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Full text of "Chronica do muyto alto e muyto poderoso rey destes reynos de Portugal dom João o III deste nome"

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CHRONICAS 

D  E 

FRANCISCO 

D'  A  N  D  R  A  D  A. 


CHRONICA 

DO 
MUYTO   ALTO   E   MUYTO   PODEROSO 

R  E  Y 

DESTES  REYNOS  DEPORTUGAL 

DOM  JOÃO 

O  III   DESTE   NOME, 

DIRIGIDA 

HA  C  R.  M.  D'EL  REY  DOM  FILI^PE  O  III, 

COMPOSTA    POR 

FRANCISCO  D'ANDRADA 

do  leu  Confelho  ,  e  feu  Chroniíta  mor, 

PARTE   I. 


COIMBRA: 

Na  Real  Officina  da  Univerfidade. 

Anno   de  MDCCLXXXXVI. 

Com  a  Licença  necejjhría, 

'1 


fS  ^ 


ia  c 


TaxaÕ  ejie  Livro  em  oito  centos  reis,  Lishoa  a  ^  de  Novemhro 

de  179  8. 

Com  cinco  Ruhicau 


% 


AO  MUITO  ALTO 

E  MUYTO  PODEROSO 

REY  DOM  FILIPPE 

O  TERCEIRO  DESTE  NOME. 


EL  REY  Dom  Filippe ,  que  fanta  gloria 
aja  5  pay  de  volla  Mageftade ,  me  man- 
dou nos  annos  atrás  paíTados ,  que  com- 
puzeíle  a  chronica  dei  Rey  domjoao  noíTo  fe- 
nhor ,  o  terceyro  dette  nome ,  feu  tio,  irmão  da 
Emperatriz  fua  may ,  o  que  eu  tiue  por  huma 
grande  mercê  e  honra  para  mim  ,  imaginan- 
do que,  pois  S.  M.  me  efcolhia  para  hum  ne- 
gocio tão  árduo ,  e  tão  importante  ha  honra 
defte  feu  reyno  ,  feria  quiçá  por  lhe  parecer 
que  teria  eu  talento  para  o  feruir  nelle  a  feu 
goíto  :  porem  daquy  me  naceo  também  hum 
receyo  aííaz  grande  ,  e  que  me  pôs  em  bem 
grande  confuíaõ  ,  porque  naõ  vendo  eu  em 

mim 


VI 

mim  cabedal  nem  forças  para  poder  com  ta- 
manho pefo  5  duuidaua  rnuyto  poder  fahir  com 
efte  negocio  de  maneyra  que  S.  M.  fe  ouueíTe 
nelle  por  bem  feruido  de  mim.  Comtudo  en- 
tendendo que  era  forçado  romper  por  todos 
os  inconuenientes  que  fe  me  reprefentauao  , 
por  fazer  o  que  me  elle  mandaua  ,  me  puz  ha 
obra  5  e  continuey  nella  muyto  tempo  com  af- 
faz  de  trabalho  do  eípirito  e  do  corpo ,  até 
que  foy  Deos  íeruido  que  chega íTe  com  ella 
de  todo  ao  cabo.  Nas  coufas  tocantes  ao  rey- 
no  e  a  Africa  creyo  que  não  deixará  de  auer 
querti  diga  ,  que  ha  aquy  alguma  faha  ,  porem 
(  fe  aíly  he)  não  foy  por  me  faltar  a  mim  toda 
a  diligencia  pofliuel  ,  e  neceílaria  ,  mas  por- 
que em  muyta  cantidade  de  papeis  que  reuol- 
iiy  ,  e  outros  que  fe  me  oíferecerao  ,  algumas 
coufas  erão  tão  friuolas  e  de  tão  pouca  fuftan- 
cia ,  que  me  parecerão  impertinentes  para  a 
grandeza  e  autoridade  do  logeito  deíla  hiílo^ 
ria  ,  e  outras  me  pareceo  que  erão  tão  pouco 
autenticas ,  que  receey  pôrme  a  rifco  de  ferem 
julgadas  por  pouco  verdadeyras  ,  que  he  o  de 
que  nas  matérias  deíla  caiidade  mais  fe  deue 
fugir.  E  por  iflTo  deftas  me  não  pareceo  remo 
nem  licito  admittir  a  eíía  chronica,  fenao  as  em 

que 


TH 

que  eu  entendia  que  não  podia  auer  duuida , 
pollo  credito  dos  papeis  donde  foiao  tiradas  ^ 
e  das  outras  as  que  de  fy  erao  tais ,  que  mere- 
eião  ter  lugar  numa  hiftoria  de  tanta  autorida- 
de. Nas  coufas  da  índia  feguy  humas  informa- 
ções ,  que  me  vierao  ter  ha  mao  afiaz  largas  e 
difufas  ,  que  me  parecerão  de  mais  credito 
que  quaisquer  outras  que  pudera  ter  ,  porque 
forão  feitas  por  hum  homem  honrado,  que 
diz  de  fy  que  entrara  na  Índia  poucos  annos 
dcfpois  de  ella  fer  defcuberta ,  e  que  tomou 
por  emprefa  efcreuer  as  co-uías  que  nella  fuce-* 
derão  em  todo  o  difcurfo  de  fua  vida ,  que  foy 
de  largo  tempo,  de  que  as  mais  elle  vio  poi? 
feus  olhos  por  fe  achar  prefente  nellas ,  e  das 
que  não  vio  tirou  tao  certas  informações  ,  que 
as  eícreue  por  tao  verdadeiras  como  fe  as  vira. 
Do  qual  trabalho  diz  que  não  efperaua  nem 
queria  outro  louuor  nem  premio ,  fenao  efcre- 
uer as  verdades  da  íua  hiftoria  puras  e  limpas , 
e  nuas  de  todos  os  refpeitos  particulares,  que 
fão  cauía  a  alguns  efcritores  ou  de  enfeitarem 
algumas  más  obras  ,  para  que  de  todo  fe  não 
enxergue  a  fealdade  delias  ,  ou  de  aleuantarem 
e  engrandecerem  algumas  boas  mais  do  que 
ÍQ  lhe  deue ,  para  que  luftrem  mais  do  que  me- 

re- 


vni 


recém  ,  o  que  elle  moftrou  bem  claramente 
em  todo  o  diícurfo  da  fua  larga  hiftoria.  De 
qualquer  maneyra  que  for  julgado  efte  meu 
trabalho  ,  me  detriminey  em  fahir  com  elle  a 
luz,  confiado  que,  pois  teue  principio  na  vonta- 
de e  mandado  dei  Rey  voílo  pay  ,  fera  V.  M. 
feruido  ,  pois  veyo  ter  o  fim  no  feu  império  , 
não  lhe  negar  o  fauor  e  emparo,  o  que  não  fem 
lezão  efpera  do  feu  real ,  magnânimo  e  beni- 
gno peito  ,  porque  com  elle  ficará  íeguro  dos 
encontros  que  cuftumão  ter  as  coufas  defta  cali- 
dade,  que  de  nouo  faem  ha  vifta  de  olhos  íobe- 
jamente  curioíos  ,  e  de  juízos  mais  efcudrinha- 
4ores  das  obras  alheas  que  das  íuas. 


Francifco  d^andrada. 


I 

TABOADA 

DOS 

capítulos   da   I.    PARTE. 


C 


AP.  I.  O  nacimento  do  princfpe  dom  João ,  e  ojett 
Bnutifmo ,  o  que  jucede  em  ambos  ejles  dias  :  pig.  i. 

C  AP.  II.  A  criação  do  princepe  até  que  jsube  bem  andar ^  e 
huma  viJaQquefuaama  teue  emjonhos  :  pag.  4. 

CAP.  III.  O  princepe  he jurado  ,  daÕlhe  mejlres  que  o  injl" 
nem  ,  quais  Jaõ ,  e  o  que  aprende  :  piíg.  d» 

CAP.  III L  Dã-fe  cafa  ao  princepe  ^  quais  JaÕ  os  primeyros 
officiais  que  lhe  dão  nella  ,  e  algumas  particularidades  de 
fuã  pejjoa  :  pag.  9.        ^ 

CAP.  V.  Dous perigos  da  vida  que  o  Princepe  tem.  El  Rey 
o  começa  a  meter  nas  coufas  do  gouerno.  O  caj amento  dei 
Rey  com  ma  dama  Leanor^  e  os  pareceres  que J obre  elle  ha- 

,   na  corte  :  pag.  12. 

CAP.  VI.  Como  o  princepe  fe  ha  nejle  cafamento  delRey  ,  e 
como  fe  el  Rey  ha  com  elle  ,  quais  Jaõ  os  principais  daus 
priuados  que  o  princepe  tem ,  e  as  feições  do  corpo  do 
princepe  ;  pag.   15. 

CAP.  VII.  A  morte  dei  Rey  dom  Manoel  e  o  feu  enterra- 
me}2to ,  e  as  cirimonias  que  nella  je  fazem.  pag.  17. 

^art.  L  *  CAP. 


ir  Taboada   dos  Capítulos 

CAP.  VIU.  O  }iiodo  e  aparato  com  que  o  princepc  'vay  até 
o  alpendere  de  faÕ  Domingos  ,  o/jde  hade  Jer  jurado  por 
Rey  :   pag.  21. 

CAP.  IX.  ^  maneyra  de  que  o  prlncepe  be  jurado  ,  c  leuan* 
ta  do  por  Rey  ,  e  as  exéquias  que  Je  Jazem  por  el  Rey  dom 
Manoel :  pag.  24. 

CAP.  X.  O  ejlado  em  que  ejião  as  coufas  do  rey  no  ajfy  den* 
tro  como  fora  delle  ,  quando  o  princepe  dom  João  começa 
a  reynar  :  pag.   27. 

CAP.  XI.  ElRey  notijica  a  morte  dei  Rey  feu  pay  ao  Fap» 
pa  e  aos  Reys  Crijiaos  ,  he  vijitado  .da  coroa  de  Ca  fie  lia  y 
e  começa  a  entender  no  gouerno  do  rey  no  :  pag.   32. 

CAP.  XII.  O  conde  de  Mar  ia  lua  uem  ha  corte  queixarje 
a  el  Rey  do  marques  de  Torres  720uas  ,  a  rezão  porque  ,  e 
o  que  Je  faz  j obre  ifjo:  pag.  36. 

CAP.  XIII.  El  Rey  manda  "João  dafilueyra  por  efíibatxa" 
dor  a  França  ^e  o  do  que  trata  a  embaixada  :  pag.  40. 

CAP.  XIV.  El  Key  de  França  manda  por  embaixador  Ho* 
norato  de  Cais  gentil  homeyn  Saboy ano  a  Portugal .,  o  nc" 
gocio  a  que  vem  ,  e  o  que  pajjd  na  corte  de  França  fobre  os 
negócios  da  embaixada  de  joão  dajilueyra  :  pag,  42.. 

CAP.  XV.  El  Rey  manda  dar  ao  Pappa  os  parabéns  do 
jummo  pontificado  ,  [uplicalhe  pollo  priorado  do  Crato 
para  o  ijante  dom  Luis  ,  o  Emperador  manda  hum  embai" 
xador  a  el  Rey  ,  a  Jufi anciã  da  embaixada  ^  e  a  repojln 
delia:    pag.  4). 

CAP.  XVI.  ElRey  propõem  no  confelho  o  caf amento  da 
ijante  dona  Ijabcl  jua  irmam  ,  hd  Jobre  elle  differentes 
pareceres  y  as  rezoens  de  ambas  as  partes  ^  elReyJe  re^ 

Jolue 


da  Prinievra  Parte.  ni 

foJue  e  manúa  Lu  is  da  fiheyra  por  embaixador  a  Cafiel' 
la  :  pag.  48. 

CAP.  XVII.  Chega  auifo  a  ei  Rey  de  huma  das  nãos  da  ar- 
mada  de  Fernão  de  magalhães  que  arribara  ao  cabo  Ver- 
de ,  e  como  os  da  Ilha  Je  hão  com  cila  ,  e  o  que  J obre  ijjofe 
faz  em  Cajlella  ,  e  Portugal :  pag.  5 1 . 

CAP.  XVÍÍT.  El  Rey  muda  a  juflajicia  da  embaixada  de 
Luís  daftlueyra  ,  o  que  paffa  cem  elle  defpois  de  ejlar  em 
Cajiella  acerca  da  companhia  que  leuara  ,  o  que  elle  con- 
crue  CO  Emperador  nos  negócios  que  leua  acargo  ,  toma 
pêra  Portugal ,  e  o  que  cá  pajja  com  el  Rey  :  pag.  53, 

CAP.  XIX.  Fallaffe  em  cafar  el  Rey  coyn  a  Rainha  dona 

Leanor  luamadrajla  ^  as  razoes  que  para  ij] o  lhe  dão  ^ 
jazlhe  [obre  ijjo  hum,  requerimento  a  cidade  ae  Lisboa  ,  c 
o  que  dahy  Jucedc  :  pag.  56. 

CAP.  XX.  O  que  faz  a  Rainha  dona  Leanor  defpois  da 
morte  dei  Rey  dom  Manoel  ^  el  Rey  fe  fae  di  Lisboa  por 
cauja  da  pefte  ,  o  que  o  fecr etário  Bârrofo  paffa  com  a. 
Rainha  ,    e  o  que  a  elle  jucede  :  ppg.   ói. 

CAP.  XXI.  O  gúuernador  da  índia  doyn  Duarte  de  mene- 
nefes  chega  a  Goa  ,  dajje  conta  do  akuar.t amento  de  Or- 
muz ,  o  capitão  da  fortaleza  manda  pidir  focorro ,  e  o 
que  nijjofe  faz  :  pag.  óy. 

CAP.  XXII.  Dom  Luís  de  jne nefes  capitão  mor  do  mar 
vianda  hum  galeão  em  focorro  de  Ormuz ,  o  gouernador 
manda  ao  mefmo  dom  Luis  que  o  "vá  f  ocorrer  ,  elle  vay  com 
huma  grojjã  armada  ,  e  o  que  lã  Jaz  até  Je  tornar  para 
a  Índia  :   pag.  70. 

CAP.  XXIII.  Dom  Garcia  negocea  dar  a  morte  ao  Xarajo ^ 
hum  mouro  dos  principaes  do  reyno Jecretamente  fe  lê  com 

*  2  elle 


IV  Taboada  dos  Gapitulos 

elle  e  fe  oferece  a  darlha  ,  e  o  modo  que  para  ijjo  bufca  : 

CAP.  XXÍIIT.  Bãfje  a  morte  a  Rais p.bíidhn ,  o  Xarajo 
foge  de  Oueixoyne  e  entrafecretawente  em  Ormuz  ,  o  ca^ 
pitão  o  prende  ,  faz-fepaz  com  elRey  eje  -vem  para  a  ci- 
dade. Dom  Garcia  ,  e  dom  Gonçalo Je partem  ^.araa  ín- 
dia ,   e  o  que  lhe  jucede  :  pag.  8i. 

CAP.  XXV.  VÃ  Rey  dom  João  mjfo  fenhor  7nuda  «  eJiiUo  de 
receber  o  embaixador  do  Emperndor  em  diferente  modo  de 
que  v[ãua  el  Rey  dom  Manoel  jeu  pay  ,  ea  rezão  porque  ; 
pag.  86. 

CAP.  XXVI.  O  Rey  da  ilha  de  Ternate  em  Maluco  manda 
hum  embaixador  a  Garcia  dejdjobre  fazer  hiima  jorta- 
leza  nafua  terra  ,  a  repofta  que  tem  ,  e  a  ocafiao  d^nde 
ifio  nace  ;  pag.  87. 

CAP.  XX Vil;  António  de  Brito  chega  a  Maluco  ,  ajjent» 
paz  com  a  Redinha  deTemate  ,  começa  a  jazer  fortale^ 
za  ,  e  algumas  coufas  particulares  que  lhe  Jucedem :. 
pag.  91. 

CAP.  XXVIII.  O gouernador  fe pajfa  a  Goa.  ahy  defpacBs 
Martim  Âfonfo  de  melo  Coutinho  para  a  China  ,  e  dom 
Jndre  anriquez  para  Pacem ,  e  o  que  a  dom  Andrejuce* 
de  na  viagem  :  pag.  ^6, 

CA?  XX  ^X.  Martim  Afonjo  de  melo  chega  'a  Mala  caí 
Rarte  d^hy  para  a  Chtna  ,  e  o  que  lá  lhe  jucede  ,  na  volta 
entra  em  Ra  cem,  peleja  cos  inimigos  que  ejlaojobre  ajor- 
taleza  ,  R^ra  Lourenço  de  melo  parte  de  Lochim  jazer 
-viagem  para  a  China  ,  c  ofucejjo  que  tem  :  pag.  99. 

GAP  XXX.  O  Q-ouernador  manda  hum  capiiao  e feitor  ha 
cfla  de  Charamanàçl ,  manàalhe  que  tome  informação  da 
"  j  cajá. 


da  Primeyra  Parte.  V 

cafa  do  Apof.olo  São  Tomé  ,  dafe  rezao  do  que  ^c  acha 
delia  :   pag.   103. 

CAP  XXX  T.  O  gouerfiadornianda  hmnjacerdote  ha  cafa 
do  '  Apoílolo  S.  Thome  afaz-er  obras  ,  que  torna  [em  Jazer 
fiada,  'Manda  Pêro  lopez  dejampayo  ha  n.ejma  cajá  com 
outro  faccrdote.  Dãffc  conta  de  cnujas  nctias  queje  achao 
va  cajá  ,  e  da  obra  que  fe  faz  nella.  O goucruador  je  vay 
inuernar  a  Goa  \  pag.   100. 

CAP.  XXXII.  Gonçalo  mendezCorCoto  capitão  de  Jz amor 
faz  hunia  entrada  em  terra  de  mouros  ,  e  oquelhejuce* 
de:   pag.   112. 

CAP.  XXX III.  Partem  do  reyno  e^fle  anno para  a  Jndla  três 
nãos,  ondepajfa  humaju  que  dd  nouas  da  morte  dei  Rey 
DomMaucefdafje  conta  das  exequras  que je  jazem  por 
elle  7ia  índia,  liem  Luis  de  menejcs  chega  de  Ormuz  a. 
Goa  ,  o  gouernador  o  manda  a  Ccchim  :  pag.  115» 

CAP.  XXXI III.  O  gouernador  manda  feu  irwJo  dom  Luis 
a  Ma  cu  ha  ,  em  bujca  de  dom.  Rodrigo  de  Uma  ,  -cay  imier- 
fiar  a  Ormuz  ,  trata  logo  do  negocio  do  liais  Xdrajo  que 
ejidprefo  ,e  o  que  nellepajja  i  pag.  121. 

CA  P.  XXXV.  O  gouernador  jaz  paz  e  amizade  com  eiRey 
de  ' Ormuz ,  tratajje  de  (e  dar  a  morte  ao  goazil  de  Ormuz 
Rais  Xemejim ,  contãoje  algumas  particularidades  qut 
pajjao  com  elle  ,  o  gouernador  fe  fez  prejl  es  paraje  partir 
de  Ormuz:   pag.  125"» 

CAP.  XXXVI.  Bom  Luis-  com  a  fua  armada  naueganda 
para  o  ejlreyto  vay  ter  ha  cidade  de  ^aer  ,  combateu  ,  e  o 
que  lhe  f acede  :  pag.   130.. 

CAP.  XXXV lí.  Dom  Luis  manda  recado  a  dom  Rodrigo 
de  lima  dajua  vinda  ,  e  je  torna  jhn  elle  ,  jae  do  ejlreyto 
e  vay J urgir  em  Mazcate  :  pag.  134.  GAi?» 


VI  Taboada  dos  Capítulos 

CAP.  XXXVIIT.  O gotíernador  parte  ãe  Ormuz  ^  faz  dar 
a  morte  a  Raix  Xemcfim  ,  e  o  que  Je  faz  fobre  ijjo.  No 
caminho  tomão  os  mouros  hmna  galé  noffa.  O  gouernador 
entra  com  toda  armada  em  Chaul  defauindo  com  dom  Luís 
jeu  irmão  ,  dahy  fe  "cay  a  Goa  ,  dajfe  conta  de  hunia  mo- 
Iher  que  os  mouros  catiuao  na  nofja  galé :  pag,  137. 

CAP.  )iXWX,  Ordenajfe  a  ida  da  Rainha  dona  Leonor 
■para  Caftella  ,  e/la  Je  parte  ,  queynfaõ  os  que  a  acompa» 
nhão  até  a  entregarem  na  ray a  '.  pag.   142. 

CAP.  XXXX.  Os  dous  capitães  dom  Fedro  de  caflelbranco^ 
e  Diogo  de  melo  fe  partem  de  Moçambique  a  andar  has 
prefas  ,  topão  com  embaixadores  dos  Reis  Dezanzibar  ,  e 
Pomba  que  vem  pidir  focorro  para  elles,  Dom  Pedro  fe  vay 
com  elles  ,  e  o  que  lhe  acontece  ;  pag.   144. 

CAP.  XXXXI.  O  Hidalcão  manda  hum  capitão  feu  has 
terras  de  Goa  ,  que  fe  fenhorea  das  tanadarias  delia.  O 
tanadar  mór  fae  a  elle  por  duas  vezes  ,  e  o  que  Ihefucede 
em  ambas  \  pag.   147. 

CAP.  XXXXÍI.  O  quefucede  a  António  de  brito  ef  ando  fa- 
zendo a  fortaleza  na  ilha  de  Ternate  ,  moue  guerra  a  el 
Rey  de  Ti  dor  c^  e  a  rezão  porque  ,  e  o  quefucede  logo  fiO 
começo  delia  :  pag.  149. 

CAP.  XX XX III.  O  Rey  de  Dachem  arma  huma  cilada  ha 
fortaleza  de  Pacem  de  que  he  capitão  dom  André  Anri- 

qucz  ,  elle  manda  huma  armada  contra  os  Dachens  ,  e  o 
fucejjo  delia.  Os  Dachens  fazem  guerra  ao   rey  no  de  Pa- 

cem.  O  Reyfe  recolhe  junto  da  fortaleza  ,  e  o  que  fobre  ifjb 
faz  o  capitão  :  pag.  153. 

CAP.  XXXXIIIÍ.  O  Rey  de  Bintão  com  huma  grojfa  arma- 
da manda  fazer  guerra  a  Malaca  ,  Jorge  da/buquerque 
capitão  da  fortaleza  manda  outra  armada  contra  ella  ,  e 

o 


da  Primeyra  Parte.  vii 

o  fucejfo  que  teue,  António  de  pina  Tay  em  hum  junco  fa* 
zcrjuajãzenda  ,  chega  ao  Porto  de  Fao  ,  onde  jaõ catiuos 
os  Portuguejes  e  morrem  ynartires  :  pag.  157. 

CAP.  XXXXV.  Dom  Sancho  anriquez  z-ay  ha  cojia  de  Pa- 
tane  andar  has  prefas  ,  acompanhado  de  Ambrojío  do  rcgOy 
e  de  André  de  brito  ,  e  o  JuceJJo  que  tem  :  pag.    161. 

CA?.  XXXXVI.  Chegão  a  Goa  as  nãos ,  que  efle  anno  vai) 
do  reyno.  O  gouernador  [c  pajja  a  Cochim  ,  dajje  conta  do 
que  Jucede  na  fortaleza  de  Calecut  fendo  capitão  delia  dom 
João  de  lima  ,  e  do  que  fazem  os  mouros  nefie  tempo ,  e  de 
outras  coufas  que  o  gouernador  dejpacha  ejlando  em  Co- 
chim :  pag.   ló^. 

CAP.  XXXXV II.  Eytor  da  filueyra  parte  para  o  ejlreyto, 
Vay  Jurgir  no  porto  de  Adem.  E  o  que  paJJa  co  Rey  delia, 
Dahy  vay  a  Maçud  em  bufe  a  de  dom  Rodrigo  cie  lima  : 
pag.   171. 

CAP.  XXXXVI IT.  Ordena  Sua  Alteza  que  em  todos  os  pa- 
peis que  ajão  de  fcr  affinados  por  elle ,  ouporjeus  ojficiais 
emjeu  nome  ,  ev.i  que  fe  cujíumaua  per  IS  os  el  Rey  ,  da  ly 
por  diante  fe  não  ponha  fenão  ,  Eu  el  Rey  :  pag.   177. 

CAP.  XXXXIX,  O  que  dom  Luis  de  meu  efes  faz  em  Cochim 
de/pois  que  o  gouernador  Jeu  irmão  vay  para  Ormuz , 
Aíanoel  de  frias  vay  ha  pefcaria  do  aljôfar  ,  entrega  a 
feitoria  delia  a  João  flores  ^  "^^yJJ^^  ha  cafa  do  Apofiolo 
Sam  Thomé ,  faz-fe  obra  nella  ,  achãoffe  as  relíquias  do 
Santo  ^  e  o  que  je  jaz  delias '.  pag.  178. 

CAP.  L.  Eopo  dazevedo  chega  a  Pacem  para  fer  capitão  da 
fortaleza  \  dom  André  lha  naõ  quer  entregar.  Os  mouros 
a  combatem  ,  dom  André  adoece  ,  e  je  embarca  para  a  Ín- 
dia ,  a  fortaleza  fe  vê  em  grande  aperto  •'  pag.  183. 

CAP, 


VIII  Taboada  dos  Capítulos 

CAP.  LT.  Dom  André  nauegando  de  Pacem  para  a  Indiat 
topa  com  a  armada  de  Bajiião  de  fouja  ,  da  lhe  conta  do 
cjiado  em  que  fica  a  fortaleza  ,  elle  je  vay  a  focorrella. 
Dom  André  arriba  com  tempo  a  Pacem  ,  toma  afuacã' 
pitania  ,  e  de/pois  de  ter  algumas  dijferenças  com  Bajfiao 
dejoíífa  íobre  a  dejenJaÔ  da  fortaleza  a  larga  aos  mouros- : 
pag.  i8ó. 

CAP.  LII.  Jorfe  dalbuquerque  capitão  de  Malaca  fe próue 
piara  a  guerra  que  ejpera  dei  Rey  de  Bintao  ,  manda  dom 
Garcia  anriquez  com  quatro  nauios  a  eflar  na  barra  de 
Btnlão  ,  dos  nauios  de  dom  Garcia  tomao  os  mouros  dous , 
el  P^ey  de  Bintao  manda  pôr  cerco  a  Malaca  e  o  fuceffo 
dclle  :  pag.   191. 

CAP.  LIlí.  Chega  (ocorro  a  Malaca  ^   Jorfe  dalhuquerque 
manda  Martim  Ajonfo  de  fou [a  fazer  guerra  a  Bintao  ,  a 
■  Pão  ,  e  a  Patane  ^  e  o  que  Ihefucede.  Mandafje  de  Mala- 
ca /ocorro  a  el  Rey  de  Linga  no/J}?  amigo  contra  as  lancha^ 
ras  de  Bintao ,  e  ofucefjo  que  tem:  pag.  194. 

CAP.  LII  II.  Ba /lido  de  f o  ufa  e  Martim  corre  a  'vão  ter  a 
Banda ^  acbao  lá  Martim  Afonfo  de  melo  jufarte  em  guerra 
cos  da  terra  ,  Ba/lião  de  joufa  fe  vay  daly  defauindo  delle^ 
chega  recado  a  Martim  Afonfo  de  Maluco  de  António  de 
brito  ,  que  o  vá  /ocorrer  ^  vay  Id  com  três  fiauios  e  com 
elle  Martim  correa ,  fazfc  guerra  ha  ilha  de  Ti  dor  e  e  aU 
gunsfucejjos  delia  :  pag,  200. 

CAP.  LV.  Os  no  ff  os  com  ajud.a  da  gente  de  Cachildarões 
tomdo  três  lugares  na  ilha  de  Tidore  ,  com  que  outros  al- 
guns fe  lhe  vem  entregar.  O  Rey  da  ilha  manda  pidir pa* 
z>es  a  António  de  brito  ,  e  lhas  nega  ,  efaz  Innn  cruel  ca- 
jiigo  em  muytos  dos  inimigos  :  pag.  3,04. 

CAP,  I.VI.  ElRey  noÇjo  fenhormanda  a  Cajlella  dous  em- 
baixadores com  bajiantes  procurações  para  concruirem  a 

Jett 


da  Primeira  Parte.  IX 

•  feu  ca  [amento  com  a  IJ  atite  dona  Caterina  irynam  do  Em'' 
ferador  Carlos  quinto  e  tratarem  do  jcu  dote  ,  elles  o  con* 
cruem  de  todo  :  pag.  209. 

d  AP.  LVII.  Os  mouros  mercadores  de  Calecut  ordenão  huma 
grojja  armada  para  lhe  ir  guardar  as  Juas  nãos  ,  c  para. 
jazer  guerra  ha  fortaleza  ;  dom  João  de  lima  capitão 
delia  tendo  auifo  diftoje  fortifica.  A  armada  uay  dar  vifla 
ha  fortaleza  ,  e  o  que  Ihejucede,  Os  mouros  bujcão  hum 
ardil  para  darem  a  morte  a  dom  João  ,  co7itão(Je  algumas 
coufas  que  JaÕ  cauja  de  fe  começãr  a  guerra  que  eliiey  de 
Calecut  fez  ha  noff a  fortaleza  ;   pag.  213. 

CAP.  LVIIL  El  Rey  manda  dom  Vafco  da  gama  conde  da 
Vidigueira  a  gouernar  a  Índia  ,  contãofe  dous  cafos  efra- 
vhos  que  no  mar  lhe  acontecem  ,  chega  a  Goa,  El  Rey  or- 
dena  efle  anno  as  vias  para  as  fucejfões  da  gouernanca  da 
Índia  :  pag,  218, 

CAP.  LIX,  O  vifo  Rey  em  Goa  entende  no  que  pertence 

aaqueUa  cidade  ,  manda  fazer  jufiiça  de  três  molhercs  , 
queforão  aquelle  anno  dcfte  reyno.  Partejfe  para  Cochim  , 
de  caminho  manda  duas  armadas  a  diuerfãs  partes.  DeJ' 
embarca  em  Cananor  ,  faz  amizade  com  el  Rey ,  próue  a 
fortaleza  de  capitão  nouo ,  e  chega  a  Cochim  :  pag.  223. 

CAP.  LX.  O  capitão  de  Goa  dom  Anriqtie  de  menefes  yuan- 

_da  huma  armada  em  bufe  a  de  certas  f ufas  de  mouros  que 

Jairão  do  rio  de  Dabul ,  de  que  fez  capitão  mór  Chriftouão 

de  brito.,   tem  cos  inimigos  huma  cruel  e  afpera  pele  ia  e  o 

fucejfo  delia :  pag.  228.  /-    ^ 

CAP.  LXI.  El  Rey  manda  fazer prefies  o  quehe  necejjario 
para  a  Rainha  vir  a  efle  reyno  ,  manda  para  ifjo  os  Ifan- 
íes  dom  Luís  ,  e  dom  Fernando  feus  irmãos  ,  que  na  raya 
tomuo  entrega  delia  ,  manda  a  Pêro  correa  huma  detrimi- 
nação ,  e  outra  a  Damião  diaz  de  coufas  que  manda  que 

fe 


X  Taboada  dos  Capítulos 

Je  facão  ,  quando  a  Rainha  entrar  nejle  reym,  ElRey  a 

efpera  na  villa  do  Crato  ,  ahy  Je  recebem  ,  ejepajfão  pa- 
ra Almeyrim  :  pag.  233. 

CAP.  LXII.  Chegão  cartas  de  dom  Rodrigo  de  lima  ^  qik 
ejlá  nas  terras  do  Prelk  João  ,  ao  gouernador  dom  Bttarte 
eftando  em  Ormuz  ,  e  o  de  que  tratao.  O  gouernador ,  a  re- 
qíicrimento  de  Raix  Xarajo  ,  tnanda  hum  embaixador  ao 
Xeque  Ifmael ,  e  o  fucejjo  da  embaixada.  O  gouernador  fe 
parte  de  Ormuz  para  a  índia  ,  e  o  que  lhe  jucede  até  che^ 
gar  a  Baticala  :  pag.  237. 

CAP.  LXIÍT.  O  vifo  Rey  faz  prejles  armada  para  ir  fazer 
guerra  a  Calecut  e  a  "ioda  a  cofia  da  índia.  O  gouernador 
dom  Duarte  de  menefes  chega  a  Cochim ,  e  o  que  o  -vijo^  Rey 
pajfa  com  elle  antes  de  dejembarcar  ,  e  com  dom  Luis  de 
menejes  feu  irmão:  pag.  241. 

CAP.  LXIIÍI.  O  vifo  Rey  bufca  modo  para  auer  artilharia, 
de  que  ejid  falto  o  almazem  ,  Jucedelhe  huma  doença  gra- 
ve ^  manda  recado  ao  gouernador  dom  Duarte  Jobre  lhe 
entregar  a  gouernanç a  ,  e  o  que  nifjopaça  \  defpedepara  o 
reyno  hum  nauio  ,  que  parte  diante  das  nãos  ,  e  fentjndo 
crecer  a  fua  doença  encarrega  do  gouerno  ao  capitão  da 
fortaleza  ,  e  ao  veador  da  fazenda  ,  e  lhes  dá  a  ordem  que 
niffo  hão  de  ter,  Dafe  conta  da  fua  inorte  :  pag.  24o. 

CAP.  LXV.  AbreJJe  a  primeira  jucejfão  da  gouernanç  a  da. 
Índia  ,  e  o  modo  e  cirimonias  com  que  fe  abre  ;  achate 
nella  dom  Anrique  de  menefes  capitão  de  Goa  para  gouer- 
nador ,  de  que  hum  homem  a  muyta  prejja  lhe  leua  noua  : 
pag.  250. 

CAP.  LXVI.  Lopovaz  de  jaynpayo  e  Afonfo  mexia  prouem 
akumas  coufas  antes  da  vinda  do  gouernador  dom  Anri^ 
que  de  menefes ,  antre  as  quais  tnandão  António  de  mt* 
randa  m  bujca  de  dom  Rodrigo  de  lima  embaixador  da 

prejle^ 


âa  Primeira  Parte.  XI 

f  refle,  Junto  de  Adem  toma  duas  nãos  de  mouros  ,  em  que 
joube  de  alguns  Portuguefes  que  o  Rey  mandara  matar  , 
e  o  que  faz  /obre  i[fo  ;  chega  ha  ilha  do  Camarão  ,  e  dahy 
fe  torna  ha  índia  ,  e  a  rezao  porque:  pag.  254. 

CAP.  LXVII.  Chega  recado  a  Cochim  do gouernador  do  que 
Je  ha  de  fazer  em  quanto  elle  não  vem.  Dom  Duarte  e 
dom  Luís  partem  para  o  reyno  ,  e  arribão  a  Mocambi' 
que  \  partidos  dejpois  fe  perde  dom  Lu  is  ,  e  o  que  paffa 
Jobre  afua  perdií^ao.  Dom  Duarte  chega  ao  reyno  ^prejen» 
taffe  a  el  Rey  ,  e  o  que  Ihejucede :  pag.  258. 

CAP.  LXVIII.  Dom  Anrique  de  menefes  torna  poffe  da 
gouernança  da  índia  ,  e  as  cirimonias  que  nifjo/e  fazem  : 
chega  a  Ooa  recado  de  Aíelequiaz  para  o  vtfo  Rey  ,  e  o 
gouernador  lhe  rejponde.  Manda  alguns  nauios  em  bufca 
de  humas  nãos  de  Dio  ,  que  uão  com  madeira  para  fudã, 
Parteffe  para  Cochim,  no  caminho  ha  vifia  de  huns  pa^ 
raos  de  mouros  ,  e  o  que/obre  iffo  ordena  :  pag.  261. 

CAP.  LXIX.  As  nojfas  fufias  e  catures pelejao  cos paraoí 
dos  ynouros  ,  e  o  que  lhes  fucede,  O  gouernador  f urge  na 
barra  de  Baticala  ,  e  o  que  pajfa  com  el  Rey,  Pafjafje  daly 
a  Cananor  ,  e  o  que  ahyfaz.  Chegado  a  Cochim  ,  a  reque^ 
rimento  dei  Rey  de  Cananor  ,  manda  armada  e  gente  a 
Eitor  dafilueyra  capitão  da  fortaleza  para  ir  queimar 
o  lugar  de  Marabia  ,  e  o  que  nifjo  fefaz  :  pag.  265'. 

CAP.  LXX.  O  Camorim  Rey  de  Calecut  ajunta  muyta gen^ 
te  para  fazer  guerra  ha  fortaleza  \  efia  gonte  lhe  ray 
dar  mofira  de  fy.  Dom  João  de  lima  fae  a  pelejar  com 
ella  ,  e  o  que  fucede.  O  Camorim  manda  pedir  pazes  ao 
gouernador  ,  elle  lhas  concede  com  certas  condições  ,  que 
fe  não  accitão  :  pag.  270. 

CAP.  LXXI.  O  gouernador  faz  prefles  huma  grof] a  arma-' 
da  com  que  vay  ter  ao  rio  de  Panane  ,  onde  tem  huma 
braua  peleja  cos  inimigos  ,  e  ofuceffo  delia  :  pag.  273., 

**  i  CAP. 


XIT  Taboada  dos  Capítulos 

CAP.  LXXII.  O  gouer fiador  fae  do  rio  de  Panane ',  e  vay 
f  urgir  defronte  de  Calecut ,  fala  com  dcm  foão  de  Uma 
capitão  da  fortaleza  ,  dizlhe  em  fegredo  ,  que  faça  pôr 
fogo  ha  cidade  ;  do77i  João  o  pÕe  por  obra  ,  e  o  modo  que 
tem  para  ij]o  :  pag.  27o. 

CAP.  LXXIII.  O  gouernador  tem  uouas ,  que  no  rio  de 

Coulete  eflão  cincoenía  faraós  de  mouros  :  njayos  bufcar  , 
terã  coyri  tiles  huma  ajpera  e  cruel  batalha  ,  e  o  fucejfo 
de  Uai  pag.  279. 

CAP.  LXXIIIT.  O  gouernador  defpede  dom  SimaÕ  por  capi" 
taÕ  r,iór  da  cofia  ;  vayjje  a  Cananor  eje  ve  com  el  Rey^. 
Dom  Simão  entra  no  rio  de  Bracelor  ,  queiyna  vinte  pa- 
raos  de  mouros  ,  ejaquea  o  lugar  ,  peleja  defpois  com  ou- 
tros cincoenta  par  aos  :  e  o  que  lhe  jucede.  Õs  mouros  daÕ 

■  a  morte  a  oito  Fortuguefes  ,  que  efiaõ  em  hum  batel : 
pag.  28Ó. 

CAP.  LXXV.  Dom  Simaõ chega  a  Cananor  com  toda  a  ar-' 
mada  \  vay  correr  a  cojla  :  proue  a  fortaleza  de  Calecut  5 
ioma  alguns  nau: os  de  mouros.  A  dom  foao  de  lima  chega 
J  ocorro  ;  elle  dejpeja  a  fortaleza  de  toda  a  gente  que  não 
pode  pelejar  :  p  ag .  291. 

CAP.  LXXVI.  Da  ff e  conta  do  dote  que  el  Rey  nojfo  fenhor 
deu  ha  Ifante  dona  Ifabel  fua  irmam  co  Emperador  Car- 
los ;  das  arras  que  elle  lhe  deu  ,  e  do  que  lhe  deu  para  fu» 
fientaçaõdefuacafaepefjoa:   pag.  293. 

CAP.  LXXVIÍ.  António  de  brito  capitão  de  Maluco  defpã" 
cha  Martiui  y(fonfo  de  melo  jufarte  para  Malaca^  e  o  que 
faz  em  Bandui  ;  chega  aly  dom  Garcia  anriquez ;  vão  am* 
hos  fazer  guerra  ha  ilha  de  Lotir  ^  e  o  que  lhe  \ucede, 
El  Rey  de  Bintao  manda  huma  armada  contra  Malaca  ; 
Jae  Manoel  de  foufa  capitão  mór  daquelle  mar  a  pelejar- 
com  tila ,  e  ofuceffo  que  tem.  Laqaexemena  faltea  o  Ca- 
lar ççr  ^  h(í  f ocorrido  de  Malaca^  e  o  ^ue  Jucede :  pag.  297% 


da  Primeira  Parte.  xiii 

CAP.  LXXVIII.  Daffe  conta  ãe  humas  dijjerenças ,  qm 
tem  Vero  mazcaretihas  com  Afonfo  mexia  ícador  âa  fa- 
zenda. El  Rey  de  Calecut  manda  pôr  cerco  ha  no]]  a  for» 
taleza  ;  dom  João  de  lima  capitão  delia  ]e  prepara  para 
a  defender  :  pag.  302. 

CAP.  LXXYIIII.  O  renegado  engenheyro  ordena  hum  tr a" 
buço  oontra  a  fortaleza.  Dom  [joao  de  lima  manda  Diíar-- 
te  jernandes  a  Calecut  em  trajos  de  jogue  ,  que  lhe  d.i 
muitos  auifos-,  os  mouros  batem  a  fortaleza  ^e  o  fuce]]'o» 
Q  engenheiro  dctriminando  fazer  huma  mina  ordena  hum 
empar  o  para  os  gaftadores  y  e  o  que  os  no]]  os  fazem  % 

pag-   307- 

CAP.  LXXX.  O  Italiano  de]para  o  trabuco ,  e  faz  muyto 
dano  ha  fortaleza  ;  o  no]] o  condefíabre  lho  desfaz  ;  os  tnoií^ 
TOS  ordenão  outras  duas  mantas  ,  os  no]jos  lhas  queimaõ,. 
O  capitão  manda  pollo  jogue  pidir  f  ocorro  ao  gauernador,. 
Na  fortaleza  Je  começa  afmtir  fome  ^  com  que  lhe  morro 
alguma  gente  \  pag.  312. 

CAP.  LXXXI.  O gouernador  manda  duas  carauellas  a  fít- 
correr  a  fortaleza  de  Calecut.  Eitor  daftlueyra  capitão 
de  Cananor  a]ocorre  por  duas  'vezes.  As  carauellas  es- 
bombardeaÕ  o  arrayal  dos  inimigos  ;  antre  os  capitães 
delias  ha  diferença  Jobre  de] embarcarem  em  terra  ;  e  trn 
fimfó  Chrifouaõ  jujarte  fe  detrimina  em  defembarcar  i. 
pag.  316. 

CAP.  LXXXII.  Chrijlovão  jifarte  defembarca  em  terra  l 
tem  cos  mouros  huma  brauifjima  peleja»  Dom  Vafco  o  fo' 
corre  com  gente  ,  e  o  ]uce]]o  que  tem.  Os  mouros  ordenão 
huma  (erra  de  terra.  O  Italiano  afjenta  dous  trabucos< 
fiouos  ,  os  no]Jos  inuentão  hum  artificio  de  jogo  com  que  lhe 
^ueimãohumdelles'.  pag.  321, 


CAP;. 


XIV  Taboada  dos  Capítulos 

Cx\P.  LXXXIII.  Francijco  de  vafconcellos  chega  a  Calecut 
em  huma  galeota.  Duarte  da  fonjeca  vay  pidtr  f ocorro  ao 
gouernador  que  logo  o  manda.  Os  mouros  tornaÕ  a  pôr  mão 
na  Jerra  de  terra  ;  os  nojfos  lha  impedem.  Eitor  da  filuey" 
r  a  capitão  de  Cananor  [ocorre  a  fortaleza '.  pag.  327. 

CAP.  LXXXíIíí.  Francifco  pereyra  pejlana  chega  a  Cale- 
cut :  ma?ida  hum  parao  ha  fortaleza  carregado  de  manti'. 
mentos  ;  [obre  a  de  [embarcação  delles  fe  traua  cos  mouros 
huma  aí^pera  briga  ,  em  que  morre  hum  caimal  [eu  ;  e  o 
que  elles  fazem  para  auerem  o  feu  corpo.  Os  mouros  ordc' 
naô  efcadas  para  [ubirem  ao  muro.  O  gouernador  defpeds 
doruSimaÕ  de  menezes  a  focorro  com  dezajeis  vellas.  De 
Goa  vay  Fero  de  faria  com  vinte  vellas  a /ocorro:  pag.  3  3  2, 

CAP.  LXXXV.  O  que  fucede  em  Cochim [obre  três  eftran^ 
geyros  ,  que  fe  prenderão  :  pag.  335. 

CAP.  LXXXVI.  O  gouernador  manda  [oltar  os  nayres\ 
elle  em  pefjoa  os  leua  a  el  Rey  de  Cochim.  Detrimina  cer- 
car  a  cidade  ^  e  contra  aparecer  de  todos  infifte  em  o  fa- 
zer y  e  o  que  [ohre  ijjopajfa  com  el  Rey  j  em  fim  muda  ejia 
obra  em  outra  \  pag.  341. 

CAP.  LXXXVII.  Peromafcarenhas  chega  a  Malaca  \  to- 
ma pof[e  da  fortaleza  ;  el  Rey  de  Bintão  lhe  faz  guerra  ; 
elle  manda  Aires  da  cunha  pôr  [obre  o  porto  deBintao  ; 
manda  também  Martim  Ajonfo  de  melo  juf arte  com  arma- 
da fazer  guerra  a  Patana  ;  e  o  que  Idfaz.  Dom  Garcia 
anriquez  vay  a  Maluca  para  [er  capitão  y  e  o  que  paf[ít 

com  António  de  brito  :  pag.  345". 

,\ 

CAP.  LXXXVIII.  Do  reyno partem  efle  anno para  a  índia 
cinco  nãos  ,  de  quejós  três  chegaõ  a  Goa.  O  gouernador  fe 
ajunta  em  Calecut  para  f ocorro  da  fortaleza  com  huma 
grojfa  armada  ,  e  muyta  gente  ;  tomajje  confelho  fobre  o 
quefe  deue  fazer 'y  e  o  que  fe  concrue  :  pag.  348. 

CAP. 


da  Primeyra  Parte.  xv 

CAP.  LXXXIX.  Eitordafilueyrafe  ojfcrece  ao  gouerna' 
dor  para  meter  a  gente  na  fortaleza^  e  o  começa  logo  a  pôr 
for  obra.  Dom  'João  ,  e  dom  Vafco  ,  e  Fernão  de  w.oraes 
[aemjóra  ;  tem  cos  mouros  huma  braiia  peleja  [obre  reco- 
lherem a  gente  que  vaj  na  armada  O  gcuernador  je  orde- 
na para  fair  em  terra  :  pag.   353. 

CAP,  LXXXX.  Eitor  da  filueyra  ^  e  dom  João  de  Ihna 
Jaem  jóra  dar  rebate  no  arrayal ,  e  pelejão  cos  inimigos, 
O  gouernador  de  [embarca  com  toda  a  gente  ,  comete  o  ar^ 
rayal ,  tem  cos  inimigos  huma  brauijjima  batalha^  e  o  Ju- 
ceJJTo  delia  :  pag.  357. 

CAP.  LXXXXI.  ElRey  de  Calecut  comete  pazes  ao  gouer- 
nador por  yneyo  do  mouro  Cogebiquy  ;  elle  o  pÕe  em  conje- 
Iho  ,  e  juntamente  fe  Jerd  boyn  derrubarfe  a  fortaleza  ,  as 
pazes  je  a jf então  ,  e  a  fortaleza  fe  derruba  \el  Rey  de  Ca- 
lecut dá  a  morte  ao  Cogebiquy.  O  gouernador  fe  recolhe  a 
Cochim  curarfe  de  huma  chaga  que  tem  em  huma  perna  t 
pag.   3Ó4. 

CAP.  LXXXXI I.  Jorfe  dalbuquerque  capitão  de  Malactz 
parte  para  a  índia  e  o  que  Ihefucede  antes  de  chegar  a  Co- 
chim, António  de  brito  capitão  de  Maluco  manda  huma 
fufta  a  rej gatar  ha  ilha  dos  Celebes  e  o  que  lã  acha,  Dãfje 
conta  de  humas  gra?ides  dijferenças  que  ha  em  Maluco 
antre  António  de  brito ^  e  dom  Garcia  anriquez :  pag.  373  ► 

CAP.  LXXXXIII.  A  Ijante  dona  JJabel  irmain  dei  Rey 

nojfo  jenhorfe  recebe  por  duas  vezes  por  palauras  de  pre^ 
fente  co  Emperador  Carlos  quinto  por  meyo  dos  [eus  embai- 
xadores;  S.  A.  conuida  ejles  embaixadores  a  ja7:tarem  com 
elle -^  a  Emperatriz parte  para  Cafella  ^  jazje  delia  en- 
trega aos  que  de  lá  trouxer  ao  poder  para  a  receber\  decla- 
rajje  quem  faD\  ella  entra  em  Seuilha,  onde  o  Emperador  a 
recebe.  A  Ruiinha  nofjajenhora  pare  ojeu  primeyrs  filho  : 

pag-  378. 

DA 


Pag.  r 

DA  CHRONICA 

DO  MUYTO  ALTO 
E  MUYTO  PODEROSO  REY 

D.  JOÁO  O  III 

DESTE   NOME 

PARTE  PRIMEYRAy 

Compojla  por  Francifco  àanãrada  do  Confelho 
dei  Rey  nojjo  fenhor  ^e  feu  Chroíúfla  mor. 

CAPITULO     I. 

O  nachnento  do  princepe  dom  loaÕ,  e  o  feu  Bautijnio  ^ 
o  que  fucede  em  ambos  ejles  dias, 

EL  R  E  Y  dom  Manoel  de  gloriola  memoria,  o 
primeiro  deíle  nome  ,  e  dos  Reys  deíle  reyno  o 
decimo  quarto  ,  cafou  a  primeira  vez  com  a 
princefa  dona  Ifabcl  filha  mais  velha  dei  Rey 
dom  Fernando  de  Caftella  ,  e  d'Aragaõ  ,  e  da  Rainha 
dona  líabel  ,  a  que  chamarão  os  catholicos  ,  e  lierdeira 
de  todos  feus  eftados:  a  qual  princefa  era  então  viuua  do 
princepe  dom  Afonío  vnico  filho  dei  Rei  dom  loaó  o  fe- 
gundo  ,  que  morreo  em  Santarém  de  huma  queda  que  deu 
idum  caualío.  Deíle  primeiro  matrimonio  ouue  el  Rey  o 
Parte  i,  A  prin- 


a         Primeyra  Parte  da  Chronica 

princepc  uv/iw  ^.^.^^..  ,  *]\.  "'"^*:"  ^'..  v^oiri^uva  u  ii.)U5dU 
a  24d'Agoílo  do  anno  de  1498,30  qual  por  parte  dei  Rey 
íeu  pay   pertencia  a  direyta  íucceílaõ  do  Reyno  de  Portu- 
gal ,  e  polia  da  princefa  Tua  may  a  dos  reynos  de  Caftella  , 
Liaô  ,   Sicília  ,  e  Aragão;  porem  a  princeía  falleceo  dcfte 
primeyro  parto  ,  e  o  princepe  dom  Miguel  leu  filho  naô 
■viueo  a  pos  ella  mais  que  vinte  e  dous  mefes  fomente. 
Tinha  el  Rey  dom  Fernando  a  eíle  tempo  três  filhas,  a 
iíante  dona  loanna  mais  velha  de  todas  ,  cjue  era  ja  ea'ada 
com  Felippe  Archiduque  de  Auflria  c  íenhor  dos  eftados- 
de  Frandes ,  e  as  outras  duas  ainda  foheiras ,  a  ifante  do- 
na Maria  ,  e  a  ifante  dona  Caterina  ,  que  defpois  cafou 
com  el  Rey  Anrique  oitauo  de  Inglaterra  ,  e  defcjando  o 
Rey  catholico  de  continuar  efta  liança  e  parentelco  ,  que 
começara  a  ter  com  el  Rey  dom  Manoel,  lhe  mandou  ain- 
da em  vida  do  princepe  dom  Miguel  ,  que  elle  criava  em 
fua  cafa  ,  cometer  cafamento  com  a  ifante  dona  Maria  íua 
ilha  das  duas  folteiras  a  mais  velha  ,  de  que  elle  fe  efcufou 
algumas  vezes  por  rezóes  que  para  iíTo  tinha  ,  porem  deí- 
pois  da  morte  do  princepe  feu  filho  vendo  quanta  necelli- 
dade  tinha  de  fe  cafar ,  e  que  em  nenhuma  parte  o  podia 
faz^r,  que  fòíTe  milhor  nem  mais  proueitolo  para  os  feus 
reynos  que  em  Caftella,  fendo  de  nouo  cometido  para  efte 
caíamento  o  aceytou  ,  e  impetrada  a  difpenfaçao  o  pos  lo- 
go por  obra  ,  que  foy  no  mes  de  Oitubro  do  anno  de  i5'oO, 
Dcíle  íegundo   matrimonio  foy  o  primícia   o  feliciífimo 
princepe  dom  loac  o  terceyro  defte  nome,  que  defpois  rey- 
nou  nefte  reyno,  de  cujos  tempos  trará  efta  hiftoria.  Ná- 
ceo  efte  defejado  princepe  na  cidade  de  Lisboa  nos  paços 
dalcaçoua   huma  fcgunda  feira  leis  dias  do  mes  de  Junho 
do  anno  do  nacimento  de  Chrifto  nolTo  Senhor  de  mi!  e 
quinhentos  e  dous  ,  quafi  has  duas  oras  defpois  da  meya 
noire ;  e  no   tempo   que  a  Rainha  começou  a  entrar  nos 
trabalhos  e  perigos  do  parto  ,  eípalhando-le   efta  noua  por 
toda  a  cidade  ,  íe  ajuntarão  os  prelados  com  toda  a  clere- 
fia  e  relígiofos   dos    conuentos  ,  e  ordenando  huma  lole- 
ne  e  deuota  piociílào  com  muyta  cantidade  de  tochas  c 


delRey  Dom  João  o  IIÍ.  j 

círios  acefos,  que  davao  de  fy  grandiíTima  claridade,  íe  fo- 
raô  ha  capella  de  lefus  ,  q  eílá  no  conuento  de  í;iô  Domin- 
gos ,  e  prouue  a  noflb  Senhor  ouuir  fuás  orações  ,  e  dar 
profpero  e  íeguro  parto  ha  Rainha  dona  Maria  ,  com  a 
qual  noua  fe  enxergou  naquella  ora  em  toda  a  cidade  o 
aluoroço  e  contentamento  ,  que  íe  cuíluma  ter  no  bom  fu- 
ceíTo  da  couía  muyto  defejada.  Neíle  dia  do  Teu  nacimen- 
to,  fendono  tempo  mais  íeco  e  mais  quieto  de  todo  o  aar 
no  ,  ouue  em  Lisboa  huma  tao  efpantofa  e  taõ  defacuílu- 
mada  tempeftade  de  chuuas  ,  relâmpados  ,  trouôes ,  e  cu- 
riícos  ,  que  naõ  auia  memoria  de  homens  que  fe  lembraf- 
fem  de  outra  femelhante  ,  mas  iíío  naô  impidio  as  publi- 
cas moftras  do  géral  contentamento,  que  todo  o  género  de 
gente  íentia  co  nacimento  do  íeu  defejado  princepe  :  poUo 
qual  aíTy  na  cidade  de  Lisboa  como  em  todo  o  reyno  fe  íi- 
2eraó  muytas  e  muyro  íuntuofas  feitas,  e  muytos  ouue  que 
tiueraõ  o  íuceíío  deíla  tempeílade  ,  taõ  noua  ,  e  taõ  fora 
do  feu  tempo  ordinário,  por  hum  feliciílimo  pronoftico  do 
império  do  princepe  que  nacera.  A  noua  do  profpero  par- 
to da  Rainha  fe  cfpalhou  logo  por  todo  o  reyno  ,  com  a 
qual  todos  os  nobres  que  eílauaõ  fora  da  corre  fe  vieraÕ  a 
ella  com  tanta  preíía,  que  aos  oito  dias  eraõ  ja  muytos  en- 
trados nella  ,  com  cuja  vinda  fe  acrecentauaõ  cada  dia  as 
feílas  ,  os  jogos,  as  inuençoes,  e  a  funtuofidade  dos  trajos, 
trabalhando  cada  hum  por  dar  a  entender  com  eftas  mo- 
ftras de  fora  o  que  dentro  íintia  ;  porem  o  que  fe  moílrou 
diílo  no  dia  do  bautiímo  foi  tanto  da  ventagem  dos  outros 
dias  ,  que  parecia  que  tudo  fe  guardara  para  aquelle  fo- 
mente. Foy  o  princepe  bautizado  na  capella  de  Saõ  Mi- 
guel dentro  nos  mefmos  paços  dalcaçoua  ,  leuouho  ha 
pia  dom  laymes  duque  de  Bargança  ,  bautizouho  dom 
Martinho  da  cofta  Arcebiípo  de  Lisboa  ,  foraõ  fuás  ma- 
drinhas a  ifante  dona  Britiz  fua  auó  ,  molher  que  fora  do 
ifante  dom  Fernando  ,  e  a  Rainlia  dona  Leanor  íua  tia 
irraam  dei  Rey  feu  pay  ,  que  fora  molher  dei  Rey  dom 
loaó  o  fegundo  ,  padrinho  quis  el  Rey  que  foíTe  Pêro  paf- 
qualigio  embaixador  de  Veneza  em  nome  da  fcnhoria., 

A  2  que 


4        Prlmeyra  Parte  da  Chronica 

que  por  feu  mandado  auia  pouco  tempo  que  era  aly  vindo 
a  darlhe  graças  pollo  focorro  que  lhe  dera  contra  o  Tur- 
co ,  de  que  tora  por  general  dom  loaõ  de  menezes  conde 
de  Tarouca,  que  defpois  foi  prior  do  Crato  ,ao  qual  em- 
baixador armou  el  Rey  caualleiro  por  fua  mão  ,  e  lhe  deu 
licença  que  no  ercudo  das  fuás  armas  pudeíTe  trazer  a  iníi- 
gnia  da  esfera  dourada  ,  e  lhe  fez  outras  muytas  mercês 
conformes  aíTy  ha  grandeza  de  quem  as  fazia  ,  como  ao 
tempo  em  que  íc  faziaõ.  E  no  mefmo  dia  defte  bautiímo 
íe  acendeo  fogo  dentro  nos  paços  ,  que  naõ  deixou  de  per- 
turbar algum  tanto  a  folenidade  daquelle  dia  ,  porem  foy 
atalhado  com  tanta  preíFa  e  diligencia  ,  que  de  todo  fe 
apagou  fem  dano.  E  deíle  íuceíTo  ouue  também  alguns  , 
que  lançarão  mao  como  do  paíTado  ,  pronofticando  delle 
e  grande  reíplandor  que  deite  princepe  entaõ  nacido  auia 
deíucedera  efte  feu  rey  no.  Após  ifto  fez  el  Rey  logo  fa- 
ber  por  íuas  cartas  has  cidades  ,  e  villas  principais  do  rey- 
no,  o  nacimenro  do  princepe  dom  loaõ  feu  filho,  com  que 
o  reyno  todo  geralmente  fe  ocupou  em  muytas  feílas  con- 
formes ao  que  cada  lugar  podia  :  e  as  que  fe  íizeraõ  em 
Lisboa  foraó  com  tantos  gaílos  e  com  taô  funtuofas  inuen- 
çôes  ,  quanto  obrigaua  a  grande  honra  e  contentamento  , 
que  ella  particularmente  fentia  de  nacer  neíla  o  feu  defeja- 
<io  princepe. 

CAPITULO     U. 

A  criação  do  princepe  até  quefoube  bem  andar ^  e  huma 
vijau  que  jua  ama  teve  em  fonhos, 

O  Primeiro  leite  que  o  princepe  tomou,  por  ordem  dei 
Rey  e  da  Rainha  ,  foy  de  Britiz  de  paiva  molher  de 
Ahiaro  da  coifa  guardarroupa  dei  Rey  ,  que  pollos  mere- 
cimentos de  fua  peíloa  teuc  delle  deípois  mayores  honras, 
€  fe  chamou  dom  Aluaro  da  coifa  ,  e  o  ícruio  de  feu  cama- 
reyro  mor,  e  tcue  antre  elle  muyta  valia  e  autoridade;  mas 
porque  á  fua  molher  ,  por  caula  de  huma  infirmidade  que 
teue  ,  fe  lhe  fecara  o  leite  ,  pedio  qWq  por  mercê  a  el  Rey, 

que 


dei  Rey  Dom  João  o  III.   i         5 

que  deíTe  a  criação  do  princepe  a  Felíppa  dabreu  molher  de 
Bcrtolaineu  de  payua  feu  cunhado  ,  hoir.em  nobre  e  cida- 
dão dos  antigos  de  Lisboa  ,  a  qual  mercê  lhe  el  Rey  fez  : 
e  Felippa  dabreu  começou  logo  a  dar  o  leite  ao  princepe , 
e  o  acabou  de  criar  co  cuidado  ,  e  diligencia  que  conui- 
nha  :  e  defta  boa  criação  íe  ouue  el  Rey  por  também  lerui- 
do  ,  que  a  elia  e  a  feu  marido  fez  por  iílo  muitas  mercês  , 
antre  as  quais  foy  darlhe  o  officio  de  guardarroupa  ,  e  vea- 
dor  das  obras  do  reyno  ,  e  outras  honras  para  feus  decen- 
dentes.  Contaua  cila  Felippa  dabreu,  que, antes  que  el  Rey 
dom  Manoel  cafaíTe  com  a  Rainha  dona  Maria,  lhe  pare- 
eeo  huma  noite  em  fonhos  ,  que  fe  fazião  humas  grandes 
feílas  ,  has  quais  a  Iciiaua  polia  mão  hum  velho  ,  e  lhe  di- 
zia que  aquellas  feílas  fe  fazião  pollo  nacimento  de  hum 
princepe  de  que  ella  auia  de  fer  am^  ,  e  defpois  de  ferel 
Rey  cafado  e  a  Rainha  dona  Maria  prenhe,  vio  fegunda 
vez  em  fonhos  o  mefmo  velho  ,  que  lhe  ratificava  o  que 
antes  lhe  tinha  dito  ,  e  fendo  o  princepe  nacido  e  entre- 
gue ha  fua  primeyra  ama,durandoainda  as  feílas  do  feu  na- 
cimento, lhe  apareceo  terceyra  vez  o  mefmo  velho  em  fo- 
nhos, e  lhe  dilTe  claramente,  que  aquelle  era  o  princepe  que 
ella  auia  de  criar  ,  mas  como  ella  íabia  que  tinha  elleja 
por  ama  a  Britiz  depaiua  ,  c  não  eíp«raua  que  naquillo  pu- 
defíe  auer  mudança  ,  ouue  que  tudo  o  que  vira  fora  puro 
fonho  ,  a  que  íe  não  deuia  dar  credito  ,  porem  vindo  ella 
defpois  a  fer  ama  do  princepe  polia  rezao  que  atras  fica  di- 
ta ,  e  fendolhe  ellc  entregue  para  o  criar,  lhe  veyo  a  pare- 
cer que  a  vifao  daquelle  velho ,  e  o  que  ]h'elle  dilTera,  fo- 
ra mais  modo  de  reueiaçao  ,  que  mero  fonho  fomente, 
Diílo,  como  era  couía  que  ella  fó  íabia,  não  pode  auer  ou- 
tro teílemunho  fenao  a  fua  verdade  ,  mas  foy  ella  tal  por 
itia  peíToa,  que  por  eíle  fó  teílemunho  íe  ouue  então  queíe 
podia  dar  a  iilo  inteyro  credito  ,  e  por  illo  me  pareceo  re- 
zao dizello  nefle  lugar.,  porque  também  cuido  que  foi  iílo 
outro  modo  de  pronoílico  de  qual  auia  de  fer  eíle  fobera- 
i)o  princepe  ,  de  quem  ja  antes  de  concebido-auia  reuela- 
^ões  particulares,. 

CA- 


6         Primeyra  Parte  da  Clironica 
a  CAPITULO    IIL 

O  princepe  he  jurado  ,  daÕlhe  meflres  que  o  injlnem » 
quais  faõ  y  e  o  que  aprende, 

CHegando  o  princepe  dom  loao  a  idade  de  pouco  mais 
de  hum  anno,  quis  el  Rey  dom  Manoel  feu  pay  fazello 
jurar  por  princepe  herdeiro  deíles  reynos,  como  he  cuftu- 
me  antigo  deiles  ,  e  para  iílo  no  verão  do  anno  de  I5'03 
fez  ajuntar  em  Lisboa  os  procuradores  de  todas  as  cidades 
e  vilías  ,  onde  também  vierao  todos  os  prelados  e  íenho- 
Tes  do  reyno  com  aíTaz  de  aluoroço  ,  porque  nao  defeja- 
uão  aquillo  menos  que  o  meímo  Rey  íeu  pay  :  e  juntosf 
todos  nos  paços  dalcaçoua  na  lala  dos  liôes  ,  defpois  de 
fe  fazerem  todas  as  ci^rimonias  cuftumadas  nos  femelhan- 
tes  ados ,  íe  fez  o  juramento  por  todos  os  três  eftados  era 
rnãos  dei  Rey  ,  o  qyal  elle  recebeo  de  todos  por  íua  pró- 
pria peíloa  em  nomêf'do  princepe  dom  loao  o  terceiro  de- 
ite nome  íeu  filho,  e  de  tudo  fe  pidiráo  públicos  eftromen- 
tos  de  huma  parte  e  da  outra  ,  para  memoria  do  que  aly 
então  fe  fizera,  os  quais  fe  paíTarâo  com  muyto  gofto  de 
qmbas  as  partes.  Nelle  tempo  íe  criava  o  princepe  em  ca- 
fa  da  Rainha  dona  Maria  fua  may  ,  onde  íe  criou  todo  o 
tempo  que  ella  foi  viua  ,  e  não  deixou  de  víar  da  mama 
até  ler  de  três  annos  e  meio ,  mas  parecendo  então  que  era 
ja  tempo  de  lha  tirarem  ,  não  foi  neceíTaria  mais  inuenção 
ou  artificio  que  afagallo  fua  ama  hum  dia  ,  e  pidirlhe  que 
lhe  não  pidiííe  mais  a  mama  ,  nem  aquizeffe  tomar  delia  , 
o  que  lhe  elle  prometeo  e  cumprio  tão  inteiramente  ,  que 
nunca  mais  lha  pidio  nem  lha  tomou.  Tanto  que  começou 
d'andar  deíempeçadamente,  o  encomendou  el  Rey  íeu  pay 
a  Gonçalo  figueyra  ,  cidadão  dos  principais  e  mais  anti- 
gos de  Lisboa  ,  para  que  o  acompanhaííe  e  olhaíle  por  el- 
le ,  receofo  dos  defaitres  que  cuftumão  acontecer  naquel- 
la  idade.  Ayo  lhe  não  deu  el  Rey  nem  a  ninlium  dos  ifan- 
tes  íeus  irmãos,  íendo  cuftume  antigo  deíle  reyno  daríe  a 
lodos ,  não  porque  iguoraíTe  efte  cuílume  ,  pois  tambea^ 

cm" 


delRey  Dom  João  o  III.  ^ 

emfy  o  experimentara  ,  fenao  porque  o  auia  por  coufa  ef^ 
cufada  ,  e  bem  fe  deixa  entender,  que  a  hum  Rey  tão  pru- 
dente não  faltarião  rezoens  vrgentiílimas  para  fe  lair  do 
cuftume  antigo  de  íeus  antepaflados  numa  couía  tão  im- 
portante como  he  a  criação  dos  princepes.  A  Rainha  fua 
mãy  em  quanto  foy  viua  lhe  íeruio  fempre  de  ayo  ,  e  teve 
delle  o  principal  cuidado  em  tudo  o  q  conuinha  a  fy  e  a  feu 
cftado  ,  como  a  fua  vida  e  íaude  ,  e  elle  também  lhe  teue 
lempre  a  eila  tanto  acatamento  e  obediência  ,  quanta  lhe 
deuia  não  fomente  polia  obrigação  geral  de  mãy  ,  mas 
por  todas  as  outras  particulares  da  boa  criação.  Antes  que 
o  princepe  riueíTe  cumpridos  os  quatro  anrios,  parecendo  a 
el  Rey  que  eílaua  elle  ja  então  em  tempo  de  poder  come- 
çar a  aprender,o  que  lhe  era  neceíTario  para  a  primeyra  ida- 
de ,  lhe  deu  por  meílre  hum  feu  capellao  por  nome  Alua» 
ro  rodriguez  ,  homem  ja  velho  e  de  bons  cuítumes  e  en- 
tendimento, o  qual  o  infmou  a  ler  fomente  ,  e  o  inftruyo 
nos  principios  da  doutrina  Criftam  :  e  defpois  que  eíleue 
em  idade  e  em  termos  de  pafíar  mais  adiante  ,  deu  el  Rey 
cuidado  a  efte  Aluaro  rodriguez  de  infinar  eílas  mefmas 
couías  ha  itante  dona  líabel  íua  filha,  que  defpois  cafou  ca 
Emperador  Carlos  quinto, e  quando  foy  para  Caílella  o  le- 
uou  comfigo  por  dayão  da  lua  capella  ;  e  ao  princepe  man- 
dou infinar  a  efcrever  por  hum  Martim  afonfo,  que  tinha 
clcolia  em  Lisboa  em  que  eníinaua  moços  ,  entendendo 
bem  o  prudentiílimo  Rey  ,  que  pêra  todas  as  couías  fe  hão 
de  efcolher  os  que  forem  mais  fuihcienres  para  ellas,  in- 
da  que  as  caiidades  das  peíToas  não  fejao  conformes  ao 
miniílerio  que  fe  lhe  encomenda.  Do  bom  engenho  que  O' 
princepe  moftrou  neftes  princípios  entcndeo  cl  Rey  q  era 
ja  neceíTario  paílallo  a  outros  meilres  ,  que  llie  ii)íinaífent 
coufas  de  mais  luítancia  ,  e  para  ifto  lhe  deu  por  mfí'tre 
da  gramática  a  dom  Diogo  ortiz  de  vilhegas  Bifpo  de  i'an* 
gere  ,  e  prior  de  São  Vicente  de  fora  ,  pregador  famoíb^ 
€  auido  por  theologo  confumado  ,  o  qual  por  fua  virtu*- 
^e  e  por  Tuas  letras  foy  defpois  prouido  noBifpado  de  Vi- 
íeu;  €Íle  começou  de  iniixiar  a  gramática  ao  princepe  en* 

corar 


8         Primevra  Parte  da  Chronlca 


companhia  d'alguns  moços  fidalgos  ,  que  el  Rey  mandou 
que  aprendeíTem  com  elle  afly  para  a  boa  criação  delles, 
como  porque  a  emulação  e  a  competência  nos  honeftos 
exercícios  dão  eftimuios  e  forças  para  as  virtudes  ,  e  tam- 
bém porque  a  inueja  nos  que  aprendem  fempre  cuftumou 
a  lhe  ler  proueitofa,  porque  dá  defejo  a  cada  hum  de  faber 
mais  que  outro.  Leollie  o  Riípo  os  confelhos  de  Catão  , 
Jeolhe Terêncio  ,  Virgílio  ,  Saiuílio  ,  &  alguma  parte  da 
Biblia  :  a  teórica  dos  planetas  ,  e  algumas  coufas  faciJes 
da  aítrologia  ouuio  de  Tomas  de  torres  medico  &  auílro- 
logo  naquelle  tempo  infigne.  Como  o  princepe  foy  em 
mayor  idade  ,  faliecendo  o  Bifpo  que  o  infmaua  ,  lhe  foy 
dado  por  meítre  o  doutor  Luís  teixeira  ,  homem  fidalgo  , 
filho  do  doutor  João  teixeira  ,  que  fora  chançaler  mor  dei 
Rey  dom  João  o  fegundo  ,  o  qual  em  Itália  ,  onde  eftiue- 
ra,  não  fomente  alcançara  muyta  fama  nos  direitos  canóni- 
co e  ciuel  pollo  tratado  que  compôs  das  coufas  em  direito 
duuídofas  ,  mas  também  com  a  doutrina  de  Angelo  polí- 
ciano,  varão  doutifsimo  da  quelle  tempo, aproueitara  muy- 
to  nas  letras  humanas  :  deíle  ouuio  o  princepe  epíílolas  de 
Ouuidio ,  alguma  coula  de  Plínio  ,  e  de  Tito  liuio  ,  e  prin- 
cípios de  grego  ;  c  para  ter  também  algum  conhecimento 
dos  termos  das  leis  ,  pois  cos  homens  práticos  nellas  auía 
de  miniítrar  juftiça  a  íeus  vaíTallos ,  paíTou  com  elle  á  iníti" 
tuta.  Mas  no  princepe  íe  vio  então  claramiiete  quão  pou- 
co aproueita  a  boa  natureza  e  o  bom  engenho  por  fy  fo- 
mente para  íe  alcançar  o  conhecimento  das  letras, fe  falta  o 
cuidado  e  diligencia  do  que  as  aprende  ,  porque  fendo  elle 
dotado  de  hum  excellentiííimo  engenho  ,  e  de  huma  tão 
felice  memoria  ,  que  lha  não  pôde  gaftar  nem  o  pefo  dos 
trabalhos  ,  nem  a  multidão  dos  negócios  ,  todauia  porque 
os  pueris  paíTatempos  daquella  idade  o  díuertiao  defte  cui- 
dado e  diligencia  ,  que  fio  neceílarios  para  fe  fazer  fruito 
no  que  fe  aprende  ,  e  também  po:  que  no  modo  de  o  iníl- 
narem  fenão  teue  perfeita  conta  ,  com  fer  de  maneira  que 
lhe  não  caufafíe  faílio  ,  ficou  elle  com  menos  conhecimen- 
to da  língua  latina,  do  que  fe  pudera  efpcrar  do  tempo  que 

apren; 


dei  Rey  Dom  João  o  IIL  p 

aprendeo  ,  dos  autores  que  ouuio  ,  e  do  meílre  que  llios 
leo.  Mas  nem  o  alcançar  pouco  das  letras  lhe  fez  perder 
o  gofto  delias  ,  antes  defpois  que  tomou  o  cetro  moftrou 
que  o  tinha  tamanho,  que,  porfuprir  em  íeus  vaíTallos  a 
falta  que  fentia  em  Ty  ,  as  plantou  em  feu  tempo  neíle  Rc/- 
no  ,  e  fauoreceo  muyto  fempre  os  que  fe  derao  a  ellas  ,  e 
lhes  fez  mu/tas  lionras  e  mercês  como  fe  dirá  em  feu  lu- 
srar 

CAPITULO     IIII. 

"Da-fe  cafa  aoprincepe  ^  quais  faõ  os  primeyros  officiats  que 
lhe  dão  nella  ,  c  algumas  particularidades  de  jua  pejjha, 

DEteve-fe  el  Rey  mais  tempo  do  que  era  curtume  deíle 
reyno  em  dar  ao  princepe  ordem  de  caía  ,  officiais 
e  renda  feparada  ,  e  como  iílo  era  coufa  noua  deu  ocafiao  a 
muytos  de  terem  fobr'iíTo  varias  lofpeitas,  e  lançarem  va- 
ries juizos  ,  mas  a  caufa  ,  que  então  fe  ouue  por  mais  certa , 
foy  arrecear  el  Rey  os  inconuenientes  que  ordinariamente 
cultumão  nacer  de  fe  começarem  os  moços  a  gouernar  ce- 
do por  fy  mefmos  ,  e  pollos  que  trazem  derredor  deíy, 
principalmente  os  princepes  ,  e  os  que  fe  criao  para  ter 
mando  e  gouerno  ,  porque  a  eíles  ,  como  pende  tudo  delles, 
fempre  foy  cuftume  fallarfe  mais  conforme  ao  feu  gofto  , 
que  ao  que  lhes  conuem  ,  que  hé  hum  perigo  fecreto  ,  e  no 
começo  mal  entendido  ,  mas  que  ao  longe  vem  muyras  ve- 
zes a  parir  danos  grauifsimos  e  quaíi  irreparaueis ,  por  on- 
de importa  muyto  atalhallo  e  remedeallo  com  tempo  ,  para 
que  deTpois  nao  venha  a  ficar  fem  remédio  ,  como  aqui  pi- 
rece  que  quiz  fazer  el  Rey  ,  porque  quando  veyo  a  dar  cafa 
ao  princepe  e  ordenarlhe  os  officiais  que  lhe  erao  neceíTa- 
rios  para  ella  ,  que  era  coufa  em  que  geralmente  fe  tinhao 
peitos  os  olhos  ,  e  que  quafi  todos  defejauao  ,  tais  forao  os 
Jiomens  que  lhe  deu  para  feu  feruiqo  ,  que  bem  deu  a  en- 
tender ,  que  a  dilação  que  niíTo  fízerão  nao  fora  por  defcui- 
do  algum  que  tiuelTe,  nem  por  fe  lembrar  pouco  do  reípei- 
to  que  fe  deuia  ao  princepe  feu  íilho  ,  fenao  por  \\iq  parer 
Farte  1,  ^  cer 


IO         Primeyra  Parte  da  Chionica 


cer  ,  que  iíío  era  o  que  mais  lhe  conuinha.  Deulhe  porfeu 
camsreyro  mor  dom  João  de  menefes  filho  terceyro   do 
conde    de  Cantanhede,  crpitao   de  tanto  nome  e  fama 
quanto   o  moftrarao  fuás  obras  ,  e  de  fangue  nobilifsimo 
neíle  reyno  ,  ao  qual  o  princepe  femprejeue  o  rtfpeiro  que 
clle  merecia,  afsy  por  feu  faber  e  diícriçáo  e  polias  mais  ca- 
lidades  de  Pua  pcíToa  ,  como  pollo  amor  com  que  oferuio 
íempre  ;  e  fallecendo  elle  em  Azamor  pouco  tempo  defpois 
da  quella  famofa  vitoria  ,  que  ouue  dos  alcaides ,  de  que  fe 
trata  na  chronica  dei  Rey  dom  Manoel,  deu  por  camareyro 
itiór   ao  princepe  fcu  filho  dom  Martinho   decaftelbran- 
co  conde  de  villa  noua  de  Portimão  no  reyno  do  Algarue  , 
homem  de  muyta  verdade  e  prudência  ,  íeu  veador  da  fa- 
zenda ,   e  paranre  elle   de  muyta   autoridade   e  valia.    Por 
feu  mordomo  mor  lhe  deu  dom  loao   da  filua   conde  de 
Portalegre.  Por  guarda  mór  Luis  da  filueyra  ,  que  defpois 
fby  conde   de  Sortelha.  Por  íeu  portcyro  m.ór  loao  de  ca- 
latayud  ,   por  meibe  falia  Criftouao  de  melo  alcayde  mór 
de  Serpa,  por  eftribciro   mór  dom  Pedro  mazcarenhas, 
por  caçador  mór  dom  loao  de  alarcão  ,  por  monreyro  mór 
Joríe  de  melo  ,  por  veador  defua  cafa^Ruy  lopez  ,  e  todos 
os  outros  oíficiais  menores  ,quefe  então  derão  ao  princepe 
para  fua  c^i'n,  farão  tais  que  bem  correípondião  aeilrourros 
que  tenho  diro  ,  e  como  o  princepe  naturalmente  era  bran- 
do de  condição  ,   iíto  lhe  fazia  íer  fácil  de  feruir  ,    e  auerfc 
brandamente    cos  do  fcu  feruiço  ,  e  não  víar  com  elles   de 
palauras  afperas ,  quando  o  nãoferuiãoa  feu  gofto,  deixaua- 
fe  tratar  delles  familiarmente  ,  mas  com  o  reiguardo   c  de- 
coro deuido  á  fua  peíToa  ;  porque  achauão  nelle  hum  afpei- 
to   por  huma  parte  tão  brando  e  apraziuel  ,   que  llies  fazia^ 
perder  o  medo  de  tratarem  com  elle  ,  e  por  outra  tão  graue 
e  feuero  ,    que  os  não  deixaua  paíTar  os  limites  da  reucren- 
cia  ,  que  le  lhe  deuia  ,  ajudaua  a  eíla  fua  naruraj  fcueridade 
fer  algum  tanto  vagaroío  no  fallar  ,   mas  iílo  não  por  vicio 
algum  da  natureza  ,  fenao  ou  por  condição,  ou  por  cuftu- 
me  em  que  fe  poz ,    para  que  nem  ainda   has  fuás    pahuiras 
fahâfle  aquella  autoridade,  que  cm  todas  as  outras  coufas  fe 

lhe 


delRey  Dom  loao  o  IIÍ.  it 

lhe  enxergaua  :  foy  dorndo  de  grandes  forças  naturais  ,  e 
teue  habilidade  para  todos  os  exercidos  a  que  íe  quiz  apli- 
car, a  qual  moílrou  em  algumas  couías  a  que  ie  aplicou  , 
quando  a  idade  lho  conícntia,  e  em  outr?s  íe  conrenrou  fo- 
mente com  experimentar  que  Jhe  nao  faltaua  habilidade 
para  ellas  ,  teue  no  efcreuer  ertilo  claro  e  graue  ,  em  que 
difficultoíamenre  fe  acabaua  de  fatisEizer  ,  foy  pouco  da- 
do ha  poefia  Portuguefa  ,  mas  teue  neila  grande  juizo  e 
eleição.  No  tratamento  de  lua  peíToa  íe  contentou  fempre 
mais  de  feu  trajo  natural  Português, que  de  quaiíquer  outras 
inuençôes  das  nações  eítrangeiras  ,  de  tal  maneyra  que 
quando  el  Rey  dom  Manoel  feu  pay  cafou  a  terceyra  vez 
com  a  Rainha  dona  Leanor  irmam  do  Emperador  Carlos 
quinto,  inda  que  vio  que  eiPvey  feu  pay  e  toda  a  gente  no- 
bre da  corte  deixarão  fupitamente  o  feu  natural  trajo  ,  e 
fe  paliarão  ao  eftrangeyro  por  verem  que  a  Rainha,  que 
então  vinha  de  Frandes  onde  fe  criara  ,  e  todas  as  damas  fe 
veílião  ha  víança  dos  Framengos ,  elle  todauia  nunca  fez 
mudança  do  trajo  que  fempre  cuílumara,  e  nelle  íe  afirmou 
que  fizera  veniagem  a  todos  os  da  corte  na  galantaria.  Jílo 
meímo  Ih'  aconteceo  nas  feftas  da  ifante  dona  Beatriz  fua 
irmam ,  quando  foy  para  Saboya,  em  que  afsy  el  Rey  como 
toda  a  corte  fe  veftirao  huns  ha  framenga  ,  e  outros  ha  ía- 
boyana  ,  e  faindo  el  Rey  com  huma  roupa  curta  de  veludo 
auelutado  pardo  ,  e  hum  pellote  do  mefmo  ,  com  hum  co- 
Jar  e  efpada  douro  ,  e  com  calças  pretas  ,  e  çapatos  fran- 
cefes  de  veludo  com  fiuellas  douro  ,  hia  o  prfncepe  detrás 
delle  com  hum  pellote  de  brocado  de  pello  com  mangas 
trançadas  ,  cortado  fobre  fetim  pardo  ,  com  huma  efpada  e 
talabartes  douro  efmaltado  ,  e  encima  huma  capa  aberta 
frilada  ,  e  na  cabeça  huma  gorra  de  duas  voltas  com  hum 
firmai  de  muyto  preço,  que  tudo  era  ha  víança  Portuguefa 
daquelle  tempo  ,  aísy  que  em  quanto  foy  princepe  ,  inda 
que  feu  pay  ,  eco  feu  exemplo  toda  a  corte  fe  mudarão 
aos  trajos  eílrangeyros,  elle  nunca  deixou  íeu  trajo  natural  y 
e  que  iempre  neíte  reyno  fora  cullumado. 

Ba  CA- 


iz         Primeyra  Parte  da  Chronica 
CAPITULO    V. 

X)ous  perigos  da  vida  que  o  Princepe  tem,  El  Rey  o  começa 

a  yneter  nas  coufas  do  go-verno.  O  ca/amento  dei  Rey  com 

viadama  Leanor  ,  e  os  pareceres  que/obre  elle  hd 

na  corte^ 

POufando   el  Rey   dom    Manoel  junto    da  igreja   de 
Santos  ,  que  agora  chamao  o  velho  ,  íendo  o  princepe 
já   de  idade   de  doze  annos  cahio    de  huma    varanda  alta 
abaixo  ,  de  que  ficou  tão  mal  tratado  ,  que  alem  de  receber 
huma  ferida  na  teíla   da  parte  direita  ,  efteue  fem  falia  todo 
aquelle  dia  e  a  noite   íeguinte  ,    e  chegou    a  cílado   que 
el  Rey  e  os  médicos  delconíiaraó  da  fua  vida  ,  mas  ao  ou- 
tro dia  prouue  a  noíTo  íenhor  que  tornou  em  fy  ,  e  acordou 
como  de  hum  profundo  fono  quebrantado  da  queda  &  do 
deíacordo  paíTado  ,  mas  foy    Deos  fervido   que  em  breue 
tempo  recebeo  perfeita  íaude  ,  com  tudo  lhe  ficou  na  tefta  , 
no  lugar  onde  tiuera  a  ferida  ,   hum  final  nao  grande  nem 
fevo  ,   mas  que  fe  enxergaua  claramente.  Outra  vez  eivan- 
do  em  Almeirim  huma  ieíla  feira  (  que  foy  também  o  dia 
em  que  lh'acontecera  o  defaílre  paíTado  )  adoeceo   deprio- 
tíz  tão  rijo  que  o  chegou  a  perigo  de  morte ,  mas  tambera 
prouue  a  Deos  de  lhe  dar  faude,  e  da  hy  por  diante  todo  o 
tempo,  que  foi  princepe  ,  paílou  fem  ter  iníirmidade  algu- 
ma,  e  como  ja  entaó  o  faber   e  entendimento    de  que  era 
dotado  excediáo  tanto  os  annos  da  fua  pueril  idade  ,   que 
todos  lho  enxergauão  bem  claramente  ,  o  começou  e!  Rey 
de  habituar    aos  trabaliios  ,    em  que  lh'auia  de  luceder  ,    e 
metello  cm  todas  as  coufas,  afsy  nss  do  gouerno  fazendo-o 
aísiíllr  comíigo   a  todos  os  confelhos  ,  como  nas  da  fazen- 
da ejulfiça  em  todo  o  tempo  e  lugar  em  quele  trataua  del- 
ias ,  e  em^  todas  lhe  daua  a  inflruçao  e  doutrina  conuenien- 
te  e  neceíTaria  ,  de  que  fe  elie  aproueitou  le  maneira  ,  que 
^:m  le  lhe  enxergou  deípois   o  bom   meflre  que  tiuera  ,  _e 
fempre   com  tanta  obediência   e  acatamento  quanta   íab.la 
Que  çra  obrigado  :  no  que  períeuerou  fem  dar  nunca  mo-. 


delRcy  Dom  João  o  III.  13 

liuonem  ocaíilo   a  el  Rey   feu  pav  de  qualquer   pequeno 
deff^ofto  ,  nem  cl!c  moflrar  que  o  toniaua  de  coufa  algun-,a  , 
até^que  fe  pubricou   o  terceiro  cafamenro  dei  Rey  com  a 
Rainha  Madama  Leanor ,  com   a  qual  em  vida   da  Rainha 
dona   Maria  fe   tratara  caía  mento  para   o  princepe  ,  o  que 
enrao  (e  julgou   por  coaía   mais  conforme  lia  rezao  ,   e  de 
todos   geralmente  foy  muyto  defcjada  ,    porem   náo  ouuc 
eíFeito  ,  <&  dcfpois  do  falecimento  da  Rainha  dona  Maria  , 
lendo  pouco  antes  chegado  a  Hefpanha  o  Emperador  Car- 
los quinto  ,    que  trouxera  comilgo  Madama  I.eanor  íua  ir- 
mam  ,  mandou  el  Rey  a  Caílella  Aluaro  da  cofta ,  que  def- 
pois  ,  como  atras  diÍTe,  foy  dom  Aluaro,  e  foy  veador  da 
fazenda  da  Rainha  dona  Leanor  ,  o  qual  inda  que  então  le 
deu    a  entender,    que  hia  a  viíitar  o  Emperador  da  fua  vin- 
da ,  todavia  íecretamente   leuaua  comifíoés  muyto  Jargas 
para  tratar  ,  e  concruir  o  caíamento  dei  Rey  com  Madama 
Leanor  ,  fem  o  princepe  ter  difto  ninhuma  noticia ,  e  coma 
os  poderes  que  leuaua  erão  baftantes  para  não  deixar  o  ne- 
gocio  de  fe  eíFeituar  por  quaifquer  condições  que  nelle  fe 
moueíTem  ,   breucmente  e  com  facilidade  chegou  a  efFeito. 
Defpois  que  a  concruzão  deite  caíamento  foi  pubrico    na 
corte  ,    ouue  íobre  elle  vários  juizos   e  pareceres  ,   como 
coftumaua  nuer  em  todas  as  nouidades  ,   e  muito   mais  nu- 
ma tamanha    e  tão  pouco  efperada  como  cila  :    huns  eílra- 
lihauão  muyto  o  que  el  Rey  Hzera  ,  e  dauão  muytas  rezoes 
para   íer  mal  acertado  ,   outros  as  dauao   também   para   o 
deículparem  ,  aprouando  o  caíamento  por  bom  e  neceflario 
a  el  Rey  ,  onde  tiuerão  de  que  lançar  mão  aquelles  que  de- 
íejauão  de  íemear  eícandalos  e  deíauenças  antre   o  prince- 
pe e  el  Pvey  leu  pay  :   os  que  queriao  deículpar  ei  Rey  di- 
^ião  que  o  mouera  a  fa-zer  iíto  receyo  de  íer  daly  por  di.inje 
pior  leruido ,  e  fe  lhe  ter  menos  reípeito  do  que  até  en  tão 
fe  lhe  tinha  ,  fe  os  fidalgos  vifíem  o  princepe  com  eftado  fe- 
parado  por  iy  ,  porque  com  iíToeílaua  certo  iremfe   logo 
íTas  elle  ,   pois  ja  então  ,  fendo  elle   ainda  folteyro  ,   quaíi 
todos  o  faziâo  polia  br.indura  da  íua  condição,    e  por  íer 
ejle  o  que  auia  de  luceder  no  reyno  ,  e  o  que  ajudaua    eílo: 

feu, 


14         Primeyra  Parte  da  Clironica 

feu  receyo  era  ver,  que  tinha  o  Emperador  por  vizinho ,  (y 
qual  fe  elle  acertaíTe  de  vir  a  ter  alguma  diicordia  ou  def- 
auença  co  princepe  feu  filho,  de  maneira  que  chegaíTe  a 
rompimento  ,  comoja  íe  vira  outras  vezes ,  mais  íe  auia 
<í'inclinar  a  fauorecer  aparte  do  princepe  fendo  caiado 
com  fua  irmam  ,  que  a  íua  ,  e  deíla  maneira  fícaua  o  leu  ci- 
tado na  cortefia  de  feu  filho  ,  pollo  qual  IhVra  a  elle  muiro 
milhor  ,  e  lhe  conuinha  muyro  miis  íer  elle  ,  o  que  fe  liaf- 
íe  por  tneyo  deíle  cafamento  ,  para  com  elle  ficar  feguro 
de  ambas  as  nartes  ,  que  por  tão  leues  inconuenientes  ,  co- 
mo fe  lhe  ofFerecião  ,  deixar  de  fazer  o  que  tanto  lhe  im- 
portaua  ,  principalmente  não  fendo  ainda  tanta  a  íua  idade 
que  lhe  eftiueííe  mal  íer  caiado  com  molher  moça  ,  porque 
mais  velho  que  elle  cafara  el  Rey  dom  AíFonfo  anriquez  , 
e  que  o  gaílo  que  elle  nilTo  punha  de  fua  parte  era  pequeno 
inconueniente  ,  para  o  feu  c  Jamento  deixar  de  fe  effeituar  , 
pois  os  tempos  então  erao  tão  ricos  e  tão  largos ,  q\it  po- 
dião  fuprir  a  tudo  ,  e  que  íe  deixaíTe  o  reino  com  encargo 
d'algumas  obrigações  a  feu  filho  ,  também  em  defconto 
diíTo  o  deixaua  fenhor  de  muytos  eílados  nouos ,  que  elle 
aquirira  e  conquiílara  no  Oriente  ,  não  herdando  de  feus 
anteceíTores  mais ,  que  os  reynos  de  Portugal  e  do  Alg:irae. 
Aquelles  que  reprouauão  eíce  caíaraento  dei  Rey  ,  não 
auendo  por  boas  eílas  razoes  ,  que  fc  dauao  por  íua  parte  , 
nem  eíla  fua  juílificaçao  por  fufficiente  ,  e  entendendo  que 
nacia  daquy  não  fomente  deígollo  para  o  princepe,  mas 
também  dano  e  prejuizo  grmde  para  eíle  reyno  ,  começa- 
rão a  praticar  antre  fy  mais  miudamente  as  caufas,  que  auia 
para  não  fer  acertado  ,  com  que  o  negocio  ficou  parecendo 
ainda  mais  feyo,  principalmente  não  faltando  erdeyros  no 
rcyno  ,  pois  o  princepe  era  ja  homem  ,  e  tinha  muitos  ir- 
mão? com  que  a  íucefíao  parecia  que  eftaua  íegura  :  e  tam- 
bém ellaua  claro  que  eíla  era  a  mefma  rezão  ,  por  onde  o 
Emperador  não  dera  fua  irmam  por  molher  a  el  Rey,íe  não 
com  obrigação  de  muitas  rendas  para  ella  ,  e  para  os  filhos 
que  dantre  ambos  naceílcm  ,  donde  fe  feguia  darem-fe  pri- 
itieyro  eílados  e  rendas  aos  que  eílauao  por  nacer ,  que  aos 


dei  Rey  Dom  loao  o  III.  15' 

que  eílauao  já  criados  ,  e  que  inda  não  linhão  (íe  íeu  coufa 

própria  ,  e  que  cafando  Aladama  Leanor  co  princepe  ,  cef- 
iauao  todos  eiles  inconuenienres  ,  e  cl  Rey  pudera  ver  ne- 
tos cm  lua  vida ,  com  que  elle  ficara  mais  contente ,  o  reyno 
inais  profpero  ,  e  a  fuceíFaô  mais  fegura. 

C  A  P  I  TU  L  O     VI. 

Como  o  princepe  fe  hd  nefie  cafamento  dei  Rey  ,   e  como  Je  el 
Rey  ha  com  elle  ,   qtiais  jaÕ  os  principais  dous  priuaàos 
que   o  prificepe   tem  ,    e  as  feições   do  corpo  do 
princepe* 

DEftas  rezoes  ,  que  erao  as  pubricas  ,  e  doutras  que  fe 
dauiio  em  íegredo,  fe  diíTe  que  tomara  motiuo  Luis  da 
filucyra  guarda  mòr  do  princepe,  e  muito  aceito  a  elle,  para 
lhe  azedar  a  vontade  contra  el  Rey  feu  pay ,  e  preuerterlhe 
squella  fincera  e  verdadeira  obediência  ,  que  fempre  lhe 
tiuera  ;  porem  nunca  pode  tanto  com  elle  a  paixão,  que  to- 
mou por  eíle  calamento  ,  que  ella  lhe  fizeíTe  deixar  de  obe- 
decer inteyramente  a  el  Rey  feu  pay  em  todas  as  coufas 
graues  e  de  importância  ,  mas  em  algumas  mais  leues  dif- 
fimulou  menos  eíle  defgoílo  ,  por  ondeei  Rey  quafi  que 
fentido  diílo  começou  a  le  inclinar  mais  ao  ifante  dom 
Luis  feu  filho  íegundo  ,  porem  iílo  era  fomente  no  trato  e 
conuerfação  domeílica  e  em  coufas  particulares  ,  que  no 
pubrico,  e  no  íuftancial  do  eftado  fe  difsimulou  iílo  fem- 
pre, de  maneyra  que  nunca  ouue  final  nem  receyo  algum  de^ 
maiores  defauenças  ,  fomente  el  Rey  lentindo  ,  ou  imagi- 
nando que  a  familiaridade  e  comunicação  de  Luis  da  filuey- 
ra  co  princepe  lhe  fazia  mudar  alguma  coufa  da  lua  boa 
inclinação  e  natureza  ,  bufcou  algumas  coulns  mais  leves 
e  menos  afperas,  que  efta  ,  para  o  apartar  da  conuerfaçaõ  e 
GO  femiço  do  princepe  ,  e  lhe  mandou  que  faifie  da  cor- 
te ,  e  nao  tornaíTe  a  entrar  nella  até  lho  elle  manda  r  ,  e 
dle  o  fez  aíTy  logo  ,  e  em  todo  o  tempo  que  el  Rey  vi- 
ueo  naô  tornou,  mais  ao  feruiço  do  princepe  ,  porem  elle 

lan- 


i6  Primeyra  Parte  da  Chronica 

tanto  que  começou  a  reynar,  o  mandou  logo  vir,  e  o 
reítituyo  ao  meímo  lugar  que  antes  tinha  ,  e  com  as  mef- 
mas   mercês   e  fauores  que  antes  lhe   fazia.  Nem  foy  íá 
Luís  da  filueyra  o  que  nefte  tempo  foy  aceito  ao  priace- 
pe  ,  outro  ouue  também  dos  que  andauao  no  feu  leruíço, 
a  Gue  elle  moílrou   que  nao  era  menos  inclinado,   o  qual 
era  dom  António  de  taide  ,  porem  ambos  craô  bem  diííe- 
rentes  nas  artes  ,  no   modo  do  feruir  ,  e  na  idade  ,  e  com 
quanto  cada  hum  delles  a  feu  modo  teue  muyto  boas  par- 
tes  ecalidades,   com  as  quais  merecerão  virem  deípois  a 
fer  condes  em  diuerfos  tempos  ,  Luís  da  íilue/ra  de  Sor- 
telha ,  e  dom  António  da  Caftanheira.  O  Luís  da  fílueyra 
era  homem  já  mais  de  meya  idade,  muy  to  hábil,  e  de  gran- 
de engenho   para  a  poefia  Portuguefa  daquelle  tempo  ,  a 
qual  ajudada    d'algum  conhecimento  que  tinha  das  letras 
latinas ,  íicaua  fendo  muyto   mais  pura  ,  e  ifto  fazia  a  fua 
conuerfaçaó  e  familiaridade  muyto  agradável  a  todos.  O 
dom  António  era  muyto  mais  moço,  e  quafi  conforme  aos 
annos  do  princepe  ,  mas  de  bom  juizo  ,  entendimento  ,  e 
difcríçao ,  e  de  milhor  tento   e  mayores  refpeitos  do  que 
parecia   que   podiao    caber    na  íua    idade  :    ambos  conti- 
nuauão  igualmente  o  feruiço  do  princepe  ,  Luís  da  íiluey- 
ra  por  fua  prudência  e  dífcriçao   e  pollo  muyto   que  valia 
com  elle  ,  e  dom  António  pollos  fauores  que  recebia  delle: 
vfaua  mais    o  princepe   de  Luis  da  íilueyra  para  íe  aconíe- 
Ihar  com  elle,    polia  autoridade  de  fua  peOoa  ,    mas  apro- 
ueitaua-íe  mais   de  dom  António    para  íeus  paííatempos, 
polia  conformidade  dos  annos  ,   porem  como    o  princepe 
entrou  em  mayor  idade,  começou  a  fentiríe  antre  elles  dif- 
ferença  no  modo  do  feruiço.   Luis  da  filueyra  ,    polia  valia 
que  rinha  co  princepe  ,   queria  recolher  aíy  todos  os  negó- 
cios para   fe   fazerem    por  feu   parecer ,    c  diziao    que  fe 
prouia  d'aluaras  fecretos    de  coufas  que  importauao   a  fua 
honra  ,  para  o  tempo  que  o  princepe  reynaíTe  ,  o  dom  An- 
tónio ,  inda  que  nao  deixaua  de  entender  o  muyto  que  po- 
dia então  grangear  para  fy  por  todas    as  vias    pollo  eílado 
em  (jue  íe  via  co  princepe ,  todauia   a  fua  pouca  idade  lhe 


delRey  Dom  João  o  III.  \j 

nao  confentia  tomar  outros  cuidados  ,  nem  antremeterfe 
€m  outros  negócios  mais  ,  que  em  fer  muyto  diligente  no 
íeruiço  do  princepe  ,  e  trabalhar  por  conferuar  e  acrccen- 
tar  o  goílo  ,  que  lhe  via  ter  deíle  feu  feruiço  ,  aíTy  que  am- 
-bos  tiuerão  neíle  tempo  igual  fauor  e  valia  para  as  fuás 
pertençces  ,  e  cada  hum  delles  farisfez  feu  deíejo.    Cria;- 
rao-íe  lambem  no  mefmo  feruiço  do  princepe  ,  e  na  con- 
tinuação de  íua  cafa  dom  Franciíco  lobo  fillio  do  barão  de 
Aluito  dom  Diogo  lobo,  Ruy  pereyra  filho  de  João  da 
íilua  regedor  deftes  reynos  ,  dom  Jorfe  anriquez  ,  e  outros 
muytos  ,  os  quais  todos  receberão  do  princepe  as  honras 
€  mercês  que  íe  dirão  adiante.  Era  o  princepe  de  raeain 
cftatura  ,  mais  groíTo  que  delicado  ,  de  prefença  alegre  e 
autorizada  ,  tinha  o  roftroaluo,  e  com  muyto  boa  cor 
nelle  ,  a  teita  larga  ,  os  olhos  antre  verdes  e  azues  ,  con- 
formes ha  proporção  do  roliro  ,  peílanudos  defabafados 
das  fobrancelhas ,  e  com  perfeyta  vifta  ,  alegres  ,   de  boa 
lombra  e   bom   acolhimento  ,    mas   dentro   dos   limites 
da  fcueridade  e   grauidade  ,   que   fe  requeria  em  íua  pef- 
íoa  ,  tinha  o  nariz  compaíTado  ,  a  boca  meam  ,  os  beiços 
vermelhos  ,  o  pefcoço  algum  tanto  menos  faido  ha  pro- 
porção do  corpo  ,  a  cintura  não  delgada  mas  não  defairo- 
fa  ,  as  pernas  direitas  ,  e  para  o  talho  do  corpo  bem  fei- 
tas ,  e  em  fim  em  todos  os  membros  era  muyro  bem  pro- 
porcionado ,  nos  meneyos  airofo  ,  e  no  andar  compoílo 
e  graue  ,  não  era  muyto  ligeyro  e  defenuolto  ,  mas  iílo  era 
parte  para  lhe  abater  nada  do  ar  e  natural  graça,  que  tir 
nha  em  todas  as  outras  couTas.  > 

CAPITULO    VIL 

A  morte  dei  Rey  dom  Manoel  e  o  feu  enterramento  ,  e 
as  cirimonias  que  nclla  Je  fazem. 

AVendo  íós  dous  annos    que  el  Rey  dom  Manoel  era 
caiado  com  a  Rainha  dona  Leanor  ,  de  quem  tinha 
huma  filh.i  que  era  a  ifante  dona  Maria  ,  huma  quinta  íey^ 
Farte  L  C  ra 


^6         Piimeyra  Parte  da  Chronica 

ia^cinco  dias  do  mes  de  Dezembro  da  era  de  1521  adõe- 
cco  de  huma  infirmidade  tão  graue  ,  e  tão  rija  ,  que  logo 
cm  adoecendo  começou  a  aucr  duuida  de  íua  íaude  :  ne- 
-líe  mefmo  dia  polia  menham  íe  partira  o  princepe  cos 
jfantes  dom  Luis  ,  e  dom  Fernando  ícus  irn.aospara  ga- 
-ílarem  alguns  dias  em  palíatempos  de  montarias  ,  e  caças 
nas  coutadas  de  Almerim  c  Saluaterra  >  deixando  ainda  el 
Key  feu  pay  fem  receyo  nem  foípeita  da  fupita  infirmida- 
de que  lhe  fobreueyo  :  elle  íeniindo  eiíi  fy  o  perigo  em 
que  eftaua  mandou  logo  recado  ao  princepe  e  aos  ifantes  , 
que  Jhe  chegou  áo  Jabado  ha  meya  noite  ,  com  a  qual 
noua-  fe  partirão  logo  ao  domingo  em  amanhecendo,  e 
chegarão  a  Lisboa  eíTe  mefmo  dia  ha  meya  noite,  onde 
acharão  el  Rey  em  grande  e  manifeílo  perigo  da  vida  :  o 
princepe  trabalhando  por  encubrir  parani'elle  o  fentimen- 
to  Que  tinha  de  o  ver  naquelle  eftado  ,  tratou  logo  com 
aquelle  cuidado  e  vigilância  ,  a  que  o  amor  c  a  rezaõ  o 
©brigauaô  ,  de  prouer  em  tudo  o  que  conuinha  para  remé- 
dio daquella  perigofa  doença  ,  e  para  iílo  íe  mudou  do 
leu  apoienro  para  o  dcl  Rey  ,  e  le  agaíalhou  pegado  com  a 
camará  onde  elle  eílava  :  aly  fez  logo  ajuntar  muytos  mé- 
dicos ,  e  achando-fe  prefenre  a  todas  as  confultas  que  fa- 
2Íão  ,  mandaua  com  muyta  prelTa  prouer  em  tudo  o  que 
por  elles  era  ordenado  ,  mas  como  contra  o  que  ordena  a 
diuina  prouidencia  não  há  remédio  nem.  beneficio  huma- 
no que  baile  ,  todo  o  trabalho  e  diligencia  dos  médicos 
forão  íem  prQueito :  el  Rey  neftes  dias  que  efteue  doente, 
como  quem  entendia  ,  ou  fofpeitaua  que  a  íua  ora  derra-' 
dcyra  fe  hia  chegando  ,  acabou  de  farisfazer  a  algumas 
coufas  em  que  fentia  a  conciencia  encarregada  ,  alem  das 
que  tinha  ordenadas  em  feu  tcílamento  ,  queja  muyto  an- 
tes tinha  feito  ,  cuja  execução  ficou  encomendada  a  dom 
Diogo  de  fouía  Arcebifpo  de  Braga,  e  a  dom  Martinho  de 
caílclbranco  conde  de  Villa  noua  ,  e  agora  nouamente  fi- 
zera hum  condicillo  em  que  encomcndaua  muyto  ao  prin- 
cepe o  jufto  gouerno  do  íeu  reyno  ,  e  o  bom  tratamento 
dt)  feu  pouQ,  e  com  palauras  de  muyto  encarecimento 

lh'en- 


delRey  Dom  Joaó  o  IIÍ.  ip 

lh'encarregou    os  ifantes  feus  irmãos  ,  e  o  acatamento  e 
reuerencia  ha  Rainha  dona  Leanor  ,  c)ue  lhe  deixaua  por 
Ifíiy  ,  e  chegando  ja  ao  derradeyro  termo  da  vida  defpois 
de   tomar  com  muyta  deuaçao  os  Sacrametitos  da  confif- 
íao  ,  da  Eucariília  ,   e  da  extrema  vnçao  ,  encomendando 
com  muyta  efficacia  ao  princepe  que  Tc  IcmbraíTe  de  feus 
criados  ,  deu  a  alma  a  leu  criador  huma  lefta  feira  13  de 
Dezembro  do  anno  de   1521  antre  as  dez  e  as  onze  oras 
da  noite  ,  fendo  de  idade  de  yz  annos  e  íeis  mezes  ,  dos 
quais  reynou  vinte  e  féis  fomente  :   princepe  por  fuás  vir- 
tudes, e  grandes  obras  ,  aííaz  merecedor   demais  longa 
vida.   A  noua  da  morte  de!  Rey  íe  eípalhou  logo  por  toda 
a  cidade,  que  em  todos  geralmente  caufou  tanta  dor  e  [çn^ 
timento  ,  quanto  he  rezão  ,  que  fe  tenha  por  tamanha  per- 
da como  he  de  hum  tâo  bom  Rey  ,  e  tao  amigo  de  feu  po- 
uo  ;  porem  no  princepe   fe  cnxergaua  então  ifto  mais  que 
em  ninguém  ,  alTy  polia  fua  natural  brandura  de  condi- 
ção, que  lhe  fazia  fentir  muyto  efta  perda  geral  de  todos, <■ 
como  pollo  amor  que  fempre  riuera  a  el  Rey  íeu  pay  ,  e  a 
todas  as  fuás  couías  ,  que  lhe  daua  a  entender  a  perda  que 
elle  particularmente  recebia  deita  tamanha  falta.  O  Arce- 
bifpo  de  Braga  ,  e  o  conde  de  Villa  noua  ordenarão  logo  , 
que    o  corpo  dei  Rey  foíTe  leuado  ao  mocfteiro  de  noíTa 
Senhora  de  Belém  ,  e  que  ahy  fe  lhe  fizeíTem  as  exéquias 
como  elle  tinha  mandado.  E  ainda  que  a  dor  ,  e  fentimcn- 
to  deílas  coufas  tinhão  feito  tanta  impreílao  no  princepe' 
como  era  rezão,   todauia  nem  iíío  foy  baílante  para  què  * 
fe  defcuydaíTe  de  prouer  muyto  inteyramente  em  tudo  o 
que  conuinha  ao  enterramento  do  corpo  dei  Rey  feu  pay  ,- 
e  has  exéquias  que  lhe  mandou  fazer  no  moeíleyro  ondefoy^ 
enterrado  ,   e  ein  todas  as  outras  igrejas  e  conuentos.  É- 
tambem  em  todas  as  coufis,  que  erão  importantes  ao  bem  ' 
dé  íua  alma  foy  tão  folicito  e  apreíTado  ,  que  todas  fez 
dar  ha  execução   com  toda  a  breuidade  pollluel.  Ao  quar- 
to dia  defpois   do  fallecimcnto  dei  Rey  ,  que  foy  aos  17 
do  mez  de  Dezembro  ,  tendo  a  cidade  de  Lisboa  tudo  ja^l- 
preíles  para  fazer  a  foJenidade  do  pranto  ,  que  he  cuílu--i 

C   2  ííiQ 


IO         Piimeyra  Parte  da  Chronica 

ipe  antigo  fazerfe  nas  mortes  dos  Reys  ,  íairão  da  cafa  dd 
camará  delia  os  Vereadores  daquellc  anno  ,  que  erao  dom 
Pedro  de  caílelbranco ,  e  João  brandão,  rodos  apé  com 
varas  pretas  nas  mãos  ,  e  leuauao  diante  de  íy  o  alferez 
da  cidade  Nuno  aluarez  percyra  ,  fillio  de  Ruy  dias  pe- 
xey.ra  ,  que  fora  alíerez  dei  Rey  dom  Manoel  fendo  ain- 
da duque  ,  em  hum  cauallo  ha  baítarda  cuberto  de  rafo, 
com  huma  bandeira  preta  numa  aílea  da  mefma  íorte  der- 
rubada lebre  o  ombro  ,  demaneyra  ,  que  as  pontas  lhe  ar- 
raílauaô  pollo  chaô  ,  e  juntos  com  elle  hiaó  três  juizes. 
d%cidade  ,.dous  do  crime ,  e  hum  do  ciuel ,  cada  hum  com" 
}ium,efcudo  preto  pollo  fobre  a  cabeça.  Ao  fair  da  porta  da' 
camará  fe  ajuntarão  cos  Vereadores  dom  João  de  vaícon- 
cellos  conde  de  Penella  ,  dom  Martinho  de  caftelbranco 
cande  de  Villa  noua  ,  dom  Diogo  lobo  barão  de  Aluito  , 
e  outros  muytos  fenhores  e  fidalgos  ,  e  chegando  ha  por- 
ta, da  Sé,  hum  dos  juizes  do  crime,  que  ieuaua  o  pri- 
rgeyro  efcudo  ,  deu  com  elle  em  terra  ,  e  lendo  feito  em 
pedaços  dille  logo  iium  homem  ,  que  vinha  acauallo  ,  em 
voz  alta  humas  certas  pniauras  ,  que  trazia  efcritas  por  or- 
dem da  camará  ,  após  as  quais  fe  leuantou  hum  grande 
pranto,  em  todos  os  que  as  ouuirao  ,  e  logo  fe  abalarão 
daquy  fodos,  e  chegando  ha  rua  noua  dos  mercadores 
acharão  no  meyo  delia  hum  banco  cuberto  de  preto  ,  fo-- 
bre  o  qual  fe  pos  o  outro  juiz  do  crime  ,  que  Ieuaua  o 
íegundo  efcudo  ,  e  deixando-o  cair  da  cabeça  o  quebrou 
no  mefmo  banco  ,  e  lendo  então  o  mefmo  iiomem  de  ca- 
uallo as  meímas  palauras  que  trazia  eícritas  ,  fe  leuantou  . 
outro  pyánto  igual  ao  paíFado.  Daqui  le  forao  todos  com. 
efta  ordicm  ao  roííio  onde  o  juiz  do  ciuil  quebrou  o  ler- 
cèyro  eícudo  com  a  meíma  cirimonia  ,  que  fe  quebrarão 
o^  outros.  Efte  cuiiume  antigo  de  fe  quebrarem  elcudos  , 
efe  arraíiar  bandeira  na  morte  do  Rey  com  pranto  geral 
de.  todo  o  pouo  ,  dizem  alguns  ,  que  he  lignificaçaó  de 
fer  fallecido  aquelle  Rey  e  fenhor  ,  que  era  defençaõ  doi 
fttii  reyno,  e  que  Icuantaua  as  bandeiras  contra  os  inimi-  , 
gOjS  dejlç»,  Peílç  lugar  onde  fe  acabou  eíla  cirimonia  ,  fe 
:,í«  tor- 


•  delRey  Dom  João  o  III.  1-t 

tornarão  ha  Sé  por  outro  caminho  difFerente  ,  cnde  fe  difTe 
huma  miíla  cantada  muyto  íolene  polia  alma  dei  Rcy  com 
muyro  grande  cantidade  de  rochas,  acompanhada  de  quan- 
tas miíTas  rezadas  í'e  puderaó  dizer  aíTy  na  meíma  Sé  ,  co- 
mo em  todas  as  igrejas  e  moeíleyros  da  cidade. 

CAPITULO    VIII. 

O  modo  e  aparato  com  que  o  princepe   vay  até  o  alpen- 
dere  de  Jaõ  Domingos  ,  onde  hadejèr  jurado  por  Rey, 

A  Gabadas  eítas  cirimonias  com  toda  a  íolenidade  e 
aparato  que  conuinha  ,  fe  tratou  logo  d'alcuantarenii 
por  Rey  o  princepe  dom  João  ,  e  como  iílo  era  curtume 
antigo  fazerle  ao  terceyro  dia  deípois  do  enterramento  do 
^Qj  defun.ro,  foy  então  forçado  dilataríc  mais  outros  três 
dias  3  aísy  porque  na  conjunção  da  quelle  tempo  lobreuie- 
rão  muyras  cliuuas  que  o  impedirão,  como  porque  em  tão 
breue  efpaço  íenão  puderao  acabar  algumas  couías  necef- 
farias  para  o  aparato  e  porapa5que  naquelles  aítos  fe  reque- 
re  ,  e  ao  feifto  dia  depois  rio  enterramento  dei  Rey  ,  que 
foy  aos  dezanoue  de  Dezembro,  eílando  ja  tudo  preparado 
huma  quinta  feyra  íahio  o  princepe  dos  paços  da  ribeyra  , 
ondeeiRey  íeu  pay  fallecera,  veilido  em  huma  opa  roça- 
gante de  brocado  ,  forrada  d'arminhos  (da  qual  fez  def- 
pois  efinoila  ao  m.oefteiro  da  Serra  )  em  hum  cauailo  ha 
baílarda  com  guarnições  de  lella  douro:  leuaua-o  polia  ré- 
dea o  ifante  dom  Fernando  íeu  irmão  ,  e  dom  António  de 
taide,  e  dom  Diogo  de  caftro  ,  que  ainda  o  feruião  cm 
corpo^  lhe  aleuantauao  as  faidras  da  opa  cada  hum  de 
fua  parte  ;  ha  mão  direyta  do  princepe  hião  os  grandes  do 
reyno  ,  que  então  lé  acharão  na  corte  ,  todos  apé  ,  dom  Ja- 
mes duque  de  Barganqa  e  de  Guimarães  ,  dom  Jorge  filho 
dcl  Rey  dom  João  o  fegundo  ,  meílre  de  Santiago  e  de 
Auis  ,  e  duque  de  Coimbra  ,  dom  João  feu  filho  marquez 
de  Torres  nouas  ,  dom  Fernando  de  norcnha  m.arquez  de 
\ilia  Real ,  dom  Pedro  feu  filho  conde  de  Alcoutim  ,  djrini 

João 


21  Primeyra  Parte  da  Chronica 

João   de  vafconcellos  conde   de  Penella  ,   dom  M.inoel 
frojaz  perejra  conde  da  Feyra  ,  dom  Franciíco  courinho 
conde  de  Marialua  ,   dom  João  da  íiJua  conde  de  Portale- 
gre ,  dom  Martinho  de  cafteJ branco  conde  de  Villa  noua  , 
doai  Vafco  da  gama  conde  da  Vidigeyra  ,  e  almirante  da 
índia  ,  e  da  parte  efquerda  hiao  os  officiais  mores  ,  e  a  ca- 
mará  da  cidade  ,    e  de  huma   parte   e  da  outra  hiao  outros 
muyros  fidalgos  e  gente  nobre  ;   logo  diante   do  princepe 
hia  o  infante  dom  Luis  fcu  irmão  fegundo  a  caualio,  que  lhe 
leua.ua  o  eíloque  por  fer  condeílabre  do  reyno  ,    diante  do 
Ifante  hia    a  cauailo  dom  João    de  menefes  conde   de  Ta- 
rouca ,  prior  do  Crato  ,  mordomo  mor  que  fora  dei  Rey 
dom  Manoel,  e  alfcrez  mor  do  reyno ,  o  qual  leuaua  a  ban- 
deyra  enrolada  ;    logo  adiante  deile  h-âo  todos    os  minif- 
tros  ,  charamellas  ,  trombetas  ,  hataballes  com  ordem  que 
por  então  não  tocaíTem    os  eftromcntos   por  reípeitos    da 
Rainha  viuua  ;   adiante  deíles  hiao  os  Reys  darmas  com 
íuas  cotas  veílidas  ,  conhecidos  todos  por  íuas  diuifas  ,   e 
os  porteiros  com  fuás  maças ,  e  todos  eftes  a  cauallo  :  com 
efta  ordem  entrarão   polias  portas   da  ribeyra   e  forão  por 
algumas  ruas  da  cidade  até  chegarem    ao  alpendere    do 
xiioeReyro   de  fao  Domingos,  onde  fe  auia   de  fazer  cíle 
aélo  que  eftaua  todo    ha  roda   &  por  cima  ornado    e  para- 
mentado como  comvinha,  para  tal   íolenidade:  junto   da 
porta   da  igreja  eftaua  feito  hum  muyto  grande  teatro    de 
oito   degraos  ,  ornado  também    riquiííimamente ,    cerra- 
do polias  ilhargas    com  huns  par:ipeitos  cobertos   de  finos 
e  ricos  panos,  e  em  cima  delle  hum  eftrado  pequeno  a  que  ^ 
íe  fubia  por  dous  degraos, concertado  também  ao  modo  de  ' 
tudo  o  mais  ,  no  qual  eftaua  a  cadeyra  para  o  princepe  de- 
baixo de  hum  doflei  de  brocado  de. muyto  preço  ,    com  al- 
mofadas do  mefmo:  eílaua  também  nelle  eílrado  outra  ca- 
deyra cuberta   de  brocado  com  huma  almofada   em  cima 
em  que  eftaua  hum  miíTal  ,  e  huma  Cruz  ,  ha  forma    do  ju- 
ramento que   o  princepe  auia  de  tomar.  Ha  entrada .  defte 
teatro  o  eftaua  efperando    o  cardeal  ifante  dom  Afonfo  feu 
irmão  com  todos  os  prelados ,  c^ue  então  cftauao  na  corte  , 

os 


dei  Rey  Dom  João  o  III»  a^ 

os  quais  por  hcnra  e  acaramento   da  religião  não  he  cuílu- 
jre  acompanharem  apé  os  princcpes  em  ninhum  aíío  quan- 
do elles  váo  acaiiailo.   Subido   o  princepe   ao  eflrado   de 
cima,  e  aílénrado  na  cadcyra,  que  nelle  eílaua  ,  temeu  o  ce- 
tro da  mão  do  conde  de  Villa  noua,  (a  quem  por  íer  íeu  ca- 
jnareyro    mor  pertencia  íer  o  miniílro   daquella   cerimo- 
nia)   eo  teue  ate  fe  tornar    para    o  psço.    O  ifante  dom 
Luís  íe  pos  ha  fua  m.ao  direyta  co  eíloque  Icuantando.  E  o- 
ifante  dom  Fernando  ha  efquerda  ,  ambos  cm  pé  em  quan- 
to durou  o  ado  ,  e  o  ifante  cardeal  por  mandado  do  prin- 
cepe íe  aíTentou  em  huma  cadeyra  guarnecida  de  íeâã ,  que 
cftaua  no  teatro  debaixo  ,   ha  íua   mão  direyía  :   ordenado 
ifto  ,  o  conde  prior  alferez  mor  fe  poz    na  ponta  do  teatro 
da  mão  direita  em  pé  com  a  bandeyra  enrolada,  da  maney- 
ra  que  atrcuxera  ,   e  na  outra  ponta  da  m,ão  elqoerda  iepoz 
o  doutor  Diogo  pacheco,  que  por  íuas  muytas  leiras  e  gran- 
de eloquência  fora  eícolhido  para  aquelle  aflo  ,  o  qual  def- 
J»ois   defeito  fiiencio  no  rumor  que  então  aly  auia  ,   diíTé 
em  voz  alta  ,   que  podia    bem  fer  ouuida    de  todo  aquelle 
ajuntamento,   como  por  morte  do  criílianiííimo  Rey  dom 
Manoel  da  glorioía  memoria  ,   fora    Deos  feruido    deixar 
f>or  feu  herdeyro  e  legitimo  íuceííor  o  princepe  dom  João 
leu  filho  primogénito ,   jurado  ja  por  tal    em  vida  dei  Rey 
feu  pay  pollos  três  eftados  do  reyno  ,  o  qual  era  aly  vindo 
J)ara  tomar  aquelle  cetro   do  feu  reyno  ,    queporerança    e 
por  direyto  lhe  pertencia  ,  e  para  que  elles    o  rcconheccf- 
Jem  e  ojurafíem  por  íeu  Rey  e  lenhcr,  e  lhe  fizefem  prei- 
to e  menagem  de  lhe  guardarem  fempre  a  fee   e  lealdade  a 
^ue  Ih"*  erão  obrigados  como  bons  e  leais  vafTallos  ,   e  que 
élle  lambem  eíperaua  co  fauor  diuino  de  os  reger  e  gouer- 
r>ar  com  inteyra  juftiça  ,  e  lhes   prometia  guardarlhes   to- 
dos os  priuilegios  ,  honras  ,  liberdades  ,  franquezas  ,    gra- 
das e  mercês,  que  por  el  Rey  feu  pay,  e  pollos  outros  Rcys 
1^U5  anieceflores   lhes  forão  concedidas,   e  que  diflo  auia 
lambem  de  tomar  feu  juramento. 


CA-. 


24  Pflmcyra  Parte  da  Chronica    i 

CAPITULO    IX. 

A  maneyra  de  que  o  princepe  hc  jurado  ,  eJeuantado 
por  L{ey  ,  e  as  exe guias-  que  Je  fazem  por,  el  Rey 
dom  Manoel. 

A  Gabada  a  falia  que  fizera  o  doutor  Diogo  pacheco,  o 
cardeal  ifante  fe  fubio  ao  eftrddo,onde  eftaua  o  prin- 
cepe, e  poltos  ambos  de  joelhos,  o  princepe  pos  as  mãos 
fobre  o  liuro  dos  Euangclho?,  e  fobre  a  Cruz  que  aly  eíla- 
uao  ,  eo  cardeal  lhe  deu  juramento  de  fazer  a  rodos  in- 
teyra  juíliça  ,  e  lhes  guardar  lodos  os  priuilegios  ,  hon- 
ras ,  liberdades  ,  franquezas  ,  graças,  e  mercês  ,  que  por 
elRey  feu  pay  ,  e  pollos  Reys  feus  anteceíTores  lhe  forão 
concedidas  ,  como  poUo  doutor  Diogo  pacheco  então  lhe 
fora  declarado  ,  e  logo  por  mandado  do  princepe  fe  tor- 
nou hà  íua  cadeyra.  A  pos  iílo  o  primeyro,  que  íe  chegou 
z  dar  a  íua  menagem,  foy  o  ifante  dom  Luis,  que  poíto  de 
joelhos  ,  e  paíTando  o  eíloque  ha  mão  efquerda  ,  pos  a  di- 
reyta  fobre  o  miííal  ,  e  fobre  a  cruz  ,  e  tomou  o  juramen- 
to da  mão  de  dom  António  de  noronha  eícriuaô  da  puri^ 
dade ,  que  defpois  foy  conde  de  Linhares  ,  cujas  palauras 
o  dom  António  hia  dizendo ,  e  o  ifante  as  referia,  as  quais 
erão  as  íeguintes.  Eu  o  ifante  dom  Luis  juro  a  eíles  fan- 
tos  Euangelhos  ,  e  a  eíla  cruz  em  que  ponho  a  mao  ,  que 
cu  recebo  por  íenhor,  e  Rey  verdadeiro,  e  natural,  o  muy- 
to  alto  ,  muyto  excellente ,  e  muyto  poderofo  princepe  el 
B  ey  dom  João  noílo  fenhor,  e  lhe  faço  preito  e  menagem, 
íegundo  foro  ,  e  cuftume  deites  íeus  reynos.  Acabado 
eíle  juramento  do  ifante  dom  Luis  ,  o  conde  alferez  mor 
delenrolou  logo  a  bandeyra  ,  e  a  teue  dahy  por  diante 
eftendida.  E  a  pos  o  ifante  dom  Luis  veyo  logo  o  ifante 
dom  Fernando,  e  poílo  de  joelhos  com  ambas  as  mãos 
lobre  o  milTal  ,  e  fobre  a  cruz  ,  ,diíTe  fomente  ,  e  eu  afly  o 
juro,  e  defta  maneyra  jurarão  também  os  fenhores  de 
titulo  conforme  as  luas  precedências  ,  dizendo ,  e  eu  aíTy 
o  juro  ,  e  como  cada  hum  acabaua  de  jurar  hia  beijara 

mão 


delRey  Dom  João  o  III.  25 

mão  aelRey.  Após  eítes  fenhores  tomou  o  cardeal  por 
{y  fó  o  juramento  na  m.efma  forma  ,  e  depois  de  beijar 
a  mão  a  el  Rey  ,  e  fe  tornar  a  aíTentar  o  tomarão  todos 
osBifpos  conforme  as  fuás  ancianidades  e  precedências. 
Após  elies  tomarão  o  mefmo  juramento  dom  Anrique  ,  e 
dom  Diogo  filhos  do  marques  de  villa  real,  etras  eJles  o  re- 
gedor loão  da  filua  ,  e  após  elle  o  governador  de  Lisboa 
dom  Aluaro  de  caítro  ,  e  logo  dom  lorfe  de  meneies  fe- 
nhor  de  Cantanhede  ,  e  após  elles  fízerão  o  mefmo  todos 
os  fidalgos  ,  que  eftauao  no  treatro  cada  hum  como  podia 
mais  comodamente  ,  e  por  derradeyro  fe  chegarão  os  ve- 
readores da  cidade  que  el  Rey  mandara  aíTentar  no  íeif- 
to  lugar  do  treatro  ,  e  perguntandolhes  dom  António  fe 
jurauão  elles  também  aquilTo  meímo  ,  refponderão  ãíly  o 
juramos  nós  os  vereadores  da  cidade  de  Lisboa  como  a  prin- 
cipal  que  he  do  reyno  ,  e  logo  todos  três  beijarão  a  mão  a 
elRey.  Concruido  por  eíle  modo  o  juramento  ,  o  rey 
darmas  Portugal  diíTe  por  três  vezes  em  voz  alta  ,  Ouui- 
de  ,  e  após  elle  o  conde  alferez  mór  diíTe  em  voz  tam- 
bém alta,  Arrayal  ,  Arrayal ,  Arrayal  ,  pollo  muyto  al- 
to ,  e  muyto  poderofo  princepe  el  Rey  dom  loao  o  ter- 
ceyro  noíío  fenhor ,  ao  que  refponderão  os  reys  darmas  ,' 
c  os  mais  oíliciais  delias  em  altas  vozes  ,  Arrayal  ,  Ar- 
r.ayal,  Arrayal,  íem  dizerem  mais  outra  palaura,  então  fe  to-, 
carão  os  eííromentos  todos ,  e  o  conde  alferez  mór  fc  de- 
<GO  ao  pé  do  treatro  ,  onde  tornou  a  dizer  as  mefmas  pa- 
lauras  ,  e  os  reys  darmas  cos  mais  officiais  lhe  relpon- 
derão  da  mefma  maneyra.  Acabado  com.  iílo  efte  folene 
a<flo  cl  Rey  fe  deceo  do  treatro  ,  e  foy  demandar  a  por- 
ta da  igreja  leuando  diante  o  eíloque  leuantado  na  mão 
do  ifante  dOm  Luis  ,  e  bandeyra  na  mão  do  mefmo  conde 
de  Tarouca  ,  onde  o  eftauaõ  eíperando  de  huma  parte  os- 
religiofos  da  cafa  ,  e  da  outra  os  feus  capellacs  ,  e  o  Ca- 
bido da  Sé  ,  e  de  trás  de  todos  dom  Fernando  de  vaícon- 
cellos  Bifpo  de  Lamego  ,  e  feu  capellão  mór  ,  reucílido  era 
pontifical  com  humas  relíquias  nas  mães,  que  o  cardeal 
tomou  -e  deu  a  beijar  a  el  Rey  que  com  toda  ella  com- 
^.,    Fane  L  D  par 


26         Primeyra  Parte  da  Chronica 

panhia  em  prociíTao  com  Cruz  aleuantada  fc  foy  no  altar 
de  í  ESV  onde  fez  fua  oração  ,  e  lhe  cantarão  o  himno 
de  Te  Deuni  laudamus  ,  no  fim  do  qual  o  mermo'Biípo  de 
I^amego  dilTe  cercas  orações  com   que  el  Rey  fe  recollieo 
CO  cetro  na  mao  ,  feguindoo  a  cauallo  aquelles  grandes  , 
que  ha  ida  o  acompanharão  a  pé.   Diante  delle  hia  o  con- 
de alferez  mor  ,  dizendo  de  quando  em  quando  ,  Arrayal , 
Arrayal  ,  Arrayal  ,  com  as   mefmas  palauras  que  atras  fi- 
caô  ditas  ,  a  quem  os  ofRciais  das  armas  também  refpon- 
dião  na  meíma  forma  que  dantes  ;  com  efta  pompa   e  real 
gparato  chegou  até   a  porta  da  ribeyra  ,    fazendo  em  todo 
efte  caminho  feu  officio  todos  os  eílromentos  ,  porem  daly 
até   o  paço  mandou  que  ceíTaíTem  ,    também  pollo   meímo 
refpeito  da  Raynha  viuua  ,   e  deíla  maneyra  foy  leuantado 
ç  jurado    por  Pvey  deíles  reynos   o  princepe  dom  João  ter- 
ceyro  deíle  nome  na  cidade  de  Lisboa  ,  a  dezanoue  de  De- 
zembro do  anno  de  1521  ,  fendo  de  idade  de  dezanoue  ân- 
uos   e  meyo   e  treze  dias.    Logo  defpois   de  fer  concruido 
efte  folene  aélo  fe  paíTou  el  Fvey  dos  paços  da  ribeyra ,  on- 
de fallecera  el  Rey  feu  pay  ,    para  Santos    o  nouo  onde  íe 
apoíentou  nas  cafas  de  dom  Franciíco  deça  ,    e  a  Raynha 
e  a  iíante  dona  líabel  fe  paíTarao  a  enxobregas  para    as  ca« 
fas    de  Triílão   da  cunha.   E  chegado    o  tempo   em  que  fe 
auíao  de  fazer    as  exéquias    dei  Rey  dom  Manoel  ,    fez  el 
Rey  ajuntar  no  moíleiro    de  Belém  todos    os  prelados  que 
então  eftauao  na  corte  ,  e  todos  os  religiofos    de  todas  or- 
dens quantos  auia   na  cidade  ,   e  o  Cabido  da  Sé  ,    e  todos 
os  feus  capellães  ,    e  aly  fe  fez    hum  foleniílimo  faimento 
com  todo   o  aparato   e  magefuade  que  fe  deuia  ao  Rey  de- 
funto ,    porem  nem  ouue  nelle  élla  ,   nem  forao  chamados 
para  elle  os  prelados  aufentes  como  era  cufcume  fazerfe  em 
íemelhantes  aiftos  ,    porque   o  defendera  el  Rey  dom  Ma- 
noel  em  feu  tcftamento  ,  mouido  da  mcfma  humildade  que 
o  fez   mandarfe  enterrar   emfepultura  rafa   co  chão    e  em 
que  não  ouuelTe  dcgraos.   Ao  outro    dia  defpois  deíle  fair 
mento  fe  paííou  el  Rey  para  Santos  o  velho,  que  he  da  ou- 
tra parte  da  cidade  dos  muros  afora  no  caminho  de  Ber 

lem 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  ij 

lem  ,  e  a  Raynha  com  a  ifante  dona  líabel  fe  paíTarao  para 
as  caías  do  duque  de  Bargança  que  faÓ  dos  muros  da  cida- 
de para  dentro. 

CAPITULO    X. 

O  ejlaão  em  que  eflao  as  coufas  do  reyvo  íf[!y  ckfitro  co- 
mo fora  delley  quando  o  princepe  dom  'João  começa 
£1  rcynar. 

AMayor  parte  daquelJes  felices  annos  que  durou  o  im- 
pério dogloriofo  e  bem  afortunado  Rey  dom  Ma- 
noel liie  íocederão  fempre  todas  as  coufas  tão  profpera- 
mente  ,  qae  parece  que  a  fortuna  de  propolito  tinha  toma- 
do a  feu  cargo  engrandecelio  ,  porque  cos  grandes  prouci- 
tos  e  interclTes  que  fe  tirarão  de  muytas  e  muyto  gloriofas 
conquilUs  que  os  Portuguefes  fizerao  nas  partes  Orientaes, 
e  do  trato  e  comercio  delias  ,  em  eípaço  de  poucos  annos 
veyo  efi:e  reyno  a  fer  ranto  mais  rico  e  abaftado  do  que  o 
nunca  fora  ,  que  os  rnefmos  Jiomens  quafi  atónitos  de  tão 
fupita  mudança  não  fouberao  tratrar  as  riquezas  ,  nem  víar 
delliiS  com  a  temperança  deuida  e  neceííaria  ,  quiçá  pare- 
cendolhe  que  lhe  não  podia  jamais  vir  a  faltar  o  que  hu- 
ma  vez  tinhão  alcançado.  Ajudaua  também  então  eíta  ri- 
queza e  abaílança  do  reyno,  efcarelle  ainda  iiure  e  def- 
embaraçado  das  obrigações  que  defpois  teue  acjue  foy 
forçado  acodirfe  ,  porque  não  tinha  el  Rey  ainda  filhos  a 
quem  ouueíTe  de  dar  caías  ,  e  rendas  ,  nem  filhas  a  quem 
ouueíFc  de  dar  dotes  ,  o  que  tudo  auia  de  fair  da  fuílancia 
do  reyno  ,  e  aíly  tudo  o  que  então  auia  nelle  fe  conuertia 
nos  feus  ufos  ,  com  que  cada  dia  fe  fazia  mais  rico  e  mais 
abaílado  ,  e  dos  limites  delle  para  fora  eftaua  tudo  em  tan- 
ta paz  e  quietação  que  não  auia  coufa  que  pudeíTe  dar  cui- 
dado. Eíla  profperidade  ,  e  boa  fortuna  veyo  em  fim  a  dar 
moílra  d'alguma  mudança  e  declinação  porque  efta  grande 
riqueza  e  abundância,  que  fe  deuera  de  poupar  para  as  ne- 
ceífidades  da  honra  fe  veyo  a  empregar  toda  em  delicias  e 

D  2  ape- 


2  8  Prinieyra  Parte  da  Chronica 

apetites,  os  quaes  como  coftiimão  fer  iníaciaueis  forao  cau- 
fa  de  granJilumas  íuperfliiidades  e  demaíias  ,  nos  trajos  , 
tomados  quaíi  de  iinproui;o  de  gentes  eftrangeiras  ,  nos 
adereços  das  caías  ,  no  faiifto  e  pompa  do  leruiço  ,  em 
cheiros  e  perfumes  delicioios  ,  em  inuenções  de  manjares 
differentiflimos  aíTaz  cuíloíbs  ha  fazenda  ,  e  danoíos  ha  vi- 
da ,  €  em  outras  muytas  coufas  deíla  calidadc  ,  que  forao 
baílintes  não  íómente  para  darem  grandiííima  quebra  na 
quella  grande  abundância  a  que  os  homens  tinhão  chega- 
do ,  mas  para  preuerterem  e  quafi  corromperem  de  todo 
aqueIJe  rigor  e  aufteridade  dos  cuílumes  antigos,  que  era  a 
coluna  e  íuílentação  da  verdadeyra  honra.  E  confideradas 
bem  eftas  cousas  tenho  para  mim  ,  que  fe  pode  ter  grande 
receyo  da  ruína  ,  e  total  perdição  daquellas  terras  ,  e  rcy- 
nos  que  derem  entrada  a  eftas  demafias  e  fuperfluidades  , 
porque  fícao  metidos  antre  liuns  inimigos  domefticos ,  que 
íem  ferro  nem  fogo  os  vão  con  umindo  pouco  a  pouco  iem 
fe  fentirem,  e  tanto  mais  perigoíos  e  perjudiciais  que  todos 
os  outros,  quanto  íaõ  menos  conhecido? ,  .e  as  armas  com 
que  fazem  fua  guerra  fao  os  próprios  goílos  e  apetites  dos 
mefmos  com  que  pelejao.  Por  onde  aos  Reys  e  fenhores 
importa  -muyto  porem  todo  o  cuidado  e  diligencia  por 
euitarem  eftes  gaílos  demsíiados  ,  e  eftas  delicias  fuperfíuas 
que  oje  no  mundo  tem  feito  honra  de  liulandades  ,  e  in- 
troduzirem de  nono  quanto  for  poíliuel  os  víos  e  cuftumes 
antigos  yC]Xíe  forao  mcftres  da  folida  e  verdadeyra  honra  , 
fe  quer  por  nam  verem  poíías  em  perigo  as  fizendas  ,  as 
honras,  e  as  almas  dos  que  tem  a  feu  cargo.  Por  outra 
parte  íocedeo  auer  ifantes  no  reyno  ,  a  que  foy  forçado 
darfe  vida  e  grnndes  dotes  ,  e  fatisfazeríe  ha  ifante  dona 
Maria  o  que  eJ  Rey  dom  Manoel  feu  pay  era  obrigado  a 
lhe  dar  por  virtude  do  contrato  do  leu  tcrceyro  calamento 
com  a  Rainha  dona  Leanor  ,  e  como  tudo  ifto  foy  tam- 
bém forçado  que  faiíTe  da  luftancia  do  reyno  ,  não  fe  po- 
de fazer  iem  muyta  quebra  da  fua  antiga  largueza  e  prof- 
peridade.  Pol^o  qual  ainda  que  por  huma  parte  o  reyno 
polia  morte  dei  Rey  dom  Manoel  ficou  muyto  mais  largo 

e 


dei  Rey  Dom  João  o  IH.  2p 

c  mais  auentajado  de  terras  e  groíTos  tratos  ,  todavia  por 
ourra  ,  all-y  polia  deíordem  e  demaíia  dos  gaftos  ,  c  polia 
grande  careftia  das  couias  que  n.aeo  deiles  ,  como  polias 
muyras  e  grandes  obrigações  que  el  Rey  deixou  para  cum- 
prir ,  ficou  elie  menos  rico  e  menos  ab.^ílado  ,  e  neíla  par- 
le já  menos  profpero.  Começou  também  cl  Rey  dom  Ma- 
noel a  íenrir  mudança  na  paz  e  quietação  que  lenipre  tiuera, 
porque  hum  noífo  natural ,  por  nome  Fernão  de  maga- 
Ihaens  homem  de  grande  efpiriío  ,  e  de  muyta  pratica  e 
experiência  na  arte  da  nauegaçao  ,  por  hum  agrauo  que 
tcue  delle  por  lhe  não  mandar  acrecentar  hum  toítão  ha 
moradia  que  tinha  para  íicar  igual  ha  de  feus  antepaçados 
fe  tirou  do  fcu  feruiço  ,  e  fe  palíbu  ao  Emperador  Carlos 
quinto  ,  qne  pouco  antes  era  vindo  a  Efpanha  tomar  poííe 
do  reyno  de  Callella  ,  e  Te  lhe  ofíereceo  a  lhe  dar  mayores 
proueitos  da  índia  do  que  tinhão  os  Portugueíes  ,  e  por 
nauegação  mais  breue  e  menos  cuítofa  e  perigofa  que  a 
fua  ,  por  hum  eílreito  queelle  nouamente  deicobrira  na 
coíla  do  Braíil  ,  e  lhe  poz  também  as  ilhas  de  Maluco  na 
demarcação  das  terras  que  ficarão  ha  conquiíla  de  Caílel- 
la  na  repartição  que  fe  fez  delias  antr' ella  e  eíle  reyno  , 
a  que  o  Emperador  não  fómente  deu  orelhas  ,  mas  o  ad- 
mitio  ao  Teu  leruiço  ,  ao  que  acudio  então  el  Rey  dom 
Mcinoel  fazendo  ao  Emperador  as  lembranças  neceíTarias  , 
has  quais  cUe  fempre  refpondeo  com  as  mais  aparentes  re- 
zóes  que  pode.  Mas  não  deixou  depor  em  eíFeito  o  que 
Fernão  de  magalhaes  lhe  o{íerecera,dandolhe  nauios  e  gen- 
te com  que  cometeo  a  viagem  ,  e  íe  paíTou  a  Frandes  a 
profleguir  o  direito  da  íua  eleição.  E  alTy  em  ambos  os 
reynos  í'erperaua  o  recado  do  que  paííaua  o  magalhacns  , 
não  lem  grande  rcceyo  que  como  efte  negocio  era  de  muy- 


^    ,  pequena  inquietaça  _ 

para  el  Rei  e  para  o  reyno.  Também  da  parte  de  França 
íhs  fobrcueyo  outra  que  não  daua  pouco  em  que  cuidar  , 
porque  el  Rey  Franciíco  >  quiçá  defejofo  de  ler  parte  nos- 

gran- 


30  Pi Imeyra  Parte  da  Chronica 

grandes  proucltos  que  tinha  por  inforrr.nçao  qire  fe-tirauâO' 
da  naucgaçao  e  comercio  da  índia,  comci^ou  a  arguir 
nouas  duuidas  íobre  a  demarcação  que  íizerão  antre  ly  os 
Reys  de  Portugal  e  Caílella  ,  da  qual  nnquelle  tempo  clle 
fe  lançara  fora  fendo  requerido  para  itlo  e  agora  lentia 
muvto  a  renunciaçao  que  tinha  feito  da  parte  da  auçao  que 
pudera  ter  ncíle  defcubrimento.  Donde  íe  veyo  a  dizer  pol- 
lo  deígoílo  que  tinha  de  eíles  dous  B^eys  de  Portugal  e  Ca(- 
tella  repartirem  antre  fy  o  mundo  ,  e  o  demarcarem  ha  fua 
vontade,  confentia  andarem  os  feus  vaííallos  poilo  mar  tão> 
íoltos  que  não  íómente  roubauao  os  nauios  dos  Português 
íes  dizendo  que  trazião  fazendas  de  Caftelhanos  com 
quem  os  Franceles  tinhao  então  apregoado  guerra  ,  mas 
armauão  tam.bem  nauios  para  todos  os  lugares  da  nofla 
conquiíla  dos  qunis  alguns  cometerão  ir  ha  índia  guiados 
por  pilotos  Portnguefes  ,  porem  eftes  por  vários  infortú- 
nios fe  gaftarão  e  confumirao  todos  fem  nunca  tornar 
mais  noua  nem  recado  de  ninhum  delles  :  e  eítas  coulas 
por  fua  via  defenquietauão  também  muy  to  o  reyno  ,  por- 
que a  difcordia  tão  pubrica  não  faltaua  então  mais  que  o 
nome  fomente  para  fer  verdadeyra  guerra.  Nem  parou  fó 
niílo  a  mudança  c  declinação  que  começarão  a  íentir  as  prof- 
peridades  dei  Rcy  dom  Manoel ,  porque  lambem  lh'abran- 
geo  ha  faude  geral  de  todos  ,  e  ha  fartura  e  abundância  de 
mantimentos  que  fempre  teue ,  que  fov  huma  das  mais 
pefadas  e  trabaliioías  defenquietaçoes  que  pudera  íoceder 
a  efte  reyno ,  de  que  também  outiros  muy  tos  forão  partici- 
pantes,  porque  aquella  grande  fertilidade  de  todas  as  cou- 
fas  ,  com  que  os  campos  cuílumauão  reíponder  em  todo  o 
difcurfo  do  império  dei  Rey  dom  Manoel  ,  nos  derradey- 
ros  annos  delle  fe  começou  a  recollier  ,  e  moílrar  os  annos 
eíleriíes  e  difficultofos  ,  e  muyto  differenres  do  que  antes 
erão  principalmente  no  de  ií$2i  ,  que  foy  o  vitimo  da  fua- 
vida,  no  qual  por  falta  d'agoa  e  polia  fecura  do  tempo 
foy  em  toda  Efpanha  tão  exceííiua  a  cílerilidade  que  nem  os 
campos  ,  nem  as  aruores  acudiao  cos  ícus  acuílumados 
fruitos ,  e  os  gados  também  por  falta  dos  paílios  fe  per- 

diao 


delRey  Dom  João  o  IIT.  31 

dlão  de  todo ,  com  que  a  fome  veyo  a  fer  de  maneyra  que 
caufaua  em  todos  lium  geral  efpanto  ,  e  quafi  dcíefpera- 
ção  ,  porque  nem  a  induliria  dos  pobres  nem  ,  s  abaílança 
dos  ricos  baftaua  para  lhe  dar  qualquer  remédio ,  por  onde 
ahuns  e  a  outros  era  neceJTario  valeremfe  de  raizes  def- 
conhecidas ,  e  mantimentos  dcracuftumadcs  e  perjudicinis 
ha  faude  ,  os  quais  juntos  ao  deíuario  e  defconcerto  do 
tempo  caufauão  ellranhas  e  grauiílimas  infirmidades  ,  ea 
poz  ellas  mortes  deíeílradas  e  mifcraueis  com  perda  e  to- 
tal alienação  do  juizo  da  mayor  parte  dos  que  morriao  , 
donde  naceo  corromperemíe  e  inficionaremíe  os  ares  ,  e 
atearíe  huma  peite  tão  aceía  que  nem  perdoaua  aos  famin- 
tos 5  nem  aos  abadados.  Efta  fecura  e  eílerilidade  d'£fpa- 
nha  abrangeo  também  a  Africa  ,  onde  por  fer  o  clima  da 
terra  mais  quente  teue  muyto  mnyor  força  que  nas  outras, 
e  poz  os  mouros  em  tamanho  eftremo  de  fome  e  eílreiteza 
que  em  algumas  partes  ,  e  principalmente  em  Azamor  e 
em  Çafim  fem  armas  fe  vinhao  entregar  aos  Criftãos ,  e 
vender  as  molheres  e  os  filhos ,  e  deípois  a  fy  meímos  por 
baixifiimos  preços  ,  e  muytos  fe  entregauão  de  graça 
a  quem  os  fuítentalTe  ,  e  como  a  boa  fortuna  tem  por  cuRu- 
me  defemparar  muyto  deprefía  aquelle  a  quem  i'entrega  , 
e  dcixallo  com  muyto  mayor  tormento  do  que  pcrdeo  do 
que  foy  o  gofto  do  que  pofíuhio  ,  deitas  coufas  que  diUe  fe 
pode  bem  infirir  que  huma  das  mayores  proTperidades  que 
elPvey  dom  Manoel  teue  na  vida  foy  acabarfelhe  el!a  em 
tempo  que  as  íuas  proíperidades  o  acompanhaíTern  aré  a 
m  orte  ,  porque  foy  ifto  huma  vitoria  e  hum  gloriofo  triun- 
fo que  o  Ceo  lhe  quis  dar  da  melma  fortuna.  E  ncilc  cita- 
do que  tenho  dito  achou  ei  Rey  dom  João  noífo  lenhor  o 
terceyro  deite  noníe  ,  e  dos  Reis  de  Portugal  o  decimo 
quinto  de  quem  eitd  hiítoria  trata  ,  as  coulas  deite  reyno  , 
aííy  as  de  dentro  como  as  defora  quando  tomou  o  cetro  e  o 
gouerno  delle. 


CA- 


32         Primeyra  Parte  da  Chronica 
C  A  P  I  T  U  L  o    XI. 

El Rey  notifica  a  morte  ãel Rey  Jeu  pay  ao  Pappa  e  aos  Reys 

Crijiãos  ,  he  vifitado  da  coroa  de  Caftella  ,  e  começa  a 

entender  no  gouerno  do  reyno, 

A  Gabadas  as  exéquias  dei  Rey  dom  Manoel ,  e  fatlf- 
feito  baílanriílimamente  com  rodas  as  couías  impor- 
tantes ha  Tua  alma  ,  auifou  logo  el  Rey  da  morte  dei  Rey 
feu  pay  ,  e  da  íua  fuceirao  no  reyno  ,  o  Emperador  Carlos 
quinto  ,  a  Francifco  primeiro  Rey  de  França  ,  a  Anrique 
oélauo  Rey  de  Inglaterra  ,  pollos  miniftros  que  tinha  ,  ou 
nas  cortes  deíles  princepes  ,  ou  mais  perto  delias ,  c  a  dom 
Miguel  da  filua  filho  de  dom  Diogo  da  filua  conde  de  Por- 
talegre ,  que  então  eftaua  por  embaixador  em  Roma  man- 
dou que  fizeíTe  o  meímo  ao  Pappa  Lião  decimo  ,  e  em  feu 
nome  deíTe  obediência  ha  Sé  apoílolica  ,  mas  nefte  tempo 
era  o  Pappa  Lião  já  fallecido,  da  entrada  de  Dezembro  do 
anno  de  I5'2i,  e  eleito  em  feu  lugar  (  não  fem  grande  alter- 
cação de  dous  bandos  que  fe  mouerao  nefta  eleição  e  fe 
quietarão  quaíi  milagroíamente)  Adriano  fexto  Bifpo  de 
Tortoía  ,  Framengo  de  nação,  cardeal  do  titulo  Santorum 
Joannis  e  Pauli  ,  homem  de  baixo  fangue  ,  mas  pollos  me- 
recimentos ds  fua  virtude  ,  e  de  íuas  letras  não  indino  da- 
quelle  lugar  ,  e  pouco  conhecido  na  corte  de  Roma  por 
eftar  então  auíente  delia  gouernando  os  eílados  d'Eípa- 
nha  em  nome  ao  Emperador.  A  noua  do  fallecimento  det 
Rey  dom  Manoel  chegou  a  efte  Adriano  ainda  antes  que 
tiueííe  auifo  da  eleição  que  era  feita  em  Roma  ,  o  qual  jun- 
tamente CO  almirante  eco  condeftabre  de  Caílella  ,  que 
com  elle  aíTiíliao  ao  gouerno  ,  mandarão  vifitar  el  Rey  e  a 
Rainha  viuua  por  dom  João  taueyra  Biípo  de  ciudad  Ro- 
drigo ,  que  deípols  foy  cardeal  de  Toledo,  homem  de 
muyta  autoridade  ,  o  qual  veyo  ter  ha  corte  no  principio 
do  anno  de  I5'22,  eílando  ainda  el  Rey  apofentado  em  San- 
tos o  Velho  ,  e  nelhi  foy  recebido  c  tratado  fempre  com  a 
honra  que  fe  lhe  deuia.  Defpedido  o  biípo  começou  el  Rey 

a 


delRey  Dom  João  o  III.  33 

a  entrar  nos  negócios  do  gouerno  do  reyno  ,  e  proueo  lo*^ 
go  o  officio  de  Regedor  da  cafa  da  fuppricaçao  a  João  da 
íilua  pollo  renunciar  Aires  da  fdua  leu  pay.  E  mandando 
chamar  a  elle  e  a  dom  Aluaro  de  caílro  gouernador  da  caía 
do  ciuil,  lhes  encomendou  muyro  a  obíeruancia  e  inteireza 
da  juftiça  ,  e  o  bom  deípacho  das  partes  ,  e  lhes  diíTe  mais 
que  lhes  lembraua  que  punha  nas  luas  mãos  e  corifiaua  deU 
les  não  íòmenre  as  vidas  ,  e  fazendas  dos  íeus  vaííallos  , 
mas  a  fua  própria  honra  ,  e  conciencia  ,  donde  entende- 
rião  a  obrigação  em  que  ficauão  poftos  a  Deos  e  a  elles  , 
c  em  alguns  dias  limitados  alTiftia  com  elles  ao  mencyo  da 
juftiça  particular,  e  dada  a  ordem  a  eíla  parte  da  julHça  , 
niílo  e  em  tudo  o  mais  que  lhe  pareceo  neceílario  para  ellaj 
quis  logc?  também  tratar  da  outra  parte  que  he  ajuíliça 
adiftributiua,importaníiírima  também  ao  bom.  gouerno  dos 
eftados  j  e  ao  credito  dos  fenhores  deiles  ,  que  he  fazer 
mercês  aos  íeus  vaíTallos  ,  íatisfazendo  a  cada  hum  con- 
forme a  feus  merecimentos ,  cos  olhos  lempre  poílos  mais 
nos  bons  e  leais  íeruiços  década  hum  que  em  refpeitos 
particulares  nem  valias  de  íeus  priuados  ,  e  para  elfeito  di- 
ílo  ,  muyto  poucos  dias  defpois  que  tomou  o  cetro  ,  man- 
dou paliar  huma  carta  a  dom  João  de  larcao  em  que  dizia 
que  auendo  refoeito  ao  muyto  feruiço  que  dona  Ekiira  de 
mendonça  camareyra  mor  que  fora  da  Rainha  fua  madre 
que  fanta  gloria  aja  lhe  tinha  feito  ,  e  como  por  iflo  era  re- 
zão  que  a  elía  e  a  dom  João  de  larcao  íeu  filho  íizeíle  mere- 
ce,  e  por  eíperar  delle  que  fempre  o  ferulrla  afsy  bem  co- 
mo elle  o  deuia  fazer,  e  em  tal  maneyra  que  de  feu  feruiço 
recebcíTe  muyto  contentamento  ,  e  querendolhe  fazer  gra- 
ça e  mercê  auia  por  bem  e  lhe  fazia  mercê  do  officio  de  leu 
caçador  mór  com  toda  aquella  tença  ,  proes  .  percalços  ,  c 
inrereíTes  ,  e  com  todos  os  poderes  ,  honras  ,  priuilegios , 
c  liberdades  com  que  os  caçadores  mores  dos  Reys  deílcs 
reynos  íempre  tiuerão  ,  e  feruirão  o  dito  officio  ,  e  como 
de  direyto  lhe  pertencer  ,  a  qual  carta  foy  feyta  aos  24 
dias  do  mez  de  Dezembro  do  anno  de  1^21.  E  neíle  meí- 
mo  dia  mandou  paíTar  outra  carta  ao  conde  de  Penella  em 
Farte  L  E  que 


34-         Pfimcyra  Parte  da  Chronlca 

que  dizia  que  cl  Rey  feu  fenhor  e  padre  fizera  mercê  a  Lo^ 
po  foares  do  íeu  coníelho  por  léus  muytos  feruiços  e  me- 
lecimenros  do  officio  de  feu  capitão  dos  ginetes  ,  de  que 
tinha  feu  aluará  ,  c  que  no  concerto  e  contrato  do  cafa- 
menro  dantre  dom  Affonfo  filiio  do  conde  de  Pcnella  íeu 
jnuyro  amado  e  prezado  íubrinho  com  dona  Guiomar  filha 
do  dito  Lopo  foarez  elle  renunciara  o  dito  officio  para  o 
auer  edito  dom  Afonío  feu  genro  ,  e  prouuera  a  el  Pvcy 
leu  fenhor  e  padre  lhe  fazer  delle  mercê ,  íegundo  que 
compridamente  era  declarado  em  hum  feu  aluará  que  o  di- 
to conde  por  parte  do  dito  dom  Afonfo  íeu  filho  lhe  apre- 
fenrara  ,  pidindolhe  por  mercê  que  lhe  mandaíle  fazer  do 
dito  officio  fua  carta  cm  forma  ,  e  que  viílo  por  elle  o  dito 
aluará,  e  por  folgar  de  fazer  mercê  ao  dito  dom  Afonfo 
polia  rezão  que  para  iíío  tinha  ,  e  por  elperar  que  no  dito 
officio  o  firuiria  bem  ,  e  como  quem  eile  era  ,  aula  por 
bem  ,  e  lhe  daua  e  fazia  mercê  do  dito  officio  de  íeu  capi- 
tão dos  ginetes  com  aquella  tença  ,  poder  ,  honras ,  pre- 
eminências ,  liberdades  ,  e  priuilegios  que  íac  dados  e  or- 
denados aos  capitães  dos  ginetes  dos  Reys  deíles  reynos  , 
e  de  que  elies  fempre  vfarão  e  de  direyto  lhe  pertence  ,  a 
qual  carta  foy  paíTada  em  Lisboa  aos  24  dias  do  mez  de 
Dezembro  do  anno  de  i^ii.  Nem  fe  paífarao  muytos  dias 
que  não  mandaíle  paííar  outra  carta  ao  conde  de  Portale- 
gre,em  que  dizia  que  efguardando  elle  aos  muytos  e  gran- 
des feruiços  que  el  Rey  feii  fenhor  e  padre  que  íanta  glo- 
ria aja  recebera  do  conde  de  Portalegre  que  fora  íeu  ayo 
e  gouernador  de  fua  caía  ,  e  como  por  iíío  era  rezão  que  a 
feus  filhos  fizeffe  mercê  e  acrecentamento  ,  e  efguardando 
a  peíloa  do  conde  de  Portalegre  feu  filho  mayor  e  a  fcus 
muytos  merecimentos  ,  e  por  efperar  delle  que  afsy  o  fcr- 
«iria  como  o  elle  deuia  fazer  ,  e  em  tal  mancyra  que  rece- 
beíle  do  feu  feruiço  muyto  contentamento  ,  e  por  folgar 
de  lhe  fazer  mercê  e  polia  muyto  boa  vontade  que  lhe  ti- 
jiha  ,  auia  por  bem  e  lhe  daua  e  fazia  mercê  do  officio  de 
mordomo  mor  de  íua  caía  com  aquella  tença,  foros, 
proes ,  percalços ,  intereíles ,  e  com  todos  os  poderes,  iu- 

pe« 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  ^  j 

períorldade  ,  jurifdição  ,  mando  ,  preeminências  ,  honras, 
liberdades  ,  graças  ,  e  priuilegios  com  que  fempre  o  dito 
oíficio  tiuerão  cíeruirão   e  de  todo  víarao   os  mordomos 
mores  das  cafas  dos  Reys  defte  Reynos  ,  e  como  de  direy- 
to  lhe  pertencer  ,   a  qual  carta  foy  paíTada   em  Lisboa  ao 
primeyro  dia    de  Janeiro   do  anno  de  mil  e  quinhentos  e 
vinte  dous.  E  logo  ao  outro   dia  feguinte  mandou  paíTar 
outra  carta    a  dom   Pedro  mazcarenhas   em  que   dizia  que 
efguardando  elle  o  muyto  feruiço  ,  que  dom  Pedro  mazca- 
renhas fidalgo    de  íua  caía  tinha  feito   a  el  Rey  feu  fenhor 
c  padre  que  fanta  gloria  aja  ,  e  ha  boa  vontade  que  por  íeus 
feruiços  Ihs  tinha, e  por  elperar  delle  que  aíTy  o  leruiria  que 
de  íeu  íeruiço  receberia  muyto  contentamento  ,  e  folgariíi 
de  por  iíTo  lhe  fazer  mercê  como   era  rezao  que  fizelTe 
áquelles  que  o  bem  íeruirem  ,  e  querendolhe  fazer  graça  o 
mercê  auia  por  bem   e  lhe  daua  e  fazia  mercê  do  officio  de 
feu  eftribeyro  raór  aísy  polia  guiía  e  maneyra  e  com  aquel- 
la  tença  ,    foros  ,    proes  ,   percalços  ,  e  intcrelles  com  que 
fempre   o  dito   officio  tiuerão  os  eftribeyros  mores  dcíies 
reynos  ,  e  direytamente  lhe  pertencerem  ,  e  como  todo  ti- 
nha e  poíTuhia  e  auia  o  eftribeyro  mor  dei  Rey  feu  fenhor 
e  padre  que  íanta  gloria  aja  ,  íe  elle  com  direyto  de  todo 
milhor  puder  vfar  e  o  auer  ,  a  qual  carta  foy  feyta  em  Lis- 
boa aos  dous  dias  do  mez  de  Janeiro  do  anno  demil  e  qui- 
nhentos  e  vinte  dous.   E  após  iíto  fe  conuerteo  logo  ao 
que  cumpria  a  íua  fazenda  ,  e  a  primeyra  coufa  em  que  en- 
tendeo  foy   na  armada  que  auia  de  ir  para  a  índia.  E  afsy 
neftas  coufis  como  em  todas  as  mais  que  então  fe  lh'offe- 
reciao  daua  cada  dia  mayores  moftras   da  fua  grande  pru- 
dência e  entendimento  :  mas  o  em  que  então  iíto  f'enxer- 
gou  miíhor  foy  ,    que  fendo  elle   de  dezanoue  annos  íó- 
mente  ,    idade  de  que  fabe  mal  defenderfe   dos  apetites  e 
afeiçoes  particulares  ,  e  que  tem  por  cuftume  dar  mais  ore- 
lhas  aos  confclhos   dos  léus  igoais  ,    que  aos  dos  que  tem 
idade  para  poderem  aconíelhar,    elle  desbaratou    ascípe- 
ranças  que  alguns  fidalgos  que  íe  criarão  coir»  elle  tinhao  to- 
mado da  iua  brandura ,  e  aíabilidade  quiçá  mais  confiados 

£  2  no 


3^         Primeyra  Parte   da  Chronica 

no  que  lhes  parecia  que  tinhao  grangeado  com  elle  com 
•]Jie  fazerem  fempre  a  vontade  ,  que  no  verdadcyro  amor 
do  feu  feruiço  ,  que  he  fruyra  muyto  ordinária  nas^cortes 
dos  princepes  ,  e  tanto  mais  perjudicial  quanto  he  mais 
agradaucl  e  faboroía  ,  antes  entendendo  quanto  importaua 
ao  bem  de  feu  pouo  não  fe  deixar  leuar  de  íuas  afeiçoes  , 
poz  iempre  os  olhos  ,  e  tez  muyta  conta  das  cãs  e  expe- 
riência que  feu  pay  aprouara  ,  e  eíla  teue  fempre  por  guia  , 
principalmente  do  conde  de  Villa  noua  ,  e  de  dom  Aluara 
da  coíla  ,  os  quais  fempre  tiuerao-anfelle  o  feu  lugar  deui- 
do  ,  inda  que  não  deixaua  delhes  pôr  alguma  culpa  no  der- 
radeyro  cafamento  dei  Rey  feu  pay  ,  e  deípois  que  metea 
a  mão  nellee  e  os  acabou  de  conhecer  bem  ,  os  tratou  de 
maneira  que  muyto  deuagar  abrio  caminho  para  valia  de 
outros  ,  e  eíla  iíenção  e  defapegamenro  de  affeiçõcs  parti- 
culares he  huma  virtude  tão  neceflaria  aos  que  gouernão  , 
que  fem  ella  pode  com  rezão  auer  muyta  duuida  de  poder 
fer  bom  ogouerno,  porque  aquelle  peito  que  tem  por 
obrigação  efpalharfe  geralmente  por  todos ,  e  dar  entra- 
da a  todos  ,  mal  poderá  fazer  feu  officio  como  deue  le  fe 
deixar  ocupar  de  hum  fó  ,  ou  de  alguns  particulares  que 
tolhão  a  entrada  aos  outros. 

CAPITULO    XIT. 

