duici  cum  Prole  reverti, 

Jam  satis  extremo  crevit  in  orbe  Puer. 
Quod  superest  vitae  stirpi  del)etnr  Judae. 

Vera  lluet  cunctis  gentibus  unde  saliis. 
Hoc  sacra  Jessael  cecinerunt  organa  valis, 

Grandia  qui  Nati  personal  acta  tui. 
Quac  mihi  cum  santo  fas  sit  repelisse  prophela, 

Dum  sacrum  lali  carmine  [lulsal  cbin-. 
Exit  ab  ;Egypto  ísraelis  sanguine  nahis, 

Linquit  et  ísacidos  barbara  r('.L'na  1'uei" 


230  VERSOS  DO  PADRE  JOSEPH  DE  ANCHIETA 

Ut  nova  Judae  miracula  sanctus  in  oris 

Edat,  et  occulti  signa  stupenda  Dei. 
Hic  divina  novam  generabit  gratia  proleni, 

Fiet  et  in  sanctis  sanctior  ipse  suis. 
Quaecjue  olim  toti  dominabitur  inclytus  orbi, 

Principium  Solymae  sumet  ab  arce  fides, 
Hic  maré  patrantem  nova  signa  videbit,  et  undas 

Ipsus  ponet  você  jubente  suas. 
Squamigeram  subitò  (dictu  mirabile)  praedam 

Ejus  ad  imperium  Sole  oriente  dabit. 
Agnoscentque  sui  Domini  freta  túrgida  plantas, 

Unda  quibus  solidum  strata  parabit  iter. 
Hic  rábido  fluctus  agitante  A.quilone  marinos 

Divinum  merget  dirá  procella  caput: 
Peractumque  altas  crudeli  funere  in  undas 

Faucibus  excipiet  bellua  vasta  suis. 
Donec  saeva  suos  compescant  aequora  motus. 

Et  fugiat  refluis  mobile  marmor  aquis: 
Et  vomat  in  siccum  cum  bestia  littus  Jonam, 

Jam  nullo  hausturum  temporc  mortis  aquas. 
Ipsius  adventu  Jordanís  laeta  fluenta 

Ceu  cursum  retrahent  obstupefacta  suum. 
Cum  clamore  siii,  qui  non  erat  agnitus  uUi, 

Proeconis  súbito  proditus  Agnus  erit. 
En  Deus,  ecce  Dei,  dicet,  sanctissimus  Agnus, 

Qui  toUet  mundi  funditus  omne  scelus. 
Innocuus  puro  tingetur  in  amne,  suaeque 

Contactu  carnis  sanctificabit  aquas. 
Quique  ut  homo  culpae  sese  réus  occulit,  illum 

Ostendent  verum  coelica  signa  Deum. 
Hic  meus  aeterno  est  Natus  mihi  junctus  amore, 

Dicet  enim  summi  vox  manifesta  Patris. 
Sanctus  in  ablutum  foecundae  more  columbae 

A  supera  veniet  Spiritus  arce  caput. 
Ille  bónus  dexírae  male  grátis  dona  benignae, 

Mellifluique  amplas  dividet  oris  opes. 
Humanamque  gerens  sub  iniquo  judice  causam 

Infandam  murtò  perferet  ore  necem. 
Mox  tamen  ut  victor  superata  morte  resurget, 

Jordanis  celeri  retro  redibit  aqua. 
Seclaque  judicio  rectae  reget  omnia  virgae, 

Qui  veluti  sulijt  judieis  ora  réus. 
Tun6  alti  incipient  attolere  culmina  montes, 

Qaos  maré  turbatis  obruit,  ante  fretis. 


EM  LOUVOR  DA  VIRGEM  231 

Scilicet  illa  viriim  prodibit  turma  potentam, 

Doctorcs  voliiit  qnos  gregis  esse  suí. 
Subsistem  tcneri  foetis  cum  matribus  agni, 

Quos  per  laela  pius  pascua  pastor  aget. 
Dic  maré  cur  refugis?  cur  retro  flueiita  retorques? 

Jordane  et  refluo  corripis  amne  fugam? 
Cur  moto  ó  alti  saliistis  vértice  montes, 

Pascentes  aries  ut  salit  inter  oves? 
Cur  vos  pulsarunt  súbito  nova  gaudia  colles, 

Agnus  ut  in  laetis  luxuriatur  agris? 
A  Domine  hoc  venit  factum  admirabile  magno: 

lUe  est  laetitiae  causa,  et  origo  novae. 
lUe  Dei  Natus,  cui  magni  natae  Jacobi 

Cárnea  de  intacto  viscere  membra  dabit. 
llle  ubi  mansueto  populis  te  proferet  ore, 

Moribus  exiliet  concita  terra  suis. 
llle  Jacobae  praecordia  saxea  gentis 

Repleri  ut  liquidis  stagna  jubebit  aquis. 
llle  velut  puro  manantes  gurgite  fontes 

E  dura  eíTiciet  ilumina  rupe  fluant. 
Duritia  rigidas  viventia  peclora  cautes 

Cum  sacer  in  totó  moiliet  orbe  látex. 
Nemo  sibi  hinc  laudis  praeconia  judicet  ulla, 

Non  opus  bumani  roboris  illud  erit. 
Hoc,  Domine,  invicto  facict  tua  robore  dextra, 

Laus  erit  atque,  Deus,  nominis  omne  tui. 
Barbara  nam  forlis  cum  regna  invadet  Jesus, 

Tota  cadot  ílexo  terra  subacla  genu. 
Non  huminum  mcritis  (nam  nullus  crimis  expers) 

EÍTundes  larga  munera  tanta  manu. 
Sed  própria  virtute  bónus  mitissima  pandes, 

Pectora,  divinus  viscera  fundet  amor. 
Omnibus  ut  praestes  aeternae  dona  .salulis, 

Et  rata  sint  oris  vcraque  verba  tui. 
Ne  quando  auxilium  tectae  caligine  gentes 

Causentur  dextrac  non  habuisse  tuae. 
Ne  quando  insanis  caecus  clamoribus  orbis 

Mugia t,  cl  vcrum  te  neget  esse  Deum. 
At  Deus  in  summo  coclorum  vértice  noster 

Regnat,  et  in  cunctos  jus  liabct  omne  Deus. 
Omniaquc  omnipotens  qui  fecit  saecula  verbo, 

Authorcm  ut  noscant  cuncla  cn-ata  suum: 
Ipse  suo  tandem  vestito  corpore  Verbo 

Ueficiet  laccrum  qiiod  fabricavit  opus. 


232  vilUSOs  do  iwdul:  joskpii  dk  axcíiirta 

Ciimque  fides  mundnm  Domini  penotrabit  Jesu, 

Omnibus  exurget  gentibiis  una  salus. 
At  simulacra  Deiim,  quae  cassae  lumine  gentes 

Esse  Deos  falsa  regione  putant; 
ília  vel  argento  sunt  signa  eíTicta,  vel  aiiro, 

Quae  facit  humaniis  qualibet  arte  labor. 
Os  habeant  qiiamiiis,  non  possunt  edere  verba: 

Percipiunt  oculis  lumina  nulla  siiis. 
At  Dominns  diílci  penetrai  sermone  meduUas, 

Cunctaque  praesenli  lamine  nuda  videt. 
Vox  milla  illonim  surdas  penetrabit  ad  aures, 

Nare  sub  ipsorum  non  erit  ullus  odor. 
At  Dominus  prona  gemitum  capit  aure  suoruni, 

Cui  pietas  suavis  vis  ut  odoris  olet. 
lUa  nihil  poterunt  stupídis  contingere  palmis, 

Non  pedibus  gressum  planta  movebit  iners. 
At  Dominus  fecit,  reficit,  regit  omnia  dextra, 

Lustrat  et  immoto  cuncta  creata  pede. 
Illorum  rigidis  stupuerunt  rictibus  ora, 

Non  edent  ullum  guttura  muta  sonum. 
At  Deus  horrendo  sonitu  perterret  iniquos, 

Et  dulci  electos  allicit  ore  bonos. 
lllis  persimiles  fiant  qui  talia  íingunt, 

Quique  in  eis  miseri  spem  posuere  suam, 
At  Domus  Isacidae  Dommo  se  credidií.  uni, 

Ilie  optata  illos  protegit  almus  ope. 
Sémen  Aaronis  Domine  se  credidit  uni, 

Illos  invicta  protegit  ille  manu. 
Quae  se  cumque  pia  formidinc  credit  Jesu 

Obsequio  Dominum  gens  venera  ta  pio: 
Ipsius  ei^pulso  protecta  timore  sub  alis 

Divinae  vivet  tuta  favore  manus. 
Ille  memor  nostri  coeli  descendi t  ab  arce, 

Muneraque  indignis  contulit  ampla  bónus. 
Seu  quos  Israel  genuit,  seu  sanctus  Aaron, 

Et  veri  redimet  néscia  regna  Dei. 
Larga  suit  magnis  manus  ejus,  larga  pusillis, 

Qui  Domini  casto  nomen  amore  timení. 
Et  majora  dabit  nobis,  natisque  fuíuris, 

Splendida  cum  vultus  panderit  ora  sui. 
Vos  cumulei  donis  magni  fabricator  Olympi, 

Cujus  et  ingentem  dextra  creavit  humum, 
Ipse  sibi  Dominus  coelorum  condidit  arcem, 

Ast  homini  terrac  regna  habitanda  dedit. 


KM  LOUVOR  DA  VIIIGEM  233 

Donec  inhumanum  tcrrao  sub  pondere  lethum 

Passus,  iu  coeli  culmina  pandat  orans. 
Non  reddent  Domino  praeconia  laudis  Jesu, 

Debita  quos  culpae  mors  truculenta  vocat: 
Nec  quos  aeternis  cruciandos  hórrida  flammis 

Sorbet  in  obscoeno  Styx  Phlegethonque  lacu. 
Sed  quos  divinus  vitali  Spiritus  aura 

Influit,  et  vivos  gratia  mater  alit. 
Gloria  ab  his  Domino  dabitur  sincera  superno 

Nunc,  et  in  aethereis  jam  sine  íine  polis. 
Ecce  rcversuro  Memphis,  pia  Mater,  ab  arvis 

Quae  cecinit  Puero  regia  lingua  tuo. 
Quae  repetisse,  tuas  cupidus  dum  concino  laudes. 

Indigno  licuit  te  tribuente  mihi. 
Sit  mihi  fas  etiam  Dominam  rogitare  benignam, 

Paucula,  dum  tantum  mens  mea  voluit  opus. 
Et  quid  in  iEgypto  sepfem  tibi  tempus  in  annos 

Volvitur,  Herodis  dum  fugit  arma  Puer? 
Magna  tuus  mundi  compegit  moenia  Natus, 

Perfecit  tantum  sexque  diebus  opus. 
Dixit,  et  absque  ullo  sunt  condita  cuncta  labore, 

Dat  requiem  facto  septimus  orbe  dies. 
Nunc  hominem  magno  confractum  pondere  culpae 

Ut  reparet, vitae  restituat  que  novae; 
Commoda  non  numero  paucorum  humana  dierum 

Ponderai,  excedit  pondera  cujus  amor. 
Nempe  dies  septem  tempus  velut  omne  volutat, 

Hcraque  perpetuis  itque  reditque  rotis; 
Omnipotens  laxas  donec  Deus  angat  habenas, 

Et  mitis  claudat  têmpora  cuncta  suis: 
Sic  tuus  á  pátria  septem  Puer'  exultat  annos, 

Nec  Puero  requies  septimus  annus  erit; 
Sed  totó  exilium  durabit  tempore  vitae, 

In  patriae  redeat  nunc  licet  arva  suae: 
Donec  regalem  coeli  subiturus  in  aulam 

Exilij  claudat  têmpora  morte  sui. 
Ilic  ergo  reditus  non  Nato  meta  lal)oris. 

Ultima  non  .Matri  meta  laboris  erit. 
Hic  opus,  hic  labor  est,  hic  longae  incommoda  vitae. 

Per  reliquos  vobis  sunt  obennda  dies. 
Hic  Judaea  ferox  septem  circiindata  muris 

Ad  fera  jam  septem  praeparat  arma  dulcis. 
Instructus  teHs  scrvat  ferus  afria  custos, 

Moeniaquo  assiduis  invetorata  malis. 


234  VERSOS  DO  PADRE  JOSEPH  DE  ANCHIETA 

Hic  septem  vims  rulTus  draco  faiicibus  halat, 

Septemplexque  vomit  dirá  venena  caput. 
Nam  vitia  ut  foveat  capitalia  pectore  septem, 

Pugnaiiti  obsistet  geus  male  fida  Deo. 
Ó  quod  probra  tuus  Mater  mitissima,  Natus, 

Ut  vitia  expellat  cordibus  ista,  feret! 
Arguet  inflatos  hiimiii  cum  você  superbos,' 

Despicient  hurailem  corda  saperba  Deum. 
Pontifices  probris  insectabuntur  avari, 

Pauperibus  largam  dum  valet  esse  manum, 
Suadebit  nivei  donum  coeleste  pudoris, 

Id  turba  indigne  luxuriosa  feret. 
Si  volet  á  duris  expellere  cordibus  iras, 

Dulceque  fraternae  condere  pacis  opus; 
Divini  penitus  fraterni  et  nomen  amoris, 

Immemor  in  mitem  saeva  caterva  fremet. 
Quo  cernet  vultu  damnantera  turpia  ventris 

Gaudia  degeneri  dedita  turba  gulae! 
Invídía  exacuet  tabescens  bestia  dentes. 

Pastorem  ut  rábido  devoret  ore  pium. 
Denique,  cum  proprijs  studeat  plebs  impigra  rebus, 

In  Domini  obsequium  desidiosa  sui: 
Divinum  crebra  cum  você  docebit  honorem, 

Et  jussa  aeterni  non  violanda  Dei. 
Infremet,  assuetis  obsistet  et  impius  anuis, 

Fataque  doctori  reddet  acerba  furor. 
Ille  nece  oppressus,  sed  mortis  victor  acerbae. 

Septemplex  frange t  calce  premente  caput. 
Quoque  anguem  possint,  et  septem  vincera  jnonstra, 

Praestabit,  famulis  robur  opemque  suis. 
Scilicet  illa  suis  diffundet  munera  septem 

Flamini,  hostiles  quae  populentur  opes. 
Tuque  tui  servis  Genetrix  dulcissima  Nati 

Praesidium,  murus,  janua,  turris  eris. 
Splendida  namque  tua  vitae,  et  virtutis  imago 

Attrahet  ad  mores  pectora  nostra  suos.  '^ 

Teque  tui  dulci  pellectus  araore  sequetur,  j 

Discere  quem  Nati  juverit  acta  tui.  v 

Têmpora  tu,  Mater  septemplicis  atra  draconis 

Conteris,  et  victrix  ad  tua  signa  vocas: 
Ut  quos  exemplo  vitae  illustraris  honestae 

Maternae  pietas  protegat  ampla  manus. 
Foelix  si  talis  defendar  tegmina  Matris, 

Si  tantae  ducar  lumine  lucis  ego. 


EM   LOUVOR   DA   VIRGEM  235 

Eia''age,  post  septem  remea  foelíciter  annos, 

Septennis  videat  pátria  regna  Puer. 
Carpat  iter  longiim  mansueto  vectns  asello, 

Immotus  magni  qui  vehit  orbis  oníis. 
Et  sua  nonniinquam  vestigia  figat  arenis, 

Árida  foecundans  grissibiis  arva  siiis. 
Ut  quae  iiunc  spinis  squalet  male  foeda  malorum, 

Pinguescat  fructu  postmodo  terra  bono. 
Obsequio  Nati,  et  Matris  cum  têmpora  vitae 
,  Per  deserta  patrum  turma  dicabit  ovans. 
tunc  foecunda  fides  fructus  producet  opimos, 

Et  verus  vestri  mira  patrabit  amor. 
Ergo  Puer  remea  dulci  cum  Matre  benigne, 

Cum  dulcique  Parens  prole  benigna  redi. 
Sed  cave  ne  infidam  Solymorum  tendat  in  urbem, 

Declinet  mitis  tecta  cruenta  Puer. 
Hoc  sanctum  divina  monent  oracula  Joseph, 

Custodit  cujus  te  Puerumque  fides. 
Regnat  adliuc  baeres  patriae  feritatis,  et  aulam 

Jessidae  contra  jusque  piumque  tenet. 
Quo  tamen  ire  jubent?  cantate  ad  sancta  Prophetis 

Moenia  Nazareth,  cur  speciosa  Parens? 
Scilicet  ut  nequeant  sanctorum  nuntia  veri 

Sancta  Prophetarum  verba  carere  fide. 
Nam  Nazaraeum  mortales  cum  geret  artus 

Dicendum,  oraculis  praecinuere  suis. 
Non  ille  à  pátria  virtutem  nominis  urbe 

Accipiet,  sanctus  cum  sit  ubique  Deus: 
Sed  propriam  ut  totum  virtutem  fundat  inorbem, 

Saeculaque  illustret  nomine  cuncta  suo, 
Ouo  nisi^ Nazareth  veniat  pulchcrrimus  iste 

Fios  campi,  in  Matris  Virginis  ortus  agro? 
Ilic  primum  emittet  vitae  florontis  odorem, 

Imperijs  Matris  subditus  ipse  suae. 
Postmodo  maturus  pcndebit  ab  arbore  fructus, 

Ut  damna  antiqui  pellat  acerba  sibi. 
Quaeque  olim  primi  noxa  patris  arguit  arbor 

Florebit,  fructum  parturietque  novum; 
Cum  Judaeorum  Rex  Nazarenus  Jesus 

In  ligno  ligui  prima  piada  luct: 
Et  mortem  mitis  patictur  ut  agnus  atrocem, 

Conferat  ut  vitae  funerc  donae  suo. 
Ilaec  médio  interea  meditabcrc  pectorc  Mater, 

Ima  tibi  ut  scnsim  serpat  in  ossa  dolor. 


23ft  VKRiOS   DO   PADRE   JOSEPH   DE   ANCHIETA 

Donec  in  innocuum  Natum  qui  saeviet  ensis 

Transadigat  penitus  pectoris  ima  tui. 
Interea  Solymae  regalia  moenia  linquet, 

Moenia,  quae  falso  nomina  pacis  habent. 
Nam  pepigit  foedus  cum  morte,  et  faucibus  Orei, 

Devoret  ut  Natum  sanguinolenta  tuum. 
Non  tibi  pax  Dominura  tranquilla,  quisque  laborum, 

Sed  fera  tempestas,  saevaquc  bella  manent. 
Bella  Puer  renuit,  pulchra  quia  prima  Juventa 

Têmpora  tranquillae  têmpora  pacis  erant. 
Têmpora  cum  duri  venient  horrentia  belli, 

Vibrabit  forti  tela  corusca  manu: 
Percutietque  sui  verbi  virtute  superbos, 

Quosque  ligat  laqueis  caeca  cupido  suis. 
Insurgat  Solymae  dum  truculentior  hoste, 

Inque  decem  demens  congeret  arma  piam. 
Foederaque  iratus  conjunget  pacis  in  unum 

Crudelem  Herodem,  Romuleumque  ducem. 
Ut  totum  belli  pugnantem  pondus  Jesum 

Opprimat,  et  nullo  morte  juvante  cadat. 
Nempe  ut  adulterij  foedum  celare  pudorem 

Dum  cupit  infaustum  turpis  adulter  opus; 
Hetheus  subijt  crudelia  funera  miles, 

Cui  fratrum  ad  pugnam  dextra  negavit  opem: 
Sic  tuus  hostiles  inter  patietor  Jesus 

Funera  desertus  sanguinolenta  manus. 
Ut  tegat  incestus,  et  quae  patravit  adulter 

Crimina,  et  obscoenum  quicquid  in  orbe  patet, 
Scilicet  immensum  divini  tegmen  amoris 

Cuncta  suo  celat  facta  nefanda  sinu. 
Florem  igitur  pulchrae  Nazareth  sancta  juventae 

Possidet,  haec  sedes  florida  pacis  erit. 
Ilic  mihi  cum  dulci,  Mater  pulcherrima,  Nato 

Da  tacitus  plácida  têmpora  pace  terram. 
Hic  mea  virtutem  producant  pectora  flores. 

Sertã  sibi  faciat  floridus  unde  Puer. 
Hic  tentra  oblectet  gustu  quorum  ora  suavi, 

Fac  mea  det  fructus  mens  bene  culta  bonos. 
Postmodo  cum  veniet  Solymam  perimendus  in  urbem, 

Figendus  spinis  têmpora,  membra  cruci: 
Et  mihi  forte  dabit,  Matris  prece  victus  amantis, 

Posse  simul  secum  vivere,  posse  mori. 


^ 


tM   LOUVOR   DA   VIRGEM  237 

Remansit  Puer  IN  Templo 

En  nova  praeteritis  accedunt  taedia  crucis, 

Occupat  ecco  iiovus  te,  pia  Virgo,  dolor. 
Cum  tiuis,  ut  vitae  duodenum  venit  ad  annuin, 

Restitit  in  Templo  Matre  abeunte  Puer. 
Anxia  quis  teneraerimetur  viscera  Matris, 

Dum  pars  materni  máxima  cordis  abest? 
Scandis  ad  augustum  dulci  cum  pignore  Templum, 

Hoc  jubet  autiquus  mos  pietatis  opus. 
Mente  genuque  sacris  suplex  provolueris  aris. 

Et  pia  fers  summo  dona  precesque  Deo. 
Ut  peragis  statis  solemnia  sacra  diebus, 

Hospitij  repetis  dulciae  tecta  tui. 
Sed  quo  Mater  abis?  non  est  tua  gloria  tecum, 

Occultus  Solymae  restat  in  urbe  Puer. 
Si  Natum  fido  dilectum  reddis  Joseph, 

Credit  eum  Matri  justius  ille  piae. 
Sive  tamen  dacit  via  vos  diversa  Parentes, 

Sive  pares  uno  calle  tenetis  iter: 
Quod  Puer  ignaris  subtraxit  lumina  vobis, 

Non  tua,  non  Patris  culpa,  soporve  fuit. 
Sed  latet  ipse  volens,  ut  vera  patescere  Patris 

Incipiat  summi  gloria  bonorque  sui. 
Sed  latet,  ut  cbarae  caput  exerat  inclyta  Matris 

Gloria,  quem  quaeris  nocte  dieque  dolens. 
Nam  quis  percipiat  quali  indefessa  labore, 

Quali  illum  quaeras  aegra  dolore  Parens? 
Vix  primi  spatium  fueras  emensa  diei, 

Cum  sua  Sol  mersis  conderet  ora  rotis. 
Lux  tua  non  aderat,  cujus  splendore  coruscai 

yEtliera,  sibi  ílammas  mutuat  unde  jubar, 
Cujus  ApoUineis  radiat  splendoribus  axis. 

Et  placidus  loto  lucet  in  orbe  dies. 
Quid  laceres  Mater  veri  sine  lumine  Solis? 

Quam  fuít  illa  oculis  nox  tenebrosa  tuis! 
Quas  te  crediderim  moesto  de  corde  querelas 

Fudisse  ad  superos  ore  gemente  poios? 
Quis  libi  per  malas  lacrymarum  íliixit  honestas. 

Quis  mádido  in  teneros  imber  ab  ore  sinus? 
Ut  forti  cures  animo  celare  dolnrem, 

Corda  magis  forlis  fortia  vincit  amor. 
Et  fios  ábsentem,  qnique  intima  pecloris  angit, 

Et  premi t  ex  oculis  flumina  larga  dolor, 


238  VERSOS  DO  PADRE  JOSEPH  DE  ANCHIETA 

Ó  quolies  coelum  replesti  quassibus  altum  I 

Ó  quoties  voces  audiit  aethra  tuas! 
Ó  quoties  summi  tua  mens  ante  ora  Tonaalis 

Procidit!  et  tales  edidit  aegra  sonos. 
Redde  tuum  Natum  ílenti,  Pater  optime,  Matri, 

Corque  mihi  affligi  ne  patiare  diu. 
Sint  satis  horrendi  cnm  venerit  ultima  lethi 

Hora,  manent  animo  quae  toleranda  meo. 
Haec  mihi  tranquilla  dederas  modo  tempore  pacis. 

Dum  ventura  meus  cresci  t  ad  arma  Puer. 
Ó  quali,  alma  Parens,  curarum  fluctuat  aestu 

Cor  tibi,  dum  Nati  cuncta  perícia  times ! 
Non  ignota  tibi  est  immensa  potentia  Nati, 

Cujus  habet  vitae  jura  necisque  manus. 
Sed  quae  non  timeat  dilectae  incommoda  proli, 

Omnia  qui  cogit  fingere,  Matris  amor  ? 
Ille  oculis  fácies  praesens  absentis  Jesu 

Haeret  ApoUineo  pulchrior  ore  tuis. 
Teque  quod  est  absens,  nec  dulcia  lumina  cernis. 

Arguis  et  pugnis  pectora  moesta  feris. 
Nam  tibi  sis  quamvis  nullius  cônscia  culpae, 

To  ta  tamen  fuerit  ne  tua  culpa  times. 
Quid  metuis  Mater  perfecto  ornata  decore? 

NuUa  potest  animum  laedere  noxa  tuum. 
Ecce  repentini  qui  sum  tibi  causa  doloris: 

Additur  haec  culpis  nunc  quoque  culpa  méis, 
Me  miserum  expectai  delicti  absentia  Nati, 

Dulci  dum  Matris  subtrahit  ora  pia. 
Ecce  ego  qui  perij,  Dominumque  Deumque  reliqui. 

Dum  vitia  insanus  foeda  latenter  amo. 
Ecce  ego,  qui  à  facie  jucundae  Matris  aberrans, 

Quaesivi  varijs  gaudia  vana  vijs. 
Nec  mea  tangebant  Náti  divina  voluptas 

Pectora,  nec  Matris  deliciosus  amor. 
Huc  miser,  atque  iiluc  profugus  pastoris  ab  ore 

Perditus  errantes  more  vagabar  ovis. 
Ergo  latet  charae  dulcissimus  ora  relinquens  - 

Matris,  et  amissus  creditur  esse  Puer;  1 

Ut  miser  inveniar,  quem  vere  perdidit  hostis, 

Et  procul  à  Domino  fecit  abesse  meo. 
Scilicet  ille  mei  si  non  perijsset  amore 

Perditus,  omnino  non  reperirer  ego. 
Ille  vagam  quaerens  deserta  per  avia  tandem 

Reperit,  ad  caulas  ille  reduxit  ovem. 


EM  LOUVOR   DA  VIRGEM  239 

Ille  domiim  verrens  accenso  lumine  drachmam 

Quaerit,  et  inventa  gaudia  magna  capit. 
Et  ne  sis  exors  tanti  pia  Mater  honoris, 

Huc  animo  anguorem  da  lacrhymasque  tuo. 
Tu  domus  ampla  Dei,  quem  mente,  et  viscere  claudis, 

Quam  soli  authori  vendicat  ipse  sibi. 
Si  domus  es  Nati,  Natus  te  verrat  oportet, 

Quaerat  ut  amissos  qui  periere  reos. 
Ecce  tui  vexat  puríssima  gaudia  cordis, 

Et  dat  tristitiae  pocula  amara  tibi. 
In  lachrymas  duicem  risum  convertit  acerbas, 

Taedia  pro  laetis  lusibus  aegra  dedit. 
Delitias  blandi  rapuit  bruma  áspera  veris, 

Evertit  clarum  nox  tenebrosa  diem. 
Túrbida  bella  animi  pacem  evertere  serenam, 

Sic  tuta  eversa  est  prole  latente  domus. 
Et  qui  nunc  vivus  celat  tribus  ora  dlebus. 

Cum  maneat  vultus  forma  decorque  prior; 
Postmodo  mutato  condet  divina  decore 

Lumina  cum  mortis  tela  cruenta  feret. 
Saxeaque  inclusum  triduo  teget  urna  cadáver, 

Nec  tibi  lugenti  qui  medeatur  erit; 
Donec  ab  infernis  liominem  quem  perdidit  error 

Inventum  evehat  cujus  amore  peris. 
Sic  me  mors  Nati  reperit  Matrisque  dolores, 

Qui  perij,  et  vitae  causa  fuere  meae. 
Ergo  tibi  absentem  ne  sit  grave  flerc  parumper. 

Dum  latitat  cordis  gloria  luxque  tui. 
Et  mea  fac  coelum  suspiria  crebra  lacessant: 

Nec  sileat  cordis  vox  lachrymosa  mei. 
Et  desiderio  Domini  super  astra  latentis 

Torquear,  à  Pátria  dum  procul  êxul  ago. 
Sed  quid  agis  Mater?  nunc  totam  al)sorbuit  ingens, 

Nec  memorem  oíTicij  te  sinit  esse,  dolor. 
Imò  amor  absentis  crudelis  causa  doloris 

Mira  animuni  stimulat  sedulitate  tuum: 
Cognatosque  inter  puerum  notosque  requirens, 

Sollicita  buc  illuc  lumina  voluis  amans. 
Ilunc  illumque  rogas,  num  Natum  viderit  usque; 

Nec  semel  est  eundem  sat  petijssc  tibi. 
Saepius  inquiris  quod  terquc  quaterque  rogaras; 

Quoque  magis  repetis,  plus  repetisse  juvat. 
Num  vídistis,  ais,  duicem  mea  viscera  Natum, 

Qui  mea  vila  mihi  est,  qui  mihi  soius  amor? 


240  VERSOS  DO  PADRE  JOSEPH  DE  ANCHIETA 

Ó  una  ante  omnes  mulier  piikherrima,  qualis 

Est  liius  iste  Puer,  qiii  tibi  solas  amor? 
Est  ne  ille  obriso  cujus  pretiosius  aiiro, 

Ciii  terra  ad  nutum  servit,  et  astra,  caput? 
Cujus  in  audito  guttur  sermone  suave 

Ora  velut  dulci  nectare  nostra  rigat? 
Cujus  ceu  Libani  forma  est  palcherrima,  candor 

Coelicus  electis  omnibus  unde  venit? 
Ille  ne  melifluus  totusque  optandus  amanti, 

Qui  desiderio  cor  trahit  omne  sui? 
Hic  est  quem  crebris  singultibus  anxia  quaeris, 

Ipse  idem  Matris  Filius,  atque  Dei. 
Quis  Dominum'tamen  talem  non  quaerat  amicum 

Impiger,  et  totó  cordis  amore  ílagrans? 
Si  sinis,  ibo  simul  tecum,  moestissima  Mater, 

Forsitan  inventus  proferet  ora  mihi. 
Sed  non  invenies  inter  vestigia  notos, 

Qui  fratres  inter  ceu  peregrinus  erit. 
Non  Natum  inveniunt,  stimulat  quos  gloria  carnis^ 

Sed  quos  Patris  amor,  nomen,  bonorque  movet. 
Ecce  latet  Solymae,  sacrae  pete  celsa  Sionis 

Moenia,  pacificus  Rex  tibi  jure  sedet: 
Donec  ut  optatam  superans  será  praelia  pacem 

Visuris  summi  lumina  pulcbra  Dei. 
Non  tamen  aut  Regis  petiít,  vel  praesidis  aulam, 

Delicijs  illa  est  moUibus  ampla  domus. 
Gloria  cui  Patris  cordi  est,  durique  labores, 

Templum  Patris  adit  quem  locus  ille  decet. 
Hic  illum  invenies  bumanis  pectora  curís 

Exutum,  paires  immemoremque  suos. 
Hic  residet  medius  doctorum  astante  corona, 

Eloqaij  fundens  prima  íluenta  sui. 
Multa  super  sacris  divina  ex  lege  Prophetis 

Oraculis  quondam  quae  cecinere  rogat. 
Audit  et  ipse  libens  seniores  multa  rogantes, 

Explanans  miris  verba  rogata  modis. 
Eructat  sensu  mysteria  magna  profundo, 

Ignarosque  diu  quae  latuere  docet. 
Obstupet  admirans  doctorum  turba  loquentem, 

Verbaque  doctoris  non  capit  alta  novi. 
Tanta  fluit  Pueri  sapientia  pectore  ab  alto, 

Tantum  divino  stillat  ab  ore  meios. 
Quis  tibi,  Diva,  fuit  post  tot  suspiria  sensus, 

Lumina  cum  Pueri  deliciosa  vides? 


EM   LOUVOR   DA   VIIIGEM  2il 

Quis  novus  illuxit  splendor,  ciim  clarior  astris 

Lux  sua  Inminibus  praeljuit  ora  tuis? 
Quo  tua  laetitiae  praeconlia  ilumine  inundant, 

Cum  lil)i  de  próprio  gaudia  fonte  ílaunl? 
Quis  tibi  pectus  amans  ignis  succendit  amoris, 

Cum  tua  replerit  corda  repertus  amor? 
Tu  pia,  tu  nosti,  tu  seis  experta  dolorem, 

Maternus  pariat  gaudia  quanta  dolor. 
Tu  pia,  tu  sentis;  sed  nec  potes  ore  profari, 

Audire  indigno  nec  licet  ista  mihi. 
Sed  potes  optanti  laclirymas  inferre,  quod  ipsum, 

Gaudia,  perdiderim,  cum  malè  quaero  miser. 
Sed  potes  amissum  meritis  mihi  reddere  Natum, 

Inventum  et  lachrymis,  Yirgo  benigna,  tuis. 
Et  mihi  vel  minimum  gaudij  praestare,  replevit 

Inventus  Matris  quo  pia  corda  Puer. 
Hoc  mihi  si  praestas,  luctu  vacuabis  amaro. 

Addicta  aeternum  pectora  nostra  tibi. 
Intereà  dulcem  Matrem  Patremque  sequatur, 

Nazarelh  repetens  florida  tecta  suae: 
Mitis  ubi  vestris  divínum  Numen  obumbrans 

Pareat  imperijs  têmpora  longa  latens: 
Donec  terdeno  Solymorum  in  maenibus  anno 

.Tussa  palam  Patris  praedicet  alta  sui. 
Ó  Puer  immensi  soboles  verissima  Patris; 

Ó  decor,  ò  Matris  luxque  decusque  piae. 
Esto  Deus  cordis  sola,  ó  sine  faece  volui)tas, 

Gloriaque  aeterniini  parsquc  beata  mei. 
Ó  formosa  Dei  genitrix,  miseranda  miselli 

Luminibus  servi  refice  corda  tui. 
Solus  amor,  sola  mihi  sit  cum  Matrc  Puellus, 

Pignore  cum  solo  tu  mihi  solus  amor. 

De  compassione,  et  planctu  Virgims  in  morte  Filii 

Mens  mea,  quid  tanto  torpes  absorpta  sopore? 

Quid  stertis  somno  desidiosa  gravi? 
Nec  te  cura  movot  lachrymabilis  ulla  l\arentis, 

Funera  quae  Nali  ílel  truculenía  sui? 
Viscera  cui  duro  tabescunl  aogja  dolore. 

Vulnera  dum  praescns  quae  lulit  ille  videi. 
En  quocunque  óculos  convorleris,  omnia  Jesu 

Occurrent  oculis  sanguine  plena  tuis. 
Respice,  ut  aelerni  proslrato  ante  ora  Pareulis 

VOL.    II  iC 


242  VERSOS  DO  PADHE  JOSEPII  DE  ANCHIETA 

Sanguineus  totó  corpore  siidor  abit. 
Respice,  iit  immanis  caplum  qiiasi  turba  latronem 

Proterit,  et  laqueis  colla  manusque  ligat. 
Respice,  ut  ante  Annam  saevus  divina  satelles 

Duriter  armata  percutit  ora  manu. 
Cernis,  ut  in  Caipbae  conspectu  mille  superbi 

Probra  bumibs,  colapbos,  sputaque  foeda  tulit. 
Nec  faciem  avertit,  cum  percutèretur;  et  bosti 

Vellendam  barbam,  caesariemque  dedií. 
Aspice,  quam  diro  crudelis  verbere  tortor 

Dilaniet  Domini  mitia  membra  tui. 
Aspice,  quam  duri  lacerent  sacra  têmpora  vepres, 

Diíluat  et  purus  pulchra  per  ora  criior. 
Nonne  vides  totós  lacerum  crudeliter  artus 

Grandia  vix  humeris  pondera  ferre  suis? 
Cernis  ut  innocuas  peracuta  cúspide  ligno 

Dextera  tortoris  íigit  iniqua  manus. 
Cernis  ut  innocuas  peracuta  cúspide  plantas, 

Tortoris  figit  dexlera  saeva  cruce. 
Aspicis  ut  dura  laceratus  in  arbore  pendet, 

Et  tua  divino  sanguine  furta  luit. 
Aspice  quam  dirum  transfosso  in  pectore  vulnus, 

Unde  immista  luit  sanguine  lympba,  patet. 
OmnJa  si  nescis,  Mater  sibi  vendicat  aegra 

Vulnera,  quae  Natum  sustinuisse  vides. 
Namque  cjuot  innocuo  tulit  ille  in  corpore  poenas, 

Pectore  tot  Mater  fert  miseranda  pio. 
Surge,  age,  et  infensae  per  mocnia  iniqua  Sionis 

Sollicito  Matrem  pectore  quaere  Dei. 
Signa  tibi  passim  notissima  liquit  uíerque, 

Clara  tibi  certis  est  via  facta  notis. 
Ille  viam  multo  raptatus  sanguine  tinxit, 

ília  piis  laclirymis  moesta  rigavit  bumum. 
Quaere  piam  Matrem,  forsan  solabere  flentem,  1 

Indulget  lacbrymis  sicubi  moesta  piis.  " 

Si  tanto  admittit  soUatia  nuUa  dolori, 

Quod  vitam  vitae  mors  tulit  atra  suae: 
At  "saltem  elfundes  lacbrymas  tua  crimina  plangens. 

Crimina,  quae  dirac  causa  fuere  necis. 
Sed  quo  te,  Mater,  turbo  tulit  is  te  doloris? 

Quae  te  plangentem  funera  terra  lenet? 
Num  capit  ille  tuos  gemitus  lamentaque  collis, 

Putris  ubi  bumanis  ossibus  albct  bumus? 
Numíiuid  odiferae  cruciaris  in  arboris  umbra. 


