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Full text of "Coloquios dos simples e drogas da India"

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COLÓQUIOS 


DOS 


SIMPLES  E  DROGAS 

DA  índia 

POR 

GARCIA    DA    ORTA 


EDIÇÃO  PUBLICADA 

POR  DELIBERAÇÃO  DA 

ACADEMIA  REAL  DAS  SCIENCIAS  DE  LISBOA 

DIRIGIDA  E  ANNOIADA 

PELO 

CONDE  DE  FICALHO 

Socio  cflectivo  da  mesma  academia 


LISBOA 

IMPRENSA  NACIONAL 
189I 


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COLÓQUIOS 


DOS 


SIMPLES   E  DROGAS 

DA  índia 


COLÓQUIOS 


DOS 


SIMPLES  E  DROGAS 

DA  índia 

POR 

GARCIA    DA    ORTA 


EDIÇÃO  PUBLICADA 

POR  DELIBERAÇÃO  DA 

ACADEMIA  REAL  DAS  SCIENCIAS  DE  LISBOA 

DIRIGIDA  E  ANNOTADA 

PELO 

CONDE  DE  FICALHO 

Sócio  effectivo  da  mesma  academia 


LISBOA 

IMPRENSA  NACIONAL 
189I 


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;AY  2  3  1968       ;* 


ADVERTÊNCIA  PRELIMINAR 


Uma  nova  edição  dos  Colóquios  dos  simples  e  drogas 
E  cousas  medicimaes  da  Índia  de  Garcia  da  Orta  é  de  ha 
muito  um  desideratimi  para  todos  os  que,  em  Portugal  e 
fora  d'elle,  se  interessam  pela  historia  da  Sciencia,  e  também 
para  todos  os  que  pretendam  estudar  a  acção  e  influencia 
dos  portuguezes  nas  terras  orientaes  durante  o  xvi  século. 
Os  exemplares  da  edição  de  Goa  tornaram-se  raríssimos,  e 
sobre  isso  estão  crivados  de  innumeraveis  erros  typographi- 
cos.  Raros  são  os  que  têem  tido  o  ensejo  de  os  consultar, 
e  raros  também  os  que  se  sentem  com  animo  bastante  para 
penetrar  nas  asperezas  de  um  texto  incorrectíssimo,  pes- 
simamente pontuado,  e  de  uma  leitura  ingrata  c  difficil.  Exis- 
tem na  verdade  varias  edições  da  chamada  traducção  latina 
do  botânico  francez  Carlos  de  lEscluze,  mais  conhecido  pelo 
seu  nome  latinisado  de  Clusius;  mas  a  obra  de  Clusius  não 
é  uma  traducção,  e  sim  um  resumo  ou  epitome,  diverso  e 
muito  diverso  do  original.  O  mesmo  se  pôde  dizer  da  cha- 


VI  Advertência  preliminar 

mada  traducçao  italiana  de  Annibal  Briganti,  e  da  franceza 
de  António  Golin.  São  eftectivamente  versões;  mas  do  re- 
sumo de  Clusius,  e  não  do  livro  portuguez'.  Assim,  em- 
quanto  estes  epitomes  corriam  mundo  na  lingua  latina,  ita- 
liana ou  franceza,  sendo  dia  a  dia  consultados  e  citados 
pelos  homens  de  sciencia,  o  livro  de  Orta  na  sua  forma 
portugueza  completa,  com  a  caracteristica  linguagem  do 
tempo,  com  os  seus  modos  peculiares  de  pensar  e  de  dizer, 
com  as  suas  interessantes  noticias  sobre  a  vida  íntima  da 
índia,  o  livro  de  Orta  permanecia  quasi  ignorado. 

N'estas  condições,  a  reimpressão  dos  Colóquios  impu- 
nha-se  como  uma  necessidade  urgente  para  os  estudiosos, 
e  quasi  como  uma  obrigação  de  decoro  nacional.  Isto  sentia 
já  ha  perto  de  meio  século  a  Sociedade  das  sciencias  me- 
dicas de  Lisboa,  quando  no  anno  de  1841  empenhava  lou- 
vavelmente todos  os  seus  esforços  para  que  se  fizesse  aquella 
reimpressão.  Com  o  fim  de  a  levar  a  cabo  nas  melhores  con- 
dições, a  Sociedade  dirigiu-se  então  a  alguns  dos  homens 
mais  notáveis  na  litteratura  e  na  sciencia  do  nosso  paiz, 
pedindo-lhes  os  seus  avisos  e  conselhos.  De  dois  sabemos 
nós  que  foram  consultados,  ambos  eminentes  nas  letras  pá- 
trias, posto  que  desigualmente,  Almeida  Garrett  e  fr,  Fran- 
cisco de  S.  Luiz.  Garrett  abraçou  com  enthusiasmo  a  idéa 
da  Sociedade,  e  na  resposta  ao  officio,  que  esta  lhe  dirigiu 
em  2  de  março  de  1841,  poz  á  sua  disposição  a  grande  in- 
fluencia de  que  dispunha,  para  que  se  promovesse  a  reim- 
pressão dos  Colóquios.  . .  aeste  precioso  documento  portii- 
gue:{,  infelizmente  mais  avaliado  até  aqui  dos  estrangeiros 
do  que  dos  nossos  próprios,  que  o  iam  perdendo,  como  tantos 
outros  de  que  apenas  alguns  conservamos  o  nome,  e  bem  pou- 


I  Cf.  Garcia  da  Orta  e  o  seu  tempo,  de  p.  SyS  a  p.  385. 


Advertência  preliminar  vii 

cos  a  saudade ' » .  O  erudito  prelado  respondeu  também  á 
Sociedade,  mostrando  todo  o  interesse  que  o  animava  pela 
sua  empreza  de  fazer  mais  conhecida  uma  obra  adigna  do 
maior  apreçoy>;  empreza  — dizia  elle —  que  devia  dar  á  So- 
ciedade <i grande  nome  e  credito,  mormente  se  ao  texto  se 
ajuntarem  algumas  das  importantes  notas,  a  que  elle  offerece 
largo  campo  e  feli^  opportunidade^».  Ambos  davam,  nas 
respostas  á  Sociedade,  o  seu  parecer  sobre  as  regras  a 
observar  na  nova  edição,  parecer  a  que  teremos  de  nos  re- 
ferir mais  de  uma  vez  nas  paginas  seguintes. 

Devido  sem  duvida  aos  esforços  e  influencia  d'estes  dois 
illustres  litteratos,  o  governo  decidiu  auxiliar  a  empreza  da 
Sociedade  das  sciencias  medicas,  e  uma  portaria  de  27  de 
maio  de  1841,  assignada  por  R.  da  Fonseca  Magalhães, 
determinou  que  a  reimpressão  fosse  feita  na  Imprensa  Na- 
cional, e  que  a  dirigisse  o  conselheiro  João  Baptista  de  Al- 
meida Garrett^. 


1  Veja-se  o  officio  da  Sociedade,  e  a  resposta  de  Garrett  no  livro 
de  Francisco  Gomes  de  Amorim,  Garrett,  memorias  biographicas,  11, 
606,  Lisboa,  1884. 

2  Minuta  mss.  da  resposta  do  cardeal  Saraiva,  communicada  pelo 
dr.  Venâncio  Deslandes. 

3  Damos  em  seguida  o  texto  da  Portaria : 

«Ministério  do  reino  —  i.^  Repartição.  —  N."  1016.  — L."  2."  —  SuaMa- 
gestade  a  Rainha,  attendendo  ao  que  lhe  representou  a  Sociedade  das 
Sciencias  Medicas  de  Lisboa,  pedindo  que  na  Imprensa  Nacional  se  faça 
a  reimpressão  mais  nitida  de  1:000  exemplares,  extrahidos  de  outro, 
que  adquirira,  dos  Colóquios  dos  simples  e  drogas  e  cousas  medicinaes 
da  índia,  impressos  em  Goa  em  i563,  e  escriptos  pelo  medico  portu- 
guez  Garcia  da  Orta:  manda,  pela  secretaria  d*estado  dos  negócios  do 
reino,  que  o  administrador  geral  da  dita  Imprensa  Nacional  faça  reim- 
primir n'ella  o  sobredito  escripto  em  numero  dos  mencionados  i  :ooo 


VIII  Advertência  preliminar 

Pareciam  assim  as  cousas  bem  encaminhadas;  mas,  ignoro 
por  que  motivo,  os  trabalhos  da  nova  edição  nunca  foram 
levados  a  cabo,  e  nem  sei  mesmo  se  foram  encetados,  pois 
não  encontrei  vestigio  algum  de  que  se  começasse  a  impres- 
são. E  é  pena  que  assim  succedesse,  porque  a  edição  de 
1841,  se  se  tivesse  feito,  seria  recommendavel  por  mais  de 
um  titulo.  Garrett  não  tinha  talvez  a  instrucção  especial, 
necessária  para  esclarecer  scientificamente  alguns  pontos 
obscuros  dos  Colóquios,  mas  tinha  mais  e  melhor  do  que 
isso.  O  seu  espirito,  que  foi  litterariamente  o  mais  alta  e 
finamente  dotado  de  todos  quantos  produziu  o  nosso  paiz 
n'este  século,  o  seu  espirito  abrangia  com  a  mesma  lucidez 
as  mais  variadas  e  diversas  questões;  e  elle  possuia  o  ín- 
timo conhecimento  da  lingua,  o  amor  e  o  respeito  ás  suas 
antigas  formas,  e  o  impeccavel  bom  gosto,  necessários  para 
levar  a  bom  termo  uma  obra  de  reconstituição  litteraria. 
Póde-se  affbitamente  affirmar,  que  uma  edição  dos  Coló- 
quios, dirigida  por  Almeida  Garrett,  teria  sido,  quanto  ao 
texto  e  ás  notas  históricas,  absolutamente  definitiva.  Pelo 


exemplares,  depois  de  praticadas  as  emendas,  que  a  Sociedade  se  pro 
põe  fazer-lhe,  attentos  os  erros  que  na  sua  primeira  impressão  se  intro- 
duziram; bem  entendido  que  esta  de  que  se  trata  tem  de  verificar-se 
debaixo  da  direcção  da  Sociedade  supplicante,  ha  de  ser  dirigida  pelo 
Conselheiro  João  Baptista  de  Almeida  Garrett,  a  quem  se  faz  a  compe- 
tente participação,  recommendando-se  ao  administrador  geral  que  seja 
a  mais  perfeita  que  for  possível,  e  havendo-se  o  pagamento  da  sua  des- 
peza  pelo  numero  de  exemplares,  cujo  preço  for  igual  ao  custo,  afora 
os  que,  segundo  o  estylo,  ficarem  para  a  casa.  O  que  assim  se  participa 
ao  administrador  geral  para  sua  intelligencia  e  execução.  Paço  das  Ne- 
cessidades, em  27  de  maio  de  i%^\.  =  Rodrigo  da  Fonseca  Magalhães. >^ 
(Archivo  da  Imprensa  Nacional,  Livro  9.°  de  registo  de  Decretos  e 
portarias,  foi.  14.) 


Advertência  preliminar  ix 

que  diz  respeito  ás  notas  scientificas  e  botânicas,  não  era 
possivcl  fazer-se  em  1841  uma  edição  definitiva,  fosse  auem 
fosse  que  a  dirigisse. 

Abandonado,  ou  protrahido  indefinidamente  aquelle  plano 
de  reimpressão,  ficou  o  assumpto  esquecido'  até  ao  anno 
de  1872.  N''esse  anno,  F.  A.  de  Varnhagen,  visconde  de 
Porto  Seguro,  deu  á  estampa  em  Lisboa  uma  edição  dos 
Colóquios^.  Varnhagen,  investigador,  erudito,  bastante  ver- 
sado em  questões  e  assumptos  de  historia  natural,  possuia 
as  qualidades  necessárias  para  dirigir  uma  boa  edição  do 
antigo  livro  portuguez;  e  d'isso  tinha  dado  provas  nas  no- 
tas á  obra  de  Gabriel  Soares,  e  em  outros  trabalhos  seus. 
Infelizmente  a  edição  dos  Colóquios  foi  feita  em  más  con- 
dições, rapidamente,  sem  os  cuidados  e  o  estudo  indispen- 
sáveis, e  em  parte  sem  a  assistência  do  próprio  editor,  como 
elle  mesmo  explica  no  post-editum.  D'ahi  resultaram  as 
suas  numerosas  lacunas  e  imperfeições.  Em  primeiro  logar, 
aquella  edição  é  uma  pura  reimpressão  do  texto  moderni- 
sado,  sem  notas  ou  esclarecimento  de  espécie  alguma,  nem 
mesmo  a  simples  identificação  das  plantas  mencionadas  por 
Orta  com  os  seus  nomes  scientificos.  E  por  infelicidade,  na 
única  nota  d'este  género  que  se  encontra  em  todo  o  livro, 
n'aquella  em  que  se  pretende  identificar  o  durião  com  uma 
espécie  de  Anona,  vae  envolvido  um  erro  botânico  grossei- 
ro. Esse  erro  foi  na  verdade  reconhecido  e  emendado  pelo 


1  Parece  que  Rodrigo  de  Lima  Felner,  o  erudito  editor  das  Lendas 
da  índia,  do  Lyvro  dos  pesos  da  Ymdia,  e  de  outros  valiosos  documen- 
tos da  nossa  historia  oriental,  se  occupou  também  de  uma  edição  dos 
Colóquios;  mas  o  seu  manuscripto  não  foi  encontrado. 

2  Colloquios  dos  simples  e  drogas  etc,  2.»  edição,  Lisboa,  na  Im- 
prensa Nacional,  1872. 


X  Advertência  preliminar 

próprio  editor  no  post-editum;  mas  nem  por  isso  deixa  de 
ser  para  sentir,  que  a  única  identificação  botânica  apontada 
fosse  incorrecta.  Em  segundo  logar,  a  própria  revisão  do 
texto  é  muito  defeituosa,  á  parte  mesmo  qualquer  discus- 
são acerca  do  plano  adoptado.  São  frequentes  as  passagens 
em  que  o  sentido  da  phrase,  obscurecido  pelos  numerosos 
e  graves  erros  typographicos,  foi  mal  interpretado  por  sim- 
ples desleixo  e  falta  de  attenção.  Bastará  citar  um  exemplo. 
Orta,  fallando  da  planta,  de  que  exsuda  a  gomma-resina, 
conhecida  pelo  nome  de  asa-foeíida,  tem  na  edição  de  Goa 
a  seguinte  phrase:  «e  o  arbore  de  que  se  tira  ou  mana  se 
chama  Anjuden».  Esta  phrase  é  claríssima,  e  vae  impressa 
na  presente  edição,  apenas  com  uma  leve  correcção  ortho- 
graphica  e  a  introducção  dos  caracteres  itálicos:  «e  o  arvore 
de  que  se  tira  ou  mana  se  chama  anjuden. •>■>  Pois,  apesar  de 
clara,  foi  assim  impressa  na  edição  de  Lisboa  de  1872:  «e 
a  arvore  de  que  se  tira  o  maná  se  chama  anjuden».  Não  ha 
realmente  desculpa  para  esta  confusão  entre  um  tempo  do 
verbo  manar  e  o  nome  de  uma  droga;  e  as  cinzas  de  Gar- 
cia da  Orta  estremeceriam  no  seu  tumulo,  se  podessem  sa- 
ber que  lhe  attribuiam  um  erro  d'esta  ordem,  fazendo-o  pro- 
duzir o  manná  e  a  asa-foetida  pela  mesma  planta.  Este 
exemplo  é  sufficiente  para  mostrar,  que  a  edição  de  1872  de 
modo  algum  dava  satisfação  ao  desideratum  apontado,  de 
modo  algum  podia  servir  aos  que  pretendessem  consultar 
com  facilidade  e  ao  mesmo  tempo  com  segurança  a  obra 
de  Orta. 

Estava  a  questão  n'este  ponto,  quando  a  Academia  real 
das  sciencias  de  Lisboa  deliberou,  que  se  publicasse  uma 
nova  edição  sob  os  seus  auspícios,  e  me  encarregou  d"esse 
trabalho,  tanto  na  parte  da  publicação  e  revisão  do  texto, 
como  na  da  redacção  das  notas,  deixando-me  a  mais  abso- 


Adveiiencia  preliminar  xi 

luta  liberdade  pelo  que  dizia  respeito  ao  plano  e  regras  a 
adoptar  em  um  e  outro  ponto.  Sabia  eu  perfeitamente  que 
esse  trabalho  seria  árduo  e  longo;  mas  nem  podia  esquivar- 
me  ao  que  me  era  determinado  pela  Academia,  nem  — devo 
dizel-o  como  franqueza —  tive  a  tentação  de  o  fazer.  Sem 
me  illudir  sobre  as  dificuldades  da  empreza,  nem  sobre  os 
requisitos  que  me  faltavam  para  o  seu  bom  desempenho, 
seduzia-me  esta  obra  paciente  de  investigações,  de  pesqui- 
zas  e  de  reconstituição.  Puz  por  consequência  mãos  á  obra, 
e  o  primeiro  resultado  do  meu  trabalho  foi  o  livro  que  pu- 
bliquei no  anno  de  1886'. 

N"'esse  livro,  e  pelos  dados  escassos  que  me  foi  possível 
encontrar,  procurei  eu  reconstruir  approximadamente  a  bio- 
graphia  do  auctor  dos  Colóquios:  esforcei-me  também  por 
estudar  o  meio  em  que  elle  viveu,  e  as  influencias  que  actua- 
ram no  seu  espirito,  já  na  Europa,  nas  universidades  da 
Hespanha  e  na  corte  de  Lisboa,  já  no  Oriente,  tanto  nas 
suas  viagens  como  na  sua  longa  permanência  na  capital 
da  índia  portugueza,  que  então  era  também  uma  verda- 
deira corte:  tentei  finalmente  determinar  o  valor  e  a  signi- 
ficação da  sua  obra,  a  qual  fechava,  resumindo-a,  a  epocha 
de  fragmentarias  e  nebulosas  noções  da  Antiguidade  e  da 
Idade-media  sobre  a  historia  natural  do  Oriente,  e  abria  o 
periodo  das  investigações  modernas.  O  meu  trabalho,  pu- 
blicado vae  já  para  cinco  annos,  constitue,  pois,  propria- 
mente uma  introdiicção  á  presente  edição  dos  Colóquios, 
e  dispensa-me  de  entrar  de  novo  em  questões,  que  ali  foram 
tratadas  tão  completamente  quanto  eu  podia  e  sabia.  Res- 
ta-me  apenas  dar  conta  succintamente  das  regras  adopta- 
das na  reproducção  do  texto  e  na  redacção  das  notas. 


»  Garcia  da  Orta  e  o  seu  tempo,  Lisboa,  18S6. 


XII  Advertência  preliminar 

Pelo  que  diz  respeito  á  primeira  parte,  apresentavam-se 
naturalmente  três  systemas  diversos  a  seguir,  expostos  já 
em  1841  pela  Sociedade  das  sciencias  medicas  nos  seguin- 
tes termos: 

«Reimprimir  a  obra  tal  qual  se  acha,  erros  e  tudo;» 

«Reimprimil-a  expurgada  somente  do  que  se  julgasse  er- 
ros typographicos,  attendendo  á  doutrina  e  orthographia 
d'aquella  epocha;» 

«Reimprimil-a  reduzida  á  orthographia  e  linguagem  ho- 
diernas.» 

Os  dois  systemas  radicaes,  o  primeiro  e  o  ultimo,  pare- 
ceram-me  absolutamente  inadmissíveis;  e  não  fiz  mais  n''este 
ponto  do  que  seguir  e  adoptar  o  parecer  dos  dois  illustres 
litteratos,  já  citados,  e  consultados  n'aquella  epocha  pela 
Sociedade. 

A  modernisação  da  forma  seria  talvez  applicavel  á  reim- 
pressão de  uma  obra  puramente  scientifica,  quando  a  nova 
edição  tivesse  unicamente  o  fim  de  facilitar  a  leitura,  gene- 
ralisando  e  vulgarisando  o  conhecimento  dos  factos  apon- 
tados e  das  doutrinas  expostas.  Mas  taes  obras  não  se  com- 
punham n'aquelles  bons  tempos  da  Renascença,  em  que  não 
existiam  especialistas,  em  que  todo  o  homem  instruído  es- 
crevia e  tratava  mais  ou  menos  promiscuamente  dos  varia- 
dos assumptos  que  o  interessavam.  Os  Colóquios  têem  este 
caracter  da  epocha;  e  nas  pachorrentas  conversas  de  Ruano 
e  de  Orta  falla-se  de  tudo,  de  plantas  e  de  medicina,  dos 
reis  da  índia  e  do  jogo  do  xadrez,  da  situação  geographica 
de  Babylonia  e  da  etymologia  do  nome  das  Maldivas.  Como 
bem  sentia  e  dizia  Garrett,  «a  obra  de  que  se  trata  reúne  d 
importância  scientifica  o  interesse  litterario  e  histórico:  quero 
di^^er,  não  é  somente  um  tratado  de  sciencia,  é  também  um 
monumento  da  historia  da  arte  e  da  linguagem^ .YQ.súr  uma 


Advertência  preliminar  xiii 

obra  d'csta  natureza  com  a  nossa  linguagem  moderna,  seria 
deturpal-a,  prival-a  de  todo  o  encanto,  de  toda  a  singeleza, 
de  todo  o  cunho  da  epocha  em  que  foi  escripta.  Convinha 
pois  — ainda  na  phrase  de  Garrett —  que  a  oríhographia  e 
termos  antiquados  se  conservassem  religiosamente.  O  argu- 
mento, algumas  vezes  adduzido  contra  este  modo  de  pro- 
ceder, e  derivado  da  maior  facilidade  de  leitura,  de  pouco 
ou  de  nada  vale  no  nosso  caso.  Os  Colóquios  são  hoje  um 
livro  forçosamente  destinado  a  uma  classe  muitíssimo  re- 
stricta  de  leitores  instruídos.  Todos  os  que  o  lerem  ou  con- 
sultarem não  hesitarão  por  certo  diante  de  uma  forma  or- 
thographica  obsoleta,  de  uma  palavra  pouco  corrente,  de 
uma  volta  grammatical  antiquada.  E  aquelles,  que  taes  for- 
mas poderiam  embaraçar,  de  certo  se  não  lembrarão  de  o 
ler.  Haveria,  pois,  em  modernisar  o  livro,  o  inconveniente 
de  lhe  tirar  o  seu  caracter  de  monumento  da  historia  da  arte 
e  da  linguagem,  sem  com  isso  o  tornar  de  leitura  geral,  o 
que  elle  nunca  pôde  ser,  e  nunca  ha  de  ser. 

Reimprimir  a  edição  de  Goa  tal  qual  está  «erros  e  tudo», 
seria  um  systema  ainda  menos  acceitavel.  A  este  propósito 
dizia  fr.  Francisco  de  S.  Luiz:  E  primeiramente  entendo 
que  é  demasiadamente  escrupuloso,  para  não  di:[er  imperti- 
nente, o  methodo  de  imprimir  ou  reimprimir  qualquer  mss. 
ou  impresso  com  todos  os  erros,  que  nelle  se  achão,  sem  ex- 
ceptuar aquelles  que  são  manijestamente  erros  typogi^aphicos, 
ou  sobre  os  quaes  não  pôde  occorrer  consideração  alguma 
pela  qual  se  devão  conservar.  Esta  opinião  do  erudito  aca- 
démico pôde  ser  discutível  pelo  que  diz  respeito  aos  ma- 
nuscriptos;  mas  está  fora  de  toda  a  contestação  quando  se 
trata  de  uma  obra  impressa.  Se  nôs  possuíssemos  o  manu- 
scripto  de  Orta,  seria  opinião  minha,  que  o  deveríamos  im- 
primir com  escrupulosa  fidelidade;  mas  o  respeito,  que  po- 


XIV  Advertência  preliminar 

deriam  merecer  os  seus  erros,  de  modo  algum  merecem  os 
de  um  aprendiz  t3^pographo  pouco  perito.  O  mais  simples 
bom  senso  está  dizendo,  que  se  devem  emendar  todas  as 
faltas  commettidas  na  officina  de  João  de  Endem. 

Foi  este  o  plano  que  adoptámos — emendar  na  presente 
edição,  tudo  quanto  na  de  Goa  nos  pareceu  erro  de  compo- 
sição, deixar  inalterado  tudo  quanto  se  nos  afigurou  ser  a 
forma  primitiva  de  Orta.  Seguimos  á  risca  o  preceito  es- 
tabelecido por  fr.  Francisco  de  S.  Luiz:  imprimir  a  obra 
com  a  doutrina,  linguagem  e  orthographia  do  aiictor,  e  ex- 
purgada tamsómente  dos  erros  que  se  julgarem  meramente 
e  manifestamente  typographicos.  Admittimos  apenas  um  pe- 
queno numero  de  excepções  a  esta  regra;  e  essas  mesmas  já 
admittidas  em  principio  pelo  illustre  académico  citado,  que 
foi  incontestavelmente  um  mestre  da  nossa  lingua.  D"'estas 
excepções,  a  mais  importante  e  que  mais  merece  ser  apon- 
tada, é  a  seguinte:  Na  edição  de  Goa  encontram-se  em  geral 
os  artigos  o^  a,  e  a  conjuncção  e,  escriptos  ho,  ha,  he.  Não 
ha  n'este  ponto  erro  typographico-,  e  Orta,  como  todos  en- 
tão, escrevia  evidentemente  d'aquellc  modo.  No  emtanto  pa- 
receu-nos  mais  conveniente  supprimir  os  /z/z,  evitando  assim 
a  confusão  com  alguns  tempos  de  verbos  de  occorrencia  fre- 
quente. Em  outros  pontos  não  introduzimos  verdadeiras  al- 
terações, e  simplesmente  adoptámos  formas  typographicas 
mais  usadas  hoje,  como  em  que  por  q,  confessar  por  côfes- 
sar,  abundância  por  abúdãcia,  ou  em  outras  abreviaturas, 
que  nos  pareceu  melhor  escrever  por  extenso.  Também  jul- 
gámos necessário  regularisar  o  emprego  das  letras  maiús- 
culas, extremamente  caprichoso  e  sem  regras  fixas  no  xvi  sé- 
culo; e  adoptar  os  caracteres  itálicos  nas  palavras  latinas, 
nos  nomes  das  drogas,  e  em  outros  casos,  onde  nos  pare- 
ceu que  essa  adopção  facilitaria  a  leitura  e  as  pesquizas  no 


A  dvertencia  prelim  in  ar  xv 

livro.  Pelo  que  diz  respeito  á  pontuação  fomos  obrigados 
a  tomar  grandes  liberdades  com  o  texto,  N'esta  parte,  os 
erros  da  primeira  edição  são  tantos  e  taes,  que,  em  al- 
gumas paginas,  as  virgulas  e  os  pontos  parecem  distribuí- 
dos ao  acaso;  ás  vezes  um  nome  próprio  está  cortado  por 
dois  pontos,  como  em  Aleixos  dia:{:  falcam.  Era  evidente, 
que,  n'este  como  em  muitos  outros  casos,  a  pontuação 
se  não  podia  respeitar,  tornando-se  necessário  adoptarmos 
uma  pontuação  nossa,  que  naturalmente  procurámos  cingir 
ao  sentido  da  phrase  e  ás  intenções  do  auctor,  sem  que, 
no  emtanto,  nos  possamos  lisonjear  de  ter  acertado  sem- 
pre. Ainda  nos  resta  uma  ultima  explicação  a  dar,  pelo 
que  diz  respeito  á  variabilidade  da  orthographia.  Pareceria, 
que  nós,  acceitando  uma  forma  qualquer,  a  deveriamos  se- 
guir em  todo  o  livro-,  e  pôde  causar  estranheza,  o  encon- 
trar — com  poucas  linhas  de  intervallo —  as  formas  muito 
e  mujto,  ra^ão,  ra:{am  e  regiam,  qua  e  ca,  cinco  e  cinqito, 
o  arvore  no  masculino,  e  a  arvore  no  feminino.  Conside- 
rámos, porém,  que  esta  incerteza  constituía  um  dos  cara- 
cteres da  orthographia  do  tempo,  que  de  modo  algum  se 
podia  attribuir  a  simples  imperícia  do  compositor,  e  pelo 
contrario  devia  representar  o  modo  por  que  Orta  escreveu, 
convindo  por  isso  respeital-a. 

Em  resumo,  o  nosso  desejo  e  a  nossa  intenção  foi  a  de 
conservar  ao  livro  todo  o  caracter  que  o  auctor  lhe  deu,  lim- 
pando-o  apenas  dos  e^ros,  e  ás  vezes  contrasensos,  in- 
troduzidos durante  a  impressão.  Claro  está,  que  nem  sempre 
podemos  attingir  o  nosso  fim.  Garcia  da  Orta  não  escrevia 
bem,  nem  mesmo  correctamente,  e  o  seu  livro  foi  eviden- 
temente redigido  com  bastante  desleixo  de  forma.  Em  taes 
condições,  tornava-se  extremamente  difficil  destrinçar  os  er- 
ros do  auctor  das  faltas  do  typographo-,  e  seguramente  nos 


XVI  Advertência  preliminar 

succederia  mais  de  uma  vez,  o  termos  emendado  erros  com- 
mettidos  por  elle  próprio,  ou  termos  respeitado  como  suas 
algumas  faltas  do  compositor.  Seja  como  for,  o  texto,  tal 
qual  hoje  sáe  impresso,  é  de  uma  leitura  fácil  para  todos 
os  que  tenham  um  leve  habito  do  antigo  portuguez;  e  — á 
parte  uma  ou  outra  passagem  mais  incorrecta,  ou  mais  ob- 
scura—  o  sentido  das  phrases  é  em  geral  claro,  e  as  inten- 
ções do  auctor  perfeitamente  intelligiveis. 

Assentes  assim  as  regras  adoptadas  na  reimpressão  do 
texto,  devemos  dar  conta  do  que  pretendemos  conseguir 
pela  redacção  das  notas.  Julgámos  em  primeiro  logar,  que 
nos  deveríamos  afastar  de  tudo  quanto  se  approximasse  de 
um  commentavio.  Esta  forma  é  pouco  acceitavel  nos  nossos 
dias;  e  é  — permitta-se  a  expressão —  offensiva  para  o  es- 
criptor  e  para  o  leitor.  As  idéas  e  as  doutrinas  de  Garcia 
da  Orta  são  bem  claras;  e  nem  elle  necessita  de  que  lh'as 
interpretem,  nem  o  leitor  carece  de  que  lh'as  expliquem. 
O  commentario,  alem  de  dispensável,  seria,  portanto,  im- 
pertinente; mas  os  factos  apontados  reclamavam  em  mui- 
tos casos  uma  confirmação,  ou  uma  rectificação.  Orta  fez 
um  grande  numero  de  observações  pessoaes  e  directas,  col- 
ligiu  também  um  grande  numero  de  informações  de  diver- 
sas e  variadas  procedências,  e  pôde  assim  consignar  no  seu 
livro  muitos  factos  interessantes.  É  notavelmente  verídico 
quando  falia  do  que  viu,  e  tem  uma  critica  severa  quando 
discute  o  que  lhe  diziam;  mas,  apesar  d'isso,  se  acerta  em 
muitos  casos,  engana-se  em  alguns.  Claro  está,  que  o  leitor 
não  tem  o  vagar  necessário  para  fazer  pesquizas  longas  e 
fastidiosas,  com  o  fim  único  de  averiguar  o  que  deve  ac- 
ceitar  ou  regeitar  nas  suas  affirmações.  Para  lhe  evitar  este 
trabalho,  e  unicamente  para  isso,  nós  procurámos  indicar 
nas  notas  o  que  recentemente  se  tem  apurado  de  mais  se- 


Advertência  preliminar  xvii 

guro  em  relação  aos  assumptos  tratados  pelo  nosso  antigo 
escriptor.  Por  este  modo,  e  sem  nos  substituirmos  ao  seu 
juizo,  pomos  ao  alcance  do  leitor  um  meio  fácil  de  verificar 
ou  completar  as  noticias  encontradas  no  texto. 

Naturalmente,  as  notas  referem-se  pela  maior  parte  á  bo- 
tânica e  á  matéria  medica  do  Oriente.  Este  era  o  assum- 
pto principal  do  livro;  e  esta  era  também  a  parte  em  que 
o  presente  editor  podia  ter  uma  tal  ou  qual  competência. 
Identificámos  sempre  que  nos  foi  possível  — e  foi-nos  quasi 
sempre  possível —  as  plantas  mencionadas  por  Orta  com  o 
seu  actual  nome  scientifico.  Não  nos  limitámos,  porém,  a 
uma  simples  e  secca  identificação,  e  demos  sobre  a  planta, 
e  sobre  a  droga  que  d"ella  procede,  algumas  noticias,  ne- 
cessárias para  esclarecer  as  informações  de  Orta.  Essas  no- 
ticias são  pela  maior  parte  extrahidas  de  livros  recentes,  e 
alguns  muito  recentes.  Com  eífeito,  sem  a  Flora  Indica  de 
Roxburgh  e  os  volumes  publicados  da  Flora  of  British  ín- 
dia de  Hooker,  sem  a  Matéria  Indica  de  Whitelaw  Ainslic 
e  a  Matéria  medica  of  western  índia  do  sr.  D3mock,  sem 
os  trabalhos  do  professor  Fliickiger  e  de  Daniel  Hanbury, 
sem  as  Useful  plants  of  índia  do  coronel  Drury  e  as  Use- 
fitl  plants  of  the  Bombay  presidency  do  dr.  Lisboa,  sem 
outras  e  numerosas  publicações  scientificas  que  seria  longo 
enumerar,  muitas  passagens  dos  Colóquios  careceriam  ainda 
hoje  de  confirmação  ou  de  explicação.  Eis  o  motivo  por  que 
eu  pude  dizer  antes,  que  ahi  pelas  proximidades  do  anno 
de  1841  teria  sido  impossível  fazer  uma  edição  definitiva  dos 
Colóquios.  Este  facto  é  todo  em  louvor  de  Garcia  da  Orta. 
EUe  penetrou  tão  profundamente  no  assumpto,  que  os  livros 
dos  dois  séculos  seguintes  ao  seu  pouco  elucidaram  o  que 
deixou  escripto.  E  foi  só  no  nosso  século,  e  sobretudo  na 
segunda  metade  do  nosso  século,  que  numerosas  publicações 


XVIII  Advertência  preliminar 

scientificas  vieram  confirmar,  explicar,  ou  rectificar  as  suas 
observações.  Procurámos  pôr  em  relevo  nas  notas  essas 
confirmações  ou  rectificações,  resultantes  dos  trabalhos  dos 
últimos  e  mais  modernos  botânicos  e  pharmacologistas.  O 
que,  em  ultima  analyse,  nos  interessa  saber,  é  se  Orta  ob- 
servou bem  ou  mal,  se  os  factos  que  aponta  são  verdadei- 
ros ou  falsos^  e  isto  deduz-se  sobretudo  das  investigações 
mais  recentes.  Dos  auctores  de  matéria  medica,  contempo- 
râneos ou  quasi  contemporâneos  de  Orta,  pouco  nos  occu- 
pámos.  Tudo  quanto  havia  a  dizer  sobre  as  obras  de  La- 
guna, de  Matthioli,  ou  de  António  Musa,  disse-o  Orta;  e 
não  havia  o  minimo  interesse  em  discutir  de  novo  as  suas 
opiniões,  geralmente  menos  correctas  que  as  do  próprio 
Orta.  Mas  não  succedia  o  mesmo  com  todos  os  livros  con- 
temporâneos. Os  livros  portuguczes  do  tempo,  particular- 
mente os  que  foram  escriptos  no  Oriente,  podiam  prestar- 
nos  auxílios  valiosos.  E  de  feito,  na  Ásia  de  Barros,  nas 
Lendas  de  Gaspar  Corrêa,  no  Lipro  de  Duarte  Barbosa, 
no  Lyvro  dos  pesos  de  António  Nunes,  no  Tombo  de  Simão 
Botelho,  e  em  outros,  encontrámos  muitas  noticias  que  vie- 
ram explicar  ou  completar  de  um  modo  interessante  as  que 
os  Colóquios  nos  forneciam. 

Como  disse  antes,  Orta  não  se  limita  a  tratar  os  assum- 
ptos da  sua  especialidade;  e,  ao  correr  da  penna,  vae-nos 
citando  os  nomes  de  pessoas  suas  conhecidas,  ou  contando 
factos  da  historia  da  índia,  ou  narrando  anecdotas  curiosas. 
Às  vezes  desculpa-se  de  «gastar  hum  capitulo  em  cousas 
que  não  são  de  sciencia»,  oU  previne  desde  logo  o  leitor 
de  que  o  Colóquio  «não  serve  de  cousa  alguma  de  física» ; 
mas  vae  sempre  escrevendo  o  Colóquio,  e  estas  excursões 
fora  do  dominio  da  matéria  medica  não  são  a  parte  menos 
interessante  do  seu  livro.  A  nossa  litteratura  indiana  é  ri- 


Advertência  preliminar  xix 

quissima,  e  ás  glorias  dos  homens  de  acção,  como  Vasco  da 
Gama  ou  Aífonso  de  Albuquerque,  nós  podemos  juntar  as 
glorias  dos  seus  admiráveis  historiadores,  como  João  de  Bar- 
ros ou  Diogo  de  Couto,  sem  fallarmos  mesmo  de  Luiz  de 
Camões  que  tem  um  logar  á  parte.  Mas  esta  litteratura, 
tão  rica  em  geral,  é  singularmente  pobre  pelo  que  diz  res- 
peito a  informações  sobre  a  vida  commum  e  corrente.  Ape- 
nas Gaspar  Corrêa,  descendo  ás  vezes  das  sublimidades  da 
historia  pura,  nos  dá  uma  ou  outra  noticia  um  pouco  mais 
íntima.  Certas  paginas  dos  Colóquios  vem  de  algum  modo 
preencher  esta  lacuna,  e  deixam-nos  entrever  a  maneira  de 
viver  e  de  sentir  do  tempo  e  da  região.  As  suas  visitas  medi- 
cas a  casa  de  uma  mestiça  de  vida  pouco  edificante,  ou  a 
casa  de  um  fidalgo  doente ;  as  suas  disputas  scientificas  com 
o  poderoso  sultão  de  Cambaya,  ou  com  o  Nizam  Scháh',  a 
sua  conversa  com  o  baneane  no  Bazar  de  Diu,  ou  a  sua 
contenda  com  o  velho  boticário  na  presença  do  governador, 
são  documentos  históricos  mais  suggestivos  sob  este  ponto 
de  vista  do  que  muitos  capítulos  de  Barros  ou  de  Couto. 
Em  geral,  estas  paginas  de  Orta  têem  em  si  a  sua  ex;ílica- 
ção ',  mas  ás  vezes,  n'aquellas  excursões  fora  da  sua  sciencia 
predilecta,  elle  deixa  cair  laconicamente  algumas  referencias 
a  factos,  que  são  ao  mesmo  tempo  interessantes  e  pouco 
conhecidos.  Tal  é,  por  exemplo,  no  Colóquio  da  canella  a 
referencia  ás  viagens  dos  Chins  nos  mares  da  índia  e  no 
Golpho  Pérsico;  tal  é  todo  ou  quasi  todo  o  Colóquio  do  ber, 
com  as  suas  referencias  interessantíssimas  á  historia  interna 
do  Deckan,  e  aos  onomes  e  appellidos»  dos  seus  reis.  Pare- 
ceu-nos,  que  ainda  n'estes  casos  convinha  esclarecer  o  texto 
com  algumas  notas  geographicas  ou  históricas,  como  o  ha- 
víamos esclarecido  com  as  notas  botânicas,  embora  n^este 
caso  luctassemos  com  mais  difficuldades,  pois  saíamos  do 


XX  Advertência  preliminar 

campo  dos  nossos  estudos  especiaes.  Obedecendo  sempre  ao 
mesmo  plano  de  pormos  ao  alcance  do  leitor  as  informações 
que  lhe  possam  ser  necessárias,  ou  simplesmente  agradá- 
veis, procurámos  também  identificar  todas  as  pessoas  men- 
cionadas'. Com  eífeito,  quando  o  leitor  encontra  no  texto 
uma  referencia  succinta  a  um  irmão  do  rei  de  Dehli,  ou  a 
um  bispo  de  Malaca,  ou  a  um  rei  desthronado  de  Ternate. 
interessa-o  encontrar  nas  notas,  que  o  tal  irmão  se  chamava 
Mohammed  Zéman  Mirza,  que  o  bispo  era  D.  fr.  Jorge  de 
Santa  Luzia,  e  o  rei  tinha  o  nome  gentio  de  Tabarija  e  o 
nome  christão  de  D.  Manuel. 

Taes  foram,  brevemente  indicadas,  as  regras  que  nos  guia- 
ram em  geral  na  redacção  das  notas.  Escusado  será  dizer, 
que  ficámos  muito  áquem  do  que  desejávamos,  e  do  que  me- 
recia o  livro.  Orta  deveria  ter  encontrado  um  editor  — como 
Marco  Polo  teve  em  Yule — •  que  a  uma  erudição  profunda  e 
muito  geral,  reunisse  o  conhecimento  directo  e  pessoal  das 
regiões  orientaes.  Faltava-me  erudição  geral,  e  faltava-me 
aquella  impressão  immediata  e  de  visu  da  natureza  tropical 
e  dos  aspectos  do  Oriente,  que  nenhuma  leitura  pôde  supprir. 
Faltava-me  também  — e  esta  foi  para  mim  uma  difficuldade 
grave —  o  conhecimento  das  linguas  orientaes.  Uma  das  fei- 
ções mais  interessantes  dos  Colóquios,  é  a  sua  abundante 
nomenclatura  vulgar  de  plantas  e  de  drogas.  Encontram-se 
ali  nomes  arábicos,  nomes  indianos,  tanto  das  linguas  sans- 
kriticas  do  norte,  como  das  linguas  dravidicas  do  sul,  nomes 


I  E  procurámos  igualmente  identificar  os  livros  citados.  N'esta  parte 
pouco  tínhamos  a  acrescentar  á  lista  já  publicada  (Garcia  da  Orta  e  o 
seu  tempo,  285  a  297) ;  mas  conseguimos  encontrar  noticia  de  mais  al- 
guns livros;  assim  como  devemos  confessar, .que  um  ou  dois  escaparam 
completamente  ás  nossas  investigações. 


Advertência  preliminar  xxi 

singhalezes,  nomes  malayos  e  outros,  Orta  dá  estes  nomes 
como  os  pôde  apanhar  de  ouvido,  e  nas  irregulares  tran- 
scripções  alphabeticas  do  seu  tempo,  quer  dizer  com  muita 
incorrecção.  Havia  todo  o  interesse  em  reconstruir  aquelles 
nomes,  e  em  provar  que,  sob  as  suas  alterações,  eram  pela 
maior  parte  verdadeiros  e  conhecidos;  e  para  isso  foi  neces- 
sário dal-os  em  caracteres  arábicos,  e  uma  ou  outra  vez  em 
caracteres  devanagricos,  naturalmente  com  a  sua  transcri- 
pção  ao  lado.  Tudo  isto  levantava  para  mim  graves  difficul- 
dades.  A  minha  sciencia  em  arábico  pouco  vae  alem  de  co- 
nhecer o  alphabeto,  ou  de  poder  procurar  uma  palavra  em 
um  diccionario;  em  sanskrito  ainda  é  menor;  e  em  tamil  ou 
malayo,  escuso  dizer  que  é  absolutamente  nuUa.  N'estas  con- 
dições, e  apesar  de  todo  o  meu  cuidado,  eu  devo  ter  com- 
mettido  erros  numerosos,  sem  os  poder  evitar.  Podia  na 
verdade  evital-os,  se  supprimisse  nas  notas  tudo  quanto  diz 
respeito  á  nomenclatura  dos  Colóquios,  mas  pareceu-me 
esta  suppressão  uma  lacuna  tão  sensível,  que  preferi  arris- 
car-me  a  commetter  erros  crassos,  a  deixar  de  pôr  bem  em 
relevo,  quanto  a  nomenclatura  de  Orta  é  completa  e  — para 
o  seu  tempo —  exacta.  O  leitor,  versado  n^aquellas  linguas, 
desculpará  as  faltas  de  quem  não  é,  nem  pretende  ser  um 
orientalista. 

Já  vão  longas  estas  explicações,  e  não  me  compete  apon- 
tar outras  lacunas  d'esta  edição,  que  todos  poderão  sentir, 
que  em  parte  resultariam  da  imperícia  do  editor,  mas  em 
parte  resultaram  também  das  faltas  de  publicações  e  ou- 
tros recursos  litterarios  e  scientificos  com  que  luctâmos 
todos  Qs  que  trabalhamos  em  Lisboa.  Ao  publicar  este  pri- 
meiro volume,  ao  qual  se  seguirá  brevemente  o  segundo, 
eu  posso  unicamente  dizer,  que  o  estudei  com  cuidado  e  com 
amor.  As  longas  horas  gastas  em  pesquizas  apparentemente 


XXII  Advertência  preliminar 

fastidiosas,  em  indagações  na  nova  e  na  velha  bibliographia, 
em  leituras  dos  nossos  antigos  livros  portuguezes,  deixam- 
me  uma  impressão  de  repouso  e  de  absoluta  tranquillidade 
de  espirito;  e  este  trabalho  foi  e  é  como  um  refugio,  como 
um  asylo  moral,  apartado  e  remoto,  ao  qual  chegam  já 
muito  enfraquecidos  os  ruidos  dos  successos  actuaes. 

Antes  de  terminar,  eu  devo  agradecer  de  um  modo  ge- 
ral a  todos  os  que  uma  ou  outra  vez  me  auxiliaram  nas 
minhas  pesquizas,  e  de  um  modo  muito  especial  ao  sr.  Ve- 
nâncio Deslandes.  O  illustrado  administrador  geral  da  Im- 
prensa Nacional  não  poz  unicamente  ao  serviço  doesta  obra 
os  vastos  recursos  do  estabelecimento  que  dirige;  mas  tam- 
bém o  seu  trabalho  pessoal.  Bastará  dizer,  que  elle  copiou 
da  sua  lettra  todo  o  texto  dos  Colóquios,  e  fez  pela  sua 
mão  toda  a  fastidiosa  revisão  das  primeiras  provas,  para 
mostrar  que  — em  tudo  quanto  se  refere  á  reimpressão  do 
texto —  foi  mais  do  que  um  auxiliar,  foi  o  mais  valioso  e 
dedicado  dos  coUaboradores. 

Lisboa,  Novembro  de  1890. 


Gciiòc  cc  cf'icalíic. 


d  COLÓQUIOS  DOS  SIMPLES 
e  drogas  e  cousas  medicinais  da  índia,  e 
assi  dalgumas  frutas  achadas  nella,  onde 
se  tratam  algumas  cousas  tocantes  a  me- 
dicina pratica,  e  outras  cousas  boas  pêra 
saber,   compostos  pello  doutor   Garcia 
d'Orta,  físico  del-rey  nosso  senhor,  vistos 
pello  muyto  reverendo  senhor,  o 
licenciado  Aleixo  Dias  Falcam, 
desenbargador  da  Casa  da 
Supricaçam,  inquisidor 
nestas  partes. 


51  Com  privilegio  do  Conde  Viso-Rey. 


Impressos  em  Goa  por  Joannes 

de  Endem  aos  x  dias  de 

abril  de  i  ^ój.  annos. 


O  CONDE  Viso-Rey  da  índia,  etc,  faço  saber  a  quantos 
este  meu  alvará  virem  que  o  doutor  Garcia  d"Orta  me 
inviou  dizer  que  elle  tinha  feito  hum  livro  pêra  enpremir  das 
mezinhas  e  fruitas  da  índia,  que  era  muyto  proveitoso, 
pedindome  que  ouvesse  por  bem  e  mandasse  que,  por  tem- 
po de  três  annos,  nenhuma  pessoa  o  podesse  enpremir  sem 
licença  delle  doutor,  por  quanto  era  em  seu  prejuízo,  e 
visto  por  mim  seu  pedir  e  a  vendo  respeito  ao  que  diz: 
ei  por  bem  e  por  este  mando  que  pello  dito  tempo  de  três 
annos,  que  se  começarão  da  noteíicaçam  deste  em  diante, 
nenhuma  pessoa,  de  qualquer  calidade  e  condiçam  que  seja, 
possa  enpremir  nem  mandar  enpremir  por  nenhuma  via  o 
dito  livro  sem  licença  do  dito  doutor,  so  pena  de  qualquer 
que  o  contrairo  fizer  paguar  por  cada  vez  duzentos  crusa- 
dos,  metade  pêra  elle  ou  pêra  quem  o  acusar,  e  a  outra 
metade  pêra  as  obras  pias,  e  ser  preso  até  minha  mercê,  e 
aver  a  mais  pena  que  eu  ouver  por  bem.  Por  tanto  notifico 
assi  ao  ouvidor  geral  e  a  todas  as  mais  justiças  e  oficiaes 
a  que  pertencer,  e  lhe  mando  que  asi  o  cumpram  e  guar- 
dem e  façam  comprir  e  guardar  inteiramente  sem  duvida, 
nem  embarguo  algum.  Rui  Martíz  o  fez.  Em  Goa  a  5  de 
novembro  de  1662. 


^  CONDE  VISO-REY. 


AO  MUYTO  ILLUSTRE  SENHOR  MARTIM  AFONSO 

de  Sousa,  do  conselho  real,  senhor  das  villas  de  Alcuen- 
tre  e  o  Tagarro,  seu  criado  o  doutor  Orta  lhe  deseja  per- 
petua felicidade  com  inmortal  fama  pêra  seus  decenden- 
tes. 

He  aprovada  de  todos  a  sentencia  de  Salustio  em  que 
encomenda  aos  homens  que  trabalhem  exceder  e  ter  primi- 
nencia  sobre  os  outros  animaes,  que  não  passem  a  vida  em 
silencio  como  fazem  os  brutos,  que  não  tem  mais  cuidado 
que  de  comer  e  beber:  conforme  a  esta  sentença  he  o  com- 
mum  dito  de  todos,  que  não  somos  menos  obriguados  a  dar 
rezam  e  conta  do  oçio  que  do  negocio;  e,  per  esta  causa, 
dizia  Gatam  Gensorino,  que  das  cousas  de  que  avia  de  fa- 
zer penitencia  era  de  passar  algum  dia  per  esquecimento 
sem  fazer  obra  alguma;  e  daquelle  famoso  pintor  Apelles 
se  conta  que  não  pasava  dia  algum  sem  deitar  linha.  E 
certamente  que  os  que  asi  passam  a  vida,  e  com  tanta 
preguiça  adormesçem  as  forças  do  corpo  e  da  alma,  e  não 
leixam,  aos  que  ham  de  vir  depois,  mostra  alguma  de  seus 
trabalhos,  como  fazem  os  brutos  animaes,  não  se  podem 
chamar  homens  pois  tem  pouca  deferença  dos  brutos,  e 
por  esta  causa,  illustrissimo  senhor,  sam  eu  digno  de  grande 
reprensam,  porque  estando  nesta  terra  trinta  annos,  nunqua 
deitei  fruto  algum  pêra  aproveitar  aos  mortaes  com  alguma 
escritura-,  porque  aos  que  Deos  dotou  de  tanta  perfeiçam  e 
excelência,  que  fizessem  feitos  tam  heróicos  por  onde  os  ou- 
tros escrevessem  delles,  como  vossa  senhoria  fez  em  estas 
partes  e  em  outras,  não  tem  neçesidade  de  escrever  pois  a 
fama  inmortal  os  çellebra.  O  quem  poderá,  illustrissimo  se- 
nhor, tornarse  Homero  ou  Virgílio  pêra  escrever  vossas  gran- 
des façanhas,  pêra  com  isto  deixar  fruto  de  mi  aos  vindoi- 
ros:  mas  pois  que  a  fortuna  isto  me  negou,  e  foi  amoestado 
e  reprendido  desta  ociosidade,  da  qual  também  foi  acusado 
dalguns  que  esta  terra  governaram-,  e  porque  o  vosso  con- 
selho he  mandado  pêra  mi,  determinei  de  fazer  este  breve 
tratado;  mas  temia  o  ocioso  povo  e  mordaces  linguoas,  por 


onde  o  tratado  tinha  neçesidade  de  hir  arrimado  a  quem  o 
defendese  delias,  assi  como  fazem  os  esprementados  agri- 
cultores que,  querendo  plantar  algumas  dcllicadas  plantas 
as  arrimam  a  alguns  fortes  arvores  pêra  que  as  defendam 
dos  tempestuosos  ventos  e  fortes  chuivas  e  ásperas  geadas, 
assi  quis  eu  plantar  esta  fraca  planta  debaixo  do  emparo 
de  vossa  senhoria,  com  o  qual  será  defendida  de  toda  a 
mór  parte  do  mundo,  pois  a  vossa  fortaleza  he  tam  co- 
nhecida, não  tam  somente  por  todas  as  três  partes  do  mundo, 
mas  polia  outra  quarta  parte,  que  aguora  os  cosmógrafos 
acreçentam,  e  não  tam  somente  sois  por  vossa  fortaleza 
temido  nestas  partes,  mas,  por  vossa  beninidade,  e  outras 
graças,  que  o  Senhor  Deos  vos  dotou,  sois  amado.  Bem 
podeis,  illustrissimo  senhor,  defendelo  do  envejoso  povo 
aquelle  a  quem  até  o  presente  criastes,  ajudastes,  e  favore- 
cestes, e  finalmente  lhe  destes  o  nome  de  vosso,  com  o 
qual  nome  será  este  livro  temido  dos  envejosos  e  amado 
dos  bons  e  curiosos  da  verdade;  e  não  he  muyto  de  em- 
parardes  este  meu  tratado  pois  he  de  vosso  criado,  e  nelle 
se  dizem  cousas  que  me  ensinastes,  e  outras,  que  eu  aprendi 
na  vosa  escola  militar  e  cortesãa.  Bem  pudera  eu  compor 
este  tratado  em  latim,  como  o  tinha  muytos  annos  antes 
composto,  e  fora  a  vossa  senhoria  mais  aprasivel;  pois  o 
entendeis  milhor  que  a  materna  linguoa,  mas  traladeo  em 
português  por  ser  mais  geral,  e  porque  sei  que  todos  os 
que  nestas  indianas  regiões  habitam,  sabendo  a  quem  vai 
entitulado,  folgaram  de  o  leer.  Ora  pois,  enpareo  e  defendao 
pois  a  sua  casa  o  mando  pêra  ser  emmendado.  Deos  pros- 
pere o  illustre  estado  de  vossa  senhoria  e,  por  longos  annos, 
acreçente  com  honrosos  titulos  como  desejo. 


DO  AUTOR  FALANDO  COM  O  SEU  LIVRO, 

e  mandão  ao  Senhor  Martim  Afonso  de  Sousa. 


Seguro  livro  meu,  daqui  te  parte, 
Que  com  huma  causa  justa  me  consolo 
De  verte  oferecer  o  inculto  colo. 
Ao  cutello  mordaz,  em  toda  parte: 

Esta  he,  que  daqui  mando  examinarte 
Por  hum  Senhor,  que  de  hum  ao  outro  polo 
Só  nelle  tem  mostrado  o  douto  Apolo 
Ter  competência  igual  co'o  duro  Marte. 

Ali  acharás  defensa  verdadeira, 
Com  força  de  razoes,  ou  de  ousadia. 
Que  huma  virtude  a  outra  não  derrogua; 

Mas  na  sua  fronte  a  palma  e  a  oliveira 
Te  diram  que  elle  só,  de  igual  valia 
Fez,  coo  sanguino  arnês,  a  branca  togua. 


AO  CONDE  DO  REDONDO,  VISO-REY  DA  ÍNDIA 

Luiz  de  Camões. 


Aquelle  único  exemplo 

De  fortaleza  eroyca  e  de  ousadia, 

Que  mereceo,  no  templo 

Da  eternidade,  ter  perpetuo  dia, 

O  grão  filho  de  Thetis,  que  dez  annos 

Flagello  foi  dos  miseros  Troianos  \ 


Não  menos  insinado 

Foi  nas  ervas  e  medica  noticia, 
Que  destro  e  costumado 

No  soberbo  exercício  da  milicia: 

Assi  que  as  mãos  que  a  tantos  morte  deram. 

Também  a  muytos  vida  dar  puderam. 

E  não  se  desprezou 

Aquelle  fero  e  indómito  mancebo 

Das  artes  que  insinou. 

Para  o  languido  corpo,  o  intonso  Phebo: 
Que  se  o  temido  Heitor  matar  podia 
Também  chaguas  mortais  curar  sabia: 

Tais  artes  aprendeo 

Do  semiviro  mestre  e  douto  velho, 

Onde  tanto  creceo 
Em  virtude,  sciencias,  e  conselho, 
Que  Telepho,  por  elle  vulnerado. 
Só  delle  pode  ser  despois  curado. 


Pois  ó  vós,  excellente 

E  illustrissimo  Conde,  do  ceo  dado 
Pêra  fazer  presente 

De  heroes  altos  o  tempo  já  passado; 

Em  quem  bem  trasladada  está  a  memoria 

De  vossos  ascendentes  a  honra  e  a  gloria: 


Posto  que  o  pensamento 

Occupado  tenhais  na  guerra  infesta, 

Ou  do  sanguinolento 
Taprobanico  Achem,  que  o  mar  molesta. 
Ou  do  cambaico  occulto  imiguo  nosso, 
Que  qualquer  delles  treme  ao  nome  vosso: 


Favorecei  a  antigua 

Sciencia  que  já  Achiles  estimou-. 

Olhai  que  vos  obrigua. 
Verdes  que  em  vosso  tempo  se  mostrou 
O  fruto  daquella  Orta  onde  florecem 
Prantas  novas,  que  os  doutos  não  conhecem. 

Olhai  que  em  vossos  annos 

Produze  huma  Orta  insigne  varias  ervas 

Nos  campos  lusitanos. 

As  quaes,  aquellas  doutas  e  protervas 
Medea  e  Circe  nunca  conheceram, 
Posto  que  as  leis  da  Magica  excederam. 


E  vede  carreguado 
De  annos,  letras,  e  longua  experiência. 

Hum  velho  que  insinado 
Das  guangeticas  Musas  na  sciencia 
Podaliria  subtil,  e  arte  siluestre. 
Vence  o  velho  Chiron  de  Achilles  mestre. 


o  qual  está  pidindo 
Vosso  favor  e  ajuda  ao  grão  volume, 

Que  agora  em  luz  saindo 

Dará  na  Medicina  um  novo  lume, 
E  descobrindo  irá  segredos  certos 
A  todos  os  antiguos  encubertos. 


Assi  que  não  podeis 

Neguar  (como  vos  pede)  benina  aura, 

Que  se  muyto  valeis 

Na  polvorosa  guerra  Indica  e  Maura, 
Ajuda}'^,  quem  ajuda  contra  a  morte, 
E  sereis  semelhante  ao  Greguo  forte. 


DO  LICENCIADO  DIMAS  BOSQUE, 

medico  valenciano,  ao  leitor. 


Comum  doutrina  foy  de  todos  os  filósofos,  prudente  leitor, 
os  homens,  por  causa  e  razam  dos  próprios  homens  serem 
naçidos,  e  de  seu  próprio  naçimento  terem  obrigaçam  de 
aproveitar  aos  outros:  isto  sentia  o  divino  Platão  quando 
dizia,  não  ser  naçido  o  homem  pêra  si  só,  mas  também  pêra 
sua  pátria  e  amigos;  e  ainda  que  os  homens,  comprindo 
com  sua  humana  enclinaçam,  aproveitando  aos  outros  façam 
aquillo  pêra  que  naturalmente  foram  gerados,  comtudo  se 
lhes  deve  muyto,  pois,  não  receando  trabalhos,  puseram  suas 
forças  em  descobrir  a  verdade,  tirando  a  névoa  e  véo,  que 
empidem  os  humanos  entendimentos  no  prefeito  conheci- 
mento delia,  e,  o  que  mais  he  pêra  arrecear,  sugeitarse  á 
opiniam  de  tantos  e  tam  diversos  pareceres.  E  verdadeira- 
mente que  se  os  que  vivemos  aos  pasados  devemos  muyto 
por  seus  trabalhos  se  endereçarem  a  nosso  proveito,  não 
podemos  negar  esta  obrigaçam  e  divida  ao  doutor  Garcia 
d'Orta,  cuja  curiosidade  e  trabalhos  neste  livro  se  vê  cla- 
ramente quanto  proveito  e  fruto  o  curioso  leitor,  que  com 
animo  repousado  e  despido  da  mordaz  emveja  os  quiser 
ler,  alcançará.  Force  também  a  autoridade  do  autor,  aos 
que  este  seu -livro  lerem,  ter  as  cousas  delle  na  conta  e 
estima  que  ellas  merecem,  pois  sam  de  homem,  que,  do 
principio  da  sua  edade  até  autorisada  velhice,  nas  lettras  e 
faculdade  da  medicina  gastou  seu  tempo  com  tanto  trabalho 
e  diligencia,  que  duvido  achar  na  Europa  quem  em  seu 
estudo  lhe  fizesse  vantagem.  Saindo  ensinado  nos  principios 
de'  sua  faculdade  das  insignes  Universidades  de  Alcalá  e 
Salamanca  trabalhou  de  comunicar  o  bem  da  çiençia,  que 
nas  terras  alheas  tinha  alcançado,  com  sua  própria  pátria, 
lendo  nos  Estudos  de  Lisboa  por  alguns  annos  com  mu3^ta 
deligençia  e  cuidado,  e  exerçitandose  na  cura  dos  doentes 
até  vir  a  estas  partes  da  Ásia,  onde  por  espaço  de  trinta 
annos,  curando  muyta  deversidade  de  gentes  não  somente 


II 

na  companhia  dos  viso-reys  e  governadores  desta  oriental 
índia,  mas  em  algumas  cortes  de  reis  mouros  e  gentios, 
comonicando  com  médicos  e  pessoas  curiosas,  trabalhou 
de  saber  e  descobrir  a  verdade  das  medeçinas  simples,  que 
nesta  terra  naçem,  das  quais  tantos  emganos  e  fabulas  não 
somente  os  antigos  mas  muytos  dos  modernos  escreveram: 
e  o  que  elle  por  tantos  annos  c  por  tam  diversas  partes  al- 
cançou, quis  que  o  curioso  leitor  em  huma  ora,  neste  seu 
breve  tratado,  visse  e  entendesse;  o  qual  teve  começado 
em  linguoa  latina,  e,  por  ser  mais  familiar  a  matéria  de  que 
escrevia,  por  ser  enportunado  de  seus  amigos  e  familiares 
pêra  que  o  proveito  fosse  mais  comonicado,  detriminou 
escrevello  na  lingoa  portugueza  a  modo  de  dialogo,  e  isto 
causa,  algumas  vezes,  apartarse  da  matéria  medicinal  e 
tratar  de  algumas  cousas  que  esta  terra  tem  dinas  de  serem 
sabidas.  Não  pos  seu  trabalho  em  estillo  elegante,  nem  em 
palavras  reitoricas  apraziveis  ás  orelhas,  tratou  puras  ver- 
dades com  puro  estillo  porque  isto  só  á  verdade  basta.  Teve 
na  empresam  alguns  erros  por  faltar  o  principal  empresor 
e  ficar  a  obra  em  mãos  de  hum  homem  seu  companheiro, 
que  não  era  ainda  mui  destro  na  arte  de  emprimir,  e  pouco 
corrente  no  negocio  da  empresam.  Receba  pois  o  discreto 
leitor  o  fruto  que  desta  orta  de  simpres  e  fruitas  da  índia  o 
doutor  Garcia  d'Orta  lhe  offereçe  pêra  que,  satisfazendo  com 
o  animo  grato  a  seus  trabalhos,  tenhamos  ousadia,  seus  ami- 
gos, de  o  emportunar  pêra  que  em  cousas  maiores  e  de 
mais  quilates  se  ocupe.  Em  Goa  aos  dous  dias  dabril  de 
i563  annos. 


PRAESTANTISSIMO  DOCTORI  THOMAE 

Roderico,  in  Conimbricensi  Academia  medicorum  primo 
Dimas  Bosque,  medicus  valentinus  S.  P.  D. 


Simplicium  medicamentorum  originem  et  facultates  arti- 
ficiose  Dyoscorides  Anazarboeus  descripsit,  sed  Gríecorum 
more  grfeca  brevitate  usus,  plantarum  historiam  alioqui 
amplissimam,  obscuram  fecit,  et  earum  virium  cognitionem 
obscura  dicendi  norma  difficilem  reddidit. 

Gopiose  etiam  Galenus,  sed  multa  in  multis  desiderantur, 
si  recte  quse  de  ipsis  scripsit,  contemplemur,  aut  quíe  ab 
ipso  incógnita  relinquantur,  aut  quia  earum  vires  index 
omnium  rerum  tempus  non  adhuc  demonstraverat.  Ara- 
bum  relinquamus  doctrinam,  allucinantur  enim  passim  in 
simplicibus  describendis,  et  ita  rem  hanc  tractantes  in  limine 
cespitant,  ut  vix  ex  eorum  dictis  certum  aliquid  colligi  pos- 
sit,  cui  et  nostram  fidem  et  íegrorum  salutem  committere 
valeamus.  Multa  nostra  tempestate  multi  scripserunt,  sed 
de  iis  quíe  in  orientali  índia  nascuntur  hactenus  incógnita, 
nunc  autem  lusitanorum  navigatione  notissima  íigmenta 
narrant  ridícula.  Sunt  qui  ebur  fossile  dicant,  alii  verum 
non  reperiri :  cúm  tanta  ejus  in  hac  regione  copia  sit,  ut  In- 
victissimus  Lusitanorum  et  Indiarum  Rex  Sebastianus  non 
regiíe  domus  solum  summa  fastigia  (ut  de  Apoline  dicebat 
Ovidius)  tegere  possit,  sed  amplissimam  civitatem  ex  niti- 
dissimo  ebore  construere  valeat.  Alii  de  espodio  diversa  di- 
cunt  de  ipsius  natura  inter  se  disceptantes,  cúm  inter  nos 
notissimum  sit,  et  ingentem  ejus  quantitatem  ex  insulis  Ma- 
luchiis  quotidie  videamus,  et  parem  copiam  in  montibus 
nobis  vicinis  reperiamus,  in  quo  cuncta  quíe  de  ipso  scri- 
pta  sunt,  lucidissime  discernuntur, 

Omitto  qu£e  de  radice  Ciníe  dicunt  in  altissimis  monti- 
bus nasci,  et  a  ferocissimis  animalibus  venenatisque  ser- 
pentibus  custodiri.  NuUa  enim  Ciníe  regionis  in  littoribus 
pars  reperitur,  qu£e  hac  radice  non  sit  referta,  sed  dis- 
tantia   loci   et    incógnitas   regionis   ignorantia   facile   viros 


i3 

alioqui  doctissimos  a  manifestissimis  erroribus  et  ridicu- 
lis  fabulis  excusabit;  nam  simplicium  historiam  depingere 
volentes  herbas  nascentes  intueri  dcbcnt,  adolescentiam 
earum  contemplari,  et  florum  ornatum  atque  varietatem 
respicere,  et  tandem  maturitatis  tempus  cognoscere,  ut 
diversas  ipsarum  mutationes  per  «tates  intellectas  pos- 
sint  inter  veritatis  limites  coUocare:  quod  ego  de  te  intel- 
lexi,  doctor  amplissime,  cum  in  florentissima  Conimbricensi 
Academia  medic^e  facultatis  prasceptis,  te  docente,  operam 
dabam;  curabas  enim  agrestes  herbas  ex  silvestribus  mon- 
tibus  in  domesticum  hortum  deduci,  ut  ipsas  nascentes, 
adolescentes,  floribus  refertas,  et  tandem  maturas,  cognosce- 
res:  te  etiam  in  iis  perpetuum  habui  príeceptorem^  et  quid- 
quid  in  Apolinea  facultate  et  morborum  curatione  boni  na- 
ctU3  sum,  tibi  acceptum  referam;  et  cum  in  hac  regione 
doctorem  Garciam  ab  Horto,  summa  mihi  familiaritate 
conjunctum  de  simplicibus  scribentem  reperissem,  ut  librum 
tuge  comitteret  inter  doctos  tutellfe  monui,  quod  ipse  liben- 
ter  fecit.  Sciebat  enim,  prudentissimus  senex,  te  nunc  in 
Europa  medicorum  omnium  esse  patronum,  et  tuam  erga 
doctos  benignitatem  non  ignorabaf,  adde  quod  tuum  in  di- 
gnoscendis  simplicibus,  et  eorum  viribus  et  facultatibus  dis- 
cernendis  studium  ac  diligentiam  millies  narrabam.  Eia  igi- 
tur,  prsestantissime  doctor,  audeat  liber  tuo  clipeo  muni- 
tus,  et  tanti  viri  auctoritate  fríetus  inter  doctos  procedere, 
Zoilum  non  timens  cunctas  Europ£e  Academias  peragrare, 
ut  índias  fructus  et  simplices  medicinas  sincera  veritate  de- 
pictas  medica  recipiat  juventus. 
Vale.  Goae  primo  nonis  Aprilis. 


AD  GARCIAM  AB  HORTO  MEDIGUM  APUD 

Indos,  doctoremque  clarissimum,  epigramma 
Thoma  Caiado  auctore. 


índia  quos  fructus,  gemmas,  et  aromata  gignat, 
Garcia  perscribit  Dortius  illa  brevi. 

Hoc  opus,  ó  mediei,  manibus  versetur  ubique, 
Quod  veteres  olim  non  valuere  viri. 

Multa  quidem  vobis,  per  quíe  medicina  paratur, 
Occurrent,  tenebris  quíe  latuere  diu. 

Rarus  honos,  doctor,  tantas  aperire  tenebras! 
Plinius  es  terris  atque  Dyoscorides. 

Qui,  quamvis  ausi  magnis  de  rebus  uterque 
Scribere,  judicio  cedet  uterque  tuo. 

Namque  potens  herbis,  totó  Podalirius  orbe, 
Diceris,  et  vera  laude  parare  decus. 

Forsitan  et  quíeras,  cur  non  sermone  latino 
Utitur,  ó  lector;  consulit  indocili. 

Floret  utraque  nimis  lingua,  cúm  postulat  usus, 
Excellens  medicus,  philosophusque  simul  (i). 


Nota(i) 

Duas  palavras  apenas,  acerca  das  pessoas,  cujos  nomes  figuram 
nos  documentos  de  introducção. 

O  «conde  viso-rey»,que  assignou  o  alvará  de  privilegio  para  a  impres- 
são dos  Colcquios,  foi  D.  Francisco  Coutinho,  terceiro  conde  do  Re- 
dondo, vigésimo  governador  da  índia  e  oitavo  com  o  titulo  de  vice-rei. 


i5 

Depois  de  ter  sido  capitão  de  Arzilla,  passou  á  índia  no  anno  de  i56i, 
e  tomou  posse  do  governo  no  mez  de  setembro  d'esse  anno.  Morreu 
em  Goa  aos  19  dias  do  mez  de  fevereiro  do  anno  de  1564  (Cf.  Couto, 
Ásia,  dec.  vii,  liv.  x;  de  Couto  parece  deduzir-se  que  elle  foi  segundo 
conde  do  Redondo,  mas  a  Historia  genealógica  dá-o  como  terceiro). 

O  licenceado  Aleixo  Dias  Falcão,  «desenbargador  da  casa  da  supri- 
caçam»,  que  viu  os  Colóquios  e  os  deixou  correr,  era  um  dos  dois 
primeiros  inquisidores  que  passaram  á  índia;  o  outro  chamava-se 
Francisco  Marques  Botelho.  Estes  dois  canonistas  e  letrados  foram  na 
armada  do  anno  de  i56o,  juntamente  com  o  primeiro  arcebispo  de  Goa, 
D.  Gaspar.  Com  elles  entrou  a  inquisição  nas  terras  da  Ásia,  porque, 
se  alguns  annos  antes  a  bulia  havia  sido  lida  no  púlpito  da  sé  de  Goa, 
pelo  bispo  D.  João  de  Albuquerque,  parece  que  se  não  applicavam  todas 
as  suas  disposições — todas  as  siistancias  da  santa  inquisição,  como  in- 
genuamente diz  Gaspar  Corrêa.  Aleixo  Dias  Falcão  ficou  muito  tempo 
pela  índia,  pois  do  Livro  vermelho  da  Relação  de  Goa  consta,  que 
elle  prestou  ali  um  juramento  a  3o  de  abril  do  anno  de  1572.  (Cf. 
Couto,  Ásia,  VII,  IX,  5;  Lendas  da  índia,  iv,  294;  Archivo  portugue^- 
oriental,  fase.  5.°,  parte  11,  p.  842,  Nova  Goa,  i865). 

De  Martim  Affonso  de  Sousa,  o  amo  e  amigo  do  nosso  naturalista, 
já  dissemos  o  sufficiente  na  Vida  d'este.  Bastará  agora  notar,  que  de- 
pois de  voltar  da  índia  foi  senhor  de  Alcoentre  e  de  Tagarro  —  os  titulos 
que  lhe  dá  Garcia  da  Orta.  D.  António  Caetano  de  Sousa  diz  que  elle 
comprou  o  senhorio  de  Alcoentre  ao  marquez  de  ViUa  Real,  e  prova- 
velmente o  de  Tagarro  andava  annexo  a  este,  pois  vemos  o  seu  filho, 
Pedro  Lopes  de  Sousa,  herdando  os  dois  (Cf.  Garcia  da  Orta  e  o  seu 
tempo,  p.  65  a  84;  Historia  geneal.  da  ca^a  real  portuguesa,  xii, 
parte  11,  iio5  e  1 109). 

O  licenceado  Dimas  Bosque,  medico  valenciano,  foi  para  a  índia 
— ao  que  parece —  com  o  vice-rei  D.  Constantino  de  Bragança;  pelo 
menos  acompanhou-o  nas  suas  expedições,  e  era  o  único  medico  na 
grande  armada  com  que  este  vice-rei  passou  a  Jafnapatam,  na  ilha  de 
Ceylão.  Pelos  annos  de  i56o  ou  i56i  intervinha  elle  officialmente  nos 
negócios  da  sua  profissão,  pois  vemos  que  D.  Constantino  decretara 
algumas  modificações  na  pauta  dos  preços  das  drogas  e  medicamentos, 
depois  de  tomar  «verdadeira  informação  com  o  licenceado  Dimas 
Bosque».  E  no  anno  de  i562  é  intitulado  «físico  mór»  na  carta  de  arre- 
matação de  uma  pequena  ilha  no  rio  de  Goa  a  velha.  De  Dimas  Bosque, 
dos  seus  trabalhos  scientificos,  e  da  sua  ilha,  teremos  de  fallar  mais 
largamente  em  outras  notas.  (Cf.  adiante  o  Colóquio  das  cousas  novas; 
Jorn.  de  pharm.  e  de  med.  da  índia  portugue^^a,  n."  7,  \S62;  Archivo 
portugue:^ -oriental,  fase.  5.°,  parte  11,  p.  5o5  e  877). 

O  Tliomce  Roderico,  a  quem  Dimas  Bosque  dirige  a  sua  epistola 
latina,  era  sem  duvida  o  bem  conhecido  professor,  o  dr.  Thomaz  Ro- 


i6 

drigues  da  Veiga.  Havia-se  doutorado  na  universidade  de  Salamanca, 
onde  obteve  por  opposição  ou  concurso  uma  cadeira  de  medicina;  e 
foi  depois  chamado  a  leccionar  na  de  Coimbra,  sendo  ali  durante 
muito  tempo  lente  de  prima  da  faculdade  de  medicina.  Esta  identifi- 
cação de  pessoas  já  vem  apontada  pelo  erudito  e  minucioso  Leitão 
Ferreira  (Cf.  F.  Leitão  Ferreira,  Not.  chron.  da  universidade  de  Coim- 
bra, p.  522,  Lisboa,  1729;  veja-se  também  Barbosa  Machado,  Bibliotheca 
lusitana). 

Thoma  Caiado,  o  auctor  do  Epigratnma,  devia  ser  um  cidadão 
de  Goa,  que  por  aquelles  tempos  gosava  da  fama  de  bom  latinista. 
Diogo  do  Couto,  descrevendo  a  entrada  triumphal  de  D.  João  de  Cas- 
tro em  Goa,  depois  de  levantado  o  cerco  de  Diu,  diz  o  seguinte :  «Posto 
tudo  em  ordem,  abalou  o  Governador  do  cães  em  m'eio  do  Capitão  e 
Vereadores;  e  chegando  á  porta  do  muro  que  se  rompeu,  achou  hum 
cidadão,  chamado  Thomé  Dias  Cayado,  que  lhe  fez  huma  falia  em  La- 
tim mui  eloquente  e  elegante,  toda  em  louvor  da  vitoria  que  lhe  Nosso 
Senhor  deo  dos  Capitães  de  El-Rey  de  Cambaya,  com  que  toda  a  ín- 
dia ficava  segura,  e  fora  de  receios,  louvando-lhe  sua  prudência,  segu- 
rança e  presteza».  Parece-me  licito  admittir,  que  este  fosse  o  auctor 
do  Epigramma,  em  vista  da  concordância  de  nome  e  de  predicados 
litterarios  (Cf.  Couto,  Ásia,  vi,  iv,  6). 

Reservámos  para  ultimo  logar  o  grande  Luiz  de  Camões,  de  cuja 
pessoa  e  vida  nada  será  necessário  dizer,  por  demasiado  conhecidas. 
Devemos,  no  emtanto,  explicar  brevemente  os  motivos  que  nos  leva- 
ram a  adoptar  a  lição  que  damos  da  sua  Ode. 

Como  é  geralmente  sabido,  foi  esta  a  primeira  composição  de  Ca- 
mões que  se  imprimiu;  e,  do  mesmo  modo  que  o  resto  do  livro,  saiu 
mutilada  por  aquelle  aprendiz,  «que  não  era  ainda  mui  destro  na  arte 
de  emprimir».  Se  os  erros  de  imprensa  eram  graves  na  prosa  de  Orta, 
eram  muito  mais  graves  no  verso,  e  em  versos  do  Camões.  A  Ode  re- 
clamava pois  urgentemente  algumas  correcções.  Mas  quando  de  novo 
saiu  impressa  (1598),  não  veiu  simplesmente  corrigida,  veiu  profunda- 
mente alterada.  E  esta  nova  forma,  com  ligeiríssimas  modificações, 
tem-se  reproduzido  nas  successivas  edições  até  ás  mais  recentes.  Se  nós 
hoje  tratássemos  de  uma  nova  edição  do  Camões,  teríamos  de  examinar 
uma  questão  interessante,  procurando  saber,  se  as  alterações  são  devidas 
ao  próprio  Camões,  como  dá  a  entender  Manuel  de  Faria  e  Sousa. 
N'este  caso,  e  só  n'este  caso,  conviria  adoptar  a  lição  das  edições  de 
1598  e  posteriores.  Mas  não  se  provando  — o  que  julgo  difficil  provar — 
que  as  emendas  são  do  poeta,  é  claro  que  se  deve  preferir  a  lição  de 
i563,  a  qual,  alem  de  ser  a  primeira,  é  superior  á  outra  em  muitos 
pontos. 

Náo  tratamos,  porém,  de  uma  edição  do  Camões,  e  sim  de  uma  edi- 
ção dos  Colóquios;  e  portanto  não  tivemos  de  examinar  miudamente 


>7 

o  valor  e  supposta  procedência  das  variantes.  Unicamente  nos  com- 
petia reproduzir  o  que  está  no  livro  de  i563,  emendando  pura  e  sim- 
plesmente os  erros,  que  fossem  claramente  typographicos.  Estas  emen- 
das são  pouco  importantes,  e  duas  apenas  interessam  o  sentido  da 
phrase;  uma  é  no  verso: 

Que  o  temido  Heitor  matar  podia 

o  qual  vae  impresso  : 

Que  se  o  temido  Heitor  matar  podia 

como  requer  o  sentido,  e  com  vantagem  para  o  metro;  a  outra  é  no 
verso : 

Olhai  que  nos  obrigua 

e  claramente  deve  ser,  como  agora  se  imprime : 

Olhai  que  vos  obrigua. 

As  restantes  emendas  não  merecem  ser  notadas.  A  Ode  sáe  pois  como 
a  encontrámos  na  primeira  edição  dos  Colóquios;  e  como  já  saiu 
—  salvas  diíFerenças  orthographicas —  em  um  interessante  folheto,  tira- 
do n'um  pequeno  numero  de  exemplares  (A  Ode  de  Luij  de  Camões  ao 
Conde  do  Redondo,  restituída  á  sua  primitiva  lição,  Lisboa,  1884). 

Comquanto  não  seja  este  o  logar  próprio  para  examinar  todas  as 
variantes  introduzidas  na  lição  de  iSgS  e  posteriores,  ha  uma  que  me- 
rece ser  notada,  porque  é  curiosa.  Não  ha  interesse  particular  em  saber 
por  que  rasão  substituíram  medica  policia  a  medica  noticia,  nem  porque 
chamaram  a  guerra  sanguinosa  em  vez  de  polvorosa.  Mas  não  succede 
o  mesmo  com  o  verso: 

Taprobanico  Achem,  que  o  mar  molesta 

Quem  emendou  este  verso,  fosse  quem  fosse,  teve  o  louvável  in- 
tento de  evitar  um  erro  de  geographia  ao  Camões.  Taprobana  era  a 
ilha  de  Ceylão,  Achem  era  em  Sumatra;  dizendo  taprobanico  Achem, 
o  nosso  poeta  confundia  Ceylão  com  Sumatra — erro  grave.  Foi  de 
certo  este  o  motivo  que  levou  a  substituir  áquelle  o  duro  verso : 

Taprobano  ou  Achem,  que  o  mar  molesta. 

Mas  quem  fez  esta  emenda,  não  reparou  em  que  o  erro  era  natu- 
ral, e  Camões  tivera  n'este  ponto  muitos  e  muito  bons  companheiros. 


É  certo  que  a  Taprobana  dos  antigos  gregos  se  deve  identificar  com 
a  ilha  de  Ceylão;  e  é  certo  que  o  poeta  fez  correcta  e  claramente 
esta  identificação  nos  Lusíadas.  Nâo  talvez  na  primeira  estancia,  onde 
Taprobana  tanto  pôde  ser  Ceylão  como  Sumatra,  pois  os  porluguezes 
passaram  além  de  ambas;  mas  na  estancia  5i  do  canto  x,  quando  diz: 

A  nobre  ilha  também  de  Taprobana, 
Já  pelo  nome  antigo  tão  famosa. 
Quanto  agora  soberba  e  soberana 
Pela  cortiça  cálida,  cheirosa. 

e  de  um  modo  bem  explicito  na  estancia  107: 

que  Taprobana 

(Que  ora  he  Ceilão)  defronte  tem  de  si. 

Tudo  isto  é  assim ;  mas,  por  outro  lado,  temos  que  a  Taprobana  foi 
muitas  vezes  identificada  com  a  grande  ilha  de  Sumatra.  Nos  últimos 
tempos  da  idade-media  e  no  correr  da  renascença,  houve  sobre  este 
ponto  graves  duvidas.  Nos  Colóquios  encontraremos  vestígios  d'essas 
duvidas,  n'esta  phrase  singular  a  propósito  de  Ceylão :  «que  alguns  di- 
xeram  ser  Taprobana  ou  Çamatra».  E  a  opinião  de  que  Taprobana  era 
Sumatra,  foi  corrente  entre  viajantes,  como  Nicolo  di  Conti;  entre  car- 
tographos,  como  fra  Mauro;  entre  os  mais  eruditos  geographos,  como 
Sebastião  Munster,  Ortelius  e  Mercator,  para  citarmos  unicamente  os 
mais  conhecidos.  E  pois  explicável,  que  o  Camões  tivesse  um  momento 
esta  opmião,  e  escrevesse  taprobanico  Achem,  embora  mais  tarde  se 
encostasse  ao  parecer  de  João  de  Barros,  e  o  significasse  claramente 
nos  Lusíadas. 

O  verso,  tal  qual  o  deixámos,  não  é  portanto  desdouro  para  o  nosso 
erudito  poeta,  e  é  uma  prova  interessante  da  sua  hesitação  em  um 
ponto  controvertido. 


COLÓQUIO    PRIMEIRO,   EM   QUE   SE 

INTRODUZ  O  DOCTOR  RUANO,  MUITO  CONHECIDO  DO 
auctor  em  Salamanca  e  em  Alcalá,  o  qual  vem  á  índia  com  hum 
seu  cunhado,  que  he  feitor  de  huma  náo,  e  nam  vem  qua  por  mais 
que  por  saber  das  mezinhas  da  índia  e  de  todolos  outros  simples 
que  nella  ha,  e  como  chegou  a  Goa  e  ouvio  nomear  o  autor,  co- 
nhecendose  ambos,  vay  pousar  com  elle  e  decraralhe  sua  enten- 
çam,  e  o  autor  lhe  responde. 

INTERLOCUTORES 

ORTA,   RUANO. 

ORTA 

Pois  que  já  temos  praticado  na  vida  que  fizestes  depois 
que  nos  apartámos  do  estudo,  e  porque  causa  viestes  á  ín- 
dia, será  razão  que  me  digais  se  ha  alguma  cousa  em  que 
vos  eu  possa  servir,  porque  desdagora  me  aperceberey  pêra 
isso. 

RUANO 

Saiba  que  posto  que  vim  qua  porque  tenho  parte  nesta 
náo  em  que  veo  meu  cunhado  por  feitor,  bem  podéra  escu- 
sar com  a  sua  vinda  delle  a  minha  a  esta  terra,  mas  porque 
tenho  grande  desejo  de  saber  das  drogas  medicinais  (as  que 
chamão  lá  em  Portugal  de  botica)  e  destoutras  mezinhas  sim- 
ples, que  qua  ha,  ou  fruitas  todas,  e  da  pimenta,  das  quais 
cousas  queria  saber  os  nomes  em  todas  as  linguas,  assi  das 
terras  donde  nascem  e  dos  arvores  ou  prantas  que  as  crião, 
e  assi  queria  saber  como  usão  delias  os  físicos  indianos,  e 
também  queria  saber  dalgumas  outras  plantas  e  frutos  desta 
terra,  ainda  que  náo  sejão  medicinais,  e  assi  dalguns  custu- 
mes  desta  terra,  ou  cousas  que  nella  acontecerão,  porque 
todas  estas  cousas  ham  de  ser  ditas  na  verdade,  vistas  per 
vós  ou  per  pessoas  dinas  de  fé. 


20  Colóquio  primeiro 

ORTA 

Em  todas  estas  cousas  vos  servirey  e  vos  direy  a  verdade, 
mas  temo  que  as  cousas  que  eu  dixer  nam  sejâo  dinas  de 
notar,  porque  a  hum  tam  grande  letrado,  e  que  tanto  soube 
no  especulativo  nam  lhe  contentãa  senam  raras  cousas. 

RUANO 

Se  ellas  contentarão  a  vossa  mercê  contentarão  a  mim, 
e  já  pode  ser  que  elle,  porque  as  bem  sabe,  não  as  estime, 
e  eu,  porque  as  não  sei,  telasei  em  muito  preço  como  he 
razam:  porque  alguns  íisicos  que  de  qua  forão  a  Espanha, 
nam  me  souberão  dar  razam  disto,  nem  satisfizerão  a  meu 
intendimento :  e  sabey  que  quanto  comvosco  falo,  tudo  ey 
de  escrever,  que  pêra  isso  tenho  hum  livro  e  nelle  escritas 
as  perguntas  pelo  abe. 

ORTA 

Digo  senhor  que  pois  vós  quereis  saber  com  vossa  curio- 
sidade o  pouquo  e  mal  rezoado  que  qua  soube,  eu  volo  di- 
rey de  manhãa  por  diante,  e  pois  a  nossa  amizade  he  tam 
grande  e  tam  antigua,  o  que  vos  diser  ha  de  ser  com  protes- 
taçam  que  o  que  nam  for  bem  dito,  sem  nenhuma  adula- 
çam  nem  lisonja  mo  digais,  e,  com  estas  condições,  prometo 
de  vos  servir  e  dizer  o  pouquo  que  souber,  e  logo  vos  ey 
de  dizer  as  cousas  que  sey  bem  sabidas  e  as  em  que  tenho 
duvida,  com  juramento  de  falar  muyta  verdade. 

RUANO 

Nisso,  como  vos  digo,  receberey  muita  mercê,  e  dormi- 
remos, se  fordes  servido,  mas  nam  sey  se  poderey  pollos 
desejos  que  tenho  de  perguntar  pella  manhãa  (i). 


Nota  (i) 


Garcia  da  Orta  introduz  nos  seus  Colóquios  vários  personagens 
reaes,  como  é  sem  duvida  alguma  o  licenciado  Dimas  Bosque,  como 
são  provavelmente  a  sua  creada  Antónia,  Paula  de  Andrade,  o  milanez 


Introduccão 


31 


André  e  outros.  O  dr.  Ruano,  porém,  deve  ser  um  personagem  fictício. 
Dada  a  forma  dialogada,  e  sem  examinar  agora  se  a  escolha  d'essa 
forma  foi  feliz,  Orta  necessitava  de  um  interlocutor  que  o  interrogasse ; 
e  não  só  o  interrogasse,  mas  lhe  ofFerecesse  objecções,  e  lhe  formulasse 
duvidas.  D'ahi  a  escolha  de  um  medico,  formado  como  elle  em  Sala- 
manca e  Alcalá,  tendo  toda  a  sciencia  dos  livros,  e  tão  desejoso  de  a 
completar  pelo  resultado  das  observações  feitas  no  Oriente,  que  a  sua 
impaciência  lhe  tirava  o  somno. 

Ruano  representa-nos,  pois,  Garcia  da  Orta,  como  este  chegou  á 
índia,  munido  de  toda  a  erudição  clássica  e  universitária,  sabendo  o 
que  tinham  escripto  Dioscorides,  Plinio  e  os  auctores  modernos,  forte 
nas  suas  affirmações,  e  um  tanto  respeitoso  ainda  em  frente  de  alguns 
dos  seus  erros :  o  Orta  dos  Colóquios  representa-nos  a  transformação 
operada  por  perto  de  trinta  annos  de  observações  directas.  Como  eu 
dizia  na  sua  Vida:  «Os  dois  personagens  são  os  dois  caracteres  reuni- 
dos em  Garcia  da  Orta,  as  duas  faces  do  seu  espirito  postas  em  frente 
uma  da  outra».  Este  modo  de  ver  parece-me  ainda  hoje  exacto;  e  não 
só  eu  não  tenho  noticia  alguma  da  existência  de  um  dr.  Ruano  na  índia, 
como  a  leitura  de  todo  o  livro  me  dá  a  impressão  de  um  personagem 
creado  e  inventado  para  as  necessidades  da  exposição  e  da  controvér- 
sia (Cf.  Garcia  da  Orta  e  o  seu  teyirpo,  p.  299  e  seg.,  Lisboa,  1886). 


COLÓQUIO    SEGUNDO    DO  ALOÉS 
INTERLOCUTORES 

ORTA,    RUANO. 
RUANO 

Já  me  parece  tempo  pêra  responderdes  ás  minhas  per- 
guntas, e  porque  a  ordem  aproveita  muito  á  memoria  será 
bem  começar  pello  a  b  c,  e  alguns  nomes  que  falecerão 
alembrarmoeis. 

ORTA 

Isso  que  dizeis  da  ordem  do  alphabeto  acho  nam  ser  bom, 
e  a  causa  he  porque  pôde  acontecer  as  cousas  ditas  ao 
principio  serem  pouquo  proveitosas  ou  muito  notas,  ou  sem 
gosto  pêra  serem  lidas;  quanto  mais  que  sempre  ouvi  dizer 
que  os  peccados  mais  graves  se  haviáo  primeiro  de  confes- 
sar aos  confessores,  e  as  milhores  rezôes  se  haviáo  de  dizer 
primeiro  quando  leiáo  algumas  lições,  e  que  quando  se  ha- 
viáo de  pedir  algumas  cousas,  as  mais  necessárias  haviáo  de 
ser  as  primeiras. 

RUANO 

Antes  senhor  (salvo  milhor  juizo)  me  parece  o  contrairo 
em  muitas  cousas,  porque  nos  princípios  das  orações  nam 
se  hão  de  mover  os  affectos  e  vontades  tanto  como  nas 
outras  partes  da  oraçam,  e  mais  porque  o  fim  fica  mais  na 
memoria  que  as  cousas,  que  primeiro  se  dixerão,  nem  os  que 
lêem  hão  de  dizer  a  doctrina  muy  sotil  no  principio,  senam 
prometer  de  a  dizer,  pêra  fazer  os  ouvintes  atentos. 

ORTA 

Ainda  me  nam  satisfizestes  ao  que  vos  dixe,  e  he  que  se 
este  livrinho  quizerem  alguns  imprimir,  ou  por  zombar  de 
mim,  ou  por  descobrir  meus  erros  e  minhas  mal  compostas 
razões,  e  lendoo  alguma  pessoa  e  nam  achando  no  principio 


24  Colóquio  segundo 

cousa  de  que  goste,  sem  mais  esperar  razão,  dará  este  livro 
ao  quarto  elemento,  e  dirá  em  mim  mil  pragas  e  vitupérios, 
e,  o  que  pior  he,  farão  contra  mim  invectivas;  e  outros, 
por  me  não  terem  por  digno  de  tanto,  farão  trovas  e  outras 
cousas  mais  baixas. 

RUANO 

As  vossas  cousas  nam  tem  outro  mal  pêra  os  mordaces 
leitores  que  serem  verdadeiras  e  muitas  nunqua  sabidas 
dos  físicos,  quê  de  qua  forão  a  Espanha,  quanto  mais  aos  fí- 
sicos da  Europa,  porque  já  perguntey  em  Espanha  a  físicos 
que  qua  andarão,  e  não  me  deram  mais  razam  que  a  que  lá 
sabíamos  todos,  e  destes  homens  alguns  erão  doctos,  senão 
o  tempo  que  andarão  qua  trazião  mais  os  pensamentos  em 
enriquecer,  que  em  fílosofar;  porque,  como  diz  o  filosofo*, 
que  ainda  que  filosofar  he  milhor  em  si  que  enriquecer, 
porém  que  ao  necessitado  milhor  he  enriquecer;  e  porque 
estes  o  serião,  quizerão  primeiro  enriquecer  que  filosofar;  e 
porque  vos  tire  deste  arreceo,  digo  que  este  trabalho  vosso 
quero  eu  pêra  mim  só,  e  pêra  muito  poucas  pessoas  outras 
a  quem  o  direy  em  Espanha  (levandome  Deus  a  salva- 
mento), e  serão  alguns  condiscípulos  nossos,  que  vos  não 
pesará  de  o  saberem,  e  alguns  discípulos  vossos,  tam  doctos, 
que  assi  vós,  como  eu,  poderemos  aprender  delles,  porque 
elles  se  derão  pouquo  á  pratica  e  muito  ás  escholas,  e  vós 
e  eu  fizemos  o  contrairo,  e  o  que  me  doy  mais  d'isto  he  que 
não  tendes  vós  nem  eu  mestres  ou  preceitores  a  quem  eu 
possa  mostrar  vossos  trabalhos  nem  em  Salamanca  nem  em 
Alcalá,  porque  todos  são  já  mortos  e  desterrados  longe  de 
Espanha :  e  tornando  ás  nossas  perguntas  me  diga  do  aloés 
os  nomes  em  todas  as  linguas  que  sabe  e  como  se  faz,  e 
qual  é  o  milhor,  porque  o  desta  terra  louva  muito  Plinio  e 
Dioscorides**. 


*  Aristot.  Topic,  libro  3  (nota  do  auctor). 

**  Plin.,  libr.  27,  cap.  4;  Diosc,  libr.  3,  cap.  21  (nota  do  auctor). 


Do  Aloés  25 

ORTA 

Do  aloés  ha  poucas  cousas  que  dizer  que  sejão  notáveis, 
e  porém  fazervosey  a  vontade,  e  digo  que  o  aloés  ou  aloa 
he  latino  e  grego,  e  os  Arábios  o  chamão  cebar,  e  os  Gu- 
zarates  e  Decanins  areá,  e  os  Canarins  (que  são  os  mora- 
dores desta  fralda  do  mar)  o  chamão  catecomer,  e  os  Cas- 
telhanos acibar,  e  os  Portuguezes  a\eirre\  fazse  de  çumo  de 
huma  herva  depois  de  seco,  e  he  chamada  cm  portuguez 
herva-babosa,  da  qual  herva  ay  muita  quantidade  em  Cam- 
baya  e  em  Bengala  e  em  outras  muitas  partes  (i),  mas  a  de 
Çocotora  he  muito  mais  louvada,  e  he  mercadoria  pêra  a 
Turquia,  a  Pérsia  e  Arábia,  e  pêra  toda  a  Europa*,  e  por 
isso  o  chamam  aloés  çocotorino;  e  dista  esta  ilha  ou  está 
apartada  das  portas  do  estreito  128  léguas,  por  onde  tanto 
se  pôde  dizer  da  Arábia  como  da  Etiópia,  pois  nas  portas 
do  estreito  huma  banda  he  Arábia  e  outra  Etiópia:  e  não  he 
isto  onde  se  faz  cidade,  como  diz  Laguna,  senão  he  toda  a 
ilha,  a  qual  não  tem  cidades,  senão  povoações  com  muito 
gado;  e  não  se  ladrilha  o  chão  pêra  colher  a  lagrima  que 
cáe,  porque  nem  he  cidade  nem  na  ilha  ha  tanta  policia, 
nem  se  falsifica  polia  muita  abundância  que  nella  ha  desta 
herva,  senão  polia  pouca  curiosidade  que  os  negros  desta 
terra  tem  em  não  apartar  as  hervas  que  com  esta  herva-ba- 
bosa vem  misturadas,  e  por  isso  hum  não  parece  tam  bom 
como  outro :  e  também  não  creais  que  he  milhor  o  de  cima 
que  o  do  meio,  e  peor  o  do  fundo,  nem  he  cheo  de  área, 
si  se  faz  com  diligencia,  porque  todo  he  bom  •,  nem  se  falsi- 
fiqua  com  goma  arábica  e  acácia  (como  dizem  Plinio  e 
Dioscorides),  porque  ha  nesta  terra  pouca  goma  e  acácia 
ou,  por  fallar  verdade,  nenhuma,  segundo  mandey  saber 
per  pessoas  dignas  de  fé  que  isto  me  contarão*,  e  já  pode  ser 
que  este  mesmo  a^evre  se  falsifique  em  outras  terras  (2). 

RUANO 

Como  soubestes  que  o  de  Çocotora  he  melhor,  porque 
alguns  escriptores  o  chamão  suco-cetrino? 


20  Colóquio  segundo 

ORTA 

Não  faz  o  nome  ao  caso. 

RUANO 

Como  sabeis  que  sabem  descernir  hum  do  outro  os  Pér- 
sios, Arábios  e  Turcos  em  Ormuz,  onde  o  levão  a  vender, 
como  dizem? 

ORTA 

Alem  da  fama  comum  o  soube  de  hum  rico  mercador  e 
bom  letrado,  a  sua  guisa,  que  sérvio  de  secretario  aos  go- 
vernadores, chamado  Coje  Perculim  (3),  ao  qual  como  hum 
dia  lhe  perguntasse  como  se  chamava  em  turco,  em  pérsio  e 
arábio,  me  dixe  que  cebar  se  dizia  em  todas  estas  linguas 
e,  sem  lhe  mais  perguntar,  me  dixe  que  o  melhor  de  todos  he 
o  de  Çocotora,  e  que  o  avia  em  muitas  outras  partes  da 
índia,  donde  o  levavão  a  Ormuz  e  a  Adem  e  a  Gida,  e  dahi 
por  terra  o  levavão  ao  Cairo,  donde  o  levavão  a  Alexandria, 
porto  do  Nilo,  e  que  facilmente  conhecião  os  mercadores 
qual  era  o  de  Çocotora,  e  qual  o  de  Cambaya  e  das  outras 
partes,  e  que  valia  o  de  Çocotora  quatro  vezes  tanto  como 
o  das  outras  partes.  E  despois  disto  fui  ver  ao  Nizamoxa, 
que  he  um  rey  dos  mais  grandes  do  Decam,  chamado  o 
Nizamaluco  (4),  alem  de  ser  letrado  pello  seu  modo,  sempre 
tem  físicos  da  Pérsia  e  de  Turquia,  a  quem  dá  grandes 
rendas,  dos  quais  soube  isto  mais  perfeitamente :  e  mais  me 
dixerão  que  se  descernia  o  de  Çocotora,  porque  nelle  as 
partes  se  juntavão  bem  humas  com  outras,  e  no  outro  a^e- 
vre  não  fazião  perfeita  mixtão,  porque  o  çumo  era  de  diver- 
sas hervas,  e  que  isto  era  cousa  muyto  conhecida,  e  que  o 
próprio  rey,  seu  amo,  o  tinha  sempre  trazido  de  Çocotora, 
de  modo  que  não  são  duas,  nem  três  especias,  como  dizem 
os  doctores,  senão  huma  só,  e  isto  entendey,  senão  quereis 
que  o  logar  varie  as  especias:  somente  ay  bom  e  mao,  scili- 
cet,  sofisticado,  de  modo  que  nem  as  hervas  são  diversas  em 
bondade,  porque  a  diversidade  na  bondade  não  faz  que  as 
partes  não  se  misturem  bem,  pois  são  de  huma  mesma  es- 
pecia,  e  chamarem  alguns  doctores  suco-cetrino  não  he  muito. 


Do  Aloés  27 

porque  não  olharão  mais  que  á  côr,  mas  a  verdade  he  que 
se  chama  assi. 

RUANO 

Pois  que  diremos  a  Plinio  e  a  Dioscorides*  que  dizem 
que  o  milhor  de  todos  he  o  da  índia,  e  dizem  outros  que 
o  de  Alexandria  ou  da  Arábia? 

ORTA 

A  isto  vos  respondo  que  não  entendais  simplesmente  que 
o  trazido  da  índia  he  o  milhor,  senão  acrecentardes  que  o 
tragão  á  índia  primeiro  de  Çocotora,  porque,  como  já  vos 
dixe,  também  levão  de  Cambaya  e  Bengala  a^evre  a  Ormuz 
e  a  Adem,  e  a  Judá  fcomo  nós,  corrompendo  o  nome,  a  cha- 
mamos, porque  elles  a  chamão  Gida),  e  com  tudo  isto  sem- 
pre o  levão  destoutras  partes,  e,  como  digo,  o  de  Çocotora 
he  milhor,  e  levão  de  todo,  porque  quem  diabos  compra, 
diabos  vende. 

RUANO 

Logo  milhor  diz  Mesué  que  ha  hum  trazido  de  Çocotora, 
e  outro  da  Pérsia,  e  outro  da  Arménia,  e  outro  da  Arábia  ? 

ORTA 

Não  diz  Mesué  milhor,  mas  diz  menos  mal  que  os  outros : 
porque  verdadeiramente  o  que  de  qua  vay  pêra  Portugal, 
que  eu  o  vejo  todo,  he  trazido  de  Çocotora,  e  quando  lá  os 
vossos  doctores  dixerem  de  Alexandria  trazido,  entendey 
que  nos  annos  passados  se  levava  muita  quantidade  de  dro- 
gas a  Ormuz  e  dahi  a  Bácora,  e  dahi  as  levavão  a  Adem  e 
a  Gida,  e  dahi,  por  terra,  em  cáfilas  de  camelos,  o  levavão 
ao  Suez,  que  é  cotovelo  do  mar,  e  a  Alexandria,  porto  do 
Nilo,  donde  vão  ter  nas  galés  de  Veneza  pêra  se  venderem 
e  comunicarem  a  toda  a  Europa,  e  não  porque  em  Alexan- 
dria ouvesse  a^ievre  pêra  fazer  caso  delle  (5). 


*  Plin.,  lib.  24,  cap.  4';  Diosc,  lib.  3,  cap.  4  (nota  do  auctor).  O  cap. 
de  Dioscorides  está  errado;  deve  ser  21,  22  na  edição  de  Sprengel. 


28  Colóquio  segundo 

RUANO 

Se  não  ay  em  Alexandria  a^evre,  também  dizeis  que  não 
ha  ruibarbo:  logo  mal  dizia  aquelle  escritor  que  não  faria  a 
huma  pessoa  purgar  nem  desopilar  quanto  ruibarbo  ha  em 
Alexandria  ? 

ORTA 

Entendeo  esse  doctor  quanto  ruibarbo  vem  das  outras 
partes  a  Alexandria. 

RUANO 

Acerca  dos  nomes  estou  hum  pouco  duvidoso,  e  não  de 
Mateo  Silvatico,  que  o  chama  saber  ou  canthar,  ou  rea- 
mal,  porque  este  podia  errar,  pois  não  era  arábio;  mas 
que  diremos  a  Serapio,  que,  sendoo,  o  chamou  saber? 

ORTA 

Não  O  chamou  senão  cebar,  e  depois,  corronpendose  por 
tempos  o  nome,  se  chamou  saber:  por  onde  não  tem  culpa 
senão  o  traductor,  ou  os  tempos,  que  gastão  tudo",  mas  no 
arábio  está  cebar. 

RUANO 

Acerca  dos  Índios  he  usado? 

ORTA 

Acerca  dos  físicos  da  Pérsia,  Arábia  e  Turquia  se  usa 
desta  mezinha,  porque  sabem  elles  de  cór  Avicena,  a  que 
chamão  elles  Abolahi  e  a  seus  cinquo  livros  Canum,  e  sa- 
bem Rasis,  a  quem  chamão  Benzacaria,  e  a  Halirodoam 
e  a  Mesué,  posto  que  não  he  este  de  que  usamos,  e  tam- 
bém tem  todas  as  obras  de  Hypocras  e  Galeno,  de  Aris- 
tóteles e  de  Platão;  posto  que  as  não  tem  tão  inteiras  como 
na  fonte  grega  (6) :  e  os  físicos  gentios  da  índia  também  usão 
delle  em  purgas  e  lombrigas  e  coliros,  e  também  quando 
quierem  encarnar  algumas  chagas,  e  tem  pêra  isto  nas  suas 
boticas  huma  mezinha  chamada  mocebar,  feita  de  a^evre  e 
mirra,  á  qual  elles  chamam  bola,  e  desta  usam  muito  para 
curar  cavalos,  e  para  matar  os  bichos  das  chagas,  e  por 
tanto  nam  he  muito  chamarse  acerca  de  nós  o  aloés  ruym 


Do  Aloés  29 

cahalino,  como  escreve  um  moderno  doctor,  dizendo  que  o 
mais  ru3'm  se  gasta  acerca  dos  albeitares*,  mas  de  meu  voto 
he  que  nem  pêra  curar  bestas  nem  homens  se  gaste  nem  se 
use  do  aloés  chamado  cabal ino,  senão  do  çocotorino;  de  modo 
que  o  que  diz  Serapiam,  por  autoridade  de  Alcamzi,  se  deve 
entender,  que  pêra  albeitaria  e  chagas  se  pôde  usar  com 
menos  damno  do  cabalmo;  e  mais  vy  qua  usar  a  um  físico 
gentio  do  gran  Soldão  Badur,  rey  de  Cambaya,  por  me- 
zinha familiar  e  benedicta,  tomando  talhadas  das  folhas  da 
herva-babosa  cozida  com  sal  dentro  nellas,  e  deste  cozi- 
mento dava  a  beber  oito  onças  com  que  fazia  quatro  ou 
cinquo  camarás,  sem  moléstia  nem  damno  algum  a  quem  o 
tomava.  E  aqui  n'esta  cidade  de  Goa  tomão  desta  herva 
pisada  e  misturada  com  leite  e  dão  a  beber  aos  que  tem 
chagas  nos  rijs  ou  na  bexiga,  ou  mejão  matéria  por  alguma 
outra  maneira:  e  he  cousa  muito  boa  pêra  guarecer  asinha, 
ejá  nós  alguns  tomámos  desta  mezinha  e  achámos  nos  bem 
delia.  E  nós  também  usamos  do  a\evre  nas  quebraduras  das 
pernas  das  aves,  cousa  bem  usada  dos  cetreros  (7),  e  qua  na 
índia  pêra  madurar  os  fremões,  por  isso  nam  parece  dizer 
bem  Mateolo  Senes,  o  qual  diz  que  a  herva  he  mais  pêra 
ver,  que  pêra  uso  de  física. 

RUANO 

Todas  essas  cousas  que  dizeis  não  carecem  de  razam,  e 
porem  me  dizey  se  probastes  herva-babosa,  e  se  vos  amar- 
ga e  cheira  com  cheiro  forte? 

ORTA 

Lendo  em  António  Musa  e  em  outros  modernos  por  di- 
zerem que  o  amargar  falecia  á  herva-babosa  de  nossa  terra, 
provey  esta  muitas  vezes,  e  achava  muj^to  amargosa,  e 
quanto  era  mais  perto  da  raiz  amargava  mais,  e  nas  pontas 
de  cima  sem  nenhuma  amargura,  e  com  hórrido  cheiro  em 
toda,  de  modo  que  o  que  diz  António  Musa  que  o  de  Ço- 
cotora  he  mais  amargo,  he  falso;  porque  esta  herva  da  ín- 
dia já  a  provey,  e  a  de  Çocotora  mandey  provar,  e  todas 


3o  Colóquio  segundo 

amargam  muyto:  a  de  Espanha  nam  provey,  se  vos  Deus 
levar  a  salvamento,  tudo  podeis  probar.  E  mais  vos  digo 
que  achey  em  o  Silvatico  e  em  o  Plateario,  que  todalas 
cousas  amaras,  quanto  mais  amaras,  tanto  sam  melhores, 
excepto  o  aloés:  e  António  Musa  parece  que  sente  o  con- 
trairo,  e  a  mim  me  parece  que  diz  melhor  o  Musa,  por 
que  o  sabor  amargoso  preserva  de  putrefaçam,  e  faz  outras 
operações  muyto  boas. 

RUANO 

Tirayme  de  huma  duvida,  se  as  mezinhas  que  levam 
aloés  se  ham  de  tomar  em  jejuum,  se  sobre  comer,  e,  se 
sobre  comer,  se  tardará  muyto  o  cibo  sobre  ellas? 

ORTA 

Nam  me  pergunteis  isso  pois  o  sabeis  lá  milhor  todos 
que  eu  qua  hum  só. 

RUANO 

Todavia  quero  vosso  parecer,  e  saber  a  pratica  que  usais. 

ORTA 

Galeno  manda  dar  5  pirolas  tamanhas  como  grãos  de 
comer,  e  desta  maneira  he  bom  tomado  pêra  paixões  da 
cabeça,  e  Plinio*  diz  que  he  muito  boa  mezinha,  depois  de 
bebida,  pouco  espaço,  se  tome  cibo  sobre  ella,  e  ha  de  ser 
pouco  e  bom.  Esta  também  é  muito  boa  pratica  e  usada 
dos  físicos  mouros  d'esta  terra,  porque,  como  o  aloés  he 
mezinha  débil,  nam  obrará  se  depois  a  natureza  nam  for 
fortificada  com  hum  pouco  de  comer  muito  nutritivo  e  pouco 
em  quantidade,  como  dixe,  porque  o  possa  digerir,  e,  fortifi- 
cada, faça  melhor  evacuação.  Paulo  diz  que  se  ha  de  tomar 
em  jejuum,  e  reprende  aos  que  a  dão  depois  de  comer,  por- 
que diz  que  corrompe  o  comer.  Cada  hum  destes  tem  por 
si  razões  e  textos  e  todos  se  podem  concordar  bem,  e 
porque  he  questão  comum  se  o  cibo  se  ha  com  a  mezinha  de 


*  Galen.  ad  Pat.,  cap.  5;  Plinio,  libr.  27,  cap.  4  (nota  do  auctor). 


Do  Aloés  3i 

misturar  ou  não:  e  pois  o  sabeis  melhor  que  eu,  escusado  • 
he  falar  nisso  muito. 

RUANO 

Nasce  mais  em  logares  marítimos,  como  diz  Dioscorides? 

ORTA 

Eu  andei  polo  sartam  desta  índia,  mais  de  duzentas  legoas 
de  caminho,  e  em  todos  os  logares  vi  esta  herva-babosa. 

RUANO 

Da  goma  delia  me  dizei. 

ORTA 

Nam  tem  goma,  senam  algumas  vezes,  polas  folhas,  chora 
alguma  agua  viscosa,  de  que  se  nam  usa,  nem  faz  caso. 

RUANO 

Diz  Ruelio  que  as  pirolas  de  Rasis,  que  se  dão  na  peste, 
compostas  por  Rufo,  levão  aloés  e  mirra,  amoníaco,  temiama 
e  vinho;  e  diz  o  Ruelio,  que  porque  causa  estes  Maumetistas 
havião  de  tirar  o  amoníaco  e  temiama  e  vinho,  e  haviam  de 
acreçentar  mais  açafram? 

ORTA 

Nam  vos  queria  ver  tam  affeiçoado  a  estes  escritores 
modernos,  que  por  louvar  muyto  aos  Gregos  dizem  mal  dos 
Arábios  e  de  alguns  Mouros  naçidos  na  Espanha,. e  de  outros 
da  Pérsia,  chamando-lhes  Maumetistas  bárbaros  (que  elles 
tem  por  pior  epíteto  que  quantos  ha  no  mundo),  em  espe- 
cial os  Italianos;  como  que  os  Gregos,  não  sam  os  que  agora 
chamamos  Rumes,  e  os  Turcos,  a  qual  gente,  tam  crua,  e 
cuja  e  mal  acustumada,  persegue  ao  presente  mais  a  chris- 
tandade  que  outra  alguma*:  e  por  tanto  vos  digo  que  eu  não 
nego  a  mezinha  de  Rufo  ser  a  que  elles  dizem,  e  ser  muito 
boa,  mas  digo  que  as  pirolas  de  Rasis  (de  que  usamos)  são 


*  Preferimos  conservar  a  phrase,  incorrecta  e  pouco  clara,  a  tentar 
a  sua  reconsiruccão. 


32  Colóquio  segundo 

muyto  boas  e  por  muytos  esperimentadas,  e  o  açafram  se 
põe  nellas  por  ser  muyto  cordial  e  abridor,  e  por  outras 
virtudes  muytas  que  tem. 

RUANO 

Parece  ser  que  fazeis  deferença  entre  Rumes  e  Turcos,  e 
eu  tive  sempre  que  senificavam  huma  mesma  cousa  estes 
nomes? 

ORTA 

Posto  que  a  questão  não  he  medicinal  vos  respondo  que 
sam  muy  difterentes,  porque  os  Turcos  são  os  da  província 
de  Natolia  (que  antes  se  dizia  Asia-menor),  e  os  Rumes  são 
os  de  Constantinopla  e  do  seu  emperio. 

RUANO 

Gomo  sabeis  isto,  por  livro,  ou  por  volo  dizerem  algumas 
pessoas? 

ORTA 

Muytas  vezes  perguntava,  andando  nas  guerras  destes 
reis  da  índia,  a  algum  soldado  branco  se  era  Turco,  e  res- 
pondia que  não,  senão  que  era  Rume;  e  a  outros  pergun- 
tava se  erão  Rumes  e  respondiãome  que  não,  senão  que 
erão  Turcos:  e  perguntandolhe  qual  era  a  deferença  que 
havia  antre  hum  e  outro,  diziãome  que  eu  a  não  podia  en- 
tender, porque  não  sabia  os  nomes  das  terras,  nem  a  lingoa 
mo  sabia  dar  a  entender.  E  achandome  em  casa  daquelle 
excellente  varam  Martim  Affonso  de  Sousa  (a  quem  eu  ser- 
via) me  amostrou  a  Platina,  onde  estava  lendo  na  vida  de 
Sam  Silvestre,  onde  achámos  escrito  que,  quando  Constan- 
tino, leixando  Roma  ao  Papa,  se  foy  a  Constantinopla,  lhe 
foy  dado  previlegio  que  ella  se  chamáse  Roma,  e  os  dessa 
terra  se  chamasem  Romeos,  e  diz  o  Platina  que  oje  se  cha- 
mam assi  (8). 

RUANO 

Muyto  folgo  de  ouvir  estas  cousas,  ainda  que  não  sejam 
de  física:  mas,  tornando  ao  aloes^  me  dizei  que  respondere- 
mos a  Menardo  e  a  outros  modernos,  que  reprendem  a  Me- 
sué  e  Serapiam  e  Aviçena,  porque  dizem  que  abre  as  veas 


Do  Aloés  33 

e  que  he  máo  para  as  almoreymas ;  e  porque  dizem  estes 
Arábios  que,  misturado  com  mel,  purga  menos-,  e  porque 
afirmam  ser  menos  nocivo  ao  estômago  que  outras  mezi- 
nhas solutivas,  porque  Menardo  e  estoutros  dizem  que  não 
tam  somente  nam  abre  as  almoreymas,  antes  as  cerra,  e 
que  ao  estômago  não  se  pôde  dizer  que  he  menos  nocivo, 
antes  lhe  faz  muyto  bem,  e  não  lhe  causa  damno  algum, 
e  que,  junto  com  mel,  he  mais  solutivo  que  as  outras  mezi- 
nhas solutivas.  As  primeiras  cousas  provao  por  muitas  au- 
ctoridades  de  Galeno  e  outros  muytos,  e  a  segunda  provão, 
por  o  mel  ser  solutivo,  dizendo  que  dous  solutivos  purgão 
mais  que  hum. 

ORTA 

Já  vos  dixe  que  nam  me  obrigava  a  vos  responder  a  ques- 
tões, que  sabeis  melhor  em  Espanha,  lendo  muitos  que  es- 
crevam cada  dia  e  praticando  e  conferindo  com  muitos  fí- 
sicos letrados,  que  eu  qua,  nam  sendo  aconselhado  com 
alguém,  por  falta  que  elles  e  eu  temos  de  livros.  E  porém 
respondendo  o  primeiro,  vos  digo  que  António  Musa  fala 
neste  caso  como  homem  sem  paixão,  porque  elle  não  fez 
homenagem  a  algum  mestre  e  concede  ser  verdade  o  pri- 
meiro, que  diz  Mesué,  que  abre  as  almoreymas,  e  que  assi 
o  esperimentou  muitas  vezes*,  e  eu  também  digo,  que  já  o 
esperimentey  muytas  vezes,  causaremse  grandes  dores  com 
fluxo  delias.  Tudo  isto  pode  fazer  o  aloés  por  sua  amargura, 
abrindo  as  veas,  estimulando  a  virtude  espulsiva-,  e  deste 
modo  purga  o  fel  do  animal  posto  na  barriga  e  no  ombrigo, 
como  dizem  Dioscorides  e  Serapiam*,  e,  ao  cerrar  das  veas, 
que  provão  por  autoridade,  respondem  com  lacob  de  Par- 
tibus,  que  restringe  por  fora  e  abre  por  dentro  tomado^  e 
isto  tem  muitas  mezinhas,  que,  tomadas  por  dentro,  tem 
huma  operaçam,  e,  aplicadas  por  fora,  tem  outras,  como  a  ce- 
boUa  que,  por  dentro,  mantém,  e  por  fora  faz  chaga  ulce- 
rando; e  o  segundo,  que  he  reprehendido  Mesué  por  dizer, 


*  Dioscorid.,  ubi  sup. ;  Serap.,  cap.  201  (nota  do  auctor). 

3 


34  Colóquio  segundo 

que  purga  menos  com  mel,  vos  digo  que,  pois  ambos  sam 
solutivos,  scilicet,  o  md  e  o  alocs,  o  mais  solutivo,  que  he 
o  aloés,  he  remetido  e  enfraquecido  do  menos  solutivo,  que 
he  o  7nel:  e  ao  terceiro,  em  que  reprendem  a  Mesué,  por- 
que diz  que  he  menos  nocivo  ao  estômago  sendo  conforta- 
tivo  do  estômago,  isto  digo  que  se  ha  de  entender  que  con- 
forta o  estômago  por  acidente,  a  que  os  físicos  chamão  de 
per  acidens^  scilicet,  tirandolhe  os  máos  humores  do  estô- 
mago sem  nocumento  algum  ou,  ao  menos,  com  pouquo;  e 
d'esta  maneira  se  hão  de  entender  as  auctoridades  alegadas 
por  Menardo,  e  os  outros  modernos. 

RUANO 

Em  todas  cousas  que  dixestes  me  satisfizestes  muito  bem, 
e  muyto  mais  no  que  dizeis  que,  assi  como  nas  primeiras 
qualidades,  que  sam  quentura,  frialdade,  humidade,  sequura, 
o  remiso  em  grado,  que  he  menos  quente,  remite  e  enfra- 
quece ao  mais  intenso  em  grado,  que  he  mais  quente:  assi 
nas  segundas  e  terceiras  qualidades,  que  sam  purgativa  ou 
diurética  (que  he  fazer  ourinar),  o  mais  forte  e  intenso,  sci- 
licet, que  he  mais  purgativo,  se  he  junto  com  outro  menos 
purgativo,  he  enfraquecido  do  menos  purgativo,  e  assi  o 
aloés  mais  purgativo,  misturado  com  o  mel,  que  he  mais 
fraco  solutivo,  faz  que  tudo  seja  menos  solutivo.  Daqui  vem 
que  purga  hum  homem  mais  com  dez  grãos  de  escamonea 
sós,  que  com  cinquo  dragmas  de  solutivo  e  uma  onça  de 
cassia-Jistola,  e  huma  dragma  de  ruibarbo,  onde  entra  mais 
escamonea  que  os  doze  grãos:  e  isto  esperimentey  eu  já 
muitas  vezes,  e  nam  sey  dar  outra  razam  senam  essa  que 
me  dais.  E  agora  me  dizey  se  sabeis  se  ha  aloés  metalUco 
ao  redor  de  Jerusalém? 

ORTA 

Já  perguntey  isto  a  alguns  judeus  que  a  esta  terra  vieram, 
e  diziam  serem  moradores  em  lerusalem,  e  alguns  erao  fi- 
lhos de  fisicos,  e  outros  erão  boticairos,  e  todos  me  disse- 
ram ser  isto  cousa  falsa  e  nunqua  achada  em  toda  Pales- 
tina (9)  \  e  por  aqui  faço  fim  ao  aloés,  se  disto  sois  servido. 


Do  Aloés  35 


RUANO 


Antes  me  fizestes  no  passado  muita  merce  \  e  quero  vos 
agora  perguntar  huma  duvida  que  tenho  de  como  tomão  as 
pirolas  e  as  purgas  liquidas  nesta  terra,  e  quanto  tempo  es- 
tão sem  comer  sobre  ellas;  e  isto  por  ver  se  os  avicenistas, 
que  nesta  terra  curam  aos  reys,  tem  o  custume  que  nós  lá 
temos  em  Espanha. 

ORTA 

Digo  que  as  pirolas  tomão  pclla  maneira  que  as  nós  to- 
mamos, e  as  purgas  liquidas  tomão  as  pella  maneira  que 
as  nós  tomamos,  scilicet,  em  rompendo  a  alva  do  dia,  e 
estão  sem  comer,  nem  beber,  nem  dormir  cinquo  horas,  e 
se  nestas  nam  purgão,  tomão  pêra  confortar  o  estômago, 
per  regra  de  Aviçena*,  duas  dragmas  de  almécega  delidas 
em  agoa  rosada,  e  esfregãolhe  o  ventre  com  fél  de  vaca, 
e  põelhe  pannos  molhados  nelle  sobre  o  umbrigo,  para  ci- 
tar a  operaçam  e  estimular  a  virtude  expulsiva,  se  ha  disso 
necessidade  alguma;  e  se  purgar  muyto  bem,  passadas  estas 
cinquo  horas,  bebem  três  onças  de  caldo  de  galinha  muyto 
bem  temperado  e  outra  cousa  nam  comem,  e  dormem  algum 
espaço,  e  bebem  alguma  pouca  quantidade  de  agoa  rosada, 
e  acabado  de  dormir  purgão  muyto  bem;  mais  porque  di- 
zem que  se  fortificou  a  virtude  e  natureza  com  o  caldo  e 
sono  e  agoa  rosada,  e  que  se  fora  muito  o  comer,  que  se 
impedira  em  digerir  o  comer,  e  não  purgara  tanto.  E  per- 
guntandolhe  se  faziam  assi  a  todos  os  que  purgavam,  di- 
ziam que  esta  era  a  pratica  comum  dos  fisicos  letrados,  e 
para  isto  não  alegavam  texto  algum. 

RUANO 

Elles  tem  muyta  razão  no  que  fazem  e  praticam,  porque 
o  fel  he  solutivo  per  fora  mordicando  a  virtude  expulsiva, 
e  em  nam  comer  galinha  he  texto  expresso  de  Aviçena**, 


*  Avie.  4.  primi.  (nota  do  auctor). 

"it  Avicen.  228,  trata.  2.,  cap.  23  (nota  do  auctor). 


36  Colóquio  secundo 

donde  diz  que  convém  áquelle  que  quer  tomar  mezinha,  que 
a  tome  muyto  pella  manhaa  e  tarde  o  comer,  e,  passadas 
três  horas,  quatro  onças  de  pão  com  vinho  e  pouca  agoa,  e 
seis  horas  despois  entre  no  banho,  e  saiase  delle  e  este 
quieto,  e  despois  lhe  dem  a  comer  aquillo  que  lhe  convém: 
este  he  o  texto  tornado  em  lingua  portugueza,  ainda  que  as 
derradeiras  palavras  estão  na  tradução  do  Belunense:  por 
tanto  não  tem  esses  físicos  mouros  esse  custume  sem  auto- 
ridade, nem  carece  de  razam  sua  obra,  posto  que  Mateus 
de  Gadi  expõe  esse  texto  doutra  maneira,  e  applicao  so- 
mente à  ciática-,  porém  (salvo  milhor  juizo)  em  muytas  en- 
fermidades se  pôde  applicar.  E  do  banho,  que  diz  o  texto, 
fazem  o? 

ORTA 

Si  fazem,  mas  não  em  o  mesmo  dia,  senão  em  outro  dia 
despois,  o  qual  banho  he  de  preceito  aos  Bramenes  e  Ba- 
neanes,  e  a  todo  o  Gentio,  que  nenhum  dia  comão  sem  lavar 
o  corpo  primeiro,  e  os  Mouros  lavamse,  estando  sãos,  ao 
menos  cada  três  dias  (lo). 

RUANO 

Porque  tomaste  o  cabo  do  texto  emmendado  pelo  Belu- 
nense, vos  pergunto  se  achaste  lá  verdadeira  essa  traduçam  ? 

ORTA 

Eu  quis  experimentar  isso  muytas  vezes  que  leia  o  texto 
pola  traduçam  comum,  tendo  Aviçena  na  mão  em  arábio: 
nam  consentião  com  o  que  eu  dizia,  e,  como  dizia  pello  texto 
emendado  com  as  correições  do  Belunense,  diziamme  que 
assi  estava  lá  (n).  E  porque  se  faz  horas  de  comer,  nisto  não 
falemos  mais,  e  acabado  o  jantar  falaremos  do  Ambre. 


Nota  (i) 


O  aloés,  como  todos  sabem,  é  o  sueco  concreto  de  diversas  espécies 
do  género  Alõe  da  familia  das  Liliacece.  Orta  conhecia  sem  duvida  va- 
rias d'estas  espécies;  mas  nem  as  distinguiu,  nem  o  podia  fazer,  pois 


Do  Aloés  37 

a  sua  distincção  não  foi  muito  clara  até  aos  últimos  tempos.  Segundo 
informações  modernas  do  sr.  W.  Dymock,  a  droga  prepara-se  na  índia 
com  a  espécie  Alõe  abyssinica,  Linn.;  e  na  ilha  de  Socotora,  e  talvez 
outras  regiões  próximas,  com  a  espécie  Alõe  Perryi,  Baker  (Cf.  The 
vegetable  matéria  medica  of  Western  índia,  p.  823,  825,  2**  edition, 
Bombay,  i885). 

Pelo  que  diz  respeito  aos  nomes  vulgares  é  o  nosso  auctor  bastante 
exacto : 

— Os  conhecidos  nomes,  grego  áXoióí  e  latino  alõe,  parecem  derivar 
do  syriaco  alwai,  e  foram  provavelmente  introduzidos  pelos  merca- 
dores, que  em  tempos  antigos  traziam  esta  droga  do  Oriente  para  a 
Grécia  (Cf.  Sprengel,  Dioscorides,  :i,  5o3,  Lipsiae,  1829;  Clusius,  Exo- 
ticorum  libri  decem,  p.  248,  i6o5). 

—  «Cebar»  é  a  transcripção  correcta  para  o  nosso  alphabeto  do 
arábico  j^^  do  qual,  junto  ao  artigo,  j-^i,  aç-cebar,  veio  a  palavra 
hespanhola  acibar,  e  as  antigas  designações  portuguezas  a^ebre  e 
a^evre  (Cf  Dozy,  Glossaire  des  mots  espagnols  et  portugais  derives 
de  1'arabe,  35,  Leide,  1869;  Yanguas,  Glosaria,  29,  Granada,  1886; 
Fr.  João  de  Sousa,  Vestígios,  Lisboa,  i83o,  a  p.  84,  salva  a  etymo- 
logia). 

—  «Catecomer»  é  uma  d'estas  transcripções  approximadas  e  de  ou- 
vido —  como  Orta  as  fazia  muitas  vezes  — de  um  dos  antigos  nomes  in- 
dianos da  planta  Ghrita  Kiimarf,  do  sanskrito  ^PTÍTT  KiimãrT  (Cf. 
Whitelaw  Ainslie,  Matéria  indica,  11,  i6g,  London,  1826;  Dymock,  1.  c). 

—  «Areá»  está  de  certo  muito  alterado,  mas  pôde  talvez  prender- 
se  a  elwa  e  elia,  nomes  hindis  e  bengalis  da  droga,  usados  também 
em  Bombaim  (Cf  Dymock,  1.  c). 


Nota  (2) 

A  droga  proveniente  da  ilha  de  Socotora  foi  celebre  desde  tempos 
muitíssimo  remotos,  se  acreditarmos  em  uma  lenda  persistentemente 
contada  pelos  escriptores  arábicos.  Maçudi,  escrevendo  pelo  anno  332 
da  Hijra  (943  J.  C.)  repete  uma  noticia,  dada  já  no  século  anterior  pelos 
dois  conhecidos  viajantes  mahometanos,  dizendo  que  o  grande  Ale- 
xandre, por  conselho  do  seu  mestre  Aristóteles,  havia  estabelecido 
n'aquella  ilha  uma  colónia  de  gregos,  com  o  fim  especial  de  cultiva- 
rem a  planta  que  produzia  a  famosa  droga;  esta  colónia  prosperou  e 
abraçou  mais  tarde  o  christianismo.  O  geographo  El-Edrisi  (i  154  J.  C.) 
dá-nos  a  mesma  versão  com  ligeiras  variantes.  Sem  acceitarmos  esta 
informação  em  todas  as  suas  partes,  devemos  no  emtanto  admittil-a, 
como  prova  da  existência  de  um  antigo  fundo  de  população  grega  na 


38  CoIoljuío  segundo 

ilha,  e  sobretudo  da  nomeada  que  já  então  tinha  o  aloés  d'ali  (Cf.  Ma- 
çudi,  Les  Prairies  d'or,  iir,  36,  trad.  de  B.  de  Meynard  et  P.  de  Cour- 
teille,  Paris,  1 861-1877;  Géographie  d^Edrisi,  i,  47,  trad.  de  A.  Jaubert, 
Paris,  i836;  H.  Yule,  The  book  of  ser  Marco  Polo,  ir,  400,  1^  edition, 
London,  1875;  Flora  dos  Lusíadas,  89,  Lisboa,  1880). 

No  século  de  Orta,  o  aloés  da  ilha  de  Socotora  continuava  a  ser 
considerado  o  melhor,  sendo  geralmente  chamado  socotorino.  Thomé 
Pires,  escrevendo  a  El-Rei  D.  Manuel  (i5i6),  dizia:  que  nascia  «o  muito 
estimado  na  ilha  de  camatora«  (Socotora);  que  a  baixo  d'este  estava 
o  das  «nossas  partees»  (Hespanha);  e  que  o  da  índia  era  muito  mau, 
«que  nom  vali  nada».  Parece,  porém,  que  o  nome  de  socotoririo  se 
dava  algumas  vezes  ao  aloés  de  boa  qualidade,  embora  não  viesse  da 
ilha.  No  Lyvro  dos  pesos,  diz  António  Nunes,  que  se  pesava  em  Or- 
muz o  «azevre  çacatorino  de  sacatora»  por  um  certo  modo,  e  o  «aze- 
vre  sacatorino  de  dio»,  isto  é,  da  índia,  por  um  modo  diverso.  Em  todo 
o  caso  o  primeiro  era  o  mais  estimado  (Cf.  Carta  de  Thomé  Pires, 
na  Gaveta  de  pharmacia  de  P.  J.  da  Silva  (i86õ),  p.  41;  Lyvro  dos 
pesos  da  Imdia,  8  e  11,  nos  Subsídios  de  Felner,  Lisboa,  1868). 

Nas  suas  correcções  a  Laguna,  Orta  falia  com  bastante  conheci- 
mento de  causa.  Socotora  não  era  cidade,  nem  tinha  cidades;  e — se- 
gundo referem  Duarte  Barbosa  e  Gaspar  Corrêa — os  habitantes  da 
ilha,  conservando  uns  leves  vestígios  de  christianismo,  mas  sujeitos  aos 
árabes  de  Fartak,  foram  encontrados  pelos  portuguezes  em  um  estado 
quasi  selvagem.  Também  a  asserção  de  Laguna,  de  que  se  ladrilhava 
o  chão  para  colher  as  lagrimas  que  caíam,  não  parece  ser  exacta.  De 
resto,  esta  asserção  era  uma  simples  reminiscência  de  Plinio:  ergo 
pavímentandiim  iibi  satã  sít,  censent,  iit  lacryma  non  absorbeatiir 
(xxvn,  5).  E  certo,  todavia,  que  a  cultura  foi  antigamente  bastante  cui- 
dadosa; e  o  viajante  Wellstead  ainda  viu  em  Socotora  (i833)  os  restos 
dos  muros,  que  em  tempos  remotos  cercavam  as  plantações  de  Alõe 
(Cf.  Livro  de  Duay-te  Barbosa  nas  Not.  para  a  hist.  e  geogr.  das  na- 
ções ultramarinas,  11,  263,  Lisboa,  1867;  Lendas  da  índia  por  Gaspar 
Corrêa,  i,  684,  Lisboa,  i858;  Fliickiger  e  Hanbury,  Pharmacographia, 
618,  London,  1874). 

Nota  (3) 

Este  Khuája  Perculim  foi  um  dos  primeiros  conhecimentos  que  Orta 
fez  no  Oriente.  Chegando  á  índia  em  setembro  do  anno  de  i534,  o 
nosso  auctor  encontrou-se  com  elle  logo  em  dezembro,  em  Baçaim, 
quando  Bahádur  Schah  cedeu  aquellas  terras  a  Nuno  da  Cunha.  Do 
tratado  de  cedência  se  vê,  que  estavam  presentes  «coje  perculim, 
mouro  parsio,  e  marcos  fernandes,  que  serviao  de  linguoas»  (Cf. 
Felner,  Subsídios,  i38;  Garcia  da  Orta  e  o  seu  tempo,  92). 


Do  Alocs  39 

Nota  (4) 
Sobre  o  Nizamaluco  vcjam-se  as  notas  ao  Colóquio  x  c  outros. 


Nota  (5) 

O  nosso  escriptor  fez  n'esta  passagem,  e  já  na  pagina  anterior, 
uma  certa  confusão  entre  os  dois  caminhos  geralmente  seguidos  pelos 
mercadores,  a  qual  em  parte  emenda  em  um  dos  Colóquios  seguintes. 
Um  d'esses  caminhos  era  o  da  navegação  por  Hormuz  e  Golfo  Pérsico 
até  Bassora,  d'onde  as  caravanas  tomavam  para  o  norte,  em  direcção 
a  Trebisonda,  ou  a  Constantinopla;  ou  seguiam  por  Damasco  aos 
portos  do  Mediterrâneo,  Acra,  Beyrut,  Tripoli  da  Syria  e  outros,  parte 
dos  quaes  Orta  conhecia  e  menciona  n'este  ou  nos  seguintes  Colóquios. 
O  outro  caminho  era  o  da  navegação  pelo  mar  Vermelho  a  Suez,  d'onde 
as  mercadorias  seguiam  em  cáfilas  para  o  Cairo,  descendo  depois  o 
Nilo  até  Alexandria.  Os  portos  de  escala  mais  fi-equentados  n'esta 
ultima  navegação  eram  Aden,  fora  do  estreito,  e  Djidda  na  costa*da 
Arábia,  que  os  nossos  portuguezes  chamavam  geralmente  Judá,  e  Orta 
chama  Gida.  Este  era  um  ponto  importante  que  Lopo  Soares  preten- 
deu tomar;  e  ainda  no  século  passado,  quando  Niebuhr  o  visitou,  havia 
ali  um  notável  movimento  commercial.  A  confusão  de  Orta  deve  re- 
sultar mais  de  inadvertência  e  da  sua  habitual  desordem  de  redacção, 
do  que  de  ignorância,  pois  ambos  os  caminhos  eram  bem  conhecidos 
dos  portuguezes  (Cf  Gaspar  Corrêa,  Lendas,  11,  494;  Niebuhr,  Voyage 
en  Arabie,  i,  217,  Amsterdam,  1776;  João  de  Barros,  Ásia,  i,  viii,  i;  An- 
tónio Galvão,  Tractado  dos  diversos  e  desvairados  caminhos,  etc,  Lis- 
boa, i563). 

Nota  (6) 

Os  Hakims,  ou  médicos  mussulmanos,  da  corte  de  Ahmednagar,  co- 
nheciam naturalmente  as  obras  dos  seus  celebres  correligionários  Abu 
Ali  Huçein  ben  Abdallah  bcn  Sina,  Abu  Bekr  ben  Zakaria  er-Rasi  e 
Ali  ben  Redhwan;  e  familiarmente  chamavam  ao  primeiro  Abu  Ali, 
e  ao  segundo  Ben  Zakaria. 

A  phrase  de  Orta  sobre  Mesué  é  um  tanto  obscura.  Posto  que  exis- 
tissem dois  Mesués,  não  é  provável  que  os  Hakims  se  servissem  das 
obras  do  primeiro,  das  quaes — ao  que  parece  —  só  escaparam  fragmen- 
tos. Deviam  antes  possuir  as  de  Maswijah  el-Mardini,  o  mesmo  que 
Orta  conhecia  e  foi  celebre  em  todas  as  escolas  da  Europa.  As  diflfe- 
renças,  notadas  por  Orta,  deviam  pois  ser  simples  discrepâncias  entre 


40  Colóquio  segundo 

os  códices  arábicos  e  as  versões  ou  compilações  latinas.  Isto  é  tanto 
mais  provável,  quanto  a  personalidade  d'este  Mesué  de  Maridin  é  um 
tanto  nebulosa,  e  a  genuinidade  das  obras  publicadas  sob  o  seu  nome 
pôde  levantar  algumas  duvidas.  Quanto  ao  conhecimento  das  obras 
gregas  que  os  Hakims  possuiam,  resultava  muito  naturalmente  das 
antigas  versões  syriacas  e  arábicas  d'aquellas  obras,  feitas  sobretudo 
nos  reinados  dos  khalifas  Harun  er-Raschid  e  Al-mamun  (Cf.  Asse- 
mani,  Bibliotheca  orientalis,  iii,  5oi  e  504;  Ludwig  Choulant, /íí7?2íf^z<c/z 
des  bilcherkunde  filr  die  alteren  Medicin,  35i,  Leipzig,  1841;  Garcia 
da  Orta  e  o  seu  teynpo,  241  e  333). 


Nota  (7) 

Os  cetreiros  ou  falcoeiros  usavam  diversos  medicamentos  nas  que- 
braduras das  pernas  dos  falcões.  Fernandes  Ferreira  dá  a  fórmula  de 
um  emplastro,  composto  de  «incenso,  almecega,  sangue  de  drago,  pe- 
dra sanguinha  e  farinha  de  triguo»,  tudo  isto  batido  com  clara  de  ovo; 
e  também  a  de  uma  «solda»,,  em  que  o  principal  ingrediente  era  a 
«itiumia  que  tem  os  boticários».  Vemos,  pela  auctoridade  de  Orta,  que 
o  aloés  entrava  também  na  composição  d'estes  medicamentos;  e  era 
natural  que  assim  fosse,  pois  o  consideravam  excellente  para  «encarnar 
chagas»  (Cf.  Diogo  Fernandes  Ferreira,  Arte  da  caça  de  altaneria,  69, 
V.,  Lisboa,  16 16). 

Nota  (8) 

É  curioso  que  o  livro  citado  por  Orta  (Platina;  de  vitis  pontijicum 
historia)  seja  exactamente  aquelle  em  que  Diogo  do  Couto  procurou 
também  a  explicação  do  nome  de  Rumes.  Este  nome  teve  um  destino 
singular.  Os  primeiros  mussulmanos  deram  em  geral  o  nome  de  Rúrni 
aos  christãos,  por  isso  que  estavam  principalmente  em  contacto  com 
os  súbditos  do  império  romano  do  Oriente;  e,  quando  mais  tarde  dis- 
tinguiram com  o  nome  de  Farangi  os  christãos  do  Occidente,  conser- 
varam o  de  Rúmi  aos  gregos  e  outros  byzantinosi.  Vindo  os  turcos  a 
occupar  as  provincias  orientaes  d'aquelle  império,  passou  para  elles 
o  nome  de  Rúmi,  de  modo  que  um  antigo  nome  dos  christãos  passou 
a  designar  os  seus  mais  encarniçados  inimigos.  Onde  Orta  — e  também 
Coulo —  está  enganado,  é  em  excluir  do  nome  de  Rumes  os  turcos  da 


'  E  continuaram  a  applical-o  aos  do  Occidente,  por  exemplo,  aos  da  Hespanlia ;  vejam-sc 
vários  casos  d'esta  applicação  em  Dozy,  Recherches  siir  iliisloirc  cl  la  littérature  de  l'Es- 
pagne. 


Do  Aloés  41 

Anatólia  ou  Ásia  menor.  Foi  justamente  ali,  que  os  turcos  seldjukidas 
estabeleceram  o  império  de  Rúm,  sultanato  de  Rúm,  ou  Rúmestan, 
cuja  capital  era  em  Iconium,  a  moderna  Kuniah.  No  tempo  de  Orta 
tudo  isto  pertencia  á  historia;  os  turcos  ottomanos  tinham  substituido 
os  turcos  seldjukidas,  e  occupavam  Constantinopla  e  as  suas  provín- 
cias asiáticas,  a  cujos  habitantes  se  dava  em  geral  o  nome  de  Rumes 
(Cf.  Diogo  do  Couto,  Ásia,  iv,  vai,  9;  Amari,  Diplomi  arabi,  citado  por 
Yule,  Cathay  and  the  way  thither,  427,  coll.  Hakluyt,  186G;  Yule,  Mír- 
co  Polo,  I,  46;  veja-se  também  H.  Yule  e  A.  Burnell,  Glossary  of  an- 
glo-indian  colloquial  words,  London,  1886,  na  palavra  Room). 


Nota  (9) 

Esta  passagem,  em  que  Orta  toma  a  liberdade  de  emendar  Plinio, 
mas  sem  o  citar,  valeu-lhe  nada  menos  de  duas  correcções:  uma  de 
Clusius;  a  outra  d'aquelle  anonymo  arabista,  commentador  dos  Coló- 
quios, que  nós  hoje  sabemos  ter  sido  o  celeberrimo  erudito  José  Sca- 
ligero  (Cf.  Garcia  da  Orta  e  o  seu  tempo,  242). 

Clusius  adverte  (Exotic,  i5i),  que  Plinio  não  affirmou  a  existên- 
cia do  aloés  metallico;  mas  unicamente  disse,  que  alguns  a  menciona- 
vam. Eífectivamente  Plinio  diz:  Fuere  qui  traderent  in  Judcea  super 
Hierosolyma  ?netallicam  ejus  naíuram...;  mas  logo  accrescenta:  sed 
nulla  magis  Ímproba  est,  por  onde  parece  confirmar  a  noticia  (Plin., 
xxvii,  5). 

Scaligero  (Exotic,  244)  defende  Plinio,  dizendo  que  elle  tem  rasão, 
se  o  entenderem  bem,  pois  se  refere  ao  aloés  encontrado  nos  cadá- 
veres desenterrados,  e  que  haviam  sido  embalsamados  com  aloés  e 
myrrha,  uma  practica  seguida  na  Judéa,  e  mencionada,  por  exemplo, 
no  evangelho  de  S.  João  (xix,  Sg).  A  defeza  de  Scaligero  é  infeliz :  pri- 
meiro, porque  não  é  nada  claro,  que  Plinio  se  queira  referir  á  tal  sub- 
stancia extrahida  dos  cadáveres — a  chamada  mumia^;  segundo,  porque 
o  aloés  empregado  n'estes  casos  não  era,  ao  que  parece,  aquelle  de 
que  tratamos,  mas  uma  substancia  muito  diversa,  o  lignum  aloés,  de 
que  fallaremos  adiante.  Em  todo  o  caso,  Orta  disse  simplesmente,  que 
lhe  não  constava  existir  aloés  metallico,  e  disse  muito  bem. 


'  O  nosso  Thomé  Pires  dá  uma  descripçáo  curiosa  d'esta  celebre  e  nojenta  droga :  «he 
hua  umydade  dos  corpos  mortos  d'esta  maneira:  como  ho  homem  morre,  alimpano  das 
tripas  e  fresura,  e  lançamllie  dentro  mirra  e  aloees,  e  tornamno  a  coser,  e  meteno  asy  em 
sepulchros  com  furacos;  esta  mistam  com  a  umydade  do  corpo  corre  e  apanha-se,  e  este 
liquor  se  cliama  momia>. 