O  conde   de  Mariãhiã  vem  ha  corte  queixar  fe  a  elKey 
do  marques  de  Torres  nouas  ,  a  rezão  porque  ^  e  o 

que  fe  faz  j obre  ijjo.  • 


idade  (  porque  paífaua  de  íetenta  annos  )  como  pollo  pre- 
ço de  lua  peíToa  ,  como  também  por  íer  muyto  rico  e  fe- 
nhor  .de  muytas  rendas  e  vaílallos  ,  era  dom  Francifco 
Coutinho,  o  qual  afora  fer  meirinho  mor  do  reyno  era 
fenhor  de  dous  condados  do  de  Mariaiua  de  que  el  Rey 
dom  Atoíifo  o  quinto  lhe  fizera  mercê  por  morte  de  íeu 

ir- 


Mel  Rey  Dom  João"  o  IIÍ/^  i^f- 

irmão  que  os  mouros  matarão  em  Arzilla  ,  e  do  de  Loulé 
que  elle  ouucra  em  cafamenro  com  a  condeíla  dona  Beatriz 
íiJha  herdeira  do  conde  dom  Anrique  ,  e  ajUntandofle  a  iílo 
por  huma  parre  a  grande  honra  que  tinha  ganhado  porfeu 
esforço  em  tempo  dei  Rey  dom  Afónfo  o  quinto  nas  guer- 
ras que  leue  com  Caftella  ,  e  defpois  em  Africa  contra  os 
mouros ,  e  por  outra  a  fua  muyta  prudência  e  larga  expe- 
riência que  tinha  de  muyios  annos  ,  veyo  a  cobrar  tama- 
nha repuraqão  e  autoridade,  que  não  fe  lhe  daua  menos  cre- 
dito nas  couías  de  paz  que  nos  confelhos  da  guerra.  Elle ,' 
ou  forçado  da  natureza  da  velhice,  que  polia  mayor  parte 
cuftuma  íer  apertada  ,  ou  por  alguns  defenhos  fecretos  que 
fazia  comílgo  ,  fe  veyo  a  encolher  no  gafto  de  fua  cala  , 
e  m.eterfe  em  prouiíoens  que  lhe  durarão  largo  tempo  em 
que  ajuntou  grande  cantidade  de  dinhcyro  ,  díi  qUal  ri- 
queza toda  ,  e  de  todos  fcus  eftados  era  herdeyra  huma  fó^ 
filha  que  tinha  chamada  dona  Guiomar,  e  defejando  dVm^-' 
pregar  eíla  filha  e  eíle  tamanho  dote  em.  quem  pudcíle  acre- 
centar  honra  e  luílro  ha  honra  e  nobreza  que  elle  ja  tinha  , 
detriminou  de  tentar  elPvcy  dom  Manoel,  e  pidirlhe  hum 
de  feus  filhos  f  inda  que  então  eftauam  em  pequena  idade  ) 
para  feu  genro  ,  não  deixando  de  entender  que  fe  atreuia  a 
muyto  ,  mas  quiçá  confiado  em  ter  el  Rey  muy  tos  filhos  , 
e  elle  ter  muyto  para  dar  a  lua  filha  ,  e  ^^'^y  o  poz  por 
obra,  roas  não  lhe  íahio  em  vão  eíle  atreuimento  porque 
t\  Rey  pefando  bem  efte  negocio  e  nao  lhe  parecendo  íóra 
de  rezão  nem  contra  íua  autoridade  aceitou  o  partido  ,  e 
lhe  prometeo  o  ifante  dom  Fernando  íeu  filho  rerceyro,. 
mas  como  o  ifante  ainda  neíte  temipo  não  eífaua  em  idade 
para  poder  calar  e  a  filha  do  conde  era  ja  molher  perfeita  , 
fizerãoíe  então  os  contratos  e  o  cfFeito  do  cafamento  íe 
dilatou  para  quando  o  ifante  vieíTe  a  ter  idade  conuenien- 
te  para  elle.  Elfando  iílo  a íTy  concertado  pubricamenre  , 
fcm.  fama  nem  rumor  de  impedimento  algum,  fobrcueyo  a 
morte  dei  Rey  dom  Manoel  que  deixou  muyto  encarre- 
gado ao  princepe  dom  João  feu  filho  o  eíFeito  dclle  cafa- 
Hienco  doifdiite  íeu  irmão  coiíi  a  filha  do  conde  ,  porcin. 

não. 


58  Prlmeyra  Parte  da  Chronlca 

náo  pode  fer  tam  facilmente  como   fe  efperaua  ,   porque 
dom  João    de  lencaílro  marques  então  de  Torres  nouas  fi- 
lho mais   velho    de  dom  Jorge  meílre  de  Santiago  e  de 
A  uis  ,   e  neto  dei  Rcy  dom  Jcao  o  íegundo  quiçá  engana- 
do d'a!gumas  couías  que  terceyro?  failos  lhe  fariao  enten- 
der, de  que  fe  virão  no  mundo  muytos  exemplos  ,   come- 
çou de  aípirar  ao  meímo  caíamento  ,   dizendo  que  muyro 
antes    dos  contratos  com    o  ifante   dom  Fernando  era  elie 
caiado  clandeílinamente  com  a  filha  do  conde  ,  e  detrimi- 
nou  pôr  efte  negocio   emjuíliça.    SobrcíTaltado   o  conde  e 
fentido  grandemente  dePii  noua  ,  fe  veyo  logo  a  el  Rey  , 
e  defpois   de  fe  lhe  queixar  com  muytas  palauras   dcíla 
afronta  que  fe  lhe   fazia  IhediíTe,  que  pois  elle  por  iua 
velhice    e  iníirmidade   não  podia  já  fizer  mais  naquelle  ca- 
lo que  requerer  perante  elle  íua  juítiça  ,   pidia  muyto  por 
mercê   a  lu.i  alteza  que  quifeíle   ter  conta   com    a  injuria 
que    fe   fazia    aaquellas   íuas   cans  ,   que   tanto   a   fentiao 
mais,  quinto   fe  viao  mais  impoííibiliiadas  para  íe  pode- 
rem f^tisfazer  delia  ,  e  não  confentifle  que   o  marques  de 
Torres  nouas  ,   ou  por  fua  cubica   lhe  quilelfe  impedir  a 
irtercê   e  a  honra  que  eIRey   íeu  pay  lhe  fizera   em  fua  vi- 
da ,  ou  por  feu  íobejo  atreuimento  íe  quiíeíle  meter  no  lu- 
gar   em  que  el  Rey  tiuera  por  bem  de  pôr  o  ifante   dom 
Fernando  fcu  irmão, e  que  atentaíTe  fua  alteza  que  em  parte 
prTecia  que  era  algum  mcnofcabo  feu  guardar  hum  feu  vaf- 
fallo  para  pubricar  em  feu  tempo  o  que  nunca  oufara  a  fazer 
em  vida  dei  Rey  feu  pay  quando  com  rezao  deuera  de  acudir 
a  requerer  iua  juíljça  íe  a  tiuera  ,  para  que  os  contratos  não 
vierão  a  effeito  ,  porque  aquillo  era  dar  a  entender  que  Jhe 
nacia  aquelle  atriuimento  da  pouca  idade  de  fua  alteza  ,  da 
qual  deuia  de  imaginar  que  não  feria  inda  baílante  para  re- 
primir e  caíligar  os  infultosdos  feus  vaííallos.  Atentamen- 
te ouuio  el  Rcy  a  queixa  do  conde  ,  e  poílo  o  negocio  em 
confelho,    dcipois  de  fe  tomar  baílante  informação  delle, 
mandou  el  B.ey  prender  o  marques  no  cailello  de  Lisboa , 
e  ao  meílre    de  Santigo  feu  pay    mandou  que  íe  íaiíTe  da 
corte ,  o  que  logo  foy  fey to.,  mas  nem  líTo  foy  parte  para 

o 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  39 

o  marques  deixar  de  pcrfeuerar  em  feu  propofíto  ,  e  afir- 
mar mujco  mais  o  que  dizia  ,  e  em  fim  mandou  requerer 
o  conde  ordinariamente  por  Tua  filha.  El  Rey,  como  de 
huma  coula  tão  lecreta  como  eíta  não  podia  ter  mais  cer- 
teza que  o  que  conílaíTe  juridicamente,  inda  que  o  nego- 
cio tocaua  ao  ifante  feu  irmão  polln  qual  cauía  tocaua 
também  aelie,  todauia  como  era  católico  e  criílianiííimo 
por  dar  exemplo  do  temor  que  fe  deue  ter  de  Deos  ,  e  da 
reuerencia  que  fe  deue  ter  has  coufas  que  elle  ordenou  na 
terra  ,  não  fe  quis  de  poder  abíoluto  antremeter  em  fazer 
nem  impedir  cafamentos ,  e  deixou  correr  a  demanda  an- 
tre  o  marques  e  o  conde  ,  não  íem  pubricas  moftras  d'e 
íentimenro  dos  ifantes  dom  Luis ,  e  dom  Fernando  ,  os 
cjuais  não  deixauao  de  dar  rezoes  em  fauor  do  conde  aíly 
por  íua  velhice  como  polia  pouca  conta  que  o  marques 
fazia  do  que  el  Rey  feu  pay  deyxara  ordenado.  Durou 
efta  demanda  no  iuizo  eclefiaftico  todo  o  tem.po  que  viueo 
o  conde  de  Marialua  ,  que  forao  perto  de  noue  annos  ,  e 
defpois  de  íua  morte  no  anno  de  mil  e  quinhentos  e  vinte 
noue,  mandou  el  Rey  fazer  perguntas  ha  filha  do  conde 
por  letrados  Canoniftas  eTheologos^  que  liuremente  e 
íem  ninhum  receyo  diíTeíTe  era  caiada  co  marques  ou  não  , 
e  como  ella  o  negou  conftantiílimamente  e  pollo  diícurio 
do  proceíTo  fe  não  prouaua  baílantemente  o  contrario  fe 
deu  a  Tentença  pollo  ifante  dom  Fernando  ,  enfadado  ja 
edegoílolo  de  ver  eíle  feu  cafamento  poílo  em  litijo  ,  e 
durar  tanto  tempo,  mas  perfuadido  dei  Rey  feu  irmão 
cumprio  emfim  o  que  el  Rey  feu  pay  deixara  mandado  ,  e 
recebeo  por  molher  a  Ifante  dona  Guiomar  coutinha  ,  mas 
aapreíTada  morte  d'ãmbos  e  dos  filhos  que  delles  nace'- 
rão,e  a  ruina  da  cafa  de  Marialua  ,  que  também  fe  apagou 
de  todo  ,  foy  ocafião  de  auer  no  reyno  alguns  juízos  fobré 
efte  cafamento  e  não  faltou  quem  ouueíFe  nelle  cafo  por 
jufta  a  íentença  do  ceo  fomente  ,  mas  propriedade  he  da 
natureza  humana  auer  fó  aquiilo  porjuílo  a  que  elJa  he 
aôei$oada« 

CA. 


40  Primêyra  Parte  da  Chroníca 

,,;  CAPITULO     XIII. 

--•,  BlRey  manda 'João  da  filueyra  por  embaixador  a  Fran- 
ça j  e  o  do  que  trata  a  embaixada. 

DEípoIs  queelRey,  neíle  principio  do  feu  império  , 
pez  em  ordem  e  quietação  as  couías  do  rtryno  das 
.portas  delíe  para  dentro,  co-ncçou  logo  a  entender  nas  que 
eílauão  d^ellas  para  fóra,  e  liiima  das  que  então  trazia  mais 
-didnte  dos  olhos  ,  e  que  mais  o  deruellauao  e  lhe  dauao 
raayor  cuidado  ,  era  o  cafamento  da  ifante  dona  líabel  íua 
irmam  por  fatisfazer  ao  que  el  Rey  feu  pay  lhe  deixara 
,tão  encomendado  ,  e  como  as  raras  partes  e  o  grande  me- 
recimento que  elle  via  nefta  princefa  ,  afora  o  amor  que 
lhe  tinha  ,  o  faziâo  fer  máo  de  contentar  no  que  lhe  auia 
de  dar  por  marido  ,  defejaua  que  foíTe  eíle  o  Emperador 
.Carlos  quinto  ,  por  fer  então  o  mayor  princepe  do  mun- 
do y  porem  oíFerecialhe  niílo  alguma  difílcuidade  imaginar 
.que  ainda  que  o  Emperador  porhuma  parte  folgaria  de 
.coníeruar  a  amizade  antiga  que  tinha  com  Portugal  ,  que 
-todauia  por  outra  o  eftado  das  fuás  coufas  o  forçaria  então 
a  ligarfe  com  Inglaterra  ,  por  fegurar  a  cafa  de  Borgonha 
^ue  a  frpntaria  de  França  começaua  a  definquietar,  ajun- 
tauaíTe  também  a  eíla  fua  imaginL^ção  não  eftar  íem  receyo 
jâe  poder  auer  alguma  quebra  antre  Portugal  e  Caíleila  , 
por  caufa  da  emprefa  do  Magalhães  ,  de  que  atras  fiz  men- 
ção ,  e  ainda  que  elle  defpois  com  a  própria  morte  recebeo 
,o  caíligo  de  fcu  atieuimento  ,  do  deíTerviqo  que  fez  a  feu 
^ey  ,  e  da  injuíla  vingança  que  quis  tomar  da  fua  pátria  , 
jcom  tudo  os  Caftelhanos  vendo  aberto  o  caminho  para 
poderem  participar  do  comercio  daquellas  partes, cuj.is  ri- 
,queza3  tinhão  na  Europa  tanto  nome  e  tanta  fiima  ,  co- 
ineçavão  a  encher  o  Emperador  de  tantas  efperanças  que 
p  fizerão  dar  orelhas  a  fuás  palauras  ,  fazer  conta  de  fuás 
promelTas  e  tratar  deíle  negocio  muyto  de  propoíito  ,  por 
onde  foy  necelTario  a  el  Rey  efperar  que  o  Emperador 
vieíTe   a  Efpanha ,   aíTy  para  tratar  do  cafamento  da  ifante 

fu;i 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  41 

fuairmam,  como  para  atalliar   os  defgoílos  e  dilFerenças 
que   a  emprefa   de  Fernão   de  MagalJiaes  comcçaua  de  Te- 
iTíear  antrc  eftes  dous  reynos.  Neíle  inefmo   tempo  foy  cl 
Reyauiíado    por  alguns   Porcugueíes  que  negoceauao   em 
França  ,  que  hum  João  varezano   Florentino  de  nação   fe 
ofFerecera   a  ei  Rey   Francifco  para  defcubrir   no  Oriente 
outros  reynos  que  os  Portuguefes  não  linhao  defcubertos  , 
€  que  nos  portos   de  Normandia  íe  faziao  preíles  armadas 
para  com  faaor  dos  almirantes  da  colla   de  França  ,  e  dif- 
limulação  dei  Rey  Franciíco  irem  pouoar  a  terra  de  íanta 
Cruz   chamada  Braíil  ,    dcícuberta    e  demarcada    pollos 
Portuguefes   na  fegunda  viagem    da  índia  ,  e  ajuntandoílc 
a  iilo  as  queixas  que  hauia  no  reyno  dos  danos  que  rece- 
bia dos  coíTayros  Franceíes,  pareceolhe  a  elRey  neceíTario 
acudir  a  ifto  com  toda  a  preíleza  poíTiuel  ,  e  para  iílo  man- 
dou por  embaixador  a  França  João  da  filueyra  filho  de  Fer- 
Jião  da  íilueyra,que  não  tardou  mais  em  fe  partir  que  o  tem- 
.po  que  lhe  foy  neceíTario  para  fe  fazer  preftes.    A  fuítancia 
da  fua  embaixada  era  pidir  a  el  Rey, que  pois  antre  eJles  não 
auia  guerra ,  antes  auia  paz  e  amizade  antiga  ,  mandaífe  dar 
ordem  nofeu  reyno  com  que  ceílaíTem  tantos  roubos,  e  tan- 
tos danos,  quantos   os  Portuguefes  e  os  Francefes  íe  fa- 
zião  pollo  mar  huns  aos  outros,    que  era  huma  guerra  ta- 
cita  e  particular  antre  aquelles  que  no  pubrico  e  em  geral 
erão  amigos  ,    e  que  tudo  o  que  fe  achafíe  nos  feus  portos 
que   fora  tomado   aos  Portuguefes ,   lho  íizeíTe  reíiiruir  , 
porque  elle  também    fe  nos  portos  de   Portugal   achaíle 
coufa   que  foíTe  tomada    aos  Francelcs  lha  faria  reílituir 
Jogo  ,  e  a  todos   os  que   vieílem  requerer  niílo  fua   iulbça 
contra  os  íeus  vaíTallos ,   lha  faria    muyto  inteira  e  com 
nmyta  breuidade.  E  apoz   iílo  lhe  pidifie  também  que  de- 
fendeíTe   aos  íeus  vaííallos  arm.arem  contra   os  lugares  da 
conquifta  de  Portugal,    para  os  quais  nem  aos  próprios 
Portuguefes   naturaes   e   vaííallos  íeus   era  licito  nauega- 
rem   nem  tratare[n  nelles.   Chegado  João    da  filueyra  ha 
corte    de  França  foy  nella  bem  recebido ,  porem  nas  cou- 
fas  que  propôs  dos  negócios  que  leuaua  a  cargo  ,  lhe  ref- 
Faru  L  F  pon- 


4^  Primeyra  Parte  da  Chroníca 

pondeo  por  então  el  Rey  inleterminadamente  ,  e  com re* 
zoes  mais   de  aparência   que  de  refoiuçâo  ,  que  pareciáo 
dadas  ,   não  tanto  para  eíFeifuar  os  negócios  de  que  íe  lhe 
trataua  ,  como  para  os  dilatar ,  e  antreterlhe  o  tempo. 

CAPITULO     XIIII. 

El  Rey   de  França  manda  por  embaixador  Honorato  de  Qais 

gentil  homem  Sahoyano  a  Portugal  ^  o  negocio  a  que 

vem ,  e  o  que  pajja  na  corte  de  França  fobre  os  ne* 

goci&s  da  embaixada  de  'João  da  Jllueyra, 

Tinha  el  Rey  de  França  então  defpedido  por  embaixa- 
dor para  eíle  reyno  Honorato  de  Cais  gentil  homem 
Saboyano  ,  pratico  já  nas  coufas  delle  ,  porque  em  tempo 
dei  Rey  dom  Manoel  viera  a  elle  outra  vez  mouer  caia- 
niento  de  madama  Carlota  filha  deíle  mefmo  Rey  Fran- 
cifca  CO  princepe  dom  João.  Efte  embaixador  trazia  ago- 
ra comiflão  para  tratar  efte  mefmo  cafamento  de  madama 
Carlota  com  el  Rey  ,  e  confirmar  com  elle  as  pazes  e  ami- 
zades que  anrre  elles  auia.  Dos  quais  negócios  o  que  tra- 
taua das  pazes  e  amizades  ouue  logo  eíTeiío  ,  porque  forao 
confirmadas  e  juradas  deftes  reynos  cos  de  França  parante 
o  meímo  embaixador  ,  o  qual  íe  obrigou  que  dentro  do 
tempo  que  el  Rey  ouueíte  por  bem  ,  el  Rey  de  França 
leu  íenhor  faria  o  meímo  nas  mãos  de  quem  íua  alteza 
ordenaíTe  ;  no  negocio  do  cafamento  fe  lhe  relpondeo  que 
fe  não  podia  tratar  com  eíFeito  íem  mais  baílantes  e 
mais  largos  poderes  que  os  que  elle  trazia.  E  com  efte  deí^ 
pacho  le  delpedio  dei  Rey  o  embaixador  ,  e  fe  foy  a  Fran- 
ça ,  e  no  mefmo  anno  tornou  com  inteyros  poderes  e  co- 
miíToens  para  concruir  o  cafamento.  E  começando  a  tra- 
tar delle  el  Rey  lhe  hia  antretendo  a  refolução  ,  eícuían- 
dofle  com  a  palaura  que  dera  a  el  Rey  dom  Manoel  feu 
pay  de  cafar  primeiro  a  ifante  dona  Ifabel  fua  irmam. 
Com  tudo  o  embaixador  não  deixaua  d'apertar  no  nego- 
cio ,  c  náo  fem  efpçranca  de  feíFeituar ,  até  que  chegandor 

lhe 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  43- 

lhe  recado  de  França  ,  que  era  fallecida  madama  Carlota  , 
cedeu  de  todo  ;  João  da  filueyra  entretanto  na  corte  de 
França  não  deixaua  defollicitar  com  muyta  inílancia  os 
negócios  da  fua  comiííâo  ,  porem  el  Rey  rcípondialhe  a 
e41es  conforme  lias  eíperanças  que  lhe  hiao  de  Portugal 
dos  negócios  que  elle  pertendia.  No  principio  rerpondco 
a  el  Rey  por  hum  Luis  homem  que  elle  deíejaua  muyro  a 
conferuação  ,  e  augmento  das  amizades  antigas  que  antre 
elles  auia  ,  e  dahy  a  poucos  dias  mandou  fobreílar  os 
nauios  que  nos  íeus  portos  íe  armauao  para  a  índia  :  e  dif- 
fe  que  proueria  niíTo  de  maneyra  que  el  Rey  ficaíTe  con- 
tente ,  e  nefte  meímo  tempo  paíTou  tambcm  prouiíoens 
para  íe  reítetuir  toda  a  fazenda,  que  conflaíTe  de  certo  que 
fora  roubada  a  el  Rey  ,  ou  a  vaíTallos  íeus  ,  e  deu  efperan- 
ça  de  mandar  prouer  e  dar  tal  ordem  em  tudo  ,  que  fe  ara* 
IhaíTem  todos  eftes  roubos  ,  e  os  danos  que  procedião  del- 
les;  e  porque  eíle  era  o  principal  negocio  a  que  el  Rey  man- 
dara João  da  filueyra  a  França, pareceolhe  que  era  feu  íer- 
uiço  mandallo  vir,  e  mandar  lá  ficar  o  licenciado  Pêro  go- 
niez  teixeira  ,  para  que  elle  co  meílre  Diogo  de  gouueya 
(a  que  também  eícreueo  fobre  eíla  matéria  )  requereíTe 
a  juíliça  d'a1gumas  couías  de  fua  fazenda ,  e  aíTiílille  has  dos 
feus  vaíTallos  que  lá  andauao  cm  demanda  ,  porem  antes 
que  de  cá  partiííe  eíla  ordem  para  fe  vir  João  da  filueyra  , 
veyo  auifo  de  hum  lacome  monteyro  (que  por  proui- 
foens  dei  Rey  de  França  follicitaua  lá  a  reílituiçao  deitas 
fazendas  )  como  el  B.ey  paffara  prouifoens  nouas  ,  em  que 
mandaua  que  fe  fizeíTe  geral  focreílo  e  embargo  em  toda  a 
fazenda  dei  Rey  ,  e  de  todos  os  Portuguefes  ,  c  nos  feus 
nauios  que  íe  achaíTem  nos  portos  de  França  ,  fem  íe  de- 
clarar noua  caufa  nem  íe  faber  rezao  para  íe  mandar  niílo 
o  contrario  do  que  antes  fora  mandado,  pollo  qual  el  Rey 
mudou  oconfelho  da  vinda  de  João  da  filueyra  ,  e  lhe 
mandou  que  até  tomar  verdadeyra  informação  das  parti- 
cularidades e  rezoens  defta  nouidade  ,  e  o  auiíar  delias  ,  c 
ver  outro  recado  íeu  ,  fe  não  abalaíTe  da  corte  de  França. 
Ajuntouíle  também  a  iilo  que  fendo  então  pregoada  guer- 

F  2  ra  *i 


44-     ■    Prlmeyra  Parte  da  Chronlca 

ra  antre  os  rcynos  e  fenhorios  do  Emperador  e  dei  Rey  de 
França,  e  fazeiídoa  huas  aos  outros  cruelmente  por  mar  e 
por  terra  ,  os  Franceíes  que  andauão  darmada  encontrarão 
ja  dentro  nos  limites  da  coíla  de  Portugal  huma  náo  caíle- 
Jhana  com  ouro  do  Emperador,  e  muyta  fazenda  de  par- 
tes ,  e  ou  foíTe  por  lhes  parecer  que  íe  não  íaberia  o  lugar 
ond'eIIa  fora  tomada  ,  ou  por  lerem  tão  pouco  refpeito 
ao  lugar  de  Portugal  ,  como  nefte  tempo  tinhão  aos  meí- 
mos  Portugueíes  ,  elles  tomarão  a  nao  por  força  com  titu- 
lo de  fer  de  léus  inimigos  ,  e  a  leuauão  como  de  boa  guer- 
ra. Andaua  então  Pêro  botelho  com  huma  armada  guar- 
dando a  coíla  de  Portugal  por  mandado  dei  Rey  ,  como 
foy  cuflume  antigo  neíle  reyno  ,  e  íerupre  tão  proueitofo 
e  n-eceílario  nelle  ,  quanto  fe  tem  viíto  claramente  do  que 
tem  fucedido  deípois  que  íe  elíe  perdeo,  efte  capitão  com 
a  fua  armada  amanheceo  hum  dia  fobre  os  que  leuauão  a 
nao  Caflelhana  ,  e  fazendoos  amainar  por  força  ,  por- 
que íe  detiuerão  algum  elpaço  fem  o  fazerem  ,  tomou  in- 
formação do  que  paíTaua  ,  e  vendo  que  no  caio  auia  duui- 
da  ,  e  que  era  neceílario  detriminaríe  por  juíliça  ,  os  trou- 
xe a  todos  diante  de  fy  ao  porto  de  Lisboa  ,  aonde  a  prefa 
foy  focreílada  ,  e  elles  prelos  ,  e  o  negocio  por  mandado 
dei  Rcy  remetido  ha  cafa  da  fuplicação  em  que  fe  deu 
fentença  o  anno  feguinte.  A  noua  difto ,  que  logo  íe  fcube 
cm  França  ,  traílornou  muyto  a  ordem  em  que  eílauao  os 
negócios  de  Portugal  ,  e  foy  caufa  da  mudança  que  nelles 
ouue  deípois  em  todo  o  tempo  que  lá  eíleue  João  da  fil- 
ueyra,  que  forão  noue  annos  contínuos ,  nos  quais  em  fim 
nam  rcabou  mais  em  todos  os  negócios  que  leuaua  a  car- 
go, que  embargar  a  viagem  do  Florentino  de  que  atras 
fiz  menção  ,^e  alguns  poucos  nauios  de  coííayros,os  quais, 
oque  era  clara  juíliça  noíía,  auiao  que  era  força  e  fem. 
juíiiça  grande  que  fe  lhes  fazia  ,  dando  por  rezão  que  era 
aquillo  qucbrarfe  com  elles  o  inuiolauel  direito  das  gen- 
tes, mas  eu  não  me  efpanto  porque  cuílume  he  da  cubica 
querer  íazer  as  leis  e  os  derey  tos  ao  íbm  do  íeu  intercíle  , 
exião  auer  que  he  juíliça  fenão  fomente  o  que  he  feu 
proueyto.  C  A- 


delRey  Dom  João  o  III.  45: 

CAPITULO    XV. 

ElRey  manda  dar  ao  Pappa   os  parabéns  do  fummo  pontifi- 
cado ,  fuplicalhe  pollo  priorado  do  Crato  para  o  ifante 
dom  Luís  ,  o  Einperador  manda  hum  embaixador 
a  elRey  ,  a  jujlancia  da  embaixada^  e  a  re- 
pojla  delia, 

EStava  entam  vago  de  pouco  tempo  o  priorado  do 
Crato  por  morte  do  dom  JoaO  de  ir.eneíes  conde  de 
Tarouca  ,  que  fora  prior  delle  ,  e  como  huma  das  ccuías 
queelRcy  mais  trazia  diante  dos  olhos  era  o  remédio  de 
léus  irmãos  ,  e  acomodallos  o  millior  que  foíTe  pcíliuel  , 
parecendoihe  que  eíle  priorado  era  coula  competente  ao 
ifante  dom  Luis  ,  e  huma  das  milhores  coufas  do  reyno 
com  que  então  o  podia  ajudar ,  mandou  logo  Aires  de  lou- 
fa,  comendador  de  Santa  Maria  dalcaçoua  de  Santarém,  ao 
Pappa  Adriano  eleito  nouamente  ,  que  ainda  eílaua  cm  Ca- 
ragoça  ,  aíly  para  Jhe  dar  os  parabéns  do  fummo  pontifica- 
do ,  como  para  lhe  luplicar  que  íem  embargo  dos  cílatutos 
e  eftabelecimentos  da  ordem  de  fam  João  tluefle  por  bem 
de  prouer  no  priorado  do  Crato  o  ifante  dom  Luis  feu  ir- 
mão ,  e  pollo  meímo  Aires  de  foufa  lhe  mandou  huma  pe- 
quena Cruz  feita  do  madeyro  em  que  nofío  fenhor  jesu 
CHKisTo  padeceo  para  remir  o  género  humano  ,  a  qual  o 
Prertejoão  Rey  dos  Abexis  mandara  em  grande  reliquia 
a  el  Pvty  dom  Manoel  feu  pay.  Chegado  Aires  de  íouía  ao 
Pappa  fez  m.jyto  inteiramente  tudo  o  que  leuaua  a  cargo, 
e  preíentanJoIhe  a  Cruz  que  el  Rey  lhe  mandaua  elle  a 
beijou  e  recebeo  com  muyra  deuoçao  ,  e  moftras  de  muyto 
contentamento.  No  negocio  do  priorado  inda  qiie  o  Pap- 
pa Cefcuíou  alguns  dias,  todauia  lhe  vcyo  a  conceder  o 
que  cl  Rey  pidia  ,  mas  o  breue  íoy  expedido  em  tal  forma 
que  não  pode  a  conceflao  auer  effeito  daquella  vez,  porque 
Aires  de  íoufa  como  nem  tinha  conhecimento  da  lingoa 
Latina  ,  nem  pratica  das  coutas  de  Roma  ,  não  l'aduertio 
da  falia  que  auia  nas  letras ,  e  aíly  foy  neccílario  a  el  Rey 

inan- 


^6         Primeyra  Parte  da  Chronlca 

mandar  de  nouo  ao  Pappa  o  doutor  João  de  faria  ,  que 
defpois  foy  chançaler  mor  defte  reyno  ,  para  reformar  efta 
expedição, da?,  letras  com  ordem  ,  porem  que  nam  paíTaíTe 
deTortoía  íe  o  Pappa  já  foíTe  partido  para  Roma.  Tinha 
clRcy  também  já  neíle  tempo  defpidida  huraa  armada 
debaixo  da  capitania  de  Duarte  de  lemos  da  trofa  para 
acompanhar  o  Pappa  neíla  fua  paííagem  para  Itália  ,  a  qual 
]li'elle  mandara  pidir  ,  tanto  que  teueauiío  do  coUegio 
dos  Cardeais  da  fua  elleição  ,  porem  íendolhe  forçado. 
apreíTar  a  íua  partida  por  fer  auifado  que  o  Emperador  eí- 
tâua  de  caminho  para  Eípanha  ,  e  por  entender  quão  ne- 
celTaria  era  a  fuaaíTiílencia  em  Roma  ,  não  pode  efperar 
polia  armada  que  lhe  hia  deíle  rcyno  ,  e  fe  partio  fem  ella 
com  que  nem  Duarte  de  lemos  ,  nem  João  de  faria  pude- 
rão  dar  eííeito  ao  que  lhes  fora  mandado,  por  fer  a  partida 
do  Pappa  mais  apreílada  do  que  ambos  efperauão.  Efte  in- 
dulto do  Pappa  teue  deípois  noua  contradição  polia  or- 
dem deíaojoão,  e  por  iíTo  correo  eíle  negocio  com  mais 
vagar  do  que  el  Rey  imaginaua,  e  não  fe  veyo  aromar 
neíle  a  refolução  que  elRey  queria  fenão  defpois  damor- 
te  do  Pappa  Adriano.  Entre  tanto  chegou  o  Emperador  a 
Eípanha,  que  foy  nomes  de  Março  do  anno  de  mil  e 
quinhentos  e  vinte  dous  ,  onde  era  efperado  com  muyto 
defejo  para  quietar  algumas  alteraçoens  que  o  anno  dantes  ^ 
fe  mouerão  em  Caílella  nas  comniunidades  dos  pouos  t  lo- 
go em  chegando  mandou  viíitarel  Rey  dom  João  polia  mor- 
te dei  Rey  feu  pay  por  Carlos  poncto  monfeor  de  la  Chaulx  ■ 
ícu  íomilhier  primeiro  e  muyto  aceito  a  clle  ,  o  qual  tra- 
zia também  nome  e  poderes  de  embaixador  ,  e  comiíTaó  • 
para  pidir  a  el  Rey  que  quifeíTe  confirmar  e  juraras  antigas- 
pazes  ,  que  de  muytos  annos  auia  neíle  reyno  co  de  Caílel- 
Ja  ,  como  forão  confirmadas  e  juradas  lempre  poilos  Reys 
paliados  dambos  eítes  reynos  ,  e  quiícíle  também  fazer 
huma  liga  e  confederaçam  co  Emperador  contra  el  Rey  de  - 
França.  Propoílas  cilas  couías  no  coníelho  fe  adentou,  que 
as  pazes  era  bem  que  fe  confirmaílem  e  l'e  juraíTem  como  o 
embaixador  pidia ,  masque  para  a  liga  auia  muytos  in-. 

con- 


dei  Rey  t)òm  Jcaò  o  IIT.  47 

conuenientes  ,  porque  ouuerao  que  não  era  rezao  meteríe 
el  Rey  em  parcialidades  contra  Françn,em  quanto  não  auia 
mayores    e  mais  juftas  caufas    de  romper  com  ella  ,  e  qúe 
parecia  mais  perigofo  que  íeguro  para  efte  reyno  declarar- 
le  Tem  rezao   por  inimigo  doutro  ram  poderolo.   Deirimi- 
nado  iílo    no  confelho  reípondeo   el  Rey  ao  embaixador  , 
que  quanto    has  pazes  era  contente  de  as  confirmar  e  jurar 
como  fizerão   os  Reys   feus  anteceíTores  ,    o  que  logo  fez 
em  prefcnça    do  mefmo  embaixador,  o  qual    por  virtude 
de  huma  procuração  que  trazia   com  poderes  baílantes  fe 
obrigou   por  hum  ellromento  pubrico  ,  que  o  Emperador 
dentro    de  quatro   m.efes  primeyros  feguintes  confirmaria 
ejuraria   as  mefmas  pazes  daquella  mefma  maneira  ,   em 
prelença  de  quem  el  Rey  mandaíTe  com  poderes   baílan- 
tes  para  iíTo  ,   c  no  que  tocaua   ha  liga   lhe  diííe   el  Rey 
que  as  rezoens  antigas   que  elle  rinha   com   o  Empera- 
dor  o  obrigauão   aeílarfemprc   de  íua  parte  em  todas  as 
coufas    em  que  lhe  foíTe  neceíTario   feu  fauor   e  ajuda  ,  fem 
antreuir  niflo  noua  liga  nem  confederação  ,  mas  que  quan- 
to ha  occafião  prefente  ,  em  quanto  não  ouueííe  mais  jullas 
caufas    de  romper   com  el  Rey   de  França  não  lhe  parecia 
jufto  nem  rezoado  auer  liga  e  confederação  de  guerra  con- 
tra elle  ,   antes  lentia  m.uyto    a  que  elles   agora  lá  mouiao 
antre  fy  ,  mas  que  le  elle  pudeííe  íer  parte  para  os  concer- 
tar  e  meter  em  paz  ,  o  eílimaria  em  eílremo  ,  e  faria  para 
iíTo  tudo  o  que  foíTe  pofliuel  :  com  eíla  repofta  fe  tornou  o 
cm  baixador  Carlos  popeto   para  Caftella  aííaz  contente  e 
íatisfeito   de  muytas   mercês  que  el  Rey  lhe  fez   dejcyas 
c  peças  ricas   para  elle  e  para  hum  filho  leu  que  o  acompa- 
nhara naquella  jornada. 


CA- 


4?         Primeyra  Parte  da  Chroníca 
CAPITULO  xvr. 

ElRey  propõem   no  confelho  o  ca  [amento  da  tf  ante  dona  Ifã' 
bel /na  irmam  ,   hdfobre  elle  dijjercntes  pareceres  ,   as 
rezoens  de  ambas  as  partes ,  clRey  fe  refolue  e  man^ 
da  Luís  dajilueyra  por  embaixador  a  Cajiella, 

'i  ' 

EStando  has  coufas  deíle  reyno  co  de  Caílelia  no  eftíido 
quf  agora  difle  ,  deíejou  el  Rey  de  pôr  por  obra  o  ca- 
famento  da  ifante  dona  líabel  íua  irmam  co  Emperado-r 
Carlos,  pór  cumprir  co  grande  amor  que  lhe  tinha  ,  e  com 
a  palaura  que  dera  a  el  Rey  fcu  pay  ,  e  propondo  o  nego- 
cio no  coníelho  íe  diuidio  ern  dous  pareceres  muyto  diffe- 
rentes  ,  porque  huma  parte  delle  dizia  que  ainda  que  el 
Rey  era  muyto  mancebo  importaua  muyro  tratar  já  então 
de  le  caiar  naquella  idade ,  aíly  por  quão  arrifcada  elia 
cuftuma  andar  a  muytos  malles  e  perigos  ,  principalmente 
a  que  lie  liure  ,  folta  ,  obedecida  ,  e  não  obediente  ,  como 
também  por  quão  proueitoío  he  terem  os  Reys  filhos  com 
cedo,  para  que  por  lua  morte  os  deixem  em  idade  que  poí- 
faõ  gouernar  por  fy  os  íeus  reynos  ,  e  os  liurem  dos  gran- 
des danos  e  inconuenientes  que  lhe  cuftumao  nacer  das  tu- 
torias ,  e  eíle  cafamento  dizião  que  fe  deuia  de  cometer 
em  Caíleila  a  troco  do  Emperador  com  a  ifante  dona  lía- 
bel ,  e  dei  Rey  com  a  ifante  dona  Caterina  irmam  do  Em- 
perador ,  porque  efta  noua  liança,  afora  as  antigas  rezoens 
e  parentefcos  que  auia  antre  eítes  dous  princepes, feria  hum 
meyo  feguriíFimo  para  fe  refrearem  e  reprimirem  algumas 
diíFerenças  ,  que  fc  receaua  poderem  recrecer  antre  elles 
fdbre  a  demarcação  da  conquiíla  ,  e  leria  ocafião  de  huma 
eterna  e  firmiíTmia  paz  anire  eíles  dous  reynos  tão  vizi- 
nhos. AjuntauaíTe  a  ifto  fer  tal  a  fama  do  grande  entendi- 
mento ,  das  excellentes  e  heróicas  virtudes  ,  e  de  rodas  as 
mais  calidades  da  ifante  dona  Caterina  que  íó  por  iíTo  deuia 
eíle  reyno  de  deíejar  muyto  relia  por  fenhora  ,  afora  fer 
criada  nos  coftumes  e  nos  trajos  de  Caíleila  não  muyto 
diíFcrentes   dos  noííos ,  por  onde  eílaua  claro  que  fc  con-, 

for- 


dei  RevDom  João  o  III. 


49 


formaria  milhor  c6  nofco,  que  a  que  pudeíle  vir  de  outra 
qualquer  parte,  na  qual  por  ventura    íe  nao   acharião   to- 
das eíhs  calidades  tão  convenientes   a  nós  ,  que  neíla   íe- 
nhora   eílauao  juntas.    A  outra  parte  do  coníelho   ieguia 
hum  parecer  em  tudo  diíFerente   &  contrario  deíle  ,  por- 
que dizia  que  nem  era  bem  que  a  ifante  dona  Ifabcl  cafaÇ- 
fe  CO  Emperador  ,  nem  cl  Rey  com   a  ifante  dona  Cateri- 
na  ,  porque  do  cafam.ento  da  ifante  dona  líabel  fe  não  fe- 
guia   a  efte  reino  outra   coufa   fenao   tirarfe   delle  huma 
grande cantidadededinheiro 5  que  cuftuma  a  fero  neruo  e  a 
principal  força  das  republicas  ,  e  que  lianças  nouas  nunca 
íao  táo  poderoíns ,  que  por  ellas  os  Reis  deixem  perder  as 
couías  em  que  cuidão  que  tem  direito  ,  e  por  illo  mais  im- 
portante era  a  efte  reino  liaríe  co  feu  tiíouro  ,  que  com  no- 
me de  dote  entregallo  ha  parte  de  que  fe  podia  ter  íofpei- 
ta  e  receyo  para  a  fazer  mais  poderoía.  E  quanto  no  cafa- 
menro  dei  Rey  não  era  ainda  agora   tão  importante   e  ne- 
ceíTario,   vifta  afua  pouca  idade  ,  que  íenao   pudelTe  dila- 
tar mais  tempo  ,   porque  para  a  erança  do  reyno  os  irmãos 
lhe  íeruião  de  filhos ,  e  eftando  liure   para    fe  poder   liar 
com  quem  quilTeíle    poderia   fazer  milhor  feu  partido  co 
Emperador  ,  em  quanto  polia  guerra  que  tinha  com  Fran- 
ça  tinha   neceíFidade  d'amJgos ,  e  defpois   que  tiueíTe  to- 
mado concrufaó   em  algumas   duuidas  ,  que  então  auia  de 
hum  reyno  ao  outro  ,  poderia  cafar  com  amor  mais  fegu- 
ro  e  paz  menos  íoípeita  ,  e  que  em  fim   íe  para  auer  paz  e 
conformidade  verviadeyra  antre  eftes   dous  princepes   não 
baftaua  a  obrigação  de  tão  eftreito  e  tão  antigo  parentefco 
como  antre    ly  tinhão  ,  menos  baftaria  a  noua  liança  que 
agora   fizeíTem  antre  íy   pollos  caíamentos ,  que  era  de 
muyto  menos    força.  Neíias  contradiçot^s    e  variedade  de 
pareceres  fe  gaftarão  alguns  dias  fem   fe  tomar  inteyra  re- 
folução  nefte  negocio  ,  porem  El  Rey  pondo   os  olhos  no 
antigo  cuftume  que  efte  reyno  tinha  de  fc  liar  co  de  Cíiftel- 
Ja  ,  aprouado  pollos    Reis   léus  anteceíTores  ,  e  lembran- 
doíTe  da  iftancia  com  que  el  Rey  feu  pay  lh'encomcnd:ira 
que  eífeituafie  efte  cãfamento  da  ifante  dona  líabel  co  Em- 
-tarte  L  G  pe- 


50         Primeyra  Parte  da  Chronica 

perador  Carlos  (  aqual  vontade  de  ícu  pay  ,  e  remédio  de 
fua  innaá   tinha  antre    elle  muyto  maior  peio   e  valia  que 
todo   o  outro  intereíTe)  aceitou   deftes  dous   pareceres  o 
que  entendia   que  era  mais  acertado  ,  e  mais  conueniente 
há    íua  obrigação  ,  que  era   o  de  mandar  tratar   dos  cafa- 
mentos  a  troco  ,  e  para  eíle  negocio   de  tanta  fuilancia  ef- 
collieo  Luis  da  fiiueyra  leu  guarda  mor,  filho  de  Fernão  da 
filueyra  ,  que  em  tempo  d'el  R  ey  dom  João  o  íegundo  foy 
regedor  da  juíiiça   na  cafa  da  luplicaçao  ,  e  coudel   mór 
deíles  reynos ,  e  deulhe   por  ordem  que  primeyro  tentafle 
o  calamento    da  ifante   fua  irmaa  ,  e  deípois  o  feu  com  a 
ifante  dona  Catcrina  ,  e  que  fe  por  ventura  achaííe  o  Em- 
perador  penhorado  pollos  cancertos  que  íe  dizia  que  tinha 
feitos  com   el  Rey   de  Inglaterra  ,  inda   que  lhe  lançaíTe 
mao  pollo  cafamento  dei  Rey  com  a  ifante  dona  Caterina 
lua  imaã,  lhe  refpondeiTe  que  não  leuaua  comilTaó   para 
tratar   de  hum  fó  calamento,  porem  que  auiíaria    dillo  a 
el  Rey  ,  e  que  naquella  corte  efperaria  a  repoíla.  E  fendo 
caio  que  o  emperador  eíliueíTe  iiure  para  entender   em  ca- 
famento feu  ,  e  penhorado  para  o  de  fua  irmam  ,  a  qual  fe 
dezia  que  deixaua  prometida  em  Alemanha  ,  que  todauia 
moueíTe  o  do  Emperador  com  a  ifante  dona  líabel  íua  ir- 
mam. Luis  da  filueyra  aceitou  efta  empreía  contra  o  pare- 
cer de  íeu  pay  velho  fefudo  ,  e  bem  pratico  nas  cafas  dos 
princepes  ,  porque  do  que  tinha  viíto  nellas  em  muytos 
annos  entendia  a  quanto  fe  arrifcao  aquelles  ,  que  fem  te- 
rem   a  íua  valia  bem  arreigada   na  graça    dos  Reys  fapar- 
tãó    dos  feus  olhos  ,  porem  Luis    da  filueyra  entendendo 
que  aquelles  que  recebem    dos  Reis   maiores  fauores   e 
mercês   tem  m.iyor  obrigação  de  os  íeruirem  em  tudo   o 
que  lhes  for  mandado ,  inda  que  Íq  auinturem  a  perder  tu- 
do por  clles  ,  quis  antes  arrifcaríe  aperder  tudo    o  que  ti- • 
nha  ganhado    de  valia  com  el  Rey  ,  que  deixar  de  o  íeruir 
no  que  lhe  elle  mandaua  ,  principalmente  íendo  o  nego- 
cio de  cal  idade ,  que  moftraua  de  íy  não  ir  nelle  menos  que 
goílo  ,  e  honra  dei  Rey  ,  eporiCo   auia  que  não   era  pe- 
quena honra  íua  fiaríe  antes  dell.e  que  doutiem  3  e  aísy  fe 

íez 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  5'  i 

fez  preftes  para  eíla  jornada  com  tao  grandiofo  e  cuíloío 
aparato  de  ricos  adereços  para  íua  caía  ,  prata  para  íeu 
feruiço  ,  caiiallos  para  leuar  adeílro ,  atauios  para  fua 
peíToa  ,  e  toda  a  gente  de  Teu  feruiço  guarnecida  de  feda 
e  de  ouro  ,  que  quaíi  fez  eícurecer  a  memoria  de  todo?  os 
embaixadores  paíTados  ;  foy  acompanhado  neíla  jornada 
de  mais  de  cento  de  cauallo  ,  de  que  muytos  erao  fidalgos 
feus  parentes  e  amigos  ,  porem  todos  por  então  veilidos 
de  doo  ao  vfo  Caíleliiano  ,  em  lugar  das  becas  e  lobas 
compridas  que  então  í'e  cuílumauao  neíle  reyno ,  e  inda  en- 
tão íe  trazião  na  corte  polia  morte  dei  Rey  dom  Alanoel. 

CAPITULO     XVII. 

Chega  auifo  a  el  Rey  de  hmna  das  nãos  da  armada  de  Fer^ 

não  de  magalhães  que  arribara  ao  cabo  Ferdc  ,  e  como 

os  da  Ilha  fe  hão  com  ella  ,  e  o  que  [obre  iJJ^o  fe 

faz  em  Caflella  ,  e  Portugal. 

EStando  Luís  da  filueyra  defpachado,  e  ja  de  todo  pre- 
ftes  para  íe  partir  ,  chegou  recado  a  el  Rey  que  huma 
das  náos ,  que  Fernão  de  magalhães  leuara  a  Maluco  pollo 
eílreito  que  elle  deícubrira  ,  tornara  pollo  caminho  da 
noíTa  nauegação  ,  e  que  todas  as  outras  erao  perdidas  ,  e 
que  eíla  defpois  de  paíTar  muytos  trabalhos  e  perigos  ,  e 
cinco  meies  de  fome  eltreitifsima  íem  auer  nella  outro 
mantimento  fenão  arroz  ,  e  agoa  fomente  ,  de  que  lhe 
morrerão  vinte  e  huma  peíToas  ,  o?  que  ficarão  viuos  con- 
ílrangidos  da  eílrema  neceísidade  lhes  foy  forçado  arriba- 
rem ha  coíla  de  Guine  ha  Ilha  do  c^bo  Verde  ,  onde  dos 
Portugueíes  ,  que  nelia  eftauão  ,  forao  muyto  bem  agafa- 
Ihados  e  prouidos  com  todos  os  mantimentos  e  refreícos 
neceíTarios  ,  fem  faberem  da  viagem  que  trazião  ,  porque 
os  Caílelhanos  diziao  que  vinhao  das  antilhas.  Mas  como 
o  íegredo  que  eílá  efpalhado  por  muytos  não  pôde  fer  de 
muyta  dura  ,  vierao  os  Portugueíes  a  entender  a  verdade  e 
detiiminarão  lecreíamente  de  lançar  mão  polia  náo,  eafa» 

G  2,  ze- 


5^2         Prlmeyra  Parte  da  Chronica 

2crem  deter  até  darem  auifo  ao  reyno  ,  mas  nem  efta  íua 
detrimínaçâo  pode  fer  tão  fecreta ,  que  os  Caílelhanos  a 
náo  vicílem  a  auentar  ,  e  fem  fazerem  mais  detença  leua- 
râo  logo  as  amarras  e  fe  fízerão  há  vella  com  tanra  preíla  , 
que  não  tiuerão  tempo  de  recolher  o  feu  batel  ,  e  os  da 
Ilha  o  tomarão  com  treze  homens  que  eftauão  em  terra  , 
e  03  mandarão  logo  a  cl  Rey  com  as  nouas  do  que  paílaua. 
El  Rey  mandou  logo  coatro  carauellas  em  buíca  da  nao  , 
mas  por  niayor  preíTa  que  íe  derao ,  acharão  nouas  que  era 
já  aportada  em  Seuilha  ,  e  porque  a  el  Rey  pareceo  rezao 
não  íe  refoluer  num  negocio  tão  graue,  e  de  tanto  peio  co- 
mo efte  ,  cos  do  Teu  confelho  fomente  ,  masque  o  deuia 
comunicar  com  outras  peíloas  ,  de  que  entendia  que  o  po- 
dião  bem  aconíelhar  neile  ,  mandou  a  Luis  da  filueyra  que 
íe  partiíTé  da  maneyra  que  eftaua  defpachado  e  prefles  ,  e 
porque  polia  muyta  companhia  que  leuaua  lh'auia  de  fer 
forçado  fazer  a  jornada  vagarofa  ,  antes  que  fe  chega  fie 
ao-Émperador  teria  recado  polia  poíla  do  que  PaflentaíTe 
íobre  eíle  negocio  ,  e  do  que  auía  de  flizer  nelle  i  e  afsy 
íe  partio  logo  Luis  da  filueyra  com  todo  o  aparato  e  cufto 
que  tinha  feito.  Eftaua  então  o  Emperador  em  Vslhe  do- 
]id  ,  onde  no  mefmo  tempo  que  el  Rey  leue  recado  da  vin* 
da  dos  Caflelhanos  o  teue  elle  também  do  que  os  Portu- 
guefes  íizerão  ha  náo  na  ilha  do  cabo  Verde  ,  donde  a  ca- 
da hum  deíles  princepes  naceo  ocáfião  de  fe  queixar  do 
outro.  Qiieixauafle  o  Emperador  de  os  Portugueles  na 
iJha  tentarem  tomarlhe  a  íua  náo  ,  e  tomaremlhe  o  batel  , 
e  prenderemlhe  os  treze  homens  ,  e  fobre  tudo  de  el  Rey 
os  ter  cá  preíos  ,  e  mandar  carauellas  armadas  em  buíca 
da  fua  náo  ,  pollo  quil  eícreueo  a  Chriílouão  barrofo  íeu 
fecreíario ,  que  então  refiuia  na  corte  de  Portugal  fazendo 
os  íeus  negócios  ,  que  falalle  logo  a  cl  Rey  ,  e  lhe  deíTe 
huma  carta  que  fobr^iíTo  lh'ercrcuia  ,  em  que  íe  queisaua 
muyto  de  todas  eíl"as  couías ,  e  principalmente  de  clle  man- 
dar no  alcanço  da  íua  náo,  que  vinha  carregada  d'efpe- 
ciaria  das  terras  ,  que  dizia  que  cahiao  na  íua  demarcação  , 
íem   tocar  porto  noíTo  da  índia  ,   e  que  iílo  era  quebrar  as 

ca- 


delRey  Dom  João  o  III.  53 

capitulações  antigas  e  nouas  das  pazes,  que  cílauao  af- 
icntadas'  e  juradas  de  hum  reyno  ao  outro  ,  íendo  todas 
as  náos  dos  Portuguefes  por  leu  mandado  muyco  bem  re- 
colhiias  em  todos  os  portos  dos  feus  lenliorios  ,  .por  on- 
de lhe  pidia  que  lhe  mandafle  íoltar  os  preíos  ,  e  refti- 
tuirlhes  tudo  o  que  Uies  fora  tomado  ,  e  caíligar  na  ilha 
os  que  toráo  autores  e  culpados  na  quelle  infulto.  El  Rey 
por  Tua  parte  detriminou  também  no  íeu  coníelho  de 
mandar  pidir  ao  Emp  erador  toda  a  eípcciarin  ,  que  a  náo 
trouxera  das  ilhas  de  Maluco  ,  onde  forçofam.ente  tomara 
a  carga  delia  contra  vontade  dos  Portuguefes ,  que  eílauao 
relias  fazendo  pacíncamente  fuás  fazendas  ,  e  por  iflb  ef- 
tauáodeíapercebidos  e  defcuidados  por  lhes  pajecer  que 
ha  íua  conquiíla  nao  podia  ir  gente,  a  que  ella  não  perten- 
cia ,  e  por  eíla  rezao  lhe  mandaíle  entregar  efta  efpeciaria  a 
que  fora  trazida  das  terras  de  que  elie  tinha  pacijica  poíTe , 
poreílarem  dentro  na  íua  demarcação  ,  e  que  nao  quifelTc 
começar  a  dar  motiuo  de  fe  quebrarem  as  pazes  ,  que  auia 
tão  pouco  tempo  que  por  ambos  forao  retifícadas.  E 
quanto  aos  preíos  elle  os  mandaria  pôr  em  juíliça  para  fe 
fdzer  deiles  o  que  ella  detriminsíTe, 

CAPITULO    XXVIII. 

El  Rey  7nuda  afuflancia  da  embaixada  de  Luís  dafihiey- 
ra  \  o  que  paf]a  com  elle  de  [pois  de  ejlar  em  Ca  fie  lia  acer- 
ca da  companhia  que  leu  ar  a ,  o  que  elle  concrue  co  Empera- 
dor  nos  negócios  que  leua  acargo  ,  torna  pêra  Portugal , 
e  o  que  cdpajja  com  el  Rey^ 

rri  Ornada  no  confelho  eíla  refuluçao  pareceo  bem  ,  que 
JL  por  então  íe  nao  falaíTe  nos  caíamentos  ,  e  que  Luis 
da  filueyra  deíTa  eíle  recado  ao  Emperador  ,  c  a  carta  dei 
Rcv  que  fobre  iíTo  lhe  leuaua  ,  aísi  como  o  Emperador  o 
mandara  ca  fazer  polo  fecretario  Barrofo  ,  ao  qual  fe  deu 
também  efta  mefma  repofta.  E  vendo  el  Rey  mudada  ã 
íuílancia  deíla  embaixada  em  tão  differente  negocio  do  pa- 

r;i 


54         Primeyra  Parte  da  Chronica 

ra  quef'ella  ordenara  ,  porque  efte  parecia  que  prometia 
mais  de  íy  trabalhos  e  definquietaçoens ,  que  lianças  nem 
feitas  de  caíamentos ,  'mandou  recado  a  Luís  da  filueyra 
na  entrada  do  mes  de  Nouembro  deíle  anno  de  1^12  ,  qÍ" 
tandb  ja  na  corte  de.Caítelia  ,  que  auia  por  íeu  feruiço  por 
muytos  refpeitos  ,  que  a  iíTo  o  moiiiao ,  que  elle  deípedifle 
tanta  gente  da  companhia  que  leuára  ,  que  ihe  não  íicaf- 
lem  mais  que  trinta  caualgaduras  íomente  ,  que  por  então 
parecia  que  lhe  baílsuao  ,  e  que  no  conto  dos  que  deípi- 
diíTe- entra  (Tem  todos  os  fidalgos  que  leuára  com  figo  ,  e 
dos  outros  homens  ,  os  que  foliem  de  mais  refpeito  ;  po- 
rem elle  parecendolhe  que  cumpria  mais  ao  feruiço  d'el 
Rey  continuar  na  corte  do  modo  com  que  tinha  entrado 
nella  ,  e  também  quica  fofpeitando  que  era  aquillo  inuen- 
ção  dos  feus  emulos ,  quelicauão  na  corte  ,  para  o  fazerem 
abater  e  deícompor  do  faufto  e  aparato  com  que  aly  che- 
gara ,  efcreueo  a  el  Rey  fobre  iílo  tão  boas  rezoens  ,  que 
na  entrada  do  Dezembro  feguinte  lhe  tornou  amandar  re- 
cado ,  que  auia  por  íeu  feruiço  que  tiueíTe  toda  a  fua  com- 
panhia fem  difpidir  ninguém  delia  até  ver  recado  feu  ,  e 
meado  Janeyro  do  anno  íeguinte  de  1593  ihe  mandou 
dizer,  que  atéo  mandar  vir  eíliueííe  com  toda  a  companhia 
que  tinha  ,  mas  que  delia  podia  deípidir  as  pefloas  que 
lhe  bem  pareceííe  ,  e  que  vifle  que  tinhao  diflo  mais  neceí- 
isidadc.  Luis  da  filueyra  foy  na  Corte  de  Caftella  milhor 
recebido  do  que  quica  fe  imaginaua  ,  onde  íempre  follici- 
tou  as  coufas  do  feruiço  dei  Rey  com  todo  o  cuidado  e 
-  diligencia  ,  que  conuinha  para  o  bom  dcfpacho  delias  , 
dando  porem  íempre  a  entender  que  erao  aceílorias  e  co- 
metidas de  nouo  ,  e  que  o  principal  negocio  a  que  viera 
fora  a  vifitar  o  Emperador  da  fua  vinda  a  Eípanha  ,  e  ju- 
rar em  nome  dei  Rey  as  pazes  ,  como  Carlos  popeto  o  fi- 
zera em  Portugal  em  nome  do  Emperador,  e  toda  cila 
fua  dii^simulação  foy  por  ordem  que  lh'el  Rey  de  ca  man- 
daua.  O  Emperador  por  confelho  dalguns  refpondeo  hás 
oueixas,  que  lhe  propôs  Luis  da  filueyra  ,  como  quem  ti- 
nha mayor  conceito  das  coufas  de  Maluco,  do  que  ellas 

erão 


■  dei  Rey  Dom  João  o  III.  ^^ 

erão  na  verdade  ,  e  do  que    as  noíTas  armadas  tinliao  bem 
viilo   e  experimentado  ,  e  por  ilTo    inda  que  nao  fahauao 
rezoens   a  Luís  da  filueyra   para  lhe  dar  a  entender  a  ver- 
dade diTto  ,  e  defenganailo  do  intereíTe  que  os  léus  lhe  pro- 
■metiao  ,  todauia  níío  lhe  fundio  mais  todo  o  fcu  cuidado  e 
diligencia  no  negocio    de  Maluco  em  oito  meies  que  reli- 
clio   na  Corte  de  Caílella  ,  que  concederlhe  o  Emperador 
que  íe  puíeíTe    em  julliça  ,  e  o  viííem  letrados  ,  e  fidalgos 
d'ambos    os  reynos  ,   e  que  fe  foltaíTem  os  prefos  que  vie- 
•rão  do  cabo  Verde,  e  dado   aelRcy  o  auifo  diíto   o  não 
quis  por  então  aceitar,  e  mandou  a  Luis  da  filueyra  que  fe 
vieíTe  ,  o  qual   fe  veyo   logo,  e  achou  el  Rey    em  Almei- 
rim ,  de  que  fendo   recebido    em  publico  foy  notado   de 
lhe  não  beijar  a  mão  ,  que  fora  erro    de  íy  aíTaz  delculpa- 
uel ,  pois  parece  que  não  podia  proceder  feiíao   de  defcui- 
do  ,  ou   de  aluoroço  ,  fe  por   ventura   o  não   fizera    mais 
graue  a  emulação  dalguns  ,  que  tinhão  ocupado  o  lugar  de 
Luis   da  filueyra  o  tempo  que  efteue   em  Cafl:ella.   Alguns 
atribuirão  iílo  há  familiaridade,  que  tiuera  íempre  com  el 
Rey  deíde  o  tempo    que  o  começara   a  feruir  ,  outros   ha 
confiança    do  fauor  que   o  Emperador  lhe  moílrara  ,  mas 
quem    confiderar    iílo    deíapafsionadamente    verá ,  quão 
alheyo  e  repunhante  he   de  qualquer  bom  entendimento 
poder  auer  coufa  que  lhe  faça  leuantar  tanto  o  animo  ,  que 
chegue   a  não  guardar   a  íeu  Rey  o  decoro  que  lhe  deu  em 
todo  o  tempo  ,  e  muyto  mais  cm  pubrico,  onde  lhe  hemais 
deuido  :  elle  com  tudo  fe  defculpou  deílc  grande  deícuido  , 
afirmando  que  lho  cauíara  a  toruação  daquelle  dia ,  porem 
el  Rey  ,  ou  fofi"e    por  entender   iíto  doutra   maneyra  ,  ou 
por  lho  darem   aísy  a  entender,  o  difsimulou    por  então 
com  lodos ,  e  muyto  mais  [co  mefmo  Luis  da  filueyra  ,  e  le 
deyxou  tratar  e  leruir  delle  alguns  dias   da  maneyra    que 
dantes,  até  que  nas  repoftas   que  lhe  deu  d'alguns  reque- 
rimentos que  com  elle  trazia  ,  lhe  deu  a  entender  quão  dif- 
ferente  goilo  tinha  já  então  do  feu  íeruiço   do  que  fempre 
tiuera  ,  porque   não   íómente   fe  efcuíou  de   lhe  fazer  as 
mercês  tjue  ihepidia,  por  ferem  fundadas   era  prome,n4^ 


5^ 


Primevra  Parte  da  Ciironica 


c  aluarás  fecretos  ,  que  ouuera  delle  íendo  de  pouca  idade  ,' 
mas  ainda  Jhe  teue  a  ma!  querer  aquillo  delle  no  tempo, 
que  polia  confiança  que  delle  tinha  ,  e  do  íeu  íeruiço  ,  ti- 
nha obrigação  de  llraconfelhar  e  aduertillo  que  o  não  fi- 
zelíe ,  e  da  hy  por  diante  o  defuiou  daquelle  continuo  e 
domeltico  íeruiço ,  e  da  comunicação  e  familiaridade  que 
antes  tiuera  com  elle.  Luis  da  filueyra  fofreo  cila  grande 
queda  (  que  he  a  mayor  que  o  mundo  pode  dar  de  Í7  ) 
com  aquella  prudência  e  grandeza  de  animo  ,  quefempre 
moítrou  em  tudo  ,  e  com  mayor  conílancia  no  disíauor 
prelente  ,  do  que  quiçá  teue  temparança  nos  fauores  pal- 
iados ,  e  por  illo  não  foy  muyto  que  os  perdeíTe  ,  e  ven- 
do (Te  fora  da  graça  dei  Rey  ,  e  muyto  adiante  nella  ode 
quem  fempre  íe  arreceara  ,  e  com  quem  íobr'ino  fempre 
competira  ,  nem  por  ilTo  deixou  o  paço  ,  antes  daly  por- 
diante  íeruio  o  íeu  officio  de  guarda  mor  mais  continuo 
que  antes  ,  e  nelle  íe  vio  quanto  milhor  fe  conferua  o  fo- 
frimento  na  fortuna  aduerfa  ,  que  o  comedimento  na  proí- 
pera. 

CAPITULO    XIX.  » 

Falhffe  em  cafar  cl  Rey  com  a  Rainha  dona  Leanorjua 
macWajla  ,  as  razões  que  para  tffo  lhe  dão  ,  faz-lhe  Jobre 
ijjo  hum  requerimento  a  cidade  de  Lisboa ,  e  o^que  dahy 
fucede, 

EM  meyo  deíles  negócios  de  tanto  pefo  e  íuílancia  de 
que  íe  agora  trataua  na  Corte,  não  efqucceo  outro  , 
que  ao  parecer  de  homens  de  muyta  autoridade  e  enten- 
dimento não  era  de  menos  importância  ,  o  qual  era  do 
cafamento  dei  Rey  ;  eíle  auião  que  fe  deuia  tratar  do  mo- 
do ,  que  folTe  mais  importante  e  proueitoío  para  eíle  rey- 
no  ,  c  para  iílo  foy  parecer  d'alguns  ,  de  que  o  principal 
foy  o  duque  de  Bragança  dom  James  ,  que  em  ninhuma 
parte  podia  então  el  Rey  caiar,  que  mais  importante  e  pro- 
ueitoío lhe  foíTe,  que  com  a  Rainha  dona  Leanor  fua  ma» 
drafta  ,  porque  com  iíío  liuraua  eíle  rey  no  do  grandiíTí^ 

mo 


dei  Pvcy  Dom  Jcao  o  líí.  57 

mo  aperto  em  que  o  pufera  eíle  terceyro  cafamento  dei 
Rey  Ic^u  pay  ,  que  por  outra  ninhuma  maneyra  podia  tsr 
remédio  ;  pol!o  qual  fe  foy  a  el  Rey  ,  e  lhe  pôs  diante 
quanto  ccnuinha  ao  bem  deite  reyno  cafar  elle  com  a  Rai- 
nha fua  madraíla  ,  para  que  com  ella  íicaíie  no  reyno  o 
muyto  que  neceííariam.enre  auia  de  leuar  comíigo  íe  fe 
foíledeUe,  o  que  na6  poderia  íer  íem  íeu  graue  e  notável 
dano  ,  e  para  euitar  também  o  grande  perjuizo  que  íe  lhe 
íeguiria,de  íe  paliar  a  rey  nos  eílranhos  a  tutoria  da  ifanre 
dona  Maria  fua  filha,  de  que  fua  alteza  mal  íe  poderia  e(- 
cular  ,  íe  o  Eraperador  infiíliiíe  niíTo  ,  fenaô  caíaado  com 
íua  mãy  delia  ,  e  que  por  todas  as  outras  partes  lhe  vinha 
efte  cafamento  muyto  a  propofito  ,  porque  para  aliança 
com  Caílella,que  ía'uia  por  muito  importante,  eíla  era  tao 
obrigatória  e  taó  íirme  como  todas  ,  por  íer  a  Rainha  do- 
na  Leanor  irmaã  também  do  Emperador  feu  vizinho  ;  e 
quanto  ao  dote  em  ninhuma  outra  parte  o  auia  d'achar  ta- 
manho como  efte  ,  e  no  que  tocava  ha  confirmidade  da 
peíloa  a  Rainha  era  moça  de  excellente  condição  ,  conhe- 
cida já  no  reyno  ,  amada  do  pouo  ,  e  na  vontade  de  todos 
fempre  defejada  para  elle  ,  c  que  o  inconueniente  que  auia 
dos  parenteícos  ,  teria  fácil  remédio,  porque  íendo  os 
fundamentos  daquelle  cafamento  tao  rezoados  ,  e  tao 
obrigatórios  ,  o  Papa  Adriano  ,  que  inda  então  gouernaua 
a  igreja,  lhe  não  poderia  negar  a  diípenfaçao  ;  poUo  qual, 
já  que  por  el  Rey  dom  Manoel  íeu  pay  caiar  co  a  Rainha 
dona  Leanor  por  conlelho  de  poucos  erdara  elle  tantas 
neceíTidades,  quantas  agora  via  no  feu  reyno  ,  a  elle  tam- 
bém conuinha  remedeallas  caiando  com  a  mefma  Rainha 
pollo  parecer  e  coníelho  de  muytos.  Eíte  negocio  fe  tra- 
tou largamente  em  muytos  coníelhos  que  fe  íizerão  fobrc 
elle  ,  nos  quais  ouue  muytas  alterações  e  dlííerenças  de 
pareceres.  E  não  parou  aquy  fomente,  mas  chegou  a  fe 
tratar  delle  tão  geralmente  em  todo  o  pouo,  que  os  cida- 
dãos de  Lisboa  ,  como  cabeça  de  todo  o  reyno  ,  aprouan- 
do  eíle  parecer  do  duque  de  Bragança  em  nome  de  todas 
as  outras  cidades  ,  villas  e  lugares ,  mandarão  pidir  a  el 
Faríe  L  R  Rey 


5 8  Primeyra  Parte  da  Chroiiica 

Rey  por  mercê  ,  e  reqiierer-!he  com  muyra  iíTU-anciâ",  que 
quiíeííe  aceitar  efte  conlciho  do  duque  ,  e  pollo  por  obra, 
pois  efte  era  o  que  eniao  mais  lhe  cumpria,  o  qual  reque- 
rimento lhe  foy  feito  na  forma  que  fe  legue. 

Muyto  poderojú  Senhm% 

OS  voíTos  fieis  e  obedientes  pòuòã  deíla  muyfo  nobre 
e  íempre  leal  cidade  de  Lisboa  ,  e  afsy  em  nome  de 
todalhs  cidades  ,  villas  e  confelhos  deftes  reynos  de 
Portugal, fomos  certificados  que  porV.  A.  Guer<ír  con>pra- 
2er  ao  Emperador  he  voíTo  coníelho  ciiu-i  ardes  lhe  com 
muita  breuidâde  á  Rainha  fua  irmaa  noíla  Senhora  ^e  que 
]eue  comfigo  a  ifante  fua  filha  com  todas  íuar  arras  e  dote , 
e  refidimenro  delias  ,  além  dos  contos  que  com  titulo  de 
Rainha  há  de  auer  em  cada  hum  anno  em  fua  vida  ,  e  por 
quanto  efte  paíío  he  de  terrivei  importância  e  de  peTÍgoíja 
cfperança  futura  ,  e  a  dor  do  arrependimento  do  erro  fem 
piedade  ,  pedimos  a  V.  A.  que  leixe  mais  dias  pacer  as 
beftas  das  íuas  carregas  ,  e  vos  ponhais  de  nouo  a  cuidar, 
confiderando  que  para  conferuaçao  da  republica  deftes 
íeynos  de  Portugal  foftes  nacido  ,  e  que  mandando  a  Rai- 
nha ,  mandais  a  mòr  lenhora  da  Chriftandade  fora  de  vof- 
fo  poder  ,  a  qual  fenhora  he  louuor  e  honra  de  voíTas  pro- 
uincias  ,  fauor  e  abrigo  de  voíTos  pouos  ,  paz  de  voflo  efta- 
do  ,  muyto  fermoía  ,  muyto  moça  ,  bem  inclinada  ,  e  por 
final  tanto  amada  de  todosjque  não  he  nada  os  preços  que 
a  leuao  ,  mas  os  delejos  que  leixa  ;  e  ja  quando  a  noíla 
defauentura  foíle  tal  ,  que  foltaíTeis  efte  bem  que  deípois 
não  podereis  tomar  ,  fegueíle  o  fegundo  defaftre  ,  que  he 
paíTar  V.  A.  a  reynos  alheos  vofla  tutoria  da  fenhora  ifan- 
te minina  ,  c  com  ella  fiizer  os  eftrangeiros  os  teíouros 
que  tantas  vidas  cuftarão  de  voíTos  naturaes ,  o  qual  he  de 
tão  trille  cafo  ,  que  parece  defobedccermos  ha  rezao  em 
vos  não  preguntarmos  com  viuo  rigor  ,  onde  mandais  a 
noíía  ifante  nacida  como  em  voíTos  braços  para  vos  ,  fi- 
lha legitima  de  noílo  natural  Rey  ^  fobceííora  e  herdeyra 

ena 


deIRcy  Dom  João  o  III.  59 

em  feu  grão  ,  noíTa  paz  prcfeíiíe  ,  liança  futura  ,  riqueza 
cerra  ;  e  pois  que  afsy  he ,  muyto  alto  e  porentiíllmo  Rey, 
que  a  tutoria  delia   e  de  feus  irmãos  lie  voíTa  ,  e  ella  Ic- 
niiora  natural  ao  reyno  ,   deíde-  quando  a  cá  Portugal  a 
ninhum  reyno  couía  injufta  concede  ,  e  fe  por  ventura  tal 
ciaufuia  para  íair  fora  do  reyno  el  Rey,  que  Deos  tem,lei- 
xou  dito  ,  a  morte  o  fallou  ,  que  não  he  de  crer  que  do- 
taíle  os  bens  da  orpha  para  por  ventura  le  gaftar  na  guer- 
ra alhea  ,  porque  bem  (e  pode  íoípeitar ,  que  não  com 
zeilo  de  feu  emparo  a  querem  lá  ,.mas  poderá  íer  que  fera 
deípojada  em  íua  mininice,   e  repartirão  fua  herança  pol- 
los  frccheyros  de   Inglaterra  ;  e  pois  efciarecido  e  muy 
prudentiílímo  Senhor  ,  como  famoío  cavaleiro  da  auentu- 
ra  ,   livray  a  donzella  e  volTo  pouo  do  graue  infortúnio 
vindouro  ,  e  day  fono  íeguroa  voíTa  cafa  não  íenhor  per 
guerra  ,   mas  por  rezao  ,  não  per  difcordia  ,  mas  por  pru- 
dente íabedoria.   Frimeiramcnce  V.  A.   ha  de.coníiderar,'^ 
que  todas  eftas  aduerfidades  com  que  a  fortuna  nos  amea-' 
ca  cauíou  voílo  pay  por  cafar  por  coníeiho  de  poucos  ,  oj 
qual   deueis  de  curar  com  íeu  contrario  ,  ÍT.  caiando  por- 
confelho  de  muytos  i  elle  cafou  com  a  molher  alhea  ,  e- 
V.  Alteza  deue  cafar  com  aquellci,que  fempre  pof  juila  rc-^ 
zão  e  no  coração  de  todos  volTos   íubdiros  fempre  foy^ 
volT.i  ,  não  fenhor  com  tenção  de  íerdes  reítituido  a  el!a  , 
mas  para  voífos  rey  nos  rellituirdes  por  vos, para  redenção 
dos  pobres  mecânicos,  e  lauradores,   íobre  os -quais  ha 
de  carregar  as  neçeífidades  em  que  ficareis  leixandoas  ir  ,- 
e  das  tais  neceííidades  nacem  oprcísócs,  e  das  oprcfsoes' 
gemidos  dos  ppuos  ,  a  que  a  judiça  diuina  dá  Ouuidos  , 
aos  quais  não-  pode  negar  vingança, e  alcança  ao  culto  real, 
e  a  grandes  ,  e  a  pequenos  ,  como  pouco  há  vimos.   Afsy 
que  para  V.  A.  guarecer  ,  e  ferem  auitados  os  ditos  da- 
nos, caufados  poUo  erro  que  dito  he,  requeremos  a  V.  A. 
da   parte  da  mifericordia  de   Deos  ,  e   pedimos  por  íeu 
amor,  que  V.  A.  café  com  a  Rainha  noíTa  fenhora  e  logo, 
que  quem   não  correge  o  erro  podendo  ,  outra  vez  o  faz. 
E  fe   o  ianto  Padre  for   bem  enformado   não  fomente   o 

H  2  per 


6o         Primeyra  Parte  da  Chionlca 

permitirá  ,  mas  fobpena  de  obediência  omandará,  que 
nao  he  rezao  perderem  o  dó  ha  perdiçlo  de  hum  rcyno, 
que  tanta  verdade  e  virtude  íempre  a  todo  o  mundo  víou. 
O  qual  requerimento  fazemos  a  V.  A.  com  toda  obediên- 
cia ,  do  qual  nos  fica  o  trcllado  para  fazendo  V.  A.  o  con- 
trario o  darmos  por  noíTa.deícalpa.  Efte  nouo  requeri- 
mento poz  e!  Rey  em  tamanha  conruíao  e  perplexidade  , 
que  le  não  fabia  reíoluer  no  que  fizeíle  ,  porque  por  huma 
parte  as  rezoens  que  para-iÍLoàlie^dauao  ,  que  lhe  parecião 
boas  e  vrgentes  ,  o  conuidauao  a  confentir  no  que  ll)e  pe- 
dião  ,  e  por  outra  a  cepunhançla  da  fua  condição  por  ni- 
nhum  cafo  iiie  confetttia:fazei:l.o  ,  ;poUo"èrandiísimo  pejo 
que  lhe  punha  a  fua  natural  honefi:idade,vendo  que  lhe  auia 
de  fcr  forçido  ter  por  molher  a  quem  ja  muytas  vezes  cha- 
mara mly  e  fenhora  ,  c  fendo  eíla  aparte  a  que  eílaua 
maisr  inclinado^  defeiaua  em  cftremio  poderfc  efcufir  dos 
que  illo  Ihe;>pidiáo  com  rezoens  de  que  elles  íicaflem  fatis- 
feitos.  E  para  iífo  determinou  de  tomar  o  miihor  e  mais 
certo  remédio  ,  que  foy  remeter  o  negocio  ha  vontade 
<iiuina  por  meyo  de  muytas  miíTas  ,  que  para  eíle  eítcita 
mandou  dizer  por  peíloas  deuotas  e  religioias.  E  como 
Deos  nunca  falta  a  quem  fe  encomenda  a  elle  como  deue  , 
3h'ab!-io  para  iílo  hum  caminho,  qual  o  elle  pudera  defejar, 
porque  ordenou  que  lhe  raandalib  pidir  o  Emperador,  que 
ouueííe  por  bem  que  a  Rainha  fua  irmam  fe  tornaíle  para 
Caftella  c  leuafie  comíigo  a  ifante  dona  Maria  fua  filha.  El 
Rey  lhe  concedeo  facilmente  a  ida  da  Rainha  ,  aífaz  con- 
tente de  fe  ]h'ofFerecer  huma  tão  boa  ocafião  para  lhe  não 
falarem  eni  ca.rur  com  ella  ,  auendo  que  era  illo  huma  par- 
tjcular  mercê  que  Deos  então  lhe  fizera  ,  e  atida  da  ifante 
poíla  no  confelho  ,  aos  mais  delles  pareceo,  que  não  era 
contra  ó fcu  feruiçoidcixala  ir  com  a  Rainha  foa  may  ,  pe- 
iem el.B.ey,aprouou  .mais  o  voto  do  conde  do  Vimiofo 
dom  Francifco  Portugal  ,  e  dos  outros  que  o  leguiao,  in- 
d.*  que  era  a  menor  parte.  O  qual  foy  que  elle  íe  mandaííe 
efcufar  CO  Emperador  da  ida  da  ifante  ,  moftrando  ja  en- 
tão  el  Rey  niíto  que  linha  naquclia  pouca  idade  o  que  he. 

hu- 


.     delRey  Dom   ]oa.o  o  III.  6i 

liuma  miiyto  grande  parte  do  bora  gouerno  ,  e  que  os 
Reys  cuftumão  d^alcançar  defpois  de  niuytos  annos  de 
idade e experiência,  que  he  ferem  tão  liures  que  fe  não  dei- 
xem leuar  do  parecer  dos  ^rais  ,  quando  entenderem  que  o 
dos  menos  he  milhor  e  mais  acertado.  EIRey  fe  mandou 
efcufar  ao  Emperador  da  ida  da  ifante  por  dom  Pedro 
mazcarenhas  ,  dandolhe  por  rezao  que  os  pouos  de  Por- 
tugal (  como  era  verdade  )  eílauao  detriminados  em  não 
coníentirem  que  Te  leuaíie  fóra  deíle  reyno  ,  nem  fe  criaíle 
fora  dclle  luima  princefa  de  mama  filha  do  feu  Rey  natu- 
ral ,  pois  não  era  inda  de  idade  para  reynar  em  outras  par- 
tes ,  e  que  elle  também  não  era  rezão  que  o  confentiíTe  , 
pois  el  Rey  feu  pay  lha  deixara  muyto  encomendada  ,  e  o 
deixara  por  íeu  tutor  ,  o  que  elle  efpcraua  de  cumprir  co- 
mo o  obrigaua  não  fomente  o  geral  amor  e  boa  vontade 
que  íempre  tiuera  a  todas  as  coufas  a  que  el  Rey  feu  pay 
moílrara  affeiçao  ,  mas  lambem  o  particular  amor  que  ti- 
nha ha  ifante  fua  irmam  e  a  todas  as  fuás  coufas ,  e  que  fe- 
ria de  maneyra  que  a  elle  lhe  não  pefaíle  de  ella  ficar  em 
feu  poder  ,  e  apoz  eftas  lh'efcreueo  outras  muytas  rezoens, 
com  que  ficou  afias  deículpado  do  que  Ihç  negaua. 

CAPITULO     XX. 

O  que  faz  a  Rainha  dona  heanor  ãefpots  da  morte  dei  Rey 
dom  Manoel ,  el  Rey  fejae  de  Lisboa  por  raufa  da  pejle , 
o  que  o  fecretario  Barrofo  pajja  com  a  Rainha  ^  e  o  que  a 
ehefucede» 

LOgo  defpois  do  fallecimento  dei  Rey  dom  Manoel, 
a  primeyra  detriminaçao.  que  tomou  a  Rainha  dona 
Leanor  fua  molhcr,  para  poder  milhor  fofrer  o  graue  peio 
daquelle  trabalho  e  daquelle  nojo,  foy  recolherfe  no 
moíleiro  de  Odiucllas ,  e  para  ifio  mandou  por  Fernão  car- 
ualho  íeu  eícriuão  da  cozinha  ver  o  modo  que  poderia  ter 
no  feu  apofento  ,  e  ainda  que  ella  fez  ifio  co  mor  fegrcdo 
que  pode  ,  por  não  chegar  has  orelhas  dei  Rey  ,  todauia  o 


6i         Primeyra  Parte  da  Chronlca. 

veyo  elle  a  faber ,  e  lhe  pidio  que  por  então  quifcíTe  tomar 
outro  coníeiho  ,  porque  o  que  lhe  m?.is  conuinha  era  efpe- 
rar  o  que  detriminaíle  dellaoEmperador  íeu  irmão,  e  feguir 
a  ordem  que  Ih'clle  déíle  ,  e  que  por  entre  tanto  ordcnalTe 
ella  para  íy  o  modo  ,  e  eícolheíTe  o  lugar  onde  lhe  pare- 
ceíTe  ,  que  poderia  eftar  mais  a  íeu  goíco  e  mais  quieta  e 
confollada  ;  ella  agardeceo  muyto  a  el  Key  eíla  lembran- 
ça ,  e  parecendolhe  bem  cfte  feu  confelho  le  paíTou  logo  a 
JEnxobregas  para  as  caías  de  Triftao  da  cunha  ,  e  com  el- 
la a  ifante  dona  líabel  como  atrás  fica  dito  ,  onde  fe  ocu- 
paua  em  frequentar  os  officios  diuinos  ,  e  mandar  (ocor- 
rer a  muytas  necefsidades  ,  que  então  os  pobres  padeciâõ 
polia  grande  fome  ,  que  caulara  a  eílerilidade  do  anno  de 
1^21  ;  e  alem  do  que  tocaua  a  íeus  criados  ,  mandaua  tam- 
bém repartir  muytas  eímoilas  polias  freguefias  aos  mais 
necefsitados.  Defpois  d'eílar  aquy  alguns  dias  fe  paíTou 
ha  cidade  para  as  cafas  do  duque  de  Bragança,  fazendo 
eftas  mudanças  de  apoíentos  ,  confonnc  has  que  rambeoi 
elRey  fazia  de  fy  como  atrás  íe  ja  diífe.  Aquy  lhe  vierao 
os  meíleres  da  cidade  de  Lisboa  propor  o  cafainento  com 
el  Rey  dom  João  feu  enteado  ,  o  que  ella  ouuio  com  huma 
honefta  grauidade  ,  e  não  lhe  deu  mais  rcpoíla  que  agarde- 
ccrlhe  breuemente  a  boa  vontade  que  lhe  moílrauão  ,  da 
maneyra  que  naquelle  cafo  conuinha  :  fucedendo  então 
auer  na  cidade  alguns  rebates  de  pefte,  que  obrigarão  a  el 
Bey  paííarfe  para  o  Barreyro  ,  a  Rainha  com  a  ifante  fe 
forão  com  elle,  e  s'apofentarão  no  lauradio:  e  como  el 
Rey  defpois  da  morte  dei  Rcy  feu  pay  fempre  tratou  e  vi- 
íitou  a  Rainha  dona  Leanor  com  a  deuida  obediência  e 
acatamento  como  fua  mãy  verdadcyra  ,  afsy  polias  rezoes 
que  a  iíTo  o  obrigauão  ,  como  por  lhe  dar  a  entender  a  lem- 
brança e  o  goílo  que  tinha  de  todas  as  íuas  coufas  ,  como 
dei  Rey  leu  pay  lhe  ficara  encomendado,  agora  que  o 
aperto  e  a  necefsidade  do  tempo  o  obrigaua  a  ter  milhor 
cuidado  delia  ,  a  vifitaua  muytas  vezes  com  aquella  fince- 
ridade  de  coração  ,  e  pureza  de  vontade  ,  com  que  fempre 
o  fizera,  mas  como  a  virtude  quanto  hemais  fina  tanto 

eitá 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  03 

elli  menos  fegura  dds  tençoens  danadas  ,  porque  eTias  até 
da  inefma  triaga  fazem  peçonha  ,  não  faltou  quem  puíeíie 
mal  os  olhos  neíta  frequência  de  vifitaçoens  que  el  Rey 
fazia  ha  Rainha  ,  e  as  atribuiíTe  a  danados  refpeitos.  O  íe- 
crerario  ^hriílouão  barroío  (' de  que  atrás  diíle  que  era 
agente  do  Emperador  nefta  Corte  de  Portugal  j  homem 
de  fua  natureza  inquieto  c  mal  confidersdo  ,  e  defejoío 
d\Krecentar  em  feu  nome  por  qualquer  via  que  fofie  ,  eíla- 
ua  neíle  tempo  queixoío  de  Chriílouao  de  mello  porteyro 
mór  dei  Rey  ,  porque  eíhndo  elle  cuberto  na  caía  ond'el 
Rey  eítaua  ,  o  fez  que  fe  defcobrilTe  ,  e  com  quanto  elle 
eftaua  algum  tanto  afaílado  da  vifta  dei  Rey  ,  e  em  parte 
onde  parecia  que  não  podia  íer  vifto  delle ,  e  íe  mudou  da- 
quelle  lugar  para  outro  mais  efcuíb  ,  defculpandoíTe  com 
íer  mal  defpofto  da  cabeça  ,  todauia  o  feu  demafiado  brio, 
e  a  íua  natural  vaidade  fazião  foípeita  eíla  fua  defculpa  , 
elle  com  tudo  parece  que  fentido  e  delejofo  de  fe  latisfa- 
zer  delia  delgraça  negoceou  por  todos  os  meyos  e  inteli- 
gências que  pode,  com  que  o  Emperador  lhe  mandaíle  no- 
me de  íeu  embaixador  nefta  corte  ,  dando  por  rezão  que 
era  para  tratar  os  feus  negócios  com  mais  autoridade  ,  e 
alcançou  o  que  pretendia.  Feyto  embaixador ,  crecendo- 
Ihe  quiçá  a  oufinia  com  a  dinidade,  tomou  atreuimento  não 
fomente  de  eíiranhar  muyto  ao  pouo  o  aluoroço  que  mo- 
ítraua  para  o  calamento  dei  Rey  com  a  Rainha  dona  Lea- 
nor  ,  mas  também  de  condenar  a  innocencia  da  Rainha  ,  e 
a  virtude  e  boa  tenção  com  que  el  Rey  a  vifitaua  ,  e  dar 
conta  dilío  ao  Emperador;  porem  tanto  que  veyo  a  enten- 
der que  a  Rainha  começaua  a  ter  fentimento  do  que  elle 
fecreramente  efcreuia  ,  por  íe  fanear  dante  mão  da  zizania 
que  tinha  íameado  ,  íe  preuenio  co  Emperador  de  tal  ma- 
neyra,  que  quando  a  Rainha  lhe  veyo  a  efcreuer  íobr'iflo , 
elle  ,  como  deícontente  ,  lhe  não  reípondia  outra  coufa  íe- 
náo  darlhe  preíla  ha  fua  ida  defte  reyno  ,  a  qual  ella  hia  an- 
tretendo  para  ver  fe  podia  acabar  com  el  Rey  íeu  enteado  , 
que  coníintilíe  leuar  comíigo  a  ifante  dona  Maria  íua  filha, 
eparaiíto   fe  valia  também  da  autoridade  do  Emperador 

feu 


64 


Primeyra  Parte  da  Chronlca 


feu  irmão»  O  Barrofo  entre  tanto  não  ceíTaua  no  fcj  máo 
propofito  ,  antes  paílandoíle  el  Rey  doBarreyro  para  Al- 
meirim íoy  necefíario  iremfe  trás  elle  a  Rainha  e  a  ifante 
dona  líabel  ,  e  ficarão  para  as  acompanharem  o  duque  de 
Bragança  ,  o  barão  d'Aluito  dom  Diogo  lobo,  e  outros 
fenhores  da  corte  ,  com  a  qual  companhia  chegarão  a 
Mugem  ;  aly  chegou  o  Barroío  a  tanta  íoltura  ,  que  reque- 
reo  pubricamente  ha  Rainha  que  daly  não  paíTaíFe  nem 
quifcííe  ir  a  Almeirim  ond'eI  Rey  eílaua  j  dando  a  enten- 
der que  o  fazia  por  ordem  do  Emperador.  A  Rainha  inda 
que  íentio  muyto  huma  tão  eílranha  ouíadia  e  defcome- 
dimento,  com  tudo  polia  grande  obediência  que  fempre 
tiuera  ao  Emperador  íeu  irmão ,  e  polia  muyta  conta  que 
íempre  teue  com  íua  honra  e  autoridade,  difsimulou  en- 
tão aquiilo  o  milhor  que  pode  ,  e  não  paíTou  mais  adian- 
te. Deílas  couías  auifaua  logo  o  Barroío  o  Emperador  ,  e 
as  aíFeiçoaua  ao  fom  do  que  lhe  a  elle  cumpria  de  tal  ma- 
neira ,  que  o  Emperador  cada  vez  daua  mayor  preíTa  ha 
ida  da  Rainha  ,  e  daua  a  entender  que  o  fazia  ,  porque  o 
Biípo  de  Cordoua ,  e  o  conde  de  Cabra  ,  o  doutor  Cabrey- 
ro  ouuidor  do  confelho  real ,  feus  embaixadores ,  auiajá 
alguns  mefes  que  eílauão  em  Badajoz  efperando  por  ella. 
Neíle  meyo  tempo  a  Rainha  para  fua  fatisfação  tinha 
mandado  dar  conta  ao  Emperador  do  que  o  Barrofo  in- 
tentara contr'ella  ,  e  informallo  da  verdade  do  que  paf- 
íaua  ,  primeyro  pollo  Biípo  de  Cuba  feu  capellâo  mor  ,  e 
deípois  por  Bonedao  caualeyro  de  honor  feu  ,  e  marido 
de  Tumbas  fua  camareyra.  Com  as  quais  informaçoens 
certificado  o  Emperador  das  coufas  do  Barrofo  ,  e  da  ten- 
ção e  fundamento  com  que  as  mouera  ,  fe  ouue  por  tão 
deíTeruido  delle  ,  qwe  o  mandou  ir  deíle  reyno  ,  e  o  degra- 
dou para  as  galés ,  e  mandou  em  feu  lugar  ao  doutor  Ca- 
breyro  ,  hum  dos  três  embaixadores  ,  o  qual  deu  fim  aos 
negócios  que  tocauão  ha  ida  da  Rainha ,  e  fe  foy  com  ella 
no  mes  de  Mayo  íeguinte  do  anno  de  mil  e  quinhentos  e 
vinte  três ,  como  fe  dirá  em  feu  lugar. 

CA- 


deIR.ey  Dom  João  o  III.  6^ 

CAPITULO     XXL 

O  gouernaãor  da  índia  dom  Duarte  de  mejiejes  cheg^  a  Goa , 
dajfe  conta  do  aletiant amento  de  Onnuz ,  o  capitão  da  for*, 
taleza  manda  pidir  j ocorro  ^   e  o  (jue  nijfo  fe  faz» 


Tinha  elRey  dom  Manoel  mandado  por  gouernador 
has  partes  da  índia  o  anno  de  mil  e  quinhentos  e  vin- 
te hum  (  que  foy  o  mefmo  em  que  morreo  )  dom  Duarte 
de  meneies  íilho  do  conde  Prior  ,  tirado  para  efte  eíieito 
do  gouerno  de  Tangere  ,  onde  na  guerra  que  fazia  aos 
mouros  tinha  ganhado  muyta  honra  ,  deixando  nelle  em 
feu  lug-ir  dom  Anrique  de  meneies  feu  irmão  ,  e  para  ca« 
pitão  mór  do  mar  naquellas  partes  mandara  em  compa- 
nhia do  mefmo  gouernador  dom  Luis  de  meneies  Teu  ir- 
mão ,  montevro  mór  que  então  era  do  princepe.  Dom 
Duarte  partio  do  Porto  de  Lisboa  a  cinco  dias  d'Abri!  do 
anno  de  1521  com  huma  armada  de  quinze  náos ,  em  que 
leuaua  muyto  boa  g^^nte  ,  e  chegou  ha  india  em  Agoíto  , 
e  elle  com  algumas  nios  da  íua  companhia  fov  tomar  o 
porto  de  Baticalá  ,  porque  as  outras  l'apartarâo  delle,' 
onde  tcue  nouas  ,  o^ue  o  gouernador  Diogo  lopez  de  11- 
queyra  aula  de  vir  d'Ormuz  fazer  huma  fortaleza  em 
Cambaya  ;  da  hy  íe  foy  logo  a  Goa  ,  onde  achou  as  outras 
ráos  da  fua  armada  e  onde  foy  recebido  com  todas  as  ci- 
rimonia?,  com  que  íecuílumao  receber  os  gouernadores  ; 
e  por  não  faber  a  detença  que  Diogo  lopez  faria  la  por  fo- 
ra ,  começou  logo  a  entender  nas  coulas  da  gouernança  , 
e  meteo  de  poííe  da  capitania  de  Goa  a  Francifco  pereira 
peílana  ,  que  do  rcyno  fora  com  elle  prouldo  nella  ,  ea 
Ruy  de  melo  ,  que  até  então  fora  capitão  delia  ,  e  tinha  já 
acabado  feu  tempo  ,  deu  a  fua  náo  para  fe  vir  nella  para  o 
reyno.  Aqui  teue  nouas  ,  que  o  gouernador  Diogo  lopez 
laindo  -  d'Ormuz  viera  ter  a  DIo  com  detrimin.ição  de  ia-» 
zerhuma  fortaleza  no  rio  de  Madrafabá  ,  c-porjuílos  in- 
conuenienres,  que  para  iíío  tiuera,  deixara  a  quelia  emprc- 
Farte  L  1  fa- 


6Á         Priíneyra  Parte  da  Chronlca 

fa  e  fe  viera  a  Chaul,  onde  eftaua  de  guerra  fãZQnáo  huma 
fortaleza  ,  pollo  qual  lhe  mandou  logo  de  íocorro  dom 
Luís  feu  irmão  com  cinco  nauios  em  que  hia  muyra  e  boa 
gente  ,  nos  quais  o  gouernador  íe  vielíe  para  íe  ir  para  o 
reyno  ,  que  nelies  fe  veyo  logo  ,  e  dando  conta  ao  gouer- 
nador dom  Duarte  do  aperto  em  que  fícaua  Chaul  ,  lhe 
mandou  outro  nouo  íocorro  de  oito  nauios  de  remo  e  de 
alto  bordo  com  muytas  munições  e  outras  couías  neceíla- 
rias ,  de  que  dom  Luis  feu  irmão  auia  la  de  prouer  as  ca- 
pitanias ,  para  o  qual  lhe  mandou  Teus  poiieres  e  aponta^ 
xnentos  do  que  auia  de  fazei:  ,  e  mandou  Simão  dandrade 
para  capitão  da  fortaleza  ,  fem  embargo  de  ter  dada  o 
gouernador  Diogo  lopez  a  capitania  delia  a  íeu  íobrinho 
Anrique  de  meneies.  E  ordenadas  eftas  e  outras  coufas 
neceOarias  íe  foy  daly  para  Cochim.  Neíle  tempo  eibua  a 
cidade  de  Ormuz  leuantada  contra  os  noííos  por  induzi- 
inento  do  guazil  mor  delia  chamado  Raix  Xarafo  ,  que 
fofrendo  mal  mandar  elRey  dom  Manoel  recolher  para 
fy  as  rendas  da  alfandega  daquella  cidade  ,  de  que  fe  elle 
aproueitaua  ,  e  as  gaílaua  ha  íua  vontade  ,  tratou  com  el 
Rey  que  era  moço ,  e  de  todo  eftaua  entregue  ao  íeu  pare- 
cer ,  que  porquanto  niilo  fe  lhe  fazia  huma  grande  afron- 
ta ,  e  com  grande  quebra  de  íua  honra  ,  coníintifle  para  ía- 
tisfação  fua  ,  que  íe  deíTe  a  morte  a  quantos  Portugueíes 
eftiueíTem  na  cidade,  o  que  elle  coníentio  contra  o  parecer 
de  feu  pay  velho  que  lhe  aconfelhaua  o  contrario.  O  Xarar 
ío  fe  ordenou  fecretamente  com  outros  mouros  poderofos 
a  que  deu  conta  difto  ,  e  huma  noite  que  foy  aos  dous  de 
Dezembro  do  anno  de  mil  e  quinhentos  e  vinte  hum  ^ 
guando  os  noffos  eftauao  mais  deícuidados  e  com  menos 
rcceyo  deíla  traição ,  derão  os  mouros  nas  cafas  da  cidade 
onde  elles  eílauao  com  tanta  preíla  e  impeío  ,  que  fem  fe 
poderem  a  proueirar  das  armas  ,  nem  poríe  em  defença  ^ 
íorão  mortos  a  mayor  parte  delles  ,  que  íeriao  roais  de 
eento.  E,  dç  alguns  que  polia  praya  le  puderao  recolher 
Jia  fortaleza  forão  os  mais  feridos  ,  e  muyto  poucos  forao 
OS  que  pudçrão  çfcapar  de  todo  em  íaluo»  E  com  iílo  jun-» 

ta- 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  6y 

tamefite  lhe  roubarão  quantas  fazendas  Uie  acharão,  é 
quantas  auia  na  feitoria  dei  Rey  ,  e  a  ocupação  que  os 
inimigos  nitlo  tiuerão  foy  grande  parte  para  fe  poderem 
•jaluar  eíTes  poucos  que  elcaparão  dos  noíTos  :  nem  parou 
o  mal  defta  noite  nos  que  eílauao  em  Ormuz  fomente, 
mas  também  abrangeo  a  outros  ,  que  eftauão  em  outros 
portos  dos  inimigos  ,  antre  os  quais  foy  hum  por  nome 
Ruy  boto  ,  oqu.il  co  fauor  da  graça  diuina  teuc  animo 
para  íofrer  os  cruéis  tormentos  que  lhe  derão  na  ilha  de 
Barem  ,  e  acabar  nelles  coníhantiíTimamente  a  vida  po!!a 
confiíTdò  da  íantifsima  ,  e  verdadeira  fé  católica  que  pro- 
feíTaua,  Defte  fuceíTo  tanto  de  feu  goílo  tomou  animo  o 
Xarafo  para  pôr  cerco  ha  fortaleza  ,  de  que  então  era  ca- 
pitão dom  Garcia  Coutinho  ,  dando  muyta  certeza  a  el 
Rey  de  a  auer  de  tomar  facilmente,  porque  tinha  então 
comíigo  paílante  de  dez  mil  homens  de  guerra  ,  de  que 
iruyta  parte  erão  frecheyros  ,  e  muyta  artilharia  groíTa 
t  meuda ,  com  que  começou  logo  de  ordenar  eílancias  ,  af-* 
fcílar  artilharia,  e  dar  alTaltos,  com  que  poz  a  fortaleza  em 
grande  aperto  ,  por  eítar  então  myto  falta  afsim  de  gente  , 
polia  que  fora  morta  no  aleuantamento ,  como  de  manti- 
mentos ,  de  agoa  ,  de  poluora  ,  e  de  tudo  o  que  era  ne- 
ceíTario  para  fua  defenfaô.  Porem  o  capitão  dom  Garcia 
(  a  cujo  defcuido  fe  põem  alguma  culpa  daquelle  tamanho 
deíaftre,  pornão  querer  lançar  mão  pollos  auifos  fecretos  , 
que  alguns  mouros  lhe  dauão  do  que  Xarafo  pretendia  / 
tanto  que  acabou  de  recolher  os  que  vinhão  fugindo  para 
a  fortaleza  ,  e  outros  que  eílauao  feridos  efpalhados  por 
diuerías  partes  ,  o  que  fe  não  fez  íem  muyto  langue  dos 
que  eílauao  na  fortaleza  ,  preíumindo  que  o  Xarafo ,  pollo 
eílado  em  que  via  as  noflas  coufas  ,  tomaria  atreuimcnto 
para  pôr  cerco  ha  fortaleza  ,  detriminou  mandar  com 
tempo  dar  conta  ao  gouernador  do  que  paífaua  ,  e  pidirlhe 
focori'o  do  que  lhe  parecia  neceííario  ,  para  o  que  ao 
diante  lhe  podia  luceder  ;  e  para  ido  mandou  fazer  preíles 
hu-ra  carauella  que  então  auia  no  porto,  que  por  dita  pode 
cícapar  da  luria  dos  inimigos  ,  o  que  fov  neceííario  fazer- 

1  2  fe 


(58         Primeyrá  Parte  da  Chrohica 

fe  de  noite  com  muyto  jfilencio  ,  e  íem  rumor  algum  ,  em 
quanto  os  nauios  dos  mouros  eílauao  abordados  em  terra, 
para   c]ue  elies  não  vicflem    a  rer  íenrimcnto  do  que  íe  fa- 
zia ,    e  feita  preíles    o  capitão  mandou    meter  nella    hum 
João  de  meyra   hoinem  de  confian(ç\i  ,  e  com  elle  vinte  iio- 
irens   bem  armados  ,  e  por  clle  eícreueo  ao  gouernador  o 
■que   era  paílado  ,  e  o  citado   em  que  ficaua   a  fortaleza  ,  e 
lhe  pedia  ,  que  com  a  mor  preíía  que  pudefíe    o  manddíTe 
prouer  de  muytas  coufas  de  que  tinha  neceísidade  ,  e  prin- 
cipalmente   de  poluora  de  que  eftaua  muyto  falto  ,  e  era  a 
que   lhe  mais  importaua  ,  ie  os  inimigos  trataflcm    de  lhe 
pôr  cerco  de  que  não  auia  leucs  íoípeitas.  A  carauella  com 
a  boa  diligencia    dos  que  a  rinhao   a  cargo  ,  e  quafi  mila- 
grofamente  fahio   do  porto    lem  íer  fentida  dos  inimigos, 
de  que  elles   polia  menham  ficarão  aíTaz  erpantados  quan- 
do  a  acharão  menos  ,  e  o  Xarafo  bem  fentido  ,  e  menen- 
çorio    do  defcuido  dos  feus  ,  e  entendendo   bem    a  tenção 
da  ida  da  carauella,   apertou    o  cerco  da  fortaleza,  e  poz 
toda   fu a  força    por  uer  íe  apodia  entrar  ,  antes  que  tiueíTe 
focorro  ;   porem    os  noflos   íem  embargo  da  grande  falta 
que  tinhío    de  gente  ,  e  de  mantimentos  ,  com  efle  pouco 
que  auia  de  tudo  ,  íe  ordenarão  e  defenderão  de  m.inryra  , 
que    todo   o  trabalho  e  forças  d,o  inimigo  fotao  em  balde. 
João  de  meyra  na  carauella  ,  nauegando  com  bom  tempo  , 
breuemente    chegou    a  Mazcate  ,  e  por   chegar   de   noite 
iurgio  de  fora  do  porto  ,  onde  prouue  a  noflo  Senhor  que 
chegarão  também  Manoel  de  íoufa  tauares  em  hum  galeão* 
bem  concertado  ,  e  Fernão  daiuarez  cernache   em  huma 
fulla  ,   queandauão  darmada  na  coita.  João  de  meyra   co- 
nhecendo   os  nauios    fe  foy  no  feu  batel  dar  conta  aos  ca- 
pitaens  do  que  paíTaua  em  Ormuz,  de  que  ellcs    até  ent"o. 
não  linhão  noticia  alguma  ,  econlultado  antre  todos  o  que 
fe  deuia  tazer  ,  fe  aíTentou  que  Manoel  de  foufa  enrrafie  no- 
porto    de  Mazcate  ,  e  difsimuladamente  recolheíle  afy  os 
Portuguefes,  que  a  hy  eíl.iuão,  e  João  de  meyra  íe  foíTe  ao 
porto  de  Calayate  ,  e  deíle  conta  do  que  palTaua  a  Triítão 
vaz  da  veiga ,  que  ahy  eílaua  por  feiior  acompanhado  de 

muy- 


dei  Rey  Dom  João  o  ÍII.  6ç 

iDuytos  homen?  ,  c  os  fízcíTe  a  todos  embarcar  em  hum 
parao  que  aJiy  tinha  ,  co  que  f.zia  arribar  ao  porto  as  nãos 
^uepaflr;uâo  de  largo  ,  e  íe  vieíTem  aMazcate,  oiide  os 
eíptraua  Manoel  rie  íoufa.  João  de  meyra  fez  com  muyta 
breuidade  o  que  ]h'era  encomendado  ,  e  'I  riílao  vaz  le  fez 
Jcgo  preftes  cos  de  fua  companhia  para  l'embarca:  no  pa- 
rao ,  e'começou  cada  hum  a  meter  nelie  com  a  miayor  dif- 
limulação  que  pôde  o  dinheiro  e  fato  que  tinha  ,  mas  nao 
pôde  fer  tão  diilimuladamente ,  que  o  Xeque  da  terra  nao 
atentaíTe  niíTo  ,  e  querendo  lançar  mão  pollos  iioflos  ,  el- 
Jes  por  le  defenderem  ,  fe  veyo  antre  todos  atrauar  huma 
briga  ,  que  cuílou  feridas  e  mortes  dalguns  dcs  nofios  , 
mas  como  eífauao  já  na  praya  íe  puderao  recolher  ro  ba- 
tel da  carauella  de  João  de  meyra  ,  e  ao  parao  que  tftaua 
abordado  na  terra  ,  e  com  dous  berços  que  auia  nelle  íi- 
zerão  afaífar  os  inim.igos  com  muytos  mortos  e  feridos  , 
porem  o?  noíTos  naodeixarao  de  perder  algum  fato  que 
ain  iH  tinhão  em  terra  ,  por  nao  terem  maneyra  para  o  po- 
derem embarcar,  e  feita  eíla  diligencia  João  de  meyra  ,  en- 
tendendo que  não  tinha  aly  mais  que  fazer  ,  proíTeguIo  fua 
viagem  ,  a  fazer  o  que  lh'era  mandado  co  gouernador. 
O  que  paíTou  neíte  cerco  me  parecco  efcufado  eícreuer 
aquy  ,  porque  como  foy  no  anno  de  mil  e  quinhentos  e 
vinte  hum  ,  fica  já  eícrito  por  Damião  de  góes  na  crónica 
dei  Rey  dom  Manoel  ,  e  afsi  irey  continuando  co  locor- 
ro  que  lhe  mandou  o  gouernador  dom  Duarte,  e  o  que  lu- 
cedeo  defpois  do  cerco  ,  que  foy  já  no  anno  feguinte  de 
Hiil  quinhentos  e  vinte  dous ,  em  tempo  delKey  dom 
João, 


CA- 


jo         Primeyra  Parte  da  Chroitica 
CAPITULO    XXIÍ. 

jyom  Lms  de  ynenefes  capitão  vtór  ão  mar  manda  bum  ^ât* 
leão  em  [ocorro  de  Ormuz  ,  o  gouernador  manda  ao  mejynn 
dom  Luís  que  o  vd  [ocorrer  ,  elle  vay  com  huma  grojja  ar- 
fnada  ^  e  o  que  lã  jaz  até  Je  tornar  para  a  índia» 

EM  breve  tempo  chegou  João  de  meyra  a  Cliauí  ,  on- 
d'entao  eftui.^  por  capitão  mór  do  mar  dom  Luis  de 
meneies  irmão  do  gouernador  com  rodos  os  feus  poderes  , 
aquém  dando  conta  do  que  paíTaua  em  Ormuz  o  fez  logo 
partir  para  Cochini  a  dar  eíta  meíma  conta  ao  gouernador: 
cconfultando  cos  fidalgos  o  que  fe  deuia  fazer  naquelie 
caio  5  por  todos  foy  detriminado  que  fe  não  abalafle  daly 
a  focorrer  Ormuz  ,  mas  que  cumpria  muyro  ao  feruiço  dei 
Rey,  e  ao  bem  daquella  fortaleza  mandarllie  com  toda  a 
breuidade  poíTiuel  hum  nauio  com  prouimento  d'algumas 
coufas  de  que  tinha  neceífidade  ,  e  daria  grande  animo  aos 
noíTos  ,  e  confufio  aos  inimigos  ,  parecendolhe  que  a  pos 
aquelle  nauio  não  tardaria  muyto  o  focorro  ,  e  quica  da- 
rião  algum  aliuio  ha  fortaleza.  Tomada  eíla  reíolução  íe 
fez  logo  preífes  dom  Gonçalo  Coutinho  irmão  do  capitão 
d'Ormuz  dom  Garcia  coutinho  num  galeão  bem  armado 
carregado  de  mantimentos ,  poluora  ,  e  muniçoens ,  cm 
que  leuou  comíigo  duzentos  homens  muyto  bem  concerta- 
dos ,  todos  gente  de  conta  :  e  antes  quechegalTe  ha  cida- 
de teue  no  caminho  nouas  ,  queeftaua  já  defpejada  ,  ea 
fortaleza  liure  do  cerco  ,  com  que  entrou  em  Ormuz  com 
muyra  fcíVi  ,  e  contentamento  feu  ,  e  co  mefmo  foy  rece- 
bido de  todos  ,  com  cuja  vinda  ceffarão  algumas  diííeren- 
ças,  que  então  auia  antre  o  capitão  e  a  gente  principal  que 
tít.uia  nafort  .1  z;^ ,  por  culpas  que  llie  punhao,  de  fazer  al- 
gumas couíss  de  mais  prou  :ito  feu  ,  que  íeruiço  dei  Rey  , 
a  que  e!le  não  deixaua  de  á\t  fua  defcarga  ,  e  por  então  íi- 
cou  tu  lo  quieto,  Chegido  João  de  meyra  a  Cochim  onde 
o  gouernndor  eíl^ua  ,  que  foy  a  deznyto  de  Janeyro  do  an- 
no  de  mil   e  quinhentos   e  vinte  dous ,  e  encarecendolhc 

com 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  J\ 

cem  muytas  palauras  a  neceíTidade  e  aperro  em  que  fi- 
C2ua  a  fortaleza  d''Ormuz  ,  ]he  mandou  ,  que  na  íua  ca- 
ravella  fe  tornafle  logo  com  cartas  a  dom  Luis  feu  ir- 
mão ,  emque  Ihemandaua,  que  deixando  Chaul  proui- 
do  como  cumpria  ,  fe  fofle  íocorrer  Ormuz  co  mór  po- 
der que  pudeíle.  Dom  Luis  como  linha  por  íem  duvi- 
da ,  que  o  gouernador  lh'auia  de  mandar  cíle  recado  , 
já  quando  elJe  chegou  eftaua  apercebido  de  tudo  o  neceí- 
fario  para  a  viagem,  e  íe  partio  de  Chaul  em  fim  de  Fcue* 
reiro  do  meímo  anno  com  oito  galeões  ecarauelias  ,  em 
que  hião  por  capitães  Ruy  vaz  pereyra  ,  Lopo  dazeue- 
do ,  António  de  lemos,  Manoel  de  macedo  ,  Anrique 
de  maccdo  leu  irmão.  Pêro  vaz  de  melo,  João  pereyra 
de  iacerda  ,  e  Manoel  de  moura,  e  também  foy  com  elle 
João  de  meyra  na  fua  carauelia  ,  na  qual  o  gouernador 
mandara  de  Cochim  Joíío  rodriguez  de  noronha  ,  a  que 
também  chamauao  da  camará  ,  filho  do  capitão  da  illia  da 
madeyra  ,  para  entrar  na  capitania  da  fortaleza  d'Ormuz, 
porque  dom  Garcia  tinha  já  acabados  os  feus  três 
annos ,  e  não  auia  capitão  para  ella  prouido  por  el  Rey. 
Leuaua  dom  Luis  neíia  armada  rauyto  lim.pa  gente  ,  muy- 
tos  mantimentos,  muyta  poiuora  ,  e  muniçoens  ,  e  com 
ella  chegou  ao  porto  de  Mazcate  ,  que  eftaua  de  paz  ,  on- 
de o  Xeque  Rabea  lhe  fez  rauyto  bom  recebimento  ,  e 
muytos  íeruiços  ,  e  onde  íoube  queelP^ey  d^Ormuz  era 
paflado  para  a  ilha  de  Queixorae  ,  e  os  noíFos  eftauão  fe- 
nhores  da  cidade  :  daquy  foy  dom  Luis  ao  porto  de  Soar 
Jugar  grande  e  fcrmoío  ,  com  fortaleza  dei  Rey  d'Ormuz  ^ 
em  que  eftaua  por  capitão  Rais  Sabadim  irmão  de  Rais 
Xarafo,  beni  fortificado  de  gente  e  de  tudo  o  mais  para  fua 
defeníaÕ.  Dom  Luis  com  tudo  íahio  em  terra  e  cometeo 
o  lugar,  em  que  achou  pouca  refiílencia,  porque  os  mouros, 
iem  eíperarem  que  caiíTem  muytos  ,  íe  puferao  logo  cm  fo- 
gida  ,  e  defcmpararão  o  lugar  ,  que  os  nolTos  meterão  a  fa» 
co  ,  em  que  acharão  bem  pouco  que  faquear  ,  porem  d© 
vacas  matarão  huma  grande  cantidade  ,  que  leuarao  comil- 
ão ,  €  dom  Luis  não  cgnlintip  poríe  íogo  ao  lugar  por  feç 


72r  Primeyra  Parte  da  Chronica 

dei  Key  cVOrmuz ,  com  quem  hia  fazer  pazes.  Seguindo  da- 
quy  íua  derrota  nao  parou  até  íurgir  no  porto  da  cidade 
de  Ormuz,  onde  mandou  pregoar  por  todos  os  nauios 
com  graues  penas  ,  que  ninhum  homem  fizeífe  máo  trata- 
mento a  peiroa  alguma  da  cidade  ,  e  deíembarcando  enci 
terra  foy  recebido  com  muyta  honra  e  muyto  aluoroço  , 
onde  meteo  logo  de  po^e  da  capitania  da  Fortaleza  a  João 
roíz  de  noronha  ,  e  cos  íi.talgos  e  gente  principal  que  aly 
auia  tratou  do  que  íe  deuia  de  f;izer  no  que  tinha  paliado 
naquella  cidade  ,  e  por  todos  foy  aíTentado,  que  por  então 
fe  diíTimulaííe  co  que  era  feito  ,  e  fe  trataíle  de  fe  fazer  paz 
com  elRey  ,  e  íe  trabalhaífe  por  qualquer  modo  polTiuel 
acabar  com  elle  ,  que  íe  tornaíle  para  a  cidade  ,  porque 
fendo  doutra  maneyra  feria  huma  grande  perda  para  o 
eílado  da  índia.  Dom  Luis  aprouando  eíle  confelho  man- 
dou logo  dizer  a  el  Rey  ,  que  chegando  áquella  fortaleza 
não  quiíera  tratar  mal  a  cidade  nem  a  geute  delia  ,  até  nâo 
faberdelle  a  rezao  do  que  era  feito  aos  Portugueíes  ,  e 
qual  era  a  fua  vontade  e  detriminação  neíle  caio,  que 
diíto  lhe  mandaíTe  a  repofta  ,  porque  com  ella  íe  auia  de 
detriminar  no  que  auia  de  fazer  ,  ou  de  paz  ,  ou  de  guerra  , 
e  que  felle  nao  tinha  culpa  no  que  era  paftado  ,  foigiria  de 
alTcntar  com  elle  huma  p;rz  firm.e  e  verdadeira  com  toda  a 
íegurançâ  ,  que  para  iíTo  cumprlífe  ,  e  caíligaria  a  que'n 
achaíle  que  teue  a  culpa.  Bem  entendeo  o  Xarafo  a  tenção 
deíle  recado  ,  e  que  claramente  trataua  delle  ,  pois  fora  o 
culpado,  e  como  tinha  elRey  tão  fogeito  e  entregue  ao 
feu  parecer ,  não  eíperou  que  elle  reípondeíle ,  mas  em  feu 
nome  rcípondeo  a  dom  Luis  ,  que  bem  pudera  liuremente 
deftruir  a  cidade  fe  quifera  ,  que  para  iíTo  lha  deixara  dei-  ^ 
pejada,  que  fe  a  deílruira  elle  fizera  outra  em  parte  que 
não  foííe  catiua  de  tantos  roubos  e  inlultos  ,  quanto  os 
Portugueíes  tinhao  feito  em  Ormuz  ,  e  fazião  por  toda  a 
Índia  ,  e  por  ilTo  lhe  daua  pouco  de  elle  deílruir  aquelIa 
em  que  já  não  tinha  nada  ,  nem  queria  ter  nome  dei  Rey 
delia  ,  nem  vella  mais  dos  olhos  ,  fó  pêra  ver  o  que  então 
rendia  a  alfandega,  nem  menos  queria  mais  ter  que  en- 
te n-. 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  73 

tender  com  Portuguefes  fe  nao  fugir  donde  os  ouuiPe 
nomcíir ,  pois  erão  tTio  fallos ,  que  começauiío  com 
aparências  de  bens  e  verdades  ,  que  deípois  fe  torna  não 
cm  males  e  miniiras  ,  que  nao  tinha  outra  repoíla  ,  que 
lhe  mandar  íenao  cita  ,  que  na  guerra  íizeíTe  o  que  Jhe 
bem  parecefle  ,  mas  que  de  paz  ou  concerto  algum  não 
tratalTe  com  elle  ,  porque  já  íabia  que  Portuguefes  erao 
gente,  que  não  trataua  verdade,  e  com  eíla  repoíVa 
delpedio  o  que  lhe  trouxera  o  recado,  a  quai  lhe  deu  em 
Português  cícrita  por  hum  renegado  ,  que  andaua  antr'cl- 
jes.  Dom  Luis  mandou  lereíla  repoíla  pubricatpcnte  pe- 
rante todos  os  principaes  da  fortaleza  ,  a  que  pidio  feus 
pareceres,  e  todos  reíponderao  que  ji  nao  era  tempo 
nem  rezão  ,  que  fe  diíTimulaíIe  mais  ,  fenao  que  poi?  o  Xa- 
rafo  tinha  el  Rey  em  íeu  poder  ,  e  no  reyno  fe  não  obe- 
decia a  nJMguem  fenao  aelle,  eelle  íabia  def/quefora 
toda  a  cauía  do  mal  que  recebera  aquella  fortaleza,  por 
onde  elle  fò  eílaua  obrigado  a  pagallo  ou  com  a  pelloa  , 
ou  com  a  fazenda  ,  entendido  eítaua  que  não  auia  de  que- 
rer concerto  cos  Portuguefes  ,  nem  íiarfe  delles  ,  por  on- 
de parecia  que  já  aly  fe  nao  podia  fazer  outra  couía  ,  fe  não 
ir  logo  dar  na  ilha  de  Queixome  ,  e  dar  ao  Xarafo  e  aos 
mouros  que  com  elle  forao  culpados  o  caftigo  que  mere- 
cião.  Dom  Luis  ,  como  era  auifado  e  prudente,  pondenMi- 
do  bem  os  incouenientes  que  naquillo  auia ,  lhe  refpondeo 
quQ  ainda  que  foíTem  dar  em  Queixome  nem  por  ilTo  fa- 
rião  o  que  pretendião  ,  porque  os  mouros  lhe  poderiao 
fugir  para  Bacerá  ,  e  para  Bare  ,  e  para  outras  terras  onde 
o  Xarafo  poderia  viuer  muyto  leguro  ,  e  íe  lhe  daria  pou- 
co do  reinado  do  Rey  ,  que  tinha  em  feu  poder  ,  a  quem 
elle  ou  daria  a  morte  ,  ou  quebraria  os  olhos  como  era 
feu  cuílume  ,  por  onde  todo  o  feu  trabalho  lá  ícria  de- 
balde ,  e  a  fortaleza  entretanto  ficaua  arrifcada  a  def- 
aftres  ,  de  que  elles  poderiao  dar  muyto  má  conta  ,  poílo 
qual  elle  nao  aprouaua  eíte  íeu  parecer.  E  inda  que  illo 
que  dom  Luis  difle  parecia  então  o  mais  acertado  ,  to- 
dauia  íoydito  por  huns  termos  algum  tanto  demafiados , 
Fartai.  K  c 


74         Pílmeyra  Parte  da  Chronlca 

e  efcandalofos  ,  com  que  todos  os  que  eílauao  prefentes  ítí 
recolherão  mal  contentes  para  íuas  caías.  Dom  Luis  então 
íem  tratar  mais    dos  íeus  pareceres    coníultou   com  dom 
Garcia,   que  modo  fe  poderia  ter  para    íe  dar  a  morte  le- 
cretamente  ao  Xarafo ,  porque  com  iílo  ficaria  tudo  pacifi- 
co e  quieto  ,  e  el  Rey  e  os  feus   parece   que  folgariao  de  fe 
tornar  para  a  cidade  ,  onde  tinhao  íuas  cafas  ,  antes    que 
andarem   como  defterrados  ,  e  com  tudo   nao  deixou   de 
mandar  outros  alguns  recados    a  el  Rey  e  ao  Xarafo  íobre 
efta  meíma  matéria ,  oííerecendoíTe  a  fazer  todo  o  concerto 
que  foíle  rezao  ,  porque  ainda   que   em  Queixome  fizeíTe 
el  Pvcy  outra  cidade  d'OrmuZj  também  lá  auia  de  pagar  as 
páreas  que  cá  pagaua  ,  que  íe  agora  as  quiíeííe  pagar  e  as 
fazendas  que  íe  roubarão  aos  Portugueíes ,  feriao  acabadas 
todas    as  diíferenças  ,  e  íe  lhe  daria  perdão   de  tudo  o  que 
era  feito,   de  que  lhe  daria  toda  a  fcgurança  que  elles  qui- 
feíTem.  A  todos   eftes  recados   daua  fsmpre  o  Xarafo   re- 
poílas   indetrimínadas   e  com  muyta  cautella  ,  apontando 
iemprc  rezoes  de  quem   íe  receaua   de  não  tornar  mais  ao 
eílado  dantes  ,  por  mais  concertos  que  fefizeíTem  ,  pois  en- 
tendia que  não  poderia  ja  antr'ellcs  auer  paz  ,  que  foíTe  fe- 
gura.  Afora  eíles  recados  ,  que  íe  mandarão  ao  Xarafo  ,  fe 
riuerão   também   algumas  intelligencias   fecretas    com  al- 
guns   do  confelho  delRey  ,  para  que  acabaílem  iílo  com 
eile  ,  os  quais   auendoíTe    por  afrontados  de    os  tratar    o 
Xarafo  como  íe  fora  fenhor  de  todos ,  cada  hum  lhe  daua 
feu   parecer  em  fauor   do  concerto  ,  porem  elle  não   fe 
liaua  dellcs  ,  arreceando  que  algum  queria  faber  o  feu  pen- 
famento  naquella  matéria  para  o  deícubrir  ao  Xarafo,  de 
quem  tinha  grandiífimo  medo  vendoíTe  em  feu  poder  ,  e 
defejando   muyfo   de  fazer  eíle  concerto  nem  oufaua  de 
fe  deícubrir   a  pelToa  por  quem  íecretamente  mandaíle  re- 
cado difto   a  dom  Luis  ,  nem   em  pubrico  ouíaua   de  reí- 
ponder   aos  recados   como   defejaua  ,  com  tudo   eílando 
hum   dia  em  pratica   co  Xarafo   e  com  outros  muytos  lhe 
dilTc  perante  todos  com  a  mor  diíTimulação  que  pode  ,  que 
ja  que  lhe  falauão  em  concerto  não  feria  mao  ver  as  con- 
di- 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  7^^ 

<dlç6es  delle  ,  quf  fe  foíTem  ha  fua  vontade  fe  poderia 
lançar  inão  por  ellas  ,  e  quando  não  fe  faria  o  que  foí- 
fe  milhor  paraellcs,  que  íe  alguma  das  condições  foííe 
pagaremlhe  as  fazendas  que  fe  tomarão  aosnofíos,  el!e 
as  queria  pagar  ha  fuacuíla,  com  tanto  que  ihetornaf- 
fcm  a  alfandega  ,  eque  ifto  le  deuia  fazer  ,  para  que  íe 
nãoperdeíTe  o  nome  do  reyno  de  Ormuz  ,  para  o  qual 
no  concerto  fe  pidiíTe  tudo  o  que  fentendelle  que  a 
elles  lhes  cumpria.  Deílas  rezões  d'el  Rey  entendeo  bem 
oXarafo  a  fua  tenção  e  deíejo  ,  e  como  era  muyto  ía- 
gaz  e  de  grande  entendimento  bem  via ,  que  ainda  que  fe 
fizeíTem  as  pazes  com  quaisquer  condições  ,  que  elle  pi- 
diíTe, tanto  que  elRey  elHueíTe  em  poder  dos  noííos  ,  e 
íe  viííe  liure  do  íeu  ,  toda  a  culpa  auia  de  lançar  fobre  el- 
Je  ,  pois  fora  o  autor  de  todos  os  males  ,  e  que  cmfim  o 
auia  devir  apagar  em  algum  tempo,  e  para  fe  fcgurar 
difto  fez  com  que  fe  delTe  peçonha  a  el  Rey  ,  de  que  morreo 
em  poucos  dias ,  comcuja  morte  cobrou  tanto  poder  no 
reyno  ,  como  fe  fora  o  próprio  e  verdadeiro  Rey  ,  e  os 
grandes  tom.irao  tanto  receyo  de  os  elle  matar  ,  que  cada 
hum  andaua  com  a  milhor  guarda  que  podia  em  fua  pef- 
íoa.  Dom  Luis  ,  tanto  que  foube  da  morte  delPvcy,  detri- 
ninou  de  íe  ir  para  a  índia  ,  e  deu  conta  diíTo  a  dom  Gar- 
cia e  ao  capitão  João  roiz  ,  dizendo  que  com  íua  auíencia  , 
como  o  Xarafo  Pachaíle  mais  defabafado  e  com  menos 
receyo,  quiçá  quereria  vir  em  algum  concerto,  ao  que 
João  roiz  refpondeo  que  era  eícuíado  cuidarfe  que  podia 
auer  concerto  algum,  em  quanto  o  Xarafo  foíTe  viuo  ,  por- 
que elle  fabia  muyto  bem  o  que  Ihe^cumpria  ,  e  o  auia 
fempre  de  impedir,  por  onde  para  iílo  aucr  effeito  era 
muyto  neceííario  bufcaríe  maneyra  para  fe  lhe  dar  a  mor- 
te por  qualquer  via  que  foíTe  ,  porque  com  ella  todos  os 
que  agora  com  medo  delle  fe  m.etião  por  dentro  ,  vendoí- 
fe  liures  folgarião  de  íe  concertar  e  tlrarfc  de  traU^lhos  , 
mas  que  por  então  fe  não  podia  tratar  de  coufa  alguma  até 
íe  não  ver  íe  fazião  Rey  nouo  ,  e  fazendoo  efperarfe  tam- 
bém a  ver  fe  fazia  da  ly  alguma  mudança  ,  e  quando  vif- 

k  2  íem 


'jG         Prlmeyra  Parte  da  Chroníca.' 

fem  que   a  não  fazia  ,  então  íe  lhe  mandaria  embaixada  \ 
dandolhe    os  parabéns  do  nouo  revnado  ,    e  queixandoíle 
delle  como  que  tiuera    a  culpa    nos  males  que   lefizerao, 
porque  com  iílo  vendo   o  Xarafo  que    fe  punha  a  culpa  a 
outrem  e  não  a  elle  ,  ficaria  mais  defaíTombrado  ,  e  quiçá 
quereria   vir   em  algum   concerto.    Eíla  ordem   pareceo 
muyto  bem  a  dom  Luis  ,  e  diíTe  que  logo  íe  bufcafíe  quem 
deíle  a  morte  ao  Xarafo  ,  e  que  aquém  o  fizeíTe  fe  lhe  deíTe 
o  cargo  que  elle  tinha  ,  que  era  goazil  mor  ,  c  para  iíío  deu 
logo  hum  aííinado  feu  ,  em  que  daua  o  goazilado  do  reyno 
d'Ormuz   a  quem  deíle  a  morte  a  Rais  Xarafo  ,  o  qual  ef- 
crito  deu   em  íegredo  a  dom  Garcia   e  ao  capitão  João 
roiz  ,  fem  outrem   faber  delle,  porque  a  elles   ambos  íós 
ficou  encomendada  a  execução  deíle  negocio.  Concertado 
aíly  iílo  ,  dom  Luis  ordenou  fua  partida  ,  porque  trouxera 
ordem    do  gouernndor  íeu  irmão  ,  que  não  aílentando  as 
Gouías  d'Ormuz    fe  tornaíTe  para  a  índia  atempo   que  elle 
em  peíToa  pudeíle  ir  a  concertallas ,  e  o  deixaíle  a  elle  era 
íeu  lugar.  Ordenou   dom  Luis    a  Manoel  de  fouía  tauares 
capitão  mór   domar  hum  galeão  ,  duas  carauellas  ,  huma 
galeota  ,  e  dous  bargantins.  Deixou  a  dom  Gonçalo  Cou- 
tinho o  galeão  em  que  aly  viera ,  para  fe  ir  nelle  para  a  ín- 
dia ,  e  a  dom  Garcia  a  nao  fao  Jorge  ,  de  que  era   capitão 
Duarte  de  taide  ,  para  também  nella  fe  ir  para  a  índia ,  def- 
pois    de  concluídos  os  negócios    de   Ormuz,  nos  quais 
mandou  que  o  capitão  nouo  João  roiz  de  noronha  não  fí- 
zefíe   couía  íem  leu  parecer  ,  por  quanto  elle  era  mais  an- 
tigo na  fortaleza  ,  e  os  mouros  tinhão   mais  conhecimen- 
to delle,  e  com  tudo   lhe  deixou  por  apontamento  a  ma- 
neyra   de  que  auiao  de  fazer  o  concerto  ,  fe  acertaíTe  de  o 
auer  ,  e  defpois   de  prouer   a  fortaleza   de  tudo  o  que  lhe 
era  neceíTario  fe  partio  para  a  índia» 


CA- 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  yy 

CAPITULO    XXIII. 

"Dom  Garcia  negocea  dar  n  morte  ao  Xarafo ,  hum  mouro 

dos  principaes  do  reyno  fecretamente  (e  vê  com  elle  e 
Je  ojferece  a  dar  lha  ,  &  o  modo  que  para  ijjo  bujca. 

TAnro  que  dom  Luís  foy  partido  ,  dom  Garcia  ,  afsy 
para  remediar  o  deícuido   que  tiuera  em  nao  lançar 
mao  pollos  auiíos  ,  que  lhe  derão  do  aleuantamento  d'Or- 
muz  ,  como  pollo  que  cumpria  ao  feruiço    dei  Rey  e  ao 
bem  daquella  fortaleza,  tomou  muyto   a  feu  cargo   pôr 
por  obra  a  morte  do  Xarafo  ,  pollo  muyto  conhecimento 
que  tinha  cos  mouros   principaes   do  reyno,  e  para    iílo 
efcreuia  a  todos  dizendolhes  ,  que  dom   Luis    era  ido  e 
3he  deixara  muyto  encomendado  ,  que  aííentaíTe  as  coufas 
d'Ormuz  com  todo  o  concerto  e  paz   que  foíle  razão  ,  o 
que  não  podia  fer  eílando  a  terra  fem  Rey  ,  que  ordenaf- 
íem  fazello  ,  pois  a  elles  lhes  competia  por  íerem  os  prin- 
cipaes do  reyno,    e  então  le  poderia  tratar  diíTo  de  pro- 
pofito  ,  e  elles  também  de  fua  parte  o  meteíTem  em  rezcão  , 
€  lhe  aconfelhaílem  que  quifelTe  fazer  o  concerto  ,   mas 
que  todauia  lhes  lembraua  que  em  tudo  deuiao  de  pro- 
ceder polia  ordem   e  parecer  do  Xarafo  ,  porque  doutra 
maneyra  não  poderiao  fazer  coula  que  fofíe  acertada  ,  e 
com  iílo  hião  as  cartas  cheyas  de  muytos  comprimentos  , 
e  grandes  abaílanças  ,  e  hião  aíTmadas  por  ambos  os  capi- 
tães ,  dom  Garcia  e  João  roiz:  o  Xarafo  ouue  viíla  d'algu- 
mas  deitas  cartas ,  e  ficou  afTaz  oufano  e  contente  de  ver 
a  conta  ,  que   os  capitães  fazião  delle  ,  e  como  tinha  já 
determinado  de  fazer  Rey  moço  ,  que  lhe  fofle  tão  fojeito 
e  obediente  como  o  pafíado  ,  para  que   deita  maneyra  ti- 
veíTe  íegurança  em  fua  peíToa  ,  e  no  reyno  o  mefmo  poder 
e  audoridade  ,  que  fempre  tiuera  ,   efcreueo  aos  capitães 
que  em  quanto  aquelle  reyno  eítaua  fem  Rey  o  tiueíTem 
por  Rey  a  elle,  e  que  lhe  mandafíem  dizer   fe  auerião  el- 
les por  verdadeyro  Rey  da  queíle  reyno  ,  o  que  elles  lá 
fizeíTem   antre  íy  ,  ao  qual  elles   relponderao,  que  f e  o 

Rey, 


7-3 


Primevra  Parte  da  Chronlca 


Key  j  que  elles  fízeíTera  ,  foíTe  direyto  e  legitimo  íuceíTor 
do  reyno  ,  o  aueriao  por  bom  e  verdadeyro.  Aos  mouros 
todos  pareceo  bem  ifto  ,  que  diziao  os  capitães ,  e  o  Xa- 
rafo  por  cumprir  com  elles  ,  e  cos  feus  defenhos  fecretos  y 
fez  Rey  hum  moço  de  doze  annos,  íobrinho  do  Rey  mor- 
to a  quem  não  ncara  filho  ,  com  que  os  mouros  todos 
ficarão  quietos  e  contentes  ,  e  alguns  delles  começarão 
■vir  ha  cidade  ,  onde  andauao  pacíficos  e  íeguros ,  porque 
o  capitão  tinha  defeío  com  grandes  penas  ,que  ninguém 
l'atraueíTaíTe  nem  tiueíTe  differença  com  ninhum  delles. 
Tinha  o  Xarafo  então  configohum  irmão  leu  ,  chamado 
Rais  fabadim,  de  que  atrás  diííe  que  eílaua  em  íoar,  quan- 
do dom  Luis  o  entrou  e  faqueou  ,  o  qual  mouro  era  o 
mayor  inimigo  que  os  noííos  tinhão.  Efte  tanto  que  vio 
as  coulas  neíle  eílado  ,  que  moílraua  de  fy  paz  e  quieta- 
ção ,  como  era  de  natureza  foberbo  e  confiado  ,  fe  foy 
andar  polia  cidade  pacificamente  ,  como  andauao  os  ou- 
tros mouros,  de  que  o  capitão  tendo  logo  noticia  o  dií- 
íimulou  ,  fazendo  que  o  não  entendia  nem  atentaua  niíTo  , 
antes  lhe  fazia  a  vontade  em  tudo  o  que  queria  ,  e  não 
fomente  a  elle  íenão  a  todas  as  coufas  do  Rais  Xarafo 
trataua  com  moílras  de  muyta  amizade  ,  para  com  iíTo 
os  íegurar,  e  ver  fe  podia  dar  a  morte  a  ambos  os  irmã- 
os. Andaua  antr'eíles  mouros  hum  chamado  Rais  xeme- 
fim  ,  que  era  dos  mais  principaes  e  mais  poderofos ,  que 
aly  auia,  e  tinha  grandiííimo  ódio  ao  Rais  fabadjm  por  lhe 
cometer  deíoneftamente  fua  mãy  ,  e  por  efta  injuria  (  que 
elle  auia  por  muyto  grande)  delejaua  muyto  de  íe  vingar 
delle  :  eíle  vindo  a  íaber  das  amizades  ,  que  os  noííos  ca- 
pitães tratauão  co  Sabadim  e  co  Xarafo  feu  irmão  ,lhes 
efcreueo  huma  carta  eftranhandolhe  muito  as  amizades 
que  tinhão  com  elles ,  fendo  os  mayores  inimigos  que  ti- 
nhão os  Portugueies  ,  e  que  forão  caufa  do  aleuantamen- 
to  d'Ormuz  ,  e  de  todos  os  mallcs  que  os  noflos  ahy  re- 
ceberão ,  e  que  íoubeíTem  que  a  morte  dei  Rey  lhe  fora 
ordenada  pollo  Xarafo  para  fe  íegurar  do  mal  ,  que  lhe 
podia  vir  por  lua  cauía,  fe  fe  tornaile  a  concertar  cos  noí- 

fos, 


delRey  Dom  João  o  III.  79- 

fos  ,  e  para   ficar  fenhor  abfoluro  em  todo  o  reyno  ;  e 
pois  ifto  aísy  era,  como  conlentião  que  Rais  íabadim  an- 
daíTe  tao  foltamente  polia  cidade  íem  fua  licença,  c]ue  ibu- 
bclTem  que  elle  era  capital  inimigo  deite  mouro  ,  que  fe 
elles  o  não  tomaílem  mal,  elle  lhe  iria  dar  a  morte  dcniro 
na  cidade  ,  para  dar  vingança  aos  noíTos  dos  malles ,  que 
elle  lhes  tinha    feito  ,  e  tomalla  de  huma  grande  injuria 
que  tinha  recebido  delle  :  os  capitães  como  já  fabiao  cer- 
to o  ódio  entranhauel  ,  que  auia  antre  eíles  dous  mouros  , 
folgarão  muyto  com  eíla  carta  ,  entendendo  que  os  ofle- 
recimentos  delia  náo  podiao  fer  fingidos  ,  e  que  eíle  era 
hum  dos  milhores  meyos  que  podiao  ter,  para  vir  a  elíei- 
to  o  que  tanto   procurauao  ,  e  aísy  lhe  refponderao  agar- 
decendolhe  com  muytas  palauras  o  oíferecimento  ,  porem 
que  antes  de  o  pôr  por  obra  era   muyto  neceíTario  verfe 
com  elles  ,  para  tratarem  couf^is  de  m.uyta  importância  pa- 
ra todos  ,  e  por  que  não  tiueíTc  duuida  ou  receyo  de  o  fa- 
zer, lhe  mandarão   hum  íeguro  aífinado   por  ambos.    O 
mouro  em  vendo  o  feguro  teue  tal  jntelligencia  ,  que  en- 
trou na  cidade  defconhecido  ,  ond'efteue  até  que   huma 
noite   pôde   fccretamente  auer  fala  dos  capitães  ,  em  que 
elles   claramente  lhe   deícobrirao  a  tenção  com  que  mo- 
ílrauão  tanta  amizade  ao  Xarafo  ,  e  a  íeu  irmão  ,  que  elles 
bem  podiao  matar  o  Rais  fabadim  na  cidade  fe  quifeíTem, 
porem   que  não  cumpria  fazello  ,  por  que  feria  caufa  de 
nunca   poderem  auer  o  Xarafo  ha  mão ,  que  era  ornais 
importante  ,  e  o  que  elles   mais  pretendiao  para  lhe  faze- 
rem dar  a  morte  ,  porque  com  ella  aueria  paz  e  concertos 
em  Ormuz  ,  o  que  fendo  elle  viuo  tinhão  por  impofliuel , 
que  felle  quiíeíTe  fer  o  miniílro  defta  morte,  lhe  prometi- 
ão  e  jurauão  darlhe  por  iíío  o  cargo   que  o  Xarafo  tinha  , 
o  qual  dom  Luis  ,  quando  íe  da  ly  fora  ,  deixara  mandado 
que  fe  deíTe  a  quem  o  mataíTe  ,  e  diílo  deixara  hum  aílina- 
do  íeu.  E  que  fe  para  ifto  lhe  foíTe  neccflario  delles  algum 
fauor  e  ajuda  ,  lhe  dariao  toda  a  que  cumpriíTe.  Aluoroça- 
do  o  mouro  com  efta  oíferta  refpondeo  aos  capitães,  que 
pois  lhe  dauão  huma  tamanha  honra  a  troco  de  l'elle  vin- 
gar 


8o  Primeyra  Parte  da  Chronlca 

garde  Teus  inimigos,  ihcs  prometia  de  pôr  poriíTo  a  vida  y 
e  derte  concerto  íe  paliarão  eícritos,  quais  o  mouro  pidio, 
aílinados  pollo  capitão  ,  por  dom  Garcia  ,  e  por  dom  Gon- 
çalo íeu  irmão  ,  que  a  tudo  eíleue  preíente.  Com  ifto  fe 
defpedio  o  mouro  delles  bem  contente,  e  co  mefmo  íe- 
gredo  com  que  ueyo  fe  tornou  para  a  ilha  de  Queixome , 
lem  auer  delle  algum  fentimento  ,  onde  ,  porque  então 
auia  muyta  fome,  vfou  de  muyta  largueza  não  íómente  cos 
feus  ,  que  erão  muytos  a  que  pagaua  foldo  ,  mas  com 
mandar  dar  de  comer  a  quantos  o  querião  aceitar  dellc 
com  tenção  de  fe  fazer  bem  quifto  ,  para  ter  de  fua  par- 
te muytos  ,  que  o  ajudaíTem  no  que  trazia  determinado, 
e  não  íe  enganou  neíle  penfamento,  porque  com  illo  ajun- 
tou a  [y  tanta  gente  afora  a  ordinária  ,  que  trazia  com 
figo,  que  andaua  muyto  mais  acompanhado  que  todos  os 
outros  ,  quantos  aly  andauão  ,  e  parecendo-Ihe  ja  então 
que  podia  fair  com  a  emprefa  que  tinha  tomado  ,  íe  deí- 
cubrio  a  hum  íeu  primo  que  trazia  em  íua  companhia, 
homem  animofo  e  de  que  fe  confiaua  muyto  ,  a  que  pe- 
dio  pois  era  feu  fangue  o  quiielTe  ajudar  a  dar  a  morte 
a  Rais  fabadim  em  vingança  da  injuria,  que  fabia  que  lhe 
tinha  feito  ,  e  apoz  elle  dalla  também  ao  tredor  de  R.ais 
Xarafo  ,  de  quem  fe  íabia  certo  que  matara  íeu  Rey  por 
fe  fazer  fenhor  abfoluto  do  reyno  ,  para  o  que  tinha 
certo  o  fauor  dos  Portuguefes  ,  pois  lhe  dauão  vingan- 
ça de  quem  lhes  tinha  feiro  tantos  e  tamanhos  males. 
O  mouro  aceitou  a  emprefa  de  boa  vontade  ,  para  a  qual 
eícolheo  antre  os  feus  amigos  e  de  íeu  primo  duzentos 
frecheyros,  os  que  conhecia  por  mais  deítros,  e  de  que  íe 
mais  íiaua  que  tr.izia  fempre  comíigo. 


C  A- 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  8 1 

CAPITULO     XXÍIII. 

Daffe  a  morte  a  Ra:s  fabadim  ,  o  Xarajo  foge  de  Queixo- 
me  e  entra' fecretamente  em  Ormuz  ,  o  capitão  o  pren- 
de  ,  fnz-fe  paz  com  el  Rey  efe  vem  para  a  cidade.  Dom 
Garcia ,  e  dom  Gonçalo  Je  partem  para  a  índia  ,  e  o  que 
lhe  fuccde, 

SEndo  ifto  afsy  detrlminado  antre  os  dous  primos , 
Rais  Xemefim  no  dia  em  que  quis  pôr  por  obra  eíla  íua 
dctriminação  íe  foy  polia  menliam  haeftancia  doRais  Xa- 
rafo  acompaniiado  de  toda  a  íua  gente  ,  e  junto  comíigo 
Jeuaua  o  leu  parente  com  todos  os  íeus  írecheyros  ,  que 
todos  aly  tinhao  por  coílume  irem  todas  as  menhas  ver 
o  Xarafo  e  fazerllie  calema  ,  c  entrando  em  huma  cerca, 
que  eftaua  diante  da  cafa  ,  encontrou  co  P\ais  Sabndim 
irmão  do  Xarafo  ,  que  por  modo  de  efcarneo  diíTe  para  o 
mouro  que  vinha  ,  calema  ,  coge  Xemefim  :  o  mouro  Xe- 
mefim afrontado  e  raenencorio  de  íe  ver  tratar  com  ácÇ- 
prezo  ,  ajuntando  eíla  noua  ocauao  ha  tenção  que  tr97Ín  , 
diíTe  a  feu  primo  ,  mata  eíle  tredro  ,  o  mouro  íem  fazer 
mais  detença  lhe  meteo  huma  frecha  polia  garganta  com 
que  logo  cahio  morto.  O  Xemefim  vendoo  daquella  ma- 
neyra  paíTou  a  diante  em  buíca  do  Xarafo  ,  dizendo  a 
grandes  vozes  mioura  o  tredro,  que  matou  el  Rey  feu  íe- 
jihor  e  noíTo  ,  e  como  elle  era  muito  mal  quiílo  a  pez  ci- 
tas vozes  íe  leuantarao  outras  d'ouiros  mouros  ,  que 
dizião  o  mefmo  ,  com  que  fe  fez  hum  tamanho  eflrcndo 
e  aluoioço  ,  que  chegou  as  orelhas  do  Xarafo  antes  que 
pudeíTem  chegar  a  elle  ,  o  qual  entendendo  a  cauía  da- 
quella reuolta  fugio  com  muyta  preíía  ,  e  fe  efcondeo  de 
tal  maneyra,  que  nunca  o  puierao  achar;  porem  vendo 
que  eíl*auão  todos  leuantados  contra  elle  ,  e  que  aly  n:Ío 
podia  efcapar  de  fuás  mãos ,  {c  paíTou  fecretamente  a  Or- 
muz em  trajo  de  trabalhador  ,  onde  efleue  efcondido 
que-  ninguém  lábia  delle.  E  daly  efcreueo  huma  carta 
aos  capitães ,  pedindolhe  fcguro  da  vida  em  nome  del- 
F.arte  I.  L  Rey 


?ji         Primeyra  Parte  da  Chronica 

Rey  de   Portugal ,  e  que  iria  tratar  com  elles  couías  de 
inuyta   importância  ,  de  que  elles  ficarão  aíTaz  contentes  , 
vendo  que  o   tinhao  táo  perto,  c  logo  lhe  mandarão  o 
feguro  na  íua  inefma  carta  ,  e  outro  de  fora  aíTmado  e 
retiricado  por  ambos  ;  porem  quando  lhe  mandarão  eíle 
legura  não  tinhao   ainda  noticia  do  que   paflara  na  ilha 
de   (^aeixome  ,  nem  que  viera  elie  aly  fugido,  e  neíle 
melmo  dia   teue  o  capitão  huma  carta  do  Rais  Xemefitn 
em  que  lhe  daua  conta   do  que  era  feito  ,  e  que  o  Xara- 
fo  era  fugido  ,  que  mandaííe  ter  efpias  na  cidade  ,  porque 
lhe  dizião  que  para  Ia  fe  auia  de  pafTar  :  com  eíle  recado 
ficarão  os  capitães  muyto  emfadados   e  arrependidos  do 
leguro  ,  que  tinlião  dado,  porem  como  ja  não  tinha  remé- 
dio o  capitão  fez  tantas  diligerjcias  ,  até  que  veyo  a  íaber 
a  caía  em  que  eílaua  o  Xarafo  ,  e  que   eípcraua  por  hu- 
ma embarcação  para  fe  aufentar  ;  os  capitães  então  de* 
triminarão   que  íe  deíTe  na  cafa  com  gente  ,  c  achando-o 
fe  fingiíTe  huma  briga  ,  cm  que  fe  lhe  deíTe  a  morte  ,  para 
que  defta  maneyra  ficaíTem   deíobrigados  do  feguro  que 
lhe  tinhao  dado.    Com  eíla   detriminação  fe  foy  o  capi- 
tão acompanhado  dos  que  parcceo  neceffario  ,  e  dando 
na  caía  onde  elle  eílaua  o  trouxe  preío  ,   e  deípois  de  o 
ter  em  feu  puder  mudou  o  coníeiho  e  o  não  quis  matar, 
não  fem  íofpeita  de  fazer  com  elle  íeu  proueito  ,  e  tra- 
-zendo-o  ao  íeu  apoíento   o  meteo  em  huma    cafa  carre- 
gado de  ferros,  com  que  lhe  pareceo  que  o  tinha  feguro, 
porque  elle  tinha  a  chaue   delia  ,  que  de  ninguém  a  íia- 
ua  ,  c  ninguém  communicaua  nem  fallaua  com  elle  ;  po- 
rem o  mouro  ,  como  era  íagaz  e  fabia  bem  como  íe  auia 
de  gouernar  ,  debaixo  deíle  apertado  encerramento  teue 
iTaneyra  para  cfcrcucr  cartas  a  ilha  de  Queixome,  em  que 
diíTe  que  eílaua  viuo  dentro  na  fortaleza  ,  donde  auia   de 
ter   poder  para   feliurar,eir  dar  a  morte  ao  trédro   de 
Rais  Xemeíim,  e  a  todos  íeus  parciaes  e  amigos  ,  porem 
os   mouros ,  como  íouberão  que  eílaua  preío  na  fortale- 
za, fe  ouuerão  por  feguros  dellc,  e  fízerão  pouco  caio  dos 
icus  ameaços.  Os  capitães  eícreuerao  ao  Rais   Xemeíim 

car- 


dei  Rcy  Dom  João  o  III.  83 

cartas  em  que  lhe  dauío  íigradecinicntos  pollo  que  fize- 
ra ,  e  com  raiiyras  palauras  lho  engrandeciao  ,  e  lhe  pe- 
dião  que  vieííe  logo  a  Ormuz  para  Jhe  darem  o  premio 
que  poriílo  merecia.  O  mouro  í"'abalou  logo,  e  entrou  em 
Ormuz  com  Teu  primo  e  toda  a  íua  gente  comílgo,  a  quem 
os  capitães  fizerão  muytas  honras  ,  e  o  meterão  em.  polle 
do  goazilado  do  reyno,  e  elle  deípois  de  lhe  dar  as  gra- 
ças por  tudo  fe  queixou  algum  tanto  co  capitão  ,  por- 
que prendera  o  Xarafo  e  o  não  m.atara  ,  que  não  deixa- 
lia  de  fer  afronta  para  os  Portuguefes  terem  hum  tre- 
dro  dentro  na  íua  fortaleza  quer  viuo  quer  morto  ,  o 
qual  daly  dond'eílaua  eícreuera  a  Queixome  cartas  de 
grandes  ameaços,  afirmando  que  ?.uia  de  fair  d'aquella 
prisão,  e  fauia  de  vingar  de  todos  léus  inimigos ,  que  lhe 
lembraua  que  fenão  deíle  a  m.orte  a'quelle  rredro  ,  que 
tanto  mal  tinha  feito  aos  Portugucfes  ,  fe  punha  a  rilco 
de  dar  muyto  que  faiar  ha  gente,  e  fe  foípeitar  delle,  que 
o  fazia  por  algum  grande  interefíe  que  dahy  efperaua  , 
e  por  iíío  olhaíle  bem  o  que  cumpria  a  fua  honra  ,  e  ao 
íeruiço  dei  Rey  de  Portugal.  O  capitão  lhe  reípondeo,  que 
não  deixaua  de  entender  aquillo  de  que  o  auifaua  ,  mas 
que  por  certo  negocio  que  era  paílado  ,  que  elle  deípois 
viria  a  laber  ,  não  era  poíliuel  daríe  por  então  a  morte  ao 
Xarafo  ,  que  o  gouernador  viria  muyto  cedo  e  faria  o 
que  foífe  juftiça  ,  que  na  prisão  foubelTe  certo  que  efla- 
ua  a  muyto  bom  recado ,  e  que  pois  tudo  eftaua  feguro 
IhQ  pedia  muyto  ,  que  fizeíTe  com  el  Rey  que  fc  quiíeíle 
vir  para  a  fua  cidade  d'Ormuz  ,  que  íempre  leria  íua  em 
quanto  os  portugueíes  tiuelTem  vida.  O  nouo  goazil  lhes 
prometeo  que  tomaria  iílo  a  feu  cargo  ,  e  faria  tudo  o 
poíTiuel ,  mas  que  era  neceilario  fazerfe  algum  concerto 
de  paz  e  amizade  ,  para  que  el  Rey  com  todos  os  íeus 
pudeíTem  vir  feguramcnte  ,  o  qual  os  capitães  lhe  con- 
cederão logo  na  forma  que  el!e  e  feus  companheiros  lho 
pedirão  ,  e  foy  que  el  Rey  com  todos  os  nobres  e  todo 
o  pouo  íe  podia  vir  íeguramente  para  a  cidade  ,  ond'eíl'a- 
ria  com  todo  o  poder  ,  mando  ,  e  autoridade  real ,  que 

L  2  íem- 


84  Pfimeyra  Parte  da  Chronica 

fcmpre  os  Reis  nella  tíuerão  ,  até  a  vinda  do  goiíernador, 
que  aíientaria  com  elle  a  paz   com  as  condições  que  lhe 
pareceíle  ,  as  quais   íenao    foííem   a   conteniamento   dei 
Rey  e  dos  íeus  ,  íe  poderião  tornar  liiiremente  para  on- 
de'ílauáo  ,  e  diílo  lhe  paílarão  os   capitães    íeus   efcritos 
confirmados  e  retifícados  com  juramentos  ,    e  aíTmados 
por  elles  e  por  todos  os  fidalgos    que   eflauão  na   forta- 
leza ,  de  que  os  mouros  ficarão  íatisFelros  ,  e  paíTandof- 
le  logo  a  Queixome  derão  conta   a  el  Pvey  ea   íua  mãy 
(que   em  tudo  Falaua   por  elle)  do  que   paíTaua  ,  e  lhe 
moílrarão  o  feguro  que  leuauão,  de  que  todos  ficarão  con- 
tentes ,  e  também  o  ficou  o  pouo  de  ver  o  Rais  Xemefim. 
CO    cargo  de  goazií  ,   porque  de  todos   era    bem  quiflo  : 
el  Rey  determinando  paílarfe  ha  cidade  finalou  o  dia  em 
que  o  auia  de  fazer  ,  o  que  íabido  na  fortaleza  dom  Gar- 
cia íe  paíTou  eíTe  dia  ha  ilha  com  a  galé  e  com  o  bargan- 
tim  concertados  com    toldos  e  bandeyras  ,  o  milhor  que 
então  foy  pofilvel  ,  para  trazer  el  Rey  comfigo  ,  porem 
elle  não  quis  vir  fenão  nas  íuas  embarcações,  que  ja  rinha 
prefies  ,  e  dom  Garcia  com  as  íuas  o  veyo  acompanhan- 
do até  chegar  ha  cidade,  fazendolhe  fempre  pollo  caminho 
fefta  e  falua  cora  a  artilharia  ,  o  que  também  fez  a  forta- 
leza chegando  elle  ao  porto  ,  onde  foy  recebido  de  to- 
dos os  mouros  com   muytas  feftas  e  contentamentos  ,  e 
querendo  deíembarcar  o  capitão  com  todos  os  fidalgos  o 
forão  eíperar  ha  praya  ,  e  o  receberão  com  a  deuida  cor- 
tefia  e  acatamento  ,  e  acompanharão  até  fua  cafa  ,  onde  íe 
difpidirão  delle  com  palauras  de  muyta  amizade  ,  paz  ,  e 
íegu rança  ,  e  íe  tornarão  para  a  fortaleza  de  que  el  Rey  e 
todos   os  íeus  ficarão  muyto  contentes   e  fatisfcitos,   ea 
cidade  daly  por  diante  efteue  pacifica,  e  com  muyta  abun- 
dância de  todas  as  coufas.  Dom  Garcia  vendo  que   não 
auia  aly  mais  que  fazer  ,  e  que  as  couías  daquella  for- 
taleza eílauão  feitas  conforme  a  ordem   que  dom  Luis 
deixara,  fendo  então  ja  no  mes  deAgoílo  do  anno  de 
1522  ,  detriminou  irfe  para  a  índia  ,  porque  afsy  lho  dei- 
xara dom  Luis  no  íeu   regimento  ,  c  o  mefiiio  detrimi- 
nou 


delRey  Dom  João  o  III.  85* 

nou  dom  Gonçalo  feu  irmão  ,  e  partlndoíTe  ambos  com 
bom  tempo  forao  tomar  o  porto  de  Mazcate  para  faze- 
rem agoada,  onde  eílando  furtos  lhe  deu  huma  noite  Jium 
temporal  tão  forte  e  huma  tão  braua  tempeílade  ,  que  a 
náo  de  dom  Garcia  trincou  duas  amarras ,  e  íem  fe  poder 
valer  foy  dar  íobre  hum  penedo  onde  fe  fez  em  pedaços, 
e  morreo  muita  gente  ,  e  íe  perdeo  muyta  e  muyto  rica 
fazenda  aísy  de  dom  Garcia  com.o  de  outros  homens  ri- 
cos que  nella  vinhao  :  eíles  vendo  que  a  náo  trincara  as 
amarras  ,  e  fua  perdição  diante  dos  olhos  ,  íe  deitarão  a 
huma*  efcotilha  ,  que  os  marinheiros  com  muyta  gente 
Jançarão  ao  mar,  porem  nem  ilfo  lhes  aproueitou,  porque 
aly  morreriío  todos  e  dom  Garcia  com  elles.  A  fúria  de- 
íla  tormenta  defpois  de  hum  grande  efpaço  começou  a 
amaníar  ,  e  quando  foy  menham  era  bonança  de  todo  , 
então  fe  virão  os  pedaços  da  náo  que  ficarão  fobre  os 
penedos  ,  onde  também  ficarão  alguns  horiíens  que  fe  lal- 
uarão.  O  galeão  de  dom  Gonçalo  como  era  mais  rafteyro 
não  tomou  tanta  força  de  vento  ,  e  largando  as  amarras 
compridas  atadas  humas  em  outras  íe  pôde  íuílentar  ,  eile 
então  ,  porque  o  tempo  lhe  daua  ja  lugar  ,  fe  foy  no  feu 
batel  ver  o  que  era  feito  da  náo  ,  e  vendoa  feita  em  pe- 
daços ,  entendendo  o  que  era,  e  que  aly  não  auia  que  fa- 
zer ,  com  muytas  lagrimas  polia  morte  de  feu  irmão  ç 
dos  outros  ,  que  aly  íe  perderão,  íe  tornou  ao  feu  galeão, 
donde  mandou  o  efcriuao  a  terra  a  dizer  ao  Xeque  ,  que 
mandaíTe  recolher  todo  o  fato  que  íaira  da  náo,  e  o  fi- 
zcííe  pôr  a  bom  recado  ,  o  que  o  Xeque  logo  fez  com 
inuyta  diligencia  e  íe  faluarao  ainda  muytas  coufas  de 
preço  ,  &  dom  Gonçalo  feguio  fua  viagem  para  a  índia. 
Deípois  diífo  fucedco  matar  hum  Português  em  deíafío 
ao  mouro  primo  de  Rais  xemefim  ,  fobre  o  que  por  íeu 
mandado  forão  mortos  em  huma  briga  dous  dos  nofíos. 
O  que  o  capitão  por  então  diífimulou  por  não  quebrar 
a  paz  ,  que  eílaua  feita  ato  a  vinda  do  gouernador,. 


CA- 


86         Primeyra  Parte  da  Chronica 
CAPITULO    XXV. 

El  Rey  dom  João  mjp)  fenhor  muda  o  eflillo  de  receber  o 
embaixador  do  Émperador  em  differente  modo  de  que 
'vfaua  el  Rey  dom  Manoel  feu  pay  ,  e  a  rezao  porque, 

EL  Rey  Dom  Manoel  noffo  fenhor  ,  que  fanta  gloria 
aja  ,  teue  por  coftume  aos  embaixadores,  que  em  íeu 
tempo  lhe  vierao  do  Émperador  ,  dei  Rey  dom  Fernan- 
do o  católico  feu  fogro  ,  e  dei  Rey  de  França  ,  quando 
entrauâo  polia  porta  da  cafa  ,  onde  os  efperaua,  leuântar- 
íe  da  cadeyra  em  que  eftaua  aííentado  ,  e  em  chegando 
a  elle  pôr  a  mão  no  barrete  e  bolillo  hum  pouco  da  ca- 
beça ,  e  aísy  em  pec  com  a  mão  poíla  na  cadeyra  lhe  bei- 
jauão  elles  a  mão  ,  e  lhes  tomaua  as  cartas  de  crença  , 
e  os  ouuia  até  os  defpedir  ,  e  íe  logo  querião  tratar  com 
elle  algum  negocio  íe  paííaua  com  elles  para  outra  cafa  , 
onde  aíTentados  em  efcabellos  com  alcatifas  em  cima  os 
ouuia.  Deíle  mefmo  termo  vfou  el  Rey  dom  João  noíTo 
fenhor  feu  filho  com  Moníeur  de  la  Chaulx,  que  foy  o 
primeyro  embaixador  que  a  elle  mandou  o  Émperador 
Carlos  quinto  do  nome  ,  Rey  de  Caílella  íeu  primo  ,  e 
veyo  em  tempo  que  fua  Alteza  eftaua  apofentado  em  San- 
tos ,  donde  o  mandou  buícar  honradamente  ,  e  o  efperou 
na  camará  grande  que  eílá  alem  da  fala.  Porem  deípois 
que  fua  Alteia  fendo  ja  leuantado  por  Rey  mandou  a 
Caftella  por  feu  embaixador  Luís  da  filueyra  a  vifitar  o 
Émperador  ,  e  darlhe  os  parabéns  de  fua  vinda  de  Frau- 
des a  Hefpanha  ,  e  foube  que  o  Émperador  o  recebera 
aííentado  na  cadeyra  até  chegar  a  elle,  e  lhe  querer  dar 
a  c^rta  de  crença  ,  e  começar  de  lhe  falar  ,  e  que  então  fe 
leuantara  ,  e  o  ouuira  em  pé  ,  vindo  defpois  a  fua  alteza 
o  Doutor  Cabreyro  embaixador  do  Émperador  ,  que  elle 
mandara  em  companhia  do  conde  de  Cabra  ,  e  do  Biípo 
de  Cordoua  para  leuarem  para  Caílella  a  Rainha  dona 
Leanor  fua  irmam  ,  molher  que  fora  de  el  Rey  dom  Ma- 
noel que  íanta  gloria  aja  (  porem  o  conde  e  o  Biípo  não 

en- 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  87 

entrarão  então  nefte  reyno  ,  e  ficarão  em  Badajoz  )  quan- 
do chegou  a  elle  o  doutor  Cabreyro  o  rccebeo  na  meíma 
forma  ,  que  o  Emperador  recebera  a  Luis  da  filueyra  ,  o 
qual  doutor  chegou  a  Lisboa  a  22  dias  do  mes  de  No- 
uembro  do  anno  de  1522. 

