Skip to main content

Full text of "Comedias de Luiz de Camões"

See other formats


<» 


104 
"CM 


r< 


EDIÇÃO   POPULAR 


PARA  COMMEMORAR  O  TRICENTENÁRIO 


DE 

LUIZ  DE  CAMÕES 


príncipe:   dos  poe:tas  peninsul.ars-s 


COMEDIAS 


DE 


LUIZ   DE   GAMÕES 


EDITOR 
A.   L.  LEITÃO 


^  •  LISBOA 
Typographia  Luso-Hespanhala 

Z','},   Travessa  (lo  Tabral,  '.i'ò 


Digitized  by  the  Internet  Archive 

in  2010  with  funding  from 

University  of  Toronto 


http://www.archive.org/details/comediasdeluizdeOOcam 


COMEDIAS 


DE 


LUIZ   DE   GAMÕES 


EDITOR 
A.   L.   LEITÃO 


^  '  LISBOA 
Typographia  Luso-Hespanhola 
Z'.'},  Travpssa  do  Cabral,  '.io 


1 .'  I .    X  !'  '• 


^~rr-  o  f^^ 


ELPiEI  SELEOGO 


INTERLOCUTORES 

Ko  Pi*oi«èço 

O  Mordome,  ou  Dono  áa  Casa. 

Martim  Chincliorro.  —  Ambrósio,  Escudeiro. 

Lançarote,  Moço. 

El-Rei  Seleuco.  —  A  Rainha  Estratonica. 

O  Príncipe  Antiocho.  —  Leocadio,  Pagem  do  Príncipe  Antioolio. 

Frolalta,  Criada  da  liainlia  Estratonica. 

Hum  Porteiro  da  Cana.  —  Huma  Moça  da  Camará. 

Hnm  Physico,  ou  Medico.  —  Sancho,  Moço  do  Physico. 

Alexandre  da  Fonseca,  hum  dos  Músicos. 


PROLOGO 


Diz  logo  o  Mordomo,  ou  Dono  dci  Casa. 

Eis,  Senhores,  o  Autor,  por  me  honrar  nesta  festival  noite,  me  quiz 
representar  huina  Farça  ;  e  diz,  que  por  nào  se  encontrar  com  outras  já 
feitas,  buscou  uns  novos  fundamentos  para  a  quem  tiver  hum  juizo  assi 
arrazoado  satisfazer.  E  diz  que  quem  se  delia  nào  contentar,  querendo 
outros  novos  acontecimentos,  que  se  vá  aos  soalheiros  dos  Escudeiros 
da  Castanheira,  ou  de  Alhos  Vedros  e  Barreiro,  ou  converse  na  Rua 
Nova  em  casa  do  Boticário  ;  e  nào  lhe  faltará  que  conte.  Porém  diz  o 
Autor  que  u  ou  nesta  obra  da  maneira  de  Isopete.  Ora  quanto  á  obra. 
se  não  parecer  bem  a  todos,  o  Autor  diz  que  entende  delia  menos  que 
todos  os  que  lha  puderem  emendar.  Todavia,  isto  he  para  praguentos: 
aos  quaes  diz  que  responde  com  hum  dito  de  hum  Philosopho,  que  diz: 
Vós  outms  estudastes  para  praguejar,  e  eu  para  desprezar  praguentos.  Eu 
com  tudo  quero  saber  da  Farça,  em  que  pooto  vai.  Lançarote? 

Moço 

Senhor. 

Mordomo 

Sào  já  chegadas  as  figuras  ? 

Moço 

Chegadas  são  ellas  quasi  ao  fim  de  sua  vida. 

Mordomo 

Como  assi  ? 

Moço 

Porque  foi  a  gente  tanta,  que  não  ficou  capa  com  friza,  nem  talão 
de  çapato,  que  nào  sahisse  fora  do  couce.  Ora  vierão  huns  embuçade- 
tes,  e  quizerào  entrar  por  força ;  ei-lo  arrancamento  na  mão  :  derâo 
huma  pedrada  na  cabeça  ao  Anjo,  e  rasgarão  huma  meia  calça  ao  Er- 
mitão ;  e  agora  diz  o  Anjo  que  não  ha  de  entrar,  até  lhe  não  darem  huma 
cabeça  nova,  nem  o  Ermitão  até  lhe  não  porem  huma  estopada  na  cal- 
ça. Este  pantufo  se  perdeo  alli  ;  mande-o  v.  m.  Domingo  apregoar  nos 
púlpitos ;  que  não  quero  aada  do  alheio. 


DE  LUIZ  DE  CAMÕES 


Mordomo 


Se  elle  fora  outra  peça  de  mais  valia,  tu  botaras  a  consciência  pela 
porta  fora,  para  o  metteres  em  tua  casa. 

Moço 

Oh  !  se  o  elle  fora,  mais  consciência  seria  tomá-lo  a  seu  dono,  qnem 
o  havia  mister  para  si. 

Mordomo 

Ora  vem  cá  :  vai  daqui  a  casa  de  Martim  Chinchorro,  e  dize-lhe  que 
temos  cá  Auto  com  grande  fogueira;  que  se  venha  sua  mercê  para  cá, 
e  que  traga  comsigo  o  Senhor  Romão  d'Alvarenga,  para  que  sobre  o 
Canto-chão  botemos  nosso  contra-ponto  de  zombaria.  Ouves,  Lançaro- 
te ?  ir-lhe-has  abrir  a  porta  do  quintal,  porque  mudemos  o  vinte  aos 
que  cuidào  de  entrar  por  força. 

Indo-se  o  Moço  diz  : 

Chichelo  de  Judeo,  assi  eomo  foste  pantufo,  que  te  custava  ser  hu- 
ma  bolsa  com  hum  par  de  reales,  que  sào  bons  para  Escudeiro  hypo- 
erita  ;  que  são  pouco,  e  valem  muito  ? 

Mordomo 

Moço,  que  estás  fazend©  que  não  vás  ? 

Moço 

Senhor,  estou  tardando,  e  porém  estou  cuidando  que  se  agora  fora 
aquelle  tempo,  em  qu3  corriào  as  moedas  dos  sambarcos,  sempre  deste 
tiraria  para  humas  palmilhas.  Mas  já  que  assi  he,  diga-me  v.  m.  que 
farei  deste? 

Mordomo 

Oh  fideputa  bargante  !  esperae,  que  est 'outro  vo-lo  dirá. 

Faz  que  lhe  atira  com  outro  pantufo:  vai-se  o  Moco^  e  diz  o  Mordomo: 

Não  ha  mais  máo  conselho,  que  ter  um  villão  d'estes  mimoso,  por- 
que logo  passão  o  pé  além  da  mão,  e  zombão  assi  da  gravidade  de  seu 
amo.  Mas  tomando  ao  que  importa ;  vossas  mercês  he  necessário  que 
se  cheguem  huns  para  os  outros,  para  darem  lugar  aos  outros  Senhores 
que  hão  de  vir;  que  de  outra  maneira,  se  todo  o  corro  se  ha  de  gastar 
em  palanques,  será  bom  mandar  fazer  outro  alvalade  :  e  mais,  que  me 
hão  de  fazer  mercê,  que  se  hão  de  desembuçar,  porque  eu  não  sei  quem 
me  quer  bem,  nem  quem  me  quer  mal:  este  sú  desgosto  tèe  hum  Auto, 


4: ;  COMEDIAS 

qiie  he  como  oíiicio  de  Alcaide  :  ou  haveis  deixar  entrar  a  todos,  ou  vos 
hào  de  ter  por  villào  ruim. 

Entra  Jlartim  Chinchorro. /aliando  com  o  'Escudeiro  Ambrósio,  ediz: 

Martim 
, .  Ç.ÇLtre^y.,  m.  <  Ir-ai .  ''• 

' '  Ambrósio 

Dias  ha,  Senhor,  que  ando  de  quebras  com  cortezias:  e  por  isso  vou 
diante.  Beijo  as  màos  a  v.  m.  A  verdade  he  esta,  passear  em  casa  jun- 
cada, fogueira  com  castanhas,  mesa  posta  com  alcatifa  e  cartas  •,  além 
disto  Auto  para  esgaravatar  os  dentes  :  esta  he  a  vida,  de  que  se  ha  de 
fazer  consciência. 

Mordomo 

Senhor,  o  descanço  dizem  lá,  que  se  ha  de  ter  em  quanto  homem 
puder,  porque  os  trabalhos,  sem  os  chamarem,  de  seu  se  vem  por  seu  pé, 
que  seu  nome  he. 

Martim 

Ora  pois.  Senhor,  o  Auto  que  tal  dizem  que  he  ?  Porque  hum  Auto 
enfadonho  traz  mais  sòmno  comsigo  que  huma  pregação  comprida. 

Mordomo 

Senhor,  por  bom  mo  venderão,  e  eu  o  tomei  á  cala  de  sua  boa  fama. 
E  se  tal  he,  eu  acho  que,  por  outra  parte,  nao  ha  tal  vida,  como  ouvir 
hum  villào,  que  arranca  a  falia  da  garganta,  mais  sem  sabor  que  huma 
pera-pào,  e  huma  donzella,  que  vem  podre  de  amor,  fallando  como  Apos- 
tolo, mais  piedosa  que  huma  lamentação. 

Martim 

Para  estes  taes  he  grande  peca  rapaz  travesso  com  molho  de  junco, 
porque  nào  andem  mais  ao  coscorrào,  mais  roucos  que  huma  cigarra, 
trazendo  de  si  enfadamento. 

Moço 

O  iá  Senhoras-,  pedem  as  figuras  alfinetes  para  toucarem  hum  Escu- 
deiro. Ora  sus,  ha  hi  quem  dó  mais?  que  ainda  vos  veja  todas  a  mim 
ás  rebatinhas:  ora  sus,  venliào  de  mano  em  mano,  ou  de  mana  em  mana. 

Mordomo 

Moço,  falia  bem  ensinado. 

Meço 

Senhor,  nào  faz  ao  caL^o  ;  que  os  erros  por  amores  tèe  privilegio  de 
oedeiro. 


DE  LUIZ  DE  CÁMUKS 


Ambrósio 


»5 


Ó  ripaz,  não  me  entendes?  Pergunto-te  se  tardarão  muito  por  en- 
trar. I  iUiiti  .' 

Moço 
Parece-me,  Senhor,  que  antes  que  amanheça  começarão. 
^^  •'■  Ambrósio 

Oh  que  salgado  moço  I  Zombas  de  mi  V  Vem  cá.  Donde  és  natural  ? 

Moço 
D'onde  qwer  que  me  acho. 

Ambrósio 

Pergunto-te  onde  nasceste. 

Moço  •       •■  '• 

Nas  mãos  das  parteiras. 

Ambrósio  «ií»  &d  4íují«í*  okí  l  orao  > 

Em  que  terra  ? 

•iii.oq    ti.  Moço  ••      ^    •'  ' 

Ioda  a  terra  he  huma;  e  mais  eu  nasci  em  casa  assobradada,  var- 
rida daquella  hora,  que  uào  havia  palmo  de  terra  nella. 

Martim 

Bem  varrido  de  vergonha  que  me  tu  pareces.  Dize:  Cujo  filho  és? 
He  para  ver  com  que  disparate  respondes. 

Moço 

A  fallar  verdade,  parece-me  a  mi,  que  eu  sou  filho  de  hum  meu  tio. 

Martim. 

Vem  cá.  De  teu  tio  !  E  isso  como  ?  '^ 

o 'Moço 

vHjComo?  Isto,  Senhor,  he  adivinhação,  que  vossas  mercês  não  enten- 
tem.  Meu  pae  era  Clérigo,  e  os  Clérigos  sempre  chamão  aos  filhos  so- 
brinhos; e  daqui  me  ficou  a  mi  ser  filho  de  meu  tio. 

Martim.  >í5-irffrnH-:r 

Ora  te  digo  que  és  gracioso.  Senhor,  donde  houvestes  est*;  ?    ''"  ® 


COMr.DIAS 


Mordomo 


Aqui  me  veio  ás  mãos  sem  pios  nem  nada ;  e  eu  por  gracioso  o  to- 
mei ;  e  mais  tèe  outra  cousa,  que  huma  trova  fa-la  tão  bem  como  vós, 
ou  como  eu,  ou  como  o  Chiado. 

Ambrósio 

Nà#  !  quanté  disso  nós  hav^mos-lhe  de  vêr  fazer  alguma  cousa,  em 
quanto  se  vestem  as  figuras.  Aindaque,  para  que  he  mais  Auto,  que 
vêraios  a  este  ? 

Mordomo 

Vem  cá,  moço:  dize  aquella  trova  que  fizeste  ámoça  Briolanja,  por 
amor  de  mi ! 

Moço 

Senhor,  si,  direi;  mas  aquella  trova  nào  he  senão  para  quem  a  en- 
tender. 

Martim 

Como  !  tão  escura  he  ella  ? 

Moço 

Senhor,  assi  a  fiz  e  a  escrevi  na  memoria,  porque  eu  nao  sei  escre- 
ver senão  com  carvão;  e  porém  diz  assi: 

Por  amor  de  vós,  Briolanja, 

Ando  eu  morto, 

Pezar  de  meu  avô  torto. 

Martim 

Oh  como  he  galante  í  Que  descuido  tão  gracioso  !  Mas  vem  cá:  que 
culpa  te  têe  teu  avô  nos  desfavores  que  te  tua  dama  dá  ? 

Moço 

Pois,  Senhor,  se  eu  houve  de  pezar  de  alguém,  não  pezarei  eu  an- 
tes dos  meus  parentes,  que  dos  alheios  ? 

Mordomo 

Pois  oução  vossas  mercês  a  volta;  que  he  mais  cheia  de  gavetas, 
que  trombeta  de  Sereníssimo  de  la  Valia. 

Moço 

A  volta,  Senhores,  he  mui  funda;  e  pa:ece-me.  Senhores,  que  nem 
àe  mergulho  a  entenderão.  £  por  isso  mandem  assoar  os  engenhos,  e 


DE  LUIZ  DE  CAMUES  i 

metào  mais  hiuiía  sardinha  no  entendimento;  e  pode  ser  que  com  esta 
servilha  lhe  calçai'á  melhor:  e  todavia  paira  assi: 

Vossos  olhos  tao  daninhos 

Me  tratarão  de  feição, 

Que  não  ha  em  nifu  coração 

Em  que  atem  dous  réis  de  cominhos. 

Meu  bem  anda  sem  focinhos 

Por  vós  morto, 

Pezar  de  meu  avô  torto . 

Martiin 

Ora  bem  :  que  tèe  de  ver  os  cominhos  com  o  teu  coração? 

Moço 

Poig,  Senhores,  coração,  bofes,  baço  e  toda  a  outra  mais  cabedella, 
não  se  podem  comer  senão  com  cominhos:  e  mais,  Senhores,  minha  da- 
ma era  tendeira;  e  este  he  o  verdadeiro  entendimento. 

Martim 

E  aquella  regra  que  diz,  Meu  hem  anda  sem  focinhos,  me  dá  tu  a 
entender;  que  ella  não  dá  nada  de  si. 

Moço 

Nunca  vossas  mercês  ouvirão  dizer.  Meu  bera  e  meu  mal  lutarão  li nm 
dia;  meu  bem  era  tal,  que  meu  mal  o  vencia  f  Pois  d'esta  luta  foi  ta- 
manha a  queda  que  meu  bem  deo  entre  humas  pedras,  que  quebrou  os 
focinhos  ;  e  por  hcarem  tão  esfarrapados,  que  lhe  não  podião  botar  pe- 
daço; p-jr  conselho  dos  Phvsicos  lhos  cortarão  por  lhe  nelles  não  salta- 
rem erpes;  e  daqui  ficou:  Meu  bem  anda  sem  focinhos,  como  diz  o  texto. 

Ambrósio 

Tu  fazes  ja  melhores  argumentos,  que  moços  de  estudo  por  dia  de 
S.  Nicoláo. 

Martim 

Senhor,  aquillo  tudo  he  bom  engenho:  este  moço  he  natural  para 
Lógico . 

Moço 
Que,  Senhor  !  Natural  para  loja  !  Si,  mas  não  tão  fria  como  vossas 
mercês. 

Mordomo 

Parece-me,  Senhor,  que  entra  a  primeira  figura.  Moço,  mete-te  aqui 
por  baixo  desta  mesa,  e  oaçamos  este  Representador,  que  vem  mais 
amarrotado  dos  encontros,  que  hum  capuz  roxo  de  piloto  que  sahe  em 
terra,  e  o  tira  da  arca  de  cedro. 


o  COMEDIAS 

Martim 

Senhor,  elie  parece  que  aprende  a  cirurgião. 

Ambrósio 

Maia  parece  ourinol  capadu,  que  anb  a  de  amores  com  a  menina  do'» 
olhos  verdes. 

Mordomo 

Emfim,  parece  figura  de  Auto  em  verdade. 

Kntra  o  Representadur 

He  lei  de  direito,  assaz  verdadeira. 
Julgar  por  si  mesmos  aquillo  que  vem  : 
.   Peloquo,  se  cuidào  que  zombo  de  alguém. 
Eu  cuido  que  zombào  da  mesma  maneira. 

E  assi  a  qualquer  parece  que  está  mais  dobrado,  sem  nenhum  conhecer 
seu  próprio  engano,  por  grande  que  seja.  Ora,  senhores,  a  mim  me  es- 
quece o  dito  todo  de  ponto  em  claro :  mas  nào  sou  de  culpar,  porque 
nào  ha  mais  que  três  dias  que  mo  derào.  Mas  em  breves  palavras  direi 
a  vossas  mercês  a  summa  da  obra :  ella  he  toda  de  rir,  do  cabo  até  á 
ponta.  Entrarão  logo  primeiramente  quinze  donzellas  que  vào  fugidas 
de  casa  de  seus  pães,  e  vão  com  cabazes  apanhar  azeitona;  e  traz  ellas 
vem  logo  oito  mundano.s,  metidos  eni  hum  covào,  cantando:  Queiii  o.v 
amores  tòc  em  Cintra:  e  despois  de  c;uii.arc'm  farào  huma  dança  de  es- 
padas; cousa  muito  para  vêr:  entra  mais  El-E,ei  D.  Sancho  bailando 
os  machatius,  e  entra  logo  Catharina  Real  com  huns  poucos  de  parvos 
n'huma  joeira:  e  semeá-los-ha  pela  casa,  de  que  nascerá  muito  manti- 
mento ao  riso.  E  nisto  fenecerá  o  Auto,  com  musica  de  chocalho  e  bu- 
zinas, que  Cupido  vem  dar  a  huma  rdfeloeira  a  quem  quer  bem :  e  ir- 
se-hao  vossas  mercês  cada  Imm  para  suas  pousadas,  ou  consoarão  cá 
comnosco  disso  que  ahi  houver.  Ora  pois  ficareis  m  vaniim  laboravorunt, 
porque  atégora  zombei  de  vós.  por  me  forrar  do  erro  da  representação, 
como  quem  diz,  digo-to,  ardes  que  mo  digas.         i^^W-ja  «t.  -f  • 

Ambrósio 

Ora  vos  digo,  Senhores,  que  se  as  figuras  sào  todas  taes,  que  acor- 
tariSo  em  errar  os  ditos  :  ainda  que  me  parece  que  este  o  nào  fez,  senào 
a  ser  mais  galante.  Mas  se  assi  he,  ella  é  a  melhor  iuvençào  que  eu  vi: 
porque  jágora  representações,  todas  he  darem  por  praguentos;  e  sào  tào 
certas,  que  he  melhor  erra  las,  que  acertá-las. 

Xordomo 

Parece-me  que  entrão  as  figuras  de  sIpo:  vejamos  se  síiio  tào  galan- 
tes na  prática,  como  nos  vestidos. 


DE  LUIZ   DE  CAMÕES 


Entra  El- Bei  Hdtiico,  com  a  Rai- 
nha Esfratonica. 

Rei 

Senhora,  desque  a  ventura 
Me  quiz  dar- vos  por  mulher, 
Me  sinto  emraeninccer ; 
Porqu'em  vossa  formosura 
Perde  a  velhice  seu  ser. 
Hum  liomem  velho,  cansado, 
Não  t?e  força,  nem  vigor, 
Para  em  si  sentir  amor : 
Se  não  he  qu'estou  mudado 
Com  ser  vosso  n'outra  côr. 
Muito  grande  dita  tem 
A  mulher  que  he  formosa. 

Rainlia 

Senhor,  griínde :  mas  porém 
Se  a  tal  he  virtuosa, 
Quer-lhe  a  ventura  mor  bem. 

Rei 

Si,  mas  porém  imnca  vemos 

A  natlireza  esmerar 

Adonde  haja  que  taxar; 

Que  quando  ellg,  faz  extremos, 

Y.xn  tudo  (|uer-se  cxtremur. 

Eu  fallo  como  qiiem  sente  '  ' 

Em  vós  esta  culidade, 

Pelo  que  vejo,  presente: 

E  se  me  esta  mostra  mente, 

Mente- me  a  mesma  verdade. 

Huma  8Ó  tristeza  tenho 

Que  nào  t^-e  a  nieniiiice, 

Que  no  mor  contentamento 

O  trabalho  da  velliice 

Me  embaraça  o  sentimento. 

Rainha 

Senhor,  novidades  tais 
Far-mo  hào  crer  de  verdade... 


Rei 

I  Novidades  lhe  chamais  ! 
I  Folgo,  Senhora,  que  achais 
j  Na  velhice  novidades. 

I  Rainha 

i  Senhor,  dias  ha  que  sento 

1  Em  o  Principe  Antiócho 

I  Certo  descontentamento  : 

I  Dera  alguma  cou-a  a  troco 
Por  saber  seu  sentimento. 
Vejo-lhc  ainarello  o  rosto. 
Ou  de  triste,  ou  de  doente  : 
Ou  elle  anda  mal  disposto, 
Ou  lá  t?e  certo  desgosto 
Que  o  nào  deixa  ser  contente. 
Mande,  Senhor,  vossa  Alteza 
A  chamá-lo  por  alguém. 
Saberemos  que  mal  tem, 
Se  he  doença  de  tristeza, 
De  que  nasce,  ou  de  que  vem. 

Rei 

Certo  qu'eu  me  maravilho  , no  o.V/ 
Do  que  vos  ouço  dizer. 
Que  mal  p-Vlê  nelle  haver  ? 
Ide  dizer  a  meu  lillio  ,<.<)qtn: 
Que  me  veiiha  logo  ver. 

JElainha 

apioq  1:1 

Se  curar  nào  se  procura 

Huma  cousa  destas  tais, 
Vem  despois  a  crescer  mais. 
Quando  ja  níío  se  acha  cura, 
Toda  a  cura  he  por  demais. 

Entra  o  Pi-íncipe  Aniiocha^  com  seu 
pagem  par  nome  Leocadio. 

Principe 

Leocadio,  se  és  avisado, 
E  nào  te  falta  saber, 
Saber-me-has  dar  a  entender, 


10 


COMEDIAS 


Quem  ama  desesperado, 
Que  fim  espera  de  haver? 

Pagem 

Senhor,  não. 

Mas  porém  porque  razào 

Lhe  avem  sabê-lo,  ou  de  que? 

Príncipe 

Pergunto-te  a  couclusào ; 
Não  me  perguntes  porque. 
Porque  he  minha  pena  tal, 
E  de  tao  estranho  ser, 
Que  me  hei  de  deixar  morrer ; 
E  por  não  cuidar  no  mal 
O  não  outío  de  dizer. 
Que  maneira  de  tormento 
Tão  estranho  e  evidente, 
Que  nem  cuidar  se  consente ! 
Porque  o  mesmo  pensamento 
Ha  medo  do  mal  que  sente. 

Pagem 

Não  entendo  a  Vossa  Alteza. 

Príncipe 

Assi  importa  á  minha  dor. 

Pagem 

E  porque  razão,  Senhor? 

Príncipe 

Para  que  seja  a  tristeza 
Castigo  do  meu  temor. 
Porque  ordena 
O  Amor,  que  me  condena, 
Qne  se  haja  de  sentir, 
E  sem  dizer  nem  ouvir. 
Bem-aventurada  a  pena 
Que  se  pode  descobrir  ! 
Oh  caso  grande  e  medonho ! 
Oh  duro  tormento  fero  ! 
Verdade  he  isto,  qu'eu  quero? 
Não  he  verdade,  mas  sonho 
De  que  acordar  não  espero. 


Quero-me  chegar  a  ElRei 
Meu  pae,  que  ja  m'está  vendo. 
Mas  onde  vou  ?  Na  o  m'enteudo. 
Com  que  olhos  eu  olharei 
Hum  pae,  a  quem  tanto  otFendo? 
Que  novo  modo  de  antolhos  ! 
Porque  neste  atrevimento 
Devera  meu  sentimento 
Para  elle  não  ter  olhos, 
Nem  para  ella  pensamento. 

Chega  onde.  está  ElRei 

Rei 

Filho,  como  andais  assi? 
Que  tanto  desgosto  tomo 
De  vos  ver  como  vos  vi ! 

Príncipe 

Não  sei  eu  tanto  de  mi, 
Que  possa  saber  o  como. 
Dias  haja,  Senhor,  que  ando 
Mal  disposto,  sem  suber 
Este  mal  que  pessa  ser  ; 
Que  se  nelle  estou  cuidando-, 
Quasi  me  vejo  morrer. 

Rei 

Pois,  filho,  será  razão 

Que  meus  Physicos  vos  vejão. 

Príncipe 

Os  Physicos,  Senhor,  não  ; 
Que  os  males  qu'em  mi  estão, 
São  curas  que  me  sobejão. 

Rainha 

Deite-se;  que  na  verdade 
Hum  corpo,  deitado  e  manso, 
Descansa  á  sua  vontade. 

Príncipe 

Senhora,  esta  enfermidade 
Não  se  cura  com  descanso. 


DE  LUIK  DB  CAMUES 


11 


Hainlia 

Todavia,  bom  será 

Que  lhe  facão  huma  cama. 

Príncipe 

fHum  coxim  abastará. 
Que  assi  não  descansará 
O  repouso  de  quem  ama.) 

Rei 

Vamos,  filho,  para  dentro. 
Em  quanto  a  cama  se  faz  : 
Repousae  como  capaz ; 
Que  a  mi  me  dá  cá  no  centro 
A  pena  que  assi  vos  traz. 

Vão -se,  e  vem  huma  moça  afazer 
a  cama  e  diz : 

Moça 

Mimos  de  grandes  Senhores, 

E  suas  extremidades, 

Me  hão  de  matar  de  amores. 

Porque  de  meros  dulçores 

Adoecem. 

Então  logo  lhes  parecem 

Aos  outros,  que  são  mamados  ; 

E  os  que  são  mais  privados. 

Sobre  elles  estremecem. 

Certo  (e  assi  Deos  me  ajude  !) 

Que  são  muito  graciosos, 

Porque  de  meros  viçosos. 

Não  podem  com  a  saúde. 

Mas  deixallos. 

Porque  elles  darão  nos  vallos, 

Donde  mais  não  se  erguerão, 

Inda  que  lhe  dem  a  mão 

Os  seus  privados  vassallos. 

Entra  um  Porteiro  da  Cana,  e  ba- 
te primeiro  e  diz  : 


Moça 

Jesu !  Quem  'stá  ahi  ? 

Porteiro 

Ja  vós,  mana,  éreis  mamada  : 
Para  vos  levar  furtada 
Nunca  tal  ensejo  vi. 
E  vós  estais  descuidada! 

Moça 

E  meus  descuidos  que  fazem? 

Porteiro 

Vossos  descuidos  ?  cadella ! 
Ah  minh'alma !  Sois  tão  bella, 
Qu'esse3  descuidos  me  trazem 
Dous  mil  cuidados  á  vela. 
Pois  sou  vosso  ha  tantos  armos, 
Mana,  tirae  os  antolhos, 
E  vereis  meus  tristes  dannos. 

Moça 

Não  tenhais  esses  enganos. 

Porteiro 

Nem  vós  tenliais  esses  olhos  ; 
Que  de  vossos  olbos  vem 
Esta  minha  pena  fera. 

Moça 

De  meus  olhos?  Assim  era. 

Porteiro 

Moça,  que  taes  olhos  tem. 
Nenhuns  olhos  vêr  devera. 


E  porque? 


Porteiro 


TraZ)  traz. 


Moça 
Porteiro 


Porque  cegais 
A  quantos  olhos  olhais, 
Postoque  por  vós  padecem. 
Olhos,  que  tão  bem  parecem, 
Porque  não  os  castigais? 


12 


COMEDIAS 


Moça  I 

I 

Deos  dê  siso,  pois  de  vós 
Tirou  o  qne  aos  outros  deu. 

Porteiro 

Desatae-me  lá  esses  nós. 
Que  Diais  siso  quero  eu, 
Que  nào  ter  siso  por  vós? 

Moça 

Fallaií  d'arte ;  eu  vos  prometo 
Que  a  resposta  vem  á  vela. 
Isso  é  úlho  de  pauella. 
Quauto  ha  já  que  sois  discreto? 

Porteiro 

Quanto  ha  já  que  vós  sois  bella  ? 

Moça 

Dais -me  logo  a  entender 
Que  eu  sou  feia,  a  meu  ver. 

Porteiro 

E  isso  porque  o  entendeis  ? 

Moça 

Porque?  Porque  me  dizeis 
Que  S'')  de  meu  parecer 
Vos  procede  o  que  sabeis. 

Porteiro 

He  verdade. 

Moça 

Pois  bem  sento 
Que  o  vosso  saber  é  vento. 
Fica  a  cousa  declarada, 
Meu  parecer  nào  ser  nada. 

Porteiro 

Olhae  aquelle  argumento  : 
Além  de  bella,  avisada! 
Oh  nem  tanto,  nem  tào  pouco ! 
Vede  vós  o  que  fallais. 


Moça 

Cego  no  saber  andais. 

,   Porteiro 

Xo  siso,  mas  não  tào  louco 
Como  vós,  mana,  cuidais. 
Ora  dizei,  duna  má  : 
Que  nào  amais,  quem  vos  ama? 

Moça 

Ouvistes  vós  cantar  ja, 
Velho  maio,  em  minha  cama? 
Ja  m'entendereis. 

Porteiro 

Ha,  ha. 
Senhora,  estaes  enganada; 
Que  com  huma  capa  e  espada, 
E  com  este  capuz  tora.  .  . 

Moça 

Ora  bem  :  tirae-o  ora. 
E  fazei  huma  levada. 

Porteiro 


U 


3 


Não :  se  m'eu  hoje  alvoroço, 
Achar-me-heis  d"outra  feicâo.      * 

Aqui  tira  o  capuz  \* 

Porteiro 

Tenho  má  disposição? 
Estas  obras  são  de  moço, 
Se  as  montras  de  velho  sâo. 

Moça 

Tendes  mui  gentis  meneios.        .^.j 

Porteiro  ^^ 

Não,  Senhora  ;  faço  extremos.     ;A 

Moça 

Passeae  ora,  veremos 

Se  tendes  tão  bons  passeioSf  xã^T 


DE  LUIZ  DE  CAMÕES 


13 


Porteiro 
Tudo,  Senhora,  faremos. 

Meça 
Virae  ora  a  essoutra  mào. 

Porteiro 

Esta  dispo8Íçuo  víicle-a- 
Que  tenho  gentil  feiçào. 

Moça 

Tendes  vós  inui  boa  rédea, 
Soôreis  ancas  ? 

Porteiro 

Isso  nào. 

Moça 

Por  certo  que  tendes  ^aça 
Em  tudo  quanto  fizerdes. 
Fazei  mais  o  que  souberdes. 

Porteiro 

Nào  sei  cousa  que  nào  faça, 
Senhora,  por  me  quererdes. 

Moça 
Tendes  vós  muito  bom  ar. 

Porteiro 
Mais  qu'isto  faz  quem  quer  bem. 

Meça 

I-vos  asinha,  que  vem 
O  Principe  a  -n  deitar. 

Porteiro 
Nunca  huma  pessoa  tem 
Hum'hora  para  fallar ! 

Entra  o  Princrpf.  ci.m  o  seu  Pagetn 
Leocadio  e  diz: 

Principe 
Seja  a  morte  apercebida; 


Porque  já  o  ÃrríÓf  orSena 
A  dar  a  meu  mal  sabida; 
Porque  o  íim  da  minha  vida 
O  seja  da  minha  pena. 
Não  tarde,  para  tomar 
Vingança  de  meu  querer, 
Pois  nào  pe  pode  dizer 
Que  nào  tèe  ja  que  esperar, 
Xem  com  que  satisfazer? 
Os  Physicos  vem  e  vào, 
Sem  sabereín  minhas  mágoas. 
Nem  o  pnlso  me  acharào; 
E  se  o  querem  vér  nas  ágoas. 
As  dos  olhos  lho  dirào. 
Se  com  sangrias  também 
Procurào-me  vér  curado: 
O  temor  de  meu  cuidado 
O  mais  do  sangue  me  tem 
Nas  veias  todo  coalhado. 
Quero-me  aqui  fucostar, 
Que  ja  o  esprito  me  cae. 
Leocadio,  vac-me  chamar 
Os  Músicos  de  meu  Pae; 
Folgarei  de  ouvir  cantar. 

Aqui  Hd  deito..   <:',i..o  que  repousa, 
e  falia  dizendo  assi: 

Senhora,  qual  desatino 
]Me  trouxe  a  tanta  tristura? 
Foi,  senhora,  por  ventura 
A  força  do  meu  destino, 
Como  vossa  formosura? 
B=ím  conheço  que  nao  posso 
Ter  tào  alto  pensamento: 
Mas  disto  só  me  contento, 
Que  se  paga  com  ser  vosso 
O  mór  mal  de  meu  tormento. 