42  Colóquio  segundo 


Nota  (io) 

Seria  interminável  e  pouco  interessante  a  discussão  de  todas  as  in- 
dicações sobre  a  therapeutica  do  aloés,  espalhadas  por  este  Colóquio 
em  maior  ou  menor  desordem.  Bastará  notar,  que  as  idéas  de  Orta, 
sobre  o  caracter  estomachico  do  aloés;  sobre  a  sua  acção  purgativa; 
sobre  a  sua  influencia  como  agente  de  fiuxo  sanguíneo;  sobre  o  seu 
uso  tópico  externo,  se  não  afastavam  das  que  corriam  no  seu  tempo 
e  — em  parte — ■  ainda  são  admittidas  no  nosso  (Cf.  para  mais  indica- 
ções, Garcia  da  Orta  e  o  seu  tempo,  p.  3 1 1  e  3 1 2) . 

As  praticas  locaes  de  medicina  hindu,  a  que  elle  se  refere;  por  exem- 
plo, o  uso  da  polpa  das  folhas  frescas  que  viu  empregar  como  «me- 
zinha familiar  e  benedicta»,  por  um  «físico  gentio»  (isto  é,  por  umVy- 
dia,  e  não  por  um  Hakim)  de  Bahádur  Schah,  são  confirmadas  pelos 
livros  modernos.  Parece  que  os  antigos  hindus  não  conheciam  a  droga, 
tal  qual  hoje  se  prepara,  mas  empregavam  directamente  a  planta;  e 
Ainshe  diz-nos,  que  modernamente  a  polpa  das  folhas  é  receitada 
como  uma  medicina  refrigerante  pelos  médicos  indianos,  native  pra- 
ctitioners  (Cf.  Dymock.,  Mat.  med.^  823;  Ainslie,  Mat.  ind.^  11, 169). 

Orta  accentua  claramente  n'este  Colóquio  duas  feições  importantes 
do  seu  livro,  ás  quaes  já  me  referi  em  outro  trabalho,  e  que,  portanto, 
só  apontarei  de  passagem.  Em  primeiro  logar,  a  sua  repugnância  a 
tratar  as  questões  puramente  medicinaes.  Por  duas  ou  três  vezes  de- 
clara, que  se  não  obriga  a  responder  a  questões  mais  sabidas  na  Hes- 
panha  do  que  na  índia.  O  seu  livro  não  é  de  medicina,  é  de  simples  e 
drogas;  ou  — como  hoje  diríamos —  de  pharmacographia. 

Em  segundo  logar,  mostra  bem  que  se  não  deixa  levar  pelo  exclusi- 
vismo da  escola  hippocratica.  Nem  elle,  que  todos  os  dias  no  Oriente 
verificava  o  valor  das  observações  feitas  pelos  árabes,  lhes  podia  cha- 
mar «maumetistas  bárbaros»,  como  lhes  chamavam  na  Europa  os  dou- 
tores hippocraticos  da  Renascença.  E  esta  segunda  feição  do  livro  re- 
sulta muito  naturalmente  da  primeira.  Foi  precisamente  porque  Orta 
se  dedicou  de  um  modo  quasi  exclusivo  ao  estudo  da  matéria  medica, 
que  elle  não  pôde  deixar  de  reconhecer  a  superioridade  dos  árabes. 
Em  medicina  pouco  teria  a  aprender  com  elles;  mas  o  caso  era  diverso 
quando  se  tratava  do  conhecimento  dos  simples  e  drogas  (Cf.  Garcia 
da  Orta  e  o  seu  tempo,  304,  3o5). 


Nota  (ii) 

Orta  refere-se  ás  edições  latinas  de  Avicenna,  as  quaes  se  fizeram 
primeiro  pela  versão  de  Gerardo  Cremonense,  depois  com  as  emendas 


Do  Aloés  43 

e  addiçóes  de  André  Bellunense;  e  esta  passagem  é  interessante,  como 
sendo  uma  das  que  nos  dão  a  medida  dos  seus  conhecimentos  em 
lingua  arábica  (Cf.  Garcia  da  Orta  e  o  seu  tempo,  243). 

O  nosso  naturalista  é  especialmente  pródigo  de  erudição  em  todo 
este  Colóquio:  cita  Hippocrates,  Aristóteles,  Platão,  Galeno,  Diosco- 
rides,  Plinio,  Paulo  de  Egina,  Mattheus  Platearius,  Mcsué  Júnior,  Avi- 
cenna,  Serapio,  Rhazés,  Haly  Rodoam,  Mattheus  Sylvaticus,  Mattheus 
de  Gradibus,  Jacob  de  Partibus,  André  Laguna,  Matthiolo,  João  Ruel- 
lio,  João  Manardo,  António  Musa  e  Platina. 


COLÓQUIO  TERCEIRO  DO  AMBRE 

INTERLOCUTORES 

RUANO,    ORTA 

RUANO 

Do  aljôfar  queria  saber  primeiro. 

ORTA 

E  eu  queria  antes  ter  muito  delle,  grosso  e  perfeito,  que 
saber  delle;  e  porém  no  capitulo  de  margarita  falaremos 
nelle  o  que  for  necessário  e  proveitoso,  e  agora  falaremos  do 
ambre,  porque  também  he  mezinha  que  vai  mais  ter  muito 
delia,  que  saber  como  se  gera. 

RUANO 

Dizey  a  verdade  de  tudo  e  deixayvos  de  falar  essas  cer- 
tezas. 

ORTA 

Âmbar  dizem  os  Arábios,  e  ambarum  os  Latinos,  por  o 
custume  da  variação  latina  e  uso,  e  as  outras  nações  e  lingoas, 
quantas  eu  sey,  todas  o  chamão  assi,  ou  varião  muito  pouco. 

RUANO 

Que  razam  me  dais  porque  acerca  de  todos  este  nome  he 
o  mesmo? 

ORTA 

Certos  nomes  ha,  que  se  não  varião,  ou  se  varião  he 
muito  pouco,  e  isto  acerca  de  todas  as  lingoas  que  eu  sey, 
e  das  que  perguntey,  e  estes  nomes  são,  âmbar,  limão,  la- 
ranja, sabam,  e  outros  alguns;  porque  o  limão  chamão 
muitos  linbon,  e  á  laranja  naranja,  e  ao  ambre  âmbar,  e 
assi  a  muitos  dos  outros. 

RUANO 

Como  nasce  e  que  cousa  he  ? 


46  Colóquio  terceiro 

ORTA 

Alguns  disseram  ser  o  sperma  da  balea,  e  outros  afíir- 
maram  ser  esterco  de  animal  do  mar  ou  escuma  delle,  outros 
dixeram  que  era  fonte  que  manava  do  fundo  do  mar,  e  esta 
parecia  melhor  e  mais  conforme  á  verdade.  Avicena  e  Se- 
rapiam  dizem  gerarse  no  mar*,  assi  como  se  gerão  os  fun- 
gos ou  fungão  dos  penedos  e  arvores,  e  que  quando  o  mar 
anda  tempestuoso  deita  de  si  pedras  e  com  ellas  lança  á 
volta  o  ambre^  e  esta  opinião  também  he  mais  conforme  á 
verdade,  que  outras  rezadas  por  Avicena,  porque  quando 
ventão  muyto  os  levantes  vem  muito  a  Çofala  e  ás  ilhas  de 
Comaro  e  de  Emgoxa  e  a  Moçambique  e  a  toda  essa  costa, 
porque  o  deitão  as  ilhas  de  Maldiva  de  si,  porque  estão  ao 
levante*,  e,  quando  ventam  poentes,  achase  mais  nas  ilhas  de 
Maldiva  (i). 

RUANO 

Ainda  que  seja  estorvar  a  pratica  no  meo,  porque  se 
chama  áquella  tam  grande  corda  de  ilhas,  ilhas  de  Maldiva? 

ORTA 

N'estas  cousas  dos  nomes  das  terras  e  mares  e  regiões 
se  enganão  muitos  dos  nossos  nas  suas  próprias  terras,  como 
quereis  que  em  as  lingoas  estranhas  saiba  dar  razam  das 
etimologias  dos  nomes?  E  comtudo  vos  direy  o  que  ouvi 
dizer,  e  he  que  não  se  chama  Maldiva,  senão  Nalediva, 
porque  nale,  em  malabar  quer  dizer  quatro,  e  dwa,  ilha, 
que  em  lingoa  malabar  quer  tanto  significar  como  quatro 
ilhas,  e  assi  se  chama  Nalediva,  e  nós,  corrompendolhe  o 
nome,  chamamoslhe  Maldiva,  E  assi  chamamos  Angediva  a 
huma  ilha,  que  está  apartada  de  Goa  12  legoas,  porque  são 
5  ilhas,  e  assi  quer  dizer  em  malabar  5  ilhas,  porque  ange 
he  cinco  ^  e  estas  derivações  estão  na  fama  commum,  e  assi 
eu  não  volas  vendo  por  demonstrações  (2). 


Avice.,  Serapiam  (nota  do  auctor) 


Do  Ambre  47 


RUANO 

Eu  folguey  muito  com  as  saber,  porque  contentão  o  inten- 
dimento,  por  tanto  onde  se  poderem  dizer  me  fazei  mercê 
mas  digaes,  e  prosegui  ao  adiante  no  ambrc. 

ORTA 

Dizem  mais  os  mesmos  Aviçena  e  Serapiam*,  que  algum 
que  é  engulido  por  um  peixe  dito  a:{el,  que  morre  como 
o  come  logo,  e  andando  nadando  sobre  o  mar,  tomão  os  ho- 
mens daquella  região  garfos  e  tirão  o  fora,  e  lhe  tirão  de 
dentro  o  âmbar,  o  qual  não  he  bom,  e  se  algum  he  bom, 
hc  o  que  se  acha  chegado  ao  espinhaço,  e  este  dizem  ser 
bom  e  puro;  e  isto  segundo  a  quantidade  do  tempo  que  no 
ventre  ou  espinhaço  está. 

RUANO 

E  que  vos  parece  disso,  he  verisimile? 

ORTA 

Não:  porque  já  o  perguntey  e  nunca  me  disseram  haverlo 
visto  alguma  pessoa. 

RUiVNO 

Não  parece  essa  rasão  que  concluye  de  todo  ponto,  e  por- 
tanto, pois  soys  letrado  e  nam  mancebo,  day  outra. 

ORTA 

Digo  que  os  animaes  iracionaes,  per  extinto  natural,  bus- 
cam os  mantimentos  que  lhe  convém,  e  não  os  que  são  ve- 
nenosos a  elles,  senão  quando  vão  misturados  com  comeres 
a  elles  convenientes ",  assi  como  nós  enganamos  os  ratos  com 
rosalgar  misturado  com  comer  que  lhes  bem  sabe;  por- 
tanto não  he  de  crer  que  o  peixe  vá  buscar  o  tal  ambre^ 
pois  o  ha  de  matar:  e  mais  digo,  que  pois  o  ambre  he  um 
cordial  dos  principaes,  deve  ser  o  tal  peixe  em  si  venenoso, 
pois  o  ambre  lhe  he  tanto  contrairo  que  o  mata.  Estas  ra- 


Avice.,  ubi  supr.;  Serapiam,  ubi  sup.  (nota  do  auctor). 


48  Colóquio  terceiro 

zoes,  posto  que  não  concluiao  como  demonstrações,  são 
pêra  mi  persuasivas. 

ROANO 

E  a  mim  concluyem,  em  quanto  não  vir  pessoas  dinas  de 
fé  que  experimentaram  o  contrairo;  e  pois  assi  he,  dizei  o 
vosso  parecer,  e  o  que  ouvistes  e  lestes,  que  he  o  ambre, 
que  tanto  dinheiro  vai,  e  despois  direis  onde  o  ha,  e  donde 
he  milhor,  e  de  qual  feiçam  he  o  uso  delle  nestas  partes. 

ORTA 

Primeiro  vos  direy  hum  grande  error  que  tem  Avenrrois, 
que  he  huma  especia  de  canfoi^a  que  nasce  nas  fontes  do 
mar  e  nada  sobre  a  agoa  delle,  e  que  a  milhor  de  todas  he 
a  que  em  arábio  se  chama  ascap;  e  perguntei  aos  físicos  do 
Nizamoxa  (que  vulgarmente  he  chamado  o  Nizamaluco)  que 
ambre  era  aquelle,  e  não  mo  souberam  dizer,  porque  acerca 
delles  não  ha  as  obras  de  Avenrrois  nem  de  Abenzoar  (3), 
mas  quanto  isto  seja  falso  e  não  digno  de  tam  grande  filosofo 
he  claro:  hum,  por  dizer*  que  he  a  cânfora  nascida  no  mar, 
e  porque  a  cânfora  he  fria  e  seca  no  terceiro  gráo,  e  pôe  o 
ambre  quente  e  seco  no  segundo,  por  onde  he  manifesto  não 
serem  comprendidas  debaxo  de  hum  género^  e  concluindo 
vos  digo**  que  assi  como  nas  terras  ha  partes  que  tem  terra 
vermelha  como  almagre  ou  bolarmenico,  e  outras  que  a  tem 
branca  como  greda,  e  outros  cardea,  assi  não  he  inconve- 
niente que  aja  ilhas  ou  terras  da  mesma  maneira  do  am- 
bre***,  e  isto,  ou  que  a  terra  seja  fungosa  ou  doutra  manei- 
ra^ e  que  isto  seja  verdade  se  prova  polia  muita  quantidade 


*  Avenrrois,  hoc  colligit  (nota  do  auctor).  Isto  é  no  seu  tratado  de 
medicina,  vulgarmente  chamado  então  o  Colliget. 

**  Resolução  de  tudo  (nota  do  auctor). 

•*»  Na  edição  de  Goa  lê-se :  «assi  não  é  conveniente  que  a  aja,  ou 
ilhas,  ou  terras  da  mesma  maneira  do  ambre»,  o  que  se  não  compre- 
hende ;  e  parece  se  deve  reconstruir  na  forma  que  adoptámos. 


Do  Ambre  49 

que  delle  sae,  porque  já  se  vio  pedaço  tam  grande  como  hum 
homem,  e  outro  se  vio  de  90  palmos  de  comprimento  e  18 
de  largo;  e  assi  athrmaram  já  algumas  pessoas,  que  acharam 
huma  ilha  de  ambre,  e  marcandose,  tornaram  á  terra  donde 
partirão,  e  querendo  tornar  a  buscar  o  ambre,  levaram  agoa 
e  mantimentos  bastantes  para  navegar,  e  nunca  poderão 
tornar  a  achar  a  ilha;  e  pode  ser  que  quis  Deos  que  a  não 
achassem  por  os  castelos  de  vaidade,  que  quando  a  acha- 
ram fizerão,  e  polias  poucas  graças  que  a  Deus  derão  de  a 
haver  achado;  e  também  porque  estes  homens  se  podião 
salvar  com  pouca  fazenda,  e  com  muyta  não  se  salvaram, 
e  Deus,  que  he  misericordioso,  sabe  qual  he  milhor  e  mais 
seu  serviço.  No  anno  de  i555  achouse,  alem  do  cabo  de 
Gomorim,  hum  pedaço  que  tinha  perto  de  trinta  quintaes, 
e  cuidando  quem  o  achou  que  era  breu,  fez  delle  bom  ba- 
rato, e  porém  partindose  por  muitas  pessoas,  tornou  a  seu 
preço  acustumado:  era  essa  paragem,  donde  se  achou,  de- 
fronte das  ilhas  de  Maldiva;  e  que  isto  seja  verdade  se  ma- 
nifesta, porque  vem  cheo  de  bicos  de  pássaros  ás  vezes,  e 
outras  vezes  vem  com  cascas  de  marisquo  misturado,  por- 
que se  pegam  ao  ambre,  e  os  pássaros  se  apousentão  nelle 
ás  vezes,  e  o  mais  limpo  he  milhor;  e  isto  que  vos  digo 
he  o  mais  certo  que  se  pôde  saber. 

RUANO 

Ha  O  em  outras  partes  mais  que  na  Etiópia  e  costa  delia? 

ORTA 

Algum  se  acha  em  Timor,  e  poucas  vezes  e  em  pouca 
quantidade;  e  no  Brasil  me  dizem  também  que  se  achou; 
e  no  anno  de  trinta  se  achou  hum  pedaço  em  Setúbal;  mas 
destas  cousas  pequenas  não  se  faz  regra,  por  acontecerem 
poucas  vezes  e  em  pouca  quantidade. 

RU.\N0 

Agora  me  dizey  porque  não  será  esperma  de  balea  ou 
esterco  delia? 

4 


5o  Colóquio  terxeiro 

ORTA 

Isto  não  traz  razão,  porque  a  balea  e  o  azeite  delia  que 
eu  vi  cheira  muito  ruynmente,  e  não  como  o  ambre;  e  mais 
em  muitos  cabos  ha  baleas  e  não  ha  ambre,  assi  como 
na  costa  de  Espanha  e  de  Galiza;  e  pella  mesma  razão  se 
prova  não  ser  escuma  do  mar,  porque  onde  ouvesse  mar 
em  baixos  com  ventos,  haveria  escuma,  e  o  que  dizem  que 
o  come  o  peixe,  já  o  confutey  e  provey  ser  falso  antes;  e 
isto  he  o  que  dizem  os  Arábios,  porque  os  Gregos  não  fala- 
ram neste  simple,  somente  Aecio  (4). 

RUANO 

Qual  he  milhor  pêra  escolher? 

ORTA 

Quanto  mais  se  chega  a  branco  tanto  he  milhor,  scilicet, 
que  seja  como  pardo,  ou  com  veas  de  cores  humas  brancas 
e  outras  pardas,  e  que  seja  leve  no  peso;  e  a  prova  delle  he, 
que  metendo  nelle  hum  alfenete  o  que  deita  mais  olio  pollo 
buraco  he  o  milhor.  O  preto  he  muito  ruym,  e  eu  tive  hum 
pedaço  delle,  que  ouve  por  pouco  preço,  e  não  cheirava 
senão  muito  pouco,  e  misturado  com  almiscre  para  fazer  con- 
tas, se  misturava  muito  mal  fazendo  muitas  gretas;  e  aquelle 
que  he  tão  branco  como  ovo  de  ema,  diz  Serapio  ser  muito 
ruym:  eu  não  o  vy  nem  ouvi  a  pessoa  que  o  visse,  e  se 
algum  o  vir,  deve  ser  sofisticado  com  gesso. 

RUANO 

Menardo  diz  no  letuario  de  gemis,  que  ambre  he  cousa 
nova,  a  qual  elle  não  tem  em  tanta  estima  quanto  preço 
custa,  e  portanto  diz  no  letuario  di  ambra,  que  a  composi- 
ção do  letuario  he  muito  preciosa,  da  qual  elle  usa  muitas 
vezes  em  molheres  e  em  velhos:  e  porque  parece  crara  a 
contradição  deste  doctor,  scilicet,  em  dizer  que  não  vai  tanto 
quanto  custa  no  letuario  de  gemis,  e  no  di  ambra  dizer  que 
he  muito  fermosa  a  composição,  da  qual  usa  muitas  vezes, 
será  bem  que  me  digaes  se  he  muito  usada  e  estimada  em 


Do  Ambre  5i 

preço  da  gente  desta  índia  e  não  de  nós  tamsomente :  e  pri- 
meiro que  isto  me  digaes,  me  dccraray  alguns  nomes,  que 
estão  em  Serapiam  .e  Avicena,  porque  Serapiani  diz  que 
muito  delle  he  das  terras  do  Zing. 

ORTA 

He  o  que  vem  das  partes  de  Çofala,  porque  gingue  ou 
:^angHC,  acerca  dos  Pérsios  e  Arábios,  he  cafre  ou  negro,  e 
porque  toda  aquella  costa  da  Etiópia  he  dos  negros,  chama 
lhe  Serapiam,  do  Zingue  (5),  e  Avicena  também  faz  menção 
do  de  Melinde  e  chamao  Almcnddi,  e  aquelle  que  chama  Se- 
lachiticum,  he  assim  dito  por  ser  de  Ceilão  (6),  huma  das  fa- 
mosas ilhas  do  mundo  poseyda  deirey  nosso  senhor,  e  não 
dista  muito  das  de  Maldiva;  e  não  he  cidade,  como  diz  La- 
guna, senão  ilha  chea  de  muitas  cidades;  e  comtudo  a  maior 
quantidade  do  ambre  he  de  Çofala  até  Brava-,  e  também  ha 
algum  na  costa  da  Arábia,  e  a  mór  quantidade  (como  disse) 
he  na  costa  da  Etiópia. 

RUANO 

He  muito  estimado  acerca  dos  índios  e  Mouros  desta 
terra? 

ORTA 

Acerca  dos  ricos  e  poderosos  sy,  e  usam  muito  delle  no 
comer,  per  via  de  medicina,  conforme  a  Avicena  e  segundo 
a  quantidade,  porque  assi  como  o  pedaço  he  maior,  tanto 
vai  mays  a  onça  delle,  que  he  como  a  pedraria. 

RUANO 

Qual  foy  O  maior  pedaço  que  vistes  nesta  terra? 

ORTA 

Hum  pedaço  vi  que  pesava  quinze  arráteis  (7),  mas  os  que 
tratão  na  Etiópia  me  dixeram  que  o  virão  muyto  maior;  eu 
não  sey  a  como  foy  vendido,  mas  sey  certo,  que  se  fora  ter 
á  mão  do  Nizamoxa,  que  o  comprará  muito  bem,  segundo 
a  estima  em  que  elles  tem  os  grandes  pedaços.  E  este  am- 
bre não  tam  somente  vai  muyto  acerca  dos  Mouros,  mas 


52  Colóquio  terceiro 

também  vai  muito  acerca  dos  Gentios;  e,  o  que  he  mais  de 
maravilhar,  he  ter  muito  mayor  valia  acerca  dos  Chins,  por- 
que o  levarão  lá  os  nossos  Portuguezes,  e  venderão  hum 
cate,  que  são  vinte  onças,  por  i5oo  crusados;  por  onde  os 
nossos  levarão  tanta  quantidade,  que  valeo  muito  mais  ba- 
rato, e  cada  vez  valerá  menos  lá,  segundo  a  cobiça  dos  que 
o  lá  querem  levar. 

RUANO 

Gomo  sabem  estes  Ghins  que  he  boa  mezinha,  pois  a  com- 
prão  tão  cara? 

ORTA 

Dixeme  Diogo  Pereira,  que  he  hum  homem  fidalgo  muito 
conhecido  nessas  terras,  que  os  Chins  tem  acerca  da  cria- 
ção do  ambre  aquillo  tudo  que  nós  temos,  e  que  elles  lho 
contarão  palavra  por  palavra,  e  dizem  que  aproveita  muyto 
pêra  a  conversação  das  molheres,  e  que  aproveita  ao  cora- 
ção, e  ao  cérebro  e  ao  estômago  (8).  E,  deixado  o  cheiro  do 
ambre,  passemos  ao  amomo  (9). 


Nota  (i) 


Os  «levantes»  e  «poentes»,  de  que  Orta  falia,  sopram  alternada- 
mente, constituindo  as  monções  do  oceano  Indico,  as  quaes  se  fazem 
sentir  com  uma  certa  regularidade  nas  ilhas  de  Cômoro,  e  na  costa 
africana  até  Moçambique,  e  ainda  ao  sul.  Das  monções  teremos  de 
fallar  em  mais  de  uma  nota  (Cf.  Garcia  da  Orta  e  o  seu  tempo^  io5  a 
109). 

Nota  (2) 

As  etymologias,  apontadas  pelo  nosso  Orta,  não  se  podem  acceitar 
sem  alguns  reparos  e  correcções,  posto  que  contenham  muitos  ele- 
mentos verdadeiros. 

Dvipá,  ou  na  forma  prakrita  diva,  significa  effectivamente  ilha;  e 
entra  na  constituição  dos  nomes  de  varias  ilhas,  por  exemplo,  em  al- 
guns dos  antigos  nomes  de  Ceylão,  como  Sielediba,  Sarandib,  Seren- 
dib.  Esta  é  evidentemente  a  origem  da  terminação  de  Maldiva.  Parece 
mesmo,  que  em  tempos  este  elemento  constituiu,  só  por  si,  o  nome 


Do  Ambr^e  53 

d'aquellas  ilhas,  como  quem  dissesse  as  ilhas  por  excellencia.  D'isto 
temos  uma  indicação  na  menção  das  Maldivas  pelo  historiador  Am- 
miano  Marcellino.  Dando  conta  das  embaixadas  do  Oriente,  que  o  im- 
perador Juliano  recebeu  em  Constantinopla  (362  J.  C),  diz  elle:  inde 
nationibus  Indicis  certatim  citm  donis  optimates  mittentibus  ante  tem- 
pus,  abusqiie  Divis  et  Serendivis.  Se  as  Divis  eram  as  Maldivas,  como 
se  julga,  Ammiano  Marcellino,  sem  d'isso  ter  consciência,  chamou-lhes 
simplesmente  as  ilhas. 

Por  outro  lado,  o  numeral  quatro  escreve-se  em  tamil  moderno 
nalu,  e  em  maláyalam  moderno  — a  que  Orta  chama  lingua  malabar — 
nala.  Orta,  como  se  vê,  é  exacto  na  significação  dos  componentes;  mas, 
apesar  d'isso,  a  sua  opinião  é  innacceitavel:  primeiro,  porque  a  forma 
correcta  do  nome  é  Male-diva,  e  não  Nale-diva;  segundo,  porque  as 
ilhas  não  são  quatro,  mas  centenas,  e  muitas  centenas. 

O  que  não  e  fácil  é  substituir  á  sua  uma  etymologia  segura.  Pro- 
poz-se  uma  explicação  engenhosa,  derivando  Maldiva  de  mala,  que 
em  sanskrito  significa  rosário  ou  grinalda,  e  quadrava  bem  áquella 
corda  de  innumeras  ilhas.  Ibn  Batuta  (i 348)  chama-lhes  Dhibat-el-Mahal, 
e  liga  o  nome  de  todo  o  archipelago  ao  do  principal  grupo,  Mahal, 
onde  era  a  residência  do  sultão.  Do  mesmo  modo,  Pyrard  de  Lavai 
(1610)  diz  que  a  ilha  principal  se  chama  Malé^  e  d'ella  resultou  o  nome 
ao  conjuncto  de  todas  as  outras.  A  esta  etymologia  se  inclina  em  de- 
finitiva o  nosso  Barros,  dizendo  que  Mal  é  o  nome  próprio  da  maior 
ilha,  e  que  Maldiva  equivale  a  ilha  de  Mal. 

A  opinião  mais  segura  parece,  porém,  ser  a  do  erudito  bispo  Cal- 
dwel,  o  qual  deriva  Maldivas  da  palavra  Malé,  que  desde  os  tempos 
mais  antigos  designou  a  parte  da  índia  meridional,  que  fica  mais  próxi- 
ma d'aquelle  archipelago.  As  Maldivas  seriam  pois  as  ilhas  de  Malé, 
como  o  Malabar  é  a  terra  ou  costa  de  Alalé  (Cf.  Ammianus  Marcelli- 
nus,  xxii,  7,  pag.  171  da  edição  Nisard;  Hunter,  Comp.  Dict.  of  the  non- 
Aryan  lang.  of  índia  and  High  Ásia;  Viagens  de  Ben  Batuta,  11,  265, 
tr.  de  José  de  S.'"  António  Moura,  Lisboa,  i855;  Viagetn  de  Francisco 
Pyrard  de  Lavai,  i,  p.  108,  tr.  de  J.  H.  da  Cunha  Rivara,  Nova  Goa,  i858; 
Barros,  Ásia,  iii,  iii,  7;  veja-se  também  Encyclopcvdia  britannica,  ninth 
edition,   e  Yule  e  Burnell,  Glossary,  na  palavra  Maldives). 

«Angediva»  — 'diz  Orta, —  significava  as  cinco  ilhas.  Ancha  é  effecti- 
vamente  o  numeral  cinco  em  maláyalam^;  e  ainda  hoje  interpretam  ali 
a  palavra  Angediva  pelo  mesmo  modo — as  cinco  ilhas.  Sendo  assim,  o 
nome  pertenceria,  não  propriamente  áquella  ilha  maior,  a  que  aportou 
Vasco  da  Gama;  mas  a  essa  ilha  com  os  ilhéus  próximos,  dos  quaes, 


'  E  anj,  anju,  afife  em  outros  dialectos  da  Índia  central  e  meridional  (Hunter,  Dicí.,  37). 


54  Colóquio  terceiro 

segundo  se  diz,  existem  hoje  apenas  três,  sendo  no  emtanto  possível 
que  algum  se  destruisse  já  em  tempos  históricos. 

A  etymologia  é,  portanto,  acceitavel,  não  sendo,  porém,  a  única.  Al- 
guns dizem,  que  o  nome  vem  de  Adya-dvtpa,  a  ilha  primitiva,  isto  é, 
anterior  á  conquista  do  Konkan  pelo  mythico  Parasuráma,  o  sexto 
avatar  de  Vishnu.  Outros  suppõem  que  se  chamava  Ajya-dvTpa,  a  ilha 
da  manteiga,  porque  o  mesmo  Parasuráma  ali  fora  buscar  a  manteiga 
clarificada,  necessária  para  um  dos  sagrados  ritos  hindus.  E  finalmente 
julgou-se  ser  a  Ajã-dvlpa,  a  ilha  da  deusa  Ajã,  um  dos  synonymos  da 
conhecida  deusa  Maya;  e  esta  etymologia  é  até  certo  ponto  confirmada 
pelo  facto  de  existir  ali,  antes  da  conquista  mussulmana  (i3i2),  um  an- 
tiquíssimo templo  d'aquella  deusa.  Suppoz-se  também  que  a  ilha  Aegi- 
diorum  (Ai^t^íw  Níiao;)  de  Ptolomeu  se  poderia  talvez  identificar  com  a 
moderna  Anchediva  ou  Angediva.  E  n'este  caso,  no  nome  empregado 
pelo  geographo  grego  haveria  o  vestígio  de  algum  d'aquelles  antigos 
nomes  hindus.  De  modo,  que  a  interpretação  moderna  de  cinco  ilhas, 
poderia  ser  um  esforço  para  explicar  um  nome  antigo,  de  que  se  per- 
deu a  significação  (Cf.  Yule  e  Burnell,  Glossary^  palavra  Anchediva; 
Gerson  da  Cunha,  An  historical  and  archceological  accoiint  of  the  island 
of  Angediva,  2  a  4,  2'*  edition,  Bombay,  1878;  pode  ver-se  o  plano  da 
ilha  em  Lopes  Mendes,  Ind.  port.  n,  162  e  209,  Lisboa,  1886). 

Seja  como  for,  o  nosso  Orta  não  entrou  em  todas  estas  especula- 
ções, e  disse-nos  apenas  a  opinião  corrente.  As  suas  etymologias  não 
são  inventadas;  andavam,  como  elle  diz,  na  «fama  commum»;  encon- 
tram-se  quasi  textualmente  no  livro  interessantíssimo  do  nosso  com- 
patriota Pedro  Teixeira ;  e,  pelo  que  diz  respeito  a  Anchediva,  nos  li- 
vros de  João  de  Barros  e  de  Delia  Valle  (Cf.  Relaciones  de  Pedro 
Teixeira  d'el  origen,  descendência  y  succession  de  los  Reyes  de  Pérsia 
y  de  Harnm^,  p.  96,  Amberes,  1610;  Barros,  Ásia,  i,'iv,  9;  Voyages 
de  Pietro  Delia  Valle,  iv,  172,  i665). 


Nota  (3) 

Tanto  Abu-1-Walid  Mohammed  ben  Rosch,  como  Abd-el-Malek  ben 
Zohr  eram  andaluzes,  e  não  admira  que  os  seus  livros,  posto  que  fos- 
sem conhecidos  dos  mussulmanos  eruditos  da  Ásia,  não  estivessem  ali 
tanto  no  uso  commum,  como  estavam  os  dos  escriptores  da  Pérsia,  e 
em  geral  do  Oriente. 

Nota  (4) 

O  «ambre»  de  que  Orta  falia  é  o  âmbar  cinjento,  uma  concreção 
intestinal  do  cachalote  (Physeter  macrocephalus),  que  se  extrahe  do 


Do  Ambre  55 

interior  d'este  cetáceo,  ou,  depois  de  expellida,  se  encontra  nas  praias 
e  também  fluctuando  sobre  as  aguas. 

Vogaram  em  relação  á  sua  origem  versões  diversas;  e  Orta,  não 
tendo  a  experiência  própria  para  o  dirigir,  está  evidentemente  mal  á 
vontade  no  assumpto;  refugia-se  em  umas  subtilezas  escolásticas,  en- 
graçadas mas  pouco  conclusivas,  e  acaba  por  acceitar  uma  versão  nada 
provável.  A  opinião  de  Serapio  e  de  Avicenna,  que  elle  refuta  cuida- 
dosamente, corria  geralmente  entre  os  árabes.  No  livro  de  Maçudi  se 
diz  também  que  parte  do  âmbar  se  encontrava  dentro  do  peixe  Awál, 
e  consistia  em  fragmentos  que  este  peixe  tinha  engulido.  Pretendia-se 
assim  conciliar  a  supposta  origem  mineral  da  substancia,  com  o  facto 
incontestável  de  se  encontrar  no  interior  de  um  chamado  peixe.  De 
tempos  antigos  a  origem  do  âmbar  foi  um  assumpto  debatido  e  que 
excitou  a  curiosidade.  Edrisi  conta,  que  o  grande  Harun-er-Raschid 
enviou  emissários  ao  Yemen  unicamente  para  se  informarem  da  sua 
procedência;  mas  a  gente  da  costa  disse-lhes  que  aquella  substancia 
era  produzida  por  certas  nascentes,  situadas  no  fundo  do  mar.  Não  sei 
se  esta  explicação  satisfez  o  illustrado  khalifa,  mas  é  certo  que  satisfaz 
Edrisi,  o  qual  acrescenta:  «o  âmbar  não  é  outra  cousa»  (Cf.  Maçudi, 
Prairies,  i,  284;  Edrisi,  Géogr.^  i,  64). 

Até  pois  ao  tempo  de  Orta,  a  verdadeira  natureza  do  âmbar  era 
geralmente  ignorada,  ao  mundo  occulta,  como  dizia  o  Camões: 

Outras  ilhas  no  mar  também  sujeito 
A  vós  na  costa  de  Africa  arenosa; 
Onde  sahe  do  cheiro  mais  perfeito 
A  massa,  ao  mundo  occulta,  e  preciosa. 

Tem-se  dito  repetidas  vezes,  que  a  primeira  indicação  um  pouco 
mais  exacta  e  clara  sobre  a  procedência  do  âmbar  é  posterior  a  Orta, 
e  se  encontra  justamente  nas  notas  de  Clusius  ao  seu  livro.  E  uma 
longa  exposição  de  um  navegador  francez,  chamado  Servat  Marel,  o 
qual  attribue  todo  o  âmbar  aos  cetáceos,  e  particularmente  á  baleia 
propriamente  dita.  Esta  exposição  pode  ler-se  nas  notas  de  Clusius, 
e,  traduzida  na  integra,  no  livro  de  Guibourt.  Todavia,  é  justo  notar, 
que,  séculos  antes.  Marco  Polo  dera  noticias  muito  exactas  sobre  o 
modo  por  que  os  habitantes  de  Socotora  harpoavam  as  baleias  para 
lhes  tirar  o  âmbar  do  interior;  e  isto  servindo-se  de  uma  phrase,  que 
— tal  qual  se  encontra  na  versão  de  Ramusio — mostra  bem  tratar-se 
do  cachalote  e  não  da  baleia  franca :  dove  li  cavano  fuori  dei  ventre 
1'ambracano,  e  d'ella  testa  assai  botte  d'olio.  É  certo,  no  emtanto,  que 
o  livro  de  Marco  Polo  não  foi  lido  com  muita  attenção  pelos  naturalis- 
tas ovifisicos;  e  que  Orta  não  conhecia  esta  passagem,  ou  não  acredi- 
tou nas  suas  informações  (Cf.  Exotic,   148;   Guibourt,  Hist.  nat.  des 


56  Colóquio  terceiro 

drogues  simples,  iv,  119,  7""  édition,  Paris,  1876;  Yule,  Marco  Polo,  n, 
399;  Ramusio,  Delle  navigaponi  et  viaggi,  11,  b-j  v.,  Venetia,  161 3). 

É  interessante  a  phrase  do  nosso  naturalista,  em  que  elle  diz,  que 
se  encontravam  bicos  de  pássaros,  embebidos  no  atnbar.  Esta  phrase 
lembra  uma  explicação  do  modo  por  que  o  âmbar  se  formava,  dada 
por  Duarte  Barbosa — e  repetida,  creio,  por  Castanheda.  Diz  Duarte 
Barbosa,  que  os  mouros  das  Maldivas  lhe  contaram  ser  o  âmbar  «es- 
terco d'aves»,  e  que  n'aquelle  archipelago,  «laa  nas  ilhas  deshabita- 
das,  ha  huas  aves  grandes  que  pousaom  sobre  os  penedos  e  rochas  do 
maar,  e  aly  estercaom  aquelle  ambre,  honde  se  estaa  curtindo  do  ar 
e  do  sol;  ate  que  por  tempestades  e  tormentas  sobe  ho  mar  sobre  hos 
penedos  e  rochas,  e  ho  arranca  em  pedaços  grandes  e  pequenos;  e 
asy  anda  no  mar,  ou  sahe  nas  praias,  ou  ho  comem  alguas  baleas». 
O  mais  branco  é  o  que  andou  pouco  tempo  no  mar;  e  o  mais  «preto 
e  masado«,  o  que  foi  comido  pelas  baleias.  Segundo  esta  explicação, 
o  âmbar  teria  uma  origem  análoga  á  do  guano  das  ilhas  Chinchas.  E 
curioso  que  o  facto  adduzido  por  Orta,  e  que  pôde  parecer  favorável 
a  esta  origem,  demonstre  exactamente  uma  origem  diversa  e  a  verda- 
deira. Os  suppostos  bicos  de  pássaros  são  as  maxillas  córneas  das  5e- 
pias  e  outros  Cephalopodes,  alimento  habitual  dos  cachalotes ;  não 
sendo  digeridas,  ficam  embebidas  na  massa  do  âmbar,  se  acaso  não 
são  uma  das  causas  da  sua  formação  (Cf.  Duarte  Barbosa,  Livro.,  348; 
Exotic.  148;  Guibourt,  1.  c.  iv,  120  e  354). 


Nota  (5) 

Os  antigos  davam  aos  negros  o  nome  de  Zingis  ou  Zingium.  D'ahi 
vem  o  nome  de  mar  do  Zendj,  de  que  usa  Maçudi  em  uma  passagem 
já  citada;  igualmente  o  nome  de  Zanguebar,  depois  Zanzibar,  litteral- 
mente  terra  dos  negros.  Este  ultimo  nome,  hoje  muito  restricto,  es- 
tendia-se  mais  nos  tempos  antigos.  Segundo  Barros,  chamava-se  Zan- 
guebar toda  a  costa  africana,  desde  a  foz  do  Quilmance — deve  ser  o 
Juba — até  ao  cabo  das  Correntes  (Cf.  Maçudi,  1.  c;  Barros,  Ásia,  i,  viii, 
4;  Yule,  Marco  Polo,  11,  417). 

Nota  (6) 

Pode  bem  ser  que  o  âmbar  «almendeli»  ou  de  almend  fosse  o  de  Me- 
linde,  como  Orta  diz;  mas  a  palavra  «Selachiticuma  não  vem  na  minha 
edição  de  Avicenna;  e  não  sei  onde  Orta  a  encontrou,  nem  porque  a 
refere  a  Ceylão.  Avicenna  falia  do  âmbar  alseleheti;  e  os  seus  tradu- 
ctores  não  conhecem  a  significação  da  palavra;  dizem:  alseleheti  est 
qucedam  régio — uma  certa  região,  não  sabem  qual.  Alseleheti,  privado 


Do  Ambre  67 

do  artigo  e  da  desinência  do  adjectivo,  dá-nos  a  forma  Selehet,  que  se 
parece  um  pouco  com  um  dos  antigos  nomes  de  Ceylão,  Sinhala  ou 
Sihala.  Os  árabes,  porém,  designavam  habitualmente  a  famosa  ilha 
por  um  nome  diverso,  o  de  Serendib.  Na  geographia  de  Edrisi  vem  uma 
ilha  do  archipelago  Indiano  ou  Malayo,  mencionada  pelo  nome  de  Se- 
lahat,  iisjL..  Se  esta  era  a  pátria  do  âmbar  alseleheti  de  Avicenna,  é 
questão  que  não  me  atrevo  a  resolver,  apesar  da  identidade  do  nome. 
O  que  me  parece  inacceitavel  é  a  identificação  de  Orta  com  a  ilha  de 
Ceylão  (Cf.  Avicenna,  lib.  11,  tract.  11,  cap.  63,  edição  de  Rinio  de  i556; 
Edrisi,  Géographie,  i,  80). 

Nota  (7) 

Paliando  do  que  viu,  Orta  é,  como  sempre,  exacto;  um  fragmento  de 
âmbar  do  peso  de  i5  arráteis  é  cousa  vulgar.  No  anno  de  1755  vendeu 
a  companhia  das  índias  em  França  uma  massa  do  peso  de  225  arrá- 
teis (livres).  Outra  massa,  do  peso  de  182  arráteis,  pertencente  á  com- 
panhia hollandeza  das  índias,  foi  descripta  e  figurada  por  Vander  (The:^. 
cochlearum,  tab.  liii  e  liv,  citado  por  Guibourt).  E  não  ha  muitos  an- 
nos,  os  navios  baleeiros  Franklin  e  Antarctic  harpoaram  um  cachalote 
dentro  do  qual  se  encontrou  uma  massa,  que  pesava  107  arráteis,  e  foi 
vendida  por  44:000  dollars. 

Quanto  á  ilha  de  âmbar,  que  nunca  mais  foi  encontrada,  é  claro  que 
ella  traz  em  si  o  seu  certificado  de  fabulosa.  E  os  fragmentos  ou  massas 
da  altura  de  um  homem,  ou  do  peso  de  3o  quintaes,  são  evidentes  exa- 
gerações, de  que  o  nosso  naturalista  não  é  completamente  responsável. 
Sempre  correram  versões  ampliadas  sobre  estes  grandes  pedaços  de 
âmbar.  Também  o  nosso  compatriota  Pedro  Teixeira  falia  de  uma 
massa  de  âmbar,  lançada  á  praia  na  mesma  costa  de  Zanzibar,  tão 
grande,  que  se  não  via  um  camello  coUocado  por  detraz  d'ella.  Pelo 
contrario,  o  pedaço  de  âmbar,  que  o  rei  de  Melinde  mandou  por  Vasco 
da  Gama  de  presente  á  rainha  de  Portugal,  tinha  dimensões  acceita- 
veis:  era  «do  tamanho  de  meo  covado,  e  grossura  de  um  homem  pola 
cinta»  (Cf.  Teixeira,  Relaciones,  20;  Gaspar  Corrêa,  Lendas,  i,  i32). 


Nota  (8) 

O  âmbar  cinzento  é  principalmente  usado  em  todo  o  Oriente  como 
perfume;  mas  as  suas  suppostas  qualidades  medicinaes,  aphrodisiacas 
e  outras,  a  que  o  nosso  auctor  se  refere,  são  ali  conhecidas,  e  vem 
mencionadas  por  muitos  escriptores  do  tempo. 

Não  é  fácil  saber  bem  ao  certo  quem  seria  o  Diogo  Pereira,  que 
deu  ao  nosso  escriptor  tão  miúdas  informações  das  cousas  da  China. 


58  Colóquio  terceiro  do  Ámbre 

É  possível  que  fosse  um  Diogo  Pereira,  enviado  por  Nuno  da  Cunha 
ao  rajá  de  Calicut  em  umas  negociações  diplomáticas;  e  que,  segundo 
Barros,  era  muito  entendido  nas  cousas  do  Malabar,  e  fallava  a  lín- 
gua da  terra  tão  correntemente,  que  não  necessitava  de  interprete. 
Estas  qualidades  suppóe  uma  longa  assistência  no  Oriente,  durante  a 
qual  elle  fez  talvez  uma  ou  mais  viagens  á  China.  No  assento  de  paz 
com  o  «Idalxá«,  no  anno  de  liyS,  vem .assignado  um  Diogo  Pereira, 
como  vereador  do  senado  de  Goa;  se  era  o  mesmo,  devia  ser  extre- 
mamente velho,  e  é  mais  natural  que  fosse  filho  ou  descendente.  Um 
ou  outro  deram  provavelmente  aquella  informação  ao  nosso  escriptor 
(Cf.  Barros,  Ásia,  iv,  iv,  i8;  Arch.  jportuguesf-oriental,  fase.  5.",  parte  ii, 
p.  908). 

Nota  (9) 

Os  auctores  de  matéria  medica,  citados  n'este  Colóquio,  e  não  men- 
cionados nos  anteriores,  são  Aécio  de  Amida,  o  que  escreveu  o  livro  vul- 
garmente chamado  Tetrabiblos;  e  os  conhecidos  escriptores  da  Hespa- 
nha  mussulmana,  a  que  nos  referimos  na  nota  (3),  e  que,  entre  os  eru- 
ditos europeus,  tinham  os  nomes  de  Averroes  e  Avenzoar. 


COLÓQUIO   QUARTO   DO   AMOMO 


INTERLOCUTORES 


ORTA,  RUANO 


RUANO 

Vay  tanta  duvida  em  que  cousa  seja  o  amomiim,  que  alguns 
escritores  querem  que  se  use  por  elle  açoro;  porque  Galeno 
lhe  dá  semelhante  virtude,  do  qual  açoro  também  ha  mais 
duvida  que  cousa  seja;  porque  dizem  que  o  amomiim  entra 
na  tiriaca,  e  por  esta  razão  chora  Mateolo  Senense*  a  per- 
dição humana  em  perder  o  amomum,  como  que,  sem  elle, 
não  se  podesse  ajudar  pêra  curar  as  enfermidades  dos  ho- 
mens-, e  diz  este  escritor  que  também  não  tem  por  muyto 
certo  entrar  este  simple  na  tiriaca  de  Andronico,  onde  al- 
guns escritores  sam  delle  tachados  e  reprehendidos,  por- 
que, em  huns  cabos  affirmavam  entrar  este  amomum  nella, 
e  em  outros,  esquecidos  do  que  dixeram,  dizem  o  contrairo; 
e  pêra  isto  nam  nos  dá  remédio  o  Mateolo,  senam  chorar  esta 
perdiçam,  e  dizer  que  também  não  pode  ser.  o  que  chamão 
rosa  de  Gericó  ser  também  amomum;  e  para  isto  dá  muyto 
boas  razões  e  emenda  muitos  textos-,  o  qual  se  vos  ouvesse 
de  contar  seria  nunca  acabar:  vós  o  podeis  ver  e  assi  o  vereis 
por  Laguna  e  por  outros  (i).  E  pois  que,  segundo  muitos, 
entra  na  tiriaca  este  amomum,  e  nam  he  bom  esperimentar 
mezinhas  nam  sabidas,  queria  muyto  saber  se  ha  nesta  terra 
o  amomum,  e  se  tem  os  físicos  mouros,  que  aos  reis  vistes 
curar,  que  he  pes  columbimis,  porque  isto  he  grande  error, 
como  provão  os  escritores  nomeados. 


*  Mateolus  Senensis;  Galen,,  Simplic,  lib.  6  (nota  do  auctor). 


6o  Colóquio  quarto 

ORTA 

Se  nesta  terra  eu  vira  os  simples  que  ha  na  vossa  terra  de 
Europa,  eu  vos  tirara  desta  duvida^  mas  comtudo  vos  direy 
o  que  neste  caso  soube  nesta  índia.  Porque  estes  modernos 
escritores  dezião  não  se  poder  fazer  a  tii^iaca  por  falta  de 
amomum,  perguntey  a  hum  boticayro,  espanhol  na  lingua  e 
judeo  na  falsa  religião,  o  qual  dezia  ser  de  Jerusalém,  que 
me  dixesse  que  era  amo??uim^  e  dixeme  que  era  em  arábio 
hainama,  que  quer  dizer  pé  de  pomba  na  mesma  lingua-,  e 
que  elle  o  conhecia  muito  bem,  e  porém  que  o  nam  vira 
nesta  terra,  senão  na  sua,  e  que  nisto  nenhuma  duvida  tinha. 
E  alguns  annos  depois  fui  a  visitar  o  Nizamoxa,  e  perguntey 
a  seus  físicos  se  tinham  amomum,  e  dixeraome  que  nestas 
terras  não  o  havia;  mas  que,  antre  outras  mezinhas  que  ao 
rey  trazião  da  Turquia,  e  Pérsia  e  Arábia,  as  quaes  elle  pa- 
gava muy  bem  polia  necessidade  que  tinha  delias  pêra  fazer 
as  composições,  vinha  o  amomum;  das  quaes  composições 
era  huma  o  mitridato.  E  derãome  huma  mostra  de  amomum, 
que  eu  trouxe  a  Goa,  mostre3^a  aos  boticairos,  e  cotejeya 
com  huns  debuxos  dos  simples  de  Dioscorides;  e  a  todos 
nos  pareceu  conforme  ao  debuxo,  e  aos  ditos  dos*  escritores, 
e  ainda  que  estava  seca,  bem  parecia  feita  á  feiçam  de  pé 
de  pomba  (2). 

RUANO 

Nam  me  parece  esse  argumento  razam  que  convença, 
porque  assi  se  chamara  lingoa  de  vacca  em  Avicena,  o  qual 
eu  duvido  ser  verdade. 

ORTA 

Todos  os  nomes  que  temos  declarados  de  Avicena  estão 
trela  dados**  ao  pé  da  letra;  por  arábio  se  chama  lingoa  de 
vacca  e  lingoa  de  pássaro  e  lingoa  de  cão  e  capillus  veneris; 
e  assi  também  as  enfermidades  se  chamão  conforme  ao 
nome,  assi  como  elefancia  se  chama  daul  aljil,  que  significa 


*  Na  edição  de  Goa  está  «dos  ditos». 
**  «Trelados»  na  ed.  de  Goa. 


Do  Amomo  6i 

pé  de  alifante,  e  hydroforbia  mara^  alqiidbe,  que  quer  dizer 
doença  de  cam:  por  onde  sabey  que /7é  de  pomba,  acerca 
da  entençam  de  Avicena,  he  amomiim,  e  isto  he  em  muitos 
nomes  sabido  acerca  de  Avicena,  e  nós  os  Espanhoes  imita- 
mos nisto  aos  Arábios,  scilicet,  na  lingoa  (3). 

RUiVNO 

E  pêra  que  quer  esse  rey  o  amomum? 

ORTA 

Porque  diz  que  entra  no  mitridato,  da  qual  composição 
elle  usa  muyto  porque  se  teme  da  peçonha,  e  tem  selada  e 
fechada  de  sua  mão  esta  mezinha;  porque  os  reys  (ou  por 
milhor  dizer  tiranos)  desta  terra  jogatãolhe  muyto  os  irmãos 
com  peçonha.  E  falando  eu  hum  dia  com  este  rey  na  prova 
da  tiriaca  como  se  fazia,  me  dixe  que  se  lhe  qua  viesse 
hum  baril  com  hum  homem  que  lhe  fizesse  a  prova,  lhe 
compraria  toda  a  tiriaca,  pesando  por  ella  outro  tanto  ouro  •, 
e  ao  que  fizesse  prova  daria  dous  mil  pardáos,  cujo  preço 
he  como  huma  coroa  de  Espanha:  e  certo,  que  se  o  diabo 
o  não  levara  primeiro  pêra  o  consorcio  de  Mafamede,  que 
comprira  sua  palavra  (4). 

RUANO 

Mais  barata  se  achara  a  tiriaca  em  Europa-,  mas  certo 
que  he  de  maravilhar  quão  pouco  se  estima  a  tiriaca  polia 
muyta  quantidade  que  ha  delia.  E  vistes  lá  outras  mezi- 
nhas de  que  aja  duvida  entre  nós,  scilicet,  do  conhecimento 
delias  ?     • 

ORTA 

Si  vy,  scilicet,  eupatorio  e  mexquetera  mexir  (5). 

RUANO 

E  certo  sabeis  que  não  ha  as  mezinhas  que  dixestes  n'esta 
terra? 

ORTA 

Bem  pôde  ser  que  as  aja,  mas  os  boticairos  da  índia  ga- 
nhão mais  pello  trato  que  polia  botica;  e,  porque  he  pouco 


62  Colóquio  quarto 

o  ganho,  nam  vão  buscar  á  terra  firme  ou  ao  Balaguate  her- 
va  cidreira,  lingoa  de  vacca,  fumus  ten^ce,  tamat  isco  e  es- 
paregos,  das  quaes  mezinhas  carecemos,  e  eu  as  vy  lá*,  e 
também  vi  i>iolas  semeadas  em  as  hortas  deste  rey;  e  aqui 
em  Goa  usam  por  ellas  de  humas  flores  de  huns  arvores 
muito  diíferentes  das  nossas  violas;  e  eu  não  consinto  que 
usem  delias  senão  em  mezinhas  por  fora  aplicadas,  e  o  xaro- 
pe violado  lhe  mando  fazer  de  violas  em  comserva,  que 
trazem  de  Ormuz  ou  de  Portugal  (6), 

RUANO 

Mais  curiosos  são  os  nossos  boticairos  em  Espanha  com 
sua  pobresa,  porque  cresce  o  amor  do  dinheiro,  quanto  elle 
mais  cresce. 


Nota  (i) 

Esta  pagina,  é  uma  d'aquellas  em  que  o  nosso  auctor  mostra  mais 
claramente  o  seu  desdém  pelas  complicadas  e  estéreis  discussões  de 
palavras  e  de  textos,  nas  quaes  se  entretinham  então  os  escriptores  da 
Europa.  Chega  a  ser  irreverente  para  com  o  eruditíssimo  Pietro  Andrea 
Mattioli  de  Sienna,  pintando-o  a  chorar  a  perdição  do  amomo,  e  a 
emendar  textos,  e  a  dar  boas  rasóes  para  que  a  rosa  de  Gericó  não  fosse 
o  amomum. 

Nota  (2) 

«Vay  tanta  duvida  em  que  cousa  seja  o  amomum»,  diz  o  nosso 
Orta  logo  no  começo  do  Colóquio.  Perto  de  três  séculos  depois,  Spren- 
gel  repetia  quasi  as  mesmas  palavras :  de  Amomo  ingens  est  disceptatio. 
É  effectivamente  muito  difficil  saber  o  que  fosse  o  ajAwu.ovde  Dioscorides 
o  Amomum  de  Plinio,  e  o  L»L?-  de  Avicenna.  Seria  o  Cissus  vitiginea, 
como  quer  Sprengel?  Ou  outra  planta,  se  acaso  todos  aquelles  escri- 
ptores se  referiram  á  mesma?  Tudo  isto  parece  insolúvel. 

O  certo  é  que  os  asiáticos  conhecem  uma  planta,  ou  plantas,  que 
apresentam  pelo  nome  de  hamama;  mas  provavelmente  nenhuma  d'el- 
las  é  a  antiga.  Effectivamente  ao  nosso  Orta  mostraram  um  certo  atnomo, 
vindo  da  Turquia,  Pérsia  ou  Arábia.  Annos  depois,  Clusius  recebeu  de 
um  boticário  seu  amigo  um  amomo,  procedente  de  Hormuz,  e  que 
elle  desenhou  nos  Exoticorum.  E  já  no  nosso  século,  o  dr.  Royle  obteve 


Do  Amomo  63 

também  na  índia,  pelo  nome  de  humama  ou  hamaina,  uma  planta  si- 
milhante  á  desenhada  por  Clusius. 

A  identiticaçáo  d'esias  plantas  apresenta,  porém,  quasi  tantas  diffi- 
culdades  como  a  das  que  os  antigos  mencionaram.  Orta  não  descreve 
a  sua;  e  o  facto  de  se  referir  aos  « debuxos «  de  Dioscorides  não  nos 
esclarece,  pois  essas  figuras  das  edições  illustradas  do  seu  tempo  ^  eram 
feitas  em  geral  sem  conhecimento  das  plantas  asiáticas.  As  hguras  de 
Clusius  são  evidentemente  copiadas  do  natural,  mas  um  tanto  confusas. 
Em  todo  o  caso,  a  idéa  de  Sprengel,  de  que  elle  representou  a  For- 
stera  magellatiica,  uma  planta  americana,  trazida  pelo  celebre  navegador 
Drake  das  suas  viagens  austraes,  e  dada  por  equivoco  como  proveniente 
de  Hormuz,  parece-nos  absolutamente  inacceitavel.  Dymock  diz  que 
ainda  hoje  se  vende  nos  bazares  de  Bombaim  uma  droga,  chamada 
hamama,  amamun,  ou  amuman,  que  exactamente  corresponde  aos  de- 
senhos de  Clusius.  Parece  ser  uma  Muscinea  secca,  e  lembra  na  forma 
algumas  espécies  de  Sphagnum  da  Europa.  Deve  ser  esta  a  planta  de 
Clusius  e  de  Royle,  e  provavelmente  também  a  de  Orta;  mas  segura- 
mente não  é  a  de  Dioscorides  e  de  Plinio  (Cf.  Sprengel,  Diosc.  n,  35 1 ; 
Clusius,  Exotic.y  199;  Royle,  Ant.  of  Hindoo  medicine,  91,  London,  iSSy; 
Dymock,  Mat.  med.,  877). 

Nota  (3) 

Toda  esta  passagem  é  muito  confusa.  Orta  parece  querer  dizer,  que 
os  nomes  arábicos  de  algumas  plantas  conservam  a  significação  intacta 
dos  seus  componentes,  o  que  é  de  certo  exacto  em  muitos  casos.  Os  no- 
mes das  doenças  estão  bastante  correctos;  W.  Ainslie  diz  que  os  ára- 
bes chamam  a  uma  forma  da  elephantiasis,  J^'  'j<5,  dul  el-jil;  e 
um  dos  nomes  da  raiva  é  w-^-wJ*  U^yi  '"<^''<^^  el-kelb,  a  doença  do  cão. 

Se  o  nome  do  amomum  em  Avicenna  se  prende  a  A^y  que  signi- 
fica pomba,  e  não  pé  de  pomba,  é  questão  diversa  e  um  tanto  duvidosa. 


Nota  (4) 

Que  os  reis  mussulmanos  da  índia  se  quizessem  precaver  contra  as 
tentativas  de  envenenamento  da  familia  e  dos  irmãos,  os  quaes  lhes 
«jogatavam  com  peçonha»,  era  naturalíssimo;  e  também  era  natural 
que  se  servissem  dos  mithridatos  e  theriagas.  Tinham  como  livro  prin- 


'  Os  «debuxos»  de  que  Orta  falia,  podiam  ser  o  Icofies  da  edição  de  Ruellio  (1549),  C"i 
a  qual  se  publicaram  também  as  notas  de  Valério  Gordo. 


64  Colóquio  quarto  do  Amomo 

cipal  de  medicina  o  de  Avicenna,  que  trata  largamente  e  dá  a  formula 
d 'estas  celebres  e  complicadas  composições:  do  mithridato  nobre  e  do 
commum,  da  theriaca  magna,  da  alfaroch,  da  de  Esdras  e  de  outras 
(Cf.  Avicenna,  lib.  v,  summa  i,  tractatus  i). 


Nota  (5) 

O  «  eupatorio»,  a  que  o  nosso  Orta  se  refere,  podia  ser  uma  Achillea, 
ou  uma  Agrimonia,  que,  embora  plantas  muito  diversas,  foram  ambas 
conhecidas  por  este  nome.  E  a  sua  «mexquetera  mexir»  era  sem  du- 
vida a  mescatramescir  de  Avicenna,  a  qual  os  traductores  identificaram 
com  o  Dictamus  ou  com  o  Pulegium  (Cf.  Avicenna,  lib.  n,  11,  468). 
Todas  são  plantas  vulgarissimas  e  bem  conhecidas;  mas  o  que  Orta 
averiguou  sobre  ellas  lá  pela  índia,  é  o  que  nos  não  diz,  nem  é  fácil  saber. 


Nota  (6) 

Orta  devia  enganar-se  algumas  vezes,  quando  julgava  encontrar  na 
índia  as  plantas  de  Portugal;  e  de  certo,  em  mais  de  uma  occasião,  to- 
mou por  uma  espécie  sua  conhecida,  outra  espécie  próxima,  ou  mesmo 
uma  planta  simplesmente  parecida  na  apparencia.  Assim  elle  não  viu, 
nem  a  Melissa  qfficinalis,  nem  a  Anchusa  officinalis,  espontâneas  na  ín- 
dia; mas  pôde  ver  espécies  de  Asparagus,  de  Fumaria,  de  Tamarix, 
e  mesmo  as  violas,  cultivadas  em  algum  logar  fresco  e  sombrio.  A  Viola 
odorata  encontra-se  espontânea  na  índia;  mas  unicamente  nas  regiões 
elevadas  do  Himalaya,  onde  o  nosso  naturalista  nunca  foi. 


COLÓQUIO    QUINTO    DO   ANACARDO 

INTERLOCUTORES 
RUANO,  ORTA 

RUANO 

Queria  saber  do  anacardo,  pois  he  nome  grego  derivado 
de  coraçam,  cuja  feiçam  e  cor  he^  e  o  porque  me  maravilho 
he,  porque  nam  se  acha  escrito  desta  mezinha  acerca  dos 
Gregos  antigos. 

ORTA 

Disso  nam  vos  maravilheis,  porque  os  Gregos  modernos 
lhe  poseráo  este  nome  por  a  razam  que  dixestes  aguora; 
porque,  pois  era  mezinha  usada  per  escritores  arábios,  nam 
era  razam  que  lhe  mudaram  o  nome  delia;  porque  elles  lhe 
chamam  balador,  e  se  doutra  maneira  o  achardes  escrito 
por  os  livros,  sabey  que  he  o  vocábulo  ser  corruto.  Os  In- 
dos  lhe  chamão  bybo,  e  nós  os  Portuguezes  fava  de  mala- 
qua;  porque  a  feiçam  delle,  no  arvore  onde  nasce,  parece 
fava  maior  que  as  nossas,  e  casi  he  da  feiçam  de  humas  favas 
que  qua  ha,  que  vieram  primeiro  de  Malaqua.  Segundo  di- 
zem alguns,  ha  muita  copia  desta  mezinha  em  Gananor  e 
em  Galicut,  e  em  todos  as  partes  da  índia  que  eu  sey,  scili- 
cet,  Gambaya  e  o  Decam  (i). 

RUANO 

António  de  Lebrixa,  no  Dictionario,  dixe  anacardus,  herva 
frequentada  acerca  de  Galeno? 

ORTA 

Verdade  he  que  dixe  isso  Lebrixa,  e  que  era  muy  docto 
e  curioso,  mas  enganouse  no  nome  grego;  e  sem  mais  ou- 
Ihar  dixe  que  Galeno  o  dizia;  foy  descuido,  e  nam  vos  ma- 


66  Colóquio  quinto 

ravilheis  disto,  porque  ás  vezes  dorme  o  bom  Homero. 
Também  Serapio  alegua  a  Galeno%  o  qual  nunca  vyo  ana- 
cardo,  e  mais  diz  que  por  ventura  mata,  o  qual  he  contra 
a  esperiencia  do  que  vemos;  porque  se  dá  nestas  terras  dei- 
tado em  leite  e  nutrido  para  a  asma,  e  também  usam  delle 
contra  as  lombrigas,  e  fazem  delle,  quando  he  verde,  con- 
serva com  sal  para  comer  (a  que  chamão  qua  achar)  e  ven- 
dese  na  praça  como  azeitonas  acerca  de  nós-,  e,  quando  he 
seco,  usão  delle  em  modo  de  cáustico  para  as  alporcas:  e 
toda  a  índia  também  usa  delle  para  pôr  sinal  nos  panos 
misturado  com  cal.  Avicena  diz**  que  o  anacardo  he  fruto 
semelhante  aos  caroços  do  tamarinho,  e  o  seu  miolo  he  seme- 
lhante á  amêndoa,  em  o  qual  não  ha  damno,  e  abaixo  diz 
que  he  contado  entre  os  venenos  e  que  mata.  Por  onde  falia 
mais  craro  que  Serapiam,  que  o  pÕe  em  duvida,  e  mais  está 
crara  a  contradição;  porque  diz:  em  o  qual  não  ha  damno 
aparente,  e  depois  diz  que  he  contado  entre  os  venenos  e 
que  mata. 

RUANO 

No  que  diz  que  nam  ha  em  elle  damno,  entendese  do 
damno  aparente  no  principio,  porque  ao  fim  mata. 

ORTA 

Ainda  que  isso  se  possa  salvar,  comtudo  não  he  veneno, 
pois  o  comem  muitos  índios  qua  em  todo  cabo,  e  o  ser 
cáustico  he  depois  de  sequo  {2). 

RUANO 

Em  que  grado  o  pondes,  quente  e  sequo? 

ORTA 

Huns  o  põem  no  quarto  quente  e  sequo,  e  outros  na  2 
parte  do  3,  mas  nenhum  d'estes  me  contenta,  porque,  em 


*  Serapio,  cap.  356  (nota  do  auctor). 
**  Avie.  li.  2,  cap.  41  (nota  do  auctor). 


Do  Anacardo  67 

verde,  craro  he  que  não  hc  tanto  quente  c  sequo,  e  em  se- 
quo  nam  parece  razam  fazelo  tam  quente  e  sequo  como  as 
outras  especiarias,  scilicet,  a  pimenta,  que  se  pÕe  no  ter- 
ceiro gráo  \  nem  acho  ser  vermelho,  senão  negro  lúcido,  e  a 
isto  não  se  pôde  dar  outra  desculpa,  senam  que  será  mais 
quente  e  sequo  o  ciciliano  (3),  e  terá  a  cor  que  pareça  mais 
ao  vermelho. 

RUANO 

Muito  estou  nisto  conforme  com  o  que  dizeys,  e  mais  me 
parece  muito  boa  preparaçam  a  do  leite  azedo  para  a  asma, 
entendendo  per  leite  azedo,  leite  de  que  he  tirada  a  sua  man- 
teygua,  e  isto  he  conforme  a  Avicena  (4). 


Nota  (i) 

O  «Anacardo»  é  o  Semecarpus  Anacardiíim,  Linn.  f.,  uma  arvore 
da  família  das  Anacardiacece,  muito  frequente  na  índia. 

Os  nomes  vulgares,  citados  por  Orta,  são  fáceis  de  identificar: 

—  «Balador»  é  a  sua  transcripção  do  nome  arábico j<5-ij,  belader, 
ou  jiblj  beladher  (Cf.  Ainslie,  Mat.  Ind.  ii,  Syi;  Exotic,  249). 

—  «ByboM,  ainda  se  usa  na  índia  portugueza  na  forma  bybó;  e  em 
Bombaim  na  forma  bibba  (Cf.  Costa,  Manual  pratico  do  agricultor  in- 
diano, II,  i38,  Lisboa,  1874;  Dymock,  Mat.  med.,  3o3). 

E  um  facto  digno  de  se  notar,  o  não  ter  Orta  mencionado  o  Cajueiro 
(Anacardium  occidentale,  Linn.),  uma  arvore  muito  mais  interessante  do 
que  esta,  e  da  qual  poucos  annos  depois  fallaram  Christováo  da  Costa 
e  Linschoten.  A  explicação  d'este  silencio  é,  porém,  fácil.  O  Cajueiro, 
arvore  americana,  foi  introduzido  por  aquelle  tempo  na  índia,  de  modo 
que  Orta  nunca  o  viu  em  Goa,  onde  ainda  se  não  cultivava;  e  Christo- 
váo da  Costa  apenas  observou  alguns  exemplares  nas  hortas  de  Cochim, 
para  onde  provavelmente  os  portuguezes  o  haviam  trazido  poucos  an- 
nos antes  do  Brazil.  O  silencio  de  Orta,  e  a  noticia  de  Costa,  con- 
firmam pois  a  idéa  geralmente  admittida  da  origem  americana  do  Ca- 
jueiro, e  marcam  a  data  da  sua  introducção  na  Ásia,  onde  depois  se 
tornou  tão  commum  (Cf  Christovão  da  Costa,  in  Exotic,  273 ;  Navi- 
gatio  ac  Itinerarium  Johamiis  Hugonis  Linscotani,  p.  60,  Hagae-comitis, 
1599;  De  Candolle,  Orig.  des  plantes  cultivées,  i58.  Paris,  i883). 


68  Colóquio  quinto  do  Anacardo 


Nota  (2) 

O  uso  do  fructo  d'esta  planta  para  marcar  os  pannos  é  bem  conhe- 
cido na  índia,  e  d'ahi  lhe  vem  o  seu  nome  vulgar  inglez :  marking  nut. 
Quanto  ás  suas  qualidades  alimentares  e  medicinaes,  e  a  algumas  con- 
tradicçóes  apontadas  por  Orta,  estas  resultam  de  uma  circumstancia  que 
elle  não  observou,  e  Christovão  da  Gosta  notou  mais  correctamente,  ou 
pelo  menos  mais  explicitamente.  Emquanto  o  pedúnculo  carnoso  do  íru- 
cto  e  a  semente,  são  relativamente  inotiensivos,  as  camadas  do  peri- 
carpo  contêem,  depois  de  maduras,  um  óleo  negro,  cáustico  e  forte- 
mente toxico.  D'ahi  a  possibilidade  de  comer  o  íructo,  colhido  verde, 
e  preparado  em  conservas;  e,  por  outro  lado,  as  suas  applicaçóes  inter- 
nas em  pequeníssimas  doses,  ou  externas  como  cáustico,  depois  de  ma- 
duro (Cf.  C  da  Costa,  Exotic,  272;  Ainslie,  Mat.  Jnd.,  11,  37 1). 

Notaremos  de  passagem,  que  a  phrase  de  Orta  «a  que  chamão  qua 
achar»  define  bem  claramente  a  origem  oriental  d'este  nosso  termo  cu- 
linário. Achar  é  a  palavra  persiana  achar,  que  tem  a  mesma  significa- 
ção. 

Nota  (3) 

É  muito  curiosa  esta  menção  do  anacardo  «ciciliano»,  ou  da  Sicilia. 
A  planta  indiana  havia  sido  provavelmente  introduzida  ali  no  reinado 
do  imperador  Frederico  II  (1220- 1240)  pelos  judeus,  que  iniciaram 
n'aquella  ilha  algumas  culturas  de  plantas  orientaes,  entre  outras  a  do 
anil.  O  facto  da  existência  do  Anacardo  na  Itália,  facto  que  devia  ser 
pouco  conhecido  mas  não  escapou  ás  investigações  de  Orta,  é-nos  con- 
firmado por  um  escriptor  quasi  contemporâneo.  O  Dr.  Paludano,  nas 
suas  notas  ao  livro  de  Linschoten,  falia  dos  fructos  do  Anacardo  pen- 
dentes da  arvore,  e  diz :  quales  in  Skilice  AUthna  monte  vidi  (Navigatio 
ac  Itinerariwn,  83). 

Nota  (4) 

Orta  cita  de  novo  n'este  Colóquio  o  celebre  erudito  hespanhol,  An- 
tónio de  Lebrija,  ou  de  Nebrija,  e  nota-lhe  juátamente  um  erro.  Emen- 
da-o,  porém,  com  todo  o  respeito,  devido  ao  que  provavelmente  havia 
sido  seu  mestre  na  universidade  de  Alcalá  (Cf.  Garcia  da  Orta  e  o  seu 
tempo,  25). 


COLÓQUIO  SEXTO  DO  ARVORE  TRISTE 

INTERLOCUTORES 

RUANO,  ORTA 
RUANO 

Começo,  em  nome  de  Deos,  nas  mezinhas  e  simples  da 
índia  não  conhecidos  nem  vistos  de  nós.  Que  he  este  arvore 
que  tão  bem  cheira  des  que  se  põe  o  sol  até  que  sáe?  Me 
dizey  si  se  usa  delle  em  mezinha  alguma  ou  em  comer,  por- 
que para  mim  não  quero  cheiro  mais  cordial,  em  especial 
quando  de  súbito  entro  onde  está  este  arvore. 

ORTA 

Eu  nam  vi  esta  planta  em  outros  cabos  da  índia  senão 
em  Goa,  e  dizem  que  veo  a  ella  de  Malaca,  e  pôde  ser  que 
pêra  se  levar  a  outro  cabo  seja  muito  boa,  e  já  daqui  se 
levou  (mas  foy  perto  de  Goa)  e  prendeo  bem;  mas  como 
digo  não  a  vi  pello  sartão  donde  andey. 

RUANO 

Pois  dizey  o  nome  e  proveito  destas  flores,  se  he  somente 
pêra  cheirar? 

ORTA 

Pêra  cheirar  nam  sirve  tanto,  porque  aquellas  flores  que 
estão  naquelle  alegrete  chamadas  mogory  cheirão  melhor 
que  frol  de  laranja,  e  os  comeres  que  são  cheirosos,  ou  o 
devem  ser  por  mais  aprazíveis,  que  temperão  em  Espanha 
com  agoa  de  frol  de  laranja,  temperamos  os  qua  com  esta 
agoa  de  fiiles,  chamada  mogorj;  e  a  agoa  destas  que  per- 
guntais nam  a  vi  estilada,  e  já  pôde  ser  que  nam  façam  agoa 


70  Colóquio  sexto 

boa,  por  ter  a  virtude  muito  superficial,  e  ser  a  textura  rara, 
assi  como  acontece  nos  cravos  que  ha  em  Portugal:  e  nós 
usamos  destas  flores  somente  pêra  tingir  os  comeres,  como 
açafram,  scilicet,  dos  pés  delias,  que  são  amarelos  e  tingem 
muito,  e  o  seu  nome  he,  em  lingoa  de  Goa  pariíataco,  em 
malayo  singadi  (i). 

RUANO 

O  comer  tingido  com  os  pés  destas  flores  tinge  como  o 
temperado  com  o  açafram  de  Espanha? 

ORTA 

Não,  porque  amarga  algum  tanto. 

RUANO 

E  O  açafram  desta  terra,  que  dizem,  he  este? 

ORTA 

Não,  que  esse  he  humas  raizes  que  aqui  nacem,  cuja  vir- 
tude direy  avante. 

RUANO 

E  essas  flores  ditas  mogory,  que  tanto  louvastes,  pode- 
rey  vellas  e  agoa  estilada  delias? 

ORTA 

Já  as  vedes  naquelle  alegrete,  e  a  agoa  vereis  ay  logo, 
que  he  aquella  em  que  põem  as  pennas  pêra  alimpar  os 
dentes,  que  tanto  louvastes  já  (2). 

RUANO 

Sempre  até  agora  tinha  pêra  mim  que  era  agoa  de  frol 
de  laranja-,  e  a  gente  desta  terra  he  muito  dada  a  cheiro,  e 
por  isto  se  diz  que  é  inclinada  a  Vénus. 

ORTA 

He  o  em  tanta  maneira  que  leixa  de  comer  o  que  tem 
pêra  o  gastar  em  cheiros,  assi  como  sândalo  que  he  muito 
comum  para  untar  o  corpo,  e  linaloe,  e  quem  mais  pôde. 


Do  ari>ore  triste  71 

amhre  c  almisque  c  algalia;  a  qual  he  mais  usada,  porque 
o  preço  não  he  tam  alto,  e  a  causa  he  por  os  muitos  gatos 
que  ha  em  muitas  partes  da  índia,  e  usao  esta  algalia  em 
dores  de  humor  frio,  untando  a  parte  que  dóe  com  ella;  e 
outras  flores  ha  de  que  muito  usão  nesta  região  ditas  champe, 
e  tem  hum  cheiro  muito  forte,  mais  que  lirio  branco,  e  nam 
he  tam  suave  (3).  E  sabei  que  os  reys  que  vi,  todas  as  noites 
e  muita  parte  do  dia  lhes  enchem  o  chão  das  cazas,  onde 
estão,  destas  flores  que  dissemos,  e  das  nossas  rosas;  e  pin- 
tão  diversas  flores  em  cores  que  parecem  muito  bem  á  vista; 
e  ali  de  noite  recebem  seus  solazes*,  e  os  presentes  que  lhes 
dam  os  pobres,  sam  destas  flores  e  das  nossas  rosas;  e  vay 
em  tanto  o  gasto  destas  flores  que  me  afirmão  que  em  Bis- 
naguer  rendiam  os  cheiros  e  fulas  a  elrey  5ooo  pardaos;  e, 
o  que  mais  he  de  maravilhar,  que  em  Ormuz**  os  trabalha- 
dores, que  ganhão  de  comer  a  carretar  fato,  compram  os 
cheiros  para  se  untar  de  noite,  e  deixão  de  comer  (4).  E  por- 
que vejais  as  parvoices  e  fabulas  desta  gentilidade,  dizem  que 
esta  arvore  foi  filha  de  hum  homem,  grande  senhor,  chamado 
Pari:{aíaco;  e  que  se  namorou  do  sol,  o  qual  a  leixou,  depois 
de  ter  com  ella  conversação,  por  amores  doutra;  e  ella  se 
matou,  e  foy  queimada  (como  nesta  terra  se  custuma)  e  da 
cinza  se  gerou  este  arvore,  as  flores  do  qual  avorrecem  ao 
sol,  que  em  sua  presença  não  parecem;  e  parece  ser  que 
Ovidio  seria  destas  partes,  pois  compunha  as  fabulas  assi 
deste  modo. 

RUANO 

Certo  que  he  muito  de  maravilhar  de  dar  as  flores  de 
noite  e  não  de  dia,  não  tomeis  trabalho  em  me  dizer  a  gran- 
dura e  feiçam  do  arvore,  pois  vejo  ser  do  tamanho  de  huma 


*  Sola^,  prazer,  recreação,  palavra  que  se  encontra  nos  dicciona- 
rios  hespanhoes;  mas  foi  também  portugueza,  veja-se  Viterbo,  Eluci- 
dário, s.  V. 

**  Hormuz  na  ed.  de  Goa,  o  que  é  mais  correcto  do  que  Ormuz,  mas 
tomámos  a  forma  habitual  de  Orta. 


"72  Colóquio  sexto 

oliveira,  c  ter  as  folhas  corrio  da  amexoeira.  E  pois  isto  não 
he  cousa  medicinal,  passemos  avante  pêra  vermos  da  as- 
sa fétida  e  anil. 


Nota  (i) 

A  «arvore  triste»  do  nosso  Orta,  é  o  Nyctanthes  Arbor  tristis,  Linn. 
uma  pequena  arvore  da  família  das  Oleacecu,  cultivada  com  frequência 
na  índia,  e  espontânea  em  algumas  das  províncias  centraes.  Engana- 
ram-no  pois,  quando  lhe  disseram  que  vinha  de  Malaca.  Não  admira, 
porém,  que  elle  desconhecesse  a  sua  existência  na  índia  no  estado  sel- 
vagem, pois  já  no  nosso  século  o  próprio  Roxburgh  a  ignorava  (Cf.  Hoo- 
ker,  Flora  of  British  índia,  iii,  6o3;  Roxburgh,  Flora  Indica,  i,  86). 

Esta  planta  attrahiu  muito  as  attençóes  n'aquelles  tempos  antigos: 
Christovão  da  Costa  descreveu-a  no  seu  livro;  Linschoten,  e  o  seu 
commentador,  o  dr.  Paludano,  acrescentaram  a  respeito  d'ella  varias 
indicações,  dando  uma  figura  imperfeita  mas  interessante ;  e  Clusius  in- 
cluiu nas  notas  ao  nosso  auctor  as  informações  que  lhe  dera  o  seu 
amigo  Fabrício  Mordente  de  Salerno  sobre  a  curiosa  planta,  interca- 
lando no  texto  o  desenho  bastante  exacto  de  um  ramo  florido.  É  certo, 
todavia,  que  todos  vieram  depois  de  Orta,  e  que,  tanto  Costa  como 
Linschoten,  pouco  mais  fizeram  do  que  copial-o  (Cf.  C.  da  Costa,  in 
Exotic,  279;  Linschoten,  Navig.  ac  Idnerar.,  67  e  68;  Clusius,  £'.ro//c., 

225). 

Orta  cita  dois  nomes  vulgares  da  planta : 

—  «Parizataco»,  que  é  um  dos  nomes  sanskriticos,  mencionado  por 
Dymock  na  forma  Pãrajãtak,  e  pelo  dr.  Lisboa  na  forma  Parijatak 
(Cf.  Dimock,  1.  c;  J.  C.  Lisboa,  Useful plants  0/ íhe  Bombay presidency, 
290,  Bombay,  1886). 

—  «Singadi»  em  malayo.  Este  nome  não  se  encontra  no  Index  de 
Piddington,  nem  em  outros  livros  onde  vem  citadas  muitas  designa- 
ções vulgares.  Era  no  emtanto  o  nome  usado  em  Malaca.  Pelo  anno 
de  1682,  dizia  o  viajante  Nieuhof:  «ali  (em  Malaca)  cresce  a  arvore 
jingady,  que  os  portuguezes  chamam  a  arvore  triste»  (Cf.  Nieuhof, 
Zee  en  Lant-Rei^en,  11,  57,  citado  por  Yule  e  Burnell,  Glossary,  no  Sup- 
plement,  palavra  Arbol  triste). 

Ao  primeiro  d'estes  nomes  liga  o  nosso  escriptor  uma  poética  lenda, 
a  qual  está  perfeitamente  na  Índole  de  dezenas  de  outras  lendas  da 
complicada  mythología  indiana;  e  que  elle  — mais  familiar  com  a  clás- 
sica mythología  grega  e  latina —  compara  com  as  metamorphoses  de 
Ovídio.  Não  é  esta  a  uníca  lenda  que  se  prende  na  índia  ao  Nyctan- 


Do  arvore  triste  73 

thes.  O  dr.  Lisboa,  na  sua  interessante  noticia  sobre  as  plantas  sagra- 
das, diz-nos,  que  os  hindus  julgam  esta  arvore  procedente  do  céu, 
d'onde  Krishna  a  trouxe  a  sua  mulher  Satyabhãma  por  causa  do  fino 
perfume  das  suas  flores;  e  por  isso  estas  flores  são  usadas  no  culto 
prestado  a  todos  os  deuses. 

Quanto  ao  emprego  do  que  Orta  chama  «os  pés  das  flores»  — os 
longos  tubos  côr  de  laranja  das  corollas —  para  tingir  de  amarello,  é 
bem  conhecido  na  índia,  e  vem  mencionado  por  Roxburgh,  Wight  e 
muitos  outros  (Cf.  Lisboa,  1.  c;  Wight,  Illustrations  ofindian  Botany,  11, 
i58,  Madras,  i85i). 

Nota  (2) 

O  «Mogory»  de  Orta  é  o  o  Jasminum  Sambac,  Ait.,  chamado  na  ín- 
dia mogra  ou  mogri,  cujas  flores  são  muito  empregadas  como  per- 
fume, e  nos  ornatos  e  coroas  que  as  mulheres  hindus  collocam  sobre 
a  cabeça  em  dias  e  occasiões  de  festividade  (Cf.  Wight,  1.  c). 


Nota  (3) 

O  «Champe»  de  Orta  é  a  Michelia  Champaca,  Linn.,  da  familia  das 
Magnoliacece.  Chama-se  em  hindi  champa,  do  nome  sanskritico  cham- 
paka.  As  suas  flores  extremamente  cheirosas  são  usadas  como  Orta  diz; 
também  em  grinaldas  e  ornatos  pelas  mulheres  hindus;  e  são  tão  esti- 
madas, que  um  dos  seus  nomes  sanskriticos  Kusiimãdhirãg,  significa 
— segundo  Gubernatis —  o  rei  ou  rainha  das  flores  (Cf  Gubernatis, 
Mythologie  des  plantes,  i,  154). 


Nota  (4) 

Tudo  quanto  Orta  nos  diz  sobre  a  paixão  dos  orientaes  pelos  perfu- 
mes e  pelas  flores  oxi/ulas^  é  perfeitamente  exacto  e  perfeitamente  co- 
nhecido. Paliando  da  mesma  cidade  de  Bijayanagar,  a  que  chama  Bis- 
naguá,  diz  Duarte  Barbosa,  que  os  seus  habitantes  andavam  sempre 
«muyto  cheirosos,  untados  com  sândalo  branquo,  aloés,  canfor,  almis- 
quar  e  acafram,  tudo  muido  e  delido  em  agua  rosada«.  O  persa  Abd- 
er-Razzak,  que  esteve  n'aquella  cidade  como  embaixador  de  Schah  Rock 


'  Orta  parece  empregar  a  palavra/a/a  oufule  no  sentido  geral  de  flor.  Ainslie  citapkool 
ou  phul  como  o  nome  deckani  da  tlor;  deve  prender-se  ao  sansUrito/^/iw/Za  (pronunciar/;-Att//íJ^ 
aberto,  florido,  blooming. 


74  Colóquio  sexto  do  arjm^e  triste 

pelo  anno  de  1442,  fallando  das  grandes  dimensões  dos  bazares,  diz: 
que  os  vendedores  de  flores  (roses  na  versão  ingleza,  supponho  que 
por  flores  em  geral)  levantavam  grandes  estrados  em  que  expunham 
as  flores  á  venda,  onde  se  via  sempre  uma  coUecção  de  rosas  frescas  e 
perfumadas.  Acrescenta,  que  não  podiam  viver  sem  flores,  e  as  consi- 
deravam tão  necessárias  como  a  comida.  Todos  estes  vendedores  pa- 
gavam impostos  especiaes,  que  em  uma  cidade  tão  rica  e  populosa 
como  era  então  Bijayanagar  deviam  attingir  sommas  muito  elevadas. 
Na  cidade  de  Baçaim,  já  depois  de  nossa,  o  imposto  dos  floristas,  aliás 
insignificante,  figurava  também  entre  as  rendas  do  estado : 

«E  a  renda  dos  que  vendem  flores,  paguão  todos  por  ano  oitenta  e 
cinquo  ffedeas,  sem  acrecentarem,  nem  demenoyrem.» 

(Cf.  Duarte  Barbosa,  Livro,  3o2;  Journey  0/  Abd-er-Ra:^^ak,  em  Ma- 
jor, índia  in  thejift.  century;  Tombo  do  Estado  da  índia,  i55,  em  Fel- 
ner,  Subsidios.J 


COLÓQUIO  SÉTIMO  DO  ALTIHT, 

ANJUDEN,  ASSA  FÉTIDA,  E  DOCE,  E  ODORATA,  ANIL 

INTERLOCUTORES 
RUANO,  ORTA 

RUANO 

Saibamos  do  que  se  chama  altiht  e  anjuden,  assa-fettda, 
e  doce,  e  odorata;  pois  antre  ella  e  laserpichim  pÕem  os  do- 
ctores  alguma  diferença. 

ORTA 

E  eu  tenho  n'esses  nomes  mais  confusão  que  vós,  e  isso 
foy  porque  nunca  me  souberam  dizer  a  feiçam,  nem  os  no- 
mes deste  arvore  donde  mana  esta  goma-,  porque  me  dizem 
que  huma  vem  do  Coraçone  a  Ormuz,  e  de  Ormuz  á  India^ 
e  também  achei  qua  que  vem  do  Guzarate^  e  ay  dizem  que 
vem  do  reino  Dely,  terra  muito  fria,  que  pella  outra  banda 
confina  com  o  Coraçone  e  com  a  região  de  Chiruam  (i), 
como  sente  Avicena*.  E  sem  duvida  esta  goma  he  chamada 
altiht  em  arábio  e  outros  antit  a  dizem:  e  como  a  qualquer 
arábio  lhe  mostraes  esta  goma,  dos  índios  chamada  imgu 
ou  tmgara,  por  o  mesmo  nome  a  noméão  que  vos  disse ;  e  o 
arvore  de  que  se  tira  ou  mana  se  chama  anjuden,  e  outros 
o  nomeam  angeidan.  E  como  esta  mercadoria  vem  muito 
polia  terra  dentro,  he  trabalhoso  saberse  no  certo  a  feiçam 
do  arvore;  nem  he  por  isso  muito  chamala  Avicena  por 
muitos  nomes,  porque  pôde  ser  que  em  huma  terra  tenha 


*  Avie.  li.  2,  ca.  53  (nota  do  auctor).  O  texto  é  pouco  claro,  e  deve 
entender-se  que  é  o  Coraçone,  e  não  o  reino  Dely,  que  confina  com  a 
região  de  Chiruam;  veja-se  a  nota  (i). 


76  Colóquio  sétimo 

hum  nome,  e  em  outra  outro,  scilicet,  em  huma  altiht  e  em 
outra  abnharut,  porque  é  sabido  que  estas  terras  donde  vem 
tem  as  lingoas  diversas. 

RUANO 

E  qual  foy  a  causa  porque  o  trasladador  trasladou  assa? 

ORTA 

Eu  não  creo  que  o  tradutor  escreveo  assa,  senão  laser, 
e  corrompendose  o  nome  se  chamou  assi,  porque  o  tempo 
gasta  tudo. 

RUANO 

Primeiro  que  vejamos  se  assa  fétida  he  o  mesmo  que  la- 
ser ou  laserpiciíim,  vos  digo  que  altiht  nam  me  parece  ser 
nome  do  arvore,  senam  de  çumo  de  alcaçiq,  embastecido 
e  engrossado;  e  isto  sentio  Gerardo  Gremonense  no  capitulo 
da  falta  do  coito  em  Rasis,  que  assi  o  interpretou*. 

ORTA 

Gerardo  Gremonense  nam  era  bom  arábio,  mas  era  an- 
daluz, e  a  lingoa  própria  em  que  Avicena  escreveo  he  a 
que  se  usa  na  Siria  e  Mesopotâmia,  e  na  Pérsia  ou  Tartaria 
(donde  Avicena  era)  e  a  esta  lingoa  chamam  elles  arahj  e 
a  dos  nossos  Mouros  magarabj-,  que  quer  dizer  mouro  do 
ponente,  porque  garbf  em  arábio  quer  dizer  ponente  e  ma 
quer  dizer  dos,  e  portanto  não  he  muito  errar  nisto  Ge- 
rardo*, e  digo  que  altiht  não  quer  dizer  senão  o  arvore  da 
assa  fétida,  e  muytas  vezes  se  toma  a  goma  por  o  arvore : 
e  que  isto  seja  verdade  se  vê  acerca  de  nós,  e  muito  mais 
acerca  dos  índios  se  pÕe  a  assa  pêra  levantar  o  membro, 
e  elles  o  tem  muito  em  uso :  logo  não  vem  a  propósito 
pêra  a  deminuiçam  do  coito  usar  o  tal  çumo  de  alcaçiq;  e 
nas  Divisões**  pÕe  Rasis  o  altiht  por  mezinha  pêra  as  fes- 
tas de  Vénus. 


*  Gera.  sobre  Rasis  (nota  do  auctor). 

**  Nas  Divisões,  isto  é  no  Liber  Divisionum. 


Do  Altiht  77 

RUANO 

E  se  O  altiht  nam  he  assa  dulcis,  que  he  assa  dulcis? 

ORTA 

Assa  dulcis  nam  põe  doctor  arábio,  nem  grego,  nem  la- 
tino, que  seja  de  autoridade*,  e  se  a  põe,  erra-,  porque  o 
alcaçu\  se  chama  em  arábio  çu\,  e  o  çumo  delle  cozido  e 
reduzido  á  forma  de  arrove,  chamão  os  Arábios  rohalçif{,  e 
os  Castelhanos  corrompendo  o  nome  o  chamão  rabaçu{;  de 
modo  que  robalçui  he  um  nome  composto  de  rob,  que  em 
arábio  he  çumo  feito  basto,  e  ai  he  articolo  do  genitivo,  e 
quer  tanto  dizer  como  çumo  basto  de  alcaçuz;  e  assi  daqui 
avante  nam  chamemos  a  este  çumo  assa  dulcis  {^). 

RUANO 

Bem  me  parece  essA  derivaçam;  mas  antes  que  vos  per- 
gunte porque  laserpicium  he  assa,  quero  florear  como  es- 
grimidor  e  saber  de  vós  como  Avicena  he  da  terra  dos  Tár- 
taros, e  como  a  lingoa  da  nossa  Africa  nam  he  tam  boa 
como  a  da  Siria  e  Arábia. 

ORTA 

Avicena  he  craro  ser  destas  partes,  e  nam  de  Espanha-, 
e  os  físicos  da  Pérsia  e  da  Turquia,  que  curão  aquelie  rey 
que  vos  já  nomeey,  me  dixeram  que  Avicena  era  de  hum  a 
cidade  chamada  Bochorá,  a  qual  cae  em  a  província  dita 
Uzbeque,  que  he  parte  da  Tartaria,  que  nós  chamamos,  ou 
dos  Moguoras,  como  elles  chamão  qua;  bem  que  Andreas 
Belunensis  chame  áquella  parte  Pérsia,  mas  isto  he  largo 
modo  tomando  Pérsia,  porque  Pérsia  he  pequena  regiam. 
E  depois  soube  de  mercadores  discretos  e  curiosos,  que 
muito  tempo  moraram  em  Ormuz,  e  pergunteylhe  que  ci- 
dade era  Bochorá,  e  me  dixeram  que  caya  na  parte  de 
Uzbeque,  e  que  avia  nella*  e  nessas  partes  muito  maná,  e 
também  isto  me  dixe  Coge  Perculim,  bom  letrado  a  sua 


*  «Nellas»  na  ed.  de  Goa. 


78  Colóquio  sétimo 

guisa,  estante  em  Goa.  E  porque  dixe  o  sobrinho  do  Be- 
lunense  ser  Avicena  pessoa,  por  suas  letras,  valido  e  fidal- 
guo,  lhe  perguntey  se  fora  rey,  e  dixeme  que  não,  senam 
que  fora  goazil,  que  entre  elles  quer  dizer  regedor  ou  gran- 
de (3). 

RU.VNO 

Pareceme  ser  verdade  isso;  porque  nós,  por  as  coronicas 
de  Espanha,  sabemos  os  reys  que  nesse  tempo  concorriam 
em  Córdova  e  Sevilha,  e  nam  achamos  este;  e  comtudo  eu 
creo  bem  que  era  pessoa  poderosa  onde  quer  que  estivesse. 

ORTA 

Respondendo  á  outra  questam  digo,  que  he  trabalhosa 
cousa  provarse  huma  lingoa  ser  milhor  que  outra;  e  porém 
dizem  estes  íisicos  e  outros  letrados,  a  que  chamão  MuUás, 
que  as  obras  de  Avicena  e  Galeno  e  dos  filósofos  Gregos, 
e  as  do  falso  profeta,  erão  escritas  em  lingoa  da  Syria,  e  a 
estoutra  lingoa  da  nossa  Africa  chamão  barbara,  e  aos  nos- 
sos Mouros  inagarabf,  e  assi  por  esta  razam  chamão  os 
Mouros  da  Pérsia  e  Arábia  ás  nossas  terras,  que  nós  cha- 
mamos Algarves,  Algarby,  que  quer  dizer  Mouros  do  po- 
nente,  porque  o  nosso  Algarve  está  ao  ponente.  E  já  me 
pesa  porque  tanto  me  detive  nestas  cousas,  que  nam  fazem 
ao  caso,  mas  a  culpa  he  vossa  (4). 

RUANO 

Eu  folguo  muyto  de  saber  isso,  que  qua  nam  tendes  em 
muyto;  portanto  eu  tomo  a  culpa  sobre  mim:  mas  se  laser- 
picium  não  he  assa  fétida^  nem  he  odorífera,  scilicet,  aquelle 
laserpicium  que  escreve  Dioscorides  e  Plinio,  nam  parece  ser 
o  altiht  que  escreveu  Avicena,  nem  outros  Arábios. 

ORTA 

Os  Arábios  que  deste  simple  fazem  mençam  que  são 
Arábios,  falão  pouco  delle,  como  são  Rasis  e  Avenrrois, 
mas  se  olhardes  Serapio  falando  em  altiht,  diz  tudo  aquillo 
que  dizem  Galeno  e  Dioscorides  em  laserpicium. 


Do  Altiht  79 

RUANO 

Por  muitas  razões  vos  provarey  serem  diversas  mezinhas, 
scilicet,  assa  fétida  e  laserpiciuni;  porque  laserpicium  he 
mezinha  pêra  a  cosinha  e  pêra  curar,  e  assa  fétida  aproveita 
pêra  mezinha  somente,  e  isto  per  si  só  e  muito  poucas  ve- 
zes, e  para  se  usar  em  cozinha  danaria  todos  os  comeres  por 
ter  tam  horrendo  cheiro. 

ORTA 

Nam  vos  leixarey  com  esse  error  yr  avante,  porque  se 
quereis  saber  minha  entençam  he  necessário  que  deiteis  de 
vós  as  aífeições  que  tendes  a  estes  escritores  novos,  e  fol- 
gueis de  ouvir  minhas  verdades  ditas  sem  cores  rhetoricas, 
porque  a  verdade  se  pinta  nua. 

RUANO 

Muitas  vezes  vos  dixe  que  nenhuma  cousa  desejava  mais, 
que  tirar  de  mim  os  errores  que  tenho,  e  semeardes  em 
meu  intendimento  novas  sementes. 

ORTA 

Pois  sabey  que  a  cousa  mais  usada  que  ha  em  toda  a 
índia  e  per  todalas  partes  delia  he  esta  assa  fétida,  assi 
pêra  mezinhas  como  pêra  cozinha;  e  guastase  nestas  partes 
grande  quantidade  delia,  porque  todolos  gentios  que  podem 
alcançar  a  compraria,  a  comprão  pêra  deitar  nos  comeres; 
e  se  são  ricos,  comem  muyto  delia,  como  são  os  Baneanes 
e  todo  o  gentio  de  Gambaya,  a  quem  imitou  Pythagoras. 
Estes  a  deitão  nos  bredos  e  hortaliças  que  comem,  esfregan- 
do o  caldeiram  com  ella  primeiro,  e  he  adubo  ou  salsa*  e 
condimento  pêra  todo  seu  comer;  e  todos  os  outros  gentios 
que  a  podem  comer,  a  comem;  e  os  trabalhadores  que  nam 
tem  mais  que  comer  que  pam  e  cebollas,  nam  a  comem 
senam  quando  tem  delia  muyta  necessidade;  e  os  Mouros 


*  Salsa,  tomada  a  palavra  no  sentido  hespanhol  de  tempero  em 
geral. 


8o  Colóquio  sétimo 

também  a  comem,  mas  he  em  menos  quantidade,  somente 
porque  a  acham  medicinal.  Hum  mercador  portuguez  me 
gabou  muyto  os  bredos  que  faziam  estes  Baneanes,  que  levam 
esta  assa  fétida,  e  eu  os  quis  provar  e  acheyos  algum  tanto 
aprazíveis  a  meu  gosto,  e  porque  a  mim  nam  me  sabem 
bem  os  nossos  bredos,  nam  os  achei  tam  saborosos  como 
os  achou  o  portuguez  que  mo  dixe.  Ha  hum  homem  nestas 
partes  honrado  e  discreto,  ornado  com  carregos  de  elrey, 
que  come  esta  assa  fétida  pêra  lhe  fazer  apetite  de  comer; 
pêra  o  qual  diz  que  o  acha  muito  bom,  e  toma  delle  quando 
tem  necessidade  duas  oytavas;  e  diz  que  tem  hum  pouco 
de  amargor,  mas  que  o  amargo  he  apetitoso  como  o  da 
azeitona,  e  que  isto  he  ante  de  o  enguolir,  porque  diz  que 
depois  de  enguolido,  fica  a  pessoa  que  o  tomou  muito  con- 
tente: e  quanto  he  á  gente  desta  terra,  todos  me  dizem  que 
lhe  sabe  bem,  e  lhe  cheira  bem. 

RUANO 

E  vós  achastes  máo  cheiro  aos  bredos  que  provastes? 

ORTA 

A  cousa  que  me  mais  mal  cheira  do  mundo  he  assa  fé- 
tida; e  nos  bredos  não  me  cheirou  mal;  e  não  vos  maravi- 
lheis muito  disso,  que  a  ceboUa  e  o  alho  tem  muito  máo 
cheiro,  e  os  comeres  adubados  com  ellas  muito  bom;  e 
também  vos  sey  dizer  que  os  costumes  dos  cheiros  vos  fa- 
zem que  vos  sejam  mais  aprazíveis,  como  de  mim  sey  que  o 
betele  (este  que  de  contino  trazem  na  boca  mastigado),  a 
todos  os  que  o  comem  cheira  muito  bem,  e  a  mim  muito 
mal,  não  mais  senão  porque  o  nam  posso  comer.  He  qua 
mezinha  usada  per  si  só,  contra  o  que  dizeis  que  se  não 
usa  senão  em  compostos:  nisto  sois  enganado,  assi  como 
se  enganou  Sepúlveda,  porém  Guarinero*  e  muitos  usão 


*  Sepúlveda,  Guainero  (nota  do  auctor). 


Do  Altiht  8i 

delia  per  si  só.  Acerca  dos  índios  he  boa  pêra  o  estômago,  e 
pêra  que  não  sae  bem  he  pêra  gastar  a  ventosidade.  Hum 
portuguez  em  Bisnagucr  tinha  um  cavalo  de  muito  preço, 
o  qual  deitava  de  si  muita  ventosidade,  e  elrey  por  isso 
lho  não  queria  comprar:  o  portuguez  o  curou  dandolhe  a 
comer  qsIg  j-mgii  com  farinha;  elrey  lho  comprou  mui  bem 
depois  de  sáo,  e  lhe  perguntou  com  que  o  curara,  e  dixe- 
Ihe  que  com  j-mgu;  respondeulhe  elrey,  não  te  maravilhes 
disto,  porque  lhe  deste  a  comer  o  comer  dos  deuses,  como 
dizem  os  poetas  néctar:  respondeolhe  então  o  portuguez, 
com  a  voz  mais  baixa  em  portuguez,  que  milhor  lhe  chamara 
manjar  dos  diabos*. 

RUANO 

De  huma  duvida  me  tiray:  como  o  comem  os  Baneanes 
tam  continuadamente,  dizendo  Matheus  Silvatico  que  he 
veneno,  e  alegua  a  Galeno  pêra  isso? 

ORTA 

Ja  vy  Galeno  e  os  simplecistas  Gregos,  e  nenhum  diz  tal 
cousa*,  antes  diz  ser  bom  pêra  a  peçonha  e  peste,  e  lumbri- 
gas  e  mal  de  rayva,  que  sam  contrairos  effectos,  por  onde 
lhe  podeis  ao  Matheus  Silvatico  perdoar  esse  error  como 
outros  muytos.  Qua  o  metem  os  índios  na  cova  do  dente 
furado  que  dóe;  e  se  Plinio  diz**  que  hum  que  o  meteo  no 
dente  lhe  deu  tam  grande  dor  que  se  deitou  de  huma  janela 
abaixo,  seria  isto  por  estar  muita  cheo  de  humores,  e  mover 
a  mezinha  muito. 

RUANO 

He  de  muito  preço  nesta  terra  esta  mezinha? 


*  Parece  que  acima,  onde  diz  «pêra  que  não  sae  bem»,  se  deve 
ler  opera  que  sae  bem». 

**  Pli.  lib.  33,  cap.  23  (nota  do  auctor).  A  citação,  como  varias  ou- 
tras, está  errada;  e  Plinio  diz  o  que  o  nosso  auctor  refere,  no  livr.  xxii, 
cap.  49. 


82  Colóquio  sétimo 


ORTA 


Si*  (porque  acerca  de  nós  vale  pouco),  e  a  causa  he  por- 
que delia  se  gasta  muito,  e  se  apercebem  os  homens  de  a 
ter  de  sobejo,  porque  he  como  mantimento.  Ha  muita  no 
Mandou  e  Chitor  e  Del}^',  e  afora  isso  vem  de  Ormuz,  como 
mercadoria  pêra  Pegu  e  Malaca  e  Tenassarim,  e  essas  partes^ 
e  quando  falta  vai  muito  em  estremo. 

RUANO 

Usão  da  raiz  ou  folhas  delia,  porque  é  louvada  dos  anti- 
gos a  raiz  e  as  folhas,  e  rama? 

ORTA 

Já  vos  dixe  que  nam  vira  o  arvore,  nem  me  sabião  dar 
razam  delle;  mas  que  nenhuma  gente,  das  que  eu  conheço, 
usão  senam  da  goma,  a  qual  dizem  que  se  tira  dando  cu- 
tiladas no  arvore:  e  isto  me  dixe  o  homem,  que  acima  dixe, 
que  comia  esta  mezinha,  e  mais  me  dixe  que  lhe  dixeram  a 
feiçam  da  folha,  a  qual  lhe  debuxaram  ser  como  a  das  nossas 
avelaneiras;  e  assi  lhe  dixeram  que,  para  se  conservar  esta 
goma,  se  guardava  em  coiros  de  boy,  untados  primeiro  com 
sangue  e  mesturada  com  farinha  de  trigo;  por  onde  quando 
lhe  lá  acharem  cousa  que  pareça  farelos,  não  tenham  que 
he  falsidade,  como  escrevem  alguns,  antes  he  certificaçam. 
E  nam  faleceo  quem  dixesse  a  hum  baneane  letrado,  que 
porque  comia  esta  mezinha,  pois  vinha  mesturada  com  san- 
gue de  boy:  respondeo  que  era  tal  a  mezinha  que  nam  se 
havia  de  guardar  nella  essa  regra. 

RUANO 

O  laserpicium  antiguo  tinha  a  cor  algum  tanto  ruyva  e 
translucente,  e  este  de  que  usamos  tem  a  cor  túrbida  e  he 
cujo? 


*  Esta  palavra  falta  na  edição  de  Goa,  mas  sem  ella  a  resposta 
seria  inintelligivel. 


Do  Altiht  83 

ORTA 

Haveis  de  saber  que  de  duas  maneiras  vem  ter  á  índia, 
scilicet,  huma  limpa  e  crára,  e  outra  túrbida  e  cuja,  a  qual 
alimpam  os  Baneanes  primeiro  que  a  comam:  e  a  limpa  tem 
a  cor  como  latam  muito  luzio,  e  esta  vem  ter  ao  Guzarate, 
e  dizem  os  Guzarates  que  vem  de  Chitor  c  do  Patane  e 
Dely^  e  a  outra  goma  vem  do  Estreito  e  de  Ormuz;  e  a 
lúcida  é  de  mais  preço  e  a  outra  de  menos;  e  os  mercado- 
res onde  achão  a  lúcida,  que  he  sua,  não  comprão  a  outra 
que  se  gasta  em  gente  mesquinha,  em  comeres  e  mezinhas ; 
alguns  a  comem  com  o  pão,  a  que  chamão  apas, 

RUANO 

O  cheiro  he  todo  hum? 

ORTA 

O  da  que  aprovão  qua  por  milhor,  que  he  a  que  vem  ao 
Guzarate,  que  he  mais  luzente,  tem  o  cheiro  mais  forte;  e 
a  que  vem  de  Ormuz  nam  he  tam  forte ;  mas,  a  meus  nari- 
zes, ambas  cheiram  muito  mal,  e  peor  que  todas,  a  que  tem 
por  milhor,  que  he  a  luzente.  E  quando  perguntão  a  alguns 
Baneanes  qual  cheira  milhor,  dizem  que  a  que  vem  do  Gu- 
zarate, por  ter  o  cheiro  pior  e  mais  forte;  e  isto  deve  acon- 
tecer, porque  o  tem  em  o  custume;  que  a  muytas  pessoas 
cheiram  mal  o  estoraque  liquido,  e  a  algalia,  por  seu  forte 
cheiro,  e  geralmente  cheiram  muito  bem;  e  a  mim  não  me 
cheira  alguma  destas  gomas  a  porros,  e  algum  tanto  me 
cheira  á  nossa  mirra.  E  esta  foy  a  causa  porque  a  dividio 
Avicena  em  fétida  e  cheirosa:  porque  diziam  que  a  fétida 
cheirava  a  porros,  o  qual  nam  he  assi;  porque  se  consi- 
derarmos a  maneira  de  falar  dos  antigos,  acharemos  não 
se  chamar  huma  cousa  odorífera  por  cheirar  bem,  senão 
por  ter  o  cheiro  forte:  e  assi  chamão  ao  calamo  aromá- 
tico, o  qual,  a  juizo  de  muitos,  se  podia  milhor  chamar 
calamo  fétido,  pois  a  myrra  também  cheira  mal,  e  o  aloés 
pior,  e  o  espique  muito  mais;  porque  já  purguey  muitas  pes- 
soas que  não  queriam  tomar  o  ruibarbo  por  o  espique  que 
levava. 


84  Colóquio  sétimo 

RUANO 

Não  me  parece  mal  isso,  mas  milhor  será  que  seja  assa 
fdida  esta  de  que  usamos,  e  a  cheirosa  o  benjiiy;  pois  não 
me  dais  capitulo  de  benjuj. 

ORTA 

Se  he  mezinha  ou  simple  novamente  achado  no  nosso  uso, 
porque  lhe  hemos  de  dar  nome  antiguo? 

RUANO 

Dirvoloey:  porque  mais  razam  he,  que  a  raiz  do  arvore 
de  benjiiy  seja  boa  pêra  temperar  os  comeres,  e  assa  fétida 
não  traz  razam  que  seja  boa;  e  se  aos  Baneanes  lhe  sabe 
bem  he  porque  são  acustumados  a  comer  hortaliças  e  outros 
comeres  não  saborosos,  como  os  come  a  gente  da  nossa 
Europa.  E,  segundo  diz  António  Musa,  os  que  nestas  partes 
navegam  e  vão  buscar  o  benjiij  dizem,  descrevendo  o  ar- 
vore, ser  conforme  á  descriçam  do  arvore  de  laserpicium; 
mais  dizem  que  os  da  mesma  terra,  constrangidos  da  ver- 
dade, chamam  á  tal  goma  laserpicium. 

ORTA 

Nam  sey  qual  foy  o  espanhol  tam  desvergonhado,  que  di- 
xesse  a  António  Musa  em  Ferrara  tam  grande  mentira,  e 
como  vos  direy,  falando  do  benjuy,  o  arvore  delle  he  muito 
diferente  do  arvore  que  escrevem  da  assa  fétida;  e  o  benjuj 
nam  se  sabe  avelo  senão  em  Gamatra  e  em  Siam,  e  em 
todas  estas  terras  não  se  chama  senam  cominhan  e  nam 
laserpicium;  o  qual  benjuj  não  o  ha  na  Arménia,  nem  em 
Siria,  nem  em  Africa,  nem  em  Cirene,  pois  acerca  dos  mo- 
radores dessas  terras  não  ha  memoria  delle:  e  a  principal 
parte  pêra  onde  se  gasta  o  benjuf,  que  vem  a  estas  partes, 
he  pêra  a  Arábia,  e  isto  digo,  não  negando  gastarse  tam- 
bém pêra  todas  as  outras  partes-,  porque  também  se  gasta 
pêra  os  reinos  Dely,  e  do  Mandou  e  Chitor ;  porque  os  Gu- 
zarates  e  os  Decanins,  que  o  comprão  de  nós,  dizem  que  tem 
saída  pêra  essas  partes;  posto  que,  como  dixe,  não  he  muita 
quantidade:  logo  mal  dixe  o  vosso  Musa  que  o  ha  em  Africa 


Do  Altiht  85 

e  Arménia  e  Judea,  e  em  Siria,  pois  de  todas  essas  partes 
o  vem  qua  buscar;  e  o  Icvão,  podendo  levar  mercadoria  de 
mais  proveito,  se  lá  o  houvesse  (5). 

RUANO 

Peçovos  muito  que  vos  nam  agasteis  com  vos  perguntar. 
Ruelio,  homem  assaz  douto  e  digno  de  muito  louvor,  que 
trasladou  o  Dioscorides,  diz,  no  seu  livro  da  natureza  das 
plantas*,  que  em  França  nasce  huma  raiz  grossa  e  grande, 
e  de  fora  negra  e  de  dentro  branca,  e  vay  a  pintando  nas 
folhas  e  feiçam,  e  diz,  que,  assi  a  raiz,  como  a  semente, 
como  a  lagrima,  cheira  com  grande  suavidade,  e,  por  ser 
muito  provada  mezinha,  lhe  poseram  nomes  muito  sober- 
bos, scilicet,  rai^  impei^atoria,  rai\  angélica,  rai^  do  Espi- 
rito Santo;  e  diz  aproveitar  pêra  muitas  cousas,  sendo 
quente  sequa  no  terceiro  gráo;  he  única  contra  o  veneno, 
e  preserva  da  contagiam  e  apegamento  de  peste*,  e  diz  que, 
se  a  tomam  e  trazem  na  boca  quantidade  de  hum  grão  de  co- 
mer, e  no  inverno  com  vinho,  e  no  verão  com  agoa  rosada, 
não  sentiram  peste  o  dia  que  a  tomarem,  deitando  o  veneno 
per  orina  e  per  suor;  e  assi  diz  valer  contra  as  fascinações 
e  contra  muitas  enfermidades  que  leixo  de  dizer,  e  diz  ser 
aquelle  laserpiciíim  gallico,  o  que  os  médicos  veterinários 
(a  que  chamamos  alveitares)  disseram;  e  diz  que  o  çumo  ou 
lagrima  cheira  a  benjuj,  e  que  os  doctos  são  d'este  parecer, 
scilicet,  que  he  benjiij;  e  que  este  he  o  opus  cirinaico  ou 
çumo  cirinaico,  que  pario  Judéa  e  deitou  em  França;  e  assi 
diz  que  se  havia  de  chamar  ben  judeo  e  que  está  corruto  o 
vocábulo  e  chamam  o  benjuy  (6). 

ORTA 

Largamente  louvastes  esta  raiz;  e  porém  o  arvore  he  muito 
diferente   do   benjuj  como   vereis  quando  nelle  falarmos; 


*  Ruel.  li.  stirpium  (nota  do  auctor).  Isto  é  no  De  natura  stirpiwn  li- 
bri  três. 


86  Colóquio  sétimo 

porque  estoutro  do  henjuy  he  grande  arvore  e  muito  dife- 
rente, e  também  o  da  assa  fétida  sei  não  ser  tam  grande, 
e  fora  razam  que  se  he  laserpiciíim  cirinaiciim,  que  ficara 
lá  algum,  e  que  se  achara  algum  em  Judéa,  maiormente  que 
perguntey  já  a  homens  desta  terra,  mercadores  boticairos, 
e  nenhum  me  dixe  aver  tal  simples  em  memoria  de  homens 
e  da  região;  e  quanto  mais  que  o  Ruelio  o  louva,  dizendo 
que  tomado  a  jejum,  apaga  e  abaixa  todos  os  estimolos  da 
carne-,  e  de  toda  a  assa  fétida  se  escreve  que  não  leixa  o 
membro  estar  baixo;  e  mais  Mateolo  Senense  diz  que  teve 
essa  opinião,  e  que  depois,  constrangido  da  verdade,  tem  a 
contrairá:  e  portanto  não  sejais  tam  affeiçoado  aos  Gregos 
que  avorreçais  aos  Arábios  onde  bem  fallarem. 

RUANO 

Assi  o  farey,  e  porque  vejais  que  o  faço  assi,  chamarlheey 
imgu  e  não  laserpicium,  e  darmeis  licença  vindo  ao  caso, 
pêra  falar  nos  Genosophistas  que  dixestes,  e  nos  custumes 
desta  terra;  e  agora  veremos  que  cousa  he  anil,  porque  ó 
acho  qua  no  meu  abe. 

ORTA 

Anil  nam  he  simple  medecinal,  senam  mercadoria,  e  per 
isso  nam  ha  que  falar  nelle.  E  por  vos  tirar  de  cuidados, 
sabei  que  o  anil  he  chamado  assi  dos  Arábios  e  Turcos  e 
de  todas  as  lingoas,  e  somente  o  Guzarate,  que  he  onde  se 
faz,  o  chama  gali,  e  porém  já  agora  o  chama  nil.  He  herva 
que  se  semea  e  parece  com  a  que  nós  chamamos  mangiri- 
qiiam;  e  assi  a  colhem  e  põem  a  sequar  per  tempo,  e  mo- 
lhada a  pisam  com  páos,  e  des  que  he  bem  pisada  a  ajun- 
tam e  põem  a  enxugar  per  dias,  e  quando  a  enxugam  ou  está 
enxuta,  parece  de  cor  verde,  e  quanto  mais  se  vay  enxu- 
gando parece  de  cor  azul  crara,  e  depois  escura,  até  que 
venha  ser  o  mais  fino  escuro  que  pode  ser:  e  quanto  he 
mais  puro  e  limpo  da  terra  he  milhor,  e  a  prova  mais  certa 
he  queimado  còm  huma  candea,  c  não  hade  fiquar  com  arêa, 
senão  com  huma  farinha  muito  delgada;  e  outros  o  lanção 
em  agoa,  c,  se  nada,  temse  por  bom;  de  modo  que  ha  de 


Do  Altiht  87 

ser  leve  c  de  boa  cor.  E  porque  he  muito  grave  cousa  hum 
filosofo  estar  mais  nisto,  será  bem  que  comamos,  e  lexemos 
o  anil  aos  contratadores  (7). 

RUANO 

Si:  mas  primeiro  me  direis  que  fruta  he  aquella  do  ta- 
manho de  huma  noz  que  tam  bem  cheira? 

ORTA 

Nam  he  fruta  de  que  se  uze  cm  mezinha,  mas  he  boa 
pêra  temperar  os  comeres  com  azedo,  fazendoos  mais  ape- 
titosos: em  madura  cheira  bem,  e  com  ser  madura  retém 
em  si  o  azedo  mais  apetitoso,  chamamse  âmbares  (8),  e  tem 
huma  armadura  cartilaginosa,  e  é  amarella  quando  madura, 
e  quando  o  não  he  a  sua  cor  he  verde  craro  (9). 


Nota  (i) 

Depois  veremos  de  que  planta  ou  plantas  Orta  falia  n'este  Coló- 
quio; mas  primeiro  necessitamos  fixar-lhe  a  geographia. 

O  seu  «Coraçone»  identifica-se  facilmente  com  a  província  persa 
do  Khorásán,  não  só  pela  semelhança  do  nome,  e  pela  situação  em  que 
o  coUoca,  como  também  porque  uma  explicação  quasi  contemporânea 
define  este  ponto  de  um  modo  explicito.  Pedro  Teixeira,  um  dos  por- 
tuguezes  d'aquelles  tempos  que  melhor  conheceram  a  Pérsia,  diz  tex- 
tualmente :  Karason.  Llaman-la  comiinmente  nuestros  portogueses, 
Corason,  es  atra  província  de  las  sugetas  ai  reyno  de  Pérsia . .  .  (Rela- 
ciones, 38o). 

Este  «Coraçone»  tocava  no  «reyno  Dely»,  isto  é  na  índia;  e  na  re- 
gião de  «Chiruam».  Sobre  ou  a  respeito  de  Chiruam,  fez  Scaligero,  nas 
suas  notas  ao  livro  de  Orta  (Exotic,  244),  uma  confusão  terrível,  que- 
rendo identifical-o  com  a  cidade  africana  de  Kiruan,  ou  antes  Caira- 
Aván.  Perdoe-nos  o  eruditíssimo  commentador,  mas  o  erro  de  geogra- 
phia seria  demasiado  grosseiro  para  Orta,  que  seguramente  distin- 
guia a  cidade  da  Ásia  da  da  Africa.  Chiruam,  ou  Schirwán,  (jijj-i-, 
ficava  junto  de  Derbend,  a  conhecida  cidade  das  margens  occídentaes 
do  mar  Caspio;  e  este  nome  estendia-se  a  toda  a  região  vizinha,  ao 
lado  do  Daghestan,  á  qual  Pedro  Teixeira  chama  mesmo  reyno  de  Xy- 


88  Colóquio  sétimo 

ruam  (Cf.  C  Barbier  de  Meynard,  Dict.  géogr.  de  la  Perse,  349,  Paris, 
1861;  Teixeira,  Relaciones,  36 1). 

Vê-se,  pois,  que  o  nosso  Orta,  como  de  resto  outros  escriptores  do 
tempo,  não  chamava  unicamente  «Coraçone»  ao  Khorásán;  abrangia 
sob  esta  designação,  um  tanto  vaga,  uma  grande  região,  que  ia  da  ín- 
dia até  ao  Cáucaso,  incluindo  o  Beluchistan,  Afghanistan,  parte  do 
Turkestan  meridional,  o  Khorásán  próprio  e  toda  a  Pérsia  septentrio- 
nal.  Pela  banda  do  oriente  e  do  norte,  o  seu  Coraçone  chegava  até  ao 
Amu-Daria,  ou  Oxus,  para  alem  do  qual  ficava  o  «Uzbeque» — como 
veremos  nas  notas  seguintes. 

As  mercadorias  d'esta  região  vinham  á  índia,  ou  por  via  de  Hormuz, 
como  o  nosso  escriptor  affirma  correctamente,  ou  pelo  norte,  pelos  ca- 
minhos de  Kandahar  e  do  Cabul.  Por  isso  elle  diz  muitas  vezes,  que 
se  encontravam  no  reino  de  Dehli. 


Nota  (2) 

A  Glycyrrhi^^a  chama-se  em  arábico  sus  ou  çus,  .  ^.w  ;  e  o  seu  nome 

portuguez,  alcaçu^,  parece  vir  de  irq  çus,  ou  arq  çus,  .  ^j-^  ,^ ^^, 

que  significa  rai:^  de  çus,  e  se  transformou  por  euphonia  em  alcaçu^; 
assim  como  o  nome  hespanhol  da  mesma  planta,  oropij,  vem  do  plu- 
ral, iri^'  V. ?jt^)  que  significa  raijes  de  çus.  Rob,  <, m,  quer  effecti- 

vamente   dizer   «sumo   feito  basto»,  e  robaçu^  é  o  rob  de  çus,  v m 

f^j^]\  somente  Orta  engana-se  em  dizer  que  está  corrompido  o 
nome,  e  devia  ser  robalçu^,  pois  o  /  do  artigo  se  funde  correctamente 
no  s  solar  do  nome  (Cf.  Dozy,  Glossaire,  palavras  Oro^ju^,  Raba^^uj,  etc ; 
e  Sousa,  Vestígios  da  lingua  arábica,  palavra  alcaçus). 

Mas  de  tudo  isto  não  resulta  de  um  modo  bem  claro  que  se  não  deva 
dizer  assa  dulcis. 

Nota  (3) 

Avicenna  nasceu,  ou  pelo  menos  creou-se  e  educou-se  em  Bokhára; 
e  foi  depois  «goazil»,  isto  é,  wa^ir  ou  vzpr  de  um  príncipe  indepen- 
dente do  Hamadan,  e  mais  tarde  em  Ispahan.  As  noticias  de  Orta  sobre 
a  sua  vida  são  substancialmente  correctas,  e  não  carecem  de  explica- 
ções. 

O  que  requer  alguns  momentos  de  exame  é  a  situação  ou  colloca- 
ção  de  Bokhára  no  «Uzbeque»;  tanto  mais  que  a  versão  de  Clusius 
n'este  ponto  nãó  é  muito  fiel,  e  elle  suscitou  alguns  reparos  da  parte 
de  Scaligero  (Exotic,  i5i  e  244). 


Do  Altiht  89 

Bokhára,  como  o  resto  da  Transoxiana,  como  outras  regiões  da  tão 
perturbada  Ásia,  pertenceu  successivamente  a  diversos  senhores.  Fez 
algum  tempo  parte  do  Khanato  de  Chagátai,  uma  das  grandes  divisões 
em  que  se  fraccionou  o  enorme  império  de  Chengíz-Khan;  mas,  pelos 
começos  do  século  xvi,  occuparam  aquella  cidade  os  tártaros  Uzbeks, 
antigamente  habitantes  do  Khanato  de  Kipchák,  e  que  derivavam  o 
seu  nome  do  de  um  dos  seus  Khans,  o  primeiro  que  professou  o  isla- 
mismo, Mahommed  Uzbek.  Ali  se  conservaram  depois  durante  todo  o 
século,  com  vicissitudes  de  boa  e  má  fortuna,  e  interrupções  mais  ou 
menos  longas.  Temos  a  este  respeito  uma  informação  muito  interes- 
sante para  o  nosso  caso,  por  ser  perfeitamente  contemporânea  —  refe- 
re-se  ao  anno  de  i55o.  É  a  relação  de  viagem  de  um  certo  mercador 
persa,  Hadj  Mohammed,  feita  por  este  verbalmente  a  Ramusio,  que  a 
incluiu  no  seu  livro.  Paliando  das  regiões  de  Samarkanda,  elle  diz  que 
os  lescilbas  do  barrete  verde,  tartari  musulmani  (os  Uzbeks),  occupa- 
vam  aquellas  terras,  e  tinham  grandes  guerras  com  os  Soffiani  do  bar- 
rete vermelho  (os  súbditos  do  Súfí  ou  Scháh  da  Pérsia)^  Os  lescilbas 
possuíam  varias  cidades,  1'una  Bochara  e  1'altra  Samarcand.  No  fim  do 
século,  Pedro  Teixeira  exprime-se  d'este  modo :  U^^bek  és  grandíssima 
provinda. . . ;  e  enumera  as  suas  cidades  principaes,  Balk,  Samarcand, 
Damarkand  e  Bokara.Wê-se^  pois,  que  o  nosso  Orta,  escrevendo  em 
i56o  proximamente,  é  correcto  em  collocar  Bokhára  no  «Uzbeque» 
(Cf.  Ramusio,  Delle  navigationi,  11,  16  v";  Teixeira,  Relaciones,  383;  e 
para  a  historia  completa  dos  Uzbeks  e  de  Bokhára,  William  Erskine, 
Hist.  of  Báber  and  Hiimáyun,  i.  26  et  seqq.,  London,  1854). 

Deve  ainda  notar-se,  que  Orta  se  não  enganava  em  dizer  que  a 
"Pérsia  he  pequena  região»,  se  se  considerar  a  Pérsia  propriamente 
dita,  isto  é,  a  provincia  de  Fars  ou  Farsistán. 


Nota  (4) 

Receio  muito,  que  o  nosso  Orta  fizesse  no  seu  espirito  uma  grave 
confusão,  posto  que  isto  não  resulte  bem  claramente  das  suas  palavras. 

É  relativamente  exacto  quando  falia  do  garb,  o  poente,  de  que  pro- 
cedeu o  nosso  nome  do  Algarve.  E  também  exacto  quando  falia  dos 
«Magaraby»,  os  habitantes  do  Maghreb,  ou  Maghrib,  que  — segundo 
o  define  El-Beckri —  abrangia  a  Africa  septentrional  a  partir  da  grande 


'  O  barrete  vermelho  era  o  famoso  Ka^^albásch  dos  persas  schiitas.  Foi  bem  conhecido 
dos  portiiguczcs ;  Duarte  Barbosa  conta  como  o  grande  Ismael  adoptou  esta  «dcvisa»;  e  Af- 
fonso  de  Albuquerque,  quando  escreve  ao  poderoso  scháh  da  Pérsia,  chama-Ihe :  Rei  das  ca- 
rapuças Roxas. 


90  Colóquio  sétimo 

Syrta,  e  a  Hespanha  musulmana  (Cf.  a  versão  de  Abu  Obeid  el-Beckri 
por  De  Slane,  no  Journ.  Asiatique,  5™*  série,  vol.  xii  (i858),  412  et  seqq.). 

Ainda  é  exacto  quando  falia  das  differenças  que  podiam  existir  en- 
tre o  arábico  puro  da  Arábia,  Syria,  Mesopotâmia  e  outras  regiões  vi- 
zinhas, e  o  arábico  do  Occidente,  ou  do  Maghreb ;  posto  que  essas  dif- 
ferenças, pelo  que  diz  respeito  á  lingua  escripta  e  litteraria,  fossem 
pequenas  (Cf.  Renan,  Hist.  des  lang-ues  sémitiqiies,  409  et  seqq.). 

Quando,  porém,  insiste  em  que  as  obras  «de  Avicenna,  e  Galeno,  e 
dos  filósofos  gregos,  e  as  do  falso  profeta  erao  escriptas  em  lingua  da 
Syria»,  esta  phrase  deixa-me  suspeitar,  que  elle  não  distinguia  clara- 
mente duas  cousas  bem  diversas — o  syriaco  e  o  arábico  da  Syria:  o 
syriaco,  lingua  já  quasi  morta  no  seu  tempo,  em  que  haviam  sido  feitas 
as  primeiras  versões  dos  auctores  gregos;  e  o  arábico,  usado  na  Syria 
como  em  outras  partes,  e  em  que  foram  escriptos  o  Qanum  e  o 
Qoran. 

Nota  (5) 

Parece-me  preferivel  grupar  em  uma  só  nota,  forçosamente  um 
pouco  extensa,  o  que  temos  a  dizer  sobre  as  interessantes  noticias, 
que  Orta  dá  em  todo  o  Colóquio  a  respeito  da  asa-fostida. 

Vejamos  em  primeiro  logar  os  nomes  vulgares: 

—  «Imgu«  e  «Imgara»  são  os  nomes  indianos  citados,  que  correspon- 
dem ao  sanskritico  hingu,  e  aos  nomes  modernos  hing  e  hingra  de 
variedades  da  droga. 

—  «Altiht»  nome  arábico  da  droga;  isto  é,  vJ!^wd=s.,  hiltit. 

—  «Anjuden»  ou  «Angeidan»  nome  arábico  da  planta  de  que  ma- 
nava; isto  é  ^'j.sr'1,  andjudan. 

—  «Almharut»  outro  nome  da  planta;  de  v^ia.csr',  mahrúth,  appli- 
cado  especialmente  á  raiz. 

Como  se  vê,  tudo  isto  é  exacto;  e,  á  parte  variantes  de  orthographia, 
tudo  isto  é  fácil  de  identificar  com  o  que  encontramos  nos  livros  anti- 
gos e  modernos  (Cf.  Avicenna,  na  Interpretatio  do  Bellunense ;  Spren- 
gel,  Dioscorides,  11,  528;  Ainslie,  Mat.  Indica,  i,  20;  Pharmacographia, 
284;  Dymock,  Mat.  med.,  389). 

Da  planta  sabia  pouco;  nunca  a  viu,  e  tinham-lhe  apenas  dito,  que 
era  uma  arvore  pequena,  tendo  folhas  parecidas  com  as  da  «avellaneira». 
Comquanto  ainda  hoje  existam  alguns  pontos  duvidosos,  parece  ave- 
riguado, que  a  droga  mais  fina,  chamada  hing,  procede  da  Ferula  al- 
liacea,  Boiss.,  que  habita  os  terrenos  áridos  do  Khorásán;  emquanto  a 
droga  inferior  e  commum  do  commercio  se  extrahe  da  Ferula  Narthex, 
Boiss.  (Narthex  Asa-fcetida,  Falconer),  encontrada  ao  norte  do  Kach- 
mira  por  este  botânico,  e  da  Ferula  Asa-fwtida,  Linn.  (Scorodosmafoeti- 


Do  Altiht  91 

dum,  Bunge)'  dos  desertos  arenosos  a  nascente  e  poente  do  Arai,  das 
terras  ao  sul  de  Samarkanda,  do  território  de  Herat,  e  de  outros  pontos 
da  Pérsia  e  Afghanistan  (Cf.  Pharmacographia,  280;  Dymock,  Mat. 
med.,  38 1  a  385). 

Todas  estas  plantas  são  grandes  Umbelliferce  herbáceas,  e  não  são 
arvores,  nem  têem  folhas  de  «avellaneira».  Orta  estava,  pois,  mal  infor- 
mado n'este  ponto.  Quanto  ao  modo  de  obter  a  gomma-resina,  sabia 
apenas  que  davam  «cutiladas»  na  arvore  para  a  extrahir,  o  que  é  exacto. 
Kãmpfer,  o  primeiro  que  descreveu  methodicamente  o  processo  de  ex- 
tracção (1687),  refere-se  ao  modo  por  que  na  Pérsia  e  Afghanistan  cor- 
tam finas  secções  na  parte  superior  da  raiz  para  provocar  a  saída  do 
sueco  leitoso.  Muito  depois  (1857)  H.  Bellew,  que  assistiu  á  colheita  da 
droga  na  região  de  Kandahar,  falia  igualmente  nas  incisões  profundas 
feitas  na  raiz.  E  recentemente  o  sr.  Dymock,  a  quem  devemos  a  ultima 
e  mais  completa  noticia  sobre  as  origens  da  asa-foetida,  confirma  as 
indicações  de  Kãmpfer  e  de  Bellew  sobre  este  ponto^. 

Orta  sabia  igualmente  que  a  guardavam  em  «coiros  de  boy»,  mistu- 
rando-a  com  farinha  de  trigo.  H.  Bellew  confirma  a  ultima  indicação, 
dizendo  que  a  adulteram  nos  sitios  de  producção,  lançando-lhe  gesso, 
ou  farinha, yZoMr.  E  Dymock  diz,  que  a  trazem  para  a  índia  em  coiros, 
packed  in  a  skin,  descrevendo  mais  detidamente  o  que  diz  respeito  á 
região  de  Kandahar,  sewn  up  in  goat  skins,  forming  small  oblong  bales, 
with  the  hair  outside — uma  espécie  de  odres.  Como  se  vê,  o  nosso  es- 
criptor  continua  a  ser  exacto. 

Onde,  porém,  Orta  é  particularmente  interessante,  é  n'aquillo  que 
pôde  observar  directamente.  No  nosso  século,  o  zeloso  pharmacologista 
Guibourt  chamou  a  attenção  para  uma  amostra  de  asa-fcetida,  vinda  da 
índia,  muito  pura,  de  cheiro  forte  e  repugnantíssimo,  e  da  cor  de  miei 
foncé.  Segundo  os  auctores  da  Pharmacographia,  esta  variedade  da 
droga  forma :  a  dark  brown,  translucent,  brittle  mass,  0/  extremely  al- 
liaceous  odour.  E  recentemente,  o  sr.  Dymock  diz,  que  a  ella  se  dá  o 
nome  especial  de  hing,  que  é  produzida  pela  Ferula  alliacea  e  vale 
perto  do  triplo  da  ordinária,  acrescentando,  que  Guibourt  foi  o  primeiro 
europeu  que  a  notou.  Mas  a  verdade  é,  que  ella  vem  claramente 
apontada  pelo  nosso  escriptor.  Aquella  asa-foetida  « limpa  e  crara », 


'  Os  géneros  Narthex  e  Scorodosma  estáo  incluídos  no  género  Ferula  (Bentham  e  Hoo- 
ker,  Genera  plantarum,  i,  918).  A  identidade  da  planta  de  Kiimpfer  [Ferula  Asa-foetida 
Linn.)  com  a  de  Bunge  foi  posta  em  duvida,  mas  é  admittida  por  Boissier  (Flora  Orientalis, 
II,  994). 

'  E  interessante  a  noticia  do  portuguez  Teixeira,  posterior  a  Orta,  mas  muito  anterior  a 
Kãmpfer.  Diz  elle  :  coge-se  la  mas  d'ella  en  fin  dei  otono,  por  que  etiftn  dei  estio  acochillan 
las  plantas  y  comienca  a  distillar.  Refere-se  a  Duzgun  no  I.aristan,  um  dos  sitios  clássicos 
da  producção  d'esta  droga  (Relaciones,  92  e  93). 


92  Colóquio  sétimo 

tendo  a  cor  como  «latam  muito  luzio»,  tendo  o  «cheiro  mais  forte», 
e  sendo  de  «mais  preço»,  era  evidentemente  o  hing  da  Ferula  allia- 
cea  (Cf.  Guibourt,  Hist.  nat.  des  drogues,  iii,  241;  Pharmacographia, 
284;  Dymock,  1.  c,  38 1,  382). 

Vejamos  ainda  as  procedências.  Grande  parte  da  droga,  segundo 
Orta,  vinha  de  «Ormuz» ;  isto  era  verdade  no  seu  tempo,  e  ainda  é 
verdade  no  nosso,  se  não  propriamente  de  Hormuz,  hoje  decadente, 
ao  menos  do  Golfo  Pérsico  em  geral :  miich  is  shipped  in  the  Persian 
G III f  for  Bombay  (Pharmac,  285).  Outra  vinha  ter  ao  Guzerate,  e  di- 
ziam os  guzerates,  que  procedia  de  Chitor  e  do  Patane  (Afghanistan?) 
e  Dely.  Estas  indicações,  tomadas  á  lettra  são  inexactas,  porque,  nem 
no  reino  de  Dehli,  nem  em  Mandou  ou  Chitor  havia  asa-foetida;  mas 
Orta  quer  referir-se  á  que  entrava  na  índia  por  terra  e  pela  fronteira 
do  noroeste.  N'este  sentido  a  aflfirmação  deve  ser  exacta,  e  ainda  hoje 
alguma  asa-fcetida  — computada  no  anno  de  1864  em  valor  superior  a 
2:000  £ —  continua  a  vir  á  índia  pela  via  de  Kandahar  e  desfiladeiros 
de  Bolán  até  Shikarpúr,  emquanto  outra  vem  pelo  Cabul  a  Peshawár 
(Cf  Davies,  Report  on  the  trade  of  central  Ásia,  18  e  21). 

Se  prescindirmos,  pois,  de  algumas  inexactidões,  perfeitamente  ex- 
plicáveis pelos  escassos  meios  de  informação  de  que  o  nosso  auctor  dis- 
punha em  relação  a  regiões,  que  nunca  visitou  e  eram  pouco  conheci- 
das, vemos  que  a  sua  noticia  sobre  as  origens  da  asa-fcetida  é  bastante 
completa  e  sobretudo  notavelmente  exacta. 

Dos  usos,  bem  conhecidos,  da  droga  pouco  ha  a  notar.  A  asa-foetida 
figura  ainda  hoje  em  todas  as  Pharmacopêas  como  um  anti-spasmodico 
poderoso;  e  na  índia  foi  também  considerada  aperitiva  e  aphrodisiaca. 
O  que  era  novo  para  Garcia  da  Orta,  era  o  seu  emprego  constante 
como  condimento;  e  naturalmente  este  tempero  mal  cheiroso  repu- 
gnava aos  seus  hábitos  de  europeu.  Comtudo  elle  confessa  que  uns  cer- 
tos bredos,  temperados  com  asa-foetida,  lhe  não  cheiraram  e  mesmo 
lhe  não  souberam  muito  mal. 

Passaremos  também  de  leve  sobre  a  interminável  questão  da  identi- 
dade ou  não  identidade  da  asa-fcetida  com  o  laserpitiiim,  recordando 
apenas  o  sufficiente  para  elucidar  o  que  diz  o  nosso  escriptor.  O  cele- 
bre fftXcptov  dos  gregos,  o  laserpitiiim  dos  latinos,  era  uma  planta  africana, 
que  habitava  particularmente  na  península  Cyrenaica.  Julgaram  alguns 
tel-a  encontrado  ali  modernamente;  maspesquizas  cuidadosamente  fei- 
tas, sobretudo  pelo  sr.  Júlio  Daveau,  demonstraram,  que  o  supposto  5/7- 
phion  era  simplesmente  a  vulgar  Thapsia  garganica,  Linn.,  uma  planta 
medicinal,  mas  de  qualidades  diversas  da  antiga,  a  qual  se  deve  julgar 
extincta.  Como  este  silphion  ou  laserpitium  africano  fosse  raro  já  nos 
tempos  de  Plinio  e  de  Dioscorides,  empregava-se  em  seu  logar  uma 
droga  de  inferior  qualidade,  á  qual  se  dava  o  mesmo  nome,  e  que  vinha 
do  Oriente,  da  Syria,  da  Pérsia  e  da  Média.  Será  difficil  decidir  com 


Do  Altiht  93 

segurança  se  aquelle  laserpitium  asiático  era  a  asa-foetida;  mas  esta 
opinião  não  parece  inacceitavel,  antes  muito  plausivel.  Orta,  um  pouco 
confusamente  na  verdade,  inclina-se  a  este  modo  de  ver;  e  repelle,com 
toda  a  rasão,  qualquer  approximação  entre  o  laserpitium  e  o  beijoirn, 
do  qual  trataremos  no  Colóquio  respectivo.  (Cf.  Hérink,  La  vérité  sur 
le  prétendu  Silphion  de  la  Cyrénaique;  Sprengel,  Dioscorides,  11,  527- 
Guibourt,  Hist.  des  drogues,  iii,  238;  Jonathan  Pereira,  Elements  of 
mat.  medica,  vol.  11,  part.  11,  p.  174,  4."'  edition,  London,  1857). 


Nota  (6) 

Confundem-se  aqui  duas  plantas,  ambas  da  mesma  familia  das  Um- 
belli/erce,  e  que  ambas  tiveram  um  momento  de  celebridade.  Uma  é  a 
Imperatoria  Ustruthiuin,  Linn.';  a  outra,  a  cuja  raiz  se  deu  o  nome  de 
raiY  angélica,  e  de  raif  do  espirito  santo,  é  a  Archangelica  officinalis, 
Hotf.  et  Koch  (Angélica  archangelica,  Linn.),  que  ainda  figura  nas 
Pharmacopèas,  mas  é  pouco  empregada. 


Nota  (7) 

Do  Anil  falia  o  nosso  Orta  brevemente  e  com  um  certo  desprendi- 
mento, parecendo-lhe  matéria  mais  própria  de  «contratadores»,  que  de 
«filósofos».  Indica,  porém,  o  nome  moderno  na  índia,  «Nil»,  o  qual  vem 
do  sansla"ÍLÍco  mH,  que  se  deriva  de  Hlr^  ntla,  azul.  E  descreve  suc- 
cintamente  a  sua  fabricação,  que  já  séculos  antes  observara  e  descre- 
vera Marco  Polo  (Cf.  Yule,  Marco  Polo,  11,  363  e  370). 

As  maneiras  de  apreciar  as  qualidades  do  anil,  a  que  se  refere  o 
nosso  escriptor,  eram  bem  conhecidas  no  Oriente;  e  ao  melhor  e  mais 
leve  davam  os  portuguezes  o  nome  de  anil  nadador.  Duarte  Barbosa  diz, 
que  o  «Anil  pesado,  que  tenha  areia»  valia  de  18  a  20  fanões  a  farazola-, 
emquanto  o  «Anil  nadador  muito  bom»  valia  3o  fanões  (Cf.  Duarte 
Barbosa,  Livro,  385). 


'  Hoje  incluída  no  género  Peucedanum. 

'•  A  farazola  variava  segundo  as  localidades  entre  8  e  11  kilos  proximamente,  chegando 
algumas  a  14  kilos ;  e  o/anão  valia  de  20  a  27  reaes,  havendo  alguns  mais  baixos.  Farazola, 
onfaraçoU  ou  farasota  era  a./drsala  arábica;  no  Roteiro  da  viagem  de  Vasco  da  Gama  vem 
escripta  a  palavra  com  menos  alteração,  faraialla  t  fragata.  O  f anão  ou/anam  era  uma  pe- 
quenina moeda,  e  o  seu  nome  vinha  do  tamil  panam,  que  significa  dmheiro  (Cf.  as  excellentes 
Tabeliãs,  annexas  ao  Lyvro  dos  Pesos,  nos  Subsídios  de  Felner ;  e  também  Yule  e  Buraell, 
Glossary,  nas  palavras  Fraiala,  e  Fanam). 


94  Colóquio  sétimo  do  Altiht 


Nota  (8) 

Os  «âmbares»  são  os  fructos  da  Spondias  viangifera,  Willd.,  cujo 
nome  hindi  é  ainda  o  mesmo,  ambara  (Piddington,  Index,  83) ;  e  cujas 
drupas  ovóides,  e  de  caroço  fibroso,  correspondem  perfeitamente  á 
descripção  de  Orta. 

Nota  (9) 

Os  escriptores  citados  n'este  Colloquio,  e  não  mencionados  nos  an- 
teriores, são :  Sepúlveda,  o  Fernando  de  Sepúlveda,  que  escreveu  o 
Manipulus  medicinarunr,  e  Guarinero,  ou  correctamente  na  nota  Guai- 
nero,  isto  é,  António  Guainero,  auctor  do  Opus  prceclarum  (Cf.  Garcia 
da  Orta  e  o  seu  tempo,  291  e  293). 


COLÓQUIO  OCTAVO  DO  BANGUE 

INTERLOCUTORES 
RUANO,  ORTA,  ANTÓNIA 

RUANO 

Nam  sei  a  diferença  que  ha  entre  o  que  chamao  bangue, 
e  o  que  se  diz  amjiam;  porque  pode  ser  que  tudo  seja 
hum,  pois  que  vos  vejo,  quando  vituperais  algum  servo 
chamaislhe  bangue,  e  outras  vezes  amjiam;  e  por  isso  que- 
ria saber  qual  he  cada  hum  e  como  se  faz  e  pêra  que  se 
usa  cada  hum. 

ORTA 

O  amjiam  he  o  que  chamamos  ópio;  e  delle  vos  direy  a 
seu  tempo;  e  agora  vos  satisfarey  com  dizervos  que  cousa 
he  o  bangue,  scilicet,  a  arvore  e  a  semente.  Antónia,  dá  qua 
o  que  mandei  trazer. 

ANTONLA 

Ex  aqui  o  arvore  dos  pequenos,  e  vedes  aqui  a  semente 
que  dá,  e  também  vede  o  que  se  vende  na  botica  feito; 
porque  tudo  me  mandastes  que  tivesse  junto. 

RUANO 

Esta  semente  parece  a  do  linho  alcanave,  senão  que  esta 
he  mais  pequena  e  não  tam  branca,  e  este  arvoresinho  pa- 
rece também  linho  alcanave,  por  onde  não  ha  que  falar 
nelle,  pois  sabemos  a  que  aproveita. 


