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CHRONICAS
D E
FRANCISCO
D' A N D R A D A.
CHRONICA
DO
MUYTO ALTO E MUYTO PODEROSO
R E Y
DESTES REYNOS DEPORTUGAL
DOM JOÃO
O III DESTE NOME,
DIRIGIDA
HA C R. M. D'EL REY DOM FILI^PE O III,
COMPOSTA POR
FRANCISCO D'ANDRADA
do leu Confelho , e feu Chroniíta mor,
PARTE I.
COIMBRA:
Na Real Officina da Univerfidade.
Anno de MDCCLXXXXVI.
Com a Licença necejjhría,
'1
fS ^
ia c
TaxaÕ ejie Livro em oito centos reis, Lishoa a ^ de Novemhro
de 179 8.
Com cinco Ruhicau
%
AO MUITO ALTO
E MUYTO PODEROSO
REY DOM FILIPPE
O TERCEIRO DESTE NOME.
EL REY Dom Filippe , que fanta gloria
aja 5 pay de volla Mageftade , me man-
dou nos annos atrás paíTados , que com-
puzeíle a chronica dei Rey domjoao noíTo fe-
nhor , o terceyro dette nome , feu tio, irmão da
Emperatriz fua may , o que eu tiue por huma
grande mercê e honra para mim , imaginan-
do que, pois S. M. me efcolhia para hum ne-
gocio tão árduo , e tão importante ha honra
defte feu reyno , feria quiçá por lhe parecer
que teria eu talento para o feruir nelle a feu
goíto : porem daquy me naceo também hum
receyo aííaz grande , e que me pôs em bem
grande confuíaõ , porque naõ vendo eu em
mim
VI
mim cabedal nem forças para poder com ta-
manho pefo 5 duuidaua rnuyto poder fahir com
efte negocio de maneyra que S. M. fe ouueíTe
nelle por bem feruido de mim. Comtudo en-
tendendo que era forçado romper por todos
os inconuenientes que fe me reprefentauao ,
por fazer o que me elle mandaua , me puz ha
obra 5 e continuey nella muyto tempo com af-
faz de trabalho do eípirito e do corpo , até
que foy Deos íeruido que chega íTe com ella
de todo ao cabo. Nas coufas tocantes ao rey-
no e a Africa creyo que não deixará de auer
querti diga , que ha aquy alguma faha , porem
( fe aíly he) não foy por me faltar a mim toda
a diligencia pofliuel , e neceílaria , mas por-
que em muyta cantidade de papeis que reuol-
iiy , e outros que fe me oíferecerao , algumas
coufas erão tão friuolas e de tão pouca fuftan-
cia , que me parecerão impertinentes para a
grandeza e autoridade do logeito deíla hiílo^
ria , e outras me pareceo que erão tão pouco
autenticas , que receey pôrme a rifco de ferem
julgadas por pouco verdadeyras , que he o de
que nas matérias deíla caiidade mais fe deue
fugir. E por iflTo deftas me não pareceo remo
nem licito admittir a eíía chronica, fenao as em
que
TH
que eu entendia que não podia auer duuida ,
pollo credito dos papeis donde foiao tiradas ^
e das outras as que de fy erao tais , que mere-
eião ter lugar numa hiftoria de tanta autorida-
de. Nas coufas da índia feguy humas informa-
ções , que me vierao ter ha mao afiaz largas e
difufas , que me parecerão de mais credito
que quaisquer outras que pudera ter , porque
forão feitas por hum homem honrado, que
diz de fy que entrara na Índia poucos annos
dcfpois de ella fer defcuberta , e que tomou
por emprefa efcreuer as co-uías que nella fuce-*
derão em todo o difcurfo de fua vida , que foy
de largo tempo, de que as mais elle vio poi?
feus olhos por fe achar prefente nellas , e das
que não vio tirou tao certas informações , que
as eícreue por tao verdadeiras como fe as vira.
Do qual trabalho diz que não efperaua nem
queria outro louuor nem premio , fenao efcre-
uer as verdades da íua hiftoria puras e limpas ,
e nuas de todos os refpeitos particulares, que
fão cauía a alguns efcritores ou de enfeitarem
algumas más obras , para que de todo fe não
enxergue a fealdade delias , ou de aleuantarem
e engrandecerem algumas boas mais do que
ÍQ lhe deue , para que luftrem mais do que me-
re-
vni
recém , o que elle moftrou bem claramente
em todo o diícurfo da fua larga hiftoria. De
qualquer maneyra que for julgado efte meu
trabalho , me detriminey em fahir com elle a
luz, confiado que, pois teue principio na vonta-
de e mandado dei Rey voílo pay , fera V. M.
feruido , pois veyo ter o fim no feu império ,
não lhe negar o fauor e emparo, o que não fem
lezão efpera do feu real , magnânimo e beni-
gno peito , porque com elle ficará íeguro dos
encontros que cuftumão ter as coufas defta cali-
dade, que de nouo faem ha vifta de olhos íobe-
jamente curioíos , e de juízos mais efcudrinha-
4ores das obras alheas que das íuas.
Francifco d^andrada.
I
TABOADA
DOS
capítulos da I. PARTE.
C
AP. I. O nacimento do princfpe dom João , e ojett
Bnutifmo , o que jucede em ambos ejles dias : pig. i.
C AP. II. A criação do princepe até que jsube bem andar ^ e
huma viJaQquefuaama teue emjonhos : pag. 4.
CAP. III. O princepe he jurado , daÕlhe mejlres que o injl"
nem , quais Jaõ , e o que aprende : piíg. d»
CAP. III L Dã-fe cafa ao princepe ^ quais JaÕ os primeyros
officiais que lhe dão nella , e algumas particularidades de
fuã pejjoa : pag. 9. ^
CAP. V. Dous perigos da vida que o Princepe tem. El Rey
o começa a meter nas coufas do gouerno. O caj amento dei
Rey com ma dama Leanor^ e os pareceres que J obre elle ha-
, na corte : pag. 12.
CAP. VI. Como o princepe fe ha nejle cafamento delRey , e
como fe el Rey ha com elle , quais Jaõ os principais daus
priuados que o princepe tem , e as feições do corpo do
princepe ; pag. 15.
CAP. VII. A morte dei Rey dom Manoel e o feu enterra-
me}2to , e as cirimonias que nella je fazem. pag. 17.
^art. L * CAP.
ir Taboada dos Capítulos
CAP. VIU. O }iiodo e aparato com que o princepc 'vay até
o alpendere de faÕ Domingos , o/jde hade Jer jurado por
Rey : pag. 21.
CAP. IX. ^ maneyra de que o prlncepe be jurado , c leuan*
ta do por Rey , e as exéquias que Je Jazem por el Rey dom
Manoel : pag. 24.
CAP. X. O ejlado em que ejião as coufas do rey no ajfy den*
tro como fora delle , quando o princepe dom João começa
a reynar : pag. 27.
CAP. XI. ElRey notijica a morte dei Rey feu pay ao Fap»
pa e aos Reys Crijiaos , he vijitado .da coroa de Ca fie lia y
e começa a entender no gouerno do rey no : pag. 32.
CAP. XII. O conde de Mar ia lua uem ha corte queixarje
a el Rey do marques de Torres 720uas , a rezão porque , e
o que Je faz j obre ifjo: pag. 36.
CAP. XIII. El Rey manda "João dafilueyra por efíibatxa"
dor a França ^e o do que trata a embaixada : pag. 40.
CAP. XIV. El Key de França manda por embaixador Ho*
norato de Cais gentil homeyn Saboy ano a Portugal ., o nc"
gocio a que vem , e o que pajjd na corte de França fobre os
negócios da embaixada de joão dajilueyra : pag, 42..
CAP. XV. El Rey manda dar ao Pappa os parabéns do
jummo pontificado , [uplicalhe pollo priorado do Crato
para o ijante dom Luis , o Emperador manda hum embai"
xador a el Rey , a Jufi anciã da embaixada ^ e a repojln
delia: pag. 4).
CAP. XVI. ElRey propõem no confelho o caf amento da
ijante dona Ijabcl jua irmam , hd Jobre elle differentes
pareceres y as rezoens de ambas as partes ^ elReyJe re^
Jolue
da Prinievra Parte. ni
foJue e manúa Lu is da fiheyra por embaixador a Cafiel'
la : pag. 48.
CAP. XVII. Chega auifo a ei Rey de huma das nãos da ar-
mada de Fernão de magalhães que arribara ao cabo Ver-
de , e como os da Ilha Je hão com cila , e o que J obre ijjofe
faz em Cajlella , e Portugal : pag. 5 1 .
CAP. XVÍÍT. El Rey muda a juflajicia da embaixada de
Luís daftlueyra , o que paffa cem elle defpois de ejlar em
Cajiella acerca da companhia que leuara , o que elle con-
crue CO Emperador nos negócios que leua acargo , toma
pêra Portugal , e o que cá pajja com el Rey : pag. 53,
CAP. XIX. Fallaffe em cafar el Rey coyn a Rainha dona
Leanor luamadrajla ^ as razoes que para ij] o lhe dão ^
jazlhe [obre ijjo hum, requerimento a cidade ae Lisboa , c
o que dahy Jucedc : pag. 56.
CAP. XX. O que faz a Rainha dona Leanor defpois da
morte dei Rey dom Manoel ^ el Rey fe fae di Lisboa por
cauja da pefte , o que o fecr etário Bârrofo paffa com a.
Rainha , e o que a elle jucede : ppg. ói.
CAP. XXI. O gúuernador da índia doyn Duarte de mene-
nefes chega a Goa , dajje conta do akuar.t amento de Or-
muz , o capitão da fortaleza manda pidir focorro , e o
que nijjofe faz : pag. óy.
CAP. XXII. Dom Luís de jne nefes capitão mor do mar
vianda hum galeão em focorro de Ormuz , o gouernador
manda ao mefmo dom Luis que o "vá f ocorrer , elle vay com
huma grojjã armada , e o que lã Jaz até Je tornar para
a Índia : pag. 70.
CAP. XXIII. Dom Garcia negocea dar a morte ao Xarajo ^
hum mouro dos principaes do reyno Jecretamente fe lê com
* 2 elle
IV Taboada dos Gapitulos
elle e fe oferece a darlha , e o modo que para ijjo bufca :
CAP. XXÍIIT. Bãfje a morte a Rais p.bíidhn , o Xarajo
foge de Oueixoyne e entrafecretawente em Ormuz , o ca^
pitão o prende , faz-fepaz com elRey eje -vem para a ci-
dade. Dom Garcia , e dom Gonçalo Je partem ^.araa ín-
dia , e o que lhe jucede : pag. 8i.
CAP. XXV. VÃ Rey dom João mjfo fenhor 7nuda « eJiiUo de
receber o embaixador do Emperndor em diferente modo de
que v[ãua el Rey dom Manoel jeu pay , ea rezão porque ;
pag. 86.
CAP. XXVI. O Rey da ilha de Ternate em Maluco manda
hum embaixador a Garcia dejdjobre fazer hiima jorta-
leza nafua terra , a repofta que tem , e a ocafiao d^nde
ifio nace ; pag. 87.
CAP. XX Vil; António de Brito chega a Maluco , ajjent»
paz com a Redinha deTemate , começa a jazer fortale^
za , e algumas coufas particulares que lhe Jucedem :.
pag. 91.
CAP. XXVIII. O gouernador fe pajfa a Goa. ahy defpacBs
Martim Âfonfo de melo Coutinho para a China , e dom
Jndre anriquez para Pacem , e o que a dom Andrejuce*
de na viagem : pag. ^6,
CA? XX ^X. Martim Afonjo de melo chega 'a Mala caí
Rarte d^hy para a Chtna , e o que lá lhe jucede , na volta
entra em Ra cem, peleja cos inimigos que ejlaojobre ajor-
taleza , R^ra Lourenço de melo parte de Lochim jazer
-viagem para a China , c ofucejjo que tem : pag. 99.
GAP XXX. O Q-ouernador manda hum capiiao e feitor ha
cfla de Charamanàçl , manàalhe que tome informação da
" j cajá.
da Primeyra Parte. V
cafa do Apof.olo São Tomé , dafe rezao do que ^c acha
delia : pag. 103.
CAP XXX T. O gouerfiadornianda hmnjacerdote ha cafa
do ' Apoílolo S. Thome afaz-er obras , que torna [em Jazer
fiada, 'Manda Pêro lopez dejampayo ha n.ejma cajá com
outro faccrdote. Dãffc conta de cnujas nctias queje achao
va cajá , e da obra que fe faz nella. O goucruador je vay
inuernar a Goa \ pag. 100.
CAP. XXXII. Gonçalo mendezCorCoto capitão de Jz amor
faz hunia entrada em terra de mouros , e oquelhejuce*
de: pag. 112.
CAP. XXX III. Partem do reyno e^fle anno para a Jndla três
nãos, ondepajfa humaju que dd nouas da morte dei Rey
DomMaucefdafje conta das exequras que je jazem por
elle 7ia índia, liem Luis de menejcs chega de Ormuz a.
Goa , o gouernador o manda a Ccchim : pag. 115»
CAP. XXXI III. O gouernador manda feu irwJo dom Luis
a Ma cu ha , em bujca de dom. Rodrigo de Uma , -cay imier-
fiar a Ormuz , trata logo do negocio do liais Xdrajo que
ejidprefo ,e o que nellepajja i pag. 121.
CA P. XXXV. O gouernador jaz paz e amizade com eiRey
de ' Ormuz , tratajje de (e dar a morte ao goazil de Ormuz
Rais Xemejim , contãoje algumas particularidades qut
pajjao com elle , o gouernador fe fez prejl es paraje partir
de Ormuz: pag. 125"»
CAP. XXXVI. Bom Luis- com a fua armada naueganda
para o ejlreyto vay ter ha cidade de ^aer , combateu , e o
que lhe f acede : pag. 130..
CAP. XXXV lí. Dom Luis manda recado a dom Rodrigo
de lima dajua vinda , e je torna jhn elle , jae do ejlreyto
e vay J urgir em Mazcate : pag. 134. GAi?»
VI Taboada dos Capítulos
CAP. XXXVIIT. O gotíernador parte ãe Ormuz ^ faz dar
a morte a Raix Xemcfim , e o que Je faz fobre ijjo. No
caminho tomão os mouros hmna galé noffa. O gouernador
entra com toda armada em Chaul defauindo com dom Luís
jeu irmão , dahy fe "cay a Goa , dajfe conta de hunia mo-
Iher que os mouros catiuao na nofja galé : pag, 137.
CAP. )iXWX, Ordenajfe a ida da Rainha dona Leonor
■para Caftella , e/la Je parte , queynfaõ os que a acompa»
nhão até a entregarem na ray a '. pag. 142.
CAP. XXXX. Os dous capitães dom Fedro de caflelbranco^
e Diogo de melo fe partem de Moçambique a andar has
prefas , topão com embaixadores dos Reis Dezanzibar , e
Pomba que vem pidir focorro para elles, Dom Pedro fe vay
com elles , e o que lhe acontece ; pag. 144.
CAP. XXXXI. O Hidalcão manda hum capitão feu has
terras de Goa , que fe fenhorea das tanadarias delia. O
tanadar mór fae a elle por duas vezes , e o que Ihefucede
em ambas \ pag. 147.
CAP. XXXXÍI. O quefucede a António de brito ef ando fa-
zendo a fortaleza na ilha de Ternate , moue guerra a el
Rey de Ti dor c^ e a rezão porque , e o quefucede logo fiO
começo delia : pag. 149.
CAP. XX XX III. O Rey de Dachem arma huma cilada ha
fortaleza de Pacem de que he capitão dom André Anri-
qucz , elle manda huma armada contra os Dachens , e o
fucejjo delia. Os Dachens fazem guerra ao rey no de Pa-
cem. O Reyfe recolhe junto da fortaleza , e o que fobre ifjb
faz o capitão : pag. 153.
CAP. XXXXIIIÍ. O Rey de Bintão com huma grojfa arma-
da manda fazer guerra a Malaca , Jorge da/buquerque
capitão da fortaleza manda outra armada contra ella , e
o
da Primeyra Parte. vii
o fucejfo que teue, António de pina Tay em hum junco fa*
zcrjuajãzenda , chega ao Porto de Fao , onde jaõ catiuos
os Portuguejes e morrem ynartires : pag. 157.
CAP. XXXXV. Dom Sancho anriquez z-ay ha cojia de Pa-
tane andar has prefas , acompanhado de Ambrojío do rcgOy
e de André de brito , e o JuceJJo que tem : pag. 161.
CA?. XXXXVI. Chegão a Goa as nãos , que efle anno vai)
do reyno. O gouernador [c pajja a Cochim , dajje conta do
que Jucede na fortaleza de Calecut fendo capitão delia dom
João de lima , e do que fazem os mouros nefie tempo , e de
outras coufas que o gouernador dejpacha ejlando em Co-
chim : pag. ló^.
CAP. XXXXV II. Eytor da filueyra parte para o ejlreyto,
Vay Jurgir no porto de Adem. E o que paJJa co Rey delia,
Dahy vay a Maçud em bufe a de dom Rodrigo cie lima :
pag. 171.
CAP. XXXXVI IT. Ordena Sua Alteza que em todos os pa-
peis que ajão de fcr affinados por elle , ouporjeus ojficiais
emjeu nome , ev.i que fe cujíumaua per IS os el Rey , da ly
por diante fe não ponha fenão , Eu el Rey : pag. 177.
CAP. XXXXIX, O que dom Luis de meu efes faz em Cochim
de/pois que o gouernador Jeu irmão vay para Ormuz ,
Aíanoel de frias vay ha pefcaria do aljôfar , entrega a
feitoria delia a João flores ^ "^^yJJ^^ ha cafa do Apofiolo
Sam Thomé , faz-fe obra nella , achãoffe as relíquias do
Santo ^ e o que je jaz delias '. pag. 178.
CAP. L. Eopo dazevedo chega a Pacem para fer capitão da
fortaleza \ dom André lha naõ quer entregar. Os mouros
a combatem , dom André adoece , e je embarca para a Ín-
dia , a fortaleza fe vê em grande aperto •' pag. 183.
CAP,
VIII Taboada dos Capítulos
CAP. LT. Dom André nauegando de Pacem para a Indiat
topa com a armada de Bajiião de fouja , da lhe conta do
cjiado em que fica a fortaleza , elle je vay a focorrella.
Dom André arriba com tempo a Pacem , toma afuacã'
pitania , e de/pois de ter algumas dijferenças com Bajfiao
dejoíífa íobre a dejenJaÔ da fortaleza a larga aos mouros- :
pag. i8ó.
CAP. LII. Jorfe dalbuquerque capitão de Malaca fe próue
piara a guerra que ejpera dei Rey de Bintao , manda dom
Garcia anriquez com quatro nauios a eflar na barra de
Btnlão , dos nauios de dom Garcia tomao os mouros dous ,
el P^ey de Bintao manda pôr cerco a Malaca e o fuceffo
dclle : pag. 191.
CAP. LIlí. Chega (ocorro a Malaca ^ Jorfe dalhuquerque
manda Martim Ajonfo de fou [a fazer guerra a Bintao , a
■ Pão , e a Patane ^ e o que Ihefucede. Mandafje de Mala-
ca /ocorro a el Rey de Linga no/J}? amigo contra as lancha^
ras de Bintao , e ofucefjo que tem: pag. 194.
CAP. LII II. Ba /lido de f o ufa e Martim corre a 'vão ter a
Banda ^ acbao lá Martim Afonfo de melo jufarte em guerra
cos da terra , Ba/lião de joufa fe vay daly defauindo delle^
chega recado a Martim Afonfo de Maluco de António de
brito , que o vá /ocorrer ^ vay Id com três fiauios e com
elle Martim correa , fazfc guerra ha ilha de Ti dor e e aU
gunsfucejjos delia : pag, 200.
CAP. LV. Os no ff os com ajud.a da gente de Cachildarões
tomdo três lugares na ilha de Tidore , com que outros al-
guns fe lhe vem entregar. O Rey da ilha manda pidir pa*
z>es a António de brito , e lhas nega , efaz Innn cruel ca-
jiigo em muytos dos inimigos : pag. 3,04.
CAP, I.VI. ElRey noÇjo fenhormanda a Cajlella dous em-
baixadores com bajiantes procurações para concruirem a
Jett
da Primeira Parte. IX
• feu ca [amento com a IJ atite dona Caterina irynam do Em''
ferador Carlos quinto e tratarem do jcu dote , elles o con*
cruem de todo : pag. 209.
d AP. LVII. Os mouros mercadores de Calecut ordenão huma
grojja armada para lhe ir guardar as Juas nãos , c para.
jazer guerra ha fortaleza ; dom João de lima capitão
delia tendo auifo diftoje fortifica. A armada uay dar vifla
ha fortaleza , e o que Ihejucede, Os mouros bujcão hum
ardil para darem a morte a dom João , co7itão(Je algumas
coufas que JaÕ cauja de fe começãr a guerra que eliiey de
Calecut fez ha noff a fortaleza ; pag. 213.
CAP. LVIIL El Rey manda dom Vafco da gama conde da
Vidigueira a gouernar a Índia , contãofe dous cafos efra-
vhos que no mar lhe acontecem , chega a Goa, El Rey or-
dena efle anno as vias para as fucejfões da gouernanca da
Índia : pag, 218,
CAP. LIX, O vifo Rey em Goa entende no que pertence
aaqueUa cidade , manda fazer jufiiça de três molhercs ,
queforão aquelle anno dcfte reyno. Partejfe para Cochim ,
de caminho manda duas armadas a diuerfãs partes. DeJ'
embarca em Cananor , faz amizade com el Rey , próue a
fortaleza de capitão nouo , e chega a Cochim : pag. 223.
CAP. LX. O capitão de Goa dom Anriqtie de menefes yuan-
_da huma armada em bufe a de certas f ufas de mouros que
Jairão do rio de Dabul , de que fez capitão mór Chriftouão
de brito., tem cos inimigos huma cruel e afpera pele ia e o
fucejfo delia : pag. 228. /- ^
CAP. LXI. El Rey manda fazer prefies o quehe necejjario
para a Rainha vir a efle reyno , manda para ifjo os Ifan-
íes dom Luís , e dom Fernando feus irmãos , que na raya
tomuo entrega delia , manda a Pêro correa huma detrimi-
nação , e outra a Damião diaz de coufas que manda que
fe
X Taboada dos Capítulos
Je facão , quando a Rainha entrar nejle reym, ElRey a
efpera na villa do Crato , ahy Je recebem , ejepajfão pa-
ra Almeyrim : pag. 233.
CAP. LXII. Chegão cartas de dom Rodrigo de lima ^ qik
ejlá nas terras do Prelk João , ao gouernador dom Bttarte
eftando em Ormuz , e o de que tratao. O gouernador , a re-
qíicrimento de Raix Xarajo , tnanda hum embaixador ao
Xeque Ifmael , e o fucejjo da embaixada. O gouernador fe
parte de Ormuz para a índia , e o que lhe jucede até che^
gar a Baticala : pag. 237.
CAP. LXIÍT. O vifo Rey faz prejles armada para ir fazer
guerra a Calecut e a "ioda a cofia da índia. O gouernador
dom Duarte de menefes chega a Cochim , e o que o -vijo^ Rey
pajfa com elle antes de dejembarcar , e com dom Luis de
menejes feu irmão: pag. 241.
CAP. LXIIÍI. O vifo Rey bufca modo para auer artilharia,
de que ejid falto o almazem , Jucedelhe huma doença gra-
ve ^ manda recado ao gouernador dom Duarte Jobre lhe
entregar a gouernanç a , e o que nifjopaça \ defpedepara o
reyno hum nauio , que parte diante das nãos , e fentjndo
crecer a fua doença encarrega do gouerno ao capitão da
fortaleza , e ao veador da fazenda , e lhes dá a ordem que
niffo hão de ter, Dafe conta da fua inorte : pag. 24o.
CAP. LXV. AbreJJe a primeira jucejfão da gouernanç a da.
Índia , e o modo e cirimonias com que fe abre ; achate
nella dom Anrique de menefes capitão de Goa para gouer-
nador , de que hum homem a muyta prejja lhe leua noua :
pag. 250.
CAP. LXVI. Lopovaz de jaynpayo e Afonfo mexia prouem
akumas coufas antes da vinda do gouernador dom Anri^
que de menefes , antre as quais tnandão António de mt*
randa m bujca de dom Rodrigo de lima embaixador da
prejle^
âa Primeira Parte. XI
f refle, Junto de Adem toma duas nãos de mouros , em que
joube de alguns Portuguefes que o Rey mandara matar ,
e o que faz /obre i[fo ; chega ha ilha do Camarão , e dahy
fe torna ha índia , e a rezao porque: pag. 254.
CAP. LXVII. Chega recado a Cochim do gouernador do que
Je ha de fazer em quanto elle não vem. Dom Duarte e
dom Luís partem para o reyno , e arribão a Mocambi'
que \ partidos dejpois fe perde dom Lu is , e o que paffa
Jobre afua perdií^ao. Dom Duarte chega ao reyno ^prejen»
taffe a el Rey , e o que Ihejucede : pag. 258.
CAP. LXVIII. Dom Anrique de menefes torna poffe da
gouernança da índia , e as cirimonias que nifjo/e fazem :
chega a Ooa recado de Aíelequiaz para o vtfo Rey , e o
gouernador lhe rejponde. Manda alguns nauios em bufca
de humas nãos de Dio , que uão com madeira para fudã,
Parteffe para Cochim, no caminho ha vifia de huns pa^
raos de mouros , e o que/obre iffo ordena : pag. 261.
CAP. LXIX. As nojfas fufias e catures pelejao cos paraoí
dos ynouros , e o que lhes fucede, O gouernador f urge na
barra de Baticala , e o que pajfa com el Rey, Pafjafje daly
a Cananor , e o que ahyfaz. Chegado a Cochim , a reque^
rimento dei Rey de Cananor , manda armada e gente a
Eitor dafilueyra capitão da fortaleza para ir queimar
o lugar de Marabia , e o que nifjo fefaz : pag. 265'.
CAP. LXX. O Camorim Rey de Calecut ajunta muyta gen^
te para fazer guerra ha fortaleza \ efia gonte lhe ray
dar mofira de fy. Dom João de lima fae a pelejar com
ella , e o que fucede. O Camorim manda pedir pazes ao
gouernador , elle lhas concede com certas condições , que
fe não accitão : pag. 270.
CAP. LXXI. O gouernador faz prefles huma grof] a arma-'
da com que vay ter ao rio de Panane , onde tem huma
braua peleja cos inimigos , e ofuceffo delia : pag. 273.,
** i CAP.
XIT Taboada dos Capítulos
CAP. LXXII. O gouer fiador fae do rio de Panane ', e vay
f urgir defronte de Calecut , fala com dcm foão de Uma
capitão da fortaleza , dizlhe em fegredo , que faça pôr
fogo ha cidade ; do77i João o pÕe por obra , e o modo que
tem para ij]o : pag. 27o.
CAP. LXXIII. O gouernador tem uouas , que no rio de
Coulete eflão cincoenía faraós de mouros : njayos bufcar ,
terã coyri tiles huma ajpera e cruel batalha , e o fucejfo
de Uai pag. 279.
CAP. LXXIIIT. O gouernador defpede dom SimaÕ por capi"
taÕ r,iór da cofia ; vayjje a Cananor eje ve com el Rey^.
Dom Simão entra no rio de Bracelor , queiyna vinte pa-
raos de mouros , ejaquea o lugar , peleja defpois com ou-
tros cincoenta par aos : e o que lhe jucede. Õs mouros daÕ
■ a morte a oito Fortuguefes , que efiaõ em hum batel :
pag. 28Ó.
CAP. LXXV. Dom Simaõ chega a Cananor com toda a ar-'
mada \ vay correr a cojla : proue a fortaleza de Calecut 5
ioma alguns nau: os de mouros. A dom foao de lima chega
J ocorro ; elle dejpeja a fortaleza de toda a gente que não
pode pelejar : p ag . 291.
CAP. LXXVI. Da ff e conta do dote que el Rey nojfo fenhor
deu ha Ifante dona Ifabel fua irmam co Emperador Car-
los ; das arras que elle lhe deu , e do que lhe deu para fu»
fientaçaõdefuacafaepefjoa: pag. 293.
CAP. LXXVIÍ. António de brito capitão de Maluco defpã"
cha Martiui y(fonfo de melo jufarte para Malaca^ e o que
faz em Bandui ; chega aly dom Garcia anriquez ; vão am*
hos fazer guerra ha ilha de Lotir ^ e o que lhe \ucede,
El Rey de Bintao manda huma armada contra Malaca ;
Jae Manoel de foufa capitão mór daquelle mar a pelejar-
com tila , e ofuceffo que tem. Laqaexemena faltea o Ca-
lar ççr ^ h(í f ocorrido de Malaca^ e o ^ue Jucede : pag. 297%
da Primeira Parte. xiii
CAP. LXXVIII. Daffe conta ãe humas dijjerenças , qm
tem Vero mazcaretihas com Afonfo mexia ícador âa fa-
zenda. El Rey de Calecut manda pôr cerco ha no]] a for»
taleza ; dom João de lima capitão delia ]e prepara para
a defender : pag. 302.
CAP. LXXYIIII. O renegado engenheyro ordena hum tr a"
buço oontra a fortaleza. Dom [joao de lima manda Diíar--
te jernandes a Calecut em trajos de jogue , que lhe d.i
muitos auifos-, os mouros batem a fortaleza ^e o fuce]]'o»
Q engenheiro dctriminando fazer huma mina ordena hum
empar o para os gaftadores y e o que os no]] os fazem %
pag- 307-
CAP. LXXX. O Italiano de]para o trabuco , e faz muyto
dano ha fortaleza ; o no]] o condefíabre lho desfaz ; os tnoií^
TOS ordenão outras duas mantas , os no]jos lhas queimaõ,.
O capitão manda pollo jogue pidir f ocorro ao gauernador,.
Na fortaleza Je começa afmtir fome ^ com que lhe morro
alguma gente \ pag. 312.
CAP. LXXXI. O gouernador manda duas carauellas a fít-
correr a fortaleza de Calecut. Eitor daftlueyra capitão
de Cananor a]ocorre por duas 'vezes. As carauellas es-
bombardeaÕ o arrayal dos inimigos ; antre os capitães
delias ha diferença Jobre de] embarcarem em terra ; e trn
fimfó Chrifouaõ jujarte fe detrimina em defembarcar i.
pag. 316.
CAP. LXXXII. Chrijlovão jifarte defembarca em terra l
tem cos mouros huma brauifjima peleja» Dom Vafco o fo'
corre com gente , e o ]uce]]o que tem. Os mouros ordenão
huma (erra de terra. O Italiano afjenta dous trabucos<
fiouos , os no]Jos inuentão hum artificio de jogo com que lhe
^ueimãohumdelles'. pag. 321,
CAP;.
XIV Taboada dos Capítulos
Cx\P. LXXXIII. Francijco de vafconcellos chega a Calecut
em huma galeota. Duarte da fonjeca vay pidtr f ocorro ao
gouernador que logo o manda. Os mouros tornaÕ a pôr mão
na Jerra de terra ; os nojfos lha impedem. Eitor da filuey"
r a capitão de Cananor [ocorre a fortaleza '. pag. 327.
CAP. LXXXíIíí. Francifco pereyra pejlana chega a Cale-
cut : ma?ida hum parao ha fortaleza carregado de manti'.
mentos ; [obre a de [embarcação delles fe traua cos mouros
huma aí^pera briga , em que morre hum caimal [eu ; e o
que elles fazem para auerem o feu corpo. Os mouros ordc'
naô efcadas para [ubirem ao muro. O gouernador defpeds
doruSimaÕ de menezes a focorro com dezajeis vellas. De
Goa vay Fero de faria com vinte vellas a /ocorro: pag. 3 3 2,
CAP. LXXXV. O que fucede em Cochim [obre três eftran^
geyros , que fe prenderão : pag. 335.
CAP. LXXXVI. O gouernador manda [oltar os nayres\
elle em pefjoa os leua a el Rey de Cochim. Detrimina cer-
car a cidade ^ e contra aparecer de todos infifte em o fa-
zer y e o que [ohre ijjopajfa com el Rey j em fim muda ejia
obra em outra \ pag. 341.
CAP. LXXXVII. Peromafcarenhas chega a Malaca \ to-
ma pof[e da fortaleza ; el Rey de Bintão lhe faz guerra ;
elle manda Aires da cunha pôr [obre o porto deBintao ;
manda também Martim Ajonfo de melo juf arte com arma-
da fazer guerra a Patana ; e o que Idfaz. Dom Garcia
anriquez vay a Maluca para [er capitão y e o que paf[ít
com António de brito : pag. 345".
,\
CAP. LXXXVIII. Do reyno partem efle anno para a índia
cinco nãos , de quejós três chegaõ a Goa. O gouernador fe
ajunta em Calecut para f ocorro da fortaleza com huma
grojfa armada , e muyta gente ; tomajje confelho fobre o
quefe deue fazer 'y e o que fe concrue : pag. 348.
CAP.
da Primeyra Parte. xv
CAP. LXXXIX. Eitordafilueyrafe ojfcrece ao gouerna'
dor para meter a gente na fortaleza^ e o começa logo a pôr
for obra. Dom 'João , e dom Vafco , e Fernão de w.oraes
[aemjóra ; tem cos mouros huma braiia peleja [obre reco-
lherem a gente que vaj na armada O gcuernador je orde-
na para fair em terra : pag. 353.
CAP, LXXXX. Eitor da filueyra ^ e dom João de Ihna
Jaem jóra dar rebate no arrayal , e pelejão cos inimigos,
O gouernador de [embarca com toda a gente , comete o ar^
rayal , tem cos inimigos huma brauijjima batalha^ e o Ju-
ceJJTo delia : pag. 357.
CAP. LXXXXI. ElRey de Calecut comete pazes ao gouer-
nador por yneyo do mouro Cogebiquy ; elle o pÕe em conje-
Iho , e juntamente fe Jerd boyn derrubarfe a fortaleza , as
pazes je a jf então , e a fortaleza fe derruba \el Rey de Ca-
lecut dá a morte ao Cogebiquy. O gouernador fe recolhe a
Cochim curarfe de huma chaga que tem em huma perna t
pag. 3Ó4.
CAP. LXXXXI I. Jorfe dalbuquerque capitão de Malactz
parte para a índia e o que Ihefucede antes de chegar a Co-
chim, António de brito capitão de Maluco manda huma
fufta a rej gatar ha ilha dos Celebes e o que lã acha, Dãfje
conta de humas gra?ides dijferenças que ha em Maluco
antre António de brito ^ e dom Garcia anriquez : pag. 373 ►
CAP. LXXXXIII. A Ijante dona JJabel irmain dei Rey
nojfo jenhorfe recebe por duas vezes por palauras de pre^
fente co Emperador Carlos quinto por meyo dos [eus embai-
xadores; S. A. conuida ejles embaixadores a ja7:tarem com
elle -^ a Emperatriz parte para Cafella ^ jazje delia en-
trega aos que de lá trouxer ao poder para a receber\ decla-
rajje quem faD\ ella entra em Seuilha, onde o Emperador a
recebe. A Ruiinha nofjajenhora pare ojeu primeyrs filho :
pag- 378.
DA
Pag. r
DA CHRONICA
DO MUYTO ALTO
E MUYTO PODEROSO REY
D. JOÁO O III
DESTE NOME
PARTE PRIMEYRAy
Compojla por Francifco àanãrada do Confelho
dei Rey nojjo fenhor ^e feu Chroíúfla mor.
CAPITULO I.
O nachnento do princepe dom loaÕ, e o feu Bautijnio ^
o que fucede em ambos ejles dias,
EL R E Y dom Manoel de gloriola memoria, o
primeiro deíle nome , e dos Reys deíle reyno o
decimo quarto , cafou a primeira vez com a
princefa dona Ifabcl filha mais velha dei Rey
dom Fernando de Caftella , e d'Aragaõ , e da Rainha
dona líabel , a que chamarão os catholicos , e lierdeira
de todos feus eftados: a qual princefa era então viuua do
princepe dom Afonío vnico filho dei Rei dom loaó o fe-
gundo , que morreo em Santarém de huma queda que deu
idum caualío. Deíle primeiro matrimonio ouue el Rey o
Parte i, A prin-
a Primeyra Parte da Chronica
princepc uv/iw ^.^.^^.. , *]\. "'"^*:" ^'.. v^oiri^uva u ii.)U5dU
a 24d'Agoílo do anno de 1498,30 qual por parte dei Rey
íeu pay pertencia a direyta íucceílaõ do Reyno de Portu-
gal , e polia da princefa Tua may a dos reynos de Caftella ,
Liaô , Sicília , e Aragão; porem a princeía falleceo dcfte
primeyro parto , e o princepe dom Miguel leu filho naô
■viueo a pos ella mais que vinte e dous mefes fomente.
Tinha el Rey dom Fernando a eíle tempo três filhas, a
iíante dona loanna mais velha de todas , cjue era ja ea'ada
com Felippe Archiduque de Auflria c íenhor dos eftados-
de Frandes , e as outras duas ainda foheiras , a ifante do-
na Maria , e a ifante dona Caterina , que defpois cafou
com el Rey Anrique oitauo de Inglaterra , e defcjando o
Rey catholico de continuar efta liança e parentelco , que
começara a ter com el Rey dom Manoel, lhe mandou ain-
da em vida do princepe dom Miguel , que elle criava em
fua cafa , cometer cafamento com a ifante dona Maria íua
ilha das duas folteiras a mais velha , de que elle fe efcufou
algumas vezes por rezóes que para iíTo tinha , porem deí-
pois da morte do princepe feu filho vendo quanta necelli-
dade tinha de fe cafar , e que em nenhuma parte o podia
faz^r, que fòíTe milhor nem mais proueitolo para os feus
reynos que em Caftella, fendo de nouo cometido para efte
caíamento o aceytou , e impetrada a difpenfaçao o pos lo-
go por obra , que foy no mes de Oitubro do anno de i5'oO,
Dcíle íegundo matrimonio foy o primícia o feliciífimo
princepe dom loac o terceyro defte nome, que defpois rey-
nou nefte reyno, de cujos tempos trará efta hiftoria. Ná-
ceo efte defejado princepe na cidade de Lisboa nos paços
dalcaçoua huma fcgunda feira leis dias do mes de Junho
do anno do nacimento de Chrifto nolTo Senhor de mi! e
quinhentos e dous , quafi has duas oras defpois da meya
noire ; e no tempo que a Rainha começou a entrar nos
trabalhos e perigos do parto , eípalhando-le efta noua por
toda a cidade , íe ajuntarão os prelados com toda a clere-
fia e relígiofos dos conuentos , e ordenando huma lole-
ne e deuota piociílào com muyta cantidade de tochas c
delRey Dom João o IIÍ. j
círios acefos, que davao de fy grandiíTima claridade, íe fo-
raô ha capella de lefus , q eílá no conuento de í;iô Domin-
gos , e prouue a noflb Senhor ouuir fuás orações , e dar
profpero e íeguro parto ha Rainha dona Maria , com a
qual noua fe enxergou naquella ora em toda a cidade o
aluoroço e contentamento , que íe cuíluma ter no bom fu-
ceíTo da couía muyto defejada. Neíle dia do Teu nacimen-
to, fendono tempo mais íeco e mais quieto de todo o aar
no , ouue em Lisboa huma tao efpantofa e taõ defacuílu-
mada tempeftade de chuuas , relâmpados , trouôes , e cu-
riícos , que naõ auia memoria de homens que fe lembraf-
fem de outra femelhante , mas iíío naô impidio as publi-
cas moftras do géral contentamento, que todo o género de
gente íentia co nacimento do íeu defejado princepe : poUo
qual aíTy na cidade de Lisboa como em todo o reyno fe íi-
2eraó muytas e muyro íuntuofas feitas, e muytos ouue que
tiueraõ o íuceíío deíla tempeílade , taõ noua , e taõ fora
do feu tempo ordinário, por hum feliciílimo pronoftico do
império do princepe que nacera. A noua do profpero par-
to da Rainha fe cfpalhou logo por todo o reyno , com a
qual todos os nobres que eílauaõ fora da corre fe vieraÕ a
ella com tanta preíía, que aos oito dias eraõ ja muytos en-
trados nella , com cuja vinda fe acrecentauaõ cada dia as
feílas , os jogos, as inuençoes, e a funtuofidade dos trajos,
trabalhando cada hum por dar a entender com eftas mo-
ftras de fora o que dentro íintia ; porem o que fe moílrou
diílo no dia do bautiímo foi tanto da ventagem dos outros
dias , que parecia que tudo fe guardara para aquelle fo-
mente. Foy o princepe bautizado na capella de Saõ Mi-
guel dentro nos mefmos paços dalcaçoua , leuouho ha
pia dom laymes duque de Bargança , bautizouho dom
Martinho da cofta Arcebiípo de Lisboa , foraõ fuás ma-
drinhas a ifante dona Britiz fua auó , molher que fora do
ifante dom Fernando , e a Rainlia dona Leanor íua tia
irraam dei Rey feu pay , que fora molher dei Rey dom
loaó o fegundo , padrinho quis el Rey que foíTe Pêro paf-
qualigio embaixador de Veneza em nome da fcnhoria.,
A 2 que
4 Prlmeyra Parte da Chronica
que por feu mandado auia pouco tempo que era aly vindo
a darlhe graças pollo focorro que lhe dera contra o Tur-
co , de que tora por general dom loaõ de menezes conde
de Tarouca, que defpois foi prior do Crato ,ao qual em-
baixador armou el Rey caualleiro por fua mão , e lhe deu
licença que no ercudo das fuás armas pudeíTe trazer a iníi-
gnia da esfera dourada , e lhe fez outras muytas mercês
conformes aíTy ha grandeza de quem as fazia , como ao
tempo em que íc faziaõ. E no mefmo dia defte bautiímo
íe acendeo fogo dentro nos paços , que naõ deixou de per-
turbar algum tanto a folenidade daquelle dia , porem foy
atalhado com tanta preíFa e diligencia , que de todo fe
apagou fem dano. E deíle íuceíTo ouue também alguns ,
que lançarão mao como do paíTado , pronofticando delle
e grande reíplandor que deite princepe entaõ nacido auia
deíucedera efte feu rey no. Após ifto fez el Rey logo fa-
ber por íuas cartas has cidades , e villas principais do rey-
no, o nacimenro do princepe dom loaõ feu filho, com que
o reyno todo geralmente fe ocupou em muytas feílas con-
formes ao que cada lugar podia : e as que fe íizeraõ em
Lisboa foraó com tantos gaílos e com taô funtuofas inuen-
çôes , quanto obrigaua a grande honra e contentamento ,
que ella particularmente fentia de nacer neíla o feu defeja-
<io princepe.
CAPITULO U.
A criação do princepe até quefoube bem andar ^ e huma
vijau que jua ama teve em fonhos,
O Primeiro leite que o princepe tomou, por ordem dei
Rey e da Rainha , foy de Britiz de paiva molher de
Ahiaro da coifa guardarroupa dei Rey , que pollos mere-
cimentos de fua peíloa teuc delle deípois mayores honras,
€ fe chamou dom Aluaro da coifa , e o ícruio de feu cama-
reyro mor, e tcue antre elle muyta valia e autoridade; mas
porque á fua molher , por caula de huma infirmidade que
teue , fe lhe fecara o leite , pedio qWq por mercê a el Rey,
que
dei Rey Dom João o III. i 5
que deíTe a criação do princepe a Felíppa dabreu molher de
Bcrtolaineu de payua feu cunhado , hoir.em nobre e cida-
dão dos antigos de Lisboa , a qual mercê lhe el Rey fez :
e Felippa dabreu começou logo a dar o leite ao princepe ,
e o acabou de criar co cuidado , e diligencia que conui-
nha : e defta boa criação íe ouue el Rey por também lerui-
do , que a elia e a feu marido fez por iílo muitas mercês ,
antre as quais foy darlhe o officio de guardarroupa , e vea-
dor das obras do reyno , e outras honras para feus decen-
dentes. Contaua cila Felippa dabreu, que, antes que el Rey
dom Manoel cafaíTe com a Rainha dona Maria, lhe pare-
eeo huma noite em fonhos , que fe fazião humas grandes
feílas , has quais a Iciiaua polia mão hum velho , e lhe di-
zia que aquellas feílas fe fazião pollo nacimento de hum
princepe de que ella auia de fer am^ , e defpois de ferel
Rey cafado e a Rainha dona Maria prenhe, vio fegunda
vez em fonhos o mefmo velho , que lhe ratificava o que
antes lhe tinha dito , e fendo o princepe nacido e entre-
gue ha fua primeyra ama,durandoainda as feílas do feu na-
cimento, lhe apareceo terceyra vez o mefmo velho em fo-
nhos, e lhe dilTe claramente, que aquelle era o princepe que
ella auia de criar , mas como ella íabia que tinha elleja
por ama a Britiz depaiua , c não eíp«raua que naquillo pu-
defíe auer mudança , ouue que tudo o que vira fora puro
fonho , a que íe não deuia dar credito , porem vindo ella
defpois a fer ama do princepe polia rezao que atras fica di-
ta , e fendolhe ellc entregue para o criar, lhe veyo a pare-
cer que a vifao daquelle velho , e o que ]h'elle dilTera, fo-
ra mais modo de reueiaçao , que mero fonho fomente,
Diílo, como era couía que ella fó íabia, não pode auer ou-
tro teílemunho fenao a fua verdade , mas foy ella tal por
itia peíToa, que por eíle fó teílemunho íe ouue então queíe
podia dar a iilo inteyro credito , e por illo me pareceo re-
zao dizello nefle lugar., porque também cuido que foi iílo
outro modo de pronoílico de qual auia de fer eíle fobera-
i)o princepe , de quem ja antes de concebido-auia reuela-
^ões particulares,.
CA-
6 Primeyra Parte da Clironica
a CAPITULO IIL
O princepe he jurado , daÕlhe meflres que o injlnem »
quais faõ y e o que aprende,
CHegando o princepe dom loao a idade de pouco mais
de hum anno, quis el Rey dom Manoel feu pay fazello
jurar por princepe herdeiro deíles reynos, como he cuftu-
me antigo deiles , e para iílo no verão do anno de I5'03
fez ajuntar em Lisboa os procuradores de todas as cidades
e vilías , onde também vierao todos os prelados e íenho-
Tes do reyno com aíTaz de aluoroço , porque nao defeja-
uão aquillo menos que o meímo Rey íeu pay : e juntosf
todos nos paços dalcaçoua na lala dos liôes , defpois de
fe fazerem todas as ci^rimonias cuftumadas nos femelhan-
tes ados , íe fez o juramento por todos os três eftados era
rnãos dei Rey , o qyal elle recebeo de todos por íua pró-
pria peíloa em nomêf'do princepe dom loao o terceiro de-
ite nome íeu filho, e de tudo fe pidiráo públicos eftromen-
tos de huma parte e da outra , para memoria do que aly
então fe fizera, os quais fe paíTarâo com muyto gofto de
qmbas as partes. Nelle tempo íe criava o princepe em ca-
fa da Rainha dona Maria fua may , onde íe criou todo o
tempo que ella foi viua , e não deixou de víar da mama
até ler de três annos e meio , mas parecendo então que era
ja tempo de lha tirarem , não foi neceíTaria mais inuenção
ou artificio que afagallo fua ama hum dia , e pidirlhe que
lhe não pidiííe mais a mama , nem aquizeffe tomar delia ,
o que lhe elle prometeo e cumprio tão inteiramente , que
nunca mais lha pidio nem lha tomou. Tanto que começou
d'andar deíempeçadamente, o encomendou el Rey íeu pay
a Gonçalo figueyra , cidadão dos principais e mais anti-
gos de Lisboa , para que o acompanhaííe e olhaíle por el-
le , receofo dos defaitres que cuftumão acontecer naquel-
la idade. Ayo lhe não deu el Rey nem a ninlium dos ifan-
tes íeus irmãos, íendo cuftume antigo deíle reyno daríe a
lodos , não porque iguoraíTe efte cuílume , pois tambea^
cm"
delRey Dom João o III. ^
emfy o experimentara , fenao porque o auia por coufa ef^
cufada , e bem fe deixa entender, que a hum Rey tão pru-
dente não faltarião rezoens vrgentiílimas para fe lair do
cuftume antigo de íeus antepaflados numa couía tão im-
portante como he a criação dos princepes. A Rainha fua
mãy em quanto foy viua lhe íeruio fempre de ayo , e teve
delle o principal cuidado em tudo o q conuinha a fy e a feu
cftado , como a fua vida e íaude , e elle também lhe teue
lempre a eila tanto acatamento e obediência , quanta lhe
deuia não fomente polia obrigação geral de mãy , mas
por todas as outras particulares da boa criação. Antes que
o princepe riueíTe cumpridos os quatro anrios, parecendo a
el Rey que eílaua elle ja então em tempo de poder come-
çar a aprender,o que lhe era neceíTario para a primeyra ida-
de , lhe deu por meílre hum feu capellao por nome Alua»
ro rodriguez , homem ja velho e de bons cuítumes e en-
tendimento, o qual o infmou a ler fomente , e o inftruyo
nos principios da doutrina Criftam : e defpois que eíleue
em idade e em termos de pafíar mais adiante , deu el Rey
cuidado a efte Aluaro rodriguez de infinar eílas mefmas
couías ha itante dona líabel íua filha, que defpois cafou ca
Emperador Carlos quinto, e quando foy para Caílella o le-
uou comfigo por dayão da lua capella ; e ao princepe man-
dou infinar a efcrever por hum Martim afonfo, que tinha
clcolia em Lisboa em que eníinaua moços , entendendo
bem o prudentiílimo Rey , que pêra todas as couías fe hão
de efcolher os que forem mais fuihcienres para ellas, in-
da que as caiidades das peíToas não fejao conformes ao
miniílerio que fe lhe encomenda. Do bom engenho que O'
princepe moftrou neftes princípios entcndeo cl Rey q era
ja neceíTario paílallo a outros meilres , que llie ii)íinaífent
coufas de mais luítancia , e para ifto lhe deu por mfí'tre
da gramática a dom Diogo ortiz de vilhegas Bifpo de i'an*
gere , e prior de São Vicente de fora , pregador famoíb^
€ auido por theologo confumado , o qual por fua virtu*-
^e e por Tuas letras foy defpois prouido noBifpado de Vi-
íeu; €Íle começou de iniixiar a gramática ao princepe en*
corar
8 Primevra Parte da Chronlca
companhia d'alguns moços fidalgos , que el Rey mandou
que aprendeíTem com elle afly para a boa criação delles,
como porque a emulação e a competência nos honeftos
exercícios dão eftimuios e forças para as virtudes , e tam-
bém porque a inueja nos que aprendem fempre cuftumou
a lhe ler proueitofa, porque dá defejo a cada hum de faber
mais que outro. Leollie o Riípo os confelhos de Catão ,
Jeolhe Terêncio , Virgílio , Saiuílio , & alguma parte da
Biblia : a teórica dos planetas , e algumas coufas faciJes
da aítrologia ouuio de Tomas de torres medico & auílro-
logo naquelle tempo infigne. Como o princepe foy em
mayor idade , faliecendo o Bifpo que o infmaua , lhe foy
dado por meítre o doutor Luís teixeira , homem fidalgo ,
filho do doutor João teixeira , que fora chançaler mor dei
Rey dom João o fegundo , o qual em Itália , onde eftiue-
ra, não fomente alcançara muyta fama nos direitos canóni-
co e ciuel pollo tratado que compôs das coufas em direito
duuídofas , mas também com a doutrina de Angelo polí-
ciano, varão doutifsimo da quelle tempo, aproueitara muy-
to nas letras humanas : deíle ouuio o princepe epíílolas de
Ouuidio , alguma coula de Plínio , e de Tito liuio , e prin-
cípios de grego ; c para ter também algum conhecimento
dos termos das leis , pois cos homens práticos nellas auía
de miniítrar juftiça a íeus vaíTallos , paíTou com elle á iníti"
tuta. Mas no princepe íe vio então claramiiete quão pou-
co aproueita a boa natureza e o bom engenho por fy fo-
mente para íe alcançar o conhecimento das letras, fe falta o
cuidado e diligencia do que as aprende , porque fendo elle
dotado de hum excellentiííimo engenho , e de huma tão
felice memoria , que lha não pôde gaftar nem o pefo dos
trabalhos , nem a multidão dos negócios , todauia porque
os pueris paíTatempos daquella idade o díuertiao defte cui-
dado e diligencia , que fio neceílarios para fe fazer fruito
no que fe aprende , e também po: que no modo de o iníl-
narem fenão teue perfeita conta , com fer de maneira que
lhe não caufafíe faílio , ficou elle com menos conhecimen-
to da língua latina, do que fe pudera efpcrar do tempo que
apren;
dei Rey Dom João o IIL p
aprendeo , dos autores que ouuio , e do meílre que llios
leo. Mas nem o alcançar pouco das letras lhe fez perder
o gofto delias , antes defpois que tomou o cetro moftrou
que o tinha tamanho, que, porfuprir em íeus vaíTallos a
falta que fentia em Ty , as plantou em feu tempo neíle Rc/-
no , e fauoreceo muyto fempre os que fe derao a ellas , e
lhes fez mu/tas lionras e mercês como fe dirá em feu lu-
srar
CAPITULO IIII.
"Da-fe cafa aoprincepe ^ quais faõ os primeyros officiats que
lhe dão nella , c algumas particularidades de jua pejjha,
DEteve-fe el Rey mais tempo do que era curtume deíle
reyno em dar ao princepe ordem de caía , officiais
e renda feparada , e como iílo era coufa noua deu ocafiao a
muytos de terem fobr'iíTo varias lofpeitas, e lançarem va-
ries juizos , mas a caufa , que então fe ouue por mais certa ,
foy arrecear el Rey os inconuenientes que ordinariamente
cultumão nacer de fe começarem os moços a gouernar ce-
do por fy mefmos , e pollos que trazem derredor deíy,
principalmente os princepes , e os que fe criao para ter
mando e gouerno , porque a eíles , como pende tudo delles,
fempre foy cuftume fallarfe mais conforme ao feu gofto ,
que ao que lhes conuem , que hé hum perigo fecreto , e no
começo mal entendido , mas que ao longe vem muyras ve-
zes a parir danos grauifsimos e quaíi irreparaueis , por on-
de importa muyto atalhallo e remedeallo com tempo , para
que deTpois nao venha a ficar fem remédio , como aqui pi-
rece que quiz fazer el Rey , porque quando veyo a dar cafa
ao princepe e ordenarlhe os officiais que lhe erao neceíTa-
rios para ella , que era coufa em que geralmente fe tinhao
peitos os olhos , e que quafi todos defejauao , tais forao os
Jiomens que lhe deu para feu feruiqo , que bem deu a en-
tender , que a dilação que niíTo fízerão nao fora por defcui-
do algum que tiuelTe, nem por fe lembrar pouco do reípei-
to que fe deuia ao princepe feu íilho , fenao por \\iq parer
Farte 1, ^ cer
IO Primeyra Parte da Chionica
cer , que iíío era o que mais lhe conuinha. Deulhe porfeu
camsreyro mor dom João de menefes filho terceyro do
conde de Cantanhede, crpitao de tanto nome e fama
quanto o moftrarao fuás obras , e de fangue nobilifsimo
neíle reyno , ao qual o princepe femprejeue o rtfpeiro que
clle merecia, afsy por feu faber e diícriçáo e polias mais ca-
lidades de Pua pcíToa , como pollo amor com que oferuio
íempre ; e fallecendo elle em Azamor pouco tempo defpois
da quella famofa vitoria , que ouue dos alcaides , de que fe
trata na chronica dei Rey dom Manoel, deu por camareyro
itiór ao princepe fcu filho dom Martinho decaftelbran-
co conde de villa noua de Portimão no reyno do Algarue ,
homem de muyta verdade e prudência , íeu veador da fa-
zenda , e paranre elle de muyta autoridade e valia. Por
feu mordomo mor lhe deu dom loao da filua conde de
Portalegre. Por guarda mór Luis da filueyra , que defpois
fby conde de Sortelha. Por íeu portcyro m.ór loao de ca-
latayud , por meibe falia Criftouao de melo alcayde mór
de Serpa, por eftribciro mór dom Pedro mazcarenhas,
por caçador mór dom loao de alarcão , por monreyro mór
Joríe de melo , por veador defua cafa^Ruy lopez , e todos
os outros oíficiais menores ,quefe então derão ao princepe
para fua c^i'n, farão tais que bem correípondião aeilrourros
que tenho diro , e como o princepe naturalmente era bran-
do de condição , iíto lhe fazia íer fácil de feruir , e auerfc
brandamente cos do fcu feruiço , e não víar com elles de
palauras afperas , quando o nãoferuiãoa feu gofto, deixaua-
fe tratar delles familiarmente , mas com o reiguardo c de-
coro deuido á fua peíToa ; porque achauão nelle hum afpei-
to por huma parte tão brando e apraziuel , que llies fazia^
perder o medo de tratarem com elle , e por outra tão graue
e feuero , que os não deixaua paíTar os limites da reucren-
cia , que le lhe deuia , ajudaua a eíla fua naruraj fcueridade
fer algum tanto vagaroío no fallar , mas iílo não por vicio
algum da natureza , fenao ou por condição, ou por cuftu-
me em que fe poz , para que nem ainda has fuás pahuiras
fahâfle aquella autoridade, que cm todas as outras coufas fe
lhe
delRey Dom loao o IIÍ. it
lhe enxergaua : foy dorndo de grandes forças naturais , e
teue habilidade para todos os exercidos a que íe quiz apli-
car, a qual moílrou em algumas couías a que ie aplicou ,
quando a idade lho conícntia, e em outr?s íe conrenrou fo-
mente com experimentar que Jhe nao faltaua habilidade
para ellas , teue no efcreuer ertilo claro e graue , em que
difficultoíamenre fe acabaua de fatisEizer , foy pouco da-
do ha poefia Portuguefa , mas teue neila grande juizo e
eleição. No tratamento de lua peíToa íe contentou fempre
mais de feu trajo natural Português, que de quaiíquer outras
inuençôes das nações eítrangeiras , de tal maneyra que
quando el Rey dom Manoel feu pay cafou a terceyra vez
com a Rainha dona Leanor irmam do Emperador Carlos
quinto, inda que vio que eiPvey feu pay e toda a gente no-
bre da corte deixarão fupitamente o feu natural trajo , e
fe paliarão ao eftrangeyro por verem que a Rainha, que
então vinha de Frandes onde fe criara , e todas as damas fe
veílião ha víança dos Framengos , elle todauia nunca fez
mudança do trajo que fempre cuílumara, e nelle íe afirmou
que fizera veniagem a todos os da corte na galantaria. Jílo
meímo Ih' aconteceo nas feftas da ifante dona Beatriz fua
irmam , quando foy para Saboya, em que afsy el Rey como
toda a corte fe veftirao huns ha framenga , e outros ha ía-
boyana , e faindo el Rey com huma roupa curta de veludo
auelutado pardo , e hum pellote do mefmo , com hum co-
Jar e efpada douro , e com calças pretas , e çapatos fran-
cefes de veludo com fiuellas douro , hia o prfncepe detrás
delle com hum pellote de brocado de pello com mangas
trançadas , cortado fobre fetim pardo , com huma efpada e
talabartes douro efmaltado , e encima huma capa aberta
frilada , e na cabeça huma gorra de duas voltas com hum
firmai de muyto preço, que tudo era ha víança Portuguefa
daquelle tempo , aísy que em quanto foy princepe , inda
que feu pay , eco feu exemplo toda a corte fe mudarão
aos trajos eílrangeyros, elle nunca deixou íeu trajo natural y
e que iempre neíte reyno fora cullumado.
Ba CA-
iz Primeyra Parte da Chronica
CAPITULO V.
X)ous perigos da vida que o Princepe tem, El Rey o começa
a yneter nas coufas do go-verno. O ca/amento dei Rey com
viadama Leanor , e os pareceres que/obre elle hd
na corte^
POufando el Rey dom Manoel junto da igreja de
Santos , que agora chamao o velho , íendo o princepe
já de idade de doze annos cahio de huma varanda alta
abaixo , de que ficou tão mal tratado , que alem de receber
huma ferida na teíla da parte direita , efteue fem falia todo
aquelle dia e a noite íeguinte , e chegou a cílado que
el Rey e os médicos delconíiaraó da fua vida , mas ao ou-
tro dia prouue a noíTo íenhor que tornou em fy , e acordou
como de hum profundo fono quebrantado da queda & do
deíacordo paíTado , mas foy Deos fervido que em breue
tempo recebeo perfeita íaude , com tudo lhe ficou na tefta ,
no lugar onde tiuera a ferida , hum final nao grande nem
fevo , mas que fe enxergaua claramente. Outra vez eivan-
do em Almeirim huma ieíla feira ( que foy também o dia
em que lh'acontecera o defaílre paíTado ) adoeceo deprio-
tíz tão rijo que o chegou a perigo de morte , mas tambera
prouue a Deos de lhe dar faude, e da hy por diante todo o
tempo, que foi princepe , paílou fem ter iníirmidade algu-
ma, e como ja entaó o faber e entendimento de que era
dotado excediáo tanto os annos da fua pueril idade , que
todos lho enxergauão bem claramente , o começou e! Rey
de habituar aos trabaliios , em que lh'auia de luceder , e
metello cm todas as coufas, afsy nss do gouerno fazendo-o
aísiíllr comíigo a todos os confelhos , como nas da fazen-
da ejulfiça em todo o tempo e lugar em quele trataua del-
ias , e em^ todas lhe daua a inflruçao e doutrina conuenien-
te e neceíTaria , de que fe elie aproueitou le maneira , que
^:m le lhe enxergou deípois o bom meflre que tiuera , _e
fempre com tanta obediência e acatamento quanta íab.la
Que çra obrigado : no que períeuerou fem dar nunca mo-.
delRcy Dom João o III. 13
liuonem ocaíilo a el Rey feu pav de qualquer pequeno
deff^ofto , nem cl!c moflrar que o toniaua de coufa algun-,a ,
até^que fe pubricou o terceiro cafamenro dei Rey com a
Rainha Madama Leanor , com a qual em vida da Rainha
dona Maria fe tratara caía mento para o princepe , o que
enrao (e julgou por coaía mais conforme lia rezao , e de
todos geralmente foy muyto defcjada , porem náo ouuc
eíFeito , <& dcfpois do falecimento da Rainha dona Maria ,
lendo pouco antes chegado a Hefpanha o Emperador Car-
los quinto , que trouxera comilgo Madama I.eanor íua ir-
mam , mandou el Rey a Caílella Aluaro da cofta , que def-
pois , como atras diÍTe, foy dom Aluaro, e foy veador da
fazenda da Rainha dona Leanor , o qual inda que então le
deu a entender, que hia a viíitar o Emperador da fua vin-
da , todavia íecretamente leuaua comifíoés muyto Jargas
para tratar , e concruir o caíamento dei Rey com Madama
Leanor , fem o princepe ter difto ninhuma noticia , e coma
os poderes que leuaua erão baftantes para não deixar o ne-
gocio de fe eíFeituar por quaifquer condições que nelle fe
moueíTem , breucmente e com facilidade chegou a efFeito.
Defpois que a concruzão deite caíamento foi pubrico na
corte , ouue íobre elle vários juizos e pareceres , como
coftumaua nuer em todas as nouidades , e muito mais nu-
ma tamanha e tão pouco efperada como cila : huns eílra-
lihauão muyto o que el Rey Hzera , e dauão muytas rezoes
para íer mal acertado , outros as dauao também para o
deículparem , aprouando o caíamento por bom e neceflario
a el Rey , onde tiuerão de que lançar mão aquelles que de-
íejauão de íemear eícandalos e deíauenças antre o prince-
pe e el Pvey leu pay : os que queriao deículpar ei Rey di-
^ião que o mouera a fa-zer iíto receyo de íer daly por di.inje
pior leruido , e fe lhe ter menos reípeito do que até en tão
fe lhe tinha , fe os fidalgos vifíem o princepe com eftado fe-
parado por iy , porque com iíToeílaua certo iremfe logo
íTas elle , pois ja então , fendo elle ainda folteyro , quaíi
todos o faziâo polia br.indura da íua condição, e por íer
ejle o que auia de luceder no reyno , e o que ajudaua eílo:
feu,
14 Primeyra Parte da Clironica
feu receyo era ver, que tinha o Emperador por vizinho , (y
qual fe elle acertaíTe de vir a ter alguma diicordia ou def-
auença co princepe feu filho, de maneira que chegaíTe a
rompimento , comoja íe vira outras vezes , mais íe auia
<í'inclinar a fauorecer aparte do princepe fendo caiado
com fua irmam , que a íua , e deíla maneira fícaua o leu ci-
tado na cortefia de feu filho , pollo qual IhVra a elle muiro
milhor , e lhe conuinha muyro miis íer elle , o que fe liaf-
íe por tneyo deíle cafamento , para com elle ficar feguro
de ambas as nartes , que por tão leues inconuenientes , co-
mo fe lhe ofFerecião , deixar de fazer o que tanto lhe im-
portaua , principalmente não fendo ainda tanta a íua idade
que lhe eftiueííe mal íer caiado com molher moça , porque
mais velho que elle cafara el Rey dom AíFonfo anriquez ,
e que o gaílo que elle nilTo punha de fua parte era pequeno
inconueniente , para o feu c Jamento deixar de fe effeituar ,
pois os tempos então erao tão ricos e tão largos , q\it po-
dião fuprir a tudo , e que íe deixaíTe o reino com encargo
d'algumas obrigações a feu filho , também em defconto
diíTo o deixaua fenhor de muytos eílados nouos , que elle
aquirira e conquiílara no Oriente , não herdando de feus
anteceíTores mais , que os reynos de Portugal e do Alg:irae.
Aquelles que reprouauão eíce caíaraento dei Rey , não
auendo por boas eílas razoes , que fc dauao por íua parte ,
nem eíla fua juílificaçao por fufficiente , e entendendo que
nacia daquy não fomente deígollo para o princepe, mas
também dano e prejuizo grmde para eíle reyno , começa-
rão a praticar antre fy mais miudamente as caufas, que auia
para não fer acertado , com que o negocio ficou parecendo
ainda mais feyo, principalmente não faltando erdeyros no
rcyno , pois o princepe era ja homem , e tinha muitos ir-
mão? com que a íucefíao parecia que eftaua íegura : e tam-
bém ellaua claro que eíla era a mefma rezão , por onde o
Emperador não dera fua irmam por molher a el Rey,íe não
com obrigação de muitas rendas para ella , e para os filhos
que dantre ambos naceílcm , donde fe feguia darem-fe pri-
itieyro eílados e rendas aos que eílauao por nacer , que aos
dei Rey Dom loao o III. 15'
que eílauao já criados , e que inda não linhão (íe íeu coufa
própria , e que cafando Aladama Leanor co princepe , cef-
iauao todos eiles inconuenienres , e cl Rey pudera ver ne-
tos cm lua vida , com que elle ficara mais contente , o reyno
inais profpero , e a fuceíFaô mais fegura.
C A P I TU L O VI.
Como o princepe fe hd nefie cafamento dei Rey , e como Je el
Rey ha com elle , qtiais jaÕ os principais dous priuaàos
que o prificepe tem , e as feições do corpo do
princepe*
DEftas rezoes , que erao as pubricas , e doutras que fe
dauiio em íegredo, fe diíTe que tomara motiuo Luis da
filucyra guarda mòr do princepe, e muito aceito a elle, para
lhe azedar a vontade contra el Rey feu pay , e preuerterlhe
squella fincera e verdadeira obediência , que fempre lhe
tiuera ; porem nunca pode tanto com elle a paixão, que to-
mou por eíle calamento , que ella lhe fizeíTe deixar de obe-
decer inteyramente a el Rey feu pay em todas as coufas
graues e de importância , mas em algumas mais leues dif-
fimulou menos eíle defgoílo , por ondeei Rey quafi que
fentido diílo começou a le inclinar mais ao ifante dom
Luis feu filho íegundo , porem iílo era fomente no trato e
conuerfação domeílica e em coufas particulares , que no
pubrico, e no íuftancial do eftado fe difsimulou iílo fem-
pre, de maneyra que nunca ouue final nem receyo algum de^
maiores defauenças , fomente el Rey lentindo , ou imagi-
nando que a familiaridade e comunicação de Luis da filuey-
ra co princepe lhe fazia mudar alguma coufa da lua boa
inclinação e natureza , bufcou algumas coulns mais leves
e menos afperas, que efta , para o apartar da conuerfaçaõ e
GO femiço do princepe , e lhe mandou que faifie da cor-
te , e nao tornaíTe a entrar nella até lho elle manda r , e
dle o fez aíTy logo , e em todo o tempo que el Rey vi-
ueo naô tornou, mais ao feruiço do princepe , porem elle
lan-
i6 Primeyra Parte da Chronica
tanto que começou a reynar, o mandou logo vir, e o
reítituyo ao meímo lugar que antes tinha , e com as mef-
mas mercês e fauores que antes lhe fazia. Nem foy íá
Luís da filueyra o que nefte tempo foy aceito ao priace-
pe , outro ouue também dos que andauao no feu leruíço,
a Gue elle moílrou que nao era menos inclinado, o qual
era dom António de taide , porem ambos craô bem diííe-
rentes nas artes , no modo do feruir , e na idade , e com
quanto cada hum delles a feu modo teue muyto boas par-
tes ecalidades, com as quais merecerão virem deípois a
fer condes em diuerfos tempos , Luís da íilue/ra de Sor-
telha , e dom António da Caftanheira. O Luís da fílueyra
era homem já mais de meya idade, muy to hábil, e de gran-
de engenho para a poefia Portuguefa daquelle tempo , a
qual ajudada d'algum conhecimento que tinha das letras
latinas , íicaua fendo muyto mais pura , e ifto fazia a fua
conuerfaçaó e familiaridade muyto agradável a todos. O
dom António era muyto mais moço, e quafi conforme aos
annos do princepe , mas de bom juizo , entendimento , e
difcríçao , e de milhor tento e mayores refpeitos do que
parecia que podiao caber na íua idade : ambos conti-
nuauão igualmente o feruiço do princepe , Luís da íiluey-
ra por fua prudência e dífcriçao e pollo muyto que valia
com elle , e dom António pollos fauores que recebia delle:
vfaua mais o princepe de Luis da íilueyra para íe aconíe-
Ihar com elle, polia autoridade de fua peOoa , mas apro-
ueitaua-íe mais de dom António para íeus paííatempos,
polia conformidade dos annos , porem como o princepe
entrou em mayor idade, começou a fentiríe antre elles dif-
ferença no modo do feruiço. Luis da filueyra , polia valia
que rinha co princepe , queria recolher aíy todos os negó-
cios para fe fazerem por feu parecer , c diziao que fe
prouia d'aluaras fecretos de coufas que importauao a fua
honra , para o tempo que o princepe reynaíTe , o dom An-
tónio , inda que nao deixaua de entender o muyto que po-
dia então grangear para fy por todas as vias pollo eílado
em (jue íe via co princepe , todauia a fua pouca idade lhe
delRey Dom João o III. \j
nao confentia tomar outros cuidados , nem antremeterfe
€m outros negócios mais , que em fer muyto diligente no
íeruiço do princepe , e trabalhar por conferuar e acrccen-
tar o goílo , que lhe via ter deíle feu feruiço , aíTy que am-
-bos tiuerão neíle tempo igual fauor e valia para as fuás
pertençces , e cada hum delles farisfez feu deíejo. Cria;-
rao-íe lambem no mefmo feruiço do princepe , e na con-
tinuação de íua cafa dom Franciíco lobo fillio do barão de
Aluito dom Diogo lobo, Ruy pereyra filho de João da
íilua regedor deftes reynos , dom Jorfe anriquez , e outros
muytos , os quais todos receberão do princepe as honras
€ mercês que íe dirão adiante. Era o princepe de raeain
cftatura , mais groíTo que delicado , de prefença alegre e
autorizada , tinha o roftroaluo, e com muyto boa cor
nelle , a teita larga , os olhos antre verdes e azues , con-
formes ha proporção do roliro , peílanudos defabafados
das fobrancelhas , e com perfeyta vifta , alegres , de boa
lombra e bom acolhimento , mas dentro dos limites
da fcueridade e grauidade , que fe requeria em íua pef-
íoa , tinha o nariz compaíTado , a boca meam , os beiços
vermelhos , o pefcoço algum tanto menos faido ha pro-
porção do corpo , a cintura não delgada mas não defairo-
fa , as pernas direitas , e para o talho do corpo bem fei-
tas , e em fim em todos os membros era muyro bem pro-
porcionado , nos meneyos airofo , e no andar compoílo
e graue , não era muyto ligeyro e defenuolto , mas iílo era
parte para lhe abater nada do ar e natural graça, que tir
nha em todas as outras couTas. >
CAPITULO VIL
A morte dei Rey dom Manoel e o feu enterramento , e
as cirimonias que nclla Je fazem.
AVendo íós dous annos que el Rey dom Manoel era
caiado com a Rainha dona Leanor , de quem tinha
huma filh.i que era a ifante dona Maria , huma quinta íey^
Farte L C ra
^6 Piimeyra Parte da Chronica
ia^cinco dias do mes de Dezembro da era de 1521 adõe-
cco de huma infirmidade tão graue , e tão rija , que logo
cm adoecendo começou a aucr duuida de íua íaude : ne-
-líe mefmo dia polia menham íe partira o princepe cos
jfantes dom Luis , e dom Fernando ícus irn.aospara ga-
-ílarem alguns dias em palíatempos de montarias , e caças
nas coutadas de Almerim c Saluaterra > deixando ainda el
Key feu pay fem receyo nem foípeita da fupita infirmida-
de que lhe fobreueyo : elle íeniindo eiíi fy o perigo em
que eftaua mandou logo recado ao princepe e aos ifantes ,
que Jhe chegou áo Jabado ha meya noite , com a qual
noua- fe partirão logo ao domingo em amanhecendo, e
chegarão a Lisboa eíTe mefmo dia ha meya noite, onde
acharão el Rey em grande e manifeílo perigo da vida : o
princepe trabalhando por encubrir parani'elle o fentimen-
to Que tinha de o ver naquelle eftado , tratou logo com
aquelle cuidado e vigilância , a que o amor c a rezaõ o
©brigauaô , de prouer em tudo o que conuinha para remé-
dio daquella perigofa doença , e para iílo íe mudou do
leu apoienro para o dcl Rey , e le agaíalhou pegado com a
camará onde elle eílava : aly fez logo ajuntar muytos mé-
dicos , e achando-fe prefenre a todas as confultas que fa-
2Íão , mandaua com muyta prelTa prouer em tudo o que
por elles era ordenado , mas como contra o que ordena a
diuina prouidencia não há remédio nem. beneficio huma-
no que baile , todo o trabalho e diligencia dos médicos
forão íem prQueito : el Rey neftes dias que efteue doente,
como quem entendia , ou fofpeitaua que a íua ora derra-'
dcyra fe hia chegando , acabou de farisfazer a algumas
coufas em que fentia a conciencia encarregada , alem das
que tinha ordenadas em feu tcílamento , queja muyto an-
tes tinha feito , cuja execução ficou encomendada a dom
Diogo de fouía Arcebifpo de Braga, e a dom Martinho de
caílclbranco conde de Villa noua , e agora nouamente fi-
zera hum condicillo em que encomcndaua muyto ao prin-
cepe o jufto gouerno do íeu reyno , e o bom tratamento
dt) feu pouQ, e com palauras de muyto encarecimento
lh'en-
delRey Dom Joaó o IIÍ. ip
lh'encarregou os ifantes feus irmãos , e o acatamento e
reuerencia ha Rainha dona Leanor , c)ue lhe deixaua por
Ifíiy , e chegando ja ao derradeyro termo da vida defpois
de tomar com muyta deuaçao os Sacrametitos da confif-
íao , da Eucariília , e da extrema vnçao , encomendando
com muyta efficacia ao princepe que Tc IcmbraíTe de feus
criados , deu a alma a leu criador huma lefta feira 13 de
Dezembro do anno de 1521 antre as dez e as onze oras
da noite , fendo de idade de yz annos e íeis mezes , dos
quais reynou vinte e féis fomente : princepe por fuás vir-
tudes, e grandes obras , aííaz merecedor demais longa
vida. A noua da morte de! Rey íe eípalhou logo por toda
a cidade, que em todos geralmente caufou tanta dor e [çn^
timento , quanto he rezão , que fe tenha por tamanha per-
da como he de hum tâo bom Rey , e tao amigo de feu po-
uo ; porem no princepe fe cnxergaua então ifto mais que
em ninguém , alTy polia fua natural brandura de condi-
ção, que lhe fazia fentir muyto efta perda geral de todos, <■
como pollo amor que fempre riuera a el Rey íeu pay , e a
todas as fuás couías , que lhe daua a entender a perda que
elle particularmente recebia deita tamanha falta. O Arce-
bifpo de Braga , e o conde de Villa noua ordenarão logo ,
que o corpo dei Rey foíTe leuado ao mocfteiro de noíTa
Senhora de Belém , e que ahy fe lhe fizeíTem as exéquias
como elle tinha mandado. E ainda que a dor , e fentimcn-
to deílas coufas tinhão feito tanta impreílao no princepe'
como era rezão, todauia nem iíío foy baílante para què *
fe defcuydaíTe de prouer muyto inteyramente em tudo o
que conuinha ao enterramento do corpo dei Rey feu pay ,-
e has exéquias que lhe mandou fazer no moeíleyro ondefoy^
enterrado , e ein todas as outras igrejas e conuentos. É-
tambem em todas as coufis, que erão importantes ao bem '
dé íua alma foy tão folicito e apreíTado , que todas fez
dar ha execução com toda a breuidade pollluel. Ao quar-
to dia defpois do fallecimcnto dei Rey , que foy aos 17
do mez de Dezembro , tendo a cidade de Lisboa tudo ja^l-
preíles para fazer a foJenidade do pranto , que he cuílu--i
C 2 ííiQ
IO Piimeyra Parte da Chronica
ipe antigo fazerfe nas mortes dos Reys , íairão da cafa dd
camará delia os Vereadores daquellc anno , que erao dom
Pedro de caílelbranco , e João brandão, rodos apé com
varas pretas nas mãos , e leuauao diante de íy o alferez
da cidade Nuno aluarez percyra , fillio de Ruy dias pe-
xey.ra , que fora alíerez dei Rey dom Manoel fendo ain-
da duque , em hum cauallo ha baítarda cuberto de rafo,
com huma bandeira preta numa aílea da mefma íorte der-
rubada lebre o ombro , demaneyra , que as pontas lhe ar-
raílauaô pollo chaô , e juntos com elle hiaó três juizes.
d%cidade ,.dous do crime , e hum do ciuel , cada hum com"
}ium,efcudo preto pollo fobre a cabeça. Ao fair da porta da'
camará fe ajuntarão cos Vereadores dom João de vaícon-
cellos conde de Penella , dom Martinho de caftelbranco
cande de Villa noua , dom Diogo lobo barão de Aluito ,
e outros muytos fenhores e fidalgos , e chegando ha por-
ta, da Sé, hum dos juizes do crime, que ieuaua o pri-
rgeyro efcudo , deu com elle em terra , e lendo feito em
pedaços dille logo iium homem , que vinha acauallo , em
voz alta humas certas pniauras , que trazia efcritas por or-
dem da camará , após as quais fe leuantou hum grande
pranto, em todos os que as ouuirao , e logo fe abalarão
daquy fodos, e chegando ha rua noua dos mercadores
acharão no meyo delia hum banco cuberto de preto , fo--
bre o qual fe pos o outro juiz do crime , que Ieuaua o
íegundo efcudo , e deixando-o cair da cabeça o quebrou
no mefmo banco , e lendo então o mefmo iiomem de ca-
uallo as meímas palauras que trazia eícritas , fe leuantou .
outro pyánto igual ao paíFado. Daqui le forao todos com.
efta ordicm ao roííio onde o juiz do ciuil quebrou o ler-
cèyro eícudo com a meíma cirimonia , que fe quebrarão
o^ outros. Efte cuiiume antigo de fe quebrarem elcudos ,
efe arraíiar bandeira na morte do Rey com pranto geral
de. todo o pouo , dizem alguns , que he lignificaçaó de
fer fallecido aquelle Rey e fenhor , que era defençaõ doi
fttii reyno, e que Icuantaua as bandeiras contra os inimi- ,
gOjS dejlç», Peílç lugar onde fe acabou eíla cirimonia , fe
:,í« tor-
• delRey Dom João o III. 1-t
tornarão ha Sé por outro caminho difFerente , cnde fe difTe
huma miíla cantada muyto íolene polia alma dei Rcy com
muyro grande cantidade de rochas, acompanhada de quan-
tas miíTas rezadas í'e puderaó dizer aíTy na meíma Sé , co-
mo em todas as igrejas e moeíleyros da cidade.
CAPITULO VIII.
O modo e aparato com que o princepe vay até o alpen-
dere de Jaõ Domingos , onde hadejèr jurado por Rey,
A Gabadas eítas cirimonias com toda a íolenidade e
aparato que conuinha , fe tratou logo d'alcuantarenii
por Rey o princepe dom João , e como iílo era curtume
antigo fazerle ao terceyro dia deípois do enterramento do
^Qj defun.ro, foy então forçado dilataríc mais outros três
dias 3 aísy porque na conjunção da quelle tempo lobreuie-
rão muyras cliuuas que o impedirão, como porque em tão
breue efpaço íenão puderao acabar algumas couías necef-
farias para o aparato e porapa5que naquelles aítos fe reque-
re , e ao feifto dia depois rio enterramento dei Rey , que
foy aos dezanoue de Dezembro, eílando ja tudo preparado
huma quinta feyra íahio o princepe dos paços da ribeyra ,
ondeeiRey íeu pay fallecera, veilido em huma opa roça-
gante de brocado , forrada d'arminhos (da qual fez def-
pois efinoila ao m.oefteiro da Serra ) em hum cauailo ha
baílarda com guarnições de lella douro: leuaua-o polia ré-
dea o ifante dom Fernando íeu irmão , e dom António de
taide, e dom Diogo de caftro , que ainda o feruião cm
corpo^ lhe aleuantauao as faidras da opa cada hum de
fua parte ; ha mão direyta do princepe hião os grandes do
reyno , que então lé acharão na corte , todos apé , dom Ja-
mes duque de Barganqa e de Guimarães , dom Jorge filho
dcl Rey dom João o fegundo , meílre de Santiago e de
Auis , e duque de Coimbra , dom João feu filho marquez
de Torres nouas , dom Fernando de norcnha m.arquez de
\ilia Real , dom Pedro feu filho conde de Alcoutim , djrini
João
21 Primeyra Parte da Chronica
João de vafconcellos conde de Penella , dom M.inoel
frojaz perejra conde da Feyra , dom Franciíco courinho
conde de Marialua , dom João da íiJua conde de Portale-
gre , dom Martinho de cafteJ branco conde de Villa noua ,
doai Vafco da gama conde da Vidigeyra , e almirante da
índia , e da parte efquerda hiao os officiais mores , e a ca-
mará da cidade , e de huma parte e da outra hiao outros
muyros fidalgos e gente nobre ; logo diante do princepe
hia o infante dom Luis fcu irmão fegundo a caualio, que lhe
leua.ua o eíloque por fer condeílabre do reyno , diante do
Ifante hia a cauailo dom João de menefes conde de Ta-
rouca , prior do Crato , mordomo mor que fora dei Rey
dom Manoel, e alfcrez mor do reyno , o qual leuaua a ban-
deyra enrolada ; logo adiante deile h-âo todos os minif-
tros , charamellas , trombetas , hataballes com ordem que
por então não tocaíTem os eftromcntos por reípeitos da
Rainha viuua ; adiante deíles hiao os Reys darmas com
íuas cotas veílidas , conhecidos todos por íuas diuifas , e
os porteiros com fuás maças , e todos eftes a cauallo : com
efta ordem entrarão polias portas da ribeyra e forão por
algumas ruas da cidade até chegarem ao alpendere do
xiioeReyro de fao Domingos, onde fe auia de fazer cíle
aélo que eftaua todo ha roda & por cima ornado e para-
mentado como comvinha, para tal íolenidade: junto da
porta da igreja eftaua feito hum muyto grande teatro de
oito degraos , ornado também riquiííimamente , cerra-
do polias ilhargas com huns par:ipeitos cobertos de finos
e ricos panos, e em cima delle hum eftrado pequeno a que ^
íe fubia por dous degraos, concertado também ao modo de '
tudo o mais , no qual eftaua a cadeyra para o princepe de-
baixo de hum doflei de brocado de. muyto preço , com al-
mofadas do mefmo: eílaua também nelle eílrado outra ca-
deyra cuberta de brocado com huma almofada em cima
em que eftaua hum miíTal , e huma Cruz , ha forma do ju-
ramento que o princepe auia de tomar. Ha entrada . defte
teatro o eftaua efperando o cardeal ifante dom Afonfo feu
irmão com todos os prelados , c^ue então cftauao na corte ,
os
dei Rey Dom João o III» a^
os quais por hcnra e acaramento da religião não he cuílu-
jre acompanharem apé os princcpes em ninhum aíío quan-
do elles váo acaiiailo. Subido o princepe ao eflrado de
cima, e aílénrado na cadcyra, que nelle eílaua , temeu o ce-
tro da mão do conde de Villa noua, (a quem por íer íeu ca-
jnareyro mor pertencia íer o miniílro daquella cerimo-
nia) eo teue ate fe tornar para o psço. O ifante dom
Luís íe pos ha fua m.ao direyta co eíloque Icuantando. E o-
ifante dom Fernando ha efquerda , ambos cm pé em quan-
to durou o ado , e o ifante cardeal por mandado do prin-
cepe íe aíTentou em huma cadeyra guarnecida de íeâã , que
cftaua no teatro debaixo , ha íua mão direyía : ordenado
ifto , o conde prior alferez mor fe poz na ponta do teatro
da mão direita em pé com a bandeyra enrolada, da maney-
ra que atrcuxera , e na outra ponta da m,ão elqoerda iepoz
o doutor Diogo pacheco, que por íuas muytas leiras e gran-
de eloquência fora eícolhido para aquelle aflo , o qual def-
J»ois defeito fiiencio no rumor que então aly auia , diíTé
em voz alta , que podia bem fer ouuida de todo aquelle
ajuntamento, como por morte do criílianiííimo Rey dom
Manoel da glorioía memoria , fora Deos feruido deixar
f>or feu herdeyro e legitimo íuceííor o princepe dom João
leu filho primogénito , jurado ja por tal em vida dei Rey
feu pay pollos três eftados do reyno , o qual era aly vindo
J)ara tomar aquelle cetro do feu reyno , queporerança e
por direyto lhe pertencia , e para que elles o rcconheccf-
Jem e ojurafíem por íeu Rey e lenhcr, e lhe fizefem prei-
to e menagem de lhe guardarem fempre a fee e lealdade a
^ue Ih"* erão obrigados como bons e leais vafTallos , e que
élle lambem eíperaua co fauor diuino de os reger e gouer-
r>ar com inteyra juftiça , e lhes prometia guardarlhes to-
dos os priuilegios , honras , liberdades , franquezas , gra-
das e mercês, que por el Rey feu pay, e pollos outros Rcys
1^U5 anieceflores lhes forão concedidas, e que diflo auia
lambem de tomar feu juramento.
CA-.
24 Pflmcyra Parte da Chronica i
CAPITULO IX.
A maneyra de que o princepe hc jurado , eJeuantado
por L{ey , e as exe guias- que Je fazem por, el Rey
dom Manoel.
A Gabada a falia que fizera o doutor Diogo pacheco, o
cardeal ifante fe fubio ao eftrddo,onde eftaua o prin-
cepe, e poltos ambos de joelhos, o princepe pos as mãos
fobre o liuro dos Euangclho?, e fobre a Cruz que aly eíla-
uao , eo cardeal lhe deu juramento de fazer a rodos in-
teyra juíliça , e lhes guardar lodos os priuilegios , hon-
ras , liberdades , franquezas , graças, e mercês , que por
elRey feu pay , e pollos Reys feus anteceíTores lhe forão
concedidas , como poUo doutor Diogo pacheco então lhe
fora declarado , e logo por mandado do princepe fe tor-
nou hà íua cadeyra. A pos iílo o primeyro, que íe chegou
z dar a íua menagem, foy o ifante dom Luis, que poíto de
joelhos , e paíTando o eíloque ha mão efquerda , pos a di-
reyta fobre o miííal , e fobre a cruz , e tomou o juramen-
to da mão de dom António de noronha eícriuaô da puri^
dade , que defpois foy conde de Linhares , cujas palauras
o dom António hia dizendo , e o ifante as referia, as quais
erão as íeguintes. Eu o ifante dom Luis juro a eíles fan-
tos Euangelhos , e a eíla cruz em que ponho a mao , que
cu recebo por íenhor, e Rey verdadeiro, e natural, o muy-
to alto , muyto excellente , e muyto poderofo princepe el
B ey dom João noílo fenhor, e lhe faço preito e menagem,
íegundo foro , e cuftume deites íeus reynos. Acabado
eíle juramento do ifante dom Luis , o conde alferez mor
delenrolou logo a bandeyra , e a teue dahy por diante
eftendida. E a pos o ifante dom Luis veyo logo o ifante
dom Fernando, e poílo de joelhos com ambas as mãos
lobre o milTal , e fobre a cruz , ,diíTe fomente , e eu afly o
juro, e defta maneyra jurarão também os fenhores de
titulo conforme as luas precedências , dizendo , e eu aíTy
o juro , e como cada hum acabaua de jurar hia beijara
mão
delRey Dom João o III. 25
mão aelRey. Após eítes fenhores tomou o cardeal por
{y fó o juramento na m.efma forma , e depois de beijar
a mão a el Rey , e fe tornar a aíTentar o tomarão todos
osBifpos conforme as fuás ancianidades e precedências.
Após elies tomarão o mefmo juramento dom Anrique , e
dom Diogo filhos do marques de villa real, etras eJles o re-
gedor loão da filua , e após elle o governador de Lisboa
dom Aluaro de caítro , e logo dom lorfe de meneies fe-
nhor de Cantanhede , e após elles fízerão o mefmo todos
os fidalgos , que eftauao no treatro cada hum como podia
mais comodamente , e por derradeyro fe chegarão os ve-
readores da cidade que el Rey mandara aíTentar no íeif-
to lugar do treatro , e perguntandolhes dom António fe
jurauão elles também aquilTo meímo , refponderão ãíly o
juramos nós os vereadores da cidade de Lisboa como a prin-
cipal que he do reyno , e logo todos três beijarão a mão a
elRey. Concruido por eíle modo o juramento , o rey
darmas Portugal diíTe por três vezes em voz alta , Ouui-
de , e após elle o conde alferez mór diíTe em voz tam-
bém alta, Arrayal , Arrayal , Arrayal , pollo muyto al-
to , e muyto poderofo princepe el Rey dom loao o ter-
ceyro noíío fenhor , ao que refponderão os reys darmas ,'
c os mais oíliciais delias em altas vozes , Arrayal , Ar-
r.ayal, Arrayal, íem dizerem mais outra palaura, então fe to-,
carão os eííromentos todos , e o conde alferez mór fc de-
<GO ao pé do treatro , onde tornou a dizer as mefmas pa-
lauras , e os reys darmas cos mais officiais lhe relpon-
derão da mefma maneyra. Acabado com. iílo efte folene
a<flo cl Rey fe deceo do treatro , e foy demandar a por-
ta da igreja leuando diante o eíloque leuantado na mão
do ifante dOm Luis , e bandeyra na mão do mefmo conde
de Tarouca , onde o eftauaõ eíperando de huma parte os-
religiofos da cafa , e da outra os feus capellacs , e o Ca-
bido da Sé , e de trás de todos dom Fernando de vaícon-
cellos Bifpo de Lamego , e feu capellão mór , reucílido era
pontifical com humas relíquias nas mães, que o cardeal
tomou -e deu a beijar a el Rey que com toda ella com-
^., Fane L D par
26 Primeyra Parte da Chronica
panhia em prociíTao com Cruz aleuantada fc foy no altar
de í ESV onde fez fua oração , e lhe cantarão o himno
de Te Deuni laudamus , no fim do qual o mermo'Biípo de
I^amego dilTe cercas orações com que el Rey fe recollieo
CO cetro na mao , feguindoo a cauallo aquelles grandes ,
que ha ida o acompanharão a pé. Diante delle hia o con-
de alferez mor , dizendo de quando em quando , Arrayal ,
Arrayal , Arrayal , com as mefmas palauras que atras fi-
caô ditas , a quem os ofRciais das armas também refpon-
dião na meíma forma que dantes ; com efta pompa e real
gparato chegou até a porta da ribeyra , fazendo em todo
efte caminho feu officio todos os eílromentos , porem daly
até o paço mandou que ceíTaíTem , também pollo meímo
refpeito da Raynha viuua , e deíla maneyra foy leuantado
ç jurado por Pvey deíles reynos o princepe dom João ter-
ceyro deíle nome na cidade de Lisboa , a dezanoue de De-
zembro do anno de 1521 , fendo de idade de dezanoue ân-
uos e meyo e treze dias. Logo defpois de fer concruido
efte folene aélo fe paíTou el Fvey dos paços da ribeyra , on-
de fallecera el Rey feu pay , para Santos o nouo onde íe
apoíentou nas cafas de dom Franciíco deça , e a Raynha
e a iíante dona líabel fe paíTarao a enxobregas para as ca«
fas de Triílão da cunha. E chegado o tempo em que fe
auíao de fazer as exéquias dei Rey dom Manoel , fez el
Rey ajuntar no moíleiro de Belém todos os prelados que
então eftauao na corte , e todos os religiofos de todas or-
dens quantos auia na cidade , e o Cabido da Sé , e todos
os feus capellães , e aly fe fez hum foleniílimo faimento
com todo o aparato e magefuade que fe deuia ao Rey de-
funto , porem nem ouue nelle élla , nem forao chamados
para elle os prelados aufentes como era cufcume fazerfe em
íemelhantes aiftos , porque o defendera el Rey dom Ma-
noel em feu tcftamento , mouido da mcfma humildade que
o fez mandarfe enterrar emfepultura rafa co chão e em
que não ouuelTe dcgraos. Ao outro dia defpois deíle fair
mento fe paííou el Rey para Santos o velho, que he da ou-
tra parte da cidade dos muros afora no caminho de Ber
lem
dei Rey Dom João o III. ij
lem , e a Raynha com a ifante dona líabel fe paíTarao para
as caías do duque de Bargança que faÓ dos muros da cida-
de para dentro.
CAPITULO X.
O ejlaão em que eflao as coufas do reyvo íf[!y ckfitro co-
mo fora delley quando o princepe dom 'João começa
£1 rcynar.
AMayor parte daquelJes felices annos que durou o im-
pério dogloriofo e bem afortunado Rey dom Ma-
noel liie íocederão fempre todas as coufas tão profpera-
mente , qae parece que a fortuna de propolito tinha toma-
do a feu cargo engrandecelio , porque cos grandes prouci-
tos e interclTes que fe tirarão de muytas e muyto gloriofas
conquilUs que os Portuguefes fizerao nas partes Orientaes,
e do trato e comercio delias , em eípaço de poucos annos
veyo efi:e reyno a fer ranto mais rico e abaftado do que o
nunca fora , que os rnefmos Jiomens quafi atónitos de tão
fupita mudança não fouberao tratrar as riquezas , nem víar
delliiS com a temperança deuida e neceííaria , quiçá pare-
cendolhe que lhe não podia jamais vir a faltar o que hu-
ma vez tinhão alcançado. Ajudaua também então eíta ri-
queza e abaílança do reyno, efcarelle ainda iiure e def-
embaraçado das obrigações que defpois teue acjue foy
forçado acodirfe , porque não tinha el Rey ainda filhos a
quem ouueíTe de dar caías , e rendas , nem filhas a quem
ouueíFc de dar dotes , o que tudo auia de fair da fuílancia
do reyno , e aíly tudo o que então auia nelle fe conuertia
nos feus ufos , com que cada dia fe fazia mais rico e mais
abaílado , e dos limites delle para fora eftaua tudo em tan-
ta paz e quietação que não auia coufa que pudeíTe dar cui-
dado. Eíla profperidade , e boa fortuna veyo em fim a dar
moílra d'alguma mudança e declinação porque efta grande
riqueza e abundância, que fe deuera de poupar para as ne-
ceífidades da honra fe veyo a empregar toda em delicias e
D 2 ape-
2 8 Prinieyra Parte da Chronica
apetites, os quaes como coftiimão fer iníaciaueis forao cau-
fa de granJilumas íuperfliiidades e demaíias , nos trajos ,
tomados quaíi de iinproui;o de gentes eftrangeiras , nos
adereços das caías , no faiifto e pompa do leruiço , em
cheiros e perfumes delicioios , em inuenções de manjares
differentiflimos aíTaz cuíloíbs ha fazenda , e danoíos ha vi-
da , € em outras muytas coufas deíla calidadc , que forao
baílintes não íómente para darem grandiííima quebra na
quella grande abundância a que os homens tinhão chega-
do , mas para preuerterem e quafi corromperem de todo
aqueIJe rigor e aufteridade dos cuílumes antigos, que era a
coluna e íuílentação da verdadeyra honra. E confideradas
bem eftas cousas tenho para mim , que fe pode ter grande
receyo da ruína , e total perdição daquellas terras , e rcy-
nos que derem entrada a eftas demafias e fuperfluidades ,
porque fícao metidos antre liuns inimigos domefticos , que
íem ferro nem fogo os vão con umindo pouco a pouco iem
fe fentirem, e tanto mais perigoíos e perjudiciais que todos
os outros, quanto íaõ menos conhecido? , .e as armas com
que fazem fua guerra fao os próprios goílos e apetites dos
mefmos com que pelejao. Por onde aos Reys e fenhores
importa -muyto porem todo o cuidado e diligencia por
euitarem eftes gaílos demsíiados , e eftas delicias fuperfíuas
que oje no mundo tem feito honra de liulandades , e in-
troduzirem de nono quanto for poíliuel os víos e cuftumes
antigos yC]Xíe forao mcftres da folida e verdadeyra honra ,
fe quer por nam verem poíías em perigo as fizendas , as
honras, e as almas dos que tem a feu cargo. Por outra
parte íocedeo auer ifantes no reyno , a que foy forçado
darfe vida e grnndes dotes , e fatisfazeríe ha ifante dona
Maria o que eJ Rey dom Manoel feu pay era obrigado a
lhe dar por virtude do contrato do leu tcrceyro calamento
com a Rainha dona Leanor , e como tudo ifto foy tam-
bém forçado que faiíTe da luftancia do reyno , não fe po-
de fazer iem muyta quebra da fua antiga largueza e prof-
peridade. Pol^o qual ainda que por huma parte o reyno
polia morte dei Rey dom Manoel ficou muyto mais largo
e
dei Rey Dom João o IH. 2p
c mais auentajado de terras e groíTos tratos , todavia por
ourra , all-y polia deíordem e demaíia dos gaftos , c polia
grande careftia das couias que n.aeo deiles , como polias
muyras e grandes obrigações que el Rey deixou para cum-
prir , ficou elie menos rico e menos ab.^ílado , e neíla par-
le já menos profpero. Começou também cl Rey dom Ma-
noel a íenrir mudança na paz e quietação que lenipre tiuera,
porque hum noífo natural , por nome Fernão de maga-
Ihaens homem de grande efpiriío , e de muyta pratica e
experiência na arte da nauegaçao , por hum agrauo que
tcue delle por lhe não mandar acrecentar hum toítão ha
moradia que tinha para íicar igual ha de feus antepaçados
fe tirou do fcu feruiço , e fe palíbu ao Emperador Carlos
quinto , qne pouco antes era vindo a Efpanha tomar poííe
do reyno de Callella , e Te lhe ofíereceo a lhe dar mayores
proueitos da índia do que tinhão os Portugueíes , e por
nauegação mais breue e menos cuítofa e perigofa que a
fua , por hum eílreito queelle nouamente deicobrira na
coíla do Braíil , e lhe poz também as ilhas de Maluco na
demarcação das terras que ficarão ha conquiíla de Caílel-
la na repartição que fe fez delias antr' ella e eíle reyno ,
a que o Emperador não fómente deu orelhas , mas o ad-
mitio ao Teu leruiço , ao que acudio então el Rey dom
Mcinoel fazendo ao Emperador as lembranças neceíTarias ,
has quais cUe fempre refpondeo com as mais aparentes re-
zóes que pode. Mas não deixou depor em eíFeito o que
Fernão de magalhaes lhe o{íerecera,dandolhe nauios e gen-
te com que cometeo a viagem , e íe paíTou a Frandes a
profleguir o direito da íua eleição. E alTy em ambos os
reynos í'erperaua o recado do que paííaua o magalhacns ,
não lem grande rcceyo que como efte negocio era de muy-
^ , pequena inquietaça _
para el Rei e para o reyno. Também da parte de França
íhs fobrcueyo outra que não daua pouco em que cuidar ,
porque el Rey Franciíco > quiçá defejofo de ler parte nos-
gran-
30 Pi Imeyra Parte da Chronica
grandes proucltos que tinha por inforrr.nçao qire fe-tirauâO'
da naucgaçao e comercio da índia, comci^ou a arguir
nouas duuidas íobre a demarcação que íizerão antre ly os
Reys de Portugal e Caílella , da qual nnquelle tempo clle
fe lançara fora fendo requerido para itlo e agora lentia
muvto a renunciaçao que tinha feito da parte da auçao que
pudera ter ncíle defcubrimento. Donde íe veyo a dizer pol-
lo deígoílo que tinha de eíles dous B^eys de Portugal e Ca(-
tella repartirem antre fy o mundo , e o demarcarem ha fua
vontade, confentia andarem os feus vaííallos poilo mar tão>
íoltos que não íómente roubauao os nauios dos Português
íes dizendo que trazião fazendas de Caftelhanos com
quem os Franceles tinhao então apregoado guerra , mas
armauão tam.bem nauios para todos os lugares da nofla
conquiíla dos qunis alguns cometerão ir ha índia guiados
por pilotos Portnguefes , porem eftes por vários infortú-
nios fe gaftarão e confumirao todos fem nunca tornar
mais noua nem recado de ninhum delles : e eítas coulas
por fua via defenquietauão também muy to o reyno , por-
que a difcordia tão pubrica não faltaua então mais que o
nome fomente para fer verdadeyra guerra. Nem parou fó
niílo a mudança c declinação que começarão a íentir as prof-
peridades dei Rcy dom Manoel , porque lambem lh'abran-
geo ha faude geral de todos , e ha fartura e abundância de
mantimentos que fempre teue , que fov huma das mais
pefadas e trabaliioías defenquietaçoes que pudera íoceder
a efte reyno , de que também outiros muy tos forão partici-
pantes, porque aquella grande fertilidade de todas as cou-
fas , com que os campos cuílumauão reíponder em todo o
difcurfo do império dei Rey dom Manoel , nos derradey-
ros annos delle fe começou a recollier , e moílrar os annos
eíleriíes e difficultofos , e muyto differenres do que antes
erão principalmente no de ií$2i , que foy o vitimo da fua-
vida, no qual por falta d'agoa e polia fecura do tempo
foy em toda Efpanha tão exceííiua a cílerilidade que nem os
campos , nem as aruores acudiao cos ícus acuílumados
fruitos , e os gados também por falta dos paílios fe per-
diao
delRey Dom João o IIT. 31
dlão de todo , com que a fome veyo a fer de maneyra que
caufaua em todos lium geral efpanto , e quafi dcíefpera-
ção , porque nem a induliria dos pobres nem , s abaílança
dos ricos baftaua para lhe dar qualquer remédio , por onde
ahuns e a outros era neceJTario valeremfe de raizes def-
conhecidas , e mantimentos dcracuftumadcs e perjudicinis
ha faude , os quais juntos ao deíuario e defconcerto do
tempo caufauão ellranhas e grauiílimas infirmidades , ea
poz ellas mortes deíeílradas e mifcraueis com perda e to-
tal alienação do juizo da mayor parte dos que morriao ,
donde naceo corromperemíe e inficionaremíe os ares , e
atearíe huma peite tão aceía que nem perdoaua aos famin-
tos 5 nem aos abadados. Efta fecura e eílerilidade d'£fpa-
nha abrangeo também a Africa , onde por fer o clima da
terra mais quente teue muyto mnyor força que nas outras,
e poz os mouros em tamanho eftremo de fome e eílreiteza
que em algumas partes , e principalmente em Azamor e
em Çafim fem armas fe vinhao entregar aos Criftãos , e
vender as molheres e os filhos , e deípois a fy meímos por
baixifiimos preços , e muytos fe entregauão de graça
a quem os fuítentalTe , e como a boa fortuna tem por cuRu-
me defemparar muyto deprefía aquelle a quem i'entrega ,
e dcixallo com muyto mayor tormento do que pcrdeo do
que foy o gofto do que pofíuhio , deitas coufas que diUe fe
pode bem infirir que huma das mayores proTperidades que
elPvey dom Manoel teue na vida foy acabarfelhe el!a em
tempo que as íuas proíperidades o acompanhaíTern aré a
m orte , porque foy ifto huma vitoria e hum gloriofo triun-
fo que o Ceo lhe quis dar da melma fortuna. E ncilc cita-
do que tenho dito achou ei Rey dom João noífo lenhor o
terceyro deite noníe , e dos Reis de Portugal o decimo
quinto de quem eitd hiítoria trata , as coulas deite reyno ,
aííy as de dentro como as defora quando tomou o cetro e o
gouerno delle.
CA-
32 Primeyra Parte da Chronica
C A P I T U L o XI.
El Rey notifica a morte ãel Rey Jeu pay ao Pappa e aos Reys
Crijiãos , he vifitado da coroa de Caftella , e começa a
entender no gouerno do reyno,
A Gabadas as exéquias dei Rey dom Manoel , e fatlf-
feito baílanriílimamente com rodas as couías impor-
tantes ha Tua alma , auifou logo el Rey da morte dei Rey
feu pay , e da íua fuceirao no reyno , o Emperador Carlos
quinto , a Francifco primeiro Rey de França , a Anrique
oélauo Rey de Inglaterra , pollos miniftros que tinha , ou
nas cortes deíles princepes , ou mais perto delias , c a dom
Miguel da filua filho de dom Diogo da filua conde de Por-
talegre , que então eftaua por embaixador em Roma man-
dou que fizeíTe o meímo ao Pappa Lião decimo , e em feu
nome deíTe obediência ha Sé apoílolica , mas nefte tempo
era o Pappa Lião já fallecido, da entrada de Dezembro do
anno de I5'2i, e eleito em feu lugar ( não fem grande alter-
cação de dous bandos que fe mouerao nefta eleição e fe
quietarão quaíi milagroíamente) Adriano fexto Bifpo de
Tortoía , Framengo de nação, cardeal do titulo Santorum
Joannis e Pauli , homem de baixo fangue , mas pollos me-
recimentos ds fua virtude , e de íuas letras não indino da-
quelle lugar , e pouco conhecido na corte de Roma por
eftar então auíente delia gouernando os eílados d'Eípa-
nha em nome ao Emperador. A noua do fallecimento det
Rey dom Manoel chegou a efte Adriano ainda antes que
tiueííe auifo da eleição que era feita em Roma , o qual jun-
tamente CO almirante eco condeftabre de Caílella , que
com elle aíTiíliao ao gouerno , mandarão vifitar el Rey e a
Rainha viuua por dom João taueyra Biípo de ciudad Ro-
drigo , que deípols foy cardeal de Toledo, homem de
muyta autoridade , o qual veyo ter ha corte no principio
do anno de I5'22, eílando ainda el Rey apofentado em San-
tos o Velho , e nelhi foy recebido c tratado fempre com a
honra que fe lhe deuia. Defpedido o biípo começou el Rey
a
delRey Dom João o III. 33
a entrar nos negócios do gouerno do reyno , e proueo lo*^
go o officio de Regedor da cafa da fuppricaçao a João da
íilua pollo renunciar Aires da fdua leu pay. E mandando
chamar a elle e a dom Aluaro de caílro gouernador da caía
do ciuil, lhes encomendou muyro a obíeruancia e inteireza
da juftiça , e o bom deípacho das partes , e lhes diíTe mais
que lhes lembraua que punha nas luas mãos e corifiaua deU
les não íòmenre as vidas , e fazendas dos íeus vaííallos ,
mas a fua própria honra , e conciencia , donde entende-
rião a obrigação em que ficauão poftos a Deos e a elles ,
c em alguns dias limitados alTiftia com elles ao mencyo da
juftiça particular, e dada a ordem a eíla parte da julHça ,
niílo e em tudo o mais que lhe pareceo neceílario para ellaj
quis logc? também tratar da outra parte que he ajuíliça
adiftributiua,importaníiírima também ao bom. gouerno dos
eftados j e ao credito dos fenhores deiles , que he fazer
mercês aos íeus vaíTallos , íatisfazendo a cada hum con-
forme a feus merecimentos , cos olhos lempre poílos mais
nos bons e leais íeruiços década hum que em refpeitos
particulares nem valias de íeus priuados , e para elfeito di-
ílo , muyto poucos dias defpois que tomou o cetro , man-
dou paliar huma carta a dom João de larcao em que dizia
que auendo refoeito ao muyto feruiço que dona Ekiira de
mendonça camareyra mor que fora da Rainha fua madre
que fanta gloria aja lhe tinha feito , e como por iflo era re-
zão que a elía e a dom João de larcao íeu filho íizeíle mere-
ce, e por eíperar delle que fempre o ferulrla afsy bem co-
mo elle o deuia fazer, e em tal maneyra que de feu feruiço
recebcíTe muyto contentamento , e querendolhe fazer gra-
ça e mercê auia por bem e lhe fazia mercê do officio de leu
caçador mór com toda aquella tença , proes . percalços , c
inrereíTes , e com todos os poderes , honras , priuilegios ,
c liberdades com que os caçadores mores dos Reys deílcs
reynos íempre tiuerão , e feruirão o dito officio , e como
de direyto lhe pertencer , a qual carta foy feyta aos 24
dias do mez de Dezembro do anno de 1^21. E neíle meí-
mo dia mandou paíTar outra carta ao conde de Penella em
Farte L E que
34- Pfimcyra Parte da Chronlca
que dizia que cl Rey feu fenhor e padre fizera mercê a Lo^
po foares do íeu coníelho por léus muytos feruiços e me-
lecimenros do officio de feu capitão dos ginetes , de que
tinha feu aluará , c que no concerto e contrato do cafa-
menro dantre dom Affonfo filiio do conde de Pcnella íeu
jnuyro amado e prezado íubrinho com dona Guiomar filha
do dito Lopo foarez elle renunciara o dito officio para o
auer edito dom Afonío feu genro , e prouuera a el Pvcy
leu fenhor e padre lhe fazer delle mercê , íegundo que
compridamente era declarado em hum feu aluará que o di-
to conde por parte do dito dom Afonfo íeu filho lhe apre-
fenrara , pidindolhe por mercê que lhe mandaíle fazer do
dito officio fua carta cm forma , e que viílo por elle o dito
aluará, e por folgar de fazer mercê ao dito dom Afonfo
polia rezão que para iíío tinha , e por elperar que no dito
officio o firuiria bem , e como quem eile era , aula por
bem , e lhe daua e fazia mercê do dito officio de íeu capi-
tão dos ginetes com aquella tença , poder , honras , pre-
eminências , liberdades , e priuilegios que íac dados e or-
denados aos capitães dos ginetes dos Reys deíles reynos ,
e de que elies fempre vfarão e de direyto lhe pertence , a
qual carta foy paíTada em Lisboa aos 24 dias do mez de
Dezembro do anno de i^ii. Nem fe paífarao muytos dias
que não mandaíle paííar outra carta ao conde de Portale-
gre,em que dizia que efguardando elle aos muytos e gran-
des feruiços que el Rey feii fenhor e padre que íanta glo-
ria aja recebera do conde de Portalegre que fora íeu ayo
e gouernador de fua caía , e como por iíío era rezão que a
feus filhos fizeffe mercê e acrecentamento , e efguardando
a peíloa do conde de Portalegre feu filho mayor e a fcus
muytos merecimentos , e por efperar delle que afsy o fcr-
«iria como o elle deuia fazer , e em tal mancyra que rece-
beíle do feu feruiço muyto contentamento , e por folgar
de lhe fazer mercê e polia muyto boa vontade que lhe ti-
jiha , auia por bem e lhe daua e fazia mercê do officio de
mordomo mor de íua caía com aquella tença, foros,
proes , percalços , intereíles , e com todos os poderes, iu-
pe«
dei Rey Dom João o III. ^ j
períorldade , jurifdição , mando , preeminências , honras,
liberdades , graças , e priuilegios com que fempre o dito
oíficio tiuerão cíeruirão e de todo víarao os mordomos
mores das cafas dos Reys defte Reynos , e como de direy-
to lhe pertencer , a qual carta foy paíTada em Lisboa ao
primeyro dia de Janeiro do anno de mil e quinhentos e
vinte dous. E logo ao outro dia feguinte mandou paíTar
outra carta a dom Pedro mazcarenhas em que dizia que
efguardando elle o muyto feruiço , que dom Pedro mazca-
renhas fidalgo de íua caía tinha feito a el Rey feu fenhor
c padre que fanta gloria aja , e ha boa vontade que por íeus
feruiços Ihs tinha, e por elperar delle que aíTy o leruiria que
de íeu íeruiço receberia muyto contentamento , e folgariíi
de por iíTo lhe fazer mercê como era rezao que fizelTe
áquelles que o bem íeruirem , e querendolhe fazer graça o
mercê auia por bem e lhe daua e fazia mercê do officio de
feu eftribeyro raór aísy polia guiía e maneyra e com aquel-
la tença , foros , proes , percalços , e intcrelles com que
fempre o dito officio tiuerão os eftribeyros mores dcíies
reynos , e direytamente lhe pertencerem , e como todo ti-
nha e poíTuhia e auia o eftribeyro mor dei Rey feu fenhor
e padre que íanta gloria aja , íe elle com direyto de todo
milhor puder vfar e o auer , a qual carta foy feyta em Lis-
boa aos dous dias do mez de Janeiro do anno demil e qui-
nhentos e vinte dous. E após iíto fe conuerteo logo ao
que cumpria a íua fazenda , e a primeyra coufa em que en-
tendeo foy na armada que auia de ir para a índia. E afsy
neftas coufis como em todas as mais que então fe lh'offe-
reciao daua cada dia mayores moftras da fua grande pru-
dência e entendimento : mas o em que então iíto f'enxer-
gou miíhor foy , que fendo elle de dezanoue annos íó-
mente , idade de que fabe mal defenderfe dos apetites e
afeiçoes particulares , e que tem por cuftume dar mais ore-
lhas aos confclhos dos léus igoais , que aos dos que tem
idade para poderem aconíelhar, elle desbaratou ascípe-
ranças que alguns fidalgos que íe criarão coir» elle tinhao to-
mado da iua brandura , e aíabilidade quiçá mais confiados
£ 2 no
3^ Primeyra Parte da Chronica
no que lhes parecia que tinhao grangeado com elle com
•]Jie fazerem fempre a vontade , que no verdadcyro amor
do feu feruiço , que he fruyra muyto ordinária nas^cortes
dos princepes , e tanto mais perjudicial quanto he mais
agradaucl e faboroía , antes entendendo quanto importaua
ao bem de feu pouo não fe deixar leuar de íuas afeiçoes ,
poz iempre os olhos , e tez muyta conta das cãs e expe-
riência que feu pay aprouara , e eíla teue fempre por guia ,
principalmente do conde de Villa noua , e de dom Aluara
da coíla , os quais fempre tiuerao-anfelle o feu lugar deui-
do , inda que não deixaua delhes pôr alguma culpa no der-
radeyro cafamento dei Rey feu pay , e deípois que metea
a mão nellee e os acabou de conhecer bem , os tratou de
maneira que muyto deuagar abrio caminho para valia de
outros , e eíla iíenção e defapegamenro de affeiçõcs parti-
culares he huma virtude tão neceflaria aos que gouernão ,
que fem ella pode com rezão auer muyta duuida de poder
fer bom ogouerno, porque aquelle peito que tem por
obrigação efpalharfe geralmente por todos , e dar entra-
da a todos , mal poderá fazer feu officio como deue le fe
deixar ocupar de hum fó , ou de alguns particulares que
tolhão a entrada aos outros.