Entrào  os  Mu.ricos  e  diz  Alexandre 
da  Fon.-eca.,  Jiuia  delles: 

Alexandre 

Senhor,  de  quo  se  acha  mal 
O  principe,  ou  que  mal  sente? 


u 


COMEDIAS 


Pagrem 


Senhor,  sei  que  está  doente; 
Mas  sua  doença  he  tal, 
Qu'entender  se  não  consente. 
Os  Physieos  vem  e  vào, 
Huns  e  outros  a  meude, 
Sem  o  poderem  dar  são. 
Quanto  mais  cura  lhe  dão, 
Então  tèe  menos  saúde. 
O  Pae  anda  era  sacrifícios 
Aos  deoses,  que  lhe  dem 
A  saúde  que  convém; 
Dizendo  que  por  seus  vícios 
O  mal  a  seu  fílho  vem. 
Eu  suspeito  qu'isto  são 
Alguns  novos  amorinhos, 
Que  terá  no  coração. 

Alexandre 

Amores !  com  quem  serão, 
Que  lhe  não  dem  de  focinhos? 

Porteiro 

Senhores,  que  lhe  parece 
Da  doença  de  Antiôcho? 

Alexandre 

Diga -lha  quem  lha  conhece 

Pagem 

Que  toma  morrer  a  troco 
De  callar  o  que  padece 

Porteiro 

Isso  he  estar  emperrado 
Na  doença;  que  he  peor. 
Tèe-no  os  Physieos  curado? 

Alexandre 

Oh !  que  de  mal  dei  amor 
No  ha,  SeCor,  sanador. 

Porteiro 

Fallais  como  exprimentado; 


Qu'eu  cuido  que  esta  fadiga. 
Que  o  faz  com  que  desespere ; 
Y  por  mas  tormento  quiere 
Que  se  sienta,  y  no  se  diga. 

Alexandre 

Pois,  Senhor  meu,  isso  asselle, 
Porque  a  pena,  que  sabeis, 
Que  eu  cuido  que  está  nelle, 
Dar-lhe-ha  penas  cruéis, 
Pues  no  hay  quien  la  consuele. 

Porteiro 

Folgo,  porque  m'entendeis. 

Pagem 

Hemo-nos,  Senhores,  de  ir, 
Porque  nos  está  'sperando. 

Porteiro 

Pois  eu  também  hei  de  ir; 
Que  não  me  posso  espedir 
Donde  vejo  estar  cantando. 

Príncipe 

Cantae,  por  amor  de  mi, 
Alguma  cantiga  triste ; 
Que  todo  meu  mal  consiste 
Na  tristeza  em  que  me  vi. 

Porteiro 

Mande-lhe  cantar  hum  chiste. 

Alexandre 

Chiste  não,  que  he  deshonesto, 
E  não  tèe  esses  extremos  : 
Outro  canto  mais  modesto ; 
Porém  não  sei  que  diremos. 

Pagem 

Gaoleão  o  dirá  presto. 

Porteiro 

Dá  licença  V.  Alteza 
Que  diga  minha  tenção  ? 


DE   LUIZ  DN  CAMÕES 


15 


Príncipe 

Dizei  :  seja  em  canto- chào. 

Porteiro 

Pois  crede  qu'he  subtileza, 
Qu'o8  Anjos  a  comerão. 
Digão  esta  : 

Enforquei  minha  esperança, 
E  o  Amor  foi  tão  madraço, 
Que  lhe  cortou  o  baraço. 

Alexandre 

Não  me  parece  essa  boa. 

Porteiro 

Haja  eu  perdão, 

Porque  não  a  entenderão. 


Entender 


Alexandre 


Porteiro 


Bofe  qu'he  boa  : 
Não  lhe  cahis  na  feição? 

Alexandre 

Dizei  ora  outra  melhor, 
Ck)m  que  nos  atarraqueis. 

Porteiro 

Ora  esperae,  e  ouvireis : 
Se  a  esta  não  dais  louvor. 
Quero  que  me  degoUeis. 

Cantiga 

Com  vossos  olhos  Gonçalves, 
Senhora,  captivo  tendes 
Este  meu  coração  Mendes. 

Alexandre 

Essa  parece  mui  taibo, 
Porque  mostra  bom  indicio. 


Porteiro 

Vós  cuidareis  qu'eu  que  raivo. 

Alexandre 

Todavia  tèe  máo  saibo. 
Ora  mal  lhe  corre  o  officio. 

Príncipe 

Tá,  não  vá  mais  por  diante 
A  zombaria,  que  he  má : 
Cantae  qualquer  delias  ja  ; 
Qu'esse  Porteiro  he  galante. 
Ninguém  o  contentará. 

Aqui  cantão,  e  acabando,  diz  o 

Pagem 

Parece  que  adormeceo. 

Porteiro 

Pois  será  bom  que  nos  vamos. 

Alexandre 

Senhor,  quer  que  nos  vejamos  ? 

Porteiro 

Senhor  vir-me-ha  do  Ceo  : 
Releva-me  que  o  façamos. 

Entra   a  Bainha    com  huma  sua 
Criada  par  nome  Frolalta,  e  diz : 

Rainha 

Frolalta,  como  ficava 
Antiôcho  em  te  tu  vindo  ? 

Frolalta 

Ficava-se  despedindo 
Da  vida  qu'então  levava, 
E  assi  seus  dias  cumprindo. 

Rainha 

Oh  grave  caso  d'amor  ? 
Desesperada  affeiçào  ! 


16 


COMEDIAS 


Oh  amor  sem  redempçào, 
Que  alli  te  fazes  maior 
Onde  tens  menos  rasào  ! 
No  mais  alto  e  fundo  pego 
Alli  tens  maior  porfia  : 
Rasào  de  ti  nào  se  fia. 
Quem  a  ti  te  chamou  cego, 
Mui  bem  soube  o  que  dizia. 
Por  ventura  liia  chorando  ? 

Frolalta 

Chorando  hia  c  chamando 
Ao  Amor,  Amor  cruel  ; 
E  em,  Senhora,  se  deitando 
Lhe  cahio  este  papel. 

Rainha 

Que  papel  ? 

Frolalta 

.  Este,  Senhora. 

Rainha 

Amostra,  que  quero  lê-lo. 
Agora  acabo  de  crê-lo  ^ 
Que  ao  que  mostra  per  fora, 
Aqui  lhe  lançou  o  sello. 

Aqui  Ic  o  painel 

Oh  estranha  pena  fera  ! 
Desditosa  vida  chara  ! 
Oh  quem  nunca  cá  viera, 
E  com  seu  Pao  niio  casara, 
Ou  em  casando  morrera  ! 

Frolalta 

Aindaque  eu  peca  sào, 
Senhora,  tudo  bem  vejo. 
Attentf",  que  na  eleioJio 
O  que  lhe  pede  o  desejo 
Nào  consente  o  coração. 

Rainha 

Frolalta.  pois  qu'és  discreta 
Nada  te  posso  encobrir  •, 


Porque,  se  queres  sentir, 
A  huma  mulher  discreta 
Tudo  se  ha  de  descobrir 
O  dia  qu'eatrei  aqui, 
Que  a  Seleuco  recebi. 
Lego  nesse  mesmo  dia 
No  Príncipe  filho  vi 
Os  olhos  com  que  me  via. 
Este  principio  soffri-lho, 
Para  vêr  se  se  mudava ; 
Antes  mais  se  accrescentava  : 
Eu  amava-o  como  filho, 
E  eile  d'outr'arte  me  amava. 
Agora  vcjo-o  no  fim 
Por  se  me  níto  declarar. 
E  pois  ja  que  a  isso  vim, 
A  morte  que  o  ícvar, 
Me  leve  também  a  mim. 
Porque  ja  que  minha  sorte 
Foi  tào  crua  e  desabrida, 
Que  me  nào  quer  dar  ganida  ; 
Sejamos  juntos  na  morte. 
Pois  o  nào  somos  na  vida. 
Oh  quem  me  mandou  casar, 
Para  vêr  tal  crueldade  I 
Ninguém  venda  a  liberdade, 
Pois  nào  pode  resgatar 
Onde  não  tee  a  vontade. 
Que  nào  ha  mor  desvario. 
Que  o  forçado  casamento 
Por  alcançar  alto  assento; 
Que,  emtím,  todo  o  senhorio 
Está  no  contentamento. 
Não  sei  se  o  vá  vêr  agora. 
Se  será  tempo  conforme, 
Ou  se  imos  a  deshora. 

Frolalta 

Despois  iremos,  Senhora, 
Que  agora  dizem  que  dorme. 

Entra  o  Physico  a  tomar-lhe  opid- 

so,  e  tomando -o  diz  : 

Physico 
Su  madrasta  oyó  nombrar. 


LUíZ  DK  CAMÕES 


17 


Y  el  pulso  se  le  aiteró  : 
Esto  uo  entiendo  yo. 
Porque  para  le  alterar 
El  corazou  le  obligó. 

Pues  que  el  corazon  «e  altere, 
Es  porque  en  un  uiomento 
Algun  uuevo  venciíniento 
De  afícion  terrible  le  hiere, 
Que  causa  tal  movimiento. 
Pues  que  aíicion  cabe  así 
Con  madrasta  ?  Digo  yo, 
Dos  razones  hay  aqui  : 
La  una  dice,  que  si, 
La  otra  dice,  que  no. 
Empero  yo  determino 
De  exprimentar  la  verdad. 

Y  hacer  una  habilidad. 
Que  declare  es  agua,  ó  \'iuo 
Esta  su  enfermedad. 
Porque  toda  esta  mailana 
Tengo  estudiado  su  mal, 
8in  ver  causa  efectuai 

De  su  dolência  inbumana. 
Ni  otra  de  su  metal. 
Llamar  quiero  este  asncjon  : 
Mas  aun  debe  de  dormir, 
Segun  que  es  dormilon, 
Sancho  V  ó  Sanclio  ? 

Sancho 

Ah  Seíior. 

Physico 

Ea,  aun  estás  dormieudo  ? 

Sanclio 

Estoyme,  Reijor,  vestiendo, 

Physico 

Paes  vellaco  y  sin  cahor. 
No  me  respondes  dormieudo  V 
Vestios  presto,  ladron. 
Oh  qué  mozo,  y  que  ventura  I 

Sancho 

(Mas  qué  amo  y  qu»*  cabron  I) 

2 


Embíeme  aoá  el  ropoii. 
Que  no  bailo  mi  vestidura. 

Physico 

Que  embie  el  ropon  acá  ? 
Parece  que  os  desmandais. 

Sancho 

Que  vaya,  Senor?  ha,  ha. 
Que  buenos  dias  hayais. 

Entra  o  moço  embrulhada  em  huma 
manta. 

Physico 

Di  como  vienes  así 

Con  la  manta,  y  para  qué? 

Sancho 

Yo,  Senor,  se  lo  diré: 

Por  venir  presto  vesti 
:  Lo  que  mas  presto  me  hallé: 
■   Porque  viendo  que  èl  me  Uama, 

Dormiendo  yo  sin  afan, 
;  Salte  presto  de  la  cama. 

Que  parezco  un  gavilan, 
i  Hermoso  como  una  dama. 

Physico 

Mas  es  tu  bovedad  tanta. 
Que  vienes  desta  facion? 

Sancho 

De  mi  vestido  se  espanta? 
,  De  noche  sirve  de  manta, 
'  Y  de  dia  de  ropon. 

Physico 

Embióme  ElRey  á  llamar 
Utra  vez. 

Sancho 

Y  á  mi? 

Physico 

Y  áti! 


18 


COMEDIAS 


Sanolio 

Y  él'qué  presta  allá  sin  mi? 

Physico 

Qaé  puedes  tu  aprovccliar? 

Sancho 

Yo  se  lo  dii*c  de  aqui: 
Si  por  la  ventura  quiere 
Para  que  le  dé  coní>ejo. 
Guando  doliente  estuviere: 
Di^ro,  coma,  si  pudiere, 

Y  beba  buen  vino  auejo; 
Porque  este  es  el  licor 

Que  dá  fuerza.  y  es  sabroso; 
Que  seguu  dicen,  Sciior. 
Vinvm  íietificat  cor 
Hominis,  y  le  es  proveehoso. 

Physico 

Ya  sabes  la  medicina, 
Que  Avicena  nos  refiere. 

Sancho 

Pues,  Senor!  porque  es  divina. 
Pêro  ElRey  qué  le  quiere, 
Qué  manda,  ó  qué  djelermina? 

Phj^sico 
El  Príncipe  está  doliente. 

Sancho 
Oh  mesquino  I  Y  qué  mal  ha? 

Physico 

Y  á  ti,  necio,  que  te  vá? 

Sancho 
Oh  Senor,  que  es  mi  parientc ! 

Physico 
Gracioso  el  bovo  está. 

Y  pues  dime  por  tu  í'é: 
Llorarás  si  se  muriere  ? 

Sancho 

No,  Senor,  no  lloraré; 


Empero,  Senor,  haré 

La  peor  cara  que  pudiere. 

Physico 

Ea,  bovo,  vé  corriendo, 
,  Y  ensilla  la  mula  ayna. 

Sancho 
,  Véngala  ensillar  mejor. 

Physico 

.  Oh  velhaco,  y  sin  sabor  I 

!  Sancho 

j  Y'o  por  cierto  no  lo  eutiendo. 

'  Pêro  una  medicina 

Le  he  de  pedir,  Dios  queriendo. 

!  (Porque  ando  atribulado, 

I  Y  no  sé  parte  de  mi 

I  Coa  este  nuevo  cuidado) 

j  Para  un  sayo  esfarrapado, 

{  Que  me  dicen  hay  alli. 

Physico 

j  Ora  ensilla:  y  nunca  viva, 
I  Pues  sufro  tus  desatinos. 

;  Sancho 

Seôor,  pasion  no  reciva: 

Ya  cavalga  Calaínos 

A  la  sombra  de  una  oliva. 

Aqui  salie  holindo  com  a  almofada , 
e  acorclu  o  Frincipe  e  diz: 

Príncipe 

Oh  bella  vista  e  humana, 
Por  quem  tanto  mal  sostenho ! 
Oh  Princoza  Soberana! 
Como?  nos  braços  vos  tenho, 
Ou  este  sonho  m'engana? 
Pois  como,  sonho,  também 
Me  queres  vir  magoar? 
E  para  me  atormentar 


DE   LUIZ  DE  GAMÕES 


19 


Mostras -me  a  sombra  do  bem 
Para  assi  mais  m'enganar? 
Assi  que,  com  quanto  canso, 
Ja  nào  posso  achar  atalho. 
Pois  que  o  somno  quieto  e  manso, 
Que  os  outros  toe  por  descanso, 
Me  vem  a  mi  por  trabalho. 
Pois  ha  hi  tantos  enganos 
Que  condemnào  minha  sorte; 
Não  o  tenho  ja  por  forte, 
Se  á  volta  de  tantos  danos 
Viesse  também  a  morte. 

Aqui  eiiira  ElBei  com  o  Physico,  t 
diz: 

Rei 

Andae  e  vede  se  achais 
O  rasto  deste  segredo, 
Que  me  dizem  que  alcançais; 
Ainda  que  tenho  medo 
Que  lhe  seja  por  demais. 

Physico 

Plega  á  Dios  qne  aqueste  sea 
Para  salud  y  remédio 
Desta  dulencia  tan  fea. 
Yo  buscaré  todo  el  mcdio. 
Que  presto  sano  se  vea. 

Aqui  lhe  toma  o  Physico  o  pulso 

Aflejen,  Senor,  sus  ais. 
Como  se  halla  en  su  peaar  ? 

Principe 

Como  me  acho  perguntais? 
E  como  se  pode  achar 
Quem  sempre  se  perde  mais? 

Physico 

(La  respuesta  abre  el  camino.) 
Imagina  de  contino? 


Principe 

Não  tenho  outro  mantimento. 
Nem  outro  contentamento, 
Senão  o  cm  que  imagino. 

Aqui  eatra  a  Rainha  t  diz: 

Rainha 

Como  se  sente,  Senhor? 
Tem  a  febre  mais  pequena? 

Principe 

Responda-lhe  minha  pena. 

Physico 

(Conocido  es  su  dolor. 
Ora  sea  en  hora  buena, 
Tomada  está  la  tristeza 

I  A  las  manos.)  Qué  sentió? 

;  (Usaré  de  subtileza.) 

Diz  contra  ElRei: 

Cúmpleme  que  solo  yo 
Platique  cou  Vuestra  Alteza. 

Rei 

Cheguemos-nos  para  cá. 

Rainha 

Nào  deve  desesperar^ 
Quem  fim,  se  bem  attentar. 
Para  tudo  o  tempo  dá 
Tempo  i)ara  se  curar. 

Principe 

Que  cura  poderá  ter 
Quem  têe  a  cura,  Senhora, 
No  impossível  haver  ? 

Rainha 

Ficae-vos,  Senhor,  embora, 
Que  vos  nào  sei  responder. 


20 


COMEDIAS 


Vai  .se  a  llainha 

Rei 

Neste  mal,  que  nào  couiprendo, 
Que  meio  dais  de  conselho  ? 

Physico 

Senor,  nada  entiendo  dello  ; 
Y  snpuesto  que  Io  entiendo, 
Yo  quisiera  no  eiitendello. 

Rei 

Porque  ? 

Phj^sico 

Porque  lie  entendido 
Lo  mas  maio  de  enender, 
Para  lo  que  pnede  ser, 
Porque  anda,  Senor,  ijordido 
De  amores  por  ani  mugcr. 

Rei 

Santo  Deos  I  que  I  tal  amor 
Lhe  dá  doenoa  tào  fera  ! 
Que  remédio  achais  melhor? 

Physico 

Forçado  será  que  muera, 
Porque  no  muera  mi  honor. 

Rei 

Pois  como  !  a  hum  só  herdeiro 
Deste  Reino  nào  dareis 
Vossa  mulher,  pois  podeis  ; 
Que  tudo  faz  o  dinlieiro  ? 
Pois  este  nào  o  engeiteis  ; 
Dae-lha,  porque  eu  espero 
De  vos  dar  dinheiro  *-.  honra, 
Quanto  eu  j)ara  elle  quero. 

Physico 

No  tira  el  mucho  dineio 
La  mancha  de  la  deshonra. 


I  Rei 

Ora  bem  pouco  defeito  ! 
He  pequice  conhecida, 
Quando  deixa  de  ser  feito  : 
Porque  com  elle  dais  vida 
A  quem  vos  dará  proveito. 

Physico 

Cuan  facilmente  aporfia 
Quien  en  tal  nunca  se  vió  ! 
Del  cousejo  que  me  dió, 
Vuestra  Alteza  que  haria 
Si  agora  fuese  yo  ? 

Rei 

A  mulher  que  eu  tivesse 

Dar-lha-hia.  Oxalá 

Que  elle  a  Rainha  quizesse  ! 

Ph3'-sico 

Pues  dela,  si  le  parece, 
Que  por  ella  muerto  está. 

Rei 

Que  me  dizfis? 

Physico 

La  verdad. 
Rei 

Sem  dúvida,  tal  sentistes-? 

Physico 
8iu  duda,  sin  falsedad. 
Pues,  Senor,  ahora  tomad 
Los  conspjos  que  me  distes. 

■Rei 
Certamente,  qu"eu  o  via 
Em  tudo  quanto  fallava. 
Como  o  vistes  ?  porque  via  ? 

Physico 

Ncl  pulso,  que  se  alterava 
Si  la  via,  ó  .si  la  oia. 


DE   LUIZ  DE  GAMUK3 


21 


Rei 

Que  maneira  ha  de  haver  ? 
Qii'eu  certo  me  maravilho. 
Possa  mais  o  amor  do  filho, 
Do  que  pode  o  da  mulher. 
Finalmente  hei -lha  de  dar, 
Que  a  ambos  conheço  o  centro. 
Quero-o  ir  alevantar, 
E  iremos  para  dentro 
Neste  caso  praticar. 

Diz  contra  o  Príncipe : 

Levantae-vos,  filho,  dhi 
O  melhor  que  vós  puderdes, 
E  vinde-vos  para  aqui  ; 
Porque,  emfim,  o  que  quizerdes 
Tudo  havereis  de  mi. 

Pagem 

Ah  Senhores,  oulá,  ou  ? 

Porteiro 

Viestes  em  conjunção 
A  melhor  que  pode  ser  : 
Haveis  aqui  de  fazer 
A  tosquia  a  hum  rifão. 

Pagem 

Deixae-me,  Senhor,  dizer  : 
Haveis  isto  de  acabar, 
Coração,  hi  bugiar, 
No  esteis  preso  en  cadeuas, 
Que  pois  o  amor  vos  deo  penas, 
Que  vos  lanceis  a  voar. 

Porteiro 

Por  certo  que  bem  comprou. 

Pagem 

Ora  sabeis  o  que  vai  ? 
Antiocho  que  casou 
Com  a  muíher  de  seu  Pai, 
E  o  mesmo  Pae  o  ordenou. 


Isso  como? 


Porteiro 


Pasrem 


Não  o  sei  : 
j  Porque  dizem  que  a  amava, 

E  que  só  por  ella  andava 
j  Para  morrer  ;  e  ElRei 

Deo-a  a  quem  a  desejava. 

Porteiro 

Se  o  casa  por  querer  bem 
Com  a  moça,  a  quem  elle  ama. 
Direi  eu  que  a  mim  me  iuflama 
O  amor  mais  que  a  ninguém. 

Pagem 

Pois  pedi-Ihe  a  nossa  dama. 

Porteiro 

Por  São  Gil.  que  ei-los  cá  vem, 
Elle  peia  mão  com  ella. 

Entra   ElRei,    e   Antiocho  com.  a 
Rainha  pela  mão,  e  diz  : 

Rei 

Que  mais  ha  hi  que  esperar  ? 
Olhae  qu'estrariheza  vai  I 
O  muito  amor  ordenar, 
Ir-se  o  filho  namorar 
D'huma  mulher  de  seu  Pai  I 
Querer  bem  foi  sua  dor, 
Negar -lha  será  crueldade  ; 
Assi  que  ja  foi  bondade 
Usar  eu  de  tal  amor, 
E  de  tal  humanidade. 
Elhi  deixou  de  reinur 
Como  fazia  primeiro 
Por  se  com  elle  casar; 
E  por  amor  verdadeiro 
Tudo  se  pôde  deixar. 
Eu  que  nella  tinha  posto 


22  COMEDIAS 

Todo  o  bem  de  meu  cuidado,  j  Porqu'em  tào  grandes  extremos. 

Deixei  mais  que  ella  ha  deixado;  I  Extremos  se  hão  de  fazer. 


Que  mais  se  deixa  uo  gosto. 
Que  110  poderoso  estado. 
Mas  ja  que  tudo  isto  vemos, 
Hajào  festas  de  prazer, 
As  que  melhor  possào  ser  ; 


Hajào  cantos  para  ouvir, 
Jogos,  prazeres  sem  fundo; 
Porque,  se  quereis  sentir. 
Deste  modo  entrou  o  mundo. 
E  assi  ha  de  sahir. 


Aqui  vem  os  MiUiicos  e  cantão^  e  depois  de  cantarem^  sahem-se  todas  as 
figuras,  e  diz 

Martim  Chinchorro 

Ora,  Seulior,  tomemos  também  nosso  pandeiro,  e  vamos  festejar 
os  noivos  ;  ou  vamos  consoar  com  as  figuras,  porque  me  parece  que  esta 
lie  a  inór  festa  que  pode  ser.  Mas  espere  v.  m.,  ouviremos  cantar,  e  na 
volta  das  figuras  nos  acolheremos.  Moço,  accende  esse  móiho  de  cavacos, 
porque  faz  «'scuro  nào  vamos  dar  comnosco  em  algum  atoleiro,  onde  nos 
fique  o  ruço  e  as  canastras.  . 

Estacio  da  Fonseca 

Não,  Senhor,  mas  o  meu  Pilarte  irá  com  elles  com  hum  par  de  ti- 
ções na  mào  ;  e  perdoem  o  máo  gasalhado.  Mas  daqui  em  diante  sir- 
vào-sc  desta  pousada  ;  e  nào  tenhào  isto  por  palavras,  porque  essas  e 
plumas,  o  v«'tito  as  leva. 


os  AMPHÍTRíOES 


INTKPiLOíXTURKS 


Amphitrião. — Alcmena,  sua  Mulher.— Callisto. 

Feliseo.— Sosea,  Moço  de  Auiphitnão.  —  B remia,  sua  Criada. 

Belíerrão,   Patrào.  —  Aurélio,   Primo   de   Alcmena. 

Hum  Moço  de  Aurélio. —Jiipiter. —  Herciirio. 


ACTO  I 


8CENA  1 

Krdro.   AlcKfsna.  saudosa  do  mari- 
do, qiK  he  na  f/uerra,  e  Bromia. 

Alcmena 

Ah  Senlior  Ainphitriào. 
Oiide  está  todo  ineu  bem  ! 
Pois  meus  olhos  vos  nfio  vem, 
Fallarei  co'o  coraçào, 
Que  dentro  n'alraa  vos  tem. 
Ausentes  duas  vontade>, 
Qual  corre  mores  pericros. 
Qual  soffre  mais  erueldadcs. 
Sc  v<'t5  entre  os  inimigos, 
Se  eu  entre  as  saudades  V 
Que  a  ventura,  que  vos  fraz 
Tào  longe  de  vossa  terra, 
Tantos  desconcertos  faz. 
Que  se  vos  levou  á  guerra. 
Nào  me  cjuiz  deixar  em  paz. 
Bromia.  quem  com  vida  ter. 
Da  ^ida  ja  desespera, 
Que  lhe  j)oderás  dizer? 

Bromia 

Que  nunca  se  vio  prazer, 
Senào  quando  nào  se  espera. 
Y^  por  tanto  nào  devia 
De  ter  triste  a  phantasia  : 
Porque  Vossa  .Mercê  creia. 
Que  o  prazer  sempre  salteia 
Quem  delle  mais  desconfia. 
Eu  tenlio  no  coração, 
Do  Senhor  Amphitriàe 


Venha  hoje  alguma  nova  : 
Xíto  receba  alteração. 
Que  a  verdadeira  aíFeiçào 
Na  longa  ausência  se  prova. 

Alcmena 

Dizei  logo  a  Feliseo 

Que  chegue  muito  apressado 

Ao  cães.  c  busque  mêo 
j  De  saber  se  algum  recado 

Do  porto  Pérsico  vêo  :        , 
j  E  mais  lhe  haveis  de  dizer. 
i  (Isto  vos  dou  por  officio' 
■  D'alguma  nova  saber. 

Em  quanto  eu  vou  faz^ir 
I  Aos  Deoses  o  sacrifício. 

! 

SCENA  IL 

1  Bromia 

1  Saudades  de  uiinh'ama. 

j  Chorinho"  e  dovoròes. 

I  Sacrifícios  e  oraçòes, 

:  Me  hào  de  hmçar  n'huma  cama, 

i  Certamente. 

j  Nós  mulheres  de  semente 

I  Somos  sedenho  mui  tosco  : 

Com  qualquer  vento  rjue  vente, 
i  Queremos  forçadamente 

Que  os  Deoses  vivào  comnosco. 
I  Quero  Feliseo  chamar. 
j  E  dizer-lhe  aonde  ha  de  ir. 
I  Mas  elle  comcwme  vir, 
I  Logo  ha  de  querer  rinchar, 

De  travesso. 


DK   LUIZ  DE  OAMOKS 


25 


Eu  que  flf  zombar  nfio  cesso, 

For  licar  com  elle  em  salvo, 

Lanço-lhe  hum   e  outro  reciôsso  •, 

Aos  seus  íurto-llie  o  alvo  ; 

E  então  elle  fica  avesso. 

Porque  o  melhor  de.-tas  d;inoa.s. 

Com  huns  viudlvos  assi, 

He  trazô-los  por  uqiii 

O  cheiro  das  esperanças, 

Por  viver. 

Ha-03  homem  de  trazer 

Nos  amores  assi  morno?, 

Si'»  para  ter  que  fazer  : 

E  despois  ao  remetter 

Lançar-lhe  a  capa  nos  cornos. 

Feliseo,  se  estais  á  mào, 

Chegae  cá,  vem  como  hum  gamo  : 

Bem  sei  que  não  chamo  em  vâo. 

SCENA  III 

Feliseo  <  Bromia 

'  Feliseo 

ChamaÍ8-me  ?  também  vos  chamo; 
Porém  eu  ouço,  e  vós  nuo  : 
Senhora,  que  me  mat;iis, 
!Se  vós  ja  nunca  me  ouvis, 
Ou  me  ouvis,  e  vos  callais, 
Dizei  :  porque  me  chamais 
So  me  vós  a  mim  fuíris  ? 


Bromia 


Eu  vos  fujo  ? 

Feliseo 

Fupris,  digo, 
De  dar  a  meus  inales  cabo. 

Bromia 

Sabei  que  desse  p^^rigo 
NAo  fujo  como  de  imigo, 
Fujo  como  do  diabo. 


Feliseo 

Dae  ao  demo  essa  tença©, 
Usae  antes  de  corttís, 
Cahi  vós  nesta  razào. 

Bromia 

Do  p'risro  fogem  os  péy. 
Do  diabo  o  coraçíjo. 

Feliseo 

Dizeis -me  que  nessa  bríga 
Do  meu  coração  fugis. 

Bromia 

Ainda  qu'eu  isso  diga.  . . 

Feliseo 

Ah  minha  doce  inimiga  I 
Bem  .«into  que  me  sentis. 
Mas  para  que  me  chamais  ? 

Bromia 

Manda-vos  minha  Senhora 
Que  chegueis  daqui  ao  cais, 
E  algumas  novas  saibais 
D'Amphitriil.0  nesla  hora. 

Feliseo 

Quem  as  não  sabe  de  si,, 
D'outrem  como  as  saberá  ? 

j  Bromia 

i  ]Sào  as  sabeis  vós  de  mi  ? 

1  Feliseo 

I 

j  M4  trama  venha  por  ti. 

]  Duna  feiticeira  mál 

1  Porque  nào  me  ólluis  direito, 

j  Cadella,  que  assi  me  cortas? 

I  Bromia 

i  Porque  vos  quero  dar  portas 
Que  s'eu  olhar  d'outro  geito, 
Trarei  cem  mil  vidas  mortas. 


26 


COMEDIAS 


Feliseo 

E  pois  para  que  me  andais 
Enganando  ba  cem  mil  anos? 

Broinia 

Dou-vos  vida  com  enganos. 

Feliseo 

Nesses  euganinhos  tais 
Acho  cruéis  desenganos. 

Bromia 

Quant 'esses  vos  quero  eu  dar: 
Vós  cuidais  que  estais  na  sella? 
Pois  podeis-vos  descer  delia; 
Qu'eu  nunca  vos  pude  olhar. 

Feiiseo 

Jogais  comigo  ;i  panella? 
Tendes-me  ha  tanto  captivo, 
E  desenganais- me  agora? 
Tudo  isto  he  o  que  privo. 
Assi  que  he  isso.  Senhora, 
Dochelo  morto,  dochelo  vivo? 
Se  me  vós  desenganais 
No  cabo  de  tantos  anos, 
Direi,  se  licença  dais, 
Dais-me  vida  com  enganos. 
Desenganos,  ja  chegais. 
Mas  se  isso  havia  de  ser, 
Dizei,  má  desconhecida_. 
Desterro  de  meu  viver, 
Que  vos  custava  dizer 
Amor,  vae  buscar  tua  vida? 

Bromia 

Zombais?  Fallais-me  coprinhas? 

Feliseo 

Rir-vos-heis  se  vem  á  mito: 
Copras  nào,  mas  isto  sào 
Aníiias  y  pasiones  minhns 
Dos  bofes  e  coracào. 


Bromia 
Is-vos  fazendo  d'hun8  sengos.  . 

Feliseo 
Perdóneme  Dios  si  peco. 

Bromia 

Nesses  dentinhos  frauiengos 
Conheço  que  sois  hum  peco 
De  todos  quatro  avoengos. 

Feliseo 

Tudo  vos  levo  em  capelo, 
Ja  qu'estais  tanto  em  agríiço. 
Porém,  fallando  singelo, 
A  furto  desse  máo  zelo, 
Quereis-me  dar  hum  abraço? 

Bromia 

Ora  digo  que  nào  posso 
Usar  comvosco  de  fero: 
Tomae-o. 

Feliseo 

Ja  o  niío  quero. 
Porque  esse  abraço  vosso, 
Sabei  que  he  engano  mero. 

Bromia 

Oh!  vós  sois  d  liuns  sensabores. 

Abraço  pedis  assim? 

b'eu  remango  d'uia  chapim.  . . 

Feliseo 

Tudo  isso  sào  favores: 
Zombae,  vingae-vos  de  núm. 

Bromia 

Vós  de  furioso  touro 
As  garrochas  nào  sentis. 

Feliseo 
Vedes,  com  isso  só  mouro: 
Quando  cuido  que  sois  onro, 
Acho-vos  Ioda  ceitis. 


DE  LUIZ  DE  CAMUiCS 


Bromia 

Emfim,  sanha  de  villào 

Vos  fez  perder  hum  bom  dia. 

Feliseo 

Jagora  o  eu  tomaria; 
Quereis-mo  dar? 

Bromia 

Ora  não. 
Cocei-vos  eu  todavia. 

Feliseo 

Pois,  Senhora,  a  quem  vos  ama 
Sois  tão  desarrazoada, 
Quero  tomar  outra  dama; 
Que  uuo  dig-ão  os  d'Alfama 
Que  não  tenho  namorada. 

Bromia. 
Deixae-me. 

Feliseo 

Vós  me  deixais. 

Bromia 
Deixae-me. 

Feliseo 

Zombais  de  mi? 

Bromia 

Deixae-me.  Pois  m'engeitais. 
Eu  me  ausentarei  daqui 
Onde  me  mais  não  vejais. 

Feliseo 
Boa  está  a  zombaria! 

Bromia 

Não  são  essas  minhas  manhas. 

Feliseo 
Porém  is-vos  todavia? 

Bromia 

Voyme  á  las  tierras  estraiias 
Adó  ventura  me  sruia. 