EM  LOUVOR  DA  VIRGEM  243 

Unde  lims  Jesus,  iinde  popeiidit  amor? 
Ilic  lachrymosa  sedes,  et  primae  noxia  malris, 

Gaudia  crudeli  fixa  dolore  luis, 
ília  fuit  velita  corrupta  sub  arbore,  fruetum 

Dum  legit  audaci  stulta  loquaxque  manu. 
Iste  tui  veutris  preliosus  ab  arbore  Fructus 

Dat  vitam  Matri  tempus  in  omne  piae. 
Quaeque  maio  primi  sueco  periere  veneni 

Suscitat  et  tradit  pignora  chara  tibi. 
Sed  perijt  tua  vi  ta,  tui  peramabile  cordis 

Delilium,  vires  occubuere  tuae. 
Raptus  ab  infesto  crudeliter  occidit  hoste, 

Qui  tibi  de  mammie  dulce  pependit  ónus. 
Occubuit  diris  plagis  confossus  Jesus, 

Ille  decor  mentis,  gloria,  luxque  tuae. 
Quotque  illum  plagae,  tot  te  aliixere  dolores; 

Una  etenim  vobis  vita  duobus  erat. 
Scilicct  liunc  médio  cum  serves  cerde,  nec  unquam 

Líquerit  hospitium  pectoris  ille  tui: 
Ut  sic  discerptus  lethum  crudele  subiret, 

Scindendum  rigido  cor  fuit  ense  tibi. 
Cor  tibi  dirá  pium  misere  rupere  flagella, 

Spina  cruentavit  cor  tibi  dirá  pium. 
In  te  cum  clavis  conjuravere  cruentis 

Omnia,  fíiiae  in  ligno  Natus  acerba  tulit. 
Sed  cur  vivis  adhuc  vita  moriente,  Deoque, 

Cur  non  es  simili  tu  quoque  rapta  nece? 
Quando  non  illo  est  animam  exhalente  revulsum 

Cor  tibi,  si  vindos  mens  tenet  una  duos? 
Non  posset,  fateor,  tantos  tua  vita  dolores 

Ferre,  nec  id  nimius  sustinuisset  amor. 
Ni  te  divino  firmaret  robore  Natus, 

Linqueret  ut  cordi  plura  ferenda  tuo. 
Vivis  adhuc  Mater  plurcs  passura  labores. 

Ultima  te  in  saevo  jam  pelet  unda  mari. 
Sed  tege  maternum  vultum,  pia  lumína  conde, 

Eccc  furens  auras  verberai  hasta  leves: 
Et  sacra  defuncti  discindit  pectora  Nati 

Insupcr  in  médio  lancea  cordc  tremcns. 
Scilicet  haec  ctiam  tantorum  summa  doloruni 

Dcfuerat  plagis  adjicionda  tuis. 
IIoc  te  supplicium,  vulnus  crudclo  manchai: 

llaec  tibi  servala  ost  poena  gravisfjue  dulur. 
In  crucc  dulci  figi  tibi  Prole  volebas 


244  AT.RSOS   DO   PADIVE   JOSEPH   DE   ANCHIETA 

Virgineasque  manns,  virgincosqiic  pedes. 
Ille  sibi  accepit  rígidos  ciim  stipite  clavos, 

Servata  est  cordi  lancea  dirá  tuo. 
Jam  potes,  ò  Mater,  compôs  rcquiescere  voíi, 

Hic  tibi  totiis  abit  cordis  in  ima  dolor. 
Quod  gélida  exccpit  corpus  jam  morte  solutiim 

Sola  pio  crudum  pectore  vulnus  babes. 
Ó  sacrum  vulnus,  quod  non  tam  férrea  cuspis, 

Quam  nimi.us  nostri  fecit  amoris  amor. 
Ó  flumen  médio  Paradisi  è  fonte  refusum, 

Cujus  ab  iiberibus  terra  tumescit  aquis. 
Ó  via  regalis,  gemmataque  janua  coeli, 

Praesidij  turris,  confugijque  locus. 
Ó  rosa  divinae  spirans  virtutis  odorem, 

Gemma,  Poli  solium  qua  sibi  pauper  emit. 
Nidus,  ubi  purae  sua  ponunt  ova  columbae, 

Castus  ubi  tenere  pignora  turtur  alit. 
Ó  plaga  immensi  splendoris  honore  rubescens, 

Quae  pia  divino  pectora  amore  feris. 
Ó  vulnus  dulci  praecordia  vulnere  findens, 

Qua  patet  ad  Cbristi  cor  via  lata  pium. 
Testis  inauditi,  quo  nos  sibi  junxit,  amoris: 

Portus  ab  aequoribus  quo  fugit  icta  ratis. 
Ad  te  confugiunt,  bostís  quibus  instat  iniquas; 

Tu  praesens  morbis  es  medicina  malis. 
In  te  tristitia  pressus  solamina  carpit, 

Et  grave  de  moesto  pectore  ponit  ónus. 
Per  te  rejecto,  spe  non  fallente,  timore 

Ingreditur  coeli  tecti  beata  réus. 
Ó  pacis  sedes,  ò  vivae  vena  perennis 

jEternam  in  vitam  sub  silientis  aquae. 
IIoc  est,  ò  Mater,  soli  tibi  vulnus  apertum 

Tu  sola  hoc  pateris,  tu  dare  sola  potes. 
Da  mihi,  ut  ingrediar  per  apertum  cúspide  pectus, 

Ut  possim  in  Domini  vivere  corde  mei. 
Hac  pia  divini  penetrabo  ad  viscera  amoris, 

Hic  mibi  erit  requies,  bic  mibi  certa  domus. 
Ilic  mea  sanguíneo  redimam  delicta  liquore, 

Hic  animi  sordes  munda  lavabit  aqua. 
His  mihi  sub  tectis  erit,  bis  in  sedibus  omnes 

Yivcre  dulce  dies,  hic  mihi  dulce  mori. 


em  louvor  da  virgem  243 

Planctus  Matuis 

SeJ  tibi  cur  stultis  ferio  damoribus  aures, 

Si  immemorem  cogit  te  dolor  esse  tiii? 
Obruta  tristitia,  gladio  transfixa  cruento, 

Lugubrisque  sedes,  et  gemebunda  solo: 
Inque  pio  lacerum  plagis  diroque  cadáver 

Funere,  Virgo  tenes  heu  miseranda  sinu: 
Ingeminasque  graves  planctus,  lamentaque  fundens 

Membra  rigas  lachrymis  sanguinolenta  piis: 
Inque  pios  questus  singultibus  intima  pulsans 

Rumpis,  et  hos  profers  ore  gemente  sonos. 
Nate  nimis  misera  vulnus  crudelo  Parentis, 

Hei  mihi,  tam  saevis  dilacerate  modis. 
Ó  jubar,  ó  caeca  tectum  caligine  lúmen, 

Ó  lux,  ò  dirá  Yita  perempta  nece. 
Quae  manus  indignos  ausa  est  inferre  dolores? 

Têmpora  cur  duris  sentibus  ista  rigent? 
Quis  niveas  rupit  rigida  tibi  cúspide  palmas? 

Quid  sacrum  vasto  vulnere  pectus  liiat? 
Quis  tibi  de  pulchro  roseum  tulit  ore  colorem? 

Quid  periit  vultus  forma  decora  tui  ? 
Hoc  ne  caput,  cujus  mundi  íirmissima  nutu 

Moenia,  cumque  sua  sydera  mole  tremunt? 
His  ne  oculis  coeli  sedebant  astra  sereni, 

Solque  nitens,  médium  cum  secat  axe  diem? 
His  ne  mel  exibat,  divinaque  balsama  labris? 

Hoccine  fons  vivis  ore  íluebat  aquis? 
Haene  illae,  ad  quarum  morbis  languentm  toctum, 

Mersaque  surgebant  corpora  morte,  manus  ? 
Heu  quem  te  aspicio!  non  est  tibi  gloria,  Fili, 

Prima,  nec  in  pulchro  pristinus  ore  dccor. 
Saeva  cruentarunt  formosum  verbera  corpus, 

Dissiluere  suis  omnibus  ossa  locis. 
Squalidus  irrepsit  liventia  pallor  in  ora, 

liarba  riget  vulsis  sanguinelenla  pilis. 
Bracbia  confossis  stupucre  rigentia  j)almis, 

Frigidus  invasi  crura  pedesíjue  rigor. 
Unde  rei)entinis  tumuerunl  aequora  venlis? 

Quae  caput  immersit  dirá  i)roc(3lla  liium? 
Nate  decus  coeli,  quis  te  milii  casus  ademil? 

Quae  fera  te  ex  ulnis  abslulit  unda  méis? 
Quo  formosus  abit  supremi  s|)Iendor  Jesus 

Palris?  ubi  est  Matris  oui  liiit  ante  Puer? 


24G  VERSOS  DO   PADRE   JOSEPII   DE   ANCHIETA 

Tu  míseros  diílcis  consolabarc  parentos, 

Pignorc  restituens  matribiis  liauista  pijs, 
At  mihi  quis  raptum  íc  funcrc  reddct  acerbo? 

Quis  lachrymas  tergct  I\Ialris  ab  ore  tuae? 
Quid  faciam  sine  te,  dulclssime  Nate?  quis  aegrae 

Confugium  Matri,  quis  milii  portus  erit? 
Tu  mihi  eras  omni  plenus  dulcedine  Nalus, 

Tu  Pater,  et  Sponsus,  tu  mihi  Frater  eras. 
Nuuc  Mater,  jam  non  Mater,  te  Nate  perempto, 

Fratre,  Patre,  et  Sponso  mmc  viduata  íleo. 
Non  ego  te  posthac  lassatum  sohs  ab  nestu 

Excipiam  lectis,  Agne  benigne,  méis. 
Dulce  nec  iiUerlus  Matris  sine  pignore  nomcn 

Gaudia  maternis  auribus  alta  dabit. 
Traditus  es  canibus,  mea  víscera,  Nate  cruentis: 

Praeda  datus  saevís  es  lanianda  lupis. 
Hei  míhí,  nulla  subít  crudo  medicina  dolori: 

Sola  gemo  lachrymis  exatíata  méis. 
Abstuht  una  dies  maternae  gaudia  menti: 

Tormenta,  et  luctus  attulít  una  dies. 
Nate  quies  nuper,  gladíus  modo  Nate  doloris; 

Ante  salus  animí,  nimc  fera  plaga  mei. 
Quod  scelus  aethereís  patrasti  lapsus  ab  oris? 

Innocua  admisit  quod  tua  vita  nefas? 
Quid  caput  augustum  meruit?  quo  crimine  tortor 

Supphcio  aíilixit  têmpora  sacra  novo? 
Quid  pia  cum  puro  peccavit  lingua  palato, 

Tristia  ut  admisto  pocnla  felle  bibat? 
Qua  tibi  pro  culpa  ferro  tcrebantur  aculae 

Cuspidis?  innocuae  quid  meruere  manus  ? 
Qua  tibi  pro  noxa  rumpunt  crudelia  plantas 

Vulnera?  quid  sancti  commeruere  pedes? 
Quod  fidit  ob  facinus  divinum  lancea  pectus? 

Yiscera  quid  ccrdis  commeruere  pii? 
Tu  nihil  es  meritus:  meruere  ingentia  mundi 

Flagitia,  infundam  cpia  peperere  necem. 
Tantum  humana  salus  nostraque  redemptio  vitae, 

Tantus  in  aeterno  pectore  vivit  amor. 
Nate  siles?  miserae  nec  te  lamenta  Parentis 

Viscera,  nec  tanto  rupta  dolore,  movent? 
Quis  Patris  imposuit  tam  moesta  silentia  Verbo? 

Cur  tua  vox  flenti  non  venit  uUa  mihi  ? 
Cur  tua,  quae  mutis  solvebat  vincula  linguis, 

Muta  mihi  soli  nunc  tua  lingua  tacet? 


FM  LOUVOR  DA  VIRGEM  247 

Qua  meriii  culpa  tantis  cruciatibus  angi? 

Ilacc^lc  te  Matri  gaudia  Nato  rcfers? 
An  qiiia  te  blandis  rccreavi  mollilcr  ulnis, " 

Et  tenor  in  grémio  sarei  na  dal  eis  eras: 
Nunc  gero  te  totós  laniatiim  flebilis  artus, 

Et  lacer  in  grémio  sarcina  tristis  ades  ? 
An  quia  punireis  fixi  oscula  blanda  labellis. 

Rubra  mihi  reddit  nunc  tuus  ora  cruor  ? 
Anne  fuit  crimen  distentas  nectare  mammas 

Dulce  diu  labijs  inservisse  tuis? 
Tristia  cur  charam  voluisti  absynthia  Maírem 

Sumere?  cur  hausto  cor  mihi  felle  tumet? 
Quaenara  culpa  fuit,  quod  nuUa  in  pectore  amantis 

Meta  tui,  nullus  limes  amoris  erat  ? 
Ecce  suavis  amor  faclus  mihi  tortor  acerbus, 

Vulneraque  iníligit  ossibus  alta  mais. 
Quae  dona  occumbens  inopi  postrema  Parenti, 

Quas  mihi  legitimas  Nate  relinquis  opes? 
Hei  mihi,  confossae  palmae,  plantaeque  rigentes, 

Temporaque,  et  dire  pectora  rupta  dabunt. 
Verbera  cum  clavis,  nodosum  robur,  et  hastam 

Sortiar,  et  capitis  sertã  cruenta  tui. 
Haec  ego  jure  meo  mihi  debita  munera  saumam, 

Succedamque  haeres  rebus  egena  tuis. 
Hoc  cultu  incedam  spectabilis,  his  ero  dives 

Dotibus,  haec  condam  pectore  dona  meo. 
Et  prius  hanc  animam  rigido  mors  auferet  ense, 

Quam  médio  Matris  subtrahat  illa  sinu, 
Scilicet  est  dcnsis  mea  lux  immersa  tenebris, 

Yitaque  crudeli  concidit  hausta  nece? 
Quo  meus  oífcndit  lacto  piíis  Agnus  Jesus, 

Quid  laesit  Natus  te,  Pater  alme,  tuus? 
Scilicet  illc  luat  sontis  perjuria  mundi  ? 

Ille  ferat  poenas,  quas  meruerc  rei? 
Ne  pereant  sontes,  ar)  mortem  tiaditur  insons, 

Dilectus  servi  crimine  Natus  obil? 
Jam  duro  no  hominum  mercctur  funere  vitam? 

.Iam  saeva  fuerit  morte  paranda  salus? 
Non  fuit  haec  tanti,  tua  lo  clcmeiília  ad<'git: 

Omnia  ([ui  vincil,  te  fiuof|uc  viiicil  amoi". 
Plarige  Sion  dulcis  crudelia  lata  Parenlis, 

Qui  mortem  pro  te,  ne  morerere,  tulil. 
Sic  mea  lux  moreris?  Sic  te,  dulcissime  Jesu, 

Ut  vivam,  sic  te  mors  truculenta  rapil? 


248  VERSOS  DO  PADllE  JOSí:PII  de  ANCHIETA 

Tone  Delira  diro  poluisse  occiímljerc  leího, 

Et  tua  vivai,  adliiic  te  pereunte  Parens? 
Certe  ego  eram  vivens  quae  te  vivente  beata, 

Nunc  foelix  moríens  te  moriente  forem. 
Foelix  marmoreum,  quo  jam  condere,  sepnlclirum, 

Accipiet  Matris  qiiod  tua  membra  vice. 
Ipse  mea  genitus  cubuisli  dulciter  alvo, 

Extincto  saxum  nunc  tibi  lectus  erit. 
Sed  quis  te  rapiet  Matris  violentos  ab  ubiis? 

Cur  oculis  aberit  moesta  figura  méis? 
Non  potes  avelli,  tumulo  condemur  in  uno, 

Saxeaque  excipiet  nos  simul  arca  duos. 
riic  ego  complexu  refovens  miseraJjile  corpus 

Contumulanda  simul,  si  patereris,  eram. 
Sed  qnia  non  possum  crudelem  abrumpere  vitam. 

Et  dolor  à  facie  magnus  abesse  tua; 
Tu  pectus  Matris  servabis,  Nate,  sepulcbro, 

Teque  suo  Mater  pectore  condet  amans. 
Ó  mors,  cur  gladio  mea  viscera  rumpis  aeuto? 

Sospite  cur  sobolem  3Iaíre  cruenta  rapis? 
Crudelis,  cur  me  sublato  pignorc  linquis? 

Cur  tuus  in  Maírem  non  jacit  arma  furor? 
Blanda  fores  uno  si  telo  utrumque  ferires, 

Cruxque  sibi  fixns  perderet  una  duos. 
Saeva  necans  Natum,  parccns  mage  saeva  Parenti, 

Mitis  uterque  simul,  si  moreremur,  eras. 
Ultima  in  afllictam  jam  torque  spicula  Matrem ; 

Quam  sine  prole  facis  vivere,  coge  morí. 
Haec  et  plura  gemis  Nato,  pia  Mater,  adempto, 

Nec  superest  plagis  ulla  medella  tuis. 
Quis  tua  funesto  turbavit  pectora  luctu? 

Unde  tuo  cordi  maeror  acerbus  inest? 
Cur  tua  sordescunt  effusis  fletibus  ora? 

Cur  oculis  manant  ilumina  larga  tuis? 
Unde  tibi  gemitus  tanti,  tantique  dolores? 

Viscera  quis  Matris  reddidit  aegra  piae? 
Quis  tua  tam  diro  praecordia  vulnerat  ense? 

Spicula  quis  venis  fixit  acuta  tuis? 
Has  mea,  si  nescis,  fecerunt  crimina  plagas, 

Ista  dedere  meae  vulnera  saeva  manus. 
Corpus  ego  torsis  ílagris,  ego  têmpora  sertis, 

Ipse  fidi  palmas,  innocuosque  pedes. 
Ipse  latus  ferro,  divinaque  viscera  rupi: 

Causa  fui  Nato  funeris  ipse  tuo,  . 


EM  LOUVOU  DA  VIUGEM 

Scilicet  ista  meão  meruerunt  vulnera  culpae: 

ílaec  erat,  haec  noxis  debita  poena  méis. 
Legis  ego  fractor,  puro  piat  ille  cruore : 

Patris  ego  laesi  riumen,  et  ilie  luit. 
Crimen  ego  admisi,  duros  tulit  ille  dolores: 

Mortis  ego  justa  sum  réus,  ille  perit. 
Sic  ego  crudeiis  Natum  Matremque  peremi, 

Ille  tui  cordis  vita  suavis  erat. 
Me  miserum,  quid  agam?  justo  tumet  ille  furore. 

Nec  tua  rion  meritas  coricipit  ira  minas, 
Certe  ego  respicio  manuum  cum  facta  mearum, 

Spes  mihi  placandae  non  subit  ulla  tui. 
Ast  ubi  faia  tui  subeunt  crudelia  Nati, 

Spes  mihi  cum  dirá  máxima  morte  subit. 
Non  eris  aspecto  torvae  mihi  sanguine  froníis, 

Te  pius  immítem  non  sinit  esse  cruor. 
Ad  fera  confogiam  íMaterni  vulnera  cordis. 

ília  cruci  affixum  continet  aula  Deum. 
Nec  tua,  quae  hcent  reseratis  undique  portis 

Occludi  poterunt  mitia  corda  mihi. 
Ut  partem  cx)ndas,  non  omnia  vulnera  claudes; 

Surit  data,  quara  posis  condere,  plura  tibi. 
Ipse  dolor  lethi,  quam  movit,  leniet  iram: 

Iste  pii  vires  sangnis  amoris  habet. 
Tu  mites  lachrymis  absterge  parumper  ocellos, 

Ora  tuens  Nati  sanguinolenta  tui : 
Et  tristi  aspectu  fusi  placare  cruoris. 

Te  facili  durus  non  crit  ille  mihi. 
Nil  tamen  hic  parcas,  parcet  mihi  Filius  olim, 

Injice  pectoribus  tela  cruenta  méis. 
Ut  quod  multiplici  confossum  cst  vulnere  pectus 

Hora  mco  vellat  pectore  nulla  tuum. 
Ilas  peto  per  plagas,  mitissima,  quas  ego  Nato, 

Crudeiis  Nati  quas  tibi  fecit  amor. 
Fac  me  vulneribus,  fac  me  fera  sanguine  fuso 

Funera  pro  Domino,  cum  Dominoque  pati. 

De  gáudio  Mathis  hesurgente  Domino. 

Ecce  resurgit  ovans  tetri  populator  averni, 

Nobilis  exuvijs,  et  ditione  potens. 
Excute,  moesta  Parens,  turbala  tristia  mentis 

Nubila,  quae  Nati  mors  truculenta  tulit. 
Ecce  tuus  vivit  tua  vita  suavis  Jesus, 


2?jO  versos  do  padre  JOSEPH  de  ANCHIETA 

Dulcis  amor  cordis,  deliciumquc  tui. 
Victor  ab  infernis  remeat,  saevique  draconis 

Contudit  invicto  squamea  colla  pede. 
Ille  sibi  saevam  devinxit  foedere  mortem, 

líiimaniim  rapiens  in  sua  regna  genus. 
Al)sortamqiie  alto  retinebat  viscera  praedam 

Pervigil  ante  laciis  férrea  claiislra  sai. 
Diimque  fera  authori  molitum  ílmera  vitae 

ímpia  tartareo  pectora  felle  livent : 
Occubuit  virtus  victi  nece  jusque  nocendi 

Perdidit  innocuo  dum  sine  jure  nocet: 
Fractaque  grassantis  sunt  jura  nocentia  mortis. 

Et  pactum,  et  Stygij  vincula  rupta  jugi. 
In  cruce  nam  pendens  anguem  suspendit  Jesus, 

Et  moriens  morti  fata  suprema  dedit. 
Ut  laceros  artus,  et  livida  membra  reliquit, 

Spiritus  infernum  luce  coruscus  adit. 
Corripit  aeratae  ferrata  repaguia  portae, 

Pandit  et  obscuri  limina  tetra  lacus. 
Diffugiunt  tenebrae  divine  lumine  vulíus, 

Caeca  tenebrosis  carceris  umbra  perit. 
Obstupet  Orcus  edax,  vasíoque  absorpta  barathro 

Agmina  victoris  calce  prement  vomit. 
Exultans  spolijs  praedaque  potitus  opima, 

Ad  tumuli  carpens  claustra  íriumphatiter. 
Deformescjue  artus  corpusque  exangue  revisens. 

Hórrida  vulneribus  membra  resumit  ovans, 
Non  jam  foeda  tameii,  non  jam  passura  dolorem, 

Non  jam  sanguineis  contemerata  notis. 
Cessit  hyems  rigidis  poenarum  dura  pruinis. 

Noxque  procelloso  sanguinis  imbre  rigens. 
Clara  dies  plácido  rediit  cum  vere,  novusque 

Pulchrn  resurgentis  possidet  ora  decor, 
Non  sic  Evo  cum  matutinus  ab  ortu 

Egreditur  rutilo  Lúcifer  orbe  micat. 
Non  sic  Sol  splendet  radioso  lucidus  orbe, 

Scilicet  authori  cedit  uterque  suo. 
Surgi t  ab  obscuro  radians  Lux  ipsa  sepulchro, 

iEthereus  lucet  qua  rutilante  polus. 
Surgit  homo  ablatis  specioso  cà  corpore  plagis, 

Quaque  necem  potuit  conditione  pati. 
Jam  non  formosum  deturpant  hórrida  vullum 

Sputa,  nec  augustim  spina  cruenta  caput. 
Squalidus  aufugit  pallor,  livorque  tumescens. 


EM  LOUVOR   DA  VIRGEM  251 

Viilneraque  iníortis  ingeminata  flagris. 
Quidquid  erat  foedum,  reddit  nova  gloria  pulchrum, 

Gloria  viventis  jam  sine  morte  Dei, 
Non  tamen  omiiino  testes  abolevit  amoris 

Divini,  et  dirá  signa  cruenta  necis. 
Vulnera  confossis  radiant  illustria  palmis, 

Confessos  decorant  vulnera  rubra  pedes, 
Quae  mucrone  pii  pandit  penetralia  cordis, 

Pulchrior  in  médio  pectore  plaga  rubet. 
Surgit  homo  invictus  mortis  prostraíor,  et  Orei, 

Et  Deus,  et  Natus,  Virgo  beata,  tuus. 
Quid  facis?  an  defles  etiam  nunc  funns  acerbum, 

Crudaque  quae  lacero  vulnera  corde  geris? 
Desine  flere,  Parens,  vivit  regnator  Jesus, 

Supplicimnque  animi  substulit  omne  tui. 
Nonne  audis  dulci  coelestes  você  choreas, 

Quae  tibi  victrici  carmina  fundit  ovans? 
Percipe  laetitiam  coeli  Regina  perennem 

Nobilis,  et  palmae  gaudia  mira  novae. 
Ecce  Deus,  carnem  cui  Mater  digna  dedisti, 

Nec  pepulit  castae  limina  clausa.domus. 
Splendidus  et  clausi  non  laedens  signa  sepulcliri 

Exiit,  ut  sociis  dixerat  ante  suis. 
Si  tibi  compescit  nondum  satis  iste  dolorem. 

Et  tormenta  criicis  nuncius  atra  necis: 
Respice,  Natus  adest  insigni  clara  triumpbi 

Signa,  Patrum  turmas  in  tua  tecta  ferens. 
Ut  tua  praesenti  conspexit  lumina  vultu, 

Replevit  radijs  ut  tua  corda  novis: 
Quis  capiat,  qualis  tenuit  materna  voluptas 

Pectora,  quis  Malris  vestijt  ora  decor? 
Ut  liquefacta  tibi  mens  est,  cum  dulciter  aures, 

Mellea  vox  Nati  perculit  illa  tuas! 
Ecce  resurrexit  nunquam  moriturus,  et  alti 

Perficit  extincta  morte  Parcntis  opus. 
Una  omnes  gemilus,  suspiria  crebra,  gravcsquc 

Singultus,  celerem  corripucre  fugam. 
Quo  magis  in  Matrem  saevas  exercuit  iras 

Saeva  necis  Nato  damna  ferente  dolor: 
Hoc  magis  alta  tuis  sese  efluderc  medulis 

Gaudia,  cum  Nati  mofs  necc  vida  fuit. 
Primam  Natus-  adit,  quoniam  reverentia  tanlam 

Jure  prior  Matrem  gloria  prima  decet. 
Prima  vides  vi  rum,  quia  sempcr  vixit  in  alto 


252  VERSOS   DO  PADRE  JOSEPH  DE  ANCHIETA 

Pectore,  quam  primo  donat  honore  fides, 
Prima  triumphantem  rccipis,  quia  jure  dolori 

Debentm'  cordis  gaudia  prima  tui. 
Agnoscis  Natum,  divinumque  iiitus  adoras 

Numen,  et  apprensos  procidis  ante  ])edes. 
Agnoscit  Maíris  vultum,  gonibusgue  volutam 

Erigit,  oííicio  fanctus  et  ipse  pio. 
Tu  Dominum  verum,  veram  colit  ille  Parentem: 

Sic  pietas  múnus  praestat  utrinque  suum. 
Excipis  amplexus  viventis  et  oscula  Nati, 

Dulceque  divino  quod  fluit  ore  meios. 
Undique  mira  tuos  absorbent  gaudia  sensus, 

Undique  laelitiae  flumina  larga  fluunt. 
Scilicet  exultas,  animas  quod  tártara  Patrum 

Nigra  Redemptori  restituere  tuo. 
Quod  saevam  extinxit  Nati  mors  hórrida  mortem. 

Et  redijt  miseris  vita  salusque  reis. 
Quod  novus  exurgit  fatis  melioribus  orbis, 

Cunctaque  sunt  miris  jam  reparaía  modis. 
Cum  subit  aeterni  reverentia  summa  Tonantis, 

Quanta  venit  Nato  gloria,  quantus  lionorl 
Hic  tua  distentis  penitus  praecordia  venis 

Laetitiae  norunt  vix  tenuisse  modum. 
Nempe  Dei  summi  summa  est  libi  gloria  cordi, 

Ille  volnptatis  solus  origo  tuae  est.     ' 
Fortunata  Parens,  mérito  te  magnus  Olympus, 

Terraque  curvato  suspicit  ampla  genu. 
Cujus  et  aethereas  domito  serpente  ruinas 

Filius,  et  victa  morte  refecit  humum. 
Haec  jam  veridici  divino  pectore  vatis 

Concinuit  Nato  regia  lingua  tuo. 
Scilicet,  occumbens  infamis  funere  ligni 

Totius  Imperium  Rex  Deus  orbis  babei. 
Foelix  quae  proli  tales  infâmia  honores, 

Talia  quae  Matri  gaudia  poena  dedit. 
Jam  secura  potes  cunctis  gaudere  diebus, 

Viribus  occubuit  mors  spoliata  suis. 
Quo  modo  procubuit  sine  você,  ut  mitis  ad  aram 

Agnus,  et  innocuo  sanguine  tinxit  humum. 
Jam  nunc  rugitu  terrens  Stygia  antra  tremendo 

Surgit,  ut  impavidus  dum  fremit  ore  leo. 
Nuper  ut  imbellis  sine  robore  captus  ab  hoste 

Captivas  dederat  vincula  ia  arcta  manus. 
Nunc  velut  insultans  armato  calce  tvranni 


EM  LOUVOR  DA  VIUGEM  253 

Calcai  Avcrnalis  colla  snperlja  ííigas. 
Hic  est  ill(3  bónus,  cui  (iir|)is  adultera  Joscph 

Casla  furens  caeco  cárcere  membra  ligat. 
Jam  jussu  eductum  magni  stola  byssina  Regis 

Ornat,  et  aeternam  pellit  ab  orbe  famem. 
Abjectum  nuper  jam  tota  ^gyptus  adorat, 

Praedicat,  et  Dominum  terra  polusque  suum. 
Jam  sua  mandabit  pandanlur  ut  liorrea  cunctis 

Gentibus,  aggesías  et  reserabit  opes. 
Jam  venlent  populi  síimulante  cupidine  edendi, 

Undique  frumenti  quos  nova  fama  trabit. 
Ipsi  cliam  fratres,  quorum  livore  peremplus, 

Ut  vivant  buniili  pabula  você  pelunt. 
lUc  ream  oblltus  plácido  spectabilis  ore. 

Distribuit  miserjs  larga  alimenta  manu. 
Provectum  súbito  mirabitur  orbis  lionore, 

Subjicietque  novo  mitia  cola  jugo. 
Submiltcnt  alti  sublimia  sceptra  tyranni. 

Et  ponent  fastus  omnia  regna  suos. 
Soliis  in  immenso  charum  sine  fine  Iriumpbum 

Orl)e  triumphalor  liex  Dominusque  geret. 
Jam  splendent  alti  victricia  sceptra  tropbaei, 

Signa  salutiferac  non  superanda  crucis. 
Vicit  enim  magni  de  sanguine  Natus  Judac 

Ad  praedam  surgens  castra  inimica  leo. 
Dumque  resurgentis  celebi'is  victoria  Nati 

Fuigebit  titiilis  nobilitata  suis: 
Tu  quoquc  magna  Parens  celebrabere,  dulceque  Malris 

Nominc  cum  Nati  nobile  nomen  erit. 
Eia  age,  melliíluis  quoniam  largissima  rivis 

Ilac  tibi  j)iaudenli  gaudia  Ince  íluunt. 
Ó  pia  Inrbatis  moerorcm  mentibus  alruni, 

Assiduae  sordes  quem  peperere,  fuga. 
Jure  quidem  patitur  moeroris  foeda  voluptas 

Damna,  voluptali  est  debita  poena  dolor. 
Sed  qui  crudelem  culpao  sine  crimine  poenam, 

Ceu  latro  cum  sonti  sponle  lalrone  tulit: 
Abluit  insonti  culpam  ])oenamque  cruore, 

Gaudiaque  ablutis  mentibus  alia  dedit. 
Jure  maliis  fateor  vincenti  subditur  Orço, 

Poirexit  vicias  cui  sine  jure  mamis. 
Sed  mortis  victoi-  vicit  quoípn;  ciiniina  morlis, 

PerpeliKie  pariunt  quac  nocnmenla  necis. 
Omniaque  exciusit  dextra  victrice  t.Manni 


254  VERSOS  DO  PADRE  JOSEPH  DE  ANCHIETA 

Arma,  qiiibiis  fretus  funera  saeva  dabat. 
Quas  illi  invictas  vires  pugnator  ademit, 

Contulis  ereptis  ad  fera  bella  reis. 
Jam  jacet  infractus,  populique  adversa  fidelis 

Legitimo  victus  praeíia  Marte  timet. 
Ergo  jiibe  ne  quos  fecit  victoria  Nali 

Victores,  victus  coUa  manusque  liget. 
Ille  resurgit  ovan^  nulla  morituras  in  aevo, 

Nam  sat  pro  culpis  occubuissc  semel. 
Spemquc  resurgendi  cunctis  post  fata  reliqiiil, 

Et  vivit  vita  jam  meliore  Deo. 
Ablaía  est  justis  mortis  formido  perennis, 

Nam  benè  pro  vita  vita  caduca  díitur. 
Hac  ego  ne  priver,  culpae  qui  saepe  ruinis 

Prostratus  suljij  tristia  jura  necis: 
Te  semel,  ò  IMater,  dextram  pracbente  resurgam 

Victm^us  Nato  jam  sino  labe  tuo: 
Saevaque  cum  Domini  pretioso  funere  jungens 

Funera,  viventis  perfruar  ore  Dei. 

De  desíderio,  et  gáudio  Matris  in 

ASCENSIONE  FiLII 

Emicat  alma  dies  divino  iliustris  honore, 

Janua  qua  superi  panditur  ampla  poli. 
Quae  tuus,  ò  Mater,  conscendit  Natus  Oiympum, 

Carneaque  aethereis  invehit  ora  jugis. 
Quis  tua,  quis  sensus;  quis  versat  viscera  motus. 

Dum  se  luminibus  subtraliit  ille  tuis? 
Hinc  desiderium  vehemens  absentia  Nati 

Excitat,  et  médio  pectore  vulnus  alit. 
ília  luo  species  vultus  divina  decori,  ■ 

Ille  animo  occursat  splendidus  oris  honor.  I 

Illi  oculi,  multa  qui  vincunt  sydera  luce, 
i  Unde  suum  coeli  mutuat  aula  jubar.  i 

Illud  inexhausto  repletum  nectarc  guttur,  Jj 

Quaeque  suave  dabat  lingua  benigna  meios:  P 

Cum  tua  mellifiuo  mira  eructantis  ab  ore 

Pendebat  miris  mens  stupefacta  modis. 
Hunc  procul  ab  duci  vehemens  est  angor  amanti. 

Et  tali  Matrem  prole  carere  diu. 
Scilicet  amplexus  dilecti  exopíat,  et  omni 

Tempore  praesentem  cernerc  giiscit  amor. 
Ergo  tuum  reprimet  qui  íluminis  impotus  igneni 


im   LOUVOR   DA   VIHGEM  2i')'6 

Islc  quibiis  Icpeat  fervor  amoris  aqiiis. 
Figis  iii  unanimem  dearaanlia  lumina  Natum, 

Ascensiim  coeli  dum  snper  aslra  parat: 
Dulciaquc  cx  alto  suspiria  pectore  ducens, 

Pulclira  recessiiri  suspicis  ora  gemens. 
Ille  piae  blandis  Matris  praecordia  vcrbis 

Mollit,  et  eloquij  temperai  ora  sui. 
Sed  quo  sermo  flnit  divino  dulcior  ore, 

Saucia  qui  leni  flumine  corda  rigat; 
Hoc  maiora  tuis  serpimt  incendia  venís. 

Flammaque  siint  ílammae  dulcia  verba  tuae 
Atamen  ire  sinis,  desideriumque  Parentis 

In  coelum  Nati  vincit  euntis  honor. 
Taliaque  exmidant  maternis  gaudia  fibris, 

Qualia  quae  santis,  nec  potes  ipsa  loqui. 
Nam  qui  de  Patris  grémio  descendit  in  alvum 

Matris,  et  infernae  venit  in  antra  domus; 
Ilic  subit  ex  imis  Patris  ad  consortia  terris. 

Et  sua  paulisper  subtrahit  ora  tibi. 
Ilic  vir,  hic  est  niveo  quem  foemina  viscere  claudis, 

Ubere  quem  sacro  cândida  Mater  alis. 
Qui  fera  fata  tulit,  divinaque  prorsus  ut  aeger 

Carne  sub  infirma  robora  texit  liomo. 
Hic  idem  ascendit,  quaequc  ilU  sola  dedisti 

Sydereis  infert  cárnea  mcmbra  polis. 
Quodque  diu  clausit  primi  tenebrosa  parentis 

Culpa,  novo  tandem  luminc  pandit  iter: 
Ereptamque  Orei  truculento  è  gutture  praedam 

Inserit  Angelicis  agmina  casta  clioiis: 
Mocnia  disjecta  restaurei  ut  alta  Sionis, 

Cauda  quod  anliqui  diruit  anguis  opus. 
Ipsc  choros  superans  patriae  consortia  dcxtrae 

Appelit,  et  summi  debita  jura  loci; 
Ilegnct  ubi  immenso  cumulatus  honore,  suoque 

Victa  superborum  conleral  ora  pede. 
Viderat  hae  Psaltes,  cum  sacro  (lamine  plcnus 

Falidico  lales  edidit  ore  sonos. 
Dixit,  et  acternac  íirma  est  sententia  mentis, 

Ad  Dominum  Dominus  taba  verJja  meum. 
Altus  in  aeterna  regna  mecum  arce,  mcamquc 

Ad  dextram  aequalis  dariis  honoi'e  sede. 
Donec  victa  tuis  siip|)onani  iiostilia  sccptris 

Agmina,  ceu  prdibus  sírala  scabclla  tuis. 
Proferct  Imperium  sublimi  cx  aice  Sionis 


256  VERSOS  DO  PADRIí:  JOSEPII  de  ANCHIETA 

Virga  poícstatis  per  loca  cuncta  tiiae. 
In  médios  Princeps  dominaberis  inclytus  hostes, 

Ncmo  tiio  nusqiiam  victus  ab  ense  cadit. 
A  te  cunctaruni  manant  primordia  rerum, 

Sumque  tibi  aeqaali  numinc  junctiis  ego. 
Ilac  sancti  aeterno  cmitti  splendorc  videbunt, 

Quo  tua  monstraris  ora  beata  dit. 
Tu  sine  princípio  médio  de  pectore,  et  alto 

Ex  iitero  genuit  te  Deus  ante  jabar. 
Juravit  Dominus,  nec  eum  jurasse  pigebit, 

Nec  poterit  verbi  poenituisse  sui. 
Tu  sine  fme  manes  aeterna  lege,  sacerdos 

Ordine  pacifici  Melcbisedecis  eris. 
Ipse  tibi  á  dextris  Dominus,  tu  regia  franges 

Sceptra,  dies  irae  cum  volet  ampla  tuae. 
Jucidiique  tui  demissis  vultibus  omnes 

Horrendum  gentes  ante  tribunal  erunt. 
Antiquas  totó  reparabis  in  orbe  ruinas, 

Multorum  in  terra  communiesque  caput. 
Torrentes  ávido  potabis  gutture  lymplias, 

Calce  terea  arctam  dum  properante  viam. 
Nobilis  id  circo  super  alta  cacumina  coeli 

Divinum  tolles  Rex  Dominusque  caput. 
Haec,  generosa  Parens,  magni  sacra  lingua  Proplietae 

Dixit,  opus  Nali  vaíicinata  tui. 
Cujus  ad  aspectum  cupide  licet  igne  ílagranti 

Pectoris  aspires  uon  patiente  moras;' 
Laeta  tamen  remanes  placidis  fotura  sub  alis 

Pignora  delicijs  lactis  alenda  tuis. 
Scilicet  aspicient  vultum  Genitricis  alumnum, 

Quae  colere  incepit  turma  sacrata  Me: 
Insolitumque  tui  reverebitur  oris  honorem, 

Et  tantumx  fidei  luce  micabit  opus. 
Quaque  Deum  mundo  peperisti,  ut  mortis  iniquae 

ímpia  deleret  funere  jura  suo: 
Nunc  quoque  viventi  paries  sacra  pignora  Nato, 

Exulat  à  vultu  dum  tua  vita  Dei. 
Plurimaque  advenient  ad  veram  concita  vitam 

Agmina,  vivorum  tu  pia  Mater  eris. 
Sic  amor,  et  pietas  pacato  augescet  in  orbe, 

Et  Domini  crescet  gloria,  crescet  honos. 
Ne  tamen  abscedens  dilectae  dulcia  Matris 

Liquerit  omninò  Filius,  ora  pius: 
lUe  vehit  secum  Matris  super  aetliera  mentem: 


VM  LOUVOU  DA   VIUOEM  2a7 

Est  ariimi  reqiiies  scilicct  illo  lui. 
Ta  rcliiiens  Nalum  cordis  pcnctralibus  abdis; 

llic  lucus  est  illi  diílcis  et  alta  quics. 
Sic  abiens  remanet  praeseiis  in  pectore  Matris, 

Sic  is,  cum  diílci  tu  quoque  Prole  inanes. 
Posce  precor  sursum  diílcis  mea  raptet  Jesus 

Pectora,  dum  carnis  me  remoraíur  ónus. 
Fac  DoraÍQum  médio  conclavi  cordis  amatum 

Complectar,  coeli  dum  super  alta  sedet. 
Te  quoque,  dum  longi  Natas  mihi  tarda  relicto 

Prorogat  auxilij  têmpora,  iMater,  amem. 
Forsitan  mdignum  placidis  spectabis  ocellis: 

Sic  pietas  Matris  major  amantis  erit. 
Allectumque  trahes  operum  splcndore  tuorum: 

Foelix  si  Matris  chartis  alumnus  ego. 
Foelix  pro  dulci  si  das  milii  Prole  subire 

Pectore  sanguineam  non  trepidante  necem. 

