<»
104
"CM
r<
EDIÇÃO POPULAR
PARA COMMEMORAR O TRICENTENÁRIO
DE
LUIZ DE CAMÕES
príncipe: dos poe:tas peninsul.ars-s
COMEDIAS
DE
LUIZ DE GAMÕES
EDITOR
A. L. LEITÃO
^ • LISBOA
Typographia Luso-Hespanhala
Z','}, Travessa (lo Tabral, '.i'ò
Digitized by the Internet Archive
in 2010 with funding from
University of Toronto
http://www.archive.org/details/comediasdeluizdeOOcam
COMEDIAS
DE
LUIZ DE GAMÕES
EDITOR
A. L. LEITÃO
^ ' LISBOA
Typographia Luso-Hespanhola
Z'.'}, Travpssa do Cabral, '.io
1 .' I . X !' '•
^~rr- o f^^
ELPiEI SELEOGO
INTERLOCUTORES
Ko Pi*oi«èço
O Mordome, ou Dono áa Casa.
Martim Chincliorro. — Ambrósio, Escudeiro.
Lançarote, Moço.
El-Rei Seleuco. — A Rainha Estratonica.
O Príncipe Antiocho. — Leocadio, Pagem do Príncipe Antioolio.
Frolalta, Criada da liainlia Estratonica.
Hum Porteiro da Cana. — Huma Moça da Camará.
Hnm Physico, ou Medico. — Sancho, Moço do Physico.
Alexandre da Fonseca, hum dos Músicos.
PROLOGO
Diz logo o Mordomo, ou Dono dci Casa.
Eis, Senhores, o Autor, por me honrar nesta festival noite, me quiz
representar huina Farça ; e diz, que por nào se encontrar com outras já
feitas, buscou uns novos fundamentos para a quem tiver hum juizo assi
arrazoado satisfazer. E diz que quem se delia nào contentar, querendo
outros novos acontecimentos, que se vá aos soalheiros dos Escudeiros
da Castanheira, ou de Alhos Vedros e Barreiro, ou converse na Rua
Nova em casa do Boticário ; e nào lhe faltará que conte. Porém diz o
Autor que u ou nesta obra da maneira de Isopete. Ora quanto á obra.
se não parecer bem a todos, o Autor diz que entende delia menos que
todos os que lha puderem emendar. Todavia, isto he para praguentos:
aos quaes diz que responde com hum dito de hum Philosopho, que diz:
Vós outms estudastes para praguejar, e eu para desprezar praguentos. Eu
com tudo quero saber da Farça, em que pooto vai. Lançarote?
Moço
Senhor.
Mordomo
Sào já chegadas as figuras ?
Moço
Chegadas são ellas quasi ao fim de sua vida.
Mordomo
Como assi ?
Moço
Porque foi a gente tanta, que não ficou capa com friza, nem talão
de çapato, que nào sahisse fora do couce. Ora vierão huns embuçade-
tes, e quizerào entrar por força ; ei-lo arrancamento na mão : derâo
huma pedrada na cabeça ao Anjo, e rasgarão huma meia calça ao Er-
mitão ; e agora diz o Anjo que não ha de entrar, até lhe não darem huma
cabeça nova, nem o Ermitão até lhe não porem huma estopada na cal-
ça. Este pantufo se perdeo alli ; mande-o v. m. Domingo apregoar nos
púlpitos ; que não quero aada do alheio.
DE LUIZ DE CAMÕES
Mordomo
Se elle fora outra peça de mais valia, tu botaras a consciência pela
porta fora, para o metteres em tua casa.
Moço
Oh ! se o elle fora, mais consciência seria tomá-lo a seu dono, qnem
o havia mister para si.
Mordomo
Ora vem cá : vai daqui a casa de Martim Chinchorro, e dize-lhe que
temos cá Auto com grande fogueira; que se venha sua mercê para cá,
e que traga comsigo o Senhor Romão d'Alvarenga, para que sobre o
Canto-chão botemos nosso contra-ponto de zombaria. Ouves, Lançaro-
te ? ir-lhe-has abrir a porta do quintal, porque mudemos o vinte aos
que cuidào de entrar por força.
Indo-se o Moço diz :
Chichelo de Judeo, assi eomo foste pantufo, que te custava ser hu-
ma bolsa com hum par de reales, que sào bons para Escudeiro hypo-
erita ; que são pouco, e valem muito ?
Mordomo
Moço, que estás fazend© que não vás ?
Moço
Senhor, estou tardando, e porém estou cuidando que se agora fora
aquelle tempo, em qu3 corriào as moedas dos sambarcos, sempre deste
tiraria para humas palmilhas. Mas já que assi he, diga-me v. m. que
farei deste?
Mordomo
Oh fideputa bargante ! esperae, que est 'outro vo-lo dirá.
Faz que lhe atira com outro pantufo: vai-se o Moco^ e diz o Mordomo:
Não ha mais máo conselho, que ter um villão d'estes mimoso, por-
que logo passão o pé além da mão, e zombão assi da gravidade de seu
amo. Mas tomando ao que importa ; vossas mercês he necessário que
se cheguem huns para os outros, para darem lugar aos outros Senhores
que hão de vir; que de outra maneira, se todo o corro se ha de gastar
em palanques, será bom mandar fazer outro alvalade : e mais, que me
hão de fazer mercê, que se hão de desembuçar, porque eu não sei quem
me quer bem, nem quem me quer mal: este sú desgosto tèe hum Auto,
4: ; COMEDIAS
qiie he como oíiicio de Alcaide : ou haveis deixar entrar a todos, ou vos
hào de ter por villào ruim.
Entra Jlartim Chinchorro. /aliando com o 'Escudeiro Ambrósio, ediz:
Martim
, . Ç.ÇLtre^y., m. < Ir-ai . ''•
' ' Ambrósio
Dias ha, Senhor, que ando de quebras com cortezias: e por isso vou
diante. Beijo as màos a v. m. A verdade he esta, passear em casa jun-
cada, fogueira com castanhas, mesa posta com alcatifa e cartas •, além
disto Auto para esgaravatar os dentes : esta he a vida, de que se ha de
fazer consciência.
Mordomo
Senhor, o descanço dizem lá, que se ha de ter em quanto homem
puder, porque os trabalhos, sem os chamarem, de seu se vem por seu pé,
que seu nome he.
Martim
Ora pois. Senhor, o Auto que tal dizem que he ? Porque hum Auto
enfadonho traz mais sòmno comsigo que huma pregação comprida.
Mordomo
Senhor, por bom mo venderão, e eu o tomei á cala de sua boa fama.
E se tal he, eu acho que, por outra parte, nao ha tal vida, como ouvir
hum villào, que arranca a falia da garganta, mais sem sabor que huma
pera-pào, e huma donzella, que vem podre de amor, fallando como Apos-
tolo, mais piedosa que huma lamentação.
Martim
Para estes taes he grande peca rapaz travesso com molho de junco,
porque nào andem mais ao coscorrào, mais roucos que huma cigarra,
trazendo de si enfadamento.
Moço
O iá Senhoras-, pedem as figuras alfinetes para toucarem hum Escu-
deiro. Ora sus, ha hi quem dó mais? que ainda vos veja todas a mim
ás rebatinhas: ora sus, venliào de mano em mano, ou de mana em mana.
Mordomo
Moço, falia bem ensinado.
Meço
Senhor, nào faz ao caL^o ; que os erros por amores tèe privilegio de
oedeiro.
DE LUIZ DE CÁMUKS
Ambrósio
»5
Ó ripaz, não me entendes? Pergunto-te se tardarão muito por en-
trar. I iUiiti .'
Moço
Parece-me, Senhor, que antes que amanheça começarão.
^^ •'■ Ambrósio
Oh que salgado moço I Zombas de mi V Vem cá. Donde és natural ?
Moço
D'onde qwer que me acho.
Ambrósio
Pergunto-te onde nasceste.
Moço • •■ '•
Nas mãos das parteiras.
Ambrósio «ií» &d 4íují«í* okí l orao >
Em que terra ?
•iii.oq ti. Moço •• ^ •' '
Ioda a terra he huma; e mais eu nasci em casa assobradada, var-
rida daquella hora, que uào havia palmo de terra nella.
Martim
Bem varrido de vergonha que me tu pareces. Dize: Cujo filho és?
He para ver com que disparate respondes.
Moço
A fallar verdade, parece-me a mi, que eu sou filho de hum meu tio.
Martim.
Vem cá. De teu tio ! E isso como ? '^
o 'Moço
vHjComo? Isto, Senhor, he adivinhação, que vossas mercês não enten-
tem. Meu pae era Clérigo, e os Clérigos sempre chamão aos filhos so-
brinhos; e daqui me ficou a mi ser filho de meu tio.
Martim. >í5-irffrnH-:r
Ora te digo que és gracioso. Senhor, donde houvestes est*; ? ''" ®
COMr.DIAS
Mordomo
Aqui me veio ás mãos sem pios nem nada ; e eu por gracioso o to-
mei ; e mais tèe outra cousa, que huma trova fa-la tão bem como vós,
ou como eu, ou como o Chiado.
Ambrósio
Nà# ! quanté disso nós hav^mos-lhe de vêr fazer alguma cousa, em
quanto se vestem as figuras. Aindaque, para que he mais Auto, que
vêraios a este ?
Mordomo
Vem cá, moço: dize aquella trova que fizeste ámoça Briolanja, por
amor de mi !
Moço
Senhor, si, direi; mas aquella trova nào he senão para quem a en-
tender.
Martim
Como ! tão escura he ella ?
Moço
Senhor, assi a fiz e a escrevi na memoria, porque eu nao sei escre-
ver senão com carvão; e porém diz assi:
Por amor de vós, Briolanja,
Ando eu morto,
Pezar de meu avô torto.
Martim
Oh como he galante í Que descuido tão gracioso ! Mas vem cá: que
culpa te têe teu avô nos desfavores que te tua dama dá ?
Moço
Pois, Senhor, se eu houve de pezar de alguém, não pezarei eu an-
tes dos meus parentes, que dos alheios ?
Mordomo
Pois oução vossas mercês a volta; que he mais cheia de gavetas,
que trombeta de Sereníssimo de la Valia.
Moço
A volta, Senhores, he mui funda; e pa:ece-me. Senhores, que nem
àe mergulho a entenderão. £ por isso mandem assoar os engenhos, e
DE LUIZ DE CAMUES i
metào mais hiuiía sardinha no entendimento; e pode ser que com esta
servilha lhe calçai'á melhor: e todavia paira assi:
Vossos olhos tao daninhos
Me tratarão de feição,
Que não ha em nifu coração
Em que atem dous réis de cominhos.
Meu bem anda sem focinhos
Por vós morto,
Pezar de meu avô torto .
Martiin
Ora bem : que tèe de ver os cominhos com o teu coração?
Moço
Poig, Senhores, coração, bofes, baço e toda a outra mais cabedella,
não se podem comer senão com cominhos: e mais, Senhores, minha da-
ma era tendeira; e este he o verdadeiro entendimento.
Martim
E aquella regra que diz, Meu hem anda sem focinhos, me dá tu a
entender; que ella não dá nada de si.
Moço
Nunca vossas mercês ouvirão dizer. Meu bera e meu mal lutarão li nm
dia; meu bem era tal, que meu mal o vencia f Pois d'esta luta foi ta-
manha a queda que meu bem deo entre humas pedras, que quebrou os
focinhos ; e por hcarem tão esfarrapados, que lhe não podião botar pe-
daço; p-jr conselho dos Phvsicos lhos cortarão por lhe nelles não salta-
rem erpes; e daqui ficou: Meu bem anda sem focinhos, como diz o texto.
Ambrósio
Tu fazes ja melhores argumentos, que moços de estudo por dia de
S. Nicoláo.
Martim
Senhor, aquillo tudo he bom engenho: este moço he natural para
Lógico .
Moço
Que, Senhor ! Natural para loja ! Si, mas não tão fria como vossas
mercês.
Mordomo
Parece-me, Senhor, que entra a primeira figura. Moço, mete-te aqui
por baixo desta mesa, e oaçamos este Representador, que vem mais
amarrotado dos encontros, que hum capuz roxo de piloto que sahe em
terra, e o tira da arca de cedro.
o COMEDIAS
Martim
Senhor, elie parece que aprende a cirurgião.
Ambrósio
Maia parece ourinol capadu, que anb a de amores com a menina do'»
olhos verdes.
Mordomo
Emfim, parece figura de Auto em verdade.
Kntra o Representadur
He lei de direito, assaz verdadeira.
Julgar por si mesmos aquillo que vem :
. Peloquo, se cuidào que zombo de alguém.
Eu cuido que zombào da mesma maneira.
E assi a qualquer parece que está mais dobrado, sem nenhum conhecer
seu próprio engano, por grande que seja. Ora, senhores, a mim me es-
quece o dito todo de ponto em claro : mas nào sou de culpar, porque
nào ha mais que três dias que mo derào. Mas em breves palavras direi
a vossas mercês a summa da obra : ella he toda de rir, do cabo até á
ponta. Entrarão logo primeiramente quinze donzellas que vào fugidas
de casa de seus pães, e vão com cabazes apanhar azeitona; e traz ellas
vem logo oito mundano.s, metidos eni hum covào, cantando: Queiii o.v
amores tòc em Cintra: e despois de c;uii.arc'm farào huma dança de es-
padas; cousa muito para vêr: entra mais El-E,ei D. Sancho bailando
os machatius, e entra logo Catharina Real com huns poucos de parvos
n'huma joeira: e semeá-los-ha pela casa, de que nascerá muito manti-
mento ao riso. E nisto fenecerá o Auto, com musica de chocalho e bu-
zinas, que Cupido vem dar a huma rdfeloeira a quem quer bem : e ir-
se-hao vossas mercês cada Imm para suas pousadas, ou consoarão cá
comnosco disso que ahi houver. Ora pois ficareis m vaniim laboravorunt,
porque atégora zombei de vós. por me forrar do erro da representação,
como quem diz, digo-to, ardes que mo digas. i^^W-ja «t. -f •
Ambrósio
Ora vos digo, Senhores, que se as figuras sào todas taes, que acor-
tariSo em errar os ditos : ainda que me parece que este o nào fez, senào
a ser mais galante. Mas se assi he, ella é a melhor iuvençào que eu vi:
porque jágora representações, todas he darem por praguentos; e sào tào
certas, que he melhor erra las, que acertá-las.
Xordomo
Parece-me que entrão as figuras de sIpo: vejamos se síiio tào galan-
tes na prática, como nos vestidos.
DE LUIZ DE CAMÕES
Entra El- Bei Hdtiico, com a Rai-
nha Esfratonica.
Rei
Senhora, desque a ventura
Me quiz dar- vos por mulher,
Me sinto emraeninccer ;
Porqu'em vossa formosura
Perde a velhice seu ser.
Hum liomem velho, cansado,
Não t?e força, nem vigor,
Para em si sentir amor :
Se não he qu'estou mudado
Com ser vosso n'outra côr.
Muito grande dita tem
A mulher que he formosa.
Rainlia
Senhor, griínde : mas porém
Se a tal he virtuosa,
Quer-lhe a ventura mor bem.
Rei
Si, mas porém imnca vemos
A natlireza esmerar
Adonde haja que taxar;
Que quando ellg, faz extremos,
Y.xn tudo (|uer-se cxtremur.
Eu fallo como qiiem sente ' '
Em vós esta culidade,
Pelo que vejo, presente:
E se me esta mostra mente,
Mente- me a mesma verdade.
Huma 8Ó tristeza tenho
Que nào t^-e a nieniiiice,
Que no mor contentamento
O trabalho da velliice
Me embaraça o sentimento.
Rainha
Senhor, novidades tais
Far-mo hào crer de verdade...
Rei
I Novidades lhe chamais !
I Folgo, Senhora, que achais
j Na velhice novidades.
I Rainha
i Senhor, dias ha que sento
1 Em o Principe Antiócho
I Certo descontentamento :
I Dera alguma cou-a a troco
Por saber seu sentimento.
Vejo-lhc ainarello o rosto.
Ou de triste, ou de doente :
Ou elle anda mal disposto,
Ou lá t?e certo desgosto
Que o nào deixa ser contente.
Mande, Senhor, vossa Alteza
A chamá-lo por alguém.
Saberemos que mal tem,
Se he doença de tristeza,
De que nasce, ou de que vem.
Rei
Certo qu'eu me maravilho , no o.V/
Do que vos ouço dizer.
Que mal p-Vlê nelle haver ?
Ide dizer a meu lillio ,<.<)qtn:
Que me veiiha logo ver.
JElainha
apioq 1:1
Se curar nào se procura
Huma cousa destas tais,
Vem despois a crescer mais.
Quando ja níío se acha cura,
Toda a cura he por demais.
Entra o Pi-íncipe Aniiocha^ com seu
pagem par nome Leocadio.
Principe
Leocadio, se és avisado,
E nào te falta saber,
Saber-me-has dar a entender,
10
COMEDIAS
Quem ama desesperado,
Que fim espera de haver?
Pagem
Senhor, não.
Mas porém porque razào
Lhe avem sabê-lo, ou de que?
Príncipe
Pergunto-te a couclusào ;
Não me perguntes porque.
Porque he minha pena tal,
E de tao estranho ser,
Que me hei de deixar morrer ;
E por não cuidar no mal
O não outío de dizer.
Que maneira de tormento
Tão estranho e evidente,
Que nem cuidar se consente !
Porque o mesmo pensamento
Ha medo do mal que sente.
Pagem
Não entendo a Vossa Alteza.
Príncipe
Assi importa á minha dor.
Pagem
E porque razão, Senhor?
Príncipe
Para que seja a tristeza
Castigo do meu temor.
Porque ordena
O Amor, que me condena,
Qne se haja de sentir,
E sem dizer nem ouvir.
Bem-aventurada a pena
Que se pode descobrir !
Oh caso grande e medonho !
Oh duro tormento fero !
Verdade he isto, qu'eu quero?
Não he verdade, mas sonho
De que acordar não espero.
Quero-me chegar a ElRei
Meu pae, que ja m'está vendo.
Mas onde vou ? Na o m'enteudo.
Com que olhos eu olharei
Hum pae, a quem tanto otFendo?
Que novo modo de antolhos !
Porque neste atrevimento
Devera meu sentimento
Para elle não ter olhos,
Nem para ella pensamento.
Chega onde. está ElRei
Rei
Filho, como andais assi?
Que tanto desgosto tomo
De vos ver como vos vi !
Príncipe
Não sei eu tanto de mi,
Que possa saber o como.
Dias haja, Senhor, que ando
Mal disposto, sem suber
Este mal que pessa ser ;
Que se nelle estou cuidando-,
Quasi me vejo morrer.
Rei
Pois, filho, será razão
Que meus Physicos vos vejão.
Príncipe
Os Physicos, Senhor, não ;
Que os males qu'em mi estão,
São curas que me sobejão.
Rainha
Deite-se; que na verdade
Hum corpo, deitado e manso,
Descansa á sua vontade.
Príncipe
Senhora, esta enfermidade
Não se cura com descanso.
DE LUIK DB CAMUES
11
Hainlia
Todavia, bom será
Que lhe facão huma cama.
Príncipe
fHum coxim abastará.
Que assi não descansará
O repouso de quem ama.)
Rei
Vamos, filho, para dentro.
Em quanto a cama se faz :
Repousae como capaz ;
Que a mi me dá cá no centro
A pena que assi vos traz.
Vão -se, e vem huma moça afazer
a cama e diz :
Moça
Mimos de grandes Senhores,
E suas extremidades,
Me hão de matar de amores.
Porque de meros dulçores
Adoecem.
Então logo lhes parecem
Aos outros, que são mamados ;
E os que são mais privados.
Sobre elles estremecem.
Certo (e assi Deos me ajude !)