SCENA  IV 

Feliseo  só 

Phantasias  de  donzellas, 
Não  ha  quem  como  eu  as  quebre; 
Porque  certo  cuidão  ellas, 
Que  com  palavrinhas  bellas 
Nos  vendem  gato  por  lebre. 
Esta  têe  lá  para  si 
Qu'eu  sou  por  ella  finado; 
E  crê  que  zomba  de  mi; 
E  eu  digo-lhe  que  si, 
Sou  por  ella  esperdiçado. 
Prezci-se  d'humas  seguras; 
E  eu  não  quero  mais  Fraudes: 
Dou-lhe  trela  ás  travessuras. 
Porque  destas  coçaduras 
Se  fazem  as  chagas  grandes. 
Qu'estas,  que  andào  sempre  á  vela> 
Estas  vos  digo  eu  que  coço; 
Porque  de  firmes  na  sella, 
Crem  que  falsão  a  costella, 
E  ficào  pelo  pescoço. 
Que  quando  ^^ -tas  damas  tais 
Me  cachão,  então  recacho. 
Mas  disto  agora  nó  mais- 
Quero-me  ir  daqui  ao  cais 
Vêr  se  algumas  novas  acho. 

SCEXA  V 

Jujyiter  e  Mercúrio 

Júpiter 

Oh  grande  e  alto  destino! 
'  Oh  potencia  tão  profana! 

Que  a  setta  d'hum  menino 

Faça  que  meu  ser  divino 
j  Se  perca  por  cousa  humana! 
j  Que  m'aproveitão  os  ceos, 
j  Onde  minha  essência  mora 
i  Com  tanto  poder,  se  agora 


28 


COMEDIAS 


A  qnem  me  adora  por  deos, 
Sirvo  eu  como  a  senhora? 
Oh  quào  estranha  aíieiçào! 
Quem  em  baixa  cousa  vai  pôr 
A  vontade  e  o  coraçno, 
Sabe  tào  pouco  d' Amor, 
Quão  pouco  Amor  de  razão. 
Mas  que  remédio  hei  de  ter 
Contra  mulher  tào  terribil, 
Que  se  nào  pode  vencer? 

Mercúrio 

Alto  Senhor,  teu  poder 
O  difficil  faz  possibil. 

Jupiter 

Tu  nào  vês  qu'esta  mulher 
Se  preza  de  virtuosa? 

Mercurio 

Senhor,  tudo  pode  ser: 
Que  para  quem  muito  quer, 
Sempre  a  afteiçào  lie  manhosa. 
Seu  marido  está  aumente 
Na  fiTuerra.  longe  d'áqui; 
Tu,  qu"és  Jupiter  potente, 
Tomarás  sua  forma  em  ti: 
Que  o  farás  mui  facilmente. 
E  eu  me  transformarei 
Xa  de  Sosea,  criado  seu: 
E  ao  arraial  me  irei. 
Onde  logo  saberei 
Como  se  a  batalha  deu. 
E  assi  poderás  entrar, 
Em  lugar  de  seu  marido: 
E  parM  que  sejas  crido, 
Poderás  também  contar. 
Quanto  eu  lá  tiver  sabido. 

Jupiter 

Quem  íirde  em  tamanho  fogo 
Tira-lhe  a  virtude  a  cor 
De  subtil  e  sabedor; 
E  quem  fora  está  do  jogo 
Enxerga  o  lanço  raelhor. 


Mas  tu,  que  dos  sabedores 
Tanto  avante  sempre  estás. 
Se  deos  és  dos  mercadores, 
Sê-lo-has  dos  amadores, 
Pois  tal  remédio  me  dás. 
Ponha  se  logo  em  effeito: 
Que  nào  soffrc  dilação 
Quem  o  fogo  têe  no  peito; 
E  tu  vae  logo  direito 
Aonde  anda  Amphitriào. 

SCENA  VI 

Feliseo  e  CalUsto 

Feliseo 

I       Ad(5  bueno  por  aqui, 
I  Tào  longe  do  acostumado? 

j  Callisto 

Mais  longe  vou  eu  de  mi, 
D'ir  perto  de  meu  cuidado. 

Feliseo 

No  andar  vos  conheci. 

Callisto 

j  E  vós  onde  vos  lançais, 
'  Com  A  ossa  contemplação? 

Feliseo 

Eu  chego  daqui  ao  cais 
A  saber  de  Amphirrulo: 
Nào  sei  se  vou  por  demais. 

Callisto 
Porque  por  demais  dizeis? 

Feliseo 
Porque  nada  alli  ha  certo. 

Callisto 

!  Novas  lá  nào  as  busqueis, 

i  Que  aqui  as  tendes  mais  perto. 


Di:    LUIZ    DE    CAMUKS 


29 


Feliseo 

Pois  dae-mas  jú,  se  as  sabeis. 

Callisto 

Hum  navio  lie  já  clieg-ado 
A  barra,  que  vem  de  lá; 
Traz  de  Amphitristo  recado, 
Diz  que  o  deixa  embarcado 
Para  se  vir  para  cá. 
Têe  vencido  aquelle  Rei-, 
E  diz,  se<íuiiiio  lhe  <uvi, 
Qu'esta  noite  será  aqui. 

Feliseo 

Essas  novas  levarei 
A  Alcmena,  que  torne  em  gi. 
Porque  ella  tèe  maior  guerra 
Co'os  temores  de  perdello, 
Qu'elle  co'o  Rei  dessa  terra. 

Callisto 

Onde  amor  lançar  o  sello, 
Nenhuma  cousa  o  desterra. 
Porqu'inda  que  o  pensamento 
Vos  íique,  Senhor,  em  calma, 
Por  morte  ou  apartamento; 
Sempre  vos  lá  íicào  n^alma 
As  pegadas  do  tormento. 

Feliseo 

Isso  lie  hum  segredo  mero, 
A  que  o  Amor  nos  obriga: 
Por  isso  em  caso  tào  fero. 
Senhor,  nunca  ninguém  diga, 
Ja  lho  quiz,  e  nào  lho  quero. 
Eu  quiz  bem  a  hnma  mulher, 
Que  vós  conhecestes  bem, 
E,  com  muito  lhe  querer, 
Casou- se. 

Callisto 

Oh!  c  com  quem? 
Qne  ainda  o  uào  p'<sso  crer. 


Feliseo 

Com  hum  Mercíidor,  que  veio 
Agora  do  P^gypto,  rico. 

Callifeto 

Isso  traz  água  no  bico. 

Esse  homem  he  parvo,  ou  feio? 

Feliseo 

Pois  vedes?  disí-e  me  pico. 
E  em  pago  d 'esta  traiçào, 
Afora  outros  mil  descontos 
Que  traz  comsigo  a  affeiçào, 
Sempre  os  signaes  d'estes  pontos 
Trarei  no  meu  corâçào. 

Callisto 

Viste-la  mais? 

Feliseo 

Senhor,  vi. 

Na  janellinha  da  grade; 
Passei,  e  disse-lhe  assi: 
Casada  sem  piedadi;, 
Porque  nào  a  haveis  de  mi? 

Callisto 

Que  vos  disse? 

Feliseo 

Lá  no  centro 
Lh'cnxerguei  pouci.  alegria: 
E  como  quem  lhe  dohia. 
Metendo- se  para  dentro 
I  Disse :  Ja  pasó  folia. 

I  Callisto 

Ah  má  sem  conhecimento  ! 
Quem  lhe  dc^se  mil  chofradas ! 

Feliseo 

Senhor,  como  sno  casadas, 
Casáo-se  co"o  esquecimento 
■Das  cousas  que  sAo  passadas. 


ao 


COMEDIAS 


Callisto 

Lembranças  de  vos  deixar 
Picar-YOS-hào  como  tojo3. 
Feliseo 

Senhor,  haveis  d'assentar 
Que  onde  amor  ros  qner  matar, 
Siempre  alhi  miran  \os  ojos. 
Hum  motete  lhe  mandei 
Hum  dia,  estando  com  febre, 
Só  da  paixão  que  tomei. 

Callisto 

Pois  vejamos  quem  toe  lebre. 

Feliseo 
Senhor,  eu  vol-o  direi. 

Mofe 

Vós  por  outrem,  e  eu  por  vós^ 
Vós  contente,  e  eu  penado; 
Vós  casada,  eu  cansado. 
Poios  santos  de  minha  dona  I 

Callisto 
Senhor,  vós  só  o  fizestes? 

Feliseo 
Si,  que  ninguém  me  ajudou. 

Callisto 

Se  vós  só  o  compuzestes, 
Crede,  que  extremos  dissestes. 
Nunca  Orlando  tal  fallou. 
Senhor,  fizestes -lhe  pé  ? 

Feliseo 

Senhor,  si;  e  todo  hum  anno.  . . 
Vós  zombais.^se  nfío  m'engano? 


Callisto  l    :  ^^^í 

Nilo.  mas  dou- vos  minha  fé 
Que  nunca  vi  tào  bom  panno. 


Feliseo 
Ora  olhe  vossa  mercê. 

Volfa 

Olhae  em  quão  fundos  váos 
Por  vosso  causa  me  affógo. 
Que  outro  me  ganha  no  jogo, 
E  eu  triste  pago  os  páos. 
Olhos  travessos  e  máos, 
Inda  eu  veja  o  meu  cuidado 
Por  esse  vosso  trocado. 

Callisto 
Nào  mais,  qu"isso  me  degola. 

Feliseo 
Senhor,  eu  haja  perdão. 

Callisto 

Fizestes  esse  rifão 

Em  algum  jogo  de  bola  V 

E  foi-ihc  elle  ter  á  mão? 

Feliseo 

Digo-vos  que  o  vio,  e  lho  leo 
Hum  moçozinho  d'eseola. 

Callisto 

Está  isso  assi  do  Coo. 
Sabe  ella  jogar  a  bola? 

Feliseo 

Não. 

Callisto 
Pois  não  vos  enteudeo. 
Ora  eu  já  cheguei  a  ler 
Petrarca,  e  crede  de  mi 
Que  nunca  tal  cousa  vi. 
Onde  mora  o  bom  saber, 
Logo  dá  sinal  de  si. 
Onde  casada  puzcstcs. 
Dizei,  porque  não  dissestes 
La  que  yo  vi  por  mi  mal. 


DE    LUIZ    DE    CAMÕES 


31 


Feliseo 

Kenunciav.i  o  metití; 
Qu'em  rifòeszinhos  como  estes. 
Ha-se-de  pôr  tal  com  tal. 
Que  a  trova  trigo-tremez 
Ha  de  ser  toda  d'hum  pauo; 
Que  parece  muito  íngrez 
N'lium  pelote  Portuguez 
Todo  hum  quarto  Casíelhauo. 
Ouvi  outra  também  minha, 
Que  fiz  a  certa  tenção. 
Clara,  leve,  bonitinha. 
De  feição,  que  esta  troyinha, 
He  trovinha  de  feição. 
Como  eu  hum  dia  me  visse 
Morto,  e  a  mão  na  candéa, 
E  ella  não  me  acodisse  ; 
Fiz-lhe  esta,  porque  sentisse 
Que  dava  os  fios  á  téa. 
E  o  propósito  he 
Andar  eu  hum  dia  só  ; 
E  paru  que  houvesse  dó 
De  mi  e  de  minha  fé, 
Lamentei-lhe  como  Jó. 

Callisto 

Andastes,  Senhor,  mui  bem. 

Feliseo 

Ora,  Senhor,  attentai, 
E  vede  o  saibo  que  tem  ; 
Se  he  para  a  vêr  aiguera. 

Callisto 

Ora  dizei. 

Feliseo 

Ei-la  vai. 

Trova 

Coração  de  carne  crua. 
Vê-lo  teu  amor  aqui, 
Que  esmorecido  por  ti 
Jaz  no  meio  desta  rua  ? 


Callisto 

Na  rua,  Senhor,  jazia  ? 
E  era  era  tempo  de  lama  ? 

Feliseo 

Senhor,  quem  falia  a  quem  ama, 
De  si  mesmo  se  não  fia: 
Haveis  do  mentir  á  dama. 


Callisto 


Yoita  disso? 

Feliseo 

Singula'-, 
Senão  que  he  muito  sentida  ; 
Far-vos-ha,  Senhor,  chorar. 

Callisto 
Oh  I  diga,  por  sua  vida  ? 

Feliseo 
Farei  o  que  me  mandar. 

Valia 

Porque  não  haa  delle  mágoa, 
O  dura  mais  que  ninguém. 
Que  anda  o  triste  que  não  tem 
Quem  lho  de  Imma  vez  d'âgoa  ? 
Não  lhe  negues  teu  querer. 
Pois  te  não  custa  dinheiro  \ 
Que,  emfim,  por  derriídeiro 
A  t-irra  te  ha  de  comer. 

Callisto 

Tal  trova  nunca  se  vio. 
Agorentaste-la  ja? 

Feliseo 

Senhor,  não ;  ainda  está 
Como  a  sua  mãe  pario  ; 
E  não  está  muito  má. 

Callisto 

He  trova,  que  t?e  por  seis  ; 


32 


COMEDIAS 


Nào  a  posso  mais  gabar. 
Mas,  pois,  tal  cousa  fazeis, 
Sealior,  não  ni'ensinareis 
Donde  vem  tào  bem  trovar  ? 

Feliseo 

Nào  he  a  consa  tào  pequena, 
Como,  Senhor,  a  fizestes. 
Essa  que  agora  dissestes. 
Mas  porém  vou  dar  a  Alcmena 
Estas  nov:is  que  me  destes. 
Despois,  Senlior,  nos  veremos; 
Ficae  ja  roeuão  esse  osso. 


Callisto 

O  roer,  Senlior,  he  vosso. 

Feliseo 

Pois  eu,  por  mais  que  zombemos, 
Hei  de  ser  vosso  e  revosso. 

Callisto 

Oh!...  Escusae  vos  de  d'extremo8, 
Qu'isso,  Senhor,  me  atarraca. 
Mas  nós  nos  encontraremos, 
E  sobre  isso  envidaremos 
Dous  reales  mais  de  saca. 


ACTO  II 


SCEXA  I 

Júpiter  e  2íercurio  transjormadosj 
Júpiter  na  forma  de  Amphitrião, 
Mercúrio  na  de  Sosea  escravo, 

Jnpiter 

Mercúrio,  pois  sou  mudado 
N'esta  forma  natural, 
Olha  e  nota  com  cuidado. 
Se  está  em  mi  o  pintado 
Apparente  co'o  real. 

Mercúrio 

Quem  tilo  prr.prio  se  transforma. 

Tenho  por  opinião, 

Que  na  tal  transformação 

Lhe  prestou  natura  a  forma, 

Com  que  fez  Amphitrião. 

Júpiter 

Pois  tu  no  gesto  o  na  còr 
Estás  Sosea  escravo  seu. 

Mercúrio 

Muito  mais  f.irás.  Senhor. 


Júpiter 

Não  o  faz  senão  o  Amor, 
Que  n'isto  pôde  mais  qu'eu. 

Mercúrio 

Ja,  Senhor,  te  fiz  menção 
Como  deo  Amphitrião 
A  ElRei  Ter  ela  a  morte; 
Que,  na  guerra  igual,  a  sorte 
Pode  mais  que  o  coração. 
E  despois  ue  ser  tomada 
Toda  a  Cidade,  com  gloria 
D'AmplritriAo  bem  ganhada, 
Como  em  i^iual  de  victoria. 
Esta  copa  lhe  foi  dada. 
Por  cila  bebia  Elllei, 
Em  quanto  a  vida  (jueria; 
E  eu,  por(|Ue  te  cumpria, 
A  seu  escravo  a  furtei, 
Que  n'huma  caixa  a  trazia. 
í^sta  poderás  levar 
A  Alcmena,  por  lhe  mostrar 
Verdadeiro,  o  que  he  fingido; 
E  d(:st'arte  serás  crido. 
Sem  mais  oiiíro  ardil  buscar. 


DK  LUIZ   DE  CAMÕES 


3S 


Jijpitor 

Pois  tudo  tons  ordenado 
Por  tão  nova  e  subtil  arte; 
Como  me  vires  entrado, 
Irás  dar  este  recado 
A  Phebo  de  minha  parfe: 
Que  faça  mai'*  devagar 
Seu  curso  neste  Hemispherio, 
Que  o  que  soe  acostumar; 
Qu'esta  noite  bei  de  ordenar 
Hum  caso  de  alio  inyâterio. 
E  á  Esphera  m:iis  alta 
Mandarás  que  fixa  esteja, 
Porque  a  noite  maior  seja: 
Porque  snmpre  o  tempo  falta, 
Onde  a  alegria  Le  sobeja. 
E  terás  taman])o  tento. 
Que  como  isto  se  ordenar, 
Venhas  aqui  vigiar, 
Porque  meu  contentamento 
Ninguém  mo  possa  estorvar. 

Mercúrio 
Seja  feito  sem  debate 
Tudo  como  te  convém. 

Jupiter 

Pois  nào  parece  ninguém, 
Como  homem  de  casa  bate, 
E  muda  a  falia  também. 

Mercúrio,  hatpndo  á  porta 
O  de  la  casa,  en  buena  hora, 
Darmehan  de  eenar  aqui"? 

Bromia  dentro 
Sosea  parece  que  ouvi: 
Alviçaras,  minha  Senhora, 
Que  na  falia  o  conheci. 

SCENA  IT 

Alc/iíe/uí,  Jiroiiiia,  Jai^iter 
e  Muraurio 

Alcmena 
Zombaib,  Bromia,  por  ventura? 


Bromia 

Senhora,  nào  zombo,  nào. 

Alcmena 

Vejo  eu  Amphitriào, 
Ou  a  vista  me  atfigura 
O  qu'stá  no  coração? 

Jupiter 

Olhos,  diante  dos  quais 
Desejei  mais  este  dia. 
Que  nenhuma  outra  alegria. 
Senhora,  nunca  creais 
Que  lhe  minta  a  phantasia. 

Alcmena 

Oh  presença  mais  querida 
Que  quantas  formou  Amor! 
Isto  he  verdnde.  Senhor? 
Acãbe-se  aqui  a  vida, 
Por  não  ver  prazer  maior. 

Jupiter 

Pois  esta  hora  de  vos  ver 
Alcançar,  S>tuhora,  pude; 
Para  mais  contente  ser, 
Confonnem  co'este  prazer 
Novas  de  vossa  saúde. 

Alcmena 

Vida  foi  pezada  e  crua 

A  sauue  qu'eu  sostinha; 

Qu'em  quanto,  Senhor,  a  tinha, 

Temer  perigo  na  sua, 

Me  fez  descuidar  da  minha. 

Mercúrio 

Y  pvreSj  mi  Senora  Alcmena, 
Pese  ai  demónio  rualvado. 
No  dirá  á  un  su  criado, 
Vengais  Sosea  norabuena? 

Alcmena 

Sejais,  Sosea,  bem  chegado. 


;34 


COMEDIAS 


Bromin. 

Bem  mal  cri  eu.  *[ne  pude.sfse 
yér-te.  Sosca.  hoje  af|ui. 

Mercúrio 

Pues  tambien  yo  no  ciei 
Que  eu  mi  vida  te  viese. 
Segiin  las  mue.rfep  í|ue  vi. 

Alcniena 

Muito,  Senhor,  folgarei 
Com  novas  do  veneirnoriío. 

Júpiter 

De  tudo  quanto  pasàeí. 
Por  vos  dar  conkíJitaiAeuto. 
£m  summa  vos  contarei. 
Trago.  Senhora,  a  victorla 
D'aquelle  Rei  íílo  temido. 
Com  fama  chira  o  notória. 
Porém  maior  foi  a  gloria 
De  me  ver  de  vós  \encido. 
Sem  me  terem  resistência, 
Os  Grandes  me  obedecerão. 
Como  El  Rei  morto  tiveríio: 
Em  sinal  de  obediência 
Esta  copa  me  trouxerào. 
ElEei  por  ella  bebia: 
(Ella.  e  tudo  o  mais  hc  nosso) 
Por  onde  claro  se  AÍa, 
Qne  tudo  me  obedecia. 
Pois  tinha  nome  de  vo^^o. 

Mercúrio 

Si,  rnas  luego  do  rondou 
Ija  fortuna  dió  la  vuelta. 


Como? 


Alem  ena 


Mercúrio 


Fuc  gran  perdiciou. 
Porque  en  aqnella  revuelta. 
Me  hurtaron  nii  jnbon. 
Pêro  bien  mo  lo  pagan^n. 


Cuando  coiwigo  riíieron; 
Que  aunque  me  despojaron. 
Si  uuo  de  seda  llevaron. 
Otro  de  azote»  me  dieron. 

Alomena 

Senhor,  uâo  posso  gostar 
De  gosto,  que  he  tão  imrnenso, 
Senão  muito  devagar: 
Faça-me  mercc  d'entrar, 
E  contar-mo-ha  por  extenso. 

SCENA  III 

Me.revno  c  liromiu 

Mercúrio 

Yo  tambein  te  contaria. 
Bromia,  si  quedas  atrás, 
Que  una  noche  . . .  enojartehaí«V 

Bromia 
QueV 

Mercúrio 

Sonaba.  que  te  tenia.  . . 
No  me  atrevo  á  deeir  mas. . 

Bromia 
Dize. 

Mercúrio 

Pardies,  na  diré. 

1  Sou aba. . . 

Bromia 

Bem:  que  sonhavas? 

Mercúrio 

Que  cuando  en  la  cama  e:?tavas 
Que  yo. .  .  eníin  recorde. 

Bromia 

Pois  tudo  isso  receavas? 

Mercúrio 

S;»be  Dio?  qnéjyo  acá  siento: 


DE   LUIZ  DE  CAMÕES 


QP. 


Sola  una  alma  vive  eu  doa, 
La  cual  anda  dentro  en  vos. 

Bromia 

E  que  quer  ella  cá  dentro? 

Meronrio 

Tambien  eso  sabe  Dios. 

SCENA  IV 

MercTirio 

Bem  se  poderá  enganar 
Bromia,  segundo  ora  estou, 
Como  Alcmena  s'enganou; 
Mas  cumpre-me  ir  ordenar 
O  que  meu  Pac  me  mandou. 
E  porque  seja  guardad<a 
Esta  porta  e  vigiada 
De  toda  a  gente  nascida, 
Me  será  cousa  forçada. 
Ser  tão  depressa  a  tomada, 
Quão  prestes  faço  a  partida. 

SCENA  V 

Sosea,  cantando 

Amphitrion  esforzado 
Bravo  vá  por  la  batalla, 
Siete  cabezas  llevaba, 
De  las  mejores  que  ha  bailado. 

Falia 

Quien  viene  de  tierra  agena, 

Y  de  la  muerte  escapo, 
La  razon  le  permitió 
Que  cante  como  sirena, 
Como  agora  bago  yo. 

Y  pues  canto  tan  gentil, 
Fuera  llanto  si  muriera. 
Quiero  cantar  como  quiera. 
Una  y  o*;ra,  y  mas  de  mil. 
Que  digan  desta  manera: 


Canta 

Dongolondron,  con  dongolondrera, 
Por  el  camino  de  Otera, 
Rosas  coge  en  la  rosera, 
Dongolondron.  con  dongolondrera, 

Falia 

Cuando  yo  vengo  á  pensar 
Que  uno  matarme  quisiera, 
No  bago  tino  tt^^nblnr, 
Porque  creo  ?i  n.iriera. 
No  pudiera  mas  cantar. 
Porque  estando  á  un  rincon 
De  la  casa  adó  quede, 
Senti  muy  grande  ronron, 

Y  mirando,  que  mire? 

Vi  que  era  un  gran  raton. 
Empero  yo  nunca  sigo. 
Sino  consejos  muy  sanos: 
Que  en  estes  casos  levianos, 
Quien  desprecia  el  enemigo. 
Mil  veces  muere  á  sus  manos. 
Pêro  mi  Senoi-  allí 
Mato  ai  Rcy  de  los  Glipazos: 
Yo  como  muerto  le  vi, 
Juro  á  mi  l"é,  que  le  di 
Mas  de  dos  mil  cuebillazos. 

Y  por  me  librar  de  afan, 

Me  voy  siempre  á  cosa  hecha 
Probar  mi  mnno  derecba; 
Que  aquel  es  bueu  capitan, 
Que  dei  tiempo  se  aprovecha. 
Que  quien  ha  de  pelear. 
Ha  de  buscar  tiempo  y  hora. 
Pêro  quiero  caminar. 
Que  me  muero  por  contar 
Todo  aquísto  á  mi  Senora. 

SCENA  VI 

Mercúrio  e.  Sosea 
i  Merourio 

i      Mil  vezes  comigo  vejo, 
[  Para  que  meu  Pac  se  affoute; 


3G 


COMEDIAS 


Pois  em  tào  pequeno  eijí^ejo 
]yhe  mandei  tatbar  a  noute 
A  medida  do  desejo. 
E  pois  que  como  possante. 
A  mi  tudo  se  reporta, 
Chego  agora  neste  instante 
A  estorvar  qu'este  bargante 
Me  não  chegue  a  esta  porta. 

Sosea 

No  S'j  que  miedo,  ó  locura, 

Ncsíô  pecho  se  me  cria: 

Por  D  os  que  se  me  afigura, 

Que  lia  mucho  que  es  noche  escura, 

8in  (juc  venga  el  claro  dia. 

Mas  sabed,  que  pienso  yo 

Que  el  sol  que  no  se  acordo 

De  con  el  dia  venir, 

Que  á  noche  cuando  cenó 

Algun  buen  vino  bebió, 

Que  le  hace  tanto  dormir. 

Mercúrio 

Ja  scnles  comprida  a  noute. 
Qu'eu  assi  mandei  fazer  ? 
Pois  mais  te  quero  dizer, 
Que  sentirá."  muito  açoute. 
Se  cá  quizeres  vir  ter. 
Porém,  pois  este  bargante 
Tce  medroso  coração, 
Quero-me  fingir  ladrão, 
Ou  phantasma,  e  por  diante 
Nào  irá,  se  vem  á  mào. 
E  com  tudo  se  passar, 
A  falia  quero  mudar 
Na  sua  do  tal  feiçuo, 
Que  couces,  e  porfiar, 
l^he  façào  hoje  assentar 
Que  sou  Sosea,  e  elle  nào. 

Falia  Castelhano 


No  vco  pasar  ningnno. 

P2n  quien  yo  me  pueda  hartar. 


Sosea 

A  quien  oigo  aqui  liablar? 
Mande  Dios  no  sea  alguuo 
Que  me  quiera  aporrear. 

Mercúrio 

La  carne  de  algun  humano 
Me  seria  rnuy  sabrosa. 

Sosea 

Oh  qué  voz  tan  temerosa ! 

Hombres  comes,  ó  mi  hermano  ? 

No  es  mejor  otra  cosa? 

Carne  humana  es  muy  mezquina. 

Oh  no  comas  deso,  nó! 

Antes  carne  de  gallina. 

Pêro  se  mas  se  avecina, 

Qué  mas  gallina,  queyo? 

Mercúrio 

Una  voz  de  hombre;  ahora 
A  la  oreja  me  volò. 

Sosea 

Pésetc  quien  me  paríó: 
La  voz  traigo  boladora  ? 
Ella  quisiera  ser  yo. 
Pues  mi  voz  pudo  volar 
Do  la  pudieses  oir  ; 
Por  contigo  no  rcuir, 
Me  debiera  de  prestar 
Las  alas  para  huir. 

Mercúrio 

Qué  buscas  Cibo  esa  puerta, 
Hombre  ?  Sé  que  eres  ladron. 

Sosea 

Ay  (jue  el  alma  tengo  muerta  I 
Oh  Júpiter  me  convierta 
Las  tripas  en  corazon! 

Mercúrio 

Quien  eres?  quieres  hablar? 


1>E  LUIZ   DE  CAMOF.S 


37 


Sosea 

Soy  quien  mi  voliintad  qulere. 
Mercúrio 

Pieneas  que  puedas  buriíir? 

Sosea 

Y  tú  puédesme  quitar 
Queyo  sea  quien  quisiere? 

Mercúrio 

Osas  bablar  tan  osado. 
Don  vellaco  bovarron  V 
Dí,  quieu  eres? 

Sosea 

Un  criado 
Del  Senor  Amphitrion, 
Por  nombre  Sosea  llamado. 

Mercúrio 

Pienso  que  el  seso  perdiste. 
Como  te  llamas,  mal  hombre? 

Sosea 

Sosea  soy,  si  no  me  oiste. 

Mercúrio 

Como?  en  persona  tan  triste 
Osas  d'en3uciar  mi  nombreV 
Estos  puíios  Uevarás, 
Pues  tener  mi  nombre  quieres. 
Quiéresme  dicir  quien  eres  ? 

Sosea 

O  Seíior,  no  me  dés  mas, 
Que  yo  seré  quien  tú  qnisiere.s 

Mercúrio 

Con  tan  nueva  falsedad 
Andais  por  esta  Ciudad, 
Delante  de  quien  os  mini? 
Pues  8Í  sois  Sosea,  tomad. 


Sosea 

Si  me  dás  por  la  verdad, 
Que  me  harúb  por  la  mentira  ? 

Mercúrio 

Y  que  verdad  es  la  tuya  V 
Que  te  quiero  dar  castigo. 

Sosea 

Si  no  í-oy  Sosea  que  digo, 
Que  Júpiter  me  destruya. 

Mercúrio 

Mirad  el  falno  enemigo  : 

Tomad  este  bofeton, 

Que  yo  soy  Sosea,  y  no  tos. 

Sosea 
Tú  Sosea? 

Mercúrio 

Sosea  por  Dios, 
Escravo  de  Ampliitriou. 

Sosea 

De  modo  que  tiene  dos? 

Mercúrio 

No  tendrú,  aunque  tú  quieres; 
Que  á  mi  solo  conoció. 

Sosea 

Pues  luego  de  quein  soy  yo? 

Mercúrio 

Si  tú  no  sabes  quien  eres, 
Quieres  que  yo  lo  sepa?  No. 

Sosea 

Enfin,  lias  me  de  hacer  crer 
Que  yo  no  soy  quien  ser  solia? 

Mercúrio 

Quien  solias  tú  de  ser  ? 


38 


COMEDIAS 


Sosea 

Tregods  me  lias  de  prometer, 
Djrtelohé  sin  porfia. 


Prometo. 


Mercúrio 

Sosea 

Xo  me  darás  ? 

Mercúrio 

No,  si  no  íuere  razon. 

Sosea 

Pues,  hermano,  tú  sabrás 
Que  mi  amo  Amphitrion. .  . 

Mercúrio 

Tu  amo  ?  Puis  llevarás. 
Mi  amo  es,  que  tuyo  no. 

Sosea 
Ay  que  un  brazo  mo  ijuebró  ! 

Mercúrio 
Mas  que  luego  te  matase. 

Sosea 

Ojalá  Dios  ordenase 
Que  tú  ahora  fueses  yo, 
Y  yo  que  te  desmeinbrase  ! 

Mercúrio 

Esa  tu  tema  tau  loca, 
Punos  te  la  han  de  quitar. 
Díme,  dí,  ver^iicuza  poça, 
Qué  hablas  ? 

Sosea 

Que  puedo  bablar, 
Si  me  has  quebrado  la  boca? 

Mercúrio 

Di  quien  eree,  sin  fatiga. 


Sosea 
Soy  un  hombre,  eu  quien  tu  dás. 

Mercúrio 
Díme  pues,  qué  nombre  Las. 

Sosea 

Como  quiercs  tú  que  diga, 
Para  qué  no  me  dés  más  ? 

Mercúrio 

No  me  has  de  hablar  contrahecbo. 

Sosea 

Toda  mi  vida  pasada 
Sosea  fuy,  y  con  despecbo 
Ahora  soy . .  .  qué '?  No  nada; 
Que  tus  manos  me  han  deshecho. 

Mercúrio. 

Cuyo  eres,  pucs  las  siontes, 
Dejando  consejos  vanos? 
La  verdad;  que  si  me  mientes, 
Dás  con  la  lengua  en  los  dientes, 
Y  yo  dóyte  con  las  manos. 

Sosea 

No  conoecs  Amiihitrion  ? 

Mercúrio 

Hombre  sin  soso  te  llamo. 
Tau  fuera  estás  de  razou  ! 
Piensas  de  mi,  bovarron, 
Que  no  conozco  a  mi  amo  ? 

Sosea 

En  su  casa  couociste 

Uno,  que  es  Sosea  llamado, 

Hombre  despreciado  y  triste? 

Mercúrio 

Dosa  suerte  lo  dijiste  ? 

Yo  soy  triste  y  despreciado  ? 

Pues  sabe  que  te  lleg«j 


!!♦:   LLl/.  li;:  CAJIOKS 


A  \d  Uj«\eri>i  tu  ívr^auu. 

Sosea 

Pues  logo  si  yo  uo  soy  yo. 

Aunque  nadie  me  niató; 

Soy  Itiejío  cosa  ninguna. 

Oh  dioses,  que  desooncierto  I 

Yo  por  ventiiia  soy  inucrto, 

O  muriómo  l;i  iwzoii  ? 

Yo  no  soy  de  Aiiiphirriou  ? 

El  DO  me  mandou  dei  puerto  ? 

Yo  sé  que  no  estoy  Joeo. 

De  mi  madre  no  nací  ? 

No  ando?  No  liablo  aqui? 

Mercurio 

Paes  sioyiegíi  ab'ira  un  poço, 
Que  yo  tambicri  dir/;  de  mi. 
Yo  no  jíé  quo  víi  áoy  yo  ? 
Yo  no  to  Ui  CGU  mis  manos  ? 
Mi  Seíior  no  me  llevó 
A  la  cuerra,  adó  mau» 
Aqucl  R^iy  de  los  Thebauos  V 

Sosea 

Yo  est)  nuiy  bion  !•>  s^. 
Empero  tú  qaé  bacias 
Cuando  la  batalla  vias  ? 

Mercúrio 
Escacha:  yo  lo  diré, 

Y  cesaran  tus  portías. 
Cuando  mi  Senor  andaba 
Peleando,  y  derramaba 

La  sangre  de  alj^an  mezquino; 
Con  una  bota  de  vino 
Yo  Ia  mia  acrescentaba. 