De  Spiritu  saxcto 

Jam  super  aethereas  Dominas  consccnderat  arces, 

Victor  ab  infernis  ampla  trophaea  ferens: 
Ad  dextram([ue  Patris  sólio  sublimis  in  alto 

Sub  stratum  mundi  despiciebat  opus. 
Praecipuè  Solymam  defixus  lamina  in  urbem, 

Tecta  Sionae  spectat,  arnica  domus;     • 
Cactus  ubi  tecum,  Mater  dignissima,  Fratuni 

Degit,  et  assíduas  fundit  ad  astra  preces; 
Flagrantemque  alto  suspensus  ab  aethero  mentem, 

Expectat  Domini  grandia  dona  sui. 
Jamipie  aderat  decimas,  postqaam  penetrarat  Olympum 

Pontiíicis  siimmi  splendida  Ibi-ma   dies: 
Cum  Pater  omnipotens  divinam,  et  Filias,  aaram 

Aspirant  superi  de  regione  Poli. 
Utque  ruens  denso  quatit  impetuosas  ab  axe 

Alta  repctino  tarbinc  tecla  notas: 
Mocnia  sic  tonilru  terrens  excelsa  tremendo 

Irruit  à  summo  Spiritas  ore  Patris: 
ímplevitque  sacram  divinis  ílatiijas  aedem, 

Oua  sacer  ille  clioras,  taqae  beala  sedes. 
Flamma  simul  crebris  vibranti  lamine  linguis 

Aítliereo  exurens  coida  caloi-e  mical. 
Incalvere  aiiimi,  serpil  divinas  in  altis 

Visceribus  íibi'as  [tertoris  Ignis  edcns. 

VOL.    !l  17 


258  VERSOS  DO  PADRE  JOSEPH  DE  ANCHIETA 

Vix  capiunt  tantos  flammantia  pectora  motus, 

Intima  dum  penetrat  Spirilus  ora  ruens. 
Erumpunt  adytis  siibitó,  linguisque  profantur 

Omnibns  aeterni  faeta  stiipenda  Dei. 
At  tua  quis  capiat  quod  pectora  ílumen  inundet, 

Quae  repleat  mentem  gratia,  Virgo,  tuam? 
Sed  te  quae  repleat  divino  numine  plenam, 

Alma  Parens,  meritis  gratia  adaucta  tuis? 
In  tua  se  nondum  concluscrat  author  Olympi, 

Vera  Patris  soboles,  viscera  factos  Iiomo: 
Et  jam  divinus  mentis  possessor,  et  autlior 

Spiritus  implerat  grandia  tecta  tuae. 
Quid  non  adducit,  tbalami  ciim  clausíra  pudici 

Implevit  sumens  cárnea  membra  Deus? 
Ergo  quid  accipias,  cum  sis  plenissima?  namque 

Undique  vas  plenum  plenius  esse  nequit. 
Sed  tibi  plena  satis  cumulo  repleris  amoris, 

Ut  per  te  nobis  det  sua  dona  Deus: 
Quaeque  tibi  superest,  in  nos  divina  redundet 
"  Per  Matrem  Natis  gratia  danda  tuis. 
Spiritus  ergo  borms  per  te  suae  praestet  egenis 

Munera,  dum  tali  você  prccamur  opem. 
Spiritus  alme  veni,  coelique  elapsus  ab  arce 

Mitte  bónus  lucis  lumina  clara  tuae. 
Huc  ades,  ó  inopum  Pater  optime,  cujus  egenis 

Natorum  ornari  nomine  praeslat  amor.   . 
Huc,  ades,  aethereis  cumulas  qui  pectora  donis, 

Cordis  inextinctum  lúmen,  et  ignis  edax. 
Huc  ânimos  miti  recreans  solamine,  mentis 

Dulce  refrigerium,  dulcis  et  hospes,  ades. 
Tu  bona  temperies  saevo  ferventis  in  aestu   . 

Solis,  et  in  duro  grata  labore  quies. 
Dulcia  pro  fletu  solatia  reddis  acerbo, 
^  Tristia  ab  afflicto  nubila  corde  lugans. 
Ó  lux  alma,  tuos  ruliío  splendore  fideles 

Illustra,  ex  auimis  nubila  densa  fugans. 
Te  sine  nil  pulchrum,  niliil  est  sine  labe,  tuoque. 

Si  quid  babet  vitae,  numine  vivit  Iiomo. 
Ablue  continuis  sordentia  pectora  culpis, 

Aridaque  effusis  imbribus  ora  riges. 
Vulnera  percussae  sana  lethalia  mentis, 

Flecteque  duritia  quae  malé  colla  rigent. 
Divino  refove  frigentia  corda  calore, 

Obliquum  errantis  dirige  mentis  iler. 


KM  LOlVOa  DA  VIRGEM  2o0 

Da  soplenna  tiiis,  quorum  es  spcs  única,  servis 

Dona,  quibus  sanctum  viscera  Flamen  aiis. 
Da  tibi  quae  placcat  virtutem,  ac  íine  beato 

Gaudcrc,  aeterua  laetitiaque  frui. 
Ilac  tu,  dum  sanctus  pulsatur  você  gemenlum 

Spiritus,  aíllicíos  respice  Mater  amans: 
Teque  precante  tuis  divini  donet  amoris 

Divitias  famulis  dextera  larga  Dei. 
Quaeque  semei  dederit,  longum  conservei  in  aeuum; 

Et  nullo  noster  lempore  cesset  amor. 

De  tp.ansitu  Beat.e  Marl*: 

Clarior  Eois  effulget  splendor  ab  oris: 

Pulchrior  haec  rutilis  initet  hora  comis, 
Hunc  fermosa  Parens  Solis  rota  clara  micanlis 

Axe  libi  revehit  splendiore  diem. 
Ilaec  tibi  syderei  jani  limina  pandit  Olympi, 

Per  te  quae  miseris  jam  patuere  reis. 
Regia  te  ínvilat  tuus  ad  convivia  Natus, 

Flumina  ubi  lactis,  flumina  mellis  eunt. 
Te  vocat  ad  patriam  coeli,  libi  debita  regna, 

Finit  et  exilij  têmpora  longa  tui. 
lUe  abijt  vida  formosus  in  aetliei-a  morte, 

Imperiumque  Pauis  victor  in  arce  tenet. 
Tu  Mater  nostris  remoraris  provida  rebus, 

Exerccsque  piae  dulce  Parentis  opus. 
Pascis  adliuc  teneros  jucundo  nectare  natos. 

Ora  carent  solidis  donec  inepta  cibis. 
Dum  tua  crèdentes  populos  praesentia  firmai, 

Crescit  in  ignitis  cordíbus  aucta  íides 
Christiadum  celeber  tua  currit  ad  ostia  caetus, 

Quos  tua  pellectos  undique  fama  trahil. 
Miranlur  sacrae  divinum  frontis  honorem, 

Quodquc  tua  aetbereum  possidet  ora  decus. 
Vix  explerc  queunt  ânimos  oculosque,  tuendo 

Lumina  solari  lucidiora  face. 
Vix  humana  tui  majestas  praedicat  oris 

Quis  fuerit  venliis  fructus  lionorque  tui. 
Et  nisi  jam  noscat  Dominum  sacra  turba  Deumque, 

Tc  veri  numen  ci'edat  liabere  Dei. 
Tanta  tuo  virtus  divino  elíulgel  in  ore,    * 

Tantus  honor  vitae,  gloria  tanta  tiiae.     ' 
Foeliccm  dirunt,  omniquo  cx  parle  bealam, 


2G0  w.RSOS  DO  PAonE  josiipn  de  Anchieta 

Cui  sacra  virginitas,  gloria  Matris  adest. 
Et  te  foelices  coram  divina  videre 

Lumina  Reginae  qui  meruere  siiae. 
Verba  qiiibus  licuit  coelcstis  diílcia  liiiguae 

Audire,  et  sacrum  Matris  ab  ore  meios. 
Quis  tibi,  quis  seiísjs,  cum  Nati  numeii  adorans 

Coníluit  ad  portas  plebs  numerosa  tuas? 
Quae  pedibus  calcans  simulacbra  obscoena  deorum 

Ante  tues  humili  procidit  ore  pedes? 
Crescit  honor  Nati,  crescunt  tibi  gaudia  mentis: 

Hic  est  laetitiae  fons  et  origo  tuae. 
Dum  te  terra  procul  coeii  remoratur  ab  aula, 

Quae  tibi  servata  est  debita  jure  domus: 
Aut  raperis  sursum,  superisque  immista  quiescis, 

Divinoque  ignis  pascitur  igne  tuus: 
Aut  trahis  è  coelo  materni  cordis  amorem, 

Inque  tuo  Natum  pectore  voluis  amans. 
Nunc  animo  versas  foelicia  têmpora,  menses 

Cum  tua  conceptum  condidit  aula  novem. 
Nunc  recolis  sacri  laetissima  têmpora  partus, 

Exivit  claustri  cum  síne  labe  tui: 
Virgineoque  infans  exuxit  ab  ubere  néctar, 

Libasti  et  roseis  oscula  blanda  genis. 
Interdum  sequeris  lassi  vestigia  Nati, 

Dum  lacerum  humeris  praegave  portat  ónus. 
Jam  repetis  fusum  teuera  de  carne  cruorem, 

Octavo  cultrum  cum  tulit  aegra  die: 
Et  tua  manarunt  laclirymaruni  lumina  rivos, 

Yagilus  querulo  cum  darct  ore  Puer. 
Jam  subeunt  menti,  quae  munera  praestiíit  agris, 

IMunera  funestis  invidiosa  viris. 
Jam  juvat  amplecti  conspersum  sanguine  lignum, 

Unde  Deus  moriens,  unde  pependit  homo. 
Quo  virtus  lassa  est,  extinctaque  vita,  saíusque 

Languit,  et  vicírix  mors  superata  fuit. 
Jam  repetis  tunmlum,  sanctumque  amplexa  cadáver, 

Solvitur  in  lachrymas  mens  liquefacta  pias. 
llaec  desíderio  dulcis  meditaris  Jesu, 

Si  qua  animi  fiammam  temperet  unda  tui. 
Acrius  illa  tamen  suffusa  accenditur  unda, 

Quemque  foyes  semper  foríius  urit  amor. 
Ilaeret  adhuc  oculis  Nati  ascendentis  imago, 

Qui  secum  mentem  vexit  in  astra  tuam. 
lllius  nmplexus,  divinaque  postulat  ora, 


EM  LOUVOr.  DA  VII5GEM  2G! 

Quac  nisi  non  aliiid  novit  amare  Deum. 
Cr,el)raqiin  posl  dulccm  mittit  suspiria  Natiini} 

Oiialiaqno  ò  médio  peclore  promit  amor. 
Qualis,  iibi  venis  penetral)ilis  liaesit  arundo, 

Fhimineas  cerviis  faiiciíis  optat  aqiias: 
Tal  is  incxhaustas,  Deus  alme,  aspirai  ad  undas 

Mens  mea,  qiiam  crudo  vulnere  loesit  amor. 
Quando  erit  ut  carnis  vinclis  ac  mole  solutus 

Ante  sui  venial  spiritus  ora  Dei? 
Luce  madent  lachrymis  mea  lumina  nocte: 

Isle  rneo  sempcr  volvi lur  ore  cibus: 
Dum  mea  mens  crebro  quem  diligit  aegra  requirens 

Dicil,  Ubi  est  vitae  luxque  Deusque  meae? 
Quam  formosa  diu  condit  mihi  Filius  ora! 

Quam  procul  aufugit  Malris  ab  ore  suaef 
Haec  ego  dum  crebris  medilor  singultibus  absens. 

Deficit,  et  nimio  languet  amore  sinus. 
IIuc  ades,  ò  Fili,  lua  te  suspirai,  el  orat 

Mater,  in  aetliereos  egrcdiamur  agros. 
Sydereos  lecum  cupio  simul  ire  per  bortos, 

Et  trahere  ae ternas  le  remorante  moras. 
Te  sitil  iiic  animus,  te  mens  liaec  esurit  aegra, 

Te  cupit  intuilu  liberiore  frui. 
Surge  age,  nec  charae  difter  medicamina  Malri 

Vulnus  alo  venis,  nec  palienter  amo. 
Tc  sine  nec  vivo,  nec  te  sine,  Nale,  quicsco; 

IIuc  ades,  ò  i\Ialris  vila  quiesque  tuae. 
Pande  tuam  faciem,  divinaijue  lumina  tandem 

Detege  luminibus  conspicienda  méis. 
Talia  dum  jactas  coeliim  suspiria  in  allnm, 

Ultima  ut  exilij  luceat  bora  lui: 
Blanda  pium  Natum  pietas,  amor  urgel  amantem: 

Frangilur,  et  Malris  viclus  amore  venit. 
Siste  pios  gemilus,  lacbrymas  abslergc  fluentes. 

Ultima  per  róseas  baec  íluat  unda  genas. 
Ecc^,  tui  .lesus,  el  ílamma,  et  flumen  amoris, 

Erce  venit  flelus  causa  modusque  tui: 
Inque  tuam  septus  lurmis  coelestibus  aediun 

Intrat,  et  bos  dnlci  dal  libi  você  sonos. 
En  tibi,  quem  quaeris  tam  longis  queslibus,  adsum. 

Et  Deus,  et  vilae  vita  ])eata  tuae. 
Rumpe  columba  moras  levibus  pulclieri-ima  pennis, 

Nata  Patri,  Nato  Mater  arnica  veni. 
IníiMc  méis  landcm  recuba  íbeliciler  ulnis, 


262  VERSOS  DO  PADRE  JOSEPII  DE  ANCíIlETA 

Ilic  locus  est  ulnac  quem  meriiere  tiiac. 
Tristis  hyems  abijt,  venerunt  florida  veris  , 

Têmpora,  purpureis  deliciosa  rosis. 
Hac  tibi  lux  tandem  transacta  nocte  perennis 

Luxit,  et  aeterno  clarus  honore  dies. 
Rumpe  moras,  veri  Mater  cape  gaudia  Nati, 

Inque  sinu  Patris  nata  recumbe  tui. 
Quis  capiat,  Virgo,  Dominum  dum  cernis,  et  audis, 

Quae  fuerit  mentis  gloria  luxque  tuae? 
En  venio,  dulci  respondes  você,  Deumque 

Mens  tua  corpórea  libera  m.ole  petit. 
Inque  tui  recubat  Nati  sopita  lacertis, 

Dulcis  et  irrepsit  per  sacra  membra  sopor. 
Et  moreris  vitae.  Mater,  mortisque  subactrix 

Cogeris  humana  conditione  mori. 
Sed  dolor  omnis  abest,  et  sensus  mortis,  ut  omnis 

Abfuit  à  partu  visque  dolorque  tuo. 
Virgineum  nitido  servatur  mármore  corpus, 

Et  níveus  condit  cândida  membra  lápis. 
Turba  frequens  Patrum  sanctum  comitata  cadáver 

Astat  in  exéquias  oííl ciosa  pias. 
Pro  lachrymis  flores,  pco  tristi  carmina  planctu 

Fundit,  et  bos  laeto  concinit  ore  modos. 
Salve  saucta  Dei  genitrix,  Regina  triumphans 

iEtheris,  aeternae  nobile  mentis  opus. 
Quod  Pater  ex  útero,  medioque  è  pectore  Verbum 

Flammiferum  solus  protulit  ante  jubar: 
Hoc  sola  intacto  tu  Mater  ventre  tulisti. 

Dura  médium  tacite  nox  peragebac  iter. 
Aula  poli  Mater,  divini  foederis  arca, 

Quae  miseros  miti  pectore  condis,  Ave. 
Tu  basis  es,  sanctum  quae  fulcis  áurea  Templum, 

Robur,  et  aetherea  flrma  columna  domus. 
Quae  mens  cumque  tuae  virtuti  innititur,  hostes 

Yincit,  et  immoto  stat  bene  firma  gradu. 
Nata  tuum  pariens  intacto  ventre  Parentem, 

Splendida  Yirginei  forma  pudoris.  Ave. 
Virgíneo  nemo  tibi,  Virgo,  suasit  honorem 

Dehcijs  moesti  praeposuisse  tori. 
Sed  tu  virtutum  doctrix,  dux  óptima  vita  est, 

Et  sequitur  gressus  foemina,  virque  tuos, 
Janua  clausa  Poli,  soli  via  pervia  Regi, 

Quae  coeli  nobis  ostia  pandis,  Ave. 
•Per  te  crudelis  miseri  servamur  ab  Orço, 


EM  LOUVOR  DA  VIRGEM  ^^ 

Redditur  et  saluus,  qui  fuit  ante  réus. 
Natoriimque  Dei  pulchro  laetamur  honore, 

Hoc  domi,  hoc  nobis  dat  tua  vita  decus. 
Flamma  corusca  Poli  splendorem  Solis  obumbrans, 

Tristia  quac  pellis  iiubila  cordis,  Ave. 
Jam  tua  sydereos  caetus,  et  caetera  vincit 

Gloria,  quain  radians  astro  minora  jubar. 
Laudibus  ut  Matris  funus  maioribus  ornent, 

Omnia  sunt  meritis  inferiora  tuis, 
Cur  tamen  angusto  remoratur  corpus  in  antro? 

Ampla  qiiid  in  saxo  clauditar  aula  brevi? 
Surge  Dei  templum,  totó  domus  amplior  orbe: 

Non  bene  lata  brevi  conditur  aethra  loco. 
Non  decet  ut  viles  rodant  puríssima  vermes 

Viscera,  factorem  quae  genuere  suum. 
Nfjn  decet  ut  putri  tabescat  pulvere  corpus, 

Corpus  honcstatis  forma,  pudoris  honor. 
Tártara  qui  pedibus  calcans  post  funera  victor 

Vivit,  et  infregit  jura  severa  necis. 
Hic  te  de  tumulo  divina  luce  coruscam 

Suscitai,  inque  ulnis  tollit  ad  astra  suis. 
De  mihi  te  levibus,  pulcherrima,  prosequar  alis, 

Sydereae  penetras  dum  loca  summa  domus. 
Ó  utinam  semper  mea  mens  tibi  serviat  uni, 

Perpetuusqiie  tui  me  remuretur  amor! 

De  Exaltatione  r.LORios.i:  Virgims  Mari  e  super  omnes 

CHOROS  AnCELORUM 

Jam  super  excelsi  radiosa  cacumina  Olympi 

Tolleris,  ô  Yirgo  Mater,  et  alma  Dei. 
Jam  super  Angélicas,  assumeris  inclyta  sedes, 

Accipis  et  pi'iinum  gloriíicata  locum. 
Sydera  resplendent,  spatiosiis  panditur  aethcr, 

Agmina  concedunt  inferiora  tibi: 
Et  merilae  reddunt  subeunti  munera  landis, 

Taliaqiie  ingenti  carmina  você  canunt. 
Salve  Yirgo  Parens  Domini  digníssima  nostri: 

Ó  Dominae,  ó  nostri  gloria  prima  chori. 
Qui  vastum  mundi  pugno  rom[)l('ctil!ir  orbem, 

Visceribus  clausit  se,  bencdicla,  luís. 
ília  suo  nostras  reparavit  funcre  sedes, 

Refecitque,  draco  quod  laceravit  opns. 
Eriíit,  in  tenebris  qnos  Tnrfaius  abdidit  imis. 


2C4  VERSOS  DO  PADRIi  JOSEPH  Dl;:  AXCIIIETA 

HuraanamquG  sibi  jiinxit  amoro  genus. 
Salve  itcrum  nosíri  castíssima  ]Mat(3r  .Tnsii, 

Ó  (lecus,  ò  splendor,  delicininqnc  l\)!i. 
Has  tibi  dnni  resonant  dulci  modulaminc  landes, 

Ultorius  tcndis  tu  spcciosa  gradam. 
Virtutes  Dominam  sursum  vcncrantiir  euntcm, 

PerquG  Potestates  fit  via  lata  tibi. 
Te  sanctum  aeterni  tíialamimifiiic  íiironumque  Parentis 

]\íagniricant,  laudant,  gloriíicantque  Throni. 
Quam"  sibi  delegit  Patris  Sapicntia  sedem 

Imiumeris  Clierubim  laii(lil)us  accumiilant. 
Ardorem  nimij  Seraphim  mirantur  amoris, 

Quo  repleta  tibi  pectora  saneia  ílagrant: 
CiiJLis  adusta  tibi  liquefiant  viscera  ílammis, 

Ignis  iit  admoío  cera  calore  flnit. 
Corporis  integritas  nivei  sine  labe  piidoris, 

Et  mens,  virtuíum  qiiam  replet  omne  genus; 
Reginam  superam  te  constitucre  Polorum, 

Cuncta  tibi  ut  flecíat  coelica  turba  genu. 
Qui  te  veridici  post  têmpora  longa  Propbetae 

Viscere  clausuram  praecinuere  Deum; 
Jam  te  divinis  regnantem  laudibus  ornant, 

Es  cum  Prole  canunt  te  sine  fine  tua. 
Turba  Ducum  ac  Regum,  soniorumquc  iuclyta  Palrum, 

Imperiale  tibi  ducitur  unde  genus, 
Te  colit,  et  magni  titubs  exaltai  bonoris, 

Te  Matrem  Domini  progenuisse  sai. 
Subdit  Apostoíicus  tibi  se,  pulcherrima,  caetus, 

Et  pleno  laudes  iníonat  ore  tuas. 
Quique  suas  Agni  lavere  in  sanguine  vestes, 

Martyrij  exornat  quos  rubicundas  lionor: 
Cândida  purpureis  incincti  têmpora  sertis, 

Ante  tuos  gaudent  procubuisse  pedes. 
Cujus  ope  adjuti  tantos  meruere  triumpbos. 

Hórrida  vicerunt  praelia  cujus  ope. 
Sacra  Sacerdotum  Coníessorumque  caterva 

Lumine  lata  tuo  te  veneratur  amans. 
Dulcia  Yirgineae  modulantur  jubila  turmae. 

Laetitiaque  hymnos  liberiore  canunt. 
Victrices  pulchfo  tibi  tendunt  ordine  palmas, 

Reginam  et  gaudent  ante  ferendo  suam. 
Tu  specie  intemerata  tua  pulcberrima  Kegis 

Filia,  fers  pulcbros  prospere  ad  alta  gradus : 
Regnandum  ut  capias  justo  moderamine  coelum, 


EM   LOUVOR   DA   VIRGEM  265 

Sccptra  gorons  miti  saeciila  aincta  manu. 
Et  tanto  Ari![íelicis  sedeas  siipercdita  turmis. 

Quanto  ilHs  nomen  dignius  alta  geres. 
Illi  obcimt  etenim  Domini  mandata  ministri, 

Tu  Mater  magni  dicerfs  esque  Dei. 
Innumerae  pergimt  post  te,  inviolata,  puellae, 

Pectora  portantes  Principis  ante  thronum. 
Quas  sibi  perpetuo  divini  Natus  anioris 

Conjunxit  sponsas  foedere,  Virgo,  tuus. 
Ipsa  sed  ante  omnes  super  exaltata  beatè 

Ante  thronum  Triadis  praemia  digna  capis. 
Omnipotcns  Natam  placidis  amplectitur  ulnis 

Lumine  circundans  splendidiore  Pater: 
Et  tibi  pius  cunctis  coelestia  muiíera  donat, 

Mensura  ut  laudis  sit  prope  nulla  tuae. 
Nempe  (minor  qiiamvis  tua  sit)  tamen  ista  superno  est 

Cum  Paire  communis  gloria,  Virgo,  tibi. 
Quod  tuus  est  Natus  superi  Patris  única  proles, 

Estque  idem  Natus,  qui  tuus  ipse,  Patris. 
Filius  insigni  vestit  virtute  Parentem, 

Et  sedem  juxta  te  jubet  esse  suam. 
Cujus  in  aspectu  regali  splendida  cultu 

Virginis  effulgot  gloria,  "vlatris  lionos. 
Ipse  amplum  vasti  Sol  verus  temperat  orbis, 

Justitiae  claro  lumine  cinctus,  opus. 
Ipsa  velut  plenac  fácies  perfecta  Dianae 

In  celso  resides  nobilitata  throno: 
Regius  ut  cecinit  divino  carmino  Psaltes, 

Ante  tuum  clamans  saecula  multa  decus: 
jEternumque  manes  testis  super  aslra  fidelis, 

Quod  carnem  ex  útero  sumpserit  ipse  tuo. 
Ut  carne  aeterno  raperet  de  funerc  carnem, 

Donaretque  liomini  sydera  verus  homo. 
Tequc  creaturis  praeponeret  omnibus  unam, 

Imperiuni  et  Matri  traderet  omne  suac. 
Spiritus  oximio  te  incendit  sanctus  amore, 

Providit  Sponsam  quam  sine  labe  sibi. 
Cujus  amplexu  tu  strictius  omnibus  haeres 

Dum  frueris  vultu  deliciosa  Dei. 
Malorum  pulchri  te  stipant  undique  fruclus. 

Et  fulciurit  rubris  languida  amore  rosis 
Virlutum  cultu  llorens,  el  amabilis  omni 

Pingeris,  el  varijs  dotibus  aucta  nites. 
Jam  geris  aeternum,  coeli  Regina,  triumphum, 


366  VERSOS  DO  PADRE  JOSEPH  DE  ANCHIETA 

Regale  in  pulchris  et  diadema  comis. 
Terra,  maré,  et  magni  servit  tibi  regia  coeli, 

Paret  et  ad  niitum  macliina  tota  tibi. 
Tgnivomi  rutilo  vestris  solis  amictii, 

Sternitur  et  pedibus  lúcida  luna  tiiis. 
Bissinae  exornant  stella  radiante  capillos 

Luce,  corona  tuum  nam  decet  ista  caput. 
Quae  superas  ©mnes  multo  santíssima  sanctos, 

Vincis  et  angélicos  purior  ipsa  choros : 
Post  vários  sancta  requiescis  in  urbe  labores, 

Coelestemque  rcgis  sanctificata  domum. 
Electo  in  populo  divinae  munere  dextrae 

Consita  radices  altior  arbor  agis. 
Estque  aeterna  tibi  summa  cum  pace  potestas 

Moenia  qua  Solymae  religiosa  nitent, 
Et  velut  in  Libani  procera  cacumina  cedrus 

Tollit  odori feris  sidera  ad  alta  jugis: 
Sic  tuus  ambrosios  late  diífundil  odores 

In  nivea  coeli  candidus  arce  pudor. 
Surgit  ut  in  celso  cypressus  monte  Sionis, 

Sic  tibi  sublimem  suspicit  alta  Sion, 
Et  summae  immensam  speculans  deitatis  abyssum 

Clara  vides  cunctis  clarius  ora  Dei. 
Ut  nocte  irradiat  transacta  lucifer  orbem, 

Sic  tuus  aethereo  splendor  in  axe  micat: 
Diffundisque  Polo  rádios,  et  clarius  aula 

Coelestis  rutilat  lampadis  igne  tuae. 
Virgíneas  ducis  per  Olympica  templa  choreas, 

Utque  satae  redoles  in  Jerichuníe  rosae . 
Ut  crocus,  et  nardus  fragans,  ut  spirat  amomum, 

Balsamaque,  et  cálido  thura  cremata  foco: 
Sic  tua  divinis  unguenta  flagrantia  ílammis; 

Sidereae  replent  urbis  odore  vias. 
Distillant  mirrhae  tua  vestimenta  liquorem, 

Qui  non  corrumpi  pecíora  nostra  sinit. 
Cuncta  fluunt  late  de  te  pigmenta,  tuique 

Virginei  Coelum  recreat  oris  odor. 
Ut  viror  eíTulget  speciosae  gratus  olivae, 

Quae  gravida  in  latis  brachia  jactat  agris : 
Datque  olei  pingues  blandis  foecunda  liquores, 

Quod  tactu  sanat  languida  membra  suo: 
Sic  tu  pulcbra  nimis  coelestibus  Ínsita  campis 

Fertilis  aeterno  planta  virore  nites: 
Maternaeque  oleum  fundens  pietatis  abunde 


il 


EM   LOUVOR   DA  VIUGEM  267 

Mortiferis  curas  saneia  corda  malis: 
Mollificoque  ungis  faetentes  ungnine  plagas, 

Et  medica  sanas  ulcera  tacta  manu. 
Jure  petunt  omnes  à  te,  pia  Virgo,  salutem, 

Quae  cunctis  omni  es  tempore  certa  salus. 
Jure  tibi  gemitus,  lachrymasque  effundimus  omnes, 

Omnes  materna  cum  tuearis  ope. 
Funde,  precor,  nobis  coeli,  mitissima,  rorem, 

Et  largo  steriles  de  super  imbre  ríga. 
Quae  satã  perpetuac  juxta  torrentia  vitae. 

Flumina,  divinis  usque  virescis  aquis. 
Qualis  ad  undantis  decursus  confita  riví: 

Stat  platanuSj  densis  luxuriansque  comis: 
Tu  veniam  culpis  pieíate  referta  precaris, 

Et  relevas  nocuos,  quos  mala  multa  gravant:; 
Et  tua  divinas  clemeníia  mitigat  iras, 

Subque  alis  míseros  occulit  aequa  reos: 
Luminaque  abstergis  lachrymis  sordentia  moestis, 

Solamen  duris  dasquè  benigna  malis: 
Tu  nos  ad  coelum  directo  tramite  ducens 

Dirigis,  et  prava  non  sinis  ire  via. 
Per  tua  qui  intrépidos  íigit  vestigia  gressus, 

Amplectens  vitae  facta  decora  tuae: 
Hic  palmam  laudis  victo  feret  boste  triumplians 

Perpetuae,  et  veras  pacis  liabebit  opes. 
Per  te  tartareis  Cacodemonis  aegra  caminis 

Ira  suis  penitus  viiibus  orba  jacet. 
Qui  quondam  bumanae  possessor  mentis  iniquus 

Regnabat  cunctis  imperiosus  equis: 
Caecaque  multipliri  coiivoluens  pectora  gyro 

Reddebat  Stygijs  libera  corda  malis: 
Tu  saevum  expugiias  cquitem,  nimiumque  furentes 

In  nigra  praecipites  tártara  trudis  equos: 
Virgineoque  teris  íaliacom  calce  colubrum, 

Keddis  et  á  Stygijs  libera  corda  malis. 
Quae  totum  immani  rugi  tu  circuil  orbem, 

Comprimitur  pedibus  bestia  saeva  tuis. 
Et  ne  sanguineis  miseiiun  terat  Ímproba  malis, 

Sorbeat  et  vasto  ventre  cruenta  pecus. 
Tu  vírtute  tui  nitens  fortíssima  Nali 

Bella  patrúm  fortes  ut  tueare  geris. 
Et  praedam  excutiens  conlringis  more  molares, 

Gutturaque  elidis  sanguinolenta  ferae: 
Victriccmque  refers  pugnatrix  inciyla  palmam.  '•• 


268  VERSOS  DO  PADRE  JOSEPII  DE  ANCHIETA 

vElliereae  pandis  estia  lata  domus. 
Quin  eliam,  ut  siimmo  íiat  via  lil)era  coelo, 

Ipsa  pates  famulis  ampla  fenestra  tuis. 
Omnia  qui  mortem  perimentem  morte  peremit 

Victor,  et  infernas  dilaceravit  opes. 
Hic  tibi  dat  regnum  qiià  coeli  amplíssima  moles. 

Máxima  qiià  tellus  aequora  vasta  patent. 
Hic  tibi  taríareas  dat  conculcare  catervas 

Victore,  et  moríis  colla  snperba,  pede. 
Ó  foelix  tua  sors,  ó  foelicissima  vita 

Corporis,  atqiie  animac  gratia  tanta  tuae. 
Ó  foelicem  istum,  quo  te  Rex  gloria  Jesus 

Ad  dextram  in  supero  collocat  orbe,  diem. 
Divina  resonat  coeii  tibi  Cúria  laudes, 

Mellifluumque  uno  concinit  ore  meios. 
Tota  tuo  exultans  tellus  gratatur  honori, 

Quaque  potest  pangit  carmina  você  tibi. 
Nos  quoque  te  Dominam  coeli  super  alta  sedenlem 

Laudamus  servi  pectore  et  ore  tui. 
Laetamur  Matrcm  te  praemisisse  benignam, 

Quae  nostris  fauírix  provida  rebus  cris. 
Quaeque  recepisíi  scandens  sublimis  ín  altum, 

Quae  divina  tibi  dextera  dona  dedit: 
Haec  pia  distribuas  nobis,  et  semper  habebis 

Munera,  quae  pueris  des  pretiosa  tuis. 
Gaudemus,  quoniam  speramus  posse  remitti 

Ó  clemens  per  te.  debita  nostra.Parcns. 
Gaudemus,  quoniam  nostrae  turpissima  vitae 

Crimina  nunc  meritis  sunt  abolenda  tuis. 
Gaudemus,  quoniam  nescit  tua  gloria  linem. 

Gloria  virtuli  debita  prima  tuae. 
Jam  Regina  tenes  dextram,  dulcique  quiescis 

Amplexu  Nati  colloquioque  fruens: 
Exultasque  modis  miris,  mensuraque  amoris 

Ista  tui  nullum  novií  babere  modum. 
Quò  magis  Authori  grata  est  tua  forma  supremo, 

Quò  magis  artificem  diligis  ipsa  tuum: 
Hoc  te,  Virgo,  magis  colimus,  veneramur,  amamus. 

Et  per  te  cupimus  posse  pi  acere  Deo. 
De  mi-dioque  altum  laudamus  pectore  Pairem, 

Laetaque  carminibus  solvimus  ora  novis. 
Quòd  talem  fmxit,  talem  te  fecit,  ut  olira 

Nec  simibs  fuerií,  sit  vè  futura  tibi. 
Ergo  prccare  tuum,  cbarissima  Filia  Patrem, 


EM  LOUVOU    DA  VIItUEM  26í) 

Namquc  dabii,  Natae  quae  volet  ipsa  suae. 
Ergo  precaro  tuimi.  Mater  mitissiiiia,  Natum 

Namque  dabit  Malri  quae  volet  ipsa  suae. 
Ergo  precare  tuum,  Yirgo  puichei'iima,  Sponsum, 

Namque  dabit  Sponsae  quae  volet  ipsa  suae. 
Posce,  feres  quaccumque  voles,  riiliil  ille  negabit, 

Cum  dederit  veiitri  se  manibusque  tuis. 
Cuncta  Pater  Nato,  Natus  dedit  omnia  Matri 

Virgínea  miseris  distribuenda  manu. 
Effice  jam  septem  repleri  pectora  donis 

Nostra,  quibus  mentis  Spiritus  intus  alit. 
ToUe,  precor,  sursum  nos  trás  de  pulvere  mentes, 

Ut  cupiant  superi  gaudia  vera  Poli. 
Fac  desidcrio  divini  ardescere  vultus, 

Quem  requies  summa  cst,  summa  videre  salus. 
Da  Triadem  nobis  credendo  nosse  beatam, 

Nascendoque  unum  semper  amare  Deum. 
Ó  Jubar  aetliereum,  coelestis  lucifer  urbis, 

Lucidior  media  stella  corusca  die. 
Monstra  Virgo  tuum  noJjis  formosa  decorem, 

Ostende  ò  faciem  tota  decora  tuam. 
Monstra  virginei  laetissima  lumina  vultus, 

Quorum  lacipoli  ciariíis  aula  micat. 
Lux  radict  nobis  oculorum  pm-a  toorum, 

Lumina  te  ut  solam  nostra  videre  juveí. 
Eloquere,  in  nosíris  vox  intonet  auribus  ista, 

Vox  pia  quae  dulci  dulcis  ab  ore  íluit. 
Insere  le  nostrae  [)lacido  cum  pignore  menti, 

Ut  nequeat  vultus  non  Aeminisse  tui. 
Ut  Dominam  casto  veneretur  amore  potentem, 

Diligat  et  Matrem  debito  lionore  piam. 
Liber  ut  aethereas  conscendat  spiritus  Arces 

Corpórea  postquam  mole  solutus  erit. 
Tequè  duce,  et  tecum  Domino  sine  íine  fruamui-. 

Quem  trinum,  aíque  unum  credimus  esse  Deum.  ^ 

Lauta  ubi  divjnae  cai)iamus  fercula  mcnsae, 

Inque  epulis  laudem  vox  modulala  sonfU: 
Perpetuo  et  Sanctus  repetaiuus  carmitie,  Sanclus, 

Sanctus  cum  Nato  Spiritus,  atípie  Pater: 
Et  per  cuncta  tuas  caní(!mus  saecula  laudes, 

Nobilis  ò  Mater,  nobilis  aula  Dei. 