Que são muito graciosos,
Porque de meros viçosos.
Não podem com a saúde.
Mas deixallos.
Porque elles darão nos vallos,
Donde mais não se erguerão,
Inda que lhe dem a mão
Os seus privados vassallos.
Entra um Porteiro da Cana, e ba-
te primeiro e diz :
Moça
Jesu ! Quem 'stá ahi ?
Porteiro
Ja vós, mana, éreis mamada :
Para vos levar furtada
Nunca tal ensejo vi.
E vós estais descuidada!
Moça
E meus descuidos que fazem?
Porteiro
Vossos descuidos ? cadella !
Ah minh'alma ! Sois tão bella,
Qu'esse3 descuidos me trazem
Dous mil cuidados á vela.
Pois sou vosso ha tantos armos,
Mana, tirae os antolhos,
E vereis meus tristes dannos.
Moça
Não tenhais esses enganos.
Porteiro
Nem vós tenliais esses olhos ;
Que de vossos olbos vem
Esta minha pena fera.
Moça
De meus olhos? Assim era.
Porteiro
Moça, que taes olhos tem.
Nenhuns olhos vêr devera.
E porque?
Porteiro
TraZ) traz.
Moça
Porteiro
Porque cegais
A quantos olhos olhais,
Postoque por vós padecem.
Olhos, que tão bem parecem,
Porque não os castigais?
12
COMEDIAS
Moça I
I
Deos dê siso, pois de vós
Tirou o qne aos outros deu.
Porteiro
Desatae-me lá esses nós.
Que Diais siso quero eu,
Que nào ter siso por vós?
Moça
Fallaií d'arte ; eu vos prometo
Que a resposta vem á vela.
Isso é úlho de pauella.
Quauto ha já que sois discreto?
Porteiro
Quanto ha já que vós sois bella ?
Moça
Dais -me logo a entender
Que eu sou feia, a meu ver.
Porteiro
E isso porque o entendeis ?
Moça
Porque? Porque me dizeis
Que S'') de meu parecer
Vos procede o que sabeis.
Porteiro
He verdade.
Moça
Pois bem sento
Que o vosso saber é vento.
Fica a cousa declarada,
Meu parecer nào ser nada.
Porteiro
Olhae aquelle argumento :
Além de bella, avisada!
Oh nem tanto, nem tào pouco !
Vede vós o que fallais.
Moça
Cego no saber andais.
, Porteiro
Xo siso, mas não tào louco
Como vós, mana, cuidais.
Ora dizei, duna má :
Que nào amais, quem vos ama?
Moça
Ouvistes vós cantar ja,
Velho maio, em minha cama?
Ja m'entendereis.
Porteiro
Ha, ha.
Senhora, estaes enganada;
Que com huma capa e espada,
E com este capuz tora. . .
Moça
Ora bem : tirae-o ora.
E fazei huma levada.
Porteiro
U
3
Não : se m'eu hoje alvoroço,
Achar-me-heis d"outra feicâo. *
Aqui tira o capuz \*
Porteiro
Tenho má disposição?
Estas obras são de moço,
Se as montras de velho sâo.
Moça
Tendes mui gentis meneios. .^.j
Porteiro ^^
Não, Senhora ; faço extremos. ;A
Moça
Passeae ora, veremos
Se tendes tão bons passeioSf xã^T
DE LUIZ DE CAMÕES
13
Porteiro
Tudo, Senhora, faremos.
Meça
Virae ora a essoutra mào.
Porteiro
Esta dispo8Íçuo víicle-a-
Que tenho gentil feiçào.
Moça
Tendes vós inui boa rédea,
Soôreis ancas ?
Porteiro
Isso nào.
Moça
Por certo que tendes ^aça
Em tudo quanto fizerdes.
Fazei mais o que souberdes.
Porteiro
Nào sei cousa que nào faça,
Senhora, por me quererdes.
Moça
Tendes vós muito bom ar.
Porteiro
Mais qu'isto faz quem quer bem.
Meça
I-vos asinha, que vem
O Principe a -n deitar.
Porteiro
Nunca huma pessoa tem
Hum'hora para fallar !
Entra o Princrpf. ci.m o seu Pagetn
Leocadio e diz:
Principe
Seja a morte apercebida;
Porque já o ÃrríÓf orSena
A dar a meu mal sabida;
Porque o íim da minha vida
O seja da minha pena.
Não tarde, para tomar
Vingança de meu querer,
Pois nào pe pode dizer
Que nào tèe ja que esperar,
Xem com que satisfazer?
Os Physicos vem e vào,
Sem sabereín minhas mágoas.
Nem o pnlso me acharào;
E se o querem vér nas ágoas.
As dos olhos lho dirào.
Se com sangrias também
Procurào-me vér curado:
O temor de meu cuidado
O mais do sangue me tem
Nas veias todo coalhado.
Quero-me aqui fucostar,
Que ja o esprito me cae.
Leocadio, vac-me chamar
Os Músicos de meu Pae;
Folgarei de ouvir cantar.
Aqui Hd deito.. <:',i..o que repousa,
e falia dizendo assi:
Senhora, qual desatino
]Me trouxe a tanta tristura?
Foi, senhora, por ventura
A força do meu destino,
Como vossa formosura?
B=ím conheço que nao posso
Ter tào alto pensamento:
Mas disto só me contento,
Que se paga com ser vosso
O mór mal de meu tormento.
Entrào os Mu.ricos e diz Alexandre
da Fon.-eca., Jiuia delles:
Alexandre
Senhor, de quo se acha mal
O principe, ou que mal sente?
u
COMEDIAS
Pagrem
Senhor, sei que está doente;
Mas sua doença he tal,
Qu'entender se não consente.
Os Physieos vem e vào,
Huns e outros a meude,
Sem o poderem dar são.
Quanto mais cura lhe dão,
Então tèe menos saúde.
O Pae anda era sacrifícios
Aos deoses, que lhe dem
A saúde que convém;
Dizendo que por seus vícios
O mal a seu fílho vem.
Eu suspeito qu'isto são
Alguns novos amorinhos,
Que terá no coração.
Alexandre
Amores ! com quem serão,
Que lhe não dem de focinhos?
Porteiro
Senhores, que lhe parece
Da doença de Antiôcho?
Alexandre
Diga -lha quem lha conhece
Pagem
Que toma morrer a troco
De callar o que padece
Porteiro
Isso he estar emperrado
Na doença; que he peor.
Tèe-no os Physieos curado?
Alexandre
Oh ! que de mal dei amor
No ha, SeCor, sanador.
Porteiro
Fallais como exprimentado;
Qu'eu cuido que esta fadiga.
Que o faz com que desespere ;
Y por mas tormento quiere
Que se sienta, y no se diga.
Alexandre
Pois, Senhor meu, isso asselle,
Porque a pena, que sabeis,
Que eu cuido que está nelle,
Dar-lhe-ha penas cruéis,
Pues no hay quien la consuele.
Porteiro
Folgo, porque m'entendeis.
Pagem
Hemo-nos, Senhores, de ir,
Porque nos está 'sperando.
Porteiro
Pois eu também hei de ir;
Que não me posso espedir
Donde vejo estar cantando.
Príncipe
Cantae, por amor de mi,
Alguma cantiga triste ;
Que todo meu mal consiste
Na tristeza em que me vi.
Porteiro
Mande-lhe cantar hum chiste.
Alexandre
Chiste não, que he deshonesto,
E não tèe esses extremos :
Outro canto mais modesto ;
Porém não sei que diremos.
Pagem
Gaoleão o dirá presto.
Porteiro
Dá licença V. Alteza
Que diga minha tenção ?
DE LUIZ DN CAMÕES
15
Príncipe
Dizei : seja em canto- chào.
Porteiro
Pois crede qu'he subtileza,
Qu'o8 Anjos a comerão.
Digão esta :
Enforquei minha esperança,
E o Amor foi tão madraço,
Que lhe cortou o baraço.
Alexandre
Não me parece essa boa.
Porteiro
Haja eu perdão,
Porque não a entenderão.
Entender
Alexandre
Porteiro
Bofe qu'he boa :
Não lhe cahis na feição?
Alexandre
Dizei ora outra melhor,
Ck)m que nos atarraqueis.
Porteiro
Ora esperae, e ouvireis :
Se a esta não dais louvor.
Quero que me degoUeis.
Cantiga
Com vossos olhos Gonçalves,
Senhora, captivo tendes
Este meu coração Mendes.
Alexandre
Essa parece mui taibo,
Porque mostra bom indicio.
Porteiro
Vós cuidareis qu'eu que raivo.
Alexandre
Todavia tèe máo saibo.
Ora mal lhe corre o officio.
Príncipe
Tá, não vá mais por diante
A zombaria, que he má :
Cantae qualquer delias ja ;
Qu'esse Porteiro he galante.
Ninguém o contentará.
Aqui cantão, e acabando, diz o
Pagem
Parece que adormeceo.
Porteiro
Pois será bom que nos vamos.
Alexandre
Senhor, quer que nos vejamos ?
Porteiro
Senhor vir-me-ha do Ceo :
Releva-me que o façamos.
Entra a Bainha com huma sua
Criada par nome Frolalta, e diz :
Rainha
Frolalta, como ficava
Antiôcho em te tu vindo ?
Frolalta
Ficava-se despedindo
Da vida qu'então levava,
E assi seus dias cumprindo.
Rainha
Oh grave caso d'amor ?
Desesperada affeiçào !
16
COMEDIAS
Oh amor sem redempçào,
Que alli te fazes maior
Onde tens menos rasào !
No mais alto e fundo pego
Alli tens maior porfia :
Rasào de ti nào se fia.
Quem a ti te chamou cego,
Mui bem soube o que dizia.
Por ventura liia chorando ?
Frolalta
Chorando hia c chamando
Ao Amor, Amor cruel ;
E em, Senhora, se deitando
Lhe cahio este papel.
Rainha
Que papel ?
Frolalta
. Este, Senhora.
Rainha
Amostra, que quero lê-lo.
Agora acabo de crê-lo ^
Que ao que mostra per fora,
Aqui lhe lançou o sello.
Aqui Ic o painel
Oh estranha pena fera !
Desditosa vida chara !
Oh quem nunca cá viera,
E com seu Pao niio casara,
Ou em casando morrera !
Frolalta
Aindaque eu peca sào,
Senhora, tudo bem vejo.
Attentf", que na eleioJio
O que lhe pede o desejo
Nào consente o coração.
Rainha
Frolalta. pois qu'és discreta
Nada te posso encobrir •,
Porque, se queres sentir,
A huma mulher discreta
Tudo se ha de descobrir
O dia qu'eatrei aqui,
Que a Seleuco recebi.
Lego nesse mesmo dia
No Príncipe filho vi
Os olhos com que me via.
Este principio soffri-lho,
Para vêr se se mudava ;
Antes mais se accrescentava :
Eu amava-o como filho,
E eile d'outr'arte me amava.
Agora vcjo-o no fim
Por se me níto declarar.
E pois ja que a isso vim,
A morte que o ícvar,
Me leve também a mim.
Porque ja que minha sorte
Foi tào crua e desabrida,
Que me nào quer dar ganida ;
Sejamos juntos na morte.
Pois o nào somos na vida.
Oh quem me mandou casar,
Para vêr tal crueldade I
Ninguém venda a liberdade,
Pois nào pode resgatar
Onde não tee a vontade.
Que nào ha mor desvario.
Que o forçado casamento
Por alcançar alto assento;
Que, emtím, todo o senhorio
Está no contentamento.
Não sei se o vá vêr agora.
Se será tempo conforme,
Ou se imos a deshora.
Frolalta
Despois iremos, Senhora,
Que agora dizem que dorme.
Entra o Physico a tomar-lhe opid-
so, e tomando -o diz :
Physico
Su madrasta oyó nombrar.
LUíZ DK CAMÕES
17
Y el pulso se le aiteró :
Esto uo entiendo yo.
Porque para le alterar
El corazou le obligó.
Pues que el corazon «e altere,
Es porque en un uiomento
Algun uuevo venciíniento
De afícion terrible le hiere,
Que causa tal movimiento.
Pues que aíicion cabe así
Con madrasta ? Digo yo,
Dos razones hay aqui :
La una dice, que si,
La otra dice, que no.
Empero yo determino
De exprimentar la verdad.
Y hacer una habilidad.
Que declare es agua, ó \'iuo
Esta su enfermedad.
Porque toda esta mailana
Tengo estudiado su mal,
8in ver causa efectuai
De su dolência inbumana.
Ni otra de su metal.
Llamar quiero este asncjon :
Mas aun debe de dormir,
Segun que es dormilon,
Sancho V ó Sanclio ?
Sancho
Ah Seíior.
Physico
Ea, aun estás dormieudo ?
Sanclio
Estoyme, Reijor, vestiendo,
Physico
Paes vellaco y sin cahor.
No me respondes dormieudo V
Vestios presto, ladron.
Oh qué mozo, y que ventura I
Sancho
(Mas qué amo y qu»* cabron I)
2
Embíeme aoá el ropoii.
Que no bailo mi vestidura.
Physico
Que embie el ropon acá ?
Parece que os desmandais.
Sancho
Que vaya, Senor? ha, ha.
Que buenos dias hayais.
Entra o moço embrulhada em huma
manta.
Physico
Di como vienes así
Con la manta, y para qué?
Sancho
Yo, Senor, se lo diré:
Por venir presto vesti
: Lo que mas presto me hallé:
■ Porque viendo que èl me Uama,
Dormiendo yo sin afan,
; Salte presto de la cama.
Que parezco un gavilan,
i Hermoso como una dama.
Physico
Mas es tu bovedad tanta.
Que vienes desta facion?
Sancho
De mi vestido se espanta?
, De noche sirve de manta,
' Y de dia de ropon.
Physico
Embióme ElRey á llamar
Utra vez.
Sancho
Y á mi?
Physico
Y áti!
18
COMEDIAS
Sanolio
Y él'qué presta allá sin mi?
Physico
Qaé puedes tu aprovccliar?
Sancho
Yo se lo dii*c de aqui:
Si por la ventura quiere
Para que le dé coní>ejo.
Guando doliente estuviere:
Di^ro, coma, si pudiere,
Y beba buen vino auejo;
Porque este es el licor
Que dá fuerza. y es sabroso;
Que seguu dicen, Sciior.
Vinvm íietificat cor
Hominis, y le es proveehoso.
Physico
Ya sabes la medicina,
Que Avicena nos refiere.
Sancho
Pues, Senor! porque es divina.
Pêro ElRey qué le quiere,
Qué manda, ó qué djelermina?
Phj^sico
El Príncipe está doliente.
Sancho
Oh mesquino I Y qué mal ha?
Physico
Y á ti, necio, que te vá?
Sancho
Oh Senor, que es mi parientc !
Physico
Gracioso el bovo está.
Y pues dime por tu í'é:
Llorarás si se muriere ?
Sancho
No, Senor, no lloraré;
Empero, Senor, haré
La peor cara que pudiere.
Physico
Ea, bovo, vé corriendo,
, Y ensilla la mula ayna.
Sancho
, Véngala ensillar mejor.
Physico
. Oh velhaco, y sin sabor I
! Sancho
j Y'o por cierto no lo eutiendo.
' Pêro una medicina
Le he de pedir, Dios queriendo.
! (Porque ando atribulado,
I Y no sé parte de mi
I Coa este nuevo cuidado)
j Para un sayo esfarrapado,
{ Que me dicen hay alli.
Physico
j Ora ensilla: y nunca viva,
I Pues sufro tus desatinos.
; Sancho
Seôor, pasion no reciva:
Ya cavalga Calaínos
A la sombra de una oliva.
Aqui salie holindo com a almofada ,
e acorclu o Frincipe e diz:
Príncipe
Oh bella vista e humana,
Por quem tanto mal sostenho !
Oh Princoza Soberana!
Como? nos braços vos tenho,
Ou este sonho m'engana?
Pois como, sonho, também
Me queres vir magoar?
E para me atormentar
DE LUIZ DE GAMÕES
19
Mostras -me a sombra do bem
Para assi mais m'enganar?
Assi que, com quanto canso,
Ja nào posso achar atalho.
Pois que o somno quieto e manso,
Que os outros toe por descanso,
Me vem a mi por trabalho.
Pois ha hi tantos enganos
Que condemnào minha sorte;
Não o tenho ja por forte,
Se á volta de tantos danos
Viesse também a morte.
Aqui eiiira ElBei com o Physico, t
diz:
Rei
Andae e vede se achais
O rasto deste segredo,
Que me dizem que alcançais;
Ainda que tenho medo
Que lhe seja por demais.
Physico
Plega á Dios qne aqueste sea
Para salud y remédio
Desta dulencia tan fea.
Yo buscaré todo el mcdio.
Que presto sano se vea.
Aqui lhe toma o Physico o pulso
Aflejen, Senor, sus ais.
Como se halla en su peaar ?
Principe
Como me acho perguntais?
E como se pode achar
Quem sempre se perde mais?
Physico
(La respuesta abre el camino.)
Imagina de contino?
Principe
Não tenho outro mantimento.
Nem outro contentamento,
Senão o cm que imagino.
Aqui eatra a Rainha t diz:
Rainha
Como se sente, Senhor?
Tem a febre mais pequena?
Principe
Responda-lhe minha pena.
Physico
(Conocido es su dolor.
Ora sea en hora buena,
Tomada está la tristeza
I A las manos.) Qué sentió?
; (Usaré de subtileza.)
Diz contra ElRei:
Cúmpleme que solo yo
Platique cou Vuestra Alteza.
Rei
Cheguemos-nos para cá.
Rainha
Nào deve desesperar^
Quem fim, se bem attentar.
Para tudo o tempo dá
Tempo i)ara se curar.
Principe
Que cura poderá ter
Quem têe a cura, Senhora,
No impossível haver ?
Rainha
Ficae-vos, Senhor, embora,
Que vos nào sei responder.
20
COMEDIAS
Vai .se a llainha
Rei
Neste mal, que nào couiprendo,
Que meio dais de conselho ?
Physico
Senor, nada entiendo dello ;
Y snpuesto que Io entiendo,
Yo quisiera no eiitendello.
Rei
Porque ?
Phj^sico
Porque lie entendido
Lo mas maio de enender,
Para lo que pnede ser,
Porque anda, Senor, ijordido
De amores por ani mugcr.
Rei
Santo Deos I que I tal amor
Lhe dá doenoa tào fera !
Que remédio achais melhor?
Physico
Forçado será que muera,
Porque no muera mi honor.
Rei
Pois como ! a hum só herdeiro
Deste Reino nào dareis
Vossa mulher, pois podeis ;
Que tudo faz o dinlieiro ?
Pois este nào o engeiteis ;
Dae-lha, porque eu espero
De vos dar dinheiro *-. honra,
Quanto eu j)ara elle quero.
Physico
No tira el mucho dineio
La mancha de la deshonra.
I Rei
Ora bem pouco defeito !
He pequice conhecida,
Quando deixa de ser feito :
Porque com elle dais vida
A quem vos dará proveito.
Physico
Cuan facilmente aporfia
Quien en tal nunca se vió !
Del cousejo que me dió,
Vuestra Alteza que haria
Si agora fuese yo ?
Rei
A mulher que eu tivesse
Dar-lha-hia. Oxalá
Que elle a Rainha quizesse !
Ph3'-sico
Pues dela, si le parece,
Que por ella muerto está.
Rei
Que me dizfis?
Physico
La verdad.
Rei
Sem dúvida, tal sentistes-?
Physico
8iu duda, sin falsedad.
Pues, Senor, ahora tomad
Los conspjos que me distes.
■Rei
Certamente, qu"eu o via
Em tudo quanto fallava.
Como o vistes ? porque via ?
Physico
Ncl pulso, que se alterava
Si la via, ó .si la oia.
DE LUIZ DE GAMUK3
21
Rei
Que maneira ha de haver ?