Sosea 

(Diop  io  que  yo  hacia^ 
Con  todo,  saber  queria 
8ola  una  cosa,  si  puedo: 
Tu  pecho  entoncos  sentia  ? 

Mercúrio 

Del  beber  grande  alegria, 

Y  dei  peiear  o;ríin  tn?cd<i. 


I  Y  deí?pu. 


&oaoÀ 


Morovan 


^íjiy  repus^ido 


o  ú^iuJo. 


I  A  dormir  me  éché  u 

j  Desde  cl  sol  liasta  la  luna. 

i  Scaea 

(Todo  lo  tiene  conlado. 
Eníin.  tengo  .iveriguado 
Que  yo  no  >oy  cosa  ninguua) 
Pues  de  todo  on  un  instante 
Me  has  achado  de  mi  fuera, 
Aconsejamos  si  qui'.'ra, 
Quien  sern  daqui  lulelante, 
Pues  no  soy  quien  de  antes  era. 

Mercúrio 

Cuando  yo  ao  sev  quisiere 
Ese.  que  tú  ícv  deseas, 
De?pues  que  yv-  Sosea  no  fuere. 
Darlehé.  si  re  j)luguiere, 
Licencia  que  iodo  seas. 
Y  acógete  hn^tfo,  amigo. 
A  buscar  tu  nouibro,  digo. 
Pues  Dios  vida  te  dejó; 
Que  el  .Sosea  queda  comigo. 

Sosea 

Pues  contigo  quedo  yo, 
Dios  quede,  henn.-mo,  contigo. 
Ahora  quiero  ir  allá 
Adó  mi  Seilora  está, 
Contarle  corno  es  venido 
Mi  Seiíor.  Mas,  oh  perdido  I 
Si  un  otro  yo  ti  ene  allá, 
Todo  lo  terna  sabido. 


Ah  hombr 


Mercúrio 

Sv-^sea 

.Mi  vov:  ío'.!»'». 


40 


COMEDIAS 


Mercurlo 

Aonde  vuelves  yliora  ? 

Sosea 

Por  Dios  no  sé  onde  vo, 
Porque  .si  yo  no  t^fty  jo, 
Ni  Alcinena  es  mi  Seilora. 


Mercurio 


Adonde  vas' 


Sosea 


C'.'H  mensaje 
Del  Senor  Aniphitrion 
Para  AlcrnenR. 

Mercurio 

Adó,  salvaje  ? 
Pues  quebraste  la  omeuaje, 
Alii  verás  tu  perdic-ioji. 
Yo  doyte  consejos  sanos. 
Y  porfias  otra  vez? 


Sosea 

Altos  dioses  soberanos  I 
Pues  me  no  valen  las  uianoi?. 
Aqui  me  valgau  los  pie^.        í V/f. 

Mercurio 

Desta  arte  enseíjau  aqui 
A  hurtar  el  nombre  ageno? 

SCEXA  vn 

Sosea 

Ay  Diuír.  como  nie  acogi  V 
O  Júpiter  alto  y  bueno. 
Cuau  cerca  la  muerte  vi  .' 
Quiérome  ir  á  mi  Sfjuor 
Contarle  qiiantí-  hé  juizado  ; 
y  cl  me  dirá  de  iriatío. 
Si  yo  soy  .^u  servidor. 
Eu  que  ço3:i  rrir-  !u'  <^.'>rnHdo. 


ACTO  ni 


SCENA  í 

tTupifer  e  Ali-uifua 

Júpiter 

Toda  a  pessoa  disrretu 
Terá,  Senliora,  as-entado. 
Que  um  bem  muito  (l<'<f  judo 
Se  ha  de  alcajiçar  por  dieta. 
Para  ser  sempre  estimado. 
E  quem  alcançiido  tem 
Tamanho  contPutamento: 
Por  conservá-lo  coMvem 
Qup  tome  por  niiiritimcnto 
A  fome  de  tanto  bem. 
E  por  isso  hei  de  tomar 
Este  tempo  tào  ditoso 


Para  a  frota  visitar  : 
E  despois  quando  tornar. 
Tornarei  mais  desejoso. 
Que  pois  ta  o  bom  captiveiro 
Me  tèe  presa  a  liberdade, 
Eu  lhe  prometto  em  verdade 
Que  tome  ainda  pritueiro. 
Que  mo  peca  a  saudade. 

Alcmena 

Aindaqup  eC  possa  ir 
Mais  asinha  do  que  creio. 
Como  hei  dou  consentir 
Que  se  haja  de  partir 
Na  n  esma  noite  que  veioV 

Júpiter 

Forcada  he  minha  ti-roada, 


DÊ  I.IIZ  DX  CAMOE» 


41 


Mítô  muito  cedo  virei : 
Porque  desque  foi  checada 
A  este  porto  a  Arma/Ja, 
Ainda  a  nào  visitei. 

Alcmena 

Pois,  Senhor,  tào  pouco  esfais 
Com  quem  vistcí*  inda  figora? 
Faça-se  como  mandais. 

Júpiter 

Vós  me  vereis  cá,  Senhora, 
Primeiro  do  que  cuidais. 

SCENA  XI 

Amphitriujj  e  Sosea 

Amphitriào 

Emfim  tu,  que  eatás  aqui, 
Estavas  ja  lá  primeiro  ? 

Sosea 

Senor,  crea  que  es  ausí. 

Ampliitrião 

Eu  nunca  entendi  de  ti, 
Qu'eras  também  chocarreiro. 

Sosea 

Senor,  yo  que  estoy  presente; 
No  soy  Sogea  su  criado  V 

Ampliitrião 

Creio  que  nao  certamente, 
Porque  Sosea  era  avisado, 
E  tu  és  mui  diftorenlc. 

Sosea 

Paes,  Sefior,  si  en  mi  so  a  é 
Que  no  soy  (luien  de  antes  era, 
Vuélvome.    ^ 

Amiphitrião 

Va  para  queV 


Sosea 

Ver  se  á  dicha  me  quede 
Durmiendo  por  la  galera. 

Amphitrião 

Pois  me  queres  fazer  crer 
Huma  doudice  tào  rasa, 
Mais  quero  de  ti  í>aber: 
Como  nao  entraste  em  casa 
D' Alcmena  miuhu  mulher? 

Sosea 

Aunque  Sosea  quisiese, 
La  verdad  no  negará  : 
Aquel  yo  que  allá  e.-tn, 
No  quiso  que  á  casa  fuese 
Estotro  yo.  que  iba  allá. 
y  con  fúria  tan  crecida 
A  mi  se  vino  aquri  hombre. 
Que  yo  me  puse  cu  huida, 
Y  ansí  le  dejé  mi  nombre, 
Por  me  dejar  él  la  vida. 

Amphitrião 

Quem  seria  tào  ousado. 
Que  tanto  mal  tf^  fizesse  V 

Sosea 

Yo  mismo  Soscii  llamado, 
Que  á  casa  era  ya  Ucgado, 
Antes  que  de  acá  partise. 

Amphitrião 

Tu  chegaste  antes  de  ti  V 
Este  he  gentil  disparate. 

Sosea 

Pues  mas  le  digo  daqui, 
Que  vengo  huyendo  do  mi, 
Porque  yo  mismo  no  me  mate. 

Amphitrião 

Eráo  dous,  ou  era  hum  só. 
Quem  te  fez  assi  fugir  V 


42 


kOMEDlAS 


Sosea 

Pésetfi  quien  me  parió  : 
Digo,  que  era  un  solo  ye  : 
Mil  veces  lo  hé  de  decir? 
Puede  ser  que  naceria 
De  aquel  liornbre  otro  alguno, 
Como  aquel  de  iní  nacia ; 
Porque  aunque  faese  él  uno, 
Por  mas  de  cuatro  tenia. 
El  tenia  mi  aparência, 
Empe r o  yo  nunca  vi 
Tal  fuerza,  ni  tal  potencia  : 
Esta  sola  diferencia 
Le  tengo  hallado  de  mi. 

Amphitrião 

Pudeste  delle  saber 
Cujo  era? 

Sosea 

Qnien?  aquel  yo  ? 
Tuyo,  Seilor,  dijo  ser, 

Amphitrião 

Nunca  eu  tive  mais  que  hum  só, 
E  esse  nào  quizera  ter. 

Sosea 
Pues,  Seiior,  si  el  bien  doblado 
Te  le  muestra  agora  Dios, 
Dobe  ser  de  ti  aíabado  ; 
Pues  de  uno  solo  criado 
Te  ha  hecho  {igora  dos. 

Amphitrião 
Antes  para  que  conheças, 
Que  cousa  he  ni:ío  s.^rvidor. 
Me  pezará  se  assi  for  ; 
Que  de  tào  ruins  cabeças, 
Quantas  mais,  t^nto  peor. 
E  ja  que  sào  tào  incertos 
Teus  ditos  para  se  crer  ; 
Muito  melhor  deve  ser 
Que  deixe  teus  desconcertos, 
E  vá  ver  minha  mulher. 


SCENA  III 


Axcm.ena 


Que  fado,  que  nascimento 
De  gente  humana  na-cida, 
Que  d'e&casso  e  avarento. 
Nunca  consentio  na  vida 
Perfeito  contentamento ! 
Amphitrião,  que  mostrou 
Hum  prazer  tÀo  desejado 
A  quem  tanto  o  desejou  ; 
Na  noite,  que  foi  chegado, 
Nessa  mesma  se  tornou  ! 
De  se  tornar  tào  asinha 
Sinto  tanto  entristecer 
O  sentido  e  ;ilma  minha 
Que  certo  que  me  adivinha 
Algum  novo  desprazer. 
Mas  parece  este  que  vem, 
Se  nào  estou  enganada: 
j  Se  elle  he,  venha  com  bem, 
!  Pois  que  com  sua  tornada 

i  Tào  tran^foruada  me  tem. 

I 

SCENA  IV 

!       AmnliUrlào.  Ah  mena  e  Sosea 

i 

}  Amphitrião 

I  Com  que  palavra?.  Senhora, 
i  Poderei  engrandecer 
1  Tào  sublimado  prazer, 
I  Como  he  vêr  chegada  a  hora, 
i  Em  que  vos  pudesse  ver  ? 
Certo  grào  contenlamento 
Tive  (\(^  meu  vencimento; 
]\Ia8  maior  o  liei  (hj  mim, 
De  me  vêr  posto  no  lim 
De  tào  longo  apartamento. 

Alcmena 

Ja  eu  disse  o  (pie  sentia 


})\:  I.U17.  DR  tA>i'>;íj 


43 


Sosea. 


De  vinda  tilo  desejada. 
Mas  dipa-me  todavia  : 
Como  iiílo  foi  vêr  a  Armada, 
Que  me  disse  hoje  este  dia? 

Amphitrião 

Delia  venho  eu  iuda  agora 
Desejoso  de  vos  ver, 
Muito  mais  que  de  vencer. 
Mas  que  me  dizeis,  Senhora. 
Que  hoje  me  ouvistes  dizer  ? 

Alcmena 

Se  nào  estava  remota, 
Certamente  que  lhe  ouvi, 
Quando  hoje  partio  daqui, 
Que  tornava  a  vêr  a  frotn. 
Porque  era  forçado  assi. 

AmphitriáG 

Soaea 

Seiior,  aqui  estoy  yo. 

Ampliitrião 

Tu  ouve^  tal  desconcr-rto  V 

Sosea 

Grandes  orejas  íjanú, 
Pues  estando  eu  casa  oyó 
Qwien  estava  alhl  nel  puerto  ! 

Amphitrião 

Quando  dizei»,  que  m'ouvistesV 

Alcmena 

Hoje,  quando  vos  partistes. 

Amphitrião 

D'or.ao? 

Alcmena 

Daqui,  de  me  vêr. 

Amphitrião 
Nunca  vi  grande  prazer^ 


Que  n.lo  tenha  os  cabos  trietec. 
Quantos  males  d'improviso 
Que  causão  grandes  mudança-^  I 
Que  mulher  de  tanto  aviso, 
Agora  minhas  lembranças 
A  tèe  fúru  de  juizo! 

Alcmena 

QuereÍ3-me  fazer  cuidar 
Que  poderia  sonhar 
O  que  peios  olhos  vi? 
Nunca  vos  eu  mereci 
Quererdos-me  exprimentar. 

Amphitrião 

Postoque  he  para  pasmar 
Vêr  hum  caso  tào  estranho, 
Todavia  hei  de  attentar, 
Se  poderei  concertar 
Hum  desconcerto  tamanho. 
Quando  dizeis  que  vim  cá? 

Alcmena 

Esta  noite  que  passou. 

Amphitrião 

Dae-me  algueio  que  aqui  se  achou, 
Que  me  visse. 

Alcmena 

Esse  que  hi  está, 
Sosea  que  comvo.soo  andou. 

Amphitrião 

Sosea,  podes -te  lembrar, 
Que  hontem  me  vistes  aqui  ? 

Sosea 

Nunca  yo  supe  de  mi 
Que  me  pudiese  acordar 
De  aquello  que  nunca  vi. 

Alcmena 

Ora  eu  éreo,  e  he  assi, 

Que  arabos  vindes  conjuradofi, 


J4 


COMEDIAS 


Para  zombardes  tle  mi; 
Mas  eu  darei  l)oje  aqui 
Sinaes  que  sejào  provados. 

Amphitriâo 

Que  sinaes  pôde  alii  haver 
De  mentira  tào  notória, 
Que  nem  foi,  nem  pôde  ser? 

Alcmena 
Donde  vim  em  eu  a  saber 
Xovas  de  vossa  victo.-iaV 

Amphitriâo 
Que  novas  ? 

Alcmena 

Dir-vo-las-hei, 
Assim  como  mas  contastes: 
Que  na  batalha  matastes 
Aquelle  soberbo  Rei. 
E  tudo  desbaratastes: 
Não  fazendo  resistência 
X'uma  batalha  tao  crua, 
Dando-vos  obediência, 
Vos  derão  huma  copa  sua. 
Lavrada  por  excellenciíi. 

Amphitriâo 
Sosea  he  culpado  só 
Nestes  ar^ontecimeutos 

Sosea 
Seiior.  son  «'lu-aniamientos, 
Porque  aquel  hombre,  que  es  yo, 
Le  contaria  estos  cuentos. 

Ampliitrião 
Quem  he  esse,  que  vos  deu 
Taes  novas,  saber  queria? 

Alcmena 
Quem  mo  per,!;'-u))ta. 

Amphitriâo 

Quem?  Eu  ! 
Quereis-me  fazer  sandeu  ? 


Alcmena 

Más  vós  me  fazeis  sandia. 

Amphitriâo 

Ora  quero  perguntar  : 

Que  fiz  sendo  aqui  chegado  ? 

Alcmena 

Puzemo?-nos  a  cear. 

Amphitriâo 

E  despois  de  ter  ceado? 

Alcmena 

Fomos -nos  ambos  deitar. 

Amphitriâo 

Nunca  queira  Deos  que  possa 
Achar-se  na  minha  honra 
Nenhuma  falta  nem  mossa  : 
Seja  isto  doudice  vossa, 
Antes  que  minlia  deshonra. 

Sosea 

Bien  lo  supe  yo  entender. 
Que  era  esto  cncantaciones  : 
Y  ahora  me  habrá  de  crer 
Que  dos  8oseas  puede  haber. 
Pues  hay  dos  Amphitriones. 

Alcmena 

Com  me  quererdes  tentar 
Tào  torvada  me  fizestes. 
Que  me  nào  pôde  lembrar 
Que  vos  mandasse  mostrar 
A  copa  que  me  hontcm  destes. 

Ampiíitriâo 

Eu  ?  copa  ?  Se  isso  ahi  ha. 
Que  estou  doudo  cuidarei. 

Sosea 

Senor.  bien  ^ruardada  está. 


DK    LUIZ    DE   CAMÕES 


45 


Alcmena 
Bromia  ? 

Bromia,  de  dentro 

Senhora. 

Alcmena 

Dae  cá 
A  copa  que  hoiitem  vos  dei. 

Sosea 

Pues  yo  pari  otro  yo, 
Y  vós  otro  Amphitrion, 
No  es  rauoha  admirucion, 
Si  la  copa  otra  parió,. 
Ni  aun  fuera  de  razon. 


SCENA  V 

Amjj/iitruío,  Alcmena^  Sosea 
e  Bromia 

Bromia 

Eis-aqui  a  copa  vem, 
Testimunho  da  vodade. 

Ampliitrião 

Uh  estranha  novidade  ! 

Alcmena 

Poder-me-ha  dizer  alguém 
Que  o  que  digo  he  falsidade? 

AmpMtriâo 

Sosea,  quando  hontem  cá  vinhas, 
Poder-ine-ha,'5  ne^irar,  ladrão, 
Que  lhe  d«2ste  as  novas  minhas. 
E  mais  a  copa  que  tiulias 
Guardada  na  tua  niào  ? 

Sosea 

Senor,  que  no  pude,  no, 
Ver  á  mi  Senora  Alcmena: 
Si  aqucl  <í.«o  acá  ordeno, 


j  No  lleve  ^^ia  y->  In  pena 
i  Del  n)al  que  hizo  cl  otro  yo. 

Ampliitrião 

Ora  eu  uào  sei  entender 

Tal  caso,  nem  lhe  acho  fundo  : 

Com  tudo  venho  a  dizer. 

Que  ha  tantos  males  no  mundo, 

j  Que  tudo  se  pode  crer. 
Se  vos  trouxer  quejn  vos  diga 

i  Como  esta  noite  dormi 
Na  náo,  crereis  que  he  assi  ? 

Alcmena 

[  Nenhuma  cousa  me  obriga 
!  A  que  nào  creia  o  que  vi. 

j  Ampliitrião 

i  Se  o  Patruo  :'.í|ui  vier, 
i  Que  he  homem  d'autoridade. 
Crereis  o  oiiC  vos  disser? 

Alcm.ena 

Sim,  que  ninguém  pode  haver 
Que  me  negue  esta  verdade. 

i  Ampliitrião 

Eu  estou  em  concriisào 

D'hoje  desembaraçar 
i  Tào  enleada  que.-^tíío  : 
i  A  náo  me  qnf-ro  tornar 
I  A  trazer  cá  BeltV-rrào. 

Sosea,  até  minha  tomada 

Fica  nesta  casa  cm  vela; 

Qu'eu  armarei  tal  cilada 
.  A  quem  ma  a  mim  tT-e  armada, 

Que  venha  hoje  a  cahir  nella. 

SCENA  VI 

Alcjnp.iia  f.  Bromia 

Alcmena 
Oh  mulher  triste  e  suspensa 


46 


COMEDIAS 


Da  mais  alta  confusão 
Que  nunca  vio  coraçrio  I 
Em  que  mereces  a  oííensa. 
Que  te  faz  Amphitriào? 
Sempre  de  mi  foi  amado. 
Tanto  quanto  em  mi  se  sente. 
Co'o  coraçíio  tào  liado, 
Que  se  de  mi  era  ausente. 
Nelle  o  via  tígurado. 
E  pois  mulher,  que  cumprisse 
Melhor  qu'eu  fidelidade, 
Não  a  vi,  nem  quem  me  visse 
Que  dos  limites  sahisse 
Hum  pouco  da  honestidade. 
Pois  porque  he  tào  maltratada 
Innocencia  tào  singolla? 
Que  a  pena  mais  apertada. 
He  a  culpa  levantada 
Ao  coração  livro  d'ella. 
Mas  ja  que  minh'alma,  está 


[  Sem  culpa  do  que  padeço, 
j  Seja  o  que  fOr;  queu  conheço 
Que  a  verdade  me  porá 
No  qu"eu  pola  ter  mereço. 
Bromia  ? 

Bromia 

Senhora. 

Alcmena 

Hi  mandar 
A  Feli»eo,  que  vá 
Meu  primo  Aurélio  chamar; 
Que  lhe  quero  perguntar 
Que  conselho  me  dará. 
E  pois  que  Amphitriào 
Vai  buscar  somente  quem 
Lhe  ajude  a  sua  tenção, 
Quero  eu  ter  aqui  também 
Quem  me  defenda  a  razào. 


ACTO  IV 


SC  ENA  i 
Júpiter.  Alcmena  e  Soseu. 

Júpiter 

Grão  desconcerto  íT-c  feito 
Amphitriào  com  Alcmena  ! 
Qualquer  dclles  X^q  direito: 
Eu  sou  o  que  venço  o  preito, 
E  ambos  pagão  a  peiui. 
Quero  me  ir  lá  desfazer 
Tào  trabalhosa  demanda. 
Por  nos  tornarmoí:  a  ver: 
Porque,  emfim,  quem  muito  quer 
Com  qualquer  desculpa  abranda. 
E  pois  ja  que  a  aíieiçào 
Ha  de  mudar  tào  asinha, 
Quero  ir  alcançar  perdão 
Da  culpa,  que  sendo  minha. 
Parece  d'Amnhitrião. 


Alcmena 

Parece  que  toma  cá 
Amphitriào,  que  ja  se  se  hia: 
Não  sei  a  que  tornará. 
Senão  se  lhe  peza  ja 
Dos  enganos  que  tecia. 

Júpiter 

Senhora,  não  haja  error 
Que  tantos  males  me  faça. 
Porque  se  o  contrario  for, 
j  Pequeno  será  o  amor, 
'  Que  manencória  desfaça. 
j  E  pois  com  tanta  alegria 
;  De  tantos  perigos  vim, 
'  Pezar-me-ha  se  achar  no  fim, 
I  Que  uma  leve  zombaria 
j  Vos  possa  aggravar  de  mim. 

Alcmena 

'  Com  palavras  de  deshonra 


DK    I.LIZ    DC    CAMOiíS 


Nilo  se  lia  de  tr:iíHr  quojn  aina^ 
Nem  zombaria  se  clutmM, 
Pòr  exprimentur  a  honra, 
Pôr  cm  tal  periíro  a  farna. 
Bem  tive  eu  para  mim, 
Que  era  aquillo  experiência. 

Júpiter 

Errei  no  que  commetti: 
Bem  me  bv.sta  a  penitencia 
De  quanto  me  ;  rrependi. 
E  se  fiz  algum  error, 
Com  que  vosso  amor  se  mude 
De  quem  vo-lo  tTe  maior: 
Não  exprimentei  virtude, 
Mas  exprimentei  amor. 
Que  se  com  caso  tào  vário 
Folguei  de  vos  agastar, 
Foi  amor  accresceiítfir; 
Porque  ás  vezes  liuni  contrário 
Faz  seu  contrário  avisar. 
Daqui  vem,  que  a  leve  múçron 
Firmeza  e  atiei-íòes  auírmentn. 
Como  bem  se  vé  na  frágoa, 
Onde  o  fogo  se  accresceuta, 
Borrifando-o  com  pouca  ágoa. 
Se  hum  mal  grande  se  alovantu 
N'hum  coração  que  maltrata, 
A  affeiçào  se  desbarata; 
Porque  onde  a  água  he  tanta 
O  fogo  d'amor  bc  mata. 
E  pois  tive  tal  tonçAo, 
Perdoae,  Senhora,  a  culpa 
D'e8te  vosso  coração. 

Alcmena 

Ni\o  se  alcança  assi  perdão 
n'erro  que  não  tce  desculpa. 

Júpiter 

Ora  pois  assi  tratais 
Quem  em  tanto  risco  pôí 
O  amor  que  vós  negais, 
Eu  m'ausentarei  do  vós 
Onde  maÍ8  rae  não  vejais. 


Que,  pois  desculpa  não  tem 
Coração  que  tanto  quer, 
You-me;  que  não  será  bem 
Que  quem  vós  não  podeis  ver. 
Que  possa  mais  vér  ninguém. 
Se  íilgum'hora  meu  cuidado 
i  Vos  der  dôr,  em  que  pequena: 
I  Peço-vos,  pois  fui  culpado, 
Que  vos  não  peze  da  pena 
De  quem  vos  foi  tão  pezado. 
E  despois  que  a  desventr.ra 
Puzer  este  coração 
Debaixo  da  sepultura. 
As  letras  na  pedra  dura 
Vossa  dureza  dirío. 
Isto  vos  hei  de  dizer, 
Que  m'ensinou  minha. dor: 
Se  quizerdes  leda  ser, 
Nunca  experimenteis  amor 
Em  quem  vol-o  não  tiver. 
Deixae-me  ir;  não  me  tenhais. 

Alcmena 

Amphitrião,  não  choreis ! 
Amphitrião  ! 

JupitTer 

Que  quereis, 
Ou  para  que  nomeais 
Homem,  que  vêr  não  podeis  ? 

Alcmena 

Amphitrião,  s^eu  causei 
Com  manencória  pequena 
Cousa,  com  que  o  magoei; 
Eu  quero  cahir  na  pena 
Dessa  culpa  que  lhe  dei. 

Júpiter 

Sempre  serei  magoado 
Se  vossa  má  condição 
Me  não  perdoa  o  passado. 

Alcmena 

Perdoo,  e  peço  perdão 
De  lhe  não  ter  perdoado. 


48 


COMEDIAS 


Sosea 

No  le  peráouo,  Seiíora, 
Hasta  que  coii  devocion 
Tainbien  rae  pida  perdon; 
Que  bien  se  \ne  acuerda  ahora 
Que  me  lui  llarnado  ladron. 


Sosea? 


Júpiter 
Sosea 


.Seíior. 


Jnpiter 

Vae  buscar 
O  Piloto  Belferruo; 
Dir-llie-lias,  se  desembarcar, 
Que  me  parece  razào 
►Que  venlia  hoje  cli  cear. 

Sosea 

Si,  Seílor,  voy  á  la  hor;i. 

Júpiter 

De  uenlunna  qualidade 
Cure  de  fazer  demora. 
E  nós  vamos-nos,  Senhora, 
Confirmar  nossa  amizade. 

SCENA   II 

Mercúrio 

Grandes  )*evolías  vào  lá, 
Grandes  acontecimentos  ! 
Cumpre-mc  que  esteja  cá, 
Em  quanto  meu  pae  esiá 
Em  seus  desenfadamentos. 
Porque  vi  Amphitriào 
Vir  da  não  mui  apressado  ; 
E  tendo  corrido  c  andado, 
Nào  pôde  acliMr  Belferrào, 
Que  lhe  era  bom  escusado. 
Parece-me  «jue  virá 
Ver  80  lhe  abre  aqui  alguém ; 


Mas,  porém,  se  che^a  cá, 
Ja  pode  ser  que  se  vá 
Mais  confuso  do  que  vem. 

SCENA  III 

Mercúrio  ''  Amphitríào 

Ampliitriào 

Quiz-nos  nossa  natureza 
Com  tal  condi cào  fazer, 
Que  já  temos  por  certeza 
Xão  haver  grande  prazer. 
Sem  mistura  de  tristeza. 
Este  decreto  espantoso. 
Que  instituio  nossa  sorte, 
He  tal  e  tào  rigoroso, 
Que  ninguém  antes  da  morte 
Se  pode  chamar  ditoso. 
Com  esta  justa  balança 
O  fado  grande  e  profundo 
Nos  refreia  a  esperança. 
Porque  ninguém  n'este  mundo 
Busque  bem- aventurança. 
Eu,  que  cuidei  de  viver 
Sempre  contente  de  mi 
(Jom  tamanho  ll«^i  vencer. 
Venho  achar  mii-.ha  mulher 
De  todo  fora  de  si. 
Mas  d'outra  parte  que  digo  ? 
Que  s'he  verdade  o  que  vi, 
E  o  ijue  ella  diz  be  assi. 
Virei  a  cuidar  comigo 
Qu'eu  sou  o  fora  dç'^-mi. 
Quero  ver  se  a  acho  ja 
Fora  de  t;To  seccos  nós. 
Ode 


casa 


Mercurio 

Odeallá? 
Quien  sõisV 

Amphitríâo 

Abrf*. 


DE    LUIZ    DE    CAMÕES 


49 


Mercurio 

Hauto  Dios  ! 
Pues  no  os  conocen  acá 

Amphitriâo 

Oh  que  gentil  desvario  ? 
Abri -me  ora  se  quizerdes. 

Mercurio 

No  haré,  que  en  mi  confio 
Que  de  fuera  dormiredes, 
Que  no  comigo,  amor  mio. 
(Que  cancion  para  oir!) 

Amphitriâo 

Ah  Sosea !  zombas  de  mi? 
(Ora  quero-me  fingir 
Que  ainda  o  hSo  conheci, 
Por  ver  se  me  quer  abrir) 
Ah  Senhor,  nâo  abrireis? 

Mercurio 
Qué  quereis,  hombre,  por  Dios  ? 

Amphitriâo 
Duas  palavras  de  vós. 

Mercurio 

Tengo  dicho  mas  de  seis,  » 

E  ahora  me  pedis  dos? 
De  fuera  podeis  dormir, 
Que  entrar  no  podeis  acá. 

Amphitriâo 
Ora  acabae,  abri  lá. 

Mercurio 

Digo  que  no  quiero  abrir : 
Dije  dos  palabras  ya. 

Amphitriâo 
Ora  sus,  bargante,  abri. 


Mercúrio 

;  Si  no  te  vuelves  de  aqui, 
j  A  grau  peligro  te  ofreces. 

I  Amphitriâo 

j  Velhaco,  não  me  conheces, 
•  Ou  estás  fora  de  ti? 

Mercurio 

!  Bonito  venis,  amor. 

;  Quien  sois,  que  hablais  tan  osado  ? 

I  Amphitriâo 

i  Abre,  que  sou  teu  Senhor. 

i  Mercurio 

Vuélvase  de  osotro  lado, 
i  Y  conocerlehé  mcjor. 


Amphitriâo 


Sosea  moço. 

Mercurio 

Asi  me  llamo, 
Huélgome  que  lo  sepais; 
Empero  digo  que  os  vais. 
Que  Amphitriíío  es  mi  amo; 
Vos  id  buscar  quien  seais. 

Amphitriâo 

Pois  quero  saber  de  ti: 
Eu  quem  sou? 

Mercurio 

Y  quien  sois  vós? 
Como  03  Uaman? 

Amphitriâo 

Abri. 

Mercurio 

A  vos  os  llaman  Abri  ? 
Pues,  Abri,  andad  con  Dios. 


.)*> 


C0MÊDIA8 


Amphitrião 

Quem  hu.  que  possa  soffrer 
í"m  sua  honra  tal  destroce, 
Que  para  me  endoudecer 
^íe  tre  neorado  a  mulher, 
K  asrora  me  nega  o  moço  ? 

Mercúrio 

Mira  el  encantador 
Como  se  lastima  e  Hora. 

Y  fuese  tomar  ahora 
La  forma  de  mi  Senor. 
Para  enganar  mi  Senora. 
Pues  esperad,  y  no  os  vais. 
Por  un  espacio  poqueiao; 
Verná  quien  representais. 

Y  él  os  hará  que  volvais 
El  falso  gesto  á  su  dueijo. 

Amphitrião 

Vae,  vel'iaco,  e  chama  cá 

Esse  falsf-  feiticeiro; 

Que  se  elle  lá  dentro  está. 

Esta  espada  julgará 

Qual  de  nós  he  o  verdadeiro. 

8CENA  IV 

ÁrnpJdfriâo,  S^sei,  e  BelfeiTao 

Belferrâo 

<  >ra  Minguem  presumira 
Que  titdiaí  tào  pouco  sise; 
Pois  vás  achar  dimprovifo 
Tao  bem  forjada  mentira. 
Que  me  faz  cahir  de  riso. 
Htim  moço,  que  alevantou 
Tal  graça,  nunca  nasceo: 
Porque  vos  jura  que  achou 
Que  ou  elle  em  dons  se  pcrd/^o. 
Oti  de  hum  dous  se  tornou. 

Sosea 

Patron,  que  no  burlo,  no: 


En  uno  son  dos  tinidos. 

Y  en  dos  cuerpos  repartidos: 
Yo  soy  él.  y  él  es  yo. 

De  un  padre  y  madre  nacidos. 

Belferrâo 

Esse  tu  que  láestás. 
Táo  velhaco  he  coma  ti  ? 

Sosea 

Mas  aun  p'enso  que  es  mas: 
Por  dehmte  y  por  detrás 
Todo  se  parece  á  mi. 

Y  fue  gran  merced  de  Dio.s 
Ayuntar  á  nu'  mas  uno. 
Que  peor  fuera  de  nos, 

8i  Dios  me  hiciera  ninguno. 
Que  no  de  uno  hacer  dos. 

Belferrâo 

Assi  que,  se  te  jDerdeste 
Vieste  a  cobrar  mais  hum: 
Mui  gentil  conta  fizeste. 
Pois  que  perdido  soubeste 
Que  eras  dous,  sendo  nenhum. 

Sosea 

Pues  teneis  por  abusion 
Verdad  tan  clara,  y  tan  rasa^ 
Aunque  pone  admiracion; 
<^iera  Dios,  que  allá  en  casa 
No  halleis  otro  Patron. 

Amphitrião 

O  Patrào.  que  fui  buscar. 
Parece  que  vejo  vir ! 
Nào  sei  quem  o  foi  chamar; 
Mas  que  me  ha  de  aproveitar 
Se  me  nào  querem  abrir? 
Ah  Belferrâo! 

Belferrâo 

Ah  Senhor! 
Ja  sinto  que  fui  cidpado; 
Porque  quem  he  convidado, 


DE  LUIZ  DE  CAMUES 


51 


8e  tào  vagaroso  for, 
Merece  não  ser  chamado. 

Ampliitrião 
A  vós  quem  vos  convidou  V 

Belferrão 
Sosea,  por  mandado  seu. 

Amphitrião 

Disso  Patrão,  não  sei  eu, 
Que  Sosea  já  me  negou, 
E  ja  se  não  dá  por  meu. 
E  se  alguém  vos  foi  dizer 
Qu'eu  vos  chamo  á  minha  mesa: 
Mal  vos  dará  de  comer 
Quem  de  todo  lhe  é  defesa 
A  casa,  e  mais  a  mulher. 