CAPITULO XIT.
O conde de Mariãhiã vem ha corte queixar fe a elKey
do marques de Torres nouas , a rezão porque ^ e o
que fe faz j obre ijjo. •
idade ( porque paífaua de íetenta annos ) como pollo pre-
ço de lua peíToa , como também por íer muyto rico e fe-
nhor .de muytas rendas e vaílallos , era dom Francifco
Coutinho, o qual afora fer meirinho mor do reyno era
fenhor de dous condados do de Mariaiua de que el Rey
dom Atoíifo o quinto lhe fizera mercê por morte de íeu
ir-
Mel Rey Dom João" o IIÍ/^ i^f-
irmão que os mouros matarão em Arzilla , e do de Loulé
que elle ouucra em cafamenro com a condeíla dona Beatriz
íiJha herdeira do conde dom Anrique , e ajUntandofle a iílo
por huma parre a grande honra que tinha ganhado porfeu
esforço em tempo dei Rey dom Afónfo o quinto nas guer-
ras que leue com Caftella , e defpois em Africa contra os
mouros , e por outra a fua muyta prudência e larga expe-
riência que tinha de muyios annos , veyo a cobrar tama-
nha repuraqão e autoridade, que não fe lhe daua menos cre-
dito nas couías de paz que nos confelhos da guerra. Elle ,'
ou forçado da natureza da velhice, que polia mayor parte
cuftuma íer apertada , ou por alguns defenhos fecretos que
fazia comílgo , fe veyo a encolher no gafto de fua cala ,
e m.eterfe em prouiíoens que lhe durarão largo tempo em
que ajuntou grande cantidade de dinhcyro , díi qUal ri-
queza toda , e de todos fcus eftados era herdeyra huma fó^
filha que tinha chamada dona Guiomar, e defejando dVm^-'
pregar eíla filha e eíle tamanho dote em. quem pudcíle acre-
centar honra e luílro ha honra e nobreza que elle ja tinha ,
detriminou de tentar elPvcy dom Manoel, e pidirlhe hum
de feus filhos f inda que então eftauam em pequena idade )
para feu genro , não deixando de entender que fe atreuia a
muyto , mas quiçá confiado em ter el Rey muy tos filhos ,
e elle ter muyto para dar a lua filha , e ^^'^y o poz por
obra, roas não lhe íahio em vão eíle atreuimento porque
t\ Rey pefando bem efte negocio e nao lhe parecendo íóra
de rezão nem contra íua autoridade aceitou o partido , e
lhe prometeo o ifante dom Fernando íeu filho rerceyro,.
mas como o ifante ainda neíte temipo não eífaua em idade
para poder calar e a filha do conde era ja molher perfeita ,
fizerãoíe então os contratos e o cfFeito do cafamento íe
dilatou para quando o ifante vieíTe a ter idade conuenien-
te para elle. Elfando iílo a íTy concertado pubricamenre ,
fcm. fama nem rumor de impedimento algum, fobrcueyo a
morte dei Rey dom Manoel que deixou muyto encarre-
gado ao princepe dom João feu filho o eíFeito dclle cafa-
Hienco doifdiite íeu irmão coiíi a filha do conde , porcin.
não.
58 Prlmeyra Parte da Chronlca
náo pode fer tam facilmente como fe efperaua , porque
dom João de lencaílro marques então de Torres nouas fi-
lho mais velho de dom Jorge meílre de Santiago e de
A uis , e neto dei Rcy dom Jcao o íegundo quiçá engana-
do d'a!gumas couías que terceyro? failos lhe fariao enten-
der, de que fe virão no mundo muytos exemplos , come-
çou de aípirar ao meímo caíamento , dizendo que muyro
antes dos contratos com o ifante dom Fernando era elie
caiado clandeílinamente com a filha do conde , e detrimi-
nou pôr efte negocio emjuíliça. SobrcíTaltado o conde e
fentido grandemente dePii noua , fe veyo logo a el Rey ,
e defpois de fe lhe queixar com muytas palauras dcíla
afronta que fe lhe fazia IhediíTe, que pois elle por iua
velhice e iníirmidade não podia já fizer mais naquelle ca-
lo que requerer perante elle íua juítiça , pidia muyto por
mercê a lu.i alteza que quifeíle ter conta com a injuria
que fe fazia aaquellas íuas cans , que tanto a fentiao
mais, quinto fe viao mais impoííibiliiadas para íe pode-
rem f^tisfazer delia , e não confentifle que o marques de
Torres nouas , ou por fua cubica lhe quilelfe impedir a
irtercê e a honra que eIRey íeu pay lhe fizera em fua vi-
da , ou por feu íobejo atreuimento íe quiíeíle meter no lu-
gar em que el Rey tiuera por bem de pôr o ifante dom
Fernando fcu irmão, e que atentaíTe fua alteza que em parte
prTecia que era algum mcnofcabo feu guardar hum feu vaf-
fallo para pubricar em feu tempo o que nunca oufara a fazer
em vida dei Rey feu pay quando com rezao deuera de acudir
a requerer iua juíljça íe a tiuera , para que os contratos não
vierão a effeito , porque aquillo era dar a entender que Jhe
nacia aquelle atriuimento da pouca idade de fua alteza , da
qual deuia de imaginar que não feria inda baílante para re-
primir e caíligar os infultosdos feus vaííallos. Atentamen-
te ouuio el Rcy a queixa do conde , e poílo o negocio em
confelho, dcipois de fe tomar baílante informação delle,
mandou el B.ey prender o marques no cailello de Lisboa ,
e ao meílre de Santigo feu pay mandou que íe íaiíTe da
corte , o que logo foy fey to., mas nem líTo foy parte para
o
dei Rey Dom João o III. 39
o marques deixar de pcrfeuerar em feu propofíto , e afir-
mar mujco mais o que dizia , e em fim mandou requerer
o conde ordinariamente por Tua filha. El Rey, como de
huma coula tão lecreta como eíta não podia ter mais cer-
teza que o que conílaíTe juridicamente, inda que o nego-
cio tocaua ao ifante feu irmão polln qual cauía tocaua
também aelie, todauia como era católico e criílianiííimo
por dar exemplo do temor que fe deue ter de Deos , e da
reuerencia que fe deue ter has coufas que elle ordenou na
terra , não fe quis de poder abíoluto antremeter em fazer
nem impedir cafamentos , e deixou correr a demanda an-
tre o marques e o conde , não íem pubricas moftras d'e
íentimenro dos ifantes dom Luis , e dom Fernando , os
cjuais não deixauao de dar rezoes em fauor do conde aíly
por íua velhice como polia pouca conta que o marques
fazia do que el Rey feu pay deyxara ordenado. Durou
efta demanda no iuizo eclefiaftico todo o tem.po que viueo
o conde de Marialua , que forao perto de noue annos , e
defpois de íua morte no anno de mil e quinhentos e vinte
noue, mandou el Rey fazer perguntas ha filha do conde
por letrados Canoniftas eTheologos^ que liuremente e
íem ninhum receyo diíTeíTe era caiada co marques ou não ,
e como ella o negou conftantiílimamente e pollo diícurio
do proceíTo fe não prouaua baílantemente o contrario fe
deu a Tentença pollo ifante dom Fernando , enfadado ja
edegoílolo de ver eíle feu cafamento poílo em litijo , e
durar tanto tempo, mas perfuadido dei Rey feu irmão
cumprio emfim o que el Rey feu pay deixara mandado , e
recebeo por molher a Ifante dona Guiomar coutinha , mas
aapreíTada morte d'ãmbos e dos filhos que delles nace'-
rão,e a ruina da cafa de Marialua , que também fe apagou
de todo , foy ocafião de auer no reyno alguns juízos fobré
efte cafamento e não faltou quem ouueíFe nelle cafo por
jufta a íentença do ceo fomente , mas propriedade he da
natureza humana auer fó aquiilo porjuílo a que elJa he
aôei$oada«
CA.
40 Primêyra Parte da Chroníca
,,; CAPITULO XIII.
--•, BlRey manda 'João da filueyra por embaixador a Fran-
ça j e o do que trata a embaixada.
DEípoIs queelRey, neíle principio do feu império ,
pez em ordem e quietação as couías do rtryno das
.portas delíe para dentro, co-ncçou logo a entender nas que
eílauão d^ellas para fóra, e liiima das que então trazia mais
-didnte dos olhos , e que mais o deruellauao e lhe dauao
raayor cuidado , era o cafamento da ifante dona líabel íua
irmam por fatisfazer ao que el Rey feu pay lhe deixara
,tão encomendado , e como as raras partes e o grande me-
recimento que elle via nefta princefa , afora o amor que
lhe tinha , o faziâo fer máo de contentar no que lhe auia
de dar por marido , defejaua que foíTe eíle o Emperador
.Carlos quinto , por fer então o mayor princepe do mun-
do y porem oíFerecialhe niílo alguma difílcuidade imaginar
.que ainda que o Emperador porhuma parte folgaria de
.coníeruar a amizade antiga que tinha com Portugal , que
-todauia por outra o eftado das fuás coufas o forçaria então
a ligarfe com Inglaterra , por fegurar a cafa de Borgonha
^ue a frpntaria de França começaua a definquietar, ajun-
tauaíTe também a eíla fua imaginL^ção não eftar íem receyo
jâe poder auer alguma quebra antre Portugal e Caíleila ,
por caufa da emprefa do Magalhães , de que atras fiz men-
ção , e ainda que elle defpois com a própria morte recebeo
,o caíligo de fcu atieuimento , do deíTerviqo que fez a feu
^ey , e da injuíla vingança que quis tomar da fua pátria ,
jcom tudo os Caftelhanos vendo aberto o caminho para
poderem participar do comercio daquellas partes, cuj.is ri-
,queza3 tinhão na Europa tanto nome e tanta fiima , co-
ineçavão a encher o Emperador de tantas efperanças que
p fizerão dar orelhas a fuás palauras , fazer conta de fuás
promelTas e tratar deíle negocio muyto de propoíito , por
onde foy necelTario a el Rey efperar que o Emperador
vieíTe a Efpanha , aíTy para tratar do cafamento da ifante
fu;i
dei Rey Dom João o III. 41
fuairmam, como para atalliar os defgoílos e dilFerenças
que a emprefa de Fernão de MagalJiaes comcçaua de Te-
iTíear antrc eftes dous reynos. Neíle inefmo tempo foy cl
Reyauiíado por alguns Porcugueíes que negoceauao em
França , que hum João varezano Florentino de nação fe
ofFerecera a ei Rey Francifco para defcubrir no Oriente
outros reynos que os Portuguefes não linhao defcubertos ,
€ que nos portos de Normandia íe faziao preíles armadas
para com faaor dos almirantes da colla de França , e dif-
limulação dei Rey Franciíco irem pouoar a terra de íanta
Cruz chamada Braíil , dcícuberta e demarcada pollos
Portuguefes na fegunda viagem da índia , e ajuntandoílc
a iilo as queixas que hauia no reyno dos danos que rece-
bia dos coíTayros Franceíes, pareceolhe a elRey neceíTario
acudir a ifto com toda a preíleza poíTiuel , e para iílo man-
dou por embaixador a França João da filueyra filho de Fer-
Jião da íilueyra,que não tardou mais em fe partir que o tem-
.po que lhe foy neceíTario para fe fazer preftes. A fuítancia
da fua embaixada era pidir a el Rey, que pois antre eJles não
auia guerra , antes auia paz e amizade antiga , mandaífe dar
ordem nofeu reyno com que ceílaíTem tantos roubos, e tan-
tos danos, quantos os Portuguefes e os Francefes íe fa-
zião pollo mar huns aos outros, que era huma guerra ta-
cita e particular antre aquelles que no pubrico e em geral
erão amigos , e que tudo o que fe achafíe nos feus portos
que fora tomado aos Portuguefes , lho íizeíTe reíiiruir ,
porque elle também fe nos portos de Portugal achaíle
coufa que foíTe tomada aos Francelcs lha faria reílituir
Jogo , e a todos os que vieílem requerer niílo fua iulbça
contra os íeus vaíTallos , lha faria muyto inteira e com
nmyta breuidade. E apoz iílo lhe pidifie também que de-
fendeíTe aos íeus vaííallos arm.arem contra os lugares da
conquifta de Portugal, para os quais nem aos próprios
Portuguefes naturaes e vaííallos íeus era licito nauega-
rem nem tratare[n nelles. Chegado João da filueyra ha
corte de França foy nella bem recebido , porem nas cou-
fas que propôs dos negócios que leuaua a cargo , lhe ref-
Faru L F pon-
4^ Primeyra Parte da Chroníca
pondeo por então el Rey inleterminadamente , e com re*
zoes mais de aparência que de refoiuçâo , que pareciáo
dadas , não tanto para eíFeifuar os negócios de que íe lhe
trataua , como para os dilatar , e antreterlhe o tempo.
CAPITULO XIIII.
El Rey de França manda por embaixador Honorato de Qais
gentil homem Sahoyano a Portugal ^ o negocio a que
vem , e o que pajja na corte de França fobre os ne*
goci&s da embaixada de 'João da Jllueyra,
Tinha el Rey de França então defpedido por embaixa-
dor para eíle reyno Honorato de Cais gentil homem
Saboyano , pratico já nas coufas delle , porque em tempo
dei Rey dom Manoel viera a elle outra vez mouer caia-
niento de madama Carlota filha deíle mefmo Rey Fran-
cifca CO princepe dom João. Efte embaixador trazia ago-
ra comiflão para tratar efte mefmo cafamento de madama
Carlota com el Rey , e confirmar com elle as pazes e ami-
zades que anrre elles auia. Dos quais negócios o que tra-
taua das pazes e amizades ouue logo eíTeiío , porque forao
confirmadas e juradas deftes reynos cos de França parante
o meímo embaixador , o qual íe obrigou que dentro do
tempo que el Rey ouueíte por bem , el Rey de França
leu íenhor faria o meímo nas mãos de quem íua alteza
ordenaíTe ; no negocio do cafamento fe lhe relpondeo que
fe não podia tratar com eíFeito íem mais baílantes e
mais largos poderes que os que elle trazia. E com efte deí^
pacho le delpedio dei Rey o embaixador , e fe foy a Fran-
ça , e no mefmo anno tornou com inteyros poderes e co-
miíToens para concruir o cafamento. E começando a tra-
tar delle el Rey lhe hia antretendo a refolução , eícuían-
dofle com a palaura que dera a el Rey dom Manoel feu
pay de cafar primeiro a ifante dona Ifabel fua irmam.
Com tudo o embaixador não deixaua d'apertar no nego-
cio , c náo fem efpçranca de feíFeituar , até que chegandor
lhe
dei Rey Dom João o III. 43-
lhe recado de França , que era fallecida madama Carlota ,
cedeu de todo ; João da filueyra entretanto na corte de
França não deixaua defollicitar com muyta inílancia os
negócios da fua comiííâo , porem el Rey rcípondialhe a
e41es conforme lias eíperanças que lhe hiao de Portugal
dos negócios que elle pertendia. No principio rerpondco
a el Rey por hum Luis homem que elle deíejaua muyro a
conferuação , e augmento das amizades antigas que antre
elles auia , e dahy a poucos dias mandou fobreílar os
nauios que nos íeus portos íe armauao para a índia : e dif-
fe que proueria niíTo de maneyra que el Rey ficaíTe con-
tente , e nefte meímo tempo paíTou tambcm prouiíoens
para íe reítetuir toda a fazenda, que conflaíTe de certo que
fora roubada a el Rey , ou a vaíTallos íeus , e deu efperan-
ça de mandar prouer e dar tal ordem em tudo , que fe ara*
IhaíTem todos eftes roubos , e os danos que procedião del-
les; e porque eíle era o principal negocio a que el Rey man-
dara João da filueyra a França, pareceolhe que era feu íer-
uiço mandallo vir, e mandar lá ficar o licenciado Pêro go-
niez teixeira , para que elle co meílre Diogo de gouueya
(a que também eícreueo fobre eíla matéria ) requereíTe
a juíliça d'a1gumas couías de fua fazenda , e aíTiílille has dos
feus vaíTallos que lá andauao cm demanda , porem antes
que de cá partiííe eíla ordem para fe vir João da filueyra ,
veyo auifo de hum lacome monteyro (que por proui-
foens dei Rey de França follicitaua lá a reílituiçao deitas
fazendas ) como el B.ey paffara prouifoens nouas , em que
mandaua que fe fizeíTe geral focreílo e embargo em toda a
fazenda dei Rey , e de todos os Portuguefes , c nos feus
nauios que íe achaíTem nos portos de França , fem íe de-
clarar noua caufa nem íe faber rezao para íe mandar niílo
o contrario do que antes fora mandado, pollo qual el Rey
mudou oconfelho da vinda de João da filueyra , e lhe
mandou que até tomar verdadeyra informação das parti-
cularidades e rezoens defta nouidade , e o auiíar delias , c
ver outro recado íeu , fe não abalaíTe da corte de França.
Ajuntouíle também a iilo que fendo então pregoada guer-
F 2 ra *i
44- ■ Prlmeyra Parte da Chronlca
ra antre os rcynos e fenhorios do Emperador e dei Rey de
França, e fazeiídoa huas aos outros cruelmente por mar e
por terra , os Franceíes que andauão darmada encontrarão
ja dentro nos limites da coíla de Portugal huma náo caíle-
Jhana com ouro do Emperador, e muyta fazenda de par-
tes , e ou foíTe por lhes parecer que íe não íaberia o lugar
ond'eIIa fora tomada , ou por lerem tão pouco refpeito
ao lugar de Portugal , como nefte tempo tinhão aos meí-
mos Portugueíes , elles tomarão a nao por força com titu-
lo de fer de léus inimigos , e a leuauão como de boa guer-
ra. Andaua então Pêro botelho com huma armada guar-
dando a coíla de Portugal por mandado dei Rey , como
foy cuflume antigo neíle reyno , e íerupre tão proueitofo
e n-eceílario nelle , quanto fe tem viíto claramente do que
tem fucedido deípois que íe elíe perdeo, efte capitão com
a fua armada amanheceo hum dia fobre os que leuauão a
nao Caflelhana , e fazendoos amainar por força , por-
que íe detiuerão algum elpaço fem o fazerem , tomou in-
formação do que paíTaua , e vendo que no caio auia duui-
da , e que era neceílario detriminaríe por juíliça , os trou-
xe a todos diante de fy ao porto de Lisboa , aonde a prefa
foy focreílada , e elles prelos , e o negocio por mandado
dei Rcy remetido ha cafa da fuplicação em que fe deu
fentença o anno feguinte. A noua difto , que logo íe fcube
cm França , traílornou muyto a ordem em que eílauao os
negócios de Portugal , e foy caufa da mudança que nelles
ouue deípois em todo o tempo que lá eíleue João da fil-
ueyra, que forão noue annos contínuos , nos quais em fim
nam rcabou mais em todos os negócios que leuaua a car-
go, que embargar a viagem do Florentino de que atras
fiz menção ,^e alguns poucos nauios de coííayros,os quais,
oque era clara juíliça noíía, auiao que era força e fem.
juíiiça grande que fe lhes fazia , dando por rezão que era
aquillo qucbrarfe com elles o inuiolauel direito das gen-
tes, mas eu não me efpanto porque cuílume he da cubica
querer íazer as leis e os derey tos ao íbm do íeu intercíle ,
exião auer que he juíliça fenão fomente o que he feu
proueyto. C A-
delRey Dom João o III. 45:
CAPITULO XV.
ElRey manda dar ao Pappa os parabéns do fummo pontifi-
cado , fuplicalhe pollo priorado do Crato para o ifante
dom Luís , o Einperador manda hum embaixador
a elRey , a jujlancia da embaixada^ e a re-
pojla delia,
EStava entam vago de pouco tempo o priorado do
Crato por morte do dom JoaO de ir.eneíes conde de
Tarouca , que fora prior delle , e como huma das ccuías
queelRcy mais trazia diante dos olhos era o remédio de
léus irmãos , e acomodallos o millior que foíTe pcíliuel ,
parecendoihe que eíle priorado era coula competente ao
ifante dom Luis , e huma das milhores coufas do reyno
com que então o podia ajudar , mandou logo Aires de lou-
fa, comendador de Santa Maria dalcaçoua de Santarém, ao
Pappa Adriano eleito nouamente , que ainda eílaua cm Ca-
ragoça , aíly para Jhe dar os parabéns do fummo pontifica-
do , como para lhe luplicar que íem embargo dos cílatutos
e eftabelecimentos da ordem de fam João tluefle por bem
de prouer no priorado do Crato o ifante dom Luis feu ir-
mão , e pollo meímo Aires de foufa lhe mandou huma pe-
quena Cruz feita do madeyro em que nofío fenhor jesu
CHKisTo padeceo para remir o género humano , a qual o
Prertejoão Rey dos Abexis mandara em grande reliquia
a el Pvty dom Manoel feu pay. Chegado Aires de íouía ao
Pappa fez m.jyto inteiramente tudo o que leuaua a cargo,
e preíentanJoIhe a Cruz que el Rey lhe mandaua elle a
beijou e recebeo com muyra deuoçao , e moftras de muyto
contentamento. No negocio do priorado inda qiie o Pap-
pa Cefcuíou alguns dias, todauia lhe vcyo a conceder o
que cl Rey pidia , mas o breue íoy expedido em tal forma
que não pode a conceflao auer effeito daquella vez, porque
Aires de íoufa como nem tinha conhecimento da lingoa
Latina , nem pratica das coutas de Roma , não l'aduertio
da falia que auia nas letras , e aíly foy neccílario a el Rey
inan-
^6 Primeyra Parte da Chronlca
mandar de nouo ao Pappa o doutor João de faria , que
defpois foy chançaler mor defte reyno , para reformar efta
expedição, da?, letras com ordem , porem que nam paíTaíTe
deTortoía íe o Pappa já foíTe partido para Roma. Tinha
clRcy também já neíle tempo defpidida huraa armada
debaixo da capitania de Duarte de lemos da trofa para
acompanhar o Pappa neíla fua paííagem para Itália , a qual
]li'elle mandara pidir , tanto que teueauiío do coUegio
dos Cardeais da fua elleição , porem íendolhe forçado.
apreíTar a íua partida por fer auifado que o Emperador eí-
tâua de caminho para Eípanha , e por entender quão ne-
celTaria era a fuaaíTiílencia em Roma , não pode efperar
polia armada que lhe hia deíle rcyno , e fe partio fem ella
com que nem Duarte de lemos , nem João de faria pude-
rão dar eííeito ao que lhes fora mandado, por fer a partida
do Pappa mais apreílada do que ambos efperauão. Efte in-
dulto do Pappa teue deípois noua contradição polia or-
dem deíaojoão, e por iíTo correo eíle negocio com mais
vagar do que el Rey imaginaua, e não fe veyo aromar
neíle a refolução que elRey queria fenão defpois damor-
te do Pappa Adriano. Entre tanto chegou o Emperador a
Eípanha, que foy nomes de Março do anno de mil e
quinhentos e vinte dous , onde era efperado com muyto
defejo para quietar algumas alteraçoens que o anno dantes ^
fe mouerão em Caílella nas comniunidades dos pouos t lo-
go em chegando mandou viíitarel Rey dom João polia mor-
te dei Rey feu pay por Carlos poncto monfeor de la Chaulx ■
ícu íomilhier primeiro e muyto aceito a clle , o qual tra-
zia também nome e poderes de embaixador , e comiíTaó •
para pidir a el Rey que quifeíTe confirmar e juraras antigas-
pazes , que de muytos annos auia neíle reyno co de Caílel-
Ja , como forão confirmadas e juradas lempre poilos Reys
paliados dambos eítes reynos , e quiícíle também fazer
huma liga e confederaçam co Emperador contra el Rey de -
França. Propoílas cilas couías no coníelho fe adentou, que
as pazes era bem que fe confirmaílem e l'e juraíTem como o
embaixador pidia , masque para a liga auia muytos in-.
con-
dei Rey t)òm Jcaò o IIT. 47
conuenientes , porque ouuerao que não era rezao meteríe
el Rey em parcialidades contra Françn,em quanto não auia
mayores e mais juftas caufas de romper com ella , e qúe
parecia mais perigofo que íeguro para efte reyno declarar-
le Tem rezao por inimigo doutro ram poderolo. Deirimi-
nado iílo no confelho reípondeo el Rey ao embaixador ,
que quanto has pazes era contente de as confirmar e jurar
como fizerão os Reys feus anteceíTores , o que logo fez
em prefcnça do mefmo embaixador, o qual por virtude
de huma procuração que trazia com poderes baílantes fe
obrigou por hum ellromento pubrico , que o Emperador
dentro de quatro m.efes primeyros feguintes confirmaria
ejuraria as mefmas pazes daquella mefma maneira , em
prelença de quem el Rey mandaíTe com poderes baílan-
tes para iíTo , c no que tocaua ha liga lhe diííe el Rey
que as rezoens antigas que elle rinha com o Empera-
dor o obrigauão aeílarfemprc de íua parte em todas as
coufas em que lhe foíTe neceíTario feu fauor e ajuda , fem
antreuir niflo noua liga nem confederação , mas que quan-
to ha occafião prefente , em quanto não ouueííe mais jullas
caufas de romper com el Rey de França não lhe parecia
jufto nem rezoado auer liga e confederação de guerra con-
tra elle , antes lentia m.uyto a que elles agora lá mouiao
antre fy , mas que le elle pudeííe íer parte para os concer-
tar e meter em paz , o eílimaria em eílremo , e faria para
iíTo tudo o que foíTe pofliuel : com eíla repofta fe tornou o
cm baixador Carlos popeto para Caftella aííaz contente e
íatisfeito de muytas mercês que el Rey lhe fez dejcyas
c peças ricas para elle e para hum filho leu que o acompa-
nhara naquella jornada.
CA-
4? Primeyra Parte da Chroníca
CAPITULO xvr.
ElRey propõem no confelho o ca [amento da tf ante dona Ifã'
bel /na irmam , hdfobre elle dijjercntes pareceres , as
rezoens de ambas as partes , clRey fe refolue e man^
da Luís dajilueyra por embaixador a Cajiella,
'i '
EStando has coufas deíle reyno co de Caílelia no eftíido
quf agora difle , deíejou el Rey de pôr por obra o ca-
famento da ifante dona líabel íua irmam co Emperado-r
Carlos, pór cumprir co grande amor que lhe tinha , e com
a palaura que dera a el Rey fcu pay , e propondo o nego-
cio no coníelho íe diuidio ern dous pareceres muyto diffe-
rentes , porque huma parte delle dizia que ainda que el
Rey era muyto mancebo importaua muyro tratar já então
de le caiar naquella idade , aíly por quão arrifcada elia
cuftuma andar a muytos malles e perigos , principalmente
a que lie liure , folta , obedecida , e não obediente , como
também por quão proueitoío he terem os Reys filhos com
cedo, para que por lua morte os deixem em idade que poí-
faõ gouernar por fy os íeus reynos , e os liurem dos gran-
des danos e inconuenientes que lhe cuftumao nacer das tu-
torias , e eíle cafamento dizião que fe deuia de cometer
em Caíleila a troco do Emperador com a ifante dona lía-
bel , e dei Rey com a ifante dona Caterina irmam do Em-
perador , porque efta noua liança, afora as antigas rezoens
e parentefcos que auia antre eítes dous princepes, feria hum
meyo feguriíFimo para fe refrearem e reprimirem algumas
diíFerenças , que fc receaua poderem recrecer antre elles
fdbre a demarcação da conquiíla , e leria ocafião de huma
eterna e firmiíTmia paz anire eíles dous reynos tão vizi-
nhos. AjuntauaíTe a ifto fer tal a fama do grande entendi-
mento , das excellentes e heróicas virtudes , e de rodas as
mais calidades da ifante dona Caterina que íó por iíTo deuia
eíle reyno de deíejar muyto relia por fenhora , afora fer
criada nos coftumes e nos trajos de Caíleila não muyto
diíFcrentes dos noííos , por onde eílaua claro que fc con-,
for-
dei RevDom João o III.
49
formaria milhor c6 nofco, que a que pudeíle vir de outra
qualquer parte, na qual por ventura íe nao acharião to-
das eíhs calidades tão convenientes a nós , que neíla íe-
nhora eílauao juntas. A outra parte do coníelho ieguia
hum parecer em tudo diíFerente & contrario deíle , por-
que dizia que nem era bem que a ifante dona Ifabcl cafaÇ-
fe CO Emperador , nem cl Rey com a ifante dona Cateri-
na , porque do cafam.ento da ifante dona líabel fe não fe-
guia a efte reino outra coufa fenao tirarfe delle huma
grande cantidadededinheiro 5 que cuftuma a fero neruo e a
principal força das republicas , e que lianças nouas nunca
íao táo poderoíns , que por ellas os Reis deixem perder as
couías em que cuidão que tem direito , e por illo mais im-
portante era a efte reino liaríe co feu tiíouro , que com no-
me de dote entregallo ha parte de que fe podia ter íofpei-
ta e receyo para a fazer mais poderoía. E quanto no cafa-
menro dei Rey não era ainda agora tão importante e ne-
ceíTario, vifta afua pouca idade , que íenao pudelTe dila-
tar mais tempo , porque para a erança do reyno os irmãos
lhe íeruião de filhos , e eftando liure para fe poder liar
com quem quilTeíle poderia fazer milhor feu partido co
Emperador , em quanto polia guerra que tinha com Fran-
ça tinha neceíFidade d'amJgos , e defpois que tiueíTe to-
mado concrufaó em algumas duuidas , que então auia de
hum reyno ao outro , poderia cafar com amor mais fegu-
ro e paz menos íoípeita , e que em fim íe para auer paz e
conformidade verviadeyra antre eftes dous princepes não
baftaua a obrigação de tão eftreito e tão antigo parentefco
como antre ly tinhão , menos baftaria a noua liança que
agora fizeíTem antre íy pollos caíamentos , que era de
muyto menos força. Neíias contradiçot^s e variedade de
pareceres fe gaftarão alguns dias fem fe tomar inteyra re-
folução nefte negocio , porem El Rey pondo os olhos no
antigo cuftume que efte reyno tinha de fc liar co de Cíiftel-
Ja , aprouado pollos Reis léus anteceíTores , e lembran-
doíTe da iftancia com que el Rey feu pay lh'encomcnd:ira
que eífeituafie efte cãfamento da ifante dona líabel co Em-
-tarte L G pe-
50 Primeyra Parte da Chronica
perador Carlos ( aqual vontade de ícu pay , e remédio de
fua innaá tinha antre elle muyto maior peio e valia que
todo o outro intereíTe) aceitou deftes dous pareceres o
que entendia que era mais acertado , e mais conueniente
há íua obrigação , que era o de mandar tratar dos cafa-
mentos a troco , e para eíle negocio de tanta fuilancia ef-
collieo Luis da fiiueyra leu guarda mor, filho de Fernão da
filueyra , que em tempo d'el R ey dom João o íegundo foy
regedor da juíiiça na cafa da luplicaçao , e coudel mór
deíles reynos , e deulhe por ordem que primeyro tentafle
o calamento da ifante fua irmaa , e deípois o feu com a
ifante dona Catcrina , e que fe por ventura achaííe o Em-
perador penhorado pollos cancertos que íe dizia que tinha
feitos com el Rey de Inglaterra , inda que lhe lançaíTe
mao pollo cafamento dei Rey com a ifante dona Caterina
lua imaã, lhe refpondeiTe que não leuaua comilTaó para
tratar de hum fó calamento, porem que auiíaria dillo a
el Rey , e que naquella corte efperaria a repoíla. E fendo
caio que o emperador eíliueíTe iiure para entender em ca-
famento feu , e penhorado para o de fua irmam , a qual fe
dezia que deixaua prometida em Alemanha , que todauia
moueíTe o do Emperador com a ifante dona líabel íua ir-
mam. Luis da filueyra aceitou efta empreía contra o pare-
cer de íeu pay velho fefudo , e bem pratico nas cafas dos
princepes , porque do que tinha viíto nellas em muytos
annos entendia a quanto fe arrifcao aquelles , que fem te-
rem a íua valia bem arreigada na graça dos Reys fapar-
tãó dos feus olhos , porem Luis da filueyra entendendo
que aquelles que recebem dos Reis maiores fauores e
mercês tem m.iyor obrigação de os íeruirem em tudo o
que lhes for mandado , inda que Íq auinturem a perder tu-
do por clles , quis antes arrifcaríe aperder tudo o que ti- •
nha ganhado de valia com el Rey , que deixar de o íeruir
no que lhe elle mandaua , principalmente íendo o nego-
cio de cal idade , que moftraua de íy não ir nelle menos que
goílo , e honra dei Rey , eporiCo auia que não era pe-
quena honra íua fiaríe antes dell.e que doutiem 3 e aísy fe
íez
dei Rey Dom João o III. 5' i
fez preftes para eíla jornada com tao grandiofo e cuíloío
aparato de ricos adereços para íua caía , prata para íeu
feruiço , caiiallos para leuar adeílro , atauios para fua
peíToa , e toda a gente de Teu feruiço guarnecida de feda
e de ouro , que quaíi fez eícurecer a memoria de todo? os
embaixadores paíTados ; foy acompanhado neíla jornada
de mais de cento de cauallo , de que muytos erao fidalgos
feus parentes e amigos , porem todos por então veilidos
de doo ao vfo Caíleliiano , em lugar das becas e lobas
compridas que então í'e cuílumauao neíle reyno , e inda en-
tão íe trazião na corte polia morte dei Rey dom Alanoel.
CAPITULO XVII.
Chega auifo a el Rey de hmna das nãos da armada de Fer^
não de magalhães que arribara ao cabo Ferdc , e como
os da Ilha fe hão com ella , e o que [obre iJJ^o fe
faz em Caflella , e Portugal.
EStando Luís da filueyra defpachado, e ja de todo pre-
ftes para íe partir , chegou recado a el Rey que huma
das náos , que Fernão de magalhães leuara a Maluco pollo
eílreito que elle deícubrira , tornara pollo caminho da
noíTa nauegação , e que todas as outras erao perdidas , e
que eíla defpois de paíTar muytos trabalhos e perigos , e
cinco meies de fome eltreitifsima íem auer nella outro
mantimento fenão arroz , e agoa fomente , de que lhe
morrerão vinte e huma peíToas , o? que ficarão viuos con-
ílrangidos da eílrema neceísidade lhes foy forçado arriba-
rem ha coíla de Guine ha Ilha do c^bo Verde , onde dos
Portugueíes , que nelia eftauão , forao muyto bem agafa-
Ihados e prouidos com todos os mantimentos e refreícos
neceíTarios , fem faberem da viagem que trazião , porque
os Caílelhanos diziao que vinhao das antilhas. Mas como
o íegredo que eílá efpalhado por muytos não pôde fer de
muyta dura , vierao os Portugueíes a entender a verdade e
detiiminarão lecreíamente de lançar mão polia náo, eafa»
G 2, ze-
5^2 Prlmeyra Parte da Chronica
2crem deter até darem auifo ao reyno , mas nem efta íua
detrimínaçâo pode fer tão fecreta , que os Caílelhanos a
náo vicílem a auentar , e fem fazerem mais detença leua-
râo logo as amarras e fe fízerão há vella com tanra preíla ,
que não tiuerão tempo de recolher o feu batel , e os da
Ilha o tomarão com treze homens que eftauão em terra ,
e 03 mandarão logo a cl Rey com as nouas do que paílaua.
El Rey mandou logo coatro carauellas em buíca da nao ,
mas por niayor preíTa que íe derao , acharão nouas que era
já aportada em Seuilha , e porque a el Rey pareceo rezao
não íe refoluer num negocio tão graue, e de tanto peio co-
mo efte , cos do Teu confelho fomente , masque o deuia
comunicar com outras peíloas , de que entendia que o po-
dião bem aconíelhar neile , mandou a Luis da filueyra que
íe partiíTé da maneyra que eftaua defpachado e prefles , e
porque polia muyta companhia que leuaua lh'auia de fer
forçado fazer a jornada vagarofa , antes que fe chega fie
ao-Émperador teria recado polia poíla do que PaflentaíTe
íobre eíle negocio , e do que auía de flizer nelle i e afsy
íe partio logo Luis da filueyra com todo o aparato e cufto
que tinha feito. Eftaua então o Emperador em Vslhe do-
]id , onde no mefmo tempo que el Rey leue recado da vin*
da dos Caflelhanos o teue elle também do que os Portu-
guefes íizerão ha náo na ilha do cabo Verde , donde a ca-
da hum deíles princepes naceo ocáfião de fe queixar do
outro. Qiieixauafle o Emperador de os Portugueles na
iJha tentarem tomarlhe a íua náo , e tomaremlhe o batel ,
e prenderemlhe os treze homens , e fobre tudo de el Rey
os ter cá preíos , e mandar carauellas armadas em buíca
da fua náo , pollo quil eícreueo a Chriílouão barrofo íeu
fecreíario , que então refiuia na corte de Portugal fazendo
os íeus negócios , que falalle logo a cl Rey , e lhe deíTe
huma carta que fobr^iíTo lh'ercrcuia , em que íe queisaua
muyto de todas eíl"as couías , e principalmente de clle man-
dar no alcanço da íua náo, que vinha carregada d'efpe-
ciaria das terras , que dizia que cahiao na íua demarcação ,
íem tocar porto noíTo da índia , e que iílo era quebrar as
ca-
delRey Dom João o III. 53
capitulações antigas e nouas das pazes, que cílauao af-
icntadas' e juradas de hum reyno ao outro , íendo todas
as náos dos Portuguefes por leu mandado muyco bem re-
colhiias em todos os portos dos feus lenliorios , .por on-
de lhe pidia que lhe mandafle íoltar os preíos , e refti-
tuirlhes tudo o que Uies fora tomado , e caíligar na ilha
os que toráo autores e culpados na quelle infulto. El Rey
por Tua parte detriminou também no íeu coníelho de
mandar pidir ao Emp erador toda a eípcciarin , que a náo
trouxera das ilhas de Maluco , onde forçofam.ente tomara
a carga delia contra vontade dos Portuguefes , que eílauao
relias fazendo pacíncamente fuás fazendas , e por iflb ef-
tauáodeíapercebidos e defcuidados por lhes pajecer que
ha íua conquiíla nao podia ir gente, a que ella não perten-
cia , e por eíla rezao lhe mandaíle entregar efta efpeciaria a
que fora trazida das terras de que elie tinha pacijica poíTe ,
poreílarem dentro na íua demarcação , e que nao quifelTc
começar a dar motiuo de fe quebrarem as pazes , que auia
tão pouco tempo que por ambos forao retifícadas. E
quanto aos preíos elle os mandaria pôr em juíliça para fe
fdzer deiles o que ella detriminsíTe,
CAPITULO XXVIII.
El Rey 7nuda afuflancia da embaixada de Luís dafihiey-
ra \ o que paf]a com elle de [pois de ejlar em Ca fie lia acer-
ca da companhia que leu ar a , o que elle concrue co Empera-
dor nos negócios que leua acargo , torna pêra Portugal ,
e o que cdpajja com el Rey^
rri Ornada no confelho eíla refuluçao pareceo bem , que
JL por então íe nao falaíTe nos caíamentos , e que Luis
da filueyra deíTa eíle recado ao Emperador , c a carta dei
Rcv que fobre iíTo lhe leuaua , aísi como o Emperador o
mandara ca fazer polo fecretario Barrofo , ao qual fe deu
também efta mefma repofta. E vendo el Rey mudada ã
íuílancia deíla embaixada em tão differente negocio do pa-
r;i
54 Primeyra Parte da Chronica
ra quef'ella ordenara , porque efte parecia que prometia
mais de íy trabalhos e definquietaçoens , que lianças nem
feitas de caíamentos , 'mandou recado a Luís da filueyra
na entrada do mes de Nouembro deíle anno de 1^12 , qÍ"
tandb ja na corte de.Caítelia , que auia por íeu feruiço por
muytos refpeitos , que a iíTo o moiiiao , que elle deípedifle
tanta gente da companhia que leuára , que ihe não íicaf-
lem mais que trinta caualgaduras íomente , que por então
parecia que lhe baílsuao , e que no conto dos que deípi-
diíTe- entra (Tem todos os fidalgos que leuára com figo , e
dos outros homens , os que foliem de mais refpeito ; po-
rem elle parecendolhe que cumpria mais ao feruiço d'el
Rey continuar na corte do modo com que tinha entrado
nella , e também quica fofpeitando que era aquillo inuen-
ção dos feus emulos , quelicauão na corte , para o fazerem
abater e deícompor do faufto e aparato com que aly che-
gara , efcreueo a el Rey fobre iílo tão boas rezoens , que
na entrada do Dezembro feguinte lhe tornou amandar re-
cado , que auia por íeu feruiço que tiueíTe toda a fua com-
panhia fem difpidir ninguém delia até ver recado feu , e
meado Janeyro do anno íeguinte de 1593 ihe mandou
dizer, que atéo mandar vir eíliueííe com toda a companhia
que tinha , mas que delia podia deípidir as pefloas que
lhe bem pareceííe , e que vifle que tinhao diflo mais neceí-
isidadc. Luis da filueyra foy na Corte de Caftella milhor
recebido do que quica fe imaginaua , onde íempre follici-
tou as coufas do feruiço dei Rey com todo o cuidado e
- diligencia , que conuinha para o bom dcfpacho delias ,
dando porem íempre a entender que erao aceílorias e co-
metidas de nouo , e que o principal negocio a que viera
fora a vifitar o Emperador da fua vinda a Eípanha , e ju-
rar em nome dei Rey as pazes , como Carlos popeto o fi-
zera em Portugal em nome do Emperador, e toda cila
fua dii^simulação foy por ordem que lh'el Rey de ca man-
daua. O Emperador por confelho dalguns refpondeo hás
oueixas, que lhe propôs Luis da filueyra , como quem ti-
nha mayor conceito das coufas de Maluco, do que ellas
erão
■ dei Rey Dom João o III. ^^
erão na verdade , e do que as noíTas armadas tinliao bem
viilo e experimentado , e por ilTo inda que nao fahauao
rezoens a Luís da filueyra para lhe dar a entender a ver-
dade diTto , e defenganailo do intereíTe que os léus lhe pro-
■metiao , todauia níío lhe fundio mais todo o fcu cuidado e
diligencia no negocio de Maluco em oito meies que reli-
clio na Corte de Caílella , que concederlhe o Emperador
que íe puíeíTe em julliça , e o viííem letrados , e fidalgos
d'ambos os reynos , e que fe foltaíTem os prefos que vie-
•rão do cabo Verde, e dado aelRcy o auifo diíto o não
quis por então aceitar, e mandou a Luis da filueyra que fe
vieíTe , o qual fe veyo logo, e achou el Rey em Almei-
rim , de que fendo recebido em publico foy notado de
lhe não beijar a mão , que fora erro de íy aíTaz delculpa-
uel , pois parece que não podia proceder feiíao de defcui-
do , ou de aluoroço , fe por ventura o não fizera mais
graue a emulação dalguns , que tinhão ocupado o lugar de
Luis da filueyra o tempo que efteue em Cafl:ella. Alguns
atribuirão iílo há familiaridade, que tiuera íempre com el
Rey deíde o tempo que o começara a feruir , outros ha
confiança do fauor que o Emperador lhe moílrara , mas
quem confiderar iílo deíapafsionadamente verá , quão
alheyo e repunhante he de qualquer bom entendimento
poder auer coufa que lhe faça leuantar tanto o animo , que
chegue a não guardar a íeu Rey o decoro que lhe deu em
todo o tempo , e muyto mais cm pubrico, onde lhe hemais
deuido : elle com tudo fe defculpou deílc grande deícuido ,
afirmando que lho cauíara a toruação daquelle dia , porem
el Rey , ou fofi"e por entender iíto doutra maneyra , ou
por lho darem aísy a entender, o difsimulou por então
com lodos , e muyto mais [co mefmo Luis da filueyra , e le
deyxou tratar e leruir delle alguns dias da maneyra que
dantes, até que nas repoftas que lhe deu d'alguns reque-
rimentos que com elle trazia , lhe deu a entender quão dif-
ferente goilo tinha já então do feu íeruiço do que fempre
tiuera , porque não íómente fe efcuíou de lhe fazer as
mercês tjue ihepidia, por ferem fundadas era prome,n4^
5^
Primevra Parte da Ciironica
c aluarás fecretos , que ouuera delle íendo de pouca idade ,'
mas ainda Jhe teue a ma! querer aquillo delle no tempo,
que polia confiança que delle tinha , e do íeu íeruiço , ti-
nha obrigação de llraconfelhar e aduertillo que o não fi-
zelíe , e da hy por diante o defuiou daquelle continuo e
domeltico íeruiço , e da comunicação e familiaridade que
antes tiuera com elle. Luis da filueyra fofreo cila grande
queda ( que he a mayor que o mundo pode dar de Í7 )
com aquella prudência e grandeza de animo , quefempre
moítrou em tudo , e com mayor conílancia no disíauor
prelente , do que quiçá teue temparança nos fauores pal-
iados , e por illo não foy muyto que os perdeíTe , e ven-
do (Te fora da graça dei Rey , e muyto adiante nella ode
quem fempre íe arreceara , e com quem íobr'ino fempre
competira , nem por ilTo deixou o paço , antes daly por-
diante íeruio o íeu officio de guarda mor mais continuo
que antes , e nelle íe vio quanto milhor fe conferua o fo-
frimento na fortuna aduerfa , que o comedimento na proí-
pera.
CAPITULO XIX. »
Falhffe em cafar cl Rey com a Rainha dona Leanorjua
macWajla , as razões que para tffo lhe dão , faz-lhe Jobre
ijjo hum requerimento a cidade de Lisboa , e o^que dahy
fucede,
EM meyo deíles negócios de tanto pefo e íuílancia de
que íe agora trataua na Corte, não efqucceo outro ,
que ao parecer de homens de muyta autoridade e enten-
dimento não era de menos importância , o qual era do
cafamento dei Rey ; eíle auião que fe deuia tratar do mo-
do , que folTe mais importante e proueitoío para eíle rey-
no , c para iílo foy parecer d'alguns , de que o principal
foy o duque de Bragança dom James , que em ninhuma
parte podia então el Rey caiar, que mais importante e pro-
ueitoío lhe foíTe, que com a Rainha dona Leanor fua ma»
drafta , porque com iíío liuraua eíle rey no do grandiíTí^
mo
dei Pvcy Dom Jcao o líí. 57
mo aperto em que o pufera eíle terceyro cafamento dei
Rey Ic^u pay , que por outra ninhuma maneyra podia tsr
remédio ; pol!o qual fe foy a el Rey , e lhe pôs diante
quanto ccnuinha ao bem deite reyno cafar elle com a Rai-
nha fua madraíla , para que com ella íicaíie no reyno o
muyto que neceííariam.enre auia de leuar comíigo íe fe
foíledeUe, o que na6 poderia íer íem íeu graue e notável
dano , e para euitar também o grande perjuizo que íe lhe
íeguiria,de íe paliar a rey nos eílranhos a tutoria da ifanre
dona Maria fua filha, de que fua alteza mal íe poderia e(-
cular , íe o Eraperador infiíliiíe niíTo , fenaô caíaado com
íua mãy delia , e que por todas as outras partes lhe vinha
efte cafamento muyto a propofito , porque para aliança
com Caílella,que ía'uia por muito importante, eíla era tao
obrigatória e taó íirme como todas , por íer a Rainha do-
na Leanor irmaã também do Emperador feu vizinho ; e
quanto ao dote em ninhuma outra parte o auia d'achar ta-
manho como efte , e no que tocava ha confirmidade da
peíloa a Rainha era moça de excellente condição , conhe-
cida já no reyno , amada do pouo , e na vontade de todos
fempre defejada para elle , c que o inconueniente que auia
dos parenteícos , teria fácil remédio, porque íendo os
fundamentos daquelle cafamento tao rezoados , e tao
obrigatórios , o Papa Adriano , que inda então gouernaua
a igreja, lhe não poderia negar a diípenfaçao ; poUo qual,
já que por el Rey dom Manoel íeu pay caiar co a Rainha
dona Leanor por conlelho de poucos erdara elle tantas
neceíTidades, quantas agora via no feu reyno , a elle tam-
bém conuinha remedeallas caiando com a mefma Rainha
pollo parecer e coníelho de muytos. Eíte negocio fe tra-
tou largamente em muytos coníelhos que fe íizerão fobrc
elle , nos quais ouue muytas alterações e dlííerenças de
pareceres. E não parou aquy fomente, mas chegou a fe
tratar delle tão geralmente em todo o pouo, que os cida-
dãos de Lisboa , como cabeça de todo o reyno , aprouan-
do eíle parecer do duque de Bragança em nome de todas
as outras cidades , villas e lugares , mandarão pidir a el
Faríe L R Rey
5 8 Primeyra Parte da Chroiiica
Rey por mercê , e reqiierer-!he com muyra iíTU-anciâ", que
quiíeííe aceitar efte conlciho do duque , e pollo por obra,
pois efte era o que eniao mais lhe cumpria, o qual reque-
rimento lhe foy feito na forma que fe legue.
Muyto poderojú Senhm%
OS voíTos fieis e obedientes pòuòã deíla muyfo nobre
e íempre leal cidade de Lisboa , e afsy em nome de
todalhs cidades , villas e confelhos deftes reynos de
Portugal, fomos certificados que porV. A. Guer<ír con>pra-
2er ao Emperador he voíTo coníelho ciiu-i ardes lhe com
muita breuidâde á Rainha fua irmaa noíla Senhora ^e que
]eue comfigo a ifante fua filha com todas íuar arras e dote ,
e refidimenro delias , além dos contos que com titulo de
Rainha há de auer em cada hum anno em fua vida , e por
quanto efte paíío he de terrivei importância e de peTÍgoíja
cfperança futura , e a dor do arrependimento do erro fem
piedade , pedimos a V. A. que leixe mais dias pacer as
beftas das íuas carregas , e vos ponhais de nouo a cuidar,
confiderando que para conferuaçao da republica deftes
íeynos de Portugal foftes nacido , e que mandando a Rai-
nha , mandais a mòr lenhora da Chriftandade fora de vof-
fo poder , a qual fenhora he louuor e honra de voíTas pro-
uincias , fauor e abrigo de voíTos pouos , paz de voflo efta-
do , muyto fermoía , muyto moça , bem inclinada , e por
final tanto amada de todosjque não he nada os preços que
a leuao , mas os delejos que leixa ; e ja quando a noíla
defauentura foíle tal , que foltaíTeis efte bem que deípois
não podereis tomar , fegueíle o fegundo defaftre , que he
paíTar V. A. a reynos alheos vofla tutoria da fenhora ifan-
te minina , c com ella fiizer os eftrangeiros os teíouros
que tantas vidas cuftarão de voíTos naturaes , o qual he de
tão trille cafo , que parece defobedccermos ha rezao em
vos não preguntarmos com viuo rigor , onde mandais a
noíía ifante nacida como em voíTos braços para vos , fi-
lha legitima de noílo natural Rey ^ fobceííora e herdeyra
ena
deIRcy Dom João o III. 59
em feu grão , noíTa paz prcfeíiíe , liança futura , riqueza
cerra ; e pois que afsy he , muyto alto e porentiíllmo Rey,
que a tutoria delia e de feus irmãos lie voíTa , e ella Ic-
niiora natural ao reyno , deíde- quando a cá Portugal a
ninhum reyno couía injufta concede , e fe por ventura tal
ciaufuia para íair fora do reyno el Rey, que Deos tem,lei-
xou dito , a morte o fallou , que não he de crer que do-
taíle os bens da orpha para por ventura le gaftar na guer-
ra alhea , porque bem (e pode íoípeitar , que não com
zeilo de feu emparo a querem lá ,.mas poderá íer que fera
deípojada em íua mininice, e repartirão fua herança pol-
los frccheyros de Inglaterra ; e pois efciarecido e muy
prudentiílímo Senhor , como famoío cavaleiro da auentu-
ra , livray a donzella e volTo pouo do graue infortúnio
vindouro , e day fono íeguroa voíTa cafa não íenhor per
guerra , mas por rezao , não per difcordia , mas por pru-
dente íabedoria. Frimeiramcnce V. A. ha de.coníiderar,'^
que todas eftas aduerfidades com que a fortuna nos amea-'
ca cauíou voílo pay por cafar por coníeiho de poucos , oj
qual deueis de curar com íeu contrario , ÍT. caiando por-
confelho de muytos i elle cafou com a molher alhea , e-
V. Alteza deue cafar com aquellci,que fempre pof juila rc-^
zão e no coração de todos volTos íubdiros fempre foy^
volT.i , não fenhor com tenção de íerdes reítituido a el!a ,
mas para voífos rey nos rellituirdes por vos, para redenção
dos pobres mecânicos, e lauradores, íobre os -quais ha
de carregar as neçeífidades em que ficareis leixandoas ir ,-
e das tais neceííidades nacem oprcísócs, e das oprcfsoes'
gemidos dos ppuos , a que a judiça diuina dá Ouuidos ,
aos quais não- pode negar vingança, e alcança ao culto real,
e a grandes , e a pequenos , como pouco há vimos. Afsy
que para V. A. guarecer , e ferem auitados os ditos da-
nos, caufados poUo erro que dito he, requeremos a V. A.
da parte da mifericordia de Deos , e pedimos por íeu
amor, que V. A. café com a Rainha noíTa fenhora e logo,
que quem não correge o erro podendo , outra vez o faz.
E fe o ianto Padre for bem enformado não fomente o
H 2 per
6o Primeyra Parte da Chionlca
permitirá , mas fobpena de obediência omandará, que
nao he rezao perderem o dó ha perdiçlo de hum rcyno,
que tanta verdade e virtude íempre a todo o mundo víou.
O qual requerimento fazemos a V. A. com toda obediên-
cia , do qual nos fica o trcllado para fazendo V. A. o con-
trario o darmos por noíTa.deícalpa. Efte nouo requeri-
mento poz e! Rey em tamanha conruíao e perplexidade ,
que le não fabia reíoluer no que fizeíle , porque por huma
parte as rezoens que para-iÍLoàlie^dauao , que lhe parecião
boas e vrgentes , o conuidauao a confentir no que ll)e pe-
dião , e por outra a cepunhançla da fua condição por ni-
nhum cafo iiie confetttia:fazei:l.o , ;poUo"èrandiísimo pejo
que lhe punha a fua natural honefi:idade,vendo que lhe auia
de fcr forçido ter por molher a quem ja muytas vezes cha-
mara mly e fenhora , c fendo eíla aparte a que eílaua
maisr inclinado^ defeiaua em cftremio poderfc efcufir dos
que illo Ihe;>pidiáo com rezoens de que elles íicaflem fatis-
feitos. E para iífo determinou de tomar o miihor e mais
certo remédio , que foy remeter o negocio ha vontade
<iiuina por meyo de muytas miíTas , que para eíle eítcita
mandou dizer por peíloas deuotas e religioias. E como
Deos nunca falta a quem fe encomenda a elle como deue ,
3h'ab!-io para iílo hum caminho, qual o elle pudera defejar,
porque ordenou que lhe raandalib pidir o Emperador, que
ouueííe por bem que a Rainha fua irmam fe tornaíle para
Caftella c leuafie comíigo a ifante dona Maria fua filha. El
Rey lhe concedeo facilmente a ida da Rainha , aífaz con-
tente de fe ]h'ofFerecer huma tão boa ocafião para lhe não
falarem eni ca.rur com ella , auendo que era illo huma par-
tjcular mercê que Deos então lhe fizera , e atida da ifante
poíla no confelho , aos mais delles pareceo, que não era
contra ó fcu feruiçoidcixala ir com a Rainha foa may , pe-
iem el.B.ey,aprouou .mais o voto do conde do Vimiofo
dom Francifco Portugal , e dos outros que o leguiao, in-
d.* que era a menor parte. O qual foy que elle íe mandaííe
efcufar CO Emperador da ida da ifante , moftrando ja en-
tão el Rey niíto que linha naquclia pouca idade o que he.
hu-
. delRey Dom ]oa.o o III. 6i
liuma miiyto grande parte do bora gouerno , e que os
Reys cuftumão d^alcançar defpois de niuytos annos de
idade e experiência, que he ferem tão liures que fe não dei-
xem leuar do parecer dos ^rais , quando entenderem que o
dos menos he milhor e mais acertado. EIRey fe mandou
efcufar ao Emperador da ida da ifante por dom Pedro
mazcarenhas , dandolhe por rezao que os pouos de Por-
tugal ( como era verdade ) eílauao detriminados em não
coníentirem que Te leuaíie fóra deíle reyno , nem fe criaíle
fora dclle luima princefa de mama filha do feu Rey natu-
ral , pois não era inda de idade para reynar em outras par-
tes , e que elle também não era rezão que o confentiíTe ,
pois el Rey feu pay lha deixara muyto encomendada , e o
deixara por íeu tutor , o que elle efpcraua de cumprir co-
mo o obrigaua não fomente o geral amor e boa vontade
que íempre tiuera a todas as coufas a que el Rey feu pay
moílrara affeiçao , mas lambem o particular amor que ti-
nha ha ifante fua irmam e a todas as fuás coufas , e que fe-
ria de maneyra que a elle lhe não pefaíle de ella ficar em
feu poder , e apoz eftas lh'efcreueo outras muytas rezoens,
com que ficou afias deículpado do que Ihç negaua.
CAPITULO XX.
O que faz a Rainha dona heanor ãefpots da morte dei Rey
dom Manoel , el Rey fejae de Lisboa por raufa da pejle ,
o que o fecretario Barrofo pajja com a Rainha ^ e o que a
ehefucede»
LOgo defpois do fallecimento dei Rey dom Manoel,
a primeyra detriminaçao. que tomou a Rainha dona
Leanor fua molhcr, para poder milhor fofrer o graue peio
daquelle trabalho e daquelle nojo, foy recolherfe no
moíleiro de Odiucllas , e para ifio mandou por Fernão car-
ualho íeu eícriuão da cozinha ver o modo que poderia ter
no feu apofento , e ainda que ella fez ifio co mor fegrcdo
que pode , por não chegar has orelhas dei Rey , todauia o
6i Primeyra Parte da Chronlca.
veyo elle a faber , e lhe pidio que por então quifcíTe tomar
outro coníeiho , porque o que lhe m?.is conuinha era efpe-
rar o que detriminaíle dellaoEmperador íeu irmão, e feguir
a ordem que Ih'clle déíle , e que por entre tanto ordcnalTe
ella para íy o modo , e eícolheíTe o lugar onde lhe pare-
ceíTe , que poderia eftar mais a íeu goíco e mais quieta e
confollada ; ella agardeceo muyto a el Key eíla lembran-
ça , e parecendolhe bem cfte feu confelho le paíTou logo a
JEnxobregas para as caías de Triftao da cunha , e com el-
la a ifante dona líabel como atrás fica dito , onde fe ocu-
paua em frequentar os officios diuinos , e mandar (ocor-
rer a muytas necefsidades , que então os pobres padeciâõ
polia grande fome , que caulara a eílerilidade do anno de
1^21 ; e alem do que tocaua a íeus criados , mandaua tam-
bém repartir muytas eímoilas polias freguefias aos mais
necefsitados. Defpois d'eílar aquy alguns dias fe paíTou
ha cidade para as cafas do duque de Bragança, fazendo
eftas mudanças de apoíentos , confonnc has que rambeoi
elRey fazia de fy como atrás íe ja diífe. Aquy lhe vierao
os meíleres da cidade de Lisboa propor o cafainento com
el Rey dom João feu enteado , o que ella ouuio com huma
honefta grauidade , e não lhe deu mais rcpoíla que agarde-
ccrlhe breuemente a boa vontade que lhe moílrauão , da
maneyra que naquelle cafo conuinha : fucedendo então
auer na cidade alguns rebates de pefte, que obrigarão a el
Bey paííarfe para o Barreyro , a Rainha com a ifante fe
forão com elle, e s'apofentarão no lauradio: e como el
Rey defpois da morte dei Rcy feu pay fempre tratou e vi-
íitou a Rainha dona Leanor com a deuida obediência e
acatamento como fua mãy verdadcyra , afsy polias rezoes
que a iíTo o obrigauão , como por lhe dar a entender a lem-
brança e o goílo que tinha de todas as íuas coufas , como
dei Rey leu pay lhe ficara encomendado, agora que o
aperto e a necefsidade do tempo o obrigaua a ter milhor
cuidado delia , a vifitaua muytas vezes com aquella fince-
ridade de coração , e pureza de vontade , com que fempre
o fizera, mas como a virtude quanto hemais fina tanto
eitá
dei Rey Dom João o III. 03
elli menos fegura dds tençoens danadas , porque eTias até
da inefma triaga fazem peçonha , não faltou quem puíeíie
mal os olhos neíta frequência de vifitaçoens que el Rey
fazia ha Rainha , e as atribuiíTe a danados refpeitos. O íe-
crerario ^hriílouão barroío (' de que atrás diíle que era
agente do Emperador nefta Corte de Portugal j homem
de fua natureza inquieto c mal confidersdo , e defejoío
d\Krecentar em feu nome por qualquer via que fofie , eíla-
ua neíle tempo queixoío de Chriílouao de mello porteyro
mór dei Rey , porque eíhndo elle cuberto na caía ond'el
Rey eítaua , o fez que fe defcobrilTe , e com quanto elle
eftaua algum tanto afaílado da vifta dei Rey , e em parte
onde parecia que não podia íer vifto delle , e íe mudou da-
quelle lugar para outro mais efcuíb , defculpandoíTe com
íer mal defpofto da cabeça , todauia o feu demafiado brio,
e a íua natural vaidade fazião foípeita eíla fua defculpa ,
elle com tudo parece que fentido e delejofo de fe latisfa-
zer delia delgraça negoceou por todos os meyos e inteli-
gências que pode, com que o Emperador lhe mandaíle no-
me de íeu embaixador nefta corte , dando por rezão que
era para tratar os feus negócios com mais autoridade , e
alcançou o que pretendia. Feyto embaixador , crecendo-
Ihe quiçá a oufinia com a dinidade, tomou atreuimento não
fomente de eíiranhar muyto ao pouo o aluoroço que mo-
ítraua para o calamento dei Rey com a Rainha dona Lea-
nor , mas também de condenar a innocencia da Rainha , e
a virtude e boa tenção com que el Rey a vifitaua , e dar
conta dilío ao Emperador; porem tanto que veyo a enten-
der que a Rainha começaua a ter fentimento do que elle
fecreramente efcreuia , por íe fanear dante mão da zizania
que tinha íameado , íe preuenio co Emperador de tal ma-
neyra, que quando a Rainha lhe veyo a efcreuer íobr'iflo ,
elle , como deícontente , lhe não reípondia outra coufa íe-
náo darlhe preíla ha fua ida defte reyno , a qual ella hia an-
tretendo para ver fe podia acabar com el Rey íeu enteado ,
que coníintilíe leuar comíigo a ifante dona Maria íua filha,
eparaiíto fe valia também da autoridade do Emperador
feu
64
Primeyra Parte da Chronlca
feu irmão» O Barrofo entre tanto não ceíTaua no fcj máo
propofito , antes paílandoíle el Rey doBarreyro para Al-
meirim íoy necefíario iremfe trás elle a Rainha e a ifante
dona líabel , e ficarão para as acompanharem o duque de
Bragança , o barão d'Aluito dom Diogo lobo, e outros
fenhores da corte , com a qual companhia chegarão a
Mugem ; aly chegou o Barroío a tanta íoltura , que reque-
reo pubricamente ha Rainha que daly não paíTaíFe nem
quifcííe ir a Almeirim ond'eI Rey eílaua j dando a enten-
der que o fazia por ordem do Emperador. A Rainha inda
que íentio muyto huma tão eílranha ouíadia e defcome-
dimento, com tudo polia grande obediência que fempre
tiuera ao Emperador íeu irmão , e polia muyta conta que
íempre teue com íua honra e autoridade, difsimulou en-
tão aquiilo o milhor que pode , e não paíTou mais adian-
te. Deílas couías auifaua logo o Barroío o Emperador , e
as aíFeiçoaua ao fom do que lhe a elle cumpria de tal ma-
neira , que o Emperador cada vez daua mayor preíTa ha
ida da Rainha , e daua a entender que o fazia , porque o
Biípo de Cordoua , e o conde de Cabra , o doutor Cabrey-
ro ouuidor do confelho real , feus embaixadores , auiajá
alguns mefes que eílauão em Badajoz efperando por ella.
Neíle meyo tempo a Rainha para fua fatisfação tinha
mandado dar conta ao Emperador do que o Barrofo in-
tentara contr'ella , e informallo da verdade do que paf-
íaua , primeyro pollo Biípo de Cuba feu capellâo mor , e
deípois por Bonedao caualeyro de honor feu , e marido
de Tumbas fua camareyra. Com as quais informaçoens
certificado o Emperador das coufas do Barrofo , e da ten-
ção e fundamento com que as mouera , fe ouue por tão
deíTeruido delle , qwe o mandou ir deíle reyno , e o degra-
dou para as galés , e mandou em feu lugar ao doutor Ca-
breyro , hum dos três embaixadores , o qual deu fim aos
negócios que tocauão ha ida da Rainha , e fe foy com ella
no mes de Mayo íeguinte do anno de mil e quinhentos e
vinte três , como fe dirá em feu lugar.
CA-
deIR.ey Dom João o III. 6^
CAPITULO XXL
O gouernaãor da índia dom Duarte de mejiejes cheg^ a Goa ,
dajfe conta do aletiant amento de Onnuz , o capitão da for*,
taleza manda pidir j ocorro ^ e o (jue nijfo fe faz»
Tinha elRey dom Manoel mandado por gouernador
has partes da índia o anno de mil e quinhentos e vin-
te hum ( que foy o mefmo em que morreo ) dom Duarte
de meneies íilho do conde Prior , tirado para efte eíieito
do gouerno de Tangere , onde na guerra que fazia aos
mouros tinha ganhado muyta honra , deixando nelle em
feu lug-ir dom Anrique de meneies feu irmão , e para ca«
pitão mór do mar naquellas partes mandara em compa-
nhia do mefmo gouernador dom Luis de meneies Teu ir-
mão , montevro mór que então era do princepe. Dom
Duarte partio do Porto de Lisboa a cinco dias d'Abri! do
anno de 1521 com huma armada de quinze náos , em que
leuaua muyto boa g^^nte , e chegou ha india em Agoíto ,
e elle com algumas nios da íua companhia fov tomar o
porto de Baticalá , porque as outras l'apartarâo delle,'
onde tcue nouas , o^ue o gouernador Diogo lopez de 11-
queyra aula de vir d'Ormuz fazer huma fortaleza em
Cambaya ; da hy íe foy logo a Goa , onde achou as outras
ráos da fua armada e onde foy recebido com todas as ci-
rimonia?, com que íecuílumao receber os gouernadores ;
e por não faber a detença que Diogo lopez faria la por fo-
ra , começou logo a entender nas coulas da gouernança ,
e meteo de poííe da capitania de Goa a Francifco pereira
peílana , que do rcyno fora com elle prouldo nella , ea
Ruy de melo , que até então fora capitão delia , e tinha já
acabado feu tempo , deu a fua náo para fe vir nella para o
reyno. Aqui teue nouas , que o gouernador Diogo lopez
laindo - d'Ormuz viera ter a DIo com detrimin.ição de ia-»
zerhuma fortaleza no rio de Madrafabá , c-porjuílos in-
conuenienres, que para iíío tiuera, deixara a quelia emprc-
Farte L 1 fa-
6Á Priíneyra Parte da Chronlca
fa e fe viera a Chaul, onde eftaua de guerra fãZQnáo huma
fortaleza , pollo qual lhe mandou logo de íocorro dom
Luís feu irmão com cinco nauios em que hia muyra e boa
gente , nos quais o gouernador íe vielíe para íe ir para o
reyno , que nelies fe veyo logo , e dando conta ao gouer-
nador dom Duarte do aperto em que fícaua Chaul , lhe
mandou outro nouo íocorro de oito nauios de remo e de
alto bordo com muytas munições e outras couías neceíla-
rias , de que dom Luis feu irmão auia la de prouer as ca-
pitanias , para o qual lhe mandou Teus poiieres e aponta^
xnentos do que auia de fazei: , e mandou Simão dandrade
para capitão da fortaleza , fem embargo de ter dada o
gouernador Diogo lopez a capitania delia a íeu íobrinho
Anrique de meneies. E ordenadas eftas e outras coufas
neceOarias íe foy daly para Cochim. Neíle tempo eibua a
cidade de Ormuz leuantada contra os noííos por induzi-
inento do guazil mor delia chamado Raix Xarafo , que
fofrendo mal mandar elRey dom Manoel recolher para
fy as rendas da alfandega daquella cidade , de que fe elle
aproueitaua , e as gaílaua ha íua vontade , tratou com el
Rey que era moço , e de todo eftaua entregue ao íeu pare-
cer , que porquanto niilo fe lhe fazia huma grande afron-
ta , e com grande quebra de íua honra , coníintifle para ía-
tisfação fua , que íe deíTe a morte a quantos Portugueíes
eftiueíTem na cidade, o que elle coníentio contra o parecer
de feu pay velho que lhe aconfelhaua o contrario. O Xarar
ío fe ordenou fecretamente com outros mouros poderofos
a que deu conta difto , e huma noite que foy aos dous de
Dezembro do anno de mil e quinhentos e vinte hum ^
guando os noffos eftauao mais deícuidados e com menos
rcceyo deíla traição , derão os mouros nas cafas da cidade
onde elles eílauao com tanta preíla e impeío , que fem fe
poderem a proueirar das armas , nem poríe em defença ^
íorão mortos a mayor parte delles , que íeriao roais de
eento. E, dç alguns que polia praya le puderao recolher
Jia fortaleza forão os mais feridos , e muyto poucos forao
OS que pudçrão çfcapar de todo em íaluo» E com iílo jun-»
ta-
dei Rey Dom João o III. 6y
tamefite lhe roubarão quantas fazendas Uie acharão, é
quantas auia na feitoria dei Rey , e a ocupação que os
inimigos nitlo tiuerão foy grande parte para fe poderem
•jaluar eíTes poucos que elcaparão dos noíTos : nem parou
o mal defta noite nos que eílauao em Ormuz fomente,
mas também abrangeo a outros , que eftauão em outros
portos dos inimigos , antre os quais foy hum por nome
Ruy boto , oqu.il co fauor da graça diuina teuc animo
para íofrer os cruéis tormentos que lhe derão na ilha de
Barem , e acabar nelles coníhantiíTimamente a vida po!!a
confiíTdò da íantifsima , e verdadeira fé católica que pro-
feíTaua, Defte fuceíTo tanto de feu goílo tomou animo o
Xarafo para pôr cerco ha fortaleza , de que então era ca-
pitão dom Garcia Coutinho , dando muyta certeza a el
Rey de a auer de tomar facilmente, porque tinha então
comíigo paílante de dez mil homens de guerra , de que
iruyta parte erão frecheyros , e muyta artilharia groíTa
t meuda , com que começou logo de ordenar eílancias , af-*
fcílar artilharia, e dar alTaltos, com que poz a fortaleza em
grande aperto , por eítar então myto falta afsim de gente ,
polia que fora morta no aleuantamento , como de manti-
mentos , de agoa , de poluora , e de tudo o que era ne-
ceíTario para fua defenfaô. Porem o capitão dom Garcia
( a cujo defcuido fe põem alguma culpa daquelle tamanho
deíaftre, pornão querer lançar mão pollos auifos fecretos ,
que alguns mouros lhe dauão do que Xarafo pretendia /
tanto que acabou de recolher os que vinhão fugindo para
a fortaleza , e outros que eílauao feridos efpalhados por
diuerías partes , o que fe não fez íem muyto langue dos
que eílauao na fortaleza , preíumindo que o Xarafo , pollo
eílado em que via as noflas coufas , tomaria atreuimcnto
para pôr cerco ha fortaleza , detriminou mandar com
tempo dar conta ao gouernador do que paífaua , e pidirlhe
focori'o do que lhe parecia neceííario , para o que ao
diante lhe podia luceder ; e para ido mandou fazer preíles
hu-ra carauella que então auia no porto, que por dita pode
cícapar da luria dos inimigos , o que fov neceííario fazer-
1 2 fe
(58 Primeyrá Parte da Chrohica
fe de noite com muyto jfilencio , e íem rumor algum , em
quanto os nauios dos mouros eílauao abordados em terra,
para c]ue elies não vicflem a rer íenrimcnto do que íe fa-
zia , e feita preíles o capitão mandou meter nella hum
João de meyra hoinem de confian(ç\i , e com elle vinte iio-
irens bem armados , e por clle eícreueo ao gouernador o
■que era paílado , e o citado em que ficaua a fortaleza , e
lhe pedia , que com a mor preíía que pudefíe o manddíTe
prouer de muytas coufas de que tinha neceísidade , e prin-
cipalmente de poluora de que eftaua muyto falto , e era a
que lhe mais importaua , ie os inimigos trataflcm de lhe
pôr cerco de que não auia leucs íoípeitas. A carauella com
a boa diligencia dos que a rinhao a cargo , e quafi mila-
grofamente fahio do porto lem íer fentida dos inimigos,
de que elles polia menham ficarão aíTaz erpantados quan-
do a acharão menos , e o Xarafo bem fentido , e menen-
çorio do defcuido dos feus , e entendendo bem a tenção
da ida da carauella, apertou o cerco da fortaleza, e poz
toda fu a força por uer íe apodia entrar , antes que tiueíTe
focorro ; porem os noflos íem embargo da grande falta
que tinhío de gente , e de mantimentos , com efle pouco
que auia de tudo , íe ordenarão e defenderão de m.inryra ,
que todo o trabalho e forças d,o inimigo fotao em balde.
João de meyra na carauella , nauegando com bom tempo ,
breuemente chegou a Mazcate , e por chegar de noite
iurgio de fora do porto , onde prouue a noflo Senhor que
chegarão também Manoel de íoufa tauares em hum galeão*
bem concertado , e Fernão daiuarez cernache em huma
fulla , queandauão darmada na coita. João de meyra co-
nhecendo os nauios fe foy no feu batel dar conta aos ca-
pitaens do que paíTaua em Ormuz, de que ellcs até ent"o.
não linhão noticia alguma , econlultado antre todos o que
fe deuia tazer , fe aíTentou que Manoel de foufa enrrafie no-
porto de Mazcate , e difsimuladamente recolheíle afy os
Portuguefes, que a hy eíl.iuão, e João de meyra íe foíTe ao
porto de Calayate , e deíle conta do que palTaua a Triítão
vaz da veiga , que ahy eílaua por feiior acompanhado de
muy-
dei Rey Dom João o ÍII. 6ç
iDuytos homen? , c os fízcíTe a todos embarcar em hum
parao que aJiy tinha , co que f.zia arribar ao porto as nãos
^uepaflr;uâo de largo , e íe vieíTem aMazcate, oiide os
eíptraua Manoel rie íoufa. João de meyra fez com muyta
breuidade o que ]h'era encomendado , e 'I riílao vaz le fez
Jcgo preftes cos de fua companhia para l'embarca: no pa-
rao , e'começou cada hum a meter nelie com a miayor dif-
limulação que pôde o dinheiro e fato que tinha , mas nao
pôde fer tão diilimuladamente , que o Xeque da terra nao
atentaíTe niíTo , e querendo lançar mão pollos iioflos , el-
Jes por le defenderem , fe veyo antre todos atrauar huma
briga , que cuílou feridas e mortes dalguns dcs nofios ,
mas como eífauao já na praya íe puderao recolher ro ba-
tel da carauella de João de meyra , e ao parao que tftaua
abordado na terra , e com dous berços que auia nelle íi-
zerão afaífar os inim.igos com muytos mortos e feridos ,
porem o? noíTos naodeixarao de perder algum fato que
ain iH tinhão em terra , por nao terem maneyra para o po-
derem embarcar, e feita eíla diligencia João de meyra , en-
tendendo que não tinha aly mais que fazer , proíTeguIo fua
viagem , a fazer o que lh'era mandado co gouernador.
O que paíTou neíte cerco me parecco efcufado eícreuer
aquy , porque como foy no anno de mil e quinhentos e
vinte hum , fica já eícrito por Damião de góes na crónica
dei Rey dom Manoel , e afsi irey continuando co locor-
ro que lhe mandou o gouernador dom Duarte, e o que lu-
cedeo defpois do cerco , que foy já no anno feguinte de
Hiil quinhentos e vinte dous , em tempo delKey dom
João,
CA-
jo Primeyra Parte da Chroitica
CAPITULO XXIÍ.
jyom Lms de ynenefes capitão vtór ão mar manda bum ^ât*
leão em [ocorro de Ormuz , o gouernador manda ao mejynn
dom Luís que o vd [ocorrer , elle vay com huma grojja ar-
fnada ^ e o que lã jaz até Je tornar para a índia»
EM breve tempo chegou João de meyra a Cliauí , on-
d'entao eftui.^ por capitão mór do mar dom Luis de
meneies irmão do gouernador com rodos os feus poderes ,
aquém dando conta do que paíTaua em Ormuz o fez logo
partir para Cochini a dar eíta meíma conta ao gouernador:
cconfultando cos fidalgos o que fe deuia fazer naquelie
caio 5 por todos foy detriminado que fe não abalafle daly
a focorrer Ormuz , mas que cumpria muyro ao feruiço dei
Rey, e ao bem daquella fortaleza mandarllie com toda a
breuidade poíTiuel hum nauio com prouimento d'algumas
coufas de que tinha neceífidade , e daria grande animo aos
noíTos , e confufio aos inimigos , parecendolhe que a pos
aquelle nauio não tardaria muyto o focorro , e quica da-
rião algum aliuio ha fortaleza. Tomada eíla reíolução íe
fez logo preífes dom Gonçalo Coutinho irmão do capitão
d'Ormuz dom Garcia coutinho num galeão bem armado
carregado de mantimentos , poluora , e muniçoens , cm
que leuou comíigo duzentos homens muyto bem concerta-
dos , todos gente de conta : e antes quechegalTe ha cida-
de teue no caminho nouas , queeftaua já defpejada , ea
fortaleza liure do cerco , com que entrou em Ormuz com
muyra fcíVi , e contentamento feu , e co mefmo foy rece-
bido de todos , com cuja vinda ceffarão algumas diííeren-
ças, que então auia antre o capitão e a gente principal que
tít.uia nafort .1 z;^ , por culpas que llie punhao, de fazer al-
gumas couíss de mais prou :ito feu , que íeruiço dei Rey ,
a que e!le não deixaua de á\t fua defcarga , e por então íi-
cou tu lo quieto, Chegido João de meyra a Cochim onde
o gouernndor eíl^ua , que foy a deznyto de Janeyro do an-
no de mil e quinhentos e vinte dous , e encarecendolhc
com
dei Rey Dom João o III. J\
cem muytas palauras a neceíTidade e aperro em que fi-
C2ua a fortaleza d''Ormuz , ]he mandou , que na íua ca-
ravella fe tornafle logo com cartas a dom Luis feu ir-
mão , emque Ihemandaua, que deixando Chaul proui-
do como cumpria , fe fofle íocorrer Ormuz co mór po-
der que pudeíle. Dom Luis como linha por íem duvi-
da , que o gouernador lh'auia de mandar cíle recado ,
já quando elJe chegou eftaua apercebido de tudo o neceí-
fario para a viagem, e íe partio de Chaul em fim de Fcue*
reiro do meímo anno com oito galeões ecarauelias , em
que hião por capitães Ruy vaz pereyra , Lopo dazeue-
do , António de lemos, Manoel de macedo , Anrique
de maccdo leu irmão. Pêro vaz de melo, João pereyra
de iacerda , e Manoel de moura, e também foy com elle
João de meyra na fua carauelia , na qual o gouernador
mandara de Cochim Joíío rodriguez de noronha , a que
também chamauao da camará , filho do capitão da illia da
madeyra , para entrar na capitania da fortaleza d'Ormuz,
porque dom Garcia tinha já acabados os feus três
annos , e não auia capitão para ella prouido por el Rey.
Leuaua dom Luis neíia armada rauyto lim.pa gente , muy-
tos mantimentos, muyta poiuora , e muniçoens , e com
ella chegou ao porto de Mazcate , que eftaua de paz , on-
de o Xeque Rabea lhe fez rauyto bom recebimento , e
muytos íeruiços , e onde íoube queelP^ey d^Ormuz era
paflado para a ilha de Queixorae , e os noíFos eftauão fe-
nhores da cidade : daquy foy dom Luis ao porto de Soar
Jugar grande e fcrmoío , com fortaleza dei Rey d'Ormuz ^
em que eftaua por capitão Rais Sabadim irmão de Rais
Xarafo, beni fortificado de gente e de tudo o mais para fua
defeníaÕ. Dom Luis com tudo íahio em terra e cometeo
o lugar, em que achou pouca refiílencia, porque os mouros,
iem eíperarem que caiíTem muytos , íe puferao logo cm fo-
gida , e defcmpararão o lugar , que os nolTos meterão a fa»
co , em que acharão bem pouco que faquear , porem d©
vacas matarão huma grande cantidade , que leuarao comil-
ão , € dom Luis não cgnlintip poríe íogo ao lugar por feç
72r Primeyra Parte da Chronica
dei Key cVOrmuz , com quem hia fazer pazes. Seguindo da-
quy íua derrota nao parou até íurgir no porto da cidade
de Ormuz, onde mandou pregoar por todos os nauios
com graues penas , que ninhum homem fizeífe máo trata-
mento a peiroa alguma da cidade , e deíembarcando enci
terra foy recebido com muyta honra e muyto aluoroço ,
onde meteo logo de po^e da capitania da Fortaleza a João
roíz de noronha , e cos íi.talgos e gente principal que aly
auia tratou do que íe deuia de f;izer no que tinha paliado
naquella cidade , e por todos foy aíTentado, que por então
fe diíTimulaííe co que era feito , e fe trataíle de fe fazer paz
com elRey , e íe trabalhaífe por qualquer modo polTiuel
acabar com elle , que íe tornaíle para a cidade , porque
fendo doutra maneyra feria huma grande perda para o
eílado da índia. Dom Luis aprouando eíle confelho man-
dou logo dizer a el Rey , que chegando áquella fortaleza
não quiíera tratar mal a cidade nem a geute delia , até nâo
faberdelle a rezao do que era feito aos Portugueíes , e
qual era a fua vontade e detriminação neíle caio, que
diíto lhe mandaíTe a repofta , porque com ella íe auia de
detriminar no que auia de fazer , ou de paz , ou de guerra ,
e que felle nao tinha culpa no que era paftado , foigiria de
alTcntar com elle huma p;rz firm.e e verdadeira com toda a
íegurançâ , que para iíTo cumprlífe , e caíligaria a que'n
achaíle que teue a culpa. Bem entendeo o Xarafo a tenção
deíle recado , e que claramente trataua delle , pois fora o
culpado, e como tinha elRey tão fogeito e entregue ao
feu parecer , não eíperou que elle reípondeíle , mas em feu
nome rcípondeo a dom Luis , que bem pudera liuremente
deftruir a cidade fe quifera , que para iíTo lha deixara dei- ^
pejada, que fe a deílruira elle fizera outra em parte que
não foííe catiua de tantos roubos e inlultos , quanto os
Portugueíes tinhao feito em Ormuz , e fazião por toda a
Índia , e por ilTo lhe daua pouco de elle deílruir aquelIa
em que já não tinha nada , nem queria ter nome dei Rey
delia , nem vella mais dos olhos , fó pêra ver o que então
rendia a alfandega, nem menos queria mais ter que en-
te n-.
dei Rey Dom João o III. 73
tender com Portuguefes fe nao fugir donde os ouuiPe
nomcíir , pois erão tTio fallos , que começauiío com
aparências de bens e verdades , que deípois fe torna não
cm males e miniiras , que nao tinha outra repoíla , que
lhe mandar íenao cita , que na guerra íizeíTe o que Jhe
bem parecefle , mas que de paz ou concerto algum não
tratalTe com elle , porque já íabia que Portuguefes erao
gente, que não trataua verdade, e com eíla repoíVa
delpedio o que lhe trouxera o recado, a quai lhe deu em
Português cícrita por hum renegado , que andaua antr'cl-
jes. Dom Luis mandou lereíla repoíla pubricatpcnte pe-
rante todos os principaes da fortaleza , a que pidio feus
pareceres, e todos reíponderao que ji nao era tempo
nem rezão , que fe diíTimulaíIe mais , fenao que poi? o Xa-
rafo tinha el Rey em íeu poder , e no reyno fe não obe-
decia a nJMguem fenao aelle, eelle íabia def/quefora
toda a cauía do mal que recebera aquella fortaleza, por
onde elle fò eílaua obrigado a pagallo ou com a pelloa ,
ou com a fazenda , entendido eítaua que não auia de que-
rer concerto cos Portuguefes , nem íiarfe delles , por on-
de parecia que já aly fe nao podia fazer outra couía , fe não
ir logo dar na ilha de Queixome , e dar ao Xarafo e aos
mouros que com elle forao culpados o caftigo que mere-
cião. Dom Luis , como era auifado e prudente, pondenMi-
do bem os incouenientes que naquillo auia , lhe refpondeo
quQ ainda que foíTem dar em Queixome nem por ilTo fa-
rião o que pretendião , porque os mouros lhe poderiao
fugir para Bacerá , e para Bare , e para outras terras onde
o Xarafo poderia viuer muyto leguro , e íe lhe daria pou-
co do reinado do Rey , que tinha em feu poder , a quem
elle ou daria a morte , ou quebraria os olhos como era
feu cuílume , por onde todo o feu trabalho lá ícria de-
balde , e a fortaleza entretanto ficaua arrifcada a def-
aftres , de que elles poderiao dar muyto má conta , poílo
qual elle nao aprouaua eíte íeu parecer. E inda que illo
que dom Luis difle parecia então o mais acertado , to-
dauia íoydito por huns termos algum tanto demafiados ,
Fartai. K c
74 Pílmeyra Parte da Chronlca
e efcandalofos , com que todos os que eílauao prefentes ítí
recolherão mal contentes para íuas caías. Dom Luis então
íem tratar mais dos íeus pareceres coníultou com dom
Garcia, que modo fe poderia ter para íe dar a morte le-
cretamente ao Xarafo , porque com iílo ficaria tudo pacifi-
co e quieto , e el Rey e os feus parece que folgariao de fe
tornar para a cidade , onde tinhao íuas cafas , antes que
andarem como defterrados , e com tudo nao deixou de
mandar outros alguns recados a el Rey e ao Xarafo íobre
efta meíma matéria , oííerecendoíTe a fazer todo o concerto
que foíle rezao , porque ainda que em Queixome fizeíTe
el Pvcy outra cidade d'OrmuZj também lá auia de pagar as
páreas que cá pagaua , que íe agora as quiíeííe pagar e as
fazendas que íe roubarão aos Portugueíes , feriao acabadas
todas as diíferenças , e íe lhe daria perdão de tudo o que
era feito, de que lhe daria toda a fcgurança que elles qui-
feíTem. A todos eftes recados daua fsmpre o Xarafo re-
poílas indetrimínadas e com muyta cautella , apontando
iemprc rezoes de quem íe receaua de não tornar mais ao
eílado dantes , por mais concertos que fefizeíTem , pois en-
tendia que não poderia ja antr'ellcs auer paz , que foíTe fe-
gura. Afora eíles recados , que íe mandarão ao Xarafo , fe
riuerão também algumas intelligencias fecretas com al-
guns do confelho delRey , para que acabaílem iílo com
eile , os quais auendoíTe por afrontados de os tratar o
Xarafo como íe fora fenhor de todos , cada hum lhe daua
feu parecer em fauor do concerto , porem elle não fe
liaua dellcs , arreceando que algum queria faber o feu pen-
famento naquella matéria para o deícubrir ao Xarafo, de
quem tinha grandiífimo medo vendoíTe em feu poder , e
defejando muyfo de fazer eíle concerto nem oufaua de
fe deícubrir a pelToa por quem íecretamente mandaíle re-
cado difto a dom Luis , nem em pubrico ouíaua de reí-
ponder aos recados como defejaua , com tudo eílando
hum dia em pratica co Xarafo e com outros muytos lhe
dilTc perante todos com a mor diíTimulação que pode , que
ja que lhe falauão em concerto não feria mao ver as con-
di-
dei Rey Dom João o III. 7^^
<dlç6es delle , quf fe foíTem ha fua vontade fe poderia
lançar inão por ellas , e quando não fe faria o que foí-
fe milhor paraellcs, que íe alguma das condições foííe
pagaremlhe as fazendas que fe tomarão aosnofíos, el!e
as queria pagar ha fuacuíla, com tanto que ihetornaf-
fcm a alfandega , eque ifto le deuia fazer , para que íe
nãoperdeíTe o nome do reyno de Ormuz , para o qual
no concerto fe pidiíTe tudo o que fentendelle que a
elles lhes cumpria. Deílas rezões d'el Rey entendeo bem
oXarafo a fua tenção e deíejo , e como era muyto ía-
gaz e de grande entendimento bem via , que ainda que fe
fizeíTem as pazes com quaisquer condições , que elle pi-
diíTe, tanto que elRey elHueíTe em poder dos noííos , e
íe viííe liure do íeu , toda a culpa auia de lançar fobre el-
Je , pois fora o autor de todos os males , e que cmfim o
auia devir apagar em algum tempo, e para fe fcgurar
difto fez com que fe delTe peçonha a el Rey , de que morreo
em poucos dias , comcuja morte cobrou tanto poder no
reyno , como fe fora o próprio e verdadeiro Rey , e os
grandes tom.irao tanto receyo de os elle matar , que cada
hum andaua com a milhor guarda que podia em fua pef-
íoa. Dom Luis , tanto que foube da morte delPvcy, detri-
ninou de íe ir para a índia , e deu conta diíTo a dom Gar-
cia e ao capitão João roiz , dizendo que com íua auíencia ,
como o Xarafo Pachaíle mais defabafado e com menos
receyo, quiçá quereria vir em algum concerto, ao que
João roiz refpondeo que era eícuíado cuidarfe que podia
auer concerto algum, em quanto o Xarafo foíTe viuo , por-
que elle fabia muyto bem o que Ihe^cumpria , e o auia
fempre de impedir, por onde para iílo aucr effeito era
muyto neceííario bufcaríe maneyra para fe lhe dar a mor-
te por qualquer via que foíTe , porque com ella todos os
que agora com medo delle fe m.etião por dentro , vendoí-
fe liures folgarião de íe concertar e tlrarfc de traU^lhos ,
mas que por então fe não podia tratar de coufa alguma até
íe não ver íe fazião Rey nouo , e fazendoo efperarfe tam-
bém a ver fe fazia da ly alguma mudança , e quando vif-
k 2 íem
'jG Prlmeyra Parte da Chroníca.'
fem que a não fazia , então íe lhe mandaria embaixada \
dandolhe os parabéns do nouo revnado , e queixandoíle
delle como que tiuera a culpa nos males que lefizerao,
porque com iílo vendo o Xarafo que fe punha a culpa a
outrem e não a elle , ficaria mais defaíTombrado , e quiçá
quereria vir em algum concerto. Eíla ordem pareceo
muyto bem a dom Luis , e diíTe que logo íe bufcafíe quem
deíle a morte ao Xarafo , e que aquém o fizeíTe fe lhe deíTe
o cargo que elle tinha , que era goazil mor , c para iíío deu
logo hum aííinado feu , em que daua o goazilado do reyno
d'Ormuz a quem deíle a morte a Rais Xarafo , o qual ef-
crito deu em íegredo a dom Garcia e ao capitão João
roiz , fem outrem faber delle, porque a elles ambos íós
ficou encomendada a execução deíle negocio. Concertado
aíly iílo , dom Luis ordenou fua partida , porque trouxera
ordem do gouernndor íeu irmão , que não aílentando as
Gouías d'Ormuz fe tornaíTe para a índia atempo que elle
em peíToa pudeíle ir a concertallas , e o deixaíle a elle era
íeu lugar. Ordenou dom Luis a Manoel de fouía tauares
capitão mór domar hum galeão , duas carauellas , huma
galeota , e dous bargantins. Deixou a dom Gonçalo Cou-
tinho o galeão em que aly viera , para fe ir nelle para a ín-
dia , e a dom Garcia a nao fao Jorge , de que era capitão
Duarte de taide , para também nella fe ir para a índia , def-
pois de concluídos os negócios de Ormuz, nos quais
mandou que o capitão nouo João roiz de noronha não fí-
zefíe couía íem leu parecer , por quanto elle era mais an-
tigo na fortaleza , e os mouros tinhão mais conhecimen-
to delle, e com tudo lhe deixou por apontamento a ma-
neyra de que auiao de fazer o concerto , fe acertaíTe de o
auer , e defpois de prouer a fortaleza de tudo o que lhe
era neceíTario fe partio para a índia»
CA-
dei Rey Dom João o III. yy
CAPITULO XXIII.
"Dom Garcia negocea dar n morte ao Xarafo , hum mouro
dos principaes do reyno fecretamente (e vê com elle e
Je ojferece a dar lha , & o modo que para ijjo bujca.
TAnro que dom Luís foy partido , dom Garcia , afsy
para remediar o deícuido que tiuera em nao lançar
mao pollos auiíos , que lhe derão do aleuantamento d'Or-
muz , como pollo que cumpria ao feruiço dei Rey e ao
bem daquella fortaleza, tomou muyto a feu cargo pôr
por obra a morte do Xarafo , pollo muyto conhecimento
que tinha cos mouros principaes do reyno, e para iílo
efcreuia a todos dizendolhes , que dom Luis era ido e
3he deixara muyto encomendado , que aííentaíTe as coufas
d'Ormuz com todo o concerto e paz que foíle razão , o
que não podia fer eílando a terra fem Rey , que ordenaf-
íem fazello , pois a elles lhes competia por íerem os prin-
cipaes do reyno, e então le poderia tratar diíTo de pro-
pofito , e elles também de fua parte o meteíTem em rezcão ,
€ lhe aconfelhaílem que quifelTe fazer o concerto , mas
que todauia lhes lembraua que em tudo deuiao de pro-
ceder polia ordem e parecer do Xarafo , porque doutra
maneyra não poderiao fazer coula que fofíe acertada , e
com iílo hião as cartas cheyas de muytos comprimentos ,
e grandes abaílanças , e hião aíTmadas por ambos os capi-
tães , dom Garcia e João roiz: o Xarafo ouue viíla d'algu-
mas deitas cartas , e ficou afTaz oufano e contente de ver
a conta , que os capitães fazião delle , e como tinha já
determinado de fazer Rey moço , que lhe fofle tão fojeito
e obediente como o pafíado , para que deita maneyra ti-
veíTe íegurança em fua peíToa , e no reyno o mefmo poder
e audoridade , que fempre tiuera , efcreueo aos capitães
que em quanto aquelle reyno eítaua fem Rey o tiueíTem
por Rey a elle, e que lhe mandafíem dizer fe auerião el-
les por verdadeyro Rey da queíle reyno , o que elles lá
fizeíTem antre íy , ao qual elles relponderao, que f e o
Rey,
7-3
Primevra Parte da Chronlca
Key j que elles fízeíTera , foíTe direyto e legitimo íuceíTor
do reyno , o aueriao por bom e verdadeyro. Aos mouros
todos pareceo bem ifto , que diziao os capitães , e o Xa-
rafo por cumprir com elles , e cos feus defenhos fecretos y
fez Rey hum moço de doze annos, íobrinho do Rey mor-
to a quem não ncara filho , com que os mouros todos
ficarão quietos e contentes , e alguns delles começarão
■vir ha cidade , onde andauao pacíficos e íeguros , porque
o capitão tinha defeío com grandes penas ,que ninguém
l'atraueíTaíTe nem tiueíTe differença com ninhum delles.
Tinha o Xarafo então configohum irmão leu , chamado
Rais fabadim, de que atrás diííe que eílaua em íoar, quan-
do dom Luis o entrou e faqueou , o qual mouro era o
mayor inimigo que os noííos tinhão. Efte tanto que vio
as coulas neíle eílado , que moílraua de fy paz e quieta-
ção , como era de natureza foberbo e confiado , fe foy
andar polia cidade pacificamente , como andauao os ou-
tros mouros, de que o capitão tendo logo noticia o dií-
íimulou , fazendo que o não entendia nem atentaua niíTo ,
antes lhe fazia a vontade em tudo o que queria , e não
fomente a elle íenão a todas as coufas do Rais Xarafo
trataua com moílras de muyta amizade , para com iíTo
os íegurar, e ver fe podia dar a morte a ambos os irmã-
os. Andaua antr'eíles mouros hum chamado Rais xeme-
fim , que era dos mais principaes e mais poderofos , que
aly auia, e tinha grandiííimo ódio ao Rais fabadjm por lhe
cometer deíoneftamente fua mãy , e por efta injuria ( que
elle auia por muyto grande) delejaua muyto de íe vingar
delle : eíle vindo a íaber das amizades , que os noííos ca-
pitães tratauão co Sabadim e co Xarafo feu irmão ,lhes
efcreueo huma carta eftranhandolhe muito as amizades
que tinhão com elles , fendo os mayores inimigos que ti-
nhão os Portugueies , e que forão caufa do aleuantamen-
to d'Ormuz , e de todos os mallcs que os noflos ahy re-
ceberão , e que íoubeíTem que a morte dei Rey lhe fora
ordenada pollo Xarafo para fe íegurar do mal , que lhe
podia vir por lua cauía, fe fe tornaile a concertar cos noí-
fos,
delRey Dom João o III. 79-
fos , e para ficar fenhor abfoluro em todo o reyno ; e
pois ifto aísy era, como conlentião que Rais íabadim an-
daíTe tao foltamente polia cidade íem fua licença, c]ue ibu-
bclTem que elle era capital inimigo deite mouro , que fe
elles o não tomaílem mal, elle lhe iria dar a morte dcniro
na cidade , para dar vingança aos noíTos dos malles , que
elle lhes tinha feito , e tomalla de huma grande injuria
que tinha recebido delle : os capitães como já fabiao cer-
to o ódio entranhauel , que auia antre eíles dous mouros ,
folgarão muyto com eíla carta , entendendo que os ofle-
recimentos delia náo podiao fer fingidos , e que eíle era
hum dos milhores meyos que podiao ter, para vir a elíei-
to o que tanto procurauao , e aísy lhe refponderao agar-
decendolhe com muytas palauras o oíferecimento , porem
que antes de o pôr por obra era muyto neceíTario verfe
com elles , para tratarem couf^is de m.uyta importância pa-
ra todos , e por que não tiueíTc duuida ou receyo de o fa-
zer, lhe mandarão hum íeguro aífinado por ambos. O
mouro em vendo o feguro teue tal jntelligencia , que en-
trou na cidade defconhecido , ond'efteue até que huma
noite pôde fccretamente auer fala dos capitães , em que
elles claramente lhe deícobrirao a tenção com que mo-
ílrauão tanta amizade ao Xarafo , e a íeu irmão , que elles
bem podiao matar o Rais fabadim na cidade fe quifeíTem,
porem que não cumpria fazello , por que feria caufa de
nunca poderem auer o Xarafo ha mão , que era ornais
importante , e o que elles mais pretendiao para lhe faze-
rem dar a morte , porque com ella aueria paz e concertos
em Ormuz , o que fendo elle viuo tinhão por impofliuel ,
que felle quiíeíTe fer o miniílro defta morte, lhe prometi-
ão e jurauão darlhe por iíío o cargo que o Xarafo tinha ,
o qual dom Luis , quando íe da ly fora , deixara mandado
que fe deíTe a quem o mataíTe , e diílo deixara hum aílina-
do íeu. E que fe para ifto lhe foíTe neccflario delles algum
fauor e ajuda , lhe dariao toda a que cumpriíTe. Aluoroça-
do o mouro com efta oíferta refpondeo aos capitães, que
pois lhe dauão huma tamanha honra a troco de l'elle vin-
gar
8o Primeyra Parte da Chronlca
garde Teus inimigos, ihcs prometia de pôr poriíTo a vida y
e derte concerto íe paliarão eícritos, quais o mouro pidio,
aílinados pollo capitão , por dom Garcia , e por dom Gon-
çalo íeu irmão , que a tudo eíleue preíente. Com ifto fe
defpedio o mouro delles bem contente, e co mefmo íe-
gredo com que ueyo fe tornou para a ilha de Queixome ,
lem auer delle algum fentimento , onde , porque então
auia muyta fome, vfou de muyta largueza não íómente cos
feus , que erão muytos a que pagaua foldo , mas com
mandar dar de comer a quantos o querião aceitar dellc
com tenção de fe fazer bem quifto , para ter de fua par-
te muytos , que o ajudaíTem no que trazia determinado,
e não íe enganou neíle penfamento, porque com illo ajun-
tou a [y tanta gente afora a ordinária , que trazia com
figo, que andaua muyto mais acompanhado que todos os
outros , quantos aly andauão , e parecendo-Ihe ja então
que podia fair com a emprefa que tinha tomado , íe deí-
cubrio a hum íeu primo que trazia em íua companhia,
homem animofo e de que fe confiaua muyto , a que pe-
dio pois era feu fangue o quiielTe ajudar a dar a morte
a Rais fabadim em vingança da injuria, que fabia que lhe
tinha feito , e apoz elle dalla também ao tredor de R.ais
Xarafo , de quem fe íabia certo que matara íeu Rey por
fe fazer fenhor abfoluto do reyno , para o que tinha
certo o fauor dos Portuguefes , pois lhe dauão vingan-
ça de quem lhes tinha feiro tantos e tamanhos males.
O mouro aceitou a emprefa de boa vontade , para a qual
eícolheo antre os feus amigos e de íeu primo duzentos
frecheyros, os que conhecia por mais deítros, e de que íe
mais íiaua que tr.izia fempre comíigo.
C A-
dei Rey Dom João o III. 8 1
CAPITULO XXÍIII.
Daffe a morte a Ra:s fabadim , o Xarajo foge de Queixo-
me e entra' fecretamente em Ormuz , o capitão o pren-
de , fnz-fe paz com el Rey efe vem para a cidade. Dom
Garcia , e dom Gonçalo Je partem para a índia , e o que
lhe fuccde,
SEndo ifto afsy detrlminado antre os dous primos ,
Rais Xemefim no dia em que quis pôr por obra eíla íua
dctriminação íe foy polia menliam haeftancia doRais Xa-
rafo acompaniiado de toda a íua gente , e junto comíigo
Jeuaua o leu parente com todos os íeus írecheyros , que
todos aly tinhao por coílume irem todas as menhas ver
o Xarafo e fazerllie calema , c entrando em huma cerca,
que eftaua diante da cafa , encontrou co P\ais Sabndim
irmão do Xarafo , que por modo de efcarneo diíTe para o
mouro que vinha , calema , coge Xemefim : o mouro Xe-
mefim afrontado e raenencorio de íe ver tratar com ácÇ-
prezo , ajuntando eíla noua ocauao ha tenção que tr97Ín ,
diíTe a feu primo , mata eíle tredro , o mouro íem fazer
mais detença lhe meteo huma frecha polia garganta com
que logo cahio morto. O Xemefim vendoo daquella ma-
neyra paíTou a diante em buíca do Xarafo , dizendo a
grandes vozes mioura o tredro, que matou el Rey feu íe-
jihor e noíTo , e como elle era muito mal quiílo a pez ci-
tas vozes íe leuantarao outras d'ouiros mouros , que
dizião o mefmo , com que fe fez hum tamanho eflrcndo
e aluoioço , que chegou as orelhas do Xarafo antes que
pudeíTem chegar a elle , o qual entendendo a cauía da-
quella reuolta fugio com muyta preíía , e fe efcondeo de
tal maneyra, que nunca o puierao achar; porem vendo
que eíl*auão todos leuantados contra elle , e que aly n:Ío
podia efcapar de fuás mãos , {c paíTou fecretamente a Or-
muz em trajo de trabalhador , onde efleue efcondido
que- ninguém lábia delle. E daly efcreueo huma carta
aos capitães , pedindolhe fcguro da vida em nome del-
F.arte I. L Rey
?ji Primeyra Parte da Chronica
Rey de Portugal , e que iria tratar com elles couías de
inuyta importância , de que elles ficarão aíTaz contentes ,
vendo que o tinhao táo perto, c logo lhe mandarão o
feguro na íua inefma carta , e outro de fora aíTmado e
retiricado por ambos ; porem quando lhe mandarão eíle
legura não tinhao ainda noticia do que paflara na ilha
de (^aeixome , nem que viera elie aly fugido, e neíle
melmo dia teue o capitão huma carta do Rais Xemefitn
em que lhe daua conta do que era feito , e que o Xara-
fo era fugido , que mandaííe ter efpias na cidade , porque
lhe dizião que para Ia fe auia de pafTar : com eíle recado
ficarão os capitães muyto emfadados e arrependidos do
leguro , que tinlião dado, porem como ja não tinha remé-
dio o capitão fez tantas diligerjcias , até que veyo a íaber
a caía em que eílaua o Xarafo , e que eípcraua por hu-
ma embarcação para fe aufentar ; os capitães então de*
triminarão que íe deíTe na cafa com gente , c achando-o
fe fingiíTe huma briga , cm que fe lhe deíTe a morte , para
que defta maneyra ficaíTem deíobrigados do feguro que
lhe tinhao dado. Com eíla detriminação fe foy o capi-
tão acompanhado dos que parcceo neceffario , e dando
na caía onde elle eílaua o trouxe preío , e deípois de o
ter em feu puder mudou o coníeiho e o não quis matar,
não fem íofpeita de fazer com elle íeu proueito , e tra-
-zendo-o ao íeu apoíento o meteo em huma cafa carre-
gado de ferros, com que lhe pareceo que o tinha feguro,
porque elle tinha a chaue delia , que de ninguém a íia-
ua , c ninguém communicaua nem fallaua com elle ; po-
rem o mouro , como era íagaz e fabia bem como íe auia
de gouernar , debaixo deíle apertado encerramento teue
iTaneyra para cfcrcucr cartas a ilha de Queixome, em que
diíTe que eílaua viuo dentro na fortaleza , donde auia de
ter poder para feliurar,eir dar a morte ao trédro de
Rais Xemeíim, e a todos íeus parciaes e amigos , porem
os mouros , como íouberão que eílaua preío na fortale-
za, fe ouuerão por feguros dellc, e fízerão pouco caio dos
icus ameaços. Os capitães eícreuerao ao Rais Xemeíim
car-
dei Rcy Dom João o III. 83
cartas em que lhe dauío íigradecinicntos pollo que fize-
ra , e com raiiyras palauras lho engrandeciao , e lhe pe-
dião que vieííe logo a Ormuz para Jhe darem o premio
que poriílo merecia. O mouro í"'abalou logo, e entrou em
Ormuz com Teu primo e toda a íua gente comílgo, a quem
os capitães fizerão muytas honras , e o meterão em. polle
do goazilado do reyno, e elle deípois de lhe dar as gra-
ças por tudo fe queixou algum tanto co capitão , por-
que prendera o Xarafo e o não m.atara , que não deixa-
lia de fer afronta para os Portuguefes terem hum tre-
dro dentro na íua fortaleza quer viuo quer morto , o
qual daly dond'eílaua eícreuera a Queixome cartas de
grandes ameaços, afirmando que ?.uia de fair d'aquella
prisão, e fauia de vingar de todos léus inimigos , que lhe
lembraua que fenão deíle a m.orte a'quelle rredro , que
tanto mal tinha feito aos Portugucfes , fe punha a rilco
de dar muyto que faiar ha gente, e fe foípeitar delle, que
o fazia por algum grande interefíe que dahy efperaua ,
e por iíío olhaíle bem o que cumpria a fua honra , e ao
íeruiço dei Rey de Portugal. O capitão lhe reípondeo, que
não deixaua de entender aquillo de que o auifaua , mas
que por certo negocio que era paílado , que elle deípois
viria a laber , não era poíliuel daríe por então a morte ao
Xarafo , que o gouernador viria muyto cedo e faria o
que foífe juftiça , que na prisão foubelTe certo que efla-
ua a muyto bom recado , e que pois tudo eftaua feguro
IhQ pedia muyto , que fizeíTe com el Rey que fc quiíeíle
vir para a fua cidade d'Ormuz , que íempre leria íua em
quanto os portugueíes tiuelTem vida. O nouo goazil lhes
prometeo que tomaria iílo a feu cargo , e faria tudo o
poíTiuel , mas que era neceilario fazerfe algum concerto
de paz e amizade , para que el Rey com todos os íeus
pudeíTem vir feguramcnte , o qual os capitães lhe con-
cederão logo na forma que el!e e feus companheiros lho
pedirão , e foy que el Rey com todos os nobres e todo
o pouo íe podia vir íeguramente para a cidade , ond'eíl'a-
ria com todo o poder , mando , e autoridade real , que
L 2 íem-
84 Pfimeyra Parte da Chronica
fcmpre os Reis nella tíuerão , até a vinda do goiíernador,
que aíientaria com elle a paz com as condições que lhe
pareceíle , as quais íenao foííem a conteniamento dei
Rey e dos íeus , íe poderião tornar liiiremente para on-
de'ílauáo , e diílo lhe paílarão os capitães íeus efcritos
confirmados e retifícados com juramentos , e aíTmados
por elles e por todos os fidalgos que eflauão na forta-
leza , de que os mouros ficarão íatisFelros , e paíTandof-
le logo a Queixome derão conta a el Pvey ea íua mãy
(que em tudo Falaua por elle) do que paíTaua , e lhe
moílrarão o feguro que leuauão, de que todos ficarão con-
tentes , e também o ficou o pouo de ver o Rais Xemefim.
CO cargo de goazií , porque de todos era bem quiflo :
el Rey determinando paílarfe ha cidade finalou o dia em
que o auia de fazer , o que íabido na fortaleza dom Gar-
cia íe paíTou eíTe dia ha ilha com a galé e com o bargan-
tim concertados com toldos e bandeyras , o milhor que
então foy pofilvel , para trazer el Rey comfigo , porem
elle não quis vir fenão nas íuas embarcações, que ja rinha
prefies , e dom Garcia com as íuas o veyo acompanhan-
do até chegar ha cidade, fazendolhe fempre pollo caminho
fefta e falua cora a artilharia , o que também fez a forta-
leza chegando elle ao porto , onde foy recebido de to-
dos os mouros com muytas feftas e contentamentos , e
querendo deíembarcar o capitão com todos os fidalgos o
forão eíperar ha praya , e o receberão com a deuida cor-
tefia e acatamento , e acompanharão até fua cafa , onde íe
difpidirão delle com palauras de muyta amizade , paz , e
íegu rança , e íe tornarão para a fortaleza de que el Rey e
todos os íeus ficarão muyto contentes e fatisfcitos, ea
cidade daly por diante efteue pacifica, e com muyta abun-
dância de todas as coufas. Dom Garcia vendo que não
auia aly mais que fazer , e que as couías daquella for-
taleza eílauão feitas conforme a ordem que dom Luis
deixara, fendo então ja no mes deAgoílo do anno de
1522 , detriminou irfe para a índia , porque afsy lho dei-
xara dom Luis no íeu regimento , c o mefiiio detrimi-
nou
delRey Dom João o III. 85*
nou dom Gonçalo feu irmão , e partlndoíTe ambos com
bom tempo forao tomar o porto de Mazcate para faze-
rem agoada, onde eílando furtos lhe deu huma noite Jium
temporal tão forte e huma tão braua tempeílade , que a
náo de dom Garcia trincou duas amarras , e íem fe poder
valer foy dar íobre hum penedo onde fe fez em pedaços,
e morreo muita gente , e íe perdeo muyta e muyto rica
fazenda aísy de dom Garcia com.o de outros homens ri-
cos que nella vinhao : eíles vendo que a náo trincara as
amarras , e fua perdição diante dos olhos , íe deitarão a
huma* efcotilha , que os marinheiros com muyta gente
Jançarão ao mar, porem nem ilfo lhes aproueitou, porque
aly morreriío todos e dom Garcia com elles. A fúria de-
íla tormenta defpois de hum grande efpaço começou a
amaníar , e quando foy menham era bonança de todo ,
então fe virão os pedaços da náo que ficarão fobre os
penedos , onde também ficarão alguns horiíens que fe lal-
uarão. O galeão de dom Gonçalo como era mais rafteyro
não tomou tanta força de vento , e largando as amarras
compridas atadas humas em outras íe pôde íuílentar , eile
então , porque o tempo lhe daua ja lugar , fe foy no feu
batel ver o que era feito da náo , e vendoa feita em pe-
daços , entendendo o que era, e que aly não auia que fa-
zer , com muytas lagrimas polia morte de feu irmão ç
dos outros , que aly íe perderão, íe tornou ao feu galeão,
donde mandou o efcriuao a terra a dizer ao Xeque , que
mandaíTe recolher todo o fato que íaira da náo, e o fi-
zcííe pôr a bom recado , o que o Xeque logo fez com
inuyta diligencia e íe faluarao ainda muytas coufas de
preço , & dom Gonçalo feguio fua viagem para a índia.
Deípois diífo fucedco matar hum Português em deíafío
ao mouro primo de Rais xemefim , fobre o que por íeu
mandado forão mortos em huma briga dous dos nofíos.
O que o capitão por então diífimulou por não quebrar
a paz , que eílaua feita ato a vinda do gouernador,.
CA-
86 Primeyra Parte da Chronica
CAPITULO XXV.
El Rey dom João mjp) fenhor muda o eflillo de receber o
embaixador do Émperador em differente modo de que
'vfaua el Rey dom Manoel feu pay , e a rezao porque,
EL Rey Dom Manoel noffo fenhor , que fanta gloria
aja , teue por coftume aos embaixadores, que em íeu
tempo lhe vierao do Émperador , dei Rey dom Fernan-
do o católico feu fogro , e dei Rey de França , quando
entrauâo polia porta da cafa , onde os efperaua, leuântar-
íe da cadeyra em que eftaua aííentado , e em chegando
a elle pôr a mão no barrete e bolillo hum pouco da ca-
beça , e aísy em pec com a mão poíla na cadeyra lhe bei-
jauão elles a mão , e lhes tomaua as cartas de crença ,
e os ouuia até os defpedir , e íe logo querião tratar com
elle algum negocio íe paííaua com elles para outra cafa ,
onde aíTentados em efcabellos com alcatifas em cima os
ouuia. Deíle mefmo termo vfou el Rey dom João noíTo
fenhor feu filho com Moníeur de la Chaulx, que foy o
primeyro embaixador que a elle mandou o Émperador
Carlos quinto do nome , Rey de Caílella íeu primo , e
veyo em tempo que fua Alteza eftaua apofentado em San-
tos , donde o mandou buícar honradamente , e o efperou
na camará grande que eílá alem da fala. Porem deípois
que fua Alteia fendo ja leuantado por Rey mandou a
Caftella por feu embaixador Luís da filueyra a vifitar o
Émperador , e darlhe os parabéns de fua vinda de Frau-
des a Hefpanha , e foube que o Émperador o recebera
aííentado na cadeyra até chegar a elle, e lhe querer dar
a c^rta de crença , e começar de lhe falar , e que então fe
leuantara , e o ouuira em pé , vindo defpois a fua alteza
o Doutor Cabreyro embaixador do Émperador , que elle
mandara em companhia do conde de Cabra , e do Biípo
de Cordoua para leuarem para Caílella a Rainha dona
Leanor fua irmam , molher que fora de el Rey dom Ma-
noel que íanta gloria aja ( porem o conde e o Biípo não
en-
dei Rey Dom João o III. 87
entrarão então nefte reyno , e ficarão em Badajoz ) quan-
do chegou a elle o doutor Cabreyro o rccebeo na meíma
forma , que o Emperador recebera a Luis da filueyra , o
qual doutor chegou a Lisboa a 22 dias do mes de No-
uembro do anno de 1522.