Qii'eu certo me maravilho.
Possa mais o amor do filho,
Do que pode o da mulher.
Finalmente hei -lha de dar,
Que a ambos conheço o centro.
Quero-o ir alevantar,
E iremos para dentro
Neste caso praticar.
Diz contra o Príncipe :
Levantae-vos, filho, dhi
O melhor que vós puderdes,
E vinde-vos para aqui ;
Porque, emfim, o que quizerdes
Tudo havereis de mi.
Pagem
Ah Senhores, oulá, ou ?
Porteiro
Viestes em conjunção
A melhor que pode ser :
Haveis aqui de fazer
A tosquia a hum rifão.
Pagem
Deixae-me, Senhor, dizer :
Haveis isto de acabar,
Coração, hi bugiar,
No esteis preso en cadeuas,
Que pois o amor vos deo penas,
Que vos lanceis a voar.
Porteiro
Por certo que bem comprou.
Pagem
Ora sabeis o que vai ?
Antiocho que casou
Com a muíher de seu Pai,
E o mesmo Pae o ordenou.
Isso como?
Porteiro
Pasrem
Não o sei :
j Porque dizem que a amava,
E que só por ella andava
j Para morrer ; e ElRei
Deo-a a quem a desejava.
Porteiro
Se o casa por querer bem
Com a moça, a quem elle ama.
Direi eu que a mim me iuflama
O amor mais que a ninguém.
Pagem
Pois pedi-Ihe a nossa dama.
Porteiro
Por São Gil. que ei-los cá vem,
Elle peia mão com ella.
Entra ElRei, e Antiocho com. a
Rainha pela mão, e diz :
Rei
Que mais ha hi que esperar ?
Olhae qu'estrariheza vai I
O muito amor ordenar,
Ir-se o filho namorar
D'huma mulher de seu Pai I
Querer bem foi sua dor,
Negar -lha será crueldade ;
Assi que ja foi bondade
Usar eu de tal amor,
E de tal humanidade.
Elhi deixou de reinur
Como fazia primeiro
Por se com elle casar;
E por amor verdadeiro
Tudo se pôde deixar.
Eu que nella tinha posto
22 COMEDIAS
Todo o bem de meu cuidado, j Porqu'em tào grandes extremos.
Deixei mais que ella ha deixado; I Extremos se hão de fazer.
Que mais se deixa uo gosto.
Que 110 poderoso estado.
Mas ja que tudo isto vemos,
Hajào festas de prazer,
As que melhor possào ser ;
Hajào cantos para ouvir,
Jogos, prazeres sem fundo;
Porque, se quereis sentir.
Deste modo entrou o mundo.
E assi ha de sahir.
Aqui vem os MiUiicos e cantão^ e depois de cantarem^ sahem-se todas as
figuras, e diz
Martim Chinchorro
Ora, Seulior, tomemos também nosso pandeiro, e vamos festejar
os noivos ; ou vamos consoar com as figuras, porque me parece que esta
lie a inór festa que pode ser. Mas espere v. m., ouviremos cantar, e na
volta das figuras nos acolheremos. Moço, accende esse móiho de cavacos,
porque faz «'scuro nào vamos dar comnosco em algum atoleiro, onde nos
fique o ruço e as canastras. .
Estacio da Fonseca
Não, Senhor, mas o meu Pilarte irá com elles com hum par de ti-
ções na mào ; e perdoem o máo gasalhado. Mas daqui em diante sir-
vào-sc desta pousada ; e nào tenhào isto por palavras, porque essas e
plumas, o v«'tito as leva.
os AMPHÍTRíOES
INTKPiLOíXTURKS
Amphitrião. — Alcmena, sua Mulher.— Callisto.
Feliseo.— Sosea, Moço de Auiphitnão. — B remia, sua Criada.
Belíerrão, Patrào. — Aurélio, Primo de Alcmena.
Hum Moço de Aurélio. —Jiipiter. — Herciirio.
ACTO I
8CENA 1
Krdro. AlcKfsna. saudosa do mari-
do, qiK he na f/uerra, e Bromia.
Alcmena
Ah Senlior Ainphitriào.
Oiide está todo ineu bem !
Pois meus olhos vos nfio vem,
Fallarei co'o coraçào,
Que dentro n'alraa vos tem.
Ausentes duas vontade>,
Qual corre mores pericros.
Qual soffre mais erueldadcs.
Sc v<'t5 entre os inimigos,
Se eu entre as saudades V
Que a ventura, que vos fraz
Tào longe de vossa terra,
Tantos desconcertos faz.
Que se vos levou á guerra.
Nào me cjuiz deixar em paz.
Bromia. quem com vida ter.
Da ^ida ja desespera,
Que lhe j)oderás dizer?
Bromia
Que nunca se vio prazer,
Senào quando nào se espera.
Y^ por tanto nào devia
De ter triste a phantasia :
Porque Vossa .Mercê creia.
Que o prazer sempre salteia
Quem delle mais desconfia.
Eu tenlio no coração,
Do Senhor Amphitriàe
Venha hoje alguma nova :
Xíto receba alteração.
Que a verdadeira aíFeiçào
Na longa ausência se prova.
Alcmena
Dizei logo a Feliseo
Que chegue muito apressado
Ao cães. c busque mêo
j De saber se algum recado
Do porto Pérsico vêo : ,
j E mais lhe haveis de dizer.
i (Isto vos dou por officio'
■ D'alguma nova saber.
Em quanto eu vou faz^ir
I Aos Deoses o sacrifício.
!
SCENA IL
1 Bromia
1 Saudades de uiinh'ama.
j Chorinho" e dovoròes.
I Sacrifícios e oraçòes,
: Me hào de hmçar n'huma cama,
i Certamente.
j Nós mulheres de semente
I Somos sedenho mui tosco :
Com qualquer vento rjue vente,
i Queremos forçadamente
Que os Deoses vivào comnosco.
I Quero Feliseo chamar.
j E dizer-lhe aonde ha de ir.
I Mas elle comcwme vir,
I Logo ha de querer rinchar,
De travesso.
DK LUIZ DE OAMOKS
25
Eu que flf zombar nfio cesso,
For licar com elle em salvo,
Lanço-lhe hum e outro reciôsso •,
Aos seus íurto-llie o alvo ;
E então elle fica avesso.
Porque o melhor de.-tas d;inoa.s.
Com huns viudlvos assi,
He trazô-los por uqiii
O cheiro das esperanças,
Por viver.
Ha-03 homem de trazer
Nos amores assi morno?,
Si'» para ter que fazer :
E despois ao remetter
Lançar-lhe a capa nos cornos.
Feliseo, se estais á mào,
Chegae cá, vem como hum gamo :
Bem sei que não chamo em vâo.
SCENA III
Feliseo < Bromia
' Feliseo
ChamaÍ8-me ? também vos chamo;
Porém eu ouço, e vós nuo :
Senhora, que me mat;iis,
!Se vós ja nunca me ouvis,
Ou me ouvis, e vos callais,
Dizei : porque me chamais
So me vós a mim fuíris ?
Bromia
Eu vos fujo ?
Feliseo
Fupris, digo,
De dar a meus inales cabo.
Bromia
Sabei que desse p^^rigo
NAo fujo como de imigo,
Fujo como do diabo.
Feliseo
Dae ao demo essa tença©,
Usae antes de corttís,
Cahi vós nesta razào.
Bromia
Do p'risro fogem os péy.
Do diabo o coraçíjo.
Feliseo
Dizeis -me que nessa bríga
Do meu coração fugis.
Bromia
Ainda qu'eu isso diga. . .
Feliseo
Ah minha doce inimiga I
Bem .«into que me sentis.
Mas para que me chamais ?
Bromia
Manda-vos minha Senhora
Que chegueis daqui ao cais,
E algumas novas saibais
D'Amphitriil.0 nesla hora.
Feliseo
Quem as não sabe de si,,
D'outrem como as saberá ?
j Bromia
i ]Sào as sabeis vós de mi ?
1 Feliseo
I
j M4 trama venha por ti.
] Duna feiticeira mál
1 Porque nào me ólluis direito,
j Cadella, que assi me cortas?
I Bromia
i Porque vos quero dar portas
Que s'eu olhar d'outro geito,
Trarei cem mil vidas mortas.
26
COMEDIAS
Feliseo
E pois para que me andais
Enganando ba cem mil anos?
Broinia
Dou-vos vida com enganos.
Feliseo
Nesses euganinhos tais
Acho cruéis desenganos.
Bromia
Quant 'esses vos quero eu dar:
Vós cuidais que estais na sella?
Pois podeis-vos descer delia;
Qu'eu nunca vos pude olhar.
Feiiseo
Jogais comigo ;i panella?
Tendes-me ha tanto captivo,
E desenganais- me agora?
Tudo isto he o que privo.
Assi que he isso. Senhora,
Dochelo morto, dochelo vivo?
Se me vós desenganais
No cabo de tantos anos,
Direi, se licença dais,
Dais-me vida com enganos.
Desenganos, ja chegais.
Mas se isso havia de ser,
Dizei, má desconhecida_.
Desterro de meu viver,
Que vos custava dizer
Amor, vae buscar tua vida?
Bromia
Zombais? Fallais-me coprinhas?
Feliseo
Rir-vos-heis se vem á mito:
Copras nào, mas isto sào
Aníiias y pasiones minhns
Dos bofes e coracào.
Bromia
Is-vos fazendo d'hun8 sengos. .
Feliseo
Perdóneme Dios si peco.
Bromia
Nesses dentinhos frauiengos
Conheço que sois hum peco
De todos quatro avoengos.
Feliseo
Tudo vos levo em capelo,
Ja qu'estais tanto em agríiço.
Porém, fallando singelo,
A furto desse máo zelo,
Quereis-me dar hum abraço?
Bromia
Ora digo que nào posso
Usar comvosco de fero:
Tomae-o.
Feliseo
Ja o niío quero.
Porque esse abraço vosso,
Sabei que he engano mero.
Bromia
Oh! vós sois d liuns sensabores.
Abraço pedis assim?
b'eu remango d'uia chapim. . .
Feliseo
Tudo isso sào favores:
Zombae, vingae-vos de núm.
Bromia
Vós de furioso touro
As garrochas nào sentis.
Feliseo
Vedes, com isso só mouro:
Quando cuido que sois onro,
Acho-vos Ioda ceitis.
DE LUIZ DE CAMUiCS
Bromia
Emfim, sanha de villào
Vos fez perder hum bom dia.
Feliseo
Jagora o eu tomaria;
Quereis-mo dar?
Bromia
Ora não.
Cocei-vos eu todavia.
Feliseo
Pois, Senhora, a quem vos ama
Sois tão desarrazoada,
Quero tomar outra dama;
Que uuo dig-ão os d'Alfama
Que não tenho namorada.
Bromia.
Deixae-me.
Feliseo
Vós me deixais.
Bromia
Deixae-me.
Feliseo
Zombais de mi?
Bromia
Deixae-me. Pois m'engeitais.
Eu me ausentarei daqui
Onde me mais não vejais.
Feliseo
Boa está a zombaria!
Bromia
Não são essas minhas manhas.
Feliseo
Porém is-vos todavia?
Bromia
Voyme á las tierras estraiias
Adó ventura me sruia.
SCENA IV
Feliseo só
Phantasias de donzellas,
Não ha quem como eu as quebre;
Porque certo cuidão ellas,
Que com palavrinhas bellas
Nos vendem gato por lebre.
Esta têe lá para si
Qu'eu sou por ella finado;
E crê que zomba de mi;
E eu digo-lhe que si,
Sou por ella esperdiçado.
Prezci-se d'humas seguras;
E eu não quero mais Fraudes:
Dou-lhe trela ás travessuras.
Porque destas coçaduras
Se fazem as chagas grandes.
Qu'estas, que andào sempre á vela>
Estas vos digo eu que coço;
Porque de firmes na sella,
Crem que falsão a costella,
E ficào pelo pescoço.
Que quando ^^ -tas damas tais
Me cachão, então recacho.
Mas disto agora nó mais-
Quero-me ir daqui ao cais
Vêr se algumas novas acho.
SCEXA V
Jujyiter e Mercúrio
Júpiter
Oh grande e alto destino!
' Oh potencia tão profana!
Que a setta d'hum menino
Faça que meu ser divino
j Se perca por cousa humana!
j Que m'aproveitão os ceos,
j Onde minha essência mora
i Com tanto poder, se agora
28
COMEDIAS
A qnem me adora por deos,
Sirvo eu como a senhora?
Oh quào estranha aíieiçào!
Quem em baixa cousa vai pôr
A vontade e o coraçno,
Sabe tào pouco d' Amor,
Quão pouco Amor de razão.
Mas que remédio hei de ter
Contra mulher tào terribil,
Que se nào pode vencer?
Mercúrio
Alto Senhor, teu poder
O difficil faz possibil.
Jupiter
Tu nào vês qu'esta mulher
Se preza de virtuosa?
Mercurio
Senhor, tudo pode ser:
Que para quem muito quer,
Sempre a afteiçào lie manhosa.
Seu marido está aumente
Na fiTuerra. longe d'áqui;
Tu, qu"és Jupiter potente,
Tomarás sua forma em ti:
Que o farás mui facilmente.
E eu me transformarei
Xa de Sosea, criado seu:
E ao arraial me irei.
Onde logo saberei
Como se a batalha deu.
E assi poderás entrar,
Em lugar de seu marido:
E parM que sejas crido,
Poderás também contar.
Quanto eu lá tiver sabido.
Jupiter
Quem íirde em tamanho fogo
Tira-lhe a virtude a cor
De subtil e sabedor;
E quem fora está do jogo
Enxerga o lanço raelhor.
Mas tu, que dos sabedores
Tanto avante sempre estás.
Se deos és dos mercadores,
Sê-lo-has dos amadores,
Pois tal remédio me dás.
Ponha se logo em effeito:
Que nào soffrc dilação
Quem o fogo têe no peito;
E tu vae logo direito
Aonde anda Amphitriào.
SCENA VI
Feliseo e CalUsto
Feliseo
I Ad(5 bueno por aqui,
I Tào longe do acostumado?
j Callisto
Mais longe vou eu de mi,
D'ir perto de meu cuidado.
Feliseo
No andar vos conheci.
Callisto
j E vós onde vos lançais,
' Com A ossa contemplação?
Feliseo
Eu chego daqui ao cais
A saber de Amphirrulo:
Nào sei se vou por demais.
Callisto
Porque por demais dizeis?
Feliseo
Porque nada alli ha certo.
Callisto
! Novas lá nào as busqueis,
i Que aqui as tendes mais perto.
Di: LUIZ DE CAMUKS
29
Feliseo
Pois dae-mas jú, se as sabeis.
Callisto
Hum navio lie já clieg-ado
A barra, que vem de lá;
Traz de Amphitristo recado,
Diz que o deixa embarcado
Para se vir para cá.
Têe vencido aquelle Rei-,
E diz, se<íuiiiio lhe <uvi,
Qu'esta noite será aqui.
Feliseo
Essas novas levarei
A Alcmena, que torne em gi.
Porque ella tèe maior guerra
Co'os temores de perdello,
Qu'elle co'o Rei dessa terra.
Callisto
Onde amor lançar o sello,
Nenhuma cousa o desterra.
Porqu'inda que o pensamento
Vos íique, Senhor, em calma,
Por morte ou apartamento;
Sempre vos lá íicào n^alma
As pegadas do tormento.
Feliseo
Isso lie hum segredo mero,
A que o Amor nos obriga:
Por isso em caso tào fero.
Senhor, nunca ninguém diga,
Ja lho quiz, e nào lho quero.
Eu quiz bem a hnma mulher,
Que vós conhecestes bem,
E, com muito lhe querer,
Casou- se.
Callisto
Oh! c com quem?
Qne ainda o uào p'<sso crer.
Feliseo
Com hum Mercíidor, que veio
Agora do P^gypto, rico.
Callifeto
Isso traz água no bico.
Esse homem he parvo, ou feio?
Feliseo
Pois vedes? disí-e me pico.
E em pago d 'esta traiçào,
Afora outros mil descontos
Que traz comsigo a affeiçào,
Sempre os signaes d'estes pontos
Trarei no meu corâçào.
Callisto
Viste-la mais?
Feliseo
Senhor, vi.
Na janellinha da grade;
Passei, e disse-lhe assi:
Casada sem piedadi;,
Porque nào a haveis de mi?
Callisto
Que vos disse?
Feliseo
Lá no centro
Lh'cnxerguei pouci. alegria:
E como quem lhe dohia.
Metendo- se para dentro
I Disse : Ja pasó folia.
I Callisto
Ah má sem conhecimento !
Quem lhe dc^se mil chofradas !
Feliseo
Senhor, como sno casadas,
Casáo-se co"o esquecimento
■Das cousas que sAo passadas.
ao
COMEDIAS
Callisto
Lembranças de vos deixar
Picar-YOS-hào como tojo3.
Feliseo
Senhor, haveis d'assentar
Que onde amor ros qner matar,
Siempre alhi miran \os ojos.
Hum motete lhe mandei
Hum dia, estando com febre,
Só da paixão que tomei.
Callisto
Pois vejamos quem toe lebre.
Feliseo
Senhor, eu vol-o direi.
Mofe
Vós por outrem, e eu por vós^
Vós contente, e eu penado;
Vós casada, eu cansado.
Poios santos de minha dona I
Callisto
Senhor, vós só o fizestes?
Feliseo
Si, que ninguém me ajudou.
Callisto
Se vós só o compuzestes,
Crede, que extremos dissestes.
Nunca Orlando tal fallou.
Senhor, fizestes -lhe pé ?
Feliseo
Senhor, si; e todo hum anno. . .
Vós zombais.^se nfío m'engano?
Callisto l : ^^^í
Nilo. mas dou- vos minha fé
Que nunca vi tào bom panno.
Feliseo
Ora olhe vossa mercê.
Volfa
Olhae em quão fundos váos
Por vosso causa me affógo.
Que outro me ganha no jogo,
E eu triste pago os páos.
Olhos travessos e máos,
Inda eu veja o meu cuidado
Por esse vosso trocado.
Callisto
Nào mais, qu"isso me degola.
Feliseo
Senhor, eu haja perdão.
Callisto
Fizestes esse rifão
Em algum jogo de bola V
E foi-ihc elle ter á mão?
Feliseo
Digo-vos que o vio, e lho leo
Hum moçozinho d'eseola.
Callisto
Está isso assi do Coo.
Sabe ella jogar a bola?
Feliseo
Não.
Callisto
Pois não vos enteudeo.
Ora eu já cheguei a ler
Petrarca, e crede de mi
Que nunca tal cousa vi.
Onde mora o bom saber,
Logo dá sinal de si.
Onde casada puzcstcs.
Dizei, porque não dissestes
La que yo vi por mi mal.
DE LUIZ DE CAMÕES
31
Feliseo
Kenunciav.i o metití;
Qu'em rifòeszinhos como estes.
Ha-se-de pôr tal com tal.
Que a trova trigo-tremez
Ha de ser toda d'hum pauo;
Que parece muito íngrez
N'lium pelote Portuguez
Todo hum quarto Casíelhauo.
Ouvi outra também minha,
Que fiz a certa tenção.
Clara, leve, bonitinha.
De feição, que esta troyinha,
He trovinha de feição.
Como eu hum dia me visse
Morto, e a mão na candéa,
E ella não me acodisse ;
Fiz-lhe esta, porque sentisse
Que dava os fios á téa.
E o propósito he
Andar eu hum dia só ;
E paru que houvesse dó
De mi e de minha fé,
Lamentei-lhe como Jó.
Callisto
Andastes, Senhor, mui bem.
Feliseo
Ora, Senhor, attentai,
E vede o saibo que tem ;
Se he para a vêr aiguera.
Callisto
Ora dizei.