96  Colóquio  octavo 

ORTA 

Nam  he  linho  alcanai>e,  porque  a  semente  he  mais  pe- 
quena e  mais  não  iie  alva  como  a  outra,  e  os  índios  comem 
esta  semente  ou  as  folhas  pisadas  pêra  ajudarse  e  compra- 
zer ás  mulheres-,  e  posto  que  pêra  outros  eífeitos  a  tomem, 
scilicet,  pêra  ter  vontade  pêra  comer,  também  pêra  isto  lhe 
ajuda;  e  os  nossos  escritores  dizem  que  corrompe  a  se- 
mente genital  o  linho  alcanave,  e  mais  os  ramos  deste  tem 
muito  de  pao  e  pouco  de  casca,  e  o  contrairo  tem  o  linho 
alcaiiape. 

RUANO 

Fazem  destas  cascas  algumas  cordas? 

ORTA 

Não. 

RUANO 

Ha  outra  cousa  de  que  as  fazem? 

ORTA 

Si,  da  casca  do  fruto  da  palmeira,  do  que  ao  diante  fa- 
remos mençam,  e  também  no  Balagate  fazem  cordas  da 
casca  de  huma  raiz  de  huma  arvore  muito  grande  •,  e  pêra 
falar  comvosco  a  verdade  também  as  fazem  de  linho  alca- 
neve,  que  ha  lá  muito,  e  no  Decam  e  em  Bengala;  e  mais 
eu  vi  lá  linho  do  nosso,  de  que  fazemos  as  nossas  camizas, 
e  todo  este  linho  e  o  linho  alcanave  he  mercadoria  que  vem 
a  nós  das  terras  sobreditas  (ao  qual  chamão  alei):  e  porém 
o  linho  aleanave  ha  nesta  terra  firme  e  he  pouco;  e  por 
aqui  ficais  sem  escrúpulo  de  nam  ser  isto  linho  aleanave  (i). 

RUANO 

Pois  asi  he,  dizeyme  como  se  faz  este  bangiie,  e  pêra 
que  o  tomão,  e  que  leva? 

ORTA 

Fazse  do  pó  destas  folhas  pisadas,  e  ás  vezes  da  se- 
mente; e  alguns  lhe  lanção  areca  verde;  porque  embebeda 


Do  Bangiie  97 

e  faz  estar  fora  de  si:  e  pêra  o  mesmo  lhe  mesturão  no^ 
moscada  e  maça,  que  tem  o  mesmo  etfeito  de  embebedar^ 
e  outros  lhe  lançao  cravo,  e  outros  cânfora  de  Boriico,  e 
outros  ambre  e  almisquc,  e  alguns  amjiam;  e  estes  são  os 
Mouros  que  muyto  podem;  e  o  proveito  que  disto  tirão  he 
estar  fora  de  si,  como  enlevados  sem  nenhum  cuidado  e 
prazimenteiros,  e  alguns  rir  hum  riso  parvo;  e  já  ouvi  a 
muitas  molheres  que,  quando  hião  ver  algum  homem,  pêra 
estar  com  choquarerias  e  graciosas  o  tomavão,  E  o  que 
nisto  se  conta  pêra  que  foy  inventado,  he  que  os  grandes 
capitães,  antiguamente  acustumavão  embebedarse  com  vi- 
nho ou  com  amjiam,  ou  com  este  bangiie,  pêra  se  esque- 
cerem de  seus  trabalhos,  e  nam  cuidarem,  e  poderem  dor- 
mir; porque  estas  pessoas  as  vigílias  as  atormentavão  (2).  E 
o  gram  Soltão  Badur  dizia  a  Martim  Aífonso  de  Sousa,  a 
quem  elle  muito  grande  bem  queria  e  lhe  descubria  seus 
secretos,  que  quando  de  noite  queria  yr  a  Portugal  e  ao 
Brasil,  e  á  Turquia,  e  á  Arábia,  e  á  Pérsia,  não  fazia  mais 
que  comer  um  pouco  de  bangue;  e  este  fazem  elles  em  le- 
tuario,  com  açucare  e  com  as  cousas  acima  ditas,  a  que 
chamão  maju  (3). 

RUANO 

Faz  esses  effeitos  de  prazer  em  todos? 

ORTA 

Pôde  ser  que  nos  acustumados  a  elle,  que  os  fará  assi; 
mas  eu  vi  hum  portuguez  chpquareiro,  que  comigo  foy  ao 
Balagate  ha  muito  tempo,  e  comeo  uma  talhada  ou  duas 
deste  letuario,  e  de  noite  esteve  bêbedo  gracioso  e  nas  fa- 
las em  estremo,  e  no  testamento  que  fazia.  E  porém  era 
triste  no  chorar  e  nas  magoas  que  dizia;  quero  dizer  que, 
pêra  si,  mostrava  ter  tristeza  e  grande  enjoamento,  e  ás 
pessoas  que  o  vião  ou  ouvião  provocava  o  riso,  como  o  faz 
hum  bêbedo  saudoso;  e  estes  moços  meus  que,  escondida- 
mente de  my,  o  tomão,  dizemi  que  lhes  faz  nam  sentir  os 
trabalhos,  e  estar  prazenteiros  e  ter  vontade  de  comer.  E 
crede  que  pois  isto  he  tanto  usado  e  de  tanto  numero  de 

7 


gS  Colóquio  octavo 

gente,  que  nam  he  sem  mysterio  e  proveito;  mas  eu  nam  o 
provei,  nem  o  quero  provar;  e  muytos  Portuguezes  me  dis- 
serão  que  o  tomarão  pêra  os  mesmos  eífeitos,  em  especial 
pêra  o  das  molheres,  e  pois  isto  não  he  mezinha  daquellas 
nossas,  nem  que  lá  aja,  nam  gastemos  o  tempo  nisso. 


Nota  (i) 

Garcia  de  Orta  engana-se,  quando  julga  a  planta,  que  na  índia  pro- 
duz o  «bangue»,  diversa  d'aquella,  que  na  Europa  dá  as  fibras  textis 
do  «linho  alcanave»,  ou  cânhamo.  Ambas  pertencem  á  mesma  espécie, 
Cannabis  sativa,  Linn.  Succede,  porém,  que  as  influencias  do  clima  de- 
terminam algumas  differenças  de  forma  e  de  propriedades;  e  tor- 
nam — por  exemplo —  a  planta  da  índia  lenhosa  e  quasi  arbustiva;  é 
isto  que  elle  exprime,  dizendo:  «tem  muito  de  páo  e  pouco  de  casca». 
Estas  differenças  foram  notadas  também  pelo  escrupuloso  Rumphius; 
e  levaram  mais  tarde  um  botânico  illustre,  Lamark,  a  estabelecer  para 
a  forma  indiana  uma  espécie  particular,  Cannabis  indica,  a  qual,  no 
emtanto,  assenta  sobre  caracteres  fugazes  e  não  é  geralmente  admit- 
tida.  O  engano  de  Orta  explica-se  pois,  e  prova  mesmo  com  quanto 
cuidado  elle  observava. 

Orta  falia  principalmente  das  propriedades  intoxicantes  da  planta 
— de  que  nos  occuparemos  na  nota  seguinte  — ;  mas  refere-se  também 
ao  aproveitamento  das  suas  fibras  textis  na  região  do  Deckan  interior, 
ou  «Balagate».  A  noticia  é  curiosa,  porque  geralmente  se  diz  que  as 
fibras  do  Cannabis  só  recentemente  têem  sido  empregadas  na  índia,  o 
que  está  em  contradicção  com  esta  affirmação  do  nosso  escriptor 
(Cf,  Ainslie,  Mat.  ind.  ii,  109;  Drury,  The  useful  plants  of  índia,  108, 
2*'  edition,  London,  iSyS). 

Incidentemente,  Orta  menciona  o  linho  commum,  «de  que  fazemos 
as  nossas  camisas»,  a  que  na  índia  chamavam  «alei» — isto  é,  alsi.  Não 
nos  diz  para  que  o  cultivavam;  mas  sabemos  que  esta  espécie  é  ali 
geralmente  semeada,  não  tanto  para  obter  as  fibras,  como  em  vista 
do  óleo  contido  nas  sementes,  o  vulgar  e  bem  conhecido  óleo  de  li- 
nhaça (Cf.  Drury  1.  c.  278). 

Notaremos  ainda  de  passagem,  que  Orta  dá  duas  orthographias  do 
antigo  nome  portuguez  do  cânhamo — «alcanave»  e  «alcaneve»  Esta 
ultima  forma  encontra-se  também  na  Aulegraphia  de  Ferreira,  e  no 
Lyvro  dos  Pesos  de  António  Nunes;  mas  a  orthographia  primitiva  pa- 
rece ser  alcanavy,  como  se  lê  em  um  documento  de  Moncorvo  do 


Do  Bangue  99 

anno  de  1407.  E  esta  fórma  indica  a  procedência,  não  propriamente  do 
nome  arábico  do  cânhamo,  ^._-^^!,  al-qinab,  mas  do  adjectivo  deri- 
vado d'aquelle  nome,  ,-;^'^  al-qinabi.  De  resto,  é  necessário  adver- 
tir, que  se  o  nome  nos  veiu  directamente  das  linguas  semiticas,  tinha 
passado  para  aquellas  linguas  das  aryanas;  e  o  arábico  qinab  prende-se 
ao  persiano  kanab,  ao  grego  xár/aSt;  e  a  outros  (Cf.  Viterbo,  Elucidá- 
rio, I,  75,  Lisboa,  1798;  Dozy,  Glossaire,  83;  A.  Pictet,  Les  Orig.  In- 
do-européenneSf  i,  3i3,  Paris,  iSSg). 


Nota  (2) 

A  noticia  de  Orta  sobre  o  emprego  excitante  e  intoxicante  do  «ban- 
gue»  — hoje  mais  conhecido  pelo  nome  arábico  de  haschisch — é  bas- 
tante completa  e  exacta. 

O  nome  de  que  elle  usa,  «bangue»  — isto  é  bháng —  dá-se  propria- 
mente ás  folhas  seccas  do  Cannabis,  também  chamadas  siddhi  e  sab^^i; 
dando-se  o  de  ganjá  aos  rebentos  floridos;  e  o  de  charás  á  resina 
da  mesma  planta,  a  qual  se  colhe  principalmente  nas  terras  de  Yarkand 
e  outras  regiões  elevadas,  e  vem  d'ali  para  a  índia.  Todas  estas  drogas 
contêem  uma  substancia  particular,  de  etfeitos  intoxicantes  enérgicos^. 

Pelo  que  diz  Orta  se  vè,  que  o  uso  do  «bangue»  ou  haschisch  era 
então  muito  geral  na  índia  nas  altas  e  nas  baixas  classes;  entre  os 
«Mouros  que  muyto  podem»,  e  que  tomavam  aquelles  electuarios  com- 
plicados, chamados  «maju»  — mais  propriamente  madjun — ,  e  compos- 
tos de  ingredientes  numerosos  e  caros;  e  entre  a  gente  menos  rica, 
que  se  contentava  com  as  infusões,  chamadas  bhangi,  ou  com  as  folhas 
seccas,  fumadas.  Sobre  os  effeitos  do  bangue,  e  a  excitação  especial 
que  produzem  os  seus  preparados,  também  o  nosso  escriptor  é  muito 
interessante  e  exacto,  tendo  mesmo  n'estas  paginas  uma  facilidade  e 
uma  felicidade  de  fórma,  que  lhe  não  são  muito  habituaes.  E  quando 
nos  diz,  que  o  proveito  que  tiravam  de  o  tomarem  era  «estar  fora  de 
si  como  enlevados  sem  nenhum  cuidado»,  o  velho- medico  portuguez 
fere  bem  a  perigosa  seducçáo  de  todos  esses  venenos,  que  se  chamam 
álcool,  ópio,  haschisch  ou  morphina — enlevados  sem  nenhum  cuidado. 

Apesar  de  o  uso  do  bangue  ser  então  vulgarissimo  por  todas  aquel- 
las terras  orientaes,  não  deixava  por  isso  de  ser  condemnado.  O  grande 


'  Uma  ou  mais  substancias,  sendo  as  mais  importantes  uma  resina  e  um  óleo  volátil.  Se- 
gundo Personne,  do  óleo  podem  separarse  dois  corpos,  o  caniiabene  (Cu  H.o),  e  o  hydreto 
de  cannabéne  (Cis  H;,),  sendo  o  primeiro  o  mais  activo  physiologicamente.  E  certo  também 
que  a  resina  tem  propriedades  muito  enérgicas  (Cf.  Pharmac,  493  ;  Wittstein,  Org.  const. 
ofplants,  144,  trad.  de  Von  Mueller,  Melbourne,  1878). 


lóo  Colóquio  odavo 

erudito  d'Herbelot  diz-nos  (Bibl.  orient.,  200,  Paris,  1G97)  que:  ceux 
qui  usent  ordinairement  du  Beng^  et  de  l'Ajioun  (opioj  sont  nommés 
par  les  Árabes,  Persans  et  lures,  Benghi  et  Afiuni,  et  passent  parmi 
euxpour  des  débauchés.  E  esta  phrase  de  d'Herbelot  dá-nos  a  explicação 
d'aquella  outra  phrase  de  Ruano,  logo  no  começo  do  Colóquio,  quando 
diz  que  Orta,  zangado  com  os  servos,  lhes  chamava  bangue  e  amjião, 
o  que  mal  se  poderia  comprehender.  Chamar-lhes-ía  banglii,  e  amjiuni, 
como  um  amo  irascivel  da  Europa  pôde  ás  vezes  chamar  bêbedo  a  um 
creado. 

Se  o  uso  do  bangue  era  condemnado,  não  era  legalmente  prohibido, 
e  aquella  substancia  vendia-se  publicamente  em  todas  as  terras  sujeitas 
ao  nosso  dominio,  e  de  certo  também  nas  outras.  Nos  contratos  para 
o  exclusivo  da  venda  de  certas  substancias  e  mercadorias,  contratos 
muito  usados  na  Índia  portugueza  do  xvi  século,  e  que  constituíam 
uma  grande  parte  das  rendas  do  estado,  o  bangue  andava  geralmente 
annexo  ao  anjião  (ópio)  e  ao  sabão.  Nos  rendimentos  da  cidade  de 
Goa,  figura  o  seguinte: 

«E  a  Renda  do  aníião  e  bangue  e  sabão  as  quaes  cousas  ninguém 
pode  vender  pelo  miúdo  senão  o  rendeiro  da  dita  Renda,  ou  a  pesoa 
que  com  ele  se  concertar,  esteve  arrendada...»;  seguem  as  quantias, 
que  para  os  annos  de  i5^5  e  1546  foram  em  cada  anno  de  1:600  par- 
dáos'^.  Por  menores  quantias  íigura  também  o  arrendamento  do  bangue, 
annexo  a  mais  substancias,  nas  ilhas  de  Divar,  e  outras  próximas  de 
Goa ;  e,  junto  ao  anjião  e  sabão,  nas  terras  de  Chaul.  Não  temos  indicação 
sobre  a  importância  relativa  da  venda  do  ópio  e  do  bangue,  duas  sub- 
stancias igualmente  perigosas  (Tombo  do  Estado  da  índia,  52,  54, 1 24). 

Não  é  fácil  decidir  em  que  região  da  Ásia  se  começou  a  empregar  o 
cânhamo  como  substancia  intoxicante.  Heródoto  diz,  que  os  Scythas  o 
conheciam,  e,  expondo-se  ao  fumo  das  suas  sementes,  que  lançavam  so- 
bre brazas,  ficavam  em  um  estado  de  excitação  violenta  e  selvagem.  Mas 
por  outro  lado,  o  seu  uso  na  índia  é  antiquíssimo.  Tem  numerosos  sy- 
nonymos  sanskriticos,  todos  significativos:  vrijpatha  (a  íolha  forte); 
ununda  (o  que  provoca  o  riso);  ursTní  (o  que  excita  os  desejos  sen- 
suaes);  chapola  (o  que  faz  cambalear).  E  nas  leis  de  Manu  já  o  seu  uso 
é  prohibido  aos  Brahmanes,  como  nocivo  e  indecoroso.  Da  índia  passou 
naturalmente  para  a  Pérsia,  onde  os  conquistadores  árabes  o  encon- 
traram e  adoptaram,  tornando-se  um  vicio  commum  entre  mussulma- 
nos.  Houve  mesmo  seitas,  que  do  uso  do  haschisch  tiraram  o  nome, 


'  D'Herbelot  identificou  incorrectamente  o  beng  com  o  Hyoscyamus,  mas  é  certo  que  se 
quer  referir  aos  preparados  do  Cannabis. 

*  Sobre  o  valor  do  pardáo  vejam-se  algumas  notas  aos  Colóquios  seguintes,  particular- 
mente ao  Colóquio  do  Cravo. 


Do  Bangiie  loi 

como"  foram  aquelles  Ismaelitas,  tão  discutidos  — elles  e  o  seu  chefe,  o 
famoso  Velho  da  Montanha,  Scheikh  el-Djibal —  pelos  historiadores 
das  Cruzadas,  e  que  se  chamavam  os  Haschischi,  d'onde,  segundo  se 
diz,  veiu  a  palavra  assassino. 

Em  tempos  mais  modernos,  o  uso  do  Cannabis  estendeu-se  da  índia 
em  outro  sentido,  sendo  levado  pelos  árabes  para  a  costa  africana 
de  leste,  e  introduzido  entre  os  negros,  que  hoje  fumam  liamba  ou 
riamba  (o  nome  africano)  por  toda  a  parte,  como  já  tive  occasião  de 
expor  longamente  em  outro  trabalho  (Cf.  Plantas  úteis  da  Africa  por- 
tuguesa, 261,  Lisboa,  1884). 

Nota  (3) 

Esta  curiosa  noticia  sobre  os  hábitos  do  famoso  Bahádur  Schah  con- 
firma e  elucida  de  uma  maneira  interessante  e  inesperada  um  facto 
histórico,  a  que  se  referem  os  nossos  chronistas  da  índia,  e  que,  entre 
elles,  Gaspar  Corrêa  conta  muito  detidamente. 

O  caso  passou-se  no  anno  de  i536,  quando  os  portuguezes  estavam 
já  de  posse  da  fortaleza  de  Diu,  e  Bahádur  se  encontrava  na  cidade, 
não  completamente  desavindo  com  elles,  mas  começando  a  tratar  de 
lhes  retirar  a  sua  imprudente  concessão.  Uma  noite,  seriam  dez  horas, 
veiu  o  Scháh  bater  á  porta  da  fortaleza;  e  abrindo-lhe  o  governador, 
que  então  era  Manuel  de  Sousa,  entrou,  acompanhado  unicamente  por 
três  homens  e  quatro  pagens.  Vinha  bêbedo,  matando-se  de  riso  . . .  com 
a  falia  muito  torvada,  que  bem  parecia  sua  bebedice.  Cantava  e  fallava 
alto,  dizendo  na  sua  lingoa :  portugueses  roins,  dar-lhe,  dar-lhe,  matar. 
Depois  de  estar  um  pedaço /a/anio  suas  boas  bebedices,  foi  arrefecendo 
e  stfoy  casi  cayndo,  até  que  a  final  adormeceu.  Quando  acordou,  Ma- 
nuel de  Sousa  deixou-o  honestamente  e  cavalheirosamente  sair,  o  que 
depois  lhe  foi  levado  a  mal,  pois  muitos  diziam  que  o  deveria  ter  retido. 

Gaspar  Corrêa  attribue  naturalmente  o  seu  estado  ao  vinho;  mas 
conhecendo  a  indicação  de  Orta,  lendo  com  attenção  as  paginas  das 
Lendas,  e  reparando  na  natureza  especial  da  excitação,  lembra  logo, 
que  Bahádur  estivesse  sob  a  influencia  do  bangue,  ou  haschísch  (Cf. 
Gaspar  Corrêa,  Lendas,  iii,  754). 


COLÓQUIO  NONO  DO  BENJUY 

INTERLOCUTORES 

RUANO,    ORTA 
RUANO 

Falando  em  laserpicium  me  dixestes  que  assa  odorata 
não  era  benjiif,  como  alguns  doctos  tiverão,  e  falaremos 
agora  nelle,  pois  com  tanta  suavidade  nos  deleita;  porque 
a  mim  milhor  me  cheira  este  que  o  de  Portugal;  e  havia 
de  ser  o  contrairo,  pella  muita  abundância  que  cá  ha  delle. 

ORTA 

Tendes  muyta  razam  de  vos  cheirar  milhor;  porque  este 
nam  he  o  benjuy  que  lá  em  Portugal  se  gasta;  porque  este 
se  chama  benjuy  de  boninas,  e  custa  muyto  mais. 

RUANO 

De  hum  e  do  outro  me  dizey,  pois  falando  na  assa  fétida 
me  dissestes  que  nam  era  milhor  pêra  adubar  os  comeres 
que  a  assa  fétida. 

ORTA 

O  que  entonces  vos  disse  vos  torno  agora  a  dizer,  que 
nunca  pessoa  usou  do  benjuy  pêra  adubar  os  comeres,  e 
da  assa  fétida  que  he  muyto  em  uso  temperar  os  comeres 
com  ella,  e  deyvos  pêra  isso  razam  que  as  cousas  que  chei- 
ram mal,  convém  saber  os  alhos  e  cebolas  e  porros,  adu- 
bam muito  bem  os  comeres,  e  mais  vos  disse  a  esperiencia 
que  era  em  contrairo  da  gente  desta  terra,  que  tam  bem 
lhe  sabia  o  comer  com  ella  feito. 


104  Colóquio  nono 

RU  AN  o 

Agora  quero  saber  o  nome  do  arvore  e  do  benjuy,  cuja 
goma  he,  e  em  que  terras  nace,  e  como  se  chama  acerca 
dos  Arábios,  e  se  falia  algum  autor  arábio  ou  grego  delle. 

ORTA 

Respondendo  ao  derradeiro,  digo  que  dos  Gregos  não 
sei  algum  que  escreva  do  benjuj;  e  dos  Arábios,  Averrois* 
diz  beleni:{an  ou  boHian  ou  petro:{an  he  quente  e  seco  no 
segundo  gráo,  aromatiza  o  estômago  húmido  e  fraco,  e 
confortao,  faz  bom  cheiro  da  boca,  fortifica  os  membros, 
e  acrescenta  o  coito.  Eu,  por  estas  palavras  ditas  assi  bre- 
vemente não  entendo  ser  o  benjuj;  se  algum  deste  testo  o 
poder  tirar,  seja  muito  embora.  Antre  os  modernos  fala  do 
benjuy  António  Musa  e  também  Ruelio;  e  o  António  Musa 
diz  que  o  benjuy  he  a  assa  dulcis  ou  odorata,  e  pêra  isto 
dá  razões  que  vos  dixe,  falando  em  assa  fétida,  scilicet, 
que  os  moradores  da  própria  terra,  constrangidos  da  ver- 
dade, lhe  chamavam  assa  dulcis;  e  que  isto  lhe  dixeram 
Portuguezes  que  foram  a  Çamatra,  ou  pessoas  que  lho  ou- 
viram: mas  quanto  isto  seja  falso  volo  decrarey  já,  falando 
em  assa  fétida,  e  vos  dixe  que  todolos  rhoradores  nessas 
terras  donde  o  ha,  lhe  chamam  cominham,  e  também  vos 
dixe  que  os  Portuguezes,  sem  nenhuma  vergonha  falarão 
o  que  não  era  verdade. 

RUANO  .... 

Poisque  falamos  em  António  Musa,  vos  direi  que  diz 
mais,  pêra  me  satisfazerdes  a  tudo:  diz  que  o  arvore  do  ben- 
juy nace  em  Africa  e  em  Arménia,  e  que  elle  acrescenta 
também  na  índia;  e  que  traz  Dioscorides,  que  da  raiz  sae 
huma  farinha  como  farello,  a  qual  elle  muitas  vezes  achou 
no  benjuy;  e  mais  diz  que  o  ha  na  província  de  Cirenia 
ou  de  Judéa,  e  que  este  he  o  milhor  que  todos  (i). 


*  Averrois,  hoc  colliget  (nota  do  auctor). 


Do  Benjity  io5 


ORTA 


Não  me  ponhais  medo  com  Dioscorides,  nem  Galeno; 
porque  não  ey  de  dizer  senão  a  verdade  e  o  que  sey,  por 
mais  que  lhe  chamem  opus  cireiúacum  fquc  quer  dizer 
çumo  de  Cireiúa);  porque  eu  sey  que  o  principal  não  o  ha 
senão  na  índia,  que  está  alem  do  Ganges  (a  que  os  India- 
nos chamão  Ganga),  e  vem  o  benjuy,  que  chamam  amen- 
doado, de  Siam;  e  de  todo  este  henjuy  que  vem  á  índia,  a  mór 
parte  se  gasta  pêra  a  Arábia  e  Turquia  e  Pérsia.  E  porque 
nam  cuideis  que  ha  alguma  pouca  cantidade  delle  em  Judca 
e  Palestina,  vos  digo  que  faley  com  Mouros  e  Judeos,  e 
que  o  compravão  pêra  o  levarem  pêra  sua  terra  por  merca- 
doria; logo  não  he  de  crer  que  o  comprassem  pêra  Pales- 
tina, se  lá  ouvesse  outro  melhor,  como  dizeis. 


RUANO 


Respondeime  ao  que  diz  Ruelio*,  que  nace  huma  raiz 
em  França,  a  qual  chama  rai:{  angélica,  ou  rai:^  do  Espirito 
Santo,  ou  emperatoria,  que  he  quente  e  sequa  no  terceiro 
gráo,  e  he  aperitiva  e  tem  tantas  virtudes  ou  mais  das  que 
vos  dixe  falando  da  assa  fétida  (2). 

ORTA 

Digo  que  bem  pode  ser,  como  vos  dixe  já  no  mesmo 
capimlo,  aver  em  França  essa  rai^  e  lagrima;  o.  que  tenha 
tal  virtude  ou  taes  virtudes,  como  elle  diz,  porque  homem 
tam  douto  bem  sey  que  dirá  verdade;  e  certamente  que 
nesta  índia  aproveitaria  pêra  muytas  enfermidades  que 
elle  diz:  mas  pêra  usar  delia,  pêra  reprimir  a  deleitação 
da  carne,  pêra  o  que  diz  que  aproveita,  não  ganharia  cá 
dinheiro  quem  a  troxesse,  porque  os  índios  não  buscam 
mezinha  pêra  repremir  o  estimulo  da  carne,  senão  pêra  o 
acrecentar;  e  pois  aproveita  pêra  o  repremir,  e  a  assa  apro- 
veita pêra  o  acrecentar,  claro  he  não  o  ser,  pois  tem  a 


*  Ruelio,  livro  estirpium  (nota  do  auctor) , 


io6  Colóquio  nono 

obra  contraria:  nem  em  Judéa,  como  vos  dixe,  não  o  ha, 
segundo  a  relação  que  disso  tenho;  e  que  o  não  ouvessc 
antiguamente  se  prova,  porque  alguma  memoria  ficara  delle 
na  gente  da  terra,  e  fora  louvado  por  David  e  Salomão, 
que  tanto  louvaram  os  cheiros;  e  bem  sey  que  o  nome  em- 
guanou  a  Ruelio,  que  dixe  que  se  chamava  henjudeum, 
que  quer  dizer  Ji lho  de  Judéa,  e  certamente  que  he  milhor 
de  crer  que  se  chamara  benjaoy,  que  quer  dizer  Jillio  de 
Jaoa,  onde  o  ha  muyto. 

RUANO 

Pois  que  já  me  respondestes  ao  que  dixeram  estes  dou- 
tores, respondeime  ao  que  diz  um  milanês  que  nasce  no 
monte  Paropaniso,  e  que  huns  de  Macedónia  lhe  afirmaram 
que  o  viram  no  monte  Cáucaso,  e  que  este  tem  grande 
cheiro,  e  he  milhor  que  o  nosso  benjuy;  e  alega  este  autor 
a  Luduvico  Vartomano*,  que  diz  que  o  milhor  de  todos  he 
o  de  Çamatra:  decraraime  isto  se  he  verdade? 

ORTA 

Vós  crede  a  esse  milanês,  que  eu  nam  lho  quero  crer,  nem 
aos  Macedonios  o  que  dixeram,  pois  cá  vem  tantos  Rumes  e 
Turcos  cada  dia,  e  levam  o  benjiij'  por  mercadoria.  E  quanto 
he  ao  que  dizeis  de  Luduvico  Vartomano,  eu  falei,  cá  e  em 
Portugal,  com  homens  que  o  conheceram  cá  na  índia,  e  me 
dixeram  que  andava  cá  em  trajos  de  mouro,  e  que  se  tor- 
nou pêra  nós,  fazendo  penitencia  de  seus  peccados;  e  que 
este  homem  nunca  passou  de  Calecut  e  de  Cochim,  nem 
nós  naquelle  tempo  navegávamos  os  mares  que  agora  na- 
vegamos. E  quanto  he  ao  dizer  que  o  ha  em  Çamatra,  e 
que  nam  vem  cá,  he  verdade  que  o  bom  vai  na  própria 
terra  muito ;  e  porém  todavia  vem  cá  agora,  e  he  o  que  cha- 
mamos benjuf  de  boninas.  E  eu  tinha  este  Luduvico,  que 


*  Luduvico  Vartomano  (nota  do  auctor)';isto  é  Ludovico  Vartomano, 
ou  Varthema,  ou  Bartema,  que  de  todos  os  modos  sç  encontra  escripto 
o  seu  nome ;  veja-se  a  nota  (3). 


Do  Beujiif  107 

aleguais,  por  homem  de  verdade;  e  depois,  vendo  o  seu 
livro,  acho  que  escreveo  nelle  o  que  á  vontade  lhe  veo; 
porque,  falando  em  Ormuz,  dixe  que  era  huma  ilha,  ou 
cidade,  a  mais  rica  que  podia  ser,  e  tinha  as  mais  suaves 
agoas  do  mundo;  e  em  Ormuz  não  ha  outra  cousa  mais 
que  sal,  e  todos  os  comeres  e  a  agoa  vem  de  fora  da  ilha;  e 
mais  nam  he  muyto  boa  agoa  essa  que  vem  de  fora.  E,  fa- 
lando este  Luduvico  em  Malaca,  diz  que  nam  tem  agoa  nem 
madeira  alguma;  e  tudo  isto  he  falso,  porque  em  Malaca 
ha  muito  boa  madeira  e  muyto  boa  agoa.  E  por  aqui  vereis 
quam  mal  testemunha  esse  autor  nas  cousas  da  índia  (3). 
E  tornando  ao  que  diz  esse  milanês  do  benjuy  de  Macedó- 
nia, vos  diguo  que  pôde  ser  estoraque,  que,  se  vos  Deos  le- 
var a  salvamento,  trabalhay  de  saber,  posto  que  o  estoraque 
nam  o  sabemos  senam  na  Etiópia,  onde  ha  mirra. 

RUANO 

Assi  o  farey,  se  Deos  for  servido.  E  agora  me  dizey  de 
quantas  maneiras  o  ha,  e  como  he  feita  a  arvore,  e  como 
se  chama. 

ORTA 

Ha*  uma  especia,  a  mais  vendavel  de  todas,  que  chamam 
amendoado,  que  tem  dentro  humas  amêndoas  brancas;  e 
quanto  mais  amêndoas  tem,  tanto  he  havido  por  milhor. 
Este  ha  todo  o  mais  em  Siam  e  em  Martabam,  que  per  a 
terra  confina  com  elle;  deste  he  o  que  dixe  António  Musa 
que  vinha  mesturado  com  farinha  da  raiz  delle,  o  qual  é 
craro  ser  falso,  porque  a  goma  toda  he  huma:  huma  grossa, 
e  outra  delgada,  e  outra  quasi  dura,  e  fazse  mais  branca 
per  tempo  com  o  sol.  E  esta  se  faz  ás  vezes  em  farinha, 
que  he  a  que  diz  António  Musa  que  he  farinha  da  raiz,  e 
he  das  amêndoas,  como  podeis  esperimentar,  pisando  algu- 
mas. Ha  outro  benjuy,  e  mais  preto,  na  Jaoa  e  em  Çama- 
tra;  e  este  he  de  menos  preço;  e  ha  outro  na  mesma  ilha 


*  "He»  na  edição  de  Goa. 


io8  Colóquio  nono 

de  Çamatra  preto,  scilicet,  de  arvores  novos;  a  este  chama- 
mos benjuy  de  boninas,  e  vai  dez  vezes  tanto  como  estou- 
tro; este  he  o  benjuy  que  estoutro  dia  me  mandaram  aqui 
de  presente. 

RUANO 

Eu  v}'^  esse  benjuy,  e  nam  me  pareceo  tam  bom  como 
estoutro  a  que  chamais  amendoado. 

ORTA 

Nam  vistes  o  do  outro  dia,  que  cheirava  muito  milhor ;  e 
esfreguando  com  as  mãos  ficava  huma  grande  fragancia? 

RUANO 

Si,  vy;  e  mais  me  dixestes  que  pello  grande  cheiro  lhe 
poseram  nome  benjuy  de  boninas  ou  dejlores;  mas  eu  nam 
daria  tanto  dinheiro  por  elle  como  qua  se  da;  pode  ser  que 
seja  isto  por  eu  nam  ser  tam  grande  senhor. 

ORTA 

Eu  vos  direy  o  que  muitas  vezes  eu  imaginei;  e  he  que 
este  benjuy  de  boninas  era  mesturado  com  estoraque  liquido, 
a  que  qua  chamao  roçamalha;  porque  certo  dá  um  cheiro 
delia  ao  benjuy  de  boninas,  e  quilo  esperimentar,  mestu- 
rando  o  benjuy  com  estoraque  liquido,  fazendo  delle  pães;  e 
posto  que  cheirava  milhor  que  o  outro,  não  cheirava  tam  bem 
como  este  de  boninas. 

RUANO 

Pois  do  outro  dia  me  lembra  que  comprastes,  a  hum  ho- 
mem que  vinha  na  náo  em  que  eu  vym,  dez  quintaes  de 
estoraque  liquido;  e  me  dixestes  que  o  querias  pêra  mandar 
a  Malaca,  pois  elle  nam  ha  lá  de  servir  doutra  cousa  senam 
pêra  mesturar  com  benjuy. 

ORTA 

Nam  vos  enganeis  nisso,  porque  lá  nam  se  leva  senam 
porque  a  gente  he  muito  amiga  do  cheiro;  e  dahi  o  levão 
á  China  todo  o  mais;  e  outro  algum  se  gasta  noutras  terras. 
E  que  isto  seja  verdade  he  manifesto;  porque  o  que  levão 


Do  Benjuy  109 

á  China,  quando  ha  muita  quantidade  deste  chamado  del- 
les  roçamalha  (4),  logo  nam  se  vende  por  se  gastar  pouco  na 
terra.  E  a  todas  estas  especias  de  bcnjiij  lhe  chamam  os 
moradores  da  terra  cominhan,  e  os  Mouros  lhe  chamão 
louajijaoj',  quasi  encenso  de  Jaoa;  porque  desse  cabo  ouve- 
rão  primeiro  noticia  os  Arábios;  porque  louan  chamão  os 
Arábios  ao  encenso,  e  os  Decanins  e  os  Guzarates  lhe  cha- 
mão lido* . 

RUANO 

Muito  bem  me  parece  essa  derivaçam;  porque  nós  cha- 
mamos ao  encenso  olibano,  tomandoo  dos  Gregos;  e  elles 
parece  também  que  imitaram  aos  Gregos,  chamandolhe  co- 
rompidamente  louan:  e  pois  eu  estou  satisfeito  disso,  di- 
zeyme  a  feiçam  da  arvore,  se  a  sabeis. 

ORTA 

O  arvore  do  benjuy  he  alto  e  bem  fermoso  e  de  boa  som- 
bra, copado  nos  ramos,  os  quaes  deyta  no  ar  muito  bem 
ordenados;  o  tronquo  tem**  do  chão  até  os  ramos  muito  alto 
e  grosso  e  rijo  de  cortar;  he  maciço  na  madeira,  nacem  al- 
guns delles  no  mato  de  Malaca,  em  lugares  húmidos;  os 
pequenos,  como  dixe,  dão  benjuy  de  boninas,  que  he  o  de 
Bayros,  o  qual  he  milhor  que  o  de  Siam,  e  o  de  Siam  he 
milhor  que  todolos  outros.  Dão  huns  golpes  aos  arvores 
pêra  que  saia  delles  a  goma,  que  he  o  benjuy,  em  mais 
quantidade.  As  folhas  do  arvore  me  vieram,  por  huma 
banda  metidas  em  vinagre,  e  por  outra  banda  huns  ra- 
mos, que  amostrão  ser  verdade  o  que  digo.  Na  madeira 
apparece  esta  folha  mais  pequena  que  a  do  limoeiro,  e  nam 
tam  verde,  e  he  per  fora  branca:  a  do  páo  me  parece  folha 
de  vimieiro,  e  nam  tam  comprida  e  mais  larga.  E  todas  es- 


*  Ao  benjoim,  e  não  ao  incenso;  veja-se  a  nota  (5). 

♦*  Grammatica  um  tanto  singular — é  o  arvore  que  tem  um  tronco 
d'aquel]a  feição. 


lio  Colóquio  nono 

tas  cousas  me  custaram  a  saber  o  meu  dinheiro;  porque 
quem  foy  trazer  estas  folhas  e  estes  páos  do  mato  foy  muy 
bem  paguo;  porque,  alem  do  trabalho  que  ha  no  mato  de 
Malaca,  ha  muyto  perigo,  por  causa  dos  tigres  que  andam 
nelle;  e  a  estes  tigres  chamam  em  Malaca  reimÕes  (5). 

RUANO 

Fazeyme  tanta  mercê  que  se  este  anno  vos  vier  alguma 
cousa  nova  de  Malaca,  em  contrairo  do  que  tendes  dito, 
que  mo  escrevais;  e  não  vos  pese  de  vos  desdizer. 

ORTA 

Eu  vos  prometo  que  se  Deos  me  der  dias  de  vida,  que 
não  deixo  de  escrever  todos  os  annos  hum  corretorio,  que 
emende  o  que  dixe,  se  ouver  que  emendar;  e  se  fordes  mo- 
rar a  Gastella  lá  o  podeis  saber;  porque  a  quem  o  eu  es- 
crever, lhe  escreverey  que  volo  mande.  E  porque  vos  dixe 
primeiro  que  o  amendoado  nam  era  tam  cheiroso  como  o 
preto,  que  he  de  arvores  novos,  sabey  que  a  goma  velha 
per  tempo  perde  o  cheiro,  como  todas  as  outras  cousas. 
E,  se  tomardes  duas  ou  três  amêndoas,  e  as  poserdes  so- 
bre as  brazas,  nam  vos  ham  de  cheirar  tam  bem  como  o 
benjuy  preto;  e  porque  o  branco  he  fermoso  e  o  preto  cheira 
bem,  mesturão,  os  que  o  vendem,  hum  com  outro,  e  fica 
mais  fermoso  e  cheira  milhor. 


Nota  (i) 

Parece  que  o  nosso  Orta  confundiu  a  «Cirenia»  com  a  Judéa,  quando 
é  a  conhecida  peninsula  Cyrenaica,  a  famosa  região  das  cinco  cidades, 
pentapolitana,  no  norte  da  Africa;  e  não  tem  muita  desculpa  no  erro, 
pois  o  seu  Plinio  explica  por  diversas  vezes  e  claramente  onde  estava 
situada.  O  opus  cyrenaicum,  que  não  era  o  benjoim,  como  Orta  muito 
bem  diz,  era  o  celebre  laser,  de  que  falíamos  a  propósito  da  asa-foetida, 
e  cuja  identificação  botânica  se  deve  hoje  considerar  uma  questão  inso- 
lúvel. 


Do  Benjuy  1 1 1 


Nota  (2) 
Veja-se  a  nota  (6)  ao  Colóquio  vii. 

Nota  (3) 

Aquella  affirmação  do  celebre  viajante  Luiz  Varthema,  relativa  ás 
aguas  da  ilha  de  Hormuz,  e  que  tanto  indignou  o  nosso  Orta,  não  se 
encontra  no  texto  italiano,  pelo  menos  em  uma  das  antigas  edições 
que  consultei,  e  no  que  publicou  Ramusio.  Diz-se  ali  exactamente  o 
contrario:  n'ella  detta  isola  non  si  trova  acqiia. . .  Parece,  porém,  que 
na  versão  latina  se  introduziram  por  engano  as  palavras:  aquarum potu 
suavium — como  já  advertiu  Varnhagen.  E  na  edição  hespanhola  de 
Sevilha  repete-se  o  mesmo :  las  aguas  en  ella  son  rnuy  suaves.  Vê-se 
pois  que  Orta  teve  entre  mãos  a  versão  latina,  ou  a  hespanhola,  e  na- 
turalmente fez  obra  pelo  que  leu^.  Quanto  a  Malaca,  é  certo  que  Var- 
thema diz :  questo  paese  non  é  molto  fertile,  pur  vi  nasce  grano,  carne, 
poiche  legne,  o  que  não  parece  ser  uma  descripção  muito  exacta  da  pe- 
nínsula de  Malaca  (Cf.  Itinerário  dei  venerable  varon  micer  Lui^  Pa- 
trício Romano,  libr.  11,  cap.  11,  Sevilla,  i52o;  Ramusio,  i,  i56  e  i66; 
Varnhagen,  na  ed.  dos  Colóquios  de  1872,  a  p.  3o). 

De  um  modo  geral,  as  duvidas  de  Garcia  da  Orta  sobre  a  veracidade 
de  Varthema  deviam  ter  fundamento.  Bastará  ler,  por  exemplo,  o  que 
o  viajante  italiano  escreve  a  respeito  do  sultão  de  Gambaya  e  dos  eíFeitos 
do  betle,  para  adquirir  o  convencimento  de  que  elle,  ou  inventava,  ou 
acceitava  o  que  lhe  contavam  com  demasiada  credulidade.  Orta  diz- 
nos,  também,  que  tinha  fallado  com  pessoas  que  ainda  o  conheceram 
na  índia,  o  que  é  natural,  pois  Varthema  andava  por  lá  no  principio  do 
século;  e  diz-nos  mais,  que,  segundo  o  informaram,  elle  nunca  foi  alem 
de  Calicut  e  Cochim.  Posto  que  Varthema  conte  a  sua  viagem  a  Ma- 
laca, ás  ilhas  do  archipelago  Malayo  e  mesmo  ás  Molucas,  esta  parte 
da  sua  relação  pôde  talvez  ser  composta  pelas  noticias  que  outros  lhe 
deram  d'aquelles  paizes.  Um  dos  mais  sagazes  e  mais  competentes  jui- 
zes em  laes  questões,  o  fallecido  sir  H.  Yule,  poz  em  duvida  esta  parte 
das  viagens;  e,  fallando  da  noticia  de  Varthema  sobre  Java,  acrescenta : 


'  Mesmo  que  Varthema  tivesse  dito  que  em  Hormuz  havia  boa  agua,  não  teria  faltado  á 
verdade.  Na  ilha  encontrava-se  pouca  agua,  e  náo  chegava  para  o  consumo,  tendo  de  ser 
transportada  da  terra  firme;  mas  alguma  era  boa.  Diz  António  Tenreyro:  «Huma  legoa  da 
cidade  estão  trez  poços  dagoa  muito  boa,  e  nam  tem  outra  salvo  de  cisternas,  ou  sálobra>. 


112  Colóquio  nono 

which  I  fear  is  fiction.  E  mais  tarde,  o  mesmo  Yule  e  Arthur  Burnell, 
citando  aquella  noticia  de  Orta,  de  que  Varthema  não  fora  mais  longe 
do  que  Calicut  e  Gochim,  confirmam-n'a  dizendo :  a  thesis  which  ii 
would  not  be  difficult  to  demonstrate  out  o/his  own  (Varthema)  narrative 
(Cf.  Yule,  Marco  Polo,  ii,  270;  Yule  e  Burnell,  Glossary,  xlv). 


Nota  (4) 

Posto  que  a  roçamalha  só  venha  citada  por  incidente,  merece  uma 
nota  particular. 

Em  primeiro  logar,  vemos  que  roçamalha  — segundo  Orta —  era  o 
nome  oriental  do  estoraque  liquido;  e  em  segundo,  que  não  era  uma 
producção  da  índia,  nem  das  regiões  situadas  para  leste,  pois  Orta  figura 
havel-a  comprado  a  bordo  do  navio  em  que  vinha  o  dr.  Ruano,  e'  mani- 
festa a  intenção  de  a  mandar  para  Malaca.  Eftectivamente  o  storax  liqui- 
do é  produzido  por  uma  grande  arvore,  Liquidambar  orientalis,  Miller,  da 
família  das  Hamarnelidece,  que  habita  a  parte  sudoeste  da  Ásia  Menor, 
como  modernamente  averiguou  o  professor  Krinos  de  Athenas.  Ia,  por- 
tanto, do  Levante  para  a  índia,  e  d'ali  para  a  China  e  outras  regiões  do 
extremo  Oriente ;  e  isto  desde  tempos  muito  antigos.  Ha  todos  os  moti- 
vos para  suppor,  que  uma  droga,  chamada  pelos  chins  su-ho,  levada 
para  a  China  do  Ta-ts'in,  isto  é,  das  províncias  orientaes  do  império 
romano,  era  esta  de  que  estamos  fallando.  E  a  mesma  droga,  sob  ou- 
tro nome,  an-si  siang  (litteralmente  perfume  do  An-si,  isto  é,  das  anti- 
gas regiões  da  Parthia),  ia  também  para  a  China,  durante  a  dynastia 
Ming  (i  368- 1628),  o  que  abrange  o  tempo  do  nosso  Orta.  Posterior- 
mente, Kãmpfer  (1690)  dá  noticia  de  que  se  importava  regular  e  lucrati- 
vamente no  Japão.  Vemos,  pois,  que  o  su-ho,  an-si  siang,  roçamalha 
ou  storax  liquido  ia  do  Occidente  para  a  índia,  e  da  índia  principal- 
mente para  a  China — é  exactamente  o  que  Orta  diz  (Cf.  Hirth,  China 
and  the  Roman  Orient,  263,  Leipsic,  i885;  Bretschneider,  On  the  know- 
ledge  possessed  by  the  ancient  chinese  of  the  arabs,  19;  Kampfer,  Hist. 
of  Japan,  citado  na  Pharmac,  242). 

Passemos  agora  ao  singular  nome  de  roçamalha,  que  no  livro  de 
Figueiredo  Falcão,  por  erro  de  copia  ou  do  próprio  Falcão,  encon- 
tramos na  forma  ainda  mais  singular  de  Ro^a  macha.  Daniel  Hanbury, 
em  uns  trabalhos  eruditíssimos  sobre  o  Storax  (publicados  em  diver- 
sos jornaes  e  reunidos  depois  nos  Science  papers)  apontou  uma  refe- 
rencia de  Petiver  a  esta  substancia  (1708),  dando-lhe  o  nome  de  rosa 
mallas.  Soube  depois,  que  nos  mercados  do  Oriente  lhe  chamavam 
rose  malhes,  ro^-mal,  e  outras  formas  mais  ou  menos  corrompidas  e  alte- 
radas do  mesmo  nome;  e  acrescenta,  que  o  único  auctor  seu  conhe- 
cido, que  alludiu  á  droga,  dando-lhe  um  nome  análogo,  foi  Garcia  da 


Do  Benjuy  1 1 3 

Orta.  Podemos  ampliar  um  pouco  estas  noticias.  Roçatnalha  não  é  um 
d'aquelles  nomes  vulgares,  conhecidos  unicamente  do  nosso  naturalista, 
e  averiguados  pelas  suas  demoradas  e  pacientes  pesquizas;  era  no  seu 
tempo  uma  designação  geral  e  corrente  no  commercio  portuguez.  An- 
tónio Nunes,  fallando  dos  pesos  de  Hormuz,  diz : 

«O  baar  da  Roçamalha  tem  em  todo  como  ho  do  llinho  e  como  o 
arroz,  sem  aver  nhua  deferemça.» 

E,  fallando  de  Malaca,  dá  a  seguinte  informação : 

«O  baar  do  Dachem  pequeno  tem  200  cates;  cada  cate  pesa  2  ar- 
ráteis; tem  o  baar  3  quintaes,  16  arráteis,  pello  qual  se  pesa  estanho, 
seda  da  china,  martim,  antião,  aguoa  rosada,  Roçamalha,  camfora  da 
china  e  outras  mercadoryas.» 

Por  ambas  as  passagens  se  vê,  que  era  uma  designação  conhecida, 
corrente,  sem  necessidade  de  explicação  (Cf.  Figueiredo  Falcão,  Livro 
de  toda  a  fazenda y  118;  Daniel  Hanbury,  Science  papers,  129  a  149, 
London,  1870;  Phannacograpliia,  242;  Lyvro  dos  pesos  da  Ytndia,  20 
e  39,  em  Felner,  Subsidiosj. 

Têem-se  proposto  diversas  etymologias  da  palavra  roçamalha.  Sca- 
ligero  — nas  notas  a  Orta —  diz:  yion  dubito  scribendum  esse  Roç  el- 
Maiha,  id  est  liquor  Storacis;  mas  alguns  arabistas,  consultados  pelos 
auctores  da  Pharmacographia,  não  admittem  esta  explicação.  Notou-se 
também,  que  uma  arvore,  similhante  á  que  produz  o  storax  liquido,  o 
Liquidambar  altingiana,  Blume,  tem  no  Oriente  o  nome  vulgar  de  Ra- 
samala,  e  suppoz-se  que  houvesse  troca  de  nomes.  O  sr.  Dymock,  po- 
rém, inclina-se  a  uma  opinião,  que  parece  mais  acceitavel.  Admitte 
que  a  palavra  seja  de  origem  européa,  e  derivada  do  nome  do  mjwiá 
doce,  S^foffcWXt  dos  gregos,  ros  melleus  dos  escriptores  da  idade  media. 
Cita,  entre  outras,  uma  passagem  do  Makh:jan-el  Adwiya,  livro  árabe  do 
século  passado,  onde  se  diz  que :  Rasímílíus  é  o  nome  grego  de  uma 
espécie  de  incenso,  chamado  em  hindi  o  incenso  doOccidente.  Isto 
é  tanto  mais  plausível,  quanto  nós  sabemos  que  a  droga  ia  para  a  índia 
e  China  das  regiões  occidentaes,  e  de  um  modo  geral  sabemos  também, 
que  os  nomes  de  drogas  e  substancias  empregados  no  commercio  são 
quasi  sempre  oriundos  das  terras  d'onde  a  droga  ou  substancia  pro- 
cede (Cf.  Dimock,  Mat.  med.,  314). 


Nota  (5) 

Os  eruditos  auctores  da  Pharmacographia  reconheceram  o  interesse 
especial  d'este  Colóquio,  dizendo  o  seguinte:  Garcia  d'Orta,  writting 
at  Goa  (i  534-1 36o)  was  thejirst  to  give  a  lucid  and  intclligent  account 
of  benjoin.  Com  efteito  antes  do  nosso  escriptor  sabia-se  pouco  sobre 
a  procedência  e  variedades  d'esta  substancia. 


1 14  Colóquio  nono 

Orta  comíça  por  arredar  da  discussão  tudo  quanto  disseram  os  an- 
tigos, não  lhe  parecendo  que,  nem  gregos,  nem  latinos,  nem  mesmo  os 
primeiros  escripiores  arábicos  de  matéria  medica  tivessem  conheci- 
mento do  beijoim;  e  com  esta  opinião  concordam  as  modernas  aucto- 
ridades  sobre  o  assumpto,  como  Jonatham  Pereira,  e  Fliickiger  e  Han- 
bury  (Cf.  Elements  of  Mat.  med.,  ii,  P.  i,  683;  Pharmac,  36 1). 

Apenas,  durante  a  idade  media,  se  encontra  uma  menção  rápida 
d'esta  substancia,  feita  por  Ibn  Batuta  sob  o  nome  de  lubán  jáwi  ou 
incenso  de  Java;  e  indicações  de  que  fez  parte  de  alguns  presentes, 
enviados  pelos  sultões  do  Egypto  aos  doges  de  Veneza  e  outros  altos 
personagens  da  Europa  (Pharmac,  362). 

Vem  depois  as  noticias  dos  portuguezes;  e  em  primeiro  logar  a  do 
auctor  do  Roteiro  da  viagem  de  Vasco  da  Gama,  o  qual  diz,  que  em 
«Xarnauz  ha  muito  beijoim,  e  vali  a  farazalla  trez  crusados».  Já  tive 
occasião  de  indicar  em  outro  trabalho,  como  Xarnau:;  se  identifica 
com  Sião,  e  é  a  transcripção  approximada  de  um  nome  muito  usado 
pelos  mercadores  árabes  da  idade  media,  Schahr-i-Náo^,  empregado 
depois  por  Fernão  Mendes  Pinto  na  forma  Sornau.  Esta  é,  pois,  — a^ 
meu  conhecimento —  a  primeira  menção  do  beijoim  de  Sião  (Cf.  Rot. 
de  Vasco  da  Gama,  109;  Flora  dos  Lusíadas,  83). 

Segue-se-lhe  Duarte  Barbosa,  o  qual  nota  que  no  reino  Dansean 
(Sião)  «nase  muyto  bom  beijoim,  que  he  resina  d'arvore,  a  que  os  Mou- 
ros chamaom  Lobam»;  diz  mais  adiante  que  «nase»  também  na  grande 
ilha  de  Çamatra;  e  acrescenta  em  outra  pagina  que  é  cotado  n'um 
certo  preço  no  mercado  de  Calicut  (Cf.  Livro,  11,  363,  368  e  384). 

Taes  eram  as  indicações  existentes  quando  Orta  escreveu.  Este, 
porém,  adiantou  muito  em  relação  ao  que  se  sabia.  Vejamos  primeiro 
os  nomes  vulgares : 

—  «Louanjaoy»  lhe  chamavam  os  «Mouros».  Esta  é  a  designação 
arábica  mais  geralmente  empregada,  lubán  jáwi,  litteralmente  in- 
censo de  Java;  e  da  qual,  por  alterações  successivas,  vieram  banjawi, 
benjui-,  e  todos  os  nomes  modernos  da  resina.  Deve  notar-se,  que  a 
designação  de  Jawá  não  se  applicava  unicamente  a  Java,  deu-se  tam- 
bém a  Sumatra,  e,  de  um  modo  vago,  a  todo  o  archipelago  Malayo, 
distinguindo-se  as  procedências  d'aquella  região  pelo  adjectivo  jawi 
(Cf.  Yule,  Marco  Polo,  11,  266). 


'  o  nome  é  propriamente  persiano  e  significa  Noi'a  cidade,  sendo  talvez  a  traducçáo  de 
Nava-pin-á  ou  Lophaburi,  uma  das  antigas  povoações  de  Sião  (Cf.  Yule,  Marco  Pollo,  11, 122). 

'  A  syllaba  ban  ou  ben  é,  pois,  a  ultima  da  palavra  lúbayi  (incenso),  e  nenhuma  relação 
tem  com  a  palavra  arábica  ben  (filho).  O  benjoim  não  é,  portanto,  ojilhode  Java,  como  Orta 
parece  admittir. 


Do  Benjuy  ii5 

—  «Udo»  lhe  chamavam  no  Deckan.  É  lambem  uma  designação  ará- 
bica, ud,  ^a£,  que  significa  simplesmente  madeira,  lignum,  mas  se  dá 
por  excellencia  a  certas  arvores.  O  nome  de  iid  continua  até  hoje  a  ser 
usado  em  Bombaim  (Cf.  Dymock,  Mat.  mcd.,  4Áb). 

—  «Cominhan"  nas  terras  onde  nascia.  É  o  nome  malayo  e  java- 
nez,  que  encontrámos  nos  livros  modernos  nas  formas  kamãnan,  ka- 
minan  e  kamayan  (Cf.  Crawfurd,  A  descriptive  dict.  of  tlie  Indian  is- 
lands,  5o,  London,  i856). 

Passando  ás  procedências,  vemos  que  Orta  distingue  duas  qualida- 
des. Uma  d'ellas  vinha  de  Sumatra  e  de  «Bayrros«.  Este  Bayrros  era 
na  própria  Sumatra,  o  porto  de  Banis,  chamado  pelos  Árabes  tansur. 
É  hoje  quasi  ignorado,  mas  foi  durante  séculos  um  ponto  de  importante 
commercio,  por  onde  se  exportava  a  melhor  cânfora,  como  veremos 
mais  detidamente  em  outro  logar.  De  Sumatra  vinha,  pois,  um  beijoim 
inferior  ao  de  Sião,  e  em  geral  mais  preto.  Isto  é  exacto;  os  auctores 
da  Phannacographia,  comparando  as  duas  resinas,  dizem  da  de  Suma- 
tra: differs  in  its  generally  greyer  tint  (p.  364J.  Vinha,  porém,  d'aquella 
ilha  um  beijoim  superior  a  todos,  mesmo  ao  de  Sião,  a  que  os  Portu- 
guezes  chamavam  de  boninas,  o  qual  procedia  — segundo  Orta —  das 
arvores  novas.  As  informações  modernas  de  europeus,  residentes  em 
Sumatra,  e  relativas  á  colheita  do  beijoim  na  terra  dos  Battas,  não 
longe  de  Barús,  confirmam  inteiramente  esta  noticia,  dizendo-nos  que 
a  resina  das  arvores  novas,  nos  primeiros  três  annos  de  exploração,  é 
de  melhor  qualidade  e  chamada  pelos  malayos  de  cabeça,  isto  é,  su- 
perior (Cf.  Pharmac,  363). 

A  outra  variedade  de  beijoim  vinha  de  Sião,  e  era  em  geral  melhor, 
«mais  vendavel»,  de  côr  clara,  e  de  aspecto  «amendoado,  que  tem  den- 
tro umas  amêndoas  brancas«.  A  exactidão  d'estas  indicações  reconhe- 
ce-se  facilmente,  comparando  a  phrase  de  Orta  com  o  que  dizem  os 
auctores  da  Phannacographia  (p.  364)  da  resina  de  Sião :  the  mass  is 
quite  compact,  consisting  of  a  certain  proportion  of  white  tears  of  the 
si^e  of  an  aimond  downwards,  imbedded  in  a  deep  rich  amber-brown, 
translucent  resin.  Esta  variedade  da  droga  vinha  de  Sião,  ou  pelos  por- 
tos do  golfo  do  mesmo  nome,  ou  pelos  da  costa  de  «Martabam,  que 
por  a  terra  confina  com  elle»  (Siaoj,  como  afHrma  o  nosso  Orta  com 
muito  correcta  geographia. 

Da  arvore  de  Sião  não  falia  Orta;  era-lhe  desconhecida,  e  ainda  hoje 
não  está  bem  clara  a  procedência  botânica  da  resina  d'aquellas  terras. 
Mas  da  arvore  de  Sumatra,  que  também  se  encontrava  no  «mato  de 
Malaca»',  dá  uma  boa  descripção.  Diz-nos  que  a  arvore  é  «copada  nos 


'  O  Styrax  Ben\oin  encontra-se  eífectivamonte  na  península  de  Malaca  (Cf.  Hooker, 
Flora  ofBritish  Indta,  iii,  589). 


1 1 6  Colóquio  nono  do  Benjuy 

ramos,  os  quaes  deita  no  ar  muy  bem  ordenados»;  e  effectivamente  o 
Styrax  Ben^oin,  Dryander,  é  uma  bonita  arvore,  com  uma  copa  de  fo- 
lhagem densa  e  regular.  Diz-nos  também,  que  a  folha  é  mais  pequena  que 
a  do  hmoeiro,  «e  nam  tam  verde,  e  he  per  fora  (por  baixo)  branca»; 
isto  pôde  comparar-se  com  a  diagnose  da  espécie  em  um  livro  mo- 
derno . .  .  foliis  oblongis,  acuminatis,  subtus  albido-tomentosis. 

Orta,  que  não  foi  a  Malaca  nem  a  Sumatra,  sabia  tudo  isto  por  in- 
formações, e  porque  recebera  exemplares  seccos,  e  outros  mettidos  e 
conservados  em  vinagre.  E  tudo  lhe  custou  a  saber  o  seu  dinheiro ;  as 
explorações  nos  matos  de  Malaca  eram  caras,  pois  eram  trabalhosas  e 
perigosas  por  causa  dos  tigres,  chamados  ali  reimÕes — arimau  ou  ri- 
jnau  em  malayo. 

Esta  passagem  é  a  mais  explicita  de  todo  o  livro,  pelo  que  diz  res- 
peito á  feição  scientifica  e  botânica  das  investigações  de  Garcia  da  Orta. 
Vê-se  que  elle  pagava  a  collectores,  os  quaes  lhe  iam  procurar  ao  longe 
os  exemplares  das  plantas  que  não  podia  observar  directamente.  Pro- 
cedia exactamente  como  procederia  um  botânico  dos  nossos  dias,  reu- 
nindo e  colleccionando  exemplares,  que  depois  estudava  e  classificava, 
quanto  então  se  podiam  classificar. 


COLÓQUIO   DECIMO   DO   BER,   QUE 

SÃO  AS  MAÇÃAS  QUE  CÁ  USAMOS,  E  DOS  BRINDÕES, 
e  dos  nomes  e  apellidos  dos  reys  e  senhores  destas  terras.  E  he 

colóquio  que  nam  serve  de  cousa  alguma  de  física;  mas  põese 
aqui  a  pedimento  do  doctor  Ruano  pêra  dar  passatempo  aos  que 
em  Espanha  o  lerem.  E  assi  se  trata  do  emxadrez  e  de  suas  peças. 

INTERLOCUTORES 

RUANO,  ORTA 

RUANO 

Parecem  tam  boas  estas  maçãas  pequenas  que  comemos 
agora  á  mesa,  que  queria  muito  saber  se  são  maçãas  de 
ajiáfega,  ou  se  he  fruita  diversa;  e  também  queria  provar 
aquella  fruita  vermelha,  que  comem  aquellas  moças. 

ORTA 

Na  derradeira  fruita  que  nomeastes  nam  tendes  muita 
razão  de  a.  querer  provar,  nem  menos  escrevais  delia,  por-  . 
que  he  muito  azeda. 

RUANO 

Pois  por  isso,  por  via  de  medicina,  aproveitará. 

ORTA 

Chamase  nesta  terra  brindôes;  e  por  fora  he  vermelha 
algum  tanto,  mas  por  dentro  tem  hum  tam  fino  vermelho 
que  parece  sangue;  e  ha  huns  per  fora  pretos,  e  estes  nam 
são  tam  azedos;  porque  esta  pretidam  lhe  vem  por  serem 
bem  maduros,  mas  de  dentro  sempre  sam  muito  vermelhos; 
e,  posto  que  são  aprazíveis  ao  gosto  de  muitos,  ao  meu 
nam  o  sam,  nem  per  via  de  cibo,  nem  per  via  de  medicina, 
por  serem  muito  agros;  c  milhor  he  o  tamarinho;  serve 


ii8  Colóquio  decimo 

isto  de  tingir,  e  a  casca  se  guarda  seca,  e  se  leva  per  mar, 
pera  fazer  vinagre;  e  já  alguns  a  levarão  pêra  Portugal,  e 
acharamse  bem  com  ella  (i). 

RUANO 

Pois  destoutras  maçãas  me  dize}^  o  nome  e  o  arvore  e 
em  que  terras  as  ha  e  se  sam  maçãas  de  anáfega. 

ORTA 

O  nome  em  canarym  he  hor,  e  no  Decam  ber,  e  os  Ma- 
laios as  chamão  jndiwas,  e  são  milhores  que  estas  nossas; 
porém  nam  tam  boas  como  as  do  Balagate,  scilicet,  humas 
compridas  que  são  muito  saborosas.  He  o  arvore  diíferente 
das  jujubas;  e  os  Coraçones  trouxeram  ao  Nizamoxa  estas 
que  vos  gabei,  pequenas,  e  me  dixeram  ser  outra  arvore 
que  as  jujubas;  porque  na  sua  terra  as  ha^  e  as  vem  cá 
vender  pera  a  botyca-,  e  estas  polia  mayor  parte  sam  pon- 
ticas,  ou  azedas  hum  pouco. 

RUANO 

Estas  que  comemos  nam  sam  senam  doces. 

ORTA 

He  verdade,  mas  outras  ha  mais  doces,  e  porém  nunca 
vem  a  madurar  tanto  que  se  possam  passar  como  as  cha- 
madas de  anáfega,  e  mais  sempre  tem  pontecidade;  por 
onde  não  podem  ser  peytorais  como  a.s  jujubas,  de  que  fa- 
zemos xarope-,  mas  fazemos  cá  festa  desta  fruita,  porque 
carecemos  das  camuesas  e  repinaldos  de  Portugal.  He  esta 
arvore  algum  tanto  espinhosa  e  da  grandura  das  nossas 
maceiras,  e  a  folha  he  também  como  a  da  maceira,  e  al- 
guma coisa  menos  redonda  (2). 

RUANO 

Cavalguemos  e  vamos  ao  campo;  e  de  caminho  me  direis 
que  quer  dizer  Nizamoxa,  porque  me  falais  muitas  vezes 
nelle. 


Do  Bcr  1 19 

ORIA 

Dcsdagora  vos  digo  que  he  hum  rey  no  Balagate,  cujo 
pay  curey  muitas  vezes,  e  ao  filho  algumas;  de  quem,  por 
vezes,  recebi  mais  de  doze  mil  pardáos;  e  davame  qua- 
renta mil  pardáos  de  renda  porque  o  visitasse  alguns  me- 
ses do  anno,  os  quais  eu  não  aceitey  (3). 

RUANO 

Vamos  pêra  alguma  parte  mais  aprazivel  aos  olhos;  e 
digo,  senhor,  que  bem  sei  que  he  nome  de  rey;  mas  que- 
ria saber  o  que  significa  este  nome  e  outros  de  reys  desta 
terra,  porque  não  queria  que  fosse  tudo  fisica,  senão  fazer 
alguma  fallada  de  cousas,  pêra  despertar  mais  o  ingenho. 

ORTA 

Eu  não  queria  que  gastássemos  hum  capitulo  em  cousas 
que  nam  sejam  de  sciencia,  porque  dirá  todo  o  homem 
que  o  ler,  que  me  ponho  a  escrever  hum  livro  de  patranhas. 

RUANO 

A  culpa  disso  seja  deitada  a  mim  pêra  quem  vós  fazeis 
este  livro:  quanto  mais  que  eu  sey  muitos,  que  folgarão  de 
saber  estas  cousas  que  dixerdes,  em  Espanha, 

ORTA 

Cumprindo  vosso  mandado,  sabey  que  hum  poderoso 
rey  do  reino  Dely  conquistou,  haverá  Soo  annos,  esta  terra 
toda  e  a  do  Balagate;  e  em  este  tempo  foy  Cambaya  tam- 
bém tomada  tiranniquamente  por  os  Mouros  aos  Reisbutos, 
que  eram  gentios  que  a  senhoreavam;  e  este  rey  Dely  to- 
mou o  Balagate  a  huns  gentios  muy  poderosos,  cuja  gera- 
ção são  estes  que  agora  chamão  Venezaras,  e  outros  que 
na  terra  habitão,  chamados  CoUes;  e  assi  estes  CoUes,  como 
os  Venezaras,  como  os  Reisbutos,  vivem  de  roubos  e  furtos 
o  dia  de  oje;  e  aos  Reisbutos  lhe  dão  tributo  as  terras  de 
Cambaya  porque  as  não  roubem;  e  aos  Venezaras  e  CoUes 
as  ditas  terras  de  Decam,  c  até  agora  nunca  podcram  ser 
domados  dos  reis  (4). 


120  Colóquio  decimo 

RU  AN  o 

Valente  gente  deve  ser. 

ORTA 

Si,  são;  mas  também  os  reys  sam  cobiçosos,  porque, 
como  partem  com  elles  do  que  roubao,  são  perdoados. 
Este  reino  Dely  he  posto  longe  polia  terra  dentro,  pêra 
a  banda  do  norte,  e  parte  com  terras  do  Coraçone;  he 
terra  muito  fria,  e  neva  e  gêa  nella  como  na  nossa  (5).  Os 
Mogores,  a  quem  chamamos  Tártaros,  a  tomaram  ha  mais 
de  3o  annos.  Eu  conheci  o  irmão  delrey  Dely,  na  corte 
do  Soltão  Bhadur*,  rey  de  Cambaya,  que  honrava  muito  a 
este  irmão  delrey  Dely  (6)-,  despois  foy  tomado  este  reino 
Dely  aos  Mogores  per  hum  cavaleiro  de  huma  lança,  que, 
nojado  delrey  de  Bengala  por  lhe  matar  hum  seu  irmão, 
se  levantou  contra  elrey  de  Bengala  e  o  matou;  e  depois 
tomou  o  reyno  Dely  e  outros  muitos  reynos.  E  per  espaço 
de  tempo  foy  o  mór  senhor  que  se  podia  crer;  e  dixeramme 
pessoas  dignas  de  fé,  que  suas  terras  tinhão  800  legoas  de 
quadra.  Era  este  rey  primeiro  Patane  de  -humas  serras  que 
partem  com  Bengala;  foy  chamado  Xaholam  que  quer  dizer 
re}^  do  mundo  (7).  Deste  se  podia  fazer  huma  crónica  mais 
que  a  do  gram  Tamirham**  (a  quem  nós  corrutamente  cha- 
mamos o  gramTaborlam),  e  alguns  cronistas  o  chamãoTa- 
mirlangue,  porque  Tamir  era  seu  próprio  nome,  e  langiie 
quer  dizer  coxo,  como  elle  era.  Mas  isto  leixo  pêra  outro 
tempo,  e  digo  que  este  rey  Dely  conquistou  o  Decam  e  o 
Guncam;  e  foy  delle  senhor  alguns  dias;  e  por  não  poder 
senhorear  tanta  distancia  se  foy  ás  suas  terras,  e  leixou 


*  Algumas  vezes,  Orta  escreve  simplesmente  Badur;  mas  d'esta  or- 
thographia  se  vê,  que  elle  sentia  bem  a  aspiração  existente  no  nome 
do  sultão  Bahadur,  ,^L^. 

**  Não  sei  se  em  Tamirham  ha  um  simples  erro  de  imprensa,  ou  se 
Orta  suppoz  que  a  ultima  syllaba  era  o  titulo  honorifico  dos  tártaros, 
que  elle  adiante  escreve  Ham. 


Do  Ber  I2i 

nestas  hum  seu  sobrinho  coroado  em  rey.  Este  sempre  fa- 
voreceo  a  gente  estrangeira,  que  sam  Turcos,  Rumes,  e 
Coraçones  e  Arábios,  e  repartio  o  reyno  em  capitanias, 
scilicet,  ao  Adelham  (a  quem  chamamos  Idalcam)  deu  de 
costa  desde  Angediva  até  Cifardam,  que  sam  sesenta  le- 
goas,  e  per  dentro  da  terra  até  confinar  com  os  outros  capi- 
tães; e  ao  Nizamaluco  deu  de  costa  de  Cifardam  até  Nego- 
tana,  que  sam  vinte  legoas,  e  polia  costa  dentro,  até  con- 
finar com  estoutros  senhores  e  com  Cambaya',  estes  dous 
somente  tiveram  parte  no  Cuncam,  que  he  a  fralda  do  mar 
até  huma  alta  serra  que  chamão  Guate,  que  toma  grande 
quantidade  de  terra,  e  he  muito  alta  em  muitos  cabos,  e 
eu  a  passey  em  alguns;  e  tem  huma  cousa  digna  de  escrever 
encima  esta  serra,  que  he  nam  decer  cousa  alguma,  senam 
ficam  muito  fermosos  campos  iguaes  ao  alto  da  serra,  e 
porque  bala  em  pérsio  quer  dizer  acima,  e  guate  serra, 
tanto  he  .dizer  Balaguate  como  detrás  da  serra  ou  tra  los 
montes  (8).  E  no  Balaguate  deu  terras  ao  Imademaluco,  a 
quem  nós  chamamos  Madremaluco,  e  ao  Cotalmaluco,  e  ao 
Verido.  Todos  estes  capitães  erão  estrangeiros.  Turcos  e  Ru- 
mes e  Coraçones  de  nação;  senam  o  Nizamaluco,  que  dizem 
ser  Decanim,  filho  de  hum  Tocha  delrey  Daquem*;  e  porque 
a  molher  deste  Tocha  dormio  com  elrey  Daquem  se  jata  o 
Nizamaluco,  que  vem  da  casta  dos  reys  Daquem,  e  que  os 
outros  todos  sam  escravos  comprados  pollo  dinheiro  delrey. 
E  porque  estes  regedores  se  enfadaram  de  obedecer  a  elrey 
Daquem,  concertaramse  entre  si  que  ficasse  cada  hum  com 
suas  terras,  e  que  prendessem  o  rey  Daquem  em  Beder,  que 
he  principal  cidade  e  cabeça  do  Decam;  donde  o  prende- 
ram, e  entregarão  a  hum  delles  per  nome  Verido;  e  assi 


*  O  reino  Daquem  era  o  mesmo  que  Orta  algumas  linhas  adiante 
chama  do  Decam.  Os  portuguezes,  segundo  parece,  fizeram  uma  singu- 
lar fusão  de  som  e  de  sentido,  chamando-Ihe  Daquem,  porque  este 
nome  se  parecia  com  Deckan,  e  porque  ficava  aquém  do  grande  rio 
Nerbadda. 


122  Colóquio  decimo 

elle  como  os  outros,  per  si  ou  per  seus  procuradores,  lhe 
fazem  a  calema  certas  vezes  no  anno  (9). 

RUANO 

Se  calema  quer  dizer  paz  em  arábio,  falsa  paz  lhe  chamo 
eu  a  essa. 

ORTA 

E  juntamente  com  estes  se  levantaram  alguns  per  concerto, 
como  foy  o  Mohadum  coja,  e  oVeriche  que  era  gentio-,  e 
estes  ouverão  terras  muyto  poderosas  e  poucas  e  ricas  ci- 
dades; convém  saber:  o  Mohadum  ouve  Visapor,  e  Solapor, 
e  Paranda;  e  o  Visapor  he  agora  a  casa  do  Idalcam;  e  Sola- 
por e  Paranda  lhe  tomou  depois  o  Nizamaluco;  e  assi  dei- 
xou algumas  terras.  E  o  Veriche  ficou  em  suas  terras,  que 
confinão  com  Cambaya  e  com.  as  terras  do  Nizamaluco;  e 
elles,  como  lhe  nam  tomarão  o  seu,  soltaramlho  per  algum 
tempo.  E  o  bisavô  deste  Adelham  que  agora  he,  foy  hum 
destes  capitães  que  se  levantaram;  e  era  de  naçam  Turco, 
e  morreo  no  anno  de  mil  quinhentos  trinta  e  cinquo;  e  foy 
sempre  muito  poderoso,  a  quem  nós  tomámos  per  força 
de  armas  esta  cidade  de  Goa  duas  vezes.  E  o  avô  deste  Ni- 
zamaluco que  agora  he,  pay  do  meu  amigo  que  foy,  morreo 
no  anno  de  mil  quinhentos  e  nove;  e  foy,  como  dixe,  De- 
canim.  O  Imademaluco,  ou  Madremaluco  como  nós  lhe  cha- 
mamos corrompidamente,  foy  Cherques  de  naçam,  e  havia 
sido  primeiro  christão,  e  morreo  no  anno  de  1 546.  O  Cotal- 
maluco,  que  morreo  no  anno  de  1648,  foy  também  dos 
que  se  levantarão,  e  foy  Coraçone  de  naçam.  O  Verido, 
que  morreo  no  anno  de  i5io,  foy  Ungaro  de  nação  e  pri- 
meiro christão,  segundo  tive  por  certa  enformação  (10). 

RUANO 

Vinde  aos  nomes,  e  dizeyme  quem  he  aquelle  a  quem  ti- 
rastes o  barrete,  e  nam  passastes  até  que  passou? 

ORTA 

He  o  embaixador  do  Idalham,  cujo  avô  foy  senhor  desta 
ilha.  E  estes  Mouros  dão  os  ditados  conforme  ao  que  querem; 


Do  Ber  i23 

e  porque  acerca  dos  gentios  rao  quer  dizer  rey,  e  naiqiie  quer 
dizer  capitão;  quando  estes  reys  tomam  algum  gentio  pêra 
que  os  sirva,  se  o  não  querem  muito  honrar,  accrescentão- 
Ihe  ao  nome  próprio  naiqiie,  como  Salva  naique,  Acem  nai- 
que;  e  quando  o  querem  muito  honrar  chamamlhe  rao,  assi 
como  Chita  ráo,  que  eu  conheço;  e  he  nome  suberbo,  porque 
chita  quer  dizer  omça,  assi  que  quer  dizer  Chita  ráo,  rey  tam 
forte  como  huma  omça.  E  porque  liam,  acerca  dos  Mogores 
ouTartaros,  quer  dizer  rey,  também  chamão  aos  que  querem 
ham,  e  nós  corrutamente  lhe  chamamos  cam,  e  por  ventura 
milhor.  E  Rao  somente,  sem  nenhum  nome,  per  excellencia, 
quer  dizer  elrey  de  Bisnaguer,  o  qual  os  tempos  passados 
era  muy  vexado  do  Adelham,  e  nos  tempos  de  agora  tem 
poder  sobre  todos  os  senhores  do  Decam;  e  elles  todos  lhe 
obedecem:  e  isto  he  porque  todas  as  cousas  socedem  ás  ve- 
zes. E  tornando  a  nosso  propósito,  porque  adel  em  pérsio 
quer  dizer  justiça,  chamaram  a  este  senhor  destas  terras 
Adelham,  como  si  dixesse  rey  de  justiça. 

^  RUANO 

Nome  é  esse  que  lhe  não  convém,  porque,  nem  elle,  nem 
outros  acostumam  fazer  justiça  *,  e  mais  me  dizey  por  que 
em  Espanha  lhe  chamão  o  Sabayo? 

ORTA 

Alguns  me  dezião  que  se  chamava  assi,  porque  tinha 
hum  capitam  chamado  per  este  nome;  mas  depois  soube 
na  verdade  que  saibo  em  arábio  e  pérsio  quer  dizer  senhor, 
e  que  por  isso  lhe  chamavão  assi  por  excellencia.  E  também 
porque  maluco  quer  dizer  reino,  e  ne^a  em  pérsio  quer  di- 
zer lança,  chamaram  ao  meu  amigo,  Nizamaluco,  quasi  lança 
do  reino:  e  cota  em  arábio  he  fortaleza,  e  por  isso  Cotal- 
maluco  quer  dizer  fortaleza  do  reino:  imad  quer  dizer  es- 
teo,  e  por  isso  chamaram  o  outro  Imadmaluco,  que  é  esteo 
do  reyno:  e  verido  quer  dizer  recado  e  guarda,  e  Melique- 
verido  quer  dizer  re}^  da  guarda;  e  alguns  não  chamavam 
a  estes  malucos  senão  meliques,  que  quer  dizer  reizinhos  (u). 


124  Colóquio  decimo 

RUANO 

E  maluco  quer  dizer  reyno  propriamente? 

ORTA 

Não;  senão  regiam  ou  provinda. 

RUANO 

A  tudo  me  satisfizestes  já,  senam  ao  xá;  porque  dizeis 
Nizamoxa  e  Adelxa? 

ORTA 

Levantouse  no  Coraçone  o  Xá  Ismael,  pay  do  Xatamas 
que  agora  vive,  e  sendo  de  baixa  geraçam  levantou  a  guerra 
sobre  suas  falsas  leis  contra  o  Gram  Turco;  e  veo  a  ser 
hum  dos  maiores  senhores  do  mundo;  e  mandava  que  to- 
massem a  sua  seita,  que  he  contra  Mafamede,  e  he  polia 
parte  de  Ali;  e  aos  que  a  nam  tomavam  lhe  faziam  crua 
guerra;  e  este  seu  filho,  que  chamam  Xatamas,  a  mandou 
denunciar  a  estes  senhores  do  Decam,  e  lhes  deu  o  Xá,  que 
he  titulo  de  rey.  E  assi  se  chamão  Adelxa,  Nizamoxa,  Cotu- 
mixa;  e  assi  ficam  reis  nos  nomes  ao  menos,  somente  que 
nam  podem  bater  moeda  senão  de  cobre:  e  o  Nizamoxa 
aceitou  logo  a  sua  ley,  e  os  outros,  como  se  foy  seu  em- 
baixador, logo  a  engeitaram. 

RUANO 

Eu  sempre  cuidey  que  se  chamava  Xeque  Ismael,  e  nam 
Xa  Ismael,  e  também  cuidey  que  se  chamava  esse  homem 
Sofy? 

ORTA 

Verdade  he  que  xeque  he  dignidade  que  quer  dizer  velho, 
e  destes  sam  os  Xeques  da  Arábia;  mas  xá  em  pérsio  quer 
dizer  rey,  e  Xá  Ismael  quer  dizer  elrey  Ismael;  e  chama- 
ramlhe  os  Turcos  e  Rumes  Çufi,  porque  tinha  hum  grande 
capitam  que  chamavão  Çufo  ou  Çufi,  e  por  isto  lhe  ficou 
o  nome  ao  Xá  Ismael  de  Çufi,  por  causa  de  seu  grande  ca- 
pitam (12).  E  pois  jogaes  o  enxadrez  dirvosey  huma  cousa 
que  folgueis  de  saber,  ainda  que  não  seja  física. 


Do  Ber  I25 

RUANO 

Muita  mercê  me  fareis  nisso. 

ORTA 

Xá  quer  dizer  rey,  e  quando  digam  ao  rey  que  se  mova, 
nam  se  ha  de  dizer  xaque  senam  xá,  como  quem  dixesse 
a  elrey,  falo  que  se  mova;  e  assi  dizem  os  Mouros  e  não 
xaque. 

RU.VNO 

Cousa  he  essa  bem  curiosa  e  com  que  muito  folgo.  E 
elles  jogam  bem  o  enxadrez? 

ORTA 

Bem,  mas  he  diíFerente  do  nosso  jogo.  E  por  nam  vos 
enfadar  não  vos  digo  os  nomes  das  peças,  que  he  huma 
batalha  ordenada  (i3). 

RUANO 

Nam  vos  escuseis,  e  dizeymo. 

ORTA 

Ao  rey  dizem  xá,  e  á  dama  goa^ir,  que  he  condestabre; 
e  ao  delfim  chamão^/,  que  quer  dizer  elefante;  e  ao  ca- 
valo giiora,  que  he  o  mesmo;  e  o  roque  roch  há,  que  signi- 
fica tigre;  e  ao  piam  piada,  que  quer  dizer  homem  que 
pelleja  a  pé,  e  assi  fica  isto  huma  batalha  ordenada.  E  per- 
doayme  se  vos  enfadey  com  historias  vans  (14). 

RUANO 

Antes  folguey  muyto. 


Nota  (i) 


O  «Brindão»  é  o  fructo  da  Garcinia  indica,  Chois.  (Brindonia  indica, 
Dupetit  Thouars)  da  familia  das  Gutijerce,  uma  arvore  frequente  na 
costa  Occidental  entre  Damão  e  Goa.  Este  nome  parece  ter  sido  inven- 
tado pelos  portuguezes,  tanto  pela  sua  forma,  como  pelo  facto  de 


126  Colóquio  decimo 

unicamente  ser  conhecido  em  Goa;  e  a  primeira  noticia  sobre  os  usos 
do  fructo  foi  dada  — que  eu  saiba —  pelo  nosso  auctor.  Do  pericarpo  ou 
«casca»,  que,  segundo  Orta,  servia  para  fazer  vinagre  nas  viagens  de 
mar  e  mesmo  em  Portugal,  se  utilisam  ainda  na  índia  na  preparação 
dos  molhos  e  adubos,  as  an  acid  ingredient  in  curries;  e  d'ella  se  ser- 
vem também  como  um  mordente  na  tinturaria,  ou  como  diz  Orta, 
«para  tingirw. 

Das  sementes  não  falia  Orta;  mas  extrahem  d'ellas  um  óleo  ou  man- 
teiga vegetal,  chamado  kokam,  que  tem  usos  medicinaes,  e  segundo  se 
diz  serve  também  para  adulterar  o  ghi.  De  passagem  notaremos,  que 
esta  substancia  foi  chimicamenie  estudada  pelo  fallecido  professor 
portuguez  Oliveira  Pimentel  (Visconde  de  Villa  Maior),  em  coUabora- 
ção  com  J.  Bouis  (Cf.  Hooker,  Flora  of  British  índia,  i,  261,  advertindo 
que  Garcia  da  Orta  vem  ali  incorrectamente  citado  quanto  á  data; 
Dymock,  Mat.  med.,  79;  Coinptes  rendus,  xliv,  i355). 


Nota  (2) 

o  «Ber»,  ou  «Bor»,  ou  «Vidara»  de  Orta  é  o  Zi^yphiis  Jujiiba,  Lamk., 
que  se  chama  em  sanskrito  C4<*^j  |  vadarT,  e  em  hindustani  y  bir  ou 
ber.  Esta  pequena  arvore  espinhosa  (pelas  stipulas  transformadas) 
encontra-se  espontânea  na  índia,  e  é  também  cultivada.  O  seu  fructo, 
uma  drupa  globosa,  amarella  quando  madura,  é  um  objecto  de  con- 
sumo geral  n'aquella  região,  e  a  cultura  tem  dado  já  logar  á  forma- 
ção de  diversas  variedades.  Ainslie,  por  informação  do  dr.  Wallich, 
nota  a  existência  de  uma  variedade  excellente,  de  fructos  alongados, 
que  é  sem  duvida  a  mesma  de  que  falia  Orta:  «humas  compridas,  que 
são  muito  saborosas»  (Cf.  Ainslie,  Matéria  Indica,  11,  94). 

Orta  distingue  com  rasão  esta  planta  da  que  dá  as  maçans  d' anafe ga 
mais  geralmente  chamadasyi{/"ííí'íi5,  a  qual  é  o  Zi^yp/ius  vulgaris,  Lamk., 
e  se  encontra  também  na  índia,  sendo  cultivada  em  muitas  outras  re- 
giões quentes  e  tempera<ias,  por  exemplo,  no  sul  da  Europa  (Cf.  De 
CandoUe,  Orig.  des  plantes  cultivées,  154). 


Nota  (3) 

Depois  veremos  quaes  foram  as  relações  de  boa  amisade,  que  exis- 
tiam entre  Garcia  da  Orta  e  Buhrán  Nizam  Sháh,  o  qual  era  — como 
diz  Diogo  do  Couto —  «o  mais  valoroso,  franco,  liberal  e  justiçoso  rei 
de  todos  os  do  seu  tempo  e  vizinhos».  Por  agora  devemos  unicamente 
examinar  a  questão  do  estipendio  offerecido  ao  medico  portuguez. 


Do  Ber  127 

Clusius  — nas  suas  notas — achou-o  exagerado,  e  é  de  opinião  que 
se  deve  ler  quatro  em  logar  de  quarenta.  Effectivamente,  a  somma  de 
quarenta  mil  pardáus  é  elevada.  Computando  o  pardáu  em  Soo  réis — 
o  que  resulta  de  muitos  apontamentos  do  Tombo  do  Estado  da  ín- 
dia—  dá-nos  i2:oooC^ooo  de  réis.  Ora,  o  governador  da  Índia  recebia 
então  3:200^000  réis,  com  mais  uns  600  quintaes  de  pimenta;  e  os 
outros  ordenados  eram  muito  inferiores.  O  physico  mór,  por  exemplo, 
recebia  apenas  44^200  réis  annuaes.  Advirta-se,  que,  attendendo  ao 
valor  intrínseco  do  real,  todas  estas  quantias  seriam  um  pouco  mais 
de  cinco  vezes  superiores  ao  indicado,  e  que  o  estipendio  de  Orta  an- 
daria por  ôoroooíJíooo  de  réis  da  moeda  actual;  e  attendendo  ao  poder 
effectivo  da  moeda  nos  meados  do  século  xvi,  estes  6o:oooCÍ'ooo  de  réis 
equivaliam  pelo  menos  a  i8o:oooí75ooo  réis  dos  nossos  dias'.  Por  mais 
franco  e  liberal  que  fosse  Buhrán,  a  paga  seria  um  pouco  forte.  Ape- 
sar pois  de  o  erro  de  imprensa  ser  ditticil  de  admittir,  por  a  quantia  es- 
tar escripta  «quarenta»  e  não  em  cifra,  devemos  suppor  que  n'este 
ponto  houve  um  dos  mil  enganos  do  compositor,  ou  um  lapso  do  pró- 
prio Orta.  O  que,  em  todo  o  caso,  não  é  admissível,  é  que  este  exa- 
gerasse por  vaidade  e  jactância  a  quantia  que  lhe  offereceram.  Redu- 
zida a  cifra  á  decima  parte  ainda  nos  dá  o  equivalente  de  i8:ooo.1?ooo  de 
réis,  e  poucos  médicos  se  pagam  por  esse  preço. 

O  facto  de  Garcia  da  Orta  não  acceitar  aquelle  brilhante  offereci- 
mento  explica-se,  pois  alem  de  o  prenderem  em  Goa  todos  os  seus 
hábitos  e  relações,  esta  passagem  para  o  serviço  estipendiado  de  um 
rei  estranho  e  mussulmano  lhe  seria  levada  a  mal,  como  um  abandono 
de  nacionalidade  e  quasi  de  religião. 


Nota  (4) 

Este  Colóquio,  que  é  sem  duvida  alguma  um  dos  mais  curiosos  de 
todo  o  livro,  é  também  um  dos  mais  diííiceis  de  esclarecer.  O  nosso 
Orta,  sempre  confuso,  excedeu-se  n'esta  parte,  e  enredou  uma  serie 
de  noticias  tão  desordenadas  quanto  interessantes.  Vamos  ver  se  lhe 
desfiámos  a  meada. 

Diz  elle,  que  um  «poderoso  Rey  do  reino  Delyu  conquistara  haveria 
Soo  annos  aquellas  terras  do  sul.  Não  diz  o  nome  do  rei,  mas  João  de 
Barros,  que  nas  suas  Décadas  falia  também  do  rei  que  conquistou  o 


'  No  meu  anterior  trabalho  sobre  Garcia  da  Orta,  e  a  propósito  das  rendas  de  Bombaim, 
eu  não  fiz  por  inadvertência  esta  comparação  da  antiga  moeda  com  o  seu  actual  valor ;  a  qual, 
de  resto,  tem  sido  omittida  por  quasi  todos  os  nossos  modernos  escriptores  sobre  cousas 
da  índia.  Vejam-se  sobre  esta  questão  algumas  das  notas  seguintes,  particularmente  as  no- 
tas ao  Colóquio  do  cravo. 


128  Colóquio  decimo 

Deckan,  chama-lhe  Xa  Nosaradin.  Barros,  porém,  deve  estar  enganado, 
pois  Nasir  ed-Din  nunca  estendeu  as  suas  conquistas  tanto  para  o  sul. 
O  soberano  de  Dehli  a  quem  Orta  se  quer  referir,  devia  ser  Alá  ed-Din 
Khiljy.  O  seu  general  Aluf  Khan  tomou  aos  Rájpúts  as  terras  do  Guze- 
rate  — a  que  Orta  chama  Cambaya — ;  e  mais  tarde,  outro  dos  seus  ge- 
neraes,  um  antigo  escravo,  chamado  MeHk  Káfúr,  correu  e  senhoreou 
todo  o  litoral  do  Concan  e  Canará,  assim  como  o  Deckan  interior — o  Ba- 
lagate  de  Orta.  Gomo  Alá  ed-Din  Khiljy  reinou  em  Dehli  do  anno  de 
1296  ao  de  i3i6,  e  Orta  escrevia  ahi  pelo  de  i56o,  temos  quasi  a  conta 
dos  seus  3oo  annos  (Cf.  Barros,  Ásia,  11,  v,  2;  Elphinstone,  The  history 
of  índia,  6.'''  édition  by  Cowel,  890  et  seqq.;  Mahomed  Kasim  Ferishta, 
History  of  the  rise  0/  the  Mahomedan  power  in  índia,  traducção  do 
coronel  Briggs,  i,  821  a  385). 

Segundo  Orta,  a  terra  foi  tomada  aos  Reisbutos,  aos  Colles  e  aos 
Venezaras. 

Os  «Reisbutos»  não  são  difficeis  de  identificar  com  os  conhecidos 
Rájpúts,  nome  que  vem  do  sanskrito  Rãjaputra,  ou  «filhos  de  rei». 
Esta  grande  raça,  que  se  jactava  de  descender  de  sangue  real,  seguia 
em  regra  a  profissão  das  armas;  e  Duarte  Barbosa,  um  dos  portugue- 
zes  de  então  que  melhor  viram  as  cousas  da  índia,  chama-lhes  correcta- 
mente: «hos  cavalleiros  e  defensores  da  terra».  Posto  que  espalhados 
por  quasi  toda  a  índia,  eram  mais  numerosos  n'aquella  região  de  no- 
roeste, ainda  hoje  marcada  em  algumas  cartas  com  o  nome  de  Rájpii- 
tana.  Desapossados  de  parte  das  suas  terras  pelos  mussulmanos,  con- 
tinuavam no  emtanto  a  ter  bastante  importância  no  tempo  de  Orta, 
como  é  fácil  de  ver  a  cada  pagina  das  historias  de  Dehli  e  do  Guzerate. 
Algumas  d'estas  tribus  guerreiras,  no  momento  da  sua  decadência, 
transformaram-se  em  bandos  e  quadrilhas  de  salteadores,  como  era 
natural  succeder;  e  vários  estados  ou  cidades  lhes  pagavam  tributos 
para  não  serem  roubados,  uma  espécie  de  black-mail,  como  bem  diz  o 
nosso  escriplor.  Os  portuguezes  chamavam-lhes  Resbutos,  Reisbutos, 
ou  com  outras  formas  orthographicas;  e  o  secretario,  que  redigiu  o  tra- 
tado entre  Bahádur  Schah  e  Nuno  da  Cunha,  escreveu  Reis  buutos, 
voltando  assim,  sem  d'isso  ter  consciência,  á  primitiva  significação  da 
primeira  parte  do  nome  (Cf.  Duarte  Barbosa,  Livro,  276;Felner,  Subsí- 
dios, 137;  Elphinstone  1.  c,  83,  25o,  etc;  Yule  e  Burnell,  Glossary,  pa- 
lavra Rajpoot). 

Os  «Colles»  ou  Kolis  pertenciam  a  tribus  selvagens  das  florestas  e 
montanhas,  e  eram  numerosos  nos  Ghates  occidentaes,  em  terras  do 
Guzerate,  do  Concan  e  do  Deckan.  Esta  raça  tem  caído,  e  já  tinha 
caído  no  tempo  de  Orta,  a  occupaçóes  baixas  e  servis,  sendo  os  da 
costa  principalmente  pescadores  e  barqueiros.  Simão  Botelho,  no 
Tombo  do  Estado  da  índia,  falia  do  que  elles  pagavam  de  impostos: 
«E  a  rçnda  dos  coles,  que  são  pescadores  que  vão  pescar  ás  estaqua- 


Do  Ber  129 

das  do  mar,  e  por  este  Rio  de  baçaim. . .».  Parece,  todavia,  que  alguns 
conservavam  uma  certa  força,  se  impunham  pelo  terror  mesmo  a  ci- 
dades ou  povoações  de  estados  poderosos,  e,  do  mesmo  modo  que  os 
Rãjputs,  recebiam  aquelles  impostos  de  que  Orta  falia.  João  de  Barros 
trata  largamente  dos  impostos  que  a  cidade  de  Ghampanel  (Champa- 
nír)  pagava  aos  «Gollijs»,  do  modo  bárbaro  por  que  Bahádur  Schah 
tratou  os  seus  enviados,  e  da  vingança  que  d'isso  tirou  o  «rei  {i}  dos 
Collijs».  Estes  Kolis  occidentaes  deviam  relacionar-se  com  outras  tri- 
bus,  Mundaris,  Bliils,  etc,  que  faliam  ou  fallaram  linguas  afastadas  das 
do  grupo  sanskritico  e  das  do  grupo  dravidico,  provisoriamente  reuni- 
das no  grupo  chamado  kolarico;  e  eram  talvez  os  descendentes  dos 
antigos  habitantes  da  Índia,  os  dasyus  dos  primeiros  Aryas  (Cf.  Felner, 
Subsídios,  i55;  Barros,  Ásia,  iv,  v,  7;  um  extracto  do  dr.  Cárter,  Castes 
in  the  Bombay  presidency,  no  Indian  antiquary,  11  (li^y^),  154;  Yule  e 
Burnell,  Glossary,  palavra  Cooli;  Cust,  Modem  languages  of  east  In- 
dies,  79,  London,  1878;  Latham,  Descript.  Ethnology,  11,  41 5  et  seqq.j. 

Os  «Venezaras»  de  Orta  são  os  Banjárás.  Hesitei  muito  tempo 
quanto  á  verdadeira  significação  d'aquelití  singular  nome;  e,  conver- 
sando no  assumpto  com  o  erudito  indianista,  Gerson  da  Cunha,  fo 
este  quem  primeiro  me  suggeriu  a  identificação.  Achei  depois,  que  já 
fora  feita  no  excellente  Glossário  de  H.  Yule  e  A.  Burnell,  tao  cheio  de 
preciosas  indicações  de  todo  o  género.  Os  brinjarries,  banjárás,  ou  van- 
járás  são  uns  commerciantes  nómadas,  de  raça  especial  e  origem  um 
tanto  problemática,  que  desde  tempos  antigos  percorrem  a  Índia  com 
grandes  manadas  ou  cáfilas  de  bois  mansos,  carregados  de  cereaes,  sal 
e  outras  mercadorias.  Duarte  Barbosa  conhecia-os,  sem  lhes  saber  ou 
pelo  menos  sem  lhes  citar  o  nome.  Fallando  de  uma  espécie  de  feira, 
que  se  fazia  em  Chaul,  diz  assim : 

«hos  mercadores  que  aquy  vem  tratar  no  tempo  que  acima  digo,  hos 
que  saom  do  certam  vem  por  terá,  e  assentaom  araial  com  tudo  ho 
que  trazem,  em  hu  lugar  que  estaa  de  Chaul  contra  o  certam  húa 
pequena  leguoa;  trazem  estes  suas  mercadorias  em  muy  grandes  re- 
couas  de  bois  mansos,  com  suas  albardas,  como  castelhanas,  e  em  cima 
hilas  sacas  compridas  atravesadas,  sobre  que  carregaom  suas  mercado- 
rias, e  traz  logo  húu  condutor  que  leva  vinte,  trinta  bois  diante  de  sy.» 

Aos  mesmos  negociantes  se  deve  referir  Gaspar  Corrêa;  mas  tam- 
bém lhes  não  cita  o  nome  : 

«. .  .huma  nova  estrada  que  agora  se  fazia  pola  Serra,  e  corria  para 
as  terras  d'Orixá  e  de  Bencalla,  que  erao  cáfilas  de  bois  de  carga,  que 
cada  hum  levava  em  alforges  hum  bar  de  pimenta,  e  erão  tantos  que 
exgotavão  toda  a  pimenta,  porque  trazião  arroz  de  Choramandel. .  .d 

Estes  vanjárás  foram  sempre  conhecidos  como  negociantes  nómadas, 
e  de  certo  não  estavam  fixados,  nem  eram  senhores  de  terras,  pelo  me- 
nos em  uma  data  tão  recente,  como  seria  a  epocha  da  conquista  mus- 


i3o  Colóquio  decimo 

sulmana.  N'esta  parte  Orta  deve  estar  enganado.  E  este  engano,  junto 
á  dissimilhança  que  ha  entre  vanjárá  e  venerara,  podia  lançar  alguma 
duvida  sobre  a  identificação.  É  certo,  porém,  que  outros  viajantes,  re- 
ferindo-se  evidentemente  aos  vanjárás,  lhes  dão  o  mesmo  nome  que 
Orta.  João  Alberto  de  Mandeslo,  que  andou  pela  índia  no  anno  de 
1689,  falia  dos  negociantes  que  percorrem  o  Deckan  e  Hindustan  com 
cáfilas  ou  caravanas  de  nove  e  dez  mil  animaes  carregados  de  arroz, 
trigo  e  outras  mercadorias,  e  acompanhados  sempre  pelas  mulheres  e 
familias;  e  diz  que  lhes  chamam  Venesars. 

(Duarte  Barbosa,  Livro,  290;  Lendas,  11,  559;  Yule  e  Burnell,  Glos- 
sary,  palavra  Brinjarry;  resumo  das  viagens  de  Mandeslo,  na  Hist.  gé- 
nér.  des  Voyages,  xxxvii,  249,  Paris,  1/52). 


Nota  (5) 

Sobre  esta  indicação,  de  o  reino  de  Dehli  confinar  com  o  Khorásán 
veja-se  a  nota  (i)  ao  Colóquio  vii.  E  quanto  ao  clima  do  Panjáb  e  ou- 
tras províncias  do  norte  da  índia,  é  certo  ser  tanto  ou  mais  rigoroso  do 
que  Orta  o  descreve. 

Nota  (6) 

Os  «Mogores»  de  Orta  vinham  commandados  pelo  celebre  Báber,  o 
qual  descendia  de  raça  turca  chagatai  pelo  pae,  e  de  raça  mongol  pela 
mãe;  e  fundou  na  índia  o  poderosíssimo  império,  vulgarmente  cha- 
mado do  Grão-Mogol,  que  deixou  a  seu  filho  Humáyum.  Báber  tomou 
DehU  e  Agra  no  anno  de  i526;  e  Orta  é  pois  exactíssimo  dizendo:  «ha 
mais  de  3o  annos)>  (Cf.  Erskine,  History  of  Báber  and  Humáyum,  i, 
437  et  seqq.). 

O  «irmão  d'el-rei  Dely»,  que  Orta  conheceu  pessoalmente,  chama- 
va-se  Mohammed  Zéman  Mirza,  e  era  casado  com  Maasúma  Sultan 
Begum,  filha  de  Báber,  sendo,  portanto,  cunhado  e  não  irmão  de  Hu- 
máyum. Este  personagem,  bastante  inquieto  e  turbulento,  tinha  entrado 
em  varias  conspirações  contra  o  cunhado,  e  veiu  fugido  para  a  corte  de 
Bahádur  Scháh  pelos  fins  do  anno  de  i534,  ou  correr  do  seguinte.  No 
mesmo  anno  de  i535,  o  nosso  Orta  veiu  para  Diu  na  expedição  de 
Martim  Aftbnso  de  Sousa,  como  contámos  largamente  na  sua  vida; 
e  ali  o  encontrou  então  no  séquito  de  Bahádur  (Cf.  Erskine,  11,  1 3  et 
seqq. ;  Garcia  da  Orta  e  o  seu  tempo,  95  et  seqq.). 

Deve  notar-se,  que  o  tal  Mohammed  teve  muitas  relações  com  os 
portuguezes,  e  foi  mesmo  favorecido  por  Nuno  da  Cunha  nas  suas  pre- 
tensões ao  throno  de  Cambaya,  depois  da  morte  violenta  de  Bahádur. 


Do  Ber  i3i 

Gaspar  CorrGa  falia  d'elle,  chamando-lhe  Mamedascão;  Barros  dá-lhc 
mais  correctamente  o  nome  de  Mir  Mohamed  Zaman;  e  Couto  dedi- 
ca-lhe  um  capitulo  quasi  completo,  mas  em  alguns  pontos  confuso  e 
inexacto  (Cf.  Lendas,  iii,  788;  Barros,  Ásia,  iv,  viii,  10  e  1 1 ;  Couto,  Ásia, 
V,  I,  i3). 

Nota  .(7) 

Se  do  «cavalleiro  de  uma  lança»  se  não  poderia  fazer  uma  chronica 
superior  á  do  grande  Timur  — como  diz  o  nosso  Orta —  é  certo  que 
elle  foi  uma  figura  notabilissima  na  historia  da  índia;  assim  como  é 
certo,  que  as  noticias  de  Orta  sobre  a  sua  vida  são  em  substancia 
verdadeiras. 

Scher  Khan,  conhecido  depois  de  rei  pelo  nome  de  Scher  Schah,  era 
um  afghan  da  tribu  de  Súr,  a  qual  occupava  o  Roh,  uma  região  mon- 
tanhosa para  os  lados  de  Pesháwar.  Orta  é,  pois,  exacto  dizendo  que 
elle  era  «patane»,  pois  os  nossos  escriptores  nunca  empregam  o  nome 
de  afghan,  que  parecem  desconhecer,  e  designam  sempre  aquelles  po- 
vos, de  origem  um  pouco  duvidosa  e  fallando  uma  lingua  do  grupo 
iranico,  o  pashtu,  pelo  nome  equivalente  de  patane,  onpátan.  E  quando 
Orta  diz,  que  elle  era  de  umas  «serras  que  partião  com  Bengala»,  não 
o  diz  por  engano,  deslocando  o  Roh  e  o  Afghanistan  para  o  centro  da 
índia,  mas  quer  referir-se  ás  terras  confinantes  com  Bengala,  onde  do- 
minavam os  afghans,  que  em  grande  numero  entraram  na  índia  quando 
governavam  em  Dehli  sultões  da  sua  raça.  Barros  também  coUoca  os 
patanes  tocando  em  Bengala;  e  Gaspar  Corrêa  situa  muito  claramente 
o  «  reyno  dos  Patanes »,  entre  o  reino  de  Dehli  e  o  reino  de  Bengala. 
N'esta  situação  houve  effectivamente  e  durante  pouco  tempo  um  es- 
tado afghan  independente,  estabelecido  nas  terras  de  Behar  e  Juanpúra, 
e  governado  pelo  sultão  Mohammed  Lohani  e  outros.  Ora  Scher  Khan, 
que  já  nascera  na  índia,  era  patane  de  raça,  mas  originário  d'aquellas 
regiões. 

Da  historia,  bem  conhecida,  de  Scher  Scháh,  bastará  recordar  as 
circumstancias  essenciaes,  que  concordam  com  o  que  diz  o  nosso  au- 
ctor;  isto  é,  que  elle  se  apossou  do  reino  de  Bengala,  e  mais  tarde  do 
grande  império  de  Dehli,  sendo  então,  durante  alguns  annos  (i  540-1 545) 
um  dos  maiores  potentados  de  todo  o  Oriente. 

D'este  Scher  Khan  faliam  bastante  os  nossos  escriptores,  porque, 
quando  elle  atacou  Bengala,  andava  por  lá  um  troço  de  portuguezes, 
sob  o  commando  de  Martim  Affonso  de  Mello.  Barros  chama-lhe  Xer- 
chan,  e  Gaspar  Corrêa,  Xercansor  (de  Scher  Khan  Súr).  Tanto  Barros 
como  Couto,  mencionam  aquelle  titulo  de  rei  do  Mundo,  Xiah  Olani, 
ou  Xah  Holão,  a  que  Orta  se  refere,  mas  não  encontrei  esta  noticia 
confirmada  pelos  escriptores  modernos  ou  orientaes,  que  pude  con- 


i32  Colóquio  decimo 

sultar  (Cf.  Elphinstone,  456;  Ferishta,  11,  98  a  i25;  Erskine,  11,  iio  et 
seqq.;  Barros,  Ásia,  iv,  ix,  6  e  seguintes;  Gaspar  Corrêa,  Lendas,  iii, 
719  et  seqq.). 

Nota  (8) 

A  cordilheira  de  montanhas,  que  vem  ao  longo  da  costa  occidental 
da  índia,  recebe  em  geral  o  nome  de  Ghãt,  Guate  ou  Gate  na  ortho- 
graphia  dos  nossos.  Delia  fallaram  varias  vezes  os  escriptores  portu- 
guezes,  e  entre  estes  Camões : 

Aqui  se  enxerga  lá  do  mar  undoso 
Hum  monte  alto,  que  corre  longamente, 
Servindo  ao  Malabar  de  forte  muro. 
Com  que  do  Canará  vive  seguro. 

Da  terra  os  naturaes  lhe  chamam  Gate,. . . 

A  palavra  maratha  ghãt  significava  propriamente  um  desfiladeiro, 
ou  cortadura  da  montanha,  por  onde  esta  se  podia  atravessar;  mas 
veiu  a  ser  tomada  no  sentido  geral  de  serra,  como  a  toma  Orta  e  a  to- 
mou também  Barros,  ou  como  sendo  o  nome  próprio  d'aquella  serra.  O 
reparo  orographico  de  Orta  é  exacto,  porque  o  desnivellamento  ou 
descida  para  o  interior  é  relativamente  pequeno,  ficando  por  detraz 
dos  Ghates  os  grandes  planaltos  centraes  da  índia.  A  esses  planaltos 
davam  o  nome  de  Balagate  (Orta  escreve  habitualmente  Balagate  e 
algumas  vezes  Balaguate),  da  palavra  persiana  bálá,  que  significa  acima. 
O  Balagate  estava,  pois,  acima  da  montanha,  litteralmente  acima  dos 
desfiladeiros,  por  onde  essa  montanha  se  podia  subir  (Cf.  Yule  e  Bur- 
nell,  Glossary,  nas  palavras  Balaghaut  e  Ghaut;  Barros,  Ásia,  i,  iv,  7). 


Nota  (9) 

Toda  esta  pagina  contém  varias  inexactidões,  que  é  necessário  apon- 
tar; mas  antes  devemos  explicar  a  discrepância  que  existe  entre  o  texto 
portuguez  de  Garcia  da  Orta,  e  a  versão  latina  de  Clusius. 

Na  sua  habitual  desordem  de  redacção,  o  nosso  escriptor  esquece-se 
das  suas  digressões  a  propósito  dos  últimos  soberanos  de  Dehli,  Báber, 
Humáyum,  e  Scher  Scháh,  retrocede  de  três  séculos  a  fallar  do  primeiro 
rei  a  que  se  referiu,  e  diz  «este  rey  Dely».  Clusius  não  o  percebeu  bem 
— o  que,  seja  dito  em  abono  da  verdade,  lhe  succedeu  poucas  vezes — 
e,  enganado  pela  forma  grammatical,  attribuiu  tudo  quanto  se  segue  a 
Scher  Schah,  o  que  é  simplesmente  absurdo  e  historicamente  inintelli- 


Do  Ber  i33 

givel.  A  verdade  é,  que  Orta  quer  fallar  de  Alá  ed-Oin;  mas  ainda 
com  esta  correcção  está  longe  de  ser  exacto. 

Em  primeiro  logar  dá  a  entender,  que  a  separação  do  Deckan  teve 
logar  logo  em  seguida  á  conquista.  Isto  não  é  verdade;  o  Deckan,  an- 
nexado  em  grande  parte  ao  império  de  Dehli  no  reinado  de  Alá  ed-Din, 
só  se  separou  perto  de  cincoenta  annos  depois  no  reinado  de  Mahom- 
med  Tuglak,  quando  Haçan  Gangú  (1347)  fundou  no  sul  a  dynastia 
independente  de  Bahmany  (Cf.  Ferishta,  11,  290,  ctc). 

Em  segundo  logar,  Orta  falia  da  divisão  do  Deckan  — a  qual  não  foi, 
nem  tão  voluntária,  nem  tão  regular  quanto  elle  diz —  como  de  um 
successo  immediato  á  sua  independência.  Vae  aqui  envolvido  um  ana- 
chronismo  ainda  mais  grave  que  o  anterior.  O  Deckan  conservou-se 
independente  e  unido  perto  de  cento  e  cincoenta  annos,  do  meiado 
do  século  XIV  aos  fins  do  xv  ou  principies  do  xvi.  Foi  só  então,  no  rei- 
nado do  fraco  Mahmud  Scháh  II,  que  os  senhores  mais  poderosos  da 
corte,  Yusuf  Adil  Khán,  Nizam  el-Mulk,  Kasim  Berid  e  outros  se  de- 
clararam independentes,  e  fundaram  outras  tantas  dynastias,  o  que  ve- 
remos melhor  na  nota  seguinte. 

Apesar  d'estes  erros,  vê-se  que  o  nosso  escriptor  tinha  um  certo 
conhecimento  dos  successos  políticos  a  que  se  refere.  Assim,  o  que  nos 
diz  sobre  a  estada  do  «rey  Daquem»,  isto  é,  de  Mahmud  Scháh,  em 
Bider,  sob  a  guarda,  ou  antes  na  custodia  de  Kasim  Berid,  é  perfeita- 
mente exacto,  como  é  exacta  a  sua  noticia  em  relação  ás  formulas  de 
respeito,  que  os  revoltosos  conservaram  durante  algum  tempo  na  pre- 
sença do  seu  antigo  soberano  (Cf.  Ferishta,  11,  5 19  et  seqq.). 


Nota  (10) 

Vamos  ver  se  deslindámos  quem  foram  todos  estes  personagens,  e 
comecemos  pelos  mais  conhecidos. 

Diz  Orta:  «o  bisavô  d'este  Adelham  que  agora  hé. . .«.  Este  bisavô 
era  Yusuf  Adil  Khán,  o  qual  veiu  para  a  índia  na  qualidade  de  escravo; 
mas  alguns  diziam  ser  filho  do  sultão  ottomano  Amurat  II.  No  reinado  de 
Mahommed  Bahmany  chegou  a  adquirir  uma  grande  importância,  sendo 
o  chefe  do  partido  dos  estrangeiros,  árabes,  persas,  turcos  do  norte  e 
da  Ásia  menor  ou:  «Turcos,  Rumes,  e  Coraçones  e  Arábios»,  como 
Orta  diz  correctamente.  Durante  a  anarchia,  que  se  estabeleceu  no 
reinado  de  Mahmud,  successor  de  Mahommed,  declarou-se  indepen- 
dente, mandando  ler  a  khutbah  em  seu  nome,  e  tomando  o  titulo  real 
de  Adil  Schah,  que  depois  usaram  os  seus  descendentes.  Bijapúra  era  a 
capital  dos  seus  estados,  que  se  alongavam  á  parte  do  Concan  onde 
ficava  Goa.  A  este  e  aos  seus  successores  chamaram  os  escriptores 
portuguezes  Hidalcão  e  Sabayo— Hidalcáo  pela  corrupção  de  Adil 


i34  Colóquio  decimo 

Kháni,  e  Sabayo  pelos  motivos  que  veremos  adiante.  Yusuf  morreu  no 
anno  de  i5io,  no  incervallo  que  decorreu  entre  as  duas  tomadas  de 
Goa  por  Aífonso  de  Albuquerque.  Succedeu-lhe  seu  filho  Ismael  Adil 
Scháh,  o  qual  morreu  no  anno  de  i534,  data  que  Orta  confundiu  com 
a  da  morte  do  pae.  A  Ismael  succedeu  seu  filho,  Mullú,  a  este  um  irmão, 
chamado  Ibrahim,  e  a  Ibrahim,  no  anno  de  ifSy,  seu  filho  Ali,  o  qual 
reinava  no  tempo  em  que  Orta  escrevia,  e  era,  como  se  vê,  bisneto  de 
YusuP  (Cf.  Ferishta,  iii,  4  a  112;  Garcia  da  Orta  e  o  seu  tempo,  224). 

Diz  Orta:  «E  o  avô  d'este  Nizamaluco. . . «  Segundo  o  historiador 
Ferishta,  o  primeiro  personagem  importante  d'esta  linha  foi  um  hindu 
do  Deckan,  um  «Decanim»  pois,  como  affirma  o  nosso  escriptor.  Quando 
mudou  de  religião,  mudou  também  o  seu  antigo  nome  de  Timapa  no 
de  Haçan  Bheiry,  e  foi  depois  mais  conhecido  pelo  seu  titulo  de  Nizam 
el-Mulk.  Em  seguida  á  sua  morte  violenta,  seu  filho  Ahmed  declarou-se 
independente  no  seu  feudo  ou  jagir,  fundando  a  capital  a  que  deu  o 
nome  de  Ahmednagar,  e  tomando  a  designação  real  de  Ahmed  Nizam 
Scháh.  Succedeu  a  Ahmed,  no  anno  de  i5o8  ou  iSog,  seu  filho  Buhrán 
Nizam  Scháh,  o  qual  foi  o.  grande  e  intimo  amigo  de  Garcia  da  Orta.  E, 
por  morte  de  Buhrán  ( 1 553),  succedeu-lhe  Huçein,  o  qual  reinava  quando 
Orta  escreveu,  e  era  effectivamente  neto  do  primeiro  Nizam  Scháh. 
Os  portuguezes  chamaram  aos  soberanos  d'esta  dynastia  indistincta- 
mente  «Nizamaluco»  e  «Nizamoxa»,  accentuando  a  ultima  syllaba.  No 
tratado  de  paz  de  Buhrán  com  D.  Garcia  de  Noronha  diz-se :  «hu  Niza 
muxaa,  que  dantes  se  chamava  hu  Niza  maluquo.»  (Cf  Ferishta,  iii,  189 
a  287;  Garcia  da  Orta  e  o  seu  tempo,  227  et  seqq.). 

Diz  Orta:  «O  Imadmaluco,  ou  Madremaluco  ...  foi  Cherquez  de  na- 
ção . . .  e  morreu  no  anno  de  1546.»  Está  n'este  ponto  menos  bem  in- 
formado. Segundo  Ferishta,  Fath  UUah,  que  teve  primeiro  o  titulo  de 
Imad  el-Mulk,  era  um  hindu,  e  não  um  «Cherques»  ou  circassiano. 
Morreu  no  anno  de  1484;  e  mesmo  o  seu  filho,  o  primeiro  que  usou  o 
titulo  real  de  Imad  Scháh,  morreu  antes  da  data  indicada  pelo  nosso 
escriptor.  A  capital  de  Berar  — o  pequeno  reino  do  Imad  Scháh —  era 
em  Elichpúra  (Cf  Elphinstone,  761;  Ferishta,  iii,  485  a  489). 

Diz  Orta:  «O  Cotai  maluco  que  morreu  no  anno  de  1548  ...  foi 
Coraçone  de  nação».  Dizem  os  escriptores  orientaes,  que  Sultan  Kulí 
era  turco  ou  turcomano  de  raça,  mas  nascera  na  província  de  Hama- 
dan  da  Pérsia — isto  é  no  «Coraçone»,  no  sentido  lato  que  Orta  dá 
á  palavra.  Pertencia  á  familia  celebre  dos  Kara-cuvinlu,  ou  do  Carneiro 


'  Hidalcáo  ou  Idalcáo;  o  h  com  que  habitualmente  o  escreviam  resultava  do  som  guttu- 
ral  da  letra  am  Ir, )  pela  qual  começava  o  nome  de  Adil. 

-  Orta  refere-se  logo  adiante  ao  mesmo  personagem,  escrevendo  o  nome  Idalham,  e  di- 
zendo que  era  neto  do  antigo  senhor  de  Goa ;  mas  a  primeira  affirmaçáo  e  a  verdadeira. 


Do  Ber  i35 

preto,  e  veiu  para  a  índia  fugindo  ás  perseguições  dos  Ak-cuvinlu  ou  do 
Carneiro  branco.  Nomeado  Qutb  el-Mulk  pelo  rei  do  Declian,  foi  um 
dos  últimos  que  abandonou  o  partido  do  soberano  e  declarou  a  sua  in- 
dependência, tomando  então  o  titulo  de  Qutb  Scháh.  A  capital  dos 
seus  estados  era  na  celebrada  Gólconda.  Foi  assassinado,  sendo  já 
muito  velho,  no  anno  de  i543  (Cf  Ferishta,  iii,  32i;  e  outra  relação 
dada  por  Briggs  em  appendice,  1.  c.  SSg  et  seqq.). 

Diz  finalmente  Orta:  «O  Verido,  que  morreu  no  anno  de  i5io,  foy 
Ungaro  de  nação,  e  primeiro  christão. . .».  Ferishta  affirma,  que  Kasim 
Berid  era  um  escravo  georgiano,  vendido  a  Mahommed  Scháh  por 
Khuája  Sahib  ed-Din.  A  procedência,  porém,  d'estes  escravos  do  Occi- 
dente  era  difficil  de  averiguar,  e  nada  nos  impede  de  acceitar  a  versão 
de  Orta,  tanto  mais  que  elle  assegura  tel-a  obtido  por  «certa  enforma- 
ção».  Kasim  Berid  foi  primeiro  ministro  de  Mahmud  Scháh,  e  governou 
em  Bíder,  durante  tempo  em  nome  do  Scháh,  e  depois  em  seu  próprio 
nome.  Quando  morreu  (i5o4  e  não  i5io),  seu  filho  Amir  tomou  o  ti- 
tulo de  Berid  Scháh  (Cf  Ferishta,  iii,,  4g5). 

Quanto  ao  «Mohadum  Coja»,  um  dos  que  se  rebellaram,  e  houve  as 
cidades  de  «Visapor,  e  Solapor  e  Paranda,»  devia  ser  um  certo  Khuája 
Jehan  Deckany,  também  conhecido  pelo  titulo  de  Mukdum  Khan,  ao 
qual  Mahmud  Scháh  dera  as  fortalezas  de  Purenda  (ou  Parenda)  e  Sho- 
lapúra,  e  depois  figurou  bastante  nas  intrigas  e  luctas  d'aquella  epocha 
(Cf  Ferishta,  ii,  529). 

Não  posso  identificar  com  segurança  o  «Veriche»;  as  suas  terras, 
confinando  com  Cambaya  e  com  os  estados  de  Nizam-Schah,  de- 
viam estar  situadas  na  bacia  do  Tapti,  e  portanto  no  Kándésh;  mas 
não  encontro  n'este  tempo  e  região  pessoa  importante  de  nome  pare- 
cido. 

Nota  (i  i) 

Para  estabelecer  uma  similhança  de  ordem  nas  noticias  do  nosso 
escriptor,  vejamos  primeiro  o  que  nos  diz  das  distincçÕes  e  titulos  em 
geral,  e  depois  trataremos  dos  nomes  próprios  das  pessoas. 

Rãjã  { ^  Isl  I ),  rãj,  e  d'ahi  ray,  ráo,  significava  rei  em  sanskrito 
e  nas  modernas  linguas  derivadas,  isto  é,  «acerca  dos  gentios-) ;  e  os 
mouros  ou  mussulmanos  usavam  também  d'estas  designações,  restrin- 
gindo-as  geralmente  aos  principes  hindus. 

O  mesmo  succedia  com  a  palavra  naik,  naiqiie  (sanskrito  naika), 
que  significava  conductor  ou  chefe,  e  d'ahi  «capitão»,  como  Orta  diz. 
Os  portuguezes  designavam  com  este  nome  os  officiaes  indigenas  ao 
seu  serviço.  Encontram-se  no  Tombo  do  Estado  da  índia  muitas  inscrip- 
ções  análogas  á  seguinte  que  damos  como  exemplo :  «E  a  hum  naique 
com  seis  piães. . .  que  todos  servem  o  governador. . .»  Parece,  porem, 


i36  Colóquio  decimo 

que  os  naiques  tinham  pouca  auctoridade,  e  se  podem  comparar  ape- 
nas com  os  sargentos  ou  officiaes  inferiores. 

Não  me  consta  que  o  rãjã  de  Bijayanagar  tivesse  um  titulo  especial — 
como  era  o  de  Rana  em  Udipúra — ou  fosse  chamado  o  Rãjã  por  ex- 
cellencia.  Isto  devia,  porém,  succeder  em  Goa,  pois  nas  vizinhanças 
não  existia  outro  principe  hindu  de  poder  igual,  nem  mesmo  comparável. 

Bijayanagar,  ou  Vijayanagara  (a  cidade  da  victoria),  que  os  portu- 
guezes  escreviam  Bisnaguer,  Bisnagua,  Bisnaga,  era  a  capital  de  um 
poderoso  estado  hindu,  chamado  pelos  nossos  reino  de  Narsinga,  do 
nome  de  um  dos  seus  antigos  soberanos  Narasinha  (o  homem  leão). 
Orta  aponta  com  rasao  o  grande  poder  d'aquelle  estado  «nos  tempos 
d'agora»,  isto  é,  pelas  proximidades  do  anno  de  i56o.  Effectivamente  ha- 
via augmentado  muito  em  importância  no  reinado  de  Krishna  Raya;  e 
tanto,  que  pouco  depois  (i565)  todos  os  soberanos  mussulmanos  do 
Deckan  se  ligaram  contra  Ram  Rãjã,  successor  de  Krishna,  desbaratan- 
do-o  na  importante  batalha  de  Talicót.  O  grande  e  rico  estado  hindu 
ficou  então  aniquilado,  porque  — como  diz  Orta,  na  sua  tranquilla  phi- 
losophia —  «todas  as  cousas  socedem  ás  vezes».  (Cf.  Elphinstone,  477; 
Ferishta,  iii,  127,  414). 

Os  titulos,  indicados  por  Garcia  da  Orta,  e  usados  pelos  puros  mus- 
sulmanos, foram  bem  conhecidos  na  índia,  predominando  n'uma  certa 
successão,  que  é  interessante  notar. 

Os  primeiros  que  ali  entraram,  árabes  pela  maior  parte,  contenta- 

ram-se  com  o  titulo  supremo  puramente  arábico  de  j--i.',  scheikh,  ou 

c 

Xeque  na  orthographia  dos  nossos.  Significava  simplesmente  velho,  se- 
nex,  e  veiu  a  designar  o  chefe,  por  uma  derivação  de  sentido  absolu- 
tamente igual  á  da  nossa  palavra  portugueza  senhor  (do  latim  senio- 
remj.  Depois,  sob  a  influencia  dos  faustosos  e  apparatosos  Khalifas, 
multiplicaram-se  as  designações  pomposas.  Sol  da  fé,  Leão  de  Deus, 
Estrella  do  reino,  e  varias  mais  que  adiante  veremos. 

A  onda  de  conquistadores  e  aventureiros  do  norte  trouxe  para  a 
índia  aquelle  titulo,  que  Orta  diz  correctamente  ser  tártaro  e  escreve 
Ham,  ou  maliciosamente  Cam,  isto  é  khán,  .^Ld>.,  que  em  turco  si- 
gnifica principe.  O  filho  do  grande  Chengíz-Khan,  Okkodai,  assumiu 
o  titulo  muito  superior  de  Cáán,  Qáán,  ou  Kháqán.  Este  era,  assim 
como  os  seus  successores,  aquelle  mysterioso  potentado,  o  Grão  Cão 
da  Tartaria,  ás  vezes  chamado  Grande  Cão — fr.  Odorico  escreve  em 
latim,  magnus  canis.  Os  restantes  príncipes  usavam,  porém,  o  titulo 
mais  modesto  de  khan,  que  depois  na  índia  se  vulgarisou  muito,  dan- 
do-se  a  quasi  todos  os  generaes,  e  a  outras  pessoas  importantes. 

Finalmente,  sob  os  Kiljís  de  Dehli,  empregou-se  com  frequência  a 
designação  de  Melique,  v..t^t-*,  melik,  muito  usada  entre  afghans. 


Do  Ber  i3'] 

Significava  primitivamente  rei;  mas  distribuia-se  com  tanta  prodigali- 
dade, que  Orta  tem  toda  a  rasão  em  lhes  chamar  reisinhos. 

O  titulo  de  scháh,  sLi,,  na  nossa  orthographia  antiga  Xa^,  era  muito 
superior;  e  — com  rarissimas  excepções —  só  se  dava  a  príncipes  reinan- 
tes de  estados  independentes.  Era  effectivamente  de  origem  persiana; 
mas  Orta  está  enganado  quando  attribue  a  sua  introducção  no  Deckan 
á  influencia  de  Thamasp,  pois  se  usava  muito  antes  em  Dehli,  e  no 
próprio  Deckan.  (Cf.  Yule,  Cathay,  cxvii,  e  128;  D'Ohsson,  Hist.  des 
Mongóis,  II,  1 1 ;  uma  nota  do  coronel  Briggs,  em  Ferishta,  i,  291 ;  Bloch- 
mann,  Biogr.  notes  of  grandees  0/  the  miighul  Court,  no  Ind.  Ant. 
(1872),  p.  259  et  seqq.). 

Vejamos  agora  o  que  Orta  nos  diz  dos  titulos  e  nomes  especiaes  de 
algumas  pessoas. 

D'entre  os  hindus,  cita  apenas  o  nome  do  seu  conhecido  «Chita  Rao», 
que  diz  significar  «rey  tão  forte  como  uma  onça».  Chita  é  effectiva- 
mente o  nome  -da  onça  ou  leopardo  de  caça,  o  Félix  jubata;  e  deri- 
va-se  de  chitraka,  que  significa  pintado  ou  malhado. 

D'entre  os  mussulmanos,  menciona  vários  nomes  com  as  suas  deri- 
vações, em  grande  parte  exactas. 

«Adelham»  — diz  elle —  significa  «rey  de  justiça».  Isto  é  exacto: 
j  Ji,  adil,  significa  justiça  e  justo  (justitia,  cpquitas,  jiistus,  cequus  em 
Freytag)  d'onde  .  J,^  J  j^,  o  príncipe  justo.  Orta  é  menos  feliz  na  ex- 
plicação do  nome  de  Sabayo,  pelo  qual  também  era  conhecido  o  mesmo 
personagem;  «saibo»,  isto  é  v_,..=s.Lo  sahib,  quer  effectivamente  dizer 
senhor  (dominus,  tnirnster  regis  em  Freytag) ;  mas  esta  não  é  a  origem. 
Yusuf  era  natural  ou,  pelo  menos,  procedente  da  cidade  persiana  de 
Sawah,  a  cujos  habitantes  se  dava  o  nome  de  ^C«L^  sawi^  d'onde 
Sabayo,  como  o  nosso  João  de  Barros  sabia  e  explica  mui  correcta  e 
claramente  (Cf.  Meynard,  Dict.  de  la  Perse,  299;  Ferishta,  iii,  8;  Bar- 
ros, Ásia,  1:,  v,  2). 

Orta  deriva  Nijam  el-Mulk  de  ne^a  (lança  em  persiano),  no  que  se 
engana.  Nitram  significa  ordenamento,  d'onde  -^t-CU!  >lJàJ  Nijani 
el-Mulk  significa  o  administrador  ou  regulador  do  estado. 

Deriva  Cotalmaluco  ou  Qiitb  el-Mulk  de  cota,  fortaleza;  quando  o 
nome  é  ainda  mais  pomposo;  oXU!  <^..^^  quer  dizer  a  estrella po- 
lar do  estado. 


'  A.  velha  orthographia  portugueza  dos  nomes  orientaes  era  sonicamente  muito  exacta. 
Xá  e  xeque  dáo-nos  bem  o  som  das  palavras  persiana  e  arábica,  como  Xercansor  nos  dá 
muito  proximamente  Scher  Khan  Súr.  Pareceu-me,  porém,  que  a  sua  adopção  seria  hoje 
inadmissível,  porque  a  orthographia  se  dirige  aos  olhos,  tanto  pelo  menos  como  aos  ouvidos, 
e  esta  volta  a  formas  já  hoje  desusadas  introduz  um  elemento  de  incerteza  na  leitura. 


i38  Colóquio  decimo 

É  exacto  na  derivação  de  Imadmaluco,  hnad  el-Mitlk,  v^CU^  .>Us, 
que  de  feito  significa  o  esteio  ou  pilar  do  estado. 

Finalmente  deriva  «Verido»  de  «recadO"  ou  "guarda»,  no  que  pa- 
rece não  andar  muito  longe  da  verdade.  O  coronel  Briggs,  no  Appen- 
dix  á  sua  versão  de  Ferishta,  dá  a  Berid,  Jo  ^j ,  o  sentido  de  illustre. 
Blochmann,  porém,  diz  que  Barid  (do  latim  veredas)  era  um  dos  car- 
gos da  corte,  court  intelligencer,  o  que  se  não  afasta  da  interpretação 
de  Orta  (Cf.  Briggs,  no  Appendix  i  a  Ferishta,  vol.  iv,  p.  56 1,  d'onde 
principalmente  extrahi  as  noticias  precedentes;  Blochmann,  1.  c,  p.  260) 


Nota  (12) 

A  noticia  de  Orta  sobre  o  grande  Ismael  da  Pérsia  é  fundada  na 
verdade  dos  factos,  posto  que  envolvida  em  muitas  circumstancias  in- 
exactas ou  mal  interpretadas.  Assim,  Ismael  não  se  levantou  contra  o 
«Grão  Turco»,  mas  rebellou-se  contra  os  então  soberanos  da  Pérsia, 
da  familia  dos  Ak-citvinlu,  do  Carneiro  branco,  que  eram  de  raça 
turca  ou  turcomana;  e  só  mais  tarde  esteve  em  guerra  com  o  Grão 
Turco,  o  sultão  ottomano  Selim  I.  Assim  também,  não  era  de  «baixa 
extracção»,  pois  descendia  em  linha  directa  nada  menos  que  de  Ali  e 
de  Fátima,  a  filha  do  Propheta;  mas  era  um  simples  scheikh,  filho  de 
scheikh  Haidar,  o  que  alguns  lhe  lançavam  em  rosto.  Mesmo  depois 
de  rei,  continuaram  a  chamar-lhe  o  scheikh  Ismael  —  Xequesmael  es- 
crevem os  nossos  portuguezes  do  tempo.  Também  se  não  chamava 
«Çufi»,  porque  tivesse  um  grande  capitão  deste  nome.  A  designação 
de  Sophi,  Sofi,  ou  Sufi  vinha-lhe  da  seita  mystico-pantheista,  a  que 
pertenciam  os  seus  ascendentes,  nomeadamente  aquelle  celebre  e  santo 
scheikh  Saifú  ed-Din  de  Ardebil,  contemporâneo  e  conhecido  do  grande 
conquistador  Timur.  Ainda  não  é  exacto,  que  elle  fosse  «contra  Mafa- 
mede»;  era  pelo  contrario  um  zeloso  mussulmano,  apenas  adverso  aos 
Sunnitas  orthodoxos,  e  pertencente  á  crença  Schiita,  que  venerava 
particularmente  Fátima,  Ali  e  os  doze  Imams.  E  as  relações  que  Ismael 
e  seu  filho  Thamasp  tiveram  com  os  reis  mussulmanos  do  Deckan, 
contribuiram  de  certo  para  alargar  ali  esta  forma  schiita  do  islamismo, 
que,  entre  outros,  professava  o  Nizam  Scháh,  como  o  nosso  Orta  af- 
firma  com  rasão.  Este,  porém,  engana-se  quando  diz,  que  Ismael  ou 
Thamasp  deram  áquelles  soberanos  o  titulo  de  Scháh,  pois  é  certo 
que  se  usava  anteriormente  na  índia,  (Cf.  Teixeira,  Relaciones,  SSq  et 
seqq. ;  artigo  Sunnifes  and  Sliiites  na  Encycl.  Britannica;  Gobineau, 
Trois  ans  en  Asie,  SaS  et  seqq..  Paris,  \85q;  veja-se  também  todo  o  in- 
teressante capitulo  de  João  de  Barros,  Ásia,  ii,  x,  6). 

Já  que  falíamos  de  Ismael  Scháh,  não  virá  fora  de  propósito  recor- 
dar brevemente  as  boas  relações,  que  existiram  entre  o  grande  rei  da 


Do  Ber  iSq 

Pérsia  e  o  grande  governador  da  índia.  A  prinieira  embaixada  de  Ismael 
encontrou-se  fortuitamente  com  Affonso  de  Albuquerque;  vinha  diri- 
gida ao  Adil  Scháh,  e  deu  com  os  portuguezes  já  senhores  de  Goa.  O 
governador,  porém,  recebeu  o  embaixador  com  demonstrações  de  ami- 
sade,  e  mandou  com  elle  um  enviado  seu,  Ruy  Gomes,  munido  de 
prudentes  instrucções,  o  qual,  ao  que  parece,  foi  envenenado  em  Hor- 
muz  e  nunca  chegou  ao  seu  destino  (Lendas,  ii,  69  et  seqq.).  No  anno 
de  i5i2  voltou  á  índia  um  embaixador  de  Ismael,  e  na  sua  companhia 
mandou  Affonso  de  Albuquerque,  Miguel  Ferreira,  dando-lhe  instruc- 
ções extremamente  meticulosas  e  curiosas,  e  uma  carta  sua  para  o 
Scháh,  transcripta  por  Gaspar  Corrêa,  mas  de  cuja  authenticidade  é  li- 
cito duvidar  (Lendas,  11,  358).  Miguel  Ferreira  foi  recebido  pelo  Scháh 
em  Schiraz,  e  ficou  muito  tempo  pela  Pérsia,  assistindo  a  festas  e  ca- 
çadas de  que  Gaspar  Corrêa  dá  interessantes  descripções  (Lendas,  11, 
409  a  417).  Quando  voltou,  veiu  com  elle  outro  embaixador  de  Ismael 
Scháh,  que  Affonso  de  Albuquerque,  então  em  Hormuz,  recebeu  pompo- 
samente (Lendas  11,  428;  Barros,  Ásia,  11,  x,  4).  D'ali  mesmo  mandou  um 
novo  enviado  ao  Scháh,  Fernão  Gomes  de  Lemos,  dando-lhe  um 
regimento  ou  instrucções  especiaes,  um  rico  presente  e  uma  nova 
carta  para  o  Scháh.  Esta  carta  vem  transcripta  também  por  Gaspar 
Corrêa;  mas  é  evidentemente  falsa,  pois  temos  a  verdadeira,  muito 
mais  digna,  e  muito  mais  na  Índole  e  modo  de  dizer  de  Albuquerque. 
E  assim  intitulada  :  Carta  d' Afonso  dAlbuquerque,  capitão  e  governador 
da  índia,  ao  Xeque  Ismael,  Rei  das  carapuças  Boxas  (Cf.  Cartas  de 
Affonso  de  Albuquerque,  p.  387  et  seqq.,  Lisboa,  1884). 

Até  aqui,  as  relações  de  Affonso  de  Albuquerque  com  Ismael;  mas 
não  podemos  deixar  de  ao  menos  mencionar  ainda  a  embaixada  de 
Balthazar  Pessoa,  no  governo  de  D.  Duarte  de  Menezes,  porque  n'essa 
embaixada  ia  um  dos  mais  verídicos,  mais  indagadores  e  mais  interes- 
santes dos  viajantes  portugviezes,  António  Tenreyro.  E  bem  conhe- 
cido o  seu  Itinerário,  e  é  bem  sabido  que  elle  estava  em  Tabriz  quando 
morreu  Ismael,  e  foi  levantado  ao  throno  o  seu  filho  Thamasp. 


Nota  (i3) 

Os  nomes  das  peças  do  xadrez,  usados  na  índia,  encontram-se 
em  qualquer  tratado  d'este  jogo,  por  exemplo  no  de  Forbes,  e  não  ca- 
recem de  elucidação.  Mas  devemos  notar  a  phrase  em  que  Orta  diz: 
jogam  «bem;  mas  é  differente  do  nosso  jogo.»  O  xadrez  diz-se  inventado 
na  índia,  onde  se  chamava  Chaturanga,  ou  jogo  das  quatro  angas,  os 
quatro  elementos  dos  exércitos:  elephantes,  cavallos,  carros  e  peões. 
Da  índia  passou  para  a  Pérsia,  onde  os  árabes  o  encontraram  e  adopta- 
ram, chamando-lhe  por  corrupção  c  alteração  de  alphaboto,  ^  Jsi.., 


140  Colóquio  decimo  do  Ber 


schatrandj;  e  d'este  caminho  ficou  uma  curiosa  indicação  na  expressão 
xaque-mate,  composta  do  substantivo  persiano  scháh,  e  do  verbo  ará- 
bico mât.  Mas  voltando  ao  schatrandj,  este  jogo  usou-se  na  Europa 
durante  toda  a  idade  media,  soífrendo  no  século  xv  modificações  pro- 
fundas, que  o  converteram  no  xadrez  moderno.  Vê-se,  pois,  que  Garcia 
da  Orta,  conhecendo  de  Portugal  e  Hespanha  o  novo  )ogo,  devia  notar 
differenças  no  movimento  das  peças  e  outras  particularidades,  quando 
no  Oriente  encontrou  a  antiga  forma. 


Nota  (14) 

Se  agora  considerarmos  em  globo  as  noticias  dadas  por  Garcia  da 
Orta  n'este  Colóquio,  poderemos  notar  sem  parcialidade,  que  são  pela 
maior  parte  exactas,  e  muitas  d'ellas  especialmente  suas,  não  dadas 
nem  conhecidas  de  outros  escriptores  nossos,  mesmo  dos  mais  bem  in- 
formados, como  era  João  de  Barros.  E  alguns  escriptores  estrangeiros, 
como  Linschoten,  não  fizeram  mais  do  que  copial-o.  Todo  o  capitulo 
XXVII  d'este  auctor  é  o  mais  descarado  plagiato,  repetindo  tudo  quanto 
Orta  disse,  sem  acrescentar  ou  emendar  cousa  alguma.  É  mesmo 
fácil  ver,  que  foi  moldado  pela  versão  latina,  e  não  pelo  texto  por- 
tuguez.  De  quando  em  quando,  o  plagiato  pretende  occultar-se  sob 
uns  artificios  infantis.  Orta  disse  do  reino  de  Dehli  «he  terra  muito 
fria,  e  neva  e  gea  n'ella  como  na  nossa».  Clusius  traduziu:  Frigida 
admodum  est  régio,  nivibus  et  gelu  per  hiemem  non  minus  divexata, 
quam  nostra  Europa.  E  Linschoten  diz :  hyetnis  qualitate  provinciis 
Belgicis  haud  absimilis.  Esta  menção  dos  Paizes  Baixos  tem  evi- 
dentemente o  fim  de  dar  á  phrase  o  cunho  da  nacionalidade  do  auctor; 
mas  só  pode  illudir  a  quem  não  cotejar  cuidadosamente  o  Colóquio  do 
Ber,  a  sua  traducção  no  capitulo  xxviii  de  Clusius,  De  quibusdam  ín- 
dice regibus,  e  o  capitulo  xxvii  de  Linschoten  Brevis  descriptio  terrcv 
post  Goam  . . .  que  elle  tranquilamente  diz  ser  tirado,  ex  annalibus, 
monumentisque  ipsorum  Indorum,  quando  é  todo  copiado  dos  Coló- 
quios. 


COLÓQUIO  UNDÉCIMO  DO  CALAMO 

AROMÁTICO  E  DAS  CACERAS 

INTERLOCUTORES 

RUANO,  ORTA 
RUANO 

Dizeyme  agora  os  nomes^do  calamo  aromático  acerca  das 
nações  que  sabeis,  porque  poUos  nomes  venhamos  em  co- 
nhecimento do  que  he^  porque  os  nossos  doctores  moder- 
nos tem  grandes  duvidas  nelle  e  no  açoro,  que  dizem  huns 
que  he  o  calamo  aromático,  outros  dizem  que  a  galamga  he 
o  calamo.  Em  tal  maneira  está  esta  meada  empeçada,  que 
tem  necessidade  de  hum  bom  sergueiro  pêra  a  desempeçar; 
e  por  tanto  venho  a  vós  que,  pois  conheceis  estes  simples, 
que  a  desempeçeis. 

ORTA 

o  que  lá  em  Portugal  se  usa  em  as  boticas  por  calamo 
aromático,  e  que  na  Índia  he  mezinha  mais  usada,  assi 
nos  homens  como  nas  molheres,  como  nos  cavalos  pêra 
suas  doenças,  chamase  em  Guzarate  va:{,  e  o  Decanim  o 
chama  bache,  e  em  Malabar  va:{abu,  e  em  Malaio  daringó, 
e  em  Pérsio  heger,  e  em  Gumcam,  que  he  a  fralda  do  mar, 
vaicam;  e  em  Arábio  cassab  aldirira. 

RUANO 

Pois  Serapiam,  que  he  arábio  e  de  auctoridade,  o  chama 
assabel  diriri*. 


*  Serapio,  cap.  2o5  (nota  do  auctor). 


142  Colóquio  undécimo 

ORTA 

Serapio  está  corruto,  e  Avicena  está  emmendado,  e  mais 
os  Arábios  físicos  lhe  chamam  este  nome*,  e  o  mesmo 
soa  cassab  que  calamo,  e  aldirira  dos  aromáticos ;  porque 
dirire  he  o  mesmo  que  he  acerca  de  nós  aroma;  isto  se 
tira  de  Avicena*.  E  porque  os  Mala3'os  souberam  esta  me- 
zinha por  os  Mouros,  que  do  Coraçone  foram,  a  chamaram 
corrutamente  dirimguo.  E  esta  mezinha  he  em  Goa  muito 
usada  e  em  toda  a  índia  se  semêa;  e  aqui  em  Goa  nas  hor- 
tas cresce  pouco,  e  porém  cheira,  ao  meu  gosto,  mal;  quanto 
mais  verde  tanto  he  o  cheiro  mais  forte  e  hórrido  pêra  mim 
(posto  que  diz  Ruellio  o  contrairo)*,  e  algumas  mezinhas, 
quanto  mais  sequas  tanto  cheiram  milhor;  assi  como  o 
sândalo  e  a  aguila.  Semeam  muyto  no  Guzarate  e  no  Ba- 
laguate;  e  no  cabo  onde  está  semeado  nam  cheira  até  que 
seja  tirado  da  terra.  Trazse  delia  pêra  a  fralda  do  mar,  por- 
que o  que  nella  nasce  se  gasta  na  terra,  e  o  que  vem  do 
Balaguate  se  leva  pêra  o  ponente.  As  molheres  usão  muito 
delle  pêra  as  paixões  da  madre  e  pêra  as  enfermidades  dos 
nervos  (i);  tudo  o  que  mais  se  guasta  he,  no  tempo  frio,  pêra 
os  cavallos*,  porque  por  as  manhãas  lho  dão  a  comer  pisado 
e  misturado  com  alhos  e  ameos,  que  he  cominhos  rústicos, 
e  algum  sal  e  manteiga  e  açucare,  e  chamam  esta  mezinha 
atraía  (2). 

RU  AN  o 

Nace  em  outro  cabo  afora  na  índia?  e  parece  ser  que  si, 
porque  Galeno**  e  Hipocras  o  chamão  calamo  yngoentario, 
e  Plutarco  calamo  arábio,  e  Cornelio  Celso  calamo  ale- 
xandrino. 