CAPITULO    XXVL 

O  Rey  da  ilha  de  Ternate  em  Maluco  manda  hum  emhai^ 
xador  a  Garcia  de  fá  fobre  jazer  huma  fortaleza  na 
jua  terra  ,  a  repojla  que  tem ,  e  a  ocaficío  donde  ijio  nace, 

DEípois  daquella  rota  que  os  noíTos  tiuerao  em  Bin- 
tão  o  anno  de  1521,  fendo  capitão  de  Malaca  Jorfe 
de  Albuquerque,  António  de  Brito  ,  que  por  prouiíão 
dei  Rey  dom  Alanoel  íucedera  a  Joríe  de  brito  íeu  ir- 
mão (  que  morrera  íobre  a  cidade  de  Dachem  no  cargo 
de  ir  fazer  huma  fortaleza  em  Maluco)  faindo  muvto  fe- 
rido do  fuceíTo  de  Bintão  em  que  também  fe  achou  pre- 
fente  com  Joríe  dalbuquerque  ,  íe  recolheo  ha  fua  arma- 
mada  que  era  de  féis  vellas  ,  a  qual  proueo  de  alguns 
capitães  e  officiaes  nouos  por  falta  dos  que  morrerão 
naquella  peleja,  e  daly  fez  íua  viagem  para  a  ilha  da  Jaoa, 
onde  efperou  a  monção  para  ira  Maluco.  Mas  para  mi- 
Ihor  entendimento  do  que  fe  fegue  me  he  neceílario  tor- 
nar hum  pouco  a  trás ,  e  tratar  de  algumas  coufas,  que  fu- 
cederão  no  tem.po  dei  Rey  dom  Manoel  ,  que  também 
deuem  eílar  efcritas  na  fua  crónica.  Garcia  de  íá  íendo 
capitão  de  Malaca  arm.ou  hum  junco,  em  que  meteo  vin- 
te e  cinco  Portuguefes  com  muitas  mercadorias  ,  e  por 
feitor  hum  Franeiíco  ferrão  homem  de  muyta  conta  ,  e 
os  mandou  que  foíTem  a  Banda ,  os  quais  com  proípcra 
viagem  chegarão  ao  porto  ,  onde  pacificamente  fizerão 
tão  bom  emprego  ,  que  eíperarão  tornando  a  Malaca  fi- 
car todos  ricos,  porem  no  caminho  Jhes  deu  huma  tão 
rija  tempeílade  ,  que  o  junco  íe  perdeo  ,  e  todos  os  Portu- 
gueíe  fe  não  ialuarão  mais  que  oito  com  Franciico  fer- 
rão 


88  Primeyra  Parte  da  Chronica 

ráo  no  batel  do  junco  ,  os  quais  co  tempo  forao  dar  cm- 
Amboino  numa  terra  chamada  Rucutello  onde  forao 
muyto  bem  recebidos  ,  e  cora  inuytos  gaíalhados  ,  por- 
que a  gente  daquella  terra  trazia  guerra  com  feus  vizi- 
nhos ,  e  como  íabiáo  os  grandes  feitos  que  os  noíTos 
continuamente  faziao  em  Malaca  ,  elperauão  de  í'e  apro- 
ueitar  delles  nefta  íua  neceílidade  ,  e  foi  lhes  ifto  de  tan- 
to proueito  ,  que  fabendo  feus  inimigos  que  os  tinhão 
comíígo  logo  fizerão  concertos  de  paz  e  amizade  com 
elles.  Chegando  as  nouas  diílo  ao  Rey  de  Ternate  fe  me- 
teo  em  dous  barcos,  e  foi  em  buíca  dos  noíTos ,  e  com 
muitas  coufas  que  lhe  deu  ,  e  promeíías  que  lhe  fez  ,  os 
leuou  comfigo  para  o  ajudarem  contra  o  Rey  de  Tido- 
re  com  que  trazia  guerra  ,  porem  os  noílos  defejofos  de 
efcufar  os  trabalhos  e  perigos  que  aly  fe  lhe  oíferecião  , 
confultando  antre  fy  o  modo  que  para  iíTo  teriao  ,  íe  re- 
foluerão  em  fe  meterem  por  terceiros  antre  eíles  dous 
Reys  ,  e  trabalharem  pollos  meter  em  paz  ,  e  fucedeo- 
Ihes  também  efte  coníelho  ,  que  os  dous  Reis  por  feu 
meyo  ficarão  concertados  e  amigos  ,  caiando  o  Rey  de 
Ternate  com  huma  filha  do  de  Tidore  ,  com  que  tudo 
ficou  pacifico  ,  e  os  noífos  tao  eílimados  delles  e  com 
tanta  autoridade  na  terra,  que  todos  nella  lhe  obedeciao. 
No  meímo  anno  que  ifto  paíTou  ,  que  foy  o  de  15 iH,  che* 
gou  a  Maluco  dom  Triftâo  de  menefes  com  três  náos 
para  carregar  de  crauo  ,  que  erao  de  hum  contrato  que 
trouxera  por  el  Rey  o  anno  dantes  de  i^iy  ,  e  furgio  na 
ilha  de  Ternate  onde  os  noíTos  eílauao,  aquém  o  Rey 
fez  muyto  bom  recebimento  com  muytas  honras  :  elle 
vendo  que  para  carregar  as  fuás  náos  auia  mifter  muy^ 
ta  cantidade  de  crauo  detriminou  ,  conforme  ha  infor- 
mação que  os  noíTos  lhe  derão  da  terra  ,  de  o  fazer  em 
ambas  as  ilhas  de  Ternate  e  de  Tidore  ,  e  para  iíTo  man- 
dou preíentes  a  ambos  os  Reys,  que  ambos  aceytarão  com 
muyto  gofto  ,  e  andauão  a  competência  aquém  lhe  da- 
ria mais  crauo  ,  com  que  lhe  derão  muyto  bom  auia- 
mento  ,  e  a  fua  náo  ,  que  fa^ia  muyta  agoa,  foy  ali  muyto 

bem 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  89 

bem  concertada  ,  e  repairada  de  rodo  o  neceíTario  ,  e  to» 
das  as   três   náos   forao  breueiriente  carregadas  ,  dando 
hum  pano  azul  de  Cambaya  ,  que  valia  hum  cruzado,  por 
hum  bar  de  crauo  ,  que  tinha  quatro  quintais  de  peio.   O 
Rey  de  Ternate  cubicando  eíle  contrato  para  Cy  fá  pollo 
proueito  que  delle  efperaua  ,  e  porque  entendia  que  ten- 
"doo  cos  noíTos  teria  íempre  íeu  fauor  e  ajuda  contra  íeus 
inimigos  ,  communicou   efte  íeu  penfamento  com   Fran- 
cifco  íerrão  de  quem  íe  fiaua  inuyto  ,  e  lhe  perguntou  o 
modo  que  teria  para  iflo  vir  a  eííeito  ,  e  por  íeu   coníe- 
Iho  mandou  fazer  preftes    hum    embaixador  com   hum 
bom  preíente  e  cartas   para  Garcia  de  fá  ,  em   que  \hz 
pedia  muyto  que  naqueila  fua  ilha  de  Ternate  manduíTe 
fazer  huma  fortaleza  ,  porque  elle  queria  dar  abediencia 
a  el  Rey  de  Portugal  ,  e  fazeríe  daly  por  diante  íeu  va''- 
íallo    com    todos  os  que  delle  decendefiem ,  e  que  para 
eíla  fortaleza  não  auia  miíler  mais  que  mandar  capitão 
e  gente  que  a  pufeííe  com  ordem  ,   que  elle  á  íua  cuíla  e 
cos  íeus  a  queria  fazer,  lem  lhe  a  elle  cuftar  nada  ,  e  que 
daquy  não  queria  outro  intereíTe  fenao  ter  fortaleza  dcl 
Rey  de  Portugal  em  fua  terra  ,  porque  com  ellàeípera- 
ua  ter  força  e  poder  contra   feus  inimigos  ,  e  honra  fo- 
bre  todos   os  Reys  daquellas  partes.  E   em   companhia 
deíle  íeu   embaixador  mandou  também  o  mefmo  Fran- 
cifco  íerrao  com  três  companheiros  feus,  porque  rodos 
os  mais  erão  ja  mortos  ,  aos  quais  fez  muytas  m.erces  , 
e  ao  Francifco  ferrão  particularmente  encomendou  muy- 
to eíle  negocio,  e  o  feu  embaixador  que  para  iílo  man- 
daua.  E  tanto  que  dom  Triílao  eíleue   de  todo  preíl-s 
(aquém  também  el  P.ey  e  nos  capitães  das  ourras  náos 
fez  muytas  mercês  ,  porque  também  delles  recebera  pre- 
fentes  )  o  Franciíco  ierráo  e  o  embaixador  íe  embarcarão 
com  elle,  c  chegarão  todos  em  faluo  a  Malaca,  onde  Gar- 
cia de  íá  vendo  o  oííerecimento  que  o  embaixador  dei 
Rey  de  Ternate  lhe  fazia  em  feu  nome,  lhe  pareceo  ne- 
gocio de  muita  fuílancia  ,  e  que  fe  deuia  de  lançar  mão 
por  elle,  e  com  a  particular  informação  que  tomou  de 
Parte   I,  M         ""  Fran- 


()0  Prinieym  Parte  da  Chrouica 

Franciíco  ferrão  ,  c  dos  outros  Portuguefes  ,  c  também 
de  dom  Triílao  ,  entendeo  que  feria  coufa  de  muyto 
feruiço  dei  Rey  rnandaríe  fazer  aquella  fortaleza,  e  co- 
meteo  a  dom  Triílao  que  (ornaííe  a  fazelia  ,  e  foíTe  capi- 
tão delia,  do  que  elle  íe  efcufou  com  juítas  rezóes  ,  e 
juntamente  lhe  diíTe  que  fazer  fortaleza  noua  íem  efpe- 
cial  mandado  dei  Rey  era  matéria  de  muyta  confidera- 
ção  ,  principalmente  pois  íe  podiao  aproueitar  de  Ma- 
luco ícm  o  gúlo  de  ter  lá  fortaleza  ,  que  era  muyto 
grande  ,  com  as  quais  rezoes  Garcia  de  íá  tornou  a  traz 
da  detriminaçaô  em  que  ja  eíVaua  ,  mas  porque  el  Rey 
de  Ternate  não  íicaíTe  íem  repoíla  ,  e  por  iflb  deícon- 
iiaíle  de  íe  ilie  conceder  a  mizade  e  comunicação  cos 
Portugueíes  que  pedia  ,  mandou  fazer  preíles  hum  na- 
uio  ,  e  iium  junco  que  carregou  de  mercadorias  da  fei- 
toria ,  e  mandou  lá  dom  Garcia  anriquez  fidalgo  hon- 
rado íeu  parente  ,  por  quem  lhe  mandou  cartas  era  que 
lhe  daua  os  agardccimentos  do  oferecimento  que  lhe  fi- 
zera ,  e  aceitaua  delle  a  paz  e  amizade  que  com  noíco 
queria  ,  e  de  lua  parte  a  coníirmaua  e  reteficaua  ,  porem 
que  a  fortaleza  nao  podia  por  então  mandar  fazer  íem 
licença  dei  Rey  ,  ou  do  gouernador  da  índia  ,  que  elle 
lhe  mandaua  logo  dar  conta  diífo  ,  e'tinha  por  fem  du- 
uida  que  mandaria  fazer  a  fortaleza  ,  e  que  tendo  elle 
recado  elle  lhe  daria  todo  o  auiamcnto  com  tanta  bre- 
uidade  que  elle  íicaíTe  contente,  e  com  illo  lhe  mandou 
lambem  hum  preíente  de  muyto  preço,  e  era  companhia 
de  dom  Garcia  foy  o  embaixador  dei  Pvey  ,  contente  do 
que  recebera  era  Malaca.  Dom  Garcia  chegou  a  lalua- 
inenroa  'l'ernatc  ,  onde  foy  recebido  dei  Rey  cora  muy- 
tas  honras,  e  muyto  contentamento  íeu  ,  polia  boa  re- 
poíla que  lhe  leuaua  ,  e  porque  ticou  com  grande  efpe- 
rança  de  ter  fortaleza  noíTa  em  fua  terra  ,  nao  quis  acei- 
tar o  trato  dos  Caílelhanos  ,  que  eíle  anno  chegarão  a 
Maluco,  dos  quais  dom  (larcia  recojheo  a  íy  todos 
quantos  eiíauão  eípalhàdos  por  Tidore  ,  e  por  outras  par- 
tes com  feguro   que  lhes  deu,  que  feriao   até  trinta  ,  e 

defpe- 


dcl  Rev   Dom  João  o  líí.  f;r 

defpedido  dei  Rcy  de  Ternate  ,  que  ficaua  com  muiro 
aluoroço  para  a  fortaleza  que  fe  auia  de  fazer  na  íua  meí- 
ma  ilha  ,  e  aíTy  o  mandaua  dizer  a  Garcia  de  (á  ,  fez  íua 
viagem  para  Malaca  ,  onde  chegou  a  faluamento  ,  Ie« 
uando  comíigo  os  Caífelhanos  ,  de  que  fe  fez  o  que  fe 
conta  largamente  na  Chronica  dei  Rey  dom  Manoel ,  e 
onde  achou  ja  Joríc  dalbiiquerque  por  capitão  dwi  forta- 
leza. 

CAPITULO     XXVIÍ. 

António  de  Brito  chega  a  Maluco  ,  aíTenta  pa^  com  a  Ra^ 
inha  de  Ternate  ^  começa  afazer  fortalez-a  ,  e  algumas 
coujas  particulare  e  que  lhe  fucedeuu 

ANtonio  de  brito  ,  que ,  como  atraz  diíTe  ,  dcfpois 
da  rota  que  os  noflos  tiuerao  em  Bintiio  íe  reco- 
lhera com  fua  armada  na  ilha  da  Jaoa  a  efperar  a  mou- 
ção  ,  em  que  pudeííe  nauegar  para  jMaiuco  ,  em  chegando 
fe  fez  ha  vella  e  com  profpcro  tempo  chegou  a  íaluamcnto 
a  Maluco  em  Mayo  do  anno  de  15" 2,2,  e  le  deluiou  da  ilha 
de  Tidore  ,  e  foy  demandar  a  de  Ternate,  porque  ahy  le- 
uaua  detriminado  de  fazer  a  fortaleza,  onde  achou  que 
era  morto  0  Rey  noíTo  amigo  ,  de  quem  auia  fama  que 
o  matara  elRey  de  Tidore  feu  fogro  com  peçonha  e^n 
hum  banquete,  por  máos  coníeihos  que  os  Caílslhanos 
lhe  tinhâo  dado  contra  elie  ,  pollosnão  querer  confen- 
tir  em  íua  terra.  E  porque  do  Rey  morto  ficara  hum  íi- 
Iho  de  pouca  idade  j  a  Rainha  lua  may  gouernaua  o 
Reyno  por  elle,  a  qual  tanto  que  António  de  brito  fur- 
gio  no  porto  o  mandou  logo  vifitar,  e  darlhe  os  para- 
béns da  vinda,  que  ella  recebera  muyto  goílo  de  o  ver  em 
fua  terra  ,  onde  fe  lhe  faria  tao  bom  tratamento  como 
elle  veria  ,  porque  íeu  marido  quando  falecera  lhe  dey- 
xara  muyto  encom.endado ,  que  vindo  Portuguefes  ha  íua 
terra  lhe  fizeíTe  muytas  honras  ,  e  afíentaíle  com  eiies 
paz  e  amizade  ,  e  com  elles  fizeíTe  íeu  trato  ,  e  lhe  dci- 
xaíle  aly  fazer  fortaleza  fe  cUes  quifeííem  ,  e  ella  aíFy 

M  2  lho 


5)2  Priíneyra  Parle  da  Chronica 

prometera,  e  eftaua  prcTEcs  para  o  cumprir,  António  de 
brito  reccbeo  eíle  recado  com  muyro  goílo  ,  e  fez  inuy- 
tas  honras  a  quem  lho  trouxe,  por  quem  mandou  á  Rai- 
nha os  deuidos  agardecimentos ,  e  pidir  licença  para  a  ir 
ver,  que  lhe  ella  concedeo  fiicil mente  ,  e  ao  outro  dia 
fe  foy  a  terra  acompanhado  dos  principais  da  íua  arma- 
da ,  to.ios  bem  veílidos,  e  com  fcus  moços  que  lhe  le- 
iiauâo  lanças  ,  e  adargas  ,   e  ao  deíembarcar  o  vierao  re- 
ceber os  mandaris  ,  que  íao  os  principais  da  terra  ,  acom- 
panhados de   muyta  gente  ,  que   com   muytas   honras  e 
jefuas  o  ieuarão  ha  Rainha  ,  que  eílaua  aílentada  de  den- 
tro da  porra  de  huma   camará  ,  e  na  porta  armado   hum 
pano  de  maneira  ,  que  lhe  lúo  aparecia  mais  que  o  roílo  , 
e  daly  íem  fe  bulir  recebo  António  de  brito  com  muyro 
gafalhado  e  boas   palauras  ,   em   que  raoílraua   ter   goílo 
da  fua  vinda  ,  ao  que   António  de    brito  fazendo) he  as 
deuidas   corteíias   tornou    por  repoíla  ,  que   em  eílremo 
eílaua  ícntido  de  naò  achar  viuo  elRey  íeu  marido  ,  para 
lhe  moíbrar  por  obras   quão  conhecido  eftaua   da   obri- 
gação em  que  lhe  erao  os  Portuguefes  ,  mas  que  a  cila  , 
por  quem  era  ,  e  por  ficar  em  feu  lugar  ,  faria  todos   os 
íeruiços  que  fe  deuiao  a  elle  e  a  ella  ,  e  naquella  fua  ter- 
ra faria  huma  fortaleza  em  nome  dei  Rey  de  Portugal , 
onde  poria  feitoria  ,  e  aílentaria  hum  trato  ,  que  para  ella 
e  para  toda  a  íua  terra  foííe  de  muyro  proueito  ,  de  que 
a  Raii-ha  fe  moílrou  muyto   contente  ,  e   lhe  diíTe  que 
naquella  terra  íízeííe  tudo  como  fe  fora  própria  dei  Rey 
de   Portugal,  e  que  para  fazer  a  fortaleza  lhe  daria  to- 
da ajuda  ,  que  lli-j-folle  neceíTaria  :  António  de  brito  lhe 
íigirdeceo  ifto  quanto  era  razão,  e  lhe  oíFereceo  hum  pre-  . 
fentc  que  lhe  leuaua  de   algumas  patolas   de  íeda  ,  que 
são  panos  que  fe  fazem  em  Cambaya  ,  e  em  Maluco  íc 
eílimão  muyro,  e  outros  panos  ricos  d'ouíras  fortes  ,  e 
vaíilhas  d'agoa  roíada  ,  e  corae?  ,  e  hum  efpelho  muyto 
íerinoío  ,   de  que  a  Prainha  moíirou  quetinlia  particular 
goílo  ,e  com  iílo  delpedido  delia  ,  que  também  lhe  deu 
graças  pollo  p relente  ,  fe  tornou  ha  praya  acompanha- 
do 


./ 


dei  Rey  Dom  João  o  IIL  ^3 

do  dos  meímos  mandaris  ,  que  por  íua  via  Uie  fizerão 
muytos  comprimentos  ,  e  fe  lhe  oíícrecerão  para  o  fer- 
uirem  em  tudo  o  que  pudeíTem  ,  e  aly  aíTentou  lego  com 
elles  o  lugar  que  lhe  pareceo  miUior  e  mais  acomodado 
para  fazer  a  fortaleza  ,  que  era  apartado  pouco  efpaço 
da  pouoaçâo  ,  para  o  que  mandou  logo  armar  huma  gran- 
de tenda  feita  de  vellas  íobre  páos  ,  que  os  mandaris  lhe 
mandarão  trazer,  e  a  cercou  d'outros  groíTos  páos  e  taboas 
que  lhe  elles  também,  derão ,  com  que  fez  huma  eílancia 
em  que  logo  fe  deíembarcou  fato,  armas,  e  artilharia 
encarretada  que  trouxera  do  reyno  ,  e  com  ifco  lhe  or- 
denou huma  rranqueyra  aliáz  forre  ,  e  em  que  bem  íe 
podia  defender  de  qualquer  encontro.  O  que  fendo  fa- 
bido  polia  Rainha  ,  parecendclhe  que  iflo  era  fomente 
o  que  António  de  brito  queria  fazer  ,  e  que  aly  fe  aíTen- 
taua  fem  querer  fazer  mais  obra  ,  lhe  mandou  dizer  que 
eícuíalTe  aquelle  trabalho,  porque  ella  queria  que  em  íua 
terra  íe  fizeíTe  fortaleza  como  a  de  Malaca  ,  ao  que  lhe 
elle  refpondeo  que  a  não  podia  fazer  fem  ella  e  os  rege- 
dores do  reyno  em  nome  dei  Rey  feu  filho  lhe  darem 
hum  efcrito  aílinado  por  ella  e  por  elles  ,  em  como  lhe 
dauão  licença  para  fazer  aly  a  fortaleza  ,  e  d'iíTo  erão  lo- 
dos contentes,  o  qual  lhe  ella  logo  mandou  na  forma 
que  o  elle  pidio.  Apoz  iílo  fez  António  de  brito  huns 
apontamentos  ,  em  que  pôs  as  condições  com  que  auia  de 
fazer  a  fortaleza,  que  erão,  que  os  preços  das  roupas  e  do 
crauo  íerião  os  que  eflauao  em  coílume,  íem  auer  nellcs  al- 
teração ,  e  que  o  crauo  fenao  daria  a  ninhuns  outros  mer- 
cadores ,  e  que  íe  na  terra  não  ouueíle  tanta  cantidade 
de  crauo,  quanta  lhe  foííe  neceíTaria  ,  os  feitores  dei  Rey 
de  Portugal  o  poderiao  mandar  comprar  liuremcnte  por 
onde  o  achaílem  íem  ninguém  lhe  ir  a  mao.  Os  quais 
apontamentos  António  de  brito  deu  a  Franciíco  ferrão 
(  que  achou  em  Ternate  ,  porque  fenao  tornara  para  Ma- 
laca ,  quando  daly  fe  tornou  dom  Garcia  anriquez  ,  como 
atraz  fica  dito)  que  por  íeu  mandado  os  leuou  ha  Ra- 
inha p  a  qual  por  coníelho  de  todos  os  feus  lhe  conccdeo 

quaa- 


p4  Primeyra   Parte  da  Chroiiica 

quanto  nelles  fe  Ike  pidia,  de  que  logo  fe  paíTarao  aflinados 
de  parte  a  parte  na  forma  de  que   todos  ficarão  conten- 
tes. António  de  brito  ,  vendo  fao  bom  principio  no  que 
trazia  tão  encomendado,  nao  quis  perder  tempo  nem  oca- 
fiio  ,  mas  mandou    logo  acarretar  muyta   pedra  e  fazçr 
muyta  cal  ,  que  em  toda  a  índia  fe  faz  muyto  boa  de  caí- 
cas  de  marifco  ,  em  que  trabalhaua   muyra  gente  da  ter* 
ra  ,  que  fe  pagaua  com    moeda  muyto  baixa  e  de  muyto 
pouco  preço  ,  que  corre  na  meíma  terra  ,  feita  de  chum- 
bo redonda  do   tamanho  de  hum   toftão  ,  forada    pollo 
meyo  porque  anda  iníiada  ,  de  que  alyauia  grande  can- 
tidade.  Eíendo  junto  tanto  deites  materiais  que  fe  podia 
começar  de   por  mão  ha  obra  ,  o  capitão  mandou  logo 
abrir  os  alicerces  ,  e  aos   24  dias  do  mes  de  Junho   do 
anno  de  i^iz  ,  em  que  a  igreja  celebra  a  feíla  do  glorio- 
fo  S.  João  Bautiíta  ,  fe  diíTe  huma  miíTa  com  a  mayor  ío- 
lenidade  que  aly  foy   poíliuel  ,  fefl^ejada  com  a  artilharia 
de  todos  os  nauios  ,  a  qual  acabada  o  capitão  António  de 
brito  por  fua  mão  ao  fom  das  trombetas  ,  que  nao  ceíTa- 
uao  de   tocar  ,  aíTentou  a  primeyra  pedra  ,  e  a  poz  elle 
fizerão  o  mefmo  os   outros  capitães  ,  e  toda  a  principal 
gente  que  vinha  na  armada  ,  com  geral  gofto  e  alegria  de 
todos  ,  e  apoz  iíío  fe  foy    continuando  a  obra   na  forma 
que  para  o  lugar  em  que  fe  fazia  pareceo  mais  conueni- 
ente  e  neceíTaria,  e  ainda  que  nella  trabalhauão  tambetn 
os  Portugueíes  ,  todauia  por  vir  a  entrar  a  doença  nelles  , 
e  lhe  virem  a  faltar  os  mantimentos,  ie  foy  fazendo   com 
muyto  vagar  e  muyto  trabalho. Ncíle  tempo,  em  que  fe  hia 
fazendo  efta  obra  ,  o  Rey  de  Tidore  mandou  hum  embai- 
xador ao  capitão  António  de  brito  ,  em  que  lh'offerecia 
fua  amizade,  c  lhe  dizia  que  também  em   fua  terra  lhe 
dera  lugar  e  ajuda  para  fazer  fortaleza  ,  e  lhe  fizera  mais 
honras  do  que  lhe  faziao  em  Ternate ,  que  bem  entendia 
que  de  não   ir  elle  a  íua  terra   fora   caula  recolher  elle 
nella  os  Caftelhanos,  mas  que  lh'affirmaua,  que  íe  foubera 
as  differenças  que  auia   antr'elles  ,  e  que  niílo   lhe  daua 
deígofto  ,  o  não  fizera  por  ninhum  cafo  ,  que  para  proua 

difto 


dei  Rey  Dom  João  o  líí.  cj^ 

diílo  eílaua  preftes  para  fazer  quanto  lhe  iric.ndane  ;  ao 
cjue  António  de  brito  reípondeo  ,  que  por  então  lhe  não 
podia  dar  repoíla  certa,  porque  eílaua  com  a  ocupação 
de  fazer  aquella  fortaleza  ,  que  tanto  que  a  acabafle  tra- 
taria com  eile  o  que  foíTe  neceUario.  Deíla  rcpofta  ,  que 
fedeu  a  el  Rey  de  Tidore ,  ficou  a  Rainlia  íua  íiiha  mal 
contente  ,  porque  quifera  que  ouuera  nella  mais  nioílras 
d'amizade  ,  e  deu  conta  diilo  a  hum  íeu  official ,  que  he 
como  cá  vedor  da  fazenda  ,  o  qual  em  pratica  o  deíco- 
brio  a  António  de  brito,  ao  que  elle  reípondeo  que  ain- 
da que  el  Rey  de  l^idore  tinha  feito  hum  grande  erro  , 
todatiia  por  fer  pay  da  Rainha  não  fomente  não  auia  de 
lançar  mão  por  iíTo  ,  mas  lhe  auia  de  fazer  todos  os  ferui- 
ços  que  pudeííe  ;  porem  nem  iílo  bailou  para  a  Rainha 
ficar  íatisfeita  ,  antes  dahy  por  diante  começou  de  íe 
moílrar  carregada  para  os  noííos  ,  o  que  vindo  a  enten- 
der o  capitão  ,  para  fegurar  fuás  couías  ,  fez  dar  grande 
preíla  ha  obra  ,  inda  que  ja  lhe  hiao  faltando  os  traba- 
lhadores ,  e  os  materiais ,  tendo  para  fy  que  eíla  mu- 
dança da  B^ainha  não  nacia  doi-itra  couía  ,  íenão  do  deí- 
goílo  que  tomara  polia  repoíla  que  íe  dera  a  íeu  pay. 
E  praticandp  iílo  com  Franciíco  íerrao  lhe  diíTe,  que  fol- 
garia e  lhe  parecia  muyto  neceíTario  ter  naquella  terra 
alguma  peíloa  poderoía  de  que  fe  pudeííe  valer  ,  íe  a 
Rainha  por  ventura  quifeííe  tazer  de  íy  algum  mouimen- 
to ,  ao  que  Francifco  ferrão  lhe  diíTe,  que  aly  andaua  hum 
filho  baílardo  do  Rey  morto,  chamado  Cachií  daroes  ho- 
mem esforçado  e  de  muyto  preço,  de  que  na  terra  fe  fazia 
pouco  caio  por  andar  desfauorecido  da  Rainha  ,  que  í'eíle 
tjucíTe  o  fiiuor  dos  Portugueíes  de  maneyra  que  tornaiTe 
á  graça  da  Rainha  ,  elle  poria  as  couías  do  reyno  cm 
termos  que  ella  não  pudeíle  alterar  nada  nelle.  O  capitão 
ouue  logo  fala  deíle,  e  tomou  amizade  com  elle  ,  e  pollo 
■achar  homem  de  verdade  e  de  relpeito  o  começou  a  fa- 
uorecer  em  tudo  o  que  podia  ,  e  acabou  tanto  com  a  Ra- 
inha que  o  fez  regedor  do  reyno  ,  com  que  em  pouco 
tempo  veyo  a  ter  tanto  poder  e  autoridade  nellc  ,  que  to- 
dos 


()6         Primeyra  Parte  da  Chronica 

dos  o  temião  e   reiíerenciauao ,  mas  nem  com  íílo  Pef- 

qiieceo  da  obrigrçao  em  que  eftaua  ao  capitão  ,  antes  lhe 
maudou  dar  todo  o  auiamento  neceííario  para  fazer  a 
fortaleza  ,  e  era  muyto  continuo  na  fua  conuerfação  ,  de 
que  a  Rainha  e  todos  os  feus  vierão  a  tomar  íoípeita,  que 
o  capitão  o  queria  fazer  Rey  da  terra  ,  por  onde  veyo  a 
cair  em  tanto  ódio  de  todos  os  grandes,  que  lhe  foy  ne- 
ceííario para  fegurar  íua  peíToa  andar  acompanhado  de 
muyta  gente  d'armas  ,  o  que  podia  bem  fazer  porque  ti- 
nha muytos  de  fua  parte.  E  foy  ifto  também  cauía  que 
a  Rainha  vieíTe  a  ter  má  vontade  aos  noílos  ,  e  íecreta- 
mente  mandaua  dar  conta  ao  Rey  de  Tidore  feu  pay  de 
tudo  o  que  ca  paíTaua  ,  o  qual  tomou  muyto  mal  fazer 
António  de  brito  a  Cachil  daroes  gouernador  do  reyno  , 
porque  como  íabia  que  fenão  podia  fazer  nem  ordenar 
couía  que  elle  não  foubeíTe  ,  também  entendia  que  auia 
fempre  d'auiíar  os  noííos  ,  e  defcubrirlhe  tudo  o  que 
paílaííe  ,  no  que  felle  não  enganaua  ,  porque  eíla  amiza- 
de de  Cachil  daroes  foy  deípois  muyto  proueitoía  para  os 
noíTos  em  muytas  couías  que  fucederão  ,  como  ao  diante 
íe  dirá. 

CAPITULO    XXVIIL 

O  gouernador  fe  pajfa  a  Goa ,  ahy  dejpacha  Marfim  Afonfo 
de  melo  Coutinho  para  a  China ,  e  dom  André  anrique^ 
para  Pacem  ,  e  o  que  a  dom  André  fuce de  na  'viagem, 

O  Gouernador  defpois  que  em  Cochim  defpedio  feu  Ir- 
mão dom  Luis  para  ir  aChaul ,  logo  com  toda  a  preíTa 
deu  auiamento  has  coufas  do  reyno  ,  e  juntamente  meteo  na 
capitania  deCoulão  a  João  de  melo  daíilua,  e  na  deCochim 
a  dom  Diogo  delima  ,  ena  deCalecut  a  domjoão  de  lima, 
que  auia  dias  que  andaua  feruindo  na  índia  ,  efperando  que 
acabaíTe  nella  feu  tempo  Manoel  de  lacerda  :  e  deitando  aly 
ordenado  tudo  como  cumpria  íe  foy  para  Goa  ,  onde  achou 
algumas  queixas  do  capitão  Francifco  pereyra  peílana  ,  a 
queacudio  mais  remiílamente  do  que  íecfperaua,  com  que 

deu. 


dei  Rey  Dom  João  o  IIÍ.  p7 

deu  ocaíiáo    de  íe  lançarem  íobre  clle  vario?  juízos  ,    atri- 
buindo cada  hum  aquillo  ao  que  ou  lua  paixão,  cu  o  fcu  en- 
tendimento   lhe  iníinaua.  Aquy  a  Goa  chegou  eniao  I\Iar- 
tim  Afonfo    de  melo  courinho  ,  que  vinha  de  Chaul  e  auia 
de  fazer  viagem  para  a  China ,  em  que  viera  prouido  por  el 
Rey  ,    a  quem  o  gouernador  logo  defpachou  cos  dous  na- 
uios  de  fua  coníerua,  de  que  erao  capiraes  Vaíco  fernandes 
Coutinho,    e  Pedro   homem,   e  liie  deu  outro  nauio   para 
Diogo  de  melo  feu  irmão  ,  que  também  foy  com  e!le.  Pro- 
ueo  também  então  o  gouernador  porcnpitão  da  fortaleza 
de  Pacem  a  dom  André  anriqucz  das  alcaçouas  com  que  ti- 
nha muyta  amizade  ,  eílando  nella  por  capitão  António  de 
iniranda  dazcuedo,  que  a  fizera,    e  não  tinha  inda  acabados 
os  feus  três  annos ,  e  lhe  paílou  prouifoés  que  fem  embargo 
dequaisquer  embargos  que  pudeíTe  auer  fe  lhe  entregaíTe  a 
fortaleza  em  qualquer  eílado  que  eítiueíTe  ,  e  lhe  deu  hum 
nauio  em  que  foíTe  com  fua  gente,  e  Teus  parentes,  e  huma 
não  da  terra  em  que  embarcou  mantimentos,  muniçoens  ,  e 
muytas  roupas  para  a  feitoria  ,  e  o  encomendou  a  Marfim 
Afonío   de  melo  ,   pidindolhe  que  fizefle  fua  viagem    por 
Pacem  ,  c  de  caminho  o  íízefle  meter  em  poíle  da  capitania 
pacificamente,  para  que  não  liueíTe  alguma  difíerença  com 
António   de  miranda.  Os  quais  todos    íe  forão  logo  a  Co- 
chim  ,  donde  partirão  juntos  em  Abril  delfe  anno  de  1522  , 
porem  dom  André  pos  logo  bandeyra  na  gauea  aíTy  como  a 
leuaua  Martim  Afonío  ,  e  não  querendo  nauegar  pollo  íeu 
forol  íe  perdeo  da  fua  companhia  ,  e  não  faltou  quem  dif- 
feílc  ,  que   o  fizera  de  propoíito  ,  e  indo  no  golfão  dalém 
de  Ceilão  encontrou  com  huma  rica  nao,   que  atraueflaua 
de  Pegum  para  as  ilhas  de  Maldiua  ,  bem  armada  ,  e  com 
muyta  gente  ,  e  fe  pos  com  ella  has  bombardas    de  longe 
não  oufando  de  a  abalroar,  por  fer  o  íeu  nauio  pequeno 
e  a  nao  grande  e  poderola  ,  e  deíla  maneyra  a  foy  íeguindo 
dous  dias   e  duas  noites,    tirandolhe  íempre    por  cima  a^ 
derrubarlhe   asvellas,  ematarlhe   agente,  íem  a  querer 
meter   no  fundo   por  não  perder  a  boa  prefa  que  delia  eí- 
peraua  ,   e  ainda  que  lhe  foy  Íempre  fazendo  fmais  ,  que 
Paríe  I,  N  -    amai- 


po  Primeyra  Parte  da  Chronica 

ainnlnaiTe  ,  os  mouros  o  não  quiferao  fazer  ntc  que  de  Iiu- 
ma  bombardnda  lhe  derrubarão  o  maíto  ,  mas  ainda  aíTy 
eícolherao  anres  arrifcarfe  a  morrer  ,  que  ferem  catiuos  , 
e  fe  meterão  logo  todos  em  huma  grande  barca  que  a  nao 
trazia,  c  a  veliíi  e  remo  íe  foríío  fugindo  com  a  mayor  pref- 
fa  que  puderao  :  dom  André  os  deixou  ir  em  filuo  ,  e  che- 
gandoííe  ha  nao  mandou  o  batel ,  e  o  parao  da  fua  a  bal- 
dear a  fazenda  da  nao  dos  mouros  nas  fuás  embarcaçoens  , 
porem  os  mouros  deixarão  feitos  alguns  furos  no  fundo  da 
lua  nao  debaixo  de  muytos  fardos ,  em  que  os  noíTos  não 
atentarão  co  grande  aluoroço  da  boa  prefa  ,  e  a  nao  entre- 
tanto fe  foy  enchendo  d'agoa  com  que  fupitamente  íe  foy 
ao  fundo  ,  em  que  morrerão  mais  de  vinte  homens  ,  que 
andaulo  ocupados  em  baldear  a  prefa  ,  fem  poderem  íer 
íocorridos  por  alguma  via  ,  e  fem  terem  tirado  da  nao 
mais  que  quanto  o  batei  pôde  trazer  de  hum  íó  caminho  : 
dom  André  então  continuando  fua  viagem  liie  não  tardou 
niuyto  hum  temporal  tão  rijo,  que  efteue  em  muyto  riíco 
de  fe  perder,  e  lhe  foy  forçado  alijarão  mar  quanto  leuaua  , 
aíly  do  que  tomara  na  nao  como  do  que  tinha  o  feu  nauio  , 
€  chegou  a  Pacem  muyto  deílroçado  ,  onde  achou  Martim 
Afonío  de  melo  ,  que  polia  fua  muita  tardança  eftaua  ja  pa- 
ra íc  partir  :  aly  moftrou  logo  as  prouiíoens  ,  que  trazia  do 
gouernador  a  António  de  miranda  ,  que  como  era  muyto 
íeíudo  e  atentado  não  íe  quir/mcter  em  diííerenças  com 
domAndrc,  mas  fazendo  ícus  protcílos  para  aprefentar 
no  reyno  lhe. entregou  a  fortaleza  ,  e  fazendo  apontamen- 
tos para  leuar  comllgo  de  quanto  lhe  deixaua  entregue 
nella  ena  feitoria ,  e  tirando  eílromcnto  da  boa  paz  em 
que  fícaua  aterra,  fe  embarcou  nomefmo  nauio  em  que 
viera  dom  André  ,  que  aíTy  viera  por  ordem  do  gouerna- 
dor, e  fe  partio  para  Malaca  em  companhia  de  Alartim 
Afonfo  de  melo  ,  o  qual  em  quanto  aly  eílcue  com  muyta 
.  preíteza  carregou  os  ícus  nauios  de  pimenta  para  a  leuar  ha 
China  ,  que  he  a  mercadoria  em  que  fe  lá  faz  mais  prouei- 
to  por  fer  rsrra  muyto  iria.  Neíle  reyno  de  Pacem  ha  muy- 
ta cantidade  de  pimenta ,  que  nace  por  todas  as  fuás  terras , 

a 


dei  Rey  Dom  Jcao  o  ÍIL  p^ 

a  qual  lie  mais  groffa  que  a  do  Mahuar ,  porem  nao  lie  tão 
quente  ,  e  tem  hum  cerio  váozinho  por  dentro  ,  e  porque 
Pacera  eftá  no  rollo  da  ilha  de  Camatra  da  banda  do  nor- 
te ,  que  he  paragem  de  todas  as  nauegaçocns,  que  fe  fa- 
zem das  terras  da  índia  para  todas  as  outras  partes,  Jic 
aquy  a  mayor  efcala  de  toda  aquelJa  ilha. 

CAPITULO     XXIX. 

Martim  Ajonfo  de  melo  chega  a  Malaca.  Farte  da  hy  para  a. 
China^  e  o  qu€  la  Ihcjucede^  na  'volta  entra  em  Facem^  peleja, 
cos  inimigos  que  ejlao  j  obre  a  fortaleza^  Fero  Lourenço 
de  melo  parte  de  Cochim  jazer  viagem  para  a  China  ,  e  o 
JuceJJo  que  tem. 

MArtim  Afbnfo  de  melo,  que  de  Pacem  partira  para 
Alalaca  ,  chegou  lá  a  laluamenro  com  toda  a  fua  ar- 
mada ,  e  em  íua  companhia  António  de  miranda  dazeue- 
do  que  fora  capitão  da  fortaleza  :  aly  achou  Duarte  coe!]io 
que  era  chegado  da  China  ,  e  lhe  deu  nouas  que  eila  eftaua 
aleuantada  ,  de  que  ficou  alTaz  triíte  ,  porem  Duarte  coelho 
quica  com  cubica  de  fazer  leu  proueito  ,  lhe  diífe  que  pois 
tinha  tão  bons  coatro  nauios  ,  e  também  concertados,  nao 
deixalTe  de  fazer  fua  viagem  ,  que  poderia  fcr  que  vendoo 
lá  táo  poderoío  e  com  tanta  e  táo  boa  fazenda  como 
leuaua ,  quereriáo  aíTentar  paz  com  elle  ,  e  quando  nao  íe 
paliaria  a  outras  partes  onde  gaílaria  as  fuás  mercadorias 
com.  que  íicaíTe  com  menos  perda.  Martim  Afonío  deíejo- 
/o  de  fazer  a  fua  viagem  fe  partio  logo  bem  apercebido  de 
tudo  o  neceffario  ,  principalmente  de  bons  pilotos  ,  de 
muyta  poluora  ,  e  muniçoens  ,  e  afora  os  feus  coatro 
nauios  armou  também  o  junco  de  Duarte  coelho,  que  leuou 
em  fua  companhia  ,  e  chegando  ha  viita  das  ilhas  da  Chi- 
na em  Agoílo  do  mefmo  anno  de  I5'22  com  preías  ricas  que 
fez  de  caminlio  ,  ouue  logo  viíta  da  armada  dos  Chins, 
que  era  de  muytos  e  grandes  juncos,  com  outras  embarca- 
ções pequenas  de  remo  ,  e  andaua  aly  de  guerra  eíperando 
os  nâUios  que  paflaííem.    Martim  Afonío  como  pretendia 

N  2  fa- 


loo       Primeyra  Parte  da  Chronica 

fazer  paz  com  elles  trabalhou  fempre  quanto  pode  por  ef- 
cuíar  a  guerra  ,  preíles  com  tudo  íempre  pêra  a'pe!eja  fe  lhe 
vieíTc  a  ier  neceííaria,  e  defpois  de  fe  andar  metendo  por  al- 
guns portos  donde  tentou  em  vão  a  paz  por  quantas  vias 
pôde  ,  vendo  a  fua  viagem  de  todo  fem  remédio  por  fer  a 
paz  impoíiiuel ,  por  confelho  dos  outros  capitães  íe  fez  ha 
vella  para  Malaca  com  alguns  homês  mortos  c  feridos  em 
algumas  brigas  ,  que  foy  forçado  terem  os  noííos  bateis 
com  as  embarcações  pequenas  dos  inimigos.  Os  Chins 
em  vendo  defamarrar  os  noíTos  fe  íizerao  também  ha  vel- 
la ,  e  repartidos  em  duas  partes  os  forão  feguindo  ,  pele- 
jando com  elles  por  ambas  as  bandas ,  onde  ouue  muytas 
bombardadas  de  parte  a  parte  ,  com  que  huma  e  outra  re- 
cebeo  muyto  dano  ,  porem  as  frechas  dos  inimigos  erão 
em  tanta  cantidade  ,  que  cobriao  os  nollos  nauios  ,  e  lhe 
dauão  muyto  trabalho,  eas  embarcações  pequenas  dos  ini- 
migos íe  chegauão  aos  noflos  bateis  para  os  tomarem  ,  fo- 
bre  que  ouue  huma  afpera  e  cruel  briga.  Delpois  de  durar 
iílo  algum  eípaço  os  nauios  de  Diogo  de  melo  e  de  Pe- 
dro homem  parece  que,  não  podendo  ir  ter  cos  outros  ,  co- 
meçarão de  ficar  atrás,  o  que  vendo  os  inimigos  carregarão 
fobr'elles  tanta  cantidade  de  juncos  ,  que  íem  lhes  valer  a 
dura  refillencia  ,  que  fizerao  ,  forao  abalroados  e  entrados 
e  metidos  todos  ha  efpada  ,  e  no  nauio  de  Diogo  de  melo 
í'acendeo  o  fogo  ,  ou  lho  puferao  ,  com  que  ardeo  todo  até 
ie  ir  ao  fundo  ,  e  inda  iílo  foy  parte  para  fe  íaluarem  os 
outros  noífos  nauios  ,  porque  forao  tantos  os  do  Chins 
que  acudirão  ao  roubo  da  pimenta  do  nauio  de  Pedro  ho- 
mem ,  que  Martim  Afonfo,  e  Vafco  fernandez  tiuerão 
tempo  dê  fe  alargarem  muito  da  armada  dos  Chins,  e  po- 
remfe  em  íaluo  ,  e  o  mefmo  acontecco  a  Duarte  coelho 
por  ir  ja  muyto  diante.  Os  trcs  nauios  fe  forão  na  volta  de 
Malaca  ,  porem  nem  iílo  lhe  fucedeo  como  determinauao  , 
porque  no  caminho  lhes  deu  hum  contraíle  de  tempo  tão 
rijo  ,  que  forao  tomar  na  ilha  de  Çamatra  ,  e  correndo  ao 
longo  delia  forão  demandar  o  porto  de  Pacem,  onde  che- 
gando Martim  afonío  achou,  que  eílaua    de  guerra  cos 

noí- 


dei  Rey  Dom  João  o  ííí.  loi 

noíTos ,  porque  o  Rey  de  Díicliem  ficou  tao  oufaro  ,  e  ío- 
berbo  cos  Portugueies  que  matara  a  Jorge  de  brito  ,  que 
detriminou  hir  queimar  a  noíTa  fortaleza  ,  que  era  de  ma- 
deyra  ,•  e  também  os  mefiuos  da  terra  eíiauão  mal  cos  noí- 
íos  por  agrauos  ,  que  recebiao  delles  ,  a  que  o  capitão 
dom  André  anriquez  não  acodia  ,  por  onde  a  elle  íe  pu- 
nha a  mayor  culpa  de  tudo  ;  no  qual  tempo  eíuiuao  os 
nolTos  rauyto  apertados  e  com  grandiííimo  trabalho  ,  por- 
que como  o  Rey  de  Dachem  com  muyta  gente  ,  que  tinha 
comfigo  ,  trabalhaua  quanto  podia  de  pôr  í^ogo  ha  fortaleza 
com  muytos  arteíicios  ,  que  para  ilTo  trazia  ,  eralhes  ne- 
ceíTaJ-io  eílar  em  continua  vigia  lem  repoufarem  hum  iÒ  mo- 
inento  ,  nem  ainda  de  noite,  porque  então  fe  ocupauao  em 
acender  m.uytos  lumes  por  fora  da  tranqueira  ,  para  verem 
fe  chegauão  os  mouros  a  lhe  por  fogo:  a  eíle  continuo  tra- 
balho dos  noiTos  fe  lhe  ajuntou  também  o  da  fome  que  os 
pôs  em  tanto  aperto  ,  que  elliuerão  em  muyto  rifco  de  fe 
perderem,  fe  aly  não  chegara  Martim  Afonío  ,  por- 
que em  elle  chegando  fe  forao  os  mouros  ,  e  largarão 
de  todo  a  fortaleza  ,  e  os  da  terra  fe  tornarão  a  fazer  ami- 
gos cos  noílos  ,  porque  ainda  que  Martim  Afonío  eíleue 
lempre  no  mar  fem  defembarcar  em  terra  ,  da  ly  ordenaua 
c  temperaua  tudo  de  maneyra  ,  que  a  aninguem  fe  fazia 
agrauo,  e  daquy  com  fua  licença  fe  foy  Duarte  coelho  para 
jVlalaca  ,  onde  deu  nouas  do  máo  foceíTo  deíla  viagem  da 
China,  e  Martim  A  fonfo  fe  deteue  em  Pacem  até  amon- 
ção  ,  em  que  fe  tornou  ha  índia  com  tenção  de  fe  ir  para  o 
•reyno  ,  porem  chegando  a  Cochim  falleceo  de  fua  doença. 
No  tempo  que  Martim  Afonfo  partio  de  Cochim  a  hzer 
eíla  ília  viagem  ,  eílaua  também  ahy  hum  fidalgo  chamado 
J^ero  Lourenço  de  melo  ,  que  viera  do  Reyno  prcuido  em 
Jiuma  viagem  para  a  China  ,  e  porque  então  eílaua  ja  pre- 
ftes  para  Je  poder  partir  .  mandaua  o  gouernador  que  faí- 
fe  cm  companhia  de  Martim  i\fonío  ,  porem  elle  por  não 
ir  de  baixo  da  fua  bandeyra  ,  eílandoja  Martim  Afonfo  fora 
da  barra  eíperando  que  elle  faiííe  ,  peitou  o  arei  de  Co- 
chim ^   que  he  o  piloto  da  barra ,    que  mete  dentro   os 

na- 


101  Primeyra   Parte  da  Chronica 

nauios  5  e  os  deita  fora  ,  o  qual  diíTe  que  a  nao  não  podia 
fair  ,  porque  na  barra  aula  pouca  agoa  ,  e  Martim  Afonío 
le  foy  íem  eile.  Pêro  Lourenço  ficou  inuernando  ahy  em 
Cocliim  ,  e  no  Setembro  feguinte  fc  partio  ,  e  fez  fua  via- 
gem direito  a  Pacem  cora  tenção  de  tomar  ahy  fua  carga  , 
porem  no  caminho  lhe  deu  hum  temporal  tão  forte  ,  que 
denoite  fe  foy  perder  em  huma  ilha  ,  que  eílaua  corenta  le- 
goas  da  coíla  d'Arracrio  ,  onde  porque  a  nao  era  de  todo 
perdida  concertarão  o  batel ,  que  era  grande  ,  e  o  arma- 
rão o  milhor  que  puderão ,  e  metendo  nelle  bifcouto  , 
agoa  ,  mantimento  ,  e  fuás  armas  ícforao  demandar  a  ter- 
ra ,  onde  de  hum  rio  lhe  fahio  huma  alm2dia  que  da  parte 
do  fenhor  daquella  terra  lhes  perguntou  o  que  queriao  ,  e 
que  ,  porque  lhe  parecião  gente  perdida  no  mar  ,  lhe 
mandaííe  dizer  ,  o  que  auião  miíler,  e  para  onde  querião  ir, 
que  os  mandaria  prouer  de  tudo  o  que  quifeííem,  e  de 
quem  os  encaminhaíTe  :  elles  parecendolhe  que  podia  aly 
ter  remédio  fua  neceílidade  ,  fe  chegarão  perto  da  terra  pa- 
ra a  parte  onde  o  fenhor  eílaua  ,  e  de  largo  lhe  mandarão 
dizer  que  querião  ir  para  Peguum  ,  ao  que  lhe  reípondeo , 
que  tudo  o  que  ouueíTem  miíler  lhes  daria  por  feu  dinhei- 
ro ,  e  piloto  que  os  leuaíTe  lá  fe  o  elles  pagaílem  ,  o  que 
elles  aceitarão  de  boa  vontade  ,  e  com  eftas  boas  moílras 
que  vião  naquella  gente  fe  chegarão  bem  a  terra  antre  hu- 
mas  pedras  a  falar  co  fenhor,  que  eftaua  ha  borda  da  agoa 
com  pouca  companhia ,  o  qual  mandou  logo  vir  o  piloto 
a  quem  Pêro  lourenço,  porque  não  tinha  dinheyro,  deu  hu- 
ma cadea  douro,  que  o  íenhor  recolheo  ,  e  mandou  trazer 
aos  noíTos  agoa  que  lhe  pidirão  ,  e  galinhas  e  pombos  e 
muitos  ouos  ,  moílrando  queauia  muyta  compaixão  del- 
]es.  Em  quanto  duraua  eíla  pratica  acabou  de  vazar  de  to- 
do a  maré  com  que  ficou  feco  o  lugar  por  onde  o  batel  en- 
trara fem  os  noílos  atentarem  niílo  ,  porem  os  inimigos 
que  não  efperauão  outra  couía  ,  e  eílauão  bem  alerta  ,  em 
tendo  o  batel  em  feco  logo  fe  ajuntarão  muytos ,  e  derão 
íobre  elle  decima  dos  penedos  ,  onde  os  noíTos  não  po- 
diáo  chegar  com    as  landas ,  e  com  muyta  cantidade  de 

pc- 


dcl  Rey  Dom  João  o  III.  103 

pedras,  que  lhe  tirarão,  matarão  alguns,  e  ferirão  outros  , 
e  os  tratarão  de  maneyra  ,  que  vendo  que  fc  não  podião 
aproueitar  das  armas  para  fe  defenderem  lhes  foy  forqado 
eiuregaríe  antes  aos  inimigos,  onde  quica  íuas  vidas  pode- 
rião  ter  algum  remédio,  que  ha  morte  certa  que  tinhão 
diante  dos  olhos ,  fem  terem  meyo  para  morrer  pelejan- 
do. O  fenhor  da  terra  os  leuou  todos  por  íeus  catiuos ,  e 
trataua  com  elles  que  fe  reígataíTem  ,  mas  como  em  muy- 
tos  dias  vio  ,  que  illo  não  podia  ter  remédio  ,  e  que  pollo 
difcurío  do  te;npo  forão  morrendo  alguns  ,  enfadado  dos 
que  fícauão  ,  lhe  mandou  por  fogo  em  huma  cafa  em  que 
eílauão ,  que  era  de  palha  ,  e  os  queimou  a  todos  viuos , 
o  que  dahy  a  muyto  tempo  fe  foube  na  índia  por  alguns 
homens  dos  noílos  ,  que  forão  ter  aaquella  terra.  Tão  ca- 
ro cuftão  lias  vezes  pontos  de  honra  fem  fundamento  mi- 
ílurados  com  cubica. 

CAPITULO    XXX. 

O  gouerrmdor  manda  hum  capitão  e  feitor  ha  cofia  de  Chã' 
ramandel ,  "mandalhe  que  tome  informação  da  cajá  do 
Apojlolo  São  Tomé ,  daffe  rezao  do  que  fe  acha  delia. 

NEfte  mefmo'anno  de  1 5*22  mandou  o  gouernador 
hum  criado  feu  chamado  Alanoel  de  frias  por  capi- 
tão e  feitor  ha  coíla  de  Charamandel  ,  onde  andauão  ou- 
tros Fortuguefes  tratantes  ,  ao  qual  deu  poder  íobre  to- 
dos ,  e  lhe  deu  para  eíle  effeito  huma  carauella  e  três  fuítas 
com  poder  de  dar  cartazes  has  nauegaçoens  que  lhe  pare- 
ceíTe;  e  leuou  também  regimento  para  comprar  arroz, 
manteigas  ,  carnes  fecas ,  e  muytas  obras  de  ferro  para  os 
almazés  ,  o  que  tudo  nogoccou  por  muytos  bons  preços  , 
porque  naquelle  tempo  valiao  naquella  terra  os  manti- 
mentos tão  baratos  ,  que  íe  dauão  dez  galinhas  muyto 
grandes  por  huma  moeda  da  terra,  a  que  chamao  fanão, 
que  vai  trinta  reis ,  e  hum  veado  grande  viuo  pollo  rnefmo 
preço,  e  huma  cabra  com  dous  cabritos  e  hum  porco 
por  hum  fanão  j  e  quando  era  muyto  caro  por  dous  fa- 

noens.. 


104       Pfimeyra  Parte  da  Chronica 

noens.   Ha  neíla  cofta    de  Charamandel  huma  terra  chama- 
da Canhaineira  em  que  ha  tanta    cantidade   de  veados  ,  e 
vacas  brauas  ,    que    os  negros  tomao  em  redes  ,  que  das 
pelles    dos  veados  dauao  duas  e  três  por  lium  fanao  ,  po- 
rem ja  agora  vão    \á  os  preços   deílas  coufas  muyto  mais 
altos    do  que  entáo  erão.   Encomendou  também  o  gouer- 
nador    a  eíle  íeu  criado  Manoel    de  frias  ,  que  tomafle  to- 
da  a  informação  ,  que  foíTe  poííiuel  ,   da  cafa  do  Apoílolo 
S.  Thomé  ,  que    fe  dizia   que  eílaua  naquella  cofta  ,  para 
ver  íe  íe  confprmaua  com  huns  apontamentos ,  que  lhe  de- 
ra   das  particularidades  delia    o  gouernador   Diogo  lopez 
de  íiqueyra  ,  quando  fe  partio  para  o  reyno  ,  e  para  ilTo  lhe 
deu    os    mefmos  apontamentos    por  onde  fe  gouernaííe, 
Manoel   de  frias   dcfpois  que  teue   dado  expediente   ao 
que  cumpria  ao  íeruiço  dei  Rey  ,  começou  de  entender  co 
que  lhe  fora  encomendado  da  cafa   do  Apoítolo  S.  Tho- 
me  ,  e  íe  foy  ao  derradeyro  lugar  daquella  cofta  chamado 
Paleacate  ,  onde  perguntando  miudamente   por  efta  caía  e 
fazendo  niíTo  as  diligencias  neceílarias  achou  ,  que  no  an- 
no  de  IS"!/  forao  ter  a  eíle  lugar  dous  Portugueíes,  que 
vieráo   de  Malaca  em  companhia  de  mercadores ,  que  vi- 
nháo  em  nãos  da  mefma  terra,  hum  delles  chamado  Diogo 
fernandes  ,  e  outro  Baíliao   fernandes  ,  que  aly   íe  agaía- 
Ihauão  com  huns   Arménios  Chriftaos  ,  eftes  conuidarão 
os  Portugueíes  para  irem  em  romaria  a  huma  cafa  ,  que  fi- 
zera hum  fanto  ,  que  eftaua  daly  cinco  legoas  ao  longo  da 
cofta,  onde  forão  todos  ,  cacharão   aíantacaía,  ao  pa- 
recer muyto  antiga  ,  aíTentada   de  oriente  a  ponente  como 
as  noíías  igrejas  ,   e  tinha  de  vão  da  porta  principal  ate  o 
cruzeiro  doze  couados,  e  a  capella  mor  cinco ,  e  tinha  duas 
portas  traueíías.    Era   a  cafa   de  três  naues  com  efteos  de 
pao   muito  bem  laurados  ,  madeirada  por  cima  de  groííos 
paos  laurados  como  de  macenaria  ,  tão  juntos  huns  cos  ou- 
tros que  fazião  íobrado  ,  em  que   não  auia  ninhum  modo 
de  pregadura,  era  cfte  madcyraraento  guarnecido  porcima 
de  huma  argamaíTa  tão  dura,  que  parecia  de  pedra  feita  de 
cal  e  área  aflentada  fobre  tijollos ,  em  que  não  auia  greta 

ou 


dei  Rey  Dom  João  o  IIÍ^         105' 

ou  quebradura  alguma  ,  e   em  c^da   Iiuma    das  portas   da 
banda   de  fora  auia    pia  como  para  agoa  benta.   A  copella 
inda  que  era  coadrada  tinha   o  reito  redondo  feito  d*abo- 
bada  ,  e  íobre  eila   iium  curuchco  redondo   da  meíina    ar- 
gamaíía  ,  que    do  chão    até    ornais   ahodcHe   auia  trinta 
couados  ,   iaurado  todo   de  muitos  troços  da  melma  ârga- 
maíTa  ao  íeu  modo  ,  e  por  elles  puftas  algumas   cruzes  e 
algum.as    figuras   de   pduocns  :    no  miis    alto   do    curu- 
cheo  cíiaua  huma  cimalha  qundrada  ,    e   em  cima    dcíla 
outra  redonda  ,   que   tinha   no   meyo  hum  buraco  em  qu-j 
parece,    que   deuia   de  eítar  grimpa    ou  Cruz   ou   outra 
alguma  coufa  ,  que  cairá  co  tempo  :  a   capella  tinha    hum 
altar  qual   conuinha  ao  íeu   tamanho  ;   pegada  com   eíla 
capella  mor   para  a  parte  do  Euangelho    eibuahuma  ca- 
pellinha  pequena    íem  altar  com  duas  ordens   degrades 
de    pao  ,   humas   para  a  capella ,    e  outras    para    a  naue 
da  igreja  ,  cm  que  nao  auia  porta  nem  entrada  alguma  ,  na 
qual   capellinha    fe    diííe  ,    que   eílaua   íepultado    o  íanto 
Apoílolo  ;  da  outra  parte   da  epiílola    da  meíma   capella 
mór  eílaua  outra  capellinha  aberra  por  todas  as  partes ,  em 
que   íe  dizia  ,    que  eílaua  Tcpultado  hum  Rey  diiquella  ter- 
ra ,  que  fe  fizera  Chiiíláo  polia  doutrina  do  fanto  Apoílo- 
Jo.  O  corpo    da  igreja   eílaua  muyto   velho   egailadodo 
tempo,  que    por  algumas  partes  eílaua  caido,  porem  os 
eíleos ,  as  portas,  eo  madeyramento ,  fegundo  o  que  então 
inda  parecia  ,  tudo  era  feito  de  hum  fó  pao  :  p^Kr^am^^rm^raias^ 
os  portais  erao  feitos  do  mefmo  pao  ,  e  por" 
ellcs  entalhadas  e  lauradas  muytas  cruzes  da 
feyçâo  deíla  ,    que  aquy  eilá  pintada.  Sobre 
a  porta  principal   eílaua   huma  groíía  taboa 
de  madeira  vermelha  como  braíil  ou  fandalo' 
vermelho,  pregada    no  meyo   com  hum  fó 

prego,  era  que  eítíiuao  entalhadas  três  cru- 

2es  polias  cm  compalfo  ,  de  que  a  do  meyo  era  mais  a!: 
que  as  outras.  Neila  cafa  eílaua  hum  gentio  muyto  velho^ 
queíeruia   de  a  varrer  ,  e  acender  huma  alampada,    que 
eílaua  dentro  da  grade  da  cape-IIinha  do  fanto  ;  eíle  contou 


alia 


Farte,  L 


O 


aos 


io6        Primeyra  Parte  da  Chronica 

aos  arménios  ,  que  feu  pay  e  nuós  todos  forao  gentios  ,  e 
que  morrendo  tiniyro  velhos  tlucrao  lempre  por  cuílume 
varrer  aquella  fanra  caía  ,  c  acender  aquella  alampada  ,  e 
que  a  el!e  porque  íe  tornara  mouro  ,  e  porque  cegara  na- 
quelle  tempo  ,  lhe  nao  quiferao  coníentir  que  cntraíle  na 
íanta  caía  ,  e  que  encomendnndoíTe  affy  cego  ao  fanto  lhe 
tornjra  a  viíla  ,  e  entáo  fe  metera  na  ciía  e  eíbua  nella 
auia  vinte  annos  ,  £izendo  o  que  feus  antepaílados  faziao. 
E  contou  mais  que  nos  dias  ,  que  a  gente  daquella  terra 
cuíluma-a  folennizar  as  feílis  dos  íeus  Ídolos  ,  os  trazem 
denoite  acompanhados  de  muyta  gente  co  muvra  íoleni- 
dade  ,  e  chegando  ha  viíla  da  porta  da  íanta  caía  abaixâo 
os  Ídolos  três  vezes  até  o  chão  em  íinal  de  reuerencia  ,  e 
com  a  mefma  folennidade  os  tornao  a  icnar  a  íuas  caías  , 
ç  que  illo  era  ali  cuíium.e  muyto  antigo  ,  que  inda  então  íe 
guardaua  ,  e  pidindo  os  noiTos  ao  mouro,  que  lhe  qui- 
ieíle  mollrar  particuiarmenteascoulas  daquella  caía  ,  e  dar- 
Jhe  rezáo  delias  para  as  poderem  contar  em  fuás  terras  , 
que  era  daíy  muyto  longe  ,  IhesdiíTe,  que  na  capellinha 
das  grades  eílaua  fepultado  o  Santo  Apoftolo  ,  e  lhe  mo- 
flrou  em  huma  pedra  a  forma  de  huma  pegada  tão  bem 
impreíTa  nelfa  ,  como  fe  fora  num  barro  muyto  molle ,  e  na 
meíma  pedra  impreíTo  o  íinal  de  hum  joelho  de  quando  o 
fanto  ellaua  em  oração  ,  a  qual  pedra  os  nollos  del"pois 
quebrarão  e  íeuarão  por  relíquias.  E  numa  informação, 
que  eu  ouue  lias  mãos  efcrita  por  hum  homem,  que  na- 
quelle  tempo  andaua  na  índia  muyto  honrado  ,  e  aquém 
íe  deue  de  dar  muito  credito  ,  diz  elle  de  ly  que  vira  hum 
pedaço  daquella  pedra  ,  em  que  eílauí  figurado  o  dedo  po- 
legar e  os  dous  dedos  chegados  a  elle.  Moílrou  mais  o 
mouro  huma  íepultura  junto  da  porta  principal  da  banda 
de  fora  em  huma  capellinha  ,  cm  que  diíle  que  jazia  hum 
diícipulo  do  mcfmo  fanto  ,  e  afaftada  dez  paíTos  da  cafa 
para  a  banda  do  norte  elbua  outra  fepultura  ,  que  diíle, 
que  era  de  outro  diícipulo,  e  para  a  banda  do  íul  hum  tiro 
de  beíla  outra  de  outro  diícipulo  ,  eno  adro  defta  igreja  íe 
cnierrauão  os  peregrinos,  que  vinhão  em  romaria  ha  ianta 

ca- 


delRey  Dom  João  olíl.  lo 


/ 


cafa  ,  e  outros  naturaes  da  terra  ,  que  Ce  faziao  Criílnos. 
Contou  também  eíle  mouro  ,  que  auia  doze  ou  quinze  an- 
nos ,  que  alli  viera  em  romaria  em  trajos  de  peregrino 
J)um  duque  chamado  dom  Jorge,  que  diíTera  que  era  In- 
gres e  aly  falecera  ,  e  eftaua  enterrado  cos  outros  peregri- 
nos. Em  torno  da  fanta  cafa  auia  muitos  aliceces  antigos 
e  paredes  caidas  feitas  de  tijolo  ,  que  ainda  eftaua  inteiro  , 
e  táo  fio  como  fe  ainda  então  fora  feito  ,  que  erao  ruínas 
de  huma  grande  cidade  ,  que  aly  eíliuera  em  tempo  do  fan- 
toApoftolOj  que  os  mouros  dcílruiráo  ,  e  os  gentios  da 
terra  das  pedras  e  tijolos  que  tirarão  delia  íizerão  caías 
dos  feus  pagodes  ornadas  de  muytos  Jauores  ,  e  de  grande 
aparato  :  e  os  naturaes  da  quella  terra  cuftumauão  a  cauax 
ao  longo  daquelles  aliceces  ,  c  lauando  muito  bem  a  terra 
que  ti-rauaó  delles  achauão  has  vezes  algum  ouro  ou  di- 
nheyro  ,  com  que  ao  longo  dos  aliceces  auia  grandes 
cauoucos  ,  e  muytos  outeiros  do  pedregulho  ,  que  íahia 
delles  juntamente  com  a  terra  ,  que  íe  cauaua ,  porem  já  tu- 
do então  pollo  difcurío  do  tempo  eft.ui3  cuberto  de  muyto 
e  grande  mato.  Os  dous  Portuguefes  efcrcuerão  todas  eftas 
particularidades  muyto  miudamente  ,  e  tornando  a  Mala- 
ca ,  e  daly  ha  índia  ,  derao  conra  de  tudo  o  que  virão  ao 
gouernador  Diogo  lopez  de  ííqueyra  ,  e  de  tudo  lhe  dcrao 
largos  apontamentos ,  os  quais  elle  quando  fe  ouue  de  par- 
tir para  o  reyno  deu  ao  gouernador  dom  Duarte,  e  elie  os 
deu  a  Manoel  de  frias  para  tomar  informação  delies ,  co- 
mo a  trás  fica  dito. 


O  2  CA- 


io8        Primeyra  Parte  da  Chronica. 

c  A  p  I  T  u  LO   xxxr. 

o  (roHernndor  manda  hum  Jacerdote  ha  cafa  do  ApoftoJo  S, 
Tbome  afazer  obras  ,  qtíe  torna  fcm  fazer  77  a  da.  Manda 
Pêro  lopez  de  fam  payo  ha  mefma  cafa  com  outro  facerdo- 
te,  Dí[fe  conta  de  coujas  nouas  que  fe  achao  na  cajá  ,  e 
da  obra  que  Jefazíiella,  O  goueruador  fe  vay  inuernar 
a  Goa, 

MAno^I   de  frias  achando  polia  informação  ,  que  to- 
mara da  caía   do  íanto  Apoílolo,  que  tudo  o  que 
diziáo  delia   os  apontamentos   que  rrou:cera  era  verdade^ 
auiíou  logo   o  gouernador  ,  que  mandou  la  hum  íacerdote 
homem  de  boa  vida  chamado  Aluaro  penteado  ,  e  por  elle 
efcreuco  ao  feitor,  que  o  leu^iíle  ha  fanta  cafa,  e  a  fizeífe  re- 
pairar  o  miíhor  que  foíTe  poífiue! ,  para  que  nao  acabaííe  de 
cair  de  todo. E  ao  padre  encarregou  muyto,  que  fem  embar-r 
go  da  informação  que  tinha,  trabalhaíTc  quanto  pudeíle  por 
fe  informar  denouo  d?  todas  as  miudezas  daquella  cafa  ,  e 
que  nella  n^andiíTi  fazer  tudo  o  que  lhe   pareceíTe  que   era 
neceíTario.   Chegado  o  padre    ao  feitor  ,  que  tinha  em  íua 
companhia  muytos  Portugueíes  ,  e  dandolhe  as  cartas  do 
gouernador,  elle  o  leuou  logo  em  romaria  a  íanta  cafa,  on- 
de o  paure  ,  defpois  de  ver  muyto  deuagar  e  com  rauyta 
curiofidade   todas  as   particularidades    delia  ,  vendo    que 
tudo  era  conforme  com   aiaformaç^Io  que  d'ella  íe  dera  , 
íe  ordenou  para  fazer  nella  grandes  obras  ,  porque  lhe  pa-r 
receo  que  tudo  merecia  ,  antre  as  quais  foíTe  hum  moftey- 
ro  para  religiofos  ;  porem  o  feitor  Ihediííe  que  o  nao  auia 
de  confentir  ,  fe  o  gouernador  lho   nao  mandaíTe  ,  de  que 
fmtido   o  padre   nao   quis  entender   em  fazer  obra,  e  por 
terra    fe  tornou    ao  gouernador ,  mas  porque  lhe  elle  nao 
quis   dar  licença  para  fazer  o  que  detriminaua  {'embarcou 
para  o  reyno  ,  e  dando  conta  a  el  Rey  do  que  tinha  vifto  , 
tornou  depois   ha  índia  como  adiante  íe  dirá.   O  gouerna- 
dor todauia  não  deixou  de  prouer  niflo  co  que  lhe  pareceo 
neceílario,  e  mandou  la  hiim  nauio  ,  em  que  foy  por  caji- 

tão 


delRey  Dom  João  o  III.        109 

tão  Pedro  lopez  de  fam  payo  com  aponramento  do  que 
l'auia  de  fazer  na  cafa  ,  e  com  elle  hum  arquireiro  chama- 
do Vicente  rernandez  para  fazer  a  obra  ,  e  mandou  tam- 
bém hum  íacerdote  chamado  António  gil ,  que  tiueíle  o 
dinhcyro  em  feu  poder  para  pagar  ha  g.ente  que  irabalhaf- 
fe  na  obra,  e  a  iílo  os  ajudafle  outro  padre  que  la  eílaua 
chamado  Pêro  fernandez  ,  e  em  íua  companhia  mandou 
dous  Portuguefcs  ,  humi  chamado  Diogo  lourenço  ,  e  ou- 
tro Diogo  fernandez  ,  queerahum  dos  dous  que  aly  ío- 
ra.0  primeyro  cos  Arménios  :  chegado  o  capitão  Pêro  lo- 
pez ao  porto  de  Paleacate  íe  foy  com  doze  ou  quinze 
companheiros  em  romaria  ha  fanta  cafa  ,  que  era  da  ly  fe- 
te  legoas  ,  todos  por  terra  e  apé  ,  antre  elles  hia  hum  ho- 
memi  muyto  honrado  ,  que  por  fua  deuaçao  e  com  dcíejo 
de  ver  aquella  cafa  fembarcara  em  companhia  do  capitão 
Pêro  jopez  ,  o  qual  nuns  papeis  ,  que  eu  tiue  em  meu  po- 
der efcritos  por  lua  própria  mão  ,  efcreue  huma  particu- 
laridade defra  jornada  j  que  aíTy  por  fer  dina  de  muyta 
ponderação  ,  como  por  o  eícritor  íer  dino  de  m.uyto  credi- 
to me  pareceo  rez5o  não  pafTar  por  ella  com  íilencio  ,  para 
honra  e  louuor  do  gloriofo  Apoílolo.  Diz  eíle  homem, 
que  caminhando  todos  muyto  alegres  e  contentes  ,  bem 
prouidos  do  alforge  neceíiario ,  com  muy  tas  cantigas  ,  fu- 
iias  ,  fcrtas  ,  e  todo  o  género  de  paílatempos  quantos  pu- 
derlo  inueniar  para  aliuiarem  a  moleftia  e  peíadume  do 
Jargo  e  trabalhoíb  caminho  ,  tanto  que  chegarão  ha  viíl;a 
da  lanta  cafa  ,  onde  parece  que  fe  lhe  ouuera  de  acrecen- 
tar  a  alegria  e  contentam.ento  ,  pois  fe  viao  tão  perto  do 
que  com  tanto  aluoroço  hião  bufcar  ,  a  ly  entrou  em  to- 
dos huma  certa  triíleza  acompanhada  de  huma  deuaçao 
interior  ,  que  lhe  traílornou  os  corações  de  tal  maneyra 
que  não  fomente  fe  não  lembrarão  mais  dos  pafiatempos 
paíTados  ,  mas  nem  ainda  ouue  homem  ,  que  fallaíTe  com 
outro  ,  antes  vindolhe  entSo  lia  memoria  íeus  peccados 
conuerterão  as  cantigas  ,  e  fulias  paííadas  em  orações 
deuotas  ,  ocupandoííe  cada  hum  em  rezar  aquillo  em  que 
tinha  mais  deuaçao  ,  e  ido  com  tanta  rcuerencia  daquf  ila 

la  a- 


lio       Primevra  Parte  da  Chronica 

ícinta  caía  ,  que  em  todos  caufaua  hum  certo  tremor  ,  com 
que  fenrião  enfraqueceremlhcs  as  pernas  e  os  braços  ,  e 
quaf/  não  oufauao  pôr  os  pés  no  chão,  parecendolhe  que 
òs  punhao  em  terra  faiita.  Chegados  cmfim  delia  miiney- 
ra  ha  fiinta  cafa  ,  de  fora  da  porta  fe  puzerao  de  joelhos  , 
onde  diz  ,  que  derramarão  tantas  lagrimas  ,  que  elles  mef- 
mos  {'efpancauão  defy  ,  e  não  íabião  dar  rezão  donde  lhe 
vinhâo  ,  nem  quem  lhas  fazia  lançar.  Aquy  dilTe  o  padre 
milTa  ,  que  para  iíTo  trouxera  todo  o  guifamento  neceíTa- 
rio  ,  que  foy  a  prymeyra  que  íe  diíTe  neíla  íanta  cafa  ,  e 
íoy  em  dia  do  corpo  de  Deos  do  anno  de  i$i2.  Acabada 
a  miíTa  andarão  vendo  todas  as  particularidades  Áà  cafa  , 
que  erão  as  de  que  atras  fe  fez  menção.  O  capitão  Pcro 
lopez  ordenou  logo  com  o  arquiteito  ,  que  íe  começaí- 
le  a  obra  com  muyto  e  muyto  rijo  tijolo  quealyauia,e 
muyta  cal  feita  de  calcas  de  mariíco  ,  e  com  terra  amaf- 
íada  com  agoa ,  que  deípois  de  feca  ficaua  também  muyto 
forte,  eaprimeyra  coufa  em  que  íe  pôs  a  mão  foy  em 
fe  fazer  huma  groífa  parede  nas  coitas  da  capella  mor,  que 
fuítentaíTe  a  abobada  e  o  curucheo  ,  porque  a  parede  defta 
capella  eílaua  muyto  gaitada  porbaixo  ,  e  abrindoííe  o  ali- 
cece  para  eíta  parede  tendo  ja  cauado  huma  braça  forão 
dar  em  huma  coua  feita  de  tijolo  acafelada  por  dentro,  que 
parecia  feita  de  nouo  ,  em  que  fe  achou  parte  d  i  ofíada  do 
Rey  que  o  fanto  Apoítolo  conuertera,  que  os  da  terra  dif- 
lerão  que  ouuirão  dizer,  que  íe  chamara  Tani  mudoliar  , 
que  na  fua  linguagem  quer  dizer  ,  Thomas  íeruo  de  Deos. 
Debaixo  deita  coua  eílaua  huma  lagia  em  que  eílauão  hu- 
mas  letras  que  dizião.  Eu  dou  os  dízimos  das  rendas  das 
mercadorias  aiíy  do  mar  como  da  terra  para  eíla  fanta  ca- 
fa ,  e  mando  a  todos  os  meus  decendcntes  ,  que  também 
os  dem  em  quanto  o  foi  e  a  lua  durarem  com  grandes  mal- 
dições aos  que  afTy  o  não  íizerem.  Eíla  oíTada  recolheo  o 
padre  em  hum  cofre  da  china  fechado  com  chaue  ,  e  eíta 
pedra  foy  guardada  e  poíla  a  bom  recado.  Acabada  eíla 
parede  fe  não  fez  mais  obra  que  huma  fancreília  para  a 
banda  da  epiílola,  e  íe  taparão  alguns  buracos,  e  remenda- 
rão 


dei  Rey  Dom  João  o  líl.  1 1 1 

rno  algumas  faltas  que  auia  nas  parede?, quanto  bailou  para 
fuílentar  a  maJeyra  ,  que  não  vleíle  ao  chão  ,  que  era  to- 
da  de  hum  íó  pao  íem  buraco   nem  final  de  bicho ,  ou  de 
qualquer   outra   corrupção   ,    mas    todo  muyto    forte,   e 
muyto  duro  ,  e  trabaihoíb  de  cortar  ,  e  de  todas   as  miu- 
dezas  e  particularidades  deíla  fanta  caía  ,    que  fentao  an- 
darão vendo   e  notando  com  muyta  diligencia  e  curiofida- 
de,  fe  tirou  logo  aly  hum  largo  fummario  de  teftimunhas  , 
que  fe  mandou  a  el  Rey  ,  e  o  que  nifto  defpois  paíTou  fe  di- 
rá a  (eu  tempo.   O  gouernador  deípois   de  ter  dado   expe- 
diente a  eílas  coufas  ordenou  iríe  a  Goa  a  paíTar  o  inuerno, 
e  deixando  em  Cochim  os  nauios  que  Pauião   de  varar  ,  e 
prouendo   em  tudo   o  m.ais    que  liie  pareceo  neceflario  ,  íe 
partio  com  a  mais  armada   que  aly  auia ,  e  de  caminho  vi- 
fitou  as  fortalezas  de  Calecut  e  Cananor ,  e  as  deixou  bem 
prouidas.  Chegado  a  Goa,  fabendo    que  dom  Luis  feu  ir- 
niío  leuara   configo  muyta  gente  da  que  eílaua  em  Chaul  , 
lhe  mandou  outra   de  nouo   porque  eílaua  com  foípeita  de 
poder  auer  guerra  naquella  fortaleza.   A  pos  iilo  começou 
logo   a  entender  em  cobrar   o  dinheyro  das  terras  firmes  , 
em  que  lhe  vierâo  muytas  queixas  c  clamores  contra  os  ta- 
nadores   de  muytos  iníultos   e  fem  rezões  ,   que  faziao  ha 
gente   da  terra  ,  aíly  nas  fazendas  como  nas  molheres   e  fi- 
lhas ,  a  que   o  gouernador  nao  acodio  como  era  rezão  ,  e 
também  diíhmulou  com  algumas  nouas  queixas,  que  fe  lhe 
fizerão   de  Franciíco  pereyra  capitão  da  cidade  ,  como  ou- 
tra vez  ja  fizera  ,   fem  tratar   de  couía  ninhuma  lua  ,  coni 
que  também  deu  então  nouo  motiuo  d'algumas  más  lofpei- 
tas,    que  fe  tomarão  delles.  E  aííy  paíTou    o  inuerno   con- 
certando alguns  nauios ,  e  fazendoHe  preíles  para  a  viagem 
que  tinha  detriminado  fazer   a  Ormuz  ,  tanto  que  íeu  ir- 
mão dom  Luis  de  lá  tornaííe. 


C  A- 


112       Primeyra  Parte  da  Chronica 
CAPITULO    XXXII. 

Gonçalo  meiídez  Çacoto  capitão  de  Azamorfaz  buma  entra* 
da  em  terra  de  mouros  ,  e  o  que  Ihejucede, 

EM  Nouembro   defte  anno   de   i$r22  Gonçalo  mendes 
^Cacoio  capitíio    d'Azamor  ,  fendo  auifado  que  Alemi- 

mero* mouro  principal  da  enxouuia  ,  e  tão  poderofo  nella 
que  de  fua  cafa  tinha  mil  de  cauallo  ,  e  ajuntaua  cinco  mil 
cada  vez  que  queria  ,  com  que  nunca  obedccco  a  el  Rey  de 
Fez  ,    trataua  então  de  le  concertar  com  ellc  para  fe  meter 
cmTageíle,  e  que   os   de  Fez  liiao  ja  com  elie   para  lhe 
leuarem    os  filhos ,  dctríminou    de  ir  dar  nelle  antes  que 
concruiíTe    o   concerto  ,  entendendo   que  o  podia  fazer  a 
íeu  faluo  com   pouco   ou  ninhum  perigo  ,  para  o  que  hum 
fabado  primeyro    dia  de  Nouembro  fahio   da  cidade  com 
duzentos  de  cauallo  ,  em    que  entrauao   vinte  ,    que   lhe 
mandara  António  leite  capitão   de  Mazagão  com  feu  cu- 
nhado António  das  neues ,   e  cem   beíleyros  ,  e  efpingar- 
deiros  ,  e  o  mouro  Acoo  cincoenta  de  cauallo,    e  mil  de 
pé  todos  de  pazes  ,  e  muytos  camellos  carregados  de  man- 
timentos ,  e  á  terça  feira  feguinte   foy  amanhecer  com  to- 
da eíla  gente  duas  legoas  para  ca  de  (^alé  ,  dojide  foy  cor- 
rer aos  mouros  em  tempo  que  oAlemimero  não  eftaua  a!y, 
por  fer  ido  a  falar  cos  embaixadores  dei  Rey  de  Fez  ,  po- 
rem eftauão  muytos  dos  Xeques  da  fua  companhia,  nos  qua- 
is inda  que  achou  boa  refiftencia  ,  não  bailou  para  defpois 
dehuma  bem  trauada  peleja  deixarem   de  íer  todos  mor- 
tos ,  e  catiuas  fuás  molheres  ,  e  filhos :  os  principais  jieítes 
Xeques,  e  aue  o  erão  de  toda  a  enxouuia,  fe  chamauão  lo- 
cefben  maftimede,  barahoo  ,  Alyben  narbian,  locef  ben 
buciba  eí  gueila,  Mafamede  ben  abuu,Azuz  ben  mafamede 
ben  maleque  ,  Hamede  ben  maleque  barahao  ,  e  da  outra 
gente  que  morreo   fe  não  foube  o  nu:-nero  :  foy  aquy  tam- 
bém catiua    a  molher  do  Alemimero  may  dos  feus  filhos  , 
que  erão  dous,  e  ficarão  ambos  feridos  ,  e  as  molheres  e  fi- 
lhos delles  também  forao  catiuas  ,  com  paíTante  de  outras 

féis- 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  uj 

feiscentas  peíToas  ,  e  deixarão  de  fer  nniytas  mal? ,  porque 
le  acolherão  a  liuma  ribeyra  fragcfa,  que  eftaua  daly  niuy- 
ro  perto.  A  preía  deite  dia  foy  de  muyta  fuftancia  ,  por- 
que os  camellos  fómenre  forao  eírnados  em  dous  mil  ,  e  as 
cabeças  do  gado  miúdo  em  vinte  mil  afora  hum  muyto 
fermoío  deípojo  de  capelharcs,  maríotas  ,  camifas  de  zar- 
za  gitania  ,  muyras  cítribeiras  ricas  ,  cabeçadas  de  prata  , 
e  grande  caniidade  d'alcatifas ,  e  de  trigo  ,  e  ceuada  ,  que 
o  capitão  fez  carregar  pondo  abandeyra  no  meyo  da  al- 
gella  ,  com  que  fe  deteue  mais  de  coatro  oras  em  recolher 
o  campo  ,  e  a  rezao  de  le  achar  aly  de  tudo  ifto  tanta 
cantldade  foy,  porque  como  eftes  m.ouros  erão  tão  podero- 
fos  não  fomente  não  ouue  nunca  outros  ,  que  oufaffem  co- 
metellos  para  os  roubarem  ,  como  naquellas  terras  cuílii- 
mão  fazer  huns  aos  outros  ,  mas  tinhão  elles  roubada  toda 
a  enxouuia.  Alem  diílo  diíTerão  os  catiuos  ,  que  íe  tirarão 
daly  muytosquintais  de  prata  ,  de  que  então  íe  achou  muy- 
to pouca,  porque  aíTy  delia  como  de  todas  as  outras  coufas 
tinhão  os  nolTos  mouros  de  pazes  roubado  acaunlgada  ,  o 
que  então  íe  não  podia  preuenir  ,  por  que  a  caualgada  to- 
maua  diftancia  de  huma  legoa  ,  e  como  os  mouros  hião 
com  ell.^  para  afazerem  caminhar,  hião  pollo  caminho 
furtando  cada  hum  tudo  o  que  podia  fem  lhe  ninguém  po- 
der ir  ha  mão  ,  porque  os  Chriílãos  hião  de  trás  delles  , 
porem  o  capitão  receandolTe  difto ,  que  os  m.ouros  fízerão, 
mandou  diante  íecretamente  tomar  o  vao  que  chamauno 
do  duque  ,  donde  lhe  trouxerão  duas  barcas  e  alguns  camel- 
los carregados  de  fato  ,  que  os  mouros  tinlião  loncgado  ,  e 
do  mais  foy  deípois  cobrando  dos  mefmos  mouros  muytas 
coufas  de  preço.  Quando  o  capitão  pariio  da  cidade  to- 
mou o  caminho  do  1'ertão  por  íer  mais  acomodado  para  o 
que  pertendia,  inda  que  era  piore  mais  trabalhoío,  porem 
ha  volta  tomou  o  que  hia  ao  longo  do  mar,  que  era  milhor, 
mais  breue  ,  e  mais  defenfauel ,  e  ha  coarta  feira  feguinte 
encontrou  huma  coadrilha  de  almogaueres  de  pé ,  que  erão 
de  Çalé  ,  e  deixauão  íalrcado  na  barra  d'Azamor  hum  bar- 
co de  Caílella  em  que  matarão  noue  homens,  e  leuauão 
Faru  L  P  três 


114       Primeyra  Parte  da  Chronica 

trcs  catiuos  :   os  nofíos  em  os  vendo  arremeterão  logo  a  él- 
les,  que  fc  começarão  a  defender,  e  pelejando  tratauao  de 
Te  recolher  a  liumas  rochas  ,  que  aly  auia  ao  longo  do  mar , 
porem  antes    que  pudeíTem   fazer  matarão   os  nolTos  fete  e 
catiuarão  cinco ,  a  que  o  capitão ,  por  íerem  grandes  almo- 
cadens  ,   e  terem   feito  muyto  mal  por  aquella  terra ,  man- 
dou também  dar  a  morte  inda  que  era  contra  as  leis  da  boa 
guerra  ,    por  lho  afly  pidirem  todos  os  que  hiao  com  elle  , 
que  ouuerao  por  bem  empregada  aperda ,  que  recebiao  do 
que   lhes  podia  caber   da  valia  delles  aíroco   de    íe  verem 
liures  dos  males  que  delles  recebiao.  Ao  outro  dia  paíTan- 
do  por  Anafe    fe  apartou  com  alguns  de  cauallo   e  foy  dar 
viíla  ha  cidade  ^^  e  dentro  nella  achou  onze  mouros  de  que 
tomou  os  ícte,  e  os  coatro  fe  eíconderao  de  maneyra  ,  que 
os  náo   pôde  achar.   Com  toda   eíta  preía  caminharão   os 
nolTos  cinco  dias  até   íe  recolherem  em  Azamor  ,    fcm  cm 
todo  eíle  tempo  acharem  quem  lhe  defcndeíTe  o  caminho  , 
liem  verem  mais  gente  de  guerra  que  o  mefmo  Alemimero 
que  com   os  doze  de  cauallo  acudio  ao  rebate,    e  eíleue  ha 
fala  com   a  noíTa  gente.  E  ncíle  feito  ,    que  foy  aílaz   bem 
pelejado  ,  náo  ouue   da  noíTa   parte  mais  dano  ,   que  dous 
cauallos  ,  que  os  mouros  matarão  ,   e  coatro  homens  feri- 
dos ,  que  em  pouco  tempo  forao  faós.  Os  criados  de  S.  A. 
que  fe  aquy  acharão  forao  Francifco  botelho  ,   Duarte  da 
cunha  ,  Vaíco  da  íilueyra  ,   Diogo  leite  ,   Balliâo  leite  ,   o 
contador  e  feu  irmíío  de  que  não  achey  os  nomes  ,  o  feitor 
Martim   Afonlb,  João  íernandes   da  foníeca   e  carriao. 
Achoufe  aquy  também  o  ouuidor  da  cidade  ,  que  por  mais 
inílancias  que   o  capitão  lhe  fez   não  pôde  acabar  com  el- 
le deixar   de   o  acompanhar,    de  quem    finty    muyto    não 
achar  o  nome  ,  porque  fora  rezao  daríe  por  elle  aconiiccer 
hum  homem  a  quem    as  letras  eftão  deuendo  dar  naquella 
jornada  a  entender  ao  mundo  ,  quanto   íe  engana  no  mao 
conceito  que  tem  delias,  em  as  ter  por  inabiles  para  as  ar- 
mas ,  porque  em  todas   as  ocafioes  que  naquelle  feito  fe 
oíferecerão  de  le  ellas  exercitarem  ,   teue  elle  ouuidor  tão 
bom  lugar  como  os  milhores  que  nelias  íe  acharão.   Dos 

mo- 


dei  Rcy  Dom  João  o  III.  1 15 

rrora<3ores  da  cidade  que  acompanharão  ao  capitão,  e 
dos  que  vierão  com  António  das  neues  ,  nlo  achey  tam- 
bém os  nomes  ,  poriíTo  os  náo  ponho  aquy  ,  porem  achey 
que  erão  todos  muyto  bons  cauaíeyros  ,  c  que  por  feus 
braços  ganharão  tanta  honra  ,  que  bem  merecerão  fer  co- 
nhecidos por  léus  nomes,  como  o  forão  os  outros  que 
ficarão  nomeados. 

CAPITULO    XXXIII. 

Partem  do  reyno  efte  anno  para  a  Jnãla  três  nãos  ,  onde 
pajfa  huma  fó  que  dá  nouas  da  morte  dei  Rey  Dom  Aia- 
mel ,  dajfe  conta  das  exéquias  que  fe  jazera  por  elle  na 
índia.  Dom  Luis  de  menejes  chega  de  Ormuz  a  Goa  , 
o  gouernador  d  manda  a  Cochim, 

Morte  do  magnânimo  e  inuenciuel  Rey  dom  Ma- 
_  _  noel  da  glorioía  memoria  ,  que  (  como  atras  fica 
dito)  foy  no  dia  de  íanta  Luzia  treze  dias  do  mes  de 
Dezembro  do  anno  de  1521 ,  e  a  muyta  variedade  de  ne-, 
gocios  que  delia  dependerão  ,  importantes  has  coufas  do 
reyno  ,  a  que  entãoVoy  forçado  acudiríe  com  muyta  bre- 
uidade  por  não  íbfrerem  dilação,  forfio  caufa  de  fenão 
poder  por  então  acudir  has  coufas  da  índia  como  ellas 
requerião  ,  e  como  até  então  era  cuftume.  Com  tudo 
não  deixou  de  fe  tratar  delias  do  milhor  modo ,  que  aqucl- 
le  tempo  deu  lugar,  e  por  eíla  razão  a  armada,  quí  íc  fez 
preifes  para  ir  o  anno  íeguinte  de  15:22  ,  não  toy  de  mais 
que  de  três  nãos  e  inda  eftas  íeni  capitão  mór  ,  das  quais 
hião  por  capitães  ,  na  Conceição  Diogo  de  melo  que  hia 
para  capitão  da  fortaleza  d'Ormuz  ,  na  Nazaré  dom  Pe- 
dro de  caftro  ,  e  em  S.  Miguel  ,  que  era  de  mercadores , 
dom  Pedro  de  caílelbranco  ;  e  porque  eítas  três  nãos 
partirão  do  reino  tarde  ,  fó  dom  Pedro  de  caftro  paílou 
ha  índia,  que  foy  amanhecer  na  barra  de  Goa  hum  do- 
mingo vinte  dias  do  mez  d'Agofto  ,  e  numa  almadia  de 
pefcadores,  que  caio  paliou  polia  nao,  mandou  hum  ho- 

P2  mem 


A 


iií       Primeyra  Parte  da  Chronica 

mcm  com  Iiuma  carta  ao  gouernador  dom  Duarte  de 
meneies  ,  em  que  lhe  daua  conta  de  fer  chegado  aaqueila 
barra  ,  e  da  morte  d'el  Rey  dom  Manoel  ,  e  de  como  era 
aleuantado  por  Rey  o  glorioío  princepe  dom  João  íeu 
filho.  Chegando  eííe  homem  a  Goa  íe  foy  direyto  ha  íé  , 
onde  entrou  a  tempo  que  eílaua  pregando  o  bifpo  dom 
Diogo,  e  fendo  conhecido  no  trajo  que  era  do  reyno 
ouue  em  toda  a  gente  muyto  aluoro^o.  O  homem  fe 
foy  direyto  ao  gouernador  e  lhe  meteo  a  carta  na  mão, 
que  defpois  de  a  ler  ,  nao  podendo  refrear  o  grande  Ím- 
peto da  dor  que  íentia  ,  deu  com  ambas  as  mãos  huma 
grande  pancada  no  rofto  ,  e  apoz  iílo  forao  tantas  as  la- 
grimas 5  e  tamanhos  os  vrros  ,  que  em  toda  a  gente  que 
títaua  na  igreja  cauíou  grandiííimo  eípanto  e  fobrelTalto, 
porque  taaibem  o  mefmo  homem  que  trouxera  a  carta' 
começou  a  derramar  muytas  lagrimas  ,  fem  dar  de  íy  ni- 
nhuma  rezao  a  muytos  que  lha  perguntauão.  O  biípo 
também  co  meímo  efpanto  e  fobreííalco  fe  deceo  do  púl- 
pito ,  e  chegando  ao  gouernador  a  altas  vozes  lhe  diíTe 
•  que  llies  diíIeíTe  a  cauía  daquelle  tamanho  eíVremo  ,  a 
quem  elle  ,  podendo  mal  deitar  a  falia  polia  boca,  diíTe 
o  que  paífaua,  e  com  iito  lançando  íobre  a  cabeça  a  ca- 
pa de  hum  feu  criado  fem  perdoar  ao  rofto  nem  has  bar- 
bas ,  fe  íahio  da  igreja  ,  c  fe  recolheo  para  fua  cafa  ,  on- 
de o  acompanharão  o  bifpo  c  todos  os  fidalgos  que  aly 
cftauão  com  tantas  moítras  de  verdadcyra  dor  e  fenti- 
mento  ,  quantas  fe  deuiao  a  huma  noua  tão  defeftrada.  O 
mais  pouo,  que  eílaua  na  igreja  afsy  de  homens  como  de 
molheres  ,  aleuantando  também  grandiílimos  gritos  e 
prantos  ,  e  cubrindo  todos  os  roílos  ,  os  homens  com  as 
bordas  das  capas  ,  e  as  molheres  cos  mantos  ,  fe  foy  cada 
Jium  para  íua  caía  continuando  fempre  por  todas  as  ruas 
cos  mefmos  prantos  e  gritos  ,  com  que  fairao  da  igreja, 
que  foy  caufa  de  íe  eípalhar  em  breue  efpaço  por  toda  a 
cidade  eíla  trifte  noua  ,  com  que  a  dor  foy  geral  em  to- 
dos ,  e  tal  que  por  toda  ella  íenão  viao  naquella  ora  í"e- 
iiáo  rios  de  lagrimas ,  nem  íe  ouuia  outra  coufa  íenão 

gri- 


dei  Rey   Dom  João  o  III.  117 

griros  ,  alaridos  ,  e  lamentações  triftes  ,  dino  fentlmcnto 
de  huma  tamanha  perda  ,  qual  he  fempre  a  de  hum  bom 
Rey  amigo  do  ieu  pouo.  O  bilpo  e  os  fidalgos  todos  dei- 
xando o  gouernador  em  fua  cafa  íe  recolherão  para  as 
íuas  a  ordenarem ,  o  que  para  aquelle  tempo  entendiao 
que  lhes  era  neceflario.  Naquelle  meímo  dia  foy  lançado 
pregão  com  grauillimas  penas,  que  toda  a  pefloa,  homem  , 
molher  ,  gentio  ,  mouro  ,  Chriílao  ,  e  todos  os  Portugue- 
fes  e  elcrauos  feus  Te  veíUlTem  de  dó  ,  o  que  todos  cum- 
prirão muyto  inteiramente,  e  com  muyta  brciiidade. 
Dom  Pedro  decaftro  capitão  da  nao  ,  deícinbarcou  aquel- 
la  mefma  noite  ,  e  recolhido  co  gouernador  lhe  deu  as 
cartas  do  Rey  nouo  ,  e  defpois  de  eílar  com  elle  hum 
grande  efpaço  dandolhe  conta  das  particularidades  que 
paíTauão  noReyno,  fe  recolheo  também  para  fua  caía. 
A  cidade  logo  deu  ordem  para  Te  fazer  o  fiimento  do 
Rey  morto  ,  e  para  iílo  fez  ordenar  na  Sé  huma  eíTa  de 
taiuos  degraos  quantos  couberao  na  altura  da  cafi  ,  to- 
dos cubertos  de  preto  ,  os  três  mais  altos  de  veludo  e 
os  mais  de  pano  ,  e  encima  pindurada  huma  bandeyra 
grande  com  as  armas  reais  e  a  deuiía  da  esfera  como  he 
cuílume  ,  e  por  todos  os  degraos  auia  caíliçaes  de  prata 
grandes  ,  e  pequenos  com  muyta  cera  ,  grande  também 
e  pequena  conforme  ha  diípofçao  dos  lugares  em  que  fe 
punha,  o  que  tudo  fe  fez  co  mor  aparato  que  a  terra  de 
íy  daua,  e  por  maior  que  foy  a  preíTa  que  fe  lhe  deu  ,  não 
pode  iílo  eílar  preparado  de  todo  fenão  ha  terça  feyra 
ao  meyo  dia  ,  e  em  todo  eíle  tempo  atras  ninhum  ofH- 
ciai  mecânico  trabalhou  na  cidade  ,  íenao  aquelles  que 
erâo  neceíTarios  para  dar  auiamento  aos  dós  ,  e  ha  fabri- 
ca da  eíía  :  logo  a  meíma  terça  feyra  ha  tarde  defpois 
de  eílarem  juntos  na  Sé  quantos  frades  e  clérigos  auia 
na  cidade,  nao  ceíTando  de  íe  dobrarem  nella  todos  os 
finos  da  Sé,  e  de  todas  as  outras  igrejas  ,  entrou  nella  o 
gouernador  acompanhado  de  muytos  fidalgos  todos  ve- 
ílidos  no  trajo  pertencente  para  aquelle  ado  ,  e  para 
aquella  ocafiao,  e  apoz  ellcs  fe  ajuntou  tanta  gente  do 

pouo 


ii8  Primeyra  Parte  da  Chronica 

pouo  ,  que  não  cabiâo  nem  dentro  ,  nem  fora  da  igreja. 
As  vefperas  fe  diílerao  logo  em  pontifical  com  toda  a 
íolenidade  poííiuel  ,  porem  celebradas  mais  com  lagri- 
mas e  íuípiros  triíles  ,  que  com  muíica  nem  cantos  ale- 
gres ,  onde  a  principal  força  £oy  deípois  de  dito  o  ref- 
ponfo  ,  quando  fe  diíTe  requiescat  in  pace  ,  porque  entãa 
íubio  a  dor  tanto  acima  dos  entendimentos  dos  homens  , 
que  os  fez  arrebentar  em  vários  eíFeitos  quafi  defatina- 
dos ,  porque  hum  daua  com  a  cabeça  na  parede  ,  outro' 
daua  bofetadas  em  íy  meímo  ,  outro  depenaua  as  fuás 
próprias  barbas  ,  ajuntando  a  iílo  palauras  e  lamentações 
iaílimofiííimas  ,  quais  a  dor  e  o  entendimento  então  a  ca- 
da hum  inlinaua  ,  o  que  na  gente  baixa  e  no  pouo  miúdo 
era  mais  exceíTiuo  ,  nâo  porque  fíntille  miis  ,  fenâo  por- 
que íabe  e  pode  menos  temperar  a  paixão  quando  lhe 
chega,  E  neíla  forma  fe  recolherão  então  todos  para  fuás 
cafas  ,  deípois  de  acompanharem  o  gouernador  até  a  fua. 
Ao  outro  dia  polia  menham  fe  ajuntarão  outra  vez  to- 
dos na  Sé  aísy  os  grandes  como  o  pouo  miúdo  ,  onde 
todos  os  facerdotes  da  cidade  diíTerão  miíTas  rezadas  ,  e 
o  biípo  a  diífe  em  pontifical  officiada  com  as  meímas  la- 
grimas e  fufpiros  ,  que  o  dia  dantes  o  forão  as  vefperas  , 
a  qual  acabada  com  todas  as  íuas  cirimonias  ordinárias  , 
o  gouernador  com  todos  os  fidalgos  fe  foy  ao  terreyro 
das  íuas  caías  ,  onde  ja  achou  os  officiais  da  camará  acom- 
panhados de  muyto  pouo  ,  e  hum  delles  lhe  meteo  na 
mão  hum  efcudo  feito  de  huma  taboa  delgada  com  as 
armas  reais  pintadas  nelle  ,  e  tudo  o  mais  pintado  de 
negro,  o  qual  elle  deípois  de  dizer  em  altas  vozes  a 
modo  de  pregão  algumas  palauras  laílimoías ,  como  he 
cuílurae  ncíles  aílos  ,  fez  em  pedaços  em  hum  banco  que 
t)ara  iíTo  aly  eílaua  pofto  ,  ao  que  fucederao  tantas  gri- 
tas ,  e  tamanhos  prantos  de  todo  o  pouo  ,  que  foy  coufa 
não  fomente  de  elpanto  mas  de  grandiflima  laftima.  Acha- 
rãoíTe  a  iílo  preíenres  muytos  mouros  mercadores  eílran- 
geyros  ,  que  eípantados  da  nouidade  do  que  vião  ,  aju- 
dauão  também  os  noílos  com  tantas  lagrimas  como  fe 

fo- 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  119 

■forão  naturais.  O  gouernador  fe  recolheo  logo  pr^ra  íua 
caía  ,  e  na  rua  direita  da  cidade  o  capitão  delia  em  di- 
uerfos  lugares  quebrou  outros  dous  efcudos  iguais  ao 
primeyro  ,  que  hum  dos  vereadores  lhe  aprelentaua  , 
com  pregoes  que  continhão  as  meímas  palauras  que  o 
gouernador  antes  diílera  ,  dados  em  altas  vozes  por 
hum  homem  que  andaua  acauallo  cuberto  todo  de  dó 
e  com  huma  bandeyra  preta  has  coftas ,  que  lhe  arra- 
ílava  pello  chão  ,  e  com  todas  as  mais  cirimonias  que 
em  íemelhantes  ados  fao  cufl-umadas  ,  e.muyto  íabi- 
das  de  todos,  e  apoz  iílo  fe  recolheo  acamara  e  toda 
amais  gente  para  fuás  cazas.  A  quella  mefma  tarde  o 
gouernador  veílido  em  trajo  de  feíla  qual  conuinha  a 
fua  pcíloa  ,  ao  cargo  que  tinha  ,  e  ao  ado  que  que- 
ria feílejar  ,  fahio  ao  terreyro  das  íuas  caías  ,  onde  o 
cílauão  ja  eíperando  o  capitão  da  cidade  e  todos  os  mais 
fidalgos  ,  lodos,  a  pé  veítidos  também,  com  mayor  cufto  e 
milhor  concerto  que  cada  hum  pode  ,  e  acompanhados 
,de  infinita  gente  do  pouo  ,  que  acudia  a  ver  huma  ciri- 
monia  ,  que  até  então  fenao  tinha  viílo  naquellas  partes. 
O  goueanador  fe  pôs  então  em  hum  cauallo  muyto  bem 
concertado  ,  e  chegando  á  porta  da  camará  da  cidade  , 
de  dentro  lhe  trouxerao  a  bandeyra  real  que  elle  tomou 
nas  mãos  ,  e  no  mefmo  terreyro  ,  defpois  de  tocarem  as 
trombetas  ,  e  ataballes  algum  efpaço  ,  deu  aquelle  acuf- 
tumado  pregão,  Arrayal  ,  Arrayal  ,  Arrayal  ,  com  que 
aleuantou  por  Rey  naquellas  partes  el  Rey  dom  João  o 
terceyro  ,  a  que  todo  o  pouo  reípondeo  com  grita  e  pa- 
Jauras  de  muyto  contentamento  ,  vendo  que  íe  perderão 
hum  Rey  que  em  tudo  fe  moílraua  fempre  amigo  do  feu 
pouo  ,  tinhão  cobrado  outro  de  quem  tinhão  por  certo 
•que  lhe  não  auia  de  ter  menos  amor  ,  nem  lhe  auia  de 
fazer  menos  fauores  e  mercês.  Daly  fe  foy  o  gouernador 
ha  rua  direita  e  ha  porta,  da  Sé  ,e  em  cada  hum  deílcs 
lugares  deu  o  mefmo  pregão  com  a  meíma  cirimonia  e 
repofta  do  pouo  ,  o  qi^e  acabado  fe  tornou  á  porta  da 
camará,  onde  tornou  a  entregar  a  bandeyra  real  com 

que 
/ 


I20         Prímeyra  Parte  da  Chronica 

que  elle  e  todos  os  mais  fe  recolherão  a  fuás  cafas  ,  e  daljr 
por   diante  tornarão  todos   a  continuar  co  dó  como   lie 
cuftume.  O  gouernador  efteue  encerrado  dez  dias  ,  den- 
tro  dos  quais  chegou  feu  irmão  dom  Luis   que  vinha  de 
Ormuz  ,  em  quem  a  morte   dei  Rey  não  fez  menos  im- 
preíTaò  que  nos  outros.  DereueíTe  no  mar  embarcado  até 
que    fe  proueo    do  trajo   neceíTario  ,  e   inda  então    não 
quis  de(embarcar  íenão  de  noite  ,  e  íe  foy  direyto  a  ca- 
fa  de  íeu  irmão  onde  também  eíteue  encerrado  com  elle  , 
e  lhe  deu  larga  conta  do  que  paOara  na  viagem  :  porem 
logo  daly  o  deípidio  para  Cochim  ,  onde   polia   ordem 
que  leuaua  fez  as   exéquias  dei  Rey  dom  Manoel  com 
as  meímas  cirimonias  e  perfeição  que  íe  fízerão  em  Goa  , 
a  que  fe  achou  preíente  o  mefmo  Rey   de  Cochim  ,  mo- 
ftrando  também  muyto  fentimento  polia  morte  dei  Rey, 
c  fe  veftio  de  dó  a  feu  modo  ,  porque  foy  aduertido  que 
aíTi  era  cuftume  antre  os   Reys  amigos,    indaque  íenão 
tenhão  viílo.  Por  todas  as  fortalezas   da  índia  fe  íizerão 
antão  as  mefmas  exéquias  no  milhor  modo  que  cada  hu- 
ma  pode  ,  e  com  as  mefmas   moftras  de  dor  e  fentimen- 
to que  fe  virão  em  Goa  ,  e  toda   a  índia  fe  cubrio  então 
de   dó  que  lhe  durou  paííante  de  três  meies.   Daquy  de 
Cochim  deípidio  dom  Luis  Fernão  gomez  de  lemos  com 
a  capitania  de  Ceilão  ,  que  lhe  viera   do  reyno  ,  e  ja  vi- 
nha deípachado  pollo  gouernador ,  e  o  mandou  em  hum 
galeão  ,  em  que  íe  vieíTe  Lopo  de  brito  que  la  eílaua  por 
capitão  ,  e  em  fua  companhia  mandou  lambem  huma  nao 
da  terra  em  que   pudeíTe    recolher  parte   da  canella  que 
auia  de  trazer  com  figo  ,  que  ío  no  Galeão  não  poderia 
caber  toda.  No  íim  de  Setembro  daquelle  mefmo  anno 
chegou  a  Goa  dom  Gonçalo  couiinho  ,  que  deu  nouas  da 
perdição  de  íeu  irmão  ,  e  de  tudo  o  que  fucedera  em  Or- 
muz defpois  da  íua  partida  ,  porque  em  Mazcate  o  íoube 
por  mouros  que  de  lá  vierão. 


CA- 


cielRcv  Dom  João  o  III.  321 

CAPITULO     XXXIIIT. 

O  gouernador  manda  feu  irmão  dom  Lu  is  a  Maçuha  ,  em 
hujca  de  dom  Rodrigo  de  lima  ,  uay  inuernar  a  Ormuz  , 
trata  logo  do  negocio  do  Ra  is  Xarafo  que  ejíá  prejo  ,  e 
o  que  nelle  pafja, 

O  Gouernador  defpois  que  em  Goa  defpachou  as  cou- 
í.ís  que  lhe  parecerão  neceífarias  fe  paliou  a  Co- 
chim,  onde  começou  logo  de  dar  auiamcnío  lias  náos,  que 
aquelle  anuo  auião  de  ir  para  o  reyno  ,  que  não  erão  mais 
de  trcs,  luima  em  que  auia  de  ir  dom  Pedro  de  caílro  , 
e  ouíras  duas  de  armadores  que  andauao  na  índia.  Apoz 
ifto  ,  porque  el  Rey  lhe  encomendaua  muyro  que  man- 
daíTe  a  Maçuha  em  bufca  de  dom  Rodrigo  de  lima  ,  que 
no  anno  de  15'20,  fendo  gouernador  da  Índia  Diogo  lo- 
pez  de  íiqucyra  ,  fora  mandado  por  embaixador  ao  Pre- 
ftes  João  ,  como  íe  conta  na  coarta  parte  da  Chronica 
dei  Rey  dom  Manoel  que  compôs  Damião  de  goe?  ,  or- 
denou para  eíte  eíFeito  huma  armada  de  oito  galeões  ,  e 
coatro  caraueilas  ,  de  que  fez  capitão  mór  dom  Luis  de 
m.^nefes  íeu  irmão.  Dos  gileòes  erão  capitães  ,  afora  o 
mel  mo  dom  Luis  ,  Ruy  vaz  pereyra  ,  Lopo  dazeuedo  , 
António  de  lemos  ,  Nuno  Fernandes  de  macedo  ,  Manoel 
de  macedo  ,  Joríe  barreto  ,  e  Lopo  ferreyra  ,  e  das  qua- 
tro caraueilas  erão  capitães  ,  Lourenço  godinho  ,  Fer- 
não daluarcs  de  gaa  ,  Pêro  de  moura  ,  e  Artur  de  melo. 
Efta  armada  foy  em  breue  tempo  poíla  na  barra  bem 
prouida  de  mantimentos  ,  munições  ,  e  artilharia  ,  e  fo- 
bre  tudo  de  muyta  e  boa  gente  ,  porque  ainda  que  até 
então  íe  embarcauão  os  íoldados  com  dom  Luis  de  má 
vontade  ,  porque  como  era  por  natureza  altiuo  ,  e  de 
grande  opinião,  os  trataua  mais  afperamente  e  com  menos 
corteíia  do  que  íohiíío  a  ier  tratados  dos  outros  capitães 
por  mais  honrados  que  foííem  ,  lodauia  como  era  muy- 
to  íeíudo  e  de  grande  entendimento,  vindo  a  entender 
quanto  importa  ao  capitão  vfar  de  brandura,  cortcíi^  ,. 
Parte   /.CL  e 


122  Piimeyra   Parte  da  Chi-onica 

e  afabilidade  pára  g.inhar  as  vontades  aos  íeus   íoldados  , 
que  sao  o  niejo  por  onde"  fe  alcanção  as  honras  e  as  boas 
fortunas  da  guerra  ,    mudou  a  natureza,  de  tal  maneyra  , 
e  fe  veyo  a  auer  também  ,  e  acreditaríe  tanto  cos  folda- 
dos  ,   que  neíla  viagem   andauao  á  competência  a  qual  fe 
aula  de  embarcar  com  elle,'e  aísy  foy  cntâo  acompanhado 
de  muytos   homens   fidalgos ,  e  de  outros   muyto  honra- 
dos. Chegando  a  Goa  fez  pagam.ento  h^  gente  ,  que  foy 
caufa  de  fe  embarcar  outra  muyta  com  elle  ,  daly  íe  par- 
tio  com  tençÃo  de  ir  tomar  Chaul,  o  que  não  pode  fazer 
por  lhe  ferem  os  ventos  contrários,  que  era  ja  em  Janeiro 
do  anno  de  I5'23,  e  por  iílo  fez  feu  caminho  para  o  eílrey- 
to  ,  onde  o  deixaremos   por  nos  tornarmos   ao  gouerna- 
dor,  o  qual   deípois  que  deípidio  dom  Luís  íeu  irmílo  , 
tendo  dctriminado  de  ir  inuernar  a  Ormuz  ,  mandou  pôr 
em  ordem  huma  armada  de  quatro  gales  ,  três  galeões  , 
e  três   carauellas   redondas  ,   de  que  deu  as  capitanias  das 
gales  a  Baítião  de   noronha  filho  do  capitão  da  ilha  da 
raadeyra  ,  a  João  fogaça  ,  a  Dinis  fernandez  de  melo  ,  e 
a  dom  Vaíco  de  lima  ,  e  as  dos  galeões  ,  a  Franciíco  de 
raendonça  ,  a  Francifco  de  foufa  tauares  ,  e  a  Franciíco 
de  caftro  ,  e  ao  das  duas  carauellas  a  Duarte  ferreyra  ,  e 
a  João  de  íouía  ,  e  do  capitão  da  terceyra  carauelía  não 
aciíey  o  nome  :  e  afora  cites  nauios  ordenou  também  três 
nauetas  ,  que  forao  em  fua  companhia  carregadas  de  dro- 
gas ,  c  de  alguma  pimenta  ,  arros  ,  açúcar  e  ferro  ,  de  que 
tomarão  a  carga  em  Baticala.  Com  cila  armada  partio   o 
gouernador  de  Goa  em  Feuereyro  do  anno   de  iS'^3  i  c 
atraueílando  o  golfão  com  bom  tempo  ,  em  poucos   dias 
entrou  no  eílreito  de  Ormuz  ,   e  foy  furgír   huma  tarde 
no  porto  de  Mazcate  ,  donde  defpois  de  fazer  agoada  , 
e  receber  hum  grande  prefente  de  refreíco  que  IJie  man- 
dou o  Xeque  da  terra  ,  fe  partio  huma    noite,  e  em  três 
dias  chegou  a  Ormuz,  onde  foy  recebido  com  muyto  ai- 
uoroço  e  muytas  feílas-,  íe  íe  foy  agaíalhar  co  capitão  da 
fortaleza  João  roiz  de  noronha  ,  c  os  outros  capitães  da 
armada  com  íeus  amigos.  O  gouernador  quis  logo  co- 
me- 


dei  Rey  Dom  João  o  ÍII.  123 

ineçar  a  entender  no  que  cumpria  ao  bem  daquella  cida- 
de ,  c  porque  o  capitão  João  Roiz  tinha  muvta  pratica 
d;is  coufas  delia  ,  dilatou  alguns  dias  tirallo  da  capitania 
da  fortaleza  e  entregalla  a  Diogo  de  melo,  que  vinha  pro- 
uido  nella  ,  para  confultar  com  elle  o  que  lhe  parecefíc 
necefíario ,  e  a  primeyra  couía  de  que  começou  a  tratar 
foy  do  negocio  de  Rais  Xarafo,  que  eftaua  prefo  em  po- 
der do  capitão  como  atras  fica  dito,  e  polia  rezao  que 
também  largamente  fica  contada  ,  e  tomando  niílo  o  pa- 
recer do  mefmo  capitão  João  P.oiz  elle  lhe  deu  tais  re- 
zdes  em  fauor  do  mouro  ,  e  da  íua  ioltura  ,  que  o  gouer- 
nadoi*  íe  contentou  delias  ,  e  ficou  do  meímo  parecer  ,  e 
não  faltarão  então  muytos  que  atribuirão  ifto  a  trato  íe- 
creto  feito  CO  mefmo  mouro,  com  grande  proueito  de 
quem  o  fez  ,  porem  como  eíle  negocio  era  de  tanto  pefo 
não  fe  quis  o  gouernador  refoluer  nelle  fem  o  parecer  dos 
íidalgos  e  capitães  que  alj  eílauão,  e  cliamandoos  a  coa- 
felho  ,  lhes  difle  que  elle  tinha  entendido  que  íenão  po- 
dião  aflcntar  as  coufas  do  reyno  de  Ormuz  como  cum- 
pria ao  fjruiço  dei  Rey  nofío  Senhor  ,  fenão  dandoíle 
liberdade  ao  Rais  Rarafo  ,  e  diífimulandofle  por  então 
com  fuás  culpas  ,  e  para  ifto  lhe  deu  as  rezocs  que  lhe 
parecerão  baftantes  ,  porem  como  antre  todo  aquelle 
ajuntamento  auia  algumas  más  íofpeitas  daquelle  nego- 
cio ,  rodos  lhe  refponderão  que  fízeíTe  o  que  lhe  pare- 
ceíTe  que  era  mais  feruiço  dei  Rey  ,  e  com  ifto  fe  defpi- 
dirão  to  ios  ,  foltando  algumas  palauras  ao  íom  de  íua 
tenç-o.  Feiro  ifto  ordenou  o  gouernador  ir  vifitar  el  Rey 
d'Ormuz  ,  e  no  dia  para  iíTo  aprazado  fe  foy  ter  com  el- 
le acompanhado  de  todos  os  capitães  e  fidalgos ,  e  o 
acharão  acompanhado  de  todos  os  feus  com  grande  apa- 
rato e  mageftade  ,  o  qual  o  recebeo  com  muytas  honras , 
feftas  j  e  gafalhado  ;  e  dcfpois  de  auer  antre  elles  algu- 
m;iS  praticas  ,  em  que  o  gouernador  deu  a  el  Rey  grande 
fegurança  ,  e  firmeza  de  paz  e  amizade  com  elle  ,  de  que 
el  Rey  ie  moftrou  bem  contente,  pidio  com  muyta  inf- 
tancia  'ao  gouernador  que  quifeíTe  mandar  íoltar  o  Rais 

Q^z  Xará- 


124       Primcyra  Parte  da  Chroíiica 

Xar:ífo  j  porque  era  coufa  que  lhe  a  ellc  importnua  muy- 
to  ,  o  gouernador  fe  lhe  efcuíou  por  então  ,  encareceií- 
dolhe  muyro  o  que  pidia  ,  porem  el  Rey  tornou  a 
aperrar  com  elle  dizendo  que  íem  aquelie  homem  náo 
podia  aííencar  as  couías  de  íeu  reyno  com  a  ordem  e 
concerto  que  Jhe  cumpria,  porque  elle  tinha  delias  mi- 
Ihor  conhecimento  que  todos  ,  porilTo  lhe  nao  quiíeííe 
negar  huma  coufa  que  lhe  importaua  todo  o  bem  e  bom 
gouerno  do  feu  reyno  ,  e  que  elle  de  fua  fazenda  paga- 
ria todas  as  perdas  e  danos  que  erao  feitos  :  o  gouerna- 
dor  parecendolhe  que  não  podia  fazer  outra  coufa  lhe 
deu  palaura  de  o  mandar  foltar,  que  el  Rey  lhe  agarde- 
ceo  com  muytas  palauras,e  dando  então  ao  gouernador 
hum  rreçado  ,  e  huma  adaga  ,  e  hum  cinto  douro  ,  e  de 
pedraria  que  valia  muyro  dinheyro  ,  e  aos  íidalgos  c  ca- 
pitães muytas  peças  ricas  da  Períia  ,  conforme  ao  me- 
recimento de  cada  hum  ,  íe  defpidirão  e  fe  forão  reco- 
lhendo ,  e  o  gouernador  foy  dizendo  aos  que  o  acompa- 
chauão  que  não  pudera  alfazer  fenao  íoltar  aquelie  mou- 
ro ,  inda  que  tinha  feito  huma  tamanha  traição  como 
todos  íabião  ,  pois  el  Rey  lho  pidira  tão  afincadamente 
como  todos  virão  ;  a  iílo  não  faltou  hum  dos  da  com- 
panhia que  lhe  reípondeíTe  algumas  palauras  ,  em  que  lhe 
deu  a  entender  as  foípeitas  que  então  auia  ,  e  a  pratica 
que  corria  daquelle  negocio  ,  e  cada  hum  dos  outros 
também  foy  dizendo  o  que  lhe  bem  veyo  ,  porem  o  go- 
uernador tudo  dilHinulou  fem  lançar  mão  por  nada  do 
que  íe  dizia  ,  e  naceo  então  a  eftes  homens  íoltarem  ei- 
ras palauras,  de  auer  foípeira  e  pratica  vulgar,  que  pidir 
então  elle  Reyzinho  (  que  era  moço  e  não  cahia  inda  tan- 
to nas  coufas  que  cumprião  ao  bem  de  feu  reyno  )  ao 
gouernador  que  lhe  loltafíc  o  Xarafo,  fora  inuenção  de 
quem  pertendia  feu  intereíTe  da  íoltura  defte  mouro.  Re- 
colhido o  gouernador  ha  fortaleza  mandou  foltar  o  Xa- 
rafo  ,  que  veridoffc  em  fua  liberdade  fez  logo  ajuntar  to- 
dos os  feus  ,  e  acompanhado  dellcs  le  foy  dar  vifta  ha 
cidade  com  alua  coítumada  Ibbeiba  e  oufania,  por-cm  com 

tan- 


delRey  Dom  Joáo  o  III.  125 

tanto  eícandalo  ,  e  defgofto  de  todo  o  douo,  que  fe  come- 
çarão a  folrar  pubricamente  muytas  palauras  de  queixc-s 
contra  o  gouernador ,  pondo  a  elíe  voda  a  culpa  deíle 
negocio,  e  alfruns  oiiue  que  fatreuerao  a  pubricar^  cor 
ver!.kdes  cerras  as  íuípeitas  duuidoias  ,  que  até  então  le 
tinhao  delle  ,  e  não  contente  inda  o  pouo  com  iílo  chegou 
a  tanta  fohura  que  polias  paredes  e  nas  portas  da  fortaleza 
íe  puferãoercritos  de  palauras  tão  deíconcertadas  e  eícan- 
dalofas  ,  que  íe  diíle  então  que  o  gouernador  eftiuera  aba- 
lado para  tornara  mandar  prender  o  mouro  ,  porem  não 

CAPITULO     XXXV. 

O  gouernador  faz  pazi  e  amizade  com  elRey  de  Ormuz  , 
tratafje  de  Je  dar  a  morte  au  goazil  de  Ormuz  Rais  Xe-^ 
ynejim  ,  cofUaofe  a/gumas  particularidades  que  pafJaÕ 
com  èlle  ^  o  gouernadior  Je  fez  prejks  para  fe  partir  de 
Ormuz, 

O  Mouro  Pvals  Xemefitn  ,  que  então  era  goazil  d'Or- 
muz  ,  tendo  noticia  de  fe  tratar  da  fohura  de  Rais 
Xarafo  fez  contra  iíío  grandes  inílancias,  porem  vcndoo 
em  fim  de  todo  em  íua  liberdade  ,  receoío  que  lhe  ne- 
goceaíTe  a  morte  por  todas  as  vias  que  pudelle  ,  íe  foy 
ao  gouernador,  e  lançando  parant'elle  no  chão  todas  as 
armas  que  leuaua  lhe  diíTe.  Senhor  ja  que  Rais  Xarafo 
he  íolto,  eu  fey  que  não  eyde  ter  vida  ,  porque  quem  he 
tanto  feu  amigo  que  o  tirou  da  prifao  em  que  foy  me- 
tido para  pagar  os  males  que  fez  aos  Portuguefes  ,  tam- 
bém íerá  inimigo  de  fcus  inimigos  ,  e  lhes  fará  todo  o 
mal  que  puder  ,  e  polia  mefma  rezão  o  fará  também  a 
iTiim  ,  pois  íou  o  mayor  inimigo  qua  elle  tem  ,  por  onde 
quem  lhe  a  elle  deu  a  vida,  que  mal  merecia  tendo  tantas 
culpas  contra  os  voflos,  eíle  me  dará  a  mim  a  morte  que  eu 
também,  mal  mereço  por  quantos  íeruiços  lhes  tenho  fei- 
to. O  gouernador  algum  tanto  afrontado  deílas  palauras 
reí^ondeo  ao  mouro  no  começo   com  alguma  cólera  di- 

zcn- 


ii6       Priínevra  Pnrte  da  Chronica 

zendo  ,  que  fe  el!e  ouuera  de  caftigar  todos  os  que  forão 
culpados  nos  males  que  naquclla  fortaleza  íe  íizerâo  aos 
Portuguefes  ,    muytos  ouuerão   de   íer  os   caíligados  ,  e 
por  ventura  fora  elie  huin  delles ,    porem  pollos   ferui- 
ços  que  alegaua  ,  que  fizera  aos  feus  ,  nao  fomente  deixa- 
ua  agora  de  o  caíVigar  como  merecia  polia  íohura  e  atre- 
uimento  com  que  lhe  falara  ,  mas  ainda  lhe  faria  muy- 
tas    lionras    com   que  fempre    viuefTe    contente  ,  e  que 
quanto  ao  receyo  que  moftraua  de  Rais  Xarafo   eftiuelTe 
feguro  que  por  fua  parte  lhe   nao  viria  ninhum  mal  ,  e 
com   iílo  o  deípidio   mais  fatisfeiro  ao  parecer  ,  e  mais 
feguro  do  que  aly  viera.  Apoz  iílo  comcçpu  logo  o  go- 
uernador  a  tratar  de  concerto  de  pazes  ,  em  que  o  Xara- 
fo andaua   muyto  íollicito  e  diligente  ,  quiçá   cuidando 
que  com  iílo  amanfaria  a  fúria  do  pouo  ,  mas  como  elie 
tem  a  natureza  do  animal  fero  e  indomauel ,  nao  fey  que 
fofpeitas  concebeo  deíle  negocio  com  que  íe  acendeo  em 
mayor  fúria  ,  e  foltou  a  lingoa  com  mais  liberdade  e  me- 
nos refpeito.  Com  tudo  o  concerto  de  pazes  não  deixou 
de  ir  por  diante  ,  de  que  as  condiç^ics  que  lhe  então  poz 
o  gouernador  forao.  Que  íe  fizelíe  a  conta   do  que  im- 
portaua  a  perda   que  as  partes  receberão  ,  e  que  el  Rey 
a  pagaíle  toda  por  em  cheio  dentro  de  três  anno?.  Que 
polia  deíobediencia  do  aleuantamento  pagaíTe  as  parcas 
em  dobro.  Que  na  alfandega  efliueíTe  efcriuão  dei  Rey 
de  Portugal,  que  efcreueíTe  todo  o  rendimento  delia  ,  o 
qual  fe  entregaria  ao  recebedor  dei  Rey.  Que  querendo 
el  Rey  de  Portugal  a  alflmdega  para  íl  íe  lh'entregaria  lo- 
go. E  que  com  iílo  ficaria  liberdade  a  el  Rey    d'Ormuz 
para  fe  tornar  para  (^eixomc  ond'eílaua  ,  ou  para  outra 
qualquer  parte  que  foíle  mais  íeu  goílo.  Propondo  el  Rey 
eílas  condições  no  feu  coníelho  as  acharão  todos  tão  del- 
arrezoadas  que  el  Rey  não  quis  eílar  porellas,  e  diíle  que 
fe  queria  tornar  para  Queixome ,   nem  tratou  mais  de 
concerto  ,  coíu  que  o  gouernador  pôs  o  caio  de  nouo  em 
coníelho,  em  que  ouue  alguns  debates  e  alterações  fem 
fe  cornar  refolução  alguma  ,  porem  o  Xarafo  Já  teue  feus 

mcyos 


dei  Rey  Dom  João  o  III.         127 

mcvos  com  que  fe  desfez  o  que  eílaua  feito  ,  e  as  pazes 
íe  concluirão  com   que  el  Rey   pagaíTe  as    perdas   como 
antes  eílaua  aílentado  ,  e  que   a  alfandega'  lhe  ficaíle  li- 
ure  ,  e  pagaíTe  cada  anno  as  páreas  ,  que  erâo  feííenta  mil 
xarafins  ,  e  que  para  ajuda    de  as  pagar   lhe  pagaílem  di- 
reytos  as  f^izendas   dos  Portuguefes  que  foílem  a  Ormuz 
(  que  fempre  forao  francas  polia  poílura  d'Afonío  dal- 
buquerque  )  da  maneyra   que  os  pagauao  as  dos  mouros. 
Deites  concertos  forao  logo  paliadas  cartas  patentes  dam- 
bas  as   partes  ,  aílinadas  ,  e  feladas  como   cumpria.    Os 
quais   tanto  que  chegarão  ha  noticia   do  pouo  o  tomou 
táo  rrial  ,  que  ouue  fobr'iílo  muytas  queixas  e  muytas  re- 
clamações ,  porem  nunca  ouue  quem  acudiíTe  a  ido  ,  dan* 
do  por  rezáo  que  iílo  era  o  que  cumpria  ao  feruiço   dei 
Rey  ,   mas  a  gente  praguenta  outras  rezoes  lhe  daua  con- 
formes ao  que  rinha  entendido  daquelle  negocio,  funda- 
das na  cobiça  dalgumas   peifoas  das  mais    principais.  O 
mouro  Rais  Xemeíim  ,  como  tinha  hum  ódio  entranhauel 
ao  Xarafo  ,  andaua  fem  paciência  de  o  ver  tão   auanta- 
jado  ,  e   fem  embargo  da   fegurança  que    o   gouernador 
lhe  tinha  dado  delle  ,    não   andaua    fem    receyo  de  lhe 
acontecer  por   fua    parte  algum   grande  defaílre  ,    pollo 
ódio   que  fabia  que  fe  tinhao  hum  ao  outro  ,  e  com  iílo 
íoltou  em  pubrico  algumas  palauras  ,  em  que  punha  cul- 
pa ao  gouernador  de  não  caftigar  hum  tredro   que  dera 
a  morte  a  leu  Rey  e  fenhor  ,  e  a  tantos  Portugueíes  com 
que  eílaua  em  paz  e  amizade  ,  e  chegou  a  tanto  a  íoltu- 
ra  defte  mouro  que  veyo  a  dizer  pubricamenre  ,  que  pois 
03   Portugueíes  não  erao  homens  para  com  a  morte   da- 
quelle íó  tredro  íè  fatisfazerem  de  quantas  elle  tinha  da- 
do aos  léus  naturais ,  elle  lha  daria  para  vingança  de  to- 
dos, e  do  feu  Rey  que  elle  matara,  e  porque  iabia  que 
niíTo  fazia  feruiço  a  el  Rey  de  Portugal.  Iílo  chegou  logo 
has  orelhas  do  Xarafo  ,  que  o  poz  em  grande   receyo  de 
poder  íer  aísy  ,  e  como  era  íagaz  e  fabia   bem  o  modo 
por  onde   íe  auia  de  gouernar  ,  negoceou  fecrerameníe 
que  fe  deilem  culpas  dellç  ao  gouernador ,  e  fe  Jhe  deííe 

a 


128       Primevra  Parte  da  Chronica 


a  entender  que  os  Portugueíes  que  cl!e  mandara  matar 
no  bazar  ,  como  atras  fica  dito  ,  fora  com  tenção  de  fa- 
zer outro  aleuantamento  na  cidade  ,  para  o  que  tinha  ja 
gente  preftes.  A  ifto  Te  ajuntarão  outros  proceíTos  ,  e  car- 
tas que  fenío  aui^o  por  de  muyto  credito  ,  com  que  o 
negocio  íe  fez  muyro  mais  feyo  ,  e  tudo  iílo  fe  diíle  que 
fe  negoceara  por  meyo  dos  dous  capitães  da  fortaleza 
paííado  e  prefente  ,  João  roiz  de  noronha  ,  e  Diogo  de 
melo  ,  que  l^^uorecião  ao  Xarafo  pbllo  proueito  que  ou 
tinhao  ,  ou  efperauão  delle  ;  elles  ambos  preíentarão  ef- 
tcs  papeis  todos  ao  gouernador  ,  que  como  eílaua  mal 
íarisfeito  do  Rais  Xemefim  ,  porque  fabia  que  praguejaua 
delle  pubricamente  ,  e  receolo  que  efcreueííe  ao  reyno 
os  males  que  clie  e  outros  muytos  diziao  delle  ,  lançou 
mão  pollos  papeis  e  em  fcgredo  os  m.oítrou  aos  capitã- 
es ,  e  lhes  pidio  niíTo  feu  parecer,  elles  como  não  fabiao 
o  trato  fecreto  que  niílo  auia  ,  e  o  que  fe  ordenaua  con- 
tra o  mouro  ,  quando  virão  as  deuaíías  ,  e  os  ditos  das 
teílemunhas  por  onde  fe  prouaulo  contra  o  Xemefim  cul- 
pas tão  Feyas  ,  diíítrão  todos  que  merecia  fer  degolado  e 
feito  em  coartos  ao  pé  do  piiourinho,  onde  todos  o  vií- 
fem  para  terror  e  caftigo  dos  outros  ,  porem  Lopo  da- 
zeuedo  fidalgo  honrado  eja  de  dias ,  que  era  homem  li- 
ure  e  ifento  ,  e  tinha  alguma  noticia  deitas  coufas  que 
paííauão  em  Ormuz  ,  dizem  que  diíTe  ,  façaííe  a  eíle  de 
iobejo  o  que  faltou  ao  outro  ,  eíle  matou  três  e  fera  de- 
golado ,  e  o  Xarafo  matou  cento  e  três  e  fahio  folio  e 
liure.  Bem  íenrio  o  gouernador  eftas  palauras  ,  porem  dif- 
fimuiouas  o  milhor  que  pode,  lançou  o  feito  ha  zomba- 
ria j  dizendo  que  os  velhos  todos  crao  agaílados.  E  quan- 
to a  le  dar  a  morte  ao  mouro  diíle  que  lhe  parecia  bem  , 
porem  não  em  pubrico  ,  porque  era  muyto  aparentado  e 
tinha  muyta  gente  por  ly  ,  e  receaua  q.ue  quando  o  pren- 
deííe  ,  ou  íe  quileife  fazer  juíliça  deile  ,  ouueíTe  algum  al- 
uoroço  ,  ou  aleuantamento  que  foíTe  cauía  de  algum  gran- 
de deíaftre  ,  que  elle  daria  ordem  com  que  folTe  morto 
tão  fecretameate,  que  nunca  fe  foubeíle  donde  lhe  viera 

a 


dei  Rey  Dom  João  o  ílí.        129 

a  morte  ,  o  que  a  todcs  pareceo  bem  j  e  o  gouernador  to- 
mou íobre  fy  a  execução  deíta  morre  ,  e  a  todos  es  que 
aly  eftauao  encomendou  muyro  o  íegredo.  Daly  por  dian- 
te começou  o  gouernador  a  diíllinular  com  efte  mouro  ,  e 
fazeríhe  muytas  honras  e  fauores  ,  dandolhe  a  entender 
que  diílimuladamente  auia  de  fbzer  dar  a  morte  aoRaix 
Xarafo  ,  e  prefentandolhe  muytas  rezoens  porque  cum- 
pria muyto  náo  íe  lhe  dar  cm  pubrico ,  a  que  o  trifte  mou- 
ro deu  credito  ,  com  que  fe  ouue  por  feguro  e  ficou  dei- 
cançndo.  Com  tudo  não  faltou  quem  o  auifaíTe  do  que  no 
coníelho  fe  tratara  contr'elle  ,  porem  elle  cuidando  que 
aquelle  auifo  nacia  mais  dointereíTe,  que  efperaua  tirar 
dellc  quem  lho  daua  ,  que  de  fer  verdade  o  que  lhe  dizia,  , 
lhe  não  deu  orelhas  ,  nem  concebeo  ninhuma  má  fofpeita  , 
antes  cada  dia  fe  hia  fegurando  mais  ,  e  eílaua  mais  defcan- 
lado  pollos  muytos  mimos  e  fauores  ,  que  o  gouernador 
lhe  fcizia  ,  que  o  mais  do  tempo  o  tinha  comfigo  na  forta- 
leza ;  com  tudo  não  deixou  de  tocar  niflo  ao  capitão  ,  o 
.qual  lhe  diíTe  ,  que  não  creíTe  coufa  que  Português  lhe  dif- 
leíTe  naquelle  caio  ,  porque  erao  ardis  e  inuençoens  que 
bufcaua  para  fazer  com  elle  íeu  proueito ,  a  que  o  mouro 
deu  tanto  credito  ,  que  lhe  não  pôs  duuida  ,  e  também 
imaginou  que  erão  aquillo  modos  inuentados  pollo  Xara- 
fo para  lhe  meter  medo  com  que  o  obrigaííe  a  íe  aufentar 
da  cidade,  ou  flizer  algum  defmando  nella,  com  que  fe  lan- 
çaíle  a  perder  ,  para  elle  ficar  com  todo  o  poder  e  mando 
no  reyno  fem  ter  de  quem  íe  receaffe  ,  e  tanto  foy  o  cre- 
dito que  deu  a  efte  penfamento,  qiie  auendo  que  eíla  era 
íó  a  rezão  do  auifo  que  lhe  derão  ,  acabou  de  fe  fegurar  e 
defcaníar  de  todo.  O  capitão  da  fortaleza  não  deixou  de 
dar  conta  ao  gouernador  diílo  em  que  o  mouro  lhe  toca- 
ra ,  o  qual  lofpcitando  que  não  faltaria  quem  lhe  defcu- 
briíTe  alguma  coufa  do  que  fora  tratado  no  coníelho,  pa- 
ra o  fegurar  mais  e  fjzer  perder  de  todo  algum  receyo  ou 
fofpeita  íe  a  tinha,  lhe  acrecentou  os  minios  e  fauores 
que  antes  lhe  fazia,  corn  que  o  trifte  mouro  foy  bebendo 
a  peçonha  com  que  delpois  veyo  aperder  a  vida.  O  gouer- 
Farte,  L  R  na- 


130  Primeyra  Parte  da  Chronica 

nador  entre  tanto,  vendo  que  fe  lhe  gaflaua  o  tempo  ,  foy 
pouendo  outras  chulas  neccflarias,  em  que  íempre  tomaua 
o  parecer  âeííe  inouro  goazil  pollo  fegurar  mais  ,  e  enten- 
dendo quão  pouco  tinha  feito  no  íeruiço  dei  Rey,  pois  dei- 
xaua  a  alfandega  daqueHa  cidade  em  poder  dei  Rey  de 
Ormuz  ,  que  era  couía  de  que  lhe  podiao  pôr  culpas  no 
reyno  ,  quis  tornar  abulir  neíle  negocio  ,  e  remouer  o 
que  eíiaua  feito  ,  e  pondoo  em  confelho  cos  capitães  ,  a 
todos  pareceo  que  o  nao  deuia  fazer,  pois  era  faltar  de  fua 
verdade ,  e  tornar  atrás  co  que  eíiaua  aííentado  ,  e  aííinado 
por  todos  ,  com  que  nao  í'oy  por  diante,  e  o  negocio  fi- 
cou como  eíiaua  ,  e  vendo  que  era  ja  tempo  de  fe  tornar 
para  a  índia  ,  porque  era  ja  em  Julho  deíle  anno  de  i$2^  , 
man-dou  concertar  os  nauios  ,  e  le  fez  preíles  para  le  em- 
barcar. 

CAPITULO  xxxvr. 

Dom  Luís  com  a  fua  armada   nauegando  para  o  ejíreyto 
vay  ter  ha  cidade  de  A.aer  ,  combatea  ,  e  o  que  lhe  fucede. 

Om  Luis  de  menefes  ,  que  atrás  deixamos  atraueíTan- 
do  para  oellreyto  com  huma  groíla  "armada,  em  que 
ília.  para  Maçuha  buícar  dom  Rodrigo  de  lim.a  ,  foy  tomar 
^m  Qacotora  ,  donde  defpois  de  faze^  agoada  nauegando 
para  outra  coíía  d'Adem  tomou  no  caminho  muytas  nãos 
carregadas  de  roupas  ,  que  hiao  de  Cambaya  para  o  ef- 
treyto  ,  e  foy  ter  lobrt  a  cidade  de  Xaer  ,  «jue  he  grande 
€  de  muyío  trato  ,  em  cujo  porto  naquelle  tempo  eílauao 
muytas  nãos  de  mercadores  ,  porem  tendo  nouas  da  noíTa 
armada  dous  dias  antes  que  aly  chegafíe  ,  todas  as  que  pu- 
deráo  fugirão  com  muyta  prefía  ,  e  as  que  nao  puderao 
fugir ,  com  muyta  mais  preíía  defcarregauao  íuas  fazendas 
em  terra,  onde  a  auiao  por  íegura,  porque  a  cidade  era  for- 
te, cercada  toda  em  roda  ,  e  eíiaua  prouida  de  muyta  arti- 
lharia, e  ue  muyta  boa  gente  ,  e  bem  armada  ,  e  o  Rey 
delia  ,  como  dctriminaua  dcfenderfe  dos  noífos  fe  o  qui- 
feíícm  cometer  j  ordenou  logo  diante  das  portas ,  e  por  to- 
das 


dei  Rev  Dom  íoao  o  íll.  i  ?  r 

das  a?  ruas  :1a  cidade  muytas  e  aniyto  fortes  tranqueyr.is  , 
em   que  pô?  a  artilJiaria   ncceílana.  A  nolTa  armada   íby 
íurgir  defronte  da  cidade  ,  donde  lhe  tirarão  logo  muytos 
tiros  groíTos  ,   a  que  dom  Luis   não  quis  que  da  armada  íc 
tiraíTe  ninhum  ,  e  mandou  os  capitães  nos  bateis  bem  con- 
certados ,  que  foíTem  faquear   as  nãos  e  porlhe  o  fogo  .  o 
que  foy  feito  com  muyta  breuidade  ,  porem  não  pôde  ícr 
com  tanta  que  íe  não  gaftalfe  niíTo  o  dia  todo,  porque  acha- 
rão nas  nãos  muyto  que  defcarregar  ,  e  tudo  foy  baldeado 
nos  galeoens.    Acabado  ifto  ja  quali  noite  ,   dom    Luis 
mandou  aos  capitães,  que  lizeíTem  preíles  a  gente  para  o 
outro  dia  ante  menham  darem    em  terra  ,   os  quais  com 
muyto  aluoroço  ordenarão    tudo  Com  tanta   preça  ,  que 
forão  amanhecer  a  borda   do  galeão    de  dom    Luis  cos 
baiJi  muyto   bem  concertados,  e  toda   agente   muyto 
bem  armada  ,    que  ferião  íete  centos  homens  ,  e  muytos 
delles  efpingardeyros,  aí:ora  osefcrauos  que  leuauão  as  ar- 
mas ,  que  também  dauão  boa  ajuda   aos  íeus  íenhores  ,   e 
porque  no  porto  arrebentaua    o  mar  muyto  na  praya  ,  to- 
dos   os  bateis   leuarão  fateixas    para  deixarem    por  popa. 
Dom  Luis  deu  adianteyra   do  combate  das  tranqueyras  a 
António  de  lemos.  Lopo  dazeuedo  ,  Jorge  barreto  e  Ruy 
vaz  pereyra  ,  e  com  todos  os  bateis  juntos ,  foy  caminhan- 
do para  a  terra  ,  onde  chegou  apefar  de  muytos  pilouros  , 
quede  lá  lhe  íirauão  ,  de  que  não  receberão  dano,  por- 
que porconfelho  dos  pilotos  efperauão    polia  baixa  mar 
para  defembarcarem  ,  porque   então  daua  aly  o  mar  mi- 
ihor  jazigo.  Os  muros   da  cidade  ,  que  d'huma  c  doutra 
parte  corrião  polia  terra  dentro  ,  hião  enteítar  em  altas   e 
intrataueis   rochas  e  penedias  ,  e  para  a  cidade   não  auia 
outra  entrada  íenão  por  eíles  mefmcs  m.uros ,  e  polias  por- 
tas,    mas    por  qualquer  deftas  partes   era  aílaz  perigofa  , 
porque   as  portas   erão  tão  fortes  ,  que  parecia  coufa  im- 
poíTiuel  arromballas  ,    e  poilos   muros  aparecia  tanta  e  uo 
luílroía  gente  e  toda  muyto  bem  armada  ,   que  era    ccuía 
adaz  fermofa  e  temerofa  para  ver,   porem  nem  ifío  bc  ílou 
para   por  receyo  no  valeroío  capitão  ,  nem  nos  animoíos 

R  2  iol- 


131        Primeyra  Parte  da  Chronica 

foIJ.ulos  ,  antes  poyando   todos  em  terra   dom  Luís  bra- 
dou logo  Sintingo  ,  com  que  os  capitães  da  dianteyra  co- 
meteráo  a  tranqueyra  com  tanto  Ímpeto,  que  em  breue  ef- 
paço  a  largarão  os  mouros,  efe  recolherão  para  buin  pofti- 
go   da  porta,    que  eílaua   aberto  para  por  elle  fe  faluarem 
11a  cidade  ,  onde  a  preíla  e  o  medo  foy  tamanho,    que  os 
que  primeyro   puderao  entrar   cerrarão  logo   o  poíligo  ,  e 
por  dentro  o  entupirão  com  tanta  cantidadade  de  pedras  , 
que  ficou  bem  forte  ,  e  não   fe  lembrauão  ,   que  deixauao 
de  fora  muyta  parte  de  feus  companheyros  entregues   ao 
furor  de  feus  inimigos,  que  aninhum  delles  deixou  com 
vida  ,  e  eílando  os  noíTos  grandemente    íentidos  por  não 
verem  maneyra  para  poderem  entrar  na  cidade,  chegarão 
aly  Nuno  fernandez    de   macedo  ,    Lourenço    godinho  , 
Martim  correa  ,  e  Rodrigo   de  moura  com  algumas  efca- 
cas  ,    que  trouxerao  arriçadas  nos  feus  bateis  ,  largas   e 
compridas  ,  que  inda  não  forão  bem  encoftadas  ao  mu- 
ro ,   quando  os  nofíos  começarão  a  íubir  por  ellas  á  compe- 
tência  qual  feria   o  primeyro:  a  ifto  acudirão   os  mouros 
com  grandes  pedras  ,  que  lançauão  de  cima  ,  e  muytos  zar- 
gunclios  ,  que  aremeflauao,  com  que  fazião  algum  dano, 
porem   os  noíTos  eípingardeyros  os  fizerao  arredar  para 
fora  fem  oufarern  chegar  has  ameyas  ,  com  que  os  noiios 
tiuerão  lugar  para    íe  porem  em  cima  do  muro  ,  e  arreme- 
tendo logo  cos  inimigos  lias  cutiladas ,  e  has  lançadas ,  os 
fizerão  defemparar   de  todo    o  m.uro  ,  onde  íubirão   logo 
Gs  guioens    dos  capitães  com  outra   muyta  gente.  Aquy 
forão  feridos  muytos  dos  noíTos  das  frechas  dos  mouros  , 
que   eílauão  da  parte  de  dentro  ao  pé   do  muro,  porem 
decendoííe    os  noíTos  abaixo   e  metcndoíTe  entre  elles   fe 
trauou   huma  afpera  briga  ,  que  não  foy    de  muyta  dura  , 
porque  os  mouros  fe  começarão  logo  a  retirar  pelas  ruas  , 
que  erão  cítreitas  ,  e  as  cafas  altas  ,  e  decima  dos  terrados 
as  molhcrcs    com   pedras  fazicão   muyto  mal  aos  noíTos, 
Dom  Luis  ,  que  então  eílaua  na  praya  ,  mandou  Artur  de 
melo  e  Duarte  de  taide   com  cincoenta   homens ,  que  en- 
traíTcm  na  cidade  ,  e  abriíTcm  aportai ,  o  que  elles  íizerão 


com 


de!  Rey  Dom  João  o  1!I.  133 

com  muyta  diligencia  ,  tirandolhe  totia  apedra  com  que 
eíuiua  entupida  ,  e  de  fora  mandou  também  arraiar  c  ceí- 
fcizer  a  tranqucyra  ,  que  eftaua  diante  da  porta  ,  cem  que 
ficando  ds  iodo  deíembaraçada  entrou  dom  Luis  por  elJa 
com  a  fua  bandeyra  defpregada  tocando  as  trombetas  , 
comque  os  noílos  tomando  grandiíTimo  animo  forão  cor- 
rendo polias  ruas  trás  os  mouros  ,  que  fe  lh'ercondião 
polias  caías  ,  e  como  as  ruas  eítauáo  todas  atalhadas  ,  nao 
pcdiao  os  noílos  paílar  auante,  e  recebiao  muyto,  dano  das 
pedras  que  lhe  lançauao  dos  terrados ,  para  o  que  o  capi- 
tão mor  fez  dous  eíquadroens  de  gente,  que  forao  cor- 
rendo toda  a  cidade  por  antre  o  muro  e  as  cafas  ,  cada 
hum  por  íua  parte,  e  a  cercarão  roda  em  roda  ,  que  da 
banda  da  terra  tinha  os  muros  baixos  ,  e  porque  as  ruas  e 
as  cafas  eítauao  todas  cheyas  de  gente,  a  que  os  noílos  não 
podiáo  chegar ,  mandou  dom  Luis  aruorar  aly  muytas  eí- 
cada?,  por  onde  muy tos  fubirao  aos  terrados,  com  que  fica- 
rão íenhores  das  ruas  e  das  caías :  os  mouros  auen^doíTejá 
por  perdidos  ,  começarão  a  fugir  cada  hum  com  a  mayor 
prelTa  que  podia  ,  domLuis  íe  tornou  então  ha  porta  e  lhes 
deu  lugar  que  fugiííem  ,  de  que  queixandolTe  os  capitães 
lhe  refpondeo  elle  ,  que^mayor  honra  era  fugir  o  inimigo 
que  matallo.  O  primcyro  que  cometeo  a  fugida  foy  o 
R-iy,  que  íaindo  das  fuás  cafas  lhe  mandou  pôr  o  fogo  , 
e  após  elle  fugio  toda  a  gente  principal  com  todas  fuás  fa- 
mílias. Os  noíTos  então  começando  aquebraras  portas  dos 
mercadores  ricos  ,  e  tirar  o  que  auia  dentro ,  lho  não  con- 
íentio  domLuis  até  que  a  cidade  foy  de  todo  defpejada 
dos  inimigos ,  então  deu  eícala  franca  a  todos  os  capitães 
e  Toldados  ,  e  que  cada  hum  foíTe  liuremente  íenhor  do 
que  leuaíie,  fem  auer  quem  lhe  foíTe  ha  mão  ,  com  que  to- 
dos começarão  a  acarretar  quanto  mais  podião,  cada  ca- 
pitão com  feus  companheyros ,  e  alguns  puferão  o  fogo 
a  grandes  moradas  de  caías,  que  eftauão junto  has  deIRcy 
que  começando  a  arder  com  grandiíiima  fúria  e  eílrondo,  o 
capitão  mór  mouido  a  compaixão  o  fez  apagar,  e  man- 
dou  que  ninguém  pufeíle  mais  fogo  em  cala  alguma,  não 

dei- 


134       Piimevra   Parte  da  Chronlca 

deixr.ndo  ícmpre  de  termuyta  vigilância  nos  mouros  fe  fe 
punhao  em  ordem  de  tornar  ha  cidade/  e  em  quanto  l"e 
ifto  fazia  mandou  ao  íeu  condeílabre  ,  que  cos  marinhey- 
ros  da  terra  foíTe  recolher  os  corpos  dos  Portuguefcs, 
que  morrerão  na  batalha  ,  que  erao  vinte  e  três  ,  e  eílauao 
ainda  efpalhados  polias  ruas  da  cidade  ,  que  mandou  en- 
terrar na  praya  com  muyta  dor  e  íentimento  dos  que  o 
viâo  j  e  aos  feridos  mandou  recolher  aos  íeus  nauios,  onde 
os  fez  curar  com  muyta  diligencia,  e  elle  cos  capitães  e 
toda  a  mais  gente  le  deixou  eílar  em  terra  defcanfando 
toda  aquella  tarde,  naqual  fembarcarão  muytas  mercado- 
rias de  muyto  preço,  porem  íendo  foi  pofto  fez  embarcar 
toda  a  gente  ,  íem  confcntir  que  fe  pufelTe  fogo  ha  cidade, 
e  como  o  vento  ihe  feruia  ,  aquella  mefma  noite  fe  fez  ha 
vella  na  volta  d'Adem  ao  longo  da  coíla ,  mas  como  le- 
uaua  era  feu  regimento  ,  que  não  paíTaífe  por  parte  onde 
pudeffe  íer  viílo  delia,  por  não  fazer  detença,  e  que  da  volta 
lhe  fofíe  dar  vifta  fe  lhe  bem  pareceíTe  ,  fe  fez  muyto  ao 
mar  e  paíTou  denoite  por  ella  fem  íer  viílo,  E  como  leuaua 
bons  pilotos  ,  e  bom  tempo,  entrando  as  portas  do  eílrey- 
to  foy  furgir  na  ilha  do  Camarão  a  fazer  agoada  ,  em  que 
fe  deteue  dous  dias ,  e  da  hy  foy  tomar  o  porto  de  Maçu- 
lia  yquQ  era  o  fim  deíla  jornada. 

CAPITULO    XXXVII. 

Dom  Luís  manda  recado  a  dom  Rodrigo  de  lima  da  Jua  vin* 
da  ,  e  je  torna  fem  elle ,  fae  do  ejireyto  e  vay  furgir  em 
Mascate, 

OS  moradores  de  Maçuha  tanto  que  virão  a  noíTa  ar- 
mada no  porto  fugirão  quafi  todos  polia  terra  den- 
tro ,  porem  dalguns  que  ficarão  ouue  dom  Luis  fala  ,  a 
que  fez  bom  gaíalho,  e  os  fegurou  e  contentou  de  maney- 
ra  ,  .que  por  clles  mandou  recado  ao  Xeque  do  Jugar  d'Ar- 
quico  da  lua  vinda  ,  e  do  a  que  vinha  ,  a  que  o  Xeque 
refpondeo  logo  por  hum  homem  feu  ,  que  dom  Rodrigo 

era 


dcl  Rey  Dom  João  o  III.  135' 

era  ia  defpachrido  com  a  repofta  do  Prcíle  João  e  eftciua  da 

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ihe  dclle  quem  leuaíTe  Jiuma  carta  íua  a  dom  Rodrigo  ,  e 
lho  pagaria- muyro  bem  ,  com  que  o  Xeque  ficou  muyto 
contente  por  ter  promeíla  de  dom  Rodrigo  de  muyto  boas 
aluiílaras,  fe  lhe  mandaíTe  nouas  que  eílauao  aly  nnuios  de 
Portugueíes  ,  e  mandou  logo  a  dom  Luís  hum  homem 
que  liie  leuade  a  carra  ,  que  rambem  hia  aílaz  aluoraçado 
pollo  proueito  que  efperaua  de  dom  Rodrigo  por  tam  boa 
noua.  Dom  Luis  antes  que  eícreueíTe  tratou  cos  pilotos 
ate  que  tempo  fe  poderia  aly  deter  a  armada  ,  e  todos  a 
huma  voz  ('afirmarão,  que  até  vinte  dias  de  Abril  ,  e  mais 
não  ,  pollo  qual  na  carta  que  eícreueo  a  dom  Rodrigo 
lhe  encarregou  muyto  ,  que  com  a  mayor  breuidade  que 
pudeííe  fe  vieííe  aaquelle  porto  de  Macuha  ,  onde  o  eípe- 
raria  até  vinte  dias  de  Abril  e  mais  não  podia  fer  ,  porque 
pollos  pilotos  e  capitães  eílaua  detriminado  ,  que  íe  aly 
íe  detiueíle  mais  tempo  ihe  feria  forçado  inuernar  dentro 
no  eílreyto  ,  onde  a  armada  e  a  gente  corria  muyto  rifco» 
Por  onde  íe  lhe  pareceíTe  ,  que  até  cfte  tempo  não  podia 
vir  ter  a  Maçuha  ,  não  buIiíTe  comfigo  ,  nem  tomafle  tra- 
bíilho  de  balde  ,  porque  ja  o  não  acharia  ,  porem  que  lhe 
aconíelhnua  ,  que  fe  pufeíTe  mais  perto  do  m.ar  ,  para  que 
quando  o  anno  feguinte  o  vieííe  bufcar  outra  armada  a 
não  errafíe  por  eftnr  longe  ,  e  que  íendo  cafo  que  não  pu- 
deííe vir  a  tempo  de  {'embarcar  ,  na  mão  do  Xeque  d'Ar- 
quico  acharia  recado  feu  ,  em  cujo  poder  lhe  deixaria 
jeis  fardos  de  pimenta  de  quintal  cada  fardo,  e  dez  de 
teadas  ,  e  hum  cofre  com  coufas  do  reyno  para  íe  veftir  : 
com  efta  carta  mandou  dom  Luis  dous  homens  para  que 
íe  algum  delles  f.iltaíTe  por  alguma  via  ,  ficaíTe  o  outro  ,  os 
quais  íe  partirão  logo  e  caminharão  a  grande  preíTa.  Ddm 
Luis  entretanto  fez  íua  agoada  ,  e  pôs  em  ordem  tudo  o 
que  lhe  era  necelTario  para  a  viagem  ,  eíperando  com. 
niuyto  aluoroço  a  vinda  de  dom  Rodrigo  ,  porem  vendo 

que. 


13a        Prlmeyra  Parte  da  Chronica 

qus  até  os  vinte  e  hum  de  Abril  não  era  vindo  ,  e  que  não- 
lii^era  poflluel  efpcrar  mais  tempo  ,  entregou  logo  ao  Xe- 
que  os  fardos  de  pimenta.,  e  os  das  teadas  ,  e  u  cofre  pa- 
ra o  dar  a  dom  Rodrigo  ,  e  huma  carta  cm  que  íe  \h°  deí- 
culpaua  de  não  eíperar  mais  por  elle  ,  por  lho  não  confen- 
tir   o  tempo  ,  de  que    em  eftremo  hia  fentido- pollo    nao 
]euar  com  figo  ,  e  lhe  fez  noua  lembrança  ,  que   íe  paíTaf- 
íe  para  mais  perto  ,  e  deu  conta   do  que   lhe  deixaua   em 
poder  do  Xeque  ,  que  era  o  meímo  que  lh'eícreuera  na  ou- 
tra carta ,  que  mandaííe    pôr  tudo  em  cobro.  Os  dous  ho- 
mens ,  que  leuarão  efta  carta  ,  a  derao  a  dom  Rodrigo  aos 
quinze  dias  de  Abril  ,  com  que  elle  e  toda  a  fua  companhia 
receberão  grandiílimo  aluoroço  ,  porem  inda  foy  mayor 
a  trifteza    em  todos  ,  defpois  que  virão  que   os  cinco  dias 
que    lhe   ficauâo   para  o  termo  que  lhe  punhão   não  era 
tempo  baílante  para  chegarem  ha  armada.  Dom  Rodri- 
fro  vendo   que  para  aquilio  não  podia  já  auer  remédio  por 
aquelie  anno  ,  e  parecendolhe   bem  o  confelho   de  dom 
Luís     fe  abalou  logo  da  ly  ,  e  caminhando  até   osvinte  de 
Abril  parou  num  bom  lugar  íós  três  jornadas  de  Maçuha  , 
onde  lhe  derão  a  outra  carta  de  dom  Luis  ,  polia  qual  fou- 
be  da  íua  partida  ,  e  do  que  lhe  deixaua  em  poder  do  Xe- 
que ,  que  mandou  logo  arrecadar,  e  tudo  lhe  foy  entregue 
fem  auer  falta.  Dom  Luis  fazendoííe   ha  vella  de  Maçuha 
com  bom  tempo  íahio  do  eftreyto  ,  e  foy  huma  menham 
furgir  no  porto  d'Adem  ,  onde  íe  deteue  até  atsrde  íem  da 
terra  para  elle  ,  nem  de  elle  para   a  terra  auer  recado   al- 
gum ,  pello  que  mandou  os  bateis  com  alguma  gente  ,  que 
queimarão   íeis  nãos  vazias,  que  eftauão   no  porto,  efe 
partio  como  foy  noite,  ecorrendocom  tempo  a  flaz  rijo  em 
popa ,  em  poucos  dias  foy  íurgir  no  porto  de  Mazcate ,  on- 
de teue  larga  informação' de  tudo,  o  que  o  gouernador  feu 
irmão  íizera  em  Ormuz ,  e  lhe  derão  a  entender  ,  que  tudo 
íe  fizera   por  groíTas  peitas  ,  que  o  Xarafo  lhe   dera  e  aos 
capitães  da  fortaleza  ,  de  que  ficou  aílaz  lentido  ,  aíTy  pol- 
lo  que  cumpria  ha  honra  de  feu  irmão  ,  como  porque  vio 
que  de  todo  quebrara   a  ordem  ,  que  elle  deixara  em  Or- 
muz 


delRey  Dom  João  olíl.  137 

muz  acerca  do  negocio  daquclle  mouro ,  porem  como  era     • 
feíiido   e  atentado  o  diíTunulou^ntao  j  quanto  vio  que  era 
necellario. 

CAPITULO    XXXVIII. 