Feliseo
Ei-la vai.
Trova
Coração de carne crua.
Vê-lo teu amor aqui,
Que esmorecido por ti
Jaz no meio desta rua ?
Callisto
Na rua, Senhor, jazia ?
E era era tempo de lama ?
Feliseo
Senhor, quem falia a quem ama,
De si mesmo se não fia:
Haveis do mentir á dama.
Callisto
Yoita disso?
Feliseo
Singula'-,
Senão que he muito sentida ;
Far-vos-ha, Senhor, chorar.
Callisto
Oh I diga, por sua vida ?
Feliseo
Farei o que me mandar.
Valia
Porque não haa delle mágoa,
O dura mais que ninguém.
Que anda o triste que não tem
Quem lho de Imma vez d'âgoa ?
Não lhe negues teu querer.
Pois te não custa dinheiro \
Que, emfim, por derriídeiro
A t-irra te ha de comer.
Callisto
Tal trova nunca se vio.
Agorentaste-la ja?
Feliseo
Senhor, não ; ainda está
Como a sua mãe pario ;
E não está muito má.
Callisto
He trova, que t?e por seis ;
32
COMEDIAS
Nào a posso mais gabar.
Mas, pois, tal cousa fazeis,
Sealior, não ni'ensinareis
Donde vem tào bem trovar ?
Feliseo
Nào he a consa tào pequena,
Como, Senhor, a fizestes.
Essa que agora dissestes.
Mas porém vou dar a Alcmena
Estas nov:is que me destes.
Despois, Senlior, nos veremos;
Ficae ja roeuão esse osso.
Callisto
O roer, Senlior, he vosso.
Feliseo
Pois eu, por mais que zombemos,
Hei de ser vosso e revosso.
Callisto
Oh!... Escusae vos de d'extremo8,
Qu'isso, Senhor, me atarraca.
Mas nós nos encontraremos,
E sobre isso envidaremos
Dous reales mais de saca.
ACTO II
SCEXA I
Júpiter e 2íercurio transjormadosj
Júpiter na forma de Amphitrião,
Mercúrio na de Sosea escravo,
Jnpiter
Mercúrio, pois sou mudado
N'esta forma natural,
Olha e nota com cuidado.
Se está em mi o pintado
Apparente co'o real.
Mercúrio
Quem tilo prr.prio se transforma.
Tenho por opinião,
Que na tal transformação
Lhe prestou natura a forma,
Com que fez Amphitrião.
Júpiter
Pois tu no gesto o na còr
Estás Sosea escravo seu.
Mercúrio
Muito mais f.irás. Senhor.
Júpiter
Não o faz senão o Amor,
Que n'isto pôde mais qu'eu.
Mercúrio
Ja, Senhor, te fiz menção
Como deo Amphitrião
A ElRei Ter ela a morte;
Que, na guerra igual, a sorte
Pode mais que o coração.
E despois ue ser tomada
Toda a Cidade, com gloria
D'AmplritriAo bem ganhada,
Como em i^iual de victoria.
Esta copa lhe foi dada.
Por cila bebia Elllei,
Em quanto a vida (jueria;
E eu, por(|Ue te cumpria,
A seu escravo a furtei,
Que n'huma caixa a trazia.
í^sta poderás levar
A Alcmena, por lhe mostrar
Verdadeiro, o que he fingido;
E d(:st'arte serás crido.
Sem mais oiiíro ardil buscar.
DK LUIZ DE CAMÕES
3S
Jijpitor
Pois tudo tons ordenado
Por tão nova e subtil arte;
Como me vires entrado,
Irás dar este recado
A Phebo de minha parfe:
Que faça mai'* devagar
Seu curso neste Hemispherio,
Que o que soe acostumar;
Qu'esta noite bei de ordenar
Hum caso de alio inyâterio.
E á Esphera m:iis alta
Mandarás que fixa esteja,
Porque a noite maior seja:
Porque snmpre o tempo falta,
Onde a alegria Le sobeja.
E terás taman])o tento.
Que como isto se ordenar,
Venhas aqui vigiar,
Porque meu contentamento
Ninguém mo possa estorvar.
Mercúrio
Seja feito sem debate
Tudo como te convém.
Jupiter
Pois nào parece ninguém,
Como homem de casa bate,
E muda a falia também.
Mercúrio, hatpndo á porta
O de la casa, en buena hora,
Darmehan de eenar aqui"?
Bromia dentro
Sosea parece que ouvi:
Alviçaras, minha Senhora,
Que na falia o conheci.
SCENA IT
Alc/iíe/uí, Jiroiiiia, Jai^iter
e Muraurio
Alcmena
Zombaib, Bromia, por ventura?
Bromia
Senhora, nào zombo, nào.
Alcmena
Vejo eu Amphitriào,
Ou a vista me atfigura
O qu'stá no coração?
Jupiter
Olhos, diante dos quais
Desejei mais este dia.
Que nenhuma outra alegria.
Senhora, nunca creais
Que lhe minta a phantasia.
Alcmena
Oh presença mais querida
Que quantas formou Amor!
Isto he verdnde. Senhor?
Acãbe-se aqui a vida,
Por não ver prazer maior.
Jupiter
Pois esta hora de vos ver
Alcançar, S>tuhora, pude;
Para mais contente ser,
Confonnem co'este prazer
Novas de vossa saúde.
Alcmena
Vida foi pezada e crua
A sauue qu'eu sostinha;
Qu'em quanto, Senhor, a tinha,
Temer perigo na sua,
Me fez descuidar da minha.
Mercúrio
Y pvreSj mi Senora Alcmena,
Pese ai demónio rualvado.
No dirá á un su criado,
Vengais Sosea norabuena?
Alcmena
Sejais, Sosea, bem chegado.
;34
COMEDIAS
Bromin.
Bem mal cri eu. *[ne pude.sfse
yér-te. Sosca. hoje af|ui.
Mercúrio
Pues tambien yo no ciei
Que eu mi vida te viese.
Segiin las mue.rfep í|ue vi.
Alcniena
Muito, Senhor, folgarei
Com novas do veneirnoriío.
Júpiter
De tudo quanto pasàeí.
Por vos dar conkíJitaiAeuto.
£m summa vos contarei.
Trago. Senhora, a victorla
D'aquelle Rei íílo temido.
Com fama chira o notória.
Porém maior foi a gloria
De me ver de vós \encido.
Sem me terem resistência,
Os Grandes me obedecerão.
Como El Rei morto tiveríio:
Em sinal de obediência
Esta copa me trouxerào.
ElEei por ella bebia:
(Ella. e tudo o mais hc nosso)
Por onde claro se AÍa,
Qne tudo me obedecia.
Pois tinha nome de vo^^o.
Mercúrio
Si, rnas luego do rondou
Ija fortuna dió la vuelta.
Como?
Alem ena
Mercúrio
Fuc gran perdiciou.
Porque en aqnella revuelta.
Me hurtaron nii jnbon.
Pêro bien mo lo pagan^n.
Cuando coiwigo riíieron;
Que aunque me despojaron.
Si uuo de seda llevaron.
Otro de azote» me dieron.
Alomena
Senhor, uâo posso gostar
De gosto, que he tão imrnenso,
Senão muito devagar:
Faça-me mercc d'entrar,
E contar-mo-ha por extenso.
SCENA III
Me.revno c liromiu
Mercúrio
Yo tambein te contaria.
Bromia, si quedas atrás,
Que una noche . . . enojartehaí«V
Bromia
QueV
Mercúrio
Sonaba. que te tenia. . .
No me atrevo á deeir mas. .
Bromia
Dize.
Mercúrio
Pardies, na diré.
1 Sou aba. . .
Bromia
Bem: que sonhavas?
Mercúrio
Que cuando en la cama e:?tavas
Que yo. . . eníin recorde.
Bromia
Pois tudo isso receavas?
Mercúrio
S;»be Dio? qnéjyo acá siento:
DE LUIZ DE CAMÕES
QP.
Sola una alma vive eu doa,
La cual anda dentro en vos.
Bromia
E que quer ella cá dentro?
Meronrio
Tambien eso sabe Dios.
SCENA IV
MercTirio
Bem se poderá enganar
Bromia, segundo ora estou,
Como Alcmena s'enganou;
Mas cumpre-me ir ordenar
O que meu Pac me mandou.
E porque seja guardad<a
Esta porta e vigiada
De toda a gente nascida,
Me será cousa forçada.
Ser tão depressa a tomada,
Quão prestes faço a partida.
SCENA V
Sosea, cantando
Amphitrion esforzado
Bravo vá por la batalla,
Siete cabezas llevaba,
De las mejores que ha bailado.
Falia
Quien viene de tierra agena,
Y de la muerte escapo,
La razon le permitió
Que cante como sirena,
Como agora bago yo.
Y pues canto tan gentil,
Fuera llanto si muriera.
Quiero cantar como quiera.
Una y o*;ra, y mas de mil.
Que digan desta manera:
Canta
Dongolondron, con dongolondrera,
Por el camino de Otera,
Rosas coge en la rosera,
Dongolondron. con dongolondrera,
Falia
Cuando yo vengo á pensar
Que uno matarme quisiera,
No bago tino tt^^nblnr,
Porque creo ?i n.iriera.
No pudiera mas cantar.
Porque estando á un rincon
De la casa adó quede,
Senti muy grande ronron,
Y mirando, que mire?
Vi que era un gran raton.
Empero yo nunca sigo.
Sino consejos muy sanos:
Que en estes casos levianos,
Quien desprecia el enemigo.
Mil veces muere á sus manos.
Pêro mi Senoi- allí
Mato ai Rcy de los Glipazos:
Yo como muerto le vi,
Juro á mi l"é, que le di
Mas de dos mil cuebillazos.
Y por me librar de afan,
Me voy siempre á cosa hecha
Probar mi mnno derecba;
Que aquel es bueu capitan,
Que dei tiempo se aprovecha.
Que quien ha de pelear.
Ha de buscar tiempo y hora.
Pêro quiero caminar.
Que me muero por contar
Todo aquísto á mi Senora.
SCENA VI
Mercúrio e. Sosea
i Merourio
i Mil vezes comigo vejo,
[ Para que meu Pac se affoute;
3G
COMEDIAS
Pois em tào pequeno eijí^ejo
]yhe mandei tatbar a noute
A medida do desejo.
E pois que como possante.
A mi tudo se reporta,
Chego agora neste instante
A estorvar qu'este bargante
Me não chegue a esta porta.
Sosea
No S'j que miedo, ó locura,
Ncsíô pecho se me cria:
Por D os que se me afigura,
Que lia mucho que es noche escura,
8in (juc venga el claro dia.
Mas sabed, que pienso yo
Que el sol que no se acordo
De con el dia venir,
Que á noche cuando cenó
Algun buen vino bebió,
Que le hace tanto dormir.
Mercúrio
Ja scnles comprida a noute.
Qu'eu assi mandei fazer ?
Pois mais te quero dizer,
Que sentirá." muito açoute.
Se cá quizeres vir ter.
Porém, pois este bargante
Tce medroso coração,
Quero-me fingir ladrão,
Ou phantasma, e por diante
Nào irá, se vem á mào.
E com tudo se passar,
A falia quero mudar
Na sua do tal feiçuo,
Que couces, e porfiar,
l^he façào hoje assentar
Que sou Sosea, e elle nào.
Falia Castelhano
No vco pasar ningnno.
P2n quien yo me pueda hartar.
Sosea
A quien oigo aqui liablar?
Mande Dios no sea alguuo
Que me quiera aporrear.
Mercúrio
La carne de algun humano
Me seria rnuy sabrosa.
Sosea
Oh qué voz tan temerosa !
Hombres comes, ó mi hermano ?
No es mejor otra cosa?
Carne humana es muy mezquina.
Oh no comas deso, nó!
Antes carne de gallina.
Pêro se mas se avecina,
Qué mas gallina, queyo?
Mercúrio
Una voz de hombre; ahora
A la oreja me volò.
Sosea
Pésetc quien me paríó:
La voz traigo boladora ?
Ella quisiera ser yo.
Pues mi voz pudo volar
Do la pudieses oir ;
Por contigo no rcuir,
Me debiera de prestar
Las alas para huir.
Mercúrio
Qué buscas Cibo esa puerta,
Hombre ? Sé que eres ladron.
Sosea
Ay (jue el alma tengo muerta I
Oh Júpiter me convierta
Las tripas en corazon!
Mercúrio
Quien eres? quieres hablar?
1>E LUIZ DE CAMOF.S
37
Sosea
Soy quien mi voliintad qulere.
Mercúrio
Pieneas que puedas buriíir?
Sosea
Y tú puédesme quitar
Queyo sea quien quisiere?
Mercúrio
Osas bablar tan osado.
Don vellaco bovarron V
Dí, quieu eres?
Sosea
Un criado
Del Senor Amphitrion,
Por nombre Sosea llamado.
Mercúrio
Pienso que el seso perdiste.
Como te llamas, mal hombre?
Sosea
Sosea soy, si no me oiste.
Mercúrio
Como? en persona tan triste
Osas d'en3uciar mi nombreV
Estos puíios Uevarás,
Pues tener mi nombre quieres.
Quiéresme dicir quien eres ?
Sosea
O Seíior, no me dés mas,
Que yo seré quien tú qnisiere.s
Mercúrio
Con tan nueva falsedad
Andais por esta Ciudad,
Delante de quien os mini?
Pues 8Í sois Sosea, tomad.
Sosea
Si me dás por la verdad,
Que me harúb por la mentira ?
Mercúrio
Y que verdad es la tuya V
Que te quiero dar castigo.
Sosea
Si no í-oy Sosea que digo,
Que Júpiter me destruya.
Mercúrio
Mirad el falno enemigo :
Tomad este bofeton,
Que yo soy Sosea, y no tos.
Sosea
Tú Sosea?
Mercúrio
Sosea por Dios,
Escravo de Ampliitriou.
Sosea
De modo que tiene dos?
Mercúrio
No tendrú, aunque tú quieres;
Que á mi solo conoció.
Sosea
Pues luego de quein soy yo?
Mercúrio
Si tú no sabes quien eres,
Quieres que yo lo sepa? No.
Sosea
Enfin, lias me de hacer crer
Que yo no soy quien ser solia?
Mercúrio
Quien solias tú de ser ?
38
COMEDIAS
Sosea
Tregods me lias de prometer,
Djrtelohé sin porfia.
Prometo.
Mercúrio
Sosea
Xo me darás ?
Mercúrio
No, si no íuere razon.
Sosea
Pues, hermano, tú sabrás
Que mi amo Amphitrion. . .
Mercúrio
Tu amo ? Puis llevarás.
Mi amo es, que tuyo no.
Sosea
Ay que un brazo mo ijuebró !
Mercúrio
Mas que luego te matase.
Sosea
Ojalá Dios ordenase
Que tú ahora fueses yo,
Y yo que te desmeinbrase !
Mercúrio
Esa tu tema tau loca,
Punos te la han de quitar.
Díme, dí, ver^iicuza poça,
Qué hablas ?
Sosea
Que puedo bablar,
Si me has quebrado la boca?
Mercúrio
Di quien eree, sin fatiga.
Sosea
Soy un hombre, eu quien tu dás.
Mercúrio
Díme pues, qué nombre Las.
Sosea
Como quiercs tú que diga,
Para qué no me dés más ?
Mercúrio
No me has de hablar contrahecbo.
Sosea
Toda mi vida pasada
Sosea fuy, y con despecbo
Ahora soy . . . qué '? No nada;
Que tus manos me han deshecho.
Mercúrio.
Cuyo eres, pucs las siontes,
Dejando consejos vanos?
La verdad; que si me mientes,
Dás con la lengua en los dientes,
Y yo dóyte con las manos.
Sosea
No conoecs Amiihitrion ?
Mercúrio
Hombre sin soso te llamo.
Tau fuera estás de razou !
Piensas de mi, bovarron,
Que no conozco a mi amo ?
Sosea
En su casa couociste
Uno, que es Sosea llamado,
Hombre despreciado y triste?
Mercúrio
Dosa suerte lo dijiste ?
Yo soy triste y despreciado ?
Pues sabe que te lleg«j
!!♦: LLl/. li;: CAJIOKS
A \d Uj«\eri>i tu ívr^auu.
Sosea
Pues logo si yo uo soy yo.
Aunque nadie me niató;
Soy Itiejío cosa ninguna.
Oh dioses, que desooncierto I
Yo por ventiiia soy inucrto,
O muriómo l;i iwzoii ?
Yo no soy de Aiiiphirriou ?
El DO me mandou dei puerto ?
Yo sé que no estoy Joeo.
De mi madre no nací ?
No ando? No liablo aqui?
Mercurio
Paes sioyiegíi ab'ira un poço,
Que yo tambicri dir/; de mi.
Yo no jíé quo víi áoy yo ?
Yo no to Ui CGU mis manos ?
Mi Seíior no me llevó
A la cuerra, adó mau»
Aqucl R^iy de los Thebauos V
Sosea
Yo est) nuiy bion !•> s^.
Empero tú qaé bacias
Cuando la batalla vias ?
Mercúrio
Escacha: yo lo diré,
Y cesaran tus portías.
Cuando mi Senor andaba
Peleando, y derramaba
La sangre de alj^an mezquino;
Con una bota de vino
Yo Ia mia acrescentaba.
Sosea
(Diop io que yo hacia^
Con todo, saber queria
8ola una cosa, si puedo:
Tu pecho entoncos sentia ?
Mercúrio
Del beber grande alegria,
Y dei peiear o;ríin tn?cd<i.
I Y deí?pu.
&oaoÀ
Morovan
^íjiy repus^ido
o ú^iuJo.
I A dormir me éché u
j Desde cl sol liasta la luna.
i Scaea
(Todo lo tiene conlado.
Eníin. tengo .iveriguado
Que yo no >oy cosa ninguua)
Pues de todo on un instante
Me has achado de mi fuera,
Aconsejamos si qui'.'ra,
Quien sern daqui lulelante,
Pues no soy quien de antes era.
Mercúrio
Cuando yo ao sev quisiere
Ese. que tú ícv deseas,
De?pues que yv- Sosea no fuere.
Darlehé. si re j)luguiere,
Licencia que iodo seas.
Y acógete hn^tfo, amigo.
A buscar tu nouibro, digo.
Pues Dios vida te dejó;
Que el .Sosea queda comigo.
Sosea
Pues contigo quedo yo,
Dios quede, henn.-mo, contigo.
Ahora quiero ir allá
Adó mi Seilora está,
Contarle corno es venido
Mi Seiíor. Mas, oh perdido I
Si un otro yo ti ene allá,
Todo lo terna sabido.
Ah hombr
Mercúrio
Sv-^sea
.Mi vov: ío'.!»'».
40
COMEDIAS
Mercurlo
Aonde vuelves yliora ?
Sosea
Por Dios no sé onde vo,
Porque .si yo no t^fty jo,
Ni Alcinena es mi Seilora.
Mercurio
Adonde vas'
Sosea
C'.'H mensaje
Del Senor Aniphitrion
Para AlcrnenR.
Mercurio
Adó, salvaje ?
Pues quebraste la omeuaje,
Alii verás tu perdic-ioji.
Yo doyte consejos sanos.
Y porfias otra vez?
Sosea
Altos dioses soberanos I
Pues me no valen las uianoi?.
Aqui me valgau los pie^. í V/f.
Mercurio
Desta arte enseíjau aqui
A hurtar el nombre ageno?
SCEXA vn
Sosea
Ay Diuír. como nie acogi V
O Júpiter alto y bueno.
Cuau cerca la muerte vi .'
Quiérome ir á mi Sfjuor
Contarle qiiantí- hé juizado ;
y cl me dirá de iriatío.
Si yo soy .^u servidor.
Eu que ço3:i rrir- !u' <^.'>rnHdo.