*  Avie,  li.,  2,  cap.  161  e  212  (nota  do  auctor).  A  citação  está  er- 
rada; o  capitulo  do  calamo  aromático  em  Avicenna  é  160.  A  significa- 
ção da  palavra  dirire  deduziu  Orta  da  leitura  do  capitulo  79. 

**  Galen.,  Sim.  medica,  lib.  i  (nota  do  auctor). 


Do  Calamo  148 

ORTA 

Eu  pergunte}'  a  muitos  Coraçones  e  Arábios,  que  tra- 
zem a  vender  cavalos  a  esta  índia,  se  o  havia  em  sua  terra; 
e  todos  me  dixerão  que  não  havia  outro  senam  o  que  vi- 
nha da  índia  por  mercadoria;  e  pergunteylhes  se  o  conhe- 
ciclo  e  usavão  lá  delle,  dixeramme  que  muito  bem  o  co- 
nhecia© lá,  mas  que  nam  era  mezinha  da  sua  terra,  e 
nisto  se  afirmaram  todos  os  mais.  E  os  que  dizem  que  he 
comum  aos  índios  e  Sirios,  não  dizem  conforme  ao  que 
estes  mercadores  me  dixerão,  e  também  me  dixerão  os 
físicos  do  rey  do  Decam.  Assi  que  os  que  o  chamão  da 
índia,  dizem  verdade;  e  os  que  da  Arábia,  dizem  bem, 
porém  que  viesse  primeiro  da  índia  á  Arábia.  E  muito  bem 
falão  os  que  o  chamão  alexandrino,  porque  dahi  vão  ter 
aos  Venezianos,  e  a  Beirut  e  a  Tripoli  de  Suria*. 

RUANO 

Pois  Menardo  diz  que  o  vio  em  Panonia,  e  que  era  muito 
fresco,  por  onde  parecia  ser  de  perto  trazido. 

ORTA 

Nós  do  que  vemos  e  ouvimos  damos  fé;  e  pôde  ser  que 
se  enganou  elle,  ou,  se  o  vio,  foy  semeado  em  alguns  al- 
guidares ou  cestos,  como  se  semêa  o  gengivve  e  nasce;  mas 
a  verdade  he  o  que  vos  dixe,  porque  se  leva  lá  por  merca- 
doria. 

RUAXO 

Isto  que  se  administra,  de  que  usamos,  que  he,  raiz  ou 
cana? 

ORTA 

He  cana,  porque  a  raiz  he  pequena  e  a  semeao;  e  ás 
vezes  vem  mesturada  a  cana  com  a  raiz;  e  portanto  não 


*  A  phrase  não  tem  concordância,  e  alem  d'isso  envolve  um  erro, 
pois  a  mercadoria  não  devia  ir  de  Alexandria  para  Tripoli  ou  Beyrut. 
Julgo  que  se  pôde  reconstruir  assim:  «porque  ahi  vão  ter  os  Venezia- 
nos, e  a  Beirut. . .» 


144  Colóquio  undécimo 

dizem  bem  os  que  dizem  que  he  raiz  somente,  porque  isto 
dizem  pêra  fundar  a  sua  openiam,  que  açoro  he  calamo  aro- 
mático ou  galamga. 

RUANO 

E  porque  lhe  chamais  aromático,  pois  dizeis  que  lhe  vem 
do  nome  arábio? 

ORTA 

Digo  que  aromático  não  quer  dizer  cheiroso,  senam  droga 
trazida  destas  partes*;  e  mais  eu  nam  sey  calamo  odorato, 
mas  sQy  jimco  odorato;  e  já  vedes  a  differença  que  vay  de 
cana  a  junco,  e  mais  vos  faço  saber  que  não  he  o  que  está 
dentro  do  calamo  cousa  semelhante  a  tea  de  aranha,  mas 
antes  está  dentro  huma  substancia  porosa  de  cor  algum 
tanto  amarella;  e  nisto  se  enganarão  Avicena  e  Serapião, 
que  tinham  mais  razam  de  saber  isto  que  os  Gregos. 

RUANO  V 

Dizem  estes  modernos  escritores  que  o  calamo  aromático 
he  hum  açoro,  porque  a  raiz  do  açoro  que  se  nas  curas 
administra,  não  he  calamo  ou  cana,  senam  a  raiz  que  ve- 
mos nas  boticas. 

ORTA 

Nisso  nam  trabalheis,  porque  somente  o  calamo  he  o  que 
se  vende  e  usa  e  nam  a  raiz,  e  se  o  quereis  ver,  vedello  aqui 
verde  e  seco. 

RUANO 

Não  duvido  já  pois  o  vejo  com  os  olhos;  mas  dizeyme 
como  aco?'o  será  espadana,  pois  dizem  huns  ser  preta  e 
outros  branca,  e  que  mordica,  e  que  he  quente  no  terceiro 
gráo;  e  nós  não  lhe  achamos  alguma  acrimonia  nem  quen- 
tura; e  isto  nam  tam  somente  nas  regiões  frias,  mas  nem  em 
as  quentes;  quanto  mais  que  não  pôde  ser  huma  mezinha 


*  Sic  na  edição  de  Goa;  ignoro  completamente  o  que  o  nosso  es- 
criptor  pretende  dizer.  Estas  paginas  podem-se  contar  entre  as  mais 
confusas  de  todo  o  livro;  envolvido  em  uma  questão  insolúvel,  Orta 
cáe  em  um  estylo  absolutamente  nebuloso. 


Do  Cal  amo  145 

quente  e  seca  no  terceiro,  e  que,  plantada  em  outro  cabo 
nam  fique  quente;,  porque  estas  calidades  seguem  a  especia, 
e  nam  se  podem  tirar  de  todo  ponto,  como  se  vê  no  açoro, 
por  onde  sem  duvida  tem  muita  razam  de  nam  ser  o  açoro 
o  que  por  tal  se  vende. 

ORTA 

Eu  vos  confesso  que  nam  he  açoro  a  espadana;  senam 
que,  ou  carecemos  delle,  ou  não  o  sabem  buscar  nos  loga- 
res  onde  dizem  Galeno  e  Plinio  e  Dioscorides*  que  o  ha,  e 
isto  porque  sam  os  físicos  pouco  curiosos;  e  por  o  nam 
achar  nam  he  bem  que  seja  calamo  aromático;  pois  Avi- 
cena  e  Serapiam  fazem  três  capítulos,  convém  saber:  do 
calajno  aromático;  e  do  açoro;  e  da  galamga.  E  os  que  es- 
crevem do  calamo  dizem  avelo  na  índia,  e  assi  he  que  o 
nam  ha  em  outras  partes;  e  o  açoro  nam  dizem  que  o  ha 
senam  em  Europa:  per  donde  nam  foy  conhecido  de  nós, 
porque  nam  especulámos  o  que  agora  especularam  Menardo, 
Lyoniceno  e  outros,-  mas  todos  os  físicos  Arábios  e  Turcos 
e  Coraçones  e  da  índia  nam  conhecem  o  açoro;  porque, 
quando  eu  curey  ao  Nizamoxa  de  hum  tremor,  tive  com 
elles  grande  porfia  sobre  isso,  e  nunqua  me  souberam  dizer 
o  que  era  acoro^  senam  que  em  Turquia  o  havia,  porque 
eu  lhe  dizia  o  nome  em  arábio,  e  mais  o  calamo  he  quente 
e  seco  no  segundo  gráo  e  o  açoro  no  terceiro,  por  onde 
nam  pode  ser  tudo  hum;  e  se  o  açoro  nam  o  achais,  bus- 
cayo  e  olhay  por  os  livros  o  que  poreis  em  seu  lugar. 

RUANO 

Porque  nam  será  a  raiz  da  galamga,  açoro,  pois  todos 
os  sinais  tem  do  açoro? 

ORTA 

Aqui  a  vereis  de  duas  maneiras,  de  Jaoa  e  de  China,  e 
plantamna  aqui,  e  as  folhas  nam  parecem  gladíolo,  e  são 


*  Gale.  Simplic.  6;  Plin.  li.  iS  e  26;  Diosc.  li.  i,  cap.  17  (nota  do 
auctor).  O  capitulo  17  de  Dioscorides  é  o  do  calamo;  o  do  açoro  é  o 
segundo  do  mesmo  livro. 

10 


146  Colóquio  undécimo 

muito  curtas,  e  he  feita  muito  como  colher,  como  vos  di- 
rey  quando  falarmos  na  galamga;  e  vola  mostrarey  verde 
e  seca;  e  mais  a  galamga  tem  outra  compreisam,  que  he 
mais  quente,  e  nam  he  apropriada  ao  que  he  o  açoro  e  o 
calamo;  porque  estes  dous  sam  apropriados  aos  nervos;  e 
a  galamga  ao  estômago  e  a  resolver  ventosidades;  e  mais 
estas  mezinhas,  convém  saber  a  galamga  e  o  calamo,  sam 
mercadorias  nesta  terra,  do  principio  conhecidas  e  usadas 
a  levarse  pêra  o  ponente. 

RUANO 

De  maneira  que  quereis  que  percamos  hum  simple  tam 
notável  como  açoro? 

ORTA 

Eu  nam  quero  que  o  percamos,  mas  quero  que  nam  perca 
a  índia  estoutros  dous  ou  hum  delles;  e  digo  que,  se  se  per- 
der, não  tem  os  índios  a  culpa,  senam  os  outros;  pois  diz 
Plinio  que  o  milhor  he  em  Ponto,  e  depois  em  Galacia,  e 
depois  em  Creta*. 

RUANO 

Pois  que  isto  dizeis,  que  poreis  em  logar  de  açoro  pêra 
lá  usar? 

ORTA 

Ponho  o  calamo  aromático  em  maior  quantidade;  por 
nam  ser  tam  quente  e  seco,  que  he  hum  gráo  menos;  e 
deste  modo  usey  em  o  Nizamoxa  e  em  seu  pay;  vós  o 
podeis  fazer,  se  vos  bem  parecer;  mas  sabey  que  nam  he 
açoro  o  que  por  calamo  aromático  usámos;  e  o  que  diz 
Marcello,  que  he  canella,  he  tam  falso  que  nam  tem  ne- 
cessidade de  se  impugnar  (3). 

RUANO 

Pareceme  que  será  bom  comer;  e  dizeyme  que  fruita  he 
aquella  que  está  parando  aquella  moça,  porque  ^àVtCQ  junca 
avelanada  ou  junco  odorato? 


*  Plin.  libr.  25  e  26  (nota  do  auctor). 


Do  Calamo  147 

ORTA 

Nam  he  senam  huma  fruita,  que  nace  na  vasa  debaxo 
da  terra;  e  depois,  com  as  secas,  sae  fora,  e  deita  hum 
talo  curto  de  hum  dedo,  com  folhas  humas  pegadas  com 
as  outras;  e  sam  estas  folhas  muito  verdes  da  feiçam  das 
de  espadana;  e  depois  de  seca  a  vasa,  sae  fora,  como  as 
tuberas  da  terra;  e,  depois  que  for  seca,  sabem  a  castanhas 
aviladas,  e  quando  nam  he  seca,  nam  tem  bom  sabor. 

RUANO 

Muito  propriamente  me  sabe  a  isso,  e  dizeyme  o  seu 
nome? 

ORTA 

Chamase  caceras  (4) ;  e  porque  não  he  isto  em  uso  de  física, 
comamos  (5). 


Nota  (i) 

O  («Calamo  aromático»  de  Orta  é  sem  duvida  alguma  o  Acorus  cala- 
mus,  Linn.,  da  família  das  Aroidece,  uma  planta  de  habitação  extrema- 
mente vasta  (Ásia,  Africa  e  America),  frequente  na  índia  e  hoje  tam- 
bém na  Europa. 

Esta  identificação  resulta  claramente  dos  numerosos  nomes  vulgares 
citados  pelo  nosso  auctor: 

—  «Cassab  aldirira»;  este  é  effectivamente  o  nome  empregado  em 
geral  pelos  escriptores  arábicos,  jfyjjJ!  vw^'^,  qassab  adh-dherirah 
(Sprengel,  Diosc,  11,  355). 

—  «Bache»  no  Deckan.  É  o  nome  hindi  e  bengali,  bacha,  bach,  o 
qual  procede  do  sanskritico  "^T^  vachã. 

—  «Vaz»  no  Guzerate.  É  um  nome  empregado  pelos  árabes  da  índia, 
e  citado  por  Dymock  na  forma  waj,  evidentemente  uma  corrupção  do 
anterior  (Dymock,  Mat.  med.,  81 3). 

—  «Vaicam  »  no  Concan ;  isto  é,  vekhand,  um  dos  nomes  usados  ainda 
modernamente  em  Bombaim,  segundo  Dymock  (1.  c). 

—  «Vazabu')  no  Malabar;  isto  é,  uma  das  formas  das  linguas  dravi- 
dicas,  vassamboo  em  tamil,  vaymboo  e  vaesainbii,  em  maláyalam,  se- 


148  Colóquio  undécimo 

gundo  a  orthographia  e  a  pronuncia  ingleza,  adoptadas  por  Ainslie 
(Cf.  Mat.  Ind.  1,417). 

—  «Heger»  em  «pérsio».  Encontramos  no  livro  de  Ainslie  um  nome 
hindustani  da  planta,  muito  similhante  a  este,  igir,  e  que  bem  pôde 
ser  de  origem  persiana. 

—  «Daringóu  e  «dirimguo»  malayo.  Ainslie  cita  o  nome  usado  em 
Java,  deringo  (1.  c,  418). 

Como  se  vê,  a  nomenclatura  de  Orta  é  muito  completa;  e  a  sua 
concordância  com  os  nomes  do  Acorus  calamus  nas  diversas  linguas 
asiáticas,  taes  quaes  os  encontramos  nos  livros  modernos,  é  perfeita- 
mente satisfactoria. 

O  rhizoma  do  Acorus  calamus  gosa  entre  os  clinicos  indígenas  da 
índia  de  considerável  reputação,  sendo  applicado  á  cura  de  variadas 
enfermidades,  entre  as  quaes  figura  alguma  cousa  parecida  com  as 
«dores  da  madre»  do  nosso  escriptor.  Dymock  diz-nos  o  seguinte: 
a  pessary  composed  of  Acorus,  saffron,  and  tnare's  milk  is  used  to 
promote  delivery. 

Nota  (2) 

Esta  dieta  com  manteiga  e  assucar  pode  parecer  um  tanto  singular 
para  cavallos;  mas  está  perfeitamente  nos  hábitos  indianos.  Pelo  que 
se  refere  aos  tempos  modernos,  diz-nos  Yule,  que  a  pratica  de  incluir 
a  manteiga  (ghí)  na  alimentação  dos  cavallos  é  ainda  vulgar  em  quasi 
toda  a  índia;  e,  em  uma  epocha  mais  chegada  á  do  nosso  escriptor, 
vemos  que  no  Ain-i-Akbari  vem  mencionada  a  ração  dos  cavallos,  que 
o  celebre  Akbar  sustentava  nas  suas  reaes  cavalhariças:  2  libras  de 
farinha,  i  V2  libra  de  assucar,  e  no  inverno  1/2  libra  de  ghi.  O  viajante 
russo,  Athanasio  Nikitin,  que  no  século  xv  andou  pelo  interior  da  índia, 
menciona  também  entre  a  alimentação  dos  cavallos:  kichuris,  fervidos 
com  assucar  e  óleo,  e,  pela  manhã,  o  seu  shishenivo.  Nem  Major  que 
annotou  Nikitin,  nem  Yule  que  o  citou,  sabem  o  que  fosse  aquelle  shis- 
henivo. Devia,  porém,  ser  alguma  mistura  excitante,  no  género  d'esta 
«Arata»,  em  que  entravam  alhos,  ameos^,  e  calamo  aromático.  Note-se 
que  Orta  aponta,  como  Nikitin,  o  habito  de  o  darem  de  manhã ;  e  con- 
corda também  com  o  Ain-i-Akbari,  mencionando  a  alimentação  espe- 
cial do  inverno,  do  «tempo  frio.»  (Cf.  Yule,  Marco  Polo,  11,  SSy;  Tra- 
veis of  Nikitin,  10,  em  Major,  índia  in  the  fifteenth  century,  London-, 
i857). 


'  O  «ameos»  seria  propriamente  o  Ammi,  ou  o  Sison;  mas  Orta  podia  dar  este  nome  a 
qualquer  das  JJmbelliferce  de  sementes  aromáticas,  que  são  frequentes  na  índia. 


Do  Cal  amo  149 


Nota  (3) 

Não  seguiremos  Orta  na  intrincada  questão  em  que  se  embrenha  so- 
bre açoro  e  calamo  aromático.  Se  o  axofov  de  Dioscorides  é  esta,  ou 
outra  espécie  do  mesmo  género ;  se  o  seu  xáxau^oí  apuu.aTiy.o?  é  também 
o  Acoriis  calamiis,  como  julgam  diversos  escriptores,  ou  uma  espécie 
de  Andropogon,  como  suppõe  Royle;  se  as  plantas  de  que  Serapio  e 
Avicenna  fazem  diversos  capítulos  — á  parte  naturalmente  a  galanga, 
que  é  muito  distincta —  são  idênticas  ou  diversas;  tudo  isto  são  ques- 
tões conhecidas,  debatidas  e  bastante  ociosas.  Da  longa  e  um  tanto 
obscura  discussão  do  nosso  escriptor,  resultam  apenas  três  afíirmações 
definidas:  primeiro  que  elle  distinguia  correctamente  a  galanga  das 
outras  drogas;  segundo,  que  identificava  o  calamo  aromático  com  a 
planta  hoje  chamada  Acoriis  calamus;  terceiro,  que  ignorava  o  que 
fosse  o  açoro,  mas  se  inclinava  a  que  não  fosse  uma  planta  indiana. 
A  primeira  é  perfeitamente  exacta,  e  em  favor  das  ultimas  ainda  hoje 
se  podem  adduzir  muitos  argumentos.  (Cf  Sprengel,  Dioscorides,  i,  11, 
3i,  II,  344,  355;  Royle,  Hindoo  med.,  82;  Pharmac,  614). 

O  que  em  todo  o  caso  é  seguro,  é  que  o  calamo  aromático  de  Avi- 
cenna era  idêntico  ao  do  nosso  auctor.  E  a  propósito  podemos  notar  a 
curiosa  emenda  d'este  ao  celebre  medico  árabe.  Em  uma  secção  do  rhi- 
zoma  do  Acorus  calamus  vê-se  uma  espécie  de  rede  formada  por  lami- 
nas finas  de  cellulas,  que  deixam  entre  si  grandes  lacunas  aéreas  —  o 
que,  de  resto,  se  pôde  observar  em  outros  órgãos  de  plantas  aquáticas. 
Avicenna  notou  esta  textura  interior,  e  diz :  . . .  cujus  camta  est  plena 
re  simili  tela  aranea'  (Liber  11,  tract.  11,  cap.  160),  ao  que  Orta  acode, 
chamando-lhe  antes  «uma  substancia  porosa»,  o  que  é  um  pouco  mais 
exacto. 

Nota  (4) 

O  «Caceras»  de  Orta  deve  ser  o  Scirpus  Kysoor,  Roxb.  Aquelles 
fructos  que  nascem  na  vasa  — evidentemente  tubérculos — ,  e  perten- 
cem a  uma  planta,  comparada  com  a.  jiinça,  lembram  desde  logo  um 
Cyperus,  ou  um  Scirpus.  O  Scirpus  Kysoor,  commum  na  zona  Occiden- 
tal da  índia,  vivendo  nas  terras  alagadiças  e  margens  dos  tanques,  tem 
o  nome  vulgar  de  kachara  ou  kachera,  muitíssimo  similhante  a  ca- 
cera.  Dymock  menciona  unicamente  as  qualidades  adstringentes  e  me- 
dicinaes  das  suas  raizes  tuberosas;  mas  o  dr.  Lisboa  inclue  a  planta  en- 
tre as  alimentares,  e  diz  que  as  suas  raizes  são  doces  e  feculentas,  acres- 
centando que  se  vendem  em  Bombaim,  e  que  não  só  os  pobres  mas 
todas  as  classes  as  comem:  eaten  by  ali  classes.  Esta  noticia,  e  a  si- 
milhança  dos  nomes  vulgares,  dão-nos  uma  identificação  satisfactoria 


i5o  Colóquio  undécimo  do  Calamo 

(Cf.  Roxburgh,  Flora  Indica,  i,  23o;  Dymock,  Mat.  med.,  847;  J.  C  Lis- 
boa, Usefid  plants  of  the  Bombay  presidency,  p.  184,  Bombay,  1886). 


Nota  (5) 

Orta  cita  de  novo  n'este  Colóquio  o  escriptor  Marcello,  e  cita-o  a 
propósito  de  um  singular  equivoco.  Não  procurei  verificar  a  citação, 
mas  julgo  que  não  será  do  antigo  medico,  Marcellus  Empiricus,  e  sim  do 
escriptor  da  renascença,  Marcello  Virgílio.  Cita  também  Plutarco  e  Cor- 
nelio  Celso,  sem  duvida  pelo  que  encontrou  em  outros  livros.  Menciona 
de  passagem  Lyoniceno,  isto  é,  Nicolau  Leoniceno,  o  celebre  advogado 
da  velha  medicina  grega,  e  chefe  da  escola  hippocratica. 


COLÓQUIO  DUODÉCIMO 

DE  DUAS  MANEIRAS  DE  CAiMFORA  E  DAS  CARAMBOLAS 

INTERLOCUTORES 

ORTA,  RUANO,  SERVA 

RUANO 

Muyta  razam  será  que  fallemos  na  camfora,  pois  he  tam 
estimada  e  usada  na  física;  da  qual  não  escreveo  Galeno 
nem  escritor  algum  grego,  senão  Aecio  escritor  moderno; 
e  sem  duvida  que  se  deve  aos  Arábios  muyto  em  algumas 
cousas,  porque  ainda  que  delias  nam  deixassem  perfeita 
noticia,  foy  por  estas  terras  serem  ignotas,  que  delias  nam 
podiam  dar  perfeita  relaçam. 

ORTA 

Certo  que  passa  assi,  porque  eu  que  estou  nesta  terra 
ha  tanto  tempo  com  muyto  trabalho  posso  saber  huma  ver- 
dade perfeitamente,  e  a  causa  he  porque  os  Portugueses, 
que  navegam  muita  parte  do  mundo,  onde  vão  nam  procu- 
rão  de  saber  senam  como  farão  milhor  suas  mercadorias, 
e  que  levaram  pêra  lá  quando  forem,  e  que  traram  da  tor- 
naviagem;  não  são  curiosos  de  saber  as  cousas  que  ha  na 
terra,  e,  se  as  sabem,  nam  dizem  a  quem  lhas  traz  que  lhe 
amostre  o  arvore,  e,  se  o  vêem,  nam  o  compárão  a  outro 
arvore  nosso,  nem  proguntao  se  dá  frol  ou  fruto,  e  que  tal 
he*.  E  como  eu  nam  posso  andar  todas  as  terras,  nem  me 
dão  licença  os  que  a  terra  governão  pêra  yr  fora  donde 
residem,  porque  se  querem  servir  de  mim  por  minha  velhice 
antes  que  doutrem,  e  não  por  na  terra  não  haver  físicos 


*  Reflexão  perfeitamente  sentida,  e  que  ainda  hoje  tem  cabimento. 


i52  Colóquio  duodécimo 

muito  bons  letrados;  e  por  isto  não  sam  digno  de  culpa  em 
vos  dizer  isto  destas  mezinhas  com  duvida  e  tanto  a  medo. 


RUANO 

Bem  sei  que  quem  não  sabe,  que  não  duvida,  e  por  isto 
não  tam  somente  sois  digno  de  perdam,  mas  sois  merecedor 
de  louvor. 

ORTA 

A  camfora  he  de  duas  maneiras,  huma  se  diz  camfora 
de  Burneo,  a  qual  nunca  foy  vista  em  nossas  regiões,  ao 
menos  de  quando  eu  lá  estava,  e  não  me  maravilho  porque 
esta  custa  tanto  huma  libra,  quanto  custa  hum  quintal  de 
camfora  da  China,  que  he  a  que  lá  vae  ter  e  he  feita  de 
pães  redondos  de  diâmetro  de  huma  mão  atravessada,  e  por 
ser  assi  parece  cousa  composta  e  nam  simple;  e  esta  he  a 
causa  porque  a  não  levao  lá. 

RUANO 

Desta  que  não  vy  me  dizey  primeiro  e  ma  mostray. 

ORTA 

Aqui  tenho  huma  pouca,  mas  não  he  da  milhor.  Moça  dá 
cá  o  bote  da  camfora  de  Burneo. 

SERVA 

Senhor  eilo  aqui. 

ORTA 

Pois  aveis  de  saber  que  esta  que  vedes,  que  he  da  gran- 
dura de  milho  ou  algum  pouco  maior  he  a  mais  somenos, 
porque  acerca  dos  Gentios  e  Baneanes  e  Mouros,  que  esta 
fazenda  comprão,  fazem  delia  quatro  sortes,  scilicet:  cabeça, 
peito,  pernas,  pé:  vai  hum  arrátel  da  cabeça  a  oitenta  par- 
dáos;  e  do  peito  a  vinte,  e  das  pernas  a  doze,  e  do  jtjé  a 
quatro  e  cinco,  quando  muito;  e  alguns  curiosos  peneiram 
esta  camfora  per  humas  joeiras  de  peneirar  aljofre,  que 
sam  feitas  de  cobre  e  são  furadas,  e  a  camfora  que  sae 
poUos  buracos  grandes,  vendem  por  hum  preço,  e  a  que 


Dã  Camfora  e  das  Carambolas  i53 

sae  por  os  mais  pequenos  por  outro  ^  porque  sam  estas  joei- 
ras quatro,  scilicet,  de  buracos  grandes  e  pequenos,  e  mais 
pequenos  e  muito  meudos-,  e  são  estes  Baneanes  tam  es- 
pertos mercadores  que  ainda  que  mestureis  huma  camfora 
com  a  outra,  lhe  lançam  tam  bem  sua  conta  que  nam  ha 
quem  os  engane.  Essa  que  aqui  vedes  he  o  rebotalho  de 
muita  e  hc  roym,  e  está  preta,  por  se  fazer  delia  pouco  caso, 
e  por  ser  pouca.  Ha  muita  desta  camfora  em  Burneo  e  em 
Bairros,  e  Çamatra,  e  Paçem,  e  isto  são  ilhas  ou  terras;  e 
os  nomes  que  escreveram  donde  erão,  scilicet,  Serapiam  e 
Avicena,  alguns  delles  ou  todos  são  corrompidos*.  E  sabey 
que  esta  he  huma  mercadoria  muito  gastada  e  custumada 
em  comer  nesta  terra;  e  a  que  Serapiam  chamou  a  de  Pan- 
çor,  he  de  Paçem,  que  he  em  Çamatra;  e  a  que  Avicena 
chamou  alçui,  pôde  ser  a  de  Çumda,  que  são  isto  ilhas  ou 
terras  firmes  confines  a  Malaca;  e  a  que  Serapiam  diz  que 
se  traz  da  região  de  Calca,  está  corruto  o  nome,  e  ha  de  dizer 
de  Malaca,  pois  a  ha  em  Bairros,  que  he  perto  dahi**. 

RUANO 

Muito  folgo  de  conhecer  esta  mezinha  tam  nobre  e  pre- 
ciosa, e  quero  saber  de  vós,  primeiro  que  em  outra  cousa 
falemos,  se  he  goma  ou  se  he  miolo,  como  sente  Avicena 
e  outros;  e  se  he  primeiro  com  magoas  vermelhas  e  pretas 
e  per  fogo  ou  destilaçam  se  faz  branca;  e  se  a  falseficam. 

ORTA 

He  goma  e  nam  miolo  que  cae  no  fundo  do  páo,  como 
O  dirão  os  que  a  viram  tirar,  e  logo  vereis  no  páo  a  goma, 
que  deita  por  humas  gretas,  de  maneira  que  vedes  suar  a 
camfora  por  alli.  Isto  vy  eu  muito  craramente  em  huma 


*  Serapio,  cap.  844;  Avi.  li.  2,  cap.  04  (nota  do  auctor);  o  cap.  de 
Avicenna  é  o  i33,  e  não  o  04. 

**  São  incorrectas  parte  d'estas  identificações,  por  exemplo,  a  de 
Pançor  com  Pacem;  vejam-se  as  notas  (i)  e  (2). 


i54  Colóquio  duodécimo 

mesa,  que  hum  boticairo  tinha;  também  vy  isto  em  hum 
páo  que  apresentaram  ao  governador  dom  João  de  Crasto, 
da  grossura  de  huma  coxa ;  também  aqui  n^esta  cidade  tem 
um  mercador  huma  taboa  de  hum  palmo,  que  todos  estes 
páos  mostrão  serem  do  arvore  da  camfora.  E  eu  não  nega- 
rey  que  desta  goma  ca3^a  no  oco  do  arvore  alguma,  como 
nos  arvores  de  Portugal  vimos  muitas  vezes;  e  primeiro  vem 
muito  branca  sem  nenhumas  magoas  vermelhas  nem  pretas; 
e  não  se  estila,  como  dizem  os  escritores,  ou  se  coze  para 
ser  branca,  somente  a  da  China  se  amasa,  como  adiante  vos 
direy,  e  nisto  nam  tenhais  duvida  alguma,  porque  forão  falsas 
enformaçÕes  que  se  deram  a  Avicena  e  Serapiam;  de  lon- 
gas vias  longas  mentiras.  E  foyme  dito  por  pessoas  dignas 
de  fé,  que  vay  colher  esta  camfora  hum  homem,  e  enche 
delia  huma  cabaça,  e  se  outro  o  vê  primeiro  com  a  cabaça 
chea,  o  mata,  e  lhe  toma  a  cabaça,  sem  por  isso  ser  casti- 
gado, porque  dizem  que  a  sua  ventura  lhe  deu  aquilo. 

RUANO 

Porque  dizeis  que  os  Gregos  não  falão  nisto,  vos  lembro 
que  Serapiam  alega  a  Dioscorides,  falando  na  camfora;  e 
mais  vos  peço  que  vos  nam  esqueça  de  me  dizer  da  false- 
ficação  delia. 

ORTA 

Não  vos  maravilheis  disso,  porque  em  Serapio  está  isso 
acrescentado  falsamente;  e,  acerca  de  como  se  falsifica,  sa- 
bey  que  a  de  Burneo  vem  muitas  vezes  mesturada  com 
algumas  lascas  de  pedra  muito  delgadas,  ou  com  huma  goma 
(a  que  chamão  chamderros)  que  parece  alambres  crus,  ou 
he  mesturada  com  farinha  de  hum  páo;  mas  todas  estas 
cousas  bem  se  vê,  a  quem  as  quer  especular;  e  eu  nam  vi 
outro  modo  de  falsificar  senam  este ;  e  se  vem  com  magoas 
pretas  ou  vermelhas,  dizem  ser  porque  foy  maltratada,  ou 
se  molhou;  e  este  mal  lhe  tirão  os  Baneanes,  lavandoa  se- 
cretamente atada  em  hum  panno,  em  agoa  quente,  com  sa- 
bão e  çumo  de  limões;  e  depois  de  bem  lavada  a  põem  a 
enxugar  á  sombra,  e  fica  muito  mais  alva,  e  do  peso  não 


Da  Camfora  e  das  Carambolas  i55 

perde  muito:  eu  vy  fazer  isso,  e  confiouse  de  mim  em  se- 
creto o  Baneane,  porque  era  muito  meu, amigo. 

RUANO 

Achais  pollos  autores  feita  mençam  destas  duas  maneiras 
de  camfora? 

ORTA 

Sy,  posto  que  escuramente  o  diz  Serapiam,  que  o  mais 
que  se  traz  desta  camfora  he  de  Hariz,  e  he  menor  que  a 
da  China;  o  qual  se  ha  de  entender  que  a  mayor  quantidade 
que  se  traz  he  do  Chincheo,  e  he  mayor  que  a  outra  de 
Burneo,  porque  nam  se  acha  delia  quantidade  mayor  que  de 
huma  oitava;  o  qual  he  verdade  tudo;  posto  que  o  texto 
de  Serapiam  vay  torcido,  e  os  pães  de  Chincheo  (a  que  nós 
chamamos  China)  são  de  quatro  onças  e  mais. 

RUANO 

Do  arvore  me  dizey. 

ORTA 

Dixeme  hum  homem  digno  de  fé  que  o  arvore  era  como 
huma  nogueira,  e  a  folha  delle  era  branca  e  de  feiçam  de 
folha  de  salgueiro,  e  que  nam  lhe  vira  frol  nem  fruto,  e 
que  podia  ser  que  o  tivesse  e  que  elle  lho  nam  visse;  porém 
eu  sey  que  o  páo  he  pardo  e  muito  delle  da  cor  da  faya, 
e  algum  delle  mais  preto;  nam  he  leve  e  poroso,  como  diz 
Avicena,  mas  he  mociço  meamente,  e  pode  ser  que  o  que 
Avicena  vio  fosse  já  velho;  e  dizem  os  mais  que  o  arvore 
he  espaçoso  e  alto  e  de  boa  copa  e  aprazível  á  vista,  e  lança 
a  camfora  fora  de  si,  que  lá  vedes  sair  ou  suar,  o  qual  eu 
vi  em  huma  meza.  Outro  páo  vi  grosso  como  huma  coxa, 
de  que  já  faley,  e  nam  se  lhe  parecia  a  camfora,  porém  era 
em  o  cheiro  muito  semelhante  a  ella;  e  vi  outra  taboa  de 
hum  palmo,  que  deitava  alguma  camfora  e  era  de  cor  de 
faya. 

RUANO 

Da  sombra  deste  arvore  me  dize}'',  se  he  verdade  que  a 
ella  se  chegão  multidam  de  animaes  pêra  fugir  das  feras 
rapaces. 


i56  Colóquio  duodécimo 

ORTA 

Tudo  isto  he  fabuloso;  e  posto  que  nessa  terra  aja  tigres 
(a  que  no  Malayo  chamão  reimôes*)  nam  são  seguros  á  som- 
bra deste  arvore,  nem  tal  ouvi. 

RUANO 

Ha  mais  novidades  desta  camfora  em  hum  anno  que  em 
outro?  Porque  me  dizem  que  quando  ha  muitas  trovoadas 
he  boa  a  novidade,  e,  quando  poucas,  má. 

ORTA 

Nisto  se  enformarão  mal  Avicena,  Serapiam  e  Aecio; 
porque  na  ilha  de  Gamatra  e  ao  redor  delia  ha  sempre 
muitas  trovoadas,  por  estar  perto  da  linha  onde  sempre 
chove  pouco  ou  muito  cada  dia;  por  onde  sempre  todos  os 
annos  avia  de  aver  camfora;  assi  que  as  trovoadas  não  sam 
causa  de  aver  camfora;  nem  lhe  podem  chamar  causa,  se- 
não per  accidente,  ou  ocasionalmente  acontecida:  e  a  esta 
causa  chamão  os  filósofos  causa  sem  a  qual  não  se  acontece 
o  efeito  (i). 

RUANO 

Da  camfora  de  pães,  que  dizeis  ser  da  China  ou  do  Chin- 
cheo,  me  day  razam. 

ORTA 

A  camfora  da  China  presumese  ser  feita  de  huma  parte 
destoutra  de  Burneo,  e  todo  o  mais  de  outra  camfora  da 
China,  de  menos  preço;  e  amassada  fazem  pães  delia,  como 
vedes ;  e  nam  porque  em  principio  tivesse  magoas  vermelhas 
ou  pretas ;  e  isto  nam  o  sey  mais  que  per  huma  conjectura** 
e  parecer  de  algumas  pessoas  que  mo  assi  affirmáram;  por- 
que esta  camfora  não  vem  de  Cantam  onde  toda  a  mais  da 
gente  vay,  senão  vem  de  Chincheo,  donde  vão  poucas  pes- 


*  O  nome  do  tigre  em  malayo  é  arimaii,  por  elisão  rimau. 
**  «Conjuntura»  na  edição  de  Goa. 


Da  Camfora  e  das  Carambolas  ibj 

soas.  Posto  que  hum  homem  digno  de  fé  me  dixe  que  a 
multidam  delia  a  fazia  valer  tam  barata  na  China,  outros 
me  dixerão  o  contrairo,  scilicet,  que  estes  pães  eram  com- 
postos; porque  a  camfora  de  Burneo  hc  mercadoria  pêra 
o  Chincheo,  e  a  gente  da  terra  dizem  que  a  querem  pêra 
a  mesturar  com  outra  somenos :  a  este  dito  favorecem  os 
Baneanes  de  Cambaya,  que  dizem  em  secreto  que,  quando 
lhes  falece  a  camfora  de  Burneo,  mesturao  huma  pouca 
com  muita  da  China,  e  de  tudo  fazem  camfora  chamada 
de  Burneo  falsamente;  e  dizem  mais  estes  Baneanes  que 
logo  se  parece  a  camfora  da  China  ser  composta;  mas  a 
camfora  de  Burneo  nunca  se  gasta. 

RUANO 

Qual  he  vosso  parecer  acerca  disto? 

ORTA 

Digo  que  no  Chincheo  ha  camfora,  posto  que  nam  tam 
boa  como  de  Burneo,  e  amassadas  e  ajuntadas  ambas  fazem 
boa  mixtão,  por  serem  comprendidas  debaxo  de  hum  género; 
e  por  ser  assi  composta  evapora  e  se  vay  pollo  ar,  e  a  de 
Burneo  nam. 

RU^^JSÍO 

Logo  bem  diz  Menardo  que  he  cousa  nova,  e  que  elle  crê 
ser  composta  e  nam  simple? 

ORTA 

A  mim  nam  me  parece  tanto  ser  composta,  e,  se  o  he, 
he  de  duas  maneiras  de  camfora;  e  posto  que  evapore  não 
he  corrutivel  muito;  porque  as  cousas  compostas  sam  mais 
aparelhadas  a  corruçam;  porque  o  ruibarbo  escassamente 
dura  cá  quatro  mezes,  que  chove  nesta  terra;  e  por  isso  he 
muito  não  se  corromper  a  camfora  da  China  ficando  na 
índia. 

RUANO 

Ha  outra  especia  de  cajnfora  por  Avenrrois  dita  muito 
ditferente  destoutra;  porque  diz  que  nace  no  mar;  e  que  he 


i58  Colóquio  duodécimo 

quente  sequa  no  segundo  gráo;  e,  o  que  mais  he  de  mara- 
vilhar, dizer  que  o  ambre  he  especia  de  camfora,  e  que 
nasce  no  mar  em  fontes;  pergunto  se  polia  ventura  ha  cá 
essa  camfora? 

ORTA 

Nunca  ouvi  dizer  delia,  nem  a  ha,  porque  faz  sempre 
esta  gente  toda  da  índia  tanto  por  esta  mezinha  que  nam 
se  ouvera  de  perder  delia  a  memoria.  Se  o  ambre  fosse  es- 
pecia de  camfora  não  seria  havido  em  tanta  estima  na 
China,  que  o  levam  lá  e  o  vendem  tam  caro,  como  dixe 
falando  no  ambre;  e  mais  pois  o  ambre  é  quente  no  segun- 
do, e  a  camfora  fria  no  terceiro,  não  podem  ser  compren- 
didas  debaixo  de  hum  mesmo  género;  porque  as  calidades 
procedem  das  especias,  porque  nunca  se  vio  alfaça  quente 
nem  pimenta  fria,  assi  que  nisto  podeis  descançar  (2). 

RUANO 

Andreas  Belunensis  de  quem  não  dizeis  mal  e  louvais, 
diz  no  seu  Dictionario  que  a  agoa  de  camfora,  segundo  os 
Arábios,  corre  e  mana  do  arvore  da  camfora;  e  que  o  tal 
arvore  e  agoa  são  quentes  no  terceiro  gráo-,  e  porque  co- 
munmente  se  diz  a  camfora  fria,  he  necessário  saber  como 
he  isto,  e  se  vistes  a  tal  agoa,  ou  vistes  delia  fazer  men- 
çam? 

ORTA 

Já  perguntey  a  muitos  por  esta  agoa,  assi  físicos  como 
mercadores-,  e  delia  me  não  dixeram  cousa  alguma,  e  se 
a  ouvera,  craramente  se  soubera,  porque  no  Balaguate  ha 
agoa  de  canas  de  açucare,  e  vendese  :  assi  que,  nem  da  agoa, 
nem  da  graduaçam,  tem  culpa  o  Belunense,  senam  o  livro 
do  arábio  com  quem  alegua*. 


*  Belun.  (nota  do  auctor).  O  Dictionario  a  que  Orta  se  refere  é  a 
Interpretatio,  impressa  com  quasi  todas  as  edições  de  Avicenna,  e  onde 
o  Bellunense  na  palavra  aqua  camphorce  diz  effectivamente,  que  a  aqua 
é  cálida  in  tertio,  emquanto  a  camphora  é  frigida. 


Da  Camfora  e  das  Carambolas  169 


RUANO 


Pois  Ruelio  e  Mateolo  Senense  dizem  que  a  da  China  he 
milhor,  e  dizem  que  a  milhor  de  todalas  camforas  foy  pu- 
rificada por  hum  rey  bárbaro,  a  quem  elles  chamão,  rey  da 
China. 

ORTA 

Podeis  dizer  a  Ruelio  e  a  Mateolo  Senense,  que,  ainda 
que  saibam  tam  bem  as  lingoas  grega  e  latina,  nam  hão 
tanto  de  encher  a  boca  a  chamar  bárbaros  aos  que  nam  são 
de  sua  geraçam;  e  que  elle  se  enganou^  porque  a  camfora 
de  Biirneo  se  vende  por  cates,  e  a  da  China  por  bares,  e 
que  o  cate  são  vinte  onças,  e  o  bar  são  perto  de  600  ar- 
ráteis-, e  que  o  rey  da  China  não  se  põe  a  fazer  cariifora^ 
e  he  hum  dos  maiores  reys  que  se  sabe  no  mundo;  e  pêra 
falar  nelle  e  nas  suas  terras  era  necessário  escrever  huhi 
gram  volume:  e  sabey  que  as  mercadorias  que  delia  vem 
são  leitos  de  prata,  e  baixella  ricamente  lavrada,  seda  solta 
e  tecida,  ouro,  almisque,  aljofare,  cobre,  azogue,  verme- 
lham, e  o  menos  he  porcelana,  que  vai  ás  vezes  tanto, 
que  he  mais  que  prata  duas  vezes ;  e  ey  vergonha  de  vos 
dizer  quanta  quantidade  entrou  de  seda  nas  cidades  de  Goa 
e  Cochim,  hum  anno  destes  passados. 

RUANO 

Dizey,  que  bem  sey  que  direis  a  verdade. 

ORTA 

Setecentos  barbes,  e  cada  bar  tem  três  quintaes  e  deza- 
seis  arráteis  ,  e  por  aqui  vereis  a  riqueza  e  a  grossura  desta 
terra,  que  em  Goa,  quando  outra  monção  vem,  já  he  gas- 
tada toda  a  seda  (3). 

RUANO 

Dos  nomes  e  compreisam  delia  me  dizey. 


i6o  Colóquio  duodécimo 


ORTA 


Capur  e  cafur  dizem  os  Arábios  e  toda  a  outra  gente; 
porque  o  f  q  o  p  são  letras  muito  irmaas  acerca  dos  Ará- 
bios; assi  que  todos  a  chamão  de  huma  maneira;  e  se 
alguns  escritores  Ihie  põem  outro  nome,  foram  enganados 
ou  estão  depravados  os  livros.  E  na  compreisam  Rasis  a 
pôe  fria  e  húmida,  Avicena  fria  e  seca  no  terceiro  gráo, 
e  alguns  escritores  ou  todos  seguem  Avicena. 


RUANO 


A  muitos  escritores  modernos  pareceo,  por  seu  cheiro  e 
por  ser  evaporable,  ser  de  compreisam  quente,  e  pareceme 
que  tem  razão;  porque  os  cheiros  das  cousas  frias  nam  são 
tam  fortes,  como  se  pôde  ver  no  sândalo  e  nas  rosas. 


ORTA 


Verdade  me  pareceo  isso  muito  tempo;  mas  desque  vy 
em  obtalmia  muito  quente,  e  em  huma  queimadura  posta 
a  camfora,  he  como  se  lhe  pusessem  neve,  logo  me  pareceo 
o  contrairo;  e  mais  a  gente  desta  terra,  assi  Gentios  como 
Mouros  e  donde  nasce,  dizem  ser  fria,  e*  o  sentido  do  tocar 
e  gosto  sejão  sentidos  próprios  nam  se  haviam  de  enganar 
tantos  nella,  e  de  ser  fria  e  seca  no  terceiro  gráo  a  ser 
quente.  E  ao  argumento  do  cheiro  he  fácil  a  resposta,  por 
que  a  camfora  de  si  he  evaporable  e  lança  todo  o  que  tem 
fora,  e  a  rosa  e  o  sândalo,  por  serem  estiticos,  o  retém  em 
si,  e  nam  o  deixam  sair  fora;  e  muitas  cousas  sam  frias  e 
secas,  e  sam  inflamabiles,  como  a  lã  e  os  cabellos  e  as  es- 
topas. 

RUANO 

Se  Avicena  diz  que  faz  vigílias,  como  he  fria,  pois  as 
cousas  frias  provocam  sono? 


*  Intercalando  a  palavra  «como»,  torna-se  talvez  intelligivel  a  phrase. 


Da  Camfora  e  das  Carambolas  i6i 

ORTA 

Faz  sono  e  faz  vigilia,  scilicet,  o  pouco  delia  por  fora  ou 
dentro  applicado  faz  sono,  e  o  muito  uso  do  cheiro  delia, 
secando  o  cérebro,  faz  vigiar;  e  isto  nam  he  muito  de  ma- 
ravilhar em  ter  efteitos  contrairos  nesta  maneira.  E  coma- 
mos que  he  tempo  já. 

RUANO 

Muito  bom  sabor  tem  estes  pasteis,  pareceme  que  o  causa 
humas  talhadas  azedas  que  estão  nelles  de  huma  certa  fruta; 
vejamola. 

ORTA 

Antónia  traz  desse  arvore  alguma  carambola,  que  assi  se 
diz  em  malavar;  e  ficounos  em  uso  os  nomes  malavares,  por 
ser  a  primeira  terra  que  conhecemos. 

ANTÓNIA 

Eilas  aqui. 

RUANO 

Fermosas  são,  e  sam  agras  doces  e  não  muito  azedas,  são 
do  tamanho  de  ovos  pequenos  de  galinha  e  sam  muito  ama- 
relas. O  que  milhor  parece  nellas,  he  serem  fendidas  em 
quatro  partes,  que  fazem  quatro  partes  menores  de  circulo. 

ORTA 

Ghamase  em  canarim  e  em  decanim  camari'{,  e,  em  ma- 
laio,  balimba.  Nam  sey  o  uso  delias  em  medecina,  somente 
sey  que  medecinalmente  as  dão  por  dieta  nas  febres;  com  o 
çumo  delias  e  outras  cousas  fazem  hum  colirio  pêra  a  névoa 
dos  olhos,  e  achamse  bem  com  elle;  muitas  pessoas  acham 
nellas  muito  sabor,  em  'especial  as  que  chamamos  agras 
doces,  porque  estas  sam  hum  pouquo  mais  azedas;  fazse 
delias  huma  conserva  de  açucare  muito  graciosa,  que  eu 
mando  dar  em  lugar  de  xarope  acetoso,  e  darvoloey  a  pro- 
var logo.  Antónia  traze  qua  huma  carambola  em  conser- 
va (4). 

ANTÓNIA 

Eila  aqui. 


i62  Colóquio  duodécimo 

RUANO 

Desse  xarope  acetoso  ey  de  comer  todas  as  manhaas, 
porque  sabe  muito  bem. 


Nota  (i) 

Garcia  da  Orta  começa  por  notar,  que  os  gregos  e  os  latinos  da  épo- 
ca clássica  não  conheceram  a  cânfora,  e  que  o  primeiro  a  mencio- 
nal-a  foi  Aecio,  «escriptor  moderno» ;  e  a  sua  opinião,  sobre  este  ponto 
interessante  de  historia  da  sciencia,  é  confirmada  pelo  professor  Fliicki- 
ger,  o  qual  estudou  com  muito  cuidado  os  documentos  relativos  áquella 
substancia  (Pharmac,  459). 

Aecio,  natural  de  Amida  na  Mesopotâmia,  estudante  em  Alexandria, 
e  mais  tarde  medico  em  Constantinopla,  recebeu  sem  duvida  o  conheci- 
mento que  teve  da  cânfora  dos  árabes,  que  já  então  (vi  século)  frequen- 
tavam aquellas  terras.  Isto  é  tanto  mais  provável,  quanto  o  nome  usado 
pelos  últimos  escriptores  gregos,  xacpoopa,  é  a  simples  hellenisaçao  do 
arábico  >ail-j  ,  kafúr,  do  qual  vieram  também  os  antigos  nomes  portu- 
guezes,  canfor  e  alcanfor.  Deve  notar-se,  que  a  palavra  kafúr  é  pelo  seu 
lado  uma  adaptação  arábica  do  nome  sanskrito  da  substancia,  karpura. 

O  modo  por  que  Aecio  se  refere  á  cânfora,  ordenando  que  lancem 
duas  onças  em  um  medicamento,  se  a  houver,  prova  que  não  era  então 
commum;  e  muitos  outros  documentos,  citados  pelo  professor  Fliicki- 
ger,  vem  igualmente  demonstrar  que  foi  durante  muito  tempo  uma 
substancia  preciosa,  rara  e  cara  (Pharmac,  1.  c). 

Fliickiger  é  de  opinião,  que  a  cânfora  conhecida  n'estes  primeiros 
tempos  foi  a  do  archipelago  Malayo  exclusivamente;  e  que  a  da  China 
ficou  ignorada  e  desaproveitada,  mesmo  no  paiz  em  que  é  produ- 
zida. É  um  facto  incontestável,  que  os  auctores  árabes  faliam  geral- 
mente da  cânfora  de  Kansur  ou  de  Fansur,  a  qual  era  — como  logo 
veremos —  a  do  archipelago.  E  temos  também  noticia  de  presentes  ou 
de  tributos  de  cânfora,  enviados  da  índia  ou  da  Cochinchina  aos  im- 
peradores da  China,  e  que  foram  ali  recebidos  com  muito  apreço  1. 
Deve  no  emtanto  notar-se,  que  os  chins  tiveram  e  ainda  têem  a  cânfora 
do  archipelago  na  conta  de  uma  coisa  diversa  da  sua  e  muito  superior. 
Podiam  pois  acceitar  e  louvar  os  presentes  em  que  figurava  aquella 


'  Um  dos  presentes  citados  na  Pharmacograyhia,  e  mencionado  por  Maçudi,  o  qual  con- 
sistia, alem  de  uma  for  nosissima  escrava,  e  de  uma  taça  cheia  de  pérolas,  em  mil  menn  de 
Ugnum  aloés,  e  dez  menn  de  cânfora,  foi  enviado,  não  a  um  imperador  da  China,  como  ali 
se  diz  por  equivoco,  mas  a  um  rei  da  Pérsia  (Cf.  Maçudi,  Prairies  d'or,  11,  201J. 


Da  Camfora  e  das  Carambolas  i63 

substancia  mais  preciosa,  mesmo  quando  a  outra  fosse  conhecida  e  fre- 
quente entre  elles. 

A  cânfora  do  archipelago  Malayo  procede  de  uma  grande  arvore, 
Dryobalanops  aromática,  Giirtn.  (Pterygium  costatum,  Corrêa  da  Serra) 
da  familia  das  Dipterocarpece.  Orta  diz  bem  quando  affirma,  que  é  uma 
arvore  «alta,  de  boa  copa,  e  aprazivel  á  vista,»  pois  de  feito  o  Dryoba- 
lanops é  a  maior  arvore  d'aquellas  regiões,  e  uma  das  mais  bellas  exis- 
tentes, tendo  um  tronco  elevadíssimo,  e  uma  densa  e  larga  copa  de 
folhagem  brilhante.  Sem  duvida,  da  belleza  da  arvore  e  da  frescura 
da  sua  sombra,  resultou  aquella  lenda  sobre  os  animaes  que  a  ella  se 
refugiavam  seguros :  faciens  umbram  multitudini  animalium  valde  nu- 
merosce.. .  diz  a  versão  latina  de  Avicenna,  que  parece  ser  n'esta  parte 
— como  em  varias  outras —  bastante  defeituosa.  Orta  refere-se  a  essa 
lenda,  acolhendo-a  no  emtanto  com  o  seu  scepticismo  habitual  em  frente 
de  todas  as  coisas  que  tocam  no  maravilhoso. 

A  cânfora  encontra-se  nas  fendas  longitudinaes  da  madeira  do 
Dryobalanops,  em  um  estado  solido  e  crystallino. 

Olha  também  Borneo,  onde  não  faltam 
Lagrimas,  no  licor  coalhado  e  enxuto 
Das  arvores,  que  camphora  he  chamado. 
Com  que  da  ilha  o  nome  he  celebrado 

dizia  o  Camões,  com  a  mais  feliz  e  mais  exacta  escolha  de  termos. 
É  pois  «gomma»,  e  não  «miolo»;  e  «súa  pelas  gretas  do  páo»,  segundo 
as  affirmaçÕes  do  nosso  escriptor,  que  em  toda  esta  parte  é  correctís- 
simo. Onde  elle  se  mostra  menos  bem  informado,  é  em  desconhecer  a 
existência  da  agua  de  cânfora.  Nos  mesmos  troncos  em  que  se  en- 
contra a  substancia  crystallisada,  chamada  bornéol,  encontra-se  também 
um  liquido  especial,  a  agua  de  cânfora,  ou  óleo  de  cânfora,  ou  bor- 
néene,  isomera  com  a  essência  de  therebentina,  mas  contendo  algum 
bornéol  dissolvido i.  Esta  substancia,  de  que  falia  André  Bellunense,  era 
muito  conhecida  e  desde  tempos  muito  antigos.  Ibn  Khurdádbah  men- 
ciona-a  já  no  ix  século;  e,  no  seguinte,  Maçudi  falia  correntemente  no 
camphre,  e  na  eau  de  camphre  das  ilhas  do  mar  de  Kerdendj,  as  quaes  se 
podem  identificar  com  o  archipelago  Indiano  ou  Malayo  (Cf.  Crawfurd, 
Dict.  of  the  Indian  islands,  81;  Pharmac,  465;  Maçudi,  Prairies  d'or,  11 
340). 

A  agua  ou  óleo  de  cânfora  extrahe-se  com  facilidade;  mas  para 
obter  o  bornéol  é  necessário  lascar  pouco  a  pouco  a  madeira,  em 
busca  dos  pequenos  fragmentos  sólidos.  Para  isso  é  forçoso  abater  e 


A  formula  do  bornéol  é  Cio  H,e  O,  sendo  a  do  bornéeneCu,  Hic 


164  Colóquio  duodécimo 

sacrificar  a  arvore,  na  duvida  de  encontrar  a  substancia,  pois  nem  to 
dos  os  troncos  a  contém.  D'esta  incerteza,  e  da  avidez  de  se  apoderar 
de  uma  cousa  cara  e  preciosa,  se  originaram  provavelmente  todas  as 
lendas  que  pairam  em  volta  da  secreção  da  cânfora.  Primeiro,  aquella 
noticia  do  nosso  escriptor,  sobre  o  direito  que  todo  o  homem  tinha  de 
matar  outro  homem,  quando  o  encontrava  com  uma  cabaça  cheia  de 
cânfora,  a  qual,  se  não  é  verdadeira,  ao  menos  não  desdiz  dos  hábitos 
dos  Dyaks  de  Bornéo,  ou  dos  Battas  de  Sumatra,  que  nem  uns  nem 
outros  professavam  um  grande  respeito  pela  vida  humana.  Depois  a 
referencia  de  Ibn  Batuta  ao  sangue  dos  animaes,  ou  mesmo  ao  sangue 
humano,  derramado  no  pé  da  planta  como  um  sacrifício  propiciatório, 
para  provocar  a  formação  da  desejada  substancia.  Finalmente  a  affir- 
mação  de  Maçudi,  de  que  a  colheita  era  especialmente  abundante  em 
annos  de  beaucoup  d'orages,  de  secousses  et  de  tremblements  de  terre. 
D'esta,  que  se  encontra  também  na  obra  de  Serapio  e  em  outras,  teve 
conhecimento  o  nosso  Orta;  mas  acolhe-a  com  a  sua  costumada  in- 
credulidade, e  adverte  com  rasão  e  com  graça,  que,  se  fosse  questão  de 
trovoadas,  haveria  sempre  muita  cânfora,  pois  as  trovoadas  eram  fre- 
quentíssimas n'aquellas  terras  e  mares  do  equador  (Cf.  Moura,  Via- 
gens de  Ben  Batuta,  11,  844;  Maçudi,  Prairies  d'or,  i,  338). 

O  Dryobalanops  é  espontâneo  no  noroeste  de  Sumatra,  no  norte 
de  Bornéo,  e  na  pequena  ilha  próxima  de  Labuan.  Orta  cita  «Burneo», 
e  «Çamatra».  Cita  «Pacem»,  o  nome  que  os  portuguezes  davam  a  um 
porto  e  reino  da  mesma  Sumatra,  e  que  parece  ser  o  Pasei  dos  ma- 
layos,  e  o  Basma  de  Marco  Polo.  Cita  também  «Bairros»,  igualmente 
em  Sumatra,  e  que  foi  o  ponto  clássico  da  exportação  da  cânfora.  Se- 
gundo as  eruditas  investigações  de  sir  Henry  Yule  — a  que  já  me  re- 
feri a  propósito  do  beijoim —  Bairros,  Baros,  ou  Barús,  um  pequenino 
porto  situado  na  costa  occidental  de  Sumatra,  por  1°  Sg'  35"  de  latitude 
norte,  era  conhecido  dos  árabes  pelo  nome  de  Kansur,  ou  de  Fansúr^, 
ás  vezes  corrompido  em  Kaisur,  e  na  versão  de  Serapio  em  Pançor — o 
«Pançor»  de  Orta.  Foi  sempre  celebrada  entre  todas  a  cânfora  d'ali, 
kafúr  alqansuri,  ou  alfansuri  de  Avicenna,  e  de  outros  escriptores 
árabes;  a  qual  depois,  e  ainda  hoje  — segundo  Yule —  passou  a  cha- 
mar-se  kafur  ou  kapur  Barús,  para  a  distinguir  de  outra  substancia, 
de  que  fallaremos  na  nota  seguinte,  á  qual  dão  o  nome  de  kapur- 
Chiná,  e  de  kapur-  Japún  (Cf  Crawfurd,  Dict.  of  the  Indian  islands, 
40  e  81;  Yule,  Marco  Polo,  11,  268  e  285). 


'  O  nome  escrevia-se  Kansúr,  ou  melhor  Qansur  com  qáf,    ,a>^,aXS     diíFerindo  portanto 
<^s      avvs;^     P<^nsúr,  em  um  simples  ponto  diacritico.  ^ 

'  Posto  que  o  nome  árabe  seja  correctamente  kafúr,  parece,  pelas  citações,  que  o  pro- 
nunciam muitas  vezes  kapúr.  Orta  cita  as  duas  formas  «Cafur»  e  «Capur»;  e  attribue  o  seu 


Dã  Camfora  c  das  Carainbulas  i65 

Segundo  Orta,  esta  cânfora  de  Bornéo  e  de  Sumatra  não  vinha  á 
Europa,  por  ser  muito  melhor,  muito  mais  procurada  pelos  orientaes, 
e  portanto  muitíssimo  mais  cara  —  logo  veremos  a  questão  dos  preços. 
Esta  noticia,  que  é  interessante  e  tem  sido  repetidas  vezes  citada,  con- 
firma-se  pelo  exame  dos  documentos  do  tempo.  O  Lyvro  dos  Pesos  da 
Ytndia  diz  simplesmente  da  «Camfara»  da  China,  que  se  pesava  por  um 
certo  peso,  pelo  «Baar» ;  mas  quando  falia  da  de  Bornéo,  depois  de  in- 
dicar, que  se  pesava  por  «maticaes  de  xiraas»  (Schirazi),  accrescenta : 
«gastar-se  á  em  Ormuz  quamta  vier.»  Vè-se  pois  que  era  rara  e  muito 
procurada;  e  que  a  pouca  que  viesse  parar  a  Hormuz  ficaria  pela  Pér- 
sia. Succede  hoje  a  mesma  cousa ;  a  cânfora  de  Bornéo  e  Sumatra,  ou 
bornéol,  é  conhecida  nas  coUecções  dos  pharmacologistas,  mas  não  se 
encontra  no  commercio  da  Europa.  Em  primeiro  logar  a  sua  produc- 
ção  é  limitada;  e  depois,  alguma  é  consumida  na  própria  região,  nas 
ceremonias  funerárias  dos  príncipes  indígenas,  e  o  resto  exportado  para 
Sião,  Cochinchina,  Japão,  e  principalmente  para  o  porto  de  Cantão  na 
China.  Á  índia  mesmo,  ao  mercado  de  Bombaim  e  outros,  vem  em  pe- 
quena quantidade  (Cf.  Lyvro  dos  pesos,  9  e  14;  Pharmac,  465  ;  Dymock 
Mat.  med.,  g5). 

Para  terminar,  mencionarei  uma  interessante  confirmação  do  que 
diz  o  nosso  escriptor,  acompanhada  de  uma  circumstancia  curiosa.  Se- 
gundo Orta,  os  mercadores  orientaes,  Baneanes  e  Mouros,  dividiam  a 
cânfora  em  quatro  sortes,  que  da  superior  á  mais  inferior  chamavam 
«cabeça,  peito,  pernas,  pé.»  Rumphius  descreve  também  as  qualida- 
des em  que  a  classificavam :  fragmentos  maiores,  approximadamente 
das  dimensões  da  unha,  a  que  chamavam  Cabessa,  que  elle  explica  si- 
gnificar caput;  grãos  ou  escamas  mais  pequenas,  chamadas  Bariga,  ou 
venter;  e  a  parte  pulverulenta  e  em  granulações  miúdas,  com  o  nome 


uso  a  que  o/e  op  são  muito  similhantes  em  arábico,  o  que  lhe  valeu  uma  correcção  severa 
e  até  certo  ponto  justa  da  parte  de  Scaligero :  ne  Arabice  quidem  hunc  Garciam  legere  sei- 
visse,  neque  quod  litera:  in  Arabismo  sint. .  ■  (Exotic,  245).  A  verdade  é  que  o  p  não  existe 
no  alphabeto  arábico.  Yule,  porém,  adverte  que  no  alphabeto  malayo  (arábico  modificado)  o 
som  do  f  é  representado,  não  pelo  yê  dos  persas  ('^— -') '  mas  pelo/é  dos  árabes  (.1^,)  com 
três  pontos  ( ^^ 9 ) •  Teria  Orta  noticia  de  alguma  cousa  n'este  género? 

'  O  «baar»  (sanskrito  bhãrii,  na  forma  arábica  bahar)  variava  de  porto  para  porto,  e  ainda 
no  mesmo  porto  em  relação  ás  mercadorias  pesadas ;  o  de  Hormuz  tinha  14  arrobas  e  tanto,  um 
ponco  mais  de  207  kilogrammas.  O  «matical»  (mithkal)  de  Schiraz  pesava  approximadamente 
4,6  grammas,  e  era  naturalmente  empregado  nas  transacções  em  substancias  preciosas.  Esta 
simples  differença  no  modo  de  pesar  mostra  o  diverso  apreço  em  que  eram  tidas  as  duas 
cânforas.  Orta  diz  do  mesmo  modo,  que  a  da  China  se  vendia  por  «bares»;  e  a  de  Bornéo  por 
«cates»,  que  são  «vinte  onças».  O  «cate»  da  China  (malayo-iavanez  kâCi)  equivalia  a  lòtaeis, 
um  pouco  mais  de  21  onças,  ou  proximamente  612  grammas.  Pesava-se  pois  no  extremo 
Oriente  pelo  kati,  e  em  Hormuz,  mais  longe  dos  sitios  de  producçáo,  pelo  mithkal;  mas  em 
todo  o  caso  por  um  peso  pequeno,  o  que  era  natural,  attendendo  á  raridade  da  substancia. 


i66  Colóquio  duodécimo 

de  Pees,  que  significava  pes.  Parece  porém,  que  nem  Rumphius,  nem 
modernamente  Guibourt  que  transcreveu  esta  passagem,  tiveram  a  no- 
ção clara  de  que  as  palavras  eram  portuguezas;  e  a  orthographia  de 
Rumphius  mostra  bem,  que  elle  as  ouviu  aos  Malayos  e  as  transcreveu 
pelo  som  (Cf.  Rumphius,  Herbarium  Amboinense  vol.  vi,  Auctiiariíim, 
66;  Guibourt,  Hist.  des  drogues,  ii,  417). 


Nota  (2) 

A  cânfora,  vulgarmente  chamada  da  China,  é  uma  substancia  aná- 
loga mas  diversa  da  que  procede  do  Dryobalanops  em  Bornéo  e  Su- 
matra^  É  produzida  por  uma  arvore,  Cinnamomum  Camphora,  Nees  et 
Eberm.  (Laurus  Camphora,  Linn.)  da  familia  das  Lauracea^,  espontâ- 
nea nas  florestas  das  provindas  centraes  e  orientaes  da  China,  da  ilha 
Formosa  e  do  Japão. 

Segundo  vimos  na  nota  antecedente,  o  professor  Fliickiger  é  de  opi- 
nião, que  esta  cânfora  do  Cinnamomum  não  foi  conhecida  nem  usada 
nos  tempos  mais  antigos.  Um  grande  numero  de  factos  e  dados  histó- 
ricos mostram  effectivamente,  que  a  substancia  a  que  os  escriptores 
d'aquelles  tempos  se  referiram  era  em  geral  o  kafur  fansuri,  ou  bor- 
néol.  O  sr.  Dymock,  porém,  diz-nos,  que  os  escriptores  sanskriticos 
distinguiam  duas  espécies  de  cânfora,  Karpura  pakva,  isto  é,  colida, 
ou  preparada  ao  fogo,  e  Karpura  apakva,  isto  é  crua,  ou  natural;  e  que 
em  geral  se  considera  a  primeira  designação  como  applicada  ao  pro- 
ducto  do  Cinnamomum,  emquanto  a  segunda  se  dava  ao  producto  do 
Dryobalanops.  Sendo  assim,  teríamos  a  substancia  da  China  conhecida 
na  índia  desde  tempos  bastante  remotos.  Os  textos  dos  antigos  livros 
árabes,  em  geral  mutilados  nas  versões,  também  nos  podem  deixar  em 
duvida.  Assim  Scaligero,  nas  suas  notas  ao  livro  de  Orta,  diz-nos  que 
existe  uma  passagem  no  texto  arábico  de  Avicenna,  omittida  na  versão 
de  Gerardo  Cremonense,  e  que  elle  (Scaligero)  traduz  assim:  nascitur 
quoque  in  tractibus  Sinarum.  Avicenna  teria,  pois,  conhecimento  da 
cânfora  da  China,  a  qual  seria  talvez  a  que  elle  menciona  depois  da 
melhor  ou  alqansuri,  e  que  chama  al^eid,  pois  Zeid  pôde  lembrar  Zay- 
túm,  por  onde,  como  vamos  ver,  se  exportava  principalmente  a  merca- 
doria da  China.  O  texto  de  Serapio,  citado  pelo  nosso  auctor  não 
muito  exactamente,  também  se  pôde  applicar  á  China.  Depois  de  fallar 
na  cânfora  de  Pançor  (Fansur),  que  é  a  melhor,  diz  elle :  et  dicunt 
quce  in  montibus  índia?  et  Sim  sunt  ex  arboribus  campliorce;  mais  longe 


'  A  composição  d'esta  substancia  pôde  representar-se  pela  formula  do  H,6  O,  emquanto  a 
formula  do  Boniéol  é  Ci»  H^  O. 


Da  Camfora  e  das  Carambolas  167 

acrescenta  ...  et  plurimiim  qiiod  defertur  ex  ea,  esí  Harig,  et  est 
7UÍnor  Sim.  Este  Sim  pôde  perfeitamente  ser  a  China,  chamada  geral- 
mente Sin. 

Em  alguns  livros  chins,  referidos  ao  periodo  da  dynastia  Sung 
(960-1280),  vem  mencionada  a  cânfora  de  Bornéo,  como  trazida  de 
fora,  e  chamada  lung-nao  siang  ou  po-lo  siang  (perfume  de  Bornéo).  E 
no  celebre  Pen  Ts'ao  Kang  Mu  (livro  na  verdade  recente,  redigido  no 
XVI  século,  mas  compilado  de  noticias  anteriores)  na  parte  relativa  ás 
arvores  Mu,  e  na  secção  das  arvores  aromáticas  Hiang  Mu,  faz-se  uma 
distincção  clara,  entre  a  arvore  que  dá  a  cânfora  de  Bornéo,  e  a  que 
dá  a  cânfora  da  China. 

(Cf.  Pharmac,  460;  Dymock,  Mat.  meã.,  665 ;  Exotic,  245 ;  Avicenna, 
ir,  II,  cap.  i33;  Serapionis  aggreg.  de  simpl.  comm.,  228,  edição  de  O. 
Brunfels,  Argentorati,  i53i;  Bretschneider,  On  lhe  knondedge,  etc.  i3; 
e  Botanicon  Sinicuin,  61,  London,  1882). 

Fosse  qual  fosse  o  momento  em  que  a  secreção  do  Cinnaviomum 
começou  a  ser  explorada,  sabemos  que  isto  tinha  logar  em  larga  escala 
no  xiii  século.  O  grande  viajante  Marco  Polo,  atravessando  pelo  anno 
de  1292  a  provincia  de  Fo-kien,  entre  a  cidade  de  Fu-chau  e  o  porto 
de  Zaytún,  passou  por  extensas  florestas,  em  que  se  encontravam  mui- 
tas das  arvores  que  dão  a  cânfora.  Esta  substancia  era  então  expor- 
tada por  Zaytún,  uma  opulenta  cidade,  cujas  magnificências  celebra- 
ram o  mesmo  Marco  Polo,  Ibn  Batuta  e  outros  viajantes  da  idade-media, 
e  que  foi  o  emporium  do  commercio  da  China  com  o  archipelago 
malayo,  a  índia,  e  em  geral  o  Occidenie.  Este  Zaytún,  um  nome  usado 
pelos  mercadores  árabes,  quiz  Yule  identificar  com  o  porto  de  Tswan- 
chau;  mas,  pelas  reflexões  de  Phillips  e  de  Douglas,  parece  antes  de- 
ver-se  collocar  mais  ao  sul,  em  Chang-chau,  na  grande  enseada  de 
Amoy  (Cf.  Yule,  Marco  Polo,  11,  217  a  224). 

Segundo  Orta,  durante  a  sua  estada  na  índia  e  já  anteriormente, 
toda  a  cânfora  do  commercio  occidental  vinha  da  China,  e  o  que  é 
mais  do  mesmo  porto  de  Zaytún.  Somente,  o  nome  tinha  mudado. 
Quando  os  portuguezes  no  xvi  século  abriram  de  novo  ao  commercio 
os  portos  da  China  meridional,  o  velho  nome  árabe  estava  esquecido, 
e  elles  deram  á  mesma  localidade  o  nome  de  Chincheo.  E  Orta  diz- 
nos,  que  da  cânfora  chineza  se  sabia  pouco,  porque  não  vinha  de  Can- 
tão, onde  toda  a  gente  ia;  mas  de  Chincheo,  «onde  vão  poucas  pes- 
soasM.  Era  natural  que  a  exportação  se  fizesse  por  Zaytún  ou  Chincheo, 
pois  o  Cinnamomum  é  particularmente  abundante  nas  florestas  da  pró- 
pria provincia  de  Fo-kien,  e  nas  das  províncias  limitrophes  de  Che- 
kiang  e  de  Kiang-si.  Orta  sabia,  pois,  exactamente  a  procedência  da 
substancia;  mas  não  conhecia  a  feição  da  arvore,  nem  o  processo  de 
extracção,  porque  as  terras  da  China,  para  o  norte  de  Cantão,  eram 
pouco  frequentadas  pelos  portuguezes. 


i68  Colóquio  duodécimo 

Nas  Lettres  édifiantes  (citadas  por  Yule)  vem  descripto  o  modo  po 
que  na  China  se  obtinha  a  cânfora  dos  fragmentos  ou  aparas  da  ma- 
deira do  Cinnamomum,  submettendo-as  d  acção  do  calor,  e  provocando 
a  subhmação  da  substancia.  E  são  bem  conhecidos  os  processos  aná- 
logos, empregados  na  ilha  Formosa  e  no  Japão,  d'onde  hoje  vem  quasi 
toda  a  cânfora,  porque  a  da  China  tem  desapparecido  do  commercio. 
Sem  nos  demorarmos  na  descripção  d'esses  processos  i,  importa  notar, 
que  a  cânfora  do  Cinnamomum  se  não  encontrava  á  venda  no  estado 
nativo  — como  a  do  Dryobalanops —  mas  preparada  pela  acção  do 
calor,  e  em  massas  porosas,  a  que  Orta  chamava  «pães».  D'esta  prepa- 
ração tiveram  conhecimento  os  escriptores  sanskriticos,  se  acaso  a  dis- 
tinguiram pelo  qualificativo  de  pakva,  ou  colida;  e  d'ella  teve  também 
uma  vaga  idéa  o  nosso  auctor,  admittindo  que  fosse  uma  cousa  com- 
posta. No  que,  porém,  se  engana,  é  em  julgar  que  lhe  misturavam  al- 
guma cânfora  de  Bornéo. 

Para  terminar  estas  longas  notas,  devemos  dizer  alguma  cousa  so- 
bre os  preços  relativos  das  duas  espécies  de  cânfora.  Orta  affirma,  que 
uma  libra  da  de  Bornéo  valia  tanto  como  um  quintal  da  da  China. 
Admittindo  que  elle  fallou  da  libra  de  botica,  de  12  onças,  teríamos  a 
de  Bornéo  170  vezes  mais  cara  que  a  da  China  — o  que  pôde  parecer 
exaggerado.  No  Livro  de  Duarte  Barbosa  — um  pouco  anterior —  en- 
contram-se  alguns  preços:  diz  elle,  que  a  cânfora  grossa  em  pães  valia 
de  70  a  Safanões  cada farajola;  e  esta  devia  ser  da  China,  tanto  pelo 
seu  preço  baixo,  como  pela  indicação  de  ser  «em  pães».  Diz  mais,  que 
a  cânfora  de  comer,  e  para  os  olhos,  valia  cada  mitigai  3  fanÕes.  D'este 
preço  do  mitigai  (matical  ou  mithkalj  deduz-se,  que  o  preço  da  faj-a- 
:;ola  era  de  ■]  :00o  fano  es  proximamente:  isto  é  100  vezes  mais  cara  que 
a  inferior.  Modernamente,  Rondot,  em  um  estudo  sobre  o  commercio 
da  China,  publicado  no  anno  de  1848,  e  citado  tanto  por  Yule  como 
por  D.  Hanbury,  dá  os  seguintes  números : 

Preços  de  diversas  qualidades  de  cânfora  por  picul  de  1 33  V2  ^bs  • 

China  i.^  qualidade 20  dollars 

»       2.^  qualidade 14 

Formosa. .    i5 

Japão 3o 

Ngai  (da  China-) .25o 

Barús  i."  qualidade 2:000 

»       2."  qualidade 1 :00o 


'  Veja-se  Pharmac.,  461;  e,  sobre  a  resuhlimaçáo  a  que  sujeitam  na  índia  a  cânfora 
bruta,  Dymock,  665. 

'  Ngai,  extrahida  da  Dliimea  balsamifera,  e  não  conhecida  nos  tempos  antigos. 


Da  Camfora  e  das  Carambolas  i6g 

Por  onde  se  vê,  que  a  melhor  cânfora  de  Barús,  era  loo  vezes  mais 
cara  que  a  melhor  da  China,  exactamente  como  três  séculos  antes,  no 
tempo  de  Duarte  Barbosa.  Dados  ainda  mais  modernos  e  relativos  á 
índia,  approximam-se  muito  sensivelmente  das  indicações  de  Orta.  Diz- 
nos  o  sr.  Dymock,  que  no  mercado  de  Bombaim  a  cânfora  bruta  do  Japão 
e  da  China  vale  de  i5  a  i6  rupias  o  maund^  de  Surrate  de  Sy  V2  Ibs.,  isto 
é  menos  de  V2  rupia  por  Ib.;  emquanto  a  boa  cânfora  de  Bornéo  pôde 
valer  100  rupias  por  Ib.,  ou  mais  de  200  vezes  aquella.  De  tudo  isto  re- 
sulta, que,  nem  o  nosso  escqptor  foi  exaggerado,  nem  o  valor  relativo 
das  duas  substancias  tem  variado  de  um  modo  muito  sensivel. 


Nota  (3) 

Garcia  da  Orta  admirava  muito  a  riqueza  e  civilisaçao  da  China, 
como  teremos  occasião  de  notar  em  mais  de  um  Colóquio. 

Esta  noticia  sobre  o  commercio  d'aquelle  paiz  com  a  índia  é  muito 
interessante,  posto  que  em  um  ponto  me  pareça  menos  exacta.  Orta 
inclue  o  «azogue»  e  o  «vermelham «  entre  as  mercadorias  que  vinham 
habitualmente  da  China,  no  que  julgo  haver  um  engano.  É  certo  que 
na  China  existiam  jazigos  de  cinabrio,  e  que  fabricavam  ah  vermelhão 
muito  fino  e  apreciado,  parte  do  qual,  assim  como  algum  mercúrio,  se 
deveria  exportar;  mas  habitualmente  succedia  o  contrario.  Duarte  Bar- 
bosa, sempre  bem  informado,  diz  que  o  açougue  e  o  vermelhão  chega- 
vam ao  mercado  de  Diu,  vindos  de  Aden  e  da  Meca,  isto  é,  do  Occi- 
dente.  E,  quando  falia  do  movimento  commercial  de  Malaca,  não  in- 
clue aquellas  substancias  entre  as  que  os  juncos  trapam  da  China,  mas 
pelo  contrario  entre  as  que  levavam  para  lá  de  retorno.  Esta  é  que  pa- 
rece ser  a  verdade. 

Em  tudo  o  mais  a  noticia  é  exacta.  Os  metaes  preciosos  abundavam 
na  China,  e  d'ali  vinham  para  a  índia  desde  tempos  antigos,  particular- 
mente a  prata.  Marco  Polo  já  menciona  a  importação  de  prata  no  Ma- 
labar, vinda  do  oriente,  e  cita  os  navios  de  Manzi  (China  meridional), 
entre  os  que  a  traziam,  acrescentando  que  alguns  d'esses  navios  tra- 
ziam também  cobre  como  lastro.  Alguma  prata  devia  vir  em  obra,  em 
«baixellas  ricamente  lavradas» ;  e  alguma  viria  em  «leitos»,  que  não  sei 
bem  o  que  fossem,  pois  me  parece  que  a  palavra  leito  não  deve  ter 
aqui  a  sua  significação  vulgar. 

O  almíscar  em  pó,  ou  em  papos,  era  uma  das  exportações  clássicas 
da  China,  em  cujas  provindas  septentrionaes  abundavam  os  animaes 


'  Este  peso,  que  os  inglezes  escrevem  e  pronunciam  maund,  é  o  mesmo  que  os  nossos 
antigos  portuguezes  da  índia  escreviam  mão. 


lyo  Colóquio  duodécimo 

que  o  produziam.  Uma  parte  d'esse  almíscar  chegava  á  índia  pelo  in- 
terior, pelo  Thibet  e  Himalaya,  principalmente  ao  mercado  de  Patna ; 
mas  outra  vinha  dos  portos  da  China  a  Malaca,  e  d'ali  ás  cidades  das 
costas  de  Coromandel  ou  do  Malabar. 

Igualmente  vinham  da  China  pérolas  e  aljôfar,  algum  tanto  irregula- 
res e  desiguaes,  como  notou  Duarte  Barbosa  com  a  minuciosidade  de 
um  bom  negociante.  Na  curiosa  miscellanea  que  constitue  a  Lem- 
brança das  cousas  da  Imdea,  vem  cuidadosamente  apontados  á  parte 
os  preços  do  aljôfar  da  Chyna,  por  onde  parece  que  seriam  diversos 
dos  do  aljôfar  das  pescarias  de  Coromandel  e  CeylSo.  Este  aljôfar  da 
China  era  pescado  ao  longo  das  costas  do  sul,  principalmente  da  grande 
ilha  de  Aynam,  ou  Hai-nan;  e  Fernão  Mendes  Pinto  nas  suas  aventuro- 
sas e  celebres  peregrinações  teve  occasião  de  visitar  aquellas  pescarias. 

Mais  conhecida  ainda  como  exportação  da  China  é  a  porcellana, 
que  vinha  para  a  índia,  e  d'ali  para  Portugal,  onde  ficou  sendo  desi- 
gnada pelo  nome  impróprio  de  louça  da  índia.  Alguma  — segundo  diz 
Orta —  valia  «mais  que  prata  duas  vezes»;  e  devia  effectivamente  ser 
preciosa,  pois  n'aquelle  tempo,  o  da  dynastia  Ming,  o  fabrico  attingiu 
na  China  a  maior  perfeição. 

Mas  superior  em  importância  a  todas  as  outras  mercadorias  era  en- 
tão a  seda.  Vinha  da  China  muita  «seda  solta»;  e  mesmo  o  que  Duarte 
Barbosa  chama  siilia,  que  parece  ser  o  casulo  em  bruto.  E  vinha  tam- 
bém a  «seda  tecida»,  ou  — como  diz  Duarte  Barbosa^  «panos  de  da- 
masquo  de  cores,  setins,  e  outros  panos  razos,  e  brocadilhos».  Todos 
estes  ricos  tecidos  tinham  na  índia  um  largo  consumo;  em  uma  es- 
tação gastavam-se  setecentos  babares,  segundo  diz  o  nosso  velho  me- 
dico. 

(Cf.  Duarte  Barbosa,  Livro,  283,  365  e  374;  Yule,  Marco  Polo,  11, 
378;  Lembranças  da  Imdea,  39,  nos  Subsídios;  Fernão  Mendes  Pinto, 
Peregrin.  cap.  xliiii). 

Nota  (4) 

Orta  refere-se  a  uma  de  duas  espécies  vizinhas:  Averrhoa  Caram- 
bola, Linn.,  chamada  vulgarmente  carambola,  e  kamaranga,  que  deve 
ser  o  seu  «Camariz»;  e  Averrhoa  Bilimbi,  Linn.,  chamada  também  ka- 
maranga, e  por  outros  bilimbi,  o  seu  «Balimba».  Ambas  são  cultivadas 
com  frequência  na  índia,  e  elle  falia  provavelmente  da  primeira,  posto 
que  hoje  — segundo  dizem —  na  nossa  índia  portugueza  o  bilimbeiro 
seja  mais  commum  e  tratado  com  mais  esmero  do  que  a  caramboleira 
(Cf.  Roxburgh,  Flora  Indica,  11,  450;  Costa,  Manual  pratico  do  agr.  in- 
diano, II,  21 3  e  214). 

Os  fructos  alongados  d'estas  pequenas  arvores,  da  familia  das  Oxa- 
lidece,  são  visivelmente  sulcados  pelas  suturas  longitudinaes  das  carpel 


Dã  Camfora  e  das  Carambolas  171 

las,  e  por  isso  Orta  diz,  que  parecem  divididos  nas  partes  menores  do 
circulo.  Estes  fructos  servem  ainda  hoje  na  preparação  de  molhos  áci- 
dos, ou  no  tempero  da  comida,  como  nos  «pasteis»  do  nosso  escriptor. 
Também  os  conservam  em  assucar,  em  «graciosas  conservas» ;  e  os 
applicam  em  bebidas  refrigerantes  durante  a  febre.  Não  encontro  men- 
cionado o  «colirio»  do  nosso  medico;  mas  Rhede  assegura  que  empre- 
gam uma  d'aquellas  plantas  (A.  Carambola)  contra  as  affecçÕes  cutâ- 
neas e  todas  as  inflamações  (Cf.  Drury,  Useful  plants,  58;  Rhede,  Hor- 
tus  malabaricus,  i,  52). 


COLÓQUIO  DECIMO  TERCEIRO 

DE  DUAS  MANEIRAS  DE  CARDAMOMO  E  CARANDAS 

INTERLOCUTORES 

RUANO,  ORTA,  SERVO 

RUANO 

Grande  meada  temos  pêra  desempeçar,  c  grandes  nós 
pêra  desatar,  como  os  que  Alexandre  cortou  por  escusar  o 
trabalho  de  os  desempeçar.  E  por  esta  causa  me  parece  bem 
haver  de  vós  hum  desengano  disto;  porque  se  os  podeis 
desatar,  bem;  e  se  nam,  quebrarlosey,  usando  do  carda- 
momo  major  e  menor,  como  em  Europa  se  usa  \  nam  sendo 
conforme  a  Galeno,  nem  a  Plinio,  nem  a  Dioscorides. 

ORTA 

Eu  muy  bem  vos  saberey  dizer  qual  he  o  que  chamao 
cardamomo  mayor  e  menor,  e  que  vejaes  isto  tam  craro 
como  a  luz  do  meo  dia;  porque  sam  estas  humas  muito 
usadas  mercadorias,  e  assi  gastadas  nesta  terra,  como  leva- 
das pêra  Europa  e  Africa  e  Ásia:  mas  se  este  nome  car- 
damomo lhe  foy  bem  posto  ou  não,  não  volo  posso  afirmar. 

RUANO 

Começay  em  boas  oras,  e  dizey  os  nomes  arábios  e  lati- 
nos e  indianos. 

ORTA 

Avicena  faz  capitulo  do  cacollá*,  e  o  divide  em  maior  e 
menor,  e  ao  mayor  chama  qiiebir  e  ao  menor  cegiier;  assi 


*  Avicen.  lib.  iSg  (nota  do  auctor).  Para  ser  correcta  seria  lib.  ii, 
tract.  II,  cap.  i58;  veja-se  a  nota  (i). 


174  Colóquio  decimo  terceiro 

que  hum  delles  se  chama  cacollá  qiiebir,  e  outro  cacollá  ce- 
giier,  que  he  tanto  como  se  dixesse  cardamomo  mayor  e 
cardamomo  metior;  e  por  estes  dous  nomes  sam  conhecidas 
estas  duas  maneiras  de  cardamomo  dos  físicos  arábios  e 
mercadores;  e  ambas  ha  na  índia,  e  a  mayor  quantidade  he 
de  Calecut  até  Cananor,  bem  que  em  outras  partes  do 
Malavar  o  aja,  e  na  Jaoa-,  mas  não  he  tanta  quantidade,  nem 
tam  branco  da  casca.  E  neste  Malavar  se  chama  etremilly, 
e  em  Ceilam  ençal;  e,  acerca  dos  Bengalas  e  Guzarates  e 
Decanins  se  chama,  por  alguns  hil^  e  por  outros  elaclii;  e 
isto,  acerca  dos  Mouros,  porque  acerca  dos  gentios  destas 
partes  acima  ditas  se  chama  dore;  e  por  esta  causa  ha  tan- 
tas confusões  nos  nomes  delle  escriptos  per  os  Arábios-, 
porque  huns  o  chamarão  pella  lingoa  indiana,  e  outros  pella 
arábia,-  e  ficou  a  cousa  tam  embaraçada,  que  deu  a;  muitos 
occasiam  de  errar. 

RUANO 

Pois  Serapiam  chama  a  hum  cacollá  e  a  outro  hilbane*. 

ORTA 

Está  corruta  a  letra,  e  hade  dizer  cacollá  e  hil,  e  se  lhe 
quisermos  acrescentar  bane,  antes  diremos  bara,  que  quer 
dizer  grande  em  decanim-,  assi  que  cacollá,  como  dizem 
todos  os  Arábios,  ou  caciille,  como  diz  Avicena,  ou  elachi, 
querem  dizer  o  que  chamamos  cardamomo. 

RUANO 

E  em  latim  como  lhe  chamaremos,  ou  em  grego? 

ORTA 

Os  Gregos,  nem  os  Latinos  antigos,  nam  conheceram  car- 
damojno;  como  quereis  que  vos  diga  o  nome?  E  por  tanto 
podeis  crer  que  Galeno  nam  escreveo  delle-,  e  isto  alem  da 
esperiencia  e  o  capitulo  do  cardamomo,  he  dizelo  Avenrrois; 


*  Serapio,  cap.  64  (nota  do  auctor). 


Do  Cardamomo  e  das  Carandas  176 

porque  diz  Galeno  que  nam  he  o  cardamomo  tam  quente 
como  mastiirço*;  mas  que  he  mais  aromático  e  mais  sabo- 
roso, e  tem  alguma  cousa  de  amargor;  e  pois  todas  estas 
cousas  nam  lhe  convém,  nem  tem  sabor  de  masturço,  nem 
amarga,  sinal  he  que  nam  conheceo  este  que  chamamos 
cardamomo. 

RUANO 

E  pois  Plinio  e  Dioscorides  nam  escreveram' delle**? 

ORTA 

Dioscorides  diz  que  o  milhor  se  traz  de  Comagena  e  da 
Arménia  e  do  Bósforo;  e  que  também  se  traz  da  índia  e 
da  Arábia;  e  pois  diz  que  se  traz  destas  partes,  acima  ditas, 
e  o  que  cá  chamamos  cardamomo  não  o  ha  lá,  pois  he  mer- 
cadoria que  pêra  lá  se  leva;  assi  que  se  lá  ha  o  que  diz 
Galeno  e  Diocorides',  e  não  he  este  da  índia,  bem  se  segue 
que  são  duas  cousas  e  não  huma  só.  E  se  queremos  dizer 
que  he  o  que  chamão  Avicena  e  Serapiam  cordumeni,  nisto 
não  contendo,  porque  este  nam  he  o  que  Avicena  e  Sera- 
piam chamaram  cacullá  ou  ////;  quanto  mais  que  Dioscori- 
des, em  as  condições  que  delle  pÕe,  diz  que  seja  máo  de 
quebrar  e  encerrado  na  casulha,  e  agro  e  hum  pouco  amar- 
go, e  que  tente  com  o  cheiro,  e  fira  a  cabeça,  as  quais 
cousas  todas  sam  ao  revez  deste  chamado  cardamomo;  por- 
que não  he  máo  de  quebrar,  nem  tenta  com  o  cheiro  a  ca- 
beça, nem  he  amargo,  senam  tem  hum  sabor  agudo,  nam 
tanto  como  a  pimenta  ou  cravo;  e  porém  he  mais  aprazí- 
vel, e  na  boca  traz  agoa. 

RUANO 

Pois  porque  lhe  chamarão  cardamomo,  pois  dizeis  nam 
ser  o  dos  Gregos? 


*  Avenrrois,  5,  Colligit;   Galenus,  7,  Simp.  medica,  (nota  do  au- 
ctor). 

**  Pli.  lib.  12,  cap.  i3;  Diosc.  li.  i,  cap.  5  (nota  do  auctor). 


iy6  Colóquio  decimo  terceiro 

ORTA 

Porque,  como  diz  Terêncio*,  Davo  contorbou  todas  as 
cousas-,  e  este  Davo  foy  Geraldo  Cremonense  trasladador, 
que,  por  nam  conliecer  este  simple,  por  a  muyta  distancia 
destas  terras,  e  não  haver  navegaçam,  nem  commercio 
pêra  ellas,  poslhe  o  nome  que  milhor  lhe  pareceo;  e  fora 
milhor  deixar  o  nome  em  arábio,  pois  era  mezinha  não  co- 
nhecida; e  não  foy  só  o  erro  que  deste  modo  teve  este  Ge- 
raldo. 

RUANO 

O  de  Plinio  parece  ser  o  desta  terra? 

ORTA 

Plinio  põe  quatro  especias;  scilicet,  muito  verde  e  grosso, 
e  o  milhor  ha  de  ser  contumaz  ao  esfregar;  e  o  outro  que 
resplandeça  de  cor  ruiva  de  ouro;  e  o  outro,  mais  pequeno 
e  mais  negro,  hade  ser  de  desvairadas  cores,  e  que  se  que- 
bre bem:  ora  vedes  aqui  o  cardamomo  que  tem  a  casca  em 
que  está,  branca,  e  elle  he  preto,  e  facilmente  se  quebra. 
E  provay,  que  não  he  amargo,  nem  o  ha  preto  por  fora,  e 
muito  menos  o  ha  verde,  ou  vario  de  cor,  como  podeis  ver 
neste.  Moço,  pede  a  huma  negra  cardamomo,  e  trazeo  cá; 
porque  estas  negras  usam  muito  delle  por  o  máo  cheiro  da 
boca  e  pêra  masticatorio,  e  pêra  desfleimar  e  alimpar  a  ca- 
beça. 

SERVO 

Eilo  aqui. 

RUANO 

Bem  diíferente  cousa  he  esta;  quanto  mais  que  diz  Valé- 
rio Gordo**,  que  o  mayor  he  quasi  como  bollota  e  o  menor 
quasi  como  avelã;  e  destes  nenhum  dos  grandes  he  mayor 
que  hum  pinham  com  casca;  e  elle,  nos  Dioscorides  que 


*  Terêncio  (nota  do  auctor).  Veja-se  a  nota  (5). 

**  «Valério  Probo»,  na  edição  de  Goa,  mas  por  erro  evidente.  O  no- 
me d'este  conhecido  commentador  de  Dioscorides  foi  um  dos  que  mais 
alterações  soffreram  na  impressão;  veja-se  a  nota  (5). 


Do  Carãamomo  e  das  Carandas  177 

fez  debuxar,  pinta  o  assi;  e  diz  que  estes  grãos  estão  meti- 
dos nas  outras  cabeças  grandes-,  portanto  me  dizey  se  he 
assi. 

ORTA 

Elle  se  semêa  como  os  nossos  legumes;  e  o  mais  alto 
he  como  um  covado  de  medir;  c  nelle  estão  dependuradas 
estas  casulhas;  e  nesta  casulha  que  vedes  abrir,  estão  de 
dez  até  vinte  grãos  pequenos. 

RUANO 

Venha  Ruelio  e  Laguna,  pois  são  mais  novos  escritores, 
e  digão  o  que  sintem  deste  simple;  porque  diz  Ruelio  que 
he  huma  frutice  ou  mata  semelhante  ao  ainomo,  como  o 
nome  o  diz,  e  abaxo  diz  que  se  colhe  como  o  amomo  na 
Arábia. 

ORTA 

Por  aqui  podeis  ver  que  não  he  o  cardatnomo;  porque 
o  que  cá  da  índia  vay,  pêra  essas  partes  o  levão,  scilicet, 
pêra  o  ponente;  e  nestas  terras  cá  não  ha  o  amomo,  por- 
que de  lá  do  ponente  o  mandão  trazer  os  reys  pêra  mezi- 
nha, do  que  eu  sam  testemunha  de  vista.  E  que  o  carda- 
momo  ou  cacollá  não  ajão  nessas  terras  do  ponente  se  prova 
por  ser  mercadoria  pêra  lá;  e  he  sabido  de  todolos  merca- 
dores. 

RUANO 

Também  traz  per .  auctoridade  de  Theofrasto,  que  he 
vezinho  ao  nardo  e  ao  casto. 

ORTA 

Isto  achamos  ser  alheo  da  verdade,  porque  o  nardo  e  o 
casto  ha  os  no  Mandou  e  no  Chitor ;  e  o  cacollá  ha  o  no  Ma- 
lavar,  e  já  pôde  ser  que  o  aja  onde  ha  o  nardo  e  o  casto, 
mas  nam  ha  tanto  como  o  ha  no  Malavar. 

RUANO 

E  também  diz  que  as  sementes  sam  brancas,  e  que  em- 
polam com  grande  esquentamento  a  boca? 


178  Colóquio  decimo  terceiro 

ORTA 

Isto  he  falso  do  cacollá,  pois  a  casca  he  branca  e  as  se- 
mentes são  pretas;  e,  tomado  na  boca  traz  tanta  agoa,  que 
parece  nam  ser  quente  \  donde  tomaram  occasiam  os  índios 
a  dizer  que  era  frio  de  compreisam. 

RUANO 

Pois  o  Laguna,  que  trasladou  o  Dioscorides  em  castelhano, 
diz  que  nas  boticas  se  mostrão  três  especias  de  cardamomo, 
scilicet,  mayor  e  menor,  e  outra  que  he  a  nigela,  e  que 
todas  são  muito  aromáticas  e  mordaces  ao  gosto;  e  que  o 
cardamomo  mayor  parece  ao  femtgreco  ou  alfoluas,  e  que 
he  mais  negro  e  mais  pequeno;  e  o  cardamomo  menor  cor- 
responde na  figura  ao  mayor,  porque  he  esquinado  e  nam 
tem  tanto  corpo,  e  declina  mais  a  cor  pardiiha;  e  o  terceiro 
he  a  nigela  citrina,  que  he  differente  na  cor  preta  somente; 
de  modo  que  concluy  que  a  primeira  especia  he  rjialagiieta 
ou  grãos  do  paraiso;  e  que  este  he  o  cardamomo  de  que 
escreve  Dioscorides.  E  diz  mais  o  mesmo  Laguna  que  hum 
mercador  lhas  mostrou  em  Veneza  todas  três  especias  o 
anno  de  48,  e  depois  diz  mil  males  dos  Arábios  e  que  con- 
fundem tudo. 

ORTA 

O  que  dizeis  de  Laguna  he  cr  aro  ser  falso,  poUo  que  já 
disse  e  adiante  direy;  porque  o  Dioscorides  não  vio  o  car- 
damomo com  casca;  pois  diz  que  a  malagueta  o  he;  não,  a 
malagueta  conheceo  Dioscorides  donde  era*;  e  o  mayor,  que 
diz  ter  a  cor  pardiiha,  nam  diz  bem ;  e  mais  a  nigela  nam  ha 
nesta  região,  nem  tem  a^  obras  do  cardamomo.  E  o  merca- 
dor que  lhe  mostrou  as  três  especias  de  cardamomo,  que 
disse  que  trazia  a  Veneza  da  Arménia,  não  dixe  verdade  se 
era  verdadeiro  cardamomo;  e  se  era  o  verdadeiro,  traziaas 
da  índia,  scilicet,  levadas  delia  a  Alexandria  ou  outro  porto. 


*  A  phrase  é  muito  confusa;  e  Orta  depois  de  refutar  Laguna  parece 
admittir  a  sua  opinião  de  que  Dioscorides  conheceu  a  malagueta,  opi- 
nião de  todo  o  ponto  insustentável.  Veja-se  a  nota  (i). 


Do  Cardamotno  c  das  Car andas  179 

RU  AN  o 

Logo,  per  vossas  razoes,  me  parece  que  dizeis  que  o  car- 
damomo  dos  Gregos  não  he  este  que  chamão  cardamomo 
os  Arábios;  e  tem  muyta  razam  Menardo  e  outros  escrito- 
res novos  de  dizer  que  o  cardamomo  dos  Arábios  que  he 
méziniia  nova*,  e  que  nam  se  deve  usar  delia,  pois  Galeno  e 
Dioscorides,  príncipes  da  medecina,  não  a  usaram  (i). 

ORTA 

O  primeiro  vos  confessey  já,  scilicet,  que  o  cardamomo 
que  os  Gregos  escreveram,  não  he  o  cacullá  que  escreve- 
ram os  Arábios;  mas  o  segundo  vos  nego  em  dizerdes  "que 
nam  se  hade  usar  delle,  porque  cada  dia  ha  enfermidades 
novas,  assi  como  o  morbo  napolitano  (a  que  chamamos 
sarna  de  Gastella),  e  Deus  he  tam  misericordioso  que  em 
cada  terra  nos  deu  mezinhas  pêra  saramos;  porque  elle  que 
dá  a  enfermidade  dá  a  mezinha  pêra  ella;  senam,  como  diz 
Temistio,  o  nosso  saber  he  a  mais  pequena  parte  do  que 
ignoramos*.  E  porque  nam  sabemos  as  mezinhas  com  que 
curamos  todas,  trazemos  o  ruibarbo  da  China,  donde  tra- 
zemos o  páo  ou  raives  pêra  curar  a  sarna  de  Gastella,  e 
a  cana  jistola  trazemos  da  índia,  e  o  manná  da  Pérsia,  e 
^uaiacam  das  índias  occidentaes,  E  também  quiz  Deos  que 
buscássemos  e  inquerissemos  sempre  mezinhas;  e  pois  isto 
assi  he,  porque  qs  amadores  dos  Gregos  quando  achão  as 
mezinhas  esperimentadas  nas  terras  onde  nascem,  e  nas 
terras  onde  as  usaram  Avicena,  e  Abenzoar,  e  Rasis,  e  Isa- 
que,  e  outros  a  quem  nam  se  pôde  negar  serem  letrados,  em 
tanta  maneira  as  vituperão,  que  vituperáo  os  autores. 

RUANO 

Bem  dizeis:  mas  como  usarey  do  vosso  cardamomo  cu- 
rando segundo  Galeno,  pois  o  não  conheceo? 


*  Temistio  (nota  do  auctor;.  Veja-se  a  nota  (5). 


i8o  Colóquio  decimo  terceiro 

^  ORTA 

Digo  que  em  as  receitas  dos  Gregos  e  dos  Latinos  anti- 
gos, que  nam  seguirão  os  Arábios,  por  cardamomo  usay 
do  de  Galeno^  e  se  o  nam  conheceis,  não  deis  a  culpa  aos 
outros,  pois  nam  a  tem:  e  nas  composições  ou  curas  dos 
Arábios  e  Latinos  modernos  usay  do  cardamomo  mayor^ 
que  he  este  grande  que  vedes,  e  do  menor,  que  he  estou- 
tro. 

RUANO 

Outra  guerra  se  nos  aparelha,  estes  (nam)  são  ambos  de 
huma  feiçam,  e  (que)  não  diferem  mais  que  de  grande  a  pe- 
queno, e  todolos  vossos  imitadores  dos  Arábios  (nam)  cha- 
mam a  este  pequeno  cardamomo  major,  e  estoutro  grande 
nunca  o  virão  em  Europa;  e  por  o  menor  usam  de  huma 
semente,  a  que  chamam  grana  paradisi,  e  os  Hespanhoes 
malagueta*.  Pareceme  que  desfazeis  toda  a  física  e  todo  o 
modo  de  curar;  portanto  tende  mão  em  vós,  e  dizeime  donde 
vos  veo  este  error. 

ORTA 

Eu  volo  direy,  e  vós  o  vereis  craro;  porque  muitas  vezes 
perguntey  em  Portugal,  e  cá  na  índia  a  pessoas  que  foram 
de  Portugal  á  Malagueta,  se  avia  na  Malagueta  este  cacolld 
a  que  chamamos  cardamomo,  e  dixeramme  que  nam;  e  cá 
nestes  terras  perguntey  se  avia  malagueta  e  nunca  a  achey. 
Comecei  entonces  a  cuidar  em  mim,  como  Avicena,  tanto 
sabedor,  avia  de  dividir  o  cardamofno  major  e  menor,  e 
que  o  mayor  se  avia  de  achar  na  índia,  e  o  outro  na  Ma- 
lagueta, quatro  mil  legoas  delia;  e  também  Vy  que  Avicena 
chama  á  malagueta  conbaibague;  e  parece  muita  razam  ser 
ella,  pois  que  diz  que  a  trazem  das  partes  de  Çofala,  e  a  Ma- 
lagueta he  continua  a  ella.  E  já  pôde  ser  que  em  Çofala  ou 
nas  terras  convisinhas  a  aja,  e  nani  o  sabemos,  porque  he 


*  Toda  esta  passagem  é  inintelligivel,  e  contem  talvez  a  mais  as  pa- 
lavras incluídas  entre  parenthesis;  alem  disso  envolve  um  erro,  sobre  a 
identificação  do  granum  paradisi  com  o  cardamomo  menor. 


Do  Cardamomo  e  das  C  ar  andas  i8i 

gente  barbara,  e  não  acustumada  a  conversar  com  os  ho- 
mens: pois  como  quereis  que  escreva  dous  capitules  Avi- 
cena  de  huma  cousa?  E  andando  eu  nestes  cuidados  em 
Cochim,  veo  a  mim  hum  judeo,  mercador  da  Turquia,  e  di- 
xeme  que  trazia  em  huma  lembrança  de  mezinhas  que  avia 
de  comprar,  cacollá  quebir;  e  como  entendi  que  cacollá  si- 
gnificava cardamomo,  e  quebir  grande,  perguntey  a  muitos, 
se  avia  cardamomo  em  outras  terras,  e  de  que  feiçam  era, 
e  nam  me  davam  razam  disso;  e  por  derradeiro  achey  que 
em  Ceilam  o  avia,  e  que  era  muito  mais  grande  e  nam  tam 
aromático;  e  isto  me  dixe  hum  feitor  de  elrey  que  ahi  resi- 
dira, e  que  se  levava  a  Ormuz  e  Arábia  por  mercadoria, 
em  que  se  ganhava  bem.  E  no  mesmo  tempo  mandey  a 
Ceilam  hum  meu  navio,  e  me  trouxerao  huma  amostra 
delle;  e  porque  nam  creais  a  huma  só  testemunha,  ainda 
que  seja  Catam,  curando  eu  no  Balagate  hum  grande  se- 
nhor, por  nome  Hamjam,  irmão  de  hum  rey  do  Balagate, 
que  se  chama  Verido,  de  industria  despensei  em  uma  re- 
ceita cardamomo  mayor  e  cardamomo  menor,  em  lingoa 
arábica,  e  apresentaramme,  pêra  fazer  a  composição,  estas 
duas  mezinhas;  isto  avia  de  abastar,  quanto  mais  que,  a 
olho  vedes  que  ambos  são  de  huma  feiçam,  e  hum  grande 
e  outro  mais  pequeno. 

RUANO 

Logo  a  Portugal  vai  o  menor  destes,  e  o  maior  destes 
nam  vi:  qual  vos  parece  milhor  pêra  usar? 

ORTA 

Digo  que  ambos  he  bem  que  se  levem  a  Portugal,  e  dahi 
se  gasta  pêra  toda  a  Europa;  e  porém  o  mais  aromático  e 
milhor  he  este  mais  pequeno,  e  podese  chamar  mayor  em 
virtude  e  menor  em  cantidade:  isto  digo  salvo  milhor  juizo. 

RUANO 

Eu  estou  espantado  de  mim,  como  vendo  estas  duas  cabe- 
ças de  sementes,  nam  dixe  logo,  este  he  cardamomo  major 
e  este  he  menor,  e  daqui  adiante  assi  usarey  e  praticarey;  e 


i82  Colóquio  decimo  terceiro 

do  conbaibagiie  ou  malagueta,   somente  onde  o  achardes 
pensando  nas  mezinhas  dos  Arábios  (2). 

ORTA 

Nenhuma  cousa  sei,  que  logo  o  nam  diga  aos  boticairos  e 
físicos,  e  a  todos;  e  isto  bem  sei  que  nam  he  bom  pêra  mim, 
porque  dizem,  depois  que  elles  acharam  estas  cousas,  e  le- 
vão  a  gloria  de  meus  trabalhos,  e  eu  nam  o  digo,  senam  por 
aproveitar  a  todos.  E  Deus  he  testemunha  disto,  que  me 
aconteceo.  Foy  hum  visorey  nesta  índia,  muito  curioso  de 
saber,  e  posto  que  nam  sabia  latim,  em  toscano  entendia 
Plinio,  e  desejava  de  saber  a  certeza  de  algum  simple,  e 
encomendavame  que  lho  dixesse,  quando  o  achasse;  ao  qual 
eu  levei  este  cavdamomo  major  a  mostrar,  e  o  menor,  e 
mostrandolos  ambos,  lhe  dixe  que  hum  se  dizia  cardamo- 
mo  major  e  outro  menor,  o  qual  elle,  olhando  e  provando, 
afirmou  que  aquilo  lhe  parecia  verdade,  e  porém  que  elle 
tinha  fé  em  hum  boticairo  velho,  que  o  queria  mandar  cha- 
mar. 

RUANO 

Esse  boticairo  era  docto,  e  sabia  latim,  e  grego,  ou  ará- 
bio? 

ORTA 

Não,  senam  era  hum  homem  velho  e  de  muito  tempo  na 
índia,  e  sabia  bem  a  pratica  da  botica,  e  em  latim,  e  grego 
e  arábio  sabia  do  modo  que  o  sabem  em  Espanha  os  que 
nunca  o  ouviram  falar  nem  ler*,  e  comtudo  isto  era  muito 
bom  homem,  e  porque  hia  fazer  a  Cambaya  as  drogas  da 
botica,  que  pêra  Portugal  mandava  o  veador  da  fazenda, 
dezia,  que  nenhum  boticairo  sabia  no  reino  nem  cá  senão 
elle  cousa  destas  drogas-,  e  elle  nunca  soube  tanto  que  lhe 
fizesse  perda.  Perguntou  o  visorey  áquelle  boticairo  se  era 
hum  daquelles  cardamomo  mayor  e  outro  cardamomo  me- 
nor, e  dixe  c^ue  nam;  senam  que  o  mais  pequeno  era  car- 
damomo, e  o  outro  que  nam  o  era  major  nem  menor;  e 
como  lhe  eu  dixe  que  o  provasse  e  acharia  ambos  de  hum 
sabor,  e  hum  era  grande  c  outro  pequeno,  e  elle  nam  dava 


Do  Cardamomo  e  das  Carajidas  i83 

estas  duas  especias  nesta  terra,  sendo  nella  tam  espermen- 
tado,  que  era  razam  serem  aquellas  duas  mezinhas  huma 
cardamomo  mafor  e  outra  cardamomo  menor.  A  isto  dava 
elle  grandes  brados  em  bom  romance  de  Portugal  de  pre- 
sumitur,  que  volo  concedo,  mas  que  o  seja  assi,  que  volo 
nego:  argumentovos  de  menta  o.  polipodio.  E  eu  lhe  dizia, 
porque  nam  será  este  cardamomo,  pois  não  dais  outro  na 
terra?  E  elle  dezia:  Porque?  Como  ha  Deos  de  querer  que 
o  que  eu  não  soube  em  tantos  annos,  saibais  vós  tam  asi- 
nha? E  eu  a  isto  lhe  replicava  que  muitas  cousas  sabíamos 
oje,  as  quaes  ontem  ignorávamos;  e  que  muitas  vezes,  aos 
menores,  como  a  mim,  se  revelavam  as  cousas  que  aos  mayo- 
res,  como  elle,  nam  revelavam;  e  com  todas  estas  lisonjas 
nunca  o  pude  fazer  confessar,  senam  acodia  de  persumitiir. 

RUAXO 

E  pudieis  ter  o  riso  entonces? 

ORTA 

Si  podia,  mas  com  grande  trabalho;  porque,  diante  de  tal 
pessoa,  sermia  reputado  a  liviandade;  e  porém  um  letrado 
jurista,  que  em  hum  canto  estava  assentado,  reya*  por  mim 
e  por  elle,  e  oje  em  dia  riy  disso,  quando  lhe  lembra. 

RUANO 

Nam  sabia  esse  visorey  o  que  vós  sabieis? 

ORTA 

Si;  e  mais  me  conhecia  de  Portugal;  e  elrey  quando 
pêra  esta  terra  veo  elle  lhe  dixe  que  não  era  necessário  tra- 
zer físico  comsigo;  e  assi  o  fez,  e  se  finou  em  minhas  mãos; 
mas  pudia  mais  a  porfia  do  boticairo,  que  todas  estas  coi- 
sas (3). 


*  "Reya»,  uma  forma  hespanhola,  como  muitas  outras  de  que  usa  o 
nosso  auctor. 


184  Colóquio  decimo  terceiro 

RUANO 

Folgare}^  de  conhecer  este  boticairo. 

ORTA 

Já  morreo,  e  Deos  lhe  perdoe,  porque  tirado  de  algumas 
cousas  era  muyto  bom  homem  ^  e  nelle  não  falemos  mais, 
porque  isto  foy  mais  dito  pêra  o  festejardes  e  vos  alegrar, 
que  pêra  o  encomendar  á  memoria. 

RUANO 

Digovos  que  Andreas  Belunensis,  bem  entendido  no  ará- 
bio, diz  que  caculle  he  cardamomo  mayor,  e  alçai  ou  haleil 
ou  cãfrbiia  e  eilbiia  he  cardamomo  menor. 

ORTA 

Todos  estes  nomes  estão  depravados  acerca  dos  livros 
arábios  e  de  alguma  gente  ^  e  o  que  acima  dixe  he  a  verda- 
de; e  nam  digo  isto  porque  elle  não  sabia  muito,  mas,  por 
nam  vir  a  esta  terra,  nam  pôde  haver  as  verdadeiras  en- 
formaçÕes. 

RUANO 

Usase  muito  em  física  da  gente  da  terra? 

ORTA 

Muito,  porque  no  betei  mesturado  se  mastiga  pêra  fazer 
bom  cheiro;  e  com  elle  dizem  que  se  tira  a  freima  da  cabeça 
e  do  estômago;  e  assi  o  tomam  em  xaropes  e  tomaram 
erronia  em  dizer  que  era  frio;  e  nam  he  muito,  pois  assi  o 
afirmam  na  pimenta. 

RUANO 

E  OS  físicos  indianos  tomam  a  raiz  pêra  as  febres?  porque 
diz  Mateus  Silvatico  que  si,  e  que  naçem  em  humas  trombu- 
sidades  de  huns  arvores:  ha  peíla  ventura  cá  também  alguns 
arvores  donde  naçem? 

ORTA 

Nam  tem  raiz,  que  ao  caso  faça,  pêra  tomarem  em  fe- 
bres; porque  nam  nace,  senam  semeandose  na  terra  que 


I 


Do  Cay^damomo  e  cias  Car andas  i85 

primeiro  seja  queimada,  e  não  ha  outro:  e  o  que  diz  Ma- 
teus Silvatico  hc  muito  falso;  e  pois  nam  alega  com  outro 
algum,  com  elle  se  fique  a  mentira. 

RUANO 

Como  se  gasta  em  Europa  tanta  pimenta  e  tam  pouca 
malagueta,  sabendo  milhor  a  malagueta,  principalmente  no 
peixe? 

ORTA 

Já  tive  essa  pratica  com  Alemães  e  Francezes  mercado- 
res; e  dixeramme  que  a  malagueta  nam  adubava  os  come- 
res em  cozido,  nem  sufria  cozimento,  somente  em  cousa 
crua,  ou  que  fosse  já  cozida;  e  que  porque  isto  era  pouco, 
por  isso  se  gasta  menos  delia.  E  leixemos  isto,  e  comamos 
o  peixe  que  temos  cozido  pêra  comer,  porque  também  leva 
cardamomo. 

RUANO 

Bem  he:  mas  que  fruita  he  esta  azeda  que  parece  maçan- 
"zinhas  pequenas  verdes? 

ORIA 

Chamamse  carandas,  ha  as  na  terra  firme  e  no  Bala- 
guate:  são  arvores  do  tamanho  de  medronheiro,  e  a  folha 
assi,  e  a  frol  he  muita  e  cheira  a  madresilva;  quando  são 
maduras  he  muito  saborosa  fruita,  sam  pretas  e  sabem  a 
uvas,  e  já  ouve  homem  que  fez  delias  vinho,  e  foi  rezoado 
mosto;  e  poderá  ser  que  s@-  fora  muito  fora  bom  vinho  ao 
diante.  Agora  he  esta  fruita  verde,  e  de  grossura  de  huma 
avelã  com  casca,  he  mayor  no  Balaguate  quando  he  madura, 
e  entonces  deita  huma  viscosidade,  como  leite;  e  algumas 
pessoas  lhe  deitam  sal,  quando  he  madura  pêra  comer,  e 
sabem  bem:  estas  verdes  são  salgadas,  e  esta  provisam  ha 
nesta  terra,  que  fazem  as  fruitas  salgadas  pêra  incitar  o 
apetite  no  tempo  que  as  nam  ha;  e  também  as  lançam  em 
vinagre  e  azeite,  a  que  chamam  achar;  e  assi  vem  cá  da 
Pérsia  e  Arábia  ameixas  verdes  e  maçans  e  talos  de  videira 
e  de  silva,  alcaparras  e  o  fruito  delias.  E  pois  estes  índios 
buscam  tantas  maneiras  á  gulla,  comei  (4). 


i86  Colóquio  decimo  terceiro 


RUANO 


Assi  o  farei,  e  já  provey  esta  fruita  e  sabeme  a  maçans 
verdes  (5). 


Nota  (t) 

«Grande  meada  temos  pêra  desempeçar  e  grandes  nós  pêra  desatar,» 
diz  logo  no  começo  o  nosso  Orta.  Nulla  res  est  fartasse  in  re  pharmã' 
ceutica  rnagis  litigiata  qiiam  Cardamomi  notitia,  dizia  também  o  an- 
tigo pharmacologista  GeofFroy.  A  meada,  porém,não  é  muito  difficil  de 
desempeçar,  pelo  menos  na  parte  que  este  Colóquio  tem  de  realmente 
interessante. 

Devemos  em  primeiro  logar  ter  em  vista,  que  Orta  se  refere  a  uma 
única  espécie,  Elettaria  Cardamomum,  Maton  (Alpinia  Cardamomum, 
Roxb.),  uma  grande  planta  herbácea  e  perenne  da  familia  das  Scita- 
minea'.  Conhecia,  porém,  duas  variedades  d'esta  espécie,  das  quaes 
nos  occuparemos  na  nota  seguinte. 

Vejamos  agora  os  nomes  vulgares,  citados  pelo  nosso  escriptor : 
■  — «Cacollá  quebir»  e  «CacoUá  segueru  entre  os  escritores  arábicos, 
significando  respectivamente  «Cardamomo  mayor  e  Cardamomo  me- 
nor». Estes  são  os  dois  nomes  bem  conhecidos  ,Lo  il3'iJ  qaqalah 
kebar,  e  .LsLs*  ilili  qaqalah  segher,  pelos  quaes  esta  droga  vem  ge- 
ralmente designada  nos  livros  dos  árabes  (Cf.  Ainslie,  Mat.  ind.,  i,  52, 

54). 

—  «Hil»  entre  os  mouros,  isto  é,  os  mussulmanos,  de  diversas  partes 
da  índia.  Com  a  mesma  orthographia  hil  o  cita  Dymock  como  sendo 
usado  por  alguns  escriptores  arábicos  modernos  (Mat.  med.,  786). 

—  «Elachi»  entre  os  mesmos  mouros;  isto  é  iláchi,  nome  vulgar  ben- 
gali, ou  elchi,  nome  ainda  usado  em  Bombaim  (Dymock,  1.  c). 

—  «Ençal»  em  Ceylão.  Ainslie  cita  o  mesmo  nome  singhalez  ensal 
(Mat.  ind.,  i,  52). 

— Etreyjiilly  no  Malabar.  Posto  que  deva  estar  muito  alterado,  parece 
ligar-se  com  o  nome  vulgar  elettari,  citado  por  Rhede,  e  que  foi  ado- 
ptado para  a  designação  scientifica  do  género  (Hortas  malab.,  xi  (1692), 
T.4e5). 

— «Dore»  é  nome  que  não  encontrei,  e  apenas  se  parece  vagamente 
com  a  terminação  de  uma  das  designações  vulgares  em  Bombaim,  vel- 
dode  (Dymock,  1.  c). 

Passa  depois  o  nosso  escriptor  a  enumerar  todas  as  diíficuldades 
que  encontrou,  quando  quiz  approximar  a  planta  sua  conhecida  das 
descripções  de  Dioscorides,  Plinio,  Galeno  e  outros  auctores  clássicos. 
Vê-se  que  cllc  fez  cuidadosamente  este  exame.  Cita  as  próprias  exprcs- 


Do  Cardamomo  e  das  C  ar  andas  187 

soes  de  Dioscorides,  «máo  de  quebrar,  encerrado  na  casulha,  agro  e  um 
pouco  amargo» —  S''jff65au<TTov,  asau/có;  . ..  'vthrsu  Vi  ^Biu-i)  xal  ú— o— i/.cov.  Tran- 
screve quasi  textualmente  a  passagem  de  Plinio,  onde  este  distingue  no 
cardamomwn  quatro  variedades:  viridissimum  ac  pingue,  acutis  angu- 
lis,  contumax  fricanti,  quod  maxime  laudatur:  proximum  e  rufo  candi- 
cans:  tertium  brevius  atque  nigrius.  Pejus  tamen  varium  etfacile  tritu.  E 
d'esta  conscienciosa  confrontação  conclue,  que  aquellas  substancias 
não  são  a  que  elle  conhece,  ou  pelo  menos  não  é  possível  affirmar  que 
o  sejam.  A  mesma  conclusão  chegaram  todos  os  modernos  auctores  de 
matéria  medica,  J.  Pereira  como  Fliickiger  e  Hanbury,  os  quaes  reco- 
nhecem, que  o  y.ap^aawaov  de  Dioscorides,  e  o  cardamomum  de  Plinio, 
se  não  podem  identificar  satisfactoriamente  com  as  substancias  moder- 
namente designadas  pelo  mesmo  nome  (Cf.  Dioscorides,  i,  5,  pag.  14, 
edição  Sprengel;  Plin.  xii,  19;  Pereira,  Mat.  med.,  u,  i,  258;  Phar- 
mac,  583). 

Orta  admitte,  porém,  que  os  antigos  escriptores  arábicos  conheciam 
esta  droga.  Effectivamènte,  Avicenna  dedica  nem  menos  de  quatro  ca- 
pítulos a  substancias  que  deviam  ser  análogas  e  alguma  d'ellas  identi- 
tica  a  esta.  Os  capítulos  têem  nas  velhas  versões  latinas  os  seguintes 
títulos,  que  de  certo  estão  muito  alterados:  sacolla,  que  se  distingue 
em  grande  e  pequeno;  cordumeni;  cobjbague  ou  chayrbua;  e  eylbua 
ou  chayrbua.  Algumas  d'estas  drogas  eram  de  origem  asiática,  e  podiam 
ser  a  própria  Elettaria,  pois  temos  motivos  para  suppor  que  os  árabes 
a  conheciam  já  então.  Maçudi,  no  x  século,  enumera  as  substancias 
que  vinham  do  império  do  Maharadja,  isto  é,  do  archipelago  e  da  índia: 
cânfora,  aloés,  cravo,  sândalo,  areca,  nóz  moscada,  cardamomo  (JJiLaJl) 
e  cubebas.  Mais  tarde  Edrisi  dá  uma  lista  das  mercadorias,  que  os  na- 
vios da  China  traziam  a  Aden,  entre  as  quaes  figura  o  cardamomo^; 
e  em  outra  passagem  refere-se  á  sua  existência  em  Ceylão,  onde  se 
comprava  barato  um  certo  vinho  doce,  cozido  com  cardainomo  fresco. 
Vê-se,  pois,  que  os  árabes  tinham  noticia  de  uma  droga  asiática,  a  qual 
pelo  nome  e  pela  região  d'onde  vinha  parece  ser  a  Elettaria  (Cf.  Avi- 
cenna, ir,  II,  cap.  i58,  159,  2o3,  e  282,  edição  de  Rinio  (i556);  Maçudi, 
Prairies,  i,  341;  Édrisi,  Géographie,  i,  5i,  73). 

Succedia,  porém,  que  além  das  drogas  asiáticas,  Avicenna  mencio- 
nava outras  de  procedência  africana,  e  isto  lançou  o  nosso  escriptor 
em  uma  certa  perplexidade,  e  induziu-o  em  vários  erros. 

Encontrou-se  em  antigos  tempos,  nos  mercados,  um  cardamomo  de 
grandes  dimensões,  procedente  da  Abyssinia,  exportado  pelos  portos 
africanos  do  mar  Vermelho,  e  chamado  pelos  Gallas  Icorarima.  Para  a 


'  Esta  substancia  podia  ser  a  Elettaria,  trazida  da  Índia  pelos  navios  da  China;  mas  po- 
dia também  ser  algum  Amomum,  dos  vários  que  existem  na  própria  China. 


i88  Colóquio  decimo  terceiro 

planta  que  o  produz,  e  que  não  está  ainda  bem  conhecida,  propoz 
J.  Pereira  o  nome  provisório  de  Amomiim  korarima.  Não  é  fácil  deci- 
dir com  segurança  se  esta  droga  era  o  chayrbua  de  Avicenna;  mas 
parece  ter  sido  o  cardamomum  majiis  de  Matthiolo,  de  Valério  Cordo 
e  de  outros  escriptores  da  Renascença  —  aquelle  que  Valério  Cordo  fez 
«debuxar»,  e  que  Orta  estranhava  tivesse  tão  grandes  dimensões i. 

Encontrou-se  também  no  commercio  outra  droga,  chamada  mele- 
géta  (malagueta  na  forma  portugueza),  granum-paradisi,  e  algumas  ve- 
zes cardamomum  majus.  Procedia  geographicamente  da  costa  Occiden- 
tal da  Africa,  e  botanicamente  do  Amomum  Grammi-paradisi,  Afz.,  e 
de  outras  espécies  próximas.  Teve  tanta  nomeada,  que  uma  parte  da 
costa  africana,  do  cabo  Mesurado  ao  cabo  das  Palmas,  se  chamou 
Costa  da  Malagueta  ou  simplesmente  a  Malagueta — como  lhe  chama 
o  nosso  Orta.  Nos  tempos  d'este  havia  sobre  aquella  droga  noções  ex- 
tremamente incompletas  e  nebulosas,  e  o  que  elle  encontrava  nos  li- 
vros de  matéria  medica  só  lhe  podia  augmentar  a  confusão.  Toda  a 
passagem  que  cita  do  eruditíssimo  Laguna,  é  extremamente  incorrecta; 
e  nem  é  admissível  que  Dioscorides  conhecesse  a  malagueta,  nem  fá- 
cil saber  se  Avicenna  fallou  d'ella,  ou  de  alguma  droga  de  Sofala,  que, 
em  todo  o  caso,  ficava  bem  distante  da  costa  de  Libéria.  Para  avaliar 
bem  como  as  cousas  deviam  estar  enredadas  então,  basta  ver  como 
ainda  é  confuso  o  que  diz  Whitelaw  Ainslie  em  1826.  Onde  Orta  po- 
deria ter  encontrado  algumas  noções  mais  claras,  seria  nos  escriptos 
dos  seus  compatriotas,  no  Esmeraldo  de  Duarte  Pacheco,  ou  na  re- 
lação de  Diogo  Gomes;  mas  ambos  estavam  — e  um  ainda  está — 
inéditos.  Também  as  podia  encontrar  na  Ásia  de  João  de  Barros;  mas 
é  notável  que,  sendo  a  primeira  edição  de  i552,  Orta  parece  não  co- 
nhecer este  livro  que  tanto  o  devia  interessar  (Cf  Dioscorides  do 
dr.  Andrés  de  Laguna,  p.  i5,  na  edição  de  Valência,  lõqS;  Ainslie,  Mat. 
ind.,  I,  55;  Barros,  Ásia,  i,  11,  2;  Memoria  sobre  a  Malagueta,  nas  Mem. 
da  Ac.  Real  das  Sc.  de  Lisboa,  nova  serie,  vol.  vi,  parte  i). 

Resumindo  temos,  que  três  drogas,  de  três  afastadas  procedências 
geographicas,  e  de  três  distinctas  origens  botânicas,  comquanto  todas 
três  fornecidas  por  plantas  da  familia  das  Scitaminece,  tiveram  no  com- 
mercio, nas  pharmacias  e  nos  livros  o  nome  de  cardamomum  majus: 

—  primeiro  a  variedade  maior  da  Elettaria  Cardamomum,  proce- 
dente da  ilha  de  Ceylão. 

—  segundo  a  droga  chamada  korarima,  produzida  pela  espécie  ainda 
duvidosa  Amomum  Korarima,  e  procedente  da  Abyssinia  e  outras  ter- 
ras da  Africa  oriental. 


'  Segundo  Dymo?k  este  cardamomum  majus  011  hil-batva  reappareceu  recentemente 
(i8S5)  nos  bazares  de  Bombaim.  Diz-se  proceder  das  terras  de  Tiimhé,  d'onde  é  levado  ao 
mercado  de  Báso  na  Abyssinia  meridional,  c  d'ali  por  Massauá.a  índia  (Mat.  med.,  883). 


Do  Cardamomo  e  das  C  ar  and  as  189 

— terceiro  a  droga  chamada  malagueta,  produzida  pelo  Amomum 
Granum-paradisi  e  outras  espécies,  e  procedente  da  Africa  occidentai. 

Orta  conhecia  de  visii  unicamente  a  primeira,  e  por  isso  elle  não 
sabia  distinguir  as  outras,  e  por  isso  elle  «andava  n'aquelles  cuidados» 
de  saber  como  um  cardamomo  maior  se  havia  de  encontrar  na  índia, 
e  o  outro  a  quatro  mil  léguas  d'ali  «na  Malagueta»  —  isto  é,  na  costa  da 
Malagueta.  A  sua  exposição,  perfeitamente  lúcida  no  que  diz  respeito 
á  planta  da  índia  e  de  Ceylão,  é  necessariamente  confusa  quando  falia 
das  plantas  da  Africa,  de  que  que  ninguém  lhe  sabia  dar  rasão.  Accres- 
ciam  a  isto  noções  de  geographia  africana  um  tanto  vagas,  que  o  leva- 
vam a  dizer  que  Sofala  é  «continua  á  Malagueta». 


Nota  (2) 

Vimos  na^nota  antecedente,  como  os  escriptorcs  arábicos,  Maçudi 
e  Edrisi,  enumeram  o  cardamomo  entre  as  drogas  vindas  da  índia  ou 
terras  próximas;  mas  o  primeiro  a  marcar  exactamente  a  sua  proce- 
dência do  Malabar,  parece  ter  sido  Duarte  Barbosa,  como  já  advertiram 
Fliickiger  e  Hanbury :  thefirst  writer  who  dejinitely  and  correctly  states 
the  country  of  cardatnom,  appears  to  be  the  portuguese  navigator  Bar- 
bosa (Pharmac,  583). 

Barbosa  indica  effectivamente  aquella  substancia  entre  as  produc- 
çóes  da  costa  do  Malabar,  nomeadamente  dos  reinos  de  Cananor  e  de 
Cochim  (Livro,  841,  etc).  É  exactamente  a  região  apontada  pelo  nosso 
escriptor  para  a  sua  variedade  menor,  que  era  sobretudo  abundante  de 
«Cananor  até  Calicut.»  E  ali  continua  a  encontrar-se  nas  florestas  e 
montanhas  de  Mysore,  Travancore  e  outras.  A  planta  existe  espontâ- 
nea e  é  também  cultivada,  como  parece  succedia  já  no  tempo  de  Orta, 
pois  este  diz,  que  se  «semea  como  os  nossos  legumes»..  O  processo  de 
cultura  é  simples ;  em  algumas  partes  os  indianos  queimam  os  arbus- 
tos e  rebentos  das  florestas  húmidas,  poupando  as  grandes  arvores,  e 
depois  semeam  o  cardamoíno,  que  cresce  melhor  na  sombra  e  começa 
a  dar  fructo  passados  alguns  annos.  Evidentemente  o  nosso  escriptor 
tinha  noticia  d'este  processo  cultural,  pois  affirma  que  a  planta  «não 
nace  senão  semeando-se  na  terra  que  primeiro  seija  queimada»  (Cf. 
os  processos  de  cultura  na  Pharmac,  584). 

Este  cardamomo  do  Malabar  procedia  da  forma  menor  e  typica  do 
Elettaria  Cardamomum,  Maton.  Na  ilha  de  Ceylão  encontrava-se  uma 
forma  maior,  que  foi  considerada  uma  espécie  distincta,  sob  o  nome 
de  Elettaria  jnajor;  mas  hoje  se  toma  por  uma  simples  variedade  (Elet- 
taria Cardamomum  var.  fJ).  A  distincção  entre  as  duas  foi  correcta- 
mente feita  pelo  nosso  escriptor,  o  qual  aflirma,  que  a  droga  de  Ceylão 
é  maior  e  menos  aromática,  o  que  é  perfeitamente  exacto.  E  esta  dis- 


igo  Colóquio  decimo  terceiro 

tincção  que  elle  fez,  depois  de  andar  muito  tempo  em  «cuidados»,  de- 
pois de  conversar  em  Cochim  com  um  judeu  da  Turquia,  depois  de 
mandar  aviar  receitas  na  capital  do  Berid  Schah,  esta  distincção  consti- 
tue  o  verdadeiro  interesse  do  Colóquio.  Restavam  muitos  pontos  a 
esclarecer,  muitos  cardamomos  de  procedência  duvidosa,  e  que  moder- 
namente Guibourt,  J.  Pereira  ou  D.  Hanbury  estudaram  mais  ou  me- 
nos completamente;  mas  aquelle  ponto  ficou  assente  de  um  modo 
definitivo. 

Logo  no  começo  do  Colóquio,  Orta  indica  a  existência  do  carda- 
momo  em  «Jaoa».  A  indicação  é  exacta,  mas  a  planta  era  diversa;  a 
droga  de  Java  procede  do  Amomutn  maximum,  Roxb.,  e  comquanto 
conhecida  e  usada  ali  não  parece  ter  sido  exportada.  D'este  carda- 
momo  temos  uma  antiga  noticia  dada  por  Fr.  Odorico  de  Pordenone, 
pelos  annos  de  i32o  a  i33o,  o  qual  diz  que  na  ilha  de  Java  se  en- 
contravam varias  especiarias  e  entre  ellas  melegetcv.  Este  nome,  que 
propriamente  se  devia  dar  á  droga  da  Africa  occidental,  era  o  mais 
conhecido  na  Itália;  e  o  honesto  franciscano  applicou-o  muito  natu- 
ralmente a  uma  substancia,  que  era  simplesmente  análoga,  mas  lhe  pa- 
receu idêntica  á  que  elle  conhecia  da  sua  terra  (Cf.  Pharmac,  389;  Yule, 
Cathay,  88). 

Nota  (3) 

Na  Vida  de  Garcia  da  Orta  disse  eu  já  quem  me  parecia  ser  este 
personagem.  Orta  diz-nos:  primeiro,  que  era  vice-rei,  e  morreu  na  ín- 
dia, sendo  elle  seu  assistente :  segundo,  que  não  sabia  latim,  mas  en- 
tendia bem  italiano,  e  era  «curioso  de  saber». 

O  primeiro  vice-rei,  que  morreu  na  índia,  estando  lá  Garcia  da 
Orta  (1540),  foi  D.  Garcia  de  Noronha.  Mas,  nem  elle  devia  ser  muito 
dado  a  investigações  de  historia  natural,  nem  o  nosso  medico  devia  ter 
então  a  auctoridade  scientifica  e  pessoal,  que  se  revela  em  toda  a 
anecdota. 

O  segundo  vice-rei,  que  ali  morreu,  foi  D.  João  de  Castro.  Este,  po- 
rém, era  muito  illustrado  e  sabia  bem  latim.  Suppoz-se  mesmo  que 
elle  havia  escripto  primitivamente  n'aquella  lingua  o  seu  Itinerarium 
maris  rubri,  vertendo-o  depois  em  portuguez.  Fica  portanto  excluído, 
ainda  que  por  motivos  bem  diversos  do  primeiro  (Cf.  Roteiro,  etc,  pelo 
dr.  António  Nunes  de  Carvalho,  p.  x,  Paris,  i833). 

Ficamos  pois  reduzidos  a  D.  Pedro  Mascarenhas,  a  quem  a  historia 
parece  applicar-se  sem  difficuldade.  D.  Pedro  Mascarenhas,  sem  ser 
homem  de  muitas  letras,  era  intelligente  e  culto;  e  devia  saber  bem 
italiano,  pois  estivera  durante  annos  embaixador  em  Roma.  É  mesmo 
natura],  que  d'ali  irouxesse  entre  os  seus  livros  o  Plinio  traduzido  por 
Landino,  e  de  que  já  então  havia  varias  edições.  Morreu  em  Goa  a  20 


Do  Cardamomo  e  das  C  ar  andas  191 

de  Junho  de  i555,  depois  de  uma  doença  curta,  mas  que  lhe  deu  tempo 
para  fazer  todas  as  suas  disposições;  e  deve  ser  este  o  que  se  «finou  nas 
mãos»  de  Garcia  da  Orta;  e,  portanto,  o  que  assistiu  á  curiosa  discus- 
são do  nosso  medico  com  o  velho  boticário.  Quanto  a  este,  não  será 
fácil  acertar  com  o  seu  nome,  posto  que  vários  documentos  nos  con- 
servassem os  de  alguns  boticários  do  tempo  (Cf.  Garcia  da  Orta  e  o 
seu  tempo,  197;  Couto,  Ásia,  vii,  i,  12). 


Nota  (4) 

Os  «Carandas»  de  Orta  são  os  fructos  da  Çarissa  Carandas,  Linn., 
um  arbusto  da  família  das  Apocynacece,  frequente  n'aquellas  regiões 
desde  o  Panjáb  até  Ceylão  e  Malaca.  Os  fructos  — uma  drupa  vermelha 
e  ultimamente  preta —  são  ainda  hoje  geralmente  apreciados  na  índia 
para  tortas,  e  conservas  em  vinagre  e  sal,  ou  de  achar — pikles  dos  in- 
glezes  (Cf  Drury,  Useful  plants  of  índia,  116). 


Nota  (5) 

Orta  menciona  n'este  Colóquio  alguns  escriptores  de  botânica  e  ma- 
téria medica,  a  que  se  não  referira  nos  anteriores.  Em  primeiro  logar 
Theophrasto,  mas  reportando-se  unicamente  a  uma  citação  do  medico 
francez  Ruellio,  ou  João  de  la  Ruelle.  Depois  e  brevemente  «Isaque«, 
que  sem  duvida  é  um  Isaac  Judaeus,  cujas  obras  foram  publicadas  em 
Londres  no  anno  de  i5i5,  e  successivamente  em  outras  edições.  Final- 
mente Valério  Cordo,  referindo-se  especialmente  aos  «Dioscorides  que 
fez  debuxar»;  e  que  devem  ser  o  Ícones  xylographico,  publicado  com 
a  versão  de  Dioscorides  de  Ruellio  do  anno  de  049,  e  com  as  An- 
notationes  in  Pedacii  Dioscoridi  do  mesmo  Valério  Cordo — livro  que 
não  vi  e  unicamente  cito  pela  indicação  de  Choulant. 

Transcreve  uma  sentença  de  «Temistio»;  provavelmente  Themistio, 
o  amigo  de  Juliano  o  Apóstata,  e  conhecido  commentador  de  Aristóte- 
les. Por  ultimo,  menciona  um  dos  personagens  da  Andria  de  Terêncio, 
Davus,  creado  de  Situo,  enredador  e  intrigante,  o  prototypo  do  Scapin 
de  Molière;  e  compara-o,  um  pouco  injustamente,  com  o  zeloso  tra- 
ductor  dos  antigos  livros  arábicos  de  medicina. 


COLÓQUIO  DECIMO  QUARTO 

DA  CÁSSIA  PISTOLA 

INTERLOCUTORES 
RUANO,  ORTA 

RU.VNO 

Da  canafistola  he  muito  necessário  saber;  pois  aos  vos- 
sos Arábios  devemos  tam  boa  cousa  pêra  purgar,  e  tanto 
sem  trabalho,  nem  damno  do  paciente,  que  bem  creo  eu 
e  tenho  por  certo,  que  os  Gregos  que  delia  nam  escreve- 
ram, que  a  louvaram  muito,  se  a  espermentaram. 

ORTA 

Pouca  necessidade  temos  de  falar  em  mezinha  tam  co- 
nhecida e  espermentada;  e  onde  nam  ha  mais  contradigam 
que  o  nome,  que  lhe  foi  mal  posto  por  Geraldo  Cremonense, 
que,  como  já  vos  dixe  muitas  vezes,  milhor  fora  leixallo  assi 
como  estava  no  arábio  •,  pois  elles  só  foram  inventores  desta 
mezinha-,  e  não  vieram*  a  dizer  tanto  mal  Nicolao  Leoni- 
ceno  e  Menardo  e  outros  muitos  modernos  dos  físicos  Ará- 
bios; como  que  a  culpa  de  seos  treladadores  fosse  sua;  que, 
se  o  pêra  que  aproveita  fosse  dito  falsamente  terião  razam, 
mas  pois  falão  verdade,  dignos  sam  de  louvor  e  nam  de 
vitupério. 

RUANO 

Não  reprende  muitas  cousas  destas  Avicena  aos  outros 
escritores,  que  o  seguem  indistintamente,  sem  fazer  diffe- 
rença  alguma  em  os  nomes  que  significao  muitas  cousas; 
e  pois  assim  he,  dizeilhe  o  nome  em  as  lingoas  onde  ha  o 
arvore. 


*  «Vieram»  por  viriam;  também  acima  «louvaram»  e  «espermenta- 
ram» estão  pelo  condicional. 

i3 


194  Colóquio  decimo  quarto 

ORTA 

Em  todas  estas  partes  o  ha,  mas  he  milhor  nas  partes 
mais  chegadas  ao  norte;  e  os  Arábios  lhe  chamão  hiarxam- 
ber,  e  he  nome  de  quatro  sillabas;  este  he  o  mais  comum 
nome  acerca  delles*,  posto  que  Avicena  diga  chiarsamdar^ 
está  corruto  o  nome:  os  Malavares  o  chamão  comdaca;  os 
Canarins,  que  he  o  gentio  desta  terra  de  Goa,  bava  simga; 
os  Decanins  e  Bramenes  bava  simgiia;  os  Guzarates  e  Deca- 
nins  mouros  gramalla.  O  arvore  delia  chamão  nesta  terra 
canarim  bahó:  este  arvore  he  do  tamanho  de  hum  pereiro; 
as  folhas  são  como  de  pexigueiro,  algum  tanto  mais  estrei- 
tas e  assi  verdes:  deita  este  arvore  as  flores  amarellas,  como 
as  da  giesta,  cheira  propriamente  como  cravos  verdes,  e 
como  caem  as  flores,  nacem  no  páo  da  canafistola  a  modo  de 
candeas,  como  nacem  em  os  castinheiros*;  he  a  cana  muito 
verde  no  arvore,  antes  que  seja  madura,  e  não  he  verme- 
lha como  diz  Laguna;  he  de  cinquo  palmos  de  comprimento 
ate  dous  palmos  a  mais  curta.  Ha,  como  dixe,  em  todas  estas 
terras  e  no  Cairo;  porém,  como  dixe,  a  milhor  he  de  Cam- 
baj^^a,  e  de  mais  dura;  e  pode  ser  que  a  aja  em  Malaca  e 
em  Çofala;  mas  a  pouca  curiosidade  da  gente  faz  que  nam 
pareça  (i). 

KUANO 

He  arvore  transplantada  ou  silvestre? 

ORTA 

Eu  não  a  vi  senão  montez  em  toda  esta  terra;  e  fo3^me 
dito  que,  nas  chamadas  índias  occidentaes,  era  primeiro 
montez,  e  deitava  a  cana  oca  e  grande;  e  que  a  pozeram 
de  semente  em  a  ilha  de  Santo  Domingo,  no  mosteiro  de 


*  Na  edição  de  Goa  a  phrase  é  inintelligivel,  e  só  julgo  poder-se 
pontuar  d'este  modo.  Ainda  assim  é  pouco  clara;  o  auctor  parece 
referir-se  aos  caixos  novos,  ou  ao  fructo  pendente,  que  se  desenvolve 
quando  «caem  as  flores«;  mas  este  mal  se  pôde  comparar  com  os 
amentilhos  dos  castanheiros,  que  o  povo  ainda  hoje  chama  candeia  ou 
candeio. 


Da  Cássia  Jistol a  195 

Sam  Francisco  de  la  Vega  \  c  que  crcceo  e  deu  a  canajis- 
tola  muito  boa  e  chea  de  miolo  e  de  semente;  e  desta  ma- 
neira plantou  cada  hum  na  sua  herdade  arvores,  até  que 
veo  a  ser  tanta  que  mantém  toda  Castella.  Mas  eu  tenho 
por  mais  bemaventurados  os  Portuguezes,  pois,  sem  semear, 
tem  tanta  cantidade,  que  em  Cambaya  dão  hum  candil, 
que  são  52  2  arrates,  por  36o  reaes,  que  he  um  pardáo*:  e, 
louvado  seja  Deos,  que  tanto  bem  nos  faz  cada  dia  (2). 

RUANO 

De  que  compreisao  a  fazem  os  Indianos? 

ORTA 

A  elles  nam  dou  muita  fé  nas  graduações,  mas  dizem  ser 
fria;  e  Avicena  diz  ser  temperada,  nas  calidades  auiivas  de 
quente  e  frio,  e  que  he  húmida:  Serapiam  a  faz  temperada: 
Mesue  diz  que  declina  hum  pouco  a  quente,  e  isto  deve 
ser  por  sua  doçura :  António  Musa  a  põe  quente  e  húmida, 
no  primeiro  ou  na  primeira  parte  do  segundo:  tudo  se  pôde 
sustentar;  pois  o  físico  julga  por  os  sentidos  exteriores. 

RUANO 

Usam  delia  em  física  os  índios? 

ORTA 

Sy,  pêra  purgar,  e  fazem  delia  bocados  raspando  a  cana 
como  nós  fazemos. 

RUANO 

E  os  grãos  são  purgativos  também? 