CAPITULO XXVL
O Rey da ilha de Ternate em Maluco manda hum emhai^
xador a Garcia de fá fobre jazer huma fortaleza na
jua terra , a repojla que tem , e a ocaficío donde ijio nace,
DEípois daquella rota que os noíTos tiuerao em Bin-
tão o anno de 1521, fendo capitão de Malaca Jorfe
de Albuquerque, António de Brito , que por prouiíão
dei Rey dom Alanoel íucedera a Joríe de brito íeu ir-
mão ( que morrera íobre a cidade de Dachem no cargo
de ir fazer huma fortaleza em Maluco) faindo muvto fe-
rido do fuceíTo de Bintão em que também fe achou pre-
fente com Joríe dalbuquerque , íe recolheo ha fua arma-
mada que era de féis vellas , a qual proueo de alguns
capitães e officiaes nouos por falta dos que morrerão
naquella peleja, e daly fez íua viagem para a ilha da Jaoa,
onde efperou a monção para ira Maluco. Mas para mi-
Ihor entendimento do que fe fegue me he neceílario tor-
nar hum pouco a trás , e tratar de algumas coufas, que fu-
cederão no tem.po dei Rey dom Manoel , que também
deuem eílar efcritas na fua crónica. Garcia de íá íendo
capitão de Malaca arm.ou hum junco, em que meteo vin-
te e cinco Portuguefes com muitas mercadorias , e por
feitor hum Franeiíco ferrão homem de muyta conta , e
os mandou que foíTem a Banda , os quais com proípcra
viagem chegarão ao porto , onde pacificamente fizerão
tão bom emprego , que eíperarão tornando a Malaca fi-
car todos ricos, porem no caminho Jhes deu huma tão
rija tempeílade , que o junco íe perdeo , e todos os Portu-
gueíe fe não ialuarão mais que oito com Franciico fer-
rão
88 Primeyra Parte da Chronica
ráo no batel do junco , os quais co tempo forao dar cm-
Amboino numa terra chamada Rucutello onde forao
muyto bem recebidos , e cora inuytos gaíalhados , por-
que a gente daquella terra trazia guerra com feus vizi-
nhos , e como íabiáo os grandes feitos que os noíTos
continuamente faziao em Malaca , elperauão de í'e apro-
ueitar delles nefta íua neceílidade , e foi lhes ifto de tan-
to proueito , que fabendo feus inimigos que os tinhão
comíígo logo fizerão concertos de paz e amizade com
elles. Chegando as nouas diílo ao Rey de Ternate fe me-
teo em dous barcos, e foi em buíca dos noíTos , e com
muitas coufas que lhe deu , e promeíías que lhe fez , os
leuou comfigo para o ajudarem contra o Rey de Tido-
re com que trazia guerra , porem os noílos defejofos de
efcufar os trabalhos e perigos que aly fe lhe oíferecião ,
confultando antre fy o modo que para iíTo teriao , íe re-
foluerão em fe meterem por terceiros antre eíles dous
Reys , e trabalharem pollos meter em paz , e fucedeo-
Ihes também efte coníelho , que os dous Reis por feu
meyo ficarão concertados e amigos , caiando o Rey de
Ternate com huma filha do de Tidore , com que tudo
ficou pacifico , e os noífos tao eílimados delles e com
tanta autoridade na terra, que todos nella lhe obedeciao.
No meímo anno que ifto paíTou , que foy o de 15 iH, che*
gou a Maluco dom Triftâo de menefes com três náos
para carregar de crauo , que erao de hum contrato que
trouxera por el Rey o anno dantes de i^iy , e furgio na
ilha de Ternate onde os noíTos eílauao, aquém o Rey
fez muyto bom recebimento com muytas honras : elle
vendo que para carregar as fuás náos auia mifter muy^
ta cantidade de crauo detriminou , conforme ha infor-
mação que os noíTos lhe derão da terra , de o fazer em
ambas as ilhas de Ternate e de Tidore , e para iíTo man-
dou preíentes a ambos os Reys, que ambos aceytarão com
muyto gofto , e andauão a competência aquém lhe da-
ria mais crauo , com que lhe derão muyto bom auia-
mento , e a fua náo , que fa^ia muyta agoa, foy ali muyto
bem
dei Rey Dom João o III. 89
bem concertada , e repairada de rodo o neceíTario , e to»
das as três náos forao breueiriente carregadas , dando
hum pano azul de Cambaya , que valia hum cruzado, por
hum bar de crauo , que tinha quatro quintais de peio. O
Rey de Ternate cubicando eíle contrato para Cy fá pollo
proueito que delle efperaua , e porque entendia que ten-
"doo cos noíTos teria íempre íeu fauor e ajuda contra íeus
inimigos , communicou efte íeu penfamento com Fran-
cifco íerrão de quem íe fiaua inuyto , e lhe perguntou o
modo que teria para iflo vir a eííeito , e por íeu coníe-
Iho mandou fazer preftes hum embaixador com hum
bom preíente e cartas para Garcia de fá , em que \hz
pedia muyto que naqueila fua ilha de Ternate manduíTe
fazer huma fortaleza , porque elle queria dar abediencia
a el Rey de Portugal , e fazeríe daly por diante íeu va''-
íallo com todos os que delle decendefiem , e que para
eíla fortaleza não auia miíler mais que mandar capitão
e gente que a pufeííe com ordem , que elle á íua cuíla e
cos íeus a queria fazer, lem lhe a elle cuftar nada , e que
daquy não queria outro intereíTe fenao ter fortaleza dcl
Rey de Portugal em fua terra , porque com ellàeípera-
ua ter força e poder contra feus inimigos , e honra fo-
bre todos os Reys daquellas partes. E em companhia
deíle íeu embaixador mandou também o mefmo Fran-
cifco íerrao com três companheiros feus, porque rodos
os mais erão ja mortos , aos quais fez muytas m.erces ,
e ao Francifco ferrão particularmente encomendou muy-
to eíle negocio, e o feu embaixador que para iílo man-
daua. E tanto que dom Triílao eíleue de todo preíl-s
(aquém também el P.ey e nos capitães das ourras náos
fez muytas mercês , porque também delles recebera pre-
fentes ) o Franciíco ierráo e o embaixador íe embarcarão
com elle, c chegarão todos em faluo a Malaca, onde Gar-
cia de íá vendo o oííerecimento que o embaixador dei
Rey de Ternate lhe fazia em feu nome, lhe pareceo ne-
gocio de muita fuílancia , e que fe deuia de lançar mão
por elle, e com a particular informação que tomou de
Parte I, M "" Fran-
()0 Prinieym Parte da Chrouica
Franciíco ferrão , c dos outros Portuguefes , c também
de dom Triílao , entendeo que feria coufa de muyto
feruiço dei Rey rnandaríe fazer aquella fortaleza, e co-
meteo a dom Triílao que (ornaííe a fazelia , e foíTe capi-
tão delia, do que elle íe efcufou com juítas rezóes , e
juntamente lhe diíTe que fazer fortaleza noua íem efpe-
cial mandado dei Rey era matéria de muyta confidera-
ção , principalmente pois íe podiao aproueitar de Ma-
luco ícm o gúlo de ter lá fortaleza , que era muyto
grande , com as quais rezoes Garcia de íá tornou a traz
da detriminaçaô em que ja eíVaua , mas porque el Rey
de Ternate não íicaíTe íem repoíla , e por iflb deícon-
iiaíle de íe ilie conceder a mizade e comunicação cos
Portugueíes que pedia , mandou fazer preíles hum na-
uio , e iium junco que carregou de mercadorias da fei-
toria , e mandou lá dom Garcia anriquez fidalgo hon-
rado íeu parente , por quem lhe mandou cartas era que
lhe daua os agardccimentos do oferecimento que lhe fi-
zera , e aceitaua delle a paz e amizade que com noíco
queria , e de lua parte a coníirmaua e reteficaua , porem
que a fortaleza nao podia por então mandar fazer íem
licença dei Rey , ou do gouernador da índia , que elle
lhe mandaua logo dar conta diífo , e'tinha por fem du-
uida que mandaria fazer a fortaleza , e que tendo elle
recado elle lhe daria todo o auiamcnto com tanta bre-
uidade que elle íicaíTe contente, e com illo lhe mandou
lambem hum preíente de muyto preço, e era companhia
de dom Garcia foy o embaixador dei Pvey , contente do
que recebera era Malaca. Dom Garcia chegou a lalua-
inenroa 'l'ernatc , onde foy recebido dei Rey cora muy-
tas honras, e muyto contentamento íeu , polia boa re-
poíla que lhe leuaua , e porque ticou com grande efpe-
rança de ter fortaleza noíTa em fua terra , nao quis acei-
tar o trato dos Caílelhanos , que eíle anno chegarão a
Maluco, dos quais dom (larcia recojheo a íy todos
quantos eiíauão eípalhàdos por Tidore , e por outras par-
tes com feguro que lhes deu, que feriao até trinta , e
defpe-
dcl Rev Dom João o líí. f;r
defpedido dei Rcy de Ternate , que ficaua com muiro
aluoroço para a fortaleza que fe auia de fazer na íua meí-
ma ilha , e aíTy o mandaua dizer a Garcia de (á , fez íua
viagem para Malaca , onde chegou a faluamento , Ie«
uando comíigo os Caífelhanos , de que fe fez o que fe
conta largamente na Chronica dei Rey dom Manoel , e
onde achou ja Joríc dalbiiquerque por capitão dwi forta-
leza.
CAPITULO XXVIÍ.
António de Brito chega a Maluco , aíTenta pa^ com a Ra^
inha de Ternate ^ começa afazer fortalez-a , e algumas
coujas particulare e que lhe fucedeuu
ANtonio de brito , que , como atraz diíTe , dcfpois
da rota que os noflos tiuerao em Bintiio íe reco-
lhera com fua armada na ilha da Jaoa a efperar a mou-
ção , em que pudeííe nauegar para jMaiuco , em chegando
fe fez ha vella e com profpcro tempo chegou a íaluamcnto
a Maluco em Mayo do anno de 15" 2,2, e le deluiou da ilha
de Tidore , e foy demandar a de Ternate, porque ahy le-
uaua detriminado de fazer a fortaleza, onde achou que
era morto 0 Rey noíTo amigo , de quem auia fama que
o matara elRey de Tidore feu fogro com peçonha e^n
hum banquete, por máos coníeihos que os Caílslhanos
lhe tinhâo dado contra elie , pollosnão querer confen-
tir em íua terra. E porque do Rey morto ficara hum íi-
Iho de pouca idade j a Rainha lua may gouernaua o
Reyno por elle, a qual tanto que António de brito fur-
gio no porto o mandou logo vifitar, e darlhe os para-
béns da vinda, que ella recebera muyto goílo de o ver em
fua terra , onde fe lhe faria tao bom tratamento como
elle veria , porque íeu marido quando falecera lhe dey-
xara muyto encom.endado , que vindo Portuguefes ha íua
terra lhe fizeíTe muytas honras , e afíentaíle com eiies
paz e amizade , e com elles fizeíTe íeu trato , e lhe dci-
xaíle aly fazer fortaleza fe cUes quifeííem , e ella aíFy
M 2 lho
5)2 Priíneyra Parle da Chronica
prometera, e eftaua prcTEcs para o cumprir, António de
brito reccbeo eíle recado com muyro goílo , e fez inuy-
tas honras a quem lho trouxe, por quem mandou á Rai-
nha os deuidos agardecimentos , e pidir licença para a ir
ver, que lhe ella concedeo fiicil mente , e ao outro dia
fe foy a terra acompanhado dos principais da íua arma-
da , to.ios bem veílidos, e com fcus moços que lhe le-
iiauâo lanças , e adargas , e ao deíembarcar o vierao re-
ceber os mandaris , que íao os principais da terra , acom-
panhados de muyta gente , que com muytas honras e
jefuas o ieuarão ha Rainha , que eílaua aílentada de den-
tro da porra de huma camará , e na porta armado hum
pano de maneira , que lhe lúo aparecia mais que o roílo ,
e daly íem fe bulir recebo António de brito com muyro
gafalhado e boas palauras , em que raoílraua ter goílo
da fua vinda , ao que António de brito fazendo) he as
deuidas corteíias tornou por repoíla , que em eílremo
eílaua ícntido de naò achar viuo elRey íeu marido , para
lhe moíbrar por obras quão conhecido eftaua da obri-
gação em que lhe erao os Portuguefes , mas que a cila ,
por quem era , e por ficar em feu lugar , faria todos os
íeruiços que fe deuiao a elle e a ella , e naquella fua ter-
ra faria huma fortaleza em nome dei Rey de Portugal ,
onde poria feitoria , e aílentaria hum trato , que para ella
e para toda a íua terra foííe de muyro proueito , de que
a Raii-ha fe moílrou muyto contente , e lhe diíTe que
naquella terra íízeííe tudo como fe fora própria dei Rey
de Portugal, e que para fazer a fortaleza lhe daria to-
da ajuda , que lli-j-folle neceíTaria : António de brito lhe
íigirdeceo ifto quanto era razão, e lhe oíFereceo hum pre- .
fentc que lhe leuaua de algumas patolas de íeda , que
são panos que fe fazem em Cambaya , e em Maluco íc
eílimão muyro, e outros panos ricos d'ouíras fortes , e
vaíilhas d'agoa roíada , e corae? , e hum efpelho muyto
íerinoío , de que a Prainha moíirou quetinlia particular
goílo ,e com iílo delpedido delia , que também lhe deu
graças pollo p relente , fe tornou ha praya acompanha-
do
./
dei Rey Dom João o IIL ^3
do dos meímos mandaris , que por íua via Uie fizerão
muytos comprimentos , e fe lhe oíícrecerão para o fer-
uirem em tudo o que pudeíTem , e aly aíTentou lego com
elles o lugar que lhe pareceo miUior e mais acomodado
para fazer a fortaleza , que era apartado pouco efpaço
da pouoaçâo , para o que mandou logo armar huma gran-
de tenda feita de vellas íobre páos , que os mandaris lhe
mandarão trazer, e a cercou d'outros groíTos páos e taboas
que lhe elles também, derão , com que fez huma eílancia
em que logo fe deíembarcou fato, armas, e artilharia
encarretada que trouxera do reyno , e com ifco lhe or-
denou huma rranqueyra aliáz forre , e em que bem íe
podia defender de qualquer encontro. O que fendo fa-
bido polia Rainha , parecendclhe que iflo era fomente
o que António de brito queria fazer , e que aly fe aíTen-
taua fem querer fazer mais obra , lhe mandou dizer que
eícuíalTe aquelle trabalho, porque ella queria que em íua
terra íe fizeíTe fortaleza como a de Malaca , ao que lhe
elle refpondeo que a não podia fazer fem ella e os rege-
dores do reyno em nome dei Rey feu filho lhe darem
hum efcrito aílinado por ella e por elles , em como lhe
dauão licença para fazer aly a fortaleza , e d'iíTo erão lo-
dos contentes, o qual lhe ella logo mandou na forma
que o elle pidio. Apoz iílo fez António de brito huns
apontamentos , em que pôs as condições com que auia de
fazer a fortaleza, que erão, que os preços das roupas e do
crauo íerião os que eflauao em coílume, íem auer nellcs al-
teração , e que o crauo fenao daria a ninhuns outros mer-
cadores , e que íe na terra não ouueíle tanta cantidade
de crauo, quanta lhe foííe neceíTaria , os feitores dei Rey
de Portugal o poderiao mandar comprar liuremcnte por
onde o achaílem íem ninguém lhe ir a mao. Os quais
apontamentos António de brito deu a Franciíco ferrão
( que achou em Ternate , porque fenao tornara para Ma-
laca , quando daly fe tornou dom Garcia anriquez , como
atraz fica dito) que por íeu mandado os leuou ha Ra-
inha p a qual por coníelho de todos os feus lhe conccdeo
quaa-
p4 Primeyra Parte da Chroiiica
quanto nelles fe Ike pidia, de que logo fe paíTarao aflinados
de parte a parte na forma de que todos ficarão conten-
tes. António de brito , vendo fao bom principio no que
trazia tão encomendado, nao quis perder tempo nem oca-
fiio , mas mandou logo acarretar muyta pedra e fazçr
muyta cal , que em toda a índia fe faz muyto boa de caí-
cas de marifco , em que trabalhaua muyra gente da ter*
ra , que fe pagaua com moeda muyto baixa e de muyto
pouco preço , que corre na meíma terra , feita de chum-
bo redonda do tamanho de hum toftão , forada pollo
meyo porque anda iníiada , de que alyauia grande can-
tidade. Eíendo junto tanto deites materiais que fe podia
começar de por mão ha obra , o capitão mandou logo
abrir os alicerces , e aos 24 dias do mes de Junho do
anno de i^iz , em que a igreja celebra a feíla do glorio-
fo S. João Bautiíta , fe diíTe huma miíTa com a mayor ío-
lenidade que aly foy poíliuel , fefl^ejada com a artilharia
de todos os nauios , a qual acabada o capitão António de
brito por fua mão ao fom das trombetas , que nao ceíTa-
uao de tocar , aíTentou a primeyra pedra , e a poz elle
fizerão o mefmo os outros capitães , e toda a principal
gente que vinha na armada , com geral gofto e alegria de
todos , e apoz iíío fe foy continuando a obra na forma
que para o lugar em que fe fazia pareceo mais conueni-
ente e neceíTaria, e ainda que nella trabalhauão tambetn
os Portugueíes , todauia por vir a entrar a doença nelles ,
e lhe virem a faltar os mantimentos, ie foy fazendo com
muyto vagar e muyto trabalho. Ncíle tempo, em que fe hia
fazendo efta obra , o Rey de Tidore mandou hum embai-
xador ao capitão António de brito , em que lh'offerecia
fua amizade, c lhe dizia que também em fua terra lhe
dera lugar e ajuda para fazer fortaleza , e lhe fizera mais
honras do que lhe faziao em Ternate , que bem entendia
que de não ir elle a íua terra fora caula recolher elle
nella os Caftelhanos, mas que lh'affirmaua, que íe foubera
as differenças que auia antr'elles , e que niílo lhe daua
deígofto , o não fizera por ninhum cafo , que para proua
difto
dei Rey Dom João o líí. cj^
diílo eílaua preftes para fazer quanto lhe iric.ndane ; ao
cjue António de brito reípondeo , que por então lhe não
podia dar repoíla certa, porque eílaua com a ocupação
de fazer aquella fortaleza , que tanto que a acabafle tra-
taria com eile o que foíTe neceUario. Deíla rcpofta , que
fedeu a el Rey de Tidore , ficou a Rainlia íua íiiha mal
contente , porque quifera que ouuera nella mais nioílras
d'amizade , e deu conta diilo a hum íeu official , que he
como cá vedor da fazenda , o qual em pratica o deíco-
brio a António de brito, ao que elle reípondeo que ain-
da que el Rey de l^idore tinha feito hum grande erro ,
todatiia por fer pay da Rainha não fomente não auia de
lançar mão por iíTo , mas lhe auia de fazer todos os ferui-
ços que pudeííe ; porem nem iílo bailou para a Rainha
ficar íatisfeita , antes dahy por diante começou de íe
moílrar carregada para os noííos , o que vindo a enten-
der o capitão , para fegurar fuás couías , fez dar grande
preíla ha obra , inda que ja lhe hiao faltando os traba-
lhadores , e os materiais , tendo para fy que eíla mu-
dança da B^ainha não nacia doi-itra couía , íenão do deí-
goílo que tomara polia repoíla que íe dera a íeu pay.
E praticandp iílo com Franciíco íerrao lhe diíTe, que fol-
garia e lhe parecia muyto neceíTario ter naquella terra
alguma peíloa poderoía de que fe pudeííe valer , íe a
Rainha por ventura quifeííe tazer de íy algum mouimen-
to , ao que Francifco ferrão lhe diíTe, que aly andaua hum
filho baílardo do Rey morto, chamado Cachií daroes ho-
mem esforçado e de muyto preço, de que na terra fe fazia
pouco caio por andar desfauorecido da Rainha , que í'eíle
tjucíTe o fiiuor dos Portugueíes de maneyra que tornaiTe
á graça da Rainha , elle poria as couías do reyno cm
termos que ella não pudeíle alterar nada nelle. O capitão
ouue logo fala deíle, e tomou amizade com elle , e pollo
■achar homem de verdade e de relpeito o começou a fa-
uorecer em tudo o que podia , e acabou tanto com a Ra-
inha que o fez regedor do reyno , com que em pouco
tempo veyo a ter tanto poder e autoridade nellc , que to-
dos
()6 Primeyra Parte da Chronica
dos o temião e reiíerenciauao , mas nem com íílo Pef-
qiieceo da obrigrçao em que eftaua ao capitão , antes lhe
maudou dar todo o auiamento neceííario para fazer a
fortaleza , e era muyto continuo na fua conuerfação , de
que a Rainha e todos os feus vierão a tomar íoípeita, que
o capitão o queria fazer Rey da terra , por onde veyo a
cair em tanto ódio de todos os grandes, que lhe foy ne-
ceííario para fegurar íua peíToa andar acompanhado de
muyta gente d'armas , o que podia bem fazer porque ti-
nha muytos de fua parte. E foy ifto também cauía que
a Rainha vieíTe a ter má vontade aos noílos , e íecreta-
mente mandaua dar conta ao Rey de Tidore feu pay de
tudo o que ca paíTaua , o qual tomou muyto mal fazer
António de brito a Cachil daroes gouernador do reyno ,
porque como íabia que fenão podia fazer nem ordenar
couía que elle não foubeíTe , também entendia que auia
fempre d'auiíar os noííos , e defcubrirlhe tudo o que
paílaííe , no que felle não enganaua , porque eíla amiza-
de de Cachil daroes foy deípois muyto proueitoía para os
noíTos em muytas couías que fucederão , como ao diante
íe dirá.
CAPITULO XXVIIL
O gouernador fe pajfa a Goa , ahy dejpacha Marfim Afonfo
de melo Coutinho para a China , e dom André anrique^
para Pacem , e o que a dom André fuce de na 'viagem,
O Gouernador defpois que em Cochim defpedio feu Ir-
mão dom Luis para ir aChaul , logo com toda a preíTa
deu auiamento has coufas do reyno , e juntamente meteo na
capitania deCoulão a João de melo daíilua, e na deCochim
a dom Diogo delima , ena deCalecut a domjoão de lima,
que auia dias que andaua feruindo na índia , efperando que
acabaíTe nella feu tempo Manoel de lacerda : e deitando aly
ordenado tudo como cumpria íe foy para Goa , onde achou
algumas queixas do capitão Francifco pereyra peílana , a
queacudio mais remiílamente do que íecfperaua, com que
deu.
dei Rey Dom João o IIÍ. p7
deu ocaíiáo de íe lançarem íobre clle vario? juízos , atri-
buindo cada hum aquillo ao que ou lua paixão, cu o fcu en-
tendimento lhe iníinaua. Aquy a Goa chegou eniao I\Iar-
tim Afonfo de melo courinho , que vinha de Chaul e auia
de fazer viagem para a China , em que viera prouido por el
Rey , a quem o gouernador logo defpachou cos dous na-
uios de fua coníerua, de que erao capiraes Vaíco fernandes
Coutinho, e Pedro homem, e liie deu outro nauio para
Diogo de melo feu irmão , que também foy com e!le. Pro-
ueo também então o gouernador porcnpitão da fortaleza
de Pacem a dom André anriqucz das alcaçouas com que ti-
nha muyta amizade , eílando nella por capitão António de
iniranda dazcuedo, que a fizera, e não tinha inda acabados
os feus três annos , e lhe paílou prouifoés que fem embargo
dequaisquer embargos que pudeíTe auer fe lhe entregaíTe a
fortaleza em qualquer eílado que eítiueíTe , e lhe deu hum
nauio em que foíTe com fua gente, e Teus parentes, e huma
não da terra em que embarcou mantimentos, muniçoens , e
muytas roupas para a feitoria , e o encomendou a Marfim
Afonío de melo , pidindolhe que fizefle fua viagem por
Pacem , c de caminho o íízefle meter em poíle da capitania
pacificamente, para que não liueíTe alguma difíerença com
António de miranda. Os quais todos íe forão logo a Co-
chim , donde partirão juntos em Abril delfe anno de 1522 ,
porem dom André pos logo bandeyra na gauea aíTy como a
leuaua Martim Afonío , e não querendo nauegar pollo íeu
forol íe perdeo da fua companhia , e não faltou quem dif-
feílc , que o fizera de propoíito , e indo no golfão dalém
de Ceilão encontrou com huma rica nao, que atraueflaua
de Pegum para as ilhas de Maldiua , bem armada , e com
muyta gente , e fe pos com ella has bombardas de longe
não oufando de a abalroar, por fer o íeu nauio pequeno
e a nao grande e poderola , e deíla maneyra a foy íeguindo
dous dias e duas noites, tirandolhe íempre por cima a^
derrubarlhe asvellas, ematarlhe agente, íem a querer
meter no fundo por não perder a boa prefa que delia eí-
peraua , e ainda que lhe foy Íempre fazendo fmais , que
Paríe I, N - amai-
po Primeyra Parte da Chronica
ainnlnaiTe , os mouros o não quiferao fazer ntc que de Iiu-
ma bombardnda lhe derrubarão o maíto , mas ainda aíTy
eícolherao anres arrifcarfe a morrer , que ferem catiuos ,
e fe meterão logo todos em huma grande barca que a nao
trazia, c a veliíi e remo íe foríío fugindo com a mayor pref-
fa que puderao : dom André os deixou ir em filuo , e che-
gandoííe ha nao mandou o batel , e o parao da fua a bal-
dear a fazenda da nao dos mouros nas fuás embarcaçoens ,
porem os mouros deixarão feitos alguns furos no fundo da
lua nao debaixo de muytos fardos , em que os noíTos não
atentarão co grande aluoroço da boa prefa , e a nao entre-
tanto fe foy enchendo d'agoa com que fupitamente íe foy
ao fundo , em que morrerão mais de vinte homens , que
andaulo ocupados em baldear a prefa , fem poderem íer
íocorridos por alguma via , e fem terem tirado da nao
mais que quanto o batei pôde trazer de hum íó caminho :
dom André então continuando fua viagem liie não tardou
niuyto hum temporal tão rijo, que efteue em muyto riíco
de fe perder, e lhe foy forçado alijarão mar quanto leuaua ,
aíly do que tomara na nao como do que tinha o feu nauio ,
€ chegou a Pacem muyto deílroçado , onde achou Martim
Afonío de melo , que polia fua muita tardança eftaua ja pa-
ra íc partir : aly moftrou logo as prouiíoens , que trazia do
gouernador a António de miranda , que como era muyto
íeíudo e atentado não íe quir/mcter em diííerenças com
domAndrc, mas fazendo ícus protcílos para aprefentar
no reyno lhe. entregou a fortaleza , e fazendo apontamen-
tos para leuar comllgo de quanto lhe deixaua entregue
nella ena feitoria , e tirando eílromcnto da boa paz em
que fícaua aterra, fe embarcou nomefmo nauio em que
viera dom André , que aíTy viera por ordem do gouerna-
dor, e fe partio para Malaca em companhia de Alartim
Afonfo de melo , o qual em quanto aly eílcue com muyta
. preíteza carregou os ícus nauios de pimenta para a leuar ha
China , que he a mercadoria em que fe lá faz mais prouei-
to por fer rsrra muyto iria. Neíle reyno de Pacem ha muy-
ta cantidade de pimenta , que nace por todas as fuás terras ,
a
dei Rey Dom Jcao o ÍIL p^
a qual lie mais groffa que a do Mahuar , porem nao lie tão
quente , e tem hum cerio váozinho por dentro , e porque
Pacera eftá no rollo da ilha de Camatra da banda do nor-
te , que he paragem de todas as nauegaçocns, que fe fa-
zem das terras da índia para todas as outras partes, Jic
aquy a mayor efcala de toda aquelJa ilha.
CAPITULO XXIX.
Martim Ajonfo de melo chega a Malaca. Farte da hy para a.
China^ e o qu€ la Ihcjucede^ na 'volta entra em Facem^ peleja,
cos inimigos que ejlao j obre a fortaleza^ Fero Lourenço
de melo parte de Cochim jazer viagem para a China , e o
JuceJJo que tem.
MArtim Afbnfo de melo, que de Pacem partira para
Alalaca , chegou lá a laluamenro com toda a fua ar-
mada , e em íua companhia António de miranda dazeue-
do que fora capitão da fortaleza : aly achou Duarte coe!]io
que era chegado da China , e lhe deu nouas que eila eftaua
aleuantada , de que ficou alTaz triíte , porem Duarte coelho
quica com cubica de fazer leu proueito , lhe diífe que pois
tinha tão bons coatro nauios , e também concertados, nao
deixalTe de fazer fua viagem , que poderia fcr que vendoo
lá táo poderoío e com tanta e táo boa fazenda como
leuaua , quereriáo aíTentar paz com elle , e quando nao íe
paliaria a outras partes onde gaílaria as fuás mercadorias
com. que íicaíTe com menos perda. Martim Afonío deíejo-
/o de fazer a fua viagem fe partio logo bem apercebido de
tudo o neceffario , principalmente de bons pilotos , de
muyta poluora , e muniçoens , e afora os feus coatro
nauios armou também o junco de Duarte coelho, que leuou
em fua companhia , e chegando ha viita das ilhas da Chi-
na em Agoílo do mefmo anno de I5'22 com preías ricas que
fez de caminlio , ouue logo viíta da armada dos Chins,
que era de muytos e grandes juncos, com outras embarca-
ções pequenas de remo , e andaua aly de guerra eíperando
os nâUios que paflaííem. Martim Afonío como pretendia
N 2 fa-
loo Primeyra Parte da Chronica
fazer paz com elles trabalhou fempre quanto pode por ef-
cuíar a guerra , preíles com tudo íempre pêra a'pe!eja fe lhe
vieíTc a ier neceííaria, e defpois de fe andar metendo por al-
guns portos donde tentou em vão a paz por quantas vias
pôde , vendo a fua viagem de todo fem remédio por fer a
paz impoíiiuel , por confelho dos outros capitães íe fez ha
vella para Malaca com alguns homês mortos c feridos em
algumas brigas , que foy forçado terem os noííos bateis
com as embarcações pequenas dos inimigos. Os Chins
em vendo defamarrar os noíTos fe íizerao também ha vel-
la , e repartidos em duas partes os forão feguindo , pele-
jando com elles por ambas as bandas , onde ouue muytas
bombardadas de parte a parte , com que huma e outra re-
cebeo muyto dano , porem as frechas dos inimigos erão
em tanta cantidade , que cobriao os nollos nauios , e lhe
dauão muyto trabalho, eas embarcações pequenas dos ini-
migos íe chegauão aos noflos bateis para os tomarem , fo-
bre que ouue huma afpera e cruel briga. Delpois de durar
iílo algum eípaço os nauios de Diogo de melo e de Pe-
dro homem parece que, não podendo ir ter cos outros , co-
meçarão de ficar atrás, o que vendo os inimigos carregarão
fobr'elles tanta cantidade de juncos , que íem lhes valer a
dura refillencia , que fizerao , forao abalroados e entrados
e metidos todos ha efpada , e no nauio de Diogo de melo
í'acendeo o fogo , ou lho puferao , com que ardeo todo até
ie ir ao fundo , e inda iílo foy parte para fe íaluarem os
outros noífos nauios , porque forao tantos os do Chins
que acudirão ao roubo da pimenta do nauio de Pedro ho-
mem , que Martim Afonfo, e Vafco fernandez tiuerão
tempo dê fe alargarem muito da armada dos Chins, e po-
remfe em íaluo , e o mefmo acontecco a Duarte coelho
por ir ja muyto diante. Os trcs nauios fe forão na volta de
Malaca , porem nem iílo lhe fucedeo como determinauao ,
porque no caminho lhes deu hum contraíle de tempo tão
rijo , que forao tomar na ilha de Çamatra , e correndo ao
longo delia forão demandar o porto de Pacem, onde che-
gando Martim afonío achou, que eílaua de guerra cos
noí-
dei Rey Dom João o ííí. loi
noíTos , porque o Rey de Díicliem ficou tao oufaro , e ío-
berbo cos Portugueies que matara a Jorge de brito , que
detriminou hir queimar a noíTa fortaleza , que era de ma-
deyra ,• e também os mefiuos da terra eíiauão mal cos noí-
íos por agrauos , que recebiao delles , a que o capitão
dom André anriquez não acodia , por onde a elle íe pu-
nha a mayor culpa de tudo ; no qual tempo eíuiuao os
nolTos rauyto apertados e com grandiííimo trabalho , por-
que como o Rey de Dachem com muyta gente , que tinha
comfigo , trabalhaua quanto podia de pôr í^ogo ha fortaleza
com muytos arteíicios , que para ilTo trazia , eralhes ne-
ceíTaJ-io eílar em continua vigia lem repoufarem hum iÒ mo-
inento , nem ainda de noite, porque então fe ocupauao em
acender m.uytos lumes por fora da tranqueira , para verem
fe chegauão os mouros a lhe por fogo: a eíle continuo tra-
balho dos noiTos fe lhe ajuntou também o da fome que os
pôs em tanto aperto , que elliuerão em muyto rifco de fe
perderem, fe aly não chegara Martim Afonío , por-
que em elle chegando fe forao os mouros , e largarão
de todo a fortaleza , e os da terra fe tornarão a fazer ami-
gos cos noílos , porque ainda que Martim Afonío eíleue
lempre no mar fem defembarcar em terra , da ly ordenaua
c temperaua tudo de maneyra , que a aninguem fe fazia
agrauo, e daquy com fua licença fe foy Duarte coelho para
jVlalaca , onde deu nouas do máo foceíTo deíla viagem da
China, e Martim A fonfo fe deteue em Pacem até amon-
ção , em que fe tornou ha índia com tenção de fe ir para o
•reyno , porem chegando a Cochim falleceo de fua doença.
No tempo que Martim Afonfo partio de Cochim a hzer
eíla ília viagem , eílaua também ahy hum fidalgo chamado
J^ero Lourenço de melo , que viera do Reyno prcuido em
Jiuma viagem para a China , e porque então eílaua ja pre-
ftes para Je poder partir . mandaua o gouernador que faí-
fe cm companhia de Martim i\fonío , porem elle por não
ir de baixo da fua bandeyra , eílandoja Martim Afonfo fora
da barra eíperando que elle faiííe , peitou o arei de Co-
chim ^ que he o piloto da barra , que mete dentro os
na-
101 Primeyra Parte da Chronica
nauios 5 e os deita fora , o qual diíTe que a nao não podia
fair , porque na barra aula pouca agoa , e Martim Afonío
le foy íem eile. Pêro Lourenço ficou inuernando ahy em
Cocliim , e no Setembro feguinte fc partio , e fez fua via-
gem direito a Pacem cora tenção de tomar ahy fua carga ,
porem no caminho lhe deu hum temporal tão forte , que
denoite fe foy perder em huma ilha , que eílaua corenta le-
goas da coíla d'Arracrio , onde porque a nao era de todo
perdida concertarão o batel , que era grande , e o arma-
rão o milhor que puderão , e metendo nelle bifcouto ,
agoa , mantimento , e fuás armas ícforao demandar a ter-
ra , onde de hum rio lhe fahio huma alm2dia que da parte
do fenhor daquella terra lhes perguntou o que queriao , e
que , porque lhe parecião gente perdida no mar , lhe
mandaííe dizer , o que auião miíler, e para onde querião ir,
que os mandaria prouer de tudo o que quifeííem, e de
quem os encaminhaíTe : elles parecendolhe que podia aly
ter remédio fua neceílidade , fe chegarão perto da terra pa-
ra a parte onde o fenhor eílaua , e de largo lhe mandarão
dizer que querião ir para Peguum , ao que lhe reípondeo ,
que tudo o que ouueíTem miíler lhes daria por feu dinhei-
ro , e piloto que os leuaíTe lá fe o elles pagaílem , o que
elles aceitarão de boa vontade , e com eftas boas moílras
que vião naquella gente fe chegarão bem a terra antre hu-
mas pedras a falar co fenhor, que eftaua ha borda da agoa
com pouca companhia , o qual mandou logo vir o piloto
a quem Pêro lourenço, porque não tinha dinheyro, deu hu-
ma cadea douro, que o íenhor recolheo , e mandou trazer
aos noíTos agoa que lhe pidirão , e galinhas e pombos e
muitos ouos , moílrando queauia muyta compaixão del-
]es. Em quanto duraua eíla pratica acabou de vazar de to-
do a maré com que ficou feco o lugar por onde o batel en-
trara fem os noílos atentarem niílo , porem os inimigos
que não efperauão outra couía , e eílauão bem alerta , em
tendo o batel em feco logo fe ajuntarão muytos , e derão
íobre elle decima dos penedos , onde os noíTos não po-
diáo chegar com as landas , e com muyta cantidade de
pc-
dcl Rey Dom João o III. 103
pedras, que lhe tirarão, matarão alguns, e ferirão outros ,
e os tratarão de maneyra , que vendo que fc não podião
aproueitar das armas para fe defenderem lhes foy forqado
eiuregaríe antes aos inimigos, onde quica íuas vidas pode-
rião ter algum remédio, que ha morte certa que tinhão
diante dos olhos , fem terem meyo para morrer pelejan-
do. O fenhor da terra os leuou todos por íeus catiuos , e
trataua com elles que fe reígataíTem , mas como em muy-
tos dias vio , que illo não podia ter remédio , e que pollo
difcurío do te;npo forão morrendo alguns , enfadado dos
que fícauão , lhe mandou por fogo em huma cafa em que
eílauão , que era de palha , e os queimou a todos viuos ,
o que dahy a muyto tempo fe foube na índia por alguns
homens dos noílos , que forão ter aaquella terra. Tão ca-
ro cuftão lias vezes pontos de honra fem fundamento mi-
ílurados com cubica.
CAPITULO XXX.
O gouerrmdor manda hum capitão e feitor ha cofia de Chã'
ramandel , "mandalhe que tome informação da cajá do
Apojlolo São Tomé , daffe rezao do que fe acha delia.
NEfte mefmo'anno de 1 5*22 mandou o gouernador
hum criado feu chamado Alanoel de frias por capi-
tão e feitor ha coíla de Charamandel , onde andauão ou-
tros Fortuguefes tratantes , ao qual deu poder íobre to-
dos , e lhe deu para eíle effeito huma carauella e três fuítas
com poder de dar cartazes has nauegaçoens que lhe pare-
ceíTe; e leuou também regimento para comprar arroz,
manteigas , carnes fecas , e muytas obras de ferro para os
almazés , o que tudo nogoccou por muytos bons preços ,
porque naquelle tempo valiao naquella terra os manti-
mentos tão baratos , que íe dauão dez galinhas muyto
grandes por huma moeda da terra, a que chamao fanão,
que vai trinta reis , e hum veado grande viuo pollo rnefmo
preço, e huma cabra com dous cabritos e hum porco
por hum fanão j e quando era muyto caro por dous fa-
noens..
104 Pfimeyra Parte da Chronica
noens. Ha neíla cofta de Charamandel huma terra chama-
da Canhaineira em que ha tanta cantidade de veados , e
vacas brauas , que os negros tomao em redes , que das
pelles dos veados dauao duas e três por lium fanao , po-
rem ja agora vão \á os preços deílas coufas muyto mais
altos do que entáo erão. Encomendou também o gouer-
nador a eíle íeu criado Manoel de frias , que tomafle to-
da a informação , que foíTe poííiuel , da cafa do Apoílolo
S. Thomé , que fe dizia que eílaua naquella cofta , para
ver íe íe confprmaua com huns apontamentos , que lhe de-
ra das particularidades delia o gouernador Diogo lopez
de íiqueyra , quando fe partio para o reyno , e para ilTo lhe
deu os mefmos apontamentos por onde fe gouernaííe,
Manoel de frias dcfpois que teue dado expediente ao
que cumpria ao íeruiço dei Rey , começou de entender co
que lhe fora encomendado da cafa do Apoítolo S. Tho-
me , e íe foy ao derradeyro lugar daquella cofta chamado
Paleacate , onde perguntando miudamente por efta caía e
fazendo niíTo as diligencias neceílarias achou , que no an-
no de IS"!/ forao ter a eíle lugar dous Portugueíes, que
vieráo de Malaca em companhia de mercadores , que vi-
nháo em nãos da mefma terra, hum delles chamado Diogo
fernandes , e outro Baíliao fernandes , que aly íe agaía-
Ihauão com huns Arménios Chriftaos , eftes conuidarão
os Portugueíes para irem em romaria a huma cafa , que fi-
zera hum fanto , que eftaua daly cinco legoas ao longo da
cofta, onde forão todos , cacharão aíantacaía, ao pa-
recer muyto antiga , aíTentada de oriente a ponente como
as noíías igrejas , e tinha de vão da porta principal ate o
cruzeiro doze couados, e a capella mor cinco , e tinha duas
portas traueíías. Era a cafa de três naues com efteos de
pao muito bem laurados , madeirada por cima de groííos
paos laurados como de macenaria , tão juntos huns cos ou-
tros que fazião íobrado , em que não auia ninhum modo
de pregadura, era cfte madcyraraento guarnecido porcima
de huma argamaíTa tão dura, que parecia de pedra feita de
cal e área aflentada fobre tijollos , em que não auia greta
ou
dei Rey Dom João o IIÍ^ 105'
ou quebradura alguma , e em c^da Iiuma das portas da
banda de fora auia pia como para agoa benta. A copella
inda que era coadrada tinha o reito redondo feito d*abo-
bada , e íobre eila iium curuchco redondo da meíina ar-
gamaíía , que do chão até ornais ahodcHe auia trinta
couados , iaurado todo de muitos troços da melma ârga-
maíTa ao íeu modo , e por elles puftas algumas cruzes e
algum.as figuras de pduocns : no miis alto do curu-
cheo cíiaua huma cimalha qundrada , e em cima dcíla
outra redonda , que tinha no meyo hum buraco em qu-j
parece, que deuia de eítar grimpa ou Cruz ou outra
alguma coufa , que cairá co tempo : a capella tinha hum
altar qual conuinha ao íeu tamanho ; pegada com eíla
capella mor para a parte do Euangelho eibuahuma ca-
pellinha pequena íem altar com duas ordens degrades
de pao , humas para a capella , e outras para a naue
da igreja , cm que nao auia porta nem entrada alguma , na
qual capellinha fe diííe , que eílaua íepultado o íanto
Apoílolo ; da outra parte da epiílola da meíma capella
mór eílaua outra capellinha aberra por todas as partes , em
que íe dizia , que eílaua Tcpultado hum Rey diiquella ter-
ra , que fe fizera Chiiíláo polia doutrina do fanto Apoílo-
Jo. O corpo da igreja eílaua muyto velho egailadodo
tempo, que por algumas partes eílaua caido, porem os
eíleos , as portas, eo madeyramento , fegundo o que então
inda parecia , tudo era feito de hum fó pao : p^Kr^am^^rm^raias^
os portais erao feitos do mefmo pao , e por"
ellcs entalhadas e lauradas muytas cruzes da
feyçâo deíla , que aquy eilá pintada. Sobre
a porta principal eílaua huma groíía taboa
de madeira vermelha como braíil ou fandalo'
vermelho, pregada no meyo com hum fó
prego, era que eítíiuao entalhadas três cru-
2es polias cm compalfo , de que a do meyo era mais a!:
que as outras. Neila cafa eílaua hum gentio muyto velho^
queíeruia de a varrer , e acender huma alampada, que
eílaua dentro da grade da cape-IIinha do fanto ; eíle contou
alia
Farte, L
O
aos
io6 Primeyra Parte da Chronica
aos arménios , que feu pay e nuós todos forao gentios , e
que morrendo tiniyro velhos tlucrao lempre por cuílume
varrer aquella fanra caía , c acender aquella alampada , e
que a el!e porque íe tornara mouro , e porque cegara na-
quelle tempo , lhe nao quiferao coníentir que cntraíle na
íanta caía , e que encomendnndoíTe affy cego ao fanto lhe
tornjra a viíla , e entáo fe metera na ciía e eíbua nella
auia vinte annos , £izendo o que feus antepaílados faziao.
E contou mais que nos dias , que a gente daquella terra
cuíluma-a folennizar as feílis dos íeus Ídolos , os trazem
denoite acompanhados de muyta gente co muvra íoleni-
dade , e chegando ha viíla da porta da íanta caía abaixâo
os Ídolos três vezes até o chão em íinal de reuerencia , e
com a mefma folennidade os tornao a icnar a íuas caías ,
ç que illo era ali cuíium.e muyto antigo , que inda então íe
guardaua , e pidindo os noiTos ao mouro, que lhe qui-
ieíle mollrar particuiarmenteascoulas daquella caía , e dar-
Jhe rezáo delias para as poderem contar em fuás terras ,
que era daíy muyto longe , IhesdiíTe, que na capellinha
das grades eílaua fepultado o Santo Apoftolo , e lhe mo-
flrou em huma pedra a forma de huma pegada tão bem
impreíTa nelfa , como fe fora num barro muyto molle , e na
meíma pedra impreíTo o íinal de hum joelho de quando o
fanto ellaua em oração , a qual pedra os nollos del"pois
quebrarão e íeuarão por relíquias. E numa informação,
que eu ouue lias mãos efcrita por hum homem, que na-
quelle tempo andaua na índia muyto honrado , e aquém
íe deue de dar muito credito , diz elle de ly que vira hum
pedaço daquella pedra , em que eílauí figurado o dedo po-
legar e os dous dedos chegados a elle. Moílrou mais o
mouro huma íepultura junto da porta principal da banda
de fora em huma capellinha , cm que diíle que jazia hum
diícipulo do mcfmo fanto , e afaftada dez paíTos da cafa
para a banda do norte elbua outra fepultura , que diíle,
que era de outro diícipulo, e para a banda do íul hum tiro
de beíla outra de outro diícipulo , eno adro defta igreja íe
cnierrauão os peregrinos, que vinhão em romaria ha ianta
ca-
delRey Dom João olíl. lo
/
cafa , e outros naturaes da terra , que Ce faziao Criílnos.
Contou também eíle mouro , que auia doze ou quinze an-
nos , que alli viera em romaria em trajos de peregrino
J)um duque chamado dom Jorge, que diíTera que era In-
gres e aly falecera , e eftaua enterrado cos outros peregri-
nos. Em torno da fanta cafa auia muitos aliceces antigos
e paredes caidas feitas de tijolo , que ainda eftaua inteiro ,
e táo fio como fe ainda então fora feito , que erao ruínas
de huma grande cidade , que aly eíliuera em tempo do fan-
toApoftolOj que os mouros dcílruiráo , e os gentios da
terra das pedras e tijolos que tirarão delia íizerão caías
dos feus pagodes ornadas de muytos Jauores , e de grande
aparato : e os naturaes da quella terra cuftumauão a cauax
ao longo daquelles aliceces , c lauando muito bem a terra
que ti-rauaó delles achauão has vezes algum ouro ou di-
nheyro , com que ao longo dos aliceces auia grandes
cauoucos , e muytos outeiros do pedregulho , que íahia
delles juntamente com a terra , que íe cauaua , porem já tu-
do então pollo difcurío do tempo eft.ui3 cuberto de muyto
e grande mato. Os dous Portuguefes efcrcuerão todas eftas
particularidades muyto miudamente , e tornando a Mala-
ca , e daly ha índia , derao conra de tudo o que virão ao
gouernador Diogo lopez de ííqueyra , e de tudo lhe dcrao
largos apontamentos , os quais elle quando fe ouue de par-
tir para o reyno deu ao gouernador dom Duarte, e elie os
deu a Manoel de frias para tomar informação delies , co-
mo a trás fica dito.
O 2 CA-
io8 Primeyra Parte da Chronica.
c A p I T u LO xxxr.
o (roHernndor manda hum Jacerdote ha cafa do ApoftoJo S,
Tbome afazer obras , qtíe torna fcm fazer 77 a da. Manda
Pêro lopez de fam payo ha mefma cafa com outro facerdo-
te, Dí[fe conta de coujas nouas que fe achao na cajá , e
da obra que Jefazíiella, O goueruador fe vay inuernar
a Goa,
MAno^I de frias achando polia informação , que to-
mara da caía do íanto Apoílolo, que tudo o que
diziáo delia os apontamentos que rrou:cera era verdade^
auiíou logo o gouernador , que mandou la hum íacerdote
homem de boa vida chamado Aluaro penteado , e por elle
efcreuco ao feitor, que o leu^iíle ha fanta cafa, e a fizeífe re-
pairar o miíhor que foíTe poífiue! , para que nao acabaííe de
cair de todo. E ao padre encarregou muyto, que fem embar-r
go da informação que tinha, trabalhaíTc quanto pudeíle por
fe informar denouo d? todas as miudezas daquella cafa , e
que nella n^andiíTi fazer tudo o que lhe pareceíTe que era
neceíTario. Chegado o padre ao feitor , que tinha em íua
companhia muytos Portugueíes , e dandolhe as cartas do
gouernador, elle o leuou logo em romaria a íanta cafa, on-
de o paure , defpois de ver muyto deuagar e com rauyta
curiofidade todas as particularidades delia , vendo que
tudo era conforme com aiaformaç^Io que d'ella íe dera ,
íe ordenou para fazer nella grandes obras , porque lhe pa-r
receo que tudo merecia , antre as quais foíTe hum moftey-
ro para religiofos ; porem o feitor Ihediííe que o nao auia
de confentir , fe o gouernador lho nao mandaíTe , de que
fmtido o padre nao quis entender em fazer obra, e por
terra fe tornou ao gouernador , mas porque lhe elle nao
quis dar licença para fazer o que detriminaua {'embarcou
para o reyno , e dando conta a el Rey do que tinha vifto ,
tornou depois ha índia como adiante íe dirá. O gouerna-
dor todauia não deixou de prouer niflo co que lhe pareceo
neceílario, e mandou la hiim nauio , em que foy por caji-
tão
delRey Dom João o III. 109
tão Pedro lopez de fam payo com aponramento do que
l'auia de fazer na cafa , e com elle hum arquireiro chama-
do Vicente rernandez para fazer a obra , e mandou tam-
bém hum íacerdote chamado António gil , que tiueíle o
dinhcyro em feu poder para pagar ha g.ente que irabalhaf-
fe na obra, e a iílo os ajudafle outro padre que la eílaua
chamado Pêro fernandez , e em íua companhia mandou
dous Portuguefcs , humi chamado Diogo lourenço , e ou-
tro Diogo fernandez , queerahum dos dous que aly ío-
ra.0 primeyro cos Arménios : chegado o capitão Pêro lo-
pez ao porto de Paleacate íe foy com doze ou quinze
companheiros em romaria ha fanta cafa , que era da ly fe-
te legoas , todos por terra e apé , antre elles hia hum ho-
memi muyto honrado , que por fua deuaçao e com dcíejo
de ver aquella cafa fembarcara em companhia do capitão
Pêro jopez , o qual nuns papeis , que eu tiue em meu po-
der efcritos por lua própria mão , efcreue huma particu-
laridade defra jornada j que aíTy por fer dina de muyta
ponderação , como por o eícritor íer dino de m.uyto credi-
to me pareceo rez5o não pafTar por ella com íilencio , para
honra e louuor do gloriofo Apoílolo. Diz eíle homem,
que caminhando todos muyto alegres e contentes , bem
prouidos do alforge neceíiario , com muy tas cantigas , fu-
iias , fcrtas , e todo o género de paílatempos quantos pu-
derlo inueniar para aliuiarem a moleftia e peíadume do
Jargo e trabalhoíb caminho , tanto que chegarão ha viíl;a
da lanta cafa , onde parece que fe lhe ouuera de acrecen-
tar a alegria e contentam.ento , pois fe viao tão perto do
que com tanto aluoroço hião bufcar , a ly entrou em to-
dos huma certa triíleza acompanhada de huma deuaçao
interior , que lhe traílornou os corações de tal maneyra
que não fomente fe não lembrarão mais dos pafiatempos
paíTados , mas nem ainda ouue homem , que fallaíTe com
outro , antes vindolhe entSo lia memoria íeus peccados
conuerterão as cantigas , e fulias paííadas em orações
deuotas , ocupandoííe cada hum em rezar aquillo em que
tinha mais deuaçao , e ido com tanta rcuerencia daquf ila
la a-
lio Primevra Parte da Chronica
ícinta caía , que em todos caufaua hum certo tremor , com
que fenrião enfraqueceremlhcs as pernas e os braços , e
quaf/ não oufauao pôr os pés no chão, parecendolhe que
òs punhao em terra faiita. Chegados cmfim delia miiney-
ra ha fiinta cafa , de fora da porta fe puzerao de joelhos ,
onde diz , que derramarão tantas lagrimas , que elles mef-
mos {'efpancauão defy , e não íabião dar rezão donde lhe
vinhâo , nem quem lhas fazia lançar. Aquy dilTe o padre
milTa , que para iíTo trouxera todo o guifamento neceíTa-
rio , que foy a prymeyra que íe diíTe neíla íanta cafa , e
íoy em dia do corpo de Deos do anno de i$i2. Acabada
a miíTa andarão vendo todas as particularidades Áà cafa ,
que erão as de que atras fe fez menção. O capitão Pcro
lopez ordenou logo com o arquiteito , que íe começaí-
le a obra com muyto e muyto rijo tijolo quealyauia,e
muyta cal feita de calcas de mariíco , e com terra amaf-
íada com agoa , que deípois de feca ficaua também muyto
forte, eaprimeyra coufa em que íe pôs a mão foy em
fe fazer huma groífa parede nas coitas da capella mor, que
fuítentaíTe a abobada e o curucheo , porque a parede defta
capella eílaua muyto gaitada porbaixo , e abrindoííe o ali-
cece para eíta parede tendo ja cauado huma braça forão
dar em huma coua feita de tijolo acafelada por dentro, que
parecia feita de nouo , em que fe achou parte d i ofíada do
Rey que o fanto Apoítolo conuertera, que os da terra dif-
lerão que ouuirão dizer, que íe chamara Tani mudoliar ,
que na fua linguagem quer dizer , Thomas íeruo de Deos.
Debaixo deita coua eílaua huma lagia em que eílauão hu-
mas letras que dizião. Eu dou os dízimos das rendas das
mercadorias aiíy do mar como da terra para eíla fanta ca-
fa , e mando a todos os meus decendcntes , que também
os dem em quanto o foi e a lua durarem com grandes mal-
dições aos que afTy o não íizerem. Eíla oíTada recolheo o
padre em hum cofre da china fechado com chaue , e eíta
pedra foy guardada e poíla a bom recado. Acabada eíla
parede fe não fez mais obra que huma fancreília para a
banda da epiílola, e íe taparão alguns buracos, e remenda-
rão
dei Rey Dom João o líl. 1 1 1
rno algumas faltas que auia nas parede?, quanto bailou para
fuílentar a maJeyra , que não vleíle ao chão , que era to-
da de hum íó pao íem buraco nem final de bicho , ou de
qualquer outra corrupção , mas todo muyto forte, e
muyto duro , e trabaihoíb de cortar , e de todas as miu-
dezas e particularidades deíla fanta caía , que fentao an-
darão vendo e notando com muyta diligencia e curiofida-
de, fe tirou logo aly hum largo fummario de teftimunhas ,
que fe mandou a el Rey , e o que nifto defpois paíTou fe di-
rá a (eu tempo. O gouernador deípois de ter dado expe-
diente a eílas coufas ordenou iríe a Goa a paíTar o inuerno,
e deixando em Cochim os nauios que Pauião de varar , e
prouendo em tudo o m.ais que liie pareceo neceflario , íe
partio com a mais armada que aly auia , e de caminho vi-
fitou as fortalezas de Calecut e Cananor , e as deixou bem
prouidas. Chegado a Goa, fabendo que dom Luis feu ir-
niío leuara configo muyta gente da que eílaua em Chaul ,
lhe mandou outra de nouo porque eílaua com foípeita de
poder auer guerra naquella fortaleza. A pos iilo começou
logo a entender em cobrar o dinheyro das terras firmes ,
em que lhe vierâo muytas queixas c clamores contra os ta-
nadores de muytos iníultos e fem rezões , que faziao ha
gente da terra , aíly nas fazendas como nas molheres e fi-
lhas , a que o gouernador nao acodio como era rezão , e
também diíhmulou com algumas nouas queixas, que fe lhe
fizerão de Franciíco pereyra capitão da cidade , como ou-
tra vez ja fizera , fem tratar de couía ninhuma lua , coni
que também deu então nouo motiuo d'algumas más lofpei-
tas, que fe tomarão delles. E aííy paíTou o inuerno con-
certando alguns nauios , e fazendoHe preíles para a viagem
que tinha detriminado fazer a Ormuz , tanto que íeu ir-
mão dom Luis de lá tornaííe.
C A-
112 Primeyra Parte da Chronica
CAPITULO XXXII.
Gonçalo meiídez Çacoto capitão de Azamorfaz buma entra*
da em terra de mouros , e o que Ihejucede,
EM Nouembro defte anno de i$r22 Gonçalo mendes
^Cacoio capitíio d'Azamor , fendo auifado que Alemi-
mero* mouro principal da enxouuia , e tão poderofo nella
que de fua cafa tinha mil de cauallo , e ajuntaua cinco mil
cada vez que queria , com que nunca obedccco a el Rey de
Fez , trataua então de le concertar com ellc para fe meter
cmTageíle, e que os de Fez liiao ja com elie para lhe
leuarem os filhos , dctríminou de ir dar nelle antes que
concruiíTe o concerto , entendendo que o podia fazer a
íeu faluo com pouco ou ninhum perigo , para o que hum
fabado primeyro dia de Nouembro fahio da cidade com
duzentos de cauallo , em que entrauao vinte , que lhe
mandara António leite capitão de Mazagão com feu cu-
nhado António das neues , e cem beíleyros , e efpingar-
deiros , e o mouro Acoo cincoenta de cauallo, e mil de
pé todos de pazes , e muytos camellos carregados de man-
timentos , e á terça feira feguinte foy amanhecer com to-
da eíla gente duas legoas para ca de (^alé , dojide foy cor-
rer aos mouros em tempo que oAlemimero não eftaua a!y,
por fer ido a falar cos embaixadores dei Rey de Fez , po-
rem eftauão muytos dos Xeques da fua companhia, nos qua-
is inda que achou boa refiftencia , não bailou para defpois
dehuma bem trauada peleja deixarem de íer todos mor-
tos , e catiuas fuás molheres , e filhos : os principais jieítes
Xeques, e aue o erão de toda a enxouuia, fe chamauão lo-
cefben maftimede, barahoo , Alyben narbian, locef ben
buciba eí gueila, Mafamede ben abuu,Azuz ben mafamede
ben maleque , Hamede ben maleque barahao , e da outra
gente que morreo fe não foube o nu:-nero : foy aquy tam-
bém catiua a molher do Alemimero may dos feus filhos ,
que erão dous, e ficarão ambos feridos , e as molheres e fi-
lhos delles também forao catiuas , com paíTante de outras
féis-
dei Rey Dom João o III. uj
feiscentas peíToas , e deixarão de fer nniytas mal? , porque
le acolherão a liuma ribeyra fragcfa, que eftaua daly niuy-
ro perto. A preía deite dia foy de muyta fuftancia , por-
que os camellos fómenre forao eírnados em dous mil , e as
cabeças do gado miúdo em vinte mil afora hum muyto
fermoío deípojo de capelharcs, maríotas , camifas de zar-
za gitania , muyras cítribeiras ricas , cabeçadas de prata ,
e grande caniidade d'alcatifas , e de trigo , e ceuada , que
o capitão fez carregar pondo abandeyra no meyo da al-
gella , com que fe deteue mais de coatro oras em recolher
o campo , e a rezao de le achar aly de tudo ifto tanta
cantldade foy, porque como eftes m.ouros erão tão podero-
fos não fomente não ouue nunca outros , que oufaffem co-
metellos para os roubarem , como naquellas terras cuílii-
mão fazer huns aos outros , mas tinhão elles roubada toda
a enxouuia. Alem diílo diíTerão os catiuos , que íe tirarão
daly muytosquintais de prata , de que então íe achou muy-
to pouca, porque aíTy delia como de todas as outras coufas
tinhão os nolTos mouros de pazes roubado acaunlgada , o
que então íe não podia preuenir , por que a caualgada to-
maua diftancia de huma legoa , e como os mouros hião
com ell.^ para afazerem caminhar, hião pollo caminho
furtando cada hum tudo o que podia fem lhe ninguém po-
der ir ha mão , porque os Chriílãos hião de trás delles ,
porem o capitão receandolTe difto , que os m.ouros fízerão,
mandou diante íecretamente tomar o vao que chamauno
do duque , donde lhe trouxerão duas barcas e alguns camel-
los carregados de fato , que os mouros tinlião loncgado , e
do mais foy deípois cobrando dos mefmos mouros muytas
coufas de preço. Quando o capitão pariio da cidade to-
mou o caminho do 1'ertão por íer mais acomodado para o
que pertendia, inda que era piore mais trabalhoío, porem
ha volta tomou o que hia ao longo do mar, que era milhor,
mais breue , e mais defenfauel , e ha coarta feira feguinte
encontrou huma coadrilha de almogaueres de pé , que erão
de Çalé , e deixauão íalrcado na barra d'Azamor hum bar-
co de Caílella em que matarão noue homens, e leuauão
Faru L P três
114 Primeyra Parte da Chronica
trcs catiuos : os nofíos em os vendo arremeterão logo a él-
les, que fc começarão a defender, e pelejando tratauao de
Te recolher a liumas rochas , que aly auia ao longo do mar ,
porem antes que pudeíTem fazer matarão os nolTos fete e
catiuarão cinco , a que o capitão , por íerem grandes almo-
cadens , e terem feito muyto mal por aquella terra , man-
dou também dar a morte inda que era contra as leis da boa
guerra , por lho afly pidirem todos os que hiao com elle ,
que ouuerao por bem empregada aperda , que recebiao do
que lhes podia caber da valia delles aíroco de íe verem
liures dos males que delles recebiao. Ao outro dia paíTan-
do por Anafe fe apartou com alguns de cauallo e foy dar
viíla ha cidade ^^ e dentro nella achou onze mouros de que
tomou os ícte, e os coatro fe eíconderao de maneyra , que
os náo pôde achar. Com toda eíta preía caminharão os
nolTos cinco dias até íe recolherem em Azamor , fcm cm
todo eíle tempo acharem quem lhe defcndeíTe o caminho ,
liem verem mais gente de guerra que o mefmo Alemimero
que com os doze de cauallo acudio ao rebate, e eíleue ha
fala com a noíTa gente. E ncíle feito , que foy aílaz bem
pelejado , náo ouue da noíTa parte mais dano , que dous
cauallos , que os mouros matarão , e coatro homens feri-
dos , que em pouco tempo forao faós. Os criados de S. A.
que fe aquy acharão forao Francifco botelho , Duarte da
cunha , Vaíco da íilueyra , Diogo leite , Balliâo leite , o
contador e feu irmíío de que não achey os nomes , o feitor
Martim Afonlb, João íernandes da foníeca e carriao.
Achoufe aquy também o ouuidor da cidade , que por mais
inílancias que o capitão lhe fez não pôde acabar com el-
le deixar de o acompanhar, de quem finty muyto não
achar o nome , porque fora rezao daríe por elle aconiiccer
hum homem a quem as letras eftão deuendo dar naquella
jornada a entender ao mundo , quanto íe engana no mao
conceito que tem delias, em as ter por inabiles para as ar-
mas , porque em todas as ocafioes que naquelle feito fe
oíferecerão de le ellas exercitarem , teue elle ouuidor tão
bom lugar como os milhores que nelias íe acharão. Dos
mo-
dei Rcy Dom João o III. 1 15
rrora<3ores da cidade que acompanharão ao capitão, e
dos que vierão com António das neues , nlo achey tam-
bém os nomes , poriíTo os náo ponho aquy , porem achey
que erão todos muyto bons cauaíeyros , c que por feus
braços ganharão tanta honra , que bem merecerão fer co-
nhecidos por léus nomes, como o forão os outros que
ficarão nomeados.
CAPITULO XXXIII.
Partem do reyno efte anno para a Jnãla três nãos , onde
pajfa huma fó que dá nouas da morte dei Rey Dom Aia-
mel , dajfe conta das exéquias que fe jazera por elle na
índia. Dom Luis de menejes chega de Ormuz a Goa ,
o gouernador d manda a Cochim,
Morte do magnânimo e inuenciuel Rey dom Ma-
_ _ noel da glorioía memoria , que ( como atras fica
dito) foy no dia de íanta Luzia treze dias do mes de
Dezembro do anno de 1521 , e a muyta variedade de ne-,
gocios que delia dependerão , importantes has coufas do
reyno , a que entãoVoy forçado acudiríe com muyta bre-
uidade por não íbfrerem dilação, forfio caufa de fenão
poder por então acudir has coufas da índia como ellas
requerião , e como até então era cuftume. Com tudo
não deixou de fe tratar delias do milhor modo , que aqucl-
le tempo deu lugar, e por eíla razão a armada, quí íc fez
preifes para ir o anno íeguinte de 15:22 , não toy de mais
que de três nãos e inda eftas íeni capitão mór , das quais
hião por capitães , na Conceição Diogo de melo que hia
para capitão da fortaleza d'Ormuz , na Nazaré dom Pe-
dro de caftro , e em S. Miguel , que era de mercadores ,
dom Pedro de caílelbranco ; e porque eítas três nãos
partirão do reino tarde , fó dom Pedro de caftro paílou
ha índia, que foy amanhecer na barra de Goa hum do-
mingo vinte dias do mez d'Agofto , e numa almadia de
pefcadores, que caio paliou polia nao, mandou hum ho-
P2 mem
A
iií Primeyra Parte da Chronica
mcm com Iiuma carta ao gouernador dom Duarte de
meneies , em que lhe daua conta de fer chegado aaqueila
barra , e da morte d'el Rey dom Manoel , e de como era
aleuantado por Rey o glorioío princepe dom João íeu
filho. Chegando eííe homem a Goa íe foy direyto ha íé ,
onde entrou a tempo que eílaua pregando o bifpo dom
Diogo, e fendo conhecido no trajo que era do reyno
ouue em toda a gente muyto aluoro^o. O homem fe
foy direyto ao gouernador e lhe meteo a carta na mão,
que defpois de a ler , nao podendo refrear o grande Ím-
peto da dor que íentia , deu com ambas as mãos huma
grande pancada no rofto , e apoz iílo forao tantas as la-
grimas 5 e tamanhos os vrros , que em toda a gente que
títaua na igreja cauíou grandiííimo eípanto e fobrelTalto,
porque taaibem o mefmo homem que trouxera a carta'
começou a derramar muytas lagrimas , fem dar de íy ni-
nhuma rezao a muytos que lha perguntauão. O biípo
também co meímo efpanto e fobreííalco fe deceo do púl-
pito , e chegando ao gouernador a altas vozes lhe diíTe
• que llies diíIeíTe a cauía daquelle tamanho eíVremo , a
quem elle , podendo mal deitar a falia polia boca, diíTe
o que paífaua, e com iito lançando íobre a cabeça a ca-
pa de hum feu criado fem perdoar ao rofto nem has bar-
bas , fe íahio da igreja , c fe recolheo para fua cafa , on-
de o acompanharão o bifpo c todos os fidalgos que aly
cftauão com tantas moítras de verdadcyra dor e fenti-
mento , quantas fe deuiao a huma noua tão defeftrada. O
mais pouo, que eílaua na igreja afsy de homens como de
molheres , aleuantando também grandiílimos gritos e
prantos , e cubrindo todos os roílos , os homens com as
bordas das capas , e as molheres cos mantos , fe foy cada
Jium para íua caía continuando fempre por todas as ruas
cos mefmos prantos e gritos , com que fairao da igreja,
que foy caufa de íe eípalhar em breue efpaço por toda a
cidade eíla trifte noua , com que a dor foy geral em to-
dos , e tal que por toda ella íenão viao naquella ora í"e-
iiáo rios de lagrimas , nem íe ouuia outra coufa íenão
gri-
dei Rey Dom João o III. 117
griros , alaridos , e lamentações triftes , dino fentlmcnto
de huma tamanha perda , qual he fempre a de hum bom
Rey amigo do ieu pouo. O bilpo e os fidalgos todos dei-
xando o gouernador em fua cafa íe recolherão para as
íuas a ordenarem , o que para aquelle tempo entendiao
que lhes era neceflario. Naquelle meímo dia foy lançado
pregão com grauillimas penas, que toda a pefloa, homem ,
molher , gentio , mouro , Chriílao , e todos os Portugue-
fes e elcrauos feus Te veíUlTem de dó , o que todos cum-
prirão muyto inteiramente, e com muyta brciiidade.
Dom Pedro decaftro capitão da nao , deícinbarcou aquel-
la mefma noite , e recolhido co gouernador lhe deu as
cartas do Rey nouo , e defpois de eílar com elle hum
grande efpaço dandolhe conta das particularidades que
paíTauão noReyno, fe recolheo também para fua caía.
A cidade logo deu ordem para Te fazer o fiimento do
Rey morto , e para iílo fez ordenar na Sé huma eíTa de
taiuos degraos quantos couberao na altura da cafi , to-
dos cubertos de preto , os três mais altos de veludo e
os mais de pano , e encima pindurada huma bandeyra
grande com as armas reais e a deuiía da esfera como he
cuílume , e por todos os degraos auia caíliçaes de prata
grandes , e pequenos com muyta cera , grande também
e pequena conforme ha diípofçao dos lugares em que fe
punha, o que tudo fe fez co mor aparato que a terra de
íy daua, e por maior que foy a preíTa que fe lhe deu , não
pode iílo eílar preparado de todo fenão ha terça feyra
ao meyo dia , e em todo eíle tempo atras ninhum ofH-
ciai mecânico trabalhou na cidade , íenao aquelles que
erâo neceíTarios para dar auiamento aos dós , e ha fabri-
ca da eíía : logo a meíma terça feyra ha tarde defpois
de eílarem juntos na Sé quantos frades e clérigos auia
na cidade, nao ceíTando de íe dobrarem nella todos os
finos da Sé, e de todas as outras igrejas , entrou nella o
gouernador acompanhado de muytos fidalgos todos ve-
ílidos no trajo pertencente para aquelle ado , e para
aquella ocafiao, e apoz ellcs fe ajuntou tanta gente do
pouo
ii8 Primeyra Parte da Chronica
pouo , que não cabiâo nem dentro , nem fora da igreja.
As vefperas fe diílerao logo em pontifical com toda a
íolenidade poííiuel , porem celebradas mais com lagri-
mas e íuípiros triíles , que com muíica nem cantos ale-
gres , onde a principal força £oy deípois de dito o ref-
ponfo , quando fe diíTe requiescat in pace , porque entãa
íubio a dor tanto acima dos entendimentos dos homens ,
que os fez arrebentar em vários eíFeitos quafi defatina-
dos , porque hum daua com a cabeça na parede , outro'
daua bofetadas em íy meímo , outro depenaua as fuás
próprias barbas , ajuntando a iílo palauras e lamentações
iaílimofiííimas , quais a dor e o entendimento então a ca-
da hum inlinaua , o que na gente baixa e no pouo miúdo
era mais exceíTiuo , nâo porque fíntille miis , fenâo por-
que íabe e pode menos temperar a paixão quando lhe
chega, E neíla forma fe recolherão então todos para fuás
cafas , deípois de acompanharem o gouernador até a fua.
Ao outro dia polia menham fe ajuntarão outra vez to-
dos na Sé aísy os grandes como o pouo miúdo , onde
todos os facerdotes da cidade diíTerão miíTas rezadas , e
o biípo a diífe em pontifical officiada com as meímas la-
grimas e fufpiros , que o dia dantes o forão as vefperas ,
a qual acabada com todas as íuas cirimonias ordinárias ,
o gouernador com todos os fidalgos fe foy ao terreyro
das íuas caías , onde ja achou os officiais da camará acom-
panhados de muyto pouo , e hum delles lhe meteo na
mão hum efcudo feito de huma taboa delgada com as
armas reais pintadas nelle , e tudo o mais pintado de
negro, o qual elle deípois de dizer em altas vozes a
modo de pregão algumas palauras laílimoías , como he
cuílurae ncíles aílos , fez em pedaços em hum banco que
t)ara iíTo aly eílaua pofto , ao que fucederao tantas gri-
tas , e tamanhos prantos de todo o pouo , que foy coufa
não fomente de elpanto mas de grandiflima laftima. Acha-
rãoíTe a iílo preíenres muytos mouros mercadores eílran-
geyros , que eípantados da nouidade do que vião , aju-
dauão também os noílos com tantas lagrimas como fe
fo-
dei Rey Dom João o III. 119
■forão naturais. O gouernador fe recolheo logo pr^ra íua
caía , e na rua direita da cidade o capitão delia em di-
uerfos lugares quebrou outros dous efcudos iguais ao
primeyro , que hum dos vereadores lhe aprelentaua ,
com pregoes que continhão as meímas palauras que o
gouernador antes diílera , dados em altas vozes por
hum homem que andaua acauallo cuberto todo de dó
e com huma bandeyra preta has coftas , que lhe arra-
ílava pello chão , e com todas as mais cirimonias que
em íemelhantes ados fao cufl-umadas , e.muyto íabi-
das de todos, e apoz iílo fe recolheo acamara e toda
amais gente para fuás cazas. A quella mefma tarde o
gouernador veílido em trajo de feíla qual conuinha a
fua pcíloa , ao cargo que tinha , e ao ado que que-
ria feílejar , fahio ao terreyro das íuas caías , onde o
cílauão ja eíperando o capitão da cidade e todos os mais
fidalgos , lodos, a pé veítidos também, com mayor cufto e
milhor concerto que cada hum pode , e acompanhados
,de infinita gente do pouo , que acudia a ver huma ciri-
monia , que até então fenao tinha viílo naquellas partes.
O goueanador fe pôs então em hum cauallo muyto bem
concertado , e chegando á porta da camará da cidade ,
de dentro lhe trouxerao a bandeyra real que elle tomou
nas mãos , e no mefmo terreyro , defpois de tocarem as
trombetas , e ataballes algum efpaço , deu aquelle acuf-
tumado pregão, Arrayal , Arrayal , Arrayal , com que
aleuantou por Rey naquellas partes el Rey dom João o
terceyro , a que todo o pouo reípondeo com grita e pa-
Jauras de muyto contentamento , vendo que íe perderão
hum Rey que em tudo fe moílraua fempre amigo do feu
pouo , tinhão cobrado outro de quem tinhão por certo
•que lhe não auia de ter menos amor , nem lhe auia de
fazer menos fauores e mercês. Daly fe foy o gouernador
ha rua direita e ha porta, da Sé ,e em cada hum deílcs
lugares deu o mefmo pregão com a meíma cirimonia e
repofta do pouo , o qi^e acabado fe tornou á porta da
camará, onde tornou a entregar a bandeyra real com
que
/
I20 Prímeyra Parte da Chronica
que elle e todos os mais fe recolherão a fuás cafas , e daljr
por diante tornarão todos a continuar co dó como lie
cuftume. O gouernador efteue encerrado dez dias , den-
tro dos quais chegou feu irmão dom Luis que vinha de
Ormuz , em quem a morte dei Rey não fez menos im-
preíTaò que nos outros. DereueíTe no mar embarcado até
que fe proueo do trajo neceíTario , e inda então não
quis de(embarcar íenão de noite , e íe foy direyto a ca-
fa de íeu irmão onde também eíteue encerrado com elle ,
e lhe deu larga conta do que paOara na viagem : porem
logo daly o deípidio para Cochim , onde polia ordem
que leuaua fez as exéquias dei Rey dom Manoel com
as meímas cirimonias e perfeição que íe fízerão em Goa ,
a que fe achou preíente o mefmo Rey de Cochim , mo-
ftrando também muyto fentimento polia morte dei Rey,
c fe veftio de dó a feu modo , porque foy aduertido que
aíTi era cuftume antre os Reys amigos, indaque íenão
tenhão viílo. Por todas as fortalezas da índia fe íizerão
antão as mefmas exéquias no milhor modo que cada hu-
ma pode , e com as mefmas moftras de dor e fentimen-
to que fe virão em Goa , e toda a índia fe cubrio então
de dó que lhe durou paííante de três meies. Daquy de
Cochim deípidio dom Luis Fernão gomez de lemos com
a capitania de Ceilão , que lhe viera do reyno , e ja vi-
nha deípachado pollo gouernador , e o mandou em hum
galeão , em que íe vieíTe Lopo de brito que la eílaua por
capitão , e em fua companhia mandou lambem huma nao
da terra em que pudeíTe recolher parte da canella que
auia de trazer com figo , que ío no Galeão não poderia
caber toda. No íim de Setembro daquelle mefmo anno
chegou a Goa dom Gonçalo couiinho , que deu nouas da
perdição de íeu irmão , e de tudo o que fucedera em Or-
muz defpois da íua partida , porque em Mazcate o íoube
por mouros que de lá vierão.
CA-
cielRcv Dom João o III. 321
CAPITULO XXXIIIT.
O gouernador manda feu irmão dom Lu is a Maçuha , em
hujca de dom Rodrigo de lima , uay inuernar a Ormuz ,
trata logo do negocio do Ra is Xarafo que ejíá prejo , e
o que nelle pafja,
O Gouernador defpois que em Goa defpachou as cou-
í.ís que lhe parecerão neceífarias fe paliou a Co-
chim, onde começou logo de dar auiamcnío lias náos, que
aquelle anuo auião de ir para o reyno , que não erão mais
de trcs, luima em que auia de ir dom Pedro de caílro ,
e ouíras duas de armadores que andauao na índia. Apoz
ifto , porque el Rey lhe encomendaua muyro que man-
daíTe a Maçuha em bufca de dom Rodrigo de lima , que
no anno de 15'20, fendo gouernador da Índia Diogo lo-
pez de íiqucyra , fora mandado por embaixador ao Pre-
ftes João , como íe conta na coarta parte da Chronica
dei Rey dom Manoel que compôs Damião de goe? , or-
denou para eíte eíFeito huma armada de oito galeões , e
coatro caraueilas , de que fez capitão mór dom Luis de
m.^nefes íeu irmão. Dos gileòes erão capitães , afora o
mel mo dom Luis , Ruy vaz pereyra , Lopo dazeuedo ,
António de lemos , Nuno Fernandes de macedo , Manoel
de macedo , Joríe barreto , e Lopo ferreyra , e das qua-
tro caraueilas erão capitães , Lourenço godinho , Fer-
não daluarcs de gaa , Pêro de moura , e Artur de melo.
Efta armada foy em breue tempo poíla na barra bem
prouida de mantimentos , munições , e artilharia , e fo-
bre tudo de muyta e boa gente , porque ainda que até
então íe embarcauão os íoldados com dom Luis de má
vontade , porque como era por natureza altiuo , e de
grande opinião, os trataua mais afperamente e com menos
corteíia do que íohiíío a ier tratados dos outros capitães
por mais honrados que foííem , lodauia como era muy-
to íeíudo e de grande entendimento, vindo a entender
quanto importa ao capitão vfar de brandura, cortcíi^ ,.
Parte /.CL e
122 Piimeyra Parte da Chi-onica
e afabilidade pára g.inhar as vontades aos íeus íoldados ,
que sao o niejo por onde" fe alcanção as honras e as boas
fortunas da guerra , mudou a natureza, de tal maneyra ,
e fe veyo a auer também , e acreditaríe tanto cos folda-
dos , que neíla viagem andauao á competência a qual fe
aula de embarcar com elle,'e aísy foy cntâo acompanhado
de muytos homens fidalgos , e de outros muyto honra-
dos. Chegando a Goa fez pagam.ento h^ gente , que foy
caufa de fe embarcar outra muyta com elle , daly íe par-
tio com tençÃo de ir tomar Chaul, o que não pode fazer
por lhe ferem os ventos contrários, que era ja em Janeiro
do anno de I5'23, e por iílo fez feu caminho para o eílrey-
to , onde o deixaremos por nos tornarmos ao gouerna-
dor, o qual deípois que deípidio dom Luís íeu irmílo ,
tendo dctriminado de ir inuernar a Ormuz , mandou pôr
em ordem huma armada de quatro gales , três galeões ,
e três carauellas redondas , de que deu as capitanias das
gales a Baítião de noronha filho do capitão da ilha da
raadeyra , a João fogaça , a Dinis fernandez de melo , e
a dom Vaíco de lima , e as dos galeões , a Franciíco de
raendonça , a Francifco de foufa tauares , e a Franciíco
de caftro , e ao das duas carauellas a Duarte ferreyra , e
a João de íouía , e do capitão da terceyra carauelía não
aciíey o nome : e afora cites nauios ordenou também três
nauetas , que forao em fua companhia carregadas de dro-
gas , c de alguma pimenta , arros , açúcar e ferro , de que
tomarão a carga em Baticala. Com cila armada partio o
gouernador de Goa em Feuereyro do anno de iS'^3 i c
atraueílando o golfão com bom tempo , em poucos dias
entrou no eílreito de Ormuz , e foy furgír huma tarde
no porto de Mazcate , donde defpois de fazer agoada ,
e receber hum grande prefente de refreíco que IJie man-
dou o Xeque da terra , fe partio huma noite, e em três
dias chegou a Ormuz, onde foy recebido com muyto ai-
uoroço e muytas feílas-, íe íe foy agaíalhar co capitão da
fortaleza João roiz de noronha , c os outros capitães da
armada com íeus amigos. O gouernador quis logo co-
me-
dei Rey Dom João o ÍII. 123
ineçar a entender no que cumpria ao bem daquella cida-
de , c porque o capitão João Roiz tinha muvta pratica
d;is coufas delia , dilatou alguns dias tirallo da capitania
da fortaleza e entregalla a Diogo de melo, que vinha pro-
uido nella , para confultar com elle o que lhe parecefíc
necefíario , e a primeyra couía de que começou a tratar
foy do negocio de Rais Xarafo, que eftaua prefo em po-
der do capitão como atras fica dito, e polia rezao que
também largamente fica contada , e tomando niílo o pa-
recer do mefmo capitão João P.oiz elle lhe deu tais re-
zdes em fauor do mouro , e da íua ioltura , que o gouer-
nadoi* íe contentou delias , e ficou do meímo parecer , e
não faltarão então muytos que atribuirão ifto a trato íe-
creto feito CO mefmo mouro, com grande proueito de
quem o fez , porem como eíle negocio era de tanto pefo
não fe quis o gouernador refoluer nelle fem o parecer dos
íidalgos e capitães que alj eílauão, e cliamandoos a coa-
felho , lhes difle que elle tinha entendido que íenão po-
dião aflcntar as coufas do reyno de Ormuz como cum-
pria ao fjruiço dei Rey nofío Senhor , fenão dandoíle
liberdade ao Rais Rarafo , e diífimulandofle por então
com fuás culpas , e para ifto lhe deu as rezocs que lhe
parecerão baftantes , porem como antre todo aquelle
ajuntamento auia algumas más íofpeitas daquelle nego-
cio , rodos lhe refponderão que fízeíTe o que lhe pare-
ceíTe que era mais feruiço dei Rey , e com ifto fe defpi-
dirão to ios , foltando algumas palauras ao íom de íua
tenç-o. Feiro ifto ordenou o gouernador ir vifitar el Rey
d'Ormuz , e no dia para iíTo aprazado fe foy ter com el-
le acompanhado de todos os capitães e fidalgos , e o
acharão acompanhado de todos os feus com grande apa-
rato e mageftade , o qual o recebeo com muytas honras ,
feftas j e gafalhado ; e dcfpois de auer antre elles algu-
m;iS praticas , em que o gouernador deu a el Rey grande
fegurança , e firmeza de paz e amizade com elle , de que
el Rey ie moftrou bem contente, pidio com muyta inf-
tancia 'ao gouernador que quifeíTe mandar íoltar o Rais
Q^z Xará-
124 Primcyra Parte da Chroíiica
Xar:ífo j porque era coufa que lhe a ellc importnua muy-
to , o gouernador fe lhe efcuíou por então , encareceií-
dolhe muyro o que pidia , porem el Rey tornou a
aperrar com elle dizendo que íem aquelie homem náo
podia aííencar as couías de íeu reyno com a ordem e
concerto que Jhe cumpria, porque elle tinha delias mi-
Ihor conhecimento que todos , porilTo lhe nao quiíeííe
negar huma coufa que lhe importaua todo o bem e bom
gouerno do feu reyno , e que elle de fua fazenda paga-
ria todas as perdas e danos que erao feitos : o gouerna-
dor parecendolhe que não podia fazer outra coufa lhe
deu palaura de o mandar foltar, que el Rey lhe agarde-
ceo com muytas palauras,e dando então ao gouernador
hum rreçado , e huma adaga , e hum cinto douro , e de
pedraria que valia muyro dinheyro , e aos íidalgos c ca-
pitães muytas peças ricas da Períia , conforme ao me-
recimento de cada hum , íe defpidirão e fe forão reco-
lhendo , e o gouernador foy dizendo aos que o acompa-
chauão que não pudera alfazer fenao íoltar aquelie mou-
ro , inda que tinha feito huma tamanha traição como
todos íabião , pois el Rey lho pidira tão afincadamente
como todos virão ; a iílo não faltou hum dos da com-
panhia que lhe reípondeíTe algumas palauras , em que lhe
deu a entender as foípeitas que então auia , e a pratica
que corria daquelle negocio , e cada hum dos outros
também foy dizendo o que lhe bem veyo , porem o go-
uernador tudo dilHinulou fem lançar mão por nada do
que íe dizia , e naceo então a eftes homens íoltarem ei-
ras palauras, de auer foípeira e pratica vulgar, que pidir
então elle Reyzinho ( que era moço e não cahia inda tan-
to nas coufas que cumprião ao bem de feu reyno ) ao
gouernador que lhe loltafíc o Xarafo, fora inuenção de
quem pertendia feu intereíTe da íoltura defte mouro. Re-
colhido o gouernador ha fortaleza mandou foltar o Xa-
rafo , que veridoffc em fua liberdade fez logo ajuntar to-
dos os feus , e acompanhado dellcs le foy dar vifta ha
cidade com alua coítumada Ibbeiba e oufania, por-cm com
tan-
delRey Dom Joáo o III. 125
tanto eícandalo , e defgofto de todo o douo, que fe come-
çarão a folrar pubricamente muytas palauras de queixc-s
contra o gouernador , pondo a elíe voda a culpa deíle
negocio, e alfruns oiiue que fatreuerao a pubricar^ cor
ver!.kdes cerras as íuípeitas duuidoias , que até então le
tinhao delle , e não contente inda o pouo com iílo chegou
a tanta fohura que polias paredes e nas portas da fortaleza
íe puferãoercritos de palauras tão deíconcertadas e eícan-
dalofas , que íe diíle então que o gouernador eftiuera aba-
lado para tornara mandar prender o mouro , porem não
CAPITULO XXXV.
O gouernador faz pazi e amizade com elRey de Ormuz ,
tratafje de Je dar a morte au goazil de Ormuz Rais Xe-^
ynejim , cofUaofe a/gumas particularidades que pafJaÕ
com èlle ^ o gouernadior Je fez prejks para fe partir de
Ormuz,
O Mouro Pvals Xemefitn , que então era goazil d'Or-
muz , tendo noticia de fe tratar da fohura de Rais
Xarafo fez contra iíío grandes inílancias, porem vcndoo
em fim de todo em íua liberdade , receoío que lhe ne-
goceaíTe a morte por todas as vias que pudelle , íe foy
ao gouernador, e lançando parant'elle no chão todas as
armas que leuaua lhe diíTe. Senhor ja que Rais Xarafo
he íolto, eu fey que não eyde ter vida , porque quem he
tanto feu amigo que o tirou da prifao em que foy me-
tido para pagar os males que fez aos Portuguefes , tam-
bém íerá inimigo de fcus inimigos , e lhes fará todo o
mal que puder , e polia mefma rezão o fará também a
iTiim , pois íou o mayor inimigo qua elle tem , por onde
quem lhe a elle deu a vida, que mal merecia tendo tantas
culpas contra os voflos, eíle me dará a mim a morte que eu
também, mal mereço por quantos íeruiços lhes tenho fei-
to. O gouernador algum tanto afrontado deílas palauras
reí^ondeo ao mouro no começo com alguma cólera di-
zcn-
ii6 Priínevra Pnrte da Chronica
zendo , que fe el!e ouuera de caftigar todos os que forão
culpados nos males que naquclla fortaleza íe íizerâo aos
Portuguefes , muytos ouuerão de íer os caíligados , e
por ventura fora elie huin delles , porem pollos ferui-
ços que alegaua , que fizera aos feus , nao fomente deixa-
ua agora de o caíVigar como merecia polia íohura e atre-
uimento com que lhe falara , mas ainda lhe faria muy-
tas lionras com que fempre viuefTe contente , e que
quanto ao receyo que moftraua de Rais Xarafo eftiuelTe
feguro que por fua parte lhe nao viria ninhum mal , e
com iílo o deípidio mais fatisfeiro ao parecer , e mais
feguro do que aly viera. Apoz iílo comcçpu logo o go-
uernador a tratar de concerto de pazes , em que o Xara-
fo andaua muyto íollicito e diligente , quiçá cuidando
que com iílo amanfaria a fúria do pouo , mas como elie
tem a natureza do animal fero e indomauel , nao fey que
fofpeitas concebeo deíle negocio com que íe acendeo em
mayor fúria , e foltou a lingoa com mais liberdade e me-
nos refpeito. Com tudo o concerto de pazes não deixou
de ir por diante , de que as condiç^ics que lhe então poz
o gouernador forao. Que íe fizelíe a conta do que im-
portaua a perda que as partes receberão , e que el Rey
a pagaíle toda por em cheio dentro de três anno?. Que
polia deíobediencia do aleuantamento pagaíTe as parcas
em dobro. Que na alfandega efliueíTe efcriuão dei Rey
de Portugal, que efcreueíTe todo o rendimento delia , o
qual fe entregaria ao recebedor dei Rey. Que querendo
el Rey de Portugal a alflmdega para íl íe lh'entregaria lo-
go. E que com iílo ficaria liberdade a el Rey d'Ormuz
para fe tornar para (^eixomc ond'eílaua , ou para outra
qualquer parte que foíle mais íeu goílo. Propondo el Rey
eílas condições no feu coníelho as acharão todos tão del-
arrezoadas que el Rey não quis eílar porellas, e diíle que
fe queria tornar para Queixome , nem tratou mais de
concerto , coíu que o gouernador pôs o caio de nouo em
coníelho, em que ouue alguns debates e alterações fem
fe cornar refolução alguma , porem o Xarafo Já teue feus
mcyos
dei Rey Dom João o III. 127
mcvos com que fe desfez o que eílaua feito , e as pazes
íe concluirão com que el Rey pagaíTe as perdas como
antes eílaua aílentado , e que a alfandega' lhe ficaíle li-
ure , e pagaíTe cada anno as páreas , que erâo feííenta mil
xarafins , e que para ajuda de as pagar lhe pagaílem di-
reytos as f^izendas dos Portuguefes que foílem a Ormuz
( que fempre forao francas polia poílura d'Afonío dal-
buquerque ) da maneyra que os pagauao as dos mouros.
Deites concertos forao logo paliadas cartas patentes dam-
bas as partes , aílinadas , e feladas como cumpria. Os
quais tanto que chegarão ha noticia do pouo o tomou
táo rrial , que ouue fobr'iílo muytas queixas e muytas re-
clamações , porem nunca ouue quem acudiíTe a ido , dan*
do por rezáo que iílo era o que cumpria ao feruiço dei
Rey , mas a gente praguenta outras rezoes lhe daua con-
formes ao que rinha entendido daquelle negocio, funda-
das na cobiça dalgumas peifoas das mais principais. O
mouro Rais Xemeíim , como tinha hum ódio entranhauel
ao Xarafo , andaua fem paciência de o ver tão auanta-
jado , e fem embargo da fegurança que o gouernador
lhe tinha dado delle , não andaua fem receyo de lhe
acontecer por fua parte algum grande defaílre , pollo
ódio que fabia que fe tinhao hum ao outro , e com iílo
íoltou em pubrico algumas palauras , em que punha cul-
pa ao gouernador de não caftigar hum tredro que dera
a morte a leu Rey e fenhor , e a tantos Portugueíes com
que eílaua em paz e amizade , e chegou a tanto a íoltu-
ra defte mouro que veyo a dizer pubricamenre , que pois
03 Portugueíes não erao homens para com a morte da-
quelle íó tredro íè fatisfazerem de quantas elle tinha da-
do aos léus naturais , elle lha daria para vingança de to-
dos, e do feu Rey que elle matara, e porque iabia que
niíTo fazia feruiço a el Rey de Portugal. Iílo chegou logo
has orelhas do Xarafo , que o poz em grande receyo de
poder íer aísy , e como era íagaz e fabia bem o modo
por onde íe auia de gouernar , negoceou fecrerameníe
que fe deilem culpas dellç ao gouernador , e fe Jhe deííe
a
128 Primevra Parte da Chronica
a entender que os Portugueíes que cl!e mandara matar
no bazar , como atras fica dito , fora com tenção de fa-
zer outro aleuantamento na cidade , para o que tinha ja
gente preftes. A ifto Te ajuntarão outros proceíTos , e car-
tas que fenío aui^o por de muyto credito , com que o
negocio íe fez muyro mais feyo , e tudo iílo fe diíle que
fe negoceara por meyo dos dous capitães da fortaleza
paííado e prefente , João roiz de noronha , e Diogo de
melo , que l^^uorecião ao Xarafo pbllo proueito que ou
tinhao , ou efperauão delle ; elles ambos preíentarão ef-
tcs papeis todos ao gouernador , que como eílaua mal
íarisfeito do Rais Xemefim , porque fabia que praguejaua
delle pubricamente , e receolo que efcreueííe ao reyno
os males que clie e outros muytos diziao delle , lançou
mão pollos papeis e em fcgredo os m.oítrou aos capitã-
es , e lhes pidio niíTo feu parecer, elles como não fabiao
o trato fecreto que niílo auia , e o que fe ordenaua con-
tra o mouro , quando virão as deuaíías , e os ditos das
teílemunhas por onde fe prouaulo contra o Xemefim cul-
pas tão Feyas , diíítrão todos que merecia fer degolado e
feito em coartos ao pé do piiourinho, onde todos o vií-
fem para terror e caftigo dos outros , porem Lopo da-
zeuedo fidalgo honrado eja de dias , que era homem li-
ure e ifento , e tinha alguma noticia deitas coufas que
paííauão em Ormuz , dizem que diíTe , façaííe a eíle de
iobejo o que faltou ao outro , eíle matou três e fera de-
golado , e o Xarafo matou cento e três e fahio folio e
liure. Bem íenrio o gouernador eftas palauras , porem dif-
fimuiouas o milhor que pode, lançou o feito ha zomba-
ria j dizendo que os velhos todos crao agaílados. E quan-
to a le dar a morte ao mouro diíle que lhe parecia bem ,
porem não em pubrico , porque era muyto aparentado e
tinha muyta gente por ly , e receaua q.ue quando o pren-
deííe , ou íe quileife fazer juíliça deile , ouueíTe algum al-
uoroço , ou aleuantamento que foíTe cauía de algum gran-
de deíaftre , que elle daria ordem com que folTe morto
tão fecretameate, que nunca fe foubeíle donde lhe viera
a
dei Rey Dom João o ílí. 129
a morte , o que a todcs pareceo bem j e o gouernador to-
mou íobre fy a execução deíta morre , e a todos es que
aly eftauao encomendou muyro o íegredo. Daly por dian-
te começou o gouernador a diíllinular com efte mouro , e
fazeríhe muytas honras e fauores , dandolhe a entender
que diílimuladamente auia de fbzer dar a morte aoRaix
Xarafo , e prefentandolhe muytas rezoens porque cum-
pria muyto náo íe lhe dar cm pubrico , a que o trifte mou-
ro deu credito , com que fe ouue por feguro e ficou dei-
cançndo. Com tudo não faltou quem o auifaíTe do que no
coníelho fe tratara contr'elle , porem elle cuidando que
aquelle auifo nacia mais dointereíTe, que efperaua tirar
dellc quem lho daua , que de fer verdade o que lhe dizia, ,
lhe não deu orelhas , nem concebeo ninhuma má fofpeita ,
antes cada dia fe hia fegurando mais , e eílaua mais defcan-
lado pollos muytos mimos e fauores , que o gouernador
lhe fcizia , que o mais do tempo o tinha comfigo na forta-
leza ; com tudo não deixou de tocar niflo ao capitão , o
.qual lhe diíTe , que não creíTe coufa que Português lhe dif-
leíTe naquelle caio , porque erao ardis e inuençoens que
bufcaua para fazer com elle íeu proueito , a que o mouro
deu tanto credito , que lhe não pôs duuida , e também
imaginou que erão aquillo modos inuentados pollo Xara-
fo para lhe meter medo com que o obrigaííe a íe aufentar
da cidade, ou flizer algum defmando nella, com que fe lan-
çaíle a perder , para elle ficar com todo o poder e mando
no reyno fem ter de quem íe receaffe , e tanto foy o cre-
dito que deu a efte penfamento, qiie auendo que eíla era
íó a rezão do auifo que lhe derão , acabou de fe fegurar e
defcaníar de todo. O capitão da fortaleza não deixou de
dar conta ao gouernador diílo em que o mouro lhe toca-
ra , o qual lofpcitando que não faltaria quem lhe defcu-
briíTe alguma coufa do que fora tratado no coníelho, pa-
ra o fegurar mais e fjzer perder de todo algum receyo ou
fofpeita íe a tinha, lhe acrecentou os minios e fauores
que antes lhe fazia, corn que o trifte mouro foy bebendo
a peçonha com que delpois veyo aperder a vida. O gouer-
Farte, L R na-
130 Primeyra Parte da Chronica
nador entre tanto, vendo que fe lhe gaflaua o tempo , foy
pouendo outras chulas neccflarias, em que íempre tomaua
o parecer âeííe inouro goazil pollo fegurar mais , e enten-
dendo quão pouco tinha feito no íeruiço dei Rey, pois dei-
xaua a alfandega daqueHa cidade em poder dei Rey de
Ormuz , que era couía de que lhe podiao pôr culpas no
reyno , quis tornar abulir neíle negocio , e remouer o
que eíiaua feito , e pondoo em confelho cos capitães , a
todos pareceo que o nao deuia fazer, pois era faltar de fua
verdade , e tornar atrás co que eíiaua aííentado , e aííinado
por todos , com que nao í'oy por diante, e o negocio fi-
cou como eíiaua , e vendo que era ja tempo de fe tornar
para a índia , porque era ja em Julho deíle anno de i$2^ ,
man-dou concertar os nauios , e le fez preíles para le em-
barcar.
CAPITULO xxxvr.
Dom Luís com a fua armada nauegando para o ejíreyto
vay ter ha cidade de A.aer , combatea , e o que lhe fucede.
Om Luis de menefes , que atrás deixamos atraueíTan-
do para oellreyto com huma groíla "armada, em que
ília. para Maçuha buícar dom Rodrigo de lim.a , foy tomar
^m Qacotora , donde defpois de faze^ agoada nauegando
para outra coíía d'Adem tomou no caminho muytas nãos
carregadas de roupas , que hiao de Cambaya para o ef-
treyto , e foy ter lobrt a cidade de Xaer , «jue he grande
€ de muyío trato , em cujo porto naquelle tempo eílauao
muytas nãos de mercadores , porem tendo nouas da noíTa
armada dous dias antes que aly chegafíe , todas as que pu-
deráo fugirão com muyta prefía , e as que nao puderao
fugir , com muyta mais preíía defcarregauao íuas fazendas
em terra, onde a auiao por íegura, porque a cidade era for-
te, cercada toda em roda , e eíiaua prouida de muyta arti-
lharia, e ue muyta boa gente , e bem armada , e o Rey
delia , como dctriminaua dcfenderfe dos noífos fe o qui-
feíícm cometer j ordenou logo diante das portas , e por to-
das
dei Rev Dom íoao o íll. i ? r
das a? ruas :1a cidade muytas e aniyto fortes tranqueyr.is ,
em que pô? a artilJiaria ncceílana. A nolTa armada íby
íurgir defronte da cidade , donde lhe tirarão logo muytos
tiros groíTos , a que dom Luis não quis que da armada íc
tiraíTe ninhum , e mandou os capitães nos bateis bem con-
certados , que foíTem faquear as nãos e porlhe o fogo . o
que foy feito com muyta breuidade , porem não pôde ícr
com tanta que íe não gaftalfe niíTo o dia todo, porque acha-
rão nas nãos muyto que defcarregar , e tudo foy baldeado
nos galeoens. Acabado ifto ja quali noite , dom Luis
mandou aos capitães, que lizeíTem preíles a gente para o
outro dia ante menham darem em terra , os quais com
muyto aluoroço ordenarão tudo Com tanta preça , que
forão amanhecer a borda do galeão de dom Luis cos
baiJi muyto bem concertados, e toda agente muyto
bem armada , que ferião íete centos homens , e muytos
delles efpingardeyros, aí:ora osefcrauos que leuauão as ar-
mas , que também dauão boa ajuda aos íeus íenhores , e
porque no porto arrebentaua o mar muyto na praya , to-
dos os bateis leuarão fateixas para deixarem por popa.
Dom Luis deu adianteyra do combate das tranqueyras a
António de lemos. Lopo dazeuedo , Jorge barreto e Ruy
vaz pereyra , e com todos os bateis juntos , foy caminhan-
do para a terra , onde chegou apefar de muytos pilouros ,
quede lá lhe íirauão , de que não receberão dano, por-
que porconfelho dos pilotos efperauão polia baixa mar
para defembarcarem , porque então daua aly o mar mi-
ihor jazigo. Os muros da cidade , que d'huma c doutra
parte corrião polia terra dentro , hião enteítar em altas e
intrataueis rochas e penedias , e para a cidade não auia
outra entrada íenão por eíles mefmcs m.uros , e polias por-
tas, mas por qualquer deftas partes era aílaz perigofa ,
porque as portas erão tão fortes , que parecia coufa im-
poíTiuel arromballas , e poilos muros aparecia tanta e uo
luílroía gente e toda muyto bem armada , que era ccuía
adaz fermofa e temerofa para ver, porem nem ifío bc ílou
para por receyo no valeroío capitão , nem nos animoíos
R 2 iol-
131 Primeyra Parte da Chronica
foIJ.ulos , antes poyando todos em terra dom Luís bra-
dou logo Sintingo , com que os capitães da dianteyra co-
meteráo a tranqueyra com tanto Ímpeto, que em breue ef-
paço a largarão os mouros, efe recolherão para buin pofti-
go da porta, que eílaua aberto para por elle fe faluarem
11a cidade , onde a preíla e o medo foy tamanho, que os
que primeyro puderao entrar cerrarão logo o poíligo , e
por dentro o entupirão com tanta cantidadade de pedras ,
que ficou bem forte , e não fe lembrauão , que deixauao
de fora muyta parte de feus companheyros entregues ao
furor de feus inimigos, que aninhum delles deixou com
vida , e eílando os noíTos grandemente íentidos por não
verem maneyra para poderem entrar na cidade, chegarão
aly Nuno fernandez de macedo , Lourenço godinho ,
Martim correa , e Rodrigo de moura com algumas efca-
cas , que trouxerao arriçadas nos feus bateis , largas e
compridas , que inda não forão bem encoftadas ao mu-
ro , quando os nofíos começarão a íubir por ellas á compe-
tência qual feria o primeyro: a ifto acudirão os mouros
com grandes pedras , que lançauão de cima , e muytos zar-
gunclios , que aremeflauao, com que fazião algum dano,
porem os noíTos eípingardeyros os fizerao arredar para
fora fem oufarern chegar has ameyas , com que os noiios
tiuerão lugar para íe porem em cima do muro , e arreme-
tendo logo cos inimigos lias cutiladas , e has lançadas , os
fizerão defemparar de todo o m.uro , onde íubirão logo
Gs guioens dos capitães com outra muyta gente. Aquy
forão feridos muytos dos noíTos das frechas dos mouros ,
que eílauão da parte de dentro ao pé do muro, porem
decendoííe os noíTos abaixo e metcndoíTe entre elles fe
trauou huma afpera briga , que não foy de muyta dura ,
porque os mouros fe começarão logo a retirar pelas ruas ,
que erão cítreitas , e as cafas altas , e decima dos terrados
as molhcrcs com pedras fazicão muyto mal aos noíTos,
Dom Luis , que então eílaua na praya , mandou Artur de
melo e Duarte de taide com cincoenta homens , que en-
traíTcm na cidade , e abriíTcm aportai , o que elles íizerão
com
de! Rey Dom João o 1!I. 133
com muyta diligencia , tirandolhe totia apedra com que
eíuiua entupida , e de fora mandou também arraiar c ceí-
fcizer a tranqucyra , que eftaua diante da porta , cem que
ficando ds iodo deíembaraçada entrou dom Luis por elJa
com a fua bandeyra defpregada tocando as trombetas ,
comque os noílos tomando grandiíTimo animo forão cor-
rendo polias ruas trás os mouros , que fe lh'ercondião
polias caías , e como as ruas eítauáo todas atalhadas , nao
pcdiao os noílos paílar auante, e recebiao muyto, dano das
pedras que lhe lançauao dos terrados , para o que o capi-
tão mor fez dous eíquadroens de gente, que forao cor-
rendo toda a cidade por antre o muro e as cafas , cada
hum por íua parte, e a cercarão roda em roda , que da
banda da terra tinha os muros baixos , e porque as ruas e
as cafas eítauao todas cheyas de gente, a que os noílos não
podiáo chegar , mandou dom Luis aruorar aly muytas eí-
cada?, por onde muy tos fubirao aos terrados, com que fica-
rão íenhores das ruas e das caías : os mouros auen^doíTejá
por perdidos , começarão a fugir cada hum com a mayor
prelTa que podia , domLuis íe tornou então ha porta e lhes
deu lugar que fugiííem , de que queixandolTe os capitães
lhe refpondeo elle , que^mayor honra era fugir o inimigo
que matallo. O primcyro que cometeo a fugida foy o
R-iy, que íaindo das fuás cafas lhe mandou pôr o fogo ,
e após elle fugio toda a gente principal com todas fuás fa-
mílias. Os noíTos então começando aquebraras portas dos
mercadores ricos , e tirar o que auia dentro , lho não con-
íentio domLuis até que a cidade foy de todo defpejada
dos inimigos , então deu eícala franca a todos os capitães
e Toldados , e que cada hum foíTe liuremente íenhor do
que leuaíie, fem auer quem lhe foíTe ha mão , com que to-
dos começarão a acarretar quanto mais podião, cada ca-
pitão com feus companheyros , e alguns puferão o fogo
a grandes moradas de caías, que eftauão junto has deIRcy
que começando a arder com grandiíiima fúria e eílrondo, o
capitão mór mouido a compaixão o fez apagar, e man-
dou que ninguém pufeíle mais fogo em cala alguma, não
dei-
134 Piimevra Parte da Chronlca
deixr.ndo ícmpre de termuyta vigilância nos mouros fe fe
punhao em ordem de tornar ha cidade/ e em quanto l"e
ifto fazia mandou ao íeu condeílabre , que cos marinhey-
ros da terra foíTe recolher os corpos dos Portuguefcs,
que morrerão na batalha , que erao vinte e três , e eílauao
ainda efpalhados polias ruas da cidade , que mandou en-
terrar na praya com muyta dor e íentimento dos que o
viâo j e aos feridos mandou recolher aos íeus nauios, onde
os fez curar com muyta diligencia, e elle cos capitães e
toda a mais gente le deixou eílar em terra defcanfando
toda aquella tarde, naqual fembarcarão muytas mercado-
rias de muyto preço, porem íendo foi pofto fez embarcar
toda a gente , íem confcntir que fe pufelTe fogo ha cidade,
e como o vento ihe feruia , aquella mefma noite fe fez ha
vella na volta d'Adem ao longo da coíla , mas como le-
uaua era feu regimento , que não paíTaífe por parte onde
pudeffe íer viílo delia, por não fazer detença, e que da volta
lhe fofíe dar vifta fe lhe bem pareceíTe , fe fez muyto ao
mar e paíTou denoite por ella fem íer viílo, E como leuaua
bons pilotos , e bom tempo, entrando as portas do eílrey-
to foy furgir na ilha do Camarão a fazer agoada , em que
fe deteue dous dias , e da hy foy tomar o porto de Maçu-
lia yquQ era o fim deíla jornada.
CAPITULO XXXVII.
Dom Luís manda recado a dom Rodrigo de lima da Jua vin*
da , e je torna fem elle , fae do ejireyto e vay furgir em
Mascate,
OS moradores de Maçuha tanto que virão a noíTa ar-
mada no porto fugirão quafi todos polia terra den-
tro , porem dalguns que ficarão ouue dom Luis fala , a
que fez bom gaíalho, e os fegurou e contentou de maney-
ra , .que por clles mandou recado ao Xeque do Jugar d'Ar-
quico da lua vinda , e do a que vinha , a que o Xeque
refpondeo logo por hum homem feu , que dom Rodrigo
era
dcl Rey Dom João o III. 135'
era ia defpachrido com a repofta do Prcíle João e eftciua da
• r !- _J.- _. •- 1 ._J.. í.,, ^^ l, •
pu 1 - . ' i
ihe dclle quem leuaíTe Jiuma carta íua a dom Rodrigo , e
lho pagaria- muyro bem , com que o Xeque ficou muyto
contente por ter promeíla de dom Rodrigo de muyto boas
aluiílaras, fe lhe mandaíTe nouas que eílauao aly nnuios de
Portugueíes , e mandou logo a dom Luís hum homem
que liie leuade a carra , que rambem hia aílaz aluoraçado
pollo proueito que efperaua de dom Rodrigo por tam boa
noua. Dom Luis antes que eícreueíTe tratou cos pilotos
ate que tempo fe poderia aly deter a armada , e todos a
huma voz ('afirmarão, que até vinte dias de Abril , e mais
não , pollo qual na carta que eícreueo a dom Rodrigo
lhe encarregou muyto , que com a mayor breuidade que
pudeííe fe vieííe aaquelle porto de Macuha , onde o eípe-
raria até vinte dias de Abril e mais não podia fer , porque
pollos pilotos e capitães eílaua detriminado , que íe aly
íe detiueíle mais tempo ihe feria forçado inuernar dentro
no eílreyto , onde a armada e a gente corria muyto rifco»
Por onde íe lhe pareceíTe , que até cfte tempo não podia
vir ter a Maçuha , não buIiíTe comfigo , nem tomafle tra-
bíilho de balde , porque ja o não acharia , porem que lhe
aconíelhnua , que fe pufeíTe mais perto do m.ar , para que
quando o anno feguinte o vieííe bufcar outra armada a
não errafíe por eftnr longe , e que íendo cafo que não pu-
deííe vir a tempo de {'embarcar , na mão do Xeque d'Ar-
quico acharia recado feu , em cujo poder lhe deixaria
jeis fardos de pimenta de quintal cada fardo, e dez de
teadas , e hum cofre com coufas do reyno para íe veftir :
com efta carta mandou dom Luis dous homens para que
íe algum delles f.iltaíTe por alguma via , ficaíTe o outro , os
quais íe partirão logo e caminharão a grande preíTa. Ddm
Luis entretanto fez íua agoada , e pôs em ordem tudo o
que lhe era necelTario para a viagem , eíperando com.
niuyto aluoroço a vinda de dom Rodrigo , porem vendo
que.
13a Prlmeyra Parte da Chronica
qus até os vinte e hum de Abril não era vindo , e que não-
lii^era poflluel efpcrar mais tempo , entregou logo ao Xe-
que os fardos de pimenta., e os das teadas , e u cofre pa-
ra o dar a dom Rodrigo , e huma carta cm que íe \h° deí-
culpaua de não eíperar mais por elle , por lho não confen-
tir o tempo , de que em eftremo hia fentido- pollo nao
]euar com figo , e lhe fez noua lembrança , que íe paíTaf-
íe para mais perto , e deu conta do que lhe deixaua em
poder do Xeque , que era o meímo que lh'eícreuera na ou-
tra carta , que mandaííe pôr tudo em cobro. Os dous ho-
mens , que leuarão efta carta , a derao a dom Rodrigo aos
quinze dias de Abril , com que elle e toda a fua companhia
receberão grandiílimo aluoroço , porem inda foy mayor
a trifteza em todos , defpois que virão que os cinco dias
que lhe ficauâo para o termo que lhe punhão não era
tempo baílante para chegarem ha armada. Dom Rodri-
fro vendo que para aquilio não podia já auer remédio por
aquelie anno , e parecendolhe bem o confelho de dom
Luís fe abalou logo da ly , e caminhando até osvinte de
Abril parou num bom lugar íós três jornadas de Maçuha ,
onde lhe derão a outra carta de dom Luis , polia qual fou-
be da íua partida , e do que lhe deixaua em poder do Xe-
que , que mandou logo arrecadar, e tudo lhe foy entregue
fem auer falta. Dom Luis fazendoííe ha vella de Maçuha
com bom tempo íahio do eftreyto , e foy huma menham
furgir no porto d'Adem , onde íe deteue até atsrde íem da
terra para elle , nem de elle para a terra auer recado al-
gum , pello que mandou os bateis com alguma gente , que
queimarão íeis nãos vazias, que eftauão no porto, efe
partio como foy noite, ecorrendocom tempo a flaz rijo em
popa , em poucos dias foy íurgir no porto de Mazcate , on-
de teue larga informação' de tudo, o que o gouernador feu
irmão íizera em Ormuz , e lhe derão a entender , que tudo
íe fizera por groíTas peitas , que o Xarafo lhe dera e aos
capitães da fortaleza , de que ficou aílaz lentido , aíTy pol-
lo que cumpria ha honra de feu irmão , como porque vio
que de todo quebrara a ordem , que elle deixara em Or-
muz
delRey Dom João olíl. 137
muz acerca do negocio daquclle mouro , porem como era •
feíiido e atentado o diíTunulou^ntao j quanto vio que era
necellario.
CAPITULO XXXVIII.