Belferrão 

Quem  he  esse  tão  ousado, 
Que  vos  isso  faz,  Senhor  ? 

Amphitrião 

Sosea,  creio  que  enganado 

Por  algum  encantador, 

Que  a  honra  me  tèe  roubado. 

Belferrão 

Se  elhi  aqui  comigo  vem, 
Isso  como  pode  ser? 

Amphitrião 

Ah  !  que  a  ira  que  vou  ter. 

Tão  cega  a  vista  me  t^m, 

Que  mo  não  deixava  ver. 

Porque  razão,  cavalleiro, 

Não  me  abris  quando  vos  mando? 

Vós  fazeis-vos  chocarreiro  ? 

Sosea 

Vo  Seuor?  y  como?  y  cuando  V 

Amphitrião 

Quereis-lo  saber  primeiro? 


Esperae,  dir-se-vo.s-ha, 
Mas  será  por  outro  son. 

Sosea 

Ah  Senor  Amphitrion, 
Porque  matándome  está, 
Sin  delito,  y  sin  razon  ? 

Amphitrião 

Agora  que  vos  eu  dou 
Me  chamais  Amphitrião, 
E  para  me  abrirdes  não. 

Belferrão 

Este  moço  em  que  peccou? 
Porque  pena  sem  razão? 
Não  mais  por  amor  de  mi. 

Amphitrião 
Não,  que  nào  sou  seu  Senhor: 
Eu  sou  hum  encantador. 
Não  o  dizeis  vós  assi, 
Ladrão,  perro,  enganador? 

Sosea 
Porque  fuy  presto  á  llamar 
j  Por  su  mandado  ai  Patron, 
1  Me  quiere  ahora  matar  ? 

Amphitrião 

Quem  vo-lo  mandou  buscar? 

Sosea 

Si  no  hay  otro  Amphitrion, 

Vuestra  merced  sin  dudar. 

t 

Amphitrião 

Eu  te  mandei  ? 

'  Sosea 

Si  Sonr.r, 
Si  otro  no. 

Amphitrião 

Outro  ha  aqui, 
Por  quem  tu  zombei  de  mi  ? 


O^J 


COMEDIAS 


Pois  SÓ  desse  encantador 
Me  quero  vingar  em  ti. 

Sosea 

Oli  Júpiter,  á  quien  bramo 


Por  su  bondad  qne  me  valai 
Pues  porque  Sosea  me  llamo, 
Yo  miíimo,  y  dcspucs  mi  amo, 
Me  dieron  venida  mala  ! 


ACTO  V 


SCENA  I 

Jajjiter,  Belferrão,  Sosea  e  Amphi- 
triào. 

Júpiter 

Quem  he  o  tào  atrevido, 
Que  aqui  ousa  de  fazer 
Tào  revoltoso  arruido 
Com  meus  moços,  sem  temer, 
Que  fui  sempre  tào  temido  ? 
Quem  aqui  faz  uniiio, 
Toma  mui  grande  despejo. 

Belferrão 

Oh  grande  admiração  ! 
Vejo  eu  ourro  Amphitrião, 
Ou  he  sonho  isto  que  vejo? 

Sosea 

2S'o  mirais  hi  eneantacion, 
<>Ju.e  aquel  hizo  á  tal  Seiior? 
El  que  sale.  Belfc-ron, 
Es  el  eierto  Amphi trion. 
Que  estotro  es  encantador. 


Sosea  ? 


Júpiter 

Sosea 

Mi  Seuor,  ya  vó. 


Júpiter 

Patrâoj  só  por  vós  espero. 

Sosea 
No  os  lo  dicia  yo, 


Que  este  era  el  verdadero, 
Y  esse  que  allá  queda,  no? 

Ampliitrião 

Bargante,  aonde  te  vás? 
Fazes  teu  Senhor  sandeu? 
Pois  espera,  c  levarás. 

Júpiter 

O  lá.  tornae  por  detrás, 

Não  deis  no  moço,  que  he  meu. 

Ampiiitriâo 

Vosso  V 

Júpiter 

:Me«. 

Ampliitrião 

Pôde  isto  haver, 
Que  outrem  minhas  cousas  tome  ? 
Vós  galante  haveis  de  ser, 
O  que  me  tomais  o  nome, 
Casa,  moços  e  mulher. 
Eu  vos  farei  conhecer 
Com  quem  tendes  esse  trato. 

Júpiter 

Sosea  ? 

Sosea 

Senor. 

Júpiter 

Vae  dizer, 
Que  apparclhem  de  comer, 


DE  LUIZ  DE  CAMÕES 


53 


Em  quanto  este  doudo  mato. 

Belferrão 

Oh  Senhor,  nao  seja  ussim, 
Haja  em  vós  concerto  algum  I 
E  senào,  pois  aqui  vim, 
Farei  que  só  tome  em  mim 
Ob  golpes  de  cada  hum. 

Júpiter 

PatrSo,  vossa  boa  estrelia 
Me  fará  deixar  com  vida 
Quem  me  não  merece  telly. 

Amphitrião 

Nao  a  tenho  eu  merecida. 
Pois  que  vos  deixo  com  ella. 

Belferrão 

O  homem  que  for  sisudo, 
N'huma  tàp  grande  questão 
Ha  de  tomar  por  escudo 
A  justiça,  e  a  razào; 
Que  estas  armas  vencem  tudo. 
E  pois  essa  natureza 
Muitos  homens  faz  ignaes, 
©ê  qualquer  de  vós  sicrnaís 
De  quem  he,  para  certeza 
Da  forma  que  ambos  mostrais. 

Júpiter 

Sou  contente  de  mostrar 
Poios  sinaes  que  vos  dou, 
Que  aào  estes  sem  faltar. 

Amphitrião 

Que  sinaes  podeis  vós  dar, 
Para  que  sejais  quem  sou  ? 

Júpiter 

Estes,  que  log-o  vereis 
Se  são  vãos,  sf^  de  raiz. 
Patrão,  vós  sede  juiz, 
Que  vós  logo  enxergareis 
Qual  mais  verdade  vos  diz. 


Belferrão 

Eu  não  sinto  onde  consista 

A  cura  desta  doença, 

Que  ha  tão  pouca  diíferença, 

Que  aquelle  em  que  ponho  a  vista, 

P©r  esse  dou  a  sentença. 

Mas,  Senhor,  vós  que  ordenastes 

Que  o  juiz  d'isto  fosse  eu, 

Quando  se  a  batalha  deu. 

Dizei,  que  m'encommendaste3 

Que  ficasse  a  cargo  meu? 

Júpiter 

Dei-vos  cargo.  qu'estivesse 
Toda  a  Armada  a  bom  recado, 
E,  se  mal  nos  succedesse. 
Que  para  os  vivos  houvesse 
O  refugio  apparelhado. 

Belferrão 
Ora  vós  quantos  dobrões 
Esse  dia  mVntregastes? 

Amphitrião 

Três  mil;  e  vós  os  contastes. 

Belferrão 

Ambos  sois  Amphitriòes 
Pelos  sinaes  que  mostrastes. 

Júpiter 

Para  ser  mais  conhecida 
A  tenção  d'este  sandeu, 
Vede  est'outro  sinal  meu. 
Que  he  neste  braço  a  ferida 
Que  me  ElRei  Terela  deu. 

Belferrão 

Mostrse,  vós.  Senhor,  também. 

Amphitreão 

Aqui  o  podeis  olhar. 

Belferrão 

i  Oh  cousa  para  espantar ! 


54 


«OMEDIAS 


Que  ambos  a  ferida  tem 
D"hiiin  tamanho,  cm  hum  lugar ! 

SCENA  II 

Júpiter,  Amphitrião  e  Sosea 

Sosea 

Dice  mi  Seuora  Alcmena 
Que  no  se  ha  de  así  de  eí^tar 
(,'on  uu  bobo  á  razonar, 
Que  se  le  eufria  la  cena. 

Júpiter 
Belferrão,  vamos  cear. 

Amphitrião 

Belferrão,  nâo  me  deixeis. 
Como  ?  também  me  negais? 

Júpiter 

Andae,  nao  vos  detenhais, 
Vamos  comer,  se  quereis, 
Xâo  ouçais  hum  doudo  mais. 

Ampliitrião 

Ah  máos  !  assi  me  ordenais 
Offensa  tão  mal  olhada  ? 
Eu  farei,  se  mesperuis, 
Com  que  todos  conheçais 
Os  fios  da  minha  espada. 

Jupiter 

As  portas  prestes  fechemos, 
Nào  entre  este  doudo  cá. 

Sosea 

De  fuera  se  dormirá: 
Entre  tanto  que  cenemos, 
Puede  pasearse  allá. 

SCENA  III 

Amph.itriâo ,  só 
Oh  ira  para  nào  crer, 


Em  que  minh'alma  se  abraza. 
Que  me  faz  endoudecer, 
E  nào  me  ajuda  a  romper 
As  paredes  desta  casa  ! 
E  porque  ?  Nào  tenho  eu 
Forças,  que  tudo  destrua  ? 
Pois  que  tanto  a  salvo  seu. 
Outrem  aclio  que  possua 
A  melhor  parte  do  meu  ] 
Eu  irei  hoje  buscar 
Quem  me  ajude  a  vir  queimar 
Toda  esta  casa  sem  pena, 
Donde  veja  ardor  Alcmena, 
Com  quem  a  vejo  enganar. 

SCENA  IV 

Aureho  e  Mo<j'> 

Aurélio 
No  hallo  á  mis  males  culpa. 
Para  que  merezca  pena 
La  causa  que  me  condena. 

Moço 

Essa  está  gentil  desculpa 
Para  hoje  dar  a  Alcmena; 
Tèe-no  mandado  chamar. 
E  elle  está  tão  descuidado  ! 

Aurélio 
Moço,  queres- me  matar  ? 
Que  desculpa  posso  eu  dar 
Melhor  qu'este  meu  cuidado  ? 

Moço 

E  não  há  mais  que  fazer  V 
Com  isso  a  boca  me  tapa 
Para  mais  nada  dizer  ? 

Aurélio 

Ora  dá-me  cá  essa  capa, 
E  vamos  ver  o  que  quer  : 
Não  trates  de  mais  razão, 
Pois  não  ha  quem  te  resista. 


Di:  LUIZ  DE  CAMUi:i3 


.>,) 


Que  vejo?  outra  novação  ! 

Moço 
Qti«  Le  ? 

Aurélio 
Ou  me  meute  a  vista, 
Ou  eu  vejo  Auipbitriào. 

Moço 

Eu  ouvi  a  Feliseo, 
Quando  cá  trouxe  o  recado, 
(Jomo  elle  era  chegado, 
E  quiz-me  dizer  que  veo 
J^^o  siso  desconcertado. 

Aurélio 

Isso  quero  eu  ir  saber, 
Pois  que  tal  cousa  se  sua. 

SCENA  V 

Aurelw  e  Amphitrião 

Aurélio 

Senhor,  póde-se  dizer 
Que  a  vinda  seja  mui  boa  ? 

Amphitrião 
Kssa  não  pode  ella  ser. 

Aurélio 
Porque  não  ? 

Amphitrião 

Porque  i)e  roubada 
.Minha  honra  sem  temor, 
E  minha  casa  tomada, 
E  vossa  Prima  enganada 
Por  hum  grande  encantador. 

Aurélio 

Isso  he  certo  ? 

Amphitrião 

E  manifesto  : 


E  tudo  t^e  ja  por  seu 
Adúltero  e  def^honcrito  : 
Tee-nie  tomado  o  meu.  gesto, 
E  faz-lhe  crer  que  .sou  f^n. 

Aurélio 
Contais  hum  caso  d'espanto  I 
E  poi.s  não  podeis  entrar, 
JDefeudei-uie  por  em  tanto, 
Que  eu  hei  de  lá  chegar 
Para  vêr  quem  pode  tanto. 

SCENA  Vi 

Amphitrião  sò 

Se  vêr  deshonra  tão  clara 
Me  não  tivera  o  sentido 
Totalmente  endoudecido, 
Que  gravemente  chor-ira 
Vêr  tão  grande  amor  perdido  I 
E  quando  vejo  a  verdade 
Do  nosso  amor  e  amizade 
Desfeita  com  tanta  mágoa. 
Enchem- se- me  os  olhos  d'ágoa, 
E  a  alma  de  saudade. 
Asai  que  quiz  minha  estrella, 
Para  nunca  ser  contente, 
Que  agora,  estando  presente 
Viva  mais  saudoso  d'ella, 
Que  quando  delia  era  ausente. 
Esta  porta  vejo  abrir 
Com  Ímpeto  demasiado, 
Que  poderei  presumir, 
Que  vejo  Aurélio  sahir. 
Como  homem  desatinado? 

SCENA  VII 

Amphitrião,  Aurélio^  Belferrò.'» 

Aurélio 
Oh  estranha  novidade  ! 
Oh  cousa  para  não  crer  I 


56 


COMEDIAS 


Belferrão 

Venho  cego  de  verdade, 
Que  DHO  puderào  soíFrer 
Meus  olhos  a  claridade. 

Sosea 

Oh  triste,  que  vengo  ciego 
Con  raros,  y  com  visiones  ! 
Y  destas  encantaciones. 
Si  nuesrra  casa  arde  em  fuego. 
Hau  se  de  arder  mis  colchones 

Aurélio 

Vamos  a  Amphitriào 

Contar-lhe  cousas  tamanhas. 

Amphitriào 

Que  vai  lá?  que  cousas  vào  ? 

Aurélio 

Maravilhas  tão  estranhas, 
Que  me  treme  o  coração. 
Porque  aquelle  homem,  que  assi 
Tantos  enganos  teceo, 
Como  era  cuusa  do  Ceo, 
Tanto  qu'eu  appareci, 
Logo  desappareceo. 
E  em  desapparecendo 
Com  ruído  grande  e  horrendo. 
Toda  a  casa  allnmiou  ; 
E  de  arte  nos  infiammou, 
Que  nos  vimos  acolhendo 


Do  raio  que  nos  cegou. 
Estes  acontecimentos 
Xào  sào  de  liumana  pessoa. 
Vós  ouvis  a  voz  que  soa  ? 
Escutac.  esíae  attentos  ; 
Vejamos  o  que  pregoa. 

Júpiter,  de  dentro 

Amphitriào,  qu"em  teus  dias 
Vês  tamanhas  estranhezas, 
Xào  t'espantem  phantasias, 
Que  ás  vezes  grandes  tristezas 
Parem  grandes  alegrias. 
Júpiter  sou  munifesto 
Nas  obras  de  admiração. 
Que  por  mi  causadas  são  : 
Quiz-me  vestir  em  teu  gesto, 
Por  honrar  tua  geração. 
Tua  mulher  parirá 
Hum  filho  de  mi  gerado. 
Que  Hercules  se  chamará, 
O  mais  valente  e  esforçado. 
Que  no  mundo  se  achará. 
(.'cm  este.  teus  successores 
Se  honrarão  de  serem  teus  ; 
E  dar-lhe-hão  os.escriptores, 
Por  doze  trabalhos  seus, 
Doze  milhões  de  louvoVes. 
E  dessa  illustre  fadiga 
Colherás  mui  rico  fruito  : 
Emfim.  a  razão  me  obriga 
Que  tão  pouco  delle  diga, 
Porque  o  tempo  dirá  muito. 


FILODEMO 


INTERLOCnORES 

Filodemo.  —  Vilardo,  seu  Moço.  —  Dionysa. 

Solina,  sua  Moça.  —  Venadoro. 

Monteiro.  —  Diiriano,  Amigo  de  Filodemo.  —  Hum  Pastor. 

Hum  Bobo,  Filho  do  Pastor.  —  Florimena,  Pastora. 

Dom  LusidardOj  Pae  de  Venadoro. 

Doloroso,  Amigo  de  Vilardo.  —  Três  Pastore^». 


ARGUMENTO 


Hum  Fidalgo  Portuguez,  que  acaso  audava  uos  Reinos  de  Dina- 
marca, como  por  largos  amores  e  maiores  serviços,  tivesse  alcançado  o 
amor  de  huma  filha  d'ElRei,  foi-lhe  necessário  fugir  com  ella  em  huma 
galé,  por  quanto  havia  dias  que  a  tinha  prenhe.  E  de  feito,  sendo  che- 
gados á  costa  de  Hespanha,  onàe  elle  era  senhor  de  grande  patrimó- 
nio, armou-se-llie  grande  tormenta,  que  sem  nenhum  remédio,  dando  a 
galé  á  costa,  se  perderão  todos  miseravelmente,  senão  a  Princeza,  que 
em  huma  taboa  foi  á  praia:  a  qual,  como  cheaasse  o  tempo  de  >ieu 
parto,  junto  de  huma  fonte  pavio  duas  crianças,  macho  e  fêmea  ;  e  nào 
tardou  muiio  que  hum  pastor  Castelhano,  que  naquellas  partes  morava, 
ouvindo  os  tenros  gritos  dos  meninos,  lhe  acudio  a  tempo  que  a  Màe 
ja  tinha  espirado.  Crescidas,  emfim,  as  crianças  debaixo  da  humanidade 
e  criação  daquelle  pastor,  o  macho  que  Filodemo  se  chamou  á  vontade 
de  quem  os  baptizara,  levado  da  natural  inclinação,  deixando  o  campo, 
se  foi  para  a  cidade,  aonde  jDor  musico  e  discreto,  valco  muito  em  casa 
de  D.  Lusidardo,  irmão  de  seu  Pae,  a  quem  muitos  annos  sc-rvio  sem 
saber  o  parentesco  que  entre  ambos  havia.  E  como  de  seu  Pae  não  ti- 
vesse herdado  nada  mais  que  os  altos  espirites,  namorou-se  de  Diony- 
sa,  filha  de  seu  Senhor  e  Tio,  que  incitada  ao  que  por  suas  obras  e 
boas  partes  merecia,  ou  porque  ellas  nada  engeitão,  lhe  não  queria  mal. 
Aconteceo  mais,  que  Venadoro,  Filho  de  D.  Lusidardo,  mancebo  fra- 
gueiro,  e  muito  dado  ao  exercício  da  cara,  andando  hum  dia  no  campo 
após  hum  cervo,  se  perdeo  dos  seus  ;  e  indo  dar  em  huma  fonte,  onde 
estava  Florimena.  Irmãa  de  Filodemo  (que  assim  lhe  pozerão  o  nome) 
enchendo  huma  talha  de  água,  se  perdeo  de  amores  por  ella,  que  se 
não  soube  dar  a  conselho,  nem  partir-se  donde  ella  estava,  até  que  seu 
I^ae  o  não  foi  buscar,  O  qual  informado  pelo  pastor  (|ue  a  criara  (que 
era  homem  sábio  na  Arte  Magica)  de  como  a  achara  e  como  a  criara, 
não  teve  por  mal  de  casar  a  Filodemo  com  Dionysa  sua  Filha,  e  Pri- 
ma de  Filodemo  ;  e  a  Venadoro  seu  Filho,  com  Florimena  sua  Sobri- 
nha, Irmãa  de  Filodemo  pastor;  e  também  pela  muita  renda  que  tinha 
e  de  seu  Pae  ficara,  de  que  elles  erão  verdadeiros  herdeiros.  Das  mais 
particularidadesi  da  Comedia,  fará  menção  o  Auto,  que  he  o  seguinte. 


DE  LUIZ  DE  CA.VOKS 


Õ9 


ACTO  I 


StENA  I 


Filodemo  e  Vilar  do 


Porque  ? 


Filodemo 
Viiardo 


Filodemo 

Moço  Yilardo  ? 

Viiardo 

Ei-lo  Tae. 

Filodemo 

Fallae  era  má,  fallae, 
E  sabi  cá  para  a  sala. 
O  villáo  como  se  cala  ! 

Viiardo 

PoiíN,  Senhor,  sahi  a  meu  Pae, 
Q«e  quando  dorme  nào  fala. 

Filodemo 

Trazei  cá  Lum;i  cadeira : 
Ouvis,  villào  ■? 

Viiardo 

Senlior,  sim. 
(Sc  m'ella  não  traz  a  mira, 
Vejo-lh'eu  ruim  maneira.) 

Filodemo 

Acabae,  villào  ruim. 
Que  moço  para  Eervir 
Quem  tèe  as  tristezas  minhas  ! 
Quem  pude£í;e  assi  dormir  ! 

Viiardo 

Senhor,  nestas  manhãzinhas 
Nào  ha  hi  senào  cahir  : 
Por  demais  he  trabalhar 
Qu'e8te  somno  se  me  ausente. 


Porque  ha  dasscntar 
Que  se  nào  for  com  pào  quente, 
Nào  ha  át  desatferrar. 

Filodemo 

Ora  hi  pelo  que  vos  mando, 
Villào  feito  de  fermento. 

Saht  Viiardo 

Triste  do  que  vive  amando 
Sem  ter  outro  mantimento, 
Qu'estar  só  phantasiando  ! 
Só  hua  cousa  me  desculpa 
Deste  cuidado  que  sigo, 
Ser  de  tamanho  perigo, 
Que  cuido  que  a  mesma  culpa 
I  Me  íica  sendo  castigo. 

Vem  o  moQO.  e  assenta-se,  na  cadei- 
ra Filodemo,  e  diz  ávojite  : 

Ora  quero  praticar 
Só  comigo  hum  pouco  aqui  ; 
Que  despois  que  me  perdi. 
Desejo  de  me  tomar 
Estreita  conta  de  mi, 
Vae  para  fora,  Viiardo. 
Torna  cá  :  vae-me  aaber 
Se  se  quer  já  lá  erguer 
O  Senhor  Dom  Lueidardo, 
E  vem-mo  logo  dizer. 

Yai-ge  o  mo<^o 

Ora  bem,  minha  ousadia, 
Sem  azas,  pouco  segura. 
Quem  vos  deo  tanta  valia, 


60 


COMEDIAS 


Que  subais  fi  phantasia 
Onde  nào  sobe  a  ventura  ? 
Por  ventura  eu  não  nasci 
No  mato,  sem  mais  valer, 
Que  o  gado  ao  pasto  trazer  ? 
Pois  donde  me  veio  a  mi 
Saber-me  tào  bem  perder  ? 
Eu,  nascido  entre  pastores. 
Fui  trazido  dos  currais, 
E  d'entre  meus  n.iíuruis 
Para  casa  dos  Senhores, 
Donde  vim  a  valer  mais. 
E  agora  logo  tào  cedo 
Quiz  mostrar  a  condição 
De  ruetico  e  de  villào  I 
Dando-me  ventura  o  dedo, 
Lhe  quero  tomar  a  mào  ! 
Mas  oh  !  qu"isto  nào  he  assi. 
Nem  sio  villàos  meus  cuidados, 
Como  eu  delles  entendi : 
Mas  antes,  de  sublimados, 
Os  não  posso  crer  de  mi. 
Porque  como  hei  de  crer 
Que  me  faça  minha  estrella 
Tào  alta  pena  soíFrer, 
Que  somente  pola  ter 
Mereço  a  gloria  delia  ? 
Senão  se  amor,  d'attentado. 
Porque  me  não  queixe  d'elle, 
Tèe  por  ventura  ordenado 
Que  mereça  o  meu  cuidado, 
Só  por  ter  cuidado  n'elle. 

SCENA  II 

Vilardo  e  Filoãemo 

Vilar  do 

O  Senhor  Dom  Lusidardo 
Dorme  com  todo  o  convento  ; 
E  elle  com  o  pensamento 
Quer  estar  fazendo  alardo 
De  castellinhos  de  vento  ! 
Pois  tào  cedo  ae  vestio, 


Com  seu  damno  se  confonne, 
Pezar  de  quem  me  parlo  ; 
Que  ainda  o  sol  não  sahio  : 
Se  vem  á  mão,  também  dorme. 
Elln  quer-se  levantar 
Assi  pela  manhãzinha  I 
Pois  quero-o  desenganar  : 
Nem  por  muito  madrugar 
Amanhece  mais  asinha. 

Filcdemo 

Traze-me  a  viola  cá. 

Vilardo 

(Voto  a  tal  que  me  vou  rindo.) 
Senhor,  também  dormirá. 

Filodemo 

Traze-a,  moço. 

Vilardo 

Si,  virá. 
Se  não  estiver  dormindo. 

Filodemo 

Ora  hi  polo  que  vos  mando  : 
Não  gracejeis. 

Vilardo 

Eis -me  vou  : 
Pois,  pezar  de  São  Fernando  ! 
Por  ventura  sou  eu  grou  ? 
Sempre  hei  d'cstar  vigiando?  Scúie. 

Filodemo 

Ah  Senhora,  que  podeis 

Ser  remédio  do  que  peno, 

Quão  mal  ora  cuidareis 

Que  viveis  e  que  cabeis 
j  N"hum  coraçã(;  tào  pequeno  ! 
!  Se  vos  fosse  apresentado 
I  Este  tormento  (mti  que  vi^o, 

Creríeis  que  foi  ousado 
!  Este  vosso,  de  criado 
'  Torna -se  vosso  captivo  V 


Dí:    LCIZ    de    CAMÕES 


61 


SCENA  III 

Filodemo  e  Vilar  do 

Vilar.,  o 

Ora  eu  creio,  se  he  verdade 
Qu'estou  de  todo  acordado, 
Que  meu  amo  he  namorado  ; 
E  a  mi  dá- me  na  vontade 
Que  anda  iiuni  pouco  abalado. 
E  se  tal  ho,  eu  da.ria 
Por  conhecer  a  donzella 
A  raçào  dMioje  este  dia  ; 
Porque  a  desenganaria, 
Somente  por  ter  dó  delia. 
Havia-lhe  perfcuntar  : 
Senhora,  de  que  comeis  ? 
Se  comeis  d'ouvir  cantar. 
De  fallar  bem,  de  trovar, 
Em  boa  hora  casareis. 
Porém  se  vós  comeis  pào. 
Tende,  Senhora,  re.^auardo  ; 
Qu'ei8-aqui  está  Yilardo, 
Qu'he  como  hum  camaleão. 
Por  isso,  bus,  fazei  fardo. 
E  se  vós  sois  das  gamenhas, 
E  houverdes  d'attentar 
Por  mais  que  por  manducar, 
Mi  cama  soa  duras  penas. 
Mi  dormir  siampre  es  velar. 
A  viola,  Senhor,  vem 
Sem  primas,  nem  derradeiras  : 
Maíí  sabe  o  que  lhe  convém  ? 
Se  quer.  Senhor,  tanger  bem, 
Ha  de  haver  mister  terceiras. 
E  se  estas  cantieras  vessas 
Nào  forem  para  escutar, 
E  quizordes  espirar  ; 
Ha  mister  cordas  mais  grossas, 
Porque  nào  possuo  quebrar. 

Filodemo 
Vae  para  fora. 


Viiardo 
:  Ja  venho. 

! 

j  Filodemo 

:  Qu'eu  só  desta  phantasia 
;  Me  sostenlio  e  me  mantenlio. 

Vilardo 

Quamanha  vista  que  tenho, 
,  Que  vejo  a  esíreila  do  dia  I   Sahe. 

SCENA  IV 

;  Filodemo,  cantando 

!  Adó  sube  cl  pon.-^amionto, 

I  Seria  uaa  gloria  immeusa 

■  Si  allá  fae:<e  quieii  lo  piensa. 

I 

!  Falia 

i 

Qual  espirito  divino 

Me  fará  a  mi  sabedor 

Deste  meu  mal,  se  he  amor, 

Se  por  dita  desatino  ? 

Se  he  amor,  diga-me  qual 

Pôde  ser  seu  fundamento, 
!   Ou  qual  he  seu  natural, 
I  Ou  porque  empregou  tão  mal 

Hum  tâo  alto  pensamento. 

Se  he  doudice,  como  em  tudo 

■  A  vida  me  abraza  c  queima, 

;  Ou  quem  vio  n'hum  peito  rudo 

i  Desatino  tão  sisudo, 

'  Que  toma  tito  doce  teima  ? 

Ah  Senhora  Dionysa, 
;  Onde  a  natureza  humana 

Se  mostrou  tào  soberana  ! 

O  que  vòs  valeis  me  avisa, 

Mas  o  qu*eu  peno  m 'engana. 


62 


COMEDIAS 


SCENA  V 
Solina  e  Filodemo 

Solina 

Tomado  estais  vós  agora, 
Senlior,  eo'o  furto  nas  màos. 

Filodemo 

•Solina,  minha  Senhora, 
Quantos  pensamentos  vãos 
Me  ouviríeis  lançar  fora  ? 

Solina 

Oh  Senhor,  quào  bem  que  soa 
O  tanger  de  quando  em  quando  ! 
Bem  sei  eu  huma  pessoa. 
Que  ha  ja  huma  hora,  e  boa, 
Que  vos  está  escutando. 

Filodemo 

Por  vida  vossa,  zombais  ? 
Quem  lie  ?  quereis-mo  dizer  ? 

Solina 

Nâo  o  haveis  vós  de  saber, 
Bofe  se  me  não  peitais. 

Filodemo 

L)ar-vos-hei  quanto  tiver, 
Para  taes  tempes  como  estes. 
Qnem  tivera  voz  dos  Ceos, 
Pois  escutar  me  quizostes  ! 

Solina 
Assi  pareça  eu  a  Deos, 
Como  lhe  vós  parecestes. 

Filodemo 

A  Senhcra  Dionysa 
Quor-se  ja  alevantar? 
Solina 

Assi  me  veja  eu  casar. 


Como  desjnda  eia  camisa 
Se  ergueo  por  vos  escutar. 

Filodemo 

Em  camisa  levantada  ! 

Tão  ditosa  he  minha  esrrella  ! 

Ou  mo  dizeis  refalsada? 

Solina 

Pois  bem  me  defendeo  ella 
Que  vos  não  dissesse  nada. 

Filodemo 

Se  pena  de  tantos  annos 
Merecer  algum  favor, 
Para  cura  de  meus  dannos 
Fartae-me  desses  engannos. 
Que  não  quero  mais  de  Amor. 

Solina 

Agora  quero  eu  fallar 
Neste  caso  com  mais  tento  : 
Quero  agora  perguntar  : 
E  de  siso  his  vós  tomar 
Hum  tão  alto  pensamento  ? 
Certo  é  minha  maravilha, 
Se  vós  isto  não  sentis 
Bem :  vós  como  não  cahis 
Que  Dionysa  qn'hc  filha 
Do  Senhor  a  <}uem  servis? 
Como  ?  Vós  nao  attentais 
Os  Grandes,  de  qu'he  pedida  ? 
Peço- vos  que  me  digais 
Qual  é  o  fim  que  esperais 
\este  caso,  em  vossa  vida. 
Que  razão  boa,  ou  que  côr 
Podeis  dar  a  esta  affeição  ? 
Dizei- me  vossa  íenção. 

Filodemo 

Onde  vist-^s  vós  amor 
Que  se  guie  por  rnzão? 
Se  quereis  saber  de  mi 
Que  fim,  ou  de  que  theor 
O  pretendo  em  minha  dor : 


DE    LUZ    UK    CAM"K.- 


r>:; 


>S'ou  neste  amor  quero  fim. 
Sem  fim  me  :^itormente  Amor. 
Maa  vós  com  gloria  fingida 
Pretendeis  de  m'enganar. 
Por  assi  mal  me  tratar: 
Assi  que  me  dais  a  vida 
Somente  per  me  matar. 

Solina 

Eu  digo- vos  a  rerdade. 

Filodemo 

\)<i  verdade  fujo  eu, 
Porque  se  o  Amor  me  deu 
Pena  de  tal  qualidade, 
Aasaz  me  custa  do  meu. 

Solina 

Pólgo  muito  de  saber 
Que  sois  amante  tJio  fino. 

Filodemo 

Pois  iiiais  vos  quero  dizer. 
Que  ás  vezes  no  imaginar 
Xào  ouso  de  m"csteuder. 
Xa  liora  que  imaginei 
Xa  cauíja  de  meu  tormento, 
Tamanha  gloria  levei, 
Que  por  ouças  desejei 
De  lograr  o  pensamento. 

Solina 

Se  me  vós  a  mi  jurardes 
De  me  terdes  em  segredo 
lluma  cousa. . .  mas  hei  medo 
De  logo  tudo  contardes. 


quem 


Filodemo 


Solina 


Aquelle  enxovedo. 
Filodemo 


Qnril  V 


Solina 

Aqvielle  máo  pezar, 
Que  anfhontem  comvosco  hia. 
;  Quem  se  fo.^se  em  vós  fiar ! 
i  O  que  vos  dissp  o  outro  dia, 
!  Tudo  lhe  fostes  contar. 

Filodemo 
j  Que  lhe  contei  ? 

i  Solina 

I  Já  lh*esqueceV 

Filodemo 
i  Por  certo  qu  estou  remoto. 
Solina 
Hi,  quG  sois  hum  cesto  roto. 

Filodemo 
Esse  homem  tudo  merece. 

Solina  * 

Vós  sois  muito  seu  devoto. 
Filodemo 

Senhora,  não  hajais  medo  : 
Contae-m'isso.  e  far-mc-hei  mado. 

Solina 

i  Senhor,  o  homem  sisudo. 
Se  em  taes  cousas  toe  segredo, 
Saiba  que  alcançará  tudo. 
A  senhora  Dionysa 
Crede  que  mal  vos  njío  quer  : 

j  N;To  vos  posso  mais  dizer. 
Isto  tende  por  balisa 
Com  que  vos  saibais  reger. 
Qu'em  uiulheres,  se  attentais, 
O  querer  está  visibil; 
E  se  bem  vos  governais, 
Nilo  desespereis  do  mais, 
Pf.rque.  emfim,  tudo  he  possibil. 

Filodemo 

Senhora,  pôde  isso  ser? 


(Á 


COMEDIAS 


Solina 

8i,  «jiie  tuiío  o  inundo  tem  : 
Olhaé  ivXo  o  saiba  algucm- 

File  demo 

E  qne  maneira  liei  de  ter 
Para  crer  tamaulio  bem? 