ORTA 

Não,  senam  deitamnos  por  hi  fora;  e  eu  me  maravilho 
muito  de  Menardo  dizer  que  os  grãos  são  purgativos,  sendo 

*  O  pardáo  de  ouro  valia  effectivamente  36o  reaes;  e  o  candil  (ma- 
ratha  khandT)  variava  nas  proximidades  de  5oo  arráteis  de  porto  para 
porto.  Dava-se  o  mesmo  nome  a  uma  medida  de  capacidade. 


ic)6  Colóquio  decimo  quarto 

cousa  que  tem  mais  arte  de  apertar  que  de  relaxar;  e  se 
elle  se  enganou,  foy  dando  algum  mesturado  com  alguma 
medulla;  e  como  as  sementes  acharam  a  cousa  aparelhada, 
baixarão  muito;  porque  estas  mezinhas  lubriíicativas  nam 
tiram  mais  que  as  matérias  que  encontram;  e  por  esta  causa, 
acontece  que  purgam  com  huma  onça  de  canafistola  ás 
vezes  mais  que  com  trinta  grãos  de  escamouea;  e  também 
pôde  ser  que  a  imaginaçam  da  purga  o  faria  purgar  mais 
a  esse  que  purgou  Menardo. 

RUANO 

E  pêra  provocar  menstruo  usão  delia,  ou  pêra  fazer  o 
parto  fácil,  ou  pêra  deitar  a  secundina? 

ORTA 

Pêra  nenhuma  cousa  destas  usam  delia. 

RUANO 

Não  pergunto  isso  sem  mistério;  porque  os  nossos  usam 
dos  pós  das  cascas  em  cozimento  de  artemisa,  ou  em  hum 
ovo,  com  quatro  onças  de  mel;  c  isto  diz  Sepúlveda  que  foi 
achado  por  esperiencia. 

ORTA 

Esse  Sepúlveda  não  he  evangelista;  e  quanto  mais  que, 
por  razam  do  cozimento  de  artemisa,  podia  provocar  o 
menstruo,  e  não  polia  tal  casca;  nem  he  conforme  á  ra- 
zam, por  ser  muito  fria  e  seca;  e  se  deitou  a  secundina 
nam  he  muito,  porque  sem  mezinha  deita  a  natureza  as 
cousas  que  a  virtude  retentiva  desempára  e  solta  de  si. 

RUANO 

Pois  que  direis  a  Avicena,  que  a  manda  dar  pêra  facili- 
tar o  parto? 

ORTA 

Todos  os  mais  duvidaram  ser  esta  a  entençam  de  Avi- 
cena ;  e  por  isso  puseram  por  regra  que  quando  se  diz  cás- 
sia em  mezinhas  purgativas,  se  entende  cássia  fistola,  e  em 


Da  Cássia  Jistola  197 

todos  os  outros  cabos  que  se  fala  em  cássia  se  entende 
cássia  ligiiea.  E  agora  veo  Andreas  Belunensis,  e  diz  que  a 
verdadeira  letra  diz  cogombvo  seco,  e  não  canafistola;  por 
onde  ficam  fora  da  reprensam  os  que  mal  usam  da  cana- 
Jistola;  digam  esses  imitadores  dos  Gregos  o  que  quize- 
rem  (3). 

RUANO 

Em  Portugal  me  dixeram  que  as  camarás  erao  muito 
frequentadas*  na  índia;  porque  as  vacas  comião  canajistola, 
e  por  isso  as  carnes  eram  solutivas:  dizeime  se  he  isto  assi 
ou  não. 

ORTA 

Também  em  Portugal  me  dixe  hum  homem  que  cá 
fora  governador,  e  outro  que  era  cá  visorey,  que  nam  que- 
ria tomar  a  canajistola  pela  mesma  causa;  e  hum  físico 
seu,  posto  que  cá  avia  andado,  se  hia  com  elle  nisso;  e  eu 
lhe  faley  nisso  a  verdade,  dizendolhe  que  nam  era  assi  como 
em  Portugal  cuidavão;  porque  os  arvores  são  muito  altos, 
e  as  vaccas  não  podem  lá  alcançar;  e  mais  os  arvores  não 
são  tantos  que  as  vacas  se  possam  delles  manter,  porque 
as  vacas  são  nesta  terra  sem  conto;  e  a  causa  he  porque  o 
gentio  as  cria  e  nam  as  come ;  e  mais  a  canajistola  he  dura 
na  casca,  quando  he  verde,  e  não  será  pêra  as  vacas  tam 
gostosa,  como  a  herva  verde,  que  muito  tempo  do  anno  ha 
cá:  e  mais  já  pergunte}'^  por  isso,  e  achey  que  a  não  comião; 
e  riramse  de  mim  aquelles  a  quem  o  perguntey,  e  porque 
em  esta  terra  ha  muita  e  nas  partes  acima  ditas,  nisto  nam 
falemos  mais. 


Nota  (i) 


A  «Cássia  fàstola»,  ou  «Canafistola«  de  Orta  é  a  Cássia  Fistula,  Linn. 
(Cathartocarpus  Fistula,  Pers.),  uma  arvore  da  família  das  Legumino- 


*  «Frequentadas»  por  frequentes — forma  bastante  habitual  no  nosso 
escriptor. 


ig8  Colóquio  decimo  quarto 

sce,  espontânea  na  índia,  e  frequente  também  em  outras  regiões  quen- 
tes do  globo,  onde  foi  introduzida.  A  polpa  das  suas  longas  vagens  é 
medicinalmente  bem  conhecida,  e  figura  em  todas  as  pharmacopéas. 

O  reparo  de  Orta,  sobre  o  emprego  do  nome  de  cássia  fistula,  pelo 
qual  Gerardo  Cremonense  traduziu  a  designação  arábica  de  Avicenna, 
é  justo,  pois  os  nomes  de  cássia  ou  casia,  acompanhados  ás  vezes  do 
mesmo  qualificativo  de  fistula,  se  haviam  antes  applicado  a  uma  cousa 
diversíssima,  ás  cascas  e  pequenos  troncos  do  Cinnamomum,  como 
melhor  veremos  no  Colóquio  da  canella.  A  confusão,  que  d'esta  nova 
applicação  resultava,  levou  alguns  escriptores  do  xvi  e  xvii  séculos  a 
darem  a  esta  droga  de  que  falíamos  agora  o  nome  de  cássia  solutiva, 
para  a  distinguirem  da  outra  cássia  (Cf.  Pharmac,  igS). 

Os  nomes  vulgares  de  Orta  identificam-se  todos  ou  quasi  todos  com 
facilidade : 

— «Hiarxamber»,  nome  arábico.  É  a  transcripção  de  j^^J:^  jLp-, 
khiar  schamber,  o  qual  se  deriva  do  persiano,  e  parece  que  da  pala- 
vra chambar,  que  significa  collar,  pois  o  longo  fructo  tem  alguma  simi- 
Ihança  com  um  collar  (Cf.  Ainslie,  Mat.  ind.,  i,  6o;-  Dymock,  Mat. 
med.,  258). 

—  «Condaca»  entre  os  Malabares;  isto  parece  ser  o  nome  tamil,  que 
Ainslie  dá  na  forma  konnekãi,  e  Dymock  na  forma  konraik-kai  (Ains- 
lie, 1.  c;  Dymock,  1.  c). 

—  «Gramalla»  entre  os  Guzerates  e  Deckanis  mussulmanos,  isto  é, 
gurmala  ou  garmala,  o  nome  ainda  hoje  vulgar  em  Bombaim  (Dy- 
mock, 1.  c). 

—  «Bava  simgua»,  entre  deckanis  e  brahmanes,  ou  «bava  simga»  en- 
tre os  canarins.  A  primeira  parte  d'este  nome  vem  citada  por  J.  Murray 
e  por  J.  C.  Lisboa,  na  forma  bawa,  como  sendo  a  designação  deckani 
ainda  usada.  Dymock  cita  o  mesmo  nome  na  forma  bhava^  (Dymock, 
1.  c;  Lisboa,  Useful  Plants  of  Bombay  presid.,  63;  Murray,  The  Plants 
and  drugs  of  Sind,  i3o,  Bombay,  i88i). 


Nota  (2) 

No  tempo  de  Orta  já  uma  grande  parte  da  cássia  fistula  das  phar- 
macias  vinha  da  America  por  via  de  Hespanha.  Nicolau  Monardes  da- 
nos a  mesma  noticia.  «Antes  — diz  elle —  vinha  por  Alexandria  do 


'  Estes  nomes  encontram-se  também  em  Rumphius  (Herb.  Amb.,  11,  84);  mas  evidente- 
mente copiados  dos  Colóquios,  e  mesmo  com  um  eiro  de  imprensa,  que  Orta  emenda  naer- 
rala.  Como  a  emenda  foi  feita  por  Clusius,  torna-se  evidente,  que  Rumphius  quando  cita  Orta, 
o  cita  pela  edição  portugueza,  e  não  pela  versão  ou  resumo  latino. 


Da  Cássia  fistol a  lOg 

Egypto  e  por  Veneza,  d'onde  se  distribuía  por  todo  o  orbe;  mas  agora, 
desde  que  começou  a  ser  trazida  de  S.  Domingos  e  de  S.  João  a  esta 
cidade  de  Sevilha,  d'aqui  se  manda  para  toda  a  parte».  As  minuciosas 
circumstancias  da  sua  introducçao  na  America,  indicadas  pelo  nosso 
escriptor,  são  evidentemente  tiradas  de  Oviedo,  cujo  livro  elle  conhe- 
cia, e  cita  em  um  dos  Colóquios  seguintes.  Effectivamente  Oviedo  men- 
ciona a  primeira  arvore  que  se  creou  na  ilha  Espanola  ou  de  S.  Do- 
mingos (Haiti)  e  foi  semeada  na  cerca  do  convento  de  S.  Francisco  da 
cidade  da  Vega.  Somente  as  cousas  não  se  passaram  exactamente  como 
Orta  diz,  e  não  se  semeou  a  carmafistiila  «montez»  ou  espontânea. 
Havia  effectivamente  na  America  muita  cannafistula  espontânea,  pro- 
duzida por  espécies  de  Cássia,  próximas  mas  distinctas  da  Cássia  fis- 
tula; e  os  fructos  d'estas  espécies  eram  ali  aproveitados  e  deviam  vir  á 
Europa  entre  os  outros.  Mas,  segundo  se  deprehende  das  phrases  de 
Oviedo,  na  cerca  do  convento  semeou-se  a  verdadeira  Cássia  fistula 
asiática,  de  semente  vinda  de  fora,  e  da  propagação  d'esta  provinha, 
annos  depois,  toda,  ou  pelo  menos  a  maior  parte  da  droga  do  com- 
mercio  (Cf.  Nicolau  Monardes,  em  Clusius,  Exotic,  333;  Oviedo,  em 
Ramusio,  iii,  1 14.  Cito  pelas  versões,  não  tendo  á  mão  os  livros  hespa- 
nhoes  de  Monardes  e  de  Oviedo). 


Nota  (3) 

A  cannafistula,  isto  é,  a  polpa  do  fructo  — que  Orta  chama  «cana»  — 
era  principalmente  usada  na  índia,  como  um  purgante  leve.  Mas  Orta 
não  é  exacto,  quando  affirma  que  nunca  empregavam  a  planta  com  ou- 
tros fins  medicinaes.  No  livro  de  Dymock  se  diz,  que  a  casca  do  fructo 
ou  vagem,  com  açafrão,  assucar  e  agua  rosada,  se  applica  ali  em  casos 
de  partos  difficeis  e  demorados;  de  modo  que  o  velho,  Sepúlveda  não 
merecia  a  reprehensão  que  Orta  lhe  dá. 

Este  tem  uma  phrase  extremamente  curiosa  e  notável  quando  diz: 
...  e  também  pode  ser  que  a  imaginaçam  da  purga  o  faria  purgar 
mais  a  esse  que  purgou  Menardo  —  aliás  Manardo.  Admitte  assim,  e  com 
toda  a  clareza,  um  caso  de  suggestão. 


COLÓQUIO  DECIMO  QUINTO 

DA  CANELA,  E  DA  CÁSSIA  LIGNEA  E  DO  CINAMOMO, 
QUE  TUDO  HE  HUMA  COUSA 


INTERLOCUTORES 

RUANO,  ORTA 

RUANO 

Nenhuma  especeria  se  pôde  comer  com  gosto,  senam  ca- 
nelar  verdade  hc  que  os  Alemães  e  Framenguos  vejo  co- 
mer pimenta;  e  aqui  estas  vossas  negras  vejo  comer  cravo; 
mas  os  Espanhoes  nam  comem  destas  especerias,  senam 
canela.  E  veome  isto  á  memoria,  porque  os  comeres  chei- 
ravam muito  a  ella,  e  nam  a  vy,  e  perguntey  á  cozinheira 
se  a  levavam  ao  cozer,  e  disseme  que  nam,  senam  que 
muitos  comeres  hião  temperados  com  agua  de  canela.  E 
por  quanto,  em  logar  da  que  chamamos  cássia  lignea,  pÔem 
canela  muitas  vezes,  será  bom  que  falemos  nella  agora. 

ORTA 

Antes  canela  he  o  que  chamamos  cássia  lignea,  e  tudo 
he  huma  cousa;  senão  os  escritores  antigos  viram  estas  dro- 
gas tam  de  longe  trazidas,  que  nam  puderam  haver  perfeita 
noticia  delias;  e  porque  erão  de  muito  preço  quando  fale- 
ciam, fingiram  mil  fabulas  que  Plinio  e  Heródoto  traz;  que 
elle  conta  por  verdadeiras,  e  são  mais  fabulosas  que  podem 
ser;  e  por  isso  não  falo  aqui  nellas,  porque  todos  sabem  já 
a  verdade,  e  que  não  se  merece  falar  nellas.  E  porque  o  preço 
era  grande,  e  a  cobiça  dos  homens  mayor,  falseficavam  es- 
tas drogas;  e  porque  o  falso  nunca  pôde  ser  semelhante  em 
todo  ao  verdadeiro,  chamavão  a  huma  canela  hum  nome, 
e  a  outra,  que  era  mais  ro3'm  ou  falsificada,  lhe  punham 
outro  nome,  sendo  ás  vezes  ambas  de  huma  mesma  espe- 
cia. 


202  Colóquio  decimo  quinto 

RU  AN  o 

Dizeime  o  que  nisto  sabeis,  porque  ao  cabo  eu  direi  as  du- 
vidas que  tiver,  que  náo  quero  ficar  com  escrúpulo.  E  assi 
me  direis  os  nomes  nas  linguas  todas,  scilicet,  nas  terras  onde 
nace  a  canela,  e  no  arábio  e  pérsio;  porque,  por  estes  no- 
mes possamos  vir  em  conhecimento  da  cássia  lignea,  e  do 
cinamomo;  ainda  que  eu  até  ao  presente  tenho,  com  outros 
que  o  escreveram,  que  nam  ha  verdadeiro  cinamomo  ou  ver- 
dadeira cássia,  ou  ao  menos  o  cinamomo. 

ORTA 

Eu  vos  satisfarey  a  tudo.  A  cássia  não  a  conheceram  os 
Gregos,  nem  os  Arábios;  e  isto  polia  grande  distancia  e  pouco 
trato  que  com  estas  regiões  tinham;  e  os  que  a  levavão  a  Or- 
muz e  á  Arábia  vender  erão  Chins,  como  adiante  vos  direy; 
e  dahi  de  Ormuz  a  levavão  a  Alepo  (cidade  principal  e  ca- 
beça da  Suria);  e  os  que  dahi  a  levavão  aos  Gregos  dizião 
que  a  havia  na  sua  terra  ou  na  Etiópia;  e  que  se  tomava 
com  muitas  superstições,  scilicet,  que  o  sacerdote  partia  o 
que  ficava  em  partes  pêra  o  diabo,  a  quem  adoravão,  e 
pêra  o  rey,  e  pêra  os  sacerdotes. 

RUANO 

Gomo?  Nam  ha  cássia  ou  cinamomo  na  Etiópia  e  na  Ará- 
bia? 

ORTA 

E  mais  me  maravilho  de  vós  nam  saberdes  isto;  porque 
a  Etiópia  he  sabida  de  nós  que  a  navegamos,  e  muita  parte 
andarão  os  nossos  nella  por  terra;  e  nella  nam  ha  canela, 
nem  cinamomo,  nem  cássia  lignea;  e  os  mesmos  Arábios  a 
vem  cá  comprar  pêra  a  levar;  e  o  tempo  que  lhe  de  cá  nam 
vay,  vai  lá  muito  cara. 

RUANO 

He  verdade  nesta  canela  que  dizeis;  mas  a  verdadeira 
cássia  e  o  verdadeiro  cinamomo  tem  o  elles,  e  levam  estou- 
tro, ou  nam  o  conhecem  por  ser  gente  rude  muito. 


Da  Canela  2o3 

ORTA 

Conheço  físicos,  muito  bons  letrados,  Arábios  e  Turcos 
e  Coraçones,  e  todos  chamam  a  esta  cauda  grossa,  de  que 
usão,  cássia  lignea. 

RU  AN  o 

E  de  nam  nacer  na  Etiópia  que  razão  me  daes? 

ORTA 

Digo  que  ambas  as  Etiopias  são  dos  Portuguezes  muito 
sabidas;  porque  a  costa  de  Guyné,  que  he  a  Etiópia  abaxo 
do  Egypto,  he  sabida  poUos  nossos,  nam  tam  somente  na 
fralda  do  mar,  mas  dentro  no  sartam;  e,  como  já  vos  dixe, 
da  ilha  de  Sam  Tomé  até  Çofala  e  Mozambique  veo  hum 
clérigo  por  terra,  e  dahi  veo  a  esta  cidade  de  Goa,  e  eu  o 
conheci  muito  bem  (O.  E  do  Cabo  de  Boa  Esperança  até 
Moçambique  e  Melinde  vieram  muitas  pessoas  que  se  per- 
derão em  náos,  e  nunqua  viram  canela:  assi  que  ambas  as 
Etiopias,  debaixo  do  Eg3^pto  como  de  cima  do  Egipto,  q-ue 
he  a  que  está  perto  de  nós,  sabemos  nam  haver  nellas  ca- 
nela. 

RUANO 

Será  isso  porque  nam  são  muito  curiosos  de  saber? 

ORTA 

Nam  são  todos  assi;  porque  os  da  ilha  de  Sam  Lourenço, 
que  são  gente  barbarissima,  amostrarão  aos  homens,  que 
lá  vão  a  tratar,  humas  frutas  como  avelãas  no  tamanho, 
sem  cabeça;  e  porque  cheiravão  a  crapo  lhas  vierão  a 
mostrar  (2);  pois  se  estes  acharam  lá  cinamomo  ou  cássia  li- 
gnea, também  lha  mostraram;  pois  parece  mezinha  tão  odo- 
rífera. E  porque  a  redondeza  nunca  foy  tam  sabida  como 
ao  presente,  em  especial  dos  Portuguezes,  não  créais  que 
faltassem  tam  celebradas  mezinhas,  porque  assi  as  prantas 
como  as  frutas  nunca  forão  tantas  como  agora  são;  porque 
as  enxertias  fazem  diversidade  nas  frutas,  e  porque  o  trans- 
plantar de  huma  terra  a  outra  faz  também  diversidade; 
logo  per  amor  de  mim  que  nam  tenhais  que  falecem  cássia 


204  Colóquio  decimo  quinto 

nem  cinamomo,  senam  que  polia  muita  cantidade  que  ha  du- 
vidamos sello*.  Isto  presuposto,  direy  os  nomes, 

RUANO 

Dizey,  que  a  fim  protesto  de  dizer  de  meu  direito,  como 
dizem  os  causidicos. 

ORTA 

Chamam  os  Arábios  á  cássia  lignea,  salihacha;  e  os  Pér- 
sios assi  a  chamão",  e  os  índios  e  os  que  não  sabem  fisica 
por  os  livros  arábios,  lhe  chamam  o  nome  que  chamam  á  ca- 
nela; porque  todos  nesta  terra  não  fazem  diíferença  nos  no- 
mes da  canela  e  da  cássia  lignea,  como  lhe  nós  chamamos.  E 
na  verdade  nenhuma  pessoa  vio  cássia  lignea  differente  da 
canela,  nem  físico  nem  boticairo  a  vio  em  algum  tempo,  nem 
a  ha;  e  se  quiserdes  ver  donde  veio  este  error,  chamarem 
á  canela  cinamomo,  e  á  cássia  estoutro  nome,  dirvoloey. 

RUANO 

Muito  folgaria  de  o  saber. 

ORTA 

Os  Chins  navegarão  esta  terra  muito  tempo  ha;  e  como 
a  gente  d'ella  era  barbara  e  sem  nenhum  saber,  tomavam 
delles  as  leis  e  custumes,  e  navegações  em  navios  de  alto 
bordo,  em  tanta  maneira,  que,  se  vos  não  enfadásseis,  vos 
contaria  disso  muitas  cousas,  que  direitamente  nam  fazem 
ao  caso,  posto  que  folgueis  de  o  saber. 

RUANO 

Antes  me  fareis  nisso  muita  mercê*,  pois  o  tempo  temos 
por  nós. 

ORTA 

Pois  sabey  que  erão  tantos  os  navios  da  China  que  na- 
vegavão,  que  contão  os  de  Ormuz  que  achão  em  seus  li- 


*  Orta  parece  admittir  n'esta  passagem  a  variabilidade  da  espécie; 
e  com  um  pequenino  esforço  de  imaginação  poderiamos  contal-o  entre 
os  precursores  de  Darwin. 


Da  Canela  2o5 

vros,  que  em  huma  maré  entrarão  na  ilha  de  Jeru  (que  agora 
se  chama  Ormuz)  quatro  centos  juncos  •,  e  também  dizem 
que  se  perderam  nos  baxos  de  Chilam  mais  de  200  juncos; 
e  isto  está,  por  memoria,  nas  terras  que  confinão  com  os 
baxos.  Juncos  são  uns  navios  compridos  que  tem  a  popa 
e  a  proa  de  huma  feiçam.  E  em  Calecut  tinhão  uma  feito- 
ria, como  fortaleza,  que  oje  em  dia  permanece,  e  se  chama 
China  cota,  que  quer  dizer  fort ai e:{a  dos  Chins  (3),  E  em  Go- 
chim  leixarão  huma  pedra  por  marquo,  e  em  memoria  que 
ali  chegarão  os  Chins;  e  quando  elrey  de  Calecut  (que  tem 
por  ditado  Çamorim  ou  Emperador)  cercou  a  Cochim,  porque 
estavam  em  èlle  dous  Portuguezes,  que  alli  ficarão  no  des- 
cobrimento da  índia,  e  lhos  não  deram,  estruyo  Cochim, 
e  levou  dally  aquela  pedra,  em  logar  de  trofeo,  o  qual  lhe 
tem  custado  bem  caro.  E  nesta  pedra  se  coroava  em  Re- 
pelim,  tomando  a  coroa  por  elrey  de  Repelim,  que  na  ca- 
beça lha  punha,  e  lhe  fazia  homenagem;  e  em  este  Repelim 
ficou  aquella  pedra  por  mandado  do  Çamorim.  Este  Repe- 
lim está  apartado  quatro  legoas  de  Cochim,  onde  ficou  a 
pedra  até  ao  anno  de  i536,  que  Martim  Afonso  de  Sousa, 
nam  menos  envencivel  que  afortunado  capitam,  sendo  Capi- 
tão mór  do  mar,  destruyo  Repelim  e  queymouo  e  saqueou, 
fugindo  elrey  com  muita  gente ;  e  matou  outros  muitos  que 
nam  fogiram,  do  que  eu  sam  testemunha  de  vista;  e  levou 
a  pedra  a  Cochim,  e  a  mandou  a  elrey,  o  qual  fez  com  ella 
muita  festa,  e  fez  mercê  a  quem  lha  levou;  e  a  Martim 
Afonso  de  Sousa  ficou  em  muita  obrigaçam  por  isso,  e  por 
duas  vezes  deitar  a  elrey  de  Calecut  fora  de  suas  terras,  e 
por  lhe  mandar  o  sombreiro  que  tomou  com  os  paros*  em 
Beadalla  (que  eram  cincoenta  e  sete)  onde  lhe  matou  quinze 
mil  homens,  não  levando  comsiguo  mais  de  trezentos,-  e  ay 
lhe  tomou  seis  centas  peças  de  artilheria  e  mais  de  mil  es- 


*  Barcos  mais  habitualmente  designados  pelos  nossos  escriptores  na 
forma  pardo,  do  maláyalam  paru.  Nas  referencias  ás  regiões  de  Ma- 
laca e  archipelago  parece  antes  dever  derivar-se  a  palavra  pardo  da 
javaneza  prahii,  modernamente  escripta  pelos  viajantes  prow  e  praii. 


2o6  Colóquio  decimo  quinto 

pinguardas.  E  porque  as  cousas  deste  tão  gram  capitam  sam 
muitas,  vos  não  diguo  mais.  E  estas  que  vos  diguo  nam  he 
pollo  louvar;  porque  de  si  he  tanto  louvado  como  todos  os 
de  nossos  tempos;  senão  conto  isto,  porque  faz  ao  caso  do 
que  digo  dos  Chins  (4). 

RUANO 

Mais  quero  saber  isto  que  toda  a  canela,  e,  portanto,  vindo 
ao  caso,  sempre  me  dizei  alguma  istoria  dessas. 

ORTA 

Estes  mercadores  traziam  de  sua  terra  ouro  e  seda,  por- 
celana e  almiscre,  e  cobre,  aljofre  e  pedra  ume,  e  outras 
muitas  cousas;  das  quaes  vendiam  em  Malaca  algumas,  e 
delia  traziam  sândalo,  e  7Zo;j-,  e  maça,  cravo,  lignaloe;  e  de- 
pois no  caminho  vendiam  muitas  cousas  destas,  scilicet,  em 
Ceilam  e  no  Malavar;  e  de  Ceilam  traziam  muito  boa  canela, 
que  lhe  custava  muito  pouco  dinheiro;  e  os  marinheiros, 
sem  dinheiro  nenhum,  traziam  dos  matos  do  Malavar  canela 
brava  e  roin,  e  também  a  traziam  já  de  Jaoa,  e  faziam  escalla 
neste  Malavar  de  pimenta  e  cardamomo,  e  outras  droguas; 
e  levavam  tudo  a  Ormuz  ou  á  costa  da  Arábia,  onde  o  vi- 
nham comprar  mercadores;  e  o  levavam  a  Alexandria,  e 
Alepo,  e  a  Damasco.  E  perguntados  estes  Chins,  que  cousa 
era  aquella  canela  que  tal  cheiro  e  sabor  tinha,  diziam  as 
fabulas  que  Heródoto  conta,  e  outras  muito  maiores,  por 
vender  milhor  sua  fazenda;  e  como  viram  a  canela  de  Cei- 
lam ser  muito  deferente  da  de  Jaoa  e  do  Malavar,  puseram- 
Ihe  dous  nomes,  nam  sendo  mais  que  hum  só  pão  ou  casca 
delle;  senão  que,  assi  como  huma  fruta  he  milhor  em  hu- 
mas  terras  que  em  outras,  assi  a  canela  de  Ceilam  he  milhor 
que  todas  as  outras,  sendo  tudo  canela;  e  a  Portugal  nam 
se  leva  outra  canela  senam  a  de  Ceilam.  E  os  de  Ormuz, 
porque  esta  casca  traziam  a  vender  os  da  China,  lhe  cha- 
maram darchini,  que  em  pérsio  quer  dizer /'áo  da  China; 
e  assi  a  vendiam  em  Alexandria,  e  nas  partes  que  acima 
dixe,  mudandolhe  o  nome  por  o  vender  milhor  aos  Gregos, 
e  chamaramlhe  cinamomo,  que  quer  áizQTpáo  cheiroso,  como 


Da  Canela  207 

amomo  trazido  da  China;  e  á  ruim  canela  que  he  a  de  JNIala- 
var  e  a  de  Jaoa,  puseramlhe  outro  nome,  que  he  o  que  tem 
na  Jaoa,  scilicet,  caismanis,  que  em  lingoa  malaia  quer  dizer 
páo  doce.  De  modo  que  a  que  era  hum  a  especia  puseramlhe 
dous  nomes,  scilicet,  á  boa  darchini,  que  hQ  páo  da  China, 
e  cinamomo,  que  he  amomo  da  China;  e  á  outra  caismanis, 
que  he  páo  doce. 

RUANO 

Darchini  nam  he  nome  arábio;  pois  o  escrcveo  Avicena* 
e  Rasis,  e  todos  os  Arábios? 

ORTA 

Não,  senam  pérsio;  que  muj^tos  nomes  pÕe  Avicena  no 
Canom*'',  que  diz  serem  pérsios.  E  porque  o  nome  em  arábio 
da  canela  he  qnerfá,  e  posto  que  este  nome  diga  Andreas 
Belunensis  que  he  nome  da  canela  grosa,  eu  comuniquei 
isto  com  Arábios,  e  me  dixeram  que  querfd  e  querfé  em 
arábio  era  a  canela  de  qualquer  maneira  que  fosse;  e  os 
Gregos,  corruto  o  nome  da  cássia,  que  era  caismanis,  lhe 
chamaram  cássia.  E  todos  os  nomes  que  os  escritores  Ará- 
bios escreveram  sam  estes;  e  os  que  doutra  maneira  estam 
escritos,  sam  corrutos,  como  darsihaham  e  outros,  E  pois 
esta  he  a  verdade,  requeiro  da  parte  de  Deos  aos  boticai- 
ros  que  não  lancem,  por  cássia  lignea,  canela  ruim,  senam 
muyto  fina  canela,  pois  delia  ha  tanta  abundância,  e  escu- 
saram de  dobrar  o  peso  da  cássia  lignea  por  cinamomo. 

RUANO 

Isso  que  dizeis  do  peso  da  cássia  lignea,  que  ha  de  ser 
dobrado,  em  lugar  de  cinamomo.^  nam  carece  de  autoridade; 
pois  o  dizem  Dioscorides  e  todos  os  outros. 


*  Lib.  2,  cap.  128  (nota  do  auctor). 

**  Isto  é,  no  Q_anun,  o  livro  de  Avicenna,  ,^,^uJ!    ^     .^  J'jd!,  ai- 
qanun  fil  tebb. 


2o8  Colóquio  decimo  quinto 

ORTA 

A  mim,  como  a  testemunha  de  vista  mais  baixo  que  todos 
os  médicos,  se  ha  de  dar  mais  fé  que  a  esses  padres  da  me- 
decina,  que  per  falsa  enformaçam  escreverão.  De  modo 
que  a  que  chamao  os  Gregos  e  Latinos  cinamomo,  chamam 
os  Arábios  quirfé  ou  quirfd,  e  os  Pérsios  darchini,  e  os 
de  Ceilam  (onde  a  ha)  cuurdo,  e  os  Malaios  caismao,  e  o 
Malavar  cameá.  E  se  achardes  que  Serapio  espoe  e  decrara 
darchini,  que  he  arvore  da  China,  tende  pêra  vós  que  a  deri- 
vaçam  he  falsa,  e  que  foy  acrecentada  pello  trasladador,  e  a 
minha  he  verdadeira  (5). 

RUANO 

Se  bem  sam  alembrado,  dixestes  que  a  cássia  lignea  se 
chamava  primeiro  caismanis,  que  quer  dizer  páo  doce;  e  se 
isto  assi  he,  a  canela  ha  de  ser  páo  amargo:{o,  como  entre- 
preta  Menardo  do  verbo  greguo,  que  seniíica  que  ao  me- 
nos seja  corrosiva. 

ORTA 

Esse  verbo,  enterpretado  por  Menardo,  quer  dizer  que 
punja  com  hum  mordimento  suave  e  cheiroso,  e  mais  diz 
que  amargura  he  fora  das  cousas  aromáticas,  senam  que  he 
chegado  a  ellas  bom  cheiro  e  sabor  agudo.  E  alem  disto 
diguo  eu,  respondendo  a  este  Menardo,  que  a  gente  desta 
terra  nam  tem  mais  que  três  sabores,  scilicet,  doce,  e  azedo 
e  amarguo,  e  ao  que  lhe  sabe  bem,  como  não  he  amarguo, 
lhe  chamam  doce;  de  modo  que  á  cousa  que  sabe  bem  lhe 
chamam  doce,  e  assi  lhe  puserão  o  nome  páo  doce. 

RUANO 

Hum  moderno  escritor  diz  que  esta  nossa  cássia  lignea 
não  he  dos  antiguos;  porque  diz  que  he  preta  e  sem  cheiro; 
e  que  se  alguma  cássia  ha,  que  he  chamada  por  Dioscorides 
a  pseudo  cássia,  que  quer  dizer  canela  falsa. 

ORTA 

Bem  pudia  ser  que  falseficasem  a  canela  antiguamente; 
mas  aguora  nam  ha  rezam  pêra  fazer  tal  cousa,  por  a  mu3^ta 
abundância  que  delia  ha;  e  comtudo  diguo  que  huma  das 


Dã  Canela  2oy 

drogas  que  se  corrompe  nesta  terra  mais  he  a  canela;  c  mais 
se  for  levada  mu3'to  tempo  por  mar.  E  portanto  nam  ey 
por  enconveniente  que  na  boa  canela  mesturem  alguma  da 
má  e  danada,  e  sem  cheiro,  e  que  não  seja  vermelha:  e 
tanto  danada  pode  ser  que  não  seja  canela,  assi  como  homem 
morto  não  he  homem.  E  qua  na  índia  achamos  muita  desta; 
ou  porque  não  se  curou  bem,  ou  porque  foy  colhida  sem 
tempo,  ou  porque  seja  corrompida;  porque  sabey  que  esta 
terra,  ao  menos  a  fralda  do  mar,  he  muito  sogeita  a  putre- 
façam,  como  achamos  por  esperiencia  cada  dia,  que  a  canela 
nunqua  dura  mais  de  hum  anno  sem  se  danar.  Assi  que 
cássia  lignea,  e  cinamomo  e  canela  tudo  he  hum;  postoque 
nunqua  foy  sabido  dos  Gregos,  e  mal  sabido  dos  Arábios. 

RUANO 

Estes  físicos  letrados  Pérsios  e  Arábios,  que  curam  a 
esse  rey  vosso  amiguo,  que  tomavam  em  lugar  da  cássia? 

ORTA 

Canela  grossa  do  Malavar,  e  eu  aporfiava  com  elles  que 
não  lançassem  senam  canela  fina ;  e  elles  sem  nenhuma  rezam 
estavam  em  sua  pertinácia;  e  o  rey  os  convencia,  e  era  de 
minha  parte.  E  certo  que,  tornando  a  fallar  na  cássia,  não 
posso  entender  estes  modernos  escritores;  porque  huns  tem 
que  não  ha  verdadeira  cássia  lignea,  e  o  Menardo  diz  que 
si,  scilicet,  a  que  vendem  nas  boticas,  chamandoa  canela 
e  he  cássia:  e  porém  diz  este  mesmo  Menardo  que  nam  ha 
verdadeiro  cinamomo;  e  Valério  Gordo  diz  que  não  ousara 
dizer  tal  cousa,  scilicet,  que  carecemos  do  verdadeiro  ci?ta- 
momo,  senão  que  temos  algumas  especias  delle.  Laguna 
diz,  alegando  Galeno,  que  a  cássia  lignea  se  converte  em 
cinamomo;  porém  que  a  elle  lhe  parece  milhor  dizer  que  o 
cinamomo  se  converte  em  cássia  lignea;  porque  huma  es- 
pecia  não  se  pode  tornar  em  outra  mais  perfeita  por  tem- 
pos, antes  em  outra  menos  perfeita.  Concertaime  lá  estes 
escritores;  e  porém  eu  diguo  que  huma  especia  nunqua  se 
pode  mudar  em  outra;  mas  que  a  boa  canela  se  pode  por 


210  Colóquio  decimo  quinto 

tempos  fazer  má,  e  chamarpmlhe  cássia  liguea;  mas  não 
porque  a  cássia  lignea  e  o  cinamomo  sejam  varias  especias, 
senam  são  nacidas  em  diversas  terras  de  huma  mesma  es- 
pecia.  Depois  Amato  Lusitano  teve  que  avia  todas  as  es- 
pecias, e  a  este  imitou  Mateolo  Senense,  com  outros  alguns; 
e  per  derradeiro  diz  Laguna,  que  quem  for  á  caza  da  índia 
de  Lixboa,  achará  todas  as  especias  do  cinamomo;  mas 
fallando  a  verdade  comvosquo,  eu  nunqua  pude  ver  mais 
que  duas  maneiras  ou  três  delle,  que  são  de  huma  mesma 
especia,  scilicet,  a  canela  de  Jaoa  e  a  de  Ceilam,  e  a  do 
Malavar;  e  quando  Laguna  diz  que  quem  for  á  casa  da 
índia  de  Lixboa  achará  todas  as  especias  do  cinamomo, 
diguo  eu  que  se  entende  que  achará  cinamomo  bom  e  cor- 
rompido, e  achará  outro  melhor,  e  outro  muito  melhor,  mas 
não  as  cinquo  especias  distintas,  que  elle  diz. 

RUANO 

Pois  sabey  que  diz  mais  que,  em  tempo  dos  emperadores 
romanos,  quem  pudia  achar  hum  páo  de  verdadeiro  cinamo- 
mo fazia  grandes  tesouros  delle-,  que  nam  nos  maravilhemos 
nós  de  o  não  podermos  aver;  e  diz  que  ao  tempo  do  papa 
Paulo  foy  achado  um  pedaço,  que  estava  guardado  do  tempo 
do  emperador  Arcádio,  o  que  foy  ha  1400  annos,  de  que  foy 
feita  grande  festa. 

ORTA 

A  tudo  vos  responderey,  Diguo  que  se  sabe  mais  em  hum 
dia  agora  pellos  Portuguezes,  do  que  se  sabia  em  100  annos 
pellos  Romanos;  e  que  o  páo  que  lhe  a  elle  foy  dado  em 
peça  seria  trazido  de  Lisboa,  que  nam  se  corrompeo;  e  o  que 
acharam  do  emperador  Arcádio  seria  guardado  assi  polia 
vontade  de  Deos,  ou  pode  ser  que  foy  isto  fingido. 

RUANO 

O  páo  da  canela  cheira  a  oregam,  como  diz  Ruelio? 

ORTA 

Não  cheira  o  páo  senão  assi  como  cheira  a  casca,  e  assi 
tem  o  sabor  delia;  mas  nam  cheira  com  cheiro  tam  forte  e 


Da  Canela  2 1 1 

intenso,  nem  ha  oregãos  em  toda  a  ilha  de  Ceilam,  nem  no 
Malavar,  neni  eu  os  vi  na  índia,  senão  trazidos  de  Ormuz, 

RUANO 

Alguns  dizem  que  temos  cinamomo,  mas  não  aquele 
muito  louvado  a  que  chamavam  jnossditico;  e  dizem  que  o 
cinamomo  quanto  he  melhor,  tanto  dura  mais;  outros  dizem 
que  dura  trinta  annos ;  e  que  dura  mais  fe3'to  em  pó.  E  que 
respondeis  a  isto? 

ORTA 

Ao  primeiro  vos  responderey  quando  vos  dixcr  onde  ha 
a  canela;  e  ao  derradeiro  vos  diguo  que  esta  droga,  de  que 
tratamos,  dura  muyto  pouco  sem  se  corromper.  E  ao  que 
dizeis  que,  polverisada  e  feita  em  troçisquos,  dura  mais,  não 
tendes  nisso  muyta  rezão,  que  mais  se  conserva  no  seu 
propryo  páo;  e  nas  casas  onde  comem  pó  de  canela  lançado 
per  cima  dos  comeres,  não  guardam  este  pó  de  hum  dia 
pêra  outro,  porque  se  corrompe  qua  na  índia.  E  quanto 
he  á  corteza,  que  he  a  canela,  em  humas  terras  dura  mais 
que  em  outras,  conservandoa  bem;  onde  não  ha  humidade 
dura  mais  annos.  E  nas  outras  terras  os  físicos  se  confor- 
maram com  ellas,  e  com  a  esperiencia;  e  assi  o  saberam 
bem:  de  modo  que  nam  sey  se  dura  trinta  annos.  E  a 
outra  canela,  que  acharão  do  tempo  do  emperador  Arcádio, 
já  vos  respondi  que  queria  ver  e  crer. 

RUANO 

Outra  rezão  dá  António  Musa,  trazida  per  autoridade  de 
Teofrasto,  que  o  cinamomo  antiguo  tinha  mu3'tos  nós,  e  que 
esta  canela  não  os  tem. 

ORTA 

Teofrasto  não  diz  bem,  nem  era  homem  desta  terra  pêra 
saber  como  he  o  arvore.  E  como  se  t\Ta  a  corteza  bem,  di- 
reyvos  donde  vereis  craramente  a  verdade. 

RUÀNO 

Dize}^  que  ao  cabo  virey  com  as  duvidas  que  tiver. 


212 


Colóquio  decimo  quinto 


ORTA 

Os  arvores  sam  do  tamanho  de  oliveiras,  e  alguns  mais 
pequenos*,  e  os  ramos  destes  arvores  sam  muytos,  e  não 
tortos,  senão  algum  pouco  dereitos;  as  flores  sam  brancas, 
e  o  fruito  preto  e  redondo,  mayor  que  murtinhos,  porque 
será  como  avelãas;  e  a  canela  he  a  segunda  corteza  do 
arvore*,  porque  tem  duas  cortezas,  como  o  sovereiro,  que 
tem  cortiça  e  casca;  assi  a  canela  a  tem;  ainda  que  as 
cortezas  nam  sam  tam  destintas  nem  tão  grossas,  como  as 
do  sovereiro.  E  primeiro  tiram  esta  corteza  de  fora,  e  alim- 
pam a  outra*,  e  deitãona  no  cham,  feita  em  forma  quadran- 
gullar;  e  deitada  no  cham,  ella  por  si  se  enroUa  em  forma 
redonda,  que  parece  corteza  de  hum  páo,  mas  nam  porque 
o  seja;  porque  os  páos  delia  sam  da  grossura  da  coxa  de 
hum  homem;  e  a  mais  grossa  desta  canela  he  como  hum 
dedo.  E  também  se  faz  vermelha,  e  tem  aquesta  cor  que 
vedes,  poUo  sol  que  a  queima;  e  a  cor  he  como  de  pouca 
cinza  mesturada  com  vinho  vermelho,  que  fica  como  vinho 
cinzento,  dominando  pouquo  a  cor  da  cinza  e  muyto  a  do 
vinho.  Os  arvores  nam  sam  tam  pequenos,  como  dizem 
Dioscorides  e  Plinio*,  e  sam  muytos;  e  o  preço  he  muito 
pouquo  na  canela  em  Ceilam,  mas  de  trinta  annos  a  esta 
parte  nam  a  pôde  comprar  ninguém  senão  o  feitor  de  elrey. 
E  esta  corteza,  que  este  anno  se  tira,  deixando  estar  o  ar- 
vore dá  outra  dahi  a  três  annos.  E  os  arvores  sam  muitos, 
e  a  folha  he  como  de  loureiro;  e  os  arvores  que  dam  canela 
ruim  no  Malavar  e  em.  Goa  são  muyto  mais  pequenos  que 
os  de  Ceilam;  e  todos  são  monteses  e  crecem  e  nacem  per 
si.  A  raiz  deyta  aguoa  que  cheira  a  cânfora,  e  temse  por 
fria;  e  elrey  veda  que  se  não  tirem  as  raizes,  por  nam  ser 
estruicam  dos  arvores. 


*  Lib.  I,  cap.  12;  lib.  2,  cap.  19  (nota  do  auctor).  A  citação  de  Dios- 
corides é  exacta,  tratando  o  cap.  12  da  cássia,  e  o  i3  do  cinnamomo. 
A  referencia  a  Plinio  é  errada;  a  passagem  encontra-se  no  livro  xii,  42, 
ed.  Nisard,  cap.  ig  das  antigas  edições. 


Da  Canela  2i3 

RUANO 

He  branca,  e  vermelha  e  preta  esta  canela? 

ORTA 

A  que  nam  he  bem  curada  fica  branca  ou  parda;  e  a 
muito  seca  fica  preta;  e  a  bem  curada  fica  vermelha,  como 
antes  dixe;  e  a  raiz  he  casi  sem  sabor,  c  cheira  a  cânfora; 
e  o  fruto  não  he  aprazível  ao  guosto;  e  as  flores  também 
se  estilam,  mas  não  cheiram  tam  bem  como  a  aguoa  estillada 
da  canela;  postoque  Laguna  digua  que  das  flores  somente 
se  estilla,  mas  a  verdade  he  que  se  estilla  a  melhor  das  cer- 
tezas antes  que  se  sequem.  He  muyto  gentil  mezinha  pêra  o 
estomaguo,  e  pêra  tirar  a  dor  da  coliqua,  que  he  procedente 
de  causa  fria;  porque  tira  a  dor  de  emproviso,  como  eu  mui- 
tas vezes  vi.  Faz  o  rosto  vermelho,  e  de  boa  cor;  tira  o  máo 
cheiro  da  boca:  certamente  que  pêra  Portugal  he  muyto 
boa  mercadoria,  se  a  levasseni  em  cantidade  que  abas- 
tasse; porque,  alem  de  ser  muyto  medecinal,  he  saborosa 
e  boa  pêra  temperarem  os  comeres,  como  qua  fazem  na 
índia. 

RUANO 

Ha  em  outro  cabo  esta  boa,  senão  em  Ceilam? 

ORTA 

Não  que  eu  ouvisse  dizer. 

RUANO 

Pois  Francisquo  de  Tâmara,  no  livro  que  fez  dos  Custu- 
mes,  diz  que  ha  no  estreito  do  mar  ruivo  cinamomo  e  lourei- 
ros que  os  cobre  a  aguoa,  quando  cresce  a  maré.  E  também 
dizem  os  que  escrevem  das  índias  Occidentaes,  dos  nossos 
Castelhanos,  que  em  muitas  partes  destas  índias  a  ha,  em 
especial  em  huma  terra  que  chamão  Zumaco;  e  também  di- 
zem, falando  na  China,  que  ha  lá  muita  canela  e  especieria; 
a  isto  me  respondei  tudo. 

ORTA 

Ao  que  diz  Francisquo  de  Tâmara  lhe  podeis  responder 
que  traladou  o  que  os  outros  falsamente  escreveram;  que 


2ij|  Colóquio  decimo  quinto 

os  Portuguezes,  que  esse  mar  ruivo  navegam,  nunqua  tal 
cousa  viram,  navegando  todos  os  annos.  E  os  outros  coro- 
nistas  que  dizem  que  as  ha  nas  índias,  também  não  dizem  a 
verdade;  porque  dizem  que  a  fruita  he  como  bolotas  de 
sôvaro;  e  que  traz  huns  capelos  pegados  nella;  e  a  fruita 
da  canela  de  Ceilão  e  do  Malavar  he  como  azeitonas  pe- 
quenas ou  muyto  grossas,  E  já  fora  bem  que  alguma  desta 
canela  viera  a  Espanha;  por  onde  pode  ser  que  será  outra 
arvore  que  dá  esta  fruita  e  a  casca,  e  seram  deferentes  am- 
bas as  arvores,  como  he  deferente  a  pereira  de  engoxa  da  ou- 
tra perneira.  E  ao  que  diz  da  China,  bem  sabido  he  ser  falso, 
pois  de  Malaqua  levão  pêra  a  China  drogas,  e  sabem  não  aver 
lá  a  tal  drogua  (6), 

RUANO 

Do  fruto  da  canela  que  se  faz? 

ORTA 

Fazem  azeite,  como  nós  fazemos  o  das  oliveiras,  parece 
como  sevo  em  pães,  ou  como  sabam  francez;  não  cheira 
bem  nem  mal,  senão,  quando  se  esquenta,  cheira  alguma 
cousa  a  canela,  aproveita  pêra  esquentar  o  estamaguo  e  ner- 
vos (7). 

RUANO 

A  canela  de  Ceilão  he  toda  muito  fina? 

ORTA 

Não,  senão  alguma  he  muito  roim,  que  se  não  arredon- 
dou bem,  e  era  muyto  grossa  por  não  ser  daquelle  anno; 
e,  como  he  de  mais  tempo,  não  he  boa:  isto  entendei  na 
de  Ceilam,  porque  a  do  Malavar  e  das  outras  terras  toda 
he  muyto  roim,  e  vai  o  quintal  da  canela  de  Ceilam  dez 
cruzados,  e  a  do  Malavar  vai  hum  bar,  que  sam  quatro 
quintaes,  hum  cruzado;  e  levam  os  Malavares  a  vender  esta 
canela  a  Cambaya  e  a  Chaul  e  Deibul;  pêra  dahy  aí  levarem 
ao  Balaguate. 

RUANO 

Dizeime  dos  nomes  das  especias  que  traz  Plinio,  pêra  ver 
se  se  podem  reduzir  a  algumas  partes  da  índia. 


Da  Canela  2i5 

ORTA 

Serão  reduzidos,  como  podermos;  porque  a  verdade  he 
o  que  dixe,  e  os  nomes  levalosemos  a  cila.  E  diguo  que 
Zeg'ir  pode  ser  que  se  chamasse  assi  toda  a  terra  dos  Chin- 
gualas,  que  sam  os  de  Ceilam;  porque  os  Pérsios  e  Arábios 
chamam  os  negros  Zangues;  e  toda  a  gente  de  Ceilam  e 
do  Malavar  he  desta  cor;  e  também  aquelles  baixos  que 
estam  entre  a  costa  e  a  ilha  de  Ceilam  se  chamam  de  Chi- 
lam,  onde  podemos  derivar  o  nome  de  Zegir. 

RUANO 

E  cinamomo  musilitico,  tanto  louvado,  donde  se  diz? 

ORTA 

Da  ilha  de  Ceilam,  que  he  ilha  montuosa,  que  esta  con- 
trairá ao  monte  Cory,  que  he  o  cabo  do  Comorim;  e  onde 
achardes  em  Dioscorides  que  cheira  a  aruda  nam  lhe  deis 
fé;  e  Plinio  diz  que  trazem  esta  canela  ao  porto  dos  Gena- 
labitas  que  se  chama  o  Ceilam:  vedes  como  craramente  quer 
dizer  no  porto  dos  Chingualas,  que  he  Ceilam;  porque  diz 
que  por  direito  caminho  vem  do  promontório  de  Cor}'',  porto 
das  Genalabitas  dito  Ocila;  se  estas  derivações  vos  nam  con- 
tentarem, nam  vos  saberey  dar  outras  melhores  (8). 

RUANO 

Estas  derradeiras  me  parecem  milhor;  mas  os  que  dizem 
que  he  a  folha  da  canela  como  do  Ifvio  espadanai,  dizem 
bem? 

ORTA 

Não,  porque  a  folha  da  canela  parece  a  laranjeira  ou  a 
louro;  scilicet,  a  feiçam  he  de  laranjeira,  e  a  cor  he  de  louro. 

RUANO 

O  olyo  fazse  da  canela  também? 

ORTA 

Já  vos  dixe  que  se  fazia  somente  do  fruto  da  arvore  da 
canela;  e  que  se  fazia,  como  nós  fazemos  o  das  oliveiras, 
e  esta  he  a  verdade. 


2i6  Colóquio  decimo  quinto 

RUANO 

Acho  em  receitas  de  hum  doutor  de  autoridade,  toma  ci- 
namomo allipitino:  he  por  ventura  alguma  parte  da  ilha  de 
Ceilam,  ou  donde  he? 

ORTA 

Si*,  ay  em  Alepo,  cidade  principal  da  Suria,  canela  na- 
çida,  assi  como  ha  em  Espanha,  senão  levamna  de  Or- 
muz e  de  Gida  a  Alepo;  e  vendem  lá  isto,  e  trazem  cavallos 
a  Ormuz,  e  muitos  géneros  de  sedas  e  brocados;  e  porque 
aquella  canela  era  boa  e  nova,  ficou  aquelle  nome  á  boa  ca- 
nela; e  não  porque  a  a}^  aja. 

RUANO 

Eu  sam  satisfeito;  e  diguo  que  me  parece  bem  que  tenha- 
mos verdadeiro  cinamomo  e  verdadeira  cássia  lignea ;  e  nam 
que  nos  falte;  e  que  toda  seja  huma,  e  que,  quando  achar 
cássia  lignea  nas  receitas,  ou  cinamomo,  sempre  porey  ci- 
namomo o  milhor  que  achar,  pois  todo  he  hum,  e  as  cousas 
que  os  doutores  escrevem  pêra  que  aproveita  hum  as  dam 
a  outro;  e  se  Deos  me  levar  a  Espanha,  eu  tirare}^  desta 
errónea  a  muitos  físicos  e  boticairos;  e  direy  áquelle  famoso 
doutor  Thomas  Rodrigues,  que  aquella  eshortaçam  que  faz 
Mateolo  aos  físicos  de  elrey  de  Portugal,  que  tirem  isto  a 
limpo,  que  vós  lhe  presentais,  e  pondes  debaixo  de  sua  cor- 
reiçam;  porque  elle  vos  mandou  isto  pedir  antes.  E  agora 
me  dizei  o  que  sabeis  da  ilha  de  Ceilam,  pois  he  tão  cele- 
brada. 

ORTA 

Tem  a  ilha  de  Ceilam  de  comprimento  8o  legoas  ou  mais, 
e  de  largura  trinta  legoas:  he  frutífera,  está  de  gráos  de  6 
até  9;  he  a  mais  frutífera  e  milhor  ilha  do  mundo.  Alguns 
dixeram  ser  Trapobana  ou  Çamatra:  tem  defronte  na  costa 
hum  promontório,  que  chamam  o  cabo  de  Comorim.  He 
muito  povoada,  postoque  montuosa  por  muitas  partes:  á 


*  Parece-me  qut  se  deve  ler:  «Não  ha  ...  assi  como  não  ha  em 
Espanha  ...» 


Da  Canela  217 

gente  delia  chamam  Chingalas:  he  de  eirey  nosso  senhor  e 
os  reys  delia  sam  sujeitos  a  elle.  He  certo  que  esta  ilha  he 
a  mais  nobre  do  mundo;  e  era  toda  de  um  rey,  e  foy  morto 
por  seus  netos,  e  partiram  entre  si  esta  ilha.  E  quando  os 
Portuguezes  vieram  a  esta  terra,  fizeram  consulta  de  cor- 
tarem e  esterilizarem  muitos  arvores,  assim  como  sam  no\es 
e  cravo  e  pimenta.  Ha  nesta  ilha  todo  género  de  pedraria, 
tirando  diamans.  Ha  muito  aljofre,  como  diremos  adiante; 
tem  ouro  e  prata,  e  nam  querem  tirallo  os  reys,  senam  tello 
por  tisouro:  dizem  que  se  ajuntam  alguma  vez,  pêra  o  tirar 
secretamente.  Os  matos  sam  com  todas  as  aves  do  mundo, 
e  muytos  pavões  e  galinhas,  e  pombas  muitas,  e  de  muitas 
maneiras;  cervos  e  veados,  e  porcos  em  mu3^ta  cantidade: 
ha  muitas  frutas  nella  das  desta  terra  e  laranjeiras,  e  tudo 
isto  he  montesinho;  e  as  laranjas  he  a  milhor  fruta  que  ha 
no  mundo  em  sabor  e  doçura;  damse  nella  todas  as  frutas 
nossas,  como  uvas  e  figuos.  Certo  que  das  laranjas  só  se  podia 
fazer  muito  boa  pratica;  porque  he  a  milhor  fruta  que  ha  no 
mundo.  Tem  linho  e  ferro;  e  entre  os  negros  qua  dizem  os 
índios  ser  o  paraizo  terreal;  e  fabulam  que  huma  serra,  que 
ahi  ha  muyto  alta,  que  chamam  o  pico  de  Adam,  e  dizem 
que  está  ally  a  pegada  de  Adam,  e  outras  fabullas  muyto 
ma3^ores,  que  por  tais  volas  conto,  e  taes  sam.  Ha  muitas 
palmeiras  e  os  alifantes  são  os  milhores  que  ha  no  mundo, 
e  de  muito  entendimento  (9),  e  dizem  que  os  outros  que  lhe 
tem  obediência  (lo). 


Nota  (i) 

Se  havia  ou  não  canella  no  interior  da  Africa,  é  questão  que  procura- 
remos averiguar  em  uma  das  notas  seguintes.  Por  emquanto  diremos 
simplesmente,  que  nos  não  é  conhecido  este  clérigo,  o  qual  — como 
ingenuamente  diz  o  nosso  escriptor —  foi  de  S.  Thomé  a  Moçambique 
por  terra.  O  facto  — tomando  a  phrase  no  seu  verdadeiro  sentido  — 
não  é  por  modo  algum  improvável,  pois  são  bem  conhecidas  as  tenta- 
tivas, que  desde  o  tempo  do  infante  D.  Henrique  até  ao  de  D.  João  III, 


2i8  Colóquio  decimo  quinto 

e  posteriormente,  os  portuguezes  fizeram  para  penetrar  no  interior  da 
Africa.  Ruy  de  Sousa,  Balthazar  de  Castro,  Gonçalo  da  Silveira,  Re- 
bello  de  Aragão,  e  vários  mais,  uns  pelo  oriente,  outros  pelo  occidente, 
penetraram  nas  terras  do  interior;  e  algum  outro  iria  de  costa  a  costa, 
mas  sem  deixar  memoria  da  sua  viagem.  A  aííirmação  de  Orta  é  muito 
positiva,  dizendo  que  tinha  conhecido  em  Goa  o  tal  clérigo.  E,  porém, 
vaga,  e  nem  mesmo  é  fácil  saber  d'onde  este  partiu,  pois  não  é  muito 
provável  que  partisse  da  costa  occidental  n'aquella  região  do  equador, 
em  frente  de  S.  Thomé. 

Nota  (2) 

Ortà  refere -se  á  Ravensara  aromática,  Sonn.,  uma  arvore  de  Mada- 
gáscar da  família  das  Laiiracea^,  a  cujo  fructo  os  francezes  chamaram 
noix  d'épice  de  Madagáscar.  Sonnerat  descreveu-a  e  figurou-a  nos  fins 
do  século  passado;  e  Cêré,  director  do  Jardim  botânico  na  ilha  de 
França,  já  antes  (1779)  tinha  dado  sobre  esta  planta  uma  noticia,  di- 
zendo :  Le  Ravensara  est  un  arbre  à  épicerie  de  Madagáscar,  dont  la'* 
fcuille  et  le  fruit  tiennent  des  quatre  épices  Jiyies,  que  nous  connaissons. 
No  catalogo  das  plantas  úteis  das  Colónias  francezas,  diz-se  que  os  seus 
fructos  têem  une  forte  odeiir  de  girofle — o  cheiro  «a  cravo»  do  nosso 
Orta.  Sonnerat  diz  também,  que  os  naturaes  a  conheciam  perfeita- 
mente, e  se  serviam  das  folhas  para  adubarem  o  arroz;  era  pois  natu- 
ral que  a  trouxessem  a  vender  aos  portuguezes,  que  frequentavam  os 
portos  de  Madagáscar  ou  ilha  de  S.  Lourenço.  , 

Orta  não  foi  o  único  escriptor  portuguez,  que  fallou  na  Ravensara. 
Barros,  dando  conta  da  viagem  de  Diogo  Lopes  de  Sequeira,  que  foi 
procurar  cravo  á  ilha  de  Madagáscar,  onde  — como  era  natural —  o 
não  encontrou,  acrescenta:  que  os  naturaes  da  terra  «vieram  a  enten- 
der em  humas  certas  arvores,  que  dam  hum  fructo  como  baga  de  louro, 
que  tem  o  mesmo  sabor  do  cravo,  e  começaram  de  o  trazer  aos  portos 
de  mar  a  ver  se  lhes  davam  por  isso  alguma  cousa».  E  depois  diz,  que 
mais  tarde  veiu  a  Portugal  uma  «mostra»  d'aquelle  fructo. 

(Cf.  Sonnerat,  Voyage  aux  Indes  orientales  et  à  la  Chine,  11,  58,  e  226, 
PI.  127,  Paris,  1782;  Lanessan,  Les  plantes  iitiles  des  colonies  françai- 
ses,  532,  Paris,  1886;  Baillon,  Adansonia,  ix,  299;  Barros,  Ásia,  11,  iv,  3). 


Nota  (3) 

A  noticia  de  Garcia  da  Orta  sobre  as  viagens  dos  juncos  chins  até 
ao  Golfo  Pérsico  é  particularmente  interessante,  porque  este  facto  de- 
via ser  pouco  conhecido  no  seu  tempo,  posto  que  esteja  hoje  perfeita- 
mente demonstrado. 


Da  Canela  219 

O  antigo  escriptor  persa  Hamza  de  Ispahan  — citado  por  Ten- 
nent —  diz-nos,  que  no  v  século  o  Euphrates  era  navegável  até  Hira. 
E  Maçudi,  fallando  também  das  variações  que  se  têem  dado  no  curso 
d'aquelle  rio,  informa-nos  de  que  elle  seguia,  muito  antes  do  seu  tempo, 
o  antigo  canal  el-Atif,  passando  em  Hirah,  e  vindo  lançar-se  no  mar 
da  Abyssinia  (Golfo  Pérsico),  que  então  cobria  as  terras  de  en-Nedjef, 
onde :  arrivaient  les  bâtiments  de  la  Chine  et  de  Vinde  à  destination  des 
róis  de  Hirah.  O  termo  d'aquella  navegação  foi,  porém,  retrogradando, 
e  passou  a  ser  em  Obolla,  depois  próximo  da  moderna  Basra,  ou  Bas- 
sora,  mais  tarde  em  Siraf  na  costa  da  Pérsia  (segundo  Abu  Zeyd),  e 
por  ultimo  em  Hormuz  (Cf.  Tennent,  Ceylon,  i,  565,  S.'*"  edition  (1860); 
Maçudi,  Prairies  d'or,  i,  21 5;  Yule,  Cathay,  lxxviii). 

Estas  informações  dos  escriptores  arábicos  são  em  parte  confirma- 
das por  documentos  chins,  citados  e  commentados  modernamente  pelo 
sr.  F.  Hirth.  Um  porto  ou  cidade,  chamado  pelos  chins  T'iao-chih,  co- 
nhecido por  elles  desde,  pelo  menos,  o  primeiro  século  da  nossa  era, 
parece  dever  situar-se  na  Mesopotâmia,  justamente  nas  proximidades 
da  antiga  Hira,  e  da  moderna  Kufa.  É  verdade,  que  os  primeiros  do- 
cumentos o  mencionam,  não  como  o  terminus  da  navegação;  mas,  pelo 
contrario,  como  o  das  viagens  por  terra.  Os  chins  viriam  então  pela  Ásia 
central,  através  do  paiz  de  An-hsi  (Parthia),  até  T'iao-chih,  e  ali  em- 
barcavam com  destino  ao  mar  Vermelho,  por  onde  principalmente  se 
punham  em  contacto  com  o  Ta-ts'in,  ou  parte  oriental  do  Império  Ro- 
mano. Outras  passagens,  porém,  referem-se  ás  relações  directas,  que 
mais  tarde  a  China  teve  com  o  T'ien-chu  (índia)  e  com  o  Ta-ts'in  ou 
Fu-lin  (as  províncias  orientaes  do  Império).  Se  estas  relações  directas 
eram,  como  parece,  marítimas,  é  natural  que  os  chins  viessem  deman- 
dar o  porto  de  T'iao-chih  seu  conhecido.  O  antigo  sinologo  De  Guignes 
dá-nos  mesmo  uma  indicação  muito  mais  clara,  que  no  emtanto  não 
encontro  confirmada  por  Hirth.  Segundo  De  Guignes,  consta  dos  an- 
naes  da  dynastia  Thang  (vii  e  viii  séculos),  que  os  juncos  chins  par- 
tiam de  Kuang-cheu  (Cantão),  e,  depois  de  tocarem  em  Ceylão,  cos- 
teavam o  Malabar  até  a  um  porto  chamado  Tiyu  (Diu?).  D'aH  seguiam 
ainda  ao  longo  da  costa,"  e  chegavam  a  um  segundo  Tiyu,  próximo  do 
grande  rio  Milan  ou  Sinteu  (o  Indus,  ou  Sindu,  chamado  pelos  árabes 
Mehran).  Navegavam  depois  para  um  ponto,  onde  havia  um  pharol 
(os  estreitos  de  Hormuz?),  indo  finalmente  a  Siraf  e  á  embocadura  do 
Euphrates  (Cf.  F.  Hirth,  China  and  the  Roman  Orient,  3 7,  42,  147,  etc. 
Leipsic  e  Munich,  iS85,  De  Guignes,  Mem.  de  1'Acad.  des  Inscriptions 
et  Belles  letres,  xxxii  ( 1 768),  pag.  367). 

Mais  tarde,  as  navegações  dos  chins  encurtaram-se,  á  medida  prova- 
velmente que  os  navios  mais  leves  dos  árabes  se  foram  multiplicando. 
Edrisi,  que  escreveu  perto  de  dois  séculos  depois  de  Maçudi,  dá  conta 
das  relações  commerciaes  de  Aden  com  a  China,  mas  não  diz  em  que 


220  Colóquio  decimo  quinto 

navios  se  fazia  a  navegação;  e,  fallando  de  Soar,  na  costa  de  Oman, 
usa  da  seguinte  phrase:  2'/  s'y  faisait  des  expeditions  pour  la  Chine, 
por  onde  parece,  que  se  fazia  em  navios  árabes.  Em  todo  o  caso, 
quando  Marco  Polo,  e  depois  Ibn  Batuta  visitaram  a  costa  do  Malabar, 
era  ali,  em  Coulão  e  Calicut,  o  termo  habitual  da  navegação  dos  jun- 
cos. Ibn  Batuta  fixa  mesmo  aquelle  termo  expressamente,  dizendo  de 
Hili  (junto  ao  monte  Dely),  e  a  «aya  cidade  chegão  navios  da  China». 
Depois,  como  é  bem  conhecido,  quando  os  portuguezes  chegaram  á 
índia,  os  juncos  chins  já  nem  mesmo  vinham  ao  Malabar,  e  em  geral 
não  passavam  de  Malaca  (Cf.  Edrisi,  Géographie,  i,  5i,  iSa;  Yule, 
Marco  Polo,  11,  igS;  Viagens  de  Ben  Batuta,  11,  246). 

Vê-se  pois,  que  o  facto  apontado  por  Orta  é  absolutamente  exacto, 
e  ao  mesmo  tempo  que  esse  facto  tinha  cessado  alguns  séculos  antes 
d'elle  escrever,  devendo  estar  já  um  pouco  apagada  a  sua  memoria. 
Em  que  o  nosso  escriptor  se  enganou,  foi  em  julgar  que  os  juncos  en- 
travam na  ilha  de  Jeru,  isto  é  Jerun,  ou  Gerun.  Os  juncos  frequenta- 
vam o  velho  porto  de  Hormuz  na  terra  firme,  que  parece  ter  sido  im- 
portante desde  tempos  muito  antigos,  pois  se  tem  identificado  com  a 
cidade  de  Armuza  de  Ptolomeo,  e  com  aquelle  sitio  chamado  Harmozia, 
locus  ipse  Harmonia  vocatur,  em  que  descansou  e  se  refez  a  armada 
de  Nearcho,  segundo  conta  Arriano.  Este  foi  e  era  n'aquelles  tempos 
o  porto  commercial,  e  só  se  transferiu  para  a  ilha  de  Jerun  depois  do 
anno  de  i3o2,  seguindo  a  versão  de  Teixeira,  a  qual  parece  mais  ac- 
ceitavel  que  a  de  João  de  Barros,  e  concorda  com  o  que  diz  Abulfeda. 
Quando  Marco  Polo  ali  passou  (1293  proximamente)  a  cidade  ainda 
estava  na  terra  firme;  mas  quando  ali  foi  fr.  Odorico  (i32i)  já  a  encon- 
trou estabelecida  na  ilha.  N'esta  epocha  as  viagens  dos  juncos  tinham 
cessado;  e  quando  antes  ali  iam,  Jerun  era  uma  pequena  ilha  deserta 
e  salgada,  cransformando-se  depois  em  uma  cidade  tão  rica,  que  os 
orientaes  diziam:  se  o  mundo  fosse  um  annel,  Hormuz  seria  a  pedra 
n'elle  cravada. 

Esta  transferencia  de  nome  e  de  importância  de  um  ponto  da  terra 
firme  para  uma  ilha,  é  que  o  nosso  Orta  desconhecia,  ou  se  esqueceu 
de  mencionar;  e  que  outros  escriptores  do  tempo,  por  exemplo  Camões, 
indicaram  com  exactidão : 

Mas  vê  a  ilha  Gerum,  como  descobre 
O  que  fazem  do  tempo  os  intervallos. 
Que  da  cidade  Armuza,  que  alli  esteve, 
Ella  o  nome  depois  e  a  gloria  teve. 

(Cf.  Arriani  Indica,  573,  edição  de  Nicolaus  Blancardus;  Teixeira, 
Relacion  de  los  reys  de  Harmu:^,  11;  Yule,  Marco  Polo,  i,  ii3;  Lus., 
canto  x,est.  io3). 


Dã  Canela  221 

Ao  mesmo  tempo,  que  Orta  nos  dá  noticia  dos  numerosos  — talvez 
demasiado  numerosos —  juncos,  que  entravam  na  ilha  de  Jerun,  falla- 
nos  dos  que  se  perderam  nos  «baxos  de  Chilam».  Estes  baixos  ficavam 
entre  a  ilha  de  Ceyláo  e  a  costa  de  Coromandel;  e  as  suas  rochas 
grandes,  regulares,  aflorando  ao  lume  da  agua,  parecendo  artificial- 
mente collocadas,  receberam  o  nome  de  ponte  de  Adão,  Adavi'sbridge 
dos  inglezes.  Por  ali  diziam  os  Hindus,  que  o  seu  Rama  havia  passado 
para  conquistar  a  ilha;  e  por  ali,  segundo  os  mahometanos,  tinha  sido 
o  caminho  de  Adão.  Pareceria,  pois,  por  esta  noticia  de  Orta,  que  os 
juncos  seguiam  aquella  derrota,  no  que  pôde  haver  alguma  duvida. 

Os  nossos  navios  portuguezes,  fustas,  galeotas  e  outros,  passavam  ás 
vezes  pelos  canaes  dos  baixos;  mas  alguns  maiores  com  certa  difficul- 
dade.  Gaspar  Corrêa  diz,  por  exemplo :  «esta  armada  passou  os  baixos 
de  Chilão  com  o  galeão  e  caravellas  descarregadas,  ao  que  lhe  deu 
muyto  aviamento  Diogo  Rabello,  que  andava  por  capitão  da  pescaria» 
(de  pérolas).  A  antiga  navegação  dos  árabes  fazia-se  também  por  ali, 
como  claramente  dizem  Soleyman  e  Ibn  Wahab  no  ix  século;  e  por 
ali  continuou  no  tempo  dos  portuguezes,  como  se  vê  do  seguinte 
trecho  de  Duarte  Barbosa:  «por  honde  (pelos  baixos)  passaom  ca- 
minho de  Charamandel  todolos  zambucos  do  Malabar,  e  cadano  se 
perdem  muytos  n'estes  baixos,  por  ho  canal  ser  muy  estreito».  Todas 
estas  embarcações  de  pequena  lotação  tomavam,  ou  a  passagem  entre 
a  ilha  de  Manaar  e  a  de  Ceylão,  ou  o  canal  de  Paumben,  entre  a  ilha 
de  Rameseram  e  a  costa  da  índia. 

Sir  Emerson  Tennent,  porém,  pÕe  em  duvida  que  os  grandes  jun- 
cos seguissem  aquelle  caminho,  e  admitte  que  elles  rodeavam  Ceylão 
e  fi-equentavam  o  porto,  hoje  conhecido  pelo  nome  de  Ponta  de  Galles. 
Os  antigos  juncos  eram  effectivamente  enormes,  trazendo  grandes  car- 
gas, e  guarnições,  que  chegavam  a  ser  — segundo  Ibn  Batuta —  de  mil 
pessoas.  Era  pois  natural,  que  nem  passassem,  nem  tentassem  passar 
habitualmente  pelos  canaes  dos  baixos.  A  noticia  de  Orta  não  deve, 
pois,  referir-se  á  navegação  habitual,  mas  a  um  ou  a  mais  factos  iso- 
lados, de  que  faliam  outros  escriptores.  João  de  Barros  diz : 

«No  tempo  que  os  Chijs  conquistaram  aquellas  partes  por  razão  da 
especiaria,  entre  o  transito  d'esta  Ilha  (Ceylão)  e  a  terra  firme,  com 
hum  tempo  a  que  elles  chamão  vara,  que  he  o  que  faz  a  maravilha  do 
seu  Scylla  e  Charybdes,  em  hum  dia  perderam  oitenta  vellas,  donde 
aquelle  lugar  se  chama  Chilão  . . .  que  acerca  d'elles  quer  dizer  os  pe- 
rigos ou  perdição  dos  Chijs«. 

E  fr.  Gaspar  da  Cruz  allude  ao  mesmo  ou  a  outro  naufrágio : 

«. .  .e  nos  baixos  de  Chilão,  que  correm  da  ilha  de  Ceilam  pêra  a 
costa  de  Cheromandel  se  afirma  pelos  da  terra,  que  se  perdeo  húa 
muy  grossa  armada  dos  Chinas,  que  vinha  sobre  a  índia,  a  qual  se  per- 
deu porque  os  Chinas  eram  novos  em  aquella  navegação». 


222  Colóquio  decimo  qiimto 

Deixando  de  parte  a  etymologia  da  palavra  Chiláo,  que  não  parece 
exacta,  estes  factos  de  naufrágios  nos  baixos  devem  ser  verdadeiros, 
ainda  quando  não  fosse  por  ali  o  caminho  habitual  da  navegação. 

(Cf.  Tennent,  Ceylon,  i,  587  et  seqq. ;  Lendas,  iii,  56o ;  Duarte  Barbosa, 
Livro,  352;  Barros,  Ásia,  iii,  11,  i;  fr.  Gaspar  da  Cruz,  Tractado  da 
China,  ig,  2."  edição,  Lisboa,  1829.) 

Estas  referencias  ás  expedições  militares  dos  chins  ao  sul  da  índia, 
levam-nos  a  fallar  da  Chinacota  de  Calicut,  e  da  origem  que  Orta  lhe 
attribue.  A  mesma  noticia  se  encontra  nas  Lendas,  e  d'ali  se  vê  que  o 
recinto  da  Chinacota  era  grande,  pois  n'ella  se  aposentou  Pedralvares 
Cabral  com  toda  a  sua  gente  que  desembarcou.  Este  e  outros  edifícios 
referem  os  nossos  escriptores  com  insistência  ao  domínio  dos  chins  na 
índia.  Alem  das  indicações,  dadas  por  Barros  e  fr.  Gaspar  da  Cruz  nas 
passagens  citadas,  Gaspar  Corrêa  falia  de  uma  grande  armada  de  chins 
e  «lequeos»,  que  quatrocentos  annos  antes  da  nossa  chegada  correu 
aquella  costa,  estabelecendo-se  ali  muitos  d'aquelles  estrangeiros.  E, 
entre  outros,  Diogo  do  Couto  falia  explicitamente  na  estçida  dos  chins 
na  índia  meridional,  e  nas  leis  e  costumes  que  ali  introduziram.  A  ques- 
tão é  intrincada,  porque  é  difficil  admittir,  que  não  existisse  um  funda- 
mento real  para  estas  affirmações  concordes,  e  por  outro  lado  esse 
fundamento  se  não  encontra  —  ao  menos,  que  eu  saiba. 

Pôde  ter  contribuído  para  introduzir  aquella  idéa  no  espirito  dos 
nossos  escriptores,  o  dominio  que  os  chins  tiveram  na  ilha  de  Ceylao, 
onde  mandaram  uma  armada  depois  do  anno  de  1405,  e  d'onde  recebe- 
ram tributo  até  ao  anno  de  1459.  Este  facto  estava  fresco  na  memoria 
de  todos  quando  os  nossos  chegaram  á  índia,  e  pode  bem  ser  que  os 
juncos  perdidos  nos  baixos  fossem  d'esses  que  se  enviavam  a  Ceylão. 
Quanto  á  índia,  é  certo  que  Yule  menciona  alguns  estados  situados 
n'esta  região,  e  nomeadamente  um  que  identifica  com  a  costa  de  Maa- 
bar,  ou  de  Coromandel,  como  vindo  incluídos  em  uma  lista  de  paizes 
tributários  á  China,  em  tempos  do  imperador  Kublai  (1286);  mas  é  ne- 
cessário ter  em  vista  a  arrogância  dos  documentos  chins,  que  dão  a  si- 
gnificação de  actos  de  vassallagem  a  uma  embaixada,  ou  ás  vezes  a  sim- 
ples relações  commerciaes.  Dominio  effectivo  na  índia  parece  não  ter 
havido.  Havia,  porém,  colónias  commerciaes,  ricas  e  prosperas;  e  a  essas 
colónias,  aos  mercadores  chins,  estabelecidos  em  Coulão  e  outros  pon- 
tos do  Malabar  e  de  Coromandel,  allude  Ibn  Batuta  e  vários  viajantes 
da  Idade-media.  É  perfeitamente  admissível,  que  essas  colónias  tivessem 
feitorias,  edifícios  religiosos,  e  mesmo  recintos  fortifícados;  e  é  admis- 
sível que  a  Chinacota  tivesse  esta  origem. 

Em  outros  casos,  porém,  os  nossos  escriptores  tiveram  um  equivoco 
manifesto,  e  attribuiram  aos  chins  edifícios,  que  haviam  sido  levantados 
por  algumas  seitas  religiosas  da  índia.  Já  na  Vida  de  Garcia  da  Orta 
eu  tive  occasião  de  notar  esta  confusão  entre  chins  e  buddhistas;  e  vi 


Da  Canela  22  3 

depois  no  Indian  Antiquary  um  artigo  — de  que  então  não  tinha  conhe- 
cimento—  e  em  que  duas  grandes  auctoridades  orientaes,  Yule  e  Cald- 
well,  apontavam  uma  confusão  análoga  entre  chinas  e  jainas. 

(Lendas,  i,  69,  186;  Couto,  Ásia,  v,  i,  i;  Tennent,  Ceylon,  i,  622; 
Cathay,  lxxvi;  Marco  Polo,  ii,  32i;  Garcia  da  Orta  e  o  seu  tempo,  259; 
Jnd.  Ant.  iv,  (i875),9.) 

No  decurso  do  Colóquio,  Orta  dá  uma  longa  lista  das  mercado- 
rias, que  os  juncos  deviam  trazer,  já  da  sua  própria  terra,  já  das 
compras,  feitas  pelo  caminho:  ouro,  seda,  porcellana,  almiscar,  co- 
bre, aljofre,  pedra  hume,  sândalo,  noz  e  maça,  cravo,  madeira  de 
aloés,  canella  boa  e  ruim,  pimenta  e  cardamomo.  Alguns  séculos  antes, 
Edrisi  dera  igualmente  uma  lista  das  mercadorias,  que  da  China  vinham 
a  Aden,  entre  as  quaes  é  fácil  reconhecer  que  muitas  não  procediam 
propriamente  da  China,  e  sim  dos  pontos  intermediários.  Comquanto 
as  listas  diffiram,  ha  entre  ellas  concordâncias  muito  interessantes,  e 
Edrisi  aponta  algumas  das  mercadorias  citadas  por  Orta:  porcellana? 
(vaisselles  de  terre  na  traducção),  sedas?  (étoffes  riches  et  veloutéesj, 
noz  e  maça  (muscade,  macisj,  almiscar,  madeira  de  aloés,  cravo,  canella, 
pimenta  e  cardamomo  (Cf.  Edrisi,  Géographie,  i,  5i). 


Nota  (4) 

Para  não  alongar  demasiado  estas  notas,  não  repetirei  o  que  disse 
já  na  Vida  de  Garcia  da  Orta,  sobre  a  famosa  pedra  de  Repelim,  sobre 
a  tomada  d'aquella  chamada  ilha,  e  sobre  o  combate  naval  de  Beadalá. 
A  pedra  devia  ser  simplesmente  um  lingam;  e  os  sucessos  militares 
são  bem  conhecidos  pelas  relações  dos  nossos  chronistas  (Cf.  Garcia 
da  Orta  e  o  seu  tempo,  i23  a  i32;  Gaspar  Corrêa,  Lendas,  iii,  717,  766, 
828;  Barros,  Ásia,  iv,  vii,  19,  e  viii,  i3;  Couto,  Ásia,  v,  n,  4). 


Nota  (5) 

Como  se  vê,  Orta  cita  um  grande  numero  de  nomes  vulgares  da  ca- 
nella, cuja  exactidão  é  necessário  averiguar:  ' 

— Dois  nomes  gregos,  adoptados  pelos  latinos  e  em  muitas  linguas 
modernas,  designaram  duas  substancias  distinctas,  mas,  ao  que  parece, 
análogas,  x.aaía  ou  ;caGc;ía,  e  y-ivvaawaov  também  escripto  xivvaaov.  Estes  dois 
nomes  são  geralmente  derivados  das  duas  palavras  hebraicas,  que  se  sup- 
pÕe  terem  designado  as  mesmas  substancias,  n}7^^p  ^  "IlD^p-  A  pri- 
meira d'estas  palavras  liga  Sprengel  a  uma  raiz  hebraica,  que  significa 
cortar,  abscindere — e  a  sua  opinião  é  geralmente  seguida,  de  preferencia 


224  Colóquio  decimo  quinto 

á  de  Orta,  que  vê  na  palavra  cássia,  a  corrupção  do  malayo  cais.  O  se- 
gundo seria  — no  parecer  do  mesmo  Sprengel, —  a  alteração  de  um  nome 
asiático!  da  substancia,  cacyn-nama,  que  significa  pau  doce,  diílce 
lignum.  O  nosso  Orta  procura,  porém,  outra  origem  da  palavra  cina- 
momo, julgando  ser  o  Cin  ou  Sin-amomo,  isto  é  o  Amomo  da  China. 
Esta  etymologia  excitou  as  iras  de  Scaligero,  o  qual  exclama:  nihil 
jocularius,  ineptius,  stultiiis,  potuit  dici.  No  emtanto  o  erudito  Coo- 
ley,  depois  de  examinar  todas  as  origens  propostas  para  a  palavra, 
considera  esta  a  única  racional;  e  para  ella  se  inclina  igualmente  Nees 
von  Esenbeck.  A  opinião  de  Orta  não  era  pois  tão  inepta  e  ridícula 
como  dizia  Scaligero,  e  tem  por  si  as  melhores  auctoridades  (Cf.  Renan, 
Hist.  des  langues  sémitiques,  206;  Sprengel,  Dioscorides,  11,  849,  35o; 
Exoticorum,  246;  W.  Desborough  Cooley,  On  the  régio  Cinnamomifera 
of  ihe  ancients,  no  J.  R.  G.  S.  vol.  xix,  pars  i  (1849),  pag.  169;  Nees  von 
Esenbeck,  Disputatio  de  Cimiamomo,  trabalho  que  não  pude  ver  e  só 
conheço  pelas  citações). 

— «Salihacha»  — diz  Orta —  chamam  os  árabes  á  cássia  lignea.  É 
um  nome  conhecido,  mas  cuja  transcripçao  correcta  deve  ser  salikhah 
Lsrr.^  (Cf.  Sprengel,  1.  c;  W.  Ainslie,  Mat.  ind.,  i,  58). 

— «Darchini»  é  nome  «pérsio»  e  não  «arábio».  Escreve-se  na  forma 
arábica     ,^^^^  J.i  (iar^nz/,  ou  na  forma  e  alphabeto  persiano     j_ow  ,!.) 

o-  ••       -^  r  r  ^^  „.,    j 

darchini;  e  é  effectivamente  de  origem  persiana,  como  se  vè  bem  da 
primeira  parte  dar,  (cf.  sanskrito  (^\h  dãru,  que  significa  arvore  e  ma- 
deira). Todos  o  interpretam  do  mesmo  modo  que  Orta,  querendo  di- 
zer pau  da  China  (Cf.  Pictet,  Orig.  Indo-eiirop.,  i,  210;  Ainslie,  Mat. 
ind.,  I,  72;  Pharmac,  468). 

— «Querfá»,  ou  «Querfé»  nome  arábico  da  canella  em  geral.  E  um  dos 
mais  frequentes  entre  os  Árabes,  ii  ^  qerfah,  e  significa  casca  (cór- 
tex em  Freytag).  Chamam  á  canella,  qerfah  ed-darsini,  a  casca  do  pau 
da  China,  ou  simplesmente  qerfah,  a  casca  por  excellencia  (Cf.  Dy- 
mock,  Mat.  med.,  667). 

— «Caismanis»  e  «Caismão»  é  o  nome  malayo,  e  significa  jc.tzí  doce. 
Os  nomes  malayo  e  javanez  são  effectivamente  kayu-manis  ou  kai- 
manis,  e  têem  a  significação  que  Orta  lhes  attribue.  É  claro  que  este 
deve  ser  o  cacyn-namot  e  o  diílce  lignuui  de  Sprengel;  mas  não  é 
igualmente  claro  que  seja  a  origem  da  palavra  cinnamomo  (Cf.  Craw- 
furd,  Dict.  of  the  Indian  Islands,  100;  Ainslie,  1.  c). 

— «Cuurdo»  é  o  nome  usado  em  Ceylao.  Coronde,  kurunda,  ku- 
rundú,  e  ainda  outras  formas  singhalezas,  se  encontram  nos  livros  mo- 


'  Singhalez,  seguhdo  Royle  fAnt.  ofhindoo  med.,  84) ;  mas  nem  o  encontro  citado  entre  os 
nomes  usados  em  Ceyláo,  nem  uma  origem  singhaleza  parece  acceitavel  pelas  rasóes  adiante 
expostas. 


Da  Canela  225 

demos.  Applicam-se  em  geral  á  casca  de  que  tratamos,  distinguindo-se 
depois  a  melhor  peio  nome  de  rassu-coronde,  e  as  inferiores  por  di- 
versos e  numerosos  qualificativos  (Cf.  Ainslie  1.  c;  Piddington,  Index,  5i; 
Guibourt,  Drogues  Simples,  ii,  4o5). 

— «Cameá»  no  Malabar.  Este  nome  está  de  certo  muito  alterado; 
mas  deve  prender-se  ao  tamil  kárruwá,  que  Rhede  dá  na  forma  mais 
simples  karua  ou  carua  (Cf.  Ainslie  1.  c). 

Se  prescindirmos  das  variantes  orthographicas,  fáceis  de  explicar  na 
transcripção  de  nomes  estranhos  e  de  difficil  pronuncia,  vemos  que  a 
nomenclatura  de  Orta  é  exacta,  e  notavelmente  completa. 

Devemos  dizer  que  Diogo  do  Couto,  sem  ser  da  especialidade,  se 
mostra  muito  sabedor  d'estes  nomes  da  canella;  e  aponta  o  nome  co- 
rnudo em  Ceylão,  caroa  no  Malabar,  carfa  entre  os  arábicos,  darsin  ou 
pau  da  China  entre  os  persianos,  e  caio  inanis,  ou  pau  doce  entre  os 
Malayos,  dando  outras  indicações  interessantes.  Mas  n'este,  como  em 
outros  pontos,  é  para  mim  duvidoso,  se  as  informações  de  Couto  são 
propriamente  suas,  ou  se  elle  as  extrahiu  dos  Colóquios,  sem  comtudo 
os  citar.  Algumas  concordâncias  curiosas  me  levam  a  crer,  que  Diogo 
do  Couto  se  aproveitou  mais  de  uma  vez  do  livro  do  seu  compatriota, 
mas  lhe  não  fez  a  honra  de  o  mencionar  (Cf.  Couto,  Ásia,  v,  i,  7). 


Nota  (6) 

Orta  conhecia  a  canella  de  diversas  procedências.  Em  primeiro  lo  ■ 
gar  a  de  Ceylão,  que  era  no  seu  tempo  a  principal  região  productora 
d'aquella  substancia,  e  d'onde  ainda  vem  o  cinnamomum  ou  córtex  cin- 
naniovii  mais  fino.  É  a  casca  do  Cinnamomum  ^eylanicum,  Breyne, 
uma  arvore  da  familia  das  Lauracece,  da  qual  existem  na  ilha  de  Ceylão 
distinctas  variedades,  tidas  por  alguns  na  conta  de  espécies  particulares, 
e  fornecendo  cascas  de  diversas  qualidades  e  valores.  Orta  dá  uma 
descripção  bastante  exacta  da  arvore;  mas  cáe  em  um  erro  grosseiro 
e  imperdoável  em  tão  consciencioso  observador,  quando  suppõe  que 
tiravam  a  «corteza»  e  passados  três  annos  dava  outra  1.  Este  en- 
gano — que  teve  também  Gaspar  Corrêa —  resultou  de  alguma  vaga 
reminiscência  do  que  se  passava  em  Portugal  com  os  sovereiros;  e  Orta 
suppoz,  que  a  canella  se  reproduzia,  como  se  reproduz  a  cortiça.  Isto, 
porém,  não  succede  nem  pode  succeder,  porque  a  canella,  principal- 
mente constituída  pela  parte  liberiana  da  casca,  se  não  torna  a  formar; 
e  a  sua  extracção  determina  mesmo  a  morte  do  ramo.  Duarte  Barbosa, 
sem  ser  da  especialidade,  dá  um  quináo  em  Garcia  da  Orta,  dizendo 


Apezar  de  ter  notado  acertadamente  que  a  canella  era  a  segunda  casca. 


220  Colóquio  decimo  quinto 

correctamente:  «el-Rey  ha  manda  cortar  em  ramos  delguados,  e  man- 
dando-lhe  tirar  a  casqua  . . .».  É  effectivamente  assim  que  se  procede ; 
as  arvores  são  podadas,  e  são  descascados  depois  os  ramos  que  se  cor- 
taram (Cf.  Gaspar  Corrêa,  Lendas,  i,  652;  Duarte  Barbosa,  Livro,  35o; 
Pharmac,  470). 

Orta  conhecia  igualmente  a  canella  mais  grossa  e  ordinária  do  Ma- 
labar, a  qual  procede  talvez  de  mais  de  uma  espécie,  mas  principal- 
mente do  Cinnamomum  iners,  Reinw.,  uma  arvore  frequente  nas  flo- 
restas de  Travancore,  Mysore,  e  de  outras  partes  da  índia. 

Conhecia  também  a  canella  de  Java,  que  se  julga  proceder  do  Cin- 
namomum Burmanni,  Blume. 

Mas  ignorava  a  existência  da  canella  na  China,  e  aíErmou  errada- 
mente que  a  não  havia  ali.  Temos  todos  os  motivos  para  acreditar 
— como  veremos  em  uma  das  notas  seguintes — ,  que  a  primeira  canella 
conhecida  foi  a  da  China,  e  sabemos  que  hoje  vem  das  províncias  me- 
ridionaes  d'aquelle  paiz  toda  a  canella  mais  especialmente  conhecida 
no  commercio  pelo  nome  de  cássia  lignea.  Procede,  segundo  parece, 
da  espécie  Cinnamomum  Cássia,  Blume,  que  habita  aquellas  terras, 
assim  como  parte  da  Indo-China  (Sobre  esta  questão  complicada  das 
procedências  botânicas  da  canella  e  cássia  lignea  pôde  ver-se  Meissner 
in  D.  C.  Prodromus,  vol.  xv,  sect.  i.  p.  10  et  seqq. ;  Fliickiger  e  Han- 
bury,  Pharmac,  466,  475;  e  também  a  traducção  franceza  d'este  ultimo 
livro  pelo  dr.  Lanessan  nas  notas  finaes). 

Em  resumo,  a  insistência  com  que  Orta,  já  no  titulo  e  depois  em 
todo  o  Colóquio,  affirma  que  canella,  cinamomo  e  cássia  lignea  é  uma 
e  a  mesma  cousa,  tem  uma  certa  rasão  de  ser.  Distinguiram-se  e  ainda 
hoje  se  distinguem  no  commercio,  o  córtex  cinnamomi  e  o  córtex  cas- 
si(S-lignea^,  como  substancias  e  mercadorias  diversas  pela  sua  proce- 
dência e  pelo  seu  preço;  mas  no  fundo  são  substancias  muito  simi- 
Ihantes,  e  pertencendo  a  espécies  do  mesmo  género.  É  isto,  e  só  isto, 
o  que  Orta  pretende  dizer,  porque  a  distincção  scientifica  das  espécies 
se  não  sabia  fazer  no  seu  tempo;  e  elle  só  podia  notar,  como  notou, 
que  a  arvore  do  Malabar  era  um  tanto  diversa  da  de  Ceylão. 

Pelo  que  diz  respeito  ás  canellas  de  outras  regiões,  é  claro  que  a 
canella  aquática  do  mar  Vermelho  era  uma  pura  phantasia,  resultando 
de  antigas  noticias  a  que  nos  referiremos  nas  notas  seguintes.  A  ca- 
nella da  America,  de  «Zumaco»  ou  de  Quito,  foi  muito  celebrada, 
mencionada  por  Garcilaso  de  la  Vega,  Oviedo  e  Monardes,  e  ainda 
hoje  se  encontra  no  commercio  com  o  nome  de  ishpingo.  Mas  era  for- 
necida por  uma  planta  diversa  do  Cinnamomum,  comquanto  da  mesma 
familia,  uma  grande  arvore,  Nectandra  cinnamomoides,  Meissner,  que 
por  emquanto  está  imperfeitamente  estudada. 


Da  Canela  227 


Nota  (7) 

Este  óleo,  extrahido  do  fructo  do  Cinnamomum,  era  bem  conhecido 
dos  portuguezes;  e  Gaspar  Corrêa  também  falia  d'elle  dizendo:  «da 
baga  se  tira  hum  azeite,  que  se  faz  duro  como  sabão  branco,  cousa 
muy  forte  de  quente».  Segundo  Orta,  tinha  usos  medicinaes:  «para  es- 
quentar o  estômago  e  nervos».  Não  o  vejo  mencionado  modernamente; 
mas  o  coronel  Drury  diz,  que  as  sementes  do  C.  iners  são  ás  vezes 
empregadas  na  medicina  hindu  (Cf.  Gaspar  Corrêa,  Lendas,  i,  652; 
Drury,  Useful  plants  of  índia,  i38). 

Alem  do  óleo  da  baga,  Orta  menciona  «a  agoa  de  Canella»;  e  a  que 
«a  rayz  deita,  que  cheira  a  camfora».  Refere-se  ao  producto  hoje 
chamado  Oleiím  cinnamomi  radieis,  tendo  um  cheiro  entre  cinna- 
momo  e  cânfora;  e  um  gosto  canforaceo  pronunciado.  Foi  descripto 
por  Kãmpfer  (1712),  e  vem  mencionado  por  Fliickiger  e  Hanbury,  os 
quaes  se  referem  ao  nosso  auctor  {Pharmae.,  474). 


Nota  (8) 

Sem  entrar  largamente  na  complicada  historia  antiga  da  canella,  é 
no  emtanto  necessário  recordar  alguns  factos,  que  esclareçam  as  duvi- 
das e  affirmaçôes  de  Garcia  da  Orta. 

Os  antigos  conheciam  duas  substancias,  que  reputavam  distinctas, 
mas  análogas — a  cássia  e  o  cinnamorno.  Passagens  de  Galeno,  repeti- 
das vezes  citadas,  provam  que  a  boa  cássia  difteria  pouquíssimo  do 
cinnamorno;  e  devemos  admittir  que  elles  designavam  por  aquelles  no- 
mes, o  mesmo  que  hoje  designamos,  isto  é,  cascas  ou  pequenos  tron- 
cos de  Lauracea.',  de  melhor  ou  peior  qualidade.  Ambas  as  substancias, 
e  particularmente  o  cinnamomo,  eram  tidas  em  grande  estima;  e  o 
erudito  dr.  Vincent,  que  tão  cuidadosamente  estudou  o  commercio  dos 
antigos,  dá  a  esta  especiaria  o  primeiro  logar  n'aquelle  commercio.  Nos 
livros  sagrados  dos  Hebreus  é  mencionada  repetidas  vezes;  desde  o 
Êxodo  (xxx,  23,  24)  em  que  Deus,  fallando  a  Moysés,  lhe  manda  tomar 
uma  certa  porção  de  cinnamomo  e  de  cássia;  até  ao  livro  de  "E^^ekiel 
(xvii,  22)  em  que  se  falia  dos  mercadores  de  Sheba,  ou  Saba,  que  tra- 
ziam a  Tyro  aquelles  imiversis  primis  aromatibus ;  sem  notarmos  va- 
rias menções  nos  Psalmos,  Reis  e  outros.  Era  igualmente  conhecida 
dos  mais  antigos  escriptores  gregos.  Heródoto  diz-nos,  que  os  seus  com- 
patriotas haviam  aprendido  o  seu  nome  com  os  phenicios  — o  que  deve 
ser  exacto  — ;  e  conta-nos,  como  se  encontrava  nos  ninhos  dos  pássaros, 
os  quaes  a  traziam  das  terras,  d'onde  Bacho  era  natural;  e  como  al- 
gumas serpentes  aladas  guardavam  esta  preciosa  substancia.  Theo- 


228  Colóquio  decimo  quinto 

phrasto  falia  também  d'essas  serpentes  venenosas,  mas,  com  o  seu  ha- 
bitual critério,  adverte  logo:  isto  é  uma  fabula  ([j-jôo;).  D'estas  fa- 
bulas, «o  mais  fabulosas  que  podem  ser»  tinha  conhecimento  o  nosso 
Orta;  mas  nem  lhes  dá  credito,  nem  mesmo  as  quer  mencionar.  Quanto 
á  pátria,  tanto  Heródoto,  como  Theophrasto,  indicam  a  Arábia;  mas 
as  próprias  fabulas  que  contam,  mostram  bem  que  os  seus  conheci- 
mentos a  este  respeito  eram  incertos,  e  elles  suspeitavam  que  viesse 
de  mais  longe;  Na  Arábia  se  localisou  effectivamente  a  pátria  do  cinna- 
monio;  e  Arriano,  quando  conta  como  a  frota  de  Nearcho  entrou  os 
estreitos  de  Hormuz  e  avistou  as  costas  de  Oman,  accrescenta,  que  d'ali 
tiravam  os  Assyrios  o  cinnamomo  e  outros  aromas  (Cf  Heródoto,  m, 
1 1 1;  Theophr.  Hist.plant.  ix,  5,  7,  pag.  146, 147,  edição  Wimmer  (1866) ; 
Arr-  Indica,  571). 

Mais  tarde,  Plínio,  sem  nos  dar  as  razões  em  que  se  funda,  desloca 
as  plantas  da  Arábia  para  a  Africa;  diz:  nascitur  in  yEthiopia  Troglo- 
dytis  connubio  premixta;  e  marca  mesmo  o  ponto  da  costa,  Mossy- 
licus^,  por  onde  se  fazia  o  seu  commercio.  Condemnando  as  fabulas 
de  Heródoto,  Plinio  cáe  em  indicações  igualmente  singulares,  sobre 
os  sacrifícios  que  se  faziam  ao  deus  Assabinus,  e  sobre  a  parte  que  se 
entregava  ao  sol.  Garcia  da  Orta  refere-se  a  esta  passagem,  quando 
falia  da  parte  que  pertencia  «ó  diabo»  (o  deus  Assabinus);  e  é  mesmo 
evidente,  que  elle  conhecia  a  relação  de  Heródoto,  unicamente  pelo  que 
d'ella  transcreveu  Plinio.  Mas,  voltando  á  pátria  do  cinnamomo,  vê-se, 
que  depois  de  Plinio  ficou  geralmente  collocada  na  Africa.  Ptolomeu  si- 
tua também  a  regia  cinnamifera  no  alto  Nilo,  próximo  das  suas  lagoas 
(Cf  Plin.,  Hist.  nat.^  vi,  34,  xii,  41,  42,  48;  Ptolom.,  Geogr.,  iv,  8). 

Nas  cartas  da  idade  media,  que  em  geral  não  foram  mais  do  que 
compilações  de  antigas  noticias,  conservam-se  vestígios  das  duas  situa- 
ções. Em  um  Mappamunii  do  xii  século,  annexo  a  uns  commentarios 
sobre  o  Apocalypse,  vem  na  Arábia  este  distico :  et  cinnamomum  ibi  est. 
E  na  famosa  carta  do  Museu  Borgia  do  xiv  século,  vem  do  mesmo  modo 
o  cynamomum  indicado  na  Arábia;  emquanto  na  Africa  oriental,  a  Phe- 
nix  arde  no  ninho  sobre  um  fogo  de  aromas :  se  in  igne  aromático  com- 
biiritur.  Por  este  modo  se  foram  conservando  antigas  indicações,  que, 
ampliadas  e  alteradas,  levavam  a  affirmações  tão  estranhas,  como 
aquella  de  Francisco  Tâmara  — citada  por  Garcia  da  Orta — ,  o  qual 
coUocava  cinnamomos  e  loureiros  no  mar  Vermelho,  cobertos  pela 
maré,  em  uma  situação  em  que  só  poderiam  viver  mangues  (Cf.  San- 
tarém, Essai  sur  la  Cosmographie,  11,  118,  e  iii,  286). 


'  Ezekiel  também  falia  de  Mosel,  Dioscorides  de  u.oatjÃov  e  vários  outros.  Garcia  da 
Orta  liga  o  nome  de  <mv.silitico»  á  ilha  de  Ceyláo;  mas  sem  motivo  plausível.  Aquelle  porto 
ficava  na  costa  africana,  entre  Bab  el-Mandeb  e  Guardafui,  próximo  talvez  a  Bender  Ghasim 
e  Bender  Ghor  das  cartas  modernas. 


.    Da  Canela  229 

Modernamente  (1849),  ^^  escriptor  eruditíssimo,  Desborough  Coo- 
ley,  levantou  de  novo  a  idéa  da  antiga  existência  do  cinnamomo  na 
Africa,  apoiando-se  sobre  um  grande  numero  de  referencias  de  es- 
criptores  gregos  e  latinos,  e  sobre  uma  discussão  muito  engenhosa  dos 
textos.  As  conclusões  a  que  chegou  podem  resumir-se  nas  seguin- 
tes: 

Que  o  primeiro  conhecimento  do  cinnaviomo  foi  derivado  da  China ; 
e  que  a  substancia,  nos  tempos  mais  remotos,  chegava  á  Judéa  e  á  Phe- 
nicia  por  terra,  atravez  da  Pérsia; 

Que  mais  tarde,  os  negociantes  da  Arábia,  aquelles  mercadores  de 
Sheba  de  que  falia  Ezekiel,  levaram  a  Tyro  e  outros  mercados  oç- 
cidentaes  o  producto  das  suas  possessões  africanas;  e  que  então  o 
cinnamomo  da  Africa  oriental  supplantou  o  do  extremo  oriente ; 

Que  depois  os  gregos  se  substituíram  aos  árabes,  e  foram  elles  pró- 
prios aos  portos  africanos  buscar  as  famosas  cascas,  cuja  procedência 
já  então  conheciam ; 

Que  finalmente,  declinando  o  Império  Romano,  e  augmentando  o 
commercio  da  Pérsia  com  o  Oriente  sob  os  Sassanides,  affluiu  aos  mer- 
cados o  cinnamomo  asiático,  principalmente  da  índia;  e  que  a  deca- 
dência e  extincçáo  do  trafico  na  especiaria  africana  se  pode  approxima- 
damente  collocar  nos  fins  do  vi  século. 

(Cf.  W.  D.  Cooley,  On  the  Régio  Cinnamomifera  of  the  ancients, 
no  J.  R.  G.  S.  vol.  xix  (1849),  P.  i,  p.  166). 

A  principal  objecção  a  fazer  a  esta  apreciação  dos  factos  é  ainda 
hoje  a  mesma  que  lhe  fazia  Garcia  da  Orta — isto  é,  que  a  arvore  do 
cinnamomo  não  existe  na  Africa.  Se  acreditássemos  nas  indicações  dos 
antigos  escriptores,  deveríamos  procural-a  na  extremidade  oriental  da 
terra  dos  Somalis;  ou,  querendo  alargar  a  região  segundo  as  idéas  de 
Ptolomeu,  n'aquella  terra,  e  na  terra  dos  Gallas,  chegando  ao  Nilo  su- 
perior ahi  pelas  alturas  de  Gondokoro.  Era  de  certo  um  atrevimento 
da  parte  de  Garcia  da  Orta  dizer,  que  esta  região  da  Africa  era  bem 
conhecida  no  seu  tempo.  Mas  hoje  não  succede  o  mesmo;  tem  sido 
visitada  por  diversos  viajantes,  e  nenhum  menciona  ali  a  arvore  da  ca- 
nella,  nem  mesmo  uma  Lawacea  qualquer'.  Em  questões  d'esta  or- 
dem, os  dados  históricos  têem  grande  importância;  mas,  em  ultima 
analyse,  dominam  os  argumentos  botânicos;  e  o  que  sabemos  da  dis- 
tribuição geographica  das  Lauracece  torna  pouco  provável,  que  uma 
planta  do  género  Cinnamomum  exista,  ou  existisse  em  tempos  históri- 
cos na  Africa  oriental.  Vè-se,  pois,  que  o  argumento  de  Garcia  da  Orta, 
pouco  fundamentado  no  seu  tempo,  se  conserva  no  emtanto  de  pé,  ao 
cabo  de  três  séculos,  e  á  luz  das  modernas  explorações. 


'  Exceptuando  uma  indicação  de  Bruce,  que  carece  completamente  de  confirmação. 


23o  Colóquio  decimo  quinto 

Se  o  cinnamomo  não  vinha  da  Africa,  d'onde  vinha  ?  Parece  que  tam- 
bém não  vinha  de  Ceylão.  Em  um  exame  detido,  minucioso,  completo, 
de  todos  os  escriptores  gregos,  latinos  e  arábicos  antigos,  que  fallaram 
de  Ceylão,  sir  Emerson  Tennent  notou,  o  que  já  em  parte  tinham  notado 
com  surpreza  Yincent,  d'Herbelot,  sir  William  Ouseley,  isto  é,  que  em  ne- 
nhum d'elles  ha  uma  única  referencia  ao  cinnamomo  da  ilha.  É  só  em  tem- 
pos relativamente  modernos,  que  Kazwini  (1275),  e  depois  Montecor- 
vino,  Ibn  Batuta  e  outros  o  mencionam.  E  mesmo  n'aquelle  primeiro 
tempo  parece  ser  pouco  conhecido.  Marco  Polo  não  o  cita,  citando  o 
do  Malabar  e  o  da  China.  Ibn  Batuta  descreve  um  estado  de  cousas,  que 
mostra  um  commercio  nascente.  De  modo  que  a  famosa  ilha,  a  terra  clás- 
sica da 

canella 

Com  que  Ceylão  é  rica,  illustre  e  bella, 

teve  as  suas  florestas  desaproveitadas  até  proximamente  dois  séculos 
antes  da  chegada  dos  portuguezes  (Cf.  Tennent,  Ceylon,  i,  600  et  seqq.; 
Yule,  Marco  Polo,  11,  47,  297,  379). 

Posta  assim  de  lado  a  canella  de  Ceylão  — pelo  que  diz  respeito  aos 
tempos  antigos —  devemos  voltar-nos  para  a  índia,  e  principalmente 
para  a  China.  Em  uma  das  notas  precedentes,  vimos  existirem  provas 
de  que  desde  o  principio  da  nossa  era  os  chins  vinham  por  terra,  e 
talvez  também  por  mar,  até  ao  Euphrates.  Mas  não  se  segue,  que  as 
suas  relações  com  o  Occidente  começassem  então.  As  trocas,  não  só 
de  substancias  materiaes  e  de  mercadorias,  mas  as  trocas  de  idéas  e 
de  noções  scientificas,  levam-nos  pelo  contrario  a  acreditar  em  um 
contacto  muito  mais  antigo.  O  erudito  J.  Edkins  de  Peking,  entre  ou- 
tros, admitte,  que  o  commercio  pelo  oceano  Indico  pôde  talvez  ter 
logar  desde  os  tempos  nebulosos  do  imperador  Hwangti  e  seus  suc- 
cessores  immediatos,  quasi  contemporâneo  do  rei  Uruk  da  Chaldéa, 
e  vivendo  mais  de  vinte  séculos  A.  C.  Sem  procurarmos,  se  as  relações 
da  China  com  o  Occidente  resultavam  então  de  viagens  terrestres  atra- 
vez  do  An-hsi,  como  nos  primeiros  séculos  da  nossa  era;  se  a  navega- 
ção partiria  dos  portos  occidentaes  da  Indo-China,  onde  as  mercadorias 
viessem  da  China,  aproveitando  os  grandes  valles  que  parallelamente 
rasgam  aquella  península  de  norte  a  sul;  ou  se  a  navegação  partiria  dos 
próprios  portos  da  China  meridional;  sem  indagarmos  também,  que 
parte  caberia  n'essa  navegação  aos  juncos  chins,  e  que  parte  se  deva 
attribuir  áquellas  naus  de  Ur  na  Chaldéa,  de  cuja  existência  (2:000  an- 
nos  A.  C.)  sir  Henry  Rawlinson  encontrou  noticia;  admittindo  que 
todas  estas  questões  são  insolúveis,  podemos  no  emtanto  acceitar  o 
facto  das  relações  commerciaes,  qualquer  que  fosse  o  caminho  seguido. 

Por  outro  lado,  temos  a  prova  de  que  a  canella  ou  cássia  era  co- 
nhecida na  China  n'esses  remotíssimos  tempos.  Sob  o  nome  de  kwei. 


Da  Canela  23 1 

vem  mencionada  no  Shen-nung  Pen  Ts'ao  king,  ou  Matéria  medica 
do  imperador  Shen-nung,  o  qual  reinava  2:700  annos  A.  C.  E  os  no- 
mes occidentaes  inciinam-nos  também  para  aquella  origem:  em  pri- 
meiro logar  darchini,  ou  pau  da  China,  que  é  uma  designação  muito 
antiga,  pois  vem  citada  no  Amara  Cocha  na  forma  darasini,  e  nos  es- 
criptos  do  arménio  Mosés  de  Chorcne,  na  forma  daretjeiíic;  em  segundo 
logar,  a  antiquissima  forma  hebraica  ou  phenicia  d'ondeveiu  cznnírmomo. 
Quer  o  derivemos  de  cacyn  nama,  ou  de  qualquer  outra  forma  malaya, 
como  fazem  Sprengel  e  outros,  quer  o  derivemos  de  cin  ou  sin-amo- 
7mtm,  como  fazem  Garcia  da  Orta  e  Cooley,  aquelle  nome  indica-nos 
uma  procedência  do  extremo  Oriente.  Tanto,  pois,  quanto  podemos 
averiguar  questões,  destinadas  a  ficarem  incertas  e  nebulosas,  a  ori- 
gem chineza  da  antiga  canella  parece-nos  plausivel  (Cf.  Edkins,  An- 
cient  navig.  in  the  Indian  ocean,  no  J.  R.  A.  S.,  vol.  xvm  ( 1 886),  7 ;  Rawlin- 
son,  Anc.  Monarchies,  i,  16;  D.  Cooley  1.  c). 

Qualquer  que  fosse  o  caminho  por  onde  traziam  a  especiaria,  ella 
vinha  ter  aos  portos  da  Chaldéa,  aos  da  Arábia  meridional  ou  Sabéa, 
aos  da  Ethiopia.  D'ali,  pelo  mar  Vermelho,  chegava  aos  povos  do  Me- 
diterrâneo, e  esses  povos,  os  gregos  entre  outros,  tomaram  os  paizes 
por  onde  vinha,  como  sendo  os  paizes  d'onde  vinha.  Esta  parece  ser  a 
verdade,  e  esta  é  exactamente  a  argumentação  de  Garcia  da  Orta.  Elle 
ignorava  dois  factos  capitães:  primeiro,  que  a  canella  se  creava  na 
China:  segundo,  que  a  canella  de  Ceylão  não  fora  conhecida  nos  tem- 
pos mais  antigos.  Isto  induziu-o  naturalmente  em  alguns  erros;  mas, 
de  um  modo  geral,  os  seu  raciocínios  são  correctos,  e  perfeitamente 
acceitaveis  em  face  do  que  hoje  se  sabe  sobre  a  questão. 


Nota  (9) 

Orta  deve  ter  visitado  a  ilha  de  Ceylão,  pelo  menos  duas  vezes.  N'este 
mesmo  Colóquio  nos  diz  que  assistiu  á  tomada  de  Repelim;  e  pouco 
depois  d'aquella  victoria,  Martim  Affonso  de  Sousa  foi  de  Cochim  a 
Ceylão,  desembarcou  em  Colombo,  e  seguiu  d'ali  para  Cota  no  interior 
da  ilha.  Orta,  que  estivera  em  Repelim,  e  fazia  então  parte  do  séquito 
pessoal  do  Capitão  Mor,  acompanhou-o  sem  duvida  n'esta  viagem,  que 
teve  logar  nos  princípios  do  anno  de  1537.  No  anno  seguinte,  a  i5  de 
Fevereiro,  deu-se  a  batalha  de  Beadala,  de  que  Orta  falia  também  n'este 
Colóquio;  e  que  provavelmente  presenceou,  posto  que  o  não  diga  de 
um  modo  explicito.  O  porto  de  Beadala,  marcado  hoje  nas  cartas  in- 
glezas  Vedaulay  (propriamente  Vêdãlay)  estava  situado  na  lingua  de 
terra  que  se  estende  da  costa  da  índia  em  direcção  a  Ceylão,  e  limita 
pelo  norte  o  golfo  de  Manaar.  D'ali  mesmo,  Martim  Affonso  atravessou 
a  Ceylão,  ao  longo  dos  baixos,  e  foi  de  novo  a  Colombo,  e  de  Co- 


232  Colóquio  decimo  quinto 

lombo  a  Cota  visitar  segunda  vez  o  Rei;  é  provável  que  Orta  fosse 
n'esta  viagem,  como  fora  na  primeira.  Annos  depois  esteve  também 
na  ilha  das  Vacas,  na  bahia  de  Palk,  muito  perto  de  Ceylao;  mas  d'essa 
expedição  fallaremos  mais  tarde  (Cf.  Barros,  Ásia,  iv,  vii,  22;  e  iv,  viii, 
14;  Couto,  Ásia,  V,  I,  6;  e  V,  11,  5). 

Parte  das  noticias,  que  nos  dá,  resultavam,  portanto,  de  impressões 
pessoaes;  mas  outra  e  a  maior  parte  resultaria  das  informações  que 
sempre  tomava,  pois  a  sua  demora  na  formosa  e  famosa  ilha  foi  muito 
curta,  e  pouco  tempo  lhe  deu  para  observar.  Em  todo  o  caso,  as  suas 
noticias  são  em  geral  exactas.  Das  pedras  preciosas  de  Ceylão  teremos  de 
fallar  em  outras  notas;  mas  do  ferro  podemos  dizer  desde  já,  que  existia 
na  ilha,  e  que  os  singhalezes  conheciam  de  tempos  antigos  o  modo  de 
tratar  o  minério  e  de  lavrar  o  metal.  Não  é  igualmente  exacto,  que  ali 
houvesse  oiro  e  prata;  estes  metaes  apenas  se  encontravam  occa- 
sionalmente  e  em  pequeníssimas  quantidades.  E  se  os  objectos  de  oiro 
eram  frequentes  nos  pagodes,  nos  palácios  dos  reis,  ou  nas  casas  dos 
ricos  singhalezes,  isto  resultava  de  importação. 

A  vegetação  da  ilha  era  e  é  riquíssima,  como  todos  sabem.  Encon- 
travam-se  ali  «muitas  palmeiras  1»,  dos  géneros  Cocos,  Areca,  Borassus, 
Caryota  e  outros;  também  «muitas  frutas»,  já  das  puramente  tropicaes, 
já  das  que  também  se  criam  nas  regiões  temperadas,  como  as  laranjas. 
D'estas,  que  Orta  diz  serem  a  «milhor  fruta  que  ha  no  mundo»;  e  das 
quaes  «se  podia  fazer  huma  muyto  boà  pratica»,  fallaram  sempre  os 
viajantes  com  grande  louvor.  Varthema  tinha  dito  quasi  as  mesmas 
palavras :  aranci  dolci,  li  rnigliori  che  siano  ai  mondo. 

Pelos  matos  creavam-se  todos  os  animaes  de  que  Orta  falia :  «muytos 
pavões»,  que  ainda  recentemente  eram  frequentíssimos  na  parte  oriental 
da  ilha:  «galinhas  bravas»,  a  espécie  Galliis  Lafayeti:  «pombas  muy- 
tas  e  de  muytas  maneiras»,  dos  géneros  Treron,  Turtiir,  Carpophaga 
e  outros:  «cervos  e  veados»,  dos  géneros  Rusa  e  Axis:  «porcos  em 
muyta  cantidade»,  o  Sus  indicus  ou  uma  espécie  próxima.  Havia  tam- 
bém elephantes  nas  florestas,  e  pérolas  nas  aguas  dos  golfos;  mas  de 
elephantes  e  de  pérolas  teremos  de  fallar  mais  largamente  em  outras 
notas  (Compare-se  em  geral  esta  noticia  de  Orta,  com  o  que  dizem 
Barros,  Couto,  João  Ribeiro  na  Fatalidade  histórica,  e  sobretudo  Ten- 
nent  no  seu  livro  clássico,  Ceylon). 


'  Esta  phrase  de  Orta  «ha  muitas  palmeiras»,  vem  citada  por  Yiile  e  Burnell  (Glossary, 
V.  Palmyra),  e  applicada  especialmente  ao  Borasxits  flabclliformis.  Por  esta  vez,  os  eruditos 
auctores  náo  tiveram  rasáo.  A  palavra  portugueza  palmeira  designou  sempre  espécies  di- 
versas da  familia  das  Palmce;  deu-se  em  Portugal  ao  Phcenix  dactilifera,  como  na  índia  se 
dava  ao  Cocos  nucifera,  chamando-se  palmar  a  reunião  daqueilas  arvores.  Orta  abrangia, 
pois,  sob  aquelle  nome  formas  diversas,  bastante  similhantes  entre  si  para  que  se  reconhe- 
cesse a  sua  afinidade,  e  se  lhes  desse  uma  designação  commum. 


Da  Canela  233 

O  que  Orta  nos  diz  brevemente  do  Pico  de  Adão,  e  da  pegada  do 
primeiro  homem,  é  perfeitamente  conhecido  de  todos  os  nossos  es- 
criptores  do  tempo,  e  de  muitos  outros,  anteriores  e  posteriores;  e 
Couto  dedicou  a  esta  questão  um  capitulo  completo  e  muito  interes- 
sante. Camões  também  dizia : 

Olha  em  Ceilão,  que  o  monte  se  alevanta 
Tanto,  que  as  nuvens  passa,  ou  a  vista  engana; 
Os  naturaes  o  tem  por  cousa  santa. 
Pela  pedra,  onde  está  a  pegada  humana. 

A  pegada,  ou  sri-pada,  encontra-se  no  mais  alto  da  montanha, 
e  é  uma  depressão  na  rocha,  de  dimensões  muito  superiores  ás  de 
um  pé  humano,  mas  reproduzindo  grosseiramente  a  sua  forma.  Para 
os  buddhistas  foi  ali  impressa  pelo  seu  Gautama  Buddha;  para  os  bra- 
hmanes  por  Síva;  para  os  mahometanos  por  Adão;  e  para  os  portu- 
guezes  da  índia  por  S.  Thomé,  ainda  que  outros  se  inclinavam  para  o 
eunuco  da  rainha  Candace.  De  modo  que  todos  os  povos  e  todas  as 
religiões  ^  veneravam.  A  tradição  mahometana,  cuja  origem  se  pôde 
talvez  encontrar  entre  os  christãos  gnósticos,  não  situava  propriamente 
em  Ceyláo  o  paraizo  —como  diz  Orta  — ;  mas  unicamente  o  logar 
em  que  Adão  fez  penitencia  depois  da  expulsão,  e  antes  de  se  encon- 
trar outra  vez  com  Eva  (Pôde  ver-se  o  que  dizem  os  nossos  escripto- 
res,  nomeadamente  Couto,  Ásia,  v,  vi,  2;  e  também,  Tennent,  Ceylon, 
11,  182;  Yule,  Marco  Polo,  11,  3o2;  Gerson  da  Cunha,  Memoir  on  the 
tooth-relic  of  Ceylon,  Bombay,  iSyS). 

É  n'este  Colóquio  que  Orta  tem  a  phrase  singular,  que  já  citámos 
a  pag.  18:  ...  «que  alguns  dixeram  ser  Trapobana  ou  Çamatra«.  Nin- 
guém disse  que  Ceyláo  fora  Sumatra,  mas  uma  e  outra  ilha  se  identi- 
ficaram com  a  antiga  Taprobana ;  o  que,  de  resto,  Orta  explica  mais  cla- 
ramente em  outro  Colóquio. 

Nota  (io) 

Pela  primeira  vez,  Orta  cita  n'este  Colóquio  o  seu  compatriota  João 
Rodrigues,  ou  Amatus  Lusitanas.  Os  commentarios  d'este  a  Dioscori- 
des  haviam  sido  impressos  em  Veneza  (i553)  e  de  novo  (iSSy)^  alem 
de  outras  edições.  Podia,  pois,  tel-os  na  índia,  como  tinha  mais  livros 
publicados  por  aquelles  tempos;  mas  cita-o  tão  brevemente,  que  pa- 
rece conhecel-o  mal,  e  talvez  apenas  por  alguma  referencia  de  outro 
escriptor. 

Cita  também  Francisco  Tâmara,  professor  em  Cadix,  mencionando 
o  seu  livro,  Juan  Bohemo  de  las  costumbres  de  todas  las  gentes,  publi- 
cado em  Antuérpia  no  anno  de  i536. 


234  Colóquio  decimo  quinto  da  canela 

O  Thomaz  Rodrigues,  de  quem  falia,  era  o  famoso  professor  de 
medicina,  ao  qual  —como  antes  vimos—  foi  dirigida  a  epistola  latina 
de  Dimas  Bosque.  Parece  que  Thomaz  Rodrigues,  picado  pela  «exhor- 
taçam»  do  celebre  Matthioli  aos  médicos  portuguezes,  havia  escripto 
antes  a  Garcia  da  Orta  sobre  o  assumpto;  e  este  desempenhava-se  da 
obrigação  que  lhe  fora  imposta,  publicando  o  resultado  das  suas  obser- 
vações na  índia. 


COLÓQUIO  DECIMO  SEXTO 

DO  COQUO  CHAMADO,  SCILICET,  DO  COQUO  COMUM 
E  DO  DAS  MALDIVAS 


INTERLOCUTORES 
RUANO,  ORTA 

RUANO 

Do  arvore  dos  coquos,  chamado  assim  dos  Portuguezes, 
me  dizei;  que  sempre  ouvi  dizer,  que  era  hum  arvore  que 
dava  muitas  cousas  nesseçarias  á  vida  humana. 

ORTA 

Dá  tantas  e  nesseçarias,  que  não  sey  arvore  que  dê  a  sesta 
parte;  e  pois  assi  he,  bem  he  que  saybaes  do  que  nós  cha- 
mamos palmeira;  mas  os  Gregos  antiguos  delle  não  escre- 
veram cousa  alguma  que  eu  visse,  e  os  Arábios  escreve- 
ram pouco;  e  isto  será  bem  pêra  contardes  cm  Gastella, 
sem  embarguo  de  ser  sabido  isto  muito  por  os  que  vam,  por 
ser  cousa  nota.  E,  vindo  aos  nomes,  diguo  que  se  chama 
maro,  e  o  fruto  narel;  e  este  nome  narel  he  comum  a  todos, 
porque  o  usam  os  Persas  e  os  Arábios;  e  Avicena  lhe  chama 
jau^ialhidi,  que  quer  dizer  »o{  da  Lídia;  e  Serapio*  e  Rasis 
chamam  ao  arvore  jaralnare,  que  quer  dizer  arvore  que  dá 
coqiios;  e  os  Malabares  chamam  ao  arvore  tengamaram,  e  o 
fruito,  quando  he  maduro,  se  diz  tenga;  e  em  malaio  cha- 
mam ao  arvore  tricam,  e  o  coco  nihor;  e  nós,  os  Portugue- 
zes, por  ter  aquelles  três  buracos,  lhe  pusemos  o  nome  coqiio; 
porque  parece  rosto  de  bugio  ou  de  outro  animal.  He  ar- 
vore muito  grande  de  comprimento,  e  tem  a  folha  no  mais 
alto,  como  as  folhas  da  nossa  palmeira  ou  das  canas,  as  fo- 
lhas da  nossa  palmeira  são  mais  meudas;  e  a  frol  he  como 


*  Avicena,  lib.  2,  5o6;  Serapio,  cap.  228  (nota  do  auctor). 


236  Colóquio  decimo  sexto 

a  do  castanheiro;  o  páo  he  muito  esponjoso;  e  quer  lu- 
gares areosos  perto  do  mar,  porque  fora  no  sartão  nam 
se  dam.  Semeam  os  mesmos  coqiios  e  deles  naçem  pal- 
meiras pequenas,  as  quais  traspõem;  e,  em  poucos  anos, 
dam  fruito,  se  as  tratam  bem,  e  lhe  lanção  aguoa  e  cinza, 
ou  esterco  no  inverno,  e  agoa,  como  dixe,  no  verão.  Fazemse 
grandes  e  fermosas  as  que  estão  perto  das  cazas  moradas, 
que  parece  que  a  gente  lhe  faz  bem;  isto  pôde  ser  por  causa 
da  çugidade,  e  /ambem  se  querem  bem  entulhadas. 

RUANO 

Começa}^  a  dizer  os  proveitos  desta  arvore. 

ORTA 

A  madeira,  posto  que  não  he  mu3^to  boa,  aproveita,  por 
ser  alta,  para  muytas  cousas ;  e  nas  ilhas  de  Maldiva  fazem 
hum  navio  que,  assi  elle  como  a  pregadura,  e  as  véllas  e  cor- 
doalha, he  feyto  de  palmeira;  dos  ramos  (a  que  chamamos 
alia  em  Malabar)  cobrem  as  casas  e  navios.  Fazem  duas  ma- 
neiras de  palmeiras,  humas  pêra  fruta,  e  outras  pêra  darem 
cura,  que  he  vinho  mosto;  e  quando  he  cozido,  chamamlhe 
orraqua;  e  estas  de  cura,  se  as  querem  para  isso,  cortam- 
Ihe  huns  cabos,  e  atamlhes  alli  as  vasilhas,  donde  tiram  a 
cura;  e  sobem  a  tirála  acima,  atadas  aos  pés  humas  péas, 
ou  fazendo  algumas  falças  no  arvore;  desta  cura  estilam 
ao  modo  de  agoa  ardente;  e  deitam  hum  vinho  como  agoa 
ardente;  e  queimam  hum  pano  molhado  nella,  como  faz 
agoa  ardente;  a  esta  fina  chamam  fula,  que  quer  dizer 
frol;  e  á  outra  que  fica  chamam  orraqua,  mesturando  nella 
estoutra  alguma  pouca  cantidade;  e  da  çiíra,  até  que  se 
estile,  fazem  vinagre,  pondoa  ao  sói  porque  se  azede;  e 
fica,  ás  vezes,  muyto  forte.  E  depois  que  se  tira  esta  vasi- 
lha da  cura,  se  dá  muyta,  tiram  outra  de  que  fazem  açucare, 
embastecido  ao  sói  ou  a  fogo,  a  que  chama  jagra;  e  o 
milhor  de  todos  he  o  das  ilhas  de  Maldiv^a,  e  este  não  he  tão 
preto  como  o  das  outras  terras.  O  fruito,  quando  he  novo, 
tem  em  si  huma  casca  muito  tenra,  a  qual  sabe  a  alcachofa 


Do  Coqito  237 

molhada  no  sal,  ou  sem  elle;  tem  dentro  meolo  muito  lan- 
guido e  doce,  e  agoa  também  muito  doce  e  suave;  e  com 
sua  doçura  não  faz  fastio;  a  qual  agoa  dura  muito  tempo, 
e  se  faz  do  sutil  das  certezas  do  meolo;  de  modo  que  fica 
o  que  nós  chamamos  coquo,  e  os  Malabares  tenga;  e  dentro 
nelle  alguma  agoa,  não  tam  doce  como  a  primeira,  porque 
ás  vezes  se  azeda  algum  tanto.  Este  coquo,  quando  he  verde, 
chamão  os  Malabares  elevi,  e  aqui  em  Goa  lanha;  tem  este 
coquo  duas  cascas  grandes  até  que  cheguem  ao  meolo;  e  o 
meolo,  quando  he  maduro,  pêra  se  comer,  he  bem  que  se 
raspe  a  casca  de  cima;  porque  assi  o  diz  Avicena  e  Sera- 
piam.  A  primeira  das  cascas  he  muito  lanuginosa  e  desta  se 
faz  cairo,  que  assi  he  chamado  dos  Malabares  c  de  nós: 
delle  se  faz  a  cordoalha,  emxarçia  de  todalas  náos;  serve 
muyto  nesta  terra,  porque  he  muyto  gentil  cordoalha,  por- 
que nam  se  apodrece  na  agoa  salgada:  e  por  esta  causa  he 
boa  esta  lã  destes  cocos  de  que  fazem  o  cairo;  porque 
todos  os  navios  sam  calafetados  com  elle,  de  maneira  que 
serve  de  linho  e  de  estopa  e  de  esparto.  E  por  esta  causa  he 
boa  mercadoria  pêra  Portugal,  senão  fizesse  tanto  volume, 
esta  he  a  causa  porque  se  gasta  tanto  delle;  porque  sem- 
pre falece,  com  aver  na  índia  tantas  palmeiras,  e  darem  a 
elre}'  de  parias  tanto  cairo  das  ilhas  de  Maldiva,  e  certo 
que  no  calafetar  dos  navios  acertam  muyto;  porque  incha 
este  cairo  metido  na  agoa  salgada. 

RUANO 

Boa  cousa  he  esta  arvore;  pois  tanto  dá  de  si,  porque  tam- 
bém diz  Laguna  que  fazem  delia  tapizes  ou  esteiras  pintadas. 

ORTA 

Não  teve  razão,  nem  boa  enformação  diso.  E  a  outra 
casca  serve  de  vasos  pêra  beber  a  gente  mezquinha;  e  tam- 
bém queimada  serve  de  carvão  muyto  bom  pêra  os  ourives. 

RUANO 

E  nam  he  bom  pêra  beberem  os  paralíticos,  como  diz  Se- 
púlveda? 


238  Colóquio  decimo  sexto 

ORTA 

Sempre  ouvi  yso  dizer  sendo  moço;  mas  em  doutor  de 
autoridade  não  o  achei  yso  escripto;  por  onde  creo  ser  fen- 
gido,  e  mais  porque  nesta  terra  nam  o  tem  asi.  E  desta  fruita 
não  se  louva  pêra  os  nervos,  senão  o  óleo  que  he  tam  se- 
parado da  corteza,  tam  fora  de  sua  naturaleza. 

RUANO 

A  fruta  já  a  prove}^  muitas  vezes. 

ORTA 

Todavia  vos  digo  que,  quanto  he  mais  novo  o  que  cha- 
mamos coqiio,  he  a  agoa  mais  saborosa ;  e  a  corteza  do  meio, 
porque  a  derradeira  não  he  ainda  formada,  que  he  a  que 
cobre  o  meolo  quando  he  dura,  e  depois  o  coqiio  sabe  a 
amêndoas  verdes;  e  este  comem  algumas  pessoas  com  a 
jagra  que  acima  disse,  ou  com  açucare.  E  se  não  fosse  a 
multidão  desta  fruita  seria  em  mais  preço  extimada,  como  he 
no  Balagate,  E  deste  coqiio  pisado,  e  tirado  o  leite,  fazem* 
(que  assi  parece)  e  cozem  arroz  com  elle,  e  he  como  arroz 
de  leite  de  cabras.  Fazem  comeres  das  aves  e  carnes  (a  que 
chamam  caril);  e  também  secam  estes  coquos,  e,  desque  elles 
despedem  a  casca,  ficam  secos  em  pedaços,  e  chamamlhes 
copra,  e  os  levam  a  Ormuz  e  ao  Balagate,  e  ás  terras  que 
tem  pouca  fruta  desta  e  nam  lhe  abasta  pêra  se  secar,  ou 
onde  carecem  delia.  E  fruita  saborosa,  e  usada  como  cas- 
tanha sequa  da  nossa  terra;  porque  sabe  melhor  que  os 
coquos  que  levam  a  Lixboa. 

RUANO 

E  como  se  faz  o  azeite? 

ORTA 

Desta  mesma  copra  se  faz  em  alagar;  e  fazse  em  muyta 
cantidade ;  e  he  muyto  craro  que  parece  agoa ;  alumia  muyto 


*  Deve  faltar  aqui  alguma  palavra;  o  sentido  é  claramente,  que  do 
coco  pisado  fazem  uma  espécie  de  leite. 


Do  Coquo  239 

bem;  e  gastase  muito,  por  ser  muy  delgado-,  comeo  a  gente 
da  terra  com  arroz,  e  dizem  ter  bom  sabor. 

RU  AN  o 

Assi  diz  Aviçena  e  Scrapio  que  he  milhor  que  a  man- 
teiga, e  que  nam  moliíica  o  estamago  como  ella. 

ORTA 

Duas  maneiras  ha  de  azeite;  hum  he  feito  de  coquos  fres- 
cos, e  o  outro  da  que  chamamos  copra,  que  he  os  coquos 
sequos;  e  este  que  se  faz  dos  coquos  frescos  he  feito  pisando 
o  coquo  e  deitando-lhe  agoa  quente;  e  tiram  a  corpulência, 
que  no  fundo  reside,  e  per  cima  a  espremem,  e  o  óleo  nada 
sobre  agoa;  e  esta  he  huma  mezinha  purgativa,  que  purga 
lubrificando  ou  fazendo  brando;  a  muitos  a  damos  qua 
pêra  evacuar  as  tripas  e  o  estômago  somente;  e  purga  muyto 
bem,  sem  nenhum  perigo,  nem  damno.  E  muytos  a  mestu- 
ram  com  expresam  de  tamarinhos;  e  por  esperiencia  achei 
ser  muito  boa.  E  se  Avicena  entende  deste  óleo,  que  he 
bom  nutrimento,  diz  verdade;  mas  nam  a  diz  em  dizer  que 
nam  molifica  o  estamago,  em  dizer  que  nam  he  lúbrico  ou 
corrediço.  E  o  outro  que  se  faz  da  copra  he  muyto  boa  me- 
zinha pêra  os  nervos;  e  muyto  proveito  achamos  nclle  pêra  o 
espasmo,  ou  dores  de  junturas  antiguas,  scilicet,  metendo  o 
paciente  em  huma  almadia  pequena,  mais  que  de  compri- 
mento de  homem,  ou  em  huma  gamella  grande;  e  nelle 
quente  deixão  dormir  e  estar  o  paciente,  e  milagrosamente 
aproveita. 

RUANO 

Dizem  que  mata  as  lombrigas  o  oleo,  e  que  o  coquo  co- 
mido também  as  faz  sair,  e  isto  dizem  Avicena  e  Serapiam. 

ORTA 

Não  tenho  por  esperiencia  o  olyo  matar  as  lombrigas, 
nem  parece  muyto  conforme  á  rezam;  e  de  as  o  çoquo  cau- 
sar e  gerar,  he  comum  openiao  dos  índios,  e  vêse  cada  dia 
ao  olho. 


240  Colóquio  decimo  sexto 

RUANO 

Alegua  Serapio  a  Mansarunge  (que  diz  ser  o  Mesue  an- 
tiguo)  que  estanca  as  camarás  o  coqiio. 

ORTA 

Não  he  emconveniente  que  estanque  o  ventre  comido;  e 
o  01)^0  que  relaxe  o  ventre;  porque  o  óleo  he  fundado  nas 
partes  do  ar,  e  o  coquo  nas  da  terra. 

RUANO 

Diz  Laguna  que  alguns  tiveram  o  óleo  mel*,  de  que  tracta 
Dioscorides  no  primeiro  livro,  seja  hum  dulcíssimo  azeite, 
que  mana  desta  palma:  dizey  o  que  sentis  disto. 

ORTA 

Digo  que  esta  palmeira  não  deita  otyo  por  outra  parte  se- 
nam  o  que  he  feito  per  expresam  do  coquo,  por  onde  crede 
que  se  enguanarão  nisso. 

RUANO 

Queria  saber  do  coquo  que  levam  a  Portugal,  que  dizem 
das  Maldivas,  que  he  contra  a  peçonha,  se  se  contem  am- 
bos debaixo  de  huma  mesma  especia;  porque  eu  vi  em  Por- 
tugal o  casco  sem  medulla  alguma,  e  deziam  muytos  bens 
delle;  e  da  medulla,  que  eu  não  vi,  deziam  muyto  maiores 
louvores. 

ORTA 

Eu  vos  responderey  a  isso;  mas  primeiro  vos  quero  dizer 
de  hum  saboroso  comer  desta  palmeira,  ainda  que  não  he 
muyto  proveitoso ;  e  he  o  olho  da  palmeira  ou  âmago,  e  fo- 
lhas ajuntadas  as  mais  delgadas  (a  que  chamamos  palmi- 
tos) e  sabe  milhor  que  os  nossos  palmitos,  e  algum  tanto 
sabe  a  castanhas  das  brancas  e  muyto  tenras,  ante  que 
caiam  do  ouriço;  e  todavia  sabe  milhor  que  isto,  o  palmito. 
E  porém  quem  come  hum  palmito  come  huma  palmeira, 


*  Ou  elceomel  (EXatou.£'XiTo;),  cuja  natureza  é  duvidosa;  mas  que  segu- 
ramente se  não  extrahia  do  coqueiro. 


Do  Coquo  241 

porque  loguo  sequa;  e  quanto  à palmeira  he  mais  velha,  tanto 
he  milhor  o  palmito  (i).  E  tornando  ao  coquo  das  ilhas  Mal- 
divas, he  muyto  louvado  da  gente  das  mesmas  ilhas  e  dos 
Malabares,  que  conversam  as  ditas  ilhas. 

RUANO 

E  destoutros  reis  que  curais,  e  da  gente  das  suas  terras 
he  estimado  este  coquo? 

ORTA 

Não,  nem  ouvi  falar  lá  nelle;  por  onde  lhe  não  dou  tanto 
credito  \  e,  porque  não  se  offreceo  caso  onde  curasse  com  elle 
alguma  pessoa,  somente  ouvi  dizer  a  muytas  pessoas,  dinas 
de  fé,  ser  muyto  bom  pêra  a  peçonha;  e  averemse  achado 
muyto  bem  com  elle  pêra  muytas  emfermidades,  assi  como 
pêra  cólica,  e  paralesia,  gota  coral,  e  muytas  emfermidades 
de  nervos:  e  á  cólica  me  diziam  que  aproveitava  fazendo 
sair  e  arrevesar;  ás  outras  enfermidades  me  dixeram  que 
preservava  delias,  bebendo  aguoa  deitada  no  mesmo  coquo, 
deitando  nelle  hum  pouco  de  miolo,  e  que  andasse  nelle  muy- 
tos  dias. 

RUANO 

Muyto  negligente  fostes  em  não  o  esprementar. 

ORTA 

Deixeio  de  fazer,  por  não  se  offreçer  caso  pêra  iso',  e  no 
da  peçonha,  que  he  o  principal,  não  o  usey  porque  ha  outras 
milhores  mezinhas,  asi  como  sam  pedra  be^ar,  triaga,  páo 
da  cobra,  de  que  ao  diante  falarey,  páo  de  Malaca  de  con- 
tra erva,  esmeraldas,  terra  segillata;  e  porque  com  estas 
me  achei  bem,  não  quis  esprementar  estoutros.  E  seyvos  di- 
zer que  muytos  homens  bebem  por  estes  coquos,  e  dizem 
que  se  achão  muyto  bem;  mas  não  sey  se  o  faz  a  emagina- 
çam:  e  por  esta  razam  não  quis  afirmar  ser  bom  nem  máo, 
nem  vos  direy  cousa  alguma  ser  boa,  senão  sendo  testemu- 
nha de  vista  ou*  pesoas  dinas  de  fé. 

*  Parece  que  se  devem  intercalar  as  palavras:  «sabendo-o  por». 

16 


242  Colóquio  decimo  sexlo 


RUANO 


Dixeramme  que  a  rainha,  nossa  senhora,  mandava  todo- 
los  anos  por  este  coqiw,  e  lho  levam  de  cá;  e  por  tanto  não 
me  negueis  ser  pêra  a  peçonha  bom;  porque  pôde  ser  que 
o  esprementem  lá  alguns  bons  físicos. 

ORTA 

Quando  mo  elles  dixerem  crerloey,  e  afirmáloey;  mas 
agora  nam,  pois  o  não  vi;  e  como  o  vir  desdizermeey,  e  nam 
averey  vergonha  disso. 

RUANO 

Pois  eu  o  ey  de  levar  pêra  Portugal,  se  o  achar,  e  for 
lá  a  salvamento;  portanto  mostraimo  ou  dizeime  a  feiçam 
delle. 

ORTA 

A  casca  deste  coquo  he  preta,  e  mais  luzidia  que  a  dos  ou- 
tros coqiios;  he  de  figura  oval,  por  a  maior  parte,  e  não  re- 
donda como  a  dos  outros;  o  miolo  de  dentro  he  muito  duro, 
e  he  branco,  declinando  um  pouco  a  amarello,  e,  no  fim 
do  amaguo,  com  gretas  e  muyto  poroso;  nam  tem  sabor  al- 
gum excesivo;  tomam  deste  miolo  até  dez  grãos  de  triguo 
de  peso,  em  vinho  ou  agoa  rosada,  segundo  a  necessidade 
he. 

RUANO 

He  da  especia  deste  outro  coquo,  porque  parece  não  o  ser; 
por  quanto  os  coquos  que  delia  comemos  sam  muyto  maio- 
res e  de  outra  figura? 

ORTA 

Não  faz  isso  ao  caso;  porque  os  coquos  das  ilhas  das  Mal- 
divas sam  muyto  grandes;  e  eu  tive  já  hum,  que  cabiam 
nelle  sete  quartilhos.  E  também  ha  nestas  ilhas  dos  coquos 
de  contra  peçonha  ou  veneno,  alguns  pequenos  e  redondos; 
portanto  a  vossa  razam  não  conclue. 

RUANO 

Pois  dizei  vosso  parecer,  e  o  que  sabeis  disso. 


Do  Coqiio  243 

ORTA 

A  fama  comum  he,  que  estas  ilhas  eram  terra  firme;  e  por 
serem  baixas  se  alagaram,  e  ficaram  alli  essas  palmeiras; 
e  que  de  muyto  envelhecidas  se  fizeram  tam  grandes  coquos 
e  tam  duros  enterrados  na  terra,  que  he  agora  coberta  com 
o  mar.  Não  tem  folhas  nem  tronco,  por  onde  se  posa  com- 
prender  se  he  da  mesma  especia  ou  não;  parescem  serem 
de  diversas  especias  os  coquos,  por  terem  diversos  efeitos  e 
obras:  quando  souber  o  contrairo  disto,  vos  escreverei  a 
Portugal  o  que  qua  achei  nisto,  se  me  Deos  der  dias  de 
vida;  porque  espero  de  o  saber  bem,  quando  for  ao  Mala- 
bar, Deos  querendo.  Despois  soube  que  os  coquos  vem  pega- 
dos dous  em  hum,  como  arcos  de  besta;  e  despois  os  despe- 
gam; e,  ás  vezes,  vem  despegados  alguns.  Deitaos  o  mar 
na  praia:  o  coquo  não  he  tam  duro  como  este  que  vemos, 
nem  tam  pouco  he  tam  mole  como  os  coquos  das  palmeiras, 
que  comemos. 

RUANO 

Pois  diz  hum  doutor  moderno  muytas  cousas  dos  louvo- 
res da  palmeira  usual  destes  coquos;  e  em  todas  as  mais 
acerta,  senão  onde  diz  que  o  vinho  se  fazia  da  expersam  do 
coquo;  isto  diguo,  segundo  vos  ouvi;  porque  me  dixestes  que 
da  lagrima  se  fazia  cozendoa,  ou  estilandoa,  como  fazemos 
a  agoa  ardente:  dizeime  se  diz  a  verdade? 

ORTA 

Nisso  do  vinho  erra;  e  também  erra  na  maneira  que  diz 
do  fazer  do  mel,  e  em  algumas  outras  cousas  que  não  fa- 
zem ao  caso.  E  concluindo  no  coquo  das  ilhas,  diguo  que  tiram 
o  âmago  dos  coquos,  e  o  põem  a  secar  da  maneira  que  secam 
os  outros  de  que  fazem  a  copra,  e  fica  tam  duro  como  ve- 
des; pois  a  cor  já  a  vedes  que  parece  como  queijo  de  ove- 
lhas muyto  bom;  e  mais  me  dixe  este  Português,  que  sabe 
muyto  das  ilhas,  que  nunqua  pessoa  alguma  vio  o  arvore 
que  dá  estes  coquos,  senão  que  o  mar  os  deita  de  si;  e  que 
he  pena  de  morte  apanhálo  alguma  pessoa  quando  o  achar 
na  praia,  senão  leválo  a  elrey,  e  isto  dá  ao  coquo  das  ilhas 


244  Colóquio  decimo  sexto 

mais  autoridade  (2).  E  deixemos  isto,  e  falemos  no  costa,  pois 
he  mais  usado  na  física. 


Nota  (1) 

O  zeloso  investigador  da  botânica  do  Malabar,  Rhede  van  Drakens- 
tein,  dizia,  enumerando  os  auctores  que  antes  d'elle  se  occuparam  do 
coqueiro :  et  in  primis  prce  aliis  Garrias  ab  Horto  . . .  Collocava  assim 
o  nosso  escriptor  na  cabeça  do  rol  (Hortus  malabaricus,  i,  tav.  8). 

Esta  palmeira  — Cocos  nucifera,  Linn. —  e  os  seus  numerosos  pro- 
ductos  são  bastante  bem  conhecidos  para  que  se  torne  inútil  uma  nota 
muito  extensa. 