O gouernador parte de Ormuz-, Jaz dar a morte a Raix Xe-
mejim , e o que Jefaz fobre ijjo. No caminho tomão os
mouros huma galé noj]a. O gouernador entra com toda
armada em Chaul defauindo com dom Luis Jeu irmão ,
dahy Je vay a Goa , dajfe conta de huma molher que os
ynouros catiuao va nojja galé,
DEixamos atrás o gouernadorfazendoíTe preíles para fe
partir d'Ormuz , por fer ja em Julho de I5'23 , e tan-
to que tudo foy aparelhado Tembarcou numa galé em
que detriminaua ir até Mazcate , e alTy embarcado daua
defpacho has partes , onde o mandou vifuar el Rey pollo
Xarafo com muytos refrefcos para a viagem. O goazil
Raix Xemeílm fe foy também defpcdir delle com hum
grande preícnte , porem o gouernador parecendolhe que
aquella era aconjunção em que mais fecretamente e com
menos fofpeita lhe podia dar a morte como tomara a íeu
cargo , o deteue em praticas de pouca fuílancia íobre as
coulas d'Ormuz até que foy noite, e deípidindoííe então
o mouro delle para fe recolher a terra , lhe diíle , que fe
deixafle eílar porque tinha para tratar com elle huma cou-
fa de muyta importância , que mandaíTe recolher o íeu
barco , que elle o mandaria deípois no bargantim pôr em
terra, o que o mouro fez fem ninhuma foípeita do que
eftaua ordenado contr'elIe. O gouernador então íe fez ha
vella , que tinhão vento proipero , e não í'afaílou muyto
do porto quando mandou lançar o goazil ao mar com hu-
ma camará de falcão aopeícoço, tão fecretamente , que
de ninguém foy fentido , onde acabou miícrauelmente a
vida. Os criados do mouro , que elle mandara para ter-
ra , e o cílauão efperando , vendo a fua tardança , e que
O bargantim o não trazia , imaginarão que o gouernador
Farts I, S o
138 Pfimeyra Parte da Chronica
o leuarla com íigo ati Mazcate , porem hum parente feu
a requerimento de íuas molheres , e com defejo de íaber a
caufa daquella fua tardança , fe embarcou em' hum terran-
quim , que he hum certo género de barquinhos ligeiros , e
ha vela e a remo fe foy a Aíazcatq , onde ch.^gou ao outro
dia , defpois de fer chegado o gouernador coln toda a.ar-
niada , e defembarcando algum tanto defuiado do porto
ló e disfraçado fe foy a Mazcate , e pôs toda a diligencia
poíHuel por faber nouas do goazii , até buícar maneyra
com que mandou tomar informaç'ío dos mouros da galé ,
fem nunca poder achar nouas nem rafto algum do que
bufcaua , e com tudo íe deixou aly andar até o gouerna-
dor fe partir para a índia. E enrao fe tornou para Ormuz
onde co mao recado que leuaua , as molheres e criados
do mouro leuantarao tantos e tamanhos prantos na cida-
de , que em todo o pouo caufou grandiííimo eípanto, e
com grandes grijos e clamores fe hião ha porta da fortale-
za , onde íoltauão mu/tas injurias e blasfemeas contra os
Portugueíes , mas íem embargo diílo não aucndo noua
certa da fua morte era vulgar opinião antre agente def-
apaixonada , que não era elle morto , mas que aueria algu-
ma caufa fecreta da fua tardança , e por diícurfo de tempo
veyo iílo a cair em total efquecimento íendo o caio em fy
tão graue. Dom Luis que inda eílaua em Mazcate, quando
ahy chegou o gouernador feu irmão , como eílaua defgo-
ílofopoilo que ouuira dizer, que elle fizera em Ormuz,
nao o recebeo com aquelle aluoroço, que íe efperaua ,
inda que cumprio com elle em pubrico com todas as obri-
gações deuidas, porem defpois que foube o que noua-
niente paíTara com o goazii Rais Xemefim fe Iheacrecentou
tanto o deígoílo , que dizem que em íegredo tiuera fobre
lilo com íeu irmão tantas queixas, que de todo ficarão
defaulndos , e chegado o tempo de fe partirem para a ín-
dia, com eíla mefma defauença fc fez ha vella , e o acom-
panhou na jornada. E naucgando o gouernador de Maz-
cate para^ a cofta de Dio , Baftião de noronha capitão de
humagalé, que por ella fer veleyra hia fempre diante de
to-
dei Rey Dom João o líl. í:;9
toda a armada , por coníelho e induzimentõ dos feus fol-
dado? ]iiima noite fe apartou delia , e íe deixou ficar a rras
pairando o mar,eíperando fe lhe vinlia ter has mãos algu-
ma nao de Meca , e auendo viíla de huma aflaz grande e
poderoía arribou íobr'eIla , que ao primeyro tiro íeJhe
rendeo e amainou as vellas. O capitão da galé , ou foíTe
por íer ainda pouco pratico naquellas couías , ou i-offe por
confelho de a!guns íoldados cubiçoíos da preía , mandou
amainar a íua vella , e a remo fe quis chegar ha nao c
abalroalla para entrar dentro , ao que lhe íbrão ha mão
alguns homens antigos na índia , dizendo que como a nao
era muyto alterofa , e tinha muyta gente , fe a galé fe lhe
chegaíle muyto poderia de cima lançarlhe tanto fogo ,
tantas pedras , e armas darremeíTo , que a todos os mataf-
íem fem fe poderem valer , mas que mandaííe o íeu batel
Jia nao , e fízeíTe vir todos os mouros ha galé , e deípois de
ella fer deípejada da gente, ainda fera chegar a ella a
mandaíTe defpcjar pollo batel como lhe railhor pareceííe ,
e fe os mouros não quifeíTem. vir lhe meteíTe a nao no fun-
do. Outros íoldados quica bifonhos e mais cubiçofos do
neceííario diíTeiao , que aly auia ja pouco que fazer, por-
que eílando a nao rendida não auião os mouros de ouíar
de bulir comfigo : o capitão parecendolhe milhor efte con-
íelho íem dar orelhas a quantos requerimentos os outros
lhe fizerão , mandou chegar a galé ha proa da nao , onde
lhe derão hum cabo com que ficou amarrada a ella , e co-
mo por eílar ao fopé da nao , cos balanços que daua ,
chegaua de quando em quando co raaílo ao bordo delia ,
os mouros que inda nao tinhao de todo perdido o animo
lhe lançarão do feu hum grodo cabo , e atracarão o ma-
fto da galé ao bordo da nao , com que a galé ficou rcuira-
da para ella , e ficando com iíto fenhores da galé lhe lan-
çarão de cima grande cantidade de pedras, zargunchos ,
frechas, e outras armas darremeíTo, principalmente da
proa da nao para tolherem aos noíTos cortarem o cnbo
que a ^alé lhe tinha dado , em que elles punhão grandiíli-
ma iaftancia , e ainda que cuílou a vida a muytos dos nof-
S 2 ÍOS
140 Pfimeyra Parte da Chronica
íos cortcirem o cabo, toda vi.i lhes aproueytoa pouco, por-
que a galé ficou preía polio mafto: os que ficarão viuos ven-
do o pouco fruyto que tirarão daquelle leu tãocuílo(o traba-
1'io, e que aly íe podiao mal defender do Ímpeto e multidão
das armas dos inimigos , lhes foy forçado renraremfe^para
a popa da galé debaixo do toldo , onde então acharão^o
mayor perigo , porque os mouros da mefma galé recolhião
as pedras que íirauao da nao, e com ellas lhe faziao muyto
dano, com que os mouros da nao cobrando animo, decerão
abaixo ha galé, e vendo os Portuguefes todos recolhidos na
popa os cometerão com muyto ímpeto , mas acharão inda
nelles yaleroía refiftencia , até que deíaferrolhandofíe os
mouros da galé lançarão íobre elles tanta cantidade de pe-
dras , que com puro deíatino fe deitarão ao mar , onde os
mouros os matarão a todos fem darem vida a ninhum: e fi-
cando aíly de todo fenhores da galé , lhe derão hum cabo
por popa da nao , que com pouca vella fe foy na volta dê
Dio , e no canainho foy dar com ella outra galé da com-
panhia do gouernador , de cujo capitão não pude faber o
nome , a qual inda que vinha muyto auolumada co a pre-
fa de outra nao que tomara , todauia o capitão quifera
pelejar com a nao que leuaua anolTagalé, porem os que
kião com elle , quica por não arri içarem a prefa que le-
uauão, lhe aconfelharao , que o não fizeíTe , dando por re*
zão que CS Portuguefes erão ja todos mortos nem auia
couía em que lhes pudeííe valer, que fe íofiem adiante a
Dabul a vender aprcHi , que delpois darião por defculpa
ao gouernador , que fe perdera da íua companhia , mas
que antre todos ouuefíe muyto tento , que nenhum vieííc
adefcubrir que toparão com a nao e com a galé , e meti-
dos em Dabul tratarão de fazer íua fazenda , e da hy lahio
a galé quando o gouernador hia nauegando para Goa , e o
capitão lhe foy dar a deículpa que antre todos fora aíTen-
tada , que por então lhe foy bem recebida , mas vindoífe
defpois em Goa a faber a verdade mandou o gouernador
prender o capitão da galé , porem da hy a poucos dias o
mandou íoltar lem outro mais gailigo , que por todos os
íi-
de! Rey Dom João o lII. 141
fidalgos lhe foy mal contado , auendo que merecera íer
grauemcnre caftigada huma fraqueza , com que o credito
dos Portugueíes parecia que ficaua algum tanto menos ca-
bado , e inda que diflo aducrtirão o gouernador lhes
aproueitou pouco. O gouernador que vinha nauegando
para Goa , tanto que entrou na coíia de Dio efpalhcu a
armada para eíperar polias nãos das prefas , com que em
dom Luís feu irmáo íe acreccntou o deígoíto , que trazia
delie, eporhumnauio lhe mandou dizer , que atentaíTe
o que fazia , porque era coufa muyto alheíi do gouernador
da índia andar has prefas , nem antes delle ouue outro al-
gum que o íizeííe , por iíTo que nao quiíeíTc dar que falar
ha gente, e que elle , por quão corrido fe achaua daquil-
lo, o nao auia aly de acompanhar mais tempo, e o hia
efperar a Chaul , co qual recado o gouernador fez reco-
lher a armada e foy entrar em Chaul , de que era capitão
Simão dandrade , que como era grandiofo o recebeo com
mu/tas feilas , e todo o tempo que aly eíleue o banque-
teou eíplendidamente , e a todos os capitães e fidalgos ,
que vinhão na armada , fó dom Luis por eífar ainda def-
aumdo com feu irmão fe nao achou prefente a eftas fefbas ,
e comia a partado com a íua gente , nem quis nunca acei-
tar coufa de quantas Simão dandrade lhe oíFerecia , e aíTy
eftiuerão em Chaul , ate que o gouernador teue recado de
ferem chegadas a Goa as nãos do reyno , para onde logo
também fe fez ha vella, A nao dos mouros que leuaua a
noíTa galé cliegou a faluamcnto a Dio, fem achar couía
noíla que ih'embaraçaíTe o caminho , onde de MeliquiaTí
foy, recebida com muyto contentamento, e ao capitão
deila fez muytas honras , e mandou defembarcar toda a
artilharia da galé , que erao cinco peças groílas , e féis fal-
cões , e doze berços , tudo de metal , eencarretada toda
a mandou aelRey, que eílaua então em Baroche com
muytas lanças, couraças, capacetes, adargas, e outras
armas que íe tomarão na galé , e a mandou varar em ter-
ra com muytas feftas por memoria daquelle feiro , que el-
Ic tinha por de muyta fua honra. ElRcy fe moílrou tão
con-
14^ Primeyra Parte da Chronlca
contente com ifto, que msndou franquear a nao de todos
os direytos que deuia , afora outras mercês e honras ,
que fez ao capitão delia. Nefta galé forão catiuos muytos
efcrauos dos Portuguefes , e juntamente com elles huma
raolher, que inda que era de nação Portugueía falaua a lin-
goa caftelhana , liiolher de bom parecer , e fe chamaua a
Marquefa. Ella eílando catiua , inda que teue conucr-
fação com alguns mouros , nunca íe pode acabar com ella
que fe tornaíTe moura , por mais importunaçoens e comba-
tes que para ifloteue, e aproueiíoulhe iíto tanto , que
ainda que gaílou huma grande parte da vida em peccados ,
permitio Deos que defpois dVftar muytos annos catiua
nos concertos de paz , que fez o Lurcão com noíco , foy
lolta com outros catiuos , que lá eftauao da nao de Mar-
tim de freilas , que matarão em Damão , e não contente
com iílo a mifericordia diuina , ordenou que caíaííe em
Goa com hum piloto , que íe chamaua João farinha , que a
trouxe para efte reyno.
CAPITULO XXXIX.
Ordenaffe a ida da Rainha dona Leonor para Caflella y
V ella fe parte , quem faÕ os que a acompanhao até a f »-
tregarem na raya,
A Trás fica dito , que eftando el Rey noíTo Senhor em
Almeirim por cauía dos rebates de peíle que auia
cm Lisboa , e nos lugares a eile vifínhos, lhe mandara
o Emperador Carlos quinto que ouueíTe por bem , que a
Rainha dona Leonor íua irmam viuua dei Rey dom Ma-
noel , que então eílaua apofentada na villa de Muja , íe
tornaííe para Caílella , e leuaíle comfigo a infante dona
Maria fua íilha , e que fua Alteza lhe concedera facilmen-
te a ida da Rainha para Caftella , mas que lhe negara le-
uar a infante fua íilha por tão boas rezóes que o Empe-
rador ficara fatisfeito , e por então não deu muyta pieíla
na ida da Rainha , até que Chriilouão barrofo íeu íecreta-
rio *
dei Rey Dom João o III. 143
rio , que então eft.ina nefte reyno por íeu tnand?.do fa-
zendo os íeus negócios , lhe cícreuco tantas falfidades e
defconcertos contra a pureza da Rainha e dei Rey noíío
íenhor , que começou elle de apertar muyto na fua ida , e
mandou logo o conde de Cabra , e o bifpo de Cordoua ,
e o doutor Cabreyro ouuidor do confelho real , por feus
embaixadores para tornarem entrega delia , e a acompa-
nharem no caminho , porem a Rainha por mais prelTa
que fe lhe daua nSo quis bulir comfígo , até íe não mandar
juílificar coEmperador feu irmão por peíloas de tanto
credito , que ficou bem entendendo a verdade delhi , e os
defconcertos e mentiras do barrrofo , que não ficou lem o
caftigo que merecia , e todo o tempo que a Rainha gaílou
em tratar iílo co Emperador , que forão alguns meies , o
conde, e o biípo não fairão de Badajoz , e íó o doutor
Cabreyro entrou nefte reyno a tratar dos negócios da
Rainha , e de tudo o que era neceíTario para a fua ida , que
cl Rey mandou preparar com muyta larqueza eabaftança
como cumpria ha honra da Rainha , e á lua , e ao amor e
veneração com que fempre a tratara : e ordenou que a
acomprinhaíTe os Ifantes dom Luis , e dom Fernando feus
irmãos , e o duque de Bragança , e outros rauytos fi-
dalgos muyto honrados, afora a companhia dos ifanteá
que era muyto nobre e copioía , e detriminado o tempo
em que fe auia de partir , que foy no mez de Mayo defte
anno de mil e quinhentos e vinte três , veyo el Rey de
Almeirim a Muja a vifitalla antes que fe partiíTe, e o dia
que fe partio foy fua alteza com ella até pauia , onde def-
pedido delia com mcftras de amor e fentimento fe tornou
a recolher , e os Ifantes , e o duque j e todos os fidalgos a
forão acompanhando até a raya , onde chegados ajuntan-
dofle aly com elles o conde de Cabra , e o bifpo de Cor-
doua a quem ella auia de íer entregue, também aíTaz hon-
radamente acompanhados , os ifantes , defpois de feitas
de parte a parte todas as cirimonias cuftumadas em íeme-
Ihanies actos, lh'entregarão a Rainha , de que auendoffe
elles por entregues , os ifantes íe defpcdirão logo delia
não
144 Primeyra Parte da Chmnica
nao fem lagrimas, e outras moílras de faudade e fenti-
mento, e íe recolherão com toda a mais que fora naquella
companhia.
CAPITULO XXXX.
Os àous capitães dom Fedro de cajlelbranco , e Diogo de
melo fe partem de Moçambique a andar has prefas^ topão
coyn embaixadores dos F^eis Dezanzibar , e Pomba que
njem pidir /ocorro para elles , Dom Fedro fe z-ay com elles,
e o que lhe ncontece,
DIíTemos atrás que das três nãos que partirão^defte
Reyno para a índia o anno de 1522 , de que erao ca-
pitães dom Pedro de caftelbranco , dom Pedro de caílro ,
e Diogo de melo , fó a de dom Pedro de callro foy ter a
Goa , e as outras duas ficarão em Moçambiq^ue. Os capi-
tães delias por não eftarem ocioíos fe partirão daly com
tenção de íe irem ao cabo de Guardafuy andar has preías ,
e indo ao longo da coíla toparão com hum barco de mou-
ros , do que tomando fala virão, que vinhão nelle embaixa-
dores dos Reis Dezanzibar e de Pomba a pedir ao alcaide
mor de Moçambique, que pois elles erao vaíTallos delRey
de PortugaUhes deíTe focorro para cobrarem as ilhas de
Querimá , que com fauor dei Rey de Bombaça fe lhe ti-
nhão leuantado. A dom Pedro pareceo rezão e deuido
irem fazer eíle focorro por íeruiço dei Rey , e credito da
nação Portugueíâ e de íuas peíToas , e do mefmo parecer
foy Chriítouão de foufa que fora da índia ,^ e então hia
por paílageiro com dom Pedro para capitão deCliauI,
porem Diogo de melo não quis confentir com elles , efe
foy feu caminho , e indo na volta de Çacotora achou hum
Zambuco , que hia de Chaul com cartas , e lhe deu nouas
que o gouernador eílaua em Goa , fazendoííe preíles para
ir a Ormuz, pollo que elle também fez para la fua viagem
e não lhe feruindo o tempo , com algum trabalho foy ter
a Chaul, onde achou o gouernador, que partia para
Dio , que o não recebeo com muyto goílo , vendo que
lhe '
dei Rey Dom Joíio o III, i^^^
lh'era forçado metello em poíTeda capitaniii d'Ormnz, om
que elle tinha poílo João rodriguez de iioronha feu lobri-
nho , mas nao podendo fazer outra couía , mandou que ^
naa em que elle viera íe foíTe a Cochim , e elle na ariíiada
fe foííe para Ormuz , onde lhe deu polfe da capitania da
fortaleza , e fucedeo o que atrás fica contado. Dom Pedro
de caftelbranco le foy cos embairadores, que o encaminha-
rão para a principal das ilhas de (^irimá , em cuja guar-
da e defeníao elldua hum íobrinho dei Rey deBombaça
com muyta gente de guarnição. Dom Pedro em chegando
fez dous efcoadroens da íua gente , que íerião quaíi du-
zentos homens bem armados, dos quais deu hum a Criíto-
uão de foufa e outro tomou para íy , com que defembar-
cados em terra forão cometer o lugar , que acharão bem
prouido para fe defender , e como ChriílouSo de íoufa hia
na dianteira , a elle acudio logo o capitão com a mavor
parte da gente , onde ouue iiuma peleja aflaz trauada ,
porque os mouros eráo muytos c bem armados : dom Pe-
dro não tardou muyto em dar no lugar por outra parte,
onde acudindo muytos dos que pelejauao com Criílouão
de fouía ficou elle algum tanto mais deíaliuiado , porem
dom Pedro deu nelles com tanto impeto , que como os
achou fem capitão e mal ordenados em breue eípaço os
fez pôr em fugida , e ir demandar o íeu capitão , indolhe
elle íempre dando nascoílas, porem vendoo cair morto
de huma lançada que lhe deu António galuão filho de
Duarte galuão , que morreo na ilha do camarão , não ou-
ue antr'elles quem trataíTe de mais , que de faluar a vida
por onde milhor podia. O lugar, que eílaua ja de todo def-
pejado dos inimigos , foy laqueado pollos noflos , que re-
colherão deile hum muyto bom deípojo, e deixarão
de lhe pôr fogo por lho pidirem os embaixadores , por-
que o lugar era dei Rey Dezanzibar. Neíla peleja forão
feridos Chriílouão de íoufii, e hum criado feu por nome
Gaípar preto , que lhe leuaua o feu guião , e Nuno freyre ,
e António galuão , e Luis machado , e outros muytos , de
que não pude íaber os nomes , e por fcr ia tarde íe reco-
Fane I. T lhe-
1^6 Primeyra Parte da Chronicá
Iherão todos a huma grande mezquira que aly eílaiia , on-
de ao outro dia vlerao embaixadores das outras ilhas me-
tellas debaixo da obediência de dom Pedro , que as re-
duzio todas ao poder dos Reis Dezanzibar e de Ponibá ,
cujos ellas erao , e recoIhendoíTe logo ha nao , defpois
de repairar os feridos o milhor que ioy poííiuel , fe fez á
"vella para Melinde , onde lhe diziao que podia eílar mais
íeguro , e no caminho . por íer ja fora de tempo , que era
em. fim de Abri!, achou os ventos aíTaz rijos e trabalhofos,
com que cometeo airauefíar ha índia mais por coníelho e
inilancias de Chriftouao de foufa , que tinha conheciinen-
ío da ai te de cartear , que por vontade do piloto e meílre,
que por ferja boca d'inuerno auiao a viagem por muyto
perigofa , e aííy com aííaz de trabalho forao furgir na
barra de Goa a doze dias de Mayo , onde dom Pedro fe
nio quis íair da nao , porque Franciíco pereyra capitão da
cidade mandou dar muyta preíTa em a defcarregar para a
fazer meter no rio de (joa a veila , porem fucedeo leuan-
tarfe hum temporal de vento Sul tão impetuofo , que não
podeudo^a nao fer locorrida da terra por fer o mar tao
groílo , que ninhuma embarcação pôde fair polia barra fo-
ra 5 foy forçado a dom Pedro por fazer a nao tanta agoa ,
que nunca le pôde vencer , mandar largar as amarras pol-
jos eícouués c dar o traquete para que , fendo então con-
junção deimaré cheya , a nao foíle varar muyto em feco ,
porque deita maneyra parecia que íe poderia tudo pôr em
íaluo , mas tanto que tocou na terra co grande Ímpeto dos
mares íe fez em pedaços y em que ainda morrerão alguns
homens com a preíTa e defejo de íe faluarem , porem dom
Pedro e os mais, que com elle fe deixarão ficar na nao até
que a maré vazou de todo , íe fairão delia íem perigo , e
fe tirou muyta fizenda , e outro muyto fato : e defpois de
cellar a tempeílade fe tirou também toda a artilharia , e
muyto cobre e caixoens de coral, e fe aproueitarão os ma-
lhos e rudo o mais de maneyra, que quaíi fe não perdeo da
nao mais que o caíco..
CA-
dei Rey Dom João o IIL 147
CAPITULO xxxxr.
o Tlidakãomafida hum capitão feu has terras de Goa ^ que
fe fenhorea das tanadarias delia, O tanadar mórfae a el-
le por duas vezes , e o que Ihejucede em ambas,
NEfte Tnuerno, que o gouernador dom Duarte de mc-
_ nefcs cíleue em Ormuz , íuccderao algumas coufas
em algumas partes da índia dinas de memoria , de que
me pareceo bem fazer aquy menção antes de tratar das
nãos , que forao do reyno eíle anno de I5'2^ , pois todas
íucederao antes da fua vinda , e quali num mefmo tempo.
Vendo o Hidalcao que o inuerno era cerrado , e tendo
noticia, que Goa eftaua muyLO falta de gente, porque
polia trabalhofa condição do capitão Franciíco pereyra ,
que o fazia mal quiíloccm todos, raulenraulo muyro? ho-
mens da cidade , parecendolhe que eftaua {^ tempo dilpo-
ílo para dar eííeito ao íeu antigo deíejo , mandou hum ca-
pitão feu com fete centos de cauallo e cinco nvilde pé ,
de que muytos erao frccheyros , que foíTe tomar as tana-
darias de que os noílos ellauao fenhores. Eíle capitão r\io
fomente não achou refiítencia nos moradores das tanada-
rias , mas achou em todos muyto bom recebimento e
muyto gofto da íua vinda , pollos iníultos e males que re-
cebião dos noíTos , e aíTy lhe começarão logo a pagar as
rendas que pagauao aos ncdos , com que entrando ven-
cedor por todas aquellas terras foy na de Bardes dar cnt
huma tanadaria , em. que eftaua por tanadar hum André
pinto com oito Portuguefes , que ainda que fizerão algu-
ma refiftencia aos que vierão diante, em que o tanadar
foy muyto ferido, todauia como elles erao poucos, e os ini-
migos forão recrecendo , lhes foy forçado recolheremfe
com muyta prefta para o pagode de Bandorá , ond'eftaua
Fernão eanes fouto mayor , que então era tanadar mor , o
qual nefte pagode ( que tinha huma cerca de pedra grande
e aíTaz forte) tinha feitas íuas eftancias , onde tinha com-
ligo cento e cincoenta Portuguefes, cm que auia trinta
T 2 de
140 Prlmeyra Parte da Chronica
de cauallo c alguns efpingirdeyros , e quinhentos piaens
da rerra. Chegando os mouros a eíle lugar íahio a elles o
tanadar mór com a íua gente , e pelejando com elles foy
desbaratado, e fe recolheo para o pagode com cinco de
cauallo mortos e muytos feridos ; e nos piaens ouue pou-
ca perda , porque muytos delles fe paííarão para os inimi-
gos. Chegando a Goa as nouas difto , logo o capitão Fran-
cifco pereyra mandou António correa , cafado na cidade ,
em duas fuílas pollo rio com trinta homens a íocorrello ,
CO qual focorro o tanadar mór detriminando vingarle da
afronta que recebera , fez preíles vinte e cinco de cauallo ,
e cento e trinta de p S , de que alguns erao efpingardeyros
com que paílbu o rio do íal , que em conjunção de maré
vazia faz vao em algumas partes , e foy demandar os ini-
migos , que efrauão alojados num campo raio ao íopé de
hum ouíeyro , que como tinhão o alojamento muyto eí-
palhado parec*erão tantos , que puferao medo aos noíTos ,
c eíliuerao com penfamento de fe retirarem , mas como ja
então a maré eftaua chea, e no rio não auia vao por onde os
de pé o tornaííem a paliar, lhes foy forçado fazer roílo aos
mouros , que ja neíle tempo os vinhão demandar com
grandilfima fúria , e fe trauou antr'elles huma aífaz afpera
briga , em que dos noflos forao mortos fete de cauallo , e
os outros todos quafi feridos, eotanadarmór foy ferido
de hum zarguncho darremeíTo com que fe virão tão afron-
tados e poilos em tanto aperto , que eftiuerão em muyto
TÍf:o de ferem de todo desbaratados , não deixando porem
de pelejar valeroíamente aíTy o capitão como os íoldados,
e moítrando fempre tanto animo os feridos como os Ía6s ,
iras tudo iíto lh'aproueitara pouco fe a miíericordia diui-
na os não focorrera, permitindo que hum tiro perdido deí-
le na cabeça ao capitão dos mouros, que andaua em
hum cauallo cubertado diante de todos os feus , que ven-
doo cair morto em terra perderão de todo o animo , e fe
começarão a defordenar , e pôr cm desbarato , com que
os noíTos cobrando nouo animo e nouas forqas , e dan-
do grandes gritas apartarão com elles demaneyra, que
CO-
dei Rey Dom João o III. 149
como os tomarão deTanimados, e íem ordem , cm breue
eípaço os fizerão pôr em fugida , deixando no campo
mujtos mortos e feridos , que os de pé acabarão de ma-
tar. Fernão eanes defpois de dar graças a Dcos por aquella
tão milagrofa mercê , não quis leguir o alcance por ter a
mayor parte da gente ferida , e por não ellar fem receyo
que os mouros íe tornaíTcm a ajuntar , e com capitão no-
uo o vieíTem dem.andar outra vez , e mandando paííar os
feridos da outra parte do rio , e leuallos has fuílas d'An-
tonio correa , elle com a mais gente íe recolheo ao pago-
de donde faira , e da ly fe paíTou a Goa por lhe Franciico
pereyra mandar dizer, que não tinha gente que pudeífe
mandar fora da cidade. E como eítas terras ficarão então
defemparadas dos nolTos , os mouros fe fenhorearão de
todas , que rendiao cincoenta mil pardaos douro. E o Hi-
daicão mandou hum capitão feu , que íe aíTentou em Pom-
ba , donde tolhia paílar a Goa todo o género de manti-
mentos , com que obrigou a Franciico pereyra a fazer pa-
zes com elle.
CAPITULO XXXXII.
O quefucede a António de brito ejl ando fazendo a fortaleza
na ilha de Ternate , moue guerra a el Rey de Tidore , e
a rezão porque , e o quejucede logo no começo delia»
ANtonio de brito , que o anno paíTado de mil e qui-
nhentos e vinta dous ficou em Maluco fazendo hu-
ma fortaleza na ilha de Ternate , com fauor de Cachilda-
roens filho baílardo áç\ Rey da meínra ilha , com que no-
•uaraenie tomara amizade , e por íua interceíTao fora feito
regedor do reyno , foy proííegindo a íua obra com a mor
preíla e breuidade que podia , mas como o trabalho era
grande, e os mantimentos da terra muyto ruis, e nella não
auia pao , lhe veyo adoecer a gente c morrer alguma.
Neíle tempo hum irmão do Rey m.orto de Ternate , que
andaua fora do reyno , porque el Rey feu irmão o lançara
delie por yer que era mao homem , e Jhe íer deiobedien-
te.
i^o Priíiieyra Parte da Chronica
te , vendo a conta que naquella terra íe fazia dos Portu-
guefes , e o poder e valia que nclla tinhao , lhe pareceo
que CO íeu fauor poderia tornar ao íeu eíbdo antigo , e
para iílo com alguns dos feus fe veyo ha cidade , e me-
tendode na mezquita mandou dizer a António de brito ,
que elle com muytos dos íeus fe vinhão aly para fe faze-
rem Chriftãos , por iíTo que o fauoreceíTe , e lhes fizeíTe
dar a agoa do bautifmo , e que elle lhe faria ainda muyto
feruiço na terra. Cachildaroens tendo logo nouas difto , e
entendendo que fe eíle homem íe fizeíTe Chriítâo , por fer
tio dei Rey , o tiraria do mando e da honra em que eftaua
poíto , diííe a António de brito que por ninhum cafo con-
fentiíle que aquelle tio dei Rey entralFe na terra , porque
eramao e fallo , e que por querer matar el Rey íeu irmão
e leuantaríTe co reyno fora deíterrado delle , que foubeíTe
certo que tanto que aly entraíTe , como hera homem def-
quieío ereuoltoíoj auia de cauíar muytos trabalhos de
reuoltas, e aleuantamentos. António de brito bem enten-
deo a tenção do Cachildaroens , porem não ouíou então
de o efcandalizar , porque tinha muyta obra por fazer e
pouca gente para ella , e elle lhe acodia a todas íuas fal-
tas, e fentio muyto não poder fazer o que o outro lhe pe-
dia, porque lhe pareceo, quefazendoíTe eíle Chrirtão ouue-
ra d'auer outros muytos que fe forão com elle , e afly por
continuar com Cachildaroens lhe mandou dizer, que fe
tornaíTè a fair da cidade, que por então não eílaua em tem-
po para fazer o que lhe pedia, e elle ofez aíTy, de que os da
terra íícarao tão efcandalizados que começarão a fazer al-
guns aluoroços pollo ódio que tinhão a Cachildaroens , os
quais António de brito pacificou com muyto fiío , e muyto
trabalho por na feitoria auer muyta falta de roupa , que
fe nella ouuera panos que fe puderão dar ha gente da ter-
ra , tudo apaziguara muyto facilmente , e eíla mefma falta
de roupa foy então caufa de faltarem os mantimentos , e
a gente para fazer a obra , que cos Porfuguefes fós íe não
podia fazer por andarem muytos delles doentes , com que
o capitão eílaua poílo em grandiíFimo aperto e agonia. E
prour
dei Rey Dom João o III. 151
prouue a Deos , que nefta conjunção chegou a Maluco
riem Rodrigo da lilua com hum nauio para carregar de
crauo , em que leuaua muytas roupas fuás , e algumas para
a feitoria , com que najerra ouue algum alento. Junta-
mente com eílc nauio chegarão alguns juncos de Malaca e
de Banda , que vinhao também a carregar de crauo , no
que António de brito logo proueo , mandando pidir aos
Reis das outras ilhas em que auia crauo , que a ninguém o
vendeílem , porque ellc o queria todo para el Rey de
Portugal que era ícnhor daquellas terras , nem confentif-
fem que os juncos eftiueííem nos íeus portos , e iílo parti-
cularmente mandou dizer ao Rey de Tidore , porque foy
auiíado que no íeu porto eílauao carregando muytos jun-
cos. Eíle recado mandou António de brito por hum An-
tónio rauares homem de confiança, para o que lhe mandou
armar huma fuíla com hum falçao e féis berços, e vinte ho-
mens que o acompanhaifem , e lhe deu ordem que fe os
juncos não quifeíTem largar o porto por íua vontade , lhe
tiraíTe has bombardadas e lho fizeíle largar por força. O
António tauares deu eíte recado a elRey de Tidore , que
elle recebeo com deígoílo , e lhe refpondeo que o crauo
não daria a outrem ninguém, mas que deitar os juncos fo-
ra do feu porto era coufa que não auia de fazer , pollo
qual António tauares os começou logo de esbombardear ,
e os obrigou a íe fairem do porto , de que el Rey fe mo-
Jftrou em eílremo íentido , pollo qual os Portuguefes por
eílarem feguros da gente da terra fe deixarão eftar todos
embarcados na fuíla , e não tardou muyto que lhe não def-
fe hum temporal tão rijo , que íem íe poderem valer lhes
deu com a fuíla ha coíla , onde os da terra derão logo fo-
br'elles , e os matarão a todos , e recolherão a artilharia e
concertarão a fuíla e fe íeruirão delia. Chegando eílas no-
uas ao capitão António de brito mandou prender muytos
carpinteyros , que el Rey de Tidore lhe tinha mandado ,
com que fazia hum nauio , e mandou dizer a el Rey que
lhe mandaííe logo a fuíla e artilharia , e os mouros que
matarão os Portuguefes para fazer juíliça delies , ao que
el
i^i Piimeyra Parte da Chroníca
el Rey llie não rerpondco a propofiro , por onde António
de brito detriminou de lhe fazer guerra por confellio de
Ciíchildaro-ens, aquém ella vinha muyto a propoíito , por-
que entendia quanta neceíTidade o capitão auia de ter delle
para a poder fazer. A Rainha tomou muyto mal fazerfe
ella guerra, porque era contra feupay, e lecretamente
perfuadia aos léus que não pellejaííem contr'elle , mas
antes fc IcuantalTem contra os noíTos , do que CachilJa-
rosns íendo logo auiíado o diíTe ao capitão, e lhe aconíe-
Ihou que para eftar feguro da Rainha a recolheíTe dentro
na fortaleza , e el Rey leu filho com ella , com que pode-
ria fazer fuás coufas muyto ha fua vontade. António de
brito pôs iílo em conlelho com dom Rodrigo capitão do
nauio que aly eftaua , e com outros homens que lhe pare-
ceo que niílo podiâo ter voto. E todos forao contra o
coníelho de Cachildaroens , dando por rezão, que fe lal fi-
zeffe toda a terra fe leuantaria contra os noíTos , mas que
trabalhaíTe por fazer fuás couTas com a Rainha por boín
modo e fem elcandalo , mas como o capitão eftaua mais
afeiçoado ao outro parecer não quis feguir efte , e detri-
minou de meter a Rainha na fortaleza, o que não foy
em tanto fegredo que ella não fofle auiíada diíío, e de-
noite fogio para a ferra , e da hy fe foy para feu pay^, po-
rem com apreffa não pode leuar comfigo el Rey feu filho ,
o qual o capitão recolheo na fortaleza , e pôs boa guarda
nelle, onde o trataua com todo o ellado que pertencia a lua
peíToa. A gente da terra vendo que o feu Rey eftaua na
fortaleza, de maneyra que o não deixauão lair fora, dizião
que o capitão o tinha prefo , por onde ouue muytos aluo-
roços, que o Cachildaroes trabalhaua porapazigu^^r, mas
como roda a gente eftaua muyto elcandilizada, não que-
ria ajudar na guerra , que o capitão fazia contra os de Ti-,
dore , vendo que lá eftaua a fua Rainha , porque a tenção
do capitão era fazer efta guerra com a gente da terra por
não arrifcar os Portuguefes que erão muyto poucos. Para
ifto o Cachildaroen;; , como era fagaz e pratico na terra ,
lhe deu poraluitre que mandalTe apregoar, que aquém
quer
delRey Dom João o III. 15-5
quer que lhe trouxeíTe cabeça de homem de Tidore daria
hum pano da feitoria , que era de aííaz baixo preço , ao
qual pregão acudirão tantos homens da terra com cabeças
de Tidores , que de todo efgotariío os panos da feitoria, e
veyofle ifto a acender de maneyra , que íe teue por certo
que fe na feitoria ouuera então panos em abaílança , a ilha
de Tidore ficaua muyto falta de gente ; tão bom barato
fazem do fangue humano a cubica e o intereííe, principal-
mente na gente barbara e infiel ; e porque também neíle
mefmo tempo os de Tidore matauão muytos dos deTer-
nate , fe areou antr'elles huma guerra tão acefa , que ja fc
não perdoauão huns aos outros onde quer que íe achauao,
c também os das ilhas de Bachão e de Geilolo ajudauão
niílo os de Ternate contra os de Tidore para terem parte
nos panos que fe apregoarão , e com todo eíle trabalho o
Rey de Tidore eílaua tão contumaz contra os noílos , que
nunca quis pidir paz , ou concerto algum, com que a guer-
ra durou alguns dias.
CAPITULO XXXXIII.
O Rey de D achem arma huma cilada hafortak&a de Pa»
cem de que he capitão dom André Anriquez , elle manda
huma armada contra os Dachens , e ofucefjo delia. Os
Dachejts fazem guerra ao rey no de Pacem. O Rey fe re-
colhe junto dafortalej-a, e o que [obre ijjofas:: o capitão»
DOm André Anriques , que atrás deixo dito que fica-
ua na capitania de Pacem , como entrou nella pobre
e defejofo de remedear fua nobreza , começou logo de víar
para iíTo de termos aíperos e efcandaloíos , e algum tanto
fora de rezão e juíliça , não fomente com a gente da terra,
mas também cos meímos Portuguefes. com que cora huns
e outros fe fez odiado e mal quiílo. O Rey de Dachem
tendo nouas deíle modo de proceder do capitão , e da fua
natureza , detriminou armarlhe huma cilada para o expe-
rimentar , e ver fe podia abrir caminho para lhe tomar a
Parte L U for-
15*4 Prlmeyra Parte da Chronica
fortaleza , para o que mandou fazer preftes cincoentn larb^
charas bem prouidas de gente de guerra , e de muyta arti-
lharia , e íccretamenre as m^indou porem hum rio, que eílá
cinco legoas de Pacem, e na boca defte rio mandou pôr ai-
to lancharas carregadas de pimenta ed'outras mercadorias
de preço , donde mandarão dizer a dom André , que ellas
erao chegadas áquelle lugar com muyta pimenta e outras
mercadorias, que iriao vender ha fortaleza ie lhe deílem
feguro, com tanto que lhe nao fizeíTem força, e fe náo que
aly as vendcriâo , fe lhas aly quiíeíTem ir comprar. Dom
André ou foíTc por cubica, ou por outro algum reípeito, de-
triminou de as mandar tomar , ou ao menos faquealas íe
pudclle , e para iílo ordenou doze embarcaçoens de lan-
charas e m.anchuas bem armadas d'ariilharia epanellas de
.poluora com oitenta Portuguefesefpingardeyros , todos
bem armsdos , e outragente de guerra natural da terrra, e
eom elles dom Manoel anriquez feu irmão, que era capitão
xv.ór do mar. Eíla armada íe foy logo demandar as lancha-
ras qu<lieftauao naboca do rio ao focairo de huma ilha , e
em auendo uifta delias as foy cometer á vella e a remo com a
mayor preíTa que cada hum podia, defejofo cada hum de fer-
o primcyro que chegaííc a lançar mão da prefa :os inimigos
que eflauão bem de lobre auiío, em vendo os noíTos fe puíe-
rão em fugida pollo rio dentro , remando quanto mais po-
dião 5 que por encher então a maré hiao bem depreíTa , os
noflos fe forão trás elles pollo rio dentro também com a
mayor prella que puderao , e tendo andado meya legoa
dobrando huma ponta , que aly faz o rio clerao defupito
com as cincoenta lancharas , que em vendo os noflos arre-
meterão a elles com grandes gritas c eítrondo de muytos
eíh-omentos de guerra , com que nos nollos caularão
grandifíimo efpanro , e com a corrente da agoa hiao tão
íiuiados, que fem íe poderem ter paíTarao tanto auante, que
os Dachens lhe ficaríío nas coílas , os quais abalroarão lo-
go os n^Oiíos pelejando muyto esforfadamcnte , mas tam-
bém os noflos fe defendiao como homens, que íó nos íeus
braços tinhão a lua vida 5 e aífy trauados huns cos outros
£0-
dei Rey Dom João o ííí. 155'
forão todos dar em terra ; onde , nao fendo baHanres as
forças nem o esforço dos noííos para reliílircm ha grande
multidão dos Dachens, forao todos mortos por elks fem a
ninlium le dar ávida, e nao efcaparao da quy mais que
alguns remeyros naruraes da terra , que como erao práti-
cos nella fe meterão polios matos , e da hy a dous dias fo-
rao ter ha fortaleza , e derao nouas do que paííaua , com
que no capitão e em todos os outros entrou hum grande
receyo de lhe poder acontecer algum defaílre , porque na
fortaleza nao ficauao outros tantos homens, e alguns delles
doentes, e os mouros , como eilauão eícandalizados ,
vendo a fraqueza dos noíTos , começarão logo a leuantar
contr'elles alguns aiuoroços, e fazer alguns deimandos. O
Rey de Dachem, que tinha preíles muyta gente de guerra,
tanto que teue a noua do desbarato dos noíTos , ordenou
mandar hum íeu primo com corenta mil homens contra â
fortaleza, e lhe deu juramento que trabalharia com todas
fuás forças polia tomar , e dar a morte a todos os Portu-
guefes, ou ao m.enos os lançaíTe fora da fortaleza, Q^elle íi-
caíTe fenhor delia , porem antes que o delpedilTe mandou
notificar ao tutor dei Rey de Pacem , que gouernaua então
todo o reyno , que elle miandaua aquelle feu primo com
hum grande exercito a tomar a noíla fortaleza , que fe el-
le com a íua gente o quiíeíTe ajudar naquella empreía , o
teria íempre por amigo , e fe fízeíTe o contrario entendcf-
fe que a elle e a el Rey auia de dar a morte , deílruirlhe o
reyno , e fazerfe fenhor delle , e por nao chegar co elle a
eíles termos o auifaua primeyro , que lhe mandaíTe dizer
fua detriminação. O Regedor do reyno defpois de dar
conta deíle recado a dom André , como fabia que o Rey
de Dachem era falfo , e lhe não auia de cumprir coufa que
lhe prometeííe , e que o mal que fucedeíTe aos noííos auia
de íuceder também a elle , lhe refpondeo , que elle não
auia de íer contra os Portugucfes , mas antes os auia de
ajudar , e defender até morrer por elles com toda a gente
daquelle reyno , da qual repoila eícandalizado o Dacliem
defpedio logo leu primo com tgda a fua gente, que en-
U z tran-
15^ Prlmeyri Parte da Chmnica
trando pollo reyno de Pacem fez nelle grande eftragf) a
fogo e a íangue , e íe foy fazendo fenhor de rodas as ter-
ras até aíTentar leu campo fobre a principal cidade do rey-
no , em que então eílaua el Rey e o regedor com todo o
íeu poder, onde os inimigos os apertarão tanto Tem os
deixarem deícanfar de dia nem denoite , que foy forçado
ao regedor fairfe íecretamente da cidade, leuando comíigo
elRey com toda a íua caía e familia , e tudo quanto tinha
de íeu , e íe foy apoíentar junto da fortaleza ha borda de
hum eílreito de que eílá cercada , onde também o acom-
panhou muyta gente do pouo , e aly ordenarão huma po-
uoação de caías de palha , em que íe agaíalharão , e a cer-
carão de huma tranqueyra de paos muyto groíTos entu-
lhada por dentro de terra , com que íicou aíTaz forte , e
prantarão ncUa muyta artilharia , e tudo foy feito por tal
ordem , que os tiros da fortaleza varejauao por cima da
pouoação íem lhe poderem fazer nojo , e eíle aíTento to-
mou aquella gente para co fauor dos noíTos eílarem em-
parad(^ e quafi íeguros de feus inimigos, porem dom An-
dré também da quy quis tomar ocaíião de fazer íeu prouei-
to , porque Jlies não deixaua ter eíle a (Tento de graça.
Com tudo os Dachens não os deixarão aquy eílar quietos ,
porque muytas vezes lhe vinhao dar rebates , chegando
a combater a tranqueyra onde lhe fazião quantos roubos e
males podião, a que dom André não queria acudir nem
defparar a artilharia da fortaleza fem peita do regedor ,
mas como os Dachens hião cada dia recrecendo , vierão
aly a fer em tanta cantidade , que puíerão os noíTos em
grande receyo de lhe cometerem a fortaleza , e por iíTo
Jhes foy forçado fairem fora algumas vezes a fazer retirar
os inimigos , e porque elles com tudo apcrtauão muyto
com a guerra, receando que lhe vieíTem pôr o fogo, tinhão
nlíTo grandiíTima vigia de dia e de noite, que lhes daua
aíTaz de trabalho. O capitão dom André como era homem
de poucas carnes e de fracas forças, e íe tinha viílo cm pou-
cas coufas daquella calidade , a continuação do trabalho
millurada com algum receyo lhe veyo a caufar huma infirmi-
da-
delRey Dom João o Til. 157
dade tao graue, que o pôs em muyro rifco de perder a vi-
da e porque na fortaleza não auia tanta gente quanta era
neceílaria para a defençáo delia , tomando íobr'iílo confe-
Iho com quem lho podia dar, fe aflentou que mandíiííe
hum nauio que tinha no porto com recado ao gouernador
do que paflaua , efeito preíles muyto diíllmuladamcnre
fez embarcar nelle hum criado feu chamado Perro ferrão
com quinze Porfugueíes e vinte marinheyros da terra, e
por elle efcreueo ao gouernador o eftado em que eítaua
elle e a fortaleza, e lhe pedia que a mandaíTe prouer de
gente e moniçôes , e tam.bem de capitão, porque elle
íicaua de maneyra, que duuidaua muyto quando o íocorro
vieíTe achallo aindaviuo, e que em todo cafo mandaíTe
capitão, porque ainda que Deos lhe íizefle mercê de lhe
dar vida e faude , elle deíiíHa da capitania , e renunciaua
em fuás mãos rodo o tempo que a inda tinha por íeruir nel-
ja, e todas eftas couías lhe efcreueo em forma de prore-
ftos e requerimentos. O nauio fe partio denoite tão fe-
crctamente , que ninguém o entendeo , e quando foy me-
nham ja não aparecia , e chegou a faluamento a Cochim
onde o gouernador eítaua , que prouueo niíto como a
diante íe dirá.
CAPITULO XXXXIIIT.
O Rey de Bintão com huma groffa armada manda fazer
guerra a Malaca , Jorge dalbuquerque capitão da forta-
leza manda outra armada contra ella , eojucejjo que ieue,
António de pina vay em hum junco fazer fua fazenda ,
chega ao Torto de Pão , ondejão catiuos os Portuguejes e
morrem mártires»
EL Rey de Bintão, que nunca cefTaua de' fazer guerra ha
fortaleza de Malaca, mandou neíle mefmo anno o feu
capitão do mar chamado Laquexemena com oitenta lan-
charas bem armadas a continuar ella guerra : vindo efta
armada a dez Iggoas de Malaca, ouue viíla delia Duarte
coe-
158 Primeyra Parte da Chronica
coelho , qne Jiia em hum nauio para fora , o qual roítou
logo, e com muyta preíTa veyo darauifo ajorgedalbu-
querque capitão da fortaleza , que até então defta armada
não tinha ninhura fcntimento, e poílo efte negocio em
coníelho foy detriminado, que íe ordenaffe logo huma
armada, que foíTe pelejar cos de Bintao , porque íe os dei-
xaíTem andar fenhores do mar farião muyto dano ha forta-
leza e ha cidade , tolhendolhe os mantimentos , e rouban-
dolhe os mercadores que vieíTem a ella : com eíta detrimi-
nação fe fez logo preíles hum galeão , de que íe deu a ca-
pitania a dom António anriquez , em que também auia de
ir dom Sancho anriquez , feu irmão, que era capitão mor
domar, e Duarte coelho no íeu nauio, e huma gaíeota
de que foy por capitão Francifco pereyra del)erredo, «
íeis lancharas de que erao capitães Anrique leme , Diogo
fogaça, Francifco Lourenço, Fernão rodriguez , André
íigueyra , e Diogo luis caiados em Malaca. Dom Sancho
com eíla armada íe foy demandar o rio de Muar , cos
nauios grandes ao mar , e as lancharas ao longo da cofta ,
e armandoíTe neíle caminho huma trouoada , dom Sancho
íe pôs ha corda, onde ouue fala de todos os capitães, e lhes
diíie, que a trouoada parecia que trazia muyto vento, com
que bem poderião entrar no rio de Muar , porem que íe
o rio vazaííe trazia tamanho Ímpeto decorrente, e faria
tamanho efcarceo, que corria rifco alagallos a todos , que
lhe parecia bem meteremíe no rio de Cação , que não tra-
zia tamanha corrente, onde poderião eílar íeguros até pal-
iar a trouoada: alguns dos capitães aprouarão eíle feu pa-
recer , porem outros tocados de hum ponto de honra ,
quiçá defconíiando , que as mais das vezes cuíluma ter
muyto máo fuceíTo, diíTerão que parecia termo de fra-
queza podendo elles entrar em Muar, onde eílaulío os ini-
migos , irem buícar outra colheyta ; os outros que erão
de contrario voto , por não parecer que o fazião por falta
de animo tornarão a dizer, que era muyto a certado entra-
rem no rio de Muar , para onde começarão logo de ir ca-
minhando. E fendo ja tão perto delie como meya legoa ,
lhe
dei Rev Dom João o líl. 15^9
lhe deu o venro da trouoada com grandiíliin.i força. Dom
Sancho e Francifco pereyra na galeora , e Duarte coelho'
no íeu nauio a mainarao logo as vellas , porem as lanclia-
ras forão demandar o rio, e com a força do vento rom-
perão acorrente da agoa , e forao tanto pelo rio acima ,
que três lancharas que hiao diante , de que erão capitães
Ánrique leme , Diogo fogaça , e Francifco lourenço forão
dar na armada dos inimigos ja quaíi noite , os quais em
vendo os noíTos ,fe forao logo a elles com muytas feftas
e grandes gritas , e os cercarão por todas as partes , po-
rem a peieja durou pouco , porque os noílos , inda que fe
defenderão valeroíamente , com tudo como p,elejauão
contra tamanha cantidade , em breue tempo forao todos
mortos , de que fó Francifco lourenço efcapou com vida ,
porque como a noite era ja cerrada fe lançou ha vaia, e
CO grande efcuro íe pode laluar. As outras três lancharas.,
que íicauão atrás , for fio varar na vafa que era grande. E
cm amanhecendo fe íairao do rio, e fe forao recolhenda
para o galeão que cftaua ha vifta , mas não o puderao fa-
zer com tanta prefla , que doze lancharas dos inimigos ,
t|iie fairão trás elias , as não alcançaííem e pegaíTem logo
comellas, onde d'huma parte e doutra fe pelejaua com
muyto esforço , e alTy trauados huns cos outros forao dar
íobre a galeota , que eílaua diante do galeão afaílada hum
grande eípaço delle , onde os mouros pegarão também
com ella , e como tinhao ja mortos muytos dos que vi-
nháo nas três lancharas , e vinhao oufanos e vitorioíos ,
pelejarão tão animofamente , que fem valer aos noílos a
grande reíiítencia quefizerao, forao todos mortos e fe-
ridos, e a galeota tomada íem nunca o galeão nem o na-
uio lhe poderem dar qualquer focorro , porque nem com
a artilharia ouíauao de os fauorecer com receyo de faze-
rem mal aos noíTos. Deíla deíauentura , em que morrerão
íetenta Portugueles , íe não faluou mais que huma lancha-
ra, que teue tempo de fe efcoar e recolheríe ao galeão , em
quanto os mouros íe ocuparão em amarrar a galeota ,
a qual leuarão pollo rio dentro, com que Laquexemena fi-
cou
lóo Primeyra Parte da Chronica
cou aíTaz contente e oufano , e íe recolheo logo para Bin-
tao , receoío que os noííos o tornaírem. abulcar para to-
marem vingança do mal que lhes fizera. Daquellas lan-
charas , que íe perderão dentro no rio de Muar, fe faiuou
também hum homem , que com a noite íc lançou ha vaia ,
chamado Tomé lobo , o qual embrenhandoíle poilos ma-
tos foy ter a Malaca, que eftaua daiy dez legoas , não íem
grande perigo de muyta variedade de animaes brauos, que
ha por aquella terra , de que Deos milagroíamente o quis
Jiurar : erte deu nouas domai que tinha vifto dentro no
rio , que do defóra não fabia parte ; deíloutro não ouue
quem leuafle nouas, fenão o mefmo dom Sancho, que vendo
hum fuceíío tão deíeílrado íe tornou para Malaca acompa-
nhado de Duarte coelho , onde chegado quifera tornar a
bufcar os inimigos, e deixou de o fazer por ter noua certa,
que erão ja idos , com a qual noua Jorfc dalbuquerque
deu licença a hum António de pina, que em hum junco feu
foíle fazer fua fazenda ha ilha da Jaoa , o qual leuou em
fua companhia hum Bernal drago e outros dous Portugue-
fes , e feita fua viagem tornandoííc para Malaca co junco
bem carregado , com hum temporal que lhe deu foy ter
ao porto de Pão , que he na coíla de Malaca, cujo Rey
des do tempo d'Afonío dalbuquerque fora fempre muyto
amigo dos Portuguefes , e os noíTos nauios tratauáo com
elle muyto feguramente , porem iílo eftaua ja então muda-
do ao reues, de que foy a cauía, que o Rey de Bintão nof-
fo capital inimigo deu huma filha íua em cafamento ao
Rey de Pão com hum riquiílimo dote , com condição , que
não auia de coníentir, que na fua terra trataíTem Portugue-
fes , mas antes a quantos chegaílem aos feus portos auia de
fazer todo mal que pudeííe , e eíles concertos fe tratarão
anirc ellcs com muyto fcgredo , por não chegarem ha no-
ticia dos noíTos , com que fugiíTem dos portos daquelle
reyno de Pão. Ifto eílaua ja alTy concertado antre'aquel-
les Reis, quando aly chegou António de pina , e cuidando
que chegaua ao porto de hum Rey amigo como fempre
fora , mandou o barco a terra buícar o que lhe era necef-
dei Rey Dom João o ÍII. 16 1
fario. O Rey fabendo que o junco era de Porruguefes
rxiandou logo muyto refrelco ao capitão e dizerlhe , que
tudo o que ouuefie inifter da fua terra ilie mandaria dar
de muyto boa vontade , e tanto que foy noite mandou ar-
jnar oito lancharas , que íendo raenham derSo de fupito
lobre o junco, c o entrai ao por todas as partes os noílos
com qunnto eílauâo defcuidadoá por lhes parecer que
cftauão íeguros, inda que náo erao mais decoatro, íe defen-
derão , até que lhe faltarão as forças para poderem pele-
jar , então forçados da neccíTidadc fe entregarão aos inimi-
gos, que os leuarão catiuos a el Rey , e elle os mandou de
prefente a cl Rey de Bintão íeu fogro, o qual com grandes
medos e ameaços os quis obrigar a fe tornarem mouros,
mas nunca o pode acabar com elle? , pollo qual os man^
dou meter viuos em bocas de bombardas ceuadas e por-
Ihe o fogo, e deíla maneyra aquelles animofos e celeíiiaes
eípiritos com as carnes feitas em pedaços receberão hu-
ma glorioía morte polia confiflão da fé íantiííima , que
profeirauão.
CAPITULO XXXXV.
Dom Sancho anriqitez vay ha cofia de Fatanc andar has
. prefas , acompa-nhado de Amhrofio do 'rego , e de André de
brito , e ofucejjo que tem,
AS nouas deíle íuceíTo de António de pina chegarão a
Malaca muyros dias defpois de íer paííado, porque
os mouros matarão todos os que hiao no junco, para
que não ouueíle quem pudeíTe ir dar auiío da nouidade ,
que então auia no reyno de Pão , pollo qual Joríe dalbu-
querque deu também licença a dom Sancho anriquez para
ir andar has prefas na cofta de Patane, o qual foy em hum
galeão muyto bem prouido , e leuou comfigo dom Antó-
nio íeu irmão e trinta Porruguefes bem concertados, e em
lua companhia foy Atnbrofio do rego em hum nauio tam-
bém muyto bem aparelhado com outros trinta Portugue-
Parte 1. X fes
i6z Primeyra Parte da Chronica
íes.. AjuntouíTe com elles para eíla jornada hum André de
bríro , que fora da índia em huma nao íua com licença para
ir tratar polias partes de Malaca, onde a Jorle dalbuquer-
que parecelTe bem. Eíle André de brito íe apartou da com-
panliia e fez feu caminho para Sião com a nao bem concer-
tada e quinze Portuguefes comíigo, onde deípois de carre*
gar de ricas mercadorias fazendo volta para Malaca foi (ur-
gir no porro de Pao, íem faber o que nelle auia de nouo, e
mandou a terra tomar agoa e refrefco.O que íabido por el
Rey víou com elleda mefma manha que víara com António
de pina, mandandolhe refreíco e oíF.recimentos de amigo;
porem de noite fez aparelhar vinte lancharas, que em ama-
nhecendo foráo abalroar a nao com muyto arreuimento
por todas as partes em roda, e ainda que os Portuguefes
trabalharão com muyto esforço por lhe defenderem a en-
trada, matando e ferindo muytos dclles, todauía como erão
muytos, não lhe puderao tolher entrarem por ambos os
bordos, polia popa, e polia proa, e tanto que forão dentro
começarão de ir matando os no (Tos até que não ficou viuo
mais que hum irmáo do André de brito, que com huma ef-
pada d'ambas as mãos fez marauilhas , e matou muytos
mouros em quanto lhe durarão as forças, mas tanto que lhe
ellas faltarão foi também, morto como os outros, e também
íe diíTe delle, que íe lançara ao mar onde morrera. Os mou-
ros tomarão a nao coín quantas mercadorias rinha , e tiran-
dolhe a artilharia a tiuerão no porto muyto tempo , pare-
cendolhe, que não faltaria algum mercador, que lha com-
praíTe para a vender aos noíTos, mas vendo , que ninguém
lha queria comprar lhe puferao o fogo.Dom Sancho c Am-
brofio do rego na coíla de Panate fizerão muytas e muy
groíTas prefas, e vindoíTe recolhendo para M.ilaca lhes deu
hum tempo do mar aííaz rijo, com que Ambrofio do rego,
que hia mais ao mar, foy correndo, porém dom Sancho
não podendo correr, arribou ao porto de Pao, nao íaben-
do também o que nelle paíTaua , e elleue furto efperando
que abonançade o tempo. El Rey , tanto que o foube , o
mandou logo vifitar com muyto refreíco, acompanhado
de
dei Rey Dom João o Ilf. 163.
de m.uyros oferecimentos fe qulfedc ir defcanfar em terra,
e fenão , que mandaíle por tudo o que quileíTe , que lho
mandaria dar de muyto boa vontade, e quando fe quifeílc
partir lhe mandaria vacas e carneyros e tudo o mais que
lhe foíle necellario para a vi^ígem , e aos que leuarão cíle
recado emcomendou que atentaíTem muyto bem , que gen*
te e que concertos auia no galeão, ao que dom Sancho lhe
retpondeo cos deuidos agardecimentos. A vinda de dom
Sancho a efte porto acertou de ler em conjunção , que La-
quexemena era chegado a elle do dia dantes com trinta
lancharas a viíiiar el-Rey de Pão, e fazer prefas nos na-
uios dos Portugueíes , c]ue aly vieíTem , e tanto que tcue
nouas do noílo galeão, fez logo preíles as fuás trinta lan-
charas , e ajuntando a ellis outras trinta dei Rey , fahio do
rio com muytas bandeyras e grandes gritas e eílrondo
d'eftromentos de guerra ao feu modo : quando dom San-
cho ouue viíla deíla armada foy ainda em tempo que fe
pudera bem leuantar íe lhe não faltarão vento, e ainda
que a grande multidão dos nauios dos inimigos jdÔs hum
grande eípanto e receyo nos noíTos , todavia não foi de
maneyra , que perdeílem o animo, antes o capitão dom
Sancho le fez preíles para pelejar com elles , mandando
concertara artilharia , pôr homens nas gaueas , e outros
em baixo que lhe deíTem pedras , e em cada hum dos bor-
dos pôs oito Portuguefes , e feu irmão dom^ António na
proa com outros oito , e elle cos que ficauão fe pôs no
chapiteo da popa acompanhado dos efcrauos, que o po-
dião ajudar, donde com palauras de muyto esforço trab;:*
Ihaua por animar os feus foldados , e ao condcltabre e a
coatro bombardeyros encomendou , que em chegando as
lancharas a tiro defparalTem nellas toda a artilharia, por*
que bem eftaua vendo que os inimigos os vinhão abalro-
ar , e que toda a peleja auia de fer de perto : os m.ouros ,
como homens de guerra, tanto que fe vierão chegando p^a-
ra o galeão fe eípalharão, porque a nofla artilharia os não
tomalíe juntos , com tudo em chegando a tiro , o galeão
deu fogo, e ainda alcançou doze ou quinze lancharas , que
. Xz to-
1Ó4
Piinievra Parte da Chronica
forao feitas em pedaqos , e da gente delias a que nao foy
morta ficou nadando pollomar, as outras lancharas em
paííando eíla qurriada Te chegarão ao galeão e o abalroa-
rão todo em roda , e por todas as partes íubio tanta can-
lidade de inimigos , que não valeo aos noííos a dura refi-
ílencia que fizerão , para deixarem de ler entrados : neílc
tempo os homens das gaueas faziâo tanto dano has lan-
charas, que foy forçado aos mouros entender com elles
depropofito, e aíFy não ceíTarão até que has frechadas e
Jbas eípingardadas os matarão a todos. Neíte tempo a pele-
ja debayxo era tão trauada , e tão cruel, e durou tanto
eípaço , que os noíTos poucos a poucos forão caindo mor-
tos e feridos , o que vendo dom Sancho bradou aos que
íicauão , que já não erao mais de treze , porque todos os
mais jazião mortos ou feridos, que fe recolhelTem para
a tolda, onde todos juntos terião mais força , e milhor de-
feníão , o que elles fizerão logo , e porque o chapiteo os
emparaua pelejarão daly hum grande eípaço , em que
matarão tantos dos inimigos , que jazião rrorios huns lo-
bre 03 outros , mas nem por iíTo deixarão alguns de decer
abaixo , onde matarão quantos marinheiros e eícrauos
acharão , íem a ninhum quererem dar a vida: vendo então
os mouros quíio bem os noflos daly fe defendião, e quan-
to mal recebião delles, não oufando já pelejar com elles
de perto íe retirarão para fora , e de longe lhe derao tantas
frechadas , que do muyto fangue, que lhe fahio das feri-
das, enfraquecerão de m.aneyra, que cairão todos no chão,
c dom Sancho também com elles, que feu irmão já era
morto no caílello da proa, onde forão todos mortos não
íem grande e honrada vingança da fua niorte, porque eíla
euílou as vidas de mais de quinhentos dos inimigos aísy
no mar como no galeão : os mouros então deípindo as ar-
mas a todos os mortos lhe lançarão os corpos ao mar, e
leuarão o galeão a terra , e deícarregado de toda a artilha-
ria e fazenda lhe puferão o fogo. Ambroílo do rego , que
hia mais ao mar, quando Ih.e deu aquelle tempo rijo fe foy
meter em hum no, e tanto que ouue bonanqa íe foy a Ma-
laca
dei Rey Dom João o III. * 16^
laca parecendoihe , que já lá deula d'eftar dom Sancho,
de cuja perdição íe nao foubcrao aly nouas ieinío daly a
muy tos dias. Pollo qual Jorle dalbuqucrque , vendo tantos
máos íuceíTos, tanta gente morta , e tantos nauios perdi-
dos, reccoío que o Rey de Bintão tomalíe daquy atreui-
mento para lhe fazer guerra , mandou pedir ao gouernador
focorro de nauios e gente, que lhe elle mandou. Nefte
tempo chegou também a Malaca dom Garcia anriques ,
que vinha de Maluco em hum nauio carregado de crauo ,
em que António de brito capitão da fortaleza mandnua
hum. homem feu ao gouernador a lhe pidir que mandaííe
prouer Maluco de capitão, por quanto elle era muyto do^
ente , e fe vieííe a morrer receaua , que fe perdcíie tudo o
que era feito , polia muyta diícordia e diíTeníToés , que auia.
na terra , no que fe fez o que ao diante íe verá.
CAPITULO XXXXVI.
Ghegão a Goa as nãos , que ejle armo uao do rey no. O gouer-
nador fe pajfa a Cocbim , daffe conta do que fu cede na
fortaleza de Calecut jendo capitão delia dord ^oão de li~
ma , e do que fazem os mouros nefte teynpo , e de outras
coujas que o gouernador dejpacha ejlando em Cochim.
NEfte anno de i^ii, partirão deíle reyno para a ín-
dia fete nãos, de que foy capitão mór Diogo da fil-
ueira, e das outras erao capitães dom António dalmeida ,
Eytor da iilueira, Manoel de macedo , Fero da fonfeca na
]oba de Jorfe lopez bixorda , António dabreu , e Aires
da cunha , que fe perdeo ao entrar em Maçambique : pO'
rem nao foy a perda mais que do cafco da nao, que tudo o
mais fe faluou. Deites capitães o primeiro que chegou ha
índia foy Manoel de macedo, que aos vinte d'Agoílo en-
trou na barra de Goa , e deu nouas da mais armada que
partira do reyno , porem todas as outras nãos chegarão
também a Goa a faíuamenío , onde auia dezaíleis dias que
erão chegadas, quando ahy chegou o gouernador, que vi-
nha
i66 Píimeyra Parte da Chronlca
nha de Ch?.ul , onde eftiuera defpols que tornara d'Or-
muz: o qual defpois que vio as carras das vias proueo em
algumas coufas , e deu prcíTa ha deícarga das nãos, e as
mandou logo para Cochim , para lá íe concertarem e to-
marem carga , e elle também le partio , e de caminho vifi-
tou Cananor , onde deixando prouimento para o gengiure,
e as mais coufas para a viagem das nãos d^o reyno, íe íoy
a Calecut onde eftaua por capitão dom João de lima , que
entrara na vagante de Manoel de lacerda , c achou delle
muytas queixas aíTy de mouros como de Portugueíes,
porque era homem acelerado na cólera, e aípero de con-
dição , polia qual caufa auia poucos dias que lhe tinhão
lançado íecretamente dentro na fortaleza algumas cobras
de capello peçonhentas , que matarão algumas peííoas a
que picarão : efca nouidade Te entendeo que fora a^y man-
dada trazer de propofuo por ordem d'alguem , porque def-
pois de íer feita a fortaleza nunca íe aly fentio couía da-
qiiella calidade , a que o capitão acudio com muyta dili-
gencia , mandando vir alguns homens da terra , que cuílu-
mão tomar eílas cobras fem lhe ellas fazerem dano,^por vir-
tude da raiz de huma certa erua, que leuão nas mãos, que
tem tal calidade, que em a cobra a cheyrando fica como
atardoada íem poder picar nem bulir comíigo , os quais
homens achando mais de vinte em diuerfas partes as ma-
tarão todas. D. João de lima co grande íentimento que
tinha diíl:o,e defejo de faber quem lho ordenara, mandou
pôr eícritos , em que prometia cem pardaos a quem lho
defcubriíTe, e fe foíle negro catiuo o forraria , e logo lhe
defcubrirão negros da fortaleza, que hum mouro , que
elle eípancara , mandara buícar aquellas cobras , e peitara
lium negro de hum Português, que as trouxera dentro em
hum Calão, que he como panella , e as deitara na fortale-
za , e tais eípias pôs dom João fobre o mouro que o to-
mou dormindo dentro em lua caía, e o mandou atar p^ol-
los pcis e polias mãos a quatro cílacas bem fixas no chão,
e com fogo pofro ao redor delle o fez queimar viuo
muyto de vagar, de que el Rey de Calecut le moílrou
' muy-
delRey Dom João o IIÍ. \6j
muyto fentido , polias queixas e clamores que lhe fízerão
outros mouros , c afsy por efta cauía como por curras fe
fez deípois a guerra , que a diante fe dirá , porque como
a tenção do gouernador era tratar em tudo de paz para en-
tregar a índia pacifica ao fuceííor que eípersua o anno fe-
guinte , defcuidauade da guerra mais do que cumpria ,
com que os mouros vierao a tomar tanta íobcrba e ou-
fadia , e delmandarfe tanto, principalmente eíles de Ca-
lecut , que eílando o gouernador no porto , dom Pedro de
cartro e António galuão forao jantar com dom João de li-
ma , e deípois de jantar Tem outras armas mais que as eí-
padas na cinta , acompanhados de catorze ou quinze ho-
mens, fe foráo veracidade, onde fe ajuntarão Jogo al-
guns mouros com as armas , que cuílumão trazer fempre
como os Naires, que íão efpadas , adargas , zargunchos ,
e arcos , e frechas , e andando após os noíTbs por algumas
ruas da cidade fe lh'atraueíTauão diante , c paíiauao por
eiles , e os enconrrauão com tenção de armarem brigas
com elles para os matarem , o que entendendo dom Pedro
dilTe aos companheyros , que nenhum moílraííe paixão
nem fe meteíle em cólera , antes todos fe riflem e zombaf-
fem, fazendo que não entendiao a tenção dos mouros , e
deíla maneyra vfindo mais de huma rezao animoía em íe
faberem e poderem refrear , que de hum animo temerário
em cometer o que era fora de toda rezão , fe meterão por
huma rua eftreitn por onde for?o íair ao terreyro da for-
taleza , onde acharão dez íoldados efpingardeyros , que o
capitão mandaua em bufra delks , c íe recolherão a fal-
uamento ficando os mouros muyto oufanos , batendo nas
adargas , efgrimindo com as eípadas , e meneando as lan-
ças , dizendo muytas vezes vxar Porruguefes , que na íua
Jingoa quer dizer, abrir os olhos Portugueíes, e ainda que
ifto chegou ha noticiado gouernador, todauia não fez
iobre ifio diligencia com el Rey , nem acudio a ifio como
era rezao e neceflario , com que a íoberba e oufadia dos
mouros foy em tanto crecimento, vendo quão mal acu-
dia o gouernador a os deímandos, que elles faziâo , que
vicraõ
lóo Primevra Parte da Chronica
vierão a fazer muvto pouco cafo delle, e em quanto elle
andou fóra da índia , tomarão muyias fuftas , e outros
nauios de Portugueles , lhe roubarão as fazendas , e tira-
rão as vidas , com que íe íizerao tão .ricos que puderão
fazer groílas armadas contra os noííos bem prouidas de
gente e artilharia , de que forao armadores Baylacem ,
Cotialede Tànor, e Patemarcar, de que noutros lugares
fe fez menção , aos quais os mercadores de Calecut , e de
Cananor , ajudando com muyto dinheyro, armarão huma
cantidade de paraos para IJie darem guarda a mais de
trinta nãos , que no inuerno eílauão carregando de pimen-
ta e drogas para irem a Meca , que delpois fairão de muy-
tos rios onde eftavão fazendo lua carga , e tendo nouas
dom João de lima que no de Chalé eílauão oito nãos, que
auião de ir naquella companhia , mandou fondar a barra
para faber , que forte de nauios podião entrar nella, e
do que acliou mandou auiíaro gouernador, que já eítaua
emCochim, para que mandafle guardar o rio , porem elle
parecendolhe que fe tomaíTe aquellas nãos feria caufa de
le mouer guerra com Calecut , diUimulou por então , e al-
guns dizem que a caufa foy ter por dauante outras ocupa-
ções de leu proueyto. As nãos emfim íairão do rio acom-
panhadas dos paráos , que hião em fua guarda, que def-
pois de as porem doze ou quinze legoas arredadas da co-
ita , donde fizerão íeu caminho feguramente , fe tornarão
ha coita, onde roubauao e catiuauío quantos Portugueíes
achauão , e os relgatauão por pouco preço: e veyofle a
entender , que eíta nouidade era manha de que víauão pa-
ra menos perigo e trabalho feu , porque virão por expe-
periencia que os Portugueíes , fe lhes parecia que os
avião de matar, pelejauão até morrerem por faluar as vi-
das, mas fe fabiao que os auião de reígatar , fe entrega-
uão fem peleja : e iílo era caufa de fazerem os mouros
muyto mayores males , e chegarão a tanta loltura , que
quando ventaua a viração do mar, com que da terra não
podia íair couía que lhes íizeíle dano , paíTauão os pará-
os polia barra de Gochim muyto embandeyrados, dando
muy-
dei Rey Dom João o III. iíp
muytas gritas , e lançando mnytos foguetes tão perto da
prava, que fazião zombaria dos que os eílaupo olhando,
c algumas vezes acontecia vellos o gouernador da fuà
janella, e nao fazia mais mouimento, que zombar delles,
e chamarlhe ladroes que não tinliao vergonha , e com tu-
do mandaua vigiar as nãos da carga , para que de noite
lhe não puíeíTem fogo , porem elies nunca puferão tento
niíTo , porque tinhão ordem de feus armadores , que não
trauaííem briga, fenao em parte donde eípcrairem tirar
proueito. O gouernador deu mu/ta prcíTa ha carga das
jiaos, que aulao de ir para o reyno , para o qual lhe deu
todo o bom auiamento poíliuel , mas como eílaua tido em
conta de homem cubiçolo e amigo de feu intereíTe , ifto
que elle quiçá fazia com zelo do feruiço dei Rey fe diíTe
então, que o fizera porque a detença das nãos lhe não im-
pediííe huma viagem que tinha detrimínado fazer a Or-
muz, para a qual tinha feito muyto emprego de pimenta
e drogas em Coulão eBaticala, e de gcngiure em Cana-
nor de maneyra , que vendoo a gente tão deícuidado no
bem comum, e tão íollicito no feu proueito, veyo a dizer
que por peitas que recebera d'alguns lhes dera licença ,'
que com fuílas e outros nauios foíTcm tratar por onde
quifeíTem, pollo qual no feruiço del-Rey auia alguma que-
bra por falta da gente de guerra, e também nos officiais
da fazenda e da juíliça não deixaua d'auer algumas defor-
dens a que fe daua a mefma caufa. Neílas nãos, que forão
do reyno efte anno de mil e quinhentos e vinte ires , man-
dou el Rey ao gouernador repoíla do que lhe efcreuera
acerca da cafa do apoftolo S. Tome, e das diligencias
que nella erao feitas , c porque o padre penteado , que da'
índia não viera a outra coufa, lhe tinha dado larga infor-^
msção do que nifto paíTaua , mandou ao gouernador, que
Ic tiraíTe dlíío na terra inquirição de nouo muyto eílrcíita ,
e que a cala fofíe muyto bem concertada , do qual nego-
cio o gouernador encarregou o meímo Manoel de- frias
íeu criado, que já la mandara outra vez. Veio tãobem pro-
wido por el Rey de capitão e feitor da pefcaria do aljôfar
. Farts L • Y hum
lyo Primeyrà Parte da Chronica.
hum Joio flores , que em rodas as coufas que Lopo faa-
rez paíTiira em Ceilão fe achara fempre com elle , para o
qual effeito el Rey lhe raandaua dar toda a geare, e arma-
da , que foíle neceííaria : efta pefcaria íe faz antre Ceilão
ti o cabo de Comorim polia gente da terra, e todo o al-
jôfar, que no outro tempo íe tiraua delia, recolhiao em íj
os mouros daquella coita , de que pagauao groílas rendas
aos fenhores das terras , donde os gouernadores auiao boa
parte, porque erão fenhores do mar, e agora para effeito de
fe recolher e arrecadar efta pefcaria para elRey vinha eftô
Joáo flores por capitão e feitor delia, porém o gouernador,
ou fofle polia perda, que dahy lhe vinha, ou por outro al-
gum reípeito, difllmulou com João flores, e íem o pro-
uer do que lhe era neceíTario para fazer o que lhe fora
encomendado , o mandou que fe fofle em companhia de
Manoel de frias , a quem mandou , que fofle ha pefcaria ,
ç a fizeífe arrendar aos fenhores áa terra , para ver o que
dauão por ella , e o que podia render , e após iflo íe fofle
andar por capitão e feitor na cofla de Charamandel. Ne-
fte tempo chegou a Cochim Ambrofío do rego , que vi-
nha de Alalaca , por quem Jorfe dalbuquerque mandaua
pedir focorro ao gouernador, e lhe deu conta das perdas
e desbaratos , que nella ouuera , e do receyo de guerra em
que ficaua a fortaleza, e também lhe deu alguma relação
do trabalho, em que Maluco eftaua, e após eíle nauio
chegou logo o de Pacem , em que dom André lhe manda-
ua-recado do que paflaua na fortaleza , e pedir-lhe, que
a proueife de capitão , e a tudo iíto proueo o gouernador
omillior, que então foy poflluel , porque deípachou para
capitão mór do mar de Malaca a Martim Afonfo de íbu-
ía com huma boa armada bem prouida de gente, muni-
ções e artilharia, e para capitão da fortaleza de Pacein
mandou Lopo dazeuedo no mefmo nauio, que dom André
mandara co recado, bem concertado e repayrado de nouo,
c nelle meteo oitenta homens bem armados com boa ar-
tilharia , poluora , pilouros, chumbo, e tudo o mais , que
cumpria para a fortaleza , porém tudo iiio com hum tem-
pc»raJ(
dei Rey Dom João o III. 171
poral rijo que teue no caminho foy forçado aJyjar-fe ao
mar, com que chegou a Pacem desbaratado. O gouerna-
dor, defpois que deu expediente a cilas coufas, e a outras
que lhe parecerão neceíTarias, deixando aly dom Luis íeu
irmão com poderes de gouernador para guardar a coíla no
verão, e refidir aly no inuerno, íe paliou a Goa com a
fua armada bem carregada, com que fe partio para Or-
muz, porém antes que partiíTe deípidio Eytor da filueyra
para Maçiá com oito vellas groílas bem concertadas e
prouidas ie boa gente, e hum bargantim para íeruiço da
armada, em bufca de dom Rodrigo de Jima, embaixador
que fora ao Preíte João, de que el Rey cada anuo lhe
mandaua fazer lambrança, e lho emcomendaua de no-
no , da. qual viagem de Eyror da filueyra me pareceo bem
dar logo aquy conta, porque foy na entrada do anno ler
guinte de 1524.
C A P I T U LO XXXXVII.
Eytor da filueyra parte para o efireyto, Vay f urgir m porto
de Adem. E o que pajja co Rey delia, Daby vay a Maçuá
em bujca de dom Rodrigo de lima,
EYtor da filueyra partio de Goa em fim de Janeiro do
anno de mil e quinhentos e vinta coatro com as fuás
noue vellas , que erão coatro galeões, de que erão capi-
tães elle , António de lemos , Nuno fernandes de mace-
do, e Manoel de moura , e quatro nauetas de que os ca-
pitães erão Duarte de melo, António ferreyra , Aluaro de
crafto, eAnrique de macedo , e hum bargantim em que
hia por capitão Fernão carualho , na qual armada hião
fetecentos homens afora a gente do mar. Partindo de Goa
foy fazer agoada em CJacotorá, e da hy fe fez na volta do
eftreyto , onde fez boas prefas de nãos, que hião para lá
carregadas de roupas de Cambaya, que tudo mandou bal-
dear nos íeus nauios , e dos catiuos recolheo os que lhe
podião leruirj c aos outros metidos nas luas nãos mandou
y 2 . pôr
37^ Pfimeyra Parte da Chronlca
pôr o fogo. Eítas nonas fe fouberao logo em Adem por'
Jium barquinho , que ropcu no mar com huma nao quei-
mada, e ouue villa da noíia armada , a qual chegou ao por-
to d'Adem o meípjo dia ha tarde , que Já chegara o bar-
quinho , por onde as nãos eílrangeyras, que aly eílauao já
carregadas, não tiuerao tempo para poderem fugir do por-
to. Os mouros donos das nãos vendo aparecer a nofla ar-
mada, e que fe hia chegando para o porto, receofos de
as perderem, íe negociarão com el Re/ de maneyra , que
aíTentou com elles fazer todos os bons concertos que pu-
deííe CO capitão da armada , com que eiles não perdef-
iem as luas nãos , poilo qual mandou logo huma almadia
çom recado a Eytor da lilueyra, que fe elle vinha como
amigo íua vinda foífe muyto boa , que folgaua muyto c6
jella, porque queria aííentar paz e amizade com el Rey de
Portugal , e fazerfc fcir-Y^flallo para ter feu fauor contra
os Rumes , c niífo faria todo o concerto , que foíTe bom e
rezoado : e fe vinha como inimigo íe defenderia como pu-
tíelTe, c que lhe lembraíTe que fe alguma ora os Portugue-
ies receberão algum mal daquella cidade não fora íenao
em defenfão do que lhe elles quiferão fazer, com que lhe
fora forçado fecharem as portas por lha não tomarem
por força. Eytor da íilueyra como era homem de muyta
Opinião e defejoío do feruiço dei Rey , parecendolhe que
fe naquelle negocio , que era o primeyro de importância
de que o encarregarão, pudeííe fazer algum concerto com
que aquella cidade d'Adem fícaílc tributaria a elRey, e
o Rey delia feu vaíTallo, não fomente lhe faria hum gran-
de íeruiço, mas elle hcaria ganhando muyta honra, ícm to-
mar os pareceres dos homens antigos na índia, que hiãa
na armada, reípondeo a el Rey , que não vinha ao feu
porto como inimigo nem para lhe fazer agrauo,e que
ainda q.ae viera com eííe penfamento , íó por lhe man-
dar dizer que queria íer vaííallo dei Rey de Portugal não
fomente o mudara, mas lhe faria todo o íeruiço, que pu-
deííe, e lhe defenderia o íeu porro de quem o quiíeíTe
pfcnder, poUo qual lhe mandaítc huai homem dos prin*
cipaiç
■ dei Rey Dom João o ÍII. 173
cipais de íua caía com que fe trataíTc efte concerto. Con-.
tente el Rey com a repoíla e os mercadores muyro mais ,
que fe oferecerão a darem tudo o que foíle neceilario para
não fe desfazer o concerto, m^andou logo hum dos rege-
dores da cidade com hum prefenre de muytos barcos car-
regados de carneyrcs , galinhas, manteiga, agoa , e le-
nha para toda a armada, que era o de que ella tinlia mais
ncceííidade, e para Eytor da filueyra muytae peças de bor-
cadilhos, tafetas, e ciris de Meca. Eytor da íilueyra o re-
cebeo com grande aparato com a tolda do galeão toda.
armada, acompanhado de todos os capitães , aíTentados
em bancos cobertos com alcatifas , e ao entrar lhe fez
muyta honra e gafalhado , e lhe mandou dar huma cadei-
ra raia cuberta com huma alcatifa, c defpois que o rege-
dor lhe aprefentou o que lhe el Rey mandaua , e os po-
deres íeus baílantes para fazer o concerto , praticarão lo-
go no aíTento das pazes, em que ouue pouca porfia, por-
que o regedor trazia por ordem , que não fe deíauieíle com,
Eytor da filueyra , e com tudo não deixando de ir e vir
alguns recados íe veyo aconcruir, que el Rey d'Adem
pagaííe caà'ano a el Rey de Portugal dous mil xerafis fey-v
tos em huma coroa que íe leuafTe a el Rey de Portugal ,
porque iílo íó baílaua para reconhecimento de vaííala-
gem , e que difto lhe deffe huma carta feita nua folha dou-
ro como dauão todos os outros Reys da índia , e com eíla
paz e amizade o feu porto ficaria franco e íeguro a todas
as nãos, que eftiueílem nelle, e as nãos dos feus naturaes
nauegarião feguramente por todas aa partes , não achan-
do nellas Rumes, e não eílando das portas do eítjeyta
para dentro, e que para iíTo daria el Rey cartazes aos ieus
por onde foíTem conhecidos, e que os Portugueíes , que
JeuaíTem mercadorias ao feu porto, pagarião ametade dos
direitos íómente , que pagauao os outros mercadores >
e afora iílo outras muitas coufas de íuílancia de huma
parte e da outra com todas as retificaçoens c claufulas fir-.
mes, que parecerão necefíarias, de que paíTarão efcrituras
4e parte a parte, a de Eytor da filueyra com oícllo das
armas
T74 Primeyra Parte da Chronlca
armas reais , e a dei Rey cm huma chapa douro aíTinada
por elle , e pollos regedores da cidade, em que ouue de-
tença de quinze dias, no fim dos quaes dous deíles regedo-
res trouxerão eíla chapa a Eytor da filueyra, e a coroa fei-
ta do modo que elle quis, e outro grande preíente de pe-
ças para elle e para todos os capitães, deftribuidas por
ordem de Eíleuao diaz lingoa , que fora o menfageiro de
todos os recados, ao que Eytor da filueyra mandou em
retorno afora os deuidos agardecimentos dos prefentes ,
que lhe mandara, outro preíente de boas peças pouco
vfadas naquclla terra. Nefte meyo tempo, que eftas coufas
fe tratauão, vinhão muytas almadias da terra vender couías
de comer ha armada, e os noíTos andauao muyto feguros
polia cidade , onde venderão as roupas das prefas , de que
fízerão tão bom barato, que ficou el Rey bem largamente
pago do que lhe cuftou a coroa , e por onde quer que
andauão lhe fazia a gente da cidade muyta honra, que
aíTy o mandara apregoar el Rey , porém elles não deyxa»
não de fazer alguns defmandos , de que ninguém ouíaua
queixarfe , que fe chegarão ha noticia de Eytor da filuey-
ra não ficarão fem caítigo : o qual mandou a terra alguns
homens de que íe fiaua, a que encarregou andafiem por to-
da a cidade, e com muyto cuidado e atenção viíTem os mu-
ros, as portas , a ribeyra , e todas as mais particularida-
des delia , para lhe darem inteira relação do que nella
âuia 5 o que elles fizerão como lhes fora encomendado,
porque os mouros lhe moftrarao tudo até os leuarem ao
lugar onde eftauãoíepuitados os nolTos que aly morrerão,
quando Afonfo dalbuquerque tentou tomar aquella cidade,
o qual lugar era hum eícampado,em que todos tinhão jazi-
gos ao modo das fepulturas dos mouros ,e em cada hum
lua bandeirinha : e antre todas eílauao os de Garcia de
íouía e Jorfe da filueyra mais aleuantados, que os outros,
com dous degraos em cada hum, cubertos com cafinhas
de palha ( que a efte modo Ião feitos os jazigos dos mou-
ros honrados ) e hás cabiceyras tinhão lageas brancas com
letras entalhadas neilas , que contauao fuás obras , e o
mo-
dei Rey Dom João o III. 175*
modo das fuás mortes. Sendo concruido de todo o con-
certo da paz , e maiidandoíle Eytor da íilueyia defpidir
dei Rey para íe fazer ha vclla , lhe mandou elle pidir com
inuyra inílancia, que lhe deyxaílc aly o barganrim para
fua guarda , c para andar no mar , e fazer arribar ao por-
to as nãos , que paíiaííem íem lhe pagarem direytos , e
que elle pagaria todas as defpeías do bargantim , e os fol-
dos a toda agente delle da maneyra que elle ordenaííe,
o que lhe elle concedeo facilmente , e que íe pareccfle
bem ao gouernador fempre o teria naquelle íeu porto,
e com iílo ordenou que ficaíle aly no bargantim o mefmo
capitão com vinte homens efpingardeyros bem armados,
a que el Rey antes que fe o capitão mor partifse ordenou
de íoldo e mantimento, ao capitão cincoenia xarafis por
mes, e aos íoldados trinta, e aos remeyros cinco, e por
cada nao que trouxefsem ao porto daua cem xerafis , comi
que ouue muytos , que deíejarao ficar no bargantim e íi-
zerão muyto por ilso. Eytor da filueyra íe partio logo, e
entrando no eilreyto foy ter ao porto de Maçuá no fira de
Março de 1524, onde achou hum criado do Barnegais, que
por feu mandado aly o eílaua efperando e lhe deu conta
de tudo, o que dom Rogrigo pafsara o anno dantes, quando
dom Luís fora em bufca delle, e que, quando por cartas
do mcfmo dom Luis íoubera que era tornado para a ín-
dia, recolhera o que lhe tUe deixara em Arquico, e fe tor-
nara para o Preííe, porem que já então tinha feito volta
a cfperallo, e eftaua num lugar daly algum tanto apartado,
onde íe lhe auia d'ir dar auifo da vinda daquella armada ,
porém que daly aonde elle eílaua era caminho de vinte
dias, fazendo ainda as jornadas grandes, e que vindo dom
Rodrigo com toda fua companhia não poderia chegar a
Maçuá em menos de vinte e cinco dia?, Eytor da íilucyra
com eíla informação tomando coníeiho cos pilofos e nie-
ílres, e com todos os capitães, a rodos pareceo , que a ar-
mada não podia aJy eítar mais que até vinte dias d'Abril,
que fe mais ei^iueísem ficarião inuernando dentro no ef-
treyto,oqueo gouernador no regimento cue ihe dera
lhe
lyá Primeira Parte da Chronica
lhe defendia eílreytamerite, do que Eytor da filiieyra marri
dou fázer auto em que rodos aíTignarão, e logo por hua
carta fua mandou dizer a dom Rodrigo , que "a íua vinda
aaqucUe porto de Maçuá nao fora a outro fim íenao a buf-
callo,.que Ihz pefaua em eftremo rornafle fem elle , mas
que a culpa foíse íua , pois tendo já auifo de dom Luís
no anno de antes, que íe pufeíse íós duas jornadas do mar,
fe pufera tão longe delle , que elle o tornaua auifar de
nouo , que cumpria muyto poríe perto do mar para náo
errar tantas vezes a embarcação, e não virem tan:as e tão
cuílofas armadas a buícallo tantas vezes debalde. Eíla
carta foy dom Rodrigo moílrar ao Preíle, o quaí mandou
que fe pufefse o mais perto do mar, que pudefse, e que
o Barnegais lhe deíse para ilso qualquer lugar, que elle
eícolheíse, e nelle o acompanhaíse , e o prouefse de tudo
o necefsario para clle, e para a fua companhia muyto aba-
ítadamente. Eytor da filueyra partio de Mnçuá a íeis dias
de Abril , e faindo do eftreyto foy demandar o porto de
Adem, onde o bargantim o foy receber ao mar com muy-
tas bandeyras de leda que el Rey lhe dera, e os homens
todos muyto bem veftidos c lhe contarão tantas mercês
que el Rey lhes fazia, e larguezas que víaua com todos,
que ouue muytos deíejoíos de íicar no bargantim , e que
para iíío meterão fuás valias co capitão mor: elle tanto
que íurgio no porto foy logo viíitado dei Rey com muy-
to refreíco , e lhe mandou dar tudo quanto ouue miíler pa-
ra a armada com moílras de muyta paz , e boa vontade.
Eytor da filueyra permudou alguns foidados dos que efta-
uão no bargantim, mas de maneyra , que nelle não ficarão
mais de vinte como antes andauão co (eu mcfmo capitão
Fernão carualho , e deípidido dei Rey íe partio aíTaz con-
tente , e oufano de deixar tributaria a el Rey aquella tão
famofa e tão requeílada cidade de Adem, era que auia
que lhe tinha feito grande feruiço: e correndo a cofia
de Fártaque com tempo aíTaz rijo á popa , que íempre
aly cuíluma acurfar naquella conjunção, foy tomarem
Cúria niuria , onde fe detcue até fer tempo de fe ir para
a In-
dei Rey dom João o IIL 177
SL índia , & nâo quis ir demandar Ormuz , porem na coíla
de Dio topou co gouernador que ja de lá rinha.
CAPITULO XXXXVIII.
Ordena Sua Alteza que em todos os papeis que ajão de fer
aunados por elle , ou por f eus officiais em feu nome , em
que fe cuftumaua pôr yàs el Rey y da ly por diante fe nao
ponha Jenão , Eu elRey,
EStando el Rey noíTo Senhor na cidade d'EuGra cfte
anno de mil e quinhentos c vinte quatro , tratou hum
dia no íeu confelho do modo que os Reis íeus antecello-
res até então tinhão vfado em le pôr nas couías que fe ef-
creuiáo em íeu nome , Nós el Rey , e viílo como em al-
gumas efcrituras autenticas de Reis paíTados fe tinha acha-
do , que íe mandarão nomear por , Eu el Rey , propôs na-
quelle coníelho feria bom guardar elle o eíliilo , que até
então fe vG^ua de porem os Reis , Nós eIRey , ou fe o mu-
daria em eil;ilIo nouo de fe eícreuer em feu nome , fomen-
te , EuelRey: e diícutida bem eíta matéria com miiytas
rczoens de parte a parte , íe veyo a detriminar por todo o
coníelho que Sua Alteza fe mandaíTe nomear por, Eu el
Rey, e por fer aíTy mais próprio e decente ha mageílade
real. Sua Alteza aprouando eíle parecer do íeu confelho ,
mandou que aíTy fe fizeííe daly por diante, e que todos os
aluarás , e quaifquer outras efcrituras de qualquer maney*
■ta é calidade que foflem , que íe fízeíTem em íeu nome , ou
foíTem alfmados por elle , ou por quaifquer officiais feus,
que as ouefTcm de paíTar e afllnar em feu nome , íe fizeífeni
por , Eu el Rey, de maneyra que onde dizia fazemos ia-
ber , dilTeííc faço faber , e alTy no difcurlo da eícritura dif-
feíTe feinpre. Eu el Rey, e nos aluará?, que começao, Nós cl
Rey, diííeíTe , Eu el Rey faço faber, ou mando , ou ey
pôr bem , continuando fempre em tudo por , Eu el Rey ,
de maneyra que do cuílume antigo que até então fe guar-
dara de eícreuer por , Nós el Rey , fe não víalie mais daly
< J^arte I, Z por-
178 Primeyra Parte da Chronica
por diante , mas tudo fe fízeíTe por efte modo de , Eu el
Rey , e mandou ao chançarel mor , ao cfcriuão da purida-
de , aos veadores da fazenda , e a todos os outros officiais,
a que as íuas cartas e proaifoens ouueíTem de ir ter ha mao
para as verem, e paflarem, que as não paííaíTem fe nellas
achaííem outro termo de falar fenâo , Eu el Rey , e dou-
tra maneyra não, a qual deiriminação fua Alteza mandou
que íeguardaíTe daly por diante, de que mandou paííar hu-
ma prouiíao fua feita polio fecrctario António carneyro
a 16 dias do mes de Junho de 1524 , e aíTmada por íua Al-
teza.
CAPITULO XXXXIX.
O que dom Luis de meiufes faz em Cochim defpots que agO'
uen2ador [eu irmão vay para Ormuz, Manoel de frias
vay ha pefcaria do aljojar , entrega a feitoria delia a
foãa fiares y 'vayffe ha cafa do Apojialo Sam Thomé , fazfe
obra nella , achaoffe as relíquias do iSanto , e o que fejaz
delias»
DOm Luís de meneies irmão do gouernador , que el«
Ic deixou na índia com todos os (eus poderes quando
fe foy para Ormuz , andou com huma grolla armada na
coíU até entrar o inuerno em que ferecolheo para Co-
chirti , onde inuernou com muyta gente , que polia muyta
Jargutza ecorteíia com quetraiaua os homens foigauíío de
oferuir e acompanhar, e logo fe ocupou em tirar os na-
uios a monte , em que elle era o primeyro que lançaua
mão do cabreílante , com cujo exemplo toda a mais gente
fazia o meímo , e cm breue tempo foráo os nauios todos
concertados , e fez de nouo hum galeão a que pôs nome
S. Luis , e huma galé real , e acabou outra galé baftarda,
que eílaua começada que fe chamou lanta Cruz , que foy
lium dos milhores nauios que ouue na índia , nas quais
obras elle aíllftio ícmpre na ribeyra muyto conforme cos
officiais, e principalmente co doutor Pêro nunez , que
era Veador da fazenda , a quem íómente ocupaua na com-
pra
delRey Dom João o III. 179
pra da pimenta:e onde os negócios correm por eftes termos
íempre coftumão a ter bons iuceflos , o que he muyto pol-
lo contrario onde ha difcordias e differenças. O Manoel de
frias , que o gouernador mandou por capitão e feitor de
Choromandel , como atrás deixo dito , pollo regimento
que lhe fora dado arrendou a peícaria aos Digares por
preço de mil e quinhentos cruzados cada anno , e deixan-
do nella por feitor o João flores , que leuara comligo , co
feu efcriuâo em huma barcaça bem armada e concertada ,
le foy a dar ordem ha caía do Apoftolo São Thomc , onde
todo o dinheyro , que era neceíTario para a obra que fe
auia de fazer nella, entregou a hum Sacerdote que lá refidia
aula muytos dias chamado António gil , de que atrás fica
feita menção , o qual coníultando cos meílres que auião de
fazer a obra o modo de que auia de fer feita , fe puíerao
logo a ella , e reformarão de nouo a igreja , e a fizerio al-
gum tanto mais cumprida , porem da mefma largura , fo-
mente na capella mór e no jazigo do Santo fe não tocou
por então, nem menos no curucheo antigo , porque efte
querião que ficafle no modo em que eílaua para memoria ;
ordenarão na igreja huma capelinha de ncuo, em que pufe-
rão huma pia para bautizar , e fizeraolhe huma torre mais
alta outro tanto que a igreja , fechada toda d'abobada ,
com fuás ameyas , c em cima da porra principal da igreja
puferão huma goarita com fuás feteyras para defenfaõ da
meíma porta , que tudo junto rcprefenraua huma fortaleza
muyto bem aíTentada : edeípoisque a gente aly foy re*
crecendo , e fe fez pouoaçao de Portuguefes , na porta
principal fe fez hum alpendere do tamanho da igreja ,
porque a gente não cabia nella , e em torno da igreja fe
reformou huma cerca que a caía tinha , dentro da qual fi-
carão os jazigos dos difcipulos do Santo Apoftolo, ea
igreja foy ornada por dentro com duas capellas , huma da
jnuocaqão de noíTa Senhora da Conceyção , e outra dos
Reis magos , e tudo tão forte e defeníauel , que fè na terra
acertaííe d'auer algum aleuanramento a igreja lhes pudeíTe
feruir de fortaleza, em que íe defendcííem. Por fim de tu-
Z 2 do
i8o Primeyra Parte da Chroiiica
do íe fundou huma groíTa parede , que aula deirenteftar
no curuclieo , com que fe elle íufteataííe, e porque para
efte eíFeito nao podia ella ir por outra parte íenao derre-
dor da capella mór, foy forçado bulirfe no jazigo do San-
to , o que fe confentio ^ aífy polia neceílidade que auia
da parede , como por hum defejo íanto de íaber o que auia
dentro neile : então o padre António gil cora outros dous
facerdotes , que por íua deuaçao íeruiao aquella fanta ca-
fa , dos quais hum era homem de muyta idade, forao os
primejros que começarão a trabalhar naquella obra , mas
como para a dignidade que tinhão nao conuinha conti-
nuar com aquelle officio , e o alicece que íe abria forçada-
mente auia de ir pollo jazigo do Santo , parecendo a to-
dos os que aly eftauno coufa indecentiíFima trabalharem
nelle gentios íenao Chriftaos , e eíTes ainda Portugueles ,
© padre António gil pidio com muytas palauras a três ho-
mens-chamados , Diogo fernandez , Brás fernandez , e
Diogo lourenço, que quifefíem ajudar os officiacs naquella
fanta obra , os quais aceitarão o trabalho com tanto gofto
c deuaçao , que fe confeçarão logo , e comungarão , e co-
meçando a cauar , defpois de acharem huma terra folta
em altura de três palmos , defcubrirao huma coua larga
com as paredes feitas de tijoUo acafiladas todas por den-
tro , tão fans e inteiras como fe forao feitas de muyto
poucos dias , e deípejando a coua daquella terra a virão
em baixo ladrilhada de hum tijollo groílo de três palmos
de comprido , qus fendo tirado fora acharão debaixo del-
le outra terra folta como a primeyra em dous palmos dal-
tura , e defpois qu^ a tirarão , acharão outro ladrilho co-
mo o primeyro , argamaíTado por cima^ aquy ceíTarao de
cauarcuidando que aly fe acabaua a coua , porem o me-
Itrediííe, que erà neceíTario ir mais á baixo porque auia
de fundar a parede na terra fixa , então arrancando todo
eíle ladrilho , que eíl^ua argamaílado, e tão rijo que íe
tez com muyro trabalho , debaixo delle acharão outra ter-
ra íolta que o meftrc mandou tirar para chegar ao fixo , e
tirada fe achoa huma argamaffa fem tijoilo lao dura que os
pi-
dei Rey Dom João o Ilf. i8r
plcoens a nao podiao desfazer, que tinha dous palmos de
groílura , e por eílas partes todas liiao fempre as paredes
da coua direytas a baixo feitas de tijollo acafaladas por
dentro como eílauão no roais alto, eíta argamaíTa foy tam
bem arrancada fora , e debaixo delia acharão duas lagcas
pegadas huma com a outra , que tomauao todo o chão da
coua , tãojuftas que com muyto.rraballio as puderao tirar
intejras , porque não nuia nelias por onde lhe pudeíTeoi
pegar para as Jeuantarein , debaixo delias acharão outra
terra íolta a que deriío muyta preiTa para a tirarem traba-
lhando niíío de dia e denoitc , rcceoíos que a gente da ter-
ra vendo a continuação do cauar , e quanto abaixo ti-
Jihão ja cauado , não vieílem a cuidar que buícauão algutn
dinheyro , e fizeíTe por iíTo algum aluoroço que os deíin-
quietaíTe, porque já nefte tempo tinhao cauado altura de
quinze palmos, edaquella terra folta para baixo as paredes
da coua não eríioacafalndas , debaixo deíla terra acharão
huma areya branca mlíturada com cal virgem, também
mujto branca , a qual tirarão logo e debaixo delia forao
dar com huma caueyra , e oíTos de pernas , e de braços , e
de outras partes do corpo , e aos pés da coua acharão hum
calão , que he como panella , tamanho que leuaria íeis
canadas , cheyo da mcTnia areya , e hum ferro de lança
da feição de huma folha de ouliu-eyra , co aluado cumpri-
do, que eftaua ainda inteyro , e hum pequeno de pao me-
tido nelle. O padre António gil com muyta reuerencia e
veneração , e não íem deuotas lagrimas de todos os Chri-
íl:âos que eílauão preíentes , cubertas as mãos com huni
pano de feda , bufcou aquelles ofTos todos , que eílauão já
tão gaitados doternpo, que em bulindo com elles fe faziãó
em pedaços, e os recolheo todos, e meteo em huma boce-
ta grande por nao ter então outra couia em que os meteííe.
O feytor foy logo chamado e lhe derão conta do que ti-
nhão achado , e elle deu hum cofre nouo da China doura-
do com íeu cadeado de prata , para onde paíTarao aquellas
fantas reliquias , e em outro cofre puferão a oííada do
Rey, que o fanto Apoílolo conuertera c íizera Chriilão,
de
i8i Piimeyra Parte da Chronica
de que atrás fica dito , que eftaua enterrado ha porta prin-
cipal da igreja , e de tudo iíto tomou o feitor as chaues
para as dar ao gouernador. Defpois diílo feito veyo do
reyno o padre penteado , que lá fora fobre os negócios
defta cafa do Santo , e veyo prouido na vigairaria deJla , e
quebrou os cadeados e tirou as lantas reliquias donde efta-
uão , e as meteo em huma caixinha pequena , quanto ellas
podião caber fomente , feita do raefmo páo da caía , a
qual meteo em hum vao que elle fez por fua mão para eííe
efeito no mociço do altar tão fecretamente , que ninguém
foube onde a metera , e diílo a ninguém deu conta , íenão
a hum homem muyto de bem chamado Rodrigo aluarez ,
e lhe deu juramento íobre as mefmas reliquias , que a nin-
guém o deícobriria , fenão em artigo de morte ao feu con-
feíTor , ao qual também fizeíTe tomar juramento fobre o
fantiíTimo Sacramento , que o não defcubriíTe a outra ni-^
jihuma peíToa fenao polia mefma maneyra , com que eftas
fantas reliquias eíliuerão efcondidas até o tempo que fo-
rão daiy tiradas como adiante íe verá. O alicece defta pa-
rede íe fez todauia com todo o refguardo do íanto jazigo
que foy poíTiuel , e com ella ficou a obra da caía de todo
acabada. A madeyra que ficou delia íe recolheo c fechou
toda, de que fe leuauão alguns pedaços por reliquias , do
que auendo noticia na índia fe paíTarão para lá muytos
Portugueíes , que aly fizerão fua morada em cafas , que fi-
aerão de pedaços de tijolos , que achauão debaixo da ter-
ra de cafas , que parece que já aly ouue noutro tempo,
onde acharão também alguns poços. O que daly por dian-
te foy em tanto crecimento quanto cuílumarão íempre ter
as couías fundadas na virtude , e na reuerenoia , c deuação
do íenhor e dos ícus lantos.
CA-
delRey Dom Joáo o III. 183
CAPITULO L.
Lopo dazeuedo chega a Pa cem para Jer capitão dafortale^
za , dom André lha não quer entregar. Os mouros a com"
batem , dom André adoece , e je embarca para a Índia y a
fortaleza fe vê em grande aperto,
QUando Lopo dazeuedo chegou a Pacem desbarata-
do , porque com tormenta alijara tudo ao mar,
era alcaide mór na fortaleza hum Ayres coelho , cunhado
do capitão dom André, com quem tinha cafada huma ir-
mam íua : efte quando dom André mandou pidir ao go-
uernador que prouelFe a fortaleza de capitão , lho contra-
riou muyto , por quanto pollo regimento dei Rey a capi-
tania delia era fua , quando elle a largaíTe , e auia de ficar
feruindo de capitão todo o tempo que a elle lhe faltaííe
por íeruir , porem não infiílio muyto niíTo, porque lhe pa-
receo que fegundo os termos em que dom André eftaua
não poderia ler viuo , quando o recado tornaíTe da índia ,
eelleeftaria ja em poíTe da capitania , e que vindo então
outro capitão mandado pollo gouernador , e não poden-
do ter direito contr'elle para o defapoíTar da capitania ,
forçadamente auia de tornar ha Índia , e íe todauia tornaf-
fe de lá prouido ja então elle teria acabado o feu tempo ,
mas vendo chegado Lopo dazeuedo prouido da capitania ,
e que dom André eftaua fao e bem defpofto , ajuntandof»
le CO feitor Simão toícano , que era muyto feu amigo , e
com outros da íua parcialidade , fe forão todos a elle e
lhe diíTerão , que pois eílaua ja com tão boa difpoíição fe-
ria grandiíTima deíhonra e abatimento feu deixar a capita-
nia , por iíTo que anão deixaíTe por ninhum calo : elle
auendoíTe por bem aconfelhado , não quis entregar a capi-
tania a Lopo dazeuedo , o qual defpois de ihe fazer fobre
i/lo feus proteftos e requerimentos, e tirar os eílromen-
tos neceííarios , fe embarcou para fe tornar, e dom An-
dré lhe pidio que lhe deixaíTe agente polia neceíiidade
em que eílaua , o que lhe elle concedeo , porem a gente
fei-
^o4 Primeyra Parte da Chronica
feita toda num corpo diíle , que elles nao vierao da índia
para eílarem naquella fortaleza íenao com feu capitão Lo-
po dazeuedo , que com elJe eílariao de muyto boa vonta-
de , que doutra maneyra quem os ouueíTe de obrigar a fi-
car aly aula de íer á força de armas. VendoíTe nelles cita
detriminação não ouue quem oufaííe de lhe falar mais nií-
fo , e Lopo dazeuedo íe partio e foy ter a Malaca , onde
eíleue até o tempo da moucao em que fe tornou ha índia.
Os mouros vendo partido Lopo dazeuedo , e íabendo que
não deixara a gente na fortaleza , a tornarão logo a aper-
tar com muytos e rijos aíraltos , com que o capitão dom
André íe achou muy alcançado de não entregar a fortale-
za a Lopo dazeuedo, e aíTy polia paixão que tomou diílo,
como polia continuação do trabalho e medo de perder a
■fortaleza , tornou adoecer tão grauemenfe , que tornou a
chegar a artigo de morte. O alcaide mor Ayres coelho
leu cunhado co defejoque tinha de (cr capitão da fortale-
za ordenou íecretamente com feus amigos , que aconíe-í"
JhaUem a dom André , que tiraíTe eílromentos do eftado
em que eílaua , e lhe entregaíTe a fortaleza e a capitania até
o gouernador prouer com outro capitão , e fe fofle ha In*
dia tratar de fua vida e faude , onde tinha muyto juíladeí-
culpa para co gouernador, aííy de não entregar a fortale-
za a Lopo dazeuedo , pois então eílaua com íuas forças
inteyras, como de a entregar agora, que eílaua em cita-
do de a não poder defender , e lhe era forçado deixalla a
Ayres coelho a quem aquillo competia por direyto , pois
era o alcaide mor. A dom André parecèo tam bom eíta
coníelho j que mandou logo fazer preíles hum nauio, que
hum chatim aly deyxara, e deípois de embarcar nelle todo
o feu fato e familia , chamou o alcaide mór e perante os
ciliciais todos lhe requereo, quefe entregaíTe daquella forta-
leza , pois a eJle competia ler capitão delia , a qual lhe
larr^aua e entregaua debaixo da menagem que elle mefmo
tinlia tomado delia , por quanto elle por fe achar em deí-
pofição que a não podia defender lhe era forçado iríe para
a Índia , e fe lá, chegaífe yiuo daria rezão. de í'y ao gjDuer-
na-
dei R.ey Dom João o III. i8^
nador, e mandou ao efcriuao da feitoria , que de tudo iílo
fizeíTe autos e liic delTe eítromentos para leuar comfigo. O
alcaide mor lhe refpoiídeo que atentaíle bem o que fazia ,
porem que elle eílaua prefles para fazer tudo o que cum-
pria ao leruiço dei Rey. Dom André eniao lhe deu poíTe
da capitania , e aalcaidaria mor deu a hum homem hon-
rado chamado António ferreyra , e tomando conhecimen-
tos da entrega que fez da capitania , e das coufas que íi-
cauão na fortaleza , e na feitoria , com íeus papeis muyto
bem negoceados íe embarcou c fe paíTou para a índia , o
que íucedeo em Setembro do anno paíTado de mil e qui-
nhentos e vinte três , que foy neceílario guardarfe para fc
contar agora por íe continuar com a ordem da hiíloria.
Os mouros com a partida de dom André, parecendolhe
que inda leuaua comfigo alguns homens deíles poucos que
aiiia na fortaleza , c vendo que não íicaua aly embarcação
que defendeíTe a barra do rio , vierao logo com armada
de lancharas , e exercito de muyta gente, e por mar e
por terra derao muytos aíTaltos ha fortaleza e ha pouoa-
ção dei Rey , que eíííua junto com ella , como fe atrás dií-
le , com que lh'entrarão a tranqueira , e lha queimarão , e
matarão muyta gente , e lhe leuarao muyta artilharia , e
fazenda , e mantimentos que tinha nella , a que os noílos
da fortaleza nunca fairão a dar focorro , de que os mou-
ros ficarão tão oufanos , atribuindo aquillo a fraqueza
dos noílos , que fe atreuerao a vir cometer o cubello,
que eílaua junto do eífrcyto , e o tomarão e matarão , trcs
Portugueíes , e ferirão outros , que alíy feridos fe forao
recolhendo para a fortaleza , no qual cubello tomarão
humcamello, e dous falcões, e quatro berços , com que
aos inimigos creceo tanto animo , que fizerão eílancias em
que aíTentarão muyta artilharia, com que de dia e de noite
combatião a fortaleza tão afperamente , que os noílos fe
encerrarão de todo nella , fem ouíarem a lair fora , nem a
tomar agoa do rio de que bebiao , que eífaua hum tiro de
pedra da porta da fortaleza , com que íe começarão a ver
cm grande aperto de fede , ao qual IhQ íucedeo lambem o
I^aríe L Aa da
i8í Prlmeyra Parte da Chronlca
da fome , porque o regedor e el Rey com íuas molheres fc
recolherão ha fortaleza fem nenhani mantimento , por
lhe ferem queimados os feus na tranqueyra , e na fortale-
2a os nãoauia qacbaíiaíTem para tanta gente, e ajuntandof-
le também o continuo trabalho a que era forçado acudir
de dia e de noite para fua defenííiu , que lhe não daua lu-
gar para poderem tomar algum repouib , eftauão codos
de maneyra que íe não íabiao dar aconlciho.
CAPITULO LI.
Dom André nauegando de Pacem para a índia topa com a
armada de Baflião de [ou f a , dalke conta do ejlado em que
jlca a fortaleza ^ elle fe vay a focorrella. Dom André ar-
riba com tempo a Pacem , toma a fua capitania , e dtf-
pois de ter algumas dijf crenças coyn Pajiião dejoufa Jobre
a defenfao dajortaleza a larga aos mouros,
DOm André, que fazia fua viagem para a índia , fendo
na paragem da ilha de Ganifpolla , ouue vilta dos na-
13Í0S , que atrás diíTe que partirão de Cochim , em que
hia Baftiáo de loufa : e auendo falia delle lhe diííe o ella-
áo em que ficaua a fortaleza de Pacem , com guerra, fo-
me , e íede , e em muyto rifco de fe perder legundo a
grande multidão dos inimigos , que eílaua íobr'ella , e a
pouca defenfao que dentro nella auia. E defpois de lhe
dar conta do que paíTara com Lopo dazeuedo lhe diííe,
que por fe achar quafi em artigo de morte lhe fora força-
do irfe para a índia , pollo qual lhe requeria que nao paf-
faíTe fem ir vifitar Pacem : Baftião de íoufa fem fe deter
com elle empalauras, fe fez logo na volta de Pacem , e
furgindo no porto deu aos noflbs grandiíTimo aliuio e con-
tentamento , e de noite em almadias feforão alguns veí"
com elle, e lhe derao conta do eílado em que eftau.i aquel-
la fortaleza , e em pubrico lhe pidirão a grandes vozes ,
que os quifelle focorrer , porque ja íe não íiiftenta ião fe-
Hàç) n,a efperança de vir algum nauio em qu^ íe faluaílem ,
dei Rey Dom João o III: 187
c pois noíTo íenlior fora fcruido de o trazer aly naqiielle
tempo, Jhepidiao, que os não deíemparafíe , porque em
fe perder a fortaleza não auia duuida , e fe ellc le hia daly
lein lhes dar remédio com que fe faluaíTem, proteílauSo de
fe entregarem logo aos mouros para faluarem as vidas : e
ainda eítes não tinhão acabado íua pratica , quando vierao
outros da terra , que fízeráo outras raayores exclamações :
Baftião de foufa mouido a compaixão daquella atribulada
gente, do zelo do íeruiço dei Rey , e do perigo daquella
fortaleza, pondo os nauios a bom recado acompanhado de
alguns homens com íuas armas fe foy a terra , onde foy
bem recebido do capitão Ayres coelho, e toda agente
lhe fez nouas exclamaçoens , pidindolhe que os liuralle da
morte , que tinhão diante dos olhos , ou os não deixaíTe ,
e fofle leu capitão , porque por falta dellc eftaua tudo per-
dido , e a iílo ajuntarão queixas pubricas em altas vozes
contra o mefmo Ayres coelho , ditas com muyta cólera ,
ao que elle não oufou ir ha mão a ninguém , antes difíe a
Baílião de íoufa , que tudo aquillo era verdade, poilo
qual elle lhe entregaua aquella fortaleza , para que foíTe
capitão delia, e que da parte dei Rey lhe requeria que
tomafle entrega delia para que fe não perdeíTe , pois era
dei Rey: ao aue Baílião de íoufa refpondeo , que tomar
entrega da fortaleza e íer capitão delia era couía que não
faria, mas que como companheyro eftaria nella, e o ajuda-
ria em tudo o que pu iefie , com que a gente ficou mais
quieta : então mandou defembarcar toda a gente e manti-
mentos que trazia, e íe começou de ocupar em repairar a
fortaleza do que Ih' era necedario , e cora toda agente
foy cometer os inimigos , os quais parecendolhe que era
aquillo íocorro que viera ha fortaleza , íe afaílarão logo
muyto longe , onde nlo pudeíTem fer cometidos , com
que os noííos ficarão delaliuiados , e êm tudo obedccião a.