270  VERSOS  DO  PADRE  JOSEPH  DE  ANCHIETA 

UlTIMLM  CoLLOQUIUM  AD  VmC.INEM  GLORIO?AM, 

Ó  mea  mens,  quid  adluic  torponti  pigra  sopore 

Stertis,  et  iii  médio  puhere  lenta  jaccs? 
Surge  age,  riimpc  moras,  superi  penelralia  coeli, 

Ut  Dominam  propius  conluearis,  adi. 
Funde  preces,  lachrymasque  pias,  et  Matris  adorans 

Numina,  virgíneos  ante  recumbe  pedes. 
Scilicet  in  coelum  sine  me,  mea  Mater,  abisti? 

Juisti  in  coekrni  me  sine,  Yirgo  Parens? 
Nec  potui  vidisse  óculos,  quibus  ignea  cedunt 

Astra,  quibus  casti  splendor  amoris  inest? 
Pulcbra  nec  audivi  labiorum  verba  tuorum, 

Gratia  melle  favo  dulcior  unde  fluit? 
Nec  misero  licuit  suavi  mihi  .Aíatris  ab  ore 

Excipere  extremum,  dum  petis  astra,  vale? 
Quam  mea  mens  foelix  audita  hac  você  valeretf 

Quam  mihi  vita  foret,  quam  mihi  certa  salus? 
Hei  mihi,  cur  neqnij  superis  tam  nota  ministris 

Introijsse  tuae  hmina  sancta  domus? 
Auderem  miti  prosterni  lumina  coram, 

Ampíecíique  tuos,  si  paterete,  pedes: 
Plurimaque  imprimerem  matcrnis  oscula  plantis^ 

Pectoris  exponens  intima  vota  mei. 
Et  si  muta  mihi  cum  gutture  lingua  taceret, 

At  manifesta  sui  mens  tibi  signat  daret. 
-•   Audires  certè,  nec  dedignata,  misellum, 

Agnosceres  famuli  vota  precesque  tui: 
Aspiceresque  oculis  indignunt  laeta  benignis, 

Largaque,  quam  peteret,  plus  daret  ista  manus. 
Nunc  ego  desertus,  charisque  parentibus  orbus, 

Unde  mihi  vitae  mi  te  juvamen  erat: 
Flebilis  incedo,  procul  hinc  quia  dulcis  Jesus; 

Flebihs  incedo,  tu  quia  duicis  abes. 
Ille  volans  nuper  rapidus  velut  hinnulus,  ivit 

Ad  juga  Bethelis  deliciosa  suae: 
Inque  sua  regnat  cinctus  virtutibus  aula, 

Cumque  Patre  imperium  Rex  habet  altus  idem. 
Tu  modo  me  miserum  lachr3"marum  in  valle  relinquens, 

Ad  collem  thuris  pulchra  Columba  venis: 
Inque  tui  requie  foelicia  gaudia  Nati 

Percipis,  innumeris  accumulata  bonis. 
Lumina  divino  pacis  radiosa  decore, 

In  médio  recubans  lumine  cincta  die. 


KM  LOUVOU  DA  MUGEM  271 

Qua  lo  Virgo  sequar,  qua  le  pulcherrima  qiiaram? 

Nam  sine  te  sui)erant  gaudia  nuUa  milii. 
Forsitan  obdormis  divino  absoila  sopore, 

Nec  tibi  cura  tui,  nec  tibi  cura  mei  esl? 
Cogit  ut  obtundam  multis  libi  vocibus  aures, 

Qui  me  sollicitat  niistus  ainore  dolor. 
Sed  tibi  ne  rumpam  jucundi  gaudia  somni, 

Et  timor,  et  chari  vox  vetat  ípsa  tui. 
Nemo  meam  clamans  dilectam  suscitet,  inquit, 

Ipsa  quousque  libcns  evigiiare  velit. 
Ó  dilecta  Dei,  ne  sim  tibi  furte  molestus, 

Dic  mibi  quando  voles  evigiiare  libens? 
Sed  quid  adhuc  dubito?  quoties  labor  urget  iniquus 

Pectora,  te  toties  vis  benedicta  vocem. 
Surge  igitur  citius,  quia  me  mea  crimina  semper 

Excruciant  multis  noctc  dieque  modis. 
Surge,  quid  obdormis  curarum  cura  mearum, 

Ó  arx  tuta  animae  confugiumque  meae? 
Quare  Yirgo  tuum  averlis  mitissima  vultum, 

Nec  quam  sim  vilis,  pauper,  inopsque  vides? 
Surge  Dei  genitrix,  faciem  converte  benignam, 

Ut  mea  mens  oculis  obviet  aegra  tuis. 
Sed  quid  ago?  en  audis;  sed  vox  mea  laucibus  haeret, 

Mens  stupet,  algescunt  pectora,  lingua  silet. 
Quid  poscam  ignoro,  posco  tamen  omnia  Mater, 

Ó  Mater,  mea  spes,  gloria,  vita,  salus. 
Posco  tuum  Natum  Mater,  tuiis  omnia  Natus, 

Ipse  Deus  cordis  Kex  Domiriusque  mei. 
Spiritus  hic  solum  desiderat  ager  Jesum, 

lUe  ctenim  nobis  omnia  solus  erit. 
Sit  mea  lux,  requies,  dulcedo,  gloria,  virtus, 

Sitque  meae  mentis,  sicut  amator,  amor. 
Hanc  milii,  quem  médio  concludis  corde,.  videre 

Da  post  exilij  têmpora  dui-a  mei. 
Te  quoque  cum  pulclna  desidero  Prole  videi'C 

Post  acta  exilij  têmpora  dura  mei. 
Iloi  milii,  quam  muitos  durat  mea  vita  per  annos! 

Quam  nimium  longas  diicit  acerba  moras! 
Quando  erit  illa  dies,  misera  qua  sarcina  carnis. 

De  qua  sumi)ta  fuit,  lestilualur  liumo? 
Quando  erit,  ut  coelum  mens  libera  lendat  in  altum,. 

Amplexu  Domini  porfruitura  sui? 
Quando  videbo  tuum,  coeli  H('giii;i.  decorem, 

Nobilis  ó  animae  te  cui»ienlis  amor? 


272  VERSOS  DO   PADRE  JOSEPH  DE   ANCÍIIETA 

Sed  qiioniam  Jesus,  ciijiis  mibi  vita  voluntas, 

Me  tuus  iii  terris  Filiiis  esse  jubet: 
Dum  moror  in  terris,  óculos  super  astra  levabo, 

Inviscns  Dominae  íumina  pulclira  meae. 
Speque  gemens  dulci  cupidum  solabor  amorem. 

Et  desiderio  conterar  usquc  tui. 
Si  potero  non  esse  tui  mernor,  inclyta  Mater, 

Si  te  non  totó  pectore  semper  amem. 
Si  possis  non  esse  méis  dulcedo  medullis 

Intima,  laetitiae  principiumque  meae: 
Haereat  arenti  cúm  gutture  lingua  palato, 

Immemor  et  penitus  sit  mea  dextra  sui. 
Tu  tibi  commissum,  mitissima,  protege  servum, 

Deque  tua  tolli  ne  patiare  manu. 
Tu  clypeus  fortis,  murus,  será,  janua,  turris, 

Óptima  tu  custos  pectoris  una  mei. 
Sed  videam  citiús  duicem,  mea  gaudia,  Jesum, 

Nec  miserum  lentis  me,  precor,  ure  moris. 
Pande  tuum  tandem  dulci  cum  pignore  vultum. 

Sola  meam  pellet  visio  vestra  faraem. 
Si  mihi,  quam  cupio,  viventi  cernere  formam, 

Fas  prohibet  vestram,  cogor  et  ante  mori. 
Protinus  ut  videam,  moriar,  jam  vivere  nolo, 

Opto  mori:  vera  est  vita  videre  Deum. 
Sed  te  per  Nati  communem  obtestor  amorem, 

Quo  tibi  non  aliquid  dnlcius  esse  potest. 
Ut  jubeas  (tibi  posse  dedit  tuus  omnia  quando, 

Nec  tibi  nequicquam  est  Filius  ipse  Deus) 
Ut  jubeas  sancto  Domini  })ro  nomine  Jesu 

EíTuso  claudi  sanguine  fata  mihi. 
Ut  qui  me  redimens  lethum  crudole  su])ivit 

Sanguinis  effundens  ilumina  larga  sui; 
Me  quoque  pei^pessum  crudelia  funera  servum 

Noscat,  et  aeterno  jungat  amore  sibi. 
Qui  me  plusquam  se  mitissimus  Agnus  amavit, 

Ut  summo  offerret  me  sine  lalje  Patri; 
Ille  meae  novit  mortis  tempusque  modumque: 

Nec  secus  id  fieri,  quam  volet  ille,  volo. 
Sed  quoniam  quoduis  íieri  vult  ille,  facitque, 

Te  precor  hoc,  clemens,  ut  velit  ille,  velis. 
Ut  quae  labe  carens  omni  concepta  fuisti, 

Concludi  facias  hoc  mea  fata  die. 
Aut  (hoc  si  mavis)  tibi  quo  super  aethera  Natus 

Tradidit  ad  dextram  regia  scentra  suam. 


EM  LOUVOR  DA  VIUGEM  273 

Tiinc  ego,  tunc  foelix,  tunc  omni  ex  parte  beatus, 
,     Tunc  venicnt  aiiimae  gaudia  plena  meae. 
Ilacc  spes  igna\iim  pellet  jucunda  timorem, 

Quae  manat  Nati  de  bonitate  tui. 
Ilacc  spes  reficiet  mihi  languida  pectora  dulcis, 

Quae  manat  Matris  de  pietate  meae. 
Quae  licet  aegra  cadat,  cum  me,  et  mea  turpia  facta; 

Cum  tamen  aspicio  te,  snblt  alta  mihi. 
Ilaec  mihi,  Yirgo,  Parens,  in  pectorae  fixa  manebit, 

Inque  meo  vivet  non  peritura  sinu: 
Donec,  quam  spero,  venial  praesentia  Jesu, 

Aspectusque  tiius,  quo  sine  fine  fruar. 
Foelices,  quos  sancta  tui  praesentia  Miltus 

Jam  fouet,  aeternos  laetificatque  dies. 
Qui  cura  vacui,  dubioque  timore  soluti 

Jam  tuti  Dominam,  quam  coluere,  rident. 
Noster  adhuc  vario  jacta tur  turbine  lembus. 

Et  vix  adversas  remige  sulcat  aquas. 
Teque  voluptatis  pota  torrente  perennis, 

Ilaec  sitit  in  médio  mens  agitata  sale. 
Foelix  illa  dies,  qua  pleno  è  flumine  totum, 

Et  Nati,  et  Matris  me  satiabit,  Amen. 

Petitiones  ple  ad  Virginem  Mariam  per  ordlnem 

ALPHABETl. 

Ara  Dei  vivcns,  divini  foederis  Arca, 

Conde  luo  miserum  me  benedicta  sinu. 
Basis  adorandum  quae  fulcis  áurea  templum, 

Pectora  sustenta  robore  noslra  tuo. 
Cerva,  alitur  cujus  gravissimus  ubere  foetus, 

Pasc«  tuo  mentem  lacte  benigna  meam. 
Dume  flagrans,  paradise  Dei,  dulcisque  voluptaâ, 

Sis  calor,  et  requies,  dilitiaeque  mihi. 
EfOgies  referens  divinum  pulchra  decorem, 

In  me  perpetuo  vivat  imago  Dei. 
Flamma  corusca  Poli  splendori  Solis  obumbrans, 

Pelle  mei  tenebras  cordis,  et  omne  Chãos. 
Gutta  gravis  fluvio,  dulçor  fluit  unde  perennis, 

Mentem  arere  meam  ne  patiare  siti. 
Hydria,  qua  pinguis  llumen  juge  manat  olivae, 

Unge  animi  plagas  pinguis  oliva  mei. 
Janua  clausa  Poli,  soli  via  pervia  Regi, 

Sydereas  pandat  jam  tua  dextra  fores. 
VOL.    11  18 


274  VERSOS  DO  PADRE  JOSEPH  DE  ANCHIETA 

Lana  verecundo  cocei  Lis  lincta  colore, 

Tinge  tuo,  et  Jesu  pectus  amore  mihi. 
Mensa  referta  cibo,  qui  coelum  nutrit,  humum((iie, 

Me  tuus  exsatiet,  me  creet  iste  cibiis. 
Nata  tuum  pariens  intacto  ventre  Parcntem, 

Sit  mihi  cum  partu  vita  pudica  tuo. 
Ora  maris,  statio  jactalis  fida  carinis, 

Excipe  me,  tumidi  quem  ferit  unda  freti. 
Purpura,  Rex  sumpsit  de  qua  sibi  tegmina  summus, 

Exue  me  culpa,  justitiaque  tege. 
Quadriga,  et  currus,  ferclumque  ultoris  Jesu, 

Da  mihi  sublimem  Virgo  suprema  manum. 
Regina  astrigeros  orbes,  terramque  gubernans, 

Facta  tua  sit  vitae  regula  vita  meae. 
Sylva  virore  jugi  divini  ubérrima  íructus. 

Me  tua  foecundis  protegat  umbra  comis. 
Turris  in  aetherea  sublimior  orbe  Sionis, 

Sis  arx  à  saevis  liostibus  alta  mihi. 
Vua  merum  fundens  omnis  non  pressa  saporis. 

Me  rape,  me  absorbe,  tuque  tuusque  liquor. 
Christigena  exhalans  divinos  área  odores, 

Nostra  tui  recreet  víscera  cordis  odor. 
Zona  pudicitiae,  castique  ligamen  amoris. 

Perpetuo  renes  cinge  pudore  meos. 


Dedicatio  operis 


En  tibi  quae  vovi,  Mater  sanctissima,  quondam 

Carmina,  cum  saevo  cingerer  hoste  latus. 
Dum  mea  Tamuyas  praesentia  mitigat  hostes. 

Tractoque  tranquillum  pacis  inermis  opus. 
Hic  tua  materno  me  gratia  fovit  amore, 

Te  corpus  tutum  mensque  regente  fuit. 
Saepius  optavit  Domino  inspirante  dolores. 

Duraque  cum  saevo  funere  vincla  pati. 
At  sunt  passa  tamen  meritam  mea  vota  repulsam, 

Scilicet  Heròas  gloria  tanta  decet. 


EM  LOUVOR  DA  VIRGEM  27J 

IIoR.^  Immaculatissim.e  Conceptionis  ViRGiNis  IMari^ 
Ad  Matutinum 


Temporis  íongi  miseratus  orbis 
Condítor  fletum,  senio  gravatam 
Angelum  summo  sólio  Polorum 

Mittit  ad  Annam. 
llle  supremae  paries  senectae 
Filiam  dicit  superi  Parentis, 
Quae  suo  claudet  genitum  beato 

Viscere  Verbam. 
Haec  creaturas  superabit  omnes, 
Omnibus  foelix  memoranda  seclis, 
Nuntio  gaudet  Joachim  beatus 

Certus  eodem. 
Sit  Patri,  Nato  decus,  et  beato 
Flamini,  et  sanctae  meritae  Puellae^ 
Quae  carens  omni  macula  creatur 
Múnus  honoris. 


Ad  Primam 


Terminal  noctis  tenebras  Maria, 
Gaudium  mundi  jubar  exoritur 
Praevium  Solis,  decoratque  coelum 

Mane  rcbcscens. 
Jam  maris  pulchra  mediante  Stclla 
Gaudeat  tellus,  maré,  noxijquc 
Criminum,  Jesu  Genitrix  benigna 

Nascitur  orbi. 
Jubilant  eives,  superi,  stupescit 
Ordo  naturae  sterilem  Parentem; 
Virginem  nasci  sine  labe  saevus 

Ingemit  Orcus. 
Sit  Patri,  Nato  decus,  et  beato 
Flamini,  et  mira  specic  decorae 
Virgini,  cujus  radiatur  ortu 
Maciíina  landis. 


270  mirsos  do  padre  joseph  dl£  anchieta 

Ad  Tertiam 

Missus  è  coelo  Gabriel  Mariae 
Nuntiat  Yerbura  Ibre  virginali 
Ventre  clausui^am  Patris.  unde  manet 

Gratia  mundo. 
Hic  Ave  canta t,  reparatur  Eva, 
Gratiae  Virgo  fideique  plena 
Credit,  et  magni  sobolem  Parentis 

Concipit  alvo. 
Spiritus  sanctus  refovens  obumbrat 
Quae  Dei  sese  famulam  profatur, 
Gumque  sacrata  gravidam  coaptat 

Virgine  3\Iatrem. 
Sit  Patri,  Nato  decus,  et  beato 
Flamini,  et  laudes  meritae  Mariae, 
Quae  Dei  Natum  meruit  sub  arca 

Claudere  ventris. 

Ad  Sextam. 

Surgit  in  montes  propcrans  Judae 
Virgo  praeconem  Domini  gerentem 
Visitans  matrem,  plácida  propinquam 

Você  salutans. 
Audit  ut  vocem  genitrix  Mariae, 
Ventris  exultat  puer  in  cubili 
Virginis  clausum  thalamo  supremum 

Numen  adorans. 
Virginem  mater  resonat  beatam, 
Sed  Greatori  referens  Maria 
Gloram,  digno  modulatur  ore 

Jubila  landis. 
Sit  Patri,  Nato  decus,  et  beato 
Flamini,  et  dignae  tibi  Virgo  laudes, 
Cujus  ad  vocês  hilaratur  infans 

Viscere  clausus. 

Ad  Nonam. 

Sol  refulgescit,  tenebrae  fugantur, 
Lux  Polum  vestit,  radiatque  terris, 
Exit  effectum  caro  de  Parente 
Virgine  Verbum. 


EM  LOUVOR  DA  VIRGlm  277 


Gloriam  canlant  acies  Poloriim 
Ijumíiium  Patri,  placidamque  terrae 
Nuntiant  pacem,  Puerumque  natuni 

Urbe  Davidis. 
Pastor  accurrens  videt  involutum 
Parvulum  pannis,  paleis,  jacentem, 
Quem  sedet  juxta,  niveoque  lactat 

Ubere  Mater. 
Sit  Patri,  Nato  decus,  et  beato 
Flamini,  intactae  gravido  pudori, 
Oiiae  Patris  Verbum  peperit  superni 

Gloria  Matris. 


Ad  Vésperas, 

Ô  tuum  qiianti  gladius  doloris 
Cor  penetravit  Genitrix  salutis, 
Dum  vides  dalcem  perimi  cruento 

Funere  Natuml 
Nempe  ciim  serves  médio  repostum 
Corde,  quos  senti t,  toleras  dolores, 
Quae  tuum  Natum,  tibi  perforarunt 

Vulnera  pectus. 
Fac  simul  tecum  crucier  dolore 
Eiuians  plagas  Domini  cruentas, 
Vcpribus,  ílagris,  cruce,  morte,  dirá, 

Vulnerer  hasta. 
Laus  Patri,  Nato,  paritcrque  sancto 
Flamini,  et  Matri  decus  ingementi, 
Cuí  dolor  Nati  penetravit  alto 

Corda  dolore. 


Ad  Completorium 

ToHit  ad  coelos  animam  Redemptor 
In  siiis  ulnis  Genitricis  almae: 
Candidum  Fratres  niveo  recondunt 

Mármore  corpus. 
Guria  Jesus  comitante  Olympi 
Portat  è  coelis  animam,  suoqiio 
Corpori  jungit,  meritumquo  Matri 

Pendit  lionorem. 


278  VERSOS  DO  PADUE  JOSEPII  DE  ANCHIETA 

Manna  de  saneio  tumulo  scalurit, 
Trinitas  Matrcm  super  Angelorum 
Ordines  tollit,  Dominamque  toti 

Praeficit  orbi. 
Sit  Patri,  Nato,  pariterque  sancto 
Flamini  virtus;  Dominaeque  mundi, 
Quae  Deum  juxta  residet  pereniiis 
Munera  laudis. 

Recommendatio 

Has  preces  fundo  tibi,  Virgo  Mater, 
Quae  cares  naevo  speciosa  tota, 
Ut  mihi  in  casto  tribuas  pudicam 
Corpore  mentem. 
Amen. 


LAUS  DEO. 


SUMMAUIO  CIIRONOLOGICO 


DOS 


SUCCESSOS  NOTÁVEIS  QUE  SE  REFEREM  NOS  LIVROS  III  E  IV 

DESTA  CHRONICA 


ANNO   DE   15G3 

Foi  a  colheita  n'este  anno  menos  copiosa,  por  occasiao  de  huma  grande 
pestilência,  num.  1. 

Qualidade  da  doença,  força  do  mal,  exemplo  notável,  num.  2. 

Cliegão  de  Portugal  quatro  obreiros,  num.  3. 

Vão  por  diante  com  maior  força  os  assaltos  dos  Tamoyos  em  S.  Vicente, 
num.  4. 

Prega  o  Padre  Nóbrega  por  púlpitos  e  praças  penitencia,  ibid. 

Tem  sentimento  de  ir  meter-se  entre  os  l)arbaros,  pêra  acabar  com  elles 
pazes,  ou  pêra  acabar  entre  elles  a  vida,  num.  5. 

Parte,  levando  por  companheiro  o  Irmão  Anchieta,  ibid. 

Doscripção  do  lugar  fronteiro  dos  Tamoyos,  num.  7. 

São  hospedados  os  Padres;  levautúo  Igreja  e  sacriíicão  com  espanto 
dos  bárbaros,  num.  8. 

Ensinão  a  doutrina  christãa,  são  bem  ouvidos,  ibid. 

Descobrem  os  índios  a  Joseph  suas  traças  e  forças  de  guerra,. num.  9. 

Eoi  mal  tomado  o  tracto  das  pazes  no  Rio  de  .Janeiro.  Partem  diversos 
Priíicipacs  a  matar  os  Padres,  e  estorval-os,  num.  10. 

Entrão  em  conselho  das  pazes;  proposta  de  Almbirè,  reposta  dos  Pa- 
dres, num.  11. 

Segundo  perigo  dc-vida,  quí.'  liverão  os  Padres,  num.  13. 


280  SuMMARio  Chronolooico 

Acaba  em  bem  o  intento  de  Paranapuçu  num.  14. 
Chega  de  fora  Pindobuçu,  e  pratica  que  fez  ao  filho,  num.  13. 
Fim  ditoso  de  Pindobuçu,  ibid. 

Segundo  conselho,  razões  dos  Padres  e  dos  anciãos,  num.  IC. 
Resolve  Nóbrega  partir-se  pêra  S.  Vicente,  e  deixar  Joseph  entro  os  bár- 
baros, num.  17. 
Trata  em  S.  Vicente  do  ultimo  fim  das  pazes,  num.  18. 
Perigo  e  segurança,  Joseph  só  e  acompanhado,  num.  19. 
Toma  Joseph  por  advogada  a  Virgem  Nossa  Senhora,  e  compõe  a  vida 

da  mesma  Senhora  em  verso,  num.  21  e  Í22. 
Maravilhas,  revelações,  e  profecias,  num.  22  a  2o. 
Bautiza  huma  criança  a  ponto  de  morrer,  e  dá-lhe  com  a  graça  a  vida — 

Segundo  caso  de  outro,  que  bautizou  depois  de  enterrado,  num.  2C  e  27. 
Enredo   diabohco  pêra  estorvar  as  pazes,  levantamento  dos  do  Rio, 

num.  29. 
Chegão  índios  de  S.  Vicente,  descobre-se  o  fundamento  do  enredo,  ac- 

ceitão-se  as  pazes,  num.  31. 
Parle  Joseph  em  huma  canoa  de  casca,  num.  33. 
Ultimo  embuste  contra  as  pazes,  ibid. 
Padece  Joseph  huma  fera  tormenta,  num.  34. 
Dá  Joseph  cumprimemo  á  palavra  que  dera  à  Senhora  de  perfeiçoar  sua 

vid:.  num.  35. 
No  Espirito  santo  trabalhão  os  Padres  em  aquietar  as  dissenções  entre 

Portugueses  e  índios,  num.  37. 

ANNO  DE  1564 

Fome  geral  e  extraordinária,  suas  consequências,  num.  38  a  40. 

Compras  dos  índios,  duvidas  que  houve,  e  resolução  da  Meza  da  Con- 
sciência, num.  41. 

Dão-se  por  livres  os  índios  comprados,  fora  da  resolução  referida,  e  o 
mais  que  sobre  isto  houve,  num.  41a  44, 

Fundação  do  CoUegío  da  Bahia  por  El-Rei  D.  Sebastião,  num.  45. 

Passa  a  melhor  vida  o  Padre  Diogo  Laines,  Geral  da  Companhia,  num.  46. 

Edifica-se  Templo  e  Casa  pêra  os  Padres  na  villa  dos  liheos,  num.  47. 

Descripção  da  capitania  e  villa  dos  Ilheos,  num.  48. 

Rio  das  Contas,  num.  49. 

Rios  Taygpe,  de  S.  Jorge,  e  outros,  num.  50  a  52. 

O  senhor  da  capitania  Jorge  de  Figueiredo  Corrêa,  manda  em  seu  lugar 
Francisco  Romeiro,  num.  53. 

Fortiíica-se,  e  assenta  a  villa  dos  Ilheos,  num.  54. 

Segundo  senhor  da  capitania  Lucas  Geraldes,  guerra  dos  Aimorés,  num.  55. 

Despede  Mem  de  Sá  huma  frota  ao  Rio  de  Janeiro,  num.  56. 

Apresta  e  despede  a  frota,  num.  57. 


DOS  SUCCESSOS    NOTÁVEIS  281 

Chega  o  Capitão  mór  á  barra  do  Rio,  e  manda  chamar  o  Padre  Nóbre- 
ga, num.  58. 

Successo  maravilhoso  com  que  forão  salvos  os  nossos  d'entre  os  Ta- 
moyos,  num.  59. 

Sahem  os  Padres  a  terra,  e  fazem  acção  de  graças,  ibid. 

Parte  o  Capitão  mór  Estacio  de  Sá  pêra  S.  Vicente,  num.  60. 

Difíiculdades  da  empreza,  ibid. 

Sentimento  e  pratica  do  Padre  Nóbrega  sobre  a  empreza,  num.  61. 

Determina  o  Capitão  mór  seguir  as  palavras  de  Nóbrega,  num.  62. 

Traças  com  que  Nóbrega  convence  á  empreza  os  ânimos  dos  soldados, 
num.  63. 

Assenta  pazes  com  alguns  Principaes  do  sertão,  e  ajudão  estes  a  empreza, 
ibid. 

Ajunta  Nóbrega  soccorros  consideráveis,  num.  64. 

ANNO  DE  1565 

Acha-se  a  Bahia  em  grande  cuidado  do  successo  da  Armada,  num.  65. 
Acrescentão-se  na  Bahia  duas  classes,  huma  de  Latim,  outra  de  Theología 

moral,  num.  66. 
He  eleito  em  Roma  por  Geral  da  Companhia  o  Santo  Padre  Francisco  de 

Borja,  num.  67. 
He  eleito  o  Padre  Ignacio  d' Azevedo  por  Visitador  geral  d'esta  Província, 

ibid. 
Transito  do  Padre  Diogo  Jacome  na  villa  do  Espirito  santo.  Epitome  de 

suas  acções,  num.  68  a  71. 
Parte  a  Armada  de  Estacio  de  Sá,  e  chega  á  barra  do  Rio,  num.  72. 
Conhece  Josepli  o  animo  dos  Índios,  e  aquieta-os  com  suas  promessas, 

num.  73. 
Entra  a  Armada  no  Rio,  começão  a  fortificar-se  em  terra,  num.  74. 
Fazem  os  Religiosos  pratica  aos  soldados  Europeos  e  índios,  num.  75. 
Faz  pratica  o  Capitão  mór,  num.  76. 

Primeiro  assalto  do  inimigo,  e  primeira  victoria  dos  nossos,  num.  77. 
Segunda  victoria,  e  casos  maravilhosos,  num.  78  a  80. 
De  hum  notável  acommetimenlo  dos  inimigos,  e  victoria  que  tivemos  d'el- 

les,  num.  81. 
Como  foi  guardado  o  Padre  Gonçalo  de  Oliveira  entre  muitas  frechas  dos 

bárbaros,  num.  82. 
Sabe  o  Capitão  mór,  e  faz  grande  destroço,  num.  83. 
Outra  victoria  de  sessenta  e  (piatro  canoas  inimigos,  num.  84. 
Ultima  victoria  deste  anno,  num.  85. 

Parte  Joseph  pcra  a  Bahia,  a  ordenar-se  de  ordens  sacras,  num.  86. 
Visita  a  casa  e  aldeãs  do  Espirito  santo,  num.  87. 


282  SuMMAnio  Chronologio 

ANNO  DE  15(56 

Continua  o  Padre  Gram  com  o  seu  costumado  fervor  do  bem  das  aldeãs, 
num.  88. 

Chega  o  Irmão  Joseph  á  Bahia,  e  ordena-se,  ibid. 

Desejos  com  que  na  Bahia  se  esperava  o  Padre  Ignacio  de  Azevedo, 
num.  89. 

Sua  viagem,  e  fruito  que  fez  no  Cabo  verde,  ibid. 

Chega  o  Padre  Ignacio  á  Bahia  com  cinco  religiosos,  num.  90. 

Assento  da  visita,  e  forma  da  patente,  num.  91. 

Estado  em  que  achou  a  Província,  num.  92. 

Parte  a  visitar  a  Província  em  companhia  do  Governador  e  do  Bispo,  e 
leva  comsigo  o  Provincial,  Joseph  de  Anchieta  e  outros  três  Padres, 
num.  93. 

Em  S.  Vicente  gozão  da  quietação  das  pazes,  num.  94. 

Descobrem  os  nossos  índios  a  cilada  de  seus  contrários,  num.  95. 

Successo  maravilhoso,  obtido  por  intercessão  do  martyr  S.  Sebastião, 
num.  96. 

Primeiro  encontro  de  huma  canoa  de  Francisco  Velho,  num.  97. 

Segundo  encontro  de  quatro  canoas  do  Capitão  mór:  livra  Deos  os  nos- 
sos, ibid. 

Origem  da  festa  das  canoas,  na  cidade  do  Rio  de  Janeiro,  num.  98. 

ANNO  DE    1567 

Chega  Mem  de  Sá  com  sua  armada  segunda  vez  ao  Rio  de  Janeiro, 
num.  100. 

Aconmaete  Estado  de  Sá  a  fortificação  de  Uraçumiri,  põe-na  por  terra 
com  grande  estrago,  num.  101. 

Morte  de  onze  ou  doze  dos  nossos,  e  ferimento  grave  do  Capitão  mór, 
num.  102. 

Acommete-se  a  segunda  fortificação,  e  põe-se  por  terra  com  ultimo  des- 
troço dos  inimigos,  num.  103. 

Fazem  os  Portuguezes  acção  de  graças,  e  começão  a  edificar  nas  ensea- 
das, num.  104. 

Passa  o  Capitão  mór  Estacio  de  Sá  a  melhor  vida;  suas  virtudes,  num. 
105. 

Descripção  do  Rio  de  Janeiro,  num.  106. 

Serrania  dos  Órgãos,  num.  107. 

Bahia  do  Rio  de  Janeiro,  num.  108. 

Parte  o  Padre  Visitador  com  os  mais  companheiros  pêra  S.  Vicente, 
num.  109. 

Tratao  os  Padres  Visitador  e  Provincial  de  sua  visita,  ibid. 

Revelações  do  Padre  Joseph,  num.  110. 


DOS  SUCCESSOS  NOTANTÍS  283 

Segunda  revelação  de  liuma  índia,  que  deo  a  vida  pela  castidade,  num. 

111. 
Outro  caso  semelhante,  num.  112. 

Parte  o  Padre  Ignacio  de  Azevedo  de  S.  Vicente,  num.  113. 
Livra  Deos  a  Ignacio  e  seus  companheiros  do  perigo  de  huma  baléa, 

ibid. 
Chegão  ao  Rio,  e  aceilão  o  sitio  pêra  nosso  CoUegio  no  meio  da  cidade, 

num.  lio. 
Faz-se  justiça  do  herege  João  Boles,  num.  116. 
Converte  o  Padre  Josepli  este  herege,  e  incorre  em  suspensão  do  seu 

oíncio  sacerdotal,  ibid. 
Parte  o  Padre  Visitador  pêra  a  Bahia,  deixando  no  Rio  de  Janeiro  os 

Padres  Nóbrega  e  Joseph,  num.  117. 
Visita  de  caminho  as  capitanias  do  Espirito  santo,  e  outras,  num.  118. 
Chega  á  Bahia,  e  he  recebido  com  alegria  de  todos,  num.  119. 
Promove  a  boa  creação  da  mocidade,  num.  121. 
Fazem  dous  Padres  e  hum  Irmão  a  primeira  profissão  de  formatura  que 

vio  o  Brasil,  num.  122. 
Celebra  o  Padre  Ignacio  Congregação  Provincial,  em  qiie  he  eleito  Pro- 
curador geral  da  Província  em  Roma;  parte  pêra  ahi  a  14  de  Agosto, 

ibid. 
Vai  o  Provincial  Luis  da  Gram  a  entabolar  a  residência  de  Pernambu- 
co, num.  123. 
Continua  o  Governador  Salvador  Corrêa  de  Sá  com  o  edifício  da  nova 

cidade  no  Rio  de  Janeiro,  e  o  Padre  Nóbrega  com  o  do  CoUegio,  num. 

124. 
Morte  do  Padre  António  Rodrigues,  epitome  da  sua  vida,  ibid.  até  num. 

128. 
Estado  do  Padre  Nóbrega,  num.  129. 
Do  valeroso  índio  Martim  Aííonso  de  Sousa,  num.  130. 
Vem  contra  elle  grande  força  de  inimigos  Tamoyos  e  Francczcs,  num. 

131. 
Prepara-se  pêra  o  conflicto,  faz  pratica  aos  seus;  matança  dos  inimigos, 

num.  132  a  134. 
Chega  o  soccorro  de  S.  Vicente,  c  parte  a  tomar  falia  do  inimigo  de  Cabo- 

frio,  num.  13.j. 
Parte  o  Governador  a  acommeter  huma  náo  artilhada  no  Cabo-frip,  ibid. 
Esforço  do  Capitão  da  náo,  e  successo  da  sua  morte,  num.  13C. 
Entrão  os  nossos  a  náo,  rendem-na,  c  fazcm-sc  á  vela,  ibid. 


584  SUMMARIO  CfmONOLOíUO 

LIVRO  QUARTO 

ANNO  DE   1569 

Tudo  n*este  anno  na  Bahia  são  saudades  e  esperanças  do  Padre  Ignacio, 
num.  1. 

Chega  Ignacio  a  Portugal,  causa  grande  abalo  a  voz  das  cousas  do  Bra- 
sil, e  da  sua  santidade,  num.  2. 

Carta  do  Arcebispo  D.  Frei  Bartholomeu  dos  Martyres  pêra  o  Papa  Pio 
V,  num.  3. 

Foi  grato  ao  Rei,  parte  pêra  Roma,  e  do  que  alli  obra,  num.  4  e  5. 

Chega  a  Portugal,  e  com  elle  muitos  companheiros,  num.  0. 

Alista  outros  companheiros,  e  retira-se  com  elles  pêra  Vai  de  Rosal, 
num.  7. 

Dispõe  aUi  huma  como  oíTicina  do  espirito,  num.  8. 

Força  do  exemplo,  mortificações,  exercícios  e  devações,  num.  9  a  16. 

ANNO  DE  1570 

Passa  O  Padre  Ignacio  com  os  seus  de  Vai  do  Rosal  pêra  a  Casa  de  S. 
Roque;  edificação  que  derão  na  cidade,  num.  17. 

Embarcão-se,  e  parte  a  frota,  num.  18. 

Formão  os  nossos  hum  coUegio  na  náo  San-Tiago,  num.  19. 

Seus  exercícios  a  bordo,  num.  20  e  21. 

Chegão  á  ilha  da  Madeira,  onde  são  agasalhados,  num.  22. 

Alcança  licença  o  Mestre  da  náo  San-Tiago  pêra  ir  á  ilha  da  Palma, 
num.  23. 

Partem  da  ilha  da  Madeira,  num.  25. 

Apparece  Jacques  Soria  com  cinco  nãos,  sahe  contra  elle  o  Governador 
Vasconcellos,  e  não  aceita  o  conflicto,  ibid. 

Todo  o  tratto  dos  nossos  são  desejos  do  martyrio,  num.  26. 

Desembarcão  junto  a  Terçar  Corte,  num.  27. 

Ahi  gastão  cinco  dias;  resolve-se  Ignacio  a  partir  por  mar,  num.  28. 

Partem  do  porto  de  Terça  Corte,  num.  29. 

Avistão  cinco  náos,  que  esquadra  era,  e  que  intentos  traz,  ibid.  até  num.  31 . 

Preparações  pêra  o  combate :  pratica  do  Padre  Ignacio  a  seus  companhei- 
ros, num.  32. 

Anima  o  Padre  Ignacio  os  soldados,  num.  33. 

Principio  da  peleja  e  successos  d'ella,  num.  34. 

Esforço  de  Ignacio,  e  protestação  da  sua  fé,  num.  35. 

He  ferido  pelos  hereges,  e  cabe  desmaiado,  ibid. 

Acodem  os  companheiros,  e  despedem-se  do  seu  pastor,  que  passa  a  me- 
lhor vida,  num.  36. 

Successo  do  Irmão  Bento  de  Castro,  num.  37. 


DOS  SUCC12SS0S  NOTAVKIS  28ô 

E  (lo  Irmão  Diogo  Pires  de  Nicea,  37. 

Sliccesso  de  outros  Irmãos,  num.  38,  39  e  40. 

Rende-se  a  náo  San-Tiago,  num.  41. 

Exemplo  de  hum  soldado  esforçado,  ibid. 

Saque  da  náo  pelos  hereges,  num.  42. 

Lanção  ao  mar  o  corpo  defunto  do  Padre  Ignacio,  num.  43. 

Enlregão  aos  Irmãos  o  trabalho  da  bomba,  com  aífrontas  e  máo  tratamen- 
to, ibid. 

São  levados  á  presença  de  Jacques  Soria  o  Mestre  e  Calafate  da  náo,  e  o 
Irmão  Simão  da  Costa,  num.  44. 

Sentença  de  morte  contra  os  matadores  do  soto-Capitão,  ibid. 

São  levados  os  Irmãos  pêra  o  castello  de  proa,  despojados  de  seus  vesti- 
dos, e  carregados  de  affrontas,  num.  4o. 

Dá  sentença  Jacques  Soria  contra  os  Religiosos,  num.  47. 

Execução  da  abominável  sentença,  num.  48. 

Como  se  houverão  no  mar,  num.  49. 

He  escolhido  o  Irmão  Sanches  Cozinheiro,  num.  50. 

O  Irmão  S.  João  encheo  o  numero  de  quarenta,  supprindo  a  falta  do  Ir- 
mão Sanches,  ibid. 