Solina 

Vós,  Senhor,  o  sabereis; 
E  já  que  vos  descobri 
Tamanho  se.uiedo  aqui. 
Uma  mereê  me  fiireis 
Em  que  me  vai  muito  a  mi. 

Filoãemo 

Senhora,  a  tudo  me  obrigo 
Quanto  fôr  em  minha  mào. 

Solina 

Pois  dizei  a  vosso  amigo 
Que  não  gaste  tempo  em  vâo, 
Nem  queira  amores  comigo. 
Porque  eu  tenho  parentes, 
Que  me  podem  bem  casar; 
E  mais  que  nào  quero  andar 
Agora  em  boca  de  gentes 
A  quem  s'elle  vai  gabar. 

Filodemo 

Senhora,  mal  conheceis 
O  que  vos  quer  J3uriano  : 
Sabci-o,  se  o  não  sabeis, 
Qu'em  sua  alma  sente  o  dano 
Do  pouco  que  lhe  quereis; 
E  que  outra  cousa  não  quer, 
Que   ter- vos  sempre  servida. 

Solina 

Pola  sua  negra  vida, 
Í880  havia  eu  bem  mister. 

Filodemo 

Vós  sois  desagradecida ! 


Solina 

Si,  que  tudo  são  enganos 
Em  tudo  quanto  fallais. 

Filodemo 

Xão  quero  que  me  creais : 

Crede  o  tempo;  que  ha  dous  anos 

Que  vos  serve,  e  inda  mais. 

Solina 

Senhor,  bem  sei  que  m^eugano; 
Mas  a  vós,  corno  a  irmão, 
Descubro  este  coração  : 
Sabei  que  a  Duriauo 
Tenho  sobeja  affeição. 
Oihae  que  Uie  não  digais 
Isto  que  ^■os  aqui  digo. 

Filodemo 

Senhora,  mal  me  {ratais : 
Inda  que  sou  sou  amigo, 
Sabei  que  vos.^o  sou  mais. 

Solina 

E  ja  que  vos  confessei 
}  Aque^^tas  fraquezas  minha^^, 
í  Que  he  tanto  que  de  mi  sei; 
i  Fazei  vós  nas  cousas  minhas 

O  qu'eu  nas  vossas  farei. 

Filodemo 

Vós  enxergareis  Senhora, 
O  qu'eu  por  v«'>s  sei  fazer. 

Solina 

Como  me  deixo  esquecer ! 
Aqui  estivera  agora 
Fallando  té  Mnoitecer. 
1  Vou- me;  e  olhae  quanto  vai 
O  que  passou  entre  nós. 

Filodemo 

E  porque  vos  ides  vósV 


DE  LUIZ  DE  CAMÕES 


65 


Solina 
Porque  parece  ja  mal 
Estar  aqui  ambos  sós. 
E  mais  vou  vestir  agora 
A  quem  vos  dá  tào  má  vida. 
Ficae-vos,  Senhor,  embora. 

Filo  demo 
Nessa  ide  vós,  Stmhora, 
Que  já  vos  tenho  entendida. 

SCENA  VI 

Filodemo,  só 
Ora  se  pôde  isto  ser 
Do  qu'esta  moça  me  avisa, 
Que  a  Senhora  Dionysa, 
Por  me  ouvir,  se  fosse  erguer 
Da  sua  cama  em  camisa! 
E  diz  que  mal  me  nào  quer. 
NSo  queria  maior  gloria; 
Mas  o  que  mais  posso  crer, 
Que  nem  para  lhe  esquecer 
Lhe  passo  pela  memoria. 
Mas  ter  Solina  também, 
Em  Duriano  o  intento, 
He  levar-me  a  lenha  o  vento; 
Porque  s'ella  lhe  quer  bem, 
Para  bem  vai  meu  tormento. 
Mas  foi-se  este  homem  perder 
Neste  tempo,  de  maneira, 
Por  huma  mulher  solteira, 
Que  não  me  atrevo  a  fazer 
Que  hum  pequeno  bem  lhe  queira. 
Porém  far-lhe-hei  hum  partido, 
Porqu'ella  náo  se  querelle : 
Que  se  mostre  seu  perdido, 
Inda  que  seja  fingido, 
Como  lh'outrem  faz  a  elle. 
E  ja  que  me  satisfaz, 
E  tanto  n'Í6to  se  alcança. 
Dê -lhe  fingida  esperança: 
Do  mal  que  lhe  outrem  faz, 
Tomará  n'ella  vingança. 


SCENA  VII 

Vilardo,  só 

Ora  boa  está  a  cilada 
De  meu  amo  com  sua  ama. 
Que  se  levantou  da  cama 
Por  ouvi-lo!  Está  tomada; 
Assi  a  tome  má  trama. 
E  mais  crede  que  quem  canta, 
Ainda  descantará; 
E  quem  do  leito,  onde  está,' 
Por  ouvil-o  se  levanta, 
Mor  desatino  fará. 
Quem  havia  de  cuidar, 
Que  dama  formosa  e  bella 
Saltasse  o  demónio  nella, 
Para  a  fazer  namorar 
De  quem  nào  he  igual  delia  ? 
Que  me  dizeis  a.  Solina  ? 
Como  se  faz  Celestina, 
Que  por  nào  lhe  haver  inveja 
Também  para  si  deseja 
O  que  o  desejo  lh'ensina  ! 
Crede  que  se  me  alvoroço, 
Que  a  hei  de  tomar  por  dama; 
E  nào  será  grão  destroço. 
Pois  o  amo  quer  a  ama, 
Que  a  moça  queira  o  moço. 
Vou-me;  que  vejo  lá  vir 
Venadoro,  apercebido 
Para  a  caça  se  partir: 
E  voto  a  tal,  que  he  partido 
Para  ver  e  para  ouvir. 
;  Que  he  razào  justa  e  rasa 
'  Que  seu  folgar  se  desconte 
;  Em  quem  arde  como  brasa; 
Que  se  vai  caçar  ao  monte. 
Fique  outrem  caçando  em  casa. 

SCENA  VIII 

Venadoro  só 
Aprovada  antiguamente 


6Ç 


COMEDLAS 


Foi,  e  milito  de  louvar 
A  occupaçâo  do  caçar, 
E  da  mais  autigua  gente 
Havida  por  singular. 
He  o  mais  contrário  officio 
Que  tèe  a  ociosidade, 
Màe  de  todo  o  bruto  vício: 
Por  este  limpo  exercício 
Se  reserva  a  castidade. 
Este  dos  grandes  Senliore? 
Foi  sempre  muito  estimado; 
E  he  grande  parte  do  estado 
Ter  monteiros.  caçadores, 
Como  officio  qu'he  prezado. 
Pois  logo  porque  razào 
A  meu  pae  ha  de  pezar 
De  me  ver  ir  a  caçar  ? 
E  tâo  boa  occupaçjio 
Que  mal  pode  causar  ? 

SCEXA  IX 

Venadoro  e  o  Monteiro 

Monteiro 

Senhor,  venho  alvoroçado, 
E  maÍ8  com  muita  razão. 


Venadoro 


C?omo  assi  V 

Monteiro 

Que  mo  he  chegado 
O  mais  extremado  cão. 


Que  imnea  caçou  veado. 
Vejamos  que  me  ha  de  duv. 

Venadoro 

Dar- vos -hei  quanto  tiver: 
Mas  ha-se  d'exprimentar. 
Para  se  poder  julgar 
As  manhas  que  pode  ter. 

^r       Monteiro 

Pode  assentar  qu'este  cão, 
Que  tèe  das  manhas  a  chave. 
Bem  feito  ?  Em  admiração. 
Pois  em  ligeiro  ?  He  huma  ave 
Em  commetter?  Hum  leão. 
Com  porcos  ?  Maravilhoso. 
Com  veados  ?  Estremado. 
Sobeja-lhe  o  ser  manhoso. 

Venadoro 

Pois  eu  ando  desejoso 
D'irmo8  matar  hum  veado. 

Monteiro 

Pois,  Senhor^  como  não  vae? 

Venadoro 

Vamos,  e  vós  mui  ligeiro 
O  necessário  ordenae; 
Qu'eu  qurro  chegar  primeiro 
Pedir  licença  a  meu  pae. 


ACTO  II 


SCENA  1 


Dnriano 

Pois  não  creio  eu  em  S.  Pisco  de  páo,  se  hei  de  pôr  pé  em  ramo 
verde,  té  lhe  dar  trezentos  açoutes.  Despois  de  ter  gastado  perto  de 
trezentos  cruzados  com  ella,  porque  logo  lhe  não  mandei  o  setim  para 
as  mangas,  fez  de  mim  mangas  ao  demo.  Não  desejo  eu  de  saber,  senão 


DK  LUI8  DB  CAMOBS  67 

qual  é  o  galante  que  me  sucnedeo;  que  se  vo-lo  eu  colho  a  balravento, 
eu  lhe  farei  botar  ao  mar  quantas  esperanças  lhe  a  fortuna  tee  cortado 
á  minha.  Ora  tenho  assentado,  que  o  amor  d'e3ta3  anda  com  o  dinheiro, 
como  a  maré  cora  a  lua:  bolsa  cheia,  amor  em  águas  vivas;  mas  se  vasa, 
vereis  espraiar  este  engano,  e  deixar  em  sêcco  quantos  gostos  andavào 
como  o  peixe  na  água. 

SCENA  II 

Filodemo  e  Durianu 

Filodemo 

O  lá  !  cá  sois  vós  ?  Pois  agora  hia  eu  bater  essas  mouta?,  para  vêr 
se  me  sahieis  de  alguma;  porque  quem  vos  quizer  achar,  é  necessário 
que  vos  tire  como  huma  alma. 

Duriano 

Oh  maravilhosa  pessoa  !  Vós  he  certo  que  vos  prezais  de  mais  certo 
em  casa,  que  pinheiro  em  porta  de  taverna;  e  trazeis,  se  vem  á  mào, 
os  pensamentos  com  os  fwcinhos  quebrados,  de  cahirem  onde  vós  sa- 
beis. Pois  sabeis,  ÍSenhor  Filodemo,  quaes  sào  os  que  me  mátào?  Huna 
muito  bem  almofadados,  que  com  dois  ceitis  fendem  a  anca  pelo  meio; 
e  se  prezão  de  brandos  na  conversação,  e  de  fallarem  pouco  e  sempre 
comsigo,  dizendo  que  nào  darão  meia  hora  de  triste  pelo  thesouro  de 
Veneza;  e  gábào  mais  Garcilasso  que  Boscão;  e  ambos  lhe  sahem  das 
mãos  virgens;  e  tudo  isto  por  vos  meterem  em  consciência  que  se  nHo 
achou  para  mais  o  grão  C^ipitão  Gonçalo  Fernandes.  Ora  pois  desen- 
gano-vos,  que  a  mór  rapazia  do  mundo  farão  altos  espiritos:  e  eu  não 
trocarei  duas  pescoçadas  da  minha  &c.,  depois  de  ter  feito  a  tosquia  a 
hum  frasco,  e  failar-me  por  tu  e  fingir-se-me  bêbada,  porque  o  não  pa- 
reça, por  quaiitos  Sonetos  estão  escriptos  pelos  troncos  das  árvores  do 
valle  Luso,  nem  por  quantas  Madamas  La  uras  vós  idolatrais. 

Filodemo 
Tá,  tá,  não  vades  avante,  que  vos  perdeis. 

Duriano 

Aposto  que  adivinho  o  que  quereis  dizer  ? 

Filodemo 
Que? 

Duriano 

Que  se  me  me  nSo  acudíeis  com  o  batel,  que  me  hia  meus  passos 
contados  a  hereje  de  amor. 


S9  COMEDIAS 

Filodemo 

Oh  que  certeza  tamanha,  o  muito  peccador  nào  se  conhecer  por  esse! 

Duriano 

Mas  oh  que  certeza  maior,  de  muito  enganado,  esperar  em  sua  opi- 
nião !  Mas  tornando  a  nosso  propósito,  que  he  o  para  que  me  buscais  ? 
que  se  he  cousa  de  vossa  saúde,  tudo  farei. 

Filodemo 

Como  templará  el  destemplado  ?  Quem  poderá  dar  o  que  não  têe' 
Senhor  Duriano?  Eu  quero  vos  deixar  comer  tudo:  nào  pode  ser  que  a 
natureza  não  faça  em  vós  o  que  a  razào  nào  pode:  o  caso  he  este*,  dir- 
vo-lo-hei;  porém  he  necessário  que  primeiro  vos  alimpeis  como  marme- 
lo, e  que  ajunteis  para  hum  canto  da  casa  todos  esses  máos  pensamen- 
tos; porque  segundo  andais  mal  avinhado,  damnarcis  tudo  aquillo  que 
agora  lançarem  em  vós.  Ja  vos  dei  conta  da  pouca  que  tenho  com  toda 
a  outra  cousa  que  nào  he  servir  a  Senhora  Diouysa;  e  postoque  a  des- 
igualdade dos  estados  o  nào  consinta,  eu  não  pretendo  delia  mais  que 
o  nào  pretender  delia  nada,  porque  o  que  lhe  quero,  comsigo  mesmo 
se  paga;  que  este  meu  amor  he  como  a  ave  Phenix,  que  de  si  só  nasce, 
e  não  de  outro  nenhum  interesse. 

Duriano 

Bem  praticado  está  isso;  mas  dias  ha  que  eu  nào  creio  em  sonhos. 

Filodemo 
Porque? 

Duriano 

Eu  vo-lo  direi :  porque  todos  vós-outros  os  que  amais  pela  passiva, 
dizeis  que  o  amor  fino  como  melão,  não  ha  de  querer  mais  de  sua  dama 
que  amál-a;  e  virá  logo  o  vosso  Petrarca,  e  o  vosso  Pietro  Bembo, 
atoado  a  trezentos  Platòes,  mais  çafado  que  as  luvas  de  hum  pagem 
d'arte,  mostrando  razoes  verisimeis  e  apparentes,  para  nào  quererdes 
mais  de  vossa  dama  que  ve-la;  e  ao  mais  até  fallar  com  ella.  Pois  índa 
achareis  outros  esquadrinhadores  d'amor,  mais  especulativos,  que  defen- 
derão ajusta  por  não  emprenhar  o  desejo;  e  eu  (faço-vos  voto  solemne) 
se  a  qualquer  destes  lhe  entregassem  sua  dama  tosada  e  apparelhada 
entre  dous  pratos,  eu  fico  que  não  ficasse  pedra  sobre  pedra :  e  eu  ja 
de  mi  vos  sei  confessar  que  os  meus  amores  hão  de  ser  pela  activa,  e 
que  ella  ha  de  ser  paciente,  e  eu  agente,  porque  esta  he  a  verdade. 
Mas,  com  tudo,  vá  v.  m.  co'a  historia  por  diante. 

Filodemo 

Vou,  porque  vos  confesso  que  neste  caso  ha  muita  dúvida  entre  os 
Doctores:  assi  que  vos  conto,  que  estando  esta  noite  com  a  viola  na 


DE   LUIZ  DE  CAMÒE3  69 

mào,  bem  trinta  oii  quarenta  legoas  pelo  sertão  dentro  de  hum  pensa- 
mento, senào  quando  me  tomou  á  traição  Solina;  e  entre  muitas  pala- 
vras que  tivemos,  me  descobrio  que  a  Senhora  Dionysa  se  levantara  da 
cama  por  me  ouvir,  e  que  estivera  pela  greta  da  porta  espreitando  qiiasi 
hora  e  meia. 

Duriano 

Cobras  e  tostões,  sinal  de  terra:  pois  ainda  vos  nao  fazia  tanto 
avante. 

Filodemo 

Finalmente,  veio-me  a  descobrir,  que  me  não  queria  mal,  que  foi 
para  mi  o  maior  bem  do  mundo;  que  eu  estava  já  concertado  com  mi- 
nha pena  a  sotfrer  por  sua  causa,  e  não  tenho  agora  sojeito  para  tama- 
nho bem. 

Duriano 

Grande  parte  da  saúde  he  para  o  doente  trabalhar  por  ser  sào.  Se 
vos  deixardes  manquecer  na  estrebaria  com  essas  finezas  de  namorado, 
nunca  chegareis  onde  chegou  Rui  de  Sande,  Por  isso  boas  esperanças 
ao  leme;  que  eu  vos  faço  bom  que  ás  duas  enxadadas  acheis  água.  E 
que  mais  passastes? 

Filodemo 

A  maior  gi-aça  do  mundo:  veio-me  a  descobrir  que  era  perdida  por 
vós;  e  me  quiz  dar  a  entender  que  faria  por  mi  tudo  o  que  vós  mere- 
cêsseis. 

Duriano 

Santa  Maria!  Quantos  dias  ha  que  nos  olhos  lhe  vejo  marejar  esse 
amor?  porque  o  fechar  de  janellas  que  essa  mulher  me  faz,  e  outros 
enojos  que  dizer  poderia,  no  sen  sino  corredores  dei  amor,  e  a  cilada 
em  que  ella  quer  que  eu  caia. 

Filodemo 

Nem  eu  não  quero  que  lho  queirais,  mas  que  lhe  façais  crer  que 
lho  quereis. 

Duriano 

Nào. . .  quanté  dessa  maneira  me  ofiereço  a  romper  meia  dúzia  de 
serviços  alinhavados  ás  panderetas.  que  bastem  assentar-me  em  soldo 
pelo  mais  fiel  amante  que  nunca  calçou  esporas  ;  e  se  isto  não  bastar, 
salgan  las  palabras  mas  sangrientas  dei  corazon,  entoadas  de  feição 
que  digào  que  sou  um  Manci:is,  e  peor  ainda. 

Filodemo 

Ora  dais-me  a  vida.  Vamos  vêr  se  por  ventura  apparece,  porque 
Venadoro,  irmão  da  Senhora  Dionysa,  he  fói-a  á  caça;  e  sem  clle  fica  a 


7Q 


COMETMkB 


casa  despejada  ;  e  o  Senhor  Dom  Lusidardo  anda  no  pomar  ;  que  todo 
o  seu  passatempo  he  enxertar  e  dispor,  e  outros  exereicios  d'agricultura, 
naturaen  a  velhos:  e  pois  o  tempo  nos  vem  á  medida  do  desejo,  vamo- 
nos  lá;  e  se  puderdes  fallar,  fazei  de  vós  mil  manjares,  porque  lhe  fa- 
çais erêr  que  sois  mais  esperdiçado  d 'amor  que  um  Braz  Quadrado. 

Duriano 

Ora  vamos,  que  agora  estou  de  vez,  e  cuido  d'hoje  fazer  mil  mara- 
vilhas, com  que  vosso  feito  venha  á  luz. 


SCENA  III 

Dyonisa  e  Solina, 

Dionysa 

Solina,  mana. 

Solina 

Senhora. 

Dionysa 

Trazei-me  cá  a  almofada  ; 
Que  a  casa  está  despejada, 
E  esta  varanda  cá  fora 
Está  melhor  assombrada. 
Trazei  a  vossa  também 
Para  estarmos  cá  lavrando ; 
Em  quanto  meu  pae  nào  vem, 
Estaremos  praticando, 
Sem  nos  estorvar  ninguém. 

Solina 

Este  he  o  mesmo  lugar 
Onde  estava  o  bem  logrado, 
Tal  que  de  muito  enlevado 
Se  esquecia  do  cantar 
Por  se  enlevar  no  cuidado. 

Dionysa 

Vós,  mana,  sois  mui  ruim ! 
Logo  lhe  fostes  contar 
Que  me  ergui  polo  escutar. 


Eu  o  disse? 


Solina 


Dionysa 

Eu  não  o  ouviV 
Como  mo  quereis  negar? 

Solina 

E  pois  isso  que  releva? 
Que  se  perde  nisso  agora? 

Dionysa 

Que  se  perde!  Assi,  Senhora, 
Folgareis  vós  que  se  atreva 
A  contá-lo  lá  por  fora? 
Que  se  lhe  meta  em  cabeça 
Alguma  parvoa  tenção? 
Que  faça,  se  vem  á  mâo, 
Algua  cousa  que  pareça? 

Solina 

Senhora,  nào  tce  razào. 

Dionysa 

Eu  sei  mui  bem  attentar 
Do  que  se  ha  de  ter  receio, 
E  do  que  he  para  estimar. 

Solina 

Não  he  o  demo  tào  feio 
Como  alguém  o  quer  pintar; 
E  uào  se  espera  isso  delle, 
Que  nao  he  ora  tào  moço. 
¥é  Vossa  Mercê  asselle 


TJB  LUIZ  DE  C AMUES 


71 


Que  qualquer  áet^redo  nelle 
He  como  huma  pedra  em  poço. 

Dionysa 

E  eu  que  segredo  quero 
Co'huin  criado  de  meu  pae? 

Solina 

E  vós,  mana,  lazei-^  fero? 
Ao  diante  vos  espero, 
Se  adiante  o  caso  vae. 

Dionysa 

O  madraço!  quem  o  vir 
Fallar  de  siso  co'ella. . . 
Então  vós,  g-entil  donzella^ 
Folgais  muito  de  o  ouvir? 

Solina 

Si,  porque  me  falia  nella; 
E  eu  como  ouço  fallar 
Nella,  como  quem  nâo  sente, 
Pólgo  de  o  escutar. 
Só  para  lhe  vir  contar 
O  que  delia  diz  a  gente; 
Qu'eu  nào  quero  nada  delle. 
E  mais,  porque  está  fallando  ? 
Nâo  m'e3teve  ella  rogando 
Que  fosse  fallar  com  elle? 

Dionysa 

DÍ6se-vo-lo  assi  zombando. 
Vós  logo  tomais  em  grosso 
Tudo  quanto  me  escutais. 
Parvo?  que  vê-lo  nâo  posso. 

Solina 

Ella  alli,  e  o  cào  co'o  osso! 
Inda  isto  ha  de  vir  a  mais. 
Pois  que  tal  ódio  lhe  tem, 
Fallemos,  Senhora,  em  ai; 
Mas  eu  digo  que  ninguém 
Merece  por  querer  bem 
Que  a  quem  lho  quer,  queira  mal. 


I  Dyonisa 

I  Deixae-o  vós  doudejar. 

!  Se  meu  pae  ou  meu  irni-j, 
1  O  vierem  a  aventar, 
!  Não  ha  elle  de  folgar. 

i  Solina 

I  Deus  metterá  nisso  a  mio. 

j  Dionysa 

I  Ora  hi  polas  almofadas. 
i  Que  quero  um  pouco  lavrar, 
j  Por  ter  em  que  me  occupar ; 
I  Qu'em  cousas  tào  mal  olhadas 
Nâo  se  ha  o  tempo  de  gastar. 

Solina 

Que  cousa  somos  mulheres  ! 
Como  somos  peri  irosas  ! 
E  mais  estas  tào  viçosas 
Qu'estâo  á  boca  qite  queres  ? 
E  adoecem  de  mimosas  ! 
Se  eu  nâo  caminho  agora 
A  seu  desejo  e  vontade  ; 
Como  faz  esta  Senhora, 
Fazem-se  logo  nessa  hora 
Na  volta  da  honesiidade. 
Quem  a  vira  o  outro  dia 
Hum  poucochinho  agastada, 
Dar  no  chào  com  a  almofada, 
E  enlevar  a  phantasia, 
Toda  n'outra  transformada ! 
Outro  dia  lhe  ouvirão 
Lançar  suspiros  a  molhos, 
E  com  a  imaginação 
Cahir-lhe  a  agulha  da  mao, 
E  as  lagrimas  dos  olhos. 
Ouvir-lhe-heis  á  derradeira 
A  ventura  maldizer, 
Porque  a  foi  fazer  mulher. 
Então  á\z  que  quer  ser  Freira ; 
E  nâo  se  sabe  entender. 
Então  gaba-o  de  discreto, 
De  musico  e  bem  disposto, 


72 


COMEDIAS 


De  bom  corpo  e  de  bom  rosto. 
Quanté  entào  eu  vos  prometo, 
Que  nao  têe  delle  dessròsío. 
Despois,  se  vem  a  attentar, 
Diz  que  he  muito  mal  feito 
Amar  homem  deste  gcito  ; 
E  que  nào  pôde  alcançar 
Pôr  seu  desejo  em  effeito. 


Logo  se  faz  tao  Senhora. 


Logo  lhe  ameaga  a  vida, 
Logo  se  mostra  nessa  hora 
Muito  segura  de  fora, 
E  de  dentro  está  sentida. 
Bofe,  segundo  vou  vendo. 
Se  esta  postema  vier. 
Como  eu  suspeito,  a  crescer, 
Muito  ha  que  delia  entendo 
O  fim  que  pode  vir  ter. 


SCENA  IV 


Duriano  e  Filodemo 


Duriano 

Ora  deixae-a  ir,  que  á  vinda  lhe  fallaremos ;  entretanto  cuidarei  o 
como  hei  de  fazer;  que  nào  ha  mór  trabalho  para  limna  pessoa  que 
fingir-se. 

Filodemo 

Dar-lhe-heis  esta  carta  ;  e  fazei  muito  com  ella  que  a  dê  á  Senhora 
Dionysa;  que  me  vai  nisso  muito. 

Duriano 
Por  mulher  de  tào  bom  engenho  a  tendes  V 

Filodemo 
E  porque  me  perguntais  isso? 

Duriano 

Porque  ainda  hontem  entrou  pelo  a,  b,  c,  e  ia  quereis  que  leia  carta 
mandadeira  :  fa-la-heis  cedo  escrever  matéria  junta. 

Filodemo 

Nào  lhe  digais  que  vos  disse  nada,  porque  cuidará  que  por  isso  lhe 
fallais;  mas  lingi  que  de  puro  amor  a  andais  buscando  a  temix)s  que 
façào  á  vossa  tençào. 

Duriano 

Deixae-me  vós  a  mi  com  o  caso,  que  eu  sei  m<*lhor  as  pancadas  a 
estes  vintes,  que  vós;  e  eu  vo-la  farei  hoje  vir  a  nós  sem  gafas;  e  vÓ3 
entretanto  acolhei- vos  a  sagrado,  porque  ei-la  lá  vem. 

Filodemo 

Olbae  lá  :  fazei  que  a  nào  vedes,  e  fingi  que  fallais  comvosco  i 
que  faz  a  nosso  caso. 


DE    LUIZ    DE   CAMÕES 


73 


Duriano 

Dizeis  bem.  (Yo  sigo  tristeza,  remédio  de  tristes  :  Ia  terrible  pena 
mia  no  la  espero  remediar.  Pois  nào  devia  assi  de  ser,  poios  santos 
Evangelhos  !  mas  muitos  dias  ha  que  eu  sei  que  o  amor,  e  os  cangre- 
jos,  andào  ás  vessas.  Ora,  emfim,  las  tristezas  no  me  espanten,  porque 
suelen  aflojar  cu  ando  más  duelen.) 


SCENA  V 

Solina  e  Duriano 

Solina,  com  a  almofada 
Aqui  anda  passeando 
Duriano,  e  só  comsigo 
Pensamentos  praticando  : 
Daqui  posso  estar  notando 
Com  quem  sonha,  se  lie  comigo. 

Duriano 

Ah  quào  longe  estará  agora 

Minha  Senhora  Solina 

De  saber  que  estou  bem  fora 

De  ter  outra  por  senhora, 

Segundo  o  amor  determina  ! 

Porém  se  determinasse 

Minha  bem -aventurança 

Que  de  meu  mal  lhe  pe;cassc, 

Até  que  nella  tomasse 

Do  que  lhe  quero  vingança  ! . . . 

Solina 
(Comigo  sonha  por  certo. 
Ora  quero-me  mosttar, 
Assi  como  por  acerto : 
Chegar-me-hei  mais  ao  perto, 
Por  ver  se  me  quer  fali  ar.) 
Sempre  esta  casa  ha  doestar 
Acompanhada  de  gente. 
Que  nào  possa  homem  passar  ! 

Duriano 

A  traição  vindes  tomar 
Quem  ja  feridas  nào  sente  ? 


Solina 
Logo  me  a  mi  parecia 
Que  era  elle  o  que  passeava. 

Duriano 

E  eu  mal  adivinhava 
Que  me  viesse  este  dia, 
Que  ha  tantos  que  desejava. 
Se  huns  olhos  por  vos  servir, 
Com  o  amor  que  vos  conquista, 
Se  atreverão  a  subir 
Os  muros  da  vossa  vista, 
Que  culpa  tèe  quem  vos  vir  ? 
E  se  esta  minha  aíFeiçào, 
Que  vos  serve  de  giolhos, 
Não  fez  erro  na  tençào, 
Tomae  vingança  nos  olhos, 
E  deixae  o  coração. 

Solina 

Ora  agora  me  vem  riso. 
Assi  que  vós  sois,  Senhor, 
De  siso  meu  servidor  ? 

Duriano 

De  siso  não,  porque  o  siso 
Me  tòe  tirado  o  amor. 
Porque  o  amor,  se  attentais, 
N'hum  tào  verdadeiro  amante 
Não  deixa  siso  bastante  ;  f 

Senão  se  siso  chamais  jj 

A  doudice  tão  galante. 

Solina 

Como  Deos  está  nos  Ceos,  av.d 
Que  se  he  verdade  o  que  terao',^,,  o 
Que  fez  isto  Filodemo. 


74 


COMEDIAS 


Duviano 

Mas  fê-lo  o  dém©  ;  que  Deos 
Nâo  faz  mal  tanto  em  extremo. 

Solina 

Bem.  Vóg,  Senhor  Duriano, 
Porque  zombareis  de  mim  ? 


Eu  zombo  ? 


Duriano 

Solina 
Eu  não  monsíauo. 


Duriano 

S'eu  zombo,  inda  em  meu  dano 
Vejais  vós  mui  cedo  a  fim. 
Mas  vóSj  Senhora  Solina, 
Porque  me  querereis  mal  ? 

Solina 
Sou  mofina. 

Duriano 

Oh  !  real. 
Aasi  que  minha  mofina 
He  minha  imiga  mortal. 
Dias  ha  queu  imaffino 
Qu'em  vos  amar  e  servir 
Não  ha  amador  mais  fino  ; 
Mas  sinto  que  de  mofino 
Me  fino  sem  o  sentir. 

Solina 

Bem  derivais  :  quanté  a,6r': 
A'  popa  o  dito  vos  veio. 

Duriano 
Vir-me-ha  de  vós,  porque  creio 
Que  vós  fallais  dentro  em  mi, 
Como  esprito  em  corpo  alheio. 
E  as8Í  que  em  estas  pios 
A  eahir.  Senhora,  vim  : 
Bem  parecerá  entre  nós, 
Pois  vós  andais  dentro  <jrn  mim, 
Que  ande  eu  também  dejitro  em  vós. 


Solina 

He  bem  :  que  fallar  he  eaae  ? 

Duriano 

Dentro  na  vossa  alma,  digo, 
Lá  andasse,  e  lá  morresse  ! 
E  se  isto  mal  vos  parece, 
Dae-me  a  morte  por  castigo. 

Solina 

Ah  máo  I  Como  sois  malvado  ! 

Duriano 

i»ías  vós  como  sois  malvada, 
Que  de  hum  pouco  mais  de  nada 
Fazeis  hum  homem  armado. 
Como  quem'stá  sempre  armada  ? 
Dizei-me,  Solina,  mana. 

Solina 

Qu'he  isso  ?  Tirae  lá  a  mâo  ; 
Oh  !  vós  sois  máo  cortezào. 

Duriano 

O  que  vos  quero  m'(-ngana, 
Mas  o  que  desejo  uào. 
Não  ha  aqui  seuào  paredes, 
As  quaes  nào  fallão,  nem  vem. 

Solina 

Está  isso  muito  bem. 

BeD>  :  e  vós.  Senhor,  nào  vedes 

Que  poderá  vir  alguém  ? 

Duriano 
Que  vos  custào  dous  abraçoft  ? 

Solina 
Nào  quero  tantos  de8pej'>s. 

Duriano 

Pois  que  farào  meus  desejos, 
Que  querem  ter-vos  no-?  braços, 
E  dar-vos  trezentos  beijos  ? 


m:  LLI25  DB  ca>ioí:s 


75 


Solina 

Olhae  que  pouca  vergonha  ! 
Hi-vos  d'hi,  boca  de  praga. 

Duriano 

Eu  nâo  sei  certo  a  que  ponhíi 
Mostrardes-me  a  triaga, 
£  virdes-me  a  dar  peçouha. 

Solina 

Ora  ide  rir  á  feira, 
E  não  sejais  dessa  laia. 

Duriano 

Se  vedes  minha  canseira, 
Porque  lhe  não  dais  maneir.';  V 

Solina 

Qne  maneira  ? 

Duriano 

  da  sais.. 

Solina 

Por  rninha  alma,  hei  de  vos  dar 
Meia  dúzia  de  porradas. 

Duriano 

Oh  que  gostosas  pancadas  I 
Mui  bem  vos  podeis  vingar, 
Qu'em  mim  sâo  bem  empregadas. 

Solina 

Ao  diabo,  que  o  eu  dou. 
Como  me  dooo  a  mão  ! 

Duriano 

Mostiao  cá,  minha  aíFeiçâo, 
Que  Oesa  dor  me  magoou 
Dentro  no  meu  coração. 

Solina 
Ora  bi*voã  embora  asinha. 


Duriano 

Por  amor  de  mi.  Senhora, 
Não  fareis  huma  cousinha  ? 

Solina 

j  Digo  que  vades  embora. 
1  Que  cousa  ? 

Duriano 

Esta  cartinha. 

Solina 
Que  carta  ? 

Duriano 

'  De  Filodemo  '  ■  -^-'^ 

A  Dionysa  vossa  arna. 

Solina 

Dizei,  que  tome  outra  dama, 
E  dê  os  amores  ao  demo. 

Duriano 

Não  andemos  pola  rama. 
Senhora,  (aqui  para  nós) 
Que  sentis  dolla  com  elle  ? 

Solina 

Grandes  alforges  sois  vós  ! 
Pois  hi-ihe  dizer  que  appelle. 

Duriano 

Fallae,  que  aqui'5tamos  sós. 