Baílião de íoufa , e em nada a Ayres coelho. Dom André
tanto que íe apartou no mar de Baílião de foufa liie deu
hum temporal tão rijo , que o obrigou a aribar a Pacera ,
€ chegou ao porto , aucndo dezaíleis dias que aly eílaua
Aa 2 Ba-
i88 Primeyra Parte da Chronica
Baíllão de foufa , onde defembarcado , foy recebido como
capitão , e vendo a boa dlípofiçao çm que eílaua a terra ,
e que ja nella aula paz , mudou o coníelho , e tornou a
Tomar poíTe da fua capitania , de que toda a gente mo-
ftrou muyro deígoílo. Baftiao de íouía auendo que não ti-
nha aly mais que fazer, fe ordenou para ir tazcr fua via-
gem , e para iíTo recolheo a fua gente, ao que dom André
acudio requerendolhe com muyra inftancia , que llie não
leuaíTe agente, nem elle fe foíTe daquella fortaleza até
a terra não ficar de todo pacifica e legura , que era mais
feruiço dei Rey que a viagem que hia fazer , ha que Ba-
ftião de loufa refpondeo , que elle rinha aly feito aflaz
feruiço a el Rey em remediar o que achara deíemparado
e qudíi perdido, que fe elle queria ter aquella terra em
paz , vfafle com toda a gente delia de diíFerentes termos
do que fe dizia delle , e que pois a fortaleza tinha capitão,
era elle aly pouco neceíTario , que quem na paz fizera nel-
la feu proueito a defendeíTe agora na guerra, que elle tam-
bém fe queria ir a fazer o que lhe cumpria , fobre o qu&
ouue antre elles muytas replicas , com que chegarão a ter-
mos que Baílião de foufa diíle a dom André , que fe não
fe atreuia a defender aquella fortaleza lhe requeria que lha
cntregalTe , que elle a íuílentaria , ou com guerra , ou çom
paz, masqueauia de fer com condição , que elle íe em-
barcaííe c fe faiííe da terra , porque eílando nella inda
que não foíle capitão receaua , fcgundo eílaua mal quiílo-
com a gente , que lhe aproueitalTe pouco quanto fizeííe
com ella para a aquietar , e pôr em paz , cuidando que po-
dia elle tornar a fer capitão , e ouue antr'elles fobre ifto
tantos debates e contendas, que chegou a auer alguns aluo-
roços, com que os mouros tornarão a cobrar animo , e fa-
zer de nouo guerra de dia c de noite ha fortaleza , ao que
a gente não queria acudir dizendo muyto foltamente , que
não auia de pelejar fe dom André fofle fcu capitão : elle
então auido confelho com feus amigos detrimmou embar-
çarfe com tenção , íegundo le diíle, que citando embar-
cado aa barra , deípois de ter entregue a fortaleza a Ba-
ílião.
dei Rey Dom João o lII. í8p
ftiao de foufa , e de el!e eílar em terra dcfembarcado corri
toda íua gente , lhe tomaria os nauios , c íe deixaria eftar
até ver o que fucedia na terra, que fe ouiieíle concerto
de paz lhos largaria , e íe o não ouueííe , deixaria na terra
o que lhe vieíTe bem , e Te iria cos nauios , e mandou logo
embarcar o leu fato , porem Baíliao de íoufa não quis dcf-
embarcar o leu , o que vendo a gente íe começarão todos
a embarcar com muyta prefla , e tão detriminados , que íe
alguém lhe queria ir ha mão erao logo todos poílos enr
armas, de maneyra que não ouue quem lho pudefie impi-
dir. O? mouros, a quem nada difro fe eícondia , fe dei-
xarão eílar quietos até ver cm que paraua , c tanta foy a
preíTa que ouue na gente , que numa íó noite íe embarcou
toda , fican Jo a fortaleza deípejada de todo , porque tam-
bém íe embarcarão o regedor , e o Rey com toda íua fa-
milia , a que neíla embarcação forão feitos muytos agra-
nos , e muyros roubos , e não ouue quem liueíle lembran-
ça d'cmbarcar a artilharia que era muyta e muyro boa.
Baílião de fouía , que ja eflaua embarcado , vendo huma
tamanha defordem , e tam.anho deiconcerto, mandou dizer
a dom André, que olhaíTe o que fazia , que não deixaíTe
perder huma fortaleza dei Rey com tanra afronta de todo
o eílado da índia , a repolla que dom And''e a iílo deu foy
iríe ha nao de Baftião de iouía , e fazerlhe muytos reque-
rimentos que íe encarregafle daquella fortaleza , e a de-
fendefle pois era dei Rey , ao que Baílino de loula Jhe reí-
pondeo , que a elíe não competia encarregaríe da for-
taleza, que linha capitão poílo por el Rey , e pois elle ira-
tara de o embaraçar no porto íecretamenie quando o quile-
ra ajudar com tudo o que podia , fe deíenganaíle que não
le auia de deíembarcar , nem tratar mais daquella rorrale-
za , íenão íe eile tam.bem le rornaíle a deíensbarcar , e em
terra lhe íizeííe a errtrega delia , de que tomaria íeus pa-
peis para íeu defcargo com elRey , e difto pidio que lhe
folTe dado hum eftromer.to , porem dom André , rcceoía
que íe foíTe aterra lhe acontecefíe algum deíaílre , dtííe
pubricamente , que eile não auia de tornar a terra , que a
ca.-
ipo Primeyra Parte da Chronlca.
caftigoque lhe el Rey deíTepor iíTo eílaua preftes para o re-
ceber, e cora iíto tirando rambem íeus eílromcntos- , fetor-
nou ao feu nauio, eBaftiao de foufa íofpendeo a ancora, e
íe deixou eílar afaftado aJgu m tanto ao mar. Recolhido
dom André mandou Ayres coelho , quefoííea terra reco-
lher aaríilharia, porem agente diíTe que onao auia de
acompanhar fe o mefmo dom André não foíTe diante, o que
ellenão quis fazer, e afsy a deixou, efefezha vellajeomeí-
mofez Baíliãode íoufa: osmouros vendo que ninguém apa-
recia na fortaleza, entrarío alguns nella, porem com muyto
refguardo , parecendolhe que poderião os noíTos deixar
algumas minas de poluora , mas defpois que olharão tudo
muyto bem , e nlo acharão coufa de que fe pudefse ter re-
ceyo , entrarão muytos delles com muytasgriras , e pufe-
rão muyías bandeyras das fuás , que deixarão eftarâté a
tarde para que os noíTos as villeíii , então deípararão todas
as peças groíTas, que erao doze falç6es , para que os nof-
fos também o viílem , e deípois de as tirarem todas fora
com tudo o que lhe podia feruir , puferão fogo ha fortale-
za , queardeo toda com quanto auia nella, o que foy no
mez de Mayo deite anno de IS14- Dom André e BalViao
de íoufa forão terá Malaca, onde derâo nouas da perdição
defta fortaleza, que em eftremo foy fentida de todos , pol-
]o que os Portugueíes perdiâo de credito, e os mouros co-
brauão de animo , que foy tanto que os Dachens tomarão
logo todo o reyno de Pacem , e após elle o de Datú , cu-
jo Rey , por fer nofso amigo , fugio para Malaca , onde
elle, e o Rey de Pacem, e o regedor forão agafalhados jun-
tamente , mas não tão bem prouidos como íe deuia a tais
peííoas , e tanto que chegou moução para a índia , dom
André íe embarcou, e ieuou comfigo o regedor, e o Rey de
Pacem, aquém no caminho foy infmado o que auia de
dizer delle , e chegando ao gouernador co teílemunho
deftes diíTunulou com elle , e o remeteo ao reyno , e o
Rey de Pacem foy tornado a mandar a Malaca com efpe-
rança de lhe darem armada e gente, com que tornaíTe a co-
brar o feu reyno, porem iílo não ie lhe pôde fazer com
tan-
dei Rey Dom João o III. ipr
tanta prefsa , que elle nao viefse a morrer prlmeyro em
Malaca padecendo muytas neceílidades.
CAPITULO LII.
Jorfe dalbuquerque capitão de Malaca fe próue para a
guerra que ef per a dei Rcy de Bintao ^ manda dom Gar^
cia anriquez com quatro nauios a ejlar na barra de BíH'
tão , dos nauios de dom Garcia tomao o r mouros dous , el
Rey de Bintão manda pôr cerco a Malaca e ojucefjo de lie,
TOrfe dalbuquerque , que neíle tempo era capitão de
_ Malaca , receofo que el Rey de Biiuao com a perda
da fortaleza de Pacem tomaíTe animo para lhe mandar
fazer guerra , fe quis prouer primeyro que tudo de man-
timentos , que era o que mais importaua , para o que
mandou concertar dous nauios grandes e dous carauel-
lóes , de que deu a capitania mór a dom Garcia anri-
quez , que era chegado de Maluco , elle em hum dos na-
uios grandes, e no outro Ayres coelho, e dos dous carauel-
Iões fez capitães Duarte aluarez , e Diogo fragolo caiados
em Malaca , e com ertas vellas mandou a dom Garcia to-
mar a barra do rio de Bintão , para que a fua armada níío
pudeíse fair delle r logo após a partida de dom Garcia
mandou Jorfe dalbuquerque a Garcici chaini o feitor da
fortaleza com algumas lancharas e manchuas ao rio de
Muar, que era daiy cinco legoas , afazer vir maniirren-
tos » que tornou daly a íeis dias fem trazer coufa alguma
do que hia bulcar. Dom Garcia fe foy pôr na barra de
Binião a tempo que Laquexemena eílaua dentro no rio
com a lua armada , porem vendo quão bem aperceh''da vi-
nha anofsa, nãoouí-iaa alairfóra, mas não deixou de
víar de quantos ardiz e traições pôde inuentar contra os
nofsos , de q^Je fempre leuou a pior, auendolse o Bey de
Binr •() por mayo afronr-^do , o Laquexemena andaua tT-
preitando qu.in as oc •!' ks podia auer de íe poder fatií-
fazer deiU afvwhu ^ f u.jcdeo que hum dia forão dom
Car-
19^ Pfimeyra Parte da Clironica
Çarciâj e Ayres coelho fazer agoada -et huma ilha, que efta
meya Icgoa da barra , porem de maneyra , que ficauão
ha viíla do s carauelloes , Laquexemena parecendolhe eíla
boa conjunção fez fita armada preíles para ir pelejar cos
dou5 carajelloes que ficarão na barra , e deu ordem
•.para que ccJtro lancharas muyto bem efquipadas , quan-
. do elle abalroaíTe cos noíTos , e eíliueíTe no feruor da pe-
leja , cortaflem as amarras aos carauelloes , e lhe def-
fem cabos com que os leuadcm pollo rio dentro, que
era eiirão conjunção em que enchia amare: e íaindo fo-
ra do rio foy cometer os noíTos , trabalhando pollos en-
trar por todas as partes , a que elies íe defcndião com
grandiííimo esforço , e no tempo que a peleja eftaua mais
trauada , acudirão as quatro lancharas que cortarão as
amarras dos carauelloes com muyta prelleza, e os co-
meçarão d'encaminhar pollo rio dentro fem os noíTos da-
rem fé diíTo , com a grande preíTa em que andauio de fe
defenderem, e afsy forão tanto pollo rio acima até que
forão dos baixos para dentro, onJe os nauios grandes
não podião entrar. Dom Garcia e Ayres coelho vendo pe-
lejar as lancharas cos carauelloes , fe fízerao ha vella. pa-
ra os focorrerem , que com o vento que lhes íeruia em
breue efpaço chegarão ha barra , mas ja os carauelloes
erão tomados e ardião em fogo , a que os nauios por cau-
fa dos baixos não pudcrão chegar; forão mortos nelles
trinta Portugueíes , e fe perdeo muyto boa artilharia de
falcões, e berços, de que os mouros fizerão grandes fe-
ílas, e alegrias, e dom Garcia com muyto fentimento fe
tornou a Malaca. El Rey de Bintão com a prefa deíles
dous carauelloes ficou tão contente e oufano , que co-
brou nouo animo para mandar pôr cerco a Malaca , pare-
cendolhe que daquella vez a poderia tomar , pois eítaua
tão desbaratada : e para ifto mandou fazer muyta gente a
foldo , com que ajuntou hum campo de doze mil hom.ens ,
que com hum capitão íeu mandou por terra pôr cerco ha
fortaleza, e em fua companhia hum renegado, que auia
muyto tempo que andaua em íeu íeruiço , chamado Martim
daue-
delRey Dom João o III. içj
dauelar, muyto pratico, e engenhofo na guerra, e La-
quexemena com oitenta lancharas bem proiiidas de gente
e artilharia mandou que Ihcfone fazer guerra por mar,
o que os m.ouros fizerao fem impedimento algum, por^que
em Malaca não auia mais nauios , que os dous que forao a
Bintão, os quais Jorfe dalbuquerque tanto que teue nouas
<3a armada dos inimigos mandou recolher da ilha das
nãos, ond'cftauâo, para defronte da fortaleza, onde as lan-
charas não oufauão de aparecer com medo da artilharia ,
que tudo aquillo varejaua, O renegado chegando a Malaca
ordenou logo tudo o que era neceííario para o cerco , e os
noíTos ordenarão também fua defenção omilhor que então
foy poíTiiiel , e fizerao eílancias nas entradas das ruas pnn-
cjpaisdapouoaçlo dos Portuguefes, de que a priiicipal foy
entregue a dom Garcia anriquez, outra a Ayres coelho ,
outra a António ferreyra, e outra ao feitor Garcia chainho,
e cada capitão deftes não tinha comfigo mais Portugueíes
que doze, porque todos os que então auia na fortaleza
não erão mais que oitenta , e juntamente ^com eftes doze
tinhâo alguns piaens da terra a que pagauao íoldo: e tam-
bém foy repayrada a pouoação dos Quelins .^e prouida de
gente da mefma terra. Os inimigos começarão a dar muy-
Tos rebates de noite , e cometer por algumas partes , a que
da fortaleza íe acudia fempre com muyta prcfteza , com
que dos mouros ficauão íempre muytos mortos , princi-
palmente quando cometião a pouoação dos^noíTos. E huma
noite que fe detriminarâo com a pouoação dos Quelins,
lhe derrubarão hum lanço do muro , por onde entrarâp
muytos, porem os Qiielins com agente da terra que ti-
nhâo comfigo , ajudados de quinze Portugueles-eípingar-
deyros , que acudirão da fortaleza a focorrelos , os lança-
rão fora e os fizerao ir fugindo para o feu campo , de que
ficarão aly muytos mortos, porem eftas couías também
cuíhrão aos noííos bem caro, porque co trabalho continuo
c-com não dormirem , e juntamente com a fome que então
os apertaua grandiflimamente, vierão n adoecer muytos,
deque opilados e inchados morrerão alguns. Os mouros
i^arn L Bb ven-
194 Primeira Parte da Clironica
vendo o pouco qne pòdiao contra os noíTos , e que era j^
ehega-do o tempo da mouçao em que lhe podia vir focor-
ro, leuintarâo o cerco , e rerecollierão para Bintão , e o
meunofez a armada deípoís de andar alguns diasfem achar
coufa noíía , a que pudeííe fazer dano , porque ninhum dos
nolsos amigos com medo delia oufaua de vir a Malaca.
CAPITULO LIIT.
Chega [ocorro a Malaca , Jorfe ãalbuquerque manda Mar*
tm Afonfo de foufa fazer guerra a Bhitao , a Pão , e a
t^atane , e o que lhe fuceãe. MandaJJe de Malaca [ocorra
aelRey de Linga nojfo amigo contra as lancharas de
Btntao<^ e o fucejfo que tenu
XT Eíle grande a perto eftaua a fortaleza de Malaca ;
^ ^ quando lhe chegou o íocorro , que Jórfe dalbuquer-
que mandara pidir ao gouernador por Ambroíío do rego ^
polo qual também lhe mandara pidir que pois i^ntonio de
bntocapirao de Maluco lhe tinha mandado pidir capitães
paraaquelía fortaleza, lhe quifeHe dar a capitania delia
para dou» Sdncho feu genro , ou para dom Garcia anri-
quez .eu cunhado, íe dom Sancho foíTe morto, o que o go*
iiej-n.idor iheconcedeo, e diíío lhe mandou huma proui-
lao. i^íte íocorro leuou Martim Afonfo de foufa , que o
gouernador deípachara para capitão mor do mar de Mala-
ca como atrás deixo dito , e foy com huma armada de três
Bauios redondos , e quatro fuftas grandes : dos nauios erão
capitães, cLe , e André de lemos, e Aíuaro de brito , e das
íultas , António de melo , André íoares , Jerónimo diaz .
e Uuaite de foufa : na qual armada forao duzentos ho*
inens,emuyta artilharia com muytas municoens , e che-
gou toda alaluamento a Malaca, com que^nella ouue o
goftoque fedeyxa bem entender, porque foy em tempa
que neila valia huma ganta darroz ( que hc huma medida-
de pp.o que leuara huma canada) hum cruzado, e humaga-
imiia cmco cruzados , e Jium ouo huma tanga (jue fao três
vilJr
delRey Dom João o III. jç^
. TÍntens , e todas as outras coufas a eíle modo , c tudo ifto
procedia do medo que os noíTos amigos tinh;ío das lan-
charas deBiiitão , com que não oufauao de trazer manti-
nieníos a Malaca. O capitão Joríe dalbuquerque meteo
Jogo a Martim Afonfo em poíTc da capitania mór do mar,
que então íeruia dom Garcia anriquez , e para fe vingar
dos de Bintão co mcfmo mal que lhe rinhão feito, e a terra
eftar bemprouida, mandou a Martim Afonío que com
cinco vellas foíTe tomar o rio de Biniao , e lhe puíeíTe tal
guarda que couía ninhuma entraíTe nem faiíTe por elle ,
porque a mayor guerra que lhe podia fazer era tolherlhe
os mantimentos , o que Martim Afonfo fez logo , c com
três meies que aly efteue pôs Bintão em tal aperto de fome
qual até então nunca paíTara , e em todo eile tempo nunca
Laqtiexemena ouíou a fiiir fora a pelejar com elle. Vendo
elle então, que por aterra íer doentia lhe adoecia muyta
gente, e lhe morria alguma , fc paíTou da ly a Pão , onde
no porto lhe queimou muytos juncos , em que matou muy»
ta gente , e catiuou muytos que íc lançauão ao mar, e to-
mou muytas e groíTas prefas. Daquy fe foy a patanc ,
onde também queimou muytos juncos , antre os quais foy
hum muyto grande , que hauia pouco que chegara da Jaoa ,
em que vierao o meímo Rey de Patane , com que nos da
cidade entrou tamanho medo , que a defempararao de to-
do , leuando cada hum aquillo que podia fomente. Mar-
tim Afonfo lahio logo em terra , e não achando na cida-
de quem lhe refiflide, a faqueou , de que fe carregarão os
Teus nauios , e pondolhe o fogo por muytas partes , co-
mo era toda de madeyra e de pedra e barro, ardeo de
tal forte que nada delia ficou em pé , até as ortas e puma*
res que auia em torno delia , com que os mouros perde-
rão muyia parte da foberba e oufania , com que andauão ,
ç Martim afonfo fe tornou a Malaca carregado de prefas
c de honra , e fem mais gente menos que a que lhe mor-
reo de doença na barra de Bintão. Neile mefiro tempo ,
que elle andou aufente de Malaca , chegou a cila hum em-
baixador dei Rey deLinga, que era grande noílo ami-
Bb 2 go
1^6 Primeyra Parte da Chronicâ
go , a pedir focorro a Jorfe dalbuquerque contra Laque^fè-
mena , que tanto que a noíTa armada lhe deíembaraçou a
barra , faira com coreiua lancharas , c lhe fora queimar o
féu porto, e com gente por terra o tinha tão apertado , que
ja não tinha outro remédio para fe puder faluar, lenao o
que eípcraua defte focorro que mandaua pidir. Joríe dal-
buquerque pondo efte negocio em coníelho , fe dctriminoii
mandaríelhe o focorro , pois efte Rey era tanto noflo ami-
go que algumas vezes elle em peíToa tinha (ocorrido Ma-
laca, para a qual empreía íe offereceo Aluaro de brito , ho-
Bícm fidalgo de grandes efpiritos , o que Jorfe dalbuquer-
que lhe aceitou com palaurasde muytos agradecimentos , e
para iílo lhe mandou fazer preííes dons nauios muyto bem
concertados, hum para eTre , e do outro fez capitão Jorfe
correa moço da camará dei Rey, que o aceitou com muy-
to gofto , com quanto andauão inda ambos mal faós de in-
íirmidades quetiuerao logo chegando a Malaca , onde fo-
Tao cm companhia de Martim Afonfo. Concertado-s os
nauios, em cada hum dos quais hião corenta homens, e
quatro peças groíTas , afora falcoens e berqos , fe forao a o
porto de Linga , onde leuarao comfigo o embaixador dei
Rey que fora a Malaca^ El Rey e os léus vendo dous na-
uios fomente, auendo que era fraco (ocorro contra o po-
der das lancharas , ficarão quafi defconfiados de ter remc-
àio , e por iíTo affaz trifles , porem o Laquexemena fe mo-
ftrou muyto alegre e oufano vendo os dous n ^uios , porque
âuia que tinha nelles a prefa certa , e pondoíTe logo em or-
dem para ir pelejar com eiles , fez duas efquadras deíeíTen-
ra lancharas que tinha, de trinta cada huma, de que to-
imou huma para íy , e a outra deu ao renegado Auelar, com
quanto era capitão da gente da terra. Os nofíos nauios cfta-
uão furtos perto hum do outro, e cabos dados d'hum para
ò outro com íi gente toda poíla em armas , as peça? groí-
fas com pilouros e rocas de pedras , e tinas cheas dagoa
para refguardo do fogo , e tudo bem preparado para a pe-
leja , e.os capitães tinhão mandado que toda a gente efti-
uefle debaixo até paliar a primeyra jurriada , e tanto que
dei Rey Dom João o IIL ip7
as lancharas abalarão da terra com as fuás cuftumadas gri-
tas, os nauios fe alarão poios cabos e fe encadearão popa
com popa, e os capitães auiíarao a genre, que auendo fogo
acudiflem antes a elle que ha pelleja. Laquexemena vendo
encadear os noííos nauios lhe creceo o animo parecendo-
Ihe que o faziao de medo , e parando (obre o remo com
'as lancharas juntas chamou o renegado elhedifse, que
aquillo que os noíTos faziao era ja com medo da lua ar-
mada , a que o renegado reípondeo , que aquillo naquella
gente não erão finais de medo, íenao de pelejarem até mor-
rerem todos , por onde lhe parecia que aquelles nauios íe
não auião de tomar por força de armas, ienão por aíguni
defaftre de fogo. Laquexemena menencorio lhe tornou ,
para que entendas com quanto anim.o iabemos pelejar
eu e aminha gente , mandarei que nos nauios fe não lance
fogo 5 mas que á força de braço fejão entrados , e íe dê
amorte a todos os Portuguefes fem ficar ninhum viuo ,
porque os nauios eyde leuar hoje a Bintao , e aísy o man-
dou. Após iílo íe repartirão logo as lancharas em duas
eíquadras, e a gram prefsa forão remando para os nauios
á competência de qual chegaria primeiro a ganhar aqueí-
la honra : os nofso? capitães, que eílauão juntes ha fa-
la , derão ordem aos bombardeiros que não rirafsem ,
fenão quando elles mandai; em , porque as lancharas vi-
nhão dando moílra de os virem abalroar, e que che-
gando lhe tirarião de tão perto e tão feguro , que não per-
derião tiro. O condefrabre de Aluaro de brito lhe diíse ,
que entendefse no feu ofticio , e o deixafss a elle co feu ,
que bem fabia o que auia de fazer , a que Aluaro de brito
forrindo refpondeo que fizefse o que lhe parecefse bem. E
então Jorfôcorrea manJou aos feus bombardeyros que
não deíparaíTem a artilharia, fenão quando viíTem defparar
a Aluaro de brito , e os condeílabres tinhão tapadas as
portinholas das peças groílas, de que não aparecia mais que
huma fó por cada banda. As duas efquadras das lanchiras»
que vinhão remando para os nauios com ordem de abaí-
XOàt cada huma por fua parte, fe forão chegando para el-
ies
198 Primeyra Parte da Chronica
Jes com grande preíFa , trazendo comrudo bom tento na
nolFa artilharia. _ Os condeílabres quando lhe pareceo tem-
po derão fogo juntamente ás pecas groíTas , que erão coa-
tro por cada banda , que como as lancharas vinhao juntas,
.em cada huma das eíquadras efpedaçarão doze ou treze
delias, de que a gente ficou muyta morta e outra a nado
fobola agoa , e as rocás de pedras derao polia gente que
vmha cm pé polias outras lancharas , de que muytos fica-
ráojnal tratados cm diíferentes partes do corpo, com que
derao grandes gritos , e os remeyros fe embaraçarão de
man-^yvã , que as lancharas tornauao para trás com a cor-
rente d'agoa , a que os capitães mouros acudirão logo, e
com muytos brados , e has cutiladas obrigiuao os reme/-
ros a tornarem a ir por diante , porem a cíle tempo ja os
noíTos com muita prcíleza tinhâo outra vez carregados os
tiros , que tornarão a defcaregar nos inimigos , com que
lhe desbaratarão tantas lancharas , matarão tanta gente , e
ferirão tanta com as pedras , que nao oufarao a íe chegar
mais , e detodo desbaratados fe deixarão tornar para trás
com a agoa que os leuaua, deixando mais de ametade das
lancharas feitas em pedaços , o que vendo os noíios com
. grande prelTa cortarão os cabos aos nauios , e apartados
num do outro derao ós traquetes , e ás vellas das gaueas , e
Toípendendo as ancoras entrarão pollo rio após as lancha-
ras lias bombardadas. Laquexemcna vendode de todo per-»
dido fe meteo por derrador dos baixos , onde os noíTos na-
uios não podiáo chegar , e á força de remo fugio polia
barra fora com vinte lancharas fomente, e o renegado com
eíTas poucas que lhe ficarão varou em terra , e fe foy para a
fua gente de que era capitão , c com ella íe meteo polia
terra dentro , e a\y na praya ficarão treze lancharas , íeiu
em todo cíle feito auer dos noíTos hum íó ferido , que fez
efta vitoria mais glorioía e de mor goílo. Os noíTos nauios
fe tornarão logo a furgir no porto , onde a gente da terra
vinha a nado lançarfe aos peis dos noíios e beijarlhos , e o
meímo rey veyo abraçarfe cos capitães , e pidirlhe que
quifeíTem ir defcanfar a terra , mas Aluaro de brito lhe dií-
fc
dei Rey Dom João o III." ipp
fe que quem não pelejara , não tinha de que eílar caníado ,
equersrr.bem á terra não cumpria ir a íua gente , porque
rão le fuiua de Laquexemena , que vendo os nauies defen";-
parado? Uie não arn"«afre alguma traição. EJ Rcy íe deixou
então eílar nos nauios todo o tempo que elles aly eíliuerao,
onde lhes mandaua trazer de comer em muyta abundância,
e lhos carregou de arros, manteyga , e açúcar, e de muytas
galinhas, em que íe gaílarao féis dias , no fim dos quais
querendo os capitães ja recolheríe por não auer aly mais
que fazer, elRey lhes deu muytas peças , e também aos
bombardcyros ( cujo dizia que fora rodo o trabalho da-
quella peleja ) fez mercê de peças e dinhcyro , o que fez
também a toda a outra gente de que todos ficarão conten-
tes. Os capitães então tomando cada hum para fy duas lan-
charas para leuarem por popa , íe delpidirão dei Rey , que
tinha mandado fazer preíles coatro das mefmas lancharas,
e muyto bem efquipadas as mandou em companhia dos ca-
pitães, em que mandou ajorfe dalbuquerque hum bom
prefente de peças ricas , e deíla maneyra entrarão em Ma-
laca , onde forão recebidos do capitão e toda a mais genre
com tantas feílas e louuores, quantos merecia hum tamanho
feiro, que em todos caufou grandiíTimo efpsnto , auendc^
pollo m .yor que até então aconf^cera naquclias partes de
Malaca , onde ainda não era tornado Martim Afonlo de
íoula com a fua armada, (guando eíles dous nauios lornâr
láo a elia.
CA-
200 Prlmeyra Parte da Chronica
CAPITULO LIIII.
Bajlião dejoufa e Martim correa vão ter a Banda , achão là
Martim Afonfo de melo ju farte em guerra cos da terra ,
Bajlião de foufa fe vay daly dejauindo ddle , chega recado
a Martim Afonfo de Maluco de António de brito^ que o vd
Jocorrer , vay lá com três nauios e com elle Martim cor-
rea , faz/s guerra ha ilha de Tidore e alguns fucejfos
delia.
Aftiâo de Toufa , de que atrás diíTe que de Pacem viera
ter a Malacs , fendo chegada a moução íe partio para
Banda acompanhado de outro nauio , de que hia por capi-
tão Martim correa , onde ambos com licença do gouerna-
dor hiao fazer íua fazenda: chegados a Banda acharão
aJy Martim Afonío de melo jufarte , que auia coatro me-
fes que eílaua em guerra cos da terra , onde miiagroía-
mente íe defendia , porque não tinha no feu nauio mais
que catorze Portuguefes , e a mais gente erao marinheyros
Jaós que leuara de Malaca : com a vinda de Baílião de fou-
fa ceflou aguerra , porem Martim Afonío dcíejofo de fe
vingar pidio para iíTo ajuda aBaílião de foufa, de que íe
eile eícufou dizendo, que não vinha aly para fazer guerra ,
íenão para com paz fazer fua fazenda , e com algumas pra-
ticas que íobrô iílo tiuerão fe foy Baílião de foufa com
íeu companheyro para outro porto da ilha , defauindo de
Martim Afonfo, onde ambos juntos íe apofentarão em
terra com huma boa tranqueyra , em que tinhâo a íua gen-
te, e com muyta paz e quietação fazião fua fazenda. Nefta
conjunção chegou de Maluco huma carauella em que vi-
nha hu:r. Gaípar andré com recado de António de brito a
Martim Afonío em que lhe requeria que o foíTe ajudar na
guerra em que eílaua, para a qual não tinha gente nem
mantimentos, e que importaua muyro leuarlhc os mais
que pudeíTe, e para iílo lhe mandou moítrar o poder que
linha dei Rey íobrc todos os capitães que eíliueíTem em
Banda, quando cumpriífc a feu ícruico, o qual Galpar an-
dre
dei Rey dom João o III. 201
dré fallcceo aly poucos dias dcfpois de íer chegado. Mar-
tim Afonfo carregou a carauella de mantimentos e fc em-
barcou nella , e carregando também deilcs oíeujunco c
outro que tomou na terra , le foy com clles a Maluco , na
qual viagem o quis acompanhar Martim correa, pareccndo-
Jhe que podia nella ganhar honra: chegados 3 Maluco forao
recebidos com geral aluoroço e contentamento de todos ,
como a quem lhes leuaua o remédio de íua neceíTidade, c foy
cm conjunção que hum Joríe pinto homem mancebo de
grande animo com gente da terra e alguns Portugaeíes fe
partia a fazer guerra ha ilha de Tidore , e nas fuás coitas
le partirSo também António de brito e Lionei de lima cm
hum batel grande com hum tirogroílb, e outros barcos
pequenos, em que iriao corenra Portuguefes, para irem
fazer íalros na mefma ilha , e com elles le embarcou Mar-
tim correa , que por toda a ilha iizeríío cruel guerra , em
que matarão ecatiuarao muyta gente, mas a principal
guerra foy tolhendolhe os mantimentos , com que a pufe-
rão em grandiíhmo aperto de fome , por quanto elRcy li-
nha junta muita gente para a guerra. Os mouros de Tido-
re deíejoíos de alguma vingança meterão fecretamentc
muytos paraos armados e bem prouidos de gente num rio
que tinha huma calheta de pouca agoa , e mandarão ao
mar humacaracora grande com alguns mantimentos , da
qual auendo vifta Joríe pinto fe meteo no feu calaluz , que
^ndaua bem eíquipado , e fe foy trás ella até entrar pollo
rio dentro, para onde fe ella foy acolhendo , e como não
lábia o rio foy encalhar na calheta donde não pode íair ,
. os paraos da cilada derão logo íobre elle, de que os noí-
íos fe defenderão valerofamente : Lionei de lima acudio
com muyta preíTa a focorello, e não ouíando de entrar no
ílo por não dar em feco íe tornou , com que os noíTos que
crão doze , e pelbjauao com grande multidão de inimigos
magoados, forao todos mortos c o calaluz tomado, o
qual com as cabeças dos mortos emramadas foy leuado
a el Rey , com que elle e todos os feus fizerão muyta fefta.
António de brito com efte defaílre íe recolheo com todos
Párts L Ce os
202 Primeyra Parte da Chroníca
os noíTos , onde Cachildaroes tinha preíles muyta gente da
terra^para paliar ha iiha de Tidore , e em quanto íe nego-
ccauão as embarcações fe ordenou, que foíTe Martim Afon-
ío cos nauios cílar na barra de Tidore , e em íua compa-
nhia Martim correa e Lionel de lima , e forao tomar na
calheta onde matarão Joríe pinto , e por não eftarem ocio-
fos , em quanto eíperauão a vinda de Cachildaroes , fe fo-
rão ao longo da cofta a queimar hum lugar, que eííaua daly
jiuma legoa, que acharão todo desfeito, e os moradores com
medodos nolTos paliados para hum outeiro, que tinha huma
íubida muito ingrime, onde fe íizerâo fortes, e no caminho
atrauelTarão grandes paos roliços muito groíTos, que fe não
detinhão era mais que numas pedras, com que cada hum dd-
Jeseftaua calçado nas cabeças, para os foltarem íobre os nof-
íos quando fubiíTem. Martim Afonfo inda que vioo perigo
da íubida^, toda via dctriminou de acometer, porque os
mouros não cuidaflem que por medo deixauão de fub/r , ja
que aly eílauão , e para iíto ordenarão que hum fó homem
fofle derrubar os paos, para o que íe offereceo Martim cor-
rea, c começou logo a pôr por obra , fem os mouros o ve-
rem , porque tinhao o tento no corpo da gente que eftaua
em baixo, e indo ja fubindo polia ladcyra, fe forão trãselle
aajudallohum clérigo chamado Gomez botelho, e hum
Frajicifco lopes bulhão , e chegando todos aos paos lhe ti-
rarão as pedras que tinhão nas cabeças, com que logo roda-
rão polia ladeira abaixo, de que os mouros ficarão muito ef-
pantados, porque vião ir os paos, e nao virão os noííos que
os deit^arão, mas vendoos deípois fubir polia ladeira acima
largarão íobre elles grandes galgas pollo caminho abaixo
por onde fubião, de que Martim correa c os companheiros '
fc laluarão dentro em huma lapa que auia no caminho , po-
rem Martim Afonfo cos outros Portugueíes começarão lo-
go a fubir, c has efpingardadas fizerão delaparecer os mou-
ros,com que fubirãoha íua vontade, com quanto os mouros
não deixau^ío de lançar fobre cUcs em quanto fubião muytas
pedras perdidas, e indo com eíta vitoria hum dos efpingar-
deyros , ou foíTe com preíla , ou com deíatento , defparan-
do
dei Rey Dom João o III. 105
do a efpingarda lhe bulio na mão de raaneyra , que deu a
Martim Afonío polia eípadoa direyta, e lhe ficou o pilouro
dentro , de que logo cahio no chíío , cuidando todos que
era morto, os noílos porem vendoo viuo com a magoa d_^a-
quelle deíaílre íe tornarão com elle abaixo , e o leuarão
para a fortaleza por mandado de António de bnto . que
vendo quão mal lhe fucedião as coufas daquelia ^guerra,
a quiíera deixar íe Cachildardes lhe náo fora ha mão, ofte-
recendoíTe a fazella elle fó com a gente da terra, com tan-
to que lhe deíTe hum capitão com vinte Portuguefes de que
fizeíTe cabeça , para o que António de brito lhe deu Franr
cifco de fouía fidalgo honrado e muito animofo com vinte
efpingardeyros , com que Cachildarôes paíTou a Tidore
com mil e quinhenros homens da terra boa gente, que lo-
go em. deíembarcando forao cometer hum lugar que eílaua
em huma ferra , onde ja fora apoiento dos Reys de Tido-
re , que defpoJs por caufa do trato dos mercadores fe paf-
farão abaixo ha fralda do mar , o qual lugar era cercado
de tranqueiras de groílos paos , com que eftaua muito for-
te, em que auia algumas entradas. Cachildarôes defpois
de lhe tomar todos os cam.inhos , porque doutro lugar lhe
nao pudelfe vir íocorro , diíle a Francifco de íoufa que fi-
caíTe aly cos Portugueíes e alguma gente da íua, em quanto
elle hia rodear o lugar para o entrar polia banda de cima ,
que quando foííe para dar nelle leuantaria huma grande
grita , e em a elle ouuindo deíTe também no lugar para da-
rem ambos a hum tempo , e indo Cachildarôes rojieando
o lugar foy fentido dalguns dos de dentro, que fairão logo
fora, e fizerao grande alaoroço leuanrando grandes gritas.
Franciíco de foufa cuidando que era aquelle o final , que
Cachildarôes lhe dera , foy também cometer o lugar , ao
que acudirão muitos mouros, pelejando de longe com
pedras , e outros tiros daremeíto, com que os nolTos todos
forâo feridos , e aíli o foy lambem Franciíco de foufa em
huma coxa por defaílre de hum dos noíTos efpingardeyros,
de que cahio , e os noíTos o afaítnrão para fora , onde nao
auia perigo. Cachildarôes ouuindo aquella r^uolta acudio
Ce 2 a
104 Pnmeyra Parte da Chronica
aaquella parte a faber o que era, e quando vio que os nof-
fos tinhão dado no lugar antes que elle deííe , e o defaílre
de Franciíco de íouía , mandou que ho leuaílem ha forta-
leza , e mandou dizer a António de brito que íe não aga-
ftalle cos mãos fuceíTos daqueJla guerra , que elle a auia de
leuar ao cabo até morrer nelJa , ou íair com vitoria , e lhe
pidia muito lhe qui(eííe mandar Martim correa com outros
vinte Portuguefes.
CAPITULO LV.
Os noífos com ajuda àa gente de Cachildarões tomao três lu-
gares na ilha de Tidore , com que outros alguns fe lhe -vem
entregar» O Rey da ilha manda pidir pazes a António de
brito , e lhas nega , efaz hum cruel cajligo em vãuytos dos
inimigos,
C"^ Om eíleíegundo defaílre de Franciíco de íoufa fc
^ detriminou António de brito em defiílir de todo deíla
guerra , e recolheríe na fortaleza até que vieíTem os jun-
cos de Malaca ; e por cila rezão não quis mandar Mariitn
correa com a companhia que Cachildarões lhe mandara pi-
dir , ao que acudindo elle em pcíToa fe lhe não pôde ne-
gar, enão fomente mandou António de brito Martim
correa cos vinte Portuguefes, mas eícreueo a Lionel de li-
ma que eílaua na barra de Tidore , que o acompanhaíTe
com quinze mais, que foíTem trinta e cinco, porem o auiíou
que le por ventura Martim correa fe quiíeíTe arriícar a al-
guma coufa perigoía, lhe requereíTe que o não fizeíTe , e íe
toda via infilliíTe em fazello , mandaua aos Portuguefes
que o nfio acompanhaíTem : com eíle mando íe foy Lionel
de Lima cos quinze Portuguefes cm companhia de Mar-
tim correa , que em chegando ao lugar apertou com Ca-
childarões que deíTem logo nelle , mas o Cachildarões
queria proceder niílo com mais vagar , o que fofrendo mal
o Martim correa íe foy a Lionel de lima , e lhe diíTe que
lhe parecia bem cometerem logo aquelle lugar , e que tan-
to que elies ocometeíTem acudiria Cachildarões, o que
Lio-
delRey Dom João o III. 205
Lionel de lima lhe contrariou por fer o lugar perlgofa;
moílrandolhe a ordem que trazia do capitrio , que não
queria que fe cometeíTe coufa íenão muyto íegura ,. ao que
replicando Martim correa lhe requereo Leonel de lima da
parte do capitão , que tal não fizeííe , porque ninhum Por-
tuguês o auia da companhar , e alTy o requereo a todos e
lhe moftrou o mandado do capitão , porem Martim correa
deíejoío de leuar fua tenção ao cabo ; confiado que fe elle •
cometeíTe os outros acudiriao , fe falou com hum feu gran-
de amigo chamado Diogo mendez , que íe oííereceo ao
acompanhar , e ambos cos íeus criados , que erao por to-
dos oito , detriminarão cometer o feito, para o qual fs
ajuntarão também com elles dez homens honrados da ter-
ra , que erão amigos de Martim correa , e folgauao de o
acompanharem em tudo , que Ihediílerao que auia huma
boa parte por onde podião entrar no lugar : concertados
todos no que auião de fazer, Martim correa fe moílrou
muito quieto, dando a entender que eílaua ja fora daquel-
le peníamento , e ao outro dia em amanhecendo íe foy cos
feu3 companheiros , e diegarão a huma eftacada de que
manfamente tirarão dous paos , com que ficou lugar aberto
por onde podião entrar dous homens , e daly para den-
tro eílaua huma cafa que tinha hum grande alpendre , os
noíTos em entrando forão logo lentidos, ao que os mouros
íizerão grande aluoroço , e derao grandes gritas , e acu-
dirão com muyto animo a pelejar com muytas pedras e
paos toftados darremeíTo , e com iílo lhe lancauão tanta
terra folia que os cegauao : os noíTos com coatro eípin-
gardas que leuauão , ajudados dos homens da terra que
hião com elles , fe deféndiao esforçadamente , mas com.o
os inimigos erao muitos lhes foy forçado recolhcremfe ao
alpendre : Lionel de Lima ouuindo o grande rumor, foí-
peitando o que era , acudio logo cos Portugueíes , e entra-^
rão onde os noílos eílauão , a que também acudio muyta
gente dos mouros , onde fe trauou huma bem afpera bri-
ga , porem Cachildaroes fentindo o que paíTaua , entrou
logo cora a fua gente poila outra parte, e efpalhandoííe
por
2 0Ó Primeyra Parte da Chronica
por todo o lugar, os inimigos forão de todo desbarata-
dos, íem cícaparem de mortos ou feridos mais, que alguns
que íe fubirao em cafas altas, que tinliâo feitas íobre elteos
de pao , donde fe dcfendião com pedras e arremeflos ,
com que fazião algum mal aos noflos , porem nem eíles
durarão aly muito , porque fe entregarão por catiuos a
Cachildarões , a quem por lho pidir Martim correa deu
as vidas , mas muyto contra ("ua vontade , porque tem lá
antre íy por honra matarem quantos pelejão contra elles.
No lugar foi poílo fogo com que ficou de todo coníumi-
do , e nelle foraõ morros muytos , e dos noííos ninhum,
porem ouue alguns feridos das pedras , de que hum foy
Martim correa numa perna, mas leuemente, e nao fe achou
aly defpojo algum , porque o lugar efraua de todo defpe-
jado da gente que não podia pelejar. A todos os mouros
mortos cortarão os da terra as cabeças , c pelejauão huns
cos outros íobre qual leuaria mais delias , porque ao que
apreíentaua ÇetQ cabeças de inimigos o faziaô caualeyro ,
e lhe chamauao Manderim , que antre elles he nome de
caualeyro. António de brito Já da fortaleza bem via o fo-
go no lugar que lhe eílaua ha villa , de que eílaua aíTaz in-
quieto , e receofo , até que lhe chegou recado da vitoria
dos noíTos , com que nelle e em todos ouue grande con-
tentamento. Os noíTos porconfelho de Cachildarões fe
forão a outro grande lugar , de que ametade era do Rey
de Ternate e a outra do de Tidore, onde entrarão por hum
efteyro que hia ter bem perto das caías , polia parte que
era dei Rey de Tidore , e antes que faiííem cm terra man-
dou Cachildarões dizer aos do lugar, que foíTem todos ver
as cabeças dos inimigos dei Rey de Ternate , que aly tra-
zia , ao qual fe elles não obedeceííem outro tanto auia de
fer das íuas , e com iílo deitarão em terra muytas cabeças
dos mortos , a cuja viíVa os do lugar , receoíos d'outro tal
lucclTo , obedecerão logo a Cachildarões , que os recebeo
em paz , e lhes deu feguro como regedor que era do rei-
no. As nouas deíloutra vitoria feleuarão também logo ao
capitão António de brito , que vendo que aventura da
guerra
dei Rey Dom João o III. 207
guerra fe moftrauaja por íua parte , mandou recado aos
noíTbs que foíTem dar em outro lugar chamado Ogane ,
que eílaua em huma ilha dei Rey de Tidore chamada Ba-
tochina , diftante íeílenta legoas de Ternate : e porque
efte lugar era grande e forte , e tinha muyta gente, lhe
mandou mais corenta Portugueíes : era o lugar cercado de
tranqueiras feitas de paos muyto groílos , com que fica-
uáo muyto fortes , as caías delle erão muyto altas , feitas
de canas fobre groílos elteos , para as quais íe íobe por
eícadas leuadiças decanas, que fe recolhem logo em ci-
ma. Os moradores do lugar , que cráo muyto belicofos ,
tinhao muitas armas a feu modo de que íe íeruiao , c prin-
cipalmente humas como fisgas , ou farpões , com que ri-
rão darrcmeíío , prefas por hum cordel , de que lhe fica
aponta atada no braço , com que ferrando num homem ,
o tiráo para fy , c o matao , e deíles tiros erao muyto pou-
cos , do qunl género de arma a gente de Cachildaroes aula
grandiílimo medo. Uíaõ também de fundas , com que lan-
çáo muyt2S pedras , em que íao taóbem muyto deílros.
Os noílos íe partirão logo embarcados em caracoras e ba-
teis , que leuauão alguns falcões e berços , e forão entrar
por hum efteyro que os leuou bem perto do lugar. Os
mouros como erao muytos , e não tinhão inda viílo o m.o-
do de pelejar dos nolios , vendo que hiao defembarcando,
fe ajuntou huma grande multidão delles com íuas fundas
e farpões, e aparecerão em huma ladeyra. Martim correa ,
e Lionel de lima , que eílviaiâo ja em terra com todos os
Portuguefes fingindo que lhe auiao medo, íe forao retiran-
do para as embarcações , a que os inimigos decendo logo
com grandes gritas forão cometer. Mârtim correa vendo
que era tempo mandou dar fogo aos efpingardeyros, o que
também íizerão os berços e falcões , com que dos mouros
ficarão aly por terra mais de duzentos , e os outros volta-
rão as colfis fugindo a qual mais podia , íeguindolhe os
noíTos o alcance , e o m.eímo fez Cachildaroes com a íua
gente, porem os mouro? não oufando de lhe ter rolto íe re-
colherão has íuas cafas altas, donde fe começarão a defen-
der
2o8 Prlmeyra Paite da Chronlca
der cslbrçaJamente , com quanto as noíTas efpingardas lhe
fazião rauyto dano : Cachildaroes então mandou pollos
íeus trazer do mato grande cantidade de feno, que junto a
muytos ramos íecos e verdes lhe puferão o fogo , que le-
uantou tamanha fumaça, que os mouros quaíi le aíbgauao ,
c o fogo fe acendeo de maneira , que começou a pegar nas
caías , e faltando de humas em outras veyo o lugar a arder
todo e os mouros íe lançauão das cafas abaixo, e fe vinhao
entregar por catluos , porem a gente de Cachildaroes a
ninhum perdoiua a vida, no qual eftrago afora o incên-
dio do lugar , que ardeo todo , morrerão mais de mil pcí-
íoas afly do fogo como do ferro. Alguns que quando fo-
rão fugindo não pararão no lugar , paíTando adiante de-
rão nouas dos noíTos tiros de fogo, com que na terra foy
tamanho o medo , que logo dous lugares vierao dar obe-
diência a Cachildaroes , na prefa defte lugar ninhum dos
nolTos recebco dano, nem íe achou defpojo algum, porque
tudo ardeo com elle. Auida eíla vitoria fe tornarão os noí-
fos ha fortaleza , onde forao recebidos com as feftas , e
louuores que le lhe deuião , e o capitão a requerimento de
Cachildaroes deu a Martim corrca capitão mordomar,
e alcaide mór da fortaleza. Com adeílruição deíle lugar de
Ogane, e co grande eípanto e medo que tinha entrado em
toda aquella gente, el Rey de Tidore mandou hum embai-
xador a António de brito a pidirlhe paz , e que entregaria
toda a artilharia e pagaria a el Rey todo o gafto que tinha
feito na guerra, a que o capitão refpondeo que muyto pou-
co era o que tinha feito para o que ainda efperaua de fazer,
e com iilo o deípidio, c dahy a poucos dias tomarão no
mar humas caracoras do mefmo Rey de Tidore , que vi-
nhao de fora carregadas de mantimentos, em que fe toma-
rão mais de trezentos homens , que o capitão mandou eí-
petar e aííar viuos, com que pôs tamanho cfpanto por toda
aquella terra, que vierão a cobrar grandiíTimo medo ha
nolTa gente , e aíTy ficou aly fempre viua a guerra com el
Rey de Tidore até o tempo que adiante fe verá , e deitas
couías humas iucederão no anno paliado de I5'23, e outras
neílc
dei Rey Dom João o III. 2og
neíle de 1524, que íe puíerão aquy todas juntas para ir
a hiíloria mais iníiada c íe entender milhor.
CAPITULO LVI.
£/ Rey iwffo fenhor manda a Cajlella âous embaixadores
com bajiantes procurações para concruirem o [eu cajamen^
to com a Ifante dona Caterina irmuim do Emperador
Carlos quinto e tratarem do [eu dote , elles o concruem de
todo*
TRatandoíTe em Caílella do cafa mento dei Rey dom
João o terceiro noíTo fenhor com a Ifante dona Ca-
terina irmara do Emperador Carlos quinto , eílando S. A,
em Euora nefte anno de 1524 , deípacliou Pêro correa íe-
nhor da villa de Bellas , e o doutor João de faria am-
bos do íeu coníelho para irem a Caílella por íeus embai-
xadores e baílantes procuradores acabar de concruir e cf-
feituar o caíamento , e tratarem do dote , e d€ tudo o
mais que fofle neceíTario para elle auer eíFeito , para o que
lhes deu duas procurações feitas polio fecretario António
carneyro , aílinadas por S. A, e felladas co feu íello pen-
dente , huma feita a quatorze de Abril , e a outra aos do-
ze de Mayo do mefrao anno , em que lhes daua baílantes
poderes para tratarem do que cumpria ao efíeito deíle ca-
íamento , ou foíTe no dote , ou em qualquer outra couía
que fe oíFereceííe , e íe obrigou a auer por grato , rato ,
firme e valiofo tudo o que elles íizeílem , nem o contradi-
zer em algum tempo em parte nem em todo por maney-
ra alguma , fob obrigação de todos os feus bens patrimo-
niaes , e da coroa , auidos e por auer , que expreflamcnte
a ilTo obrigou , e lhes deu também poder para fazerem em
feu nome quaesquer juramentos ncceílarios , que também
fe obrigou â cumprir e guardar , e para cm íeu nome acei-
tarem também quaes quer outros que da outra parte ie íi-
zeíTcm. Partidos eíles embaixadores da corte foraõ ter ha
Farte /. Dd cida-
2 10 Pfimeyra Parte da Chroníca
cidade de Burgos , onde então o Emperador eíl.iua , que
os recebeo com honra e.gaíalhado , e enrendendo delles
o a que hiaô , ordenou logo outros dous procuradores que
por íua parte e da Ifante fua irmam trataílem o ntgocio
c o acaballem de concruir de todo, dos quais htm era
Mercurino de gatinara íeu grande chançarel , e o outro
dom Fernando de vega comendador mór em Caílella da
ordem de Santiago, aos quais também deu duas procu-
rações baílantes para em tudo e por tudo fazerem o que
foiTe ueceíTario para íe cffeituar aquelle cafamento , e fe
obrigou ao cumprir e guardar iob obrigação de todos feus
bens auidos e por auer , na forma que el Rey noíTo fenhor
tinlia feitas as íuas procurações. E eílas do Emperador
forao feitas na cidade de Burgos a cinco de Julho defte
anno de 1524 , por Francífco de los couos íeu íecretario ^
e íeu notário pubrico na íua corte, e em todos, os íeus rey*
nos e íenhorios , e aílinadas por íua Mageílade , e corro-
boradas CO íeu fello pendente de chumbo. Juntandofe eíleS;
coatro procuradores na cidade de Burgos , e viftas e ex«
aminadas bem por todos as procurações de ambas as paro-
les , deípois de difcutirera a matéria que lhes era cometi-
da com muyto vagar e coníideraçao ^ fe vierão a reíoluer
nella de comum coníentimento de rodos , que el Rey noíTo
íenhor. mandaíTe ha fua cuíta bufcar a deípenfação para
aquelle cafamento auer eííeito , e que o Emperador , den«
tro de dous meies deípois de ella íer vinda , mandaria a
Ifanfa íua irmam até a raya dantre ambos os reynos de
Caílella e Portugal como cumpria a feu eíiado , onde a
iriao receber as peíToas , que el Rey noíTo íenhor para iíío
mandafle , na forma que cumpria ao eílado e autoridade
de ambos. Que o Emperador deíTe em dote ha Ifanta lua
irmam duzentas mil dobras de ouro Caílelhanas ao preço
que tiuelfcm quando fe lhe fizeíTe o pagamento delias , de
que fe deícontariâo o ouro , prata , e joyas que a Ifante
]euaíle comíigo , e que eí^as duzentas mil dobras fe paga-
riaõ em tempo de três annos, hum terço delias cada anno,
de que o primeyro pagamento íe faria hum anno defpoiç
dç
dei Rey Dom João o III. ui
tle fer confumado o matrimonio, e os outros dous terços
nos do!JS annos primeyros feguintcs , hum terço cada an-
uo , e que nifto não teria lugar nem perjudicaria qualquer
taxa ou eftimação que o Emperador e el Rey noíTo fenhor
tiueirem feita nos léus reynos e fenhorios. Que el Re/
noílo lenlior daria de arras ha Ifanta dona Caterina feííen-
ta e feis mil íeis centas e feíTenta e íeis dobras , e dous ter-
ços, de banda Caílelhanas de bom ouro , e juílo pefo ,
que era a terça parte do dote , ao preço que valeíTem no
tempo do pagamento. Qiie o Emperador forneceria e or-
naria a Ifanta fua irmam de vefridos e atauios de íua peííoa
e caía conforme a cuja irmam era , e com quem cafaua.
Que o Emperador daria ha Ifnnte dona Caterina fua irmam
para gouerno e fuftentaçao de fua caía dous contos de ma-
rauedis em cada hum anno , aíTentados em lugares onde
os tiueííe certos c fcguros. Q^ie el Rey noíío íenhor darig,
halfanta dona Caterina as terras que então tinha a Rainha
dona Leanor fua ria , quando vagaíTem por failecimento
delia , e da Rainha de França dona Leanor , irmam da
nieíma Ifante dona Caterina a quem então eítauao obriga*
das , as quais terras logo como vagaflem íerião entregues
ha Ifanta dona Caterina na forma e maneyra que então as
poíTuhia a Rainlia dona Leanor fua tia. Que el Rey nof-
ío Senhor e íeus crdeyros e íucefíores íerião obrigados a
dar ha Ifante dona Caterina para gouerno e íuílentação de
fua cala coatro contos de reis cada anno , com tal decla-
ração que fe as terras que então tinha a Rainha dona Lea-
nor fua tia vagallem de maneyra que vieílem a feu poder,
fe defcontaria tanto dos coarro contos , quanto valeíTem
as rendas daqucllas terras. Foy afícntado por todos os
coatro procuradores que as pazes antigas, que antre os
Reys de Portugal e Caftella forão aílentadas e ccníirma-
das , íe confirmarião de nouo pollos fenhores fcus coníti-
tuintes , com todos os paflos , vinculos , firmezas , e con-
dições nellas contiudas. E logo os meímcs coarro procu-
radores em nome dos íeus conílituintes as aíícnip.rúo c
confirmarão : e alem difto. , pollo muyto parcntelco e amor
Dá 2 que
tJi Prlmeyra Parte da Chroníca
que auin antre eftes dous fenhores , e por outras muytas
rezdes e rcípeiros, aíTentarão então de nouo que fe ajudaf-
fem hum ao outro todas as vezes que a cada hum delles
foíTe necefsario para defenfao do? iVus próprios eftndos ,
que cada hum delies tiuefse em Eíp?nha , e AKrica , e fe
ajudariáo fegundo o cafo o requerefse , ícndo primeiro
requerido para ifso qualquer deftes dou? Penhores que ou-
uelTe de dar ajuda ao outro , porem no? cílados d'AFrica
de cada hum delies íe entenderiao íómtnte os lugares que
cada hum delies tiuefse na íua conquiíía, conforme has ca-
pitulações que auia antre eftes dous Reynos, deíde Ourão
e MciÇírquibir até o cabo de aguer incluííue , e mais não,
o que íariâo e cumnririao inteyra , fiel , e verdadeiramen-
te i, íem arte nem engano nem cautella alguma , e deftas
capitulações e de outras coufas particulares tocantes a el-
las , que aqui fe não pfíem por ferem de pouca importância
para efta hiftoria , foi feira huma efcritura pubrica por
Franciíco de los couos fecretario de lua Mageftade , e feii
pubrico notário em todos os íeus reynos e lenhorios , em
Burgos aos 19 dias do mes de Julho do mefmo anno de
15^4, em que fot*ao teftemunhas o marichal de Borgonha
mordomo mor de fua Mageftade , e o comendador mor de
caílella , e moníieur dela chaulx , do ícu coníelho. Sendo
iílo afsy concruido aos dez dias do mes de Agoílo feguin-
te na vilia de tordefílhas , para onde o Emperador fe pai*
iara , nas íuas cafas reais , em que fe agafalhaua com eile
a'Ifante dona Caterina fua irmam , ella e*m preíença dos
embaixadores d'el Rey nofso fenhor jurou em mãos do
Arcebifpo de Toledo dom Alonío de Azeuedo Chançarel
mór de Caftclla , que vindo a difpenfaçao para aquelle ca-
famento ella fe caiaria por palaura? de preíente com el
Rey nofso íenhor , ou com íeu bafbanre procurador , e
logo os embaixadores dei Rey nor?o fenhor em prcfença
do Emperador e da Ifanre fua irmam fizcrao outro tal ju-
rariíento em mios do meímo Arcebifpo de Toledo , que
vindo a deípeníaçío de Roma el Rey noíso Íenhor fe ca-
iaria por palauras de preíente com a Ifame dona Caterina,
e
dei Rey Dom João o III. 213
e cumpriria tudo o que nas capitulações feiras de feu ca«
íamento cHe por lua parte era obrigado a cun.prir , com
que fe acabou de arreniatar aquelle felice caíamí nto com
grande gofto de ambas as partes , e os embaixadores de
fua alteza fe tornarão logo a eíle reyno a liie dar conta do
que era paíVado , de que fe elle moilrou íatisfeito e íe cu-
ue por muito bem íeruido dslics.
CAPITULO LVIT.
Os mcuros mercí?dores de Calecut ordenao hum grojfa ar^
ma da para lhe ir guardar as fuás nãos ^ e para fazer
guerra ha jortalcza : dom foão de lima capitão delia
tendo auifo difio fe jurtifíca, A armada vay dar vifla ha.
fortaleza , e o que Ihejucede. Os mouros bufcao hum ar-
dil para darem a morte a dom João , contãoffe algumas
coufas que f ao caufa deje começar a guerra que el Rey de
Calecut fez ha noj] a fortaleza^
OS mouros mercadores de Calecut vendo que íe per-
dião de todo por falta dos feus tratos , porque as
noíTas armadas lhe tolhiao a nauegaçao das fuás nãos , de-
trirrinarão fazeremíe armadores cos capitães dos paraos,
para que el!es lhas feguraíTem , e lhas pufeíTem em íaluo :
e para iíto íe falarão com Bailacem e Cutiale de Tanor ,
de que ja atrás fiz menção , e lhe derao grande ajuda de
dinheyro e artilharia , com que armarão leííenta paraos
para acompanharem coatro nãos carregadas de pimenta
até as porem fora da vift.i da coita da índia. Dillo foy logo
auifado dom João de lima capitão da fortaleza , mas pa-
Teccndolhe manha dos mouros dizerem que íe armauao
tantos paraos para acompanharem coarro nãos lómcnte ,
quis buícar modo para tirar a limpo a verdade difto. Auia
então em Calecut hum renegado chamado Baftiao rodri-
guez , que andaua cem el Rt-y , com que dom Jo:'o tinha
amizade , porqvie era filho de hum boticairo de Lisboa íeu
compadre, eílc tinha por alcunha o rachado, porque vindo
do.
2 14 Primeyra Parte da Chroníca
do reino , fendo ainda moço o cometeo hum homem ni
nao de peccado nefando , e quis pegar delle , com que lhe
foy neceifario dar vozes , a que lhe acudio gente , e pren-
derão o homem, de que fe tirou deualla , e fe íoube que
pollo mefmo caio vinha fugido do reino , com que roy
lançado ao mar , e o moço íe ouuc por íem culpa , e por
cila rezão alguns da nao por zombaria , ou antes por in-
duzimento do demónio, que muytas vezes toma eílts
zombarias por meyos para feus intentos , lhe chamauão
rachado , de que o moqo fe ouue por tão corrido c aíron-
tado, que em chegando a Goa fe foy para os mouros , e
andaua com elles em Calecut: por via deíle tiniu dom João
iT^uytos auifos fccretos , e por iíío trataua de ter amizade
com elle , e por fua mefma via derriminou laber a verda-
de daquellas quatro nãos , e da armada dos paraos : e para
ilTo lhe efcreueo íecretamente huma carta por hum naire
da fejtoria , em que lhe mandou perguntar a certeza do
que lhe tinliao dito , ao que lhe elle refpondco que lhe
diíTerão verdade, c que el Rey de Calecut lhe auia de fa-
zer guerra , porque os mouros lhe fazião o gafto , e que
os paraos que le armauao auião de paííar junto ha forta-
leza , e com ajuda de muyta gente que auia d'ir por terra,
fe viíTem tempo auião de cometella , e ver íe apodiao en-
trar. Dom João com tudo não fe fiando inda bem deíla
informação , a mandou tomar por outra via , e achando
nefta o mefmo , mandou auifar dom Luis de menefes , que
citaua inuernando em Cochim , que deuia de vir com ar-
mada efperar eíles paraos , e tomallos no mar ou entrar
no rio de Chalé , onde fc auião de ajuntar com as nãos.
Dom Luis não deu a iílo muyro credito , parecendolhe
que erão inuençoes de dom João para ter contendas cos
mouros , pollo ódio que lhe tomara defpois que lhe lan-
çarão as cobras na fortaleza, e Jhe reípondeo com algumas
palauras de reprenfaô dizendolhe , que não ordenaííe cou-
fas com que a guerra fe leuantalíe de que teria grande
conta que dar , que elle a nada auia de acudir até a vinda
do goueríiàdof , por iílo viíTe o que fazia : dom João ror
da
dcl Rey dom João o IIL a 15
áa via fentido da rcpoíla , praticou o negocio cos oíleci-
ais , e homens hcnradcs que com eIJe eílauão , e a totlos
pareceo bem contemporizarfe cos mouros , c não quebrar
corn el!e?5 até que elles não quebríiílcm de rodo a paz , en-
tão lhes pidio o capitão a tcdcs que cfcufaíTem de ir hg
cidade para que os mouros não arniafíem com elles algu-
ma contenda como tinhao por cuíhime , e lhe pudcíTe
acontecer algum deiaftre ; e porque le rinha por certo a
auiíodo renegado , mandou dom João fazer hum baluar-
te de madeyra muyto forte diante da porta da fortaleza ,
com que ficafie emparada dos tiros que os mouros lhe íi-
raflem do mar : e para experimentar o animo do regedof
da cidade , lhe mandou pidir por hum naire alguns car-
pinteyros para aquella obra , que lhe clle nao mandou : o
baluarte comtudo foy feito de todo tão chegado ao mar,
que fenão podia paflar ao longo delle fem fe tocar na
agoa , e ficou afaíLado da fortaleza diílancia de hum jogo
de bola : os mouros Cotiale , e Bailacem íairão do rio na
entrada d^Agoílo cos feus íeíTcnra paraos bem concertar
dos , e mil homens de peleja nelles , e leuarao com ligo as
coatro nãos muyto íeguramente até as porem em faluo y
por terem bem elpiado dom Luis , que não bolia comíigoi
e após iílo correndo ao longo da coíla forao dar vríla ha
fortaleza, a ver o que podiao íazer nella.. Defronte da for-
taleza fazia o mar hum arrecife tão perro da terra , que
por antre ella e elle não entraua fenão quem auia de fur-
gir. O Bailacem de oufano e fonfarrão le foy meter por
efíe lugar no feu parao , que era grande e bem concerta-
do , e para iílo o m.andou embandeyrar rodo , onde a íua
gente bem armada começou de eígremir com as arm^as , e
dar muytas gricas , ao que dom João não pôde ter paciên-
cia ,e lhe mandou tirar com três cameletes que tinha ao
longo do baluarte , de que hum que acertou o parao lhe
leuou todos os remeiros do maílo aproa , e os- outros
dous alcançarão dous paraos que hião de largo , c os me-
terão no fundo, de que a gente foy roda morra , e lem
embargo diílo dom João por hum naire da feitoria íe rnaiif^
doOt
ij6 Pfimeyra Parte da Chronlca
dou queixar ao regedor dizendo , que aquillo que lhe fa-
2irio era quebrar a paz , pois os paraos dos coíTayros che-
gauáo a tirar tiros ha fortaleza dei Rey , a que elle rcf-
■pondeo , que íe os paraos fizerao mal ja o tinhao pago , e
queaíTy o pagaria quem itial fizelTe , porque o Qamorim
líao auia de quebrar a paz. Nefte mefmo tempo os mouros
da cidade , como defejauao de fazer a dom João todo o
mal que pudeíTem , pollo grande ódio que llie tinhao,
peitarão grofiaraente a três nayres , que íe foíTem a elle
com alguma queixa , e achando conjunção o mataílem , a
quem os naires fe ofFerecerão , mas que auia de fer com
lho mandar el Rey , o que os mouros negocearâo de ma-
neyra, que el Rey lho mandou. Diílo foy logo auifado dom
João poilo renegado Baltiao rodriguez , e lhe mandou di-
zer, que a queixa com que eíles naires auiao de ir era , que
hum Português lhe matara huma vaca , co qual auifo o
capitão trazia muyta vigia (obre íy , e tinha dado ordem
a vinte alabardeyros que tinha da fua guarda , que íe vif-
lem chegar algum mouro ou naire a elle a darlhe algum
recado , lho cercaíTem logo, elhe tiueílem muyto bom ten-
to nelle , e hum dia eftando aíTentado ha porta da fortale-
za acompanhado de muytos hornens , chegarão os três
naires , de que os dous ficarão afaftados , e o outro fe che-
gou a fazer a queixa , e os alabardeyros fizeraô o que lhes
iera encom^endado : dom Vaíco de lima , primo do capitão
fe leuantou em pé , e com huma cfpada dambas as mãos fe
pôs antre o capitão e o naire que nem por iíTo deixou de
fazer íua queixa , e tanto que veyo a tocar na vaca , en-
tendendoííc que eraõ aquclles os da conjuração , dom Vaí-
co arremeteo com aquellc e o liou pollos braços e o meí-
mo fizeraó os alabardeyros aos outros dous , e a todos to-
ir>araÕ as armas , que eraõ eípadas e adargas , o capitão
naô quis que lhe fizeíTem mal , mas por hum naire da fei-
toria os mandou a el Rey , e lhe mandou dizer que naó
mandara dar aaquelles naires a morte , que lhe elles vi-
nhaô dar , porque nao queria íer ocafiao de fe romper a
yaz , que fe elle a queria quebrar , íoubeíTe certo que o
acharia
delRey Dom João o III. i\y
"iícharia de mancyra que íe poderia muyto bem defender
até a vinda do gouernador , mas que le eípantaua muyto
delle , fendo hum Rey tao poderoio fazer hum feito tão
baixo , como era mandar matar hum liomem ha traição ,
que fe deíenganaíle , que por mais que fizeíle íobr'ifío o
naô auia de ieuar ao cabo ; e comtudo iílo a gente da ci-
dade não fe afaítaua da fortaleza , nem da conueriação dos
noíTos , antes lhe viniiaó vender muytos mantimentos,
Sucedeo também neíte tempo que em Parangale, que he
perto de Calecut matarão os mouros oito Portuguefes ,
que eftauaõ tratando , c lhe roubarão as fazendas , o que
iabido pollo capitão íe mandou queixar ao regedor por
hum feu feitor chamado Gonçalo tauares , o qual os mou-
ros m.atarão antes que chegaíle onde o regedor eíiaua ,
com que o capitão mandou que ninguém fofle mais ha ci-
dade , c por hum naire da feitoria mandou dizer ao rege-
dor 5 que vifle bem quanto lhe fofria por nao chegar a
quebrar a paz , o regedor com eíle recado fe toy logo ha
fortaleza, onde deixando a lua gente afaítada teue co capi-
tão grandes cumprimentos, e lhe deu muytas defculpas
e laftifacoes da morte de Gonçalo tauares , prometendo-
ihe que quem lha dera naõ ficaria íem o deuido caílígò ,
a que o capitão lhe naó deu outra repofta íenão que lhe
pelaua muyto de el Rey ja não começar a guerra ,que fa-
bia que tinha ordenado de lhe fazer , para lhe moílrar
quanto valia , e quanto poder tinha aqueila fortaleza dei
Rey de Portugal , e com ifto fe deípidirão , trabalhando
comtudo o regedor por diíhmular as coufas de que dom
João tinha auifos contínuos pollo renegado. Poucos dias
deípois diílo íucedeo também tomarem huns mouros al-
gumas molheres chriílas da terra , que por força querião
Ieuar a Coulete , ao que dando ellas muitos brados o íou-
be logo o capitão , que mandou os naires da feitoria que
foílem por ellas , mas os mouros eraója idos , e porque
hiaò ainda ha viíta da fortaleza , mandou dez hom.ens que
astrouxeraõ, inda que os mouros não deixarão de as de-
fender, a efte rumor le leuantou hum grande aluoroço coni'
.^arte L Ee que
2ti8 Prlraeyra Parte da Chronica
que íe ajuntarão mais de duzentos mouros , e correrad
ha Fortaleza trás os noflos , a que por mandado do capi-
tão fahio Garcia de faria efcriuao da feitoria com trinta
efpingardeyros , que os fez afaílar , porem a iílo íe ajun-
tou todo o pouo de naircs e mouros , e forao cometer o
baluarte de^madeyra a ver fe o podiaô tomar, ao que acu-
dio dom Vaíco de lima com cem efpingardeyros, que teue
cos inimigos liurna briga aflaz trauada , mas com ajuda
de algumas peças da fortaleza os fez fugir para a cidade ,
e os noíTos os forao feguindo até chegarem h^s caías, a que
puferão fogo , com que ardeo huma grande parte delia ,
donde ficou a guerra de todo ateada , auendo cada dia re-
bates na fortaleza a que dom João nao coníentia fair a
gente , porque como tinha pouca nao queria vir a ter me-
nos , para fe poder íufbentaraté a vinda do Gouernador,
que não veyo ao tempo que elle efperaua , mas vierao as
nãos do reyno.
CAPITULO LVIII.
^/ Rcy manda dom Vafco da gama conde da Vidigueira a
■■. goucrnar a índia , contãoje dous cafos efir anhos que no
mar lhe acontecem , chega a Goa. El Rey ordena ejle anno
as vias para as fucejfoes da gouernança da Índia*
EL Rey dom João , que neíle tempo nao auia mais que
dous annos que tomara o cetro delle feu reino , enten^
dendo de quanta importância Ihecra aííy para a honra como
para o proueito do citado da índia, que el Rey dom Mmcel
ícu pay lhe deixara ganhado com tanto íangue , tantas vi-.
das , e tão valeroíos feitos dos feus vaííalos , detriminou
niandarlhe hum homem para o gouernar , do qual ( ja que
era o primeiro que elle efcolhia para eíle cargo ) a índia
cntendeííe a grande conta que tinha co que entendia que
lhe era neceílario , e de quem íua Alteza ficaíTe ícguro
^ue ijâo lómeate auia de íuílentar o que eílàua ganhado ,
-!^; mas
deíRey Dom João o Ilf. iip
tnas acfecentallo quanto mais pudcíFe , para que mcfíran-
do a''y aaquelle cílado no começo de íeu irrperio o gcfto
e lembrança que tinha das coufas , o animaíle e eftin^ulaí-
íe para as de leu feruiço. E pareccndoihe que para iílo
rao podia então auer outro irais íufHcicnte que dcm Vaf-
CO da gama conde da Vidigueyra c almirante do n ar dâ
índia , que a dcfcubrira , aOy polia experiência que linha
óds ccufas delia , como pollo conhecimento que os mou-
ros linháo delle do tempo do defcubrimento , e da outra
viagem que lá deípois fizera , e pollo grande refpeito 6
reuer-ncia que porilTolhe tinhão , o mandou chamar ha
Vidigueyra , onde eftaua deícanfando ja dos trabalhos
paflados , e lhe dilTe o para que o chamaua , e as rezões
que o obrigauao ao efcolher para aquelle cargo , o condcj
auendo aquillo por matéria de íua honra , lhe beijou à
mao polia mercê , e comtudo naò deixou de llie pidir al-
gumas couias que lhe el Rey concedeo , antre as quais
foy o titulo de vilo Rey , de que nao viária íenao defpois
que chegafse ha primeyra fortaleza da índia , e a fortale-
za de Malaca para todos feus filhos, a qual feruirao coarro
delles , e lhe deu o cargo de capitão mór do mar da índia
para dom El*teu"o feu filho que com elle hia , e outras al-
gumas couias. E porque atéaquellc tempo íe nao cuftu-
maua prouerfe nas íuceísôes da gouernança da Índia co-
iro agora íe coftuma , entendendo fua Alteza camanho
inconueniente era para aquelle eílado morrendo algum
goucrnador delle no tempo de íua gouernança íicar a eley-
çno de quem o gouernaíse aos meímos que nclle eOauao ,
de que alguns o deuião pretender, pollos bandos, difíeren-
ça-! e difsctifões que podia auer fobrMíso , ordenou que
foí>em efl"e anno três vias aílinadas por elle , cerrada e lel^
Jdda cada huma delias com trcs fcllos das armas reais, re-
partidas logo de cá Cum titulo de primeyra, fegunda , e
terceyra , em cada huma d^s cuais hia nomeado o homem
que íua Alteza auia por feu feruiço , que íucedeíse ao viCo
Rey, fendo caio que fallecefse , das quais ninhuma íc
«uia de abrir em quanto elle fofse viuo. £ eila ordem
Ee 2 íTiâu-
'2íto Prlmevra Parte da Clironica
mandou que fe giiardaíTe daly por diante , c íe guarda In»
da oje todas as vezes , que le proue de nouo a goucrnan-
çi da índia, Mandou el Rey armar para efte anno huma
armada de quinze vcllas , dez nãos grofias de carga , e
cinco carauellas , das nãos erao capitães Afonfo mexia,
{:^ara veador da fazenda dom Anrique de meneies dalcu-
nha o roxo , para capitão de Goa Pêro mazcarenhas , para
capitão de Malaca Lopo vaz de fampayo , para capitão de
Cochim Francifco de lá de mencfe? , que hia a fazer hu-
rna fortaleza na Gunda , dom Simão de menefes para ca-
pitão de Cananor, António, da íilueira para capitão de
Cofala , dom Fernando de monroy', e Franciíco de brito,
que auia de ficar na índia para andar por capitão mór das
nãos do trato de Goa, para ormuz , e hia também Vicente
gil armador: os capitães das carauellas erao Lopo loboj
Ruy gonçaluez que fora capitão dordenança na Índia j
Crillouão rofado , e molfem Gafpar Maiborqui em cara-
uelias latinas, e Pêro velho numa redonda. Hi^ neftaarma-
da m.uyta c muy luzida gente , em que entrauao muitos
fidilgos e muytos outros moradores da cala d;e! Rey em
muyto bom foro e outra gçnte muyto limpa : e da gente
do ínar , afora a que era ordenada a cada nao , hia autra
muyta de fobreíTelente, e bombardeyros para fe proue-
rem. as armadas da índia , que as mercê*:, honras , e fauo-
res, que então fe faziao aos homens aífy na carreyra como
Já em terra , lhe dauáo animo para deixarem Tuas cafas ,
e alguns fuás molheres e filhos , por irem feruir a el Rey ,
e por iíío a índia então era fenhora de léus inimigos , e
todos os feus fuceííos e viagens eráo proíperas. O conde
partio do rio de Lixboa aos noue dias d'Abril do anno de
I5'24 , onde leuaua comfigo dous filhos feus , dom Efte-
uão da gama feu filho fegundo para capitão mór do mar ,
e dom Paulo da gama mais moço que efte , e feguindo fua
derrota com proípero tempo chegou á ilha de Moçambi-
que a catorze de Agofto , onde não íe deteue mais que eni
quanto a armada toda íe proueo de agoa , e elle de liuma
-verga que Uie quebrara, que tudQ fez çpi poucos dias,
e
.' delRéy Dom João o Hl. ii-r
c''daly fe foy na volta da cofía de-Melinde ] e -no cami-
nho defapareçço a nao de Franciíco de briro ictn nunca
mais fabcrem nouas de] la , e a de dom Fernando dç ir.ou-
roy encalhou, nus baixos daquelJas ilhas onde fe perdeo,
mas faluouíe toda a gente , que ie recolheo polias outras
fiaos , e iílo meiíno aconteceo ha carauella de Crillouâo
rofado. Na de tnoíTem Gafpar , por elle Ter afpero de corx-
diqao , e íe dar mal com a gente , íe leuantnrão contra elle
os marinheyros e o piioto e o meilre , e o matarão , c fe
forão com a carauella ao eftreyto andar nas prezas , donde
defpois foraô trazido? , e lodos com as vidas pagarão eílâ
ieu fáo graue crime. Com eílas vellas menos foy o conde
tomar na cofta da índia , na paragem de Dabul , onde fem
terem villa de terra , e com ter o vento calma , fendo paí--
íada huma grande parte da noite deu tamanho tremor
cm todas as nãos , que cada huma delias íe ouue por per-
dida , cuidando que era baixo em que linha dado, e
que ella fó padecia aquelle trabalho , e lem entenderem
o que era fe faziao linais humas has outras com muytas
bombardadas , para íe guardarem do perigo em que a. cada
huma delias pareci.^ que eftaua , com que a reuolta em to<-
das foy muyto grande , acudindo ha mareagem , amainan-
do as vellas , e iançando os bateis fora fem entenderem
o que , nem o para que p faziao , e tamanha era a cpnfu-
íao , que com KíDçarcni o prumo e não acharem fundo fe
rão fabião dará conklho, porque as nãos dauao tama-
nhas pancadas que parecia , que íe quebrauao , e jugauao
de tal mantyra , que os homens fe não podiao ler em.pé.,
c as arcas andauao de huma parte para a outra , no qual
trabalho eíliuerao pouco mais de meya ora , em que o
tremor não foy (empre continuo , mas comeíia com muy-
ta força , e quietandoíTe hum pouco fe tornaua logo a aui-
uar com a melma força , até que ceifou de todo. O conde
n'o d.ixou lambem de eftar algum tanto confufo com
eíla nouidade , porem hum medico que leuaua comfigo ,
que tinha confiecimento da arte da aílrologia , lhe tirou
eíta coafuiaõ;, dizendolhe que era tremor do mar , co qual
••i .'• d cie II--
ZLií Pilmevra Parte da Chroníca
defengano f^^hio ao conuez ,' e com a boca cheyaderifo
diíle ha gente que nao temelTe , antes fe alegraííe ; porque
o mar tremia delles , com que todos ficarão animados
e contentes. Após efte caio , que foy aííaz eftranho e def-
acuftumado , lhe lucedeo outro de nao menos admira-
ção , que íem auer vento nem precederem outros algunt
linais , íobreueyo liuma cliuua tão groí?a , com tamanha
força dagoa , que parecia hum nouo diluuio , porem co-
mo durou pouco, com quanto foy também caio aífaz noua
€ edranho , e hum e outro nunca vilto na nauesacao át
Índia, nao pos a gente em tanto reccyo como o palfado >
e deípois de eftar a armada de todo quieta, continuando
o conde íua derrota , não tardou muyto que não ouueíTa
vifta de terra , que lendo conhecida Ter Chaul , foy fur-
gir na barra , onde ha nao o foy logo viíitar Simão dan-
drade capitão da fortaleza , e lhe mandou leuar muyto
refrefco para elle c para todos os capitães da armada. O
vifo Rey o recebeo com muyta honra egafalhado , po-
rem meteo logo de poíTe da capitania a Criílouao de fouía
que a rinha por prouiíaô dei Rey , a quem deu regimento
que fe aly vieíFe ter o goucrnador dom Duarte não fizef*
íe coufaquelhe mandaíTe , e do que achaííe mandado
por elle nada compriíTe. E defpois de ordenar aquy al-
gumas couías que lhe parecerão neceíTariaí:, porque tra-
ria ordem dcl Rey , que onde quer que chegaíTe proueíTé
em tudo como ihe parccefíe, íem efperar que o gouernador
lhe fizeíTe entrega da gouernança , fe partio para Goa , on*
de chegou a onze dias de Setembro deite anno de i^i^^^^
CA-
dei Rey Dom João o III. 22 j
CAPITULO LIX.
O Tifo Rey em Goa entende no que pertence a a que II a cida"
de , vianda fã^er jufiiça de ires molheres , que jorao
aqueVíe anno dejle reyno. ParteJJe para Cochim , de ca-
minho manda duas armadas a dtuerfas partes. Dejeni"
barca em Cananor^faz amizade com el Key^próue ajor*
taleza de capitão nouo , e chega a Cochim^
c
"^ Hegando o vifo Rey a Goa , a cidade o recebeo com
muyras e grandes feftas que lhe tinha aparelhadas,
e com todas as cirimonias de autoridade que então forao
poíTiueis , tanto polias calidades de fua pelToa , quanto
por entender o inuyto que IJie deuiao os Portuguelcs , e
particularmente os habitadores daquelle eítado , pois por
leu meyo vierao a ter noticia e o comercio delle. O vifo
Rey, porque lhe era neceííario paílarfe a Cochim para dar
expediente ha carga das nãos , entendeo logo no defpa-
cho do que pertencia ha cidade de Goa , e ao outro dia
defpois de ler chegado tirou a capitania delia a Franciíco
pereira peftana , e a entregou a dom Anric^ue de meneies
que hia prouido neiia. A gente da cidade , que andaua
queixofa de Franciíco pereira por íem rezôcs que fazia ,
vendoo fora do cargo íe foy ao viío Rey com as queixas
que tinha delle , de que também o viío Rey ja linha al-
guma noticia, que a cada hum dos que íe queixauão íaiis-
fez conforme hacalidadc da lua queixa, de que todos fi-
carão tão contentes, quanto Franciíco pereyra defcontcn-
tcnte , por lhe cullar de lua fazenda. E porque deíejaua
ter os (bldados contentes , como quem bem entendia quão
importante iílo he pêra o meneyo da guerra , fez logo pa-
gamento geral da preía de huma nao de Meca , que íe to-
mou quando elie vinha de Chaul , em que fe acharão cem
ir.il xerafins em ouro , e muyras mercadoriíís , e efcrauos
que importarão muyto mais , de que fcz feitor e guarda
Fcrnío manins euangelho , e com elIe Bcfílião luiz eícri-
*ião da nicitricuia, que tudo puferao em arrecadação , de-
que
^;x4 Pfimeyra Parte da Chroiiica
que fe entregou has partes o que lhes cabia Tem quebra
ou tV.Ira alguma : o qual pagamento chegou até a alguns
doentes qu;e eílauáo no eíprital , que de lá fairão a rece-
bclÍQ. 'Entcndeo também em mandar caftigar três molhe-
rcs , que quando chegou a Moçambique achou que vierao
aquelle anno do reyno na fua armada , porque eftando
elle ainda no rio de Lixboa , quando íe queria partir ,
entendendo quão abominauel coufa he embarcarem hos
homens comíigo moíheres nas nãos poUo grande e eui-
dente perigo de íuas almas , e polias difFerenças e brigas
que íobr'ilTo podem faceder , mandou apregoar em ter-
ra e nas nãos , e pôr efcritos nos peis dos maílos , afllna-
dos por eMe , que toda a molher que fofle achada ctn
qualquer nao da barra para fora feria na índia açoutada
pubricamente inda que folTe caiada , e feu marido torna-
ria a Portugal carregado de Ferros , € fe foíle efcraua ca-
tiua , feria perdida para a rendição dos catiuos , e o capi-
tão que tia íua nao achaíle molher , € a não entregaffe , per-
deria íeu ordenado , dos quais pregoes mandou ao ouui-
dor que fizelTe autos para por elles íe proceder contra que
foíTe juíliça , e chegando a Moçambique lhe forão deícu-
bertas ns três moíheres que atras difle , as quais mandou
por a bom recado até eíle tempo , em que mandando cor-
rer com a juíliça , c condenandoas a íercm açoutadas
com pregão pubrico , acudirão em fauor delias ao vifo
Rey todo o género de homens, que parecia que podião ter
com elle alguma valia, e a que elle podia ter refpeito ^
quais forão o Biípo, os fidalgos quafi todos , muytos re-
Jigioíos , e até os irmãos da mifericordia , e não faltarão
homens de bem que dauão pollo perdão delias trcs mil
pardaos para a rendição dos catiuos , mas nada difto ba-
ilou para abrandar o vifo Rey , e mandou que a fentença
le executafle : comtudo ao outro dia em que fe auia de
fazer a execução aperrarão com elle de nouo , e parti-
cularmente alguns religioíos de S. Franclfco cos irmãos
da miíericordia , vfando de alguns termos de que aquella
cala cuíluma víar para feroelhantes caíos , a que elle não
fó-
dei Rey Dom João o III. 225
fomente não deu orelhas , mas lhes diíTe que aquillo pa-
recia modo de uniaô , e dar a entender ao pouo que era
elle cruel e deíarrezoado^ quando fazia o que era juíliça e
rezaó. A Jentença em íim íe executou com aílaz de efcan-
dalo de todo o pouo , que ouue o viío Rey por homem
inexorauel e fem piedade , mas não fem grande proueito
da Republica , porque o temor daquella juíliça fez então
emendar muytos males que auia na índia , principalmen-
te na gente nobre , em que auia muyta foltura e difiolu-
ções. Acabando o vifo Rey de prouer neftas coufas e nou-
tras importantes ao íeruiço dei Rey , e ao bem daquella
cidade , e de toda a índia , detriminou de fe paíTar a Co-
chim j e deu ordem a dom Anrique capitão de Goa , que
tanto que aly chegaííe o gouernador dom Duarte de me-
neies , que era ido a Ormuz como atrás difíemc? , o não
deixaíle deíembarcar , nem lhe obedeceffe em couía algu-
ma , antes lhe diíIeíTe da fua parte que logo fe foíle a Co-
chim , onde o efperaua para o defpachar para o reyno , e
fe embarcou em huma galeota que aly achou feyta de no-
uo , acompanhado de pouca gente de feu feruiço , e leuou
comfigo féis fuftas com que foy ao longo da terra , e as
nãos da armada mandou que foíTem ao mar , e de cami-
nho foy entrando por todos os rios para ver o fitio ç
deípoíição delles , e indo correndo a coíla teue nouas que
nos rios de Mangalor e Bacanor íinhão os paraos de Ca-
lecut feitores , que lhe vendião as preías , e carregauao
arroz , que leuauao a Calecut , nas barras dos quais rios
mandou o viío Rey pôr Jeronymo de foufa , e Manoel de
macedo , com baílantes embarcações para lhe defenderem
eíle trato : chegando a Cananor lhe foy feito o deuidò re-
cebimento , onde o Rey da terra defejoío de o ver, polias
grandes coufas que llie contauao , que fizera no defcubri-
mento da índia , e deípois cm Calecut , o foy logo vifitar
e aíTentarão antre íy grande amizade , e fe derao ricos
preíentes. Aqui fe deteue o viío Rey três dias em que me-
teo depoííe da capitania a dom Simão de meneies , por ja
ter acabado feu tempo dom João da filueyra , e partindo
Farte L Ff * da-
2 2(5 Primeyra Parte da Chronlca
daquy embarcado em Inima nno , pafíou de noite por Ca*
Jecur porque foube que eílaua leuantado contra os nof»
fos , com quanto anrrVlIcs não auia peleja , porque em
a gente da terra tendo noticia da vinda do viío Rey cof
meçou a comunicar cos noíTos , e ha porta da fortaleza lhe
leuauáo a vender todo o género de mantimentos. Saben-,
doííe em Cochim , que o vifo Rey vinha ja perto , íahio
logo a rccebello ao mar o doutor Fero nunez veador da
fazenda ern hum batel grande , concertado de maneyra ,
que pudeíTe defembarcar nclle íe quiíeíTe , porem nao o
pode tomar fenao em Cranganor, donde não pudera paí-
íar por lhe afracar a viração : o vifo Rey lhe fez muita
honra e gafalhado , polia boa informação, que trazia del-
le de quão bem fazia o feruiço dei Rey , e o deteue com-
íigo aquella noite praticando nas couías importantes a
toda a índia. Ao outro dia dom Luis de micneles , irmão
do gouernador dom Duarte, fe embarcou no galeão S.
Luis , que clle fizera nouo aquelle inuerno , e o tinha fora
da barra aparelhado ja de tudo o neceílario , e com elle
todos os fidalgos que então aiy eílauão , e íe foy embulca
do vifo Rey , que hia muito ao mar coterrenho , e che-
gando por popa da fua nao , delpois de lhe fâzer a deuida
í*Iua com a bandeira , que trazia de capitão mor do mar
que era , e ficar íem ella , le meteo no íeu batel com todos
os fidalgos , e íe foy ha nao , onde o vilb Rey o veyo re-
ceber ao bordo com muytas feílas e gafalhado , e na
tolda re-ccbeo os fidalgos , que com elle iiiâo, com muytas
cortefias ; aquy deípedindo o veador da fazenda , que io-
go fe foy a terra , ficou praticando com dom Luis , de
cujas boas partes o veador da fazenda lhe dera larga in-
formação , que elle também trazia do reyno , e neftas pra-
ticas forão gaílando o tempo até que veyo a viração ,
que voltarão para Cochim , onde chegarão delpois do foi
pofto j e antes que furgifíem íe deípidio dom Luis do vifo
Rey ,e fe -tornou ao feu galeão que eílaua muyto afaílado
do lurgidouro das nãos , e o vilo Rey , por íer ja tarde ,
íe deixou ficar aquella noite na nao, onde ao outro dia
foy
dei Rey Dom Joáo o IIÍ.
22'
fov viíitado dei Rcy por hum íeu regedor. Dom Luís íc
foy inda aqiiella noite a terra ordenar cos oíFeciais da ci-
dade o recebimento , que ao outro dia fe auia de fazer ao
vilb Rey , o qual fe fez co mor aparato , que até então e
fizera a ninhum gouernador da índia. Ao outro dia polia
menham fe embarcou o vifo Rey no feu batel , que ja ti-
nha aparelhado , e não quis aceitar de dom Luís huma
galé, que lhe trouxera para ilTo muito bem efquip^d.a ,
dandoliic todauia graças polio cuidado e deligencia, c del-
culpas de lha não aceitar , e dom Luís íe embarcou com
ellc no batel , e em quanto forSo caminhando para a terra
antre outras praticas lhe veyo a tratar do gouernador ieu
irmão, a que lhe elle refpondeo algum tanto íecamente ,
pondolhe algumas culpas do tempo da íua gouernança ,
de que ja no reyno auia muyta noticia , de que dom
Luís ficou alíaz fentido , porque o tinha por muyio in-
teyro na juftica. Chegados ha praya , o vjfo Rey foy re-
cebido CO aparato que lhe eílaua preíles , afly do ecleha-
ftico como do fecular , e cílando fazendo oração na igre-
ja , lhe derão recado que vinha el Rey de Cochim a velio,
a que elle acudi.o logo , e el Rey decendoíTe do alifante
o abraçou muytas vezes, e aflentados no aipendre da
jcrreja , praticarão algum efpaço , e defpidido el Rey
delle , fe foy elle apofentar na fortaleza , onde começou
logo a entender na carga das nãos com muyta prelTa ,
vifitando a ribeyra e os almazens por lua peíToa , Icm
tomar em todo o dia algum efpaço de repouío.
Ff 2 CA-
2 28 Primeyra Parte da Chronica
C A P I T U L O LX.
O capitão de Goa dom Anrique de menefes manda huma
armada em bufca de certas fuflas de mouros que fairão
do rio de Da bui , de que jez capitão mor Crijiouao de bri-
to , tem cos inimigos huma cruel e afpera peleja e ofu-
cejjo della^
POuco tempo defpois que o vifo Rey íe partio de Goa,
vieraô nouas a dom Anrique de menefes capitão da
cidade , que do rio de Dabul íairão algumas fuftas bem ar-
madas , que tomarão huma rica nao , que vinha de Ormuz
com cauallos para Goa , para o que mandou logo fazer
preíles três fuítas e quatro catures bem prouidos de arti-
Jiiaria e munições , e embarcou nelles cento e vinte ho-
mens efpingardeyros , de que fez capitão mór Criftouão
de brito , fidalgo mancebo de grandes eípiritos , a quem
mandou que íe não vieíTe íem pelejar com aquellas fu-
ítas. CriftouSo de brito fe foy a Dabul , onde foube que
as fuífas andauão de fora , de que ficou aíTaz contente, e
porque receou ^ que fe as foíTe buícar ao mar as erraria ,
porque podçriao vir por outro caminho , e meteríe no
rio , e que íeria grande trabalho illas buícar dentro para
pelejar com ellas , ordenou que fe pufeíTem íobrc o rio ,
e que os catures o vigiaíTem por ambas as partes , e tam-
bém vigiaíTem o mar , e em auendo vilta das fuílas fizef-
íem final , e fe recolheíTem ao capitão mór. O digar de
Dabul tendo noticia diíto, buícou maneira com que man-
dou dar auiío has fuás fuftas , que erão noue grandes e
bem concertadas , que íendo noite fevierao pôr defron-
te da barra de Dabul , tão longe que não pudefiiem íer
viílas dos noflos , e quando foy tempo da maré , tomando
as vellas e abatendo os maílros , a remo íe vierao che-
gando delongo da terra, com fundamento , que íe os
íioílos deíTem com ellas fe íaluarião nella , por quanto vi-
nhão muyto carregadas com a preía que trazião , e aííy
foião fem os noíTos terem fentimenío delias : a noíla ar-
mada
dei Rey Dom joao o III. iigt
macia em fendo menham clara co vento da terra íe foyr
na volta do mar , para com a viração íe tornar a deman-
dar a terra : os mouros vendo que as noílas fuílas hião
para o mar, eja tão longe que ainda que os viíTem não
podião tornar com tanta prefla , que os alcançaílem , fe
forão a remo meter no rio de Dabul , pondo muytas
bandeyras , e deíparando muyta artelharia , e tanto que
entrarão no rio defcarregarão logo toda a prefa , e fe co-
meçarão a fazer preftcs para fairem fora a pelejar cos nof-*
los , porque eílauao bem prouidas de gente bem armada ,
em que auia alguns Rumes , e muytos frecheyrcs. Os
noflos de lá do mar bem virão entrar as furtas no rio , e
Jogo fe aperceberão para entrarem nelle a pelejar com el-
las , e chegando ha barra não poderão logo entrar por
cauía da grande corrente da m.aré que então vazaua , e íe
puíerão em ordem para as fuílas fe lhe não poderem ic
fem elles as verem , porem o capitão mor para faber a
detriminação dos mouros , mandou aquella noite alguns
marinheyros , que a nado forão a terra , e antemenham
lhe trouxerâo recado que as fuílas íe eílauão aparelhanda
para fairem fora a pelejar com elle , e que tinhão muyta
gente, com que os noíTos ficarão contentes, por eícuíarera
o trabalho de os irem bufcar lá dentro , e fe começarão
a aparelhar para a peleja. O capitão mor deu ordem aos
outros capitães que , tanto que as fuílas dos mouros apare-
ceííem , íe foíTem na volta do mar , dando a entender que
fugião , porque tomando os inimigos lá no largo , como
as noíías embarcações erão ligeiras , e fe remauao milhor
que as íuas , que erão grandes e pefadas , poderião pele-
jar com ellas da maneyra que quiíeílem , o que a todos
pareceo bem. As fuílas dos mouros em tendo tempo fai-
rão do rio com grandes gritas e muytas feílas ,. e vendo
os noílos ir ha vcUa para o mar , cuidando que lhe fugiao,
ie forão trás elles todas aíio huma ante outra , e a capitai,.
na diante, e fendo ja tão afaílados da terra que ao capi-
tão mor pareceo tempo para o que detriminaua , fupita-
mente a vella e a remo voltou fobre ellas ; o que todos os
ou-
1^0 Primevra Parte da Chronica
outros triinbcm fizerão , e vendo os inimigos que os nof-
fos díiuão moílras de quererem pelejar com elles , íe em-
baraçou a fua capitaina por não poder voltar com tanta
preíTa como quiJera, com que as outras fuílas fe embara-
çarão também humas com as outras de maneyra , que ti-
Hcrío CS noíTos tempo para lhe tomarem a terra , e ficarem
a balrauento delias. O capitão mór , que hia com a fua
gente bem concertada e pofta em ordem , foy logo íobre
a capitaina , porem os outros noíTos capitães vendo as fu-
ftas dos mouros grandes , e com muyta gente , parece que
tomados de algum receyo diíferão ao capitão mór , que
parecia temeridade pelejar com tamanho poder , onde a
perdição eftaua mais certa que a vitoria, ao que lh'el!e
reípondeo, que auia de pelejar com aquclles mouros , que
viera buícar , que como feu capitão mór que era lhes
inandaua , que fizeíTem elles o meímo, fenão que vclla e
remo tinhão para íe irem por onde quiíeílem , que ao vifo
Rcy darião conta de fy , e com ifto foy logo abalroar a
fuíla capitaina dos inimigos , o que também fizerão as
outras duas fuílas , e hum catur , porem os outros três fe
forão fugindo para o mar. As noíTas coatro embarcações
abalroarão antre todas as fuftas dos mouros como milhor
puderão , onde forao tantos os tiros de bombardas , d'ef-
pingardas e de frechas , que ficarão muytos mortos e fe-
ridos de ambas as partes , de que os noííos , como erao
poucos , leaatião o pior , e ja eftauão bem arrependidos
de terem cometido aquelle feito : comtudo não deixa-
iião de pelejar com muyto esforço , e na mayor força da
peleja derão huma frechada polia garganta ao capitão
Chriílouão de brito , de que logo cahio morto , o que os
noílos não viraó com a grande preíía em que andauaõ de
fe defenderem , que pelejauaõ como homens que fó nos
feus braços tinhaõ a íua faluaçao , e coFtitudo naò deixa-
uao de chamar pollo flmor diuino , que então lhe não fal-
tou como nunca feita naqucllas coufas, a que o mundo nap
pode dar remédio, para moftrar o feu grande poder e
mifericordia , porque pcrmitio então que eítando o ca^pi-
tão
dei Rey Dom João o III. 231
tao mor dos inimigos íobre o bailen da íua fufta , donde
bradaua e esforqaua os feus , lhe deu hum pilouro de ef-
pingarda polia cabeça , de que logo cahio morto ao mar
ha viíla dos léus , e dos noíTos , que leuantaraõ huma
grande grita , e cobrarão tanto de forças, e de animo com
que pelejauão de nouo , quantos os inimigos de fraqueza,
com que fe puícr^o logo em desbarato , c muytos delles
íe lançarão ao iivar para tomarem o feu capitão, cuidando
que não era ainda morto , onde os noílos acudirão logo
e entrarão a fuíta capitaina , e a tomarão com morte de to-
dos os que acharão nella , e o catur ha* lançadas andou
matando todos os que fe lançarão ao mar. As outraa fu-
ílas dos mouros vendo tomada a fua capitaina íe começa--
rão a retirar , porem os noílos como andauão ja com no-
uas forças e animo as forao abalroar , e as entrarão , em
que lambem tiuerao rauyta boa ajuda dos marinheyros,
e dos remeiros , que lançauao muytas panellas de poluo-
ra com muito animo , vendo a fraqueza dos inimigos que
hião ja de todo perdidos. Os três capitães dos catures, que.
forsõ fugindo para o mar , enuergonhados de lhe dizerem
os léus remeiros Canarins e Mocadoes , gente barbara ,
que o vifo Rey os auia de mandar enforcar , porque fo-
rao fugindo quando os outros ficauaô pelejando , e receo-
fos do caftigo que o vilo Rey lhes poderia dar , volta-
rão para os noílos , e chegando has fuílas dos mouros as
esbombardearad de fora , e has efpingardadas e com pa^
nellas de poluora tomarão duas delias , de que todos os
mouros fe deiíaraó ao mar , o que vendo as outras fuftas
fe quiferão pôr de todo em fugida , porem na6 puderao-,
porque os feus remeyros lhe fugiaô todos a nado com me-
do do fogo das panellas , bradando que o feu capitão
grande era ja rnorto , e affi aprouue a noíío Senhor dar
aos noíTos eita taõ glorioía e taô arriícada vitoria, cm
que lhe íicaraó nas maõs das noue fuítas as fete , e as ou-
tras duas efcaparão por naò auer tempo de irem os catu-
res trãs ellas : morrerão neila peleja mais de trinta dos
noííos , e dos mouros mais de coano centos, os mais del-
ks
232 Primeyra Parte da CJironica
les no mar , que dos caturcs os andarão matando lias lan-
çadas. A eílas fetc fuílas dos mouros , em que fe acharaá
inuytos tiros de ferro , e muytas armas , concertarão os
noíTos as vellas , e metendolh^ dentro alguns marinheyros
noiros , as Jeuaraó as noílas embarcações atoadas caminho
de Goa , Jeuando também o corpo do capitão mor Cri-
ftouao de brito amortalhado , com que ao outro dia ha
noite chegarão ha barra , donde mandarão recado a dom
Anrique que vinhaô com vitoria , mas fem capitão mor
que traziao morto , elle lhes mandou dizer que ao outro
dia polia raenham fe embandeiraíTem , e enramaíTem , e
ataílem as fuílas dos mouros por fuás popas lem vellas , e
afly entrafiem pollo rio dentro com muyta fefta e defpa-
rando toda a artilharia , o que affi foy feyto. O -capitão
Gs foy efpcrar ao caez com muyta gente da cidade , onde
recebeo os capitães e os foldados com muytas honras , e
fez leuar a enterrar o corpo de Criílouao de brito ao
mofteyro de íaó Francifco , acompanhado de muytos fa-
cerdotes com muyta cera acefa , e lhe mandou fazer hu-
mas honradas exéquias. Após ifto mandou logo varar as
fuftas dos inimigos, que erão muyto boas , e vinhao mal
tratadas da noíTa artilharia , e defpois de concertadas
mandou coatro delias a Cochim ao vifo Rey , e darlhe as
nouas ^daquella vitoria , com que elle também recebeo
muito contentamento, c as mandou debaixo da capitania
de Diogo martins de lemos , que embarcado em huma ga-
leota hia por feu mandado tomar o rio de Mangieirão
alem do monte Dely , onde tinha fabido , que também os
paraos tinhao eícalla de mantimentos como nos rios de
Mangalor , eBacanor, emqueja tinha pofto guarda, e
como tinha aíTentado comfigo, tanto que acabaíTe de defpa-
char ao nãos para o reyno , fazer cruel guerra por roda a
coíla da índia, lhe deu a mayor preíía que pode , e man-
dou a Ceilão buícar, a canella em duas nãos do almazem
que o veador da fazenda comprara , e andauão bem arma-
das e aparelhadas , em. cuja companhia mandou em outro
íiauio Duarte de melo para capitão de Ceilão , e que fc
vieíle
r/A. deíRey dojn João o III. 233
viefíe Fernão Gomez de lemos , que tinha ja acabado feu
tempo , e de quem não tinha boas informações , e lhe
pôs pena de morte , que partindo de Ceilão não tomaííe
outro porto íenáo Cochim.
C A P I T UrL O LXL
El Rey manda fazer prejies o que he necejjario para a Rai-
nha vir a ejie rtyno , manda fará iffo os If antes dom
Luís , e dom Fernando feus irmãos , que na raya tomao
entrega delia , -manda a Pêro correa huma detriminaçao ,
€ outra a Damião diaz de coufas que manda que j^fa»
ção^ quando a Rainha entrar nejie reyno. El Rey a efpera.
na villa do Crato , ahyfe recebem , e fe pajjão para Al-
meyrim, .j;
VEndo El Rey noílo fenhor de todo concruido o feu
cafamento com a, Ifante dona Caterina inuam do
Emperador, com grande íatisfação de ambas as partes ,
e parecendolhe rezão e deiiido não dilatar mais a fua vin-
da por fatisfazer aíTy ao gofto , que o feu pouo c todos
feus vaíTallos moftrauão dero vercraja caiado , como ha
neceííidade , que entendia que o íeu reyno diíTo tinha ,
fez logo ordenar com muyta breuidade tudo o que
era neceílario para eíta vinda , e a primeyra coufa que
ordenou foy , que os Ifantes dom Lui? e dom Fernan-
do -feus irmãos, foffem lia raya embuíca da Rainha , acom-
panhados'de tanta' e tão nobre gente, quanta lhe pa-
receo que cumpria a íua honra , e autoridade , e ha daquel-
la Ifante , que vinha a íer íua molher , e íenhora deíle feu
reyno. O que tudo foy preftes com tanta preíTa , que íe
partirão no iim defte mefmo anno de i5'24 , mas nem por
HTo deixou cada hum de ir taô cuíloío e bem acompanha-
do , que bem moílrauaó todos o grande gofto e aluoroço
coni que faziaó aquella jornada. Antre os fidalgos, que fo-
rao neíla companhia , foy hum o.mefmo Fero correa ít'
nhor.da villa de Bellas , que fora a Caílella por hum dos
^i Farte L Gg .P^o-
2 34 Pfimeyra Parte da Chronlca
procuradores, que fua Alteza lá mandara a concertar o íeu
cafamento, a quem encomendou algumas couías, que com»
priaÔ ao feruiço da Rainha e ao feu , porem elle naõ con-
tente ainda co que fua Alteza llie encomendara , lhe man-^
dou do caminho perguntar outras coufas em que nao atre-
uia a fe dcirirainar lem feu mandado, que lhe el Rey
agardeceo , e o ouue por íeu feruiço , as quais eraô , que
cortcfía auia de fazer a Rainha aos Ifantes , e ao duque de
Bragança , e fe aos Ifantes auia de chamar irmãos , e íe em
Eluas daria a Rainha ferao , c em que lugar da caía ella
«fiaria quando el Rey íe fofle ver cora ella , ao que lhe S,
A. refpondeo o que lhe pareceo que era rezao e mais feu
feruiço por huma carta , que mandou ao caminho a Da-
mião diaz , fidalgo de fua cafa e íeu eícriuão da fazenda ,
que por feu mandado também hia na mefma companhia ,
a quem cícreueo que aquella carta , que lhe mandaua para
Pcro correa , lhe dcííe logo como a Rainha chegaíTe a Ba-
dajoz , na qual carta lhe mandaua S. A. que eftiueíTe junto
com a Rainha o dia que fe íizefle a entrega para lhe dar
aconhecer as peíloas , que lhe foíTcm beijar a mão , e lhe
fazer S. A. a honra e gafalhaila, que a cada hum fe deuia
fazer , e do que elle refpondia .has couías que lhe manda-
ra perguntar lhe cfcreueo , que não deííe conta ha Rainha
nem i outra peíToa alguma, fenão íe a Rainha trataíTe com
elle de alguma delias ou por íy , ou por outrem por feu
mandado , e então refponderia ao que lhe perguntaíle con-
forme ha inltrução que lhe mandaua , não como que elle
lhe mandaua, que rcfpondeííc daquella maneyra , fenão
como que daua elle feu parecer no que lhe era pergunta-
do , e então fizeííe a Rainha o que lhe bem pareceíTe, e ao
mefmo Damião diaz mandou S. A. huma detriminação
por eícrito da ordem que íe auia de ter o dia que a Rainha
«ntraíTe neíle reyno , e íe entregaíle aos Ifantes , a qual di-
zia dcíla maneyra. Ey por bem que todas as peííoas , que
enuio cos Ifantes meus irmãos , vão logo faindo d'Eiuas
todos juntos com elles , e não apartados em magotes , e
quç no lugar onde fe ouuer de íazçr a entrega da Rainha
• cv, . • fc
dei Rey Dom João o III. 235
íc deção todos apé , c apé beijem todos a mão ha Rainha ,
e aíTy como cada hum railhor o puder fazer fem nlíTo auer
precedência , c deípois de beijada a mão fe tornarão a pôr
acauallo. Deípois de rodos beijarem a mão fe adiantará
o duque, e le decerá a pé para beijar a mão , e tanto que
for apé a Rainha lhe mandará que torne a caúalgar, c aíTjr
a cauallo lhe beijara a mão , e defpois de beijada fe tor-
nará a pôr apar dos Ifantes meus irmãos , e deípois de fcr
junto com elles íc decerão os Ifantes , e íe porão apé , e a
Rainha lhe mandará que caualguem , e lhe irão beijar a
mão acauallo. O filho do duque e comendador mor íeu
fobrinho beijarão a mão apé ha Rainha, antes do duque lha
beijar. Beijada a mão pollos Ifantes , como dito he, elles
fe retirarão hum pouco , ficando o mais junto da Rainha
que for poíTiuel , e fe vierem o duque de Bejar , e o bifpo
de Ciguença ( que vinhâo acompanhando a Rainha para
a entregarem na raya ) nos lugares da mãodircyta , e da
outra parte da Rainha , não lhe dando elles lugar , efpc-
rarao até le fazer a entrega , e como for feita tomarão logo
léus lugares , íí. o Ifante dom Luis no milhor lugar. Os
Ifantes deípois de beijada a mão não cubrirão as cabe-
ças , faluo quando lho mandar a Rainha , e ella íerá
auifada para os mandar cobrir logo. E a iílo lhe ajuntou
S. A. De tudo o que dito hc , ouue por meu feruiço vos
mandar eíle regimento para antes da faida da cidade de
Eluas faberem as peíToas principais , c todas as outras , o
que niíTo ordeno e mando , e terdes cuidado, para que aííy
fe faça , e polia muyta confiança que de vós tenho quis
daruos diíTo cuidado antes que a outrem , e por iíTo faze/o
aííy bem como de vós confio. Mandou também el Rey ao
mefmo Damião diaz o poder e procuração , que dera aos
Ifantes ícus irmãos, para fe entregarem da Rainha, quando
cntraíTe neíle reyno , da mão dos que vieííem com ella de
Caílella para efle efeito , e que no dia da entrega leuaíle
comfigo eíle poder , c cíliueíTe o mais perto dos Ifantes ,
que pudeíle , para que fe lho elles mandaífem , entregaífe
o poder e aprocuração ha peíToa que de Caílella vieflc or»
-líii Gg 1 _ dena-
2^6 Primeyra Parte da Chronica
denada para o reçefen^r , e por virtude deUe lhes ferfeyta
a entrega , e também fe pollos de Caftella foííe requerido
algum auto , ou eícritura de como os Ifantes erao entre-
gues da Rainha , eile , como pubrico notário e geral que
era em íeus reynos cfenhorios, o pudeíle fazer , para a
que lhe daua leu poder e maado geral e efpecial. Ja nefte
tempo vinha a Rainha caminhando para Badajoz , acom-
panhada do duque de Bejar , e do bilpo de Ciguença , que
trazião baílantes poderes para a entregarem na raya a
quem de ca foíTe com poder para areceber de íua mão ,
em cuia companhia vinha muyta gente nobre de Caftella,
áffaz luftrofa e bem adereçada : e em cliegando a Badajoz
fendo ja também os Ifanics chegados a Eluas , no dia
que antr'elles , e o duque foy aprazado para fe celebrar
aquelle aâ;o , fe juntarão todos na raya , onde moftrados
os poderes de parte aparte , que para elle íe leuauao , os
Ifantes tomarão entrega da Rainha , com todas as cirimo-
nias e feguranças cuítumadas naquelles aítos , em que fe
guardarão rauyto inteiramente as detriminaçôes , que el
Rey de ca mandou a Pêro correa , e a Damião diaz. Aca-
bada aquelle folen^e e funtuofo a(5lo , e defpedidos huns
dos outros, a Rainha acompanhada dos lifantes fe foy
recolher em Eluas , e dahy veyo caminhando para a villa
do Crato , onde el Rey a eftaua eíperando , que fe rece-
berão com aquelle amor e gafalhado , que fe deixa bem
entender: da quy , deípois de aRainha deícaníar alguns
dias , fe paíTarao fuás Altezas a Almeyrim com tanto go-
fto e contentamento aíTy dos pequenos como dos grandes,
quanto lhes daua a fen ti r o entranhauel deíej^-, que todos
tinhão de verem concruido e effeituado aquelle cafamen-
to do feu Rey e lenhor , que agora tinhão prefente , e
muyto mayor contentamento fentirão delle deípois, quan-
do pollo tempo em diante a experiência lhes deu a enten-
der as raras e heróicas virtudes da Rainha dona Caterina
jioíTa íenhora , o íeu zello ardentiífimo da religião Chri-
ftam , abrandura da íua natureza , as muytas mercês e fa-
uores ; que fazia a feus vaílallos^e o bom gaialhado e aco-
Ihit
dei Rey Dom João o III. 237
Ihimento que íempre todos geralmente acharão nella ,
Gom que de todos foy fempreiao amada e venerada como
fe fora may particular de cada hum delles.
CAPITULO LXII.