Revelação  da  Madre  S.  Thereza  de  Jesu,  num.  51. 

Poema  do  triumpho  dos  Martyres,  num.  52. 

Desacato  sacrílego  com  que  os  hereges  tratarão  as  cousas  sagradas, 
num.  53. 

Parte  a  esquadra  inimiga  pêra  a  sua  terra,  num.  55. 

Parte  o  Irmão  Sanches  pêra  Bayona,  e  chega  a  Lisboa,  ibid. 

Resumo  da  vida  do  Padre  Ignacio  de  Azevedo,  num.  5G  a  04. 

Fim  desgraçado  de  Jacques  Soria,  e  de  alguns  de  seus  companheiros, 
num.  65. 

Authores  que  escreverão  do  santo  varão  Ignacio,  num.  66. 

Epilogo  dos  mais  companheiros,  que  morrerão  pela  fé  de  Christo,  num. 
08  a  109. 

Já  o  mundo  llies  dá  o  titulo  de  Martyres,  antes  de  declarados  pelo  Sum- 
mo  Pontiíice,  num.  110. 

Successo  do  Governador  D.  Luis  de  Vasconceilos,  num.  112. 

Parte  a  frota  pêra  o  Cabo  Verde,  onde  contrahe  doenças,  num.  113. 

Avistão  terra  do  Brasil,  e  arribão  a  Nova  Hespanha,  num.  114. 

Dispõe-sc  o  Padre  Nóbrega  pêra  morrer,  num.  115. 

Sabe  a  despedir-se  pela  cidade  pcra  a  outra  vida,  ibid. 

Como  se  houve  no  ultimo  dia  de  vida,  num.  IK). 

Recopiiação  da  vida  e  virtudes  do  Padre  Manoel  da  Nóbrega,  num.  117 
a  142. 

Casos  maravilhosos  que  lhe  acontecerão,  num.  143. 

Epilogo  finai,  num.  147. 

Poema  latino  do  Padre  Josephd'Anchiela  em  louvor  da  Santíssima  Vicgem 


APPENDICE 

A 

CHRONICA   DA   COMPANHIA 

DE 

JESU 

DO  ESTADO  DO  BRASIL 

NESTA  SEGUNDA  EDIÇÃO 


Como  documenlos  comprobativos,  preciosas  e  inleressanlcs por  wais 
de  hum  respeito,  pareceu  convefiiente  enriquecer  a  presente  edição 
com  as  seguintes  cartas  escriptas  do  Brasil  pelo  Padre  Manoel  da 
Nóbrega,  zeloso  e  incansável  obreiro  da  vinha  do  Senhor,  e  cujos 
trabalhos  apostólicos  figuram  tão  notavelmente  n  esta  Chronica.  Para 
aqui  as  trasladamos,  transcrevendo-as  de  diversos  volumes  da  Re- 
YiSTA  DO  Institcto  HiSTORico  E  Geogíiapuico  do  Brasil,  onde  fo- 
ram publicadas  pela  primeira  vez,  copiadas  dos  respectivos  originaes, 
que  se  conservam  nos  Archivos  de  Lisboa  e  Rio  de  Janeiro. 


CAUTA  1 


AO  P.  M.  SIMÃO  RODRIGUES,  PROVINCIAL  DA  COMPANHIA 
DE  JESUS  EM  PORTUGAL 


A  graça  e  amor  de  Nosso  Senhor  Jesu  Clirislo  seja  sempre  cm  nosso 
favor  c  ajuda. — Amen. 

Sómonte  darei  conta  a  Y.  R.  de  nossa  chegada  a  esta  terra,  e  do 
que  n'ella  fizemos  e  esperamos  fazer  em  o  Senhor  Nosso,  deixando  os 
fervores  de  nossa  prospera  viagem  aos  Irmãos,  que  mais  em  particular  a 
notaram. 

Chegámos  a  esta  Bahia  a  29  dias  do  mez  de  Março  de  1449.  Andámos 
na  viagem  oito  semanas.  Adiámos  a  terra  de  paz,  e  quarenta  ou  cinco- 
enta  moradores  na  povoação  «jue  antes  era.  Receberam-nos  com  grande 
alegria.  E  achámos  uma  maneira  de  Igreja  junto  da  qual  logo  nos  apo- 
sentámos os  Padres  e  Irmãos  cm  umas  casas  a  par  d'ella,  que  não  foi 
pouca  consolação  para  nós- para  dizermos  missas  e  confessarmos.  E  n"isto 
nos  occupamos  agora. 

Confessa-se  toda  a  gente  da  armada,  digo  a  que  vinha  nos  outros 
navios.  Porque  os  nossos  d;it(.'rminámos  de  os  cfnífessar  na  não.  O  pi'imeiro 
domingo  que  dissemos  missa  foi  a  (juarta  dominga  da  (juadragesima. 
Disse  eu  missa  cedo,  e  todos  os  Padres  c  Irmãos  confirmámos  os  votos 
que  tínhamos  feito,  e  outros  de  novo  com  muita  devoção  c  conheci- 
mento de  Nosso  Senhor,  segundo  pelo  exterior  é  licito  conheoer.  Eu 
prego  ao  Governador,  e  á  sua  gente  na  nova  cidade  (jue  se  comera,  e  o 

VOL,    II  IV 


290  AÍ'1'I£.ND1CE 

Padre  NavaiTO  á  gente  tia  leiTít.  Espero  em  Nosso  Senhor  fazer-se  fruilo, 
posto  que  a  gente  da  terra  vive  toda  em  peccado  mortal.  E  não  lia  ne- 
nhum que  deixe  de  ter  muitas  negras,  das  qiiaes  estão  cheios  de  íillios 
c  he  grande  mal.  Nenhum  d"elles  se  vem  confessar,  ainda  queira  Nosso 
Senhor  que  o  façam  depois.  O  Irmão  Vicente,  rijo  ensina  a  doutrina  aos 
meninos  cada  dia,  e  lambem  tem  eschola  de  ler  e  escrever;  parece-me 
l)om  modo  este  para  trazer  os  índios  d'está  terra,  os  quaes  tem  gi-andes 
desejos  de  aprender,  c  perguntados  se  querem,  mostram  grandes  dese- 
jos. 

D'esta  maneira  ir-lhes-hei  ensinando  as  orações  e  doutrinando-os  na  fè 
até  serem  hábeis  para  o  báutismo.  Todos  estes  que  tratam  comnosco, 
dizem  que  querem  ser  como  nós,  senão  que  não  tem  com  que  se  cu- 
bram como  nós.  E  este  só  inconveniente  tem.  Se  ouvem  tanger  á  missa 
já  acodem,  e  quanto  nos  vêem  tazcr,  tudo  fazem,  assentam-se  de  giolhos, 
batem  nos  peitos,  levantam  ^is  mãos  ao  Ceo.  E  já  um  dos  principaes 
d'elles  aprende  A  ler,  e  tema  lição  cada  dia  com  grande  cuidado,  e  em 
dous  dias  soube  o  a,  b*  c  todo,  e  o  ensinámos  a  benzer,  tomando  tudo 
com  grandes  desejos.  Diz  que  quer  ser  Christão,  e  não  comer  carne  hu- 
mana, nem  ler  mais  de  uma  mulher,  e  outras  cousas,  somente  que  ha- 
de  ir  á  guena,  e  os  que  captivar,  vendel-os  e  servir-se  d'elles.  Poi-quo 
estes  d'esta  terra  sempre  tem  guerra  com  outros,  e  assim  andam  todos 
em  discórdia,  comem-se  uns  aos  outros,  digo  os  contrários.  ííe  gente 
que  nenhum  conhecimento  tem  de  Deos.  Sem  Ídolos,  fazem  tudo  quanto 
lhes  dizem.  Trabalhamos  de  saber  a  lingua  d'elles,  e  uMsto  o  Padre  Na- 
varro nos  leva  a  vantagem  a  todos.  Temos  determinado  ir  viver  com  as 
aldeãs  como  estivermos  mais  assentados  e  seguros,  e  aprender  com 
elles  a  lingua,  e  ir-lhes  doutrinando  pouco  a  pouco.  Ti-abalhei  por  tirar 
em  sua  lingua  as  orações  e  algumas  praticas  de  Nosso  Senhor,  e  não 
posso  achar  lingua  que  m'o  saiba  dizer,  porque  são  elles  tão  brutos  que 
nem  vocábulos  tem.  Espero  de  os  tirar  o  melhor  que  puder  com  um 
homem  que  n'esta  terra  se  creou  de  moço,  o  qual  agora  anda  muito  oc- 
cupado  em  o  que  o  Governador  lhe  manda,  e  não  está  aqui.  Este  ho- 
mem com  um  seu  genro  he  o  que  mais  conlirma  as  pazes  com  esta  gen- 
te, por  serem  elles  seus  amigos  antigos.  Também  achámos  um  Princi- 
pal d"elles  já  Christão  bautizado,  o  qual  me  disseram,  que  muitas  vezes 
o  pedira;  e  por  i§so  está  mal  com  todos  seus  parentes.  Um  dia,  achan- 
do-me  eu  perto  d'ellc,  deu  uma  liofelada  grande  a  um  dos  seus  por 


CAUTAS  íiO  PADliJC  NOUHKCA  291 

Uic  (lizLTin.il  d3  MÓS,  Oii  outra  cousa  semulliaatc.  Auda  muito  fervente 
c  grande  nosso  amigo.  Demos-lhe  um  barrete  vermelho  que  nos  ficou  do 
mar,  e  humas  calças.  Traz-nos  peixe  e  outras  cousas  da  terra  com 
grande  amor.  Não  tem  ainda  noticia  de  nossa  fé,  en8Ínamos-lli'a;  Madru- 
ga milito  cedo  a  tomar  lição,  e  depois  vai  aos  moços  a  ajudal-os  ás 
obras.  Este  diz,  que  fará  CUristãos  a  seus  irmãos  e  mulheres,  e  quantos 
puder.  Espero  em  o  Senh.or  que  esfeha  de  ser  um  grande  meio  e  exem- 
plo para  todos  os  outros,  os  quaes  lhe  vão  já  tendo  grande  inveja  por 
verem  os  mimos  e  favores  que  lhe  fazemos.  Um  dia  comeu  comnosco 
á  meza  perante  dez  ou  onze,  ou  mais,  dos  seus,  os  quaes  se  espantaram 
do  favor  que  lhe  dávamos.  Parece-me  que  não  podemos  deixar  de  dar  a 
roupa  que  trouxemos  a  estes  que  (pierem  ser  Christãos,  repartindo-lh"a 
até  ficarmos  todos  iguacs  com  elles,  ao  menos  por  não  escandalisar  aos 
meus  Irmãos  de  Coimbra,  sj  souberem  que  por  falta  de  algumas  ciroulas 
íleixa  uma  alma  de  ser  chrislãa,  e  conhecer  a  seu  Creador  e  Senhor,  e 
dar-lhe  gloria.  Ego  pro  mi  ia  tanto  positus  irjne  charitatis  non  cremor. 
Certo  o  Senhor  quer  ser  conhecido  d"estas  gentes,  e  communicar  com 
elles  os  tliesouros  dos  merecimentos  da  sua  paixão  sicut  aliquem  te  au- 
lUvi  prophctautem.  E  por  tanto  mi  per  compelle  multas  intrare  naves  et  venire 
aã  Itanc,  quam  plantat  Dominus  vineam  suam.  Lá  não  são  necessárias  le- 
tras mais  que  para  entre  os  Christãos  nossos,  porém,  virtude  e  zelo  da 
honra  de  Nosso  Senhor  he  cá  mui  necessário.  O  Padre  Leonardo  Nunes 
mando  aos  Ilheos  e  Porto  Seguro,  a  confessar  aquella  gente  que  tem  no- 
me de  Christãos,  porque  me  disseram  de  lá  muitas  misérias,  e  assim  a 
saber  o  fruito  que  na  terra  se  pôde  fazer.  Eile  escreverá  a  Vossa  Reve- 
rendíssima de  cá  largo.  Leva  por  companheiro  a  Diogo  Jacome,  para  en- 
sinar a  doutrina  aos  meninos,  o  que  elle  sabe  bem  fazer.  Eu  o  fiz  já  en- 
saiar na  náo,  he  um  bom  filiio.  Ntjs  todos  três  confessaremos  esta  gen- 
te, e  depois  espero  que  Irá  um  de  nós  a  uma  povoação  grande,  das 
maiores  c  melhores  d"esta  terra,  que  se  chama  Pernambuco,  e  assim 
em  muitas  panes  apresentaremos  e  convidaremos  com  o  Cruxificado. 
lista  me  parece  agora  a  maior  em[)reza  de  todas,  segundo  vejo  a  gente 
dócil.  S(')mente  tomo  o  mátj  exemplo  que  o  nosso  (^iiristianismo  Hk.-s  dá, 
porque  ha  homens  que  lia  nove  e  dez  annos  (pie  se  não  confessam.  E  pa- 
rece-me  que  põe  a  febcidade  cm  ler  muitas  mulheres.  Dos  Sacerdotes 
ouço  cousas  feas.  Parecc-me  que  devia  Vossa  ileverendissima  de  lem- 
l)rar  a  Sua  Alteza  um  Vigário  Geral,  porque  sei  que  mais  moverá  o  te- 


20á  APPEiNDICE 

mor  da  justiça  qae  o  amor  do  Senhor.  E  nSo  ha  óleos  para  ungir,  nem 
para  bautizar,  faça-os  Vossa  Reverendissima  vir  no  primeiro  navio;  e  pa- 
rece-me  que  os  havia  de  trazer  um  Padre  dos  nossos.  Também  me  pa- 
rece que  Mestre  João  aproveitaria  cá  muito,  porque  a  sua  hngua  he  se- 
melhante a  esta,  e  mais  aproveitar-nos-hemos  cá  da  sua  Theologia.  A  terra 
cá  acharaol-a  boa  e  sãa.  Todos  estamos  de  saúde;  Deos  seja  louvado,  mais 
sãos  do  que  partimos.  As  mais  novas  da  terra,  e  da  nossa  Cidade  os  Ir- 
mãos escreverão  largo,  e  eu  também  pelas  nãos  quando  partirem.  Crie 
Vossa  Reverendissima  muitos  íilhos  para  cá  que  todos  são  necessários. 
Eu  um  bem  acho  n"esta  terra,  eque  não  ajudará  pouco  a  permanecerem 
depois  na  fé,  que  he  será  terra  grossa.  E  todos  tem  bem  o  que  hão  mi- 
ter,  e  a  necessidade  lhes  não  fará  prejuízo  algum.  Estão  espantados  de 
ver  a  magestade  com  que  entrámos  e  estamos,  e  temem-nos  muito,  .o 
que  também  ajuda.  Muito  ha  que  dizer  desta  terra;  mas  deixo-o  ao  co- 
mento dos  Charissimos  Irmãos.  O  Governador  he  escolhido  de  Deos  para 
isto,  faz  tudo  com  muito  tento  e  siso.  Nosso  Senhor  o  conservará  para 
reger  este  seu  povo  de  Israel. — Tu  autem  per  ora  pro  omnibus  et  presentim 
pro  filiis  quos  enutristi. — Lance-nos  a  todos  a  benção  de  ChristoJesu  Dul- 
císsimo. D'esta  Bahia^  15i9. 

Manoel  da  Nóbrega. 


(Revista  do  Instituto,  tom.  v,  pag.  328.) 


CARTA  n 


AO  PADRE  MESTRE  SIMÃO  RODRIGUES 


A  graça  e  amor  de  Nosso  Scnlior  Jesu  Christo  seja  sempre  em  nos- 
so favor — Amen. 

Pela  primeira  via  escrevi  a  V.  R.  e  aos  Irmãos  largo,  e  agora  tor- 
narei a  repetir  algumas  cousas,  ao  menos  em  somma,  porque  o  por* 
tador  d'esta,  como  testemunha  de  vista,  me  escusará  de  me  alargar 
muito,  e  algumas  cousas  mais  se  poderão  ver  pela  carta  que  escre- 
vo ao  Doutor  Navarro.  N'esta  terra  ha  um  grande  peccado,  que  he  te- 
rem os  homens  quasi  todos  suas  negras  por  mancebas,  e  outras  livres, 
que  pedem  aos  negros  por  mulheres,  segundo  o  costume  da  terra,  que 
he  terem  muitas  mulheres.  E  estas  deixam-as  quando  lhes  apraz,  o 
que  he  grande  escândalo  para  a  nova  Igreja  que  o  Senhor  quer  fundar. 
Todos  se  me  escusam  que  não  tem  mulheres  com  que  casem.  E  conhe- 
ço eu  que  casariam  se  achassem  com  quem;  era  tanto  qua  uma  mulher, 
ama  de  um  homem  casado,  que  veio  n'esta  armada,  pelejavam  sobre 
cila  a  quem  a  haveria  por  mulher.  E  uma  escrava  do  Governador  lhe  pe- 
diam por  mullior,  e  diziam  que  lh'a  queriam  forrar.  Pareco-me  cousa 
mui  conveniente  mandar  Sua  Alteza  algumas  mulheres  que  lá  tem  pouco  re- 
médio de  casamento  a  cslas  partes,  ainda  que  fossem  erradas,  porque 
casarão  todas  niiii  bem,  com  tanto  que  não  sejam  taes  o  que  de  todo  te- 
nliam  perdido  a  vergonha  a  Deos,  e  ao  mundo.  E  digo  que  todas  casarão 
mtii  l»em,  por  que  he  feiTa  muito  grossa  e  larga,  e  uma  i»lanta  que  se 


204  APPKNDÍCn 

faz  uma  vez  dura  dez  annos  aquella  novidailo,  por  que  assim  como  vão 
apanhando  as  raizes  plantam  logo  os  ramos,  e  logo  arrebcnlam.  De  ma- 
neira que  logo  as  mulheres  teriam  remédio  de  vida,  e  estes  homens  re- 
mediariam suas  almas,  e  facilmente  se  povoaria  a  terra.  E  estes  aman- 
cebados tenho  amoestado  por  vezes,  assi  era  pregações  em  geral,  co- 
mo em  particular.  E  uns  casam  com  algumas  mulheres  se  se  acham, 
outros  com  as  mesmas  negras,  e  outros  pedem  tempo  para  venderem 
as  negras,  ou  se  casarem.  De  maneira  que  todos,  gloria  ao  Senhor,  se 
põem  em  algum  bom  meio.^  somente  um  que  veio  n*esía  armada,  o  qual 
como  chegou  logo  tomou  uma  índia  gentia,  pedindo-a  a  seu  pai,  fazen- 
do-a  christãa,  porque  este  he  o  costume  dosPortuguezes  d"esía  terra,  e  cui- 
dão  n'isto  — olsequium  se  fveslare  Dco, —  porcjue  dizem  não  ser  pec- 
cado  tão  grande,  não  olhando  a  grande  irreverência  (jue  se  faz  ao  sa- 
cramento do  bautismo.  E  este  amancebado,  não  dando  par  muitas  amoes- 
taçijes  que  lhe  tinha  feito,  se  poz  a  permanecer  com  ella,  o  qual  eu  amoes- 
tei  no  púlpito  que  dentro  d"aquella  semana  a  deitasse  fora,  sob  pena  de 
lhe  prohibir  o  ingresso  da  Igreja;  o  que  fiz  por  ser  peccado  mui  notó- 
rio, e  escandaloso,  e  elle  pessoa  de  quem  se  esperava  outra  cousa.  E 
muitos  tomavão  occasião  de  tomarem  outras.  O  que  tudo  Nosso  Senhor 
remediou  com  isto  que  lhe  fiz.  Porque  logo  a  deitou  de  casa,  e  os  ou- 
tros que  Q  tinhnm  imitado  no  mal,  o  imitaram  também  uisto,  que  bola- 
ram também  as  suas,  antes  que  mais  se  soubesse.  E  agora  ficou  grande 
meu  amigo.  Agora  ninguém  de  que  se  presuma  mal  merca  estas  es- 
cravas. N"este  oíTicio  me  metti  em  ausência  do  Vigário  Geral,  pare- 
cendo^me  que  em  cousas  de  tanta  necessidade,  Nosso  Senhor  me  dava 
cuidado  d'estas  ovelhas.  Alguns  blasfemadores  públicos  do  nome  do  Se- 
nhor havia,  os  quaes  amoestamos  por  vezes  em  os  sermões,  lendo-lhes  as 
peqas  do  direito,  eamoestando  ao  Ouvidor  Geral  que  aítentasse  por  isso. 
Gloria  ao  Senhor,  vai-se  já  perdendo  este  máo  costume.  E  se  acontece  cahir 
algum  pelo  máo  costume,  veni-se  a  mim  pedir-mo  penitencia.  Nestes 
termos  está  esta  gente.  Agora  temo  que,  vindo  o  Vigário  Gerai,  que 
já  he  chegado  a  uma  povoação  aqui  perto,  se  ousem  alargar  mais.  Eu  la- 
drarei quanto  puder.  Escrevi  a  Vossa  Reverenchssima  acerca  dos  saltos 
que  se  fazem  n"esta  terra,  e  de  maravilha  se  acha  cá  escravo  que  não 
fosse  tomado  de  salto;  e  he  d"esía  maneira  c]ue  fazem  pazes  com  os  ne^ 
gros  para  lhe  trazerem  a  vender  o  que  tem,  e  por  engano  enchem  os 
naviqs  cVelles,  e  fogem  com  elles;  e  alguns  dizem  que  o  podem  fazer  por 


CARTAS  DO  PADHE  NOliUEGA  205 

OS  negros  terem  já  feito  mal  aos  Christãos.  O  que  posto  que  seja  assi, 
foi  depois  de  terem  muitos  escândalos  recebidos  de  nós.  De  maravilha 
se  adiará  cá  terra,  onde  os  Christãos  não  fossem  causa  da  guerra  e  dis- 
senção,  e  tanto  que  n'esta  Bahia,  que  he  tido  por  um  gentio  dos 
peiores  de  todos,  se  levantou  a  guerra  por  Christãos,  Porque  um  Pa- 
dre, por  lhe  um  Principal  d"estes  negros  não  dar  o  que  lhe  pedia,  lhe 
lançou  a  morte,  no  que  tanto  imaginou  que  morreu,  e  mandou  aos  fi- 
lhos que  o  vingassem.  De  maneira  que  os  primeiros  escândalos  são  por 
causa  de  Christãos:  e  certo  que,  deixando  os  máos  costumes  que  eram 
de  seus  avós,  em  muitas  cousas  fazem  avantagem  aos  Christãos,  por- 
que melhor  moralmente  vivem,  e  guardam  melhor  a  lei  da  natureza.  Al- 
guns d'estes  escravos  mt  parece  que  seria  bom  juntal-os,  e  tornal-os  á 
sua  terra,  e  ficar  cá  um  dos  nossos  para  os  ensinar,  porque  por  aqui 
se  ordenaria  grande  entrada  com  todo  este  gentio.  Entre  outros  saltos 
que  n'esta  costa  são  feitos,  um  se  fez  ha  dous  annos  muito  cruel,  que 
foi  irem  uns  navios  a  um  gentio,  que  chamam  os  Chacios,  que  estão  além 
de  S.Vicente;  o  qual  todos  dizem  que  heo  melhor  gentio  d'esta  costa,  c 
mais  apparelhado  para  se  fazer  froito.  Elle  somente  tem  duzentas  legoas  de 
terra;  entre  elles  estavam  convertidos  e  baiitizados  muitos.  Morreo 
um  d'estes  clérigos:  e  ficou  o  outro,  e  proseguio  o  fruilo:  foram  alli 
ter  estes  navios  que  digo,  e  tomaram  o  padre  dentro  em  um  dos  navios 
com  outros  que  com  elle  vinham,  e  levantaram  as  velas:  os  outros  que 
ficaram  em  terra  vieram  em  pâos  a  bordo  do  navio,  que  levassem  embo- 
ra os  negros,  e  que  deixassem  o  seu  padre;  e  por  não  quererem  os  dos 
navios,  tornaram  a  dizer  que,  pois  levavam  o  seu  padre,  que  levassem 
também  a  elles.  c  logo  os  recolheram  c  os  trouxeram,  e  o  padre  puze- 
rão  em  terra;  e  os  negros  desembarcaram  em  uma  capitania,  para  ven- 
derem alguns  d'elles,  e  todos  se  acolheram  á  Igreja,  dizendo  que  eran\ 
Christãos,  e  que  sabiam  as  orarõos,  e  ajudar  a  missa,  pedindo  misericór- 
dia. Não  lhes  valeo,  mas  foram  tirados  e  vendidos  pelas  capilaniís  d'('S- 
ta  costa.  Agora  me  dizem  que  he  lá  ido  o  Padre  a  fazer  queixumes. 
D'elle  poderá  saber  mais  largo  o  que  passa.  Agora  temos  assentado  com 
o  Governador,  que  nos  mandi;  dar  estes  negros,  para  os  tornarmos  á  sua 
terra,  e  ficar  lá  Leonardo  Nunes  para  os  ensinai-. 

Desejo  muito  que  Sua  Alteza  encommendasse  isto  nniitoao  Governa- 
dor, digo,  que  mandasse  provisão  i)ara  que  entregasse  todos  os  escravos 
salteados  para  os  toruai-rnos  a  sua  (erra,  c  qui;  por  parii' da  justiça  se  sai- 


29C  ,         APPENDICK 

ba  G  se  tire  a  liiapo,  posto  ({uo  não  liaja  parlo,  pjis  disto  depende  tan- 
to a  paz  e  conversão  d'eslo  gentio,  E  Vossa  Reverendissima  não  seja 
avarento  d"esses  irmãos,  e  mande  muitos  para  soccorrerom  a  tantas  e 
tão  grandes  necessidades,  que  se  perdem  estas  almas  á  mingna.  petenle 
panem  et  non  est  qiii  frangat  eis.  Lá  bem  bastam  tantos  religiosos  e  pre- 
gadores, muitos  Moyses  e  Prophetas  ha  lá.  Esta  terra  he  nossa  empresa, 
e  o  mais  gentio  do  mundo.  Não  deixe  lá  Vossa  Reverendissima  mais 
que  uns  poucos  para  aprender,  os  mais  venham.  Tudo  cá  he  miséria 
quanto  se  faz.  Quando  muito  ganhão-se  cem  almas,  posto  que  corram  todo 
o  reino:  cá  he  grande  manchêa.  Será  cousa  muito  conveniente  liaver  do 
Papa  ao  menos  os  poderes  que  temos  do  Núncio,  e  outros  maiores;  e 
podermos  levantar  altar  em  qualquer  parte,  porque  os  do  Núncio  não 
são  perpétuos,  E  assi  que  nos  commetta  seus  poderes  acerca  d'estes 
saltos,  para  podermos  commutar  algumas  restituições,  e  quietar  cons- 
ciências e  ameaços  que  cada  dia  acontecem,  E  assi  também  que  as  leis 
positivas  não  obriguem  ainda  este  gentio,  atè  que  vão  aprendendo  de 
nós  por  tempo  s,  jejuar,  confessar  cada  anno,  e  outras  cousas  seme- 
lhantes; e  assi  também  outras  graças  e  indulgências,  e  a  bulia  do  San- 
tíssimo Sacramento  rara  esta  cidade  da  Bahia,  e  que  se  possa  communi- 
car  a  todas  as  partes  d'esta  costa,  e  o  mais  que  a  Vossa  Reverendíssima 
parecer.  He  muito  necessário  cá  um  Bispo  para  consagrar  óleos  para 
os  bautizados  e  doentes,  e  também  para  confirmar  os  Christãos  que  se 
bautisam,  ou  ao  menos  hum  Vigário  Geral,  para  castigar  e  emendar  grandes 
mates,  que  assi  no  ecdesiaslico  como  no  secular  se  commettem  n'esta  costa, 
porque  os  seculares  tomão  exemplo  dos  Sacerdotes,  e  o  gentio  de  todos,  e 
tem-se  cá  cjue  o  vicio  da  carne  que  não  he  peccado,  como  não  he  notavel- 
mente grande  e  consente  a  heresia  que  se  reprova  na  Igreja  de  Deos — 
quod  est  delendnm.  ôs  oleos  que  mandamos  pedir  nos  mande,  E  vindo 
Bispo^não  seja  dos  quarunl  sv.a,  sed  cjuod  Jesu  Christi.  Venha  para  tra- 
balhar'e  não  para  ganhar. 

Eu  trabalhei  por  escolher  um  bom  lugar  para  o  nosso  collegio  den- 
tro na  cerca,  e  somente  achei  um,  que  lá  vai  por  mostra  a  Sua  Alte- 
za, o  qual  tem  muitos  inconvenientes,  porque  fica  muito  junto  da  Sé, 
e  duas  Igrejas  juntas  não  he  bom;  e  he  pequeno,  porque  onde  se  ha 
de  fazer  a  casa  não  tem  mais  que  dez  braças,  posto  que  tenha  ao  com- 
prido da  costa  quarenta,  e  não  tem  onde  se  possa  fazer  horta,  nem  ou- 
tra causa,  por  ser  tudo  costa  mui  Íngreme,  e  com  muita  sujeição  da  ci- 


CARTAS  DO  PADRE  NORREGA  297 

(lade.  E  poríanlo  a  lodos  nos  parece  muilo  melhor  um  toso  que  está 
logo  alúm  da  cerca,  para  a  parlo  donde  se  ha  de  estender  a  cidade,  de 
maneira  que  antes  do  muitos  annos  podemos  ficar  no  meio,  ou  pouco 
menos  da  gente,  e  está  logo  ahi  uma  aldeã  perto,  onde  nós  começámos 
a  bautizar,  em  a  qual  já  temos  nossa  habitação.  Está  sobre  o  mar,  tem 
agua  ao  redor  do  collegio,  e  dentro  (Felle  tem  muito  lugar  para  hortas, 
e  pomares.  lio  perto  dos  Chrislãos,  assi  velhos  como  novos.  Sómenle  mo 
põe  um  inconveniente  o  Governador,  não  ficar  dentro  na  cidade,  e  po- 
der haver  guerra  com  o  gentio,  o  que  me  parece  que  não  convence, 
porque  os  que  hão  de  estar  no  collegio  hão  de  ser  filhos  de  todo  este 
gentio,  que  nór5  não  temos  necessidade  de  casa.  E  posto  que  haja  guer- 
ra, não  lhes  podo  fazer  mal :  e  quando  agora  nós  andámos,  lá  dormi- 
mos e  comemos,  que  lie  tempo  de  mais  temor,  e  nos  parece  que  esta- 
mos seguros,  quanto  mais  depois  que  a  terra  se  povoar.  Quanto  mais 
que  primeiro  hão  do  fazer  mal  nos  engenhos,  que  hão  de  estar  entre 
ellcs  e  nós,  e  quando  o  mal  for  muito,  tudo  he  recolher  á  cidade.  Mór- 
menti?  que  eu  creio  que  ainda  que  façam  mal  a  todos,  a  nós  nos  guar- 
darão, pela  aíTeição  que  já  nos  começam  a  ter;  e  ainda  havendo  guerra, 
me  pareceria  a  mim  poder  estar  seguro  entre  ellosn'este  começo,  quanto 
roais  depois.  De  maneira  que,  cá  todos  somos  de  opinião  que  se  faça  alli. 
E  Vossa  Reverondissima  devia  de  trabalhar  por  lhe  fazer  dar  logo  prin- 
cipio, pois  disto  resulta  tanta  gloria  ao  Senhor,  e  proveito  a  esta  terra. 
A  mais  custa  he  fazer  a  casa,  por  causa  dos  oíTiciaes  que  hão  de  vir  de 
lá,  porque  a  inaníença  dos  estudantes,  ainda  que  sejão  duzentos,  he 
muito  pouco,  porque  com  o  terem  cinco  escravos  que  plantem  mantimen- 
tos, e  outros  que  pesquem  com  barcos,  e  redes,  com  pouco  se  mante- 
rão; e  para  se  vestir  farão  um  algodoal,  que  cá  ha  muito.  Os  escravos 
são  cá  baratos,  e  os  mesmos  pais  hão  de  ser  cá  seus  escravos.  IIc  grande 
obra  esta  e  de  pouco  custo;  nós  vindo  agora  o  Vigário  nos  passamos 
para  lá,  por  causa  dos  convertidos,  onde  estaremos,  Vicente  Rodrigues, 
eu,  e  um  soldado  que  se  metteo  comnosco  para  nos  servir,  e  está  agora 
em  exercícios,  de  que  eu  estou  mui  contente.  Faremos  nossa  Igreja, 
onde  ensinaremos  os  nossos  novos  Christãos;  e  aos  domingos  e  festas  vi- 
sitarei a  cidade,  e  pregarei.  O  Padre  António  Pires,  e  o  Padre  Navarro 
estarão  em  outras  aldeãs  longe,  onde  já  lhes  fazem  casas.  E  portanto,  he 
necessário  Vossa  Reverendíssima  mandar  oíTiciaes,  e  hão  de  vir  já  com 
a  paga,  porque  cá  diz  o  Governador,  que  ainda  que  venha  alvará  de  Sua 


"298  APPE.NDICF, 

Alteza  para  nos  dar  o  necessário,  que  não  o  haverá  para  isto.  Os  oííi- 
ciaes  que  cá  estão  tem  mui  lo  que  fazer,  e  que  o  não  tenham  estão  com 
grande  saudade  do  Reino,  porque  deixam  lá  suas  mulheres  e  filhos,  e 
não  aceitarão  a  nossa  obra  depois  que  cumprirem  com  Sua  Alteza,  e 
também  o  trabalho  que  tem  com  as  viandas  e  o  mais  os  tira  dMsso.  Por 
tanto  me  parece  que  haviam  de  vir  de  lá,  e  se  possível  fosse  com  suas 
mulheres  e  filhos,  e  alguns  que  façam  taipas,  c  carpinteiros.  Cá  está  nm 
mestre  para  as  obras,  que  he  um  sobrinho  de  Luiz  Dias,  mestre  das  obras 
d"El-Rei,  o  qual  veioxom  30;>000  réis  de  partido,  este  não  he  necessário, 
porque  basta  o  tio  para  as  obras  de  Sua  AUeza;  a  este  haviam  de  dar  o 
cuidado  do  nosso  collegio,  he  bom  official. 

Serão  cá  muito  necessárias  pessoas  que  teçam  algodão,  que  cá  ha 
muito,  e  outros  officiaes.  Traballio  Vossa  Reverendíssima  por  virem  a 
esta  terra  pessoas  casadas,  porque  certo  he  mal  empregada  esta  terra  em 
degradados,  que  cá  fazem  muito  mal;  e  j;\  que  cá  viessem,  havia  de  ser 
para  andarem  afeiTolhados  nas  obras  de  Sua  Alteza.  Também  peça  Vossa 
Reverendissima  algum  peditório  para  roupa,  para  entretanto  cobrirmos 
estes  novos  convertidos,  ao  menos  uma  camisa  a  cada  mulher  pela  ho- 
nestidade da  Religião  Christãa,  porque  vem  todas  a  esta  cidade  á  missa 
aos  domingos  e  festas,  que  faz  muita  devoção,  e  vem  rezando  as  orações 
que  lhe  ensinamos,  e  não  parece  honesta  estarem  nuas  entre  os  Chris- 
tãos  na  Igreja,  e  quando  as  ensinamos.  E  disto  peço  ao  Padre  Mestre 
João  tome  cuidado  por  elle.ser  parte  na  conversão  destes  gentios,  e  não 
fique  senhora  nem  parenta  a  que  não  importune  para  cousa  tão  santa, 
e  a  isto.se  haviani  de  applicar  todas  as  restituições  quelá  se  houvessem 
dfi  fazer,  e  isto  agora  somente  no  começo,  que  elles  farão  algodões  para 
se  vestirem  ao  diante.  Os  Irmãos  todos  estão  de  saúde,  e  fazem  o  oíTi- 
cio  a  que  foram  enviados:  somente  António  Pires  se  acha  mal  das  per- 
nas, que  lhe  arrebentaram  das  maleitas  que  teve,  e  não  acaba  de  ser 
bem  são.  Leonardo  Nunes  mandei  aos  ílheos,  huma  povoação  d"aqui  per- 
to, onde  dá  muito  exemplo  de  si,  e  faz  muito  fruilo,  e  todos  se  espantam 
de  sua  vida  e  doutrina:  foi  com  e!ie  Diogo  Jacome,  que  faz  muito  fruito 
cm  ensinar  os  moços  e  escravos.  Agora  pouco  ha  vieram  aqui  a  consultar- 
me  algumas  duvidas,  e  estiveram  aqui  por  dia  do  Anjo,  onde  bautizámos 
muitos,  tivemos  missa  cantada  com  Diácono  e  sub-Diacono;  eu  disse  mis- 
sa, e  o  Padre  Navarro  a  Epistola,  outro  o  Evangelho.  Leonardo  Nunes  e 
outr-o  clérigo  com  leigos  de  boas  vozes  regiam  o  coro;  fizemos  procissão 


CARTAS  DO  PADRE  NÓBREGA  290 

comgramlc  musica,  a  ({ííc  respondiam  as  trombetas.  Ficaram  os  índios  es- 
pantados do  tal  maneira,,  quo  dopois  podiam  ao  Padre  Navarro,  que  lhes 
cantasse  como  na  procissão  fazia.  Outra  procissão  se  fez  dia  de  Corpus- 
Christi  mui  solemne,  em  que  jogou  toda  a  artilharia,  que  estava  na  cerca, 
as  ruas  muito  enramadas,  houve  danças  e  invenções  á  maneira  de  Portu- 
gal. Agora  he  já  partido  Leonardo  Nunes  com  Diogo  Jacome,  e  lá  me  hão 
de  esperar  quando  cu  fòr  com  o  Ouvidor,  que  irá  d"aqui  a  dous  mezes 
pouco  mais  ou  menos.  O  Padre  Navarro  faz  muito  fruito  entre  estes  gen- 
tios, lá  está  toda  a  semana.  Vicente  Rodrigues  tem  cuidado  de  todos  bauti- 
zados.  António  Pires  e  eu  estamos  o  mais  do  tempo  na  cidade  para  os 
Christãos,  enão  para  mais  que  até  chegar  o  Vigário.  Todos  são  bons  e 
proveitosos,  senão  cu  que  nunca  faço  nada;  e  assaz  devoção  ha,  pois  meu 
máo  exemplo  os  não  cscandalisa. 