O  gouernador  parte  de  Ormuz-,  Jaz  dar  a  morte  a  Raix  Xe- 
mejim  ,  e  o  que  Jefaz  fobre  ijjo.  No  caminho  tomão  os 
mouros  huma  galé  noj]a.  O gouernador  entra  com  toda 
armada  em  Chaul  defauindo  com  dom  Luis  Jeu  irmão  , 
dahy  Je  vay  a  Goa  ,  dajfe  conta  de  huma  molher  que  os 
ynouros  catiuao  va  nojja  galé, 

DEixamos  atrás  o  gouernadorfazendoíTe  preíles  para  fe 
partir  d'Ormuz  ,  por  fer  ja  em  Julho  de  I5'23  ,  e  tan- 
to que  tudo   foy  aparelhado    Tembarcou   numa  galé   em 
que  detriminaua   ir  até  Mazcate  ,  e  alTy  embarcado    daua 
defpacho  has  partes  ,  onde  o  mandou  vifuar  el  Rey  pollo 
Xarafo    com   muytos  refrefcos  para   a  viagem.  O  goazil 
Raix  Xemeílm    fe  foy    também  defpcdir  delle   com  hum 
grande  preícnte  ,  porem  o  gouernador  parecendolhe   que 
aquella  era  aconjunção   em  que  mais  fecretamente  e  com 
menos  fofpeita   lhe  podia  dar  a  morte  como  tomara  a  íeu 
cargo  ,  o  deteue   em  praticas   de  pouca  fuílancia  íobre  as 
coulas  d'Ormuz  até  que  foy  noite,  e  deípidindoííe  então 
o  mouro  delle  para  fe  recolher  a  terra  ,  lhe  diíle  ,  que  fe 
deixafle  eílar  porque  tinha  para  tratar  com  elle  huma  cou- 
fa   de  muyta  importância  ,  que  mandaíTe  recolher   o  íeu 
barco  ,  que  elle  o  mandaria  deípois  no  bargantim  pôr  em 
terra,  o  que   o  mouro    fez  fem  ninhuma  foípeita    do  que 
eftaua  ordenado  contr'elIe.  O  gouernador  então   íe  fez  ha 
vella  ,  que  tinhão  vento  proipero  ,  e  não  í'afaílou  muyto 
do  porto  quando  mandou  lançar  o  goazil  ao  mar  com  hu- 
ma camará  de  falcão   aopeícoço,  tão  fecretamente  ,  que 
de  ninguém   foy  fentido  ,  onde  acabou   miícrauelmente  a 
vida.  Os  criados  do  mouro  ,   que  elle  mandara  para  ter- 
ra ,  e  o  cílauão  efperando  ,  vendo    a  fua  tardança  ,   e  que 
O  bargantim   o  não  trazia  ,  imaginarão  que  o  gouernador 
Farts  I,  S  o 


138        Pfimeyra  Parte  da  Chronica 

o  leuarla  com  íigo  ati  Mazcate  ,  porem  hum  parente  feu 
a  requerimento  de  íuas  molheres ,  e  com  defejo  de  íaber  a 
caufa  daquella  fua  tardança  ,  fe  embarcou  em' hum  terran- 
quim  ,  que  he  hum  certo  género  de  barquinhos  ligeiros  ,  e 
ha  vela  e  a  remo  fe  foy  a  Aíazcatq  ,  onde  ch.^gou  ao  outro 
dia  ,  defpois  de  fer  chegado  o  gouernador  coln  toda  a.ar- 
niada  ,  e  defembarcando  algum  tanto  defuiado  do  porto 
ló  e  disfraçado  fe  foy  a  Mazcate  ,  e  pôs  toda  a  diligencia 
poíHuel  por  faber  nouas  do  goazii ,  até  buícar  maneyra 
com  que  mandou  tomar  informaç'ío  dos  mouros  da  galé  , 
fem  nunca  poder  achar  nouas  nem  rafto  algum  do  que 
bufcaua  ,  e  com  tudo  íe  deixou  aly  andar  até  o  gouerna- 
dor fe  partir  para  a  índia.  E  enrao  fe  tornou  para  Ormuz 
onde  co  mao  recado  que  leuaua  ,  as  molheres  e  criados 
do  mouro  leuantarao  tantos  e  tamanhos  prantos  na  cida- 
de ,  que  em  todo  o  pouo  caufou  grandiííimo  eípanto,  e 
com  grandes  grijos  e  clamores  fe  hião  ha  porta  da  fortale- 
za ,  onde  íoltauão  mu/tas  injurias  e  blasfemeas  contra  os 
Portugueíes  ,  mas  íem  embargo  diílo  não  aucndo  noua 
certa  da  fua  morte  era  vulgar  opinião  antre  agente  def- 
apaixonada  ,  que  não  era  elle  morto  ,  mas  que  aueria  algu- 
ma caufa  fecreta  da  fua  tardança  ,  e  por  diícurfo  de  tempo 
veyo  iílo  a  cair  em  total  efquecimento  íendo  o  caio  em  fy 
tão  graue.  Dom  Luis  que  inda  eílaua  em  Mazcate,  quando 
ahy  chegou  o  gouernador  feu  irmão  ,  como  eílaua  defgo- 
ílofopoilo  que  ouuira  dizer,  que  elle  fizera  em  Ormuz, 
nao  o  recebeo  com  aquelle  aluoroço,  que  íe  efperaua , 
inda  que  cumprio  com  elle  em  pubrico  com  todas  as  obri- 
gações deuidas,  porem  defpois  que  foube  o  que  noua- 
niente  paíTara  com  o  goazii  Rais  Xemefim  fe  Iheacrecentou 
tanto  o  deígoílo  ,  que  dizem  que  em  íegredo  tiuera  fobre 
lilo  com  íeu  irmão  tantas  queixas,  que  de  todo  ficarão 
defaulndos  ,  e  chegado  o  tempo  de  fe  partirem  para  a  ín- 
dia, com  eíla  mefma  defauença  fc  fez  ha  vella  ,  e  o  acom- 
panhou na  jornada.  E  naucgando  o  gouernador  de  Maz- 
cate para^  a  cofta  de  Dio  ,  Baftião  de  noronha  capitão  de 
humagalé,  que  por  ella   fer  veleyra  hia  fempre  diante  de 

to- 


dei  Rey  Dom  João  o  líl.  í:;9 

toda  a  armada  ,  por  coníelho  e  induzimentõ  dos  feus  fol- 
dado?  ]iiima  noite  fe  apartou  delia  ,  e  íe  deixou  ficar  a  rras 
pairando  o  mar,eíperando  fe  lhe  vinlia  ter  has  mãos  algu- 
ma nao  de  Meca  ,  e  auendo  viíla  de  huma  aflaz  grande  e 
poderoía  arribou  íobr'eIla  ,  que  ao  primeyro  tiro  íeJhe 
rendeo  e  amainou  as  vellas.  O  capitão  da  galé  ,  ou  foíTe 
por  íer  ainda  pouco  pratico  naquellas  couías  ,  ou  i-offe  por 
confelho  de  a!guns  íoldados  cubiçoíos  da  preía  ,  mandou 
amainar  a  íua  vella  ,  e  a  remo  fe  quis  chegar  ha  nao  c 
abalroalla  para  entrar  dentro  ,  ao  que  lhe  íbrão  ha  mão 
alguns  homens  antigos  na  índia ,  dizendo  que  como  a  nao 
era  muyto  alterofa  ,  e  tinha  muyta  gente  ,  fe  a  galé  fe  lhe 
chegaíle  muyto  poderia  de  cima  lançarlhe  tanto  fogo  , 
tantas  pedras  ,  e  armas  darremeíTo  ,  que  a  todos  os  mataf- 
íem  fem  fe  poderem  valer  ,  mas  que  mandaííe  o  íeu  batel 
Jia  nao ,  e  fízeíTe  vir  todos  os  mouros  ha  galé  ,  e  deípois  de 
ella  fer  deípejada  da  gente,  ainda  fera  chegar  a  ella  a 
mandaíTe  defpcjar  pollo  batel  como  lhe  railhor  pareceííe  , 
e  fe  os  mouros  não  quifeíTem.  vir  lhe  meteíTe  a  nao  no  fun- 
do. Outros  íoldados  quica  bifonhos  e  mais  cubiçofos  do 
neceííario  diíTeiao  ,  que  aly  auia  ja  pouco  que  fazer,  por- 
que eílando  a  nao  rendida  não  auião  os  mouros  de  ouíar 
de  bulir  comfigo  :  o  capitão  parecendolhe  milhor  efte  con- 
íelho íem  dar  orelhas  a  quantos  requerimentos  os  outros 
lhe  fizerão  ,  mandou  chegar  a  galé  ha  proa  da  nao  ,  onde 
lhe  derão  hum  cabo  com  que  ficou  amarrada  a  ella  ,  e  co- 
mo por  eílar  ao  fopé  da  nao  ,  cos  balanços  que  daua  , 
chegaua  de  quando  em  quando  co  raaílo  ao  bordo  delia  , 
os  mouros  que  inda  nao  tinhao  de  todo  perdido  o  animo 
lhe  lançarão  do  feu  hum  grodo  cabo  ,  e  atracarão  o  ma- 
fto  da  galé  ao  bordo  da  nao  ,  com  que  a  galé  ficou  rcuira- 
da  para  ella  ,  e  ficando  com  iíto  fenhores  da  galé  lhe  lan- 
çarão de  cima  grande  cantidade  de  pedras,  zargunchos  , 
frechas,  e  outras  armas  darremeíTo,  principalmente  da 
proa  da  nao  para  tolherem  aos  noíTos  cortarem  o  cnbo 
que  a  ^alé  lhe  tinha  dado  ,  em  que  elles  punhão  grandiíli- 
ma  iaftancia ,  e  ainda  que  cuílou  a  vida  a  muytos  dos  nof- 

S    2  ÍOS 


140  Pfimeyra   Parte  da  Chronica 

íos  cortcirem  o  cabo,  toda  vi.i  lhes  aproueytoa  pouco,  por- 
que a  galé  ficou  preía  polio  mafto:  os  que  ficarão  viuos  ven- 
do o  pouco  fruyto  que  tirarão  daquelle  leu  tãocuílo(o  traba- 
1'io,  e  que  aly  íe  podiao  mal  defender  do  Ímpeto  e  multidão 
das  armas  dos  inimigos  ,   lhes  foy  forçado  renraremfe^para 
a  popa  da  galé  debaixo  do  toldo  ,  onde  então  acharão^o 
mayor  perigo  ,  porque  os  mouros  da  mefma  galé  recolhião 
as  pedras  que  íirauao  da  nao,  e  com  ellas  lhe  faziao  muyto 
dano,  com  que  os  mouros  da  nao  cobrando  animo,  decerão 
abaixo  ha  galé,  e  vendo  os  Portuguefes  todos  recolhidos  na 
popa  os  cometerão  com  muyto  ímpeto  ,  mas  acharão  inda 
nelles  yaleroía  refiftencia  ,  até  que  deíaferrolhandofíe  os 
mouros  da  galé  lançarão  íobre  elles  tanta  cantidade  de  pe- 
dras ,  que  com  puro  deíatino  fe  deitarão  ao  mar  ,  onde  os 
mouros  os  matarão  a  todos  fem  darem  vida  a  ninhum:  e  fi- 
cando aíly  de  todo  fenhores  da  galé  ,  lhe  derão  hum  cabo 
por  popa  da  nao  ,   que  com  pouca  vella  fe  foy  na  volta  dê 
Dio  ,  e  no  canainho    foy  dar  com  ella  outra  galé    da  com- 
panhia  do  gouernador  ,  de  cujo  capitão  não  pude  faber  o 
nome  ,  a  qual  inda   que  vinha  muyto  auolumada  co  a  pre- 
fa    de  outra   nao  que  tomara  ,  todauia    o  capitão   quifera 
pelejar  com  a  nao  que  leuaua  anolTagalé,  porem  os  que 
kião  com  elle  ,  quica  por  não  arri içarem  a  prefa  que  le- 
uauão,  lhe  aconfelharao  ,  que  o  não  fizeíTe  ,  dando  por  re* 
zão  que   CS  Portuguefes  erão  ja  todos  mortos   nem  auia 
couía    em  que  lhes  pudeííe  valer,  que  fe  íofiem  adiante  a 
Dabul    a  vender  aprcHi ,  que  delpois  darião   por  defculpa 
ao  gouernador  ,   que    fe  perdera  da  íua  companhia  ,  mas 
que   antre  todos  ouuefíe  muyto  tento  ,   que  nenhum  vieííc 
adefcubrir  que  toparão  com  a  nao  e  com  a  galé  ,   e  meti- 
dos em  Dabul  tratarão  de  fazer  íua  fazenda  ,  e  da  hy  lahio 
a  galé  quando  o  gouernador  hia  nauegando  para  Goa  ,  e  o 
capitão  lhe  foy   dar  a  deículpa  que  antre  todos  fora  aíTen- 
tada  ,  que  por  então  lhe  foy  bem  recebida  ,  mas  vindoífe 
defpois    em  Goa   a  faber  a  verdade  mandou  o  gouernador 
prender   o  capitão   da  galé  ,  porem  da  hy  a  poucos  dias  o 
mandou  íoltar  lem  outro  mais  gailigo  ,  que  por  todos  os 

íi- 


de!  Rey  Dom  João  o  lII.  141 

fidalgos  lhe  foy  mal  contado  ,  auendo  que  merecera  íer 
grauemcnre  caftigada  huma  fraqueza  ,  com  que  o  credito 
dos  Portugueíes  parecia  que  ficaua  algum  tanto  menos  ca- 
bado  ,  e  inda  que  diflo  aducrtirão  o  gouernador  lhes 
aproueitou  pouco.  O  gouernador  que  vinha  nauegando 
para  Goa  ,  tanto  que  entrou  na  coíia  de  Dio  efpalhcu  a 
armada  para  eíperar  polias  nãos  das  prefas  ,  com  que  em 
dom  Luís  feu  irmáo  íe  acreccntou  o  deígoíto  ,  que  trazia 
delie,  eporhumnauio  lhe  mandou  dizer  ,  que  atentaíTe 
o  que  fazia  ,  porque  era  coufa  muyto  alheíi  do  gouernador 
da  índia  andar  has  prefas  ,  nem  antes  delle  ouue  outro  al- 
gum que  o  íizeííe  ,  por  iíTo  que  nao  quiíeíTc  dar  que  falar 
ha  gente,  e  que  elle  ,  por  quão  corrido  fe  achaua  daquil- 
lo,  o  nao  auia  aly  de  acompanhar  mais  tempo,  e  o  hia 
efperar  a  Chaul ,  co  qual  recado  o  gouernador  fez  reco- 
lher a  armada  e  foy  entrar  em  Chaul ,  de  que  era  capitão 
Simão  dandrade  ,  que  como  era  grandiofo  o  recebeo  com 
mu/tas  feilas ,  e  todo  o  tempo  que  aly  eíleue  o  banque- 
teou eíplendidamente  ,  e  a  todos  os  capitães  e  fidalgos  , 
que  vinhão  na  armada  ,  fó  dom  Luis  por  eífar  ainda  def- 
aumdo  com  feu  irmão  fe  nao  achou  prefente  a  eftas  fefbas  , 
e  comia  a  partado  com  a  íua  gente  ,  nem  quis  nunca  acei- 
tar coufa  de  quantas  Simão  dandrade  lhe  oíFerecia  ,  e  aíTy 
eftiuerão  em  Chaul  ,  ate  que  o  gouernador  teue  recado  de 
ferem  chegadas  a  Goa  as  nãos  do  reyno  ,  para  onde  logo 
também  fe  fez  ha  vella,  A  nao  dos  mouros  que  leuaua  a 
noíTa  galé  cliegou  a  faluamcnto  a  Dio,  fem  achar  couía 
noíla  que  ih'embaraçaíTe  o  caminho  ,  onde  de  MeliquiaTí 
foy,  recebida  com  muyto  contentamento,  e  ao  capitão 
deila  fez  muytas  honras ,  e  mandou  defembarcar  toda  a 
artilharia  da  galé  ,  que  erao  cinco  peças  groílas  ,  e  féis  fal- 
cões ,  e  doze  berços  ,  tudo  de  metal  ,  eencarretada  toda 
a  mandou  aelRey,  que  eílaua  então  em  Baroche  com 
muytas  lanças,  couraças,  capacetes,  adargas,  e  outras 
armas  que  íe  tomarão  na  galé  ,  e  a  mandou  varar  em  ter- 
ra com  muytas  feftas  por  memoria  daquelle  feiro  ,  que  el- 
Ic  tinha   por   de  muyta  fua  honra.  ElRcy   fe  moílrou  tão 

con- 


14^       Primeyra  Parte  da  Chronlca 

contente  com  ifto,  que  msndou  franquear  a  nao  de  todos 
os  direytos  que  deuia  ,  afora  outras  mercês  e  honras  , 
que  fez  ao  capitão  delia.  Nefta  galé  forão  catiuos  muytos 
efcrauos  dos  Portuguefes  ,  e  juntamente  com  elles  huma 
raolher,  que  inda  que  era  de  nação  Portugueía  falaua  a  lin- 
goa  caftelhana  ,  liiolher  de  bom  parecer  ,  e  fe  chamaua  a 
Marquefa.  Ella  eílando  catiua  ,  inda  que  teue  conucr- 
fação  com  alguns  mouros ,  nunca  íe  pode  acabar  com  ella 
que  fe  tornaíTe  moura  ,  por  mais  importunaçoens  e  comba- 
tes que  para  ifloteue,  e  aproueiíoulhe  iíto  tanto  ,  que 
ainda  que  gaílou  huma  grande  parte  da  vida  em  peccados , 
permitio  Deos  que  defpois  dVftar  muytos  annos  catiua 
nos  concertos  de  paz  ,  que  fez  o  Lurcão  com  noíco  ,  foy 
lolta  com  outros  catiuos ,  que  lá  eftauao  da  nao  de  Mar- 
tim  de  freilas ,  que  matarão  em  Damão  ,  e  não  contente 
com  iílo  a  mifericordia  diuina  ,  ordenou  que  caíaííe  em 
Goa  com  hum  piloto  ,  que  íe  chamaua  João  farinha ,  que  a 
trouxe  para  efte  reyno. 

CAPITULO    XXXIX. 

Ordenaffe  a  ida  da  Rainha  dona  Leonor  para  Caflella  y 
V   ella  fe  parte  ,  quem  faÕ  os  que  a  acompanhao  até  a  f  »- 
tregarem  na  raya, 

A  Trás  fica  dito ,  que  eftando  el  Rey  noíTo  Senhor  em 
Almeirim  por  cauía  dos  rebates  de  peíle  que  auia 
cm  Lisboa  ,  e  nos  lugares  a  eile  vifínhos,  lhe  mandara 
o  Emperador  Carlos  quinto  que  ouueíTe  por  bem  ,  que  a 
Rainha  dona  Leonor  íua  irmam  viuua  dei  Rey  dom  Ma- 
noel ,  que  então  eílaua  apofentada  na  villa  de  Muja  ,  íe 
tornaííe  para  Caílella  ,  e  leuaíle  comfigo  a  infante  dona 
Maria  fua  íilha  ,  e  que  fua  Alteza  lhe  concedera  facilmen- 
te a  ida  da  Rainha  para  Caftella  ,  mas  que  lhe  negara  le- 
uar  a  infante  fua  íilha  por  tão  boas  rezóes  que  o  Empe- 
rador ficara  fatisfeito  ,  e  por  então  não  deu  muyta  pieíla 
na  ida  da  Rainha ,  até  que  Chriilouão  barrofo  íeu  íecreta- 

rio  * 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  143 

rio  ,  que  então  eft.ina  nefte  reyno  por  íeu  tnand?.do  fa- 
zendo os  íeus  negócios  ,  lhe  cícreuco  tantas  falfidades  e 
defconcertos  contra  a  pureza  da  Rainha  e  dei  Rey  noíío 
íenhor ,  que  começou  elle  de  apertar  muyto  na  fua  ida  ,  e 
mandou  logo  o  conde  de  Cabra  ,  e  o  bifpo  de  Cordoua  , 
e  o  doutor  Cabreyro  ouuidor  do  confelho  real  ,  por  feus 
embaixadores  para  tornarem  entrega  delia ,  e  a  acompa- 
nharem no  caminho  ,  porem  a  Rainha  por  mais  prelTa 
que  fe  lhe  daua  nSo  quis  bulir  comfígo  ,  até  íe  não  mandar 
juílificar  coEmperador  feu  irmão  por  peíloas  de  tanto 
credito  ,  que  ficou  bem  entendendo  a  verdade  delhi  ,  e  os 
defconcertos  e  mentiras  do  barrrofo  ,  que  não  ficou  lem  o 
caftigo  que  merecia  ,  e  todo  o  tempo  que  a  Rainha  gaílou 
em  tratar  iílo  co  Emperador  ,  que  forão  alguns  meies  ,  o 
conde,  e  o  biípo  não  fairão  de  Badajoz  ,  e  íó  o  doutor 
Cabreyro  entrou  nefte  reyno  a  tratar  dos  negócios  da 
Rainha  ,  e  de  tudo  o  que  era  neceíTario  para  a  fua  ida  ,  que 
cl  Rey  mandou  preparar  com  muyta  larqueza  eabaftança 
como  cumpria  ha  honra  da  Rainha  ,  e  á  lua  ,  e  ao  amor  e 
veneração  com  que  fempre  a  tratara  :  e  ordenou  que  a 
acomprinhaíTe  os  Ifantes  dom  Luis  ,  e  dom  Fernando  feus 
irmãos  ,  e  o  duque  de  Bragança  ,  e  outros  rauytos  fi- 
dalgos muyto  honrados,  afora  a  companhia  dos  ifanteá 
que  era  muyto  nobre  e  copioía  ,  e  detriminado  o  tempo 
em  que  fe  auia  de  partir ,  que  foy  no  mez  de  Mayo  defte 
anno  de  mil  e  quinhentos  e  vinte  três  ,  veyo  el  Rey  de 
Almeirim  a  Muja  a  vifitalla  antes  que  fe  partiíTe,  e  o  dia 
que  fe  partio  foy  fua  alteza  com  ella  até  pauia  ,  onde  def- 
pedido  delia  com  mcftras  de  amor  e  fentimento  fe  tornou 
a  recolher  ,  e  os  Ifantes ,  e  o  duque  j  e  todos  os  fidalgos  a 
forão  acompanhando  até  a  raya  ,  onde  chegados  ajuntan- 
dofle  aly  com  elles  o  conde  de  Cabra  ,  e  o  bifpo  de  Cor- 
doua a  quem  ella  auia  de  íer  entregue,  também  aíTaz  hon- 
radamente acompanhados  ,  os  ifantes  ,  defpois  de  feitas 
de  parte  a  parte  todas  as  cirimonias  cuftumadas  em  íeme- 
Ihanies  actos,  lh'entregarão  a  Rainha  ,  de  que  auendoffe 
elles   por  entregues ,  os  ifantes    íe  defpcdirão  logo  delia 

não 


144       Primeyra  Parte  da  Chmnica 

nao  fem  lagrimas,  e  outras  moílras  de  faudade  e  fenti- 
mento,  e  íe  recolherão  com  toda  a  mais  que  fora  naquella 
companhia. 

CAPITULO     XXXX. 

Os  àous  capitães  dom  Fedro  de  cajlelbranco ,  e  Diogo  de 
melo  fe  partem  de  Moçambique  a  andar  has  prefas^  topão 
coyn  embaixadores  dos  F^eis  Dezanzibar  ,  e  Pomba  que 
njem  pidir /ocorro  para  elles  ,  Dom  Fedro  fe  z-ay  com  elles, 
e  o  que  lhe  ncontece, 

DIíTemos   atrás    que  das  três  nãos  que  partirão^defte 
Reyno  para  a  índia  o  anno  de  1522  ,  de  que  erao  ca- 
pitães dom  Pedro  de  caftelbranco  ,  dom  Pedro  de  caílro  , 
e  Diogo  de  melo  ,  fó   a  de  dom  Pedro  de  callro  foy  ter  a 
Goa  ,  e  as  outras  duas  ficarão   em  Moçambiq^ue.  Os  capi- 
tães delias  por  não  eftarem  ocioíos    fe  partirão   daly  com 
tenção  de  íe  irem  ao  cabo  de  Guardafuy  andar  has  preías  , 
e  indo  ao  longo  da  coíla  toparão  com  hum  barco  de  mou- 
ros ,  do  que  tomando  fala  virão,  que  vinhão  nelle  embaixa- 
dores dos  Reis  Dezanzibar  e  de  Pomba  a  pedir  ao  alcaide 
mor  de  Moçambique,  que  pois  elles  erao  vaíTallos  delRey 
de  PortugaUhes  deíTe  focorro  para  cobrarem   as  ilhas    de 
Querimá  ,  que  com  fauor  dei  Rey   de  Bombaça  fe  lhe  ti- 
nhão   leuantado.   A  dom  Pedro   pareceo  rezão   e  deuido 
irem   fazer  eíle  focorro   por  íeruiço  dei  Rey  ,  e  credito  da 
nação  Portugueíâ   e  de  íuas  peíToas ,  e  do  mefmo   parecer 
foy  Chriítouão   de  foufa  que  fora  da  índia  ,^  e  então    hia 
por  paílageiro  com  dom  Pedro    para  capitão  deCliauI, 
porem  Diogo   de  melo  não  quis  confentir  com  elles ,  efe 
foy  feu  caminho  ,  e  indo  na  volta  de  Çacotora  achou  hum 
Zambuco  ,  que  hia  de  Chaul  com  cartas  ,  e  lhe  deu  nouas 
que  o  gouernador  eílaua  em  Goa  ,   fazendoííe  preíles  para 
ir  a  Ormuz,  pollo  que  elle  também  fez  para  la  fua  viagem 
e  não  lhe  feruindo  o  tempo  ,  com  algum  trabalho  foy  ter 
a  Chaul,  onde   achou   o    gouernador,    que  partia  para 
Dio  ,  que   o  não  recebeo   com  muyto  goílo  ,  vendo  que 

lhe    ' 


dei  Rey  Dom  Joíio  o  III,  i^^^ 

lh'era  forçado  metello  em  poíTeda  capitaniii  d'Ormnz,  om 
que  elle  tinha  poílo  João  rodriguez  de  iioronha  feu  lobri- 
nho  ,    mas  nao  podendo  fazer  outra  couía  ,  mandou  que  ^ 
naa   em  que  elle  viera  íe  foíTe  a  Cochim ,  e  elle  na  ariíiada 
fe  foííe  para  Ormuz  ,  onde  lhe  deu   polfe   da  capitania   da 
fortaleza  ,  e  fucedeo  o  que  atrás  fica  contado.  Dom  Pedro 
de  caftelbranco  le  foy  cos  embairadores,  que  o  encaminha- 
rão para  a  principal   das  ilhas   de  (^irimá  ,  em  cuja  guar- 
da  e  defeníao  elldua  hum  íobrinho  dei  Rey  deBombaça 
com  muyta  gente  de  guarnição.   Dom  Pedro  em  chegando 
fez   dous  efcoadroens  da  íua  gente  ,  que  íerião   quaíi  du- 
zentos  homens  bem  armados,  dos  quais  deu  hum  a  Criíto- 
uão  de  foufa   e  outro  tomou   para  íy  ,  com  que  defembar- 
cados   em  terra  forão  cometer  o  lugar  ,  que  acharão  bem 
prouido  para  fe  defender  ,  e  como  ChriílouSo  de  íoufa  hia 
na  dianteira  ,  a  elle  acudio  logo    o  capitão  com   a  mavor 
parte    da  gente  ,  onde   ouue  iiuma  peleja   aflaz  trauada , 
porque  os  mouros  eráo  muytos  c  bem  armados  :  dom  Pe- 
dro não  tardou  muyto   em  dar   no  lugar    por  outra  parte, 
onde  acudindo  muytos    dos  que  pelejauao    com  Criílouão 
de  fouía   ficou  elle  algum  tanto  mais  deíaliuiado  ,  porem 
dom  Pedro   deu  nelles    com  tanto  impeto  ,   que  como   os 
achou   fem  capitão   e  mal  ordenados    em  breue  eípaço  os 
fez  pôr  em  fugida  ,  e  ir  demandar  o  íeu  capitão  ,  indolhe 
elle  íempre  dando   nascoílas,  porem  vendoo  cair  morto 
de  huma  lançada    que  lhe  deu   António   galuão  filho   de 
Duarte  galuão  ,  que  morreo  na  ilha  do  camarão  ,  não  ou- 
ue antr'elles  quem  trataíTe   de  mais  ,  que  de  faluar  a  vida 
por  onde  milhor  podia.  O  lugar,  que  eílaua  ja  de  todo  def- 
pejado  dos  inimigos ,  foy  laqueado  pollos  noflos  ,  que  re- 
colherão   deile  hum    muyto   bom    deípojo,    e  deixarão 
de  lhe  pôr  fogo    por  lho  pidirem   os  embaixadores ,  por- 
que  o  lugar  era  dei  Rey  Dezanzibar.   Neíla  peleja  forão 
feridos  Chriílouão  de  íoufii,  e  hum  criado  feu   por  nome 
Gaípar  preto ,  que  lhe  leuaua  o  feu  guião  ,  e  Nuno  freyre  , 
e  António  galuão  ,  e  Luis  machado  ,  e  outros  muytos ,  de 
que  não  pude  íaber   os  nomes ,  e  por  fcr  ia  tarde  íe  reco- 
Fane  I.  T  lhe- 


1^6         Primeyra  Parte  da  Chronicá 

Iherão  todos  a  huma  grande  mezquira  que  aly  eílaiia  ,  on- 
de  ao  outro  dia  vlerao  embaixadores  das  outras  ilhas  me- 
tellas    debaixo    da  obediência  de  dom  Pedro  ,  que  as  re- 
duzio  todas   ao  poder  dos  Reis  Dezanzibar  e  de  Ponibá  , 
cujos    ellas  erao  ,  e  recoIhendoíTe   logo   ha  nao  ,  defpois 
de  repairar  os  feridos   o  milhor  que  ioy  poííiuel  ,  fe  fez  á 
"vella  para  Melinde  ,  onde  lhe  diziao  que  podia  eílar  mais 
íeguro  ,  e  no  caminho  .  por  íer  ja  fora  de  tempo  ,  que  era 
em.  fim  de  Abri!, achou  os  ventos  aíTaz  rijos  e  trabalhofos, 
com  que  cometeo  airauefíar   ha  índia  mais  por  coníelho  e 
inilancias  de  Chriftouao  de  foufa  ,  que  tinha  conheciinen- 
ío  da  ai  te  de  cartear ,  que  por  vontade  do  piloto  e  meílre, 
que  por  ferja  boca  d'inuerno  auiao    a  viagem  por  muyto 
perigofa  ,  e  aííy   com  aííaz    de  trabalho  forao   furgir    na 
barra  de  Goa    a  doze  dias  de  Mayo  ,  onde  dom  Pedro   fe 
nio  quis  íair  da  nao  ,  porque  Franciíco  pereyra  capitão  da 
cidade  mandou  dar  muyta  preíTa  em   a  defcarregar  para  a 
fazer  meter   no  rio  de  (joa  a  veila  ,  porem  fucedeo  leuan- 
tarfe  hum  temporal  de  vento  Sul  tão  impetuofo  ,  que  não 
podeudo^a  nao  fer  locorrida  da  terra   por  fer   o  mar  tao 
groílo  ,  que  ninhuma  embarcação  pôde  fair  polia  barra  fo- 
ra 5  foy  forçado   a  dom  Pedro  por  fazer  a  nao  tanta  agoa  , 
que  nunca  le  pôde  vencer  ,  mandar  largar  as  amarras  pol- 
jos  eícouués   c  dar  o  traquete  para  que  ,  fendo  então  con- 
junção  deimaré  cheya  ,  a  nao  foíle  varar  muyto  em  feco  , 
porque  deita  maneyra  parecia  que  íe  poderia  tudo  pôr  em 
íaluo  ,  mas  tanto  que  tocou  na  terra  co  grande  Ímpeto  dos 
mares    íe  fez  em  pedaços  y   em  que  ainda  morrerão  alguns 
homens  com  a  preíTa  e  defejo  de  íe  faluarem  ,  porem  dom 
Pedro   e  os  mais,  que  com  elle  fe  deixarão  ficar  na  nao  até 
que   a  maré  vazou  de  todo  ,  íe  fairão  delia  íem  perigo  ,  e 
fe  tirou  muyta  fizenda  ,  e  outro  muyto  fato  :  e  defpois  de 
cellar   a  tempeílade    fe  tirou  também  toda  a  artilharia  ,  e 
muyto  cobre  e  caixoens  de  coral,  e  fe  aproueitarão  os  ma- 
lhos e  rudo  o  mais  de  maneyra,  que  quaíi  fe  não  perdeo  da 
nao  mais  que  o  caíco.. 

CA- 


dei  Rey  Dom  João  o  IIL  147 

CAPITULO   xxxxr. 

o  Tlidakãomafida  hum  capitão  feu  has  terras  de  Goa  ^  que 
fe  fenhorea  das  tanadarias  delia,  O  tanadar  mórfae  a  el- 
le  por  duas  vezes  ,  e  o  que  Ihejucede  em  ambas, 

NEfte  Tnuerno,  que  o  gouernador  dom  Duarte  de  mc- 
_        nefcs  cíleue  em  Ormuz  ,  íuccderao  algumas  coufas 
em  algumas    partes   da  índia   dinas   de  memoria  ,  de  que 
me  pareceo  bem  fazer  aquy  menção  antes    de  tratar    das 
nãos  ,  que  forao  do  reyno  eíle  anno   de  I5'2^  ,    pois  todas 
íucederao  antes    da  fua  vinda  ,  e  quali  num  mefmo  tempo. 
Vendo    o  Hidalcao   que   o  inuerno  era  cerrado  ,   e  tendo 
noticia,  que  Goa  eftaua   muyLO  falta    de  gente,    porque 
polia  trabalhofa  condição   do  capitão  Franciíco  pereyra  , 
que  o  fazia  mal  quiíloccm  todos,  raulenraulo  muyro?  ho- 
mens da  cidade  ,  parecendolhe  que  eftaua  {^  tempo  dilpo- 
ílo  para  dar  eííeito  ao  íeu  antigo  deíejo  ,  mandou  hum  ca- 
pitão feu    com  fete  centos    de  cauallo   e  cinco  nvilde  pé  , 
de  que  muytos  erao  frccheyros  ,  que  foíTe  tomar  as  tana- 
darias de  que  os  noílos  ellauao  fenhores.  Eíle  capitão  r\io 
fomente  não  achou  refiítencia   nos  moradores    das  tanada- 
rias ,  mas  achou   em  todos  muyto   bom   recebimento  e 
muyto  gofto  da  íua  vinda  ,  pollos  iníultos  e  males  que  re- 
cebião  dos  noíTos  ,  e  aíTy   lhe  começarão  logo  a  pagar  as 
rendas    que  pagauao   aos  ncdos ,  com  que  entrando  ven- 
cedor por  todas  aquellas  terras   foy  na  de  Bardes  dar  cnt 
huma   tanadaria  ,   em.  que  eftaua  por  tanadar   hum   André 
pinto  com  oito  Portuguefes  ,  que  ainda  que  fizerão  algu- 
ma refiftencia   aos  que   vierão   diante,  em  que   o  tanadar 
foy  muyto  ferido,  todauia  como  elles  erao  poucos,  e  os  ini- 
migos forão  recrecendo  ,    lhes  foy  forçado   recolheremfe 
com  muyta  prefta  para   o  pagode  de  Bandorá  ,  ond'eftaua 
Fernão  eanes  fouto  mayor  ,  que  então  era  tanadar  mor  ,  o 
qual  nefte  pagode  (  que  tinha  huma  cerca  de  pedra  grande 
e  aíTaz  forte)  tinha  feitas  íuas  eftancias  ,  onde  tinha  com- 
ligo  cento  e  cincoenta   Portuguefes,  cm  que   auia   trinta 

T  2  de 


140        Prlmeyra  Parte  da  Chronica 

de  cauallo  c  alguns  efpingirdeyros ,    e  quinhentos    piaens 
da  rerra.  Chegando   os  mouros  a  eíle  lugar  íahio  a  elles  o 
tanadar  mór  com   a  íua  gente  ,  e  pelejando   com  elles  foy 
desbaratado,   e  fe  recolheo  para  o  pagode  com  cinco  de 
cauallo  mortos  e  muytos  feridos  ;  e  nos  piaens  ouue  pou- 
ca perda  ,  porque  muytos  delles  fe  paííarão  para  os  inimi- 
gos. Chegando  a  Goa  as  nouas  difto  ,  logo  o  capitão  Fran- 
cifco  pereyra  mandou  António  correa  ,  cafado  na  cidade  , 
em  duas  fuílas  pollo  rio  com  trinta  homens  a  íocorrello  , 
CO  qual  focorro  o  tanadar  mór   detriminando  vingarle  da 
afronta  que  recebera  ,  fez  preíles  vinte  e  cinco  de  cauallo  , 
e  cento  e  trinta  de  p S  ,  de  que  alguns  erao  efpingardeyros 
com  que  paílbu   o  rio   do  íal ,   que  em  conjunção  de  maré 
vazia  faz  vao    em  algumas  partes  ,  e  foy  demandar  os  ini- 
migos ,    que  efrauão  alojados  num  campo  raio  ao  íopé   de 
hum  ouíeyro  ,  que  como  tinhão   o  alojamento   muyto  eí- 
palhado  parec*erão  tantos  ,  que  puferao  medo  aos  noíTos , 
c  eíliuerao  com  penfamento  de  fe  retirarem  ,  mas  como  ja 
então  a  maré  eftaua  chea,  e  no  rio  não  auia  vao  por  onde  os 
de  pé  o  tornaííem  a  paliar,  lhes  foy  forçado  fazer  roílo  aos 
mouros ,    que  ja  neíle  tempo  os  vinhão  demandar   com 
grandilfima  fúria  ,  e  fe  trauou  antr'elles  huma  aífaz  afpera 
briga  ,  em  que  dos  noflos  forao  mortos  fete  de  cauallo  ,  e 
os  outros  todos  quafi  feridos,  eotanadarmór  foy  ferido 
de  hum  zarguncho  darremeíTo  com  que  fe  virão  tão  afron- 
tados e  poilos   em  tanto  aperto  ,   que  eftiuerão  em  muyto 
TÍf:o  de  ferem  de  todo  desbaratados ,  não  deixando  porem 
de  pelejar  valeroíamente  aíTy  o  capitão  como  os  íoldados, 
e  moítrando  fempre  tanto  animo  os  feridos  como  os  Ía6s  , 
iras  tudo  iíto  lh'aproueitara  pouco   fe  a  miíericordia  diui- 
na  os  não  focorrera,  permitindo  que  hum  tiro  perdido  deí- 
le   na   cabeça  ao  capitão    dos  mouros,  que  andaua    em 
hum  cauallo  cubertado  diante  de  todos  os  feus  ,   que  ven- 
doo  cair  morto  em  terra  perderão    de  todo  o  animo  ,    e  fe 
começarão  a  defordenar  ,  e  pôr   cm  desbarato  ,   com  que 
os  noíTos   cobrando   nouo  animo  e  nouas    forqas  ,  e  dan- 
do grandes  gritas  apartarão  com  elles   demaneyra,    que 

CO- 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  149 

como  os  tomarão  deTanimados,  e  íem  ordem  ,  cm  breue 
eípaço  os  fizerão  pôr  em  fugida  ,  deixando  no  campo 
mujtos  mortos  e  feridos ,  que  os  de  pé  acabarão  de  ma- 
tar. Fernão  eanes  defpois  de  dar  graças  a  Dcos  por  aquella 
tão  milagrofa  mercê  ,  não  quis  leguir  o  alcance  por  ter  a 
mayor  parte  da  gente  ferida  ,  e  por  não  ellar  fem  receyo 
que  os  mouros  íe  tornaíTcm  a  ajuntar ,  e  com  capitão  no- 
uo  o  vieíTem  dem.andar  outra  vez  ,  e  mandando  paííar  os 
feridos  da  outra  parte  do  rio  ,  e  leuallos  has  fuílas  d'An- 
tonio  correa  ,  elle  com  a  mais  gente  íe  recolheo  ao  pago- 
de donde  faira  ,  e  da  ly  fe  paíTou  a  Goa  por  lhe  Franciico 
pereyra  mandar  dizer,  que  não  tinha  gente  que  pudeífe 
mandar  fora  da  cidade.  E  como  eítas  terras  ficarão  então 
defemparadas  dos  nolTos  ,  os  mouros  fe  fenhorearão  de 
todas  ,  que  rendiao  cincoenta  mil  pardaos  douro.  E  o  Hi- 
daicão  mandou  hum  capitão  feu  ,  que  íe  aíTentou  em  Pom- 
ba ,  donde  tolhia  paílar  a  Goa  todo  o  género  de  manti- 
mentos ,  com  que  obrigou  a  Franciico  pereyra  a  fazer  pa- 
zes  com  elle. 

CAPITULO     XXXXII. 

O  quefucede  a  António  de  brito  ejl ando  fazendo  a  fortaleza 
na  ilha  de  Ternate  ,  moue  guerra  a  el  Rey  de  Tidore  ,  e 
a  rezão  porque  ,  e  o  quejucede  logo  no  começo  delia» 

ANtonio  de  brito  ,  que  o  anno  paíTado  de  mil  e  qui- 
nhentos e  vinta  dous  ficou  em  Maluco  fazendo  hu- 
ma  fortaleza  na  ilha  de  Ternate  ,  com  fauor  de  Cachilda- 
roens  filho  baílardo  áç\  Rey  da  meínra  ilha  ,  com  que  no- 
•uaraenie  tomara  amizade ,  e  por  íua  interceíTao  fora  feito 
regedor  do  reyno ,  foy  proííegindo  a  íua  obra  com  a  mor 
preíla  e  breuidade  que  podia  ,  mas  como  o  trabalho  era 
grande,  e  os  mantimentos  da  terra  muyto  ruis,  e  nella  não 
auia  pao  ,  lhe  veyo  adoecer  a  gente  c  morrer  alguma. 
Neíle  tempo  hum  irmão  do  Rey  m.orto  de  Ternate  ,  que 
andaua  fora  do  reyno  ,  porque  el  Rey  feu  irmão  o  lançara 
delie  por  yer  que  era  mao  homem  ,  e  Jhe  íer  deiobedien- 

te. 


i^o        Priíiieyra  Parte  da  Chronica 

te  ,  vendo  a  conta  que  naquella  terra  íe  fazia  dos  Portu- 
guefes  ,  e  o  poder  e  valia  que  nclla  tinhao  ,  lhe  pareceo 
que  CO  íeu  fauor  poderia  tornar  ao  íeu  eíbdo  antigo  ,  e 
para  iílo  com  alguns  dos  feus  fe  veyo  ha  cidade  ,  e  me- 
tendode  na  mezquita  mandou  dizer  a  António  de  brito  , 
que  elle  com  muytos  dos  íeus  fe  vinhão  aly  para  fe  faze- 
rem Chriftãos  ,  por  iíTo  que  o  fauoreceíTe  ,  e  lhes  fizeíTe 
dar  a  agoa  do  bautifmo  ,  e  que  elle  lhe  faria  ainda  muyto 
feruiço  na  terra.  Cachildaroens  tendo  logo  nouas  difto  ,  e 
entendendo  que  fe  eíle  homem  íe  fizeíTe  Chriítâo ,  por  fer 
tio  dei  Rey  ,  o  tiraria  do  mando  e  da  honra  em  que  eftaua 
poíto ,  diííe  a  António  de  brito  que  por  ninhum  cafo  con- 
fentiíle  que  aquelle  tio  dei  Rey  entralFe  na  terra  ,  porque 
eramao  e  fallo  ,  e  que  por  querer  matar  el  Rey  íeu  irmão 
e  leuantaríTe  co  reyno  fora  deíterrado  delle  ,  que  foubeíTe 
certo  que  tanto  que  aly  entraíTe  ,  como  hera  homem  def- 
quieío  ereuoltoíoj  auia  de  cauíar  muytos  trabalhos  de 
reuoltas,  e  aleuantamentos.  António  de  brito  bem  enten- 
deo  a  tenção  do  Cachildaroens  ,  porem  não  ouíou  então 
de  o  efcandalizar  ,  porque  tinha  muyta  obra  por  fazer  e 
pouca  gente  para  ella  ,  e  elle  lhe  acodia  a  todas  íuas  fal- 
tas, e  fentio  muyto  não  poder  fazer  o  que  o  outro  lhe  pe- 
dia, porque  lhe  pareceo,  quefazendoíTe  eíle  Chrirtão  ouue- 
ra  d'auer  outros  muytos  que  fe  forão  com  elle ,  e  afly  por 
continuar  com  Cachildaroens  lhe  mandou  dizer,  que  fe 
tornaíTè  a  fair  da  cidade,  que  por  então  não  eílaua  em  tem- 
po para  fazer  o  que  lhe  pedia,  e  elle  ofez  aíTy,  de  que  os  da 
terra  íícarao  tão  efcandalizados  que  começarão  a  fazer  al- 
guns aluoroços  pollo  ódio  que  tinhão  a  Cachildaroens ,  os 
quais  António  de  brito  pacificou  com  muyto  fiío ,  e  muyto 
trabalho  por  na  feitoria  auer  muyta  falta  de  roupa  ,  que 
fe  nella  ouuera  panos  que  fe  puderão  dar  ha  gente  da  ter- 
ra ,  tudo  apaziguara  muyto  facilmente  ,  e  eíla  mefma  falta 
de  roupa  foy  então  caufa  de  faltarem  os  mantimentos ,  e 
a  gente  para  fazer  a  obra  ,  que  cos  Porfuguefes  fós  íe  não 
podia  fazer  por  andarem  muytos  delles  doentes ,  com  que 
o  capitão  eílaua  poílo  em  grandiíFimo  aperto   e  agonia.  E 

prour 


dei  Rey  Dom  João  o  III.        151 

prouue  a  Deos  ,    que  nefta  conjunção  chegou  a   Maluco 
riem  Rodrigo    da  lilua   com  hum  nauio   para  carregar    de 
crauo  ,  em  que  leuaua  muytas  roupas  fuás  ,  e  algumas  para 
a  feitoria  ,  com  que    najerra  ouue   algum  alento.  Junta- 
mente com  eílc  nauio  chegarão  alguns  juncos  de  Malaca  e 
de  Banda  ,  que  vinhao  também   a  carregar    de  crauo  ,  no 
que  António  de  brito  logo  proueo  ,   mandando   pidir   aos 
Reis  das  outras  ilhas  em  que  auia  crauo ,  que  a  ninguém  o 
vendeílem  ,  porque   ellc   o  queria  todo   para  el  Rey  de 
Portugal  que  era  ícnhor  daquellas  terras  ,  nem  confentif- 
fem  que  os  juncos  eftiueííem  nos  íeus  portos  ,  e  iílo  parti- 
cularmente mandou  dizer   ao  Rey  de  Tidore  ,  porque  foy 
auiíado  que  no  íeu  porto  eílauao  carregando  muytos  jun- 
cos. Eíle  recado  mandou  António  de  brito    por  hum  An- 
tónio rauares  homem  de  confiança,  para  o  que  lhe  mandou 
armar  huma  fuíla  com  hum  falçao  e  féis  berços,  e  vinte  ho- 
mens que   o  acompanhaifem  ,  e  lhe  deu  ordem  que   fe  os 
juncos   não  quifeíTem  largar  o  porto  por  íua  vontade  ,   lhe 
tiraíTe  has  bombardadas   e  lho  fizeíle   largar   por  força.  O 
António  tauares  deu  eíte  recado  a  elRey  de  Tidore  ,  que 
elle  recebeo  com  deígoílo  ,  e  lhe  refpondeo   que   o  crauo 
não  daria  a  outrem  ninguém,  mas  que  deitar  os  juncos  fo- 
ra   do  feu  porto   era  coufa   que  não  auia    de  fazer  ,  pollo 
qual  António  tauares  os  começou  logo  de  esbombardear  , 
e  os  obrigou  a  íe  fairem   do  porto  ,  de  que  el  Rey   fe  mo- 
Jftrou   em  eílremo  íentido  ,  pollo  qual    os  Portuguefes  por 
eílarem  feguros   da  gente    da  terra  fe  deixarão  eftar  todos 
embarcados  na  fuíla  ,  e  não  tardou  muyto  que  lhe  não  def- 
fe   hum  temporal  tão  rijo  ,  que  íem  íe  poderem  valer   lhes 
deu  com  a  fuíla  ha  coíla  ,   onde  os  da  terra  derão  logo  fo- 
br'elles  ,  e  os  matarão  a  todos  ,  e  recolherão  a  artilharia  e 
concertarão  a  fuíla  e  fe  íeruirão  delia.  Chegando  eílas  no- 
uas  ao  capitão  António  de  brito  mandou  prender  muytos 
carpinteyros  ,  que  el  Rey  de  Tidore  lhe  tinha  mandado  , 
com  que  fazia  hum  nauio  ,  e  mandou  dizer   a  el  Rey  que 
lhe  mandaííe  logo   a  fuíla   e  artilharia  ,  e  os  mouros  que 
matarão  os  Portuguefes  para  fazer  juíliça  delies  ,  ao  que 

el 


i^i       Piimeyra  Parte  da  Chroníca 

el  Rey  llie  não  rerpondco  a  propofiro  ,  por  onde  António 
de  brito  detriminou  de  lhe  fazer  guerra  por  confellio  de 
Ciíchildaro-ens,  aquém  ella  vinha  muyto  a  propoíito  ,  por- 
que entendia  quanta  neceíTidade  o  capitão  auia  de  ter  delle 
para  a  poder  fazer.  A  Rainha  tomou  muyto  mal  fazerfe 
ella  guerra,  porque  era  contra  feupay,  e  lecretamente 
perfuadia  aos  léus  que  não  pellejaííem  contr'elle  ,  mas 
antes  fc  IcuantalTem  contra  os  noíTos  ,  do  que  CachilJa- 
rosns  íendo  logo  auiíado  o  diíTe  ao  capitão,  e  lhe  aconíe- 
Ihou  que  para  eftar  feguro  da  Rainha  a  recolheíTe  dentro 
na  fortaleza  ,  e  el  Rey  leu  filho  com  ella  ,  com  que  pode- 
ria fazer  fuás  coufas  muyto  ha  fua  vontade.  António  de 
brito  pôs  iílo  em  conlelho  com  dom  Rodrigo  capitão  do 
nauio  que  aly  eftaua  ,  e  com  outros  homens  que  lhe  pare- 
ceo  que  niílo  podiâo  ter  voto.  E  todos  forao  contra  o 
coníelho  de  Cachildaroens  ,  dando  por  rezão,  que  fe  lal  fi- 
zeffe  toda  a  terra  fe  leuantaria  contra  os  noíTos  ,  mas  que 
trabalhaíTe  por  fazer  fuás  couTas  com  a  Rainha  por  boín 
modo  e  fem  elcandalo  ,  mas  como  o  capitão  eftaua  mais 
afeiçoado  ao  outro  parecer  não  quis  feguir  efte  ,  e  detri- 
minou de  meter  a  Rainha  na  fortaleza,  o  que  não  foy 
em  tanto  fegredo  que  ella  não  fofle  auiíada  diíío,  e  de- 
noite  fogio  para  a  ferra  ,  e  da  hy  fe  foy  para  feu  pay^,  po- 
rem com  apreffa  não  pode  leuar  comfigo  el  Rey  feu  filho  , 
o  qual  o  capitão  recolheo  na  fortaleza  ,  e  pôs  boa  guarda 
nelle,  onde  o  trataua  com  todo  o  ellado  que  pertencia  a  lua 
peíToa.  A  gente  da  terra  vendo  que  o  feu  Rey  eftaua  na 
fortaleza,  de  maneyra  que  o  não  deixauão  lair  fora,  dizião 
que  o  capitão  o  tinha  prefo  ,  por  onde  ouue  muytos  aluo- 
roços,  que  o  Cachildaroes  trabalhaua  porapazigu^^r,  mas 
como  roda  a  gente  eftaua  muyto  elcandilizada,  não  que- 
ria ajudar  na  guerra  ,  que  o  capitão  fazia  contra  os  de  Ti-, 
dore  ,  vendo  que  lá  eftaua  a  fua  Rainha  ,  porque  a  tenção 
do  capitão  era  fazer  efta  guerra  com  a  gente  da  terra  por 
não  arrifcar  os  Portuguefes  que  erão  muyto  poucos.  Para 
ifto  o  Cachildaroen;;  ,  como  era  fagaz  e  pratico  na  terra  , 
lhe  deu  poraluitre  que  mandalTe  apregoar,  que  aquém 

quer 


delRey  Dom  João  o  III.         15-5 

quer  que  lhe  trouxeíTe  cabeça  de  homem  de  Tidore  daria 
hum  pano   da  feitoria  ,    que  era  de  aííaz  baixo  preço  ,  ao 
qual  pregão  acudirão  tantos  homens  da  terra  com  cabeças 
de  Tidores ,  que  de  todo  efgotariío  os  panos  da  feitoria,  e 
veyofle  ifto  a  acender  de  maneyra  ,    que  íe  teue   por  certo 
que  fe  na  feitoria  ouuera  então  panos  em  abaílança ,  a  ilha 
de  Tidore  ficaua  muyto  falta   de  gente  ;   tão  bom  barato 
fazem   do  fangue  humano  a  cubica  e  o  intereííe,  principal- 
mente na  gente  barbara   e  infiel ;  e  porque  também  neíle 
mefmo  tempo  os  de  Tidore  matauão  muytos  dos  deTer- 
nate  ,  fe  areou  antr'elles  huma  guerra  tão  acefa  ,  que  ja  fc 
não  perdoauão  huns  aos  outros  onde  quer  que  íe  achauao, 
c  também  os  das  ilhas    de  Bachão   e  de  Geilolo   ajudauão 
niílo  os  de  Ternate  contra  os  de  Tidore  para  terem  parte 
nos  panos  que   fe  apregoarão  ,  e  com  todo  eíle  trabalho  o 
Rey  de  Tidore  eílaua  tão  contumaz  contra  os  noílos  ,  que 
nunca  quis  pidir  paz  ,  ou  concerto  algum,  com  que  a  guer- 
ra durou  alguns  dias. 

CAPITULO    XXXXIII. 

O  Rey  de  D  achem  arma  huma  cilada  hafortak&a  de  Pa» 
cem  de  que  he  capitão  dom  André  Anriquez  ,  elle  manda 
huma  armada  contra  os  Dachens ,  e  ofucefjo  delia.  Os 
Dachejts  fazem  guerra  ao  rey  no  de  Pacem.  O  Rey  fe  re- 
colhe junto  dafortalej-a,  e  o  que  [obre  ijjofas::  o  capitão» 

DOm  André  Anriques  ,  que  atrás  deixo  dito  que  fica- 
ua na  capitania  de  Pacem  ,  como  entrou  nella  pobre 
e  defejofo  de  remedear  fua  nobreza  ,  começou  logo  de  víar 
para  iíTo  de  termos  aíperos  e  efcandaloíos  ,  e  algum  tanto 
fora  de  rezão  e  juíliça  ,  não  fomente  com  a  gente  da  terra, 
mas  também  cos  meímos  Portuguefes.  com  que  cora  huns 
e  outros  fe  fez  odiado  e  mal  quiílo.  O  Rey  de  Dachem 
tendo  nouas  deíle  modo  de  proceder  do  capitão  ,  e  da  fua 
natureza  ,  detriminou  armarlhe  huma  cilada  para  o  expe- 
rimentar ,  e  ver  fe  podia  abrir  caminho  para  lhe  tomar  a 
Parte  L  U  for- 


15*4         Prlmeyra  Parte  da  Chronica 

fortaleza  ,  para  o  que  mandou  fazer  preftes  cincoentn  larb^ 
charas  bem  prouidas  de  gente  de  guerra  ,  e  de  muyta  arti- 
lharia ,  e  íccretamenre  as  m^indou  porem  hum  rio,  que  eílá 
cinco  legoas  de  Pacem,  e  na  boca  defte  rio  mandou  pôr  ai- 
to  lancharas  carregadas  de  pimenta  ed'outras  mercadorias 
de  preço  ,  donde  mandarão  dizer   a  dom  André  ,  que  ellas 
erao  chegadas  áquelle  lugar  com  muyta  pimenta   e  outras 
mercadorias,   que  iriao  vender   ha  fortaleza  ie  lhe  deílem 
feguro,  com  tanto  que  lhe  nao  fizeíTem  força,  e  fe  náo  que 
aly  as  vendcriâo  ,  fe  lhas  aly  quiíeíTem  ir  comprar.  Dom 
André  ou  foíTc  por  cubica,  ou  por  outro  algum  reípeito,  de- 
triminou   de  as  mandar  tomar ,   ou   ao  menos  faquealas  íe 
pudclle  ,   e  para  iílo  ordenou   doze  embarcaçoens    de  lan- 
charas e  m.anchuas  bem  armadas  d'ariilharia  epanellas  de 
.poluora  com  oitenta  Portuguefesefpingardeyros  ,    todos 
bem  armsdos  ,   e  outragente  de  guerra  natural  da  terrra,  e 
eom  elles  dom  Manoel  anriquez  feu  irmão,  que  era  capitão 
xv.ór  do  mar.  Eíla  armada  íe  foy  logo  demandar  as  lancha- 
ras qu<lieftauao  naboca  do  rio  ao  focairo  de  huma  ilha  ,    e 
em  auendo  uifta  delias  as  foy  cometer  á  vella  e  a  remo  com  a 
mayor  preíTa  que  cada  hum  podia,  defejofo  cada  hum  de  fer- 
o  primcyro  que  chegaííc  a  lançar  mão  da  prefa  :os  inimigos 
que  eflauão  bem  de  lobre  auiío,  em  vendo  os  noíTos  fe  puíe- 
rão  em  fugida  pollo  rio  dentro ,  remando  quanto  mais  po- 
dião  5  que  por  encher  então  a  maré  hiao  bem  depreíTa  ,  os 
noflos    fe  forão  trás  elles  pollo  rio  dentro  também  com   a 
mayor  prella   que  puderao  ,  e  tendo  andado   meya  legoa 
dobrando  huma  ponta  ,    que  aly  faz  o  rio  clerao  defupito 
com  as  cincoenta  lancharas  ,  que  em  vendo  os  noflos  arre- 
meterão a  elles   com  grandes  gritas    c  eítrondo  de  muytos 
eíh-omentos   de  guerra  ,   com   que    nos  nollos    caularão 
grandifíimo  efpanro  ,  e  com    a  corrente  da  agoa  hiao  tão 
íiuiados,  que  fem  íe  poderem  ter  paíTarao  tanto  auante,  que 
os  Dachens  lhe  ficaríío  nas  coílas  ,   os  quais  abalroarão  lo- 
go   os  n^Oiíos  pelejando  muyto  esforfadamcnte  ,  mas  tam- 
bém os  noflos  fe  defendiao  como  homens,  que  íó  nos  íeus 
braços  tinhão  a  lua  vida  5  e  aífy  trauados  huns  cos  outros 

£0- 


dei  Rey  Dom  João  o  ííí.  155' 

forão  todos   dar  em  terra  ;  onde  ,    nao  fendo  baHanres  as 
forças  nem   o  esforço  dos  noííos  para  reliílircm  ha  grande 
multidão  dos  Dachens,  forao  todos  mortos  por  elks  fem  a 
ninlium    le  dar  ávida,   e  nao  efcaparao  da  quy  mais  que 
alguns  remeyros  naruraes   da  terra  ,  que  como  erao  práti- 
cos nella  fe  meterão  polios  matos  ,  e  da  hy  a  dous  dias  fo- 
rao ter   ha  fortaleza  ,  e  derao  nouas  do  que  paííaua  ,  com 
que   no  capitão  e  em  todos   os  outros  entrou  hum  grande 
receyo  de  lhe  poder  acontecer  algum  defaílre  ,  porque  na 
fortaleza  nao  ficauao  outros  tantos  homens,  e  alguns  delles 
doentes,   e   os  mouros  ,   como    eilauão   eícandalizados  , 
vendo    a  fraqueza  dos  noíTos  ,  começarão  logo  a  leuantar 
contr'elles  alguns  aiuoroços,  e  fazer  alguns  deimandos.  O 
Rey  de  Dachem,  que  tinha  preíles  muyta  gente  de  guerra, 
tanto  que  teue  a  noua  do  desbarato  dos  noíTos  ,  ordenou 
mandar  hum  íeu  primo  com  corenta  mil  homens  contra  â 
fortaleza,  e  lhe  deu  juramento  que  trabalharia  com  todas 
fuás  forças   polia  tomar  ,  e  dar  a  morte  a  todos  os  Portu- 
guefes,  ou  ao  m.enos  os  lançaíTe  fora  da  fortaleza,  Q^elle  íi- 
caíTe  fenhor  delia  ,   porem  antes  que   o  delpedilTe  mandou 
notificar  ao  tutor  dei  Rey  de  Pacem  ,  que  gouernaua  então 
todo  o  reyno  ,  que  elle  miandaua  aquelle  feu  primo   com 
hum  grande  exercito  a  tomar  a  noíla  fortaleza  ,  que  fe  el- 
le com  a  íua  gente  o  quiíeíTe  ajudar  naquella  empreía  ,  o 
teria  íempre  por  amigo  ,  e  fe  fízeíTe  o  contrario  entendcf- 
fe  que  a  elle  e  a  el  Rey  auia  de  dar  a  morte  ,  deílruirlhe  o 
reyno  ,  e  fazerfe  fenhor  delle  ,  e  por  nao  chegar    co  elle  a 
eíles  termos   o  auifaua  primeyro  ,    que  lhe  mandaíTe  dizer 
fua  detriminação.  O  Regedor  do  reyno  defpois   de  dar 
conta  deíle  recado   a  dom  André  ,  como  fabia  que  o  Rey 
de  Dachem  era  falfo  ,  e  lhe  não  auia  de  cumprir  coufa  que 
lhe  prometeííe  ,  e  que  o  mal  que  fucedeíTe  aos  noííos  auia 
de  íuceder  também  a  elle  ,  lhe  refpondeo  ,   que   elle   não 
auia  de  íer  contra  os  Portugucfes  ,   mas  antes   os  auia   de 
ajudar  ,  e  defender  até  morrer  por  elles  com  toda  a  gente 
daquelle  reyno  ,  da  qual  repoila  eícandalizado   o  Dacliem 
defpedio  logo  leu  primo   com  tgda   a  fua  gente,  que  en- 

U  z  tran- 


15^         Prlmeyri   Parte  da  Chmnica 

trando   pollo  reyno   de  Pacem  fez  nelle  grande  eftragf)   a 
fogo  e  a  íangue  ,  e  íe  foy  fazendo  fenhor  de  rodas  as  ter- 
ras até  aíTentar  leu  campo  fobre  a  principal  cidade  do  rey- 
no ,    em  que  então  eílaua  el  Rey  e  o  regedor  com  todo   o 
íeu  poder,  onde   os  inimigos  os  apertarão  tanto  Tem  os 
deixarem  deícanfar   de  dia  nem  denoite  ,  que  foy  forçado 
ao  regedor  fairfe  íecretamente  da  cidade,  leuando  comíigo 
elRey  com  toda  a  íua  caía  e  familia  ,  e  tudo  quanto  tinha 
de  íeu  ,  e  íe  foy  apoíentar  junto  da  fortaleza  ha  borda  de 
hum  eílreito  de  que  eílá  cercada  ,  onde  também   o  acom- 
panhou muyta  gente  do  pouo  ,  e  aly  ordenarão  huma  po- 
uoação  de  caías  de  palha  ,  em  que  íe  agaíalharão  ,  e  a  cer- 
carão de  huma   tranqueyra    de  paos  muyto   groíTos  entu- 
lhada por  dentro  de  terra  ,    com  que  íicou   aíTaz  forte  ,   e 
prantarão  ncUa  muyta  artilharia  ,   e  tudo  foy  feito  por  tal 
ordem  ,    que  os  tiros  da  fortaleza  varejauao   por  cima  da 
pouoação  íem    lhe  poderem  fazer  nojo  ,   e  eíle  aíTento  to- 
mou aquella  gente  para  co  fauor  dos  noíTos  eílarem  em- 
parad(^  e  quafi  íeguros  de  feus  inimigos,  porem  dom  An- 
dré também  da  quy  quis  tomar  ocaíião  de  fazer  íeu  prouei- 
to  ,  porque   Jlies    não  deixaua    ter   eíle  a  (Tento    de  graça. 
Com  tudo  os  Dachens  não  os  deixarão  aquy  eílar  quietos , 
porque  muytas  vezes   lhe  vinhao  dar  rebates  ,   chegando 
a  combater  a  tranqueyra  onde  lhe  fazião  quantos  roubos  e 
males  podião,  a  que  dom  André  não  queria  acudir   nem 
defparar  a  artilharia  da  fortaleza  fem  peita   do  regedor  , 
mas  como    os  Dachens  hião  cada  dia  recrecendo  ,  vierão 
aly  a  fer  em  tanta  cantidade  ,   que  puíerão   os  noíTos    em 
grande  receyo   de  lhe  cometerem   a  fortaleza  ,  e  por  iíTo 
Jhes   foy  forçado  fairem  fora  algumas  vezes  a  fazer  retirar 
os  inimigos  ,  e  porque  elles   com  tudo  apcrtauão  muyto 
com  a  guerra,  receando  que  lhe  vieíTem  pôr  o  fogo,  tinhão 
nlíTo  grandiíTima  vigia    de  dia  e  de  noite,    que  lhes  daua 
aíTaz  de  trabalho.   O  capitão  dom  André  como  era  homem 
de  poucas  carnes  e  de  fracas  forças,  e  íe  tinha  viílo  cm  pou- 
cas coufas   daquella  calidade  ,    a  continuação  do  trabalho 
millurada  com  algum  receyo  lhe  veyo  a  caufar  huma  infirmi- 

da- 


delRey  Dom  João  o  Til.  157 

dade  tao  graue,  que  o  pôs  em  muyro  rifco  de  perder  a  vi- 
da e  porque  na  fortaleza  não  auia  tanta  gente  quanta  era 
neceílaria  para  a  defençáo  delia  ,  tomando  íobr'iílo  confe- 
Iho  com  quem  lho  podia  dar,  fe  aflentou  que  mandíiííe 
hum  nauio  que  tinha  no  porto  com  recado  ao  gouernador 
do  que  paflaua  ,  efeito  preíles  muyto  diíllmuladamcnre 
fez  embarcar  nelle  hum  criado  feu  chamado  Perro  ferrão 
com  quinze  Porfugueíes  e  vinte  marinheyros  da  terra,  e 
por  elle  efcreueo  ao  gouernador  o  eftado  em  que  eítaua 
elle  e  a  fortaleza,  e  lhe  pedia  que  a  mandaíTe  prouer  de 
gente  e  moniçôes  ,  e  tam.bem  de  capitão,  porque  elle 
íicaua  de  maneyra,  que  duuidaua  muyto  quando  o  íocorro 
vieíTe  achallo  aindaviuo,  e  que  em  todo  cafo  mandaíTe 
capitão,  porque  ainda  que  Deos  lhe  íizefle  mercê  de  lhe 
dar  vida  e  faude  ,  elle  deíiíHa  da  capitania  ,  e  renunciaua 
em  fuás  mãos  rodo  o  tempo  que  a  inda  tinha  por  íeruir  nel- 
ja,  e  todas  eftas  couías  lhe  efcreueo  em  forma  de  prore- 
ftos  e  requerimentos.  O  nauio  fe  partio  denoite  tão  fe- 
crctamente  ,  que  ninguém  o  entendeo  ,  e  quando  foy  me- 
nham  ja  não  aparecia  ,  e  chegou  a  faluamento  a  Cochim 
onde  o  gouernador  eítaua  ,  que  prouueo  niíto  como  a 
diante  íe  dirá. 

CAPITULO    XXXXIIIT. 

O  Rey  de  Bintão  com  huma  groffa  armada  manda  fazer 
guerra  a  Malaca  ,  Jorge  dalbuquerque  capitão  da  forta- 
leza manda  outra  armada  contra  ella  ,  eojucejjo  que  ieue, 
António  de  pina  vay  em  hum  junco  fazer  fua  fazenda  , 
chega  ao  Torto  de  Pão  ,  ondejão  catiuos  os  Portuguejes  e 
morrem  mártires» 

EL  Rey  de  Bintão,  que  nunca  cefTaua  de' fazer  guerra  ha 
fortaleza  de  Malaca,  mandou  neíle  mefmo  anno  o  feu 
capitão  do  mar  chamado  Laquexemena  com  oitenta  lan- 
charas bem  armadas  a  continuar  ella  guerra  :  vindo  efta 
armada   a  dez  Iggoas  de  Malaca,  ouue  viíla  delia  Duarte 

coe- 


158       Primeyra  Parte  da  Chronica 

coelho  ,   qne  Jiia  em  hum  nauio  para  fora  ,  o  qual   roítou 
logo,  e  com  muyta  preíTa  veyo   darauifo   ajorgedalbu- 
querque  capitão   da  fortaleza  ,  que  até  então  defta  armada 
não  tinha   ninhura   fcntimento,  e  poílo  efte  negocio    em 
coníelho    foy  detriminado,    que  íe  ordenaffe  logo  huma 
armada,  que  foíTe  pelejar  cos  de  Bintao  ,  porque  íe  os  dei- 
xaíTem  andar  fenhores  do  mar  farião  muyto  dano  ha  forta- 
leza e  ha  cidade  ,  tolhendolhe  os  mantimentos  ,  e  rouban- 
dolhe  os  mercadores  que  vieíTem  a  ella  :  com  eíta  detrimi- 
nação  fe  fez  logo  preíles  hum  galeão  ,  de  que  íe  deu  a  ca- 
pitania a  dom  António  anriquez  ,  em  que  também  auia  de 
ir  dom  Sancho  anriquez  ,  feu  irmão,    que  era  capitão  mor 
domar,  e  Duarte  coelho   no  íeu  nauio,  e  huma  gaíeota 
de  que  foy   por  capitão  Francifco  pereyra   del)erredo,  « 
íeis  lancharas  de  que  erao  capitães  Anrique  leme  ,  Diogo 
fogaça,  Francifco   Lourenço,  Fernão  rodriguez  ,  André 
íigueyra  ,  e  Diogo  luis  caiados   em  Malaca.  Dom  Sancho 
com   eíla  armada    íe  foy   demandar  o  rio    de  Muar  ,  cos 
nauios  grandes  ao  mar  ,  e  as  lancharas  ao  longo  da  cofta  , 
e  armandoíTe  neíle  caminho  huma  trouoada  ,  dom  Sancho 
íe  pôs  ha  corda,  onde  ouue  fala  de  todos  os  capitães,  e  lhes 
diíie,  que  a  trouoada  parecia  que  trazia  muyto  vento,  com 
que  bem  poderião  entrar  no  rio   de  Muar  ,  porem  que  íe 
o  rio  vazaííe  trazia   tamanho  Ímpeto   decorrente,  e  faria 
tamanho  efcarceo,  que  corria  rifco  alagallos  a  todos ,  que 
lhe  parecia  bem  meteremíe  no  rio  de  Cação  ,  que  não  tra- 
zia tamanha  corrente,  onde  poderião  eílar  íeguros  até  pal- 
iar a  trouoada:  alguns  dos  capitães  aprouarão  eíle  feu  pa- 
recer ,  porem  outros  tocados   de  hum  ponto   de  honra  , 
quiçá  defconíiando ,  que   as  mais   das  vezes   cuíluma  ter 
muyto   máo  fuceíTo,  diíTerão  que   parecia  termo  de  fra- 
queza podendo  elles  entrar  em  Muar,  onde  eílaulío  os  ini- 
migos ,  irem  buícar   outra  colheyta  ;  os  outros    que  erão 
de  contrario  voto  ,  por  não  parecer  que  o  fazião  por  falta 
de  animo  tornarão  a  dizer,  que  era  muyto  a  certado  entra- 
rem no  rio  de  Muar  ,   para  onde  começarão  logo  de  ir  ca- 
minhando. E  fendo  ja  tão  perto  delie  como  meya  legoa  , 

lhe 


dei  Rev   Dom  João  o  líl.  15^9 

lhe  deu  o  venro  da  trouoada  com  grandiíliin.i  força.  Dom 
Sancho  e  Francifco  pereyra  na  galeora  ,  e  Duarte  coelho' 
no  íeu  nauio  a  mainarao  logo  as  vellas  ,  porem  as  lanclia- 
ras  forão  demandar  o  rio,  e  com  a  força  do  vento  rom- 
perão acorrente  da  agoa  ,  e  forao  tanto  pelo  rio  acima  , 
que  três  lancharas  que  hiao  diante  ,  de  que  erão  capitães 
Ánrique  leme  ,  Diogo  fogaça  ,  e  Francifco  lourenço  forão 
dar  na  armada  dos  inimigos  ja  quaíi  noite  ,  os  quais  em 
vendo  os  noíTos  ,fe  forao  logo  a  elles  com  muytas  feftas 
e  grandes  gritas  ,  e  os  cercarão  por  todas  as  partes  ,  po- 
rem a  peieja  durou  pouco  ,  porque  os  noílos  ,  inda  que  fe 
defenderão  valeroíamente  ,  com  tudo  como  p,elejauão 
contra  tamanha  cantidade  ,  em  breue  tempo  forao  todos 
mortos  ,  de  que  fó  Francifco  lourenço  efcapou  com  vida  , 
porque  como  a  noite  era  ja  cerrada  fe  lançou  ha  vaia,  e 
CO  grande  efcuro  íe  pode  laluar.  As  outras  três  lancharas., 
que  íicauão  atrás  ,  for  fio  varar  na  vafa  que  era  grande.  E 
cm  amanhecendo  fe  íairao  do  rio,  e  fe  forao  recolhenda 
para  o  galeão  que  cftaua  ha  vifta  ,  mas  não  o  puderao  fa- 
zer com  tanta  prefla  ,  que  doze  lancharas  dos  inimigos  , 
t|iie  fairão  trás  elias  ,  as  não  alcançaííem  e  pegaíTem  logo 
comellas,  onde  d'huma  parte  e  doutra  fe  pelejaua  com 
muyto  esforço  ,  e  alTy  trauados  huns  cos  outros  forao  dar 
íobre  a  galeota  ,  que  eílaua  diante  do  galeão  afaílada  hum 
grande  eípaço  delle  ,  onde  os  mouros  pegarão  também 
com  ella ,  e  como  tinhao  ja  mortos  muytos  dos  que  vi- 
nháo  nas  três  lancharas  ,  e  vinhao  oufanos  e  vitorioíos  , 
pelejarão  tão  animofamente  ,  que  fem  valer  aos  noílos  a 
grande  reíiítencia  quefizerao,  forao  todos  mortos  e  fe- 
ridos, e  a  galeota  tomada  íem  nunca  o  galeão  nem  o  na- 
uio lhe  poderem  dar  qualquer  focorro  ,  porque  nem  com 
a  artilharia  ouíauao  de  os  fauorecer  com  receyo  de  faze- 
rem mal  aos  noíTos.  Deíla  deíauentura  ,  em  que  morrerão 
íetenta  Portugueles  ,  íe  não  faluou  mais  que  huma  lancha- 
ra, que  teue  tempo  de  fe  efcoar  e  recolheríe  ao  galeão  ,  em 
quanto  os  mouros  íe  ocuparão  em  amarrar  a  galeota  , 
a  qual  leuarão  pollo  rio  dentro,  com  que  Laquexemena  fi- 
cou 


lóo        Primeyra  Parte  da  Chronica 

cou  aíTaz  contente  e  oufano  ,  e  íe  recolheo  logo  para  Bin- 
tao  ,  receoío  que  os  noííos  o  tornaírem.  abulcar  para  to- 
marem vingança  do  mal  que  lhes  fizera.  Daquellas  lan- 
charas ,  que  íe  perderão  dentro  no  rio  de  Muar,  fe  faiuou 
também  hum  homem  ,  que  com  a  noite  íc  lançou  ha  vaia  , 
chamado  Tomé  lobo  ,  o  qual  embrenhandoíle  poilos  ma- 
tos foy  ter  a  Malaca,  que  eftaua  daiy  dez  legoas ,  não  íem 
grande  perigo  de  muyta  variedade  de  animaes  brauos,  que 
ha  por  aquella  terra  ,  de  que  Deos  milagroíamente  o  quis 
Jiurar  :  erte  deu  nouas  domai  que  tinha  vifto  dentro  no 
rio  ,  que  do  defóra  não  fabia  parte  ;  deíloutro  não  ouue 
quem  leuafle  nouas,  fenão  o  mefmo  dom  Sancho,  que  vendo 
hum  fuceíío  tão  deíeílrado  íe  tornou  para  Malaca  acompa- 
nhado de  Duarte  coelho  ,  onde  chegado  quifera  tornar  a 
bufcar  os  inimigos,  e  deixou  de  o  fazer  por  ter  noua  certa, 
que  erão  ja  idos  ,  com  a  qual  noua  Jorfc  dalbuquerque 
deu  licença  a  hum  António  de  pina,  que  em  hum  junco  feu 
foíle  fazer  fua  fazenda  ha  ilha  da  Jaoa  ,  o  qual  leuou  em 
fua  companhia  hum  Bernal  drago  e  outros  dous  Portugue- 
fes ,  e  feita  fua  viagem  tornandoííc  para  Malaca  co  junco 
bem  carregado  ,  com  hum  temporal  que  lhe  deu  foy  ter 
ao  porto  de  Pão  ,  que  he  na  coíla  de  Malaca,  cujo  Rey 
des  do  tempo  d'Afonío  dalbuquerque  fora  fempre  muyto 
amigo  dos  Portuguefes  ,  e  os  noíTos  nauios  tratauáo  com 
elle  muyto  feguramente  ,  porem  iílo  eftaua  ja  então  muda- 
do ao  reues,  de  que  foy  a  cauía,  que  o  Rey  de  Bintão  nof- 
fo  capital  inimigo  deu  huma  filha  íua  em  cafamento  ao 
Rey  de  Pão  com  hum  riquiílimo  dote  ,  com  condição  ,  que 
não  auia  de  coníentir,  que  na  fua  terra  trataíTem  Portugue- 
fes ,  mas  antes  a  quantos  chegaílem  aos  feus  portos  auia  de 
fazer  todo  mal  que  pudeííe  ,  e  eíles  concertos  fe  tratarão 
anirc  ellcs  com  muyto  fcgredo  ,  por  não  chegarem  ha  no- 
ticia dos  noíTos  ,  com  que  fugiíTem  dos  portos  daquelle 
reyno  de  Pão.  Ifto  eílaua  ja  alTy  concertado  antre'aquel- 
les  Reis,  quando  aly  chegou  António  de  pina  ,  e  cuidando 
que  chegaua  ao  porto  de  hum  Rey  amigo  como  fempre 
fora ,  mandou  o  barco  a  terra  buícar  o  que  lhe  era  necef- 


dei  Rey  Dom  João  o  ÍII.  16 1 

fario.  O  Rey  fabendo  que  o  junco  era  de  Porruguefes 
rxiandou  logo  muyto  refrelco  ao  capitão  e  dizerlhe  ,  que 
tudo  o  que  ouuefie  inifter  da  fua  terra  ilie  mandaria  dar 
de  muyto  boa  vontade ,  e  tanto  que  foy  noite  mandou  ar- 
jnar  oito  lancharas  ,  que  íendo  raenham  derSo  de  fupito 
lobre  o  junco,  c  o  entrai  ao  por  todas  as  partes  os  noílos 
com  qunnto  eílauâo  defcuidadoá  por  lhes  parecer  que 
cftauão  íeguros,  inda  que  náo  erao  mais  decoatro,  íe defen- 
derão ,  até  que  lhe  faltarão  as  forças  para  poderem  pele- 
jar ,  então  forçados  da  neccíTidadc  fe  entregarão  aos  inimi- 
gos, que  os  leuarão  catiuos  a  el  Rey  ,  e  elle  os  mandou  de 
prefente  a  cl  Rey  de  Bintão  íeu  fogro,  o  qual  com  grandes 
medos  e  ameaços  os  quis  obrigar  a  fe  tornarem  mouros, 
mas  nunca  o  pode  acabar  com  elle?  ,  pollo  qual  os  man^ 
dou  meter  viuos  em  bocas  de  bombardas  ceuadas  e  por- 
Ihe  o  fogo,  e  deíla  maneyra  aquelles  animofos  e  celeíiiaes 
eípiritos  com  as  carnes  feitas  em  pedaços  receberão  hu- 
ma  glorioía  morte  polia  confiflão  da  fé  íantiííima ,  que 
profeirauão. 

CAPITULO    XXXXV. 

Dom  Sancho  anriqitez  vay  ha  cofia  de  Fatanc  andar   has 
.   prefas ,  acompa-nhado  de  Amhrofio  do  'rego ,  e  de  André  de 
brito  ,  e  ofucejjo  que  tem, 

AS  nouas  deíle  íuceíTo  de  António  de  pina  chegarão  a 
Malaca  muyros  dias  defpois  de  íer  paííado,  porque 
os  mouros  matarão  todos  os  que  hiao  no  junco,  para 
que  não  ouueíle  quem  pudeíTe  ir  dar  auiío  da  nouidade  , 
que  então  auia  no  reyno  de  Pão  ,  pollo  qual  Joríe  dalbu- 
querque  deu  também  licença  a  dom  Sancho  anriquez  para 
ir  andar  has  prefas  na  cofta  de  Patane,  o  qual  foy  em  hum 
galeão  muyto  bem  prouido ,  e  leuou  comfigo  dom  Antó- 
nio íeu  irmão  e  trinta  Porruguefes  bem  concertados,  e  em 
lua  companhia  foy  Atnbrofio  do  rego  em  hum  nauio  tam- 
bém muyto  bem  aparelhado  com  outros  trinta  Portugue- 
Parte  1.  X  fes 


i6z        Primeyra  Parte  da  Chronica 

íes..  AjuntouíTe  com  elles  para  eíla  jornada  hum  André  de 
bríro  ,  que  fora  da  índia  em  huma  nao  íua  com  licença  para 
ir  tratar  polias  partes  de  Malaca,  onde  a  Jorle  dalbuquer- 
que  parecelTe  bem.  Eíle  André  de  brito  íe  apartou  da  com- 
panliia  e  fez  feu  caminho  para  Sião  com  a  nao  bem  concer- 
tada e  quinze  Portuguefes  comíigo,  onde  deípois  de  carre* 
gar  de  ricas  mercadorias  fazendo  volta  para  Malaca  foi  (ur- 
gir no  porro  de  Pao,  íem  faber  o  que  nelle  auia  de  nouo,  e 
mandou  a  terra  tomar  agoa  e  refrefco.O  que  íabido  por  el 
Rey  víou  com  elleda  mefma  manha  que  víara  com  António 
de  pina,  mandandolhe  refreíco  e  oíF.recimentos  de  amigo; 
porem  de  noite  fez  aparelhar  vinte  lancharas,  que  em  ama- 
nhecendo foráo  abalroar  a  nao  com  muyto  arreuimento 
por  todas  as  partes  em  roda,  e  ainda  que  os  Portuguefes 
trabalharão  com  muyto  esforço  por  lhe  defenderem  a  en- 
trada, matando  e  ferindo  muytos  dclles,  todauía  como  erão 
muytos,  não  lhe  puderao  tolher  entrarem  por  ambos  os 
bordos,  polia  popa,  e  polia  proa,  e  tanto  que  forão  dentro 
começarão  de  ir  matando  os  no  (Tos  até  que  não  ficou  viuo 
mais  que  hum  irmáo  do  André  de  brito,  que  com  huma  ef- 
pada  d'ambas  as  mãos  fez  marauilhas  ,  e  matou  muytos 
mouros  em  quanto  lhe  durarão  as  forças,  mas  tanto  que  lhe 
ellas  faltarão  foi  também,  morto  como  os  outros,  e  também 
íe  diíTe  delle,  que  íe  lançara  ao  mar  onde  morrera. Os  mou- 
ros tomarão  a  nao  coín  quantas  mercadorias  rinha ,  e  tiran- 
dolhe  a  artilharia  a  tiuerão  no  porto  muyto  tempo  ,  pare- 
cendolhe,  que  não  faltaria  algum  mercador,  que  lha  com- 
praíTe  para  a  vender  aos  noíTos,  mas  vendo  ,  que  ninguém 
lha  queria  comprar  lhe  puferao  o  fogo.Dom  Sancho  c  Am- 
brofio  do  rego  na  coíla  de  Panate  fizerão  muytas  e  muy 
groíTas  prefas,  e  vindoíTe  recolhendo  para  M.ilaca  lhes  deu 
hum  tempo  do  mar  aííaz  rijo,  com  que  Ambrofio  do  rego, 
que  hia  mais  ao  mar,  foy  correndo,  porém  dom  Sancho 
não  podendo  correr,  arribou  ao  porto  de  Pao,  nao  íaben- 
do  também  o  que  nelle  paíTaua  ,  e  elleue  furto  efperando 
que  abonançade  o  tempo.  El  Rey ,  tanto  que  o  foube  ,  o 
mandou  logo  vifitar  com  muyto  refreíco,  acompanhado 

de 


dei  Rey  Dom  João  o  Ilf.  163. 

de  m.uyros  oferecimentos  fe  qulfedc  ir  defcanfar  em  terra, 
e  fenão  ,  que  mandaíle  por  tudo  o  que  quileíTe  ,  que  lho 
mandaria  dar  de  muyto  boa  vontade,  e  quando  fe  quifeílc 
partir  lhe  mandaria  vacas  e  carneyros  e  tudo  o  mais  que 
lhe  foíle  necellario  para  a  vi^ígem  ,  e  aos  que  leuarão  cíle 
recado  emcomendou  que  atentaíTem  muyto  bem  ,  que  gen* 
te  e  que  concertos  auia  no  galeão,  ao  que  dom  Sancho  lhe 
retpondeo  cos  deuidos  agardecimentos.  A  vinda  de  dom 
Sancho  a  efte  porto  acertou  de  ler  em  conjunção ,  que  La- 
quexemena  era  chegado  a  elle  do  dia  dantes  com  trinta 
lancharas  a  viíiiar  el-Rey  de  Pão,  e  fazer  prefas  nos  na- 
uios  dos  Portugueíes  ,  c]ue  aly  vieíTem ,  e  tanto  que  tcue 
nouas  do  noílo  galeão,  fez  logo  preíles  as  fuás  trinta  lan- 
charas ,  e  ajuntando  a  ellis  outras  trinta  dei  Rey  ,  fahio  do 
rio  com  muytas  bandeyras  e  grandes  gritas  e  eílrondo 
d'eftromentos  de  guerra  ao  feu  modo  :  quando  dom  San- 
cho ouue  viíla  deíla  armada  foy  ainda  em  tempo  que  fe 
pudera  bem  leuantar  íe  lhe  não  faltarão  vento,  e  ainda 
que  a  grande  multidão  dos  nauios  dos  inimigos  jdÔs  hum 
grande  eípanto  e  receyo  nos  noíTos  ,  todavia  não  foi  de 
maneyra  ,  que  perdeílem  o  animo,  antes  o  capitão  dom 
Sancho  le  fez  preíles  para  pelejar  com  elles  ,  mandando 
concertara  artilharia  ,  pôr  homens  nas  gaueas  ,  e  outros 
em  baixo  que  lhe  deíTem  pedras  ,  e  em  cada  hum  dos  bor- 
dos pôs  oito  Portuguefes  ,  e  feu  irmão  dom^  António  na 
proa  com  outros  oito ,  e  elle  cos  que  ficauão  fe  pôs  no 
chapiteo  da  popa  acompanhado  dos  efcrauos,  que  o  po- 
dião  ajudar,  donde  com  palauras  de  muyto  esforço  trab;:* 
Ihaua  por  animar  os  feus  foldados ,  e  ao  condcltabre  e  a 
coatro  bombardeyros  encomendou  ,  que  em  chegando  as 
lancharas  a  tiro  defparalTem  nellas  toda  a  artilharia,  por* 
que  bem  eftaua  vendo  que  os  inimigos  os  vinhão  abalro- 
ar ,  e  que  toda  a  peleja  auia  de  fer  de  perto :  os  m.ouros  , 
como  homens  de  guerra,  tanto  que  fe  vierão  chegando  p^a- 
ra  o  galeão  fe  eípalharão,  porque  a  nofla  artilharia  os  não 
tomalíe  juntos  ,  com  tudo  em  chegando  a  tiro  ,  o  galeão 
deu  fogo,  e  ainda  alcançou  doze  ou  quinze  lancharas ,  que 

.     Xz  to- 


1Ó4 


Piinievra  Parte  da  Chronica 


forao  feitas  em  pedaqos  ,  e  da  gente  delias  a  que  nao  foy 
morta  ficou  nadando  pollomar,  as  outras  lancharas  em 
paííando  eíla  qurriada  Te  chegarão  ao  galeão  e  o  abalroa- 
rão todo  em  roda  ,  e  por  todas  as  partes  íubio  tanta  can- 
lidade  de  inimigos  ,  que  não  valeo  aos  noííos  a  dura  refi- 
ílencia  que  fizerão  ,  para  deixarem  de  ler  entrados  :  neílc 
tempo  os  homens  das  gaueas  faziâo  tanto  dano  has  lan- 
charas, que  foy  forçado  aos  mouros  entender  com  elles 
depropofito,  e  aíFy  não  ceíTarão  até  que  has  frechadas  e 
Jbas  eípingardadas  os  matarão  a  todos.  Neíte  tempo  a  pele- 
ja debayxo  era  tão  trauada  ,  e  tão  cruel,  e  durou  tanto 
eípaço  ,  que  os  noíTos  poucos  a  poucos  forão  caindo  mor- 
tos e  feridos  ,  o  que  vendo  dom  Sancho  bradou  aos  que 
íicauão  ,  que  já  não  erao  mais  de  treze  ,  porque  todos  os 
mais  jazião  mortos  ou  feridos,  que  fe  recolhelTem  para 
a  tolda,  onde  todos  juntos  terião  mais  força  ,  e  milhor  de- 
feníão  ,  o  que  elles  fizerão  logo  ,  e  porque  o  chapiteo  os 
emparaua  pelejarão  daly  hum  grande  eípaço  ,  em  que 
matarão  tantos  dos  inimigos  ,  que  jazião  rrorios  huns  lo- 
bre  03  outros ,  mas  nem  por  iíTo  deixarão  alguns  de  decer 
abaixo  ,  onde  matarão  quantos  marinheiros  e  eícrauos 
acharão  ,  íem  a  ninhum  quererem  dar  a  vida:  vendo  então 
os  mouros  quíio  bem  os  noflos  daly  fe  defendião,  e  quan- 
to mal  recebião  delles,  não  oufando  já  pelejar  com  elles 
de  perto  íe  retirarão  para  fora  ,  e  de  longe  lhe  derao  tantas 
frechadas  ,  que  do  muyto  fangue,  que  lhe  fahio  das  feri- 
das, enfraquecerão  de  m.aneyra,  que  cairão  todos  no  chão, 
c  dom  Sancho  também  com  elles,  que  feu  irmão  já  era 
morto  no  caílello  da  proa,  onde  forão  todos  mortos  não 
íem  grande  e  honrada  vingança  da  fua  niorte,  porque  eíla 
euílou  as  vidas  de  mais  de  quinhentos  dos  inimigos  aísy 
no  mar  como  no  galeão :  os  mouros  então  deípindo  as  ar- 
mas a  todos  os  mortos  lhe  lançarão  os  corpos  ao  mar,  e 
leuarão  o  galeão  a  terra  ,  e  deícarregado  de  toda  a  artilha- 
ria e  fazenda  lhe  puferão  o  fogo.  Ambroílo  do  rego  ,  que 
hia  mais  ao  mar,  quando  Ih.e  deu  aquelle  tempo  rijo  fe  foy 
meter  em  hum  no,  e  tanto  que  ouue  bonanqa  íe  foy  a  Ma- 
laca 


dei  Rey  Dom  João  o  III.        *  16^ 

laca  parecendoihe  ,  que  já  lá  deula  d'eftar  dom  Sancho, 
de  cuja  perdição  íe  nao  foubcrao  aly  nouas  ieinío  daly  a 
muy  tos  dias.  Pollo  qual  Jorle  dalbuqucrque  ,  vendo  tantos 
máos  íuceíTos,  tanta  gente  morta  ,  e  tantos  nauios  perdi- 
dos, reccoío  que  o  Rey  de  Bintão  tomalíe  daquy  atreui- 
mento  para  lhe  fazer  guerra  ,  mandou  pedir  ao  gouernador 
focorro  de  nauios  e  gente,  que  lhe  elle  mandou.  Nefte 
tempo  chegou  também  a  Malaca  dom  Garcia  anriques  , 
que  vinha  de  Maluco  em  hum  nauio  carregado  de  crauo  , 
em  que  António  de  brito  capitão  da  fortaleza  mandnua 
hum.  homem  feu  ao  gouernador  a  lhe  pidir  que  mandaííe 
prouer  Maluco  de  capitão,  por  quanto  elle  era  muyto  do^ 
ente  ,  e  fe  vieííe  a  morrer  receaua  ,  que  fe  perdcíie  tudo  o 
que  era  feito ,  polia  muyta  diícordia  e  diíTeníToés ,  que  auia. 
na  terra ,  no  que  fe  fez  o  que  ao  diante  íe  verá. 

CAPITULO     XXXXVI. 

Ghegão  a  Goa  as  nãos  ,  que  ejle  armo  uao  do  rey  no.  O  gouer- 
nador fe  pajfa  a  Cocbim  ,  daffe  conta  do  que  fu cede  na 
fortaleza  de  Calecut  jendo  capitão  delia  dord  ^oão  de  li~ 
ma  ,  e  do  que  fazem  os  mouros  nefte  teynpo  ,  e  de  outras 
coujas  que  o  gouernador  dejpacha  ejlando  em  Cochim. 

NEfte  anno  de  i^ii,  partirão  deíle  reyno  para  a  ín- 
dia fete  nãos,  de  que  foy  capitão  mór  Diogo  da  fil- 
ueira,  e  das  outras  erao  capitães  dom  António  dalmeida  , 
Eytor  da  iilueira,  Manoel  de  macedo ,  Fero  da  fonfeca  na 
]oba  de  Jorfe  lopez  bixorda  ,  António  dabreu  ,  e  Aires 
da  cunha  ,  que  fe  perdeo  ao  entrar  em  Maçambique :  pO' 
rem  nao  foy  a  perda  mais  que  do  cafco  da  nao,  que  tudo  o 
mais  fe  faluou.  Deites  capitães  o  primeiro  que  chegou  ha 
índia  foy  Manoel  de  macedo,  que  aos  vinte  d'Agoílo  en- 
trou na  barra  de  Goa  ,  e  deu  nouas  da  mais  armada  que 
partira  do  reyno  ,  porem  todas  as  outras  nãos  chegarão 
também  a  Goa  a  faíuamenío ,  onde  auia  dezaíleis  dias  que 
erão  chegadas,  quando  ahy  chegou  o  gouernador,  que  vi- 
nha 


i66       Píimeyra  Parte  da  Chronlca 

nha  de  Ch?.ul  ,   onde  eftiuera  defpols  que  tornara  d'Or- 
muz:  o  qual  defpois  que  vio  as  carras  das  vias  proueo  em 
algumas  coufas ,  e  deu  prcíTa  ha  deícarga   das  nãos,  e  as 
mandou   logo  para  Cochim  ,  para  lá  íe  concertarem  e  to- 
marem carga  ,   e  elle  também  le  partio  ,  e  de  caminho  vifi- 
tou  Cananor  ,  onde  deixando  prouimento  para  o  gengiure, 
e  as  mais  coufas  para  a  viagem  das  nãos  d^o  reyno,  íe  íoy 
a  Calecut  onde  eftaua  por  capitão  dom  João  de  lima  ,  que 
entrara  na   vagante  de  Manoel  de  lacerda  ,  c  achou  delle 
muytas   queixas   aíTy   de  mouros    como  de   Portugueíes, 
porque  era  homem  acelerado  na  cólera,  e  aípero  de  con- 
dição ,  polia  qual   caufa  auia  poucos  dias   que  lhe  tinhão 
lançado  íecretamente  dentro  na  fortaleza  algumas  cobras 
de  capello  peçonhentas  ,  que  matarão  algumas   peííoas  a 
que  picarão  :  efca  nouidade  Te  entendeo  que  fora  a^y  man- 
dada trazer  de  propofuo  por  ordem  d'alguem  ,  porque  def- 
pois  de  íer  feita  a  fortaleza  nunca  íe  aly  fentio  couía  da- 
qiiella  calidade  ,  a  que  o  capitão  acudio  com  muyta  dili- 
gencia ,  mandando  vir  alguns  homens  da  terra  ,  que  cuílu- 
mão  tomar  eílas  cobras  fem  lhe  ellas  fazerem  dano,^por  vir- 
tude da  raiz  de  huma  certa  erua,  que  leuão  nas  mãos,  que 
tem  tal  calidade,  que  em  a  cobra  a  cheyrando  fica  como 
atardoada  íem  poder   picar  nem  bulir  comíigo  ,  os  quais 
homens   achando  mais  de  vinte  em  diuerfas  partes  as  ma- 
tarão todas.  D.  João  de  lima   co  grande  íentimento  que 
tinha  diíl:o,e  defejo  de  faber  quem  lho  ordenara,  mandou 
pôr  eícritos  ,  em  que  prometia  cem  pardaos  a  quem  lho 
defcubriíTe,  e  fe  foíle   negro  catiuo  o  forraria  ,  e  logo  lhe 
defcubrirão  negros  da   fortaleza,   que  hum  mouro  ,  que 
elle  eípancara  ,  mandara  buícar  aquellas  cobras ,  e  peitara 
lium   negro  de  hum  Português,  que  as  trouxera  dentro  em 
hum  Calão,  que  he  como  panella  ,  e  as  deitara  na  fortale- 
za ,  e  tais   eípias  pôs   dom  João  fobre  o  mouro  que  o  to- 
mou dormindo  dentro  em  lua  caía,  e  o  mandou  atar  p^ol- 
los  pcis  e  polias  mãos  a  quatro  cílacas  bem  fixas  no  chão, 
e  com    fogo  pofro   ao  redor  delle  o  fez  queimar    viuo 
muyto  de  vagar,  de  que  el  Rey  de  Calecut  le  moílrou 
'  muy- 


delRey  Dom  João  o  IIÍ.  \6j 

muyto  fentido  ,  polias  queixas  e  clamores  que  lhe   fízerão 
outros  mouros  ,  c  afsy  por  efta  cauía  como   por  curras   fe 
fez  deípois  a  guerra  ,  que  a  diante  fe  dirá  ,  porque  como 
a  tenção  do  gouernador  era  tratar  em  tudo  de  paz  para  en- 
tregar a  índia  pacifica  ao   fuceííor  que  eípersua  o  anno  fe- 
guinte  ,  defcuidauade  da   guerra  mais   do    que  cumpria  , 
com  que  os  mouros  vierao   a  tomar  tanta  íobcrba  e  ou- 
fadia  ,  e  delmandarfe  tanto,  principalmente  eíles  de  Ca- 
lecut ,  que  eílando  o  gouernador  no  porto  ,  dom  Pedro  de 
cartro  e  António  galuão  forao  jantar  com  dom  João  de  li- 
ma ,  e  deípois  de  jantar  Tem  outras  armas  mais  que  as  eí- 
padas  na  cinta ,  acompanhados  de  catorze  ou  quinze  ho- 
mens, fe  foráo  veracidade,   onde  fe  ajuntarão  Jogo  al- 
guns mouros   com  as  armas  ,  que  cuílumão  trazer  fempre 
como  os  Naires,  que  íão  efpadas  ,  adargas  ,  zargunchos  , 
e  arcos  ,  e  frechas  ,  e  andando  após  os  noíTbs   por  algumas 
ruas  da  cidade  fe  lh'atraueíTauão  diante  ,  c  paíiauao  por 
eiles  ,  e  os  enconrrauão  com  tenção  de   armarem    brigas 
com  elles  para  os  matarem ,  o  que  entendendo  dom  Pedro 
dilTe  aos   companheyros  ,  que   nenhum    moílraííe  paixão 
nem  fe  meteíle  em  cólera  ,  antes  todos  fe  riflem  e  zombaf- 
fem,  fazendo  que  não  entendiao  a  tenção  dos  mouros  ,   e 
deíla  maneyra  vfindo  mais  de  huma  rezao  animoía  em  íe 
faberem  e  poderem  refrear ,  que  de  hum  animo  temerário 
em  cometer  o  que  era  fora  de  toda  rezão  ,  fe  meterão  por 
huma  rua  eftreitn  por  onde  for?o  íair  ao  terreyro  da  for- 
taleza ,  onde  acharão  dez  íoldados  efpingardeyros  ,  que  o 
capitão  mandaua  em  bufra  delks  ,  c  íe  recolherão  a  fal- 
uamento  ficando  os  mouros  muyto  oufanos  ,  batendo    nas 
adargas  ,  efgrimindo  com  as  eípadas  ,  e  meneando  as  lan- 
ças ,  dizendo  muytas  vezes  vxar  Porruguefes  ,  que  na  íua 
Jingoa  quer  dizer,  abrir  os  olhos  Portugueíes,  e  ainda  que 
ifto  chegou  ha  noticiado   gouernador,    todauia  não  fez 
iobre  ifio  diligencia  com  el  Rey ,  nem  acudio  a  ifio  como 
era  rezao  e  neceflario  ,  com   que  a  íoberba  e  oufadia  dos 
mouros  foy  em   tanto  crecimento,  vendo    quão  mal  acu- 
dia o  gouernador  a  os  deímandos,  que  elles  faziâo  ,  que 

vicraõ 


lóo        Primevra   Parte  da  Chronica 

vierão  a  fazer  muvto  pouco  cafo  delle,  e  em  quanto  elle 
andou  fóra   da   índia  ,   tomarão   muyias  fuftas  ,  e  outros 
nauios  de  Portugueles  ,  lhe  roubarão  as  fazendas  ,  e  tira- 
rão as   vidas  ,    com  que  íe  íizerao  tão  .ricos   que   puderão 
fazer  groílas  armadas  contra   os  noííos  bem   prouidas  de 
gente  e   artilharia  ,  de  que  forao  armadores  Baylacem  , 
Cotialede  Tànor,   e  Patemarcar,  de  que  noutros  lugares 
fe  fez  menção  ,  aos  quais  os  mercadores  de  Calecut ,  e  de 
Cananor  ,   ajudando  com  muyto  dinheyro,  armarão  huma 
cantidade  de  paraos   para   IJie  darem  guarda  a  mais   de 
trinta  nãos  ,  que  no  inuerno  eílauão  carregando  de  pimen- 
ta e  drogas  para  irem  a  Meca  ,  que  delpois  fairão  de  muy- 
tos  rios  onde  eftavão    fazendo   lua  carga  ,  e  tendo  nouas 
dom  João  de  lima  que  no  de  Chalé  eílauão  oito  nãos,  que 
auião  de  ir  naquella  companhia  ,  mandou  fondar  a  barra 
para   faber  ,   que  forte  de  nauios   podião  entrar  nella,   e 
do  que  acliou  mandou  auiíaro  gouernador,  que  já  eítaua 
emCochim,  para  que  mandafle  guardar  o  rio  ,  porem  elle 
parecendolhe  que  fe  tomaíTe  aquellas  nãos  feria   caufa  de 
le  mouer  guerra   com  Calecut ,  diUimulou  por  então  ,  e  al- 
guns dizem  que  a  caufa  foy  ter  por  dauante  outras  ocupa- 
ções de  leu   proueyto.  As  nãos  emfim  íairão  do  rio  acom- 
panhadas dos  paráos  ,  que  hião  em  fua  guarda,  que  def- 
pois  de  as  porem  doze  ou  quinze  legoas  arredadas  da  co- 
ita ,  donde  fizerão  íeu  caminho  feguramente  ,  fe  tornarão 
ha  coita,  onde  roubauao  e  catiuauío  quantos  Portugueíes 
achauão  ,  e  os  relgatauão   por  pouco  preço:   e  veyofle  a 
entender  ,  que  eíta  nouidade  era  manha  de  que  víauão  pa- 
ra menos  perigo  e  trabalho  feu  ,  porque  virão  por  expe- 
periencia    que   os   Portugueíes  ,   fe   lhes   parecia  que   os 
avião  de  matar,  pelejauão  até  morrerem  por  faluar  as  vi- 
das,  mas  fe  fabiao  que  os  auião  de  reígatar  ,  fe  entrega- 
uão  fem  peleja  :  e  iílo  era  caufa  de  fazerem  os   mouros 
muyto   mayores   males  ,  e  chegarão  a  tanta  loltura  ,  que 
quando  ventaua  a  viração  do  mar,  com  que  da  terra  não 
podia  íair  couía  que  lhes    íizeíle  dano ,  paíTauão  os  pará- 
os polia  barra  de  Gochim  muyto  embandeyrados,  dando 

muy- 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  iíp 

muytas  gritas  ,  e  lançando  mnytos  foguetes  tão  perto  da 
prava,  que  fazião  zombaria  dos  que  os  eílaupo  olhando, 
c  algumas  vezes  acontecia  vellos  o  gouernador  da  fuà 
janella,  e  nao  fazia  mais  mouimento,  que  zombar  delles, 
e  chamarlhe  ladroes  que  não  tinliao  vergonha  ,  e  com  tu- 
do mandaua  vigiar  as  nãos  da  carga  ,  para  que  de  noite 
lhe  não  puíeíTem  fogo  ,  porem  elies  nunca  puferão  tento 
niíTo  ,  porque  tinhão  ordem  de  feus  armadores ,  que  não 
trauaííem  briga,  fenao  em  parte  donde  eípcrairem  tirar 
proueito.  O  gouernador  deu  mu/ta  prcíTa  ha  carga  das 
jiaos,  que  aulao  de  ir  para  o  reyno  ,  para  o  qual  lhe  deu 
todo  o  bom  auiamento  poíliuel ,  mas  como  eílaua  tido  em 
conta  de  homem  cubiçolo  e  amigo  de  feu  intereíTe ,  ifto 
que  elle  quiçá  fazia  com  zelo  do  feruiço  dei  Rey  fe  diíTe 
então,  que  o  fizera  porque  a  detença  das  nãos  lhe  não  im- 
pediííe  huma  viagem  que  tinha  detrimínado  fazer  a  Or- 
muz, para  a  qual  tinha  feito  muyto  emprego  de  pimenta 
e  drogas  em  Coulão  eBaticala,  e  de  gcngiure  em  Cana- 
nor  de  maneyra  ,  que  vendoo  a  gente  tão  deícuidado  no 
bem  comum,  e  tão  íollicito  no  feu  proueito,  veyo  a  dizer 
que  por  peitas  que  recebera  d'alguns  lhes  dera  licença  ,' 
que  com  fuílas  e  outros  nauios  foíTcm  tratar  por  onde 
quifeíTem,  pollo  qual  no  feruiço  del-Rey  auia  alguma  que- 
bra por  falta  da  gente  de  guerra,  e  também  nos  officiais 
da  fazenda  e  da  juíliça  não  deixaua  d'auer  algumas  defor- 
dens  a  que  fe  daua  a  mefma  caufa.  Neílas  nãos,  que  forão 
do  reyno  efte  anno  de  mil  e  quinhentos  e  vinte  ires ,  man- 
dou el  Rey  ao  gouernador  repoíla  do  que  lhe  efcreuera 
acerca  da  cafa  do  apoftolo  S.  Tome,  e  das  diligencias 
que  nella  erao  feitas  ,  c  porque  o  padre  penteado  ,  que  da' 
índia  não  viera  a  outra  coufa,  lhe  tinha  dado  larga  infor-^ 
msção  do  que  nifto  paíTaua  ,  mandou  ao  gouernador,  que 
Ic  tiraíTe  dlíío  na  terra  inquirição  de  nouo  muyto  eílrcíita  , 
e  que  a  cala  fofíe  muyto  bem  concertada  ,  do  qual  nego- 
cio o  gouernador  encarregou  o  meímo  Manoel  de- frias 
íeu  criado,  que  já  la  mandara  outra  vez. Veio  tãobem  pro- 
wido  por  el  Rey  de  capitão  e  feitor  da  pefcaria  do  aljôfar 
.  Farts  L  •  Y  hum 


lyo       Primeyrà  Parte  da  Chronica. 

hum  Joio  flores ,  que  em  rodas  as  coufas  que  Lopo  faa- 
rez  paíTiira  em   Ceilão  fe  achara  fempre  com  elle ,  para  o 
qual  effeito  el  Rey  lhe  raandaua  dar  toda  a  geare,  e  arma- 
da ,  que  foíle  neceííaria  :  efta   pefcaria  íe  faz  antre  Ceilão 
ti  o  cabo  de  Comorim   polia  gente  da  terra,  e  todo  o  al- 
jôfar, que  no  outro  tempo  íe  tiraua  delia,  recolhiao  em  íj 
os  mouros  daquella  coita  ,  de  que  pagauao  groílas  rendas 
aos  fenhores  das  terras  ,  donde  os  gouernadores  auiao  boa 
parte,  porque  erão  fenhores  do  mar,  e  agora  para  effeito  de 
fe  recolher  e  arrecadar  efta  pefcaria  para  elRey  vinha  eftô 
Joáo  flores  por  capitão  e  feitor  delia,  porém  o  gouernador, 
ou  fofle  polia  perda,  que  dahy  lhe  vinha,  ou  por  outro  al- 
gum reípeito,  difllmulou  com  João  flores,  e  íem  o  pro- 
uer   do  que  lhe   era  neceíTario   para   fazer  o  que  lhe  fora 
encomendado  ,   o  mandou  que  fe  fofle  em  companhia  de 
Manoel  de  frias ,  a  quem  mandou  ,  que  fofle  ha  pefcaria  , 
ç  a  fizeífe  arrendar   aos  fenhores  áa  terra  ,  para  ver  o  que 
dauão  por  ella  ,  e  o  que  podia   render ,  e  após  iflo  íe  fofle 
andar  por  capitão  e  feitor  na  cofla  de  Charamandel.  Ne- 
fte  tempo  chegou  a  Cochim  Ambrofío  do  rego ,  que  vi- 
nha de  Alalaca  ,  por  quem  Jorfe   dalbuquerque  mandaua 
pedir  focorro  ao  gouernador,  e  lhe  deu  conta  das  perdas 
e  desbaratos  ,  que  nella  ouuera  ,  e  do  receyo  de  guerra  em 
que  ficaua  a  fortaleza,  e  também  lhe  deu  alguma  relação 
do  trabalho,  em  que    Maluco  eftaua,   e  após   eíle  nauio 
chegou  logo  o  de  Pacem  ,  em  que  dom  André  lhe  manda- 
ua-recado   do  que  paflaua  na  fortaleza  ,  e  pedir-lhe,  que 
a  proueife  de  capitão  ,  e  a  tudo  iíto  proueo  o  gouernador 
omillior,  que  então  foy  poflluel ,  porque  deípachou  para 
capitão  mór  do  mar  de  Malaca  a  Martim  Afonfo  de  íbu- 
ía  com  huma  boa  armada  bem  prouida   de  gente,  muni- 
ções e  artilharia,  e  para   capitão  da  fortaleza  de  Pacein 
mandou  Lopo  dazeuedo  no  mefmo  nauio,  que  dom  André 
mandara  co  recado,  bem  concertado  e  repayrado  de  nouo, 
c  nelle  meteo  oitenta  homens  bem  armados  com  boa  ar- 
tilharia ,  poluora ,  pilouros,  chumbo,  e  tudo  o  mais  ,  que 
cumpria  para  a  fortaleza ,  porém  tudo  iiio  com  hum  tem- 

pc»raJ( 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  171 

poral  rijo  que  teue  no  caminho  foy  forçado  aJyjar-fe  ao 
mar,  com  que  chegou  a  Pacem  desbaratado.  O  gouerna- 
dor,  defpois  que  deu  expediente  a  cilas  coufas,  e  a  outras 
que  lhe  parecerão  neceíTarias,  deixando  aly  dom  Luis  íeu 
irmão  com  poderes  de  gouernador  para  guardar  a  coíla  no 
verão,  e  refidir  aly  no  inuerno,  íe  paliou  a  Goa  com  a 
fua  armada  bem  carregada,  com  que  fe  partio  para  Or- 
muz, porém  antes  que  partiíTe  deípidio  Eytor  da  filueyra 
para  Maçiá  com  oito  vellas  groílas  bem  concertadas  e 
prouidas  ie  boa  gente,  e  hum  bargantim  para  íeruiço  da 
armada,  em  bufca  de  dom  Rodrigo  de  Jima,  embaixador 
que  fora  ao  Preíte  João,  de  que  el  Rey  cada  anuo  lhe 
mandaua  fazer  lambrança,  e  lho  emcomendaua  de  no- 
no , da.  qual  viagem  de  Eyror  da  filueyra  me  pareceo  bem 
dar  logo  aquy  conta,  porque  foy  na  entrada  do  anno  ler 
guinte  de  1524. 

C  A  P  I  T  U  LO    XXXXVII. 

Eytor  da  filueyra  parte  para  o  efireyto,  Vay  f urgir  m  porto 
de  Adem.  E  o  que  pajja  co  Rey  delia,  Daby  vay  a  Maçuá 
em  bujca  de  dom  Rodrigo  de  lima, 

EYtor  da  filueyra  partio  de  Goa  em  fim  de  Janeiro  do 
anno  de  mil  e  quinhentos  e  vinta  coatro  com  as  fuás 
noue  vellas  ,  que  erão  coatro  galeões,  de  que  erão  capi- 
tães elle  ,  António  de  lemos  ,  Nuno  fernandes  de  mace- 
do,  e  Manoel  de  moura  ,  e  quatro  nauetas  de  que  os  ca- 
pitães erão  Duarte  de  melo,  António  ferreyra  ,  Aluaro  de 
crafto,  eAnrique  de  macedo ,  e  hum  bargantim  em  que 
hia  por  capitão  Fernão  carualho  ,  na  qual  armada  hião 
fetecentos  homens  afora  a  gente  do  mar.  Partindo  de  Goa 
foy  fazer  agoada  em  CJacotorá,  e  da  hy  fe  fez  na  volta  do 
eftreyto  ,  onde  fez  boas  prefas  de  nãos,  que  hião  para  lá 
carregadas  de  roupas  de  Cambaya,  que  tudo  mandou  bal- 
dear nos  íeus  nauios  ,  e  dos  catiuos  recolheo  os  que  lhe 
podião  leruirj  c  aos  outros  metidos  nas  luas  nãos  mandou 

y  2  .  pôr 


37^       Pfimeyra  Parte  da  Chronlca 

pôr  o  fogo.  Eítas  nonas  fe  fouberao  logo  em  Adem  por' 
Jium  barquinho  ,  que  ropcu  no  mar  com  huma  nao  quei- 
mada, e  ouue  villa  da  noíia  armada  ,  a  qual  chegou  ao  por- 
to d'Adem  o  meípjo  dia  ha  tarde  ,  que  Já  chegara  o  bar- 
quinho ,  por  onde  as  nãos  eílrangeyras,  que  aly  eílauao  já 
carregadas,  não  tiuerao  tempo  para  poderem  fugir  do  por- 
to. Os  mouros  donos  das  nãos  vendo  aparecer  a  nofla  ar- 
mada, e  que  fe  hia  chegando  para  o  porto,  receofos  de 
as  perderem,  íe  negociarão  com  el  Re/  de  maneyra  ,  que 
aíTentou  com  elles  fazer  todos  os  bons  concertos  que  pu- 
deííe  CO  capitão  da  armada  ,  com  que  eiles  não  perdef- 
iem  as  luas  nãos ,  poilo  qual  mandou  logo  huma  almadia 
çom  recado  a  Eytor  da  lilueyra,  que  fe  elle  vinha  como 
amigo  íua  vinda  foífe  muyto  boa  ,  que  folgaua  muyto  c6 
jella,  porque  queria  aííentar  paz  e  amizade  com  el  Rey  de 
Portugal  ,  e  fazerfc  fcir-Y^flallo  para  ter  feu  fauor  contra 
os  Rumes  ,  c  niífo  faria  todo  o  concerto  ,  que  foíTe  bom  e 
rezoado  :  e  fe  vinha  como  inimigo  íe  defenderia  como  pu- 
tíelTe,  c  que  lhe  lembraíTe  que  fe  alguma  ora  os  Portugue- 
ies  receberão  algum  mal  daquella  cidade  não  fora  íenao 
em  defenfão  do  que  lhe  elles  quiferão  fazer,  com  que  lhe 
fora  forçado  fecharem  as  portas  por  lha  não  tomarem 
por  força.  Eytor  da  íilueyra  como  era  homem  de  muyta 
Opinião  e  defejoío  do  feruiço  dei  Rey ,  parecendolhe  que 
fe  naquelle  negocio  ,  que  era  o  primeyro  de  importância 
de  que  o  encarregarão,  pudeííe  fazer  algum  concerto  com 
que  aquella  cidade  d'Adem  fícaílc  tributaria  a  elRey,  e 
o  Rey  delia  feu  vaíTallo,  não  fomente  lhe  faria  hum  gran- 
de íeruiço,  mas  elle  hcaria  ganhando  muyta  honra,  ícm  to- 
mar os  pareceres  dos  homens  antigos  na  índia,  que  hiãa 
na  armada,  reípondeo  a  el  Rey  ,  que  não  vinha  ao  feu 
porto  como  inimigo  nem  para  lhe  fazer  agrauo,e  que 
ainda  q.ae  viera  com  eííe  penfamento  ,  íó  por  lhe  man- 
dar dizer  que  queria  íer  vaííallo  dei  Rey  de  Portugal  não 
fomente  o  mudara,  mas  lhe  faria  todo  o  íeruiço,  que  pu- 
deííe, e  lhe  defenderia  o  íeu  porro  de  quem  o  quiíeíTe 
pfcnder,  poUo  qual  lhe  mandaítc  huai  homem  dos  prin* 

cipaiç 


■     dei  Rey  Dom  João  o  ÍII.  173 

cipais  de  íua  caía  com  que  fe  trataíTc  efte  concerto.  Con-. 
tente  el  Rey  com  a  repoíla  e  os  mercadores  muyro  mais , 
que  fe  oferecerão  a  darem  tudo  o  que  foíle  neceilario  para 
não  fe  desfazer  o  concerto,  m^andou  logo  hum  dos  rege- 
dores da  cidade  com  hum  prefenre  de  muytos  barcos  car- 
regados de  carneyrcs  ,  galinhas,  manteiga,  agoa  ,  e  le- 
nha para  toda  a  armada,  que  era  o  de  que  ella  tinlia  mais 
ncceííidade,  e  para  Eytor  da  filueyra  muytae  peças  de  bor- 
cadilhos,  tafetas,  e  ciris  de  Meca.  Eytor  da  íilueyra  o  re- 
cebeo  com  grande  aparato  com  a  tolda  do  galeão  toda. 
armada,  acompanhado  de  todos  os  capitães  ,  aíTentados 
em  bancos  cobertos  com  alcatifas  ,  e  ao  entrar  lhe  fez 
muyta  honra  e  gafalhado  ,  e  lhe  mandou  dar  huma  cadei- 
ra raia  cuberta  com  huma  alcatifa,  c  defpois  que  o  rege- 
dor lhe  aprefentou  o  que  lhe  el  Rey  mandaua  ,  e  os  po- 
deres íeus  baílantes  para  fazer  o  concerto  ,  praticarão  lo- 
go no  aíTento  das  pazes,  em  que  ouue  pouca  porfia,  por- 
que o  regedor  trazia  por  ordem ,  que  não  fe  deíauieíle  com, 
Eytor  da  filueyra  ,  e  com  tudo  não  deixando  de  ir  e  vir 
alguns  recados  íe  veyo  aconcruir,  que  el  Rey  d'Adem 
pagaííe  caà'ano  a  el  Rey  de  Portugal  dous  mil  xerafis  fey-v 
tos  em  huma  coroa  que  íe  leuafTe  a  el  Rey  de  Portugal  , 
porque  iílo  íó  baílaua  para  reconhecimento  de  vaííala- 
gem  ,  e  que  difto  lhe  deffe  huma  carta  feita  nua  folha  dou- 
ro como  dauão  todos  os  outros  Reys  da  índia  ,  e  com  eíla 
paz  e  amizade  o  feu  porto  ficaria  franco  e  íeguro  a  todas 
as  nãos,  que  eftiueílem  nelle,  e  as  nãos  dos  feus  naturaes 
nauegarião  feguramente  por  todas  aa  partes ,  não  achan- 
do nellas  Rumes,  e  não  eílando  das  portas  do  eítjeyta 
para  dentro,  e  que  para  iíTo  daria  el  Rey  cartazes  aos  ieus 
por  onde  foíTem  conhecidos,  e  que  os  Portugueíes  ,  que 
JeuaíTem  mercadorias  ao  feu  porto,  pagarião  ametade  dos 
direitos  íómente ,  que  pagauao  os  outros  mercadores  > 
e  afora  iílo  outras  muitas  coufas  de  íuílancia  de  huma 
parte  e  da  outra  com  todas  as  retificaçoens  c  claufulas  fir-. 
mes,  que  parecerão  necefíarias,  de  que  paíTarão  efcrituras 
4e  parte  a  parte,  a  de  Eytor  da  filueyra  com  oícllo  das 

armas 


T74       Primeyra  Parte  da  Chronlca 

armas  reais  ,  e  a  dei  Rey  cm  huma  chapa  douro  aíTinada 
por  elle  ,  e  pollos  regedores  da  cidade,  em  que  ouue  de- 
tença de  quinze  dias,  no  fim  dos  quaes  dous  deíles  regedo- 
res trouxerão  eíla  chapa  a  Eytor  da  filueyra,  e  a  coroa  fei- 
ta do  modo  que  elle  quis,  e  outro  grande  preíente  de  pe- 
ças para  elle  e  para  todos  os  capitães,  deftribuidas  por 
ordem  de  Eíleuao  diaz  lingoa  ,  que  fora  o  menfageiro  de 
todos  os  recados,  ao  que  Eytor  da  filueyra  mandou  em 
retorno  afora  os  deuidos  agardecimentos  dos  prefentes , 
que  lhe  mandara,  outro  preíente  de  boas  peças  pouco 
vfadas  naquclla  terra.  Nefte  meyo  tempo,  que  eftas  coufas 
fe  tratauão,  vinhão  muytas  almadias  da  terra  vender  couías 
de  comer  ha  armada,  e  os  noíTos  andauao  muyto  feguros 
polia  cidade  ,  onde  venderão  as  roupas  das  prefas ,  de  que 
fízerão  tão  bom  barato,  que  ficou  el  Rey  bem  largamente 
pago  do  que  lhe  cuftou  a  coroa ,  e  por  onde  quer  que 
andauão  lhe  fazia  a  gente  da  cidade  muyta  honra,  que 
aíTy  o  mandara  apregoar  el  Rey  ,  porém  elles  não  deyxa» 
não  de  fazer  alguns  defmandos ,  de  que  ninguém  ouíaua 
queixarfe  ,  que  fe  chegarão  ha  noticia  de  Eytor  da  filuey- 
ra não  ficarão  fem  caítigo  :  o  qual  mandou  a  terra  alguns 
homens  de  que  íe  fiaua,  a  que  encarregou  andafiem  por  to- 
da a  cidade,  e  com  muyto  cuidado  e  atenção  viíTem  os  mu- 
ros, as  portas  ,  a  ribeyra ,  e  todas  as  mais  particularida- 
des delia  ,  para  lhe  darem  inteira  relação  do  que  nella 
âuia  5  o  que  elles  fizerão  como  lhes  fora  encomendado, 
porque  os  mouros  lhe  moftrarao  tudo  até  os  leuarem  ao 
lugar  onde  eftauãoíepuitados  os  nolTos  que  aly  morrerão, 
quando  Afonfo  dalbuquerque  tentou  tomar  aquella  cidade, 
o  qual  lugar  era  hum  eícampado,em  que  todos  tinhão  jazi- 
gos ao  modo  das  fepulturas  dos  mouros  ,e  em  cada  hum 
lua  bandeirinha :  e  antre  todas  eílauao  os  de  Garcia  de 
íouía  e  Jorfe  da  filueyra  mais  aleuantados,  que  os  outros, 
com  dous  degraos  em  cada  hum,  cubertos  com  cafinhas 
de  palha  (  que  a  efte  modo  Ião  feitos  os  jazigos  dos  mou- 
ros honrados  )  e  hás  cabiceyras  tinhão  lageas  brancas  com 
letras  entalhadas  neilas ,   que  contauao  fuás  obras ,  e  o 

mo- 


dei  Rey  Dom  João  o  III.         175* 

modo  das  fuás   mortes.  Sendo  concruido  de  todo  o  con- 
certo  da  paz  ,  e  maiidandoíle  Eytor  da  íilueyia   defpidir 
dei  Rey  para  íe  fazer  ha  vclla ,  lhe  mandou  elle  pidir  com 
inuyra  inílancia,  que  lhe   deyxaílc  aly  o  barganrim   para 
fua  guarda  ,  c  para  andar  no  mar  ,  e  fazer  arribar  ao  por- 
to as  nãos  ,  que   paíiaííem    íem  lhe  pagarem  direytos  ,  e 
que  elle  pagaria  todas  as  defpeías  do  bargantim  ,  e  os  fol- 
dos  a  toda  agente  delle  da  maneyra  que  elle  ordenaííe, 
o  que  lhe  elle   concedeo   facilmente  ,   e  que  íe  pareccfle 
bem  ao  gouernador  fempre  o  teria  naquelle  íeu  porto, 
e  com  iílo  ordenou  que  ficaíle  aly  no  bargantim  o  mefmo 
capitão  com  vinte  homens  efpingardeyros  bem  armados, 
a  que  el  Rey  antes  que  fe  o  capitão  mor  partifse  ordenou 
de  íoldo  e  mantimento,  ao  capitão  cincoenia  xarafis  por 
mes,  e  aos  íoldados  trinta,   e  aos  remeyros  cinco,  e  por 
cada  nao  que  trouxefsem  ao  porto  daua  cem  xerafis  ,  comi 
que  ouue  muytos  ,  que  deíejarao  ficar  no  bargantim  e  íi- 
zerão  muyto  por  ilso.  Eytor  da  filueyra  íe  partio  logo,  e 
entrando  no  eilreyto  foy  ter  ao  porto  de  Maçuá  no  fira  de 
Março  de  1524,  onde  achou  hum  criado  do  Barnegais,  que 
por  feu  mandado  aly  o  eílaua   efperando  e  lhe  deu  conta 
de  tudo,  o  que  dom  Rogrigo  pafsara  o  anno  dantes,  quando 
dom  Luís  fora  em  bufca  delle,  e  que,   quando  por  cartas 
do  mcfmo   dom  Luis  íoubera  que  era  tornado  para  a  ín- 
dia, recolhera  o  que  lhe  tUe  deixara  em  Arquico,  e  fe  tor- 
nara para  o  Preííe,  porem  que  já  então  tinha  feito  volta 
a  cfperallo,  e  eftaua  num  lugar  daly  algum  tanto  apartado, 
onde  íe  lhe  auia  d'ir  dar  auifo  da  vinda  daquella  armada  , 
porém  que  daly  aonde  elle  eílaua    era  caminho  de  vinte 
dias,  fazendo  ainda  as  jornadas  grandes,  e  que  vindo  dom 
Rodrigo  com  toda  fua  companhia  não  poderia  chegar  a 
Maçuá  em  menos  de  vinte  e  cinco  dia?,  Eytor  da  íilucyra 
com  eíla  informação  tomando  coníeiho  cos  pilofos  e  nie- 
ílres,  e  com  todos  os  capitães,  a  rodos  pareceo  ,  que  a  ar- 
mada não  podia  aJy  eítar  mais  que  até  vinte  dias  d'Abril, 
que  fe  mais  ei^iueísem  ficarião   inuernando  dentro  no  ef- 
treyto,oqueo  gouernador  no  regimento  cue  ihe  dera 

lhe 


lyá       Primeira  Parte  da  Chronica 

lhe  defendia  eílreytamerite,  do  que  Eytor  da  filiieyra  marri 
dou  fázer  auto  em  que  rodos  aíTignarão,  e  logo  por  hua 
carta  fua  mandou  dizer  a  dom  Rodrigo  ,  que  "a  íua  vinda 
aaqucUe  porto  de  Maçuá  nao  fora  a  outro  fim  íenao  a  buf- 
callo,.que  Ihz  pefaua  em  eftremo  rornafle  fem  elle ,  mas 
que  a  culpa  foíse  íua  ,  pois  tendo  já  auifo  de  dom  Luís 
no  anno  de  antes,  que  íe  pufeíse  íós  duas  jornadas  do  mar, 
fe  pufera  tão  longe  delle  ,  que  elle  o  tornaua  auifar  de 
nouo  ,  que  cumpria  muyto  poríe  perto  do  mar  para  náo 
errar  tantas  vezes  a  embarcação,  e  não  virem  tan:as  e  tão 
cuílofas  armadas  a  buícallo  tantas  vezes  debalde.  Eíla 
carta  foy  dom  Rodrigo  moílrar  ao  Preíle,  o  quaí  mandou 
que  fe  pufefse  o  mais  perto  do  mar,  que  pudefse,  e  que 
o  Barnegais  lhe  deíse  para  ilso  qualquer  lugar,  que  elle 
eícolheíse,  e  nelle  o  acompanhaíse  ,  e  o  prouefse  de  tudo 
o  necefsario  para  clle,  e  para  a  fua  companhia  muyto  aba- 
ítadamente.  Eytor  da  filueyra  partio  de  Mnçuá  a  íeis  dias 
de  Abril ,  e  faindo  do  eftreyto  foy  demandar  o  porto  de 
Adem,  onde  o  bargantim  o  foy  receber  ao  mar  com  muy- 
tas  bandeyras  de  leda  que  el  Rey  lhe  dera,  e  os  homens 
todos  muyto  bem  veftidos  c  lhe  contarão  tantas  mercês 
que  el  Rey  lhes  fazia,  e  larguezas  que  víaua  com  todos, 
que  ouue  muytos  deíejoíos  de  íicar  no  bargantim  ,  e  que 
para  iíío  meterão  fuás  valias  co  capitão  mor:  elle  tanto 
que  íurgio  no  porto  foy  logo  viíitado  dei  Rey  com  muy- 
to refreíco  ,  e  lhe  mandou  dar  tudo  quanto  ouue  miíler  pa- 
ra a  armada  com  moílras  de  muyta  paz  ,  e  boa  vontade. 
Eytor  da  filueyra  permudou  alguns  foidados  dos  que  efta- 
uão  no  bargantim,  mas  de  maneyra  ,  que  nelle  não  ficarão 
mais  de  vinte  como  antes  andauão  co  (eu  mcfmo  capitão 
Fernão  carualho  ,  e  deípidido  dei  Rey  íe  partio  aíTaz  con- 
tente ,  e  oufano  de  deixar  tributaria  a  el  Rey  aquella  tão 
famofa  e  tão  requeílada  cidade  de  Adem,  era  que  auia 
que  lhe  tinha  feito  grande  feruiço:  e  correndo  a  cofia 
de  Fártaque  com  tempo  aíTaz  rijo  á  popa  ,  que  íempre 
aly  cuíluma  acurfar  naquella  conjunção,  foy  tomarem 
Cúria  niuria  ,  onde  fe  detcue  até  fer  tempo  de  fe  ir  para 

a  In- 


dei  Rey  dom  João  o  IIL         177 

SL  índia ,  &  nâo  quis  ir  demandar  Ormuz  ,  porem  na  coíla 
de  Dio  topou  co  gouernador  que  ja  de  lá  rinha. 

CAPITULO     XXXXVIII. 

Ordena  Sua  Alteza  que  em  todos  os  papeis  que  ajão  de  fer 
aunados  por  elle  ,  ou  por  f eus  officiais  em  feu  nome  ,  em 
que  fe  cuftumaua  pôr  yàs  el  Rey  y  da  ly  por  diante  fe  nao 
ponha  Jenão ,  Eu  elRey, 

EStando  el  Rey  noíTo  Senhor  na  cidade  d'EuGra  cfte 
anno  de  mil  e  quinhentos  c  vinte  quatro  ,  tratou  hum 
dia  no  íeu  confelho  do  modo  que  os  Reis  íeus  antecello- 
res  até  então  tinhão  vfado  em  le  pôr  nas  couías  que  fe  ef- 
creuiáo  em  íeu  nome  ,  Nós  el  Rey  ,  e  viílo  como  em  al- 
gumas efcrituras  autenticas  de  Reis  paíTados  fe  tinha  acha- 
do ,  que  íe  mandarão  nomear  por ,  Eu  el  Rey  ,  propôs  na- 
quelle  coníelho  feria  bom  guardar  elle  o  eíliilo  ,  que  até 
então  fe  vG^ua  de  porem  os  Reis ,  Nós  eIRey  ,  ou  fe  o  mu- 
daria em  eil;ilIo  nouo  de  fe  eícreuer  em  feu  nome  ,  fomen- 
te ,  EuelRey:  e  diícutida  bem  eíta  matéria  com  miiytas 
rczoens  de  parte  a  parte  ,  íe  veyo  a  detriminar  por  todo  o 
coníelho  que  Sua  Alteza  fe  mandaíTe  nomear  por,  Eu  el 
Rey,  e  por  fer  aíTy  mais  próprio  e  decente  ha  mageílade 
real.  Sua  Alteza  aprouando  eíle  parecer  do  íeu  confelho  , 
mandou  que  aíTy  fe  fizeííe  daly  por  diante,  e  que  todos  os 
aluarás  ,  e  quaifquer  outras  efcrituras  de  qualquer  maney* 
■ta  é  calidade  que  foflem  ,  que  íe  fízeíTem  em  íeu  nome  ,  ou 
foíTem  alfmados  por  elle  ,  ou  por  quaifquer  officiais  feus, 
que  as  ouefTcm  de  paíTar  e  afllnar  em  feu  nome  ,  íe  fizeífeni 
por  ,  Eu  el  Rey,  de  maneyra  que  onde  dizia  fazemos  ia- 
ber  ,  dilTeííc  faço  faber  ,  e  alTy  no  difcurlo  da  eícritura  dif- 
feíTe  feinpre.  Eu  el  Rey,  e  nos  aluará?,  que  começao,  Nós  cl 
Rey,  diííeíTe  ,  Eu  el  Rey  faço  faber,  ou  mando  ,  ou  ey 
pôr  bem  ,  continuando  fempre  em  tudo  por ,  Eu  el  Rey  , 
de  maneyra  que  do  cuílume  antigo  que  até  então  fe  guar- 
dara de  eícreuer  por  ,  Nós  el  Rey  ,  fe  não  víalie  mais  daly 
<  J^arte  I,  Z  por- 


178         Primeyra  Parte  da  Chronica 

por  diante  ,  mas  tudo  fe  fízeíTe  por  efte  modo  de  ,  Eu  el 
Rey  ,  e  mandou  ao  chançarel  mor ,  ao  cfcriuão  da  purida- 
de ,  aos  veadores  da  fazenda  ,  e  a  todos  os  outros  officiais, 
a  que  as  íuas  cartas  e  proaifoens  ouueíTem  de  ir  ter  ha  mao 
para  as  verem,  e  paflarem,  que  as  não  paííaíTem  fe  nellas 
achaííem  outro  termo  de  falar  fenâo  ,  Eu  el  Rey  ,  e  dou- 
tra maneyra  não,  a  qual  deiriminação  fua  Alteza  mandou 
que  íeguardaíTe  daly  por  diante,  de  que  mandou  paííar  hu- 
ma  prouiíao  fua  feita  polio  fecrctario  António  carneyro 
a  16  dias  do  mes  de  Junho  de  1524  ,  e  aíTmada  por  íua  Al- 
teza. 

CAPITULO    XXXXIX. 

O  que  dom  Luis  de  meiufes  faz  em  Cochim  defpots  que  agO' 
uen2ador  [eu  irmão  vay  para  Ormuz,  Manoel  de  frias 
vay  ha  pefcaria  do  aljojar  ,  entrega  a  feitoria  delia  a 
foãa  fiares y  'vayffe  ha  cafa  do  Apojialo  Sam  Thomé ,  fazfe 
obra  nella  ,  achaoffe  as  relíquias  do  iSanto  ,  e  o  que  fejaz 
delias» 

DOm  Luís  de  meneies  irmão  do  gouernador  ,  que  el« 
Ic  deixou  na  índia  com  todos  os  (eus  poderes  quando 
fe  foy  para  Ormuz  ,  andou  com  huma  grolla  armada  na 
coíU  até  entrar  o  inuerno  em  que  ferecolheo  para  Co- 
chirti  ,  onde  inuernou  com  muyta  gente  ,  que  polia  muyta 
Jargutza  ecorteíia  com  quetraiaua  os  homens  foigauíío  de 
oferuir  e  acompanhar,  e  logo  fe  ocupou  em  tirar  os  na- 
uios  a  monte  ,  em  que  elle  era  o  primeyro  que  lançaua 
mão  do  cabreílante  ,  com  cujo  exemplo  toda  a  mais  gente 
fazia  o  meímo  ,  e  cm  breue  tempo  foráo  os  nauios  todos 
concertados  ,  e  fez  de  nouo  hum  galeão  a  que  pôs  nome 
S.  Luis  ,  e  huma  galé  real ,  e  acabou  outra  galé  baftarda, 
que  eílaua  começada  que  fe  chamou  lanta  Cruz  ,  que  foy 
lium  dos  milhores  nauios  que  ouue  na  índia  ,  nas  quais 
obras  elle  aíllftio  ícmpre  na  ribeyra  muyto  conforme  cos 
officiais,  e  principalmente  co  doutor  Pêro  nunez  ,  que 
era  Veador  da  fazenda ,  a  quem  íómente  ocupaua  na  com- 
pra 


delRey  Dom  João  o  III.  179 

pra  da  pimenta:e  onde  os  negócios  correm  por  eftes  termos 
íempre  coftumão  a  ter  bons  iuceflos ,  o  que  he  muyto  pol- 
lo  contrario  onde  ha  difcordias  e  differenças.  O  Manoel  de 
frias  ,  que  o  gouernador  mandou  por  capitão  e  feitor  de 
Choromandel  ,  como  atrás  deixo  dito  ,  pollo  regimento 
que  lhe  fora  dado  arrendou  a  peícaria  aos  Digares  por 
preço  de  mil  e  quinhentos  cruzados  cada  anno  ,  e  deixan- 
do nella  por  feitor  o  João  flores  ,  que  leuara  comligo  ,  co 
feu  efcriuâo  em  huma  barcaça  bem  armada  e  concertada  , 
le  foy  a  dar  ordem  ha  caía  do  Apoftolo  São  Thomc  ,  onde 
todo  o  dinheyro  ,  que  era  neceíTario  para  a  obra  que  fe 
auia  de  fazer  nella,  entregou  a  hum  Sacerdote  que  lá  refidia 
aula  muytos  dias  chamado  António  gil ,  de  que  atrás  fica 
feita  menção  ,  o  qual  coníultando  cos  meílres  que  auião  de 
fazer  a  obra  o  modo  de  que  auia  de  fer  feita  ,  fe  puíerao 
logo  a  ella  ,  e  reformarão  de  nouo  a  igreja  ,  e  a  fizerio  al- 
gum tanto  mais  cumprida  ,  porem  da  mefma  largura  ,  fo- 
mente na  capella  mór  e  no  jazigo  do  Santo  fe  não  tocou 
por  então,  nem  menos  no  curucheo  antigo  ,  porque  efte 
querião  que  ficafle  no  modo  em  que  eílaua  para  memoria  ; 
ordenarão  na  igreja  huma  capelinha  de  ncuo,  em  que  pufe- 
rão  huma  pia  para  bautizar  ,  e  fizeraolhe  huma  torre  mais 
alta  outro  tanto  que  a  igreja  ,  fechada  toda  d'abobada  , 
com  fuás  ameyas ,  c  em  cima  da  porra  principal  da  igreja 
puferão  huma  goarita  com  fuás  feteyras  para  defenfaõ  da 
meíma  porta  ,  que  tudo  junto  rcprefenraua  huma  fortaleza 
muyto  bem  aíTentada  :  edeípoisque  a  gente  aly  foy  re* 
crecendo  ,  e  fe  fez  pouoaçao  de  Portuguefes  ,  na  porta 
principal  fe  fez  hum  alpendere  do  tamanho  da  igreja  , 
porque  a  gente  não  cabia  nella  ,  e  em  torno  da  igreja  fe 
reformou  huma  cerca  que  a  caía  tinha  ,  dentro  da  qual  fi- 
carão os  jazigos  dos  difcipulos  do  Santo  Apoftolo,  ea 
igreja  foy  ornada  por  dentro  com  duas  capellas  ,  huma  da 
jnuocaqão  de  noíTa  Senhora  da  Conceyção  ,  e  outra  dos 
Reis  magos ,  e  tudo  tão  forte  e  defeníauel ,  que  fè  na  terra 
acertaííe  d'auer  algum  aleuanramento  a  igreja  lhes  pudeíTe 
feruir  de  fortaleza,  em  que  íe  defendcííem.  Por  fim  de  tu- 

Z  2  do 


i8o       Primeyra  Parte  da  Chroiiica 

do   íe  fundou  huma  groíTa  parede  ,  que  aula   deirenteftar 
no  curuclieo  ,  com  que    fe  elle  íufteataííe,  e  porque    para 
efte  eíFeito  nao  podia  ella  ir  por  outra  parte    íenao  derre- 
dor da  capella  mór,  foy  forçado  bulirfe  no  jazigo  do  San- 
to ,  o  que   fe  confentio  ^  aífy  polia   neceílidade   que  auia 
da  parede  ,  como  por  hum  defejo  íanto  de  íaber  o  que  auia 
dentro  neile  :  então  o  padre  António  gil  cora  outros  dous 
facerdotes  ,  que  por  íua  deuaçao  íeruiao  aquella  fanta  ca- 
fa  ,  dos  quais    hum  era  homem  de  muyta  idade,  forao  os 
primejros  que  começarão  a  trabalhar  naquella  obra  ,  mas 
como  para   a  dignidade   que  tinhão    nao  conuinha   conti- 
nuar com  aquelle  officio  ,  e  o  alicece  que  íe  abria  forçada- 
mente auia  de  ir  pollo  jazigo  do  Santo  ,   parecendo   a  to- 
dos   os  que  aly  eftauno  coufa   indecentiíFima   trabalharem 
nelle  gentios  íenao  Chriftaos  ,  e  eíTes  ainda   Portugueles  , 
©  padre  António  gil   pidio  com  muytas  palauras  a  três  ho- 
mens-chamados  ,    Diogo  fernandez  ,   Brás   fernandez  ,    e 
Diogo  lourenço,  que  quifefíem  ajudar  os  officiacs  naquella 
fanta  obra  ,  os  quais  aceitarão  o  trabalho  com  tanto  gofto 
c  deuaçao  ,  que  fe  confeçarão  logo  ,  e  comungarão  ,  e  co- 
meçando  a  cauar  ,  defpois   de  acharem    huma  terra   folta 
em  altura  de  três  palmos  ,  defcubrirao  huma  coua  larga 
com  as  paredes  feitas   de  tijoUo  acafiladas  todas  por  den- 
tro ,  tão  fans    e  inteiras   como   fe  forao  feitas   de  muyto 
poucos  dias  ,  e  deípejando    a  coua  daquella  terra   a  virão 
em  baixo  ladrilhada   de  hum  tijollo  groílo  de  três  palmos 
de  comprido  ,  qus  fendo  tirado  fora  acharão  debaixo  del- 
le  outra  terra  folta  como  a  primeyra  em  dous  palmos  dal- 
tura  ,  e  defpois  qu^  a  tirarão  ,  acharão  outro  ladrilho  co- 
mo o  primeyro  ,  argamaíTado  por  cima^  aquy  ceíTarao  de 
cauarcuidando  que  aly  fe  acabaua  a  coua  ,  porem  o  me- 
Itrediííe,    que  erà  neceíTario    ir  mais   á  baixo  porque  auia 
de  fundar   a  parede   na  terra  fixa  ,  então  arrancando  todo 
eíle  ladrilho  ,  que  eíl^ua  argamaílado,  e  tão  rijo   que  íe 
tez  com  muyro  trabalho  ,  debaixo  delle  acharão  outra  ter- 
ra íolta  que   o  meftrc  mandou  tirar  para  chegar  ao  fixo ,  e 
tirada  fe  achoa  huma  argamaffa  fem  tijoilo  lao  dura  que  os 

pi- 


dei  Rey  Dom  João  o  Ilf.  i8r 

plcoens  a  nao  podiao  desfazer,   que  tinha  dous  palmos  de 
groílura  ,  e  por  eílas  partes  todas  liiao  fempre   as  paredes 
da  coua  direytas    a  baixo  feitas  de  tijollo   acafaladas  por 
dentro  como  eílauão   no  roais  alto,  eíta  argamaíTa  foy  tam 
bem  arrancada  fora  ,  e  debaixo  delia  acharão  duas   lagcas 
pegadas  huma  com  a  outra  ,  que  tomauao  todo  o  chão  da 
coua  ,  tãojuftas  que  com  muyto.rraballio   as  puderao  tirar 
intejras ,   porque  não  nuia  nelias   por  onde  lhe  pudeíTeoi 
pegar  para  as  Jeuantarein  ,  debaixo  delias  acharão   outra 
terra  íolta  a  que  deriío  muyta  preiTa  para  a  tirarem  traba- 
lhando niíío  de  dia  e  denoitc  ,  rcceoíos  que  a  gente  da  ter- 
ra vendo    a  continuação   do  cauar  ,  e  quanto   abaixo   ti- 
Jihão  ja  cauado  ,  não  vieílem  a  cuidar  que  buícauão  algutn 
dinheyro  ,  e  fizeíTe  por  iíTo  algum  aluoroço  que  os  deíin- 
quietaíTe,  porque  já  nefte  tempo   tinhao  cauado  altura   de 
quinze  palmos,  edaquella  terra  folta  para  baixo  as  paredes 
da  coua    não  eríioacafalndas  ,  debaixo  deíla  terra  acharão 
huma    areya  branca  mlíturada   com  cal  virgem,  também 
mujto  branca  ,   a  qual  tirarão  logo    e  debaixo  delia  forao 
dar  com  huma  caueyra  ,  e  oíTos  de  pernas  ,  e  de  braços  ,   e 
de  outras  partes  do  corpo  ,  e  aos  pés  da  coua  acharão  hum 
calão  ,  que   he  como  panella  ,   tamanho   que  leuaria   íeis 
canadas  ,  cheyo   da  mcTnia  areya  ,  e  hum   ferro    de  lança 
da  feição  de  huma  folha  de  ouliu-eyra  ,  co  aluado   cumpri- 
do, que  eftaua  ainda  inteyro ,  e  hum  pequeno  de  pao  me- 
tido nelle.  O  padre  António  gil    com  muyta  reuerencia  e 
veneração  ,  e  não  íem  deuotas  lagrimas  de  todos    os  Chri- 
íl:âos  que  eílauão  preíentes  ,  cubertas   as  mãos   com   huni 
pano  de  feda ,  bufcou  aquelles  ofTos  todos  ,  que  eílauão  já 
tão  gaitados  doternpo,  que  em  bulindo  com  elles  fe  faziãó 
em  pedaços,  e  os  recolheo  todos,  e  meteo  em  huma  boce- 
ta grande  por  nao  ter  então  outra  couia  em  que  os  meteííe. 
O  feytor  foy  logo  chamado  e  lhe  derão   conta   do  que  ti- 
nhão  achado  ,  e  elle  deu  hum  cofre  nouo    da  China  doura- 
do com  íeu  cadeado  de  prata  ,  para  onde  paíTarao  aquellas 
fantas  reliquias ,   e  em   outro    cofre  puferão    a    oííada   do 
Rey,  que  o  fanto  Apoílolo  conuertera  c  íizera  Chriilão, 

de 


i8i       Piimeyra  Parte  da  Chronica 

de  que  atrás  fica  dito  ,  que  eftaua  enterrado  ha  porta  prin- 
cipal da  igreja  ,  e  de  tudo  iíto  tomou  o  feitor  as  chaues 
para  as  dar  ao  gouernador.  Defpois  diílo  feito  veyo  do 
reyno  o  padre  penteado  ,  que  lá  fora  fobre  os  negócios 
defta  cafa  do  Santo  ,  e  veyo  prouido  na  vigairaria  deJla  ,  e 
quebrou  os  cadeados  e  tirou  as  lantas  reliquias  donde  efta- 
uão  ,  e  as  meteo  em  huma  caixinha  pequena  ,  quanto  ellas 
podião  caber  fomente  ,  feita  do  raefmo  páo  da  caía  ,  a 
qual  meteo  em  hum  vao  que  elle  fez  por  fua  mão  para  eííe 
efeito  no  mociço  do  altar  tão  fecretamente  ,  que  ninguém 
foube  onde  a  metera  ,  e  diílo  a  ninguém  deu  conta  ,  íenão 
a  hum  homem  muyto  de  bem  chamado  Rodrigo  aluarez  , 
e  lhe  deu  juramento  íobre  as  mefmas  reliquias ,  que  a  nin- 
guém o  deícobriria ,  fenão  em  artigo  de  morte  ao  feu  con- 
feíTor  ,  ao  qual  também  fizeíTe  tomar  juramento  fobre  o 
fantiíTimo  Sacramento  ,  que  o  não  defcubriíTe  a  outra  ni-^ 
jihuma  peíToa  fenao  polia  mefma  maneyra ,  com  que  eftas 
fantas  reliquias  eíliuerão  efcondidas  até  o  tempo  que  fo- 
rão  daiy  tiradas  como  adiante  íe  verá.  O  alicece  defta  pa- 
rede íe  fez  todauia  com  todo  o  refguardo  do  íanto  jazigo 
que  foy  poíTiuel ,  e  com  ella  ficou  a  obra  da  caía  de  todo 
acabada.  A  madeyra  que  ficou  delia  íe  recolheo  c  fechou 
toda,  de  que  fe  leuauão  alguns  pedaços  por  reliquias  ,  do 
que  auendo  noticia  na  índia  fe  paíTarão  para  lá  muytos 
Portugueíes  ,  que  aly  fizerão  fua  morada  em  cafas  ,  que  fi- 
aerão  de  pedaços  de  tijolos  ,  que  achauão  debaixo  da  ter- 
ra de  cafas ,  que  parece  que  já  aly  ouue  noutro  tempo, 
onde  acharão  também  alguns  poços.  O  que  daly  por  dian- 
te foy  em  tanto  crecimento  quanto  cuílumarão  íempre  ter 
as  couías  fundadas  na  virtude ,  e  na  reuerenoia  ,  c  deuação 
do  íenhor  e  dos  ícus  lantos. 


CA- 


delRey  Dom  Joáo  o  III.  183 

CAPITULO       L. 

Lopo  dazeuedo  chega  a  Pa  cem  para  Jer  capitão  dafortale^ 
za  ,  dom  André  lha  não  quer  entregar.  Os  mouros  a  com" 
batem  ,  dom  André  adoece  ,  e  je  embarca  para  a  Índia  y  a 
fortaleza  fe  vê  em  grande  aperto, 

QUando  Lopo  dazeuedo  chegou  a  Pacem  desbarata- 
do ,  porque  com  tormenta  alijara  tudo  ao  mar, 
era  alcaide  mór  na  fortaleza  hum  Ayres  coelho  ,  cunhado 
do  capitão  dom  André,  com  quem  tinha  cafada  huma  ir- 
mam  íua  :  efte  quando  dom  André  mandou  pidir  ao  go- 
uernador  que  prouelFe  a  fortaleza  de  capitão  ,  lho  contra- 
riou muyto  ,  por  quanto  pollo  regimento  dei  Rey  a  capi- 
tania delia  era  fua  ,  quando  elle  a  largaíTe  ,  e  auia  de  ficar 
feruindo  de  capitão  todo  o  tempo  que  a  elle  lhe  faltaííe 
por  íeruir  ,  porem  não  infiílio  muyto  niíTo,  porque  lhe  pa- 
receo  que  fegundo  os  termos  em  que  dom  André  eftaua 
não  poderia  ler  viuo  ,  quando  o  recado  tornaíTe  da  índia  , 
eelleeftaria  ja  em  poíTe  da  capitania  ,  e  que  vindo  então 
outro  capitão  mandado  pollo  gouernador  ,  e  não  poden- 
do ter  direito  contr'elle  para  o  defapoíTar  da  capitania  , 
forçadamente  auia  de  tornar  ha  Índia  ,  e  íe  todauia  tornaf- 
fe  de  lá  prouido  ja  então  elle  teria  acabado  o  feu  tempo  , 
mas  vendo  chegado  Lopo  dazeuedo  prouido  da  capitania  , 
e  que  dom  André  eftaua  fao  e  bem  defpofto  ,  ajuntandof» 
le  CO  feitor  Simão  toícano  ,  que  era  muyto  feu  amigo  ,  e 
com  outros  da  íua  parcialidade  ,  fe  forão  todos  a  elle  e 
lhe  diíTerão  ,  que  pois  eílaua  ja  com  tão  boa  difpoíição  fe- 
ria grandiíTima  deíhonra  e  abatimento  feu  deixar  a  capita- 
nia ,  por  iíTo  que  anão  deixaíTe  por  ninhum  calo  :  elle 
auendoíTe  por  bem  aconfelhado  ,  não  quis  entregar  a  capi- 
tania a  Lopo  dazeuedo  ,  o  qual  defpois  de  ihe  fazer  fobre 
i/lo  feus  proteftos  e  requerimentos,  e  tirar  os  eílromen- 
tos  neceííarios ,  fe  embarcou  para  fe  tornar,  e  dom  An- 
dré lhe  pidio  que  lhe  deixaíTe  agente  polia  neceíiidade 
em  que  eílaua ,  o  que  lhe  elle  concedeo  ,   porem   a  gente 

fei- 


^o4        Primeyra  Parte  da  Chronica 

feita  toda  num  corpo  diíle  ,  que  elles  nao  vierao  da  índia 
para  eílarem  naquella  fortaleza  íenao  com  feu  capitão  Lo- 
po dazeuedo ,  que  com  elJe  eílariao  de  muyto  boa  vonta- 
de ,  que  doutra  maneyra  quem  os  ouueíTe  de  obrigar  a  fi- 
car aly  aula  de  íer  á  força  de  armas.  VendoíTe  nelles  cita 
detriminação  não  ouue  quem  oufaííe  de  lhe  falar  mais  nií- 
fo  ,  e  Lopo  dazeuedo  íe  partio  e  foy  ter  a  Malaca  ,  onde 
eíleue  até  o  tempo  da  moucao  em  que  fe  tornou  ha  índia. 
Os  mouros  vendo  partido  Lopo  dazeuedo  ,  e  íabendo  que 
não  deixara  a  gente  na  fortaleza  ,  a  tornarão  logo  a  aper- 
tar com  muytos  e  rijos  aíraltos  ,  com  que  o  capitão  dom 
André  íe  achou  muy  alcançado  de  não  entregar  a  fortale- 
za a  Lopo  dazeuedo,  e  aíTy  polia  paixão  que  tomou  diílo, 
como  polia  continuação  do  trabalho  e  medo  de  perder  a 
■fortaleza  ,  tornou  adoecer  tão  grauemenfe  ,  que  tornou  a 
chegar  a  artigo  de  morte.  O  alcaide  mor  Ayres  coelho 
leu  cunhado  co  defejoque  tinha  de  (cr  capitão  da  fortale- 
za ordenou  íecretamente  com  feus  amigos  ,  que  aconíe-í" 
JhaUem  a  dom  André  ,  que  tiraíTe  eílromentos  do  eftado 
em  que  eílaua  ,  e  lhe  entregaíTe  a  fortaleza  e  a  capitania  até 
o  gouernador  prouer  com  outro  capitão  ,  e  fe  fofle  ha  In* 
dia  tratar  de  fua  vida  e  faude  ,  onde  tinha  muyto  juíladeí- 
culpa  para  co  gouernador,  aííy  de  não  entregar  a  fortale- 
za a  Lopo  dazeuedo  ,  pois  então  eílaua  com  íuas  forças 
inteyras,  como  de  a  entregar  agora,  que  eílaua  em  cita- 
do de  a  não  poder  defender ,  e  lhe  era  forçado  deixalla  a 
Ayres  coelho  a  quem  aquillo  competia  por  direyto  ,  pois 
era  o  alcaide  mor.  A  dom  André  parecèo  tam  bom  eíta 
coníelho  j  que  mandou  logo  fazer  preíles  hum  nauio,  que 
hum  chatim  aly  deyxara,  e  deípois  de  embarcar  nelle  todo 
o  feu  fato  e  familia  ,  chamou  o  alcaide  mór  e  perante  os 
ciliciais  todos  lhe  requereo,  quefe  entregaíTe  daquella  forta- 
leza ,  pois  a  eJle  competia  ler  capitão  delia  ,  a  qual  lhe 
larr^aua  e  entregaua  debaixo  da  menagem  que  elle  mefmo 
tinlia  tomado  delia  ,  por  quanto  elle  por  fe  achar  em  deí- 
pofição  que  a  não  podia  defender  lhe  era  forçado  iríe  para 
a  Índia ,  e  fe  lá,  chegaífe  yiuo  daria  rezão.  de  í'y  ao  gjDuer- 
na- 


dei  R.ey  Dom  João  o  III.         i8^ 

nador,  e  mandou  ao  efcriuao  da  feitoria  ,  que  de  tudo  iílo 
fizeíTe  autos  e  liic  delTe  eítromentos  para  leuar  comfigo.  O 
alcaide  mor  lhe  refpoiídeo  que  atentaíle  bem  o  que  fazia  , 
porem  que  elle  eílaua  prefles  para  fazer  tudo  o  que  cum- 
pria ao  leruiço  dei  Rey.  Dom  André  eniao  lhe  deu  poíTe 
da  capitania  ,  e  aalcaidaria  mor  deu  a  hum  homem  hon- 
rado chamado  António  ferreyra  ,  e  tomando  conhecimen- 
tos da  entrega  que  fez  da  capitania  ,  e  das  coufas  que  íi- 
cauão  na  fortaleza  ,  e  na  feitoria  ,  com  íeus  papeis  muyto 
bem  negoceados  íe  embarcou  c  fe  paíTou  para  a  índia  ,  o 
que  íucedeo  em  Setembro  do  anno  paíTado  de  mil  e  qui- 
nhentos e  vinte  três  ,  que  foy  neceílario  guardarfe  para  fc 
contar  agora  por  íe  continuar  com  a  ordem  da  hiíloria. 
Os  mouros  com  a  partida  de  dom  André,  parecendolhe 
que  inda  leuaua  comfigo  alguns  homens  deíles  poucos  que 
aiiia  na  fortaleza  ,  c  vendo  que  não  íicaua  aly  embarcação 
que  defendeíTe  a  barra  do  rio  ,  vierao  logo  com  armada 
de  lancharas  ,  e  exercito  de  muyta  gente,  e  por  mar  e 
por  terra  derao  muytos  aíTaltos  ha  fortaleza  e  ha  pouoa- 
ção  dei  Rey  ,  que  eíííua  junto  com  ella  ,  como  fe  atrás  dií- 
le  ,  com  que  lh'entrarão  a  tranqueira  ,  e  lha  queimarão  ,  e 
matarão  muyta  gente  ,  e  lhe  leuarao  muyta  artilharia  ,  e 
fazenda  ,  e  mantimentos  que  tinha  nella  ,  a  que  os  noílos 
da  fortaleza  nunca  fairão  a  dar  focorro  ,  de  que  os  mou- 
ros ficarão  tão  oufanos  ,  atribuindo  aquillo  a  fraqueza 
dos  noílos  ,  que  fe  atreuerao  a  vir  cometer  o  cubello, 
que  eílaua  junto  do  eífrcyto  ,  e  o  tomarão  e  matarão  ,  trcs 
Portugueíes  ,  e  ferirão  outros  ,  que  alíy  feridos  fe  forao 
recolhendo  para  a  fortaleza  ,  no  qual  cubello  tomarão 
humcamello,  e  dous  falcões,  e  quatro  berços  ,  com  que 
aos  inimigos  creceo  tanto  animo ,  que  fizerão  eílancias  em 
que  aíTentarão  muyta  artilharia,  com  que  de  dia  e  de  noite 
combatião  a  fortaleza  tão  afperamente  ,  que  os  noílos  fe 
encerrarão  de  todo  nella  ,  fem  ouíarem  a  lair  fora  ,  nem  a 
tomar  agoa  do  rio  de  que  bebiao  ,  que  eífaua  hum  tiro  de 
pedra  da  porta  da  fortaleza  ,  com  que  íe  começarão  a  ver 
cm  grande  aperto  de  fede ,  ao  qual  IhQ  íucedeo  lambem  o 
I^aríe  L  Aa  da 


i8í         Prlmeyra  Parte  da  Chronlca 

da  fome  ,  porque  o  regedor  e  el  Rey  com  íuas  molheres  fc 
recolherão  ha  fortaleza  fem  nenhani  mantimento  ,  por 
lhe  ferem  queimados  os  feus  na  tranqueyra  ,  e  na  fortale- 
2a  os  nãoauia  qacbaíiaíTem  para  tanta  gente,  e  ajuntandof- 
le  também  o  continuo  trabalho  a  que  era  forçado  acudir 
de  dia  e  de  noite  para  fua  defenííiu  ,  que  lhe  não  daua  lu- 
gar para  poderem  tomar  algum  repouib  ,  eftauão  codos 
de  maneyra  que  íe  não  íabiao  dar  aconlciho. 

CAPITULO     LI. 