Chegão cartas de dom Rodrigo de lima , gue ejlá nas terras
do Prejle João , ao goiíernaãor dom Duarte ejlando em
Ormuz ^ e o de que tratao. O gouer fiador , a requer imen»
to de Raix Xarafa , manda hum embaixador ao Xeque
Ifmael , e o fuce^o da embaixada, O gouernadorfe parte
de Ormuz para a Índia , e o que lhe jucede até chegar
a Batícala,
Estando o gouernador dom Duarte em Ormuz prouen*
as couías daquelle reyno , e fazendo muyto proueito
nas íuas , aOy na venda das fazendas que leuara , como
em rauytos prefentes , que o Raix Xarafo lhe daua , pol-
lo ter contente , e propicio , chegou a Ormuz hum João
gonçaluez com cartas para elle de dom Rodrigo de lima,
^ que eílaua nas terras do Prefte João, onde fora por embai-
xador ,. como fica dito em muytas partes , em que defpois
de lhe contar os tratalhos , que padecia naquelle deílerro
com toda íua companhia , lhe pidia muyto por mercê e
por amorde Deos , que pois elle fenão pudera embarcar
nas armadas, que forão em buíca delle, por ellas chegarem
Já tarde , a outra que mandaíle foíTe em tempo , que che-
gaíTe a Maçuhá polo menos- em Março , e quanto majs
cedo folie poíTiuel , e que para iíTo lhe mandafle que íe nao
detiueíTe em outra ninhuma parte , nem fe embaraçafle
com outra ninhuma couía , e a efte João gonçaluez efco-
Iheo dom Rodrigo para trazer efta carta , porque tinha
conhecimento de muitas lingoas daqucllas partes, e em
trajo de mouro íe embarcou como mercador com fuás
mercadorias em companhia de outros mercadores em hu-
ma nao de mouros , que fe foy perder na coíla de farraque
cm JBadalcuria, de que fe elle faluou , e pidindo elmola
cos
238 Prlmeyra Parte da Chronica
cos outros mouros perdidos , foy ter a Mafcate , e dahy
a Ormuz , a quem o gouernador fez merc^ por feu traba-
lho , e eíle lhe contou tudo o que dom Rodrigo tinha paí-
íado CO Prefte. Nefte mefmo tempo fe queixou o Raix Xa-
rafo ao gouernador, que alguns capitães do Xeque Ifmael
impedião as cáfilas das mercadorias , que vinhão para Or-
muz , com que as fuás rendas recebia© muyta perda , que
lhe pidia muyto , que lhe mandafse hum embaixadora pi-
dirihe, que lhe mandaíse defembaraçar a paisagem das cá-
filas , pois el Rey de Ormuz era vafsallo dei Rey de Por-
tugal, com quem elle tinha paz e amizade , no que o Go-
uernador proueo logo mandando a efta embaixada Balte-
far peísoa homem muyto honrado, caualeyro da ordem de
Santiago , que foy muyto bem concertado , e acompanha-
do de vinte homens Portuguefes , tudo ha cufta de el Rey
de Ormuz , e foy em companhia doutro cmbaixndor do
Xeque límael , que fora a Camb.aya. Partidos de Ormuz ,
forao ter ha cidade de Lara , onde eílaua por gouernador
hum mouro vafsallo dei Rey de Ormuz , mas com tanto
eílado e aparato , como íc fora o mefmo Rey. OBalteíar
peíToa o não quis ir vilitar, e lhe mandou hum prefente ,
que por íer de pouca íuílancia lho não quis o mouro acei-
tar , de que ficou aísaz tomado, e dctriminando fazerlhe
huma fobrançaria íe concertou muyto bem , e fez con-
certar os ícus vinte companheiros com íuas eípingardas ,
com tenção de fe irpafiear polia cidade, e palfar por
diante das cafas do mouro , fem lhe falar , nem fazer caio
delle , confiado que por fer vaflallo dei Rey de Ormuz
naó oufaria de bulir comfigo, ao que o embaixador do
Xeque límael lhe foy ha mão , dizendolhe que aquellc
mouro era íoberbo , e mal fofrido , e não fc arrifcaííe a lhe
acontecer algum defaftrc , porem elle , dando pouco por
efte auiío , fe foy polia cidade tirando os íeus alguns ti-
ros perdidos por algumas partes , com que também paí-
fou por diante das caías do mouro , e entrando daly por
huma rua eftreita , decima dos terrados , c dasjaneílas
lhes tirarão tantas pedradas , que todos forão eícalaura-
i > dos ,
dei Rey Dom João o IIL 239
dos , e o Baltefar peíToa derrubado do cauallo com liuma
pedrada que lhe deu na cabeça , e deíla mancyra fe reco-
lherão paraíuacafa, onde fe curarão o milhor que pu-
derão , e da hy a dous dias feguirão leu caminho em com-
panhia do embaixador , e paflando polias grandes e popu-
ioías cidades de Xiraz e Tauriz , que laÕ as principais
de toda a Períia , c por outras muytas cidades , villas , e
lugares , pouoados de muyto limpa , e luftrofa gente ,
chegarão até huma jornada antes do lugar onde então eíla- -
na o Xeque Ifmael , que eftaua no campo com hum gran-
de arrayal de gente para huma feíla , que detriminaua fa-
zer , offerecida por huma doença graue de que eílaua mal
tratado : aquy teue Balteíar peíToa recado do veador da
cafa do Xeque Ifmael , que fe deiiuefse aly onde eftaua ,
^ue hera huma aldea pequena , até ver outro recado feu ,
o que elle alfy fez : e daly a doze ou quinze dias , dentro
nos quais fempre de dia e denoite pafibu gente para o ar-
rayal , que hia para a feíla , teue recado do veador que fe
folie para lá , para onde fe elle logo pôs a caminho com
todos os feus bem concertados , c chegando ja perto do
arrayal , fahio a recebello hum capitão com cinco mil de
cauallo , que o leuou lá comfigo , onde foy apofentado
em huma grande e fermofa tenda , e prouido abundatif-
fimamente de todo o género de mantimentos : e não tar-
dou muyto que o Xeque límael lhe mandou dizer que fe
deixalTe aly eftar defcançando, até que tiueíTe tempo para
o poder ver , e o deípacharia logo. Daly a coatro dias íe
fez a fefta com muyto aparato , e magcftade , em que ou-
ue banquetes muyto fumtuofos , e muyta variedade de
feftas j e jogos a íeu modo , que durarão aquelle dia e to-
do o outro , porem Baltefar peflba não ouue deípacho
tão depreísa como cuidaua , porque a doença do Xeque
límael foy cada vez fendo mais graue, de que veyo a mor-
rer dentro em hum mes , e os fenhores do rcyno , pordif-
ferenças que tiuerão íobrc a eleyção do nouo Rey , íe
detiuerão nella outro mes , no fim do qual elegerão hum
íobrinho do Rey morto chamado Xatamas > alho de hum
> . feu
240 Primeyra Parte da Chronica
íeu irinão , que também era morto , moço de idade de
quinze annos , a quem o reyno vinha por direyto. Defpois
àc tudo fer quieto , o noíTo embaixador pidio quehodef-
pachaircni , e não lhe fendo concedida couía alguma das
que pidia íe tornou para Ormuz, defcontente do mao
deípacho, onde chegou delpois de fer o gouernador par-
tido , o qual acabando de prouer no que compria a fua
fazenda , e a todas as outras couías , fe partio de Ormuz,
e foy ter a Mazcate , e da hy foy demandar a terra acima
de Dio , onde efpalhou a armada , e íe deteue alguns dias
efperando as nãos de Meca , mas vendo que ninhuma^
vinha íe foy a Chaul , em que eftaua por capitão Chrifto-
uão de fouía , que em chegando o mandou logo viíitar
com muyro refrefco , e juntamente dizerlhe , que como
a dom Duarte de menefes o feruiria em tudo o que lhe
mandaíTe , porem como gouernador em nada lhe auia de
obedecer , porque aííy lh'era mandado pollo viío Rey,
e que da íua parte lhe requeria que não defembarcaíle , e
fe foíTe logo para elle. Dom Duarte , tomando aly o que
lhe era ncceíTario , fe foy a Goa , onde dom Anrique lhe
mandou dizer o mefmo : elle toda via íe deixou eílar na
barra féis dias, fazendo o que lhe cumpria , e então fe foy
a Baticala , onde efteue deuagar prouendoíTe do que lhe
era neceílario para a fua viagem. Eytor da filueyra , que
vinha com elle vendo as dilações que andaua fazendo , e
que a razão que para ellas daua era querer antreter o tem-
po para não chegar a Cochim , íenão quando ja as nãos
eíliueííem de todo carregadas , para íe partir logo para o
reyno , fem ter que entender co vifo Rey , lhe pidio li-
cença para fe ir a Cochim, que lhe elle então não quis dar,
porem replicando Eytor da filueyra lha deu com toda a
armada para a leuar comíigo , tirando íos cinco galeões ,
que réferuou para fy com pouca gente. Chegando Eytdr
da filueyra a Cochim , e entrando pollo rio com huma fer-
mofa falua de artilharia , fe foy logo ao vifo Rey com to-
dos os capitães e toda a gente , que a todos recebeo com
muyta honra e gafalhado, e Eytor da filueyra, lhe deu aly
conta
dei Rey dom João o III. 241
conta de tudo o que paíTara na fua viagem , e particular-
mente do que deixara feito em Adem , o que o viío Rey
lhe não aprouou muyto por muytas rezoes , c princi-
palmente lhe eílranhou deixar lá o bargantim cos Portu-
guefes , porque o Rey de Adem nelles íe auia de querer
entregar dos dous mil xerafins , que dera para a coroa , de
que Eytor da íilueira fe achou muyto alcançado, vendo o
viío Rey tao pouco fatisfcito do que elle o vinha tanto ,
pollo que mudou então a pratica , e íe dcfpedio delle
não fem grande receyo , que íe o viío Rev vielfe a faber ,
que elle fizera aquillo fo polJo íeu parecer, fem coníelho
dos outros capitães , o tomaíTe muyto pior. E por iíTo
trataua de o acompanhar fempre em roda a ora e a toda a
parte , com muyta gente a que daua mefa , e grangeallo
quanto podia, entendendo que naó ha coufa , que mais
abrande e faça propicio o animo do fuperior por mais du-
ro e rigorofo que feja , que a obediência e a fummiílaô , e
reconhecerlhe a íuperioridadc.
CAPITULO LXIIT.
O lifo Rey faz prejles armada para ir jazer guerra a Gf-
lecut e a toda a cofta da índia. O gouernador dom Du'
arte de menejes chega a Cochim , e o que o vijo Rey pajfa
com elle antes de aejembarcar , e com dom Luis de mene»
Jesfeu irmão.
OVifo Rey co grande defejo que tinha de ir fazer
guerra a Calecut , e a toda a coíla da índia , e de-
ftrair tudo quanto por cila achaíTe , deu grande preíTa ha
carga das nãos, e a concertar os nauios darmada, e os
que trouxera Eytor da filueyra , e todas as outras embar-
cações miúdas , porque tanto que as nãos do reyno par-
tiflem dctriminaua pôr por obra eílc feu defejo , e porque
achara as couías da índia muyto diíFerentes do que cuida-
ra , mandou fazer preíles hum nauio que foíTe ao reyno
diante das nãos com cartas fuás para el Rey , cm que lhe
Parte L Hh defle
2^2
Prlmevra Parte da Chroníca
deíTe conta do eftado em que eílaua a índia , e do que ti-
nha achado dos negócios do governador dom Duarte , e
também defta guerra , que decriminaua fazer aos mouros,
o qual nauio auia de partir tanto que fe elle viíTe com dom
Duarte , que chegou ha barra de Cochim no mes de No-
uembro , onde furgio com todas as vellas que trazia com-
íigo , mas com a viração entrarão logo todas no rio , e
pão tardou muyto , que o viíb Rey por Lopo vaz de íam-
payo capitão de Cochim , acompanhado de Pêro barreto,
que elle fuílituira em ouuidor geral em auíeníia dejoáo
do Touro , que eítaua doente , mandou dizer a dom Duarte
que n5a defembarcaíle , e logo fe paflafíe ha nao caílello ,
que fe comcçaua a carregar , porque neila auia de ir para
o reino prefo lobre fua menagem , e chegando a Lisboa
não fairia da nao fem efpecial mandado dei Rey , e deí-
pois de eílar dentro na nao Caítelio defle efta menagem
allinâda , e lhe mandou também o treslado de hum capi-
tolo do feu regimento , em que el Rey iíto lhe mandaua.
Dom Duarte afrontandofe algum tanto com eíle recado ,
que Lopo vaz lhe dera , parece que querendo ainda víar
da autoridade de gouernador , lhe refpondeo mais feca-
jnente doque elle efperaua , ao que Lopo vaz , defpois de
lhe tornara repoíla , qual cumpria a íua honra , mas com
muyto íifo e corteíta lhe diíle , que lhe reípondeíTe em for-
ma , e obedeceíle ao mandado dei Rey , que lhe notifica-
iia de fua parte , ao que dom Duarte relpondeo , que cm
tudo o obedecia faluo na embarcação que lhe dauão , por-
t\\\c elle tinha prouiíaó dei Rey em que lhe dizia , que
quando fe tornaíle para o reyno eícoiheíTe para lua embar-
cação qualquer nao que quifeííe , e que pois el Rey nao
derrogaua eila íua prouifaõ, o viío Rey lha deuia de querer
guardar , e nao agrauallo , e que na nao em que fe embar-
caííe daria a menagem que el Rey mandaua , com a qual
repofta fe tornarão logo ao vifo Rey , e em le elles indo
fe miCteo no íeu batel , e foy ver todas as nãos que eífauao
ha carga , e contentandolle mais da nao S. Jorfe le deixou
ficar ncUa , c mandou paííar para eila o fcu fato , que efta-
ua
delRey Dom João o III. 24:^
ua no galeão. O vifo Rey tomou muyto mal a rcpoíla de
dom Duarte , e por íer ja tarde deixou para o outro dia o
que niílo auia de mandar fazer , mas quando foube que fe
fora meter co ícu fato na nao Saõ Jorfe o tomou muyto
pior , e ao outro dia polia menham lhe mandou dizer pol-
lo ouuidor, que a prouifa6 da fua embarcação lhe pudera
fer boa fe eila fora em íua liberdade , mas pois hia prefo
não tinha vigor , e que nao auia de ir noutra nao íenao no
caftelío que lhe daua porpriíaÓ, pollo qual íe foíle lo-
go meter nella , e nella delle a menagem , e fe não qui-
jeíle obedecer ao que el Rey mandaua fe proueria míTo
como foíTe íeu leruiço, ao quedem Duarte refpondeo que
«pois queria víar de poder abfoluto fizeííe o que quizeiíe,
ja que eftaua em tempo que podia tudo , com eíta repo-
ila fe acendeo o vifo Rey muyto mais em cólera , e man-
dou fazer preftes dous galeões , que eftauão ja fem vergas
c deíemxarceados , que aquella noite forão concertados e
aparelhados de tudo , com artilharia e bombardeiros den-
tro , e ao outro dia polia menham mandou ao ouuidor ge-
ral que com dous tabaliaes comfigo fe embarcaíTe nelles, e
•foíTem furgir dambas as bandas da nao por popa , e no ef-
quife fe foíTe cos tabaliaes a bordo da nao , e requereíTe a
dom Duarte da parte dei Rey, que logo íe faiíTe, c fe foíTe
meter na nao caftello , e fe elle nío obedeceíTe hum dos
tribaliâcs fizeííe dilTo hum auto autenticado com teílemu-
nhas , e lhe tornaííe a fazer o meímo requerimento até
três vezes, e fe em todas nao quiíefle obedecer , bradaífe
ha gente da nao que íe íaifíe delia , porque a auiad de
meter no fundo , e feito iílo íe tornaíTem para os galeões,
e com a artilharia meteíTem a nao no fundo , e diílo deu
juramento ao ouuidor, e ao condeílabre mor, que hia com
elle , que o cumpririão inteiramente , e elle também IJie
deu hum allinado feu do que lhe mandaua fazer. As nouas
diílo checarão logoadomLuis , que fe foy ao viio Rey,
e lhe pidio muito por mercê , qu« fe nao quifeíle auer com
■-feu irmiio tão afperamente , pois não tinha feito tantos
deíTcruiços a el Rey, que merece.H^e fcr tratado com tantos
Hh 2 rigo-
244 Primeyra Parte da Clironica
rigores , ao que o vifo Rcy lhe refpondeo, que por fer feu
ieruidor , e íaber que el Rey o tinha em tal conta, que fol-
garia de lhe fazer mercê por todas as vias , deixaua de
vfar com feu irmão de tudo o que lhe era mandado ; que
lhe aconfelhalTe , que obedeceíTe aos mandados dei Rey
com brandura e maníidao , e quica lhe feria proueitofo , e
que enrendelfe que tudo o que mandaua era por ordem dei
Rey , e lho mcílrara fe pudera. Dom Luis , parece que
mal contente defta repoíla do vifo Rcy, lhe refpondeo não
tão brandamente como elle quifcra, com que fe vieraÔ a
atear numa- pratica , que chegou a tanro, que o vifo Rey íe
leuantou , e lhe diíle íenhor dom Luis, yuos muyto embo-
ra , pois me não agardeccis deixar eu de fazer o que podia
fiefte negocio íó por amor de vos , ao que dom Luis qui-
fera replicar, mas o viío Rey lhe tirou o barrete, dizendo,
íenhor façame mercê que por oje não íeja mais , e viran-
dolhe as cofias fe recolheo , de que dom Luis afTaz íentido
€ menencorio foy dizendo polia fala de maneyra , , que
muytos o ouuiraô : Vós não me quereis agora ouuir , eí-
pcro em Deos que inda hade vir tempo, em que vos eu não
ey de querer ouuir a vós : e íe foy para fua cafa acompa-
nhado de muyta gente a que daua meia. Eílas palauras de
dom Luis forão logo ditas ao viío Rey , que o meterão em
tanta cólera , que mandou Lopo vaz de fampayo capitão
da fortaleza , que foíle logo fazer embarcar dom Luis , e
hum fó momento não eftiueííe mais em terra , nem conlín-
íiíle ir ninguém com elle , e que elle auia d'eílar ha janel-
]a até o ver embarcado. Lopo vaz íe foy logo a cafa de
dom Luis, e o tomou a tempo que eflaua para le aíTentar Jia
mcfa com a fua gente , que em vendo Lopo vaz fe detcue
até ver o que queria , o qual de fora da porta íem entrar
dentro lhe diíle o que o vifo Rey mandaua , e que ficaua
ha janella para o ver embarcar , a que dom Luis diííimu-
Jando a paixÚo reípondco , que tudo íe faria quanto o vilb
Rey mandaua , e com as lagrimas nos olhos fe defpedio
dos que eítauão com elle ja aílentados ha meia , donde fe
leuantarão todos para o acompanharem , porem Lopo
vaz
delRey Dom João oIIL 245
vaz o não conícntio, c da parte do vífo Rcy lhes mandou ,
que nenhum delles faiíTe de caía, a que todos obedecerão ,
€ dom Luís com íós dous moços fe foy ha praya , onde
achou hum tone , e metendoííe nelle diíie a Lopo vaz : le-
rhor dizey ao vifo Rey, que eíle Rcyno he agora feu, que
defpois ha de íer doutrem ; e com iílo íc foy has nãos ,^e
como era homem de grande entendimento , inda até então
não tinha ido ver leu irmão deípois que chegara , porque
o viío Rey não pudeíTe fofpeitar, que fazia elle alguma cou-
la por feu parecer , e quando chegou ao bordo da naojoy
em tempo que o ouuidor geral eftaua dando a feu irmão o
recado do viío Rey , e como entendeo o que dizia lhe
diíTe, fenhor ouuidor porque não deiteis a perder efta nao,
que he dei Rey, efperai hum pouco , que cu vollo entrega-
rey prefo em ferros fe afíy o quiíerdes , porque tudo farey
por feruir ao fenhor vi{o'Rey , e entrando na nao fe abra-
çarão am.bos os irmãos no bordo com muitas lagrimas , e
íem íe deterem cm palauras dom Luis pedio muito^afeu
irmão , que quifeíTe paífar ha nao caílello , porque não era
tempo de fe por em pontos co vifo Rey , no que dom
Duarte não pôs duuida , e íe paíTou logo a ella, e então diíTe
ao ouuidor, yuos embora , e dizey a quem vos cá mandou,
que íua vontade he feita e íerá nefta terra, onde agora tem
o feu império. O ouuidor fe tornou ao viío Rey darlhe
conta do que ficaua feyto, com que íicou algum tanto mais
quieto 5 mas nao deixou de mandar Afonfo mexia veador
da fazenda , que foííe dizer a dom Duarte, que entregaííe
huma grande cantidade de dinheiro , que recebera em di-
uerfas partes , de que leuaua hum apontamento, ao que
deu tal defcarga, que fe náo tratou mais com elle deíía ma--
tcxia.
€A-
2 4^ PiimejTa Parte da Chroníca
CAPITULO LXIIII.
o vijo Rey bujca modo para auer artilharia, de que ejiáfaU
to o ãhuazem , fucedelhe htima doença gvãue , ma7idã
recado ao gouemador dom Duarte [obre lhe entregar a ^o-
tíernaiiça, e o que nijjopaça-, defpede para oreym hutn m^
uio , que parte diante das nãos , e Jentindo crccer afua
doença encarrega do gonerno ao capitão da fortaleza^ e ao
-veador da fazenda, e lhes dá a ordem que nijfo hão de ter.
Dafe conta dajua morte,
TEndo o vifo Rey concluído com eílc negocio da em-
barcação do gouernador dom Duarte, como não auia
coufa que lhe fizeíle perder o cuidado do que cumpria ao
bem da gouernança que tinha a cargo , ordenou Jogo mai>-
dar nauios que foííem andar na cofta , e porque no alma-
zem ndo achou artilharia com que os pudelTe fazer pre-
íltes , mandou lançar pregão ( como ja também fizera em
Goa ) que todo o homem, que tiueííe artilharia dei Rey, a
foííe entregar no almazem liuremente , e fem receyo com
pena de morte ao que a não entregaíTe fendolhe achada : e
o que a tiueííe comprada , fe deíTe diíTo baftante proua, lhe
mandaria tornar o feu dinheyro , e por eíle meyo fe ajun-
tou muyta cantidade de artilharia, que os tratantes entrega-
rão , e nem eíle continuo cuidado das coufas da guerra o
fazia defcuidaríe do gouerno da paz , porque mandaua ti-
rar deuaíTas de todas as coufas que lhe parecião mal feitas,
e contra o feruiço dei Rey e bem da republica , em que
víaua de juftiça direyta , de que era muyto amigo, com
que parecia que fe começauão a refrear as diííoluçôes que
naquelle tempo auia na india. Eftando metido neíbs ocu-
pações , como auia alguns dias que andaua mal tratado de
humas grandes dores no pefcoço , que lho encordoauão
todo , e lhe dauao muyta pena , lhe vierão a apontar pol-
lo toutiço huns inchaços tão duros, e de tão má calidade ,
que por mais remédios que íe lhe aplicarão nunca chegou
aeftado depodeiem virafuro, e aííy andaua de maneira
que
dei Rey Dom João o III. 247
que para ninhuma parte podia virar o roílo , de que to-
mou tamanha paixão , por lhe tolher iílo acudir a muytas
coufas de muyta importância, que tinha por dauanre , que
foy cauía de lhe crecer o mal até o obrigar a não fe leuan-
tar da cama, donde prouia tudo o que cumpria , mas com
grandiííima anela e trabalho do efpirito , com que lhe ío-
brcuierSo humas tamanhns dores , que quaíi lhe tolhiáo a
fala , e erão ja indícios da Tua morte , a que elle tambcrn
começando aíentir, mandou Lopo vaz de inmpayo capitão
da fortaleza, co doutor Pêro nunez , e Afoníb mexia, e
o ouuidor geral , e o íecreiario Vicente pegado , que com
hum conhecimento feito pollo meímo íecretario de como
elle recebia a gouernança da índia da mão do Gouernador
dom Duarte , fe foííem a elle , e lho deíTem , e da íua par-
te lhe diíleíiem, que lhe fizeíTe entrega delia, os quais o fí-
zeráo logo , porem dom Duarte nao fem alguma eíperan-
ça de poder ficar ainda naquelle gouerno , le o viío Re/
morrelle , de que lhe parecia que náo eílaua muyto longe ,
lhes reípondeo, que não era cuítume os gouernadores faze-
rem entrega da gouernança, e darem íua reíldencia no
mar , onde elle então eftaua , fenao ha porta da fortaleza,
que ahy eítaua preíles para a dar logo, e noutra parte o não
auia de fazer , da qual repoíla mandarão auifo ao vifo
Rey , que eícreueo huma carta ao doutor Pêro nunez, em
que lhe mandou que diíTeíTe a dom Duarte, que a terra nao
podia hir por quanto eílaua prefo naquella nao, da qual
não íairia fenao em Lisboa por mandado dei Rey , que fe
elle quifeíle aly fazerlhe entrega da gouernança da índia
Jhe deíTem o conhecimento diílo que leuauao , e íenão que
íe rccolheílem para terra , e o tornaífem a trazer, porque
fem iíFo elle íe auia por entregue deila , e elles o fizerao
afiy íem concluírem coufa algum.a com dom Duarte , e de
tudo o que comi elle paíTarão mandou o vifo Rey fazer du-
to pollo fecretario , aííinado por todos, que fez pôr a bom
recado. Ncíla conjunção chegarão a Cochim as duas nnos
e o nauio que forão a Ceilão bulcar a canella , e a mandou
logo baldear na$ nãos do reyno, que eílauaoja quafi carre-
gadas.
2 4^ Piimeyra Parte da Chronica
gadas de todo , a que daua grandiíTima preíTa : e defpedío
logo o nauio, que auia de ir para o reino com carras fuás,
de que foy por capitão Franciíco de mendonça, que par-
tio o primeiro dia de Dezembro , e no nauio da canella
veyo Fernão gomes de lemos, que eftiuera por capitão
em Ceilão , de quem tinha informação que fizera lá muy-
tas íem rezôes , e chegando o nauio ha barra , o vifo Rey
mandou o ouuidor geral que lhe foíTe tomar a menagem
aíTmada , que do nauio não faiíTe fem íeu mandado, e íe
não quifeíTc dar aífi a menagem, o rrouxeíTe preíb em fer-
ros , e o meteíTe na fortaleza , e recolhelfe as inquirições
que vinhâo de Ceilão , o que aííy fe fez. Sintindo então o
vifo Rey que a íua ora derradeira íe vinha chegando , fe
paílou da fortaleza para humas cafas, que eftauão noterrey-
ro perto da Igreja , onde mandou chamar Lopo vaz de
iam Payo , e Afonío mexia veador da fazenda co fecreta-
rio , e lhes tomou as menages com juramento , que cun>
pririão inteiramente o que lhes mandaíTe até o gouerna-
dor, que lhe fucedeííe, mandar o contrario, de que o fecre-
tario fez auto da menagem , cm que todos aíTmarão , e os
defpedio , e então fez huns apontamentos em que manda-
ua ao capitão Lopo vaz , e ao veador da fazenda , que
air.bos defpachaííem e ordenaíTem tudo aíTy na juftiqa , co-
mo na fazenda, porem que ninhuma coufa alteraíTem das
que elle tinha feito e ordenado , e que fendo Deos íeruido
que eile falleceífe da quella doença , depois de aberta a
fuceílaó , tudo entregaíTem nas mãos do gouernador que
nella fe achaíTe, com hum cofre de papeis dei Rey, que leu
filho dom Eileuão lhes entregaria , e neftes apontamentos
lhe deu a ordem de tudo o que auião de fazer até fazerem
entrega do que lhes mandaua ao gotiernado nouo. Após
iílo não entendeo mais em couía alguma íenão nas que
comprião a fua alma , e fe confeíTou logo , e tomou o ían-
tiíTimo Sacramento com moílras de muyta contrição , e
de Criftio verdadeyro , e em feu teftamento mandou a
feus filhos que naqucllas nãos íe foíTem para o reyno , c
dos íeus criados leuaííem os que fc quiíeílem ir com elles,
c
dei Rey Dom João o IIT. 249
e aot que quiícíTem ficar na índia , alem de lhe pagarem o
íeruiço que lhe tinhaõ feito , lhes píigaíTcm tan.btm o que
únlúo vencido por conta dei Rey, c todos os íeus veílidos
c couías de íeda de fua caía delTem ao eípital , e a algumas
igrejas ; e a cada hunia das triolheres, que mandara ííçou-
tar em Goa, mandou dar cem mil reis em muyto íegredo,
e íe os nao quiTcíícm tomar os deíTem em dobro ha caía
da fanra Miícricordia , as quais com eíle dinheyro acha-
rão maridos com que caiarão , e íicsráo de todo fora da
infâmia ; c cm fim mandou que es léus oíTos foliem leuí-
dos ao reyno , como deípois forao ; e tendo ordenado
íuas couías como bom e fiel Criítao , deípois de tomar
todos os Sacramentos da Igreja fagrada cm todo leu fi-
ío e perfeito entendimento , faiando fem.pre e pidindo
perdão de íeus peccados , deu a alma a íeu criador a noite
do íantiííimo nacimento de noíTo Senhor Jclu ChriPio do
anno de 1^24, has três horas deípois da meya noite. A fua
morte eíleue encuberta em quanto fe fez preílcs o que era
neceíTario para o íeu enterramento, e quando íe veyo a
deícubrir , em todo o género de gente ie enxergou hum
grande íentimenio por tamanha perda. Seu corpo foy en-
terrado na capeila mor do mcíleiro de íanto António ,
com a mayor pompa e aparato que então foy poíTiuel ,
acompanhado de toda a nobreza , c de todo o pouo da ci-
dade , onde \c lhe fizerão as exéquias, quais fe dcuiao a fua
pelioa. Seus filhos dom Eíleuao , e dom Paulo íe forao
aquelle anno para o reyno, cumprindo tudo o que feu pay
mandara , onde forao dei Rey muyto bem recebidos, e nao
fem moílras defentimcnto polia perda de Jium tai vaíialio.
Parte 1.
Vi
CA-
a CO Primevra Parte da Chronica
CAPITULO LXV.
Abrejje a primeira fucejfdo da governança da Índia , e o
modo e cirimorias com que fe abre ; achalje nella dom Ari"
rique de menefes capitão de Goa para gouernador , de que
hum homem a muyta prejja lhe leua nona,
LOgo como o vifo Rcy foy enterrado , Lopo vaz de
de Iam payo capitão da cidade , e o fecrerario , e
Afonfo mexia , veador da fazenda , c o doutor Pêro nu-
nez , e o ouuidor geral João do fouto , com todos os fi-
dalgos e muyto do pouo fe tornarão nas mefiiias caías on-
de o Viío Rey eíliuera , c aíTentados na íala , que era
grande , em que cabia muyta gente , Lopo vaz poílo em
pé IJies diíTe j que bem deuiáo de ter íabido que el Rey
noíTo íenhor , por fazer mercê aaquelíe eílado , e euitar
os efcandalos edilícrenças que podia auer íobre a íuceflao
da gouernança delle , morrendo o viío Rey dom Vafco da
Gama , prouera delia nas pcíloas que era féruido que lhe
fucedeííem , de que mandara prouifoes cerradas , aíTma-
dae por eile , e felladas com as armas reais , que eftauao
dentro num faço que o fecretario aly linha , o qual o mo-
ílrou pubricamente : era eíte faço de lona , bem cofido
por todas as parte?, e na boca íellado co íello das armas
reais , e humas regras efcritas nelle que diziáo: Eíle íaco
le não abrirá fenao íendo primeyro morro dom Vaíco da
Gama vifo Rey, o qne noílo íenhor defenda : eíVe íaco me-
teo o fecretario na mao ao capitão Lopo vaz de iam payo,
c eile o moílrou a todos os que aly eílauao , dizendo que
atentaíTem bem nelle íe eílaua dclcofido por alguma parte,
ou le lhe viáo algum final de fe ter tocado nelle, o que
nuiytos lhe tomarão da mao , e olhando-o muyto bem lho
tornarão a dar ; Lopo vaz então diíTe cm voz alta ; Ht
aquy alguma peíloa que tenha duuida ou embargo algu^n
a íe abrir eile íaco , e pubricaríe o gouernador que nelle
eíliuer nomeado? a que lodos rcfponderâo que não , mas
que íe abriíTe iogOj e íe cumpriíle tudo o que S, Alteza
man-
delRey Dom João o III. 251
mandaíTe : difto fez o fecrerario hum auto : em que alllna-
rão todos os fidalgos c pefloas de calidadc , que eílauao
preíentes , e apôs iílo delcoíco o íaco no meyo da íala , e
tirou de dentro dellc três carta» cerradas , e íelJada cada
Jiuma delias com três felios das armas reais , e no fobre-
Icrito da primeira dizia ; Primeira fucetláo da gouernança
da índia , que nao fera aberta íenao íendo morto o vifo
Rey domVaíco da Gama : no qual lobrcfcrito eftaua el
Rey alunado. Na outra carta dizia : Segunda íuceílao da
gouernança da índia , que fe não abrirá íenão fendo tnleci-
da da vida prefente a peíloa que na primeira íuceííaÕ eílá
nom.eada: e neíla forma eítaua também o íobrelcrito da ter-
ceira íuceíTao. Eílas duas derradeiras fuceíloes íciornarao a
meter no melmo faço, que iogo foy tornado a coíer e Aliar
CO fello das armas reais, que andaua em poder do viío Rey.
A primeyra ÍuceíTao foy mollrada a todos, que viíTem fe ti-»
nha algum íinal de fe ter tocado ou bulido nella , e que re-
conheceílem fe era dei Rey aquclle íinal que tinha no fobre-
ícrito , a qual correndo de mão em mão , e íendo viíla
por todos , diderão que eílaua boa , e reconhccião o final
ler dei Rey noíío fenlior , e ninguém lhe punha duuida , c
todos requerião que fe abriíle , de que também o íecreta-
rio fez outro auto , em que aílinarao os principaes que aiy
eílauao , que foy muyta gente. Lopo vaz então poílo em
pc diífc em voz alta : Senhores que aqui eilais preíentes
prometeis como leais vaflallos dei Rey noíío íenhor obe-
decer em tudo ha peíToa, que neíla carta cílá nomeada por
elle aíTy como elle mandar ? e o flireis obedecer e ajudar*
contra toda a peíToa que for contra eíla fua prouiiao ? do
que dareis voíTa fee e menages aííinadas : ao que todos
rcíponderão que em. tudo e por tudo obcdecião , e aíly o
prometião e aílinarião , do que também o íecretario fez
auto, em que nomeou pafíante de trinta peíloas os princi-
paes fidalgos , e oíficiaes que eílauao preíentes , que to-
dos aííinarão nelle, e em todo o tempo que iílo durou elle»:'
ue femprc Lopo vaz em pé no meyo da falia , antre duas
tochas com a carta pofta na ponta de humacana ,que tinha
ii 2 ie-
2^1 Piimeyrâ Parte da Chronica
Icuantdda de maneyra que todos a viao , fem ninguém fa-
Jar com elle, nt-m chegar a clia. Acabando todos de aííinar,
Lopo vaz perguntou em aita voz, fe mandauao que a quel-
la carta íc abrifie ? e relpondendo todos que fy , logo pe-
rante todos entregou o Taco com as duas derradeyras íucef-
íoes ao veador da fazenda Afonío mexia , n quem por el-
pccial prouifaô dei Rey eftaua cometido tellas em ícu po-
der, e acartada primeira íuccíTaõdeu ao fecretario , que
íubido cm huma cadeira a abrio , e em voz alta, que lodos
bctii podiao ouuir, a lêo que dizia aíTy. Eu el Rey dom João
notifico e faço íaber a todos os meus vaíTalIos , fidalgos,
caualeiros , capitães de fortalezas e de nãos , gente dar-
nias , e a toda a peíloa de meus rcynos e fenhorios , e a to-
do o meu pouo nas partes da índia do cabo de boa efpe-
rança para dentro , que confiando eu na bondade , fiel-
dade, e bom faber de dom Anrique de menefes fidalgo de
ininha cafa , ey por bem e meu lerulço , que elle íeja go-
uernador da índia por fallecimento do viío Rey dom Vaí-
co da Gama por eíta carta íómente , que nao he paliada
polia chancellaria , por aíly cumprir a rweu íeruiço. Pollo
que vos mando a todos em gera! , e cada hum em eípecial
que a elle obedeçais em tudo como ao próprio viío Rey
dom Vafco , o que aíTy vos mando que cumprais e guar-
deis muyto inteyramente , como confio que todos leal-
mente fareis , íem duiiida nem embargo algum , porque
tiíly he minha mercê : e íerá gouernador em quanto eu nao
mandar o contrario, e em tanto aucrá o ordenado, c pro-
es, e percalços como os gouernadores paííados : eícrita em
Lisboa aos doze dias de Março de i5'24, e nella o final
dei Rey grande como nas cartas patentes. Acabada de ler
a carta o lecretario diíTe em voz alta: Eílá aquy alguma pef-
foa , que contradiga cfta prouifaô dei Rey noílofcnhor da
fuceííao do íenhor gouernador dom Anrique de menefes?
a que todos a huma voz refpondcráo que nao , que tudo
aprouauão e o auiao por bom , e em tudo obedecerião ao
fenhor gouernador , de que também o íecretario fez auto ,
cm que nomeou os que eftauáo prefentes , o qual acaba-
do
de! Rey Dom JoSo o III. 25^5
do fc recolherão todos para fuás cafas , porque pafTauaja
c^c iT.cya noite quiindo íe acabarão efías cirimci^.iíis , que
/fonio niexia n.aiidaua fazer, porque o tiniia afly no ícii
regimento aílinado por cl Rry , que elle tiniu na niíTo ,'
e o liia lendo a cada couía deílas. Lopo vaz rccolheo a
fuceíiaõ , e os treslados do? autos , que íe fizcrao , que
o íecrctario Jhe deu em pubrica forma. Tanto que toj pii-
brlca cila luccíTaõ^ António de lemes pidio a L.t)po vaz que
lha d<:{\c para eJie a levar ao gouernador , o que llic cllc
c Afonfo mexia concederão facilmente , e mandarão logo
fazer' preíies a galé noua que dom Luis mandara fazer no
inuerno , e duas galeotas, e as carauellas latinas , c alguns
bargnntis , que erao feitos de nouo , e efcreucrao miuda-
mente ao gouernador os termos em que efcauao as coufas
quando o viío Pvey morreo , e o que elle deixaua manda-
do que Ic {izclíe, que tudo eftaua em poder do fccretario ,
c tudo fora mandado por ordem do regimento que trouxe-
ra de! Rey , principalmente nas couías do gouernador dom
Duarte, o qual tam.bem efcreuco então ao gouernador ío-
bre os léus negócios ; e porque â gente pidia embarcações
para íe irem a Goa ao gouernador, fe fizerão preíles m.uy-
tos nauios , e fuílas , de que ninhum partio lenao deípois
da partida de António de lemos , para que ninguém foile
diante delie, tirando hum André gil, que tanto que de noi-
te ouuio dizer , que dom Anriquc era gouernador , íe em-
barcou em hum tone grande que rinha preíles com dcze
rcmeyros e mantimentos e agoa , e antes que amanheccííe
iahio do rio, e le foy polo mar largo por ir feçuro dos la-
drões , c chegou a Goa primeyro que ninguém huma me-
nham a tempo que dom Anriquc hia para a mifla , e pofto
em joelhos lhe deu a noua de elle íer gouernador da ín-
dia polia (uceflao , que íe abrira por morte do viío Rey :
dom Anriquc tirando o barrete , e leuantando ambas as
mãos ao Cco tirou do pefcoço huma cadea douro c lha
deu dizendo , romay iílo por votlo trabalho , e boa vonta-
de íómente, porque quanto ha noua que me dais el!a lie
de muytos trabalhos para minha natureza, e íe recolheo
lo-
2 54 Primeyra Parte da Chronlca
logo para caía , onde efteue dous dias encerrado , e íe ve-
ítio de preto polia morte do viíoRey. Eíla noua fe eípa-
palliou logo por toda a cidade , com que nelia ouue muy-
to aluoroço, e fe começarão a repicar os finos ; porem elle
mandou que ceíTaíTem os repiques , nem os oínciaes da ca-
mará aheraíTem couía alguma até vir recado de Cochim. do
veador da fazenda.
CAPITULO LXVr.
Z^epo 'vaz de fam payo e Âfonfo 7nexia pro^jem algumas cou-^
Jas antss da 'vinda do governadsr dom Anriquc de m?ne-
fes , antre as quais mandão António de miranda cm bufca
de dom Rodrigo de Uma embaixador do prejle. 'Junto de
Adem toma duas nãos de mouros , em que foube de alguns
Portugucfes que o Rey mandara raatar , e o que faz fo-
bre ijjo; chega ha ilha do Camarão , e duhy fe torna ha Ín-
dia 5 e a rezão porque*
EM quanto fe faziao preílcs os nauios que auiao d'Ir
a Goa ao nouò gouernador , porque auia muytas cou-
ias em que era neceílario prouerfe , que não podião eípe-
rar a íua vinda , nem recado íeu , Lopo vaz e Afonfo me-
xia , conforme ao que q vifo Rey deyxara ordenado, man-
darão Diogo de miranda com trcs nauios a Melinde car-
regar de breu , e carregarão drogas em quatro náos do
rcyno , de que eílauão dadas as capitanias pollo vifo Rey
a Lopo d'azcuedo , Ruy gomes da gram , dom Diogo de
lima , e os mandarão que foíTem a Baticala acabar de car-
ijegar de arroz e açúcar para Ormuz , porque aqucUean-
no não ouuera pimenta para carregarem para o reyno.
Mandarão também António de miranda ao efireyto em,
buíca de dom Rodrigo de lima embaixador que fora ao
preílc ( de que muytas vezes atrás he feita menção ) com
trcs galeões, três carauellas redondas , quatro nauios , c
hum bargantim , com regimento que foíle ter a Adem co-
brar a coroa dos dpus mil xarafins , que erão as parcas que
dei Rey Dom João o líl. 255'
Eyror da fiíueira lhe puíera ,o qual indn afírmaua queerão
cerras e firmes, e o leriao para fempre , e nao íe jáétaua
pouco de ter feiro Adein tributaria Jia coroa deíle rcyr.o.
António de miranda chegando a Adem com toda íua ar-
mada tomou huma ndo , cm que hiao muytos mercadores
ricos , c|ue vinhão de Cambaya, carregada de muyras fa-
zendas , e ícibcndo que a náo e os mercadores erâo dé
Adem , e que hião para hí , lhes fez muyra honra e gafa-
Ihado , e lhes mandou que fcílem em lua companhia , e
cm quanto a náo eíleue amainada ha fala com António de
miranda, fe lançou delia hum negro ao mar, e em lingua-
gem Portuguefa bradou aos noílos que lhe acudiííem , ao
que António de miranda mandou logo o efquife que o to-
niou e lho trouxe : cíle \hc contou que tanto que Eytor
da filueyra íe partira de Adem para a índia, logo o llcy
metera em ferros os Portngueíes que ficarão no bargan-
tim , e os amiençara com tormentos grauiíhmos para os fa-
zer tornar mouros , o que cinco delles fízcrão com temor
dos tormentos , porem aos outros todos, que o não quiíc-
T?o fazer, mandr.i aílar cada dia hum pouco , e ao ou-
tro dia arrallar outro pouco , e tirarlhe com frechas , o oue
lhes fez muytos dias até acabar de lhes tirar as vidas : e o
que mais tormentos padecera que todos fora Fernão car-
uaiho capirao do bargantim , porque animaua os outros
que cíliuelíem forres e confi::!ntcs , e morrcílem na fce fan-
tiíTim.a de noflo Senhor Jefu Chriílo , c aíly todos forao
marryres , íenao aquelles cinco defauenrurados , a quem o
mefmo fenhorpor feus ocultos juizos negou as forcas e o
animo, que deu aos outros para alcançarem huma tamanha
gloria , e eftes cinco andauaÓ no bargantim com muytos
mouros de guarda para que nao fugilTem. Diííclhe mais
eíle negro, que forão defpois muytos Portuguefes a Adem
com íeus nauio-s carregados de mantimentos e doutras
mercadorias a fazer fuás fazendas , os quais el Rey man-
dara matar todos por íe nao quererem tornar mouros , e
que elle fora de hum João rodriguez que matarão no bar-
gantim, e a elle venderão a hum mouro que vinha naouel-
2^6 Primfyra Parte da Chronlca
Ia nÁo. António de nilranda cor» ifto mandou trazer o»
mouros d:! nío ^ e metidos a tormento lhe coníeíTarao que
era verdade o que o negro dizia , pollo qual mandou lo-
go defcarregar a náo , e meter as fazendas nos icus naui-
os-, e a gente do feruiço delia repartio por ellcs para a
bomba , e os mercadores leuou no íeu galeão a bom reca-
do , e foy íurgir no porto de Adem, leuando também
comíigo a náo dos mouros , em que mandara meter trinta
Portugiiefes : :x]y dlfíe aos mercadores que mandaíTem hum
marinliejrc a terra a nado com recado a íuas moJheres , e
parentes que os vieíTem reigatar , íenão que aly diante dos
feus olhos auia de fazer juíliça de!!e? , o que elles logo íi-
seráo , e António de miranda Uies deu hum íeguro para
os que vieíTem fazer o refgatc. A ifto veyo logo da terra
hum mouro a verfe cos mercadores , que.erão todos natu-
raes de AdcMU , e cftauao prefos poiibs pefcoços em huma
corrente de ferro , e concertarão o reígate cm trinta mil
xerafíns douro , que logo forao trazidos , e deípois de
contados António de miranda mandou os mercadores fol-
tos para a fua náo, onde entrando forao prelos e atados de
peis e de mãos pollos Portuguefcs , que eílauáo neila , pe-
rante dous mouros que trouxerao o dynhciro da terra, que
aíTy o tinha mandado António de miranda , os qur.is fc
tornarão logo a eile qucixaríe do que íe fazia aos merca-
dores , pois enio ja reígatados , c o refgate pago : Antó-
nio de miranda IJie diííe, que aíTy os auia de ter atados
até que foííem dizer a el Rey , que pois ellc íendo Rey
quebrara a paz c amizade que prometera , e fora falío , e
tredor , não deuia de eflranhar feremno outros , que não
erão Reys , e que com enganos e traições feitas aos feus
auião de pagar os males e roubos , que elle com engano e
traiçÍQ tinha feito aos Portuguefes, e partidos os mouros
com efte recado, mandou pôr fogo ha ncáo, e os bateis der-
redor delia para que ninhum íe pudefie íaluar a nado ,
chegando ede recado ha cidade as molheres filhos e pa-
rentes dos mercadores , que era muyta gente, fe forao a
el Rey , queixandoíle delic com muyias gritas e clamores,
o qual
dei Rey Dom João o III. 257
o qual mandou tirar contra a noíTa armada muyta arti-
lharia ; porem António de miranda , fazendo pouco cafo
diíTo , mandou 03 bateis queimar muyras ndos que efta-
vão no porto , e não quis mandar esbombardear a cida-
de por não daniíicar os íeus nauios , e Fazendoíle ha vel-
la entrou no eílreytOjOnde toniou huns barcas que ihe de-
rão nonas, que os Rumes fiziao preíles vinte galés , e que
algumas eílauão ja em Judaa, e que náo fe fabia que ca-
minho auião de ieuar , e como ella noua era certa , che-
gando a Camarão , onde fez agoada , pôs em confelho cos
capitães e piloros íeirião a M.içuá ou não , e por todos
foy aiTcnrado , que não era bem ir lá , porque de Adem
auia de ir logo recado aos Kumes da fua ida , e como de
Judaa a iMaçuá era caminiio breue não deixarião de ir lá
ter , e íe os tomaíTem dentro no porto de Maçuá lhes po-
derião fizer muyto danio fem fe poderem valer , e pois a
noua dos Rumes era certa , e elles eílauão ja. em doze
dias de Abril , que não' era tempo para poderem cfperar
por dom Rodrigo , que cuílumaua eílar muyto polia terra
dentro, cumpria muyto tornaremfe daly para a índia fem
paíTnrcm mais adiante ; e feito dillo hum auto em que to-
dos allínarão , fe íizctao ha vella para a índia , c chegando
outra vez ao porto de Adem o acharão de todo delpcja-
do , mas acertarão então de cliegar duas nãos de mouros,
que vinhão de Cambiya, que os nofios tomarão, c deípois
de as defpcjarem , e cortarem as mãos a todo.-; os mou-
ros que acharão nellas , que não feruião para os noíTos na-
uios , lhe puzerão o fogo ; porem eíle mal outros noíTos
o pagarão , porque ncíle tempo hum junco de Malaca de
Garcia de fá, que eítaua carregado de drogas, fabendo era
Ceilão d IS p.izcs que Eytor da filueyra fizera com Adem ,
parecendolhe que lá poderia fazer então mais proueiro ,
que em outra parte, de Ceilão tomou fua derrota para
Adem, onde o Rçy o tomou e as fazendas todas que le-
uaua, que valião muyto dinheyro, ea doze Portuguefes que
hião nelles mandou arraítar , e com nouos géneros de tor-
Part^ L Kk men-
250 Piimcyra Parte da Chronica
mentos deu a todos crueliílimas mortes , porque nâo quU
feráo negar a fé que proíeííarâo.
CAPITULO LXVII.
Chega recado a Cochtm do gouernador do que fe ha de fa*
z-er em quanto elle não vem. Dom Duarte e dom Luís
partem para o reyiío , e arrlblio a Moçambique ; parti'
dos difípoís fe perde dom Luís , e o que pajja Jobre a fuA
perdição. Dom Dnarte chega ao reyno ; prefeiitajfe a d
Rcy l e o que lhe Jucede^
Arridas de Cochim as armadas, que Lopo vas de fam-
^ payo e Afoníb mexia deípacharão para diuerfas par-
tes , tratarão logo de auiareai as náos do reyao , a que
dauão grande preíTa, e entre tanto lhe chegou recado do
gouernador, qíie tudo fe fizcíTe quanto o vilo Rey deixara
ordenado , e no mais íízeílem o que ihes pareceíTe ferui-
ço dellley, porque eile não fabia quão depreíla pode-
ria ir a Cochim , poHo muyto que a!y tinha em que enten-
der , e que nas couías dedom Duarte fe não mudaííena-
da do que o vifo Rey deixara feito , fomente a prouilaS
que tinha para efcolher embarcação le lhe guardalTe , Í3
íe não achaíTe outra em contrario , e mandafiem todos os
léus papeis a cl Rey , ficando o treslado delies , o que tu*
do aíli foy feito , e dom Duarte fe embarcou na náo fa6
Jorge, que antes tinha efcolhida , e dom Luis feu irmão
na não íantn Caterina de monte fmay , e os filhos do vi-
fo Rey na não de Duarte triíflo armador. Dom Duarte
edom Luis íe partirão juntos , e dom Luis com detri-
minncão de não largar "feu irmão até o meter dentro em
Lisboa , receofo que fizeííe o caminho para alguma parte
fora do reyno , por quanto defpois da morte do vifo Rey
foubera que vinha mandado por el Rey , que nefta lua via-
gem fe uí.iilem com elle alguns rigores com que o Je-
uaílem feguro ao reyno , e para ifto uíou dom. Luis de
todos os aiiiíos que lhe parecerão neceilarios com a gen-
te
delRey Dom João o III. 259
fe da náo de feu irmão e da fua. E deípois que forao na-
uegando, vendo dom Duarte a grande vigia que fcu ir-
mão trazia íobre e!le , bem entendeo o porque o fazia ,
poHo que dftriminou de dar ordem com que náo paf-
laiTe o cabo de boa eíperança , e tornaíle a Moçabique ,
para o que mandaua de noire leuantar a veiia nos palan-
cos , e tomar os traquetes das gaueas , e fe de noite vi-
nhi alguma ciiuua , inda que não troiixelTe vento, msndciua
amainar as veJias , e as nao leuantauáo íenao com muyto
vjgar , com que dom Luis has vezes arribaua a elle a bra-
darihe. que foíTe por diante , mas aproueitaua pouco ;
c dcíla maneyra andou perdendo o tempo , com. que cine-
gou ao cabo tao tarde, que lhe derao os poncnte?, com que
arribou a Moçambique , e dom Luis trás elle, onde fe dif-
fe , que fora jílo inuençâo de dom Duarte para eíperar aly
as náos que vinhao do reyno , e conforme has nouas que
ihe defíem de corno la eílàuão as fuás dou ias , ally orde-
rar o que ihe cumpriíle. Dom Luis defcarregou aquv a
fua náo , que f^zia muyta agoa , e a fez concertar muyto
bem, e ícndo tempo fe partirão ambos os irmãos de Mo-
çambique , e paíTando o cabo diíTe dom Duarte s dom Luis
( que o vigiaua agora com.o da primeyra vez ) que hia en-
trar na agoada d-^ faldanha porque hia falto de agoa , que
elle o foíTe efperar ha ilha de hnti Ilena , com que dom
Luis fez fua viagem fem tratar mais delle , e dom Duarte
ao outro dia entrou na agoada onde lhe deu huma tor-
menta tão rija , que eíleue quaíl perdido com féis amarras
que tinha , e cuidou que dom Luis também o foíle , po-
rem elle pairou a tormenta , e não tomou fanta Ilena ,
mas fez íeu caminho para Porrugil , onde , fegundo tiue
por informação , foy tomado na coíl:a por hum coílayro
Francês , que a todos deu a morte íem dcyxar couía viua
que pudede deícubrir -o que aly paliara , e tomando da
Tiáo o milhor que pôde Icurir comfigo lhe pós o fogo ,
do que em muyro temno íe não pôde faber a certeza ,
porque cuidarão que a náo íe perdera com tormenta , até
<que num lugar de França morreo hum piloto Português,
Kk 2 que
lóo Prinieyra PcJte da Chronica
que lá reficlia , e deixou em ítu teílamento, que íc deíTem a
el Rey de Portug;íi íeis nul cruzados , de que lhe era em
obrigação por cerra fazenda , que ouuera da náo de dom
Luís , que íe tomara vindo da índia , e deípois no anno de
I5'3Ó andando Diogo da filueyra por capitão mor da ar-
mada da coíla tomou hum nauio de hum coííayro Francês,
de que alguns de íua companhia , pidindo a Diogo da íil-
ueyra que lhes dtííe a vida , lhes delcubrirao que o ca-
pitão d'quelle r.auio era irmão do coíTavro que tomara a
náo de dom Luis , e lendo logo metido a tormento con-
feíTou que era verdade, e que elle fora prefente com íea
irmão na preía da náo , porem que a tomarão por fe Jhs
ella entregar , porque ic hia ao fundo com muyta agoa qus
fazia , e do miihor que nelia acharão carregarão o fcu
rauio , que era pequeno , e ha náo com toda a gente derão
foí^Oj pcillo qual DiOgo da fducyra mind indo tomar do na-
uio qujnto quizerão os mcílres da fua armada , e cortar
as mãos a todos os Franceíes dentro no feu nauio , lhe fez
pôr o fogo , onde todos íorao queimados viuos. Também
de dom Duarte fuy informado que paflada a tormenta ,
que durou dous dia? , partio da agoada de laldanha , e não
foy demandar a ilha de íanta Ilena , ma? foife direito ha
cofia do algaruc, e furgio na barra de Farào , onde tomou
larga informação dos termos em que eílauao as luas cou-
ías em Poríupjal , e fazendoíTe daly ha velía mandou ao
piloto que folie portar em Cezimbra ; porem eile foy to-
mar a barra de Lisboa , donde dom Duarte o fez por for-
c^a tornar a Cezim.hra , íem valer ao piloto e a toda a
gente do mar quantos proteílos lhe nzcrao : em Cezimbra
íe deícmharcou logo , e dizem que também a grande pref-
í^i defcmbarcGU iua fazenda , e mandou ha náo que fe foi-
fe a Lisboa., porem neíle meyo tempo fobreucyo hum
temporal tão rijo que lhe quebrou as amarras, e deu com
ella ha coda, em que ouue muyta perda , porque vinha
muyto rica. Logo como dom Duarte chegou a Cezimbra
foy recado a cl Rcy da íua vinda , que eílaua em Almei-
rim , e após tile lhe foy logo cutio da perdição da náo,
e
delRey Domjcao o III. 261
c efcreueo a Cezimbra a peíToas de confiança , que tiucíTem
muyro tento em dom Duarte , que fe nao aufcntaffe , e da-
hy a pouco tempo o fez ir ha corte acompanhado dalguns
parentes feus , onde defpois de beijar a rrao a ei Rey , e
ter com cl!e huma larga pratica , foy prelo por íeu man-
dado com boa guarda , fem falar ninguém com elle , nem
íe lhe dar efcrito ou recado algum , nem peíToa alguma
falar a el Rey em coufa fua. Daly foy leuado prelo ao
caílello de torres vedras, e daly pafíado a outras prifôes,,
onde eíleue muyto tempo fem fe falar no Teu negocio , até
que p.or derradeiro íe veyo a tratar dellc , em que ie fez
o que fua Alteza ouue por fcu fcruiço.
CAPITULO LXVIIL
Dom Aurique de menefes toma pojje da gouernança da Jn^
dia , e as cirhnonias que nijjo fe jazem : chega a Goa
recado de Mclequiaz para o uifo Rey , e o goucrnador
Ibe relpoude. Manda alguns naiitos em biifca de humas
náos de Dio , que uao com madeira para judd. Partejje
para Cochim , no caminho ha vifía de huns par aos de mau-',
ros , e o que jobre ijfo ordena, .
ANtonio de lemos , a quem era dada a íuceflao da go-
uernança para a leuar ao gouernador dom Anriqus
de meneies , chegou cem ella a Goa a doze dias de Ja-
neyro do anno de i^iy ^om muytos nauios , cm que hia
muyta gente de toda a forte , que o gouernador recebeo
com honras c gafalhado, com quanto tmha ja a noua difto ,
como atrás fica dito ; mas ou foíTe por fcr de fua nature-
za grandioío , ou por outro algum reípeito , não íe en-
xergou nelle tanto aluoroqo e contentamenio por tal no-
ua como efperauão os que lha leuauáo , e logo por íeu
mandado o fecretario leuou a fuccílaó ha camará, e a apre-
fentou aos vereadores parante muytos fidalgos que aly le
acharão , c todos juntamente fe forao daly ha lé , onde
acudio grande concurío de pouo j e o íecretario em roz
alta
iGi Piimeyra Parte da Chronica
alta, que todos ouuiao , leo a carta da fuceíTao , e moílroit
o cíiromcnto da pubricaçao delia em Cochim, a que os ve-
readores reíponderão que a cidade em tudo q por tudo
obedecia ao que el Rey noíTo fenlior matidaua, efaria quan-
to mandaííe o fenhor gouernador, de que o íecre.rario fez
hum auto , e tirou hum eílromento pubrico ; daquy fc fo«
rão todos juntos ha fortaleza , e entrarão na fala onde o
gouernador os efperaua ja com a autoridade que reque-
ria o feu cargo , e hum dcs vereadores lhe aprefentou hum
miíTal , no qual elJe com a cabeça defcuberra pôs ambas
as mãos , e fez juramento folene conforme ao que era cu«
ílume , que o fecretario ja leuaua em eícrito , e o gouer-
nador o"aíIinou , e com elle Francifco de fá , Eytor da
íiiue/ra , António de lemos , António da filueyra , c Pêro
mazcarcnhas : e aly logo entregou a capitania de Goa a
Francifco de íá fidalgo antigo na índia , e que bem a me-
recia por fua peííoa , de que lhe tomou a menagem. Após
iíto fe foy ha igreja com toda a gente , e feita íua oração
lhe repicarão os finos , e tocarão as trombetas , que o
acompanharão até que fe tornou a recolher na fortaleza ,
e a cidade ordcnaua fazerlhe algumas feftas , que lhe elíe
ivko quiz conícntir, e tratou Jogo das couías importantes
ao bem daquelle eílado , de que a primeira foy pôr por
obra a guerra que o viío Rey deixara ordenada contra to-
da a coíla da índia, e principalmente conira a do Malauar ,
porque como era dotado de grandiílimo esforço não íe
íatisfazia de emprefas baixas , e com efte intento mandou
logo apreceber toda a armada miúda , e eílnndo neíla ocu-
pação chegou aly Cide Ale de Dio ( mouro conhecido dos
•noíros ) cm féis atalayas , com cartas e prefente que Me-
liquiaz mandaua ao vifo Rey , e achando que era morto ,
c dom Anrique feito gouernador , lhe deu as cartas e o
prefente , que era de peças de armas muyto ricas , e nas
cartas íe offcrecia para íeruir o vi^^o Rey cm tudo o que
lhe mandaííe , e lhe pedia que íizeflem pazes , para o que
daua muytas defculpas dos males que forão feitos aos
Portugueíes em tempo de Diogo Jopez de fiqueyra , dos
quais
dei Rey Dom João o IIÍ. 26^
quais faria quantas íatisfaçoes quiíeíTe , c pagaria rodas
as perdas que então íe receberão. O gouernador lida a
carta diííe ao Cide Ale com bom roílo : Ja que Meiiqui-
az he de tão boa condição que quer pagar com dinheyro
os males que tein feito , eu lhe mandarey a repoíla con-
forme o íeu faber ; o prelénte lhe tornay a leuar , que
pois não vinha para mim não he bem que eu o aceite ,
nem tão pouco deuo aceitallo , porque [dó armas que nós
não tomamos dos mouros fenao nas guerras , que remos
com elles. Dcíla repofta ficou o mouro aíTaz delcontente,
iicm tratou de pedir outra ao gouernador , mas efperou
por elle até que partio de Goa , e o foy acompanhando
até Baticala , e huma noite fazendo/Te noutra volta , íe
foy a Dio , e deu a Ivieliquiaz a repoíla , de que elle tam-
bém ficou pouco íatiâfeito. O gouernador deu muyra preíía
ha ília armada , porque tinha íabido que os paraos , que
cítaiião nos rios , erão fiiidos fora, e que os outros , que
os guarcauão , fabendo da morte do viío Rey , fe forao
a Cochim , de que cíl.ua aíTaz enfadado : e defpois de íair
do rio de Goa , em quanto na barra eílaua efperando que
acabaíTc de íair delle a outra armada , que era de treze
vellas grofi^as , em que entrauão duas galés , e três galeo-
Tas , e vinte fuílas e catures , em que hia gente muyto
Jimpa, chegou hum caiur de Chaul com auilb do capitão
Criílouão de íouía para o vifo Rey , que em Dio carrega-
não duas nãos de madeyra , que Meliquiaz mandaua aos
Rumes a Judaa , para o que o gouernador logo daly def-
pidio João pereira de lacerda , e Manoel de moura nos
nauios de que hiao por capitães , para irem a Chaul , e
daly iode com ellcs Manoel de macedo por capitão mor
cm hum galeão , e em lua companhia Fernão de refende
11a carauella cm que andaua , e todos fe foíTem em bufca
das nãos de madeira , e as efperaíTem no mar para não fe-
rem viílos , e encontrando com ellas , pondo os mouros
a bom recado , as leuaíTem a Goa por cauía da madcyra ,
c fe as nãos quiíeíTem pelejar as queimaíTem, íe as não pu-
deííem render ; porçm aííy pollo vagar dos capitães , co-
mo
2<Í4 Primeym Parte da Chronica
mo por lhe íer o vento contrario , quando chegarão a Dio
as n:ios er^o ja partidas , e poílas cm faluo, O goucrna-
dor hia embarcado em huma galeota efquipada de*Canaris
muyto bons remeyros , « mandando a armada grofla que
foíTc afaftada ao mar , elle com a miúda , em que também
hiáo as galés , que foy ao longo da terra , e diante meya
legoa mandou catures de vigia ao longo da cofta , que de-
rao com huns pageres de Cananor, que lhe diíTerao , que o
dia dantes virão muytos paraos com calmaria pelejar com.
]ium nauio noíTo , que nao tomarão porque os paraos hiao
a Baticala tomar carga que tinhao feita , e foubeííe que
eíle nauio era hum galeão , em que dom Jorfe de meneies
hia para Goa. Com eíla noua tornou o gouernador a man-
dar os catures que correíTem ao longo da cofta , e topando
os paraos lhe troxeíTem recado , e leuou a íua derrota ao
longo da terra , e amanhecendo fe achou junto do ilheo
de Baticala. A armada do mar ouuc viíla dos paraos que
liião ha vella de longo da terra co terrenho , de que logo
fizerão final com a artilharia ; os paraos vendo a noíTa ar-
mada do mar , parecendolhe que não era mais porque não
vião a do gouernador , todos ha vella e a remo com a
mor preíTa que puderão fe forão metendo na terra , o que
vendo o gouernador mandou as fuftas que lha foliem to-
mar 5 e ellas o fizerão logo porque tinhao o vento mais
largo. Neftas fuftas e nas galeotas hião embarcados muy-
tos homens fidalgos, que vendo em Goa o gouernador em-
barcaríe em huma galeota , quizerão mcterfe nas embarca-
ções pequenas , porque , offerecendoííe ocafiao de pelejar,
poderião neftas chegar mais depreda, que indo nas gran-
des.
CA-
dei Rey Dom João olíl. 265
C A í" I T U L O LXIX.
jís nojjasfufías e catures pelejao cos par a os dos mouros , e e
que lhes juceâe, O governador Jurge na barra de B atiça-
/a , e o que pajja com el Rey. Fajsajsc doly a Canaiwr , e o
que ahy jaz. Chegado a Cochini^ a requcrimetito dél Key de
Canitíior^ Vnanáa armada e getite a Eytor dajilueyra capi-
tão da for ta eza para ir queimar o lugar de M arábia , 9
que rãjjo jejaz,
~^ Srcs paraos dos inimigos erão auante de corenra ,'
J^ muyto bem arinados de muyta e boa gente e artilha-
ria , de que era capitão hum armador nouo , irmão de
hum regedor de Cananor chamado Mamale , que fe fez
parceyro co Bailacem , e por conta de cada hum dellés
vinha ametade deí^a armada. Eíles mouros, inda que fe
virão cercados por todas as partes , porque da banda da
terra tinhao as noíTas fuftas e catures , c da do mar as galés
c gahrotas em que virão a bandeira do gouernador , nem
por illo perderam o animo , antes com.o ja tinliao perdido
o medo aos Portuguefes , fe detriminarao em pelejar com
as noíTas fuftas , c as foraÓ demandar ; porem cilas como
cílauaõ a balrauento vierão cair íobre os inimigos, efe
trauou antre elles a brigi de bombardas e efpingardas , de
que os mouros trazião tanta cantidade como os noivos , e
alem díílo muytas frechas com que lhe faziao muyto dano.
Mas como eíta peleja íe fazia perante o gouernador nouo,
cobrarão os noílos tanto animo, que abalroando cos inimi-
gos os tratarão de maneira, que fe começarão a desbaratar,
e fugir cada hum por onde millior podia , e muytos dos
paraos fe acolherão ha terra por detrás do iiheo de Batica-
Ja , que cílá perto delia , onde por cima das pedras fe an-
darão defpedaçando, ; com rudo ficarão doze tomiados , de
que a gente fugio anado para a terra, e alguns, que crao rao
pequenos que puderão paliar por antre as pedras , fordô
fugindo pára Onor e Mergeo , einda que o gouernador
mandou os catures trás elles os não puderão alcançar por
Farte L LI lhe
206 Pfimeyra Parte da Chronica
lhe fobreuir a noite , e aíTy cfcaparaõ. Num deftes hía o
irmão de Mamale , que fendo noite fe fez na volta de Ca-
nanor , e chegando ao monte Dely achou huma fufta noíTa
que hia para Goa , e eftaua furta com tam pouca vigia que
não deu fé do parao , o qual polia ver taó defcuidada a
foy abalroar, c entrou nella fazendo todo o danno que po-
dia ; os noíTos, inda que trouados co fobreíTiilto , toda via
acudindo has armas foraô topar co mouro , que vindo
diante dos íeus pelejando esforçadamente , cahio na bom-
ba ao pé do maíio , os noíTos paliarão por elle , e dando
nos outros mouros , nao fomente os lançarão fora da fuíla,
mas entrarão nofcu parao , que acharão de todo defpejado
da gente do mar , que fugira toda a nado por duas panei-
las de poluora, que os noíTos marinheiros lhe lançarão,
os quais achando o capitão na bomba , e íendo conhecido
delles , o atarão de peis e de mãos , e eíliueraó em guarda
delle até que os mouros forao desbaratados , e lançados ao
mar , e porque dos noíTos ficarão muyros feridos, íe torna-
rão a Cananor , onde o capitão , que hia preío em poder
dos marinheiros , lhes daua por fy cinco mil pardaos , de
que elles deráo conta aos Portuguefes , que quando fou-
beraó que era o irmão do Mimale , com muyto contenta-
mento o leuaraô a bom recado , e o entregarão a dom Si-
mão de meneies capitão da fortaleza. O Mamale tendo
nouas que o irmão cílaua catiuo , mandou logo prometer
por elle vinte mil pardaos , a que dom Simão reípondeo ,
que nao podia fazer nada íem confentimento do gouerna-
dcr y mas que vindo elle faria em feu fauor tudo o que
padefle. Os outros paraos, que não fugirão para a terra, fo-
rao tão aperrados dos noílos , que fe tomarão faos e intei-
ros dezoito delles , afora os defpcdaçados , que ao todo
forão trinta e oito os que fe perderão , e os que eícaparão
foy á força de vella e remo , ajudados do eícuro da noite,
porque a peleja durou todo o dia. O gouernador fez amai-
nar toda a armada , e delpois de andar por todas as partes
ajuntando os paraos tomados , e mandando tirar os que
eílauão encalhados , foy furgir na barra de Baticala , onde
íoube
dei Rey Dom João o IIÍ. ^Gj
foube dos mouros catiuos quem era o capitão daquclla ar-
mada , e que era fugido , de que Jhe pefou inuyto , c que
o mouro Bailaceni não vinha nella, que ficara em Cananor,
e que eílcs paraos tinhuo ja dados a Calecut deus cami-
nhos de arroz , e de açúcar, que trazião dos rios de Baca-
lior e Mangalor, e agora vinhao tomar outra carga aqui
em Baticala que ja llnhão feita. Tanto que o gouernador
foy lurto logo el Rey o mandou vifitar com muytos bar-
cos carregados de arroz , de açúcar , e de outros refreí-
cos , que elie mandou repartir pollos nsuios grandes, onde
mandou recolher todos os feridos muyto encarregados
aos capitães, e mandando a el Rey os- deuidos agardeci-
mentos pollo que lhe miandara , lhe mandou dizer que fe
queria que toflem amigos de verdade lhe mandaíTe o arroz,
que os mouros aly tinhao comprado , e íenao que o teria
por inimigo, e lhe faria todo o mal que pudelle , ao que
el Rey, não fem receyo do ameaço obedeceo logo , c lhe
mandou coatro mil fardos de arroz baixo , que fc carre-
garão nos nauios , e o gouernador lhe mandou dizer que
fcm.pre teria com elle paz e amizade em quanto no leu
porto naô entraílem paraos de mouros , e íendo doutra
maneyra foubcíTe certo que lhe auia de fazer guerra até o
deílruir , e com iílo íe fez ha vclla para Cananor , onde
íurto o mandou el Rey viíitar logo , e dizerlhe que im-
portaua muyto veremfe ao outro dia , ao que o gouerna-
dor lhe refpondeo que íeria como elle quifeífe ; mas dom
Simão de mcnefes capitão da fortaleza o auifou , que os
mouros tinhão peitado groíTamente a el P>ey para que lhe
pidiíle o irmão do Mamale capitão dos paraos , que elle
tinha caíiao em feu poder , e lhe contou o como fora to-
mado , pollo qual dauão ja vinte mil pardaos , e dariao
quanto elle pidifse. O gouernador moftrou muyto con-
tentamento de eftar aly aquelle mouro catiuo , e diíse que
folgaua de auer coufa em que pudeíTe m.oílrar aaquelles
mouros , que não era elle dos que por intercfse deixauão
de caítigar a quem o merecia , e mandou logo enforcar o
mouro das ameyas do muro para fora com as mãos corta-
Ll 2 das ,
2Óo Primeyra Parte da Clironica
das , o que íendo viílo ao outro dia pollos outros mouros
da cidade fe forão a el Wey com grandes gritas eonioens,
que fe moílrou muito queixoío e agrauado do gouernador,
que fe nao quis ir ver com jl!e , e Jhe m.andou dizer , que
o agrauara muyro na morte daquelle mouro , que bom
fora terlhe a elle algum refpeiío , e nao fazer juftiça do
que era íeu natural , e irmão do regedor do feu reyno ; ao
que o gouernador lhe reípondeo , que fe efpantaua muyto
delle , e fentia muyto fendo elle tiio ami.go dei Rey de
Portugal confentir que os naturaes , c principaes do feu
reyno andaísem leuantados contra os Portuguefes , tiran-
dothe as vidas , e roubandolhe as fazendas , que fe no mar
achaíse o mayor íenhor da índia feito coflayro, lhe faria o
meímo , quanto mais aaquelle , e que aísy o auia de fazer
a quantos achaíse; e cntendefse delle , que nao era de tao
boa condição como os gouernauores paísados. Eíta re-
pofta foy dada a el Rey perante os mouros todos , com
que folgou afsaz , porque ficou dcíobrigado da promeísa
que lhe tinha feita , e do que lhe elles tinhlo dado. O go-
uernador então dando a capitania de Cananor a Eitor da
íilueyra , e a dom Simão de menefe? a capitania mor do
mar , afsy como a trazia dom Eíleuao da gama fiího do
viío Rey , fe partio de Cananor , e paísando de noite por
Calecut , per lhe não dar moílra de fy , chegou a Cochim
onde não quis que lhe fizeílem o recebimento cuftumado,
dando por rezrio que lhe nao era deuido , pois era gouer-
nador empreífado. Lopo vaz de fampayo e Afonfo mexia
lhe derão rezao de tudo o que até então linhão feito, que
elle aprouou, e ordenou fazer preíles huma armada muyto
groífa para ir fazer guerra a toda a cofta da índia , a que
ajuntou os paraos que tomara , e ordenou anadei dos eí-
pingardeiros 5 de que acrecentou o numero com féis cen-
tos reis de mantimento mais do que tinhaó : e em quanto
andaua nefta ocupação lhe chegou recado de Eytor da fil-
ueyra , que el Pvey de Cananor lhe pidia muyto que , pois
tínhamos guerra cos mouros de Calecut , foíTemos quei-
Jíiar a pouoaçilo de Marabia, que era íua colheyta , onde
clles
dei Rey Dom João o IIL z6^
clles concertauão os feus pargos , e que com fauor de muy-
tos mouros de Calecut, que aly eílauao, íe linjião leuantado
contra elle os moradores de Marabia lendo feus vaflallosi
O gouernador , aíly por quão mal fatisfeiro eílaua deíles
mouros , como por íatisfazer a el Rey de Cananor o agra-
«o que tinha delle, mandou huma galeota e dez fuílas com
boa gente a Cananor , e mandou dizer a Eytor da lilueyra
que ajnntaíTe aly mais gente da fortaleza , e foííe queimar
o lugar , o que elle pôs logo por ohra , e chegando ao lu»
gar mandou a terra cento e corenta homens bem concer-
tados , a que deu por capitão hum feu parente ,.chamadoí
João fernandes da fifueyra , e elle íe deixou ficar no mar,
porque ouue aquella emprefa por pequena para o feu gran-
de efpirito ; os noíTos pu!eraõ fogo ao lugar por muytas
partes , a que acudio logo grande cantidade dos inimi-
gos , de que alguns íe ocuparão em apagar afogo, e os
outros vierão trauar cos noíTos huma cruel briga , e como
erão muytos , e pelejauão com muito animo, os puferão
em grande aperto ; o que vendo Eytor da filucyra , enten-
dendo que aly fe empregaua bem íua peííoa, fahio em terra
com a fua bandeira , de que era.alferez hum Diogo de íou-
ía , e vinte Portugaefes que inda tinha comfigo , e che-
gando onde os noífos pelejauão deu fantiago nos inimi-
gos , com que começarão a defacorçoar e retirarfe-, e
os noíTos cobrarão tanto esforço que de todo os puferao
em fugida , e os lançarão fora do lugar , onde ficarão muy*
tos deilcs mortos , e elle de todo abrafado e confumido ,
e forão também qucimadasnaos e zambucos que aly eíla-
uao varados , e coatro paraos que fe eílauao concertando.
Aquy forão catiuos muytos mininos e niuUieres , de que
trouxerão carregadas as fuftas e a galeota, que Eytor da fil-
ucyra mandou a el Rey por lerem naturaes da terra , cora
<5ue elle folgou muyto , e lhe mandou por iíío muytos
agardecimentos, e Eytor da filueyra deípedio logo a arma-
da que viera de Cochim , e a tornou. a mandar ao gouerna-
dor.
C Ar
zyo Primeyra Parte da Chronica
CAPITULO LXX.
O Camorim Rey de Calecut ajunta muyta gente para fazer
guerra ha fortaleza ; ejla gente lhe vay dar ynoftra de fy.
Dom João de limafae a pelefar com tila , e o que fucede»
O Çamorim manda pedir pazes ao gouernador , elk lhas
concede com certas condi pes , que fe não aceituo,
O Çamorim Rey de Calecut , arrependido de ter co-
meçada a guerra contra os noíícs , e defejofo de deíi-
ftir delia , o praticou cos do feu coníelho , a quem diííe
que elle queria concertarfe co gouernador, que lhe parecia
homem mais amigo de guerra que de intereíTe , pois não
bailara o muyto dinheyro , que lhe dauão polia vida do
irmão do regedor de Cananor , para deixar de o mandar
enforcar , e fe apercebia de armada para entrar poHos
rios, e fazer todo o mal que pudeíle ; porem os do feu
coníelho eílauao tão peitados dos mouros , que nâo fo-
mente lhe não aprouauão querer fazer paz cos nolfos ,
mas ainda Ih'aconfelharão que pois era tão poderofo man-
daíTe ajuntar tanta gente com que pudefíe tomar a noíTa
fortaleza, ou fazerlhe tanta guerra , que obrigafle o capi-
tão a pidirlhe paz , e então a faria com mais honra íua. El
Rey , defejofo de moftrar feu poder ao nouo gouernador ,
aprouou efte confelho , e logo da ferra onde então eílaua
mandou quinze mil naires pagos lia cufta dos mouros cora
três Caimaes capitães feus, que em Calecut fe forão ajuntar
CO Catual e goazil , os quais a eíles ajuntarão coatro mil
mouros bons foldados , e outros mil mouros efpingardey-
ros bemdeílros. Repartida toda efta gente em capitanias,
foy dar moílra ha fortaleza com tantas gritas e eílrondo
de eftromentos de guerra, que punhão eípanto , e deí-
parando a efpingardaria fe vierão chegando tão perto da
fortaleza que tirauão aos noíTos que eílauao pollos muros.
Dom João de lima , que tinha ja auifo deíla moílra, e
eílaua preíle-s com toda a gente, chegando os mouros man-
dou tocar as trombetas , e defparar muytas efpingardas ,
que
/dei Rey Dom João o III. 271
que tinha tr.eridas nas mãos aos eícraiios , e molheres que
aua na fortaleza , e elle laliio fóra com «orenta homens
bem armados , todos com fuás lanças , antre os quais hiao
dom Miguel de caítro , Lionel de lima , Fernão de lima ,
Pêro eíla^ço , e outros , todos homens efcolhidos , c foy
cometer os mouros com tanto animo , que cuidando elles
por illo que era muyto mais gente , íe embaraçarão huns
cos outros de maneyra , que os noílos liucraô tempo de
lhe fazer muyto dano, e citando todos metidos numa bri-
ga aíTaz trauada íahio dom Vafco de lima com outros co-
renta homens , em que hiaò António de fá , João rodri-»
gucz pcreyra , Ruy diaz da fiiueyra , Artur de mello , c
outros , e dando nos mouros por outra parte, aíTy eíles
como os primeiros faziao marauiihas , onde fucedeo que
hum Mem de lima com huma lanca darremeflo paíTou de
parte aparte hum dos Caimais, que era fubrinho do fenhor
da íerra , de que logo cahio morto , a que acudindo todo
o poder dos mouros fobre os noíTos , foy forçado a dom
João retirarfe para a porta da fortaleza, e mandou tocar a
recolher, o que dom Vaíco logo fez, pelejando fempre com
grande poder dos inimigos que carregarão lobre elle, e
tanto que foy recolhido antre o baluarte de madeyra e a
porra , logo a gente toda íe fubio aos muros , donde com
as efpingardas derrubnua muytos mouros : e dom João,
como teuea lua gente dentro na fortaleza, mandou def-
parar a artilharia por cima e por baixo , que achando os
inimigos juntos , deixou aly mortos mais de mil deiles , e
dos noílos nmhum lenão lómente alguns feridos das fre*
chás , que quando virão os mouros iríe recolhendo lhe
tangerão as trombetas , e lhe dauao grandes apupadas.
Sabendo iílo o Çamorim eípantado de auer tanta gente na
fortaleza que fe atraueíTe a fair ao campo pelejar com tan-
to numero da Tua , fe refolueo em pidir pazes ao gouerna-
dor , e fazellas na forma que elle quifel^e : e fazendo tre-
goas com dom João de lima , em quanto mandaua recado
ao gouernador fobre eítas pazes , lhe deípachou hum em-
baixiidor , de que dom João logo lhe majidou auiío por
huma
lyz Prlmeyra Parte da Chronica
huma aliTJfidia , que chegou a Cochim antes que o embai-
:(ador chegaííe , o qual ciiegando ao gcuerirador lhe di''^e,
queo C^amorim íeu Icnhor folgaria muyto que antre elles
le fizefle huma paz boa e firme, com que de todo íe aca-
baíTe a gu^erra; a que o gouernador refpondeo, que por íua
culpa doixaua de ter a boa paz que agora pedia, pois a que-
brara fem ninhuma rezão , como íempre cuftumarao fazer
os Rcys de Calecut , pollo qual lhe vinha milhor ter com
eJle guerra, quea paz que elle quebraua cada vez que queria,
com tudo que elle mandaria a dom João hum apontamen-
to das condições das pazes , e fe as concertafle com elle íi-
carião feitas , e elle as aueria por boas : com efta repofta
fe tornou o embaixador, e o Çamorim mandou pidir a
dom João as condições das pazes para as aílentar logo , e
mandalas confirmar pollo gouernador. Dom João, qne ti-
nha ja recado do que auia de fazer , lhe mandou dizer que
as condições com que o gouernador lhe mandara que aí-
fentaííe pazes com elle erâo eílas : Qiie auia de entregar
Patemarcar , que tinha em fua terra ., o qual fendo natural
de Cochim íe leuantara contra os nollos : Que auia de en-
tregar todos os Portugueíes,que eíliucíTem caiiuos nas fuás
terras , e todos os efcrauos e eícrauas : Que auia de entre-
gar toda quanta artilharia noíTa tiueííe ; Que em todo o
leu reyno fenao auia de fazer ninhuin parao , íenão lo-
mente nãos e pang-.yos, e os paraos, que eftiueíTem feitos,
os auia de entregir todos : <^e auia de pagar todas as fa-
zendas que os mouros tinhão roubadas , deípois que elle
quebrara a^ pazes. Eftas condições parecerão a el Rey
muyto defarrezoadas , e quafi dinas de rifo ; porem diíTi-
niulou porenião, e deu moftras de querer cumprir algu-
mas , e cmmendar outras , íobre que ouue muytos reca-
dos de parte a parte fem concrufaô alguma , em que a ten-
ção dei Rey e dos mouros era entreter diífimuladaraente o
•tempo até paíTar o veraõ , porque lhes parecia que no in-
uerno podcriao facilmente tomar a fortaleza, por íer tem-,
po em que lhe não podia vir íocorro.
C A-
delRey Dom João o IIL 273
CAPITULO Lxxr.
O governador faz prcíles ínima groffa armada comqtievay
ter ao rio de l^anane , onde tem huma braua peleja cos ini-
migos , e ofucejjo delia,
OGouernador que entendia bem eílas dinimulaçoes
dei Rey de Cnlecut , e a tenção delias , mandou fa-
zer preftcs huma armada de corenta fuílas e catures , trcs
galés j cinco galeotas , e alguns bargantins , e oito nauios
grandes ,ea proiieo largamente de mantimentos , artilha-
ria , munições , e de muyra e muyto boa gente , em que
auia muytos fidalgos , e muyios outros íoldados honrados,
de que muitos eraò eípingardeyros: e partindo de Cochim
lhe toy dado auiío, que de Cambaya vinliao oitenta paraos
com retorno de mantimentos , que fcrao lá carregados de
pimenta e drogas , para o que o gouernsdor deípidio Fer-
não gomez de lemos , que com hum galeão , duas galeo-
tas j e dez fuftas foííe em buíca delles , com ordem que
fe os achaíle lhe mandaíTe logo recado , e pelejaííe com
clíes , e íe lhe fugiílem os foííe íeguindo , porque elie os
encontraria no caminho que Icuaua , e fe eíliueilem meti-
dos em algum rio , lhe tomalTe a barra. Fernão gomez
achou nouas em Cananor que auia oito dias que erão
paíTados , com que fe tornou ao goucrnador , que achou
íobre o rio de Panane, chegado do dia dantes , porque
dentro auia alguns paraos deftes que foraõ de Cambaya.
Hum caimal, que eílaua em Panane , vendo a ncíTa armada
tao poderofa , e receando que quiícffe fazer algum mal ha
terra, mandou logo dizer ao gouernador, que o C^amori o
mandara aly para lhe entregar treze paraos que cflauao
naquelle rio, a quem tinha mandado recado da fua vinda,
que em tendo repofta Jhos entregaria logo. Bem entcrdco
o gouernador que era aquillo artificio, e querendo elle
também diffimular para ter comodidade de mandar eípiar
o rio em companhia da almadia , que lhe trouxe o recado,
mandou hum eíquifc com oito homens e alguns barris, e
Parle L Mm aos
274- Primeyra Parte da Chronica
-/t
20S da almadia diíTe , que Ibes mandaíTem moílrar onde
achariíío boa agoa , e entrando pollo rio os da alnindia
rçoftrarao aos noilos Jium lugar da outra banda , onde lhe-,
dineraô que achariao o quebufcauao , e os deixarão : ps
nodos quercndoíle chegar a ferra , lhe tirarão dejla muytas
frechas , com que fizerao volta , e na entrada do rio ha
TTf)^o direita virão liuma cllancia beri) fone com muita ar-
tilharia, e rnuyta gente, que aparecia por tolas as partes,
(}e que derão conta ao gouernador : elle p,ôs logo o nego-
cio cm coníeího, não pêra perguntar íe coiT^eíeria a t-ílan-
cia, íenão para coníultar o modo que aueri.í para a entrar,
ç por parecer dos pilotos foy afíentado, que com mcirt agoa
chea a cometeíTem , porque então ftcauão os tiros altos , e
ilão podião peícar os barcos pequenos. O gouernador en-
tão repartio as embarcações eni dous efquadrocs , de que
tomou hum para íy , e o outro deu a dom Simão de mene-
^s ; CO gouernador hião Pêro mazcarenhas , Aires da
íiljLJa , João de mello da fílua , que fora capitão em Cou-
lâo , António da íilueyra , dom Joríe mazcarenhas , Ruy
íjias da filueyra , dom Afonío de meneies , Antão noguey-
ya , dom Pedro de menefes , Aires da cunha , e outros
fidalgos e homens de muyta conta. Com dom Simão hião.
Gomez martinz de lemos , Jerónimo de (bufa , dom Jorle
tello , Jorfe cabra! , António da filueyra , Gomez de loto.
inayor , Francifco de vafconcellos , dom Joríe de mene-
ies , Nuno fernandez frcyre , e outros muytos , que fe
ção podem nomear todos : e a ordem foy , que dom Simão
derembarcnfie , e foíTe dar na eílancia polias coílas , c o
gouernador entraíTe no rio , e deíle na gente que eftaua da
t)anda dalém da eílancia , porque podia fazer iriuyto nojo
aos que a hião cometer polias coílas; e porque na parte por
onde dom Simão auia de cometer a eílancia auia muyta
gente antes de íe chegar a ella , leuou comíigo oiro centos
homens, quinhentos Portuguefes, de que os duzentos eraÕ
eípingardeyros , e trezentos cfcrauos que acon:panh2uão
jeus lenliores , e também ajudauão a pelejar. O gouerna-
dor kuaua trezentos homens íomente , de que tambenu
niuyios
dei Rey Dom João o III. 275"
muTtos eraô eípingsrdeyros : com efta ordem cometerão
os noffos o rio em amanhecendo , que então era a conjun-
ção da maré , e em. breue eípaço com a corrente dagoa
entrarão a remo por elle tocando as trombetas, onde o
gouernador, íem fazer dctençi, foy dar num corpo de gen-
te que eílaua da outra parte da cftancia , que eraô mouros
muyto bem armados , e com muytas efpingardas , onde
ouue huma briga aííaz trauada , em que foiao feridos de
frechas Gomez martinz de lemos , Pcro mazcarenhas ,
Ruy diaz pereyra, e outros fid-?.!gos, rras n^o que deixafícnl
de peiejar : e os inimigos forao tao aperrados que larga-
rão o campo , e fendo vifto' da cftancia que os mouros
Jiião fugindo , e os noíTos eftauao parados , lhe com.eçarao
a tirar com a artilharia , porem o gouernador correndo ao
longo da terra, onde os tiros não varejauao , íe embarCoii
por detrás de hun§ penedos , e foy cometer a eftancia , eiri
que auia muitos mouros , que nao acudirão ha peleja, qué
dom Simão tinha no campo com muyta gente , e chegan-
do a ella a comereo com tanto ímpeto , que a entrou coiti
mortedalguns dos noflos, e muitos feridos; porem os mou-
ros deíempararaô logo a eftancia , e foraõ ajudar os ou-
tros que pelejauâo com dom Simão : os noflos íeguindò
a vitorif! fe foraô trás elles até o mefmo lugar em que
dom Simão andaua , onde o gouernador com a bandeyra
real manda^ndo tocar as trombetas deu Santiago nos mou-
ros , o que ouuindo os que andauao com. dom Simão,
cobrando nouo animo e nouas forças , apertarão tanto
cos mouros que os arrancarão do campo , porem íempre
pelc'jándo , que crao mais de coatro mil , e aíTy fe reco-
lherão por anrre as ruas do lugar , com que ficarão mais
fortes-', porque o gouernador tinha mandado que lhe nao
pufeíTem fogo , poreni fazendo ajuntar todos os cípin-
^ardeiros , entrarão polias ruas , e por antre'as cafas fo-
rao derrubando tantos dos inimigos , que os obrlgaríiÕ a
deixarem de rodo o lugai^, errtereremfe porantre os pal-
fhares , e outro aruorcdo de que aly auia muyta ciintida-
ât , onde o gcuernadornrõ qu'is qire osnofjó5 entralUm,
Mm 2 e
2y6 Piimeyra Parte da Chronica
e ninndou que faqueaílern o lugar , em que fe achsrao cou-
fas de preço afora muyla pimenta e drogas , de que nin-
guém íançaua inaõ , porque era fazenda paia cl Rcy , que
o gouernador mandou recolher pollos meftres dos na-
uios grandes com a íua gente , e pollos remeyros man-.
dou derrubar as palmeiras e outras aruores, em cuja guar-
da foy Jorfc Cabral com duzentos homens , que por toda
aquella terra íízerao grandiíhma deftruiçao. Mandou tam-
bém dom Simão nos catures pollo rio dentro, que en-
trando por iium eíteyro achou dezaíeis paraos , a que pôs
o fogo 5 não fem reílílencia de bombardadas , e efpingar-
dadas, que lhe tirauaõ de dentro do mato. O gouernador
jnaKdou então recolher a gente toda , e fendo conjunção
de maré para íe poder partir , mandou pôr fogo ao lugar
por muytas partes , em que ainda arderão muytas fazen-
das , e morrerão muytos mouros. Dos nodos morrerão
oito , e toraõ muytos feridos , que o gouernador mandou
recolher nos iiauios grandes , e curar com muyto cuida-
do.
CAPITULO LXXII.
O gouernador fae ào rio de Panave , e vay j urgir defronte-
de Calecut ^ fala com dom "João de lima capitão da Jor-
taleza , dizlhe emfegredo , que faça pôr fogo ha cidade^
dom João o põem, por obra , e o modo que tem para ifso,
Artido o Gouernador dcíle rio de Panane fe foy de
]ongo da terra com a armada miúda , e os nauios
groíTos ao mar , e caminhou tanto , que lendo noite cer-
rada e efcura foy íurgir defronte de Calecut , onde logo
fez vir dom João de lima , com quem praticou muito
deuagar , e foube o eftado em que eftaua aquella fortalc-.
:?a : no difcurío deíla pratica alguns fidalgos , que eílauao
prefentes , lhe aconfclharao que faifle cm terra , e mandaí-
fe por fogo ha cidade , do que o gouernador tomou pai-
xão , porque era homem auílero de íua natureza , e o que
dctriminaua fazer não queria que ninguém lho emendei^
fe ,
dei Rey Dom João o !íl. 277
íé j nem o nconíelhíiíTe , e a modo de queixoío lhes diffc,
que lhe? pidia por mercê que ninguém lhe dcíle nluitres
para o que auia de f;rzer , que elle íabia o que Jhe cum-
pria , que quando lhes pidiOe coníelho cniao lho deílem ,
e qup.ndo o viílem pelejar entaò o ajudaííem , que íó para
ilibes trazia comllgo , que no mais o dei::afiem fazer,
pois viíío que não íe delcuidaua nas couías do fcruiço dei
Rcy , ao que ninhum replicou, nem tornou repofta , por-
que lhe conhecião a condição, e falando com dom João
de lima , entendendo deile que eílaua bem prouido de tu-
do o que cumpria , lhe deu mais vinte efpingardtyros ,
dizendo que lhos empreftaua até que tornaíle a mandar
por elles , e cm fegredo liie diíTe , que íe fofíe poíliuel
mandar a feu faluo pór fogo lia cidade fem fe entender
que elle o fabia , folgaria muyto, para que viiTcm os moii-.
ros que elle fó lhes fazia a guerra , íem intreuir niíTo o
gouernador , com que o defpedio. Elle tratando de o
pôr logo por obra , falou fecretamente com hum malauar
chriílao natural de Calecut, chamado Duarte fernandez,
que era caiado na fortaleza , onde tinha fua molher e fi-
lhos , e lhe prometeo duzentos pardaos fe foíTe pôr fogo
nas caías que eílauao em torno da fortaleza , que todas
erão de palha, e eítauao muyto juntas. O Duarte fernan-
des aceitou a empreía , e recebeo logo o dinheyro , e ve-
ílindolTe em trajo de Jogue, que erao panos velhos e
esfarrapados, e untando o roílo, os cabellos, e a barba com
cinza miílurada com azeite , íe transfigurou de m.aueyra
que parecia o próprio Jogue , e debaixo dos panos eícon-
deo huma cantidade de poluora de eípingarda , e alguns
pedaços de murroens , com que fahio huma noite da for-
taleza, e amanhecendo chegou a humas caílnhas de Ma-
Guaas , que faõ peícadores , onde começou a pidir eímola
ao mefmo modo que a pedem os Jogues , que he com
i-ogarera aos homens acreceniamento de vida e faude , e
"vitoria de feus inimigos , e has molheres bons partos , e
faude para íeus filhos , e outras couías,a eíle modo , com
que iJie daô muyto boas eíVnolas. Dt^íla maneyra fe ioy
178 Piimeyra Parte da Chronica
o fingido Jogue meter na cidade , onde de dia fe recolhia
em cafiis coir.o erprirais , que os mouros tem em muytos
l-ugares para agafalhado dos peregrinos , e de noite anda-
ua por antre as cafas pidindo elmola , que a eftas oras a
cuftumão pidir os Jogues , e lhe dao arroz cozido , man-
teiga , e bredos, porque elles nao comem outras couías,
e dentro neftes dias ordenou íeis os fete enuoltorios-
zinhos da poiuora que leuaua , e em cada hum delles me-
teo lium pedaço de murraÕ com a ponta fóra , e numa
noite efcura , e de muito vento , que ihe parcceo acomo»
dada para o que pretendia , meteo huma brafa antre duas
cafcas de ollra com hum buraco , por onde lhe entraua o
vento j e acendendo nclla as pontc.s dos murrões pôs
hum dos enuolrorios detrás de huma caía , e dahy foy
pondo outros três em outras três caías ; no primeiro que
pôs tomou a poiuora fogo , e ateandoíTe na caía , que eraf
de palha , leuantou huma grande labareda , que com a
força do vento faltou em outras , e foy crecendo com ta-
manha força , que ninguém podia chegar a elle , e aíTy fe
foy efpalliando de tal mancyra , que não ficou cafa que
3ião qucimaíle até chegar lias que eraõ feitas de paredes ,
nas quais cafas todas queimou muytos homens, molheres,
e crianças, e fez a mayor deílruição que até então íe
vira naquella cidade. Os da fortaleza vendo o que paíTaua
lhe começarão a tocar as trompetas , e tirarlhe com muy-
tos tiros grolTos , que lançauao muytas pedras perdidas-
dentro na cidade , com que fe lhe acrecentou m.uyto o da-
Jio que o fogo lhe tinha feito. O bom do Jogue em mcya
deíla rcuolta fe recolheo ha fortaleza , onde o capitão
com todos os fidalgos o veyo receber ha porta , e de to-
dos recebeo muytas honras , e pecas para íy e para íua
molher , como cada hum podia , e o gouernador lhe deu'
cada anuo cem pardaos de renda por eíle feruiço que fi-
zera. O capitão pollo honrar ainda mais , o aííentou daly
pordiante comfigo ha raefa , e lhe mandou que fe cha-
maíTe Duarte fernandez de lima , e aíly fe chamou íenípre-
C A-
dei Rey Dom João o III. 279
CAPITULO LXXIir.
O gouerr.ndor tem iicuas , que no rio de Coti^ete efiao cin-
coenta par aos de mouros ; vayos bujcar , tem com el.es hu'
■ ma a/pera e cruel batalha , e ojucejso delia.
Principal lugar do reyno de Caleciir , onde primey»
ro fora tod.í a força da cidade , lie Cuuleíc . cm cujo
porro cílcue dom Vafco da gama a primeira vez que foy
Ija Ilidia quando a defcubrio. Dom João de lima , quan.»
do o goLicrrnador aly foy ter , que íc vio com elle no mar^
antre outras coyfas lhe dillc , que neíte Coulete eílauao
eincoenta paraos , que vierao de Cambaya com muytos
mantimentos, onde forJo carregados de drogas , e cila-»
uao ja preftes para tornarem a trazer outra carga de arroz
;Vos rios de Mangalor e Bracelor , onde o? eíperauão ou-
tros, que eilauáo a carga , para irem todos de comj^anhia.
O gouernador entendendo que erâo eítes os paraos da
que elle ja antes tiuera nouas , defejoío de os ir buícar ,
mandou diante João de mello da filua em dez catures
do x\rel de Porcaa , que trazia a foldo por ferem muyta
ligeyros , com ordem que foíie ver a difpofição do por-
to , e o eítado em que ellauão os paraos. João de melo fo
partio de noite , e num catur deíemmaíleado com. poucos
remos foi muito caladamente olhando tudo muito bem ,
antes de fer viílo dos mouros , e chegando perto dos pa-
raos, que foy viílo e conhfcido , lhe tirarão has eípia-
gardadas , e com alguns berços com que lhe foy necef-*
íario meter iodo« os remos , e chegarie aos outros catu-
res , porem trás el!e fairu» oito paraos , que lhe forno
no alcanço até que foi menham , que ouueriô vííta da ar-
mada do gouernador , que eílaua ao mar , com que íe re-
colherão , e íe forao ajuntar cos outros , que por rodos
craõ corenta e três os deita quadrilha , e os outros que íe
concertarão na terra eítauao ja de rodo prelles para os
lançjrem ao mar. Eílourros , que cftauao no mar , tinhãtt
touos as popas na terra, tão juntos e com ral ordem , que
todos
2 8o Primevra Parte da Chronica
todos fe corrião Jiuns pollos curros , c ncfte lugar onde
cílaiiao fazia a terra huma grande ribanceira d'area , que
ficaua ir.ais alta que os paraos , por cima da qual hia
Jançada huma tranqueira de lorigo a longo , feita de pao>'
e de madeira taõ groíTa que ficaua aflaz forte, em que
eílaua aíieílada muita artilharia , que jogaua por cima dos
paraos, que todos tinhaÒ os niaftos abatidos , e no lugar
delles tudo atraueftado com arrombiidas e entulhos para
defeníaõ dos tiros , e de cada banda eílauao três fuftas
com as popas nas ilhargas das outras , e as proas de longo
iia terra , auendo que elíauão aíTy muyto feguras co empa-
to que tínhao na mefma terra, onde , e nos m 'fmos paraos
eftaua tanta cantidade de gente, que nao cabia numa par-
te nem noutra. O gouernador íurgio meya legoa ao mar ,
e efpalhou a armada toda para que os paraos , querendo
fugir, lhe não pudeíTem eícapar, e pondo bandeira na
coadra acudirão a elie todos os capitães e fidalgos , a que
não pidio coníelho fe pelejaria cos paraos , fenão lhes
perguntou o modo em que os cometeria. Neíta matéria
ouue muytas duuidas auendoíTe o negocio por muyto pe-
rJgoíTo , aíTy polia artilharia , que eftaua na terra , como
por a defembarcaçao ler muyto dificultoía por arrebentar
o mar muito cm terra , e não tratando de fe cometer a
tranqueyra da terra fenao defpois de desbaratados os pa-
raos, fe daua ordem com que fe fizeíTe com mais facilida-
de e menos danno ; porem o gouernador diíle, que eftaua
refoluro em dar nos paraos e na terra , que para ifto fe
foftem fazer preftes , e íe vieíFem para elle ante menham,
que então lhes diria o que auiao de fazer , com que tor-
nados todos aos íeus nauios , gaftarao a noite em concer-
tarem fua? almas e Tuas arma?. O gouernador ordenou ,
que dom Simão , e Pêro mazcarenhas defembarcaftem ca-
da hum por íua parte , para o que deu a cada hum trezen-
tos homens , e coatro bateis , e íeis fuftas , em que lhe pa-
recco que podiao bem caber os íeus trezentos homens,
e elle para íy tomou o reftanre da gente , que íeriSo ou-
tros tantos , para cometer os paraos , parecendolhe que
vendoíie
delRey Dom João o III. 281
VendoíTe os mouros cometidos por tantas partes , r.ao te-
riáo animo para fe defenderem; e fendo híía ora ante me-
nhã , e a noite cfcura , mandou tocar híia trombeta , a que
acudirão logo os capitães com fua gente bem armada \ e
os bateis bem concertados, e chegando ao goucrnaJor,
clle íe erribarcou no leu batel com a bandc/ra real , de que
era alfírez Pêro de meneies , e mandou a dom SiraaÕ que
defembarcaíTc da mão direita , e Pêro mazcarenhas da ef-
querda,^e elle ficava no meyo para cometer os paraos ; com
elle hiaô íoao de mcllOjRuj diaz pereira,dom íorfe de me-
neies ,^ António de lemos , e outros fidals^os que não eraô
capitães. A dom Simão acompanhauao Fernão gomez de
lemos , Gomez martíz de lemos íeu irmão , leronimo de
íouía , Aires da fiiua , dom Afonso de meneies , dom Pedro
feu irmão,^e Aires da cunha. Na companhia de Pêro mazca-
renhas hiaô lorfe cabral , António da filue/ra , Gomez de
fouto major, Francifco de vafconcellos , dom loríe de
noronha , Diogo da filua , e Simão de miranda , todos ca-
pitães , afora outros muitos fidalgos honrados e caualey-
ros ; e o reílante da gente íeguio ao gouernador , que erao
capitães de fulhs , e catures. O gouernador mandou que
todos os catures, e fuftas foíTem deíemmaftreados , e a gen-
te pofta em baixo por caufa dos tiros, e do vento que era da
terra , no que ouue tanta detença , que quando o gouerna-
dor íc abalou^, ja rompia a menham , que aparecendo os
três eíquadroés poftos em ordem derao de íy huma fermo-
fa e^temerofa vifta ; mas os que hião co gouernador fe pu-
ferão diante remando com a mayor prefla que podiao, por
fugirem aos pilouro? , que dos parcos , e da tranqueira vi-
nhão em tanta cantidade , que não auia íenão cerrar os
olhos , encomendar a Deos , e tomar o nome de JESVS na
boca, efperando cada hum quando lhe auia de tocar algum
que lhe tiralle a vida, e aíly quando os noííos chegarão aos
paraos ja leuauao alguns morros e feridos : os primeiros
que chegarão foraõ loao poufado , Fero loríe , loaó leitão,
c Martim de freitas , que hiaõ em. carures de Parcaa , que
cra6 baixos , e como os paraos dos inimigos eraõ altos , os
Part, L Nn noaos
^82 Prímevra Parte da Chtonlca
noíTos nao puderao fubir a elles , e os mouros de cima os
trataiiao niuyro mal com frechas , ezargunchos darremeí*
fo , mas tnmbem os nolTos com as lanças , e efpingardas
Jhe faziao muito danno : o lono poufado , que fora o pri-
meiro que chegara , querendo também fer o primeiro que
entr.^ííe cos mouros , como era homem grande , e de muy-
tas forças , tanto trabalhou, que lubio em hum parao com
huma efpada diambas as mãos, e fendo em cima arremeteo
aos mouros , e os fez afaílar de maneyra que tiueraó tem-
po de fubir até vinte homens, onde todos foraÓ feridos pol-
los muytos mouros , que acudiao dos outros paraos , que
como viiífe eílsuao todos abordados huns cos outros; mas
chegjndo a eíle tempo algumas fuftas e bateis , que acharão
a entrada defembaracada , íubiraô acima até duzentos ho-
mens, e apertarão os mouros de maneira, que os fízeraô re-
colher detraz dos entulhos e tranqueiras, que tinhão feitas
nos feus paraos, onde fe defendiao tão brauamente, que os
noííos tiueraô muito trabalho j porem Pêro loríe entrou
com elles , e acertando de cair acudirão fobre elle muytos
mouros, mas após elle entrarão Gomez freire , c loao pou-
íado, que fe meteo tanto antre os mouros, que o Pêro joríe
fe pôs em pé, e co loao poufado íe liarão tantos que o der-
rubarão , e lhe tomarão das mãos a efpada , ao que acudin-
do Pêro joríe , Ruy gonçalues que fora capitão da orde-
nançi , Pêro velho , António dazeuedo , e Nuno fernan-
dez freyre , o tirarão das mãos dos inimigos ; e aíTy eíles
como os outros, que entrarão nos paraos , forao correndo
por elles pelejando com tanto animo, que os mouros fe
começarão a lançar ao mar polias popas dos paraos , fu-
gindo para a terra, O gouernador vendo entrados os noí-
íos nos paraos , e o esforço com que pelejauão , mandou
remar para terra com muyta preíla, e chegando a borda d'a-
goa os noíTos nauios começarão a tirar contfa as eftan-
cias , onde os pilouros, que acertauão , faziao muyto dano
poreílirem os mouros muyto juntos. Também os catures
e fuftis, donde fairaõ os noíTos que entrarão nos paraos ,
jiravâo cos berços aos mouros , que deciao da tranqueira
polia
dei Rey Dom João o III. 2 S3
polia ribanceira abaixo , com que mataiiao e feriao muy-
tos ; porem elles eraô tantos que nlío fe lhe enxergaua fal-
ta. Dom Simão chegando a terra com a fua companhia co-
meçou logo a deíembarcar, inda que com muyto trabalho,
porque arrebentaua aly o mar muyto , onde acudirão logo
grande cantidade de mouros a defenderlhe a deíembarca-
çâo ; porem como os noííos começarão a íaltar cm terra ,
de que o primeyro foy Gomez martiz de Jemos , e a pós
clle Aires da íiiua , Fernão Gomez de lemos , e Jerónimo
de foufa , fizerao logo ífaílar os mouros da praya , com
que dom Simão com a mais gente teue lugar para defem-
barcar ; porem forão tantos os mouros que enrao aly acu-
dirão , que os noílos pelejauao cos peis n'agoa: a cila hora
chegando o gouernador , que deíembarcara com a bandei-
ra real , derao os noíTos nosinimiigos com tanto Ímpeto ,
que fe começarão a reíirar para a tranqueira ; o que vendo
o gouernador , mandou tocar as trombetas , e animando a
gente com palavras de muito esforço , apertou tanto cos
mouros, que os fez meter da tranqueira para dentro, onde
ledefendiaõ de maneira queosnaô podiaÕ entrar. Alguns
dos marinheiros das noílas fuftas paflando entaõ pollos pa-
raos dos mouros , que ja eftauaõ deíembaraçados , faltarão
em terra com lanças de fogo, e panellas de poluora, e che-
gando neíla conjunção onde os noílos pelejauao as lança-
rão nos inimigos, que também forao de grandiílimo eíícito.
Pêro mazcarenhas nefte tempo não eftaua ocioío , que clic-
gando a terra co feu eíquadrao lhe matarão ao defembar-
car onze homens , e ferirão outros muytos , caulado da m.á
dcíembarcaçao por arrebentar o mar aly muito , com que
os homens deíembarcauao molhados , e mergulhados por
baixo d'agoa , onde também fe afogarão alguns j cem tudo
faindo cm terra por meyo deftes inconuenientcs , de que o
primeiro foy lorfe cabral , forão tantos os mouros lobre
elles, que das mãos lhe toinauao as lanças afora infinidade
de frechas quedecião da ribanceira ; porem fendo em ter-
ra dos noílos até cincoenta , logo fizerao af:iPiar os mou-^
los , com que toda a genre acabou de delcmbarcar , ondo.
Kfl 2 Fero
2^4 Primeyra Parte da Chronica
Pêro mazcarerihas poflo na dicinceyra com lorfe cabra! •,'
dom loríb de noronh i, António dazevedo, Antáo noguey-
ra , Diogo de-miranda , Simão de miranda leu irmão , Pc-
ro da íilua , e outros esforçados Toldados , vendo os pa-
raos dos mouros ja tomados, e o gouernador em terra , co-
brarão tanto animo , que forao dar nos mouros com. gran-
diíTiina íaria ; mas ainda que os esforços eraõ grandes , as
forças não eraõ baílantes a rcíiilira tanto num.ero de inimi-
gos quantos pelejauao com elles ; porem acudindolhe en-
tão i^lguns dos nofíoR , que delembarcarnó dos paraos , e
outros com panellas de poluora , logo foraõ leuando os
mouros polia ribanceira acima ate os m.eterem dentro na
tranqueira , com que ja cílaua- pegada a gente do gouerna-
dor : mas como a tranqueira era alta , de gtolla madeira ,
entulhada por dentro , e muytos os mouros que a defen-
diao , ouue aquy hu<na briga aflaz trauada , com mortos e
feridos de ambas as partes ; e porque aly perto da tran-
queira auia nãos e zambucos , que eílauao varados em ter-
ra , mandou o gouernador a dom Simaò com duzentos lio-
mes que lhe íoíTem por o fogo , o que elle não pode fazer,
porque os nauios eílauao de dentro , e na tranqueira auia
grandiíFima cantidade de m.ouros que os dcfendiao esfor-
çadamente j mas quiz noíTo Senhor dar tanta força a hum
Duarte diniz, que lançando huma roca de fogo pegou num
zambuco velho que eftava cuberto com ola , cm que íe
ateou de maneyra que daly paílou a todos os outros na-
uios, e tomou tamanha força por íer o vento da terra, que
nao podendo os mouros íofrer a grande quentura delle le
afaílaraó da tranqueira , com a qual os noíTos eílauao cm-
parados da mefma quentura ; e os mouros entaô carrega-
rão ha parte onde pelejaua o efquadrao de Pcro mazcarc-
nhas , onde acudindo Jogo o governador com toda a gen-
te fe acendeo a peleja em mayor fúria, porque os mouros
je defendião com muito esforço, onde aiguns dos noíTos /e
íinalarão grandemente ; ehum valerofo íoldado chamado
Artur ferreyra teue modo co que íubio na tranqueira , e a-
jpós elle António de lemoSjC outros , que fizerao afaftaros
mouros
delRey Dom João o III. 285'
mouro?, com que ouue lugar para entrarem multo?, qne lo-
go desfizcrao grande parte da tranqueira, por onde enircu
a bandcyra real com toda a mais gente, e os noííos com mui-
tas gritas derao nos mouros com ranto impeio , que llie fi-
zerão de todo voltar as coftas , ficando aly muytos delies
mortos e feridos : aquy começarão os noilos a íe deímjm-
dar e feguir traz os mouros íem ninhuma ordem , que de
quando em quando faziaó algumas voltas , de que os noi-
los reccbiaÓ dano , a que o gouernador acudio com man-
dar fazer final a recolher ; porem a gente hia taô embebi-
da no alcance , que o nao ouuio , e não deixaua de ir por
diante , de que o governador aílaz agaílado mandou dom
Simaó, Pêro m.azcarenhas , Franciíco pereira peílana ,
loão de melo , e Fernão gomez de lemos que foflem re-
colher a gente , o que elles muyto difficultoíamente pude-
rão fazer nem has knçadas ; onde acontecso que dom Si-
mão por íazer recolher Simão de miranda o ferio com a
lança de maneira que eíteve em rilco de perder a vida , ao-
que acudio Diogo de miranda feu irm.ao , c outros fidalgos
ícus amigos, que íc queixarão com dom Simão de maneyra
que o começauão ja a tomar mal huns e outros , a que dont
Simão achandoííc culpado não daua outra defcarga fenao
que o fizera por defaftre ; porem chegando aquy o gover-
nador os meteo em paz , e mandou embarcar SimaÕ de mi-
randa na lua galeota, onde foy muito bem curado , e deu a
leu irmão hum catur em que o leuou a Cochim, O gouer-
jiador eíleve deuagar na tranqueyra armando alguns caua-^
Icyros , e porque ainda aparecião os mouros de quando
em quando , afora mandar pôr os eípingardeyros em goar-
da , mandou concertar alguns tiros com que os fazia afaf-
tar- Após iílo m.indou recolher toda a artilharia da tran-
queyra , grofía e miúda , que paííauao de cem peç.is , totia
de ferro , c de camará , de que a mayor parte mandou lan-
çir no mar, porque não leruia para os noilos nsuios. M:n-
dou também tirar para o mar trinta e oito paraos, que eíla-
uão faôs , e aos outros manlou pôr o fogo ; c como aqty
ííão auia maib que fazer , mandando embarcar toda a g-nte
dian-
226 Primeyra Parte da Clironica
diante , fe ficou elle em terra com íós trezentos homens , e
os feridos niandou leuar nos nauios grandes, que palTauao
de duzentos , huns mais outros menos , e os mortos paíTa-
rão de trinta, todos da artilharia quando deíembarcauao;
elle então com a íua gente poíta em ordem deceo da tran-
queira a íe embarcar nas fuíins , que cílauão chegadas a ter-
ra com artilharia preftes ; porem os mouros que não eíta-
uão defcuidados , vendoo decer, acudirão muytos fobrc el-
les com infinitos tiros de frechas e efpingardas ; mas a ar-
tilharia das fu(l.ís os fez fugir fem oufarem mais aparecer;
com tudo não deixauao de fazer muytos tiros perdidos, que
inda fazião algum dano aos noíTos , por quanto por caufa
do mao jazigo, que aly fazia o mar, foy a embarcação muj-
to vagaroía.
CAPITULO LXXIIIT.
O governador dejpede dom Simaõ por capitão mor da cofia ;
vayffc a Cav.anor e je ue com el licy. Dom Sirnao entra no
rio de Bracelor , queima vinte par aos de mouros ^ e faquea
o Iwyar , peleja dejpois com outros àncoenta par aos ; e a
que ^Ihe Jocede, Os mouros daÕ a morte a oito FortuguefeSy
que ejiao em hum batel.
T3 Ecolhldo o gouernador na armada com toda a gente,
X\ e afaftado para o mar , foy num catur vifitar todos os
feridos que eftauao nos navios grandes , e os mandou pro-
uer de tudo o neceílario , e ordenou dom Simão para ca-
pitão mor da cofta com huma galé , cinco galeotas , e até
trinta vellas de remo, em que entrauão algumas fuílas dos
mouros , que crão muyto boas , e nefta armada coatro
centos homens , os mais delles efpingardeyros , e lhe man-
dou que folTe correr a cofta , e entraíTe cm todos os rios ,
e onde achaíle mouros e paraos feus lhes fízeíTe todo mal
que pudeíTe. E porque daly a Cananor era perto , mandou
lá alguns homens dos muyto feridos a curarle , dos quais
íabida a noua do desbarato deíles paraos , foy para os noí-
íos
dei Rey Dom João o III. 287
fos de tanta alegria e contentamento, quanto pnra os inou-
ros de fenrimento e deigoílo. Deípachado dom Simuo com
a fua annaia , querendo o governador fjzerfe á vella para
Cochim, lhe chegou huma almadia de Cananor com recado
de Eitor da íiiueyra, que cumpria muyco ao íerviço delRey
nollo Senhor, e credito daquellc ellado, ir a aqueila forta-
leza dar moftra de íy a elRey, porque osmouros lhe tinhão
metido em cabeça , c efpalhado por toda a terra , que os
noíTos foráo desbaratados , e eiie com muita gente morta
fe fora fugindo para o mar, e a que íicafa toda eílaua fe-
rida , eqae dom Simão nao hia a outra coufa fenao a buf-
car arroz, c não leuaua comíigo cem homens , e que da
volta auia de recolher toda a gente da fortaleza de Cale-
cut, e leualla a Cochim , porque ja não hauia Portugueíes
para a poderem defender. O gouernador, parecendolhe efta
ida de muita importância, íe foy logo a Cananor, onde dei-
embarcando co deuido recebimento foy villtado logo del-
Rey, dandolhe os parabéns da íua vitoria, que ao outro dia
polia menham Jhos iria dar em peíToa , porque defejaua
inuyto de o ver.- ao que o gouernador relpondeo como era
rezio , e fe fez preftes para a fua vinda. Ao outro dia polia
menham vierao homens da terra , que armarão para elRey
huma cafa junto da fortaleza com panos de Cambaya pin-
tados , e nella fizerão hum cftrado de terra a modo de bai-
léu , e o barrarão todo com boíla de vaca , c o mefmo fi-
zerão a toda a cafa : c aly veyo logo ter elRcy adentado
num rico andor , acompanhado de muytos naires com íuas
armas , com que vinhao eígrimindo pollo caminho dando
muytas gritas ,e rangendo alguns bárbaros eftromentos a
feu modo , e defpois de eftar na cafa íahio o gouernador da
fortaleza , acompanhado de todos os fidalgos bem atauia-
dos , e eIRey o veyo receber fora , e feitas as deuidae eor-
tefias o leuou comfigo polia mão , e íe aíTcntarão ambos
juntos no eítrado , onde eftiuerão praticando algum eípa-
ço , e elRey lhe deu por ly os parabés da vitoria de Cou-
Icte , e que íe nore leuaria muyto goílo de clle caílir.(r da-
quclla iUdneyra os ladroes, que andauáo pollo mar em dcf-.
fer?;.