ACTO ni
SCENA í
tTupifer e Ali-uifua
Júpiter
Toda a pessoa disrretu
Terá, Senliora, as-entado.
Que um bem muito (l<'<f judo
Se ha de alcajiçar por dieta.
Para ser sempre estimado.
E quem alcançiido tem
Tamanho contPutamento:
Por conservá-lo coMvem
Qup tome por niiiritimcnto
A fome de tanto bem.
E por isso hei de tomar
Este tempo tào ditoso
Para a frota visitar :
E despois quando tornar.
Tornarei mais desejoso.
Que pois ta o bom captiveiro
Me tèe presa a liberdade,
Eu lhe prometto em verdade
Que tome ainda pritueiro.
Que mo peca a saudade.
Alcmena
Aindaqup eC possa ir
Mais asinha do que creio.
Como hei dou consentir
Que se haja de partir
Na n esma noite que veioV
Júpiter
Forcada he minha ti-roada,
DÊ I.IIZ DX CAMOE»
41
Mítô muito cedo virei :
Porque desque foi checada
A este porto a Arma/Ja,
Ainda a nào visitei.
Alcmena
Pois, Senhor, tào pouco esfais
Com quem vistcí* inda figora?
Faça-se como mandais.
Júpiter
Vós me vereis cá, Senhora,
Primeiro do que cuidais.
SCENA XI
Amphitriujj e Sosea
Amphitriào
Emfim tu, que eatás aqui,
Estavas ja lá primeiro ?
Sosea
Senor, crea que es ausí.
Ampliitrião
Eu nunca entendi de ti,
Qu'eras também chocarreiro.
Sosea
Senor, yo que estoy presente;
No soy Sogea su criado V
Ampliitrião
Creio que nao certamente,
Porque Sosea era avisado,
E tu és mui diftorenlc.
Sosea
Paes, Sefior, si en mi so a é
Que no soy (luien de antes era,
Vuélvome. ^
Amiphitrião
Va para queV
Sosea
Ver se á dicha me quede
Durmiendo por la galera.
Amphitrião
Pois me queres fazer crer
Huma doudice tào rasa,
Mais quero de ti í>aber:
Como nao entraste em casa
D' Alcmena miuhu mulher?
Sosea
Aunque Sosea quisiese,
La verdad no negará :
Aquel yo que allá e.-tn,
No quiso que á casa fuese
Estotro yo. que iba allá.
y con fúria tan crecida
A mi se vino aquri hombre.
Que yo me puse cu huida,
Y ansí le dejé mi nombre,
Por me dejar él la vida.
Amphitrião
Quem seria tào ousado.
Que tanto mal tf^ fizesse V
Sosea
Yo mismo Soscii llamado,
Que á casa era ya Ucgado,
Antes que de acá partise.
Amphitrião
Tu chegaste antes de ti V
Este he gentil disparate.
Sosea
Pues mas le digo daqui,
Que vengo huyendo do mi,
Porque yo mismo no me mate.
Amphitrião
Eráo dous, ou era hum só.
Quem te fez assi fugir V
42
kOMEDlAS
Sosea
Pésetfi quien me parió :
Digo, que era un solo ye :
Mil veces lo hé de decir?
Puede ser que naceria
De aquel liornbre otro alguno,
Como aquel de iní nacia ;
Porque aunque faese él uno,
Por mas de cuatro tenia.
El tenia mi aparência,
Empe r o yo nunca vi
Tal fuerza, ni tal potencia :
Esta sola diferencia
Le tengo hallado de mi.
Amphitrião
Pudeste delle saber
Cujo era?
Sosea
Qnien? aquel yo ?
Tuyo, Seilor, dijo ser,
Amphitrião
Nunca eu tive mais que hum só,
E esse nào quizera ter.
Sosea
Pues, Seiior, si el bien doblado
Te le muestra agora Dios,
Dobe ser de ti aíabado ;
Pues de uno solo criado
Te ha hecho {igora dos.
Amphitrião
Antes para que conheças,
Que cousa he ni:ío s.^rvidor.
Me pezará se assi for ;
Que de tào ruins cabeças,
Quantas mais, t^nto peor.
E ja que sào tào incertos
Teus ditos para se crer ;
Muito melhor deve ser
Que deixe teus desconcertos,
E vá ver minha mulher.
SCENA III
Axcm.ena
Que fado, que nascimento
De gente humana na-cida,
Que d'e&casso e avarento.
Nunca consentio na vida
Perfeito contentamento !
Amphitrião, que mostrou
Hum prazer tÀo desejado
A quem tanto o desejou ;
Na noite, que foi chegado,
Nessa mesma se tornou !
De se tornar tào asinha
Sinto tanto entristecer
O sentido e ;ilma minha
Que certo que me adivinha
Algum novo desprazer.
Mas parece este que vem,
Se nào estou enganada:
j Se elle he, venha com bem,
! Pois que com sua tornada
i Tào tran^foruada me tem.
I
SCENA IV
! AmnliUrlào. Ah mena e Sosea
i
} Amphitrião
I Com que palavra?. Senhora,
i Poderei engrandecer
1 Tào sublimado prazer,
I Como he vêr chegada a hora,
i Em que vos pudesse ver ?
Certo grào contenlamento
Tive (\(^ meu vencimento;
]\Ia8 maior o liei (hj mim,
De me vêr posto no lim
De tào longo apartamento.
Alcmena
Ja eu disse o (pie sentia
})\: I.U17. DR tA>i'>;íj
43
Sosea.
De vinda tilo desejada.
Mas dipa-me todavia :
Como iiílo foi vêr a Armada,
Que me disse hoje este dia?
Amphitrião
Delia venho eu iuda agora
Desejoso de vos ver,
Muito mais que de vencer.
Mas que me dizeis, Senhora.
Que hoje me ouvistes dizer ?
Alcmena
Se nào estava remota,
Certamente que lhe ouvi,
Quando hoje partio daqui,
Que tornava a vêr a frotn.
Porque era forçado assi.
AmphitriáG
Soaea
Seiior, aqui estoy yo.
Ampliitrião
Tu ouve^ tal desconcr-rto V
Sosea
Grandes orejas íjanú,
Pues estando eu casa oyó
Qwien estava alhl nel puerto !
Amphitrião
Quando dizei», que m'ouvistesV
Alcmena
Hoje, quando vos partistes.
Amphitrião
D'or.ao?
Alcmena
Daqui, de me vêr.
Amphitrião
Nunca vi grande prazer^
Que n.lo tenha os cabos trietec.
Quantos males d'improviso
Que causão grandes mudança-^ I
Que mulher de tanto aviso,
Agora minhas lembranças
A tèe fúru de juizo!
Alcmena
QuereÍ3-me fazer cuidar
Que poderia sonhar
O que peios olhos vi?
Nunca vos eu mereci
Quererdos-me exprimentar.
Amphitrião
Postoque he para pasmar
Vêr hum caso tào estranho,
Todavia hei de attentar,
Se poderei concertar
Hum desconcerto tamanho.
Quando dizeis que vim cá?
Alcmena
Esta noite que passou.
Amphitrião
Dae-me algueio que aqui se achou,
Que me visse.
Alcmena
Esse que hi está,
Sosea que comvo.soo andou.
Amphitrião
Sosea, podes -te lembrar,
Que hontem me vistes aqui ?
Sosea
Nunca yo supe de mi
Que me pudiese acordar
De aquello que nunca vi.
Alcmena
Ora eu éreo, e he assi,
Que arabos vindes conjuradofi,
J4
COMEDIAS
Para zombardes tle mi;
Mas eu darei l)oje aqui
Sinaes que sejào provados.
Amphitriâo
Que sinaes pôde alii haver
De mentira tào notória,
Que nem foi, nem pôde ser?
Alcmena
Donde vim em eu a saber
Xovas de vossa victo.-iaV
Amphitriâo
Que novas ?
Alcmena
Dir-vo-las-hei,
Assim como mas contastes:
Que na batalha matastes
Aquelle soberbo Rei.
E tudo desbaratastes:
Não fazendo resistência
X'uma batalha tao crua,
Dando-vos obediência,
Vos derão huma copa sua.
Lavrada por excellenciíi.
Amphitriâo
Sosea he culpado só
Nestes ar^ontecimeutos
Sosea
Seiior. son «'lu-aniamientos,
Porque aquel hombre, que es yo,
Le contaria estos cuentos.
Ampliitrião
Quem he esse, que vos deu
Taes novas, saber queria?
Alcmena
Quem mo per,!;'-u))ta.
Amphitriâo
Quem? Eu !
Quereis-me fazer sandeu ?
Alcmena
Más vós me fazeis sandia.
Amphitriâo
Ora quero perguntar :
Que fiz sendo aqui chegado ?
Alcmena
Puzemo?-nos a cear.
Amphitriâo
E despois de ter ceado?
Alcmena
Fomos -nos ambos deitar.
Amphitriâo
Nunca queira Deos que possa
Achar-se na minha honra
Nenhuma falta nem mossa :
Seja isto doudice vossa,
Antes que minlia deshonra.
Sosea
Bien lo supe yo entender.
Que era esto cncantaciones :
Y ahora me habrá de crer
Que dos 8oseas puede haber.
Pues hay dos Amphitriones.
Alcmena
Com me quererdes tentar
Tào torvada me fizestes.
Que me nào pôde lembrar
Que vos mandasse mostrar
A copa que me hontcm destes.
Ampiíitriâo
Eu ? copa ? Se isso ahi ha.
Que estou doudo cuidarei.
Sosea
Senor. bien ^ruardada está.
DK LUIZ DE CAMÕES
45
Alcmena
Bromia ?
Bromia, de dentro
Senhora.
Alcmena
Dae cá
A copa que hoiitem vos dei.
Sosea
Pues yo pari otro yo,
Y vós otro Amphitrion,
No es rauoha admirucion,
Si la copa otra parió,.
Ni aun fuera de razon.
SCENA V
Amjj/iitruío, Alcmena^ Sosea
e Bromia
Bromia
Eis-aqui a copa vem,
Testimunho da vodade.
Ampliitrião
Uh estranha novidade !
Alcmena
Poder-me-ha dizer alguém
Que o que digo he falsidade?
AmpMtriâo
Sosea, quando hontem cá vinhas,
Poder-ine-ha,'5 ne^irar, ladrão,
Que lhe d«2ste as novas minhas.
E mais a copa que tiulias
Guardada na tua niào ?
Sosea
Senor, que no pude, no,
Ver á mi Senora Alcmena:
Si aqucl <í.«o acá ordeno,
j No lleve ^^ia y-> In pena
i Del n)al que hizo cl otro yo.
Ampliitrião
Ora eu uào sei entender
Tal caso, nem lhe acho fundo :
Com tudo venho a dizer.
Que ha tantos males no mundo,
j Que tudo se pode crer.
Se vos trouxer quejn vos diga
i Como esta noite dormi
Na náo, crereis que he assi ?
Alcmena
[ Nenhuma cousa me obriga
! A que nào creia o que vi.
j Ampliitrião
i Se o Patruo :'.í|ui vier,
i Que he homem d'autoridade.
Crereis o oiiC vos disser?
Alcm.ena
Sim, que ninguém pode haver
Que me negue esta verdade.
i Ampliitrião
Eu estou em concriisào
D'hoje desembaraçar
i Tào enleada que.-^tíío :
i A náo me qnf-ro tornar
I A trazer cá BeltV-rrào.
Sosea, até minha tomada
Fica nesta casa cm vela;
Qu'eu armarei tal cilada
. A quem ma a mim tT-e armada,
Que venha hoje a cahir nella.
SCENA VI
Alcjnp.iia f. Bromia
Alcmena
Oh mulher triste e suspensa
46
COMEDIAS
Da mais alta confusão
Que nunca vio coraçrio I
Em que mereces a oííensa.
Que te faz Amphitriào?
Sempre de mi foi amado.
Tanto quanto em mi se sente.
Co'o coraçíio tào liado,
Que se de mi era ausente.
Nelle o via tígurado.
E pois mulher, que cumprisse
Melhor qu'eu fidelidade,
Não a vi, nem quem me visse
Que dos limites sahisse
Hum pouco da honestidade.
Pois porque he tào maltratada
Innocencia tào singolla?
Que a pena mais apertada.
He a culpa levantada
Ao coração livro d'ella.
Mas ja que minh'alma, está
[ Sem culpa do que padeço,
j Seja o que fOr; queu conheço
Que a verdade me porá
No qu"eu pola ter mereço.
Bromia ?
Bromia
Senhora.
Alcmena
Hi mandar
A Feli»eo, que vá
Meu primo Aurélio chamar;
Que lhe quero perguntar
Que conselho me dará.
E pois que Amphitriào
Vai buscar somente quem
Lhe ajude a sua tenção,
Quero eu ter aqui também
Quem me defenda a razào.
ACTO IV
SC ENA i
Júpiter. Alcmena e Soseu.
Júpiter
Grão desconcerto íT-c feito
Amphitriào com Alcmena !
Qualquer dclles X^q direito:
Eu sou o que venço o preito,
E ambos pagão a peiui.
Quero me ir lá desfazer
Tào trabalhosa demanda.
Por nos tornarmoí: a ver:
Porque, emfim, quem muito quer
Com qualquer desculpa abranda.
E pois ja que a aíieiçào
Ha de mudar tào asinha,
Quero ir alcançar perdão
Da culpa, que sendo minha.
Parece d'Amnhitrião.
Alcmena
Parece que toma cá
Amphitriào, que ja se se hia:
Não sei a que tornará.
Senão se lhe peza ja
Dos enganos que tecia.
Júpiter
Senhora, não haja error
Que tantos males me faça.
Porque se o contrario for,
j Pequeno será o amor,
' Que manencória desfaça.
j E pois com tanta alegria
; De tantos perigos vim,
' Pezar-me-ha se achar no fim,
I Que uma leve zombaria
j Vos possa aggravar de mim.
Alcmena
' Com palavras de deshonra
DK I.LIZ DC CAMOiíS
Nilo se lia de tr:iíHr quojn aina^
Nem zombaria se clutmM,
Pòr exprimentur a honra,
Pôr cm tal periíro a farna.
Bem tive eu para mim,
Que era aquillo experiência.
Júpiter
Errei no que commetti:
Bem me bv.sta a penitencia
De quanto me ; rrependi.
E se fiz algum error,
Com que vosso amor se mude
De quem vo-lo tTe maior:
Não exprimentei virtude,
Mas exprimentei amor.
Que se com caso tào vário
Folguei de vos agastar,
Foi amor accresceiítfir;
Porque ás vezes liuni contrário
Faz seu contrário avisar.
Daqui vem, que a leve múçron
Firmeza e atiei-íòes auírmentn.
Como bem se vé na frágoa,
Onde o fogo se accresceuta,
Borrifando-o com pouca ágoa.
Se hum mal grande se alovantu
N'hum coração que maltrata,
A affeiçào se desbarata;
Porque onde a água he tanta
O fogo d'amor bc mata.
E pois tive tal tonçAo,
Perdoae, Senhora, a culpa
D'e8te vosso coração.
Alcmena
Ni\o se alcança assi perdão
n'erro que não tce desculpa.
Júpiter
Ora pois assi tratais
Quem em tanto risco pôí
O amor que vós negais,
Eu m'ausentarei do vós
Onde maÍ8 rae não vejais.
Que, pois desculpa não tem
Coração que tanto quer,
You-me; que não será bem
Que quem vós não podeis ver.
Que possa mais vér ninguém.
Se íilgum'hora meu cuidado
i Vos der dôr, em que pequena:
I Peço-vos, pois fui culpado,
Que vos não peze da pena
De quem vos foi tão pezado.
E despois que a desventr.ra
Puzer este coração
Debaixo da sepultura.
As letras na pedra dura
Vossa dureza dirío.
Isto vos hei de dizer,
Que m'ensinou minha. dor:
Se quizerdes leda ser,
Nunca experimenteis amor
Em quem vol-o não tiver.
Deixae-me ir; não me tenhais.
Alcmena
Amphitrião, não choreis !
Amphitrião !
JupitTer
Que quereis,
Ou para que nomeais
Homem, que vêr não podeis ?
Alcmena
Amphitrião, s^eu causei
Com manencória pequena
Cousa, com que o magoei;
Eu quero cahir na pena
Dessa culpa que lhe dei.
Júpiter
Sempre serei magoado
Se vossa má condição
Me não perdoa o passado.
Alcmena
Perdoo, e peço perdão
De lhe não ter perdoado.
48
COMEDIAS
Sosea
No le peráouo, Seiíora,
Hasta que coii devocion
Tainbien rae pida perdon;
Que bien se \ne acuerda ahora
Que me lui llarnado ladron.
Sosea?
Júpiter
Sosea
.Seíior.
Jnpiter
Vae buscar
O Piloto Belferruo;
Dir-llie-lias, se desembarcar,
Que me parece razào
►Que venlia hoje cli cear.
Sosea
Si, Seílor, voy á la hor;i.
Júpiter
De uenlunna qualidade
Cure de fazer demora.
E nós vamos-nos, Senhora,
Confirmar nossa amizade.
SCENA II
Mercúrio
Grandes )*evolías vào lá,
Grandes acontecimentos !
Cumpre-mc que esteja cá,
Em quanto meu pae esiá
Em seus desenfadamentos.
Porque vi Amphitriào
Vir da não mui apressado ;
E tendo corrido c andado,
Nào pôde acliMr Belferrào,
Que lhe era bom escusado.
Parece-me «jue virá
Ver 80 lhe abre aqui alguém ;
Mas, porém, se che^a cá,
Ja pode ser que se vá
Mais confuso do que vem.
SCENA III
Mercúrio '' Amphitríào
Ampliitriào
Quiz-nos nossa natureza
Com tal condi cào fazer,
Que já temos por certeza
Xão haver grande prazer.
Sem mistura de tristeza.
Este decreto espantoso.
Que instituio nossa sorte,
He tal e tào rigoroso,
Que ninguém antes da morte
Se pode chamar ditoso.
Com esta justa balança
O fado grande e profundo
Nos refreia a esperança.
Porque ninguém n'este mundo
Busque bem- aventurança.
Eu, que cuidei de viver
Sempre contente de mi
(Jom tamanho ll«^i vencer.
Venho achar mii-.ha mulher
De todo fora de si.
Mas d'outra parte que digo ?
Que s'he verdade o que vi,
E o ijue ella diz be assi.
Virei a cuidar comigo
Qu'eu sou o fora dç'^-mi.
Quero ver se a acho ja
Fora de t;To seccos nós.
Ode
casa
Mercurio
Odeallá?
Quien sõisV
Amphitríâo
Abrf*.
DE LUIZ DE CAMÕES
49
Mercurio
Hauto Dios !
Pues no os conocen acá
Amphitriâo
Oh que gentil desvario ?
Abri -me ora se quizerdes.
Mercurio
No haré, que en mi confio
Que de fuera dormiredes,
Que no comigo, amor mio.
(Que cancion para oir!)
Amphitriâo
Ah Sosea ! zombas de mi?
(Ora quero-me fingir
Que ainda o hSo conheci,
Por ver se me quer abrir)
Ah Senhor, nâo abrireis?
Mercurio
Qué quereis, hombre, por Dios ?
Amphitriâo
Duas palavras de vós.
Mercurio
Tengo dicho mas de seis, »
E ahora me pedis dos?
De fuera podeis dormir,
Que entrar no podeis acá.
Amphitriâo
Ora acabae, abri lá.
Mercurio
Digo que no quiero abrir :
Dije dos palabras ya.
Amphitriâo
Ora sus, bargante, abri.
Mercúrio
; Si no te vuelves de aqui,
j A grau peligro te ofreces.
I Amphitriâo
j Velhaco, não me conheces,
• Ou estás fora de ti?
Mercurio
! Bonito venis, amor.
; Quien sois, que hablais tan osado ?