Solina 

Qualquer  lionesta  se  abala, 
Como  sabe  que  he  querida. 
EUa  he  por  elle  perdida  : 
Nunca  n'outra  cousa  falia. 

Duriano 

Ora  vou  dar-lhe  a  vida. 

Solina 

E  eu  não  lhe  disse  já 


76 


COMEDIAS 


Quanta  aííeição  lh'ella  tem  ? 

Buriano 

Não  se  fia  de  ninccuein. 
Nem  crê  que  para  elle  ha 
No  mundo  tamanho  bem. 

Solina 

Dir-vos-hia  de  mim  lá 

O  que  lh'eu  disse  zombando  ? 

Duriano 
Não  disse,  por  S.  Fernando  ! 

Solina 
Ora  ide-vos, 

Duriano 

Que  me  vá  ! 
E  mandais  que  torne  V  Quando  ? 

Solina 

Quando  eu  cá  vir  lugar. 
Vo-lo  mandarei  dizer. 

Duriano 

Se  o  quizerdes  buscar, 
Não  vos  deve  de  faltar, 
Se  não  faltar  o  querer. 

Solina 
Não  falta 

Duriano 

Dae-me  um  abraço 
Em  sinal  do  que  quereis  ? 

Solina 

Tá,  que  o  não  levareis. 

Duriano 

De  quanto  serviços  faço 
Nenhum  pagar  me  quereis  V 

Solina 

Pagar-vos-hão  algum'hora. 


'  Que  isso  a  mi  também  me  toca ; 
Mas  agora  hi-vos  embora. 

Duriano 

Essas  mãos  beijo.  Senhora, 
Em  quanto  não  posso  a  boca. 

SCENA  VI 

Solina  que  traz  a  almofada, 
e  Dlonysa 

Solina 

Já  Vossa  Mercê  dirá 
Qu'estive  muito  tardando. 

Dionysa 

Bem  vos  deti vestes  lá. 
Bofe  que  estava  cuidando 
Em  não  sei  que. 

Solina 

Que  será? 

Aqui  somos  (Quanfé  agora 
Está  ella  transportada.) 

Dionysa 

Que  rosnais  vós  lá,  Senhora  ? 
Solina 

Digo  que  tardei  lá  fora 
Em  buscar  esta  almofada. 
Que  estava  ella  agora  só 
Comsigo  phantasiando  ? 

Dionysa 

Bofe  que  estava  cuidando 
Qu'he  muito  para  haver  dó 
Da  mulher  que  vive  amando. 
Que  hum  homem  pode  passar 
A  vida  mais  occupado  : 
Com  passear,  com  caçar, 
Com  correr,  com  cavalgar. 
Forra  parte  do  cuidado. 
Mas  a  coitada 


DE  LUIZ  DE  CAMÕES 


Tl 


Da  mulher  sempre  encerrada, 
Que  não  tèe  contentamento, 
Nào  toe  desenfadamento, 
Mais  que  agulha  e  almofada? 
Então  isto  vem  parir 
Os  grandes  erros  da  gente  : 
Forão  mil  vezes  cahir 
Princezas  d'alta  semente. 
/Lembra -me  que  ouvi  contar 
De  tantas  aftei coadas 
Em  baixo  e  pobre  lugar, 
Que  as  que  agora  vão  errar 
Podem  ficar  desculpadas. 

Solina 

Senhora,  a  muita  affeiçâo 
Nas  Princezas  d'alto  estado 
Não  he  muita  admiração  ; 
Que  no  sangue  delicado 
Faz  amor  mais  impressão. 
Mas  deixando  isto  á  parte, 
Se  m'ella  quizer  peitar, 
Prometto  de  lhe  mostrar 
Huma  cousa  muito  d'arte. 
Que  lá  dentro  fui  achar. 

Dionysa 

Que  cousa? 

Solina 

Cousa  d'esprito 

Dionysa 

Algum  panno  de  lavores? 

Solina 

Inda  ella  não  deo  no  fito  ? 
Cartinha  sem  sobre-escrípto, 
Que  parece  ser  de  amores, 

Dionysa 

Essa  he  a  boa  ventura  ? 

Solina 

Bofe  que  mo  pareceo. 


Dionysa 
E  essa  donde  nasceo  ? 

Solina 
No  meu  cesto  de  costura : 
Não  sei  quem  m'alli  meteo. 

Dionysa 

Mostrae-me  :  não  hajais  medo, 
Mana.  Eu  que  vos  descbri.. . 

Solina 
E  se  ella  vem  para  mi. 
Logo  quer  vêr  meu  segredo  ? 
Não  a  veja  :  vá-se  d'ahi. 
Ei-la-ahi. 

Dionysa 

Cuja  será  ? 

Solina 

Não  sei  certo  cuja  he. 

Dionysa 
Si ;  sabeis. 

Solina 

Nào  sei,  bofe. 

Dionysa 

Ora  a  carta  mo  dirá. 

Solina 
Pois  leia  Vossa  Mercê. 

Abre  Dionysa  a  carta  e  lê-a 

Se  para  merecer  minha  pena  me 
não  falta  mais  que  viver  contente 
delia,  já  logo  ma  podeis  consentir; 
pois  que  de  nenhuma  outra  cousa 
vivo  triste,  senão  por  não  ser  para 
tão  doce  tristeza.  Se  tendes  por 
oflensa  commetter  tamanha  ousa- 
dia ;  por  maior  a  devíeis  ter,  se 
a  não  comraettesse;  que  amor  acos- 
tumado he  fazer  os  extremos  á  me- 


n 


COMEDIAS 


dida  das  affeiçoes,  e  as  affeições  á 
medida  da  causa  delias.  Pois  logo, 
nem  o  meu  amor  pode  ser  pouco, 
nem  fazer  menos:  se  este  nào  bas- 
tar para  consentirdes  em  meu  pen- 
samento, baste  para  me  dardes  o 
que  pelo  ter  mereço;  e  senão  mui- 
tas graças  ao  Ainor,  que  me  soube 
dar  hum  cuidado,  que  com  tê-lo 
se  paga  o  trab;ilho  de  soffrê-lo. 

Solina 

Quanta  parvoíce  diz  ! 

Dionysa 

Ora  muito  boa  está  ! 
Como  vós,  mana,  sois  má  ! 
Kão  sejaes  vós  tão  biliz; 
Que  bem  vos  entendo  já. 
Cuja  he? 

Solina 

E  eu  que  sei. 

Dionysa 
E  quem  o  sabe? 

Solina 

O  demo. 

Dionysa 

Certo  que  he  de  quem  temo  ; 
Que  os  ditos  que  nella  achei 
Sào  todos  de  Filo<iemo. 
Este  homem,  que  atrevimento 
He  este  que  foi  tomar? 
Qual  será  seu  fundamento? 
Que  mil  vezes  me  faz  dar 
Mil  voltas  ao  pensamento. 
Nào  entendo  d'elle  nada. 
Mas  inda  qu'isto  he  assi 
Disso  que  delle  entendi, 
Me  sinto  tão  alterada, 
Que  me  arreceio  de  mi. 
Eu  inda  agora  não  creio 
Que  é  verdade  este  amor; 


Mas  praza  a  Deus,  se  assi  for, 
Que  inda  este  meu  arreceio 
Se  não  conrerta  em  temor. 

Solina 

Ja  vós,  ja  sedes, 
Peixes,  nas  redes. 
Senhora,  quem  mais  confia, 
Mais  asinha  a  cahir  vem: 
Natural  he  o  querer  bem; 
Que  o  amor  n'alma  se  cria, 
Sem  o  sentir  quem  o  tem. 
Filodemo,  no  que  ouvi, 
Tèe-lhe  sobeja  affeiçâo; 
E  postoque  que  o  creia  assi, 
Ou  eu  sonhei,  ou  ouvi, 
Que  era  d'alta  geração. 
Logo  na  phisionomia, 
Nas  manhas,  artes  e  geito, 
Mostra  mui  grande  respeito: 
Nem  tão  alta  phantasia 
Não  se  pòe  em  baixo  peito. 

Dionysa 

Tudo  isso  cuido,  e  vi 
Mil  vezes  miudamente; 
Mas  estas  mostras  assi 
São  desculpas  para  mi, 
E  não  para  toda  a  gente. 

Solina 

O  seu  moço  vejo  vir 
A  nós,  seu  passo  contado: 
Este  he  muito  para  ouvir. 
Que  diz  que  me  quer  servir 
D'amores  esperdiçado. 

SCENA  VII 

Vilardo,  Solina  e  Dionysa 

Vilardo 

Senhora,  o  Senhor  seu  pae, 
Mesmo  de  Vossa  Mercê, 


IJE    LUIZ   DK   CAMOEíí 


79 


Ja  lá  para  casa  vae: 
Por  is80,  Senhora,  andae. 
Que  elle  me  mandou  n'hura  pé, 
E  diz  que  fosse  jantar 
Vossa  Mercê  mesmameute. 

Solina 
E  ja  veio  do  pomar? 

Dionysa 

Oh  quem  pudera  escusar 
De  comer,  nem  de  ver  gentel 
(Nenhuma  cór  de  verdade 
Tenho  do  que  m'elle  manda.) 

Vilardo 

S'ella  pem  vontade  anda. 
Eu  lhe  emprestarei  vontade, 
Emprestem'ella  a  vianda. 

Solina 

Vá,  Senhora,  por  não  dar 
Mais  em  que  cuidar  á  gente. 

Dionysa 

Irei,  mas  não  por  jantar: 
Que  quem  vive  «'escontente 
Mantem-se  de  imaginar. 

Vilardo 

Pois  também  cá  minhas  dores 
Me  não  deixão  comer  pào; 
Nem  come  minha  affeiçào 
Senão  sopadas  d'amore8, 
E  mil  postas  de  paixão. 
Das  lagrimas  caldo  faço, 
Do  coração  escudella; 
Esses  olhos  são  panella 
Que  coze  bofes  e  baço, 
Com  toda  a  mais  cabedella. 


SCENA  VIII 


i  O   Monteiro,  hum  Pastor   e   hum 
Bobo. 


Monteiro 

Perdeo-se  por  esta  brenha 
Venadoro,  meu  Senhor, 
Sem  que  novas  delle  te^ha: 
Queira  Deos  que  inda  não  venha 
Desta  perda  outra  maior. 
Contra  esta  parte  daqui 
Des  pós  htim  cervo  correo, 
Logo  desappareceo: 
Como  da  vista  o  perdi, 
O  gosto  se  me  perdeo. 
Eu,  e  os  mais  caçadores, 
Corremos  montes  e  covas; 
Falíamos  com  lavradores 
Deste  valle,  e  com  pastores, 
Sem  licharmos  delle  novas. 
Quero  ver  nestes  casais 
Que  cobre  aquelle  arv  redo. 
Se  acharei  pastores  mais, 
Que  me  dem  alguns  sinais 
Que  me  possão  tornar  ledo. 

Chama 

O  dos  casaes,  o  de  lá  : 
Ah  pastores,  não  fallais  ? 

Pastor 

Quein  sois,  ó  lo  que  buscais  ? 

Monteiro 

Ouvis  ?  Chegae  para  cá. 

Pastor 

Dicid  vos  lo  que  mandais. 

Bobo 

No  vayais  adó  os  liamó, 


80 


COMEDIAS 


Padre,  sin  .saber  quien  es. 

Pastor 

Porque  ? 

Bobo 

Porque  este  es 
Aquel  ladron  que  hurtó 
El  asno  dei  Português. 

Y  se  vais  adó  estan, 

Os  juro  ai  cuerpo  sagrado 
De  San  Pisco,  y  San  Juan, 
Que  tambien  os  hurtarán, 
Que  sois  asno  mas  honrado. 

Pastor 

Déjame  ir,  que  me  llamó. 

Bobo 

No,  por  vida  de  mi  madre; 
Que  si  allá  vais,  rauerto  so', 

Y  desta  vez  quedo  jo, 

Sin  asno,  triste  í  y  sin  padre. 

Monteiro 

Vinde,  que  vo-lo  encommendo, 
E  em  vossas  mãos  me  ponho. 

Bobo 

No  vais,  que  dijo  en  comiendo. 
Eneomiendoos  ai  demónio  ! 

Ao  Monteiro 

Y  es?o  es  lo  que  andais  haeiendo  ? 

Pastor 

Déjame  ir  adó  está, 

Que  no  es  cosa  que  me  espant». 

Bobo 

No  quereis  sino  ir  allá  ? 
Pues  echadle  pan  delante, 
Puede  ser  amansará. 


Pastor 

Dios  08  guarde!  Qué  cosa  es 
Esa  porque  voceais? 

Monteiro 

Dar-m'heis  novas,  ou  sinais 
D'hum  Fidalgo  Portuguez, 
Se  passou  por  onde  andais? 

Bobo 

Yo  so'  Hidalgo  Português  : 
Que  manda  su  Seiíoriaí 

Pastor 

Cállate:  oh  que  néscio  es? 

Bobo 

Padre,  no  me  dejarés 
Ser  lo  qne  quisiere  un  dia  ? 
Ah  Santo  Dios  verdadero  ! 
Ko  seré  lo  que  otros  son  ? 
Digo  ahora  que  no  quiero 
Ser  Alonsico,  el  vaquero. 

Pastor 

Cállate  ya,  bobarron. 

Bobo 

Ya  me  callo:  ahora  un  poço 
He  de  ser  lo  que  yo  quisiere. 

Pastor 

Seiior,  diga  lo  que  quiere. 
Porque  este  uíochacho  «s  loco, 
Y  muero  porque  no  muere. 

Monteiro 

Digo,  que  se  por  ventura 
Sabeis  o  que  ando  buscando: 
Hum  Fidalgo,  que  caçando 
Se  perdeo  nesta  espessura 
Após  hum  cervo  andando. 
Tenho  esta  parte  corrida, 
Sem  delle  poder  saber: 


DE    LUIZ    DE    CAUOK8 


81 


Trago  a  alegria  perdida  ; 
E  se  de  todo  a  perder, 
Perca-se  tambcin  a  vicia. 
Porque  só  polo  buscar 
'J^enlio  trabalhos  assas. 

Bobo 
(Yo  110  puedo  callar  mas.) 

Pastor 

(Como  no  puedes  callar? 
Quítate  allá  para  trás.) 
Cuanto  por  aquesta  tierra, 
No  siento  nueva  ninguna. 

Monteiro 
Oh  trabalhosa  fortuna! 

Pastor 

Mas  detrás  daquesta  sierra 
Ifallareis,  por  dicha,  alguna  ; 
C^ue  unas  choças  de  vaqueros 
Portugueses  allí  estaii  ; 
Y  ahí  muchas  veees  vau 
Cazadores  Cavalleros  : 
Puede  ser  que  lo  sabrau. 


Monteiro 

Quero-me  ir  lá  saber. 
Ficae-vos  a  Deos,  pastor. 

Pastor 
Dios  08  livre  de  dolor. 

EODO 

Y  á  nos  dé  siempre  comer 
Pan  y  sopas,  (ju'cs  mejor. 
Mirad  lo  que  os  liotiíico  : 
En  aquel  valle,  acullá, 
Anda  pacieudo  un  burrico, 
Hidalgo,  manso,  y  bonico  ; 
Puede  ser  que  ese  será. 

Pastor 
Calla,  y  acaba  de  andar. 

Bobo 
Ya  ando. 

Pastor 

Quieres  callar  ? 
Bobo,  que  tan  poço  sabe  ! 

Bobo 

No  diceis  que  ande  y  acabe '? 
Ando,  y  no  quiero  acabar. 


ACTO  III 


SCENA  I 

Florimena,  pastorcij  com  um  iwtei 
que  vai  á  fonte. 

Florimena 

Por  este  formoso  prado 
Tudo  quanto  a  vista  alcança 
Tào  alegre  está  tornado, 
Que  a  qualquer  desesperado 
Pode  dar  certa  esperança. 
O  monte,  e  sua  aspereza. 
De  flórea  se  veste  ledo; 
Reverdece  o  arvoredo, 
Somente  em  minha  tristeza 
Está  sempre  o  tempo  quedo. 


Junto  desta  fonte  pura. 
Segundo  a  muitos  ouvi, 
D'altos  parentes  nasci 
Foi  com  .  quiz  a  Ventura, 
Mas  uào  como  eu  mereci. 
O  dia  que  fui  nascida. 
Minha  màe  do  parto  forte 
Foi  sem  cura  fullecida: 
E  o  dia  que  me  deu  vida 
Lhe  dei  eu  a  ella  a  morte. 
Do  mesmo  parto  nasceo 
Meu  irmào,  que  entre  os  cabritos 
Comigo  também  viveo; 
Mas,  assi  como  cresceo. 
Crescerão  nelle  os  espritos. 
Foi-SG  buscar  a  cidade; 


82 


COMKDIAS 


Teve  jiiizo  e  saber; 

Eu  fiquei,  como  mulher, 

E  niio  tive  faculdade    , 

Para  poder  mais  valer. 

A  hum  pastor  obedeço 

Por  pae.  que  d'outro  níío  sei; 

E,  p(>la  màe  que  matei, 

A  huma  cabra  conheço, 

L)e  cujo  h^ite  mamei. 

Mas  porém,  ja  qu'este  monte 

Me  obriga  e  meu  na!?ciu.ento, 

Quero,  pois  quer  meu  tormento, 

Encher  a  taliia  na  foiíte 

Que  co'os  olhos  accrescento. 

Fiúfie  que  eudie  a  talha 

SCENA  II 

Venadoro  e  Fl.orimena 

Venadoro 

Pois  que  me  vim  alongar 
Ijos  caminhos  e  da  gente, 
Fortuna,  que  o  consente, 
ÍSe  devia  contentar 
De  me  ter  tHo  descontente. 
Porém,  segundo  adivinho, 
Por  tào  espesso  arvoredo. 
Por  tào  áspero  rochedo. 
Quanto  mais  bunco  o  caminho, 
Tanto  mais  dVlle  me  arredo. 
O  cavallo,  como  amigo, 
Ja  cansado  me  trazia: 
]\ías  deixou-me  todavia; 
Que  \v.i\\  pudera  comigo 
Quem  conisíigo  não  podia. 
Quero-me  aqui  assentar 
A  sombra,  nesta  hervinha. 
Porque  canso  Ja  de  andar; 
Mas  inda  a  fortuna  minha 
Nào  cansa  de  me  cansar. 
Junto  desta  fonte  pura 
Nào  &ei  quem  cuido  qu'está; 
Mas  no  coração  me  dá 


I  Que  aqui  me  guarda  a  Ventura 

I  Alguma  ventura  má. 

i  Ou  ganhado,  ou  bem  perdido, 
Faça,  emfim,  o  que  quizer, 
Qu'eu  o  fim  d'isío  hei  de  ver; 

I  Que  ja  venho  apercebido 

I  A  tudo  quanto  vier. 
Qh  que  formosa  serrana 
A  vista  se  me  off*erece  ! 
Deosa  dos  montes  parece; 
E  se  he  certo  que  he  humana, 
O  monte  nào  a  njerece. 
Pastora  tào  delicada, 
De  gesto  tào  singular, 
Parece-me  qu'em  lugar 
De  porguntar  pola  Cítrad.T, 
l'or  mim  lhe  hei  de  perguntar. 
Atéqui  sempre  zombei 
De  qualquer  outra  pessoa 
Que  atlei coada  topei; 
Mas  agora  zombarei 
De  quem  se  nào  affeiçoa. 
Serrana,  cuja  pintura 
'J'anto  a  alma  me  moveo, 
Dizei-me:  Por  qual  ventura 
Andareis  n*eata  espessura, 
^íerecendo  estar  no  CeoV 

Florimena 

Tamanho  inconveniente 
Andar  na  serra  parece? 
Pois  a  ventura  da  gente 
Sempre  he  mui  differcnte 
Do  que,  ao  parecer,  merece. 

Venadoro 

Tal  resposta  é  manifesto 
Nào  se  parecer  co'as  cabras. 
Pois  nào  vos  parece  honesto 
Saberdes  matar  co'o  gesto, 
Senào  inda  com  palabras  ? 
No  mato  tudo  he  rudeza. 
Ha  tal  gesto  e  discrição  ? 
Nào  o  creio. 


DE  LUIZ  DE  CAMÕES 


83 


Florimena 

Porque  nSo? 
Não  suppvirá  natureza 
Onde  falta  criaçào? 

Venadoro 

Ja  Ioga  nisso,  Senhora. 
Dizeis,  se  mio  sinto  mal, 
Que  do  vosso  natural 
Nào  era  serdes  pastora. 

Florimena 

Digo,  mas  pouco  me  vai. 

Venadoro 

I^ois  quem  vos  pôde  trazer 
A  conversação  do  monte? 

Florimena 

Perguntae-o  a  essa  fonte; 
Que  as  cousas  duras  de  crer, 
Hum  as  faça,  outro  as  conte. 

Venadoro 

Esta  fonte,  que  está  aqui. 
Que  sabe  do  que  dizeis? 

Florimena 

Senhor,  mais  não  pergunteis, 
Porque  outra  cousa  ue  uii 
Sabei  que  não  sabereis. 
De  vós  agora  sabei, 
O  que  não  tendes  sabido: 
8e  quereis  água,  bebei; 
Se  andais  por  dita  perdido. 
Eu  vos  encaminharei. 

Venadoro 

Senhora,  eu  não  vos  pedia 
Que  ninguém  m'encaminhas8e  ; 
Que  o  caminho  qu'eu  queria, 
Se  eu  agora  achasse, 
Mais  perdido  me  acharia. 
Não  quero  passar  daqui ; 


E  não  vos  pareça  espanto 
Qu'em  vos  vendo  nie  rendi ; 
Porque  quando  me  perdi, 
Nuo  cuidei  de  ganhar  tanto. 

Florimena 

Senhor,  quem  na  serra  mora 
Também  entende  a  verdade 
Dos  enganos  da  cidade: 
Yá-se  embora,  ou  fique  emboia, 
I  Qual  for  mais  s-.a  vontade. 

Venadoro 

Oh  lindíssima  donzella, 
A  quem  a  ventura  ordena 
Que  me  guie  como  estrella ! 
Quereis -me  deixar  a  pena, 
E  levar-me  a  causa  delia? 
E  ja  que  vos  conjurastes 
Vós  e  Amor  para  matar-rac. 
Oh  não  deixeis  d'escuíar-me  ! 
Pois  a  "N-ida  me  tirastes, 
Xào  me  tireis  o  queixar-me  ! 
Queu,  cm  sangue  e  em  nobreza 
O  claro  Ceo  me  extremou ; 
E  a  fortuna  me  dotou 
De  grandes  bens  c  riqueza, 
Que  sempre  a  muitos  negou. 
I  Andando  caçando  aqui, 
'  Após  hum  cervo  ferido, 
Pennittio  meu  fado  assi, 
Que  andando  dos  meus  perdido, 
Me  venha  perder  a  mi. 
E  porqu'inda  mais  passasse 
Do  que  tinha  por  passar, 
Buscando  quem  m'ensinasse, 
Por  que  via  me  tornasse. 
Acho  quem  me  faz  ficar. 
Que  vingança  permittio 
A  fortuna  n"hum  perdido! 
Oh  que  tyranno  partido. 
Que  quem  o  cervo  ferio. 
Vá  como  cervo  ferido  I 
Ambos  feridos  n'hum  monte, 
Eu  a  elle,  outrem  a  mi : 


84 


COMEDIAS 


Huma  differença  ha  aqui, 
Qu"elle  vai  sarar  á  fonte, 
E  eu  nella  me  feri. 
E  pois  que  tào  transformado 
Me  tce  vossa  formosura, 
Hum  de  nós  troque  o  estado, 
Ou  YÓs  para  o  povoado, 
Ou  eu  para  a  espessura. 

Florimena 

Dos  arminhos  he  certeza, 
Se  iUe  a  cova  alguém  çujar, 
Morar  fora.  antes  dentrar: 
D*estimar  nmito  a  limpeza 
Pola  vida  a  vai  trocar: 
Também  quem  na  serra  mora 
Tanto  estima  a  honestidade, 
Que  antes  toma  ser  pastora. 
Que  perder  a  honestidade 
A  truco  de  sor  Senhora. 
Se  mais  quereis,  esta  fonte 
Vos  descubra  o  mais  de  mim: 
O  que  ella  vio,  ella  o  conte ; 
Porque  eu  vou-mc  para,  o  monte, 
Porque  ha  ja  muito  que  vim. 

SCENA  III 

Venadoro 

O  linda  minha  inimiga, 
Gentil  pastora,  esperae! 
Pois  que  tanto  amor  mo  obriga, 
Consenti-me  que  vos  siga; 
Vá  o  corpo  onde  alma  vae. 
E  pois  por  vós  me  perdi, 
E  neste  estado  Amor  pôs 
Os  olhos  com  que  vos  vi, 
Pois  03  deixaste  sem  mi. 
Oh  nâo  os  deixeis  sf^m  vós! 
Porque  a  Fortima  me  disse 
Que  nas  serras,  onde  andais. 
Em  estes  extremos  tais. 
Não  era  bem  que  vos  visse 
Para  nào  ver  de  vós  mais. 


j  E  pois  Amor  se  quiz  ver  ' 

}  Da  livre  vida  vingado, 
•  Em  que  eu  sohia  viver  ; 
i  Faça  em  mi  o  que  quizer, 
l  Que  aqui  vou  ao  jugo  atado. 

SCENA  IV 

Dom  Lusidardo,  o  Monteiro  e  Fi- 
lodemo 

Lusidardo 

Oh  Santo  Deos  verdadeiro, 
A  quem  o  mundo  obedece  ! 
Meu  filho  nao  apparece. 
E  que  me  dizeis,  Monteiro? 

Monteiro 

Digo-lhe  que  m'eniristece. 
Qu'eu  corri  por  esses  montes, 
Bem  quinze  léguas,  on  mais, 
E  busquei  pelos  casais, 
Por  serras,  montes  e  fontes, 
Sem  vêr  novas,  nem  sinaes. 
Toda  a  gente  que  levou, 
Buscando-o,  muito  cansada 
Pelo  mato  anda  espalhada; 
Mas  ainda  ninguém  tornou, 
Que  soubesse  delle  nada. 

Lusidardo 

Oh  fortima  líunca  igual ! 
Quem  me  fará  sabedor 
De  meu  filho  e  meu  amor? 
Que  se  ho  muilo  grande  o  mal, 
Muito  mór  hc  o  temor. 
Quem  tolhe  que  nao  achasse 
Algum  leào  temeroso 
N'algum  monte  cavernoso, 
Que  sua  alma  fartasse 
Em  seu  corpo  tao  formoso? 
Quem  ha  que  saiba,  ou  que  visse, 
Que  das  montanhas  erguidas 
Algum  monstro  nào  sahisse. 


DE    LUIZ   DE    CÂMUES 


85 


E  com  seu  sangue  tingisse 
As  hervas   nellas  nascidas? 
Oh  fillio  !  vai-mȒ  a  lembrar 
Quantas  vezes  os   mandava 
Que  deixásseis  o  caçarl 
Não  cuidei  de  adivinhar 
O  que  Fortuna  ordenava. 
Eu  irei,  filho,  buscar-vos 
Por  esses  montes,  por  hi, 
Ou  a  perder-me,  ou  cobrar-vos  ; 
Que  morte  que  qniz  matar-vos, 
Quero  que  me  mate  a  mi. 
Onde  fostes  fenecido, 
Seja  também  vosso  pae; 
Ser-me-ha  acontecido, 
Como  a  virote  que  vce 
Buscar  outro  que  he  perdido. 
Vós  80  haveis  de  ficai , 
Filodemo,  encarregado 
Para  esta  casa  guardar; 
Que  do  vosso  bom  cuidado 
Tudo  se  pôde  fiar. 
Ide-vos  a  fazer  prestes. 
Mandae  cavallos  sellar  ; 
Pois  achá-lo  nào  pudestes; 
Ir-m'heis  buscar  o  lugar 
Onde  da  vista  o  perdestes. 

SCENA  Y 

O  Bobo  com  o  vestido  de  VenadorOf 
a  quem  dera  o  seu. 

Canta 

Los  muchachos  dei  Obispo 
No  comen  cosa  mimosa, 
Ni  zanca  d'arana,  ni  cosa  mimosa, 

Talla 

De  su  sayo  colorado 
Tan  lozano  me  vestiu, 
Que  yo  ya  no  soy  yo, 
Ya  per  otro  estoy  trocado  ; 
Que  este  Bayo  me  troco. 


Oh  que  asno  Português, 
Que  loco  por  Fiorimena, 
Deseó  zamarra  agena, 

Y  dame  por  enterés 
Una  zamarra  tan  buena  ! 
Como  yo  vi  la  bobilla 
Andar  com  él  en  questioneS; 

Y  parár.sele  amarilla, 
Díjele:  Florimenilla, 
Andais  en  dongolondrones? 
El  me  dijo  :  Matalote, 

Xo  tengais  dello  desmayo. 

Y  en  esto,  como  un  rayo, 
Tomóme  mi  capirote, 

Y  dióme  su  capÍRayo. 
Capirote,  en  buena  fé, 

Si  vos,  cuando  em  mi  entrastes, 
Capisayo  vos  tornastes, 
Que  yo  por  eso  cantaré, 
Pues  ansi  me  mejorastes. 

Canta 

Lyrio,  lyrio,  lyrio  loco, 
Con  qué  ?  Con  capirotada. 
Por  liablar  con  la  golosa 
De  amores,  mirad  la  cosa  ! 
Zamarilla  tan  hermosa. 
Que  me  ha  dado  tan  honrada, 
Con  qué  ?  Con  capirotada. 

Folia 

Yo  entonces  respondi  : 
Seiíor.  dame  pan  y  queso, 
Mas  despues  que  lo  entendi, 
Dije  á  ella  :  Dale  un  beso, 
Que  él  me  dió  zamarra  á  mi. 
Ahora  me  mirarán 
Cuantos  á  la  eglesia  fueren  ; 
i  Y  aquellos  que  no  me  quieren, 
Ahora  me  rogarán. 
Sabeis  porque  no  querré  ? 
Porque  estou  ahidalgado  ; 
Y  cuando  fuere  rogado, 


86 


COMEDIAS 


Cantando  re.-ponderé, 
Que  ya  estoy  otro  tornado. 

Canta  e  baila 


Soropicote,  picote,  mozas, 
Ahora  cjuiero  amores  con  vosotrai. 


SCEXA  VI 

O  Pastor  e  o  Bobo 

Pastor 

Ilijo  Alonsillo. 

Bobo 

Hijo  Aloiieillo 

Pastor 

Xo  me  quieres  escuehar  ? 

Bobo 

Pues  déjame  suspirar. 

Pastor 

Escúcliame  aliora,  asnillo, 
Lo  que  te  quiero  mandar. 
Vete  ai  valle  de  lus  rosas, 

Y  di  á  Anton  dei  Lugar 
Que  si  puede  acá  llegar, 
Porque  tengo  muclias  cosas 

Que  importan  para  le  hablar. 
Porque  es  aqui  Uegado 
A'  este  valle  un  liombre  bom'ado, 
Mancebo  de  casta  buena. 
Que  amores  de  Florimena 
Le  traen  loco  y  penado. 
Dice  que  quiere  casar 
Con  ella,  que  su  tormento 
No  le  deja  reposar  ; 

Y  que  venga  festejar 
Tan  diclioso  casam) ento. 


Bobo 

Dicid,  padre,  tambieu  vos, 
No  quereis  casar  comigo? 
Casemos  ambos  i^dus. 

Pastor 
Vé,  y  haz  lo  que  te  digo. 

Bobo 
Responde,  padre,  por  Dios. 

Pastor 

Vé  luego,  y  vuelve  apresado. 
Anda.  Xo  quieres  andar  ? 

Bobo 

Pues  que  me  babeis  empujado. 
Juro  á  mi  de  desandar 
Todo  cuanto  tengo  andado. 

Pastor 

Trabajoso  es  este  insano  ! 
Nunca  liace  lo  que  quereis. 

Bobo 

Ora  no  os  apasioneis, 
Mi  padrecico  lozano  : 
Que  burlaba,  no  lo  veis  ? 


Vete  dabi. 


Pastor 

Bobo 

Ilémc  aqui. 
Pastor 


Vé  donde  te  dije. 

Bobo 


Ya  vengo. 


Oh  que  padrasto  que  tengo, 
Que  asi  me  manda  por  ahi, 
Siendo  camino  tan  luengo  ! 


1>K   LUIZ  DK  OA>;uKá 


«7 


ACTO,  IV 


SCENA  1. 


Dionysa  e  Solina. 

Dionysa 

Oh  Solina,  minha  auniga, 
Que  todo  este  coração 
Tenho  posto  em  vossa  mào  ; 
Amor  me  manda  qne  diga, 
Vergonha  me  diz  que  nào. 
Que  farei  V 

Como  me  descohrirci  ? 
Porque  a  tamanho  tormento 
Mais  remédio  lhe  nào  sei, 
Que  entre-la  lo  a'o  soírrimento. 
Meu  pae  muito  entristíicido 
Se  vai  pela  serra  erguida, 
Ja  da  vida  aborrecido, 
Buscando  <>  fillio  perdido. 
Tendo  a  filha  cá  perdida  ! 
8em  cuidar. 

Foi  a  casa  encommendar 
A  quem  destruir  lha  quer  : 
Olhae  í(Tio  gentil  sjsber, 
Que  vai  comigo  deixar 
Quem  me  nào  deixa  viver. 

Solina 

Senhora,  em  tanto  desi;òsto 
Nào  posso  meter  a  mào  ; 
Mas  como  diz  o  rifào, 
Mais  vai  vergonha  no  rosto, 
Que  mágoa  no  coraçào. 
E  bofe,  se  eu  tanto  amasse, 
E  viflse  tempo  c  saxào, 
Sem  seu  pae,  som  seu  irmào, 
Que  a  nuvom  triste  tirasse 
De  cima  do  coracào. 


j  Dionysa 

!  Ah  mana  I  qiie  tenho  ukhIo, 
\  Que  s'eu  em  tal  consentisse 
■   Que  h'go  o  mundo  o  sentisse, 
I  Porque  mnica  houve  segiedo. 
Que,  emíim,  se  nào  descobrisse. 