2^8 Píimeyra Parte da Chronica
ferviço deiRey de Portugal íeu irmão, e do? íeus governa-
dores da índia ; a que o gouernador, defpois de lhe dar as
deuidas graças por aquella boa vontade , Jhe diííe que cm
eílremo finrira faber que em Coíilete eílauao mouros de
Cananor, que lhe pidia por merce^ como a bom irmão dei»
Rey de Portugal, que o não confentifTe, c que os mouros do
feu re}''no , que aniilTem em companhia daquelles coíTay-
ro?, os mandalTe calligar como elles mereciâo, e era rezão,
€ mandafíe também que em todo íeu reino não ouucíTe pa-
rao armado , e os que ouueííe os mandaíTe queimar ; a que
elRey reípondeo, que elle proueria niíTo como tbíTe rezao,
c que fe algum parao do íeu reyno foUe achado no mar de
mao titulo , leuaria muito goílo de o fazerem queimar
com quanta gente tiveíTe dentro. x\pós eílas praticas oíFc-
receo elPvey ao gouernador hum colar de pedraria de mui-
to preço , e muitos panos brancos ricos , que elle le efcu»
íaua de aceitar , e deu moftras de o querer leuar auante,
dando por rezáo que linha a condição differente de outros
goucrnadores ; ao que elRey lhe diíTe que bem entendia ,
que cada hum tinha fua condição, mas que os Reis daquel-
la terra tinhâo por cuftume dar daquella maneyra final de
amizade; aquy acudirão também os fidalgos, e dilTerao ao
gouernador que era injuria que fazia a ciRcy , fegundo o
íeu coftume, engeitarlhe o que lhe daua, e então o aceitou,
e fe defpedirão com muytos comprimentos e palauras de
iTJuyta amizade. Ao outro dia fe embarcou o gouernador ,
e íe foy a Cochim , onde fendo recebido com grandes
fcftas e aparatos , moílrou diíTo pouco goílo , dizendo que
crâo coufas empreftadas , que fe acabauão muyto depref-
la ; a que os fidalgos lhe refponderao, que aquellas honras
e aparatos erao coufas deuidas ao que reprefentaua aquel-
le cargo por honra de Portugal , e por iíTo as deuia de acei-
tar de boa vontade , e agradecellas ; porem elle não tomou
bem cftc coníelho, porque íofria mal cuidar ninguém que
o podia aconíelhar. PaíTando dom Simáo com a fua armada
por Cananor, faluou a fortaleza com a artilharia , e por-
que não quiz ir a terra, lhe mandouEitor da íilueira ao mar
muyto
dcIPvCy Dom Toao o líí. 2?,p
múyto refrefco , e avifalloquc no rio de Eracelor cíl;iuao
vinte paraos da comp:;nhia dos que vierao de Cambava ,
onde fe acolherão coin medo da noíTa arniada : dom Snnío
os foy logo bufcar , e entrando no rio com rodas as em-
barcações íem contradição alguma , achou os paraos me-
tidos por huns eíleiros alagados, cuhertos de vafa , que
com muyto trabalho tirou fora , e os queim-ou, porque não
Tinhão mais que os cafcos ; e não contente com ifto deu no
lugar , onde queimou muytos zambucos , e tomou muvto
arroz e ferro com que aiaílrou os íeus nauios , e pondo fo-
go ao lugar , fc fahio afora , e corrco até Baricalá , e de ca-
minho tomou muytas embarcações pequenas carregadas
darroz , com que carregou os feus nauioíí. Partindo de Ba-
ticalá, íendo tanto auantc como o monte Delv , deu de
fupito com cincoenta paraos que fe ajuntarão por muytos
rios , e hião carregar de arroz , os quais em vendo a nolTa
armada fe puferao logo em fugida , confiados na vella c no
remo , a que os noíTos forao dando caça , e dom Simão na
galé , António da íiliui na galeota , António fernandez eni
hum bargantim , ê António pefloa cm huma fuda fe forao
trás huma cantidade delles , que fe hiao demandar a terra ,
tratando (ó de faluarem as vidas ; porem os noííos os aper-
tarão tanto com a artilharia , que fete deIJes fizerao varar
em terra , para onde fugio roda a gente , deixando os pa-
raos arrombados pollos fundos , com que logo fe enche-
rão de agoa, e outros a que chegarão os tiros lhe derru-
barão os raafcros e as vergas , que caindo fobre os íolda-
dados , e íobre os remeyos, todos fe lançarão ao mar : vin-
te deftes paraos fe acolherão ao rio de Marabia , c outros
fe forão na volta do mar , após os quais íe foi a nofla ar-
mada , mas como hia m,uyto abolumada com a carga , e os
paraos deípejados e leues , muito depreíla fe forao alar-
gando dos noífos , com que dom Simão Çc tornou ao rio, e
na barra íurgirão os nauios grandes ; porem os capit.ies
delles metidos nos bateis bem efquipados e com boa gen-
te, em companhia das galeotas, barg;;ntins e catures, forao
demandar o rio reruando quanto podião , mas começando
Fart, L Oo a en-
2()o Primeyra Parte da Clironica
a entrar por elle , que era.cftrcyto na entrada , acudirão
logo muytos mouros por ambas as bandas , que da terra
coíTi frechaj;, efpingardas, e muyta canridade de pedras tra-
tnuao muyto mal es ncíTos , que também com a noíTa arti-
lharia lhe faziao muyro danno: os parcos dos mouros, que
liião pollo rioj duma parte e doutra hião varando na terra,
a que os mouros acudirão a defendellos com efpingardas ,
frechas , e muyras pedras ; porem os nolTos rompendo por
tudo, chegando a clles lhe deitavao pancllas e rocas
de fogo , que logo fe acendia nellcs , íem os mouros ou-
farem de o ir apagar. Nefte tempo hum Domingos fer-
nandes dalcunha o Rume, que hia por capitão de hum bar-
gantim , fe meteo pollo rio dentro após huns paraos , que
hião fugindo , e tirandoihc com a artilharia os fazia todos
dar ha coíla; dom Simão receofo que lhe aconteceíFe algum
defaftre , porque hia fó , mandou Gomez martís de lemos ,
que Ília num eíquife com oito homens , que o íizelTe tor-
nar ; Gomez martís fe foi logo trás elle, e como não podia
remar tanto como o barganrim, e a maré vazaua, foy enca-
lhar íobre huma pedra , donde íe nao pode fsir por mais
que trabalhou ; aquy acudirão tantos mouros fobre elle
dambas as partes do rio , que has frechadas os matarão a
todos antes que Domingos fernandes tornaíle , e quando
tornou ja os vio iodos morros; mas nao pode chegar onde
o eíquife eftaua por vazar a maré com muyto impeto ; no
qual efquife m.orrerao dom Fernando de lima , c Artur de
craílo, fidalgos honrados. Dom Simão e todos os d'armada
íinti/rão grandiíiimamente eíla deíauentura , e particular-
mente polia perda de Gomez raartíz de lemos, que era hum
fidalgo de muita conta , de grande animo , e muyro bem
quifto de rodos: c tanto que ouue conjunção de maré, An-
tónio fernandes, e António pcíToa por mandado de dom Si-
mão forâo em buíqua do efquife , onde acharão os corpos
todos nus derpojados das armas c do mais que tinhao , e
trazendoos comíigo os amortalharão, e Icuarao a Cananor,
onde Eytor da íilueyra os foy receber ao cais com toda a
gente e muyta cera , e os íacerdotes que aly aula , e os fes
enterrar com toda a foienidade poíTiuel. CA- ^
delRey Dom Jcao o IÍL 25)1
CAPITULO LXXV.
Dom Simaõ chega a Cananor com toda a armada \ vay cor-
rer a cojia : proue a fortaleza àe Calecut ; toma alguns
nau i os de mouros. A dom João de Uma chega focar r o • clle
defpeja a fortaleza de toda a gente que não pode pelejar*
AO outro dia chegou dom Simão a Cananor com roda
a armada , e íe mandou queixar a el Rey do favor e
ajuda que os feus no rio de Marabia derao aos coííayros ,
que pclejauão contra os noííos , de que elRey íe moílrou
jnuyto fentido, c mandou lá o íeu goazil, que Fez juíliça de
muytos do pouo, e aos principaes da terra tomou as fazen-
das, que foy hum grande caíligo conforme ao feu cuílume.
lEytor da Silueira aduertio então a dom Simão , que o ma-
yor feruiqo , que naquelle tempo podia fazer a elRey , era
sondar polia coíla até o inucrno íbr cerrado , tolhendo o ar-
roz que coílumava vir a Calecut , de que então nelle suia
grande falta; porque auendo fome ancre os mouros daquel-
la terra, não poderia auer nella gente para a guerra que fe
cíneraua que fizeíTem aaquella fortaleza. Dom Simão fe
partio logo deitando fama que íe kia para Cochim , por
íer ja então no mes de Mayo , e de dia fe foy ao longo da
coda , e chegando a Calecut meteo na fortaleza muyto
arroz, manteiga, e peixe íeco, e da fua gente meteo cento
e vinte homens dos fomenos da armada quafi por foiça,
pollo receyo que tinhao da guerra que fc forpeitaua auer
no inuerno , de que fe efperauao grandes trabalhos e peri-
gos. A efles homens ficou quanto mantimento puderao re-
colher, porque a cada hum dclles íe daua licença para me-
ter em fua caía quantos fardos de arroz quilelTe : ficou
também na fortaleza de chumbo , poiuora , pilouros ,
carrilharia quanto dom loão quiz. O qual ordenou de a
deípejar de todas as molheres o mininos , fem ficarem nel-
Ja mais que vinte molheres para íeruiço dos doentes , e fe-
tenta eícrauos, homens que podiao pelejar: para eífa gente,
que auia de íair da fortaleza , deu dom Simão â dom loão
Oo 2 duas
291 Piimeyra Parte da Chronlca
du3s fuílas grandes , e lhe cilíle que elle aui:i de fazer ou-
tra volta até Baricala , que quando tornaíJe a leuaria com-
íigo , que eiKre ranro a íizefle embarcar ; e para fua guar-
da llie deiAOU hum nauia , que as acompanhaííe até a íua
vinda •, e feito ha veiia na derrota deCochim , correndo â
cofta de maneyra que foííe vifto de terra , foy íurgir no rio
de Cranganor , que hc cinco legoas de Cochim ; e como
fo/ noite íe fez outra vez ha vella na volta do mar lar-
go , porque náo videm da terra para onde fazia o cami-
nho ; e porque ja então auia muytaschuuas de trouoadas,
que lhe dauao cada tarde , e os tempos erao mortos , não
pode topísar mais que até os ilheos de íanta Maria , onde
tomou huns zambucos velhos, que alguns mouros dos rios
carregarão darroz , e íe auenturarão a ir com elle a vender
a Calecut polia muyta valia que lá tinha , que foy caufa de
morrer ha fome muyta gente da raiuda, que náo tinha com-
que o comprar. Dom Simão deípois de fazer deípejar os
zambucos , e porlhe o fogo , fazendo feu caminho , junto
do monre Dely foy dar huma ante menha com doze paraos
e oito pagueres de remo , que hiáo buícar arroz , e efta-
uão furtos ao longo da terra por terem o vento con-
trario , muyto leguros e deícuidados , por lhes parecer
que dom Simão era ja recolhido em Cochim. Os mouros-
em auenio íentimento da noíTa armada , cheyos de medo,
e de efpanto , cortarão as amarras com muyta preíla , e
ha velia e a remo fe foráo fugindo quanto podião ; porem
delles os que erao menos ligeiros , eque os noííos hiao al-
cançando , hião varar na coíla , onde fe pcrdiao ; a noHa
armada indo dando eíia caça paííou por diante de Cana-
nor, de que os mouros ficarão aíTaz efpantados, porque ti-
nhão para íy que era ja recolhida ; ella com tudo não dei-
xou de ir trás os paraos até os enfecar , que íe íorao a co-
lhendo pollos rios até Panane. Dom Simão então tornou a
fazer volta para a coíla, para que os mouros o vifíem , com
que ninhum ouue que oufalTe de fe ajuntar a ir buícar ar-
roz ; e fendo noite , com huma trouoada que lhe deu de
muyto vento, lhe foy forçado fazerfe na volta de Cochim,
onde
dei Rey Dom João o III. 253
onde entrou com toda a armada, mas com aíTaz de trabalho,
por íer o tempo rijo , que era ja a vinte dias de Mayo.
Dom loaõ de lima, vendo que dom Simão naõ tornaua , e
qae vinha entrando o inuerno , embarcou nas duas fuílas,
que liie ficaráo, todas as rnolheres , mininos, e mais gente,
que nao teruia para a guerra para os mandar a Cochim ,
mas nao ouíaua, receando que de algum rio íaiííc algum pa-
rao que os tomalTe ; porem n^eíla conjunção chegou de Co-
cliim hum catur , que o gouernadcr mandou com proui-
mento* de poíuora e chumbo, cm que vinhaó dom Chri-
llouaõ de lima, irmaô de dom loão , e Lionel de lima leu
primo, com doze homens fidalgos íeus parente?, que foraó
ajudalio na guerra queefperaua, nao fomente cem licença
do gouernador , mas com lhe dar muytas graças por iílo ;
cuja vinda afly em dom loao, como em toda a mais gente-
da fortaleza , cauíou grandiílimo aluoroço por icrem ellcs
todos homens de muyto reípeito , e em companhia defte
catur mandou dom loão as duas fuílas, em que liiao as rno-
lheres e a mais gente , que forSo a faluamento a Cochim.
Aqui foy também todo o fato quanto auia na fortaleza,
fem ficar nella mais que aquelle , que os homens naÕ po-
diaó efcufar , e com todo efte dcfpejo de gente inda fica-
rão na fortaleza perto de trezentas pelToas.
CAPITULO LXXVI.
D.aJJe conta do dote que elRey nojjo Jenhor deu hã Ifante
dona l(abelfua irmavã co Empcraâor Carlos ; das arras
que elle lhe deu ^ e do que lhe deu para jujientaçaÕ de jua
cafa e pejfoa.
DEfpoIs que clRey noíTo fcnhor acabou de concluir
de todo o feu calamento em Caílella com a Ramiia
dona Caterina noíTa íenhora , irmã do Eraperador Carlos
quinto deíle nome, e fendo ella recolhida neíle reyno, que
foy o anno paíTado de 1524, logo S. A. aíly polio muyto
amor que tinha ha Ifante dona Ilabel íua irmã^ como pollo.
uiuyiQ
2 94 Prlmeyra Parte da Chonica
muyto que lha cncílmeadara elR^y dom Manoel feii pa^f
na hor.i que paíTou ha outra vida , logo começou a tratar
em CiftelUdo íeu cafamento co mefmo Emperador Car-
los quinto , nouamente eleyto Rei dos Romanos, que foi
no anno feguiate de i^i^*, o qual fendo concluído com
grande aplaufo e contentamento d'ambos os reinos , logo
por ambas as partes fe ordenarão procuradores, que trataí-
íem dos concertos que erao ncceíTarios para íe eífjiruar o
cafamento, e principalmente do dote ; para o que S. A,
nomeou por fua parte dom António de noronha íeu jírimo
e leu efcriuao da puridade , e Pêro correa do ícu conlciho,*
e o Emperador nomeou polia fua Carlos popeto moníiour
de la chaulx do feu tonfelhoeíeu camareyro, c loaodeçu-
nhiga caualeyro da ordem de Santiago, que mandou a efte
reyno por feus embaixadores. Eíles coatro procuradores
fe juntarão na villa de Torres nouas , onde então eftaua
S. A. , e moítrarão huns aos outros fuás b^ílantes procura-
ções •, a delRey noíTo fenhor feita na mefma villa por An-
tónio carneiro ícu fecrctario , e afsinada por S. A. aos féis
dias do mes de oitubro do mefmo anno de 1525' , e fellada
CO fello pendente de chumbo ; e a do Emperador feita era
lingoa latina na cidade de Toledo no mefmo anno aos
dous dias no mefmo mes de oitubro , e no feifto anno do'
feu reynado do reyno Romano, e no nono do feu reynado
dos outros reynos , aílinada por elle e corroborada co fea
íello , e tresladada na noíla lingoa Portuguefa , nas quais
procurações elRey noíTo íenhor e o Emperador dauão a
eftes fcus procuradores todos feus poderes para tratarem
daquclle cafamento , a(íy no que cumpria ao dote da
Ifante, como a rodas as outras coufas importantes ao elfeito
delle: c tudo o que elles fizeíTem auiao por firme e va-
lioío , e fe obrigauão ao cumprir e guardar fem contra-
dição de ninhuma das partes , com todas as feguranças
que para iíTo parecerão neceíTarias. Os coatro procurado-
res difcutindo bem o negocio fe vierao a refoluer por co-
mum confentimento de todos, que o Emperador mandaífe
trazer ha íui cuíla a deípiníaçio do Papa para fe effei-
tuar
dei Rey Dom João o III. ipj*
tuar o cafamento, e que clRcy noíTo íenhor mandaria a
Ifantc fua irmam até hum dos lugare? da arraya, antre cíles
reynos e o de CaílelU,ou á cidade d'Eiuas, ou ás villas de
Serpa e Moura , qual o Emperador cicolheíie , até o u ti-
mo do mes de nouembro leguinte , vindo a deípenlacao
deníro neíle tempo; e que S. A. daria em dote ha Ifanre fua
irmam novecentas mil dobras douro Caíleliuinns , de pre-
ço de trezentos e íeííenta e cinco raarauedis por dobra , e
que no numero deite dote entrariaò vinte e três mil e leí-
lenta e íeis dobras do dito preço , que valiao es oito con-
tos noue centos e oitenta mil e tantos reis , que a melma
Ifante erdara por raorle da Rainha dona Maria íua may ,
por qualquer via que foíTe , c também fedeícontariaõ do
roefmo dote cento e íeílenta e cinco mil e duzentas e trin-
ta e duas dobras do dito preço, e dezaíleis marauedis , que
o Emperador deuia aElRey iioíío fenhor para compri-
mento das duzentas mil dobras do dito preço que lhe fo-
rão dadas em dote com a Rainha dona Caterina nofía fe-
nhora fua molher , irmam do mefmo Emperador , e afíj
mais cincoenta e huma mil trezentas e feflenta e noue do-
bras do dito preço , e trezentos e quinze marauedis , que
valiao cincoenta mil cruzados douro , de preço de quatro
centos reis o cruzado, que o Emperador deuia a elRty noiTo
íenhor, por outros tantos que elRey èom Manoel leu pay
lhe empreitara no tempo das comunidades de Caílella : e
o reítante do dito dote íe pagaria em diuerfos tempos , em
diueríos lugares , e por diuerías maneyras , como larga-
mente íe contem na efcretura do dote, que fez o fecretario
António carneyro, com outras particularidades in-portan-
tes ao negocio que íe trataua. Os procuradores do Empe-
rador prometerão cm íeu nome ha Ifante trezentas mil do-
bras de arras douro Caílelhanas, do meímo preço de tre-
zentos feílenta e cinco marauides por dobra , e p^^ra fu-
ítentaçaõ de fua peíloa e cafa outras corenta mil dobras do
mefmo preço , síTentadas em rendas de cidades e vill.is , de
que ella feria fenhora abíoluta , que para iíío logo hipote-
carão. Concluido o contrato do dote cora aprazimento de
todos
2^6 Primeyra Parte da Chronica
todos os coatro procuradores , logo ao outro dia fcguínfe^
que torao dezoito de oitubro , foraõ dar conta do que ti-
nha') feito a íua Alteza, que os efperou em cafa da Rainha,
acompanhado delia, e da Ifante lua irmam; c fendoihe lido
o contrato pollo íecretario Anronio carneyro , jurou aos
fantos Euangelhos e ao final da cruz , em que pôs a fua
mao direyta, que cumpriria e guardaria tudo quanto pa-
ra bem do dito contrato era obrigado a jurar , e lhe a elle
cumpriíTe fazer ; c também no mefmo dia a Ifante dona
Ifabel em preíença dos procuradores do Empcrador em
mãos de dom Fernando de vaíconcellos, bifpo que então
era de Lamego , fez o juramento fobrc os fantos Euange-
Ihos e final da Cruz, em que pôs a íua mão direita, que era
obrigada a fazer para bem do dito contrato , e poUa meí-
ma maneyra os procuradores do Emperador cm mão do
mefmo biípo de Lamego fizerao outro tal juramento, co-
mo para bem do dito contrato erao obrigados fazer; c neí-
tc meímo dia , deípois de ferem feitos eítes juramentos de
ambas as partes , os embaixadores e procuradores do Em-
perador diíTerao, que elles por virtude do poder e manda-
do eípscial feu que tinhao , em íeu nome acrefcentauaõ has
corenta mil dobras, que no contrato do dote eraõ declara-
das ha Ifante para fua caía e peíloa, mais dez mil dobras
d'ouro Caílelhanas de preço dos mefmos trezentos íeííenta
e cinco marauedis cada anno, que lhe feriaó aíTentadas nas
rendas do almoxarifado da cidade de Seuilha , em tal ma-
neira que lhe foíTem bem pagas , com que a Ifante ouueíle
cada anno cincoenta mil dobras , e que cilas dez mil do-
bras, que nouamente lhe outorgauao, foílem da meíma raa-
ncyra , e com as próprias caiidades, com que tinhao outor-
gadas as outras corenta mil dobras conteudas no contrato ;
e a Ifante, que a tudo eftaua prefcnte, o aceytou da maney-
ra que pollos embaixadores c procuradores do Empera-
dor foy prometido e outorgado, os quais aííinarao na nota
que fez o íecretario António carneyro , da qual cfte dote
foy tirado de verbo ad verbum, e le deixarão de por aquy
outras muytas miudezas c particularidades, que na eícritu-
ra
dei Rey Dom João o III. 197
f?. aula, por parecerem impertinentes a noíTo propcnto •, e
fe não puícrão mais couías, que as que parecco que fe na6
podiaó eícuíar. Sendo iílo aííy concluído, logo íua Alteza
fe paíTou com toda a corte da villa de Torres nouas para a
de Almeirim , por lhe parecer lugar mais apropriado para
fe dar o deíejado effeito a efte taõ celebre deipoíorio.
CAPITULO LXXVÍI.
António âe hrtto capitão de Maluco defpacha Martim Âjon-
fo de mtlojuj arte para Malaca , e o que jaz em Banda ;
chega aly dom Garcia anriquez ; vão ambos fazer guerra,
ha ilha de Lotir , e o que lhe jticede. ElRey de Bintao man-
da hunia armada contra Malaca \ fae Manoel de foufa.
capitão mor daquelle mar a pelejar com ella , e o jucefjo
que tem, Laquexemenafaltea o Cal are ar ^ he [ocorrido de
Malaca , c o quejucede.
A Guerra de que atrás hca feita menção, que António de
brito capitão de Maluco tinha com ElRey de Tidore,
foy continuando í-^mpre íem ceíTar, ena entrada do mes de
Janeyro dcíle anno de lyr.y defpachou António de brito
Martim Afonío de melojuíarte para ira Malaca em h.um
galeão que elle concertara ha Tua cufta , e carregara de
crauo , e cm fua companhia mandou coatro juncos delRey
e de partes carregados também de crauo. Partido Martim
Aíonío foy ter a Banda , onde íabendo os da terra que era
clle o que lhes fizera a guerra , íe puferão em armas con-
tra elle , e o tratarão como inimigo ; e tendo clle por no-
uas, que em outra ilha de Banda eííava hum junco de Pata-
ne com que Malaca tinha guerra , íe íby lá no galeão com
tenção de o íaquear , e porlhe o fogo ; chegando ao junco
o vio tão alterofo a rcfpeíto do íeu galeão , e com tanta
gcnrc , que deíefperado de o pcder abalroar para pelejar
com clle , mandou por nas gaucas do galeão íaquireis de
pano podre cheyos de poluora , lanças em rocas de fogo ,
e paníilas de poluora , tudo com murroes accíos , e a
Pari, L Pp. vinte
98
Primeyra Parte da Chronica
vinte homens, que leiíaua com íuas efping.irdas, pôs de ma«
neyra , que eíliuelTe;n rcrguardados dos tires de arremeíío
do junco , e com efta ordem o foy abalroar íobre a amar-
ra , e chegando perto deile , das fuás gaueas lhe lançarão
os artifícios de fogo, que pegando logo na vella, que eíta-
ua em baixo, le ateou em outras partes do junco de maney-
ra , que a gente deile fe lançou ao mar. Martim AFonfo
cníao mandando largar o traquete , que tinha aleuanto nos
palancos, fe aFallou do junco, que ardeo todo até baixo, e
mandou gente no feu batel, que deu a morte a rriuitos dos
que andavâo a nado , e com iílo íe tornou ao porto donde
partira. Atrás. íica dito , que o gouernador dom Duârfe de
meneies, a requerimento de Joríe dalbuquerque capitão
de Malaca , lhe dera a capitania de Maluco para hum de
feus cunhados , por ter cartas de António de brito capitão
da fortaleza em que lhe pidia , que a mandaííe prouer de
outro capitão , por quanto elle eftaua tão doente , que não
podia fuprir ao trabalho , e diílo tinha já o gouernador
mandado Tuas prouiíoés a Jorfe dalbuquerque, o qual, por
dom Sancho íer morto , aprefentou na capitania a dom
Garcia anriquez ; e porque Malaca eftaua então pacifica
polia guerra, que Manoel de foufa capitão mòr do mar fa-
zia aos mouros , armou dous nauios redondos e hum jun-
co aparelhado ha uíança dos nauios Poríuguefes , e huma
fuíta ,-em que meteo íetenta homens porruguefes , e muita
artilharia, e todos os mais petrechos de guerra •, c neíla ar-
mada embarcou dwii Garcia para ir a Maluco com ordem,
que íe António de brito lhe quiíeííc entregara capitania ,
polia prouiíao que leuaua tomaíle poíTe delia, e não lha en-
tregando , íe lhe quiíeíle dar carga , a aceitaííc , c não lha
querendo dar , fe foíTc a Banda , onde fízcííe emprego com
que em Malaca pudcíTe fazer proueito. Dom Garcia partio
«m Janeyro de 1'y'^Si ^ foi tomar cm Banda no porto onde
eftaua Martim Afonfo em guerra cos da terra , a que por
falta de gente fazia muyto pouco dano ; porem vendo dom
Çarcia acabou com elle que o ajudaíTe a tomar vingança
dos males c afrontas , que os daq^ueila terra lhe tinhao fei*
t04
delRey Dom Jcáo o IIÍ. ipp
"to ;e pafsando daly lia ilha re Lorir com detr-minaçao Je
queimarem a cidade , que lic cabeça de todas as ilhas de
Banda , defembarcarao em terra com roda & gtnte, que íe-
riao até cemPortuí^ueíes bem concertados, e depois de po-
rem fogo a trcs juncos ,^ue eítauao varados, e a humas ca«
fas de palha, forao cometer a cidade , que cílaua daly hum
tiro de beíla , porem acharanna inuyto bem prouida de
muytas e fortes tranqueiras, e de m.uyta e boa gente; e por-
que a peleja auia de fer de perto c a força de braço, porque
os noííos não leuau^o artilharia , os mouro<: , com^ erao
muytos , os começarão a tratar tão ma! com infinidade de
mechas, zargunclios darremeíTo , e pedras, que lirauão
com fundas, que lhes foy forçado recoihercmfe para os na-
uios, e muytos delles feridos, de que hum foy dom Garcia
de huma frecha no pefcoço , e íe embarcarão com preíTa ,
fem tratarem de tornar mais a terra; porem do mar lhe fa-
2Íão todo o mal que podiao, que era muyto pouco, porque
não auia em que Jho pudeííem fazer , e dcíla maneyra eí-
tiuerão até virem as mouçoes , com que Martim Afonío fe
partio para Malaca , onde chegou a íaluamento; e dom
Garcia para Maluco ,onde paíTou o que adiante fe dirá."
Logo como dom Garcia partio de Malaca , foy elP^ey de
Bintao auifado da fua ida , e parecendolhe que com a gi^n.'
te que leuaria comfigo ficaria muyto quebrado o poder de
Manoel de fouía capitão mor do mar , que lhe tinha feito
muyta guerra em Pão e em Paíane , ouue efta por boa con-
junção para tom.ar vingança delle ,c mandoa fazer preftes
trinta lancharas grandes muyto bem aparelhadas , e mil
homés nellas, a que deu por capitão Laquexemena, que lhe
£Íirmou com muitos juramentos , que ou perderia a vida ,
ou lhe daria a vingança que defejaua , e que doutra manei-
ra não tornaria mais a aparecer ante elle. Parte-fe logo ,
cfaz fua viagem com tanto íegredo , que ninhum íenti-
rncnto ouue delle fcnão quando chegou de fupito a Mala-
ca,que foy hum domingo polia menham a tempo que todos
eftauaò ha miíía , e deíembarcou na pouoaçao dos Quelins
com coda fua gentej matando e roubando fem psrdoir a vi-
?p z da
joo Primeyra Parte dâ Chroiiica
da nem a fazenda , com que a pouoação toda leuantando-
grandiílimas grir.is fe pós em fugida ; ouuindoííe iílo na
Igrejajoríe dalbuquerque e Manoel de íoufa e toda amais
gente íe fairaó com muyra preíTa a tomarem as armas ; o
capitão mandou Garcia chainho feitor da fortaleza acu-
dir aquella parte donde era o rebate , o que elle fez cora
inuyta breuidade , acompanhado de oitenta homens que o
íeguiraÔ , antre os quais hiao Nicolao de íá , Felipe de
aguiar, Ruy lobo , Francifco bocarro , Simão mendez,. e
Gaípar velho; os Quelins cobrando animo co íocorro ,
voltarão aos inimigos, e os apertarão dernaneyra que La-
quexemena fez recollier os fcus com mujta preíía, deixan-
do a preía que tinha tomada , e alguns dos feus mortos e
feridos. Em quanto Garcia chainho foy fazer cite íocorro,
Manoel de fouía íe embarcou em três fuílas, que naoauia
cntaô mais nauios de remo na fortaleza , e das outras duas
Jiião por capitães Manoel hUcáo, e Aluaro botclho , e coni
elles le embarcarão Aires coe'ho , Francilco leme , Giircia
queimado, Duarte rebello , Ruy figueira , Gaípar peííoa ,
António carualho , Joaõ íerrao, e outros bons íoldados ,
que por todos íeriao íetenta. Laquexemena , vendo vir as
noíTas três fuftas , ouue que tinha na mão o que defejaua, e
pofto diante de todos os feus íe foy para o mar fingindo
que fugia , e os noííos indo trás elles alcançarão huma lan-
chara , que remaua menos que as outras , de que a gente fe
jançou ao mar; os noííos íem tratarem delia paílarao auan-
te remando com muyta preíTa , por alcançarem outras que
hião perto , com que íe foraô metendo muito no mar fe-
guindo os inimigos com muytas gritas , e apupadas : aquy
acudio hum Francifco de matos pratico de muytos annos
na guerra de Malaca, que hia na fuíla de Manoel de fouía,
c Ihi diíTe, íenhor Manoel de íoufa, Laquexemena não vos
foge com medo de três fuílas que aquy liimos , mas vainos
Icuando para o mar para deípois voltar lobre nós , e cora
tamanha arm.ada bem vedes o que nos poderá fazer. lílo
nieímo lhe diíTc a grandes vozes Manoel falcão da fua fuí-
ía i porem eiie a nada diílo quis dar orelhas, c leguio por
dian-
delR-cy Dom loao o III. 301
áiante após huma lanchara , que lingia que nao podia re-
mar ; e fendo os nofios afaílados da terra quafi huma le-
goa , fez Laquexemena volta com toda íua armada tiran-
do muytas frechas, e deíparando muyta artilharia-, porem as
noíTas fuílas não tornarão atrás , mas afíy como hiao auia-
das do remo, defpararaó também fua artilharia, com que fe
começou huma peleja aíTaz trauada •, e como as noíTas fuf-
tas cííauão cercadas por todas as partes das lancharas , e
dos noíios começarão a cair alguns mortos e feri-los , pa-
recendolhes que naô podiaÓ ter remédio de íaluaçao , pe-
lejauaõ como homens que queriaõ vender bem íuas vidas.
E aíly durou a peleja desde oras de veípora até r:oi(c, on-
de os noflos trazendo na boca os nomes de IESVS,e de íua
May fantiíhma fe defenderão com tanto esforço,que nunca
forão entrados; e quis noílo Senhor que hum. pilouro per-
dido derrubou o maílo da lanchara de Laquexemena , que
caindo dentro lhe deu por lium braço de que cahio coma
niorto , e cuidandoo aííy os léus , e efpalhandoffc efla voz
polias outras lancharas , fe foraó afaílando trás a íua ca-
pitaina que hia ja diante , e as noílas fuílas íicarao tão àeÇ-
baratadas , que não tinhao quem as remaíTe. Morrerão
aquy dos noflos , Manoel de foula , Aires coelho , Alua-
ro botelho, Franciíco rebello , João boí^gcs , Pêro de tor-
res , Ruy figueira , e outros muytos valeroíos íoldados j
e os viuos , que ferião até vinte íómente , ficarão todos
feridos ; porem as vidas de huns e o langue dos outros
cuftarao bemi caro aos mouros , porque antre mortos e fe-
ridos forão mais de trezentos. Antre eíles , que ficarão vi-
uos, foy humi Manoel falcão capitão de huma fufta, na qual
tinha oito marinheyros, com que chegando has outras fuí-
tas lhes deu cabo , e as leuou ha toa, que chegando ha
praya de Malaca caufou grandiíUmo íentimento cm toda
a gente ver tantos mortos , c efpanto de os mouros deixa-
rem de dar a morte aos que íicaraõ viuos , porque ninhum
delles vinha para poder pelejar. Laquexemena tornando
cm fy eíleue no mar aquclla noite toda , e ao outro dia tor-
nou a Mahcâ com todas as lancharas embandeyradas , e:
clic-^
302 Primeyra Parte da Chronlca
chegando perto da terra, onde lhe não pudeíTe alcançara ar-
tilharia da fortaleza , andow balrauenteando de huma par-
te para outra •, porem não lhe fahio ninguém , porque Jor-
íe dalbuquerquc nao quis mandar dous nauios redondos
que aly auin, por não ter para ellcs a genre neceíTaria. La-
quexemena então (c foy a huma pouoaçao de gentios, que
fe chamaua o Calaícar, c eílaua de paz com Malaca , onde
faindo ern terra com íua gente, elles com medo fe lhe en-
tregarão todos por catiuos , para íe irem com elle , e os
fez logo embarcar com molhercs c filhos e toda a familia ,
c fó com a gente íc carregarão tanto as lancharas que não
puderão leuarlhe o fato. Joríe dalbuquerque fendo auiía-
do que Laquexcmena hia para o Calaícar , o m.andou fo«»
correr por Garcia chainho com oitenta homens, que partio
de noite por fazer então luar , c foy amanhecer ao lugar;
porem quando chegou ja a gente toda era embarcada , c as
lancharas hiaô na volta de BintaÔ , e vendo que ja lhe não
podia fer bom , mandou faquear o lugar , em que acha-
rão muyto fato e algumas mercadorias , e grande canti-
dade de arros , que os homens folgarão de icuar mais que
tudo , porque auia em Malaca grande falta dcllc , c valia
muito caro.
CAPITULO LXXVÍII.
Da ff} eorJa ãe humas cUfferenças , que tem Pêro mazcare-
7ihas com Ajonfo mexia veador âa fazenda* EiRey de Ca-
lecut manda pôr cerco ha no ff a fortaleza ; dom João de
Itma capitão delia Je prepara para a defender»
Ç» Endo o Gouernador recolhido em Cochim , entcndco
O logo nas embarcações que auião de ir para fora , por-
que então era o tempo da mouçaô , e deípachou Pêro
mazcarenhas para capitão de Malaca, em- que viera proui-
do por elRey , por Jorfc dalbuquerque ter já acabado o
ícu tempo , ç lhe deu três nauios em que foíTc com duzen-.
tos
dei Rey Domjcêo o III. 303
tos homens. Andando Pêro mazcarenliss dando crdcm
has coufas que ll^e crao nccenprias , Afonío mexia vcscor
da fazenda , a quem o gouernanor , naõ ie querendo an-
tremetcr n^s coufas delia , tinha feito fupremo neIJas, por
iaber o grande ufo e conhecimento , que delias tinha , e
por iíío lhe fazia tantos fauores ncíla parte , que fe tinha
feito mais iíento c fcberano do que parecia rezâo , man-
dou ao mefire da náo cm que Pêro mazcarenhas auia de ir,
que defpejafe hum pajol de popa, que elle ja tinha cheo de
fardos de arroz íeu , para íe meterem nclle fardos de rou-
pa d'eiRey;do que íendo auiíado Pêro mazcarenhas , íe foi
ao veedor da fazenda pcdirlhe, que lhe naÕ mandísOc defpe-
jar o payol do arros, que leuaua para dar de comer ha gen-
te com que auia de defender a fortaleza delRev" , que era
couía de mais íeruiço feti que as roupas podres, que elle aly
msndaua meter : tomado difto Afonfo mexia lhe diííe , que
as roupas boas ou más , pois erao delP^ey , auiao de ir na-
quelle payol , e que naquillo naõ auia que aporfiar. Pêro
mazcarenhas Iherornou, que fe deííe diflo conta ao fenlior
gouernador, e íe íizeíle o que elle mandaíTe-, ao que Afonío
inexia lhe refpondeo, que para aquillo naõ era neceííario o
gouernador , porque na fazenda delRcy elle o era. Pêro
mazcarenhas lhe diííe, que ainda que ally foíie naõ enten-
dcíTe cm defpejar o pnyol, porque as roupas nao auiao d'ir
nelJc , e Afonfo mexia ja colérico lhe tornou , que elle o
mandaria deípejar , e naó feria outra couía , c virandolhe
n$ coílas fc meteo para dentro da feitoria , porque eílaua
cntaô ha porta-, de que Pêro mazcarenhas afrontado lhe
deu também as ccílas , foltando algumas palauras afperas ,
que Afonío mexia bem ouuio , e também foltou outras
cheyas de payxao , porem naÕ as ouuio Pêro mazcarenhas
por liir ja m.uyto afaílado ; e daqui ficou Afonfo mexia tao
quebrado com elle , que dahy por diante o encontrou
iempre em tudo o que pode , porque emíim o payol não
fe defpejou comaO elle quiíera. Os mouros de Galecut ven--
do que o inuerno era ja cerrado, eque naõ nuia tempo
para vir focorrcr ha fortaleza , perfuadiraÕ a eiRey , que.
lhe
go4 Primeyra Parte da Chronica
Jhe fízeíTc guerra , porque não auia nella forças com que
íe detendeíTe , c tomaiidca com a artilharia que nelia eáa-
ua, e caíiuando, ou matando os Portugucíes , faria os con-
certos das pazes quais compria a íua honra, e ao bem do
feu reino ; e os mercadores delle poderiaô nauegar liure-
menre por onde quiíeííem como íempre fizerão , e a eíle
modo lhe meterão em cabeça outras Iiuiandades,a que elle,
não entendendo os feus enganos , deu credito , e Ic detri-
minou em f\izer a guerra ; elles antre ly ajuntarão mais de
cem mil pardao?, com que leuantarão muyros mouros ef-
pingardeiros , e muytos naires para ajudarem a elRey nel-
la. Dom João de lima, a quem nada diílo íe eícondia, orde-
nou , por coníelho de todos, o modo que íe auia de ter na
defenlao da fortaleza , e fendo aííeníado que elle nao failTc
mais fora delia , nem apareceíTe em parte donde pudeíTe
correr perigo , fez logo capitães para eHarcm nos cubei-
los , repartio a gente para vigiar nos inuros , e por confe-
Iho do condeílabre repartio tatnbem a artilharia pollos lu-
gares a que conuinha, e a dom Vafco de lima deu cargo
de andar fora no campo com a gente que parecco neceíia-
ria , que cotneçou logo a fazer feu oíHcio ; porem o vigay-
ro da fortaleza ordenou , que íe confcíTaílcm todos , e to-
maíTein o untiílimo Sacramento , e todos os dias em ama-
nhecendo lhes dizia miíía , e defpois de ouuida fahia dom
Vafco no campo com vinte e cinco até trinta homens com
liras efpingirdas ; e fc alguns mouros chegauao com mof-
tras de quererem pelejar , íahião os noíTos a clles e ajuda-
dos das efpingardas, que rirauao os que eftnuão nos muros
e nos cubellos , e has vezes de alguns tiros rníleyros , os
faziao tornar fugindo para a cidade , e dom Vaíco os hia
fcgLiin.do ate os encerrar dentro nella , pollos quais dçí-
mandos o capitão fe queixaua muito com elle; e ainda que
dom Vafco lhe prometeo de não paíTar de certo lugar , to-
daui:i quando vinha has mão? cos ininiigos, como ninhum
perigo por grande que folie lhe podia pôr receyo , efque-
eido de fua promeíla , não paraua até os pôr de todo em
fugida , com que algumas vezes íe vio em muyto trabalho,
por
dei Rey Dom João o III. 305'
por onde chegou a termos de o capitão o não deixar de
quando ctn quando íviir fora , e rambein porque nem íem-
pre era ncceílario , porque os pilouros da artilharia , que
cítaua para a parte do campo, entrauâo por antre as caías
da cidade, e lhe faziao muito dano. Os mouros para remé-
dio difto por confelho de hum engenheiro que tinhaõ com-
íigo , que era hum Italiano renegado , que fe achara co
Turco na tomada de Rodes , donde o trouxerao os mou-
ros de Meca , fizerão de longo das caíeis huma grande ca-
ua larga e alta, e da terra, que fahio delia, fízeraó hum groí-
ío vâllo, com que os pilouros nao entrauao na cidade ; e
como a caua era alta, andauaó por ella fem aparecerem de
fora , e após efta fizeraÒ outras cauas em voltas , taõ alfas
como ella , por onde andauaõ ha íua vontade , e os vallos
licauaõ antre as cauas de maneira que a noíTa artilharia
Jhe nao podia fazer nojo , e nelles prantarao alguns tiros
com que tirauaõ ao noíío muro e has ameyas , e afora ifto
tirauao com muvtas eípingardas em que erao muyto de-
ílros , com que aos noíTos dauaõ bem que entender -, e co-
mo neíla obra traziao grande cantidade de gaftadores , fo-
raofe eílendendo tanto com as cauas e vallos , que cingi-
rão a fortaleza toda em roda , de mar a mar. Dom Vaíco
de lima entre tanto nao andaua defcuidado , mas laindo
muitas vezes com a fua gente , daua nos mouros , e com
panellas de poluora, que lançaua dentro nas cauas, trataua
muyto mal aos que alcançauao, a que os mouros trabalha-
uaõ reííílir com muytas efpingardadas e frechas, mas tudo
era de pouco efeito. E como eftas cauas eílauaó muyto ao
fope da fortaleza , os noilos de cima com as eípingardas
matauão tantos dos que trabalhauão na obra, que Já nao fe
atreuiao a trabalhar nella. O renegado engenheyro para
remédio difto ordenou cobriras cauas por cima com vigas,
que as atraueílauao de huma parte ha outra, com que os ga-
ftadores ficarão aíTaz empnrados, e por antre as vigas dsC^
parauaoa fua efpingardaria , com que muyto a feu faluo
faziao muyto dano aos nolTos, lem o poderem receber dei-
les ; e com eíle cmparo torae correndo com as cauas para
^o6 Pfimeyra Parte da Chronlca
os muros da fortaleza, de que os noTos começarão a tomar
algum receyo ; porem o capitão vendoíle c^Tcado de cauas
de mar a mar, fem ihe ficar lugar por onde lhe pudelTe en-
trar focorro íenao por diante da forialeza, fez hiima cou-
raça, da porta da traição até o mar , de pipas em pc cheas
d'area , que íeruiao de eíleos , porque nao tinha tanta can-
ridade delias que lhe baílaíTem para toda a obra , e antre
humas e outras lançou liuma eílacada de páos muyto groí-
íos , em que pregou grolTas ta boas , com que íiquou mui-
to forte , a qual obra os inimigos lhe nao poderão impi-
dir, porque a fortaleza tinha por cada lado duas peças d'ar-
tilharia , que varejauao o campo , que os mouros lhe nao
podiaô cegar , porque nao podiaõ ali fazer cauas por fer
área íolta ; e como então era entrada de inuerno , que era
no mes de junho, e auia muytas e muito groifas chuuas, em
ambas as partes caufauao muyto trabalho, nos mouros, em
vazarem as cauas, que a chuua enchia d^agoa , e nos noífos
em vigiarem de noite ha chuua , por não terem com que fe
repairaííem delia. O capitão auendo a obra da couraça por
de muyto proueito para a deíembarcação, ajuntou a ella
mandar lançar na borda d'agoa muyta cantidade de pedras^
que fe cobrirão logo de área , que o rolo do mar trazia ,
com que a defembarcaçao ficaua algum tanto emparada do
mefmo rolo do mar ; e de longo da couraça por ambas as.
bandas mandou pôr almadias cheyas d'area , que a fazião
muito mais forte , porque tanto que começou a ter lenti-
mento da guerra, quantas almadias pode auer ha mão man-
dou guardar junto dos muros antre a fortaleza e o mar , e
mandou recolher muyta madeira, que fe tirou das cafas de-
fóra , que íe desfizerão , que tudo em feus tempos lhe foy^
defpois muito proueicoíb.
CA'
dei Rey D3m João o ÍII. 307
CAPITULO LXXVIIII.
O renegado etigenheyro ordena hum trabuco contra a forta-
leza» Doynjoão de lima manda Diiarle fcmandcs a Ca"
leciit em trajos de jogue , que lhe dá muitos auifos \ os
mouros batem a fortaleza , e ofucefo. O engenheiro de-
triminando fazer huma mina ordena hum emparo para os
gajladores \e o que os nojj os fazem,
A Torre da menagem da fortaleza era de dous fobra-
■ dos, de que o de cima ficaua em eyrado tao forte, que
jugauão delle coatro falcões pedreyros ; eíles , como eíta-
uão em parte que defcubria toda a cidade, tirauao ás prin-
cipais ruas delia por onde a gente vinha para as cauas , e
o mefmo faziao íeis falcões , que eílauao nas duas torres
fronteiras ha cidade, a que os mouros, pollo muyto danno.
que recebiâo , fizerao muytos repairos, mas todos forão
íem proueito, porque a artilharia desbarataua tudo, para o
que o renegado engenheiro armou hum trabuco dentro na
cidade feito de peças, que fe aiuntauao humas com outras,
tamanho e taó forte, que podia lançar pedra de vinte quin-
tais de peio, de que mandou cortar muyta quantidade dali
a três legoas, e com força de gente as mandou trazer a ro-
do , e defpois d'armar o trabuco , e ver por proua o bom
efíeiro delle , meteo a gente em fazer da banda de Cochim
hum alto emparo para detrás delle armar o trabuco , com
que lançaíTe dentro da fortaleza aquelias pedras , que elle
efperaua que arrombaífem tudo o que alcançaílem. O rene-
gado Português chamado Baíliao rodriguez , de que atrás
fica diro que andaua entre os mouros de .Calecut , e tinha
muyta amizade cora dom Joáo de lima, tinha ganhado tan-
to a vontade ao Italiano engenheiro pollo acompanhar
fempre com fua eípingarda has coílas , e gabarliie as íuas
obras, e dizer aos mouros, que por íua habelidade merecia
que lhe fizeílem muytas mercês , que o Italiano Ihedaua
conta de todos feus peníamentos, e de quanto ordenaua fa-
zer , de que logo o Baíliao rodriguez bufcaua maneira pa-
Qq 2 ra
3o8 Pi-inieyra Parte da Chronica '
ra auifar a dom João polia amizade que tinha com elle, ou
antes polío ordenar aíIy,Deos parabém daquella Fortale-
za. Dom João vendo que quanto a guerra apertaua mais ,
tanto lhe era ncceíTnrio ter os auiíos mais contínuos, con-
íi.indoíre na amizade do Baítião rodriguez falou fecreta-
mente co melmo Duarte fcrnandez de lima, malauar Chri-
ílâo, que fora pôr o fogo h^. cidade de Calecut, e íe concer-
tou com elle para íe ir a Ccchim na embarcação em que
forâo as molheres, e de lá vir por terra a Calecut em trajos
de jogue , e darfe a conhecer com Baíliao rodriguez , e to-
mar delle os auilos que cumprilTe , e virlhos dar ao pé do
muro a hum lugar que lhe moílrou , em que acharia hum
fio pindurado, onde poderia atar a ola efcrita. O malauar
com.o era bom Chriílâo fe veyo a meter no arrayai dos
mouros pidindo com.o jogue , e teue maneyra com que
diíTimuladamente íe deu a conhecer co Bafíiilo rodriguez,
a quem deu huma carta do goucrnador, em que lhe daua as
.graças pollos auifos que tinha dado , e largas promeíTas
poUos que lhe deíTe daly por diante : o Baíliao rodriguez
Iblgou muyto com a companhia do jogue , porque era
meyo de poder fazer aquillo mais vezes , e mais a ftu íal-
uo ,e lhe daua olas efcritas com que elle de noite raeten-
doíe pollo rolo do mar, fe vinha ao lugar que lhe fora
moílrado, onde achaua o íio com huma pedra atada na pon-
ta , porque O naõ leuafíe o vento , e atandolhe a ola tira-
na por elle de maneyra que o lentiííe a vigia, que tinha na
mno a outra ponta, que era hum colaço do capjtaô, hom.em
de muita confiança, que fez efte negocio com muyto fegre-
do , e euaua toda a noite em vigia , e fe rrcolhia em ama-
nhecendo leuajado o fio comfigo. Mandou também o ca-
pitão pôr muyta gusrda que lhe não fugilTe ninhum negro
da fortaleza, qu-j pudeíle dar nouas no arrayai do que paf-
iaua nella , e por iflo mandou que ninhum íubiíTe ao muro
porque fe não pudeííe lançar por alguma corda ; e a hum
que foy aciíado fazendoíle preítes para fugir, mandou atar
a hum pdo , e o entregou lias molheres , e aos outros ne-
gros que O matarão has pedradas , porque auia a^y muy-
los
de] Rey Dom João o III. 309
tos que íe prezavaô de homens de bem, e tlnkaõ feus pon-
tos de honra, e fahiao fora com feus fenliores a pelejar, que
não era pequena ajuda. Por efte modo reue o capitão aui-
lo de Bailia o rodriguez da tençaÕ com que os mouros fa-
zião aquflle emparo , e da fabrica e grandeza do irabuco-
grande , com que tomiou algum receya , porem nao def-
cubrío cfre auifo fenaõ a dom Vafco , e a outros fidalgos, a
quem diíle queimportaua muyto desfazerfe a tranqueira
do emparo, que os mouros faziao , c fazendoííe para iíío
preíles cento e vinte hom.ens com lanças e eípingardas ,
iiuma madrugada , a tem.po que começauaja a romper o
dia,fairão fora pollo poftigo da traição com muyros ne-
gros, que icuauao panellas de poluora, e derao com m.uito
Ímpeto nos mouros, de que muitos eílauão ainda dormin-
do, em que os negros rambem lançarão as paneilas ds pol-
uora com que antre ellcs ouue grandiílimo aluoroço ; mas
não deix-indo de acudir muycos íe começou huma briga
aílaz trauada , que deu lugar aos negros de desfazerem a
tranqueira , c derrubarem o repairo , mas como os inimi-
gos iiião aly em muyto crecimento, mandou o capitão to-
car huma trombeta do muro , com que os noíTos fe vieraS
recolhendo, pelejando íemprc até paíiar o canto da torre ,
porque então com.eçarao ajugar dous tiros que eftauao
nclle,com que o a tr. ouros fe foriio retirando, ficando
muyios delles mortos c feridos, c dos noílos cinco feridos
fomente ; porem os mouros tornarão logo a leuantar o re-
payro, a que os noílos íairao outras duas vezes, mas apro-
ucitoulhe pouco , porque como os inimigos erao muitos ,
cada vez fe ajuntaua aly mais gente, e fízerão tanto que
com rnuyta preíía acabarão o repairo de todo, fem es nof-
fos lho poderem tolher. Porem o Italiano antes que uíaíTe
do trabuco aíTentcu três eílancias d'artilharia , huma por
diante da fortaleza , e as outras polJas ilhargas ao longo
da prava, em que auia palTanre de cento e cincoenta peças,.
de que as cincoenta lançauao pílouros tamanhos como hu-
ma bola , e outras os lançauao mayores , que craó algumas
que forao ngílas; e cos feus bombardeiros fez pontaria nas
noííâs,
5 IO Primeyra Parte da Chronica
noíTas peças para as cegar , e a outra artilharia miúda pôs
por cima coatra as amcyas da fortaleza ; o que acabado
difíc aos mouros, que não hauia de dar a bataria íem elRey
cílar preíente para ver a fortaleza poíla por terra nuina fó
ora ; do que íendo elRey auiíado pollos mouros, que eíla-
iia daly fcis Icgoas , e importunado que íe quizeíle vir ha
cidade ver aquella obra tanto defeu goílo , em que não
ania duuida , e com fua prefcnça dar animo ha gente para
tomar logo a fortaleza , elic aluoraçado fe abalou logo ,
c entrou na cidade acompanhado de dez mil naires ,
afora agente que eílaua no arrayal, que antre naires e mou-
ros paílauao de vinte mil , e poila falta que auia de man-
timentos deixou de auer aly muita mais gente. Delia ba-
teria que o Italiano tinha ordenado , e do deíenho que ti-
nha de cegar a noíTa artilharia , e da vinda delRey ha cida-
de , e de todas as mais particularidades fov dom João aui-
íado pollo jogue , e tomando fobre iílo confelho co coa-
deílabre , cos bombardeiros , e cos fidalgos , foy aííenta-
co que as bombardeyras foííem entupidas com entulhos
de maçames , que íe podiaô fazer de maneira, que os tiros
de fora lhe nao pudcílem fazer nojo, o que logo fepôs
por obra o milhor que foy poíTiuel. Ao outro dia dcfpoif
da vinda delRey , polia menham cedo pofto elle de longe
em parte onde podia ver o que fe fizelTe , mandou dar
moíira de toda íua gente , de que alguma que pafíou alem
■dos vallos , cos tiros que tirarão os falcões das torres fe
retirou com muyta preífa , e íe efpalhou pollo campo, e
íendo as oiro ora?j do dia , leuantando no arrayai grandes
gritas , e tocando muytos dos feus eílromentos , derao fo-
go todas as eílancias com tanto eftrondo aíTy da artilha-
ria, como dos pilouros , que dauao pollos muro.« . e polias
torres , que foy coufa horrcndiíTima , e de grandilTimo ef-
panto: e acabada eíla çurriada, que duraria meya ora, dei-
pois de paíTar a fumaça, quando os mouros cuidarão vera
fortaleza por terra í"'eita em pedaços, lhe tirarão delia com
corenta peçis groíTas , que tinha por baixo , e polias tor-
res , que dandolhe polias cílancias lhe quebrarão e torce-
rão
dei Rey Dom João o IIÍ. 311
rão muytd r.rriiharia, e matarão e ferirão n;uyta gente, com
aíTaz grande efpanto dos mouros, de verem iiue a lua arti-
lharia nao fízera mal ha noifa , e nas paredes da fortaJeza
fe não enxergaua mais dano que osíinais dos pilouros que
jaziáo ao pé do muro , e fomente das ameyas forao algu-
mas derrubadas ; mas inda que iíto afi/ era , e os noílos
tiros lhe faziao tanto dano , nem por illo deixarão de ti-
rar por todas as partes quanto podiao , a que também os
noíTos reípondião da mefma maneyra , e lhe faziáo inuyto
mais mai do que recebião , no qae eíViueraô todo aqueiie
dia inteiro até noite : ncíla bataria forão mortos dos noí-
ios três homens , e alguns feridos dos pedaços das pedras
que fe quebrauao nas ameyas j mas o defgoiro difto fe IUq
recompenfou co grande contentamento que íintirao de lho
íicar a artilharia em íaluo. Quando elRey íoube o fucceí-
ío da bataria tao contrario do que lhe tinlião perfuadido e
afirmado , chevo de payxão foltou muytas palauras contra
os feus , dizendo que quanto Uiq tinhao dito erão enganos
e mentiras , e que o meímo auia de íer Da tomada da for-
taleza ; aquy acudio o Italiano , e lhe diíTe que não tinha
ainda de que tomar paixão , porque tomar huma fortaleza
era negocio muyto vagaroío , e de muyto cuílo c trabalho,
quefe a bataria nao focedcra bem , elle lhe ordenaria tan-
tos outros artihcios com que puíeííe a fortaleza em eílado
que pudeíTe mandar tomar pollos feus efcrauos : e mandou
logo que foliem correndo com as cauas até junto do muro,
com detriminaçaô de fazer huma mina "com que derrubafle
a fortaleza: e para ifto ordenou huma manta de madeyra
raia co chaó, que corria íobre humas rodas raíleyras , com
que em.parada a gente veyo abrindo a caua até chegar ao
pé do muro ; porem os noílos lhe lançarão muytos feixes
de lenha miúda com íaquinhos de poluora dentro , e muy-
tas panellas cheyas de braías viuas , com que em breue
eípaço fe acendeo tal fogo na manta , que nunca os mou-
ros o puderao apagar , e o que cahia pollos buracos , que
hia fazendo na manta , tratou tHo mal os que eftauão de-
baixo dílla, c[ue todos fugirão, e a defem pararão^ e vendo
os
3 12 Primeyra Parte da Chronicá
os mouros que não tinhão remédio para o apagar, lhe
ajuntarão outra muita lenha de fóra para Jhe darem tanta
força que baílaíTe para abraíar a parede da fortaleza , ao
que os noíTos acudirão logo com muyta agoa , mas a que
mais lhe aproueitou foy a que Deos então mandou do
ceo com huma chuua tão cop!oía,que bailou para apagar o
fogo de todo : e nefta enuolta os noíTos nao perderão oca-
íiaô dehrzermal aos inimigos , porque o» efpingardeyros
de cima do muro tirauão aos que acarretauao a lenha , de
que ficarão muytos mortos no campo , e lhe dauaõ gran-
des gritas e apupadas. PaíTado iílo ordenarão os noíTos al-
guns homens de palha por antre as ameyas , a que os mou-
ros rirauaô muytas efpingardadas ; porem os noííos, que ti-
iihao as efpingardas preíles ,em os mouros fe defcobrindo
pára tirarem a eíles homens fantaílicos , as defparauao nel-
Ics, com que matauao muytos, até que vindo eiles a enten-
dei" o engano fe guardarão delle.
CAPITULO LXXX,
O líaliano defpara o trabuco , efaz muyto dano ha fortale»
za \ o nojjo conde flabre lho desfaz ; os mouros oràenao ouv-
iras duas mantas , os nojjos lhas queimaõ. O capitaB
mand.a pollo jogue pidir focorro ao gouernador, Naforta'
lezaje começa a Jintirfome , com que lhe morre alguma.
gente,
VEndo o renegado engenheiro de quão pouco effelto
erão todas as inuençoes, que até então tinha bufcado,
detriminou ufar do trabuco como remédio mais efficaz ,
e em que tinha mais confiança , e o fez logo aíTentar de
trás do repairo, que era tão alto, que os noíTos não podiao
yer mais do trabuco que hum braço, que aparecia delle
quando acabaua de deípedir a pedra , que era tamanha e
tao medonha que nao fomente a viila delia quando vinha
poUoar, mas o zunido que vinha fazendo caufava gran-
diíliino cípanto. Deitas pedras lançarão o primeyro dia
oito
dei Rey Dom João o III. 313
oito dentro da fortaleza , de que três acertarão na torre
da menagem , que lhe derrubarão três ameyas , e grande
parte da parede , e outra deu no terrado que calou por
€lle abaixo, e foy coufa milagroía naô arrombar de to-
do o íobrado ; outras que cairão polias caías fizeraÔ tudo
em pedaços , e matarão cinco peíloas. lílo meteo os noíTos
em tanto eípanto e confufaô , que toda a genrr com medo
íe recolhia has logeas das torres , onde eítauaõ muyto
apertados, porque não cabiaÕ nellas; e também ouue muy-
to trabalho em íe mudar a poluora da torre da menagein
ha logea de huma torre , para que a chuua a naó molhalTe ;
e tinhãoíTe continuamente grandiíTimas vigias que em ven-
do dcfparar a pedra bradauao logo, que fe guardaíTem del-
ia ; e ainda de dia fe paíTaua iíto menos mal que de noite ,
por fe não verem as pedras , que também então lançaua o
trabuco. O condeítabre da fortaleza chamado Fernão pi-
rez, official aílaz defiro , vendo o perigo e definquietaf^ao
cm que andaua toda a gente , quis ver le lhe podia dar al-
gum remédio , e fubindo ao terrado da torre da menagem
apontou os falcões no braço do trabuco, que íicaua defora
quando acabaua de lançar a pedra , e encomendandoíTe
com muyta deuaçaõ a N. Senhora lhe fez três tiros , -e
prouue a ella que com hum delles o acertou , c quebrado
cahio fobre o repayro , que o desfez todo até baixo , de
maneyra que ficou o trabuco defcuberto: o condeftabre en-
tão doce abaixo com muyta prcíleza, dá fogo a huma mcya
eípera que eílaua na torre , e quis noífo Senhor poila lua
mifericordia encaminhar também o pilouro , que foy dar
na armação do trabuco , que o fez rodo empedaços , e as
rachas da madeyra matarão e ferirão mais de cem homens
dos que trabalhauaô no trabuco , que erao muytos. O ca-
pitão com toda a gente íe foy ha Igreja dar muytas graças
a noíTo Senhor por aquclla mercc , e pollo perigo de que
os liurara , e ao condeílabre deu huma boa cadea de ouro ,
a que também os íidalgos derao muytas pecas com que
ficou aílaz contente , e da hy por diante foy fempre muy-
to fauorecido de todos i e elle o merecia bem, porque de
Bart. L Rr dia
314 Píimeyra Parte daChronlca
dia e de noite fe ocupaua em fazer muytos tiros ao arrayal,
que de dia apontaua , e de noite lhe daua fogo , com que
inataua e feria miiyra gente. Os mouros então flzerao ou-
tras duas mantas como a primeyra raíleiras , que andauao
jobre rodas , e tamanhas que agaíalhauao debaixo de fy
muyta gente , e porque o fogo lhe nao pudeíTe fazer nojo ,
as forrarão por cima de paftas de ferro , e com eftas che-
garão fem medo ao pé do muro , e começarão de fazer a
mina. Entendendo bem os noíTos o perigo defta obra fe
fez preíles dom Vafco com 70 homens , de que o.s corenta
erão elpingardeyros , e ordenou que todos os mais eíliuef-
fem no muro com íuas efpingardas , e tomou mais comíi-
go vinre negros , cada hum com dous feixes de lenha com
huns enuolcorios de poluora dentro, catados os meímos
negros a baldes de couro em que leuauao panellas de pol-
uora dentro com murròes aceifos , que ouue negros tão
animofos que aceitarão por fua vontade mereríe neíle pe-
rigo. Sahio dom Vafco defpois de jantar, leuando os ne-
gros emparados da banda da fortaleza , e os cfpingardey-
ros da outra banda , e elle diante de todos , que os mouros
ja bem conhcciao polias armas , mas muyto milhor polias
obras, e foy correndo ao longo das cauas até chegar has
mantas, c vio que as cauas eílauao cheyas de gente que
traballiaua , e de outra muyta com zargunchos e eípingar-
das , que em vendo os noííos começarão a defparar nelles
muytos tiros de iiuma coufa e outra ; porem os noíTos, co-
mo eílaiião íobre elles , has lançadas , e has efpingardadaf
os jíizerão fugir e empararfe debaixo das mantas: aquy acu-
dirão os negros , que lhe lançarão por baixo as panellas
de poluora , cora que os fizerão fugir de nouo e defempa-
rar as mantas , e lançandolhe por baixo os feixes de lenha
tomarão fogo , que íe ateou de maneira nas mantas , que
naó lhe podendo os mouros acudir com a preíía neceíTaria^
forão ambas de todo confumidas. Dom Vafco então fe co-
meçou a recolher leuando os negros emparados entre a fua
gente, onde foi tanta a multidão dos mouros que acudirão
. tirando infinidade de cípingardas c frechas, que dom Vaíco
eíteue
dei Rey Dom João o IIL 315
cíleue em muyto riíco de fer tomado com todo^ os fcus ;
porque ainda que os noílos efpingardeyros derrubauao
muyros delles , nem por iiTo íe lhe enxergaua falra pollos
muytos que acudião de nouo ; porem a grandeza do peri-
go acrecentou o esforço aos nolTos , com que íe vierao de-
fendendo até chegarem ao canto da torre , onde hum ca-
melo defparou nos inimigos , que como os achou juntos c
defmandados, derrubou muytos delles, com que os outros
íe detiuerao, e derao lugar aos noiTos para íc recolherem :
neíle dia ficarão mortos no campo três Portugucíes , e na
fortaleza morrerão dcípois cinco, e coatro negros , e fo-
rão feridos mais de vinte , de que hum foy dom Vafco de
três eípingardadas mas todas de pouco perigo : dos mou-
ros forão muytos mortos e feridos, que nclles fazia pouca
falta, nem lhes fazia mais impreííao que porlhes algum re-
ccyo de pelejar cos noíío?, pollo muyto danno que rcceblao
das noíTas elpingardas. Aquy foy ferido o Italiano de hum
pilouro de eípingarda perdido, que o alcançou lá fora dos
vallos em hum cotoueilo, de que efteue muytos dias fem íe
Icuantar ; porem em hum andor o traziao a dar ordem
aos oííiciaes que faziao outros três trabucos , e foy grande
aliuio para os noílos efta fua infirmidadc, porque em quan-
to ella durou nao hia a obra por diante. De todas eílas cou-
fas veyo o jogue dar auifo aos noíTos , cuja vinda cm tal
tempo dom João ouue por muyto grande dita , porque lhe
deu huma carta para o gouernador , e lhe pidio com muy-
ta inílancia que lha leuaííe logo a Cochim , c lhe deíTe con-
ta larga do eílado em que íicaua a fortaleza , do que paíía-
ra CO trabuco, c que íe íicauáo ordenando outros três , que
fe chegaííem a aOTentallos eílaua a defenfaõ muito duuido-
ía , por onde cumpria muyto ao íeruiço delRey e ha fal-
uação de todos acudirliie logo com qualquer focorro que
foíTe poílivel , inda que fofíe com nauios que esbombar-
deaíTem o arrayal , que d:V banda do mar não tinha empa-
ro ; porque com iíTo darião tanto em que entender aos ini-
migos, e que elles teriao algum aliuio. Os mouros entretan-
to não ceíTauao de bater de dia c de noite a fortaleza com
Rr 2 a ar-
3 lá Prímcyra Parte da Chronlca
a artilharia , e lhe tinhão derrubadas todas asamcyas, e
muyta parte do parapeito de maneyra, que ja a gente não
podia andar polio muro , c cos pilouros, que cntrauão na
fortaleza , erao as cafas todas arrombadas , e os fobrados
das torres todos quebrados , que foy cauía de penetrar a
chuua a baixo, c Te danarem todos os arrozes, com que lhe
entrou o mal da fome, que os começou a pôr em outro ma-
yor aperto , que por não auer ninhum modo de remédio
para os doentes erao mortas na fortaleza mais de cincoen-
ta peíloas , de que os mais erao eícrauos que morrião ao
mero defemparo, nSo fem grande magoa do capitão, c
de toda a mais gente , por verem que lhe não podiao acu-
dir CO que lhe era neceflario. Ocuparao-le também os mou-
ros em entupirem algumas das cauas para poderem mais
defembaraçadamente vir a pelejar cos nofíos ; porem tam-
bém nefta obra os que acarretauao a terra recebiaó muito
dano das noíTas cípingardas , e receberão muyto mais fe
não ouuera regra no tirar , porque a poluora hia ja faltaii--
do, e hauia muytas efpingardas arrebentadas, e outras-
defaparelhadasi c naô era muyto, porque nao hauia aly eí-
pingardeíro que nao tiraííe de cem tiros para cima i e por-,
que Cilas faltas íe hiao ja entendendo foy forçado ao capi-
tão começar a pôr regra em todas as coufas.
CAPITULO LXXXI.
O gõufmador manda duas carauellas a ] ocorrer a fortaleza
de Calecut. Eitor daftlueyra capitão de Cana/jor ajecorre
•por duas vezes. As carauellas esbomkardeaÕ o arrayal
dos inimigos \ antre os capitães delias ha diferença fobre
defembarcarem em terra ; e em fim fó ChriJlouaÕ jufarte
fe detrimina em dejembarcar,
DEfte grande e apertado cerco , que os mouros tinhaá
pofto ha noíTa fortaleza , e de todas as particularida-
des delie tinha o gouernador muitos auifos por via delRey
de^Cochim ,,que para efte effeito mandara alguns homens
íeus
dei Rey Dom João o III. 3 17
fcus andar diílimuladamente em Calecut , e lhe traziaõ no-
uas do que lá palTaua, dos quais também tinha já fabido o
fuceíTo do trabuco , com que o gouernador andaua aflaz
peníatiuo, e apaixonado , principalmente por naô fabcr o
que paíTaua dentro na fortaleza: nefle tempo chegou a elle
Duarte fernandez de lima no mefmo trajo de Jogue, e lhe
deu a carta de dom Joáo, e ainda que com ella íe lhe acre»
cefitou a paixão , e começou a entrar em algum receyo ,
todauia refpondeo logo a dom João com palaurasde muito
esforço , c promeíTas de bom locorro tanto que o tempo
deíle algum jazigo, porque era entau no fim do mes de Ju-
nho, quebra a força do inuerno, e com eíla detriminaçaó
pôs diligencia em concertar alguma armada , e por entre-
tanto pôs logo no mar duas carauellas latinas bem concer-
tadas , cada huma com féis peças groUas afora falçôes , e
berços, e em cada huma delias meteo féis pipas de poluora
de bõbarda e huma de eípingarda , e chumbo e repayros
laurados para a artilharia , e carregou ambas de biícoito ,
açúcar, manteiga, carnes, e pefcados fecos, e tudo com tan-
ta breuidade que aos doze dias de Julho eftiuerao de todo
preíles. Porem Eitor dafilueyra capitão de Cananor, em
quem para as coufas de primor e de honra nunca ouue def-
cuido nem efquecimento , trabalhaua fempre por ter aui-
íbs fecretos do que paílaua na fortaleza , porque os mou-
ros da terra lhe afirmauao que fem falta feria tomada , por
cílar elRey em peíToa no arrayal com fefíenta mil homens,
c jnuyta artilharia : porem elle fabendo bem o que paíTaua
de fora , lhe daua muyto em que cuidar nao poder ter aui-
ío do que paíTaua dentro , mas entendendo o que podia fer
cm hum cerco tão apertado, mandou concertar duas al-
madias grandes, e fazerlhe os bordos altos com arromba--
das de gunes brcados por lhe naô entrar a agoa , e as cí-
quipou com doze pefcadores cada huma bons remeyros ,
a que pagaua a tanga por dia e de comer, e dou? pardaos a
cada hum delles para deixarem ás fuás molhcres , e em
cada huma das almadias meteo hum homem Português,
cm hiima hum Diogo coruo , e noutra hum Manoel aluar
rez.
318 Primeyra Parte da Chronlca
rez marinheiro grande nadador , a quem fatisfez muytô
bem feu trabalho: e preíles as almadias as carregou de gra-
des azados cheyos de galinhas em coníerua, e muitos ouos,
açúcar, carne, pefcado íeco, jarras de couro cheyas de man-
teiga, e fardos de bifcoito , e outros de arroz encourados
por amor da chuua, e por cima olas tecidas por irem ainda
mais feguros delia, c para mantimento dos remeyros muy-
to arroz cozido em panellas , e cocos , e outras algumas
couías. Os pcfcadores quando lhes parecco conjunção par-
tirão de Cananor huma menham , e ora ha vella , ora a re-
mo , íegundo lhe íeruia o tempo , chegarão a Calecut, que
faÕ íós doze legoas , ha noite , que foy bem efcura e chu-
uoía , com que os mouros eílauão todos recolhidos , bem
fora de cuidar que em tal tempo podiaó aly vir almadias.
Os peícadores , que fabiao bem os poílos , forão remando
manfamente fem erguerem os remos da agoa por nao fe-
rem viílos , e chegsndo defronte da fortaleza , hum delles,
que fabia a lingoa Portuguefa , fe lançou a nado, e com el-
le o Manoel aluares , e entrarão polia couraça , e com voz
baixa falarão aos que eílauaô no muro em vigia , que ie-
uando logo recado a dom João , íe veyo ha porta com
dom Vaíco e outro companheyro , e os peícadores trou-
xerao tudo a terra, com que na fortaleza ouue muyto con-
tentamento , e dom João Jhes deu vinte pardaos e alguns
panos , c por efcrito deu as graças a Eitor da filueyra por
aquelle íocorro em tempo que deu nouo animo a aquclla
gente , e lhe deu também conta do eftado em que ficaua >
e pidio muito queihe acudiíTe com algumas efpingardas ,
e lhe mandou muytas das que tinha para lhas mandar con-
certar : e deípididas as almadias fe partirão aquella meíma
noite fem íerem vidas , e ao outro dia ha noite chegarÔ a
Gananor com grande gofto de Eitor da filueyra , que logo
as tornou a mandar carregadas de mantimentos , com cin-
coenta efpingardas muyto bem aparelhadas , e coatro bar-
ris de poluora para ellas , e duzentos murroes. Eílas al-
madias chegarão á Calecut de noite , porem os mouros do
arrayal tinhaô ja nouas delias pollos de Cananor, que
auea-
dei Rey Dom João o III. 319
auendo íentimento uellas polia grandiíUma vigia que fo-
bre ellas tinhao , acudirão a!y muytos tirandolJie miiytos
tiros perdidos de longe ; porem fentindoas rsmbcm na
fortaleza , acudio logo o capifa5 a abrir o poíligo , e poU
Ja couraça recollieo tudo com muyio trabaliio pollo graii'
de medo que os pefcadorcs tinhao dos tiros, por onde tor-
narão logo a fazer volta , e os noíTos fe animauaõ cada vez
mais com e^es íocorros. Nas duas carauellas , que atrás
dilTe que o gouernador fizera preftes em Cochim para
mandar a Calecut , pôs por capitães Chriftouao jnfarte , e
Duartt da fonfeca , ambos de grande esforço e confi.inça ,
e a cada hum deu corenta homens, e lhes mandou que
foíTem íurgir defronte da fortaleza , na parte donde lhe
parecelTe que poderiao m.ilhor esbombardear o arrayal
dos mouros , e que trabalhaíTcm por meter na fortaleza
as moniçoes e m.antimentos que leuauao. As caraucllas fe
íizerao ha vella a doze dias de Julho, em que o tempo deu
algum jazigo , e com ferem de Cochim a Calecut iós trin-
ta e oito legoas, chegarão li no fim do mefmo mes , e (ur-
gindo no lugar que lhe pareceo mais acomodado , come-
çarão dar fogo ha artilharia com que no arrayal fízerao
aílaz de dano ,e lhe quebrarío hum trabuco nouo que en-
tão eílauáo aííentando ; porque vendo elles que fe hia che-
gando o veraõ , em que forçadamente aula de vir focorro
ha fortaleza , dauaíTe grande preíTa para a tomarem antes
que ifto foíTe ; para o que o Italiano aíTy ferido como an-
daua tinha dado ordem a três trabucos , auendo eíle pollo
milhor modo que todos para fair com fua cmprcfa , pollo
muyto dano que fizera na fortaleza o primeiro trabuco j
e agora começaua ja de armar eíles três quando as cara-
ueilas chegarão; e vendo os mouros o muyto dano que re-
cebiaô delias , fízerao feus repayros da banda do mar com
vallos de terra altos , e muyto groíTos , em que prantaraò
muyta artilharia com que tirauão has carauellas ; porem
antes que fe acabaíTe efta obra os capitães das carauellas,
deíejofos de fiber o cftado em que eílaua a fortaza , elles
Biefmos fe forão de noite a terra nos feus bateis com aílaz.
de..
320 Primeyra Parte da Chronica
~âà trabalho e perigo , e por homens, que lançarão a nado,
fouberâo o grande aperto em que ellaua por falta de man-
timentos e de gente , por ferem muytos hom.ens mortos ,
c auer muytos doentes, que não auia nella cento e cincoen-
ta que pudeíTem tomar armas , polia qual rezão os capi-
tães com muyto trabalho do mar e perigo da terra lança-
rão na couraça o que leuauao para a fortaleza -, o que dom
Vaíco de lima recolheo com morte de dous homés e ou-
tros feridos, c os bateis também íe nao recolherão em íaluo,
porque lhe matarão quatro remeyros marinheiros da terra.
Chriílouão jufartc vendo a falta de gente, que auia na forta-
leza, lhe pareceo íeruiço de Deos c delRey, e esforço para
os que eílauao dentro irfe meter nella com a fua gente , e
deu conta diíTo a Duarte da fonfeca , o qual entendendo
bem o perigo, que naquillo auia, lhe diííe que nâo era da-
íjuelle parecer, porque o gouernador nao os mandara para
mais que para fazerem guerra do mar, e que elle nao fa-
ria ourra coufa-, ao que Ghriftouaô jufarte lhe rcfpondeo,
que aquellc fora o principal intento do Gouernador , por-
que para tirar fomente ao arrayal bailara mandar fós os
bombardeyros , c nao os homens como elles ; e pois eíla*
ua vendo a grande falta que aquella fortaleza tinha de gen-
te , elle detriminaua de fe ir- meter nella cos homens dos
feus que o quifeíTem acompanhar , que elle fízeíTe o que
lhe bem parecelTe , e com ifto fe recolheo ha fua carauel-
la. Os foldados de Duarte da foníeca, erjuejofos da honra
que hiaõ ganhar os de Chriftouao juíarte, apertarão co íeii
capitão que fofíe também a terra , e nao quiíelTe pôr tama-
nha nódoa em fua honr^ , como íeria nao acompanhar a
Chriílouão jufarte , e fe elle poruentura deixaua de o fazer
por recear o perigo , lhes deíle licença para fe acharem,
naquelle feito por nâo perderem a honra que nelle podiao
ganhar; e depois de auer fobrc iílo alguns debates, Duarte
da fonfeca detriminado de ir também a terra fe meteo no
batel, e fe foy ver com Chriílouão juíarte , e íe concertou
antre ambos, que deixaííem aos meílres das carauellas car-
^0 de tirarena ao arrayal, e elles fe foílem a terra com a fua
gente ;
dei Rey Dom João o líl. 321
gente ; porem que parecia neceíTario darem diíío conta
primeiro a dom joao de lima, efeguirem a ordem que lhe
clle deíle; o que parecendo bem a todos, lhe cícnni' rno hu-
ma carra que eíla melma noire lhe mandarão por hum ma-
rinheiro a nado, a que elle refpondeo que faziao niflo hum
grande íeruiço a Deos e a elRey polia muyra neccífidade
em que eftaua aqueiia fortaleza , e que leria bom deíem-
barcarem ha tarde , que o vento era do mar : com eíla re-
poíla Te fizeram preftes os capitães cos homens que quife-
rao hir com elles ; e quando forao oras Chriílouão juíarte
no íeu batel com a fua gente íe foy abordo de Duarce da
fonfeca para irem ambos como tinhaõ detriminado ; po-
rem Duarte da foníeca , que tinha tomado outro confelho,
liie diíle que elle cuidara bem naquella ida , e lhe parecia
grande erro cometelU , por onde eftaua reíoluto em o nao
fazer , porque entendia que o governador tomaria muyto
mal irem a terra fem fua licença , que ellc fizeíTe o que
quifeílc ; Chriílouão jufarte lhe refpondeo, que o erro era
perder huma ocaíiao de tanta honra como aquella , a qual
elle não auia de perder, porque bem fabia que o gouer-
nador auia de folgar muyto com todo o íocorro que em
tal tempo fe deííe a aquella fortaleza, e pefarlhe muyto
do contrario ; e fe alguém lhe aconfelhaua outra couía lhe
viria de fer para pouco , e inimigo de fua honra , que íe
íicafTe embora, c os encom.endaiíe a Deos, e mandou remar
para terra.
CAPITULO LXXXII.
ChrifíOTião jufarte ãe [embarca em íerra^ tem cos mouros hu-
yna bravlljima peleja. Dom Vafco o [ocorre com gente , a
ofucejjo que ter,i. Os mo:iros orãenao bunia (erra de ter-
ra. O Italiano ajfenta clous trabucos nonos , os no[j'os in-
nentão hum artificio de fogo com que lhe queimao hum
cicí-iej ,
CHriílovaõ jufarte leuaua no íeu batel trinta e oiro ho-
mens bem concertados, a que mandou que abaixaífcm
as lanças por caufa dos tiros da terra j e porque fabia que
J^arí. I, Ss nos
5-^ Pfiineyra Parte da Chronlca
nos feitos da guerra, em que os homens íao leuados por
força , nunca cuílurnao auer bom fuceíío , quando hia ca-
minhando dilTe para os feus companheiros, que íe por ven-
tura aly hia algum que foílo contra íua vontade o diíleíle,
que o tornaria a pôr na carauella , porque elle naÕ queria
lera ninguém em cargo da fua vida; porem queeile c"o tauor
diuino auia de entrar na fortaleza, ou auia de perder a fua^
mas que ficaria ganhando a honra que lhe eílaua oíFerecida
naquelíe feiro , como também ganharião todos os que íe
achaflem nelie; ao que reípondeo hum esforçado mance-
bo por nome Anrique de íiqueyra , ainda que eu íou o ío-
menos de quantos aquy himos , digo íenhor por mim e
por todos, que íe todos não tiuerao a vontade que vós
tendes não nos embarcáramos , e por iíTo não fe perca
tempo, vamos noíTo caminho para o paraifo, pois himos
fervir a Deos , e ajudar noííos próximos : e mandarão dar
prcíla ao remo para chegarem a terra. Os mouros enten-
dendo a detriminação do batel, acudirão por ambas as par-
tes mais de dous mi! ,que chegando ha couraça derruba-
rão as pipas , e íe forao pôr na borda d'agoa \ os noííos.
tiros das torres, que defendião a couraça, dando fogo ma».
tarão tantos que o campo ficou cuberto delles , porem não
fazião falta, porque os que ficarão viuos tomauao toda a
praya. Dom João de lima que via tudo o que paíTaua no
batel, pSs os efpingardeyros no muro , e mandou ter muy-
la vigia, e poílo tudo a bom recado íe íoy ao poíligo com
dom Vaíco e todos os mais fidalgos , que todos íeriao até
corenta homens. Os mouros apontarão no batel algumas
peças de artilharia , e como erão muytos os pilouros, hum
delles lhe acertou, que leuou dous homens em pedaços , e
após ifto veyo fobre o batel Iiuma nuuem de frechas que
o cubrio , e infinitos pilouros de eípingarda, com que ou-
ue cinco feridos, mas nem por iíTo os noíTos deixarão de
remar tão depreíTa , que a vaga do mar os leuou a encalhar
na praya , onde acudirão l(>^go os mouros , e tomarão o
batel has mãos, porque o naõ tornaííe a leuar a relfaca da
onda i porem os noííos faltarão logo fobre elles , e ferin-
do-os
delRey Dom João o III. 523^
do-os com as lanças á mao tente , com grande trabalho os
fízeráo afaílar do batel , com que pudcrão cílender as lan-
ças , e tiuerâo lugar de íe porem em terra. Os mafinhey-
ros Portuguefes que erao féis , e hiaô também armados ,
largando os remos íairão em terra com lanças e paneilas
de poluora acefas, que leuauao em baldes de couro , e !an-
çandoas fobre os mouros queimarão muytos delles, porque
íc nao podião retirar; outros féis reineyros canaris de den-
tro do batel lançauão também paneilas de poluora íobre
os mouros com que os deíatinauão de maneyra , que cada
hum buícaua lugar por onde fugiíle. E eftando nifto che-
gou huma onda ao batel que o tornou a léuar para o mar,
onde os canaris trabalharão tanto que á força de remo íe
fairao do rolo, e íe puíeraô de largo olhando como os
noíTos peiejauao antre tanta cantidade de inimigos que
quad nao apareciáo. Dos mouros os que nao podiao che-
gar a ferir os noííos lhe lançauão tanta areya que os cega-
uâo , e os outros eílauSo taõ apertados cos noíTos, que nao
íe podendo feruir das armas trabalhauao pollos tomar has
m5os ; porem os noíTos nefce aperto íe aproueitarão de pu-
nhaés e adagas que todos leuauao , com que fazião afaílar
os mouros de fy. Neíle tempo hum marinheyro cham?.do
Nuno cailanho, que tinha huma efpada de ambas as raaos,
cficara antre os mouros que forao queimados, ferindo nel-
les o milhor que pôJe os fez arrdar tanto efpaçOjque lhe
ficou lugar para manear a efpada ha fua vontade , então
cortando por elles de huma parte , e doutra , porque lhe
não podiao fugir , fez tamanho lugar que os noííos pude-
rão abaixar as lanças, e aproueytarfe bem delias, com que
tratauâo muyto mal os inimigos, porem os outros mouros
que eílauão mais longe , e não podiãí) chegar aos nof-
íos , tirauão com muytos zargunchos darremefío com que
ferião tantos dos feus como dos noííos : nefta reuolta a ar-
tilharia da fortaleza também fazia grande eftrago nos ini-
migos , mas como erao mais os que acndiao de nouo que
os que morrião , mais creciao do que mingoauao ; e a for-
taleza também tinha então feu trabalho , porque era bati-
Ss 2 da
324 Primeyra Parte da Chroiiica
da por todis as partes , a que ella também por todas ref-
pondia no milhor modo que era poíHuel. Dom Vafco ven-
do que os noíTos eftauâo em terr;», e andauao afogados an-
tre os mouros, acompanh.^do de Jorfe de lima, António de
melo , Fernão de lima , Manoel de mendonça , António de
íerpa , António rabelio feitor da fortaleza, Duarte de fa-
ria , Fernão de melo, Diogo pirez dazeuedo, e outros ani-
moíos íoldados derao todos nos mouros com tanta fúria,
queosfizerao afaílar de maneyra que poderão chegar a
Chriílouaoju farte, que andaua ja com duas feridas , e An-
rique de íiqueira com huma zargunchada , de que daliy a
pouco cahio morto ; porem tanto que fe ajuntarão huns
cos outros íazendo todos marauilhas , fe vieraô recolhen»
do para o poíligo com aíTaz de perigo e trabalho , porque
aly apertarão os mouros muyto mais com elles , c era-lhes
forçado virem andando para traz co roíto nos mouros pe-
lejando íempre , e del^a mancyra apefar de toda a força c
poder dos inimigoíj fe meterão cio poíligo para dentro. Da
companhia de Chriílouao juíarte ficarão quinze mortos no
campo , e os vinte e três que ficarão viuos forao todos fe-
ridos, de que depois morrerão alguns- ; e da companhia de
dom Vaíco morrerão tHobem cinco , com que a» todo cuf-
tou eflc dia vinte e íeis Portugueíes. Os que cfcaparao-da
companhia de Chriítovaõ jufarte foraó elle, Manoel alua-
rez dalcunha o efcudeyro , Kuy freyre , Diogo das viílas,
Duarte ferreyra, Fcrnaô correa , António peçanha , Chrif-
touío antuncz, Francilco foarez, Fernão furtado, Francif-
co carualho, Artur de craílo, Fernão de barbuda. Pêro eíla-
•ço , Chriílouao íigueira. Os nomes dos mortos nao ponho,
porque os naô foube , que bem merecerão fer nomeados,,
mas nem iíTo lhe poderá tirar aquelle honrado nome , que
por ícus braços alcançarão neRe tao famofo e rao raro fei-
to. Os mouros ficarão m.uito enuergonhados de verem, que
nao forão poderoíos para defenderem a defembarcaçaõ a
tao poucos Portugueíes , e defpois de defembarcados en-
trarem na fortaleza ;e elRey lho lançaua em rofto muytas
Yczes 5 e eílaua de todo deíconíiado de fe elles poderem
deien*
dei ReyDom Joáo o III. 325'
defender do gouernador quando aly vieíle a focorro , de
que elles também eítauao com muyto receyo , c apertauao
de nouo fobrc illo co Italiano, que então andaua ocupado
em mandar íenouar os trabucos , e em quanto le eftes fa-
ziaó fez ajuntar huma grandiíTmia cantidade de gaíladores,
com que foy fazendo hum vallo de terra que os emparaua
da noíTa artilharia, e detrás delle acarretauao terra que
deitauaô íobre a outra meílurada com pedregulho , faxina,
c muytos páos,com que íe foi aleuanta.ndo tanto, que le fez
humaíerra tao alta como a fortaleza. Bem entendeo dom
João que a tenção daquella obra era chegarem com aquel-
Ja ferra ha fortaleza , para daly a combaterem ha fua von-
tade , com que elle e todos entrarão em grande receyo ,
porque íe naó viaó com forças para refiftirem a tamanho
poder j e ninhuma confiança tinhaõ fenao na mifericordia
do Senhor, por quem efperauao facrifícar aly as vidas; mas
como elle nunca falta aquém de verdade efpera nelle ,
mandou entaõdo eco huma chuua tao groíla e tao copio-
fa que penetrou a terra , que era leuadiça , de tal maneyra
que os gaíladores atolauaõ até a cinta , com que naõ pude-
raÓ ir com a obra por diante. Vendo enraó os mouros
que fe lhe acabaua o tempo do que elles cíperauaô de fa-
=zer , e fechegaua o de poder vir focorro aos noflos , peita-
rão groílamenteo Italiano, em auem tinhao roda íua efpe-
rança , porque fe deííe preíía naquelle negocio ; o qual de-
íiftindo da ocupação da ferra , a conuerteo toda a dar fim
a dous trabucos que tinha começados , que cm breue tem-
po acabou de todo , e os pôs ambos da banda da cidade ,
porque as pedras , que paííaííem alem da fortaleza, foíTein
dar fobre a couraça , onde era a defembarcaçaa , e as que^
acertaílem no muro e nas torre-s íeriao tantas que tudo po-
riao por terra. Eíles trabucos foráo aílentados o priniey-
ro dia d'Agoílo , de trás de beílioes de madeira , armados
fobre groííos vallos de terra tão altos , que íe não podiao-
ver da fortaleza fenão as pontas das braços quando aca-
bauâo de deípedir as pedras , as quais começarão logo a
lançar em muyta cantidade ; porem não tamanhas como as-
do
32Í Prímeyra Parte da Chronlca
do prlmeyro , e aíTy faziíío muyto menos dano , e o que
mais í"e íentia delias na fortaleza era a deíenquietaçao e
opreíTao grande em que todos andauao , que por ferem as
pedras muytas não auia lugar feguro delias. Eftaaa então
na fort.ileza hum mancebo de nação frainengo , criado de
Manoel cerniche , que tinha alguma noticia de fazer arti-
fícios de fogo: eíle mancebo fe ajuntou co condeftabre Dio-
go pirez , e ordenarão ambos humas bombas de certos
materiais poítas em groíías aíles , que metidas nas bocas
dos camelos ceuadas com pouca poluora , porque os tiros
foíTem fracos , as deitauTio fobre as cauas , com que quei-
marão muytos dos inimigos. O capitão vendo o bom eífei-
to deíle nouo artificio, mandou fazer tanta copia daquellas
bombas , que dous camellos tirarão todo hum dia com el-
las , e o principal intento era tirarem aos beftiôes , e por
acerto forão cair íobre as armações de hum dos trabucos,
que erão de madeyra , que começando a arder forao cair
fobre hum alpendere cuberto de ola , que eftaua ao pé do
trabuco onde fe agafalhaua a gente que trabalhaua nellc ,
e fe emparaua da chuua, e pegando o fogo na ola fe ateou
de tal maneyra que ardeo o alpendere todo e o trabuco
fem lhe poderem valer , e o fogo que fe ateou na madeyra
do beftiâo, que era muyta , durou quaíi toda a noite, dan-
do fempre tanta claridade que os noíTos camellos podiSo
bem tirar aos mouros que apareciao de quando em quan-
do, com que lhe fizerao tanto dano, que com medo afaíla-
ráo o outro trabuco mais atrás , e lhe fizerao hum tal re-^
paro que ficou íeguro dos noíTos tiros -, porem não fazia
muyto dano , porque não tiraua muyto certo , que foy pa-
ra os noíTos hum grande alluio , e a fortaleza fahio dum
grandiíTimo perigo. O condeftabre porem não deixaua de
ufar deltas bombas de fogo deitando-as nas cauas , e por
de trás dos vallos onde lhe milhor parecia , com que fazia
muyto dano aos inimigos.
CA'
dei Rey Dom João o líl. 327
CAPITULO LXXXIII.
Vranclfco de vajconcellos chefra a Calecut em huma galeota*
Duarte da fojifecavay pidir focorro ao governador que lo-
go o manda. Os mouros tornaÕ a pôr mão na ferra de ter^
ta ; os nojfos íb a impedem, Eitor da Jilueyra cap itão de
Cananor J ocorre a fortaleza,
nUarre da fonfcca enuergonhado com figo de não
_i^_, íeguir a Chriítouão jufarte , dctriminou do fair tam-
bém em terra , de que dando conta aos feus foldados lhe
refponderão , que todos eílauao preftes para o íeguirem,
polio que a outro dia fe pôs cm ordem com toda a gente
para o fazer; o que fendo vifto na fortaleza dom João lhe
mandou tazer final com huma bandeyra que o não fizeíTe,
de que ficou muyto lentido , parecendolhe que por não
fazer o que fízsra Chriltouão jufarte poderia ter alguma
quebra em íua honra. Dom João aquella meíma noite lhe
mandou por hum homem a nado huma carta para o gouer-
nador , e lhe mandou pidir muyto que lha mandaflc polia
carauella de Chriílouão juíarte, porque lhe mandaua dizer
nella, que importaua muyto mandarlhe forca de gente com
que pudefle ir dar nos mouros , c queimar o trabuco , que
para fe liurarem delle não auia outro remédio. Duarte da
fonfeca mandou logo a carauella com a carta , que fazen-
dolTe ha vella ouue vifta de outro nauio que trazia alva
proa , e tornando a íurgir até ver o que era , vio que era
huma galeota em que vinha Francifco de vafconcellos ,
porque tanto que o gouernador defpedio as duas carauel-
las, logo nas fuás coitas m.andou eíle Franciíco de vafcon-
cellos fidalgo honrado nefi:a galeota com boa gente , e lhe
deu ordem que chegando a Calecut fe a fortaleza eíliueíTe
com necefildade de mais focorro , elle com Duarte da fon-
feca íe fofl^em a Cananor pidillo a Eitor da filueyra , quq
por cftar mais perto lho poderia mandar mais facilmente ,
fobre o que lhe eícreueo também o gouernador. Franciíco
de vafconcellos d«u conta a Duarte da fonfeca da ordem;
q[ue
328
Pfimeyr-a Parte da Chronica
que Icuaua, e aílentarao que Duarte da foníeca folTe ao go-
uernador com a carta de dom João , para onde logo par-
tjo, e elle na fua galeota com a caraujlla de ChriftouaÕ ju-
íarre foy a Cananor a negocear o íoccorro com Eitor da
lilueyra. Duarte da fonfeca chegou a Cochim em três dias,
e deu ao gouernador a carta , e larga informação de tudo
o qiie era pa(Tado, que logo no principio fe moíirou algum
tanto colérico contra Chriílouao juíarte por treípaíTar o fea
regimento , porque nifto fe queria muyto obedecido ; mas
vendo que a hum taó honrado feito fe nao podia negar o
íeu preço , tornou logo a dizer que Chriftouao jufarte e
feus companjieyros nao íòmente erao dinos de perdão ,
mas de muyto louuor, pois o que íizerao fora indicio e ef-
feito dos feus grandes esforços , que nos inimigos auia de
caufar muyto eípanto , e quiçá nao pequeno medo, vendo
que tao poucos homens o naõ ouuerao delles , pois nao
duuidarao cometer a deícmbarcaçao , e a íeu pcfar delles
o leuarao ,10 cabo. Aquy íe lhe oíFereceo Francifco perei-
ra p^ílana , que fora capitão de Goa , para ir (ocorrer a
fortaleza, e giftar nilTo quanto tinha / o que o gouernador
Jhe agardeceo com muytas palauras, e muyto mais por-
que para as defpefas deíle focorro lhe emprefrou dez mil
cruzados, que o veador da fazenda lhe pedira, e o fez logo
embarcar em huma galeota por capitão mor da armada do
focorro até a lua ida, em que hia Duarte da foníeca na fua
carauella, Pêro velho em hum nauio, Gonçalo paez em hu-
ma barcaça, e x\ntonio da íilueira em huma galeota. E por-
que Francifco pereyra era largo de condição, íe embarcou
com elle tanta gente que nao cabia na galeota , que faindo
polia barra lhe quebrou o leme e tornou para dentro , e
pidio ao gouernador outra embarcação mayor, em que lhe
coubeíTe a gente e o comer para ella, e nao quis embarcar-
íe na gileota, de que o gouernador fe enfadou algum tan-
to , polia preíTa com que defejaua que fe fizeíTe aquelle fo-
corro ; então mandou partir todos os outros nnuios , de
que fez capitão António da lilueyra ate a ida de Francifco
pereyr.i , que íe partio cm hum bom galeão muyto bem
armado
dei Rey Dom João o líl. 329
armado , em que leuou paílante de duzentos homens hoa-
rados e fidalgos , e muycos mantimentos que comprou ha
íua cuíta , e afora iílo leuou huma fufta fua <:arregada de
mantimentos , e pêra fe íeruir delia em os mandar biiícar
fe lhe faltalTem. Após elle partio dom Afonfo de menezes
na galeoía que el!e deixara , a que logo íe concertou o le-
me , e Jerónimo de íoufa em huma barcaça com ordem do
gouernador, que do mar, o mais peno da terra que pudef-
íem j tiraílem aoarrayal dos mouros ^ para os deuenirem
algum tanto da fortaleza, mas que ninguém íaille em terra
íem feu mandado. Eftes nauios todos em faindo de Co-
chim acharão os tempos mortos , e com tantos contraftes
de chuueyros , que andarão gaitando muyto tempo pollo
mar, e a alguns foy forçado tornarem a Cochim •, ió Fran-
cifco pereyra efpcrou tudo foboila amarra por ir bem pro-
uido delias , e aíly chegou a Calecut com muyto trabalho
e muyta falta dagoa , polia muyta gente que leuaua. Após
clle forão também chegando os outros nauios , que
como hiao faltos de mantimentos lhos pidiao a elle , e
para poder íuprir a tudo mandaua a fuíla a Cananor çom-
prallos ha íua cufta , donde também fazia vir grandes al-
madias, que lhe trazia tudo o que lhe ^ra iiecefíario , com
que gaftou muito do feu em quanto durou eíle cerco , que
defpois neíle rey no lhe aproueitou muyto para feus negó-
cios , e com muyta rezao , porque deuido he ao bom íer-
uiço o bom agardecimento , de que a principal parte he a
boa fâtisfaçaô. Vendo os mouros quão pouco lhe fundião
lodos os íeus trabalhos e inuençôes, fe tornarão ha obra da
lerra que tinhao começada , porque então eílaua ja a terra
tão feca, que daua lugar para fe trabalhar nella , e a foi-ao
chegando cada vez mais para a fortaleza na altura dos meí-
raos muros , com tençío de cegarem a noíTa artilharia , e
entrarem por aly a pelejar cos noíTos dentro ; com que
dom João não deixou de entrar em grande receyo , por-^
que na fortaleza não auia mais que cento e cincoenta iiQ-
mens , que pudeíTem tomar armas , pollo qual , por çoafa-
Iho de todos , fizerâo de noite com aíTaz de trabalhg fohre
Part, L Tt o mu-
33^ Primeyra Parte da Chronica
o muro da banda da albarrada ( que efte nome tinha an-
tre elles aquelia íerra ) huma forte tranqueira de groíTas
vigas aradas e pregadas humas nas outras , tanto mais alta
que a aíbarrada, que de cima delia fe deícubrião os gafta-
dores , e entulhada por dentro ficou tão forte , que fe»
guramente fe podia pr^ntar nella artilharia. Vendo oí
mouros pela menham a tranqueira, lhe derão muytas gri-
tas e apupadas , zombando c cfjarnecendo delia , e com-
tudo rrabjíharao por leisar ao alto da íerra alguma artilha-
ria para lhe tirarem ; mas não puderao, porque como a
terra era íolta tornaua com elles para trás : os noííos pu-
Jerão em cima da tranqueira féis falcões pedreiros , que
acompanhados de vinte elpingardeyros , que tirauão com
elles juntamente , não deixauao os gaíladores chegar ha
obra j e aíly nao hia por diante ; porem nao deixando de
bater a fortaleza quanto podiao de dia e de noite , lhe ti-
nhãoja os muros rotos , e cheyos de buracos por muitas
partas, com que aos noíTos creícia cada vez mais o aperto
e o receyo , pollo grande dano que recebião do trabuco ;
e vendo os m.ouros que nao podiao fazer chegar os gaíla-
dores a continuarem com a obra da ferra , puferao em ci-
ma do que eftauã feito delia muytos eípingardeyros, que
tirauão aos noííos, e lhe fazião algum dano -, porem a nof-
ía artilharia com muytos tiros aííy de pilouros, como das
bombas, os metião muyto por dentro, porque os que acer-
tauão matauão muytos deilcs , e muytos fazião tornar ro-
dando polia íerra ab.=iixo. Eitor da lilueyra capitão de Ca-
nanor, inda que fabia bem o aperto cm que eílaua a forta-
leza , deixaua de lhe acudir por falta de embarcações gran-
des ; porem tanto que aly chegou Franciíco de vafconcel-
los com a fua galeota , e carauella de Chriílouão jufarte^
entregou a fortaleza ao alcaide mór com cem homens ,
e com toda a mais gente fe embarcou na carauella , e
acompanhado de íeis paraos , que tinha carregados de
bifcoito , carne , pefcado , farinha , cocos , arroz , açú-
car tudo em fardos pequenos e maneaueis , e iruytas
galinhas cm íahnoura , e ouos , e cem pancilas de pol-
uora.
dei Rey Dom João o III. 551
uora , foy furgir em Calecut junto com a terra , onde
acudirão logo os mouros cuidando , que queria deíembar-
car ; e não deixara de o fazer fe em íurgindo lhe não fize-
rão da fortaleza íinal que o não fizeíTe ; então eile da ca-
rauella e Francifco de vafconcellos da galeota começarão
a dar grande e continua bataria ao arrayal , que também
Jhe relpondia na meíma forma ; e como foi noite auiuarão
os noílos nauios mais a bataria , para diuertirem os m.ou-
ros, e os fazerem perder o tino da defembarcação, porque
fazia grande efcuro -, e como ja tinha feito final lia forta-
Jcza para virem tomar o que Icuauao os paraos , mandou
pôr tudo na couraça polios marinheiros malauares de Ca-
nanor, que o fizerão com muita preíleza; e dom Vaíco re-
colheo tudo pollo poftigo não íem grande perigo dos pi-
louros perdidos , que de todas as partes tirauão ha defem-
barcação ; e porque dom João mandou dizer a Eitor da
íilueyra que não tinha neceílidade de mais gente, que a que
tinha , para defender a fortaleza até a vinda do gouern.a-
dor 5 fe tornou o outro dia para Cananor, ficando os mou-
ros muyto oufanos por lhes parecer , que com medo não
oufara a deícmbarcar ; porem dom. João mandou tirar com
alguns cocos a huns negro?, que pafíavão pollo pé do mu-
rOjque ellcs recolherão e icuarão ao arrayal, dizendo que
da fortaleza lhe tirarão com elles , de que os mouros fi-
carão affaz confufos , cuidando que os noíTos eftauão tao
bem prouidos de mantimentos , que não faziáo cafo dos
cocos.
Tt 2 CA-
332» Primeyra Parte da Chroníca
CAPÍTULO LXXXIIII.
lErancifco pereyra pejiana chega a Calecut ; manda humpa-
rao ha fortaleza carregado de mantimentos \fobre a def-
embarcação aniles fe traua cos mouros huma ajpera briga ^
em que morre hu,n caimalfeu-y e o que elles fazem para,
auerem o [eu corpo. Os mouros ordenaÕ efcadas para fubi-
rem ao muro. O gouernador dejpeds dom SimaÕ de menezes
a focorro com dez-ajfeis vellas. De Goa vay Pêro de faria
com vinte vellas a focorro.
Pvancifco pereyrd pedana , que defpois de partir de
Cochini teue cantos contraíles do tempo, que nao po-
de chegara Calecut: fenáo ji no mes de Setembro , achou
ahy Francifco de vaíconcellos na galeota, que lhe deu con-
ta do que tinha f'-ito , c do focorro que trouxera Eitor da
iiíuejra , com que a. fortaleza eftaua bem prouida ; porem
Franciíco pereyra não quis deixar de lhe mandar o íeu , e
carregando de mantimentos a hum parao grande que leua-
ua, meteo nelie cinco marinheyros Portugueíes, e féis ma-
lauares, e os mandou a terra , e que meteílem na couraça o
que leuauão , e elle do feu galeão e os outros nauios derao
entretanto huma grande bataria ao arrayal. Os mouros
vendo o parao encaminhar para terra, o deixarão chegar, e
começar a defcarregar, de que dom João ficou aíTaz agaíla-
dò, porque o perigo era grande, e a neceíTidade pouca, por
tlh eílar então bem prouido, e quando aos mouros lhe pa-
receo tempo , acudirão Q'ambas as partes, tirando inuytos
tiros ao parao , com que forao mortos dous Portuguefes ,
e os mais remeyros feridos, que vendo arremeter os mou-
ros fugirão a nado, e defempararão o parao , que os mou-
ros leuaião abaixo da fortaleza com todo o mantimento
que ainda tinha dentro. Dom João cheyo de cólera acudio
ao poíligo , e dom Vaíco íahio fora com feííenta homens, e
a pelar da multidão dos inimigos, que achou diante, reco-
Iheo o mantimento , que eílaua em terra ; ao que acudirão
louytps mouros de noao , que o puícrão em taato aperto ,
dei Rey Dom João o III. 533
quefoy neceiTario fair [o meímo dom João com vinte ho-
mens de refrelco , que ôs recolheo com aíTaz de traballio.
Os mouros , que então não acudirão a efte rebare , vendo
os nollos tao apertados , fe atreuerao muytos a chegar taõ
perto do baluarte de madeira, que eftaua defronte da por-
ta da fortaleza , que lhe lançarão fogo , que logo fe ateou
nelle, e foy em tanto crecimento, que os noílos começarão
de recear, que lhe queimaíle a porra , por onde acudio aly
muyta gente , e com níuyta areya, que lhe lançarão em ci-
ma com bem grande trabalho, prouuea noílo Senhor que
o apagarão íem. os mouros lho poderem defender; porque
duas peças, que na fortaleza eílauão daquella parte, e a ar-
tilharia do mar íizerão tamanho eílrago nelles, que de to-
do os puferão em fugida^ porem iá da pane de Cochim acu-
dirão tanta cantidade de mouros , que os noíTos effiuerãò
quafi de rodo perdidos , e ouuc aly então a mais trauada
briga de quantas ouue em todo aquelle cerco ; dos mouros
ficarão morros mais de trezentos, e anrre elles hum caimal
que então fora íeu capitão, que íe achou m.orto de huma ef-
pingardada na cabeça , veílido em huma cabaya de veludo
de Meca encachado com pan^os de feda; íobre o corpo dei-
te caimal acudirão muytos mouros para o leuarem, mas não-
puderão por cauía da nofía artilharia , que nefte dia deixou
os pilouros , e tirou com rocas de p-edra , porq.ue afy fazia
mais dano aos inimigos ícm o fazer no mar aos nauios.
Dos Purtugueíes forão morros três, e feridos mais de trin-
ta, e também o foy o mefmo dom João em huma perna de
hum pilouro perdido de efpingarda , que o tratou tao
mal, que o obrigou a eílar na cama , e em íua auíencia fi-
cou dom Vafco fervindo de capitão. Os parentes do cai-
mal morto , vendo que por força não podião auerlhe o
corpo ha mão , com licença delRey mandarão o Irnliano
em companhia do Baítiáo rachado , que com huma bandei-
rinha branca chegarão a auer fala dos noffos , e pidirão li-
cença para tirarem daly os corpos morros : dom João en-
tendendo bem., que o ícu principal intento era recolherem
ç corpo do caimal, e que fe aquelles corpos aly apodre-.
• cefscni.i
334 Prlmeyra Parte da Chronica
ceOem lhe poderia fer caufa de grandes males , lhe deu a
licença que pedião , com tanto que tiraíTejn primcyro to-
dos os outros corpos, e o derradeyro foííe o do caimal \ c
afly íe fez em paz , cora que também os noíTos forao en-
terrados na tranqueira ; e dom João mandou tirar a madey-
ra do baluarte , e recolhella na fortaleza, deixando fómen-
re os eíleyos ,em que fe não podia atear o fogo tão facil-
mente , e por entre tanto íicarâo os noíTos com mais quie-
tação, e menos trabalho , porque não auia mais que huma
continua bataria , que fe daua ha fortaleza , e aos nauios
no mar , donde também lhe reípondião o milhor que era
poííluel , e com todo o refguardo da artilharia. Naceo en-
tão eíle foíTego da pouca efperançi, que os mouros ja ti-
nhão de tomarem a fortaleza ; porque o Italiano enge-
nheiro tinha ja chegado ao cabo com todos os fcus ardis
e inuençoes, e não fe occupaua era mais, que em reformar
os trabucos, que muitas vezes fe lhes defconcertauao com
a muyta continuação do tirar, que para os noíTos era gran-
de aliuio, porque mayor dano recebião dos trabucos, que
da artilharia. Com tudo os mouros , por não moílrarem
fraqueza , fizerao outras mantas com huma certa inuençao
de efcadas para fubirem aos muros ; porem tudo foy de-
balde, porque os noíTos com as bombas de fogo lhas
queimarão facilmente. D^fpois de fer che gado Francifco
pereira a Calecut , onde também chegou António de mi-
randa cos navios que atrás diíTe , defpedio o gouernador a
dom Sima5 de menefes capitão mor do mar com dezaíTeis
vellas de remo , gales, galeotas, fuíTas , e bargantís , com
muyta gente, mantimentos, e munições para o ce-co, e lhe
deu regimento , que defpois que viíitaíTe Calecut , paíTaíTe
auante, e correíTe a cofia, e todos os rios delia , e todos os
nauios, que tomaíTe no mar, mandaíTe a Calecut, e lá foílem
queimados; o qual partio a doze de Setembro; e juntamen-
te com elle mandou recado a Francifco de faa capitão de
Goa , que deixando na cidade a gente que lhe pareceíTe ne-
ceíTaria , toda a mais mandaíTe a Calecut com todos os na-
uios, que pudeíls, carregados de mantimentos, e munições.
dei Rey Dom João o III. 335'
c que iílo mandaíTe as mais vezes que pudeíTe , principal-
mente arroz em zambucos e náos da terra, para gado dos
marinheyros , e eícrauos , o que Francifco de faa fez com
muyto cuidado , e em muyta abundância ; e também lhe
^andou dizer o gouernador , que fe ahy chegaiíem náos
do reyno, náo confentiíle deícmbarcar a gente , mas que
Jogo le folTe a Calecut. E logo de Goa partio Pêro de faria
fidalgo honrado com vinte fuílas carregadas de manfimen-
tos , e muyta gente dos caiados da cidade ; e todas eílas
preiíençoes,^^ fazia o gouernador, porque tinha derriminado
nao íe abalar de Cochim para Calecut fem primeyro ter lá
junto todo o poder dalndia, entendendo que aíTy compria,
pollo grande poder de inimigos , que eftaua íobre a forta-
leza ; porque no arrayal auia então dous mil efpingardey-
ros , e mais de dez mil mouros de toda a cofta da índia ,
afora os dez mil naires, que elRey aly trouxera; e como el-
le eílaua aly preíente, cada dia lhe vinha genlQ de refrefco,.
porque eftaua com detrimínaçao de nao leuantar o cerco
até tomar a fortaleza, ou fe perder fobre iíTo ; de que tudo
tinha auifos por Duarte fernandez de lima, que andaua em
trajos de jogue •, e o que mais mouia o gouernador a fazer
eíla grande preparação antes da fua ida a Calecut era a
grande diíHcuIdade, que aly auia na defembarcaçao, por o
mar andar fempre de leuadia , e arrebentar muyto na
praya , que era grandiíTimo perigo para a gente , que auia.
de defembarcar com as armas has coitas,
CAPITULO LXXXV.
O que focede em Cochim fobre três eJlrAngeyros^ queje pren"
àerão.