Dom  André  nauegando  de  Pacem  para  a  índia  topa  com  a 
armada  de  Baflião  de  [ou  f a  ,  dalke  conta  do  ejlado  em  que 
jlca  a  fortaleza  ^  elle  fe  vay  a  focorrella.  Dom  André  ar- 
riba com  tempo  a  Pacem  ,  toma  a  fua  capitania  ,  e  dtf- 
pois  de  ter  algumas  dijf crenças  coyn  Pajiião  dejoufa  Jobre 
a  defenfao  dajortaleza  a  larga  aos  mouros, 

DOm  André,  que  fazia  fua  viagem  para  a  índia  ,  fendo 
na  paragem  da  ilha  de  Ganifpolla  ,  ouue  vilta  dos  na- 
13Í0S  ,  que  atrás  diíTe  que  partirão  de  Cochim  ,  em  que 
hia  Baftiáo  de  loufa  :  e  auendo  falia  delle  lhe  diííe  o  ella- 
áo  em  que  ficaua  a  fortaleza  de  Pacem  ,  com  guerra,  fo- 
me ,  e  íede  ,  e  em  muyto  rifco  de  fe  perder  legundo  a 
grande  multidão  dos  inimigos ,  que  eílaua  íobr'ella  ,  e  a 
pouca  defenfao  que  dentro  nella  auia.  E  defpois  de  lhe 
dar  conta  do  que  paíTara  com  Lopo  dazeuedo  lhe  diííe, 
que  por  fe  achar  quafi  em  artigo  de  morte  lhe  fora  força- 
do irfe  para  a  índia  ,  pollo  qual  lhe  requeria  que  nao  paf- 
faíTe  fem  ir  vifitar  Pacem  :  Baftião  de  íoufa  fem  fe  deter 
com  elle  empalauras,  fe  fez  logo  na  volta  de  Pacem  ,  e 
furgindo  no  porto  deu  aos  noflbs  grandiíTimo  aliuio  e  con- 
tentamento ,  e  de  noite  em  almadias  feforão  alguns  veí" 
com  elle,  e  lhe  derao  conta  do  eílado  em  que  eftau.i  aquel- 
la  fortaleza  ,  e  em  pubrico  lhe  pidirão  a  grandes  vozes  , 
que  os  quifelle  focorrer  ,  porque  ja  íe  não  íiiftenta  ião  fe- 
Hàç)  n,a  efperança  de  vir  algum  nauio  em  qu^  íe  faluaílem  , 


dei  Rey   Dom  João  o  III:         187 

c  pois  noíTo  íenlior  fora  fcruido  de  o  trazer  aly  naqiielle 
tempo,  Jhepidiao,  que  os  não  deíemparafíe  ,  porque  em 
fe  perder  a  fortaleza  não  auia  duuida  ,  e  fe  ellc  le  hia  daly 
lein  lhes  dar  remédio  com  que  fe  faluaíTem,  proteílauSo  de 
fe  entregarem  logo  aos  mouros  para  faluarem  as  vidas  :  e 
ainda  eítes  não  tinhão  acabado  íua  pratica  ,  quando  vierao 
outros  da  terra  ,  que  fízeráo  outras  raayores  exclamações : 
Baftião  de  foufa  mouido  a  compaixão  daquella  atribulada 
gente,  do  zelo  do  íeruiço  dei  Rey  ,  e  do  perigo  daquella 
fortaleza,  pondo  os  nauios  a  bom  recado  acompanhado  de 
alguns  homens  com  íuas  armas  fe  foy  a  terra  ,  onde  foy 
bem  recebido  do  capitão  Ayres  coelho,  e  toda  agente 
lhe  fez  nouas  exclamaçoens  ,  pidindolhe  que  os  liuralle  da 
morte  ,  que  tinhão  diante  dos  olhos  ,  ou  os  não  deixaíTe  , 
e  fofle  leu  capitão  ,  porque  por  falta  dellc  eftaua  tudo  per- 
dido ,  e  a  iílo  ajuntarão  queixas  pubricas  em  altas  vozes 
contra  o  mefmo  Ayres  coelho  ,  ditas  com  muyta  cólera  , 
ao  que  elle  não  oufou  ir  ha  mão  a  ninguém  ,  antes  difíe  a 
Baílião  de  íoufa  ,  que  tudo  aquillo  era  verdade,  poilo 
qual  elle  lhe  entregaua  aquella  fortaleza  ,  para  que  foíTe 
capitão  delia,  e  que  da  parte  dei  Rey  lhe  requeria  que 
tomafle  entrega  delia  para  que  fe  não  perdeíTe  ,  pois  era 
dei  Rey:  ao  aue  Baílião  de  íoufa  refpondeo  ,  que  tomar 
entrega  da  fortaleza  e  íer  capitão  delia  era  couía  que  não 
faria,  mas  que  como  companheyro  eftaria  nella,  e  o  ajuda- 
ria em  tudo  o  que  pu  iefie  ,  com  que  a  gente  ficou  mais 
quieta  :  então  mandou  defembarcar  toda  a  gente  e  manti- 
mentos que  trazia,  e  íe  começou  de  ocupar  em  repairar  a 
fortaleza  do  que  Ih' era  necedario  ,  e  cora  toda  agente 
foy  cometer  os  inimigos  ,  os  quais  parecendolhe  que  era 
aquillo  íocorro  que  viera  ha  fortaleza  ,  íe  afaílarão  logo 
muyto  longe  ,  onde  nlo  pudeíTem  fer  cometidos  ,  com 
que  os  noííos  ficarão  delaliuiados  ,  e  êm  tudo  obedccião  a. 
Baílião  de  íoufa  ,  e  em  nada  a  Ayres  coelho.  Dom  André 
tanto  que  íe  apartou  no  mar  de  Baílião  de  foufa  liie  deu 
hum  temporal  tão  rijo  ,  que  o  obrigou  a  aribar  a  Pacera  , 
€  chegou  ao  porto  ,  aucndo  dezaíleis  dias  que  aly  eílaua 

Aa  2  Ba- 


i88         Primeyra  Parte  da  Chronica 

Baíllão  de  foufa  ,  onde  defembarcado  ,  foy  recebido  como 
capitão  ,  e  vendo  a  boa  dlípofiçao  çm  que  eílaua  a  terra  , 
e  que  ja  nella  aula  paz  ,  mudou  o  coníelho  ,  e  tornou  a 
Tomar  poíTe  da  fua  capitania  ,  de  que  toda  a  gente  mo- 
ftrou  muyro  deígoílo.  Baftiao  de  íouía  auendo  que  não  ti- 
nha aly  mais  que  fazer,  fe  ordenou  para  ir  tazcr  fua  via- 
gem ,  e  para  iíTo  recolheo  a  fua  gente,  ao  que  dom  André 
acudio  requerendolhe  com  muyra  inftancia  ,  que  llie  não 
leuaíTe  agente,  nem  elle  fe  foíTe  daquella  fortaleza  até 
a  terra  não  ficar  de  todo  pacifica  e  legura  ,  que  era  mais 
feruiço  dei  Rey  que  a  viagem  que  hia  fazer  ,  ha  que  Ba- 
ftião  de  loufa  refpondeo  ,  que  elle  rinha  aly  feito  aflaz 
feruiço  a  el  Rey  em  remediar  o  que  achara  deíemparado 
e  qudíi  perdido,  que  fe  elle  queria  ter  aquella  terra  em 
paz  ,  vfafle  com  toda  a  gente  delia  de  diíFerentes  termos 
do  que  fe  dizia  delle  ,  e  que  pois  a  fortaleza  tinha  capitão, 
era  elle  aly  pouco  neceíTario  ,  que  quem  na  paz  fizera  nel- 
la feu  proueito  a  defendeíTe  agora  na  guerra,  que  elle  tam- 
bém fe  queria  ir  a  fazer  o  que  lhe  cumpria  ,  fobre  o  qu& 
ouue  antre  elles  muytas  replicas  ,  com  que  chegarão  a  ter- 
mos que  Baílião  de  foufa  diíle  a  dom  André  ,  que  fe  não 
fe  atreuia  a  defender  aquella  fortaleza  lhe  requeria  que  lha 
cntregalTe  ,  que  elle  a  íuílentaria  ,  ou  com  guerra  ,  ou  çom 
paz,  masqueauia  de  fer  com  condição  ,  que  elle  íe  em- 
barcaííe  c  fe  faiííe  da  terra  ,  porque  eílando  nella  inda 
que  não  foíle  capitão  receaua  ,  fcgundo  eílaua  mal  quiílo- 
com  a  gente  ,  que  lhe  aproueitalTe  pouco  quanto  fizeííe 
com  ella  para  a  aquietar  ,  e  pôr  em  paz  ,  cuidando  que  po- 
dia elle  tornar  a  fer  capitão  ,  e  ouue  antr'elles  fobre  ifto 
tantos  debates  e  contendas,  que  chegou  a  auer  alguns  aluo- 
roços,  com  que  os  mouros  tornarão  a  cobrar  animo  ,  e  fa- 
zer de  nouo  guerra  de  dia  c  de  noite  ha  fortaleza  ,  ao  que 
a  gente  não  queria  acudir  dizendo  muyto  foltamente ,  que 
não  auia  de  pelejar  fe  dom  André  fofle  fcu  capitão  :  elle 
então  auido  confelho  com  feus  amigos  detrimmou  embar- 
çarfe  com  tenção  ,  íegundo  le  diíle,  que  citando  embar- 
cado aa  barra ,  deípois  de  ter  entregue  a  fortaleza  a  Ba- 
ílião. 


dei  Rey  Dom  João  o  lII.  í8p 

ftiao  de  foufa  ,  e  de  el!e  eílar  em  terra  dcfembarcado  corri 
toda  íua  gente  ,  lhe  tomaria  os  nauios  ,  c  íe  deixaria  eftar 
até  ver  o  que  fucedia  na  terra,  que  fe  ouiieíle  concerto 
de  paz  lhos  largaria  ,  e  íe  o  não  ouueííe  ,  deixaria  na  terra 
o  que  lhe  vieíTe  bem  ,  e  Te  iria  cos  nauios  ,  e  mandou  logo 
embarcar  o  leu  fato  ,  porem  Baíliao  de  íoufa  não  quis  dcf- 
embarcar  o  leu  ,  o  que  vendo  a  gente  íe  começarão  todos 
a  embarcar  com  muyta  prefla  ,  e  tão  detriminados  ,  que  íe 
alguém  lhe  queria  ir  ha  mão  erao  logo  todos  poílos  enr 
armas,  de  maneyra  que  não  ouue  quem  lho  pudefie  impi- 
dir.  O?  mouros,  a  quem  nada  difro  fe  eícondia  ,  fe  dei- 
xarão eílar  quietos  até  ver  cm  que  paraua  ,  c  tanta  foy  a 
preíTa  que  ouue  na  gente  ,  que  numa  íó  noite  íe  embarcou 
toda  ,  fican  Jo  a  fortaleza  deípejada  de  todo  ,  porque  tam- 
bém íe  embarcarão  o  regedor  ,  e  o  Rey  com  toda  íua  fa- 
milia  ,  a  que  neíla  embarcação  forão  feitos  muytos  agra- 
nos  ,  e  muyros  roubos  ,  e  não  ouue  quem  liueíle  lembran- 
ça d'cmbarcar  a  artilharia  que  era  muyta  e  muyro  boa. 
Baílião  de  fouía  ,  que  ja  eflaua  embarcado  ,  vendo  huma 
tamanha  defordem  ,  e  tam.anho  deiconcerto,  mandou  dizer 
a  dom  André,  que  olhaíTe  o  que  fazia  ,  que  não  deixaíTe 
perder  huma  fortaleza  dei  Rey  com  tanra  afronta  de  todo 
o  eílado  da  índia  ,  a  repolla  que  dom  And''e  a  iílo  deu  foy 
iríe  ha  nao  de  Baftião  de  iouía  ,  e  fazerlhe  muytos  reque- 
rimentos que  íe  encarregafle  daquella  fortaleza  ,  e  a  de- 
fendefle  pois  era  dei  Rey  ,  ao  que  Baílino  de  loula  Jhe  reí- 
pondeo ,  que  a  elíe  não  competia  encarregaríe  da  for- 
taleza, que  linha  capitão  poílo  por  el  Rey  ,  e  pois  elle  ira- 
tara  de  o  embaraçar  no  porto  íecretamenie  quando  o  quile- 
ra  ajudar  com  tudo  o  que  podia  ,  fe  deíenganaíle  que  não 
le  auia  de  deíembarcar  ,  nem  tratar  mais  daquella  rorrale- 
za  ,  íenão  íe  eile  tam.bem  le  rornaíle  a  deíensbarcar ,  e  em 
terra  lhe  íizeííe  a  errtrega  delia  ,  de  que  tomaria  íeus  pa- 
peis para  íeu  defcargo  com  elRey  ,  e  difto  pidio  que  lhe 
folTe  dado  hum  eftromer.to  ,  porem  dom  André  ,  rcceoía 
que  íe  foíTe  aterra  lhe  acontecefíe  algum  deíaílre  ,  dtííe 
pubricamente  ,  que  eile  não  auia   de  tornar  a  terra  ,  que  a 

ca.- 


ipo       Primeyra  Parte  da  Chronlca. 

caftigoque  lhe  el  Rey  deíTepor  iíTo  eílaua  preftes  para  o  re- 
ceber, e  cora  iíto  tirando  rambem  íeus  eílromcntos- ,  fetor- 
nou  ao  feu  nauio,  eBaftiao  de  foufa  íofpendeo  a  ancora,  e 
íe  deixou  eílar  afaftado  aJgu  m  tanto  ao  mar.  Recolhido 
dom  André  mandou  Ayres  coelho  ,  quefoííea  terra  reco- 
lher aaríilharia,  porem  agente  diíTe  que  onao  auia  de 
acompanhar  fe  o  mefmo  dom  André  não  foíTe  diante,  o  que 
ellenão  quis  fazer,  e  afsy  a  deixou,  efefezha  vellajeomeí- 
mofez  Baíliãode  íoufa:  osmouros  vendo  que  ninguém  apa- 
recia na  fortaleza,  entrarío  alguns  nella,  porem  com  muyto 
refguardo  ,  parecendolhe  que  poderião  os  noíTos  deixar 
algumas  minas  de  poluora  ,  mas  defpois  que  olharão  tudo 
muyto  bem  ,  e  nlo  acharão  coufa  de  que  fe  pudefse  ter  re- 
ceyo  ,  entrarão  muytos  delles  com  muytasgriras  ,  e  pufe- 
rão  muyías  bandeyras  das  fuás ,  que  deixarão  eftarâté  a 
tarde  para  que  os  noíTos  as  villeíii  ,  então  deípararão  todas 
as  peças  groíTas,  que  erao  doze  falç6es  ,  para  que  os  nof- 
fos  também  o  viílem  ,  e  deípois  de  as  tirarem  todas  fora 
com  tudo  o  que  lhe  podia  feruir  ,  puferão  fogo  ha  fortale- 
za ,  queardeo  toda  com  quanto  auia  nella,  o  que  foy  no 
mez  de  Mayo  deite  anno  de  IS14-  Dom  André  e  BalViao 
de  íoufa  forão  terá  Malaca,  onde  derâo  nouas  da  perdição 
defta  fortaleza,  que  em  eftremo  foy  fentida  de  todos ,  pol- 
]o  que  os  Portugueíes  perdiâo  de  credito,  e  os  mouros  co- 
brauão  de  animo  ,  que  foy  tanto  que  os  Dachens  tomarão 
logo  todo  o  reyno  de  Pacem  ,  e  após  elle  o  de  Datú ,  cu- 
jo Rey  ,  por  fer  nofso  amigo  ,  fugio  para  Malaca  ,  onde 
elle,  e  o  Rey  de  Pacem,  e  o  regedor  forão  agafalhados  jun- 
tamente ,  mas  não  tão  bem  prouidos  como  íe  deuia  a  tais 
peííoas ,  e  tanto  que  chegou  moução  para  a  índia  ,  dom 
André  íe  embarcou,  e  ieuou  comfigo  o  regedor,  e  o  Rey  de 
Pacem,  aquém  no  caminho  foy  infmado  o  que  auia  de 
dizer  delle  ,  e  chegando  ao  gouernador  co  teílemunho 
deftes  diíTunulou  com  elle  ,  e  o  remeteo  ao  reyno  ,  e  o 
Rey  de  Pacem  foy  tornado  a  mandar  a  Malaca  com  efpe- 
rança  de  lhe  darem  armada  e  gente,  com  que  tornaíTe  a  co- 
brar o  feu  reyno,  porem  iílo  não  ie  lhe  pôde  fazer  com 

tan- 


dei  Rey  Dom  João  o  III.        ipr 

tanta  prefsa  ,  que  elle  nao  viefse  a  morrer  prlmeyro  em 
Malaca  padecendo  muytas  neceílidades. 

CAPITULO    LII. 

Jorfe  dalbuquerque  capitão  de  Malaca  fe  próue  para  a 
guerra  que  ef per  a  dei  Rcy  de  Bintao  ^  manda  dom  Gar^ 
cia  anriquez  com  quatro  nauios  a  ejlar  na  barra  de  BíH' 
tão  ,  dos  nauios  de  dom  Garcia  tomao  o  r  mouros  dous  ,  el 
Rey  de  Bintão  manda  pôr  cerco  a  Malaca  e  ojucefjo  de  lie, 

TOrfe  dalbuquerque  ,  que  neíle  tempo  era  capitão  de 
_  Malaca  ,  receofo  que  el  Rey  de  Biiuao  com  a  perda 
da  fortaleza  de  Pacem  tomaíTe  animo  para  lhe  mandar 
fazer  guerra  ,  fe  quis  prouer  primeyro  que  tudo  de  man- 
timentos ,  que  era  o  que  mais  importaua ,  para  o  que 
mandou  concertar  dous  nauios  grandes  e  dous  carauel- 
lóes  ,  de  que  deu  a  capitania  mór  a  dom  Garcia  anri- 
quez  ,  que  era  chegado  de  Maluco  ,  elle  em  hum  dos  na- 
uios grandes,  e  no  outro  Ayres  coelho,  e  dos  dous  carauel- 
Iões  fez  capitães  Duarte  aluarez  ,  e  Diogo  fragolo  caiados 
em  Malaca  ,  e  com  ertas  vellas  mandou  a  dom  Garcia  to- 
mar a  barra  do  rio  de  Bintão  ,  para  que  a  fua  armada  níío 
pudeíse  fair  delle  r  logo  após  a  partida  de  dom  Garcia 
mandou  Jorfe  dalbuquerque  a  Garcici  chaini  o  feitor  da 
fortaleza  com  algumas  lancharas  e  manchuas  ao  rio  de 
Muar,  que  era  daiy  cinco  legoas  ,  afazer  vir  maniirren- 
tos  »  que  tornou  daly  a  íeis  dias  fem  trazer  coufa  alguma 
do  que  hia  bulcar.  Dom  Garcia  fe  foy  pôr  na  barra  de 
Binião  a  tempo  que  Laquexemena  eílaua  dentro  no  rio 
com  a  lua  armada  ,  porem  vendo  quão  bem  aperceh''da  vi- 
nha anofsa,  nãoouí-iaa  alairfóra,  mas  não  deixou  de 
víar  de  quantos  ardiz  e  traições  pôde  inuentar  contra  os 
nofsos  ,  de  q^Je  fempre  leuou  a  pior,  auendolse  o  Bey  de 
Binr  •()  por  mayo  afronr-^do  ,  o  Laquexemena  andaua  tT- 
preitando  qu.in  as  oc  •!' ks  podia  auer  de  íe  poder  fatií- 
fazer  deiU   afvwhu  ^  f    u.jcdeo   que  hum  dia  forão  dom 

Car- 


19^        Pfimeyra  Parte  da  Clironica 

Çarciâj  e  Ayres  coelho  fazer  agoada  -et  huma  ilha,  que  efta 
meya  Icgoa  da  barra  ,  porem  de  maneyra  ,  que  ficauão 
ha  viíla  do  s  carauelloes  ,  Laquexemena  parecendolhe  eíla 
boa  conjunção  fez  fita  armada  preíles  para  ir  pelejar  cos 
dou5  carajelloes  que  ficarão  na  barra  ,  e  deu  ordem 
•.para  que  ccJtro  lancharas  muyto  bem  efquipadas  ,  quan- 
.  do  elle  abalroaíTe  cos  noíTos  ,  e  eíliueíTe  no  feruor  da  pe- 
leja ,  cortaflem  as  amarras  aos  carauelloes  ,  e  lhe  def- 
fem  cabos  com  que  os  leuadcm  pollo  rio  dentro,  que 
era  eiirão  conjunção  em  que  enchia  amare:  e  íaindo  fo- 
ra do  rio  foy  cometer  os  noíTos  ,  trabalhando  pollos  en- 
trar por  todas  as  partes  ,  a  que  elies  íe  defcndião  com 
grandiííimo  esforço  ,  e  no  tempo  que  a  peleja  eftaua  mais 
trauada  ,  acudirão  as  quatro  lancharas  que  cortarão  as 
amarras  dos  carauelloes  com  muyta  prelleza,  e  os  co- 
meçarão d'encaminhar  pollo  rio  dentro  fem  os  noíTos  da- 
rem fé  diíTo  ,  com  a  grande  preíTa  em  que  andauio  de  fe 
defenderem,  e  afsy  forão  tanto  pollo  rio  acima  até  que 
forão  dos  baixos  para  dentro,  onJe  os  nauios  grandes 
não  podião  entrar.  Dom  Garcia  e  Ayres  coelho  vendo  pe- 
lejar as  lancharas  cos  carauelloes  ,  fe  fízerao  ha  vella. pa- 
ra os  focorrerem  ,  que  com  o  vento  que  lhes  íeruia  em 
breue  efpaço  chegarão  ha  barra  ,  mas  ja  os  carauelloes 
erão  tomados  e  ardião  em  fogo  ,  a  que  os  nauios  por  cau- 
fa  dos  baixos  não  pudcrão  chegar;  forão  mortos  nelles 
trinta  Portugueíes  ,  e  fe  perdeo  muyto  boa  artilharia  de 
falcões,  e  berços,  de  que  os  mouros  fizerão  grandes  fe- 
ílas,  e  alegrias,  e  dom  Garcia  com  muyto  fentimento  fe 
tornou  a  Malaca.  El  Rey  de  Bintão  com  a  prefa  deíles 
dous  carauelloes  ficou  tão  contente  e  oufano ,  que  co- 
brou nouo  animo  para  mandar  pôr  cerco  a  Malaca  ,  pare- 
cendolhe que  daquella  vez  a  poderia  tomar ,  pois  eítaua 
tão  desbaratada  :  e  para  ifto  mandou  fazer  muyta  gente  a 
foldo  ,  com  que  ajuntou  hum  campo  de  doze  mil  hom.ens  , 
que  com  hum  capitão  íeu  mandou  por  terra  pôr  cerco  ha 
fortaleza,  e  em  fua  companhia  hum  renegado,  que  auia 
muyto  tempo  que  andaua  em  íeu  íeruiço ,  chamado  Martim 

daue- 


delRey  Dom  João  o  III.        içj 

dauelar,  muyto  pratico,  e  engenhofo   na  guerra,  e  La- 
quexemena  com  oitenta  lancharas  bem  proiiidas   de  gente 
e  artilharia  mandou  que   Ihcfone   fazer  guerra    por  mar, 
o  que  os  m.ouros  fizerao  fem  impedimento  algum,  por^que 
em  Malaca  não  auia  mais  nauios  ,  que  os  dous  que  forao  a 
Bintão,  os  quais  Jorfe  dalbuquerque  tanto  que  teue  nouas 
<3a  armada    dos   inimigos   mandou  recolher  da   ilha  das 
nãos,  ond'cftauâo,  para  defronte  da  fortaleza,  onde  as  lan- 
charas não  oufauão    de  aparecer  com  medo  da  artilharia  , 
que  tudo  aquillo  varejaua,  O  renegado  chegando  a  Malaca 
ordenou  logo  tudo  o  que  era  neceííario  para  o  cerco  ,  e  os 
noíTos  ordenarão  também  fua  defenção  omilhor  que  então 
foy  poíTiiiel ,  e  fizerao  eílancias  nas  entradas  das  ruas  pnn- 
cjpaisdapouoaçlo  dos  Portuguefes,  de  que  a  priiicipal  foy 
entregue  a  dom  Garcia  anriquez,   outra   a  Ayres  coelho  , 
outra  a  António  ferreyra,  e  outra  ao  feitor  Garcia  chainho, 
e  cada  capitão  deftes  não  tinha  comfigo  mais  Portugueíes 
que  doze,    porque  todos    os  que  então  auia   na  fortaleza 
não  erão  mais  que  oitenta  ,  e  juntamente  ^com  eftes  doze 
tinhâo  alguns  piaens  da  terra  a  que  pagauao  íoldo:  e  tam- 
bém foy  repayrada  a  pouoação  dos  Quelins  .^e  prouida  de 
gente  da  mefma  terra.  Os  inimigos  começarão  a  dar  muy- 
Tos  rebates  de  noite ,  e  cometer  por  algumas  partes  ,  a  que 
da  fortaleza  íe  acudia  fempre  com  muyta  prcfteza  ,  com 
que  dos  mouros   ficauão  íempre  muytos  mortos ,  princi- 
palmente quando  cometião  a  pouoação  dos^noíTos.  E  huma 
noite  que    fe  detriminarâo  com    a  pouoação  dos  Quelins, 
lhe  derrubarão   hum  lanço    do  muro ,    por  onde  entrarâp 
muytos,  porem  os  Qiielins   com   agente  da  terra  que  ti- 
nhâo comfigo  ,  ajudados   de  quinze  Portugueles-eípingar- 
deyros  ,  que  acudirão  da  fortaleza  a  focorrelos  ,   os  lança- 
rão fora  e  os  fizerao  ir  fugindo  para  o  feu  campo  ,  de  que 
ficarão  aly  muytos   mortos,  porem   eftas  couías  também 
cuíhrão  aos  noííos  bem  caro,  porque  co  trabalho  continuo 
c-com  não  dormirem  ,  e  juntamente  com  a  fome  que  então 
os  apertaua  grandiflimamente,  vierão  n  adoecer  muytos, 
deque  opilados  e  inchados  morrerão  alguns.  Os  mouros 
i^arn  L  Bb  ven- 


194       Primeira  Parte  da  Clironica 

vendo  o  pouco  qne  pòdiao  contra  os  noíTos ,  e  que  era  j^ 
ehega-do  o  tempo  da  mouçao  em  que  lhe  podia  vir  focor- 
ro,  leuintarâo  o  cerco  ,  e  rerecollierão  para  Bintão  ,  e  o 
meunofez  a  armada  deípoís  de  andar  alguns  diasfem  achar 
coufa  noíía  ,  a  que  pudeííe  fazer  dano  ,  porque  ninhum  dos 
nolsos  amigos  com  medo  delia  oufaua  de  vir  a  Malaca. 

CAPITULO     LIIT. 

Chega  [ocorro  a  Malaca  ,  Jorfe  ãalbuquerque  manda  Mar* 
tm  Afonfo  de  foufa  fazer  guerra  a  Bhitao  ,  a  Pão  ,  e  a 
t^atane  ,  e  o  que  lhe  fuceãe.  MandaJJe  de  Malaca  [ocorra 
aelRey  de  Linga  nojfo  amigo  contra  as  lancharas  de 
Btntao<^  e  o  fucejfo  que  tenu 

XT  Eíle  grande   a  perto    eftaua  a  fortaleza  de  Malaca  ; 
^  ^    quando  lhe  chegou  o  íocorro ,  que  Jórfe  dalbuquer- 
que  mandara  pidir  ao  gouernador  por  Ambroíío  do  rego  ^ 
polo  qual  também  lhe  mandara  pidir  que  pois  i^ntonio  de 
bntocapirao    de  Maluco  lhe  tinha  mandado  pidir  capitães 
paraaquelía  fortaleza,  lhe  quifeHe  dar  a  capitania  delia 
para  dou»  Sdncho  feu  genro  ,  ou  para  dom  Garcia  anri- 
quez  .eu  cunhado,  íe  dom  Sancho  foíTe  morto,  o  que  o  go* 
iiej-n.idor   iheconcedeo,  e  diíío  lhe  mandou  huma  proui- 
lao.  i^íte  íocorro   leuou  Martim  Afonfo    de  foufa  ,  que  o 
gouernador  deípachara  para  capitão  mor  do  mar  de  Mala- 
ca  como  atrás  deixo  dito  ,   e  foy  com  huma  armada  de  três 
Bauios  redondos  ,  e  quatro  fuftas  grandes  :  dos  nauios  erão 
capitães,  cLe  ,  e  André  de  lemos,  e  Aíuaro  de  brito  ,  e  das 
íultas  ,  António  de  melo  ,  André  íoares  ,  Jerónimo  diaz  . 
e  Uuaite   de  foufa  :    na  qual  armada   forao  duzentos  ho* 
inens,emuyta  artilharia  com  muytas  municoens  ,  e  che- 
gou toda   alaluamento    a  Malaca,  com  que^nella  ouue  o 
goftoque    fedeyxa  bem  entender,  porque  foy  em  tempa 
que  neila  valia   huma  ganta  darroz   (  que  hc  huma  medida- 
de  pp.o  que  leuara  huma  canada)  hum  cruzado,  e  humaga- 
imiia  cmco  cruzados  ,  e  Jium  ouo  huma  tanga  (jue  fao  três 

vilJr 


delRey  Dom  João  o  III.  jç^ 

.  TÍntens  ,  e  todas  as  outras  coufas  a  eíle  modo  ,  c  tudo  ifto 
procedia  do  medo  que  os  noíTos  amigos  tinh;ío  das  lan- 
charas deBiiitão  ,  com  que  não  oufauao  de  trazer  manti- 
nieníos  a  Malaca.  O  capitão  Joríe  dalbuquerque  meteo 
Jogo  a  Martim  Afonfo  em  poíTc  da  capitania  mór  do  mar, 
que  então  íeruia  dom  Garcia  anriquez  ,  e  para  fe  vingar 
dos  de  Bintão  co  mcfmo  mal  que  lhe  rinhão  feito,  e  a  terra 
eftar  bemprouida,  mandou  a  Martim  Afonío  que  com 
cinco  vellas  foíTe  tomar  o  rio  de  Biniao  ,  e  lhe  puíeíTe  tal 
guarda  que  couía  ninhuma  entraíTe  nem  faiíTe  por  elle  , 
porque  a  mayor  guerra  que  lhe  podia  fazer  era  tolherlhe 
os  mantimentos  ,  o  que  Martim  Afonfo  fez  logo  ,  c  com 
três  meies  que  aly  efteue  pôs  Bintão  em  tal  aperto  de  fome 
qual  até  então  nunca  paíTara  ,  e  em  todo  eile  tempo  nunca 
Laqtiexemena  ouíou  a  fiiir  fora  a  pelejar  com  elle.  Vendo 
elle  então,  que  por  aterra  íer  doentia  lhe  adoecia  muyta 
gente,  e  lhe  morria  alguma  ,  fc  paíTou  da  ly  a  Pão  ,  onde 
no  porto  lhe  queimou  muytos  juncos  ,  em  que  matou  muy» 
ta  gente  ,  e  catiuou  muytos  que  íc  lançauão  ao  mar,  e  to- 
mou muytas  e  groíTas  prefas.  Daquy  fe  foy  a  patanc , 
onde  também  queimou  muytos  juncos  ,  antre  os  quais  foy 
hum  muyto  grande  ,  que  hauia  pouco  que  chegara  da  Jaoa  , 
em  que  vierao  o  meímo  Rey  de  Patane  ,  com  que  nos  da 
cidade  entrou  tamanho  medo  ,  que  a  defempararao  de  to- 
do ,  leuando  cada  hum  aquillo  que  podia  fomente.  Mar- 
tim Afonfo  lahio  logo  em  terra  ,  e  não  achando  na  cida- 
de quem  lhe  refiflide,  a  faqueou  ,  de  que  fe  carregarão  os 
Teus  nauios ,  e  pondolhe  o  fogo  por  muytas  partes  ,  co- 
mo era  toda  de  madeyra  e  de  pedra  e  barro,  ardeo  de 
tal  forte  que  nada  delia  ficou  em  pé  ,  até  as  ortas  e  puma* 
res  que  auia  em  torno  delia  ,  com  que  os  mouros  perde- 
rão muyia  parte  da  foberba  e  oufania  ,  com  que  andauão  , 
ç  Martim  afonfo  fe  tornou  a  Malaca  carregado  de  prefas 
c  de  honra  ,  e  fem  mais  gente  menos  que  a  que  lhe  mor- 
reo  de  doença  na  barra  de  Bintão.  Neile  mefiro  tempo  , 
que  elle  andou  aufente  de  Malaca  ,  chegou  a  cila  hum  em- 
baixador  dei  Rey   deLinga,   que  era  grande   noílo  ami- 

Bb  2  go 


1^6      Primeyra  Parte  da  Chronicâ 

go  ,  a  pedir  focorro  a  Jorfe  dalbuquerque  contra  Laque^fè- 
mena  ,  que  tanto  que  a  noíTa  armada  lhe  deíembaraçou  a 
barra  ,  faira  com  coreiua  lancharas  ,  c  lhe  fora  queimar  o 
féu  porto,  e  com  gente  por  terra  o  tinha  tão  apertado  ,  que 
ja  não  tinha  outro  remédio  para  fe  puder  faluar,  lenao  o 
que  eípcraua  defte  focorro  que  mandaua  pidir.  Joríe  dal- 
buquerque  pondo  efte  negocio  em  coníelho  ,  fe  dctriminoii 
mandaríelhe  o  focorro  ,  pois  efte  Rey  era  tanto  noflo  ami- 
go que  algumas  vezes  elle  em  peíToa  tinha  (ocorrido  Ma- 
laca, para  a  qual  empreía  íe  offereceo  Aluaro  de  brito  ,  ho- 
Bícm  fidalgo  de  grandes  efpiritos  ,  o  que  Jorfe  dalbuquer- 
que  lhe  aceitou  com  palaurasde  muytos  agradecimentos  ,  e 
para  iílo  lhe  mandou  fazer  preííes  dons  nauios  muyto  bem 
concertados,  hum  para  eTre  ,  e  do  outro  fez  capitão  Jorfe 
correa  moço  da  camará  dei  Rey,  que  o  aceitou  com  muy- 
to gofto ,  com  quanto  andauão  inda  ambos  mal  faós  de  in- 
íirmidades  quetiuerao  logo  chegando  a  Malaca  ,  onde  fo- 
Tao  cm  companhia  de  Martim  Afonfo.  Concertado-s  os 
nauios,  em  cada  hum  dos  quais  hião  corenta  homens,  e 
quatro  peças  groíTas  ,  afora  falcoens  e  berqos  ,  fe  forao  a  o 
porto  de  Linga  ,  onde  leuarao  comfigo  o  embaixador  dei 
Rey  que  fora  a  Malaca^  El  Rey  e  os  léus  vendo  dous  na- 
uios fomente,  auendo  que  era  fraco  (ocorro  contra  o  po- 
der das  lancharas  ,  ficarão  quafi  defconfiados  de  ter  remc- 
àio  ,  e  por  iíTo  affaz  trifles  ,  porem  o  Laquexemena  fe  mo- 
ftrou  muyto  alegre  e  oufano  vendo  os  dous  n  ^uios ,  porque 
âuia  que  tinha  nelles  a  prefa  certa  ,  e  pondoíTe  logo  em  or- 
dem para  ir  pelejar  com  eiles  ,  fez  duas  efquadras  deíeíTen- 
ra  lancharas  que  tinha,  de  trinta  cada  huma,  de  que  to- 
imou  huma  para  íy  ,  e  a  outra  deu  ao  renegado  Auelar,  com 
quanto  era  capitão  da  gente  da  terra.  Os  nofíos  nauios  cfta- 
uão  furtos  perto  hum  do  outro,  e  cabos  dados  d'hum  para 
ò  outro  com  íi  gente  toda  poíla  em  armas  ,  as  peça?  groí- 
fas  com  pilouros  e  rocas  de  pedras  ,  e  tinas  cheas  dagoa 
para  refguardo  do  fogo  ,  e  tudo  bem  preparado  para  a  pe- 
leja ,  e.os  capitães  tinhão  mandado  que  toda  a  gente  efti- 
uefle  debaixo  até  paliar  a  primeyra  jurriada  ,  e  tanto  que 


dei  Rey  Dom  João  o  IIL  ip7 

as  lancharas  abalarão  da  terra  com  as  fuás  cuftumadas  gri- 
tas, os  nauios  fe  alarão  poios  cabos  e  fe  encadearão  popa 
com  popa,  e  os  capitães  auiíarao  a  genre,  que  auendo  fogo 
acudiflem  antes  a  elle  que  ha  pelleja.  Laquexemena  vendo 
encadear  os  noííos  nauios  lhe  creceo  o  animo  parecendo- 
Ihe  que  o  faziao  de  medo  ,  e  parando  (obre  o  remo  com 
'as  lancharas  juntas  chamou  o  renegado  elhedifse,  que 
aquillo  que  os  noíTos  faziao  era  ja  com  medo  da  lua  ar- 
mada ,  a  que  o  renegado  reípondeo  ,  que  aquillo  naquella 
gente  não  erão  finais  de  medo,  íenao  de  pelejarem  até  mor- 
rerem todos  ,  por  onde  lhe  parecia  que  aquelles  nauios  íe 
não  auião  de  tomar  por  força  de  armas,  ienão  por  aíguni 
defaftre  de  fogo.  Laquexemena  menencorio  lhe  tornou  , 
para  que  entendas  com  quanto  anim.o  iabemos  pelejar 
eu  e  aminha  gente  ,  mandarei  que  nos  nauios  fe  não  lance 
fogo  5  mas  que  á  força  de  braço  fejão  entrados  ,  e  íe  dê 
amorte  a  todos  os  Portuguefes  fem  ficar  ninhum  viuo , 
porque  os  nauios  eyde  leuar  hoje  a  Bintao  ,  e  aísy  o  man- 
dou. Após  iílo  íe  repartirão  logo  as  lancharas  em  duas 
eíquadras,  e  a  gram  prefsa  forão  remando  para  os  nauios 
á  competência  de  qual  chegaria  primeiro  a  ganhar  aqueí- 
la  honra  :  os  nofso?  capitães,  que  eílauão  juntes  ha  fa- 
la ,  derão  ordem  aos  bombardeiros  que  não  rirafsem  , 
fenão  quando  elles  mandai;  em  ,  porque  as  lancharas  vi- 
nhão  dando  moílra  de  os  virem  abalroar,  e  que  che- 
gando lhe  tirarião  de  tão  perto  e  tão  feguro  ,  que  não  per- 
derião  tiro.  O  condefrabre  de  Aluaro  de  brito  lhe  diíse  , 
que  entendefse  no  feu  ofticio  ,  e  o  deixafss  a  elle  co  feu  , 
que  bem  fabia  o  que  auia  de  fazer ,  a  que  Aluaro  de  brito 
forrindo  refpondeo  que  fizefse  o  que  lhe  parecefse  bem.  E 
então  Jorfôcorrea  manJou  aos  feus  bombardeyros  que 
não  deíparaíTem  a  artilharia,  fenão  quando  viíTem  defparar 
a  Aluaro  de  brito  ,  e  os  condeílabres  tinhão  tapadas  as 
portinholas  das  peças  groílas,  de  que  não  aparecia  mais  que 
huma  fó  por  cada  banda.  As  duas  efquadras  das  lanchiras» 
que  vinhão  remando  para  os  nauios  com  ordem  de  abaí- 
XOàt  cada  huma  por  fua  parte,   fe  forão  chegando  para  el- 

ies 


198        Primeyra  Parte  da  Chronica 

Jes  com  grande  preíFa  ,  trazendo  comrudo  bom  tento  na 
nolFa  artilharia. _  Os  condeílabres  quando  lhe  pareceo  tem- 
po derão  fogo  juntamente  ás  pecas  groíTas ,  que  erão  coa- 
tro  por  cada  banda  ,  que  como  as  lancharas  vinhao  juntas, 

.em  cada  huma  das  eíquadras  efpedaçarão  doze  ou  treze 
delias,  de  que  a  gente  ficou  muyta  morta  e  outra  a  nado 
fobola  agoa  ,  e  as  rocás  de  pedras  derao  polia  gente  que 
vmha  cm  pé  polias  outras  lancharas  ,  de  que  muytos  fica- 
ráojnal  tratados  cm  diíferentes  partes  do  corpo,  com  que 
derao  grandes  gritos  ,  e  os  remeyros  fe  embaraçarão  de 
man-^yvã  ,  que  as  lancharas  tornauao  para  trás  com  a  cor- 
rente d'agoa  ,  a  que  os  capitães  mouros  acudirão  logo,  e 
com  muytos  brados  ,  e  has  cutiladas  obrigiuao  os  reme/- 
ros  a  tornarem  a  ir  por  diante  ,  porem  a  cíle  tempo  ja  os 
noíTos  com  muita  prcíleza  tinhâo  outra  vez  carregados  os 
tiros  ,  que  tornarão  a  defcaregar  nos  inimigos  ,  com  que 
lhe  desbaratarão  tantas  lancharas  ,  matarão  tanta  gente  ,  e 
ferirão  tanta  com  as  pedras  ,  que  nao  oufarao  a  íe  chegar 
mais  ,  e  detodo  desbaratados  fe  deixarão  tornar  para  trás 
com  a  agoa  que  os  leuaua,  deixando  mais  de  ametade  das 
lancharas  feitas   em  pedaços  ,  o  que  vendo   os  noíios  com 

.  grande  prelTa  cortarão   os  cabos   aos  nauios ,  e  apartados 
num  do  outro  derao  ós  traquetes  ,  e  ás  vellas  das  gaueas  ,  e 

Toípendendo  as  ancoras  entrarão  pollo  rio  após  as  lancha- 
ras lias  bombardadas.  Laquexemcna  vendode  de  todo  per-» 
dido  fe  meteo  por  derrador  dos  baixos  ,  onde  os  noíTos  na- 
uios não  podiáo  chegar  ,  e  á  força  de  remo  fugio  polia 
barra  fora  com  vinte  lancharas  fomente,  e  o  renegado  com 
eíTas  poucas  que  lhe  ficarão  varou  em  terra ,  e  fe  foy  para  a 
fua  gente  de  que  era  capitão  ,  c  com  ella  íe  meteo  polia 
terra  dentro  ,  e  a\y  na  praya  ficarão  treze  lancharas  ,  íeiu 
em  todo  cíle  feito  auer  dos  noíTos  hum  íó  ferido  ,  que  fez 
efta  vitoria  mais  glorioía  e  de  mor  goílo.  Os  noíTos  nauios 
fe  tornarão  logo  a  furgir  no  porto  ,  onde  a  gente  da  terra 
vinha  a  nado  lançarfe  aos  peis  dos  noíios  e  beijarlhos  ,  e  o 
meímo  rey  veyo  abraçarfe  cos  capitães  ,  e  pidirlhe  que 
quifeíTem  ir  defcanfar  a  terra  ,  mas  Aluaro  de  brito  lhe  dií- 

fc 


dei  Rey  Dom  João  o  III."  ipp 

fe  que  quem  não  pelejara ,  não  tinha  de  que  eílar  caníado  , 
equersrr.bem  á  terra  não  cumpria  ir  a  íua  gente  ,  porque 
rão  le  fuiua  de  Laquexemena  ,  que  vendo  os  nauies  defen";- 
parado?  Uie  não  arn"«afre  alguma  traição.  EJ  Rcy  íe  deixou 
então  eílar  nos  nauios  todo  o  tempo  que  elles  aly  eíliuerao, 
onde  lhes  mandaua  trazer  de  comer  em  muyta  abundância, 
e  lhos  carregou  de  arros,  manteyga  ,  e  açúcar,  e  de  muytas 
galinhas,  em  que  íe  gaílarao  féis  dias  ,  no  fim  dos  quais 
querendo  os  capitães  ja  recolheríe  por  não  auer  aly  mais 
que  fazer,  elRey  lhes  deu  muytas  peças  ,  e  também  aos 
bombardcyros  (  cujo  dizia  que  fora  rodo  o  trabalho  da- 
quella  peleja  )  fez  mercê  de  peças  e  dinhcyro  ,  o  que  fez 
também  a  toda  a  outra  gente  de  que  todos  ficarão  conten- 
tes. Os  capitães  então  tomando  cada  hum  para  fy  duas  lan- 
charas para  leuarem  por  popa  ,  íe  delpidirão  dei  Rey  ,  que 
tinha  mandado  fazer  preíles  coatro  das  mefmas  lancharas, 
e  muyto  bem  efquipadas  as  mandou  em  companhia  dos  ca- 
pitães, em  que  mandou  ajorfe  dalbuquerque  hum  bom 
prefente  de  peças  ricas  ,  e  deíla  maneyra  entrarão  em  Ma- 
laca ,  onde  forão  recebidos  do  capitão  e  toda  a  mais  genre 
com  tantas  feílas  e  louuores,  quantos  merecia  hum  tamanho 
feiro,  que  em  todos  caufou  grandiíTimo  efpsnto  ,  auendc^ 
pollo  m  .yor  que  até  então  aconf^cera  naquclias  partes  de 
Malaca  ,  onde  ainda  não  era  tornado  Martim  Afonlo  de 
íoula  com  a  fua  armada,  (guando  eíles  dous  nauios  lornâr 
láo  a  elia. 


CA- 


200        Prlmeyra  Parte  da  Chronica 
CAPITULO    LIIII. 

Bajlião  dejoufa  e  Martim  correa  vão  ter  a  Banda  ,  achão  là 
Martim  Afonfo  de  melo  ju farte  em  guerra  cos  da  terra  , 
Bajlião  de  foufa  fe  vay  daly  dejauindo  ddle  ,  chega  recado 
a  Martim  Afonfo  de  Maluco  de  António  de  brito^  que  o  vd 
Jocorrer  ,  vay  lá  com  três  nauios  e  com  elle  Martim  cor- 
rea ,  faz/s  guerra  ha  ilha  de  Tidore  e  alguns  fucejfos 
delia. 

Aftiâo  de  Toufa  ,  de  que  atrás  diíTe  que  de  Pacem  viera 

ter  a  Malacs  ,   fendo  chegada  a  moução  íe  partio  para 

Banda  acompanhado  de  outro  nauio  ,  de  que  hia  por  capi- 
tão Martim  correa  ,  onde  ambos  com  licença  do  gouerna- 
dor  hiao  fazer  íua  fazenda:  chegados  a  Banda  acharão 
aJy  Martim  Afonío  de  melo  jufarte  ,  que  auia  coatro  me- 
fes  que  eílaua  em  guerra  cos  da  terra  ,  onde  miiagroía- 
mente  íe  defendia  ,  porque  não  tinha  no  feu  nauio  mais 
que  catorze  Portuguefes ,  e  a  mais  gente  erao  marinheyros 
Jaós  que  leuara  de  Malaca :  com  a  vinda  de  Baílião  de  fou- 
fa ceflou  aguerra ,  porem  Martim  Afonío  dcíejofo  de  fe 
vingar  pidio  para  iíTo  ajuda  aBaílião  de  foufa,  de  que  íe 
eile  eícufou  dizendo,  que  não  vinha  aly  para  fazer  guerra  , 
íenão  para  com  paz  fazer  fua  fazenda  ,  e  com  algumas  pra- 
ticas que  íobrô  iílo  tiuerão  fe  foy  Baílião  de  foufa  com 
íeu  companheyro  para  outro  porto  da  ilha  ,  defauindo  de 
Martim  Afonfo,  onde  ambos  juntos  íe  apofentarão  em 
terra  com  huma  boa  tranqueyra  ,  em  que  tinhâo  a  íua  gen- 
te,  e  com  muyta  paz  e  quietação  fazião  fua  fazenda.  Nefta 
conjunção  chegou  de  Maluco  huma  carauella  em  que  vi- 
nha hu:r.  Gaípar  andré  com  recado  de  António  de  brito  a 
Martim  Afonío  em  que  lhe  requeria  que  o  foíTe  ajudar  na 
guerra  em  que  eílaua,  para  a  qual  não  tinha  gente  nem 
mantimentos,  e  que  importaua  muyro  leuarlhc  os  mais 
que  pudeíTe,  e  para  iílo  lhe  mandou  moítrar  o  poder  que 
linha  dei  Rey  íobrc  todos  os  capitães  que  eíliueíTem  em 
Banda,  quando  cumpriífc  a  feu  ícruico,  o  qual  Galpar  an- 

dre 


dei  Rey  dom  João  o  III.         201 

dré  fallcceo  aly  poucos  dias  dcfpois  de  íer  chegado.  Mar- 
tim  Afonfo  carregou  a  carauella  de  mantimentos  e  fc  em- 
barcou nella  ,  e  carregando  também  deilcs  oíeujunco  c 
outro  que  tomou  na  terra  ,  le  foy  com  clles  a  Maluco  ,  na 
qual  viagem  o  quis  acompanhar  Martim  correa,  pareccndo- 
Jhe  que  podia  nella  ganhar  honra:  chegados  3  Maluco  forao 
recebidos  com  geral  aluoroço  e  contentamento  de  todos  , 
como  a  quem  lhes  leuaua  o  remédio  de  íua  neceíTidade,  c  foy 
cm  conjunção  que  hum  Joríe  pinto  homem  mancebo  de 
grande  animo  com  gente  da  terra  e  alguns  Portugaeíes  fe 
partia  a  fazer  guerra  ha  ilha  de  Tidore  ,  e  nas  fuás  coitas 
le  partirSo  também  António  de  brito  e  Lionei  de  lima  cm 
hum  batel  grande  com  hum  tirogroílb,  e  outros  barcos 
pequenos,  em  que  iriao  corenra  Portuguefes,  para  irem 
fazer  íalros  na  mefma  ilha  ,  e  com  elles  le  embarcou  Mar- 
tim correa  ,  que  por  toda  a  ilha  iizeríío  cruel  guerra  ,  em 
que  matarão  ecatiuarao  muyta  gente,  mas  a  principal 
guerra  foy  tolhendolhe  os  mantimentos  ,  com  que  a  pufe- 
rão  em  grandiíhmo  aperto  de  fome  ,  por  quanto  elRcy  li- 
nha junta  muita  gente  para  a  guerra.  Os  mouros  de  Tido- 
re deíejoíos  de  alguma  vingança  meterão  fecretamentc 
muytos  paraos  armados  e  bem  prouidos  de  gente  num  rio 
que  tinha  huma  calheta  de  pouca  agoa  ,  e  mandarão  ao 
mar  humacaracora  grande  com  alguns  mantimentos  ,  da 
qual  auendo  vifta  Joríe  pinto  fe  meteo  no  feu  calaluz  ,  que 
^ndaua  bem  eíquipado  ,  e  fe  foy  trás  ella  até  entrar  pollo 
rio  dentro,  para  onde  fe  ella  foy  acolhendo  ,  e  como  não 
lábia  o  rio  foy  encalhar  na  calheta  donde  não  pode  íair  , 
.  os  paraos  da  cilada  derão  logo  íobre  elle,  de  que  os  noí- 
íos  fe  defenderão  valerofamente  :  Lionei  de  lima  acudio 
com  muyta  preíTa  a  focorello,  e  não  ouíando  de  entrar  no 
ílo  por  não  dar  em  feco  íe  tornou  ,  com  que  os  noíTos  que 
crão  doze  ,  e  pelbjauao  com  grande  multidão  de  inimigos 
magoados,  forao  todos  mortos  c  o  calaluz  tomado,  o 
qual  com  as  cabeças  dos  mortos  emramadas  foy  leuado 
a  el  Rey  ,  com  que  elle  e  todos  os  feus  fizerão  muyta  fefta. 
António  de  brito  com  efte  defaílre  íe  recolheo  com  todos 
Párts  L  Ce  os 


202         Primeyra  Parte  da  Chroníca 


os  noíTos  ,  onde  Cachildaroes  tinha  preíles  muyta  gente  da 
terra^para  paliar  ha  iiha  de  Tidore  ,  e  em  quanto  íe  nego- 
ccauão  as  embarcações  fe  ordenou,  que  foíTe  Martim  Afon- 
ío  cos  nauios  cílar  na  barra  de  Tidore ,    e  em  íua  compa- 
nhia Martim  correa    e  Lionel   de  lima  ,  e  forao  tomar    na 
calheta  onde  matarão  Joríe  pinto  ,  e  por  não  eftarem  ocio- 
fos  ,  em  quanto  eíperauão  a  vinda  de  Cachildaroes  ,  fe   fo- 
rão  ao  longo  da  cofta  a  queimar  hum  lugar,  que  eííaua  daly 
jiuma  legoa,  que  acharão  todo  desfeito,  e  os  moradores  com 
medodos  nolTos  paliados  para  hum  outeiro,  que  tinha  huma 
íubida  muito  ingrime,  onde  fe  íizerâo  fortes,  e  no  caminho 
atrauelTarão  grandes  paos  roliços  muito  groíTos,  que  fe  não 
detinhão  era  mais  que  numas  pedras,  com  que  cada  hum  dd- 
Jeseftaua  calçado  nas  cabeças,  para  os  foltarem  íobre  os  nof- 
íos  quando fubiíTem.  Martim  Afonfo  inda  que  vioo  perigo 
da  íubida^,   toda  via  dctriminou  de  acometer,  porque  os 
mouros  não  cuidaflem  que  por  medo  deixauão  de  fub/r  ,  ja 
que  aly  eílauão  ,  e  para  iíto  ordenarão  que  hum  fó  homem 
fofle  derrubar  os  paos,  para  o  que  íe  offereceo  Martim  cor- 
rea, c  começou  logo  a  pôr  por  obra  ,  fem  os  mouros  o  ve- 
rem ,    porque  tinhao  o  tento  no  corpo  da  gente  que  eftaua 
em  baixo,  e  indo  ja  fubindo  polia  ladcyra,  fe  forão  trãselle 
aajudallohum  clérigo   chamado  Gomez  botelho,  e  hum 
Frajicifco  lopes  bulhão ,  e  chegando  todos  aos  paos  lhe  ti- 
rarão as  pedras  que  tinhão  nas  cabeças,  com  que  logo  roda- 
rão polia  ladeira  abaixo,  de  que  os  mouros  ficarão  muito  ef- 
pantados,  porque  vião  ir  os  paos,  e  nao  virão  os  noííos  que 
os  deit^arão,  mas  vendoos  deípois  fubir  polia  ladeira  acima 
largarão  íobre  elles  grandes  galgas  pollo  caminho  abaixo 
por  onde  fubião,  de  que  Martim  correa  c  os  companheiros  ' 
fc  laluarão  dentro  em  huma  lapa  que  auia  no  caminho  ,  po- 
rem Martim  Afonfo  cos  outros  Portugueíes  começarão  lo- 
go a  fubir,  c  has  efpingardadas  fizerão  delaparecer  os  mou- 
ros,com  que  fubirãoha  íua  vontade,  com  quanto  os  mouros 
não  deixau^ío  de  lançar  fobre  cUcs  em  quanto  fubião  muytas 
pedras  perdidas,  e  indo  com  eíta  vitoria  hum  dos  efpingar- 
deyros ,  ou  foíTe  com  preíla  ,  ou  com  deíatento ,  defparan- 

do 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  105 

do  a  efpingarda  lhe  bulio  na  mão  de  raaneyra  ,  que  deu  a 
Martim  Afonío  polia  eípadoa  direyta,  e  lhe  ficou  o  pilouro 
dentro  ,  de  que  logo  cahio  no  chíío  ,  cuidando  todos  que 
era  morto,  os  noílos  porem  vendoo  viuo  com  a  magoa  d_^a- 
quelle  deíaílre  íe  tornarão  com  elle  abaixo  ,  e  o  leuarão 
para  a  fortaleza  por  mandado  de  António  de  bnto  .  que 
vendo  quão  mal  lhe  fucedião  as  coufas  daquelia  ^guerra, 
a  quiíera  deixar  íe  Cachildardes  lhe  náo  fora  ha  mão,  ofte- 
recendoíTe  a  fazella  elle  fó  com  a  gente  da  terra,  com  tan- 
to que  lhe  deíTe  hum  capitão  com  vinte  Portuguefes  de  que 
fizeíTe  cabeça  ,  para  o  que  António  de  brito  lhe  deu  Franr 
cifco  de  fouía  fidalgo  honrado  e  muito  animofo  com  vinte 
efpingardeyros ,  com  que  Cachildarôes  paíTou  a  Tidore 
com  mil  e  quinhenros  homens  da  terra  boa  gente,  que  lo- 
go em.  deíembarcando  forao  cometer  hum  lugar  que  eílaua 
em  huma  ferra  ,  onde  ja  fora  apoiento  dos  Reys  de  Tido- 
re ,  que  defpoJs  por  caufa  do  trato  dos  mercadores  fe  paf- 
farão  abaixo  ha  fralda  do  mar  ,  o  qual  lugar  era  cercado 
de  tranqueiras  de  groílos  paos  ,  com  que  eftaua  muito  for- 
te, em  que  auia  algumas  entradas.  Cachildarôes  defpois 
de  lhe  tomar  todos  os  cam.inhos  ,  porque  doutro  lugar  lhe 
nao  pudelfe  vir  íocorro  ,  diíle  a  Francifco  de  íoufa  que  fi- 
caíTe  aly  cos  Portugueíes  e  alguma  gente  da  íua,  em  quanto 
elle  hia  rodear  o  lugar  para  o  entrar  polia  banda  de  cima  , 
que  quando  foííe  para  dar  nelle  leuantaria  huma  grande 
grita  ,  e  em  a  elle  ouuindo  deíTe  também  no  lugar  para  da- 
rem ambos  a  hum  tempo  ,  e  indo  Cachildarôes  rojieando 
o  lugar  foy  fentido  dalguns  dos  de  dentro,  que  fairão  logo 
fora,  e  fizerao  grande  alaoroço  leuanrando  grandes  gritas. 
Franciíco  de  foufa  cuidando  que  era  aquelle  o  final  ,  que 
Cachildarôes  lhe  dera  ,  foy  também  cometer  o  lugar  ,  ao 
que  acudirão  muitos  mouros,  pelejando  de  longe  com 
pedras  ,  e  outros  tiros  daremeíto,  com  que  os  nolTos  todos 
forâo  feridos  ,  e  aíli  o  foy  lambem  Franciíco  de  foufa  em 
huma  coxa  por  defaílre  de  hum  dos  noíTos  efpingardeyros, 
de  que  cahio  ,  e  os  noíTos  o  afaítnrão  para  fora  ,  onde  nao 
auia  perigo.  Cachildarôes  ouuindo  aquella  r^uolta  acudio 

Ce  2  a 


104       Pnmeyra  Parte  da  Chronica 

aaquella  parte  a  faber  o  que  era,  e  quando  vio  que  os  nof- 
fos  tinhão  dado  no  lugar  antes  que  elle  deííe  ,  e  o  defaílre 
de  Franciíco  de  íouía  ,  mandou  que  ho  leuaílem  ha  forta- 
leza ,  e  mandou  dizer  a  António  de  brito  que  íe  não  aga- 
ftalle  cos  mãos  fuceíTos  daqueJla  guerra  ,  que  elle  a  auia  de 
leuar  ao  cabo  até  morrer  nelJa  ,  ou  íair  com  vitoria  ,  e  lhe 
pidia  muito  lhe  qui(eííe  mandar  Martim  correa  com  outros 
vinte  Portuguefes. 

CAPITULO     LV. 

Os  noífos  com  ajuda  àa  gente  de  Cachildarões  tomao  três  lu- 
gares na  ilha  de  Tidore  ,  com  que  outros  alguns  fe  lhe  -vem 
entregar»  O  Rey  da  ilha  manda  pidir  pazes  a  António  de 
brito  ,  e  lhas  nega  ,  efaz  hum  cruel  cajligo  em  vãuytos  dos 
inimigos, 

C"^  Om  eíleíegundo  defaílre  de  Franciíco  de  íoufa  fc 
^  detriminou  António  de  brito  em  defiílir  de  todo  deíla 
guerra  ,  e  recolheríe  na  fortaleza  até  que  vieíTem  os  jun- 
cos de  Malaca  ;  e  por  cila  rezão  não  quis  mandar  Mariitn 
correa  com  a  companhia  que  Cachildarões  lhe  mandara  pi- 
dir ,  ao  que  acudindo  elle  em  pcíToa  fe  lhe  não  pôde  ne- 
gar, enão  fomente  mandou  António  de  brito  Martim 
correa  cos  vinte  Portuguefes,  mas  eícreueo  a  Lionel  de  li- 
ma que  eílaua  na  barra  de  Tidore  ,  que  o  acompanhaíTe 
com  quinze  mais,  que  foíTem  trinta  e  cinco,  porem  o  auiíou 
que  le  por  ventura  Martim  correa  fe  quiíeíTe  arriícar  a  al- 
guma coufa  perigoía,  lhe  requereíTe  que  o  não  fizeíTe  ,  e  íe 
toda  via  infilliíTe  em  fazello ,  mandaua  aos  Portuguefes 
que  o  nfio  acompanhaíTem  :  com  eíle  mando  íe  foy  Lionel 
de  Lima  cos  quinze  Portuguefes  cm  companhia  de  Mar- 
tim correa  ,  que  em  chegando  ao  lugar  apertou  com  Ca- 
childarões que  deíTem  logo  nelle  ,  mas  o  Cachildarões 
queria  proceder  niílo  com  mais  vagar  ,  o  que  fofrendo  mal 
o  Martim  correa  íe  foy  a  Lionel  de  lima  ,  e  lhe  diíTe  que 
lhe  parecia  bem  cometerem  logo  aquelle  lugar ,  e  que  tan- 
to que  elies   ocometeíTem  acudiria  Cachildarões,   o  que 

Lio- 


delRey  Dom  João  o  III.  205 

Lionel  de  lima  lhe  contrariou  por  fer   o  lugar  perlgofa; 
moílrandolhe   a  ordem   que  trazia   do  capitrio  ,  que    não 
queria   que  fe  cometeíTe  coufa  íenão  muyto  íegura  ,.  ao  que 
replicando  Martim  correa  lhe  requereo  Leonel  de  lima  da 
parte  do  capitão  ,  que  tal  não  fizeííe ,  porque  ninhum  Por- 
tuguês o  auia  da  companhar  ,  e  alTy  o  requereo   a  todos   e 
lhe  moftrou  o  mandado  do  capitão  ,  porem  Martim  correa 
deíejoío   de  leuar  fua  tenção  ao  cabo  ;  confiado  que  fe  elle  • 
cometeíTe  os  outros  acudiriao  ,  fe  falou  com  hum  feu  gran- 
de amigo  chamado  Diogo  mendez ,  que    íe  oííereceo   ao 
acompanhar  ,  e  ambos  cos  íeus  criados ,    que  erao  por  to- 
dos oito  ,  detriminarão  cometer  o   feito,  para   o  qual  fs 
ajuntarão  também  com  elles  dez  homens  honrados   da  ter- 
ra ,   que  erão  amigos  de  Martim  correa  ,  e  folgauao   de  o 
acompanharem  em  tudo  ,  que  Ihediílerao   que  auia  huma 
boa  parte  por  onde  podião  entrar  no  lugar  :  concertados 
todos    no  que  auião  de  fazer,  Martim  correa   fe  moílrou 
muito  quieto,   dando  a  entender  que  eílaua  ja  fora  daquel- 
le  peníamento  ,  e  ao  outro  dia  em  amanhecendo  íe  foy  cos 
feu3  companheiros  ,  e  diegarão   a  huma   eftacada    de  que 
manfamente  tirarão  dous  paos  ,  com  que  ficou  lugar  aberto 
por  onde   podião  entrar  dous  homens  ,  e  daly  para  den- 
tro  eílaua  huma  cafa  que  tinha  hum  grande  alpendre  ,  os 
noíTos  em  entrando  forão  logo  lentidos,  ao  que  os  mouros 
íizerão  grande  aluoroço  ,  e  derao  grandes  gritas  ,   e  acu- 
dirão com  muyto  animo  a  pelejar  com   muytas  pedras   e 
paos   toftados  darremeíTo  ,  e  com  iílo  lhe  lancauão  tanta 
terra  folia  que  os  cegauao  :   os  noíTos   com  coatro  eípin- 
gardas  que  leuauão  ,   ajudados  dos   homens  da   terra  que 
hião  com  elles  ,  fe  deféndiao  esforçadamente  ,  mas  com.o 
os  inimigos  erao  muitos  lhes  foy  forçado  recolhcremfe  ao 
alpendre  :  Lionel  de  Lima  ouuindo  o  grande  rumor,  foí- 
peitando  o  que  era ,  acudio  logo  cos  Portugueíes  ,  e  entra-^ 
rão  onde  os  noílos  eílauão  ,  a  que  também  acudio  muyta 
gente  dos  mouros  ,  onde  fe  trauou  huma  bem   afpera  bri- 
ga ,  porem  Cachildaroes  fentindo  o  que  paíTaua  ,  entrou 
logo  cora  a  fua  gente  poila  outra  parte,  e  efpalhandoííe 

por 


2  0Ó       Primeyra  Parte  da  Chronica 

por  todo  o  lugar,  os  inimigos  forão  de  todo  desbarata- 
dos, íem  cícaparem  de  mortos  ou  feridos  mais,  que  alguns 
que  íe  fubirao  em  cafas  altas,  que  tinliâo  feitas  íobre  elteos 
de  pao  ,  donde  fe  dcfendião  com  pedras  e  arremeflos  , 
com  que  fazião  algum  mal  aos  noflos  ,  porem  nem  eíles 
durarão  aly  muito  ,  porque  fe  entregarão  por  catiuos  a 
Cachildarões  ,  a  quem  por  lho  pidir  Martim  correa  deu 
as  vidas  ,  mas  muyto  contra  ("ua  vontade  ,  porque  tem  lá 
antre  íy  por  honra  matarem  quantos  pelejão  contra  elles. 
No  lugar  foi  poílo  fogo  com  que  ficou  de  todo  coníumi- 
do  ,  e  nelle  foraõ  morros  muytos  ,  e  dos  noííos  ninhum, 
porem  ouue  alguns  feridos  das  pedras  ,  de  que  hum  foy 
Martim  correa  numa  perna,  mas  leuemente,  e  nao  fe  achou 
aly  defpojo  algum  ,  porque  o  lugar  efraua  de  todo  defpe- 
jado  da  gente  que  não  podia  pelejar.  A  todos  os  mouros 
mortos  cortarão  os  da  terra  as  cabeças  ,  c  pelejauão  huns 
cos  outros  íobre  qual  leuaria  mais  delias  ,  porque  ao  que 
apreíentaua  ÇetQ  cabeças  de  inimigos  o  faziaô  caualeyro  , 
e  lhe  chamauao  Manderim  ,  que  antre  elles  he  nome  de 
caualeyro.  António  de  brito  Já  da  fortaleza  bem  via  o  fo- 
go no  lugar  que  lhe  eílaua  ha  villa ,  de  que  eílaua  aíTaz  in- 
quieto ,  e  receofo  ,  até  que  lhe  chegou  recado  da  vitoria 
dos  noíTos ,  com  que  nelle  e  em  todos  ouue  grande  con- 
tentamento. Os  noíTos  porconfelho  de  Cachildarões  fe 
forão  a  outro  grande  lugar  ,  de  que  ametade  era  do  Rey 
de  Ternate  e  a  outra  do  de  Tidore,  onde  entrarão  por  hum 
efteyro  que  hia  ter  bem  perto  das  caías  ,  polia  parte  que 
era  dei  Rey  de  Tidore  ,  e  antes  que  faiííem  cm  terra  man- 
dou Cachildarões  dizer  aos  do  lugar,  que  foíTem  todos  ver 
as  cabeças  dos  inimigos  dei  Rey  de  Ternate  ,  que  aly  tra- 
zia ,  ao  qual  fe  elles  não  obedeceííem  outro  tanto  auia  de 
fer  das  íuas  ,  e  com  iílo  deitarão  em  terra  muytas  cabeças 
dos  mortos  ,  a  cuja  viíVa  os  do  lugar  ,  receoíos  d'outro  tal 
lucclTo  ,  obedecerão  logo  a  Cachildarões  ,  que  os  recebeo 
em  paz  ,  e  lhes  deu  feguro  como  regedor  que  era  do  rei- 
no. As  nouas  deíloutra  vitoria  feleuarão  também  logo  ao 
capitão  António  de  brito ,   que  vendo  que  aventura  da 

guerra 


dei  Rey   Dom  João  o  III.  207 

guerra  fe  moftrauaja  por  íua  parte  ,  mandou  recado  aos 
noíTbs  que  foíTem  dar  em  outro  lugar  chamado  Ogane  , 
que  eílaua  em  huma  ilha  dei  Rey  de  Tidore  chamada  Ba- 
tochina  ,  diftante  íeílenta  legoas  de  Ternate  :  e  porque 
efte  lugar  era  grande  e  forte  ,  e  tinha  muyta  gente,  lhe 
mandou  mais  corenta  Portugueíes  :  era  o  lugar  cercado  de 
tranqueiras  feitas  de  paos  muyto  groílos  ,  com  que  fica- 
uáo  muyto  fortes  ,  as  caías  delle  erão  muyto  altas  ,  feitas 
de  canas  fobre  groílos  elteos  ,  para  as  quais  íe  íobe  por 
eícadas  leuadiças  decanas,  que  fe  recolhem  logo  em  ci- 
ma. Os  moradores  do  lugar  ,  que  cráo  muyto  belicofos  , 
tinhao  muitas  armas  a  feu  modo  de  que  íe  íeruiao  ,  c  prin- 
cipalmente humas  como  fisgas ,  ou  farpões  ,  com  que  ri- 
rão darrcmeíío  ,  prefas  por  hum  cordel  ,  de  que  lhe  fica 
aponta  atada  no  braço  ,  com  que  ferrando  num  homem  , 
o  tiráo  para  fy  ,  c  o  matao  ,  e  deíles  tiros  erao  muyto  pou- 
cos ,  do  qunl  género  de  arma  a  gente  de  Cachildaroes  aula 
grandiílimo  medo.  Uíaõ  também  de  fundas  ,  com  que  lan- 
çáo  muyt2S  pedras  ,  em  que  íao  taóbem  muyto  deílros. 
Os  noílos  íe  partirão  logo  embarcados  em  caracoras  e  ba- 
teis ,  que  leuauão  alguns  falcões  e  berços  ,  e  forão  entrar 
por  hum  efteyro  que  os  leuou  bem  perto  do  lugar.  Os 
mouros  como  erao  muytos  ,  e  não  tinhão  inda  viílo  o  m.o- 
do  de  pelejar  dos  nolios  ,  vendo  que  hiao  defembarcando, 
fe  ajuntou  huma  grande  multidão  delles  com  íuas  fundas 
e  farpões,  e  aparecerão  em  huma  ladeyra.  Martim  correa  , 
e  Lionel  de  lima  ,  que  eílviaiâo  ja  em  terra  com  todos  os 
Portuguefes  fingindo  que  lhe  auiao  medo,  íe  forao  retiran- 
do para  as  embarcações  ,  a  que  os  inimigos  decendo  logo 
com  grandes  gritas  forão  cometer.  Mârtim  correa  vendo 
que  era  tempo  mandou  dar  fogo  aos  efpingardeyros,  o  que 
também  íizerão  os  berços  e  falcões  ,  com  que  dos  mouros 
ficarão  aly  por  terra  mais  de  duzentos ,  e  os  outros  volta- 
rão as  colfis  fugindo  a  qual  mais  podia  ,  íeguindolhe  os 
noíTos  o  alcance  ,  e  o  m.eímo  fez  Cachildaroes  com  a  íua 
gente,  porem  os  mouro?  não  oufando  de  lhe  ter  rolto  íe  re- 
colherão has  íuas  cafas  altas,  donde  fe  começarão  a  defen- 
der 


2o8         Prlmeyra  Paite  da  Chronlca 

der  cslbrçaJamente  ,  com  quanto  as  noíTas  efpingardas  lhe 
fazião  rauyto  dano  :  Cachildaroes  então  mandou  pollos 
íeus  trazer  do  mato  grande  cantidade  de  feno,  que  junto  a 
muytos  ramos  íecos  e  verdes  lhe  puferão  o  fogo  ,  que  le- 
uantou  tamanha  fumaça,  que  os  mouros  quaíi  le  aíbgauao  , 
c  o  fogo  fe  acendeo  de  maneira  ,  que  começou  a  pegar  nas 
caías ,  e  faltando  de  humas  em  outras  veyo  o  lugar  a  arder 
todo  e  os  mouros  íe  lançauão  das  cafas  abaixo,  e  fe  vinhao 
entregar  por  catluos  ,  porem  a  gente  de  Cachildaroes  a 
ninhum  perdoiua  a  vida,  no  qual  eftrago  afora  o  incên- 
dio do  lugar  ,  que  ardeo  todo  ,  morrerão  mais  de  mil  pcí- 
íoas  afly  do  fogo  como  do  ferro.  Alguns  que  quando  fo- 
rão  fugindo  não  pararão  no  lugar  ,  paíTando  adiante  de- 
rão  nouas  dos  noíTos  tiros  de  fogo,  com  que  na  terra  foy 
tamanho  o  medo  ,  que  logo  dous  lugares  vierao  dar  obe- 
diência a  Cachildaroes  ,  na  prefa  defte  lugar  ninhum  dos 
nolTos  recebco  dano,  nem  íe  achou  defpojo  algum,  porque 
tudo  ardeo  com  elle.  Auida  eíla  vitoria  fe  tornarão  os  noí- 
fos  ha  fortaleza  ,  onde  forao  recebidos  com  as  feftas  ,  e 
louuores  que  le  lhe  deuião  ,  e  o  capitão  a  requerimento  de 
Cachildaroes  deu  a  Martim  corrca  capitão  mordomar, 
e  alcaide  mór  da  fortaleza.  Com  adeílruição  deíle  lugar  de 
Ogane,  e  co  grande  eípanto  e  medo  que  tinha  entrado  em 
toda  aquella  gente,  el  Rey  de  Tidore  mandou  hum  embai- 
xador a  António  de  brito  a  pidirlhe  paz  ,  e  que  entregaria 
toda  a  artilharia  e  pagaria  a  el  Rey  todo  o  gafto  que  tinha 
feito  na  guerra,  a  que  o  capitão  refpondeo  que  muyto  pou- 
co era  o  que  tinha  feito  para  o  que  ainda  efperaua  de  fazer, 
e  com  iilo  o  deípidio,  c  dahy  a  poucos  dias  tomarão  no 
mar  humas  caracoras  do  mefmo  Rey  de  Tidore  ,  que  vi- 
nhao de  fora  carregadas  de  mantimentos,  em  que  fe  toma- 
rão mais  de  trezentos  homens  ,  que  o  capitão  mandou  eí- 
petar  e  aííar  viuos,  com  que  pôs  tamanho  cfpanto  por  toda 
aquella  terra,  que  vierão  a  cobrar  grandiíTimo  medo  ha 
nolTa  gente  ,  e  aíTy  ficou  aly  fempre  viua  a  guerra  com  el 
Rey  de  Tidore  até  o  tempo  que  adiante  fe  verá  ,  e  deitas 
couías  humas  iucederão  no  anno  paliado  de  I5'23,  e  outras 

neílc 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  2og 

neíle  de  1524,  que  íe  puíerão  aquy   todas  juntas  para  ir 
a  hiíloria  mais  iníiada  c  íe  entender  milhor. 


CAPITULO    LVI. 

£/  Rey  iwffo  fenhor  manda  a  Cajlella  âous  embaixadores 
com  bajiantes  procurações  para  concruirem  o  [eu  cajamen^ 
to  com  a  Ifante  dona  Caterina  irmuim  do  Emperador 
Carlos  quinto  e  tratarem  do  [eu  dote ,  elles  o  concruem  de 
todo* 

TRatandoíTe  em  Caílella  do  cafa mento  dei  Rey  dom 
João  o  terceiro  noíTo  fenhor  com  a  Ifante  dona  Ca- 
terina irmara  do  Emperador  Carlos  quinto  ,  eílando  S.  A, 
em  Euora  nefte  anno  de  1524  ,  deípacliou  Pêro  correa  íe- 
nhor  da  villa  de  Bellas  ,  e  o  doutor  João  de  faria  am- 
bos do  íeu  coníelho  para  irem  a  Caílella  por  íeus  embai- 
xadores e  baílantes  procuradores  acabar  de  concruir  e  cf- 
feituar  o  caíamento  ,  e  tratarem  do  dote  ,  e  d€  tudo  o 
mais  que  fofle  neceíTario  para  elle  auer  eíFeito  ,  para  o  que 
lhes  deu  duas  procurações  feitas  polio  fecretario  António 
carneyro  ,  aílinadas  por  S.  A,  e  felladas  co  feu  íello  pen- 
dente ,  huma  feita  a  quatorze  de  Abril  ,  e  a  outra  aos  do- 
ze de  Mayo  do  mefrao  anno  ,  em  que  lhes  daua  baílantes 
poderes  para  tratarem  do  que  cumpria  ao  efíeito  deíle ca- 
íamento ,  ou  foíTe  no  dote  ,  ou  em  qualquer  outra  couía 
que  fe  oíFereceííe  ,  e  íe  obrigou  a  auer  por  grato  ,  rato  , 
firme  e  valiofo  tudo  o  que  elles  íizeílem  ,  nem  o  contradi- 
zer em  algum  tempo  em  parte  nem  em  todo  por  maney- 
ra  alguma  ,  fob  obrigação  de  todos  os  feus  bens  patrimo- 
niaes  ,  e  da  coroa ,  auidos  e  por  auer  ,  que  expreflamcnte 
a  ilTo  obrigou  ,  e  lhes  deu  também  poder  para  fazerem  em 
feu  nome  quaesquer  juramentos  ncceílarios  ,  que  também 
fe  obrigou  â  cumprir  e  guardar  ,  e  para  cm  íeu  nome  acei- 
tarem também  quaes  quer  outros  que  da  outra  parte  ie  íi- 
zeíTcm.  Partidos  eíles  embaixadores  da  corte  foraõ  ter  ha 
Farte  /.  Dd  cida- 


2  10       Pfimeyra  Parte  da  Chroníca 

cidade  de  Burgos  ,  onde  então  o  Emperador  eíl.iua  ,  que 
os  recebeo  com  honra  e.gaíalhado  ,  e  enrendendo  delles 
o  a  que  hiaô ,  ordenou  logo  outros  dous  procuradores  que 
por  íua  parte  e  da  Ifante  fua  irmam  trataílem  o  ntgocio 
c  o  acaballem  de  concruir  de  todo,  dos  quais  htm  era 
Mercurino  de  gatinara  íeu  grande  chançarel  ,  e  o  outro 
dom  Fernando  de  vega  comendador  mór  em  Caílella  da 
ordem  de  Santiago,  aos  quais  também  deu  duas  procu- 
rações baílantes  para  em  tudo  e  por  tudo  fazerem  o  que 
foiTe  ueceíTario  para  íe  cffeituar  aquelle  cafamento  ,  e  fe 
obrigou  ao  cumprir  e  guardar  iob  obrigação  de  todos  feus 
bens  auidos  e  por  auer  ,  na  forma  que  el  Rey  noíTo  fenhor 
tinlia  feitas  as  íuas  procurações.  E  eílas  do  Emperador 
forao  feitas  na  cidade  de  Burgos  a  cinco  de  Julho  defte 
anno  de  1524  ,  por  Francífco  de  los  couos  íeu  íecretario  ^ 
e  íeu  notário  pubrico  na  íua  corte,  e  em  todos,  os  íeus  rey* 
nos  e  íenhorios  ,  e  aílinadas  por  íua  Mageílade  ,  e  corro- 
boradas CO  íeu  fello  pendente  de  chumbo.  Juntandofe  eíleS; 
coatro  procuradores  na  cidade  de  Burgos  ,  e  viftas  e  ex« 
aminadas  bem  por  todos  as  procurações  de  ambas  as  paro- 
les ,  deípois  de  difcutirera  a  matéria  que  lhes  era  cometi- 
da com  muyto  vagar  e  coníideraçao  ^  fe  vierão  a  reíoluer 
nella  de  comum  coníentimento  de  rodos ,  que  el  Rey  noíTo 
íenhor.  mandaíTe  ha  fua  cuíta  bufcar  a  deípenfação  para 
aquelle  cafamento  auer  eííeito  ,  e  que  o  Emperador  ,  den« 
tro  de  dous  meies  deípois  de  ella  íer  vinda  ,  mandaria  a 
Ifanfa  íua  irmam  até  a  raya  dantre  ambos  os  reynos  de 
Caílella  e  Portugal  como  cumpria  a  feu  eíiado  ,  onde  a 
iriao  receber  as  peíToas  ,  que  el  Rey  noíTo  íenhor  para  iíío 
mandafle  ,  na  forma  que  cumpria  ao  eílado  e  autoridade 
de  ambos.  Que  o  Emperador  deíTe  em  dote  ha  Ifanta  lua 
irmam  duzentas  mil  dobras  de  ouro  Caílelhanas  ao  preço 
que  tiuelfcm  quando  fe  lhe  fizeíTe  o  pagamento  delias  ,  de 
que  fe  deícontariâo  o  ouro  ,  prata  ,  e  joyas  que  a  Ifante 
]euaíle  comíigo  ,  e  que  eí^as  duzentas  mil  dobras  fe  paga- 
riaõ  em  tempo  de  três  annos,  hum  terço  delias  cada  anno, 
de  que  o  primeyro  pagamento  íe  faria  hum  anno  defpoiç 

dç 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  ui 

tle  fer  confumado  o  matrimonio,  e  os  outros  dous  terços 
nos  do!JS  annos  primeyros  feguintcs  ,  hum  terço  cada  an- 
uo ,  e  que  nifto  não  teria  lugar  nem  perjudicaria  qualquer 
taxa  ou  eftimação  que  o  Emperador  e  el  Rey  noíTo  fenhor 
tiueirem  feita  nos  léus  reynos  e  fenhorios.  Que  el  Re/ 
noílo  lenlior  daria  de  arras  ha  Ifanta  dona  Caterina  feííen- 
ta  e  feis  mil  íeis  centas  e  feíTenta  e  íeis  dobras  ,  e  dous  ter- 
ços,  de  banda  Caílelhanas  de  bom  ouro  ,  e  juílo  pefo  , 
que  era  a  terça  parte  do  dote  ,  ao  preço  que  valeíTem  no 
tempo  do  pagamento.  Qiie  o  Emperador  forneceria  e  or- 
naria a  Ifanta  fua  irmam  de  vefridos  e  atauios  de  íua  peííoa 
e  caía  conforme  a  cuja  irmam  era  ,  e  com  quem  cafaua. 
Que  o  Emperador  daria  ha  Ifnnte  dona  Caterina  fua  irmam 
para  gouerno  e  fuftentaçao  de  fua  caía  dous  contos  de  ma- 
rauedis  em  cada  hum  anno  ,  aíTentados  em  lugares  onde 
os  tiueííe  certos  c  fcguros.  Q^ie  el  Rey  noíío  íenhor  darig, 
halfanta  dona  Caterina  as  terras  que  então  tinha  a  Rainha 
dona  Leanor  fua  ria  ,  quando  vagaíTem  por  failecimento 
delia  ,  e  da  Rainha  de  França  dona  Leanor  ,  irmam  da 
nieíma  Ifante  dona  Caterina  a  quem  então  eítauao  obriga* 
das  ,  as  quais  terras  logo  como  vagaflem  íerião  entregues 
ha  Ifanta  dona  Caterina  na  forma  e  maneyra  que  então  as 
poíTuhia  a  Rainlia  dona  Leanor  fua  tia.  Que  el  Rey  nof- 
ío  Senhor  e  íeus  crdeyros  e  íucefíores  íerião  obrigados  a 
dar  ha  Ifante  dona  Caterina  para  gouerno  e  íuílentação  de 
fua  cala  coatro  contos  de  reis  cada  anno  ,  com  tal  decla- 
ração que  fe  as  terras  que  então  tinha  a  Rainha  dona  Lea- 
nor fua  tia  vagallem  de  maneyra  que  vieílem  a  feu  poder, 
fe  defcontaria  tanto  dos  coarro  contos  ,  quanto  valeíTem 
as  rendas  daqucllas  terras.  Foy  afícntado  por  todos  os 
coatro  procuradores  que  as  pazes  antigas,  que  antre  os 
Reys  de  Portugal  e  Caftella  forão  aílentadas  e  ccníirma- 
das  ,  íe  confirmarião  de  nouo  pollos  fenhores  fcus  coníti- 
tuintes  ,  com  todos  os  paflos  ,  vinculos  ,  firmezas  ,  e  con- 
dições nellas  contiudas.  E  logo  os  meímcs  coarro  procu- 
radores em  nome  dos  íeus  conílituintes  as  aíícnip.rúo  c 
confirmarão  :  e  alem  difto. ,  pollo  muyto  parcntelco  e  amor 

Dá  2  que 


tJi         Prlmeyra  Parte  da  Chroníca 

que  auin  antre  eftes  dous  fenhores  ,  e  por  outras  muytas 
rezdes  e  rcípeiros,  aíTentarão  então  de  nouo  que  fe  ajudaf- 
fem  hum  ao  outro  todas  as  vezes  que  a  cada  hum  delles 
foíTe  necefsario  para  defenfao  do?  iVus  próprios  eftndos  , 
que  cada  hum  delies  tiuefse  em  Eíp?nha  ,  e  AKrica  ,  e  fe 
ajudariáo  fegundo  o  cafo  o  requerefse  ,  ícndo  primeiro 
requerido  para  ifso  qualquer  deftes  dou?  Penhores  que  ou- 
uelTe  de  dar  ajuda  ao  outro  ,  porem  no?  cílados  d'AFrica 
de  cada  hum  delies  íe  entenderiao  íómtnte  os  lugares  que 
cada  hum  delies  tiuefse  na  íua  conquiíía,  conforme  has  ca- 
pitulações que  auia  antre  eftes  dous  Reynos,  deíde  Ourão 
e  MciÇírquibir  até  o  cabo  de  aguer  incluííue  ,  e  mais  não, 
o  que  íariâo  e  cumnririao  inteyra  ,  fiel  ,  e  verdadeiramen- 
te i,  íem  arte  nem  engano  nem  cautella  alguma  ,  e  deftas 
capitulações  e  de  outras  coufas  particulares  tocantes  a  el- 
las ,  que  aqui  fe  não  pfíem  por  ferem  de  pouca  importância 
para  efta  hiftoria  ,  foi  feira  huma  efcritura  pubrica  por 
Franciíco  de  los  couos  fecretario  de  lua  Mageftade  ,  e  feii 
pubrico  notário  em  todos  os  íeus  reynos  e  lenhorios  ,  em 
Burgos  aos  19  dias  do  mes  de  Julho  do  mefmo  anno  de 
15^4,  em  que  fot*ao  teftemunhas  o  marichal  de  Borgonha 
mordomo  mor  de  fua  Mageftade  ,  e  o  comendador  mor  de 
caílella  ,  e  moníieur  dela  chaulx  ,  do  ícu  coníelho.  Sendo 
iílo  afsy  concruido  aos  dez  dias  do  mes  de  Agoílo  feguin- 
te  na  vilia  de  tordefílhas  ,  para  onde  o  Emperador  fe  pai* 
iara  ,  nas  íuas  cafas  reais  ,  em  que  fe  agafalhaua  com  eile 
a'Ifante  dona  Caterina  fua  irmam  ,  ella  e*m  preíença  dos 
embaixadores  d'el  Rey  nofso  fenhor  jurou  em  mãos  do 
Arcebifpo  de  Toledo  dom  Alonío  de  Azeuedo  Chançarel 
mór  de  Caftclla  ,  que  vindo  a  difpenfaçao  para  aquelle  ca- 
famento  ella  fe  caiaria  por  palaura?  de  preíente  com  el 
Rey  nofso  íenhor  ,  ou  com  íeu  bafbanre  procurador  ,  e 
logo  os  embaixadores  dei  Rey  nor?o  fenhor  em  prcfença 
do  Emperador  e  da  Ifanre  fua  irmam  fizcrao  outro  tal  ju- 
rariíento  em  mios  do  meímo  Arcebifpo  de  Toledo  ,  que 
vindo  a  deípeníaçío  de  Roma  el  Rey  noíso  Íenhor  fe  ca- 
iaria por  palauras  de  preíente  com  a  Ifame  dona  Caterina, 

e 


dei  Rey   Dom  João  o  III.  213 

e  cumpriria  tudo  o  que  nas  capitulações  feiras  de  feu  ca« 
íamento  cHe  por  lua  parte  era  obrigado  a  cun.prir  ,  com 
que  fe  acabou  de  arreniatar  aquelle  felice  caíamí  nto  com 
grande  gofto  de  ambas  as  partes  ,  e  os  embaixadores  de 
fua  alteza  fe  tornarão  logo  a  eíle  reyno  a  liie  dar  conta  do 
que  era  paíVado  ,  de  que  fe  elle  moilrou  íatisfeito  e  íe  cu- 
ue  por  muito  bem  íeruido  dslics. 

CAPITULO     LVIT. 

Os  mcuros  mercí?dores  de  Calecut  ordenao  hum  grojfa  ar^ 
ma  da  para  lhe  ir  guardar  as  fuás  nãos  ^  e  para  fazer 
guerra  ha  jortalcza  :  dom  foão  de  lima  capitão  delia 
tendo  auifo  difio  fe  jurtifíca,  A  armada  vay  dar  vifla  ha. 
fortaleza  ,  e  o  que  Ihejucede.  Os  mouros  bufcao  hum  ar- 
dil para  darem  a  morte  a  dom  João  ,  contãoffe  algumas 
coufas  que f ao  caufa  deje  começar  a  guerra  que  el  Rey  de 
Calecut  fez  ha  noj] a  fortaleza^ 

OS  mouros  mercadores  de  Calecut  vendo  que  íe  per- 
dião  de  todo  por  falta  dos  feus  tratos  ,  porque  as 
noíTas  armadas  lhe  tolhiao  a  nauegaçao  das  fuás  nãos  ,  de- 
trirrinarão  fazeremíe  armadores  cos  capitães  dos  paraos, 
para  que  el!es  lhas  feguraíTem  ,  e  lhas  pufeíTem  em  íaluo  : 
e  para  iíto  íe  falarão  com  Bailacem  e  Cutiale  de  Tanor  , 
de  que  ja  atrás  fiz  menção  ,  e  lhe  derao  grande  ajuda  de 
dinheyro  e  artilharia  ,  com  que  armarão  leííenta  paraos 
para  acompanharem  coatro  nãos  carregadas  de  pimenta 
até  as  porem  fora  da  vift.i  da  coita  da  índia.  Dillo  foy  logo 
auifado  dom  João  de  lima  capitão  da  fortaleza  ,  mas  pa- 
Teccndolhe  manha  dos  mouros  dizerem  que  íe  armauao 
tantos  paraos  para  acompanharem  coarro  nãos  lómcnte  , 
quis  buícar  modo  para  tirar  a  limpo  a  verdade  difto.  Auia 
então  em  Calecut  hum  renegado  chamado  Baftiao  rodri- 
guez  ,  que  andaua  cem  el  Rt-y  ,  com  que  dom  Jo:'o  tinha 
amizade  ,  porqvie  era  filho  de  hum  boticairo  de  Lisboa  íeu 
compadre,  eílc  tinha  por  alcunha  o  rachado,  porque  vindo 

do. 


2  14         Primeyra  Parte  da  Chroníca 

do  reino  ,  fendo  ainda  moço  o  cometeo  hum  homem  ni 
nao  de  peccado  nefando  ,  e  quis  pegar  delle  ,  com  que  lhe 
foy  neceifario  dar  vozes  ,  a  que  lhe  acudio  gente  ,  e  pren- 
derão o  homem,  de  que  fe  tirou  deualla  ,  e  fe  íoube  que 
pollo  mefmo  caio  vinha  fugido  do  reino  ,  com  que  roy 
lançado  ao  mar  ,  e  o  moço  íe  ouuc  por  íem  culpa  ,  e  por 
cila  rezão  alguns  da  nao  por  zombaria  ,  ou  antes  por  in- 
duzimento  do  demónio,  que  muytas  vezes  toma  eílts 
zombarias  por  meyos  para  feus  intentos  ,  lhe  chamauão 
rachado  ,  de  que  o  moqo  fe  ouue  por  tão  corrido  c  aíron- 
tado,  que  em  chegando  a  Goa  fe  foy  para  os  mouros  ,  e 
andaua  com  elles  em  Calecut:  por  via  deíle  tiniu  dom  João 
iT^uytos  auifos  fccretos  ,  e  por  iíío  trataua  de  ter  amizade 
com  elle  ,  e  por  fua  mefma  via  derriminou  laber  a  verda- 
de daquellas  quatro  nãos  ,  e  da  armada  dos  paraos  :  e  para 
ilTo  lhe  efcreueo  íecretamente  huma  carta  por  hum  naire 
da  fejtoria  ,  em  que  lhe  mandou  perguntar  a  certeza  do 
que  lhe  tinliao  dito  ,  ao  que  lhe  elle  refpondco  que  lhe 
diíTerão  verdade,  c  que  el  Rey  de  Calecut  lhe  auia  de  fa- 
zer guerra  ,  porque  os  mouros  lhe  fazião  o  gafto  ,  e  que 
os  paraos  que  le  armauao  auião  de  paííar  junto  ha  forta- 
leza ,  e  com  ajuda  de  muyta  gente  que  auia  d'ir  por  terra, 
fe  viíTem  tempo  auião  de  cometella  ,  e  ver  íe  apodiao  en- 
trar. Dom  João  com  tudo  não  fe  fiando  inda  bem  deíla 
informação  ,  a  mandou  tomar  por  outra  via  ,  e  achando 
nefta  o  mefmo  ,  mandou  auifar  dom  Luis  de  menefes  ,  que 
citaua  inuernando  em  Cochim  ,  que  deuia  de  vir  com  ar- 
mada efperar  eíles  paraos  ,  e  tomallos  no  mar  ou  entrar 
no  rio  de  Chalé  ,  onde  fc  auião  de  ajuntar  com  as  nãos. 
Dom  Luis  não  deu  a  iílo  muyro  credito  ,  parecendolhe 
que  erão  inuençoes  de  dom  João  para  ter  contendas  cos 
mouros  ,  pollo  ódio  que  lhe  tomara  defpois  que  lhe  lan- 
çarão as  cobras  na  fortaleza,  e  Jhe  reípondeo  com  algumas 
palauras  de  reprenfaô  dizendolhe  ,  que  não  ordenaííe  cou- 
fas  com  que  a  guerra  fe  leuantalíe  de  que  teria  grande 
conta  que  dar  ,  que  elle  a  nada  auia  de  acudir  até  a  vinda 
do  goueríiàdof  ,  por  iílo  viíTe  o  que  fazia  :  dom  João  ror 

da 


dcl  Rey  dom  João  o  IIL         a  15 

áa  via  fentido  da  rcpoíla  ,  praticou  o  negocio  cos  oíleci- 
ais  ,   e  homens  hcnradcs   que  com  eIJe  eílauão  ,   e  a  totlos 
pareceo  bem  contemporizarfe  cos  mouros  ,  c  não  quebrar 
corn  el!e?5  até  que  elles  não  quebríiílcm  de  rodo  a  paz  ,  en- 
tão  lhes  pidio  o  capitão   a  tcdcs  que  cfcufaíTem  de  ir  hg 
cidade  para  que  os  mouros   não  arniafíem  com  elles  algu- 
ma contenda  como   tinhao   por  cuíhime  ,   e  lhe  pudcíTe 
acontecer  algum  deiaftre  ;   e  porque  le  rinha  por  certo  a 
auiíodo  renegado  ,   mandou  dom  João  fazer  hum  baluar- 
te de  madeyra  muyto   forte  diante  da  porta  da  fortaleza  , 
com  que  ficafie  emparada   dos  tiros  que  os  mouros  lhe  íi- 
raflem  do  mar  :  e  para  experimentar  o  animo  do  regedof 
da  cidade  ,   lhe  mandou  pidir  por  hum   naire  alguns  car- 
pinteyros   para  aquella  obra  ,  que  lhe  clle  nao  mandou  :  o 
baluarte  comtudo  foy  feito  de  todo  tão  chegado  ao  mar, 
que  fenão  podia  paflar  ao  longo  delle   fem  fe   tocar  na 
agoa  ,   e  ficou  afaíLado  da  fortaleza  diílancia  de  hum  jogo 
de  bola  :  os  mouros  Cotiale ,  e  Bailacem  íairão  do  rio  na 
entrada  d^Agoílo  cos  feus  íeíTcnra  paraos  bem  concertar 
dos  ,  e  mil  homens  de  peleja  nelles  ,  e  leuarao  com  ligo  as 
coatro  nãos  muyto  íeguramente  até  as  porem  em  faluo  y 
por  terem  bem  elpiado  dom  Luis  ,  que  não  bolia  comíigoi 
e  após  iílo  correndo  ao  longo  da  coíla  forao  dar  vríla   ha 
fortaleza,  a  ver  o  que  podiao  íazer  nella..  Defronte  da  for- 
taleza fazia  o  mar  hum  arrecife   tão  perro  da  terra  ,  que 
por  antre  ella  e  elle  não  entraua    fenão   quem  auia  de  fur- 
gir.  O  Bailacem  de  oufano  e  fonfarrão   le   foy    meter  por 
efíe  lugar  no  feu  parao  ,  que  era  grande  e  bem  concerta- 
do ,   e  para  iílo  o  m.andou  embandeyrar  rodo  ,  onde  a  íua 
gente  bem  armada  começou  de  eígremir  com  as  arm^as  ,  e 
dar  muytas  gricas  ,  ao  que  dom  João  não  pôde  ter  paciên- 
cia ,e  lhe  mandou  tirar  com  três  cameletes    que  tinha   ao 
longo  do  baluarte  ,  de  que  hum   que  acertou  o  parao   lhe 
leuou    todos  os    remeiros    do  maílo   aproa  ,  e    os- outros 
dous  alcançarão  dous  paraos  que  hião  de  largo  ,  c  os  me- 
terão no  fundo,  de  que   a  gente  foy  roda    morra  ,  e  lem 
embargo  diílo  dom  João  por  hum  naire  da  feitoria  íe  rnaiif^ 

doOt 


ij6       Pfimeyra  Parte  da  Chronlca 

dou  queixar  ao  regedor  dizendo  ,  que  aquillo  que  lhe  fa- 
2irio  era  quebrar  a  paz  ,  pois  os  paraos  dos  coíTayros  che- 
gauáo  a  tirar  tiros  ha  fortaleza  dei  Rey  ,  a  que  elle  rcf- 
■pondeo  ,  que  íe  os  paraos  fizerao  mal  ja  o  tinhao  pago  ,  e 
queaíTy  o  pagaria  quem  itial  fizelTe  ,  porque  o  Qamorim 
líao  auia  de  quebrar  a  paz.  Nefte  mefmo  tempo  os  mouros 
da  cidade  ,  como  defejauao  de  fazer  a  dom  João  todo  o 
mal  que  pudeíTem  ,  pollo  grande  ódio  que  llie  tinhao, 
peitarão  grofiaraente  a  três  nayres  ,  que  íe  foíTem  a  elle 
com  alguma  queixa  ,  e  achando  conjunção  o  mataílem  ,  a 
quem  os  naires  fe  ofFerecerão  ,  mas  que  auia  de  fer  com 
lho  mandar  el  Rey  ,  o  que  os  mouros  negocearâo  de  ma- 
neyra,  que  el  Rey  lho  mandou.  Diílo  foy  logo  auifado  dom 
João  poilo  renegado  Baltiao  rodriguez  ,  e  lhe  mandou  di- 
zer, que  a  queixa  com  que  eíles  naires  auiao  de  ir  era  ,  que 
hum  Português  lhe  matara  huma  vaca  ,  co  qual  auifo  o 
capitão  trazia  muyta  vigia  (obre  íy  ,  e  tinha  dado  ordem 
a  vinte  alabardeyros  que  tinha  da  fua  guarda  ,  que  íe  vif- 
lem  chegar  algum  mouro  ou  naire  a  elle  a  darlhe  algum 
recado  ,  lho  cercaíTem  logo,  elhe  tiueílem  muyto  bom  ten- 
to nelle  ,  e  hum  dia  eftando  aíTentado  ha  porta  da  fortale- 
za  acompanhado  de  muytos  hornens  ,  chegarão  os  três 
naires  ,  de  que  os  dous  ficarão  afaftados  ,  e  o  outro  fe  che- 
gou a  fazer  a  queixa  ,  e  os  alabardeyros  fizeraô  o  que  lhes 
iera  encom^endado  :  dom  Vaíco  de  lima  ,  primo  do  capitão 
fe  leuantou  em  pé  ,  e  com  huma  cfpada  dambas  as  mãos  fe 
pôs  antre  o  capitão  e  o  naire  que  nem  por  iíTo  deixou  de 
fazer  íua  queixa  ,  e  tanto  que  veyo  a  tocar  na  vaca  ,  en- 
tendendoííc  que  eraõ  aquclles  os  da  conjuração  ,  dom  Vaí- 
co arremeteo  com  aquellc  e  o  liou  pollos  braços  e  o  meí- 
mo  fizeraó  os  alabardeyros  aos  outros  dous ,  e  a  todos  to- 
ir>araÕ  as  armas  ,  que  eraõ  eípadas  e  adargas  ,  o  capitão 
naô  quis  que  lhe  fizeíTem  mal  ,  mas  por  hum  naire  da  fei- 
toria os  mandou  a  el  Rey  ,  e  lhe  mandou  dizer  que  naó 
mandara  dar  aaquelles  naires  a  morte  ,  que  lhe  elles  vi- 
nhaô  dar  ,  porque  nao  queria  íer  ocafiao  de  fe  romper  a 
yaz  ,  que  fe  elle  a  queria  quebrar  ,  íoubeíTe  certo  que  o 

acharia 


delRey  Dom  João  o  III.  i\y 

"iícharia  de  mancyra  que  íe  poderia  muyto  bem  defender 
até  a  vinda  do  gouernador  ,  mas  que  le  eípantaua  muyto 
delle  ,  fendo  hum  Rey  tao  poderoio  fazer  hum  feito  tão 
baixo  ,  como  era  mandar  matar  hum  liomem  ha  traição  , 
que  fe  deíenganaíle  ,  que  por  mais  que  fizeíle  íobr'ifío  o 
naô  auia  de  ieuar  ao  cabo  ;  e  comtudo  iílo  a  gente  da  ci- 
dade não  fe  afaítaua  da  fortaleza  ,  nem  da  conueriação  dos 
noíTos  ,  antes  lhe  viniiaó  vender  muytos  mantimentos, 
Sucedeo  também  neíte  tempo  que  em  Parangale,  que  he 
perto  de  Calecut  matarão  os  mouros  oito  Portuguefes  , 
que  eftauaõ  tratando  ,  c  lhe  roubarão  as  fazendas  ,  o  que 
iabido  pollo  capitão  íe  mandou  queixar  ao  regedor  por 
hum  feu  feitor  chamado  Gonçalo  tauares  ,  o  qual  os  mou- 
ros m.atarão  antes  que  chegaíle  onde  o  regedor  eíiaua  , 
com  que  o  capitão  mandou  que  ninguém  fofle  mais  ha  ci- 
dade ,  c  por  hum  naire  da  feitoria  mandou  dizer  ao  rege- 
dor 5  que  vifle  bem  quanto  lhe  fofria  por  nao  chegar  a 
quebrar  a  paz  ,  o  regedor  com  eíle  recado  fe  toy  logo  ha 
fortaleza,  onde  deixando  a  lua  gente  afaítada  teue  co  capi- 
tão grandes  cumprimentos,  e  lhe  deu  muytas  defculpas 
e  laftifacoes  da  morte  de  Gonçalo  tauares  ,  prometendo- 
ihe  que  quem  lha  dera  naõ  ficaria  íem  o  deuido  caílígò  , 
a  que  o  capitão  lhe  naó  deu  outra  repofta  íenão  que  lhe 
pelaua  muyto  de  el  Rey  ja  não  começar  a  guerra  ,que  fa- 
bia  que  tinha  ordenado  de  lhe  fazer  ,  para  lhe  moílrar 
quanto  valia  ,  e  quanto  poder  tinha  aqueila  fortaleza  dei 
Rey  de  Portugal  ,  e  com  ifto  fe  deípidirão  ,  trabalhando 
comtudo  o  regedor  por  diíhmular  as  coufas  de  que  dom 
João  tinha  auifos  contínuos  pollo  renegado.  Poucos  dias 
deípois  diílo  íucedeo  também  tomarem  huns  mouros  al- 
gumas molheres  chriílas  da  terra  ,  que  por  força  querião 
Ieuar  a  Coulete  ,  ao  que  dando  ellas  muitos  brados  o  íou- 
be  logo  o  capitão  ,  que  mandou  os  naires  da  feitoria  que 
foílem  por  ellas  ,  mas  os  mouros  eraója  idos  ,  e  porque 
hiaò  ainda  ha  viíta  da  fortaleza  ,  mandou  dez  hom.ens  que 
astrouxeraõ,  inda  que  os  mouros  não  deixarão  de  as  de- 
fender, a  efte  rumor  le  leuantou  hum  grande  aluoroço  coni' 
.^arte  L  Ee  que 


2ti8         Prlraeyra  Parte  da  Chronica 

que  íe  ajuntarão  mais  de  duzentos  mouros  ,  e  correrad 
ha  Fortaleza  trás  os  noflos  ,  a  que  por  mandado  do  capi- 
tão fahio  Garcia  de  faria  efcriuao  da  feitoria  com  trinta 
efpingardeyros  ,  que  os  fez  afaílar  ,  porem  a  iílo  íe  ajun- 
tou todo  o  pouo  de  naircs  e  mouros  ,  e  forao  cometer  o 
baluarte  de^madeyra  a  ver  fe  o  podiaô  tomar,  ao  que  acu- 
dio  dom  Vaíco  de  lima  com  cem  efpingardeyros,  que  teue 
cos  inimigos  liurna  briga  aflaz  trauada  ,  mas  com  ajuda 
de  algumas  peças  da  fortaleza  os  fez  fugir  para  a  cidade  , 
e  os  noíTos  os  forao  feguindo  até  chegarem  h^s  caías,  a  que 
puferão  fogo  ,  com  que  ardeo  huma  grande  parte  delia  , 
donde  ficou  a  guerra  de  todo  ateada  ,  auendo  cada  dia  re- 
bates na  fortaleza  a  que  dom  João  nao  coníentia  fair  a 
gente  ,  porque  como  tinha  pouca  nao  queria  vir  a  ter  me- 
nos ,  para  fe  poder  íufbentaraté  a  vinda  do  Gouernador, 
que  não  veyo  ao  tempo  que  elle  efperaua  ,  mas  vierao  as 
nãos  do  reyno. 

CAPITULO    LVIII. 

^/  Rcy  manda  dom  Vafco  da  gama  conde  da  Vidigueira  a 
■■.   goucrnar  a  índia  ,  contãoje  dous  cafos  efir anhos  que  no 
mar  lhe  acontecem  ,  chega  a  Goa.  El  Rey  ordena  ejle  anno 
as  vias  para  as  fucejfoes  da  gouernança  da  Índia* 

EL  Rey  dom  João  ,  que  neíle  tempo  nao  auia  mais  que 
dous  annos  que  tomara  o  cetro  delle  feu  reino ,  enten^ 
dendo  de  quanta  importância  Ihecra  aííy  para  a  honra  como 
para  o  proueito  do  citado  da  índia, que  el  Rey  dom  Mmcel 
ícu  pay  lhe  deixara  ganhado  com  tanto  íangue  ,  tantas  vi-. 
das  ,  e  tão  valeroíos  feitos  dos  feus  vaííalos  ,  detriminou 
niandarlhe  hum  homem  para  o  gouernar  ,  do  qual  (  ja  que 
era  o  primeiro  que  elle  efcolhia  para  eíle  cargo  )  a  índia 
cntendeííe  a  grande  conta  que  tinha  co  que  entendia  que 
lhe  era  neceílario  ,  e  de  quem  íua  Alteza  ficaíTe  ícguro 
^ue  ijâo  lómeate  auia  de  íuílentar  o  que  eílàua  ganhado  , 
-!^;  mas 


deíRey  Dom  João  o  Ilf.         iip 

tnas  acfecentallo  quanto  mais  pudcíFe  ,  para  que  mcfíran- 
do  a''y  aaquelle  cílado  no  começo  de  íeu  irrperio  o  gcfto 
e  lembrança  que  tinha  das  coufas  ,  o  animaíle  e  eftin^ulaí- 
íe  para  as  de   leu  feruiço.  E  pareccndoihe   que   para  iílo 
rao   podia  então  auer  outro  irais  íufHcicnte  que  dcm  Vaf- 
CO  da  gama  conde  da  Vidigueyra  c  almirante  do   n  ar  dâ 
índia  ,  que  a  dcfcubrira  ,  aOy  polia  experiência  que  linha 
óds  ccufas   delia  ,   como  pollo  conhecimento  que  os  mou- 
ros linháo  delle  do  tempo  do  defcubrimento ,  e  da  outra 
viagem  que  lá  deípois  fizera  ,  e  pollo  grande  refpeito   6 
reuer-ncia  que  porilTolhe  tinhão  ,   o  mandou  chamar  ha 
Vidigueyra  ,   onde    eftaua  deícanfando  ja   dos   trabalhos 
paflados  ,  e   lhe  dilTe  o  para  que  o  chamaua  ,   e  as  rezões 
que  o  obrigauao  ao  efcolher  para  aquelle  cargo  ,  o  condcj 
auendo  aquillo  por  matéria  de  íua    honra  ,    lhe  beijou  à 
mao  polia  mercê  ,  e  comtudo  naò  deixou  de  llie  pidir  al- 
gumas couias  que  lhe  el  Rey  concedeo  ,  antre   as   quais 
foy  o  titulo  de  vilo  Rey  ,  de  que  nao  viária  íenao  defpois 
que  chegafse   ha  primeyra  fortaleza  da  índia  ,  e  a  fortale- 
za de  Malaca  para  todos  feus  filhos,  a  qual  feruirao  coarro 
delles  ,  e  lhe  deu  o  cargo  de  capitão  mór  do  mar  da  índia 
para  dom  El*teu"o  feu  filho  que  com  elle  hia  ,  e  outras  al- 
gumas couias.   E  porque  atéaquellc  tempo  íe  nao  cuftu- 
maua  prouerfe   nas  íuceísôes  da  gouernança   da  Índia  co- 
iro agora  íe  coftuma  ,  entendendo   fua   Alteza  camanho 
inconueniente    era   para   aquelle  eílado  morrendo  algum 
goucrnador  delle  no  tempo  de  íua  gouernança  íicar  a  eley- 
çno  de  quem  o  gouernaíse  aos  meímos  que  nclle  eOauao  , 
de  que  alguns  o  deuião  pretender,  pollos  bandos,  difíeren- 
ça-!  e  difsctifões  que  podia  auer  fobrMíso  ,  ordenou   que 
foí>em  efl"e  anno  três  vias  aílinadas  por  elle ,  cerrada  e  lel^ 
Jdda  cada  huma  delias  com  trcs  fcllos  das  armas  reais,  re- 
partidas logo  de  cá  Cum  titulo  de  primeyra,    fegunda  ,  e 
terceyra  ,  em  cada  huma  d^s  cuais  hia  nomeado  o  homem 
que  íua  Alteza  auia  por  feu  feruiço  ,  que  íucedeíse  ao  viCo 
Rey,   fendo  caio  que  fallecefse  ,    das  quais  ninhuma   íc 
«uia  de  abrir  em  quanto  elle  fofse  viuo.  £  eila  ordem 

Ee  2  íTiâu- 


'2íto       Prlmevra  Parte  da  Clironica 


mandou  que  fe  giiardaíTe  daly  por  diante  ,  c  íe  guarda  In» 
da  oje  todas  as  vezes  ,  que  le  proue   de  nouo  a  goucrnan- 
çi  da  índia,   Mandou  el  Rey  armar  para  efte  anno  huma 
armada   de   quinze  vcllas  ,  dez  nãos  grofias  de  carga  ,  e 
cinco  carauellas  ,  das  nãos   erao  capitães  Afonfo  mexia, 
{:^ara  veador  da  fazenda    dom   Anrique  de  meneies  dalcu- 
nha  o  roxo  ,  para  capitão  de  Goa  Pêro  mazcarenhas  ,  para 
capitão  de  Malaca  Lopo  vaz  de  fampayo  ,  para  capitão  de 
Cochim  Francifco    de    lá  de  mencfe? ,  que  hia  a  fazer  hu- 
rna  fortaleza  na  Gunda  ,  dom  Simão  de  menefes   para  ca- 
pitão de  Cananor,  António,  da   íilueira  para   capitão   de 
Cofala  ,  dom  Fernando  de  monroy',  e  Franciíco  de  brito, 
que  auia  de  ficar  na  índia  para  andar  por  capitão  mór  das 
nãos  do  trato  de  Goa,  para  ormuz  ,  e  hia  também  Vicente 
gil  armador:  os  capitães  das  carauellas   erao  Lopo  loboj 
Ruy  gonçaluez    que  fora   capitão  dordenança    na    Índia  j 
Crillouão  rofado  ,  e  molfem  Gafpar  Maiborqui  em  cara- 
uelias  latinas,  e  Pêro  velho  numa  redonda.  Hi^  neftaarma- 
da  m.uyta  c  muy  luzida  gente  ,  em  que  entrauao   muitos 
fidilgos  e  muytos  outros  moradores  da  cala  d;e!  Rey  em 
muyto  bom  foro  e  outra  gçnte  muyto  limpa  :  e  da  gente 
do  ínar  ,  afora  a  que  era  ordenada  a  cada  nao ,  hia  autra 
muyta  de  fobreíTelente,  e  bombardeyros    para  fe  proue- 
rem.  as  armadas  da  índia  ,  que  as  mercê*:,  honras  ,  e  fauo- 
res,  que  então  fe  faziao  aos  homens  aífy  na  carreyra  como 
Já  em  terra  ,  lhe  dauáo  animo  para  deixarem   Tuas  cafas  , 
e  alguns  fuás  molheres  e  filhos  ,  por  irem  feruir  a  el  Rey  , 
e  por  iíío  a  índia  então  era   fenhora  de   léus  inimigos  ,  e 
todos  os  feus  fuceííos   e  viagens  eráo  proíperas.  O  conde 
partio  do  rio  de  Lixboa  aos  noue  dias  d'Abril  do  anno  de 
I5'24  ,  onde  leuaua  comfigo  dous  filhos  feus  ,  dom  Efte- 
uão  da  gama  feu  filho   fegundo  para  capitão  mór  do  mar  , 
e  dom  Paulo  da  gama  mais  moço  que  efte  ,  e  feguindo  fua 
derrota  com  proípero  tempo  chegou  á  ilha  de  Moçambi- 
que a  catorze  de  Agofto ,  onde  não  íe  deteue  mais  que  eni 
quanto  a  armada  toda  íe  proueo  de  agoa  ,  e  elle  de  liuma 
-verga  que  Uie  quebrara,  que  tudQ  fez  çpi  poucos  dias, 

e 


.'  delRéy  Dom  João  o  Hl.       ii-r 

c''daly  fe  foy  na  volta  da  cofía  de-Melinde  ]  e  -no  cami- 
nho defapareçço  a  nao  de  Franciíco  de  briro  ictn  nunca 
mais  fabcrem  nouas  de] la  ,  e  a  de  dom  Fernando  dç  ir.ou- 
roy  encalhou,  nus  baixos  daquelJas  ilhas  onde  fe  perdeo, 
mas  faluouíe  toda  a  gente  ,  que  ie  recolheo  polias  outras 
fiaos  ,  e  iílo  meiíno  aconteceo  ha  carauella  de  Crillouâo 
rofado.  Na  de  tnoíTem  Gafpar  ,  por  elle  Ter  afpero  de  corx- 
diqao  ,  e  íe  dar  mal  com  a  gente  ,  íe  leuantnrão  contra  elle 
os  marinheyros  e  o  piioto  e  o  meilre  ,  e  o  matarão  ,  c  fe 
forão  com  a  carauella  ao  eftreyto  andar  nas  prezas  ,  donde 
defpois  foraô  trazido?  ,  e  lodos  com  as  vidas  pagarão  eílâ 
ieu  fáo  graue  crime.  Com  eílas  vellas  menos  foy  o  conde 
tomar  na  cofta  da  índia  ,  na  paragem  de  Dabul  ,  onde  fem 
terem  villa  de  terra  ,  e  com  ter  o  vento  calma  ,  fendo  paí-- 
íada  huma  grande  parte  da  noite  deu  tamanho  tremor 
cm  todas  as  nãos  ,  que  cada  huma  delias  íe  ouue  por  per- 
dida ,  cuidando  que  era  baixo  em  que  linha  dado,  e 
que  ella  fó  padecia  aquelle  trabalho  ,  e  lem  entenderem 
o  que  era  fe  faziao  linais  humas  has  outras  com  muytas 
bombardadas  ,  para  íe  guardarem  do  perigo  em  que  a.  cada 
huma  delias  pareci.^  que  eftaua  ,  com  que  a  reuolta  em  to<- 
das  foy  muyto  grande  ,  acudindo  ha  mareagem  ,  amainan- 
do as  vellas  ,  e  iançando  os  bateis  fora  fem  entenderem 
o  que  ,  nem  o  para  que  p  faziao  ,  e  tamanha  era  a  cpnfu- 
íao  ,  que  com  KíDçarcni  o  prumo  e  não  acharem  fundo  fe 
rão  fabião  dará  conklho,  porque  as  nãos  dauao  tama- 
nhas pancadas  que  parecia  ,  que  íe  quebrauao  ,  e  jugauao 
de  tal  mantyra  ,  que  os  homens  fe  não  podiao  ler  em.pé., 
c  as  arcas  andauao  de  huma  parte  para  a  outra  ,  no  qual 
trabalho  eíliuerao  pouco  mais  de  meya  ora  ,  em  que  o 
tremor  não  foy  (empre  continuo  ,  mas  comeíia  com  muy- 
ta  força  ,  e  quietandoíTe  hum  pouco  fe  tornaua  logo  a  aui- 
uar  com  a  melma  força  ,  até  que  ceifou  de  todo.  O  conde 
n'o  d.ixou  lambem  de  eftar  algum  tanto  confufo  com 
eíla  nouidade  ,  porem  hum  medico  que  leuaua  comfigo  , 
que  tinha  confiecimento  da  arte  da  aílrologia  ,  lhe  tirou 
eíta  coafuiaõ;,  dizendolhe  que  era  tremor  do  mar  ,  co  qual 
••i    .'•  d  cie  II-- 


ZLií         Pilmevra  Parte  da  Chroníca 


defengano  f^^hio  ao  conuez  ,'  e  com  a  boca  cheyaderifo 
diíle  ha  gente  que  nao  temelTe  ,  antes  fe  alegraííe  ;  porque 
o  mar  tremia  delles  ,  com  que  todos  ficarão  animados 
e  contentes.  Após  efte  caio  ,  que  foy  aííaz  eftranho  e  def- 
acuftumado  ,  lhe  lucedeo  outro  de  nao  menos  admira- 
ção ,  que  íem  auer  vento  nem  precederem  outros  algunt 
linais  ,  íobreueyo  liuma  cliuua  tão  groí?a  ,  com  tamanha 
força  dagoa  ,  que  parecia  hum  nouo  diluuio ,  porem  co- 
mo durou  pouco,  com  quanto  foy  também  caio  aífaz  noua 
€  edranho  ,  e  hum  e  outro  nunca  vilto  na  nauesacao  át 
Índia,  nao  pos  a  gente  em  tanto  reccyo  como  o  palfado  > 
e  deípois  de  eftar  a  armada  de  todo  quieta,  continuando 
o  conde  íua  derrota  ,  não  tardou  muyto  que  não  ouueíTa 
vifta  de  terra  ,  que  lendo  conhecida  Ter  Chaul  ,  foy  fur- 
gir  na  barra  ,  onde  ha  nao  o  foy  logo  viíitar  Simão  dan- 
drade  capitão  da  fortaleza  ,  e  lhe  mandou  leuar  muyto 
refrefco  para  elle  c  para  todos  os  capitães  da  armada.  O 
vifo  Rey  o  recebeo  com  muyta  honra  egafalhado  ,  po- 
rem meteo  logo  de  poíTe  da  capitania  a  Criílouao  de  fouía 
que  a  rinha  por  prouiíaô  dei  Rey  ,  a  quem  deu  regimento 
que  fe  aly  vieíFe  ter  o  goucrnador  dom  Duarte  não  fizef* 
íe  coufaquelhe  mandaíTe  ,  e  do  que  achaííe  mandado 
por  elle  nada  compriíTe.  E  defpois  de  ordenar  aquy  al- 
gumas couías  que  lhe  parecerão  neceíTariaí:,  porque  tra- 
ria ordem  dcl  Rey  ,  que  onde  quer  que  chegaíTe  proueíTé 
em  tudo  como  ihe  parccefíe,  íem  efperar  que  o  gouernador 
lhe  fizeíTe  entrega  da  gouernança  ,  fe  partio  para  Goa  ,  on* 
de  chegou  a  onze  dias  de  Setembro  deite  anno  de  i^i^^^^ 


CA- 


dei  Rey  Dom  João  o  III.       22  j 
CAPITULO    LIX. 

O  Tifo  Rey  em  Goa  entende  no  que  pertence  a  a  que  II a  cida" 
de ,  vianda  fã^er  jufiiça  de  ires  molheres  ,  que  jorao 
aqueVíe  anno  dejle  reyno.  ParteJJe  para  Cochim  ,  de  ca- 
minho manda  duas  armadas  a  dtuerfas  partes.  Dejeni" 
barca  em  Cananor^faz  amizade  com  el  Key^próue  ajor* 
taleza  de  capitão  nouo  ,  e  chega  a  Cochim^ 


c 


"^  Hegando  o  vifo  Rey  a  Goa  ,  a  cidade  o  recebeo  com 
muyras  e  grandes  feftas  que  lhe  tinha  aparelhadas, 
e  com  todas  as  cirimonias  de  autoridade  que  então  forao 
poíTiueis  ,  tanto  polias  calidades  de  fua  pelToa  ,  quanto 
por  entender  o  inuyto  que  IJie  deuiao  os  Portuguelcs  ,  e 
particularmente  os  habitadores  daquelle  eítado  ,  pois  por 
leu  meyo  vierao  a  ter  noticia  e  o  comercio  delle.  O  vifo 
Rey,  porque  lhe  era  neceííario  paílarfe  a  Cochim  para  dar 
expediente  ha  carga  das  nãos  ,  entendeo  logo  no  defpa- 
cho  do  que  pertencia  ha  cidade  de  Goa  ,  e  ao  outro  dia 
defpois  de  ler  chegado  tirou  a  capitania  delia  a  Franciíco 
pereira  peftana  ,  e  a  entregou  a  dom  Anric^ue  de  meneies 
que  hia  prouido  neiia.  A  gente  da  cidade  ,  que  andaua 
queixofa  de  Franciíco  pereira  por  íem  rezôcs  que  fazia  , 
vendoo  fora  do  cargo  íe  foy  ao  viío  Rey  com  as  queixas 
que  tinha  delle  ,  de  que  também  o  viío  Rey  ja  linha  al- 
guma noticia,  que  a  cada  hum  dos  que  íe  queixauão  íaiis- 
fez  conforme  hacalidadc  da  lua  queixa,  de  que  todos  fi- 
carão tão  contentes,  quanto  Franciíco  pereyra  defcontcn- 
tcnte  ,  por  lhe  cullar  de  lua  fazenda.  E  porque  deíejaua 
ter  os  (bldados  contentes  ,  como  quem  bem  entendia  quão 
importante  iílo  he  pêra  o  meneyo  da  guerra  ,  fez  logo  pa- 
gamento geral  da  preía  de  huma  nao  de  Meca  ,  que  íe  to- 
mou quando  elie  vinha  de  Chaul  ,  em  que  fe  acharão  cem 
ir.il  xerafins  em  ouro  ,  e  muyras  mercadoriíís  ,  e  efcrauos 
que  importarão  muyto  mais  ,  de  que  fcz  feitor  e  guarda 
Fcrnío  manins  euangelho  ,  e  com  elIe  Bcfílião  luiz  eícri- 
*ião  da  nicitricuia,    que  tudo  puferao  em  arrecadação  ,  de- 

que 


^;x4       Pfimeyra  Parte  da  Chroiiica 

que  fe  entregou  has  partes  o  que  lhes  cabia  Tem  quebra 
ou  tV.Ira  alguma  :  o  qual  pagamento  chegou  até  a  alguns 
doentes  qu;e  eílauáo  no  eíprital  ,  que  de  lá  fairão  a  rece- 
bclÍQ.  'Entcndeo  também  em  mandar  caftigar  três  molhe- 
rcs  ,  que  quando  chegou  a  Moçambique  achou  que  vierao 
aquelle  anno  do  reyno  na  fua  armada  ,  porque  eftando 
elle  ainda  no  rio  de  Lixboa  ,  quando  íe  queria  partir  , 
entendendo  quão  abominauel  coufa  he  embarcarem  hos 
homens  comíigo  moíheres  nas  nãos  poUo  grande  e  eui- 
dente  perigo  de  íuas  almas  ,  e  polias  difFerenças  e  brigas 
que  íobr'ilTo  podem  faceder  ,  mandou  apregoar  em  ter- 
ra e  nas  nãos  ,  e  pôr  efcritos  nos  peis  dos  maílos  ,  afllna- 
dos  por  eMe  ,  que  toda  a  molher  que  fofle  achada  ctn 
qualquer  nao  da  barra  para  fora  feria  na  índia  açoutada 
pubricamente  inda  que  folTe  caiada  ,  e  feu  marido  torna- 
ria a  Portugal  carregado  de  Ferros  ,  €  fe  foíle  efcraua  ca- 
tiua  ,  feria  perdida  para  a  rendição  dos  catiuos  ,  e  o  capi- 
tão que  tia  íua  nao  achaíle  molher  ,  €  a  não  entregaffe  ,  per- 
deria íeu  ordenado  ,  dos  quais  pregoes  mandou  ao  ouui- 
dor  que  fizelTe  autos  para  por  elles  íe  proceder  contra  que 
foíTe  juíliça  ,  e  chegando  a  Moçambique  lhe  forão  deícu- 
bertas  ns  três  moíheres  que  atras  difle  ,  as  quais  mandou 
por  a  bom  recado  até  eíle  tempo  ,  em  que  mandando  cor- 
rer com  a  juíliça  ,  c  condenandoas  a  íercm  açoutadas 
com  pregão  pubrico  ,  acudirão  em  fauor  delias  ao  vifo 
Rey  todo  o  género  de  homens,  que  parecia  que  podião  ter 
com  elle  alguma  valia,  e  a  que  elle  podia  ter  refpeito  ^ 
quais  forão  o  Biípo,  os  fidalgos  quafi  todos  ,  muytos  re- 
Jigioíos  ,  e  até  os  irmãos  da  mifericordia  ,  e  não  faltarão 
homens  de  bem  que  dauão  pollo  perdão  delias  trcs  mil 
pardaos  para  a  rendição  dos  catiuos  ,  mas  nada  difto  ba- 
ilou para  abrandar  o  vifo  Rey  ,  e  mandou  que  a  fentença 
le  executafle  :  comtudo  ao  outro  dia  em  que  fe  auia  de 
fazer  a  execução  aperrarão  com  elle  de  nouo  ,  e  parti- 
cularmente alguns  religioíos  de  S.  Franclfco  cos  irmãos 
da  miíericordia  ,  vfando  de  alguns  termos  de  que  aquella 
cala  cuíluma  víar  para  feroelhantes  caíos ,  a  que  elle  não 

fó- 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  225 

fomente  não  deu  orelhas  ,  mas  lhes  diíTe   que  aquillo  pa- 
recia modo  de  uniaô  ,  e  dar  a  entender  ao  pouo  que  era 
elle  cruel  e  deíarrezoado^  quando  fazia  o  que  era  juíliça  e 
rezaó.   A  Jentença  em  íim  íe  executou  com  aílaz  de  efcan- 
dalo  de  todo   o  pouo  ,  que  ouue  o  viío  Rey  por  homem 
inexorauel  e  fem  piedade  ,   mas  não  fem  grande  proueito 
da  Republica  ,  porque  o  temor  daquella  juíliça  fez  então 
emendar   muytos  males  que  auia  na  índia  ,  principalmen- 
te na  gente  nobre  ,   em  que  auia  muyta  foltura  e  difiolu- 
ções.  Acabando  o  vifo  Rey  de  prouer  neftas  coufas  e  nou- 
tras  importantes  ao  íeruiço  dei  Rey  ,  e  ao  bem  daquella 
cidade  ,  e  de  toda  a  índia  ,  detriminou  de  fe  paíTar  a  Co- 
chim  j  e  deu  ordem  a  dom  Anrique  capitão  de  Goa  ,  que 
tanto  que  aly  chegaííe  o  gouernador  dom  Duarte  de  me- 
neies ,  que  era  ido  a  Ormuz  como  atrás  difíemc?  ,  o  não 
deixaíle  deíembarcar  ,  nem  lhe  obedeceffe  em  couía  algu- 
ma ,  antes  lhe  diíIeíTe  da  fua  parte  que  logo  fe  foíle  a  Co- 
chim  ,  onde  o  efperaua  para  o  defpachar  para  o  reyno  ,  e 
fe  embarcou  em  huma  galeota  que  aly  achou  feyta  de  no- 
uo  ,  acompanhado  de  pouca  gente  de  feu  feruiço  ,  e  leuou 
comfigo  féis  fuftas  com  que  foy  ao  longo  da  terra  ,  e  as 
nãos  da  armada   mandou  que  foíTem  ao  mar  ,  e  de  cami- 
nho foy  entrando  por  todos   os   rios  para  ver  o  fitio  ç 
deípoíição  delles  ,  e  indo  correndo  a  coíla  teue  nouas  que 
nos  rios  de  Mangalor  e  Bacanor  íinhão  os  paraos  de  Ca- 
lecut feitores  ,  que  lhe  vendião  as   preías  ,  e  carregauao 
arroz  ,  que  leuauao  a  Calecut  ,  nas  barras  dos  quais  rios 
mandou  o  viío  Rey  pôr  Jeronymo  de  foufa  ,  e  Manoel  de 
macedo  ,   com  baílantes  embarcações  para  lhe  defenderem 
eíle  trato  :  chegando  a  Cananor  lhe  foy  feito  o  deuidò  re- 
cebimento ,  onde  o  Rey  da  terra  defejoío  de  o  ver,  polias 
grandes   coufas  que  llie  contauao  ,  que  fizera  no  defcubri- 
mento  da  índia  ,  e  deípois  cm  Calecut ,  o  foy  logo  vifitar 
e  aíTentarão  antre  íy   grande  amizade  ,  e  fe  derao  ricos 
preíentes.  Aqui  fe  deteue  o  viío  Rey  três  dias  em  que  me- 
teo  depoííe  da  capitania  a  dom  Simão  de  meneies  ,  por  ja 
ter  acabado  feu  tempo  dom  João   da  filueyra  ,  e  partindo 
Farte  L  Ff  *  da- 


2  2(5       Primeyra  Parte  da  Chronlca 

daquy  embarcado  em  Inima  nno  ,  pafíou  de  noite  por  Ca* 
Jecur  porque  foube  que  eílaua  leuantado  contra  os  nof» 
fos  ,  com  quanto  anrrVlIcs  não  auia  peleja  ,  porque  em 
a  gente  da  terra  tendo  noticia  da  vinda  do  viío  Rey  cof 
meçou  a  comunicar  cos  noíTos  ,  e  ha  porta  da  fortaleza  lhe 
leuauáo  a  vender  todo  o  género  de  mantimentos.  Saben-, 
doííe  em  Cochim  ,  que  o  vifo  Rey  vinha  ja  perto  ,  íahio 
logo  a  rccebello  ao  mar  o  doutor  Fero  nunez  veador  da 
fazenda  ern  hum  batel  grande  ,  concertado  de  maneyra  , 
que  pudeíTe  defembarcar  nclle  íe  quiíeíTe  ,  porem  nao  o 
pode  tomar  fenao  em  Cranganor,  donde  não  pudera  paí- 
íar  por  lhe  afracar  a  viração  :  o  vifo  Rey  lhe  fez  muita 
honra  e  gafalhado  ,  polia  boa  informação,  que  trazia  del- 
le  de  quão  bem  fazia  o  feruiço  dei  Rey  ,  e  o  deteue  com- 
íigo  aquella  noite  praticando  nas  couías  importantes  a 
toda  a  índia.  Ao  outro  dia  dom  Luis  de  micneles  ,  irmão 
do  gouernador  dom  Duarte,  fe  embarcou  no  galeão  S. 
Luis ,  que  clle  fizera  nouo  aquelle  inuerno  ,  e  o  tinha  fora 
da  barra  aparelhado  ja  de  tudo  o  neceílario  ,  e  com  elle 
todos  os  fidalgos  que  então  aiy  eílauão  ,  e  íe  foy  embulca 
do  vifo  Rey  ,  que  hia  muito  ao  mar  coterrenho  ,  e  che- 
gando por  popa  da  fua  nao  ,  delpois  de  lhe  fâzer  a  deuida 
í*Iua  com  a  bandeira  ,  que  trazia  de  capitão  mor  do  mar 
que  era  ,  e  ficar  íem  ella  ,  le  meteo  no  íeu  batel  com  todos 
os  fidalgos  ,  e  íe  foy  ha  nao  ,  onde  o  vilb  Rey  o  veyo  re- 
ceber ao  bordo  com  muytas  feílas  e  gafalhado  ,  e  na 
tolda  re-ccbeo  os  fidalgos  ,  que  com  elle  iiiâo,  com  muytas 
cortefias  ;  aquy  deípedindo  o  veador  da  fazenda  ,  que  io- 
go  fe  foy  a  terra  ,  ficou  praticando  com  dom  Luis  ,  de 
cujas  boas  partes  o  veador  da  fazenda  lhe  dera  larga  in- 
formação ,  que  elle  também  trazia  do  reyno  ,  e  neftas  pra- 
ticas forão  gaílando  o  tempo  até  que  veyo  a  viração  , 
que  voltarão  para  Cochim  ,  onde  chegarão  delpois  do  foi 
pofto  j  e  antes  que  furgifíem  íe  deípidio  dom  Luis  do  vifo 
Rey  ,e  fe -tornou  ao  feu  galeão  que  eílaua  muyto  afaílado 
do  lurgidouro  das  nãos  ,  e  o  vilo  Rey  ,  por  íer  ja  tarde  , 
íe  deixou  ficar  aquella  noite  na  nao,  onde  ao  outro  dia 

foy 


dei  Rey  Dom  Joáo  o  IIÍ. 


22' 


fov  viíitado  dei  Rcy  por  hum  íeu  regedor.  Dom  Luís  íc 
foy  inda  aqiiella  noite  a  terra  ordenar  cos  oíFeciais  da  ci- 
dade o  recebimento  ,  que  ao  outro  dia  fe  auia  de  fazer  ao 
vilb  Rey  ,  o  qual  fe  fez  co  mor  aparato  ,  que  até  então  e 
fizera  a  ninhum  gouernador  da  índia.  Ao  outro  dia  polia 
menham  fe  embarcou  o  vifo  Rey  no  feu  batel  ,  que  ja  ti- 
nha aparelhado  ,  e  não  quis  aceitar  de  dom  Luís  huma 
galé,   que  lhe  trouxera   para  ilTo   muito  bem  efquip^d.a  , 
dandoliic  todauia  graças  polio  cuidado  e  deligencia,  c  del- 
culpas  de  lha  não  aceitar  ,   e  dom  Luís  íe  embarcou  com 
ellc  no  batel  ,  e  em  quanto  forSo  caminhando  para  a  terra 
antre  outras  praticas  lhe  veyo  a  tratar  do  gouernador  ieu 
irmão,  a  que  lhe  elle  refpondeo  algum  tanto  íecamente  , 
pondolhe  algumas  culpas   do  tempo  da  íua  gouernança  , 
de  que  ja   no  reyno  auia  muyta   noticia  ,    de  que    dom 
Luís  ficou  alíaz  fentido  ,   porque  o  tinha   por  muyio  in- 
teyro   na  juftica.    Chegados  ha  praya  ,  o  vjfo  Rey  foy  re- 
cebido CO  aparato  que  lhe   eílaua  preíles  ,  afly  do  ecleha- 
ftico  como  do  fecular  ,  e  cílando  fazendo  oração   na  igre- 
ja ,  lhe  derão  recado  que  vinha  el  Rey  de  Cochim  a  velio, 
a  que  elle  acudi.o  logo  ,  e  el  Rey  decendoíTe   do    alifante 
o  abraçou   muytas    vezes,  e  aflentados  no  aipendre  da 
jcrreja  ,    praticarão  algum  efpaço  ,    e   defpidido   el  Rey 
delle  ,  fe  foy  elle  apofentar  na  fortaleza  ,  onde  começou 
logo  a  entender  na  carga  das  nãos  com   muyta   prelTa  , 
vifitando  a  ribeyra   e  os  almazens  por  lua    peíToa  ,   Icm 
tomar  em  todo  o  dia  algum  efpaço  de  repouío. 


Ff  2  CA- 


2  28         Primeyra  Parte  da  Chronica 
C  A  P  I  T  U  L  O    LX. 

O  capitão  de  Goa  dom  Anrique  de  menefes  manda  huma 
armada  em  bufca  de  certas  fuflas  de  mouros  que fairão 
do  rio  de  Da  bui ,  de  que  jez  capitão  mor  Crijiouao  de  bri- 
to ,  tem  cos  inimigos  huma  cruel  e  afpera  peleja  e  ofu- 
cejjo  della^ 

POuco  tempo  defpois  que  o  vifo  Rey  íe  partio  de  Goa, 
vieraô  nouas  a  dom  Anrique  de  menefes  capitão  da 
cidade  ,  que  do  rio  de  Dabul  íairão  algumas  fuftas  bem  ar- 
madas ,  que  tomarão  huma  rica  nao  ,  que  vinha  de  Ormuz 
com  cauallos  para  Goa  ,  para  o  que  mandou  logo  fazer 
preíles  três  fuítas  e  quatro  catures  bem  prouidos  de  arti- 
Jiiaria  e  munições  ,  e  embarcou  nelles  cento  e  vinte  ho- 
mens efpingardeyros  ,  de  que  fez  capitão  mór  Criftouão 
de  brito  ,  fidalgo  mancebo  de  grandes  eípiritos  ,  a  quem 
mandou  que  íe  não  vieíTe  íem  pelejar  com  aquellas  fu- 
ítas.  CriftouSo  de  brito  fe  foy  a  Dabul  ,  onde  foube  que 
as  fuífas  andauão  de  fora  ,  de  que  ficou  aíTaz  contente,  e 
porque  receou  ^  que  fe  as  foíTe  buícar  ao  mar  as  erraria  , 
porque  podçriao  vir  por  outro  caminho  ,  e  meteríe  no 
rio  ,  e  que  íeria  grande  trabalho  illas  buícar  dentro  para 
pelejar  com  ellas  ,  ordenou  que  fe  pufeíTem  íobrc  o  rio  , 
e  que  os  catures  o  vigiaíTem  por  ambas  as  partes  ,  e  tam- 
bém vigiaíTem  o  mar  ,  e  em  auendo  vilta  das  fuílas  fizef- 
íem  final ,  e  fe  recolheíTem  ao  capitão  mór.  O  digar  de 
Dabul  tendo  noticia  diíto,  buícou  maneira  com  que  man- 
dou dar  auiío  has  fuás  fuftas  ,  que  erão  noue  grandes  e 
bem  concertadas  ,  que  íendo  noite  fevierao  pôr  defron- 
te da  barra  de  Dabul  ,  tão  longe  que  não  pudefiiem  íer 
viílas  dos  noflos ,  e  quando  foy  tempo  da  maré  ,  tomando 
as  vellas  e  abatendo  os  maílros  ,  a  remo  íe  vierao  che- 
gando delongo  da  terra,  com  fundamento  ,  que  íe  os 
íioílos  deíTem  com  ellas  fe  íaluarião  nella  ,  por  quanto  vi- 
nhão  muyto  carregadas  com  a  preía  que  trazião  ,  e  aííy 
foião  fem  os  noíTos  terem  fentimenío  delias  :  a  noíla  ar- 
mada 


dei  Rey  Dom  joao  o  III.  iigt 

macia  em  fendo  menham  clara  co  vento  da  terra  íe  foyr 
na  volta  do  mar  ,  para  com  a  viração  íe  tornar  a  deman- 
dar a  terra  :  os  mouros  vendo  que  as  noílas  fuílas  hião 
para  o  mar,  eja  tão  longe  que  ainda  que  os  viíTem  não 
podião  tornar  com  tanta  prefla  ,  que  os  alcançaílem  ,  fe 
forão  a  remo  meter  no  rio  de  Dabul  ,  pondo  muytas 
bandeyras  ,  e  deíparando  muyta  artelharia  ,  e  tanto  que 
entrarão  no  rio  defcarregarão  logo  toda  a  prefa  ,  e  fe  co- 
meçarão a  fazer  preftcs  para  fairem  fora  a  pelejar  cos  nof-* 
los  ,  porque  eílauao  bem  prouidas  de  gente  bem  armada  , 
em  que  auia  alguns  Rumes  ,  e  muytos  frecheyrcs.  Os 
noflos  de  lá  do  mar  bem  virão  entrar  as  furtas  no  rio  ,  e 
Jogo  fe  aperceberão  para  entrarem  nelle  a  pelejar  com  el- 
las  ,  e  chegando  ha  barra  não  poderão  logo  entrar  por 
cauía  da  grande  corrente  da  m.aré  que  então  vazaua  ,  e  íe 
puíerão  em  ordem  para  as  fuílas  fe  lhe  não  poderem  ic 
fem  elles  as  verem  ,  porem  o  capitão  mor  para  faber  a 
detriminação  dos  mouros  ,  mandou  aquella  noite  alguns 
marinheyros  ,  que  a  nado  forão  a  terra  ,  e  antemenham 
lhe  trouxerâo  recado  que  as  fuílas  íe  eílauão  aparelhanda 
para  fairem  fora  a  pelejar  com  elle  ,  e  que  tinhão  muyta 
gente,  com  que  os  noíTos  ficarão  contentes,  por  eícuíarera 
o  trabalho  de  os  irem  bufcar  lá  dentro  ,  e  fe  começarão 
a  aparelhar  para  a  peleja.  O  capitão  mor  deu  ordem  aos 
outros  capitães  que ,  tanto  que  as  fuílas  dos  mouros  apare- 
ceííem  ,  íe  foíTem  na  volta  do  mar  ,  dando  a  entender  que 
fugião  ,  porque  tomando  os  inimigos  lá  no  largo  ,  como 
as  noíías  embarcações  erão  ligeiras  ,  e  fe  remauao  milhor 
que  as  íuas  ,  que  erão  grandes  e  pefadas  ,  poderião  pele- 
jar com  ellas  da  maneyra  que  quiíeílem  ,  o  que  a  todos 
pareceo  bem.  As  fuílas  dos  mouros  em  tendo  tempo  fai- 
rão  do  rio  com  grandes  gritas  e  muytas  feílas  ,.  e  vendo 
os  noílos  ir  ha  vcUa  para  o  mar  ,  cuidando  que  lhe  fugiao, 
ie  forão  trás  elles  todas  aíio  huma  ante  outra  ,  e  a  capitai,. 
na  diante,  e  fendo  ja  tão  afaílados  da  terra  que  ao  capi- 
tão mor  pareceo  tempo  para  o  que  detriminaua  ,  fupita- 
mente  a  vella  e  a  remo  voltou  fobre  ellas ;  o  que  todos  os 

ou- 


1^0        Primevra  Parte  da  Chronica 

outros  triinbcm  fizerão  ,  e  vendo  os  inimigos  que  os  nof- 
fos  díiuão  moílras  de  quererem  pelejar  com  elles  ,  íe  em- 
baraçou a  fua  capitaina  por  não  poder  voltar  com  tanta 
preíTa  como  quiJera,  com  que  as  outras  fuílas  fe  embara- 
çarão também  humas  com  as  outras  de  maneyra  ,  que  ti- 
Hcrío  CS  noíTos  tempo  para  lhe  tomarem  a  terra  ,  e  ficarem 
a  balrauento  delias.  O  capitão  mór  ,  que  hia  com  a  fua 
gente  bem  concertada  e  pofta  em  ordem  ,  foy  logo  íobre 
a  capitaina  ,  porem  os  outros  noíTos  capitães  vendo  as  fu- 
ftas  dos  mouros  grandes  ,  e  com  muyta  gente  ,  parece  que 
tomados  de  algum  receyo  diíferão  ao  capitão  mór  ,  que 
parecia  temeridade  pelejar  com  tamanho  poder  ,  onde  a 
perdição  eftaua  mais  certa  que  a  vitoria,  ao  que  lh'el!e 
reípondeo,  que  auia  de  pelejar  com  aquclles  mouros  ,  que 
viera  buícar  ,  que  como  feu  capitão  mór  que  era  lhes 
inandaua  ,  que  fizeíTem  elles  o  meímo,  fenão  que  vclla  e 
remo  tinhão  para  íe  irem  por  onde  quiíeílem  ,  que  ao  vifo 
Rcy  darião  conta  de  fy  ,  e  com  ifto  foy  logo  abalroar  a 
fuíla  capitaina  dos  inimigos  ,  o  que  também  fizerão  as 
outras  duas  fuílas  ,  e  hum  catur  ,  porem  os  outros  três  fe 
forão  fugindo  para  o  mar.  As  noíTas  coatro  embarcações 
abalroarão  antre  todas  as  fuftas  dos  mouros  como  milhor 
puderão  ,  onde  forao  tantos  os  tiros  de  bombardas  ,  d'ef- 
pingardas  e  de  frechas  ,  que  ficarão  muytos  mortos  e  fe- 
ridos de  ambas  as  partes  ,  de  que  os  noííos  ,  como  erao 
poucos  ,  leaatião  o  pior  ,  e  ja  eftauão  bem  arrependidos 
de  terem  cometido  aquelle  feito  :  comtudo  não  deixa- 
iião  de  pelejar  com  muyto  esforço  ,  e  na  mayor  força  da 
peleja  derão  huma  frechada  polia  garganta  ao  capitão 
Chriílouão  de  brito  ,  de  que  logo  cahio  morto  ,  o  que  os 
noílos  não  viraó  com  a  grande  preíía  em  que  andauaõ  de 
fe  defenderem  ,  que  pelejauaõ  como  homens  que  fó  nos 
feus  braços  tinhaõ  a  íua  faluaçao  ,  e  coFtitudo  naò  deixa- 
uao  de  chamar  pollo  flmor  diuino  ,  que  então  lhe  não  fal- 
tou como  nunca  feita  naqucllas  coufas,  a  que  o  mundo  nap 
pode  dar  remédio,  para  moftrar  o  feu  grande  poder  e 
mifericordia  ,  porque  pcrmitio  então  que  eítando  o  ca^pi- 

tão 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  231 

tao  mor  dos  inimigos  íobre  o  bailen  da  íua  fufta  ,  donde 
bradaua  e  esforqaua  os  feus ,  lhe  deu  hum  pilouro  de  ef- 
pingarda   polia  cabeça  ,  de  que  logo  cahio  morto  ao  mar 
ha   viíla  dos   léus  ,  e  dos  noíTos  ,   que   leuantaraõ  huma 
grande  grita  ,  e  cobrarão  tanto  de  forças,  e  de  animo  com 
que  pelejauão  de  nouo  ,  quantos  os  inimigos  de  fraqueza, 
com  que  fe  puícr^o  logo   em  desbarato  ,  c  muytos  delles 
íe  lançarão  ao  iivar  para  tomarem  o  feu  capitão,  cuidando 
que  não  era  ainda  morto  ,  onde  os  noílos  acudirão  logo 
e  entrarão  a  fuíta  capitaina  ,  e  a  tomarão  com  morte  de  to- 
dos  os   que  acharão  nella  ,  e  o  catur  ha*  lançadas  andou 
matando  todos  os  que  fe  lançarão  ao  mar.  As  outraa  fu- 
ílas  dos  mouros  vendo  tomada  a  fua  capitaina  íe  começa-- 
rão  a  retirar  ,  porem  os  noílos  como  andauão  ja  com  no- 
uas   forças  e  animo  as  forao  abalroar  ,  e  as  entrarão  ,  em 
que  lambem  tiuerao  rauyta  boa  ajuda  dos  marinheyros, 
e  dos  remeiros  ,   que  lançauao  muytas  panellas  de  poluo- 
ra  com  muito  animo  ,  vendo  a  fraqueza  dos  inimigos  que 
hião  ja  de  todo  perdidos.  Os  três  capitães  dos  catures,  que. 
forsõ  fugindo  para  o  mar ,  enuergonhados  de  lhe  dizerem 
os  léus   remeiros   Canarins  e  Mocadoes  ,  gente  barbara  , 
que  o  vifo  Rey  os  auia  de  mandar  enforcar  ,  porque  fo- 
rao fugindo  quando  os  outros  ficauaô  pelejando  ,  e  receo- 
fos  do  caftigo   que  o  vilo  Rey  lhes  poderia  dar  ,   volta- 
rão para  os  noílos  ,   e  chegando  has  fuílas  dos  mouros  as 
esbombardearad  de  fora  ,   e  has  efpingardadas  e  com  pa^ 
nellas  de  poluora  tomarão  duas  delias  ,   de  que  todos  os 
mouros  fe  deiíaraó  ao  mar  ,  o  que  vendo  as  outras  fuftas 
fe  quiferão  pôr   de  todo  em  fugida  ,    porem  na6  puderao-, 
porque  os  feus  remeyros  lhe  fugiaô  todos  a  nado  com  me- 
do do  fogo  das    panellas  ,  bradando   que  o  feu   capitão 
grande  era  ja  rnorto  ,  e  affi  aprouue  a  noíío  Senhor  dar 
aos  noíTos  eita  taõ  glorioía  e   taô  arriícada   vitoria,   cm 
que  lhe  íicaraó  nas  maõs  das  noue  fuítas   as  fete  ,  e  as  ou- 
tras duas  efcaparão  por  naò  auer  tempo  de  irem  os  catu- 
res trãs   ellas  :   morrerão   neila  peleja   mais   de  trinta  dos 
noííos  ,  e  dos  mouros  mais  de  coano  centos,  os  mais  del- 

ks 


232        Primeyra  Parte  da  CJironica 

les  no  mar  ,  que  dos  caturcs  os  andarão  matando  lias  lan- 
çadas. A  eílas  fetc  fuílas  dos  mouros  ,  em  que  fe  acharaá 
inuytos  tiros  de  ferro  ,    e  muytas  armas  ,  concertarão  os 
noíTos  as  vellas  ,  e  metendolh^  dentro  alguns  marinheyros 
noiros  ,  as  Jeuaraó  as  noílas  embarcações  atoadas  caminho 
de  Goa  ,  Jeuando  também  o  corpo  do  capitão  mor  Cri- 
ftouao  de  brito  amortalhado ,  com  que  ao  outro   dia  ha 
noite  chegarão  ha  barra  ,  donde  mandarão  recado  a  dom 
Anrique  que  vinhaô  com  vitoria  ,  mas  fem  capitão   mor 
que  traziao  morto  ,  elle  lhes  mandou  dizer  que  ao  outro 
dia  polia  raenham  fe  embandeiraíTem  ,   e  enramaíTem  ,  e 
ataílem  as  fuílas  dos  mouros  por  fuás  popas  lem  vellas  ,  e 
afly  entrafiem  pollo  rio  dentro  com  muyta  fefta  e  defpa- 
rando  toda  a  artilharia  ,  o  que  affi  foy  feyto.  O  -capitão 
Gs  foy  efpcrar  ao  caez  com  muyta  gente  da  cidade  ,  onde 
recebeo  os  capitães  e  os  foldados  com  muytas  honras  ,  e 
fez   leuar  a  enterrar  o   corpo  de  Criílouao   de   brito  ao 
mofteyro  de  íaó  Francifco  ,  acompanhado  de  muytos   fa- 
cerdotes  com  muyta  cera  acefa  ,  e  lhe  mandou   fazer  hu- 
mas  honradas  exéquias.  Após  ifto  mandou  logo  varar  as 
fuftas  dos  inimigos,  que  erão  muyto  boas  ,  e  vinhao  mal 
tratadas  da   noíTa  artilharia  ,    e  defpois  de  concertadas 
mandou  coatro  delias  a  Cochim  ao  vifo  Rey  ,  e  darlhe  as 
nouas  ^daquella  vitoria  ,    com  que  elle  também  recebeo 
muito  contentamento,  c  as  mandou  debaixo  da  capitania 
de  Diogo  martins  de  lemos  ,  que  embarcado  em  huma  ga- 
leota  hia  por  feu   mandado   tomar   o  rio  de  Mangieirão 
alem  do  monte  Dely  ,  onde  tinha  fabido  ,  que  também  os 
paraos  tinhao  eícalla  de  mantimentos   como  nos   rios  de 
Mangalor  ,  eBacanor,  emqueja  tinha  pofto  guarda,  e 
como  tinha  aíTentado  comfigo,  tanto  que  acabaíTe  de  defpa- 
char  ao  nãos  para  o  reyno  ,  fazer  cruel  guerra  por  roda  a 
coíla  da  índia,  lhe  deu  a  mayor  preíía  que  pode  ,  e  man- 
dou a  Ceilão  buícar,  a  canella  em  duas  nãos  do  almazem 
que  o  veador  da  fazenda  comprara ,  e  andauão  bem  arma- 
das e  aparelhadas  ,  em.  cuja  companhia  mandou  em  outro 
íiauio  Duarte  de  melo  para  capitão  de  Ceilão  ,  e  que  fc 

vieíle 


r/A.  deíRey  dojn  João  o  III.         233 

viefíe  Fernão  Gomez  de  lemos  ,  que  tinha  ja  acabado  feu 
tempo  ,  e  de  quem  não  tinha  boas  informações  ,  e  lhe 
pôs  pena  de  morte  ,  que  partindo  de  Ceilão  não  tomaííe 
outro  porto  íenáo  Cochim. 

C  A  P  I  T  UrL  O    LXL 

El  Rey  manda  fazer  prejies  o  que  he  necejjario  para  a  Rai- 
nha  vir  a  ejie  rtyno  ,  manda  fará  iffo  os  If antes  dom 
Luís  ,  e  dom  Fernando  feus  irmãos  ,  que  na  raya  tomao 
entrega  delia  ,  -manda  a  Pêro  correa  huma  detriminaçao , 
€  outra  a  Damião  diaz  de  coufas  que  manda  que  j^fa» 
ção^  quando  a  Rainha  entrar  nejie  reyno.  El  Rey  a  efpera. 
na  villa  do  Crato ,  ahyfe  recebem ,  e  fe  pajjão para  Al- 
meyrim,  .j; 

VEndo  El  Rey  noílo  fenhor  de  todo  concruido  o  feu 
cafamento  com  a,  Ifante  dona  Caterina  inuam  do 
Emperador,  com  grande  íatisfação  de  ambas  as  partes , 
e  parecendolhe  rezão  e  deiiido  não  dilatar  mais  a  fua  vin- 
da por  fatisfazer  aíTy  ao  gofto ,  que  o  feu  pouo  c  todos 
feus  vaíTallos  moftrauão  dero  vercraja  caiado  ,  como  ha 
neceííidade  ,  que  entendia  que  o  íeu  reyno  diíTo  tinha  , 
fez  logo  ordenar  com  muyta  breuidade  tudo  o  que 
era  neceílario  para  eíta  vinda  ,  e  a  primeyra  coufa  que 
ordenou  foy  ,  que  os  Ifantes  dom  Lui?  e  dom  Fernan- 
do -feus  irmãos,  foffem  lia  raya  embuíca  da  Rainha  ,  acom- 
panhados'de  tanta' e  tão  nobre  gente,  quanta  lhe  pa- 
receo  que  cumpria  a  íua  honra  ,  e  autoridade  ,  e  ha  daquel- 
la  Ifante  ,  que  vinha  a  íer  íua  molher  ,  e  íenhora  deíle  feu 
reyno.  O  que  tudo  foy  preftes  com  tanta  preíTa  ,  que  íe 
partirão  no  iim  defte  mefmo  anno  de  i5'24  ,  mas  nem  por 
HTo  deixou  cada  hum  de  ir  taô  cuíloío  e  bem  acompanha- 
do ,  que  bem  moílrauaó  todos  o  grande  gofto  e  aluoroço 
coni  que  faziaó  aquella  jornada.  Antre  os  fidalgos,  que  fo- 
rao  neíla  companhia  ,  foy  hum  o.mefmo  Fero  correa  ít' 
nhor.da  villa  de  Bellas  ,  que  fora  a  Caílella  por  hum  dos 
^i  Farte  L  Gg  .P^o- 


2  34       Pfimeyra  Parte  da  Chronlca 

procuradores,  que  fua  Alteza  lá  mandara  a  concertar  o  íeu 
cafamento,  a  quem  encomendou  algumas  couías,  que  com» 
priaÔ  ao  feruiço  da  Rainha  e  ao  feu  ,  porem  elle  naõ  con- 
tente ainda  co  que  fua  Alteza  llie  encomendara  ,  lhe  man-^ 
dou  do  caminho  perguntar  outras  coufas  em  que  nao  atre- 
uia  a  fe  dcirirainar  lem  feu  mandado,  que  lhe  el  Rey 
agardeceo  ,  e  o  ouue  por  íeu  feruiço  ,  as  quais  eraô  ,  que 
cortcfía  auia  de  fazer  a  Rainha  aos  Ifantes  ,  e  ao  duque  de 
Bragança  ,  e  fe  aos  Ifantes  auia  de  chamar  irmãos  ,  e  íe  em 
Eluas  daria  a  Rainha  ferao  ,  c  em  que  lugar  da  caía  ella 
«fiaria  quando  el  Rey  íe  fofle  ver  cora  ella  ,  ao  que  lhe  S, 
A.  refpondeo  o  que  lhe  pareceo  que  era  rezao  e  mais  feu 
feruiço  por  huma  carta  ,  que  mandou  ao  caminho  a  Da- 
mião diaz  ,  fidalgo  de  fua  cafa  e  íeu  eícriuão  da  fazenda  , 
que  por  feu  mandado  também  hia  na  mefma  companhia  , 
a  quem  cícreueo  que  aquella  carta  ,  que  lhe  mandaua  para 
Pcro  correa  ,  lhe  dcííe  logo  como  a  Rainha  chegaíTe  a  Ba- 
dajoz ,  na  qual  carta  lhe  mandaua  S.  A.  que  eftiueíTe  junto 
com  a  Rainha  o  dia  que  fe  íizefle  a  entrega  para  lhe  dar 
aconhecer  as  peíloas  ,  que  lhe  foíTcm  beijar  a  mão  ,  e  lhe 
fazer  S.  A.  a  honra  e  gafalhaila,  que  a  cada  hum  fe  deuia 
fazer  ,  e  do  que  elle  refpondia  .has  couías  que  lhe  manda- 
ra perguntar  lhe  cfcreueo  ,  que  não  deííe  conta  ha  Rainha 
nem  i  outra  peíToa  alguma,  fenão  íe  a  Rainha  trataíTe  com 
elle  de  alguma  delias  ou  por  íy  ,  ou  por  outrem  por  feu 
mandado  ,  e  então  refponderia  ao  que  lhe  perguntaíle  con- 
forme ha  inltrução  que  lhe  mandaua  ,  não  como  que  elle 
lhe  mandaua,  que  rcfpondeííc  daquella  maneyra ,  fenão 
como  que  daua  elle  feu  parecer  no  que  lhe  era  pergunta- 
do ,  e  então  fizeííe  a  Rainha  o  que  lhe  bem  pareceíTe,  e  ao 
mefmo  Damião  diaz  mandou  S.  A.  huma  detriminação 
por  eícrito  da  ordem  que  íe  auia  de  ter  o  dia  que  a  Rainha 
«ntraíTe  neíle  reyno  ,  e  íe  entregaíle  aos  Ifantes  ,  a  qual  di- 
zia dcíla  maneyra.  Ey  por  bem  que  todas  as  peííoas  ,  que 
enuio  cos  Ifantes  meus  irmãos  ,  vão  logo  faindo  d'Eiuas 
todos  juntos  com  elles  ,  e  não  apartados  em  magotes  ,  e 
quç  no  lugar  onde  fe  ouuer  de  íazçr  a  entrega  da  Rainha 
•  cv,  .    •  fc 


dei  Rey  Dom  João  o  III.         235 

íc  deção  todos  apé ,  c  apé  beijem  todos  a  mão  ha  Rainha  , 
e  aíTy  como  cada  hum  railhor  o  puder  fazer  fem  nlíTo  auer 
precedência  ,  c  deípois  de  beijada  a  mão  fe  tornarão  a  pôr 
acauallo.  Deípois  de  rodos  beijarem  a  mão  fe  adiantará 
o  duque,  e  le  decerá  a  pé  para  beijar  a  mão  ,  e  tanto  que 
for  apé  a  Rainha  lhe  mandará  que  torne  a  caúalgar,  c  aíTjr 
a  cauallo  lhe  beijara  a  mão  ,  e  defpois  de  beijada  fe  tor- 
nará a  pôr  apar  dos  Ifantes  meus  irmãos  ,  e  deípois  de  fcr 
junto  com  elles  íc  decerão  os  Ifantes  ,  e  íe  porão  apé  ,  e  a 
Rainha  lhe  mandará  que  caualguem  ,  e  lhe  irão  beijar  a 
mão  acauallo.  O  filho  do  duque  e  comendador  mor  íeu 
fobrinho  beijarão  a  mão  apé  ha  Rainha,  antes  do  duque  lha 
beijar.  Beijada  a  mão  pollos  Ifantes  ,  como  dito  he,  elles 
fe  retirarão  hum  pouco  ,  ficando  o  mais  junto  da  Rainha 
que  for  poíTiuel  ,  e  fe  vierem  o  duque  de  Bejar  ,  e  o  bifpo 
de  Ciguença  (  que  vinhâo  acompanhando  a  Rainha  para 
a  entregarem  na  raya  )  nos  lugares  da  mãodircyta  ,  e  da 
outra  parte  da  Rainha  ,  não  lhe  dando  elles  lugar  ,  efpc- 
rarao  até  le  fazer  a  entrega  ,  e  como  for  feita  tomarão  logo 
léus  lugares  ,  íí.  o  Ifante  dom  Luis  no  milhor  lugar.  Os 
Ifantes  deípois  de  beijada  a  mão  não  cubrirão  as  cabe- 
ças ,  faluo  quando  lho  mandar  a  Rainha  ,  e  ella  íerá 
auifada  para  os  mandar  cobrir  logo.  E  a  iílo  lhe  ajuntou 
S.  A.  De  tudo  o  que  dito  hc  ,  ouue  por  meu  feruiço  vos 
mandar  eíle  regimento  para  antes  da  faida  da  cidade  de 
Eluas  faberem  as  peíToas  principais  ,  c  todas  as  outras  ,  o 
que  niíTo  ordeno  e  mando  ,  e  terdes  cuidado,  para  que  aííy 
fe  faça  ,  e  polia  muyta  confiança  que  de  vós  tenho  quis 
daruos  diíTo  cuidado  antes  que  a  outrem  ,  e  por  iíTo  faze/o 
aííy  bem  como  de  vós  confio.  Mandou  também  el  Rey  ao 
mefmo  Damião  diaz  o  poder  e  procuração  ,  que  dera  aos 
Ifantes  ícus  irmãos,  para  fe  entregarem  da  Rainha,  quando 
cntraíTe  neíle  reyno  ,  da  mão  dos  que  vieííem  com  ella  de 
Caílella  para  efle  efeito  ,  e  que  no  dia  da  entrega  leuaíle 
comfigo  eíle  poder  ,  c  cíliueíTe  o  mais  perto  dos  Ifantes  , 
que  pudeíle  ,  para  que  fe  lho  elles  mandaífem  ,  entregaífe 
o  poder  e  aprocuração  ha  peíToa  que  de  Caílella  vieflc  or» 
-líii  Gg  1  _  dena- 


2^6       Primeyra  Parte  da  Chronica 

denada  para  o  reçefen^r  ,  e  por  virtude  deUe  lhes  ferfeyta 
a  entrega  ,  e  também  fe  pollos  de  Caftella  foííe  requerido 
algum  auto  ,  ou  eícritura  de  como  os  Ifantes  erao  entre- 
gues da  Rainha  ,  eile  ,  como  pubrico  notário  e  geral  que 
era  em  íeus  reynos  cfenhorios,  o  pudeíle  fazer ,  para  a 
que  lhe  daua  leu  poder  e  maado  geral  e  efpecial.  Ja  nefte 
tempo  vinha  a  Rainha  caminhando  para  Badajoz  ,  acom- 
panhada do  duque  de  Bejar  ,  e  do  bilpo  de  Ciguença  ,  que 
trazião  baílantes  poderes  para  a  entregarem  na  raya  a 
quem  de  ca  foíTe  com  poder  para  areceber  de  íua  mão  , 
em  cuia  companhia  vinha  muyta  gente  nobre  de  Caftella, 
áffaz  luftrofa  e  bem  adereçada  :  e  em  cliegando  a  Badajoz 
fendo  ja  também  os  Ifanics  chegados  a  Eluas  ,  no  dia 
que  antr'elles  ,  e  o  duque  foy  aprazado  para  fe  celebrar 
aquelle  aâ;o  ,  fe  juntarão  todos  na  raya  ,  onde  moftrados 
os  poderes  de  parte  aparte  ,  que  para  elle  íe  leuauao  ,  os 
Ifantes  tomarão  entrega  da  Rainha  ,  com  todas  as  cirimo- 
nias  e  feguranças  cuítumadas  naquelles  aítos  ,  em  que  fe 
guardarão  rauyto  inteiramente  as  detriminaçôes  ,  que  el 
Rey  de  ca  mandou  a  Pêro  correa  ,  e  a  Damião  diaz.  Aca- 
bada aquelle  folen^e  e  funtuofo  a(5lo  ,  e  defpedidos  huns 
dos  outros,  a  Rainha  acompanhada  dos  lifantes  fe  foy 
recolher  em  Eluas  ,  e  dahy  veyo  caminhando  para  a  villa 
do  Crato  ,  onde  el  Rey  a  eftaua  eíperando  ,  que  fe  rece- 
berão com  aquelle  amor  e  gafalhado  ,  que  fe  deixa  bem 
entender:  da  quy  ,  deípois  de  aRainha  deícaníar  alguns 
dias  ,  fe  paíTarao  fuás  Altezas  a  Almeyrim  com  tanto  go- 
fto  e  contentamento  aíTy  dos  pequenos  como  dos  grandes, 
quanto  lhes  daua  a  fen ti r  o  entranhauel  deíej^-,  que  todos 
tinhão  de  verem  concruido  e  effeituado  aquelle  cafamen- 
to  do  feu  Rey  e  lenhor  ,  que  agora  tinhão  prefente  ,  e 
muyto  mayor  contentamento  fentirão  delle  deípois,  quan- 
do pollo  tempo  em  diante  a  experiência  lhes  deu  a  enten- 
der as  raras  e  heróicas  virtudes  da  Rainha  dona  Caterina 
jioíTa  íenhora  ,  o  íeu  zello  ardentiífimo  da  religião  Chri- 
ftam  ,  abrandura  da  íua  natureza  ,  as  muytas  mercês  e  fa- 
uores ;  que  fazia  a  feus  vaílallos^e  o  bom  gaialhado  e  aco- 

Ihit 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  237 

Ihimento  que  íempre  todos  geralmente  acharão  nella  , 
Gom  que  de  todos  foy  fempreiao  amada  e  venerada  como 
fe  fora  may  particular  de  cada  hum  delles. 

CAPITULO     LXII. 