Temos  muita  necessidade  deBautisterios,  porque  os  que  cá  vieram  não 
valiam  nada,  e  hão  de  ser  Romanos,  e  Bracharenses,  porque  os  que  vieram 
eram  Venezianos;  e  assi  de  muitas  capas  e  ornamentos,  porque  liavemos 
de  ter  altares  em  muitas  partes,  e  imagens  e  crucifixos,  e  outras  cousas 
semelhantes  o  mais  que  poder:  tudo  o  que  nos  mandaram  que  lá  ficara,  veio 
a  muito  bom  recado.  Folgaríamos  de  ver  novas  do  Congo,  mande-nol-as 
Vossa  Reverendíssima.  A  todos  estes  senhores  devemos  muito  pelo  muito 
amor  que  nos  tem,  posto  que  o  de  algims  seja  servil.  O  Governador  nos 
mostra  muita  vontade.  Pêro  de  Góes  nos  faz  muitas  charidades.  O  Ou- 
vidor Geral  he  muito  virtuoso,  e  ajuda-nos  muito.  Não  fallo  em  António 
Cardoso  que  he  nosso  pai.  A  todos  mande  Vossa  Revcrendissima  os 
agradecimentos.  António  Pires  pede  a  Vossa  Revcrendissima  alguma  fer- 
ramenta de  carpinteiro,  porque  ellc  he  nosso  oíTicial  de  tudo.  Vicente 
Rodrigues  porque  he  hermiíão,  pede  muitas  sementes;  o  Padre  Navarro 
e  eu  os  livros,  que  já  lá  pedi,  ponjuc  nos  fazem  muita  mingoa  para  du- 
vidas que  cá  ha,  que  todas  se  perguntam  a  mim.  E  todos  pedimos  *sim 
benção,  e  ser  favorecidos  em  suas  orações  com  Nosso  Senhor.  Agora  vi- 
vemos de  maneira  quo  temos  disciplina  ás  sextas  feiras,  c  alguns  nos  aju- 
dam a  disciplinar;  he  por  os  que  estão  em  peccado  mortal  c  conversão 
d"cste  gentio,  c  por  as  almas  do  Purgatório,  c  o  mesmo  se  diz  pelas  ruas 
com  uma  campainha  segundas  e  quaitas  feiras,  assi  como  nos  llheos. 
Temos  nossos  exames  á  noute,  e  anltí  manhãa  uma  iiora  de  oração,  c 
o  mais  tempo  visitar  o  próximo,  c  celebrar,  c  outros  serviços  da  casa. 
Resla-mc  pedir  que  rogue  a  Nosso  Senhor  por  seus  filhos  e  por  mim. 


300  APPEXDICE 

Ut  quos  dedisli  non  perdam  ex  eis  quem  qttam.  Pedimos  SUa  benção.  D'esta 

Bahia  a  ix  de  Agosto  de  1íj40,  Manokl  da  Nobreça. 

(Revista  do  Insliluto,  vol.  v,  pag.  43õ.) 

CARTA   III 

AO  PADRE  :\IESTRE  SIMÃO 


A  graça  e  amor  de  Christo  Nosso  Senhor  seja  sempre  em  nosso  fa- 
vor.— Amen. 

Depois  de  ter  escripto  a  Vossa  Reverendíssima  posto  que  brevemen- 
te, segundo  meus  desejos,  succedeo  não  se  partir  a  caravella,  e  deo-me 
■  logar  para  fazer  esta,  e  tornar-lhe  a  encommendar  as  necessidades  da 
terra,  e  o  aparelho  que  tem  para  se  muitos  converterem.  E  certo  he  muito 
necessário  haver  homens  qui  quosrant  Jesnm  Chrislum  solum  erucifixum.  Cá 
ha  Clérigos,  mas  he  a  escoria  que  de  lá  vem. — Omnes  qucorunt  qnce  sua  sitnf. 
Não  se  devia  consentir  embarcar  Sacerdote  sem  ser  sua  vida  muito  ap- 
provada,  porque  estes  destruem  quanto  se  edifica — sed  mitfe  pater  filius 
tuos  in  Domino  nutritos  fratres  meos,  ul  in  omnem  Jianc  terram  exeat  sonns 
eornm.  Hontcm  que  foi  Domingo  de  Ramos,  apresentei  ao  Governador 
um  para  se  bautizar  depois  de  doutrinado,  o  qual  era  o  maior  contra- 
rio que  os  Christãos  até  agora  tiveram,  recebeo-o  com  amor.  Espero  em 
Nosso  Senhor  de  se  fazer  muito  fruito.  Também  me  contou  pessoa  fide- 
digna que  as  raizes  de  que  cá  se  faz  o  pão,  que  S.  Thomé  as  deo,  porque 
cá  não  tinham  pão  nenhum.  E  isto  se  sabe  da  fama  que  anda  entre  elles, 
quia  patres  eorum  imntiaverunt  eis.  Estão  daqui  perto  umas  pisadas  fi- 
guradas em  uma  rocha,  que  todos  dizem  serem  suas.  Como  tivermos 
mais  vagar  havemol-as  de  ir  ver.  Estão  estes  negros  mui  espantados  de 
nossos  oflicios  divinos.  Estão  na  igreja  som  lhes  ninguém  ensinar,  mais 
devotos  que  os  nossos  Chi-istãos.  Finalmente  perdem-se  á  mingua.  Mitte 


CAUTAS  DO  1'ADUL:  NÓBREGA  301 

igilur  operários  quiajaiu  sali  alba  est  mesis.  O  Governador  nos  temesco- 
Uiido  hum  bom  valle  para  nós,  parecc-me  que  leremos  agua,  e  assim 
m'o  dizem  lodos.  Aqui  devíamos  de  fazer  nosso  valhacouto,  e  daqui  com- 
bater todas  as  outras  partes.  lia  cá  muita  necessidade  de  Vigário  Geral 
l)ara  que  elie  com  temor,  e  nós  com  amor  procedendo,  se  busque  a  glo- 
ria do  Senhor.  O  mais  verá  pelas  cartas  dos  Irmãos. 

Vale  semper  in  Domino  mi  pr.  Et  hcneiic  nos  omnes  in  Chrislo  Jesu. 

-^Da  Bahia  1549. 

Manoel  da  Noduega. 

(Revista  do  Instituto^  vul.  v,  pag.  433.) 

CAHTA  IV 


INFORMAÇÃO  DAS  TEUUAS  DO  BRASIL, 
DIRIGIDA  AOS  PADRES  DA  PROVÍNCIA  DE  PORTUGAL 

A  informação  que  d"eslas  partes  do  Brasil  vos  posso  dar,  Padres  e 
Irmãos  charissimos,  he  que  tem  esta  terra  nnl  legoas  de  costa,  toda  po- 
voada de  gente,  que  anda  nua,  assim  mullicres  como  homens,  tirando  al- 
gumas partes  mui  longe  d"onde  estamos,  onde  as  mulheres  andam  vesti- 
das á  maneira  de  siganas,  com  panos  de  algodão,  pela  terra  ser  mais 
fria  que  esta,  a  (jual  aqui  he  mui  temi)erada,  de  tal  maneira,  que  o  in- 
verno não  he  frio  nem  quente,  e  o  verão,  ainda  que  seja  mais  quente, 
bem  se  pôde  soffrer;  porém  he  terra  mui  húmida,  pelas  muitas  aguas 
que  chovem  em  todo  tempo  mui  a  miúdo,  pelo  (jual  as  arvores  easher- 
vas  estão  semi)re  verdes.  Em  partes  he  nmi  áspera,  por  causa  dos  mon- 
tes e  matas,  que  sempre  estão  verdes. 

Ha  n'ellas  diversas  fruilas  (pie  comem  os  da  terra,  ainda  que  não 
são  tão  boas  como  as  de  lá,  as  «luaes  lambem  creio  se  dariam  cá,  se  se 
[)lantassem;  porque  vejo  que  se  dão  uvas,  e  ainda  duas  vezes  no  anno; 
l)orém  são  poucas,  p(jr  causa  das  formigas,  (jue  fazem  muito  damno,  as- 


302  APPENt)lCK 

si  n'isto  como  cm  outras  cousas.  Cidras,  laranjas,  limões,  dão-se  era 
rauita  quantidade,  e  figos  tão  bons  como  os  de  lá.  O  mantimento  com- 
mum  da  terra  ho  uma  raiz  de  pâo,  que  chamam  mandioca,  da  qual  fa- 
zem uma  farinha  de  que  comem  todos,  e  dá  taml)em  vinho,  o  qual  mis- 
turado com  a  farinha,  faz  hum  pão  que  escusa  o  de  trigo.  lía  muito  pes- 
cada, e  também  muito  marisco,  de  que  se  mantém  os  da  terra,  e  muita 
caça  de  mato,  e  patos  que  criam  os  íi hIíos;  bois,  vaccas,  ovelhas,  cabras, 
e  galinhas  se  dão  também  na  terra,  e  ha  d"ellas  grande  quantidade. 

Os  gentios  são  de  diversas  castas,  uns  chamam-se  Goyanazcs,  ou- 
tros Carijós.  Este  he  hum  gentio  melhor  que  nenhum  d"esta  costa. 
Os  quaes  foram,  não  ha  muitos  annos,  dous  frades  Castelhanos  ensi- 
nar, e  tomaram  tão  bem  sua  doutrina,  que  tem  já  casas  de  recolhimento 
para  mulheres,  como  de  freiras,  e  outras  de  homens,  como  de  frades. 
E  isto  durou  muito  tempo,  até  que  o  diabo  levou  lá  uma  náo  de  sal- 
teadores e  cativaram  muitos  d"elles.  Trabalhámos  por  recolher  os  toma- 
dos, e  alguns  temos  já  para  os  levar  á  sua  terra,  com  os  quaes  irá  um 
Padre  dos  nossos.  lia  outra  casta  de  gentios  que  chamam  Calmares;  hc 
gente  que  mora  pelos  matos,  e  nenhuma  communicarão  tem  com  os  Chris- 
tãos,  pelo  que  se  espantam  quando  nos  vêm,  e  dizem  que  somos  seus 
irmãos,  porque  trazemos  barbas  como  elles,  as  quaes  não  trazem  lo- 
dos os  outros,  antes  se  rapão  até  as  pestanas,  e  fazem  buracos  nos  bei- 
ços, e  nas  ventas  dos  narizes,  e  põem  uns  ossos  n"elles,  que  parecem  de- 
mónios. E  assi  alguns,  principalmente  os  feiticeiros,  trazem  todo  o 
rosto  cheio  d"elles.  Estes  gentios  são  como  gigantes,  trazem  hum  arco 
mui  forte  na  mão,  e  em  a  outra  hum  páo  mui  grosso,  com  cpie  pelejam 
com  os  contrários,  e  facilmente  os  espedaçam,  fogem  pelos  matos,  e  são 
mui  temidos  entre  todos  os  outros.  Os  que  communicam  com  nós  outros 
até  agora  são  de  duas  castas,  uns  se  chamam  Topinaquis,  e  os  outros  Topi- 
nanibás.  Estes  tem  casas  de  palmas  mui  grandes,  e  d"ellas  em  que  pou- 
sarão cincóenta  índios  com  suas  mulheres  e  filhos.  Dormem  em  redes 
de  algodão  junto  do  fogo,  que  toda  a  noute  tem  aceso,  assim  por  amor 
do  frio,  porque  andão  nús,  como  também  pelos  demónios  que  dizem  fu- 
gir do  fogo.  Pela  qual  causa  trazem  tições  de  noute  quando  vão  fora. 
Esta  gentilidade  nenhuma  cousa  adora,  nem  conhecem  a  Deos;  somente 
aos  trovões  chamão  Titpane,  que  he  como  quem  diz  cousa  divina.  E  as- 
sim nos  não  temos  outro  vocábulo  mais  conveniente  para  os  trazer  ao 
conliecimento  de  Deos,  que  chamar-lhc  «Pai-Tupane^^. 


CAUTAS  1)0  VXDnJH  iNOUnEGA  303 

Somente  entre  ellcsse  íiizem  umas  ceremonias  da  maneira  seguinte. 
De  certos  em  certos  annos  vem  uns  feiticeiros  de  mui  longes  terras,  fingin- 
do trazer  santidade,  e  ao  tempo  de  sua  vinda  lhe  mandam  alimpar  os 
caminhos,  e  vão  recebcl-os  com  danças  e  festas,  segundo  seu  costume;  c  an- 
tes que  cheguem  ao  lugar  andam  as  mulheres  de  duas  em- duas  pelas  casas, 
dizendo  publicamente  as  faltas  que  ílzeram  a  seus  maridos  umas  ás  outras, 
c  pedindo  perdão  d"el!as.  Em  cliei;ando  o  feiticeiro  com  muita  festa  ao 
lugar,  entra  em  uma  casa  escura,  e  põe  huma  cabaça,  que  traz  em  fi- 
gura humana,  em  i)arte  mais  conveniente  para  seus  enganos,  e  mudando 
sua  própria  voz  em  a  de  menino  junto  da  cabaça,  lhes  diz  que  não  curem 
de  trabalhar,  nem  vão  á  roça,  que  o  mantimento  por  si  crescerá,  e  que 
nunca  lhes  faltará  que  comer,  e  cpae  por  si  virá  a  casa,  e  que  as  encha- 
das  irão  a  cavar,  c  as  fi"echas  irão  ao  mato  por  caça  para  seu  senhor,  e 
que  lião  de  matar  muitos  de  seus  contrários,  e  cativarão  muitos  para 
seus  com-ores,  e  promette-lhes  larga  vida,  e  que  as  velhas  se  hão  de 
tornar  moças,  e  as  filhas  que  as  dêem  a  quem  qiiizerem:  e  outras  cou- 
sas semelhantes  lhes  diz  c  promette,  com  que  os  engana,  de  maneira  que 
cí^êem  haver  dentro  na  caljeça  alguma  cousa  santa  e  divina,  que  lhes  diz 
aqucUas  cousas,  as  quaes  crêem.  Acabando  de  faltar  o  feiticeiro,  come- 
çam a  tremer,  principalmente  as  mulheres,  com  grandes  tremores  em  seu 
corpo,  que  parecem  demoninhadas  (como  de  certo  o  são),  deilando-se 
em  terr^,  escumando  pelas  bocas,  e  nisto  lhes  persuade  o  feiticeiro  que 
então  lhe  entra  a  santidade;  e  a  quem  isto  não  faz  tem-o  a  mal.  Depois 
lhe  oíferecem  muitas  cousas,  e  em  as  enfermidades  dos  gentios  usam 
também  estes  feiticeiros  de  muitos  enganos,  e  feitiçarias.  Estes  são  os 
mtjres  contrários  que  cá  temos,  e  fazem  crer  algumas  vezes  aos  doentes 
que  nós  outros  lhes  mettemos  em  o  corpo  facas,  tesouras,  e  cousas  se- 
melhantes, e  qne  com  isto  os  matamos.  Em  suas  guerras  aconselham-sc 
com  elles,  alem  dos  agouros  qne  tem  de  certas  aves. 

Quando  cativam  algum,  trazem-no  com  grande  festa  com  uma  corda 
pela  garganta,  e  dão-lhe  por  mulher  a  íilha  do  Principal,  ou  qualquer 
outra  que  mais  o  contente,  e  jíõe-no  acevar  como  [»orco,  até  que  o  hajam 
de  malar.  Para  o  que  se  ajuntam  todos  os  da  comarca  a  ver  a  festa,  o 
um  dia  antes  que  o  matem  lavani-no  todo,  e  o  dia  seguinte  o  tiram,  e 
põono  em  um  terreiro  atado  pela  cinta  com  uma  coi'da,  o  vem  um 
dVlles  mui  bem  ataviado,  í;  lhe.  faz  unia  [iratica  de  seus  anle})assados;  e  aca- 
bada, o  (jue  está  i)ara  moi-rer  lhe  responde,  dizendo  (]ue  dos  valentes 


304  APPEXDICE 

h6  não  temer  a  morte,  e  que  elte  também  matara  muitos  dos  seus,  c 
que  cá  ficam  seus  parentes  que  o  vingarão,  c  outras  cousas  semelhantes. 
E  morto  cortam-ltie  logo  o  dedo  polegar,  porque  com  aquelle  tirava  as 
frechas,  e  o  demais  fazem  cm  postas  para  o  comer,  assado  c  cosido. 

Quando  morre  algum  dos  seus,  põem-lhe  sobre  a  sepultura  bacios 
cheios  de  viandas,  e  huma  rede,  em  qne  elles  dormem,  mui  bem  lava- 
da; e  isto  porque  crêem,  segundo  dizem,  que  depois  que  morrem  tornam  a 
comer  e  descançar  sobre  a  sepultura,  Deitam-os  em  umas  covas  redon- 
das, e  se  são  Principaes  fazem-lhes  uma  choça  de  palma.  Não  tem  co- 
nhecimento de  Gloria,  nem  Inferno,  somente  dizem  que  depois  de  mor- 
rer vão  a  descançar  a  um  bom  lugar,  e  em  muitas  cousas  guardam  a 
lei  natural.  Nenhimaa  cousa  própria  tem  que  não  seja  commum,  e  o  que 
um  tem  ha  de  partir  com  os  outros,  principalmente  se  são  cousas  de 
comer,  das  quaes  nenhuma  cousa  guardam  para  o  outro  dia,  nem  curam 
■  de  enthesourar  riquezas. 

A  suas  filhas  nenhuma  cousa  dão  em  casamento,  antes  os  genros 
ficam  obrigados  a  servir  os  sogros-  Qualquer  Cbristão  que  entra  em  suas 
casas  dão-lhe  de  comer  do  que  tem,  e  huma  rede  lavada  em  que  durma. 
São  castas  as  mulheres  a  seus  maridos.  Tem  memoria  do  diluvio,  po- 
rém falsamente,  porque  dizem  que  cobrindo-se  a  terra  de  agua,  uma 
mulher  com  seu  marido  subiram  em  um  pinheiro  e  depois  de  mingoa- 
das  as  aguas,  se  desceram,  e  d'estes  procederam  todos  os  homens  e  mu- 
lheres. Tem  mui  poucos  vocábulos  para  lhes  poder  bem  declarar  nossa 
fé.  Mas  comtudo  damos-lh'a  a  entender  o  melhor  que  podemos,  e  algu- 
mas cousas  lhes  declaramos  por  rodeios.  Estão  mui  apegados  com  as  cou- 
sas sensuaes.  Muitas  vezes  me  perguntam  se  Deos  tem  cabeça  e  corpo,  e 
mulher;  e  se  come,  e  de  que  se  veste,  e  outras  cousas  semelhantes. 

Dizem  elles  que  S.  Thomé,  a  quem  elles  chamão  Zomè,  passou  por 
-  aqui,  e  isto  lhes  ficou  por  dito  de  seus  passados,  e  que  suas  pisadas  estão 
signaladas  junto  de  um  rio,  as  quaes  eu  fui  ver  por  mais  certeza  da  ver- 
dade, e  vi  com  os  próprios  olhos,  quatro  pisadas  mui  signaladas  com 
seus  dedos,  as  quaes  algumas  vezes  cobre  o  rio  quando  enche.  Dizem 
também  que,  quando  deixou  estas  pisadas  ia  fugindo  dos  índios,  que  o 
queriam  frechar,  e  chegando  alli  se  lhe  abrira  o  rio,  e  passara  por  meio 
d'elle  sem  se  molhar,  e  d'alli  foi  para  a  índia.  Assi  mesmo  contam 
que,  quando  o  queriam  frechar  os  índios,  as  frechas  se  tornavam  para 
elles,  e  os  matos  lhes  faziam  caminho  por  d'onde  passasse:  outros  contam 


CARTAS  DO  PADRE  NÓBREGA  305 

isto  como  por  cscarneo.  Dizem  também  que  lhes  promctteo  que  liavia 
de  tornar  outra  vez  avêl-os.  Elle  os  veja  do  Ceo,  e  seja  intercessor  por 
elles  a  Deos,  para  que  venham  a  seu  conhecimento,  e  recebam  a  Santa 
Fè  como  esperamos.  Isto  he  o  que  em  breve,  Charissimos  Irmãos  meus, 
vos  posso  informar  d"esta  terra:  como  vier  a  mais  conhecimento  das  ou- 
tras cousas,  que  n"clla  ha,  não  o  deixarei  mui  particularmente  de  fazer. 

Manoel  da  Nóbrega. 


{Revista  do  InsliltUo,  vol.  Vi,  pag.  91.) 


CARTA  V 


A  EL-REI  D.  JOÃO  IH 


I  H  V  S 

Ha  graça  c  amor  de  Xpõ  nosso  senhor  seía  com  V.  A.  sempre  anien. 

Logo  que  a  esta  capitania  de  duarte  coelho  achegamos  outro  padre 
c  eu,  escrevi  a  V.  A.  dando-lhe  aigúa  informação  das  cousas  desta 
terra,  e  por  ser  novo  n^esta  capitania  o  não  ter  tanta  experiência  dela 
me  fiquaram  por  escrever  alguas  cousas  que  nesta  suprirei. 

Nesta  capitania  se  vivia  muito  seguramente  nos  peccados  de  todo  o 
género,  c  tinhão  ho  pcccar  por  lei  e  costume  lios  mais  ou  quasi  todos  nam 
comungavam  nunqa  e  ha  absolvição  sacramental  ha  recebião  perseuerando 
em  seus  peccados,  hos  eclesiásticos  que  achei  que  são  cimqo  ou  seis  vi- 
uiam  a  mesma  vida  c  com  mais  escândalo  e  algus  apóstatas,  e  por  to- 
dos assi  veuerem  nam  se  estranha  pecar  ha  ignorância  das  cousas  da  nos- 
voL.  II  20 


300  APPENDICK 

sa  fé  catholica  hs  qa  muita  e  parecellies  novidade  a  pregação  d"ellas, 
quasi  todos  tem  negras  forras  do  gentio  e  quando  querem  se  vão  pêra 
os  seus,  fazer-se  grandes  injurias  aos  sacramentos  que  qa  se  ministrão, 
o  sertão  esta  cheo  de  fillios  de  Xpãos  grandes  c  pequenos,  machos  c  fê- 
meas com  viuercm  e  se  criarem  nos  costumes  do  gentio;  avia  grandes 
ódios  e  bandos:  as  cousas  da  igreja  mui  mal  regidas.  E  as  da  justiça  pelo 
conseguinte,  finalmente  commixti  snnt  inter  (jentcs  et  didiccrunt  opera  eo- 
rum.  Começamos  com  a  ajuda  de  noso  senhor  a  emtender  cm  Iodas  es- 
tas cousas  c  faz-se  multo  fructo  e  já  se  c  vi  tão  muitos  peccados  de  todo 
ho  género  vam-sc  confessando  e  emendando  c  lodos  querem  mudar  seu 
máo" estado  e  vestir  a  Jhú  Xpõ  nosso  Sor.  Os  que  estavam  em  ódio  se 
reconciharão  com  muito  amor,  vam-se  ajuntando  os  filhos  dos  Christãos 
que  andão  perdidos  pelo  sertão  e  já  são  tirados  algíjs,  e  espero  que  os- 
tiraremos  todos. 

E  posto  que  por  todas  as  outras  capitanias  ouvesse  os  mesmos  pec- 
cados e  porém  não  tão  arreigados,  como  n  esta,  edeue  ser  a  causa  porque, 
forão  ia  mui  castigados  de  nosso  senhor,  e  peccavão  mais  a  medo,  e  es- 
ta não.  Duarte  Coelho  e  sua  mulher  são  tão  vertuosos  quanto  he  ha  fama 
que  tem,  c  certo  creo  que  por  elles  não  castigou  a  justiça  do  altissimo 
tantos  males  até  agora  e  porém  lie  ia  velho  e  falía-lhe  muito  pêra  hu 
boo  regimento  da  justiça  e  por  isso  ha  jurisdicção  de  toda  a  Gosta  de- 
uia  de  ser  de  V.  A. 

Com  os  escravos  qiie  são  muitos  se  faz  muito  fructo,  os  quaes  viuião  co- 
mo gentios  sem  terem  mais  que  serem  baptizados  com  pouqa  reverencia 
do  sacramento,  das  pregações  e  doutrina  que  lhes  fazem  corre  ha  fama 
a  todo  o  gentio  da  terra  e  muitos  nos  vem  ver  e  ouvir  ho  que  de  Xpõ 
lhe  dizemos  c  segimdo  ho  fervor  e  vontade  que  trazem  parecem  dizer  ho 
aue  outros  gentios  desião  ha  S.  Filippe,  volumus  Jesumvideri;  esi^erSím- 
nos  em  suas  aldeãs  e  prometem  fazerem  quanto  ihe  disermos. 

Este  gentio  está  mui  aparelhado  a  se  nelle  fructificar  por  estar  iú 
mais  domestico  e  ter  a  terra  capitão,  que  não  consentio  fazerem-lhe 
ao-rauos  como  nas  outras  partes.  lio  converter  todo  este  gentio  he  mui  fá- 
cil cousa,  mas  ho  susteníalò  em  boos  costumes  nam  pode  ser  senam 
cora  muitos  obreiros  porque  em  cousa  nenhuma  crem  e  estão  papel 
branco  pêra  n" elles  se  escrever  ha  vontade  se  com  exemplo  e  continua 
conversação  os  sustentarem.  Eu  quando  vij  os  poucos  que  somos,  e  que 
nem  pêra  acudir  aos  Xpãos  abastamos,  e  veio  perder  meus  próximos 


CAUTAS  íiO  PADHfc:  NOURIiGA  307 

O  criatui'as  do  stíiilior,  lia  niiíigua  lomo  jior  remédio  clamar  ao  criador 
de  lodos  e  a  V.  A.  que  mandem  f)])reiros  e  a  meus  padres  e  irmãos  que  ve- 
iilião.  Damos  ordem  a  que  se  faça  Iiiima  casa  pêra  recolher  todas  as  moças  e 
imilheres  do  gentio  da  terra  que  ha  muitos  annos  que  vivem  entre  os  Xpãos 
e  não  tem  filhos  dos  homens  branquose  os  mesmos  homens  que  as  tinhão 
ordenão  esta  casa  porque  ahi  doutrinadas  e  governadas  por  algumas  velliase 
elas  mesmas  pelo  tempo  em  diante  muitas  casarão  e  ao  menos  viuirão  com 
menos  occasião  de  peccados,  e  este  ho  ho  melhor  meio  que  nos  pareceo  por 
se  não  tornarem  ao  gentio,  cutre  estas  ha  muitas  de  muito  conhecimento  e  se 
confessão  e  sabem  bem  conhecer  os  peccados  em  que  viuerão  e  as  que 
mais  fervor  tem  pregão  as  outras  e  assi  d"estas  como  dos  escravos  so- 
mos importunados  de  continuo  para  os  ensinar  de  maneira  que  asi  os 
meninos  órfãos  que  comnosco  temos  como  nos  ho  principal  exercício  he 
ensinal-os.  Com  estas  forras  se  ganharão  muitas  ia  Xpãs  que  pelo  ser- 
tão andão  e  asi  muitos  meninos  seus  parentes  do  gentio  pêra  em  nos- 
sa casa  se  ensinarem  além  de  outros  muitos  proveitos  que  disto  ha  glo- 
ria de  nosso  Sor  resultará  e  ha  terra  se  povoará  em  temor  o  conheci- 
mento do  criador. 

Por  toda  esta  costa  ha  muitos  liomès  casados  era  Portugal  e  viuem 
qâ  em  grandes  peccados  com  muito  perjuiso  de  suas  molheres  e  filhos 
devia  V.  A.  mandar  aos  Capitães  que  n"isto  tenhão  muito  cuidado. 

Nestas  partes  ha  muitos  escravos  e  todos  viuem  em  peccado  com 
outras  escravas,  alguns  dos  tais  fazemos  casar  outros  areceam  ficarem 
seus  escravos  forros  e  não  oúsão  casalos.  Seria  serviço  de  nosso  senhor 
mandar  Y.  A.  hua  prouisão  em  que  declare  nam  fiquarem  forros  casan- 
do, e  ho  mesmo  se  deuia  prover  em  Santo  Tliomé,  e  outras  partes  on- 
de ha  fazendas  com  muitos  escravos.  Com  ha  vinda  do  bispo  ho  espera- 
uamos  remediar  e  agora  me  parece  sir  necessário  V.  A.  prouer  niso 
por  se  euitarem  grandes  peccados. 

Os  moradores  destas  capitanias  ajudão  com  ho  que  podem  ha  faze- 
rem-se  estas  casas  pei^a  os  meninos  do  gentio  se  ciiarem  nelas  c  será 
grande  meio  e  breve  [)era  a  conversão  do  gentio.  lio  colégio  da  Bahia 
seia  de  V.  A.  pêra  o  favorecer  porque  está  ia  bem  principiado  e  averá 
nele  vinte  meninos  pouqo  mais  ou  menos,  e  mande  ao  gouernador  que 
faça  casas  pêra  os  meninos  porque  as  (iuí;  tem  sam  feitas  por  nossas  mãos 
(3  são  de  poufja  dura,  e  mande  dar  algiis  escravos  de  (jine  ha  casa  pêra 
fazerem  mantimentos  porque  ha  terra  he  Iam  fértil  (jue  facilmente  se 


308  APPENDicr: 

manterão  e  vestirão  muitos  meninos  se  tiverem  algOs  escravos  que  fa- 
cão roças  de  mantimentos,  e  algodoais,  e  pêra  nos  não  lie  necessário 
nada  porque  ha  teri^a  lie  tal  que  liuú  soo  morador  he  poderoso  ha  man- 
ter a  hú  de  nos. 

Para  as  outras  capitanias  mande  V.  A.  molheres  orfãas  porque  todas 
casarão:  nesta  nam  são  necessárias  por  agora  por  haverem  muitas  filhas 
de  homens  hrancos  e  de  índias  da  terra  as  quaes  todas  agora  casarão  com 
ha  ajuda  do  senhor,  e  se  nam  casauão  dantes  era  porque  consentiam  vi- 
uer  os  homens  em  seus  peccados  livremente,  e  por  isso  nam  se  cura- 
iiam  tanto  de  cazar,  e  alguns  dizião  que  nam  peccavão,  porque  ho  ar- 
cebispo do  Funchal  lhes  dava  licença. 

O  governador  Thomé  de  Sousa  me  pedio  hum  padre  pêra  ir  com  cer- 
ta gente  que  V.  A.  manda  a  descobrir  ouro:  eu  lho  prometi  porque  tam- 
bém nos  releva  descobrilo  pêra  lio  thisouro  de  Ihu  Xpõ  nosso  senhor, 
e  ser  cousa  de  que  tanto  proveito  resultará  ha  gloria  do  mesmo  senhor, 
e  bem  ha  todo  ho  reino,  e  consolação  a  V.  A.  c  porque  hai  muitas  no- 
vas d"elle  e  parecem  certas,  pareceme  que  irão  seia  isto  também  em  ha- 
juda  pêra  V.  A;  mandar  padres  porque  qualquer  que  for  fará  muita  falta 
no  começado  se  nam  vierem  padres  pêra  o  sustentar:  e  porque  por 
outra  tenho  dado  mais  larga  conta  e  com  a  vinda  do  bispo,  que  espe- 
ramos, a  quem  tenho  escripto  ho  mais  aguardamos  ser  soccorridos. 
Cesso  pedindo  a  nosso  senhor  lhe  dê  sempre  a  conhecer  sua  vontade 
santa,  pêra  qiie  cumprindo  seia  augmentada  sua  fé  catholica  pêra  gloria 
do  nome  santo  de  Ihu  Xpõ,  nosso  senhoi*  qui  est  henedidus  in  sceculu. 
Desta  vila  de  Olmda  a  zvij  de  Setembro  de  looi  annos. 

JLVNOEL  DA  NÓBREGA. 

(Revista  do  Instituto,  vol.  ii,  pag.  279,  copiada  com  a  ortographia 
que  se  diz  ser  conforme  á  do  manuscripto  original,  existente  no  Archivo 
Nacional  de  Lisboa.) 


CAHTA  Vi 


AOS  P.SDRES  DA  PROVÍNCIA  DE  PORTUGAL 


Em  estas  partes  depois  que  cá  estamos  charissimos  Padros  e  Irmãos, 
se  fez  muito  fruito.  Os  gentios,  que  parece  que  punham  sua  bemavenlu- 
rança  em  matar  os  contrários,  e  comer  carne  humana,  e  ter  muitas  mu- 
lheres, se  vão  muito  emendando,  e  todo  nosso  trabalho  consiste  em  os 
apartar  d^isto,  porque  todo  o  demais  ho  fácil,  pois  não  tem  Ídolos;  ainda 
que  ha  entre  elles  alguns  que  se  fazem  Santos,  e  lhes  promcttem 
saúde,  e  victoria  contra  seus  imigos.  Com  quantos  gentios  lenho  falta- 
do n'esta  costa  cm  nenhum  achei  repugnância  ao  que  lhes  dizia.  Todos  que- 
rem e  desejam  ser  chrístãos;  mas  deixar  seus  costumes  lhes  parece  ás- 
pero. Vão  comtudo  pouco  a  pouco  caliindo  na  verdade.  Os  escravos  dos 
Chrislãos,  e  os  mesmos  Christãus  muito  se  tem  emendado,  e  certo  que 
as  Capitanias,  que  temos  visitado,  tem  tanta  diíTerença  do  que  d"antes 
estavam,  assim  no  conhecimento  de  Deos,  como  em  obrar  virtude, 
que  parece  uma  Religião.  Fazem-se  muitos  casamentos  entre  os  Gentios, 
òs  quacs  cm  a  Bahia  estão  junto  á  cidade,  e  tem  sua  Igreja  junto  a  huma 
casa,  onde  nos  recolhemos,  em  a  (piai  reside  agora  o  Padre  Navarro. 
Estes  determinámos  tomar  por  meio  de  outros  muitos,  os  quacs  espe- 
ramos com  a  ajuda  do  Senhor  fazer  Chrislãos.  Também  procuramos  de 
haver  casamentos  entre  clles  c  os  Chrislãos.  Nosso  Senhor  se  sirva  de 
tudo,  e  nos  ajude  com  sua  graça,  que  trabalhemos  que  todos  vcnhuni  ao 
conhecimento  de  nossa  Santa  Fé,  e  a  lodos  a  ensinemos  que  a  (jueiram 
ouvii-,  c  d"ella  aproveitar-se.  Principalmente  prclejidemos  ensinar  bem 


310  APfE.NDinK 

03  moc")S,  porque  estes  bom  doiilrinados,  c  acostumadas  e:n  viiludi;, 
serão  firmes  o  constantes,  os  quaes  seus  pais  deixam  ensinar,  e  folgam 
com  isso,  e  por  isso  nos  repartimos  pelas  Capitanias,  e  com  as  linguas 
que  nos  acompanham  nos  occupamos  n"isto,  aprendendo  pouco  a  pouco 
a  lingna,  para  que  entremos  pelo  serl^ío  denti"o,  onde  ainda  não  chega- 
ram os  Christãos,  e  lenho  sabido  de  hum  homem  Gentio,  que  está  n'es!a 
terra,  que  vivem  era  obediência  de  quem  os  rege,  e  não  comem  carne  hu- 
mana. Andam  ves!ido3  de  peites.  O  que  tudo  he  huraa  disposição  para 
mais  facilmente  se  converterem  e  sustentarem.  Isto  será  o  primeiro  que 
com-meteremos  como  V.  R.  mandar  quem  sustente  esfoulras  partes,  o 
as  quaes  por  cada  huma  das  Capitanias  tenho  ordenado  que  se  façam  ca- 
sas pêra  se  recolherem  e  ensinarem  os  moços  dos  Gentios,  e  também 
dos  Christãos:  e  para  n"eilas  recolhermos  algumas  linguas  para  este  ef- 
feito.  Os  meninos  órfãos,  que  nos  mandaram  de  Lisboa,  com  seus  can- 
tares aíírahem  os  ílihos  dos  Gentios,  e  ediíicam  muito  os  Christãos  Em 
esta  Capitania  de  Pe^-^nambuco,  onde  agora  estou,  tenho  esperança  que 
S3  fará  muito  proveito  porque,  como  he  povoada  de  muita  gente,  ha 
grandes  males,  e  peccados  n'ella.  Andam  muitos  filhos  dos  Christãos 
pelo  sertão  perdidos,  entre  os  Gentios,  e  sendo  Christãos  vivem  em  seus 
bestiaes  costumes.  Espero  cm  Nosso  Senhor  de  os  tornar  a  todos  á  vir- 
tude christãa,  e  tiral-os  da  vida  c  costume  gentílico,  e  "o  primeiro  quo 
tenho  tirado  he  esse  que  lá  mando,  para  que  se  acharem  seu  pai  lii'o 
dêem.  Os  Gentios  aqui  vem  de  mui  longe  a  ver-nos  pela  fama,  e  todos 
mostram  grandes  desejos.  íle  muito  para  folgar  de  os  ver  na  doutrina, 
e  não  contentes  com  a  g^eral,  sempre  nos  estão  pedindo  em  casa  que  os 
ensinemos,  e  muitos  d"elles  com  lagrimas  nos  olhos.  Escreveram-me 
agora  da  Bahia  que  á  partida  se  haviam  peixhdo  dous  barcos  de  ín- 
dios, que  iam  a  pescar,  em  os  quaes  iam  muitos,  assi  dos  quo  eram 
já  Christãos  como  dos  Gentios.  E  acontecco  que  todos  os  Gentios  mor- 
reram, e  escaparam  os  Christãos  todos,  até  os  meninos,  que  levavam 
comsigo.  Parece  que  Nosso  .Senhor  faz  tudo  isto  para  mais  augmentar 
sna  Santa  Fé.  O  Governador  determina  de  ir  cedo  a  correr  esta  costa,  e 
eu  ird  com  elle,  e  dos  Padres  que  V.  R.  mandar  levarei  alguns  comigo, 
para  deixar  as  Capitanias  providas.  El-Rei  Nosso  Senhor  escreveo  ao  Go- 
vernad jr  que  lhe  escrevesse  se  havia  já  Padres  em  todas,  as  quaes  sem 
licar  nenhuma,  as  temos  visitadas,  e  em  todas  estão  Padres,  senão  em 
esta  de  Pernambuco,  quQ  he  a  principal  e  mais  povoada,  e  onde  mais 


CARTAS  DO  PADHE  NÓBREGA  311 

abciia  está  a  porta,  á  qual  até  aqui  não  tialiamos  vindo  por  falta  (1(3  em- 
barcação, e  por  sermos  poucos.  Os  Clérigos  d'csta  terra  tem  mais  offi- 
cio  d.3  demónios,  que  de  clérigos:  porque,  além  do  seu  máo  exemplo,  e  cos- 
tumes, querem  contrariar  a  doutrina  de  Gliristo,  e  dizem  publicamente 
aos  homens  que  lhes  he  licito  estar  em  peccado  com  suas  negras,  pois 
que  são  suas  escravas,  c  que  podem  ter  os  salteados,  pois  que  são  cães, 
e  outras  cousas  semelliaaíes,  por  escusar  seus  peccados,  e  abominações. 
De  maneira  que  nenhum  demónio  temos  agora  que  nos  persiga,  senão 
estes,  Querem-nos  mal  porque  lhes  somos  contrários  a  seus  máos  cos- 
tumas, e  não  podem  soíTrer  que  digamos  as  missas  de  graça,  em  detri- 
mento de  seus  interesses.  Cuido  que,  se  não  fora  pelo  favor  que  temos 
do  Governador  e  principaes  da  terra,  e  assi  porque  Deos  não  o  quer 
permittir,  que  nos  tiveram  jà  tiradas  as  vidas.  Esperamos  que  venha  o 
Bispo,  que  proveja  isto  com  temor,  pois  nòs  outros  não  podemos  por 
amor. 