I Amphitriâo
i Abre, que sou teu Senhor.
i Mercurio
Vuélvase de osotro lado,
i Y conocerlehé mcjor.
Amphitriâo
Sosea moço.
Mercurio
Asi me llamo,
Huélgome que lo sepais;
Empero digo que os vais.
Que Amphitriíío es mi amo;
Vos id buscar quien seais.
Amphitriâo
Pois quero saber de ti:
Eu quem sou?
Mercurio
Y quien sois vós?
Como 03 Uaman?
Amphitriâo
Abri.
Mercurio
A vos os llaman Abri ?
Pues, Abri, andad con Dios.
.)*>
C0MÊDIA8
Amphitrião
Quem hu. que possa soffrer
í"m sua honra tal destroce,
Que para me endoudecer
^íe tre neorado a mulher,
K asrora me nega o moço ?
Mercúrio
Mira el encantador
Como se lastima e Hora.
Y fuese tomar ahora
La forma de mi Senor.
Para enganar mi Senora.
Pues esperad, y no os vais.
Por un espacio poqueiao;
Verná quien representais.
Y él os hará que volvais
El falso gesto á su dueijo.
Amphitrião
Vae, vel'iaco, e chama cá
Esse falsf- feiticeiro;
Que se elle lá dentro está.
Esta espada julgará
Qual de nós he o verdadeiro.
8CENA IV
ÁrnpJdfriâo, S^sei, e BelfeiTao
Belferrâo
< >ra Minguem presumira
Que titdiaí tào pouco sise;
Pois vás achar dimprovifo
Tao bem forjada mentira.
Que me faz cahir de riso.
Htim moço, que alevantou
Tal graça, nunca nasceo:
Porque vos jura que achou
Que ou elle em dons se pcrd/^o.
Oti de hum dous se tornou.
Sosea
Patron, que no burlo, no:
En uno son dos tinidos.
Y en dos cuerpos repartidos:
Yo soy él. y él es yo.
De un padre y madre nacidos.
Belferrâo
Esse tu que láestás.
Táo velhaco he coma ti ?
Sosea
Mas aun p'enso que es mas:
Por dehmte y por detrás
Todo se parece á mi.
Y fue gran merced de Dio.s
Ayuntar á nu' mas uno.
Que peor fuera de nos,
8i Dios me hiciera ninguno.
Que no de uno hacer dos.
Belferrâo
Assi que, se te jDerdeste
Vieste a cobrar mais hum:
Mui gentil conta fizeste.
Pois que perdido soubeste
Que eras dous, sendo nenhum.
Sosea
Pues teneis por abusion
Verdad tan clara, y tan rasa^
Aunque pone admiracion;
<^iera Dios, que allá en casa
No halleis otro Patron.
Amphitrião
O Patrào. que fui buscar.
Parece que vejo vir !
Nào sei quem o foi chamar;
Mas que me ha de aproveitar
Se me nào querem abrir?
Ah Belferrâo!
Belferrâo
Ah Senhor!
Ja sinto que fui cidpado;
Porque quem he convidado,
DE LUIZ DE CAMUES
51
8e tào vagaroso for,
Merece não ser chamado.
Ampliitrião
A vós quem vos convidou V
Belferrão
Sosea, por mandado seu.
Amphitrião
Disso Patrão, não sei eu,
Que Sosea já me negou,
E ja se não dá por meu.
E se alguém vos foi dizer
Qu'eu vos chamo á minha mesa:
Mal vos dará de comer
Quem de todo lhe é defesa
A casa, e mais a mulher.
Belferrão
Quem he esse tão ousado,
Que vos isso faz, Senhor ?
Amphitrião
Sosea, creio que enganado
Por algum encantador,
Que a honra me tèe roubado.
Belferrão
Se elhi aqui comigo vem,
Isso como pode ser?
Amphitrião
Ah ! que a ira que vou ter.
Tão cega a vista me t^m,
Que mo não deixava ver.
Porque razão, cavalleiro,
Não me abris quando vos mando?
Vós fazeis-vos chocarreiro ?
Sosea
Vo Seuor? y como? y cuando V
Amphitrião
Quereis-lo saber primeiro?
Esperae, dir-se-vo.s-ha,
Mas será por outro son.
Sosea
Ah Senor Amphitrion,
Porque matándome está,
Sin delito, y sin razon ?
Amphitrião
Agora que vos eu dou
Me chamais Amphitrião,
E para me abrirdes não.
Belferrão
Este moço em que peccou?
Porque pena sem razão?
Não mais por amor de mi.
Amphitrião
Não, que nào sou seu Senhor:
Eu sou hum encantador.
Não o dizeis vós assi,
Ladrão, perro, enganador?
Sosea
Porque fuy presto á llamar
j Por su mandado ai Patron,
1 Me quiere ahora matar ?
Amphitrião
Quem vo-lo mandou buscar?
Sosea
Si no hay otro Amphitrion,
Vuestra merced sin dudar.
t
Amphitrião
Eu te mandei ?
' Sosea
Si Sonr.r,
Si otro no.
Amphitrião
Outro ha aqui,
Por quem tu zombei de mi ?
O^J
COMEDIAS
Pois SÓ desse encantador
Me quero vingar em ti.
Sosea
Oli Júpiter, á quien bramo
Por su bondad qne me valai
Pues porque Sosea me llamo,
Yo miíimo, y dcspucs mi amo,
Me dieron venida mala !
ACTO V
SCENA I
Jajjiter, Belferrão, Sosea e Amphi-
triào.
Júpiter
Quem he o tào atrevido,
Que aqui ousa de fazer
Tào revoltoso arruido
Com meus moços, sem temer,
Que fui sempre tào temido ?
Quem aqui faz uniiio,
Toma mui grande despejo.
Belferrão
Oh grande admiração !
Vejo eu ourro Amphitrião,
Ou he sonho isto que vejo?
Sosea
2S'o mirais hi eneantacion,
<>Ju.e aquel hizo á tal Seiior?
El que sale. Belfc-ron,
Es el eierto Amphi trion.
Que estotro es encantador.
Sosea ?
Júpiter
Sosea
Mi Seuor, ya vó.
Júpiter
Patrâoj só por vós espero.
Sosea
No os lo dicia yo,
Que este era el verdadero,
Y esse que allá queda, no?
Ampliitrião
Bargante, aonde te vás?
Fazes teu Senhor sandeu?
Pois espera, c levarás.
Júpiter
O lá. tornae por detrás,
Não deis no moço, que he meu.
Ampiiitriâo
Vosso V
Júpiter
:Me«.
Ampliitrião
Pôde isto haver,
Que outrem minhas cousas tome ?
Vós galante haveis de ser,
O que me tomais o nome,
Casa, moços e mulher.
Eu vos farei conhecer
Com quem tendes esse trato.
Júpiter
Sosea ?
Sosea
Senor.
Júpiter
Vae dizer,
Que apparclhem de comer,
DE LUIZ DE CAMÕES
53
Em quanto este doudo mato.
Belferrão
Oh Senhor, nao seja ussim,
Haja em vós concerto algum I
E senào, pois aqui vim,
Farei que só tome em mim
Ob golpes de cada hum.
Júpiter
PatrSo, vossa boa estrelia
Me fará deixar com vida
Quem me não merece telly.
Amphitrião
Nao a tenho eu merecida.
Pois que vos deixo com ella.
Belferrão
O homem que for sisudo,
N'huma tàp grande questão
Ha de tomar por escudo
A justiça, e a razào;
Que estas armas vencem tudo.
E pois essa natureza
Muitos homens faz ignaes,
©ê qualquer de vós sicrnaís
De quem he, para certeza
Da forma que ambos mostrais.
Júpiter
Sou contente de mostrar
Poios sinaes que vos dou,
Que aào estes sem faltar.
Amphitrião
Que sinaes podeis vós dar,
Para que sejais quem sou ?
Júpiter
Estes, que log-o vereis
Se são vãos, sf^ de raiz.
Patrão, vós sede juiz,
Que vós logo enxergareis
Qual mais verdade vos diz.
Belferrão
Eu não sinto onde consista
A cura desta doença,
Que ha tão pouca diíferença,
Que aquelle em que ponho a vista,
P©r esse dou a sentença.
Mas, Senhor, vós que ordenastes
Que o juiz d'isto fosse eu,
Quando se a batalha deu.
Dizei, que m'encommendaste3
Que ficasse a cargo meu?
Júpiter
Dei-vos cargo. qu'estivesse
Toda a Armada a bom recado,
E, se mal nos succedesse.
Que para os vivos houvesse
O refugio apparelhado.
Belferrão
Ora vós quantos dobrões
Esse dia mVntregastes?
Amphitrião
Três mil; e vós os contastes.
Belferrão
Ambos sois Amphitriòes
Pelos sinaes que mostrastes.
Júpiter
Para ser mais conhecida
A tenção d'este sandeu,
Vede est'outro sinal meu.
Que he neste braço a ferida
Que me ElRei Terela deu.
Belferrão
Mostrse, vós. Senhor, também.
Amphitreão
Aqui o podeis olhar.
Belferrão
i Oh cousa para espantar !
54
«OMEDIAS
Que ambos a ferida tem
D"hiiin tamanho, cm hum lugar !
SCENA II
Júpiter, Amphitrião e Sosea
Sosea
Dice mi Seuora Alcmena
Que no se ha de así de eí^tar
(,'on uu bobo á razonar,
Que se le eufria la cena.
Júpiter
Belferrão, vamos cear.
Amphitrião
Belferrão, nâo me deixeis.
Como ? também me negais?
Júpiter
Andae, nao vos detenhais,
Vamos comer, se quereis,
Xâo ouçais hum doudo mais.
Ampliitrião
Ah máos ! assi me ordenais
Offensa tão mal olhada ?
Eu farei, se mesperuis,
Com que todos conheçais
Os fios da minha espada.
Jupiter
As portas prestes fechemos,
Nào entre este doudo cá.
Sosea
De fuera se dormirá:
Entre tanto que cenemos,
Puede pasearse allá.
SCENA III
Amph.itriâo , só
Oh ira para nào crer,
Em que minh'alma se abraza.
Que me faz endoudecer,
E nào me ajuda a romper
As paredes desta casa !
E porque ? Nào tenho eu
Forças, que tudo destrua ?
Pois que tanto a salvo seu.
Outrem aclio que possua
A melhor parte do meu ]
Eu irei hoje buscar
Quem me ajude a vir queimar
Toda esta casa sem pena,
Donde veja ardor Alcmena,
Com quem a vejo enganar.
SCENA IV
Aureho e Mo<j'>
Aurélio
No hallo á mis males culpa.
Para que merezca pena
La causa que me condena.
Moço
Essa está gentil desculpa
Para hoje dar a Alcmena;
Tèe-no mandado chamar.
E elle está tão descuidado !
Aurélio
Moço, queres- me matar ?
Que desculpa posso eu dar
Melhor qu'este meu cuidado ?
Moço
E não há mais que fazer V
Com isso a boca me tapa
Para mais nada dizer ?
Aurélio
Ora dá-me cá essa capa,
E vamos ver o que quer :
Não trates de mais razão,
Pois não ha quem te resista.
Di: LUIZ DE CAMUi:i3
.>,)
Que vejo? outra novação !
Moço
Qti« Le ?
Aurélio
Ou me meute a vista,
Ou eu vejo Auipbitriào.
Moço
Eu ouvi a Feliseo,
Quando cá trouxe o recado,
(Jomo elle era chegado,
E quiz-me dizer que veo
J^^o siso desconcertado.
Aurélio
Isso quero eu ir saber,
Pois que tal cousa se sua.
SCENA V
Aurelw e Amphitrião
Aurélio
Senhor, póde-se dizer
Que a vinda seja mui boa ?
Amphitrião
Kssa não pode ella ser.
Aurélio
Porque não ?
Amphitrião
Porque i)e roubada
.Minha honra sem temor,
E minha casa tomada,
E vossa Prima enganada
Por hum grande encantador.
Aurélio
Isso he certo ?
Amphitrião
E manifesto :
E tudo t^e ja por seu
Adúltero e def^honcrito :
Tee-nie tomado o meu. gesto,
E faz-lhe crer que .sou f^n.
Aurélio
Contais hum caso d'espanto I
E poi.s não podeis entrar,
JDefeudei-uie por em tanto,
Que eu hei de lá chegar
Para vêr quem pode tanto.
SCENA Vi
Amphitrião sò
Se vêr deshonra tão clara
Me não tivera o sentido
Totalmente endoudecido,
Que gravemente chor-ira
Vêr tão grande amor perdido I
E quando vejo a verdade
Do nosso amor e amizade
Desfeita com tanta mágoa.
Enchem- se- me os olhos d'ágoa,
E a alma de saudade.
Asai que quiz minha estrella,
Para nunca ser contente,
Que agora, estando presente
Viva mais saudoso d'ella,
Que quando delia era ausente.
Esta porta vejo abrir
Com Ímpeto demasiado,
Que poderei presumir,
Que vejo Aurélio sahir.
Como homem desatinado?
SCENA VII
Amphitrião, Aurélio^ Belferrò.'»
Aurélio
Oh estranha novidade !
Oh cousa para não crer I
56
COMEDIAS
Belferrão
Venho cego de verdade,
Que DHO puderào soíFrer
Meus olhos a claridade.
Sosea
Oh triste, que vengo ciego
Con raros, y com visiones !
Y destas encantaciones.
Si nuesrra casa arde em fuego.
Hau se de arder mis colchones
Aurélio
Vamos a Amphitriào
Contar-lhe cousas tamanhas.
Amphitriào
Que vai lá? que cousas vào ?
Aurélio
Maravilhas tão estranhas,
Que me treme o coração.
Porque aquelle homem, que assi
Tantos enganos teceo,
Como era cuusa do Ceo,
Tanto qu'eu appareci,
Logo desappareceo.
E em desapparecendo
Com ruído grande e horrendo.
Toda a casa allnmiou ;
E de arte nos infiammou,
Que nos vimos acolhendo
Do raio que nos cegou.
Estes acontecimentos
Xào sào de liumana pessoa.
Vós ouvis a voz que soa ?
Escutac. esíae attentos ;
Vejamos o que pregoa.
Júpiter, de dentro
Amphitriào, qu"em teus dias
Vês tamanhas estranhezas,
Xào t'espantem phantasias,
Que ás vezes grandes tristezas
Parem grandes alegrias.
Júpiter sou munifesto
Nas obras de admiração.
Que por mi causadas são :
Quiz-me vestir em teu gesto,
Por honrar tua geração.
Tua mulher parirá
Hum filho de mi gerado.
Que Hercules se chamará,
O mais valente e esforçado.
Que no mundo se achará.
(.'cm este. teus successores
Se honrarão de serem teus ;
E dar-lhe-hão os.escriptores,
Por doze trabalhos seus,
Doze milhões de louvoVes.
E dessa illustre fadiga
Colherás mui rico fruito :
Emfim. a razão me obriga
Que tão pouco delle diga,
Porque o tempo dirá muito.
FILODEMO
INTERLOCnORES
Filodemo. — Vilardo, seu Moço. — Dionysa.
Solina, sua Moça. — Venadoro.
Monteiro. — Diiriano, Amigo de Filodemo. — Hum Pastor.
Hum Bobo, Filho do Pastor. — Florimena, Pastora.
Dom LusidardOj Pae de Venadoro.
Doloroso, Amigo de Vilardo. — Três Pastore^».
ARGUMENTO
Hum Fidalgo Portuguez, que acaso audava uos Reinos de Dina-
marca, como por largos amores e maiores serviços, tivesse alcançado o
amor de huma filha d'ElRei, foi-lhe necessário fugir com ella em huma
galé, por quanto havia dias que a tinha prenhe. E de feito, sendo che-
gados á costa de Hespanha, onàe elle era senhor de grande patrimó-
nio, armou-se-llie grande tormenta, que sem nenhum remédio, dando a
galé á costa, se perderão todos miseravelmente, senão a Princeza, que
em huma taboa foi á praia: a qual, como cheaasse o tempo de >ieu
parto, junto de huma fonte pavio duas crianças, macho e fêmea ; e nào
tardou muiio que hum pastor Castelhano, que naquellas partes morava,
ouvindo os tenros gritos dos meninos, lhe acudio a tempo que a Màe
ja tinha espirado. Crescidas, emfim, as crianças debaixo da humanidade
e criação daquelle pastor, o macho que Filodemo se chamou á vontade
de quem os baptizara, levado da natural inclinação, deixando o campo,
se foi para a cidade, aonde jDor musico e discreto, valco muito em casa
de D. Lusidardo, irmão de seu Pae, a quem muitos annos sc-rvio sem
saber o parentesco que entre ambos havia. E como de seu Pae não ti-
vesse herdado nada mais que os altos espirites, namorou-se de Diony-
sa, filha de seu Senhor e Tio, que incitada ao que por suas obras e
boas partes merecia, ou porque ellas nada engeitão, lhe não queria mal.
Aconteceo mais, que Venadoro, Filho de D. Lusidardo, mancebo fra-
gueiro, e muito dado ao exercício da cara, andando hum dia no campo
após hum cervo, se perdeo dos seus ; e indo dar em huma fonte, onde
estava Florimena. Irmãa de Filodemo (que assim lhe pozerão o nome)
enchendo huma talha de água, se perdeo de amores por ella, que se
não soube dar a conselho, nem partir-se donde ella estava, até que seu
I^ae o não foi buscar, O qual informado pelo pastor (|ue a criara (que
era homem sábio na Arte Magica) de como a achara e como a criara,
não teve por mal de casar a Filodemo com Dionysa sua Filha, e Pri-
ma de Filodemo ; e a Venadoro seu Filho, com Florimena sua Sobri-
nha, Irmãa de Filodemo pastor; e também pela muita renda que tinha
e de seu Pae ficara, de que elles erão verdadeiros herdeiros. Das mais
particularidadesi da Comedia, fará menção o Auto, que he o seguinte.
DE LUIZ DE CA.VOKS
Õ9
ACTO I
StENA I
Filodemo e Vilar do
Porque ?
Filodemo
Viiardo
Filodemo
Moço Yilardo ?
Viiardo
Ei-lo Tae.
Filodemo
Fallae era má, fallae,
E sabi cá para a sala.
O villáo como se cala !
Viiardo
PoiíN, Senhor, sahi a meu Pae,
Q«e quando dorme nào fala.
Filodemo
Trazei cá Lum;i cadeira :
Ouvis, villào ■?
Viiardo
Senlior, sim.
(Sc m'ella não traz a mira,
Vejo-lh'eu ruim maneira.)
Filodemo
Acabae, villào ruim.
Que moço para Eervir
Quem tèe as tristezas minhas !
Quem pude£í;e assi dormir !
Viiardo
Senhor, nestas manhãzinhas
Nào ha hi senào cahir :
Por demais he trabalhar
Qu'e8te somno se me ausente.
Porque ha dasscntar
Que se nào for com pào quente,
Nào ha át desatferrar.
Filodemo
Ora hi pelo que vos mando,
Villào feito de fermento.
Saht Viiardo
Triste do que vive amando
Sem ter outro mantimento,
Qu'estar só phantasiando !
Só hua cousa me desculpa
Deste cuidado que sigo,
Ser de tamanho perigo,
Que cuido que a mesma culpa
I Me íica sendo castigo.
Vem o moQO. e assenta-se, na cadei-
ra Filodemo, e diz ávojite :
Ora quero praticar
Só comigo hum pouco aqui ;
Que despois que me perdi.
Desejo de me tomar
Estreita conta de mi,
Vae para fora, Viiardo.
Torna cá : vae-me aaber
Se se quer já lá erguer
O Senhor Dom Lueidardo,
E vem-mo logo dizer.
Yai-ge o mo<^o
Ora bem, minha ousadia,
Sem azas, pouco segura.
Quem vos deo tanta valia,
60
COMEDIAS
Que subais fi phantasia
Onde nào sobe a ventura ?