Chegão  cartas  de  dom  Rodrigo  de  lima  ,  gue  ejlá  nas  terras 
do  Prejle  João  ,  ao  goiíernaãor  dom  Duarte  ejlando  em 
Ormuz  ^  e  o  de  que  tratao.  O  gouer fiador  ,  a  requer imen» 
to  de  Raix  Xarafa  ,  manda  hum  embaixador  ao  Xeque 
Ifmael ,  e  o  fuce^o  da  embaixada,  O  gouernadorfe parte 
de  Ormuz  para  a  Índia  ,  e  o  que  lhe  jucede  até  chegar 
a  Batícala, 

Estando  o  gouernador  dom  Duarte  em  Ormuz  prouen* 
as  couías  daquelle  reyno  ,  e  fazendo  muyto  proueito 
nas  íuas  ,  aOy  na  venda  das  fazendas  que  leuara  ,  como 
em  rauytos  prefentes  ,  que  o  Raix  Xarafo  lhe  daua  ,  pol- 
lo  ter  contente  ,  e  propicio  ,  chegou  a  Ormuz  hum  João 
gonçaluez  com  cartas  para  elle  de  dom  Rodrigo  de  lima, 
^  que  eílaua  nas  terras  do  Prefte  João,  onde  fora  por  embai- 
xador ,.  como  fica  dito  em  muytas  partes  ,  em  que  defpois 
de  lhe  contar  os  tratalhos  ,  que  padecia  naquelle  deílerro 
com  toda  íua  companhia  ,  lhe  pidia  muyto  por  mercê  e 
por  amorde  Deos  ,  que  pois  elle  fenão  pudera  embarcar 
nas  armadas,  que  forão  em  buíca  delle,  por  ellas  chegarem 
Já  tarde  ,  a  outra  que  mandaíle  foíTe  em  tempo  ,  que  che- 
gaíTe  a  Maçuhá  polo  menos-  em  Março  ,  e  quanto  majs 
cedo  folie  poíTiuel ,  e  que  para  iíTo  lhe  mandafle  que  íe  nao 
detiueíTe  em  outra  ninhuma  parte  ,  nem  fe  embaraçafle 
com  outra  ninhuma  couía  ,  e  a  efte  João  gonçaluez  efco- 
Iheo  dom  Rodrigo  para  trazer  efta  carta  ,  porque  tinha 
conhecimento  de  muitas  lingoas  daqucllas  partes,  e  em 
trajo  de  mouro  íe  embarcou  como  mercador  com  fuás 
mercadorias  em  companhia  de  outros  mercadores  em  hu- 
ma  nao  de  mouros  ,  que  fe  foy  perder  na  coíla  de  farraque 
cm  JBadalcuria,  de  que  fe  elle  faluou ,  e  pidindo  elmola 


cos 


238       Prlmeyra  Parte  da  Chronica 

cos  outros  mouros  perdidos  ,  foy  ter  a  Mafcate  ,  e  dahy 
a  Ormuz  ,  a  quem  o  gouernador  fez  merc^  por  feu  traba- 
lho ,  e  eíle  lhe  contou  tudo  o  que  dom  Rodrigo  tinha  paí- 
íado  CO  Prefte.  Nefte  mefmo  tempo  fe  queixou  o  Raix  Xa- 
rafo  ao  gouernador,  que  alguns  capitães  do  Xeque  Ifmael 
impedião  as  cáfilas  das  mercadorias  ,  que  vinhão  para  Or- 
muz ,  com  que  as  fuás  rendas  recebia©  muyta  perda  ,  que 
lhe  pidia  muyto  ,  que  lhe  mandafse  hum  embaixadora  pi- 
dirihe,  que  lhe  mandaíse  defembaraçar  a  paisagem  das  cá- 
filas ,  pois  el  Rey  de  Ormuz  era  vafsallo  dei  Rey  de  Por- 
tugal, com  quem  elle  tinha  paz  e  amizade  ,  no  que  o  Go- 
uernador proueo  logo  mandando  a  efta  embaixada  Balte- 
far  peísoa  homem  muyto  honrado,  caualeyro  da  ordem  de 
Santiago  ,  que  foy  muyto  bem  concertado  ,  e  acompanha- 
do de  vinte  homens  Portuguefes  ,  tudo  ha  cufta  de  el  Rey 
de  Ormuz  ,  e  foy  em  companhia  doutro  cmbaixndor  do 
Xeque  límael  ,  que  fora  a  Camb.aya.  Partidos  de  Ormuz  , 
forao  ter  ha  cidade  de  Lara  ,  onde  eílaua  por  gouernador 
hum  mouro  vafsallo  dei  Rey  de  Ormuz  ,  mas  com  tanto 
eílado  e  aparato  ,  como  íc  fora  o  mefmo  Rey.  OBalteíar 
peíToa  o  não  quis  ir  vilitar,  e  lhe  mandou  hum  prefente  , 
que  por  íer  de  pouca  íuílancia  lho  não  quis  o  mouro  acei- 
tar ,  de  que  ficou  aísaz  tomado,  e  dctriminando  fazerlhe 
huma  fobrançaria  íe  concertou  muyto  bem  ,  e  fez  con- 
certar os  ícus  vinte  companheiros  com  íuas  eípingardas  , 
com  tenção  de  fe  irpafiear  polia  cidade,  e  palfar  por 
diante  das  cafas  do  mouro  ,  fem  lhe  falar  ,  nem  fazer  caio 
delle  ,  confiado  que  por  fer  vaflallo  dei  Rey  de  Ormuz 
naó  oufaria  de  bulir  comfigo,  ao  que  o  embaixador  do 
Xeque  límael  lhe  foy  ha  mão  ,  dizendolhe  que  aquellc 
mouro  era  íoberbo  ,  e  mal  fofrido  ,  e  não  fc  arrifcaííe  a  lhe 
acontecer  algum  defaftrc  ,  porem  elle  ,  dando  pouco  por 
efte  auiío  ,  fe  foy  polia  cidade  tirando  os  íeus  alguns  ti- 
ros perdidos  por  algumas  partes ,  com  que  também  paí- 
fou  por  diante  das  caías  do  mouro  ,  e  entrando  daly  por 
huma  rua  eftreita  ,  decima  dos  terrados ,  c  dasjaneílas 
lhes  tirarão  tantas  pedradas  ,  que  todos  forão  eícalaura- 
i  >  dos , 


dei  Rey  Dom  João  o  IIL         239 

dos  ,  e  o  Baltefar  peíToa  derrubado  do  cauallo  com  liuma 
pedrada  que  lhe  deu  na  cabeça  ,  e  deíla  mancyra  fe  reco- 
lherão paraíuacafa,  onde  fe  curarão  o  milhor  que  pu- 
derão  ,  e  da  hy  a  dous  dias  feguirão  leu  caminho  em  com- 
panhia do  embaixador  ,  e  paflando  polias  grandes  e  popu- 
ioías  cidades  de  Xiraz  e  Tauriz  ,  que  laÕ  as  principais 
de  toda  a  Períia  ,  c  por  outras  muytas  cidades  ,  villas  ,  e 
lugares  ,  pouoados  de  muyto  limpa  ,  e  luftrofa  gente  , 
chegarão  até  huma  jornada  antes  do  lugar  onde  então  eíla-  - 
na  o  Xeque  Ifmael ,  que  eftaua  no  campo  com  hum  gran- 
de arrayal  de  gente  para  huma  feíla  ,  que  detriminaua  fa- 
zer ,  offerecida  por  huma  doença  graue  de  que  eílaua  mal 
tratado  :  aquy  teue  Balteíar  peíToa  recado  do  veador  da 
cafa  do  Xeque  Ifmael  ,  que  fe  deiiuefse  aly  onde  eftaua  , 
^ue  hera  huma  aldea  pequena  ,  até  ver  outro  recado  feu  , 
o  que  elle  alfy  fez  :  e  daly  a  doze  ou  quinze  dias  ,  dentro 
nos  quais  fempre  de  dia  e  denoite  pafibu  gente  para  o  ar- 
rayal ,  que  hia  para  a  feíla  ,  teue  recado  do  veador  que  fe 
folie  para  lá  ,  para  onde  fe  elle  logo  pôs  a  caminho  com 
todos  os  feus  bem  concertados  ,  c  chegando  ja  perto  do 
arrayal  ,  fahio  a  recebello  hum  capitão  com  cinco  mil  de 
cauallo  ,  que  o  leuou  lá  comfigo  ,  onde  foy  apofentado 
em  huma  grande  e  fermofa  tenda  ,  e  prouido  abundatif- 
fimamente  de  todo  o  género  de  mantimentos  :  e  não  tar- 
dou muyto  que  o  Xeque  límael  lhe  mandou  dizer  que  fe 
deixalTe  aly  eftar  defcançando,  até  que  tiueíTe  tempo  para 
o  poder  ver ,  e  o  deípacharia  logo.  Daly  a  coatro  dias  íe 
fez  a  fefta  com  muyto  aparato  ,  e  magcftade  ,  em  que  ou- 
ue  banquetes  muyto  fumtuofos  ,  e  muyta  variedade  de 
feftas  j  e  jogos  a  íeu  modo  ,  que  durarão  aquelle  dia  e  to- 
do o  outro  ,  porem  Baltefar  peflba  não  ouue  deípacho 
tão  depreísa  como  cuidaua  ,  porque  a  doença  do  Xeque 
límael  foy  cada  vez  fendo  mais  graue,  de  que  veyo  a  mor- 
rer dentro  em  hum  mes  ,  e  os  fenhores  do  rcyno  ,  pordif- 
ferenças  que  tiuerão  íobrc  a  eleyção  do  nouo  Rey  ,  íe 
detiuerão  nella  outro  mes ,  no  fim  do  qual  elegerão  hum 
íobrinho  do  Rey  morto  chamado  Xatamas  >  alho  de  hum 
> .  feu 


240        Primeyra  Parte  da  Chronica 

íeu  irinão  ,  que  também  era  morto  ,  moço  de  idade  de 
quinze  annos  ,  a  quem  o  reyno  vinha  por  direyto.  Defpois 
àc  tudo  fer  quieto  ,  o  noíTo  embaixador  pidio  quehodef- 
pachaircni  ,  e  não  lhe  fendo  concedida  couía  alguma  das 
que  pidia  íe  tornou  para  Ormuz,  defcontente  do  mao 
deípacho,  onde  chegou  delpois  de  fer  o  gouernador  par- 
tido ,  o  qual  acabando  de  prouer  no  que  compria  a  fua 
fazenda  ,  e  a  todas  as  outras  couías  ,  fe  partio  de  Ormuz, 
e  foy  ter  a  Mazcate  ,  e  da  hy  foy  demandar  a  terra  acima 
de  Dio  ,  onde  efpalhou  a  armada  ,  e  íe  deteue  alguns  dias 
efperando  as  nãos  de  Meca  ,  mas  vendo  que  ninhuma^ 
vinha  íe  foy  a  Chaul ,  em  que  eftaua  por  capitão  Chrifto- 
uão  de  fouía  ,  que  em  chegando  o  mandou  logo  viíitar 
com  muyro  refrefco  ,  e  juntamente  dizerlhe  ,  que  como 
a  dom  Duarte  de  menefes  o  feruiria  em  tudo  o  que  lhe 
mandaíTe  ,  porem  como  gouernador  em  nada  lhe  auia  de 
obedecer  ,  porque  aííy  lh'era  mandado  pollo  viío  Rey, 
e  que  da  íua  parte  lhe  requeria  que  não  defembarcaíle  ,  e 
fe  foíTe  logo  para  elle.  Dom  Duarte  ,  tomando  aly  o  que 
lhe  era  ncceíTario  ,  fe  foy  a  Goa  ,  onde  dom  Anrique  lhe 
mandou  dizer  o  mefmo  :  elle  toda  via  íe  deixou  eílar  na 
barra  féis  dias,  fazendo  o  que  lhe  cumpria  ,  e  então  fe  foy 
a  Baticala  ,  onde  efteue  deuagar  prouendoíTe  do  que  lhe 
era  neceílario  para  a  fua  viagem.  Eytor  da  filueyra  ,  que 
vinha  com  elle  vendo  as  dilações  que  andaua  fazendo  ,  e 
que  a  razão  que  para  ellas  daua  era  querer  antreter  o  tem- 
po para  não  chegar  a  Cochim  ,  íenão  quando  ja  as  nãos 
eíliueííem  de  todo  carregadas  ,  para  íe  partir  logo  para  o 
reyno  ,  fem  ter  que  entender  co  vifo  Rey  ,  lhe  pidio  li- 
cença para  fe  ir  a  Cochim,  que  lhe  elle  então  não  quis  dar, 
porem  replicando  Eytor  da  filueyra  lha  deu  com  toda  a 
armada  para  a  leuar  comíigo  ,  tirando  íos  cinco  galeões  , 
que  réferuou  para  fy  com  pouca  gente.  Chegando  Eytdr 
da  filueyra  a  Cochim  ,  e  entrando  pollo  rio  com  huma  fer- 
mofa  falua  de  artilharia  ,  fe  foy  logo  ao  vifo  Rey  com  to- 
dos os  capitães  e  toda  a  gente  ,  que  a  todos  recebeo  com 
muyta  honra  e  gafalhado,  e  Eytor  da  filueyra,  lhe  deu  aly 

conta 


dei  Rey  dom  João  o  III.         241 

conta  de  tudo  o  que  paíTara  na  fua  viagem  ,  e  particular- 
mente do  que  deixara  feito  em  Adem  ,  o  que  o  viío  Rey 
lhe  não  aprouou  muyto  por  muytas  rezoes  ,  c  princi- 
palmente lhe  eílranhou  deixar  lá  o  bargantim  cos  Portu- 
guefes  ,  porque  o  Rey  de  Adem  nelles  íe  auia  de  querer 
entregar  dos  dous  mil  xerafins  ,  que  dera  para  a  coroa  ,  de 
que  Eytor  da  íilueira  fe  achou  muyto  alcançado,  vendo  o 
viío  Rey  tao  pouco  fatisfcito  do  que  elle  o  vinha  tanto  , 
pollo  que  mudou  então  a  pratica  ,  e  íe  dcfpedio  delle 
não  fem  grande  receyo  ,  que  íe  o  viío  Rev  vielfe  a  faber  , 
que  elle  fizera  aquillo  fo  polJo  íeu  parecer,  fem  coníelho 
dos  outros  capitães  ,  o  tomaíTe  muyto  pior.  E  por  iíTo 
trataua  de  o  acompanhar  fempre  em  roda  a  ora  e  a  toda  a 
parte  ,  com  muyta  gente  a  que  daua  mefa  ,  e  grangeallo 
quanto  podia,  entendendo  que  naó  ha  coufa  ,  que  mais 
abrande  e  faça  propicio  o  animo  do  fuperior  por  mais  du- 
ro e  rigorofo  que  feja  ,  que  a  obediência  e  a  fummiílaô  ,  e 
reconhecerlhe  a  íuperioridadc. 

CAPITULO     LXIIT. 

O  lifo  Rey  faz  prejles  armada  para  ir  jazer  guerra  a  Gf- 
lecut  e  a  toda  a  cofta  da  índia.  O  gouernador  dom  Du' 
arte  de  menejes  chega  a  Cochim  ,  e  o  que  o  vijo  Rey  pajfa 
com  elle  antes  de  aejembarcar  ,  e  com  dom  Luis  de  mene» 
Jesfeu  irmão. 

OVifo  Rey  co  grande  defejo  que  tinha  de  ir  fazer 
guerra  a  Calecut ,  e  a  toda  a  coíla  da  índia  ,  e  de- 
ftrair  tudo  quanto  por  cila  achaíTe  ,  deu  grande  preíTa  ha 
carga  das  nãos,  e  a  concertar  os  nauios  darmada,  e  os 
que  trouxera  Eytor  da  filueyra  ,  e  todas  as  outras  embar- 
cações miúdas  ,  porque  tanto  que  as  nãos  do  reyno  par- 
tiflem  dctriminaua  pôr  por  obra  eílc  feu  defejo  ,  e  porque 
achara  as  couías  da  índia  muyto  diíFerentes  do  que  cuida- 
ra ,  mandou  fazer  preíles  hum  nauio  que  foíTe  ao  reyno 
diante  das  nãos  com  cartas  fuás  para  el  Rey  ,  cm  que  lhe 
Parte  L  Hh  defle 


2^2 


Prlmevra  Parte  da  Chroníca 


deíTe  conta  do  eftado  em  que  eílaua  a  índia  ,  e  do  que  ti- 
nha achado  dos  negócios  do  governador  dom  Duarte  ,  e 
também  defta  guerra  ,  que  decriminaua  fazer  aos  mouros, 
o  qual  nauio  auia  de  partir  tanto  que  fe  elle  viíTe  com  dom 
Duarte  ,  que  chegou  ha  barra  de  Cochim  no  mes  de  No- 
uembro  ,  onde  furgio  com  todas  as  vellas  que  trazia  com- 
íigo  ,  mas  com  a  viração  entrarão  logo  todas  no  rio  ,  e 
pão  tardou  muyto  ,  que  o  viíb  Rey  por  Lopo  vaz  de  íam- 
payo  capitão  de  Cochim  ,  acompanhado  de  Pêro  barreto, 
que  elle  fuílituira  em  ouuidor  geral  em  auíeníia  dejoáo 
do  Touro  ,  que  eítaua  doente  ,  mandou  dizer  a  dom  Duarte 
que  n5a  defembarcaíle  ,  e  logo  fe  paflafíe  ha  nao  caílello  , 
que  fe  comcçaua  a  carregar  ,  porque  neila  auia  de  ir  para 
o  reino  prefo  lobre  fua  menagem  ,  e  chegando  a  Lisboa 
não  fairia  da  nao  fem  efpecial  mandado  dei  Rey  ,  e  deí- 
pois  de  eílar  dentro  na  nao  Caítelio  defle  efta  menagem 
allinâda  ,  e  lhe  mandou  também  o  treslado  de  hum  capi- 
tolo  do  feu  regimento  ,  em  que  el  Rey  iíto  lhe  mandaua. 
Dom  Duarte  afrontandofe  algum  tanto  com  eíle  recado  , 
que  Lopo  vaz  lhe  dera  ,  parece  que  querendo  ainda  víar 
da  autoridade  de  gouernador ,  lhe  refpondeo  mais  feca- 
jnente  doque  elle  efperaua  ,  ao  que  Lopo  vaz  ,  defpois  de 
lhe  tornara  repoíla  ,  qual  cumpria  a  íua  honra  ,  mas  com 
muyto  íifo  e  corteíta  lhe  diíle  ,  que  lhe  reípondeíTe  em  for- 
ma ,  e  obedeceíle  ao  mandado  dei  Rey  ,  que  lhe  notifica- 
iia  de  fua  parte  ,  ao  que  dom  Duarte  relpondeo  ,  que  cm 
tudo  o  obedecia  faluo  na  embarcação  que  lhe  dauão ,  por- 
t\\\c  elle  tinha  prouiíaó  dei  Rey  em  que  lhe  dizia  ,  que 
quando  fe  tornaíle  para  o  reyno  eícoiheíTe  para  lua  embar- 
cação qualquer  nao  que  quifeííe  ,  e  que  pois  el  Rey  nao 
derrogaua  eila  íua  prouifaõ,  o  viío  Rey  lha  deuia  de  querer 
guardar  ,  e  nao  agrauallo  ,  e  que  na  nao  em  que  fe  embar- 
caííe  daria  a  menagem  que  el  Rey  mandaua  ,  com  a  qual 
repofta  fe  tornarão  logo  ao  vifo  Rey  ,  e  em  le  elles  indo 
fe  miCteo  no  íeu  batel ,  e  foy  ver  todas  as  nãos  que  eífauao 
ha  carga  ,  e  contentandolle  mais  da  nao  S.  Jorfe  le  deixou 
ficar  ncUa ,  c  mandou  paííar  para  eila  o  fcu  fato  ,  que  efta- 

ua 


delRey  Dom  João  o  III.  24:^ 

ua  no  galeão.  O  vifo  Rey  tomou  muyto  mal  a  rcpoíla  de 
dom  Duarte  ,   e  por  íer  ja  tarde  deixou  para  o  outro  dia  o 
que  niílo  auia  de  mandar  fazer  ,  mas  quando  foube  que  fe 
fora  meter  co  ícu  fato  na   nao  Saõ  Jorfe  o  tomou   muyto 
pior ,  e  ao  outro  dia  polia  menham  lhe  mandou  dizer  pol- 
lo  ouuidor,  que  a  prouifa6  da  fua  embarcação  lhe   pudera 
fer  boa  fe  eila  fora  em  íua  liberdade  ,  mas  pois  hia  prefo 
não  tinha  vigor  ,  e  que  nao  auia  de  ir  noutra  nao  íenao  no 
caftelío  que  lhe  daua  porpriíaÓ,   pollo   qual  íe  foíle  lo- 
go meter  nella  ,   e  nella  delle  a  menagem  ,  e  fe  não  qui- 
jeíle  obedecer  ao  que  el  Rey  mandaua  fe  proueria   míTo 
como  foíTe  íeu  leruiço,  ao  quedem  Duarte  refpondeo  que 
«pois  queria  víar  de  poder  abfoluto  fizeííe  o  que  quizeiíe, 
ja  que  eftaua  em  tempo  que  podia   tudo  ,  com  eíta  repo- 
ila  fe  acendeo  o  vifo  Rey  muyto  mais  em  cólera  ,  e  man- 
dou fazer  preftes  dous  galeões  ,  que  eftauão  ja  fem  vergas 
c  deíemxarceados  ,  que  aquella  noite  forão  concertados  e 
aparelhados  de  tudo  ,  com  artilharia  e  bombardeiros  den- 
tro ,  e  ao  outro  dia  polia  menham  mandou  ao  ouuidor  ge- 
ral que  com  dous  tabaliaes  comfigo  fe  embarcaíTe  nelles,  e 
•foíTem  furgir  dambas  as  bandas  da  nao  por  popa  ,  e  no  ef- 
quife  fe  foíTe  cos  tabaliaes  a  bordo  da  nao  ,  e  requereíTe  a 
dom  Duarte  da  parte  dei  Rey,  que  logo  íe  faiíTe,  c  fe  foíTe 
meter  na  nao  caftello  ,  e  fe  elle  nío  obedeceíTe  hum   dos 
tribaliâcs  fizeííe  dilTo  hum  auto  autenticado  com  teílemu- 
nhas  ,  e  lhe  tornaííe  a  fazer  o  meímo  requerimento   até 
três  vezes,   e  fe  em  todas  nao  quiíefle  obedecer  ,  bradaífe 
ha  gente  da  nao  que  íe  íaifíe  delia  ,  porque  a  auiad   de 
meter  no  fundo  ,  e  feito  iílo  íe  tornaíTem  para  os  galeões, 
e  com  a  artilharia   meteíTem  a  nao  no  fundo  ,  e  diílo  deu 
juramento  ao  ouuidor,  e  ao  condeílabre  mor,  que  hia  com 
elle  ,  que  o  cumpririão  inteiramente  ,   e  elle  também   IJie 
deu  hum  allinado  feu  do  que  lhe  mandaua  fazer.  As  nouas 
diílo  checarão  logoadomLuis  ,   que  fe  foy  ao  viio  Rey, 
e  lhe  pidio  muito  por  mercê  ,  qu«  fe  nao  quifeíle  auer  com 
■-feu  irmiio  tão  afperamente  ,  pois   não  tinha  feito  tantos 
deíTcruiços  a  el  Rey,  que  merece.H^e  fcr  tratado  com  tantos 

Hh  2  rigo- 


244       Primeyra  Parte  da  Clironica 

rigores  ,  ao  que  o  vifo  Rcy  lhe  refpondeo,  que  por  fer  feu 
ieruidor  ,  e  íaber  que  el  Rey  o  tinha  em  tal  conta,  que  fol- 
garia de  lhe  fazer  mercê  por  todas  as  vias  ,  deixaua  de 
vfar  com  feu  irmão  de  tudo  o  que  lhe  era  mandado  ;  que 
lhe  aconfelhalTe  ,  que  obedeceíTe  aos  mandados  dei  Rey 
com  brandura  e  maníidao  ,  e  quica  lhe  feria  proueitofo  ,  e 
que  enrendelfe  que  tudo  o  que  mandaua  era  por  ordem  dei 
Rey  ,  e  lho  mcílrara  fe  pudera.  Dom  Luis  ,  parece  que 
mal  contente  defta  repoíla  do  vifo  Rcy,  lhe  refpondeo  não 
tão  brandamente  como  elle  quifcra,  com  que  fe  vieraÔ  a 
atear  numa- pratica  ,  que  chegou  a  tanro,  que  o  vifo  Rey  íe 
leuantou  ,  e  lhe  diíle  íenhor  dom  Luis,  yuos  muyto  embo- 
ra ,  pois  me  não  agardeccis  deixar  eu  de  fazer  o  que  podia 
fiefte  negocio  íó  por  amor  de  vos  ,  ao  que  dom  Luis  qui- 
fera  replicar,  mas  o  viío  Rey  lhe  tirou  o  barrete,  dizendo, 
íenhor  façame  mercê  que  por  oje  não  íeja  mais  ,  e  viran- 
dolhe  as  cofias  fe  recolheo  ,  de  que  dom  Luis  afTaz  íentido 
€  menencorio  foy  dizendo  polia  fala  de  maneyra  , ,  que 
muytos  o  ouuiraô  :  Vós  não  me  quereis  agora  ouuir ,  eí- 
pcro  em  Deos  que  inda  hade  vir  tempo,  em  que  vos  eu  não 
ey  de  querer  ouuir  a  vós :  e  íe  foy  para  fua  cafa  acompa- 
nhado de  muyta  gente  a  que  daua  meia.  Eílas  palauras  de 
dom  Luis  forão  logo  ditas  ao  viío  Rey  ,  que  o  meterão  em 
tanta  cólera  ,  que  mandou  Lopo  vaz  de  fampayo  capitão 
da  fortaleza  ,  que  foíle  logo  fazer  embarcar  dom  Luis  ,  e 
hum  fó  momento  não  eftiueííe  mais  em  terra  ,  nem  conlín- 
íiíle  ir  ninguém  com  elle  ,  e  que  elle  auia  d'eílar  ha  janel- 
]a  até  o  ver  embarcado.  Lopo  vaz  íe  foy  logo  a  cafa  de 
dom  Luis,  e  o  tomou  a  tempo  que  eflaua  para  le  aíTentar  Jia 
mcfa  com  a  fua  gente  ,  que  em  vendo  Lopo  vaz  fe  detcue 
até  ver  o  que  queria  ,  o  qual  de  fora  da  porta  íem  entrar 
dentro  lhe  diíle  o  que  o  vifo  Rey  mandaua  ,  e  que  ficaua 
ha  janella  para  o  ver  embarcar  ,  a  que  dom  Luis  diííimu- 
Jando  a  paixÚo  reípondco  ,  que  tudo  íe  faria  quanto  o  vilb 
Rey  mandaua  ,  e  com  as  lagrimas  nos  olhos  fe  defpedio 
dos  que  eítauão  com  elle  ja  aílentados  ha  meia  ,  donde  fe 
leuantarão  todos  para  o  acompanharem  ,    porem  Lopo 

vaz 


delRey  Dom  João  oIIL  245 

vaz  o  não  conícntio,  c  da  parte  do  vífo  Rcy  lhes  mandou , 
que  nenhum  delles  faiíTe  de  caía,  a  que  todos  obedecerão  , 
€  dom  Luís  com  íós  dous  moços  fe  foy  ha  praya  ,  onde 
achou  hum  tone  ,  e  metendoííe  nelle  diíie  a  Lopo  vaz  :  le- 
rhor  dizey  ao  vifo  Rey,  que  eíle  Rcyno  he  agora  feu,  que 
defpois  ha  de  íer  doutrem  ;  e  com  iílo  íc  foy  has  nãos  ,^e 
como  era  homem  de  grande  entendimento  ,  inda  até  então 
não  tinha  ido  ver  leu  irmão  deípois  que  chegara  ,  porque 
o  viío  Rey  não  pudeíTe  fofpeitar,  que  fazia  elle  alguma  cou- 
la  por  feu  parecer  ,  e  quando  chegou  ao  bordo  da  naojoy 
em  tempo  que  o  ouuidor  geral  eftaua  dando  a  feu  irmão  o 
recado  do  viío  Rey  ,  e  como  entendeo  o  que  dizia  lhe 
diíTe,  fenhor  ouuidor  porque  não  deiteis  a  perder  efta  nao, 
que  he  dei  Rey,  efperai  hum  pouco  ,  que  cu  vollo  entrega- 
rey  prefo  em  ferros  fe  afíy  o  quiíerdes  ,  porque  tudo  farey 
por  feruir  ao  fenhor  vi{o'Rey  ,  e  entrando  na  nao  fe  abra- 
çarão am.bos  os  irmãos  no  bordo  com  muitas  lagrimas  ,  e 
íem  íe  deterem  cm  palauras  dom  Luis  pedio  muito^afeu 
irmão  ,  que  quifeíTe  paífar  ha  nao  caílello  ,  porque  não  era 
tempo  de  fe  por  em  pontos  co  vifo  Rey  ,  no  que  dom 
Duarte  não  pôs  duuida  ,  e  íe  paíTou  logo  a  ella,  e  então  diíTe 
ao  ouuidor,  yuos  embora  ,  e  dizey  a  quem  vos  cá  mandou, 
que  íua  vontade  he  feita  e  íerá  nefta  terra,  onde  agora  tem 
o  feu  império.  O  ouuidor  fe  tornou  ao  viío  Rey  darlhe 
conta  do  que  ficaua  feyto,  com  que  íicou  algum  tanto  mais 
quieto  5  mas  nao  deixou  de  mandar  Afonfo  mexia  veador 
da  fazenda  ,  que  foííe  dizer  a  dom  Duarte,  que  entregaííe 
huma  grande  cantidade  de  dinheiro  ,  que  recebera  em  di- 
uerfas  partes  ,  de  que  leuaua  hum  apontamento,  ao  que 
deu  tal  defcarga,  que  fe  náo  tratou  mais  com  elle  deíía  ma-- 
tcxia. 


€A- 


2  4^         PiimejTa  Parte  da  Chroníca 
CAPITULO     LXIIII. 

o  vijo  Rey  bujca  modo  para  auer  artilharia,  de  que  ejiáfaU 
to  o  ãhuazem  ,  fucedelhe  htima  doença  gvãue ,  ma7idã 
recado  ao  gouemador  dom  Duarte  [obre  lhe  entregar  a  ^o- 
tíernaiiça,  e  o  que  nijjopaça-,  defpede para  oreym  hutn  m^ 
uio  ,  que  parte  diante  das  nãos  ,  e  Jentindo  crccer  afua 
doença  encarrega  do  gonerno  ao  capitão  da  fortaleza^  e  ao 
-veador  da  fazenda,  e  lhes  dá  a  ordem  que  nijfo  hão  de  ter. 
Dafe  conta  dajua  morte, 

TEndo  o  vifo  Rey  concluído  com  eílc  negocio  da  em- 
barcação do  gouernador  dom  Duarte,  como  não  auia 
coufa  que  lhe  fizeíle  perder  o  cuidado  do  que  cumpria  ao 
bem  da  gouernança  que  tinha  a  cargo  ,  ordenou  Jogo  mai>- 
dar  nauios  que  foííem  andar  na  cofta  ,  e  porque  no  alma- 
zem  ndo  achou  artilharia  com  que  os  pudelTe  fazer  pre- 
íltes  ,  mandou  lançar  pregão  (  como  ja  também  fizera  em 
Goa  )  que  todo  o  homem,  que  tiueííe  artilharia  dei  Rey,  a 
foííe  entregar  no  almazem  liuremente  ,  e  fem  receyo  com 
pena  de  morte  ao  que  a  não  entregaíTe  fendolhe  achada  :  e 
o  que  a  tiueííe  comprada  ,  fe  deíTe  diíTo  baftante  proua,  lhe 
mandaria  tornar  o  feu  dinheyro  ,  e  por  eíle  meyo  fe  ajun- 
tou muyta  cantidade  de  artilharia,  que  os  tratantes  entrega- 
rão ,  e  nem  eíle  continuo  cuidado  das  coufas  da  guerra  o 
fazia  defcuidaríe  do  gouerno  da  paz  ,  porque  mandaua  ti- 
rar deuaíTas  de  todas  as  coufas  que  lhe  parecião  mal  feitas, 
e  contra  o  feruiço  dei  Rey  e  bem  da  republica  ,  em  que 
víaua  de  juftiça  direyta  ,  de  que  era  muyto  amigo,  com 
que  parecia  que  fe  começauão  a  refrear  as  diííoluçôes  que 
naquelle  tempo  auia  na  india.  Eftando  metido  neíbs  ocu- 
pações ,  como  auia  alguns  dias  que  andaua  mal  tratado  de 
humas  grandes  dores  no  pefcoço  ,  que  lho  encordoauão 
todo  ,  e  lhe  dauao  muyta  pena  ,  lhe  vierão  a  apontar  pol- 
lo  toutiço  huns  inchaços  tão  duros,  e  de  tão  má  calidade  , 
que  por  mais  remédios  que  íe  lhe  aplicarão  nunca  chegou 
aeftado  depodeiem  virafuro,  e  aííy  andaua  de  maneira 

que 


dei  Rey  Dom  João  o  III.       247 

que  para  ninhuma  parte  podia  virar  o  roílo  ,  de  que  to- 
mou tamanha  paixão  ,  por  lhe  tolher  iílo  acudir  a  muytas 
coufas  de  muyta  importância,  que  tinha  por  dauanre  ,  que 
foy  cauía  de  lhe  crecer  o  mal  até  o  obrigar  a  não  fe  leuan- 
tar  da  cama,  donde  prouia  tudo  o  que  cumpria  ,  mas  com 
grandiííima  anela  e  trabalho  do  efpirito  ,  com  que  lhe  ío- 
brcuierSo  humas  tamanhns  dores  ,  que  quaíi  lhe  tolhiáo  a 
fala  ,  e  erão  ja  indícios  da  Tua  morte  ,  a  que  elle  tambcrn 
começando  aíentir,  mandou  Lopo  vaz  de  inmpayo  capitão 
da  fortaleza,  co  doutor  Pêro  nunez  ,  e  Afoníb  mexia,  e 
o  ouuidor  geral  ,  e  o  íecreiario  Vicente  pegado  ,  que  com 
hum  conhecimento  feito  pollo  meímo  íecretario  de  como 
elle  recebia  a  gouernança  da  índia  da  mão  do  Gouernador 
dom  Duarte  ,  fe  foííem  a  elle  ,  e  lho  deíTem  ,  e  da  íua  par- 
te lhe  diíleíiem,  que  lhe  fizeíTe  entrega  delia,  os  quais  o  fí- 
zeráo  logo  ,  porem  dom  Duarte  nao  fem  alguma  eíperan- 
ça  de  poder  ficar  ainda  naquelle  gouerno  ,  le  o  viío  Re/ 
morrelle  ,  de  que  lhe  parecia  que  náo  eílaua  muyto  longe  , 
lhes  reípondeo,  que  não  era  cuítume  os  gouernadores  faze- 
rem entrega  da  gouernança,  e  darem  íua  reíldencia  no 
mar ,  onde  elle  então  eftaua  ,  fenao  ha  porta  da  fortaleza, 
que  ahy  eítaua  preíles  para  a  dar  logo,  e  noutra  parte  o  não 
auia  de  fazer  ,  da  qual  repoíla  mandarão  auifo  ao  vifo 
Rey  ,  que  eícreueo  huma  carta  ao  doutor  Pêro  nunez,  em 
que  lhe  mandou  que  diíTeíTe  a  dom  Duarte,  que  a  terra  nao 
podia  hir  por  quanto  eílaua  prefo  naquella  nao,  da  qual 
não  íairia  fenao  em  Lisboa  por  mandado  dei  Rey  ,  que  fe 
elle  quifeíle  aly  fazerlhe  entrega  da  gouernança  da  índia 
Jhe  deíTem  o  conhecimento  diílo  que  leuauao  ,  e  íenão  que 
íe  rccolheílem  para  terra  ,  e  o  tornaífem  a  trazer,  porque 
fem  iíFo  elle  íe  auia  por  entregue  deila  ,  e  elles  o  fizerao 
afiy  íem  concluírem  coufa  algum.a  com  dom  Duarte  ,  e  de 
tudo  o  que  comi  elle  paíTarão  mandou  o  vifo  Rey  fazer  du- 
to  pollo  fecretario  ,  aííinado  por  todos,  que  fez  pôr  a  bom 
recado.  Ncíla  conjunção  chegarão  a  Cochim  as  duas  nnos 
e  o  nauio  que  forão  a  Ceilão  bulcar  a  canella  ,  e  a  mandou 
logo  baldear  na$  nãos  do  reyno,  que  eílauaoja  quafi  carre- 
gadas. 


2  4^         Piimeyra  Parte  da  Chronica 

gadas  de  todo  ,   a  que  daua  grandiíTima  preíTa  :  e  defpedío 
logo  o  nauio,  que  auia  de  ir  para  o  reino  com  carras  fuás, 
de  que  foy  por  capitão  Franciíco  de  mendonça,  que  par- 
tio  o  primeiro  dia  de  Dezembro  ,   e  no  nauio  da  canella 
veyo  Fernão  gomes  de  lemos,   que   eftiuera  por  capitão 
em  Ceilão  ,  de  quem  tinha  informação  que  fizera  lá  muy- 
tas  íem  rezôes  ,  e  chegando  o  nauio  ha  barra  ,  o  vifo  Rey 
mandou  o  ouuidor  geral  que  lhe  foíTe  tomar  a  menagem 
aíTmada  ,  que  do  nauio  não  faiíTe  fem  íeu  mandado,  e  íe 
não  quifeíTc  dar  aífi  a  menagem,  o  rrouxeíTe  preíb  em  fer- 
ros ,  e  o  meteíTe  na  fortaleza  ,  e  recolhelfe  as    inquirições 
que  vinhâo  de  Ceilão  ,  o  que  aííy  fe  fez.  Sintindo  então  o 
vifo  Rey  que  a  íua  ora  derradeira  íe  vinha   chegando  ,   fe 
paílou  da  fortaleza  para  humas  cafas,  que  eftauão  noterrey- 
ro  perto  da  Igreja ,  onde  mandou  chamar  Lopo  vaz  de 
iam  Payo  ,  e  Afonío  mexia  veador  da  fazenda  co  fecreta- 
rio  ,  e  lhes  tomou  as  menages  com  juramento  ,   que  cun> 
pririão   inteiramente  o  que  lhes  mandaíTe  até  o  gouerna- 
dor,  que  lhe  fucedeííe,  mandar  o  contrario,  de  que  o  fecre- 
tario  fez  auto  da  menagem  ,  cm  que  todos  aíTmarão  ,  e  os 
defpedio  ,  e  então  fez  huns  apontamentos  em  que  manda- 
ua  ao  capitão  Lopo   vaz  ,  e  ao   veador  da  fazenda  ,  que 
air.bos  defpachaííem  e  ordenaíTem  tudo  aíTy  na  juftiqa  ,  co- 
mo na  fazenda,  porem  que  ninhuma   coufa  alteraíTem  das 
que  elle  tinha  feito  e  ordenado  ,  e  que  fendo  Deos  íeruido 
que  eile  falleceífe  da  quella  doença  ,  depois  de  aberta  a 
fuceílaó  ,   tudo  entregaíTem  nas  mãos  do  gouernador  que 
nella  fe  achaíTe,  com  hum  cofre  de  papeis  dei  Rey,  que  leu 
filho  dom  Eileuão  lhes  entregaria  ,  e  neftes  apontamentos 
lhe  deu  a  ordem  de  tudo  o  que  auião  de  fazer  até  fazerem 
entrega  do  que  lhes  mandaua  ao  gotiernado  nouo.  Após 
iílo   não  entendeo   mais  em  couía  alguma  íenão  nas  que 
comprião  a  fua  alma  ,  e  fe  confeíTou  logo  ,  e  tomou  o  ían- 
tiíTimo  Sacramento  com  moílras  de   muyta  contrição  ,  e 
de  Criftio   verdadeyro  ,   e  em  feu  teftamento  mandou  a 
feus  filhos  que  naqucllas  nãos  íe  foíTem  para  o  reyno  ,  c 
dos  íeus  criados  leuaííem  os  que  fc  quiíeílem  ir  com  elles, 

c 


dei  Rey  Dom  João  o  IIT.  249 

e  aot  que  quiícíTem  ficar  na  índia  ,  alem  de  lhe  pagarem  o 
íeruiço  que  lhe  tinhaõ  feito  ,  lhes  píigaíTcm  tan.btm  o  que 
únlúo  vencido  por  conta  dei  Rey,  c  todos  os  íeus  veílidos 
c  couías  de  íeda  de  fua  caía  delTem  ao  eípital  ,  e  a  algumas 
igrejas  ;  e  a  cada  hunia  das  triolheres,  que  mandara  ííçou- 
tar  em  Goa,  mandou  dar  cem  mil  reis  em  muyto  íegredo, 
e  íe  os  nao  quiTcíícm  tomar  os  deíTem  em  dobro  ha  caía 
da  fanra  Miícricordia  ,  as  quais  com  eíle  dinheyro  acha- 
rão maridos  com  que  caiarão  ,  e  íicsráo  de  todo  fora  da 
infâmia  ;  c  cm  fim  mandou  que  es  léus  oíTos  foliem  leuí- 
dos  ao  reyno  ,  como  deípois  forao  ;  e  tendo  ordenado 
íuas  couías  como  bom  e  fiel  Criítao  ,  deípois  de  tomar 
todos  os  Sacramentos  da  Igreja  fagrada  cm  todo  leu  fi- 
ío  e  perfeito  entendimento  ,  faiando  fem.pre  e  pidindo 
perdão  de  íeus  peccados  ,  deu  a  alma  a  íeu  criador  a  noite 
do  íantiííimo  nacimento  de  noíTo  Senhor  Jclu  ChriPio  do 
anno  de  1^24,  has  três  horas  deípois  da  meya  noite.  A  fua 
morte  eíleue  encuberta  em  quanto  fe  fez  preílcs  o  que  era 
neceíTario  para  o  íeu  enterramento,  e  quando  íe  veyo  a 
deícubrir  ,  em  todo  o  género  de  gente  ie  enxergou  hum 
grande  íentimenio  por  tamanha  perda.  Seu  corpo  foy  en- 
terrado na  capeila  mor  do  mcíleiro  de  íanto  António  , 
com  a  mayor  pompa  e  aparato  que  então  foy  poíTiuel  , 
acompanhado  de  toda  a  nobreza  ,  c  de  todo  o  pouo  da  ci- 
dade ,  onde  \c  lhe  fizerão  as  exéquias,  quais  fe  dcuiao  a  fua 
pelioa.  Seus  filhos  dom  Eíleuao  ,  e  dom  Paulo  íe  forao 
aquelle  anno  para  o  reyno,  cumprindo  tudo  o  que  feu  pay 
mandara  ,  onde  forao  dei  Rey  muyto  bem  recebidos,  e  nao 
fem  moílras  defentimcnto  polia  perda  de  Jium  tai  vaíialio. 


Parte  1. 


Vi 


CA- 


a  CO        Primevra   Parte  da  Chronica 
CAPITULO     LXV. 

Abrejje  a  primeira  fucejfdo  da  governança  da  Índia  ,  e  o 
modo  e  cirimorias  com  que  fe  abre ;  achalje  nella  dom  Ari" 
rique  de  menefes  capitão  de  Goa  para  gouernador  ,  de  que 
hum  homem  a  muyta  prejja  lhe  leua  nona, 

LOgo  como  o  vifo  Rcy  foy  enterrado  ,  Lopo  vaz  de 
de  Iam  payo  capitão  da  cidade  ,  e  o  fecrerario  ,  e 
Afonfo  mexia  ,  veador  da  fazenda  ,  c  o  doutor  Pêro  nu- 
nez  ,  e  o  ouuidor  geral  João  do  fouto  ,  com  todos  os  fi- 
dalgos e  muyto  do  pouo  fe  tornarão  nas  mefiiias  caías  on- 
de o  Viío  Rey  eíliuera  ,  c  aíTentados  na  íala  ,  que  era 
grande  ,  em  que  cabia  muyta  gente  ,  Lopo  vaz  poílo  em 
pé  IJies  diíTe  j  que  bem  deuiáo  de  ter  íabido  que  el  Rey 
noíTo  íenhor  ,  por  fazer  mercê  aaquelíe  eílado  ,  e  euitar 
os  efcandalos  edilícrenças  que  podia  auer  íobre  a  íuceflao 
da  gouernança  delle  ,  morrendo  o  viío  Rey  dom  Vafco  da 
Gama  ,  prouera  delia  nas  pcíloas  que  era  féruido  que  lhe 
fucedeííem  ,  de  que  mandara  prouifoes  cerradas  ,  aíTma- 
dae  por  eile  ,  e  felladas  com  as  armas  reais  ,  que  eftauao 
dentro  num  faço  que  o  fecretario  aly  linha  ,  o  qual  o  mo- 
ílrou  pubricamente  :  era  eíte  faço  de  lona  ,  bem  cofido 
por  todas  as  parte?,  e  na  boca  íellado  co  íello  das  armas 
reais  ,  e  humas  regras  efcritas  nelle  que  diziáo:  Eíle  íaco 
le  não  abrirá  fenao  íendo  primeyro  morro  dom  Vaíco  da 
Gama  vifo  Rey,  o  qne  noílo  íenhor  defenda  :  eíVe  íaco  me- 
teo  o  fecretario  na  mao  ao  capitão  Lopo  vaz  de  iam  payo, 
c  eile  o  moílrou  a  todos  os  que  aly  eílauao  ,  dizendo  que 
atentaíTem  bem  nelle  íe  eílaua  dclcofido  por  alguma  parte, 
ou  le  lhe  viáo  algum  final  de  fe  ter  tocado  nelle,  o  que 
nuiytos  lhe  tomarão  da  mao  ,  e  olhando-o  muyto  bem  lho 
tornarão  a  dar  ;  Lopo  vaz  então  diíTe  cm  voz  alta  ;  Ht 
aquy  alguma  peíloa  que  tenha  duuida  ou  embargo  algu^n 
a  íe  abrir  eile  íaco  ,  e  pubricaríe  o  gouernador  que  nelle 
eíliuer  nomeado?  a  que  lodos  rcfponderâo  que  não  ,  mas 
que  íe  abriíTe  iogOj  e  íe  cumpriíle  tudo  o  que  S,  Alteza 

man- 


delRey  Dom  João  o  III.  251 

mandaíTe  :  difto  fez  o  fecrerario  hum  auto  :  em  que  alllna- 
rão  todos  os  fidalgos  c  pefloas  de  calidadc  ,  que  eílauao 
preíentes  ,  e  apôs  iílo  delcoíco  o  íaco  no  meyo  da  íala  ,  e 
tirou  de  dentro  dellc  três  carta»  cerradas  ,  e  íelJada  cada 
Jiuma  delias  com  três  felios  das  armas  reais  ,  e  no  fobre- 
Icrito  da  primeira  dizia  ;  Primeira  fucetláo  da  gouernança 
da  índia  ,  que  nao  fera  aberta  íenao  íendo  morto  o  vifo 
Rey  domVaíco  da  Gama  :  no  qual  lobrcfcrito  eftaua  el 
Rey  alunado.  Na  outra  carta  dizia  :  Segunda  íuceílao  da 
gouernança  da  índia  ,  que  fe  não  abrirá  íenão  fendo  tnleci- 
da  da  vida  prefente  a  peíloa  que  na  primeira  íuceííaÕ  eílá 
nom.eada:  e  neíla  forma  eítaua  também  o  íobrelcrito  da  ter- 
ceira íuceíTao.  Eílas  duas  derradeiras  fuceíloes  íciornarao  a 
meter  no  melmo  faço,  que  iogo  foy  tornado  a  coíer  e  Aliar 
CO  fello  das  armas  reais,  que  andaua  em  poder  do  viío  Rey. 
A  primeyra  ÍuceíTao  foy  mollrada  a  todos,  que  viíTem  fe  ti-» 
nha  algum  íinal  de  fe  ter  tocado  ou  bulido  nella  ,  e  que  re- 
conheceílem  fe  era  dei  Rey  aquclle  íinal  que  tinha  no  fobre- 
ícrito  ,  a  qual  correndo  de  mão  em  mão  ,  e  íendo  viíla 
por  todos  ,  diderão  que  eílaua  boa  ,  e  reconhccião  o  final 
ler  dei  Rey  noíío  fenlior ,  e  ninguém  lhe  punha  duuida  ,  c 
todos  requerião  que  fe  abriíle  ,  de  que  também  o  íecreta- 
rio  fez  outro  auto  ,  em  que  aílinarao  os  principaes  que  aiy 
eílauao  ,  que  foy  muyta  gente.  Lopo  vaz  então  poílo  em 
pc  diífc  em  voz  alta  :  Senhores  que  aqui  eilais  preíentes 
prometeis  como  leais  vaflallos  dei  Rey  noíío  íenhor  obe- 
decer em  tudo  ha  peíToa,  que  neíla  carta  cílá  nomeada  por 
elle  aíTy  como  elle  mandar  ?  e  o  flireis  obedecer  e  ajudar* 
contra  toda  a  peíToa  que  for  contra  eíla  fua  prouiiao  ?  do 
que  dareis  voíTa  fee  e  menages  aííinadas  :  ao  que  todos 
rcíponderão  que  em.  tudo  e  por  tudo  obcdecião  ,  e  aíly  o 
prometião  e  aílinarião  ,  do  que  também  o  íecretario  fez 
auto,  em  que  nomeou  pafíante  de  trinta  peíloas  os  princi- 
paes fidalgos  ,  e  oíficiaes  que  eílauao  preíentes  ,  que  to- 
dos aííinarão  nelle,  e  em  todo  o  tempo  que  iílo  durou  elle»:' 
ue  femprc  Lopo  vaz  em  pé  no  meyo  da  falia  ,  antre  duas 
tochas  com  a  carta  pofta  na  ponta  de  humacana  ,que  tinha 

ii  2  ie- 


2^1  Piimeyrâ  Parte  da  Chronica 

Icuantdda  de  maneyra  que  todos  a  viao  ,  fem  ninguém  fa- 
Jar  com  elle,  nt-m  chegar  a  clia.  Acabando  todos  de  aííinar, 
Lopo  vaz  perguntou  em  aita  voz,  fe  mandauao  que  a  quel- 
la  carta  íc  abrifie  ?  e  relpondendo  todos  que  fy  ,  logo  pe- 
rante todos  entregou  o  Taco  com  as  duas  derradeyras  íucef- 
íoes  ao  veador  da  fazenda  Afonío  mexia  ,  n  quem  por  el- 
pccial  prouifaô  dei  Rey  eftaua  cometido  tellas  em  ícu  po- 
der, e  acartada  primeira  íuccíTaõdeu  ao  fecretario  ,  que 
íubido  cm  huma  cadeira  a  abrio  ,  e  em  voz  alta,  que  lodos 
bctii  podiao  ouuir,  a  lêo  que  dizia  aíTy.  Eu  el  Rey  dom  João 
notifico  e  faço  íaber  a  todos  os  meus  vaíTalIos  ,  fidalgos, 
caualeiros  ,  capitães  de  fortalezas  e  de  nãos  ,  gente  dar- 
nias  ,  e  a  toda  a  peíloa  de  meus  rcynos  e  fenhorios  ,  e  a  to- 
do o  meu  pouo  nas  partes  da  índia  do  cabo  de  boa  efpe- 
rança  para  dentro  ,  que  confiando  eu  na  bondade  ,  fiel- 
dade,  e  bom  faber  de  dom  Anrique  de  menefes  fidalgo  de 
ininha  cafa  ,  ey  por  bem  e  meu  lerulço  ,  que  elle  íeja  go- 
uernador  da  índia  por  fallecimento  do  viío  Rey  dom  Vaí- 
co  da  Gama  por  eíta  carta  íómente  ,  que  nao  he  paliada 
polia  chancellaria  ,  por  aíly  cumprir  a  rweu  íeruiço.  Pollo 
que  vos  mando  a  todos  em  gera!  ,  e  cada  hum  em  eípecial 
que  a  elle  obedeçais  em  tudo  como  ao  próprio  viío  Rey 
dom  Vafco  ,  o  que  aíTy  vos  mando  que  cumprais  e  guar- 
deis muyto  inteyramente  ,  como  confio  que  todos  leal- 
mente fareis  ,  íem  duiiida  nem  embargo  algum  ,  porque 
tiíly  he  minha  mercê  :  e  íerá  gouernador  em  quanto  eu  nao 
mandar  o  contrario,  e  em  tanto  aucrá  o  ordenado,  c  pro- 
es,  e  percalços  como  os  gouernadores  paííados  :  eícrita  em 
Lisboa  aos  doze  dias  de  Março  de  i5'24,  e  nella  o  final 
dei  Rey  grande  como  nas  cartas  patentes.  Acabada  de  ler 
a  carta  o  lecretario  diíTe  em  voz  alta:  Eílá  aquy  alguma  pef- 
foa  ,  que  contradiga  cfta  prouifaô  dei  Rey  noílofcnhor  da 
fuceííao  do  íenhor  gouernador  dom  Anrique  de  menefes? 
a  que  todos  a  huma  voz  refpondcráo  que  nao  ,  que  tudo 
aprouauão  e  o  auiao  por  bom  ,  e  em  tudo  obedecerião  ao 
fenhor  gouernador ,  de  que  também  o  íecretario  fez  auto  , 
cm  que  nomeou  os  que  eftauáo  prefentes  ,  o  qual  acaba- 
do 


de!  Rey  Dom  JoSo  o  III.  25^5 

do  fc  recolherão  todos  para  fuás  cafas  ,  porque  pafTauaja 
c^c  iT.cya  noite  quiindo  íe  acabarão  efías  cirimci^.iíis  ,  que 
/fonio  niexia  n.aiidaua  fazer,  porque  o  tiniia  afly  no  ícii 
regimento  aílinado  por  cl  Rry  ,  que  elle  tiniu  na  niíTo  ,' 
e  o  liia  lendo  a  cada  couía  deílas.  Lopo  vaz  rccolheo  a 
fuceíiaõ  ,  e  os  treslados  do?  autos  ,  que  íe  fizcrao  ,  que 
o  íecrctario  Jhe  deu  em  pubrica  forma.  Tanto  que  toj  pii- 
brlca  cila  luccíTaõ^  António  de  lemes  pidio  a  L.t)po  vaz  que 
lha  d<:{\c  para  eJie  a  levar  ao  gouernador  ,  o  que  llic  cllc 
c  Afonfo  mexia  concederão  facilmente  ,  e  mandarão  logo 
fazer' preíies  a  galé  noua  que  dom  Luis  mandara  fazer  no 
inuerno  ,  e  duas  galeotas,  e  as  carauellas  latinas  ,  c  alguns 
bargnntis  ,  que  erao  feitos  de  nouo  ,  e  efcreucrao  miuda- 
mente ao  gouernador  os  termos  em  que  efcauao  as  coufas 
quando  o  viío  Pvey  morreo  ,  e  o  que  elle  deixaua  manda- 
do que  Ic  {izclíe,  que  tudo  eftaua  em  poder  do  fccretario  , 
c  tudo  fora  mandado  por  ordem  do  regimento  que  trouxe- 
ra de!  Rey  ,  principalmente  nas  couías  do  gouernador  dom 
Duarte,  o  qual  tam.bem  efcreuco  então  ao  gouernador  ío- 
bre  os  léus  negócios  ;  e  porque  â  gente  pidia  embarcações 
para  íe  irem  a  Goa  ao  gouernador,  fe  fizerão  preíles  m.uy- 
tos  nauios  ,  e  fuílas  ,  de  que  ninhum  partio  lenao  deípois 
da  partida  de  António  de  lemos  ,  para  que  ninguém  foile 
diante  delie,  tirando  hum  André  gil,  que  tanto  que  de  noi- 
te ouuio  dizer  ,  que  dom  Anriquc  era  gouernador  ,  íe  em- 
barcou em  hum  tone  grande  que  rinha  preíles  com  dcze 
rcmeyros  e  mantimentos  e  agoa  ,  e  antes  que  amanheccííe 
iahio  do  rio,  e  le  foy  polo  mar  largo  por  ir  feçuro  dos  la- 
drões ,  c  chegou  a  Goa  primeyro  que  ninguém  huma  me- 
nham  a  tempo  que  dom  Anriquc  hia  para  a  mifla  ,  e  pofto 
em  joelhos  lhe  deu  a  noua  de  elle  íer  gouernador  da  ín- 
dia polia  (uceflao  ,  que  íe  abrira  por  morte  do  viío  Rey  : 
dom  Anriquc  tirando  o  barrete  ,  e  leuantando  ambas  as 
mãos  ao  Cco  tirou  do  pefcoço  huma  cadea  douro  c  lha 
deu  dizendo  ,  romay  iílo  por  votlo  trabalho  ,  e  boa  vonta- 
de íómente,  porque  quanto  ha  noua  que  me  dais  el!a  lie 
de  muytos  trabalhos  para  minha  natureza,   e  íe  recolheo 

lo- 


2  54       Primeyra  Parte  da  Chronlca 

logo  para  caía  ,  onde  efteue  dous  dias  encerrado  ,  e  íe  ve- 
ítio  de  preto  polia  morte  do  viíoRey.  Eíla  noua  fe  eípa- 
palliou  logo  por  toda  a  cidade  ,  com  que  nelia  ouue  muy- 
to  aluoroço,  e  fe  começarão  a  repicar  os  finos  ;  porem  elle 
mandou  que  ceíTaíTem  os  repiques  ,  nem  os  oínciaes  da  ca- 
mará aheraíTem  couía  alguma  até  vir  recado  de  Cochim.  do 
veador  da  fazenda. 

CAPITULO     LXVr. 

Z^epo  'vaz  de  fam  payo  e  Âfonfo  7nexia  pro^jem  algumas  cou-^ 
Jas  antss  da  'vinda  do  governadsr  dom  Anriquc  de  m?ne- 
fes  ,  antre  as  quais  mandão  António  de  miranda  cm  bufca 
de  dom  Rodrigo  de  Uma  embaixador  do  prejle.  'Junto  de 
Adem  toma  duas  nãos  de  mouros  ,  em  que  foube  de  alguns 
Portugucfes  que  o  Rey  mandara  raatar  ,  e  o  que  faz  fo- 
bre  ijjo;  chega  ha  ilha  do  Camarão  ,  e  duhy  fe  torna  ha  Ín- 
dia 5  e  a  rezão  porque* 

EM  quanto  fe  faziao  preílcs  os  nauios  que  auiao  d'Ir 
a  Goa  ao  nouò  gouernador ,  porque  auia  muytas  cou- 
ias  em  que  era  neceílario  prouerfe  ,  que  não  podião  eípe- 
rar  a  íua  vinda  ,  nem  recado  íeu  ,  Lopo  vaz  e  Afonfo  me- 
xia ,  conforme  ao  que  q  vifo  Rey  deyxara  ordenado,  man- 
darão Diogo  de  miranda  com  trcs  nauios  a  Melinde  car- 
regar de  breu  ,  e  carregarão  drogas  em  quatro  náos  do 
rcyno  ,  de  que  eílauão  dadas  as  capitanias  pollo  vifo  Rey 
a  Lopo  d'azcuedo  ,  Ruy  gomes  da  gram  ,  dom  Diogo  de 
lima  ,  e  os  mandarão  que  foíTem  a  Baticala  acabar  de  car- 
ijegar  de  arroz  e  açúcar  para  Ormuz  ,  porque  aqucUean- 
no  não  ouuera  pimenta  para  carregarem  para  o  reyno. 
Mandarão  também  António  de  miranda  ao  efireyto  em, 
buíca  de  dom  Rodrigo  de  lima  embaixador  que  fora  ao 
preílc  (  de  que  muytas  vezes  atrás  he  feita  menção  )  com 
trcs  galeões,  três  carauellas  redondas  ,  quatro  nauios  ,  c 
hum  bargantim  ,  com  regimento  que  foíle  ter  a  Adem  co- 
brar a  coroa  dos  dpus  mil  xarafins ,  que  erão  as  parcas  que 


dei  Rey    Dom  João  o  líl.  255' 

Eyror  da  fiíueira  lhe  puíera  ,o  qual  indn  afírmaua  queerão 
cerras  e  firmes,  e  o  leriao  para  fempre  ,  e  nao  íe  jáétaua 
pouco  de  ter  feiro  Adein  tributaria  Jia  coroa  deíle  rcyr.o. 
António  de  miranda  chegando  a  Adem  com  toda  íua  ar- 
mada tomou  huma  ndo  ,  cm  que  hiao  muytos  mercadores 
ricos  ,  c|ue  vinhão  de  Cambaya,  carregada  de  muyras  fa- 
zendas ,  e  ícibcndo  que  a  náo  e  os  mercadores  erâo  dé 
Adem  ,  e  que  hião  para  hí  ,  lhes  fez  muyra  honra  e  gafa- 
Ihado  ,  e  lhes  mandou  que  fcílem  em  lua  companhia  ,  e 
cm  quanto  a  náo  eíleue  amainada  ha  fala  com  António  de 
miranda,  fe  lançou  delia  hum  negro  ao  mar,  e  em  lingua- 
gem Portuguefa  bradou  aos  noílos  que  lhe  acudiííem  ,  ao 
que  António  de  miranda  mandou  logo  o  efquife  que  o  to- 
niou  e  lho  trouxe  :  cíle  \hc  contou  que  tanto  que  Eytor 
da  filueyra  íe  partira  de  Adem  para  a  índia,  logo  o  llcy 
metera  em  ferros  os  Portngueíes  que  ficarão  no  bargan- 
tim  ,  e  os  amiençara  com  tormentos  grauiíhmos  para  os  fa- 
zer tornar  mouros  ,  o  que  cinco  delles  fízcrão  com  temor 
dos  tormentos  ,  porem  aos  outros  todos,  que  o  não  quiíc- 
T?o  fazer,  mandr.i  aílar  cada  dia  hum  pouco  ,  e  ao  ou- 
tro dia  arrallar  outro  pouco  ,  e  tirarlhe  com  frechas  ,  o  oue 
lhes  fez  muytos  dias  até  acabar  de  lhes  tirar  as  vidas  :  e  o 
que  mais  tormentos  padecera  que  todos  fora  Fernão  car- 
uaiho  capirao  do  bargantim  ,  porque  animaua  os  outros 
que  cíliuelíem  forres  e  confi::!ntcs  ,  e  morrcílem  na  fce  fan- 
tiíTim.a  de  noflo  Senhor  Jefu  Chriílo  ,  c  aíly  todos  forao 
marryres  ,  íenao  aquelles  cinco  defauenrurados  ,  a  quem  o 
mefmo  fenhorpor  feus  ocultos  juizos  negou  as  forcas  e  o 
animo,  que  deu  aos  outros  para  alcançarem  huma  tamanha 
gloria  ,  e  eftes  cinco  andauaÓ  no  bargantim  com  muytos 
mouros  de  guarda  para  que  nao  fugilTem.  Diííclhe  mais 
eíle  negro,  que  forão  defpois  muytos  Portuguefes  a  Adem 
com  íeus  nauio-s  carregados  de  mantimentos  e  doutras 
mercadorias  a  fazer  fuás  fazendas  ,  os  quais  el  Rey  man- 
dara matar  todos  por  íe  nao  quererem  tornar  mouros  ,  e 
que  elle  fora  de  hum  João  rodriguez  que  matarão  no  bar- 
gantim, e  a  elle  venderão  a  hum  mouro  que  vinha  naouel- 


2^6        Primfyra  Parte  da  Chronlca 

Ia  nÁo.  António  de  nilranda  cor»  ifto  mandou  trazer  o» 
mouros  d:!  nío  ^  e  metidos  a  tormento  lhe  coníeíTarao  que 
era  verdade  o  que  o  negro  dizia  ,  pollo  qual  mandou  lo- 
go defcarregar  a  náo  ,  e  meter  as  fazendas  nos  icus  naui- 
os-,  e  a  gente  do  feruiço  delia  repartio  por  ellcs  para  a 
bomba  ,  e  os  mercadores  leuou  no  íeu  galeão  a  bom  reca- 
do ,  e  foy  íurgir  no  porto  de  Adem,  leuando  também 
comíigo  a  náo  dos  mouros  ,  em  que  mandara  meter  trinta 
Portugiiefes  :  :x]y  dlfíe  aos  mercadores  que  mandaíTem  hum 
marinliejrc  a  terra  a  nado  com  recado  a  íuas  moJheres ,  e 
parentes  que  os  vieíTem  reigatar  ,  íenão  que  aly  diante  dos 
feus  olhos  auia  de  fazer  juíliça  de!!e?  ,  o  que  elles  logo  íi- 
seráo  ,  e  António  de  miranda  Uies  deu  hum  íeguro  para 
os  que  vieíTem  fazer  o  refgatc.  A  ifto  veyo  logo  da  terra 
hum  mouro  a  verfe  cos  mercadores  ,  que.erão  todos  natu- 
raes  de  AdcMU  ,  e  cftauao  prefos  poiibs  pefcoços  em  huma 
corrente  de  ferro  ,  e  concertarão  o  reígate  cm  trinta  mil 
xerafíns  douro  ,  que  logo  forao  trazidos  ,  e  deípois  de 
contados  António  de  miranda  mandou  os  mercadores  fol- 
tos  para  a  fua  náo,  onde  entrando  forao  prelos  e  atados  de 
peis  e  de  mãos  pollos  Portuguefcs  ,  que  eílauáo  neila  ,  pe- 
rante dous  mouros  que  trouxerao  o  dynhciro  da  terra,  que 
aíTy  o  tinha  mandado  António  de  miranda  ,  os  qur.is  fc 
tornarão  logo  a  eile  qucixaríe  do  que  íe  fazia  aos  merca- 
dores ,  pois  enio  ja  reígatados  ,  c  o  refgate  pago  :  Antó- 
nio de  miranda  IJie  diííe,  que  aíTy  os  auia  de  ter  atados 
até  que  foííem  dizer  a  el  Rey  ,  que  pois  ellc  íendo  Rey 
quebrara  a  paz  c  amizade  que  prometera  ,  e  fora  falío  ,  e 
tredor  ,  não  deuia  de  eflranhar  feremno  outros  ,  que  não 
erão  Reys  ,  e  que  com  enganos  e  traições  feitas  aos  feus 
auião  de  pagar  os  males  e  roubos  ,  que  elle  com  engano  e 
traiçÍQ  tinha  feito  aos  Portuguefes,  e  partidos  os  mouros 
com  efte  recado,  mandou  pôr  fogo  ha  ncáo,  e  os  bateis  der- 
redor delia  para  que  ninhum  íe  pudefie  íaluar  a  nado  , 
chegando  ede  recado  ha  cidade  as  molheres  filhos  e  pa- 
rentes dos  mercadores  ,  que  era  muyta  gente,  fe  forao  a 
el  Rey  ,  queixandoíle  delic  com  muyias  gritas  e  clamores, 

o  qual 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  257 

o  qual  mandou  tirar  contra  a  noíTa  armada   muyta   arti- 
lharia ;  porem  António  de  miranda  ,  fazendo  pouco  cafo 
diíTo ,   mandou  03  bateis  queimar  muyras   ndos    que  efta- 
vão  no   porto  ,  e  não  quis  mandar  esbombardear  a  cida- 
de por  não   daniíicar  os  íeus  nauios  ,  e  Fazendoíle  ha  vel- 
la  entrou  no  eílreytOjOnde  toniou  huns  barcas  que  ihe  de- 
rão  nonas,  que  os  Rumes  fiziao  preíles  vinte  galés  ,  e  que 
algumas  eílauão  ja  em  Judaa,  e  que  náo  fe  fabia   que   ca- 
minho auião  de  ieuar  ,   e  como  ella  noua  era  certa  ,  che- 
gando a  Camarão  ,  onde  fez  agoada  ,  pôs  em  confelho  cos 
capitães  e  piloros  íeirião   a  M.içuá  ou  não  ,  e  por    todos 
foy  aiTcnrado  ,   que  não  era  bem  ir  lá  ,  porque   de  Adem 
auia  de  ir  logo  recado  aos  Kumes  da  fua  ida  ,  e  como   de 
Judaa  a  iMaçuá  era   caminiio  breue  não  deixarião  de  ir  lá 
ter  ,  e  íe  os  tomaíTem  dentro  no  porto  de  Maçuá  lhes  po- 
derião  fizer  muyto  danio  fem  fe  poderem  valer  ,  e  pois  a 
noua  dos   Rumes  era   certa  ,  e  elles    eílauão  ja. em  doze 
dias  de  Abril  ,   que  não' era  tempo  para  poderem  cfperar 
por  dom  Rodrigo  ,   que  cuílumaua  eílar  muyto  polia  terra 
dentro,  cumpria  muyto  tornaremfe  daly  para  a  índia  fem 
paíTnrcm  mais  adiante  ;  e  feito  dillo  hum  auto  em  que  to- 
dos allínarão  ,  fe  íizctao  ha  vella  para  a  índia  ,  c  chegando 
outra  vez  ao  porto  de  Adem  o  acharão  de  todo  delpcja- 
do  ,  mas  acertarão  então  de  cliegar  duas  nãos  de  mouros, 
que  vinhão  de  Cambiya,  que  os  nofios  tomarão,  c  deípois 
de  as  defpcjarem  ,  e  cortarem  as   mãos   a  todo.-;   os  mou- 
ros que  acharão  nellas  ,  que  não  feruião  para  os  noíTos  na- 
uios ,  lhe  puzerão  o  fogo  ;   porem  eíle  mal  outros  noíTos 
o  pagarão  ,   porque  ncíle  tempo  hum  junco  de  Malaca  de 
Garcia  de  fá,  que  eítaua  carregado  de  drogas,  fabendo  era 
Ceilão  d  IS  p.izcs  que  Eytor  da  filueyra  fizera  com  Adem  , 
parecendolhe  que  lá  poderia  fazer  então  mais  proueiro  , 
que  em  outra  parte,    de  Ceilão  tomou  fua   derrota  para 
Adem,  onde  o  Rçy  o  tomou  e  as  fazendas  todas  que  le- 
uaua,  que  valião  muyto  dinheyro,  ea  doze  Portuguefes  que 
hião  nelles  mandou  arraítar  ,  e  com  nouos  géneros  de  tor- 
Part^  L  Kk  men- 


250        Piimcyra  Parte  da  Chronica 

mentos  deu  a  todos  crueliílimas  mortes  ,  porque  nâo  quU 
feráo  negar  a  fé  que  proíeííarâo. 

CAPITULO     LXVII. 

Chega  recado  a  Cochtm  do  gouernador  do  que  fe  ha  de  fa* 
z-er  em  quanto  elle  não  vem.  Dom  Duarte  e  dom  Luís 
partem  para  o  reyiío  ,  e  arrlblio  a  Moçambique ;  parti' 
dos  difípoís  fe  perde  dom  Luís  ,  e  o  que  pajja  Jobre  a  fuA 
perdição.  Dom  Dnarte  chega  ao  reyno  ;  prefeiitajfe  a  d 
Rcy  l  e  o  que  lhe  Jucede^ 

Arridas  de  Cochim  as  armadas,  que  Lopo  vas  de  fam- 
^  payo  e  Afoníb  mexia  deípacharão  para  diuerfas  par- 
tes ,  tratarão  logo  de  auiareai  as  náos  do  reyao  ,  a  que 
dauão  grande  preíTa,  e  entre  tanto  lhe  chegou  recado  do 
gouernador,  qíie  tudo  fe  fizcíTe  quanto  o  vilo  Rey  deixara 
ordenado  ,  e  no  mais  íízeílem  o  que  ihes  pareceíTe  ferui- 
ço  dellley,  porque  eile  não  fabia  quão  depreíla  pode- 
ria ir  a  Cochim  ,  poHo  muyto  que  a!y  tinha  em  que  enten- 
der ,  e  que  nas  couías  dedom  Duarte  fe  não  mudaííena- 
da  do  que  o  vifo  Rey  deixara  feito  ,  fomente  a  prouilaS 
que  tinha  para  efcolher  embarcação  le  lhe  guardalTe  ,  Í3 
íe  não  achaíTe  outra  em  contrario  ,  e  mandafiem  todos  os 
léus  papeis  a  cl  Rey  ,  ficando  o  treslado  delies  ,  o  que  tu* 
do  aíli  foy  feito  ,  e  dom  Duarte  fe  embarcou  na  náo  fa6 
Jorge,  que  antes  tinha  efcolhida  ,  e  dom  Luis  feu  irmão 
na  não  íantn  Caterina  de  monte  fmay  ,  e  os  filhos  do  vi- 
fo Rey  na  não  de  Duarte  triíflo  armador.  Dom  Duarte 
edom  Luis  íe  partirão  juntos  ,  e  dom  Luis  com  detri- 
minncão  de  não  largar  "feu  irmão  até  o  meter  dentro  em 
Lisboa  ,  receofo  que  fizeííe  o  caminho  para  alguma  parte 
fora  do  reyno  ,  por  quanto  defpois  da  morte  do  vifo  Rey 
foubera  que  vinha  mandado  por  el  Rey  ,  que  nefta  lua  via- 
gem fe  uí.iilem  com  elle  alguns  rigores  com  que  o  Je- 
uaílem  feguro  ao  reyno  ,  e  para  ifto  uíou  dom.  Luis  de 
todos  os  aiiiíos  que  lhe  parecerão  neceilarios  com  a  gen- 
te 


delRey  Dom  João  o  III.  259 

fe  da  náo  de  feu  irmão  e  da  fua.  E  deípois  que  forao  na- 
uegando,  vendo  dom  Duarte  a  grande  vigia   que   fcu   ir- 
mão  trazia  íobre  e!le  ,   bem  entendeo  o  porque    o  fazia  , 
poHo  que  dftriminou  de  dar  ordem  com    que  náo   paf- 
laiTe  o  cabo  de  boa   eíperança  ,   e  tornaíle  a  Moçabique  , 
para  o  que  mandaua  de  noire  leuantar  a  veiia   nos  palan- 
cos ,  e  tomar  os  traquetes  das  gaueas  ,  e  fe   de  noite  vi- 
nhi  alguma  ciiuua  ,  inda  que  não  troiixelTe  vento,  msndciua 
amainar  as  veJias  ,  e  as  nao  leuantauáo  íenao  com  muyto 
vjgar ,  com  que  dom  Luis  has  vezes  arribaua  a  elle  a  bra- 
darihe.  que    foíTe  por   diante  ,     mas    aproueitaua     pouco  ; 
c  dcíla  maneyra  andou  perdendo  o  tempo  ,  com.   que  cine- 
gou  ao  cabo  tao  tarde,  que  lhe  derao  os  poncnte?,  com  que 
arribou  a  Moçambique  ,  e  dom  Luis  trás  elle,  onde  fe  dif- 
fe  ,  que  fora  jílo  inuençâo  de  dom  Duarte  para  eíperar  aly 
as  náos   que  vinhao  do  reyno  ,  e  conforme  has  nouas  que 
ihe  defíem  de  corno  la  eílàuão  as  fuás  dou  ias  ,   ally  orde- 
rar  o  que  ihe  cumpriíle.  Dom  Luis  defcarregou  aquv  a 
fua  náo  ,  que  f^zia  muyta  agoa  ,  e  a  fez  concertar  muyto 
bem,  e  ícndo  tempo  fe  partirão  ambos  os  irmãos  de  Mo- 
çambique ,  e  paíTando  o  cabo  diíTe  dom  Duarte  s  dom  Luis 
(  que  o  vigiaua  agora  com.o  da  primeyra  vez  )  que  hia  en- 
trar na  agoada  d-^  faldanha  porque  hia  falto  de  agoa  ,   que 
elle  o  foíTe  efperar  ha  ilha  de  hnti  Ilena  ,  com  que  dom 
Luis  fez  fua  viagem  fem  tratar  mais  delle  ,  e  dom  Duarte 
ao  outro  dia  entrou  na  agoada  onde   lhe   deu  huma  tor- 
menta tão  rija  ,  que  eíleue  quaíl  perdido  com  féis  amarras 
que  tinha  ,  e  cuidou  que  dom  Luis  também  o  foíle  ,  po- 
rem elle   pairou  a  tormenta  ,   e  não  tomou   fanta  Ilena  , 
mas  fez  íeu  caminho  para   Porrugil  ,  onde  ,  fegundo  tiue 
por  informação  ,   foy  tomado  na  coíl:a   por  hum  coílayro 
Francês  ,  que  a  todos  deu  a  morte  íem  dcyxar  couía  viua 
que  pudede  deícubrir  -o  que  aly  paliara  ,  e  tomando   da 
Tiáo   o  milhor  que  pôde   Icurir   comfigo   lhe  pós  o  fogo  , 
do   que   em   muyro   temno  íe  não  pôde  faber  a  certeza  , 
porque  cuidarão  que  a  náo  íe  perdera  com  tormenta  ,   até 
<que  num  lugar  de  França  morreo  hum  piloto  Português, 

Kk  2  que 


lóo         Prinieyra  PcJte  da  Chronica 

que  lá  reficlia  ,  e  deixou  em  ítu  teílamento,  que  íc  deíTem  a 
el  Rey  de  Portug;íi  íeis  nul  cruzados  ,  de  que  lhe  era  em 
obrigação  por  cerra  fazenda  ,  que  ouuera  da  náo  de  dom 
Luís  ,  que  íe  tomara  vindo  da  índia  ,  e  deípois  no  anno  de 
I5'3Ó  andando  Diogo  da  filueyra  por  capitão  mor  da  ar- 
mada da  coíla  tomou  hum  nauio  de  hum  coííayro  Francês, 
de  que  alguns  de  íua  companhia  ,  pidindo  a  Diogo  da  íil- 
ueyra  que  lhes  dtííe  a  vida  ,  lhes  delcubrirao  que  o  ca- 
pitão d'quelle  r.auio  era  irmão  do  coíTavro  que  tomara  a 
náo  de  dom  Luis  ,  e  lendo  logo  metido  a  tormento  con- 
feíTou  que  era  verdade,  e  que  elle  fora  prefente  com  íea 
irmão  na  preía  da  náo  ,  porem  que  a  tomarão  por  fe  Jhs 
ella  entregar ,  porque  ic  hia  ao  fundo  com  muyta  agoa  qus 
fazia  ,  e  do  miihor  que  nelia  acharão  carregarão  o  fcu 
rauio  ,  que  era  pequeno  ,  e  ha  náo  com  toda  a  gente  derão 
foí^Oj  pcillo  qual  DiOgo  da  fducyra  mind  indo  tomar  do  na- 
uio qujnto  quizerão  os  mcílres  da  fua  armada  ,  e  cortar 
as  mãos  a  todos  os  Franceíes  dentro  no  feu  nauio  ,  lhe  fez 
pôr  o  fogo  ,  onde  todos  íorao  queimados  viuos.  Também 
de  dom  Duarte  fuy  informado  que  paflada  a  tormenta  , 
que  durou  dous  dia?  ,  partio  da  agoada  de  laldanha  ,  e  não 
foy  demandar  a  ilha  de  íanta  Ilena  ,  ma?  foife  direito  ha 
cofia  do  algaruc,  e  furgio  na  barra  de  Farào  ,  onde  tomou 
larga  informação  dos  termos  em  que  eílauao  as  luas  cou- 
ías  em  Poríupjal  ,  e  fazendoíTe  daly  ha  velía  mandou  ao 
piloto  que  folie  portar  em  Cezimbra  ;  porem  eile  foy  to- 
mar a  barra  de  Lisboa  ,  donde  dom  Duarte  o  fez  por  for- 
c^a  tornar  a  Cezim.hra  ,  íem  valer  ao  piloto  e  a  toda  a 
gente  do  mar  quantos  proteílos  lhe  nzcrao  :  em  Cezimbra 
íe  deícmharcou  logo  ,  e  dizem  que  também  a  grande  pref- 
í^i  defcmbarcGU  iua  fazenda  ,  e  mandou  ha  náo  que  fe  foi- 
fe a  Lisboa.,  porem  neíle  meyo  tempo  fobreucyo  hum 
temporal  tão  rijo  que  lhe  quebrou  as  amarras,  e  deu  com 
ella  ha  coda,  em  que  ouue  muyta  perda  ,  porque  vinha 
muyto  rica.  Logo  como  dom  Duarte  chegou  a  Cezimbra 
foy  recado  a  cl  Rcy  da  íua  vinda  ,  que  eílaua  em  Almei- 
rim ,  e  após  tile  lhe  foy  logo  cutio  da  perdição  da  náo, 

e 


delRey  Domjcao  o  III.  261 

c  efcreueo  a  Cezimbra  a  peíToas  de  confiança  ,  que  tiucíTem 
muyro  tento  em  dom  Duarte  ,  que  fe  nao  aufcntaffe  ,  e  da- 
hy  a  pouco  tempo  o  fez  ir  ha  corte  acompanhado  dalguns 
parentes  feus  ,  onde  defpois  de  beijar  a  rrao  a  ei  Rey  ,  e 
ter  com  cl!e  huma  larga  pratica  ,  foy  prelo  por  íeu  man- 
dado com  boa  guarda  ,  fem  falar  ninguém  com  elle  ,  nem 
íe  lhe  dar  efcrito  ou  recado  algum  ,  nem  peíToa  alguma 
falar  a  el  Rey  em  coufa  fua.  Daly  foy  leuado  prelo  ao 
caílello  de  torres  vedras,  e  daly  pafíado  a  outras  prifôes,, 
onde  eíleue  muyto  tempo  fem  fe  falar  no  Teu  negocio  ,  até 
que  p.or  derradeiro  íe  veyo  a  tratar  dellc  ,  em  que  ie  fez 
o  que  fua  Alteza  ouue  por  fcu  fcruiço. 

CAPITULO     LXVIIL 

Dom  Aurique  de  menefes  toma  pojje  da  gouernança  da  Jn^ 
dia  ,  e  as  cirhnonias  que  nijjo  fe  jazem  :  chega  a  Goa 
recado  de  Mclequiaz  para  o  uifo  Rey ,  e  o  goucrnador 
Ibe  relpoude.  Manda  alguns  naiitos  em  biifca  de  humas 
náos  de  Dio  ,  que  uao  com  madeira  para  judd.  Partejje 
para  Cochim  ,  no  caminho  ha  vifía  de  huns  par  aos  de  mau-', 
ros ,  e  o  que  jobre  ijfo  ordena, . 

ANtonio  de  lemos  ,  a  quem  era  dada  a  íuceflao  da  go- 
uernança para  a  leuar  ao  gouernador  dom  Anriqus 
de  meneies  ,  chegou  cem  ella  a  Goa  a  doze  dias  de  Ja- 
neyro  do  anno  de  i^iy  ^om  muytos  nauios  ,  cm  que  hia 
muyta  gente  de  toda  a  forte  ,  que  o  gouernador  recebeo 
com  honras c  gafalhado,  com  quanto  tmha  ja  a  noua  difto  , 
como  atrás  fica  dito  ;  mas  ou  foíTe  por  fcr  de  fua  nature- 
za grandioío  ,  ou  por  outro  algum  reípeito  ,  não  íe  en- 
xergou nelle  tanto  aluoroqo  e  contentamenio  por  tal  no- 
ua como  efperauão  os  que  lha  leuauáo  ,  e  logo  por  íeu 
mandado  o  fecretario  leuou  a  fuccílaó  ha  camará,  e  a  apre- 
fentou  aos  vereadores  parante  muytos  fidalgos  que  aly  le 
acharão  ,  c  todos  juntamente  fe  forao  daly  ha  lé  ,  onde 
acudio  grande  concurío  de  pouo  j  e  o  íecretario  em  roz 

alta 


iGi         Piimeyra  Parte  da  Chronica 

alta,  que  todos  ouuiao  ,  leo  a  carta  da  fuceíTao ,  e  moílroit 
o  cíiromcnto  da  pubricaçao  delia  em  Cochim,  a  que  os  ve- 
readores reíponderão  que  a  cidade  em  tudo  q  por  tudo 
obedecia  ao  que  el  Rey  noíTo  fenlior  matidaua,  efaria  quan- 
to mandaííe  o  fenhor  gouernador,  de  que  o  íecre.rario  fez 
hum  auto  ,  e  tirou  hum  eílromento  pubrico  ;  daquy  fc  fo« 
rão  todos  juntos  ha  fortaleza  ,  e  entrarão  na  fala  onde  o 
gouernador  os  efperaua  ja  com  a  autoridade  que  reque- 
ria o  feu  cargo  ,  e  hum  dcs  vereadores  lhe  aprefentou  hum 
miíTal ,  no  qual  elJe  com  a  cabeça  defcuberra  pôs  ambas 
as  mãos  ,  e  fez  juramento  folene  conforme  ao  que  era  cu« 
ílume  ,  que  o  fecretario  ja  leuaua  em  eícrito  ,  e  o  gouer- 
nador o"aíIinou  ,  e  com  elle  Francifco  de  fá  ,  Eytor  da 
íiiue/ra  ,  António  de  lemos ,  António  da  filueyra  ,  c  Pêro 
mazcarcnhas  :  e  aly  logo  entregou  a  capitania  de  Goa  a 
Francifco  de  íá  fidalgo  antigo  na  índia  ,  e  que  bem  a  me- 
recia por  fua  peííoa  ,  de  que  lhe  tomou  a  menagem.  Após 
iíto  fe  foy  ha  igreja  com  toda  a  gente  ,  e  feita  íua  oração 
lhe  repicarão  os  finos  ,  e  tocarão  as  trombetas  ,  que  o 
acompanharão  até  que  fe  tornou  a  recolher  na  fortaleza  , 
e  a  cidade  ordcnaua  fazerlhe  algumas  feftas ,  que  lhe  elíe 
ivko  quiz  conícntir,  e  tratou  Jogo  das  couías  importantes 
ao  bem  daquelle  eílado  ,  de  que  a  primeira  foy  pôr  por 
obra  a  guerra  que  o  viío  Rey  deixara  ordenada  contra  to- 
da a  coíla  da  índia,  e  principalmente  conira  a  do  Malauar  , 
porque  como  era  dotado  de  grandiílimo  esforço  não  íe 
íatisfazia  de  emprefas  baixas  ,  e  com  efte  intento  mandou 
logo  apreceber  toda  a  armada  miúda  ,  e  eílnndo  neíla  ocu- 
pação chegou  aly  Cide  Ale  de  Dio  (  mouro  conhecido  dos 
•noíros  )  cm  féis  atalayas  ,  com  cartas  e  prefente  que  Me- 
liquiaz  mandaua  ao  vifo  Rey  ,  e  achando  que  era  morto  , 
c  dom  Anrique  feito  gouernador  ,  lhe  deu  as  cartas  e  o 
prefente  ,  que  era  de  peças  de  armas  muyto  ricas  ,  e  nas 
cartas  íe  offcrecia  para  íeruir  o  vi^^o  Rey  cm  tudo  o  que 
lhe  mandaííe  ,  e  lhe  pedia  que  íizeflem  pazes  ,  para  o  que 
daua  muytas  defculpas  dos  males  que  forão  feitos  aos 
Portugueíes  em  tempo  de  Diogo  Jopez  de  fiqueyra  ,  dos 

quais 


dei  Rey  Dom  João  o  IIÍ.  26^ 

quais  faria  quantas  íatisfaçoes  quiíeíTe  ,  c  pagaria   rodas 
as  perdas  que   então  íe  receberão.   O  gouernador  lida  a 
carta  diííe  ao  Cide  Ale  com   bom   roílo  :  Ja  que  Meiiqui- 
az  he  de  tão  boa  condição  que  quer  pagar  com  dinheyro 
os  males  que  tein  feito  ,  eu  lhe  mandarey  a  repoíla  con- 
forme o  íeu   faber  ;  o  prelénte   lhe   tornay   a  leuar  ,   que 
pois  não  vinha  para  mim   não  he  bem  que  eu  o  aceite  , 
nem  tão  pouco  deuo  aceitallo  ,  porque  [dó  armas  que  nós 
não  tomamos  dos  mouros  fenao  nas  guerras  ,  que  remos 
com  elles.  Dcíla  repofta  ficou  o  mouro  aíTaz  delcontente, 
iicm  tratou   de  pedir  outra  ao  gouernador ,  mas  efperou 
por  elle  até  que  partio  de  Goa  ,  e  o  foy  acompanhando 
até  Baticala  ,  e  huma  noite  fazendo/Te  noutra  volta  ,  íe 
foy  a  Dio  ,  e  deu  a  Ivieliquiaz  a  repoíla  ,  de  que  elle  tam- 
bém ficou  pouco  íatiâfeito.  O  gouernador  deu  muyra  preíía 
ha  ília  armada  ,  porque  tinha  íabido  que  os  paraos ,  que 
cítaiião  nos  rios  ,  erão  fiiidos  fora,  e  que  os  outros  ,   que 
os  guarcauão  ,  fabendo  da  morte  do  viío  Rey  ,   fe  forao 
a  Cochim  ,  de  que  cíl.ua  aíTaz  enfadado  :  e  defpois  de  íair 
do  rio  de  Goa  ,   em  quanto  na  barra  eílaua  efperando  que 
acabaíTc  de  íair  delle  a  outra   armada  ,  que  era  de   treze 
vellas  grofi^as  ,  em  que  entrauão  duas  galés  ,  e  três  galeo- 
Tas  ,   e  vinte  fuílas  e  catures  ,    em   que  hia  gente  muyto 
Jimpa,  chegou  hum  caiur  de  Chaul  com  auilb  do  capitão 
Criílouão  de  íouía  para  o  vifo  Rey  ,   que  em  Dio  carrega- 
não  duas  nãos  de  madeyra  ,  que  Meliquiaz  mandaua  aos 
Rumes  a  Judaa  ,   para  o  que  o  gouernador  logo  daly  def- 
pidio  João  pereira  de  lacerda  ,  e  Manoel   de  moura    nos 
nauios  de  que  hiao  por  capitães  ,   para  irem  a  Chaul  ,  e 
daly  iode  com  ellcs  Manoel  de  macedo  por  capitão  mor 
cm  hum  galeão  ,  e  em  lua  companhia  Fernão  de  refende 
11a  carauella  cm  que  andaua  ,   e  todos  fe  foíTem  em  bufca 
das  nãos  de  madeira  ,  e  as  efperaíTem  no  mar  para  não  fe- 
rem viílos  ,  e  encontrando  com  ellas  ,  pondo  os  mouros 
a  bom  recado  ,  as  leuaíTem   a  Goa  por  cauía  da  madcyra  , 
c  fe  as  nãos  quiíeíTem  pelejar  as  queimaíTem,  íe  as  não  pu- 
deííem  render ;  porçm  aííy  pollo  vagar  dos  capitães  ,  co- 
mo 


2<Í4        Primeym  Parte   da  Chronica 

mo  por  lhe  íer  o  vento  contrario  ,  quando  chegarão  a  Dio 
as  n:ios  er^o  ja  partidas  ,  e  poílas  cm  faluo,  O  goucrna- 
dor  hia  embarcado  em  huma  galeota  efquipada  de*Canaris 
muyto  bons  remeyros ,  «  mandando  a  armada  grofla  que 
foíTc  afaftada  ao  mar  ,  elle  com  a  miúda  ,  em  que  também 
hiáo  as  galés ,  que  foy  ao  longo  da  terra  ,  e  diante  meya 
legoa  mandou  catures  de  vigia  ao  longo  da  cofta  ,  que  de- 
rao  com  huns  pageres  de  Cananor,  que  lhe  diíTerao  ,  que  o 
dia  dantes  virão  muytos  paraos  com  calmaria  pelejar  com. 
]ium  nauio  noíTo  ,  que  nao  tomarão  porque  os  paraos  hiao 
a  Baticala  tomar  carga  que  tinhao  feita  ,  e  foubeííe  que 
eíle  nauio  era  hum  galeão  ,  em  que  dom  Jorfe  de  meneies 
hia  para  Goa.  Com  eíla  noua  tornou  o  gouernador  a  man- 
dar os  catures  que  correíTem  ao  longo  da  cofta  ,  e  topando 
os  paraos  lhe  troxeíTem  recado  ,  e  leuou  a  íua  derrota  ao 
longo  da  terra  ,  e  amanhecendo  fe  achou  junto  do  ilheo 
de  Baticala.  A  armada  do  mar  ouuc  viíla  dos  paraos  que 
liião  ha  vella  de  longo  da  terra  co  terrenho  ,  de  que  logo 
fizerão  final  com  a  artilharia  ;  os  paraos  vendo  a  noíTa  ar- 
mada do  mar  ,  parecendolhe  que  não  era  mais  porque  não 
vião  a  do  gouernador  ,  todos  ha  vella  e  a  remo  com  a 
mor  preíTa  que  puderão  fe  forão  metendo  na  terra  ,  o  que 
vendo  o  gouernador  mandou  as  fuftas  que  lha  foliem  to- 
mar 5  e  ellas  o  fizerão  logo  porque  tinhao  o  vento  mais 
largo.  Neftas  fuftas  e  nas  galeotas  hião  embarcados  muy- 
tos homens  fidalgos,  que  vendo  em  Goa  o  gouernador  em- 
barcaríe  em  huma  galeota  ,  quizerão  mcterfe  nas  embarca- 
ções pequenas  ,  porque  ,  offerecendoííe  ocafiao  de  pelejar, 
poderião  neftas  chegar  mais  depreda,  que  indo  nas  gran- 
des. 


CA- 


dei  Rey  Dom  João  olíl.  265 

C  A  í"  I  T  U  L  O     LXIX. 

jís  nojjasfufías  e  catures  pelejao  cos  par  a  os  dos  mouros  ,  e  e 
que  lhes  juceâe,  O  governador  Jurge  na  barra  de  B atiça- 
/a ,  e  o  que  pajja  com  el  Rey.  Fajsajsc  doly  a  Canaiwr  ,  e  o 
que  ahy  jaz.  Chegado  a  Cochini^  a  requcrimetito  dél  Key  de 
Canitíior^  Vnanáa  armada  e  getite  a  Eytor  dajilueyra  capi- 
tão da  for  ta  eza  para  ir  queimar  o  lugar  de  M  arábia  ,  9 
que  rãjjo  jejaz, 

~^   Srcs  paraos  dos   inimigos  erão  auante  de  corenra  ,' 
J^  muyto  bem  arinados  de  muyta  e  boa  gente  e  artilha- 
ria ,  de   que  era  capitão  hum  armador  nouo  ,  irmão  de 
hum  regedor  de  Cananor  chamado  Mamale  ,  que  fe  fez 
parceyro  co  Bailacem  ,  e    por   conta  de  cada  hum  dellés 
vinha  ametade  deí^a  armada.  Eíles  mouros,  inda  que  fe 
virão   cercados  por  todas  as  partes  ,   porque   da   banda  da 
terra  tinhao  as  noíTas  fuftas  e  catures  ,  c  da  do  mar  as  galés 
c  gahrotas  em  que  virão  a  bandeira  do  gouernador  ,   nem 
por  illo  perderam  o  animo  ,  antes  com.o  ja  tinliao  perdido 
o  medo  aos  Portuguefes  ,  fe  detriminarao  em  pelejar  com 
as  noíTas  fuftas  ,  c  as  foraÓ  demandar  ;  porem  cilas  como 
cílauaõ  a  balrauento  vierão  cair   íobre  os  inimigos,   efe 
trauou  antre  elles  a  brigi  de  bombardas  e  efpingardas  ,  de 
que  os  mouros  trazião  tanta  cantidade  como  os  noivos  ,  e 
alem  díílo  muytas  frechas  com  que  lhe  faziao  muyto  dano. 
Mas  como  eíta  peleja  íe  fazia  perante  o  gouernador  nouo, 
cobrarão  os  noílos  tanto  animo,  que  abalroando  cos  inimi- 
gos os  tratarão  de  maneira,  que  fe  começarão  a  desbaratar, 
e  fugir  cada  hum   por  onde  millior  podia  ,  e  muytos  dos 
paraos  fe  acolherão  ha  terra  por  detrás  do  iiheo  de  Batica- 
Ja  ,  que  cílá  perto  delia  ,  onde  por  cima  das  pedras  fe  an- 
darão defpedaçando, ;  com  rudo  ficarão  doze  tomiados  ,  de 
que  a  gente  fugio  anado  para  a  terra,  e  alguns,  que  crao  rao 
pequenos  que  puderão   paliar  por  antre  as  pedras  ,   fordô 
fugindo  pára  Onor  e  Mergeo  ,  einda  que  o  gouernador 
mandou  os  catures  trás  elles  os  não  puderão  alcançar  por 
Farte  L  LI  lhe 


206       Pfimeyra  Parte  da  Chronica 

lhe  fobreuir  a  noite ,  e  aíTy  cfcaparaõ.  Num  deftes  hía  o 
irmão  de  Mamale  ,  que  fendo  noite  fe  fez  na  volta  de  Ca- 
nanor  ,  e  chegando  ao  monte  Dely  achou  huma  fufta  noíTa 
que  hia  para  Goa  ,  e  eftaua  furta  com  tam  pouca  vigia  que 
não  deu  fé  do  parao  ,  o  qual  polia  ver  taó  defcuidada  a 
foy  abalroar,  c  entrou  nella  fazendo  todo  o  danno  que  po- 
dia ;  os  noíTos,  inda  que  trouados  co  fobreíTiilto  ,  toda  via 
acudindo  has  armas  foraô  topar  co  mouro  ,  que  vindo 
diante  dos  íeus  pelejando  esforçadamente  ,  cahio  na  bom- 
ba ao  pé  do  maíio  ,  os  noíTos  paliarão  por  elle  ,  e  dando 
nos  outros  mouros  ,  nao  fomente  os  lançarão  fora  da  fuíla, 
mas  entrarão  nofcu  parao  ,  que  acharão  de  todo  defpejado 
da  gente  do  mar  ,  que  fugira  toda  a  nado  por  duas  panei- 
las  de  poluora,  que  os  noíTos  marinheiros  lhe  lançarão, 
os  quais  achando  o  capitão  na  bomba  ,  e  íendo  conhecido 
delles  ,  o  atarão  de  peis  e  de  mãos  ,  e  eíliueraó  em  guarda 
delle  até  que  os  mouros  forao  desbaratados  ,  e  lançados  ao 
mar ,  e  porque  dos  noíTos  ficarão  muyros  feridos,  íe  torna- 
rão a  Cananor  ,  onde  o  capitão  ,  que  hia  preío  em  poder 
dos  marinheiros  ,  lhes  daua  por  fy  cinco  mil  pardaos  ,  de 
que  elles  deráo  conta  aos  Portuguefes  ,  que  quando  fou- 
beraó  que  era  o  irmão  do  Mimale  ,  com  muyto  contenta- 
mento o  leuaraô  a  bom  recado  ,  e  o  entregarão  a  dom  Si- 
mão de  meneies  capitão  da  fortaleza.  O  Mamale  tendo 
nouas  que  o  irmão  cílaua  catiuo  ,  mandou  logo  prometer 
por  elle  vinte  mil  pardaos  ,  a  que  dom  Simão  reípondeo  , 
que  nao  podia  fazer  nada  íem  confentimento  do  gouerna- 
dcr  y  mas  que  vindo  elle  faria  em  feu  fauor  tudo  o  que 
padefle.  Os  outros  paraos,  que  não  fugirão  para  a  terra,  fo- 
rao tão  aperrados  dos  noílos  ,  que  fe  tomarão  faos  e  intei- 
ros dezoito  delles  ,  afora  os  defpcdaçados  ,  que  ao  todo 
forão  trinta  e  oito  os  que  fe  perderão  ,  e  os  que  eícaparão 
foy  á  força  de  vella  e  remo  ,  ajudados  do  eícuro  da  noite, 
porque  a  peleja  durou  todo  o  dia.  O  gouernador  fez  amai- 
nar toda  a  armada  ,  e  delpois  de  andar  por  todas  as  partes 
ajuntando  os  paraos  tomados  ,  e  mandando  tirar  os  que 
eílauão  encalhados ,  foy  furgir  na  barra  de  Baticala  ,  onde 

íoube 


dei  Rey  Dom  João  o  IIÍ.  ^Gj 

foube  dos  mouros  catiuos  quem  era  o  capitão  daquclla  ar- 
mada ,  e  que  era  fugido  ,  de  que  Jhe  pefou  inuyto  ,  c  que 
o  mouro  Bailaceni  não  vinha  nella,  que  ficara  em  Cananor, 
e  que  eílcs  paraos  tinhuo  ja  dados  a  Calecut  deus  cami- 
nhos de  arroz  ,  e  de  açúcar,  que  trazião  dos  rios  de  Baca- 
lior  e  Mangalor,  e  agora  vinhao  tomar  outra  carga  aqui 
em  Baticala  que  ja  llnhão   feita.  Tanto  que  o  gouernador 
foy  lurto  logo  el  Rey  o  mandou  vifitar  com  muytos  bar- 
cos carregados  de  arroz  ,  de  açúcar  ,  e  de  outros  refreí- 
cos  ,  que  elie  mandou  repartir  pollos  nsuios  grandes,  onde 
mandou   recolher  todos  os   feridos  muyto  encarregados 
aos  capitães,  e  mandando  a  el  Rey  os- deuidos  agardeci- 
mentos  pollo  que  lhe  miandara  ,  lhe  mandou  dizer  que  fe 
queria  que  toflem  amigos  de  verdade  lhe  mandaíTe  o  arroz, 
que  os  mouros  aly  tinhao  comprado  ,   e  íenao  que  o  teria 
por  inimigo,  e  lhe  faria  todo  o  mal  que  pudelle  ,  ao  que 
el  Rey,  não  fem  receyo  do  ameaço   obedeceo  logo  ,  c  lhe 
mandou  coatro  mil  fardos  de  arroz  baixo  ,  que  fc  carre- 
garão nos  nauios  ,  e  o  gouernador  lhe  mandou  dizer  que 
fcm.pre  teria  com  elle   paz  e  amizade  em  quanto  no  leu 
porto  naô  entraílem  paraos  de  mouros  ,   e  íendo  doutra 
maneyra  foubcíTe  certo  que  lhe  auia  de  fazer  guerra  até  o 
deílruir  ,  e  com  iílo  íe  fez   ha  vclla  para  Cananor  ,  onde 
íurto  o  mandou  el  Rey  viíitar  logo  ,  e  dizerlhe  que  im- 
portaua  muyto  veremfe  ao  outro  dia  ,  ao  que  o  gouerna- 
dor lhe  refpondeo  que  íeria  como  elle  quifeífe  ;  mas  dom 
Simão  de  mcnefes   capitão  da  fortaleza  o  auifou  ,  que  os 
mouros  tinhão  peitado  groíTamente  a  el  P>ey  para  que  lhe 
pidiíle  o  irmão  do  Mamale  capitão  dos  paraos  ,  que  elle 
tinha  caíiao  em  feu  poder  ,  e  lhe  contou  o  como  fora  to- 
mado ,    pollo  qual   dauão  ja   vinte  mil  pardaos  ,  e  dariao 
quanto  elle  pidifse.  O  gouernador  moftrou  muyto   con- 
tentamento de  eftar  aly  aquelle  mouro  catiuo  ,  e  diíse  que 
folgaua  de  auer  coufa  em    que  pudeíTe  m.oílrar  aaquelles 
mouros  ,  que  não  era  elle  dos  que  por  intercfse   deixauão 
de  caítigar  a  quem  o  merecia  ,  e  mandou  logo  enforcar  o 
mouro  das  ameyas  do  muro  para  fora  com  as  mãos  corta- 

Ll  2  das  , 


2Óo        Primeyra  Parte  da  Clironica 

das  ,  o  que  íendo  viílo  ao  outro  dia  pollos  outros  mouros 
da  cidade  fe  forão    a  el  Wey  com  grandes  gritas  eonioens, 
que  fe  moílrou  muito  queixoío  e  agrauado  do  gouernador, 
que  fe  nao  quis  ir  ver  com  jl!e  ,  e  Jhe  m.andou  dizer  ,  que 
o  agrauara  muyro  na  morte  daquelle   mouro  ,  que   bom 
fora  terlhe  a  elle  algum  refpeiío  ,  e  nao   fazer  juftiça  do 
que  era  íeu  natural  ,  e  irmão  do  regedor  do  feu  reyno ;  ao 
que  o  gouernador  lhe  reípondeo ,  que  fe  efpantaua  muyto 
delle  ,  e  fentia  muyto  fendo    elle    tiio  ami.go  dei  Rey  de 
Portugal  confentir  que  os   naturaes  ,  c  principaes  do  feu 
reyno  andaísem  leuantados  contra  os  Portuguefes  ,  tiran- 
dothe  as  vidas  ,  e  roubandolhe  as  fazendas  ,  que  fe  no  mar 
achaíse  o  mayor  íenhor  da  índia  feito  coflayro,  lhe  faria  o 
meímo  ,  quanto  mais  aaquelle  ,  e  que  aísy  o  auia  de  fazer 
a  quantos  achaíse;  e  cntendefse  delle  ,  que  nao  era  de  tao 
boa  condição   como  os  gouernauores  paísados.   Eíta   re- 
pofta  foy  dada   a  el  Rey  perante  os  mouros  todos  ,  com 
que  folgou  afsaz  ,  porque  ficou  dcíobrigado  da   promeísa 
que  lhe  tinha  feita  ,  e  do  que  lhe  elles  tinhlo  dado.  O  go- 
uernador então  dando  a  capitania  de  Cananor  a  Eitor  da 
íilueyra  ,  e  a  dom  Simão  de  menefe?  a  capitania  mor  do 
mar  ,  afsy   como  a  trazia  dom  Eíleuao   da  gama  fiího  do 
viío  Rey  ,  fe  partio  de  Cananor  ,  e  paísando  de  noite  por 
Calecut  ,  per  lhe  não  dar  moílra  de  fy  ,  chegou  a  Cochim 
onde  não  quis  que  lhe  fizeílem  o  recebimento  cuftumado, 
dando  por  rezrio  que  lhe  nao  era  deuido  ,  pois  era  gouer- 
nador empreífado.  Lopo  vaz  de  fampayo  e  Afonfo  mexia 
lhe  derão  rezao  de  tudo  o  que  até  então  linhão  feito,  que 
elle  aprouou,  e  ordenou  fazer  preíles  huma  armada  muyto 
groífa  para  ir  fazer  guerra  a  toda  a  cofta  da   índia  ,  a  que 
ajuntou  os  paraos  que  tomara  ,  e  ordenou  anadei  dos  eí- 
pingardeiros  5  de  que  acrecentou  o  numero  com  féis  cen- 
tos reis  de  mantimento  mais  do  que  tinhaó  :   e  em  quanto 
andaua  nefta  ocupação  lhe  chegou  recado  de  Eytor  da  fil- 
ueyra  ,  que  el  Pvey  de  Cananor  lhe  pidia  muyto  que  ,   pois 
tínhamos  guerra   cos  mouros  de  Calecut  ,  foíTemos  quei- 
Jíiar  a  pouoaçilo  de  Marabia,  que  era  íua  colheyta  ,  onde 

clles 


dei  Rey  Dom  João  o  IIL  z6^ 

clles  concertauão  os  feus  pargos ,  e  que  com  fauor  de  muy- 
tos  mouros  de  Calecut,  que  aly  eílauao,  íe  linjião  leuantado 
contra  elle  os  moradores  de  Marabia  lendo  feus  vaflallosi 
O  gouernador  ,  aíly  por  quão  mal  fatisfeiro  eílaua  deíles 
mouros  ,  como  por  íatisfazer  a  el  Rey  de  Cananor  o  agra- 
«o  que  tinha  delle,  mandou  huma  galeota  e  dez  fuílas  com 
boa  gente  a  Cananor  ,  e  mandou  dizer  a  Eytor  da  lilueyra 
que  ajnntaíTe  aly  mais  gente  da  fortaleza  ,  e  foííe  queimar 
o  lugar  ,  o  que  elle  pôs  logo  por  ohra  ,  e  chegando  ao  lu» 
gar  mandou  a  terra  cento  e  corenta  homens  bem  concer- 
tados ,  a  que  deu  por  capitão  hum  feu  parente  ,.chamadoí 
João  fernandes  da  fifueyra  ,  e  elle  íe  deixou  ficar  no  mar, 
porque  ouue  aquella  emprefa  por  pequena  para  o  feu  gran- 
de efpirito  ;  os  noíTos  pu!eraõ  fogo  ao  lugar  por  muytas 
partes  ,  a  que  acudio  logo  grande  cantidade  dos  inimi- 
gos ,  de  que  alguns  íe  ocuparão  em  apagar  afogo,  e  os 
outros  vierão  trauar  cos  noíTos  huma  cruel  briga  ,  e  como 
erão  muytos  ,  e  pelejauão  com  muito  animo,  os  puferão 
em  grande  aperto  ;  o  que  vendo  Eytor  da  filucyra  ,  enten- 
dendo que  aly  fe  empregaua  bem  íua  peííoa,  fahio  em  terra 
com  a  fua  bandeira  ,  de  que  era.alferez  hum  Diogo  de  íou- 
ía ,  e  vinte  Portugaefes  que  inda  tinha  comfigo ,  e  che- 
gando onde  os  noífos  pelejauão  deu  fantiago  nos  inimi- 
gos ,  com  que  começarão  a  defacorçoar  e  retirarfe-,  e 
os  noíTos  cobrarão  tanto  esforço  que  de  todo  os  puferao 
em  fugida  ,  e  os  lançarão  fora  do  lugar  ,  onde  ficarão  muy* 
tos  deilcs  mortos  ,  e  elle  de  todo  abrafado  e  confumido  , 
e  forão  também  qucimadasnaos  e  zambucos  que  aly  eíla- 
uao varados  ,  e  coatro  paraos  que  fe  eílauao  concertando. 
Aquy  forão  catiuos  muytos  mininos  e  niuUieres  ,  de  que 
trouxerão  carregadas  as  fuftas  e  a  galeota,  que  Eytor  da  fil- 
ucyra mandou  a  el  Rey  por  lerem  naturaes  da  terra  ,  cora 
<5ue  elle  folgou  muyto ,  e  lhe  mandou  por  iíío  muytos 
agardecimentos,  e  Eytor  da  filueyra  deípedio  logo  a  arma- 
da que  viera  de  Cochim  ,  e  a  tornou. a  mandar  ao  gouerna- 
dor. 

C  Ar 


zyo       Primeyra  Parte  da  Chronica 
CAPITULO    LXX. 

O  Camorim  Rey  de  Calecut  ajunta  muyta  gente  para  fazer 
guerra  ha  fortaleza  ;  ejla  gente  lhe  vay  dar  ynoftra  de  fy. 
Dom  João  de  limafae  a  pelefar  com  tila  ,  e  o  que  fucede» 
O  Çamorim  manda  pedir  pazes  ao  gouernador  ,  elk  lhas 
concede  com  certas  condi pes  ,  que  fe  não  aceituo, 

O  Çamorim  Rey  de  Calecut  ,  arrependido   de  ter  co- 
meçada a  guerra  contra  os  noíícs  ,  e  defejofo  de  deíi- 
ftir  delia  ,  o  praticou  cos   do  feu  coníelho  ,  a  quem  diííe 
que  elle  queria  concertarfe  co  gouernador,  que  lhe  parecia 
homem  mais  amigo  de  guerra  que  de  intereíTe  ,  pois  não 
bailara  o  muyto  dinheyro  ,  que  lhe  dauão  polia  vida  do 
irmão  do  regedor  de  Cananor  ,  para  deixar  de  o  mandar 
enforcar  ,  e   fe  apercebia  de  armada  para  entrar  poHos 
rios,  e  fazer  todo  o  mal  que  pudeíle  ;  porem   os  do  feu 
coníelho  eílauao  tão  peitados  dos  mouros  ,  que  nâo  fo- 
mente lhe  não  aprouauão  querer  fazer   paz  cos   nolfos  , 
mas  ainda  Ih'aconfelharão  que  pois  era  tão  poderofo  man- 
daíTe  ajuntar  tanta  gente  com  que  pudefíe  tomar  a   noíTa 
fortaleza,  ou  fazerlhe  tanta  guerra  ,  que  obrigafle  o  capi- 
tão a  pidirlhe  paz  ,  e  então  a  faria  com  mais  honra  íua.  El 
Rey  ,  defejofo  de  moftrar  feu  poder  ao  nouo  gouernador  , 
aprouou  efte  confelho  ,  e  logo  da  ferra  onde  então  eílaua 
mandou  quinze  mil  naires  pagos  lia  cufta  dos  mouros  cora 
três  Caimaes  capitães  feus,  que  em  Calecut  fe  forão  ajuntar 
CO  Catual  e  goazil  ,  os  quais  a  eíles  ajuntarão  coatro  mil 
mouros  bons  foldados  ,  e  outros  mil  mouros  efpingardey- 
ros  bemdeílros.  Repartida  toda  efta  gente  em  capitanias, 
foy  dar  moílra  ha  fortaleza  com  tantas  gritas  e  eílrondo 
de  eftromentos    de  guerra,  que  punhão   eípanto  ,  e  deí- 
parando  a  efpingardaria  fe  vierão  chegando  tão  perto  da 
fortaleza  que  tirauão  aos  noíTos  que  eílauao  pollos  muros. 
Dom  João  de  lima  ,  que  tinha  ja  auifo  deíla   moílra,  e 
eílaua  preíle-s  com  toda  a  gente,  chegando  os  mouros  man- 
dou tocar  as  trombetas ,  e  defparar  muytas  efpingardas , 

que 


/dei  Rey  Dom  João  o  III.  271 

que  tinha  tr.eridas  nas  mãos  aos  eícraiios ,  e  molheres  que 
aua  na  fortaleza  ,  e  elle  laliio  fóra  com  «orenta  homens 
bem  armados  ,  todos  com  fuás  lanças  ,  antre  os  quais  hiao 
dom  Miguel  de  caítro  ,  Lionel  de  lima  ,  Fernão  de  lima  , 
Pêro  eíla^ço  ,  e  outros  ,  todos  homens  efcolhidos  ,  c  foy 
cometer  os  mouros  com  tanto  animo  ,  que  cuidando  elles 
por  illo  que  era  muyto  mais  gente  ,  íe  embaraçarão  huns 
cos  outros  de  maneyra  ,  que  os  noílos  liucraô  tempo  de 
lhe  fazer  muyto  dano,  e  citando  todos  metidos  numa  bri- 
ga aíTaz  trauada  íahio  dom  Vafco  de  lima  com  outros  co- 
renta  homens  ,  em  que  hiaò  António  de  fá  ,  João  rodri-» 
gucz  pcreyra  ,  Ruy  diaz  da  fiiueyra  ,  Artur  de  mello  ,  c 
outros  ,  e  dando  nos  mouros  por  outra  parte,  aíTy  eíles 
como  os  primeiros  faziao  marauiihas  ,  onde  fucedeo  que 
hum  Mem  de  lima  com  huma  lanca  darremeflo  paíTou  de 
parte  aparte  hum  dos  Caimais,  que  era  fubrinho  do  fenhor 
da  íerra  ,  de  que  logo  cahio  morto  ,  a  que  acudindo  todo 
o  poder  dos  mouros  fobre  os  noíTos ,  foy  forçado  a  dom 
João  retirarfe  para  a  porta  da  fortaleza,  e  mandou  tocar  a 
recolher,  o  que  dom  Vaíco  logo  fez,  pelejando  fempre  com 
grande  poder  dos  inimigos  que  carregarão  lobre  elle,  e 
tanto  que  foy  recolhido  antre  o  baluarte  de  madeyra  e  a 
porra  ,  logo  a  gente  toda  íe  fubio  aos  muros  ,  donde  com 
as  efpingardas  derrubnua  muytos  mouros  :  e  dom  João, 
como  teuea  lua  gente  dentro  na  fortaleza,  mandou  def- 
parar  a  artilharia  por  cima  e  por  baixo  ,  que  achando  os 
inimigos  juntos  ,  deixou  aly  mortos  mais  de  mil  deiles  ,  e 
dos  noílos  nmhum  lenão  lómente  alguns  feridos  das  fre* 
chás  ,  que  quando  virão  os  mouros  iríe  recolhendo  lhe 
tangerão  as  trombetas  ,  e  lhe  dauao  grandes  apupadas. 
Sabendo  iílo  o  Çamorim  eípantado  de  auer  tanta  gente  na 
fortaleza  que  fe  atraueíTe  a  fair  ao  campo  pelejar  com  tan- 
to numero  da  Tua  ,  fe  refolueo  em  pidir  pazes  ao  gouerna- 
dor  ,  e  fazellas  na  forma  que  elle  quifel^e  :  e  fazendo  tre- 
goas  com  dom  João  de  lima  ,  em  quanto  mandaua  recado 
ao  gouernador  fobre  eítas  pazes  ,  lhe  deípachou  hum  em- 
baixiidor  ,  de  que  dom  João  logo  lhe  majidou  auiío  por 

huma 


lyz       Prlmeyra  Parte  da  Chronica 

huma  aliTJfidia  ,  que  chegou  a  Cochim  antes  que  o  embai- 
:(ador  chegaííe  ,  o  qual  ciiegando  ao  gcuerirador  lhe  di''^e, 
queo  C^amorim  íeu  Icnhor  folgaria  muyto  que  antre  elles 
le  fizefle  huma  paz  boa  e  firme,  com   que  de  todo  íe  aca- 
baíTe  a  gu^erra;  a  que  o  gouernador  refpondeo,  que  por  íua 
culpa  doixaua  de  ter  a  boa  paz  que  agora  pedia,  pois  a  que- 
brara fem  ninhuma  rezão  ,  como  íempre  cuftumarao  fazer 
os  Rcys  de  Calecut ,  pollo  qual  lhe  vinha  milhor  ter  com 
eJle  guerra,  quea  paz  que  elle  quebraua  cada  vez  que  queria, 
com  tudo  que  elle  mandaria  a  dom  João  hum  apontamen- 
to das  condições  das  pazes ,  e  fe  as  concertafle  com  elle  íi- 
carião  feitas  ,  e  elle  as  aueria  por  boas  :  com  efta  repofta 
fe  tornou  o  embaixador,  e  o  Çamorim  mandou    pidir  a 
dom  João  as  condições  das  pazes  para  as  aílentar  logo  ,  e 
mandalas  confirmar  pollo  gouernador.  Dom  João,  qne  ti- 
nha ja  recado  do  que  auia  de  fazer  ,  lhe  mandou  dizer  que 
as  condições  com  que  o  gouernador  lhe  mandara  que  aí- 
fentaííe  pazes  com  elle  erâo  eílas  :  Qiie  auia  de  entregar 
Patemarcar  ,  que  tinha  em  fua  terra  .,  o  qual  fendo  natural 
de  Cochim  íe  leuantara  contra  os  nollos  :  Que  auia  de  en- 
tregar todos  os  Portugueíes,que  eíliucíTem  caiiuos  nas  fuás 
terras  ,  e  todos  os  efcrauos  e  eícrauas  :  Que  auia  de  entre- 
gar toda  quanta  artilharia   noíTa  tiueííe  ;  Que  em  todo  o 
leu  reyno  fenao  auia  de  fazer  ninhuin  parao  ,  íenão  lo- 
mente  nãos  e  pang-.yos,  e  os  paraos,  que  eftiueíTem  feitos, 
os  auia  de  entregir  todos :  <^e  auia  de  pagar  todas  as  fa- 
zendas que  os  mouros  tinhão  roubadas  ,  deípois  que  elle 
quebrara  a^  pazes.  Eftas  condições    parecerão  a  el  Rey 
muyto  defarrezoadas  ,  e  quafi  dinas  de  rifo  ;  porem  diíTi- 
niulou  porenião,  e  deu  moftras  de  querer  cumprir  algu- 
mas ,  e  cmmendar  outras  ,  íobre  que  ouue  muytos  reca- 
dos de  parte  a  parte  fem  concrufaô  alguma  ,  em  que  a  ten- 
ção dei  Rey  e  dos  mouros  era  entreter  diífimuladaraente  o 
•tempo  até  paíTar  o  veraõ  ,  porque  lhes  parecia  que  no  in- 
uerno  podcriao  facilmente  tomar  a  fortaleza,  por  íer  tem-, 
po  em  que  lhe  não  podia  vir  íocorro. 

C  A- 


delRey  Dom  João  o  IIL        273 
CAPITULO    Lxxr. 

O  governador  faz  prcíles  ínima  groffa  armada  comqtievay 
ter  ao  rio  de  l^anane  ,  onde  tem  huma  braua  peleja  cos  ini- 
migos ,  e  ofucejjo  delia, 

OGouernador  que  entendia  bem  eílas  dinimulaçoes 
dei  Rey  de  Cnlecut  ,  e  a  tenção  delias  ,  mandou  fa- 
zer preftcs  huma  armada  de  corenta  fuílas  e  catures  ,  trcs 
galés  j  cinco  galeotas  ,  e  alguns  bargantins  ,  e  oito  nauios 
grandes  ,ea  proiieo  largamente  de  mantimentos ,  artilha- 
ria ,  munições  ,  e  de  muyra  e  muyto  boa  gente  ,  em  que 
auia  muytos  fidalgos  ,  e  muyios  outros  íoldados  honrados, 
de  que  muitos  eraò  eípingardeyros:  e  partindo  de  Cochim 
lhe  toy  dado  auiío,  que  de  Cambaya  vinliao  oitenta  paraos 
com  retorno  de  mantimentos  ,  que  fcrao  lá  carregados  de 
pimenta  e  drogas  ,  para  o  que  o  gouernsdor  deípidio  Fer- 
não gomez  de  lemos ,  que  com  hum  galeão  ,  duas  galeo- 
tas j  e  dez  fuftas  foííe  em  buíca  delles  ,  com  ordem  que 
fe  os  achaíle  lhe  mandaíTe  logo  recado  ,  e  pelejaííe  com 
clíes  ,  e  íe  lhe  fugiílem  os  foííe  íeguindo  ,  porque  elie  os 
encontraria  no  caminho  que  Icuaua  ,  e  fe  eíliueilem  meti- 
dos em  algum  rio  ,  lhe  tomalTe  a  barra.  Fernão  gomez 
achou  nouas  em  Cananor  que  auia  oito  dias  que  erão 
paíTados  ,  com  que  fe  tornou  ao  goucrnador  ,  que  achou 
íobre  o  rio  de  Panane,  chegado  do  dia  dantes  ,  porque 
dentro  auia  alguns  paraos  deftes  que  foraõ  de  Cambaya. 
Hum  caimal,  que  eílaua  em  Panane  ,  vendo  a  ncíTa  armada 
tao  poderofa  ,  e  receando  que  quiícffe  fazer  algum  mal  ha 
terra,  mandou  logo  dizer  ao  gouernador,  que  o  C^amori  o 
mandara  aly  para  lhe  entregar  treze  paraos  que  cflauao 
naquelle  rio,  a  quem  tinha  mandado  recado  da  fua  vinda, 
que  em  tendo  repofta  Jhos  entregaria  logo.  Bem  entcrdco 
o  gouernador  que  era  aquillo  artificio,  e  querendo  elle 
também  diffimular  para  ter  comodidade  de  mandar  eípiar 
o  rio  em  companhia  da  almadia  ,  que  lhe  trouxe  o  recado, 
mandou  hum  eíquifc  com  oito  homens  e  alguns  barris,  e 
Parle    L  Mm  aos 


274-        Primeyra  Parte  da  Chronica 


-/t 


20S  da  almadia  diíTe  ,  que  Ibes  mandaíTem  moílrar  onde 
achariíío  boa  agoa  ,  e  entrando  pollo  rio  os  da  alnindia 
rçoftrarao  aos  noilos  Jium  lugar  da  outra  banda  ,  onde  lhe-, 
dineraô  que  achariao  o  quebufcauao  ,  e  os  deixarão  :  ps 
nodos  quercndoíle  chegar  a  ferra  ,  lhe  tirarão  dejla  muytas 
frechas  ,  com  que  fizerao  volta  ,  e  na  entrada  do  rio  ha 
TTf)^o  direita  virão  liuma  cllancia  beri)  fone  com  muita  ar- 
tilharia, e  rnuyta  gente,  que  aparecia  por  tolas  as  partes, 
(}e  que  derão  conta  ao  gouernador  :  elle  p,ôs  logo  o  nego- 
cio cm  coníeího,  não  pêra  perguntar  íe  coiT^eíeria  a  t-ílan- 
cia,  íenão  para  coníultar  o  modo  que  aueri.í  para  a  entrar, 
ç  por  parecer  dos  pilotos  foy  afíentado,  que  com  mcirt  agoa 
chea  a  cometeíTem  ,  porque  então  ftcauão  os  tiros  altos  ,  e 
ilão  podião  peícar  os  barcos  pequenos.  O  gouernador  en- 
tão repartio  as  embarcações  eni  dous  efquadrocs  ,  de  que 
tomou  hum  para  íy  ,  e  o  outro  deu  a  dom  Simão  de  mene- 
^s  ;  CO  gouernador  hião  Pêro  mazcarenhas  ,  Aires  da 
íiljLJa  ,  João  de  mello  da  fílua  ,  que  fora  capitão  em  Cou- 
lâo  ,  António  da  íilueyra  ,  dom  Joríe  mazcarenhas  ,  Ruy 
íjias  da  filueyra  ,  dom  Afonío  de  meneies  ,  Antão  noguey- 
ya  ,  dom  Pedro  de  menefes  ,  Aires  da  cunha  ,  e  outros 
fidalgos  e  homens  de  muyta  conta.  Com  dom  Simão  hião. 
Gomez  martinz  de  lemos  ,  Jerónimo  de  (bufa  ,  dom  Jorle 
tello  ,  Jorfe  cabra!  ,  António  da  filueyra  ,  Gomez  de  loto. 
inayor  ,  Francifco  de  vafconcellos  ,  dom  Joríe  de  mene- 
ies ,  Nuno  fernandez  frcyre  ,  e  outros  muytos  ,  que  fe 
ção  podem  nomear  todos :  e  a  ordem  foy  ,  que  dom  Simão 
derembarcnfie  ,  e  foíTe  dar  na  eílancia  polias  coílas  ,  c  o 
gouernador  entraíTe  no  rio  ,  e  deíle  na  gente  que  eftaua  da 
t)anda  dalém  da  eílancia  ,  porque  podia  fazer  iriuyto  nojo 
aos  que  a  hião  cometer  polias  coílas;  e  porque  na  parte  por 
onde  dom  Simão  auia  de  cometer  a  eílancia  auia  muyta 
gente  antes  de  íe  chegar  a  ella  ,  leuou  comíigo  oiro  centos 
homens,  quinhentos  Portuguefes,  de  que  os  duzentos  eraÕ 
eípingardeyros  ,  e  trezentos  cfcrauos  que  acon:panh2uão 
jeus  lenliores  ,  e  também  ajudauão  a  pelejar.  O  gouerna- 
dor kuaua  trezentos  homens  íomente  ,  de  que   tambenu 

niuyios 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  275" 

muTtos  eraô  eípingsrdeyros  :  com  efta   ordem  cometerão 
os  noffos  o  rio  em  amanhecendo  ,   que  então  era  a  conjun- 
ção da  maré  ,  e  em.  breue  eípaço  com    a  corrente   dagoa 
entrarão  a  remo  por  elle  tocando    as  trombetas,  onde  o 
gouernador,  íem  fazer  dctençi,  foy  dar  num  corpo  de  gen- 
te que  eílaua  da  outra  parte  da  cftancia  ,  que  eraô  mouros 
muyto  bem  armados  ,   e  com  muytas   efpingardas  ,  onde 
ouue  huma  briga  aííaz  trauada  ,  em  que  foiao  feridos  de 
frechas   Gomez   martinz   de    lemos  ,  Pcro  mazcarenhas  , 
Ruy  diaz  pereyra,  e  outros  fid-?.!gos,  rras  n^o  que  deixafícnl 
de  peiejar  :  e  os  inimigos  forao  tao  aperrados   que  larga- 
rão o  campo  ,  e  fendo  vifto'  da  cftancia   que  os   mouros 
Jiião  fugindo  ,  e  os  noíTos  eftauao  parados  ,  lhe  com.eçarao 
a  tirar  com  a  artilharia  ,  porem  o  gouernador  correndo  ao 
longo  da  terra,  onde  os  tiros  não  varejauao  ,  íe  embarCoii 
por  detrás  de  hun§  penedos  ,  e  foy  cometer  a  eftancia  ,  eiri 
que  auia  muitos  mouros  ,   que  nao  acudirão  ha  peleja,  qué 
dom  Simão  tinha  no  campo  com  muyta  gente  ,  e  chegan- 
do a  ella  a  comereo  com  tanto  ímpeto  ,  que  a  entrou  coiti 
mortedalguns  dos  noflos,  e  muitos  feridos;  porem  os  mou- 
ros deíempararaô  logo  a  eftancia  ,  e  foraõ  ajudar  os  ou- 
tros que  pelejauâo  com  dom  Simão  :   os  noflos   íeguindò 
a  vitorif!   fe  foraô   trás  elles  até    o  mefmo  lugar  em    que 
dom  Simão  andaua  ,  onde  o  gouernador  com  a  bandeyra 
real  manda^ndo  tocar  as  trombetas  deu  Santiago  nos  mou- 
ros ,  o  que  ouuindo  os  que  andauao  com.  dom  Simão, 
cobrando  nouo  animo  e  nouas  forças  ,  apertarão  tanto 
cos  mouros  que  os  arrancarão  do   campo  ,  porem  íempre 
pelc'jándo  ,  que  crao  mais  de  coatro   mil  ,  e  aíTy  fe  reco- 
lherão por  anrre  as  ruas  do  lugar  ,  com  que  ficarão    mais 
fortes-',  porque  o  gouernador  tinha  mandado  que  lhe  nao 
pufeíTem  fogo  ,  poreni   fazendo  ajuntar  todos  os  cípin- 
^ardeiros  ,  entrarão  polias  ruas  ,   e  por  antre'as  cafas  fo- 
rao   derrubando  tantos  dos  inimigos  ,  que   os  obrlgaríiÕ  a 
deixarem  de  rodo  o  lugai^,  errtereremfe  porantre  os   pal- 
fhares  ,   e  outro   aruorcdo  de  que  aly  auia  muyta  ciintida- 
ât  ,  onde  o  gcuernadornrõ  qu'is  qire  osnofjó5  entralUm, 

Mm  2  e 


2y6       Piimeyra  Parte  da  Chronica 

e  ninndou  que  faqueaílern  o  lugar  ,  em  que  fe  achsrao  cou- 
fas  de  preço  afora  muyla  pimenta  e  drogas  ,  de  que  nin- 
guém íançaua  inaõ  ,  porque  era  fazenda  paia  cl  Rcy  ,  que 
o  gouernador  mandou  recolher  pollos  meftres  dos  na- 
uios  grandes  com  a  íua  gente  ,  e  pollos  remeyros  man-. 
dou  derrubar  as  palmeiras  e  outras  aruores,  em  cuja  guar- 
da foy  Jorfc  Cabral  com  duzentos  homens  ,  que  por  toda 
aquella  terra  íízerao  grandiíhma  deftruiçao.  Mandou  tam- 
bém dom  Simão  nos  catures  pollo  rio  dentro,  que  en- 
trando por  iium  eíteyro  achou  dezaíeis  paraos ,  a  que  pôs 
o  fogo  5  não  fem  reílílencia  de  bombardadas  ,  e  efpingar- 
dadas,  que  lhe  tirauaõ  de  dentro  do  mato.  O  gouernador 
jnaKdou  então  recolher  a  gente  toda  ,  e  fendo  conjunção 
de  maré  para  íe  poder  partir  ,  mandou  pôr  fogo  ao  lugar 
por  muytas  partes  ,  em  que  ainda  arderão  muytas  fazen- 
das ,  e  morrerão  muytos  mouros.  Dos  nodos  morrerão 
oito  ,  e  toraõ  muytos  feridos  ,  que  o  gouernador  mandou 
recolher  nos  iiauios  grandes ,  e  curar  com  muyto  cuida- 
do. 

CAPITULO     LXXII. 

O  gouernador  fae  ào  rio  de  Panave  ,  e  vay  j urgir  defronte- 
de  Calecut  ^  fala  com  dom   "João  de  lima  capitão  da  Jor- 
taleza  ,  dizlhe  emfegredo  ,  que  faça  pôr  fogo  ha  cidade^ 
dom  João  o  põem,  por  obra  ,  e  o  modo  que  tem  para  ifso, 

Artido  o  Gouernador  dcíle  rio  de  Panane  fe  foy  de 
]ongo  da  terra  com  a  armada  miúda  ,  e  os  nauios 
groíTos  ao  mar  ,  e  caminhou  tanto  ,  que  lendo  noite  cer- 
rada e  efcura  foy  íurgir  defronte  de  Calecut  ,  onde  logo 
fez  vir  dom  João  de  lima  ,  com  quem  praticou  muito 
deuagar  ,  e  foube  o  eftado  em  que  eftaua  aquella  fortalc-. 
:?a  :  no  difcurío  deíla  pratica  alguns  fidalgos  ,  que  eílauao 
prefentes  ,  lhe  aconfclharao  que  faifle  cm  terra  ,  e  mandaí- 
fe  por  fogo  ha  cidade  ,  do  que  o  gouernador  tomou  pai- 
xão ,  porque  era  homem  auílero  de  íua  natureza  ,  e  o  que 
dctriminaua  fazer  não  queria  que  ninguém  lho  emendei^ 

fe , 


dei  Rey  Dom  João  o  !íl.  277 

íé  j  nem  o  nconíelhíiíTe  ,  e  a  modo  de  queixoío  lhes  diffc, 
que  lhe?  pidia  por  mercê  que  ninguém  lhe  dcíle  nluitres 
para  o  que  auia  de  f;rzer  ,  que  elle  íabia  o  que  Jhe  cum- 
pria ,  que  quando  lhes  pidiOe  coníelho  cniao  lho  deílem  , 
e  qup.ndo  o  viílem  pelejar  entaò  o  ajudaííem  ,  que  íó  para 
ilibes  trazia  comllgo  ,  que  no  mais  o  dei::afiem  fazer, 
pois  viíío  que  não  íe  delcuidaua  nas  couías  do  fcruiço  dei 
Rcy  ,  ao  que  ninhum  replicou,  nem  tornou  repofta  ,  por- 
que lhe  conhecião  a  condição,  e  falando  com  dom  João 
de  lima  ,  entendendo  deile  que  eílaua  bem  prouido  de  tu- 
do o  que  cumpria  ,  lhe  deu  mais  vinte  efpingardtyros  , 
dizendo  que  lhos  empreftaua  até  que  tornaíle  a  mandar 
por  elles  ,  e  cm  fegredo  liie  diíTe  ,  que  íe  fofíe  poíliuel 
mandar  a  feu  faluo  pór  fogo  lia  cidade  fem  fe  entender 
que  elle  o  fabia  ,  folgaria  muyto,  para  que  viiTcm  os  moii-. 
ros  que  elle  fó  lhes  fazia  a  guerra  ,  íem  intreuir  niíTo  o 
gouernador ,  com  que  o  defpedio.  Elle  tratando  de  o 
pôr  logo  por  obra  ,  falou  fecretamente  com  hum  malauar 
chriílao  natural  de  Calecut,  chamado  Duarte  fernandez, 
que  era  caiado  na  fortaleza  ,  onde  tinha  fua  molher  e  fi- 
lhos ,  e  lhe  prometeo  duzentos  pardaos  fe  foíTe  pôr  fogo 
nas  caías  que  eílauao  em  torno  da  fortaleza  ,  que  todas 
erão  de  palha,  e  eítauao  muyto  juntas.  O  Duarte  fernan- 
des  aceitou  a  empreía  ,  e  recebeo  logo  o  dinheyro  ,  e  ve- 
ílindolTe  em  trajo  de  Jogue,  que  erao  panos  velhos  e 
esfarrapados,  e  untando  o  roílo,  os  cabellos,  e  a  barba  com 
cinza  miílurada  com  azeite  ,  íe  transfigurou  de  m.aueyra 
que  parecia  o  próprio  Jogue  ,  e  debaixo  dos  panos  eícon- 
deo  huma  cantidade  de  poluora  de  eípingarda  ,  e  alguns 
pedaços  de  murroens  ,  com  que  fahio  huma  noite  da  for- 
taleza, e  amanhecendo  chegou  a  humas  caílnhas  de  Ma- 
Guaas  ,  que  faõ  peícadores  ,  onde  começou  a  pidir  eímola 
ao  mefmo  modo  que  a  pedem  os  Jogues  ,  que  he  com 
i-ogarera  aos  homens  acreceniamento  de  vida  e  faude  ,  e 
"vitoria  de  feus  inimigos  ,  e  has  molheres  bons  partos  ,  e 
faude  para  íeus  filhos  ,  e  outras  couías,a  eíle  modo  ,  com 
que  iJie  daô  muyto  boas  eíVnolas.  Dt^íla  maneyra  fe  ioy 


178       Piimeyra  Parte  da  Chronica 

o  fingido  Jogue  meter  na  cidade  ,  onde  de  dia  fe  recolhia 
em  cafiis  coir.o  erprirais  ,  que  os  mouros  tem  em  muytos 
l-ugares  para  agafalhado  dos  peregrinos  ,  e  de  noite  anda- 
ua  por  antre  as  cafas  pidindo  elmola  ,  que  a  eftas  oras  a 
cuftumão  pidir  os  Jogues  ,  e  lhe  dao  arroz  cozido  ,  man- 
teiga ,  e  bredos,  porque  elles  nao  comem  outras  couías, 
e  dentro  neftes  dias  ordenou  íeis  os  fete  enuoltorios- 
zinhos  da  poiuora  que  leuaua  ,  e  em  cada  hum  delles  me- 
teo  lium  pedaço  de  murraÕ  com  a  ponta  fóra  ,  e  numa 
noite  efcura ,  e  de  muito  vento  ,  que  ihe  parcceo  acomo» 
dada  para  o  que  pretendia  ,  meteo  huma  brafa  antre  duas 
cafcas  de  ollra  com  hum  buraco  ,  por  onde  lhe  entraua  o 
vento  j  e  acendendo  nclla  as  pontc.s  dos  murrões  pôs 
hum  dos  enuolrorios  detrás  de  huma  caía  ,  e  dahy  foy 
pondo  outros  três  em  outras  três  caías  ;  no  primeiro  que 
pôs  tomou  a  poiuora  fogo  ,  e  ateandoíTe  na  caía  ,  que  eraf 
de  palha  ,  leuantou  huma  grande  labareda  ,  que  com  a 
força  do  vento  faltou  em  outras  ,  e  foy  crecendo  com  ta- 
manha força  ,  que  ninguém  podia  chegar  a  elle  ,  e  aíTy  fe 
foy  efpalliando  de  tal  mancyra  ,  que  não  ficou  cafa  que 
3ião  qucimaíle  até  chegar  lias  que  eraõ  feitas  de  paredes  , 
nas  quais  cafas  todas  queimou  muytos  homens,  molheres, 
e  crianças,  e  fez  a  mayor  deílruição  que  até  então  íe 
vira  naquella  cidade.  Os  da  fortaleza  vendo  o  que  paíTaua 
lhe  começarão  a  tocar  as  trompetas  ,  e  tirarlhe  com  muy- 
tos tiros  grolTos  ,  que  lançauao  muytas  pedras  perdidas- 
dentro  na  cidade  ,  com  que  fe  lhe  acrecentou  m.uyto  o  da- 
Jio  que  o  fogo  lhe  tinha  feito.  O  bom  do  Jogue  em  mcya 
deíla  rcuolta  fe  recolheo  ha  fortaleza  ,  onde  o  capitão 
com  todos  os  fidalgos  o  veyo  receber  ha  porta  ,  e  de  to- 
dos recebeo  muytas  honras  ,  e  pecas  para  íy  e  para  íua 
molher  ,  como  cada  hum  podia  ,  e  o  gouernador  lhe  deu' 
cada  anuo  cem  pardaos  de  renda  por  eíle  feruiço  que  fi- 
zera. O  capitão  pollo  honrar  ainda  mais  ,  o  aííentou  daly 
pordiante  comfigo  ha  raefa  ,  e  lhe  mandou  que  fe  cha- 
maíTe  Duarte  fernandez  de  lima  ,  e  aíly  fe  chamou  íenípre- 

C  A- 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  279 

CAPITULO     LXXIir. 

O  gouerr.ndor  tem  iicuas  ,  que  no  rio  de  Coti^ete   efiao  cin- 
coenta  par  aos  de  mouros  ;  vayos  bujcar  ,  tem  com  el.es  hu' 
■  ma  a/pera  e  cruel  batalha  ,  e  ojucejso  delia. 

Principal   lugar  do  reyno  de  Caleciir  ,  onde  primey» 
ro  fora  tod.í  a  força  da  cidade  ,  lie  Cuuleíc  .  cm  cujo 
porro  cílcue  dom  Vafco   da  gama  a  primeira   vez  que  foy 
Ija  Ilidia  quando  a  defcubrio.   Dom  João  de  lima  ,  quan.» 
do    o  goLicrrnador  aly  foy  ter ,  que  íc  vio  com  elle  no  mar^ 
antre  outras  coyfas  lhe  dillc  ,   que  neíte   Coulete  eílauao 
eincoenta   paraos  ,   que  vierao  de  Cambaya  com  muytos 
mantimentos,   onde  forJo  carregados   de  drogas  ,    e   cila-» 
uao  ja  preftes  para  tornarem  a  trazer  outra  carga  de  arroz 
;Vos    rios  de  Mangalor  e  Bracelor  ,  onde  o?  eíperauão  ou- 
tros, que  eilauáo  a  carga  ,  para  irem  todos  de  comj^anhia. 
O  gouernador  entendendo  que  erâo  eítes    os  paraos    da 
que  elle  ja  antes  tiuera   nouas  ,  defejoío  de  os    ir  buícar  , 
mandou   diante  João  de  mello   da   filua   em    dez  catures 
do  x\rel  de  Porcaa  ,  que  trazia  a   foldo  por  ferem    muyta 
ligeyros  ,  com   ordem   que  foíie  ver  a  difpofição  do  por- 
to ,  e  o  eítado  em  que  ellauão  os  paraos.  João  de  melo  fo 
partio  de  noite  ,  e  num  catur  deíemmaíleado  com.  poucos 
remos  foi  muito  caladamente  olhando  tudo   muito  bem  , 
antes  de  fer  viílo  dos  mouros  ,  e   chegando  perto  dos  pa- 
raos,  que  foy  viílo   e  conhfcido  ,   lhe   tirarão  has   eípia- 
gardadas  ,  e  com  alguns   berços  com  que   lhe    foy  necef-* 
íario  meter  iodo«  os  remos  ,  e  chegarie  aos  outros    catu- 
res ,  porem   trás  el!e  fairu»  oito  paraos  ,   que    lhe    forno 
no  alcanço  até  que  foi  menham  ,   que  ouueriô  vííta  da  ar- 
mada do  gouernador  ,  que  eílaua  ao  mar  ,    com  que   íe  re- 
colherão ,  e  íe  forao  ajuntar  cos  outros  ,  que  por  rodos 
craõ  corenta  e  três  os  deita  quadrilha  ,  e  os  outros  que  íe 
concertarão  na  terra   eítauao   ja   de  rodo  prelles   para  os 
lançjrem  ao  mar.  Eílourros  ,  que  cftauao  no  mar  ,  tinhãtt 
touos  as  popas  na  terra,  tão  juntos  e  com  ral  ordem  ,  que 

todos 


2  8o       Primevra  Parte  da  Chronica 

todos  fe  corrião  Jiuns  pollos  curros ,  c  ncfte  lugar  onde 
cílaiiao  fazia  a  terra  huma  grande  ribanceira  d'area  ,  que 
ficaua  ir.ais  alta  que  os  paraos  ,  por  cima  da  qual  hia 
Jançada  huma  tranqueira  de  lorigo  a  longo  ,  feita  de  pao>' 
e  de  madeira  taõ  groíTa  que  ficaua  aflaz  forte,  em  que 
eílaua  aíieílada  muita  artilharia  ,  que  jogaua  por  cima  dos 
paraos,  que  todos  tinhaÒ  os  niaftos  abatidos  ,  e  no  lugar 
delles  tudo  atraueftado  com  arrombiidas  e  entulhos  para 
defeníaõ  dos  tiros  ,  e  de  cada  banda  eílauao  três  fuftas 
com  as  popas  nas  ilhargas  das  outras  ,  e  as  proas  de  longo 
iia  terra  ,  auendo  que  elíauão  aíTy  muyto  feguras  co  empa- 
to que  tínhao  na  mefma  terra,  onde  ,  e  nos  m  'fmos  paraos 
eftaua  tanta  cantidade  de  gente,  que  nao  cabia  numa  par- 
te nem  noutra.  O  gouernador  íurgio  meya  legoa  ao  mar  , 
e  efpalhou  a  armada  toda  para  que  os  paraos  ,  querendo 
fugir,  lhe  não  pudeíTem  eícapar,  e  pondo  bandeira  na 
coadra  acudirão  a  elie  todos  os  capitães  e  fidalgos  ,  a  que 
não  pidio  coníelho  fe  pelejaria  cos  paraos  ,  fenão  lhes 
perguntou  o  modo  em  que  os  cometeria.  Neíta  matéria 
ouue  muytas  duuidas  auendoíTe  o  negocio  por  muyto  pe- 
rJgoíTo  ,  aíTy  polia  artilharia  ,  que  eftaua  na  terra  ,  como 
por  a  defembarcaçao  ler  muyto  dificultoía  por  arrebentar 
o  mar  muito  cm  terra  ,  e  não  tratando  de  fe  cometer  a 
tranqueyra  da  terra  fenao  defpois  de  desbaratados  os  pa- 
raos, fe  daua  ordem  com  que  fe  fizeíTe  com  mais  facilida- 
de e  menos  danno  ;  porem  o  gouernador  diíle,  que  eftaua 
refoluro  em  dar  nos  paraos  e  na  terra  ,  que  para  ifto  fe 
foftem  fazer  preftes  ,  e  íe  vieíFem  para  elle  ante  menham, 
que  então  lhes  diria  o  que  auiao  de  fazer  ,  com  que  tor- 
nados todos  aos  íeus  nauios  ,  gaftarao  a  noite  em  concer- 
tarem fua?  almas  e  Tuas  arma?.  O  gouernador  ordenou  , 
que  dom  Simão  ,  e  Pêro  mazcarenhas  defembarcaftem  ca- 
da hum  por  íua  parte  ,  para  o  que  deu  a  cada  hum  trezen- 
tos homens  ,  e  coatro  bateis  ,  e  íeis  fuftas  ,  em  que  lhe  pa- 
recco  que  podiao  bem  caber  os  íeus  trezentos  homens, 
e  elle  para  íy  tomou  o  reftanre  da  gente  ,  que  íeriSo  ou- 
tros tantos  ,  para  cometer  os  paraos  ,  parecendolhe  que 

vendoíie 


delRey  Dom  João  o  III.  281 

VendoíTe  os  mouros  cometidos  por  tantas  partes  ,  r.ao  te- 
riáo  animo  para  fe  defenderem;   e  fendo  híía  ora  ante  me- 
nhã  ,  e  a  noite  cfcura  ,  mandou  tocar  híia  trombeta  ,  a  que 
acudirão  logo  os  capitães  com  fua  gente  bem  armada  \  e 
os   bateis  bem   concertados,  e  chegando  ao  goucrnaJor, 
clle  íe  erribarcou  no  leu  batel  com  a  bandc/ra  real  ,  de  que 
era  alfírez  Pêro  de  meneies  ,  e  mandou  a  dom  SiraaÕ  que 
defembarcaíTc  da  mão  direita  ,  e  Pêro  mazcarenhas  da  ef- 
querda,^e  elle  ficava  no  meyo  para  cometer  os  paraos  ;  com 
elle  hiaô  íoao  de  mcllOjRuj  diaz  pereira,dom  íorfe  de  me- 
neies ,^  António  de  lemos  ,   e  outros  fidals^os  que  não  eraô 
capitães.  A  dom  Simão  acompanhauao   Fernão  gomez  de 
lemos  ,  Gomez  martíz  de  lemos  íeu  irmão  ,  leronimo  de 
íouía  ,  Aires  da  fiiua  ,  dom  Afonso  de  meneies  ,  dom  Pedro 
feu  irmão,^e  Aires  da  cunha.  Na  companhia  de  Pêro  mazca- 
renhas hiaô  lorfe  cabral  ,  António  da  filue/ra  ,  Gomez  de 
fouto  major,  Francifco  de  vafconcellos  ,  dom  loríe   de 
noronha  ,  Diogo  da  filua  ,  e  Simão  de  miranda  ,  todos  ca- 
pitães ,  afora  outros    muitos  fidalgos  honrados   e  caualey- 
ros  ;  e  o  reílante  da  gente  íeguio  ao  gouernador  ,  que  erao 
capitães  de  fulhs  ,    e  catures.    O  gouernador  mandou  que 
todos  os  catures,  e  fuftas  foíTem  deíemmaftreados  ,  e  a  gen- 
te pofta  em  baixo  por  caufa  dos  tiros,  e  do  vento  que  era  da 
terra  ,   no  que  ouue  tanta  detença  ,  que  quando  o  gouerna- 
dor  íc  abalou^,  ja  rompia  a  menham  ,    que  aparecendo  os 
três  eíquadroés  poftos  em  ordem  derao  de  íy  huma  fermo- 
fa  e^temerofa  vifta  ;   mas  os  que  hião  co  gouernador  fe  pu- 
ferão  diante  remando  com  a  mayor  prefla  que  podiao,  por 
fugirem  aos  pilouro?  ,  que  dos  parcos  ,  e  da  tranqueira  vi- 
nhão    em  tanta  cantidade  ,   que  não  auia    íenão   cerrar  os 
olhos  ,  encomendar  a  Deos ,  e  tomar  o  nome  de  JESVS  na 
boca,  efperando  cada  hum  quando  lhe  auia  de  tocar  algum 
que  lhe  tiralle  a  vida,  e  aíly  quando  os  noííos  chegarão  aos 
paraos  ja  leuauao  alguns  morros  e  feridos  :   os  primeiros 
que  chegarão  foraõ  loao  poufado  ,  Fero  loríe  ,  loaó  leitão, 
c  Martim  de  freitas  ,  que  hiaõ  em.  carures  de   Parcaa  ,  que 
cra6  baixos  ,  e  como  os  paraos  dos  inimigos  eraõ  altos ,  os 
Part,  L  Nn  noaos 


^82  Prímevra  Parte  da  Chtonlca 

noíTos   nao  puderao  fubir  a  elles  ,  e  os  mouros  de  cima  os 
trataiiao  niuyro  mal  com  frechas  ,  ezargunchos  darremeí* 
fo  ,  mas  tnmbem  os  nolTos    com  as  lanças  ,   e  efpingardas 
Jhe  faziao  muito  danno  :  o  lono  poufado  ,  que  fora  o  pri- 
meiro que  chegara  ,  querendo  também  fer  o  primeiro  que 
entr.^ííe  cos  mouros  ,  como  era  homem  grande  ,  e  de  muy- 
tas  forças  ,  tanto  trabalhou,  que  lubio  em  hum  parao   com 
huma  efpada  diambas  as  mãos,  e  fendo  em  cima  arremeteo 
aos  mouros  ,  e  os  fez  afaílar  de  maneyra  que  tiueraó  tem- 
po de  fubir  até  vinte  homens, onde  todos  foraÓ  feridos  pol- 
los  muytos  mouros  ,  que  acudiao  dos  outros  paraos  ,  que 
como  viiífe    eílsuao  todos  abordados  huns  cos  outros;  mas 
chegjndo  a  eíle  tempo  algumas  fuftas  e  bateis  ,  que  acharão 
a  entrada  defembaracada  ,  íubiraô  acima  até  duzentos  ho- 
mens,  e  apertarão  os  mouros  de  maneira,  que  os  fízeraô  re- 
colher detraz  dos  entulhos  e  tranqueiras,  que  tinhão  feitas 
nos  feus  paraos,  onde  fe  defendiao  tão  brauamente,  que  os 
noííos  tiueraô  muito  trabalho  j  porem  Pêro  loríe  entrou 
com  elles  ,  e  acertando  de  cair  acudirão  fobre  elle  muytos 
mouros,  mas  após  elle  entrarão  Gomez  freire  ,  c  loao  pou- 
íado,  que  fe  meteo  tanto  antre  os  mouros,  que  o  Pêro  joríe 
fe  pôs  em  pé,  e  co  loao  poufado  íe  liarão  tantos  que  o  der- 
rubarão ,  e  lhe  tomarão  das  mãos  a  efpada  ,  ao  que  acudin- 
do Pêro  joríe  ,   Ruy  gonçalues   que  fora  capitão  da  orde- 
nançi  ,  Pêro  velho  ,  António    dazeuedo  ,   e  Nuno  fernan- 
dez  freyre  ,  o  tirarão  das  mãos  dos  inimigos  ;  e  aíTy  eíles 
como  os  outros,  que  entrarão  nos  paraos  ,  forao  correndo 
por  elles  pelejando  com  tanto  animo,  que  os  mouros   fe 
começarão  a  lançar   ao  mar  polias  popas   dos  paraos  ,  fu- 
gindo para  a  terra,  O  gouernador  vendo  entrados  os  noí- 
íos nos  paraos  ,   e  o  esforço  com  que  pelejauão  ,  mandou 
remar  para  terra  com  muyta  preíla,  e  chegando  a  borda  d'a- 
goa    os  noíTos    nauios   começarão   a  tirar  contfa  as  eftan- 
cias  ,  onde  os  pilouros,  que  acertauão  ,  faziao  muyto  dano 
poreílirem  os  mouros  muyto  juntos.  Também  os  catures 
e  fuftis,  donde  fairaõ  os  noíTos  que  entrarão  nos  paraos  , 
jiravâo  cos  berços  aos  mouros  ,  que  deciao  da  tranqueira 

polia 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  2  S3 

polia  ribanceira  abaixo  ,  com  que  mataiiao  e  feriao  muy- 
tos  ;  porem  elles  eraô  tantos  que  nlío  fe  lhe  enxergaua  fal- 
ta. Dom  Simão  chegando  a  terra  com  a  fua  companhia  co- 
meçou logo  a  deíembarcar,  inda  que  com  muyto  trabalho, 
porque  arrebentaua  aly  o  mar  muyto  ,  onde  acudirão  logo 
grande  cantidade  de  mouros  a  defenderlhe  a  deíembarca- 
çâo  ;  porem  como  os  noííos  começarão  a  íaltar  cm  terra  , 
de  que  o  primeyro  foy  Gomez    martiz  de  Jemos ,  e  a  pós 
clle  Aires  da  íiiua  ,  Fernão  Gomez  de  lemos  ,  e  Jerónimo 
de  foufa  ,  fizerao  logo  ífaílar  os  mouros  da  praya  ,  com 
que  dom  Simão  com  a  mais  gente  teue  lugar   para  defem- 
barcar  ;   porem  forão  tantos  os  mouros  que  enrao  aly  acu- 
dirão ,  que  os  noílos  pelejauao  cos  peis  n'agoa:  a  cila  hora 
chegando  o  gouernador  ,  que  deíembarcara  com  a  bandei- 
ra real ,  derao  os  noíTos  nosinimiigos  com  tanto  Ímpeto  , 
que  fe  começarão  a  reíirar  para  a  tranqueira ;  o  que  vendo 
o  gouernador  ,  mandou  tocar  as  trombetas  ,  e  animando  a 
gente  com  palavras  de  muito  esforço  ,  apertou  tanto  cos 
mouros,  que  os  fez  meter  da  tranqueira  para  dentro,  onde 
ledefendiaõ  de  maneira  queosnaô  podiaÕ  entrar.  Alguns 
dos  marinheiros  das  noílas  fuftas  paflando  entaõ  pollos  pa- 
raos  dos  mouros  ,  que  ja  eftauaõ  deíembaraçados  ,  faltarão 
em  terra  com  lanças  de  fogo,  e  panellas  de  poluora,  e  che- 
gando neíla  conjunção  onde   os  noílos  pelejauao  as  lança- 
rão nos  inimigos,  que  também  forao  de  grandiílimo  eíícito. 
Pêro  mazcarenhas  nefte  tempo  não  eftaua  ocioío  ,  que  clic- 
gando  a  terra   co  feu  eíquadrao  lhe  matarão  ao  defembar- 
car  onze  homens  ,  e  ferirão  outros  muytos  ,  caulado  da  m.á 
dcíembarcaçao  por  arrebentar  o  mar  aly  muito  ,  com  que 
os  homens  deíembarcauao  molhados ,  e  mergulhados  por 
baixo  d'agoa  ,  onde  também  fe  afogarão  alguns  j  cem  tudo 
faindo  cm  terra  por  meyo  deftes  inconuenientcs  ,  de  que  o 
primeiro  foy  lorfe  cabral  ,   forão  tantos  os  mouros  lobre 
elles,  que  das  mãos  lhe  toinauao  as  lanças  afora  infinidade 
de  frechas  quedecião  da  ribanceira  ;  porem  fendo  em  ter- 
ra dos  noílos  até  cincoenta  ,    logo  fizerao  af:iPiar  os  mou-^ 
los  ,  com  que  toda  a  genre  acabou  de  delcmbarcar  ,  ondo. 

Kfl  2  Fero 


2^4        Primeyra  Parte  da  Chronica 

Pêro  mazcarerihas  poflo   na  dicinceyra   com  lorfe  cabra!  •,' 
dom  loríb  de  noronh  i,  António  dazevedo,  Antáo  noguey- 
ra  ,  Diogo  de-miranda  ,  Simão  de  miranda  leu  irmão  ,  Pc- 
ro  da  íilua  ,  e  outros  esforçados  Toldados  ,   vendo    os  pa- 
raos  dos  mouros  ja  tomados,  e  o  gouernador  em  terra  ,  co- 
brarão tanto  animo  ,  que  forao  dar  nos  mouros  com.  gran- 
diíTiina  íaria  ;  mas  ainda  que  os  esforços  eraõ  grandes  ,  as 
forças  não  eraõ  baílantes  a  rcíiilira  tanto  num.ero  de  inimi- 
gos quantos  pelejauao  com  elles  ;  porem  acudindolhe  en- 
tão i^lguns  dos  nofíoR  ,  que  delembarcarnó   dos  paraos  ,  e 
outros  com  panellas  de  poluora  ,  logo  foraõ  leuando   os 
mouros  polia  ribanceira  acima  ate  os  m.eterem  dentro  na 
tranqueira  ,  com  que  ja  cílaua- pegada  a  gente  do  gouerna- 
dor  :   mas  como  a  tranqueira  era  alta  ,  de  gtolla  madeira  , 
entulhada  por  dentro  ,   e  muytos  os  mouros  que  a  defen- 
diao  ,  ouue  aquy  hu<na  briga  aflaz  trauada  ,  com  mortos  e 
feridos  de  ambas   as  partes  ;   e  porque  aly  perto  da  tran- 
queira auia  nãos  e  zambucos  ,  que  eílauao  varados  em  ter- 
ra ,  mandou  o  gouernador  a  dom  Simaò  com  duzentos  lio- 
mes  que  lhe  íoíTem  por  o  fogo  ,  o  que  elle  não  pode  fazer, 
porque  os  nauios  eílauao  de  dentro  ,   e  na  tranqueira  auia 
grandiíFima  cantidade   de  m.ouros  que  os  dcfendiao  esfor- 
çadamente j   mas  quiz  noíTo  Senhor  dar  tanta  força  a  hum 
Duarte  diniz,  que  lançando  huma  roca  de  fogo  pegou  num 
zambuco   velho  que  eftava  cuberto  com  ola  ,  cm  que    íe 
ateou  de  maneyra   que  daly  paílou  a  todos  os  outros   na- 
uios, e  tomou  tamanha  força  por  íer  o  vento  da  terra,  que 
nao  podendo   os  mouros  íofrer  a  grande  quentura  delle  le 
afaílaraó  da  tranqueira  ,  com  a  qual  os  noíTos  eílauao  cm- 
parados  da  mefma  quentura  ;  e  os  mouros  entaô  carrega- 
rão ha  parte  onde  pelejaua   o  efquadrao  de  Pcro   mazcarc- 
nhas  ,  onde  acudindo  Jogo  o  governador  com  toda  a  gen- 
te fe  acendeo  a  peleja  em  mayor  fúria,  porque  os  mouros 
je  defendião  com  muito  esforço,  onde  aiguns  dos  noíTos  /e 
íinalarão  grandemente  ;   ehum  valerofo  íoldado  chamado 
Artur  ferreyra  teue  modo  co  que  íubio  na  tranqueira  ,  e  a- 
jpós  elle  António  de  lemoSjC  outros  ,  que  fizerao  afaftaros 

mouros 


delRey  Dom  João  o  III.  285' 

mouro?,  com  que  ouue  lugar  para  entrarem  multo?,  qne  lo- 
go desfizcrao  grande  parte  da  tranqueira,  por  onde  enircu 
a  bandcyra  real  com  toda  a  mais  gente, e  os  noííos  com  mui- 
tas gritas  derao  nos  mouros  com  ranto  impeio  ,  que  llie  fi- 
zerão  de  todo  voltar  as  coftas  ,  ficando  aly  muytos  delies 
mortos  e  feridos  :  aquy  começarão  os  noilos  a  íe  deímjm- 
dar  e  feguir  traz  os  mouros  íem  ninhuma  ordem  ,  que  de 
quando  em  quando  faziaó  algumas  voltas  ,  de  que  os  noi- 
los reccbiaÓ  dano  ,  a  que  o  gouernador  acudio  com  man- 
dar fazer  final  a  recolher  ;  porem  a  gente  hia  taô  embebi- 
da no  alcance  ,  que  o  nao  ouuio  ,  e  não  deixaua  de  ir  por 
diante  ,  de  que  o  governador  aílaz  agaílado   mandou  dom 
Simaó,   Pêro  m.azcarenhas  ,    Franciíco   pereira  peílana  , 
loão  de  melo  ,  e  Fernão  gomez    de  lemos   que  foflem   re- 
colher a  gente  ,  o  que  elles  muyto  difficultoíamente  pude- 
rão  fazer  nem  has  knçadas  ;   onde  acontecso   que  dom  Si- 
mão por  íazer   recolher  Simão  de  miranda  o  ferio  com  a 
lança  de  maneira  que  eíteve  em  rilco   de  perder  a  vida  ,  ao- 
que  acudio  Diogo  de  miranda  feu  irm.ao  ,  c  outros  fidalgos 
ícus  amigos,  que  íc  queixarão  com  dom  Simão  de  maneyra 
que  o  começauão  ja  a  tomar  mal  huns  e  outros  ,  a  que  dont 
Simão  achandoííc  culpado  não  daua  outra   defcarga  fenao 
que  o  fizera  por  defaftre  ;    porem  chegando  aquy   o  gover- 
nador os  meteo  em  paz  ,  e  mandou  embarcar  SimaÕ  de  mi- 
randa na  lua  galeota,  onde  foy  muito  bem  curado  ,  e  deu  a 
leu  irmão  hum  catur  em  que  o  leuou  a  Cochim,   O  gouer- 
jiador  eíleve  deuagar  na  tranqueyra  armando  alguns  caua-^ 
Icyros  ,   e  porque  ainda  aparecião  os  mouros  de  quando 
em  quando  ,  afora  mandar  pôr  os  eípingardeyros  em  goar- 
da  ,  mandou  concertar  alguns  tiros  com  que  os  fazia  afaf- 
tar-   Após  iílo  m.indou  recolher  toda  a  artilharia  da  tran- 
queyra ,   grofía  e  miúda  ,  que  paííauao  de  cem  peç.is  ,  totia 
de  ferro  ,  c  de  camará  ,  de  que  a  mayor  parte  mandou  lan- 
çir  no  mar,  porque  não  leruia  para  os  noilos  nsuios.  M:n- 
dou  também  tirar  para  o  mar  trinta  e  oito  paraos,  que  eíla- 
uão  faôs  ,  e  aos  outros  manlou  pôr  o  fogo  ;  c  como  aqty 
ííão  auia  maib  que  fazer ,  mandando  embarcar  toda  a  g-nte 

dian- 


226        Primeyra  Parte  da  Clironica 

diante  ,  fe  ficou  elle  em  terra  com  íós  trezentos  homens ,  e 
os  feridos  niandou  leuar  nos  nauios  grandes,  que  palTauao 
de  duzentos  ,  huns  mais  outros  menos  ,  e  os  mortos  paíTa- 
rão  de  trinta,  todos  da  artilharia  quando  deíembarcauao; 
elle  então  com  a  íua  gente  poíta  em  ordem  deceo  da  tran- 
queira a  íe  embarcar  nas  fuíins  ,  que  cílauão  chegadas  a  ter- 
ra com  artilharia  preftes  ;  porem  os  mouros  que  não  eíta- 
uão  defcuidados ,  vendoo  decer,  acudirão  muytos  fobrc  el- 
les  com  infinitos  tiros  de  frechas  e  efpingardas  ;  mas  a  ar- 
tilharia das  fu(l.ís  os  fez  fugir  fem  oufarem  mais  aparecer; 
com  tudo  não  deixauao  de  fazer  muytos  tiros  perdidos,  que 
inda  fazião  algum  dano  aos  noíTos  ,  por  quanto  por  caufa 
do  mao  jazigo,  que  aly  fazia  o  mar,  foy  a  embarcação  muj- 
to  vagaroía. 

CAPITULO     LXXIIIT. 

O  governador  dejpede  dom  Simaõ  por  capitão  mor  da  cofia ; 
vayffc  a  Cav.anor  e  je  ue  com  el  licy.  Dom  Sirnao  entra  no 
rio  de  Bracelor  ,  queima  vinte  par  aos  de  mouros  ^  e  faquea 
o  Iwyar  ,  peleja  dejpois  com  outros  àncoenta  par  aos  ;  e  a 
que  ^Ihe  Jocede,  Os  mouros  daÕ  a  morte  a  oito  FortuguefeSy 
que  ejiao  em  hum  batel. 

T3  Ecolhldo  o  gouernador  na  armada  com  toda  a  gente, 
X\  e  afaftado  para  o  mar  ,  foy  num  catur  vifitar  todos  os 
feridos  que  eftauao  nos  navios  grandes  ,  e  os  mandou  pro- 
uer  de  tudo  o  neceílario  ,  e  ordenou  dom  Simão  para  ca- 
pitão mor  da  cofta  com  huma  galé  ,  cinco  galeotas  ,  e  até 
trinta  vellas  de  remo,  em  que  entrauão  algumas  fuílas  dos 
mouros  ,  que  crão  muyto  boas  ,  e  nefta  armada  coatro 
centos  homens  ,  os  mais  delles  efpingardeyros  ,  e  lhe  man- 
dou que  folTe  correr  a  cofta  ,  e  entraíTe  cm  todos  os  rios  , 
e  onde  achaíle  mouros  e  paraos  feus  lhes  fízeíTe  todo  mal 
que  pudeíTe.  E  porque  daly  a  Cananor  era  perto  ,  mandou 
lá  alguns  homens  dos  muyto  feridos  a  curarle  ,  dos  quais 
íabida  a  noua  do  desbarato  deíles  paraos ,  foy  para  os  noí- 

íos 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  287 

fos  de  tanta  alegria  e  contentamento,  quanto  pnra  os  inou- 
ros  de  fenrimento  e  deigoílo.  Deípachado  dom  Simuo  com 
a  fua  annaia  ,  querendo  o  governador  fjzerfe  á  vella   para 
Cochim,  lhe  chegou  huma  almadia  de  Cananor  com  recado 
de  Eitor  da  íiiueyra,  que  cumpria  muyco  ao  íerviço  delRey 
nollo  Senhor,  e  credito  daquellc  ellado,  ir  a  aqueila    forta- 
leza dar  moftra  de  íy  a  elRey,  porque  osmouros  lhe  tinhão 
metido  em  cabeça  ,  c  efpalhado  por    toda  a  terra  ,  que  os 
noíTos  foráo  desbaratados  ,  e  eiie  com  muita  gente    morta 
fe  fora  fugindo  para  o  mar,   e  a  que  íicafa  toda  eílaua  fe- 
rida ,  eqae  dom  Simão  nao  hia  a  outra  coufa  fenao  a  buf- 
car  arroz,  c  não  leuaua  comíigo  cem  homens  ,  e  que   da 
volta  auia  de  recolher  toda  a  gente  da  fortaleza  de  Cale- 
cut, e  leualla  a  Cochim  ,  porque  ja  não  hauia  Portugueíes 
para  a  poderem  defender.  O  gouernador,  parecendolhe  efta 
ida  de  muita  importância,  íe  foy  logo  a  Cananor,  onde  dei- 
embarcando  co  deuido  recebimento  foy  villtado  logo  del- 
Rey,  dandolhe  os  parabéns  da  íua  vitoria,  que  ao  outro  dia 
polia  menham  Jhos  iria  dar  em  peíToa  ,  porque  defejaua 
inuyto  de  o  ver.-  ao  que  o  gouernador  relpondeo  como  era 
rezio  ,  e  fe  fez  preftes  para  a  fua  vinda.  Ao  outro  dia  polia 
menham  vierao  homens  da  terra  ,  que  armarão  para  elRey 
huma  cafa  junto  da  fortaleza  com  panos  de  Cambaya  pin- 
tados ,  e  nella  fizerão  hum  cftrado  de  terra  a  modo  de  bai- 
léu ,  e  o  barrarão  todo  com  boíla  de  vaca  ,   c  o  mefmo  fi- 
zerão a  toda  a  cafa :  c  aly  veyo  logo   ter  elRcy  adentado 
num  rico  andor  ,  acompanhado  de  muytos  naires  com  íuas 
armas  ,  com  que  vinhao  eígrimindo  pollo  caminho  dando 
muytas  gritas  ,e  rangendo  alguns  bárbaros  eftromentos  a 
feu  modo  ,  e  defpois  de  eftar  na  cafa  íahio  o  gouernador  da 
fortaleza  ,  acompanhado  de  todos  os  fidalgos  bem  atauia- 
dos  ,  e  eIRey  o  veyo  receber  fora  ,  e  feitas  as  deuidae  eor- 
tefias  o  leuou  comfigo   polia  mão  ,  e  íe  aíTcntarão   ambos 
juntos  no  eítrado  ,  onde  eftiuerão  praticando  algum  eípa- 
ço  ,   e  elRey  lhe  deu  por  ly  os  parabés  da  vitoria  de  Cou- 
Icte  ,  e  que  íe  nore  leuaria  muyto  goílo  de  clle  caílir.(r  da- 
quclla  iUdneyra  os  ladroes,  que  andauáo  pollo  mar  em  dcf-. 

fer?;. 