O  coqueiro,  extremamente  commum  ao  longo  da  costa  meridional 
da  índia,  Canará,  Malabar,  Coromandel,  e  nas  ilhas  próximas,  Maldivas, 
Lacadivas  e  outras,  alarga-se  pouco  para  o  interior,  para  o  «sartão», 
como  bem  notou  o  nosso  escriptor.  E  também  parece  ser  verdade  que 
prospera  melhor  na  vizinhança  das  povoações,  das  «casas  moradas».  Os 
singhalezes  dizem,  que  não  pode  viver,  onde  não  ouve  a  voz  do  homem 

Os  nomes  vulgares,  mencionados  por  Orta,  são  quasi  todos  bem  co 
nhecidos  e  de  fácil  identificação : 

— «Narel»  commum  entre  «Pérsios  e  Arábios».  Este  nome  foi  e  é 
um  dos  mais  usados  em  todo  o  Oriente,  nas  formas  naril,  naral,  nariyal 
nargil,  melhor  nardjil.  Maçudi  falia  repetidas  vezes  no  coco,  J^.LJI 
en-nardjil,  dando-lhe  também  o  nome  de  ^  t  J ! ,  e^-^andj.  As  primeiras 

formas  devem  derivar  do  nome  sanskritico  d'aquelle  fructo,  HIU  ctir<M, 
nãrikcela. 

—  «Jausialindi»,  isto  é,  el-jan^-el-Hindi,  a  «oj  da  índia,  é  uma  desi- 
gnação vulgar  na  Pérsia,  e  entre  os  árabes. 

—  «Tenga»,  ou  tanghã,  ou  taynga  ou  tenna  são  os  nomes  vulgares 
do  fructo  nas  linguas  do  sul,  como  o  tamil  e  o  maláyalam,  sendo  a  ar- 
vore chamada  tenga-maram,  ou  teyma-maram. 

—  «Nihor»,  o  nome  malayo  do  coco,  vem  citado  por  Ainslie  na  forma 
nyor,  e  por  Crawfurd  na  forma  ínir. 

De  resto,  em  muitas  localidades,  o  fructo  tem  nomes  diversos  segundo 
o  seu  estado  de  desenvolvimento;  assim  em  Goa,  o  coco  verde  cha- 
ma-se  coco  lanho,  ou  lanha,  como  Orta  diz  (Cf.  Dymock,  Mat.  med., 
800;  Ainslie,  Mat.  ind.,  i,  78;  Piddington,  Index,  22;  Crawfurd,  Dict. 
of  the  Indian  Islands,  114;  Maçudi,  Prairies,  i,  338;  e  para  a  compli- 
cada nomenclatura  do  coco  e  coqueiro  nas  terras  de  Goa,  Lopes  Men- 
des, A  índia  port.,  i,  172  etc;  e  Costa,  Manual  do  agricultor  indiano, 
no  i."  vol.). 


Do  Coquo  245 

Os  usos  das  diversas  partes  do  coqueiro  como  materiaes  de  construc- 
ção,  a  que  se  refere  o  nosso  escriptor,  são  bem  conhecidos  na  índia: 
o  da  madeira  em  vigamentos  e  postes;  o  das  folhas  ou  ala  («ramos» 
de  Orta)  em  tectos  e  coberturas;  e  o  do  cairo,  extrahido  do  invólucro 
fibroso  do  fructo,  em  cordas,  calafetagens,  etc.  O  cairo,  que  ainda  hoje 
se  exporta  em  quantidades  consideráveis  para  a  Europa,  onde  é  em- 
pregado no  fabrico  de  diversos  objectos,  era  então  principalmente 
apreciado  como  matéria  prima  dos  cabos,  usados  na  navegação  —  fa- 
zia «muito  gentil  cordoalha»  como  diz  o  nosso  auctor.  João  de  Barros 
também  louva  os  cabos  de  cairo  em  umas  phrases  graciosamente  por- 
tuguezas.  As  causas  de  as  amarras  de  cairo  serem  as  melhores  e  mais 
duradouras,  diz  elle : 

«he  porque  enverdece  com  a  agua  salgada;  e  faz-se  tão  correento 
nélla,  que  parece  feito  de  coiro,  encolhendo  e  estendendo  á  vontade 
do  mar:  de  maneira,  que  hum  cabre  d'estes  bem  grosso,  quando  a  náo 
com  a  fúria  da  tempestade,  estando  sobre  ancora,  porta  muito  per  elle, 
fica  tão  delgado,  que  parece  não  poder  salvar  hum  barco;  e  no  outro 
saluço,  que  a  náo  faz  arfando,  torna  a  ficar  em  sua  grossura.» 

(Cf.  Barros,  Ásia,  iii,  111,  7;  Drury,  Useful  plants  of  índia,  146.) 

Com  o  cairo  calafetavam  lambem  e  cosiam  os  barcos;  e  estes  barcos 
cosidos  e  náo  pregados  eram  uma  das  curiosidades  dos  mares  orientaes, 
da  qual  fallaram  todos  os  viajantes,  desde  o  auctor  do  Périplo,  até 
Marco  Polo,  Monte  Corvino,  e  aquelle  excellente  fr.  Jordão,  que  ex- 
plica muito  bem  o  caso  em  muito  mau  latim  :  et  de  cortice  istius  fructus 
(Nuces  de  índia)  fiunt  cordce  ciim  quibus  suuntur  yiavigii  inpartibus  illis. 
As  mais  celebradas  d'estas  embarcações  eram  as  construídas  nas  Mal- 
divas, a  terra  clássica  dos  coqueiros  e  do  cairo,  onde  — como  diz  Orta — 
barco,  pregadura,  vellas,  cordoalha,  tudo  era  feito  d'aquella  palmeira. 
Chamavam-lhes  gundras,  segundo  diz  Gaspar  Corrêa,  que  dá  a  seu  res- 
peito uma  noticia  interessante: 

«...  gundras,  que  são  huns  barcos  das  Ilhas  de  Maldiva,  onde  se 
faz  o  fio  de  cairo  de  que  se  fazem  as  amarras  e  enxárcias  de  toda  a 
navegação  da  índia,  afora  outro  muito  serviço  da  terra.  Gundras  são 
feitas  da  madeira  das  palmeiras  juntas  e  pegadas  com  tornos  de  páo, 
sem  nenhum  prego,  e  as  velas  são  esteiras  feitas  de  folha  secca  das  pal- 
meiras.» 

(Cf.  Gaspar  Corrêa,  Lendas,  i,  841;  Mirabilia,  em  Recueil  de  Voya- 
ges,  publié  par  la  Soe.  de  Géogr.,  iv,  43,  Paris,  1839 ;  Yule,  Marco  Polo,  i, 
me  119.) 

Das  substancias  alimentares  fornecidas  pelo  coqueiro  dá  Orta  uma 
enumeração  muito  completa,  fallando  do  palmito,  que  é  o  «olho  ou 
âmago  da  palmeira» ;  da  agua  e  do  miolo  do  coco,  que  é  «muito  lan- 
guido e  doce»;  do  azeite,  feito  do  miolo  fresco,  ou  do  miolo  secco, 
chamado  copra.  Enumera  também  detidamente  todos  os  productos  da 


246  Colóquio  decimo  sexto 

palmeira  lavrada  á  sura,  isto  é,  para  fornecer  a  seiva :  o  liquido  fer- 
mentado ou  sura;  os  espíritos  distillados  da  sura,  o  mais  fino  chamado 
fula  ou  flor,  o  mais  ordinário  chamado  orraca;  o  vinagre;  e  final- 
mente o  assucar,  ou  jagra.  Tudo  isto  são  productos  muito  conheci- 
dos, e  que  não  carecem  de  explicação  (Cf.  Drury,  1.  c;  Lopes  Men- 
des, 1.  c. ;  Costa,  1.  c). 

Nas  propriedades  medicinaes  do  óleo,  Orta  distingue  o  óleo  dos  co- 
cos frescos  do  óleo  de  copra,  louvando  muito  o  primeiro  como  uma 
excellente  «mezinha  purgativa»,  que  elle  receitava  varias  vezes.  Não 
propriamente  o  óleo,  mas  o  sueco  espremido  da  amêndoa  pisada  ou 
raspada  — o  que  se  apqroxima  da  preparação  indicada —  tem  sido  reco- 
mendado como  fortificante,  aperiente,  e  em  certos  casos  activamente 
purgativo.  Quanto  ao  óleo  de  copra,  que  era  bom  para  «dores  de  jun- 
turas  antigas»,  podemos  notar  que  ainda  o  applicam  no  Concan  do 
mesmo  modo,  em  contusões  e  inflammações  rheumaticas  (Cf.  Phar- 
inacoposia  of  índia,  247;  Dymock,  Mat.  med.,  800). 

A  cultura  dos  coqueiros^  nas  terras  portuguezas  da  índia  era  impor- 
tante já  nos  tempos  de  Orta.  Folheando  o  tão  interessante  e  tão  valioso 
livro  de  Simão  Botelho,  vemos  que  o  coqueiro  dava  logar  a  uma  explo- 
ração activa,  da  qual,  pelo  systema  das  arrematações  ou  exclusivos,  re- 
sultavam algumas  rendas  para  o  estado.  Em  Goa  as  orracas  andavam 
arrendadas;  e  Simão  Botelho  explica  que  erão  de  três  sortes: 

«cura  que  he  asy  como  se  tira,  orraqua  que  he  cura  cosida  húa  vez, 
xaráo^  que  he  cosida  duas  vezes  e  he  mais  forte  do  que  a  orraqua,  por 
ser  confeytada.» 

Pelas  condições  do  arrendamento  só  podia  vender  orraca  o  ren- 
deiro, ou  quem  com  elle  se  concertasse ;  e  este  pagava  ao  estado  pelo 
exclusivo  uma  quantia,  que  variava  de  3:20o  a  3:6oo  pardáus  annuaes 
proximamente.  Nas  pequenas  ilhas  de  Divar  e  outras,  próximas  da  de 
Goa,  também  as  "buticas  de  orraqua  e  cura»,  isto  é,  as  tavernas,  entra- 
vam^  n'um  arrendamento.  Igualmente  estava  arrendado  o  exclusivo  da 
venda  em  quasi  todas  as  aldeias  das  terras  de  Baçaim;  e  ahi  encontra- 
mos uma  espécie  de  imposto  industrial: 

«as  pessoas  que  tem  foguões  em  suas  casas  pêra  fazerem  cura  preta, 
paguão  por  cada  ffoguão  catorze  fedeas  por  ano». 

Estes  fogões  devião  ser  apparelhos  grosseiros  de  distillação,  similhan- 
tes  ou  mesmo  idênticos  ao  que  ainda  se  emprega  na  índia,  e  chamão 


'  E  subsidiarimente  de  outras  palmeiras;  o  Borassus,  por  exemplo,  fornecia  suras  e  or- 
racas análogas  ás  do  Cocos. 

'  A  palavra  xaráo  vinha  sem  duvida  do  arábico  scharáb,  que  significou  primitivamente 
qualquer  bebida ;  e  da  mesma  palavra  arábica  procederam  na  península,  o  hespanhol  xarave,  e  o 
portuguez  xarope.  Orraca  era  o  arábico  arak,  propriamente  transpiração,  e  d'ahi  a  éxsuda- 
ção  ou  seiva  de  palmeira.  Cura  ou  sura  é  o  santkritico  Sura,  com  a  mesma  accepçáo. 


Do  Coqiio  247 

ali  ^ontró.  Também  se  cobravam  direitos  dos  bandarys  (Bhandãri  em 
marathi),  os  membros  de  uma  casta  especial,  que  se  empregava  no  cul- 
tivo e  exploração  dos  palmares;  e  a  este  tributo  ou  imposto  pessoal 
dava-se  o  nome  de  direito  de  bandrastal.  Finalmente,  os  moinhos  de 
azeite,  em  que  se  moía  gergelim  e  outras  substancias,  mas  principal- 
mente meolo  de  coco,  também  andavam  arrendados,  ou  pagavam  im- 
postos especiaes. 

De  tudo  isto  resulta,  que  os  palmares  constituíam  uma  das  princi- 
cipaes  riquezas  da  população  rural,  e  ao  mesmo  tempo  uma  impor- 
tante matéria  coUectavel  (Cf.  Tombo  do  estado  da  índia,  nos  Subsidios 
de  Felner;  Lopes  Mendes,  índia port.,  i,  189;  Gerson  da  Cunha,  Words 
and  places  in  and  about  Bombay,  no  Ind.  ani.,  vol.  iii,  294). 

Reservámos  para  ultimo  logar  o  exame  de  uma  questão  secundaria, 
mas  curiosa  —  a  origem  da  palavra  coco,  coquo,  ou  quoquo,  que  de  todos 
os  modos  se  encontra  escripta. 

Orta  diz,  que  por  o  fructo  ter  aquelles  três  buracos,  os  portuguezes 
lhe  pozeram  o  nome  de  «coquo  porque  parece  rosto  de  bugio  ou  de  ou- 
tro animal».  Linscholen  dá  a  mesma  noticia,  ou  que  a  encontrasse  no 
livro  de  Orta,  ou  que  a  ouvisse  em  Goa.  Barros  escreve:  «os  nossos 
lhe  chamaram  coco,  nome  imposto  pelas  mulheres  a  qualquer  cousa 
com  que  querem  fazer  medo  ás  creanças,  o  qual  nome  assi  lhe  ficou, 
que  ninguém  lhe  sabe  outro,  sendo  o  seu  próprio,  como  lhe  os  Ma- 
labares chamam,  Tenga,  e  os  Canariis,  Narle».  Do  livro  clássico  de 
Barros  passou  esta  derivação  para  os  Lexicons  da  lingua,  para  o  Vo- 
cabulário do  padre  D.  Raphael  Bluteau,  e  para  alguns  diccionarios  mo- 
dernos, como  o  de  Moraes. 

Paliando  dos  coqueiros  da  America,  Oviedo  diz  também  (cito  pela 
versão  de  Ramusio) :  «chamam  aquelle  fructo  coco,  porque  se  parece 
com  a  figura  de  um  bugio»  (gatto  maimone  na  versão  italiana).  E  o 
mesmo  repetem  os  'diccionarios  hespanhoes,  o  famoso  Thesoro  de  la 
lengua  castellana  de  D.  Sebastian  Covarrubias,  e  o  Diccionario  de  la 
Real  Academia  Espaíiola,  onde  se  citam  vários  exemplos  da  applicação 
da  palavra  coco,  no  sentido  áe  figura  espantosa  y  fèa. 

Paliando  dos  coqueiros  da  Africa,  o  portuguez  Duarte  Lopes —  na  re- 
lação de  Pigafetta — ■  diz :  que  ha  diversas  palmeiras  no  reino  do  Congo,  e 
entre  ellas  a  noz  da  índia,  chamada  Coccos,  porque  dentro  do  fructo 
ha  uma  cabeça  parecida  com  a  de  um  bugio  fdette  Coccos,  perche  hanno 
dentro  una  testa  che  somiglia  ad  una  Simia);  e  explica  que  na  Hespanha 
existe  o  costume,  quando  querem  assustar  as  creanças,  de  dizer  a  pala- 
vra Coccola. 

De  todas  estas  citações  — e  omitto  varias —  se  vê,  que  entre  portu- 
guezes e  hespanhoes  houve  unanimidade  em  adoptar  para  a  palavra 
coco  a  mesma  etymologia  que  dá  o  nosso  auctor;  e  no  emtanto,  quando  a 
queremos  estudar  de  perto,  suscitam-se  algumas  difficuldades. 


248  Colóquio  decimo  sexto 

Comecemos  por  examinar  outras  origens  possíveis.  Diz-nos  Yule 
(no  Glossary),  que  C.  W.  Goodwin  encontrou  no  antigo  egypcio  uma 
palavra,  kuku,  designando  o  fructo  de  uma  palmeira  elevada,  o  qual 
continha  agua  no  interior.  E  recorda  também  que  Theophrasto  dá  o 
nome  de  xjy.aç  a  uma  palmeira  da  Ethiopia,  a  qual  Sprengel  quiz  iden- 
tificar com  o  Cocos^.  A  coincidência  de  nomes  é  notável,  mas  não 
deve  passar  de  uma  coincidência.  Como  bem  adverte  Yule,  é  custoso 
admittir  que  um  nome  desapparecesse  durante  longos  séculos,  sem 
deixar  vestigio  da  sua  existência,  para  reapparecer  subitamente  na 
boca  dos  portuguezes  no  fim  do  xv.  Alem  do  que,  é  extremamente  dif- 
ficil  saber  o  que  fosse  o  kuku. 

Rumphius  teve  noticia  da  etymologia  corrente  entre  portuguezes, 
mas  não  está  disposto  a  acceital-a,  e  julga  encontrar  outra  melhor. 
Diz  elle,  que  os  árabes  chamaram  aquelle  fructo  gau:;o^-Indi,  isto  é,  »0f 
da  índia,  e  os  turcos  cock-Indi,  com  a  mesma  significação.  Este  nome 
de  cock  passaria  — na  sua  opinião —  para  os  mouros  africanos  (em  hol- 
landez  Africaansche  mooren,  que  Burmanno  traduziu  mal  para  yEthiopes 
africani),  e  d'estes  para  os  hespanhoes  e  portuguezes,  sendo  a  origem  da 
palavra  coquo.  Francamente,  é  ditficil  imaginar  como  um  nome  turco  se 
podesse  generalisar  no  norte  da  Africa,  onde  não  ha  coqueiros,  até  che- 
gar aos  povos  da  península;  e  demais  não  temos  outra  noticia  do  tal 
nome  turco,  não  sendo  possível  saber  onde  Rumphius  o  foi  desencantar. 

O  sábio  geographo  Ritter  suppoz,  que  este  nome  fosse  uma  designa- 
ção usada  pelos  habitantes  das  ilhas  dos  Ladrones,  adoptada  e  genera- 
lisada  depois  pelos  companheiros  de  Magalhães;  mas  isto  é  clara- 
mente um  erro,  pois  nós  vamos  ver  a  palavra  coco,  empregada  pelos 
portuguezes  alguns  annos  antes  da  viagem  de  Magalhães. 

Postas  de  lado  estas  etymologias,  vejamos  que  valor  pôde  ter  a  de 
Orta,  Barros  e  outros. 

Em  primeiro  logar  será  necessário  demonstrar,*  que  o  nome  de  coco 
não  foi  usado  antes  das  viagens  portuguezas  e  hespanholas.  Isto,  quanto 
eu  pude  averiguar,  parece  ser  assim.  Um  dos  primeiros  viajantes  do  Oc- 
cidente  ás  terras  orientaes,  Cosmas  (545  J.  C),  chama  aquelle  fructo 
áp-yeXXia,  por  vap^eXXta,  O  que  é  uma  simples  hellenisação  do  sanskritíco 
narikela,  ou  do  persiano  nargil,  como  já  advertiram  Gildemeister  e  Yule. 
Séculos  depois,  o  celebre  Marco  Polo,  e  pelo  mesmo  tempo  fr.  João  de 
Monte  Corvino(i292),dão-lhe  o  nome  de  no:^  da  índia,  que  era  a  traduc- 
ção  do  nome  arábico,  quadrava  bem  á  forma  e  aspecto  do  fructo,  e  foi  de 
todos  o  mais  usado  pelos  viajantes.  Fr.  Jordão  (i328)  conhece  o  nome 


'  Os  caracteres  attribuidos  por  Theophrasto  á  '«'J^aç  de  modo  algum  concordam  com 
o  coqueiro,  pois  diz  que  nâo  tem  um  só  tronco,  mas  muitos  íCf.  Hist.  Plant.  11.  6,  p.  29,  ed. 
Wimmerj. 


Do  Coquo  249 

oriental,  e  liga-o  ao  nome  mais  vulgar:  arbor  qiuvdam  giicp  Nargil  voca- 
íur  . . .  hi  fructiis  siint  quos  nos  vocamus  Ntices  de  índia.  O  mesmo  faz 
poucos  annos  depois  fr.  João  de  MarignoUi,  o  qual  latinisa  completa- 
mente a  palavra  Nargil,  e  chega  mesmo  a  dcclinal-a,  fallando  das  fibras 
nargillorum.  Nicolo  di  Conti  (1444)  escreve  como  todos  os  anteriores  nu- 
ces  indicai;  e  Jeronymo  di  S.'"  Stephano,  escrevendo  mesmo  á  chegada 
dos  portuguezes  (1499),  continua  ausar  da  expressão  ttociiVíii/a.  Em  re- 
sumo, vemos  que  nenhum  viajante  da  idade  media  emprega  a  palavra  coco, 
nem  outra  qualquer  parecida  com  esta  no  som  ou  na  forma ;  e  vemos  que 
os  nomes  orientaes,  jauj-el-Hindi,  nargil,  tenga,  nyor,  não  têem  a  mais 
leve  simiihança  com  coco.  Julgo  pois,  que  a  adopção  no  Oriente  da  pala- 
vra coco  ou  coquo  para  o  fructo,  e  naturalmente  coqueiro  para  a  arvore,  é 
puramente  portugueza,  qualquer  que  seja  a  origem  da  palavra. 

Vejamos  agora  o  que  dizem  os  primeiros  portuguezes  que  viram  os 
coqueiros.  Estes  devem  ter  sido  Vasco  da  Gama  e  os  seus  companhei- 
ros 1.  Ao  chegar  a  Moçambique,  escreve  o  auctor  do  Roteiro  o  seguinte : 

«As  palmeiras  desta  terra  dam  huum  frutu  tam  grande  como  mel- 
lões,  e  o  miolo  de  dentro  é  o  que  comem,  e  sabe  como  junca  avella- 
nada.» 

Esta  phrase  é  de  uma  significação  claríssima.  Os  viajantes  encontram 
uma  arvore  que  reconhecem  ser  uma  palmeira,  e  isto  era  facil  estando 
familiarisados  com  z  palmeira  das  tâmaras  e  outras  da  Africa;  mas  re- 
conhecem ser  uma  palmeira  nova  para  elles.  Notam  as  dimensões  des- 
usadas do  seu  fructo,  o  gosto  do  miolo,  e  não  lhe  dão  nome.  Eviden- 
temente não  o  sabiam.  Seguem  d'ali  na  sua  derrota  bem  conhecida, 
vão  a  Calicut,  saem  de  lá,  e  na  costa  da  índia,  junto  á  ilha  de  Anche- 
diva,  tomam  uma  nau  de  mouros.  Dentro  da  nau,  diz  o  auctor  do  Ro- 
teiro, havia: 

«mantimentos  e  armas,  e  o  mantimento  era  coquos,  e  quatro  talhas 
de  huuns  queijos  d'açuquar  de  palma.» 

Esta  phrase  — ao  contrario  da  primeira —  é  de  difficilima  explicação. 
O  nome  de  coquo  vem  aqui  com  toda  a  naturalidade,  como  uma  pala- 
vra conhecidíssima,  de  uso  corrente.  Não  me  parece  natural,  que  a 
gente  da  armada,  na  curta  demora  em  Melinde  e  Calicut,  se  habituasse 
a  ver  o  fructo,  notasse  que  elle  se  parecia  com  o  rosto  de  um  bugio, 
se  lembrasse  dos  cocos  com  que  as  mulheres  em  Portugal  mettiam 
medo  ás  creanças,  e  começasse  a  dar-lhe  correntemente  aquelle  nome. 
Ha  evidentemente  aqui  uma  difficuldade. 


'  Segundo  as  opiniões  mais  seguidas  e  seguras,  o  coqueiro  não  existia  então  na  costa  de 
Guiné,  onde  nos  annos  seguintes  foi  introduzido  pelos  portuguezes;  e  a  phrase  do  Roteiro 
citada  nas  linhas  seguintes,  é  favorável  a  este  modo  de  ver,  pois  se  ali  existisse,  de  certo  ha- 
veria nas  guarnições  quem  o  conhecesse.  Na  costa  oriental  também  náo  era  espontâneo,  mas 
havia  sido  introduzido  pelos  árabes  muito  antes  de  ali  chegarem  os  portuguezes. 


25o  Colóquio  decimo  sexto 

Alem  d'isso,  a  palavra  coco,  no  sentido  de  figura  espantosa y  fêa,  de 
papão  de  creanças,  só  se  encontra  empregada  por  escriptores  hespa- 
nhoes  e  portuguezes  muito  posteriores,  como  Quevedo,  Hurtado  de 
Mendoza,  fr.  Luiz  de  Sousa,  ou  fr.  Amador  Arrais ;  e  não  achei  noticia 
de  que  tivesse  aquella  significação  na  peninsula,  no  xv  século.  Ha  na 
verdade,  a  velha  palavra  hespanhola  coca,  d'onde  cocote,  que  significava 
cabeça  — segundo  o  Dicc.  de  la  Real  Academia  Espaíiola — ,  e  esta 
pode  em  rigor  ser  a  origem  da  designação  dada  mais  tarde  ao  fructo. 

A  etymologia  de  Orta  tem,  pois,  a  seu  favor,  por  um  lado  a  opinião 
unanime  dos  escriptores  portuguezes  e  hespanhoes,  alguns  dos  quaes, 
como  Barros  e  Oviedo,  escreviam  pouco  depois  da  sua  adopção;  e  por 
outro  o  facto  de  que  o  emprego  do  nome  data  das  viagens  dos  nossos. 
E  certo  todavia,  que  apesar  d'isso  levanta  um  certo  numero  de  duvi- 
das. 

Afora  esta  etymologia  corrente,  haveria  ainda  uma  mais  ou  menos  ac- 
ceitavel.  Seria  a  derivação  do  latim  coccus,  grego  xoxxo;,  palavra  que  pro- 
priamente se  applica  a  uma  cousa  distincta,  mas  se  poderia  tomar  no  sen- 
tido de  grão  ou  noz  de  maiores  ou  menores  dimensões  i;  mas  também 
não  parece  natural,  que  os  rudes  companheiros  de  Vasco  da  Gama  se 
lembrassem  d'esta  clássica  origem. 

E  forçoso  confessar,  que  a  questão  perm.anece  muito  obscura;  e  não 
é  fácil  encontrar  uma  solução  de  todo  o  ponto  satisfactoria. 


Nota  (2) 

Vários  escriptores  nossos  faliam  d'este  coco  das  Maldivas,  ou  coco 
do  mar,  tendo-o  sempre  por  uma  producção  marinha.  Camões  diz  o 
seguinte : 

Nas  ilhas  de  Maldiva  nasce  a  planta, 

No  profundo  das  aguas  soberana. 

Cujo  pomo  contra  o  veneno  urgente 

É  tido  por  antídoto  excellente. 

João  de  Barros  dá-lhe  a  mesma  origem:  «em  algumas  partes  debaixo 
da  agua  salgada  nasce  outro  género  delias  (arvores),  as  quaes  dão  hum 
pomo  maior  do  que  o  coco».  E  muitos  annos  depois,  Rumphius,  que 
era  um  naturalista  perito  e  investigador,  insiste  na  mesma  idéa:  hujiis 
miri  miraculi  naturce  quod  princeps  est  otnniiim  marinarmn  rerum  . . . 


'  N'este  caso  o  nonie  tomaria  dois  c  c;  e  os  botânicos,  numerosos  no  principio  do  nosso 
século,  que  escreveram  Coccos  nucifera,  lembraram-se  evidentemente  d'esta  origem. 


Do  Coqiio  25 1 

Reprehendc  mesmo  Garcia  da  Orta,  por  este  não  acceitar  francamente 
a  origem  submarina  d'aquelle  fructo  (Cf.  Lusíadas,  x,  i36;  Barros, 
Ásia,  III,  III,  7;  Rumphius,  Herb.  Amb.,  vi,  -210  a  217). 

O  fructo  não  nascia,  porém,  debaixo  da  agua,  pertencia  a  uma  grande 
palmeira,  Lodoicea  Seychellarum,  de  habitação  muitissimo  restricta, 
pois  se  encontra  espontânea  apenas  na  ilha  Praslin,  e  mais  algumas  do 
pequeno  archipelago  das  Seychelles  (Cf.  Hooker,  Botanical  tnaga^me, 
tab.  2784). 

As  Seychelles,  ficando  fora  do  caminho  habitua!  da  navegação  pelo 
canal  de  Moçambique,  permaneceram  muito  tempo  desconhecidas  ou 
mal  conhecidas.  Os  portuguezes  tiveram,  no  emtanto,  noticia  d'aquellas 
ilhas,  a  que  chamaram  as  Sete  irmãs,  ou  os  Sete  irmãos,  assim  como  dos 
recifes  madreporicos,  que  lhes  demoram  a  sueste,  e  ainda  conservam  nas 
cartas  o  nome  portuguez  de  Saia  de  malha^.  Mas  as  ilhas  ficaram  desha- 
bitadas,  e  raro  visitadas  até  ao  meado  do  século  passado.  Era,  portanto, 
desconhecida  a  Lodoicea  Seychellarum  ;  mas  não  succedia  o  mesmo  aos 
seus  fructos.  Estes,  caindo  no  mar,  fluctuavam*á  mercê  das  correntes 
e  dos  ventos;  e,  impellidos  por  essas  correntes,  ajudadas  em  parte  do 
anno  pela  monsão  de  S.W.,  eram  levados  principalmente  na  direcção 
das  Maldivas,  em  cujas  praias  se  encontravam  com  certa  frequência 
— d'ahi  o  nome  de  coco  das  Maldivas.  Outros,  porém,  passavam  mais 
ao  sul,  e  não  raro  — segundo  Rumphius —  iam  dar  ás  praias  meridionaes 
de  Sumatra,  Java,  e  outras  ilhas  d'aquella  corda  vulcânica,  que  se  es- 
tende até  Timor.  Das  grandes  dimensões  e  forma  singular  d'estes  cocos, 
e  do  facto  correctamente  apontado  por  Orta,  e  verdadeiro  no  seu  tempo  : 
«que  nunqua  pessoa  alguma  vio  a  arvore  que  dá  estes  coquos,  senão 
que  o  mar  os  deita  de  si»,  se  originaram  naturalmente  todas  as  lendas 
relativas  á  sua  origem  marinha. 

Os  malayos,  que  lhes  chamavam  calapa  laut,  ou  boapausengi,  diziam: 
que,  nos  grandes  abysmos  do  mar  do  sul,  laut  kidol,  se  encontrava  uma 
única  arvore,  o  pausengi,  a  qual  dava  estes  cocos,  e  cuja  copa  emergia 
fora  das  aguas.  N'essa  copa  fazia  o  seu  ninho  o  Geruda,  aquella  enorme 
ave,  que  arrebatava  nas  garras  elephantes,  rhinocerontes,  e  outros  gran- 
des animaes ;  e  quando  alguns  barcos  para  ali  se  dirigiam,  nunca  mais  po- 
diam sair  do  abysmo,  onde  as  guarnições  eram  fatalmente  devoradas  pe- 
los Gerudas.  Vemos  assim  aquella  grande  extensão  dos  mares  do  sul 
povoada  de  lendas  assustadoras,  tal  qual  o  Atlântico  ou  Mar  tenebroso 
da  idade  media.  Rumphius,  que  escrevia  em  Amboyna,  e  já  conhecia  a 


'  Nas  cartas  ainda  inéditas  de  Vaz  Dourado  (iSjí)  estão  marcadas  numerosas  ilhas  a 
nordeste  de  Madagáscar:  as  do  Almirante,  de  Mascarenhas,  do  Corpo  Santo,  os  Sete  Ir- 
mãos, os  Três  Irmãos,  etc. ;  parecendo  que  a  maior  dos  Sete  Irmãos  deve  corresponder  á  ilha 
de  Mahé  das  Seychelles.  Tive  occasião  de  consultar  o  exemplar  que  se  encontra  no  Ar- 
chivo  da  Torre  do  Tombo,  assim  como  o  que  hoje  pertence  á  livraria  particular  de  el-rei. 


252  Colóquio  decimo  sexto 

Austrália,  diz,  que  tal  abysmo  não  existe  no  mar,  mas  que  no  emtanto 
as  plantas  podiam  talvez  ser  submarinas;  e,  em  face  de  outras  difficul- 
dades,  resigna-se  a  não  profundar  muito  a  questão:  Relinquarnus  ita- 
que  incertam  istam  arborem  in  matris  naturce  abscondito  g7'emio  . . . 

Francisco  Pyrard  de  Lavai,  que  naufragou  nas  Maldivas,  e  ali  per- 
maneceu muito  tempo  (uns  quarenta  annos  depois  de  Orta),  dá  a  mesma 
noticia  que  este.  Diz  que  os  naturaes  chamavam  ao  coco  Tauarcarré, 
e  acrescenta  . . .  «e  julgam  que  é  produzido  por  algumas  arvores,  que  ha 
no  fundo  do  mar».  Mas  em  outra  passagem  dá  uma  indicação  mais  che- 
gada á  verdade,  a  qual  se  pôde  talvez  referir  a  algum  vago  conheci- 
mento das  Seychelles,  que  possuissem  os  navegadores  das  Maldivas. 
A  passagem  é  interessante,  e  merece  ser  citada  um  pouco  mais  larga- 
mente ;  diz  assim : 

«Algum  tempo  depois,  el-rei  (o  das  Maldivas)  enviou  por  duas  vezes 
um  piloto  mui  experimentado  ao  descobrimento  de  certa  ilha  chamada 
Polluoys,  que  para  elles  é  ainda  quasi  incógnita,  e  só  dizem  que  anti- 
gamente uma  sua  barca  ahi  aportou  casualmente,  como  em  suas  histo- 
rias se  contém,  mas  foram  forçados  a  sair  d'ella  por  causa  dos  grandes 
tormentos,  que  lhe  fizeram  os  diabos  ...  a  ilha  é  fértil  em  toda  a  sorte 
de  fructos,  e  são  mesmo  de  opinião  que  aquelles  grandes  cocos  medi- 
cinaes,  que  tão  caros  são,  se  dão  n'aquella  ilha;  posto  que  alguns  pen- 
sem que  vem  do  fundo  do  mar.» 

É  bem  possível,  que  esta  vaga  tradição  tivesse  por  fundamento  uma 
viagem  ás  Seychelles,  viagem  que  se  não  repetiu,  porque  —como  diz 
Pyrard —  quando  buscavam  a  ilha  «de  propósito  ainda  a  não  tem  po- 
dido achar;  e  quando  a  ella  tem  aportado  é  por  acaso». 

A  parte  esta  curta  e  vaga  noticia,  todos  tinham  o  coco  por  uma 
producção  do  mar,  não  só  no  tempo  de  Orta,  mas  mesmo  muitos  an- 
nos depois  (Cf.  Viagens  de  Pyrard  de  Lavai,  i,  192  e  248;  Rumphius, 
I.  c). 

Sobre  os  effeitos  do  «antídoto  excellente»  é  o  nosso  medico  eviden- 
temente muito  sceptico;  faz  notar  com  rasão,  que  as  lendas  e  myste- 
rios  davam  «ao  coquo  das  ilhas  mais  auctoridade»;  diz  que  as  curas  se 
podiam  talvez  attribuir  á  «emaginação»;  e  termina  com  um  certo  des- 
prezo: «e  deixemos  isto  e  íallemos  no  costo,  pois  hé  mais  usado  na  fí- 
sica». Rumphius,  que  acreditava  piamente  nos  effeitos  do  coco,  não  lhe 
perdoa  a  sua  indifferença :  Gar:^iam  porro  miror,  ipsum  harian  niicum 
non  majorem  habuisse  experientiam.  É  que  de  feito  o  coco  era  então 
muito  procurado  e  muito  louvado;  e  o  mesmo  Rumphius  conta  que  um 
almirante  hollandez,  Wolferio  Hermano  — o  que  no  anno  de  1602  com- 
mandou  uma  acção  nos  mares  de  Bantam  contra  a  esquadra  portugueza 
de  André  Furtado  de  Mendonça —  possuia  um  d'estes  cocos,  pelo  qual 
o  imperador  Rodolpho  II  offereceu  quatro  mil  florins.  Aquelle  coco  era 
então  o  único  que  existia  na  Hollanda.  Em  Portugal  eram  mais  frequen- 


Do  Coquo  253 

tes.  Clusius  viu  em  Lisboa  (i563)  mais  de  um;  e  encontrou  também  o 
miolo  secco  á  venda,  mas  por  um  alto  preço :  Vidimus  ciim  Ulysipone,  tuin 
alíis  heis,  vascula  ex  hoc  Cocco  de  Maldiva  confecta,  oblongiora  plerum- 
que  iis  quce  ex  vulgari  cocco  parantur,  magisque  nigra  et  nitida.  Qui- 
nimo  ipsam  tnedullam  nucis  siccatam  Ulysipone  venalem  reperire  licet, 
cujus  facultates  mirifice  extolhint  . . .  ob  quam  causam  ingens  ejus  pre- 
tiinn.  Mais  notável  do  que  todos  estes  vasos,  era  um,  que  foi  tomado 
pelos  inglezes  em  uma  náo,  aprezada  no  anno  de  1592,  do  qual  o  seu 
amigo  Jacobus  Garetus  (James  Garet)  lhe  mandou  o  desenho,  e  que 
vem  figurado  no  Exoticorum.  Está  montado  em  prata,  de  trabalho  evi- 
dentemente oriental,  e  representa  uma  ave,  tendo  as  garras  fortes,  e  a 
cabeça  de  dragão  com  grandes  dentes  á  mostra.  Será  uma  representa- 
ção do  Geruda,  e  resultaria  na  imaginação  do  artista  que  o  cinzelou 
d'aquella  lenda,  que  ligava  o  Geruda  ao  boa pausengi?  (Cf.  Rumphius, 
1.  c. ;  Exoticorum,  1 92 ;  Flora  dos  Lusiadas,  86 ;  Yule  e  Burnell,  Glossary, 
palavra  Coco  de  mer). 


COLÓQUIO  DECIMO  SÉTIMO 

DO  COSTO  E  DA  COLÉRICA  PASSIO 

INTERLOCUTORES 

RUANO,  ORTA,  SERVA,  PAGEM,  DOM  GERONIMO 
E  PACIENTE 

RUANO 

Muyto  estimado  foy  o  cosío  antigoamente,  e  aguora  também 
tem  seu  louvor;  portanto  reçeberey  grande  merce  em  me 
abrirdes  o  caminlio  da  verdade  em  esta  mezinha,  não  tendo 
afeiçam  nem  ódio  a  algumas  pesoas  de  qualquer  calidade 
que  sejam. 

ORTA 

Eu  não  tenho  ódio  senão  aos  errores;  nem  tenho  amor 
senão  á  verdade;  e  com  este  preposito  vos  diguo,  que  eu 
pêra  mim  nam  tenho  duvida  alguma  em  esta  mezinha. 

RUANO 

Pois  todos  a  temos;  porque  Galeno  com  todos  os  Gregos, 
e  Plinio  com  todos  os  Latinos  antiguos,  e  todos  os  Arábios* 
põem  muytas  maneiras  do  coslo;  e  ainda  que  os  boticairos 
me  dizem  que  o  ha  em  Espanha,  e  os  Italianos  em  suas 
terras,  e  asi  todas  as  nações,  mas  que  não  vem  a  nós  senão 
esta  indica,  e  que  das  outras,  se  carecemos,  he  per  descuido 
e  avaricia. 

ORTA 

Eu  pêra  mim  tenho  não  aver  outra;  e  desta  vos  direy  os 
nomes,  e  a  feiçam,  e  o  uso  pêra  que  se  usa. 


*  Galenus,  lib.  7,  Simplicium;  Plinius,  lib.  12,  cap.  12;  Avicena,  lib.  2, 
cap.  i65  (nota  do  auctor). 


256  Colóquio  decimo  sctimo 

RUANO 

Dizei,  com  protestação  de  vir  com  meu  contraponto, 
quando  for  necessário, 

ORTA 

Diguo  que  costo  em  arábio  se  chama  cost  ou  cast;  e  em 
guzarate  se  chama  iiplot;  e  em  malaio,  pêra  onde  he  grande 
mercadoria  e  se  guasta  muyto,  se  chama  pucho;  disevos  o 
nome  em  arábio  porque  por  este  he  chamado  dos  Latinos 
e  Gregos^  e  o  do  Guzarate  porque  he  a  terra  mais  chegada 
onde  naçe;  e  disevos  o  nome  malayo,  porque  a  maior  can- 
tidade  se  gasta  pêra  lá,  scilicet,  pêra  levar  á  China  (i). 

RUANO 

E  não  nace  o  costo  indico  no  Guzarate? 

ORTA 

Nace  na  terra  sogeita  muitas  vezes  ao  Guzarate,  scilicet, 
confins  entre  Bengala  e  o  Dely  e  Cambaya,  isto  he,  terra 
do  Mandou  e  Chitor;  e  day  vem  muytas  carretas  carregadas 
d'este  iiplot  e  de  espiqiie  e  de  tincar,  e  de  outras  muytas  mer- 
cadorias, as  quaes  vem  ter  á  cidade  principal  do  reino,  dita 
Amadabar,  que  está  no  sertam,  e  também  vem  ter  á  cidade 
de  Cambayete  (cotovello  do  mar  da  enseada);  e  dali  se 
provê  a  mór  parte  da  Ásia  das  nomeadas  mercadorias,  e 
toda  a  Europa,  e  alguma  parte  da  Africa  (2). 

RUANO 

Como  se  podem  criar  tantos  arvores,  pois  a  raiz  he  o 
costo  que  gastamos? 

ORTA 

O  mais  pouco  he  raiz;  porquanto  todo  o  mais  he  o  páo, 
nam  vai  mays  o  páo  que  a  raiz;  o  arvore  em  que  nasce  o 
comparam  alguns  que  o  viram  ao  sabugo;  tem  flores  e 
cheira  bem;  e  a  feiçam  delle  he  ser  branco  per  dentro,  e  a 
casca  parda;  e  algum  d'elle  tem  a  cor  de  buxo  e  a  casca 
amarella.  Onde  está,  dá  grande  fragancia  e  cheiro,  que  a 
alguns  se  lhe  mette  pollos  narizes,  e  lhes  faz  dor  de  cabeça 


Do  Cosi  o  ID-j 

com  sua  fortidam;  o  sabor  delle  não  he  amarguo,  nem  tam 
pouco  doce;  posto  que  alguma  cousa  amargua,  quando  he 
velho;  porque,  quando  he  novo,  tem  o  sabor  agudo  como 
as  outras  especiarias-,  desfaz-se  muito  em  pó,  e  cheira  mais 
pouquo,  e  amargua;  e  esta  he  a  verdade.  Deste  guastam  em 
muitas  mezinhas  os  físicos  Indianos;  este  levão  a  Ormuz  os 
mercadores;  donde  se  provê  todo  o  Coraçone  e  a  Pérsia. 
Também  dahi  se  leva  a  Adem,  donde  se  provê  a  Arábia  e 
Turquia,  e  nam  he  muyto  ser  este  costo  falsificado  lá,  se- 
gundo levam  pouca  cantidade  a  Portugal;  por  onde  he  de 
crer  que,  ou  he  falso  o  que  usam  nas  partes  distantes  de 
Portugal,  ou  põem  outra  cousa  por  elle. 

RUANO 

Serapio  lhe  chama  chosí*. 

ORTA 

Está  a  letra  corruta,  e  em  alguns  livros  se  acha  escrito 
cast  e  costiis;  e  os  Arábios,  com  que  faley,  huns  lhes  cha- 
mam cast,  outros  costo,  e  outros  cosíi;  e  nisto  nam  tenhaes 
duvida. 

RUANO 

Todos  põem  três  especias;  scilicet,  arábio,  este  dizem  ser 
branco  e  leve  e  aromático;  outro  dizem  ser  Índico,  negro 
e  leve  e  amarguo;  e  outro  dizem  que  he  da  terra  da  Siria, 
de  cor  de  pão  de  buxo;  o  cheiro  he  estitico.  Também**  costo 
doce  e  costo  amarguo;  posto  que  eu  não  vi  costo  doce,  nam 
pode  deixar  de  o  aver,  pois  doutores  de  tanta  autoridade 
escrevem  delle. 

ORTA 

Perguntei  a  mu}l:os  mercadores  da  Arábia  e  Pérsia  e  da 
Turquia,  que  me  dixesem  onde  se  gastava  este  costo  que 
vay  da  índia,  amostrandolho  com  a  mão,  elles  responderam 


*  Serapio,  cap.  3i8  (nota  do  auctor). 

•*  Deve  faltar  aqui  a  palavra  «dizem»,  ou  outra  semelhante. 

17 


258  Colóquio  decimo  sétimo 

todos  que  na  Turquia  se  gastava  a  mór  parte,  e  na  Suria;  e 
os  Arábios  e  Pérsios  me  dixeram  que  também  o  levavam 
pêra  sua  terra  por  mercadoria  em  que  se  ganhava  dinheiro. 
Pergunteilhe,  se  avia  outro  algum  em  sua  terra,  todos  me 
dixeram  que  nam.  Perguntei  aos  físicos  do  Nizamaluco,  e 
dixeramme  que  nunqua  viram  outro  costo,  senam  este  da 
índia;  e  destes  físicos  hum  delles  fo}'  físico  do  Xatamaz*,  e 
andou  muyto  tempo  curando  no  Cairo  e  em  Costantinopla; 
pois  todos  estes  rezam  tinham  de  conhecer  o  costo. 

RUANO 

E  o  que  dizeis  do  costo  doce  e  amargo:{o? 

ORTA 

Bem  sabeis  que  as  cousas,  quando  se  vam  podreçendo, 
que  amargam  muyto;  e  a  cor,  que  no  principio  era  branca, 
se  faz,  quando  se  corrompe,  preta;  e  no  meio  deste  tempo 
se  faz  amarela;  e  porque  este  costo  vem  ter  de  longes  terras 
a  nós,  ha  muyto  pouquo  delle  que  não  este  começado  a 
corromper.  E  o  que  já  se  vay  corrompendo  e  não  he  branco, 
chamão-lhe  amargo,  e  ao  outro,  que  está  bom,  doce.  E 
porque  os  mercadores,  que  este  costo  levam  a  vender,  eram 
de  diversas  partes,  tomaram  ocasiam  de  dizer,  que  hum 
avia  na  Arábia  e  outro  na  índia  e  outro  na  Siria,  vindo 
todo  este  da  índia,  e  tendo  lá  seu  nacimento. 

RUANO 

Laguna,  escritor  deligente,  diz  que  sam  dinos  de  reprensam 
os  boticairos  que,  por  avaricia  ou  pouco  cuidado,  nam  trasem 
o  costo  de  Veneza,  donde  vem  da  Alexandria,  e  gastam  em 
seu  logar  huma  mezinha,  que  nam  se  paresçe  mais  com  o 
costo,  que  o  marmelo  com  abobra;  e  outros  usam  de  raí- 
zes de  menta  romana,  a  que  chamam  costo  falso;  e  muytos 
herbolarios  vi  em  Espanha  que  me  dixerao  avelo  lá  visto; 


*  Isto  é,  de  Thamasp  scháh,  o  successor  de  Ismael. 


Do  Cosío  269 

e  hum  me  mostrou  huma  fruticc  de  altura  de  cinquo  palmos, 
e  indo  lendo  pelo  livro,  achávamos  que  lhe  convinhao  os 
sinaes  escritos  no  livro. 

ORTA 

Digo  que  Laguna  diz  bem,  se  levarem  o  cosío  de  Veneza, 
que  haja  vindo  da  índia,  nam  falsificado  nem  podre;  e  pêra 
mais  seguridade  e  certeza  seria  milhor  que  o  levassem  de 
Lixboa,  onde  vai  melhor  e  mais  fielmente  feito*,  porque  eu 
o  mandei  a  elrei  em  cantidade,  o  anno  que  fiz  as  drogas*, 
e  se  vay  pouco  de  qua,  he  porque  nam  tem  lá  requesta,  nem 
o  pedem  tanto.  E  ao  que  dizeis  do  herbolario,  que  em  Es- 
panha vos  mostrou  a  frutice  do  costo,  nem  vós,  nem  o  her- 
bolario, nem  o  autor  do  livro,  vistes  em  algum  tempo  o  ar- 
vore do  costo;  e  por  isso  vos  enganáveis  todos;  porque,  com 
perdão  de  todos,  huni  cego,  que  era  o  Pandetario*,  guiava 
ao  herbolario  e  a  vós:  isto  vos  digo,  porque  o  arvore  do 
costo  he  tamanho  como  hum  azimbro  ou  medronheiro  gran- 
de,-ou  sabugueiro.  E  a  frutice,  como  tinha  o  páo?  era  mole, 
ou  delgado  ou  groso;  despedia  bem  a  casca  ou  não? 

RUANO 

Mole,  e  despedia  bem  a  casca. 

ORTA 

Pois  estoutro  he  contrairo,  que  he  páo  duro,  e  não  tem 
casca  separada  (3). 

RUANO 

Nam  se  podia  perder  este  costo  doce  pollos  muytos  tem- 
pos e  distancia  dos  lugares? 

ORTA 

Não:  porque  as  terras  são  agora  mais  descubertas  e  mais 
sabidas;  senam  que  agora  se  descobrem  mais  os  erros  pa- 


*  Mattheus  Sylvaticus,  o  auctor  do  Liber  pandectarum,  já  citado  an- 
tes no  Colóquio  do  aloés. 


2ÒO  Colóquio  decimo  sétimo 

sados,  e  enganos  de  gente,  que,  por  venderem  milhor  suas 
mercadorias,  põem  nomes  diversos,  e  dizem  ser  de  longes 
terras.  E  abastenos,  pêra  não  aver  outro  costo  senão  este, 
que  os  Chins,  gente  tam  descreta  e  tam  sabida,  usam  desta 
mezinha  e  a  gastam  tanto. 

RUANO 

Aleguaes  com  gente  mu3^to  barbara  e  fera,  pois  sam  os 
Seitas  Asianos? 

ORTA 

Sam  os  Chins  homens  muy  sutis  em  comprar  e  vender, 
e  em  oííicios  macanicos;  e  em  letras  não  dam  vantagem  a 
alguns  outros,  porque  tem  leis  escritas,  conformes  ao  direito 
comum,  e  outras  muito  justas;  como  se  pode  ver  bem  por 
hum  livro  que  ha  delias  nesta  índia;  e  huma  destas  leis,  que 
me  dixerão,  he,  que  não  pode  o  homem  casar  com  molher 
que  conheceo,  sendo  casada  com  outro  marido*,  quanto  mais 
que  os  homens  que  vão  á  China  vêem  lá  praticar  muyta  jus- 
tiça e  usar  delia;  damse  lá  gráos  e  muytas  onrras  aos  letra- 
dos, e  elles  sam  os  que  governão  o  rei  e  a  terra.  Nas  pin- 
turas que  fazem  vem  pintadas  cátedras,  e  homens  que  estão 
lendo,  e  ouvintes  que  estão  ouvindo;  quanto  mais  que,  pêra 
vos  convencer  seu  gram  saber,  abasta  que  a  arte  de  emprimir 
sempre  foy  lá  usada,  e  nam  ha  em  memoria  de  homens, 
acerca  delles,  quem  a  enventou. 

RUANO 

Isso  he  verdade,  porque  quem  enventou  esta  arte  foy  em 
Ungria,  ou  nessas  partes  mais  setentrionaes,  as  quaes  dizem 
que  confinam  com  a  China  (4). 

SERVA 

Um  moço  está  alli,  que  traz  um  recado. 

ORTA 

Venha. 


Do  Cosío  261 

PAGEM 

Dom  Geronimo  lhe  manda  pedir  que  queira  hir  visitar  seu 
irmão,  e  ha  de  ser  logo,  ainda  que  nam  sejam  oras  de  visita- 
ção, por  ser  perigo  na  tardança;  e  que  lhe  fará  muyta  merca 
em  o  fazer. 

ORTA 

Que  doença  he,  e  quanto  ha  que  está  doente? 

PAGEM 

He  morxi,  e  ha  duas  horas  que  adoeçeo. 

ORTA 

Eu  vou  após  vós. 

RUANO 

He  esta  enfermidade  a  que  mata  muyto  asinha,  e  que  pou- 
cos escapam  delia?  Dizeime  como  se  chama  ácerqua  de  nós, 
e  delles,  e  os  signaes,  e  a  cura  que  nella  usaes. 

ORTA 

Acerqua  de  nós  ho.' colérica passio;  e  os  Indianos  lhe  cha- 
mão  morxi;  e  nós  corruptamente  lhe  chamamos  niordexi; 
e  os  Arábios  lhe  chamão  1iachai:[a,  posto  que  currupta- 
mente  se  lea  em  Rasis  saiãa.  Cá  he  mais  aguda  que  em 
nossas  terras,  porque  comummente  mata  em  vinte  e  quatro 
oras;  e  eu  já  vi  pessoa  que  não  durou  mais  que  dez  oras, 
e  os  que  mais  duram  sam  quatro  dias;  e,  porque  não  ha 
regra  sem  exçeisam,  vi  um  homem  com  mu3^ta  costancia  de 
vertude,  que  viveo  vinte  dias,  sempre  arrevesando  colora 
curginosa*,  e  emfim  morreo.  Vamos  ver  este  enfermo;  e  por 
os  signaes  vereis  vós,  como  testemunha  de  vista,  que  cousa 
he. 

RUANO 

Vamos. 


*  A  significação  d'esta  palavra  é  para  mim  muito  duvidosa,  e  é  pos- 
sivel  que  esteja  alterada  por  algum  erro  typographico. 


262  Colóquio  decimo  sctimo 

ORTA 

o  pulso  tem  muyto  sumerso,  que  poucas  vezes  se  sente; 
muyto  frio,  com  algum  suor  também  frio;  queixase  de  grande 
incêndio  e  calmosa  sede;  os  olhos  sam  muyto  sumidos;  nam 
podem  dormir;  arrevesam,  e  saem  muyto,  até  que  a  vertude 
he  tam  fraca  que  nam  pôde  expelir  cousa  alguma;  tem 
caimbra  nas  pernas.  Subi,  após  mim,  que  eu  vos  ensinarei 
o  caminho.  Muyta  saúde  dê  Deos  em  esta  casa.  Quanto  ha 
que  este  mal  veio? 

ENFERMO 

Pôde  haver  duas  oras  que  me  tomou  este  sair  e  revesar, 
com  grande  agastamento;  não  arreveso  senão  agoa,  sem  ne- 
nhum amargoso,  nem  azedo  sabor. 

ORTA 

Tivestes  alguma  caimbra  nas  pernas? 

ENFERMO 

Per  três  ou  quatro  vezes  me  tomou,  e  com  fortes  esfre- 
gaçÔes  com  isto  se  me  tirou,  molhando  as  mãos  em  azeite 
de  coquo  quente;  e  porém  tornou  a  vir,  e  fizlhe  o  mesmo, 
e  tornouse. 

ORTA 

Que  comestes  oje? 

ENFERMO 

Comi  pexe  de  muytas  maneiras,  e  arroz  de  leite,  e  alguns 
pepinos;  e  asi  o  que  arreveso  cheira  a  pepinos. 

ORTA 

Isto  não  padece  tardança;  emtanto  ponham  fogareiros  e 
esquentemlhe  o  corpo;  e  esfreguemlhe  o  corpo  com  panos 
ásperos;  e  agoa  nenhuma  beba,  em  nenhuma  maneira  delia; 
se  fordes  constrangido  a  darlhe  a  beber  alguma  pouca,  será 
onde  ajam  apagado  algum  ouro  fervendo;  cautirizemlhe  os 
pés  com  ferros  quentes;  e  darlheam  a  beber  hum  vomitivo; 
e  lançarlheam  hum  cristel  lavativo;  o  qual  tudo  vou  ordenar 
á  botica ;  e  untalloam  com  olios  quentes  pola  nuca  e  espinhaço 


Do  Costo  263 

todo;  e  asi  lhe  untaram  as  pernas.  E  como  revesar  com  este 
vomitivo,  e  fizer  camará  com  o  cristel,  vãome  dar  conta  do 
que  pasa,  e  dirmeani  se  arrevesa  ainda  muyto,  ou  se  sae 
muyto,  ou  se  se  esquentou  já,  ou  se  tem  ainda  caimbra,  ou  se 
lhe  parece  o  pulso  mais,  e  está  mais  descoberto  ;  porque  con- 
forme a  isto  he  necesario  que  obremos,  porque  nesta  infir- 
midade  nam  ha  de  aver  descuido  no  medico,  nem  nos  servi- 
dores do  enfermo. 

DOM  GERONIMO 

Tudo  se  fará  muyto  depressa;  eis  aqui  o  boticairo. 

ORTA 

Façamlhe  muyto  asinha  hum  vomitivo  de  agoa  cozida  com 
cevada  e  cominhos  e  açucare;  porque  os  acho  muito  bons 
pêra  esta  paixão;  o  cristel  será  de  cozimento  de  cevada  e 
farelos  e  olio  rosado,  e  mel  rosado,  coado;  e  os  olios  pêra 
se  untar  seram  de  castoreo  e  de  ruda;  porque  tem  respeito 
ao  veneno,  tudo  misturado.  E  ácerqua  do  comer  da  casa  es- 
tilem huma  galinha  gorda,  tirandolhe  primeiro  a  gordura  que 
tem;  e  deitemlhe  dentro  humas  talhadas  de  marmelos,  e  se  os 
não  acharem  frescos  sejam  de  conserva,  lavados  primeiro 
com  vinho  branco,  e  lançemlhe  huma  pouca  de  agoa  de  ca- 
nella  e  rosada,  e  coral  e  ouro;  e  posto  que  o  doutor,  que 
presente  está,  saiba  milhor  isto  que  todos,  pêra  o  que  se 
deve  fazer,  elle  me  dá  a  mão  a  isso,  como  homem  espre- 
mentado  nesta  terra.  E  porque  elle  está  presente,  diguo  que 
milhor  fora  perdiz  ou  de  Ormuz  ou  da  terra,  ou  guallo,  ou 
galinha  de  mato;  mas  em  quanto  se  isso  não  acha,  podem 
fazer  o  que  disse. 

RUANO 

Em  todo  cabo  podeis  falar,  porque  ha  muyto  tempo  que 
nos  conhecemos. 

ORTA 

Deos  dê  muita  saúde  nesta  casa,  e  não  esqueça  levarme 
recado  do  que  passa. 

RUANO 

Espantado  estou  daquesta  enfermidade;  porque  vi  muitos 
doentes  de  peste,  e  nam  tem  a  vertude  tam  derubada,  nem 


204  Colóquio  decimo  sétimo 

dura  tam  pouquo  polia  mór  parte.  E  porque  dixe,  que 
comera  pepinos,  me  lembra,  que  os  doutores  dizem  de  al- 
guns comeres,  que,  se  se  corrompem,  sam  convertidos  em 
natureza  de  veneno;  e  estes,  se  bem  me  lembra,  sam  me- 
lões, cogombros,  e  pepinos,  e  pexegos,  e  albocorques;  por 
tanto  nam  he  muyto  virlhe  aquella  enfermidade,  depois  de 
comer  pepinos.  E  vi  mais  este  paciente  ter  o  hanelito  muito 
frequente. 

ORTA 

Sabeis  em  quanta  maneira  se  acontece  isto,  que  vi  hum 
fidalgo,  muito  virtuoso,  que  avia  trinta  oras  que  padecia 
esta  enfermidade,  e  me  dizia:  já  nam  saio,  nem  arreveso, 
nem  tenho  caimbra  na  perna,  senam  que  não  posso  tomar 
fôlego,  e  isto  me  mata.  Oulhay  em  que  estado  estava  pros- 
trada a  vertude,  que  nam  podia  deitar  o  fôlego. 

RUANO 

A  que  homens  toma  mais  esta  enfermidade?  E  em  que 
tempos  do  anno  vem  mais? 

ORTA 

Aos  homens  que  mu}^o  comem,  e  aos  que  comem  máos 
comeres;  como  aconteçeo  aqui  a  hum  cónego  mancebo,  que 
de  -comer  pepinos  morreo;  e  aos  que  sam  dados  mu37to  á 
conversação  das  molheres;  e  acontece  mais  em  junho  e  ju- 
lho (que  he  o  inverno  nesta  terra);  e  porque  se  causa  do 
comer  lhe  chamam  os  índios  morxi,  que  quer  dizer,  segundo 
elles,  enfermidade  causada  de  muyto  comer. 

RUANO 

Como  curam  os  físicos  da  terra  esta  enfermidade? 

ORTA 

Damlhe  a  beber  agoa  de  espresam  de  arroz  com  pimenta  e 
cominhos  (a  que  chamão  canje*);  cautirizamlhe  os  pés,  como 


*  Como  se  vê,  a  palavra  canje  ou  cayija  ainda  então  não  tinha  foros 
de  poriugueza. 


Do  Cosi  o  26b 

mandei  fazer  áquelle  fidalgo;  e  mais  \L\nçãm\hc pimenta  longa 
nos  olhos  pêra  csprementar  a  virtude;  e  pêra  a  caimbra 
arrocham  com  percinta  a  cabeça,  e  braços  e  pernas,  mui  for- 
temente até  os  giolhos,  e  dos  giolhos  até  os  pés-,  e  damlhe 
a  comer  o  seu  betre.  E  todas  estas  cousas  nam  carecem  de 
rasam  senam  que  sam  feitas  toscamente. 

RUANO 

E  vós  OS  Portuguezes  que  lhe  pondes,  ou  que  lhe  fazeis? 

ORTA 

Damoslhe  a  comer  perdizes  e  galinhas  estiladas,  ou  çumo 
delias:  também  lhe  damos  toradas  de  vinho  com  canella; 
postoque  estas  cousas  quentes  eu  nam  uso  muyto  nos  come- 
res, senam  postas  pela  parte  de  fora,  scilicet,  untando  o  estô- 
mago com  olio  de  almecega  e  nardino  quentes;  trabalho  com 
muyta  presa  de  limpar  o  estômago  com  mezinhas  lavativas 
somente,  e  com  cristeis;  vam  mistos  segundo  que  a  natureza 
mais  se  vay  inclinando. 

RUANO 

Nam  se  ha  de  ajudar  essa  natureza,  que  he  cega,  e  con- 
strangida de  humor  venenoso. 

ORTA 

Todavia  porque  esse  hunior,  que  he  venenoso,  não  enfe- 
cione  o  outro,  he  bem  que  se  deite  fora  cedo;  e  he  bem 
evacuarse;  depois  com  olios  de  almecega  e  pós  de  canella, 
confortando  o  estômago,  e  a  virtude  retentiva  com  algumas 
ventosas;  mas  ha  de  ser  isto  vacuandose  primeiro  a  mór 
parte  do  humor  (5). 

RUANO 

Tendes  alguma  mezinha  particular  esprementada? 

ORTA 

Algumas;  scilicet,  triaga  bebida,  ou  deitada  em  vinho,  ou 
agoa  rosada,  ou  de  canella,  segundo  a  neçesidade  o  requere; 
o  páo  de  cobra,  de  que  adiante  diremos;  o  unicórnio  espre- 


2Õ6  Colóquio  decimo  sétimo 

mentado ;  e  opáo  de  contra  erva  de  Malaca,  com  que  se  acham 
bem  os  feridos  de  frecha  com  peçonha;  porém  a  mezinha  que 
mais  aproveita,  e  com  que  melhor  me  achei,  he  três  grãos  de 
pedra  be:[ar  (a  que  chamam  j^a^ar  os  Pérsios),  que  daqui  ao 
diante  falarei,  que  em  tanta  maneira  aproveita,  que  casi  mila- 
grosamente dilata  as  forças  do  coração.  Já  ouve  muytos  do- 
entes, que,  dandolhe  a  beber  esta  pedra,  me  diziao,  nam 
sabendo  o  que  lhe  dera,  como  desque  comeram  aquella  me- 
zinha lhe  parecia  que  lhe  viera  novas  forças  e,  lhe  tornara 
a  alma  ao  corpo;  e  em  o  bispo  de  Malaca  (6)  me  achei  muyto 
bem,  dandolhe  esta  pedra  be:{ar  e  a  tria^'a,  depois  de  va- 
cuada  muyta  parte  da  matéria,  deitáralhe  muyta  triaga  em 
cristeis,  acrescentandolhe  a  cantidade. 

RUANO 

Nunca  vi  deitar  nessas  enfermidades  triaga  em  cristeis? 

ORTA 

He  conforme  á  rezam  deitalos  nas  enfermidades  veneno- 
sas, como  a  mim  me  aconteceo,  curando  a  hum  vedor  da 
fazenda  de  elrey,  nosso  senhor,  de  humas  camarás  vene- 
nosas, o  qual  não  querião  consentir  os  meus  companheiros 
físicos;  e  porém  vendo  que  se  achou  bem,  folgarão  com  isso, 
e  o  usaram  em  muytas  pessoas  depois. 

RUANO 

Ha  algumas  enfermidades  na  índia  como  esta,  que  der- 
rubem a  virtude  tanto  como  esta?  E  a  estas  que  mezinhas 
lhe  pondes  por  fora? 

ORTA 

Muitos  homens  morrem  com  a  virtude  derubada,  ou  por- 
que tiveram  camarás  ou  pollo  muyto  uso  das  molheres;  e  a 
estes  (chamão  os  físicos  indianos  mordexi  seco,  scilicet,  á  en- 
fermidade d'elles)  façolhes  fomentaçam  por  fora,  com  vinho 
de  cozimento  de  cominhos,  e  sobre  elles  lanço  olio  nardino 
e  de  almecega,  e  os  comeres  quero  que  cheguem  a  quente, 
mais  sustancialmente  que  em  calidade;  e  não  quero  que  se- 


Do  Cosi  o  267 

jam  gemas  de  ovos,  porque  sam  soversivcis  e  curruptiveis; 
e  porque  da  pedra  bt':{ãr  ei  de  falar  ao  diante,  não  mais. 
E,  tornando  ao  costo,  digo  que  Mateolo  Senense  alega  alguns 
que  tem  que  a  rai\  angélica  he  especia  do  costo,  mas  que  elle 
nem  o  dana  nem  o  aprova ;  e  que  usam  mais  conforme  á  re- 
zam os  que  usam  delia  em  logar  do  costo  que  os  que  usam 
da  ynenta  romana;  e  eu  diguo  que  ella  não  he  costo,  e  pôde 
ser  milhor  mezinha. 


Nota  (i) 

Julgou-se  durante  muito  tempo,  que  a  droga  chamada  costus  fosse  a 
raiz  de  uma  espécie  do  género  Costus  da  familia  das.  Scitaminea.' ;  e  o 
nome  dado  ao  género  resultou  mesmo  d'aquella  persuasão.  Sabe-sehoje, 
que  pertence  a  uma  planta  absolutamente  distincta  e  muito  afastada,  da 
familia  das  Cotnpositie,  a  Saussurea  Lappa,  Clarke  (Aiiklandia  Costus, 
Falconer;  Aplotaxis  Lappa,  Decaisne),  a  qual  se  encontra,  como  logo 
veremos,  nas  regiões  elevadas  e  centraes  da  Ásia. 

Os  nomes  vulgares,  mencionados  por  Orta,  são  ainda  hoje  bem  co- 
nhecidos : 

—  «Cost»  ou  «Cast»  em  «Arábio».  Isto  é,  Ja.^ ,  que  vem  transcripto 
nos  livros  inglezes  kust;  mas  devia  soar  cast,  melhor  qast.  D'este 
nome  deve  vir,  como  Orta  diz,  o  latino  costus  e  o  grego  /coarc.;;  mas  é 
necessário  advertir,  que  o  arábico  qast  já  vinha  do  sanskritico  kustha 
(Cf.  Dymock,  Mat.  med.,  449;  Ainslie  Mat.  ind.,  11,  i65,  salva  a  identi- 
ficação botânica). 

—  «Uplot»  no  Guzerate.  Este  nome  vem  mencionado  por  Dymock, 
na  forma  ouplate,  como  sendo  ainda  usado  em  Bombaim  (Cf  Dymock, 
1.  c). 

—  «Pucho»  em  malayo.  O  dr.  Royle,  comparando  o  costo  do  norte 
da  índia,  com  uma  raiz  conhecida  nos  mercados  de  Calcuttá  pelo  nome 
de puchiik,  reconheceu  serem  cousas  idênticas,  e  acrescenta:  this  iden- 
tity  was  long  ago  ascertained  by  Garcias  ab  Horto.  Dymock  também 
cita  o  mesmo  nome,  na  forma  patchak,  como  usado  em  Bengala  (Cf. 
Royle,  Ant.  of  Hindoo  med.,  88;  Dymock,  1.  c). 

Nota  (2) 

Podia-se  dizer  com  uma  certa  approximação,  e  sem  grande  erro 
geographico,  que  as  terras  de  «Mandou»  e  de  «Chitor»  ficavam  en- 
tre os  reinos  de  Guzerate  e  Dehli  e  Bengala;  e  também  era  verdade. 


268  Colóquio  decimo  sétimo 

que  aquellas  terras  haviam  sido  tomadas,  perdidas,  e  retomadas  pelos 
exércitos  do  Guzerate,  justamente  alguns  annos  antes. 

Os  portuguezes  chamaram  terras  ou  reino  de  «Mandou»  ao  reino 
mussulmano  de  Malwá.  Mandú  era  propriamente  o  nome  de  uma  ci- 
dade fortificada,  situada  na  vertente  meridional  das  serras  de  Vindya, 
e  que  foi  muito  tempo  capital  d'aquelle  estado.  Do  mesmo  modo  cha- 
maram reino  de  Chitor  ao  principado  rajpút  de  Mewár  ou  Udipúra, 
quando  o  nome  pertencia  especialmente  a  uma  famosa  fortaleza  d'este 
estado.  Tanto  Barros  como  Gaspar  Corrêa  faliam  largamente  d'estas 
terras,  quando  tratam  das  guerras  do  sultão  Badur;  mas  sem  fixarem 
bem  as  suas  posições  respectivas. 

Orta  estava  enganado,  quando  julgava  que  o  costo  vinha  d'ali,  vinha 
simplesmente  por  ali,  mas  procedia  de  muito  mais  longe.  O  conhecido 
viajante  francez,  Victor  Jacquemont,  encontrou  (i83i)  a  planta  que 
produz  o  costo  nos  valles  do  Kachmira,  e  vertentes  do  Himalaya,  em 
altitudes  consideráveis.  Na  mesma  região  a  observou  o  dr.  Falconer, 
alguns  annos  depois,  verificando  bem  que  d'ella  procedia  a  droga  do 
commercio.  Colhe -se  ali  a  raiz  da  Saussurea  em  grandes  quantidades, 
e  uma  parte  d'esta  raiz  aromática  é  empregada  pelos  negociantes  para 
conservar  e  preservar  da  traça  os  celebres  e  preciosos  chailes,  fabrica- 
dos n'aquella  região.  Alguma  segue  por  terra  para  a  China,  via  Thibet; 
outra  parte  é  levada  a  Calcuttá,  d'onde  se  exporta  principalmente  para  a 
China;  e  finalmente  alguma  vem  aos  portos  do  occidente,  sobretudo  a 
Bombaym  (Cf.  Falconer,  nas  Trans.  Linn.  Soe,  xix,  23;  Dymock,  1.  c). 

No  tempo  de  Orta,  Bombaym  não  existia  como  porto  commercial, 
sendo  apenas  uma  ilha  meia  deserta,  de  que  elle  era  foreiro,  e  as  merca- 
dorias affluiam  ás  cidades  do  norte,  á  cidade  interior  de  «Amadabar» 
(Ahmedábad),  e  ás  cidades  marítimas  de  Diu,  de  Surrate,  ou  de  Cam- 
bayete.  Esta  ultima,  situada  no  fundo  de  um  golpho,  ou  — como  Orta 
diz —  «no  cotovello  do  mar  da  enseada»,  era  geralmente  chamada  Cam- 
baya;  mas  o  nome  de  Cambayete  é  correcto,  e  mais  próximo  mesmo  do 
antigo  nome  hindu  Khainbavati,  e  da  forma  arábica  Kambáyat.  Vendo 
chegar  a  Cambayete  as  longas  filas  de  carretas  indianas,  carregadas  de 
espique,  de  uplot,  e  de  tincar,  os  nossos  portuguezes  não  suppunham 
que  o  iiplot  viesse  de  tão  longe,  das  alturas  do  Himalaya,  e  o  tincar 
ainda  de  mais  longe,  dos  planaltos  do  Thibet. 

O  uplot,  mais  geralmente  chamado  pucho,  era  então  uma  mercado- 
ria importante,  principalmente  no  commercio  com  a  China;  e  d'isso 
temos  uma  prova  no  facto  de  el-rei  D.  Manuel  reservar  o  seu  trafico 
para  o  estado,  pouco  depois  de  nós  estabelecermos  relações  com  aquelle 
império.  Logo  no  anno  de  1 520,  estando  em  Évora,  D.  Manuel  prohibiu 
o  commercio  da  pimenta  para  a  China;  e,  em  um  regimento  sem  data 
mas  provavelmente  pouco  posterior,  enviado  a  Diogo  Ayres,  feitor  na 
China,  diz  o  seguinte : 


Do  Cos  to  269 

«nós  temos  defeso  a  pimenta  pêra  a  China,  e  asi  defendemos  aguora 
o  pucho  e  emcenso,  que  se  nom  leve  desas  partes  da  índia  pêra  a 
China«  fArchivo  port. -oriental,  fase.  5.°,  part.  11,  49). 

Era  pois  verdade  o  que  Orta  dizia,  que  «a  maior  cantidade  se  gasta 
pêra  levar  a  China» ;  e  continua  a  ser  verdade  que  ainda  hoje  a  maior 
parte  do  costo  vae  para  o  Celeste  Império.  Attribuem-lhe  ali  numero- 
sas propriedades  medicinaes,  carminativas,  estimulantes,  antisepticas  e 
muitas  mais;  mas  é  sobretudo  empregado  para  queimar,  com  uma  si- 
gnificação religiosa.  Em  todas  as  casas,  em  todos  os  juncos  e  barcos 
que  fluctuam  nos  enormes  rios  do  Império,  o  patchak  arde  reverente- 
mente, e  as  espiraes  do  seu  fumo  aromático  sobem  para  a  imagem  de 
Buddha,  que  invariavelmente  se  encontra  em  toda  a  habitação  chineza. 


Nota  (3) 

Parece  fora  de  duvida,  que  o  costo  mencionado  por  Theophrasto,  e 
depois  d'elle  por  Dioscorides,  Galeno,  Plinio  e  outros,  era  este  de  que 
tratamos,  e  vinha  já  então  do  Kachmira  aos  portos  da  índia  Occiden- 
tal, e  d'ali,  pelos  caminhos  bem  conhecidos,  aos  mercados  do  Mediter- 
râneo. As  distincçÕes  em  arábico,  indico  e  syriaco,  que  Orta  menciona 
pela  boca  de  Ruano,  foram  feitas  por  Dioscorides,  o  qual  falia  do  /cserroç 
àpxoi/.òç,  do  tv^i/.oí,  e  do  (Tjpiaxi'.;;  mas  não  é  fácil  saber  hoje  se  eram  real- 
mente drogas  distinctas,  e  Sprengel  é  de  opinião,  que,  pelo  menos  os 
dois  primeiros,  deviam  differir  apenas  no  estado  de  conservação,  acre- 
scentando: quodjam  Garcias  autiimavit. 

A  distincção  entre  doce  e  amargo  também  devia  resultar  do  estado 
mais  ou  menos  perfeito  da  droga.  Guibourt,  que  estudou  muito  cui- 
dadosamente esta  questão  do  costiis,  e  reconheceu  que  devia  pertencer 
a  uma  Compósita,  mesmo  antes  da  planta  ser  conhecida,  é  da  opinião 
do  nosso  Orta,  admittecomo  elle  que  nunca  houve  mais  de  uma  es- 
pécie, a  mesma  que  hoje  temos,  e  cita  as  suas  affirmações:  Garcias 
dit  s'ètre  informe  des  commerçants  árabes,  fures  et  persans,  s'il  nais- 
sait  chej  eux  quelque  autre  espèce  de  costiis  que  celle  tirée  de  Vinde,  et 
que  tous  liii  ont  répondu  ne  connaitre  que  le  costus  de  Vinde. 

Vé-se  pois,  que  as  opiniões  do  nosso  escriptor  têem  sido  admittidas 
geralmente,  e  citadas  como  auctoridade.  A  sua  descripção  da  droga, 
do  aspecto  e  côr  da  madeira  e  da  casca,  e  d'aquelle  cheiro  forte  e  que 
ataca  a  cabeça,  é  bastante  conforme  com  os  caracteres  apontados  nos 
livros  modernos  de  Pharmacographia.  Quanto  á  planta,  é  claro  que  a 
não  viu,  nem  tinha  sobre  a  sua  feição  idéas  muito  positivas;  e  se  a  com- 
parou com  o  «sabugo»  foi  provavelmente  pela  disposição  e  dimensões 
da  medulla,  que  pôde  observar  nos  troncos  seccos  da  droga  (Cf.  Spren- 
gel, Diosc.  I,  29  e  II,  353;  Guibourt,  Hist.  nat.  des  drogues,  11,  28). 


2-0  Colóquio  decimo  sétimo 

Nota  (4) 

Quasi  todos  os  nossos  escriptores  quinhentistas,  que  se  occuparam 
das  cousas  do  Oriente,  louvaram  a  civilisação  da  China.  Quasi  todos 
admiram  a  «policia»  dos  chins,  as  suas  leis,  a  sua  perícia  nas  artes 
e  officios,  a  sua  perspicácia  nos  negócios  commerciaes.  Parece  que 
aquella  civilisação  material,  methodica  e  regrada,  os  impressionou  mais 
do  que  a  cultura  intellectual  dos  hindus,  muito  superior  sob  alguns 
pontos  de  vista,"e  que  elles  em  geral  não  comprehenderam. 

Garcia  da  Orta  tem,  pois,  as  opiniões  dos  seus  contemporâneos ;  e,  so- 
bre isso,  tem  um  sentimento  natural  em  um  antigo  estudante  em  Sala- 
manca, e  antigo  professor  de  Siimmulas  em  Lisboa  — uma  grande  admi- 
ração pela  importância  dada  aos  homens  de  letras,  por  aquella  serie  de 
exames  e  de  «grãos»,  donde  saía  e  ainda  sáe  toda  a  rede  de  funcciona- 
rios  do  Celeste  Império,  desde  os  ínfimos,  até  aos  que  constituem  os 
mais  altos  conselhos,  e —  na  sua  phrase  — «governam  o  rei  e  a  terra». 

Mas  a  referencia  mais  interessente  d'esta  passagem,  é  sem  duvida  a 
que  diz  respeito  á  invenção  na  China  da  «arte  de  emprimir».  Vemos 
que  ainda  neste  ponto  o  nosso  escriptor  andava  bem  informado,  tendo 
naturalmente  as  ídéas  correntes  então,  de  que  a  origem  d'aquella  arte  se 
perdia  na  noite  dos  tempos,  e  não  havia  em  «memoria  d'omens  . .  .  quem 
a  inventou».  Muito  depois  de  Orta,  uma  das  maiores  auctoridades  sobre 
as  cousas  da  China,  o  padre  Du  Halde,  dizia  do  mesmo  modo,  que  a 
imprensa  existia  ali  de  teinps  immémorial.  E  se  isto  não  é  absoluta- 
mente exacto,  é  pelo  menos  certo,  que  a  invenção  é  antiquíssima,  pois 
um  decreto  do  imperador  Wan-tí  (.SgS  J.  C.)  mandava  já  que  os  livros 
mais  importantes  fossem  reunidos,  para  serem  gravados  em  madeira,  e 
depois  publicados. 

Em  uma  das  suas  phrases  — coUocada  na  boca  do  dr.  Ruano —  o 
nosso  escriptor  parece  admittir,  que  a  invenção  da  imprensa  tivesse 
vindo  da  China  para  a  Europa.  A  idéa  não  é  nova;  e  o  velho  Garcia 
de  Rezende  também  approxima  a  recente  arte  europêa  da  pratica  ante- 
riormente seguida  na  China : 

E  vimos  em  nossos  dias 
A  letra  de  forma  achada, 
Com  que  a  cada  passada 
Crescem  tantas  livrarias, 
E  a  sciencia  he  augmentada: 
Tem  Allemanha  louvor. 
Por  delia  ser  o  auctor 
Daquesta  cousa  tam  digna. 
Outros  affirmam  na  China 
O  primeiro  inventador. 


Do  Costo  271 

Modernamente  mesmo,  aquella  idéa  não  foi  de  todo  abandonada. 
Disse-se,  por  exemplo,  que  um  certo  Panfilo  Castaldi  imprimira  algu- 
mas folhas  em  Veneza,  antes  de  Gutenberg  e  de  Faust,  sendo  guiado 
na  sua  invenção  pelo  exame  dos  livros  impressos,  que  Marco  Polo  trou- 
xera da  China.  Estes  direitos  de  prioridade  de  Castaldi  não  resistem  a 
um  demorado  exame,  como  o  que  fez  sir  Henri  Yule.  Mas  é  certo,  que 
algumas  impressões  xylographicas,  anteriores  ás  impressões  com  typos 
moveis,  apresentam  uma  notável  similhança  com  os  trabalhos  chins;  e 
é  possível  que  alguns  livros  impressos  fossem  trazidos  da  China,  se  não 
por  Marco  Polo,  por  algum  d'aquelles  numerosos  frades,  franciscanos  e 
dominicos,  que  então  penetraram  nas  terras  do  remoto  Oriente,  e  que 
a  inspecção  d'esses  livros  influisse  nas  primeiras  tentativas  europèas. 

Admittindo,  porém,  esta  influencia  — que  ainda  assim  é  muito  proble- 
mática—  deveriamos  attribuil-a  a  um  ou  outro  specimen,  trazido  pelos 
viajantes,  e  nunca  áquellas  communicaçóes  directas  de  que  falia  o  nosso 
escriptor.  É  pelo  menos  singular  a  phrase,  que  elle  colloca  na  boca  do 
seu  interlocutor  Ruano:  «...  em  Ungria,  ou  nessas  partes  mais  seten- 
trionaes,  as  quaes  dizem  que  confinam  com  a  China».  Esta  approxima- 
cão  entre  a  Ungria  e  a  China  faz-nos  á  primeira  vista  a  impressão  de  um 
monstruoso  erro  geographico.  E,  no  emtanto,  a  phrase  tem  uma  expli- 
cação, se  não  uma  desculpa. 

O  erro  de  Orta  devia  resultar  da  grandíssima  extensão,  que,  nos  dois 
ou  três  séculos  anteriores,  tivera  o  poder  dos  tártaros  — tomando  esta 
palavra  tártaros  na  sua  mais  larga  e  mais  vaga  accepção.  Por  um  lado 
os  tártaros  haviam  conquistado  a  China,  confundiam-se  mesmo  com  os 
chins;  e  Orta  mostra  ter  conhecimento  d'esta  approximação,  chamando 
aos  últimos  os  seitas  asianos.  Por  outro,  os  tártaros  haviam  invadido  a 
Europa,  occupado  a  maior  parte  do  que  hoje  é  a  Rússia,  entrado  nas 
terras  da  Polónia  e  da  Ungria.  Das  fronteiras  d'estas  províncias  orien- 
taes  da  Europa,  estendia-se  para  leste  uma  enorme  Tartaria,  que  vaga- 
mente se  fundia  com  a  China  do  norte,  com  as  terras  de  Cathayo  ou 
de  Kitai.  Imaginar,  que  por  este  caminho  as  invenções  da  civilisada 
Pe-Kíng  se  podiam  communicar  á  civilisada  Moguncia,  seria  hoje 
absurdo,  dado  o  conhecimento  que  temos  das  regiões  intermédias. 
Mas  não  conhecendo  essas  regiões,  não  podendo  rectificar  as  idéas  pela 
inspecção  de  uma  carta  exacta,  comprehende-se  como  se  podia  chegar 
á  singular  phrase  pronunciada  pelo  dr.  Ruano.  O  dominico  fr.  Gaspar 
da  Cruz,  que  era  illustrado,  que  esteve  muito  tempo  na  China,  que  co- 
nheceu bem  os  hábitos  e  costumes,  e  mesmo  a  geographia  das  provín- 
cias do  sul,  também,  depois  de  uma  nebulosa  dissertação  sobre  as  fron- 
teiras da  China  pelo  lado  do  norte,  chega  á  seguinte  conclusão:  «e  aqui 
parece  claro  a  China  confinar  com  o  ultimo  d'Allemanha». 

Não  encontrei  propriamente  noticia  d'aquelle  impedimento  diri- 
mente do  matrimonio,  que  Orta  menciona  com  louvor;  mas  é  certo 


2'72  Colóquio  decimo  sétimo 

que  a  lei,  pela  qual  estas  cousas  se  regulavam,  era  na  China  muito  mi- 
nuciosa. O  padre  Du  Halde  enumera  longamente  muitos  casos  de  nul- 
lidade,  observados  nos  casamentos  chins. 

(Cf,  Du  Halde,  Description  de  la  Chine,  ii,  i23  e  249,  Paris,  1/35; 
Firmin  Didot,  Essai  siir  la  Typographie,  p.  565  e  918;  Garcia  de  Re- 
zende, Miscellania,  na  Chron.  de  D.  João  II,  i63  v.",  Lisboa,  1622; 
Yule,  Marco  Polo,  i,  i32,  e  na  primeira  edição  11,  473;  fr.  Gaspar  da 
Cruz,  Tratado  da  China,  24.) 

Nota  (5) 

Garcia  da  Orta  descreve  um  caso  de  cholera  de  forma  grave,  do 
cholera  asiático  ou  cholera  morbiis  propriamente  dito.  Conhecia  o  cho- 
lera europeu,  que  havia  sido  estudado  pelos  antigos  médicos,  Hippocra- 
tes,  Aretêo,  Celso  e  outros,  e  a  que  chama  colérica  passio;  conhecia 
a  analogia  d'esta  enfermidade  com  aquella  que  observava  na  índia; 
mas  conhecia  também  a  maior  gravidade  da  ultima,  dizendo :  «ca  he 
mais  aguda  que  em  nossas  terras». 

As  temerosas  epidemias  que  devastaram  a  índia  no  anno  de  18 17  e 
seguintes,  chamaram  especialmente  a  attenção  para  esta  doença,  e  le-. 
varam  quasi  a  crer  que  fosse  nova,  ou  pelo  menos  que  se  apresentasse 
então  com  uma  gravidade  antes  desconhecida.  Parece,  porém,  ter  exis- 
tido na  índia,  tanto  na  forma  sporadica  como  na  forma  epidemica, 
desde  tempos  muito  antigos;  e  se  alguma  dúvida  se  levantou  a  este  res- 
peito, essa  duvida  deve  unicamente  resultar  dos  nomes  variados,  dados 
á  doença,  e  das  descripçóes  imperfeitas  dos  seus  symptomas.  Diz-se  que 
já  se  encontram  referencias  ao  cholera  nos  escriptos  do  lendário  medico 
hindu,  Susrúta,  ou  pelo  menos  em  versões  tamilicas  de  fragmentos,  que 
lhe  são  attribuidos.  E  o  investigador  Whitelaw  Ainslie  dá-nos  variados 
nomes  da  doença  em  quasi  todas  as  linguas  falladas  na  índia :  ennêrurn 
vandie  em  tamil;  dãnk-lugnã  em  deckani;  chirdie-rogum  em  sanskrito; 
vãntie  em  tellingu;  nirtiripa  em  maláyalam.  Isto  parece  denunciar  um 
conhecimento  muito  geral,  e  provavelmente  muito  antigo,  d'aquella 
enfermidade,  conhecimento  espalhado  por  todas  as  regiões  da  índia 
(Cf.  W.  Ainslie,  Mat.  ind.,  11,  53 1). 

Deixando,  porém,  este  campo  escorregadio  dos  remotos  períodos  hin- 
dus, dos  quaes  parece  haver  poucas  noticias,  ou  pelo  menos  poucas  noti- 
cias seguras,  vejamos  o  que  diz  respeito  ao  tempo  dos  portuguezes.  Na 
Vida  de  João  de  Empoli,  aquelle  florentino  que  andou  na  companhia 
e  na  armada  dos  Albuquerques,  diz-se  que,  estando  elle  nos  portos  da 
China,  a  guarnição  dos  navios  em  que  ia  foi  atacada  por  uma  grave 
doença,  da  qual  rapidamente  morreram  70  homens,  e  entre  elles  o 
próprio  João  de  Empoli;  a  doença  era  uma  péssima  malatia  di  f russo, 
por  onde  parece  que  seria  o  cholera.  Quando  Martim  AfFonso  de  Mello 


Do  Costo  273 

naufragou  na  costa  de  Arracán,  se  refugiou  em  uns  ilhéos  onde  a  agua 
era  má,  e  a  sua  gente  foi  obrigada  a  comer  umas  sementes  de  leguminosas 
que  encontrou,  appareceram  na  guarnição  «humas  desinterias  . . .  que 
he  hum  mal  que  em  vinte  e  quatro  horas  mata»,  tendo  os  atacados 
«sede  grandíssima,  os  olhos  mui  sumidos,  grandes  vómitos».  Estes  e 
outros  exemplos  seriam  suflficientes  para  mostrar  como  o  cholera  exis- 
tia então  no  Oriente,  e  tomava  facilmente  uma  forma  epidemica  grave 
(Cf.  Archivo  storico  Italiano,  3o,  citado  por  Yule  e  Burnell;  Couto,  Ásia, 
IV,  IV,  10). 

Mas  a  noticia  mais  interessante,  é  sem  duvida  a  que  nos  dá  Gaspar 
Corrêa  acerca  da  epidemia  do  anno  de  i543.  Comquanto  as  suas  Len- 
das andem  em  todas  as  mãos,  a  noticia  completa  tão  bem  o  que  diz 
Garcia  da  Orta,  que  a  transcrevemos  na  integra,  apesar  de  longa.  E 
ainda  mais  somos  levados  a  fazel-o  pelo  facto  de  vir  incorrectissima- 
mente  citada  em  livros  de  medicina  de  auctoridade.  O  moderno  Dict. 
Encycl.  des  Sciences  médicales  de  Dechambre  diz  o  seguinte  (vol.  xvi, 
p.  749) :  Uacadémie  des  Sciences  òe  Lisbonne  a  publié  sous  le  nom  de 
Lendas  da  índia  des  documents  diis  a  Gaspar  Corrêa  dans  lesquels  le 
Dr.  Gaskain  a  retrouvé  ce  passa ge  du  á  Christoval  d' Acosta  ...  E  na 
transcripção  encontra-se  a  seguinte  phrase:  //  est  fréquent  d'observer 
dans  Vinde  á  Morschy  une  épidémie  épouvantable  et  violente  . . .  É 
forçoso  confessar,  que  tudo  isto  é  o  mais  completo  documento  de 
leviandade,  que  será  possível  encontrar  em  um  livro  serio.  As  Len- 
das da  índia  transformadas  em  uma  collecção  de  documentos  já 
não  é  mau;  mas  um  d'esses  documentos  attribuido  a  Christovão  da 
Costa,  é  a  perfeição  no  erro.  Não  fallaremos  n'aquelle  Morschy,  que 
significava  um  logar  ou  região !  Deixemos  o  Diccionario,  e  vejamos  o 
que  disse  Gaspar  Corrêa: 

«N'este  inverno  1  ouve  em  Goa  huma  dôr  mortal,  que  os  da  terra  cha- 
mão  moryxy,  muy  geral  a  toda  calidade  de  pessoa,  de  minino  muy  pe- 
queno de  mama  até  velho  de  oitenta  annos,  e  nas  alimárias  e  aues  de 
criação  da  casa-,  que  a  toda  cousa  vivente  era  muy  geral,  machos  e  fê- 
meas; a  qual  dôr  dava  na  criatura  sem  nenhuma  causa  a  que  se  pudesse 
reputar,  porque  assy  vinha  aos  sãos  como  aos  doentes,  aos  gordos  como 
aos  magros,  que  em  nenhuma  cousa  deste  mundo  tinha  resguardo.  A 
qual  dôr  daua  no  estamago,  causada  de  frialdade  segundo  affirmauão 
alguns  mestres;  mas  depois  se  affirmou  que  lhe  nom  achauão  de  que 
tal  dôr  se  causasse.  Era  a  dôr  tão  forte,  e  de  tanto  mal,  que  logo  se  con- 
uertia  nas  sustancias  de  forte  peçonha,  a  saber:  d'arrauesar,  e  beber 
muyta  agoa,  com  deseqamento  do  estamago,  e  cambra  que  lh'encoIhia 


'  Isto  é  no  verão  do  anno  de  i543,  no  período  das  chuvas  e  dos  ventos  de  travessia,  que 
lá  chamavam  inverno. 

18 


274  Colóquio  decimo  sétimo 

os  neruos  das  curuas,  e  nas  palmas  dos  pés,  com  taes  dores  que  de  todo 
o  enfermo  ficava  passado  de  morte,  e  os  olhos  quebrados,  e  as  unhas 
das  mãos  e  dos  pés  pretas  e  encolheitas.  A  qual  doença  os  nossos  fisi- 
quos  nunca  acharão  cura;  e  durava  o  enfermo  um  só  dia,  e  quando 
muyto  huma  noyte,  de  tal  sorte  que  de  cem  doentes  nom  escapauão 
dez,  e  estes  que  escapauão  erão  alguns  por  lhe  acodirem  muy  em  breve 
com  meizinhas  de  pouqua  sustancia,  que  sabião  os  da  terra.  Foy  tanta  a 
mortindade  n'este  inverno  que  todo  o  dia  dobrauão  sinos,  e  enterrauão 
mortos  de  doze  e  quinze  e  vinte  cada  dia;  em  tanta  maneira  que  man- 
dou o  Governador  que  se  nom  tangessem  sinos  nas  igrejas,  por  nom 
fazer  pasmo  á  gente.  E  por  esta  ser  huma  doença  tão  espantosa,  mor- 
rendo hum  homem  no  esprital  d'esta  doença  de  moryxy  o  Governador 
mandou  ajuntar  todolos  mestres,  e  o  mandou  abrir,  e  em  todo  o  corpo 
de  dentro  lhe  nom  acharão  mal  nenhum,  somente  o  bucho  encolheito, 
e  tamanino  como  huma  muela  de  gallinha,  e  assy  enverrugado  como 
coiro  metido  no  fogo.  Ao  que  disserão  os  mestres  que  o  mal  d'esta 
doença  daua  no  bucho,  e  o  encolhia,  e  fazia  logo  mortal.  E  porque 
hauia  grande  apressão  no  enterramento  dos  mortos,  que  os  crelgos  da 
sé  nom  podiam  tanto  soprir,  então  o  bispo  dom  Affonsoi  d'Albuquer- 
que  repartio  freguezias  pola  cidade,  e  fez  freguezias  Santa  Maria  do 
Rosário,  e  Santa  Maria  da  Luz;  sobre  que  tiverão  muy  tos  debates, 
porque  os  crelgos  da  sé  nom  quizerão  consentir  que  as  freguezias  le- 
vassem os  dizimos  de  seus  freguezes»  (Lendas,  iv,  288). 

Vê-se  bem  claramente  d'esta  pagina,  que  na  capital  da  índia  por- 
tugueza  se  deu  no  anno  de  i543  uma  d'estas  explosões  epidemicas  de 
cholera,  que  se  pôde  comparar  em  gravidade  com  todas  as  dos  sé- 
culos posteriores  e  mesmo  do  nosso.  Garcia  da  Orta  devia  estar  então 
em  Goa,  observou  a  epidemia,  foi  talvez  dos  mestres  que  se  juntaram 
para  assistir  á  autopsia  do  cholerico;  mas  de  nada  d'isto  falia  no  Coló- 
quio. Como,  na  sua  longa  clinica,  elle  tratou  numerosos  casos  de  cho- 
lera, já  sporadica,  já  epidemica,  quiz  de  certo  fundir  os  resultados  da 
sua  experiência  na  descripção  de  um  caso  único,  sem  especificar  a  epo- 
cha  ou  circumstancias  em  que  o  observou. 

O  exame  d'esta  parte  do  Colóquio,  sob  o  ponto  de  vista  medico,  a 
confrontação  dos  symptomas  descriptos  com  os  mencionados  nos  livros 
da  actualidade,  a  discussão  do  methodo  de  tratamento,  poderiam  ser 
o  objecto  de  uma  memoria  especial  muito  interessante;  mas  sairiam 
completamente  do  plano  d'estas  notas,  e  entrariam  no  dominio  do  com- 
7iientario,  qiie  cuidadosamente  temos  evitado-.  De  resto,  a  exposição 
de  Garcia  da  Orta  é  por  si  só  bastante  clara  e  interessante. 


'  Um  lapso  de  Gaspar  Corrêa,  o  bispo  cliamava-se  D.  João. 

'  Veja-se  Garcia  da  Orta  e  o  seu  tempo,  pag.  3i3  a  32o,  onde  dêmos  algumas  indicações, 
muito  incompletas  e  imperfeitas. 


Do  Cosi  o  275 

Ha,  porém,  um  ponto  a  elucidar  em  breves  palavras — o  que  se  refere 
aos  nomes  orientaes  da  doença.  Gaspar  Corrêa  chama-lhe  moryxy. 
Orta  diz,  que  os  indianos  lhe  davam  o  nome  de  morxi,  e  os  portu- 
guezes  corruptamente  o  de  mordexi;  e  mais  adiante  aíTirma  que  morxi 
significa  «enfermidade  causada  de  muito  comer«.  Diogo  do  Couto 
dá  morxis  como  a  boa  forma  correcta,  e  mordexim  como  a  al- 
teração da  palavra  usada  pelos  nossos.  Esta  alteração  não  me  pa- 
rece provável;  de  morxi  os  portuguezes  deviam  fazer  morxim,  por 
uma  modificação,  que  foi  regular  e  constante,  do  i  terminal  agudo, 
mas  não  havia  rasão  para  introduzirem  a  syllaba  de  de  mordexim. 
Devemos  procurar  esta  syllaba  na  origem  indiana.  Yule  e  Burnell, 
em  um  excellente  artigo  do  seu  Glossary,  no  qual  aproveitaram  os 
trabalhos  do  dr.  Macpherson  e  de  Macnamara,  dizem  que  o  nome 
do  cholera  em  guzerati  parece  ser  mõrchi  ou  mõrachT,  e  este  é  evi- 
dentemente e  quasi  sem  alteração  o  moryxy  de  Corrêa,  e  o  morxi  de 
Orta;  dizem  também  que  em  marathi  e  concani  se  chama  modackí, 
modshi,  ou  modwashi,  que  se  deriva  do  verbo  modnen,  significando 
abater-se,  deprimir-se,  pelo  coUapso  especial  dos  últimos  momentos  do 
cholera,  aquillo  a  que  o  nosso  medico  chamava  «vertude  derrubada». 
Os  portuguezes  ouviram  de  certo  os  dois  nomes,  e  fizeram  uma  certa 
combinação  de  que  saiu  o  nome  constantemente  usado  mordexim. 

Durante  mais  de  dois  séculos  esta  palavra  foi  empregada  pelos  portu- 
guezes —  e  por  todos  os  europeus  que  viajaram  na  índia —  para  desi- 
gnar o  cholera:  umas  vezes  escripta  mordicin  pelos  italianos,  como  Car- 
letti;  outras  escriptas  mordisin  pelos  francezes,  como  Pyrard;  algumas 
mordexi  pelos  que  usavam  a  lingua  latina,  como  Boncio.  Depois,  os  fran- 
cezes lembraram-se  de  lhe  dar  uma  significação,  e  combinando  o  som  da 
palavra  com  os  horrores  da  morte,  chamaram  á  doença,  mort  de  chien. 
Nas  Lettres  édijiantes  para  o  anno  de  1 702  vem  a  seguinte  phrase,  que 
marca  o  momento  de  adopção  do  novo  nome  :  «cetíe  grande  indigestion 
qu'on  appelle  aitx  Indes  mordechin,  et  que  qiielques  uns  de  nos  Français 
ont  appellée  mort-de-chien».  Apesar  de  ridículo,  este  nome  foi  adoptado, 
não  só  em  obras  francezas,  como  também  nos  livros  escriptos  em  ou- 
tras linguas,  e  houve  mesmo  um  inglez  que  traduziu  á  letra :  « the  ex- 
traordinary  diseases  of  this  country  are  the  Cholik,  and  what  they  call 
the  Dog's  Disease  ...» 

Nem  sempre,  porém,  se  identificava  correctamente  a  mort-de-chien 
com  o  cholera.  Sonnerat,  por  exemplo,  que  descreve  as  duas  graves  epi- 
demias de  cholera,  que  reinaram  em  Pondichéry  alguns  annos  antes  do 
de  1782  em  que  elle  escreveu,  chama-lhe y7i/.v  aigu,  e  diz  logo  adiante: 
ules  indigestions  appellées  dans  linde  mort-de-chien  son  frequentes». 
Parece  não  ter  a  noção  clara  de  que  o  sQuflux  aigu  e  a  mort-de-chien 
eram  a  mesma  cousa.  Mais  tarde,  a  identificação  fez-se,  e  Johnson  diz 
em  iSi3:  «Mort-de-chien  is  nothing  more  than  the  highest  degree  of 


276  Colóquio  decimo  sétimo  do  Costo 

Cholera  Morbus».  No  nosso  século  os  antigos  nomes  mordexim  e  mort- 
de-chien  caíram  em  desuso,  sendo  geralmente  substituídos  pelo  de  cho- 
lera. 

O  morxi,  segundo  diz  Orta,  chamava-se  em  arábico  hachai^a,  nome 
que  na  versão  de  Rasis  se  encontrava  incorrectamente  saída.  Diogo  do 
Couto  escreve  sachai^a,  mas  n'esta  e  n'outras  passagens  suspeito  que 
apenas  segue  o  nosso  Orta.  Este  termo  arábico  ainda  é  conhecido  na 
forma  hai^ah,  e  é  commummente  usado  em  hindustani  para  designar  o 
cholera;  mas  encontra-se  nas  antigas  relações  mussulmanas  de  succes- 
sos  da  índia,  applicado  a  epidemias,  que  nem  sempre  talvez  fossem  de 
cholera;  por  onde  parece  que  primitivamente  significaria  em  geral  uma 
doença  grave  e  contagiosa. 

(Cf.  Couto,  1.  c;  Yule  e  Burnell,  Glossary,  palavra  Mort-de-chien, 
donde  principalmente  extrahi  as  citações;  e  também  Sonnerat,  Voya- 
ges,  I,  III  a  1 15.) 

Nota  (6) 

Este  bispo  de  Malaca  devia  ser  o  primeiro  d'aquella  diocese,  D.  fr. 
Jorge  de  Santa  Luzia.  O  bispado  de  Nossa  Senhora  da  Assumpção  da  ci- 
dade de  Malaca  foi  creado  pelo  papa  Paulo  IV,  juntamente  com  o  de 
Santa  Cruz  de  Cochim,  e  na  occasião  em  que  o  bispado  de  Goa  foi  ele- 
vado a  arcebispado,  a  pedido  dos  tutores  de  D.  Sebastião.  Os  dois  novos 
bispos,  fr.  Jorge  de  Santa  Luzia  de  Malaca,  e  fr.  Jorge  Themudo  de  Co- 
chim foram  na  armada  do  anno  de  i55g,  commandada  por  Pêro  Vaz 
de  Siqueira.  O  bispo  de  Malaca  ia  na  nau  Algaravia  — Figueiredo  Fal- 
cão chama-Ihe  Assumpção —  da  qual  era  capitão  Francisco  de  Sousa. 
N'esta  mesma  armada  passou  á  índia  um  dos  seus  mais  conhecidos  his- 
toriadores, Diogo  do  Couto. 

É  provável  que  o  bispo  tivesse  um  ataque  de  cholera  logo  á  chegada 
a  Goa,  do  qual  o  curou  Garcia  da  Orta,  dando-lhe  pedra  beijar  e  triaga. 
É  licito  attribuir  maior  acção  ao  ópio  da  theriaca  do  que  á  pedra  be^^oar; 
mas,  fosse  como  fosse,  o  bispo  escapou  (Cf  Couto,  Ásia,  vii,  viii,  2). 


COLÓQUIO  DECIMO  OCTAVO 

DA  CRISOCOLA  E  CROCO  INDIACO,  QUE  HE  AÇAFRÃO 
DA  índia,  E  das  CURCAS 


INTERLOCUTORES 
ruano,  orta,  serva 

RUANO 

Encomendaramme  e  ensinaramme  em  Portugal  que  le- 
vase  de  qua  iitical;  e  porque  se  chama  cnsocola,  será  bem 
que  façamos  delle  aqui  mençam,  e  que  o  leve  de  qua. 

ORTA 

Si;  mas  he  das  drogas  defesas,  e  por  pouquo  perdereis 
o  muyto. 

RUANO 

Não  o  quero  levar,  senam  quero  saber  onde  o  ha  e  o  nome 
delle. 

ORTA 

Chamase  bórax  e  crisocola,  e  tincar  em  arábio,  e  os  Gu- 
zarates  asi  o  chamam:  não  se  usa  na  física  indiana  senão 
muyto  pouco,  e  pêra  sarna  e  cirurgia:  nem  nós  a  usamos 
muyto,  senão  entra  no  unguento  cetrino,  e  nos  outros  afei- 
tes das  molheres;  e  pêra  os  dentes  e  sarna.  E  he  mercado- 
ria que  se  gasta  em  todas  as  partes,  pêra  o  ouro  e  os  ou- 
tros metaes  serem  bem  feitos  e  conglutinados;  e  esta,  que 
vay  de  qua,  he  minério  em  huma  serra  que  está  apartada 
da  cidade  de  Cambayete  cem  léguas  nossas;  e  trazem  a  ven- 
der ahi  e  a  Amadabar*,  e  vem  das  bandas  de  Chitor  e  Man- 
dou, em  mu3ia  cantidade  delle;  porque  em  todas  as  terras 
se  gasta  muyto  (i). 


*  «Madabar»  na  ed.  de  Goa;  mas  por  erro  evidente.  Veja-se  o  Coló- 
quio anterior. 


278  Colóquio  decimo  octavo 

RUANO 

Pois  nisto  nam  ha  mais  que  falar,  falemos  no  que  cha- 
mais acafram  da  terra. 

ORTA 

Essa  mezinha  he  pêra  falar  nella,  porque  a  usam  India- 
nos médicos;  e  he  mezinha  e  mercadoria  que  se  leva  muyta 
pêra  Arábia  e  Pérsia;  e  nesta  cidade  ha  pouco  delia,  e  no 
Malavar  muyto,  scilicet,  em  Cananor  e  Calecut.  Chamão  os 
Canarins  a  esta  raiz  alad;  e  os  Malavares  também  lhe  cha- 
mão asi,  mais  propriamente  manjale:,  e  os  Malayos  cunhet; 
os  Pérsios  dar^ard,  que  quer  dizer  páo  amarello;  e  os  Ará- 
bios habeí:  os  quaes  todos,  e  cada  um  per  si,  dizem  que 
não  o  ha  na  Pérsia,  nem  na  Arábia,  nem  na  Turquia  este 
açafrão,  senão  o  que  vay  da  índia. 

RUANO 

Parece  rezam,  pois  esta  he  mezinha  e  tem  nome  arábio, 
que  esteja  por  algum  Arábio  autor  escrita? 

ORTA 

Rezão  tendes,  mas  não  ouso  afirmar  as  cousas  sem  pri- 
meiro as  ver  bem;  e  porém  eu  tenho  pêra  mim  por  certo  que 
Avicena  escreve  deste  açafram  da  terra  no  capitulo  200*, 
chamandolhe  caliduuium  ou  caletfium;  e  fala  nisto  Avicena 
como  homem  que  o  nam  sabe  bem;  e  alega  as  sentenças 
doutros,  como  de  cousa  que  não  avia  em  sua  regiam;  e  não 
he  muito  enconveniente  o  nome  arábio  agora  ser  corrompido; 
porque  parece  que  os  Arábios  lhe  chamavam  como  os  índios, 
aled,  e  lhe  corromperão  o  nome  chamandolhe  caletjium;  e 
mais  me  faz  cuidar  isto  ser  verdade  ver,  o  capitulo  de  feçe 
de  ciircuma''*  ou  curcumani,  que  também  se  conforma  com 
elle;   e  por  tanto  vede   ambos,   e  achareis  ser  verdade  o 


*  Avicena,  lib.  2,  cap.  200  (nota  do  auctor);  veja-se  a  nota  (2). 

**  «De  feçe»,  isto  é  de  fcvx,  ou  das  fe^es  de  curcuma;  veja-se  a 
nota  (2). 


Da  Cri  soco  la  279 

que  digo;  porque  Avicena,  quando  duvidava  de  huma  cousa, 
fazia  delia  dous  capitulos. 

RUANO 

Não  me  parece  rezam  isso ;  porque  diz  que  he  meimiram, 
que  sabemos  ser  çilidonia. 

ORTA 

Não  tenho  isto  por  muyto  certo;  porque  nestes  dous  ca- 
pitulos faz  esta  mezinha  amarella,  e  diz  aproveitar  muyto 
aos  olhos;  e  porque  estas  cousas  convém  á  çilidonia,  dixe- 
rão  ser  esta  mezinha  çilidonia;  mas  muyto  maior  rezão  será 
qualquer  destes  simples  conteúdos  nestes  capitulos  ser  aça- 
fram  da  terra, 

RU.VNO 

Pêra  que  o  usam  nestas  terras? 

ORTA 

Pêra  tingir  e  adubar  os  comeres;  asi  aqui  como  na  Arábia 
e  na  Pérsia;  inda  que  lá  aja  o  nosso  açafram,  usam  deste 
por  mais  barato;  e  qua  usam  do  açafram  também  em  fí- 
sica, mais  que  pêra  tudo,  pêra  os  olhos  e  pêra  a  sarna,  mis- 
turado com  çumo  de  laranja  e  azeite  de  coquo.  E  pois  nestes 
capitulos  o  louva  Avicena  pêra  estes  efeitos,  este  deve  ser, 
que  asi  he  usado;  e  Avicena  falou  com  duvida  nisto,  porque 
por  ser  cousa  fora  de  sua  terra  o  não  sabia  bem;  e  por  isso 
vos  fique  ser  mezinha  boa  pêra  levar  pêra  Portugal  (2). 

SERVA 

As  curcas  que  de  Cochim  vieram,  quer  vossa  mercê  que 
lhas  façam  em  caril  com  galinha,  ou  que  as  lance  no  car- 
neiro? 

ORTA 

Em  ambas  as  cousas  as  podes  lançar;  e  entanto  traze 
hum  pouco  de  açafram  da  terra,  verde. 

RUANO 

E  que  cousa  he  curcas  do  Malavar? 


28o  Colóquio  decimo  odavo 

ORTA 

São  huns  grãos  brancos,  mayores  que  avellans,  com  casca 
e  não  tam  redondas;  sam  brancas,  e  sabem  como  tubaras 
da  terra  cosidas ;  e  ha  as  no  Malavar,  onde  lhe  chamão  chi- 
viqiiilengas,  que  quer  dizer  jnihames  pequenos:  também  me 
convidou  com  ellas  em  Çurrate,  cidade  de  Cambaya,  Coje 
Çofar,  natural  de  Apulha,  feyto  mouro;  e  dixeme  que  as  avia 
no  Cairo  mu3^tas,  e  que  também  lá  se  chamavão  curcas;  e 
em  Cambaia,  donde  isso  era,  me  dixe  que  se  chamavão  car- 
pata;  semeãose  no  Malavar,  onde  as  eu  vi  primeiro,  e  naçem 
em  ramos.  E  pois  não  he  cousa  de  física,  pasemos  avante, 
sem  mais  falar  nella;e  se  vos  souberem  bem,  levalaseis  pêra 
o  caminho  quando  fordes  (3). 

SERVA  * 

Vedes  aqui  o  açafram  verde  e  o  seco;  scilicet,  a  raiz. 

RUANO 

Primeiro  quero  que  me  digaes  se  escreveu  algum  escritor 
deste  simple,  ao  menos  Arábio. 

ORTA 

Não  me  affirmo  muyto  aver  capitulo  desta  mezinha;  senam 
falando  por  huma  congeitura,  acho  que  escreveo  delia  o  Se- 
rapio,  e  chamalhe  abelculcut;  e  está  corrompida  a  letra,  e 
ha  de  dizer  hab  alculcul,  que  quer  dizer  curcas,  ou  per  ven- 
tura nós  lhe  corrompemos  o  nome  em  lhe  chamarmos  cur- 
cas. Isto  digo  porque  hab  quer  dizer  em  arábio  semente 
grande,  e  ai  he  articulo  de  genetivo;  e  também  me  movia 
dizer  isto,  porque  o  Serapio  diz  que  o  muyto  uso  delias  faz 
colérica  passio,  e  que  acresenta  a  semente;  e  todas  estas 
cousas  dizem  os  mesmos  Malavares,  por  onde  me  parece  que 
tudo  he  hum.  Também  Rasis*  falia  destas  curcas,  e  chamalhe 
quilquil,  por  ventura  corrompidamente.  E  oulhay  a  raiz  do 
açafram  verde  e  sequa. 


*  Rasis,  3,  ad  Almansorem  (nota  do  auctor). 


Dã  Crisocola  281 

RUANO 

Por  dentro  he  bem  amarelUr,  e  por  fora  parece  como  gen- 
gtire;  e  a  folha  he  como  da  cana  do  milho;  he  maior,  e  o 
ramo  he  feito  de  folhas*;  e  a  raiz  nam  queima,  nem  amarga 
muyto  quando  he  verde;  e  se  queima,  com  a  muyta  hu- 
midade não  se  sente. 

ORTA 

Provay  a  seca:  esta  raiz  queima,  mas  não  tanto  como  o 
gengivre;  por  onde  me  parece  que  não  será  mal  tomada 
por  dentro,  e  asi  não  ponho  duvida  em  ser  curcwna. 

RUANO 

A  mercê  que  de  vós  quero  he  que  cuideis  bem  nisto,  e 
saibais  dos  físicos  cada  dia  o  que  sabem  delia,  e  torneis  a 
ver  os  capitules:  e  eu  também  os  verei  oje,  pêra  amanhã 
tornarmos  a  falar  niso.  E  isto  he  bom,  porque  o  que  oje 
nam  sabemos,  amanhã  saberemos. 

ORTA 

Quanto  mais  olho  os  capítulos,  tanto  mais  me  parece  ser 
verdade  o  que  digo;  porque  alguns  dizem  que  curcimiani  q 
jiieimiram  he  ruiva  de  tingir;  e  ambas  as  raizes  se  parecem 
huma  com  outra. 


*  Esta  expressão,  um  tanto  singular  na  forma,  pôde  todavia  appli- 
car-se  ás  folhas  envaginadas  de  uma  Scitaminea,  ou  de  uma  Miisacea;  e 
prova  que  Orta  examinou  com  attenção  aquelles  falsos  caules,  formados 
de  peciolos  sobrepostos. 


Nota  (i) 

O  «bórax»,  ou  «crisocolla»,  ou  «tincal»  de  Orta,  era  uma  substancia 
bem  conhecida,  um  borato  de  soda  natural,  que  teve  importância  no 
commercio;  mas  hoje  é  geralmente  substituido  pelo  que  se  prepara 
com  o  acido  bórico,  extrahido  das  lagoni  da  Toscana. 

O  nome  de  chrysocolla  vinha-lhe  do  seu  emprego  como  fundente 
nos  trabalhos  de  ourivesaria;  e  o  de  tincal,  aliás  muito  conhecido,  é 


282  Colóquio  decimo  octavo 

uma  ligeira  alteração  do  persiano  — Orta  diz  arábico —  jL^*,  tinkar, 
que  deve  vir  do  sanskrito  tankana. 

Em  muitos  livros  antigos  e  relativamente  modernos,  como  nos  tra- 
tados de  Mineralogia  de  Dufrénoy,  de  Delafosse  e  outros,  se  lê  a  affir- 
mação  vaga  de  que  esta  substancia  vinha  da  índia;  mas  não  encontrei 
confirmação  segura  de  tal  noticia,  e  muito  menos  de  que  fosse- «miné- 
rio em  huma  serra  . . .  apartada  de  Cambayete  cem  léguas  nossas».  Pa- 
rece que  se  extrahia  principalmente  de  alguns  lagos  do  Thibet,  e  d'ali, 
pelos  desfiladeiros  do  Himalaya,  a  traziam  aos  portos  occidentaes  da 
índia.  Vinha,  portanto,  pela  índia,  e  não  da  índia.  Orta,  suppondo-a 
procedente  das  montanhas  de  Mandú  e  de  Chitor,  teve  o  mesmo  engano, 
que  já  no  Colóquio  anterior  tivera  a  propósito  do  costo. 

E  conhecido  o  uso  industrial  d'esta  substancia  no  trabalho  dos  me- 
taes;  e  o  seu  emprego  na  medicina  indiana  foi  também  mencionado  por 
Ainslie,  se  não  propriamente  na  «sarna»,  pelo  menos  em  affecções 
aphtosas  e  cutâneas  (Cf.  Ainslie,  Mat.  ind.,  i,  45). 

Pelo  que  diz  Orta  se  vê,  que  era  «droga  defesa»,  isto  é,  cujo  commer- 
cio  estava  vedado  aos  particulares.  Já,  nas  notas  ao  Colóquio  anterior, 
vimos  como  o  costo  e  o  incenso  eram  drogas  defesas  no  trato  com  a 
China,  e  a  propósito  da  pimenta  teremos  occasião  de  fallar  mais  larga- 
mente d'estas  prohibições. 

Nota  (2) 

O  «croco  indiaco»  de  Orta  é  o  rhizoma  da  Curcuma  longa,  Linn., 
uma  planta  da  família  das  Scitaminece,  cultivada  com  frequência  na  ín- 
dia e  outras  terras  da  Ásia.  Esta  droga  é  chamada  pelos  inglezes  íur- 
meric,  o  que  parece  ser  a  corrupção  de  um  nome  da  antiga  pharmacia, 
terra  merita;  mas  é  mais  geralmente  designada  pelo  nome  de  curcuma, 
do  persiano  kurkum. 

Vejamos  agora  os  nomes  vulgares  do  nosso  escriptor: 

—  «Alad»  entre  canarins  e  malabares.  Este  é  o  conhecido  nome  hindi 
e  bengali,  halad  (Dymock,  Mat.  med.,  764). 

—  «Manjale»  entre  malabares.  O  nome  tamil  manjai  (Dymock,  1.  c). 

—  «Cunhet»  entre  malayos.  Varias  formas  d'este  nome  se  usam  nas 
diversas  partes  do  archipelago,  por  exemplo,  cunjet,  entre  as  gentes  de 
Macassar  (Rumphius,  Herb.  amb.,  v,  i65). 

—  «Habet»  entre  árabes.  É  um  nome  que  não  encontrei,  quer  esteja 
muito  alterado,  quer  escapasse  ás  minhas  investigações. 

—  «Darzard»  entre  os  persas,  significando  «pau  amarello».  A  explica- 
ção é  exacta;  dar  significa  pau  ou  madeira,  e  :^ard  amarello.  No  nome 
hoje  mais  usado  da  droga,  t^ard-chubah,  entra  o  mesmo  adjectivo  (Dy- 
mock, 1.  c). 


Da  Crisocola  283 

— Alem  de  citar  estes  nomes  orientaes,  Orta  designa  a  droga  pelo 
de  croco  indiaco  e  açafrão  da  terral  Apesar  de  o  rhizoma  da  Cur- 
cuma  ser  uma  cousa  absolutamente  diversa  dos  stigmas  do  Crociis,  que 
propriamente  constituem  o  açafrão,  houve  sempre  uma  certa  tendên- 
cia a  approximar  as  duas  substancias,  pelo  facto  de  servirem  para  tem- 
perar a  comida  e  de  a  tingirem  fortemente  de  amarello.  É  assim,  que  um 
dos  nomes  do  açafrão,  kurkiim,  veiu  a  designar  mais  especialmente  a  cur- 
cuma.  Ibn  Baithar  explica  claramente  esta  deslocação  de  nome.  Paliando 
do  rhizoma  da  curcuma,  diz  assim :  ...  «os  habitantes  de  Basra  chamam 
a  esta  raiz  al-kurkum,  e  al-kurkum  é  o  açafrão;  e  chamam-lhe  açafrão, 
porque  tinge  de  amarello  como  faz  o  açafrão  (Ibn  Baithar,  versão  de 
Sontheimer,  citado  por  Yule  e  Burnell,  Glossary,  palavra  saffron). 

O  commentario  do  nosso  Orta  aos  capítulos  de  Avicenna  é  muito  con- 
fuso, porque  a  questão  é  muitíssimo  obscura.  O  capitulo,  que  elle 
chama:  «de  feçe  de  curcuma  ou  curcumani»,  é  o  cap.  i65,  e  começa 
por  estas  palavras:  Crocoma  quid  est?  Dicitur  quod  est  f(xx  olei  de 
croco  ...  O  resto  do  capitulo,  aliás  curtíssimo,  nenhum  esclarecimento 
dá.  E  por  aquellas  palavras,  o  medico  árabe  parece  referir-se  aos  resí- 
duos de  algum  preparado  do  Crocits,  e  não  á  Curcuma. 

O  outro  capitulo  citado  (199  e  não  200,  como  Orta  diz)  intitula-se: 
De  Caucho  i.  Chelidonio  maiori.  Em  notas  marginaes  vem  os  nomes 
mencionados  por  Orta,  Chalidunium  e  Chaledfium.  O  texto  de  Avicenna 
diz  assim  na  versão  :  Chaucum  quid  est  ?  Dixerunt  quidam,  quod  est  Vene. 
Et  ipsa  quidem  dicitur  Memiran.  Et  dixerunt  alii,  qiuv  de  ea  est  parva 
est  Memiran,  et  qua.'  est  magna,  est  Alvardachale,  vel  Alvardachule,  vel 
Alxardahune.  Como  se  vè,  a  trapalhada  não  pôde  ser  mais  completa,  e 
difficil  será  encontrar  a  explicação  d'este  enygma.  Na  exposição  do  Bel- 
lunense  temos  a  seguinte  informação :  vena^  citrincv  apud  Árabes  sunt 
curcuma,  apud  alios  vero  sunt  radices  memiran.  Da  primeira  parte  pôde 
deduzir-se,  que  Avicenna  quiz  fallar  da  curcuma,  como  suppoz  Orta; 
mas  na  segunda  apparece-nos  de  novo  o  tnemiran.  D'éste,  diz  o  mesmo 
Bellunense:  Memiran  est  radix  nodosa,  non  multum  grossa,  citrini  colo- 
ris sicut  curcuma  . . .  et  aportatur  ex  índia  . . .  et  usitatur  in  passionibus 
oculi.  Como  se  as  cousas  não  estivessem  ainda  bastante  enredadas,  vie- 
ram os  commentadores,  e  disseram  que  o  memiran  dos  árabes  era  o 
xcXtWviov  ]j.é-^%  dos  gregos,  e  que  este  era  a  vulgar  cdidonia  maior  (Che- 
lidonium  majus,  Linn.).  Orla  conhecia  esta  identificação,  e  — com  toda 
a  rasão —  a  põe  em  duvida,  e  se  mostra  pouco  disposto  a  acceital-a. 
Mas,  apesar  de  conhecer  muitas  drogas  da  índia,  não  conhecia  todas, 
e  não  conseguiu  desfiar  completamente  a  meada. 


'  Isto  é,  d'aqiiella  terra.  Esta  expressão  portugueza  da  terra,  geralmente  mal  interpre- 
tada pelos  traductores,  e  que  significa  o  que  é  próprio  da  região,  em  opposiçáo  ao  que  vem 
de  fora,  é  equivalente  ao  qualificativo  arábico  beladi. 


284  Colóquio  decimo  octavo 

O  que  parece  provável,  é  que  Avicenna  e  outros  árabes  conhecessem 
muito  imperfeitamente  varias  drogas,  consistindo  em  raizes  ou  rhizo- 
mas  mais  ou  menos  grossos,  mais  ou  menos  amarellos  na  fractura,  tra- 
zidos em  geral  da  índia,  e  alguns  considerados  efficazes  no  tratamento 
das  doenças  de  olhos.  E  claro,  porém,  que  não  distinguiam  bem  essas 
drogas  entre  si;  e  é  hoje  extremamente  difficil  procurar  o  que  fosse  o 
alvardachale  ou  o  alvardachule.  O  que  se  pôde  apurar  como  provável, 
é  que,  sob  o  nome  de  Ven<:e,  de  Memiran  e  outros,  elles  se  deviam  prin- 
cipalmente referir  a  três  drogas: 

os  rhizomas  da  Ciircinna  longa,  Linn.,  de  que  antes  falíamos; 

os  do  CoptisTeeta,  Wallich,  uma  planta  da  familia  das  Ranunculacece, 
espontânea  nas  montanhas  de  Michmi,  a  leste  do  Assam,  e  que  ainda  hoje 
se  encontram  nos  bazares  da  índia,  são  considerados  um  medicamento 
importante  nas  doenças  dos  olhos,  e  são  designados  pelo  nome  de 
mahmira; 

os  do  Thalictrumfoliosum,  D.  C,  da  mesma  familia,  que  procedem  das 
vertentes  do  Himalaya,  têem  nos  bazares  do  Panjáb  o  nome  de  momiri, 
e  são  muitas  vezes  confundidos  com  os  da  planta  precedente. 

A  primeira  droga,  a  Curcuma,  era  bem  conhecida  de  Orta ;  mas  as 
outras  duas  vinham  de  mais  longe,  deviam  ser  raras  nos  bazares,  so- 
bretudo nos  bazares  da  costa,  e  não  admira  que  escapassem  ás  suas 
investigações.  Por  isso  elle  se  achava  um  pouco  desarmado  em  frente 
da  intrincada  e  barbara  nomenclatura  de  Avicenna.  É  certo,  no  em- 
tanto,  que  se  não  sabia  bem  o  que  fosse  o  memiran,  não  estava  nada 
disposto  a  admittir  que  fosse  a  celidonia,  e  n'isso  tinha  toda  a  ra- 
são  (Cf  Avicenna,  lib.  i,  tract.  11,  cap.  i65,  199  e  486;  Andrete  Bellun. 
Arabic.  nom.  interpretratio,  palavras  vence  e  memiran;  Yule  e  Burnell, 
Glossary,  palavra  mamiran;  Pharmacographia,  3;  Pharmacopceia  of 
Índia,  4  e  5). 

O  uso  da  curcuma  para  «tingir  e  adubar  os  comeres»  é  vulgarissimo 
em  todo  o  Oriente,  sendo  um  dos  ingredientes  essenciaes  do  caril.  É 
considerada  também  cordial  e  estomachica;  applicada  ao  tratamento 
das  doenças  cutâneas,  e,  segundo  o  nosso  padre  Loureiro,  ao  de  va- 
riadíssimas enfermidades  (Cf.  Drury,  Useful  plants,  169;  Ainslie,  Mat. 
ind.,  I,  454;  Loureiro,  Flora  Cochinchinensis,  i,  9). 


Nota  (3) 

As  «Curcas»  do  nosso  escriptor  não  são  muito  fáceis  de  identificar^. 
Apesar  de  elle  dizer  que  «nacem  em  ramos»,  creio  que  deve  fallar  de 


'  No  meu  trabalho  sob:e  Garcia  da  Orta  (p.  216)  identifiquei-as  sem  bastante  reflexão  com 
a  Curcuma  angustifolia,  o  que  é  evidentemente  um  erro. 


Da  Crisocola  286 

órgãos  subterrâneos;  e  por  isso  faz  a  referencia  aos  «ynhames»,  e  ao 
gosto  de  «tubaras  da  terra».  Parece  pois  que  seriam  uma  espécie  de 
Colocasia,  e  provavelmente  a  Colocasia  indica  (Arum  indicum  de  Lou- 
reiro e  de  Roxburgh).  Esta  espécie  tem  uma  raiz  fibrosa,  e  numerosos 
tubérculos  pendentes,  por  onde  elle  poderia  dizer  «nacem  em  ramos». 
Alem  d'isso  os  tubérculos  são  comestiveis,  e  entram  ás  vezes  na  con- 
stituição do  caril,  como  Orta  diz  das  ciircas  (Cf.  Roxburgh,  Fl.  indica, 
III,  498). 

Parte  dos  nomes  vulgares,  que  Orta  cita,  pertencem  no  emtanto  á 
espécie  mais  conhecida,  Colocasia  antiquorum,  Schott. 

—  O  primeiro  é  o  de  curcas,  o  qual,  segundo  Orta  diz,  era  também 
usado  no  Cairo,  onde  a  planta  era  bem  conhecida.  Prospero  Alpino, 
que,  no  século  de  Orta  (i  58o- 1584),  viu  a  Colocasia  antiquorum  culti- 
vada no  Egypto,  diz  que  lhe  chamavam  cuícas;  e  o  botânico  francez, 
Delile,  dá  o  mesmo  nome  nas  formas  qolkas  e  koulkas  (pronunciar  hul- 
has). O  sr.  Dymock  menciona  um  nome  arábico  moderno,  halkás.  De 
cuícas  para  curcas  vae  uma  leve  e  fácil  alteração  (Cf.  De  CandoUe, 
Orig.  des  plantes  cultivées,  Sg;  Dymock,  Mat.  med.,  818). 

—  «Chiviquilengas»  lhe  chamavam  no  Malabar.  Esta  designação,  ape- 
sar de  muito  alterada,  é  claramente  o  nome  tamil  da  Colocasia  antiquo- 
rum, que  Dymock  dá  na  forma  shema  halengu,  e  Drury  na  forma 
shema  kilangu  (Cf.  Dymock,  1.  c,  ^17;  Drury,  Useful  plants,  154). 

—  Não  encontrei  o  nome  de  «carpata»,  usado  em  Cambaya,  segundo 
Orta. 

Em  resumo,  a  curtíssima  descripção  do  nosso  auctor  indicaria  de 
preferencia  a  Colocasia  indica,  emquanto  os  nomes  vulgares  se  podem 
melhor  referir  á  Colocasia  antiquorum.  E,  porém,  admissível  que  os  seus 
informadores  applicassem  á  primeira  espécie  alguns  nomes  da  segunda, 
que  era  muito  mais  conhecida. 

É  interessante  virmos  encontrar  Coge  Çofar,  o  grande  inimigo  dos 
portuguezes,  o  instigador  e  a  alma  dos  cercos  de  Diu,  mandando  pre- 
sentes de  curcas  a  Garcia  da  Orta,  e  ensinando-lhe  como  se  chamavam 
no  Cairo.  Orta  dá-o  como  natural  «da  Pulha»,  e  n'isto  se  conforma 
com  outros  escriptores  nossos;  Couto,  que  o  diz  natural  de  Otranto; 
e  Barros,  que,  especificando  mais,  affirma  que  elle  nascera  em  Brinde 
ou  Brindisi,  e  era  filho  de  um  albanez  e  de  uma  italiana. 

Este  mestiço,  homem  de  «ardiz  e  invenções»,  é  um  perfeito  exemplar 
do  aventureiro  levantino  d'aquelles  tempos.  Captivo  em  rapaz  pelos  tur- 
cos, cujas  galés  corriam  e  infestavam  então  as  costas  da  Apúlia,  fez-se 
mahometano,  e  andou  depois  mettido  nas  armadas  dos  mamelukos,  dos 
turcos  e  dos  rumes,  como  homem  de  guerra  ou  homem  de  finança — 
umas  vezes  «capitão  de  uma  galé»,  segundo  refere  Couto;  outras  «tisou- 
reiro»  da  armada,  segundo  assegura  Gaspar  Corrêa.  Vemol-o  embar- 
cado já  na  armada,  que  pelo  anno  de  1 5 16  o  chamado  Soldão  de  Baby- 


286  Colóquio  decimo  octavo  da  Crisocola 

lonia,  — o  ultimo  soberano  mameluko  do  Egypto —  mandou  contra  os 
portuguezes  da  índia.  Muitos  annos  depois,  no  de  1 537,  guando  a  grande 
armada  de  rumes  foi  atacar  Diu,  Coge  Çofar,  já  então  estabelecido  na 
índia,  e  que  preparara  o  ataque  por  terra,  veiu  logo  a  bordo  combinar 
as  operações  com  Soliman  Pachá,  como  conta  uma  testemunha  ocu- 
lar: «...  venne  iin  chiamato  il  Cosa  Zaffer,  il  quale  é  da  Otranto,  ma 
renegato,  etfatto  turcho,  et  era  patrone  di  una  galea  quando  il  Signore 
Turcho  mando  falira  armata  . . .  »  E  finalmente,  no  segundo  cerco,  Coge 
Çofar  foi  o  instigador,  o  agente  diplomático,  e  quasi  o  general  em  chefe 
das  forças  mussulmanas,  que  se  congregaram  contra  os  portuguezes. 
Dirigiu  todas  as  operações  do  cerco,  até  que,  no  dia  24  de  junho  de 
1546,  dia  de  S.  João  Baptista  e  de  Corpus  Christi,  «que  se  acertou  este 
anno  todo  em  hum  dia»,  estando  a  observar  a  fortaleza,  com  a  cabeça 
de  fora  de  um  muro,  «passou  per  hy  hum  pilouro  perdido,  que  lh'a  le- 
vou com  a  mão  direita,  sobre  que  a  tinha  acostada».  E  assim  morreu 
no  seu  posto  um  dos  homens,  que  mais  habilmente  e  com  mais  persis- 
tência combateram  a  influencia  dos  nossos  nas  terras  do  Oriente. 

(Cf.  Barros,  Ásia,  iii,  i,  3;  Couto,  Ásia,  iv,  iii,  6;  Gaspar  Corrêa,  Z-e«<ía5, 
III,  38o,  IV,  479;  Viaggio  di  Alessandria  nelle  Indie,  pag.  149,  que  faz 
parte  de  uma  collecção:  Viaggi  fatti  da  Vinetia  alia  Tana,  etc.  im- 
pressa em  Veneza,  i545.  Esta  curiosa  relação  de  um  prisioneiro  italiano, 
que  ia  nas  galés  turcas,  vem  também  na  collecção  de  Ramusio,  com  o 
titulo :  Viaggio  scritto  per  um  comiio  venetiano.) 

Nos  intervallos,  porém,  d'estes  rompimentos  de  guerra,  o  intelligente 
e  dissimulado  italiano  dava-se  por  muito  amigo  dos  portuguezes;  e  pres- 
tou mesmo  importantes  serviços  a  Nuno  da  Cunha,  quando  foi  da  morte 
de  Bahádur  Schah,  ajudando-o  a  pacificar  a  cidade  de  Diu.  Talvez  de 
haver  sido  «tisoureiro»,  e  sobretudo  pelo  valimento  do  rei  do  Guze- 
rate,  havia-se  tornado  extremamente  rico;  e  habitava  umas  vezes  Diu 
e  outras  Surrate,  onde  levava  a  vida  de  um  grande  senhor  oriental. 
Ali  o  conheceu  o  nosso  Orta,  e  ali  recebeu  d'elle  o  presente  das  cur- 
cas. 

Orta  chama-Ihe  Coge  Çofar,  e  Coge  Çofar  ou  Coge  Sofar  lhe  chama 
também  Barros,  e  a  maior  parte  dos  escriptores  portuguezes.  Gaspar 
Corrêa  escreve  Coje  Çafar,  ao  que  parece  com  melhor  orthographia. 
O  veneziano,  que  citámos,  escreve  o  nome  Cosa  Zaffer,  e  julgo  que 

/- 


COLÓQUIO  DECIMO  NONO 

DAS  CUBEBAS 

INTERLOCUTORES 
RUANO,  ORTA 

RUANO 

Das  ciibebas  falemos;  postoque,  como  diz  Sepúlveda, 
poucas  vezes  usamos  delias  per  si,  senam  em  composições. 

ORTA 

Nam  he  asi  nesta  índia;  antes  sam  muyto  usadas  dos 
Mouros  deitadas  em  vinho  pera  ajudar  a  Vénus  em  suas 
vodas;  e  na  terra  donde  as  ha,  que  he  a  Jaoa,  as  acustumão 
muito  pera  a  frialdade  do  estômago;  podeis  crer  que  as 
tem  por  muy  grão  mezinha. 

RUANO 

Muyto  me  maravilho  diso,  porque  as  cousas  de  que  mais 
temos  abundância  estimamos  em  mais  pouco. 

ORTA 

Não  he  esa  regra  em  todo  certa,  porque  no  Malavar  ha 
muyta  cantidade  de  pimenta,  que  farta  a  todo  mundo;  e 
gasta  tanta  o  Malavar  só,  como  toda  Europa. 

RUANO 

Dizey  como  se  chama. 

ORTA 

Os  Arábios  ciihebe  e  qiiabeb,  e  isto  em  escritores;  e  asi 
de  todos  quabebechini ;*  e  em  Jaoa,  donde  as  trazem,  se 


*  Pôde  talvez  ler-se  «de  todos  qua  bebecJiini»;  mas  tendo  Orta  dado 
primeiro  a  forma  qiiabeb,  parece-me  mais  provável  a  leitura  que  adoptá- 
mos; veja-se  a  nota  (i). 


288  Colóquio  decimo  nono 

chamão  cumucos,  ou  em  singular  cumiic;  e  toda  a  outra 
indiana  gente,  ecepto  a  que  fala  malayo,  lhe  chama  ciibab- 
chini. 

RUANO 

Não  tam  somente  as  ha  em  Malaqua  senão  na  China; 
pois  tem  o  apelido  da  China. 

ORTA 

Não  as  ha  na  China,  senão  levãonas  da  Çunda  e  da 
Jaoa  pêra  lá.  Como  já  vos  dixe,  os  Chins  navegavão  este 
mar  indico,  e  trazião  as  mercadorias  que  no  caminho  acha- 
vão,  e  por  onde  hiao;  e  os  de  Goa  e  Calecut,  e  os  Guzarates 
e  Arábios  ouvirão  que  lhe  chamavão  cumuc,  e  corrupta- 
mente lhe  chamaram  cubabchini,  porque  a  trazião  os  Chins. 
E  esta  he  a  verdade,  e  a  origem  deste  nome. 

RUANO 

Dizei  a  feiçam  do  arvore,  pois  já  dixestes  o  naçimento; 
e  asi  direis  se  as  ha  mais  que  de  huma  maneira  só",  porque 
ao  diante  provarei  averem  muytas  especias. 

ORTA 

O  arvore  he  como  maçeira  no  tamanho,  e  as  folhas  sobem 
acima  trepando,  como  nos  arvores  da  pimenta;  ou,  porque 
milhor  me  entendaes,  trepam  pelo  arvore  como  a  éra:  e  nam 
he  este  arvore  como  murta,  nem  tem  a  folha  dessa  feiçam, 
senam  he  como  a  folha  da  pimenta;  e  sam  mais  estreitas  as 
folhas  do  arvore  das  cubebas:  nacem  como  cachos,  nam  pe- 
gados os  grãos  em  hum  cacho,  como  uvas;  mas  dependem 
de  hum  pé  cada  hum;  e  sam  na  própria  sua  regiam  tam 
estimadas  estas  cubebas^  que  as  cozem  lá  primeiro  que  dahi 
as  leixem  levar:  e  isto  porque,  semeandose  nas  outras 
terras,  nam  naçam  nellas;  e  pôde  ser  que  por  isto  se 
apodreçam  na  Europa  e  qua  na  índia.  E  isto  soube  eu  de 
Portuguezes,  dignos  de  fé,  que  me  dixerão,  e  aviam  residido 
muito  tempo  nas  ilhas  de  Jaoa. 


Das  Cubebas  289 

RUANO 

Pode  ser  que  seja  outro  género  de  pimenta? 

ORTA 

Nam  o  he;  porque,  em  a  Çunda,  a  principal  mercadoria 
que  de  lá  vem  he  di  pimenta;  e  nam  defere  da  do  Malavar 
casi  nada;  e  este  arvore  é  deferente,  e  o  fruto;  e  na  mesma 
Çunda,  postoque  a  levam  á  China,  he  em  muyto  pouca 
cantidade,  scilicet,  pêra  mezinha;  e  não  pêra  comer,  como 
a  pimenta  de  que  se  carregam  vinte  náos  ao  menos  pêra 
a  China:  por  onde  não  ha  duvida  em  não  ser  pimenta. 
E  dam  estes  arvores  flores,  que  chcirão  bem. 

RUANO 

Traz  Mateus  Silvatico  por  autoridade  de  Serapião*,  que 
o  que  chamam  os  Mauritanos  cubebas  hc  acerca  de  Dios- 
corides  mirins  silvestris,  e  que  a  descrição  de  Galeno  acerca 
das  cubebas  he  do  Dioscorides  de  mirto  agreste.  E  porque 
nam  fala  nenhum  delles  nas  cubebas  nam  se  ha  de  presumir 
que  o  deixasem  de  escrever,  senão  Galeno  trata  das  cubebas 
no  carpessio,  e  Dioscorides  no  capitulo  de  mirto  agreste. 

ORTA 

Não  vos  pareça  que  Galeno  e  Dioscorides  escreverão 
tudo;  que  muytas  cousas  deixarão  de  escrever,  que  não 
vieram  á  sua  noticia;  e  Serapio,  e  os  outros  Arábios,  fa- 
larão de  ouvida  nas  mezinhas  da  índia,  e  como  vião  que 
aproveitava  pêra  alguma  cousa  alguma  mezinha  escrita 
pellos  Gregos,  logo  diziam  esta  he  rftézinha  de  que  usam  os 
índios,  e  que  os  Gregos  chamão  por  tal  nome.  E  ajudaos 
a  ser  enganados  não  saber  a  lingoa  grega  muyto  bem;  e 
por  esta  rezam  errou  o  Serapio  no  que  dise,  e  a  este  emitou 
o  Pandetario.  E  a  causa  que  dam  he  muyto  fraca,  scilicet, 
porque  de  outra  maneira  ficavam  faltos  Galeno  e  Diosco- 


*  Mateus  Silvaticus,  cap.  288  (nota  do  auctor). 


290  Colóquio  decimo  nono 

rides;  como  que  os  mesmos  nam  leixaram  muytas  cousas 
de  escrever,  como  diz  Avenrrois  no  5  do  Coliget.  Mas  que 
nam  seja  mirto  agreste,  ciibebas,  he  claro;  porque  o  mirins 
silvesti^is  he  o  que  chamão  rusais;  e  os  que  não  falam  tam 
bem  latim  lhe  chamão  briiscus;  que  he  huma  frutiçe  conhe- 
cida, cuja  raiz  entra  no  xarope  de  raizes:  e  deste  parecer 
he  também  Ruelio,  diligente  escritor  novo;  e  mais  este 
mirtus  agrestis  não  cheira  cousa  alguma  e  as  cubebas  cheiram 
muyto  bem,  sam  aromáticas;  e  as  cubebas  não  tem  dentro 
grãos,  e  o  mirto  agreste  os  tem  e  he  mais  doce,  e  as  cu- 
bebas tem  sabor  agudo.  E  que  carpessio  não  seja  cubebas, 
também  o  provarei.  E  disto  nam  se  segue  mas  inconveniente 
que  Galeno  leixar  de  escrever  das  cubebas:  e  não  he  incon- 
veniente, porque  as  cubebas  se  criam  em  ilhas  muito  dis- 
tantes donde  elle  habitava. 

RUANO 

Day  as  razoes  disso;  porque  Ruelio  tam  douto,  e  os  Frades 
italianos  que  fizeram  hum  livro  de  botica,  tam  curiosos,  tam 
bons  boticairos,  não  tem  carpessio  ser  outra  cousa  senão 
as  cubebas  de  Serapio  e  de  Avicena;  porque  nas  composi- 
ções, onde  Galeno  põe  carpessio,  põem  Serapio  e  Avicena 
cubebas,  logo  de  sua  entençam  he  que  tudo  he  hum? 

ORTA 

Não  vos  disse  eu  já  que  Serapio  errara  nisto,  e  que  nao 
he  mu3lo,  pois  era  homem;  e  quis  irse  por  a  rezão  arriba 
dita,  scilicet,  que  Galeno  e  Dioscorides  aviam  de  escrever 
tudo,  e  não  leixar  por  escrever  cousa  alguma;  pois  agora 
vos  digo  que  nam  me  maravilho  muyto  de  Avicena  errar 
também.  E  posto  que  Avicena  e  Serapio  conheceram  esta 
mezinha,  não  entenderam  bem  a  Galeno  nem  Dioscorides. 
Diz  Ruelio  que  he  milhor  carpessio  o  do  Ponto,  e  que  em 
Siria  ha  muyto:  e  pêra  isto  alega  Autuado.  Dizei-me,  pello 
amor  que  ha  entre  nós,  quem  deu  em  Ponto,  ou  Esclavonia, 
e  na  Siria  cubebas!  pois  desta  índia  as  levam  pêra  lá,  por 
ser  mercadoria  em  que  muito  ganhão.  Gastão  boa  cantidade 


Das  Ciibebas  2(ji 

delia  os  Turcos  e  Arábios,  e  pêra  Portugal  vay  muyta 
pouca  cousa  delias;  c  a  causa  he,  porque  os  Mahometistas 
fazem  com  as  ciibebas  a  festa  á  rainha  Vénus;  e  bem  pôde 
ser  que  o  carpessio  tenha  as  mesmas  forças  que  tem  as 
ciíbebas. 

RUANO 

Pois  que,  será  carpessio  o  mirto  silvestre  de  Dioscorides? 

ORTA 

Nem  he  hum  nem  outro*,  porque  Galeno  diz,  em  o  livro 
Antidotorum,  que  sam  humas  festucas*,  e  pois  sabeis  que 
cubebas  e  mirto  agi^este  sam  frutos  tam  notos,  como  ha  de 
ser  tudo  hum;  porque  vos  afirmo  que  não  vem  da  Jaoa 
senão  este  fruto,  sem  festucas;  nem  sam  muytas  especias, 
senam  huma  só;  nem  he  arvore  sativa,  senam  silvestre;  e 
não  averia  eu  por  inconveniente  que,  se  a  plantasem,  nascesse 
em  as  terras  das  mesmas  calidades. 

RUANO 

Dizem  os  Frades  que  virão  cubebas  de  muytas  maneiras; 
e  que  estas  sam  humas  sem  sabor  e  outras  amaras;  e  que 
elles  tem  outras  na  sua  botica  muyto  melhores. 