A  casa  da  Bahia  que  fizemos  para  recolher  e  ensinar  os  moços,  vai 
mui  adiante,  sem  El-Rei  ajudar  a  neniiuma  cousa,  somente  as  esmolas 
do  Governador,  e  de  outros  homens  virtuosos.  Quiz-nos  o  Senhor  de- 
parar hum  oíTicial  pedreiro,  e  este  a  vai  fazendo  pouco  a  pouco;  tem  já 
feito  grande  parle  da  casa,  e  tem  também,  cercadas  as  casas  de  huma 
taipa  mui  forte.  Christo  Nosso  Senhor  nos  cerque  coma  sua  graça rresta 
vida,  para  que  na  outra  sejamos  recebidos  cm  sua  gloria.  Amen.  De 
Pernambuco  4oií). 


Manoel  da  Nobueca. 
(Revida  do  Inslilulo,  voj.  vi,  pag.   \()'t.) 


CARTA  VH 

AO  CARDEAL  INFANTE  D.  HENRIQUE 


A  paz  de  Christo  Nosso  Senhor  seja  sempre  em  continuo  favor  e  ajuda 
de  V.  A.. 

O  anno  passado  de  1359  me  derão  huma  de  V.  A.  em  que  mo 
me  manda  que  lhe  escreva  e  avise  das  cousas  desta  terra,  que  elle  de- 
ve saher.  E  pois  assim  me  manda,  lhe  darei  conta  do  que  V.  A.  mais 
folgará  de  saher,  que  he  da  conversão  do  gentio,  a  qual,  depois  da 
vinda  d'este  Governador  Mem  de  Sá,  crosceo  tanto,  que  por  falta  de 
operários  muitos  deixamos  de  fazer  muito  fruito,  e  todavia  com  esses 
poucos,  que  somos,  se  fizeram  quatro  Igrejas  em  povoações  grandes,  on- 
de se  ajuntou  muito  numero  de  gentio,  pela  boa  ordem  que  a  isso  deo 
Mem  de  Sá,  com  os  quaes  se  faz  muito  fruito,  pela  sujeição  e  obediên- 
cia que  tem  ao  Governador,  e  em  mentes  durar  o  zelo  d'elle  se  irão 
ganhando  muitos;  mas,  cessando  em  breve  se  acabará  tudo,  ao  menos 
entretanto  que  não  tem  ainda  lançadas  boas  raizes  na  fé,  e  bons  costu- 
mes. 

A  causa  porque  no  tempo  d'esíe  Governador  se  faz  isto,  e  não  an- 
tes, não  he  por  agora  haver  mais  gente  na  Bahia;  mas  porque  pôde  ven- 
cer Mem  de  Sá  a  contradição  de  todos  os  Christãos  d'esta  terra,  que 
era  quererem  que  os  índios  se  comessem,  por  que  n'isso  punham 
a  segurança  da  terra;  e  quererem  que  os  índios  se  furtassem  huns 
aos  outros,  para  elles  terem  escravos;  e  querem  tomar  as  terras  aos 
índios  contra  razão  e  justiça,  e  tyranisarem-nos  por  todas  vias,  e  não 
^  lercm  que  so  ajuntem  paia  serem  doutrinados,  por  os  lerem  mais  a 


CAnTAS  DO  PADRE  NOBIlEGA  313 

seu  propósito,  e  do  seus  serviços,  c  outros  inconvenientes  cVesla  maneira 
os  quacs  todos  clle  vence,  a  qual  eu  não  tenho  por  menor  victoria  que 
as  outras  que  Nosso  Senlior  lhe  deo,  e  defendeo  a  carne  humana  aos 
índios,  tão  longe  quanto  seu  i)oder  se  estendia,  a  qual  antes  se  comia  ao 
redor  da  cidade,  e  as  vezes  dentro  n'ella;  prendendo  aos  culpados,  e 
tendo-os  presos  até  que  elles  bem  conhecessem  seu  erro,  sem  nunca  man- 
dar matar  ninguém;  e  isto  só  abastou  para  subjugar  a  muitos,  e  obri- 
gal-os  a  viver  segundo  lei  de  natura,  como  agora  se  obrigam  a  viver; 
mas  isto  custou-lhe  descontentar  a  muitos,  e  por  isso  ganhar  inimigos: 
e  certifico  a  Y.  A.  que  n"esta  terra,  mais  que  nenhuma  outra,  não  po- 
derá hum  Governador  e  hum  Bispo,  e  outras  pessoas  publicas,  contentar 
a  Deos  Nosso  Senhor,  e  aos  homens;  e  o  mais  certo  signal  de  não  con- 
tentar a  Nosso  Senhor  he  contentar  a  todos,  por  estar  o  mal  mui  intro- 
duzido na  terra  por  costume.  Depois  succedeo  a  guerra  dos  Ilheos,  a 
qual  começou  por  matarem  hum  índio  no  caminho  do  Porto  seguro,  e 
creio  que  foi  por  desastre,  ou  por  melhor  dizer,  quci'er  Nosso  Senhor 
castigar  aquelles  Ilheos,  e  ferií-os  para  os  curar  e  sarar;  e  foi  assi  que, 
estando  os  engenhos  todos  quatro  queimados  e  roubados,  c  a  gente  recolhi- 
da na  villa  em  mui  to  aperto,  foi  lá  o  Governador  a  soccorrer  com  lhe  contra- 
dizerem 03  mais,  ou  todos  da  Bahia  por  temerem  que,  indo  clle,  se  poder 
iam  levantar  os  da  Bahia;  mas  com  elle  levar  muitos  índios  da  Bahia  comsi- 
go,  cessava  lodo  este  inconveniente:  e  o  que  he  muito  para  louvar  a  Nosso 
Senlior  he  que,  sendo  isto  no  inverno  em  tempo  de  monções  contrarias  para 
ir  aos  Ilheos,  na  hora  que  foi  embarcado  lhe  concertou  o  tempo,  e  lhe  veio 
vento  prospero,  tanto  quanto  lhe  era  necessário,  e  não  mais,  nem  menos,  e 
lá  deo-se  tão  boa  mão,  que  em  menos  de  dous  mezes,  que  lá  esteve,  deixou  os 
índios  sujeitos  e  tributários,  e  restituíram  o  mal  todo,  que  tinham  feito,  as- 
sim aquelle  presente,  como  todo  o  'passado,  e  obrigados  a  refazerem  os  en- 
genhos, e  não  comerem  carne  humana,  e  receberem  a  doutrina,  quando  hou- 
vessem Padres  para  lha  dar.  De  maneira  que  já  agora  a  geração  dosTupi- 
naquins,  que  he  muito  grande,  poderá  também  entrar  no  reino  dos  Ceos. 

N'este  tempo,  que  o  Governador  era  ido  ao  soccorro  dos  Ilheos,  suc- 
cedeo que  uns  pescadores  da  Baliia  se  desmandaram,  e  foram  pescar  ás 
terras  dos  índios  do  Parouassú,  os  quaes  sempre  foram  inimigos  dos 
Ghristãos,  posto  que  a  eslt3  leiíqjo  aiguíis  tinham  feito  pazes  com  o  Go- 
vernador, e  lá  foram  tomados,  e  mortas  (juatro  pessoas. 

Depois,  tornando  o  Governador,  Ibes  mandou  [ledir  os  maladoies,  e 


3iÍ  APPFADinK 

por  lh'os  não  quererem  dar,  lhes  apregoou  guerra,  e  foi  a  elles  com  to- 
da a  gente  da  Bahia,  que  era  para  pelejar,  e  com  muitos  índios  entrou 
pelo  Parouassú,  matando  muitos,  queimando  muitas  aldeãs,  entrando 
m.uitas  cercas,  destruindo-lhes  seus  mantimentos,  cousa  nunca  imagina- 
da que  podia  ser,  porque  geralmente,  quando  se  n"isso  fallava,  diziam 
que  nem  todo  o  poder  de  Portugal  abastaria,  por  ser  terra  mui  fragosa, 
c  cheia  de  muita  gente,  e  foi  a  vexação  que  lh'as  deram,  que  eiles  ganha- 
ram entendimento  para  pedir  pazes,  e  deram-lli'as  com  elles  darem 
dous  matadores  que  tinham,  e  com  reslituirem  aos  Christãos  quantos  es- 
cravos lhes  tinham  comido,  e  com  ficarem  tributários  e  sujeitos  e  obriga- 
dos a  receberem  a  palavra  de  Nosso  Senhor,  quando  lh'a  pregassem.  Es- 
ta gente  está  agora  mui  disposta  para  n'e}la  se  fructificar  muito.  D  isto 
poderá  V.  A.  entender  quantos  operários  da  nossa  Companhia  ha  mister 
tão  grande  messe  como  esta,  que  cada  dia  se  irá  fazendo  maior,  tanto 
quanto  a  sujeição  dos  gentios  se  continuar.  Depois,  sendo  o  Governador 
de  muitos  requerido  que  fosse  vingar  a  morte  do  Bispo,  e  dos  que  com 
elle  iam,  por  ser  hum  grande  opprobrio  dos  Christãos,  ser  causa  dos  ín- 
dios ganharem  muita  soberba:  porque  morreram  alli  muita  gente,  e  nmi- 
to  principal;  elle  se  fiizia  prestes  appareliiando  muitos  índios  da  Bahia ; 
mas  isto  estorvou  a  vinda  da  armada  que  veio,  com  a  vinda  da  qual  se 
determinou  de  ir  livrar  o  Rio  de  Janeiro  do  poder  dos  Francezes  todos 
Lutheranos.  E  partio,  visitando  algumas  capitanias  da  costa  até  chegar  ao 
Espirito  santo,  capitania  de  Vasco  Fernandes  Coutinho,  onde  achou  liuma 
pouca  de  gente  cm  grande  perigo  de  ser  comida  pelos  índios,  c  toma- 
dos dos  Francezes,  os  quaes  todos  pediram  que,  ou  tomasse  a  terra  por 
El-I\ei,  ou  os  levasse  d'alli,  por  não  poderem  já  mais  sustentar;  e  o 
mesmo  requeria  Vasco  Fernandes  Coutinho  por  suas  cartas  ao  Governa- 
dor: depois  de  tomado  sobre  isto  cofiselho,  a  aceitou,  dando  esperanças 
que  da  tornada  a  fortaleceria,  e  favoreceria  no  que  pudesse,  por  não  ter 
tempo  para  mais,  e  por  não  se  estorvar  do  negocio  a  que  vinha  do  Bio 
de  Janeiro.  Esta  capitania  se  tem  por  a  melhor  cousa  do  Brasil  depois 
do  Bio  de  Janeiro,  n'ella  temos  huma  casa,  onde  se  faz  fruito  com  Chris- 
tãos, e  com  escravos,  e  com  uma  geraçíío  de  índios,  que  alli  está,  que 
se  chamam  do  Gato,  que  alli  mandou  vir  Vasco  Fernandes  do  Rio  de 
Janeiro;  entendem-se  também  com  alguns  Tupinaquins:  c  se  Nosso  Senhor 
der  tão  boa  mão  ao  Governador  á  tornada,  como  lhe  deo  cm  todas  as 
outras  partes,   que  os  ponha  a  todos  em  sujeição  e  ol)ediencia,  poder- 


CARTAS  DO  PADRE  NÓBREGA  315 

ss-lia  fazer  muito  fruito,  porque  este  lie  o  melhor  meio  que  pôde  haver 
para  a  sua  convcrslío. 

D'alU  nos  partimos  ao  Rio  de  Janeiro,  c  assentou-se  no  conselho  que 
dariam  de  suplío  no  Rio  de  noite,  para  tomarem  osFrancezes  desaper- 
cebidos; e  mandou  o  Governador  a  hum  que  sabia  bem  aquelle  Rio,  que 
fosse  adiante  guiando  a  armada,  c  que  ancorasse  perto  d'onde  pudessem 
os  bateis  deitar  gente  cm  terra,  a  qual  havia  de  ir  por  certo  lugar;  mas 
isto  aconteceo  doutra  maneira  do  que  se  ordenava,  porque  esta  guia, 
ou  por  não  saber,  ou  por  não  querer,  fez  ancorar  a  armada  tão  longe 
do  porto  que  não  pudéramos  bateis  chegar  senão  de  dia,  com  andarem 
muita  parte  da  noite,  e  foi  logo  vista  e  sentida  a  armada. 

No  mesmo  dia  que  chegámos,  se  tomoii  huma  náo  que  estava  no  Rio 
para  carregar  de  brasil :  a  gente  d'ella  fugio  para  terra,  e  recolheo-se 
na  fortaleza:  tomou-sc  conselho  no  que  se  faria,  e  vendo  todos  a  fortaleza 
do  sitio  em  que  estavam  os  Francezes,  e  que  tinham  comsigo  os  índios 
dl  íeif a,  temeram  de  a  combaterem,  e mandaram  pedir  ajuda  do  gente  a 
S-Vicentc:  mas  os  de  S.  Vicente  sabendo  primeiro  da  vinda  do  Governa- 
dor ao  Rio,  já  vinham  por  caminlio,  e  como  cliegavam  determinou  o  Go- 
vernador de  os  combater;  mas  toda  a  sua  gente  Ih  o  contradizia,  por- 
que tinhão  já  bem  espiado  tudo,  c  parecia-lhes  cousa  impossível  entrar- 
so  cou.5a  tão  forte,  e  sobre  isso  lhe  fizeram  muitos  desacatamentos  c 
desobediências.  Mas  eu  sobro  isto  tudo  a  maior  dilTiculdade  que  lhe 
achava  era  ver  aos  Christãos  da  armada  tão  pouco  unidos  com  o  Go- 
vernador, c  ver  tão  pouca  obediência  em  muitos,  toda  aquella  viagem 
em  que  me  achei  presente ;  c  isto  nasceo  de  se  dizer  publicamente,  e 
sabei\Mn  que  o  Governador  eslava  mal  acreditado  no  Reino  com  Vossa  Al- 
teza, e  que  se  havião  lá  dado  capitules  delle  por  pessoas  que,  com  pai- 
xão, informarão  lá  mal  a  V.  A.,  e  parece  qiie  com  pouca  razão, 
porque  as  mais  das  cousas  me  passavam  pela  mão  como  terceiro  que  era 
n'ellas  para  as  remediar,  e  por  isso  quem  quer  se  lho  atrevia,  e  por 
dizer  que  tinha  lá  inimigos  no  Reino,  c  poucos  que  favorecessem  sua 
causa,  o  que  lhe  tirou  muito  a  liberdade  do  bem  governar;  mas  agora 
ouça  V.  A.  as  grandezas  de  Nosso  Seniior. 

A  primeira,  me  parece  que  foi  dar  Nosso  Senhor  graça  ao  Governador 
para  saber  soffrer  tudo,  e  dar-llie  prudência  para  em  tal  tempo  saber 
trazer  as  vontades  de  todos  tão  contrarias  a  sua,  condescenderem  com 
aquillo  que  elle  entendia,  e  Nosso    Senhor  lhe  inspirava;  e  fui  assim,  (pie 


316 


APPK.NDICK 


a  huns  por  vergonha,  a  outros  por  vontade  lho  pareceo  bem  de  com- 
metterem  a  fortaleza. 

A  segunda  maravilha  de  Nosso  Senhor,  foi,  que  depois  de  combalida 
dous  dias,  e  não  so  podendo  entrar,  c  não  tendo  já  os  nossos  pólvora, 
mais  que  a  que  linhão  nas  camarás  para  atirar ;  e  tratando-se  já  como 
se  poderiam  recolher  aos  navios  sem  os  matarem  todos,  o  como  pode- 
riam recolher  a  artilheria,  que  haviam  posto  em  terra,  sabendo  que  na 
fortaleza  estavam  passante  de  sessenta  Francezes  de  peleja,  c  mais  de 
oitocentos  índios,  e  eram  já  mortos  dos  nossos  dez  ou  doze  homens 
com  bombardas,  e  espingardas,  mostrou  então  Nosso  Senhor  a  sua  mi- 
sericórdia, e  deo  tão  grande  medo  nos  Francezes  e  nos  índios,  que  com 
elles  estavam,  que  se  acolheram  da  fortaleza,  e  fugiram  todos,  deixandy 
o  que  tinham  sem  o  poderem  levar. 

Estes  Francezes  seguiam  as  heresias  de  Alemanha,  principalmente  as 
de  Calvino,  que  está  em  Genebra,  e  segundo  soube  d  cUes  mesmos,  e 
pelos  livros  que  lhe  acharam,  muitos  vinham  a  esta  terra  a  semear  estas 
heresias  pelo  Gentio;  c  segundo  soube  tinham  mandado  muitos  meninos 
do  gentio  a  aprendel-as  ao  mesmo  Calvino,  c  outras  partes  para  depois 
serem  mestres,  e  d'esíes  levou  alguns  a  Villagallion,  que  era  o  que  íi- 
zera  aquella  fortaleza,  e  se  intitulava  Rei  do  Brasil. 

D'este  se  conta  que  dizia,  que  quando'  El-Rei  de  França  o  não  qui- 
zesse  favorecer  para  poder  ganhar  esta  torra,  que  se  havia  de  ir  confe- 
derar cora  o  Turco,  promettendo-lhe  de  lhe  dar  por  esta  parte  a  con- 
quista da  índia,  e  as  náos  dos  Portiiguezes  que  de  là  viessem,  porque  po- 
deria aqui  fazer  o  Turco  suas  armadas  com  a  multa  madeira  da  terra; 
mas  o  Senhor  olhou  do  alto  tanta  maldade,  e  houve  misericórdia  da 
terra  e  de  tanta  perdição,  de  almas,  e  mentita  cst  iniquitas  sibi,  e  des- 
fez-lhe  o  ninho,  e  deo  sua  fortaleza  em  mão  dos  Portuguezes,  a  qual 
se  destruio  o  que  d'ella  se  podia  derrubar,  por  não  ter  o  Governador  gen- 
te para  logo  povoar  e  fortiíicar  como  convinha. 

Esta  gente  ficou  entro  os  índios,  e  esperam  gente  e  soccorro  de 
França,  maiormente  que  dizem,  que  por  El-Uei  de  França  o  mandar  es- 
tavam alli  para  descobrirem  os  metaes  que  houvesse  na  terra:  assim  ha 
muitos  Francezes  espalhados  por  diversas  partes,  para  melhor  buscarem. 
Parece  muito  necessário  povoar-se  o  Ilio  de  Janeiro,  e  ííizer-se  n'elle 
outra  cidade  como  a  da  Bahia,  porque  com  eila  ílcará  tudo  guardado, 
assim  esta  Capitania  de  S.  Vicente,  como  a  do  Esnii-ito  santo,  que  agora 


CARTAS  DO  PADRE  NORRKGA  317 

cslão  bom  fracas,  c  os  Francezes  lançados  de  lodo  fora,  e  os  índios  se 
poderem  melhor  subjeilar,  c  para  isso  mandar  mais  moradores  que  sol- 
dados, porque  do  outra  maneira  pode-se  temer  com  razão  ne  redcat  im- 
mundus  spiritus  cum  aliis  septem  nequioribus  se,  et  sint  novíssima  peiora 
prioribus — ;  porque  a  fortaleza  que  se  desmanchou,  como  era  de  pedras 
c  rochas,  que  cavaram  a  picão,  facilmente  se  pode  tornar  a  reedificar,  e 
fortalecer  muito  melhor. 

Depois  de  tomada  a  fortaleza  doo  o  Governador  em  uma  aldeã  de 
índios,  e  matou  muitos,  e  não  pôde  fazor  mais  porque  linha  necessidade 
de  concertar  os  navios  que  das  Lombardas  ficaram  mal  aviados,  e  fa- 
zel-os  prestes  para  se  tornarem,  o  que  veio  fazer  a  estar  capitania  de 
S.  Vicente,  onde  eu  fico  por  assim  o  ordenar  a  obediência;  o  mais  que 
houver  para  escrever  ao  Provincial,  que  agora  é  o  Padre  Luiz  de  Grãa 
fará  da  Bahia.  Nosso  Senhor  Jesus  Christo  dê  a  V.  A.  sempre  a  sua  gra- 
ça. Amen.  De  S.  Vicente  o  1.°  de  Junho  de  15G0. 

Manoel  da  Nobrkga. 


(Revista  do  Instituto,  vol.  v,  pag.  328.) 


riM  DAS  CAUTAS 


índice  geral 


E  AMPLÍSSIMO 


»A^  CO^^i^S  MAl^  HO^I^^WE^I  S 


DESTA  CHRONICA 


A 


PADRE  AlFONSO  IJUAZ 

He  O  pi-imoiro  da  (^(jmpanliia  que  Un  á  Capilania  do  iíspii'tí,o  saiilo 

liv.  I,  num.  [Ky. 
lie  recebido  com  gi"aiide  festa  dos  moradores,  liv.  i,  num.  97. 

ALCAIDK   M(')n 

Vide  Anloiiio  de  Oliveira. 

PADnK  AMOMO  i'uu:s 

Vai  pêra  o  Brasil  por  companlieiío  do  Padre  Manuel  da  Nóbrega,  liv,  i, 

num.  2i. 
Visita  rernamljLico  por  commissão  do  Bispo,  liv.  i,  num  114. 


320  IXDlCIi  GERAL 

ANTOMO  CAIIDOSO  DE  BAIIUOS 

lie  O  primeiro  Provedor  do  Brasil,  liv.  i,  num.  2i. 

Na  sua  náo  se  embarcão  os  primeiros  Padres  da  Companhia  que  forão  ao 

ao  Brasil,  ibid. 
Faz  naufrágio,  e  morre  a  mãos  dos  índios  Cactés,  liv.  ii,  num.  17. 

ANTÓNIO  DE  OLIVEIRA 

Capitão  de  huma  armada  pêra  a  Bahia,  hv.  i,  num.  9i. 
He  Alcaide  mór  da  Bahia,  ibid. 

PADRE  ANTÓNIO  RODRIGUES 

Sua  morte,  e  discurso  da  vida,  liv.  iii,  num.  12 i. 

ANTÓNIO  DA  SILVEIRA 

Defende  com  grande  valor  a  fortaleza  de  Dio,  liv.  ii,  num.  39. 
He  posto  por  El-Rei  de  França  entre  os  varões  famosos,  ibid. 

PADRE  A.NCHIETA 

Vide  Padre  Joseph  d' Anchieta. 

ARMADA 

Chega  huma  armíida  de  Portugal  á  Bahia,  liv.  i,  num.  80. 

Chega  outra  ã  Bahia,  liv.  num.  91. 

Manda  a  Rainha  D.  Catherina  huma  armada  ao  Brasil  pêra  lançar  fora  do 

Rio  de  Janeiro  aos  Franceses,  liv.  ii,  num.  7i. 
Vide  Mein  de  Sá,  e  Estacio  de  Sá. 

ASPILGUETA 

Yide  Padre  João  de  Aspilcueta. 

AGUA  BENTA 

'  EÍTàtos  maravilhosos  da  agua  benta,  liv.  i,  num.  116. 

IRMÃO  ADAM  GONÇALVES 

Quem  foi,  como  entrou  na  Companhia,  e  procedeo  n'ella,  liv.  ii,  num.  7Í> 


DESTA  CHROMCA  321 

ASSUCAR 

Onde  SC  fez  a  primeira  vez  no  Brasil,  liv.  i,  num.  G3. 

AYMORÉS 

Costumes  (l"estes  índios,  liv.  ii,  num.  93. 

Inquietão  aos  moradores  dos  Ilheos,  e  Porto  seguro  com  assaltos,  liv.  ii, 

num.  94. 
Fazem  guerra  aos  moradores  dos  Ilheos,  liv.  iii,  num  55. 

PADUE   AZEVEDO 

Vido  Padre  Ignacio  de  Azevedo. 

B 

BRASIL 

Seu  descobrimento,  liv.  i,  num.  2. 

Avista  a  froía  terra  do  Brasil,  liv.  i,  num.  27. 

Vide  Páo  brasil. 

BLASFEMO 

Castiga  Deos  com  hum  raio  a  hum  blasfemo,  liv.  i,  num.  20. 
Vide  Castigo. 

BAHIA 

Quem  foi  seu  primeiro  descobridor,  liv.  i,  num.  33. 

Seu  primeiro  povoador  por  ordem  d'El-Uei,  liv.  i,  num.  3i. 

Chega  o  Governador  ao  porto  da  Bahia  de  lodos  os  Santos,  liv.  i,  num.  27. 

Descripção  da  Bahia,  liv.  i,  num.  28. 

Começa-se  a  edilicar  a  cidade  da  Bahia,  liv.  i,  num.  46. 

Vide  Padres  da  Companhia. 

Vide  Governador. 

B  AUTISMO 

Bautismo  solemne  de  ccin  feiticeiros,  liv.  i,  nun».  50. 
Vide  Padre  Luis  da  GrauL 

BÁLSAMO 

Bálsamo,  liv.  i,  num.  00. 

BISI'0 

D.  Pedro  Fernandes  Sardinha  i)rim(,'ir()  Bispo  do  Brasil,  liv.  i,  num.  37. 
D.  Pedro  Leitão  segundo  Bispo  do  Brasil,  liv.  ii,  num.  03. 

VOL.   II  21 


322  índice  glual 

banquete 

Em  seus  banquetes  nsão  os  índios  de  canie  humana,  liv.  i,  nnm.  48,  e 

49,  c  num.  92. 
Dissuadem-nos  os  Padres  da  Companhia  d'este  costume,  ibid. 

BERTHOLAMEU  ADAM 

Entra  na  Companhia  de  Jesu,  sua  vida,  e  morte,  hv.  n,  num.  80. 

C 

CASTIGO 

Castiga  Deos  a  huma  peccadora  obstinada,  liv.  i,  num.  12. 

Castiga  Deos  com  hum  raio  a  hum  blasfemo,  hv.  i,  num.  i£0. 

Castigo  que  o  Padre  Nóbrega  deo  a  hum  dehnquente,  liv.  ii,  num.  129. 

Castiga  Deos  aos  índios  Tamoyos,  hv.  ii,  num.  Ii4. 

Castigo  que  Deos  deo  aos  moradores  de  S.  Vicente,  liv.  ii,  num.  16. 

CONVERSÃO 

Convertef  o  Padre  Nóbrega  huma  grande  peccadora,  liv.  i,  num.  14. 
Converte  outros  peccadores  o  mesmo  Padre,  liv.  i,  nnm.  IG,  e  17. 
Converte  o  mesmo  Padre  hum  grande  salteador,  liv.  i,  num.  11. 
Converte  a  melhor  vida  hum  grande  pcccador,  liv.  i,  num.  86  e  87. 
Converte-se,  e  bautiza-se  hum  índio  de  cento  e  trinta  annos,  liv.  ii, 
num.  141. 

CONFISSÃO 

EíTicacia  da  confissão  contra  o  demónio,  liv.  i,  num.  25. 

COMPANHIA  DE  JESU 

Em  que  tempo  começou,  liv.  i,  num  2. 
Quando  foi  ao  Brasil,  liv.  i,  num.  3. 
Vide  Padres  da  Companhia  de  Jesu. 

COMPANHEIROS 

Companheiros  que  forão  pêra  o  Brasil  com  o  Padre  Nóbrega,  hV.  i,  num. 

24. 
Companheiros  na  viagem,  e  morte  do  Padre  Ignacio  de  Azevedo,  liv.  iv, 

mm.  35. 


DESTA  CHROXICA  323 

Vò  Santa  Theresa  entrar  no  Ceo  aos  companheiros  com  o  Padre  Azevedo^ 

liv.  IV,  nmn.  51. 
São  celebrados  por  vários  authores,  liv.  iv,  num.  51  e  52. 
Seus  nomes  e  elogios,  liv.  iv,  num.  G4  usque  ad  num.  107. 
Authores  que  lhes  derão  titulo  de  Martyres,  liv.  iv,  num.  110. 
Vide  Padre  Azevedo. 
Vide  Padre  Nóbrega. 

CHÍUSTOVÃO  JAQUES 

lie  o  primeiro  descobridor  da  Bahia,  liv.  i,  num.  33. 

COSTUMES 

Costumes  bárbaros  dos  índios,  liv.  i,  num.  44  e  48. 

Aos  Portugueses  se  tinhão  pegado  muitos  costumes  dos  índios,  liv.  u 

num.  05. 
Vide  índios. 
Vide  Carne  humana. 

CmADE 

Cidade  da  Bahia  de  todos  os  Santos,  liv.  i,  num.  30. 
Funda-se  a  cidade  do  lUo  de  Janeiro,  liv.  ni,  num.  115. 
Chama-se  de  S.  Sebastião,  liv.  iii,  num.  117. 

GOLLEGIO 

Vide  S.  Vicente. 

Funda-se  Collegio  em  Piratininga,  ou  S.  Paulo,  liv.  i,  num  148  c  149. 

Aperfeiçoa-se,  liv.  i,  num.  202. 

Funda-se  o  Collegio  do  Rio  de  Janeiro,  liv.  ni,  num..  115. 

Vide  Nossa  Senhora  da  Grara. 

Funda  El-Hei  D.  Sebastião  o  Collegio  da  Bahia,  liv.  ui,  imm.  45. 

COPAír.iJA 

Que  cousa  seja,  liv.  i,  num.  Oí». 

CATIVEIHO 

Padecem  os  Padres  da  Companhia  de  Jesu  por  prohibirem  o  cativeiro  in- 
justo dos  índios,  liv.  i,  num.  73,  c  liv.  ni,  num.  41  a  43. 

Pregão  os  Padres  contra  o  cntivciro  dos  índios,  liv.  i,  num.  110. 

Leis  (lue  sobre  a  liberdade  dos  índios  lizerão  os  Keis  de  Portugal,  liv. 
UF,  num.  44. 


324  ÍNDICE  GEUAL 

CATIVOS 


Resgatão-se  hiiiis  Caslellianos  que  estavão  cativos  pêra  ser  comidos  dos 

índios,  liv,  I,  num.  132. 
Yai  hum  Padre  livrar  os  cativos,  liv.  i,  num.  78  e  79. 


CASTIDADE 


Morrem  duas  multieres  por  defensão  da  castidade,  liv.  ii,  num.  112  o 
143. 

CONFRARIA 

Confraria  do  Menino  Jesu,  liv.  i,  num.  133. 
Confraria  do  Espirito  santo,  liv.  i,  num.  185. 

CONGREGAÇÃO 

Primeira  Congregação  Provincial  no  Brasil,  liv.  iii,  num.  112. 

CAETÉS 

Dão  cruel  morte  a  huns  naufragantes,  liv.  u,  num.  IG. 

CERIIA 

Cerra  notável  de  Paraná  Piacaba,  liv.  i,  num.  150. 

CAMLMIO 

Caminho  de  S.  Vicente  pêra  Piratininga,  liv.  ii,  num.  85. 

CILADA 

Descobre-se  huma  cilada  que  os  inimigos  linhão  armado,  por  meio  de 

hum  pássaro,  liv.  iii,  num.  95. 
Successo  de  outra,  liv.  iii,  num.  96. 
Frustra-se  outra  quasi  milagrosamente,  liv.  iii,  num.  97. 

CARIJÓS 

Mandão  Embaixadores  a  pedir  Padres,  liv.  i,  num.  198. 


d'esta  chromc.v  325 

d.  catherina  rainha  de  portugal 

Manda  liuma  armada  ao  Brasil  pcra  lançar  d'cllc  aos  FraHCOses,  liv.  ii, 
num.  74. 

D 

DIOGO  ALVAJIES 

Como  foi  ao  Brasil,  liv.  i,  num.  35. 

Como  se  fez  respeitado  dos  índios,  ibid,  num.  36. 

Faz  huma  povoação,  liv.  i,  num.  37. 

Sua  descendência,  liv.  i,  num.  41. 

DEMÓNIO 

Com  as  palavras  afugenta  o  Padre  Nóbrega  os  demónios,  liv.  i,  num.  21. 
Pretende  desviar  os  índios  da  conversão  com  enganos,  liv.  i,  num.  115, 
e  liv.  II,  num.  100. 

DUARTE  COELHO 

Dá-Uic  El-Rei  D.  João  o  III  Pernambuco  pêra  o  povoar,  liv.  i,  num.  100. 
Successos  que  teve  com  os  índios,  ibid. 

D.  DUARTE  DA  COSTA 

Segundo  Governador  do  Brasil,  liv.  i,  num.  133. 
Chega  ao  Brasil  com  armada,  ibid. 
Vide  Tapuyas. 

DIOGO  JACOME 

Sua  morte,  c  elogio,  liv.  iii,  num.  G8  c  seg. 

DIO 

Primeiro  cerco  de  Dio,  e  seus  successos,  liv.  ii,  num.  39. 

Segundo  cerco  de  Dio,  defende  D.  João  Mascarenhas,  liv.  ii,  num.  41. 

IRMÃO  DOMINGOS  PECORELLA 

Sun  morte,  o  vida  inrioccnle,  hv.  i,  num.  188. 


326  INDICF.  r.KRAL 

DISCIPLINA 

Toma  u  Padre  Aspilcueta  liunia  disciplina  publica,  liv.  i,,num.  83. 
Tomando  os  Padres  huma  disciplina  pujjlica  tirão  os  índios  de  comer  car- 
ne humana,  liv.  I,  num.  117. 

PADRE  DIOGO  LALNES 

lie  eleito  segundo  Geral  da  Companhia,  liv.  ii,  num.  G3, 
Sua  morte,  liv.  iii,  num.  46. 

E 

ENGENHOS  DE  ASSUCAR 

Quantos  ha  nos  arredores  da  Bahia,  liv.  i,  num.  28. 

ESPIRITO   SANTO 

Descreve-se  a  Capitania  do  Espirito  santo,  liv.  i,  num,  95. 

Quem  foi  seu  primeiro  fundador,  ibid. 

Padre  Affonso  Braz  he  o  primeiro  da  Companhia  que  foi  a  ella,  ibid, 

IIc  recebido  com  grande  festa  dos  moradores,  liv.  i,  num.  97. 

ESTAGIO  DE  SÁ 

Yai  com  huma  armada  ao  Rio  de  Janeiro,  e  o  que  lá  lhe  succedeo,  liv. 

Ill,  num.  56  e  seg. 
Morre  de  huma  ferida,  liv.  iii,  num.  105. 

F 

t 

FRANCISCO  PEREIRA  COUTINHO 

Morte,  e  infortúnios  de  Francisco  Pereira  Coutinho,  liv.  i,  num.  33. 
Yide  Bahia. 

,,  FEITICEIROS 

Convertem-ee  á  Fé  oitenta  e  hum  feiticeiros,  liv.  i,  num.  55  e  56. 

S.  FRANCISCO  XAVIER 

Morre  na  índia  oriental:  elogio  de  sua  vida,  Hv.  i,  num,  123. 


d"i:sta  CHRONir.A  3i7 

FRANCESES 

Enlrão  no  Rio  de  Janeiro,  e  fortificão-se,  liv.  ii,  num.  13. 
Quem  foi  o  primeiro  Francez  que  foi  ao  Brasil,  liv.  ii,  num.  45. 
Retirão-se  aos  matos,  liv.  ii,  num.  46, 
Vide  Mem  de  Sd 

PADRE  FRANCISCO  P1RE3 

Levanta  a  Gapella  de  Nossa  Senhora  da  Ajuda,  liv.  ii,  num,  70. 

FERNÃO  DE  SÁ 

Vai  com  armada  contra  os  Tamoyos,  vence-os,  e  depois  he  vencido,  e 
morto,  liv.  11,  num.  143. 

S.   FRANCISCO   DE  BORJA 

He  eleito  terceiro  Geral  da  Companhia,  liv.  m,  num.  67. 

FESTA  DAS  CANOAS 

Sua  origem,  liv.  lu,  num.  98. 

FILHOS 

Quantos,  e  quaes  filhos  teve  El-Rei  D.  João  o  Terceiro,  liv.  ir,  num.  43. 

G 

G0^'ERNAD0R 

Primeiro  Governador  do  Brasil,  liv.  i,  num.  35. 
Vide  D.  Duarte  da  Costa. 
Vide  Mem  de  Sá. 

GUERRAS 

Guerras  com  os  índios  de  S.  Vicente,  liv.  ii,  num.  MO. 
Vide  Tupis. 
Vide  Franceses. 
Vide  Tamoyos. 

H 

HEREGES 

Desacato  com  que  tratarão  as  cousas  sagradas,  liv.  iv,  num.  57. 
Vide  João  Boles. 


328  índice  c.vawl 

padue  josepii  de  anchieta 

Parte  (le  Lisboa  pora  O  Brasil,  liv.  i,  nun-í.  í3o. 

Chega  ao  Brasil,  Má. 

Escreve  as  obras,  c  virtudes  do  Padre  Nóbrega,  liv.  i,  num.  7. 

Vai  pêra  S.  Vicente,  liv.  i,  num.  143. 

Siiccessos  da  viagem,  liv.  i,  num.  14i. 

Escreve  por  sua  mão  os  cadernos  pêra  os  discípulos,  liv.  i,  num,  155. 

Juntamente  ensina  a  lingoa  Latina,  aprende  a  do  Brasil,  compõe  a  Arte, 

e  Caíhecismo,  liv.  i,  num.  150. 
Traduz  na  lingoa  Brasílica  cantigas  honestas,  ibid.  num.  57. 
Profecias  suas,  liv.  n,  num.  80,  e  liv.  iii,  num.  Í24  a  26. 
I\Laravilhas  que  obrou,  liv.  iii,  num.  26  e  27. 
Vai  com  o  Padre  Nóbrega  assentar  as  pazes  com  os  Tamoyos,  e  o  que 

alli  lhe  succedeo  até  voltar,  liv.  i:i,  num.  5  e  seg. 
Voltados  Tamoyos  pêra  S.  Vicente,  liv.  m,  num.  33. 
Outras  profecias,  liv.  ui,  num.  18,  enum.  34. 
Vai  em  huma  armada,  e  profetiza  cousas  futuras,  liv.  m,  num.  73. 
Vai-se  ordenar  Sacerdote  á  Bahia,  liv.  in,  num.  86  a  88. 
Visita  de  caminho  a  casa,  e  aldeãs  do  Espirito  santo,  ibid. 
Vai  pêra  o  Rio  com  o  Padre  Visitador,  ibid. 
Varias  outras  profecias  suas,  liv.  m,  num.  110  e  seg. 
Converte  a  hum  herege  que  foi  justiçado,  liv.  m,  num.  110. 
Compõem  a  Vida  de  Nossa  Senhora,  liv.  m,  num.  22. 

PADRE  IGNACIO  DE  AZEVEDO 

He  eleito  Visitador  do  Brasil,  liv.  ni,  num.  07. 