2^8       Píimeyra  Parte  da  Chronica 

ferviço  deiRey  de  Portugal  íeu  irmão,  e  do?  íeus  governa- 
dores da  índia  ;  a  que  o  gouernador,  defpois  de  lhe  dar  as 
deuidas  graças  por  aquella  boa  vontade  ,  Jhe  diííe  que  cm 
eílremo  finrira    faber   que  em  Coíilete   eílauao  mouros  de 
Cananor,  que  lhe  pidia  por  merce^  como  a  bom  irmão  dei» 
Rey  de  Portugal,  que  o  não  confentifTe,  c  que  os  mouros  do 
feu  re}''no  ,  que  aniilTem  em  companhia   daquelles  coíTay- 
ro?,  os  mandalTe  calligar  como  elles  mereciâo,  e  era  rezão, 
€  mandafíe  também  que  em  todo  íeu  reino  não  ouucíTe  pa- 
rao  armado  ,  e  os  que  ouueííe  os  mandaíTe  queimar ;  a  que 
elRey  reípondeo,  que  elle  proueria  niíTo  como  tbíTe  rezao, 
c  que  fe  algum  parao  do  íeu  reyno  foUe  achado  no  mar  de 
mao  titulo  ,  leuaria   muito  goílo  de  o  fazerem    queimar 
com  quanta  gente  tiveíTe  dentro.    x\pós  eílas  praticas  oíFc- 
receo  elPvey  ao  gouernador  hum  colar  de  pedraria  de  mui- 
to preço  ,  e  muitos  panos  brancos   ricos  ,  que  elle  le  efcu» 
íaua  de  aceitar  ,  e  deu   moftras   de  o  querer  leuar   auante, 
dando  por  rezáo  que  linha  a  condição  differente  de  outros 
goucrnadores  ;  ao  que  elRey  lhe  diíTe  que  bem   entendia  , 
que  cada  hum  tinha  fua  condição,  mas  que  os  Reis  daquel- 
la  terra  tinhâo  por  cuftume  dar  daquella  maneyra  final  de 
amizade;  aquy  acudirão  também  os  fidalgos,  e  dilTerao  ao 
gouernador  que  era  injuria  que  fazia  a  ciRcy  ,  fegundo  o 
íeu  coftume,  engeitarlhe  o  que  lhe  daua,  e  então  o  aceitou, 
e  fe  defpedirão   com  muytos  comprimentos   e  palauras  de 
iTJuyta  amizade.  Ao  outro  dia  fe  embarcou  o  gouernador , 
e  íe  foy  a  Cochim  ,  onde  fendo  recebido   com  grandes 
fcftas  e  aparatos  ,  moílrou  diíTo  pouco  goílo  ,  dizendo  que 
crâo  coufas  empreftadas  ,    que  fe  acabauão  muyto  depref- 
la ;  a  que  os  fidalgos  lhe  refponderao,  que  aquellas  honras 
e  aparatos  erao  coufas  deuidas   ao  que  reprefentaua  aquel- 
le  cargo  por  honra  de  Portugal  ,  e  por  iíTo  as  deuia  de  acei- 
tar de  boa  vontade  ,  e  agradecellas  ;  porem  elle  não  tomou 
bem  cftc  coníelho,  porque  íofria  mal  cuidar  ninguém  que 
o  podia  aconíelhar.  PaíTando  dom  Simáo  com  a  fua  armada 
por  Cananor,   faluou  a  fortaleza  com  a  artilharia  ,   e  por- 
que não  quiz  ir  a  terra,  lhe  mandouEitor  da  íilueira  ao  mar 

muyto 


dcIPvCy  Dom  Toao  o  líí.  2?,p 

múyto  refrefco  ,  e  avifalloquc  no  rio  de  Eracelor  cíl;iuao 
vinte  paraos  da  comp:;nhia    dos  que  vierao   de  Cambava  , 
onde  fe  acolherão  coin  medo  da  noíTa  arniada  :  dom  Snnío 
os  foy  logo  bufcar  ,   e  entrando  no  rio  com  rodas  as  em- 
barcações íem  contradição  alguma  ,  achou  os  paraos  me- 
tidos  por  huns  eíleiros  alagados,   cuhertos  de  vafa  ,  que 
com  muyto  trabalho  tirou  fora ,  e  os  queim-ou,  porque  não 
Tinhão  mais  que  os  cafcos  ;  e  não  contente  com  ifto  deu  no 
lugar  ,  onde  queimou  muytos  zambucos  ,  e   tomou  muvto 
arroz  e  ferro  com  que  aiaílrou  os  íeus  nauios  ,  e  pondo  fo- 
go ao  lugar  ,  fc  fahio  afora  ,  e  corrco  até  Baricalá  ,  e  de  ca- 
minho  tomou   muytas  embarcações    pequenas  carregadas 
darroz  ,  com  que  carregou  os  feus  nauioíí.  Partindo  de  Ba- 
ticalá,   íendo  tanto  auantc  como  o  monte  Delv  ,  deu   de 
fupito  com  cincoenta  paraos   que  fe  ajuntarão  por  muytos 
rios  ,  e  hião  carregar  de  arroz  ,  os  quais  em  vendo  a  nolTa 
armada  fe  puferao  logo  em  fugida  ,  confiados  na  vella  c  no 
remo  ,  a  que  os  noíTos  forao  dando  caça  ,   e  dom  Simão  na 
galé  ,  António  da  íiliui  na  galeota  ,  António  fernandez   eni 
hum  bargantim  ,  ê  António  pefloa  cm  huma  fuda  fe  forao 
trás  huma  cantidade  delles  ,  que  fe  hiao  demandar  a  terra  , 
tratando  (ó  de  faluarem  as  vidas  ;  porem  os  noííos  os  aper- 
tarão tanto  com  a  artilharia  ,  que  fete  deIJes  fizerao  varar 
em  terra  ,  para  onde  fugio  roda  a  gente  ,  deixando  os  pa- 
raos arrombados   pollos  fundos  ,  com  que  logo  fe  enche- 
rão de  agoa,   e  outros  a  que  chegarão  os  tiros   lhe  derru- 
barão os  raafcros   e  as  vergas  ,   que  caindo  fobre  os  íolda- 
dados  ,  e  íobre  os  remeyos,  todos  fe  lançarão  ao  mar :  vin- 
te deftes  paraos  fe  acolherão  ao  rio  de  Marabia  ,   c  outros 
fe  forão  na  volta  do  mar  ,  após  os  quais   íe  foi  a  nofla  ar- 
mada ,  mas  como  hia  m,uyto  abolumada  com  a  carga  ,  e  os 
paraos  deípejados  e  leues  ,    muito  depreíla    fe  forao  alar- 
gando dos  noífos  ,  com  que  dom  Simão  Çc  tornou  ao  rio,  e 
na  barra   íurgirão    os  nauios  grandes  ;    porem   os  capit.ies 
delles  metidos  nos  bateis  bem  efquipados   e  com  boa  gen- 
te, em  companhia  das  galeotas,  barg;;ntins  e  catures,  forao 
demandar  o  rio  reruando  quanto  podião  ,  mas  começando 
Fart,  L  Oo  a  en- 


2()o         Primeyra  Parte  da  Clironica 

a  entrar  por  elle  ,  que  era.cftrcyto  na  entrada  ,  acudirão 
logo  muytos  mouros  por  ambas  as  bandas  ,  que  da  terra 
coíTi  frechaj;,  efpingardas,  e  muyta  canridade  de  pedras  tra- 
tnuao  muyto  mal  es  ncíTos  ,  que  também  com  a  noíTa  arti- 
lharia lhe  faziao  muyro  danno:  os  parcos  dos  mouros,  que 
liião  pollo  rioj  duma  parte  e  doutra  hião  varando  na  terra, 
a  que  os  mouros  acudirão  a  defendellos  com  efpingardas  , 
frechas  ,  e  muyras  pedras  ;  porem  os  nolTos  rompendo  por 
tudo,  chegando  a  clles  lhe  deitavao  pancllas  e  rocas 
de  fogo  ,  que  logo  fe  acendia  nellcs ,  íem  os  mouros  ou- 
farem  de  o  ir  apagar.  Nefte  tempo  hum  Domingos  fer- 
nandes  dalcunha  o  Rume,  que  hia  por  capitão  de  hum  bar- 
gantim  ,  fe  meteo  pollo  rio  dentro  após  huns  paraos  ,  que 
hião  fugindo  ,  e  tirandoihc  com  a  artilharia  os  fazia  todos 
dar  ha  coíla;  dom  Simão  receofo  que  lhe  aconteceíFe  algum 
defaftre  ,  porque  hia  fó  ,  mandou  Gomez  martís  de  lemos  , 
que  Ília  num  eíquife  com  oito  homens  ,  que  o  íizelTe  tor- 
nar ;  Gomez  martís  fe  foi  logo  trás  elle,  e  como  não  podia 
remar  tanto  como  o  barganrim,  e  a  maré  vazaua,  foy  enca- 
lhar íobre  huma  pedra  ,  donde  íe  nao  pode  fsir  por  mais 
que  trabalhou  ;  aquy  acudirão  tantos  mouros  fobre  elle 
dambas  as  partes  do  rio  ,  que  has  frechadas  os  matarão  a 
todos  antes  que  Domingos  fernandes  tornaíle ,  e  quando 
tornou  ja  os  vio  iodos  morros;  mas  nao  pode  chegar  onde 
o  eíquife  eftaua  por  vazar  a  maré  com  muyto  impeto  ;  no 
qual  efquife  m.orrerao  dom  Fernando  de  lima  ,  c  Artur  de 
craílo, fidalgos  honrados.  Dom  Simão  e  todos  os  d'armada 
íinti/rão  grandiíiimamente  eíla  deíauentura  ,  e  particular- 
mente polia  perda  de  Gomez  raartíz  de  lemos,  que  era  hum 
fidalgo  de  muita  conta  ,  de  grande  animo  ,  e  muyro  bem 
quifto  de  rodos:  c  tanto  que  ouue  conjunção  de  maré,  An- 
tónio fernandes,  e  António  pcíToa  por  mandado  de  dom  Si- 
mão forâo  em  buíqua  do  efquife  ,  onde  acharão  os  corpos 
todos  nus  derpojados  das  armas  c  do  mais  que  tinhao  ,  e 
trazendoos  comíigo  os  amortalharão,  e  Icuarao  a  Cananor, 
onde  Eytor  da  íilueyra  os  foy  receber  ao  cais  com  toda  a 
gente  e  muyta  cera  ,  e  os  íacerdotes  que  aly  aula ,  e  os  fes 
enterrar  com  toda  a  foienidade  poíTiuel.  CA-  ^ 


delRey  Dom  Jcao  o  IÍL        25)1 
CAPITULO     LXXV. 

Dom  Simaõ  chega  a  Cananor  com  toda  a  armada  \  vay  cor- 
rer  a  cojia  :  proue  a  fortaleza  àe  Calecut  ;  toma  alguns 
nau  i  os  de  mouros.  A  dom  João  de  Uma  chega  focar  r  o  •  clle 
defpeja  a  fortaleza  de  toda  a  gente  que  não  pode  pelejar* 

AO  outro  dia  chegou  dom  Simão  a  Cananor  com  roda 
a  armada  ,  e  íe  mandou  queixar  a  el  Rey  do  favor  e 
ajuda  que  os  feus  no  rio  de  Marabia  derao  aos  coííayros  , 
que  pclejauão  contra  os  noííos  ,  de  que  elRey  íe  moílrou 
jnuyto  fentido,  c  mandou  lá  o  íeu  goazil,  que  Fez  juíliça  de 
muytos  do  pouo,  e  aos  principaes  da  terra  tomou  as  fazen- 
das, que  foy  hum  grande  caíligo  conforme  ao  feu  cuílume. 
lEytor  da  Silueira  aduertio  então  a  dom  Simão  ,  que  o  ma- 
yor  feruiqo  ,  que  naquelle  tempo  podia  fazer  a  elRey  ,  era 
sondar  polia  coíla  até  o  inucrno  íbr  cerrado  ,  tolhendo  o  ar- 
roz que  coílumava  vir  a  Calecut  ,  de  que  então  nelle  suia 
grande  falta;  porque  auendo  fome  ancre  os  mouros  daquel- 
la  terra,  não  poderia  auer  nella  gente  para  a  guerra  que  fe 
cíneraua  que  fizeíTem  aaquella  fortaleza.  Dom  Simão  fe 
partio  logo  deitando  fama  que  íe  kia  para  Cochim  ,  por 
íer  ja  então  no  mes  de  Mayo  ,  e  de  dia  fe  foy  ao  longo  da 
coda  ,  e  chegando  a  Calecut  meteo  na  fortaleza  muyto 
arroz,  manteiga,  e  peixe  íeco,  e  da  fua  gente  meteo  cento 
e  vinte  homens  dos  fomenos  da  armada  quafi  por  foiça, 
pollo  receyo  que  tinhao  da  guerra  que  fc  forpeitaua  auer 
no  inuerno  ,  de  que  fe  efperauao  grandes  trabalhos  e  peri- 
gos. A  efles  homens  ficou  quanto  mantimento  puderao  re- 
colher, porque  a  cada  hum  dclles  íe  daua  licença  para  me- 
ter em  fua  caía  quantos  fardos  de  arroz  quilelTe  :  ficou 
também  na  fortaleza  de  chumbo  ,  poiuora  ,  pilouros  , 
carrilharia  quanto  dom  loão  quiz.  O  qual  ordenou  de  a 
deípejar  de  todas  as  molheres  o  mininos  ,  fem  ficarem  nel- 
Ja  mais  que  vinte  molheres  para  íeruiço  dos  doentes  ,  e  fe- 
tenta  eícrauos,  homens  que  podiao  pelejar:  para  eífa  gente, 
que  auia  de  íair  da  fortaleza  ,   deu  dom  Simão  â  dom  loão 

Oo  2  duas 


291        Piimeyra  Parte  da  Chronlca 

du3s  fuílas  grandes  ,  e  lhe  cilíle  que  elle  aui:i  de  fazer  ou- 
tra volta  até  Baricala  ,  que  quando  tornaíJe  a  leuaria  com- 
íigo  ,  que  eiKre  ranro  a  íizefle  embarcar  ;  e  para  fua   guar- 
da llie  deiAOU  hum    nauia  ,  que  as  acompanhaííe  até   a  íua 
vinda  •,  e  feito  ha  veiia  na  derrota  deCochim  ,  correndo  â 
cofta  de  maneyra  que  foííe  vifto  de  terra  ,  foy  íurgir  no  rio 
de  Cranganor ,  que   hc  cinco  legoas  de  Cochim  ;   e  como 
fo/  noite  íe  fez  outra   vez  ha  vella  na    volta  do  mar  lar- 
go ,   porque  náo  videm   da  terra  para   onde   fazia  o  cami- 
nho ;  e  porque  ja  então  auia  muytaschuuas  de  trouoadas, 
que  lhe  dauao  cada  tarde  ,  e  os  tempos  erao  mortos  ,  não 
pode  topísar  mais  que  até  os  ilheos   de  íanta  Maria  ,    onde 
tomou  huns  zambucos  velhos,  que  alguns  mouros  dos  rios 
carregarão  darroz  ,  e  íe  auenturarão  a  ir  com  elle  a  vender 
a  Calecut  polia  muyta  valia  que  lá  tinha  ,  que  foy  caufa  de 
morrer  ha  fome  muyta  gente  da  raiuda,  que  náo  tinha  com- 
que  o  comprar.    Dom  Simão  deípois   de  fazer  deípejar  os 
zambucos  ,  e  porlhe  o  fogo  ,  fazendo  feu  caminho  ,  junto 
do  monre  Dely  foy  dar  huma  ante  menha  com  doze  paraos 
e  oito  pagueres   de  remo  ,  que  hiáo  buícar  arroz  ,  e  efta- 
uão    furtos   ao    longo  da   terra   por  terem   o   vento    con- 
trario ,  muyto  leguros    e   deícuidados  ,   por  lhes  parecer 
que  dom  Simão  era  ja  recolhido  em  Cochim.  Os  mouros- 
em  auenio  íentimento  da  noíTa  armada  ,  cheyos  de  medo, 
e  de  efpanto  ,    cortarão   as  amarras    com  muyta  preíla  ,   e 
ha  velia  e  a  remo  fe  foráo  fugindo  quanto  podião  ;  porem 
delles  os  que  erao  menos  ligeiros  ,  eque  os  noííos  hiao  al- 
cançando ,  hião  varar  na  coíla  ,   onde   fe  pcrdiao  ;    a  noHa 
armada  indo  dando  eíia  caça  paííou  por  diante   de  Cana- 
nor,  de  que  os  mouros  ficarão  aíTaz  efpantados,  porque  ti- 
nhão  para  íy  que  era  ja  recolhida  ;   ella  com  tudo  não  dei- 
xou de  ir  trás  os  paraos  até  os  enfecar  ,    que  íe  íorao  a  co- 
lhendo pollos  rios  até  Panane.  Dom  Simão  então  tornou  a 
fazer  volta  para  a  coíla,  para  que  os  mouros  o  vifíem  ,  com 
que  ninhum  ouue  que  oufalTe  de  fe  ajuntar  a  ir  buícar  ar- 
roz ;  e  fendo  noite  ,  com  huma  trouoada    que  lhe  deu  de 
muyto  vento,  lhe  foy  forçado  fazerfe  na  volta  de  Cochim, 

onde 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  253 

onde  entrou  com  toda  a  armada, mas  com  aíTaz  de  trabalho, 
por  íer  o  tempo  rijo  ,  que  era  ja  a  vinte  dias  de  Mayo. 
Dom  loaõ  de  lima,  vendo  que  dom  Simão  naõ  tornaua  ,  e 
qae  vinha  entrando  o  inuerno  ,  embarcou  nas  duas  fuílas, 
que  liie  ficaráo,  todas  as  rnolheres  ,  mininos,  e  mais  gente, 
que  nao  teruia  para  a  guerra  para  os  mandar  a  Cochim  , 
mas  nao  ouíaua,  receando  que  de  algum  rio  íaiííc  algum  pa- 
rao  que  os  tomalTe  ;  porem  n^eíla  conjunção  chegou  de  Co- 
cliim  hum  catur  ,  que  o  gouernadcr  mandou  com  proui- 
mento*  de  poíuora  e  chumbo,  cm  que  vinhaó  dom  Chri- 
llouaõ  de  lima,  irmaô  de  dom  loão  ,  e  Lionel  de  lima  leu 
primo,  com  doze  homens  fidalgos  íeus  parente?,  que  foraó 
ajudalio  na  guerra  queefperaua,  nao  fomente  cem  licença 
do  gouernador  ,  mas  com  lhe  dar  muytas  graças  por  iílo  ; 
cuja  vinda  afly  em  dom  loao,  como  em  toda  a  mais  gente- 
da  fortaleza  ,  cauíou  grandiílimo  aluoroço  por  icrem  ellcs 
todos  homens  de  muyto  reípeito ,  e  em  companhia  defte 
catur  mandou  dom  loão  as  duas  fuílas,  em  que  liiao  as  rno- 
lheres e  a  mais  gente  ,  que  forSo  a  faluamento  a  Cochim. 
Aqui  foy  também  todo  o  fato  quanto  auia  na  fortaleza, 
fem  ficar  nella  mais  que  aquelle  ,  que  os  homens  naÕ  po- 
diaó  efcufar  ,  e  com  todo  efte  dcfpejo  de  gente  inda  fica- 
rão na  fortaleza  perto  de  trezentas  pelToas. 

CAPITULO     LXXVI. 

D.aJJe  conta  do  dote  que  elRey   nojjo  Jenhor  deu  hã  Ifante 
dona  l(abelfua  irmavã  co   Empcraâor  Carlos  ;   das  arras 
que  elle  lhe  deu  ^  e  do  que  lhe  deu  para  jujientaçaÕ  de  jua 
cafa  e  pejfoa. 

DEfpoIs  que  clRey  noíTo  fcnhor  acabou  de  concluir 
de  todo  o  feu  calamento  em  Caílella  com  a  Ramiia 
dona  Caterina  noíTa  íenhora  ,  irmã  do  Eraperador  Carlos 
quinto  deíle  nome,  e  fendo  ella  recolhida  neíle  reyno,  que 
foy  o  anno  paíTado  de  1524,  logo  S.  A.  aíly  polio  muyto 
amor  que  tinha  ha  Ifante  dona  Ilabel  íua  irmã^  como  pollo. 

uiuyiQ 


2  94  Prlmeyra  Parte  da  Chonica 

muyto  que  lha  cncílmeadara  elR^y   dom  Manoel  feii  pa^f 
na  hor.i  que  paíTou  ha  outra  vida  ,  logo  começou  a  tratar 
em  CiftelUdo  íeu  cafamento  co  mefmo  Emperador  Car- 
los quinto  ,  nouamente  eleyto  Rei  dos  Romanos,  que  foi 
no  anno  feguiate  de  i^i^*,  o  qual  fendo   concluído   com 
grande  aplaufo  e  contentamento  d'ambos  os  reinos  ,  logo 
por  ambas  as  partes  fe  ordenarão  procuradores,  que  trataí- 
íem  dos  concertos  que  erao  ncceíTarios  para  íe  eífjiruar  o 
cafamento,  e  principalmente   do  dote  ;   para  o  que  S.  A, 
nomeou  por  fua  parte  dom  António  de  noronha  íeu  jírimo 
e  leu  efcriuao  da  puridade  ,  e  Pêro  correa  do  ícu  conlciho,* 
e  o  Emperador  nomeou   polia  fua  Carlos  popeto  moníiour 
de  la  chaulx  do  feu  tonfelhoeíeu  camareyro,  c  loaodeçu- 
nhiga  caualeyro  da  ordem  de  Santiago,  que  mandou  a   efte 
reyno  por  feus  embaixadores.  Eíles  coatro  procuradores 
fe  juntarão  na  villa  de  Torres  nouas  ,  onde   então   eftaua 
S.  A. ,  e  moítrarão  huns  aos  outros  fuás  b^ílantes  procura- 
ções •,  a  delRey  noíTo  fenhor  feita  na  mefma  villa  por  An- 
tónio carneiro  ícu  fecrctario  ,  e  afsinada  por  S.  A.  aos  féis 
dias  do  mes  de  oitubro  do  mefmo  anno  de  1525'  ,   e  fellada 
CO  fello  pendente  de  chumbo  ;  e  a  do  Emperador  feita  era 
lingoa  latina  na  cidade  de  Toledo   no  mefmo   anno  aos 
dous  dias  no  mefmo  mes  de  oitubro  ,   e  no  feifto  anno  do' 
feu  reynado  do  reyno  Romano,  e  no  nono  do  feu  reynado 
dos  outros  reynos  ,  aílinada  por  elle  e  corroborada  co  fea 
íello  ,  e  tresladada  na  noíla  lingoa  Portuguefa  ,  nas    quais 
procurações  elRey  noíTo  íenhor  e  o  Emperador  dauão  a 
eftes  fcus  procuradores  todos   feus  poderes  para  tratarem 
daquclle   cafamento  ,   a(íy    no   que  cumpria   ao   dote  da 
Ifante,  como  a  rodas  as  outras  coufas  importantes  ao  elfeito 
delle:  c   tudo   o  que  elles  fizeíTem   auiao  por  firme  e  va- 
lioío  ,   e  fe  obrigauão   ao  cumprir  e  guardar  fem  contra- 
dição de   ninhuma  das  partes  ,  com  todas    as  feguranças 
que  para   iíTo  parecerão  neceíTarias.  Os  coatro  procurado- 
res difcutindo  bem  o  negocio  fe  vierao  a  refoluer  por  co- 
mum confentimento  de  todos,  que  o  Emperador  mandaífe 
trazer  ha  íui  cuíla  a  deípiníaçio    do  Papa  para  fe  effei- 

tuar 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  ipj* 

tuar  o  cafamento,  e  que  clRcy  noíTo  íenhor  mandaria  a 
Ifantc  fua  irmam  até  hum  dos  lugare?  da  arraya,  antre  cíles 
reynos  e  o  de  CaílelU,ou  á  cidade  d'Eiuas,  ou  ás  villas  de 
Serpa  e  Moura  ,  qual  o  Emperador  cicolheíie  ,  até  o  u  ti- 
mo do  mes  de  nouembro  leguinte  ,  vindo  a  deípenlacao 
deníro  neíle  tempo;  e  que  S.  A.  daria  em  dote  ha  Ifanre  fua 
irmam  novecentas  mil  dobras  douro  Caíleliuinns ,  de  pre- 
ço de  trezentos  e  íeííenta  e  cinco  raarauedis  por  dobra  ,  e 
que  no  numero  deite  dote  entrariaò  vinte  e  três  mil  e  leí- 
lenta  e  íeis  dobras  do  dito  preço  ,  que  valiao  es  oito  con- 
tos noue  centos  e  oitenta  mil  e  tantos  reis  ,  que  a  melma 
Ifante  erdara  por  raorle  da  Rainha  dona  Maria  íua  may  , 
por  qualquer  via  que  foíTe  ,  c  também  fedeícontariaõ  do 
roefmo  dote  cento  e  íeílenta  e  cinco  mil  e  duzentas  e  trin- 
ta e  duas  dobras  do  dito  preço,  e  dezaíleis  marauedis  ,  que 
o  Emperador  deuia  aElRey  iioíío  fenhor  para  compri- 
mento das  duzentas  mil  dobras  do  dito  preço  que  lhe  fo- 
rão  dadas  em  dote  com  a  Rainha  dona  Caterina  nofía  fe- 
nhora  fua  molher  ,  irmam  do  mefmo  Emperador  ,  e  afíj 
mais  cincoenta  e  huma  mil  trezentas  e  feflenta  e  noue  do- 
bras do  dito  preço  ,  e  trezentos  e  quinze  marauedis ,  que 
valiao  cincoenta  mil  cruzados  douro  ,  de  preço  de  quatro 
centos  reis  o  cruzado,  que  o  Emperador  deuia  a  elRty  noiTo 
íenhor,  por  outros  tantos  que  elRey  èom  Manoel  leu  pay 
lhe  empreitara  no  tempo  das  comunidades  de  Caílella  :  e 
o  reítante  do  dito  dote  íe  pagaria  em  diuerfos  tempos  ,  em 
diueríos  lugares  ,  e  por  diuerías  maneyras  ,  como  larga- 
mente íe  contem  na  efcretura  do  dote,  que  fez  o  fecretario 
António  carneyro,  com  outras  particularidades  in-portan- 
tes  ao  negocio  que  íe  trataua.  Os  procuradores  do  Empe- 
rador prometerão  cm  íeu  nome  ha  Ifante  trezentas  mil  do- 
bras de  arras  douro  Caílelhanas,  do  meímo  preço  de  tre- 
zentos feílenta  e  cinco  marauides  por  dobra  ,  e  p^^ra  fu- 
ítentaçaõ  de  fua  peíloa  e  cafa  outras  corenta  mil  dobras  do 
mefmo  preço  ,  síTentadas  em  rendas  de  cidades  e  vill.is  ,  de 
que  ella  feria  fenhora  abíoluta  ,  que  para  iíío  logo  hipote- 
carão. Concluido  o  contrato  do  dote  cora  aprazimento  de 

todos 


2^6       Primeyra  Parte  da  Chronica 

todos  os  coatro  procuradores ,  logo  ao  outro  dia  fcguínfe^ 
que  torao  dezoito  de  oitubro  ,  foraõ  dar  conta  do  que  ti- 
nha') feito  a  íua  Alteza,  que  os  efperou  em  cafa  da  Rainha, 
acompanhado  delia,  e  da  Ifante  lua  irmam;  c  fendoihe  lido 
o  contrato  pollo  íecretario  Anronio  carneyro  ,  jurou  aos 
fantos  Euangelhos  e  ao  final  da  cruz  ,  em  que  pôs  a  fua 
mao  direyta,  que  cumpriria  e  guardaria  tudo  quanto  pa- 
ra bem  do  dito  contrato  era  obrigado  a  jurar  ,  e  lhe  a  elle 
cumpriíTe  fazer  ;  c  também  no  mefmo  dia  a  Ifante  dona 
Ifabel  em  preíença  dos  procuradores  do  Empcrador  em 
mãos  de  dom  Fernando  de  vaíconcellos,  bifpo  que  então 
era  de  Lamego  ,  fez  o  juramento  fobrc  os  fantos  Euange- 
Ihos  e  final  da  Cruz,  em  que  pôs  a  íua  mão  direita,  que  era 
obrigada  a  fazer  para  bem  do  dito  contrato  ,  e  poUa  meí- 
ma  maneyra  os  procuradores  do  Emperador  cm  mão  do 
mefmo  biípo  de  Lamego  fizerao  outro  tal  juramento,  co- 
mo para  bem  do  dito  contrato  erao  obrigados  fazer;  c  neí- 
tc  meímo  dia  ,  deípois  de  ferem  feitos  eítes  juramentos  de 
ambas  as  partes  ,  os  embaixadores  e  procuradores  do  Em- 
perador diíTerao,  que  elles  por  virtude  do  poder  e  manda- 
do eípscial  feu  que  tinhao  ,  em  íeu  nome  acrefcentauaõ  has 
corenta  mil  dobras,  que  no  contrato  do  dote  eraõ  declara- 
das ha  Ifante  para  fua  caía  e  peíloa,  mais  dez  mil  dobras 
d'ouro  Caílelhanas  de  preço  dos  mefmos  trezentos  íeííenta 
e  cinco  marauedis  cada  anno,  que  lhe  feriaó  aíTentadas  nas 
rendas  do  almoxarifado  da  cidade  de  Seuilha  ,  em  tal  ma- 
neira que  lhe  foíTem  bem  pagas  ,  com  que  a  Ifante  ouueíle 
cada  anno  cincoenta  mil  dobras  ,  e  que  cilas  dez  mil  do- 
bras, que  nouamente  lhe  outorgauao,  foílem  da  meíma  raa- 
ncyra  ,  e  com  as  próprias  caiidades,  com  que  tinhao  outor- 
gadas as  outras  corenta  mil  dobras  conteudas  no  contrato  ; 
e  a  Ifante,  que  a  tudo  eftaua  prefcnte,  o  aceytou  da  maney- 
ra que  pollos  embaixadores  c  procuradores  do  Empera- 
dor foy  prometido  e  outorgado,  os  quais  aííinarao  na  nota 
que  fez  o  íecretario  António  carneyro  ,  da  qual  cfte  dote 
foy  tirado  de  verbo  ad  verbum,  e  le  deixarão  de  por  aquy 
outras  muytas  miudezas  c  particularidades,  que  na  eícritu- 

ra 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  197 

f?.  aula,  por  parecerem  impertinentes  a  noíTo  propcnto  •,  e 
fe  não  puícrão  mais  couías,  que  as  que  parecco  que  fe  na6 
podiaó  eícuíar.  Sendo  iílo  aííy  concluído,  logo  íua  Alteza 
fe  paíTou  com  toda  a  corte  da  villa  de  Torres  nouas  para  a 
de  Almeirim  ,  por  lhe  parecer  lugar  mais  apropriado  para 
fe  dar  o  deíejado  effeito  a  efte  taõ  celebre  deipoíorio. 

CAPITULO    LXXVÍI. 

António  âe  hrtto  capitão  de  Maluco  defpacha  Martim  Âjon- 
fo  de  mtlojuj arte  para  Malaca  ,  e  o  que  jaz  em  Banda  ; 
chega  aly  dom  Garcia  anriquez  ;  vão  ambos  fazer  guerra, 
ha  ilha  de  Lotir  ,  e  o  que  lhe  jticede.  ElRey  de  Bintao  man- 
da  hunia  armada  contra  Malaca  \  fae  Manoel  de  foufa. 
capitão  mor  daquelle  mar  a  pelejar  com  ella  ,  e  o  jucefjo 
que  tem,  Laquexemenafaltea  o  Cal  are  ar  ^  he  [ocorrido  de 
Malaca  ,  c  o  quejucede. 

A  Guerra  de  que  atrás  hca  feita  menção,  que  António  de 
brito  capitão  de  Maluco  tinha  com  ElRey  de  Tidore, 
foy  continuando  í-^mpre  íem  ceíTar,  ena  entrada  do  mes  de 
Janeyro  dcíle  anno  de  lyr.y  defpachou  António  de  brito 
Martim  Afonío  de  melojuíarte  para  ira  Malaca  em  h.um 
galeão  que  elle  concertara  ha  Tua  cufta  ,  e  carregara  de 
crauo  ,  e  cm  fua  companhia  mandou  coatro  juncos  delRey 
e  de  partes  carregados  também  de  crauo.  Partido  Martim 
Aíonío  foy  ter  a  Banda  ,  onde  íabendo  os  da  terra  que  era 
clle  o  que  lhes  fizera  a  guerra  ,  íe  puferão  em  armas  con- 
tra elle  ,  e  o  tratarão  como  inimigo  ;  e  tendo  clle  por  no- 
uas, que  em  outra  ilha  de  Banda  eííava  hum  junco  de  Pata- 
ne  com  que  Malaca  tinha  guerra  ,  íe  íby  lá  no  galeão  com 
tenção  de  o  íaquear  ,  e  porlhe  o  fogo  ;  chegando  ao  junco 
o  vio  tão  alterofo  a  rcfpeíto  do  íeu  galeão  ,  e  com  tanta 
gcnrc  ,  que  deíefperado  de  o  pcder  abalroar  para  pelejar 
com  clle  ,  mandou  por  nas  gaucas  do  galeão  íaquireis  de 
pano  podre  cheyos  de  poluora  ,  lanças  em  rocas  de  fogo  , 
e  paníilas  de  poluora  ,  tudo  com  murroes  accíos  ,  e  a 
Pari,  L  Pp.  vinte 


98 


Primeyra  Parte  da  Chronica 


vinte  homens, que  leiíaua  com  íuas  efping.irdas,  pôs  de  ma« 
neyra  ,  que  eíliuelTe;n  rcrguardados  dos  tires  de  arremeíío 
do  junco  ,  e  com  efta  ordem  o  foy  abalroar  íobre  a  amar- 
ra ,  e  chegando  perto  deile  ,  das  fuás  gaueas  lhe  lançarão 
os  artifícios  de  fogo,  que  pegando  logo  na  vella,  que  eíta- 
ua  em  baixo,  le  ateou  em  outras  partes  do  junco  de  maney- 
ra  ,  que  a  gente  deile  fe  lançou  ao  mar.  Martim  AFonfo 
cníao  mandando  largar  o  traquete  ,  que  tinha  aleuanto  nos 
palancos,  fe  aFallou  do  junco,  que  ardeo  todo  até  baixo,  e 
mandou  gente  no  feu  batel,  que  deu  a  morte  a  rriuitos  dos 
que  andavâo  a  nado  ,  e  com  iílo  íe  tornou  ao  porto  donde 
partira.  Atrás. íica  dito  ,  que  o  gouernador  dom  Duârfe  de 
meneies,  a  requerimento  de  Joríe  dalbuquerque  capitão 
de  Malaca  ,  lhe  dera  a  capitania  de  Maluco  para  hum  de 
feus  cunhados  ,  por  ter  cartas  de  António  de  brito  capitão 
da  fortaleza  em  que  lhe  pidia  ,  que  a  mandaííe  prouer  de 
outro  capitão  ,  por  quanto  elle  eftaua  tão  doente  ,  que  não 
podia  fuprir  ao  trabalho  ,  e  diílo  tinha  já  o  gouernador 
mandado  Tuas  prouiíoés  a  Jorfe  dalbuquerque,  o  qual,  por 
dom  Sancho  íer  morto  ,  aprefentou  na  capitania  a  dom 
Garcia  anriquez  ;  e  porque  Malaca  eftaua  então  pacifica 
polia  guerra,  que  Manoel  de  foufa  capitão  mòr  do  mar  fa- 
zia aos  mouros  ,  armou  dous  nauios  redondos  e  hum  jun- 
co aparelhado  ha  uíança  dos  nauios  Poríuguefes ,  e  huma 
fuíta  ,-em  que  meteo  íetenta  homens  porruguefes  ,  e  muita 
artilharia,  e  todos  os  mais  petrechos  de  guerra  •,  c  neíla  ar- 
mada embarcou  dwii  Garcia  para  ir  a  Maluco  com  ordem, 
que  íe  António  de  brito  lhe  quiíeííc  entregara  capitania  , 
polia  prouiíao  que  leuaua  tomaíle  poíTe  delia, e  não  lha  en- 
tregando ,  íe  lhe  quiíeíle  dar  carga  ,  a  aceitaííc  ,  c  não  lha 
querendo  dar  ,  fe  foíTc  a  Banda  ,  onde  fízcííe  emprego  com 
que  em  Malaca  pudcíTe  fazer  proueito.  Dom  Garcia  partio 
«m  Janeyro  de  1'y'^Si  ^  foi  tomar  cm  Banda  no  porto  onde 
eftaua  Martim  Afonfo  em  guerra  cos  da  terra  ,  a  que  por 
falta  de  gente  fazia  muyto  pouco  dano  ;  porem  vendo  dom 
Çarcia  acabou  com  elle  que  o  ajudaíTe  a  tomar  vingança 
dos  males  c  afrontas  ,  que  os  daq^ueila  terra  lhe  tinhao  fei* 

t04 


delRey  Dom  Jcáo  o  IIÍ.  ipp 

"to  ;e  pafsando  daly  lia  ilha  re  Lorir  com  detr-minaçao  Je 
queimarem  a  cidade  ,  que  lic  cabeça  de  todas   as  ilhas    de 
Banda  ,  defembarcarao  em  terra  com  roda  &  gtnte,  que  íe- 
riao  até  cemPortuí^ueíes  bem  concertados,  e  depois  de  po- 
rem fogo  a  trcs  juncos  ,^ue  eítauao  varados,  e  a  humas  ca« 
fas  de  palha,  forao  cometer  a  cidade  ,  que  cílaua  daly  hum 
tiro  de   beíla  ,   porem  acharanna   inuyto   bem  prouida  de 
muytas  e  fortes  tranqueiras,  e  de  m.uyta  e  boa  gente;  e  por- 
que a  peleja  auia  de  fer  de  perto  c  a  força  de  braço,  porque 
os  noííos  não  leuau^o  artilharia  ,   os  mouro<:  ,   com^  erao 
muytos  ,  os  começarão  a  tratar  tão  ma!  com  infinidade  de 
mechas,  zargunclios  darremeíTo  ,  e  pedras,    que   lirauão 
com  fundas,  que  lhes  foy  forçado  recoihercmfe  para  os  na- 
uios,  e  muytos  delles  feridos,  de  que  hum  foy  dom  Garcia 
de  huma  frecha   no  pefcoço  ,  e  íe  embarcarão  com  preíTa  , 
fem  tratarem  de  tornar  mais  a  terra; porem  do  mar  lhe  fa- 
2Íão  todo  o  mal  que  podiao,  que  era  muyto  pouco,  porque 
não  auia  em  que  Jho  pudeííem  fazer ,   e  dcíla  maneyra  eí- 
tiuerão  até  virem  as  mouçoes  ,  com  que  Martim  Afonío  fe 
partio   para  Malaca  ,  onde  chegou  a  íaluamento;  e  dom 
Garcia  para   Maluco  ,onde  paíTou  o  que  adiante  fe  dirá." 
Logo  como  dom  Garcia  partio  de  Malaca  ,  foy  elP^ey  de 
Bintao  auifado  da  fua  ida  ,  e  parecendolhe  que  com  a  gi^n.' 
te  que  leuaria  comfigo  ficaria  muyto  quebrado  o  poder  de 
Manoel  de  fouía  capitão  mor  do  mar  ,  que  lhe  tinha  feito 
muyta  guerra  em  Pão  e  em  Paíane  ,  ouue  efta  por  boa  con- 
junção para  tom.ar  vingança  delle  ,c  mandoa  fazer  preftes 
trinta  lancharas  grandes  muyto  bem  aparelhadas  ,    e  mil 
homés  nellas,  a  que  deu  por  capitão  Laquexemena,  que  lhe 
£Íirmou  com  muitos  juramentos  ,   que  ou  perderia  a  vida  , 
ou  lhe  daria  a  vingança  que  defejaua  ,  e  que  doutra  manei- 
ra não  tornaria  mais   a  aparecer  ante  elle.  Parte-fe  logo  , 
cfaz  fua  viagem    com  tanto  íegredo  ,   que  ninhum    íenti- 
rncnto  ouue  delle  fcnão  quando  chegou  de  fupito  a  Mala- 
ca,que  foy  hum  domingo  polia  menham  a  tempo  que  todos 
eftauaò  ha  miíía  ,  e  deíembarcou  na  pouoaçao  dos  Quelins 
com  coda  fua  gentej  matando  e  roubando  fem  psrdoir  a  vi- 

?p  z  da 


joo         Primeyra  Parte  dâ  Chroiiica 

da  nem  a  fazenda  ,  com  que  a  pouoação  toda  leuantando- 
grandiílimas  grir.is  fe  pós  em  fugida  ;  ouuindoííe  iílo  na 
Igrejajoríe  dalbuquerque  e  Manoel  de  íoufa  e  toda  amais 
gente  íe  fairaó  com  muyra  preíTa  a  tomarem  as  armas  ;  o 
capitão  mandou  Garcia  chainho  feitor  da  fortaleza  acu- 
dir aquella  parte  donde  era  o  rebate  ,  o  que  elle  fez  cora 
inuyta  breuidade  ,  acompanhado  de  oitenta  homens  que  o 
íeguiraÔ  ,  antre  os  quais  hiao  Nicolao  de  íá  ,  Felipe  de 
aguiar,  Ruy  lobo  ,  Francifco  bocarro  ,  Simão  mendez,.  e 
Gaípar  velho;  os  Quelins  cobrando  animo  co  íocorro  , 
voltarão  aos  inimigos,  e  os  apertarão  dernaneyra  que  La- 
quexemena  fez  recollier  os  fcus  com  mujta  preíía,  deixan- 
do a  preía  que  tinha  tomada  ,  e  alguns  dos  feus  mortos  e 
feridos.  Em  quanto  Garcia  chainho  foy  fazer  cite  íocorro, 
Manoel  de  fouía  íe  embarcou  em  três  fuílas,  que  naoauia 
cntaô  mais  nauios  de  remo  na  fortaleza  ,  e  das  outras  duas 
Jiião  por  capitães  Manoel  hUcáo,  e  Aluaro  botclho  ,  e  coni 
elles  le  embarcarão  Aires  coe'ho  ,  Francilco  leme  ,  Giircia 
queimado,  Duarte  rebello  ,  Ruy  figueira  ,  Gaípar  peííoa , 
António  carualho  ,  Joaõ  íerrao,  e  outros  bons  íoldados  , 
que  por  todos  íeriao  íetenta.  Laquexemena  ,  vendo  vir  as 
noíTas  três  fuftas  ,  ouue  que  tinha  na  mão  o  que  defejaua,  e 
pofto  diante  de  todos  os  feus  íe  foy  para  o  mar  fingindo 
que  fugia  ,  e  os  noííos  indo  trás  elles  alcançarão  huma  lan- 
chara ,  que  remaua  menos  que  as  outras  ,  de  que  a  gente  fe 
jançou  ao  mar;  os  noííos  íem  tratarem  delia  paílarao  auan- 
te  remando  com  muyta  preíTa  ,  por  alcançarem  outras  que 
hião  perto  ,  com  que  íe  foraô  metendo  muito  no  mar  fe- 
guindo  os  inimigos  com  muytas  gritas  ,  e  apupadas  :  aquy 
acudio  hum  Francifco  de  matos  pratico  de  muytos  annos 
na  guerra  de  Malaca,  que  hia  na  fuíla  de  Manoel  de  fouía, 
c  Ihi  diíTe,  íenhor  Manoel  de  íoufa,  Laquexemena  não  vos 
foge  com  medo  de  três  fuílas  que  aquy  liimos  ,  mas  vainos 
Icuando  para  o  mar  para  deípois  voltar  lobre  nós  ,  e  cora 
tamanha  arm.ada  bem  vedes  o  que  nos  poderá  fazer.  lílo 
nieímo  lhe  diíTc  a  grandes  vozes  Manoel  falcão  da  fua  fuí- 
ía  i  porem  eiie  a  nada  diílo  quis  dar  orelhas,  c  leguio  por 

dian- 


delR-cy  Dom  loao  o  III.  301 

áiante  após  huma  lanchara  ,  que  lingia  que  nao  podia  re- 
mar ;  e  fendo  os  nofios  afaílados  da  terra  quafi  huma  le- 
goa  ,  fez  Laquexemena  volta  com  toda  íua  armada  tiran- 
do muytas  frechas, e  deíparando  muyta  artilharia-,  porem  as 
noíTas  fuílas  não  tornarão  atrás  ,  mas  afíy  como  hiao  auia- 
das  do  remo,  defpararaó  também  fua  artilharia,  com  que  fe 
começou  huma  peleja  aíTaz  trauada  •,  e  como  as  noíTas  fuf- 
tas  cííauão  cercadas  por  todas  as  partes  das  lancharas  ,  e 
dos  noíios  começarão  a  cair  alguns  mortos  e  feri-los  ,  pa- 
recendolhes  que  naô  podiaÓ  ter  remédio  de  íaluaçao  ,  pe- 
lejauaõ  como  homens  que  queriaõ  vender  bem  íuas  vidas. 
E  aíly  durou  a  peleja  desde  oras  de  veípora  até  r:oi(c,  on- 
de os  noflos  trazendo  na  boca  os  nomes  de  IESVS,e  de  íua 
May  fantiíhma  fe  defenderão  com  tanto  esforço,que  nunca 
forão  entrados;  e  quis  noílo  Senhor  que  hum.  pilouro  per- 
dido derrubou  o  maílo  da  lanchara  de  Laquexemena  ,  que 
caindo  dentro  lhe  deu  por  lium  braço  de  que  cahio  coma 
niorto  ,  e  cuidandoo  aííy  os  léus  ,  e  efpalhandoffc  efla  voz 
polias  outras  lancharas  ,  fe  foraó  afaílando  trás  a  íua  ca- 
pitaina  que  hia  ja  diante  ,  e  as  noílas  fuílas  íicarao  tão  àeÇ- 
baratadas  ,  que  não  tinhao  quem  as  remaíTe.  Morrerão 
aquy  dos  noflos  ,  Manoel  de  foula  ,  Aires  coelho  ,  Alua- 
ro  botelho,  Franciíco  rebello  ,  João  boí^gcs  ,  Pêro  de  tor- 
res ,  Ruy  figueira  ,  e  outros  muytos  valeroíos  íoldados  j 
e  os  viuos  ,  que  ferião  até  vinte  íómente  ,  ficarão  todos 
feridos  ;  porem  as  vidas  de  huns  e  o  langue  dos  outros 
cuftarao  bemi  caro  aos  mouros  ,  porque  antre  mortos  e  fe- 
ridos forão  mais  de  trezentos.  Antre  eíles  ,  que  ficarão  vi- 
uos, foy  humi Manoel  falcão  capitão  de  huma  fufta,  na  qual 
tinha  oito  marinheyros,  com  que  chegando  has  outras  fuí- 
tas  lhes  deu  cabo  ,  e  as  leuou  ha  toa,  que  chegando  ha 
praya  de  Malaca  caufou  grandiíUmo  íentimento  cm  toda 
a  gente  ver  tantos  mortos  ,  c  efpanto  de  os  mouros  deixa- 
rem de  dar  a  morte  aos  que  íicaraõ  viuos  ,  porque  ninhum 
delles  vinha  para  poder  pelejar.  Laquexemena  tornando 
cm  fy  eíleue  no  mar  aquclla  noite  toda  ,  e  ao  outro  dia  tor- 
nou a  Mahcâ  com  todas  as  lancharas  embandeyradas  ,   e: 

clic-^ 


302  Primeyra  Parte  da  Chronlca 

chegando  perto  da  terra, onde  lhe  não  pudeíTe  alcançara  ar- 
tilharia da  fortaleza  ,  andow  balrauenteando  de  huma  par- 
te para  outra  •,  porem  não  lhe  fahio  ninguém  ,  porque  Jor- 
íe  dalbuquerquc  nao  quis  mandar  dous  nauios  redondos 
que  aly  auin,  por  não  ter  para  ellcs  a  genre  neceíTaria.  La- 
quexemena  então  (c  foy  a  huma  pouoaçao  de  gentios,  que 
fe  chamaua  o  Calaícar,  c  eílaua  de  paz  com  Malaca  ,  onde 
faindo  ern  terra  com  íua  gente,  elles  com  medo  fe  lhe  en- 
tregarão todos  por  catiuos  ,  para  íe  irem  com  elle  ,  e  os 
fez  logo  embarcar  com  molhercs  c  filhos  e  toda  a  familia  , 
c  fó  com  a  gente  íc  carregarão  tanto  as  lancharas  que  não 
puderão  leuarlhe  o  fato.  Joríe  dalbuquerque  fendo  auiía- 
do  que  Laquexcmena  hia  para  o  Calaícar  ,  o  m.andou  fo«» 
correr  por  Garcia  chainho  com  oitenta  homens,  que  partio 
de  noite  por  fazer  então  luar  ,  c  foy  amanhecer  ao  lugar; 
porem  quando  chegou  ja  a  gente  toda  era  embarcada  ,  c  as 
lancharas  hiaô  na  volta  de  BintaÔ  ,  e  vendo  que  ja  lhe  não 
podia  fer  bom  ,  mandou  faquear  o  lugar  ,  em  que  acha- 
rão muyto  fato  e  algumas  mercadorias  ,  e  grande  canti- 
dade  de  arros  ,  que  os  homens  folgarão  de  icuar  mais  que 
tudo  ,  porque  auia  em  Malaca  grande  falta  dcllc  ,  c  valia 
muito  caro. 

CAPITULO    LXXVÍII. 

Da  ff}  eorJa  ãe  humas  cUfferenças  ,  que  tem  Pêro  mazcare- 
7ihas  com  Ajonfo  mexia  veador  âa fazenda*  EiRey  de  Ca- 
lecut manda  pôr  cerco  ha  no  ff  a  fortaleza  ;  dom  João  de 
Itma  capitão  delia  Je  prepara  para   a  defender» 

Ç»  Endo  o  Gouernador  recolhido  em  Cochim  ,  entcndco 
O  logo  nas  embarcações  que  auião  de  ir  para  fora  ,  por- 
que então  era  o  tempo  da  mouçaô  ,  e  deípachou  Pêro 
mazcarenhas  para  capitão  de  Malaca,  em- que  viera  proui- 
do  por  elRey  ,  por  Jorfc  dalbuquerque  ter  já  acabado  o 
ícu  tempo  ,  ç  lhe  deu  três  nauios  em  que  foíTc  com  duzen-. 

tos 


dei  Rey  Domjcêo  o  III.  303 

tos  homens.  Andando  Pêro  mazcarenliss  dando  crdcm 
has  coufas  que  ll^e  crao  nccenprias  ,  Afonío  mexia  vcscor 
da  fazenda  ,  a  quem  o  gouernanor  ,  naõ  ie  querendo  an- 
tremetcr  n^s  coufas  delia  ,  tinha  feito  fupremo  neIJas,  por 
iaber  o  grande  ufo  e  conhecimento  ,  que  delias  tinha  ,  e 
por  iíío  lhe  fazia  tantos  fauores  ncíla  parte  ,  que  fe  tinha 
feito  mais  iíento  c  fcberano  do  que  parecia  rezâo  ,  man- 
dou ao  mefire  da  náo  cm  que  Pêro  mazcarenhas  auia  de  ir, 
que  defpejafe  hum  pajol  de  popa,  que  elle  ja  tinha  cheo  de 
fardos  de  arroz  íeu  ,  para  íe  meterem  nclle  fardos  de  rou- 
pa d'eiRey;do  que  íendo  auiíado  Pêro  mazcarenhas  ,  íe  foi 
ao  veedor  da  fazenda  pcdirlhe,  que  lhe  naÕ  mandísOc  defpe- 
jar  o  payol  do  arros,  que  leuaua  para  dar  de  comer  ha  gen- 
te com  que  auia  de  defender  a  fortaleza  delRev"  ,  que  era 
couía  de  mais  íeruiço  feti  que  as  roupas  podres,  que  elle  aly 
msndaua  meter :  tomado  difto  Afonfo  mexia  lhe  diííe  ,  que 
as  roupas  boas  ou  más  ,  pois  erao  delP^ey  ,  auiao  de  ir  na- 
quelle  payol  ,  e  que  naquillo  naõ  auia  que  aporfiar.  Pêro 
mazcarenhas  Iherornou,  que  fe  deííe  diflo  conta  ao  fenlior 
gouernador,  e  íe  íizeíle  o  que  elle  mandaíTe-,  ao  que  Afonío 
inexia  lhe  refpondeo,  que  para  aquillo  naõ  era  neceííario  o 
gouernador  ,  porque  na  fazenda  delRcy  elle  o  era.  Pêro 
mazcarenhas  lhe  diííe,  que  ainda  que  ally  foíie  naõ  enten- 
dcíTe  cm  defpejar  o  pnyol,  porque  as  roupas  nao  auiao  d'ir 
nelJc  ,  e  Afonfo  mexia  ja  colérico  lhe  tornou  ,  que  elle  o 
mandaria  deípejar  ,  e  naó  feria  outra  couía  ,  c  virandolhe 
n$  coílas  fc  meteo  para  dentro  da  feitoria  ,  porque  eílaua 
cntaô  ha  porta-,  de  que  Pêro  mazcarenhas  afrontado  lhe 
deu  também  as  ccílas  ,  foltando  algumas  palauras  afperas  , 
que  Afonío  mexia  bem  ouuio  ,  e  também  foltou  outras 
cheyas  de  payxao  ,  porem  naÕ  as  ouuio  Pêro  mazcarenhas 
por  liir  ja  m.uyto  afaílado  ;  e  daqui  ficou  Afonfo  mexia  tao 
quebrado  com  elle  ,  que  dahy  por  diante  o  encontrou 
iempre  em  tudo  o  que  pode  ,  porque  emíim  o  payol  não 
fe  defpejou  comaO  elle  quiíera.  Os  mouros  de  Galecut  ven-- 
do  que  o  inuerno  era  ja  cerrado,  eque  naõ  nuia  tempo 
para  vir  focorrcr  ha  fortaleza  ,  perfuadiraÕ  a  eiRey  ,  que. 

lhe 


go4         Primeyra  Parte  da  Chronica 

Jhe  fízeíTc  guerra  ,  porque  não  auia  nella  forças  com  que 
íe  detendeíTe  ,  c  tomaiidca  com  a  artilharia  que  nelia  eáa- 
ua,  e  caíiuando,  ou  matando  os  Portugucíes  ,  faria  os  con- 
certos das  pazes  quais  compria  a  íua  honra,  e  ao  bem  do 
feu  reino  ;  e  os  mercadores  delle  poderiaô  nauegar  liure- 
menre  por  onde  quiíeííem  como  íempre  fizerão  ,  e  a  eíle 
modo  lhe  meterão  em  cabeça  outras  Iiuiandades,a  que  elle, 
não  entendendo  os  feus  enganos  ,  deu  credito  ,  e  Ic  detri- 
minou  em  f\izer  a  guerra  ;  elles  antre  ly  ajuntarão  mais  de 
cem  mil  pardao?,  com  que  leuantarão  muyros  mouros  ef- 
pingardeiros  ,  e  muytos  naires  para  ajudarem  a  elRey  nel- 
la.  Dom  João  de  lima,  a  quem  nada  diílo  íe  eícondia,  orde- 
nou ,  por  coníelho  de  todos,  o  modo  que  íe  auia  de  ter  na 
defenlao  da  fortaleza  ,  e  fendo  aííeníado  que  elle  nao  failTc 
mais  fora  delia ,  nem  apareceíTe  em  parte  donde  pudeíTe 
correr  perigo  ,  fez  logo  capitães  para  eHarcm  nos  cubei- 
los  ,  repartio  a  gente  para  vigiar  nos  inuros  ,  e  por  confe- 
Iho  do  condeílabre  repartio  tatnbem  a  artilharia  pollos  lu- 
gares a  que  conuinha,  e  a  dom  Vafco  de  lima  deu  cargo 
de  andar  fora  no  campo  com  a  gente  que  parecco  neceíia- 
ria  ,  que  cotneçou  logo  a  fazer  feu  oíHcio  ;  porem  o  vigay- 
ro  da  fortaleza  ordenou  ,  que  íe  confcíTaílcm  todos  ,  e  to- 
maíTein  o  untiílimo  Sacramento  ,  e  todos  os  dias  em  ama- 
nhecendo lhes  dizia  miíía  ,  e  defpois  de  ouuida  fahia  dom 
Vafco  no  campo  com  vinte  e  cinco  até  trinta  homens  com 
liras  efpingirdas  ;  e  fc  alguns  mouros  chegauao  com  mof- 
tras  de  quererem  pelejar  ,  íahião  os  noíTos  a  clles  e  ajuda- 
dos das  efpingardas,  que  rirauao  os  que  eftnuão  nos  muros 
e  nos  cubellos  ,  e  has  vezes  de  alguns  tiros  rníleyros  ,  os 
faziao  tornar  fugindo  para  a  cidade  ,  e  dom  Vaíco  os  hia 
fcgLiin.do  ate  os  encerrar  dentro  nella  ,  pollos  quais  dçí- 
mandos  o  capitão  fe  queixaua  muito  com  elle;  e  ainda  que 
dom  Vafco  lhe  prometeo  de  não  paíTar  de  certo  lugar  ,  to- 
daui:i  quando  vinha  has  mão?  cos  ininiigos,  como  ninhum 
perigo  por  grande  que  folie  lhe  podia  pôr  receyo  ,  efque- 
eido  de  fua  promeíla  ,  não  paraua  até  os  pôr  de  todo  em 
fugida  ,  com  que  algumas  vezes  íe  vio  em  muyto  trabalho, 

por 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  305' 

por  onde  chegou  a  termos  de  o  capitão  o  não  deixar  de 
quando  ctn  quando  íviir  fora  ,  e  rambein  porque  nem  íem- 
pre  era  ncceílario  ,  porque  os  pilouros  da  artilharia  ,  que 
cítaua  para  a  parte  do  campo,  entrauâo  por  antre  as  caías 
da  cidade,  e  lhe  faziao  muito  dano.  Os  mouros  para  remé- 
dio difto  por  confelho  de  hum  engenheiro  que  tinhaõ  com- 
íigo  ,  que  era  hum  Italiano  renegado  ,  que  fe  achara  co 
Turco  na  tomada  de  Rodes  ,  donde  o  trouxerao  os  mou- 
ros de  Meca  ,  fizerão  de  longo  das  caíeis  huma  grande  ca- 
ua  larga  e  alta,  e  da  terra,  que  fahio  delia,  fízeraó  hum  groí- 
ío  vâllo,  com  que  os  pilouros  nao  entrauao  na  cidade  ;  e 
como  a  caua  era  alta,  andauaó  por  ella  fem  aparecerem  de 
fora  ,  e  após  efta  fizeraÒ  outras  cauas  em  voltas  ,  taõ  alfas 
como  ella  ,  por  onde  andauaõ  ha  íua  vontade  ,  e  os  vallos 
licauaõ  antre  as  cauas  de  maneira  que  a  noíTa  artilharia 
Jhe  nao  podia  fazer  nojo  ,  e  nelles  prantarao  alguns  tiros 
com  que  tirauaõ  ao  noíío  muro  e  has  ameyas  ,  e  afora  ifto 
tirauao  com  muvtas  eípingardas  em  que  erao  muyto  de- 
ílros  ,  com  que  aos  noíTos  dauaõ  bem  que  entender  -,  e  co- 
mo neíla  obra  traziao  grande  cantidade  de  gaftadores  ,  fo- 
raofe  eílendendo  tanto  com  as  cauas  e  vallos  ,  que  cingi- 
rão a  fortaleza  toda  em  roda  ,  de  mar  a  mar.  Dom  Vaíco 
de  lima  entre  tanto  nao  andaua  defcuidado  ,  mas  laindo 
muitas  vezes  com  a  fua  gente  ,  daua  nos  mouros  ,  e  com 
panellas  de  poluora,  que  lançaua  dentro  nas  cauas,  trataua 
muyto  mal  aos  que  alcançauao,  a  que  os  mouros  trabalha- 
uaõ  reííílir  com  muytas  efpingardadas  e  frechas,  mas  tudo 
era  de  pouco  efeito.  E  como  eftas  cauas  eílauaó  muyto  ao 
fope  da  fortaleza  ,  os  noilos  de  cima  com  as  eípingardas 
matauão  tantos  dos  que  trabalhauão  na  obra,  que  Já  nao  fe 
atreuiao  a  trabalhar  nella.  O  renegado  engenheyro  para 
remédio  difto  ordenou  cobriras  cauas  por  cima  com  vigas, 
que  as  atraueílauao  de  huma  parte  ha  outra,  com  que  os  ga- 
ftadores ficarão  aíTaz  empnrados,  e  por  antre  as  vigas  dsC^ 
parauaoa  fua  efpingardaria  ,  com  que  muyto  a  feu  faluo 
faziao  muyto  dano  aos  nolTos,  lem  o  poderem  receber  dei- 
les  ;  e  com  eíle  cmparo  torae  correndo  com  as  cauas  para 


^o6         Pfimeyra  Parte  da  Chronlca 

os  muros  da  fortaleza,  de  que  os  noTos  começarão  a  tomar 
algum  receyo  ;  porem  o  capitão  vendoíle  c^Tcado  de  cauas 
de  mar  a  mar,  fem  ihe  ficar  lugar  por  onde  lhe  pudelTe  en- 
trar focorro  íenao  por  diante  da  forialeza,  fez  hiima  cou- 
raça, da  porta  da  traição  até  o  mar  ,  de  pipas  em  pc  cheas 
d'area  ,  que  íeruiao  de  eíleos ,  porque  nao  tinha  tanta  can- 
ridade  delias  que  lhe  baílaíTem  para  toda  a  obra  ,  e  antre 
humas  e  outras  lançou  liuma  eílacada  de  páos  muyto  groí- 
íos  ,  em  que  pregou  grolTas  ta  boas  ,  com  que  íiquou  mui- 
to forte  ,  a  qual  obra  os  inimigos  lhe  nao  poderão  impi- 
dir,  porque  a  fortaleza  tinha  por  cada  lado  duas  peças  d'ar- 
tilharia  ,  que  varejauao  o  campo  ,  que  os  mouros  lhe  nao 
podiaô  cegar  ,  porque  nao  podiaõ  ali  fazer  cauas  por  fer 
área  íolta  ;  e  como  então  era  entrada  de  inuerno  ,  que  era 
no  mes  de  junho,  e  auia  muytas  e  muito  groifas  chuuas,  em 
ambas  as  partes  caufauao  muyto  trabalho,  nos  mouros,  em 
vazarem  as  cauas,  que  a  chuua  enchia  d^agoa  ,  e  nos  noífos 
em  vigiarem  de  noite  ha  chuua  ,  por  não  terem  com  que  fe 
repairaííem  delia.  O  capitão  auendo  a  obra  da  couraça  por 
de  muyto  proueito  para  a  deíembarcação,  ajuntou  a  ella 
mandar  lançar  na  borda  d'agoa  muyta  cantidade  de  pedras^ 
que  fe  cobrirão  logo  de  área  ,  que  o  rolo  do  mar  trazia  , 
com  que  a  defembarcaçao  ficaua  algum  tanto  emparada  do 
mefmo  rolo  do  mar ;  e  de  longo  da  couraça  por  ambas  as. 
bandas  mandou  pôr  almadias  cheyas  d'area  ,  que  a  fazião 
muito  mais  forte  ,  porque  tanto  que  começou  a  ter  lenti- 
mento  da  guerra,  quantas  almadias  pode  auer  ha  mão  man- 
dou guardar  junto  dos  muros  antre  a  fortaleza  e  o  mar  ,  e 
mandou  recolher  muyta  madeira,  que  fe  tirou  das  cafas  de- 
fóra  ,  que  íe  desfizerão  ,  que  tudo  em  feus  tempos  lhe  foy^ 
defpois  muito  proueicoíb. 


CA' 


dei  Rey  D3m  João  o  ÍII.  307 

CAPITULO     LXXVIIII. 

O  renegado  etigenheyro  ordena  hum  trabuco  contra  a  forta- 
leza» Doynjoão  de  lima  manda  Diiarle  fcmandcs  a  Ca" 
leciit  em  trajos  de  jogue  ,  que  lhe  dá  muitos  auifos  \  os 
mouros  batem  a  fortaleza  ,  e  ofucefo.  O  engenheiro  de- 
triminando  fazer  huma  mina  ordena  hum  emparo  para  os 
gajladores  \e  o  que  os  nojj os  fazem, 

A  Torre  da  menagem  da  fortaleza  era  de  dous  fobra- 
■  dos,  de  que  o  de  cima  ficaua  em  eyrado  tao  forte,  que 
jugauão  delle  coatro  falcões  pedreyros  ;  eíles  ,  como  eíta- 
uão  em  parte  que  defcubria  toda  a  cidade,  tirauao  ás  prin- 
cipais ruas  delia  por  onde  a  gente  vinha  para  as  cauas  ,  e 
o  mefmo  faziao  íeis  falcões  ,  que  eílauao  nas  duas  torres 
fronteiras  ha  cidade,  a  que  os  mouros,  pollo  muyto  danno. 
que  recebiâo  ,  fizerao  muytos  repairos,  mas  todos  forão 
íem  proueito,  porque  a  artilharia  desbarataua  tudo,  para  o 
que  o  renegado  engenheiro  armou  hum  trabuco  dentro  na 
cidade  feito  de  peças,  que  fe  aiuntauao  humas  com  outras, 
tamanho  e  taó  forte,  que  podia  lançar  pedra  de  vinte  quin- 
tais de  peio,  de  que  mandou  cortar  muyta  quantidade  dali 
a  três  legoas,  e  com  força  de  gente  as  mandou  trazer  a  ro- 
do ,  e  defpois  d'armar  o  trabuco  ,  e  ver  por  proua  o  bom 
efíeiro  delle  ,  meteo  a  gente  em  fazer  da  banda  de  Cochim 
hum  alto  emparo  para  detrás  delle  armar  o  trabuco  ,  com 
que  lançaíTe  dentro  da  fortaleza  aquelias  pedras  ,  que  elle 
efperaua  que  arrombaífem  tudo  o  que  alcançaílem.  O  rene- 
gado Português  chamado  Baíliao  rodriguez  ,  de  que  atrás 
fica  diro  que  andaua  entre  os  mouros  de  .Calecut  ,  e  tinha 
muyta  amizade  cora  dom  Joáo  de  lima,  tinha  ganhado  tan- 
to a  vontade  ao  Italiano  engenheiro  pollo  acompanhar 
fempre  com  fua  eípingarda  has  coílas  ,  e  gabarliie  as  íuas 
obras,  e  dizer  aos  mouros,  que  por  íua  habelidade  merecia 
que  lhe  fizeílem  muytas  mercês  ,  que  o  Italiano  Ihedaua 
conta  de  todos  feus  peníamentos,  e  de  quanto  ordenaua  fa- 
zer ,  de  que  logo  o  Baíliao  rodriguez  bufcaua  maneira  pa- 

Qq  2  ra 


3o8       Pi-inieyra   Parte  da  Chronica    ' 

ra  auifar  a  dom  João  polia  amizade  que  tinha  com  elle,  ou 
antes  polío  ordenar  aíIy,Deos  parabém  daquella  Fortale- 
za. Dom  João  vendo  que  quanto  a  guerra  apertaua  mais  , 
tanto  lhe  era  ncceíTnrio  ter  os  auiíos  mais  contínuos,  con- 
íi.indoíre  na  amizade  do  Baítião  rodriguez  falou  fecreta- 
mente  co  melmo  Duarte  fcrnandez  de  lima,  malauar  Chri- 
ílâo,  que  fora  pôr  o  fogo  h^.  cidade  de  Calecut,  e  íe  concer- 
tou com  elle  para  íe  ir  a  Ccchim  na  embarcação  em  que 
forâo  as  molheres,  e  de  lá  vir  por  terra  a  Calecut  em  trajos 
de  jogue  ,  e  darfe  a  conhecer  com  Baíliao  rodriguez  ,  e  to- 
mar delle  os  auilos  que  cumprilTe  ,  e  virlhos  dar  ao  pé  do 
muro  a  hum  lugar  que  lhe  moílrou  ,  em  que  acharia  hum 
fio  pindurado,  onde  poderia  atar  a  ola  efcrita.  O  malauar 
com.o  era  bom  Chriílâo  fe  veyo  a  meter  no  arrayai  dos 
mouros  pidindo  com.o  jogue  ,  e  teue  maneyra  com  que 
diíTimuladamente  íe  deu  a  conhecer  co  Bafíiilo  rodriguez, 
a  quem  deu  huma  carta  do  goucrnador,  em  que  lhe  daua  as 
.graças  pollos  auifos  que  tinha  dado  ,  e  largas  promeíTas 
poUos  que  lhe  deíTe  daly  por  diante  :  o  Baíliao  rodriguez 
Iblgou  muyto  com  a  companhia  do  jogue  ,  porque  era 
meyo  de  poder  fazer  aquillo  mais  vezes  ,  e  mais  a  ftu  íal- 
uo  ,e  lhe  daua  olas  efcritas  com  que  elle  de  noite  raeten- 
doíe  pollo  rolo  do  mar,  fe  vinha  ao  lugar  que  lhe  fora 
moílrado,  onde  achaua  o  íio  com  huma  pedra  atada  na  pon- 
ta ,  porque  O  naõ  leuafíe  o  vento  ,  e  atandolhe  a  ola  tira- 
na por  elle  de  maneyra  que  o  lentiííe  a  vigia,  que  tinha  na 
mno  a  outra  ponta,  que  era  hum  colaço  do  capjtaô,  hom.em 
de  muita  confiança,  que  fez  efte  negocio  com  muyto  fegre- 
do  ,  e  euaua  toda  a  noite  em  vigia  ,  e  fe  rrcolhia  em  ama- 
nhecendo leuajado  o  fio  comfigo.  Mandou  também  o  ca- 
pitão pôr  muyta  gusrda  que  lhe  não  fugilTe  ninhum  negro 
da  fortaleza,  qu-j  pudeíle  dar  nouas  no  arrayai  do  que  paf- 
iaua  nella  ,  e  por  iflo  mandou  que  ninhum  íubiíTe  ao  muro 
porque  fe  não  pudeííe  lançar  por  alguma  corda  ;  e  a  hum 
que  foy  aciíado  fazendoíle  preítes  para  fugir,  mandou  atar 
a  hum  pdo  ,  e  o  entregou  lias  molheres ,  e  aos  outros  ne- 
gros que  O  matarão  has  pedradas ,  porque  auia  a^y   muy- 

los 


de]  Rey  Dom  João  o  III.  309 

tos  que  íe  prezavaô  de  homens  de  bem,  e  tlnkaõ  feus  pon- 
tos de  honra,  e  fahiao  fora  com  feus  fenliores  a  pelejar,  que 
não  era  pequena  ajuda.  Por  efte  modo  reue  o  capitão  aui- 
lo  de  Bailia  o  rodriguez  da  tençaÕ  com  que  os  mouros  fa- 
zião  aquflle  emparo  ,  e  da  fabrica  e  grandeza  do  irabuco- 
grande  ,  com  que  tomiou  algum  receya ,  porem  nao  def- 
cubrío  cfre  auifo  fenaõ  a  dom  Vafco  ,  e  a  outros  fidalgos,  a 
quem  diíle  queimportaua  muyto  desfazerfe  a  tranqueira 
do  emparo,  que  os  mouros  faziao  ,  c  fazendoííe  para  iíío 
preíles  cento  e  vinte  hom.ens  com  lanças  e  eípingardas  , 
iiuma  madrugada  ,  a  tem.po  que  começauaja  a  romper  o 
dia,fairão  fora  pollo  poftigo  da  traição  com  muyros  ne- 
gros, que  icuauao  panellas  de  poluora,  e  derao  com  m.uito 
Ímpeto  nos  mouros,  de  que  muitos  eílauão  ainda  dormin- 
do, em  que  os  negros  rambem  lançarão  as  paneilas  ds  pol- 
uora com  que  antre  ellcs  ouue  grandiílimo  aluoroço  ;  mas 
não  deix-indo  de  acudir  muycos  íe  começou  huma  briga 
aílaz  trauada ,  que  deu  lugar  aos  negros  de  desfazerem  a 
tranqueira  ,  c  derrubarem  o  repairo  ,  mas  como  os  inimi- 
gos iiião  aly  em  muyto  crecimento,  mandou  o  capitão  to- 
car huma  trombeta  do  muro  ,  com  que  os  noíTos  fe  vieraS 
recolhendo,  pelejando  íemprc  até  paíiar  o  canto  da  torre  , 
porque  então  com.eçarao  ajugar  dous  tiros  que  eftauao 
nclle,com  que  o  a  tr.  ouros  fe  foriio  retirando,  ficando 
muyios  delles  mortos  c  feridos,  c  dos  noílos  cinco  feridos 
fomente  ;  porem  os  mouros  tornarão  logo  a  leuantar  o  re- 
payro,  a  que  os  noílos  íairao  outras  duas  vezes,  mas  apro- 
ucitoulhe  pouco  ,  porque  como  os  inimigos  erao  muitos  , 
cada  vez  fe  ajuntaua  aly  mais  gente,  e  fízerão  tanto  que 
com  rnuyta  preíía  acabarão  o  repairo  de  todo,  fem  es  nof- 
fos  lho  poderem  tolher.  Porem  o  Italiano  antes  que  uíaíTe 
do  trabuco  aíTentcu  três  eílancias  d'artilharia  ,  huma  por 
diante  da  fortaleza  ,  e  as  outras  polJas  ilhargas  ao  longo 
da  prava,  em  que  auia  palTanre  de  cento  e  cincoenta  peças,. 
de  que  as  cincoenta  lançauao  pílouros  tamanhos  como  hu- 
ma bola  ,  e  outras  os  lançauao  mayores  ,  que  craó  algumas 
que  forao  ngílas;  e  cos  feus  bombardeiros  fez  pontaria  nas 

noííâs, 


5  IO       Primeyra  Parte  da  Chronica 

noíTas  peças  para  as  cegar  ,  e  a  outra  artilharia  miúda  pôs 
por  cima  coatra  as  amcyas  da  fortaleza  ;  o  que  acabado 
difíc  aos  mouros,  que  não  hauia  de  dar  a  bataria  íem  elRey 
cílar  preíente  para  ver  a  fortaleza  poíla  por  terra  nuina  fó 
ora  ;  do  que  íendo  elRey  auiíado  pollos  mouros,  que  eíla- 
iia  daly  fcis  Icgoas  ,  e  importunado  que  íe  quizeíle  vir  ha 
cidade  ver  aquella  obra  tanto  defeu  goílo  ,  em  que  não 
ania  duuida  ,  e  com  fua  prefcnça  dar  animo  ha  gente  para 
tomar  logo  a  fortaleza  ,  elic  aluoraçado  fe  abalou  logo  , 
c  entrou  na  cidade  acompanhado  de  dez  mil  naires  , 
afora  agente  que  eílaua  no  arrayal,  que  antre  naires  e  mou- 
ros paílauao  de  vinte  mil  ,  e  poila  falta  que  auia  de  man- 
timentos deixou  de  auer  aly  muita  mais  gente.  Delia  ba- 
teria que  o  Italiano  tinha  ordenado  ,  e  do  deíenho  que  ti- 
nha de  cegar  a  noíTa  artilharia  ,  e  da  vinda  delRey  ha  cida- 
de ,  e  de  todas  as  mais  particularidades  fov  dom  João  aui- 
íado pollo  jogue  ,  e  tomando  fobre  iílo  confelho  co  coa- 
deílabre  ,  cos  bombardeiros  ,  e  cos  fidalgos  ,  foy  aííenta- 
co  que  as  bombardeyras  foííem  entupidas  com  entulhos 
de  maçames  ,  que  íe  podiaô  fazer  de  maneira,  que  os  tiros 
de  fora  lhe  nao  pudcílem  fazer  nojo,  o  que  logo  fepôs 
por  obra  o  milhor  que  foy  poíTiuel.  Ao  outro  dia  dcfpoif 
da  vinda  delRey  ,  polia  menham  cedo  pofto  elle  de  longe 
em  parte  onde  podia  ver  o  que  fe  fizelTe  ,  mandou  dar 
moíira  de  toda  íua  gente  ,  de  que  alguma  que  pafíou  alem 
■dos  vallos  ,  cos  tiros  que  tirarão  os  falcões  das  torres  fe 
retirou  com  muyta  preífa  ,  e  íe  efpalhou  pollo  campo,  e 
íendo  as  oiro  ora?j  do  dia  ,  leuantando  no  arrayai  grandes 
gritas  ,  e  tocando  muytos  dos  feus  eílromentos  ,  derao  fo- 
go todas  as  eílancias  com  tanto  eftrondo  aíTy  da  artilha- 
ria, como  dos  pilouros  ,  que  dauao  pollos  muro.« .  e  polias 
torres  ,  que  foy  coufa  horrcndiíTima  ,  e  de  grandilTimo  ef- 
panto:  e  acabada  eíla  çurriada,  que  duraria  meya  ora,  dei- 
pois  de  paíTar  a  fumaça,  quando  os  mouros  cuidarão  vera 
fortaleza  por  terra  í"'eita  em  pedaços,  lhe  tirarão  delia  com 
corenta  peçis  groíTas  ,  que  tinha  por  baixo  ,  e  polias  tor- 
res ,  que  dandolhe  polias  cílancias  lhe  quebrarão  e  torce- 
rão 


dei  Rey  Dom  João  o  IIÍ.  311 

rão  muytd  r.rriiharia,  e  matarão  e  ferirão  n;uyta  gente,  com 
aíTaz  grande  efpanto  dos  mouros,  de  verem  iiue  a  lua  arti- 
lharia nao  fízera  mal  ha  noifa  ,  e  nas  paredes   da  fortaJeza 
fe  não  enxergaua  mais  dano  que  osíinais  dos  pilouros  que 
jaziáo  ao  pé  do  muro  ,  e  fomente   das  ameyas  forao   algu- 
mas derrubadas  ;   mas  inda  que  iíto  afi/  era ,  e   os  noílos 
tiros  lhe  faziao  tanto  dano  ,   nem  por  illo  deixarão  de   ti- 
rar  por  todas  as  partes   quanto  podiao  ,  a  que  também  os 
noíTos  reípondião  da  mefma  maneyra  ,  e  lhe  faziáo  inuyto 
mais  mai  do  que  recebião  ,  no  qae  eíViueraô  todo  aqueiie 
dia  inteiro  até  noite  :  ncíla  bataria  forão  mortos    dos  noí- 
ios  três  homens  ,  e  alguns  feridos  dos  pedaços  das  pedras 
que  fe  quebrauao  nas  ameyas  j   mas  o  defgoiro  difto  fe  IUq 
recompenfou  co  grande  contentamento  que  íintirao  de  lho 
íicar  a  artilharia  em  íaluo.  Quando  elRey  íoube  o  fucceí- 
ío  da  bataria  tao  contrario  do  que  lhe  tinlião  perfuadido  e 
afirmado  ,  chevo  de  payxão  foltou  muytas  palauras  contra 
os  feus  ,  dizendo  que  quanto  Uiq  tinhao  dito  erão  enganos 
e  mentiras  ,  e  que  o  meímo  auia  de  íer  Da  tomada  da  for- 
taleza ;  aquy  acudio  o  Italiano  ,  e  lhe  diíTe  que  não  tinha 
ainda  de  que  tomar  paixão  ,  porque  tomar  huma  fortaleza 
era  negocio  muyto  vagaroío ,  e  de  muyto  cuílo  c  trabalho, 
quefe  a  bataria  nao  focedcra  bem  ,  elle  lhe  ordenaria  tan- 
tos outros  artihcios  com  que  puíeííe  a  fortaleza  em  eílado 
que  pudeíTe  mandar  tomar  pollos  feus  efcrauos  :  e  mandou 
logo  que  foliem  correndo  com  as  cauas  até  junto  do  muro, 
com  detriminaçaô  de  fazer  huma  mina  "com  que  derrubafle 
a  fortaleza:  e  para  ifto  ordenou  huma  manta  de  madeyra 
raia  co  chaó,  que  corria  íobre  humas  rodas  raíleyras ,  com 
que  em.parada  a  gente  veyo  abrindo  a  caua  até  chegar  ao 
pé  do  muro  ;  porem  os  noílos   lhe  lançarão  muytos  feixes 
de  lenha  miúda  com  íaquinhos  de  poluora  dentro  ,  e  muy- 
tas panellas  cheyas  de  braías  viuas  ,    com   que  em  breue 
eípaço  fe  acendeo  tal  fogo  na  manta  ,  que  nunca  os  mou- 
ros o  puderao  apagar  ,   e  o  que  cahia  pollos  buracos  ,  que 
hia  fazendo  na  manta  ,  tratou  tHo  mal  os  que  eftauão  de- 
baixo dílla,  c[ue  todos  fugirão,  e  a  defem pararão^  e  vendo 

os 


3  12         Primeyra  Parte  da  Chronicá 

os  mouros  que  não  tinhão  remédio  para  o  apagar,  lhe 
ajuntarão  outra  muita  lenha  de  fóra  para  Jhe  darem  tanta 
força  que  baílaíTe  para  abraíar  a  parede  da  fortaleza  ,  ao 
que  os  noíTos  acudirão  logo  com  muyta  agoa  ,  mas  a  que 
mais  lhe  aproueitou  foy  a  que  Deos  então  mandou  do 
ceo  com  huma  chuua  tão  cop!oía,que  bailou  para  apagar  o 
fogo  de  todo  :  e  nefta  enuolta  os  noíTos  nao  perderão  oca- 
íiaô  dehrzermal  aos  inimigos  ,  porque  o»  efpingardeyros 
de  cima  do  muro  tirauão  aos  que  acarretauao  a  lenha  ,  de 
que  ficarão  muytos  mortos  no  campo  ,  e  lhe  dauaõ  gran- 
des gritas  e  apupadas.  PaíTado  iílo  ordenarão  os  noíTos  al- 
guns homens  de  palha  por  antre  as  ameyas  ,  a  que  os  mou- 
ros rirauaô  muytas  efpingardadas  ;  porem  os  noííos,  que  ti- 
iihao  as  efpingardas  preíles  ,em  os  mouros  fe  defcobrindo 
pára  tirarem  a  eíles  homens  fantaílicos  ,  as  defparauao  nel- 
Ics,  com  que  matauao  muytos,  até  que  vindo  eiles  a  enten- 
dei" o  engano  fe  guardarão  delle. 

CAPITULO    LXXX, 

O  líaliano  defpara  o  trabuco  ,  efaz  muyto  dano  ha  fortale» 
za  \  o  nojjo  conde flabre  lho  desfaz  ;  os  mouros  oràenao  ouv- 
iras duas  mantas  ,  os  nojjos  lhas  queimaõ.  O  capitaB 
mand.a  pollo  jogue  pidir  focorro  ao  gouernador,  Naforta' 
lezaje  começa  a  Jintirfome  ,  com  que  lhe  morre  alguma. 

gente, 

VEndo  o  renegado  engenheiro  de  quão  pouco  effelto 
erão  todas  as  inuençoes,  que  até  então  tinha  bufcado, 
detriminou  ufar  do  trabuco  como  remédio  mais  efficaz  , 
e  em  que  tinha  mais  confiança  ,  e  o  fez  logo  aíTentar  de 
trás  do  repairo,  que  era  tão  alto,  que  os  noíTos  não  podiao 
yer  mais  do  trabuco  que  hum  braço,  que  aparecia  delle 
quando  acabaua  de  deípedir  a  pedra  ,  que  era  tamanha  e 
tao  medonha  que  nao  fomente  a  viila  delia  quando  vinha 
poUoar,  mas  o  zunido  que  vinha  fazendo  caufava  gran- 
diíliino  cípanto.  Deitas  pedras  lançarão  o  primeyro  dia 

oito 


dei  Rey  Dom  João  o  III.       313 

oito  dentro  da  fortaleza  ,  de  que   três  acertarão  na  torre 
da  menagem  ,  que  lhe  derrubarão  três  ameyas  ,   e   grande 
parte  da  parede  ,  e  outra  deu   no  terrado  que  calou   por 
€lle  abaixo,  e  foy  coufa  milagroía  naô  arrombar  de  to- 
do o  íobrado  ;  outras  que  cairão  polias  caías  fizeraÔ  tudo 
em  pedaços  ,  e  matarão  cinco  peíloas.  lílo  meteo  os  noíTos 
em  tanto  eípanto  e  confufaô  ,  que  toda  a  genrr  com  medo 
íe    recolhia  has  logeas  das  torres  ,  onde  eítauaõ  muyto 
apertados,  porque  não  cabiaÕ  nellas;  e  também  ouue  muy- 
to trabalho  em  íe  mudar  a   poluora  da  torre  da  menagein 
ha  logea  de  huma  torre  ,  para  que  a  chuua  a  naó  molhalTe  ; 
e  tinhãoíTe  continuamente  grandiíTimas  vigias  que  em  ven- 
do dcfparar  a  pedra  bradauao  logo,  que  fe  guardaíTem  del- 
ia ;  e  ainda  de  dia  fe  paíTaua  iíto  menos  mal  que  de  noite  , 
por  fe  não  verem  as  pedras  ,  que  também  então  lançaua  o 
trabuco.   O  condeítabre  da  fortaleza   chamado  Fernão  pi- 
rez,  official  aílaz  defiro  ,  vendo  o  perigo  e  definquietaf^ao 
cm  que  andaua  toda  a  gente  ,  quis  ver  le  lhe  podia  dar  al- 
gum remédio  ,  e  fubindo  ao  terrado  da  torre  da  menagem 
apontou  os  falcões  no  braço  do  trabuco,  que  íicaua  defora 
quando  acabaua  de  lançar    a  pedra  ,  e  encomendandoíTe 
com   muyta   deuaçaõ  a  N.  Senhora   lhe  fez  três  tiros  ,  -e 
prouue  a  ella  que  com  hum  delles  o  acertou  ,  c  quebrado 
cahio  fobre  o  repayro  ,  que  o  desfez  todo  até  baixo  ,  de 
maneyra  que  ficou  o  trabuco  defcuberto:  o  condeftabre  en- 
tão doce  abaixo  com  muyta  prcíleza,  dá  fogo  a  huma  mcya 
eípera  que  eílaua   na  torre  ,  e  quis  noífo  Senhor  poila  lua 
mifericordia  encaminhar  também  o  pilouro  ,  que  foy  dar 
na  armação  do  trabuco  ,   que  o  fez  rodo  empedaços  ,  e  as 
rachas  da  madeyra  matarão  e  ferirão  mais  de  cem  homens 
dos  que  trabalhauaô  no  trabuco  ,   que  erao  muytos.  O  ca- 
pitão com  toda  a  gente  íe  foy  ha  Igreja  dar  muytas  graças 
a  noíTo  Senhor  por  aquclla  mercc  ,   e  pollo  perigo  de  que 
os  liurara  ,  e  ao  condeílabre  deu  huma  boa  cadea  de  ouro  , 
a  que  também  os  íidalgos   derao    muytas    pecas   com   que 
ficou  aílaz  contente  ,    e  da  hy  por  diante  foy  fempre  muy- 
to fauorecido  de  todos  i  e  elle  o  merecia  bem,   porque  de 
Bart.  L  Rr  dia 


314         Píimeyra  Parte  daChronlca 

dia  e  de  noite  fe  ocupaua  em  fazer  muytos  tiros  ao  arrayal, 
que  de  dia  apontaua  ,  e  de  noite  lhe  daua  fogo  ,  com  que 
inataua  e  feria  miiyra  gente.  Os  mouros  então  flzerao  ou- 
tras duas  mantas  como  a  primeyra  raíleiras  ,  que  andauao 
jobre  rodas  ,  e  tamanhas  que  agaíalhauao  debaixo  de  fy 
muyta  gente  ,  e  porque  o  fogo  lhe  nao  pudeíTe  fazer  nojo  , 
as  forrarão  por  cima  de  paftas  de  ferro  ,  e  com  eftas  che- 
garão fem  medo  ao  pé  do  muro  ,  e  começarão  de  fazer  a 
mina.  Entendendo  bem  os  noíTos  o  perigo  defta  obra  fe 
fez  preíles  dom  Vafco  com  70  homens  ,  de  que  o.s  corenta 
erão  elpingardeyros  ,  e  ordenou  que  todos  os  mais  eíliuef- 
fem  no  muro  com  íuas  efpingardas  ,  e  tomou  mais  comíi- 
go  vinre  negros ,  cada  hum  com  dous  feixes  de  lenha  com 
huns  enuolcorios  de  poluora  dentro,  catados  os  meímos 
negros  a  baldes  de  couro  em  que  leuauao  panellas  de  pol- 
uora dentro  com  murròes  aceifos  ,  que  ouue  negros  tão 
animofos  que  aceitarão  por  fua  vontade  mereríe  neíle  pe- 
rigo. Sahio  dom  Vafco  defpois  de  jantar,  leuando  os  ne- 
gros emparados  da  banda  da  fortaleza  ,  e  os  cfpingardey- 
ros  da  outra  banda  ,  e  elle  diante  de  todos  ,  que  os  mouros 
ja  bem  conhcciao  polias  armas ,  mas  muyto  milhor  polias 
obras,  e  foy  correndo  ao  longo  das  cauas  até  chegar  has 
mantas,  c  vio  que  as  cauas  eílauao  cheyas  de  gente  que 
traballiaua  ,  e  de  outra  muyta  com  zargunchos  e  eípingar- 
das  ,  que  em  vendo  os  noííos  começarão  a  defparar  nelles 
muytos  tiros  de  iiuma  coufa  e  outra  ;  porem  os  noíTos, co- 
mo eílaiião  íobre  elles  ,  has  lançadas ,  e  has  efpingardadaf 
os  jíizerão  fugir  e  empararfe  debaixo  das  mantas:  aquy  acu- 
dirão os  negros  ,  que  lhe  lançarão  por  baixo  as  panellas 
de  poluora  ,  cora  que  os  fizerão  fugir  de  nouo  e  defempa- 
rar  as  mantas  ,  e  lançandolhe  por  baixo  os  feixes  de  lenha 
tomarão  fogo  ,  que  íe  ateou  de  maneira  nas  mantas  ,  que 
naó  lhe  podendo  os  mouros  acudir  com  a  preíía  neceíTaria^ 
forão  ambas  de  todo  confumidas.  Dom  Vafco  então  fe  co- 
meçou a  recolher  leuando  os  negros  emparados  entre  a  fua 
gente,  onde  foi  tanta  a  multidão  dos  mouros  que  acudirão 
.  tirando  infinidade  de  cípingardas  c  frechas,  que  dom  Vaíco 

eíteue 


dei  Rey  Dom  João  o  IIL        315 

cíleue  em  muyto  riíco  de  fer  tomado  com  todo^  os  fcus  ; 
porque  ainda  que  os  noílos  efpingardeyros  derrubauao 
muyros  delles  ,  nem  por  iiTo  íe  lhe  enxergaua  falra  pollos 
muytos  que  acudião  de  nouo  ;  porem  a  grandeza  do  peri- 
go acrecentou  o  esforço  aos  nolTos  ,  com  que  íe  vierao  de- 
fendendo até  chegarem  ao  canto  da  torre  ,  onde  hum  ca- 
melo defparou  nos  inimigos  ,  que  como  os  achou  juntos  c 
defmandados,  derrubou  muytos  delles,  com  que  os  outros 
íe  detiuerao,  e  derao  lugar  aos  noiTos  para  íc  recolherem  : 
neíle  dia  ficarão  mortos  no  campo  três  Portugucíes  ,  e  na 
fortaleza  morrerão  dcípois  cinco,  e  coatro  negros  ,  e  fo- 
rão  feridos  mais  de  vinte  ,  de  que  hum  foy  dom  Vafco  de 
três  eípingardadas  mas  todas  de  pouco  perigo  :  dos  mou- 
ros forão  muytos  mortos  e  feridos,  que  nclles  fazia  pouca 
falta,  nem  lhes  fazia  mais  impreííao  que  porlhes  algum  re- 
ccyo  de  pelejar  cos  noíío?,  pollo  muyto  danno  que  rcceblao 
das  noíTas  elpingardas.  Aquy  foy  ferido  o  Italiano  de  hum 
pilouro  de  eípingarda  perdido,  que  o  alcançou  lá  fora  dos 
vallos  em  hum  cotoueilo,  de  que  efteue  muytos  dias  fem  íe 
Icuantar  ;  porem  em  hum  andor  o  traziao  a  dar  ordem 
aos  oííiciaes  que  faziao  outros  três  trabucos  ,  e  foy  grande 
aliuio  para  os  noílos  efta  fua  infirmidadc,  porque  em  quan- 
to ella  durou  nao  hia  a  obra  por  diante.  De  todas  eílas  cou- 
fas  veyo  o  jogue  dar  auifo  aos  noíTos  ,  cuja  vinda  cm  tal 
tempo  dom  João  ouue  por  muyto  grande  dita  ,  porque  lhe 
deu  huma  carta  para  o  gouernador  ,  e  lhe  pidio  com  muy- 
ta  inílancia  que  lha  leuaííe  logo  a  Cochim  ,  c  lhe  deíTe  con- 
ta larga  do  eílado  em  que  íicaua  a  fortaleza ,  do  que  paíía- 
ra  CO  trabuco,  c  que  íe  íicauáo  ordenando  outros  três  ,  que 
fe  chegaííem  a  aOTentallos  eílaua  a  defenfaõ  muito  duuido- 
ía  ,  por  onde  cumpria  muyto  ao  íeruiço  delRey  e  ha  fal- 
uação  de  todos  acudirliie  logo  com  qualquer  focorro  que 
foíTe  poílivel  ,  inda  que  fofíe  com  nauios  que  esbombar- 
deaíTem  o  arrayal  ,  que  d:V  banda  do  mar  não  tinha  empa- 
ro  ;  porque  com  iíTo  darião  tanto  em  que  entender  aos  ini- 
migos, e  que  elles  teriao  algum  aliuio.  Os  mouros  entretan- 
to não  ceíTauao  de  bater  de  dia  c  de  noite  a  fortaleza  com 

Rr  2  a  ar- 


3  lá         Prímcyra  Parte  da  Chronlca 

a  artilharia  ,  e  lhe  tinhão  derrubadas  todas  asamcyas,  e 
muyta  parte  do  parapeito  de  maneyra,  que  ja  a  gente  não 
podia  andar  polio  muro  ,  c  cos  pilouros,  que  cntrauão  na 
fortaleza  ,  erao  as  cafas  todas  arrombadas  ,  e  os  fobrados 
das  torres  todos  quebrados  ,  que  foy  cauía  de  penetrar  a 
chuua  a  baixo,  c  Te  danarem  todos  os  arrozes,  com  que  lhe 
entrou  o  mal  da  fome,  que  os  começou  a  pôr  em  outro  ma- 
yor  aperto  ,  que  por  não  auer  ninhum  modo  de  remédio 
para  os  doentes  erao  mortas  na  fortaleza  mais  de  cincoen- 
ta  peíloas  ,  de  que  os  mais  erao  eícrauos  que  morrião  ao 
mero  defemparo,  nSo  fem  grande  magoa  do  capitão,  c 
de  toda  a  mais  gente  ,  por  verem  que  lhe  não  podiao  acu- 
dir CO  que  lhe  era  neceflario.  Ocuparao-le  também  os  mou- 
ros em  entupirem  algumas  das  cauas  para  poderem  mais 
defembaraçadamente  vir  a  pelejar  cos  nofíos  ;  porem  tam- 
bém nefta  obra  os  que  acarretauao  a  terra  recebiaó  muito 
dano  das  noíTas  cípingardas  ,  e  receberão  muyto  mais  fe 
não  ouuera  regra  no  tirar  ,  porque  a  poluora  hia  ja  faltaii-- 
do,  e  hauia  muytas  efpingardas  arrebentadas,  e  outras- 
defaparelhadasi  c  naô  era  muyto,  porque  nao  hauia  aly  eí- 
pingardeíro  que  nao  tiraííe  de  cem  tiros  para  cima  i  e  por-, 
que  Cilas  faltas  íe  hiao  ja  entendendo  foy  forçado  ao  capi- 
tão começar  a  pôr  regra  em  todas  as  coufas. 

CAPITULO    LXXXI. 

O  gõufmador  manda  duas  carauellas  a  ] ocorrer  a  fortaleza 
de  Calecut.  Eitor  daftlueyra  capitão  de  Cana/jor  ajecorre 
•por  duas  vezes.  As  carauellas  esbomkardeaÕ  o  arrayal 
dos  inimigos  \  antre  os  capitães  delias  ha  diferença  fobre 
defembarcarem  em  terra  ;  e  em  fim  fó  ChriJlouaÕ  jufarte 
fe  detrimina  em  dejembarcar, 

DEfte  grande  e  apertado  cerco  ,  que  os  mouros  tinhaá 
pofto  ha  noíTa  fortaleza  ,  e  de  todas  as  particularida- 
des delie  tinha  o  gouernador  muitos  auifos  por  via  delRey 
de^Cochim  ,,que  para  efte  effeito  mandara  alguns  homens 

íeus 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  3  17 

fcus  andar  diílimuladamente  em  Calecut ,  e  lhe  traziaõ  no- 
uas  do  que  lá  palTaua,  dos  quais  também  tinha  já  fabido  o 
fuceíTo  do  trabuco  ,  com  que  o  gouernador  andaua  aflaz 
peníatiuo,  e  apaixonado  ,  principalmente  por  naô  fabcr  o 
que  paíTaua  dentro  na  fortaleza:  nefle  tempo  chegou  a  elle 
Duarte  fernandez  de  lima  no  mefmo  trajo  de  Jogue,  e  lhe 
deu  a  carta  de  dom  Joáo,  e  ainda  que  com  ella  íe  lhe  acre» 
cefitou  a  paixão  ,  e  começou  a  entrar  em  algum  receyo  , 
todauia  refpondeo  logo  a  dom  João  com  palaurasde  muito 
esforço  ,  c  promeíTas  de  bom  locorro  tanto  que  o  tempo 
deíle  algum  jazigo,  porque  era  entau  no  fim  do  mes  de  Ju- 
nho, quebra  a  força  do  inuerno,  e  com  eíla  detriminaçaó 
pôs  diligencia  em  concertar  alguma  armada  ,  e  por  entre- 
tanto pôs  logo  no  mar  duas  carauellas  latinas  bem  concer- 
tadas ,  cada  huma  com  féis  peças  groUas  afora  falçôes  ,  e 
berços,  e  em  cada  huma  delias  meteo  féis  pipas  de  poluora 
de  bõbarda  e  huma  de  eípingarda  ,  e  chumbo  e  repayros 
laurados  para  a  artilharia  ,  e  carregou  ambas  de  biícoito  , 
açúcar,  manteiga,  carnes,  e  pefcados  fecos,  e  tudo  com  tan- 
ta breuidade  que  aos  doze  dias  de  Julho  eftiuerao  de  todo 
preíles.  Porem  Eitor  dafilueyra  capitão  de  Cananor,  em 
quem  para  as  coufas  de  primor  e  de  honra  nunca  ouue  def- 
cuido  nem  efquecimento  ,  trabalhaua  fempre  por  ter  aui- 
íbs  fecretos  do  que  paílaua  na  fortaleza  ,  porque  os  mou- 
ros da  terra  lhe  afirmauao  que  fem  falta  feria  tomada  ,  por 
cílar  elRey  em  peíToa  no  arrayal  com  fefíenta  mil  homens, 
c  jnuyta  artilharia  :  porem  elle  fabendo  bem  o  que  paíTaua 
de  fora  ,  lhe  daua  muyto  em  que  cuidar  nao  poder  ter  aui- 
ío  do  que  paíTaua  dentro  ,  mas  entendendo  o  que  podia  fer 
cm  hum  cerco  tão  apertado,  mandou  concertar  duas  al- 
madias  grandes,  e  fazerlhe  os  bordos  altos  com  arromba-- 
das  de  gunes  brcados  por  lhe  naô  entrar  a  agoa  ,  e  as  cí- 
quipou  com  doze  pefcadores  cada  huma  bons  remeyros  , 
a  que  pagaua  a  tanga  por  dia  e  de  comer,  e  dou?  pardaos  a 
cada  hum  delles  para  deixarem  ás  fuás  molhcres  ,  e  em 
cada  huma  das  almadias  meteo  hum  homem  Português, 
cm  hiima  hum  Diogo  coruo  ,  e  noutra  hum  Manoel  aluar 

rez. 


318        Primeyra  Parte  da  Chronlca 

rez  marinheiro  grande  nadador  ,  a  quem  fatisfez  muytô 
bem  feu  trabalho:  e  preíles  as  almadias  as  carregou  de  gra- 
des azados  cheyos  de  galinhas  em  coníerua,  e  muitos  ouos, 
açúcar,  carne,  pefcado  íeco, jarras  de  couro  cheyas  de  man- 
teiga, e  fardos  de  bifcoito  ,  e  outros  de  arroz  encourados 
por  amor  da  chuua,  e  por  cima  olas  tecidas  por  irem  ainda 
mais  feguros  delia,  c  para  mantimento  dos  remeyros  muy- 
to  arroz  cozido  em  panellas  ,  e  cocos  ,  e  outras  algumas 
couías.  Os  pcfcadores  quando  lhes  parecco  conjunção  par- 
tirão de  Cananor  huma  menham  ,  e  ora  ha  vella  ,  ora  a  re- 
mo ,  íegundo  lhe  íeruia  o  tempo  ,  chegarão  a  Calecut,  que 
faÕ  íós  doze  legoas  ,  ha  noite  ,  que  foy  bem  efcura  e  chu- 
uoía  ,  com  que  os  mouros  eílauão  todos  recolhidos  ,  bem 
fora  de  cuidar  que  em  tal  tempo  podiaó  aly  vir  almadias. 
Os  peícadores  ,  que  fabiao  bem  os  poílos  ,  forão  remando 
manfamente  fem  erguerem  os  remos  da  agoa  por  nao  fe- 
rem viílos  ,  e  chegsndo  defronte  da  fortaleza  ,  hum  delles, 
que  fabia  a  lingoa  Portuguefa  ,  fe  lançou  a  nado,  e  com  el- 
le  o  Manoel  aluares  ,  e  entrarão  polia  couraça  ,  e  com  voz 
baixa  falarão  aos  que  eílauaô  no  muro  em  vigia  ,  que  ie- 
uando  logo  recado  a  dom  João  ,  íe  veyo  ha  porta  com 
dom  Vaíco  e  outro  companheyro  ,  e  os  peícadores  trou- 
xerao  tudo  a  terra,  com  que  na  fortaleza  ouue  muyto  con- 
tentamento ,  e  dom  João  Jhes  deu  vinte  pardaos  e  alguns 
panos ,  c  por  efcrito  deu  as  graças  a  Eitor  da  filueyra  por 
aquelle  íocorro  em  tempo  que  deu  nouo  animo  a  aquclla 
gente  ,  e  lhe  deu  também  conta  do  eftado  em  que  ficaua  > 
e  pidio  muito  queihe  acudiíTe  com  algumas  efpingardas  , 
e  lhe  mandou  muytas  das  que  tinha  para  lhas  mandar  con- 
certar :  e  deípididas  as  almadias  fe  partirão  aquella  meíma 
noite  fem  íerem  vidas  ,  e  ao  outro  dia  ha  noite  chegarÔ  a 
Gananor  com  grande  gofto  de  Eitor  da  filueyra  ,  que  logo 
as  tornou  a  mandar  carregadas  de  mantimentos ,  com  cin- 
coenta  efpingardas  muyto  bem  aparelhadas  ,  e  coatro  bar- 
ris de  poluora  para  ellas  ,  e  duzentos  murroes.  Eílas  al- 
madias chegarão  á  Calecut  de  noite  ,  porem  os  mouros  do 
arrayal  tinhaô  ja  nouas  delias  pollos   de  Cananor,   que 

auea- 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  319 

auendo  íentimento  uellas  polia  grandiíUma  vigia  que  fo- 
bre  ellas  tinhao  ,  acudirão  a!y  muytos  tirandolJie  miiytos 
tiros  perdidos  de  longe  ;  porem  fentindoas  rsmbcm  na 
fortaleza ,  acudio  logo  o  capifa5  a  abrir  o  poíligo  ,  e  poU 
Ja  couraça  recollieo  tudo  com  muyio  trabaliio  pollo  graii' 
de  medo  que  os  pefcadorcs  tinhao  dos  tiros,  por  onde  tor- 
narão logo  a  fazer  volta  ,  e  os  noíTos  fe  animauaõ  cada  vez 
mais  com  e^es  íocorros.  Nas  duas  carauellas  ,  que  atrás 
dilTe  que  o  gouernador  fizera  preftes  em  Cochim  para 
mandar  a  Calecut ,  pôs  por  capitães  Chriftouao  jnfarte  ,  e 
Duartt  da  fonfeca  ,  ambos  de  grande  esforço  e  confi.inça  , 
e  a  cada  hum  deu  corenta  homens,  e  lhes  mandou  que 
foíTem  íurgir  defronte  da  fortaleza  ,  na  parte  donde  lhe 
parecelTe  que  poderiao  m.ilhor  esbombardear  o  arrayal 
dos  mouros  ,  e  que  trabalhaíTcm  por  meter  na  fortaleza 
as  moniçoes  e  m.antimentos  que  leuauao.  As  caraucllas  fe 
íizerao  ha  vella  a  doze  dias  de  Julho,  em  que  o  tempo  deu 
algum  jazigo  ,  e  com  ferem  de  Cochim  a  Calecut  iós  trin- 
ta e  oito  legoas,  chegarão  li  no  fim  do  mefmo  mes  ,  e  (ur- 
gindo no  lugar  que  lhe  pareceo  mais  acomodado  ,  come- 
çarão dar  fogo  ha  artilharia  com  que  no  arrayal  fízerao 
aílaz  de  dano  ,e  lhe  quebrarío  hum  trabuco  nouo  que  en- 
tão eílauáo  aííentando  ;  porque  vendo  elles  que  fe  hia  che- 
gando o  veraõ  ,  em  que  forçadamente  aula  de  vir  focorro 
ha  fortaleza  ,  dauaíTe  grande  preíTa  para  a  tomarem  antes 
que  ifto  foíTe  ;  para  o  que  o  Italiano  aíTy  ferido  como  an- 
daua  tinha  dado  ordem  a  três  trabucos  ,  auendo  eíle  pollo 
milhor  modo  que  todos  para  fair  com  fua  cmprcfa  ,  pollo 
muyto  dano  que  fizera  na  fortaleza  o  primeiro  trabuco  j 
e  agora  começaua  ja  de  armar  eíles  três  quando  as  cara- 
ueilas  chegarão;  e  vendo  os  mouros  o  muyto  dano  que  re- 
cebiaô  delias  ,  fízerao  feus  repayros  da  banda  do  mar  com 
vallos  de  terra  altos  ,  e  muyto  groíTos  ,  em  que  prantaraò 
muyta  artilharia  com  que  tirauão  has  carauellas  ;  porem 
antes  que  fe  acabaíTe  efta  obra  os  capitães  das  carauellas, 
deíejofos  de  fiber  o  cftado  em  que  eílaua  a  fortaza  ,  elles 
Biefmos  fe  forão  de  noite  a  terra  nos  feus  bateis  com  aílaz. 

de.. 


320        Primeyra  Parte  da  Chronica 

~âà  trabalho  e  perigo  ,  e  por  homens,  que  lançarão  a  nado, 
fouberâo  o  grande  aperto  em  que  ellaua  por  falta  de  man- 
timentos e  de  gente  ,  por  ferem  muytos  hom.ens  mortos  , 
c  auer  muytos  doentes,  que  não  auia  nella  cento  e  cincoen- 
ta  que  pudeíTem  tomar  armas  ,  polia  qual  rezão  os  capi- 
tães com  muyto  trabalho  do  mar  e  perigo  da  terra  lança- 
rão na  couraça  o  que  leuauao  para  a  fortaleza  -,  o  que  dom 
Vaíco  de  lima  recolheo  com  morte  de  dous  homés  e  ou- 
tros feridos, c  os  bateis  também  íe  nao  recolherão  em  íaluo, 
porque  lhe  matarão  quatro  remeyros  marinheiros  da  terra. 
Chriílouão  jufartc  vendo  a  falta  de  gente,  que  auia  na  forta- 
leza, lhe  pareceo  íeruiço  de  Deos  c  delRey,  e  esforço  para 
os  que  eílauao  dentro  irfe  meter  nella  com  a  fua  gente  ,  e 
deu  conta  diíTo  a  Duarte  da  fonfeca  ,  o  qual  entendendo 
bem  o  perigo,  que  naquillo  auia,  lhe  diííe  que  nâo  era  da- 
íjuelle  parecer,  porque  o  gouernador  nao  os  mandara  para 
mais  que  para  fazerem  guerra  do  mar,  e  que  elle  nao  fa- 
ria ourra  coufa-,  ao  que  Ghriftouaô  jufarte  lhe  rcfpondeo, 
que  aquellc  fora  o  principal  intento  do  Gouernador  ,  por- 
que para  tirar  fomente  ao  arrayal  bailara  mandar  fós  os 
bombardeyros ,  c  nao  os  homens  como  elles  ;  e  pois  eíla* 
ua  vendo  a  grande  falta  que  aquella  fortaleza  tinha  de  gen- 
te ,  elle  detriminaua  de  fe  ir- meter  nella  cos  homens  dos 
feus  que  o  quifeíTem  acompanhar  ,  que  elle  fízeíTe  o  que 
lhe  bem  parecelTe  ,  e  com  ifto  fe  recolheo  ha  fua  carauel- 
la.  Os  foldados  de  Duarte  da  foníeca,  erjuejofos  da  honra 
que  hiaõ  ganhar  os  de  Chriftouao  juíarte,  apertarão  co  íeii 
capitão  que  fofíe  também  a  terra  ,  e  nao  quiíelTe  pôr  tama- 
nha nódoa  em  fua  honr^  ,  como  íeria  nao  acompanhar  a 
Chriílouão  jufarte  ,  e  fe  elle  poruentura  deixaua  de  o  fazer 
por  recear  o  perigo  ,  lhes  deíle  licença  para  fe  acharem, 
naquelle  feito  por  nâo  perderem  a  honra  que  nelle  podiao 
ganhar;  e  depois  de  auer  fobrc  iílo  alguns  debates,  Duarte 
da  fonfeca  detriminado  de  ir  também  a  terra  fe  meteo  no 
batel,  e  fe  foy  ver  com  Chriílouão  juíarte  ,  e  íe  concertou 
antre  ambos,  que  deixaííem  aos  meílres  das  carauellas  car- 
^0  de  tirarena  ao  arrayal,  e  elles  fe  foílem  a  terra  com  a  fua 

gente ; 


dei  Rey  Dom  João  o  líl.  321 

gente  ;  porem  que  parecia  neceíTario  darem  diíío  conta 
primeiro  a  dom  joao  de  lima,  efeguirem  a  ordem  que  lhe 
clle  deíle;  o  que  parecendo  bem  a  todos,  lhe  cícnni' rno  hu- 
ma  carra  que  eíla  melma  noire  lhe  mandarão  por  hum  ma- 
rinheiro a  nado,  a  que  elle  refpondeo  que  faziao  niflo  hum 
grande  íeruiço  a  Deos  e  a  elRey  polia  muyra  neccífidade 
em  que  eftaua  aqueiia  fortaleza  ,  e  que  leria  bom  deíem- 
barcarem  ha  tarde  ,  que  o  vento  era  do  mar :  com  eíla  re- 
poíla  Te  fizeram  preftes  os  capitães  cos  homens  que  quife- 
rao  hir  com  elles  ;  e  quando  forao  oras  Chriílouão  juíarte 
no  íeu  batel  com  a  fua  gente  íe  foy  abordo  de  Duarce  da 
fonfeca  para  irem  ambos  como  tinhaõ  detriminado  ;  po- 
rem Duarte  da  foníeca  ,  que  tinha  tomado  outro  confelho, 
liie  diíle  que  elle  cuidara  bem  naquella  ida  ,  e  lhe  parecia 
grande  erro  cometelU  ,  por  onde  eftaua  reíoluto  em  o  nao 
fazer  ,  porque  entendia  que  o  governador  tomaria  muyto 
mal  irem  a  terra  fem  fua  licença  ,  que  ellc  fizeíTe  o  que 
quifeílc  ;  Chriílouão  jufarte  lhe  refpondeo,  que  o  erro  era 
perder  huma  ocaíiao  de  tanta  honra  como  aquella  ,  a  qual 
elle  não  auia  de  perder,  porque  bem  fabia  que  o  gouer- 
nador  auia  de  folgar  muyto  com  todo  o  íocorro  que  em 
tal  tempo  fe  deííe  a  aquella  fortaleza,  e  pefarlhe  muyto 
do  contrario  ;  e  fe  alguém  lhe  aconfelhaua  outra  couía  lhe 
viria  de  fer  para  pouco  ,  e  inimigo  de  fua  honra  ,  que  íe 
íicafTe  embora,  c  os  encom.endaiíe  a  Deos,  e  mandou  remar 
para  terra. 

CAPITULO     LXXXII. 

ChrifíOTião  jufarte  ãe [embarca  em  íerra^  tem  cos  mouros  hu- 
yna  bravlljima  peleja.  Dom  Vafco  o  [ocorre  com  gente  ,  a 
ofucejjo  que  ter,i.  Os  mo:iros  orãenao  bunia  (erra  de  ter- 
ra. O  Italiano  ajfenta  clous  trabucos  nonos  ,  os  no[j'os  in- 
nentão  hum  artificio  de  fogo  com  que  lhe  queimao  hum 

cicí-iej , 

CHriílovaõ  jufarte  leuaua  no  íeu  batel  trinta  e  oiro  ho- 
mens bem  concertados,  a  que  mandou  que  abaixaífcm 
as  lanças  por  caufa  dos  tiros  da  terra  j  e  porque  fabia  que 
J^arí.  I,  Ss  nos 


5-^        Pfiineyra  Parte  da  Chronlca 

nos  feitos  da  guerra,  em  que  os  homens  íao  leuados  por 
força  ,  nunca  cuílurnao  auer  bom  fuceíío  ,  quando  hia  ca- 
minhando dilTe  para  os  feus  companheiros,  que  íe  por  ven- 
tura aly   hia  algum  que  foílo  contra  íua  vontade  o  diíleíle, 
que  o  tornaria  a  pôr  na  carauella  ,    porque  elle  naÕ  queria 
lera  ninguém  em  cargo  da  fua  vida;  porem  queeile  c"o  tauor 
diuino  auia  de  entrar  na  fortaleza,  ou  auia  de  perder  a  fua^ 
mas  que  ficaria  ganhando  a  honra  que  lhe  eílaua  oíFerecida 
naquelíe  feiro  ,  como  também  ganharião  todos  os  que  íe 
achaflem  nelie;  ao  que  reípondeo  hum  esforçado  mance- 
bo por  nome  Anrique  de  íiqueyra  ,  ainda  que  eu  íou  o  ío- 
menos  de  quantos  aquy  himos  ,  digo  íenhor   por  mim  e 
por  todos,   que  íe  todos  não  tiuerao   a  vontade   que  vós 
tendes  não  nos  embarcáramos  ,  e  por  iíTo   não    fe  perca 
tempo,  vamos  noíTo  caminho   para  o  paraifo,   pois  himos 
fervir  a  Deos  ,  e  ajudar  noííos  próximos  :    e  mandarão  dar 
prcíla   ao  remo  para  chegarem  a  terra.  Os  mouros  enten- 
dendo a  detriminação  do  batel,  acudirão  por  ambas  as  par- 
tes mais  de  dous  mi!  ,que  chegando  ha  couraça  derruba- 
rão as  pipas  ,   e  íe  forao  pôr   na  borda  d'agoa  \  os  noííos. 
tiros  das  torres,  que  defendião  a  couraça,  dando  fogo  ma». 
tarão  tantos  que  o  campo  ficou  cuberto  delles  ,  porem  não 
fazião  falta,  porque  os  que  ficarão  viuos  tomauao  toda  a 
praya.  Dom  João  de  lima  que  via  tudo  o  que  paíTaua  no 
batel,  pSs  os  efpingardeyros  no  muro  ,  e  mandou  ter  muy- 
la  vigia,  e  poílo  tudo  a  bom  recado  íe  íoy  ao  poíligo  com 
dom  Vaíco  e  todos  os  mais  fidalgos  ,  que  todos  íeriao  até 
corenta  homens.  Os  mouros  apontarão    no  batel   algumas 
peças  de  artilharia  ,  e  como  erão  muytos  os  pilouros,  hum 
delles  lhe  acertou,  que  leuou  dous  homens  em  pedaços  ,  e 
após   ifto  veyo  fobre  o  batel  Iiuma  nuuem  de  frechas   que 
o  cubrio  ,  e  infinitos  pilouros  de  eípingarda,  com  que  ou- 
ue  cinco  feridos,  mas  nem  por  iíTo  os  noíTos  deixarão  de 
remar  tão  depreíTa  ,  que  a  vaga  do  mar  os  leuou  a  encalhar 
na  praya  ,  onde  acudirão   l(>^go  os  mouros  ,  e  tomarão  o 
batel  has  mãos,  porque  o  naõ  tornaííe  a  leuar  a  relfaca  da 
onda  i  porem  os  noííos  faltarão  logo  fobre  elles  ,  e  ferin- 
do-os 


delRey  Dom  João  o  III.  523^ 

do-os  com  as  lanças  á  mao  tente  ,  com  grande  trabalho  os 
fízeráo  afaílar  do  batel  ,  com  que  pudcrão  cílender  as  lan- 
ças ,  e  tiuerâo  lugar  de  íe  porem  em  terra.  Os  mafinhey- 
ros  Portuguefes  que  erao  féis  ,  e  hiaô  também  armados  , 
largando  os  remos  íairão  em  terra  com  lanças  e  paneilas 
de  poluora  acefas,  que  leuauao  em  baldes  de  couro  ,  e  !an- 
çandoas  fobre  os  mouros  queimarão  muytos  delles,  porque 
íc  nao  podião  retirar;  outros  féis  reineyros  canaris  de  den- 
tro do  batel  lançauão  também  paneilas  de  poluora  íobre 
os  mouros  com  que  os  deíatinauão  de  maneyra  ,  que  cada 
hum  buícaua  lugar  por  onde  fugiíle.  E  eftando  nifto  che- 
gou huma  onda  ao  batel  que  o  tornou  a  léuar  para  o  mar, 
onde  os  canaris  trabalharão  tanto  que  á  força  de  remo  íe 
fairao  do  rolo,  e  íe  puíeraô  de  largo  olhando  como  os 
noíTos  peiejauao  antre  tanta  cantidade  de  inimigos  que 
quad  nao  apareciáo.  Dos  mouros  os  que  nao  podiao  che- 
gar a  ferir  os  noííos  lhe  lançauão  tanta  areya  que  os  cega- 
uâo  ,  e  os  outros  eílauSo  taõ  apertados  cos  noíTos,  que  nao 
íe  podendo  feruir  das  armas  trabalhauao  pollos  tomar  has 
m5os  ;  porem  os  noíTos  nefce  aperto  íe  aproueitarão  de  pu- 
nhaés  e  adagas  que  todos  leuauao  ,  com  que  fazião  afaílar 
os  mouros  de  fy.  Neíle  tempo  hum  marinheyro  cham?.do 
Nuno  cailanho,  que  tinha  huma  efpada  de  ambas  as  raaos, 
cficara  antre  os  mouros  que  forao  queimados,  ferindo  nel- 
les  o  milhor  que  pôJe  os  fez  arrdar  tanto  efpaçOjque  lhe 
ficou  lugar  para  manear  a  efpada  ha  fua  vontade  ,  então 
cortando  por  elles  de  huma  parte  ,  e  doutra  ,  porque  lhe 
não  podiao  fugir  ,  fez  tamanho  lugar  que  os  noííos  pude- 
rão  abaixar  as  lanças,  e  aproueytarfe  bem  delias,  com  que 
tratauâo  muyto  mal  os  inimigos,  porem  os  outros  mouros 
que  eílauão  mais  longe  ,  e  não  podiãí)  chegar  aos  nof- 
íos  ,  tirauão  com  muytos  zargunchos  darremefío  com  que 
ferião  tantos  dos  feus  como  dos  noííos  :  nefta  reuolta  a  ar- 
tilharia da  fortaleza  também  fazia  grande  eftrago  nos  ini- 
migos ,  mas  como  erao  mais  os  que  acndiao  de  nouo  que 
os  que  morrião  ,  mais  creciao  do  que  mingoauao  ;  e  a  for- 
taleza também  tinha  então  feu  trabalho  ,  porque  era  bati- 

Ss  2  da 


324        Primeyra  Parte  da  Chroiiica 

da  por  todis  as  partes  ,   a  que  ella  também  por  todas  ref- 
pondia  no  milhor  modo  que  era  poíHuel.  Dom  Vafco  ven- 
do que  os  noíTos  eftauâo  em  terr;»,  e  andauao  afogados  an- 
tre  os  mouros,  acompanh.^do  de  Jorfe  de  lima,  António  de 
melo ,  Fernão  de  lima  ,  Manoel  de  mendonça  ,  António  de 
íerpa  ,  António  rabelio  feitor  da  fortaleza,  Duarte  de  fa- 
ria ,  Fernão  de  melo,  Diogo  pirez  dazeuedo,  e  outros  ani- 
moíos  íoldados  derao  todos  nos  mouros  com  tanta  fúria, 
queosfizerao   afaílar  de  maneyra   que  poderão  chegar    a 
Chriílouaoju farte,  que  andaua  ja  com  duas  feridas  ,  e  An- 
rique   de  íiqueira  com  huma  zargunchada  ,  de  que  daliy  a 
pouco  cahio   morto  ;   porem  tanto  que  fe  ajuntarão  huns 
cos  outros  íazendo  todos  marauilhas  ,  fe  vieraô  recolhen» 
do  para  o  poíligo  com  aíTaz  de  perigo  e  trabalho  ,  porque 
aly  apertarão  os  mouros  muyto  mais  com  elles ,  c  era-lhes 
forçado  virem  andando  para  traz  co  roíto  nos  mouros  pe- 
lejando íempre  ,  e  del^a  mancyra  apefar   de  toda  a  força  c 
poder  dos  inimigoíj  fe  meterão  cio  poíligo  para  dentro.  Da 
companhia  de  Chriílouao  juíarte  ficarão  quinze  mortos  no 
campo  ,  e  os  vinte  e  três  que  ficarão  viuos  forao  todos  fe- 
ridos, de  que  depois  morrerão  alguns- ;  e  da  companhia  de 
dom  Vaíco  morrerão  tHobem  cinco  ,  com  que  a»  todo  cuf- 
tou  eflc  dia  vinte  e  íeis  Portugueíes.  Os  que  cfcaparao-da 
companhia  de  Chriítovaõ  jufarte  foraó  elle,  Manoel  alua- 
rez  dalcunha  o  efcudeyro  ,  Kuy  freyre  ,  Diogo  das  viílas, 
Duarte  ferreyra,  Fcrnaô  correa ,  António  peçanha  ,  Chrif- 
touío  antuncz,  Francilco  foarez,  Fernão  furtado,  Francif- 
co  carualho,  Artur  de  craílo,  Fernão  de  barbuda.  Pêro  eíla- 
•ço ,  Chriílouao  íigueira.  Os  nomes  dos  mortos  nao  ponho, 
porque  os  naô  foube  ,  que  bem  merecerão  fer  nomeados,, 
mas  nem  iíTo  lhe  poderá  tirar  aquelle  honrado  nome  ,  que 
por  ícus  braços  alcançarão  neRe  tao  famofo  e  rao  raro  fei- 
to.  Os  mouros  ficarão  m.uito  enuergonhados  de  verem,  que 
nao  forão  poderoíos  para  defenderem  a  defembarcaçaõ  a 
tao  poucos  Portugueíes  ,  e  defpois  de  defembarcados  en- 
trarem na  fortaleza  ;e  elRey  lho  lançaua  em  rofto  muytas 
Yczes  5  e  eílaua  de  todo  deíconíiado  de  fe  elles  poderem 

deien* 


dei  ReyDom  Joáo  o  III.  325' 

defender  do  gouernador  quando  aly  vieíle   a  focorro  ,   de 
que  elles  também  eítauao  com  muyto  receyo  ,  c  apertauao 
de  nouo  fobrc  illo  co  Italiano,  que  então  andaua    ocupado 
em  mandar  íenouar  os  trabucos  ,   e  em  quanto  le  eftes  fa- 
ziaó  fez  ajuntar  huma  grandiíTmia  cantidade  de  gaíladores, 
com  que  foy  fazendo  hum  vallo  de  terra  que  os  emparaua 
da  noíTa    artilharia,   e  detrás  delle  acarretauao   terra   que 
deitauaô  íobre  a  outra  meílurada  com  pedregulho  ,  faxina, 
c  muytos  páos,com  que  íe  foi  aleuanta.ndo  tanto,  que  le  fez 
humaíerra  tao  alta  como   a  fortaleza.  Bem  entendeo  dom 
João  que  a  tenção  daquella  obra  era  chegarem  com  aquel- 
Ja  ferra  ha  fortaleza  ,  para  daly  a  combaterem  ha  fua  von- 
tade ,   com  que  elle  e  todos  entrarão   em  grande  receyo  , 
porque  íe  naó  viaó  com  forças  para  refiftirem  a  tamanho 
poder  j  e  ninhuma  confiança  tinhaõ    fenao  na  mifericordia 
do  Senhor,  por  quem  efperauao  facrifícar  aly  as  vidas;  mas 
como   elle  nunca  falta  aquém   de  verdade   efpera  nelle  , 
mandou  entaõdo  eco  huma  chuua  tao  groíla  e  tao  copio- 
fa  que  penetrou  a  terra  ,  que  era  leuadiça ,  de  tal  maneyra 
que  os  gaíladores  atolauaõ  até  a  cinta  ,  com  que  naõ  pude- 
raÓ  ir  com   a  obra  por  diante.  Vendo   enraó  os  mouros 
que  fe  lhe  acabaua   o  tempo  do  que  elles  cíperauaô  de  fa- 
=zer  ,  e  fechegaua  o  de  poder  vir  focorro  aos  noflos  ,  peita- 
rão groílamenteo  Italiano,  em  auem  tinhao  roda  íua  efpe- 
rança  ,  porque  fe  deííe  preíía  naquelle  negocio  ;  o  qual  de- 
íiftindo  da  ocupação  da  ferra  ,   a  conuerteo  toda  a  dar  fim 
a  dous  trabucos  que  tinha  começados  ,  que  cm  breue  tem- 
po acabou  de  todo  ,  e  os  pôs  ambos  da  banda  da  cidade  , 
porque  as  pedras  ,  que  paííaííem   alem  da  fortaleza,  foíTein 
dar  fobre  a  couraça  ,  onde  era  a  defembarcaçaa ,  e  as  que^ 
acertaílem  no  muro  e  nas  torre-s  íeriao  tantas  que  tudo  po- 
riao  por  terra.  Eíles  trabucos  foráo  aílentados   o  priniey- 
ro  dia  d'Agoílo  ,  de  trás  de  beílioes  de  madeira  ,   armados 
fobre  groííos   vallos  de  terra  tão  altos  ,  que  íe  não  podiao- 
ver  da  fortaleza  fenão  as  pontas   das  braços  quando  aca- 
bauâo  de  deípedir  as  pedras  ,  as  quais  começarão  logo   a 
lançar  em  muyta  cantidade  ;  porem  não  tamanhas  como  as- 

do 


32Í       Prímeyra  Parte  da  Chronlca 

do  prlmeyro  ,  e  aíTy  faziíío  muyto  menos  dano  ,  e  o  que 
mais  í"e  íentia  delias  na  fortaleza  era  a  deíenquietaçao  e 
opreíTao  grande  em  que  todos  andauao  ,  que  por  ferem  as 
pedras  muytas  não  auia  lugar  feguro  delias.  Eftaaa  então 
na  fort.ileza  hum  mancebo  de  nação  frainengo  ,  criado  de 
Manoel  cerniche  ,  que  tinha  alguma  noticia  de  fazer  arti- 
fícios de  fogo:  eíle  mancebo  fe  ajuntou  co  condeftabre  Dio- 
go pirez  ,  e  ordenarão  ambos  humas  bombas  de  certos 
materiais  poítas  em  groíías  aíles  ,  que  metidas  nas  bocas 
dos  camelos  ceuadas  com  pouca  poluora  ,  porque  os  tiros 
foíTem  fracos  ,  as  deitauTio  fobre  as  cauas  ,  com  que  quei- 
marão muytos  dos  inimigos.  O  capitão  vendo  o  bom  eífei- 
to  deíle  nouo  artificio,  mandou  fazer  tanta  copia  daquellas 
bombas ,  que  dous  camellos  tirarão  todo  hum  dia  com  el- 
las  ,  e  o  principal  intento  era  tirarem  aos  beftiôes  ,  e  por 
acerto  forão  cair  íobre  as  armações  de  hum  dos  trabucos, 
que  erão  de  madeyra  ,  que  começando  a  arder  forao  cair 
fobre  hum  alpendere  cuberto  de  ola  ,  que  eftaua  ao  pé  do 
trabuco  onde  fe  agafalhaua  a  gente  que  trabalhaua  nellc  , 
e  fe  emparaua  da  chuua,  e  pegando  o  fogo  na  ola  fe  ateou 
de  tal  maneyra  que  ardeo  o  alpendere  todo  e  o  trabuco 
fem  lhe  poderem  valer ,  e  o  fogo  que  fe  ateou  na  madeyra 
do  beftiâo,  que  era  muyta  ,  durou  quaíi  toda  a  noite,  dan- 
do fempre  tanta  claridade  que  os  noíTos  camellos  podiSo 
bem  tirar  aos  mouros  que  apareciao  de  quando  em  quan- 
do, com  que  lhe  fizerao  tanto  dano,  que  com  medo  afaíla- 
ráo  o  outro  trabuco  mais  atrás  ,  e  lhe  fizerao  hum  tal  re-^ 
paro  que  ficou  íeguro  dos  noíTos  tiros  -,  porem  não  fazia 
muyto  dano  ,  porque  não  tiraua  muyto  certo  ,  que  foy  pa- 
ra os  noíTos  hum  grande  alluio  ,  e  a  fortaleza  fahio  dum 
grandiíTimo  perigo.  O  condeftabre  porem  não  deixaua  de 
ufar  deltas  bombas  de  fogo  deitando-as  nas  cauas  ,  e  por 
de  trás  dos  vallos  onde  lhe  milhor  parecia ,  com  que  fazia 
muyto  dano  aos  inimigos. 


CA' 


dei  Rey  Dom  João  o  líl.  327 

CAPITULO    LXXXIII. 

Vranclfco  de  vajconcellos  chefra  a  Calecut  em  huma  galeota* 
Duarte  da  fojifecavay  pidir  focorro  ao  governador  que  lo- 
go o  manda.  Os  mouros  tornaÕ  a  pôr  mão  na  ferra  de  ter^ 
ta  ;   os  nojfos  íb a  impedem,  Eitor  da  Jilueyra  cap  itão  de 
Cananor  J ocorre  a  fortaleza, 

nUarre  da  fonfcca  enuergonhado  com  figo  de  não 
_i^_,  íeguir  a  Chriítouão  jufarte  ,  dctriminou  do  fair  tam- 
bém em  terra  ,  de  que  dando  conta  aos  feus  foldados  lhe 
refponderão  ,  que  todos  eílauao  preftes  para  o  íeguirem, 
polio  que  a  outro  dia  fe  pôs  cm  ordem  com  toda  a  gente 
para  o  fazer;  o  que  fendo  vifto  na  fortaleza  dom  João  lhe 
mandou  tazer  final  com  huma  bandeyra  que  o  não  fizeíTe, 
de  que  ficou  muyto  lentido  ,  parecendolhe  que  por  não 
fazer  o  que  fízsra  Chriltouão  jufarte  poderia  ter  alguma 
quebra  em  íua  honra.  Dom  João  aquella  meíma  noite  lhe 
mandou  por  hum  homem  a  nado  huma  carta  para  o  gouer- 
nador  ,  e  lhe  mandou  pidir  muyto  que  lha  mandaflc  polia 
carauella  de  Chriílouão  juíarte,  porque  lhe  mandaua  dizer 
nella,  que  importaua  muyto  mandarlhe  forca  de  gente  com 
que  pudefle  ir  dar  nos  mouros  ,  c  queimar  o  trabuco  ,  que 
para  fe  liurarem  delle  não  auia  outro  remédio.  Duarte  da 
fonfeca  mandou  logo  a  carauella  com  a  carta  ,  que  fazen- 
dolTe  ha  vella  ouue  vifta  de  outro  nauio  que  trazia  alva 
proa  ,  e  tornando  a  íurgir  até  ver  o  que  era  ,  vio  que  era 
huma  galeota  em  que  vinha  Francifco  de  vafconcellos , 
porque  tanto  que  o  gouernador  defpedio  as  duas  carauel- 
las,  logo  nas  fuás  coitas  m.andou  eíle  Franciíco  de  vafcon- 
cellos  fidalgo  honrado  nefi:a  galeota  com  boa  gente  ,  e  lhe 
deu  ordem  que  chegando  a  Calecut  fe  a  fortaleza  eíliueíTe 
com  necefildade  de  mais  focorro  ,  elle  com  Duarte  da  fon- 
feca íe  fofl^em  a  Cananor  pidillo  a  Eitor  da  filueyra  ,  quq 
por  cftar  mais  perto  lho  poderia  mandar  mais  facilmente  , 
fobre  o  que  lhe  eícreueo  também  o  gouernador.  Franciíco 
de  vafconcellos  d«u  conta  a  Duarte  da  fonfeca  da  ordem; 

q[ue 


328 


Pfimeyr-a  Parte  da  Chronica 


que  Icuaua,  e  aílentarao  que  Duarte  da  foníeca  folTe  ao  go- 
uernador  com  a  carta  de  dom  João  ,  para  onde  logo  par- 
tjo,  e  elle  na  fua  galeota  com  a  caraujlla  de  ChriftouaÕ  ju- 
íarre  foy  a  Cananor  a  negocear  o  íoccorro  com  Eitor  da 
lilueyra.  Duarte  da  fonfeca  chegou  a  Cochim  em  três  dias, 
e  deu  ao  gouernador  a  carta  ,  e  larga  informação  de  tudo 
o  qiie  era  pa(Tado,  que  logo  no  principio  fe  moíirou  algum 
tanto  colérico  contra  Chriílouao  juíarte  por  treípaíTar  o  fea 
regimento  ,  porque  nifto  fe  queria  muyto  obedecido  ;  mas 
vendo  que  a  hum  taó  honrado  feito  fe  nao  podia  negar  o 
íeu  preço  ,  tornou  logo  a  dizer  que  Chriftouao  jufarte  e 
feus  companjieyros  nao  íòmente  erao  dinos  de  perdão  , 
mas  de  muyto  louuor,  pois  o  que  íizerao  fora  indicio  e  ef- 
feito  dos  feus  grandes  esforços  ,  que  nos  inimigos  auia  de 
caufar  muyto  eípanto  ,  e  quiçá  nao  pequeno  medo,  vendo 
que  tao  poucos  homens  o  naõ  ouuerao  delles  ,  pois  nao 
duuidarao  cometer  a  deícmbarcaçao  ,  e  a  íeu  pcfar  delles 
o  leuarao  ,10  cabo.  Aquy  íe  lhe  oíFereceo  Francifco  perei- 
ra p^ílana  ,  que  fora  capitão  de  Goa  ,  para  ir  (ocorrer  a 
fortaleza,  e  giftar  nilTo  quanto  tinha  /  o  que  o  gouernador 
Jhe  agardeceo  com  muytas  palauras,  e  muyto  mais  por- 
que para  as  defpefas  deíle  focorro  lhe  emprefrou  dez  mil 
cruzados,  que  o  veador  da  fazenda  lhe  pedira,  e  o  fez  logo 
embarcar  em  huma  galeota  por  capitão  mor  da  armada  do 
focorro  até  a  lua  ida,  em  que  hia  Duarte  da  foníeca  na  fua 
carauella,  Pêro  velho  em  hum  nauio,  Gonçalo  paez  em  hu- 
ma barcaça,  e  x\ntonio  da  íilueira  em  huma  galeota.  E  por- 
que Francifco  pereyra  era  largo  de  condição,  íe  embarcou 
com  elle  tanta  gente  que  nao  cabia  na  galeota  ,  que  faindo 
polia  barra  lhe  quebrou  o  leme  e  tornou  para  dentro  ,  e 
pidio  ao  gouernador  outra  embarcação  mayor,  em  que  lhe 
coubeíTe  a  gente  e  o  comer  para  ella,  e  nao  quis  embarcar- 
íe  na  gileota,  de  que  o  gouernador  fe  enfadou  algum  tan- 
to ,  polia  preíTa  com  que  defejaua  que  fe  fizeíTe  aquelle  fo- 
corro ;  então  mandou  partir  todos  os  outros  nnuios  ,  de 
que  fez  capitão  António  da  lilueyra  ate  a  ida  de  Francifco 
pereyr.i ,  que  íe  partio  cm  hum  bom  galeão  muyto  bem 

armado 


dei  Rey  Dom  João  o  líl.         329 

armado  ,  em  que  leuou  paílante  de  duzentos  homens  hoa- 
rados  e  fidalgos  ,  e  muycos  mantimentos  que  comprou  ha 
íua  cuíta  ,  e  afora  iílo  leuou  huma  fufta  fua  <:arregada  de 
mantimentos  ,  e  pêra  fe  íeruir  delia  em  os  mandar  biiícar 
fe  lhe  faltalTem.  Após  elle  partio  dom  Afonfo  de  menezes 
na  galeoía  que  el!e  deixara  ,  a  que  logo  íe  concertou  o  le- 
me ,  e  Jerónimo  de  íoufa  em  huma  barcaça  com  ordem  do 
gouernador,  que  do  mar,  o  mais  peno  da  terra  que  pudef- 
íem  j  tiraílem  aoarrayal  dos  mouros  ^  para  os  deuenirem 
algum  tanto  da  fortaleza,  mas  que  ninguém  íaille  em  terra 
íem  feu  mandado.  Eftes  nauios  todos  em  faindo  de  Co- 
chim  acharão  os  tempos  mortos  ,  e  com  tantos  contraftes 
de  chuueyros  ,  que  andarão  gaitando  muyto  tempo  pollo 
mar,  e  a  alguns  foy  forçado  tornarem  a  Cochim  •,  ió  Fran- 
cifco  pereyra  efpcrou  tudo  foboila  amarra  por  ir  bem  pro- 
uido  delias  ,  e  aíly  chegou  a  Calecut  com  muyto  trabalho 
e  muyta  falta  dagoa  ,  polia  muyta  gente  que  leuaua.  Após 
clle  forão  também  chegando  os  outros  nauios  ,  que 
como  hiao  faltos  de  mantimentos  lhos  pidiao  a  elle  ,  e 
para  poder  íuprir  a  tudo  mandaua  a  fuíla  a  Cananor  çom- 
prallos  ha  íua  cufta  ,  donde  também  fazia  vir  grandes  al- 
madias,  que  lhe  trazia  tudo  o  que  lhe  ^ra  iiecefíario  ,  com 
que  gaftou  muito  do  feu  em  quanto  durou  eíle  cerco  ,  que 
defpois  neíle  rey  no  lhe  aproueitou  muyto  para  feus  negó- 
cios ,  e  com  muyta  rezao  ,  porque  deuido  he  ao  bom  íer- 
uiço  o  bom  agardecimento  ,  de  que  a  principal  parte  he  a 
boa  fâtisfaçaô.  Vendo  os  mouros  quão  pouco  lhe  fundião 
lodos  os  íeus  trabalhos  e  inuençôes,  fe  tornarão  ha  obra  da 
lerra  que  tinhao  começada  ,  porque  então  eílaua  ja  a  terra 
tão  feca,  que  daua  lugar  para  fe  trabalhar  nella  ,  e  a  foi-ao 
chegando  cada  vez  mais  para  a  fortaleza  na  altura  dos  meí- 
raos  muros  ,  com  tençío  de  cegarem  a  noíTa  artilharia  ,  e 
entrarem  por  aly  a  pelejar  cos  noíTos  dentro  ;  com  que 
dom  João  não  deixou  de  entrar  em  grande  receyo  ,  por-^ 
que  na  fortaleza  não  auia  mais  que  cento  e  cincoenta  iiQ- 
mens  ,  que  pudeíTem  tomar  armas  ,  pollo  qual  ,  por  çoafa- 
Iho  de  todos ,  fizerâo  de  noite  com  aíTaz  de  trabalhg  fohre 
Part,  L  Tt  o  mu- 


33^       Primeyra  Parte  da  Chronica 

o  muro  da  banda  da  albarrada   (  que  efte  nome  tinha  an- 
tre  elles  aquelia  íerra  )  huma  forte   tranqueira  de  groíTas 
vigas  aradas  e  pregadas  humas  nas  outras  ,  tanto  mais  alta 
que  a  aíbarrada,  que  de  cima  delia  fe  deícubrião  os  gafta- 
dores  ,  e  entulhada   por  dentro    ficou  tão  forte  ,    que  fe» 
guramente   fe  podia  pr^ntar   nella  artilharia.    Vendo  oí 
mouros  pela  menham  a  tranqueira,  lhe  derão  muytas  gri- 
tas  e  apupadas  ,  zombando  c  cfjarnecendo  delia  ,  e  com- 
tudo  rrabjíharao  por  leisar  ao  alto  da  íerra  alguma  artilha- 
ria para  lhe  tirarem  ;  mas  não  puderao,   porque  como  a 
terra  era  íolta  tornaua   com  elles  para  trás  :  os  noííos  pu- 
Jerão  em  cima  da  tranqueira  féis  falcões  pedreiros  ,  que 
acompanhados  de  vinte  elpingardeyros  ,  que  tirauão  com 
elles  juntamente  ,   não  deixauao   os  gaíladores  chegar  ha 
obra  j  e  aíly  nao  hia  por  diante  ;  porem    nao  deixando  de 
bater  a  fortaleza  quanto  podiao  de  dia  e  de  noite  ,  lhe  ti- 
nhãoja  os  muros  rotos ,   e  cheyos   de  buracos  por  muitas 
partas,  com  que  aos  noíTos  creícia  cada  vez  mais  o  aperto 
e  o  receyo  ,  pollo  grande  dano  que  recebião  do  trabuco  ; 
e  vendo  os  m.ouros  que  nao  podiao  fazer  chegar  os  gaíla- 
dores a  continuarem  com  a  obra  da  ferra  ,  puferao  em  ci- 
ma do  que  eftauã  feito  delia  muytos  eípingardeyros,  que 
tirauão  aos  noííos,  e  lhe  fazião  algum  dano  -,  porem  a  nof- 
ía  artilharia  com  muytos  tiros  aííy  de  pilouros,  como  das 
bombas,  os  metião  muyto  por  dentro,  porque  os  que  acer- 
tauão  matauão  muytos  deilcs ,  e  muytos  fazião  tornar  ro- 
dando polia  íerra  ab.=iixo.  Eitor  da  lilueyra  capitão  de  Ca- 
nanor,  inda  que  fabia  bem  o  aperto  cm  que  eílaua  a  forta- 
leza ,  deixaua  de  lhe  acudir  por  falta  de  embarcações  gran- 
des ;  porem  tanto  que  aly  chegou  Franciíco  de  vafconcel- 
los  com  a  fua  galeota  ,  e  carauella  de  Chriílouão  jufarte^ 
entregou  a  fortaleza  ao  alcaide  mór  com  cem   homens  , 
e  com  toda  a  mais   gente  fe  embarcou   na  carauella  ,   e 
acompanhado  de  íeis  paraos  ,    que  tinha    carregados  de 
bifcoito  ,  carne  ,   pefcado  ,  farinha  ,  cocos  ,  arroz  ,  açú- 
car tudo  em  fardos   pequenos  e  maneaueis  ,    e  iruytas 
galinhas  cm  íahnoura ,  e  ouos ,  e  cem  pancilas  de  pol- 

uora. 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  551 

uora  ,  foy  furgir  em  Calecut  junto  com  a  terra  ,  onde 
acudirão  logo  os  mouros  cuidando  ,  que  queria  deíembar- 
car  ;  e  não  deixara  de  o  fazer  fe  em  íurgindo  lhe  não  fize- 
rão  da  fortaleza  íinal  que  o  não  fizeíTe  ;  então  eile  da  ca- 
rauella  e  Francifco  de  vafconcellos  da  galeota  começarão 
a  dar  grande  e  continua  bataria  ao  arrayal  ,  que  também 
Jhe  relpondia  na  meíma  forma  ;  e  como  foi  noite  auiuarão 
os  noílos  nauios  mais  a  bataria  ,  para  diuertirem  os  m.ou- 
ros,  e  os  fazerem  perder  o  tino  da  defembarcação,  porque 
fazia  grande  efcuro  -,  e  como  ja  tinha  feito  final  lia  forta- 
Jcza  para  virem  tomar  o  que  Icuauao  os  paraos  ,  mandou 
pôr  tudo  na  couraça  polios  marinheiros  malauares  de  Ca- 
nanor,  que  o  fizerão  com  muita  preíleza;  e  dom  Vaíco  re- 
colheo  tudo  pollo  poftigo  não  íem  grande  perigo  dos  pi- 
louros  perdidos  ,  que  de  todas  as  partes  tirauão  ha  defem- 
barcação ;  e  porque  dom  João  mandou  dizer  a  Eitor  da 
íilueyra  que  não  tinha  neceílidade  de  mais  gente,  que  a  que 
tinha  ,  para  defender  a  fortaleza  até  a  vinda  do  gouern.a- 
dor  5  fe  tornou  o  outro  dia  para  Cananor,  ficando  os  mou- 
ros muyto  oufanos  por  lhes  parecer  ,  que  com  medo  não 
oufara  a  deícmbarcar ;  porem  dom.  João  mandou  tirar  com 
alguns  cocos  a  huns  negro?,  que  pafíavão  pollo  pé  do  mu- 
rOjque  ellcs  recolherão  e  icuarão  ao  arrayal,  dizendo  que 
da  fortaleza  lhe  tirarão  com  elles  ,  de  que  os  mouros  fi- 
carão affaz  confufos  ,  cuidando  que  os  noíTos  eftauão  tao 
bem  prouidos  de  mantimentos  ,  que  não  faziáo  cafo  dos 
cocos. 


Tt  2  CA- 


332»  Primeyra  Parte  da  Chroníca 

CAPÍTULO    LXXXIIII. 

lErancifco  pereyra  pejiana  chega  a  Calecut ;  manda  humpa- 
rao  ha  fortaleza  carregado  de  mantimentos  \fobre  a  def- 
embarcação  aniles  fe  traua  cos  mouros  huma  ajpera  briga ^ 
em  que  morre  hu,n  caimalfeu-y  e  o  que  elles  fazem  para, 
auerem  o  [eu  corpo.  Os  mouros  ordenaÕ  efcadas  para  fubi- 
rem  ao  muro.  O  gouernador  dejpeds  dom  SimaÕ  de  menezes 
a  focorro  com  dez-ajfeis  vellas.  De  Goa  vay  Pêro  de  faria 
com  vinte  vellas  a  focorro. 

Pvancifco  pereyrd  pedana  ,  que  defpois  de  partir  de 
Cochini  teue  cantos  contraíles  do  tempo,  que  nao  po- 
de chegara  Calecut:  fenáo ji  no  mes  de  Setembro  ,  achou 
ahy  Francifco  de  vaíconcellos  na  galeota,  que  lhe  deu  con- 
ta do  que  tinha  f'-ito  ,  c  do  focorro  que  trouxera  Eitor  da 
iiíuejra  ,  com  que  a. fortaleza  eftaua  bem  prouida  ;  porem 
Franciíco  pereyra  não  quis  deixar  de  lhe  mandar  o  íeu  ,  e 
carregando  de  mantimentos  a  hum  parao  grande  que  leua- 
ua,  meteo  nelie  cinco  marinheyros  Portugueíes,  e  féis  ma- 
lauares,  e  os  mandou  a  terra  ,  e  que  meteílem  na  couraça  o 
que  leuauão  ,  e  elle  do  feu  galeão  e  os  outros  nauios  derao 
entretanto  huma  grande  bataria  ao  arrayal.  Os  mouros 
vendo  o  parao  encaminhar  para  terra,  o  deixarão  chegar,  e 
começar  a  defcarregar,  de  que  dom  João  ficou  aíTaz  agaíla- 
dò,  porque  o  perigo  era  grande,  e  a  neceíTidade  pouca,  por 
tlh  eílar  então  bem  prouido,  e  quando  aos  mouros  lhe  pa- 
receo  tempo  ,  acudirão  Q'ambas  as  partes,  tirando  inuytos 
tiros  ao  parao  ,  com  que  forao  mortos  dous  Portuguefes  , 
e  os  mais  remeyros  feridos,  que  vendo  arremeter  os  mou- 
ros fugirão  a  nado,  e  defempararão  o  parao  ,  que  os  mou- 
ros leuaião  abaixo  da  fortaleza  com  todo  o  mantimento 
que  ainda  tinha  dentro.  Dom  João  cheyo  de  cólera  acudio 
ao  poíligo  ,  e  dom  Vaíco  íahio  fora  com  feííenta  homens,  e 
a  pelar  da  multidão  dos  inimigos,  que  achou  diante,  reco- 
Iheo  o  mantimento  ,  que  eílaua  em  terra  ;  ao  que  acudirão 
louytps  mouros  de  noao ,  que  o  puícrão  em  taato  aperto  , 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  533 

quefoy  neceiTario  fair  [o  meímo  dom  João  com  vinte  ho- 
mens de  refrelco  ,  que  ôs  recolheo  com  aíTaz  de  traballio. 
Os  mouros  ,  que  então  não  acudirão  a  efte  rebare  ,  vendo 
os  nollos  tao  apertados  ,  fe  atreuerao  muytos  a  chegar  taõ 
perto  do  baluarte  de  madeira,  que  eftaua  defronte  da  por- 
ta da  fortaleza  ,  que  lhe  lançarão  fogo  ,   que  logo  fe  ateou 
nelle,  e  foy  em  tanto  crecimento,  que  os  noílos  começarão 
de  recear,  que  lhe  queimaíle  a  porra  ,  por  onde  acudio  aly 
muyta  gente  ,  e  com  níuyta  areya,  que  lhe  lançarão  em  ci- 
ma com  bem  grande  trabalho,  prouuea  noílo  Senhor  que 
o  apagarão  íem.  os  mouros  lho  poderem  defender;  porque 
duas  peças,  que  na  fortaleza  eílauão  daquella  parte,  e  a  ar- 
tilharia do  mar  íizerão  tamanho  eílrago  nelles,  que  de  to- 
do os  puferão  em  fugida^  porem  iá  da  pane  de  Cochim  acu- 
dirão tanta  cantidade  de  mouros  ,   que  os  noíTos  effiuerãò 
quafi  de  rodo  perdidos  ,  e  ouuc   aly  então   a  mais  trauada 
briga  de  quantas  ouue  em  todo  aquelle  cerco  ;  dos  mouros 
ficarão  morros  mais  de  trezentos,  e  anrre  elles  hum  caimal 
que  então  fora  íeu  capitão,  que  íe  achou  m.orto  de  huma  ef- 
pingardada  na  cabeça  ,  veílido  em  huma  cabaya   de  veludo 
de  Meca  encachado  com  pan^os  de  feda;  íobre  o  corpo  dei- 
te caimal  acudirão  muytos  mouros  para  o  leuarem, mas  não- 
puderão  por  cauía  da  nofía  artilharia  ,  que  nefte  dia  deixou 
os  pilouros  ,  e  tirou  com  rocas  de  p-edra  ,  porq.ue  afy  fazia 
mais   dano  aos  inimigos  ícm  o  fazer  no  mar   aos   nauios. 
Dos  Purtugueíes  forão  morros  três,  e  feridos  mais  de  trin- 
ta, e  também  o  foy  o  mefmo  dom  João  em  huma  perna  de 
hum   pilouro    perdido  de  efpingarda ,    que   o  tratou   tao 
mal,  que  o  obrigou  a  eílar  na  cama  ,   e  em  íua  auíencia  fi- 
cou dom  Vafco  fervindo  de  capitão.  Os  parentes  do  cai- 
mal morto  ,  vendo  que  por  força  não  podião   auerlhe  o 
corpo  ha  mão  ,  com  licença  delRey  mandarão  o  Irnliano 
em  companhia  do  Baítiáo  rachado  ,  que  com  huma  bandei- 
rinha branca  chegarão  a  auer  fala  dos  noffos  ,  e  pidirão  li- 
cença para  tirarem  daly  os  corpos  morros  :  dom  João  en- 
tendendo bem.,  que  o  ícu  principal  intento  era  recolherem 
ç  corpo  do  caimal,  e  que  fe  aquelles  corpos  aly  apodre-. 
•  cefscni.i 


334         Prlmeyra  Parte  da  Chronica 

ceOem  lhe  poderia  fer  caufa  de  grandes  males  ,  lhe  deu  a 
licença  que  pedião  ,  com  tanto  que  tiraíTejn  primcyro  to- 
dos os  outros  corpos,  e  o  derradeyro  foííe  o  do  caimal  \  c 
afly  íe  fez  em  paz  ,  cora  que  também  os  noíTos  forao  en- 
terrados na  tranqueira ;  e  dom  João  mandou  tirar  a  madey- 
ra  do  baluarte  ,  e  recolhella  na  fortaleza,  deixando  fómen- 
re  os  eíleyos  ,em  que  fe  não  podia  atear  o  fogo  tão  facil- 
mente ,  e  por  entre  tanto  íicarâo  os  noíTos  com  mais  quie- 
tação, e  menos  trabalho  ,  porque  não  auia  mais  que  huma 
continua  bataria  ,  que  fe  daua  ha  fortaleza  ,  e  aos  nauios 
no  mar  ,  donde  também  lhe  reípondião  o  milhor  que  era 
poííluel  ,  e  com  todo  o  refguardo  da  artilharia.  Naceo  en- 
tão eíle  foíTego  da  pouca  efperançi,  que  os  mouros  ja  ti- 
nhão  de  tomarem  a  fortaleza  ;  porque  o  Italiano  enge- 
nheiro tinha  ja  chegado  ao  cabo  com  todos  os  fcus  ardis 
e  inuençoes,  e  não  fe  occupaua  era  mais,  que  em  reformar 
os  trabucos,  que  muitas  vezes  fe  lhes  defconcertauao  com 
a  muyta  continuação  do  tirar,  que  para  os  noíTos  era  gran- 
de aliuio,  porque  mayor  dano  recebião  dos  trabucos,  que 
da  artilharia.  Com  tudo  os  mouros  ,  por  não  moílrarem 
fraqueza  ,  fizerao  outras  mantas  com  huma  certa  inuençao 
de  efcadas  para  fubirem  aos  muros  ;  porem  tudo  foy  de- 
balde, porque  os  noíTos  com  as  bombas  de  fogo  lhas 
queimarão  facilmente.  D^fpois  de  fer  che  gado  Francifco 
pereira  a  Calecut  ,  onde  também  chegou  António  de  mi- 
randa  cos  navios  que  atrás  diíTe  ,  defpedio  o  gouernador  a 
dom  Sima5  de  menefes  capitão  mor  do  mar  com  dezaíTeis 
vellas  de  remo  ,  gales,  galeotas,  fuíTas  ,  e  bargantís  ,  com 
muyta  gente,  mantimentos,  e  munições  para  o  ce-co,  e  lhe 
deu  regimento  ,  que  defpois  que  viíitaíTe  Calecut  ,  paíTaíTe 
auante,  e  correíTe  a  cofia,  e  todos  os  rios  delia  ,  e  todos  os 
nauios,  que  tomaíTe  no  mar,  mandaíTe  a  Calecut, e  lá  foílem 
queimados;  o  qual  partio  a  doze  de  Setembro;  e  juntamen- 
te com  elle  mandou  recado  a  Francifco  de  faa  capitão  de 
Goa  ,  que  deixando  na  cidade  a  gente  que  lhe  pareceíTe  ne- 
ceíTaria  ,  toda  a  mais  mandaíTe  a  Calecut  com  todos  os  na- 
uios, que  pudeíls,  carregados  de  mantimentos,  e  munições. 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  335' 

c  que  iílo  mandaíTe  as  mais  vezes  que  pudeíTe  ,  principal- 
mente arroz  em  zambucos  e  náos  da  terra,  para  gado  dos 
marinheyros  ,  e  eícrauos ,  o  que  Francifco  de  faa  fez  com 
muyto  cuidado  ,  e  em  muyta  abundância  ;  e  também  lhe 
^andou  dizer  o  gouernador  ,  que  fe  ahy  chegaiíem  náos 
do  reyno,  náo  confentiíle  deícmbarcar  a  gente  ,  mas  que 
Jogo  le  folTe  a  Calecut.  E  logo  de  Goa  partio  Pêro  de  faria 
fidalgo  honrado  com  vinte  fuílas  carregadas  de  manfimen- 
tos  ,  e  muyta  gente  dos  caiados  da  cidade  ;  e  todas  eílas 
preiíençoes,^^ fazia  o  gouernador,  porque  tinha  derriminado 
nao  íe  abalar  de  Cochim  para  Calecut  fem  primeyro  ter  lá 
junto  todo  o  poder  dalndia,  entendendo  que  aíTy  compria, 
pollo  grande  poder  de  inimigos  ,  que  eftaua  íobre  a  forta- 
leza ;  porque  no  arrayal  auia  então  dous  mil  efpingardey- 
ros  ,  e  mais  de  dez  mil  mouros  de  toda  a  cofta  da  índia  , 
afora  os  dez  mil  naires,  que  elRey  aly  trouxera;  e  como  el- 
le  eílaua  aly  preíente,  cada  dia  lhe  vinha  genlQ  de  refrefco,. 
porque  eftaua  com  detrimínaçao  de  nao  leuantar  o  cerco 
até  tomar  a  fortaleza,  ou  fe  perder  fobre  iíTo  ;  de  que  tudo 
tinha  auifos  por  Duarte  fernandez  de  lima,  que  andaua  em 
trajos  de  jogue  •,  e  o  que  mais  mouia  o  gouernador  a  fazer 
eíla  grande  preparação  antes  da  fua  ida  a  Calecut  era  a 
grande  diíHcuIdade,  que  aly  auia  na  defembarcaçao,  por  o 
mar  andar  fempre  de  leuadia  ,  e  arrebentar  muyto  na 
praya  ,  que  era  grandiíTimo  perigo  para  a  gente  ,  que  auia. 
de  defembarcar  com  as  armas  has  coitas, 

CAPITULO    LXXXV. 

O  que  focede  em  Cochim  fobre  três  eJlrAngeyros^  queje  pren" 

àerão. 