ORTA 

Digo  que  sem  sabor  e  amaras  seram  já  as  corrompidas; 
e  as  outras  seram  de  mais  pouco  tempo  colhidas  e  milhor 
conservadas.  E  se  muyto  aporfiardes  dizendo  que  ha  outra 
especia,  vos  digo  que  pôde  ser,  mas  eu  não  o  vi  até  este  dia 
de  oje  de  outra  especia,  nem  vi  quem  a  visse  (i). 

RUANO 

Pois  não  falta  quem  diga,  que  cubebas  sam  semente  de 
vitice. 


*  A  palavra,  que  segundo  creio  nunca  teve  os  foros  de  portugueza, 
é  tomada  na  sua  accepção  latina  corrente. 


292  Colóquio  decimo  nono 

ORTA 

Outra  nova  duvida  he  essa;  diram  isso  porque  huma  es- 
pecia  da  semente  de  vitiçe  tem  sabor  de  pimenta,  estas 
ciihebas  tem  casi  o  mesmo  sabor-,  mas  isto  he  falso,  porque 
a  vitex  he  agnus  castus,  e  asi  se  interpreta;  as  ciibebas 
sam  amigas  de  Vénus,  e  o  agnus  castus  inabilita  a  Vénus; 
e  asi  as  suas  forças  e  estimules  enfraquece.  E  o  que  diz 
António  Musa  que  carecemos  das  cubebas,  e  Serapiam, 
milhor  será  dizer  que  elles  se  enganaram  em  lhe  dar  o 
signal  de  carpessio,  e  do  mirto  agreste.  E  também  tem  o 
Pandetario  que  Galeno  chama  as  cubebas,  cauli;  e  he  falso, 
porque  isto  he  huma  especia  de  dauco,  scilicet,  dauco  sil- 
vestre  (2). 


Nota  (i) 

As  cubebas  são  o  fructo  do  Piper  Cubeba,  Linn.  f.  (Citbeba  officina- 
lis,  Miq.),  um  arbusto  scandente  e  lenhoso,  cujo  porte  é  acertadamente 
notado  pelo  nosso  escriptor:  «trepam  pelo  arvore  como  era».  Do  mesmo 
modo  notou  o  pequenino  pé  do  fructo,  que  á  primeira  vista  o  distin- 
gue da  pimenta:  «dependem  de  um  pé  cada  hum». 

O  Piper  Cubeba  é  espontâneo  em  Java,  Sumatra  e  sul  de  Bornéo, 
sendo  hoje  cultivado  na  ilha  de  Java,  e  nas  terras  de  Lampong,  na 
parte  meridional  da  de  Sumatra.  Orta  menciona  unicamente  Java,  pois 
a  Sunda  ou  Çunda  — de  que  falia —  era  a  parte  occidental  d'aquella 
ilha,  tida  pelos  nossos  primeiros  navegadores  na  conta  de  uma  ilha  se- 
parada. 

Os  nomes  vulgares  que  cita  são  bem  conhecidos : 

—  «Cubebe»,  «quabeb»,  «quabebechini»,  «cubabchíni»,  são  as  suas 
formas  do  conhecido  nome  arábico  òj  IS,  kahabah,  e  do  nome  hindus- 
tani     j:.^  v^ jLi',  kabab  chini,  cuja  primeira  parte  é  a  simplificação  do 

arábico.  Que  a  segunda  parte  do  nome,  chini,  procedesse  de  haver  sido 
introduzida  esta  droga  no  commercio  do  Oriente  pelos  chins,  é  o  que 
se  afigura  muito  plausível;  mas  que  a  primeira  parte,  kabab,  ou  kaba- 
bah  fosse  uma  corrupção  do  nome  javanez  parece-nos  pouco  provável 
(Cf.  Ainslie,  Mat.  ind.,  i,  97;  Dymock,  Mat.  meã.,  724). 

—  «Cumucos»  ou  «cumuc»  é  efFectivamente  o  nome  javanez,  que  en- 
contramos modernamente  escripto  cumac  e  kumukus  (Cf.  Dymock,  1.  c; 
Crawfurd,  Dict.,  117). 


Das  Cubebas  293 

Não  ha  rasão  alguma  para  suppor  que  os  antigos  escriptores  gregos 
ou  latinos  conhecessem  esta  droga^;  mas  parece  ter  sido  introduzida 
no  commercio  pelos  árabes,  e  foi  repetidas  vezes  mencionada  pelos 
seus  escriptores  —  por  Maçudi  em  uma  enumeração,  já  citada,  das  espe- 
ciarias que  vinham  das  longinquas  ilhas  do  Oriente;  e  por  Edrisi,  já 
citado  também,  entre  as  mercadorias  trazidas  a  Aden. 

,  A  confusão  entre  as  cubebas  e  o  /.apir-w.'/;  dos  gregos,  que  irritava  o 
nosso  escriptor  a  ponto  de  elle  exclamar:  Dizei-me  pelo  amor  que  ha 
entre  nós,  quem  deu  na  Esclavonia  ou  na  Syria  cubebas?!  essa  con- 
fusão parece  ter  sido  feita  pelos  escriptores  arábicos.  D'estes  passou 
para  os  commentadores  da  Idade  media  e  Renascimento,  e  para  a  lin- 
guagem ordinária  das  boticas  ou  apothecas,  em  que  as  cubebas  se  chama- 
ram muitas  vezes  fructus  carpesiorum,  ou  como  em  uma  lista  de  drogas, 
publicada  em  Ulm  no  anno  de  iSqS^  fructus  carpesiorum  vel  cubebarum. 

A  outra  confusão,  entre  as  cubebas  e  o  myrtus  agrestis  de  Diosco- 
rides — o  qual  era  eífectivamente  uma  espécie  de  Ruscus  — também  é 
da  responsabilidade  de  Serapio;  e,  segundo  diz  Sprengel,  foi  primeiro 
combatida  por  Nicoláo  Leoniceno.  Um  e  outro  erro  rectifica  o  nosso  es- 
criptor, assim  como  rectifica  os  erros  relativos  ao  Vitex,  e  a  uma  Í7m- 
bellifera  (Cf.  Pharmac,  527;  Sprengel,  Diosc,  11,  634). 

Segundo  Orta,  empregavam  as  cubebas  no  Oriente  para  «ajudar  a 
Vénus»,  c  para  «a  frialdade  do  estômago»;  e  Ainslie  diz-nos,  que  mo- 
dernamente as  consideram  estomachicas,  carminativas  e  estimulantes, 
o  que  confirma  aquellas  indicações.  Na  Europa,  durante  a  Idade  media, 
não  foram  simplesmente  julgadas  medicinaes,  mas  eram  usadas  regular- 
mente como  condimento,  e  pagas  por  um  alto  preço,  o  que  de  resto  suc- 
cedia  então  com  todas  as  especiarias.  Depois  a  importação  diminuiu  con- 
sideravelmente, e  quasi  se  extinguiu;  até  que  no  nosso  século  voltou 
a  adquirir  importância,  pela  sua  applicação  no  tratamento  da  gonor- 
rhaea  (Cf.  Pharmac,  1.  c;  Ainslie,  Mat.  ind.,  i,  98). 


Nota  (2) 

Orta  menciona  n'este  Colóquio  pela  primeira  vez  os  «frades  ytalia- 
nos»,  mas  refere-se  a  elles  de  novo  nos  seguintes  com  certa  frequência, 
e  parece  que  teria  na  índia  o  seu  Hvro.  Eram  estes  frades,  os  minoritas 
fra  Bartholomeo  e  fra  Angelo  Palia.  Eífectivamente  Bartholoma;us  Ur- 
bevetamis  e  Angelus  Palia  Juvenatietisis  publicaram  no  anno  de  i5^'i 


'  A  identificação,  que  se  pretendeu  fazer  do  /'.«u.x^.cv  de  Theophrasto  com  as  cubebas  ou 
kumukus  malayo,  assenta  unicamente  sobre  uma  similhança  de  nome,  e  não  tem  fundamento 
real. 


294  Colóquio  decimo  nono  das  Cubebas 

em  Veneza  uns  commentarios  a  Mesué  Júnior;  e  n'esse  livro  — que 
não  vi —  se  encontram  as  passagens  citadas,  na  parte  i,  distinct.  i,  cap. 
36,  como  se  deprehende  do  que  diz  Clusius  na  traducção  ou  resumo 
latino  dos  Colóquios  de  Orta  (Exotic,  184). 

Sprengel,  que  faz  menção  d'este  livro,  não  o  tem  em  grande  conta; 
e  o  nosso  Orta,  apesar  de  chamar  aos  seus  auctores  «curiosos»  e  «bons 
boticairos",  quasi  nunca  o  cita,  que  não  seja  para  lhe  notar  algum  erro. 
Parece  que  estes  pobres  frades  tiveram  uma  contenda  scientifica  com 
o  erudito  Matthioli,  o  qual  lhes  respondeu  dura  mas  sabiamente,  como 
era  seu  costume :  acriter  sed  docte,  ut  solitus  erat  (Cf.  Sprengel,  Hist. 
rei  herbariie,  i,  33^,  Amstelodami,  1807). 


COLÓQUIO  VIGÉSIMO 

DA  DATURA  E  DOS  DORIÕES 

INTERLOCUTORES 

SERVA,  ORTA,  PAULA  DE  ANDRADE,  RUANO 
SERVA 

Á  minha  senhora  deu  datuva  a  beber  huma  negra  da 
casa;  e  tomoulhe  as  chaves,  e  as  joyas  que  tinha  ao  pescoço, 
as  que  tinha  na  caixa,  e  fogio  com  outro  negro;  mercê  me 
fará  em  a  ir  socorrer. 

ORTA 

Como  sabeis  isso? 

SERVA 

Porque  já  tomaram  a  negra  no  Passo-Seco  e  acháramlhe 
ametade  das  joyas,  e  ella  confesa  que  deu  outra  metade  a 
seu  amigo,  que  vai  por  Agaçaim;  pôde  ser  que  seja  também 
já  tomado. 

ORTA 

Vamos  vela,  que  he  huma  molher  solteira  mestiça  (i);  c 
folgareis  de  a  ver,  porque  a  quem  dam  esta  mezinha  não 
falam  cousa  a  preposito;  e  sempre  riem,  e  sam  muito  libe- 
raes,  porque  quantas  joyas  lhe  tomais,  vos  deixam  tomar,  e 
todo  o  negocio  he  rir  e  falar  muito  pouco,  e  nam  a  pre- 
posito: e  a  maneira  que  qua  ha  de  roubar  he  deitandolhe 
esta  mezinha  no  comer;  porque  os  faz  estar  com  este  aci- 
dente vinte  e  quatro  oras.  Deos  vos  salve,  senhora. 

PAULA  DE  ANDRADE 

Im,  im,  im. 

ORTA 

Nam  aveis  de  responder  alguma  cousa,  mas  que  he  isso? 

PAULA  DE  ANDRADE 

Im,  im,  im. 


296  Colóquio  i'igesimo 

ORTA 

Esfreguemlhe  as  pernas  muyto  rijo  pêra  baixo,  e  atemlhas 
com  huns  cairos  e  os  braços;  e  lançemlhe  hum  cristel,  que 
lhe  agora  escreverei,  e  hum  vomitivo;  e,  desque  isso  tomar, 
pôde  ser  que  lhe  mande  lançar  algumas  ventosas;  e  daqui 
a  duas  oras,  se  nam  se  achar  milhor,  mandalaei  sangrar 
da  vea  do  artelho,  ainda  que  nisto  tenho  alguma  duvida 
por  ser  a  matéria  venenosa. 

RUANO 

Eu  a  esta  curaria,  como  quem  está  frenética,  ou  pêra 
frenética  de  sangue. 

ORTA 

O  que  qua  eu  uzo  he  fazerlhe  grandes  vómitos,  pêra 
evacuar  o  que  comeo,  juntamente  com  o  que  está  no  estô- 
mago; e  de  verter*,  e  vacuar  com  cristeis  fortes,  e  ligaturas, 
e  ventosas,  e  ás  vezes  sangria  no  artelho;  e  com  isto  me 
acho  bem,  e  nenhum  me  perigou,  e  todos  sararam  antes  de 
vinte  quatro  oras.  E  a  gente  desta  terra  não  tem  isto  por 
cousa  perigosa,  nem  se  tem  por  ruindade  fazerse,  senão 
quando  se  faz  com  máo  fim:  muytos  o  fazem  por  zombar 
de  alguma  pesoa.  E  eu  vi  dous  homens,  o  mais  moço  delles 
era  de  5o  annos,  a  quem  os  filhos  do  Nizamoxa  o  deram, 
pêra  zombar  delles,  e  hum  era  caçador,  e  outro  era  mestre 
de  fazer  frechas  e  arcos,  e  ambos  curei,  e  ambos  foram 
sãos,  sem  despois  lhe  sentir  eu  dano  algum  no  cérebro  ou 
meolo. 

RUANO 

Déstelo  já  a  algum  voso  negro  ou  negra? 

ORTA 

Nam,  porque  nam  me  conformei  com  minha  conçiencia  a 
fazelo. 


*  Na  edição  de  Goa  está  «de  virtir»,  e  o  sentido  é  para  mim  muito 
duvidoso. 


Da  Datiiva  297 

RUANO 

Mandaime  buscar  essa  erva. 

ORTA 

No  campo  vola  amostrarei,  como  cavalgarmos;  por  agora 
sabei  que  he  huma  erva  alta,  e  as  folhas  da  feiçam  de 
branca  iirsina;  e  as  folhas  nam  sam  tam  grandes,  e  sam 
agudas  no  cabo,  fazendo  ponta  a  modo  de  lança;  e  ao  redor 
da  folha  faz  outras  pontas  da  mesma  maneira;  e  he  a  folha 
posta  em  hum  tallo  grosso,  e  tem  muytos  nervos  semeados 
pelo  meo;  a  frol,  que  naçe  pellos  ramos,  he  como  rosma- 
ninho na  cor;  e  he  a  mais  redonda,  e  não  tam  feita  como 
cubo:  desta  frol  usam  mais,  ou  da  semente  que  nella  se 
encerra;  o  sabor  das  folhas  dos  tallos  he  casi  ensipido, 
com  muyta  umidade,  e  he  hum  pouco  amargozo:  parece 
que  cheira  como  rabam,  digo  como  folha  delle  e  ainda 
nam  tam  forte;  por  onde  eu  creria  que  he  fumosa  esta 
erva,  com  alguma  venonisidade*.  Moça,  leva  esta  receita  ao 
boticairo,  que  faça  isto  muyto  depressa;  e  vós  outras  tende 
cuydado  de  me  yr  dar  conta  do  que  passa,  e  vamos  comer  (2) . 

RUANO 

Falando  com  hum  homem,  que  foy  muyto  tempo  a  Ma- 
laca, me  dixe  que  a  milhor  fruta  que  avia  no  mundo  era 
huma  que  chamavam  doriôes,  e  lembrovos  que  tenhamos 
alguma  pratica  sobre  isso. 

ORTA 

Eu  não  a  provei,  e  dos  homens  que  a  provaram  e  as 
outras  frutas  nossas,  ouvi  que  sabem  bem,  e  outros  dizem 
o  contrairo,  scilicet,  que  nam  sabem  tam  bem  como  serejas, 
ou  melões  pêra  o  gosto;  antes  me  dizem  que  no  principio 


*  Toda  a  descripção  da  planta,  ao  lado  de  traços  muito  bem  obser- 
vados, contém  palavras  de  difficil  explicação ;  como  a  herva  sev/umosa, 
ou  a  flor  não  ser  feita  como  um  cubo. 


298  Colóquio  vigésimo 

vos  cheiram  a  cebolas  podres,  e  desque  os  vindes  a  gostar, 
vos  sabem  muito  bem,  em  tanta  maneira,  que  dizem  que 
hum  mercador  veio  a  Malaca,  e  que  trazia  huma  náo  car- 
regada de  mercadorias,  e  que  vendeo  a  náo  e  ellas  pêra 
comer,  em  doj^ióes  somente.  Isto  contaram  asi,  não  sei  se 
he  verdade,  se  mentira;  mas  em  Malaca  ha  muy  boas  frutas, 
como  uvas  e  mangas,  e  as  não  estimão  tanto  como  doriôes. 
E  pêra  que  nam  gastemos  o  tempo  muito  nisto,  vos  direi 
como  he  o  dorião  em  breves  palavras;  pois  nam  he  cousa 
de  íisica,  mais  que  dizerem  os  Malaios  que  he  bom  pêra  a 
festa  de  Vénus. 

RUANO 

Gabaramme  esta  fruta  tanto  que  me  foi  neceçario  falarvos 
nella. 

ORTA 

He  o  dorião  hum  pomo  do  tamanho  de  hum  melam,  e 
tem  huma  casca  per  fora  muyto  grosa,  e  cercada  de  bicos 
pequeninos,  a  modo  do  que  aqui  em  Goa  chamamos  yaca^ 
do  que  ao  diante  vos  farei  mençam;  he  verde  per  fora  este 
pomo,  e  tem  apartamentos  de  dentro,  a  modo  de  camarás, 
e  em  cada  camará  tem  frutas  separadas,  na  cor  e  no  sabor 
como  manjar  branco;  e  porém  não  languido,  nem  que  se 
pegue  muyto  ás  mãos,  como  o  mesmo  manjar  branco;  mas 
o  sabor  he  muyto  gabado  de  todos,  tirando  alguns  que 
dizem  o  que  acima  dixe ;  e  estas  frutas  sam  do  tamanho  de 
hum  ovo  de  galinha  pequeno  (as  que  estão  no  repartimento); 
algumas  ha  que  não  sam  brancas,  mas  como  amarelo  craro. 
A  frol  delle  he  branca,  e  tira  pouco  a  amarela;  a  folha  he 
de  comprimento  de  meo  palmo,  aguda  e  saida,  e  he  verde 
craro  per  fora,  e  verde  escuro  per  dentro;  e  tem  dentro 
hum  caroço  como  de  pexego,  e  he  redondo*.  E  hum  fidalgo 
desta  terra  me  dise  que  lhe  lembrara  ler  em  Plinio,  escrito 


*  Evidentemente  o  caroço  não  estava  dentro  da  folha.  É  forçoso 
confessar,  que  tudo  isto  não  é  um  modelo  de  estylo  descriptivo. 


Da  Datiira  299 

em  toscano,  nobiles  doriones;  depois  lhe  rogucy  que  me 
buscase  isto  pêra  o  ver  no  latim,  até  o  presente  me  diz 
que  o  nam  acha.  Se  eu  disto  souber  alguma  cousa  eu  o 
escreverei  (3). 


Nota  (i) 

Paula  de  Andrade  era  «mestiça»,  provavelmente  luso-indiana;  e  era 
uma  mulher  solteira,  isto  é,  levando  uma  vida  livre  e  solta,  que  tal  foi, 
por  aquelles  tempos,  a  significação  habitual  da  palavra  solteira.  As  ri- 
quezas accumuladas  em  Goa,  e  a  reunião  ali  de  muitos  mercadores  de 
diversas  regiões,  e  de  muitos  portuguezes  ociosos,  haviam  creado  uma 
classe  numerosa  de  solteiras,  algumas  d'ellas  elegantes,  possuindo  jóias 
valiosas,  e  rodeadas  de  escravas.  Gaspar  Corrêa,  referindo-se  a  um  pe- 
ríodo bastante  anterior,  diz-nos  já  o  seguinte:  «Erão  todas  as  mulheres 
solteiras  muyto  ricas  . . .  e  seu  cabedal  erão  pannos  branqos  e  de  seda, 
e  o  mais  era  ouro  em  cadeas  e  manilhas;  porque  havia  mulher  que  hia 
á  igreja  e  levava  três  e  quatro  escravas  carregadas  d'ouro».  O  seu  luxo 
chegou  a  ser  tal,  que  o  honesto  e  rigido  vice-rei,  D.  Pedro  Mascarenhas, 
tentou  atalhal-o,  prohibindo,  que  «nenhuma  mulher  publica  andasse 
em  palanquim,  se  não  descoberta».  Vê-se,  pois,  que  o  nosso  escriptor 
introduz  nos  seus  diálogos  uma  figura  typica  da  vida  de  Goa.  Importa 
pouco  saber  se  Paula  de  Andrade  existiu,  ou  se  Orta  a  inventou  para 
as  necessidades  da  sua  exposição;  o  que  convém  notar,  é  que  o  caso, 
se  não  é  verdadeiro,  é  perfeitamente  verosimil. 

A  negra,  isto  é,  a  escrava  — porque  a  palavra  negra  se  não  applicava 
unicamente  ás  africanas —  foge  depois  do  roubo  para  a  terra  firme,  e 
é  apanhada  no  Passo  Secco.  Este  Passo,  assim  chamado  porque  nas 
marés  baixas  a  ria  tinha  ali  pouca  agua,  ficava  na  extremidade  orien- 
tal da  ilha  de  Goa,  no  fim  da  estrada  de  Santa  Luzia,  logo  adiante  da 
ermida  de  S.  Braz.  Havia  ali  uma  fortaleza,  confiada  a  um  capitão  e  um 
condestabre,  tendo  ás  suas  ordens  cinco  naiques  e  quarenta  piães,  que 
sem  duvida  detiveram  a  negra. 

O  amigo  da  negra,  a  quem  ella  confiara  parte  do  roubo  — ainda 
um  traço  perfeitamente  natural —  foge  por  Agaçaim.  O  Passo  de  Aga- 
çaim  ficava  no  sul,  entre  a  ilha  e  as  terras  de  Salcete;  e  não  havia  ali 
guarda,  por  o  rio  ser  «muito  larguo  e  ruim  desembarcaçáo».  Havia  uni- 
camente uma  barca  e  um  «tenadar». 

(Cf.  Garcia  da  Orta  e  o  seu  tempo,  191 ;  Linschoten,  Navig.,  na  carta 
de  Goa;  Tombo  do  Estado  da  índia,  j3  e  74). 


Soo  Colóquio  jugesimo 

Nota  (2) 

Esta  «datura»  é  a  Datura  alba,  Nees  von  Es.,  ou  antes  a  forma  de 
corollas  roxas  (da  «cor  do  rosmaninho»),  chamada  D.  fastuosa,  e  que 
não  differe  especificamente  da  primeira.  Orta  descreve-a  correctamente, 
comparando  as  suas  folhas  com  as  da  «branca  ursina«  (Acanthus),  e  no- 
tando a  inserção  da  flor,  qne  de  feito  se  afasta  um  pouco  das  disposi- 
ções mais  habituaes. 

Varias  espécies  de  Datura  possuem  propriedades  toxicas  enérgicas^ ; 
mas,  em  doses  convenientes,  são  applicadas  pelos  médicos  hindus  e  mus- 
sulmanos  no  tratamento  de  varias  doenças.  O  extracturn  daturce  e  a  tin- 
dura  daturce,  preparados  com  as  sementes  da  D.  alba;  e  o  emplastrum 
e  cataplasma  daturce,  preparados  com  as  suas  folhas,  figuram  mesmo 
na  Pharmacopceia  0/  índia,  o  que  prova  que  foram  officialmente  ad- 
optados (Phannac.  of  índia,  lyS,  índia  Office,  1868). 

Mas  o  mais  curioso  e  característico  uso  da  datura,  é  aquelle  uso  cri- 
minoso, a  que  Orta  se  refere,  que  todos  na  índia  conheciam  e  conhe- 
cem, e  do  qual  fallaram  Linschoten,  Christovão  da  Costa,  Pyrard  de 
Lavai  e  outros  escriptores  contemporâneos  ou  quasi  contemporâneos 
de  Garcia  da  Orta. 

Os  envenenamentos  variavam  em  gravidade,  desde  os  que  tinham 
por  fim  causar  a  morte,  até  aos  que  unicamente  constituíam  uma  «zom- 
baria», ou  graça,  como  no  caso  contado  por  Orta,  e  passado  com  os  fi- 
lhos do  Nizam  Schah^.  Deve-se  dizer,  que  a  graça  era  pesada,  e  bem  pró- 
pria de  príncipes  orientaes.  Mais  habitualmente,  porém,  a  datura  foi 
empregada  para  obter  a  insensibilidade  ou  inconsciência  temporária  com 
um  fim  mais  ou  menos  condemnavel.  Tanto  Linschoten,  como  Pyrard  de 
Lavai,  se  referem  ao  facto  de  as  mulheres  pouco  escrupulosas  de  Goa 
recorrerem  ao  uso  d'esta  planta  para  adormecerem  a  vigilância  dos  ma- 
ridos ou  dos  protectores;  e  nos  casos  de  roubo,  como  no  de  Paula  de 
Andrade,  parece  ter  sido  de  uso  frequentíssimo. 

Em  tempos  posteriores  a  Orta  continuou  esta  pratica,  da  qual  fal- 
iam Wight,  Murray  e  muitos  outros.  Nos  nossos  dias  a  Datura  foi  ainda 
empregada  regularmente  por  uma  classe  de  Thugs;  e  um  dos  auctores 
do  Glossary,  A.  Coke  Burnell,  recorda  o  facto  de  ter  julgado  e  conde- 
mnado  muitos  d'aquelles  criminosos.  Parece  que  o  dr.  Norman  Chevers 
deu  uma  interessante  noticia  sobre  aquelles  dhaturias  (os  envenenado- 


'  o  alcalóide  da  Datura,  a  dalwina,  foi  considerado  como  idêntico  á  atropina,  e  tendo 
portanto  a  formula  Csi  H;s  Az  O».  Parece,  porém,  ser  muito  menos  enérgico. 

'  Por  isso  a  herva  teve  entre  os  portuguezes  de  Goa  o  nome  de  burladora,  como  recorda 
Cliristováo  da  Costa. 


Da  Dattira  3o  i 

res  profissionaes  com  a  daíuraj,  no  seu  trabalho  Medicai  jurisprudence 
of  Bengal;  mas  não  pude  consultar  este  trabalho,  e  nem  mesmo  posso 
encontrar  nas  minhas  notas  onde  o  vi  citado. 

Os  envenenamentos  com  a  datura  deviam,  pois,  ser  frequentes  em 
Goa,  e  Orta,  escrevendo  a  historia  da  sua  clinica  no  Oriente,  náo  podia 
deixar  de  mencionar  este  accidente  usual. 

Nota  (3) 

O  «dorião»  é  o  fructo  do  Durio  pbethinus,  Linn.,  uma  grande  arvore 
pertencente  á  familia  das  Malvacece,  tomada  esta  no  seu  sentido  mais 
lato. 

Orta  nunca  viu  a  planta,  e  nem  mesmo  pôde  provar  o  fructo,  que 
n'aquelles  tempos  de  viagens  demoradas  não  chegava  em  bom  estado 
á  índia.  Effectivamente  o  Durio  ^ibethinus  habita  só  nas  terras  mais 
chegadas  ao  equador,  varias  ilhas  do  archipelago  Malayo,  península 
de  Malaca,  e  parte  meridional  da  Indo-China.  Pelas  informações  que 
lhe  deram,  consegue  no  emtanto  descrever  o  fructo  com  uma  certa 
exactidão,  ainda  que  um  pouco  confusamente.  É  também  exacto,  men- 
cionando as  encontradas  opiniões,  correntes  sobre  o  sabor  do  celebre 
fructo;  desde  a  opinião  dos  que  o  collocavam  abaixo  das  fructas  euro- 
pêas,  e  lhe  notavam  um  cheiro  repugnante  a  cebolas  podres,  até  ao 
caso  do  mercador  que  vendeu  nau  e  fazendas  só  para  comer  diiriões. 
Parece  com  efFeito,  que  uma  certa  iniciação  é  necessária  para  apreciar 
devidamente  os  duriões.  Wallace  conta,  que  ás  primeiras  tentativas  em 
Malaca,  o  mau  cheiro  lhe  causava  uma  repugnância  extrema;  mas  de- 
pois, em  Bornéo,  se  tornou  um  grande  admirador  do  fructo ;  e  termina 
dizendo:  «comer  Duriões  é  uma  sensação  nova,  e  vale  a  pena  ir  ao 
Oriente  para  a  experimentara  (Cf.  Grawfurd,  Dict.  of  the  Indian  Islands, 
125;  A.  Russel  Wallace,  The  Malay  Archipelago,  74,  London,  i883). 


COLÓQUIO    VIGÉSIMO    PRIMEIRO    DO 

EBUR  OU  MARFIM,  E  DO  ELEFANTE;  E  HE  COLÓQUIO 
que  não  faz  pêra  física,  senão  pêra  pasatempo. 

INTERLOCUTORES 
RUANO,  ORTA,  SERVA,  ANDRÉ  MILANÊS 

RUAXO 

Pois  que  os  ossos  dos  elefantes  vem  em  uso  de  medecina, 
será  bem  que  falemos  delles,  e  do  elefante. 

ORTA 

Do  elefante  ha  muito  escrito;  mas  tem  em  si  tanto  que 
falar,  e  de  que  se  maravilhar,  que  não  se  deve  ter  por 
sobejo  falar  nelle.  E  começando  do  marfim,  vos  digo  que 
nenhum  osso  de  elefante  he  pêra  o  uso  da  fisica,  nem  da 
policia*,  somente  os  dentes;  e  nam  vos  engane  o  que  se  es- 
creve do  espodio,  dizendo  que  he  ossos  queimados  de 
elefante,  porque  ao  diante  vos  farei  certo  nam  o  ser,  se 
Deos  nos  conceder  tempo  pêra  isso  e  pêra  as  outras  cousas  ; 
e  he  noto  isto,  porque  dos  elefantes  que  qua  morrem  não 
lhe  aproveita  a  gente  os  ossos,  e  aproveitalhe  a  carne  pêra 
comer  e  os  dentes  pêra  a  policia. 

RUANO 

E  alguns  tem  cornos? 

ORTA 

Nam,  porque  estes  que  vemos  todos  sam  dentes  ou  pe- 
daços delles,  e  cada  elefante  nam  tem  mais  que  dous  dentes; 
e  as  unhas  nam  se  aproveitam,  ainda  que  Paulo  Egineta 
afirme  que  si.  E  o  elefante  não  lhe  falece  mais  que  fallar, 


*  A  palavra  «policia»  é  empregada  no  sentido  de  industria,  ou  de 
fabrico  do  que  hoje  chamariamos  objectos  de  arte;  veja-se  a  nota  (4). 


3o4  Colóquio  vigésimo  primeiro 

pera  ser  animal  racional;  e  (posto  que  sejam  isto  cousas 
nam  pera  lisica)  mas  em  Cochim  está  hum  estromento  tirado 
de  como  falou  duas  palavras  (i);  e  nam  tendo  que  comer  lhe 
disse  o  seu  mestre  (a  quem  chamam  no  Malavar  naire  e 
os  Decanins  piluane)  que  nam  tinha  a  caldeira  boa  pera  lhe 
cozer  o  arroz,  e  que  levase  a  caldeira  ao  almoxarife;  e  que 
elle  lha  mandava  consertar;  ao  qual  o  elefante  foy  com  a 
caldeira  na  tromba;  e  o  almoxarife  disse  ao  naire  que  le- 
vasse ao  caldereiro,  e  elle  a  concertou  no  fundo  somente, 
onde  estava  danada,  e  o  elefante  a  levou  a  caza,  e  cozendo 
nella  o  arroz,  saya  delia  agua  por  nam  estar  bem  soldada. 
Entonçes  lha  deu  o  naire,  e  o  elefante  a  tornou  a  levar  ao 
caldereiro,  o  qual  a  tomou  e  concertou;  e  de  industria  a 
leixou  pior  que  estava  primeiro,  dandolhe  algumas  martel- 
ladas;  e  o  elefante  a  levou  ao  mar,  e  a  meteo  na  agoa,  e 
olhou  se  deitava  agoa  pelo  fundo ;  e  como  vio  que  a  deitava, 
a  tornou  a  levar  ao  caldereiro,  dando  á  porta  muitos  urros, 
como  quem  se  aqueixava;  e  o  caldereiro  lha  concertou,  e 
soldou  muito  bem;  e  o  elefante  a  foy  provar  ao  mar,  e 
achou  muito  boa;  entonçes  a  levou  a  caza,  e  lhe  fizeram  de 
comer  com  ella.  Vede  se  averia  homem  que  mais  siso  tivese: 
isto  pasou  asi,  e  oje  neste  dia  ha  testemunhas  que  o  viram, 
e  outras  maiores  que  por  comíías  leixo  de  dizer  (2). 

RUAXO 

Como  se  chama  o  elefante  em  arábio  e  indiano? 

ORTA 

Em  arábio  se  chama  Jil,  e  o  dente  cenaljil,  que  quer 
dizer  dente  de  elefante;  em  guzarate  e  em  decanim  ati;  e 
em  malavar  ane;  e  em  canarim  açete;  e  em  lingoa  dos 
cafres  da  Etiópia  ytembo;  e  em  nenhuma  se  chama  baro, 
como  diz  Simão  Genoes,  porque  falar  estorias  de  longe  he 
bom  pera  mentir.  E  em  nenhuma  cousa  de  física  o  gastam 
os  Indianos;  somente  os  físicos  Arábios  e Turcos,  que  curam 
por  Aviçena,  o  gastam  no  que  nós  o  gastamos. 


Do  Ebiir  ou  Marfim  3o5 

RUANO 

E  pois  em  cousas  de  policia  se  gasta  nessa  terra  tanta 
cantidade  quanta  vem  de  Çofala,  porque  me  dizem  que 
também  vem  de  Portugal  pêra  qua  em  mercadorias  que 
elrey  manda? 

ORTA 

Aveis  de  saber  que  da  Etiópia,  scilicet,  de  Çofala  até 
Melinde  vem  cada  anno  á  índia  seis  mil  quintaes,  afora  o 
que  vem  de  Portugal,  que  he  muito  pouco  a  respeito  destou- 
tro;  e  afora  isto  ha  elefantes  no  Malavar,  ainda  que  poucos,  e 
nam  os  domam;  ha  em  Ceilam  muitos  e  mui  doutrináveis, 
e  sam  os  mais  estimados  que  ha  na  índia;  ha  os  em  Orixá, 
em  muyta  cantidade,  e  em  Bengala  e  no  Patane;  e  na 
banda  do  Decam,  do  Cotamaluquo  que  confina  com  Bengala, 
ha  muitos;  e  ha  os  em  Pegú,  e  em  Martavam  e  Siam  mi- 
Ihores;  e  dizem  que  o  rey  de  Siam  tem  um  elefante  branco, 
e  que  se  chama  per  onrra  rei  do  elefante  branco;  se  isto 
he  verdade  eu  nam  o  se}^  (3). 

RUANO 

Inda  me  nam  satisfizestes  minha  duvida,  que  he  onde  se 
gasta  tanto  dente  de  elefante. 

ORTA 

O  marfim  na  China  se  gasta  algum,  e  já  agora  se  vay 
gastando  mais;  o  de  Ceilão  se  gasta  em  cousas  muyto  po- 
lidas, que  se  fazem  na  terra,  de  cofres  e  pentes  e  outras 
muytas  cousas;  e  o  de  Pegú  e  o  de  Ceilão  pela  mesma 
maneira;  e  todos  os  seis  mil  quintais,  que  vem  de  Çofala, 
se  gastam  em  Cambaia,  tirando  algum  pouco  que  vai  pêra 
a  China,  como  já  dise.  Isto  se  gasta  cada  anno,  e  tanto 
monta  vir  muito  como  pouco  (4). 

RUANO 

Em  que  o  gastam,  se  o  vós  nam  dixeseis,  nam  o  creria. 


3o6  Colóquio  rí^vsitno  primeiro 

ORTA 

Aveis  de  saber  que  o  demónio  pôs  certa  superstição  em 
as  molheres  e  filhas  dos  Baneanes,  que  sam  os  que  vivem 
segundo  o  custume  pitagórico,  e  he  que,  quando  morre 
algum  parente,  quebram  as  molheres  todas  as  manilhas  que 
tem  nos  braços,  as  quaes  são  vinte  ao  menos;  e  logo  fazem 
outras  novas,  como  tiram  o  dó;  e  estas  manilhas  sam  de 
marfim  todas,  postoque  algumas  sam  de  tartaruga;  e  isto 
ordenou  o  demónio  porque  se  gastase  tanto  marfim,  que 
vem  da  Etiópia  cada  anno;  e  sempre  se  gastará,  em  quanto 
esta  superstiçam  durar;  e  vai  este  marfim  segundo  a  gran- 
dura dos  dentes,  porque  os  dentes  meudos  valem  pouco,  e 
o  dos  grandes  muyto,  peso  por  peso;  e  também  se  fazem 
outras  cousas  da  policia  de  marfim;  mas  he  isto  em  pouca 
cantidade. 

RUANO 

Maravilhado  estou  desa  superstição;  porém  me  disei  se 
tornam  a  naçer  os  dentes  aos  elefantes,  ou  se  lhe  caem; 
porque  também  nam  sei  como  hay  tanto  elefante  no  mundo. 

ORTA 

Tendes  muyta  rezam  niso,  porque  os  elefantes  vivem 
muyto;  mas  nenhum  delles  tem  mais  de  dous  dentes,  nem 
os  mudam,  senão  ha  muyta  cantidade  delles;  e,  o  que  mais 
he,  que  as  fêmeas  nam  tem  dentes,  e  algumas  os  tem  de 
palmo,  nam  mais.  Nesa  Etiópia  matam  os  cafres  os  elefantes 
pêra  lhe  comer  a  carne  crua,  e  nos  venderem  os  dentes;  e 
isto  he  com  armadilhas  de  arvores,  e  de  outras  muytas 
maneiras,  que  he  de  presumir  que  ha  mais  elefantes  em  a 
Etiópia  do  que  ha  vacas  em  Europa. 

RUiVNO 

De  que  doença  morrem  os  elefantes,  e  de  que  servem 
nestas  terras? 

ORTA 

Elles  sam  muito  melancólicos,  e  am  muyto  medo,  mais 
de  noyte  que  de  dia;  e  quando  dormem  de  noite,  parece 


Do  Ebur  ou  Marfim  Soy 

que  vêem  cousas  temerosas,  e  soltamse;  por  onde  a  maneira 
de  curar  isto,  he  que  dormem  os  seus  naires  em  cima  delles; 
sempre  lhe  estão  falando  porque  nam  durmam.  Tem  camarás 
muytas,  muytas  vezes,  outras  vezes  tem  ciúmes  muyto  for- 
tes, que  caem  em  muy  grande  fúria,  e  quebram  as  cadeas, 
e  fazem  muyto  mal  por  onde  pasam;  isto  curam  os  naires, 
levandoos  ao  campo,  dizendolhes  mil  injurias,  e  reprenden- 
doos  de  seu  pouco  siso;  e  asi  pêra  isto  e  pêra  outras  cousas 
tem  mezinhas  particulares  de  qua  da  terra.  E  quanto  he  o 
serviço  delles,  alem  de  trabalho  de  acarretar  e  mudar  a  arte- 
Iharia  de  huma  banda  pêra  outra,  servem  os  reis  na  pe- 
leja; e  ha  rey  que  tem  mil  elefantes,  e  outros  menos,  e 
outros  mais;  vam  á  guerra  armados,  em,  especial  na  testa 
e  peito,  como  cavallos  encubertados ;  põemlhes  as  campai- 
nhas das  ilhargas  pendentes;  e  põemlhe  nos  dentes  armas 
engastadas,  da  feiçam  de  ferros  de  arados;  e  põemlhe  cas- 
tellos  emçima  em  que  vam  os  naires  que  os  regem,  onde  le- 
vam ganchos  e  bisarmas,  e  alguns  aguora,  de  pouco  pêra 
qua,  levam  meos  berços  e  panellas  de  pólvora.  Eu  os  vi 
já  pelejar,  e  o  mal  que  lhe  vi  fazer  não  he  outra  cousa  senam 
pôr  a  gente  em  desordem,  e  fazela  fugir  ás  vezes;  dizemme 
que  muytas  vezes  fogem,  e  que  fazem  mais  desbaratos  nos 
seus  que  nos  contrairos;  isto  eu  não  no  vi  (5j. 

RUANO 

Ha  outra  maneira  alguma  de  pelejar  delles? 

ORTA 

Si;  mais  isto  he  hum  por  hum  com  os  seus  naires,  que 
os  ensinam  adestrandoos  em  cima  delles;  e  he  muy  crua 
batalha,  onde  se  ferem  com  os  dentes,  esgrimindo  hum, 
emparandose  o  outro  com  seus  dentes.  Feremse  mui  brava- 
mente, e  muitas  vezes  se  vem  a  daremse  tam  grandes  golpes, 
hum  a  outro,  com  as  testas,  que  cae  hum  delles  morto  no 
cham;  e  hum  portuguez  digno  de  fé  me  contou  que  vira 
morrer  hum  mu}^  poderoso  elefante  de  hum  encontro  que 
outro  lhe  deu.  Também  pelejam,  embebedandoos;  e  fogem, 


3o8  Colóquio  vigésimo  primeiro 

e  tomão  ás  vezes  hum  homem  na  tromba  e  fazemno  em  pe- 
daços, o  qual  eu  vi  já  algumas  vezes. 

RU.VNO 

Diz  Plinio  que  o  sangue  delle  aproveita  para  muytas 
cousas,  e  o  fígado  e  a  raspadura  do  marfim,  isto  he  asi? 

ORTA 

Bem  pôde  isso  ser  verdade,  mas  qua  não  se  usa. 

RUANO 

Dizem  que  o  elefante  dorme  com  a  elefanta,  como  homem 
com  molher,  contrario  dos  outros  cadrupedes. 

ORTA 

O  contrario  diso  he  verdade,  porque  tem  ajuntamento 
como  os  outros  cadrupedes;  nem  diferem  a  mais,  somente 
que  o  macho  se  pÕe  em  huma  barrançeira  mais  alta,  e  a 
fêmea  está  mais  baixa;  isto  me  contaram  Portuguezes  dignos 
de  fé.  Eu  vi  já  elefantes,  mas  não  os  vi  ajuntar  com  elefantas 
em  auto  de  gerar,  somente  conto  isto  que  ouvi. 

RUANO 

Também  diz  Plinio  que  a  alma  dos  elefantes  tira  as  ser- 
pentes dos  seus  lugares*. 

ORTA 

Não  sey  parte  diso,  porque  não  o  vi  qua,  nem  ouvi. 

RUANO 

Também  diz  Plinio  que  o  elefante,  quando  come  o  ve- 
neno, busca  o  azambujo  pêra  se  curar**. 


*  Elephantorum  anima  serpentes  extrahit;  o  nosso  auctor  traduziu 
mal  a  palavra  anima. 

**  Li.  280,  cap.  80  (nota  do  auctor).  E  um  evidente  erro  typogra- 
phico;  a  phrase  de  Plinio:  ...  occurrit  oleastro  huic  veneno  suo,  vem 
no  lib.  viiij  41,  ou  cap.  27  das  mais  antigas  edições. 


Do  Ebur  ou  Marfim  809 

ORTA* 

Não  o  vi  qiia,  e  por  isso  não  pude  saber  isso,  nem  ouvi 
que  os  ouvesse  na  Etiópia,  onde  os  ha. 

RUANO 

Também  escreve  Plinio  que  os  melhores  elefantes  e  mais 
belicosos  ha  na  Trapobana  que  na  índia. 

ORTA 

Se  Trapobana  quer  dizer  Çeilam,  como  alguns  estimaram, 
os  milhores  sam  de  todos  e  os  mais  domáveis;  e  se  quer  dizer 
Çamatra**,  também  os  ha,  mas  nam  sam  tam  bons  como 
os  de  Çeilam.  E  muytas  vezes  cuidam  os  homens  que  huma 
cousa  vem  de  huma  terra,  e  vem  de  mais  longe  \  asi  como  muy- 
tos  cuidaram  que  o  melhor  lacre  vinha  de  Çamatra,  e  por  isso 
até  oje  lhe  chamam  locsumiitri,  e  este  bom  lacre  nam  o  ha, 
senam  vem  de  Pegú ;  e  asi  pôde  ser  dos  elefantes  de  Çama- 
tra. 

RUANO 

Sam  capazes  da  lingoa  da  sua  regiam,  como  diz  o  mesmo 
Plinio? 

ORTA 

Nam  tam  somente  da  sua,  senam  da  alhea,  se  lha  ensinam; 
e  os  trazidos  de  Çeilam  pêra  o  Guzarate  e  o  Decanim  fa- 
cilmente lhe  fazem  entender  a  lingoa  os  seus  mestres;  e  al- 
guns levaram  a  Portugal,  que  lhe  íizerão  entender  portu- 
guez;  e  asi  o  entendem  alguns  na  índia  que  vos  amostrarei; 
e  sam  cubiçosos  de  gloria,  que  se  lhe  dizem  que  sam  de  elrei 


*  Na  edição  de  Goa  falta  a  palavra  «Orta»;  e  isto  torna-se  claro, 
porque  se  seguem  as  duas  perguntas  de  Ruano.  Faltam  também  as  qua- 
tro palavras,  que  intercalei  em  itálico,  ou  outras  quaesquer  com  um  sen- 
tido análogo.  Orta  responde  naturalmente,  que  não  poude  verificar  na 
índia  o  que  Plinio  disse  da  Africa;  e  accrescenta,  que  lhe  não  consta 
haver  a^ambujos  na  Ethiopia,  onde  ha  elephantes. 

**  Orta  volta  a  fallar  da  identificação  da  Taprobana  com  Suma- 
tra, ou  com  Ceylão;  veja-se  o  que  disse  a  pag.  18  e  a  pag.  233. 


3 IO  Colóquio  íngestmo  primeiro 

de  Portugal,  folgam  muito,  e  tem  vergonha  do  mal  que  fa- 
zem; sam  agradecidos  do  bem  que  lhe  fizeram;  sam  vinga- 
tivos das  injurias  que  lhe  fazem ;  que  já  aconteçeo  em  Co- 
chim,  porque  a  hum  elefante  deitou  hum  homem  humas 
cascas  de  coquo,  e  lho  quebrou  na  cabeça,  guardou  o  bom 
elefante  a  casca  do  coquo  na  boca,  e  tendoa  guardada  em 
huma  queixada,  vendo  o  homem  que  lhe  avia  feito  a  inju- 
ria, lhe  arremesou  a  casca  do  coquo  com  a  tromba;  e  depois, 
veo  em  uso  e  rifam  (como  dizem  os  Castelhanos)  dizerem 
os  homens,  ainda  trago  a  casca  do  coquo  na  queixada,  por 
dizerem  ainda  me  alembra  a  injuria  que  me  fizeram:  e  por 
aquesto  podeis  ver  que  tem  memoria  os  elefantes. 

RUANO 

Também  diz  Plinio  muytas  cousas  alem  destas,  scilicet, 
que  tem  guerra  com  o  renoçerote  sobre  o  pasto. 

ORTA 

Estes  renoçerotes  ha  em  Cambaia,  onde  parte  com  Ben- 
gala, e  no  Patane,  e  chamamlhes  ganda:  não  sam  tam  bons 
no  amansar  como  os  elefantes,  e  per  esta  rezam  nunqua 
pude  saber  isto  bem  sabido;  porém  traz  rezam  que  dous 
animaes  tam  grandes  e  feros  se  queiram  mal  naturalmente; 
e  quando  escrever  do  licio  farei  memoria  deste  animal,  onde 
direi  o  que  mais  souber  (6).  E  também  diz  Plinio,  que  com 
cumo  de  cevada  posto  na  cabeça  se  lhe  tira  a  dor  que  tem; 
mas  a  cevada  nam  a  ha  em  Etiópia,  onde  vem  a  mór  canti- 
dade,  e  dos  outros  cabos  ha  somente  em  Bengala,  e  em  Cam- 
baia alguma  pouca  cantidade;  por  onde  nam  sei  como  se  isto 
pôde  esprementar,  mas  sei  que  aos  mansos  lhe  poderia  fazer 
proveito. 

RUANO 

Como  se  amansam  e  ensinão? 

ORTA 

Os  novos  com  açoutes,  e  com  vergonhosas  palavras  e 
fome,  e  boas  obras  e  benefícios  que  lhe  fazem,  e  bom  tra- 


Do  Ebur  ou  Marfim  3ii 

tamento:  os  grandes  me  dixcram  que  em  Pegú,  pêra  os 
amansar,  os  metem  em  humas  cazas  grandes,  de  muitas 
portas  pequenas;  e  dahi  os  ferem  os  que  estam  nas  portas 
com  azagayas  e  zargunchos,  e  logo  se  metem  dentro,  e 
quando  se  querem  vingar  de  hum  lhe  sae  o  outro,  isto  lhe 
fazem  até  que  esteem  muy  cansados  e  feridos,  e  mortos  de 
fome  muito;  e  entonçes  lhe  dizem,  depois  de  muito  feridos, 
que  o  que  lhe  fizeram  fo}'  feito  porque  nam  cuvdcm  que  sam 
alguém;  e  que  se  lancem  no  cham,  e  que  lhe  faram  bene- 
fícios de  amigo;  deitase  o  elefante  no  cham,  e  alli  o  lava  o 
mestre;  e  elle,  desque  he  lavado  e  untado  com  azeite,  lhe 
dam  de  comer  e  cada  ora  lhe  vem  perguntar  o  que  quer,  e 
como  esta,  e  asi,  com  estes  castigos  e  afagos,  depois  va3'se 
fazendo  manso  e  domestico  (7).  Estas  cousas  do  elefante  vos 
quis  dizer,  porque  sam  as  mais  certas,  porque  muy  tas  outras 
conta  Plinio;  mas  quero  dizer  o  menos,  e  mais  certo;  porque 
pêra  a  física  isto  sobeja  que  vos  dixe. 

SERVA 

Está  ahi  miçer  André  milanês,  o  kipidairo. 

ORTA 

Dilhe  que  suba. 

ANDRÉ  .MILANÊS 

Beijo  as  mãos  de  vossa  mercê. 

ORTA 

E  nós  as  vossas. 

ANDRÉ 

Quereis  vender  a  vossa  esmeralda  grande  ou  a  pequena, 
porque  ambas  vos  farei  comprar;  porque  a  mais  pequena 
he  mais  fina. 

ORTA 

Tudo  venderei,  e  volas  darei  ambas  pêra  que  as  mostreis 
ao  comprador  somente;  e  isto  confiarei  de  vossa  fé,  que  as 
não  amostreis  mais  que  ao  comprador,  e  ao  seu  conselheiro, 
tornandomas  d  mão  logo,  se  as  não  comprar.  E  comtudo  me 


3 1 2  Colóquio  vigésimo  primeiro 

dizei  se  o  tempo  que  estivestes  em  Pegú  vistes  caçar  elefan- 
tes e  domar  elefantes? 

ANDRÉ 

Duas  vezes:  huma  foy  indo  elrey  e  todo  o  reyno  á  caça,  e 
seriam  200:000  pessoas  o  mais;  e  cercavão  a  caça,  scilicet, 
fazendolhe  cercos,  e  como  foram  pequenos  os  cercos,  porque 
cada  vez  se  faziam  mais  pequenos,  tomaram  grande  multi- 
dão de  veados  e  porcos  e  tigres,  muytos  vivos,  e  outros 
mortos  a  feridas. 

ORTA 

Deste  modo  vi  fazer  caça  ao  Nizamoxa,  e  tomar  huma 
grande  multidam. 

ANDRÉ 

Entonçes  tiverão  cercados  4:000  elefantes,  scilicet,  fê- 
meas e  machos  e  pequeninos;  e  leixouos  yr  todos,  e  lica- 
ramlhe  200,  entre  grandes  e  pequenos,  por  nam  despovoar 
o  monte;  e  isto  eu  vi,  e  os  domaram,  scilicet,  os  duzentos 
cercados  de  grosas  traves,  e  cada  vez  eram  mais  pequenos 
os  cercos,  e  mais  fortes,  até  não  aver  mais  largura,  que 
quanto  hum  elefante  podia  caber;  e  ali  por*  aquelas  aber- 
turas das  traves  muyto  pequenas  tomavam  cordas  grossas 
de  rotas  (que  sam  feitas  de  humas  varas  que  se  muyto  bran- 
dem) e  lhas  lançavam  aos  pés,  e  outras  nos  dentes,  que  os 
faziam  estar  sem  se  bulir  pêra  huma  parte  nem  outra,  e  de- 
pois os  cingiram  com  duas  cordas  pêra  cavalgarem  nelles, 
e  ferindoos  bravamente,  e  elles  chorando  lagrimas  que  lhe 
eu  vi,  cavalgou  em  cada  hum  seu  mestre;  e  metendo  os 
pés  polias  cintas  lhe  dizia  que  soubessem  que  se  nam  tinham 
siso  que  os  feririam  sempre,  e  os  matariam  de  fome,  e  como 
consentissem  na  verdade,  os  untariam  com  azeite  e  lhes  da- 
riam de  comer,  e  foram  os  lavar;  tirando  os  fora,  a  cada  hum 


*  Na  edição  de  Goa  está  «alimpou»,  que  de  modo  algum  podia  ter 
sentido;  na  errata  manda  substituir  «ajuntou»,  que  também  não  se  per- 
cebe, e  deve  ser  um  erro.  Com  as  palavras  «ali  por»  a  phrase  torna-se 
mais  clara;  veja-se  adiante  a  nota  (8). 


Do  Ebiir  ou  Marfim  3i3 

meteram  entre  dous  mansos  que  os  aconselháse,  e  deste  modo 
foram  todos  domados. 

ORTA 

Eu  já  ouvi  esta  maneira  de  domar;  mas  de  caçar  nam 
cuidei  que  em  Pegú  e  Çeilam  aviam  tantos;  e  agora  me 
dizei  outra  alguma  maneira  de  caçar,  se  sabeis. 

ANDRÉ 

Tinha  elrey  fama  de  hum  elefante  muyto  grande,  que  an- 
dava no  mato,  e  mandou  lá  elefantas  muyto  mansas  e  domes- 
ticas, e  amestradas,  dizendolhes  que  nam  quizesem  ter  ajun- 
tamento com  os  elefantes,  senam  prometendolhe  primeiro 
que  consentiriam  como  chegassem  ás  suas  moradas:  isto  lhe 
davam  por  signaes  a  entender.  E  os  elefantes,  como  as  fê- 
meas lá  foram,  se  vieram  pêra  ellas;  e  tratando  com  ellas 
amores,  vieram  após  ellas,  e  pascendo  pollo  campo  até  os 
meterem  dentro  em  Pegú  (que  he  grande  cidade)  e  dalli  se 
meteram  em  parte  onde  os  cerraram;  e  leixaram  por  diante 
yr  o  outro,  e  as  elefantas  lhe  tiraram,  e  ficou  aquelle  só  da 
maneira  dita,  e  foy  domado  pela  maneira  que  acima  dise  (8). 

RUANO 

Yso  está  muy  bem;  porém  diz  Plinio*  que  com  o  bulir 
dos  dentes,  e  tascar  os  porcos,  os  elefantes  tornam  atrás  e 
sam  espantados? 

ORTA 

Já  soube  o  contrairo  diso;  porque  nas  estrabarias  dos 
elefantes  ha  porcos,  e  nam  fazem  caso  delles:  no  mato  da 
terra  do  Malavar  ha  muytos  porcos,  donde  ha  alguns  elefan- 
tes, e  não  se  diz  que  delles  ajam  medo.  Verdade  he,  eu  sei 
isto,  o  que  diz  Plinio,  que  avoreçem  os  ratos  muyto,  porque 
onde  dormem  os  elefantes,  se  ha  ali  ratos,  dormem  os  elefan- 
tes com  a  tromba  encolheita,  porque  lhe  não  morda  ou  pique 
nella;  e  polia  mesma  rezam  avoreçem  as  formigas.  E  v.  m. 


*  Livro  8,  cap.  9  (nota  do  auctor). 


3 14  Colóquio  jngesimo  primeiro 

tenha  cuidado  de  me  vender  as  minhas  esmeraldas,  e  va- 
mos comer.  E  não  me  tenhaes  por  leve  por  falar  tanto  nisto, 
que  Mateolo  Senense,  homem  douto,  falou  muyto  do  ele- 
fante, e  não  tantas  verdades  como  eu  contei. 


Nota  (i) 

Desde  tempos  muito  antigos,  pelo  menos  desde  os  tempos  de  Megas- 
thenes,  todos,  os  que  observaram  os  elephantes,  encareceram  e  louva- 
ram a  sua  sagacidade.  Plinio  chegou  a  attribuir-lhes  sentimentos  de 
probidade,  de  prudência  e  de  justiça,  qualidades  raras  mesmo  no  ho- 
mem :  immo  vero  (qiice  etiam  in  homine  rara)  probitas,  pritdentia,  cequi- 
tas.  D'aqui  a  dar-lhes  o  uso  da  palavra  não  ia  mais  que  um  passo.  De 
resto,  a  noticia  sobre  o  elephante  que  fallou  não  é  da  lavra  do  nosso 
escriptor  e  da  sua  exclusiva  responsabilidade.  Damião  de  Góes  refere 
também  como  cousa  muy  certa,  que  estando  Diogo  Pereira,  homem  no- 
bre e  digno  de  fé,  na  cidade  de  Bisanaga  (Bijayanagar),  viu  ali  um  ele- 
phante escrever  com  a  ponta  da  tromba;  e,  perguntando-se-lhe  depois 
o  que  comera,  respondeu  em  voz  clara:  arro'^  e  bethelem  (betle). 

(Cf.  Plinio,  VIII,  i;  Damião  de  Góes,  Chron.  dofelic.  Rey  D.  Emanuel, 
2y5,  Lisboa,  1619.) 

Nota  (2) 

A  historia  do  elephante  e  do  caldeireiro  devia  ser  corrente  na  ín- 
dia, e  contou-a  também  fr.  João  dos  Santos  com  ligeiras  variantes  e 
um  pouco  simplificada.  O  mesmo  fr.  João  dos  Santos  conta  outras  his- 
torias do  elephante  chamado  Perico,  e  Damião  de  Góes  algumas  do 
elephante  Martinho,  que  são  mais  ou  menos  análogas  a  esta,  e  á  do 
elephante  e  da  casca  de  coco,  referida  pelo  nosso  escriptor  nas  pagi- 
nas seguintes  (Cf  fr.  João  dos  Santos,  Ethiopia  oriental,  part.  i,  livr.  iii, 
cap.  i5,  Évora,  1608). 

Nota  (3) 

Os  nomes  vulgares,  que  Orta  cita,  são  pela  maior  parte  fáceis  de 
identificar: 

—  «Em  arábio  se  chama_^/,  e  o  dente  cenalfil. . .»  Effectivamente  o 

nome  arábico  é  j--^,fil;  e  o  dente  chama-se  .^r-j  •^^"  o^  ^^"j  d'onde 
cen-al-Jil. 


Do  Ebur  ou  Marjim  3i5 

—  "Em  malavar  ane  . . . « ;  este  é  o  nome  mais  vulgar  nas  línguas 
dravidicas  da  índia  meridional,  áne,  ána,  ánei,  em  tamil,  maláyalam  c 
outras. 

—  «Ati«  é,  com  uma  simples  e  ligeira  modificação  orthographica,  o 
nome  escripto  por  Hunter,  hátí,  hátti,  liáthi,  e  empregado  por  muitas 
tribus  do  leste  e  do  centro  da  índia. 

—  «Ytembo»,  na  Africa;  não  encontrei  este  nome  na  rica  nomen- 
clatura africana,  em  que  o  elephante  se  chama  indhlovú,  n':^amba,  ^ou, 
jau,  li-íou,  n,jovo  e  de  outros  modos;  mas  é  liem  possível  que ytembd 
fosse  ou  seja  ainda  conhecido  sem  eu  o  saber.  Em  todo  o  caso  a  palavra 
tem  um  certo  fácies  africano. 

Orta  dá  a  distribuição  geographica  dos  elephantes,  de  um  modo 
que  para  o  seu  tempo  devia  ser  muito  exacto,  posto  que  as  cousas  te- 
nham mudado  consideravelmente  de  então  para  cá.  Tanto  na  Ásia, 
como  na  Africa,  os  elephantes  tcem  pouco  a  pouco  recuado  diante 
do  homem;  e  regiões  ha,  onde  eram  numerosos  no  começo  do  nosso 
século,  e  hoje  se  não  encontra  um  só. 

Em  primeiro  logar,  refere-se  ao  grande  numero  de  elephantes  que 
então  havia  na  Africa,  dizendo-nos,  que  da  parte  da  costa  entre  Sofala 
e  Melinde  se  exportavam  annualmente  para  a  índia  seis  mil  quintaes 
de  maríim,  uma  exportação  a  que  já  se  referira  antes  d'elle  Marco  Polo^ 
e  se  referiram  depois  d'elle  fr.  João  dos  Santos  e  muitos  outros.  Se  at- 
tendermos  á  enorme  mortandade  d'aquelles  animaes,  que  se  tem  feito 
nos  séculos  seguintes  e  particularmente  no  nosso,  não  parecerá  exa- 
gerada a  sua  phrase,  de  que  deviam  ser  ali  mais  numerosos  do  que 
«vacas  em  Europa»,  uma  phrase  que  — seja  dito  de  passagem —  pa- 
rece occorrer  naturalmente  aos  nossos  escriptores;  fr.  Gaspar  de  S.  Ber- 
nardino diz  do  mesmo  modo:  ...  «os  quaes  affirmam  serem  mais  que 
as  Vacas  em  Europa»  (Jiin.  da  índia  por  terra  até  este  reino  de  Portu- 
gal, 3y  v.,  i6ii). 

Em  relação  á  índia,  diz-nos  Orta,  que  os  elephantes  se  encontravam 
no  Malabar,  Orissa,  Bengala,  Patane,  e  parte  oriental  dos  estados  do 
«Cotamaluquo»,  isto  é,  do  reino  de  Golconda.  Deve  advertir-se  que 
Patane  não  significa  n'esta  passagem  o  Afghanistan,  mas  as  terras  de 
Behar,  no  valle  médio  do  Ganges,  como  já  notámos  no  Colóquio  de' 
cimo.  Vê-se,  que  elle  indica  quasi  todo  o  planalto,  que  descáe  dos  Gha- 
tes  occidentaes  para  a  costa  do  golpho  de  Bengala  e  valle  do  Ganges, 
onde  então  deviam  existir  grandes  florestas  e  largos  tractos  de  terrenos 
incultos  e  de  jungles,  pelos  quaes  vagueariam  numerosas  manadas  de 
elephantes,  que  em  tempos  mais  modernos  têem  desapparecido  ou  di- 
minuído consideravelmente. 

Aponta  a  abundância  em  Ceylão  de  elephantes  «muy  doutrináveis» ; 
no  que  está  perfeitamente  de  accordo  com  o  que  disse  Plinio,  sobre  a 
intelligencia  do  elephante  da  Taprobana;  e  com  o  que  repetiu  nos 


3 1 6  Colóquio  vigésimo  primeiro 

nossos  dias  sir  Emerson  Tennent,  sobre  a  facilidade  com  que  se  aman- 
sam e  aproveitam  os  d'aquella  ilha,  tanto  na  própria  ilha,  como  na 
índia,  para  onde  são  levados  em  grande  numero i. 

Nota  também,  mais  adiante,  a  existência  de  elephantes  em  Sumatra, 
no  que  prova  quanto  andava  bem  informado,  pois  Sumatra  é  o  único 
ponto  do  archipelago  Malayo  onde  elles  se  encontravam,  pelo  menos 
em  abundância^  (Cf.  Crawfurd,  Dict.,  i35). 

Falla-nos  por  ultimo  nos  elephantes  de  Pegu,  Martabão  e  Sião ;  no 
que  continua  a  ser  exacto,  pois  todas  aquellas  terras  da  Indo-China 
eram,  no  seu  tempo,  uma  das  regiões  do  globo  em  que  existia  maior 
numero  d'estes  grandes  pachydermes,  tanto  no  estado  selvagem  como 
domesticados.  A  propósito  de  Sião,  menciona  naturalmente  o  famoso 
elephante  branco,  cuja  existência  os  portuguezes  conheciam,  e  que  ha- 
viam mesmo  verificado  muitos  annos  antes.  Segundo  conta  Gaspar  Cor- 
rêa, quando  Simão  de  Miranda  foi  a  Sião,  no  anno  de  i5i  i,  o  rei  man- 
dou-lhe  mostrar  as  cousas  notáveis  da  cidade,  « . . .  e  hum  alifante  branco 
que  tinha,  porque  era  por  todas  as  partes  nomeado  por  senhor  do  ali- 
fante branco,  que  outro  nom  havia»  (Lendas,  ii,  263). 

Como  se  vê,  não  escapa  á  enumeração  do  nosso  escriptor  terra  al- 
guma em  que  se  criassem  então  aquelles  notáveis  animaes. 


Nota  (4) 

Esta  noticia  de  Orta  sobre  a  grande  quantidade  de  marfim  que  se 
trabalhava  em  Cambaya,  é  confirmada  e  explicada  por  Duarte  Barbosa 
nas  seguintes  phrases,  pelas  quaes  se  vê  bem  o  que  era  a  «policia»  de 
Orta: 

«Nesta  cidade  se  gasta  grande  soma  de  marfim,  em  obras  que  nela 
fazem  muyto  sotis  e  marchetadas,  e  outras  obras  de  torno,  como  saom 
manilhas,  cabos  dadaguas,  e  em  tresados,  jogos  demxadrex,  e  tavolas, 
porque  ha  hy  muy  deliquados  torneiros  que  fazem  tudo;  e  muytos  ley- 
tos  de  marfim,  de  torno,  de  muy  sotis  obras,  e  contas  de  muytas  ma- 
neiras ...»  (D.  Barbosa,  Livro,  286). 


'  No  fim  do  Colóquio  da  Canella,  Orta  tinha  dito :  que  todos  os  elephantes  das  outras  re- 
giões guardavam  respeito  e  obediência  aos  de  Ceylão.  Isto  era  uma  velha  crença,  que,  ape- 
sar de  não  ter  fundamento,  foi  muitas  vezes  repetida,  nomeadamente  pelo  viajante  francez 
Tavernier. 

'  Disse-se  também,  mas  com  alguma  duvida,  que  os  havia  igualmente  em  Borneo,  só  em 
parte  da  ilha  e  em  pequena  quantidade-  Os  elephantes  de  Ceylão  e  de  Sumatra  apresentam 
varias  differenças  osteologicas  do  da  índia  (Elephas  indicus,  Ciiv.);  e  são  considerados  por 
alguns  naturalistas  como  uma  espécie  particular,  Elephas  sumatranus. 


Do  Ebur  ou  Marfim  3 1 7 


Nota  (5) 

É  bem  conhecido  de  todos,  o  facto  de  se  terem  empregado  regular- 
mente na  guerra  os  elephantes,  não  só  os  asiáticos,  que  ainda  hoje  se 
domesticam  facilmente,  como  também  os  africanos,  que  desde  tempos 
muito  antigos  deixaram  de  ser  domados;  e  este  assumpto  tem  sido  tra- 
tado variadas  vezes,  e  foi  mesmo  o  objecto  de  um  livro  especial  (Ar- 
mandi,  Hist.  militaire  des  elephants). 

Paliando  da  índia,  lembram-nos  logo  os  elephantes  de  Poro,  e  o  ter- 
ror que  a  sua  vista  causou  aos  cavallos  dos  soldados  de  Alexandre  na 
batalha  do  Hitaspis.  Eram  duzentos,  coUocados  na  frente  das  tropas  in- 
dianas, de  cem  em  cem  pés;  e,  no  mais  acceso  da  refrega,  os  soldados 
de  Poro  acolhiam-se  junto  d'elles,  ad  elephantos  tanquam  ad  arnicas  mu- 
ros confugiunt;  de  modo  que  a  batalha  tomava  um  aspecto  singular, 
e  diverso  do  de  todas  as  outras,  eratque  hcec  pugna  nulli  priorum  cer- 
tamine  similis.  Depois  de  Poro,  e  até  ao  tempo  de  Orta,  os  elephantes 
continuaram  a  entrar  regularmente  na  composição  dos  exércitos  asiá- 
ticos; e  na  grande  batalha  de  Panipát  (026),  as  forças  de  Dehli  conta- 
vam — segundo  Gaspar  Corrêa —  «oitocentos  alifantes»,  numero  que 
não  é  exagerado,  e  o  próprio  commandante  das  tropas  mongoes,  Bá- 
ber,  calculava  em  proximamente  mil. 

(Cf.  Arriani  de  exp.  Alex.  Magni,  SSg  et  seqq.  versão  de  N.  Blan- 
cardo;  Lendas,  iii,  fyS ;  Erskine,  Hist.  of  Báber,  i,  434). 

Orta  não  nos  dá,  portanto,  novidade  alguma  em  relação  ao  emprego 
militar  dos  elephantes;  mas  dá-nos  uma  indicação  muito  interessante  so- 
bre a  sua  adaptação,  então  recente,  á  nova  arte  da  guerra,  «aguora  de 
pouco  pêra  qua  levão  mêos  berços  e  panellas  de  pólvora».  Era  a  com- 
binação da  pólvora  e  da  artilheria  com  o  elephante. 

Nos  combates  com  os  portuguezes,  os  elephantes  não  figuraram 
muito  a  miúdo,  porque  esses  combates  se  localisaram  geralmente  nas 
terras  do  litoral,  ataques  e  defezas  de  praças,  em  que  mal  podiam  ser 
empregados.  Comtudo,  em  algumas  occasiões,  os  nossos  soldados  en- 
contraram-se  face  a  face  com  elles;  e  parece  que  ao  principio  com  certo 
receio.  Na  tomada  de  Malaca,  andavam  pela  rua  dez  elephantes :  . .  .  «es- 
tavão  muitos  mouros  e  El  Rey  com  os  alifantes,  que  remeterão  com  os 
nossos  com  grandes  bramidos  por  fazer  espanto,  de  que  os  nossos  ouve- 
rão  temor  e  nom  forão  adiante».  Tornou-se  necessário,  que  Fernão  Go- 
mes de  Lemos,  Vasco  Fernandes  Coutinho  e  D.  João  de  Lima  dessem  o 
exemplo,  atacando-os  ás  lançadas  pelas  trombas,  para  que  os  soldados 
cobrassem  animo  (Lendas,  11,  240). 

O  nosso  Orta,  porém,  diz  que  os  viu  pelejar;  mas  não  diz  onde. Tal- 
vez em  alguma  guerra  interior,  entre  príncipes  mussulmanos  e  hindus, 
a  que  elle  acompanhasse  o  seu  amigo  Buhrán  Nizam  Schah.  Em  todo 


3i8  Colóquio  vigésimo  primeiro 

o  caso  descreve  acertadamente  a  sua  acção,  dizendo  que  os  não  viu  fa- 
zer mais  do  que  lançar  a  confusão  nas  fileiras  do  inimigo.  Refere-se  tam- 
bém ao  perigo  que  havia  na  sua  debandada,  quando,  feridos  e  ater- 
rados, fugiam,  e  contribuíam  para  a  derrota  do  próprio  exercito.  Isto 
é  evidentemente  uma  reminiscência  das  suas  leituras.  Arriano  conta, 
que  assim  se  terminou  a  batalha  do  Hitaspis;  e  Plinio  dá  a  mesma  no- 
ticia de  um  modo  geral:  vulneratiqiie  et  territi  retro  semper  cedunt, 
haiid  minore  partium  suarum  pernicie.  É  sem  duvida  a  estas  noticias 
clássicas,  que  o  nosso  escriptor  se  reporta;  mas,  com  os  seus  escrúpu- 
los habituaes,  acrescenta:  «isto  eu  não  no  vi»  (Cf  Arriano,  1.  c;  Plinio, 
viii,  lo). 

Nota  (6) 

Quando  Orta,  no  Colóquio  trigésimo  primeiro,  volta  a  fallar  da 
ganda,  ou  rhinoceronte,  dá  a  noticia,  aliás  bem  conhecida  poc  outras 
fontes,  de  que  el-rei  D.  Manuel  mandou  um  d'estes  animaes  de  presente 
ao  papa.  Como  o  presente  da  ganda  se  liga  com  o  de  um  elephante, 
mandado  ao  mesmo  papa  Leão  X,  procuraremos  n'este  logar,  como  e 
quando  foi  a  remessa  dos  dois  grandes  e  então  quasi  desconhecidos 
pachydermes.  . 

Alguns  dos  nossos  escriptores,  menos  bem  informados,  dizem  que 
D.  Manuel  mandou  juntamente  . .  .«hum  Elefante  e  huma  Abada,  que 
forão  os  primeyros  que  em  a  cidade  de  Roma  se  viram  do  Oriente». 
A  noticia  não  é  absolutamente  exacta,  porque  os  dois  animaes  foram 
separados. 

Primeiro  foi  o  elephante,  e  a  sua  chegada  a  Roma  tomou  as  propor- 
ções de  um  grande  acontecimento  — foi  um  successo,  como  hoje  se  diria. 
Nos  tempos  áureos  da  antiga  Roma  haviam-se  visto  no  Circo  muitos 
elephantes;  e  Plinio  conta,  que  só  no  triumpho  de  L.  Metello  figuraram 
140,  tomados  aos  carthaginezes.  Depois  d'isso  vieram  muitas  vezes  ao 
Circo,  onde  se  fizeram  cruéis  hecatombes  d'aquelles  grandes  e  pacíficos 
animaes.  Não  sei,  se  entre  todos  os  elephantes  trazidos  a  Roma,  se  não 
encontraria  um  único  asiático  — uma  opinião,  a  que  nos  referiremos 
adiante.  É  natural  que  algum  ali  viesse;  mas  é  certo  que  a  maior  parte, 
ou  quasi  totalidade,  devia  vir  da  Africa,  onde  os  elephantes  eram  en- 
tão numerosíssimos,  e  se  encontravam  muito  mais  ao  norte  do  que 
hojei.  Fosse  como  fosse,  já  nos  últimos  tempos  do  Império  se  viram 
menos  na  Europa;  e  depois,  durante  a  Idade-media,  tornaram-se  rarís- 
simos. Podemos  apenas  apontar  um  ou  outro;  como  foi  aquelle  que  o 


'  Segundo  Sir  Emerson  Tennent,  os  elephantes  trazidos  por  Pyrrlio  á  Itália  eram  asiáti- 
cos; mas  posteriormente  quasi  todos  os  que  vieram  a  Roma  deviam  ser  africanos. 


Do  Ebur  ou  Marfim  819 

grande  khalifa  Harun-er-Raschid  mandou  a  Carlos  Magno  no  anno  de 
802;  e  o  que  S.  Luiz,  rei  de  França,  enviou  a  Henrique  III  de  Ingla- 
terra no  anno  de  i255.  Como  se  vê  d'estes  exemplos,  o  presente  de 
D.  Manuel  era  digno  do  faustoso  rei  que  o  mandava,  e  do  faustoso  pon- 
tífice que  o  recebia  (Cf.  Benedictina  lusitana,  u,  385;  Plinio,  viii,  6;  An- 
nales  Francorum,  A.  D.  810;  Tennent,  Ceylon,  11,  295). 

O  elephante  fazia  parte  do  riquíssimo  presente,  levado  por  Tristão 
da  Cunha  na  conhecida  embaixada  do  anno  de  i5i4,  no  qual  entra- 
vam outros  animaes:  um  cavallo  «pérsio»  mandado  a  D.  Manuel 
pelo  rei  de  Hormuz;  e  uma  onça  de  caça,  ou  chita.  Todos  os  historia- 
dores do  felicíssimo  rei,  como  Damião  de  Góes  e  Jeronymo  Osório,  des- 
crevem miudamente  a  entrada  em  Roma  da  embaixada;  mas  as  relações 
mais  interessantes  e  vivas  são  sem  duvida  alguma  as  que  se  encontram 
na  carta  do  dr.  João  de  Faria,  e  na  de  Nicolau  de  Faria,  estribeiro  pe- 
queno d'El-Rei,  o  qual  levava  especialmente  a  seu  cargo  os  animaes. 
Este  conta  todos  os  trabalhos  que  passou  para  desembarcar  o  elephante, 
e  para  o  levar  depois  até  Roma.  A  curiosidade  de  o  ver  era  intensa.  As 
estradas  estavam  apinhadas  de  gente.  Uma  noite,  vieram  dez  ou  doze 
condes  e  duques,  com  tochas,  examinar  o  monstruoso  e  desconhecido 
animal.  Em  outra  occasião,  o  povo  chegou  a  destelhar  a  estrebaria, 
onde  o  tinham  alojado,  para  o  contemplar  á  vontade.  Pelos  caminhos 
viam-se  «senhores  e  bispos  e  molheres  em  mulas»,  que  vinham  ao  seu 
encontro;  e  já  próximo  de  Roma  vieram  «as  irmans  do  papa  com  muy- 
tas  molheres  fremosas».  Quando  se  tratou  de  apparelhar  e  ataviar  o 
elephante  para  a  entrada  solemne,  o  apertão  era  tal,  que  o  papa  teve 
de  mandar  a  sua  guarda  suissa  para  fazer  a  policia:  «a  guarda  dos  soí- 
ços  toda».  Afinal  conseguiram  vestir  o  elephante;  Nicolau  de  Faria  fi- 
cou satisfeito  com  o  seu  aspecto,  e  escreve  a  D.  Manuel:  «hia  tanto  fre- 
moso,  sendo  muyto  fêo,  que  hera  cousa  gentil  de  ver». 

Na  pomposa  passagem  de  Tristão  da  Cunha  pelas  ruas  de  Roma,  o 
«fremoso»  animal  atrahia  todas  as  attenções;  e  quando  chegou  onde 
estava  o  papa  portou-se  admiravelmente;  fez  as  suas  reverencias,  e, 
tomando  agua  perfumada  em  uma  dorna  que  ali  estava,  borrifou  o  pon- 
tífice e  o  sagrado  collegio  dos  cardeaes.  Depois  voltou-se  para  o  povo, 
e  aspergiu-o  com  menos  respeito  e  mais  agua:  in  plebem  deinde  con- 
versus,  eam  aqua,  quasi  liidum  exhibere  vellet,  immodice  perfudit,  diz- 
nos  Jeronymo  Osório,  no  seu  impeccavel  latim.  Nicolau  de  Faria  ficou 
radiante;  o  elephante  encheu-lhe  as  medidas,  excedeu-as  mesmo:  . . . 
«fez  cousas  maravilhosas,  e  muyto  milhores  do  que  cuidei,  nem  do  que 
esperava»,  escrevia  elle  nos  dias  seguintes  a  D.  Manuel.  Leão  X  tam- 
bém estava  contentíssimo:  . . .  «mais  risonhoso  que  hum  minino.» 

Como  fosse  necessário  apagar  as  glorias  da  antiga  Roma,  procura- 
ram averiguar  se  todos  os  elephantes,  que  ali  vieram  nos  remotos  tem- 
pos da  Republica  e  dos  Césares,  procediam  da  Africa,  e  parece  que 


320  Colóquio  vigésimo  primeiro 

chegaram  a  esse  convencimento :  tomou-se  «conclusam  perante  o  papa 
que  nunca  vêo  nenhum  da  índia  senam  este«,  escrevia  a  D.  Manuel  um 
dos  secretários  da  embaixada,  o  Dr.  João  de  Faria.  O  mesmo  João  de 
Faria  resumia  assim  as  suas  impressões  sobre  a  vinda  do  elephante  :  . . . 
«e  cerlo  foy  grande  consideração  de  vosa  aheza  mandalo  a  Roma,  por- 
que triunfou  da  índia  aquelle  dia  em  Roma,  e  nom  era  obediência  mas 
triunfo  de  vosa  aheza  que  entrou  em  Roma». 

(Cf.  Damião  de  Góes,  Chronica,  233  v. ;  H.  Osório,  De  Rebus  Ema- 
nuelis,  346,  Olysippone,  iSyi;  Carta  do  Dr.  João  de  Faria  de  18  de  março 
de  i5i4,  e  carta  de  Nicolau  de  Faria  da  mesma  data,  no  Corpo  dipl.port., 
I,  234  a  242,  Lisboa,  1862.) 

O  rhinoceronte  veiu  mais  tarde  e  foi  menos  feliz.  No  anno  de  i5i3 
—  Garcia  da  Orta  diz  i5i2 —  Affonso  de  Albuquerque  mandou  Diogo 
Fernandes  de  Beja  ao  rei  do  Guzerate,  que  então  era  Muzaffar  Scháh, 
pedir-lhe  permissão  para  construir  uma  fortaleza  em  Diu,  o  constante 
desejo  dos  portuguezes.  Muzaffar,  menos  imprudente  que  o  seu  succes- 
sor  Bahádur,  recusou;  mas,  para  não  romper  com  o  impetuoso  governa- 
dor, envolveu  a  recusa  em  muitos  protestos  de  amisade,  e  em  paga  do 
rico  presente  que  recebera  enviou  também  um  presente,  no  qual  en- 
trava o  rhinoceronte.  Este  animal  não  era  raro  nas  províncias  centraes 
e  septentrionaes  da  índia;  mas  não  tinha  sido  visto  até  então  pelos 
portuguezes  de  Goa.  Gaspar  Corrêa  descreve-o  com  muita  exactidão : 
«...  era  alimária  mansa,  baixa  de  corpo  hum  pouco  comprido,  os  coi- 
ros, pés  e  mãos  d'alifante,  a  cabeça  como  de  porquo  comprida,  e  os 
olhos  juntos  do  focinho,  e  sobre  as  ventas  tinha  hum  corno,  grosso  e 
curto,  e  delgado  na  ponta;  comia  herva,  palha,  arroz  cosido».  Por  esta 
ganda^  ou  rhinoceronte  ser  um  animal  estranho  e  raro,  Affonso  de 
Albuquerque  determinou  mandal-o  a  D.  Manuel,  sabendo  quanto  este 
estimava  todas  as  curiosidades  orientaes. 

Chegou  a  salvamento  a  Lisboa,  onde  ficou  na  ménagerie  de  D.  Ma- 
nuel até  ao  anno  de  iSiy.  N'esse  anno  o  rei  quiz  ver  uma  lucta  entre 
o  rhinoceronte  e  um  elephante  que  então  tinha.  Lembrava-se  dos  es- 
pectáculos da  velha  Roma,  ou  do  que  lhe  contavam  os  portuguezes  de 
torna  viagem  acerca  dos  hábitos  dos  grandes  monarchas  orientaes;  e 
queria  também  verificar  a  antiga  e  persistente  lenda  sobre  o  ódio,  que 
se  suppunha  existir  entre  os  dois  grandes  herbívoros.  No  mez  de  fe- 
vereiro do  anno  de  iSiy,  em  um  pateo  que  então  havia  diante  da  casa 
da  contratação  da  índia,  pozeram  os  animaes  em  face  um  do  outro.  O 
rhinoceronte  acommetteu  o  elephante;  mas  este,  que  ainda  era  novo, 


'  Ganda  lhe  chamaram  os  portuguezes,  do  nome  indiano  ganida,  genda,  ganda.  O  nome 
de  abada  ou  bada,  dado  ao  mesmo  animal  e  ainda  conservado  na  designação  commercial 
das  pontas  de  abada,  é  de  origem  pouco  clara. 


Do  Ebiir  ou  Marfim  3-2 1 

possuiu-se  de  tal  medo,  que  arrombou  as  grades  de  ferro  de  uma  ja- 
nella  baixa,  e  fugiu  até  á  sua  estrebaria  habitual,  dando  urros  e  brami- 
dos, e  deixando  o  rhinoceronte  senhor  do  campo.  Pouco  depois,  D.  Ma- 
nuel mandou  este  ultimo  a  Leão  X.  No  mez  de  outubro  do  anno  de  iSiy 
embarcaram-no  em  uma  nau,  commandada  por  Jocão  de  Pina,  com  des- 
tino aos  portos  da  Itália.  A  nau  tocou  em  Marselha,  onde  então  se  achava 
Francisco  I — parece  que  o  rhinoceronte  estava  destinado  a  ser  visto 
pelos  homens  mais  salientes  do  século  xvi.  Effectivamente  foi  desembar- 
cado a  pedido  do  rei;  e,  embarcando  de  novo,  a  nau  seguiu  a  sua  der- 
rota, indo  perder-se  nas  costas  da  Itália.  A  grande  baixella  e  todo  o 
riquissimo  presente,  destinado  a  Leão  X,  foi  ao  fundo;  e  o  rhinoceronte 
afogou-se,  mas  veiu  dar  á  praia.  Tiraram-lhe  então  a  pelle,  que  enche- 
ram de  palha  e  levaram  ao  papa;  e  assim  terminou  o  rhinoceronte  do 
rei  de  Cambaya  a  sua  accidentada  existência. 

(Cf.  Gaspar  Corrêa,  Lendas,  ii,  SjS;  Damião  de  Góes,  Chron.,  276 
e  277.) 

Nota  (7) 

Este  modo  de  amansar  os  elephantes  captivos  — logo  veremos  o 
modo  de  os  capturar —  é  ainda  hoje  seguido  nos  seus  traços  geraes. 

Sir  Emerson  Tennent,  no  seu  livro  sobre  Ceyláo  já  tantas  vezes  ci- 
tado, descreve  os  processos  seguidos  n'aquella  ilha;  e,  do  mesmo  modo 
que  Orta,  falia  da  successão  de  mau  e  bom  tratamento  com  que  con- 
seguem domar  os  mais  rebeldes.  Emquanto  o  elephante  procura  atacar 
com  a  tromba,  os  homens  que  o  rodeiam  ferem-no  com  o  hendii,  que  • 
é  um  longo  pau,  terminado  por  uma  ponta  de  ferro  aguçada,  tendo  ao 
lado  outra  ponta  recurvada  á  maneira  de  um  croque  — os  «zargunchos» 
de  Orla.  Logo,  porém,  que  elle  começa  a  ceder,  passam  a  affagal-o, 
cantando-lhe  cantigas  doces,  entremeadas  de  exclamaç(5es  amigáveis: 
Oh!  meu  pae!  Oh!  meu  filho!  Oh!  minha  mãe!  segundo  o  sexo  e 
idade  do  animal.  Circumstancia  curiosa,  esta  pratica  de  cantar  aos  ele- 
phantes é  antiquíssima,  e  já  foi  mencionada  por  Arriano,  que  provavel- 
mente copiou  a  noticia  de  Megasthenes :  Indi  circumstantes  tympanorum 
ac  cymbalorum  pulsu  cantuque  eos  exhilarant  ac  demidcent.  Ê,  como  se 
vê,  a  mesma  mistura  de  «castigos»  e  de  «afagos»,  de  que  falia  o  nosso 
escriptor  (Cf.  Tennent,  Ceylon,  11,  383;  Arriani  Indica,  p.  536). 

O  que  Orta  nos  disse  antes  sobre  as  doenças  dos  elephantes,  tam- 
bém é  interessante  e  exacto.  Aquelles  grandes  pachydermes  são  su- 
jeitos a  variadas  e  graves  enfermidades,  e  ha  na  índia,  e  em  geral  no 
Oriente,  uma  numerosa  classe  de  médicos  ou  alveitares  de  elephantes, 
usando  de  uma  matéria  medica  especial.  Sir  Emerson  Tennent  diz,  que, 
nos  primeiros  tempos  de  captiveiro,  elles  morrem  muitas  vezes  de  desa- 
lento, de  desgosto,  ou,  na  intraduzível  expressão  ingleza,  broken  heart; 


322  Colóquio  vigésimo  primeiro 

e  isto  lembra  a  phrase  de  Orta  de  que  são  «muito  melancólicos». 
Quanto  aos  «ciúmes»,  que  os  fazem  cair  em  «muy  grande  fúria»,  é  este 
um  estado  perfeitamente  conhecido,  em  que  o  elephante  se  torna, 
o  que  no  Oriente  chamam  must.  O  elephante  jniist,  o  que  lhe  succede 
sobretudo  na  epocha  do  cio,  passa  da  extrema  docilidade  a  ser  um  ani- 
mal perigosíssimo.  No  livro  de  Mason  sobre  o  Burmá  se  podem  ler  al- 
gumas anecdotas  curiosas  acerca  dos  encontros  pouco  agradáveis  com 
elephantes  n'aquelle  estado.  Ali  se  diz,  que  o  melhor  modo  de  trata- 
mento consiste  em  os  largar  algum  tempo  na  floresta:  a  better  plan 
yvhen  practicable,  is  to  turn  the  animal  loose  in  the  forest,  near  water, 
whence,  if  a  female  elephaiit  is  tethered  near  hiin,  he  will  never  wan- 
der  far,  and  may  soou  be  reclaimed.  Esta  noticia  moderna  coincide 
de  uma  maneira  notável  com  a  indicação  de  Orta  de  que  os  seus  Nai- 
res  os  levavam  «ao  campo»,  quando  os  viam  assim  excitados. 

(Cf.  Tennent,  Ceylon,  ii,  386;  Mason,  Burma  its  people  and  pro- 
ductions,  I,  449,  enlarged  by  W.  Theobald,  Hertford,  1882.) 


Nota  (8) 

O  modo  de  capturar  os  elephantes,  na  índia  e  outras  terras  orien- 
taes  onde  abundam  ou  abundavam,  não  tem  variado  essencialmente 
desde  os  tempos  mais  remotos  de  que  temos  noticia.  Ha  muitos  pontos 
de  similhança  entre  as  grandes  caçadas,  de  que  trata  o  nosso  Garcia 
Orta  e  depois  d'elle  vários  escriptores  mais  modernos,  e  aquellas  que 
minuciosamente  descreveu  Megasthenes  na  sua  Indica^. 

Segundo  a  versão  de  Arriano,  que  pouco  differe  da  de  Strabão,  os 
indianos  escolhiam  um  terreno  plano,  nas  proximidades  das  florestas 
frequentadas  pelos  elephantes,  e  abriam  ali  uma  larga  valia,  que  encer- 
rava um  grande  espaço,  deixando  apenas  como  passagem  para  o  inte- 
rior uma  ponte  estreita.  A  terra,  retirada  da  valia,  reforçava-a  com  uma 
espécie  de  vallado  alto,  em  que  elles  praticavam  escavações  onde  fica- 
vam vigiando.  Feito  isto,  collocavam  dentro  do  recinto  algumas  fêmeas 
mansas;  e,  chegando  a  noite,  as  manadas  de  elephantes  bravos,  que 
ali  as  sentiam,  procuravam  a  entrada,  e  vinham  ter  á  ponte,  coberta 
e  dissimulada  com  terra  e  palha.  Apenas  entravam,  os  caçadores  cor- 
riam a  retirar  a  ponte,  e  a  dar  aviso  ás  aldeias  próximas.  Esperavam  en- 
tão alguns  dias,  para  que  a  manada  captiva  se  enfraquecesse  com  a  fome 


'  O  livro  de  Megasthenes  perdeu-se,  mas  foi  tantas  vezes  citado  e  extractado  por  Arriano, 
por  Strabão,  por  vEliino  e  por  outros,  que  é  possível  reconstruil-o  em  parte.  Esta  recensão 
dos  fragmentos  da  Indica  foi  feita  pelo  dr.  Schwanbeck;  e  eu  cito  pela  versão  de  Mac  Crin- 
dle,  publicada  no  Indian  Antiquary,  voi.  vi,  (1877),  p.  112  e  seguintes. 


Do  Ebitr  ou  Marjim  323 

e  a  sede,  e  entravam  depois  no  recinto,  montados  nos  seus  elephantes 
mansos,  os  mais  fortes  e  adestrados,  com  a  ajuda  dos  quaes  conseguiam 
ligar  os  prisioneiros.  Seguia-se  o  processo  de  os  domar,  em  que  inter- 
vinham os  cantos  e  toques  de  timbales,  a  que  nos  referimos  na  nota 
anterior. 

Do  mesmo  modo  que  nos  processos  mais  modernos,  o  fim  era  en- 
curralar a  manada  brava  em  um  recinto  fechado.  Recorria-se,  porém, 
a  um  artificio  diverso  das  grandes  batidas,  talvez  porque  os  elephantes 
fossem  então  mais  abundantes  e  menos  suspeitosos,  e  também  porque 
a  população  devia  ser  muito  menos  densa. 

Posteriormente  adoptaram-sc  os  dois  methodos,  mencionados  pelo 
nosso  escriptor.  Por  .um  d'csses  methodos,  podem  capturar-se  os  ele- 
phantes machos  isolados,  empregando  as  fêmeas  mansas ;  mas  as  cousas 
não  se  passam  exactamente  como  conta  micer  André  Milanez,  ou  antes 
Garcia  da  Orta.  As  fêmeas,  chamadas  kumkis,  não  vão  sósinhas  á  flo- 
resta, vão  montadas  pelos  seus  mahuts;  e  são  estes  que  ligam  o  elephante 
macho  adulto,  ou  giindãh,  quando  elle  está  entretido,  e  entalado  entre 
duas  ou  melhor  três  fêmeas.  Em  toda  a  operação,  que  é  perigosa  e  exige 
uma  grande  coragem  e  uma  grande  dextreza,  os  caçadores  são  ajuda- 
dos pelas  kumkis  com  muita  intelligencia;  mas  vae  longe  d'essa  in- 
telligencia  áquelle  processo  de  seducção  consciente  e  encommendada, 
que  descreve  o  nosso  escriptor.  Este,  ou  antes  os  seus  informadores, 
juntaram  um  pouco  de  phantasia  ao  modo  por  que  as  cousas  se  deviam 
realmente  passar.  Em  todo  o  caso,  aquelle  methodo  de  caça  foi  seguido 
em  varias  regiões  orientaes.  No  fim  do  século  passado  (1790),  Corse 
descreveu-o  como  regularmente  praticado  na  região  de  Tipura,  situada 
a  leste  do  Ganges,  e,  portanto,  já  nos  confins  da  Indo-China,  e  não  muito 
longe  d'aquellas  terras  de  Pegu,  donde  vinha  o  lapidario  italiano.  E  um 
século  antes  (1681),  Knox  diz  que  era  também  usado  em  Ceylão.  O 
nosso  João  Ribeiro  dá  igualmente  a  descripção  de  um  modo  de  captu- 
rar os  elephantes  na  ilha  de  Ceylão,  em  que  intervinham  as  fêmeas 
chamadas  ali  aliás;  mas  em  que  o  papel  principal  era  representado 
por  um  elephante  macho  domestico,  o  famoso  Ortelá. 

O  outro  methodo,  descripto  por  Orta,  consistia  em  fazer  grandes 
batidas,  pelas  quaes  as  manadas  eram  obrigadas  a  entrar  em  recintos, 
fechados  por  estacarias  fortes,  capturando-se  assim  machos  e  fêmeas 
de  todas  as  idades.  E  este  um  methodo  muito  conhecido,  e  vem  minu- 
ciosamente descripto  por  Corse,  para  o  periodo  e  região  acima  citados. 
O  recinto,  chamado  keddah^  no  Bengala,  consta  de  três  grandes  es- 
paços circulares,  unidos  por  corredores.  Na  extremidade  ha  um  cor- 


'  Kcddah,  ou  khedâ;  de  khednã,  caçar  ou  perseguir. 


324    Colóquio  vigésimo  primeiro  do  Ebiir  ou  Marjim 

redor  ultimo,  que  vae  estreitando  a  ponto  de  o  elephante  se  não  po- 
der voltar  quando  ali  entra.  E  os  homens,  collocados  pela  parte  de 
fora  dos  troncos  e  traves  fortes,  que  limitam  aquella  espécie  de  funil, 
conseguem  então  laçal-o  e  ligal-o.  É  evidentemente  esta  operação 
que  o  nosso  escriptor  pretendeu  descrever,  posto  que  as  suas  phrases 
sejam  um  tanto  confusas,  alem  de  estarem  deturpadas  pelos  erros  ty- 
pographicos.  Tanto  Tennent,  como  Corse,  descrevem  as  cordas  com 
que  os  elephantes  são  atados,  e  que,  como  bem  se  pôde  imaginar,  de- 
vem ser  fortissimas,  O  material  varia,  havendo  cordas  de  cairo,  ou- 
tras de  couro  de  veado  entrançado,  e  devendo  havel-as  também  das 
«rotas»  de  que  Orta  falia,  sobretudo  nas  terras  de  Burma  e  de  Pegu, 
onde  são  frequentíssimas  as  espécies  de  Calamus,  chamadas  rotangs 
ou  rattans. 

Notaremos  de  passagem,  que  as  grandes  batidas  aos  elephantes, 
hoje  usadas  também  em  Ceylão,  não  se  faziam  antigamente  n'aquella 
ilha.  Parece,  que  a  introducção  ou  generalisação  ali  d'este  methodo  de 
caçar  é  devido  aos  portuguezes;  e  o  recinto,  chamado  na  índia  keddah, 
recebe  ali  o  nome  de  korahl,  ou  corral,  que  é  evidentemente  a  pala- 
vra portugueza  curral. 

Em  resumo,  vemos  que  as  affirmações  do  nosso  escriptor,  á  parte 
pequenas  exagerações  em  uma  ou  outra  circumstancia,  são  confor- 
mes com  tudo  quanto  nos  dizem  outros  escriptores. 

É  ainda  de  notar,  que  Orta  não  nos  falia  de  caçadas  feitas  nas  regiões 
occidentaes  da  índia,  e  pelo  contrario  nos  diz  explicitamente,  que  não 
domavam  os  elephantes  do  Malabar.  Vê-se,  pois,  que  já  no  seu  tempo 
estes  não  deviam  ser  muito  numerosos.  Quando  quer  descrever  as  gran- 
des batidas,  introduz  no  Colóquio  um  novo  personagem,  um  italiano, 
negociante  em  pedras  preciosas.  Este  micer  André,  real  ou  inventado, 
traz-lhe  noticias  de  longe,  das  terras  situadas  para  alem  do  Ganges, 
nas  quaes  os  elephantes  eram  e  continuaram  a  ser  abundantíssimos. 
Pôde  parecer  e  é  talvez  exagerado  aquelle  numero  de  4:000  elephan- 
tes, cercados  por  200:000  pessoas.  É  certo,  porém,  que  o  delta  do  Ira- 
vaddi,  e  todo  o  seu  valle  com  as  montanhas  vizinhas,  se  podem  contar 
entre  as  regiões  onde  os  grandes  pachydermes  foram  mais  numerosos; 
e  que,  por  outro  lado,  os  reis  de  Pegu  e  outros  reinos  próximos  gover- 
navam provindas  densamente  povoadas,  e  dispunham  arbitraria  e  des- 
poticamente do  tempo  e  dos  serviços  dos  seus  súbditos. 

(Cf.  os  fragmentos  de  Strabão  e  de  Arriano,  no  Ind.  Antiquary,  vi, 
289;  John  Corse,  An  account  of  the  method  of  catchiyig  wild  elephanís 
at  Tipura,  nas  Asiatical  researches,  iii,  229;  Mason,  Burma,  i,  447; 
Knox,  Hist.  relation  of  Ceylon,  i,  cap.  vi,  p.  21,  1681;  Tennent,  Cey- 
lon,  II,  335  a  377;  Yule  e  Burnel,  Glossary,  palavras  elephant,  keddah, 
corral;  Ribeiro,  Fatalidade  histórica,  nas  ISot.  para  a  hist.  das  nações 
ultramarinas,  v,  49,  Lisboa,  i836.) 


COLÓQUIO  VIGÉSIMO  SEGUNDO 

DO  FAUFEL  E  DOS  FIGOS  DA  ÍNDIA 

INTERLOCUTORES 
RUANO,  ORTA 

RUANO 

Do  que  chamam  em  Portugal  avelam  da  índia  falemos, 
pois  me  dixestes  no  betre*  que  he  muyto  usada  acerca  de 
todos;  porque  nós  pouco  usamos  delia;  antes  falando  a  ver- 
dade comvosco  nunca  a  vi,  porque  em  lugar  delia  pomos 
sândalo  vermelho. 

ORTA 

He  qua  mantimento  comum  pêra  comer,  mesturado  com 
O  betre;  e  nas  terras  onde  nam  ha  betre  também  se  usa  por 
masticatorio  com  cravo.  Ao  que  dizeis  que  lá  em  seu  lugar 
deitam  sândalo  vermelho,  não  me  parece  bem,  pois  eni  seu 
lugar  deitam  huma  mezinha,  que  muytas  vezes  se  falsifica, 
e  deitam  hum  pão  vermelho  por  ella  lá,  porque  como  o 
sândalo  vermelho  carece  de  cheiro,  e  nam  o  ha  em  Timor 
donde  vem  o  outro,  como  vos  direi  falando  nelic,  he  muyto 
máo  de  desçernir  entre  hum  pão  e  outro;  e  mais  vai  esta 
areca  menos,  e  não  se  corrompe.  E  a  rezam  porque  se  nam 
leva  a  Portugal  de  qua,  he  porque  não  a  pedem  os  boticai- 
ros,  que  nem  elles  nem  os  físicos  sam  tam  curiosos  que  a 
peçam,  mas  era  rezam  que  lha  lançassem  em  casa,  como 
carne  de  touro.  E  pois  a  vistes  já,  querovos  dizer  os  nomes 
nas  terras  onde  nasce:  acerqua  dos  Arábios yi7z//è/^  postoque 


*  Orta  suppóe  ter  inserido  o  Colóquio  do  betre  no  seu  logar  alpha- 
betico;  mas  deixou  de  o  fazer,  e  dá-o  no  fim  do  livro.  Pelos  motivos, 
que  veremos  ao  diante,  conservâmos-lhe  a  mesma  situação. 


326  Colóquio  vigésimo  segundo 

Aviçena*  lhe  chame  corruptamente  ^//e/^  e  asi  lhe  chamam 
em  Dofar  e  Xael,  terras  da  Arábia,  scilicet,  faufel,  e  ha 
nestas  terras  da  Arábia  muyto  boa,  postoque  he  pouca;  e 
no  Malavar  lhe  chamam  jDac,-  e  os  Naires  (que  sam  os  ca- 
valeiros) areca,  he  donde  os  Portuguezes  tomarão  o  nome, 
por  ser  terra  primeiro  conhecida  de  nós,  e  ha  y  muyta  can- 
tidade;  e  os  Guzarates  e  os  Decanins  a  chamam  çupari;  e 
estes  tem  muyto  pouca,  somente  na  fralda  do  mar,  e  he 
muyto  boa  essa  que  ha  em  Chaul,  porque  he  mercadoria 
pêra  Ormuz;  e  milhor  he  a  de  Mombaim,  terra  e  ylha  de  que 
elrei  nosso  senhor  me  fez  mercê,  aforada  emfatiota.  E  em 
todas  as  terras  de  Baçaim  he  também  muyto  boa;  e  levase 
dahi  pêra  o  Decam;  e  a  de  Cochim  também,  scilicet,  huma 
preta  e  pequena  que  chamam  chacani,  muito  dura  depois 
de  sequa;  e  em  Malaca  ha  areca  pouca,  mas  abasta  á  terra, 
chamase  pinam;  e  em  Çeilam  ha  mayor  cantidade  delia, 
que  farta  a  huma  parte  do  Decam,  scilicet,  a  terra  do  Co- 
tamaluco  e  a  Bisnaga:  e  de  Çeilam  a  levam  a  Ormuz  e  a 
Cambaia,  e  ás  ylhas  de  Maldivas;  e  em  Çeilam  lhe  chamam 
poa^., 

RUANO 

Diz  Serapio  que  as  terras  da  Arábia  carecem  desta  areca. 

ORTA 

Verdade  diz  por  a  maior  parte,  porque  a  Arábia  he  grande, 
e  nam  a  ha  mais  que  em  Xael  e  em  Dofar,  portos  do  mar; 
porque  esta  arvore  ama  o  mar,  e  longe  delle  nam  se  cria; 
porque  se  se  criasse,  nam  a  leixariam  de  plantar;  porque  os 
Mouros  e  Gentios  nenhum  dia  passam  sem  a  comer;  e  os 
Mouros  e  Moalis  (que  sam  os  que  seguem  a  ley  contra  Ma- 
famede)  guardam  dez  dias  de  huma  sua  festa  ou  jejum; 
quando  diz  que  cercados  em  huma  fortaleza  morreram  os 
filhos  do  Ali,  genro  do  Mafamede;  em  dez  dias  que  elles 


*  Avicena,  lib.  2,  cap.  262  (nota  do  auctor) 


Do  Fanfcl  32  j 

forão  cercados,  dormem  no  chão  e  não  comem  beh^e,  e 
nestes  dias  mastigam  cardamomo  e  areca,  tanto  em  uso 
tem  o  mastigar  pêra  purgar  o  estamago  e  cérebro. 

RUANO 

Já  me  dixestes  com  que  mesturam  o  beire;  porem  dizeime 
agora  como  entram  as  mezinhas,  se  pêra  ajudar,  se  pêra  re- 
tificar. 

ORTA 

O  beire  he  quente,  como  vos  dixe,  e  a  areca  he  fria  e 
temperam*;  e  a  cal  he  mu3'to  mais  quente,  postoque  elles 
nam  usam  pêra  o  bctre  desta  nossa  cal  de  pedra,  senão  de 
huma  feita  de  cascas  de  ostras,  que  não  he  tam  forte.  Com 
esta  areca  se  mesturam  estas  mezinhas  que  vistes,  porque 
he  fria  e  seca,  e  muyto  mais  seca  quando  não  he  seca  ao 
sol;  e  lançamlhe  o  cate,  que  he  huma  mezinha  de  que  ao 
diante  vos  farei  mençam;  porque,  asi  ella  como  o  cate  sam 
boas  mezinhas  pêra  apertar  as  gingivas,  fortificar  os  dentes, 
e  confortar  o  estamago;  e  pêra  a  emotoica,  e  pêra  vomito  e 
camarás.  Também  o  arvore  donde  se  colhe  he  direito  e  muito 
esponjoso,  e  as  folhas  delle  são  como  as  da  nossa  palmeira; 
he  este  fruto  semelhante  á  no-  noscada,  e  não  he  tam  grande, 
e  muyto  duro  per  dentro,  e  tem  veas  brancas  e  vermelhas; 
he  do  tamanho  das  nozes  pequenas  redondas  com  que  os 
moços  jogam;  nam  he  perfeitamente  redondo,  porque  faz  o 
asento  de  huma  banda  de  modo  que  se  pôde  ter;  mais  isto 
nam  acontece  em  todos  os  géneros  de  areca,  porque  vos 
nam  enganeis.  Cobrese  este  fruto  com  huma  corteza  muito 
lanuginosa,  e  amarela  por  fora,  que  parece  muito  ao  fruto 
das  tâmaras  quando  está  maduro,  e  antes  que  seja  seco;  e 
quando  esta  areca  he  verde  he  estupefativa  e  embebeda, 
porque  os  que  a  comem  se  sentem  bêbedos,  e  comemna 
por  nam  sentir  a  dor  grande  que  tem. 


*  Isto  é,  '«temperada». 


328  Colóquio  vigésimo  segundo 

RUANO 

Como  a  comem  estas  gentes  indicas,  ou  como  fazem  as 
mesturas  ? 

ORTA 

O  comum  faz  a  areca  em  pedaços  meudos,  com  humas 
tesouras  grosas  que  tem  pêra  iso,  e  asi  a  mastigam,  jun- 
tamente com  o  cate,  e  logo  tomam  as  folhas  do  betre,  ti- 
randolhe  primeiro  os  nervos  com  a  unha  do  dedo  polegar, 
que  pêra  iso  tem  feita  em  ponta  delgada;  e  isto  lhe  fazem 
por  ser  mais  tenro;  e  asi  mastigam  tudo  juntamente,  e  o 
primeiro  que  fazem,  botam  fora  o  que  primeiro  mastigão, 
se  tem  mu3'to  betre,  e  tomão  outras  folhas,  e  fazem  outros 
masticatorios,  e  lançao  hum  cospinho,  que  parece  sangue; 
e  asi  purgão  a  cabeça  e  o  estamago  e  confortão  as  gengi- 
vas e  dentes;  e  sempre  andam  mastiguando  este  betre  até 
que  se  enfadam;  e  as  molheres  mais  que  os  homens.  E  os 
senhores  fazem  da  areca  humas  piroUas  pequenas,  e  com 
ellas  misturam  cate  e  camfora  e  pó  de  linaloes  e  algum  am- 
bre;  e  desta  feiçam  he  a  areca  dos  senhores.  Diz  Serapio* 
que  no  sabor  se  sente  quentura  com  alguma  amaridão:  pro- 
vei esta,  e  he  como  hum  páo  estética,  sem  sabor  ou  casi. 
Serapio  nam  conheceo  esta  areca,  e  se  a  conheceo  não  a 
provou. 

RUANO 

O  Silvatico  diz  que  a  vio,  e  que  a  trazia  mesturada  na 
canella  de  Calecut,  e  que  veo  ay  por  acerto. 

ORTA 

Podia  ser  que  os  Mouros  de  Calecut  a  levasem  pêra  o 
Estreito;  e  porém  pois  hia  com  a  canella  mesturada,  nam 
era  senam  de  Çeilam;  e  a  de  Calecut,  como  dixe,  he  muita 
delia  preta,  a  que  chamão  checam;  e  a  de  Ccilam  he  branca, 
se  a  viram,  bem  se  podia  conhecer. 


*  Serapio,  ca.  845  (nota  do  auctor). 


Do  Faiifd  329 

RUAMO 

Sabeis  que  aproveita  pera  alguma  cousa,  alem  das  já 
ditas? 

ORTA 

Eu  mando  estillar  esta  agoa,  e  em  secreto  uso  delia  pera 
curar  as  camarás  coléricas,  e  achome  bem  (i). 

RUANO 

Isto  pouco  me  aproveita  \  pois  em  Espanha  nam  a  ha  verde, 
pera  se  estilar;  e  portanto  comamos,  que  já  he  tempo. 

ORTA 

Seja  asi,  e  lavay  as  mãos. 

RUANO 

De  huma  cousa  me  maravilho,  que  sempre  comemos  dos 
figos  á  mesa,  e  sempre  me  sabem  bem;  e  nam  tamsomente 
a  my  que  venho  do  mar,  mas  a  vós  e  a  quantos  ha  nesta 
mesa;  por  onde  me  parece  muyto  boa  fruta,  pois  não  em- 
fastia.  E  será  bem  que,  falando  e  comendo,  saybamos  como 
se  chama  em  todas  as  lingoas,  e  quantas  maneiras  ha  delles, 
e  pera  que  sam  nocivos,  e  o  que  vos  parece;  porque  bem 
sei  que  não  escreve  delles  Dioscorides,  nem  Galeno,  nem 
Paulo,  nem  os  Arábios. 

ORTA 

Iso  nam  he  asi,  falando  com  vosso  perdam,  porque  Avi- 
çena  e  Serapiam  e  Rasis  escrevem  delles,  asi  escreveram 
outros  que  eu  nam  vi. 

RUANO 

Muyto  me  contais;  não  me  dareis  nesses  Arábios  capitulo 
em  que  nos  figuos  falle,  dizeimo  porque  folgarei  de  ouvir. 


ORTA 


Eu  trabalhei  de  o  saber,  e  soubeo;  e  os  figos  na  lingoa 
canarim  e  decanim  e  guzarate  e  bengala  se  chama  quelli,  e 
os  Malavares  lhe  chamam  palam,  e  o  Malayo  j^/ça;??;  porque 
em  todas  estas  terras  os  ha,  e  vos  ponho  o  nome  nesas 


33o  Colóquio  ingcsimo  segundo 

lingoas,  e  também  os  ha  em  outras  muytas.  O  Arábio  lhe 
chama  musa  ou  amusa;  fazem  delles  capitulo  Aviçena  e 
Serapiam,  e  chamamlhe  pollo  mesmo  nome ;  e  Rasis  também 
lhe  chama  pelo  mesmo  nome;  também  ha  estes  figuos  em 
Guiné,  chamamlhe  bananas. 

RUANO 

Que  diz  cada  hum  destes  escritores  dos  figos,  e  que 
dizem  a  gente  da  terra  pêra  que  he  bom,  e  a  quem  faz 
mal? 

ORTA 

Diz  Aviçena*  que  o  nutrimento  deste  figuo  he  pouquo,  e 
que  acreçenta  coUora  e  freima,  e  que  aproveita  pêra  adustão 
do  peito  e  do  pulmão,  e  que  agrava  o  estamago;  e  que  he 
bom  tomar,  depois  que  o  comem  os  coléricos,  oximel  com 
sementes,  e  os  freimaticos  mel;  e  que  acreçenta  a  semente, 
e  aproveita  aos  rins  e  provoca  a  orina.  Rasis  diz**  que  faz 
dano  ao  estamago,  e  tira  o  apetite  e  a  secura,  que  faz 
brando  o  ventre,  e  que  tira  a  espridam  da  garganta.  Serapio 
diz***,  alegando  a  outros,  que  juusa  he  quente  e  húmida  no 
fim  do  primeiro  gráo',  e  que  aproveita  pêra  o  ardor  do 
peito  e  do  pulmão;  e  quem  muyto  usa  delia  padece  pesa- 
dume  no  estamago;  e  que  acreçenta  a  criança  na  madre; 
e  que  aproveita  aos  rins,  e  provoca  a  orina,  excita  a  delei- 
taçam  carnal,  e  que  grava****  no  estamago:  isto  diz  da  sen- 
tença dos  outros  escritores,  por  onde  está  bem  craro  todos 
estes  homens  conheceram  os  figos.  E  se  isto  nam  abasta, 
perguntai  a  qualquer  Arábio,  e  dirvos  ha  como  se  chama 


*  Liv.  2,  cap.  492  (nota  do  auctor). 
**  Cap.  3,  ad  Almansorem  (nota  do  auctor). 
*»*  Serapio,  cap.  84  (nota  do  auctor). 
****  «Grava»,  no  sentido  de  pesa. 


Do  Faiifd  3^* 

amusa,  e  outros  musaj.  ha  os  em  o  Cairo  e  Damasco  e 
Jerusalém  (.). 

Muyto  folgo  de  vos  ouvir  isso. 

ORTA 

Pois  avcis  mais  de  saber  que  lium  frade  de  Sam  Fran- 
cisco, que  esteve  em  Jerusalém,  e  escreve  dos  mistcr.os  da 
Terrl  Santa,  gaba  muyto  esta  fruta;  e  diz  que  se  chamou 
musa  porque  he  fruto  dino  das  Musas  ou  de  ellas  o  co- 
Trem'  e'di.  que  nesta  fruta  pecou  Adam  (3);  que  as  folhas 
Tam  muyto  grandes  mais  que  de  huma  braça,  e  dous  palmos 
e  meo  de  largo:  tem  um  nervo  por  o  meo  groso  e  verde, 
e  lança  por  onde  ha  de  deitar  o  fruto  primeiro  humas  Hores 
emburilhadas  roxas,  á  feicam  de  hum  ovo,  e  do  compri- 
mento de  huma  mão,  e  o  fruto  que  deua  he  hum  ramo  de 
figos,  que  tem  cento,  e  ás  vezes  duzentos  figos. 

RUANO 

Eu  nam  sey  se  he  o  arvore  do  paraiso  terreal,  e  tenho 
ntsto  o  que  tem  os  sagrados  doutores.  E  nao  posso  le.xar 
de  confessar  ser  muito  boa  fruta;  e  queria  saber  se  ha 
alguma  cousa  pêra  que  aproveitem,  alem  das  cousas  que 
escrevem  estes  Arábios;  e  onde  sam  os  m.lhores,  e  quantas 
maneiras  se  comem. 


ORTA 


Em  Manavam  e  Pegú  dizem  que  sam  muito  bons,  porque 
em  Bengala  onde  ha  muytos  veo  esa  casta,  e  prantaramna 
por  ser  milhor,  e  chamamlhe  agora /í>os  marlabams.  e  os 
que  mais  cheiram  e  pêra  mim  de  milhor  gosto,  sam  ceno- 
rms    que  sam  huns  figuos  lisos  e  muyto  amarelos  e  com- 
pridos: os  chincapalôes  sam  do  Malavar,  e  bons,  e  sam  luins 
figos  verdes  e  compridos  e  de  muito  bom  sabor:  os  de  ÇofaU 
lá  os  provei,  sam  muyto  gabados,  eu  os  achei   de  bom 
abor;  mas  como  eu  era  novo,  que  vinha  de  Portugal,  tudo 
me  sabia  bem;  e  por  iso  nam  sam  bom  ,ttiz;  chamamlhe 
Ts  Cafres  iniu^a,  e  também  os  ha  na  costa  do  Abexim  e  no 


332  Colóquio  vigésimo  segundo 

Cabo  Verde.  Como  já  dixe  ha  no  Malavar,  e  em  Baçaim, 
e  em  outras  partes  figos  grosos  do  comprimento  de  hum 
palmo;  sabem  muyto  bem  asados,  e  deitados  em  vinho 
com  canella  per  cima,  e  sabem  a  marmellos  asados  e  muyto 
milhor. 

RUANO 

Eu  os  provei  já  três  ou  quatro  vezes,  e  souberamme 
muito  milhor. 

ORTA 

Também  se  cortao  estes  polo  meo,  e  fregem  os  em  açucare 
até  que  estejam  bem  torrados,  e  com  canella  por  cima 
sabem  muyto  bem. 

RUANO 

Também  os  provei  aqui  os  dias  de  peixe;  e  sabiamme 
muyto  bem,  e  não  sabia  o  que  era. 

ORTA 

Levam  os  pêra  Portugal  por  matalotagem;  e  comem  os 
com  açucare,  e  pêra  o  mar  he  bom  comer.  Os  físicos 
desta  terra  dizem  que  sam  muyto  bons;  e  dam  os  em 
dieta,  pêra  as  febres,  e  pêra  outras  enfermidades.  Bem  sei 
que  todas  estas  cousas  que  vos  dixe  sam  cousas  de  pouca 
sustancia,  senam  digovolas  porque,  quando  fordes  a  Es- 
panha, não  digam  que  não  sabeis  dar  conta  das  cousas  desta 
terra;  e  não  porque  isto  seja  necessário  pêra  a  física. 

RUANO 

Faz  Ruelio  hum  capitulo  dos  figos  da  índia,  allegando  a 
Estrabo  e  Teofrasto,  e  pÕe  delles  algumas  especias;  e  em 
outro  cabo  também  falia  das  arvores  perigrinas,  e  vayme 
parecendo  que  conheceram  estes  homens  os  figuos  da  índia. 

ORTA 

Eu  ly  isso  do  mesmo  autor;  e  se  acerta  em  huma  cousa 
erra  em  muytas  (como  quem  diz  huma  no  cravo  e  quatro 
na  ferradura)  (4);  e  porém  a  derradeira  especia  que  pÕe,  a 


Do  Faufd  333 

que  mais  se  posa  acomodar  esta  arvore  destes  figos,  he  por- 
que diz  que  naçe  de  si  mesma:  esta  he  verdadeira,  porque 
esta  arvore  não  se  pranta  mais  de  huma  vez;  e  dá  hum  ramo 
que  tem  ás  vezes  200  figos,  e  alguns  mais  e  outros  menos; 
e  logo  day  avante  naçe  ao  pé  outra  arvore  dos  mesmos 
ramos  ou  do  tronco;  porque  o  tronco  he  hum  ajuntamento 
de  cortezas*,  e  os  figuos  nascem  no  olho  da  figueira  ape- 
gados ao  páo. 

RUANO 

O  fruto  que  em  Itália  chamam  musa  he  porventura  este 
figuo? 

ORTA 

Eu  como  não  fuy  a  Itália  não  o  sey  bem  sabido;  porém 
soube  aqui  de  alguns  Venezianos,  aqui  moradores,  que  essa 
fruta  ha  em  Veneza;  e  he  como  amexas;  e  pôde  ser  que  aja 
em  Espanha  essa  especia  de  amexas,  porque  dizem  que  he 
muyto  doce. 

RUANO 

Escreve  Mateolo  Senense  de  hum  género  de  palmeira  da 
índia,  e  a  discriçam  nam  he  conforme  a  esta  figueira  que 
chamais,  e  isto  diz  no  capitulo  das  palmas:  mas  quem  lha 
mandou  escrita  do  Egypto  não  lha  mandou  bem,  e  por 
isso  não  falo  nella. 

ORTA 

Bem  sey  que  figos  ha  na  Nova  Espanha,  e  em  o  Peru, 
e  nós  os  temos  no  Brasil,  e  no  Cuncam,  indo  de  Chaul 
a  Goa  (scilicet  em  Carapatam)**;  e  em  alguns  cabos  de  Por- 
tugal os  ha  plantados,  como  na  quinta  de  Dom  Francisco 
de  Castelo  Branco  (5);  e,  por  estas  causas,  não  era  bem  di- 
zervos  cousas  tam  notas  a  todos. 


*  A  mesma  acertada  observação  já  Orta  fez  em  um  dos  Colóquios 
precedentes,  a  propósito  de  uma  Scitaminea. 

**  Vindo  de  Chaul  para  Goa  ao  longo  da  costa  encontrava-se  eíTe- 
ctivamente  o  pequeno  logar  de  Carapatão,  do  qual  falia  Barros,  e  que 
era  bem  conhecido. 


/ 


334  Colóquio  vigésimo  segundo 

RUANO 

Estas  cousas  dos  figos  eu  nam  as  preguntei  em  Espanha, 
e  vós  dizeisme  tantas  cousas  de  siso  e  boas,  que  he  neçe- 
sario  perguntarvos  tudo;  e  nesta  que  vós  dizeis  nam  ser  de 
muyta  estima  me  dixeste  o  nome  dos  autores,  que  nestes 
figos  falam,  e  me  apontastes  onde;  cousa  foi  essa  que  eu 
estimei  em  muyto. 


Nota  (i) 

O  «faufel»  é  a  Areca  catechu,  Linn.,  uma  elegante  palmeira  de  pá- 
tria mal  definida,  mas  cultivada  com  frequência  nas  regiões  quentes 
da  Ásia.  A  sua  semente,  de  que  Orta  dá  uma  descripção  bastante  exacta, 
é  geralmente  conhecida  pelo  nome  de  no^  de  areca,  impropriamente 
pelo  de  ?20f  de  betei,  e  por  vários  outros.  Esta  semente  forma  parte 
essencial  de  um  masticatorio  muitissimo  usado  no  Oriente,  e  do  qual 
fallaremos  detidamente  a  propósito -do  betre  ou  Piper  Betle. 

Os  nomes  vulgares  de  Orta  são  exactos  e  de  fácil  identificação : 

—  «Faufel  acerqua  dos  Arábios»;  este  é  o  nome  arábico  mais  geral, 
jiaá,  fitfal,  ou,  na  forma  persiana,  pupal  (Dymock,  Mat.  med.,  802; 
Ainslie,  Mat.  ind.,  n,  2Ó8). 

—  «Çupari»  entre  guzerates  e  deckanis;  é  o  nome  commum  nas  lín- 
guas indianas  de  derivação  sanskritica,  hindi,  bengali  e  outras,  siiparí 
(Dymock,  1.  c;  Ainslie,  1.  c). 

—  «Pac»  no  Malabar;  que  vem  a  ser  o  nome  tamil  da  semente,  dado 
por  Dymock  na  forma  pakku,  e  por  Ainslie  na  forma  paak.  O  nome 
da  arequeira  é  ali  paak-maram. 

—  «Areca»  no  mesmo  Malabar,  mas  entre  a  classe  elevada,  ou  Naires, 
de  quem  os  portuguezes  o  tomaram.  Este  nome,  que  veiu  a  tornar-se 
o  mais  geral,  deve  derivar-se  da  designação  da  semente  em  maláya- 
Iam,  adakka,  adoptada  e  alterada  pelos  nossos,  e  por  elles  transmit- 
tida  a  outras  línguas.  O  sr.  De  Candolle  cita  um  nome  telingu,  arek; 
mas  sem  mencionar  auctoridade;  e  que  provavelmente  é  moderno 
e  já  influenciado  na  forma  pelos  portuguezes  (Cf.  Yule  e  Burnell, 
Glossary,  palavra  Areca;  De  Candolle,  Orig.  des plantes  cidtivées,  344). 

—  «Chacani»  no  mesmo  Malabar,  a  uma  semente  mais  preta  e  mais 
pequena  e  dura  que  a  de  outras  terras.  Isto  não  é  propriamente  um 
nome  da  areca,  nem  o  de  uma  variedade;  é  simplesmente  o  de  um 
modo  particular  de  preparação:  consiste  na  areca  colhida  em  verde  e 
fervida  depois,  chamada  areca  vermelha,  ou  chikni  supari  (Cf.  Dymock, 
1.  c). 


Do  Faufd  335 

—  «Poaz»  em  Ceylão.  No  Index  de  Piddington  vem  um  nome  sin- 
ghalez  similhante,  jPH)i'a/l:  (Index,  7). 

— «Pinam»  em  Malaca.  Este  é  o  nome  vulgar  mais  conhecido  em  to- 
das as  terras  e  ilhas  orientacs,  onde  é  fallada  a  lingua  malaya;  e  que 
Rumphius,  Crawfurd  e  muitos  outros  citam  nas  formas  pinanga,  pi' 
nang,  penang. 

A  areqiieira  é  ainda  vulgar  ao  longo  da  costa  da  índia,  do  Guzerate 
a  Cochim,  incluindo  as  terras  de  Baçaim,  e  aquella  boa  ilha  de  «Mom- 
baim»  de  Orta,  da  qual  teremos  de  fallar  em  mais  algumas  notas.  E 
Ceylão  continua  a  ser  uma  região  productora  e  exportadora  de  areca. 
Nos  annos  de  1870  e  1871  — últimos  de  que  tive  noticia, —  exportou 
aquella  ilha,  principalmente  para  a  índia,  no^  de  areca  no  valor  de 
63:ooo  libras  esterlinas  em  cada  anno.  Das  informações  de  Orta  sobre  a 
distribuição  geographica  da  arequeira,  a  mais  interessante  é  sem  du- 
vida a  que  diz  respeito  á  sua  cultura  nas  terras  da  Arábia,  facto  menos 
geralmente  conhecido.  Xael  ou  Xaer  era  então  uma  povoação  de  certa 
importância,  com  um  porto  mau  e  difficil,  mas  onde  apesar  d'isso  se  fa- 
zia um  commercio  activo,  e  d'onde  se  exportavam  os  melhores  cavallos 
para  a  índia — segundo  diz  Duarte  Barbosa.  Estava  situada  na  costa  do 
Hadramaut,  entre  Aden  e  o  cabo  de  Fartaque,  Ras  Fartai:;  e  tinha 
para  o  interior  alguns  campos  férteis,  onde  cultivavam  «trigo,  tâmaras, 
uvas»,  e  — segundo  agora  vemos —  arequeiras.  Dofar  ficava  para  leste, 
na  região  mais  árida  de  Mahra,  para  alem  do  cabo  de  Fartaque ;  e  era  o 
porto  clássico  da  exportação  do  incenso,  que  também  saía  por  Xaer,  e 
por  Soer  na  costa  de  Oman,  que  é  necessário  não  confundir  com  Xaer. 
Era  naturalíssimo  que  os  árabes,  em  relações  directas  com  a  costa  da 
índia,  introduzissem  nas  suas  culturas  uma  planta,  da  qual  usavam 
com  tanta  frequência  quasi  como  os  hindus,  tanto  os  orthodoxos  ou 
sunnitas,  como  os  schiitas,  a  que  Orta  chama  Moalis  (Cf.  Duarte  Bar- 
bosa, Livro,  264  e  265;  Barros,  Ásia,  i,  ix,  i,  e  iii,  vii,  9). 

O  principal  uso  da  areca  é  no  masticatorio,  vulgar  em  todas  as  ter- 
ras do  Oriente,  e  do  qual  fallaremos  em  outro  Colóquio;  mas  era  tam- 
bém considerada  aphrodisiaca  e  adstringente,  e  não  admira  que  Orta 
a  empregasse  na  sua  clinica,  e  «em  secreto»  (porquê  em  segredo?) 
usasse  d'ella  «pêra  curar  as  camarás  coléricas».  Dos  usos  da  areca,  e 
do  modo  por  que  se  prepara  a  chikni  supari,  e  o  extracto  chamado  su- 
pari  cJie  phul,  se  pôde  encontrar  uma  noticia  interessante  no  livro  de 
Dymock  e  mais  extensamente  no  de  Drury  (Mat.  mcd.,  802,  Useful 
plants  of  índia,  48). 

Nota  (2) 

Os  «figos»  do  nosso  Orta  são  as  hoje  vulgarissimas  bananas,  o  fru- 
cto  das  numerosas  variedades  da  Musa  sapientum,  R,  Br.  (incluindo  a 


336  Colóquio  ingesimo  segundo 

M.  paradisíaca,  Linn.,  e  a  M.  sapientiim,  Linn.,  que  parece  não  serem 
especificamente  distinctas).  Era  uma  planta  commum  na  índia,  e  em 
geral  na  Ásia,  tendo  naturalmente  nomes  variados  nas  diversas  re- 
giões : 

—  «Quelli»  na  lingua  «canarim»  e  outras.  Encontramos  em  um  livro 
portuguez  moderno,  o  nome  concani,  escripto  pelo  mesmo  modo 
quêlli;  e  vários  escriptores  nos  dão  as  formas  kely,  kela,  kala,  kayla, 
kail,  usadas  em  diversas  linguagens  indianas  de  derivação  sanskritica. 

Devem  todas  ser  modificações  e  simplificações  do  sanskritico  ^J^Tr^T, 
kadalT  {Cí.  Costa,  Manual  do  agric.  indiano,  n,  209;  Rhede,  Hort.  mal. 
I,  cap.  6;  Dymock,  Mat.  med.,  777;  Ainslie,  Mat.  ind.,  i,  3 16;  Drury, 
Useful plants,  Soo). 

—  «Palam»  entre  malabares.  E  talvez  uma  parte  do  nome,  que  Ains- 
lie escreve  pullinn,  ou  mais  provavelmente  a  conhecida  designação  no 
sul  de  bala  ou  vala,  mencionada  por  Rhede  e  outros. 

—  «Picam»  em  malayo;  é  o  conhecido  nome  nas  terras  do  archipe- 
lago  Indiano,  pissang'  (Cf.  Rumphius,  Herb.  amb.,  v,  i25). 

—  «Musa»  e  «amusa»  entre  os  árabes.  Este  foi  e  é  o  nome  arábico 

mais  commum,  \^^  7nau:f,  e  jUi,  al-mau^,  derivado,  segundo  parece, 
do  sanskritico  mocha.  Usado  na  Syria,  no  Egypto  e  outras  regiões  da 
bacia  mediterrânica,  foi  um  dos  primeiros  conhecidos  na  Europa,  sendo 
mais  tarde  adoptado  para  a  designação  scientifica  do  género. 

—  «Bananas»  em  Guiné.  Orta  dá  assim  succintamente  e  sem  expli- 
cações uma  origem  africana  ao  nome,  que  hoje  é  de  todos  o  mais  vul- 
gar. É  possível  que  tenha  rasão;  a  palavra  não  é  seguramente  asiática, 
e  também  não  parece  ser  americana.  Em  primeiro  logar,  é  necessário 
advertir,  que  Orta  não  emprega  a  designação  de  Guiné  no  sentido  res- 
tricto  que  hoje  lhe  damos;  mas  no  sentido  antigo  mais  lato  de  terra 
dos  negros  em  geral,  ao  longo  da  costa  occidental  da  Africa.  A  bana- 
neira não  é  oriunda  d'estas  regiões.  Os  botânicos,  que  mais  se  têem 
occupado  da  origem  das  plantas  cultivadas,  como  Roberto  Brown  e 
De  Candolle,  inclinam-se  para  a  procedência  asiática  da  bananeira  de 
fructos  alimenticios,  e  admittem  a  sua  introducção  na  Africa.  Não  se 
trata,  porém,  de  uma  introducção  recente  e  pela  costa  occidental;  mas 
de  uma  introducção  antiquíssima  pelo  oriente.  Edrisi  já  menciona  cinco 
variedades  da  planta,  cultivadas  nas  ilhas  de  Zaledj,  em  face  das  cos- 
tas do  Zendj;  e  é  provável  que  fossem  cultivadas  igualmente  na  pró- 
pria costa  do  Zendj,  isto  é,  na  costa  oriental  da  Africa.  Dada  a  facilidade 
da  cultura  e  a  abundância  do  producto,  é  fácil  admittir  que  a  planta  se 
propagasse  entre  as  populações  negras  da  Africa  equatorial,  onde  hoje 
é  abundantíssima,  e  chegasse  até  ao  Congo  e  regiões  occidentaes  — a 
Guiné  de  Orta.  N'este  trajecto  podia  muito  bem  receber  dos  negros  o 
nome  de  banana,  cuja  significação  nos  é  desconhecida,  mas  que  tem 


Do  Faiifel  337 

bastante  o  cunho  de  um  vocábulo  africano.  Alguns  annos  depois  de 
Orta,  Duarte  Lopes  referese  ás  que  viu  no  Congo,  do  seguinte  modo: 
altri  friitd  sono,  che  nominano  Banana,  i  qiiali  crediamo  essere  le  Miise 
d'Egitto  e  di  Soria.  A  ultima  parte  da  phrase  pôde  ser  uma  intercala- 
ção do  erudito  italiano  Pigafetta,  que  escreveu  a  relação  verbal  do  via- 
jante portuguez;  mas  a  primeira,  que  chamam  Bananas,  é  claramente 
de  Duarte  L-opes,  e  parece  bem  indicar  um  nome  local  africano.  Annos 
antes,  o  piloto  portug'itej,  cuja  interessante  relação  Ramusio  nos  con- 
servou, refere-se  á  introducção  da  planta  na  ilha  de  S.  Thomé  nos  se- 
guintes termos  :  vi  hanno  cominciato  a  piantar  quella  herba  che  diventa 
in  un'anno  cosi  grande  che  par  arbore:  e  fa  quelli  raspi  a  modo  di  fichi, 
che  in  Alessandria  di  Egitto  come  ho  inteso  chiamano  Muse,  in  detta 
isole  le  demandono  Abellana.  Falia  evidentemente  de  uma  introducção 
directa,  recente,  e  feita  pelos  portuguezes,  de  plantas  trazidas  talvez  da 
índia;  e  vê-se  que  então  (i54o)  não  conheciam  em  S.  Thomé  o  nome 
de  banana,  que  pelo  contrario  era  vulgar  (iSyS)  no  interior  do  Congo. 
Tudo  isto  parece  favorável  á  origem  africana  da  palavra,  e  corrobora 
a  opinião  de  Orta  (Cf.  R.  Brown,  em  Tuckey,  Narr.  of  an  exp.  to  the 
Zaire,  470,  London,  1S18;  De  Candolle,  Origine,  242;  Edrisi,  i,  59;  Pi- 
gafetta, Relatione  dei  Reame  di  Congo,  41,  Roma,  iSqi;  Ramusio,  i. 

Qualquer  que  fosse  a  pátria  da  espécie  Musa  sapientum,  é  certo 
que  foi  cultivada  na  índia  e  outras  regiões  orientaes  desde  tempos 
extremamente  remotos,  dando  ali  logar  á  formação  de  um  numero 
considerável  de  variedades,  mais  ou  menos  apreciadas.  Orta  enu- 
mera algumas,  a  que  se  referem  também  outros  escriptores  do  tempo, 
como  Linschoten  e  vários  mais. 


Nota  (3) 

Não  seria  fácil  averiguar  bem  ao  certo  quem  fosse  este  frade  de  S. 
Francisco,  e  não  haveria  muito  interesse  em  o  fazer,  pois  entre  os 
numerosissimos  franciscanos  que  visitaram  a  Terra  Santa,  muitos  re- 
petiram sem  duvida  as  asserções  a  que  Orta  se  refere. 

Esta  tradição,  que  ligava  a  bananeira  ao  Paraiso  terrestre,  era  cor- 
rente entre  os  christãos  orientaes,  e  também  entre  os  mussulmanos. 
Aquelle  incansável  compilador  de  todas  as  tradições  e  de  todas  as 
anecdotas  arábicas,  Maçudi,  enumera  as  trinta  fructas  que  Adão  levou 
comsigo  do  Paraiso:  dez  com  casca;  dez  com  caroço;  dez  sem  casca 
nem  caroço.  Entre  as  primeiras  dez  inclue  a  banana,  j_^l,  al-mau:;.  Os 
christãos,  pela  sua  parte,  viam  na  bananeira  aquella  arvore,  de  cujas 
folhas  Adão  e  Eva  se  cobriram  depois  do  peccado,  quando  attentaram 
em  que  estavam  nús :  cumque  cognovissent  se  esse  nudos,  consuerunt  fo- 


338  Colóquio  vigcsimo  segundo 

lia  ficus,  et  fecerimt  sibi  peri^omata.  Fr.  João  de  Marignolli',  depois  das 
suas  viagens  no  Oriente,  referindo-se  a  esta  passagem  do  Génesis,  diz 
que  tomaram  folhas  do  ficus  seu  musarum.  E,  voltando  ao  mesmo  as- 
sumpto a  propósito  de  Ceylão,  repete:  et  de  istis  foliis  ficus  (niusce, 
quas  incolor  ficus  vocant)  Adam  et  Eva  fecerunt  sibi  peri^omata  ad 
cooperiendum  turpitudinem  suam.  As  grandes  dimensões  das  folhas  das 
bananeiras  suscitavam  naturalmente  a  idéa  de  que  poderiam  servir  para 
improvisar  um  vestuário,  n'aquella  súbita  revelação  do  pudor.  Na  Eu- 
ropa continuava  no  emtanto  a  tradição,  que  seguia  á  letra  o  texto  da 
Vulgata;  e,  entre  outros,  o  nosso  fr.  Izidoro  de  Barreira,  no  seu  curioso 
Tractado  da  significação  das  plantas,  admitte  que  aquella  folha  do  Pa- 
raíso fosse  a  áà  figueira,  e  dá-lhe  a  accepção  de  penitencia.  D'estas 
duas  tradições  parallelas  resultou  sem  duvida  a  persistência  com  que 
os  christãos  do  Oriente  chamaram yz^o  á  banana,  e  que  de  certo  se  não 
pôde  explicar  pela  similhança  dos  dois  fructos. 

Identificou-se  também  a  banana  com  o  fructo  da  arvore,  que  estava 
ao  meio  do  Paraiso,  aquelle  que  Eva  julgou,  bonum  . . .  ad  vescendum, 
et  pulchrum  oculis,  aspectuque  delectabile.  No  interessante  Itinerário 
de  Terra  Sancta  de  fr.  Pantaleão  de  Aveiro-,  encontra-se  indicado  essa 
opinião  como  corrente  nas  terras  orientaes.  Paliando  de  algumas  plan- 
tas, que  viu  na  ilha  de  Chypre,  diz  assim : 

"...  e  muita  cantidade  de  musas,  a  que  naquellas  partes,  e  em  todas 
as  mais  orientaes  onde  as  ha,  chamão  por  outro  nome  Pomum  Para- 
disi  . . .  Dizem  e  affirmão  os  orientaes  e  palestinos  ser  aquella  a  arvore 
da  qual  comeo  o  nosso  Padre  Adão  no  Parayzo  terreal,  sendo-lhe  ve- 
dada pelo  Senhor  Deos,  movido  de  sua  suavidade  e  fermosura  ...  e 
creo  eu  serem  as  bananas  do  nosso  S.  Thomé.» 

Julgava-se  encontrar  a  marca  da  origem  divina,  na  cruz  que  se  via  em 
uma  secção  transversal  do  fructo;  e  á  qual  se  refere  também  o  nosso 
fr.  Pantaleão.  Séculos  antes,  fr.  João  de  Marignolli  dizia  o  mesmo,  com 
mais  intimativa:  et  istud  vidimus  com  oculis  nosíris,  quod  ubicumque 
inciditur  per  transverswn,  in  utraque  parte  incisurce  videtur  imago  ho- 
minis  crucifixi.  O  padre  Vincenzo  Maria  é  menos  affirmativo,  refugia-se 
em  um  compromisso,  e  explica,  que  na  fructa  da  índia  se  via  unicamente 
a  cruz,  mas  na  fructa  da  Phenicia  se  podia  distinguir  a  imagem  do  cru- 
cificado; e  que,  por  isso,  os  christãos  quebravam  as  bananas,  sem  nunca 


'  Este  fr.  João  era  minorita;  mas  não  pode  ser  o  franciscano  a  quem  Orta  se  refere,  pois 
as  suas  recordações  orientaes  estavam  então  inéditas  no  manuscripto  do  Clironicon  Bolie- 
morum,  e  seguramente  não  chegaram  ao  conhecimento  do  nosso  escriptor. 

^  Também  este  não  pode  ser  o  franciscano  citado,  pois  elle  fez  a  peregrinação  no  anno 
de  i563,  e  publicou  o  livro  annos  depois. 


Do  Faiifd  339 

as  cortarem.  Assim  a  folha  da  bancineirã  iJentificava-se  por  um  lado  com 
a  folha  da  figueira,  emquanto  a  banana  se  identificava  por  outro  com 
a  maçã.  Fr.  Pantaleão  diz  que  lhe  chamavam  pomum  paradisi;  e  em 
outros  livros  do  tempo,  como  no  de  Aldrovando,  vem  aquelle  nome 
poma  paradisea  applicado  ao  fructo  da  maceira. 

N'aquellas  interpretações  criticas,  que  julgam  ver  nas  palavras  do  Gé- 
nesis sobre  o  primeiro  peccado,  uma  allusão  á  attracção  natural  e  mu- 
tua dos  dois  sexos,  a  significação  phallica  é  geralmente  atlribuida  á 
serpente.  Agrippa  de  Colónia  — :citado  por  Gubernatis —  dil-o  muito 
claro :  Hunc  serpentem  tion  aliud  arbitraniur,  quam  sensibilem  cama- 
lernque  affectinn,  imo  quem  recte  dixerimus,  ipsum  canialis  concupis- 
centice  genitale  viri  membrum,  membrum  reptile,  membrum  serpens 
. . .  qiiod  Evam  tentavit  atque  deccepit.  Circumstancia  curiosa,  houve 
quem  no  Oriente  deslocasse  esta  significação,  da  serpente  para  o  pró- 
prio fructo  do  lignum  vit^e,  que  julgavam  ser  a  banana.  O  honesto  e 
grave  Rumphius  diz  o  seguinte :  qmmi  fructus  refert  membrum  virile, 
cujus  adspectu  Eva  in  effrenam  illam  cupiditatem  instigata  fuit. 

Em  resumo,  ve-se  que  a  opinião  do  franciscano  citado  por  Orta, 
quem  quer  que  elle  fosse,  não  era  uma  opinião  individual,  e  pelo  con- 
trario a  expressão  da  crença  corrente  e  vulgar  em  todas  as  terras  do 
Oriente. 

(Cf.  Génesis,  iii;  Maçudi,  Prairies,  i,  61;  Yule,  Cathay,  352  e  36o; 
Fr.  Izidoro  de  Barreira,  Tract.  da  sign.  das  plantas,  237,  Lisboa,  1622; 
Fr.  Pantaleão  d'Aveiro,  Itin.  de  Terra  Santa,  cap.  x,  pag.  32  v,,  Lisboa, 
1596;  Gubernatis,  Mythologie  des  plantes,  i,  2  a  28;  Rumphius,  Herb. 
Amb.,  V,  127.) 

Nota  (4) 

Foi  sempre  uma  questão  debatida  e  que  excitou  um  certo  interesse, 
o  saber  se  os  antigos  escriptores  conheceram  a  bananeira.  Theophrasto, 
fallando  das  arvores  da  índia,  tem  a  seguinte  passagem : 

«Ha  outra  arvore,  grande,  tendo  um  fructo  de  incrivel  grandeza  e 
suavidade,  do  qual  se  alimentam  os  sábios  da  índia  que  andam  nús. 
Ha  outra,  tendo  as  folhas  de  forma  oblonga,  similhantes  ás  pennas  das 
aves  ((iTf5vO<ov  77";o';  íV^tov).  e  do  tamanho  de  dous  covados.  Ha  ainda  ou- 
tra, cujo  fructo  é  longo,  não  recto  mas  torcido  (x.asTròç  . . .  /-«l  j-jy.  t-jCfjt 
àui  ff/.oXi":^),  e  de  gosto  doce;  este,  porém,  produz  desynterias,  pelo 
que  Alexandre  prohibiu  que  os  seus  soldados  o  comessem.» 

É  claro,  que  Theophrasto  falia  n'esta  passagem  de  três  arvores;  mas 
a  primeira  duvida  é,  se  as  três  são  realmente  distinctas,  ou  se  elle,  mal 
e  imperfeitamente  informado,  distribuiu  os  caracteres  de  uma  só  pelas 
três,  misturando-lhe  outros  que  lhe  não  pertenciam.  Dos  caracteres, 
uns  quadram  á  bananeira  e  outros  não.  O  fructo  não  é  de  incrivel 


340  Colóquio  vigésimo  segundo 

grandeza,  se  o  considerarmos  correctamente  como  sendo  a  banana; 
mas  é  de  incrível  grandeza  se  tomaram  como  fructo  o  caixo  de  bana- 
nas. As  folhas  grandes  existem  na  planta,  ainda  que  as  da  musa  te- 
nham muito  mais  de  dois  covados.  E  aquelle  fructo  doce,  longo  e  cur- 
vado, parece  ser  exactamente  a  banana ;  mas,  por  outro  lado,  esta  fornece 
uma  alimentação  sadia,  e  não  é  pFOvavel  que  Alexandre  a  prohibisse 
aos  seus  soldados,  emquanto  outras  fructas  da  índia  estariam  n'este 
caso.  Em  resumo,  parece  haver  aqui  uma  certa  mescla  de  plantas;  mas 
temos  a  impressão  de  que  as  phrases  de  Theophrasto  assentam  sobre 
algumas  noticias  incompletas  da  bananeira,  trazidas  da  índia  pelos 
gregos  do  exercito. 