Chega  á  Bahia,  liv.  ni,  num.  88. 

Sua  viagem,  e  fruto  que  fez  em  Cabo-verde,  liv.  ni,  num.  89. 

Leva  consigo  cinco  Rehgiosos,  liv.  m,  num.  9<K 

Estado  em  que  achou  a  Província,  liv.  ni,  num.  92. 

Parte  a  visitar  a  Província  em  companhia  do  Governador,  liv.  ni,  num.  93. 

Parte  do  Rio  pêra  S.  Vicente  com  o  Bispo,  liv.  ni,  num.  109. 

Livra-o  Deos,  e  aos  companheiros,  de  hum  grande  perigo,  liv.  ui,  num. 
113 

Volta  da  visita  á  Bahia,  he  recebido  com  grandes  applausos,  e  seu  gran- 
de exemplo,  hv.  ui,  num.  il9. 

Parte  do  Brasil  pêra  Roma,  liv.  ni,  num.  112. 

Chega  a  Portugal  de  volta  do  Brasil,  liv.  iv,  num.  2. 

Parte  dahi  pêra  Roma,  liv.  iv,  num.  5. 

Volta  a  Portugal  com  muitos  companheiros,  liv.  iv,  num.  6, 

Retira-se  a  Vai  de  Rosal  com  os  companheiros :  descreve-se  este  sitio,  liv. 
IV,  num.  7. 


d"f:sta  cimo.Nir.A  320 

Como  ahi  se  occupavão,  liv.  iv.  num.  8. 

Parte  segunda  vez  porá  o  Brasil  com  trinta  e  nove  companheiros,  liv.. 
IV,  num.  18. 

Como  se  lioiiverão  na  viagem,  liv.  iv,  num.  19  e  20. 

São  acometidos  dos  hereges  no  mar,  liv.  iv,  num.  3i. 

Ríorre  com  seus  companheiros  á  míio  dos  hereges,  liv.  iv,  num.  35. 

Crueldades  que  os  hereges  usarão  com  o  Padre  Azevedo,  e  seus  com- 
panheiros, ibid. 

Vé-o  Santa  Theresa  entrar  no  Ceo  com  os  quarenta  companheiros,  liv.  iv, 
num.  ol. 

Elogio  da  vida,  c  virtudes  do  Padre  ígnacio  de  Azevedo,  hv.  iv, 
num.  56. 

SANTO    IGNAClO. 

Nasce  no  mesmo  tempo  em  que  se  descobrio  o  Brasil,  liv.  i,  num.  2. 
Morre  em  Roma,  liv.  ii,  num.  19  c  seg. 

REI  D.   JOÃO  o  TERCEIRO. 

Zelo  que  tinha  da  dilatação  da  Fé,  liv.  i,  num.  3. 

Sua  morte,  e  quanto  foi  sentida  de  toda  a  Companhia,  Hv.  u,  num.  26. 

Elogio  de  sua  vida,  e  virtudes,  liv.  n,  num.  29  e  seg. 

Filhos  que  teve,  liv.  n,  num.  43. 

PADUE  JOÃO  ASPILCUETa. 

O  primeiro  da  Companhia  que  pregou  na  lingoa  do  Brasil,  c  verteo  al- 
gumas oraçijes  n'ella,  liv.  i,  num.  48. 
Vai  pêra  o  Brasil,  liv.  i,  num.  24. 

Traça  com  que  rcduzio  hum  grande  peccador,  liv.  i,  num.  87. 
Entra  ao  sertão,  e  o  que  lhe  siiccedeo,  liv.  i,  num.  120. 
Confirma  Deos  sua  doutrina  com  milagres,  liv.  i,  num.  141. 
Sua  morte,  elogio  da  vida,  liv.  i,  num.  195. 

índios 

Impedimentos  que  tinhão  pcra  sua  conversão,  liv.  i,  num.  43. 

Vide  Costumes. 

Causas  de  comerem  carne  humana,  liv.  i,  num.  49. 

Querem  matar  aos  Padres  por  lha  prohibirem,  liv.  i,  num.  50.  c  seg. 

Cuidão  que  o  haulisrao  lhe  lira  o  gosto,  liv.  i,  num.  51. 

Como  concorrião  a  ser  doutrinados,  liv.  i,  num.  131. 

]\Iatão  os  contrários  muitos  (juandu  vinhão,  ibid. 

Os  primeiros  que  em  S.  Paulo  se  ajuntarão,  liv.  i,  num.  iCO. 


330  índice  geral 

Vide  Lei«. 

Converte-se  hum  de  130  annos,  liv.  ii,  num.  141. 

Piedade,  e  modo  com  que  os  índios  vivem  nas  aldeãs,  liv.  ii,  num.  9. 

ITAGYDA 

índio  esforçado,  liv.  i,  num.  103. 

JOÃO    CAIUBI 

Converscio,  e  vida  cliristâa  deste  índio,  liv.  i,  num.  160. 

IRMÃÕ  JOÃO  DE  SOUSA 

Morte  gloriosa  deste  irmão,  liv.  i,  num.  170,  e  177. 
Quem  foi,  e  sua  vida,  liv.  i,  num.  183. 

D.   JORGE  DE  MENESES 

lie  morto  pelos  índios  Tupinaquis,  liv.  ii,  num.  13. 

ILHA   DE  VILLAGAILHON 

Sua  descripção,  liv.  n,  num.  77. 

ILHEOS 

DescripçIIo,  e  povoação  dos  Ilheos,  liv.  m,  num.  48,  e  seg. 
Funda-se  n'elles  Casa  da  Companhia  de  Jesu,  liv.  iii,  num.  47. 

JORGE  DE  FIGLTIREDO 

Senhor  dos  Ilheos,  c  a  quem  passaram,  liv.  m,  num.  53. 

JOÃO  BOLES 

He  justiçado  no  Rio  de  Janeiro,  liv.  m,  num.  IIC. 

JAQUES  SORIA 

Apparece  com  cinco  velas,  e  foge,  liv.  iv,  num.  25. 
Fim  que  teve  este  herege,  liv.  iv,  num.  6o. 


d'ksta  cfmoNiCA  331 

L 

PADRE  LEONARDO  NUNES 

Vai  pêra  o  Brasil  com  os  primeiros  Padres,  liv.  i,  mim.  24. 

Vai  á  Capitania  de  S.  Vi  cerne,  liv.  i,  mim.  01. 

Seu  exemplo,  e  zelo  apostólico,  liv.  i,  num.  64. 

Hum  peccador  a  quem  reprehendia  o  quiz  espancar,  liv.  i,  num.  70. 

Livra-o  Deos  da  morte  que  lhe  querião  dar,  liv.  i,  num.  77. 

Vai  ao  sertão  a  livrar  cativos  Europeos,  liv.  i,  num.  78  e  79. 

He  eleito  Procurador  geral  a  Roma,  liv.  i,  num.  107. 

Parte,  e  morre  em  hum  naufrágio,  liv.  i,  num.  1C8. 

Epilogo  de  sua  vida,  ibid. 

LIBERALIDADE 

Liberalidade  dos  naturaes  da  Bahia,  hv.  i,  num.  30. 

PADRE  LUIS  DA  GRAM 

Chega  ao  Brasil,  liv.  i,  num.  143. 

Tem  os  mesmos  poderes  de  Provincial,  liv.  i,  num.  147. 

Faz  profissão  solemne,  ibid. 

Vê-sc  a  primeira  vez  com  o  Padre  Nóbrega,  liv.  i,  num.  193. 

Vai  ao  sertão,  liv.  i,  num.  200  e  201. 

Vem-lhe  patente  de  Provincial,  liv.  ii,  num.  03. 

Prega  contra  hum  herege,  liv,  ii,  num.  07. 

Edifica  a  Capella  de  Nossa  Senhora  da  Ajuda,  liv.  ii,  num.  70. 

Bautiza,  e  livra  dous  índios,  que  estavão  pêra  ser  comidos,  liv.   ii, 

num.  87. 
Vai  visitar  as  Aldeãs,  he  festejado  dos  índios,  e  faz  muitos  bautismos, 

fiv.  II,  num.  101  e  123. 
Vai  visitar  Pernambuco,  e  abre  alli  Classes,  liv.  iii,  num.  123. 

D.  LUIS  DE  VASCONCELLOS 

Succcsso  das  náos  de  sua  Armida,  liv.  iv,  num.  112  e  seg. 

M 

PADRE  MANOEL  DA   NÓBREGA 

Converte  huma  grande  peccadora,  liv.  i,  num.  14  a  17. 
Quanto  folgava  de  padecer,  c  ser  desprezado,  liv.  i,  num.  18. 
Afugenta  os  demónios  com  as  palavras,  liv.  i,  num.  21. 


332  INDECE  GERAL 

Faz  em  Portugal  varias  missões,  e  fruto  d"ellas,  liv.  i,  mim.  H. 

Fervor  com  que  pregava,  liv.  i,  mim.  23. 

He  mandado  pêra  o  Brasil,  liv.  i,  mim.  2i. 

Como  se  houve  na  viagem,  liv.  i,  num.  42. 

Faz  officio  de  Parocho,  liv.  i,  num.  44. 

Primeira  pratica  que  faz  aos  Missionários,  liv.  i,  num.  84. 

Emprega-se  na  reformação  dos  Portugueses,  e  conversão  dos  índios,  liv. 

I,  num.  85. 
He  nomeado  Vice-provincial,  liv.  i,  num.  8!. 

Actos  de  heróicas  virtudes  em  que  exercitava  os  súbditos,  liv.  i,  num.  82. 
Sara  hum  Padre  doente  por  seu  mandado,  liv.  i,  num.  93. 
Vai  a  Pernambuco,  liv.  i,  num.  107. 
O  que  alli  obrou,  liv.  i,  num.  110. 
Volta  á  Bahia,  liv.  i,  num.  112. 
Visita  as  Capitanias,  liv.  i,  num.  124. 

Livra-o  Deos  milagrosamente  de  hum  naufrágio,  liv.  i,  num.  125. 
Entra  no  sertão,  e  funda  huina  Residência,  hv.  i,  num.  130. 
Institue  a  Confraria  do  Menino  Jesu,  liv.  i,  num.  133. 
He  declarado  Provincial,  liv.  i,  num.  147. 
Escreve  o  Padre  Anchieta  suas  insignes  obras,  liv.  i,  num.  7. 
Seu  nascimento,  pais,  e  estudos,  liv.  i,  num.  8. 
Resolve-se  a  ser  Religioso,  liv.  i,  num.  9. 
Entra  na  Companhia  de  Jesu,  liv.  i,  num.  9. 
Fazem-no  em  Coimbra  pai  do  próximo,  liv.  i,  num.  10. 
He  chamado  Pai  dos  necessitados  por  sua  muita  charidade,   liv.  ii, 

num.  83. 
Visita  a  pé  as  aldeãs  da  Bahia,  e  faz  a  de  S.  António,  liv.  ii,  num.  90. 
Cultiva  os  índios  de  S.  Vicente,  liv.  ii,  num.  110. 
Vai  em  missão  aos  índios  Tamoyos,  liv.  iii,  num.  5  e  seg. 
Tratão  os  índios  de  o  matar,  liv.  in,  num.  10. 
Volta  daqui  a  S.  Vicente,  liv.  m,  num.  17. 

Dispõe-se  pêra  a  morte,  e  tem  conhecimento  d'ella,  hv.  iv,  num.  115. 
Epilogo  de  sua  santa  vida,  liv.  iv,  num.  117. 
Testemunho  que  d'elle  deo  o  Padre  Anchieta,  liv.  iv,  num.  118. 
Raro  exemplo  de  sua  charidade,  liv.  iv,  num.  126. 
Casos  maravilhosos,  com  que  Deos  mostrou  quam  aceito  lhe  era  este 

seu  servo,  liv.  iv,  num.  134  e  143. 


Arvores  do  Brasil,  liv.  i,  num.  28. 
Usos  doesta  arvore,  ibid. 


MANGUES 


d'esta  chromca  íi33 

MA.RTLM  AFFONSO  DE  SOUSA 

Primeiro  fundador  da  Capitania  de  S.  Vicente,  liv.  i,  num.  G3. 

MARTIM  AFFONSO  ÍNDIO 

Valor  com  que  se  liouve  na  tomada  do  Rio  aos  Franceses,  liv.   n, 

nmn.  81. 
Sua  fidelidade,  liv.  ii,  num.  134. 
Alcança  huma  grande  victoria,  liv.  iii,  num.  130. 

MARTIM  AFFONSO  TAinniCA 

Morre  grande  Chrístão,  liv.  ii,  num.  138. 

MUSICA 

Levão-se  os  índios  muito  da  musica,  liv.  i,  num.  18. 

MINAS 

Ha  muitas  na  serra  de  Pirana  Piacaba,  liv.  i,  num.  130. 

MENINOS  índios 

Ajudão  muito  á  conversão  dos  naturaes,  liv.  i,  num.  IGl. 
Fazem-se  Seminários  d'elles,  liv.  i,  num.  91  a  93. 
Rezando  elles  as  Oraçijes  sarão  os  enfermos,  ibid.  e  118. 

MENDO  DE  SA 

Vai  por  terceiro  Governador  do  Brasil,  liv.  ii,  num.  4. 
Quem  foi,  c  como  se  houve  no  governo,  liv.  ii,  num.  48. 
lie  Governador  quatorze  annos,  ibid. 

Toma  os  exercícios  espirituaes  na  Companhia,  liv.  ii,  num.  43. 
Dá  leis  aos  índios,  liv.  ii,  num.  8. 

Vence,  e  prende   a  hum  índio  poderoso,  que  não  obedecia,  liv.  ii, 
num.  55. 

•  Promulga  leis  cm  favor  da  liberdade  dos  índios,  liv.  n,  num,  44. 
Castiga    asperamente  aos  índios  que  não  guardavão  as  leis,   liv.   ii, 

num.  55. 

•  Alcança  dos  índios  de  Peragunçú  huma  insigne  victoria,  liv.  n.  num.  57, 
Parte  com  huma  armada  peia  o  Rio  de.  Janeiro,  liv.  ii,  num.  70. 
Chega  com  cila  ao  Rio,  liv.  ii,  num.  77. 


334  índice  gkhal 

Entra  a  barra  a  pesar  dos  inimigos,  ibid. 
Ganlia  a  fortaleza,  liv.  ii,  num.  78. 
Volta  com  a  Armada  pêra  S.  Vicente,  liv.  ii,  num.  82. 
Volta  d"ahi  pêra  a  Bahia,  liv.  ii,  num.  89. 
Manda  outra  armada  ao  Rio,  e  successos  d'ella,  liv.  iii,  num.  36. 
Vai  segunda  vez  ao  Rio  com  armada,  c  concluc  a  guerra,  liv.  iii,  num. 
100,  e  seg. 

P.  .MATHEUS  NOGUEIRA 

Sua  vida,  o  virtudes,  liv.  ii,  num.  119. 

N 

NOVIÇOS 

Os  primeiros  que  no  Brasil  entrarão  na  Companhia,  liv.  i,  num.  70. 

NAUFRÁGIO 

Naufrágio  miserável,  liv.  ii,  num.  li. 
Vide  Leonardo  Nunes. 
Vide  D.  Pedro  Fernandes. 

NÁO 

Rendem  os  nossos  huma  náo  francesa,  hv.  iii,  num.  13C. 
Náo  San-Tiago  he  rendida  dos  Hugonoíes,  liv.  iv,  num.  41. 

NICOLAO  VILLAGAILHON 

He  O  primeiro  Francez  que  foi  ao  Brasil:  alcançou  terra  no  Rio  de  Ja- 
neiro, liv.  II,  num.  45. 

NOSSA  SENHORA 

Nossa  Senhora  da  Graça  da  Bahia,  como  se  achou,  liv.  i,  num.  40. 
Dá-se  a  sua  Ermida  aos  Rehgiosos  de  S.  Bento,  liv.  i.  num.  40. 
Em  Nossa  Senhora  dAjuda  ediíicão  a  primeira  Casa  os  Padres  da  Com- 
panhia de  Jesu,  liv.  i,  num.  40. 
Vide  Collegio, 
Rebenta  huma  fonte  milagrosa  cm  Nossa  Senhora  dWjuda,  liv.  n,  num.  70, 


d'i:sta  ciinoMCA  335 

P 

1'ADUES  DA  CO.MPAMHA  DE  JESIT 

Vão  ao  Brasil,  c  quaes  forão  os  primeiros,  liv.  i,  mim.  24. 

Saem  a  primeira  vez  em  terra  do  Brasil,  e  dizem  missa,  liv.  i,  num.  43. 

Como  forão  recebidos  em  S.  Vicente,  liv.  i,  num.  GO. 

Seu  exemplo,  e  zelo  apostólico,  liv.  i,  num.  07. 

São  perseguidos  por  proliibirem  o  cativeiro  injusto  dos  índios,  liv.  i. 

num.  73. 
Chegão  á  Bahia  outros  Padres,  liv.  i,  num.  81. 
Empregão-se  na  reformação  dos  Portugueses,  e  conversão  dos  índios, 

liv.  I,  num.  8o. 
Vão  a  Pernambuco,  e  o  que  alii  obrarão,  liv.  i,  num.  107. 
Vão  a  varias  missões  ás  aldeias  dos  índios,  liv.  i,  num.  1  íl. 
São  calumniados  por  inimigos,  liv.  i,  num.  120. 
Chegão  outros  mais  ao  Brasil,  liv  i,  num.  134. 
São  perseguidos  em  S.  Paulo,  liv.  i,  num.  102. 
Como  estas  perseguições  se  aplacarão,  ibid. 

Modo  com  que  doutrinão  os  índios  das  aldeias,  liv.  n,  num.  O,  7,  e  8. 
Chegão  outros  {mais  ao  Brasil,  liv.  n,  num.  03. 
Tratão  de  reduzir  os  índios,  e  estão  quatro  arriscados  a  ser  mortos,  liv. 

ni,  num.  40. 

POBRES 

Enganos  com  que  huns  perlião,  liv.  i,  num.  22. 

D.    I'EDr,0  FERNANDES  SAUDINHA 

Primeiro  Bispo  do  Brasil,  liv.  i,  num.  37. 

Chega  á  Bahia  liv.  i,  num.  114. 

Suas  partes,  e  talentos,  ibid. 

Faz  naufrágio  voltando  ao  Beino,  liv.  n,  num.  14. 

POHTO   SEfiUUO 

Quem  foi  seu  primeiro  povoador,  liv.  i,  num.  142. 

Sua  descripcão,  ibid. 

Vão  a  esta  Capitania  os  Padres  da  Companliia  de  Jesu,  liv.  i,  num.  140. 

PEDIIO  DE  CAMPOS  TOIHINIIO 

Primeiro  povoadoí-  de  Porto  seguro,  liv.  i,  num.  142. 


336  ÍNDICE  oi:ral 

PEDRO  BORGES 

Primeiro  Ouvidor  geral  do  Brasil,  iiv.  i,  num.  42. 

IRMÃO  PEDRO  CORRÊA 

Entra  na  Companhia,  e  lie  o  primeiro  Noviço  que  cnlrou  no  Brasil,  liv. 

I,  num.  70. 
Sua  ditosa  morte,  liv.  i,  num.  170  e  170. 
Vai  ao  sertão,  liv.  i  174. 

Chega  á  terra  dos  Carijós,  e  o  que  alli  fez,  liv.  i,  num.  175. 
Quem  foi,  e  os  progressos  de  sua  vida,  liv.  i,  num.  175. 
Como  os  índios  sentirão  sua  morte,  liv.  i,  num.  181. 

D.  PEDRO  LEITÃO 

He  eleito  segundo  Bispo  do  Brasil,  liv.  ii,  num.  C3. 

POBREZA 

Vivem  os  Padres  da  Companhia  pelo  trabalho  de  suas  mãos,  liv.  i, 
num.  72. 

PARAGYBÁ 

índio  muito  esforçado,  liv.  i,  num.  103. 

PERNAMBUCO 

Suas  desgraças  forão  d^antemão  vistas,  liv.  i,  num.  104. 

O  que  n'elle  obrarão  os  Padres  da  Companhia  de  Jesu,  liv.  ii,  num.  01. 

Sua  descripção,  hv.  i,  num.  99. 

Quem  foi  seu  primeiro  povoador,  liv.  i,  num.  100. 

Vide  Duarte  Coelho. 

PÃO 

Páo  brasil,  liv.  i,  num.  99. 

PIRATININGA 

Vide  S.  Paulo. 

S.  PAULO 

Faz-se  Collegio  da  Companhia  cm  S,  Paulo,  liv.  i,  num.  148. 
DescrevG-sc  o  sitio  da  \illa  de  S.  Paulo,  e  excellencias  de  seu  districto, 

liv.  i,  num.  128  e  129. 
Muda-se  o  caminho  de  S.  Paulo  pêra  S.  Vicente,  liv.  ii,  num.  8o. 


d'ESTA  CIIRONICA  ^37 

província 
lie  erigida  a  Província  do  Brasil,  liv.  i,  num.  47. 

R 

RIO 

Rios  que  entrão  na  Bahia,  liv.  i,  num.  28. 

Rio  de  Janeiro,  seu  Padroeiro  S.  Sebastião,  liv.  iii,  num.  72  e  97. 

Dcscripção  do  Rio  de  Janeiro,  liv.  ui,  num.  106. 

RESIDÊNCIA 

Fundão-se  varias  Residências,  liv.  n,  num.  3. 

S 

SEMINÁRIO 

Faz-se  Seminário  de  meninos  índios,  liv.  i,  num.  71. 

Fanda-se  outro,  liv.  i,  num.  91  e  93. 

Vão  em  grande  crecimento,  liv.  i,  num.  118. 

PADRE  SALVADOR  RODRIGUES 

lie  o  primeiro  da  Companhia  que  faleceo  no  Brasil,  liv.  i,  num.  138. 

D.   SIMÃO  DE  CASTELBRANCO 

Malão  os  índios  Tupinaquis  a  D.  Simão  de  Castelbranco,  liv.  ii,  num.  13. 

D.  SEBASTIÃO  REI  DE  PORTUGAL 

Funda  o  CoUegio  da  Bahia  dos  Padres  da  Companhia,  liv.  m,  num.  45. 

S.  SEBASTIÃO 

Inlitula-se  a  cidade  do  RiocomappelidodeS.  Sebastião,  liv.  iii,  num.  117. 
Padroeiro  do  Bio  de  Janeiro,  liv.  iii,  num.  72. 

PADRE  SIMÃO  RODRIGUES 

Quem  foi,  hv.  i,  num.  4. 

VOL.   II  22 


338  iNDici:  f;  Eli  AL 

Trata  da  conversão  dos  Brasis,  liv.  i,  num.  3  c  5. 

Razões  porque  El-Rei  o  não  deixou  ir  a  e!le,  liv.  i,  num.  7. 

SALVADOR  CORKF.A  dc  SÁ 

Succede  no  lugar,  e  [losto  de  Estacio  de  Sá.  liv.  m,  num.  103. 

T 

TUOMÉ  DE  SOUSA 

Primeiro  Governador  do  Brasil,  liv.  i,  num.  25. 
Parte  de  Lisboa,  ibid. 

TOBAYARES 

São  OS  primeiros  índios  que  fizerão  pazes  com  os  Portugueses,  liv. 
I,  num.  101. 

TABIRA 

Esforço,  e  façanhas  deste  índio,  liv.  r,  num.  101. 

TEMLMINÓS 

Vem  estes  índios  povoar  junto  á  Capitania  do  Espirito  santo,  liv.  i, 
num.  240. 

TAPUYAS,   TITINAMBAS 

Levantão-se  estas  nações  contra  os  Portugueses,  liv.  ii,  num.  1. 

TORMENTA 

Espantosa  tormenta,  e  terremoto,  liv.  ii,  num.  8C. 

TITIS 

Levantão-sc  estes  índios  contra  os  Portugueses,  liv.  n,  num,  13. 

TAMOYOS 

Descripção  da  ttrra  dos  Tamoyos,  liv.  iii,  num.  G  e  7. 

Inquietão  estes  índios  com  seus  assaltos  aos  Portugueses,  o  confedera- 
dos, liv.  u,  num.  111  c  14-3;  e  liv.  ni.  num.  5. 
Castiga  Deos  estes  bárbaros,  liv.  ii,  num.  Mi. 


d'i:sta  ciiRO.Mc.v  í]39 

TUICO 

Dá-se  em  S.  Vioeiíto,  liv.  i,  num.  Oii. 

V 

VILF.A  DE  SANTOS 

Sua  fundarão,  liv.  i.  num.  G3. 

VASCO  FERNANDES  COUTINUO 

Primeiro  povoador  do  Espirito  santo,  liv.  i,  num.  95. 
Faz  armada  á  sua  custa,  e  vai  com  outros  fidalgos,  ibid. 

VICTORIA  VUJ.A 

<S'ua  descripção,  liv.  i,  num.  90. 

VICTORIA 

Alcanção  os  índios  Cliristãos  liuma  grande  victoria,  liv.  t,  num.  1C5. 
Victoria  insigne,  liv.  ii,  num.  135:  e  liv.  ni,  num.  81,  e  seg. 

S.   VICE.NTE 

Descrevc-se  a  Capitania  de  S.  Vicente,  liv.  r,  num.  Oá. 

FIM 


SATISFAÇÃO  AÕS  QUE  LÉM 


Bem  quizeramos  qiio  esta  edição  sahisse  tão  correcta  e  expurgada  de 
erros,  que  dispensasse  a  tabeliã  de  erratas,  a  que  entre  nós  raras  vezes 
escapam  ainda  as  mais  aprimoradas.  A  esse  propósito  applicámos  toda 
a  diligencia  e  cuidado  que  em  nós  cabiam,  revendo  miudamente  primei- 
ra e  segunda  vez  as  provas  lypographicas  de  cada  folha,  e  de  boa  von- 
tade veriamos  a  chamada  de  prelo,  se  nol-o  consentisse  a  celeridade  com 
que  o  editor  se  empenhava  em  concluir  a  impressão  da  obra.  Com- 
tudo,  apezar  do  trabalho  e  sacriíicios  qvxa  empregámos,  sò  em  parte  con- 
seguimos lograr  o  nosso  intento,  vencendo  as  diíliculdades  de  mais  de 
um  género  que  se  nos  oppunham. 

Examinado  agora  o  livro  já  todo  impresso,  e  conferido  escrupulosa- 
mente com  a  primeira  edição,  que  servira  de  norma,  achámos  que  na 
parte  portugueza  se  tornava  a  erraía  de  todo  desnecessária,  pois  apenas 
se  encontrou  a  troca  de  uma  ou  outra  letra,  e  algumas  voltadas,  o  que 
em  nada  deturpa  o  sentido  do  texto,  e  pode  ser  íacilimamente  supprido 
pelo  leitor  benévolo  c  intelligenle.  Quanto  porém  ao  poema  latino  do 
Padre  Anchieta,  que  n"e,ste  volume  corre  de  pag.  130  a  pag.  278,  nota- 
ram-se  discrepâncias  assas  numerosas,  bem  que  de  pouco  momento,  as 
quaes  nos  julgamos  obrigado  a  aponlar,  com  a  explicação  das  causas  que 
as  produziram. 

Forçado  a  corrigir  á  pressa,  quasi  sempre  de  noite  c  mal  ajudado  da 
vista  (que  cada  vez  mais  nos  falia)  as  provas  da  composição  lypographi- 
ca,  entregue  a  compositores  ípie  por  menos  peritos  e  totalmente  igno- 
rantes do  latim,  trocavam  o  alteravam  as  letras  a  cada  ])asso,  achámo-nos 
seriamente  embaraçado  ao  entrar  na  nívisão  pelos  versos  do  l'adre  An- 
chieta, que  na  edição  da  Cfironica  de  ICÁ^i  são  impressos  em  caracteres 
itálicos,  e  Ião  miúdos,  que  se  nos  (ornavam  de  noite  inintelligiveis.  N'es- 
te  embaraço  occorreu-nos  o  expediente  de  corrigir  as  provas  [)ela  outra 
edição  do  jnesnio  poema,  (jue  inqiresso  em  typos  mais  graúdos  sahiu 
com  a  Vida  do  Padre  Anchicla,  pelo  mesmo  auctor  da  Cltrouicn,  eslam- 


pada  em  1072.  Assim  o  pralicámos.  Porém  oresiillatlofui,  que  confron- 
tada agora  a  edição  actual  com  o  texto  da  Chronka,  appareceram  mui- 
tíssimas variantes  (são  as  que  na  tabeliã  seguinte  vão  marcadas  com  as- 
teriscos). D"estas,  c  de  lodos  os  erros  que  escaparam  á  correcção  damos 
pois  conta  exacta  e  minuciosíssima,  para  inteiro  descargo  de  nossa  cons- 
ciência. 


Pag. 

Lin 

h. 

139 

12 

paucae  meae 

li 

contemerat 

1Í0 

19 

víscera 

li2 

40 

forma 

143 

13 

tuo 

27 

niundítia 

44 

GialiOcoques 

143 

6 

ConciemcDt 

15 

eruniptit 

18 

invebilur 
aelhra 

20 

mersi 

32 

divinani 

40 

pracstant 

41 

obscure 
or  be 

líC 

3 

eximiu? 

13 

vctescs   ceste- 
re  querela 

41 

nculis 

147 

34 

laudet 

1i8 

12 

metuant 

37 

|)ruecepi'a;utí 

149 

2 

ole  facuiiilu» 

12 

speclíibilis 

31 

l'erpeluos 

4Í 

Indu 

150 

1 

surgunt 

18 

legantur 

lol 

23 

netlarens 

132 

31 

merita 

133 

31 

A^UIAE 

134 

6 

cândido 

32 

agnus 

34 

inter 

40 

era 

41 

Tunc 

103 

1 

Tene 

137 

12 

verita 

18 

Exil 

38 

sus 

138 

33 

mul(e 

1.^9 

« 

sedul 

ICO 

1 

bonus     • 

2 

(iongressere 

2Í 

procila  cd 

28 

Extendique 

ir.i 

3 

subjiflicuda 

103 

4 

nne 

11 

Altellis 
pcdibiisque 

Lca-se 

pauca  niea 
contumerata 
viscere 
foioiae 
tua 

iiiunditiae 
Giatificoque 
Concreniet 
erumpit 
invehitur 
aetlirae 
mersit 
diurnam 
praestante 
obscuro 
orbe 
cximio 

velcics  ccssc- 
rc  qucrelae 
nculi 
lande 
metuunt 
prnecipifatquc 
ciei  faecundos 
spcctabis 
Perpeíuus 
Indue 
insur^unt 
tegentur 
ncctarcus 
niorilas 
Amissae 
cândida 
dignus 
ante 
ora 
Tune 
Tune 
vetila 
Exite 
suus 
multo 
sedula 
bonis 

Congcsscre 
procul  acd 
Extendisi(ue 
subjicienda 
non 

AftoUis 
gi'nibu.sr(ue 


Pag.  Linh. 

1G3     12 

29 
33 
12 
21 
16 
43 
16G     27 


Lca-se 


164 
1C3 


10 
17 
28 
li 
20 
170     20 


167 
168 

169 


171 


173 


174 


173 


176 


177 


178 


182 


10 
14 
21 
22 
16 
20 
31 

O 
29 
32 

3 
22 
41 
42 


38 
41 

9 
11 
13 

6 
31 

179  40 

180  3 
181 


9 
43 


17 
36 


183      8 

17 

183     21 

18(J       2 

6 

29 


orans 

oras 

inslus 

juslus 

tua 

tuam 

humilieni 

humilem 

Ivmphit 

hniphis 

Nutrist 

ISuiriit 

concipi  et 

concipiet 

ibre 

imbre 

vicis 

vicit 

David 

Davide 

conslruclo 

constructa 

fecunda 

secunda 

lata 

latae 

altae 

alto 

appendit 

apprendit 

■viscere 

víscera 

nomiiie 

numíiio 

regai  i 

regale 

Laeturum 

Laturum 

car 

cor 

In  terá 

Interea 

pieles 

pictas 

at  quae 

atque 

lacta 

lacte 

Haeret 

Hacrete 

evcbit 

evehit 

more 

mora 

amor,  máxima 

discrimengran 

cura  subit 

depudoris 

peragatus 

peragatur 

cacuminis 

communís 

vijs 

pijs 

nxastiaris 

exatians 

prostuit 

profluit 

pudicitae 

IJudicítiac 

El.VIDIUM 

Elvidiu.m  et- 

ffagrat 

flagrat 

Tartarea 

Tartareo 

refeito 

refert 

Nulla 

^ullac 

volutaberis 

volutabris 

tumuii 

lumulis 

bonoranda 

bonorandae 

rabidusue 

rabidusquc 

revocat 

revucant 

natura 

naturac 

lllae 

llle 

favus 

favos 

pavent 

pavct 

■viscera 

viscere 

sinu 

sinus 

Pag. 
187 


188 
189 


1í)0 
1'JI 

192 
193 


19Í 
19o 

19C 

197 
198 

2C0 
201 
203 
20  í 

2o:; 

20(> 


207 
208 


209 
210 


211 
212 
213 


Lính. 

23  fovijte 

32  Cít 

34  Aiicilla 

17  alvuum 

6  serus 
10  vecal 

37  gravitius 
8  quod 

12  luininc 
l"i  \ix 

•i3  benigna 

7  chinior!l)US 

24  licui 

38  ne 

I  i  agct 

IC  sublinicn 

23  allae 

10  Exequereis 

II  tranclanlL-m 

40  csi 

41  drl 

5  sacrae 

40  est 

43  Deorat 

21  luniinc 

31!  seu 

7  alie 

30  nova 

40  rutnra 

42  Talta 

2  Vormiculiá 

33  honcslits 
38  Tegamina 

U  cu  na 

2;>  tenebra 

27  adoram 

.'i  Un (leque  af 

27  acto 

32  foedaic 
10  Quan 
14  divinis 

3  csl 

7  to  tus 
10  cum(|ue 

13  lllae  sum 
19  fen-j 

4  Ouae 

8  !<c[)iin 
3()  gestus 

13  ille  ccbias 

8  rircnnis 

10  liabero 

28  ulii 

1  í  caterva 

23  possucre 

17  vilcin 

33  pau|)ercrior 
li  Ília 


Lca-se 


Pag.  Linh. 


fovisli 

213 

es 

214 

Ancill.ie 

215 

alvuin 

• 

feras 

216 

vocat 

• 

giavibus 

217 

(jUOt 

lumina 

218 

vis 

benignao 

• 

cl  a  11)0  ri  bus 

licuit 

221 

nec 

222 

"{■'it. 

sublimem 

alta 

Exequcris 

223 

tractantem 

cst 

dãt 

sacra 

es 

Decrat 

22Í 

liminc 

ceu 

alto 

novae 

225 

ruitura 

Talia 

Vermiculisquc 

• 

lioncslis 

•      22fi 

Tegmina 

227 

cunae 

228 

tencbrae 

229 

adoranl 

Undc  queal 

210 

ardo 

foederc 

232 

Ouo 

•      233 

divinos 

23  i 

CS 

totius 

cumquc 

23K 

Jllacsum 

fures 

•     S3G 

Qua 

» 

se|((!m 

237 

guslus 

illcccbras 

prcMiis 

238 

liabcre 

alit 

239 

caterva 

2i3 

posueiu 

V  idem 

pauiierior 

2  ia 

lllu 

2i0 

21  Sabac 

19  ailbaessit 
27  abjecum 
29  su 

9  lul 

20  inetus 

O  summus 

17  periolis 
4  qui  es 

2!  aerumnis 

23  vulnerai 

41  firam 

20  qrimo 

4  culpa 

18  juccumbcre 
4í  jubeas  tnrgcn- 

tia 

"t  plaustro 

7  populos 

29  claudiris 

31  Desplicet 

32  víscera 
38  nulla 

í  premi 

parontis 

G  llumadum 

27  inope 

18  vila 

19  reconudis 
23  a  pudor 

30  terra 
10  Nubere 

4  vincera 

31  aetcreis 
10  arandinc 

32  abdilc 
9  Ipsus 

37  murto 

41  cumulei 
40  obcunda 

i  geus 

29  vincera 

43  tegmina 

6  grissibus 

42  uotiau 

7  quisque 
9  Juventa 

G  tencraerime- 

tur 

13  dulciac 

27  delicli 

28  Dulci 

17  diobus 
13  niammic 

18  cerde 

28  cxbalcntc 

37  invasi 

2  Pignore 


Lea-se 

Saliíieac 

adbaesit 

abjectum 

sic 

tuí 

metuiá 

somnus 

pcriclis 

quies 

aerumnis  obruit 

vulnerei 

ferani 

primo 

culpae 

succumberc 

jndeaslurgen- 

tia 

plauslra 
populus 
clauderis 
Displicet 
viscerc 
nullo 
primi 
parentis 
Ihimanum 
inupi 
vilae 
recondis 
Itudor 
Icrrae 
Nuberet 
vincere 
aelberis 
arundinc 
abdita 
Ipsius 
mulo 
cumulei 
obcundae 
gens 
vincero 
tegmino 
gresíibus 
do  na 
quicsquc 
juvenlac 
tenerae   rime- 

tur 
d u leia 
dilccti 
Dulciac 
diebiis 
manmiis 
corde 
cxbalanie 
inv;isit 
Pignora 


Pàc;.  Linli. 


Lca-sc 


Pas.  Linh. 


2i6 

29 

terebantur 

2Í7 

23 

saumani 

31 

oITcndit 

2i8 

2í 

fi\us 

2Í9 

2f> 

sanguiuolenta 

230 

C 

viscera 

20 

divine 

23 

prenicnt 

2rJ2 

C 

geiíibusgue 

234 

3 

contulis 

8 

nulia 

2Í 

Quae 

203 

15 

santis 

2oG 

7 

dit 

8 

Tu 

16 

Jucidiique 

tcrebraiitur 

238 

21 

suac 

siiinan 

239 

13 

splendiorc 

oíTendit 

2(;o 

9 

tUPS 

fixos 

2G2 

2í 

saucta 

sanguinolenta 

29 

peragebac 

viscerc 

38 

Virgineo 

divini 

ií 

crudflis 

premente 

263 

36 

Dominac 

genibusqiie 

26i 

1 

lluiuanamquc 

contulit 

23 

Es 

nullo 

, 

37 

lala 

Qua 

206 

4 

vcslris 

sentis 

270 

22 

patcrctc 

íJic 

271 

1 

(juarara     . 

Te 

29 

ager 

Judiciiquc 

.      273 

20 

sule 

I.ca  SC 

sua 

splcndidiorc 

tuos 

sancta 

peragebat 

Viigineum 

crudeli 

Domina 

Humanumquo 

El 

lacla 

vesliiis 

paterorc 

quacram 

acgcr 

saio 


líÀ 


F  Vasconcellos,   Simão  de 
2528  Chronica  da  Companhia  de 

V38  Jesu  do  estado  do  Brasil 

I865  2.  ed.,  corr.  e  augm. 


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