Por ventura eu não nasci
No mato, sem mais valer,
Que o gado ao pasto trazer ?
Pois donde me veio a mi
Saber-me tào bem perder ?
Eu, nascido entre pastores.
Fui trazido dos currais,
E d'entre meus n.iíuruis
Para casa dos Senhores,
Donde vim a valer mais.
E agora logo tào cedo
Quiz mostrar a condição
De ruetico e de villào I
Dando-me ventura o dedo,
Lhe quero tomar a mào !
Mas oh ! qu"isto nào he assi.
Nem sio villàos meus cuidados,
Como eu delles entendi :
Mas antes, de sublimados,
Os não posso crer de mi.
Porque como hei de crer
Que me faça minha estrella
Tào alta pena soíFrer,
Que somente pola ter
Mereço a gloria delia ?
Senão se amor, d'attentado.
Porque me não queixe d'elle,
Tèe por ventura ordenado
Que mereça o meu cuidado,
Só por ter cuidado n'elle.
SCENA II
Vilardo e Filoãemo
Vilar do
O Senhor Dom Lusidardo
Dorme com todo o convento ;
E elle com o pensamento
Quer estar fazendo alardo
De castellinhos de vento !
Pois tào cedo ae vestio,
Com seu damno se confonne,
Pezar de quem me parlo ;
Que ainda o sol não sahio :
Se vem á mão, também dorme.
Elln quer-se levantar
Assi pela manhãzinha I
Pois quero-o desenganar :
Nem por muito madrugar
Amanhece mais asinha.
Filcdemo
Traze-me a viola cá.
Vilardo
(Voto a tal que me vou rindo.)
Senhor, também dormirá.
Filodemo
Traze-a, moço.
Vilardo
Si, virá.
Se não estiver dormindo.
Filodemo
Ora hi polo que vos mando :
Não gracejeis.
Vilardo
Eis -me vou :
Pois, pezar de São Fernando !
Por ventura sou eu grou ?
Sempre hei d'cstar vigiando? Scúie.
Filodemo
Ah Senhora, que podeis
Ser remédio do que peno,
Quão mal ora cuidareis
Que viveis e que cabeis
j N"hum coraçã(; tào pequeno !
! Se vos fosse apresentado
I Este tormento (mti que vi^o,
Creríeis que foi ousado
! Este vosso, de criado
' Torna -se vosso captivo V
Dí: LCIZ de CAMÕES
61
SCENA III
Filodemo e Vilar do
Vilar., o
Ora eu creio, se he verdade
Qu'estou de todo acordado,
Que meu amo he namorado ;
E a mi dá- me na vontade
Que anda iiuni pouco abalado.
E se tal ho, eu da.ria
Por conhecer a donzella
A raçào dMioje este dia ;
Porque a desenganaria,
Somente por ter dó delia.
Havia-lhe perfcuntar :
Senhora, de que comeis ?
Se comeis d'ouvir cantar.
De fallar bem, de trovar,
Em boa hora casareis.
Porém se vós comeis pào.
Tende, Senhora, re.^auardo ;
Qu'ei8-aqui está Yilardo,
Qu'he como hum camaleão.
Por isso, bus, fazei fardo.
E se vós sois das gamenhas,
E houverdes d'attentar
Por mais que por manducar,
Mi cama soa duras penas.
Mi dormir siampre es velar.
A viola, Senhor, vem
Sem primas, nem derradeiras :
Maíí sabe o que lhe convém ?
Se quer. Senhor, tanger bem,
Ha de haver mister terceiras.
E se estas cantieras vessas
Nào forem para escutar,
E quizordes espirar ;
Ha mister cordas mais grossas,
Porque nào possuo quebrar.
Filodemo
Vae para fora.
Viiardo
: Ja venho.
!
j Filodemo
: Qu'eu só desta phantasia
; Me sostenlio e me mantenlio.
Vilardo
Quamanha vista que tenho,
, Que vejo a esíreila do dia I Sahe.
SCENA IV
; Filodemo, cantando
! Adó sube cl pon.-^amionto,
I Seria uaa gloria immeusa
■ Si allá fae:<e quieii lo piensa.
I
! Falia
i
Qual espirito divino
Me fará a mi sabedor
Deste meu mal, se he amor,
Se por dita desatino ?
Se he amor, diga-me qual
Pôde ser seu fundamento,
! Ou qual he seu natural,
I Ou porque empregou tão mal
Hum tâo alto pensamento.
Se he doudice, como em tudo
■ A vida me abraza c queima,
; Ou quem vio n'hum peito rudo
i Desatino tão sisudo,
' Que toma tito doce teima ?
Ah Senhora Dionysa,
; Onde a natureza humana
Se mostrou tào soberana !
O que vòs valeis me avisa,
Mas o qu*eu peno m 'engana.
62
COMEDIAS
SCENA V
Solina e Filodemo
Solina
Tomado estais vós agora,
Senlior, eo'o furto nas màos.
Filodemo
•Solina, minha Senhora,
Quantos pensamentos vãos
Me ouviríeis lançar fora ?
Solina
Oh Senhor, quào bem que soa
O tanger de quando em quando !
Bem sei eu huma pessoa.
Que ha ja huma hora, e boa,
Que vos está escutando.
Filodemo
Por vida vossa, zombais ?
Quem lie ? quereis-mo dizer ?
Solina
Nâo o haveis vós de saber,
Bofe se me não peitais.
Filodemo
L)ar-vos-hei quanto tiver,
Para taes tempes como estes.
Qnem tivera voz dos Ceos,
Pois escutar me quizostes !
Solina
Assi pareça eu a Deos,
Como lhe vós parecestes.
Filodemo
A Senhcra Dionysa
Quor-se ja alevantar?
Solina
Assi me veja eu casar.
Como desjnda eia camisa
Se ergueo por vos escutar.
Filodemo
Em camisa levantada !
Tão ditosa he minha esrrella !
Ou mo dizeis refalsada?
Solina
Pois bem me defendeo ella
Que vos não dissesse nada.
Filodemo
Se pena de tantos annos
Merecer algum favor,
Para cura de meus dannos
Fartae-me desses engannos.
Que não quero mais de Amor.
Solina
Agora quero eu fallar
Neste caso com mais tento :
Quero agora perguntar :
E de siso his vós tomar
Hum tão alto pensamento ?
Certo é minha maravilha,
Se vós isto não sentis
Bem : vós como não cahis
Que Dionysa qn'hc filha
Do Senhor a <}uem servis?
Como ? Vós nao attentais
Os Grandes, de qu'he pedida ?
Peço- vos que me digais
Qual é o fim que esperais
\este caso, em vossa vida.
Que razão boa, ou que côr
Podeis dar a esta affeição ?
Dizei- me vossa íenção.
Filodemo
Onde vist-^s vós amor
Que se guie por rnzão?
Se quereis saber de mi
Que fim, ou de que theor
O pretendo em minha dor :
DE LUZ UK CAM"K.-
r>:;
>S'ou neste amor quero fim.
Sem fim me :^itormente Amor.
Maa vós com gloria fingida
Pretendeis de m'enganar.
Por assi mal me tratar:
Assi que me dais a vida
Somente per me matar.
Solina
Eu digo- vos a rerdade.
Filodemo
\)<i verdade fujo eu,
Porque se o Amor me deu
Pena de tal qualidade,
Aasaz me custa do meu.
Solina
Pólgo muito de saber
Que sois amante tJio fino.
Filodemo
Pois iiiais vos quero dizer.
Que ás vezes no imaginar
Xào ouso de m"csteuder.
Xa liora que imaginei
Xa cauíja de meu tormento,
Tamanha gloria levei,
Que por ouças desejei
De lograr o pensamento.
Solina
Se me vós a mi jurardes
De me terdes em segredo
lluma cousa. . . mas hei medo
De logo tudo contardes.
quem
Filodemo
Solina
Aquelle enxovedo.
Filodemo
Qnril V
Solina
Aqvielle máo pezar,
Que anfhontem comvosco hia.
; Quem se fo.^se em vós fiar !
i O que vos dissp o outro dia,
! Tudo lhe fostes contar.
Filodemo
j Que lhe contei ?
i Solina
I Já lh*esqueceV
Filodemo
i Por certo qu estou remoto.
Solina
Hi, quG sois hum cesto roto.
Filodemo
Esse homem tudo merece.
Solina *
Vós sois muito seu devoto.
Filodemo
Senhora, não hajais medo :
Contae-m'isso. e far-mc-hei mado.
Solina
i Senhor, o homem sisudo.
Se em taes cousas toe segredo,
Saiba que alcançará tudo.
A senhora Dionysa
Crede que mal vos njío quer :
j N;To vos posso mais dizer.
Isto tende por balisa
Com que vos saibais reger.
Qu'em uiulheres, se attentais,
O querer está visibil;
E se bem vos governais,
Nilo desespereis do mais,
Pf.rque. emfim, tudo he possibil.
Filodemo
Senhora, pôde isso ser?
(Á
COMEDIAS
Solina
8i, «jiie tuiío o inundo tem :
Olhaé ivXo o saiba algucm-
File demo
E qne maneira liei de ter
Para crer tamaulio bem?
Solina
Vós, Senhor, o sabereis;
E já que vos descobri
Tamanho se.uiedo aqui.
Uma mereê me fiireis
Em que me vai muito a mi.
Filoãemo
Senhora, a tudo me obrigo
Quanto fôr em minha mào.
Solina
Pois dizei a vosso amigo
Que não gaste tempo em vâo,
Nem queira amores comigo.
Porque eu tenho parentes,
Que me podem bem casar;
E mais que nào quero andar
Agora em boca de gentes
A quem s'elle vai gabar.
Filodemo
Senhora, mal conheceis
O que vos quer J3uriano :
Sabci-o, se o não sabeis,
Qu'em sua alma sente o dano
Do pouco que lhe quereis;
E que outra cousa não quer,
Que ter- vos sempre servida.
Solina
Pola sua negra vida,
Í880 havia eu bem mister.
Filodemo
Vós sois desagradecida !
Solina
Si, que tudo são enganos
Em tudo quanto fallais.
Filodemo
Xão quero que me creais :
Crede o tempo; que ha dous anos
Que vos serve, e inda mais.
Solina
Senhor, bem sei que m^eugano;
Mas a vós, corno a irmão,
Descubro este coração :
Sabei que a Duriauo
Tenho sobeja affeição.
Oihae que Uie não digais
Isto que ^■os aqui digo.
Filodemo
Senhora, mal me {ratais :
Inda que sou sou amigo,
Sabei que vos.^o sou mais.
Solina
E ja que vos confessei
} Aque^^tas fraquezas minha^^,
í Que he tanto que de mi sei;
i Fazei vós nas cousas minhas
O qu'eu nas vossas farei.
Filodemo
Vós enxergareis Senhora,
O qu'eu por v«'>s sei fazer.
Solina
Como me deixo esquecer !
Aqui estivera agora
Fallando té Mnoitecer.
1 Vou- me; e olhae quanto vai
O que passou entre nós.
Filodemo
E porque vos ides vósV
DE LUIZ DE CAMÕES
65
Solina
Porque parece ja mal
Estar aqui ambos sós.
E mais vou vestir agora
A quem vos dá tào má vida.
Ficae-vos, Senhor, embora.
Filo demo
Nessa ide vós, Stmhora,
Que já vos tenho entendida.
SCENA VI
Filodemo, só
Ora se pôde isto ser
Do qu'esta moça me avisa,
Que a Senhora Dionysa,
Por me ouvir, se fosse erguer
Da sua cama em camisa!
E diz que mal me nào quer.
NSo queria maior gloria;
Mas o que mais posso crer,
Que nem para lhe esquecer
Lhe passo pela memoria.
Mas ter Solina também,
Em Duriano o intento,
He levar-me a lenha o vento;
Porque s'ella lhe quer bem,
Para bem vai meu tormento.
Mas foi-se este homem perder
Neste tempo, de maneira,
Por huma mulher solteira,
Que não me atrevo a fazer
Que hum pequeno bem lhe queira.
Porém far-lhe-hei hum partido,
Porqu'ella náo se querelle :
Que se mostre seu perdido,
Inda que seja fingido,
Como lh'outrem faz a elle.
E ja que me satisfaz,
E tanto n'Í6to se alcança.
Dê -lhe fingida esperança:
Do mal que lhe outrem faz,
Tomará n'ella vingança.
SCENA VII
Vilardo, só
Ora boa está a cilada
De meu amo com sua ama.
Que se levantou da cama
Por ouvi-lo! Está tomada;
Assi a tome má trama.
E mais crede que quem canta,
Ainda descantará;
E quem do leito, onde está,'
Por ouvil-o se levanta,
Mor desatino fará.
Quem havia de cuidar,
Que dama formosa e bella
Saltasse o demónio nella,
Para a fazer namorar
De quem nào he igual delia ?
Que me dizeis a. Solina ?
Como se faz Celestina,
Que por nào lhe haver inveja
Também para si deseja
O que o desejo lh'ensina !
Crede que se me alvoroço,
Que a hei de tomar por dama;
E nào será grão destroço.
Pois o amo quer a ama,
Que a moça queira o moço.
Vou-me; que vejo lá vir
Venadoro, apercebido
Para a caça se partir:
E voto a tal, que he partido
Para ver e para ouvir.
; Que he razào justa e rasa
' Que seu folgar se desconte
; Em quem arde como brasa;
Que se vai caçar ao monte.
Fique outrem caçando em casa.
SCENA VIII
Venadoro só
Aprovada antiguamente
6Ç
COMEDLAS
Foi, e milito de louvar
A occupaçâo do caçar,
E da mais autigua gente
Havida por singular.
He o mais contrário officio
Que tèe a ociosidade,
Màe de todo o bruto vício:
Por este limpo exercício
Se reserva a castidade.
Este dos grandes Senliore?
Foi sempre muito estimado;
E he grande parte do estado
Ter monteiros. caçadores,
Como officio qu'he prezado.
Pois logo porque razào
A meu pae ha de pezar
De me ver ir a caçar ?
E tâo boa occupaçjio
Que mal pode causar ?
SCEXA IX
Venadoro e o Monteiro
Monteiro
Senhor, venho alvoroçado,
E maÍ8 com muita razão.
Venadoro
C?omo assi V
Monteiro
Que mo he chegado
O mais extremado cão.
Que imnea caçou veado.
Vejamos que me ha de duv.
Venadoro
Dar- vos -hei quanto tiver:
Mas ha-se d'exprimentar.
Para se poder julgar
As manhas que pode ter.
^r Monteiro
Pode assentar qu'este cão,
Que tèe das manhas a chave.
Bem feito ? Em admiração.
Pois em ligeiro ? He huma ave
Em commetter? Hum leão.
Com porcos ? Maravilhoso.
Com veados ? Estremado.
Sobeja-lhe o ser manhoso.
Venadoro
Pois eu ando desejoso
D'irmo8 matar hum veado.
Monteiro
Pois, Senhor^ como não vae?
Venadoro
Vamos, e vós mui ligeiro
O necessário ordenae;
Qu'eu qurro chegar primeiro
Pedir licença a meu pae.
ACTO II
SCENA 1
Dnriano
Pois não creio eu em S. Pisco de páo, se hei de pôr pé em ramo
verde, té lhe dar trezentos açoutes. Despois de ter gastado perto de
trezentos cruzados com ella, porque logo lhe não mandei o setim para
as mangas, fez de mim mangas ao demo. Não desejo eu de saber, senão
DK LUI8 DB CAMOBS 67
qual é o galante que me sucnedeo; que se vo-lo eu colho a balravento,
eu lhe farei botar ao mar quantas esperanças lhe a fortuna tee cortado
á minha. Ora tenho assentado, que o amor d'e3ta3 anda com o dinheiro,
como a maré cora a lua: bolsa cheia, amor em águas vivas; mas se vasa,
vereis espraiar este engano, e deixar em sêcco quantos gostos andavào
como o peixe na água.
SCENA II
Filodemo e Durianu
Filodemo
O lá ! cá sois vós ? Pois agora hia eu bater essas mouta?, para vêr
se me sahieis de alguma; porque quem vos quizer achar, é necessário
que vos tire como huma alma.
Duriano
Oh maravilhosa pessoa ! Vós he certo que vos prezais de mais certo
em casa, que pinheiro em porta de taverna; e trazeis, se vem á mào,
os pensamentos com os fwcinhos quebrados, de cahirem onde vós sa-
beis. Pois sabeis, ÍSenhor Filodemo, quaes sào os que me mátào? Huna
muito bem almofadados, que com dois ceitis fendem a anca pelo meio;
e se prezão de brandos na conversação, e de fallarem pouco e sempre
comsigo, dizendo que nào darão meia hora de triste pelo thesouro de
Veneza; e gábào mais Garcilasso que Boscão; e ambos lhe sahem das
mãos virgens; e tudo isto por vos meterem em consciência que se nHo
achou para mais o grão C^ipitão Gonçalo Fernandes. Ora pois desen-
gano-vos, que a mór rapazia do mundo farão altos espiritos: e eu não
trocarei duas pescoçadas da minha &c., depois de ter feito a tosquia a
hum frasco, e failar-me por tu e fingir-se-me bêbada, porque o não pa-
reça, por quaiitos Sonetos estão escriptos pelos troncos das árvores do
valle Luso, nem por quantas Madamas La uras vós idolatrais.
Filodemo
Tá, tá, não vades avante, que vos perdeis.
Duriano
Aposto que adivinho o que quereis dizer ?
Filodemo
Que?
Duriano
Que se me me nSo acudíeis com o batel, que me hia meus passos
contados a hereje de amor.
S9 COMEDIAS
Filodemo
Oh que certeza tamanha, o muito peccador nào se conhecer por esse!
Duriano
Mas oh que certeza maior, de muito enganado, esperar em sua opi-
nião ! Mas tornando a nosso propósito, que he o para que me buscais ?
que se he cousa de vossa saúde, tudo farei.
Filodemo
Como templará el destemplado ? Quem poderá dar o que não têe'
Senhor Duriano? Eu quero vos deixar comer tudo: nào pode ser que a
natureza não faça em vós o que a razào nào pode: o caso he este*, dir-
vo-lo-hei; porém he necessário que primeiro vos alimpeis como marme-
lo, e que ajunteis para hum canto da casa todos esses máos pensamen-
tos; porque segundo andais mal avinhado, damnarcis tudo aquillo que
agora lançarem em vós. Ja vos dei conta da pouca que tenho com toda
a outra cousa que nào he servir a Senhora Diouysa; e postoque a des-
igualdade dos estados o nào consinta, eu não pretendo delia mais que
o nào pretender delia nada, porque o que lhe quero, comsigo mesmo
se paga; que este meu amor he como a ave Phenix, que de si só nasce,
e não de outro nenhum interesse.
Duriano
Bem praticado está isso; mas dias ha que eu nào creio em sonhos.
Filodemo
Porque?
Duriano
Eu vo-lo direi : porque todos vós-outros os que amais pela passiva,
dizeis que o amor fino como melão, não ha de querer mais de sua dama
que amál-a; e virá logo o vosso Petrarca, e o vosso Pietro Bembo,
atoado a trezentos Platòes, mais çafado que as luvas de hum pagem
d'arte, mostrando razoes verisimeis e apparentes, para nào quererdes
mais de vossa dama que ve-la; e ao mais até fallar com ella. Pois índa
achareis outros esquadrinhadores d'amor, mais especulativos, que defen-
derão ajusta por não emprenhar o desejo; e eu (faço-vos voto solemne)
se a qualquer destes lhe entregassem sua dama tosada e apparelhada
entre dous pratos, eu fico que não ficasse pedra sobre pedra : e eu ja
de mi vos sei confessar que os meus amores hão de ser pela activa, e
que ella ha de ser paciente, e eu agente, porque esta he a verdade.