Ogo como o gouernador chegou a Cochim, em quíín-
f to daua ordem has armadas , de que atrás fiz menção,
naquella paíTagem que ha da ribeyra ha outra tp»-ra,que
eílá defronte delia , onde chamáo Vay Pim, em que indao
muytas almadias com negros da terra, que paííaõ a gente
de
33^ Primeyra Parte da Chronica
de hunn parte ha outra , foccdeo que paíTando huma noi-
te numa almaciia de'ílas três naires eílrangeiros , os negros
que remiuaô nella prcpaíTando por huma carauella , que
eftaua no rio , do bordo delia furtarão iium berço de me-
tal, e querendo o meter na almadia forao fentidos dos que
eítauao na carauella , que começando a dar vozes , os ne-
gros fugirão a nado , e os naires fe deixarão ficar aí-
fentados na almadia com íuas efpadas e adargas , como
homens que fe não íentião culpados ; os marinheyros da
carauella os leuarão logo a terra a caía do ouvidor , que
defpois de lhe fazer perguntas ,c elles refponderem que
naquelle caio não tinhâo culpa, que os remeyros, que n'al-
madia os palTauao ha outra banda, a tinhao toda , os man-
dou por então meter no tronco , e polia menham foy dar
ronta ao gouernador, que moílrou folgar de colher eíles ,
cuidando que eraô os delinquentes, para pagarem os muy-
tos berços que íe furtauão dos nauios que eftauão naqiielle
rio ; e mandou logo dizer a elRey , que elle tinha prefos
três naires íeus , que forão achados de noite em huma al-
madia fartando hum berço de hum nauio , que lhe pidia
muyto , pois erao ladroes , os mandafíe enforcar na raeí-
ma carauella , onde iizerão o furto, para caftigo doutros ,
porque, fe o elle não mandaííe fazer, elle os mandaria en-
forcar logo. ElRey mandou o feu regedor com repoíla ao
gouernador , e antes de lhe ir falar foy ter cos naires , que
eílíuão chorando muyto injuriados de os prenderem por
ladroes, fem terem culpa, e lhe contarão o caio como paf-
lara-, o regedor fe foy então ao gouernador, e lhe dlííe, que
aquelles naires erao de hum caimai, que auia poucos dias
que viera vifitar elRey , e como nouos naquella terra não
fabião o que hauia naquella paflagem , nem tinhao para
que fazer aquelle furto •, que os negros da almadia, que os
paíTauão, erao os que o fizerão, e bem. fe prouaua,pois em
ouuindo bradar fugirão a nado , e os naires fe deixarão fi-
car quietos , que elRey lhe pidia muyto lhos mandafTe en-
tregar , e íe tiueíTem culpa elle os caítigaria íegundo feu
cuáumc , e que ihe iembraíís que os Portuguefes, que elle
toiíii-
dei Rey Dom João o III. 537
tomaua em íua terra em algum deUro, não fazia mnls que
prendellos ,e mandarllios prefos , fcm procurar n^ais por
íaber ie os caftigaua, ou nao, pollo qual lhe quifeíTe guar-
dar íua honra , como fizerao rodos os outros gcusrnadores
paíTados. O gouernador , como tinha por natureza tornar
mal atrás do que huma vez intentaua , refpondeo ao re-
gedor , que os ladrões aly auiao de fer enforcados onde fa-
zião os furtos, e que aly na ribeyra auia de mandar enfor-
car aquellcs, íe elRey o não quifeííe mandar, e clle não
fiizia|niíío couía que ÍoCíq contra a honra delRey, pois
lhe mandiíua dizer que fizeíTe julliça delles t a que ore-.
gedor lhe tornou, que olhaíTe bem o que fazia , e lhe man-
daíTe entregar os naires, porque le o não fízeíle quiçíi foce-
deria dahy algum grande mal , a que íe não poderia dar
remédio : eíla repoíla tom.ou o gouernador muyto a mal,
parecendolhe que era ameaço , e lhe diíTe, que a elle nin-
guém podia fazer mal, e ellc o podia fazer a q.uem. quizef-
ie , e com iílo lhe mandou que fe foíle. Eíla repofía deu
o regedar a elRey eflando prefente o caimal íenhor dos
naires, que eítranhandoihe muyto fofrer aqucllas coufas ao
gouernador, lhe pidio Jicença para eile em pe fio a lhos
ir pidir , e fe lhos não deíTe-, fazer o que cumpria a íua
honra: clRey lhe diíle, que fc tiraííc da cólera^ porque clle
lhe entregaria os íeus naires ; e tornou a oiandar o rege-
dor que foííe dar conta ao capitão da fortaleza , que era
Pêro mafcarenhas , e ao veador da frszenda, e aos fidalgos
que aly eílauão, do agrauo cue lhe fazia o gouernador , c
qua vifTem bon? o que cumpria ao íeruiço delRev de Por-
tugal , porque clle nada auia de perder de fua honra. O re-
gedor o fez ciílv , e defpois de falar ao capitão e ao veador
da fazenda , fe íoy a cafi de dom Simão de mcncfcs, onde
achou Fernão goaiez de lemos , Franciíco pereyra , Bií-
tião de foufa, e loao de melo da íilun, e a todos juntos deu
o recado delRey , queixandoííe rauyto da fem rezão que o
gouernador lhe fizia, e das repoílas que daua fem lhe que-
rer guardar fua honra , que lhes pidia muito que de tudo
Lhe foíTem teítemunhas. Eíles fidalgos , a qusm deite nego»
Farí, I, Vv cio
338 Primeyra Parte da Chronica
cio nao tinha atJ então chegado noticia alguma, ficarão
muyto efpanrados , c auendo que o goucrnador cometia
huín graude erro , detriminarão de meter a mão niílo, aíly
por lho mandar nidir clRey de Cochim , como principal-
mcnre poUo que cumpria ao feruiço delRej, e bem daquel--
]e eílado ; e todos aíly como cílauão fe forao ao goucrna-
dor , onde ja acharão o capitão, e o veadcr da fazenda em
grandes debates com elle íôbre o mefmo , a quem clle tef-
pondia que o nao emendaíle ninguém, nem o aconíelhaííe
lenaõ quem elle qaifeíT..:. Os fidalgos com tudo lhe de-
rao também manas rezoens em fauoriieiiley de Cochimy
Jembrandollie a amizade que tiniui comnoíco , e as boas
obras que tinhamos recebido- delle , que nao era rezão
agraualio por tão pequena coufa , e todas íe refoluião em
Ib.p mandar entregar os naires para elle fazer juftiça del-
les ; a que o gouern-ador não deu outra repoíia íenaõ que
nao auia de ccnfentir que dianre dos feus olhos lhe furtaf-
íem a artilharia deilley fem caíligar os ladrões, que lha fur-
rauão : e querendo o ouuidor , que efcaua preíente, delcul-
par os naires , e pôr a culpa do furto aos negros remeyros,
o tomou o gouernador mal , e llie reípondeo aíperamente :
os fidalgos porem não deixarão de apertar tanto co gouer-
nador, que liies veyo a dizer, que eftarião os naires preíos
alguns dias , e então os mandaria foltar •, com que le dcí-
pidirão delle , e cfta rcpoíla mandarão a elRey ', que elle
não tomou mal , íabendo ja a natureza do gouernador ; c
deu conta aocaimnl do que paíTaua , e que paílados três
ou coatro dias lh'entregarião, os feus naires; porem paf-
fando fete ou oito fem os íoltarem, íe mandarão elles quei-
xar ao caiínal , que de nouo fe foy a queixar a clPvey im-
portunando© muyto, que lhe fízeíle íoltar os naires para íe
lanarem , que cftauão cujos e fedorentos , que he a coufa
mais contraria de todas ha fua faífa religião. ElRey ven-
doííe tão importunado pareceolhe bom coníelho , que o
caimal em peíToa foíTe pidir os naires ao gouernaáor, e pa-
ra iíío mandou chamar o feitor da fortaleza, e lhe diíTe que
© leuafle comfigo , porque elle ^queria ir pidir ao gouer»
nador
, dei Rcy Dom João o III. j^p
nadoraquelles naires, que erao íeus parentes , e elJe inan-
daria o feu regedor que os acompsnlhiíTe : o feitor ieuou
comfígo o caimal, e o apreíentou ao gouernador íaindo da
fortaleza para ir á miíTa, e deípois de lhe fazer o caimai íua
coneíia, o regedor lhe falou por elle, e lhe dilTe o a que vi-
nha : o gouernador como o ouuio foy por diante dizendo
X}ue deixaíleeftar os naires prefosjque erao ladroes, que el-
Je os mandaria foltaryem quanto o gouernador hia andando
lhe ficou o caimal detrás ha mão direyra junto do hombro ,
e elle e o regedor lhe hiáo falando naquelia matéria , de
que importunado o gousrnador difie, tirem lá eíle malauar,
e dando co braço pêra trás íem olhar o que fazia , acertoa
de dar ao caimal com a ponta de huma cana de bengala ,
que leuaua, no beiço de cima , que tocando nos dentes lhe
iahio hum pouco de fa.-.gue, que lhe foy ter aos panos bran-
cos, de que hia veftido; o qual em vendo o Tangue parou lo-
go^, e defpois de enxuto ie foy muito injuriado , e ?huns
naires f:^us, que hiao com elle, quiferaó logo dar nos For-
tuguefes que andauáo polias ruas , mas o regedor lho nao
coníenlio, e íe forao em paz-, e chegando o caimal perto das
cafas delRey,!em entrar a falar cem elle, mandou dar Tuas
gnus,a que chamão cucuyad.is, a que em breue erpr-ço acu-
dirão paííante de dous mil naires com luas armas, econran-
dolhe o que paliara co gouernador, fentido muyroda inju-
ria que lhe fizera , lhes pidio que quifeíTem tornar por íua
honra, a que rodos íe offerecerao até morrerem, por iílo-; e
os íeus parentes fe raparão logo , que he final de pelejarem
até perderem as vidas, c detrim.inarão de dar ante menham
ra pouoação, e matarem quantos Portuguefes achaílem.El-
Rey mandou chamar o caimal para ver íe o podia abran-
dar; porem elle nS.o fónrentc não quis vir, mas com itiuytas
queixas delRey íe foi chegando com a íua gente ha pouoa-
ção, para em íendo tempo darem nella; do que fendo eIRey
auiíado, mandou também dar fua cucuyada,a que fe ajun-
tou grande numero degente, e mandou dizer' 30 caimal,
que naõ paílaíTe auante, c fenao q elle meímo o iria bufcar,
c darlhe a morte, ja que hia pelejar cos Portugueíesj a que
Vv 2 elic
34^ Píimeyra Piírte da Clironlea
elle refpondeo , que ja cílaua poílo em perder a vida
por íua honra , que tanto lhe monraua perdella has fuás
inãos dclle , como has dos Portugucfes. ElRey com eíla
repoíla mandou logo chamar o feitor , que dormia na
cafa do pefo com alguns Portugucfes de feu feruiço , c lhe
deu conta do que paííaua co caimal, e lhe diíTe, que o fizera
vir don-de eílaua , porque lá lhe nao aconteceíle algum de-
íaftre , e também porque não mandaíFe auiíTar o gouerna-
dor deíla reuolta , que quifeíTe íair com gente , de que re-
í-ultaííc algum grande rralialho: e que elle rinha mandado
tomcir todos os caminhos por homens ícus, para que nin-
guém lhe pudeííe leuar recado diílo; e lhe prometeo que
elle em peífoa- iria ter co caimal a fazello deíiftir da fua de-
triminação : o feitor com a deuida corieíia lhe deu os dc-
uidoc agardecimentos, e Ihepidio c -.n muyta inftancia, que
aíTy o fizeíTe , pondollie diante quantos Portuguefes tinhao
perdido as vidas por íeu íeruiço , e polia defeníao do feu
rcyno: e fabendo elRey que o caimal com a íua compa-
nhia queria paííar polia lua cftrada para ir dar na pouoação,
íahio das luas cafas com loáa íua gente , de que elle hia na
dianteyra , e fazendoos parar a todos fe chegou elle fó ao
caimal, ecommuytos afagos e boas palauras Ihepidio
que nao quifeííe ir com aquella paixão ao cabo , ao que
nao querendo dar orelhas nem elle, nem os feus parentes ,
eIRey com muyta cólera , por lhe não obedecerem , poílo
no meyo da eftrada com a adarga deitada pollo chad a gran-
des vozes fez o- feu cofbumado juramento pollos íeus pa-
godes , polia barriga de fua may , em que andara , polias
tetas que mamara, e polia caualaria que tinha , que por
hum íó delies, que paííalTe daquelle lugar onde elle eílaua,
fe auia ellc de, matar com a eípada que tinha na mão , e
deípois (eus vaílallos vingariao fua morte , porque eílaua
obrigado a defender os Portugueíes ate morrer por iíTo ,
porque o tinha aíTy jurado , e elles confiados na fua ver-
dade eílauao dormindo feguros e fem receyo, e o Rey, que
folTe falío,{e nao cumpriííe fua palaura,e íeu juramento, não
merecia ter vida ; e com iílo pôs o íio da cfpada na gar-
ganta.
dei Rey Dom João o III. 341
ganta dizendo, que olhaíTem todos que lhe erao tredoreSjfe
confeYitião que íe mataíTc fendo Teu Rey e fenlior : o que
vendo o caiinal, e todos os fcus , fe lhe lançarão aos pés, e
tapando os olhos com as mãos diíTerao, que por não verem
tal coufa como aquella, querião antes perder as vidas, que
aly lhas mandaíTe tirara todos , mas não deixarão de lhe
dizer que viíTe, que lhes tolhia a vingança da lua injuria ,
e tornar por fua honra , que elle o fazia como Rey catiuo
dos Portuguefes , que cada vez erão piores : e com ifto ni-
nhum entrou na eftrada, e fe tornarão a recolher ; e elRcy
leuou o caimal comfigo, e tantas razões lhe deu , e tantos
mimos íhe fez , que em fim o ouue de amartfar -, e man-
dou ao feitor que fe foíle ao pefo , e por mar em iium to-
ne fofle dar conta ao goucrnador do que era paífado ; e da
foa parte lhe pidiíTe muyto, que co caimal , que elle tinha
Gomíigo em fua caía, quifeíTe ter algum comprimento, com
que íicalTe em alguma parte fatisfeito , e os feus parentes
contentes ; porque com iíso fe efcufarião difíerenças edeí-
mandos ao diante.
CAPITULO LXXXVÍ.
O gouernador manda faltar os nayres \ elle em psjjòa os Z?-
ua a clRey de Cochim. Detrimina cercar a cidade , e coff*
tra o parecer de todos inftjle em o fazer , e o que fohre tJ]o
pajfa com eiRey •, euijim muda ejta obra cm outra,
POuco íe deteue o feitor em fazer o que elRey de Co-
chim lhe mandaua , e chegando ao gouernador lhe
deu conta do que era paísado , e do que elRey lhe manda-
ua pidir , de que o gouernador aílaz efpantado , entenden-
do bem o mal que pudera foceder, íe o caimal chegara ao
cabo co feu propofito , mandou logo a Diogo pereyra que
foíse foltar os naires , e os leuou a fua caía ; e defpois de
fe lauarem e alimparem , e lhes dar panos de feda e barre-
tes vermelhos , o gouernador os Vomou comfigo , e a pé
com a íua guarda ç todos os fidalgos íe io^ a cafa delRey ,
que.
342^ Primeyra Parte da Chronica
que o veyo receber ha porta , onde feitas fuás corteílas
pidio perdão ao csimaí com muitas palauras do que pafsa-
ra por elle , aíirmandolhe que com a cana lhe tocara por
defaílre , fem ver o que fazia; e a iílo lhe ajuntou tantos
compriíiientos e fatisiaçoes parante os feus , que todos fi-
carão contentes , e ellley muyto mais,afsy por iílo, como
por ter dado moftra aos Portugueíes de huma amizade tao
verd.uicyra, que o obrigou a pôr a vida por elles; com iílo
íe defpedio o gouernador, e fe tornou ha fortaleza, c prati-
cando poUo caminho cos fidalgos lhes difse , que para fua
condição nunca fizera coufa tanto contra fua vontade,
nem em que mais íe forcaíse que aquella, o que todos
Jhe eflranharão , e lhe derao muytas e muyto viuas rezoes
para fer bem feito o que fizera ; porem a elh; não lho pa-
rcciáo : e não deixou de pôr culpa aos gouernadores pafsa-
dos por não cercarem Cochim de muro para eílar feguro
de femelhantes fuceísos. A ifto lhe refpondeo Franciíco
pereyra peftana , íenhor dai ao demo a terra que não ha de
eílar íegura íenao polias armas ; e que milhor muro pude-
ra ter Cochim que a boa e verdadcyra amizade, que elRey
tem comnoíco ? Fa^^amos nós o que deueraos, que efse le-
rá muyto mais forte muro, que o de pedra e cal , e ahy ci-
taremos mais íeguros, que com as portas fechadas; porem
o gouernador cerrando as orelhas a todas eílas razões aí-
íenrou comfigo de fazer o muro , e praticandoo cos que
crão do íeu feyo, qqe lhe falauão ha vontade ( que onde
quer que ha hy mando nunca falta eílc máo género de gen-
te ) ílio gabarão , e que faria huma coufa muyto acertada :
e dando conta diíso ao capitão da fortaleza Lopo vaz de
íampayo ; e ao veador da fazenda lhe difserão que a obra
feria muyto boa, porem que importaua muyto fazerfe cora
aprazimento dclRei , e pidirlhc licença para ella, porque
fendo doutra maneyra eíiaua certo efcandalizarfe elle mui-
to , e a tello por grande afronta íua : pouca impreísaô
fez iílo no gouernador para fe mudar do íeu propoííro,
e tratando defti miterla cos fidalgos , não em forma
de lhes pidir nella íeus pareceres , fenáo como em pra-
tica
delRey Dom João o ÍII. 343
tica ordinária , lhe diíse que fe Cochim cíliucrçe cercado
de muro , nao eílaria arrifcado a hum tamanho deíafcie co-
mo pouco há fe lhe aparelhaua , nem os malfeitores pcde-
riao cícapar ; porem todos elles a huma voz lhe difserao,
que quando fe ouuefse de fazer aquella obra aula de fer
com expreíso mandado delRey de Portugal , e quando o
gouernador da índia fem iTsa a quiíeíse fazer , auia de íer
com licença e tanto gofto delRey de Cochim , que elle
me imo lhe mandafse trazer as achegas para a obra , co-
mo fizera para a fortaleza : e que tudo o que íe fizefse
com ■ eícandalo ou defgoíto fcu podia vir a fcr muyto
perjudicial para aquelle eílado : táo pouca impreísao íize-
ráo no gouernador eítas rezoes como as primeyras , antes
mandou ao veador da fazenda , que fízefae ajuntar na ri-
beyra mujfa pedra e cal , e todas as mais acjiegas ; e indo
hum dia ouuir mifsa a huma ermida, que aly eílaua da in-
uocaçHo de Nofsa Senhora de Goadalupe , deípois de ella
acabada , mandou vir os aiifantes ,e atrauefsando daly da
ermida por fora da pouoação direytoha cerca do moef-
teyro de S. António, fez ir arrafando tapigos que aly auia,
deítruindo quintaes, derrubando cafas de madeyra, cortan-
do palmey ras , e outras aruores , em largura de meyo jogo
de bola, com que íe fez afsaz de perda: fendo elRey auiíado
difto, fe veyo com muyta preísa em cima do ícu alifante
onde o gouernador eílaua, e pondo os olhos com íembran-
te carregado no que os aiifantes faziSo , lhe diíse o gouer-
nador, fenhor por aquy quero fazer huma parede até fanto
António com portas fechadas , porque algum ruim nao fe
atreua a nos vir fazer de noite o que o outro dia nos qui-
zera fazer o caimal. ElRey forrindoíe em modo de zom-
baria lhe reípondeo , toios os outros gouernadorcs forao
paruos, tu íó es o auiíado -, quem te deu efse confelho nao
he meu amigo , nem deiL^ey meu irmão , porque os Reys
de Cochim nunca fizerao mal aos Portugucfes , nem con-
ícntiraõ que outrem lho fizefse; eila terra he minha, e tu fa-
zes o que elRey de Portugal nao fizera íem primeyro me
pidir licença j faze a parede por onde quiferes , e co que
ficar
344 Primeyra P?.rte da Chronica
ficar de fora não entendas , porque he meu , e o de dentro
íeja teu em quanto cuquifer: de que o gouemador ficou
muyro roínado , ma« o dirsiniulcu o rnilhor que pode. O
veador da fazenda , que eftaua prcíente, lho difse, que por
jiinhuma ocafiíío que foíse fe hauia ác fazer agrauo a el-
Rey de Cocliim , que fempre fora bom e leal amigo dos
PortuguefeSjde que era bem clara moílra o que agora fizera
cocaimal; que tinlia muyra rczão de le eícandalizar da-
quella obra, que era argumento de le ter nelle pouca confi-
ança , e era bem diíFerenre termo do que clRcy de Portu-
gal víara íempre com elle , mandandolhe entregar as cíia-
lies da fortaleza quando o gouernador íe partia para fora
jda índia -, com a qua! confiança , que elRey nofso fenhor
moílraua ter dclle , íe auia por tao honrado e tão obriga-
do , que fempre fe nos moílraua tão bom amigo como tí-
nhamos viílio por experiência : com cilas rezôes e outras
muytas, que os fidalgos lhe derao, cahio o gouernador no
erro que fazia , mas pollo naô confcfsar de todo , nem dar
a entender que polias rezõcs , que dauao, fe decia ào fcu
propoíiro , refpondeo , que acerca fe auia de fazer, e
fofse o que fofse , que como entrafse o verão faria pôr
mão nella: e defejofo com tudo de não ir com aquella obra
por diante, fem í^e cuidar dclle, que a deixaua de fazer por
íe achar alcançado , entendeo em mudar a cordoaria do
lugir em que eftiua , e metella na ribeyra , e mandou ao
veador da fazen.ia que o pu fefse logo cm effeito , e a ri-
beyra foy cercada toda de longo para a ponta, que fc cha-
ma do cakie te , onde fe fez cordoaria cubcrta de telha,
com cafas grandes para recolhimento da obra feita, em que
tudo fe recolhia , e eítaua feguro do fogo , e emparado d*
chuua, e onde fe podia trabalhar todo o inucrno , que foy
huma obra afsaz proueitoía ,em que o gouernador andaua
tão follicito, que de todo fe deícuidou de fazer a cerca fem
quebra da fua opinião , e também por que logo lhe fobre-
veyo a obrigação do cerco de Calecut ^ a que lhe foy for-
_g:ado acudir .
CA-
dei Rey Dom João o III. 345*
CAPITULO LXXXVII.
Fero mafcarcnhãs chega a Malaca; tomapojfe da fortaleza',
elRey de Bintão Ike jaz '^^uerra \ elle manda Aires da cu-
nha pôrfobre o porto de Bt7itão ; manda tambeyn Mar tini
AJQnjo de yneloju farte com armada fazer guerra a Pata-
na ; e o que Idjaz. Dom Garcia anriquez vay a Maluco
parafer capitão . e o que pafja coyn António de brito.
P
Ero AIr.fcarenhas , que partira de Cocliim para Mala-
ca, de qae hia prouido em capitão , como atrás con-
tej , tomou no caminho huma ndo de Cambaya carregada
de rauyía fazenda, de que fez capitão e guarda Diogo cha-
inho , irmão de Garcia chainlio feitor da fortaleza , que
chegou a Malaca primeyro que Pêro mafcharenhas; e ten-
do recado o feitor, que feu irmão ^-^inha naquclla ndo , fe
meteo em huma manchua com alguns homens feus ami-
gos, rodos vcflidos de feíla para o ir receber; e como elles
erão muyros , e o mar andaua picado fe çcçobrou a man-
chua , onde morrerão todos os Portugueses , e acabou o
bomfeitor Garcia chainho, defpois de ter feito os muytos e
muyto bons feruiços a Deos , e a elB^ey na paz e na guer-
ra, de que íicou rauyta fazenda, que ieu irmão erdou , e de
que logo tomou poíTe. Pouco defpois dellc chegou Pêro
mafcarenhas , a quem Jorfe dalbuquerque recebeo com
muyra honra, e entregou pacificamente a fortaleza : o qual
a primeyca couía que fez foy mandar prender Diogo cha-
inho por recolher a fazenda de feu irmão fem autoridr^de
de julliça , nem fazer delia inuentayro , como compria pa-
ra a conra da feitoria delRey, que não tinha dada ; c man-
dandolha fequeífrar roda , o mandou prcfo ha índia íobre
fiança baftante , para lá dar a conta , onde em fim veyo a
morrer pobre , que he o mais certo fim a aue por juílo juí-
zo de Deos vem parar todos os que ha cuíca alheya fe que-
rem fazer ricos. Sabendo elRey de Bintão que era chega-
do capitão nouo ha fortaleza , quis íaber o que tinlia nel-
ie, e com geníç por terra , e armada por mar, lhe mandou
^art. i, Xx fazsíf
3 4<í Primeyra Parte da Chronica
fazer guerra, onde a da terra era a mais conrinua, que não-
celTaua de dia, nem de noite -, a que Pêro mafcarenhas acu-
dia muycas vezes , e ícmpre desbarataua os inimigos : e
aconteceo hum dia num recontro catiuar hum dos Teus ca-
pitães e outro homem principal antre eiles. hum dos quais
tomou da cima hum cris a lium negro, que vio apár de fyy
e arremeteo a Pêro maicarenhas para o matar ; porem não
pôde chegar a elle , po!lo que Pêro. maicarenhas o mau*
dou deitar da torre abaixo : o outro mouro eíbando atado
diante de huma bombarda para o meterem nella, fe íoltou,
e arremeteo ao bombai deyro , que eíiaua co bola fogo na
mão ,, e lhe rirou da cinta huma faca com que o matou ,
pollo qual foy logo morto has pedradas : e durando eíla
guerra mandou Pêro maicarenhas Aires da cunha capi-
tão mor do mar com hum galeão, e coatro fuftas, que po-
íto fobre a barra de Bintão lhe deu muyto trabalho e per-
da , tolhendolhe os mantimentos c mercadorias. Chegou
também nefte tempo a Malaca Martim Afonío de melo ju--
farte, que inuernara na ilha de Banda , a quem Pêro mafca*-
renhas fez logo preíles huma armada ,em que elle foy por
capitão mor era hum galeão, e Balteíar rodrigues rapoío
em hum nauio de gauea, e Luis brandão em huma caraueí-
]a, e coatro la^ncharas bem armadas , c com boa gente , c o-
mandou a Patene , cujo Rey eftaua de guerra com nofco ,
onde tomou no porto muytos juncos , em que matou e ca-
liuou muyta gente natural 5.0 eftran.geira , c tomou muytas
fazendas , e na terra com a artilharia fez grandiíTima de-
ílruiçaõ ; e tal foy a guerra, que aly fez, que o Rey lhe pi-
dio pazes , obrigandoíle a pagar todas as perdas que os
Poríugueíes tinhao recebidas no íeu porto , c a mandar a
Malaca quantos mantimentos quiíefie. Martim Afonfo lhe
aceitou as pazes confirmadas cos íeus coítumados juramen*
tos, e lhe tornou alguns cafcos dos juncos que tomara, por-
que os outros carregou das mercadorias e de muytos man-
timentos , com que íe tornou a Malaca , ficando Patane de
paz, e ella fegura delle. Nefte mefmo tempo que ifto paíTa-
ya sm Malaca, dom Garcia anric^uez, c[uç cíliucra em Ban-»
dei Rey Dom joao o ÍII. 347
da com Martim Afonío de melo juíarte, como atrás dlífe,
no tempo dã monção paitio para Maluco , de que hia pro-
uido em capitão pollo goiíernador dom Duarte de mene-
ies , e chegou ha ilha de Ternate em tempo que António
de brito mandaua gente fobre hum lugar delRey de Tido-
re: dom Garcia íurgio no porro de Talangane , duas Icgoas
do porto da fortaleza , donde mandou dizer a António de
brito , que elle hia prouido em capitão daquella fortaleza ,
que lhe mandaíTe dizer o que faria, porque nao auia de def-
embarcar fenaÔ nella : António de brito tomado hum pou-
co de hum recado tao íeco lhe relpondeo, que fe vielTc ao
porto , e que ahy íe faria o que foíle leruiço dclRej : dom
Gracia receoío que le deíembarcaíTe não fomente lhe não
entregaria António de brito a fortaleza , mas lhe tomaria
a armada e agente, fe deixou eílar até que fegurandoo
António de brito defte receyo defcmbarcou cm terra, on-
de foy recebido com muyta icí\a, e o capitão o leuou a jan-
tar comfigo, e lhe deu hum banquete erplendidc, em que fe
acharão o feitor , o alcaide mór , e outros homicns fidalgos
e honrados; o qual acabado quifera dom Gracia moílrar os
léus papeis, e que íe lhe entregaíTe a fortaleza; porem An-
tónio de brito lhe diíTe , que defpois que repouíaíTe viriao
todos os officiais , e com ciles íe faria o que íe auia de fa-
zer; os quais íendo juntos fc virão as prouiíct:s de dom
Garcia, ao que António de brito reípondeo, que ainda que
clle pudera comrezao não entregar a fortaleza, por quanto
aquellas prouifoés naõ hiao em forma (e logo lhe apontou
em que) todauia elle era contente de lha entregar, mas que
o nao podia fazer fenaÔ o laneiro feguinte , que era mon-
ção para Malaca ; Dom Garcia vendo que daly até laneyro
auia oito meies diíTe , que não lhe vinha bem efperar tanto
tempo, e requereo ao íeitor , ao alcaide mor , e acs outros
oíHciaisque lhe guardaíTem as fuás prouifoés, e lhe fizeííem
entregara fortaleza ; ao que elles nao refpondcndoa pro-
pofito, elle com nouos requerimentos, e proteflos, e tiran-
do de tudo íeus eftromentos fe tornou a embarcar , e deí-
pois de embarcado fe tratou de concerto antre elles, dizen-
Xx 2 ÚQ
-^8 Primeyra Parte d* Chroníca
do António debriro que tinha começado hum junco , que
fe acabaria em Agoílo, que em fendo acabado lhe entrega-
ria a fortaleza , e entre tanto íe vieíTe a eftar nclla , onde
ambos eftarião juntos , como era razão ; dom Garcia acei-
tou o concerto"', e íe veyo ha fortaleza , onde^ambos p*K
«ntão efciuerão com muyta amizade e quietação.
CAPITULO LXXXVIIL
Do reyno i) ar tem efle annopara a índia cinco naos^ dê que jói
três cheíJãÕ a Goa. O governador je ajunta em Calecut pa-
ra Jocon-o da fortaleza com hmna grofja armada , e muy
ia (rente; tomai] e conjelho johre o que fe deve fazer •, eo
que fe concrue».
A Armada, que efte anno de 1$!$, partio do reyno para
a índia, foy de cinco náos íómentc , de que era capi-
tão móf Filipe de craílo , e das outras erão capitães Diogo
de melo, António dabreu,Vicente gil, e dom Lopo dalmei-
da , que hia para capitão de C^ofala , para o que ficou logo
em Moçambique , e na fua nao íe foy para a índia Diogo
de fepuíucda , que acabara de íer capitão. Deílas cinco fos
as três chegarco a Goa em fim de Setembro. O capitão mor
indo na voita de Ormuz foy varar no cabo de Ruçalgate j.
onde a náo ficou inteira, e mandou daly o-batel a Calayate,
donde lhe trouxerão huma boa náo da terra fretada , em
que embarcando quafi toda a fazenda , por fe perder muy-
to pouca , íe foy nella para a índia. António dabrcu inuer-
nou em Moçambique, porque chegou mais tarde. As outras
três nãos, qie chegarão a Goa, fizerao ahy m_^uyto pouca de-
tença , e carregando muyto bifcouto fe í^orao a Calecut , e
em fua coníerua algumas, e outros nauios com gente e m^u-
nicoés , e logo após elles chegou António de miranda do
cífreito , que todos furgirao fobre Calecur. D-ílo foyjogo
auiío ao gouernador , que como eílaua preíles , e nao cl-
pcraua outra coufa, fe partio de Cochim co refto de roda
a armada e gente , e chegou a Calecut na entrada de iNo.
dei Rey Dom João o III. 349
»]err.bro , onde íe í^juntarao pafíante de cem velLi? , de que
era capitão mór Eiror da fiiucira , que bein o merecia por
íua pcíToa , e por fazer no difcurfo deíle cerco cm todo o
inuerno muytcs e grandes feruiços a Deos c a EIRcy. Com
avinda do goucrnador , que tiazia até vinte e cinco vel-
jas , toda a armada, que efiaua no porto, íe pôs de nuiytas
bandeyras e eílendartes , porque da mefma maneyra vinha
elle , a quem fez hunia fermofa falua de artilharia , que
também ihe reípondeo com a fua y hunra e ciitra com pi'-
Jouros encaminhados para o arrajal, porque aíTy lho rinha
mandado dizer o goiíernador por hum calur anres que che-
gaíTe : e aíTy de falua fe conuerteo em huma braua bataria,
que começou fobre tarde, e nao íe acabou íenao com a
noite, de que os mouros receberão muyto dano, que tam-
bém tirauão muytos tiros contra a armada ; mas porque
naõ erão aly de tanto eífeito como na fortaleza , fe derao-
preíía a batella toda a noite com a artilharia, e co trabucoj
vendo que era chegado o tempo de fe tomar concrufaa
naquelle feifo ; e parecendolhe que podiao meter efpanto
>aos noíTos , derão moftra da fua gente , que cubria toda a
praya por baixo e por cima, quanfo avilta podia alcan-
çar, c rcluzindolhe as eípadas e as^ adargas , e deíparando
duas mil efpingardas com muytas gritas e effrondo do3
léus eftromentos, que era coufa aíTaz eípantoía de ver c ou-
«ir, porque paílauão de corenta mil homens de peleja mou-
ros c nayres , afora os gaftadores , que erao mais de vinte
mil , e também faziao corpo de gente; porem naõ foraa
íem o pago defta fua fonfarria, porque os nauios, que eíla-
uão mais perto, defparando ncllcs a artilharia os íizerao
recolher com muyta preíTa , íicando boa cantidade dellcs
mortos na praya. O gouernador mandou aqui fazer alardo
€m todas as embarcações da gente de guerra, que cada hu-
ma tinha , e achou que auia na arm.ada dous mil e coatro-
centos Portuguefcs , porque Chaul , GGa,Cananor , e Co-
chim ficarão com muyto pouca gente, e coatro mil
cícrauos de peleja, homens de confi inçi , que pelcjauao em-
companhia de leiís fcnhorc$ , c inuytgs delles bons efpia-
35^0 Primeyra Parte da Ciironica
gardeiros , e mil Canaris de Goa homens de guerra , to-
dos com íiíâs armas , e oito centos maiauares de Cochim,
que elle tomara a foido gentios eChriílaos, todos tam-
bém com fuás armas, antre a qual gente eílaua junta toda a
fidalguia que então auia na índia , de que nomearey os de
que pude faber os nomes , que foraô Eitor da filucyra ,
do,m Sim.aÕ de menefes , dom iorfc de mencfes , dom Tri-
ftâo de noronha , dom Fernando de m.ouroy, dom Afonfo
de meneies , dom Diogo de lima , dom Jorfc de caílro ,
Jorfe Cabral , António da filucyra , Ruy vaz pereyra , Dio-
go de melo , Diogo de fepulueda , Francifco pereyra pe-
ílana , Francifco de vafconfellos , João de melo da filua ,
Baílião de fouía , Manoel de macedo , António de miran-
da , Fernão gomez de lemos, Dinis fcrnandez de melo, Je-
rónimo de foufa , Aires da filua , Simão dandradc , Nuno
fernandez freyre, Kny dias pereyra , Joáo pereyra de la-
cerda , Duarte da foníeca , e António da filua de menefes.
Eíles todos erâo os que affiftiaò nos confelhos por ferem
capitães, e hoiriens mais antigos na In iia. Dos outros que
fe acharão neíla empreía, homens cambem de muyta conta,
a que pude faber os nomes , forao dom Pedro de meneies ,
António de lemos , Gomes de loto mayor , António peí-
íoa , Anriquc ferreira , Ruy gonçaluez de caminha , Gal-
uaô viegas , Joio viegas , Chriftouão de figueiredo , Antão
nogueyra , João rapofo , António rapofo , Díogo da filua,
António de melo , Aluaro de craílro, Ferialo de reíende ,
António de íaa , Artur de brito , e outros muyros a que
não pude faber os nomes ; porem todos bem merecedores
de f;rem nomeados. O gouernador , como era muyío ani-
moíTo e dcfejofo do feruiço deIRey,parecendolhe que tinha
antre as mãos battnte ocafiâo para moílrar huma couía e
outra , logo ao outro dia pôs ba ndeyra na coadra de huma
fermo[a galé baíl.írda em que hia , ao qual final acudirão
todos os do confelho , e aparrandoiTe com elles para huma
parte , lhes dide, que bem vião que era aly junto todo o
poder que elRey tinha na índia a íocorro daquella fua for-
íâleza, e que tinhão a pendenja co mais podcroío Rey da-
quellas
dei Rcy Dom João o IIL 35'!
qucllns partes ^quc os tinha em tao pouca conta , qi:c lhe
parecia , que nao erao eiles baílanres para refiriircm ao fcu
poder, polio qual importaiia inuyto reprií-píríe e derriibar-
íe de todo a íoberba daquelle inimigo, porque com iíío fí«
caria o nome Português tao alcuainado c limido , que íó
elle bailaria para desbaratar todos es fcus inimigo?, e o ci-
tado da índia tao feguro , que nao poderia auer coufa de
que os Fortugueícs pudcílem ter receyos: e porque elle en-
tendia que o cfíejto diítoeilaua primeyramenre no fauor de
Dcos, que lhe naoauia de faltar, pois erao íeus fieis, c após
iílo nas íorças dosfeus braços , e no esforço .dos léus pei-
tos, que elle tinha muyto bem conhecidos,"'lhes pidia nruy-
to que cada hum difscísc o que parecia que fc deuia fazer
íiaquelle negocio ; ao que todos refponderâo , que parecia
ccuía muyto contra toda rezao, e ordem de guerra, come-
teríe aquelle feito, polia grande multidão de inimigos que
tinhao diant^e , cm numero tao exccíliuamentc auantajado
delles, e tao fortificados devallos, cauas , e trinchcyras,
elobre tudo com muyta- e muyto boa artilharia, em que o
perigo eftaua muyto certo , e viílo aos olhos ^ porem que
omayor perigo cílaua na dificuldade da dcíembarcaçad
polio muyto rollo do mar, onde os homens forçadamente
auião de deíembarcar molhados , feridos ,. íem ordem , e.
por ifso ja meyos desbaratados , onde os inimigos cítaua
certo acudirem com muyta artilharia , e eípingardaria ,
com que a gente, antes que fe pudeíse ajuntar , auia de re-
ceber muyto dano , e com fer muyto pouco o nofso poder
para tantos inimigos , ifto o faria ninda ler muyto menos ;
que a tudo ifto fe deuia ter refpeito , e bufcaríe o melhor
meyo pofsiuel para fe eícufar hum perigo íaõ claro , e tao
certo , o qual meyo era trabalharíc por íaluar a gente da
fortaleza, que ainda aula de cuílar bem caro,e tudo o mais,
inda que íe perdefse, naõ era coufa de confideraçao a troco
de íe nao arifcar todo o poder da índia, que aly'eílaua jun-
ÍO,eporfòrafazeríeao inimigo lodo o mal que pudcfsefer»
Erte parecer foy aprouado polia mayor parte dos do con-
feJho, ç nelie fe reíoluerõ; porem o gouernador quaíi íof
liiidoíe
3 5 2* Prlmeyra Parte da Chronica
rindons lhes dlíse , que para vir furtar a gcnre, que eílaua
naquella fortaleza , bailara mandarfc qualquer pequena ar-
mada , e naõ vir o gouernador da índia em pefsoa com to-
do o poder delia , e tornarfe fem fazer mais que leuar hu-
ma pouca de gente , e deixar tanta artilharia delRcy que
ell.iua naquella fortaleza , com que deípois nos poderiao
fazer muyto dano , e o que pior era deixar aly juntamente
perdido o credito e nome dos Portugueíes tão temido an-
tre os mouros , que era muyto mayor perda •, e cora iílo
Jiaes mandou que fe foíTem a jantar , e cuidaííe cada hum
bem no que tinha dito , e ha tarde fe tornaísem ajuntar
para íe tomar a vitima refoluçaõ ; porque o trabalho , que
padecia a fortaleza com as continuas batarias de dia e de
noite, naõ fofria ja dilação , e era neceíTario acudirlhe com
inuyta preísa. Deípedidos todos ficou o gouernador afsaz
defcontente de ver o parecer daquelles fidalgos , e ha tar-
de fe tornarão todos a ajuntar no coníelho , reteficando o
parecer que tinhao dado polia menham , fobre que ouue
inuytos debates ; ao que querendo relponder o gouerna-
dor, Franciíco pereyra peftana pofto em pé co barrete na
jnao lhe pidio licença para falar , que lhe elle concedeo :
e entaó diíTe para todos, íenhorcs, eísei perigos e inconve-
nientes, que apontais neíle negocio , eu íey certo que vos
nace miis do fifo e boa ordem, com que quereis que fe ellc
trate, que de receyo que tenhais dclles ; porem tudo iíso
que vós apontais, e nós vemos muyto bem. , e que também
arreceamos , ja o íabiamos em Cochim, e para pafsarmos
por todos nos ajuntamos aquy , e íe daquy nos tornamos
íem írazer o a que viemos, vede que afronta fera para rodos
quantos aquy eftamos, e para lodo o nome Português, por
onde nós hauemos de fair em terra a peíar de quantos ini-
migos aly eílao , e co fauor diuino os auemos de desbara-
tar , e liurar aquella fortaleza , ou quando naó morramos
todos fobre ifso ; porque mais vai perder as vidas , que as
honras ; e pois iílo he o que nos importa, façaíse logo , e
naõ tardemos; e fe houuer homem , a que iílo na6 pareça
bem, oaô fey quç conta dará de íy, e parecerá que quer fu-
gir
delRey Dom João o III. 3^5
gir ao perigo com íombra de confelho íeíudo , e com iílo
ie tornou a afsentar j c como neftas marcrias de honra nin-
guém quer perder íeu ponro , principalmente os que an-
dáo na guerra , todos os que ai/ eílauao íe forao com eíle
parecer de Francifco pereyra , e também porque viaõ que
o gouernador fe moílraua contente delle; o qual com muv-
to contentamento começou logo a tratar do modo que Te
teria na deíembarcaçao , e foy afsentado , que antes que
deíembarcaffem defsem ordem , com que fe metefsern na
fortaleza coatro centos homens, para o que nao auia muy-
ta diíficuldade por fer o efcuro grande, e iriao em alma-
dias fazendo algum rebuliço para que cuidaísem os mou-
ros que leuauaô mantimentos , e tanto que fofsem dentro
na fortaleza defembarcafse toda a mais gente em parao? e
almadias grandes , que aly tinhao com marinheiros de Ca-
nanor, que Eitor da filueyra trouxera, que erao bera práti-
cos no mododaquella defembarcaçaô , e que defembarca-
riaô cípalhados por muytas partes, para que também os
inouros fe eípalhaísem ; onde íendo trauada a peleja ía-
iriaô os da fortaleza dar nas coftas dos mouros , com que
fariaõ largar a praya , e a gente poderia milhor defem-
barcar , o que afsy foy afsentado e detriminado por todos.
CAPITULO LXXXIX;
E/tor da filueyra fe oferece ao gouernador para meter a
gente na fortaleza , e o começa logo a pôr por obra. Bom
João, € dom Fafco, e Fernão de moraes Jaemfóra, e tem cos
- mouros huma hraua peleja fobre recolherem a gente que
lay na armada, O gouernador Je ordena para fair \m
terra.
COncruidos todos neíle parecer e tratando de íe pôr por
obra , Eitor da filueyra pidio por mercê ao gouerna-
dor , que confentifse íer elle o que metefse a gente na for-
taleza, e foíTe íeu capitão quando faiíse a dar nos mouros,
O que o gouernador Wiq concedeo , e agardecco com muv-
3 54 Primeyra Parte da Clironica
tas palauras, onde íe lhe oíFerecerao miiytos mancebos fidal-
gos para o acompanharem, de que elle aceytoii os q lhe bem
pareceo, e dos outros fe eícufoa com termos de muyta cor-
lezia , de que ficarão íatisfeitos. Logo Eitor da filuejra por
ordem do gouernador efcrcueo aquella melma noite huma
carta a dom Jo5o de lima , em que lhe daua conta do que
eitaua aíTentado; e por fer o eícuro grande mandou huma
almadia que chegaíse perto da terra , edelLi le lançaíse a
nado hum negro , que leuaíle a carta a dom Joaó ; na qual
almadia com licenqa de Eitor da filueyraíe meteo Belchior
de brito fidalgo mancebo com outros três companheyros ^
para os deitarem em terra íe foíse poíliuel, e nenhum delles
leuou mais que as fuás armas : a almadia foy remando
muy to caladamente até chegar a terra , e acertou de íer em
tempo que não forão fentidos , e que o mar deu jazigo
para chegarem diante da couraça , e muyto manfamente íe
foraó ao poftigo em que ellaua Chriftouaõ juíarte , que o
vigiaua com dez homens para tomar os recados que vief-
fem de noite , e logo os leuou a dom João , que os recebeo
com muyto gofto , e muyto mais quando foube o que efta-
ua aíTentado: a almadia íe foy daly correndo pollo mar
dando muytas apupadas , com que fez aluoroços no ar-
rayal, donde acudindo ha praya muyta gente, e nao achan-
do os inimigos, fe tornou a recolher. Dom João mandou
recado a Eitor da filueyra, que eftiuefie preftes para a noite
feguinte, que elle auia de íair a dar hum rebate aos mouros
para os meter em aluoroço, corá que as almadias, que leuaí^
fem a gente, pudelTem chegar a terra; para o que logo Ei-
tor da filueyra apercebeo a gente e as embarcações , e ou-
tras muytas almadias , que fizeíTem aluoroçar a praya toda.
Domjoáo cm fendo oras mandou íair dom Vaíco com
cincoenta homens , em que hiao Chriílouão juíarte , Bel-
chior de brito , Fernão de lima , dom Miguel de lima ,
António de faa , Ruy de mello, Ruy freire, Duarte ferrey-
ra , Duarte de faria , Fernão barbudo , e outros que elle
eícolheo , e elle lhe íahio logo nas coftas com outros cm-
coenta homens. Dom Vaíco toy dar de íupito em huma
eitan» ,
, . dei Rey Dom }oão o ÍII. 35*5'
eftancia fem fer íentido com grandes gritas , e tanto esfor-
ço , que os mouros cuidando que era mais gente í'e pu-
íerão logo em fugida , onde o primeyro que entrou na ef-
tancia foy Belchior de brito , e tomou deila huma bandey-
ra ; dos outros, que entrarão, liuns tomarão três berços de
ferro , e outros as camarás de hunia roqueyra. A efte aluo-
roço acudirão tantos mouros , e cometerão os noíios tão
detriminadamente , que os fizerão torniir atrás retirandoíle
para a fortaleza , onde recebiao grande ajuda dos eípin-
gardeyros , que eílauao no muro ; mas illo pouco lhe
aproueitaua , porque os inimigos erao cm lanra cantida-
ds , que íem embargo de os noíTos derrubarem muytos
delles , os querião tomar has mãos , naÕ deixando íem-
pre de lhe tirar muytas frechas e efpingardadas. Che-
gando aquy dom João começou a recolher a gente, onde
o aperto foy muyto grande , aré ficar defpejado o lugar
por onde íem dano dos noHos pudefíe tirar hum dos ti-
ros da torre , que derrubou muytos dos inimigos; mas
nem iíTo bafi-ou para os noíTos deixarem de ir muyto
apertados até le meterem dentro na couraça , onde ja eíta-
uão deíembarcados íetenta homens , que Eitor da filuey-
ra deitara em terra em quanto íe deu o rebate , e vinhão
também pelejando cos mouros muyto apertadamente ;
porem tanto que os noíTos íe ajuntarão com elles , fe re«
colherão todos ha fortaleza em laluo : foraó aquy feridos
dom Vaíco , e Chriílouão juíarte d^efpingardadas , e Bel-
chior de brito de dua? frechadas ; foy morto Lopo dias
almoxarife , e outro homem , e dous efcrauos que trazião
hum dos berços , e na defembarcaçao foy morto outro
homem. Contente aíTaz ogouernador deíle bom fuceílo ,
encomendou muyto a Eitor da filueyra , que fizeíTe me-
ter a geme na fortaleza o mais breue e fecretamente que
foíTe podiuel , o que logo íe fez ; porem não fem algu-
ira detença , porque primeyro as almadias do mar dauão
alguns rebates falíos , a que os mouros acudião , e achan-
doíTe lempre enganados deixauão de acudir algumas ve-
aes , com que a gente fe mcteo em faluo na forrale2a , e
Yy 2 Eitor
35^ Primeyra Parte da Chroníca
Eitor da filueyra ertrou cos derradeiros , onde era tanta
a gente , que não cabia dentro nella , de que elle auifou
logo o gouernador , pidindolhe que deíTe niuita preíía ha
íua deíembarcriçao j porque a gente não trouxera manti-
mento mais que para dous dias , e na fortaleza íe não po-
dia lazer de comer para tantos homens , que erao auanie
de íeis centos os que podiao íair com elle a pelejar , e
eílauão eícondidos na fortaleza de maneyra , que os mou-
ros não tinhão fentimento de eftarem dentro nella ; com
que o. gouernador le começou logo a ordenar para lair
em terra. Eitor da filueyra entretanto com dom João e
cos outros fidalgos aílentarão, que fó o alcaide mor ficaíTe
na fortaleza com vinte homens para fechar a porta , e
toda a mais gente íaiííe fora , e que algumas eícrauas que
aly auia fe veftiííem em trajos d'homens , e juntas cos ef-
crauos apareceíTem pollo muro , e os bombardeiros tiuef-
fem toda a artilharia preílcs , e dom João com duzentos
homens lairia para a banda do fui , e elle para a do norte;
c fe ordenou que Fernão de moraes esforçado caualeyro
com cincoenta homens, que leuaíTem panellas de poluo-
ra , foílem lançar fogo na cílancia do trabuco , e fe tor-
naíTe logo a recolher ha fua bandeyra , e fe mandou que
todo o homem leuaííe elpingarda carregada , e fe não pu-
deíTe tirar mais que o primeyro tiro , a largaíTe da mão ,
c íicaíTe com fuás armas. O gouernador íe paííou da galé
real em que hia para hum galeão , e quando Eitor da fil-
ueyra íe defpedio delie lhe deu os finais , que lhe auia de
fazer da gauea , quando quiíeíle partir , e os que Eitor
da filueyra lhe auia de fazer a elle da fortaleza para fe
entenderem ; e ordenou que dom Simão com ametade da
gente defembarcatle a huma parte , e Franciíco pereyra
peílana ha outra , e o gouernador no meyo : e para iíto
nomeou os capitães das companhias , e aos íidalgos man-
dou , que foHe cada hum com quem tiueílem mais goífo ,
de que fe elles moílrarâo contentes , e íe forão ajuntar
com íeus parentes e amigos : e hum domingo féis dias de
Nouembro duas oras ante menham eftauam derredor do
galeão
dei ReyDom João o III. 357
galeão do gcuernador as embarcações , que auiao de ir a
terra , em que eftauao mil e quinhcnrcs homens armados
de ricas eformofas armns , repartidos por íuas compa-
nhias , todas com íeus guiões de difícrentes maneyras ,
porem tudo em muyto filencio , porque os m.ouros do ar-
rayal tinhão dado a entender a ei Rey , que o gouernador
mandara meter gente na fortaleza , crendo que ficaua fe-
gura , porque elle nao le atreuia a ir a terra pelejar com-
elles , e le auia de tornar para Cochim a ordenar huma
grande armada para ir ao eítreyto : e ainda que elles tam-
bém íinhao iílo para Çy , com. tudo nao deixauao de ter
grande vigia no mar , e íinhao palaura dei Rey , que íe o
gouernador foílc a terra elle em peíloa auia deíer prefen-
te a vellos pelejar , porque com lua viiia e feu fauor lhe
creceííe esforço para alcançarem a vitoria; e ainda que efte
Rey era bárbaro , bem entendia a verdade do que nlfto
paÓía , porque não ha ccufa na guerra que mais acrecen-
te as forças e o animo ao animofo , e dê ouíadia ao fracOy
que pelejar diante do íeu Rey ou fenhor, que lhe hade dar
o premio de íuas obras , que muitas vezes le nega has
boas , e le dá has que o nao merecem , por informações
mais afeiçoadas que arrezoadas , porque o premiador as-
nao vio cos léus olhos*
CAPITULO LXXXX,
Eítor da ^lueyra , e dom Jaão de lima faem fora dar re^
bate no arrayal , e pelejao cos inimigos. O gouernador
defemharca com toda a gente , comete o arrayal , tem cos
inimigos huma brauijjima batalha , e o fucejjo delia,
CHcgada a ora em que o gouernador auia de partir
para terra , mandou com íogo fazer dagaucaolí-
nal , que dera a Eitor da filueyra , o qual como vvco tinha
o tento noutra couía , logo em o vendo , porque eíla-
ua preíles , fez abrir a porta da fortaleza , que eílaua ta--
pada com parede , e lahio por eila com toda a lua gente,,
de.
358 Primeyra Parte da Chronica
de que hla fia dianreyra Fernão de morais cos feus cín-
coenta homens , cada hum com três e coatro panellas
de poluora em baldes de couro , atados na cima , que
correndo muyto caladamente derão na eftancia do tra-
buco, c deitando fogo íobre as choupanas cubertas d'olla,
em que os gaftadores fe eraparauao da chuua , fe ateou
com tanta forca que ardeo o trabuco todo , a que acu-
dindo os mouros com grandes gritas , cometerão os nof-
fos com muyto esforço , que lhe fizerão valeroía reíiften-
cia , e muyto dano com as panellas de poluora em quan-
to as tiuerão , e defpois que íe lhe acabarão ficarão com
clles has hínçadas , e has cutiladas , ondejorfe de lima ,
e António de íaa com efpadas de ambas as mãos defcndiao
grandemente os outros ; mas aproueitaua pouco , porque
acudirão tantos dos inimigos , que cercarão os noilos por
todas as partes , no qual tempo deu nelles Eitor da líl-
ueyra com tanto impcto , que os fez tornar atrás , com
que Fernão de morais cos da íua companhia trauou com
elles huma afpera peleja , porque começaua ja então a
romper a menham , onde Jorfe de lima , António de faa,
Belchior de brito , Pêro do porto homem do mar , Pe-
to de vera , e outros que erao oito com efpadas de am-
bas as mãos faziâo buícar os mouros por onde tugiíTem,
mas eraó tantos huns íobre os outros , que não achauao
lugar. Dom João de lima com a íua gente deu polia outra
parte do arrayal fobre os mouros que acudiaÔ ao rebate ,
c em chegando lhe fez muyto dano com as panellas de
poluora , onde carregou fobre elle grande cantidade de
efpingardeyros , que lhe derrubarão três homens, e ferirão
muytos ; porem dom Vafco de lima , Fernão de lima ,
dom Miguel, Cliriftouaõ jufarte , Duarte de faria , Anri-
que da íiiua , Ruy freire , André paçanha , Fernão fur-
tado , Artur de crafto pelejauao com tanto esforço íu-
ílentando todo o pcfo dos inimigos , que íe foraõos noflos
chegando para Eitor da filueyra , que com a íua gente
eftaua cm grande aperto cercado dos mouros , que ulauao
cntaò de hum ardil de que íe ajudauaõ muyto, que em
os
dei Rey Dom João o III. 35'^
os noíTos pregando as lanças nas íuss adargas lhas larga-
uaò dos braços , e fícauao metidas nelias , e em quanto íe
detinhaô em porem os pçis nas adargas para deíembara-
çarem as lanças , tinhaÕ os mouros tempo para os ferirem
a feu íaluo. Toda a gente do arrayal fe ocupou entSo em-
acudir a eíle rebate , parecendollie que nao era maití que os
que dom João cuítumaua dar , íem peníamenro de lhe pa-
recer , que o gouernador podia fair em terra , com que
íem m.ais trabalho , que o do rolo do mar , defembarcoit
defronte da noíía tranqueira da couraça. Dom Simão , e
Francifco percyra vendo pouca gente na praya , porque
toda andaua ocupada na peleja do arrayal , delembarcarad
cada hum por fua parte com todos os léus , e fe foraô
para o gouernador , que fendo ja dia claro , foy entran-
do pollo arrayal com todo o corpo da gente , e a fua-
bandeyra real deípregada , tocando as trombetas , e cJia-
mando todos por Santiago forão dar nos mouros, que erao
aly juntos mais de dez mil : os bateis grandes , que leua-
rad a gente , afaílandofle para fora deíparauao nos inimi-
gos os berqos que tinhao, e o meímo fazião os nauios
polias bandas do arrayal , reíguardando a fortaleza c as
cauas em que os noíTos auiao de pelejar , e a artilharia
da fortaleza tanúbem fazia feu officio por onde lhe pare-
cia mais acomodado. Os mouros , quando entenderão ,.
que o gouernador era defembarcado , e virão as hiítroías
armas dos noííbs , que co foi reluziaõ por todas as par-
tes , logo começarão a perder o animo , porem naódei-
Xauaô de pelejar esforçadamente. Tanto que o gouerna-
dor foi entrado pollo arrayal começarão os noíTos a fazer
marauilhas , onde poftos diante dom Jorfe de menefes ,
dom Triftão de noronha , dom Diogo de lima , António
dazeucdo , Dinis fernandez de mello , Ruy diaz perey-
ra , Francifco de vafconcellos , e outros que eraõ mais
de vinte com cfpadas d'ambas as mãos , faziao larga pra-
Ça cortando pernas e braços , e partindo quaíi alguns
pollo meyo , e a outra gente Jeuaua fuás eípingardas. O9
xjulros fidalgos , que erao António da lilueyra , Diogo de-
mello ,
^6o Primeyra Parte da Chronlca
mello f dom Simão , dom Joríe telo , Joríe cabral , dom
Fernando de monroy , dom Afonío de meneies , dom Pe-
dro íeu irmão , António de lemos , Manoel de macedo ,
RLiy vaz pereyra , João pereyra de lacerda , António da
filua , e outros muytos, que naõ íe podem nomear todos ,
pelejando cada hum á competência dos outros , e ha vi-
&a. do gouernador , nao eílimando arrifear as vidas , nem
temendo a morte que linhao diante dos olhos , faziaó
façanhas , e o mór trabalho que entaó íentia era dos eí-
pingardcyros e frecheyros , que tirauaode fora , de cima
dos vallos , com que feriao muytos dos noífos ; aqui quis
o gouernador dar moftra de íua pefloa , e começando
s ir para diante, o fizerao deter Francifco pereyra , e João
de mello da filua ; mas daly donde eílaua deu tanto fauor
aos noíTos , que cobrando nouas forças e animo , come-
terão os mouros taÔ rijamente, que os arrancarão do ar-,
rayal fugindo alem dos -vallos ; porem^ aly apertarão os
noíTos com elles de maneira , que os fizerão fugir para a
cidade , onde os nodos lhe foraõ íeguindo o alcance. O
gouernador , por naô auér algum delmancho , mandou
António da filueyra , Joaô de mello , Francifco pereyra ,
c António de miranda que fizeliem ter a gente, que nao
entraííe na cidade ; porem nao podendo elles refrear o
Ímpeto dos que hiaõ vencedores , mandou o gouernador
fazer final de recolher , a que todos obedecerão , e íe tor-
narão para dentro dos vallos , fobre que logo voltarão
os mouros , e com muytas frechas e efpingardas come-
çarão a tratar mal os noflos , para o que o gouernador
rnandou Eitor da lilueyra por huma parte, e dom Vaíco
de lima polia outra com todos os efpingardeyros , que
guardalfem os vallos , em que clles mandarão aílentar al-
gumas peças miúdas do arrayal , com que fizerao afaftar
os mouros fem oufarem de íc chegar. El Rey quando
íoube o desbarato dos feus , auendoo por huma grande
afronta fua , mandou o feu caimal e goazil , que era ge-
neral do campo, com coatro mil naires de íua cafa , que
fe conjurarão antre fy para morrerem todos polia vingan-
ça
dei Rey Dom João o III. 3^1
ça de! Rey; neílc tempo os mouros, que eftauão nas caua»,
andauão correndo por cUp.s para íe acolherem , porem
os nollos, que andauão por cima dos vallos , es lijao n-a-
tando cora as lanças a mão tente , e nalguns lugares on-
de fe ajuntauão muytos delles lhe lançarão panellas de
poluora , com que os abrafauão em fogo ; e os eícrauos e
marinheiros deitarão em cimn delles tanta terra c pedras,
que ficarão dentro nas cauas mais de mil morros ; e por-
que todo o arrayal eftaua laurado deftas cauas, que tolhii^o
aos noíTos a paíiagem , e entupillas era obra de grande
trabalho e detença , mandou o goucrnador a Dinis fernftn-
dez de mello , que ordenaííe íazeremíe pontes de humas
has outras por onde a gente paflaíTe , o que logo foy fei-
to , e o gouernador £c foy a repouíar nss coílas da forta-
leza , onde chegando dom Jofiô de lima para lhe falar ,
em começando as primeiras palauras aparecerão os quatro
mil naires , eapós elies grande numero de mouros com
as fuás cuílumadas gritas , c eftrondos dos feus cftromen-
tos , defparando muytas eípingardas , e tanii cantidade
de frechas , que quafí encubriaô o foi , que caufou nos
noíTos grandiílimo aluoroço , e íe puferaõ de nouo em íomi
de pelejar : o gouernador íe fubio fobre hum dos va'Ios ,
evendo a grande multidão dos inimigos que cubriao todo
o campo , parecendolhe que podia aly vir ci Rey em pef-
íoa , mandou a dom. João de lima , Francifco pereyra ,
Baílião de louía , e Josõ de mello da filua que nao faifíem
fora dos vallos do arrayal , e o guardaílem com a gente
que auia , e o condeílabre da forraleza com bcmbardcy-
Tos dos nauios fízeíFem eílancias d'artilharia , o que foy
feyto com tanra diligencia ebreuidade, ajudando os eí-
crauos e marinheyros , que fobre hum vallo , que cllaua
para a parte donde vinha a gente, afíentar^o oiro roquty-
ras do arrâyal , e dous camcllos da fortaleza , cue inda
fizeraó tiros antes que os inimigos chegaíTem , porque os
malauares vinhaó pollo campo co feu compaíTo e ordem
que tem no pelejar , que he tudo muiro vagarofo : porem
tanto que os pilouros deraõ nelles , que deixarão muytos
Pari. 1, Zz mor-
^02 Prlmeyra Parte da Chroiilca
mortos pollo campo, fe deíconcertarao e defordenaraS j
e como IioiKens decriminados remercrao aos noflos , que
]he lairâo ao encontro coiti tanta vontade como fe aquel-
le dia nao tiueraò feiro nada : diante de todos íe puícra6
dom Vaíco de lima , Fernão gomez de lemos , Eitor da
filucyra , Belchior de brito , Simão d'andrada , Aires da
íilua , que andaua ferido no roílo de hirma frechada , An-
tónio de miranda , Jorfe cabra! , dom Jorfe de meneies ,
dom Simão , dom Afonfo , dom Migue! , dom Jorle de
caílro , c outros até íeílenta , que íe meterão antte os
malauares , em quem os que traziao eípadas de ambas as
mãos faziaô grandiífimo eílrago : aquy acudirão dos que
eílauao no arrayal até mil homens, onde a peleja foy
afíaz braua e trauada , porque os naires pelejauao como
homens que detriminauaõ perder as vidas, ou fair com vi-
toria ; porem os noflos pelejarão entnõ com tanto esfor-
ço , trabalhando cada hum por íe auantajar dos outros,
que os malauares faraó os primeiros que fe começarão a
retirar, fobre quem os noíTos carregarão taõ rijo , que os
foraò leuando pollo campo hum grande eipaço , a que o
gouernador mandou fazer fina! de recolher, com que lhe
a clles nao pcfou , porque hiso ja muyto canfados , e fe
foraõ recolliendo co roílo íempre nos inimigos , que ven-
doos retirar tornauao a com.etelos , mas como os noíTos
]he faziao roílo fe tornauao a afaílar , nos quai*s cometi-
mentos foraõ mortos muytos dos malauares. O conde-
llabre então íe foy lia fortaleza, e pôs fogo a huma eípe-
ra que eílaua na torre , co roílo áquella parte , parecen-
dolhe que aly deuia de eílar el Rey , o que afly era na
verdade , e o pilouro foy tao bem encaminhado que paí-
lou por cima donde el Rey efcaua, que ouuindo o zunida
do pilouro íicou taÕ treípaílado de medo , que íe foy lo-
go fugindo no feu aíifante com a mór prcíla que pode ,
c com elle toda a gente do fcu feruiço : do que íendo-
auifados os mouros e naires , que pelejauao no campo,
perderão de todo o animo , e íe puíerao em fugida , dei-
xando o campo. Uq deípejado que ninguém aparecia por
eile a
dei Rey Dom João o III. 3 6^
elle , com que os noíTos ficarão cm dcfcanfo bem canía-
dos. O gouernador le tornou então para a íua eíbncia ,
que eílaua feita com vellas , o que também cada capitão
mandou fazer poilos feus marinheyros , em que íe gaílou
até as dez oras do dia ; e o gouernador recolhido num
lugar apartado que tinha na íiia eftancia , deípoisdedar
niuytas graças a noíTo Senhor cos juelhos em terra polia
grande e finalada mercê que lhe fizera aquelJe dia , íe
tornou para fora , onde o cercarão todos os fidalgos , que
clie reccbeo com muytas honras , e palauras de muytos
louuores: aquy Ihepidirao alguns que os quilefie armar
caualeyros , a que elle pidio muyto que por enraô lhe
perdoalTem , que o faria defpois de jantar , que cada hum
mandaíle trazer o que tiueíTe : onde logo foraõ armadas
muytas tendas, e algumas que le faziaó das vellas dos
nauios , e no raeyo do arrayal foy armada para o gouer-
nador huma tenda feita no reyno , muyto grande , em
que le recolheo , e todos os capitaens fizerao o mcfmo
nos lugares que para iíTo tinhaõ preparados , porque era
ja o foi muyto quente , e todos tiuerao comer em muyta
abaílr^nça , principalmente na eílancia de Franciíco perey-
ra , onde íe recolheu a mor parte dos fidalgos que naô
erao capitaens , e atóra ifto naó faltou entaô de comer
para toda a outra genre , que cílaua aly muita , porque
da armada defembarcaraô homens , que traziao vinho , e
outros traziao mantimentos , e tudo o mais que era ne-
ceílario para venderem , e fazerem íuas veniagas , e fc
puferao em ruas apartadas como em huma cidade , com
muytas danças e folias 5 em que fe paliou o jantar e par-
te da calma: entaõ le ocupou o gouernador em armar
caualeyros , e porque a gente era muyta, e elle ÍÔ naõ po-
dia dar expediente a todos , dilTe a dom JoaÓ de lima que
o ajudaíTe , e a todos os outros fidalgos que cada hum ar-
mafle caualeyros os que o quifeíTem lerda íua mao , e que
elle lhes afiinaria os aluarás , o que muytos fírerao. lílo
acabado repartio o gouernador as caniranias polias eílan-
cias, para vigiarem aos ccarros, o que le fez com muyta
Zz 2 ordem.
3 ^4 Primeyra Parte da Chronica
ordem. Os feridos forao todos recolhidos na igreja da
fortaleza, que paíTaiiao de duzentos , onde foraô muyto
bem curados e prouidos largamente , de que o gouerna-
dor deu o cargo a Manoel de brito , e a alguns fidalgos ,
e a outros homens , que tinhao íeus efcrauos aly nas ten-
das. Dos Portuguefcs morrerão eíte dia feflenta afora al-
guns que delpois morrerão das feridas ; e dos mouros
morrerão auante de três mil , dos quais o gouernador deu
cargo a coatro naires capitães dos canarins , que vieraõ
de Goa , que com a fua gente e remeyros ajuntaííem os
corpos mortos , e os metcílem todos era huma das cauas
c a enrupiílem, o que aíly foy feito ; e os corpos dos Por-
tuguefes mandou meter em grandes couas que fe fizerao
debaixo do fobrado da igreja , porque nao auia lugar para
ter cada hum fua coun ; e toda aquella noite paílarao com
muytos géneros de fcilas e paíFatempos , tocando lempre
as trombetas , mas com as armas e efpingardas fempre
preftes , porque também os mouros naõ ccííaraõ toda a
noite de tirar muitas frechas e eípingardadas.
CAPITULO LXXXXr.
£/ Rey de Calecut comete pazes ao gouernador por meyo ão
mouro Cogebiquy ; elle o poe em conjelho , e juntamente
fe Jerá bom derrubar fe a fortaleza \ as pazes Je ajjen-^
taÕ , e a fortaleza fe derruba; el Rey de Calecut dd a.
morte ao Cogebiquy. O gouernador fe recolhe a Lochim
curarje de huma chaga que tem em huma perna,
Gouernador defpois de ter dado ordem ha guarda e
fegurança daquelle arrayal dos inimigos de que efta-
uafenhor, para íe fegurar também dos mouros que de
noite lhe naó vieííem dar alguma inquietação , mandou
fazer grandes fogos de fora dos vallos , em que eftauao
cm vigia os eípingardeyros , e mandou trazer artilharia
da fortaleza e aílentalla em huma ellancia para defenfaá.
de mu^^tos lirps que os mouros tirauão de antre as caías ,
de
dcIRey Dom João o III. jí^j*
de que alguns chegauaó ao alojamento dos noíTos , e vi-
nhãô direytamente demandar a tenda do gouernador : po-
rem cJJe nunca a quis mandar mudar donde eflaua , e rodp
o curro dia feguinte os mouros naõ ceíTarao deíla bataria ,
mas daly por diante naó bulirão idmís comfigo , porque eí
Rey de Calecut, arrependido de ter cometioa íiqueíla em-
preia poIJo pouco proueito e menos licnra que tirara dcí-
Ja , e entendendo que fc o feu reino naô tiueíTe nauega-
çoes [c perderia de todo , detriminou gidir pnzes ao go-
uernador : e mandando logo pôr no campo huma bandey-
ra branca , mandou pollo mouro Cogebiquy ( amigo dos
Portuguelts de que em muytas partes le tem feyto men-
ção) dizer ao gouernador, que elle queria tornar a aíTen-
íar paz com elie , e para iíTo pagaria toda a perda que
tinháo recebido os Portugueíes , e el Rey de Portugal , e
entregaria todos os catiuos e artilharia , e quantos paraos-
ouuefTe em todo íeu reyno , nem agafalharin neile peíloa
que os armaíTe , o que tudo cumpriria fem falta , de que-
lhe mandaua íua ola aíTinada por elle e por todos os ícus
regedores. O gouernador fez muyta honra e gaíalhado ao;
mouro , íabcndo quão bom e leal amigo noíTo fora íem-
pre , e logo lhe reípondeo : Amigo Cogebiquy o milhof
eiqueceo a el Rey de apontar , e fem o qual cu não ey de'
fazer paz com elie , que he lançar os mouros fora dq feu
reyno , porque iey certo, que em quanto os tiuer comfigo
hade fazer lempre por feus mãos coníelhos as traições
que polia mefrna cauía fez feu anteceííor ; fe com eíta.
condição quifer a paz, então darey orelhas a cila. O Coge--
biquy lhe tornou , que lançar os mouros fora do feu rey-
no era couía impoíliuel , que el Rey naõ faria por ninhum
cafo pollos muytos proueitos que tinha delles , e que ni-
ílo o defenganaua como verdadeyro amigo que era dos
Portuguefes , e fora íempre , e auia de fer até a morte ;
por iflo que defta condição naõ trataíle , e das outras que
Jhe propuíera lhe deíTe a rcpoíla que lhe bem pareceíTe
para a leuar a el Rey. E porque eíte negocio era hum pou-
co va^arolo 5 e fe naó podia concruir leni conleiho , e
fem
^66 Prlmeyra Parte daChronica
ícm auer algumas idas e vindas , pidio o mouro ao gouer-
nador que de fua parte quifeíTe conceder tregoas em quan-
to andaiie neíle concerto , que el Rey da fua as concedia,
o que o gouernador ouue por bem , e lhe deu feguro pollo.
tempo que pidia , com que fe tornou : c íendo fora do
arrayal mandou logo pregoar as tregoas no campo c na
cidade , e que ninhum mouro íopena da vida apareceíTe
no arrayal. O gouernador entaÕ propôs eiu coníelho de
todos os fidalgos eífce negocio das pazes, e auendoíTe de
fazer íe fe farião ?om auer aly fortaleza, ou não , que a
elÍQ ihe parecia íer muyro contra o feruiço dei Rey e pro-
ueito de fua fazenda auer aly fortaleza; porque ( diííe )
quem cuidou , que erão mayores os gaílos que íe faziao
nas armadas cora que fe auia de fazer guerra a Calecut,
que os que fe faziao em edificar a fortaleza e íuílentala
com paz , enganouíe; porque os gaílos, que íe faziao para
a guerra , erão ametade menos que o? proueiros que íe ti-
rauão das preías das nãos , e com fe tolherem aos mou-
ros as naucgaçoés perdia cl Rey a mayor parte das fuás
rendas , o que eílá bem claro , pois elle pidio fempre eíla
paz tão afincadamente , e dcfpois que a ouue , por mcyo
deíla fortaleza teue fuás nauegaçoés e tratos de pimenta
que carregaua para Meca , com que fe fez tão rico e po-
derofo , e os mouros tão foberbos e atreuidos , que apefar
noíío' querem fazer fuás nauegaçoés , para o que armão
muyíos paraos com que dão faca ha fua pimenta para
muytas partes, e para lhe tolher iílo foy forçado ajuntarmo»
nps para fazermos eíla guerra , que tanto tem cufrado
a el Rey noíTo Senhor , a qual íe pudera bem eícufar íe
cíliueramos íempre de guerra com eíla gente , donde fe
entende bem camanha perda foy para a fazenda dei Rey
noíTo fenhor ter aqui eíla fortaleza , e cada vez hade íer
mayor em quanto a tiuer , porque fempre hade fer força-
do fuíleniaríe ha cuíla não íómente de muito dinheyro ,
iras de muyto íangue de feus vaílallos , por onde enten-
do que cumpre muyto ao feruiço de Deos e dei Rey der-
rubarfe eíla fortaleza , e íicar a coila de guerra, c cntaó íe
ouuer
delRey Dom João o ílí. ^6f
Oiiuer concerto de paz fera milhor e mais firme , c feita
como nós quifermos ; e auendo fortaleza , foiçadarrcnte
lhe auemos de fazer a paz como ellcs q^iiiíerem , e qué
quebrarão cadr. vez que quiferem. Com cila propcíla ou-
ue no confelho muytos debates e differenças de parece-
res ; porque a muytos pareceo bem o voto do gouerna-
dor , vendo que em tudo tinha rezao ; outros forao por
outra via dizt^ndo , que aquella fortaleza fora feita por
mandado delRey, que fem outro feu em contrario não era
rezaó que fe desfizeife , mas que fe deuia íuftentar com
guerra até íc lhe dar conta diíío , e ver o que mandaua ,^
e que o outro era erro e deíobediencia ha peíloa real , e
que afora iílo feria gra.idc abatimento e defcredito do
eítado da índia , e afronta para os Portuguefcs poderfe
dizer delles, que derrubarão a íua fortaleza com medo que
el Rey de Calecut lha tomalTe , por lha elles não poderem
defender, e os mouros fícariao tão íoberbos e oufanos y
que^não duuidarião pôr cercos a todas as outras fortale-
zas , e com eíla íó vitoria , que lhe nós dauamos fem cufta
ninhum feu , os mouros das outras partes lhe darião fem-^
pre grandes ajudas , com que íe farião muyto mais po-
derofos contra nós ; e fobre efte ponto ouue tantas diffe-
renças no confelho , que muytos fe quiferaó fair delle :
porem o gouernador lho não confentio , elhes diíTe que
por a matéria fer de tanta importância todos auiao de dar
neila feus pareceres e aííinalos , porque elle não auia de
fazer fenao o que a todos parccelTe bem , e por iíío aten-
taíTc cada hum bem o em que fe detrimiinaua , porque de
tantos e tão honrados fidalgos como aly ellauãó , e taO'
entendidos nas couías da índia , não íaiííe coufa em que
pudeíle notar falta. E quanto áquelle ponto que tocauaò,
que fe poderia cuidar que fe derrubaua a fortaleza com
medo delRey de Calecut , e!lc aíTontaria as pazes com
as condições que a nós nos conuinha , aíílnada? e cí-nfir*
madas por el Rey , pollo Princepe , e por todos os rege-
dores , com rodas as feguranças necenarias , ptuque lá-
bia inuyto bem , q^ue nada do que pidiíle lhe auiaõ de ne*
gar
3 68 Primeyra Parte da Chronica
gar pollo ir.Liyro prcueito que tinhaó de eftar aly a noíTa
fortaleza: e dcípois de aílentadas as pazes n cila forma ,
então trataria de derrubar a fortaleza, com que íe não po-
deria cuidar que fe derrub;íua por medo , e por a nao
poderemos defender: c íc el Rey com ella ícr derrubada
quifcíie eítar polias pazes , lhas guardaríamos por íeefcu-
farem es gaílos das armadas, e íe todauia quiícíTc infiftir
em termos aly fortaleza , então romperíamos as pazes , e
lhe faríamos guerra , que na do mar bem entendido efta-
ua quanta ventagem lhe nós fazíamos. A eíla rcprica do
gouernador moueraô alguns muyras duuidas , porem
a mayor parte fc foy com eíte parecer , e íc aíTentou que
aíTy fe íizeíTe , de que o gouernador tomou aíTmados de
todos , com que fe deípcdirao. Porem o gouernador fi-
cando íó tornou a cuidar bem no que tinha aflcntado , que
erao duas couías dinas de muita confideraçao polia gran-
de importância del'as , de que huma era engeitar a paz
que el Rey de Calecut lhe pidia com tanta inílnncia , e
táo bons partidos, ea outra desfazer fem expreílo man-
dado dei R-y a fortaleza que ellc mandara fazír ; por ou-
tra parte Icmbraualhe que lhe dizia elle no íeu regimen-
to, que nas coufas duuidofds ÍizeíTe o que enrendefíe que
era mais íeu feruiço : e metido neíla perplexidade lhe
pareceo , que não era rezão acabar de.fe reíoluer de todo
fem tornar a confulrar o negocio de nouo , tomar outra
vez os pareceres de todos , c retefícarfe no que elles di-
ziao , c com eíla detriminaçaó ao outro dia acabando de
ouuir milTa na fua tenda , chamou a confelho , e propon-
do ante todos eílas duascouías , lhes requcreo da parte
dei Rey, c da fua pidio por mercê, que pois erao da tanto
peio e importância , cuidaíTem bem nellas , e aíTentafTeoi
antre íy o que elle dcuia de fazer , porque naô faria ou-
tra coufa , e lhe deu por efcrito as coufas que apontaua ,
íobrc o que eíl;iua aíTentado por elles , e lhes tornou a dar
os feus aíHnados , para que os rompeííem , e lhe defrem
outros do que cntaõ aíTenraflem , e íe fahio para fora di-
zendo, que pois elle naô tinha ja mais que di^er naquella
ma-
delRey Dom João o III. ^6(}
matéria , naõ tinha para que eftar aly preíente. Os fidal-
gos enião defpois de muytos debates e altercações por
comum parecer de todos fizeraÕ huns apontamentos, em
que de nouo dauão rezões muyto euidentes, por onde era
inuyto feruiço dei Rey o que elles antes tinhão aíTenta-
do , que era fazer o gouernador paz com el Rey de Ca-
lecut na forma que liie miihor parccelTe , e defpois fe cl
Rey infiftiíTe em aucr aly fortaleza , a quebrafle com elle,
mas que em todo cafo elia foíTe derrubada : e íc deípois
diíTo el Rey quiíeííe ficar de paz , alTy como foíTe aíTen-
tada fe lhe guardaílc int-eJramente , do que íe fez hum
auto poUo fecretario em que todos aílinaraô de nouo , que
o gouernador recoíheo ; íó António de miranda, que nao
foy do parecer dos outros , não quis aííinar nelle, dan-
do por rezaõ que o gouernador nem com o parecer de to-
dos tinha poder para desfazer huma fortaleza, que elRe/
mandara fazer com outros tantos pareceres , o que no
gouernador fez algum abalo ; mas como lhe parecco que
cftaua feguro co papel que rinha , fe refolueo de todo em
derrubar a fortaleza. Nefte mefmo dia veyo Cogebiquy
polia repoíla , a que o gouernador diíTe, que folgaria muy-
to de aíTentar paz com cl Pvcy boa e verdadeira , fe elle
lha pidia com verdade , e que paraiíío, por hum efcrito
feu aíhnado por elle , em que também vieíTe afiinado o
Princepe e os regedores , lhe mandaíle dizer a forma em
que aqueria : tornando o Cogebiquy com eíla repoíla vol-
tou logo acompanhado de hum dos regedores , q.ue o
gouernador mandou receber pollos fidalgos , c lhe fez
muytp gafalhado ; o qual deípois de auer alguns recados
de parre a parte , aílentou co gouernador a paz da maney-
ra que a pidio , no que ouue alguma detença , dentro no
qual tem.po fez o gouernador defpejar a fortaleza de tu-
do o que auia nella afly de gente como de fato , e prin-
cipal de toda a artilharia , o que íe fez com muyto tra-
balho por caufa da má embarcação : e logo mandou, mi-
nar todas as torres e paredes da fortaleza , e meter nellas
muyta poluora com boas vigias, por onde o fogo auia de
Part, L Aaa correr
^yo Primeyra Parte da Chronlca
correr para ir dar nellas , e tudo foy feito com tanto fe-
grcdo e diíTimulaçao que nunca os mouros o fintiraõ : e
lendo tudo acabado como cumpria , e a mór parre da
gente embarcada , eícreuco o gouernador huma carta a
el Rey pollo melmo Cogcbiquy na fua Jingoa, em que liie
daua os agardecimentos polia paz que linha alTentada,
aqual lhe prometia guardarlhe íempre em quanto elle a
naô quebraíle , e guardarlhe íeus portos e embarcações
que leuaílem cartazes léus, onde quer qucfoUem achadas,
com tanto que não foííem contra o concerto da paz ; mas
por quanto os Reis feus antepalTados , antes de auer aly
fortaleza , e elle defpois que a ouue mandada tazer ha íua
inílancia , vindo os Portuguífles tratar ha fua terra como
amigos , e com boa paz , elles todos a quebrarão muytas
vezes , matando os Porrugueíes , e roubandolhe íuas fa-
zendas , elle auia que era muyto contra o íeruiço dei Rey
feu íenhor auer aly fortaleza , que elle lha largaua para
fazer delia o que quiíeííe : e que outra vez lhe tornaua
a prometer e affirm.ar que em quanto elle guardaíTe a paz
lhe íeria guardada inteiramente : e que lhe pidia muyto
que a quifeíle guardar por íe eícufarem os trabalhos e ma-
les que a guerra traz comíigo : e que elle fe hia logo em-
barcar , que ao mar lhe mandaííe a repofta , onde hia eípe-
rar por elia. Partido o mouro com eíta carta, logo o go-
uernador mandou embarcar todo o reftante da gente , e
cUe cos capitães forão os derradeyros , ficando poílo o
fogo em modo, que em efpaço de cinco oras auia de che-
gar has minas , que fe acabauao has três defpois do meyo
dia. Vendo el Rey a carta do gouernador mandou a gran-
preíía ver o que elle fazia , e tendo recado que era embar-
cado ícm ficar coufa alguma em terra, ardendo cm ira
contra Cogcbiquy lhe diííe, que como tredro o enganara
cncubrindoihe a verdade do que fabia que o gouernador
tinha detriminado ; a que o mouro le deículpou dizendo-
Ihe , Íenhor fe eu tal foubera não eíliuera agora aquy
c)ue me fora com elle ; porem el Rey como eíiaua cego
ác cólera e da paixão lhe tornou ; Ja que os Porrugueles ,
de
dei Rey Dom João o III. 371
de que fempre me dizias tantos bens , e de que eras tar
inanlio amigo te enganarão , rezão he que pagues tu por
clles , e lhe mandou cortar a cabeça , e tomarlhe quanto
tinha , e ás molheres e aos filhos , de que todauia dous
efcaparão, que embrenhados pollos matos forao ter a
Cananor , onde o mayor moílrou liuma prouilaõ delRey
de Portugal, porque fazia mercê a Cogebiquy ícu pay de
vinte mil reis de juro cada anno para elle e para todos os
fcus decendentes , pagos em qualquer íua feitoria que os
eJIe pidiíTe , fem mais outra prouifaõ de gouernador al-
gum ou veador da fazenda ; os quais filhos eftiuerao dcí-
pois em Cananor viuendo muyio pobremente pollos mãos
pagamentos que lhe fazião fem lhe valer queixaremfe aos
gouernadores , porque lhe vieraó a alfacar coufas com
que lhe tirarão o juro ; e defpois da morte do mais velho
o gouernador Nuno da cunha mandou tornar o juro ao
mais moço , que também , por lhe íer mal pago , veyo a
morrer em pobreza e ao puro deíemparo , não fem gran-
de magoa, e não íei fe diga afronta noíTa, huns homens tão
beneméritos dos Portuguefes virem a morrer entre elles
tão pobres e deícflradamente. Vendo os mouros de Cale-
cut os noííos recolhidos e embarcados , não fabendo o
que paflaua , acudirão muitos a ver o arrayal e a fortaleza,
e achandoa de todo deípejada , entrando a vella por den-
tro , fe eípantarâo de era tão eílreito lugar , e tão cheyo de
immundicias , e desbaratado dos pilouros do trabuco fc
agafalhar tanta gente : e aíTentandoíTe pollos muros olhan-
do para o mar , chegou o fogo ha poluora das minas ,
^ue arrebentando cora hum efpantofiífimo terremoto , vo-
arão poilo ar não lÒmente os mouros , mas tanta cantida-
de de pedras, que todo o campo ficou cuberto delias , e
muytas paíTarão por cima da cidade , que leuantando hu-
ma grande grita quafi fe defpejou de toda a gente » e tam-
bém no mar cahio muyta copia delias , e pollo campo c
ao pé dos m.uros fe achaxão dos mouros mortos e aleija-
dos auantc de trezentos. A fortaleza ficou toda por terra ,
lem ficar delia em pé mais que hum pedaço de parede,
Aaa 2 onde
372^ Primeyra Parte da Chronica
onde a mina não tomou fogo , mas co aballo das outrai
ficou toda aberta c quaíi para cair , c defta manejra du-
rou em pé muyto tempo , até que el Rey mefmo a man-
dou derrubar : da qual obra el Rey noílo lenhor fe não
ouue por bem íeruido. O gouernador fe deteue no porto
aquelle dia rodo em que deípedio com muytas honras a
Eiror da filueyra , que fe foy ha íua fortaleza de Cana-
ror , onde por íeu mandado fe fizerão todas as feílas, que
a terra de iy daua , com huma fermoía falua de artilharia
pollo bom fuceflo de Calecut : porem os mouros lança-
rão fama por todas as partes , que o C^amorim Rey de
Calecut era o mor fenhor de toda a índia, pois liuera
poder para lançar os Portugueíes fora da fua terra , e fa-
zerlhe derrubar a íua fortaleza : e alguns mouros princi-
paes de Cananor efcreueraô cartas a el Rey de Calecut ,
dandolhe os parabéns daquella tamanha vitoria , com
que íicara tão honrado, que todos os Reis e fenhores da
Índia lhe aueriâo íempre inueja , e o meímo lhe diziao
os mouros de Calecut ; do que el Rey tomou tanta van-
gloria e oufania , que mandou que fe armaflem muytos
paraos, e foíTem fazer por mar e por terra quanto mal
pudeíTem aos Portugueíes. O gouernador deípois de def-
pidir daly dom Simão com a armada de remo e nauios
pequenos para ir correr acofta, enella cem todos os
rios pôr tudo a fogo e a íangue , elle cos nauios groífos
le fez ha vella para Goa com detriminaçaô de fazer guerra
de caminho a toda a coíla ; porem os çurujaos lho não
confcntirão , porque tinha huma chaga antiga em huma
perna ja fiílulada, que lhe cauíaua grandes dores , e co tra-
balho do inuerno íe lhe agrauara , para que lhe rinha fei-
tos muytos remédios fecretos , encubrindo íempre o mal
que íenria , e naõ quis que lhe pufeíTem fogo , que era o
leu principal remédio , porque tinha por dauanre ella
jornada de Calecut , onde co trabalho das armas fe lhe
corrompeo a chaga , de maneira que o forçarão os çuru-
jãos a fe ir direyto a Cochim e porfe em cura. E fizen-
doííc preíles as nãos que auião d' ir para o reyno, muytos
lidai-
dei Rey Dom João o IIÍ. 373
fidalgos, que andauao dergoílofos delle, lhe pídirao iicen-
ça para íe embarcarem , a que elJe com a fua natural
iíençao a deu liurementc, dizendo que naó auia miílcr em
íua companhia íenaõ os que folgaíTcm de feruir el Rcy ,
que eítes bein fabia que lhe naÕ auiao de pidir licença ; e
delejofo defpois de os fazer deter , lem fe entender delle
que conhecia o erro que fizera , teue íobriíTo tantos def-
goftos que forao cauía de ir o leu nial em muyto creci-
mento.
CAPITULO LXXXXIL
yorfe dalbuquerque capitão de Malaca parte para a hu
dia, e o que lhe pi cede antes de chegar a Cochim» António
de brito capitão de Maluco manda huma fujta a rej ga-
tar ha ilha dos Celebes , e o que lã acha. DaJJe conta de
hum as grandes diff crenças que ha em Maluco antre An-
tonio de brito e dom Garcia anriquez»
Oríe dalbuquerque , defpois de entregar a fortale-
za de Malaca a Pêro mazcarenhas , na mouçaõ fe par-
tio para a índia em hum junco íeu armado ha Portugue-
Í2L com corenta homens Portuguefes feus amigos e cria-
dos , e naÕ quis tomar da fortaleza nauio Português , por-
que vio que auia nella neceíTidade de mais nauios que os
que tinha : e Fazendo íua viagem com profpero tempo,
ja perto de Cochim lhe fahio o arei de Porcaa com al-
guns tones armados com berços, e muytos frecheyros
nelles , cuidando que vinha doutra maneyra , mas tanto
que chegou a tiro , o junco os fez fugir a todos , e che-
gou a Cochim , onde deu ncuas do que era paílado em
Malaca e Maluco tile anno de ifi^ , que he o que fe íe-
gue. Atras fica dito que António de brito e dom Garcia
anriquez em Maluco íe concertarão, que António de bri-
to no Agcfto leguinre entregaria a fortaleza a dom Gar-
cia, e íe padaria a hum lugar duas legoas da fortaleza
até acabar hum junco que aly fazia, e o Iei'ar comíigo
para Alalaca. Durando cíle tempo António de brito ar-
mou
374 Pnineyra Parte da Chroiúca
mou huma fuíla com vinte e cinco Portuguefes , de qué
fez capitão o almoxarife , em que meteo muytas roupas,
e a mandou que foíTe refgatar ha ilha dos Celebes , onde
lhe dizião que auia muyto ouro , que era feílenta legoas
de Ternate : chegando os noíTos ha ilha, foraõ recebidos
dos moradores delia com muyto gafalhado ; porem quan-»
do íouberão que os noflos hiáo relgatar ouro , receofos
que deípois de feito o reígatc os quiíeííem roubar , e fa-
zerlhe alguns males , detriminarao tomar a fuíla , e dar
a morte a todos os noíTos , que não ficaffe quem pudeíFe
leuar a nona a Ternate ; e huma noite eftando elles dor-
mindo dentro na fuíla feguros e defcaníados , os da terra
com fuás armas fe vierao ha praya , donde torao outros
a nado que cortarão a amarra da fuíla e a começarão a
alar a terra; porem tanto que tocou o fintirao os noíTos,
que tomando as armas começarão a ferir e matar os que
acharão diante , com que os outros fe puferao todos em
fugida, e os noílos foraõ dali correndo outras ilhas, on-
de os nao quiíerão confentir , com que lhes foy forçado
voltarem para Maluco , e por lhe ferem os ventos con-
trários forão por outro caminho , em que correrão gran-
des tormentas, e forão ter a huma ilha, onde acharão bom
recolhimento e gafalhado, de que a gente aíTy homens
como molheres íaó de bons corpos , e baços da cor : o«
veílidos erão compridos da cinta para baixo fomente , e
íe cubrião com outros muytos bons feitos de palha de
Junco : a terra era muyto viçoía de aruoredos e rios da-
goa , ha nelia muytas galinhas , cabras , c cocos , e he tão
•iadia que dos noííos os que hião doentes em entrando
Jiella receberão íaude , aquy fe deiiuerao coatro mefes até
que tiuerão mouçaô para íe tornarem a Maluco , onde fo^
rao recebidos com muyta fcíla porque os tinhao por per-
didos. Nelle meyo tempo os homens que ferulraò com
António de brito , que crao muytos , ajuntauao todo o
crauo que podiao para íuas veniagas ; porem receando
que dom Garcia os naó deixalTe embarcar , nem lhe man-
daíle paliar as certidões dos foldos que fe lhe dcuiaõ , ne*
delRcy Dom João o IH. 375-
gocearão com António de brito, que antes de largar o
cargo lhes mandou tirar eítas certidões íecretamente'ícm
o laber dom Garcia, e co mefmo fegredo mandou leuar
tudo oque lhe era necclTario para o íeu junco , por não
Jho pidir deipois, e tudo lhe dauao os officiais dei Rev
polia amizade que linhão com elle. Chegado Agoílo An-
tónio de briro entregou a dom Garcia a fortaleza com al-
gumas obras inda por fazer , para que nao derão lugar of
trabalhos e ocupações da guerra : e deita mancyra íe ouue
dom Garcia por entregue delia. António de brito fe pal-
iou logo para o lugar onde tinha o íeu junco , c com ellc
íe foraô todos os que efperauao de ir com elle para Ma-
laca , em forma de o acompanharem fomente naquelle ca-
minho , como a quem fora feu capitão ; mas como ja lá
tinhaõ todo íeu fato , que fizerao leuar diflimuladamc^nte,
naõ le quiíerão tornar para a fortaleza , em que dcm Gar-
cia nao atentou alguns dias, mas aducrtindoíTe deipois
diílo , ou não faltando quica quem lho diíTelíe , efcreueo a
António de brito , que lhe mandafse a gente de que tinha
muyta neceíTidade; a que elle refpondeo, que tanto que lan-
çaíle aomar o íeujunco, que auia de fer nas agoas vi-
uas , lha mandaria toda. Dom Garcia entendendo que era
ifto inuençâo para lha não mandar , lhe fegundou com
outro recado de muytos comprimentos e corteíía , pidin-
do quelhemandafle agente , e nao trataííe de a leuar
comíigo, poisfabia quanto importaua ao feruiço dei Rey
ficar naquella fortaleza para guarda e defcnfaÓ delia, e
mandandolhe após efte outros muytos recados íem pro-
ueyto, lhe mandou ultimamente proteftos e requerimen-
tos por eícrito em feu nome , e de lodos os officiais da for-
taeza, a que António de brito refpondeo lempre com
dilações. Eílaua neíte tempo no porro da fortaleza o na-
uio em que António de brito fe auia de embarcar , e por
con-eiho de todos lhe mandou dom G^^rcia tomar as vel-
Jas e o leme , e particularmente as bombas , porque não
tinha tempo para fe proucr d'outras. Chegadas as nouas
aiíto a António de brito , todos os que eílauão para íe
em-
37^ Primcyra Parte da Chronlca
embarcar com elle , e leucir fuás fazendas , fe lhe oíFercce*
rao a irem com mão armada dentro ha fortaleza tomar
as Yelias o leme e as bombas , e meteremfe no nauio , e
íobre ido prenderem dom Garcia , e matarem quantos o
quifeirem defender , porque todos eílauao muyto íeatidos
de dom Garcia nos feus requerimentos os mandar pidir
nomeados por íeus nomes. António de brito, que também
eílaua cheyo de cólera, lhe aceitou os offerecimentos ,
c fem atentar no erro que cometia fe íoy com elles^com
íuas armas , e diante da porta da fortaleza fe meterão no
nauio , foltando mujtas palauras eícandalofas, edizendo,
vejamos quem nos defenderá leuarmos eíle nauio. O que
viílo por dom Garcia , confiderando os males que íe por
aquY comecauão de ir aparelhando , mandou ao nauio o
ouuidor com hum tabaliao fazer requerimento a António
de brito , e a todos os que eftauão com elle da parte dei
Rey que lhe obedeceflem , pois era capitaÒ daquella for-
taleza em pedoa dei Rev , e logo íe faiíTem do nauio , e
rendeííem as armas, e fe foílem ha fortaleza íopena de tre-
dorcs aleuantados ; a que todos dcraó grandes apupadas
era modo de efcarneo dizendo, que António de brito era
capitno daquella fortaleza até íeu tempo fer acabado , e
não dom Garcia ; com a qual repoíla o capitão foy acon-
íelhddo de todos os oíficiais, que mandaíie de fora a gran-
des vozes fazer outro requerimento e protefto que íe íaií-
fem logo do nauio , e fe o nao fizeílem o mandaíie meter
no fundo com a artilharia da fortaleza , que para ilTo man-
dou ao condeílabre que a puíeííe em ordem. Auifado diíto
Cachildaróes , como era muyto amigo de António de bri-
to , fe foy ter com dom Garcia , e lhe eílranhou nuiyto
o que paíTaua antre elies , fendo ambos vaíTailos dei Rey
de Portugal , e de íy taÓ honrados , principalmente eitan-
do em terra eítranha taò longe da lua , c trás efta lhe deu
outras rezoes afcandolhe o cafo i a quem dom Garcia
deu também as luas alegandolhe os comprimentos que li-
uera com António de brito , e os proteílos e requerimen-
tos que lhe íiaera. O Cachildaróes como era bom para
^ íeus
dei Rey Dom João o 11 [. 57^
feus intentos nao fícnr miiyra gente na fortaleza , para
que a dom Garcia folTe forçado nas fuis neceílidades va-
Jerfc dellc . tomou a mao a íe meter antre elles , para fa-
zer o negocio como lhe a elle cumpria , e os concerroii
que leuaíle António de brito o nauio para onde cílaua o
íeu junco , prometendo a dom Garcia que Jogo lhe man-
daria a gente, o que deípois nao cum.prio , com que por
meyo de homens reuohofos fe tornarão a trauar de ma-
neyra , que os quecftauad na fortaleza fugiao para An-
tónio de brito , e os de António de brito para dom Gar-
cia: é chegou a cou^a a tanto, que por induzia;ento deíles
^áos homens fe detriminou António de brito em matar
dom Garcia, para o que ordenou irlhe faiar com aiíru-
nia difFimuiaçaÔ , e que os que leuaíTe comíigo lhe dentam
a morte: do que dom Garcia foy auifado lecreramcnte,
e o teue em muyto íegredo , pondo boa guarda em íua
peíToa : e fendolhe dado recado de António de brito , que
fe queria ver com elle para porem luas coufas em paz ,
IUq refpondeo , que nao ufaíTc de mãos modo?, e lhe lem-
braíTe quem era , c logo mandou ao ouuidor que liraííe
áeuafsa da traição que íe lhe armaua , de que António de
brito ouue medo que lhe viefse a fazer muyto dano, e
para fc íegurar deite receyo bufcou hum nouo ardil , que
foy mandar hum Mem de lima muyto feu amigo de quem
fe íiaua , que fingindo que ouuera differenças em pubrico
com António de brito de que ficara afrontVio, fe foy pa-
ra dom Garcia moílrandofse muito fentido da afronta que
recebera de António de brito , c fe lhe oííercceo para o ir
matar fe lhe elle deíse licença , aísy polia injuria que lhe
fizera, como porque fora tredro contra elle, e contra a
coroa real : dom Garcia como era muyto auifado parece
que entendendo ou íofpcitando a tenção do Mem' de li-
ma lhe refpondeo, que elle era muyto amigo e feruidor
do íenhor António de brito, que le antre elles ouuera
diferenças fora por coufas que cumpriaõ ao íeruiço d'el
Rey ,em que cada hum cumpria com íua obrigação, que
iígo acabado ficarão outra vez muyto amigos , que da8
J^a^^* ^' Bbb pauoiis
378 Primeyra Parte da Chronica
paixdes que elle tiuera com António de brito lhe pefaija
niuyto , mas como craô antre amigos feria facil de íoldar
efsa quebra , e com ifto o derpidio Tem auer cffeito o íeu
ardil : dom Garcia com tudo efcreueo a António de- brito
cue de todos os fcus coníelhos elle era fabedor, porque os
mefmos que lhos dauao lhos vinhac defcubrir, c eíla car-
ta mofirou a Martim correa alcaide mor, e ao feitor, ouui-
dor , e cícriuães da feitoria , com que fe leuantarao outras
rou'^ zizanias que durarão até o tempo da mouçao , em
que Anronio de brito fe partio deixando a fortaleza muy-
to desbaratada de todas as coufas ncceísarias , por onde
foy forcndo ?. dom Garcia mandar Martim correa a Ban-
da em hum nauio hufcar roupas, e o m.ais de que a fortale-
za tinha falta, porque em Malaca auia diíío pouca lem-,
branca.
CAPITULO LXXXXIII.
A Ifante dona Jfahel irmam dei Rey mjjo fenhorje recehe
por duas vezes por palauras de prejente co Lmperador
Carlos quinto por meyo dos f eus embaixadores ; ò, A. con-
vida eftes embaixadores a jantarem com elle ; a hmpera-
triz 'parte para Cafiella ; fazfe delia entrega aos que
de lá trouxerão poder para a receber \ declarajje quem
faõ ; el/a entra em Seuilha , onde o Emperador a recebe,
A Rainba nojja jenhora psre ofeuprimejrofilho.
PAíTado el Rey noíTo íenhor da rilla de Torres nouas
para a de Almeyrim, como atras diíTemos , logo or-
denou que íe fizeae o recebimcnso por palauras de prc-
jentc da Ihnte dona líabcl íua irmã co Emperador Carlos:
para o que o primeyro dia domes de Nouembro ja de
noite fe íahio ha fala dos feus paços ( que para eíte a«o
cftaua ia armada de riquiíTima tapeçaria de ouro c leda
com hum rico dorfel de brocado de pelo ) com a Rainha
iioíía fenhora , e a Ifante fua irmam , onde ja eftaua Carlos
|)opçt9 monfiour de laChaulx, embaixador e baftante pro-
dei Rey Dom João o IIL 37^
Curador do Emperador para a receber em íeu nome ; para
o qual adio dom Fernando de vaíconcellos Biípo de La-
inego capcllão mor de S. A. que aly eftaua preíentc , ea
quem ifto eftaua encomendado em voz que de todos foy
bem ouuida diíTe eftas palaurns : Anrrc o muyro alto , e
muyto poderofo Rey noíTo fcnhor , e o-muyto alto e muy-
to poderofo íenhor dom Carlos Emperador dcs Rcmaos,
Rey de Alemanha e Caílella &c. he concertado c contrata-
do que o dito fcnhor Emperador aja de cafar com a muy-
to alta e muyto eíclarecida Princefa a fenhora Ifantc dona
Ifabel, fobre o qual concerto forão feitos juramentos, que
difpeníando o S. Padre para íe o cafamento poder efteituar,
os ditos íenhores Emperador e íenhora Ifante íe recebe-
rião por palaur?.s de prefenre , por ao dito tempo a dif-
pcnfação náo fer moftrada , c por ora dita diípenfaçao
ler vinda , quer el Rey noíío fenlior que V. A. ( falando
com a Ifante ) cumpra por íua parte o dito juramento ,
porque o dito íenhor Emperador polia fua o quer cumprir
por Carlos popeto feu embaixador e procurador ncfte ca-
íb , eV. A. dirá eílas palauras : Eu a Ifante dona líabel
por vos Carlos popeto , e vos mediante , como embaixa-
dor e procurador para eíle cafo de dom Carlos Empera-
dor dos Romaos, Rey de Alemanha e Caftella , &c. rece-
bo ao dito dom Carlos Emperador por meu marido bom
e lídimo , e me dou por fua molher como manda a S. Ma-
dre Igreja de Roma. E pondo o dito Bifpo de Lamego os
olhos no Carlos popeto lhe diíTe , e vos magnifico embai-
xador direis eílas palauras : O muyto alto e muyto pode-
rofo íenhor dom Carlos Emperador dos Romaos, Rey de
Alemanha e de Caílella &c. por mim Carlos popeto feu
embaixador e procurador ncfte caio ,'e eu mediante , rece-
bo a vos muyto alta e m.uyto efclarecida princefa Ifante
dona Ifabel por íua molher bcn e liciima, e le dá por voíTo
marido como manda a S. Madre Igreja de Roma : com
que íe acabou o a(5lo do juram,ento ,• porem naquelle bre-
ue da diípenfaçao, que então viera de Romn , ouue duuida
antrc letrados íe era baftante para íe cífcituar o caíameni-
Bbb 2 to ,
380 Primeyra Parte da Chroníca
to , parecendo que lhe faUauao algumas clauíulas necelTa»*
rias , por quanro o Emperador e a Emperatriz erão paren-
tes em muytos grãos: e com quanto para o foro interior íe
detrimiuou que era íufliciente , com tudo para mór fegu-
rsnça íe íupplicou de nouo ao Papa , que quileíle conce»
der aq.uella dirpenfaçao em mais largo modo , o que o
Emperador tomou fobre fy para o mandar fazer. -Logo
como is acabou o auto do juramento , a Emperatriz fez
huma grande reucrencia a el Rey fcu irmão , e poíta em
joelhos ihe beijou amao , e ha Rainha noOa fenliora , o
que fez quafi por força , porque em ambos achou bem
grande refiílencia para lha darem ; e aoós ella beijarão
tnmbem a máo a el Rey e ha Rainha os Ifantes íeus ir-
mãos , e a ella fizerao leu deuido acatamento : dos Ifanres
o que primeyro beijou a mão a íuas Altezas foy o Cardeal
dom Afonío , o fcgundo o Ifanre dom Luis , o terceyro
o Ifante dom Fernando , o quarto o Ifante dom Anrique,
e o derradeyro o Ifante dom Duarte: e logo após elles fi-
zerao o mefmo monfiour de la Chaulx, e João de çunhiga
embaixadores do Emperador, e após ellcs o fizerao tam-
bém todos os fenhores que na caía eftauão , e após iílo
beijarão tainbem todos a mão ha Emperatriz. Acabada
efta cirimonia quis S.A., que ouuelTe logo ferão na mefma
íala , e para iilo fe aílentarao elle e a Rainha no eítrado
em almofadas de brocado , porque naô quiferao então
fentaríe em cadeyras como outras vezes cufcumauao nos
íeroes , e no meyo de ambos fizerao aíTentar a Empera-
triz fícandolhe el Rey de huma parte , e a Rainha da ou-
tra : eíle ferão , que fc fez com muyto vagar , e aparato^
durou até quafi as duas oras defpois da meya noite , e dan-
çarão nelle a Rainha com a Emperatriz , e el Rey com
dona Anna de tauora , e os Ifantes dom Luis e dom Fer-
nando com as damas de que mais fe contentarão. Ao ou-
tro dia feguinte quis S. A. que os embaixadores do Em-»
perador jantaíTem cora elle ha mefa , para o que também
forão conuidados o Cardeal e os Ifantes dom Luis e dom
Fernando íeus irmãos , onde o Cardeal eíteue mais che-».
dei Rey Dom João o III. 7^ 8 1
gado a el Rey , e pegado com elle o Ifaníe dom Luis , e
Jogo o Ifaine dom Fernando , e após elle o moniiour de
Ja Chaulx , e no topo da meia abaixo de la CJiauIx ficaua
João de çunhiga : a cíles embaixadores vinha tudo corta-
do da copa, e aííy lhe erao poíl:)s as igoarias , e léus
criados lhe dauao de beber, e naó ouue na meia mais of-
iciais que os ordinários dei Rey e dos Ifantcs ; e o ícr-
uidor da toalha , que eílaua mais abaixo, preíenraua aos
em.baixadores as igoarias na form.a que vinlião da copa ,
c naõ íe deu agoa has mãos aos embaixadores.
Aos vinte dias de Janeiro do anno feguinte de 1526
fe tornou a receber a Empcratriz co melm.o moniiour de
Ja Chaulx por meyo do m.efmo Bifpo de Lamego , e cos
mefmos termos e palauras de que uíara no outro recebi-
mento ; o qual antes de fazer eíle fegundo ado decla-
rou pubricamente, como era vinda outra difpenfaçáo con-
cedida pollo Papa Clemente fetimo , em que declaraua e
particularmente efpicificaua todos os parentefcos que auia
antre a Emperatriz e o Emperador, da qual o breue vinha
em tão ampla forma como conuinha , de que foy feito
lium auto pubrico polío fecretario António carneyro co-
mo pubrico notário , em que aíhnarao os embaixadores
doEmperador moniiour de la Chaulx , e João de çunhi-
ga , e ao pé delle fe tresladou o breue da difpeníaqaõ de
verbo ad verbum : feitas cilas íolenidades com que de
todo íe acabou de concluir aquelle defpoforio , venda
S. A. que ja naó auia coufa que pudeiíe entreter a partia
da para Caílella da Emperatriz fua irmã , como então
Jhe rinha ja preiles quanto para ella lhe era neceiíario , naô
a quis dilatar mais : na qual jornada tinha ordenado que
a acompanhaíTem até a raya de Caílella , e ahy a entregaf-
fem aos que de lá trouxeílem baftantes poderes pêra a re-
ceberem , os Ifantes dom Luiz , c dom Fernando fcus
irmãos ; e em íua companhia o duque de Bargança , eo
marqucz de Villareal dom Pedro de meneies , ao qual
nandou el Rey nofío íenhor que foíle com a Emperatriz
até onde eíliueííe O Emperador , e aífiílilTc ao íeu recebi-
nunto
3Í^2 Primeyra Parte da Chronica
mento e deíTe ordem para le lhe pagar o feu dote, e fé
cobrarem as quitações delle , e fe fazer a aualiaçao das
fuás joyas , e íc tomar poíle das villas e cidades que o
Emperador hipotecaua para pagamento das cincoe^ta mil
dobras, que daua ha Emperatriz para íuílentaçao de íua
cala .• o que fe auia de f^izer pollos doutores António
d'azeuedo , e Lourenço garcês. E neíta jornada mandou
também S. A. Fernão d^alurez d' Andrada íeu tiíoureyro
mór ( ao qual officio todo o tempo que o íeruirao clle, e
íeus filhos , os Reys paíTados deftes reynos derão muytas
preeminências , eifençoes, que defpois os Reys feus fu-
ceíTores ouuerao por íeu feruiço mandaremlhe tirar e mu-
dalo noutra forma ) para mandar pagar os gaftos delia ,
e correr por elle em Caftella o pagamento do dote da
Emperatriz , e cobrar as quitações delle , c aífiílir ha aua-
liaçao das fuás joyâs em companhia do marquez de villa
real , em que S. A. e a Emperatriz fe ouuerão por muyto
berii feruidos de Fernão d'alurez , e a Emperatriz particu-
larmente lhe fez por ifTo muyras honras e mercês. Chega-
do o dia e a hora em que a Emperatriz fe auia de partir ,
que foy no fim de Janeyro de 1^26 , lias duas horas def-
pois do meio dia , deípois de ít* defpidir de fuás Altezas
com aquellas moítras de fentimento de ambas as partes
■que íê deixao bem entender , fe partio a Emperatriz de
Afmeyrim , acompanhada dos Ifantcs feus irmãos , do du-
que de Bargança , do marques de Villareal , e de outros
muytos fidalgos nobres que auião de ir com ella na jor-
nada , e em poucos dias chegou ha cidade d'Eluas. Ja
«eíle tempo cílauão em Badajoz para tomarem entrega
delia dom Fernando d'Aragdo duque de Calábria , e dom
Afonfo da fonfeca Arcebiípo de Toledo , e dom Aluaro
de çunhiga duque de Bejar : co Arcebifpo de Toledo
vinhao oBifpo de Placencia , e dom Fernando da íilua
conde de Cifucntes , e dom Pedro d*ayala conde de Fu-
eníalida , e dom Afonfo dazeuedo conde de Monterrey ,
e o conde de Ribagorça , e o conde dom Fernando de
Andrada , c outros muytos fidalgos : co duque de Bejar
dêlRey Dom João o III. 383
Mão o conde de Aguilar , e dom Pedro de Auila que de-
pois loy marqucz das Nanas. Veyo aquy tambcm dom
João Afonfo de Guzman duque de Medina Sidónia, em
cuja companhia veyo dom Francifco de (^unhiga y íoto
mayor marquez de Ayamonte , e conde de Venaicacar , e
outros muytos fidalgos , e ícnhores. Dcfpois que a Em-
peratriz defcanfou em Eluas alguns dias do trabalho do
caminho, no dia que íe aprazou para íe fazer a entrega,
fahio de Eluas com toda a Tua companhia : e de Badajoz
lairão rodos os íenhores Caílelhanos , com ricos e luílro-
los atauios em ambas as partes, quanto o tempo então o
permitia , e antes de chegarem ha raya de ambos os rey-
nos hum pequeno eípaço , a Emperatriz le pâffou da li-
teyra em que hia a huma faca branca , onde deípois de
lhe beijarem a mão todos os Porlugueíes por íua ordem ,
€ fe delpidirem delia , os Ifantes Teus irmãos le chegarão
com elia ha raya . e aly portos apé todos os fenhorcs Ca»
ftelhanos , lhe beijarão também a mão , e poílos após iíTo
acauallo le ajuntarão cos Portugueíes , e fizerão todos
hum grande e eípaçoío circuito , que daua de íy hum bem
fermofo , e luftrofo efpeítaculo , ficando a Emperatriz na
meio de todos elles. O duque de Calábria então , e o Ar-
ccbifpo de Toledo , e o duque de Bejar ic chegarão a ella ,.
e o fecretario do duque de Calábria por Teu mandado leo
em alfa voz o poder que trazia do Emperador para íe en-
tregar delia : e após iílb lhe diííe o meímo duque , que
vide Tua Mageílade o que msndaua : a que ella com fem-
brante graue e quieto não tornou repelia , mas p Ilante-
dom Luiz tomando então a rédea da faca em que ella efta-
ui , dilíe ao duque : Eu entrego a voíTa Excellcncia a Em-
peratriz minha íenhora , em nome dei Key de Portugal
meu fenhor , e irmão , como efpola que he do Emparador
Carlos. E dito ifto , apartandofle da mão direyta da Empe-
ratriz onde então eftaua , le chegou o duque , e tomou a
rédea que o Ifante ainda tinha na mão , dizendo que fe
daua por entre|,uj de fua Mageílade em nome do Empe-
rador feu íenhof : após as quais cerimonias , chegandoíle
3 S I Pri m eyra Parte da C h ron ica.
os Ifcintes ha Emperatriií pára lhe beijarem a mão , e fe
dcrpedirem delia , os abraçou com muyta corteíia , e aca-
tamento , e fe deipedirão com moítras de miiyto íentimen-
to de parrc a parte. A Emperatriz íe recolheo logo daly a
Badajoz , onde fe deteue iete dias , e íe par tio para Seui-
Iha : e na entrada de Março de 152o entrou naquella ci--
dade , onde lhe foy feito hum funtaoíiíTimo recebimento ,
e da liy a poucos dias entrou o Etnperador na meíma ci-
dade , e fe recebeo logo com a Emperatriz com as íoleni-
dades e feílas deuidas a tal ado como aquelle. Logo aos
14 dias do mes de Feucreyro feguinte defce mefmo anno
de 1526 teue a Rainha dona Caterina noíla fenhora o feu
primeyro parto , de que naceo o Princepe a que foy poíto
nome dom AfonTo ; e náo fe nomeão aquy as peíToas que
forão ocupadas nas cerimonias do íeu bautiímo , porque
naõ chegou a miivha noticia , mas betn fe entende que de-
liiâo de fer da íalidadcdas outras que forão òíu^adas nos
bautifmos de alguBs doè outrosTilhos de S. A., de que em
léus lugares declajarey os nomes ^ porque os achey em
papeis táo autênticos que não recebem duuida. E nos bau-
tifmos de ninhuns outros filhos nem filhas dcl Rey noíTo
fenhor achey eíla particularidade : por iflo íenao achará
cfcrira neíla hiftoria. O goílo defte primeyro parto da Ra-
inha foy tamanho , afsy em el Rey , como geralmente em
todos os feus vaísallos, que de ninhuma outra couía o
pudera então auer mayor : porem não foy de muyta dura,
porque também o não foy o Princepe, que morreo muyto
erianja.
Fim da 'Primeira Farte,
ey' ry' »-^ ry 'y -V' "V* "Y*
<-., i9( >$k A >9( >C>
'V "S^ "^-^ "^ "V "V*
sCt A V* ;0*
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Erratas. 585-
Pâg. V. Cap. ^Ç Y\rfi. í^ftfez. \ea-fe/e/az, e nffim no mcfmo Cap. ap::-. 12-.
VI. Cp. J9 lin.j Zfoíor lea-fe Lainor e anim no nzCmo C^p. z pàí^i^z^'
XI. Cap. 70 Vm. 2 gcKtf lea-fe gertc. '"'
ço lin. i^ cnnceitos if^^-ff concerto?.
70 lin. II do Cap. de que tinha nect-ifidadc, e daria lea-fi ds que tiahi neceíG-
dade , q.ie em poucos dias poderia lá chegar, c d.iii.x
9- lin. 12 e 13 defccntialie Ua-fe deíconíiaúo.
97 lin. 31 bombardas Ica-fe bombanfadas.
1C3 yi:\. 35 tendo o batel em feco lea-fe vendo o batel em Teco
103 Im. 10 forao l-^-fe lhe lorao
Jio lin. 16 de maTÍ'co ka-fe de rtiavifcos
124 lin. 3 G quejjidia lea-fe o quí ll;e picia
12Ô lin. 7 c 8 muytas honras Ica-fe muytas mrrccs e honras
Ibid. l:n. 19 o conccrtj de pazes lea-fc o conte: ío das pazes
130 lin. 2 pouerdo lea-fe prouendo.
,131 lin. i8 aos feus Ua-fe a feu?.
Ibid. lin. 26 efperanSo lea-fe erper.-:ião
134 lin. 4doC3p. 37 galaJho Ua-fe gafalhado
144 lin. a com toda a iriais h-a-fe com toda a mais geute
165 lin. 3 do Cap. 46 foy capitão ka-fc toy por capitão
176 lin. 5 tornafle la-fe tornarfe
177 lin. i9do Cap.48 aflmados Ica-f afiinadas
180 lin. 29 Lidrilho lea-fe ladrilhado
aS2 lin. 14 fenão em artigo de morte Ua-fe fenao eSando cm artigo de morte
195 lin. 23 vicr.io lea-fe viera
213 1ÍD. I da Epigrafe do Cap. 57 hum Ua-fe huma
218 lin. 4do Cap. çS do eltauo Itui-fe o eftado
243 lin. 7 feeiia Ua-fe fe elle
- 251 lin. 7 fenúo morto Ua-fe fendo primevro morto
264 lin. 6 que foy lea-fe fe fcy
271 lin. 32 atraueire Ua-fe atreueíTe
296 lin. 23 para fua cafa Ua-fe para fuílentaçSo de fua caf»
299 i:n. I .re Lotir Ua-fe de Loiir
Ibid. lin. 12 jT.echas lea-fe frech.is
378 lin. 3 do Cap. 93 recebimcnso Ua-fe recebimento
?art, h Ccc
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