Ogo  como  o  gouernador  chegou  a  Cochim,  em  quíín- 
f  to  daua  ordem  has  armadas  ,  de  que  atrás  fiz  menção, 
naquella  paíTagem  que  ha  da  ribeyra  ha  outra  tp»-ra,que 
eílá  defronte  delia  ,  onde  chamáo  Vay  Pim,  em  que  indao 
muytas  almadias  com  negros  da  terra,  que  paííaõ  a  gente 

de 


33^  Primeyra  Parte  da  Chronica 

de  hunn  parte  ha  outra  ,  foccdeo  que  paíTando  huma  noi- 
te numa  almaciia  de'ílas  três  naires  eílrangeiros  ,  os  negros 
que  remiuaô  nella  prcpaíTando  por  huma  carauella  ,  que 
eftaua  no  rio  ,  do  bordo  delia  furtarão  iium  berço  de  me- 
tal, e  querendo  o  meter  na  almadia  forao  fentidos  dos  que 
eítauao  na  carauella  ,  que  começando  a  dar  vozes  ,  os  ne- 
gros fugirão  a  nado  ,  e  os  naires  fe  deixarão  ficar  aí- 
fentados  na  almadia  com  íuas  efpadas  e  adargas  ,  como 
homens  que  fe  não  íentião  culpados  ;  os  marinheyros  da 
carauella  os  leuarão  logo  a  terra  a  caía  do  ouvidor  ,  que 
defpois  de  lhe  fazer  perguntas  ,c  elles  refponderem  que 
naquelle  caio  não  tinhâo  culpa,  que  os  remeyros,  que  n'al- 
madia  os  palTauao  ha  outra  banda,  a  tinhao  toda  ,  os  man- 
dou por  então  meter  no  tronco  ,  e  polia  menham  foy  dar 
ronta  ao  gouernador,  que  moílrou  folgar  de  colher  eíles  , 
cuidando  que  eraô  os  delinquentes,  para  pagarem  os  muy- 
tos  berços  que  íe  furtauão  dos  nauios  que  eftauão  naqiielle 
rio  ;  e  mandou  logo  dizer  a  elRey  ,  que  elle  tinha  prefos 
três  naires  íeus ,  que  forão  achados  de  noite  em  huma  al- 
madia fartando  hum  berço  de  hum  nauio  ,  que  lhe  pidia 
muyto  ,  pois  erao  ladroes  ,  os  mandafíe  enforcar  na  raeí- 
ma  carauella  ,  onde  iizerão  o  furto,  para  caftigo  doutros  , 
porque,  fe  o  elle  não  mandaííe  fazer,  elle  os  mandaria  en- 
forcar logo.  ElRey  mandou  o  feu  regedor  com  repoíla  ao 
gouernador  ,  e  antes  de  lhe  ir  falar  foy  ter  cos  naires ,  que 
eílíuão  chorando  muyto  injuriados  de  os  prenderem  por 
ladroes,  fem  terem  culpa,  e  lhe  contarão  o  caio  como  paf- 
lara-,  o  regedor  fe  foy  então  ao  gouernador,  e  lhe  dlííe,  que 
aquelles  naires  erao  de  hum  caimai,  que  auia  poucos  dias 
que  viera  vifitar  elRey  ,  e  como  nouos  naquella  terra  não 
fabião  o  que  hauia  naquella  paflagem  ,  nem  tinhao  para 
que  fazer  aquelle  furto  •,  que  os  negros  da  almadia,  que  os 
paíTauão,  erao  os  que  o  fizerão,  e  bem.  fe  prouaua,pois  em 
ouuindo  bradar  fugirão  a  nado  ,  e  os  naires  fe  deixarão  fi- 
car quietos  ,  que  elRey  lhe  pidia  muyto  lhos  mandafTe  en- 
tregar ,  e  íe  tiueíTem  culpa  elle  os  caítigaria  íegundo  feu 
cuáumc  ,  e  que  ihe  iembraíís  que  os  Portuguefes,  que  elle 

toiíii- 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  537 

tomaua  em  íua  terra  em  algum  deUro,  não  fazia  mnls  que 
prendellos  ,e  mandarllios  prefos  ,  fcm  procurar  n^ais  por 
íaber  ie  os  caftigaua,  ou  nao,  pollo  qual  lhe  quifeíTe  guar- 
dar íua  honra  ,  como  fizerao  rodos  os  outros  gcusrnadores 
paíTados.  O  gouernador  ,   como  tinha  por  natureza  tornar 
mal  atrás  do  que  huma  vez   intentaua  ,   refpondeo  ao  re- 
gedor ,  que  os  ladrões  aly  auiao  de  fer  enforcados  onde  fa- 
zião  os  furtos,  e  que  aly  na  ribeyra  auia  de  mandar  enfor- 
car aquellcs,  íe  elRey  o  não  quifeííe  mandar,  e  clle  não 
fiizia|niíío  couía   que  ÍoCíq  contra  a    honra  delRey,  pois 
lhe  mandiíua  dizer  que  fizeíTe  julliça  delles  t  a  que   ore-. 
gedor  lhe  tornou,  que  olhaíTe  bem  o  que  fazia  ,  e  lhe  man- 
daíTe  entregar  os  naires,  porque  le  o  não  fízeíle  quiçíi  foce- 
deria  dahy   algum  grande  mal  ,  a  que   íe  não  poderia  dar 
remédio  :   eíla  repoíla  tom.ou   o  gouernador  muyto  a  mal, 
parecendolhe  que  era  ameaço  ,  e  lhe  diíTe,   que  a  elle  nin- 
guém podia  fazer  mal,  e  ellc  o  podia  fazer  a  q.uem.  quizef- 
ie  ,  e  com  iílo  lhe   mandou  que  fe  foíle.    Eíla  repofía  deu 
o  regedar  a  elRey  eflando  prefente  o  caimal   íenhor  dos 
naires,  que  eítranhandoihe  muyto  fofrer  aqucllas  coufas  ao 
gouernador,   lhe  pidio   Jicença    para  eile  em  pe  fio  a  lhos 
ir  pidir  ,   e  fe  lhos  não  deíTe-,  fazer  o  que   cumpria   a  íua 
honra:  clRey  lhe  diíle,  que  fc  tiraííc  da  cólera^  porque  clle 
lhe  entregaria  os  íeus  naires  ;  e  tornou  a  oiandar  o  rege- 
dor   que  foííe  dar  conta   ao  capitão  da  fortaleza  ,  que  era 
Pêro  mafcarenhas  ,  e  ao  veador  da  frszenda,  e  aos  fidalgos 
que  aly  eílauão,  do  agrauo  cue  lhe  fazia  o  gouernador  ,   c 
qua  vifTem  bon?  o  que  cumpria   ao  íeruiço  delRev  de  Por- 
tugal ,  porque  clle  nada  auia  de  perder  de  fua  honra.  O  re- 
gedor o  fez  ciílv  ,  e  defpois  de  falar  ao  capitão  e  ao  veador 
da  fazenda  ,  fe  íoy  a  cafi  de  dom  Simão  de  mcncfcs,  onde 
achou  Fernão  goaiez  de  lemos  ,    Franciíco  pereyra  ,  Bií- 
tião  de  foufa,  e  loao  de  melo  da  íilun,  e  a  todos  juntos  deu 
o  recado  delRey  ,  queixandoííe  rauyto  da  fem  rezão  que  o 
gouernador  lhe  fizia,  e  das  repoílas  que  daua  fem  lhe  que- 
rer guardar  fua  honra  ,    que  lhes   pidia  muito  que  de  tudo 
Lhe  foíTem  teítemunhas.  Eíles  fidalgos ,  a  qusm  deite  nego» 
Farí,  I,  Vv  cio 


338  Primeyra  Parte  da  Chronica 

cio  nao  tinha  atJ  então  chegado  noticia  alguma,  ficarão 
muyto  efpanrados  ,  c  auendo  que  o  goucrnador  cometia 
huín  graude  erro  ,  detriminarão  de  meter  a  mão  niílo,  aíly 
por  lho  mandar  nidir  clRey  de  Cochim  ,  como  principal- 
mcnre  poUo  que  cumpria  ao  feruiço  delRej,  e  bem  daquel-- 
]e  eílado  ;  e  todos  aíly  como  cílauão  fe  forao  ao  goucrna- 
dor ,  onde  ja  acharão  o  capitão,  e  o  veadcr  da  fazenda  em 
grandes  debates  com  elle  íôbre  o  mefmo  ,  a  quem  clle  tef- 
pondia  que  o  nao  emendaíle  ninguém,  nem  o  aconíelhaííe 
lenaõ  quem  elle  qaifeíT..:.  Os  fidalgos  com  tudo  lhe  de- 
rao  também  manas  rezoens  em  fauoriieiiley  de  Cochimy 
Jembrandollie  a  amizade  que  tiniui  comnoíco  ,  e  as  boas 
obras  que  tinhamos  recebido-  delle  ,  que  nao  era  rezão 
agraualio  por  tão  pequena  coufa  ,  e  todas  íe  refoluião  em 
Ib.p  mandar  entregar  os  naires  para  elle  fazer  juftiça  del- 
les  ;  a  que  o  gouern-ador  não  deu  outra  repoíia  íenaõ  que 
nao  auia  de  ccnfentir  que  dianre  dos  feus  olhos  lhe  furtaf- 
íem  a  artilharia  deilley  fem  caíligar  os  ladrões, que  lha  fur- 
rauão  :  e  querendo  o  ouuidor  ,  que  efcaua  preíente,  delcul- 
par  os  naires  ,  e  pôr  a  culpa  do  furto  aos  negros  remeyros, 
o  tomou  o  gouernador  mal ,  e  llie  reípondeo  aíperamente  : 
os  fidalgos  porem  não  deixarão  de  apertar  tanto  co  gouer- 
nador,  que  liies  veyo  a  dizer,  que  eftarião  os  naires  preíos 
alguns  dias  ,  e  então  os  mandaria  foltar  •,  com  que  le  dcí- 
pidirão  delle  ,  e  cfta  rcpoíla  mandarão  a  elRey  ',  que  elle 
não  tomou  mal  ,  íabendo  ja  a  natureza  do  gouernador  ;  c 
deu  conta  aocaimnl  do  que  paíTaua  ,  e  que  paílados  três 
ou  coatro  dias  lh'entregarião,  os  feus  naires;  porem  paf- 
fando  fete  ou  oito  fem  os  íoltarem,  íe  mandarão  elles  quei- 
xar ao  caiínal  ,  que  de  nouo  fe  foy  a  queixar  a  clPvey  im- 
portunando© muyto,  que  lhe  fízeíle  íoltar  os  naires  para  íe 
lanarem  ,  que  cftauão  cujos  e  fedorentos  ,  que  he  a  coufa 
mais  contraria  de  todas  ha  fua  faífa  religião.  ElRey  ven- 
doííe  tão  importunado  pareceolhe  bom  coníelho  ,  que  o 
caimal  em  peíToa  foíTe  pidir  os  naires  ao  gouernaáor,  e  pa- 
ra iíío  mandou  chamar  o  feitor  da  fortaleza,  e  lhe  diíTe  que 
©  leuafle  comfigo  ,  porque  elle  ^queria  ir   pidir  ao  gouer» 

nador 


,  dei  Rcy  Dom  João  o  III.  j^p 

nadoraquelles  naires,  que  erao  íeus  parentes  ,  e  elJe  inan- 
daria  o  feu  regedor  que  os  acompsnlhiíTe :   o  feitor   ieuou 
comfígo  o  caimal,  e  o  apreíentou  ao  gouernador  íaindo  da 
fortaleza  para  ir  á  miíTa,  e  deípois  de  lhe  fazer  o  caimai  íua 
coneíia,  o  regedor  lhe  falou  por  elle,  e  lhe  dilTe  o  a  que  vi- 
nha :  o  gouernador  como  o  ouuio  foy  por  diante  dizendo 
X}ue  deixaíleeftar  os  naires  prefosjque  erao  ladroes,  que  el- 
Je os  mandaria  foltaryem  quanto  o  gouernador  hia  andando 
lhe  ficou  o  caimal  detrás  ha  mão  direyra  junto  do  hombro  , 
e  elle  e  o  regedor   lhe  hiáo  falando  naquelia  matéria  ,  de 
que  importunado  o  gousrnador  difie,  tirem  lá  eíle  malauar, 
e  dando  co  braço  pêra  trás  íem  olhar  o  que  fazia  ,  acertoa 
de  dar  ao  caimal  com  a  ponta   de  huma  cana   de  bengala  , 
que  leuaua,  no  beiço  de  cima  ,  que  tocando  nos  dentes  lhe 
iahio  hum  pouco  de  fa.-.gue,  que  lhe  foy  ter  aos  panos  bran- 
cos, de  que  hia  veftido;  o  qual  em  vendo  o  Tangue  parou  lo- 
go^, e  defpois  de  enxuto  ie  foy  muito  injuriado  ,  e  ?huns 
naires  f:^us,  que  hiao  com  elle,  quiferaó  logo  dar  nos  For- 
tuguefes  que  andauáo  polias  ruas  ,  mas  o  regedor  lho  nao 
coníenlio,  e  íe  forao  em  paz-,  e  chegando  o  caimal  perto  das 
cafas  delRey,!em  entrar  a  falar  cem  elle,  mandou  dar  Tuas 
gnus,a  que  chamão  cucuyad.is,  a  que  em  breue  erpr-ço  acu- 
dirão paííante  de  dous  mil  naires  com  luas  armas,  econran- 
dolhe  o  que  paliara  co  gouernador,  fentido  muyroda  inju- 
ria que  lhe  fizera  ,  lhes  pidio  que  quifeíTem  tornar  por  íua 
honra,  a  que  rodos  íe  offerecerao  até  morrerem,  por  iílo-;  e 
os  íeus  parentes  fe  raparão  logo  ,  que  he  final  de  pelejarem 
até  perderem  as  vidas,  c  detrim.inarão  de  dar  ante  menham 
ra  pouoação,  e  matarem  quantos  Portuguefes  achaílem.El- 
Rey  mandou  chamar  o  caimal  para  ver  íe  o  podia  abran- 
dar; porem  elle  nS.o  fónrentc  não  quis  vir,  mas  com  itiuytas 
queixas  delRey  íe  foi  chegando  com  a  íua  gente  ha  pouoa- 
ção, para  em  íendo  tempo  darem  nella;  do  que  fendo  eIRey 
auiíado,  mandou  também  dar  fua  cucuyada,a  que  fe  ajun- 
tou grande  numero   degente,   e   mandou  dizer' 30  caimal, 
que  naõ  paílaíTe  auante,  c  fenao  q  elle  meímo  o  iria  bufcar, 
c  darlhe  a  morte,  ja  que  hia  pelejar  cos  Portugueíesj  a  que 

Vv  2  elic 


34^  Píimeyra  Piírte  da  Clironlea 

elle  refpondeo  ,  que  ja  cílaua  poílo  em  perder  a  vida 
por  íua  honra  ,  que  tanto  lhe  monraua  perdella  has  fuás 
inãos  dclle  ,  como  has  dos  Portugucfes.  ElRey  com  eíla 
repoíla  mandou  logo  chamar  o  feitor  ,  que  dormia  na 
cafa  do  pefo  com  alguns  Portugucfes  de  feu  feruiço  ,  c  lhe 
deu  conta  do  que  paííaua  co  caimal,  e  lhe  diíTe,  que  o  fizera 
vir  don-de  eílaua  ,  porque  lá  lhe  nao  aconteceíle  algum  de- 
íaftre  ,  e  também  porque  não  mandaíFe  auiíTar  o  gouerna- 
dor  deíla  reuolta  ,  que  quifeíTe  íair  com  gente  ,  de  que  re- 
í-ultaííc  algum  grande  rralialho:  e  que  elle  rinha  mandado 
tomcir  todos  os  caminhos  por  homens  ícus,  para  que  nin- 
guém lhe  pudeííe  leuar  recado  diílo;  e  lhe  prometeo  que 
elle  em  peífoa-  iria  ter  co  caimal  a  fazello  deíiftir  da  fua  de- 
triminação  :  o  feitor  com  a  deuida  corieíia  lhe  deu  os  dc- 
uidoc  agardecimentos,  e  Ihepidio  c  -.n  muyta  inftancia,  que 
aíTy  o  fizeíTe  ,  pondollie  diante  quantos  Portuguefes  tinhao 
perdido  as  vidas  por  íeu  íeruiço  ,  e  polia  defeníao  do  feu 
rcyno:  e  fabendo  elRey  que  o  caimal  com  a  íua  compa- 
nhia queria  paííar  polia  lua  cftrada  para  ir  dar  na  pouoação, 
íahio  das  luas  cafas  com  loáa  íua  gente  ,  de  que  elle  hia  na 
dianteyra  ,  e  fazendoos  parar  a  todos  fe  chegou  elle  fó  ao 
caimal,  ecommuytos  afagos  e  boas  palauras  Ihepidio 
que  nao  quifeííe  ir  com  aquella  paixão  ao  cabo  ,  ao  que 
nao  querendo  dar  orelhas  nem  elle,  nem  os  feus  parentes  , 
eIRey  com  muyta  cólera  ,  por  lhe  não  obedecerem  ,  poílo 
no  meyo  da  eftrada  com  a  adarga  deitada  pollo  chad  a  gran- 
des vozes  fez  o- feu  cofbumado  juramento  pollos  íeus  pa- 
godes ,  polia  barriga  de  fua  may  ,  em  que  andara  ,  polias 
tetas  que  mamara,  e  polia  caualaria  que  tinha  ,  que  por 
hum  íó  delies,  que  paííalTe  daquelle  lugar  onde  elle  eílaua, 
fe  auia  ellc  de,  matar  com  a  eípada  que  tinha  na  mão  ,  e 
deípois  (eus  vaílallos  vingariao  fua  morte  ,  porque  eílaua 
obrigado  a  defender  os  Portugueíes  ate  morrer  por  iíTo  , 
porque  o  tinha  aíTy  jurado  ,  e  elles  confiados  na  fua  ver- 
dade eílauao  dormindo  feguros  e  fem  receyo,  e  o  Rey,  que 
folTe  falío,{e  nao  cumpriííe  fua  palaura,e  íeu  juramento,  não 
merecia  ter  vida  ;  e  com  iílo  pôs  o  íio  da  cfpada  na  gar- 
ganta. 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  341 

ganta  dizendo,  que  olhaíTem  todos  que  lhe  erao  tredoreSjfe 
confeYitião  que  íe  mataíTc  fendo  Teu  Rey  e  fenlior  :  o  que 
vendo  o  caiinal,  e  todos  os  fcus  ,  fe  lhe  lançarão  aos  pés,  e 
tapando  os  olhos  com  as  mãos  diíTerao,  que  por  não  verem 
tal  coufa  como  aquella,  querião  antes  perder  as  vidas,  que 
aly  lhas  mandaíTe  tirara  todos  ,  mas  não  deixarão  de  lhe 
dizer  que  viíTe,  que  lhes  tolhia  a  vingança  da  lua  injuria  , 
e  tornar  por  fua  honra  ,  que  elle  o  fazia  como  Rey  catiuo 
dos  Portuguefes  ,  que  cada  vez  erão  piores  :  e  com  ifto  ni- 
nhum  entrou  na  eftrada,  e  fe  tornarão  a  recolher  ;  e  elRcy 
leuou  o  caimal  comfigo,  e  tantas  razões  lhe  deu  ,  e  tantos 
mimos  íhe  fez  ,  que  em  fim  o  ouue  de  amartfar  -,  e  man- 
dou ao  feitor  que  fe  foíle  ao  pefo  ,  e  por  mar  em  iium  to- 
ne fofle  dar  conta  ao  goucrnador  do  que  era  paífado  ;  e  da 
foa  parte  lhe  pidiíTe  muyto,  que  co  caimal  ,  que  elle  tinha 
Gomíigo  em  fua  caía,  quifeíTe  ter  algum  comprimento, com 
que  íicalTe  em  alguma  parte  fatisfeito ,  e  os  feus  parentes 
contentes ;  porque  com  iíso  fe  efcufarião  difíerenças  edeí- 
mandos  ao  diante. 

CAPITULO    LXXXVÍ. 

O  gouernador  manda  faltar  os  nayres  \   elle  em  psjjòa  os  Z?- 
ua  a  clRey  de  Cochim.  Detrimina  cercar  a  cidade  ,  e  coff* 
tra  o  parecer  de  todos  inftjle  em  o  fazer  ,  e  o  que  fohre  tJ]o 
pajfa  com  eiRey  •,  euijim  muda  ejta  obra  cm  outra, 

POuco  íe  deteue  o  feitor  em  fazer  o  que  elRey  de  Co- 
chim lhe  mandaua  ,  e  chegando  ao  gouernador  lhe 
deu  conta  do  que  era  paísado  ,  e  do  que  elRey  lhe  manda- 
ua pidir  ,  de  que  o  gouernador  aílaz  efpantado  ,  entenden- 
do bem  o  mal  que  pudera  foceder,  íe  o  caimal  chegara  ao 
cabo  co  feu  propofito  ,  mandou  logo  a  Diogo  pereyra  que 
foíse  foltar  os  naires ,  e  os  leuou  a  fua  caía  ;  e  defpois  de 
fe  lauarem  e  alimparem  ,  e  lhes  dar  panos  de  feda  e  barre- 
tes vermelhos  ,  o  gouernador  os  Vomou  comfigo  ,  e  a  pé 
com  a  íua  guarda  ç  todos  os  fidalgos  íe  io^  a  cafa  delRey  , 

que. 


342^         Primeyra  Parte  da  Chronica 

que  o  veyo  receber  ha  porta  ,  onde  feitas  fuás  corteílas 
pidio  perdão  ao  csimaí  com  muitas  palauras  do  que  pafsa- 
ra  por  elle  ,  aíirmandolhe  que  com  a  cana  lhe  tocara  por 
defaílre  ,  fem  ver  o  que  fazia;  e  a  iílo  lhe  ajuntou  tantos 
compriíiientos  e  fatisiaçoes  parante  os  feus  ,  que  todos  fi- 
carão contentes  ,  e  ellley  muyto  mais,afsy  por  iílo,  como 
por  ter  dado  moftra  aos  Portugueíes  de  huma  amizade  tao 
verd.uicyra,  que  o  obrigou  a  pôr  a  vida  por  elles;  com  iílo 
íe  defpedio  o  gouernador,  e  fe  tornou  ha  fortaleza,  c  prati- 
cando poUo  caminho  cos  fidalgos  lhes  difse ,  que  para  fua 
condição  nunca  fizera  coufa  tanto  contra  fua  vontade, 
nem  em  que  mais  íe  forcaíse  que  aquella,  o  que  todos 
Jhe  eflranharão  ,  e  lhe  derao  muytas  e  muyto  viuas  rezoes 
para  fer  bem  feito  o  que  fizera  ;  porem  a  elh;  não  lho  pa- 
rcciáo  :  e  não  deixou  de  pôr  culpa  aos  gouernadores  pafsa- 
dos  por  não  cercarem  Cochim  de  muro  para  eílar  feguro 
de  femelhantes  fuceísos.  A  ifto  lhe  refpondeo  Franciíco 
pereyra  peftana  ,  íenhor  dai  ao  demo  a  terra  que  não  ha  de 
eílar  íegura  íenao  polias  armas  ;  e  que  milhor  muro  pude- 
ra ter  Cochim  que  a  boa  e  verdadcyra  amizade, que  elRey 
tem  comnoíco  ?  Fa^^amos  nós  o  que  deueraos,  que  efse  le- 
rá muyto  mais  forte  muro,  que  o  de  pedra  e  cal  ,  e  ahy  ci- 
taremos mais  íeguros,  que  com  as  portas  fechadas;  porem 
o  gouernador  cerrando  as  orelhas  a  todas  eílas  razões  aí- 
íenrou  comfigo  de  fazer  o  muro  ,  e  praticandoo  cos  que 
crão  do  íeu  feyo,  qqe  lhe  falauão  ha  vontade  (  que  onde 
quer  que  ha  hy  mando  nunca  falta  eílc  máo  género  de  gen- 
te )  ílio  gabarão  ,  e  que  faria  huma  coufa  muyto  acertada  : 
e  dando  conta  diíso  ao  capitão  da  fortaleza  Lopo  vaz  de 
íampayo  ;  e  ao  veador  da  fazenda  lhe  difserão  que  a  obra 
feria  muyto  boa,  porem  que  importaua  muyto  fazerfe  cora 
aprazimento  dclRei  ,  e  pidirlhc  licença  para  ella,  porque 
fendo  doutra  maneyra  eíiaua  certo  efcandalizarfe  elle  mui- 
to ,  e  a  tello  por  grande  afronta  íua  :  pouca  impreísaô 
fez  iílo  no  gouernador  para  fe  mudar  do  íeu  propoííro, 
e  tratando  defti  miterla  cos  fidalgos  ,  não  em  forma 
de  lhes  pidir  nella  íeus  pareceres ,  fenáo  como  em  pra- 
tica 


delRey  Dom  João  o  ÍII.  343 

tica  ordinária  ,  lhe  diíse  que  fe  Cochim  cíliucrçe  cercado 
de  muro  ,  nao  eílaria  arrifcado  a  hum  tamanho  deíafcie  co- 
mo pouco  há  fe  lhe  aparelhaua  ,  nem  os  malfeitores  pcde- 
riao  cícapar  ;  porem  todos  elles  a  huma  voz  lhe  difserao, 
que  quando  fe  ouuefse  de  fazer  aquella  obra  aula  de  fer 
com  expreíso  mandado  delRey  de  Portugal  ,  e  quando  o 
gouernador  da  índia  fem  iTsa  a  quiíeíse  fazer  ,  auia  de  íer 
com  licença  e  tanto  gofto  delRey  de  Cochim  ,  que  elle 
me  imo  lhe  mandafse  trazer  as  achegas  para  a  obra  ,  co- 
mo fizera  para  a  fortaleza  :  e  que  tudo  o  que  íe  fizefse 
com  ■  eícandalo  ou  defgoíto  fcu  podia  vir  a  fcr  muyto 
perjudicial  para  aquelle  eílado  :  táo  pouca  impreísao  íize- 
ráo  no  gouernador  eítas  rezoes  como  as  primeyras  ,  antes 
mandou  ao  veador  da  fazenda  ,  que  fízefae  ajuntar  na  ri- 
beyra  mujfa  pedra  e  cal  ,  e  todas  as  mais  acjiegas  ;  e  indo 
hum  dia  ouuir  mifsa  a  huma  ermida,  que  aly  eílaua  da  in- 
uocaçHo  de  Nofsa  Senhora  de  Goadalupe  ,  deípois  de  ella 
acabada  ,  mandou  vir  os  aiifantes  ,e  atrauefsando  daly  da 
ermida  por  fora  da  pouoação  direytoha  cerca  do  moef- 
teyro  de  S.  António,  fez  ir  arrafando  tapigos  que  aly  auia, 
deítruindo  quintaes,  derrubando  cafas  de  madeyra,  cortan- 
do palmey  ras  ,  e  outras  aruores  ,  em  largura  de  meyo  jogo 
de  bola, com  que  íe  fez  afsaz  de  perda:  fendo  elRey  auiíado 
difto,  fe  veyo  com  muyta  preísa  em  cima  do  ícu  alifante 
onde  o  gouernador  eílaua,  e  pondo  os  olhos  com  íembran- 
te  carregado  no  que  os  aiifantes  faziSo  ,  lhe  diíse  o  gouer- 
nador, fenhor  por  aquy  quero  fazer  huma  parede  até  fanto 
António  com  portas  fechadas  ,  porque  algum  ruim  nao  fe 
atreua  a  nos  vir  fazer  de  noite  o  que  o  outro  dia  nos  qui- 
zera  fazer  o  caimal.  ElRey  forrindoíe  em  modo  de  zom- 
baria lhe  reípondeo  ,  toios  os  outros  gouernadorcs  forao 
paruos,  tu  íó  es  o  auiíado  -,  quem  te  deu  efse  confelho  nao 
he  meu  amigo  ,  nem  deiL^ey  meu  irmão  ,  porque  os  Reys 
de  Cochim  nunca  fizerao  mal  aos  Portugucfes  ,  nem  con- 
ícntiraõ  que  outrem  lho  fizefse;  eila  terra  he  minha,  e  tu  fa- 
zes o  que  elRey  de  Portugal  nao  fizera  íem  primeyro  me 
pidir  licença  j  faze  a  parede  por  onde  quiferes  ,  e  co  que 

ficar 


344         Primeyra  P?.rte  da  Chronica 

ficar  de  fora  não  entendas ,  porque  he  meu  ,  e  o  de  dentro 
íeja  teu  em  quanto  cuquifer:  de  que  o  gouemador  ficou 
muyro  roínado  ,  ma«  o  dirsiniulcu  o  rnilhor  que  pode.  O 
veador  da  fazenda  ,  que  eftaua  prcíente,  lho  difse,  que  por 
jiinhuma  ocafiíío  que  foíse  fe  hauia  ác  fazer  agrauo  a  el- 
Rey  de  Cocliim  ,  que  fempre  fora  bom  e  leal  amigo  dos 
PortuguefeSjde  que  era  bem  clara  moílra  o  que  agora  fizera 
cocaimal;  que  tinlia  muyra  rczão  de  le  eícandalizar  da- 
quella  obra,  que  era  argumento  de  le  ter  nelle  pouca  confi- 
ança ,  e  era  bem  diíFerenre  termo  do  que  clRcy  de  Portu- 
gal víara  íempre  com  elle  ,  mandandolhe  entregar  as  cíia- 
lies  da  fortaleza  quando  o  gouernador  íe  partia  para  fora 
jda  índia  -,  com  a  qua!  confiança  ,  que  elRey  nofso  fenhor 
moílraua  ter  dclle  ,  íe  auia  por  tao  honrado  e  tão  obriga- 
do ,  que  fempre  fe  nos  moílraua  tão  bom  amigo  como  tí- 
nhamos viílio  por  experiência  :  com  cilas  rezôes  e  outras 
muytas,  que  os  fidalgos  lhe  derao,  cahio  o  gouernador  no 
erro  que  fazia  ,  mas  pollo  naô  confcfsar  de  todo  ,  nem  dar 
a  entender  que  polias  rezõcs  ,  que  dauao,  fe  decia  ào  fcu 
propoíiro  ,  refpondeo  ,  que  acerca  fe  auia  de  fazer,  e 
fofse  o  que  fofse  ,  que  como  entrafse  o  verão  faria  pôr 
mão  nella:  e  defejofo  com  tudo  de  não  ir  com  aquella  obra 
por  diante,  fem  í^e  cuidar  dclle,  que  a  deixaua  de  fazer  por 
íe  achar  alcançado  ,  entendeo  em  mudar  a  cordoaria  do 
lugir  em  que  eftiua  ,  e  metella  na  ribeyra  ,  e  mandou  ao 
veador  da  fazen.ia  que  o  pu fefse  logo  cm  effeito  ,  e  a  ri- 
beyra foy  cercada  toda  de  longo  para  a  ponta,  que  fc  cha- 
ma do  cakie  te ,  onde  fe  fez  cordoaria  cubcrta  de  telha, 
com  cafas  grandes  para  recolhimento  da  obra  feita,  em  que 
tudo  fe  recolhia  ,  e  eítaua  feguro  do  fogo  ,  e  emparado  d* 
chuua,  e  onde  fe  podia  trabalhar  todo  o  inucrno  ,  que  foy 
huma  obra  afsaz  proueitoía  ,em  que  o  gouernador  andaua 
tão  follicito,  que  de  todo  fe  deícuidou  de  fazer  a  cerca  fem 
quebra  da  fua  opinião  ,  e  também  por  que  logo  lhe  fobre- 
veyo  a  obrigação  do  cerco  de  Calecut  ^  a  que  lhe  foy  for- 
_g:ado  acudir . 

CA- 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  345* 

CAPITULO     LXXXVII. 

Fero  mafcarcnhãs  chega  a  Malaca;  tomapojfe  da  fortaleza', 
elRey  de  Bintão  Ike  jaz  '^^uerra  \  elle  manda  Aires  da  cu- 
nha pôrfobre  o  porto  de  Bt7itão  ;  manda  tambeyn  Mar  tini 
AJQnjo  de  yneloju  farte  com  armada  fazer  guerra  a  Pata- 
na ;  e  o  que  Idjaz.  Dom  Garcia  anriquez  vay  a  Maluco 
parafer  capitão  .  e  o  que  pafja  coyn  António  de  brito. 


P 


Ero  AIr.fcarenhas  ,  que  partira  de  Cocliim  para  Mala- 
ca, de  qae  hia  prouido  em  capitão  ,  como  atrás  con- 
tej  ,  tomou  no  caminho  huma  ndo  de  Cambaya  carregada 
de  rauyía  fazenda,  de  que  fez  capitão  e  guarda  Diogo  cha- 
inho  ,  irmão  de  Garcia  chainlio  feitor  da  fortaleza  ,  que 
chegou  a  Malaca  primeyro  que  Pêro  mafcharenhas;  e  ten- 
do recado  o  feitor,  que  feu  irmão ^-^inha  naquclla  ndo  ,  fe 
meteo  em  huma  manchua  com  alguns  homens  feus  ami- 
gos, rodos  vcflidos  de  feíla  para  o  ir  receber;  e  como  elles 
erão  muyros  ,  e  o  mar  andaua  picado  fe  çcçobrou  a  man- 
chua ,  onde  morrerão  todos  os  Portugueses ,  e  acabou  o 
bomfeitor  Garcia  chainho,  defpois  de  ter  feito  os  muytos  e 
muyto  bons  feruiços  a  Deos  ,  e  a  elB^ey  na  paz  e  na  guer- 
ra, de  que  íicou  rauyta  fazenda,  que  ieu  irmão  erdou  ,  e  de 
que  logo  tomou  poíTe.  Pouco  defpois  dellc  chegou  Pêro 
mafcarenhas  ,  a  quem  Jorfe  dalbuquerque  recebeo  com 
muyra  honra,  e  entregou  pacificamente  a  fortaleza  :  o  qual 
a  primeyca  couía  que  fez  foy  mandar  prender  Diogo  cha- 
inho por  recolher  a  fazenda  de  feu  irmão  fem  autoridr^de 
de  julliça  ,  nem  fazer  delia  inuentayro ,  como  compria  pa- 
ra a  conra  da  feitoria  delRey,  que  não  tinha  dada  ;  c  man- 
dandolha  fequeífrar  roda  ,  o  mandou  prcfo  ha  índia  íobre 
fiança  baftante  ,  para  lá  dar  a  conta  ,  onde  em  fim  veyo  a 
morrer  pobre  ,  que  he  o  mais  certo  fim  a  aue  por  juílo  juí- 
zo de  Deos  vem  parar  todos  os  que  ha  cuíca  alheya  fe  que- 
rem fazer  ricos.  Sabendo  elRey  de  Bintão  que  era  chega- 
do capitão  nouo  ha  fortaleza  ,  quis  íaber  o  que  tinlia  nel- 
ie,  e  com  geníç  por  terra  ,  e  armada  por  mar,  lhe  mandou 
^art.  i,  Xx  fazsíf 


3  4<í  Primeyra  Parte  da  Chronica 

fazer  guerra,  onde  a  da  terra  era  a  mais  conrinua,  que  não- 
celTaua  de  dia,  nem  de  noite  -,  a  que  Pêro  mafcarenhas  acu- 
dia muycas  vezes  ,  e  ícmpre  desbarataua  os  inimigos :  e 
aconteceo  hum  dia  num  recontro  catiuar  hum  dos  Teus  ca- 
pitães e  outro  homem  principal  antre  eiles.  hum  dos  quais 
tomou  da  cima  hum  cris  a  lium  negro,  que  vio  apár  de  fyy 
e  arremeteo  a  Pêro  maicarenhas  para  o  matar  ;  porem  não 
pôde  chegar  a  elle  ,  po!lo  que  Pêro.  maicarenhas  o  mau* 
dou  deitar  da  torre  abaixo  :  o  outro  mouro  eíbando  atado 
diante  de  huma  bombarda  para  o  meterem  nella,  fe  íoltou, 
e  arremeteo  ao  bombai deyro  ,  que  eíiaua  co  bola  fogo  na 
mão  ,,  e  lhe  rirou  da  cinta  huma  faca  com  que  o  matou  , 
pollo  qual  foy  logo  morto  has  pedradas  :  e  durando  eíla 
guerra  mandou  Pêro  maicarenhas  Aires  da  cunha  capi- 
tão mor  do  mar  com  hum  galeão,  e  coatro  fuftas,  que  po- 
íto  fobre  a  barra  de  Bintão  lhe  deu  muyto  trabalho  e  per- 
da ,  tolhendolhe  os  mantimentos  c  mercadorias.  Chegou 
também  nefte  tempo  a  Malaca  Martim  Afonío  de  melo  ju-- 
farte,  que  inuernara  na  ilha  de  Banda  ,  a  quem  Pêro  mafca*- 
renhas  fez  logo  preíles  huma  armada  ,em  que  elle  foy  por 
capitão  mor  era  hum  galeão,  e  Balteíar  rodrigues  rapoío 
em  hum  nauio  de  gauea,  e  Luis  brandão  em  huma  caraueí- 
]a,  e  coatro  la^ncharas  bem  armadas  ,  c  com  boa  gente  ,  c  o- 
mandou  a  Patene  ,  cujo  Rey  eftaua  de  guerra  com  nofco  , 
onde  tomou  no  porto  muytos  juncos  ,  em  que  matou  e  ca- 
liuou  muyta  gente  natural  5.0  eftran.geira  ,  c  tomou  muytas 
fazendas  ,  e  na  terra  com  a  artilharia  fez  grandiíTima  de- 
ílruiçaõ  ;  e  tal  foy  a  guerra,  que  aly  fez,  que  o  Rey  lhe  pi- 
dio  pazes  ,  obrigandoíle  a  pagar  todas  as  perdas  que  os 
Poríugueíes  tinhao  recebidas  no  íeu  porto  ,  c  a  mandar  a 
Malaca  quantos  mantimentos  quiíefie.  Martim  Afonfo  lhe 
aceitou  as  pazes  confirmadas  cos  íeus  coítumados  juramen* 
tos,  e  lhe  tornou  alguns  cafcos  dos  juncos  que  tomara, por- 
que os  outros  carregou  das  mercadorias  e  de  muytos  man- 
timentos ,  com  que  íe  tornou  a  Malaca  ,  ficando  Patane  de 
paz,  e  ella  fegura  delle.  Nefte  mefmo  tempo  que  ifto  paíTa- 
ya  sm  Malaca,  dom  Garcia  anric^uez,  c[uç  cíliucra  em  Ban-» 


dei  Rey  Dom  joao  o  ÍII.  347 

da  com  Martim  Afonío  de  melo  juíarte,  como  atrás  dlífe, 
no  tempo  dã  monção  paitio  para  Maluco  ,  de  que  hia  pro- 
uido  em  capitão  pollo  goiíernador  dom  Duarte  de  mene- 
ies ,   e  chegou  ha  ilha  de  Ternate   em  tempo  que  António 
de  brito  mandaua  gente  fobre  hum  lugar  delRey  de  Tido- 
re:  dom  Garcia  íurgio  no  porro  de  Talangane  ,  duas  Icgoas 
do  porto  da  fortaleza  ,  donde  mandou  dizer  a  António  de 
brito  ,  que  elle  hia  prouido  em  capitão  daquella  fortaleza  , 
que  lhe  mandaíTe  dizer  o  que  faria, porque  nao  auia  de  def- 
embarcar  fenaÔ  nella  :  António  de  brito  tomado  hum  pou- 
co de  hum  recado  tao  íeco  lhe  relpondeo,  que  fe  vielTc  ao 
porto  ,  e  que  ahy  íe  faria  o  que  foíle  leruiço  dclRej :  dom 
Gracia  receoío   que  le  deíembarcaíTe  não  fomente  lhe  não 
entregaria  António  de  brito  a  fortaleza  ,  mas  lhe  tomaria 
a  armada   e   agente,  fe  deixou  eílar  até  que   fegurandoo 
António  de  brito  defte  receyo  defcmbarcou  cm  terra,  on- 
de foy  recebido  com  muyta  icí\a,  e  o  capitão  o  leuou  a  jan- 
tar comfigo,  e  lhe  deu  hum  banquete  erplendidc,  em  que  fe 
acharão  o  feitor  ,  o  alcaide  mór  ,  e  outros  homicns  fidalgos 
e  honrados;  o  qual  acabado  quifera  dom  Gracia  moílrar  os 
léus  papeis,  e  que  íe  lhe  entregaíTe  a  fortaleza;  porem  An- 
tónio de  brito  lhe  diíTe  ,  que  defpois  que  repouíaíTe  viriao 
todos  os  officiais  ,  e  com  ciles  íe  faria   o  que  íe  auia  de  fa- 
zer; os  quais  íendo  juntos   fc  virão  as  prouiíct:s  de  dom 
Garcia,  ao  que  António  de  brito  reípondeo,  que  ainda  que 
clle  pudera  comrezao  não  entregar  a  fortaleza,  por  quanto 
aquellas  prouifoés  naõ  hiao  em  forma  (e  logo  lhe  apontou 
em  que)  todauia  elle  era  contente  de  lha  entregar,  mas  que 
o  nao  podia  fazer  fenaÔ  o  laneiro  feguinte  ,   que  era  mon- 
ção para  Malaca  ;  Dom  Garcia  vendo  que  daly  até  laneyro 
auia  oito  meies  diíTe  ,  que  não  lhe  vinha  bem  efperar  tanto 
tempo,  e  requereo  ao  íeitor  ,  ao  alcaide  mor  ,  e  acs  outros 
oíHciaisque  lhe  guardaíTem  as  fuás  prouifoés,  e  lhe  fizeííem 
entregara  fortaleza  ;  ao  que  elles  nao  refpondcndoa  pro- 
pofito,  elle  com  nouos  requerimentos,  e  proteflos,  e  tiran- 
do de  tudo  íeus  eftromentos  fe  tornou  a  embarcar  ,  e  deí- 
pois  de  embarcado  fe  tratou  de  concerto  antre  elles,  dizen- 

Xx  2  ÚQ 


-^8         Primeyra  Parte  d*  Chroníca 

do  António  debriro  que  tinha  começado  hum  junco  ,  que 
fe  acabaria  em  Agoílo,  que  em  fendo  acabado  lhe  entrega- 
ria a  fortaleza  ,  e  entre  tanto  íe  vieíTe  a  eftar  nclla  ,  onde 
ambos  eftarião  juntos  ,  como  era  razão  ;  dom  Garcia  acei- 
tou o  concerto"',  e  íe  veyo  ha  fortaleza  ,  onde^ambos  p*K 
«ntão  efciuerão  com  muyta  amizade  e  quietação. 

CAPITULO    LXXXVIIL 

Do  reyno  i)  ar  tem  efle  annopara  a  índia  cinco  naos^  dê  que  jói 
três  cheíJãÕ  a  Goa.  O  governador  je  ajunta  em  Calecut  pa- 
ra Jocon-o  da  fortaleza  com  hmna  grofja  armada  ,  e  muy 
ia  (rente;  tomai] e  conjelho  johre  o  que  fe  deve  fazer  •,  eo 
que  fe  concrue». 

A  Armada,  que  efte  anno  de  1$!$,  partio  do  reyno  para 
a  índia,  foy  de  cinco  náos  íómentc  ,  de  que  era  capi- 
tão móf  Filipe  de  craílo  ,  e  das  outras  erão  capitães  Diogo 
de  melo,  António  dabreu,Vicente  gil,  e  dom  Lopo  dalmei- 
da  ,  que  hia  para  capitão  de  C^ofala  ,  para  o  que  ficou  logo 
em  Moçambique  ,  e  na  fua  nao  íe  foy  para  a  índia  Diogo 
de  fepuíucda  ,  que  acabara  de  íer  capitão.  Deílas  cinco  fos 
as  três  chegarco  a  Goa  em  fim  de  Setembro.  O  capitão  mor 
indo  na  voita  de  Ormuz  foy  varar  no  cabo  de  Ruçalgate  j. 
onde  a  náo  ficou  inteira,  e  mandou  daly  o-batel  a  Calayate, 
donde  lhe  trouxerão  huma  boa  náo  da  terra  fretada  ,  em 
que  embarcando  quafi  toda  a  fazenda  ,  por  fe  perder  muy- 
to  pouca  ,  íe  foy  nella  para  a  índia.  António  dabrcu  inuer- 
nou  em  Moçambique, porque  chegou  mais  tarde.  As  outras 
três  nãos,  qie  chegarão  a  Goa,  fizerao  ahy  m_^uyto  pouca  de- 
tença ,  e  carregando  muyto  bifcouto  fe  í^orao  a  Calecut ,  e 
em  fua  coníerua  algumas,  e  outros  nauios  com  gente  e  m^u- 
nicoés  ,  e  logo  após  elles  chegou  António  de  miranda  do 
cífreito  ,  que  todos  furgirao  fobre  Calecur.  D-ílo  foyjogo 
auiío  ao  gouernador  ,  que  como  eílaua  preíles  ,  e  nao  cl- 
pcraua  outra  coufa,  fe  partio  de  Cochim  co  refto  de  roda 
a  armada  e  gente  ,  e  chegou  a  Calecut  na  entrada  de  iNo. 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  349 

»]err.bro  ,  onde  íe  í^juntarao  pafíante  de  cem  velLi?  ,  de  que 
era  capitão  mór  Eiror  da  fiiucira  ,  que  bein  o  merecia  por 
íua  pcíToa  ,  e  por  fazer  no  difcurfo  deíle  cerco  cm  todo  o 
inuerno  muytcs  e  grandes  feruiços  a  Deos  c  a  EIRcy.  Com 
avinda  do  goucrnador  ,  que  tiazia  até  vinte  e  cinco  vel- 
jas  ,  toda  a  armada,  que  efiaua  no  porto,  íe  pôs  de  nuiytas 
bandeyras  e  eílendartes  ,  porque  da  mefma  maneyra  vinha 
elle  ,  a  quem  fez  hunia  fermofa  falua  de  artilharia  ,  que 
também  ihe  reípondeo  com  a  fua  y  hunra  e  ciitra  com  pi'- 
Jouros  encaminhados  para  o  arrajal,  porque  aíTy  lho  rinha 
mandado  dizer  o  goiíernador  por  hum  calur  anres  que  che- 
gaíTe  :  e  aíTy  de  falua  fe  conuerteo  em  huma  braua  bataria, 
que  começou  fobre  tarde,  e  nao  íe  acabou  íenao  com  a 
noite,  de  que  os  mouros  receberão  muyto  dano,  que  tam- 
bém tirauão  muytos  tiros  contra  a  armada  ;  mas  porque 
naõ  erão  aly  de  tanto  eífeito  como  na  fortaleza  ,  fe  derao- 
preíía  a  batella  toda  a  noite  com  a  artilharia,  e  co  trabucoj 
vendo  que  era  chegado  o  tempo  de  fe  tomar  concrufaa 
naquelle  feifo  ;  e  parecendolhe  que  podiao  meter  efpanto 
>aos  noíTos  ,  derão  moftra  da  fua  gente  ,  que  cubria  toda  a 
praya  por  baixo  e  por  cima,  quanfo  avilta  podia  alcan- 
çar, c  rcluzindolhe  as  eípadas  e  as^  adargas  ,  e  deíparando 
duas  mil  efpingardas  com  muytas  gritas  e  effrondo  do3 
léus  eftromentos,  que  era  coufa  aíTaz  eípantoía  de  ver  c  ou- 
«ir,  porque  paílauão  de  corenta  mil  homens  de  peleja  mou- 
ros c  nayres  ,  afora  os  gaftadores  ,  que  erao  mais  de  vinte 
mil  ,  e  também  faziao  corpo  de  gente;  porem  naõ  foraa 
íem  o  pago  defta  fua  fonfarria,  porque  os  nauios,  que  eíla- 
uão  mais  perto,  defparando  ncllcs  a  artilharia  os  íizerao 
recolher  com  muyta  preíTa  ,  íicando  boa  cantidade  dellcs 
mortos  na  praya.  O  gouernador  mandou  aqui  fazer  alardo 
€m  todas  as  embarcações  da  gente  de  guerra,  que  cada  hu- 
ma tinha  ,  e  achou  que  auia  na  arm.ada  dous  mil  e  coatro- 
centos  Portuguefcs  ,  porque  Chaul  ,  GGa,Cananor  ,  e  Co- 
chim  ficarão  com  muyto  pouca  gente,  e  coatro  mil 
cícrauos  de  peleja,  homens  de  confi  inçi ,  que  pelcjauao  em- 
companhia  de  leiís  fcnhorc$ ,  c  inuytgs  delles  bons  efpia- 


35^0         Primeyra  Parte  da  Ciironica 

gardeiros  ,  e  mil  Canaris  de  Goa  homens  de  guerra  ,  to- 
dos com  íiíâs  armas  ,  e  oito  centos  maiauares  de  Cochim, 
que  elle  tomara  a  foido  gentios  eChriílaos,  todos  tam- 
bém com  fuás  armas,  antre  a  qual  gente  eílaua  junta  toda  a 
fidalguia  que  então  auia  na  índia  ,  de  que  nomearey  os  de 
que  pude  faber  os  nomes  ,  que  foraô  Eitor  da  filucyra  , 
do,m  Sim.aÕ  de  menefes  ,  dom  iorfc  de  mencfes  ,  dom  Tri- 
ftâo  de  noronha  ,  dom  Fernando  de  m.ouroy,  dom  Afonfo 
de  meneies  ,  dom  Diogo  de  lima  ,  dom  Jorfc  de  caílro  , 
Jorfe  Cabral  ,  António  da  filucyra  ,  Ruy  vaz  pereyra  ,  Dio- 
go de  melo  ,  Diogo  de  fepulueda  ,  Francifco  pereyra  pe- 
ílana  ,  Francifco  de  vafconfellos  ,  João  de  melo  da  filua  , 
Baílião  de  fouía  ,  Manoel  de  macedo  ,  António  de  miran- 
da  ,  Fernão  gomez  de  lemos,  Dinis  fcrnandez  de  melo,  Je- 
rónimo de  foufa  ,  Aires  da  filua  ,  Simão  dandradc  ,  Nuno 
fernandez  freyre,  Kny  dias  pereyra  ,  Joáo  pereyra  de  la- 
cerda ,  Duarte  da  foníeca  ,  e  António  da  filua  de  menefes. 
Eíles  todos  erâo  os  que  affiftiaò  nos  confelhos  por  ferem 
capitães,  e  hoiriens  mais  antigos  na  In  iia.  Dos  outros  que 
fe  acharão  neíla  empreía,  homens  cambem  de  muyta  conta, 
a  que  pude  faber  os  nomes ,  forao  dom  Pedro  de  meneies , 
António  de  lemos  ,  Gomes  de  loto  mayor ,  António  peí- 
íoa  ,  Anriquc  ferreira  ,  Ruy  gonçaluez  de  caminha  ,  Gal- 
uaô  viegas  ,  Joio  viegas ,  Chriftouão  de  figueiredo  ,  Antão 
nogueyra  ,  João  rapofo  ,  António  rapofo  ,  Díogo  da  filua, 
António  de  melo  ,  Aluaro  de  craílro,  Ferialo  de  reíende  , 
António  de  íaa  ,  Artur  de  brito  ,  e  outros  muyros  a  que 
não  pude  faber  os  nomes  ;  porem  todos  bem  merecedores 
de  f;rem  nomeados.  O  gouernador  ,  como  era  muyío  ani- 
moíTo  e  dcfejofo  do  feruiço  deIRey,parecendolhe  que  tinha 
antre  as  mãos  battnte  ocafiâo  para  moílrar  huma  couía  e 
outra  ,  logo  ao  outro  dia  pôs  ba  ndeyra  na  coadra  de  huma 
fermo[a  galé  baíl.írda  em  que  hia  ,  ao  qual  final  acudirão 
todos  os  do  confelho  ,  e  aparrandoiTe  com  elles  para  huma 
parte  ,  lhes  dide,  que  bem  vião  que  era  aly  junto  todo  o 
poder  que  elRey  tinha  na  índia  a  íocorro  daquella  fua  for- 
íâleza,  e  que  tinhão  a  pendenja  co  mais  podcroío  Rey  da- 

quellas 


dei  Rcy  Dom  João  o  IIL  35'! 

qucllns  partes  ^quc  os  tinha  em  tao  pouca  conta  ,  qi:c  lhe 
parecia  ,  que  nao  erao  eiles  baílanres  para  refiriircm   ao  fcu 
poder,  polio  qual  importaiia  inuyto  reprií-píríe  e  derriibar- 
íe  de  todo  a  íoberba  daquelle  inimigo,  porque  com  iíío  fí« 
caria   o  nome  Português  tao  alcuainado  c  limido  ,    que  íó 
elle  bailaria  para  desbaratar  todos  es  fcus  inimigo?,  e  o  ci- 
tado da  índia  tao  feguro  ,   que  nao  poderia  auer  coufa  de 
que  os  Fortugueícs  pudcílem  ter  receyos:  e  porque  elle  en- 
tendia que  o  cfíejto  diítoeilaua  primeyramenre  no  fauor  de 
Dcos,  que  lhe  naoauia  de  faltar,  pois  erao  íeus  fieis,  c  após 
iílo  nas  íorças  dosfeus  braços  ,   e  no  esforço  .dos  léus    pei- 
tos, que  elle  tinha  muyto  bem  conhecidos,"'lhes  pidia  nruy- 
to  que  cada  hum  difscísc  o  que  parecia  que  fc  deuia  fazer 
íiaquelle  negocio  ;  ao  que  todos  refponderâo  ,  que  parecia 
ccuía  muyto  contra  toda  rezao,  e  ordem  de  guerra,  come- 
teríe  aquelle  feito,  polia  grande  multidão  de  inimigos   que 
tinhao  diant^e  ,  cm  numero  tao  exccíliuamentc  auantajado 
delles,  e  tao  fortificados  devallos,  cauas  ,  e  trinchcyras, 
elobre  tudo  com  muyta- e  muyto  boa  artilharia,  em  que  o 
perigo  eftaua  muyto  certo  ,  e  viílo  aos  olhos  ^  porem  que 
omayor   perigo  cílaua  na  dificuldade  da   dcíembarcaçad 
polio  muyto  rollo  do  mar,  onde  os  homens  forçadamente 
auião  de  deíembarcar  molhados  ,  feridos  ,.  íem  ordem  ,  e. 
por  ifso  ja  meyos  desbaratados ,  onde  os  inimigos   cítaua 
certo   acudirem  com  muyta  artilharia  ,  e  eípingardaria  , 
com  que  a  gente,  antes  que  fe  pudeíse  ajuntar  ,  auia  de  re- 
ceber muyto  dano  ,  e  com  fer  muyto  pouco  o  nofso  poder 
para  tantos  inimigos  ,  ifto  o  faria  ninda  ler  muyto  menos  ; 
que  a  tudo  ifto  fe  deuia   ter  refpeito  ,  e  bufcaríe  o  melhor 
meyo  pofsiuel  para  fe  eícufar  hum  perigo  íaõ  claro  ,  e  tao 
certo  ,  o  qual  meyo  era  trabalharíc  por  íaluar  a  gente  da 
fortaleza,  que  ainda  aula  de  cuílar  bem  caro,e  tudo  o  mais, 
inda  que  íe  perdefse,  naõ  era  coufa  de  confideraçao  a  troco 
de  íe  nao  arifcar  todo  o  poder  da  índia,  que  aly'eílaua  jun- 
ÍO,eporfòrafazeríeao  inimigo  lodo  o  mal  que  pudcfsefer» 
Erte  parecer  foy  aprouado  polia  mayor  parte  dos  do  con- 
feJho,  ç  nelie  fe  reíoluerõ;  porem  o  gouernador  quaíi  íof 

liiidoíe 


3  5  2*  Prlmeyra  Parte  da  Chronica 

rindons  lhes  dlíse  ,  que  para  vir  furtar  a  gcnre,  que  eílaua 
naquella  fortaleza  ,  bailara  mandarfc  qualquer  pequena  ar- 
mada ,  e  naõ  vir  o  gouernador  da  índia  em  pefsoa  com  to- 
do o  poder  delia  ,  e  tornarfe  fem  fazer  mais  que  leuar  hu- 
ma  pouca  de  gente  ,  e  deixar  tanta  artilharia  delRcy  que 
ell.iua  naquella  fortaleza  ,  com  que  deípois  nos  poderiao 
fazer  muyto  dano  ,  e  o  que  pior  era  deixar  aly  juntamente 
perdido  o  credito  e  nome  dos  Portugueíes  tão  temido  an- 
tre  os  mouros  ,  que  era  muyto  mayor  perda  •,  e  cora  iílo 
Jiaes  mandou  que  fe  foíTem  a  jantar  ,  e  cuidaííe  cada  hum 
bem  no  que  tinha  dito  ,  e  ha  tarde  fe  tornaísem  ajuntar 
para  íe  tomar  a  vitima  refoluçaõ  ;  porque  o  trabalho  ,  que 
padecia  a  fortaleza  com  as  continuas  batarias  de  dia  e  de 
noite,  naõ  fofria  ja  dilação  ,  e  era  neceíTario  acudirlhe  com 
inuyta  preísa.  Deípedidos  todos  ficou  o  gouernador  afsaz 
defcontente  de  ver  o  parecer  daquelles  fidalgos  ,  e  ha  tar- 
de fe  tornarão  todos  a  ajuntar  no  coníelho  ,  reteficando  o 
parecer  que  tinhao  dado  polia  menham  ,  fobre  que  ouue 
inuytos  debates  ;  ao  que  querendo  relponder  o  gouerna- 
dor,  Franciíco  pereyra  peftana  pofto  em  pé  co  barrete  na 
jnao  lhe  pidio  licença  para  falar  ,  que  lhe  elle  concedeo : 
e  entaó  diíTe  para  todos,  íenhorcs,  eísei  perigos  e  inconve- 
nientes, que  apontais  neíle  negocio  ,  eu  íey  certo  que  vos 
nace  miis  do  fifo  e  boa  ordem,  com  que  quereis  que  fe  ellc 
trate,  que  de  receyo  que  tenhais  dclles  ;  porem  tudo  iíso 
que  vós  apontais,  e  nós  vemos  muyto  bem. ,  e  que  também 
arreceamos  ,  ja  o  íabiamos  em  Cochim,  e  para  pafsarmos 
por  todos  nos  ajuntamos  aquy  ,  e  íe  daquy  nos  tornamos 
íem  írazer  o  a  que  viemos,  vede  que  afronta  fera  para  rodos 
quantos  aquy  eftamos,  e  para  lodo  o  nome  Português,  por 
onde  nós  hauemos  de  fair  em  terra  a  peíar  de  quantos  ini- 
migos aly  eílao  ,  e  co  fauor  diuino  os  auemos  de  desbara- 
tar ,  e  liurar  aquella  fortaleza  ,  ou  quando  naó  morramos 
todos  fobre  ifso  ;  porque  mais  vai  perder  as  vidas  ,  que  as 
honras  ;  e  pois  iílo  he  o  que  nos  importa,  façaíse  logo  ,  e 
naõ  tardemos;  e  fe  houuer  homem  ,  a  que  iílo  na6  pareça 
bem,  oaô  fey  quç  conta  dará  de  íy,  e  parecerá  que  quer  fu- 
gir 


delRey  Dom  João  o  III.  3^5 

gir  ao  perigo  com  íombra  de  confelho  íeíudo  ,  e  com  iílo 
ie  tornou  a  afsentar  j  c  como  neftas  marcrias  de  honra  nin- 
guém quer  perder  íeu  ponro  ,  principalmente  os  que  an- 
dáo  na  guerra  ,  todos  os  que  ai/  eílauao  íe  forao  com  eíle 
parecer  de  Francifco  pereyra  ,  e  também  porque  viaõ  que 
o  gouernador  fe  moílraua  contente  delle;  o  qual  com  muv- 
to  contentamento  começou  logo  a  tratar  do  modo  que  Te 
teria  na  deíembarcaçao  ,  e  foy  afsentado  ,  que  antes  que 
deíembarcaffem  defsem  ordem  ,  com  que  fe  metefsern  na 
fortaleza  coatro  centos  homens,  para  o  que  nao  auia  muy- 
ta  diíficuldade  por  fer  o  efcuro  grande,  e  iriao  em  alma- 
dias  fazendo  algum  rebuliço  para  que  cuidaísem  os  mou- 
ros que  leuauaô  mantimentos  ,  e  tanto  que  fofsem  dentro 
na  fortaleza  defembarcafse  toda  a  mais  gente  em  parao?  e 
almadias  grandes  ,  que  aly  tinhao  com  marinheiros  de  Ca- 
nanor,  que  Eitor  da  filueyra  trouxera,  que  erao  bera  práti- 
cos no  mododaquella  defembarcaçaô  ,  e  que  defembarca- 
riaô  cípalhados  por  muytas  partes,  para  que  também  os 
inouros  fe  eípalhaísem  ;  onde  íendo  trauada  a  peleja  ía- 
iriaô  os  da  fortaleza  dar  nas  coftas  dos  mouros  ,  com  que 
fariaõ  largar  a  praya  ,  e  a  gente  poderia  milhor  defem- 
barcar ,  o  que  afsy  foy  afsentado  e  detriminado  por  todos. 

CAPITULO  LXXXIX; 

E/tor  da  filueyra  fe  oferece  ao  gouernador  para  meter  a 
gente  na  fortaleza  ,  e  o  começa  logo  a  pôr  por  obra.  Bom 
João,  €  dom  Fafco,  e  Fernão  de  moraes  Jaemfóra,  e  tem  cos 

-  mouros  huma  hraua  peleja  fobre  recolherem  a  gente  que 
lay  na  armada,  O  gouernador  Je  ordena  para  fair  \m 

terra. 

COncruidos  todos  neíle  parecer  e  tratando  de  íe  pôr  por 
obra  ,  Eitor  da  filueyra  pidio  por  mercê  ao  gouerna- 
dor ,  que  confentifse  íer  elle  o  que  metefse  a  gente  na  for- 
taleza, e  foíTe  íeu  capitão  quando  faiíse  a  dar  nos  mouros, 
O  que  o  gouernador  Wiq  concedeo  ,  e  agardecco  com  muv- 


3  54         Primeyra  Parte  da  Clironica 

tas  palauras,  onde  íe  lhe  oíFerecerao  miiytos  mancebos  fidal- 
gos para  o  acompanharem,  de  que  elle  aceytoii  os  q  lhe  bem 
pareceo,  e  dos  outros  fe  eícufoa  com  termos  de  muyta  cor- 
lezia  ,  de  que  ficarão  íatisfeitos.  Logo  Eitor  da  filuejra  por 
ordem  do  gouernador  efcrcueo  aquella  melma  noite  huma 
carta  a  dom  Jo5o  de  lima  ,  em  que  lhe  daua  conta  do  que 
eitaua  aíTentado;  e  por  fer  o  eícuro  grande  mandou  huma 
almadia   que  chegaíse  perto  da  terra  ,  edelLi  le  lançaíse  a 
nado  hum  negro  ,  que  leuaíle  a  carta  a  dom  Joaó  ;  na  qual 
almadia  com  licenqa  de  Eitor  da  filueyraíe  meteo  Belchior 
de  brito  fidalgo  mancebo  com  outros  três  companheyros  ^ 
para  os  deitarem  em  terra  íe  foíse  poíliuel,  e  nenhum  delles 
leuou  mais    que   as  fuás   armas  :   a  almadia  foy  remando 
muy  to  caladamente  até  chegar  a  terra  ,  e  acertou  de  íer  em 
tempo    que  não  forão  fentidos  ,  e  que  o  mar  deu  jazigo 
para  chegarem  diante  da  couraça  ,  e  muyto  manfamente  íe 
foraó   ao  poftigo  em  que  ellaua  Chriftouaõ  juíarte  ,  que  o 
vigiaua  com  dez  homens  para  tomar  os  recados  que  vief- 
fem  de  noite  ,  e  logo  os  leuou  a  dom  João ,  que  os  recebeo 
com  muyto  gofto  ,  e  muyto  mais  quando  foube  o  que  efta- 
ua  aíTentado:   a  almadia   íe  foy  daly   correndo  pollo  mar 
dando   muytas  apupadas  ,   com  que  fez  aluoroços   no  ar- 
rayal,  donde  acudindo  ha  praya  muyta  gente,  e  nao  achan- 
do os  inimigos,  fe  tornou  a  recolher.  Dom  João  mandou 
recado  a  Eitor  da  filueyra,  que  eftiuefie  preftes  para  a  noite 
feguinte,  que  elle  auia  de  íair  a  dar  hum  rebate  aos  mouros 
para  os  meter  em  aluoroço,  corá  que  as  almadias,  que  leuaí^ 
fem  a  gente,  pudelTem  chegar  a  terra;  para  o  que  logo  Ei- 
tor da  filueyra  apercebeo  a  gente  e  as  embarcações  ,  e  ou- 
tras muytas  almadias  ,  que  fizeíTem  aluoroçar  a  praya  toda. 
Domjoáo    cm  fendo  oras  mandou    íair  dom  Vaíco  com 
cincoenta  homens  ,  em  que  hiao  Chriílouão  juíarte  ,  Bel- 
chior de  brito  ,   Fernão  de  lima  ,   dom  Miguel    de  lima  , 
António  de  faa  ,  Ruy  de  mello,  Ruy  freire,  Duarte  ferrey- 
ra  ,  Duarte  de  faria  ,  Fernão  barbudo  ,  e  outros  que  elle 
eícolheo  ,  e  elle  lhe  íahio  logo  nas  coftas  com  outros  cm- 
coenta  homens.  Dom  Vaíco  toy  dar  de  íupito  em  huma 

eitan»  , 


,  .  dei  Rey  Dom  }oão  o  ÍII.         35*5' 

eftancia  fem  fer  íentido  com  grandes  gritas  ,  e  tanto  esfor- 
ço ,  que  os  mouros  cuidando  que  era  mais  gente  í'e  pu- 
íerão  logo  em  fugida  ,  onde  o  primeyro  que  entrou  na  ef- 
tancia  foy  Belchior  de  brito  ,  e  tomou  deila  huma  bandey- 
ra  ;  dos  outros,  que  entrarão,  liuns  tomarão  três  berços  de 
ferro  ,  e  outros  as  camarás  de  hunia  roqueyra.  A  efte  aluo- 
roço  acudirão  tantos  mouros  ,  e  cometerão  os  noíios  tão 
detriminadamente ,  que  os  fizerão  torniir  atrás  retirandoíle 
para  a  fortaleza  ,  onde  recebiao  grande  ajuda  dos  eípin- 
gardeyros  ,  que  eílauao  no  muro  ;  mas  illo  pouco  lhe 
aproueitaua  ,  porque  os  inimigos  erao  cm  lanra  cantida- 
ds  ,  que  íem  embargo  de  os  noíTos  derrubarem  muytos 
delles  ,  os  querião  tomar  has  mãos  ,  naÕ  deixando  íem- 
pre  de  lhe  tirar  muytas  frechas  e  efpingardadas.  Che- 
gando aquy  dom  João  começou  a  recolher  a  gente,  onde 
o  aperto  foy  muyto  grande  ,  aré  ficar  defpejado  o  lugar 
por  onde  íem  dano  dos  noHos  pudefíe  tirar  hum  dos  ti- 
ros da  torre  ,  que  derrubou  muytos  dos  inimigos;  mas 
nem  iíTo  bafi-ou  para  os  noíTos  deixarem  de  ir  muyto 
apertados  até  le  meterem  dentro  na  couraça  ,  onde  ja  eíta- 
uão  deíembarcados  íetenta  homens  ,  que  Eitor  da  filuey- 
ra  deitara  em  terra  em  quanto  íe  deu  o  rebate  ,  e  vinhão 
também  pelejando  cos  mouros  muyto  apertadamente  ; 
porem  tanto  que  os  noíTos  íe  ajuntarão  com  elles ,  fe  re« 
colherão  todos  ha  fortaleza  em  laluo  :  foraó  aquy  feridos 
dom  Vaíco  ,  e  Chriílouão  juíarte  d^efpingardadas  ,  e  Bel- 
chior de  brito  de  dua?  frechadas  ;  foy  morto  Lopo  dias 
almoxarife  ,  e  outro  homem  ,  e  dous  efcrauos  que  trazião 
hum  dos  berços  ,  e  na  defembarcaçao  foy  morto  outro 
homem.  Contente  aíTaz  ogouernador  deíle  bom  fuceílo  , 
encomendou  muyto  a  Eitor  da  filueyra  ,  que  fizeíTe  me- 
ter a  geme  na  fortaleza  o  mais  breue  e  fecretamente  que 
foíTe  podiuel ,  o  que  logo  íe  fez  ;  porem  não  fem  algu- 
ira  detença  ,  porque  primeyro  as  almadias  do  mar  dauão 
alguns  rebates  falíos  ,  a  que  os  mouros  acudião  ,  e  achan- 
doíTe  lempre  enganados  deixauão  de  acudir  algumas  ve- 
aes ,   com  que  a  gente  fe  mcteo  em  faluo  na  forrale2a  ,  e 

Yy  2  Eitor 


35^         Primeyra  Parte  da  Chroníca 

Eitor  da  filueyra  ertrou  cos  derradeiros  ,  onde  era  tanta 
a  gente  ,  que  não  cabia  dentro  nella  ,  de  que  elle  auifou 
logo  o  gouernador  ,  pidindolhe  que  deíTe  niuita  preíía  ha 
íua  deíembarcriçao  j  porque  a  gente  não  trouxera  manti- 
mento mais  que  para  dous  dias  ,  e  na  fortaleza  íe  não  po- 
dia lazer  de  comer  para  tantos  homens  ,  que  erao  auanie 
de  íeis  centos  os  que  podiao  íair  com  elle  a  pelejar  ,  e 
eílauão  eícondidos  na  fortaleza  de  maneyra  ,  que  os  mou- 
ros não  tinhão  fentimento  de  eftarem  dentro  nella  ;  com 
que  o.  gouernador  le  começou  logo  a  ordenar  para  lair 
em  terra.  Eitor  da  filueyra  entretanto  com  dom  João  e 
cos  outros  fidalgos  aílentarão,  que  fó  o  alcaide  mor  ficaíTe 
na  fortaleza  com  vinte  homens  para  fechar  a  porta  ,  e 
toda  a  mais  gente  íaiííe  fora  ,  e  que  algumas  eícrauas  que 
aly  auia  fe  veftiííem  em  trajos  d'homens  ,  e  juntas  cos  ef- 
crauos  apareceíTem  pollo  muro  ,  e  os  bombardeiros  tiuef- 
fem  toda  a  artilharia  preílcs  ,  e  dom  João  com  duzentos 
homens  lairia  para  a  banda  do  fui ,  e  elle  para  a  do  norte; 
c  fe  ordenou  que  Fernão  de  moraes  esforçado  caualeyro 
com  cincoenta  homens,  que  leuaíTem  panellas  de  poluo- 
ra  ,  foílem  lançar  fogo  na  cílancia  do  trabuco  ,  e  fe  tor- 
naíTe  logo  a  recolher  ha  fua  bandeyra  ,  e  fe  mandou  que 
todo  o  homem  leuaííe  elpingarda  carregada  ,  e  fe  não  pu- 
deíTe  tirar  mais  que  o  primeyro  tiro  ,  a  largaíTe  da  mão  , 
c  íicaíTe  com  fuás  armas.  O  gouernador  íe  paííou  da  galé 
real  em  que  hia  para  hum  galeão  ,  e  quando  Eitor  da  fil- 
ueyra íe  defpedio  delie  lhe  deu  os  finais  ,  que  lhe  auia  de 
fazer  da  gauea  ,  quando  quiíeíle  partir  ,  e  os  que  Eitor 
da  filueyra  lhe  auia  de  fazer  a  elle  da  fortaleza  para  fe 
entenderem  ;  e  ordenou  que  dom  Simão  com  ametade  da 
gente  defembarcatle  a  huma  parte  ,  e  Franciíco  pereyra 
peílana  ha  outra  ,  e  o  gouernador  no  meyo  :  e  para  iíto 
nomeou  os  capitães  das  companhias  ,  e  aos  íidalgos  man- 
dou ,  que  foHe  cada  hum  com  quem  tiueílem  mais  goífo  , 
de  que  fe  elles  moílrarâo  contentes  ,  e  íe  forão  ajuntar 
com  íeus  parentes  e  amigos  :  e  hum  domingo  féis  dias  de 
Nouembro  duas  oras  ante  menham   eftauam  derredor  do 

galeão 


dei  ReyDom  João  o  III.  357 

galeão  do  gcuernador  as  embarcações  ,  que  auiao  de  ir  a 
terra  ,  em  que  eftauao  mil  e  quinhcnrcs  homens  armados 
de  ricas  eformofas  armns  ,  repartidos  por  íuas  compa- 
nhias ,  todas  com  íeus  guiões  de  difícrentes  maneyras  , 
porem  tudo  em  muyto  filencio  ,  porque  os  m.ouros  do  ar- 
rayal  tinhão  dado  a  entender  a  ei  Rey  ,  que  o  gouernador 
mandara  meter  gente  na  fortaleza  ,  crendo  que  ficaua  fe- 
gura  ,  porque  elle  nao  le  atreuia  a  ir  a  terra  pelejar  com- 
elles  ,  e  le  auia  de  tornar  para  Cochim  a  ordenar  huma 
grande  armada  para  ir  ao  eítreyto  :  e  ainda  que  elles  tam- 
bém íinhao  iílo  para  Çy  ,  com.  tudo  nao  deixauao  de  ter 
grande  vigia  no  mar  ,  e  íinhao  palaura  dei  Rey  ,  que  íe  o 
gouernador  foílc  a  terra  elle  em  peíloa  auia  deíer  prefen- 
te  a  vellos  pelejar  ,  porque  com  lua  viiia  e  feu  fauor  lhe 
creceííe  esforço  para  alcançarem  a  vitoria;  e  ainda  que  efte 
Rey  era  bárbaro  ,  bem  entendia  a  verdade  do  que  nlfto 
paÓía  ,  porque  não  ha  ccufa  na  guerra  que  mais  acrecen- 
te  as  forças  e  o  animo  ao  animofo  ,  e  dê  ouíadia  ao  fracOy 
que  pelejar  diante  do  íeu  Rey  ou  fenhor,  que  lhe  hade  dar 
o  premio  de  íuas  obras  ,  que  muitas  vezes  le  nega  has 
boas  ,  e  le  dá  has  que  o  nao  merecem  ,  por  informações 
mais  afeiçoadas  que  arrezoadas  ,  porque  o  premiador  as- 
nao  vio  cos  léus  olhos* 

CAPITULO    LXXXX, 

Eítor  da  ^lueyra  ,  e  dom  Jaão  de  lima  faem  fora  dar  re^ 
bate  no  arrayal ,  e  pelejao  cos  inimigos.  O  gouernador 
defemharca  com  toda  a  gente  ,  comete  o  arrayal ,  tem  cos 
inimigos  huma  brauijjima  batalha  ,  e  o  fucejjo  delia, 

CHcgada  a  ora  em  que  o  gouernador  auia  de  partir 
para  terra  ,  mandou  com  íogo  fazer  dagaucaolí- 
nal  ,  que  dera  a  Eitor  da  filueyra  ,  o  qual  como  vvco  tinha 
o  tento  noutra  couía  ,  logo  em  o  vendo  ,  porque  eíla- 
ua  preíles  ,  fez  abrir  a  porta  da  fortaleza  ,  que  eílaua  ta-- 
pada  com  parede  ,  e  lahio  por  eila  com  toda  a  lua  gente,, 

de. 


358         Primeyra  Parte  da  Chronica 

de  que  hla  fia  dianreyra  Fernão  de  morais  cos  feus  cín- 
coenta  homens ,  cada  hum  com  três  e  coatro  panellas 
de  poluora  em  baldes  de  couro  ,  atados  na  cima  ,  que 
correndo  muyto  caladamente  derão  na  eftancia  do  tra- 
buco, c  deitando  fogo  íobre  as  choupanas  cubertas  d'olla, 
em  que  os  gaftadores  fe  eraparauao  da  chuua  ,  fe  ateou 
com  tanta  forca  que  ardeo  o  trabuco  todo  ,  a  que  acu- 
dindo os  mouros  com  grandes  gritas  ,  cometerão  os  nof- 
fos  com  muyto  esforço  ,  que  lhe  fizerão  valeroía  reíiften- 
cia  ,  e  muyto  dano  com  as  panellas  de  poluora  em  quan- 
to as  tiuerão  ,  e  defpois  que  íe  lhe  acabarão  ficarão  com 
clles  has  hínçadas  ,  e  has  cutiladas  ,  ondejorfe  de  lima  , 
e  António  de  íaa  com  efpadas  de  ambas  as  mãos  defcndiao 
grandemente  os  outros  ;  mas  aproueitaua  pouco  ,  porque 
acudirão  tantos  dos  inimigos  ,  que  cercarão  os  noilos  por 
todas  as  partes  ,  no  qual  tempo  deu  nelles  Eitor  da  líl- 
ueyra  com  tanto  impcto  ,  que  os  fez  tornar  atrás  ,  com 
que  Fernão  de  morais  cos  da  íua  companhia  trauou  com 
elles  huma  afpera  peleja  ,  porque  começaua  ja  então  a 
romper  a  menham  ,  onde  Jorfe  de  lima  ,  António  de  faa, 
Belchior  de  brito  ,  Pêro  do  porto  homem  do  mar ,  Pe- 
to de  vera  ,  e  outros  que  erao  oito  com  efpadas  de  am- 
bas as  mãos  faziâo  buícar  os  mouros  por  onde  tugiíTem, 
mas  eraó  tantos  huns  íobre  os  outros  ,  que  não  achauao 
lugar.  Dom  João  de  lima  com  a  íua  gente  deu  polia  outra 
parte  do  arrayal  fobre  os  mouros  que  acudiaÔ  ao  rebate  , 
c  em  chegando  lhe  fez  muyto  dano  com  as  panellas  de 
poluora  ,  onde  carregou  fobre  elle  grande  cantidade  de 
efpingardeyros  ,  que  lhe  derrubarão  três  homens,  e  ferirão 
muytos  ;  porem  dom  Vafco  de  lima  ,  Fernão  de  lima  , 
dom  Miguel,  Cliriftouaõ  jufarte  ,  Duarte  de  faria  ,  Anri- 
que  da  íiiua  ,  Ruy  freire  ,  André  paçanha  ,  Fernão  fur- 
tado ,  Artur  de  crafto  pelejauao  com  tanto  esforço  íu- 
ílentando  todo  o  pcfo  dos  inimigos  ,  que  íe  foraõos  noflos 
chegando  para  Eitor  da  filueyra  ,  que  com  a  íua  gente 
eftaua  cm  grande  aperto  cercado  dos  mouros  ,  que  ulauao 
cntaò  de  hum   ardil  de  que  íe  ajudauaõ  muyto,  que  em 

os 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  35'^ 

os  noíTos  pregando  as  lanças  nas  íuss  adargas  lhas  larga- 
uaò  dos  braços  ,  e  fícauao  metidas  nelias  ,  e  em  quanto  íe 
detinhaô  em  porem  os  pçis  nas  adargas  para  deíembara- 
çarem  as  lanças  ,  tinhaÕ  os  mouros  tempo  para  os  ferirem 
a  feu  íaluo.  Toda  a  gente  do  arrayal  fe  ocupou  entSo  em- 
acudir  a  eíle  rebate ,  parecendollie  que  nao  era  maití  que  os 
que  dom  João  cuítumaua  dar  ,  íem  peníamenro  de  lhe  pa- 
recer ,  que  o  gouernador  podia  fair  em  terra  ,  com  que 
íem  m.ais  trabalho  ,  que  o  do  rolo  do  mar  ,  defembarcoit 
defronte  da  noíía  tranqueira  da  couraça.  Dom  Simão  ,  e 
Francifco  percyra  vendo  pouca  gente  na  praya  ,  porque 
toda  andaua  ocupada  na  peleja  do  arrayal  ,  delembarcarad 
cada  hum  por  fua  parte  com  todos  os  léus  ,  e  fe  foraô 
para  o  gouernador  ,  que  fendo  ja  dia  claro  ,  foy  entran- 
do pollo  arrayal  com  todo  o  corpo  da  gente  ,  e  a  fua- 
bandeyra  real  deípregada  ,  tocando  as  trombetas  ,  e  cJia- 
mando  todos  por  Santiago  forão  dar  nos  mouros,  que  erao 
aly  juntos  mais  de  dez  mil  :  os  bateis  grandes  ,  que  leua- 
rad  a  gente  ,  afaílandofle  para  fora  deíparauao  nos  inimi- 
gos os  berqos  que  tinhao,  e  o  meímo  fazião  os  nauios 
polias  bandas  do  arrayal ,  reíguardando  a  fortaleza  c  as 
cauas  em  que  os  noíTos  auiao  de  pelejar  ,  e  a  artilharia 
da  fortaleza  tanúbem  fazia  feu  officio  por  onde  lhe  pare- 
cia mais  acomodado.  Os  mouros  ,  quando  entenderão  ,. 
que  o  gouernador  era  defembarcado  ,  e  virão  as  hiítroías 
armas  dos  noííbs  ,  que  co  foi  reluziaõ  por  todas  as  par- 
tes ,  logo  começarão  a  perder  o  animo  ,  porem  naódei- 
Xauaô  de  pelejar  esforçadamente.  Tanto  que  o  gouerna- 
dor foi  entrado  pollo  arrayal  começarão  os  noíTos  a  fazer 
marauilhas  ,  onde  poftos  diante  dom  Jorfe  de  menefes  , 
dom  Triftão  de  noronha  ,  dom  Diogo  de  lima  ,  António 
dazeucdo  ,  Dinis  fernandez  de  mello  ,  Ruy  diaz  perey- 
ra  ,  Francifco  de  vafconcellos  ,  e  outros  que  eraõ  mais 
de  vinte  com  cfpadas  d'ambas  as  mãos  ,  faziao  larga  pra- 
Ça  cortando  pernas  e  braços  ,  e  partindo  quaíi  alguns 
pollo  meyo  ,  e  a  outra  gente  Jeuaua  fuás  eípingardas.  O9 
xjulros  fidalgos  ,  que  erao  António  da  lilueyra  ,  Diogo  de- 

mello , 


^6o       Primeyra  Parte  da  Chronlca 

mello  f  dom  Simão  ,  dom  Joríe  telo  ,  Joríe  cabral  ,  dom 
Fernando  de  monroy  ,  dom  Afonío  de  meneies  ,  dom  Pe- 
dro íeu  irmão  ,  António  de  lemos  ,  Manoel  de  macedo  , 
RLiy  vaz   pereyra  ,  João  pereyra  de  lacerda  ,  António  da 
filua  ,   e  outros  muytos,  que  naõ  íe  podem  nomear  todos  , 
pelejando  cada   hum  á  competência  dos  outros  ,  e  ha  vi- 
&a.  do  gouernador  ,  nao  eílimando  arrifear  as  vidas  ,  nem 
temendo  a  morte   que  linhao  diante   dos   olhos  ,    faziaó 
façanhas  ,  e  o  mór  trabalho  que  entaó  íentia  era  dos  eí- 
pingardcyros  e  frecheyros  ,  que  tirauaode  fora  ,  de  cima 
dos  vallos  ,  com  que  feriao  muytos  dos  noífos  ;  aqui  quis 
o  gouernador  dar   moftra  de  íua   pefloa  ,   e  começando 
s  ir  para  diante,  o  fizerao  deter  Francifco  pereyra  ,  e  João 
de  mello  da  filua  ;   mas  daly  donde  eílaua  deu  tanto  fauor 
aos  noíTos  ,  que  cobrando   nouas  forças   e  animo  ,  come- 
terão os  mouros  taÔ   rijamente,   que  os  arrancarão  do  ar-, 
rayal  fugindo  alem   dos  -vallos  ;   porem^  aly  apertarão  os 
noíTos   com  elles   de  maneira  ,  que  os  fizerão  fugir  para  a 
cidade  ,  onde  os  nodos  lhe   foraõ   íeguindo  o  alcance.  O 
gouernador  ,    por  naô  auér  algum  delmancho  ,  mandou 
António  da  filueyra  ,  Joaô  de  mello  ,  Francifco  pereyra  , 
c  António   de  miranda  que  fizeliem  ter  a  gente,    que  nao 
entraííe  na  cidade  ;  porem   nao  podendo   elles  refrear  o 
Ímpeto  dos  que  hiaõ  vencedores  ,  mandou  o  gouernador 
fazer  final  de  recolher  ,  a  que  todos  obedecerão  ,  e  íe  tor- 
narão para  dentro  dos  vallos  ,  fobre   que  logo    voltarão 
os   mouros  ,  e  com  muytas  frechas  e  efpingardas   come- 
çarão a  tratar  mal   os  noflos  ,  para  o  que  o  gouernador 
rnandou  Eitor  da  lilueyra  por  huma  parte,  e  dom  Vaíco 
de  lima  polia  outra    com   todos  os  efpingardeyros  ,  que 
guardalfem  os  vallos  ,  em  que  clles  mandarão  aílentar  al- 
gumas peças  miúdas  do  arrayal  ,  com   que  fizerao  afaftar 
os  mouros   fem   oufarem  de   íc  chegar.   El  Rey   quando 
íoube  o  desbarato  dos  feus  ,  auendoo  por  huma  grande 
afronta  fua  ,  mandou  o  feu  caimal  e  goazil  ,    que  era  ge- 
neral  do  campo,  com  coatro  mil  naires  de  íua  cafa  ,  que 
fe  conjurarão  antre  fy  para  morrerem  todos  polia  vingan- 
ça 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  3^1 

ça  de!  Rey;  neílc  tempo  os  mouros,  que  eftauão  nas  caua», 
andauão  correndo  por  cUp.s  para  íe  acolherem  ,  porem 
os  nollos,  que  andauão  por  cima  dos  vallos ,  es  lijao  n-a- 
tando  cora  as  lanças  a  mão  tente  ,  e  nalguns  lugares  on- 
de fe  ajuntauão  muytos  delles  lhe  lançarão  panellas  de 
poluora  ,  com  que  os  abrafauão  em  fogo  ;  e  os  eícrauos  e 
marinheiros  deitarão  em  cimn  delles  tanta  terra  c  pedras, 
que  ficarão  dentro  nas  cauas  mais  de  mil  morros ;  e  por- 
que todo  o  arrayal  eftaua  laurado  deftas  cauas,  que  tolhii^o 
aos  noíTos  a  paíiagem  ,  e  entupillas  era  obra  de  grande 
trabalho  e  detença  ,  mandou  o  goucrnador  a  Dinis  fernftn- 
dez  de  mello  ,  que  ordenaííe  íazeremíe  pontes  de  humas 
has  outras  por  onde  a  gente  paflaíTe  ,  o  que  logo  foy  fei- 
to ,  e  o  gouernador  £c  foy  a  repouíar  nss  coílas  da  forta- 
leza ,  onde  chegando  dom  Jofiô  de  lima  para  lhe  falar  , 
em  começando  as  primeiras  palauras  aparecerão  os  quatro 
mil  naires  ,  eapós  elies  grande  numero  de  mouros  com 
as  fuás  cuílumadas  gritas  ,  c  eftrondos  dos  feus  cftromen- 
tos  ,  defparando  muytas  eípingardas  ,  e  tanii  cantidade 
de  frechas  ,  que  quafí  encubriaô  o  foi  ,  que  caufou  nos 
noíTos  grandiílimo  aluoroço  ,  e  íe  puferaõ  de  nouo  em  íomi 
de  pelejar  :  o  gouernador  íe  fubio  fobre  hum  dos  va'Ios  , 
evendo  a  grande  multidão  dos  inimigos  que  cubriao  todo 
o  campo  ,  parecendolhe  que  podia  aly  vir  ci  Rey  em  pef- 
íoa  ,  mandou  a  dom.  João  de  lima  ,  Francifco  pereyra  , 
Baílião  de  louía  ,  e  Josõ  de  mello  da  filua  que  nao  faifíem 
fora  dos  vallos  do  arrayal ,  e  o  guardaílem  com  a  gente 
que  auia  ,  e  o  condeílabre  da  forraleza  com  bcmbardcy- 
Tos  dos  nauios  fízeíFem  eílancias  d'artilharia  ,  o  que  foy 
feyto  com  tanra  diligencia  ebreuidade,  ajudando  os  eí- 
crauos  e  marinheyros  ,  que  fobre  hum  vallo  ,  que  cllaua 
para  a  parte  donde  vinha  a  gente,  afíentar^o  oiro  roquty- 
ras  do  arrâyal  ,  e  dous  camcllos  da  fortaleza  ,  cue  inda 
fizeraó  tiros  antes  que  os  inimigos  chegaíTem  ,  porque  os 
malauares  vinhaó  pollo  campo  co  feu  compaíTo  e  ordem 
que  tem  no  pelejar  ,  que  he  tudo  muiro  vagarofo  :  porem 
tanto  que  os  pilouros  deraõ  nelles  ,  que  deixarão  muytos 
Pari.  1,  Zz  mor- 


^02         Prlmeyra  Parte  da  Chroiilca 

mortos  pollo  campo,  fe  deíconcertarao  e  defordenaraS  j 
e  como  IioiKens  decriminados  remercrao  aos  noflos  ,  que 
]he  lairâo  ao  encontro  coiti  tanta  vontade  como  fe  aquel- 
le  dia  nao  tiueraò  feiro  nada  :  diante  de  todos  íe  puícra6 
dom  Vaíco  de  lima  ,  Fernão  gomez  de  lemos  ,  Eitor  da 
filucyra  ,  Belchior  de  brito  ,  Simão  d'andrada  ,  Aires  da 
íilua  ,  que  andaua  ferido  no  roílo  de  hirma  frechada  ,  An- 
tónio de  miranda  ,  Jorfe  cabra! ,  dom  Jorfe  de  meneies  , 
dom  Simão  ,  dom  Afonfo  ,  dom  Migue!  ,  dom  Jorle  de 
caílro  ,  c  outros  até  íeílenta  ,  que  íe  meterão  antte  os 
malauares  ,  em  quem  os  que  traziao  eípadas  de  ambas  as 
mãos  faziaô  grandiífimo  eílrago  :  aquy  acudirão  dos  que 
eílauao  no  arrayal  até  mil  homens,  onde  a  peleja  foy 
afíaz  braua  e  trauada  ,  porque  os  naires  pelejauao  como 
homens  que  detriminauaõ  perder  as  vidas,  ou  fair  com  vi- 
toria ;  porem  os  noflos  pelejarão  entnõ  com  tanto  esfor- 
ço ,  trabalhando  cada  hum  por  íe  auantajar  dos  outros, 
que  os  malauares  faraó  os  primeiros  que  fe  começarão  a 
retirar,  fobre  quem  os  noíTos  carregarão  taõ  rijo  ,  que  os 
foraò  leuando  pollo  campo  hum  grande  eipaço  ,  a  que  o 
gouernador  mandou  fazer  fina!  de  recolher,  com  que  lhe 
a  clles  nao  pcfou  ,  porque  hiso  ja  muyto  canfados  ,  e  fe 
foraõ  recolliendo  co  roílo  íempre  nos  inimigos  ,  que  ven- 
doos  retirar  tornauao  a  com.etelos ,  mas  como  os  noíTos 
]he  faziao  roílo  fe  tornauao  a  afaílar  ,  nos  quai*s  cometi- 
mentos foraõ  mortos  muytos  dos  malauares.  O  conde- 
llabre  então  íe  foy  lia  fortaleza,  e  pôs  fogo  a  huma  eípe- 
ra  que  eílaua  na  torre  ,  co  roílo  áquella  parte  ,  parecen- 
dolhe  que  aly  deuia  de  eílar  el  Rey  ,  o  que  afly  era  na 
verdade  ,  e  o  pilouro  foy  tao  bem  encaminhado  que  paí- 
lou  por  cima  donde  el  Rey  efcaua,  que  ouuindo  o  zunida 
do  pilouro  íicou  taÕ  treípaílado  de  medo  ,  que  íe  foy  lo- 
go fugindo  no  feu  aíifante  com  a  mór  prcíla  que  pode  , 
c  com  elle  toda  a  gente  do  fcu  feruiço  :  do  que  íendo- 
auifados  os  mouros  e  naires  ,  que  pelejauao  no  campo, 
perderão  de  todo  o  animo  ,  e  íe  puíerao  em  fugida  ,  dei- 
xando o  campo.  Uq  deípejado  que  ninguém  aparecia  por 

eile  a 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  3  6^ 

elle ,  com  que  os  noíTos  ficarão  cm  dcfcanfo  bem  canía- 
dos.  O  gouernador  le  tornou  então  para  a  íua  eíbncia  , 
que  eílaua  feita  com  vellas  ,  o  que  também  cada  capitão 
mandou  fazer  poilos  feus  marinheyros  ,  em  que  íe  gaílou 
até  as  dez  oras  do  dia  ;  e  o  gouernador  recolhido  num 
lugar  apartado  que  tinha  na  íiia  eftancia  ,  deípoisdedar 
niuytas  graças  a  noíTo  Senhor  cos  juelhos  em  terra  polia 
grande  e  finalada  mercê  que  lhe  fizera  aquelJe  dia  ,  íe 
tornou  para  fora  ,  onde  o  cercarão  todos  os  fidalgos  ,  que 
clie  reccbeo  com  muytas  honras  ,  e  palauras  de  muytos 
louuores:  aquy  Ihepidirao  alguns  que  os  quilefie  armar 
caualeyros ,  a  que  elle  pidio  muyto  que  por  enraô  lhe 
perdoalTem  ,  que  o  faria  defpois  de  jantar  ,  que  cada  hum 
mandaíle  trazer  o  que  tiueíTe  :  onde  logo  foraõ  armadas 
muytas  tendas,  e  algumas  que  le  faziaó  das  vellas  dos 
nauios  ,  e  no  raeyo  do  arrayal  foy  armada  para  o  gouer- 
nador huma  tenda  feita  no  reyno  ,  muyto  grande  ,  em 
que  le  recolheo  ,  e  todos  os  capitaens  fizerao  o  mcfmo 
nos  lugares  que  para  iíTo  tinhaõ  preparados  ,  porque  era 
ja  o  foi  muyto  quente  ,  e  todos  tiuerao  comer  em  muyta 
abaílr^nça  ,  principalmente  na  eílancia  de  Franciíco  perey- 
ra  ,  onde  íe  recolheu  a  mor  parte  dos  fidalgos  que  naô 
erao  capitaens  ,  e  atóra  ifto  naó  faltou  entaô  de  comer 
para  toda  a  outra  genre  ,  que  cílaua  aly  muita  ,  porque 
da  armada  defembarcaraô  homens  ,  que  traziao  vinho  ,  e 
outros  traziao  mantimentos  ,  e  tudo  o  mais  que  era  ne- 
ceílario  para  venderem  ,  e  fazerem  íuas  veniagas  ,  e  fc 
puferao  em  ruas  apartadas  como  em  huma  cidade  ,  com 
muytas  danças  e  folias  5  em  que  fe  paliou  o  jantar  e  par- 
te da  calma:  entaõ  le  ocupou  o  gouernador  em  armar 
caualeyros  ,  e  porque  a  gente  era  muyta,  e  elle  ÍÔ  naõ  po- 
dia dar  expediente  a  todos  ,  dilTe  a  dom  JoaÓ  de  lima  que 
o  ajudaíTe  ,  e  a  todos  os  outros  fidalgos  que  cada  hum  ar- 
mafle  caualeyros  os  que  o  quifeíTem  lerda  íua  mao  ,  e  que 
elle  lhes  afiinaria  os  aluarás  ,  o  que  muytos  fírerao.  lílo 
acabado  repartio  o  gouernador  as  caniranias  polias  eílan- 
cias,  para  vigiarem  aos  ccarros,  o  que  le  fez  com  muyta 

Zz  2  ordem. 


3  ^4        Primeyra  Parte  da  Chronica 

ordem.  Os  feridos  forao  todos  recolhidos  na  igreja  da 
fortaleza,  que  paíTaiiao  de  duzentos  ,  onde  foraô  muyto 
bem  curados  e  prouidos  largamente  ,  de  que  o  gouerna- 
dor  deu  o  cargo  a  Manoel  de  brito  ,  e  a  alguns  fidalgos  , 
e  a  outros  homens  ,  que  tinhao  íeus  efcrauos  aly  nas  ten- 
das. Dos  Portuguefcs  morrerão  eíte  dia  feflenta  afora  al- 
guns que  delpois  morrerão  das  feridas  ;  e  dos  mouros 
morrerão  auante  de  três  mil  ,  dos  quais  o  gouernador  deu 
cargo  a  coatro  naires  capitães  dos  canarins  ,  que  vieraõ 
de  Goa  ,  que  com  a  fua  gente  e  remeyros  ajuntaííem  os 
corpos  mortos  ,  e  os  metcílem  todos  era  huma  das  cauas 
c  a  enrupiílem,  o  que  aíly  foy  feito  ;  e  os  corpos  dos  Por- 
tuguefes  mandou  meter  em  grandes  couas  que  fe  fizerao 
debaixo  do  fobrado  da  igreja  ,  porque  nao  auia  lugar  para 
ter  cada  hum  fua  coun  ;  e  toda  aquella  noite  paílarao  com 
muytos  géneros  de  fcilas  e  paíFatempos ,  tocando  lempre 
as  trombetas  ,  mas  com  as  armas  e  efpingardas  fempre 
preftes  ,  porque  também  os  mouros  naõ  ccííaraõ  toda  a 
noite  de  tirar  muitas  frechas  e  eípingardadas. 

CAPITULO    LXXXXr. 

£/  Rey  de  Calecut  comete  pazes  ao  gouernador  por  meyo  ão 
mouro  Cogebiquy  ;  elle  o  poe  em  conjelho  ,  e  juntamente 
fe  Jerá  bom  derrubar  fe  a  fortaleza  \  as  pazes  Je  ajjen-^ 
taÕ ,  e  a  fortaleza  fe  derruba;  el  Rey  de  Calecut  dd  a. 
morte  ao  Cogebiquy.  O  gouernador  fe  recolhe  a  Lochim 
curarje  de  huma  chaga  que  tem  em  huma  perna, 

Gouernador  defpois  de  ter  dado  ordem  ha  guarda  e 
fegurança  daquelle  arrayal  dos  inimigos  de  que  efta- 
uafenhor,  para  íe  fegurar  também  dos  mouros  que  de 
noite  lhe  naó  vieííem  dar  alguma  inquietação  ,  mandou 
fazer  grandes  fogos  de  fora  dos  vallos  ,  em  que  eftauao 
cm  vigia  os  eípingardeyros  ,  e  mandou  trazer  artilharia 
da  fortaleza  e  aílentalla  em  huma  ellancia  para  defenfaá. 
de  mu^^tos  lirps  que  os  mouros  tirauão  de  antre  as  caías , 

de 


dcIRey  Dom  João  o  III.  jí^j* 

de  que  alguns  chegauaó  ao  alojamento  dos  noíTos  ,   e  vi- 
nhãô  direytamente  demandar  a  tenda  do  gouernador  :  po- 
rem cJJe  nunca  a  quis  mandar  mudar  donde  eflaua  ,  e  rodp 
o  curro  dia  feguinte  os  mouros  naõ  ceíTarao  deíla  bataria  , 
mas  daly  por  diante  naó  bulirão  idmís  comfigo  ,  porque  eí 
Rey  de  Calecut,  arrependido  de  ter  cometioa  íiqueíla  em- 
preia   poIJo  pouco  proueito  e  menos  licnra  que  tirara  dcí- 
Ja  ,   e  entendendo  que  fc  o  feu  reino   naô  tiueíTe   nauega- 
çoes  [c  perderia  de  todo  ,  detriminou    gidir   pnzes  ao  go- 
uernador :  e  mandando  logo  pôr  no  campo  huma  bandey- 
ra  branca  ,  mandou  pollo  mouro  Cogebiquy    (  amigo  dos 
Portuguelts  de  que  em  muytas  partes  le  tem   feyto  men- 
ção) dizer  ao  gouernador,  que  elle  queria  tornar  a  aíTen- 
íar  paz  com  elie  ,   e  para  iíTo  pagaria  toda  a  perda  que 
tinháo  recebido  os  Portugueíes  ,    e  el  Rey   de  Portugal  ,  e 
entregaria  todos  os  catiuos  e  artilharia  ,  e  quantos  paraos- 
ouuefTe  em  todo  íeu  reyno  ,  nem  agafalharin  neile  peíloa 
que  os  armaíTe  ,  o  que  tudo  cumpriria  fem  falta  ,  de  que- 
lhe  mandaua  íua  ola  aíTinada  por  elle   e  por  todos  os  ícus 
regedores.  O  gouernador  fez  muyta  honra  e  gaíalhado  ao; 
mouro  ,  íabcndo  quão  bom   e  leal  amigo  noíTo  fora  íem- 
pre  ,  e  logo  lhe  reípondeo  :  Amigo  Cogebiquy  o   milhof 
eiqueceo  a  el  Rey  de  apontar  ,  e  fem  o  qual  cu  não  ey  de' 
fazer  paz  com  elie  ,  que  he  lançar  os  mouros  fora  dq  feu 
reyno  ,  porque  iey  certo,  que  em  quanto  os  tiuer  comfigo 
hade   fazer  lempre  por  feus  mãos   coníelhos    as  traições 
que  polia  mefrna  cauía  fez   feu  anteceííor  ;   fe  com  eíta. 
condição  quifer  a  paz,  então  darey  orelhas  a  cila.  O  Coge-- 
biquy  lhe  tornou  ,  que  lançar  os  mouros  fora  do  feu  rey- 
no era  couía  impoíliuel  ,  que  el  Rey  naõ  faria  por  ninhum 
cafo  pollos  muytos  proueitos  que  tinha  delles  ,  e  que  ni- 
ílo  o  defenganaua   como  verdadeyro   amigo   que  era  dos 
Portuguefes  ,  e  fora  íempre  ,   e  auia  de  fer  até   a  morte  ; 
por  iflo  que  defta   condição  naõ  trataíle  ,  e  das  outras  que 
Jhe  propuíera   lhe  deíTe  a  rcpoíla    que   lhe  bem    pareceíTe 
para  a  leuar  a  el  Rey.  E  porque  eíte  negocio  era  hum  pou- 
co va^arolo  5  e  fe  naó  podia  concruir  leni   conleiho  ,  e 

fem 


^66         Prlmeyra  Parte  daChronica 

ícm  auer  algumas  idas  e  vindas ,  pidio  o  mouro  ao  gouer- 
nador  que  de  fua  parte  quifeíTe  conceder  tregoas  em  quan- 
to andaiie  neíle  concerto ,  que  el  Rey  da  fua  as  concedia, 
o  que  o  gouernador  ouue  por  bem  ,  e  lhe  deu  feguro  pollo. 
tempo  que  pidia  ,  com  que  fe  tornou  :  c  íendo  fora  do 
arrayal  mandou  logo  pregoar  as  tregoas  no  campo  c  na 
cidade  ,  e  que  ninhum  mouro  íopena  da  vida  apareceíTe 
no  arrayal.  O  gouernador  entaÕ  propôs  eiu  coníelho  de 
todos  os  fidalgos  eífce  negocio  das  pazes,  e  auendoíTe  de 
fazer  íe  fe  farião  ?om  auer  aly  fortaleza,  ou  não  ,  que  a 
elÍQ  ihe  parecia  íer  muyro  contra  o  feruiço  dei  Rey  e  pro- 
ueito  de  fua  fazenda  auer  aly  fortaleza;  porque  (  diííe  ) 
quem  cuidou  ,  que  erão  mayores  os  gaílos  que  íe  faziao 
nas  armadas  cora  que  fe  auia  de  fazer  guerra  a  Calecut, 
que  os  que  fe  faziao  em  edificar  a  fortaleza  e  íuílentala 
com  paz  ,  enganouíe;  porque  os  gaílos,  que  íe  faziao  para 
a  guerra  ,  erão  ametade  menos  que  o?  proueiros  que  íe  ti- 
rauão  das  preías  das  nãos  ,  e  com  fe  tolherem  aos  mou- 
ros as  naucgaçoés  perdia  cl  Rey  a  mayor  parte  das  fuás 
rendas  ,  o  que  eílá  bem  claro  ,  pois  elle  pidio  fempre  eíla 
paz  tão  afincadamente  ,  e  dcfpois  que  a  ouue  ,  por  mcyo 
deíla  fortaleza  teue  fuás  nauegaçoés  e  tratos  de  pimenta 
que  carregaua  para  Meca  ,  com  que  fe  fez  tão  rico  e  po- 
derofo  ,  e  os  mouros  tão  foberbos  e  atreuidos ,  que  apefar 
noíío' querem  fazer  fuás  nauegaçoés  ,  para  o  que  armão 
muyíos  paraos  com  que  dão  faca  ha  fua  pimenta  para 
muytas  partes, e  para  lhe  tolher  iílo  foy  forçado  ajuntarmo» 
nps  para  fazermos  eíla  guerra  ,  que  tanto  tem  cufrado 
a  el  Rey  noíTo  Senhor ,  a  qual  íe  pudera  bem  eícufar  íe 
cíliueramos  íempre  de  guerra  com  eíla  gente  ,  donde  fe 
entende  bem  camanha  perda  foy  para  a  fazenda  dei  Rey 
noíTo  fenhor  ter  aqui  eíla  fortaleza  ,  e  cada  vez  hade  íer 
mayor  em  quanto  a  tiuer  ,  porque  fempre  hade  fer  força- 
do fuíleniaríe  ha  cuíla  não  íómente  de  muito  dinheyro , 
iras  de  muyto  íangue  de  feus  vaílallos  ,  por  onde  enten- 
do que  cumpre  muyto  ao  feruiço  de  Deos  e  dei  Rey  der- 
rubarfe  eíla  fortaleza  ,  e  íicar  a  coila  de  guerra,  c  cntaó  íe 

ouuer 


delRey  Dom  João  o  ílí.        ^6f 

Oiiuer  concerto  de  paz  fera  milhor  e  mais  firme  ,  c  feita 
como  nós  quifermos  ;  e  auendo  fortaleza  ,  foiçadarrcnte 
lhe  auemos  de  fazer  a  paz  como  ellcs  q^iiiíerem  ,  e  qué 
quebrarão  cadr.  vez  que  quiferem.  Com  cila  propcíla  ou- 
ue  no  confelho  muytos  debates  e  differenças  de  parece- 
res ;  porque  a  muytos  pareceo  bem  o  voto  do  gouerna- 
dor  ,  vendo  que  em  tudo  tinha  rezao  ;  outros  forao  por 
outra  via  dizt^ndo  ,  que  aquella  fortaleza  fora  feita  por 
mandado  delRey,  que  fem  outro  feu  em  contrario  não  era 
rezaó  que  fe  desfizeife  ,  mas  que  fe  deuia  íuftentar  com 
guerra  até  íc  lhe  dar  conta  diíío  ,  e  ver  o  que  mandaua  ,^ 
e  que  o  outro  era  erro  e  deíobediencia  ha  peíloa  real  ,  e 
que  afora  iílo  feria  gra.idc  abatimento  e  defcredito  do 
eítado  da  índia  ,  e  afronta  para  os  Portuguefcs  poderfe 
dizer  delles,  que  derrubarão  a  íua  fortaleza  com  medo  que 
el  Rey  de  Calecut  lha  tomalTe  ,  por  lha  elles  não  poderem 
defender,  e  os  mouros  fícariao  tão  íoberbos  e  oufanos  y 
que^não  duuidarião  pôr  cercos  a  todas  as  outras  fortale- 
zas ,  e  com  eíla  íó  vitoria  ,  que  lhe  nós  dauamos  fem  cufta 
ninhum  feu  ,  os  mouros  das  outras  partes  lhe  darião  fem-^ 
pre  grandes  ajudas  ,  com  que  íe  farião  muyto  mais  po- 
derofos  contra  nós  ;  e  fobre  efte  ponto  ouue  tantas  diffe- 
renças no  confelho  ,  que  muytos  fe  quiferaó  fair  delle  : 
porem  o  gouernador  lho  não  confentio  ,  elhes  diíTe  que 
por  a  matéria  fer  de  tanta  importância  todos  auiao  de  dar 
neila  feus  pareceres  e  aííinalos  ,  porque  elle  não  auia  de 
fazer  fenao  o  que  a  todos  parccelTe  bem  ,  e  por  iíío  aten- 
taíTc  cada  hum  bem  o  em  que  fe  detrimiinaua  ,  porque  de 
tantos  e  tão  honrados  fidalgos  como  aly  ellauãó  ,  e  taO' 
entendidos  nas  couías  da  índia  ,  não  íaiííe  coufa  em  que 
pudeíle  notar  falta.  E  quanto  áquelle  ponto  que  tocauaò, 
que  fe  poderia  cuidar  que  fe  derrubaua  a  fortaleza  com 
medo  delRey  de  Calecut  ,  e!lc  aíTontaria  as  pazes  com 
as  condições  que  a  nós  nos  conuinha  ,  aíílnada?  e  cí-nfir* 
madas  por  el  Rey  ,  pollo  Princepe  ,  e  por  todos  os  rege- 
dores ,  com  rodas  as  feguranças  necenarias  ,  ptuque  lá- 
bia inuyto  bem  ,  q^ue  nada  do  que  pidiíle  lhe  auiaõ  de  ne* 

gar 


3  68        Primeyra  Parte  da  Chronica 

gar  pollo  ir.Liyro  prcueito  que  tinhaó  de  eftar  aly  a  noíTa 
fortaleza:  e  dcípois  de  aílentadas  as  pazes  n  cila  forma  , 
então  trataria  de  derrubar  a  fortaleza,  com  que  íe  não  po- 
deria cuidar  que  fe  derrub;íua  por  medo  ,  e  por  a  nao 
poderemos  defender:  c  íc  el  Rey  com  ella  ícr  derrubada 
quifcíie  eítar  polias  pazes  ,  lhas  guardaríamos  por  íeefcu- 
farem  es  gaílos  das  armadas,  e  íe  todauia  quiícíTc  infiftir 
em  termos  aly  fortaleza  ,  então  romperíamos  as  pazes  ,  e 
lhe  faríamos  guerra  ,  que  na  do  mar  bem  entendido  efta- 
ua  quanta  ventagem  lhe  nós  fazíamos.  A  eíla  rcprica  do 
gouernador  moueraô  alguns  muyras  duuidas  ,  porem 
a  mayor  parte  fc  foy  com  eíte  parecer  ,  e  íc  aíTentou  que 
aíTy  fe  íizeíTe  ,  de  que  o  gouernador  tomou  aíTmados  de 
todos  ,  com  que  fe  deípcdirao.  Porem  o  gouernador  fi- 
cando íó  tornou  a  cuidar  bem  no  que  tinha  aflcntado  ,  que 
erao  duas  couías  dinas  de  muita  confideraçao  polia  gran- 
de importância  del'as  ,  de  que  huma  era  engeitar  a  paz 
que  el  Rey  de  Calecut  lhe  pidia  com  tanta  inílnncia  ,  e 
táo  bons  partidos,  ea  outra  desfazer  fem  expreílo  man- 
dado dei  R-y  a  fortaleza  que  ellc  mandara  fazír ;  por  ou- 
tra  parte  Icmbraualhe  que  lhe  dizia  elle  no  íeu  regimen- 
to, que  nas  coufas  duuidofds  ÍizeíTe  o  que  enrendefíe  que 
era  mais  íeu  feruiço  :  e  metido  neíla  perplexidade  lhe 
pareceo  ,  que  não  era  rezão  acabar  de.fe  reíoluer  de  todo 
fem  tornar  a  confulrar  o  negocio  de  nouo  ,  tomar  outra 
vez  os  pareceres  de  todos  ,  c  retefícarfe  no  que  elles  di- 
ziao  ,  c  com  eíla  detriminaçaó  ao  outro  dia  acabando  de 
ouuir  milTa  na  fua  tenda  ,  chamou  a  confelho  ,  e  propon- 
do ante  todos  eílas  duascouías  ,  lhes  requcreo  da  parte 
dei  Rey,  c  da  fua  pidio  por  mercê,  que  pois  erao  da  tanto 
peio  e  importância  ,  cuidaíTem  bem  nellas  ,  e  aíTentafTeoi 
antre  íy  o  que  elle  dcuia  de  fazer  ,  porque  naô  faria  ou- 
tra coufa  ,  e  lhe  deu  por  efcrito  as  coufas  que  apontaua  , 
íobrc  o  que  eíl;iua  aíTentado  por  elles  ,  e  lhes  tornou  a  dar 
os  feus  aíHnados  ,  para  que  os  rompeííem  ,  e  lhe  defrem 
outros  do  que  cntaõ  aíTenraflem  ,  e  íe  fahio  para  fora  di- 
zendo,  que  pois  elle  naô  tinha  ja  mais  que  di^er  naquella 

ma- 


delRey  Dom  João  o  III.       ^6(} 

matéria  ,  naõ  tinha  para  que  eftar  aly  preíente.  Os  fidal- 
gos enião  defpois  de  muytos  debates  e  altercações  por 
comum  parecer  de  todos  fizeraÕ  huns  apontamentos,  em 
que  de  nouo  dauão  rezões  muyto  euidentes,  por  onde  era 
inuyto  feruiço  dei  Rey  o  que  elles  antes  tinhão  aíTenta- 
do  ,  que  era  fazer  o  gouernador  paz  com  el  Rey  de  Ca- 
lecut na  forma  que  liie  miihor  parccelTe  ,  e  defpois  fe  cl 
Rey  infiftiíTe  em  aucr  aly  fortaleza  ,  a  quebrafle  com  elle, 
mas  que  em  todo  cafo  elia  foíTe  derrubada  :  e  íc  deípois 
diíTo  el  Rey  quiíeííe  ficar  de  paz  ,  alTy  como  foíTe  aíTen- 
tada  fe  lhe  guardaílc  int-eJramente  ,  do  que  íe  fez  hum 
auto  poUo  fecretario  em  que  todos  aílinaraô  de  nouo  ,  que 
o  gouernador  recoíheo  ;  íó  António  de  miranda,  que  nao 
foy  do  parecer  dos  outros  ,  não  quis  aííinar  nelle,  dan- 
do por  rezaõ  que  o  gouernador  nem  com  o  parecer  de  to- 
dos tinha  poder  para  desfazer  huma  fortaleza,  que  elRe/ 
mandara  fazer  com  outros  tantos  pareceres  ,  o  que  no 
gouernador  fez  algum  abalo  ;  mas  como  lhe  parecco  que 
cftaua  feguro  co  papel  que  rinha  ,  fe  refolueo  de  todo  em 
derrubar  a  fortaleza.  Nefte  mefmo  dia  veyo  Cogebiquy 
polia  repoíla  ,  a  que  o  gouernador  diíTe,  que  folgaria  muy- 
to de  aíTentar  paz  com  cl  Pvcy  boa  e  verdadeira  ,  fe  elle 
lha  pidia  com  verdade ,  e  que  paraiíío,  por  hum  efcrito 
feu  aíhnado  por  elle ,  em  que  também  vieíTe  afiinado  o 
Princepe  e  os  regedores  ,  lhe  mandaíle  dizer  a  forma  em 
que  aqueria  :  tornando  o  Cogebiquy  com  eíla  repoíla  vol- 
tou logo  acompanhado  de  hum  dos  regedores  ,  q.ue  o 
gouernador  mandou  receber  pollos  fidalgos  ,  c  lhe  fez 
muytp  gafalhado  ;  o  qual  deípois  de  auer  alguns  recados 
de  parre  a  parte  ,  aílentou  co  gouernador  a  paz  da  maney- 
ra  que  a  pidio  ,  no  que  ouue  alguma  detença  ,  dentro  no 
qual  tem.po  fez  o  gouernador  defpejar  a  fortaleza  de  tu- 
do o  que  auia  nella  afly  de  gente  como  de  fato  ,  e  prin- 
cipal de  toda  a  artilharia  ,  o  que  íe  fez  com  muyto  tra- 
balho por  caufa  da  má  embarcação  :  e  logo  mandou,  mi- 
nar todas  as  torres  e  paredes  da  fortaleza  ,  e  meter  nellas 
muyta  poluora  com  boas  vigias,  por  onde  o  fogo  auia  de 
Part,  L  Aaa  correr 


^yo         Primeyra  Parte  da  Chronlca 

correr  para  ir  dar  nellas  ,  e  tudo  foy  feito  com  tanto  fe- 
grcdo  e  diíTimulaçao  que  nunca  os  mouros  o  fintiraõ  :  e 
lendo  tudo  acabado  como  cumpria  ,  e  a  mór  parre  da 
gente  embarcada  ,  eícreuco  o  gouernador  huma  carta  a 
el  Rey  pollo  melmo  Cogcbiquy  na  fua  Jingoa,  em  que  liie 
daua  os  agardecimentos  polia  paz  que  linha  alTentada, 
aqual  lhe  prometia  guardarlhe  íempre  em  quanto  elle  a 
naô  quebraíle  ,  e  guardarlhe  íeus  portos  e  embarcações 
que  leuaílem  cartazes  léus,  onde  quer  qucfoUem  achadas, 
com  tanto  que  não  foííem  contra  o  concerto  da  paz  ;  mas 
por  quanto  os  Reis  feus  antepalTados  ,  antes  de  auer  aly 
fortaleza  ,  e  elle  defpois  que  a  ouue  mandada  tazer  ha  íua 
inílancia  ,  vindo  os  Portuguífles  tratar  ha  fua  terra  como 
amigos  ,  e  com  boa  paz  ,  elles  todos  a  quebrarão  muytas 
vezes  ,  matando  os  Porrugueíes  ,  e  roubandolhe  íuas  fa- 
zendas ,  elle  auia  que  era  muyto  contra  o  íeruiço  dei  Rey 
feu  íenhor  auer  aly  fortaleza  ,  que  elle  lha  largaua  para 
fazer  delia  o  que  quiíeííe  :  e  que  outra  vez  lhe  tornaua 
a  prometer  e  affirm.ar  que  em  quanto  elle  guardaíTe  a  paz 
lhe  íeria  guardada  inteiramente  :  e  que  lhe  pidia  muyto 
que  a  quifeíle  guardar  por  íe  eícufarem  os  trabalhos  e  ma- 
les que  a  guerra  traz  comíigo  :  e  que  elle  fe  hia  logo  em- 
barcar ,  que  ao  mar  lhe  mandaííe  a  repofta  ,  onde  hia  eípe- 
rar  por  elia.  Partido  o  mouro  com  eíta  carta,  logo  o  go- 
uernador mandou  embarcar  todo  o  reftante  da  gente  ,  e 
cUe  cos  capitães  forão  os  derradeyros  ,  ficando  poílo  o 
fogo  em  modo,  que  em  efpaço  de  cinco  oras  auia  de  che- 
gar has  minas  ,  que  fe  acabauao  has  três  defpois  do  meyo 
dia.  Vendo  el  Rey  a  carta  do  gouernador  mandou  a  gran- 
preíía  ver  o  que  elle  fazia  ,  e  tendo  recado  que  era  embar- 
cado ícm  ficar  coufa  alguma  em  terra,  ardendo  cm  ira 
contra  Cogcbiquy  lhe  diííe,  que  como  tredro  o  enganara 
cncubrindoihe  a  verdade  do  que  fabia  que  o  gouernador 
tinha  detriminado  ;  a  que  o  mouro  le  deículpou  dizendo- 
Ihe  ,  Íenhor  fe  eu  tal  foubera  não  eíliuera  agora  aquy 
c)ue  me  fora  com  elle  ;  porem  el  Rey  como  eíiaua  cego 
ác  cólera  e  da  paixão  lhe  tornou  ;  Ja  que  os  Porrugueles , 

de 


dei  Rey  Dom  João  o  III.         371 

de  que  fempre  me  dizias  tantos  bens  ,  e  de  que  eras   tar 
inanlio  amigo  te  enganarão  ,  rezão  he  que  pagues  tu  por 
clles  ,  e  lhe  mandou  cortar  a  cabeça  ,  e  tomarlhe  quanto 
tinha  ,   e  ás  molheres  e  aos  filhos  ,  de  que  todauia  dous 
efcaparão,  que  embrenhados    pollos   matos  forao   ter  a 
Cananor ,  onde  o  mayor  moílrou  liuma  prouilaõ  delRey 
de  Portugal,  porque  fazia  mercê  a  Cogebiquy  ícu  pay  de 
vinte  mil  reis  de  juro  cada  anno  para  elle  e  para  todos  os 
fcus  decendentes  ,   pagos  em  qualquer  íua  feitoria  que  os 
eJIe  pidiíTe  ,  fem  mais  outra  prouifaõ  de  gouernador  al- 
gum ou   veador  da  fazenda  ;  os  quais  filhos  eftiuerao  dcí- 
pois  em  Cananor  viuendo  muyio  pobremente  pollos  mãos 
pagamentos  que  lhe  fazião  fem  lhe  valer  queixaremfe  aos 
gouernadores  ,   porque  lhe  vieraó  a  alfacar  coufas   com 
que  lhe  tirarão  o  juro  ;  e  defpois  da  morte  do  mais  velho 
o  gouernador  Nuno    da  cunha   mandou  tornar  o  juro  ao 
mais  moço  ,   que  também  ,  por  lhe  íer  mal  pago  ,  veyo  a 
morrer  em  pobreza  e  ao  puro  deíemparo  ,  não  fem  gran- 
de magoa,  e  não  íei  fe  diga  afronta  noíTa,  huns  homens  tão 
beneméritos  dos  Portuguefes  virem  a  morrer  entre  elles 
tão  pobres  e  deícflradamente.  Vendo  os  mouros  de  Cale- 
cut os  noííos  recolhidos  e  embarcados  ,  não   fabendo  o 
que  paflaua  ,  acudirão  muitos  a  ver  o  arrayal  e  a  fortaleza, 
e  achandoa  de  todo  deípejada  ,  entrando  a  vella  por  den- 
tro ,  fe  eípantarâo  de  era  tão  eílreito  lugar  ,  e  tão  cheyo  de 
immundicias  ,  e  desbaratado  dos  pilouros  do  trabuco  fc 
agafalhar  tanta  gente  :  e  aíTentandoíTe  pollos  muros  olhan- 
do para  o  mar  ,  chegou  o  fogo   ha  poluora  das   minas  , 
^ue  arrebentando  cora  hum  efpantofiífimo  terremoto  ,  vo- 
arão poilo  ar  não  lÒmente  os  mouros  ,  mas  tanta  cantida- 
de  de  pedras,  que  todo  o  campo  ficou  cuberto  delias  ,  e 
muytas  paíTarão  por  cima  da  cidade  ,  que  leuantando   hu- 
ma  grande  grita  quafi  fe  defpejou  de  toda  a  gente  »  e  tam- 
bém  no  mar  cahio  muyta  copia  delias  ,  e  pollo  campo  c 
ao  pé  dos  m.uros  fe  achaxão  dos  mouros   mortos  e  aleija- 
dos auantc  de  trezentos.  A  fortaleza  ficou  toda  por  terra  , 
lem  ficar  delia  em  pé  mais   que  hum  pedaço  de  parede, 

Aaa  2  onde 


372^       Primeyra  Parte  da  Chronica 

onde  a  mina  não  tomou  fogo  ,  mas  co  aballo  das  outrai 
ficou  toda  aberta  c  quaíi  para  cair  ,  c  defta  manejra  du- 
rou em  pé  muyto  tempo  ,  até  que  el  Rey  mefmo  a  man- 
dou derrubar  :  da  qual  obra  el  Rey  noílo  lenhor  fe  não 
ouue  por  bem  íeruido.  O  gouernador  fe  deteue  no  porto 
aquelle  dia  rodo  em  que  deípedio  com  muytas  honras  a 
Eiror  da  filueyra  ,  que  fe  foy  ha  íua  fortaleza  de  Cana- 
ror  ,  onde  por  íeu  mandado  fe  fizerão  todas  as  feílas,  que 
a  terra  de  iy  daua  ,  com  huma  fermoía  falua  de  artilharia 
pollo  bom  fuceflo  de  Calecut :  porem  os  mouros  lança- 
rão fama  por  todas  as  partes  ,  que  o  C^amorim  Rey  de 
Calecut  era  o  mor  fenhor  de  toda  a  índia,  pois  liuera 
poder  para  lançar  os  Portugueíes  fora  da  fua  terra  ,  e  fa- 
zerlhe  derrubar  a  íua  fortaleza  :  e  alguns  mouros  princi- 
paes  de  Cananor  efcreueraô  cartas  a  el  Rey  de  Calecut  , 
dandolhe  os  parabéns  daquella  tamanha  vitoria  ,  com 
que  íicara  tão  honrado,  que  todos  os  Reis  e  fenhores  da 
Índia  lhe  aueriâo  íempre  inueja  ,  e  o  meímo  lhe  diziao 
os  mouros  de  Calecut ;  do  que  el  Rey  tomou  tanta  van- 
gloria e  oufania  ,  que  mandou  que  fe  armaflem  muytos 
paraos,  e  foíTem  fazer  por  mar  e  por  terra  quanto  mal 
pudeíTem  aos  Portugueíes.  O  gouernador  deípois  de  def- 
pidir  daly  dom  Simão  com  a  armada  de  remo  e  nauios 
pequenos  para  ir  correr  acofta,  enella  cem  todos  os 
rios  pôr  tudo  a  fogo  e  a  íangue  ,  elle  cos  nauios  groífos 
le  fez  ha  vella  para  Goa  com  detriminaçaô  de  fazer  guerra 
de  caminho  a  toda  a  coíla  ;  porem  os  çurujaos  lho  não 
confcntirão  ,  porque  tinha  huma  chaga  antiga  em  huma 
perna  ja  fiílulada,  que  lhe  cauíaua  grandes  dores  ,  e  co  tra- 
balho do  inuerno  íe  lhe  agrauara  ,  para  que  lhe  rinha  fei- 
tos muytos  remédios  fecretos  ,  encubrindo  íempre  o  mal 
que  íenria  ,  e  naõ  quis  que  lhe  pufeíTem  fogo  ,  que  era  o 
leu  principal  remédio  ,  porque  tinha  por  dauanre  ella 
jornada  de  Calecut  ,  onde  co  trabalho  das  armas  fe  lhe 
corrompeo  a  chaga  ,  de  maneira  que  o  forçarão  os  çuru- 
jãos  a  fe  ir  direyto  a  Cochim  e  porfe  em  cura.  E  fizen- 
doííc  preíles  as  nãos  que  auião  d'  ir  para  o  reyno,  muytos 

lidai- 


dei  Rey  Dom  João  o  IIÍ.  373 

fidalgos,  que  andauao  dergoílofos  delle,  lhe  pídirao  iicen- 
ça  para  íe  embarcarem  ,  a  que  elJe  com  a  fua  natural 
iíençao  a  deu  liurementc,  dizendo  que  naó  auia  miílcr  em 
íua  companhia  íenaõ  os  que  folgaíTcm  de  feruir  el  Rcy  , 
que  eítes  bein  fabia  que  lhe  naÕ  auiao  de  pidir  licença  ;  e 
delejofo  defpois  de  os  fazer  deter  ,  lem  fe  entender  delle 
que  conhecia  o  erro  que  fizera  ,  teue  íobriíTo  tantos  def- 
goftos  que  forao  cauía  de  ir  o  leu  nial  em  muyto  creci- 
mento. 

CAPITULO     LXXXXIL 

yorfe  dalbuquerque  capitão  de  Malaca  parte  para  a  hu 
dia,  e  o  que  lhe  pi  cede  antes  de  chegar  a  Cochim»  António 
de  brito  capitão  de  Maluco  manda  huma  fujta  a  rej ga- 
tar ha  ilha  dos  Celebes  ,  e  o  que  lã  acha.  DaJJe  conta  de 
hum  as  grandes  diff crenças  que  ha  em  Maluco  antre  An- 
tonio  de  brito  e  dom  Garcia  anriquez» 

Oríe  dalbuquerque  ,  defpois  de  entregar  a  fortale- 
za de  Malaca  a  Pêro  mazcarenhas  ,  na  mouçaõ  fe  par- 
tio  para  a  índia  em  hum  junco  íeu  armado  ha  Portugue- 
Í2L  com  corenta  homens  Portuguefes  feus  amigos  e  cria- 
dos ,  e  naÕ  quis  tomar  da  fortaleza  nauio  Português  ,  por- 
que vio  que  auia  nella  neceíTidade  de  mais  nauios  que  os 
que  tinha  :  e  Fazendo  íua  viagem  com  profpero  tempo, 
ja  perto  de  Cochim  lhe  fahio  o  arei  de  Porcaa  com  al- 
guns tones  armados  com  berços,  e  muytos  frecheyros 
nelles  ,  cuidando  que  vinha  doutra  maneyra  ,  mas  tanto 
que  chegou  a  tiro  ,  o  junco  os  fez  fugir  a  todos  ,  e  che- 
gou a  Cochim  ,  onde  deu  ncuas  do  que  era  paílado  em 
Malaca  e  Maluco  tile  anno  de  ifi^  ,  que  he  o  que  fe  íe- 
gue.  Atras  fica  dito  que  António  de  brito  e  dom  Garcia 
anriquez  em  Maluco  íe  concertarão,  que  António  de  bri- 
to no  Agcfto  leguinre  entregaria  a  fortaleza  a  dom  Gar- 
cia, e  íe  padaria  a  hum  lugar  duas  legoas  da  fortaleza 
até  acabar  hum  junco  que  aly  fazia,  e  o  Iei'ar  comíigo 
para  Alalaca.  Durando  cíle  tempo  António  de  brito  ar- 
mou 


374       Pnineyra  Parte  da  Chroiúca 

mou  huma  fuíla  com  vinte  e  cinco  Portuguefes  ,  de  qué 
fez  capitão  o  almoxarife  ,  em  que  meteo  muytas  roupas, 
e  a  mandou  que  foíTe  refgatar  ha  ilha  dos  Celebes  ,  onde 
lhe  dizião  que  auia  muyto  ouro  ,  que  era  feílenta  legoas 
de  Ternate  :  chegando  os  noíTos  ha  ilha,  foraõ  recebidos 
dos  moradores  delia  com  muyto  gafalhado  ;  porem  quan-» 
do  íouberão  que  os  noflos  hiáo  relgatar  ouro  ,  receofos 
que  deípois  de  feito  o  reígatc  os  quiíeííem  roubar  ,  e  fa- 
zerlhe  alguns  males  ,  detriminarao  tomar  a  fuíla  ,  e  dar 
a  morte  a  todos  os  noíTos  ,  que  não  ficaffe  quem  pudeíFe 
leuar  a  nona  a  Ternate  ;  e  huma  noite  eftando  elles  dor- 
mindo dentro  na  fuíla  feguros  e  defcaníados  ,  os  da  terra 
com  fuás  armas  fe  vierao  ha  praya  ,  donde  torao  outros 
a  nado  que  cortarão  a  amarra  da  fuíla  e  a  começarão  a 
alar  a  terra;  porem  tanto  que  tocou  o  fintirao  os  noíTos, 
que  tomando  as  armas  começarão  a  ferir  e  matar  os  que 
acharão  diante  ,  com  que  os  outros  fe  puferao  todos  em 
fugida,  e  os  noílos  foraõ  dali  correndo  outras  ilhas,  on- 
de os  nao  quiíerão  confentir  ,  com  que  lhes  foy  forçado 
voltarem  para  Maluco  ,  e  por  lhe  ferem  os  ventos  con- 
trários forão  por  outro  caminho  ,  em  que  correrão  gran- 
des tormentas,  e  forão  ter  a  huma  ilha,  onde  acharão  bom 
recolhimento  e  gafalhado,  de  que  a  gente  aíTy  homens 
como  molheres  íaó  de  bons  corpos  ,  e  baços  da  cor  :  o« 
veílidos  erão  compridos  da  cinta  para  baixo  fomente  ,  e 
íe  cubrião  com  outros  muytos  bons  feitos  de  palha  de 
Junco  :  a  terra  era  muyto  viçoía  de  aruoredos  e  rios  da- 
goa  ,  ha  nelia  muytas  galinhas  ,  cabras  ,  c  cocos  ,  e  he  tão 
•iadia  que  dos  noííos  os  que  hião  doentes  em  entrando 
Jiella  receberão  íaude  ,  aquy  fe  deiiuerao  coatro  mefes  até 
que  tiuerão  mouçaô  para  íe  tornarem  a  Maluco  ,  onde  fo^ 
rao  recebidos  com  muyta  fcíla  porque  os  tinhao  por  per- 
didos. Nelle  meyo  tempo  os  homens  que  ferulraò  com 
António  de  brito  ,  que  crao  muytos  ,  ajuntauao  todo  o 
crauo  que  podiao  para  íuas  veniagas  ;  porem  receando 
que  dom  Garcia  os  naó  deixalTe  embarcar  ,  nem  lhe  man- 
daíle  paliar  as  certidões  dos  foldos  que  fe  lhe  dcuiaõ  ,  ne* 


delRcy  Dom  João  o  IH.  375- 

gocearão  com  António  de  brito,   que  antes  de  largar  o 
cargo  lhes  mandou   tirar  eítas  certidões   íecretamente'ícm 
o  laber  dom  Garcia,  e  co  mefmo  fegredo  mandou   leuar 
tudo   oque  lhe  era  necclTario   para  o   íeu  junco  ,  por  não 
Jho  pidir  deipois,  e  tudo  lhe  dauao  os  officiais    dei  Rev 
polia  amizade  que  linhão  com  elle.  Chegado  Agoílo  An- 
tónio  de  briro  entregou  a  dom  Garcia  a  fortaleza  com  al- 
gumas obras  inda  por  fazer ,  para  que  nao  derão  lugar  of 
trabalhos  e  ocupações  da  guerra  :  e  deita  mancyra  íe  ouue 
dom  Garcia  por  entregue  delia.  António  de  brito   fe  pal- 
iou logo  para  o  lugar  onde  tinha  o  íeu  junco  ,  c  com  ellc 
íe  foraô  todos  os  que  efperauao  de  ir  com  elle  para  Ma- 
laca ,  em  forma  de  o  acompanharem  fomente  naquelle  ca- 
minho ,  como  a  quem  fora  feu  capitão  ;   mas  como  ja  lá 
tinhaõ  todo  íeu  fato  ,  que  fizerao  leuar  diflimuladamc^nte, 
naõ  le  quiíerão  tornar  para  a  fortaleza  ,  em  que  dcm  Gar- 
cia nao  atentou   alguns  dias,  mas   aducrtindoíTe  deipois 
diílo  ,   ou  não  faltando  quica  quem  lho  diíTelíe  ,  efcreueo  a 
António  de  brito  ,   que  lhe  mandafse  a  gente  de  que  tinha 
muyta  neceíTidade;  a  que  elle  refpondeo,  que  tanto  que  lan- 
çaíle  aomar  o  íeujunco,  que  auia  de  fer  nas   agoas  vi- 
uas  ,  lha  mandaria  toda.  Dom  Garcia  entendendo  que  era 
ifto  inuençâo   para  lha  não  mandar  ,  lhe  fegundou   com 
outro  recado  de  muytos  comprimentos  e  corteíía  ,  pidin- 
do   quelhemandafle  agente  ,  e   nao  trataííe    de  a  leuar 
comíigo,  poisfabia  quanto  importaua  ao  feruiço  dei  Rey 
ficar  naquella  fortaleza   para    guarda  e  defcnfaÓ    delia,  e 
mandandolhe  após  efte  outros   muytos    recados   íem  pro- 
ueyto,    lhe  mandou  ultimamente    proteftos  e  requerimen- 
tos por  eícrito  em  feu  nome  ,  e  de  lodos  os  officiais  da  for- 
taeza,  a  que  António   de  brito  refpondeo  lempre   com 
dilações.  Eílaua  neíte  tempo   no  porro  da  fortaleza   o   na- 
uio  em  que  António  de  brito  fe  auia  de  embarcar  ,  e  por 
con-eiho  de  todos  lhe  mandou  dom  G^^rcia   tomar  as  vel- 
Jas  e  o  leme  ,   e  particularmente  as  bombas  ,    porque    não 
tinha   tempo  para  fe  proucr  d'outras.  Chegadas  as  nouas 
aiíto  a  António  de  brito  ,  todos  os  que  eílauão  para  íe 

em- 


37^         Primcyra  Parte  da  Chronlca 

embarcar  com  elle  ,  e  leucir  fuás  fazendas ,  fe  lhe  oíFercce* 
rao  a  irem  com  mão  armada  dentro   ha  fortaleza   tomar 
as  Yelias  o  leme  e  as  bombas  ,  e  meteremfe  no  nauio  ,  e 
íobre   ido  prenderem   dom  Garcia  ,  e  matarem  quantos  o 
quifeirem  defender  ,  porque  todos  eílauao  muyto  íeatidos 
de  dom  Garcia  nos  feus  requerimentos   os   mandar  pidir 
nomeados  por  íeus  nomes.  António  de  brito,  que  também 
eílaua  cheyo   de    cólera,  lhe   aceitou  os  offerecimentos  , 
c  fem  atentar  no  erro  que   cometia   fe  íoy  com  elles^com 
íuas  armas  ,   e  diante  da  porta  da  fortaleza  fe  meterão  no 
nauio  ,  foltando  mujtas  palauras  eícandalofas,  edizendo, 
vejamos  quem  nos  defenderá  leuarmos  eíle  nauio.  O  que 
viílo  por  dom  Garcia  ,  confiderando  os  males  que  íe   por 
aquY  comecauão  de  ir  aparelhando  ,  mandou  ao  nauio  o 
ouuidor  com  hum  tabaliao  fazer  requerimento  a  António 
de  brito  ,  e  a  todos  os  que  eftauão  com  elle   da  parte  dei 
Rey     que  lhe  obedeceflem  ,  pois  era  capitaÒ  daquella  for- 
taleza  em  pedoa  dei  Rev  ,  e  logo  íe  faiíTem  do  nauio  ,  e 
rendeííem  as  armas,  e  fe  foílem  ha  fortaleza  íopena  de  tre- 
dorcs  aleuantados  ;   a  que  todos  dcraó  grandes  apupadas 
era  modo  de  efcarneo  dizendo,  que  António  de  brito  era 
capitno  daquella  fortaleza  até  íeu  tempo  fer  acabado ,  e 
não  dom  Garcia  ;   com  a  qual  repoíla  o  capitão  foy  acon- 
íelhddo  de  todos  os  oíficiais,  que  mandaíie  de  fora  a  gran- 
des vozes  fazer  outro  requerimento  e  protefto  que  íe  íaií- 
fem  logo  do  nauio  ,  e  fe  o  nao  fizeílem  o  mandaíie  meter 
no  fundo  com  a  artilharia  da  fortaleza  ,  que  para  ilTo  man- 
dou ao  condeílabre  que  a  puíeííe  em  ordem.  Auifado  diíto 
Cachildaróes  ,  como  era  muyto  amigo  de  António  de  bri- 
to ,  fe  foy  ter  com  dom  Garcia  ,  e  lhe  eílranhou  nuiyto 
o  que  paíTaua  antre  elies ,  fendo  ambos  vaíTailos  dei  Rey 
de  Portugal ,  e  de  íy  taÓ  honrados  ,  principalmente  eitan- 
do  em  terra  eítranha  taò  longe  da  lua  ,   c  trás  efta  lhe  deu 
outras  rezoes   afcandolhe   o  cafo  i   a  quem   dom  Garcia 
deu    também  as  luas  alegandolhe  os  comprimentos  que  li- 
uera   com  António  de  brito  ,  e  os  proteílos  e  requerimen- 
tos que  lhe  íiaera.  O  Cachildaróes  como  era   bom  para 
^  íeus 


dei  Rey  Dom  João  o  11  [.  57^ 

feus  intentos  nao  fícnr  miiyra  gente  na  fortaleza  ,  para 
que  a  dom  Garcia  folTe  forçado  nas  fuis  neceílidades  va- 
Jerfc  dellc  .  tomou  a  mao  a  íe  meter  antre  elles  ,  para  fa- 
zer o  negocio  como  lhe  a  elle  cumpria  ,  e  os  concerroii 
que  leuaíle  António  de  brito  o  nauio  para  onde  cílaua  o 
íeu  junco  ,  prometendo  a  dom  Garcia  que  Jogo  lhe  man- 
daria a  gente,  o  que  deípois  nao  cum.prio  ,  com  que  por 
meyo  de  homens  reuohofos  fe  tornarão  a  trauar  de  ma- 
neyra  ,  que  os  quecftauad  na  fortaleza  fugiao  para  An- 
tónio de  brito  ,  e  os  de  António  de  brito  para  dom  Gar- 
cia: é  chegou  a  cou^a  a  tanto,  que  por  induzia;ento  deíles 
^áos  homens  fe  detriminou  António  de  brito  em  matar 
dom  Garcia,  para  o  que  ordenou  irlhe  faiar  com  aiíru- 
nia  difFimuiaçaÔ  ,  e  que  os  que  leuaíTe  comíigo  lhe  dentam 
a  morte:  do  que  dom  Garcia  foy  auifado  lecreramcnte, 
e  o  teue  em  muyto  íegredo  ,  pondo  boa  guarda  em  íua 
peíToa  :  e  fendolhe  dado  recado  de  António  de  brito  ,  que 
fe  queria  ver  com  elle  para  porem  luas  coufas  em  paz  , 
IUq  refpondeo  ,  que  nao  ufaíTc  de  mãos  modo?,  e  lhe  lem- 
braíTe  quem  era  ,  c  logo  mandou  ao  ouuidor  que  liraííe 
áeuafsa  da  traição  que  íe  lhe  armaua  ,  de  que  António  de 
brito  ouue  medo  que  lhe  viefse  a  fazer  muyto  dano,  e 
para  fc  íegurar  deite  receyo  bufcou  hum  nouo  ardil  ,  que 
foy  mandar  hum  Mem  de  lima  muyto  feu  amigo  de  quem 
fe  íiaua  ,  que  fingindo  que  ouuera  differenças  em  pubrico 
com  António  de  brito  de  que  ficara  afrontVio,  fe  foy  pa- 
ra dom  Garcia  moílrandofse  muito  fentido  da  afronta  que 
recebera  de  António  de  brito  ,  c  fe  lhe  oííercceo  para  o  ir 
matar  fe  lhe  elle  deíse  licença  ,  aísy  polia  injuria  que  lhe 
fizera,  como  porque  fora  tredro  contra  elle,  e  contra  a 
coroa  real  :  dom  Garcia  como  era  muyto  auifado  parece 
que  entendendo  ou  íofpcitando  a  tenção  do  Mem' de  li- 
ma lhe  refpondeo,  que  elle  era  muyto  amigo  e  feruidor 
do  íenhor  António  de  brito,  que  le  antre  elles  ouuera 
diferenças  fora  por  coufas  que  cumpriaõ  ao  íeruiço  d'el 
Rey  ,em  que  cada  hum  cumpria  com  íua  obrigação,  que 
iígo  acabado  ficarão  outra  vez  muyto  amigos  ,  que  da8 
J^a^^*  ^'  Bbb  pauoiis 


378       Primeyra  Parte  da  Chronica 

paixdes  que  elle  tiuera  com  António  de  brito  lhe  pefaija 
niuyto  ,  mas  como  craô  antre  amigos  feria  facil  de  íoldar 
efsa  quebra  ,  e  com  ifto  o  derpidio  Tem  auer  cffeito  o  íeu 
ardil  :  dom  Garcia  com  tudo  efcreueo  a  António  de- brito 
cue  de  todos  os  fcus  coníelhos  elle  era  fabedor,  porque  os 
mefmos  que  lhos  dauao  lhos  vinhac  defcubrir,  c  eíla  car- 
ta mofirou  a  Martim  correa  alcaide  mor,  e  ao  feitor,  ouui- 
dor  ,  e  cícriuães  da  feitoria  ,  com  que  fe  leuantarao  outras 
rou'^  zizanias  que  durarão  até  o  tempo  da  mouçao  ,  em 
que  Anronio  de  brito  fe  partio  deixando  a  fortaleza  muy- 
to  desbaratada  de  todas  as  coufas  ncceísarias  ,  por  onde 
foy  forcndo  ?.  dom  Garcia  mandar  Martim  correa  a  Ban- 
da em  hum  nauio  hufcar  roupas,  e  o  m.ais  de  que  a  fortale- 
za tinha  falta,  porque  em  Malaca  auia  diíío  pouca  lem-, 
branca. 

CAPITULO    LXXXXIII. 

A  Ifante  dona  Jfahel  irmam  dei  Rey  mjjo  fenhorje  recehe 
por  duas  vezes  por  palauras  de  prejente  co  Lmperador 
Carlos  quinto  por  meyo  dos  f eus  embaixadores  ;  ò,  A.  con- 
vida eftes  embaixadores  a  jantarem  com  elle  ;  a  hmpera- 
triz  'parte  para  Cafiella  ;  fazfe  delia  entrega  aos  que 
de  lá  trouxerão  poder  para  a  receber  \  declarajje  quem 
faõ ;  el/a  entra  em  Seuilha  ,  onde  o  Emperador  a  recebe, 
A  Rainba  nojja  jenhora  psre  ofeuprimejrofilho. 

PAíTado  el  Rey  noíTo  íenhor  da  rilla  de  Torres  nouas 
para  a  de  Almeyrim,  como  atras  diíTemos  ,  logo  or- 
denou que  íe  fizeae  o  recebimcnso  por  palauras  de  prc- 
jentc  da  Ihnte  dona  líabcl  íua  irmã  co  Emperador  Carlos: 
para  o  que  o  primeyro  dia  domes  de  Nouembro  ja  de 
noite  fe  íahio  ha  fala  dos  feus  paços  (  que  para  eíte  a«o 
cftaua  ia  armada  de  riquiíTima  tapeçaria  de  ouro  c  leda 
com  hum  rico  dorfel  de  brocado  de  pelo  )  com  a  Rainha 
iioíía  fenhora  ,  e  a  Ifante  fua  irmam  ,  onde  ja  eftaua  Carlos 
|)opçt9  monfiour  de  laChaulx,  embaixador  e  baftante  pro- 


dei  Rey  Dom  João  o  IIL  37^ 

Curador  do  Emperador  para  a  receber  em  íeu  nome  ;  para 
o  qual  adio  dom  Fernando  de  vaíconcellos  Biípo  de  La- 
inego  capcllão  mor  de  S.  A.  que  aly  eftaua  preíentc  ,  ea 
quem  ifto  eftaua  encomendado  em  voz  que  de  todos  foy 
bem  ouuida  diíTe  eftas  palaurns  :  Anrrc  o  muyro  alto  ,  e 
muyto  poderofo  Rey  noíTo  fcnhor  ,  e  o-muyto  alto  e  muy- 
to  poderofo  íenhor  dom  Carlos  Emperador  dcs  Rcmaos, 
Rey  de  Alemanha  e  Caílella  &c.  he  concertado  c  contrata- 
do que  o  dito  fcnhor  Emperador  aja  de  cafar  com  a  muy- 
to alta  e  muyto  eíclarecida  Princefa  a  fenhora  Ifantc  dona 
Ifabel,  fobre  o  qual  concerto  forão  feitos  juramentos,  que 
difpeníando  o  S.  Padre  para  íe  o  cafamento  poder  efteituar, 
os  ditos  íenhores  Emperador  e  íenhora  Ifante  íe  recebe- 
rião  por  palaur?.s  de  prefenre  ,  por  ao  dito  tempo  a  dif- 
pcnfação  náo  fer  moftrada  ,  c  por  ora  dita  diípenfaçao 
ler  vinda  ,  quer  el  Rey  noíío  fenlior  que  V.  A.  (  falando 
com  a  Ifante  )  cumpra  por  íua  parte  o  dito  juramento  , 
porque  o  dito  íenhor  Emperador  polia  fua  o  quer  cumprir 
por  Carlos  popeto  feu  embaixador  e  procurador  ncfte  ca- 
íb  ,  eV.  A.  dirá  eílas  palauras  :  Eu  a  Ifante  dona  líabel 
por  vos  Carlos  popeto  ,  e  vos  mediante  ,  como  embaixa- 
dor e  procurador  para  eíle  cafo  de  dom  Carlos  Empera- 
dor dos  Romaos,  Rey  de  Alemanha  e  Caftella  ,  &c.  rece- 
bo ao  dito  dom  Carlos  Emperador  por  meu  marido  bom 
e  lídimo  ,  e  me  dou  por  fua  molher  como  manda  a  S.  Ma- 
dre Igreja  de  Roma.  E  pondo  o  dito  Bifpo  de  Lamego  os 
olhos  no  Carlos  popeto  lhe  diíTe  ,  e  vos  magnifico  embai- 
xador direis  eílas  palauras  :  O  muyto  alto  e  muyto  pode- 
rofo íenhor  dom  Carlos  Emperador  dos  Romaos,  Rey  de 
Alemanha  e  de  Caílella  &c.  por  mim  Carlos  popeto  feu 
embaixador  e  procurador  ncfte  caio  ,'e  eu  mediante  ,  rece- 
bo a  vos  muyto  alta  e  m.uyto  efclarecida  princefa  Ifante 
dona  Ifabel  por  íua  molher  bcn  e  liciima,  e  le  dá  por  voíTo 
marido  como  manda  a  S.  Madre  Igreja  de  Roma  :  com 
que  íe  acabou  o  a(5lo  do  juram,ento  ,•  porem  naquelle  bre- 
ue  da  diípenfaçao,  que  então  viera  de  Romn  ,  ouue  duuida 
antrc  letrados  íe  era  baftante  para  íe  cífcituar  o  caíameni- 

Bbb  2  to  , 


380  Primeyra  Parte  da  Chroníca 

to  ,  parecendo  que  lhe  faUauao  algumas  clauíulas  necelTa»* 
rias  ,  por  quanro  o  Emperador  e  a  Emperatriz  erão  paren- 
tes em  muytos  grãos:  e  com  quanto  para  o  foro  interior  íe 
detrimiuou  que  era  íufliciente  ,  com  tudo  para  mór  fegu- 
rsnça  íe  íupplicou  de  nouo  ao  Papa  ,  que  quileíle  conce» 
der  aq.uella  dirpenfaçao  em  mais  largo  modo  ,  o  que  o 
Emperador  tomou  fobre  fy  para  o  mandar  fazer.  -Logo 
como  is  acabou  o  auto  do  juramento  ,  a  Emperatriz  fez 
huma  grande  reucrencia  a  el  Rey  fcu  irmão  ,  e  poíta  em 
joelhos  ihe  beijou  amao  ,  e  ha  Rainha  noOa  fenliora  ,  o 
que  fez  quafi  por  força  ,  porque  em  ambos  achou  bem 
grande  refiílencia  para  lha  darem  ;  e  aoós  ella  beijarão 
tnmbem  a  máo  a  el  Rey  e  ha  Rainha  os  Ifantes  íeus  ir- 
mãos ,  e  a  ella  fizerao  leu  deuido  acatamento  :  dos  Ifanres 
o  que  primeyro  beijou  a  mão  a  íuas  Altezas  foy  o  Cardeal 
dom  Afonío  ,  o  fcgundo  o  Ifanre  dom  Luis  ,  o  terceyro 
o  Ifante  dom  Fernando  ,  o  quarto  o  Ifante  dom  Anrique, 
e  o  derradeyro  o  Ifante  dom  Duarte:  e  logo  após  elles  fi- 
zerao o  mefmo  monfiour  de  la  Chaulx,  e  João  de  çunhiga 
embaixadores  do  Emperador,  e  após  ellcs  o  fizerao  tam- 
bém todos  os  fenhores  que  na  caía  eftauão  ,  e  após  iílo 
beijarão  tainbem  todos  a  mão  ha  Emperatriz.  Acabada 
efta  cirimonia  quis  S.A.,  que  ouuelTe  logo  ferão  na  mefma 
íala  ,  e  para  iilo  fe  aílentarao  elle  e  a  Rainha  no  eítrado 
em  almofadas  de  brocado  ,  porque  naô  quiferao  então 
fentaríe  em  cadeyras  como  outras  vezes  cufcumauao  nos 
íeroes  ,  e  no  meyo  de  ambos  fizerao  aíTentar  a  Empera- 
triz fícandolhe  el  Rey  de  huma  parte  ,  e  a  Rainha  da  ou- 
tra :  eíle  ferão  ,  que  fc  fez  com  muyto  vagar ,  e  aparato^ 
durou  até  quafi  as  duas  oras  defpois  da  meya  noite  ,  e  dan- 
çarão nelle  a  Rainha  com  a  Emperatriz  ,  e  el  Rey  com 
dona  Anna  de  tauora  ,  e  os  Ifantes  dom  Luis  e  dom  Fer- 
nando com  as  damas  de  que  mais  fe  contentarão.  Ao  ou- 
tro dia  feguinte  quis  S.  A.  que  os  embaixadores  do  Em-» 
perador  jantaíTem  cora  elle  ha  mefa  ,  para  o  que  também 
forão  conuidados  o  Cardeal  e  os  Ifantes  dom  Luis  e  dom 
Fernando  íeus  irmãos ,  onde  o  Cardeal  eíteue  mais  che-». 


dei  Rey  Dom  João  o  III.  7^  8 1 

gado  a  el  Rey  ,  e  pegado  com  elle  o  Ifaníe  dom  Luis ,  e 
Jogo  o  Ifaine  dom  Fernando  ,  e  após  elle  o  moniiour  de 
Ja  Chaulx  ,  e  no  topo  da  meia  abaixo  de  la  CJiauIx  ficaua 
João  de  çunhiga  :  a  cíles  embaixadores  vinha  tudo  corta- 
do da  copa,  e  aííy  lhe  erao  poíl:)s  as  igoarias  ,  e  léus 
criados  lhe  dauao  de  beber,  e  naó  ouue  na  meia  mais  of- 
iciais que  os  ordinários  dei  Rey  e  dos  Ifantcs  ;  e  o  ícr- 
uidor  da  toalha  ,  que  eílaua  mais  abaixo,  preíenraua  aos 
em.baixadores  as  igoarias  na  form.a  que  vinlião  da  copa  , 
c  naõ  íe  deu  agoa  has  mãos  aos  embaixadores. 

Aos  vinte  dias  de  Janeiro  do  anno  feguinte  de  1526 
fe  tornou  a  receber  a  Empcratriz  co  melm.o  moniiour  de 
Ja  Chaulx  por  meyo  do  m.efmo  Bifpo  de  Lamego  ,  e  cos 
mefmos  termos  e  palauras  de  que  uíara  no  outro  recebi- 
mento ;  o  qual  antes  de  fazer  eíle  fegundo  ado  decla- 
rou pubricamente,  como  era  vinda  outra  difpenfaçáo  con- 
cedida pollo  Papa  Clemente  fetimo  ,  em  que  declaraua  e 
particularmente  efpicificaua  todos  os  parentefcos  que  auia 
antre  a  Emperatriz  e  o  Emperador,  da  qual  o  breue  vinha 
em  tão  ampla  forma  como  conuinha  ,  de  que  foy  feito 
lium  auto  pubrico  polío  fecretario  António  carneyro  co- 
mo pubrico  notário  ,  em  que  aíhnarao  os  embaixadores 
doEmperador  moniiour  de  la  Chaulx  ,  e  João  de  çunhi- 
ga ,  e  ao  pé  delle  fe  tresladou  o  breue  da  difpeníaqaõ  de 
verbo  ad  verbum  :  feitas  cilas  íolenidades  com  que  de 
todo  íe  acabou  de  concluir  aquelle  defpoforio  ,  venda 
S.  A.  que  ja  naó  auia  coufa  que  pudeiíe  entreter  a  partia 
da  para  Caílella  da  Emperatriz  fua  irmã  ,  como  então 
Jhe  rinha  ja  preiles  quanto  para  ella  lhe  era  neceiíario  ,  naô 
a  quis  dilatar  mais  :  na  qual  jornada  tinha  ordenado  que 
a  acompanhaíTem  até  a  raya  de  Caílella  ,  e  ahy  a  entregaf- 
fem  aos  que  de  lá  trouxeílem  baftantes  poderes  pêra  a  re- 
ceberem ,  os  Ifantes  dom  Luiz  ,  c  dom  Fernando  fcus 
irmãos  ;  e  em  íua  companhia  o  duque  de  Bargança  ,  eo 
marqucz  de  Villareal  dom  Pedro  de  meneies  ,  ao  qual 
nandou  el  Rey  nofío  íenhor  que  foíle  com  a  Emperatriz 
até  onde  eíliueííe  O  Emperador ,  e  aífiílilTc  ao  íeu   recebi- 

nunto 


3Í^2         Primeyra  Parte  da  Chronica 

mento  e  deíTe  ordem  para  le  lhe  pagar  o  feu  dote,  e  fé 
cobrarem  as  quitações  delle  ,  e  fe  fazer  a  aualiaçao  das 
fuás  joyas  ,  e  íc  tomar  poíle  das  villas  e  cidades  que  o 
Emperador  hipotecaua  para  pagamento  das  cincoe^ta  mil 
dobras,  que  daua  ha  Emperatriz  para  íuílentaçao  de  íua 
cala  .•  o  que  fe  auia  de  f^izer  pollos  doutores  António 
d'azeuedo  ,  e  Lourenço  garcês.  E  neíta  jornada  mandou 
também  S.  A.  Fernão  d^alurez  d'  Andrada  íeu  tiíoureyro 
mór  (  ao  qual  officio  todo  o  tempo  que  o  íeruirao  clle,  e 
íeus  filhos  ,  os  Reys  paíTados  deftes  reynos  derão  muytas 
preeminências  ,  eifençoes,  que  defpois  os  Reys  feus  fu- 
ceíTores  ouuerao  por  íeu  feruiço  mandaremlhe  tirar  e  mu- 
dalo  noutra  forma  )  para  mandar  pagar  os  gaftos  delia  , 
e  correr  por  elle  em  Caftella  o  pagamento  do  dote  da 
Emperatriz  ,  e  cobrar  as  quitações  delle  ,  c  aífiílir  ha  aua- 
liaçao das  fuás  joyâs  em  companhia  do  marquez  de  villa 
real ,  em  que  S.  A.  e  a  Emperatriz  fe  ouuerão  por  muyto 
berii  feruidos  de  Fernão  d'alurez  ,  e  a  Emperatriz  particu- 
larmente lhe  fez  por  ifTo  muyras  honras  e  mercês.  Chega- 
do o  dia  e  a  hora  em  que  a  Emperatriz  fe  auia  de  partir , 
que  foy  no  fim  de  Janeyro  de  1^26  ,  lias  duas  horas  def- 
pois do  meio  dia  ,  deípois  de  ít*  defpidir  de  fuás  Altezas 
com  aquellas  moítras  de  fentimento  de  ambas  as  partes 
■que  íê  deixao  bem  entender ,  fe  partio  a  Emperatriz  de 
Afmeyrim  ,  acompanhada  dos  Ifantcs  feus  irmãos  ,  do  du- 
que de  Bargança  ,  do  marques  de  Villareal  ,  e  de  outros 
muytos  fidalgos  nobres  que  auião  de  ir  com  ella  na  jor- 
nada ,  e  em  poucos  dias  chegou  ha  cidade  d'Eluas.  Ja 
«eíle  tempo  cílauão  em  Badajoz  para  tomarem  entrega 
delia  dom  Fernando  d'Aragdo  duque  de  Calábria  ,  e  dom 
Afonfo  da  fonfeca  Arcebiípo  de  Toledo  ,  e  dom  Aluaro 
de  çunhiga  duque  de  Bejar :  co  Arcebifpo  de  Toledo 
vinhao  oBifpo  de  Placencia  ,  e  dom  Fernando  da  íilua 
conde  de  Cifucntes  ,  e  dom  Pedro  d*ayala  conde  de  Fu- 
eníalida  ,  e  dom  Afonfo  dazeuedo  conde  de  Monterrey  , 
e  o  conde  de  Ribagorça ,  e  o  conde  dom  Fernando  de 
Andrada ,  c  outros  muytos  fidalgos  :  co  duque  de  Bejar 


dêlRey  Dom  João  o  III.  383 

Mão  o  conde  de  Aguilar  ,  e  dom  Pedro  de  Auila  que  de- 
pois loy  marqucz  das  Nanas.  Veyo  aquy  tambcm  dom 
João  Afonfo  de  Guzman  duque  de  Medina  Sidónia,  em 
cuja  companhia  veyo  dom  Francifco  de  (^unhiga  y  íoto 
mayor  marquez  de  Ayamonte  ,  e  conde  de  Venaicacar  ,  e 
outros  muytos  fidalgos  ,  e  ícnhores.  Dcfpois  que  a  Em- 
peratriz  defcanfou  em  Eluas  alguns  dias  do  trabalho  do 
caminho,  no  dia  que  íe  aprazou  para  íe  fazer  a  entrega, 
fahio  de  Eluas  com  toda  a  Tua  companhia  :  e  de  Badajoz 
lairão  rodos  os  íenhores  Caílelhanos  ,  com  ricos  e  luílro- 
los  atauios  em  ambas  as  partes,  quanto  o  tempo  então  o 
permitia  ,  e  antes  de  chegarem  ha  raya  de  ambos  os  rey- 
nos  hum  pequeno  eípaço  ,  a  Emperatriz  le  pâffou  da  li- 
teyra  em  que  hia  a  huma  faca  branca  ,  onde  deípois  de 
lhe  beijarem  a  mão  todos  os  Porlugueíes  por  íua  ordem  , 
€  fe  delpidirem  delia  ,  os  Ifantes  Teus  irmãos  le  chegarão 
com  elia  ha  raya  .  e  aly  portos  apé  todos  os  fenhorcs  Ca» 
ftelhanos  ,  lhe  beijarão  também  a  mão  ,  e  poílos  após  iíTo 
acauallo  le  ajuntarão  cos  Portugueíes  ,  e  fizerão  todos 
hum  grande  e  eípaçoío  circuito  ,  que  daua  de  íy  hum  bem 
fermofo  ,  e  luftrofo  efpeítaculo  ,  ficando  a  Emperatriz  na 
meio  de  todos  elles.  O  duque  de  Calábria  então  ,  e  o  Ar- 
ccbifpo  de  Toledo  ,  e  o  duque  de  Bejar  ic  chegarão  a  ella ,. 
e  o  fecretario  do  duque  de  Calábria  por  Teu  mandado  leo 
em  alfa  voz  o  poder  que  trazia  do  Emperador  para  íe  en- 
tregar delia  :  e  após  iílb  lhe  diííe  o  meímo  duque  ,  que 
vide  Tua  Mageílade  o  que  msndaua  :  a  que  ella  com  fem- 
brante  graue  e  quieto  não  tornou  repelia  ,  mas  p  Ilante- 
dom  Luiz  tomando  então  a  rédea  da  faca  em  que  ella  efta- 
ui  ,  dilíe  ao  duque  :  Eu  entrego  a  voíTa  Excellcncia  a  Em- 
peratriz minha  íenhora  ,  em  nome  dei  Key  de  Portugal 
meu  fenhor  ,  e  irmão  ,  como  efpola  que  he  do  Emparador 
Carlos.  E  dito  ifto ,  apartandofle  da  mão  direyta  da  Empe- 
ratriz onde  então  eftaua  ,  le  chegou  o  duque  ,  e  tomou  a 
rédea  que  o  Ifante  ainda  tinha  na  mão  ,  dizendo  que  fe 
daua  por  entre|,uj  de  fua  Mageílade  em  nome  do  Empe- 
rador feu  íenhof  :  após  as  quais  cerimonias  ,  chegandoíle 


3  S I         Pri  m  eyra  Parte  da  C h  ron ica. 

os  Ifcintes  ha  Emperatriií  pára  lhe  beijarem  a  mão  ,  e  fe 
dcrpedirem  delia  ,  os  abraçou  com  muyta  corteíia  ,  e  aca- 
tamento ,  e  fe  deipedirão  com  moítras  de  miiyto  íentimen- 
to  de  parrc  a  parte.  A  Emperatriz  íe  recolheo  logo  daly  a 
Badajoz  ,  onde  fe  deteue  iete  dias  ,  e  íe  par  tio  para  Seui- 
Iha  :  e  na  entrada  de  Março  de  152o  entrou  naquella  ci-- 
dade ,  onde  lhe  foy  feito  hum  funtaoíiíTimo  recebimento  , 
e  da  liy  a  poucos  dias  entrou  o  Etnperador  na  meíma  ci- 
dade ,  e  fe  recebeo  logo  com  a  Emperatriz  com  as  íoleni- 
dades  e  feílas  deuidas  a  tal  ado  como  aquelle.  Logo  aos 
14  dias  do  mes  de  Feucreyro  feguinte  defce  mefmo  anno 
de  1526  teue  a  Rainha  dona  Caterina  noíla  fenhora  o  feu 
primeyro  parto  ,  de  que  naceo  o  Princepe  a  que  foy  poíto 
nome  dom  AfonTo  ;  e  náo  fe  nomeão  aquy  as  peíToas  que 
forão  ocupadas  nas  cerimonias  do  íeu  bautiímo  ,  porque 
naõ  chegou  a  miivha  noticia  ,  mas  betn  fe  entende  que  de- 
liiâo  de  fer  da  íalidadcdas  outras  que  forão  òíu^adas  nos 
bautifmos  de  alguBs  doè  outrosTilhos  de  S.  A.,  de  que  em 
léus  lugares  declajarey  os  nomes  ^  porque  os  achey  em 
papeis  táo  autênticos  que  não  recebem  duuida.  E  nos  bau- 
tifmos de  ninhuns  outros  filhos  nem  filhas  dcl  Rey  noíTo 
fenhor  achey  eíla  particularidade  :  por  iflo  íenao  achará 
cfcrira  neíla  hiftoria.  O  goílo  defte primeyro  parto  da  Ra- 
inha foy  tamanho  ,  afsy  em  el  Rey  ,  como  geralmente  em 
todos  os  feus  vaísallos,  que  de  ninhuma  outra  couía  o 
pudera  então  auer  mayor  :  porem  não  foy  de  muyta  dura, 
porque  também  o  não  foy  o  Princepe,  que  morreo  muyto 
erianja. 

Fim  da  'Primeira  Farte, 


ey'  ry'  »-^  ry  'y  -V'  "V*  "Y* 

<-.,    i9(    >$k   A    >9(   >C> 

'V  "S^  "^-^  "^  "V  "V* 

sCt    A    V*    ;0* 

»y  -íT"  -iT  V* 

^^     lO' 


Erratas.  585- 

Pâg.  V.  Cap.  ^Ç  Y\rfi.  í^ftfez.  \ea-fe/e/az,  e  nffim  no  mcfmo  Cap.  ap::-.  12-. 
VI.  Cp.  J9  lin.j  Zfoíor  lea-fe  Lainor  e  anim  no  nzCmo  C^p.  z  pàí^i^z^' 
XI.     Cap.  70       Vm.  2  gcKtf    lea-fe     gertc.  '"' 

ço    lin.      i^     cnnceitos     if^^-ff    concerto?. 
70   lin.      II     do  Cap.  de  que  tinha  nect-ifidadc,  e  daria     lea-fi     ds  que  tiahi   neceíG- 

dade  ,  q.ie  em  poucos  dias  poderia  lá  chegar,  c  d.iii.x 
9-    lin.     12  e  13  defccntialie     Ua-fe     deíconíiaúo. 
97    lin.    31     bombardas     Ica-fe     bombanfadas. 
1C3    yi:\.    35     tendo  o  batel  em  feco     lea-fe     vendo  o  batel  em  Teco 
103    Im.     10     forao    l-^-fe    lhe  lorao 
Jio    lin.     16     de  maTÍ'co     ka-fe     de  rtiavifcos 
124  lin.     3        G  quejjidia     lea-fe     o  quí  ll;e  picia 
12Ô   lin.    7  c  8  muytas  honras     Ica-fe     muytas  mrrccs    e  honras 
Ibid.  l:n.    19     o  conccrtj  de  pazes     lea-fc     o  conte: ío  das  pazes 

130   lin.    2       pouerdo     lea-fe     prouendo. 
,131   lin.     i8     aos  feus     Ua-fe     a  feu?. 
Ibid.   lin.    26     efperanSo     lea-fe     erper.-:ião 
134  lin.    4doC3p.  37   galaJho     Ua-fe     gafalhado 
144  lin.    a       com    toda  a  iriais     h-a-fe     com  toda  a  mais  geute 
165   lin.    3    do  Cap.  46  foy  capitão     ka-fc     toy  por  capitão 

176  lin.    5     tornafle     la-fe     tornarfe 

177  lin.    i9do  Cap.48  aflmados     Ica-f     afiinadas 
180   lin.    29     Lidrilho     lea-fe     ladrilhado 

aS2  lin.  14     fenão  em  artigo  de  morte     Ua-fe     fenao  eSando  cm  artigo  de  morte 

195   lin.  23     vicr.io     lea-fe     viera 

213    1ÍD.  I  da  Epigrafe  do  Cap.  57    hum     Ua-fe     huma 

218  lin.  4do  Cap.  çS  do  eltauo     Itui-fe     o  eftado 

243    lin.  7       feeiia     Ua-fe     fe  elle 

-   251    lin.  7       fenúo  morto     Ua-fe     fendo  primevro  morto 

264  lin.  6       que  foy     lea-fe     fe  fcy 

271    lin.  32     atraueire     Ua-fe     atreueíTe 

296  lin.  23     para  fua  cafa     Ua-fe     para  fuílentaçSo  de  fua  caf» 

299   i:n.  I       .re  Lotir     Ua-fe     de  Loiir 

Ibid.    lin.  12     jT.echas     lea-fe     frech.is 

378  lin.  3       do  Cap.  93  recebimcnso     Ua-fe     recebimento 


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