I  Solina 

:  Se  en  tantas  dobras  tivesse 
1  Como  quiuitas  houve  erradas, 
'  Sem  que  o  mundo  o  soubásse, 
I  A'  fé  qu'eu  enrirju<;cesse, 
E  fosse  das  mais  bonrad.is. 

Dionysa 

i  Sabeis  que  tenho  em  vontade  ? 

j  Solina 

I  Que  podeis.  Senhora,  ter? 

i  Dionysa 

;  Fallar-lhe,  só  para  ver 
'  Se  he  por  ventura  verdade 
I  O  que  dizeis  que  me  quer. 

.  j  Solina 

j  Bofe,  mana,  dizeis  bem, 

E  eu  o  mandarei  chamar, 
j  Conio  para  lhe  rogar 
!  Que  hum  annel,  que  lá  me  tem, 
•  Que  mo  mande  concertar. 

I 

j  Dionysa 

\  Dizeis  mui  bem. 

Solina 

Vou  me  lá 
I  Chamar  o  seu  moço  á  sala*, 
I  E  s'esle  parvo  vem  cá, 
}  Com  elle  hum  pouco  rirá, 


88 


COMEDIAS 


Que  sempro  atriores  me  fala. 
Vilardo,  moço? 

SCEXA  11 

Yilardo  e  Soliua 

Vilardo 

Quem  clKima? 

Solina 

Vera  cá,  moço;  eu  te  cliamo. 
Qn'he  de  teu  amo  ? 

Vilard.0 

Ah  qui  dama  I 
Per,£i'initais-me  por  mon  amo, 
K  nào  por  lium  que  vos  ama  ? 

Solina 

¥^  quem  he  esse  amador. 
Que  quer  ter  comigo  passo? 
Será  ellc  algum  madrasso  ? 

Vilardo 

Eu  sou  o  mesmo,  quo  o  amor 
Me  quebra  pelo  espinhasso. 
E  irais  vós  sabei  de  mi, 
Se  eu  a  dizê-lo  me  alrevo, 
Que  desque  osses  olhos  vi, 
Que  yo  m  como,  ui  !)el)0, 
Ni  liago  vida  siu  íi. 
E  mais  para  namorado 
Nào  sou  ora  tào  madraço. 

Solina 

Sois  muito  desmazelado. 

Vilardo 

Mas  jiutes,  de  delicado 
Caio  pedaço  a  pedaço. 
E  maia  eu  soíFrer  ijuo  posso 
Quo  riic  façais  tnnto  fero, 
Qu'o3tou  ja  posto  no  osso, 


Porque  sou  vosso  e  revosso, 
Por  vida  de  quanto  quero. 

Solina 

Feros  está  cheia  a  nia. 
Ora  estou  bem  aviada  ! 

Vilardo 

Cupido,  por  vida  tua. 
Que  a  não  faças  tào  crua, 
Pois  que  te  nào  faço  nada ! 
Amor.  Amor,  mas  te  pido,*^ 
Que  quando  se  for  deitar, 
Que  le  digas  ai  oido: 
Devieis-vos  de  lembrar 
Neste  tempo  de  hum  perdido. 

Solina 

E  tu  ja  fazes  coprinhas? 
Aiuda  tu  trovarás? 

Vilardo 

Q:iem  eu  ?  Por  estas  barbinhas, 
Que  se  vós  virdes  as  minhas, 
Que  digaia  que  nào  sào  más. 

Solina 

Ora,  pois  me  quereis  bem, 
Dizei-me  huma. 

Vilardo 

Ei-la  aqui; 
E  veja  o  saibo  que  tem; 
Porque  esta  írovinlia  assi, 
Ssúba  qu'lie  troAa  do  assem. 

Trova 

Passarinhas,  que  voais 
Nesta  manliàa  tào  serena, 
Sabei  que  só  minha  pena 
Pôde  encher  mil  cabeçais. 

Solina 

O  rifão  está  salsrado. 


DD   LUIZ  DE  CAMUE3 


,«9 


Essa  pena  te  dou  eu  ? 

Vilar  do 

Vós  e  Amor,  que  de  malvado, 
Me  toe  melhor  empennado, 
Que  nenhum  virote  seu. 
P«is  se  me  ouvireis  cantar  I 

Solina 

E  tu  és  também  cantor  ? 

Vilardo 

Canto  melhor  que  hum  açor. 
Quereis  que  vos  venha  dar 
Musiqueta  de  primor, 
E  que  vos  maude  tanger 
Muito  melhor  que  ninguém  ? 

Solina 

Ja  isso  quizera  ver. 

Vilardo 

Qnorer-me-heis,  se  o  eu  fizer, 
Algum  pedaço  de  bem  ? 

Solina 

Querer-te-hei  trinta  pedaços. 

Vilardo 

E  esse  querer  dará  fruito. 
Que  me  tire  destes  laços  V 

Solina 

E  que  fruito  ? 

Vilardo 

Dous  abraços. 

Solina 
Esse  fruito  custa  muito, 

Vilardo 

Esse  he  o  amor  qu'cm  vós  lia  ? 
Pezar  de  minha  mâe  torta  í 


Solina 

Ora  hi,  chamae  logo  lá 
Vosso  amo  que  venha  cá. 
Porque  he  cousa  que  importa. 

Vilardo 

Logo  ? 

Solina 

Logo  nessas  horas. 

Vilardo 
Nao  estarei  aqui  mais  V 

Solina 

Nào.  Ainda  ahi  estais  ? 
Vós  haveis  mister  esporas. 

Vilardo 

Irei,  porque  me  mandais. 

SCEXA  III. 

O  Paafor^e  Venadoro  com  elh:  afei- 
to Pastor. 

Pastor 

Mms  de  un  mez  qí  ya  pasado 
Que  en  esta  sierra  ;in(hiis  ; 

Y  es  caso  mal  mirado 

Que  andeis  guardando  ganado 
Por  una  que  tanto  amais. 

Y  si  os  determinais 

En  querer  casar  con  ella, 
Juro  á  mi  que  nada  errais  ; 
Y'^  si  eso  es  para  habella, 
Fn  vano  cabras  guardais. 
Y'a  Tne  distes  vnestra  fé 
(Sábenlo  estas  tierras  todas)  : 
Yo  con  ella  me  engane. 
Que  lufigo  mandar  llamé 
Quien  festojase  las  bodas. 

Y  agora  dicia  con  pena. 
Que  es  dura  cosa  casar  : 


90 


COMKDIAS 


Pues  volveos  nora  buena, 
Que  no  babeis  de  enganar 
Con  palabias  Florimena. 

Venadoro 

Qne  se  lui  de  ter  coraçíio 

Para  taniiinlio  temor? 

Que  em  mim  pegando  estão. 

De  huma  parte  a  razào, 

E  d'outra  parte  o  Amor. 

Também  vejo  que  perdella 

Será  minha  perdição; 

Que  bem  me  diz  a  aíteieito, 

Que  pouco  iaco  por  e!la. 

Pois  nào  desfaço  em  quem  suo. 

Pastor 

Dígoos.  si  por  bajeza 
Dicis  que  no  os  conviene, 
Darns  hé  una  certeza, 
Que  en  •  angre  y  en  nobleza. 
Tanto  como  vos  la  ticne. 

Venadoro 

Pastor,  digo  que  daqui 
Farei  tudo  que  quizerdes  ; 
E  se  mais  quereis  de  mi, 
Digo  que  vos  dou  o  si 
Para  tudo  o  que  quizerdes. 

Pastor 

Dios  os  de  su  bendicion  ; 
Y  pues  que  casais  con  ella, 
Yo  os  afirmo  en  conclusion, 
Que  aun  de  vos  y  mas  delia 
Verná  gran  gí-neracion. 
Yo  mti  voy  por  elia,  liijo, 
Tomadla  así  mal  compuesta  ; 
Verná  quien  liaga  la  fiesta  ; 
Que  en  placer  y  rcgocijo 
Nos  festfje  esta  floresta. 


SCENA  IV. 

Venadoro  *o 

O  ribeiras  tao  formosas, 
Valles,  campos  pastoris, 
Porque  vos  nào  revestis 
De  novas  flores  e  rosas, 
Se  minha  gloria  sentis  ? 
Puvqne  nào  seccais,  abr»>lhos  ? 
E  vó-,  água,  que  regando, 
Os  olhos  his  alegrando. 
Correi,  que  também  meus  olhos 
D'alegrcs  estào  manando. 
Ah  pastora,  etn  quem  espero 
Poder  viver  descansado  ! 
Comtigo  guardarei  gado, 
Que  ja  eu  sem  ti  nào  quero 
Nenhuma  alteza  d'estado. 
Diga  o  que  quizer  a  gente, 
Tudo  terei  nMnima  palha, 
Porque  cMk  claro  e  evidente 
Qne  nào  ha  honra  que  vaiha 
Contra  a  vida  descontente. 

SCENA  V. 

Três  Pastores  hailaiido,  e  cantando 
de  ferreiro,  niante  do  Pastor,  que 
traz  Florimena. 

.    Pastor 

Pues  el  amor  os  oblij^a 
A'  que  hagais  tan  buena  liga, 
Tomando  á  Dios  por  testigo. 
Daqui  os  la  entrego,  amigo. 
Por  muger  y  por  amiga. 

Venadoro 

Consentis  nisto,  Senhora  ? 

Florimena 
Senhor,  em  tudo  consente. 


DF.    LUIZ    DE    CAMUES 


* 


Venadoro 

Oh  grande  contentamento  ! 

Florimena 

Saiba  que  nunca  íégora 

Lhe  houve  inveja  ao  tormento. 

Pastor 

Así  lo  dices,  bobilla  ? 
Oh  !  mala  dolor  os  duela ! 
Pêro  no  es  maravilla 
Quien  consiente  ansí  la  silla, 
Consienta  tambien  la  espuela. 

SCENA  YI 

Tornão  a  bailar  e  cantar,  e  acaha- 
do,  entra  D.  Lvsidardo,  e  o  Mon- 
teiro, que  andão  em  busca  de  Ve 
nadoro. 

Lnsidardo 

Três  dias  haja  qne  ando 
Por  esta  larga  f^speesura 
A  Venadoro  buscando  ; 
E  o  que  delle  vou  achando 
He  como  quer  a  Ventura. 

Monteiro 

Senhor,  cuido  que  lá  vejo 
Huns  lavradores  cantar. 

Lusidardo 

Hi  diante  perguntar. 

Monteiro 

Cumprido  he  seu  desejo, 
Se  a  vista  nâo  m'en£ranar. 


Como  assi  ? 


Lusidardo 

Monteiro 
EUe  nào  vê 


Aquelle  pastor  louçào 
Com  huma  moça  pela  mão? 
Se  Venadoro  nao  he, 
Nem  eu  o  Monteiro  sâo. 

Pastor 

Quien  veo  ai  lá  asomar. 

Que  se  viene  á  nuestras  bodas  ? 

Bobo 

Xo  los  dejemos  llegar, 
Que  nos  vernan  á  roubar, 
Juro  á  mi,  las  migas  todas. 

Lusidardo 

Oh  Venadoro,  meu  filho! 
Es  tu  este  ? 

Venadoro 

Tal  estou, 
Que  cuido  que  este  não  sou. 

Lusidardo 

Certo  que  me  maravilho 
De  quem  tanto  te  mudou. 
Como  estais  assi  mudado 
No  rosto  e  mais  no  vestido  ! 

Venadoro 

Ando  ja  n'outro  trocado, 
Tanto,  que  fiquei  pasmado 

!  De  como  fui  conhecido. 

;  E  se  Vossa  Mercr  vem 

!  Para  me  levar  d'aqui, 
Mais  ha  de  levar  que  a  mi; 
E  ha  de  ser  quem  me  tem 
Todo  transformado  em  si. 

Bobo 

Eso  porque  lo  entendeis? 
Por  las  migas  por  ventura? 
Voto  á  tal  no  llevareis  : 
Por  mas  y  por  mas  que  andeis 
No  hareis  tal  travesura. 


92 


COMEDIAS 


Venadoro 

Esta  formosa  donzella 
Em  mi  teve  tal  poder. 
Que  folguei  de  me  perder  ; 
Pois,  emíim,  vim  achar  nella 
O  que  não  cuidei  de  ser. 
Tanto  em  mi  pode  este  amor, 
Que  a  tenho  recebida; 
E  se  o  erro  grave  for, 
Aqui  quero  ser  pastor  : 
Deixe-me  ter  esta  vida. 

Lusidardo 
He  certo  tal  casamento  ? 

Venadoro 
Tenha-o  por  cousa  segura. 

Lusidardo 

Oh  grande  acontecimento  ! 
D'est'arte  sabe  a  ventura 
Aguar  hum  conteutameato  ! 

Pastor 

Olgame,  Seííor,  á  mi, 

Como  hombre  sábio,  discreto, 

Porque  acaeció  así, 

Y  lo  que  supo  hasta  aqui 
Lo  puede  tener  por  cierto. 
Muchos  aiios  son  corridos 
Que  en  esta  fuente  abicrta, 
En  estos  valles  floridos 
Hallé  dos  niíios  nascidos, 
y  á  su  madre  casi  muerta. 
Los  ninos  chicos  crie, 

(Y  desto  cierto  me  nrreo) 

Y  á  la  madre  sepulte-, 


Y'  despues  uu  gran  deseo 

De  saber  esto  tome. 

Como  yo  fuese  enseSado 

De  chico  á  la  mágica  arte 

Por  mi  padre,  que  es  finado  ; 

Muy  conoscido  y  nombrado 
1  Soy  por  tal  en  toda  parte. 
1  Y'^0  con  yervas  de  la  sierra, 

Animales  y  otras  cosas 

Haré,  si  el  arte  no  se  yerra, 

Que  desciendan  á  la  tierra 

Las  estrellas  luminosas. 

Soy,  en  fin,  certificado 

Que  la  madre  de  los  dos 

Fué  Princeza  de  alto  estado, 

Y  por  um  caso  nombrado 

La  trajo  á  esta  tierra  Dios. 

El  macho,  como  creció, 

Deseoso  de  otro  bien, 

A'  la  Corte  se  partió : 

La  hembra  es  esta  por  quien 

Yuestro  hijo  se  perdió. 

Y'  si  mas  quiere,  Senor, 

De  mi  arte,  prestamentc 

Dello  le  haré  sabedor; 

Mas  ha  de  ser  de  tenor 

Que  no  lo  sepa  la  gente. 

Lusidardo 

Mas  vamos-nos,  se  quereis. 

Que  nào  soffro  dilação, 

A  minha  casa,  e  entào 

Lá  disso  me  informareis, 

Que  caso  he  de  admiração. 

E  vós,  filho,  não  cuideis 

Que  a  gloria  de  vos  achar 

Não  he  tanto  d'estimar, 

Qu'em  qualquer  'stado  que  esteis, 

Não  folgue  de  vos  levar. 


DE  LUIZ  Di:  CAMUKS 


03 


ACTO  V 


SCENA  I 

Solina,  Dionysa  e  Filodemo 

Solina 

Eis  Filodemo  lá  vem  : 
Asinha  acudio  ao  leme. 

Dionysa 

Isso  he  de  quem  quer  bem  ; 
Mas  não  sei  se  o  vio  alguém, 
Porque  quem  espera  teme. 
Agora  me  quizera  eu 
Daqui  cem  mil  ieguas  ver. 

Filodemo 

Folgara  eu  assi  de  ser, 

Porqu'estc  cuidado  meu 

Fora  mais  de  agradecer. 

Que  quando  por  accidente 

A  Fortuna  desastrada 

Vos  apartasse  da  gente 

N'um  deserto,  onde  somente 

Das  feras  fosseis  guardada  ; 

Lá  por  ferro,  fogo  e  íigoa 

Buscar  minha  morte  iria  ; 

A  voz  ronca,  a  língua  fria, 

Tamanho  mal,  tanta  mágoa 

As  montanhas  contaria. 

Lá,  mui  contente  e  ufano 

De  mostrar  amor  lào  puro, 

Poderia  ser  que  o  dano. 

Que  nào  move  hum  peito  humano, 

Que  movesse  hum  monte  duro. 

Dionysa 

Nesse  deserto  apartado 
De  toda  a  conver.saçâo 


^lerecieis  degradado 
Por  justiça,  com  pregão 
Que  dissesse  :  For  ousado. 
E  eu  também  merecia 
Metida  a  grave  tormento. 
Pois  que,  como  náo  devia, 
Vim  a  dar  consentimento 
A  tào  sobeja  ousadia. 

Filodemo 

Senhora,  se  m.e  atrevi, 

Fiz  tudo  o  que  Amor  ordena  ; 

E  SC  pouco  mereci, 

Tudo  o  que  perco  por  mi, 

Mereço  por  minha  pena. 

E  se  Amor  pôde  vencer. 

Levando  de  mi  a  palma, 

Eu  nào  lho  pude  tolher  ; 

Que  os  homens  nào  tce  poder 

Sobre  os  affectos  da  alma. 

E  ainda  que  pudera 

Resistir  contra  o  mal  meu, 

Saiba  qp.e  o  nào  fizera  5 

Qae  pouco  valera  eu, 

Se  contra  vós  me  valera. 

Nào  deve  logo  ter  culpa 

Quem  se  vencco  d'armas  tais  : 

Assi  que  n'isto,  e  no  mais, 

Tomo  por  minha  desculpa 

Vós  mesma  que  me  culpais. 

E  se  este  atrevimento 

Com  tudo  fór  de  culpar, 

Acaliae  do  me  matar  ; 

Que  aqui  tenho  hum  soffrimento 

Que  tudo  i)óde  passar. 

E  se  esta  penitencia, 

Que  faço  em  me  perder. 

Algum  bem  vos  m.erecer, 

Fique  em  vos.-a  consciência 

O  que  me  podeis  dever. 

Que  dizeis  a  isto,  Senhora? 


94 


COMEDIAS 


Dionysa 

En,  que  vos  posso  dizer? 
Já  nào  tenho  em  rui  poder. 
Segundo  me  sinto  agora, 
Para  poder  responder. 
Respondei-llie  vós,  Solina, 
Pois  que  a  vós  me  entreguei. 

Solina 

Bofe  nJio  responderei  : 
Veja  ella  o  que  determina. 

Dionysa 

Xào  o  vejo,  nem  o  sei. 

Solina 

Pois  eu  também  nito  sei  nada. 

Dionysa 

Porque  ? 

Solina 

Do  que  eu  fizer, 
8e  despois  se  arrepender. 
Dirá  qu'cu  fui  a  culpada. 

Dionysa 

Eu  só  quero  a  culpa  ter. 


Solina 
Senliora,  por  não  errar, 
Nào  quero  que  fique  em  mim. 
Esla  noite  no  jardim 
Ambos  podem  praticar 
Como  isto  venha  a  bom  fim. 
Lá  poderão  ajustar 
Entr'ambos  o  parecer  ; 
Qu'eu  nào  m"hei  nisso  úq  achar, 
Que  nào  quero  temperar 
O  que  outreni  ha  de  comer. 

Dionysa 
Vós  vedes  a  torvação, 
Que  lá  nessa  casa  vae? 

Dolina 

Dá-me  cá  no  coraçào 

Que  he  vindo  o  Senhor  seu  pae 

Com  o  Senhor  seu  irraào. 

Dionysa 

Filodemo,  hi-vos  embora, 
Fallae  despois  com  Solina. 

Solina 

Vamos-nos  também,  Senhora, 
Receber  seu  pae  lá  fora; 
Nào  venha  sentir  a  mina. 


SCENA  ir 


\ilardo  o  Doloroso,  que  vem  dar  hum  descante  a  Solina  com  os  Músicos 

Vilardo 

Assi  que  te  contava.  Doloroso,  distas  em  que  sempre  andao  rugin- 
do as  sedas. 

Doloroso 

Avante,  que  bem  sei  que  o  nào  dizeis  polas  sedas  de  Veneza. 

Vilardo 

Ja  sabeis  que  esta  nossa  Solina  he  tào  Celestina,  que  nào  ha  quem 

a  traga  a  nós. 


DE  LUIZ  DE  CAMÕES  '      ^ 


Doloroso 


Logo  parece  moça  brigosa,  que  por  dá  cá  aquellas  palhas,  dará  e 
tomará  quatro  espaldciradas;  e  ao  outro  dia  quem  ha  de  cuidar  que 
huma  mulher  de  sua  arte  ha  de  querer  bem  a  hum  parvo  como  a  ti? 
porque  Cítas  taes  sào  como  homens  sitíudo.s;  se  de  noite  se  achào  em 
algum  arruido.  onde  possào  fugir  sem  serem  conhecidos,  facilmente  o 
fa?em;  e  ao  outro  dia  f^uem  ha  de  cuidar  que  hum  tào  honrado  havia 
de  fugir?  Outros  dizem:  bem  pode  ser,  porque  noite  e.scura  he  capa  de 
judeus  e  de  envergonhados. 

Vilar  do 

Mui  gentil  comparação  he  está.  Mas  assi  que  te  dizia,  o  outro  dia 
assi  zombando  lhe  prometti  de  lhe  dar  huma  musica,  e  ja  chamei  ou- 
tros dous  meus  amigos,  que  logo  hào  de  vir  aqui  ter  comnosco. 

Doloroso 

Que  tal  he  a  musica  que  determinas  de  lhe  dar?  Níto  seja  de  siso; 
porque  será  a  maior  parvoíce  do  mundo,  porque  nào  concerta  com  a 
parvoice  que  tu  finges. 

Vilar  do 

A  musica  nào  he  senão  das  nossas;  mas  faço-te  queixume,  que  nem 
com  hum  câo  de  busca  pude  achar  umas  nesperas  por  toda  e.  ta  terra. 

Doloroso 

Nem  as  acharás  senào  alugadas;  mas  eu  não  sou  de  opinião  que  teus 
amores  te  custem  dinheiro.  Ora  ja  1 'i  apoarecem  os  outros  companheiros, 
e  eu  também  ajudarei  de  telhinha  ou  de  assovio;  e  vem-me  isto  á  popa, 
por  que  daqui  iremos  á  porta  da  minlia  padeirinha,  porque  ando  com 
ella  ii'hum  certo  requerimento. 

Vilardo 

Vossas  Mercês  vem  ao  próprio;  boa  seja  a  vinda.  As  guitarras  vem 
temperadas  ? 

Doloroso 

Tudo  vem  como  cumpre:  mandae  vigiar  a  justiça  entretanto. 

Vilardo 

Ora  sus:  fazei  fazei  como  se  temperásseis  cabeçs  de  pescada  com 
seu  ligado  e  bucho,  e  canada  e  meia,  que  nunca  meu  pae  fez  tamanho 
pasto  na.  sua  Missa  nova. 


96  COMEDIAS 


Xesie  pasòO  se  dá  a  musica  com  todos  citicdro,  hum  tange  guitarra^  otdro 
pentem,  outro  telliinha,  outro  canta  cantigas  muito  velhas,  e  no  melhor 
diz  Vilardo: 

Eátae  ussi  quedos,  que  eu  sinto  quem  quer  que  be. 

Doloroso 

Justiça,  pelo  corpo  de  tal  I  Ora  sus:  aqui  não  ha  outro  valhacouto 
que  uos  valha  que  por  os  pés  ao  caminho,  e  mostrar-lhe  as  ferraduras. 

SCEXA  III 

lílonteiro  s6 

Como  he  gracioso  este  mundo,  e  como  he  galante  !  E  quào  gracioso 
seria  quem  o  pudesse  ver  de  palanque  com  carta  d'alforria  ao  pesco- 
ço, porque  nào  podessem  entender  n'elle  ?iíeirinhos,  Ahnotacés  da  lim- 
peza, trabalhos,  esperanças,  temores,  com.  toda  a  outra  cabedella  de  en- 
fadamentos !  Ora  notae  bem  de  quantas  cores  teceo  a  Fortuna  esta 
manta  d'Alcntejo:  perdeo-se  Veuadoro  na  caça,  eis  a  casa  toda  en- 
volta como  rio:  o  pae  enfadado,  a  irmà  triste,  a  gente  desgostosa;  tu- 
do, emíim,  fora  do  couce;  e  o  galante  aposentado  nos  matos  com  tra- 
jos mudados  como  camaleão,  decepado  dos  pés  e  das  màos,  por  huma 
serranica  d'Alentejo:  e  veio  acaso  a  sahir  de  maneira  tora  da  madre, 
que  a  recebeu  por  mulher;  e  rapa  óleo  e  chrisma  de  quem  he,  e  renega 
todas  as  lembranças  de  seu  pae;  pois  tanto  tomou  ao  pé  da  letra  o  que 
Deus  disse:  Por  esta  deixarás  teu  jjae  e  mãe.  E  attentae  isto  por 
me  fazer  mercê:  cuidareis  que  este  caso  era  soliis ijeregrinus:  sabei  que 
os  nào  dá  a  fortuna  senào  aos  pares,  como  quedas.  Dionysa  mais  mimosa 
e  mais  guardada  de  seu  pae  que  bicho  de  seda,  moça  sem  fel  como 
pombinha,  que  nos  annos  não  tinha  feito  ainda  o  enequim:  mais  for- 
mosa qu-  huma  manha  de  S.  Joào,  mais  mansa  que  o  rio  Tejo,  mais 
branda  que  hum  soneto  de  Garcilasso,  mais  delicada  que  hum  pucari- 
nho  de  Natal;  ernfim,  que  por  meia  hora  de  sua  conversação  se  poderá 
soíFrer  huma  pipa  com  cobra  e  gallo  e  doninha,  como  a  parricida,  com 
tanto  que  dissesse  o  prcgào  o  porque;  porque  vos  nào  íieis  em  casta- 
nhas (nào  sei  se  diga,  se  o  cale,  que  de  magoado  me  trava  pola  manga 
a  falia  da  garganta;  ma.^,  com  tudo,  nào  ha  quem  se  tenlia)  seu  pae  a 
achou  esta  noite  no  jardim  com  Filodemo,  mais  arrependida  do  tempo 
que  perdera,  que  do  quo  alli  jDerdia:  eu,  coitado  de  mi,  que  meta  os 
dentes  nos  cabeçaes  se  desejar  ave  de  penna. 


Ti  ri  ri,  ti  ri  rao. 


DE   LUIZ  DE  CAMÒF.g  S7 

SCENA  IV 

Duriano  e  o  Monteiro 

Duriano,  como  cantando 

Monteiro 


Que  he  isso,  Senhor  Duriano?  Que  descuidos  sào  esses?  Onde  he 
p4  à  ida  agora? 

Duriano 

Vou  assi  como  parvo,  porque  o  melhor  he  nào  saber  homem  nada 
de  si. 

Monteiro 

Que  dizeis  a  vosso  amigo  Filodemo,  que  assi  se  soube  aproveitar 
do  tempo  que  ficou  só  em  casa  ? 

Duriano 

Eu  que  hei  de  dizer?  Digo  que  descreio  desta  minha  capa.  se  nilo 
he  isso  caso  para  sahir  com  elle  u  desafio. 

Monteiro 
Porque? 

Duriano 

Porque  nâo  basta  que  lhe  dê  a  Fortuna  gostos  tào  medidos  sobre 
o  funil,  que  lhe  pòe  nos  braços  Diouysa,  a  mais  formosa  dama  que 
nunca  espalhou  cabellos  ao  vento,  senào  ainda  para  o  assegurar  em 
sua  boa  ventura,  lhe  vem  a  descobrir,  que  he  filho  de  nào  sei  quem, 
nem  quem  uào. 

Monteiro 

Esses  sào  outros  quinhentos.  Cujo  filho  dizem  que  he?  que  eu  ouvi 
já  sobre  isso  nào  sei  que  fábulas. 

Duriano 

Dir-vo-lo-hei ;  pasmareis,  que  nào  he  menos  que  Priucipe,  e  peor 
ainda.  Nunca  ouvistes  dizer  de  hum  irmão  do  Senhor  Dom  Lusidardo 
que  aggravado  dei  Rei,  se  foi  para  os  Reinos  de  Dinamarca? 

Monteiro 
Tudo  isso  ouvi  já.  ♦ 

7 


98  COMEDIAS 


Duriano 


Pois  esse  galante,  em  satisfação  de  muitas  mercês  que  ElRei  de 
Dinamarca  lhe  íizera,  meteo-se  d'amores  com  huma  sua  filha,  a  mais 
moça  •,  e  como  era  bom  justador,  manso,  discreto,  galante,  partes  que 
a  qualquer  mulher  abalào,  desejou  cila  de  vêr  geração  delle  ;  senào 
quando,  livre-nos  Deos  !  se  lhe  começou  d'eneurtar  o  vestido;  e  porque 
estes  sirgos  nào  se  desistem  em  nove  dias,  senào  em  nove  mezes,  foi- 
Ihe  a  elle  então  necessário  acolher-se  com  ella,  porque  não  colhessem  a 
ella  com  elle  :  acolheu-se  em  huma  galé  ;  e  vede  la  Princeza  em  huma 
galera  nueva,  con  el  marinero  á  ser  mariuera.  Finalmente,  vindo  nave- 
gando todo  esse  Oceano  Germânico,  bancos  de  Fraudes,  mar  d'Ingla- 
terra,  e  trazidos  á  costa  d"Hespanlia,  mio  os  quiz  a  Ventura  deixar  gozar 
do  repouzo  que  nella  buscavâo  :  deo-llie  subitamente  tamanha  tormenta 
que  sem  remédio  deo  a  galé  á  costa,  onde  feita  pedaços,  morrerão  to- 
dos desastradamente,  sem  escapar  mais  que  a  Princeza  com  o  que  tra- 
zia na  barriga,  a  quem  parece  que  a  Fortuna  guardava  para  dar  o  des- 
canso, que  a  seu  pae  e  mãe  negara.  Sahio  fínahnente  a  moça  na  praia, 
tal  qual  o  temeroso  naufrágio  deixaria  huma  Princeza  mais  delicada 
que  hum  arminho  ;  e  indo  assi  a  pobre  mulher  pola  terra  estranha  e 
despovoada,  e  sem  quem  a  encaminhasse  por  onde,  despois  de  ter  per- 
dido toda  a  esperança  de  ter  algum  remédio,  derão-lhe  as  dores  de  parto 
junto  de  huma  fonte,  aonde  em  breve  espaço  lançou  duas  crianças,  ma- 
cho e  femia,  como  vizagras.  E  como  a  fraca  compreição  da  delicada 
mulher  nào  pudesse  sustentar  tantos  e  tão  desacostumados  trabalhos, 
facilmente  deo  a  vida,  que  tanto  havia  que  desejava  de  dar,  deixando 
vivos  aquelles  dous  retratos  delia  e  de  smi  pae,  que  por  causa  de  seus 
nascimentos  a  vida  lhe  tirarão,  como  acontece  a  viboras.  E  como  as 
crianças  fossem  destinadas  ao  que  vedes,  não  faltou  hum  pastor  que 
as  criasse,  que  alli  veio  ter,  dando  a  mãe  a  alma  a  Deos  :  de  maneira 
que,  por  não  gastar  mais  palavras,  o  macho  he  vosso  amigo  Filodemo, 
e  a  femia  he  a  serrana  Florimena,  mulher  que  he  ja  de  Vcnadoro. 

Monteiro 

Estranhas  cousas  me  coutais.  Assi  que  logo  de  seu  pae  herdou  Fi- 
lodemo namorar  a  filha  do  Senhor  que  serve  :  não  haverá  logo  por  mal 
o  Senhor  Dom  Lusidardo  tomar  por  genro  e  nora,  quem  acha  por  so- 
brinhos. 

Duriano 

Sabei  que  chora  de  prazer  cora  clles,  que  ja  diz  que  acha  que  Filo- 
demo se  parece  natural  com  seu  irmão,  e  Florimena  com  sua  mãe. 

Monteiro 
Dac-iUe  a  entender,  como  se  crco  tão  de  ligeiro  o  Senhor  Dom  Lu- 
sidardo de  quem  isso  contou. 


DE    LUIZ   DE  CAMÕES  99 


Duriano 


No  caso  nao  ha  dúvida,  porque  o  pastor  que  hi  achastes,  lhe  certi- 
ficou todo  o  caso  ;  e  fez  ao  pastor  muitas  mercês,  e  mandou  fazer  mui- 
tas festas  solemnes.  Venadoro,  casado  com  sua  mulher  e  prima,  e  Fi- 
lodemo,  que  o  mesmo  parentesco  t(*e  com  a  Senhora  Dionysa,  estào  fora 
de  crer  tamanho  contentamento  ;  cuido  que  zombào  delle. 

Monteiro 

Ora  deixa-me  ir  a  vêr  o  rosto  a  esse  velhaco  de  Filodemo  ;  pois  de 
meu  matalote  se  me  tornou  »!:enlior.  Creio  que  vem  o  Senhor  Dom  Lu- 
sidardo  :  dissimulemos. 

feCENA  V 

Dom  Lusidardo  com  Venadoro,  que  traz  FLorimena  i)da  mão,  e  Filodemo 
a  Dionysa. 

Lusida.rdo 

Quem  não  ficará  pasmado 
De  vér  que  por  tal  caminho 
Tèe  a  Ventura  ordenado 
Filodemo,  meu  criado, 
Vir  8cr  meu  genro  e  sobrinho  ! 
Quem  não  pasmará  agora 
De  vêr  a  veatura  minha, 
Que  tèe  tornado  u'hum'hora 
Florimena.  huma  pastora, 
Ser  minha  nora  e  sobrinha  ! 
Dem-se  graças  ao  Senhor, 
Cujo  segredo  he  profundo  ; 
Pois  que  vé*mos  que  quiz  dar 
A  ventura  e  o  amor 
Por  prazeres  deste  mundo. 


o  (D 


PLEASE  DO  NOT  REMOVE 
CARDS  OR  SLIPS  FROM  THIS  POCKET 

UNIVERSITY  OF  TORONTO  LIBRARY