Plinio  tem  um  paragrapho,  mil  vezes  citado  e  debatido,  mas  que 
será  necessário  citar  mais  uma  vez.  Diz  assim :  Major  alia :  pomo  et 
suavitate  prxcellentior,  quo  sapientes  Indorum  vivunt.  Foi  htm  alas 
avium  imitatiir,  longitudine  trimn  ciibitoriim,  latitudine  dinim.  Friictum 
cortice  tnittit,  admirabilem  siicci  dulcedine,  ut  uno  quaternos  satiet. 
Arbori  nomen  paLv,  pomo  arience.  Plurima  est  in  Sydracis,  expeditio- 
num  Alexandri  termino.  Est  et  alia  similis  hiiic,  dulcior  pomo,  sed  in- 
teraneorum  valetudini  infesta.  Edi.xerat  Alexander,  ne  quis  agminis 
sui  id  pomo  attingeret.  É  evidente  que  Plinio  leu  Theophrasto,  e  em 
parte  o  traduziu.  Junta-lhe,  porém,  algumas  noticias  suas,  como  o  nome 
da  arvore.  Pala,  e  o  nome  do  fructo,  Ar-iena;  e  reúne  em  uma  só  as 
duas  primeiras  arvores  do  botânico  grego.  A  Pala  tem  sido  geralmente 
identificada  com  a  bala  ou  vala  do  Malabar,  isto  é,  com  a  bananeira. 
O  grande  investigador  das  antiguidades  indianas,  Lassen,  como  o  grande 
geographo  Ritter,  concordaram  n'aquella  identificação.  É  certo,  no 
emtanto,  que  ella  levanta  algumas  difficuldades.  Modernamente  Yule 
advogou  uma  identificação  diversa,  e  suppoz  que  a  Pala  fosse  a  Ja- 
queira, fundando-se  em  alguns  dos  caracteres  citados,  como  no  fructum 
cortice  mittit,  e  no  imo  quaternos  satiet.  Apesar  da  engenhosa  discus- 
são de  Yule,  ainda  nos  resta  a  opinião  de  que  os  dois  antigos  escripto- 
res  tiveram  alguma  noticia  da  bananeira. 

A  questão  era,  porém,  complicada,  e  não  admira  que  o  erudito  me- 
dico francez,  Jean  de  La  Ruelle  (Ruellio)  desse  «huma  no  cravo  e 
quatro  na  ferradura»,  como  lhe  diz  maliciosamente  o  nosso  Orta. 

(Cf.  Theophrasto,  Hist.  plantarwn,  iv,  4,  pag.  64  da  edição  Wimmer; 
Plinio,  XII,  12;  Yule  e  Burnell,  Glossaty,  palavra  Jack.J 


Nota  (5) 

As  bananeiras  eram  frequentes  na  Nova  Hespanha,  no  Peru  e  no 
Brazil,  ou  em  geral  nas  regiões  quentes  da  America.  Não  vem  para 
aqui  a  questão  de  saber,  se  eram  indigenas  ali,  ou  se  haviam  sido  in- 


Do  Faufel  341 

troduzidas  pelos  hespanhoes  e  portuguezes,  questão  em  que  a  auctori- 
dade  de  Humboldt  está  por  um  lado,  e  as  de  R.  Brown  e  de  De  Candolle 
por  outro;  basta  notar,  que  no  tempo  de  Orta  se  cultivavam  já  em 
grande  abundância  (Cf.  De  Candolle,  Orig.  des  plantes  cultivées,  242). 

Também  se  cultivavam  em  Portugal,  ou  que  a  sua  introducção 
fosse  recente,  e  posterior  ás  viagens  á  índia,  ou  mais  antiga,  e  de  plan- 
tas trazidas  da  Syria  e  Egypto,  como  succedeu  na  Itália.  Qualquer  que 
fosse  o  momento  em  que  se  introduziram,  encontravam-se  em  varias 
localidades;  mas  davam-se  mal,  e  produziam  fructos  muito  imperfeitos, 
como  ainda  succede.  Clusius  viu-as  nas  hortas  e  quintaes  de  Lisboa; 
mas  em  geral  sem  fructo :  Ulysipone,  ubi  aliquot  plantas  vidi,  minimè 
tamen  fructiferas  . . .  (Exotic,  23o). 

Orta  refere-se  a  um  período,  anterior  de  trinta  annos  ou  um  pouco 
mais  a  este  de  que  falia  Clusius,  pois  seguramente  falia  do  que  viu, 
antes  de  partir  para  a  índia  no  anno  de  i534,  alludindo  especialmente 
ás  plantas  cultivadas  na  quinta  de  D.  Francisco  de  Castellobranco. 
Este  fidalgo  devia  ser  um  D.  Francisco  de  Castellobranco,  senhor  da 
casa  de  Villa  Nova  de  Portimão,  e  que  foi  nomeado  camareiro  mór 
d'El-Rei  D.  João  III,  pelos  fins  do  anno  de  027.  Era  filho  do  primeiro 
conde  de  Villa  Nova,  mas,  segundo  se  deprehende  do  que  diz  a  His- 
toria genealógica,  não  teve  o  titulo,  que  depois  passou  a  seu  irmão, 
casado  com  a  sua  filha  D.  Branca  de  Vilhena.  Alem  da  casa  de  Villa 
Nova,  tinha  também  o  morgado  da  Povoa;  e  o  meu  amigo  visconde 
de  Castilho  informa-me  de  que  elle  edificou  a  ermida  da  Piedade  na 
sua  quinta  da  Povoa.  Devia,  portanto,  ser  esta  a  sua  vivenda  favorita, 
e  é  provável  que  ali  cultivasse  as  bananeiras  de  que  Orta  falia  (Cf. 
Hist.  gen.,  XI,  3i  I  e  474). 


COLÓQUIO  VIGÉSIMO  TERCEIRO 

DO  FOLIO  INDO  OU  FOLHA  DA  ÍNDIA 

INTERLOCUTORES 
RUANO,  ORTA,  SERVA 

RUANO 

Sam  muyto  bem  alembrado  que  me  dixestes,  falando  no 
betre*,  que  não  era  folio  tudo;  e  foy  isto  cousa  pêra  my 
de  muyto  preço;  porque  os  físicos,  que  muito  presumem  sa- 
ber dos  que  destas  partes  foram,  o  dizem  ser;  e  o  que  mais 
he,  os  modernos  escritores  e  o  Laguna  lhe  chamao  em  suas 
escrituras  tembiil,  e  dizem  que  asi  lhe  chamao  os  Maurita- 
nos. Ora  pois  me  prometestes  dizer  que  cousa  era  o  folio 
indo,  e  provar  ser  cousa  diversa,  e  a  ordem  o  pede,  dizeimo, 

ORTA 

De  serem  cousas  diversas  he  craro,  como  vos  dixe,  pois 
Aviçena  faz  dous  capítulos,  scilicet,  o  de  folio  indo  que  he 
25g,  e  do  tambul  que  he  707**;  nisto  não  ha  que  falar,  porque 
o  de  folio  indo  chamase  cadegi  indi,  e  o  de  betre,  tambul.  E 
betre  já  vos  dixe  como  chamavam  os  índios,  e  o  folio  indo 
lhe  chamao  os  índios  tamalapatra.  e  os  Gregos  e  Latinos  cor- 
rompldamente  lhe  chamaram  malabainint**''.  E  cadegi  indi 
em  arábio  quer  dlzQv  folha  da  índia;  e  Aviçena  foy  traduto 
da  própria  maneira  que  está  no  arábio,  e  lingoa  de  vaca,  e 
lingoa  de  pássaro,  e  jnelam  da  índia,  asi  está  no  arábio,  sci- 
licet, esses  nomes  que  igualmente  significam  o  mesmo:  asi 


*  Veja-se  a  nota  á  pag.  325. 

**  O  cap.  do  tembul  em  Avicenna  é  709. 

*•'*  Dioscorides,  Liv.  i,  cap.  11;  Plinio;  Galenus,  Simplicium  medi- 
camentorum  (nota  do  auctor). 


344  Colóquio  vigésimo  terceiro 

folio  indo  não  se  chama  folio  per  excelência,  somente  por- 
que está  asi  folio  indo;  e  se  o  quereis  ver  logo  volo  amos- 
trarei. Moça  traze  cá  aquellas  folhas,  que  trouxe  da  botica 
na  algibeira. 


SERVA 


ORTA 


Eilas  aqui. 

Que  vos  parece? 

RUANO 

Pareçeme  folhas  de  laranjeira,  senam  que  sam  mais  agu- 
das: a  cor  he  verde  escura,  tem  pelo  meio  hum  nervo  e  dous 
outros  que  o  acompanham  até  á  ponta,  que  he  signal  pêra 
ser  bem  conhecida  quando  outra  vez  a  vir. 

ORTA 

Cheirai :  o  cheiro  he  muito  suave,  e  nam  he  tam  forte  como 
o  do  espiquenardo ,  nem  como  o  da  maçan;  cheira  tam  bem 
como  cravo,  nem  he  tam  agudo  cheiro  como  canella. 

RUANO 

Dizeime  a  feiçam  do  arvore,  que  nam  parecem  estas  fo- 
lhas cousa  que  está  sobre  a  agoa,  como  as  que  chamam  len- 
tilhas de  agoa,  como  decraram  todos  a  Dioscorides;  porque 
Dioscorides  diz  á  maneira  de  lentilha. 

ORTA 

A  Dioscorides  e  a  Plinio  foi  dada  falsa  enformaçam,  por- 
que estas  folhas  naçem  em  huma  arvore  grande,  longe  donde 
ha  alagoas,  e  nam  dentro  das  alagoas;  o  arvore  que  dá  este^- 
lio*  indo  em  outros  cabos  o  ha  também;  e  asi  o  ha  em  Cam- 
baia, e  os  buticairos  (a  que  chamam  gandis)  que  vendem 
mezinhas,  como  lhe  perguntardes  per  tamalapatra,  logo  vos 
entenderam-,  porque  he  lingoa  da  terra  e  o  chamam  asi. 


*  Orta  escreve  umas  vezes  «folio  indo»,  e  outras  «folium  indu»;  re- 
duzimos tudo  á  mesma  forma. 


Do  Folio  Indo  845 

RU  AN  o 

Logo  enganados  vivíamos  nesta  mezinha,  como  em  outras 
muytas  até  agora-,  na  terra  do  Preste  Joam  diz  hum  frade 
de  San  Francisco,  que  fez  Modiis  facicndi,  que  o  ha;  e  que 
ás  suas  mãos  veo  ter  este  folio  indo,  c  que  vinha  intitulado 
folhas  do  arvore  da  canclla:  e  que  nam  lhe  parecia  folhas  na- 
çidas  em  agoa,  senam  em  arvore,  que  em  seu  defeito*  (pois 
o  não  ha)  he  bem  que  ponham  o  espiqiie  ou  maça. 

ORTA 

Bem  podiam  ser  folhas  de  canella  aquellas,  e  não  he  muito 
deferente  folio  indo  delia;  senam  que  a  de  canella  he  mais 
estreita  e  menos  aguda,  e  nam  tem  aquelles  nervos  que  tem 
o  folio  indo;  mas  nem  canella  nem  folio  indo  ha  nas  terras 
do  Preste  Joam;  nem  tal  ouvi  dizer,  perguntando  a  quantos  lá 
andaram;  e  quanto  he  ao  que  poram  em  seu  logar,  dirvoloey 
ao  cabo. 

RUANO 

Dioscorides  diz  que  alguns,  poUo  cheiro,  dixeram  ser  folha 
do  arvore  do  espiquenai^do,  por  a  semelhança  do  cheiro;  e 
que  como  o  colhem,  o  passam  com  uni  fio;  enfiadas  as  folhas 
as  tem  e  as  guardam  pêra  as  vender;  e  que  as  lagoas  sequas, 
onde  se  isto  dá,  sam  queimadas,  porque  senam  sam  quei- 
madas não  naçe  mais  isto  nellas;  e  que  o  milhor  he  mais 
novo  e' inteiro;  e  que  de  branco  vaise  sendo  preto;  e  que 
com  o  cheiro  fira  a  cabeça,  que  muyto  tempo  permaneça 
neste  cheiro;  e  que  imite  ao  nardo,  e  nam  tenha  gosto  de  sal. 

ORTA 

O  cheiro  bem  vedes  que  nam  he  tam  forte  como  o  do 
nardo,  que  he  mais  suave;  e  o  nardo  nam  he  arvore;  e  a  ma- 
neira de  colher  não  he  asi,  senão  colhem  as  folhas,  e  delias 
fazem  fardos,  e  os  levam  a  vender.  E  pois  nam  nascem  nas 
alagoas,  não  he  rezam  que  se  queimem  pêra  nascer  outro; 


*  "Defeito»  por  falta,  como  o  francez  dcfaut. 


346  Colóquio  vigésimo  terceiro 

e  todas  as  terras  que  se  am  de  semear  queimam-se;  mas 
não  todas  as  outras,  e  as  que  não  se  queimão  nam  leixa  por 
isso  de  naçer  erva  nellas.  A  cor  he  verde  craro;  e  as  cou- 
sas que  se  guardam  não  ficam  tam  craras,  chegamse  mais 
a  preto  que  a  verde  escuro;  e  nam  tem  cheiro  de  saha  al- 
gum delies,  e  he  verdade  que  o  inteiro  he  milhor,  porque 
tem  a  virtude  mais  conservada,  nem  o  cheiro  fere  a  cabeça 
tanto  como  os  outros  cheiros  \  e  postoque  Autuado  diga  que 
os  Mouros  lhe  chamam  tembiil,  também  se  enganou  como 
outros. 

RUANO 

Plinio  diz*  que  o  ha  em  Siria  em  folhas  retortas,  donde 
sae  o  olio  pêra  o  unguento;  e  que  em  Egipto  ha  mais  abun- 
dância delle;  e  que  o  mais  louvado  vem  da  índia;  e  que 
se  gera  sobre  agoa;  e  que  cheira  mais  que  o  açafram;  e  que 
o  mais  sabe  a  salva  e  cheira,  e  o  somenos  na  bondade  he 
mais  craro  e  milhor,  que  he  semelhante  ao  nardo;  e  que 
deitado  em  vinho  excede  todos  os  cheiros;  e  que  o  preço 
delle  foy  cousa  milagrosa,  scilicet,  até  trezentas  livras  e  do 
olio  até  60  livras**.  Isto  diz  Plinio,  ao  qual  responda  e  satis- 
faça. 

ORTA 

Avelo  em  Siria  e  em  Egipto  nam  o  sey;  mas  tive  amizade 
com  físicos  do  Cairo  e  de  Damasco,  scilicet,  de  Alepo,  e 
todos  me  dixeram  que  o  não  havia  na  Siria,  nem  em  Egipto; 
nem  cheira  tanto  como  açafram,  nem  como  o  nardo,  nem 
he  cousa  do  nardo,  porque  o  nardo  vem  de  duzentas  legoas 
donde  he  este  seco,  posto  que  lá  o  pôde  aver;  e  mais  nardo 
he  cousa  que  se  semea,  e  este  he  arvore  agreste  e  grande. 
E  das  outras  cousas  da  eleiçam  delle  já  respondi  confutando 
a  Dioscorides;  e  que  o  cheiro  no  vinho  fervido  no  folio  indo 
preceda  todos  os  cheiros,  seria  iso  em  seu  tempo;  porque 


*  Plínio,  lib.  12,  cap.  26  (nota  do  auctor). 

**  Na  edição  de  Goa  está  600,  mas  deve  ler-se  60;  veja-se  a  nota  (i). 


Do  Folio  Indo  847 

não  avia  entonçes  beijoim  de  boninas,  nem  âmbar,  nem  almis- 
cre,  nem  calambuco,  como  agora  ha-,  porque  as  cousas  da 
policia  vam  cm  crecimento,  e  pôde  ser  que  as  de  vertude  não 
tanto;  por  onde  nunca  mais  creais  que  se  perderam  cousas 
de  clieiro;  e  asi  como  cinamomo,  em  que  aprofiaveis  os  dias 
passados,  porque  o  mundo  he  mais  descoberto,  e  a  gente  tem 
a  condicam  que  dise. 

RUANO 

Galeno,  nem  Rasis,  não  dizem  cousa  de  novo,  somente 
ter  a  vertude  do  espique.  Aviçena*  diz  que  he  chegado  a 
esta  mesma  virtude,  e  que  as  folhas  sam  as  de  saisifi^ão, 
e  que  nasce  em  agoa  e  terra  çenosa,  sem  ter  raiz,  á  maneira 
de  lentilha  de  agoa,  onde  alguns  cuidaram  que  era  asi  como 
folha  de  golfam;  e  que  o  seu  olio  tem  a  vertude  do  laser- 
piciíim,  e  do  olio  de  açafra?n,  e  que  he  mais  forte. 

ORTA 

Todo  mais  diso  he  provado  ser  falso  em  Dioscorides  e 
Plinio,  por  onde  não  he  necessário  mais  responder;  porque 
Aviçena  e  Serapio  e  Rasis  não  souberam  mais  nesta  mezi- 
nha alem  dos  Gregos,  somente  saberem  que  malabatrmn 
acerca  dos  Gregos  era  folio  indo,  e  trasladaram  o  que  di- 
xeram  os  Gregos,  somente  acresentando  algumas  cousas 
em  dizer  o  pêra  que  aproveitava;  e  todos  dizem  que  apro- 
veita pêra  provocar  a  orina,  e  pêra  o  cheiro  máo  da  boca,  e 
que  conserva  os  panos,  e  defendeos  da  traça;  e  per  derra- 
deiro dizem  que  aproveita  pêra  todas  as  cousas,  como  o  es- 
piqiienardo. 

RUANO 

Estes  escritores  modernos  huns  confessam  que  o  não  co- 
nhecem, nem  o  viram,  e  estes,  a  meu  juízo,  falam  milhor; 
outros  dizem  que  viram  em  seu  lugar  deitar  folhas  do  ar- 
vore do  craj^o,  outros  da  canella;  porque  o  autor  que  fez 


*  Avicenna,  661,  Serapio  (nota  do  auctor).  Tudo  quanto  Orta  re- 
pete vem  no  capitulo  259,  correctamente  citado  na  pagina  anterior. 


348  Colóquio  vigésimo  terceiro 

Liiminare  majiis  diz  que  hum  mercador  lhe  vendera  folhas 
de  cravo,  e  dixe  que  aquillo  era  folio  indo,  o  outro  francis- 
cano que  acima  dixe,  diz  que  lhe  derao  por  elle  folhas  de 
canelLi.  António  Musa  diz  que  o  vio  em  Veneza,  e  que  lhe 
amostraram  o  folio  indo  da  Siria,  e  o  folio  indo  da  índia, 
e  porém  que  elle  os  nam  conheceo:  decrarayme  isto,  e  que 
poremos  em  seu  lugar  lá  em  Espanha,  faleçendonos  o  folio 
indo,  como  nos  falece. 

ORTA 

O  que  dixe  que  vira  folhas  de  cravo  me  parece  que  nam 
dixe  bem,  porque  donde  naçe  o  cravo  até  onde  naçe  o 
folio  indo  he  viagem  de  dous  annos  de  caminho;  e  o  que 
dixe  das  folhas  de  canella,  pudia  ser  que  yriam  lá  mestu- 
radas  com  a  canella:  e  quanto  he  ao  que  poram  em  seu 
lugar,  eu  queria  que  levassem  de  qua  tanto  folio  indo  que 
bastase*  toda  a  Europa.  E  facilmente  se  podia  levar  de 
qua;  mas  já  que  o  nam  levam,  usem  folhas  de  canella  em 
seu  lugar;  e  nam  as  achando  da  canella  sequa  ou  do  espi- 
quenardo,  inaça  não  ponham  em  seu  lugar,  porque  nam  he 
tam  semelhante  a  elle  como  as  outras  mezinhas.  Aviçena 
manda  pôr  em  seu  lugar  também  thalisafar,  segundo 
emenda  André  Belunensis;  mas  eu  nam  conheço  esta  me- 
zinha, nem  me  parece  semelhante  ao  folio  indo;  e  deste 
parecer  he  Mateolo  Senense,  contra  hum  moderno  escritor. 


*  Deve  ler-se,  «que  bastase  a  toda»;  ou  antes  talvez  que  «abastase 
toda». 


Nota  (i) 

A  droga,  chamada  por  Orta  «folio  indo»,  ou  «folha  da  índia»,  é  ainda 
conhecida  e  usada  n'aquella  região,  e  consiste  nas  folhas  seccas  de  uma 
ou  mais  espécies  do  género  Cinnamomum.  Estas  folhas,  oblongo-lan- 
ceoladas,  percorridas  da  base  ao  ápice  por  três  nervuras  bem  appa- 
rentes,  foram  tão  exactamente  descriptas  pelo  nosso  auctor,  que  ne- 
nhuma duvida  pôde  restar  sobre  a  sua  identificação,  independentemente 
mesmo  dos  nomes- vulgares,  a  que  logo  nos  referiremos. 


Do  Folio  Indo  '  849 

Diz-nos  Dymock,  que  aquellas  folhas  se  encontram  ainda  hoje  nas 
lojas  de  todos  os  droguistas  da  índia;  são  consideradas  um  medica- 
mento estimulante,  carminativo,  diurético,  diaphoretico,  etc;  e  são 
vulgarmente  designadas  pelo  nome  de  tajpát  ou  tejpát.  Julga-se  em 
geral  que  o  tejpcit  procede  da  espécie  Cinnamomiim  Tamala,  Nees  ab  • 
Es.,  ainda  que  parte  se  atribue  também  ao  C.  nitidum,  Hooker  e  Blume, 
e  a  outras  espécies.  Todas  estas  plantas  são  arvores  de  dimensões  re- 
gulares, como  bem  advertiu  Orta;  e  não  vivem  em  lagoas  ou  logares 
pantanosos,  mas  pelo  contrario  nas  florestas  das  regiões  montanhosas. 
O  C.  Tamala,  por  exemplo,  é  particularmente  abundante  nas  serras  de 
Khasya,  e  nas  regiões  vizinhas  de  Silhet  e  Nepaul  (Cf.  Dymock,  Mat. 
med.,  670;  Guibourt,  Hist.  des  drogues,  11,  418;  Phannacographia, 
480;  Pharmac.  of  índia,  196). 

Orta  cita  apenas  dois  nomes  vulgares,  ambos  bem  conhecidos  como 
tendo  sido  applicados  á  mesma  droga,  e  que,  portanto,  confirmam  a 
identificação  resultante  das  suas  notas  descriptivas : 

—  «Tamalapatra»  entre  os  indios.  Este  nome  significa /o//2a  de  ta- 
mala, pois  páttra  quer  dizer  folha  em  sanskrito.  O  nome  de  tamala  foi 
dado  antigamente  na  índia  a  uma  ou  a  mais  espécies  de  Cimiamomum; 
e  em  uma  lista  de  nomes  vulgares,  publicada  pelo  celebre  indianista  sir 
William  Jones  nos  fins  do  século  passado,  encontramos  ainda  Tama'la 
como  o  nome  do  Lauriis  (hoje  Cinnamomum).  Depois,  ao  que  parece, 
aquella  designação  caiu  em  desuso,  e  foi  substituída  pela  de  tejpát,  sim- 
plificação de  tej-pattra,  que  se  diz  ú^múcar  folha  pungente  (Cf.  Asiati- 
cal  researches,  vol.  iv  (1799),  p-  235;  Dymock,  1.  c). 

— «Cadegi  indi«  em  arábio.  Deve  ler-se  çaãegi  indi,  e  é  o  conhecido 

nome  arábico  -r^^,  sadadj,  seguido  do  qualificativo  ^-^.>,  hindi. 

o  folio  indo  de  Orta  é,  portanto,  e  sem  a  menor  duvida,  o  sadadj  hindi 
dos  árabes,  e  o  tamala  pattra  dos  antigos  indianos;  e  esta  droga  era, 
segundo  todas  as  probabilidades,  o  u.aXaoá6pov  de  Dioscorides,  e  o  77ialo- 
bathron  de  Plinio.  Em  primeiro  logar,  o  nome  grego  é  uma  derivação 
simples  e  fácil  de  tamala  pattra;  e  em  segundo,  vê-se  que  Dioscorides 
tem  um  conhecimento  bastante  exacto  da  droga.  Cita  as  suas  proprieda- 
des medicinaes,  análogas  ás  que  os  orientaes  lhe  attribuem;  e  aponta 
o  emprego  das  folhas  para  preservar  a  roupa  da  traça,  um  habito  ainda 
conservado  na  índia.  O  erudito  e  zeloso  commentador  de  Dioscorides, 
Sprengel,  admitte  esta  identificação;  e  reconhece  quanto  as  investiga- 
ções do  nosso  Orta  esclareceram  aquelle  ponto  duvidoso :  obscuro  huic 
loco  lucem  primus  attulit  Garcias,  dum  Cássias  esse  folium  perhiberet. 

É  claro  ao  mesmo  tempo,  que  Dioscorides  tinha  as  mais  incomple- 
tas e  erradas  noticias  sobre  a  planta  de  que  a  droga  procedia.  Suppóe 
ser  uma  planta  aquática;  diz-nos  que  as  suas  folhas  se  encontravam 
fluctuando  sobre  as  aguas;  e  dá-nos  outras  informações  igualmente 


35o  Colóquio  vigésimo  terceiro 

desviadas  da  verdade.  Orta,  com  a  sua  experiência  pessoal,  não  tem 
difficuldade  em  rectificar  estes  enganos,  que  eram  naturalissimos.  Dios- 
corides  podia  ver  as  folhas  no  mercado  de  Alexandria;  mas  segura- 
mente não  encontrava  quem  lhe  descrevesse  as  arvores,  que  habitavam 
nas  remotas  regiões  da  índia  central,  então  pouco  menos  de  desconhe- 
cidas. 

A  noticia  de  Plinio  é  ainda  mais  incorrecta  que  a  de  Dioscorides. 
Dá-nos  aquella  curiosa  e  interessante  informação  sobre  os  preços  da 
droga,  textualmente  citada  pelo  nosso  escriptor:  iti  pretio  quidem  pro- 
dígio simile  est  a  X.  singulis  ad  X.  ccc  pervenire  libras:  oleum  au- 
tem  ipsiim  in  libras,  X.  lx.  Mas  depois  repete  o  que  o  auctor  grego 
diz  erradamente  sobre  o  habitat  aquático  da  planta;  e  quando  nos 
falia  do  óleo  que  se  extrahia  da  folha,  e  do  seu  subtilissimo  perfume 
—  a  tamala  pattra  é  quasi  inodora —  leva-nos  a  crer,  que  confundia 
sob  um  nome  mal  applicado  drogas  diversas,  e  que  hoje  é  difficil  saber 
quaes  fossem.  É  igualmente  inexacto  sobre  a  procedência  do  maloba- 
thron,  citando  a  Syria,  o  Egypto,  e  apenas  vagamente  a  índia. 

No  emtanto,  um  contemporâneo  de  Dioscorides  e  de  Plinio,  mas 
tendo  mais  immediato  conhecimento  do  Oriente  do  que  elles,  o  auctor 
do  Périplo,  dá,  sob  uma  forma  fabulosa  e  singular,  uma  indicação  muito 
chegada  á  verdade,  pelo  que  diz  respeito  ás  regiões  d'onde  vinha  o 
malabathrutn.  Diz  que  uns  certos  povos  de  diminuta  estatura,  os  Sesa- 
da.',  habitando  nas  fronteiras  de  uma  grande  região,  que  parece  ser  a 
China,  usavam  celebrar  uma  festa  nos  confins  das  suas  terras.  Traziam 
comsigo  cargas  de  folhas  e  ramos,- que  depois,  quando  se  retiravam, 
ficavam  espalhadas  pelo  chão.  Vinham  então  os  outros  povos  da  vizi- 
nhança, recolhiam  aquelles  ramos,  e  grupavam  as  folhas  pelas  suas 
grandezas  em  três  sortes:  hadrospluvriím,  mesospha'runi  e  niicrosphcs- 
rum  malabathrum.  Estas  eram  as  três  qualidades  de  malabathrian,  que 
aquelles  povos  traziam  a  vender  á  índia.  Se  despirmos  a  historia  das 
suas  circumstancias  fabulosas,  fica-nos  a  indicação  de  que  a  droga  vi- 
nha das  regiões  intermédias  entre  a  índia  e  a  China;  e  é  justamente 
por  ahi,  Nepaul,  e  vertentes  próximas  do  Himalaya,  que  varias  espécies 
de  Cinnamomum,  por  exemplo  o  C.  Tamala,  se  encontram  ainda  hoje. 
E  bem  possível  que  algumas  tribus  da  montanha,  das  que  constituem 
a  complicada  ethnographia  da  grande  cordilheira  asiática,  se  occupas- 
sem  especialmente  na  colheita  das  folhas  de  tamala,  e  vendessem  a 
droga  aos  mercadores  indianos,  os  quaes  a  traziam  aos  portos  do  Ma- 
labar, frequentados  pelos  antigos  navegadores  do  mar  Vermelho.  A 
noticia  do  Périplo,  embora  envolvida  em  circumstancias  de  phantasia, 
é  pois  claramente  favorável  á  identificação  do  malabathrum  dos  antigos 
com  a  tamala  pattra  da  índia. 

(Cf.  Dioscorideb,  i,  n,  vol.  i,  p.  21  e  vol.  11,  p.  848,  ed.  Sprengel « 
Plinio,  XII,  59,  e  XXIII,  48;  Muller,  Geogr.  Gr.  Minores,  i,  3o3.) 


Do  Folio  Indo  35 1 

Alem  de  corrigir  os  erros  de  Dioscorides  e  de  Plinio,  em  grande  parte 
ainda  seguidos  por  Avicenna  e  outros  árabes,  Garcia  da  Orta  teve  de 
deslindar  uma  confusão  de  origem  mais  moderna. 

Em  seguida  ás  viagens  portuguezas,  ou  talvez  mesmo  antes,  houve 
quem  julgasse  que  o  tembul  era  idêntico  á  tamalapatra.  Este  erro  era 
naturalissimo.  Os  viajantes  sabiam  que  havia  na  Índia  uma  droga  ou 
substancia,  tida  em  grande  conta,  e  chamada  por  excellencia  a  folha, 
ou  a  folha  da  índia.  Quando  ao  chegarem  ali,  encontraram  uma  fo- 
lha em  uso  constante,  otlerecida  ceremoniosamente  aos  hospedes,  e 
occupando  um  logar  saliente  nos  hábitos  typicos  da  região,  elles  to- 
maram essa  folha,  que  era  o  betle,  tembul,  ou  pan  (a  folha  do  Pi- 
per  Betle),  como  sendo  a  celebre  folha  da  índia.  Todos  se  engana- 
ram, mesmo  os  mais  minuciosos  e  os  mais  exactos;  Duarte  Barbosa 
também  suppõe  que  o  betele  ú  a  folha  da  índia.  A  confusão  persis- 
tiu muito  tempo.  Ramusio,  no  fim  do  Sommario  de  regni  città,  dá  a 
figura  da  foglia  detta  Betelle;  mas  é  curioso  que  a  sua  figura  se  não 
parece  nem  de  longe  com  a  folha  do  Piper,  e  é  pelo  contrario  uma 
representação  bastante  exacta  da  folha  do  Cinnamomum.  Das  rela- 
ções dos  viajantes,  a  confusão  passou  para  as  obras  de  matéria  me- 
dica, a  de  Laguna  e  outras.  Quando  Garcia  da  Orta  foi  para  a  ín- 
dia e  viu  o  tembul,  caiu  no  mesmo  erro.  Depois  — como  conta  em 
outro  Colóquio —  o  seu  amigo  Nizam  Scháh  explicou-lhe  que  eram 
cousas  muito  differentes,  e  elle  fez  então  a  distincção  correcta  entre  as 
duas  folhas,  que  são  absolutamente  diversas.  Conheceu  depois  perfeita- 
mente o  betre  ou  tembul,  a  cujo  uso  nunca  se  pôde  habituar;  e  co- 
nheceu também  a  tamalapatra,  que  encontrava  em  todas  as  boticas  in- 
dianas, d'onde  —  como  nos  diz —  trazia  alguns  exemplares  na  algibeira. 
É  singular,  que  este  Colóquio,  em  que  a  distincção  foi  feita  tão  explicita 
e  claramente,  escapasse  ás  investigações  do  eruditíssimo  dr.  Vincent, 
o  qual  ainda  no  nosso  século  tomava  o  tamalapatrae  o  tembul  como  sendo 
a  mesma  cousa. 

(Cf.  Ramusio,  Delle  navig.,  i,  SSy  v.;  Yule,  Cathay,  cxi.v;  Yule  e 
Burnell,  Glossary,  palavra  Malabathrum.) 

O  tejpát  continua  a  ser  usado  na  matéria  medica  indiana;  mas 
deixou  ha  muito  de  figurar  na  europêa.  No  tempo  de  Orta,  porém,  vi- 
nha em  quantidades  consideráveis  para  o  Occidenie,  posto  que  elle 
diz  que  podia  vir  muito  mais.  Vinha  principalmente  a  Veneza,  onde 
António  Musa  o  viu,  e  onde  o  viu  também  o  dr.  Paludano:  pluri- 
vmm  transfertur,  praxipue  Venetias.  No  fim  do  século  xvii  ainda  Po- 
met  dizia,  _;'avoiíe  en  avoir  bien  vu  et  bicn  vendu  . . .  por  onde  se  vê, 
que  continuava  a  ser  uma  droga  procurada  (Cf.  Linschoten,  Navig., 
84;  Pomet,  Hist.  des  drogues,  i,  160,  2'^™  édition). 

Nas  substancias  que  se  podiam  empregar  como  succedaneos  do  «fo- 
lio indo»  é  Orta  correcto,  arredando  completamente  a  folha  do  cravo 


352  Colóquio  ingesimo  tejxeiro  do  Folio  Indo 

e  a  viaça,  que  effectivamente  são  cousas  absolutamente  diversas;  e 
admittindo  que  se  podesse  usar  da  folha  da  canela,  que  na  realidade 
é  muito  análoga.  Por  ultimo  declara  não  conhecer  o  «thalisafar»,  que 
—  segundo  Avicenna —  se  podia  substituir  ao  «folio  indo».  Este  «thali- 
safar» ou  talisfar  é  de  difficil  identificação;  mas  d'elle  teremos  ainda  de 
fallar  em  mais  de  uma  nota. 

Nota  (2) 

Orta  cita  n'este  Colóquio  um  frade  franciscano  «que  fez  Modus/a- 
cietidi»,  e  um  escriptor  «que  fez  Luminai-e  majus».  Estes  livros,  men- 
cionados assim  brevemente  e  sem  nome  de  auctor,  são  difficeis  de  en- 
contrar; e  devo  dizer  que,  apesar  das  minhas  pesquizas,  em  que  fui 
auxiliado  por  pessoas  muito  competentes,  me  é  impossível  dar  qual- 
quer indicação  sobre  o  Liiminare  majus. 

O  Modus  faciendi  julgo  ser  o  Modum  faciendi  in  medicina,  escripto 
por  fr.  Bernardino  de  Laredo,  leigo  minorita  da  província  dos  Anjos, 
e  que,  antes  de  entrar  em  religião,  havia  sido  medico.  Ha,  porém,  uma 
difficuldade.  Tanto  fr.  Lucas  Wadding,  nos  Scriptores  ordinis  minorum, 
p.  56,  como  Nicolau  António  na  Bibliotheca  Hispana,  p.  170,  citam 
apenas  uma  edição  de  Alcalá  de  Henares  do  anno  de  161 7  (Compluti, 
1617).  É  claro  que  o  nosso  Orta  não  viu  nem  podia  ver  tal  edição.  Fr. 
Bernardino  de  Laredo  viveu,  no  emtanto,  muito  antes  de  Orta,  e  deve 
ter  escripto  nos  primeiros  annos  do  século  xvi.  Nicolau  António,  que 
o  dá  como  hespanhol  e  natural  de  Sevilha,  cita  na  sua  Bibliotheca  His- 
pana nova  o  manuscripto  da  Bibliotheca  lusitana  de  Jorge  Cardoso  *, 
o  qual  suppunha  que  fr.  Bernardino  fosse  portuguez,  e  affirma  que 
fora  medico  de  D.  João  II  de  Portugal :  inedicince  doctor  et  Joannis  II 
Portugallia^  regis  medicus,  uti  legitnus  in  schedis  mss.  Georgii  Cardosi, 
qui  ipse  lusitanum  existimabat,  inde  forsan  quod  in  Lusitaniam  vixis- 
set.  Sendo  isto  assim,  é  bem  possível  que  Orta  conhecesse  a  obra;  ou 
que  existisse  uma  edição  anterior  á  de  1617,  e  que  os  bibliographos 
não  conheceram;  ou  que  elle  visse  em  Portugal  alguma  copia  manu- 
scripta. 

É  claro  que  todas  as  duvidas  se  desvaneceriam,  consultando  a  obra 
e  procurando  lá  a  affirmação  citada  por  Orta ;  mas  não  me  foi  possí- 
vel encontrar  nas  bibliothecas  de  Lisboa  o  Modum  faciendi. 


'  Estas  notas  manuscriptas  perderam-se,  mas  foram  vistas  e  consultadas  por  vários  eru- 
ditos do  século  passado.  No  meu  exemplar  da  primeira  edição  de  Nicolau  António,  anno- 
tado,  creio  eu,  por  meu  bisavô,  António  de  Mello,  ou  pelo  seu  amigo  o  bispo  Cenáculo,  vem 
uma  nota  manuscripta  marginal,  onde  não  só  se  aponta  o  que  disse  Jorge  Card(>so  de  fr. 
Bernardino  de  Laredo,  mas  se  marca  o  sitio  e  a  pagina  do  mss.  (tom.  i.",  foi.  44),  indica- 
ção que  se  nâo  encontra  na  passagem  citada  da  2.^  edição  de  Nicolau  António.  E  claro,  pois, 
que  o  annotador,  quem  quer  que  fosse,  havia  visto  o  manuscriplo. 


COLÓQUIO  VIGÉSIMO  QUARTO 

DE  DUAS  MANEIRAS  DE  GALANGA 

INTERLOCUTORES 

RUANO,  ORTA 

RUANO 

Galanga  he  huma  mezinha  muyto  necessária-,  e  postoque 
eu  pêra  my  tenho  que  os  Gregos  a  não  conheceram,  ao 
menos  debaixo  d'este  nome,  he  muyto  necessária  em  todas 
as  boticas:  falemos  nella  hum  pouco. 

ORTA 

o  nome  he  em  arábio  calvegiam,  e  ainda  que  acheis  por 
todollos  Mauritanos  escrito  chamligiam  ou  galungem,  como 
Serapio*  lido  corrutamente  escreve,  nam  lhe  deis  fé-,  porque 
todos  os  Arábios  lhe  chamão  asi.  E  esta  que  chamamos 
galanga   he    de   duas   maneiras,   scilicet,   huma   pequena, 
muyto  cheirosa,  trazida  da  China  a  estas  terras,  e  daqui 
pêra  Portugal  e  pêra  outros  cabos  do  ponente:  a  esta  cha- 
mão na  China  lavandou.  E  ha  outra  mais  grande,  achada 
na  Jaoa,  chamada  acerca  delles  laucita^;  esta  he  grande,  e 
não  tam  cheirosa  nem  tam  aromática  como  a  primeira-,  e 
porém  ambas  chamamos  nós  outros  os  de  qua  da  índia 
lanciiai.  A  primeira  pequena  he  huma  frutiçe  ou  mata  de 
dous  palmos  em  comprimento;  tem  folhas  como  murta-, 
dizem  os  Chins  que  naçe  sem  ser  prantada ;  e  a  maior  que 
naçe  na  Jaoa  he  da  altura  de  çinquo  palmos;  faz  as  raizes 
grandes,  e  tem  nós  como  cana,  e  também  a  outra  da  China 
tem  asi;  e  esta  da  Java  tem  folhas  à  feiçam  de  huma  grande 
lança,  e  floreçe  com  flor  branca;  deita  sementes,  mas  nam 


*  Serapio,  cap.  332  (nota  do  auctor). 


354  Colóquio  vigésimo  quarto 

se  semea  com  ellas,  ainda  que  nesta  terra  he  semeada  nas 
ortas  em  pouca  cantidade,  scilicet,  aquillo  que  se  gasta  na 
terra  em  saladas  e  em  mezinhas  da  gente  indiana,  princi- 
palmente da  que  vem  da  Jaoa,  que  sam  as  parteiras  (a  que 
chamão  daias)  e  tem  cá  officio  de  físicos*.  Semease  das  rai- 
zes  delia  mesma,  como  o  gengivrc,  e  nam  doutra  maneira**; 
ainda  que  acheis  escrito  o  contrairo  não  o  creais;  porque 
nem  Avicena,  nem  Serapiam,  nem  outros  Arábios  tiveram 
delia  noticia  somente  confusa;  e  porque  era  de  duas  ma- 
neiras, postoque  a  primeira  da  China  he  mais  louvada,  nam 
falaram  nisto  como  homens  que  sabiam  disto  bem,  senam 
(como  se  soe  dizer)  ás  apalpadellas;  e  já  pode  ser  que  esta 
seja  a  causa  porque  Avicena  escreve  delia  dous  capitules, 
scilicet,  hum  32 1  debaixo  do  nome  de  calungiam;  e  outro 
196  debaixo  do  nome  de  caserhendar ;  e  qual  destas  seja  a 
da  China,  de  que  mais  usamos,  ou  qual  seja  a  de  Java  de 
que  menos  usamos,  não  o  sey,  porque  elles  nam  escrevem 
senam  duvidando;  e  porque  falam  desta  maneira,  asaz  será 
pêra  vós  conhecerdes  ambas  de  vista,  asi  sequas  como 
verdes;  porque  eu  volas  amostrarey  oje. 

RUANO 

O  Belunense,  no  seu  Dicionairo,  diz  que  Avicena  escreve 
de  ambas,  e  que  nam  he  mais  de  huma;  e  a  causa  he  porque 
nas  cousas  duvidosas  faz  2  capítulos;  porque  o  que  se 
deixou  de  escrever  em  hum,  se  escreva  em  outro. 

ORTA 

Antes  faz  isso  onde  acha  duvida;  e  a  mi  me  parece  que 
vyo  estas  duas  maneiras  de  galanga,  e  por  isso  fez  2  capi- 


*  Esta  noticia,  de  que  as  parteiras  javanezas  vinham  para  a  índia 
exercer  o  seu  officio,  é  interessante,  e  só  a  encontrei  no  nosso  escri- 
ptor. 

**  Propagava-se  pelos  rhizomas,  e  isto  explica  a  phrase  de  Orta: 
semeava-se  mas  não  com  as  semetítes. 


Da  Galanga  355 

tulos;  e  pois  somos  certos  da  mezinha,  mio  façamos  tanto 
caso  dos  nomes. 

RUANO 

Pois  Dioscorides  não  fala  neste  simple,  nem  os  Gregos, 
posto  que  o  alega  o  Pandetario,  e  os  Arábios  escrevem 
pouco  e  duvidoso,  como  dizeis,  será  rezam  que  siguamos 
os  modernos,  no  que  bem  falarem.  António  Musa  curioso  e 
bem  entendido,  diz  que  a  Lioniçeno  lhe  pareçeo  que  esta, 
que  nas  boticas  chamamos  galanga,  he  açoro,  porque  o 
que  usamos  por  açoro,  que  he  huma  raiz  de  espadana,  não 
o  parece  ser,  por  ser  raiz  sem  cheiro,  nem  sabor  quente  e 
agudo  (condições  que  sam  neçesarias  pêra  o  açoro  que  nós 
falsamente  chamamos  espadana):  e  diz  que  o  mesmo  lhe 
parece  a  elle,  considerando  a  galanga  com  seu  cheiro  e 
sabor. 

ORTA 

Já  vos  dixe,  falando  no  cal  amo  aromático,  que  o  açoro 
não  era  calamo  aromático,  e  asi  vereis  as  razões  em  que 
me  fundei;  e  mais  o  açoro  he  amargoso  em  sabor,  e  o 
calamo  aromático  he  agudo  em  sabor;  e  mais  o  açoro  he 
raiz  de  cor  branca,  e  o  calamo  aromático  he  mais  ama- 
rello.  Agora  vos  diguo  que  a  galanga  he  muito  menos  pêra 
se  dizer  delia  que  he  o  açoro;  porque  a  galanga  he  mais 
quente  e  com  mais  suave  cheiro;  e  as  cousas  pêra  que 
aproveita  a  galanga,  tiradas  dos  Arábios  que  escrevem 
delias,  nam  sam  aquellas  pêra  que  aproveita  o  açoro;  porque 
as  da  galanga  sam  pêra  o  estamago,  e  pêra  o  mau  cheiro 
da  boca,  as  do  açoro  sam  pêra  o  cérebro  e  pêra  os  nervos; 
e  lembrame  que,  curando  o  Nizamoxa  de  hum  tremor, 
nunqua  os  físicos  fizeram  menção  da  galanga;  nem  António 
Musa  teve  isso,  senam  porque  nam  conheceo  o  naçimento 
da  galanga. 

RUANO 

Pois  os  Frades  italianos,  que  escreveram,  dizem  que  mais 
verdadeiramente  a  galanga  que  usamos  he  raiz  de  esqui- 
nanto. 


356  Colóquio  vigésimo  quarto 

ORTA 

Isto  quanto  seja  alheo  de  razani  o  podeis  bem  ver;  porque 
o  esquinaiito  naçe  em  grande  soma  na  Arábia,  scilicet,  em 
Mascate  e  Calaiate*,  e  a  Gliina  e  Jaoa**  são  muito  longe  des- 
tas partes;  e  mais  o  esquinaiito  tem  raiz  muito  mais  pe 
quena. 

RUAXO 

Menardo,  e  os  Frades  que  escreveram  sobre  Mesue,  dizem 
que  o  cal  amo  aromático  he  açoro;  e  o  que  chamamos  açoro 
não  o  he:  por  amor  de  mim  que  me  digais  se  achandovos 
em  Espanha  se  usarieis  do  açoro  que  chamamos,  pois  o  ha 
lá;  e  se  o  não  avieis  de  usar,  que  porieis  em  seu  lugar? 

ORTA 

Se  me  eu  acháse  em  Galacia  que  ha  verdadeiro  açoro,  e 
se  o  prováse  e  lhe  acháse  as  condições  que  delle  escrevem 
os  autores,  usalohia;  mas  se  o  eu  visse  tal  como  o  que  cha- 
mamos em  Portugal  espadana,  não  usaria  delle,  e  poria  em 
seu  lugar  calamo  aromático,  e  não  já  galanga;  isto  sem  du- 
vida nenhuma;  porque  mais  me  inclino  ao  calamo  servir  por 
açoro,  que  a  galànga;  e  tenho  mais  rezam,  como  já  vos  dixe ; 
e  mais  nesta  terra  usam  delle  pêra  as  enfermidades  dos  ner- 
vos, e  não  de  galanga  (i). 

RUAXO 

Tomarei  vosso  conselho,  levandome  Deos  a  Espanha. 


*  «Caliate»  na  ed.  de  Goa. 

»*  A  orthographia  de  Orta  em  todo  este  Colóquio  é  Jaua,  que  po- 
deria ler-se  Java;  mas  em  outras  passagens  escreve  Jaoa,  e  esta  era  a 
pronuncia  habitual  por  aquelles  tempos. 


Nota  (i) 


Este  Colóquio  é  scientificamente  interessante,  porque  Garcia  da  Orta 
estabelece  n'elle  pela  primeira  vez  a  distincção  entre  as  duas  espécies 


Da  Galanga  'òb-j 

de  galanga  que  se  encontravam  no  commercio.  E  um  dos  mais  zelo- 
sos e  eruditos  pharmacologistas  modernos,  Daniel  Hanbury,  reconhece 
esse  interesse  nas  seguintes  palavras:  Garcia  d'Orta  ...  is,  I  íliinh, 
the  first  rvriter  to  point  out  (i563)  that  there  are  two  sorls  of  galan- 
gal  —  the  one,  as  lie  says,  of  smaller  sije  and  more  potent  virtues 
brought  from  China,  the  other  a  thicker  and  Icss  aromatic  rhi^^ome 
produced  in  Java.  This  distinction  is  perfectly  correct  (Science  pa- 
pers,  373). 

A  primeira,  ou  a  da  China  (Radix  Galangw  niinoris),  é  o  rhizoma 
da  Alpinia  ojfficinariun,  Hance.  Posto  que  a  droga  fosse  conhecida  de 
tempos  antigos,  a  planta  só  foi  botanicamente  descripta  no  anno  de 
1870,  em  uma  communicação  feita  á  Sociedade  Linneana  de  Londres 
pelo  dr.  Hance,  que  havia  examinado  specimens  colhidos  no  norte  de 
Hai-nan.  Inútil  será  dizer,  que  Orta  andava  mal  informado,  quando  at- 
tribuia  áquella  Scitaminea  «folhas  como  murta».  Pelo  contrario,  quando 
falia  do  rhizoma,  que  viu,  é  correcto  dizendo,  que  tem  «nós  como  cana», 
e  é  mais  pequeno  e  aromático  do  que  o  da  espécie  seguinte. 

A  galanga  maior,  ou  de  Java  (Radix  Galanga-  majoris),  é  produzida 
pela  espécie  Alpinia  Galanga,  Wild.  [Maranta  Galanga,  Linn.).  São 
exactas  as  indicações  de  Orta,  sobre  as  suas  «folhas  á  íeiçam  de  uma 
grande  lança»,  e  sobre  as  flores  de  côr  branca.  E  são  exactas,  porque 
elle  n'este  caso  não  curava  por  informações,  mas  havia  visto  a  planta, 
semeada  — como  diz —  nas  hortas  de  Goa. 

A  galanga  menor  ainda  figura  no  commercio  da  Europa,  posto  que 
o  seu  uso  medicinal  esteja  quasi  abandonado,  sendo  apenas  empre- 
gada como  um  condimento  stimulante,  principalmente  na  Rússia.  Na 
índia,  encontram-se  nos  mercados  as  duas  espécies,  vindo  esta  menor 
da  China,  e  a  maior  de  Java  ou  do  sul  c  leste  da  mesma  índia,  onde 
hoje  se  cultiva. 

(Cf.  J.  of  the  Linn.  Soe,  xiii  (1873),  6;  Pharmac,  58o;  D.  Hanbury, 
Science  papers,  3jo;  Dymock,  Mat.  med.,  774;  uma  boa  descripção  da 
A.  Galanga,  em  Roxburgh,  Fl.  Ind.,  i,  59;  e  Rumphius,  Herb.  Amb.,  v, 
143.) 

Vejamos  agora  os  nomes  vulgares,  indicados  por  Orta: 

—  «Calvegiam»   entre   os  árabes.   O  nome  arábico  d'esta  droga  é 

»L.sr\:jaà.,  que  se  deve  ler  khulandjan,  mas  nas  transcripcões  medie- 

vaes  incorrectas  podia  dar  logar  a  todas  as  formas  mencionadas  pelo 
nosso  escriptor.  Dymock  aponta  um  nome  sanskrito  kulinjana,  sup- 
pondo-o  corrompido  do  arábico;  mas  Fllickiger  cita  o  nome  chin 
kau-liang  kiang,  d'onde  pôde  derivar  tanto  o  sanskritico,  como  o  ará- 
bico. É  claro,  que  de  todos  estes  nomes,  passando  pelo  galungen  da 
versão  de  Serapio,  deve  vir  a  palavra  galanga  (Cf.  Dymock,  1.  c; 
Ainslie,  Mat.  md.,  i,  140;  Exotic,  25 1,  Pharmac,  58o). 


358  Colóquio  vigésimo  quarto  da  Galanga 

—  «Lauandou»  na  China,  naturalmente  á  forma  menor  que  d'ali 
vinha.  No  livro  de  Ainslie,  encontramos  o  mesmo  nome  louandon,  mas 
sem  indicação  da  auctoridade  em  que  se  funda  (Cf.  Ainslie,  1.  c). 

— «Lancuaz»  em  Java.  Esta  designação  é  bem  conhecida,  e  vem  ci- 
tada por  Ainslie  e  Rumphius  nas  formas  lancquas  e  lanquas.  Os  malayos 
chamam  também  lanquas  á  galanga  menor  da  China,  distinguindo-a 
pela  designação  de  lanquas -kitsjil  (Ainslie,  1.  c;  Rumphius,  1.  c). 

Avicenna  fallou  d'esta  droga,  o  que  era  natural,  pois  foi  bem  co- 
nhecida dos  árabes,  e  vem  já  mencionada  por  Ibn  Khurdádbah  no 
IX  século;  assim  como  vem  repetidas  vezes  citada  pelos  últimos  aucto- 
res  gregos,  como  Nicolau  Myrepso  e  Auctuario.  É  certo,  porém,  que 
os  seus  dois  capitules,  igõ  e  32 1,  são  muito  curtos,  muito  confusos,  e 
de  modo  nenhum  indicam  que  elle  distinguisse  nem  clara,  nem  mesmo 
approximadamente  as  duas  espécies  de  galanga. 

Na  ultima  parte  do  Colóquio,  Orta  volta  ainda  ás  confusões  feitas 
pelos  auctores  antigos  e  seus  contemporâneos  entre  açoro,  calanio  aro- 
mático e  galanga,  discussão  a  que  já  nos  referimos  a  propósito  do 
calamo,  e  que  não  tem  interesse  especial. 


COLÓQUIO  VIGÉSIMO  QUINTO 

DO  CRAVO 

INTERLOCUTORES 
RUANO,  ORTA 

RUANO 

Do  gariofilo  falemos;  pois  he  pêra  essas  partes  donde 
vem  a  galanga. 

ORTA 

Esqueçeovos  de  falarmos  nelle  na  letra  c ;  porque  o  bom 
latim  he  cariojilo,  e  o  mão  latim  he  gariofilo,  segundo  po- 
deis ver  em  estes  modernos  que  escrevem. 

RUANO 

Não  tenho  que  ver  com  isso,  porque  asi  o  aprendi  toda 
minha  vida. 

ORTA 

E  se  vos  mostrar  em  Plinio  chamarlhe  asi,  que  direis*? 

RUANO 

Que  confesso  ser  mais  latino,  mas  o  uso  me  desculpa. 

ORTA 

Os  vossos  Gregos  nam  falaram  neste  gariofilo,  somente 
Paulo  Egineta,  que  diz  que  he  folha  de  no^;  porque  o  ga- 
riofilo asi  se  decrara  que  tem  folha  de  noi**;  mas  este  nam 


*  Nas  duas  edições  de  Plinio,  que  tenho  a  mão,  isto  é,  na  de  Sigis- 
mundus  Galenius  de  1549,  e  na  de  Littré  de  1848,  está  escripto  gario- 
phyllon  e  garyophyllon;  mas  pode  talvez  em  alguma  edição  anterior 
encontrar-se  caryophyllon. 

**  Suppondo  a  palavra  derivada  de  y.áoyov  e  de  vSkkvi\  mas  ainda 
assim  o  sentido  não  seria  exactamente  o  que  Orta  indica;  veja-se  a 
nota  (i). 


36o  Colóquio  vigésimo  quinto 

parece  que  o  conheceo.  E  asi  o  diz  Serapio  que  nas  defini- 
ções gregas  não  se  acha  este  nome;  e  depois  alega  a  Galeno 
e  a  Paulo,  que  diz  que  o  terladou  ao  pé  da  letra;  e  eu  em 
Dioscorides  nam  o  achei. 

RU  AN  o 

Pois  ainda  vos  darei  partes  donde  o  Galeno  falia  nelle, 

ORTA 

Em  livros  que  sam  próprios  de  Galeno  não  o  achareis. 

RUANO 

No  segundo  livro  de  Dinamedis  faz  mençam  de  gariofilo, 
e  no  terceiro  também;  e  mais  muytos  Arábios*  dizem  que 
Galeno  o  diz;  e  por  ventura  estes  terladaram  alguns  livros 
de  Galeno,  de  que  nós  carecemos  polo  tempo  os  perder. 

ORTA 

Esses  livros  que  dizeis,  em  que  fala  Galeno  no  cariofilo, 
não  sam  ávidos  por  de  Galeno;  assaz  he  pêra  my  que 
Ruelio,  tam  diligente  escriptor  e  tam  lido,  diz  que  o  nam 
achou  em  Galeno**. 

RUANO 

Pois  esse  que  dizeis  cita  a  Paulo,  e  a  Aedo,  e  a  Plinio***, 
e  diz  que  ha  na  índia  hum  gram  semelhante  ao  áSi  pimenta, 
senão  que  he  grande  e  mais  comprido,  e  que  este  se  chama 
cariofilo. 

OKYX 

Eu  nam  vos  nego  falarem  eses  homens  nelle,  mas  nego- 
vos  falar  Galeno  nelle;  e  mais  vos  digo  que  esta  mezinha 
foy  achada  muyto  tarde,  primeiro  pêra  mezinha  e  cheiro, 
e  depois  pêra  cozinha.  E  gastase  em  tanta  maneira,  que 


*  Avicena  e  Serapio  (nota  do  auctor). 

**  O  livro  de  «Dinamedis»,  ou  de  Dynamidiis,  é  effectivamente  con- 
tado entre  os  apoayphos  de  Galeno. 

***  Plinio,  livro  12,  cap.  7  (nota  do  auctor). 


Do  Cravo  36 1 

de  mil  partes  a  huma  se  gasta  em  mezinha,  e  o  resto  em 
cosinha;  portanto  vos  quero  dizer  o  nome  dcllc  em  arábio 
e  na  terra  onde  o  ha. 

RUANO 

Tudo  me  haveis  de  dizer  muyto  craramente. 

OIMA 

O  nome  latino  he  cario/iliim,  e  outros  lhe  chamam  ga- 
riojilum  (como  vos  dixe  já);  o  Arábio,  o  Pérsio,  o  Turco, 
e  a  mór  parte  dos  Indianos  lhe  chamam  calafur;  e  em  Ma- 
luco, donde  somente  o  ha,  e  em  todas  esas  terras  lhe  cha- 
mam chanque;  e  os  nomes  postos  no  Pandetario,  scilicet, 
armufd,  não  ha  tal  nome;  e  o  nome  que  está  em  arábio 
escrito  carrumfA  foy  vicio  do  escriptor  Arábio,  ou  a  curru- 
çam  dos  tempos  (d.  E  pois  somos  certos  da  cousa  e  ninguém 
descrepa  delia,  nam  nos  matemos  poUos  nomes.  Naçe  a  ar- 
vore deste  cravo  em  Maluco,  e  sam  humas  ylhas  sogeitas  a 
elrey  de  Portugal,  e  tomadas  per  guerra  justa  muyto  tempo 
ha.  Estas  sam  as  ylhas  da  contenda  entre  elrey  de  Portugal  e 
o  de  Castella,  sobre  que  tanto  se  preitiou,  e  vós  como  afei- 
çoado a  vosso  re}^,  pesarvosha  da  justiça  e  da  pose  que 
temos  tam  justa. 

RUANO 

Tenho  tam  pouco  de  elrey  de  Castella  e  do  de  Portugal, 
que  posso  dizer  por  mim:  tantos  moinhos  tenho  qua  como 
lá.  E  falando  comvosco  a  verdade,  mais  devo  a  elrey  de 
Portugal,  pois  esta  náo  em  que  vim  he  a  maior  parte  deste 
meu  cunhado  que  a  feitoriza;  e  estes  proveitos  tenho  de 
elre}^  de  Portugal,  que  do  de  Castella  nunqua  tive  algum, 
nem  espero  de  o  ter. 

ORTA 

Aveis  de  saber  que  Maluquo  está  dentro  na  conquista  de 
elrey  de  Portugal,  e  mais  duzentas  legoas  avante,  como  se 
tem  achado  pelos  eclipses;  senam  entrou  o  demónio  em  hum 
Portuguez*,  e  porque  elrey  não  lhe  fez  huma  mercê  injusta 


*  Magalhães  (nota  do  auctor). 


362  Colóquio  ingesimo  quinto 

que  lhe  pedia,  se  foy  lançar  em  Gastella  e  fez  armar  na- 
vios, e  elle  descobrio  per  hum  estreito  nam  sabido  como  pude- 
sem  vir  ao  Maluco;  e  indo  lá,  morreo  elle  e  a  mór  parte  da 
gente  que  com  elle  hia;  e  não  poderam  tornar  poUo  caminho 
por  onde  vieram.  E  outro  bacharel  Faleiro,  que  com  elle 
hia,  endoudeceo  de  ver  que  contra  seu  rey  hia;  e  nam  indo 
ao  descobrimento  morreo*.  E  )á  outras  vezes  vieram  Caste- 
lhanos a  Maluco,  e  nam  puderão  tornar;  e  os  que  se  defen- 
deram dos  Portuguezes  morrerão  muytos  delles ;  e  a  outros, 
que  se  entregarão,  lhes  foy  dada  liberdade  e  embarcações 
e  mercês,  pêra  se  yrem  a  Gastella;  tanta  he  a  clemência  de 
elrey  nosso  senhor  com  os  christãos  vencidos  (2).  E  hum 
rey  de  huma  ilha  chamada  Tarnate,  vindo  os  Castelhanos 
a  elle  que  os  ajudasse,  lhes  dixe  que  o  cravo  era  dado  por 
Deos  aos  Portuguezes,  pois  cada  awo  tinha  cinquo  quinas 
de  elrey  de  Portugal;  pôde  ser  que  este  dixe  isto  por  pre- 
misam  e  vontade  de  Deos,  ainda  que  era  infiel :  asi  profetisou 
Balam  e  a  sua  asna,  sendo  animal  irracional,  falo  isto  debaxo 
da  correiçam  da  Santa  Madre  Igreja.  E  depois  este  rey  se 
fez  cristão,  e  fez  doaçam  a  elrey  de  Portugal  de  seu  reino, 
e  eu  o  conheci  em  Goa  (3).  E  tornando.ao  cravo,  digo  que  so- 
mente o  ha  nestas  ilhas  de  Maluco,  que  sam  5,  e  dahi  se  re- 
parte por  todalas  partes  do  mundo.  E  se  vos  dixeram  que  em 
Ceilam  avia  arvores  do  cravo,  dizeilhe  que  si;  mas  que  não 
dam  fruto  ahi,  nem  em  outra  parte  alguma,  senão  em  Ma- 
luco. E  sam  os  arvores  da  altura  e  feiçam  de  louro;  fazem  os 
arvores  copa  em  cima,  e  dam  muyta  frol  que  se  faz  em  cravo; 
e  naçe  como  murta,  e  a  frol  he  primeiro  alva,  e  depois  verde, 
e  depois  vermelha  e  dura,  que  he  o  cravo.  E  dizemme  pe- 
soas  que  o  viram,  dinas  de  fé,  que  quando  está  este  cravo 
verde  nos  arvores,  dam  o  mais  excelente  cheiro  do  mundo 
os  arvores;  e  des  que  colhem  este  cravo,  o  sequam,  e  fica 
da  cor  que  o  vedes  agora.  Naçem  em  gomos,  como  os  mur- 


*  Faleiro  não  foi  na  viagem,  como  parece  resultar  da  primeira  parte 
da  phrase;  veja-se  a  nota  (2). 


Do  Cravo  363 

tinhos,  como  já  vos  dixe;  e  dizem  alguns  que  se  lhe  chove, 
que  se  mete  por  dentro,  e  não  he  asi,  somente  nam  vem  á 
pcrfeiçam  os  cachos;  e  colhemnos,  porque  os  ramos  que 
fazem  copa  grande,  deitamlhe  cordas  para  colher  cravo;  e 
isto  he  causa  que  os  arvores  sejam  açoutados  e  fustigados, 
e  não  dam  pêra  o  anno  tam  boa  novidade;  e  secam  estes 
cravos  per  dous  ou  três  dias,  e  asi  os  vendem  e  guardam 
pêra  os  levar  a  Malaca  e  a  outras  partes;  e  aquelle  cravo 
que  tica  no  arvore  por  colher  se  faz  mais  groso,  e  folgam 
com  elle  na  Jaoa;  e  nós  com  o  outro  que  chamamos  de 
cabeça.  E  mais  haveis  de  saber,  que  ao  redor  do  arvore  do 
cravo  nam  se  dá  erva  alguma,  porque  o  cravo  leva  todo  o 
cumo  da  terra. 

RUAXO 

E  o  que  os  Castelhanos  chamão  fuste,  e  os  Portuguezes 
bastam  donde  he? 

ORTA 

Sam  os  páos  donde  estes  craims  pendem,  como  as  flores 
pendem  dos  páos  meudos;  e  o  cravo  grande  que  vos  dixe, 
he  o  que  chamamos  madre  do  cravo,  e  não  porque  o  se) a; 
não  he  macho,  como  dizem  Aviçena  e  Serapiam,  que  tudo 
he  hum;  mas  hum  he  mais  velho  que  outro,  porque  o  que 
chamamos  madre  do  cravo  nam  he  do  mesmo  anno  senam  do 
anno  pasado;  isto  me  dixeram  pesoas  que  o  sabiam,  que  foy 
hum  feitor  desse  Maluco,  que  o  tal  cravo  he  fruito  muito  ma- 
duro que  cay  em  baixo. 

RUANO 

Fazem  alguns  benefícios  a  estes  arvores  do  cravo,  ou 
plantamnos,  ou  alimpamnos  do  mato  ou  podamnos? 

ORTA 

Nam  mais  que  alimpar  o  cham,  onde  am  de  colher  o  cravo; 
e  as  arvores  naçem  sem  ser  semeadas,  nem  enxeridas*;  e 
não  naçem  muyto  perto  do  mar,  senão  hum  tiro  de  falcão 


*  Parece  que  no  sentido  de  mettidas  na  terra,  ou  plantadas  de  es- 
taca. 


364  Colóquio  vigésimo  quinto 

do  mar  ao  menos,  bem  que  está  em  ylhas  cercadas  do  mar, 
e  que  não  se  quer  muyto  perto  do  mar,  nem  tam  pouco 
muyto  longe.  Sam  estas  ylhas,  donde  naçe  o  cravo,  cinquo, 
como  dixe,  e  humas  das  principaes  se  chama  Geloulo;  e 
por  iso  chamaram  ao  cravo  em  Espanha  craj'0  girofc,  por- 
que he  de  Geloulo*;  e  também  lhe  chamamos  cravo,  porque 
he  feito  á  feiçam  de  prego.  E  dizem  alguns  que  quando  he 
boa  novidade,  he  mais  a  cantidade  de  cravo  que  de  folhas, 
e  a  folha  não  cheira  tanto  como  o  cravo,  e  o  páo  não  cheira 
senão  quando  he  seco  alguma  cousa.  Estes  arvores  naçem 
do  cravo  que  cae  ao  pé,  como  as  castanhas  em  nossa  terra, 
mas  não  he  necesairo,  porque  sempre  a  terra  dá  esse  cravo, 
e  nunca  lhe  falece  chuiva  com  que  se  crie  e  dê  fruto,  por 
ser  perto  da  linha.  Naçem  estes  arvores  do  cravo,  e  criamse, 
e  fortificamse  em  oyto  annos,  segundo  diz  a  gente  da  terra, 
e  asi  dizem  que  duram  cem  annos.  E  nam  vos  digam  al- 
gumas pessoas  que  se  colhem  os  cravos  á  mão,  porque  he 
falço,  que  nam  se  colhem  senam  muyto  per  força,  como 
vos  dixe;  e  colhemse  de  meado  de  setembro  até  janeiro  e 
fevereiro. 

RUANO 

Usa  a  gente  desta  terra  do  cravo  em  comer  ou  em  me- 
zinhas ? 

ORTA 

Segundo  tenho  por  emformaçam,  nam  faziam  caso  destas 
arvores  os  Malucos  até  que  os  Chins  vieram  a  esta  terra 
com  suas  náos,  e  levaram  dahi  á  sua  terra  este  cravo,  e  á 
índia  e  á  Pérsia  e  Arábia;  isto  tem  elles  por  memoria  an- 
tigoa  entre  si.  E  conservase  o  cravo  muyto  bem  com  agoa 
do  mar  deitada  nelle,  e  doutra  maneira  se  faz  podre. 

RUANO 

Pois  a  gente  de  Maluco  dizeis  que  nam  usa  do  cravo,  a 
outra  gente  da  índia  usa  muyto  delle.  E  os  Portuguezes 
que  cá  moram? 


*  Perdoe-nos  o  nosso  Orta,  mas  não  é  por  isso;  veja-se  a  nota  (i). 


Do  Crãj'o  365 

ORTA 

Quando  o  cravo  he  verde  fazem  os  que  moram  em  Ma- 
luco conserva  de  vinagre  e  sal  (a  que  chamam  achar),  e 
fazem  os  verdes  em  conserva  de  açucare;  e  já  os  comi  e 
sam  bons;  e  da  conserva  de  vinagre  usa  a  gente  de  Malaca 
que  os  pode  aver,  e  fazem  as  molheres  Portuguezas  que  lá 
moram  agua  estilada  dos  cravos  verdes,  e  he  muyto  chei- 
rosa e  muyto  cordcal;  e  seria  boa  pêra  levar  ao  reino;  e 
muytos  físicos  Indianos  fazem  huns  suadoiros  com  cravo  e 
no:{,  e  maça  e  pimenta  longua  e  preta,  fazendo  disto  os 
suadoiros;  e  dizem  que,  com  isto,  se  tira  a  sarna  castelhana. 
Eu  a  vi  também*  a  físicos  Portuguezes,  e  não  me  pareceo 
muito  boa  física.  Algumas  pessoas  põem  qua  o  cravo  pisado 
na  testa,  e  dizem  que  se  acham  bem  com  elle  pêra  a  dor 
da  cabeça,  e  que  se  lhe  tira;  e  nam  he  muito  se  a  dor  he  de 
causa  fria.  As  molheres  prezamse  mu3lo  de  mastigar  cravo, 
pêra  lhe  cheirar  bem  a  boca,  e  nam  tam  somente  as  India- 
nas, mas  as  Portuguezas. 

RUANO 

Serapiam  alegua  a  Galeno,  que  diz  que  he  folha  de  no\: 
por  ventura  a  arvore  do  cravo  e  da  no:^  he  tudo  huma? 

ORTA 

Deferentes  sam  as  terras  muyto,  porque  huma  he  Banda 
e  outra  Maluco ;  e  o  cravo  he  mercadoria  pêra  Banda,  e  o 
arvore  da  wo;^  tem  as  folhas  redondas,  e  parece  pereira,  e 
o  do  cravo  parece  louro. 

RUANO 

Diz  Aviçena**  e  outros  alguns,  que  o  arvore  he  como 
sambacus,  e  que  he  mais  negro? 

ORTA 

Nem  he  como  sambacus  (erva  que  chamamos  jazmim), 
nem  como  sambuciis,  a  que  chamamos  sabugueiro,  senam 


*  Deve  faltar  aqui  o  verbo  «usar»,  ou  outro  de  igual  sentido. 
**  Liv.  2,  cap.  3i8  (nota  do  auctor). 


366  Colóquio  vigésimo  quinto 

he  como  loureiro:  bem  vedes  a  deferença  que  ha  de  hum 
a  outro. 

RUANO 

Diz  ser  trazido  de  humas  ilhas  da  índia,  e  que  a  gomma 
delle,  ou  resina,  he  semelhante  a  trementina  em  virtude. 

ORTA 

No  que  diz  que  he  trazido  de  humas  ylhas  da  índia,  diz 
verdade-,  mas  o  que  dixe  da  goma,  não  ha  tal  goma  em 
Maluco:  falei  com  muytos  homens  que  moraram  lá,  e  todos 
me  dixeram  que  nunca  virão  tal  goma.  Eu  não  vos  negarey 
que  todas  as  arvores  deitam  goma  ou  resina,  em  especial 
se  lhe  derem  cutiladas;  mas  até  o  presente  nam  se  esprc- 
mentou;  nem,  com  seu  perdão,  falaram  verdade  os  que 
escreverão  da  Nova  Espanha,  que  dixeram  que  a  goma  do 
cravo  era  almeccga;  porque  os  arvores  sam  de  diversas 
maneiras,  não  aviam  de  dar  goma  de  huma  maneira,  e  que 
fose  de  huma  compreisão.  As  folhas  do  cravo  não  vem 
á  índia,  senão  casualmente,  por  tanto  não  escrevo  delias.  O 
cheiro  do  craj>o  sei  dizer  que  he  o  mais  suave  e  o  milhor 
do  mundo,  em  especial  de  longe.  Eu  esprementei  isto  vindo 
de  Cochim  a  Goa,  e  com  vento  pola  proa;  e  remávamos 
de  noite  com  a  calmaria,  e  estava  huma  não  surta  mais  de 
huma  legoa  de  nós,  e  o  cheiro  foy  tam  grande  e  tam  suave 
que  nos  veo,  que  cuidava  eu  que  ao  longo  da  costa  avia 
matas  das  flores,  que  em  nossa  terra  chamamos  cravos;  e 
perguntando,  me  dixeram  que  era  a  náo  que  viera  de  Ma- 
luco; entonçes  cahi  no  caso,  e  achei  ser  verdade;  e  depois 
mo  dixeram  homens  de  Maluco,  que  quando  o  cravo  he 
seco  lhe  dá  grande  cheiro  longe  donde  está  (4). 

RUANO 

Lendo  Serapio  e  Aviçena*,  acho  muitos  nomes  que  de- 
vem ser  corrompidos,  scilicet,  os  nomes  dos  autores;  folga- 
ria muyto  me  dixestes  disto  o  que  sabeis. 


Serapio,  3 19;  Avicena,  Lib.  2,  cap.  3 18  (nota  do  auctor). 


Do  Cravo  3Ô7 

ORIA 

Não  sey  senão  humas  cousas  muyto  geraes;  a  Rasis 
chamam  elles  Ben\acãria* ,  e  a  Mesuc  Mcnxus**. 

RUANO 

Alegua  Serapio  não  se  ha  de  ler  senão  com  aspiraçam 
Haclim,  e  este  me  parece  que  deve  ser  Alf. 

ORTA 

Não  hc  senão  Hachim,  que  quer  dizer  filosofo***-,  e  por- 
que, entre  elles,  averá  algum  que  se  chama  por  excelência 
filosofo,  pôde  ser  que  seja  este  o  que  elles  alegam. 

RUANO 

A  erva  que  chamamos  cravos  ha  em  Maluco,  ou  cá  na 
índia? 

ORTA 

Em  Maluquo  não  a  ha-,  e  porém  da  China  veo  a  estas  par- 
tes****^  e  não  cheira  também  como  o  de  Portugal;  e  deve 
a  causa  disto  ser  terem  elles  a  virtude  muyto  suprificial; 
e  por  esta  terra  ser  quente,  resolvese  asinha  a  vertude 
delles.  E  nisto  não  falemos  mais,  pois  sabeis  milhor  destes 
cravos  que  eu-,  e  vos  direi  que  na  ilha  de  Sam  Lourenço, 
em  huma  certa  parte  delia,  ha  huma  fructa  muito  redonda, 
maior  que  avelan  com  casca,  e  cheira  muyto  a  cravo;  mas 
nam  o  he,  nem  aduba  como  ct^avo*****. 


*  Sobre  o  nome  dado  a  Rasis,  veja-se  a  nota  a  pag.  Sg. 

**  O  nome  de  Mesué  escrevia-se  òj  *wL=,  Masuijah,  que  muito  mal 
pronunciado  podia  soar  «Menxus». 

*»*  Hakim,  ♦^Ci.,  significava  propriamente  sábio,  ou  philosopho,  e 
era  o  titulo  geral  dos  médicos  mussulmanos  no  Oriente. 

****  Loureiro  na  Flora  cochinchinensis  cita  o  Dianthus  caryophyl- 
lus  como  usualmente  cultivado  na  China. 

*****  A  Ravensara  aromática,  veja-se  a  nota  a  pag.  218. 


368  Colóquio  vigésimo  quinto 


Nota  (i) 

É  extremamente  duvidoso,  que  o  garyophyllon  de  Plinio,  do  qual 
este  auctor  diz  apenas  ser  um  grão  similhante  á  pimenta,  maior  e  mais 
frágil,  fosse  o  cravo.  É  só  alguns  séculos  depois,  que  nós  encontramos 
uma  referencia  clara  áquella  especiaria  no  livro  de  Cosmas,  o  qual  diz 
que  a  havia  na  ilha  de  Ceylão,  para  onde  a  traziam  de  muito  mais  longe. 
Posteriormente  a  Cosmas,  Paulo  de  Egina  referiu-se  também  ao  c7-avo 
de  uma  maneira  explicita,  e  que  não  pôde  deixar  duvidas,  como  deixa 
a  curta  indicação  de  Plinio.  Isto  pelo  que  diz  respeito  ao  conhecimento 
da  especiaria  na  Europa,  porque  em  relação  á  índia  e  á  China  ha  noti- 
cias de  que  foi  ali  usada  muito  antes  (Cf.  Plin.,  xii,  i5;  Fliickiger  e  Han- 
bury,  Pharmac,  25o;  Dymock,  Mat.  med.,  328). 

A  especiaria,  que  os  portuguezes  chamaram  e  chamam  cravo,  con- 
siste na  flor  completa  de  uma  bella  arvore  da  familia  das  Myrtacea', 
o  Caryophyllus  aromaticus,  Linn.  (Eugenia  caryophyllata,  Thunberg), 
a  qual  nos  tempos  de  Orta  se  cultivava  unicamente  nas  Molucas;  mas 
depois  foi  levada  para  outras  partes  da  Ásia,  e  mesmo  para  algumas 
ilhas  da  costa  africana,  como  Pemba  e  Zanzibar. 

—  O  nome  que  alguns  escriptores  gregos  applicaram  a  esta  especia- 
ria, x.ap'Jocpu>.).ov,  deriva-se  geralmente  da  forma  que  as  pétalas  tomam 
no  botão,  assimilhando-se  a  uma  pequena  noz  (y.ápuov).  Tem-se,  po- 
rém, advertido  que  a  orthographia  grega  é  incerta  — o  que  não  esca- 
pou a  Orta —  e  o  nome  se  encontra  também  escripto  YapoOjj.cpouX,  -^apo- 
(paXa,  e  ainda  de  outros  modos.  Esta  incerteza  pode  indicar  que  o 
nome  não  fosse  propriamente  grego;  mas  antes  a  hellenisação  pelo 
som  de  alguma  designação  oriental.  Da  mesma  designação  asiática 
procede  sem  duvida  o  nome  arábico  JkcJ  J ,  qaranfal,  que  se  encon- 
tra transcripto  por  diversos  escriptores,  karanfal,  karunfel,  ou  karum- 
pfel.  Esta  ultima  forma  não  é  admittida  pelo  nosso  escriptor,  que,  sem 
rasão,  adopta  uma  muito  mais  viciada,  «calafur». 

Na  opinião  de  Dymock,  todos  estes  nomes  se  devem  prender  ao  ta- 
mil, kirámbit,  e  ao  malayo  karámpu;  pois  foi  pgr  intermédio  d'aquelles 
povos,  que  a  especiaria  penetrou  na  índia  e  chegou  depois  ao  conhe- 
cimento dos  árabes  e  dos  gregos. 

É  quasi  inútil  advertir,  que  as  formas  modernas,  girojle,  girofe,  ga- 
rofano,  vem  directa  e  claramente  do  nome  grego,  e  não  do  da  ilha  de 
Geloulo,  ou  Djilolo,  como  erradamente  diz  o  nosso  escriptor  (Cf.  Lang- 
kavel,  Botanik  der  spdteren  Griechen,  19,  citado  na  Pharmac,  25o; 
Exotic,  248;  Dymock,  Mat.  med.,  828;  Rumphius,  Herb.  Amb.,  11,  3). 

—  «Chanque»,  o  nome  usado  nas  Molucas,  é  bem  conhecido.  Rum- 
phius dá-o  na  forma  tsjancke,  e  Crawfurd  na  forma  cãngkek.  Segundo 
este  escriptor,  a  palavra  não  é  malaya,  mas  antes  a  corrupção  do  nome 


Do  Cravo  869 

chinez  tkeng-hia.  A  derivação  parece-me  um  pouco  forçada,  tanto  mais 
que  o  nome  chinez  seria  mais  correctamente  tcng-siang^  litteralmente 
prego  perfume,  pois  os  chins  repararam  — como  os  portuguezes —  na 
forma  de  prego,  ou  cravo,  que  tem  o  botão  (Cf.  Rumphius,  1.  c;  Craw- 
furd,  Dict.,  loi). 

Nota  (2) 

O  cravo  encontrava-se  apenas  nas  cinco  ilhas,  propriamente  chama- 
das Moluças,  ou  — como  diziam  os  portuguezes —  ilhas  de  Maluco '.  Se- 
gundo as  enumera  João  de  Barros,  eram:  Ternate  (Tarnáti),  Tidore 
fTidori),  Moutel  (Morlir),  Maquien  (Maldan),  e  Bacham  (Batchian). 
Muitos  annos  antes  de  Barros,  Duarte  Barbosa,  que  devia  ir  morrer 
bem  perto  d'ellas,  menciona  as  mesmas  cinco.  E  Camões,  que  pelas 
exigências  do  verso  não  podia  ser  tão  completo,  dá-nos  pelo  menos  os 
nomes  das  duas  mais  conhecidas,  notando  o  seu  vulcão  activo: 

Vê  Tidore  e  Ternate,  co'o  fervente 
Cume,  que  lança  as  flammas  ondeadas: 
As  arvores  verás  do  cravo  ardente, 
Co'o  sangue  portuguez  inda  compradas. 

Estas  cinco  ilhas  ficavam  no  rumo  norte  sul,  ao  longo  e  muito 
próximas  da  costa  occidental  da  grande  ilha  de  «Geloulo»,  Gilolo  ou 
Djilolo,  á  qual  Barros  chama  Batechina  de  Moro,  e  é  mais  geral- 
mente designada  hoje  nas  cartas  pelo  nome  de  Halmahéra.  Mas  Barros 
adverte,  que,  apezar  da  proximidade,  não  havia  cravo  em  Gilolo ;  o  que 
é  confirmado  por  Pigafetta,  que  nos  diz  existirem  ali  apenas  poucas 
arvores  e  de  má  qualidade.  Vè-se,  pois,  que  o  nosso  Orta  andava  er- 
rado, indicando  «Geloulo»  como  uma  das  cinco  ilhas  do  cravo  (Cf. 
Barros,  Ásia,  iii,  v,  5;  Duarte  Barbosa,  Livro,  3ji ;  Liis.  x,  iSi). 

A  historia  dos  portuguezes  nas  Molucas  é  bem  conhecida;  e,  á  parte 
excepções  honrosissimas,  como  foi  o  governo  de  António  Galvão  e  de 
alguns  outros,  não  é  das  mais  agradáveis  a  recordar.  Em  poucas  par- 
tes as  dissensões  e  desmandos  de  toda  a  natureza  dos  nossos  conquis- 
tadores foram  tanto  para  lamentar,  como  n'aque]las  pequenas  ilhas, 
perdidas  no  fundo  dos  mares  orientaes.  O  cravo  era  uma  das  mais 


'  O  nome  collectivo  de  Maluco  não  parece  ser  malayo,  mas  era  sem  duvida  usado  á  che- 
gada dos  portuguezes  áquelles  mares.  Como  nas  illias  havia  vários  reis  independentes,  pelo 
menos  em  Ternate  e  Tidore,  tem-se  lembrado  que  os  navegadores  árabes  lhes  chamassem /VAíjs 
dos  reis,  dja^iratal-mulúk,  e  que  os  portuguezes  adoptassem  pelo  som  a  ultima  parte  do 
nome,  dizendo  Maluco,  depois  convertido  em  Molucas  (Cf.  Yule  e  Burnell,  Glossary,  pala- 
vra Moluccas). 


S-yo  Colóquio  vigésimo  quinto 

procuradas  e  caras  especiarias  do  tempo,  e  era  natural  que  os  portu- 
guezes  tratassem  de  descobrir  as  terras  onde  nascia,  a  fim  de  o  obte- 
rem em  primeira  mão.  Em  seguida  á  conquista  de  Malaca,  Aftbnso  de 
Albuquerque,  despachando  enviados  ás  diversas  partes  d'aquelle  ex- 
tremo Oriente,  que  acabava  de  abrir  ao  nosso  commercio  e  ao  nosso 
dominio,  mandou  também  António  de  Abreu  com  uma  pequena  ar- 
mada ao  descobrimento  de  Banda  e  de  Maluco.  António  de  Abreu  não 
chegou  lá;  mas  o  capitão  de  um  dos  seus  navios,  Francisco  Serrão, 
foi  ás  ilhas  do  cravo,  por  onde  ficou  até  á  sua  morte,  succedida  annos 
depois.  Mais  tarde  foi  ali  mandado  D.  Tristão  de  Menezes;  e  no  anno 
de  i522,  a  24  do  mez  de  junho,  António  de  Brito  lançou  a  primeira 
pedra  da  fortaleza  de  S.  João  na  ilha  de  Ternate.  Inaugurava-se  assim 
a  epocha  da  conquista,  que  nos  custou  muito  trabalho  e  muitas  vidas, 
porque  o  cravo  foi  sempre  comprado  com  sangue  portiigue:^  — como 
dizia  o  Camões. 

Antes,  porém,  de  António  de  Brito  edificar  a  fortaleza  de  Ternate, 
havia-se  dado  um  successo  importantissimo,  cuja  historia  nos  levaria 
muito  longe,  mas  que  não  podemos  deixar  de  recordar  brevemente, 
para  esclarecer  as  referencias  que  a  elle  faz  o  nosso  escriptor. 

Parece  que  Francisco  Serrão  escrevera  de  Maluco  ao  seu  amigo  e 
antigo  companheiro  de  armas,  Fernando  de  Magalhães,  encarecendo- 
Ihe  a  riqueza  e  grandeza  d'aquellas  terras;  e  a  conquista  das  ilhas  do 
cravo  foi  um  dos  motivos  principaes  e  confessados  da  famosa  viagem 
de  circumnavegação.  Magalhães  — como  diz  Orta —  «descobrio  por 
hum  estreito  não  sabido  como  pudessem  vir  ao  Maluco»;  atravessou  o 
tal  estreito,  a  que  deixou  o  seu  nome;  cruzou  todo  o  Pacifico;  e  veio 
morrer  em  uma  ilhota  do  archipelago  depois  chamado  das  Philippinas. 
Não  chegou,  portanto,  ás  ilhas  do  cravo;  mas  chegou  lá  a  sua  gente, 
que  no  dia  8  de  novembro  do  anno  de  i52i,  três  horas  antes  do  sol 
nascer  — como  diz  o  minucioso  António  Pigafetta —  entrava  no  porto 
de  Tidore. 

Não  vem  para  aqui  a  descripção  d'esta  viagem,  celebre  entre  as  mais 
celebres  e  perfeitamente  conhecida,  e  muito  menos  a  apreciação  do 
acto  de  Magalhães;  mas  devemos  notar  que  aquelle  acto  deixou  no 
animo  de  todos  os  portuguezes  um  sentimento  de  irritação  profunda, 
ao  qual  não  é  estranho  o  nosso  Garcia  da  Orta.  «Entrou  o  demónio  em 
hum  portuguez,  e  porque  elrei  não  lhe  fez  huma  mercê  injusta  que 
lhe  pedia  se  foy  lançar  em  Castella  ...»  taes  são  as  palavras  em  que 
elle  se  refere  ao  seu  culpado,  mas  em  todo  o  caso  illustre  e  infeliz  com- 
patriota. E  não  é  simplesmente  contra  Fernando  de  Magalhães  que  mos- 
tra resentimento,  é  contra  todos  os  portuguezes  que  o  auxiliaram  na 
sua  empreza,  recordando  com  um  certo  prazer,  que  o  «bacharel  Faleiro» 
endoudeceu.  Este  Faleiro  era  um  personagem  extraordinário,  a  quem 
os  portuguezes  se  mostraram  sempre  pouco  favoráveis,  talvez  pelo  sim- 


Do  Cravo  87 1 

pies  facto  de  ter  servido  Castella.  Barros  chama-lhe  «Astrólogo  judiciá- 
rio»; e  Herrera  allude  a  este  juizo  que  d'elle  faziam  os  seus  compatrio- 
tas, dizendo-nos:  que  mostraba  ser  gran  Astrónomo  y  Cosmógrafo, 
dei  qual  afirmaban  los  Portugueses  que  tenta  un  demónio  familiar,  y 
que  de  Astrologia  no  sabia  nada.  Fosse  astrónomo  ou  astrólogo,  era  um 
homem  violento  e  desconfiado,  mas  não  está  provado  que  fosse  hum 
louco.  A  causa  de  elle  á  ultima  hora  não  embarcar,  foi  a  sua  rivalidade 
e  desavença  com  Magalhães,  dando-se  como  motivo  official  o  seu  es- 
tado de  saúde :  mando  el  Rey,  que  pues  Ruy  Falero  no  se  hallaba  con 
entera  salud  se  quedasse  hasta  otro  viage.  É  certo,  porém,  que  se  fallou 
então  na  sua  loucura,  e  o  agente  de  Portugal  em  Sevilha,  Sebastião 
Alvares,  escrevia  na  sua  correspondência  official,  que  o  cosmographo 
portuguez  Ruy  Faleiro  havia  perdido  a  rasão.  Como  se  vê,  a  noticia 
de  Orta  é  fundada  em  factos,  que  então  corriam  como  verdadeiros  e 
foram  admittidos  também  por  João  de  Barros. 

Da  viagem  de  Magalhães  se  levantaram  as  longas  negociações  geo- 
graphico-diplomaticas  entre  Portugal  e  Hespanha,  a  que  Orta  se  refere  : 
«estas  são  as  ylhas  da  contenda  entre  elrey  de  Portugal  e  o  de  Castella». 
O  apparecimento  dos  navios  hespanhoes  nos  mares  do  Oriente  veiu 
suscitar  difficuldades  praticas  á  famosa  divisão  do  mundo  entre  Por- 
tugal e  Hespanha,  determinada  pela  bulia  do  papa  Alexandre  VI  de 
4  de  maio  de  1493,  e  confirmada  no  tratado  de  Tordesillas  de  7  de 
junho  de  1494.  N'este  tratado  estabelecia-se  como  linha  divisória  um 
meridiano :  o  linea  derecha  de  polo  a  polo,  convien  a  saber  dei  polo  ar- 
tico  ai  polo  antartico.  Este  meridiano,  nas  nossas  partes  occidentaes,  de- 
via marcar-se  a  trecientas y  setenta  legoas  de  lasyslas  dei  Cabo  Verde 
hacia  la  parte  dei  Poniente,  por  grados  o  por  otra  manera  como  mejor 
y  mas  presto  se  pueda  dar.  Tudo  quanto  se  navegasse  e  descobrisse  a 
leste  d'esta  linha  pertencia  a  Portugal;  o  que  ficava  para  oeste  era 
do  dominio  da  Hespanha.  Quando  os  nossos  portuguezes  alongaram 
tanto  as  suas  viagens  para  o  Oriente,  que  chegaram  ás  Molucas,  alguns 
tiveram  a  desconfiança  de  que  estavam  já  na  metade  do  mundo  per- 
tencente á  Hespanha;  e  parece  que  Francisco  Serrão  escreveu  n'esse 
sentido  a  Fernando  de  Magalhães.  Este,  pelo  menos,  propunha-se  a 
demonstral-o,  mesmo  antes  da  sua  partida.  Tal  não  era,  porém,  a  opi- 
nião em  Portugal;  e  logo  depois  da  volta  da  nau  Victoria  — a  que  che- 
gou a  Tidore,  como  antes  dissemos —  D.  João  III  fez  valer  os  seus  di- 
reitos junto  de  Carlos  V;  accordando-se  então  em  que  cada  um  dos 
soberanos  nomearia  três  letrados,  três  astrólogos  e  três  pilotos,  os  quaes 
teriam  uma  conferencia  na  raia,  para  decidirem  «cujo  é  o  dito  Maluco, 
e  em  cuja  demarcação  cáe». 

Os  commissarios  dos  dois  paizes,  reunidos  respectivamente  em  Elvas 
e  Badajoz,  e  que  se  encontraram  a  primeira  vez  no  Caia,  tinham  uma 
questão  espinhosa  a  resolver.  Em  primeiro  logar,  a  linha  de  partida 


372  Colóquio  vigésimo  quinto 

estava  mal  definida,  e  não  havia  accordo,  nem  sobre  a  situação  exacta 
das  ilhas  de  Cabo  Verde,  nem  sobre  qual  d'ellas  se  devia  tomar  como 
origem  de  contagem,  querendo  uns  que  fosse  a  do  Sal,  e  outros  que 
fosse  a  de  Santo  Antão,  nem  sobre  o  modo  de  contar  as  trezentas  e  se- 
tenta léguas  marcadas  pelo  tratado  de  Tordesillas,  nem  mesmo  sobre 
quantas  léguas  havia  no  grau.  Os  commissarios,  como  diz  António  de 
Herrera  na  sua  interessante  noticia  da  conferencia,  começaram  logo  a 
mirar  globos,  cartas,  y  relaciones;  mas  as  cartas  eram  imperfeitíssimas, 
e,  comparando  umas  com  outras,  chegavam  a  encontrar  differenças  de 
setenta  léguas.  Tratava-se  sobretudo  de  uma  determinação  de  longitu- 
des, o  que  era  um  ponto  espinhoso  para  a  cosmographia  de  então.  As 
latitudes  observavam-se  com  uma  exactidão  relativamente  satisfactoria ; 
mas  sobre  as  longitudes,  ou  altura  de  leste  oeste,  ou  graus  de  longura, 
como  então  lhes  chamavam,  havia  as  maiores  duvidas,  e  este  foi  um 
dos  problemas  que  mais  preoccupou  os  navegadores  d'aquelles  tempos. 
O  Duque  de  Bragança,  que  parece  haver  sido  perito  nas  questões 
de  cosmographia,  dirigiu  uma  espécie  de  memoria  a  D.  João  III  sobre 
estas  negociações,  que  então  interessavam  todos  em  Portugal.  N'essa 
memoria,  o  Duque  pondera :  que  a  demarcação  se  não  podia  fazer  pe- 
las cartas,  porque  estas  tejn  falcidade  de  mil  maneiras;  que  a  estima  é 
igualmente  fallivel,  e  como  nisto  da  longura  nom  se  possa  dar  nenhuma 
regra  certa  por  estimativa;  e  opina,  que  se  deve  insistir  nas  cousas  de 
demonstração,  que  nom  tem  contradicção.  Estas  cousas  de  demonstração 
eram  por  arte  do  Ceo,  e  dos  Eclipsis  e  conjuncção,  que  nom  se  podem 
negar.  Aqui  temos  pois  os  eclypses,  de  que  nos  falia  Garcia  da  Orta. 
É  certo  no  emtanto  que  esses  mesmos  se  podiam  negar,  ou  pela  imper- 
feição das  observações,  ou  pelos  erros  dos  almanachs  então  publica- 
dos. Na  própria  viagem  de  Magalhães,  Andrés  de  S.  Martin  fez  varias 
observações  astronómicas,  como  foi  a  da  conjuncção  da  Lua  e  de  Jú- 
piter, observada  no  Rio  de  Janeiro,  e  a  de  um  eclypse  do  Sol,  obser- 
vado depois  em  17  de  abril  de  i52o;  e  todas  o  levaram  a  resultados 
inadmissíveis:  . . .  de  lo  qual  infirieron  aver  error  en  la  equacion  de  los 
movimientos  en  las  tablas,  porque  es  impossible  ser  tanta  la  longitud. 
O  nosso  João  de  Barros  dá  a  traducção  das  próprias  palavras  de  An- 
drés de  S.  Martin,  tiradas  de  uns  apontamentos  que  lhe  vieram  á  mão, 
e  que  mostram  a  perplexidade  do  piloto  e  cosmographo  hespanhol: 
. . .  infiro  haver  erro  nas  taboas,  que  certo  não  sei  a  que  o  attribua. 
Não  se  atrevia  a  julgar  que  fossem  erros  de  imprensa  nos  Almanaches 
de  Joannes  de  Monte  Régio,  e  muito  menos  erros  de  calculo  do  pró- 
prio Monte  Régio.  De  todas  estas  duvidas  nos  resultados  das  observa- 
ções, da  imperfeição  das  cartas,  cheias  áe  falcidades,  da  incerteza  dos 
cálculos  de  estimativa,  e  também  do  pouco  desejo  que  havia  de  ceder, 
tanto  de  um  como  de  outro  lado,  resultou  que  a  conferencia  se  dissol- 
veu sem  chegar  a  um  accordo. 


Do  Cravo  2>']?> 

Ao  mesmo  tempo  que  a  conferencia  se  dissolvia  na  Europa,  as  cou- 
sas complicavam-se  em  Maluco.  A  nau  Trinidad,  que  se  separara  da 
nau  Victoria,  e  tentara  voltar  pelo  estreito,  arribou  de  novo  áquellas 
ilhas  do  cravo,  e  os  portuguezes  aprisionaram  os  restos  da  guarnição, 
destroçada  e  dizimada  pela  fome  e  pela  doença,  levando  para  Cochim 
os  sobreviventes,  e  repatriando-os  ao  cabo  de  perto  de  dois  annos.  É 
este  acto,  assim  como  outros  idênticos,  succedidos  nos  annos  seguin- 
tes, que  o  nosso  Orta  louva  como  uma  grande  generosidade :  «tanta  he 
a  clemência  de  el-rey  nosso  senhor  com  os  christãos  vencidos».  No 
anno  de  i525  saiu  uma  armada  hespanhola  da  Coruna,  ostensivamente 
enviada  ás  ilhas  de  la  especeria,  e  commandada  pelo  commendador  fr. 
Garcia  de  Loaysa.  Parte  da  armada  perdeu-se  pelo  caminho,  e  o  seu 
commandante  morreu;  mas  chegou  ás  Molucas  a  nau  Santa  Maria  de 
la  Victoria,  sob  as  ordens  de  Martin  Iniguez  de  Carquizano,  e  succede- 
ram-se  nos  annos  de  i526  a  1529  todas  as  contendas  e  hostilidades  en- 
tre portuguezes  e  hespanhoes,  contadas  largamente,  de  um  lado  por 
António  de  Herrera,  do  outro  por  João  de  Barros  e  mais  chronistas 
portuguezes. 

Na  impossibilidade  de  determinar  um  meridiano,  e  na  impossibili- 
dade por  outro  lado  de  continuar  as  hostilidades  em  Maluco,  estando 
os  dois  paizes  em  paz  na  Europa,  foi  necessário  chegar  a  um  compro- 
misso. No  dia  22  de  abril  do  anno  de  1529  celebrou-se  em  Saragoça 
um  contrato,  que  se  encontra  transcripto  na  Ásia  de  Diogo  do  Couto. 
N'esse  contrato  o  Imperador  Carlos  V  vendia  a  D.  João  111  todos  os  seus 
direitos  a  Maluco,  pela  quantia  de  35o:ooo  cruzados  de  ouro  e  prata, 
que  valessem  SyS  maravedis  cada  um.  A  questão  do  meridiano  e  da 
longitude  das  Molucas  ficava  de  pé,  e  para  se  resolver  posteriormente; 
nunca  se  resolveu,  ou  pelo  menos  quando  se  resolveu,  já  as  Molucas 
não  pertenciam  nem  a  Portugal,  nem  a  Hespanha. 

Taes  eram,  o  mais  succintamente  contadas  que  rne  foi  possível,  as 
contendas  entre  os  soberanos  da  península  a  que  Orta  se  refere. 

(Cf.  Arana,  Vida  e  viagens  de  Fernão  de  Magalhães,'^.  54,  etc,  versão 
portugueza,  Lisboa,  1S81;  Pigafetta,  em  Ram.  1,  365;  Herrera,  Hist.gen. 
de  las  índias  occidentales,  i,  SSy,  11,  164  a  i63,  i85,  284,  253,  etc;  Barros, 
Ásia,  III,  V,  5,  6,  7,  8,  9, 10,  etc;  Notas  de  J.  d'Andrade  Corvo  ao  Roteiro 
de  Lisboa  a  Goa,  de  D.  João  de  Castro,  86  a  106,  1 5 1,  etc,  Lisboa,  1882; 
Couto,  Ásia,  IV,  II,  I.) 

Nota  (3) 

Este  rei  chamava-se  Tabarija,  e  foi  deposto  arbitraria  e  violenta- 
mente por  Tristão  de  Athayde,  que  levantou  em  seu  logar  um  rapasito, 
chamado  Aeiro,  mandando  Tabarija  preso  para  Goa,  com  a  mãe  e  as 
principaes  pessoas  da  corte.  Nuno  da  Cunha  achou-o  innocente,  dei- 


374  Colóquio  vigésimo  quinto 

xando-o  todavia  ficar  em  Goa,  mas  em  liberdade,  e  com  um  certo  tra  • 
tamento  de  principe.  Tabarija  fez-se  christão,  e  deram-lhe  o  nome  de 
D.  Manuel.  Era  mais  um,  n'aquella  collecção  de  reis  christaos  que  ti- 
vemos em  Goa  — o  de  Tanor,  o  das  Maldivas,  este  de  Ternate  e  não 
sei  se  ainda  outros. 

Annos  depois,  quando  Jordão  de  Freitas  foi  por  capitão  da  fortaleza 
de  Maluco,  levou  comsigo  o  rei  D.  Manuel.  Mas  o  pobre  selvagem  não 
chegou  a  ver  o  vulcão  fumegante  da  sua  terra  natal.  Ficou  em  Malaca, 
onde  adoeceu  e  morreu,  tendo  primeiro  feito  testamento  em  favor  de 
D.  João  III. 

Como  elle  veiu  para  Goa  pelo  anno  de  i535,  e  saiu  d'ali  com  Jordão 
de  Freitas  no  de  1544  ou  1545,  morrendo  em  Malaca  a  3o  de  junho 
d'este  ultimo  anno,  Orta  pôde  perfeitamente  conhecel-o  em  Goa  (Cf. 
Gaspar  Corrêa,  Lendas,  iii,  682;  Barros,  Ásia,  iii,  v,  6,  e  rv,  vi,  24;  Couto, 
Ásia,  V,  X,  10). 

Nota  (4) 

O  cravo,  como  dissemos  já,  é  a  flor  ainda  nova  do  Caryophyllus 
aromaticus,  uma  bellissima  arvore,  ou  como  dizia  Rumphius  com  enthu- 
siasmo :  piílcherrima,  elegantissima,  ac  pretiosissima  omniuni  mihi  no- 
tarum  arborum.  Esta  arvore  pertence  á  familia  das  Myrtacece,  e  Orta 
reparou  na  sua  similhança  com  o  representante  d'aquella  familia  que 
melhor  conhecia,  insistindo  por  duas  vezes  em  que  a  flor  «nace  como 
murta»,  ou  «em  gomos  como  os  murtinhos». 

Do  Caryophyllus  procediam  três  especiarias  distinctas,  e  de  diverso 
valor: 

— o  cravo  propriamente  dito,  que  é  a  flor  colhida  ainda  em  botão, 
no  momento  em  que  passa  da  côr  branca  esverdeada  á  côr  vermelha; 
e  esta  era  a  especiaria  mais  cara  e  procurada,  por  ser  a  mais  cheirosa 
e  pungente. 

— o  pedúnculo  ou  pequenino  pé  da  flor,  menos  perfumado,  de  preço 
muito  menor,  e  chamado  bastão,  fuste,  stipites  ou  festucce  caryophylli. 

—  o  fructo  já  formado,  chamado  madre  do  cravo,  ou  atithophylli,  e 
também  mais  barato  que  o  cravo  propriamente  dito. 

De  todas  três  falia  o  nosso  escriptor  correctamente,  e  com  muito 
conhecimento  de  causa.  O  mais  que  nos  diz  sobre  o  tratamento  da 
arvore,  e  sobre  a  colheita  e  conservação  do  botão,  é  bem  conhecido 
e  não  carece  de  explicações  (Cf.  Barros,  Ásia,  iii,  v,  5;  Couto,  Ásia,  iv, 
VII,  9;  Crawfurd,  Dict.,  palavra  Cloves;  Rumphius,  Herb.  Amb.,  11,  i; 
Pharmac,  249). 

Como  o  cravo  foi  uma  das  especiarias  mais  importantes  no  nosso 
trato  com  o  Oriente,  pôde  ser  interessante  uma  noticia  breve  acerca 
das  phases  por  que  passou  o  seu  commercio. 


Do  Cravo  375 

Não  sabemos,  nem  em  que  período,  nem  por  que  modo  o  cravo  co- 
meçou a  ser  usado  no  Oriente,  na  qualidade  de  perfume,  condimento 
ou  medicamento.  Parece,  porém,  que  já  o  empregavam  na  China  nos 
tempos  da  dynastia  Han  (266-220  A.  C),  dando-lhe  então  o  nome  de 
A-í  shéh  siang,  que  mais  tarde  se  mudou  no  de  teng  siang.  E  parece 
também,  que  se  encontra  mencionado  em  antiquíssimos  escríptos  sans- 
kríticos,  attribuidos  a  Charaka,  nos  quaes  se  lhe  dá  o  nome  de  la- 
vanga,  nome  ainda  conhecido  e  usado  em  parte  da  índia. 

Não  ha,  todavia,  motivo  para  suppor,  que  n'estes  antigos  tempos 
aquella  especiaria  fosse  conhecida  nas  nossas  terras  do  occidente,  an- 
tes vimos  que  o  garyophyllon  de  Plínio  dífRcílmente  se  poderia  iden- 
tificar com  o  cravo,  e  que  só  muito  mais  tarde,  depois  do  v  século? 
este  começa  a  ser  mencionado  claramente.  No  decurso  da  idade  media 
foi  trazido  de  um  modo  mais  ou  menos  regular  e  constante  á  Europa, 
mas  ao  que  parece  em  pequenas  quantidades;  acha-se  citado  nas  tarifas 
de  varias  cidades  commerciaes  do  Mediterrâneo,  como  é  a  de  Marselha 
do  anno  de  1228,  e  a  de  Barcelona  do  de  1252;  e  no  livro  de  Pegolotti, 
que  se  pode  referir  ao  de  1840,  falla-se  das  especiarias  vendidas  em 
Constantinopla,  entre  as  quaes  figura  o  cravo  e  também  o  bastão — 
fusti  di  gherofani. 

Todo  este  cravo  devia  vir  das  Molucas,  única  região  onde  se  culti- 
vou a  arvore  e  se  colheu  a  flor  até  períodos  relativamente  muito  re- 
centes. D'aquellas  ilhas  o  trariam  em  barcos  malayos,  ou  em  juncos 
da  China  e  navios  de  Java,  a  alguns  portos  próximos;  e  d'esses  portos 
próximos  a  outros  mais  distantes,  perdendo-se  naturalmente  no  cami- 
nho a  noção  exacta  da  sua  primitiva  procedência.  Pelo  menos  essa  pro- 
cedência ficou  geralmente  e  por  muito  tempo  ignorada.  Cosmas  In- 
dicopleustes  diz:  que  o  encontrou  nos  mercados  de  Ceylão,  mas  o 
informaram  de  que  vinha  de  mais  longe.  Séculos  depois,  Ibn  Khur- 
dádbah  dá-o  como  procedendo  de  Java.  Quatro  séculos  mais  tarde, 
Marco  Polo  repete  a  mesma  noticia;  e  já  no  xv  século,  Nicolo  di  Conti 
affirma  que  o  traziam  de  Banda.  Isto  significa  simplesmente,  que  o  tra- 
ziam das  Molucas  a  Banda,  de  Banda  a  Java,  e  de  Java  a  Ceylão;  e 
que  os  viajantes  nas  suas  averiguações  se  iam  approxímando  pouco  a 
pouco  do  ponto  de  partida,  sem  comtudo  chegarem  a  alcançar  noticia 
das  Molucas. 

Nos  portos  de  Ceylão,  e  nos  da  índia,  como  Coulão,  Calicut  e  ou- 
tros, os  árabes  carregavam  o  cravo,  juntamente  com  outras  mercado- 
rias, trazendo-o  pelas  viagens  ordinárias,  já  varias  vezes  mencionadas 
n'estas  notas,  até  ao  fundo  do  Golfo  Pérsico  por  um  lado,  ou  até  ao 
fundo  do  mar  Vermelho  por  outro.  D'ali  seguia  por  terra  a  Constanti- 
nopla, a  Acra,  a  Tripoli  ou  a  Alexandria;  e,  d'estes  portos,  os  nave- 
gadores do  Mediterrâneo,  principalmente  genovezes  e  venezianos,  iam 
conduzil-o  ás  suas  cidades  italianas,  ou  ás  do  littoral  da  França  e  da 


376  Colóquio  jngesimo  quinto 

Hespanha.  Esta  especiaria,  a  mais  oriental  como  procedência,  fazia  as- 
sim uma  viagem  que  era  quasi  a  semi-circumferencia  do  globo,  em- 
barcada e  desembarcada  dezenas  de  vezes,  vendida  e  revendida,  pas- 
sando dos  juncos  chins  aos  navios  dos  árabes,  d'estes  ás  caravanas  que 
atravessavam  lentamente  as  intermináveis  planícies  da  Mesopotâmia 
e  os  infindos  areiaes  da  Syria,  d'estas  ás  embarcações  mediterrâni- 
cas que  navegavam  por  conta  dos  ricos  mercadores  de  Veneza,  ou  da 
grande  casa  commercial  dos  Bardi  de  Florença,  ou  do  poderoso  ne- 
gociante francez  Jaques  Coeur,  ou  de  vários  outros  de  menor  nomeada. 

Em  vista  d'estas  demoradas  e  perigosas  viagens,  comprehende-se  fa- 
cilmente por  que  altos  preços  seria  vendido  na  Europa,  sobretudo  le- 
vando em  conta  a  procura  das  especiarias,  aquelle  valor  dado  a  estas 
substancias  aromáticas  e  ardentes,  o  qual  em  parte  resultava  da  sua  ori- 
gem exótica  e  um  tanto  mysteriosa.  Efiectivamente  o  preço  do  cravo  era 
altíssimo.  No  livro  de  despezas  caseiras  da  Condessa  de  Leicester,  do 
anno  de  1265,  vem  notada  a  libra  de  cravo  como  custando  de  dez  a  doze 
shellings.  E  nas  contas  da  execução  do  testamento  de  Joanna  de  Evreux, 
rainha  de  França,  no  anno  de  1372,  vem  avaliada  a  libra  (de  16  onças) 
de  girojle  em  uma  libra  do  tempo.  Esta  libra  tinha,  pelos  preços  do 
marco  de  prata,  um  valor  intrínseco  de  um  pouco  mais  de  9  francos 
da  moderna  moeda  franceza.  Mas  o  valor  effectivo  da  moeda,  isto  é,  a 
relação  dos  metaes  preciosos  com  as  mercadorias  e  com  as  necessida- 
des da  vida,  foi  na  ultima  parte  da  idade  media  seis  vezes  maior  do 
que  actualmente.  A  libra  corresponderia,  portanto,  a  56  francos  actuaes 
conta  redonda,  ou  sejam  10^080  réis',  que  tanto  custavam  16  onças 
de  cravo.  Para  bem  fixar  desde  já  a  significação  d'este  preço,  notemos 
que  nas  Molucas  —  como  melhor  veremos  adiante —  um  bahar  de  cravo, 
isto  é,  18  arrobas  e  ig  arráteis,  devia  custar  o  máximo  por  aquelles  sé- 
culos 2^160  réis,  ou  o  equivalente  a  12^960  réis  de  hoje.  O  mesmo  peso, 
posto  em  Londres  ou  Paris,  computado  o  arrátel  em  lo^ooo  réis,  custa- 
va SigSo-ííooo  réis^.  Como  se  vê,  a  oscillação  era  enorme,  e  só  se  pôde 
explicar  pelas  difficuldades,  demoras  e  perigos  na  viagem  a  que  antes 
nos  referimos,  e  pelos  grandes  ganhos  de  numerosos  intermediários. 

Segundo  se  deduz  de  alguns  documentos  citados  nas  paginas  seguin- 
tes, não  ha  motivo  para  suppor,  que  o  preço  do  cravo  baixasse  consi- 


'  Veja-se  Leber,  Essai  sitr  iapréciation  de  lafortiine  privee  aii  moyen  age,  22  e  95.  O 
preço  do  10  a  12  shellings  em  Inglaterra  vem  citado  por  FliJckiger  e  Hanbury  (Pharmac,  25i) 
e  é  extrahido  de  Manuers  and  household  expenses  in  England.  Supponho  que  se  querem 
referir  ao  shelling  actual,  e  mesmo  assim,  tomando  o  preço  mais  baixo,  10  shellings,  ainda 
é  superior  ao  de  França  no  século  seguinte,  sendo  de  2^200  réis,  equivalente  a  i3í>200  de 
hoje.  Se  se  referissem  ao  shelling  do  tempo,  seria  muito  mais  elevado. 

'  Em  números  redondos,  tomando  o  preço  da  Itpre  em  ioJ!í>ooo  réis,  e  não  fazendo  a  re- 
ducçáo  da  livre  ao  arrátel  portuguez. 


Do  Cravo  877 

deravelmcnte  durante  o  xv  século,  e  até  ao  começo  do  xvi.  Podemos, 
pois,  admittir,  que,  no  momento  em  que  Vasco  da  Gama  dobrou  o  cabo 
da  Boa  Esperança  e  navegou  para  Calicut,  um  certo  peso  de  cravo,  o 
bahar,  valia  nas  Molucas  12  mil  e  tantos  réis,  digamos  iSíí^ooo  réis;  e 
que  esse  mesmo  peso  em  casa  de  um  mercieiro  ou  droguista  de  Londres 
ou  de  Paris,  valia  proximamente  G:ooo<;S^ooo  de  réis.  Este  simples  facto 
mostra  bem  qual  era  a  importância  commercial  do  novo  caminho  des- 
coberto pelos  portuguezes. 

Quando  Vasco  da  Gama  chegou  a  Calicut,  forneceram-lhe  especia- 
rias para  o  carregamento  das  suas  naus,  e  entre  ellas  cravo.  Era  pés- 
simo; muito  cheio  de  bastão,  como  diz  Gaspar  Corrêa:  «o  cravo  todo 
era  páo».  O  capitão  mor  dissimulou,  e  acceitou-o,  com  o  que  os  mouros 
e  os  gentios  ficaram  persuadidos  de  que  os  nossos  pouco  entendiam 
do  negocio,  e  eram  gentes  «bestiaes».  No  emtanto,  os  portuguezes  du- 
rante a  sua  curta  demora  no  grande  porto  do  Malabar,  reuniram  algu- 
mas informações  commerciaes  interessantes.  Souberam,  por  exemplo, 
que  todo  o  cravo  vinha  de  «Mclequa»  (Malaca);  isto  era  um  erro,  si- 
milhante  ao  que  dois  séculos  antes  commettêra  Marco  Polo,  somente 
em  logar  de  Java  apparece-nos  agora  Malaca,  que  posteriormente  a 
Marco  Polo  se  havia  tornado  um  dos  portos  mais  importantes  d'aquelles 
mares,  e  por  onde  vinha  effec  ti  vãmente  o  cravo  das  Molucas.  Souberam 
também,  que  o  bachar  (bahar)  de  cravo  valia  em  Malaca  9  cruzados;  e, 
como  informação  comparativa,  o  auctor  do  Roteiro  accrescenta,  que 
valia  em  Alexandria  o  quintal  de  cravo  20  cruzados.  Em  Malaca  esta- 
vam em  uso  dous  bares,  mas  aquelle  que  servia  no  peso  do  cravo,  cha- 
mado bar  de  Dachem  grande,  tinha  14  arrobas  e  10  arráteis;  e  este 
peso,  como  acabamos  de  ver,  valia  9  cruzados,  ou  sejam  19^440  réis 
em  valor  intrínseco  da  nossa  moeda,  que  em  valor  ou  poder  effectivo 
seria  seis  vezes  superiora  Deduzindo  do  valor  do  bahar  o  do  quintal, 
para  obtermos  números  comparáveis,  chegamos  proximamente  aos  se- 
guintes resultados: 

— um  quintal  de  cravo  valia  em  Malaca  5^6oo  réis,  ou  em  poder  ef- 
fectivo da  moeda  o  equivalente  a  33^5600  réis. 

—  o  mesmo  peso  valia  em  Alexandria  43^200  réis,  ou  o  equivalente 
a  25<^^20o  réis. 

— como  termo  de  comparação  recordaremos,  que  devia  valer  em 
Paris  o  equivalente  a  i:28oíi?ooo  réis,  admittindo  que  o  preço  não 
havia  baixado  sensivelmente  no  xv  século. 


'  Tomando  o  valor  do  cruzado  de  D.  Affonso  V  a  D.  Manuel  em  2^^160  réis  (Aragão,  Descr. 
das  moedas,  u,  237).  O  valor  effectivo  da  moeda,  comparado  com  o  actual,  conservava  no 
começo  do  xvi  século  as  relações  de  6  para  i,  que  tivera  durante  parte  da  idade  media  (Le- 
ber,  1.  c). 


3 78  Colóquio  vigésimo  quinto 

Damos  estas  informações  do  Roteiro,  sem  insistir  sobre  a  sua  exacti- 
dão. E  parece-nos  provável,  que  o  preço  de  Alexandria  fosse  um  pouco 
inferior  á  verdade.  Pelo  contrario,  o  preço  de  Malaca  deve  ser  proxi- 
mamente exacto,  e  é  confirmado  até  certo  ponto  pelas  informações  de 
Duarte  Barbosa,  citadas  adiante.  O  Roteiro  não  falia  do  preço  do  cravo 
nas  Molucas,  porque  nem  da  existência  d'aquellas  ilhas  os  portuguezes 
tiveram  noticia  na  sua  primeira  viagem.  E  esse  preço,  que  nós  vamos 
agora  procurar. 

As  informações  de  Duarte  Barbosa  são  n'este  caso  preciosas,  porque 
são,  como  sempre,  lúcidas  e  completas,  e  alem  d'isso  se  referem  a  um 
periodo  especialmente  interessante,  o  que  vae  do  anno  de  i5io  ao  de 
i5i6  proximamente,  em  que  o  seu  Livro  foi  escripto.  N'esse  momento, 
os  portuguezes  estavam  já  de  posse  do  commercio  de  parte  da  índia, 
mas  não  intervinham  ainda  muito  directamente  no  das  Molucas,  onde, 
por  consequência,  se  deviam  conservar  antigos  preços  e  antigos  hábi- 
tos. Duarte  Barbosa  diz-nos,  que  o  bahar  de  cravo  valia  nas  Molucas 
de  um  a  dois  ducados,  conforme  o  numero  de  compradores  que  ali  af- 
íluiam;  valia  em  Malaca  de  dez  a  quatorze  ducados,  segundo  o  numero 
de  encommendas;  e  valia  em  Calicut  de  quinhentos  a  seiscentos/í7«Õe5, 
e  sendo  bem  limpo  até  setecentos.  O  ducado  de  Duarte  Barbosa,  se  acaso 
elle  escreveu  esta  palavra,  pôde  considerar-se  equivalente  ao  cru^^ado^. 
O  preço  nas  Molucas  era,  portanto,  em  valor  intrínseco  da  nossa  moeda, 
de  2^160  a  4'5f320  réis;  e,  em  valor  ou  poder  effectivo,  de  12^5^960  a 
25í5?5920.  Em  Malaca  era  de  2iíj!Í!6oo  a  30^240  réis,  ou,  em  valor  effectivo, 
de  1 29^75600  a  181^440  réis-.  Duarte  Barbosa  dá-nos  os  preços  de  Calicut 
em  f anões,  e  diz-nos  que  o  fanáo  valia  um  real  de  prata.  Tomando  o 
valor  intrínseco  do  real  em  80  réis,  que  teve  no  reinado  anterior  de 
D.  João  II,  teremos  o  preço  do  bahar  em  Calicut  de  40.T000  réis,  48%?'ooo, 
ou  SS^ooo  réis,  ou,  em  valor  effectivo,  de  240^000,  288^000  e  336^^000 
réis.  Adoptámos  o  valor  do  fanão  dado  pelo  próprio  Duarte  Barbosa ; 


'  Digo  se  acaso  escreveu  esta  palavra,  porque  a  parte  do  Livro  onde  se  encontra  a  infor- 
mação falta  no  manuscripto  portuguez,  publicado  pela  Academia,  e  só  se  conhece  pela  ver- 
são de  Ramusio,  sendo  bem  possível  que  o  traductor  adoptasse  a  palavra  ducado,  mais  fami- 
liar aos  ouvidos  italianos.  O  ducado  de  ouro  de  Veneza,  ou  Zecchin,  valia,  no  valor  actual 
do  oiro,  1 1  francos  e  82  centésimos  (Cibrario,  Pol.  econ.  dei  med.  evo,  iii,  228),  bem  próximo 
do  valor  do  cruzado,  2^160  réis  (Aragão,  Descr.  das  Moedas,  11,  237).  Alem  d'isso,  parece 
que  os  próprios  ducados  corriam  na  índia,  sob  o  nome  de  venezianos,  pelo  valor  dos  cruzados. 
Diz  António  Nunes :  <E  venezianos,  soltanis  e  abrahemos  valem  7  tamgas,  que  são  420  réis.  E 
cruzados  d'ouro  de  purtugal  da  ley  nova  valem  420  reis,  que  são  7  tamgas»  (Lyvro  dos  Pesos, 

32). 

'  Note-se  que  um  dos  preços  de  Duarte  Barbosa  de  10  ducados,  ou  cruzados,  concorda 
com  o  do  Roteiro,  de  9  cruzados,  havendo  apenas  um  pequeno  augmento,  aliás  natural. 


Do  Cravo  879 

mas  devemos  advertir  que  é  muito  baixo.  No  negocio  ás. pimenta  consi- 
deravam-se  19  fanões  equivalentes  a  um  cruzado,  o  que  desde  logo  o 
eleva  a  mais  de  1 10  réis;  e  ainda  teve  valores  mais  altos*.  Estes  números 
relativos  a  Calicut  devem,  pois,  considerar-se  abaixo  dos  verdadeiros. 
Note-se  também,  que  o  bahar  das  Molucas  era  muito  superior  ao  de  Ma- 
laca e  de  Calicut,  o  que  contribuia  para  que  os  lucros  na  conducção  do 
cravo  fossem  superiores  aos  que  deduziríamos  da  simples  inspecção  dos 
números  não  rectificados.  Mas  não  pára  aqui.  Os  reis  e  chefes  das  Mo- 
lucas eram  quasi  selvagens,  com  todas  as  phantasias  e  appetites  de 
creanças  e  de  selvagens;  e  os  tratantes  — tomo  a  palavra  no  bom  sen- 
tido—  de  Java  e  de  Malaca  especulavam  com  essas  phantasias.  Não 
compravam  o  cravo  a  dinheiro;  recebiam-n'o  a  troco  de  outras  merca- 
dorias. Levavam  cobre,  azougue,  pannos  de  Cambaya,  porcelanas,  si- 
nos de  metal  de  Java  «tamanhos  como  grandes  alguidares,  dependu- 
ram-nos  pelas  bordas  . .  .  e  aly  dão  com  qualquer  cousa  para  os  fazerem 
soar...»  —  os  famosos  gongs  de  Java.  Os  chefes  das  Molucas  davam 
tudo  por  estas  curiosidades :  .  . . « por  um  bacio  de  porcelana  que  seja 
grande  daom  vinte  e  trinta  quintaes  d'ele»  (cravo),  por  «um  sino  daom 
vinte  baares  de  cravo».  E  Duarte  Barbosa  termina,  dizendo:  «asy  que 
de  Malaca  pêra  aquy  ha  muyto  groso  ganho». 

Tal  era  a  situação,  quando  no  primeiro  quartel  do  século  os  portu- 
guezes  começaram  a  negociar  regularmente  com  as  Molucas — n'aquel- 
las  ilhas  preços  quasi  nominaes,  na  índia  já  bastante  elevados,  e  na  Eu- 
ropa um  valor  ainda  exorbitante  da  especiaria. 

Nos  primeiros  tempos,  os  nossos  portuguezes  seguiram  as  praticas 
estabelecidas.  Segundo  diz  Gaspar  Corrêa,  D.  Tristão  de  Menezes  dava 
«hum  panno  azul  de  cambaya,  que  valia  hum  cruzado,  por  hum  bar 
de  cravo,  que  erão  quatro  quintaes,  que  saya  a  cem  reis  o  quintal  de 
cravo»  2.  Depois,  como  fosse  necessário  assegurar  o  fornecimento  da 
especiaria,  assentaram  uma  espécie  de  contrato  com  os  reis  das  Mo- 
lucas, marcando  um  preço  fixo  ao  cravo.  Este  preço  era  pago  em  pan- 
nos e  tecidos,  as  roupas  dei  Rey  noso  senhor,  que  vinham  da  índia,  de 
Cambaya  ou  de  Coromandel,  e  eram  avaliadas  antes  de  serem  entre- 
gues. Por  cada  bahar  de  cravo  davam  «roupas»  no  valor  de  3  pardáos, 
ou  no  equivalente  de  3 :00o  caixas.  Estes  três  pardáos  representavam 


'  Todo  o  systema  monetário  da  índia,  já  portuguez,  já  islamita  ou  Indiano,  é  muito  com- 
plicado, e  comquanto  estudado  em  trabalhos  valiosos,  como  é  a  Descripçáo  das  moedas,  de 
Aragão  tomo  iii,  o  Lyvro  dos  Pesos  de  António  Nunes  e  tabeliãs  de  Góes,  ou  as  Contríb,  to 
the  study  of  Indo-portuguese  numismaties  de  Gerson  da  Cunha,  está  longe  de  ser  perfeita- 
tamente  claro. 

'  Perdão,  saía  a  menos,  porque  o  bahar  tinha  quatro  quintaes  e  meio  e  mais  alguma  cousa. 


38o  Colóquio  vigésimo  quinto 

approximadamente  45^626  réisi,  que  deveremos  multiplicar  por  seis  ou 
por  quatro  para  obtermos  o  poder  effectivo  da  moeda,  o  qual  por  estes 
annos  de  que  vamos  fallando  já  devia  ir  em  decrescimento.  Compa- 
rem-se  estes  preços  com  os  de  Calicut,  note-se  que  o  bahar  das  Mo- 
lucas  tinha  um  quintal  mais  que  o  d'aquelle  porto,  advirta-se  que  na 
avaluação  das  roupas  dei  Rey  noso  senhor  deviam  ir  envolvidas  diffe- 
renças  vantajosas,  e  ficará  bem  claro  que  o  negocio  do  cravo  dava  lu- 
cros enormes  —  muyto  groso  ganho,  como  dizia  Duarte  Barbosa. 

O  negocio  era  monopólio  do  estado,  ou  do  rei — como  então  se  di- 
zia; mas  a  cobiça  de  tomar  parte  n'elle,  clara  ou  clandestinamente, 
tornou-se  intensíssima.  E  é  certo,  que  d'essa  cobiça  nasceram  quasi 
todas  as  dissenções,  intrigas,  violências  e  assassinatos,  que  ensanguen- 
taram e  deshonraram  o  nosso  dominio  nas  Molucas.  A  cobiça  chegou 
a  tal  ponto,  deu  logar  a  tantas  fraudes,  que  não  foi  possível  manter  o 
monopólio.  Os  moradores  upor  se  não  poderem  suster  sem  tratarem» 
fizeram  muitos  requerimentos,  a  que  os  Governadores  tiveram  de  ceder. 
No  tempo  de  Nuno  da  Cunha  estabeleceu-se  um  novo  systema,  um 
tanto  complicado,  mas  que,  conforme  o  explicam  Simão  Botelho  no 
Tombo  do  Estado  da  índia,  e  António  Nunes  no  Lyvro  dos  Pesos,  pa- 
rece ter  consistido  no  seguinte.  O  governador  ou  capitão  das  Molucas, 
os  seus  officiaes  e  os  moradores  negociavam  livremente  no  cravo,  com- 
prando-o  na  terra  pelo  menor  preço  por  que  o  podiam  obter,  e  embar- 
cando-o  depois.  Somente,  ao  embarcar,  quando  estava  «debaixo  da 
verga»,  cediam  ao  estado  um  terço  do  cravo  pelo  preço  antigamente 
estipulado  de  três  pardáos  por  bahar.  Quando  o  cravo  vinha  nas  naus  do 
estado,  pagavam  alem  d'isso  de  frete  ou  chuquel  até  Malaca  3o  por  cento 
dos  dois  terços  que  lhes  pertenciam^.  De  modo,  diz  António  Nunes,  que 
de  «cada  dez  bares  que  se  embarcão,  de  terços  e  chuqueis  á  dita  rezam 
acima  vem  a  Sua  Alteza  5  1/3  bares,  e  fica  á  parte  4  2/3  bares».  De  Ma- 
laca para  a  índia  pagava-se  novo  frete,  que  era  variável,  mas  orçava 
por  três  cruzados  por  bahar  de  Malaca.  Por  este  modo,  entregue  a 


'  Nada  mais  difficil  do  que  fixar  o  valor  áopardáo,  que  variava  consideravelmente.  To- 
mámos o  valor  intrínseco  do  cruzado  em  2^160  réis,  e  notando  que  esse  cruzado  equivalia  a  7 
tangas,  e  o  pardáo  de  3oo  réis  (o  que  se  usava  em  Maluco)  equivalia  a  5  tangas,  deduzimos 
este  valor  do  pardáo  de  proximamente  1^542  réis.  Sir  H.  Yule,  guiandose  por  outras  compa- 
rações, chega  a  estabelecer  que  o  real  do  principio  do  século  xvi  era  um  pouco  mais  de  cinco 
vezes  superior  ao  actual;  o  pardáo  de  3oo  réis  teria  pois  um  valor  superior  aií&5ooréis,  o 
que  exactamente  concorda  com  o  nosso  resultado  (Cf.  António  Nunes,  Lyvro  dos  pesos;  Yule 
e  Burnell,  Glossary  no  Suppl.  palavra  Pardáol. 

A  caixa  era  uma  moeda  infima,  de  cobre,  furada  pelo  meio  para  se  enfiar  em  cordéis,  e 
que  os  nossos  escriptores  dizem  vir  de  Java,  mas  era  provavelmente  de  origem  chineza. 

'  Simão  Botelho  não  diz  exactamente  isto,  mas  a  relação  de  António  Nunes  é  mais  clara 
e  deve  ser  verdadeira. 


Do  Cravo  38 i 

compra  aos  particulares,  obtinham-se  carregações  completas,  o  que 
antes  era  difficil,  porque  muito  saía  clandestinamente.  O  lucro  do  es- 
tado consistia  nos  chuqueis,  e  em  obter  o  terço  de  todo  o  cravo  por 
um  preço  ínfimo.  Simão  Botelho,  que  era  um  zeloso  administrador  da 
fazenda  publica,  approvava  o  systema:  «em  que  o  dito  nuno  da  cunha 
ífez  muito  serviço  a  sua  Alteza».  Todos  os  annos  ia  uma  nau  ás  Molu- 
cas  levar  munições,  roupas  de  Cambaya  e  Bengala  com  que  se  paga- 
vam os  terços  do  cravo,  e  outras  cousas  necessárias;  na  volta  trazia  o 
cravo.  Para  occorrer  ao  pagamento  dos  ordenados,  soldo  de  duzentos 
homens  pouco  mais  ou  menos,  custo  dos  terços  do  cravo  a  3  pardáos 
por  bahar  e  outras  despezas  miúdas,  a  nau  devia  levar  em  fazendas  o 
valor  de  8:000  pardáos,  e  mais  algumas  moedas  de  bilhão,  ou  ba^aru- 
cos.  Estes  8:000  pardáos  representam-nos  mais  de  12:000^000  réis  em 
valor  intrínseco,  e,  suppondo  que  o  poder  efFectivo  se  conservava  por 
aquelles  tempos  na  rasão  de  4  :  i,  approximadamente  48:000.^000  réis 
da  nossa  moeda.  Indo  esta  sonima,  Simão  Botelho  entendia  que  as 
cousas  estavam  bem  reguladas.  Vinham  os  terços  por  inteiro,  e  havia 
abundância  de  cravo;  quando,  porém,  se  mandava  menor  somma,  ven- 
dia-se  nas  Molucas  uma  parte  dos  terços,  e  depois  era  necessário  com- 
prar cravo  na  índia  para  completar  a  carga  das  naus  do  Reino,  «em 
que  sua  Alteza  recebe  muyta  perda». 

Em  um  dos  mais  interessantes  capítulos  das  suas  Décadas,  Diogo  do 
Couto,  tratando  das  cousas  das  Molucas,  calcula  o  cravo  saído  d'aquellas 
ilhas,  uns  annos  por  outros,  em  6:000  babares,  sujos  de  baslão,  que  de- 
viam dar  uns  4:000  babares  limpos.  Se  admittissemos,  que  todo  elle  saía 
nas  condições  antes  expostas,  deveria  ficar  nas  mãos  do  governo  por- 
tuguez,  em  terços  e  chuqueis,  um  pouco  mais  da  metade,  digamos  me- 
tade, ou  sejam  uns  9:000  quíntaes,  calculando  o  bahar  das  Molucas 
em  quatro  quíntaes  e  meio,  o  que  está  abaixo  da  verdade.  Suppondo, 
que  todo  esse  cravo  era  comprado  a  3  pardáos  o  bahar,  o  que  também 
não  é  exacto,  porque  o  dos  chuqueis  se  não  pagava,  teríamos  que  o 
custo  dos  9:000  quíntaes  andaria  por  9:252.^000  réis  proximamente,  ou 
sejam  37:ooo.':*^ooo  de  réis  ao  poder  eífectivo  da  moeda  de  4  :  i  e  em 
conta  redonda.  Tal  seria,  pouco  mais  ou  menos,  e  antes  menos  do  que 
mais,  a  somma  empregada  na  compra  do  cravo. 

Vejamos  agora  o  que  esse  cravo  podia  valer  na  Europa.  Os  preços 
no  XIV  século,  antes  citados,  eram  proximamente  de  10.^000  réis  por 
arrátel;  e  temos  dito,  que  esse  preço  não  devia  ter  baixado  considera- 
velmente no  século  seguinte  e  primeira  metade  do  xvi.  Eis  a  rasão  em 
que  nos  fundávamos.  Em  um  edito  de  Francisco  I,  datado  de  20  de 
abril  do  anno  de  1542,  vem  fixados  os  preços  correntes  de  diversas 
mercadorias,  para  por  elles  regular  o  pagamento  de  alguns  impostos. 
Ali  encontrámos  o  preço  do  cravo,  que  — segundo  as  correcções  indica- 
das por  Leber —  seria  o  seguinte:  a  libra  de  16  onças  de  cravo  custava 


382  Colóquio  vigésimo  quinto 

3  libras,  no  valor  intrínseco  de  1 1  francos,  e  no  valor  representativo  de 
z}4  francos,  ou  sejam  j^g2o  réis.  Isto  daria  para  o  quinta]  de  cravo  o 
valor  approximado  de  1:000^000  de  réisi.  E  chegariamos  assim  a  con- 
cluir, que  os  9:000  quintaes,  comprados  nas  Molucas  por  3o  e  tantos 
contos  de  réis,  davam  na  Europa  9:000:000^000  de  réis. 

Esta  conclusão  é  evidentemente  falsa,  e  o  negocio  do  cravo  nunca 
representou  no  commercio  de  Portugal  uma  quantia  igual  ou  mesmo 
próxima  áquella.  Necessitaríamos  introduzir  no  nosso. calculo  varias 
correcções  para  nos  approximarmos  um  pouco  da  verdade.  Em  pri- 
meiro logar  os  4:000  babares  — admittindo  como  certo  o  numero  de 
Diogo  do  Couto —  não  passavam  todos  pela  mão  dos  portuguezes;  e 
apesar  das  rigorosas  prohibiçÕes,  os  malaios  e  javanezes  fizeram  sem- 
pre algum  commercio  clandestino  com  as  Molucas,  e  d'ali  trouxeram  em 
todos  os  tempos  bastante  cravo.  Depois  d'isso,  o  cravo,  embarcado  nos 
navios  portuguezes,  não  vinha  todo  para  a  Europa;  vendia-se  parte  em 
Calicut,  consumia -se  na  índia  e  outras  terras  do  Oriente,  e  necessaria- 
mente se  realisavam  n'esta  parte  menores  lucros.  Por  ultimo,  é  claro 
que  os  preços,  marcados  no  edito  de  Francisco  I,  eram  preços  de  venda 
a  retalho  nas  villas  e  cidades  interiores  da  França,  e  muitíssimo  diversos 
dos  que  podia  obter  o  governo  de  Portugal.  Este  vendia  por  grosso  na 
Casa  da  índia  de  Lisboa,  ou  nas  feitorias  de  Flandres  e  outras^.  De 
tudo  isto  resultavam  consideráveis  diminuições  n'aquel!a  elevadíssima 
somma  de  9:000  contos  a  que  chegámos  a  principio,  e  que  eviden- 
temente está  muito  distante  e  muito  acima  da  verdade.  Mas  emquanto 
importavam  essas  diminuições,  é  o  que  nos  não  atrevemos  a  calcular, 
nem  mesmo  grosseiramente,  pois  nos  faltam  os  dados  para  o  fazer.  A 
única  cousa,  que  nos  parece  licito  affirmar  em  vista  dos  factos  apon- 
tados, é  que,  feitas  largamente  todas  as  deducções,  cerceando  os  lucros 
no  trato  do  cravo  por  todos  os  motivos  antes  expostos,  levando  em 
conta  as  despezas  elevadas  das  lentas  viagens  do  tempo,  tendo  em  at- 
tenção  as  perdas  de  naus  e  de  cargas  nos  sinistros  frequentes,  ainda 
assim  as  enormes  differenças  de  preço  davam  margem  para  grossos 
ganhos.  E  se  o  cravo  não  teve  nunca,  na  historia  commercial  da  índia 
portugueza  do  xvi  século,  a  importância  capital  que  teve  apimenta,  teve 
pelo  menos  um  dos  primeiros  logares,  e  talvez  logo  o  segundo  depois 
d'aquella  especiaria. 


'  Daria  1:013^760  réis;  mas  a  livre  franceza  era  maior  do  que  o  arrátel,  e  feita  a  reduc- 
çáo  teríamos  para  o  valor  do  quintal  portuguez  uma  quantia  próxima  a  um  conto,  e  mesmo 
inferior. 

'  Apezar  dos  meus  esforços,  não  me  foi  possível  encontrar  noticia  das  contas  d'estas  fei- 
torias, e  comtudo  estou  convencido  de  que  devem  existir  em  algum  dos  nossos  Archivos. 


Do  Cravo  383 

Antes  de  terminar  esta  curta  noticia  sobre  o  que  foi  o  commercio 
do  cravo  nas  mãos  dos  portuguezes,  devemos  chamar  a  attenção  para 
um  elemento  de  incerteza,  que  tira  parte  do  valor  a  alguns  dos  cál- 
culos que  fizemos.  Tomámos  a  relação  entre  o  valor  intrínseco  e  o 
poder  efíectivo  da  moeda,  que  foi  de  6  :  i  nos  fins  da  idade  media,  e 
passou  depois  a  4  :  i,  3  :  i  e  2  :  i  no  correr  do  século  xvi,  e  admittimos 
arbitrariamente,  que  essa  relação  se  dava  no  Oriente  como  se  dava 
na  Europa.  Isto,  para  mim,  está  longe  de  se  achar  provado.  Aquella  re- 
lação foi  deduzida  por  Leber,  por  Cibrario  e  por  outros  escriptores, 
do  estudo  paciente  de  muitos  factos  económicos,  peculiares  á  Europa. 
Esses  factos,  ou  parte  d'elles,  variavam  singularmente  nas  terras  orien- 
taes.  As  condições  da  vida,  a  distribuição  do  trabalho,  a  abundância 
dos  metaes  preciosos,  o  valor  relativo  da  prata  e  do  oiro,  toda  a  orga- 
nisação  social  e  económica,  difteriam  profundamente  do  que  se  dava 
no  nosso  Occidente.  Applicar  ao  Oriente  a  regra  económica,  deduzida  do 
estudo  dos  factos  observados  na  Europa,  foi  claramente  um  processo 
de  raciocínio,  arbitrário  e  fallivel.  Mas  esse  processo  era-nos  imposto 
pela  nossa  ignorância;  não  tinhamos  noticia  de  trabalho  algum,  em  que 
se  estudassem  estas  questões  na  sua  applicação  ás  regiões  orientaes,  e 
evidentemente  não  tinhamos  nem  meios  nem  competência  para  as  es- 
tudar directamente.  Unicamente,  pois,  podiamos  fazer  o  que  fizemos — 
admittir  empiricamente  uma  relação,  que  nos  servia  para  tornar  alguns 
números  mais  facilmente  comparáveis,  e  deixar  consignada  esta  nossa 
duvida. 

(Cf.  PharmaC;  25 1;  Yule,  Cathay,  3o5;  Dymock,  Mat.  med.,  828; 
Yule,  Marco  Polo,  h,  234;  Major,  índia,  17;  Lendas,  1, 102,11,  71 1 ;  Roteiro, 
III  e  ii5;  Duarte  Barbosa,  Livro,  372  e  383;  Subsidias,  no  Lyvro  dos 
pesos,  40,  e  no  Tombo,  112;  Couto,  Ásia,  iv,  vi,  9;  etc.) 

A  historia  posterior  do  commercio  do  cravo  interessa-nos  menos 
directamente,  e  pôde  resumir-se  em  breves  palavras,  No  começo  do 
XVII  século,  Portugal,  então  unido  á  Hespanha,  perdeu  o  dominio  das 
Molucas,  que  passaram  para  a  posse  dos  hoUandezes.  Estes  substituí- 
ram ao  antigo  monopólio  um  monopólio  diverso  e  mais  apertado.  Em- 
quanto  os  portuguezes  haviam  concentrado  na  sua  mão  o  commercio 
do  cravo,  deixando  a  cultura  e  colheita  á  gente  da  terra,  os  hollandezes 
fizeram-se  cultivadores.  Desenvolveram  as  plantações,  que  já  encontra- 
ram estabelecidas  em  Amboyna  e  ilhas  próximas,  e  mandaram  expedi- 
ções ás  Molucas  propriamente  ditas,  para  ali  destruírem  as  arvores  do 
cravo.  O  resultado  d'este  systema  não  foi  muito  feliz;  a  exportação  de 
Amboyna  e  outras  ilhas  decresceu  nos  séculos  seguintes,  e  tanto,  que 
na  ultima  metade  do  nosso  o  monopólio  da  cultura  pelo  estado  foi 
abandonado. 

Por  outro  lado,  alguns  pés  de  Caryophyllus  haviam  sido  introduzi- 
dos na  ilha  franceza  da  Reunião,  e  nas  ilhas  africanas  de  Pemba  e  Zan- 


384  Colóquio  vigésimo  quinto  do  Cravo 

zibar,  onde  a  cultura  se  desenvolveu  bastante;  mas  onde  não  tem  pros- 
perado muito  nos  últimos  annos. 

Hoje  o  cravo  do  commercio  vem  principalmente  d'estas  três  regiões: 
Amhoyna,  por  via  de  Java;  ilha  da  Reunião;  costa  africana  de  leste, 
por  via  de  Bombaym.  Mas  a  sua  importância  tem  diminuído  muito,  e 
já  não  é  a  famosa  e  procurada  especiaria  de  outros  tempos. 

(Cf.  Rumphius,  1.  c;  Crawfurd,  1.  c;  Pharmac,  1.  c;  Wallace,  The 
tnalay  archipelago,  3o5.) 


índice 


Privilegio  para  a  impressão  dos  Colóquios 3 

Dedicatória  do  auctor  a  Martim  Affonso  de  Sousa 4 

Soneto  do  auctor  a  Martim  AiTonso  de  Sousa ("> 

Ode  de  Luiz  de  Camões  ao  conde  de  Redondo,  Viso-rey  da  índia  7 

Prologo  do  licenciado  Dimas  Bosque 10 

Carta  do  licenciado  Dimas  Bosque,  ao  doutor  Thomaz  Rodrigues, 

lente  da  Universidade  de  Coimbra 12 

Epigramma  de  Thomé  Caiado  a  Garcia  da  Orta 14 

Colóquio  primeiro — Introducção 19 

Colóquio  segundo  —  Do  Aloés 23 

Colóquio  terceiro  —  Do  Ambre 45 

Colóquio  quarto  —  Do  Amomo 59 

Colóquio  quinto — Do  Anacardo 65 

Colóquio  sexto- — Do  Arvore  triste 6g 

Colóquio  sétimo  —  Do  Altith,  Anjuden,  Assa  fétida  e  Anil j5 

Colóquio  octavo — Do  Bangue    95 

Colóquio  nono — Do  Benjuy io3 

Colóquio  DECIMO — Do  Ber,  e  dos  Brindões,  dos  nomes  e  apellidos 

dos  reys  d'estas  terras 117 

Colóquio  undécimo  —  Do  Calamo  aromático,  e  das  Caceras 141 

Colóquio  duodécimo  —  De  duas  maneiras  da  Camfora,  e  das  Ca- 
rambolas    1 5 1 

Colóquio  decimo  terceiro  —  Do  Cardamomo,  e  das  Carandas. ...  173 

Colóquio  decimo  quarto  —  Da  Cássia  fistola 194 

Colóquio  decimo  quinto  —  Da  Canella,  e  da  Cássia  lignea,  e  do  Ci- 
namomo    201 

Colóquio  decimo  sexto — Do  Coquo  commum,  e  do  das  Maldivas  235 

Colóquio  decimo  sétimo  —  Do  Costo,  e  da  Colérica  Passio 255 

Colóquio  decimo  octavo  —  Da  Crísocola,  do  Croco  Indiaco,  e  das 

Curcas 277 

Colóquio  decimo  nono  —  Das  Cubebas 287 

Colóquio  vigésimo  —  Da  Datura,  e  dos  Doriões 295 

Colóquio  vigésimo  primeiro  —  Do  Ebur  ou  Marfim,  e  do  Elephante  3o3 

Colóquio  vigésimo  segundo  —  Do  Faufel,  e  dos  Figos  da  índia...  .  325 

Colóquio  vigésimo  terceiro  —  Do  Folio  indo 343 

Colóquio  vigésimo  quarto  —  Da  Galanga 353 

Colóquio  vigésimo  quinto  —  Do  Gravo 359 


*  Os  Índices  alphabeticos  serão  publicados  com  o  segundo  volume. 


i 


RS 

178 

07 

1891 

v.l 


:^   ^VdicaI 


Orta,   Garcia  de 

Colóquios  dos  simples  e 
drogas  da  índia 


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