Mas, com tudo, vá v. m. co'a historia por diante.
Filodemo
Vou, porque vos confesso que neste caso ha muita dúvida entre os
Doctores: assi que vos conto, que estando esta noite com a viola na
DE LUIZ DE CAMÒE3 69
mào, bem trinta oii quarenta legoas pelo sertão dentro de hum pensa-
mento, senào quando me tomou á traição Solina; e entre muitas pala-
vras que tivemos, me descobrio que a Senhora Dionysa se levantara da
cama por me ouvir, e que estivera pela greta da porta espreitando qiiasi
hora e meia.
Duriano
Cobras e tostões, sinal de terra: pois ainda vos nao fazia tanto
avante.
Filodemo
Finalmente, veio-me a descobrir, que me não queria mal, que foi
para mi o maior bem do mundo; que eu estava já concertado com mi-
nha pena a sotfrer por sua causa, e não tenho agora sojeito para tama-
nho bem.
Duriano
Grande parte da saúde he para o doente trabalhar por ser sào. Se
vos deixardes manquecer na estrebaria com essas finezas de namorado,
nunca chegareis onde chegou Rui de Sande, Por isso boas esperanças
ao leme; que eu vos faço bom que ás duas enxadadas acheis água. E
que mais passastes?
Filodemo
A maior gi-aça do mundo: veio-me a descobrir que era perdida por
vós; e me quiz dar a entender que faria por mi tudo o que vós mere-
cêsseis.
Duriano
Santa Maria! Quantos dias ha que nos olhos lhe vejo marejar esse
amor? porque o fechar de janellas que essa mulher me faz, e outros
enojos que dizer poderia, no sen sino corredores dei amor, e a cilada
em que ella quer que eu caia.
Filodemo
Nem eu não quero que lho queirais, mas que lhe façais crer que
lho quereis.
Duriano
Nào. . . quanté dessa maneira me ofiereço a romper meia dúzia de
serviços alinhavados ás panderetas. que bastem assentar-me em soldo
pelo mais fiel amante que nunca calçou esporas ; e se isto não bastar,
salgan las palabras mas sangrientas dei corazon, entoadas de feição
que digào que sou um Manci:is, e peor ainda.
Filodemo
Ora dais-me a vida. Vamos vêr se por ventura apparece, porque
Venadoro, irmão da Senhora Dionysa, he fói-a á caça; e sem clle fica a
7Q
COMETMkB
casa despejada ; e o Senhor Dom Lusidardo anda no pomar ; que todo
o seu passatempo he enxertar e dispor, e outros exereicios d'agricultura,
naturaen a velhos: e pois o tempo nos vem á medida do desejo, vamo-
nos lá; e se puderdes fallar, fazei de vós mil manjares, porque lhe fa-
çais erêr que sois mais esperdiçado d 'amor que um Braz Quadrado.
Duriano
Ora vamos, que agora estou de vez, e cuido d'hoje fazer mil mara-
vilhas, com que vosso feito venha á luz.
SCENA III
Dyonisa e Solina,
Dionysa
Solina, mana.
Solina
Senhora.
Dionysa
Trazei-me cá a almofada ;
Que a casa está despejada,
E esta varanda cá fora
Está melhor assombrada.
Trazei a vossa também
Para estarmos cá lavrando ;
Em quanto meu pae nào vem,
Estaremos praticando,
Sem nos estorvar ninguém.
Solina
Este he o mesmo lugar
Onde estava o bem logrado,
Tal que de muito enlevado
Se esquecia do cantar
Por se enlevar no cuidado.
Dionysa
Vós, mana, sois mui ruim !
Logo lhe fostes contar
Que me ergui polo escutar.
Eu o disse?
Solina
Dionysa
Eu não o ouviV
Como mo quereis negar?
Solina
E pois isso que releva?
Que se perde nisso agora?
Dionysa
Que se perde! Assi, Senhora,
Folgareis vós que se atreva
A contá-lo lá por fora?
Que se lhe meta em cabeça
Alguma parvoa tenção?
Que faça, se vem á mâo,
Algua cousa que pareça?
Solina
Senhora, nào tce razào.
Dionysa
Eu sei mui bem attentar
Do que se ha de ter receio,
E do que he para estimar.
Solina
Não he o demo tào feio
Como alguém o quer pintar;
E uào se espera isso delle,
Que nao he ora tào moço.
¥é Vossa Mercê asselle
TJB LUIZ DE C AMUES
71
Que qualquer áet^redo nelle
He como huma pedra em poço.
Dionysa
E eu que segredo quero
Co'huin criado de meu pae?
Solina
E vós, mana, lazei-^ fero?
Ao diante vos espero,
Se adiante o caso vae.
Dionysa
O madraço! quem o vir
Fallar de siso co'ella. . .
Então vós, g-entil donzella^
Folgais muito de o ouvir?
Solina
Si, porque me falia nella;
E eu como ouço fallar
Nella, como quem nâo sente,
Pólgo de o escutar.
Só para lhe vir contar
O que delia diz a gente;
Qu'eu nào quero nada delle.
E mais, porque está fallando ?
Nâo m'e3teve ella rogando
Que fosse fallar com elle?
Dionysa
DÍ6se-vo-lo assi zombando.
Vós logo tomais em grosso
Tudo quanto me escutais.
Parvo? que vê-lo nâo posso.
Solina
Ella alli, e o cào co'o osso!
Inda isto ha de vir a mais.
Pois que tal ódio lhe tem,
Fallemos, Senhora, em ai;
Mas eu digo que ninguém
Merece por querer bem
Que a quem lho quer, queira mal.
I Dyonisa
I Deixae-o vós doudejar.
! Se meu pae ou meu irni-j,
1 O vierem a aventar,
! Não ha elle de folgar.
i Solina
I Deus metterá nisso a mio.
j Dionysa
I Ora hi polas almofadas.
i Que quero um pouco lavrar,
j Por ter em que me occupar ;
I Qu'em cousas tào mal olhadas
Nâo se ha o tempo de gastar.
Solina
Que cousa somos mulheres !
Como somos peri irosas !
E mais estas tào viçosas
Qu'estâo á boca qite queres ?
E adoecem de mimosas !
Se eu nâo caminho agora
A seu desejo e vontade ;
Como faz esta Senhora,
Fazem-se logo nessa hora
Na volta da honesiidade.
Quem a vira o outro dia
Hum poucochinho agastada,
Dar no chào com a almofada,
E enlevar a phantasia,
Toda n'outra transformada !
Outro dia lhe ouvirão
Lançar suspiros a molhos,
E com a imaginação
Cahir-lhe a agulha da mao,
E as lagrimas dos olhos.
Ouvir-lhe-heis á derradeira
A ventura maldizer,
Porque a foi fazer mulher.
Então á\z que quer ser Freira ;
E nâo se sabe entender.
Então gaba-o de discreto,
De musico e bem disposto,
72
COMEDIAS
De bom corpo e de bom rosto.
Quanté entào eu vos prometo,
Que nao têe delle dessròsío.
Despois, se vem a attentar,
Diz que he muito mal feito
Amar homem deste gcito ;
E que nào pôde alcançar
Pôr seu desejo em effeito.
Logo se faz tao Senhora.
Logo lhe ameaga a vida,
Logo se mostra nessa hora
Muito segura de fora,
E de dentro está sentida.
Bofe, segundo vou vendo.
Se esta postema vier.
Como eu suspeito, a crescer,
Muito ha que delia entendo
O fim que pode vir ter.
SCENA IV
Duriano e Filodemo
Duriano
Ora deixae-a ir, que á vinda lhe fallaremos ; entretanto cuidarei o
como hei de fazer; que nào ha mór trabalho para limna pessoa que
fingir-se.
Filodemo
Dar-lhe-heis esta carta ; e fazei muito com ella que a dê á Senhora
Dionysa; que me vai nisso muito.
Duriano
Por mulher de tào bom engenho a tendes V
Filodemo
E porque me perguntais isso?
Duriano
Porque ainda hontem entrou pelo a, b, c, e ia quereis que leia carta
mandadeira : fa-la-heis cedo escrever matéria junta.
Filodemo
Nào lhe digais que vos disse nada, porque cuidará que por isso lhe
fallais; mas lingi que de puro amor a andais buscando a temix)s que
façào á vossa tençào.
Duriano
Deixae-me vós a mi com o caso, que eu sei m<*lhor as pancadas a
estes vintes, que vós; e eu vo-la farei hoje vir a nós sem gafas; e vÓ3
entretanto acolhei- vos a sagrado, porque ei-la lá vem.
Filodemo
Olbae lá : fazei que a nào vedes, e fingi que fallais comvosco i
que faz a nosso caso.
DE LUIZ DE CAMÕES
73
Duriano
Dizeis bem. (Yo sigo tristeza, remédio de tristes : Ia terrible pena
mia no la espero remediar. Pois nào devia assi de ser, poios santos
Evangelhos ! mas muitos dias ha que eu sei que o amor, e os cangre-
jos, andào ás vessas. Ora, emfim, las tristezas no me espanten, porque
suelen aflojar cu ando más duelen.)
SCENA V
Solina e Duriano
Solina, com a almofada
Aqui anda passeando
Duriano, e só comsigo
Pensamentos praticando :
Daqui posso estar notando
Com quem sonha, se lie comigo.
Duriano
Ah quào longe estará agora
Minha Senhora Solina
De saber que estou bem fora
De ter outra por senhora,
Segundo o amor determina !
Porém se determinasse
Minha bem -aventurança
Que de meu mal lhe pe;cassc,
Até que nella tomasse
Do que lhe quero vingança ! . . .
Solina
(Comigo sonha por certo.
Ora quero-me mosttar,
Assi como por acerto :
Chegar-me-hei mais ao perto,
Por ver se me quer fali ar.)
Sempre esta casa ha doestar
Acompanhada de gente.
Que nào possa homem passar !
Duriano
A traição vindes tomar
Quem ja feridas nào sente ?
Solina
Logo me a mi parecia
Que era elle o que passeava.
Duriano
E eu mal adivinhava
Que me viesse este dia,
Que ha tantos que desejava.
Se huns olhos por vos servir,
Com o amor que vos conquista,
Se atreverão a subir
Os muros da vossa vista,
Que culpa tèe quem vos vir ?
E se esta minha aíFeiçào,
Que vos serve de giolhos,
Não fez erro na tençào,
Tomae vingança nos olhos,
E deixae o coração.
Solina
Ora agora me vem riso.
Assi que vós sois, Senhor,
De siso meu servidor ?
Duriano
De siso não, porque o siso
Me tòe tirado o amor.
Porque o amor, se attentais,
N'hum tào verdadeiro amante
Não deixa siso bastante ; f
Senão se siso chamais jj
A doudice tão galante.
Solina
Como Deos está nos Ceos, av.d
Que se he verdade o que terao',^,, o
Que fez isto Filodemo.
74
COMEDIAS
Duviano
Mas fê-lo o dém© ; que Deos
Nâo faz mal tanto em extremo.
Solina
Bem. Vóg, Senhor Duriano,
Porque zombareis de mim ?
Eu zombo ?
Duriano
Solina
Eu não monsíauo.
Duriano
S'eu zombo, inda em meu dano
Vejais vós mui cedo a fim.
Mas vóSj Senhora Solina,
Porque me querereis mal ?
Solina
Sou mofina.
Duriano
Oh ! real.
Aasi que minha mofina
He minha imiga mortal.
Dias ha queu imaffino
Qu'em vos amar e servir
Não ha amador mais fino ;
Mas sinto que de mofino
Me fino sem o sentir.
Solina
Bem derivais : quanté a,6r':
A' popa o dito vos veio.
Duriano
Vir-me-ha de vós, porque creio
Que vós fallais dentro em mi,
Como esprito em corpo alheio.
E as8Í que em estas pios
A eahir. Senhora, vim :
Bem parecerá entre nós,
Pois vós andais dentro <jrn mim,
Que ande eu também dejitro em vós.
Solina
He bem : que fallar he eaae ?
Duriano
Dentro na vossa alma, digo,
Lá andasse, e lá morresse !
E se isto mal vos parece,
Dae-me a morte por castigo.
Solina
Ah máo I Como sois malvado !
Duriano
i»ías vós como sois malvada,
Que de hum pouco mais de nada
Fazeis hum homem armado.
Como quem'stá sempre armada ?
Dizei-me, Solina, mana.
Solina
Qu'he isso ? Tirae lá a mâo ;
Oh ! vós sois máo cortezào.
Duriano
O que vos quero m'(-ngana,
Mas o que desejo uào.
Não ha aqui seuào paredes,
As quaes nào fallão, nem vem.
Solina
Está isso muito bem.
BeD> : e vós. Senhor, nào vedes
Que poderá vir alguém ?
Duriano
Que vos custào dous abraçoft ?
Solina
Nào quero tantos de8pej'>s.
Duriano
Pois que farào meus desejos,
Que querem ter-vos no-? braços,
E dar-vos trezentos beijos ?
m: LLI25 DB ca>ioí:s
75
Solina
Olhae que pouca vergonha !
Hi-vos d'hi, boca de praga.
Duriano
Eu nâo sei certo a que ponhíi
Mostrardes-me a triaga,
£ virdes-me a dar peçouha.
Solina
Ora ide rir á feira,
E não sejais dessa laia.
Duriano
Se vedes minha canseira,
Porque lhe não dais maneir.'; V
Solina
Qne maneira ?
Duriano
 da sais..
Solina
Por rninha alma, hei de vos dar
Meia dúzia de porradas.
Duriano
Oh que gostosas pancadas I
Mui bem vos podeis vingar,
Qu'em mim sâo bem empregadas.
Solina
Ao diabo, que o eu dou.
Como me dooo a mão !
Duriano
Mostiao cá, minha aíFeiçâo,
Que Oesa dor me magoou
Dentro no meu coração.
Solina
Ora bi*voã embora asinha.
Duriano
Por amor de mi. Senhora,
Não fareis huma cousinha ?
Solina
j Digo que vades embora.
1 Que cousa ?
Duriano
Esta cartinha.
Solina
Que carta ?
Duriano
' De Filodemo ' ■ -^-'^
A Dionysa vossa arna.
Solina
Dizei, que tome outra dama,
E dê os amores ao demo.
Duriano
Não andemos pola rama.
Senhora, (aqui para nós)
Que sentis dolla com elle ?
Solina
Grandes alforges sois vós !
Pois hi-ihe dizer que appelle.
Duriano
Fallae, que aqui'5tamos sós.
Solina
Qualquer lionesta se abala,
Como sabe que he querida.
EUa he por elle perdida :
Nunca n'outra cousa falia.
Duriano
Ora vou dar-lhe a vida.
Solina
E eu não lhe disse já
76
COMEDIAS
Quanta aííeição lh'ella tem ?
Buriano
Não se fia de ninccuein.
Nem crê que para elle ha
No mundo tamanho bem.
Solina
Dir-vos-hia de mim lá
O que lh'eu disse zombando ?
Duriano
Não disse, por S. Fernando !
Solina
Ora ide-vos,
Duriano
Que me vá !
E mandais que torne V Quando ?
Solina
Quando eu cá vir lugar.
Vo-lo mandarei dizer.
Duriano
Se o quizerdes buscar,
Não vos deve de faltar,
Se não faltar o querer.
Solina
Não falta
Duriano
Dae-me um abraço
Em sinal do que quereis ?
Solina
Tá, que o não levareis.
Duriano
De quanto serviços faço
Nenhum pagar me quereis V
Solina
Pagar-vos-hão algum'hora.
' Que isso a mi também me toca ;
Mas agora hi-vos embora.
Duriano
Essas mãos beijo. Senhora,
Em quanto não posso a boca.
SCENA VI
Solina que traz a almofada,
e Dlonysa
Solina
Já Vossa Mercê dirá
Qu'estive muito tardando.
Dionysa
Bem vos deti vestes lá.
Bofe que estava cuidando
Em não sei que.
Solina
Que será?
Aqui somos (Quanfé agora
Está ella transportada.)
Dionysa
Que rosnais vós lá, Senhora ?
Solina
Digo que tardei lá fora
Em buscar esta almofada.
Que estava ella agora só
Comsigo phantasiando ?
Dionysa
Bofe que estava cuidando
Qu'he muito para haver dó
Da mulher que vive amando.
Que hum homem pode passar
A vida mais occupado :
Com passear, com caçar,
Com correr, com cavalgar.
Forra parte do cuidado.
Mas a coitada
DE LUIZ DE CAMÕES
Tl
Da mulher sempre encerrada,
Que não tèe contentamento,
Nào toe desenfadamento,
Mais que agulha e almofada?
Então isto vem parir
Os grandes erros da gente :
Forão mil vezes cahir
Princezas d'alta semente.
/Lembra -me que ouvi contar
De tantas aftei coadas
Em baixo e pobre lugar,
Que as que agora vão errar
Podem ficar desculpadas.
Solina
Senhora, a muita affeiçâo
Nas Princezas d'alto estado
Não he muita admiração ;
Que no sangue delicado
Faz amor mais impressão.
Mas deixando isto á parte,
Se m'ella quizer peitar,
Prometto de lhe mostrar
Huma cousa muito d'arte.
Que lá dentro fui achar.
Dionysa
Que cousa?
Solina
Cousa d'esprito
Dionysa
Algum panno de lavores?
Solina
Inda ella não deo no fito ?
Cartinha sem sobre-escrípto,
Que parece ser de amores,
Dionysa
Essa he a boa ventura ?
Solina
Bofe que mo pareceo.
Dionysa
E essa donde nasceo ?
Solina
No meu cesto de costura :
Não sei quem m'alli meteo.
Dionysa
Mostrae-me : não hajais medo,
Mana. Eu que vos descbri.. .
Solina
E se ella vem para mi.
Logo quer vêr meu segredo ?
Não a veja : vá-se d'ahi.
Ei-la-ahi.
Dionysa
Cuja será ?
Solina
Não sei certo cuja he.
Dionysa
Si ; sabeis.
Solina
Nào sei, bofe.
Dionysa
Ora a carta mo dirá.
Solina
Pois leia Vossa Mercê.
Abre Dionysa a carta e lê-a
Se para merecer minha pena me
não falta mais que viver contente
delia, já logo ma podeis consentir;
pois que de nenhuma outra cousa
vivo triste, senão por não ser para
tão doce tristeza. Se tendes por
oflensa commetter tamanha ousa-
dia ; por maior a devíeis ter, se
a não comraettesse; que amor acos-
tumado he fazer os extremos á me-
n
COMEDIAS
dida das affeiçoes, e as affeições á
medida da causa delias. Pois logo,
nem o meu amor pode ser pouco,
nem fazer menos: se este nào bas-
tar para consentirdes em meu pen-
samento, baste para me dardes o
que pelo ter mereço; e senão mui-
tas graças ao Ainor, que me soube
dar hum cuidado, que com tê-lo
se paga o trab;ilho de soffrê-lo.
Solina
Quanta parvoíce diz !
Dionysa
Ora muito boa está !
Como vós, mana, sois má !
Kão sejaes vós tão biliz;
Que bem vos entendo já.
Cuja he?
Solina
E eu que sei.
Dionysa
E quem o sabe?
Solina
O demo.
Dionysa
Certo que he de quem temo ;
Que os ditos que nella achei
Sào todos de Filo<iemo.
Este homem, que atrevimento
He este que foi tomar?
Qual será seu fundamento?
Que mil vezes me faz dar
Mil voltas ao pensamento.
Nào entendo d'elle nada.
Mas inda qu'isto he assi
Disso que delle entendi,
Me sinto tão alterada,
Que me arreceio de mi.
Eu inda agora não creio
Que é verdade este amor;
Mas praza a Deus, se assi for,
Que inda este meu arreceio
Se não conrerta em temor.
Solina
Ja vós, ja sedes,
Peixes, nas redes.
Senhora, quem mais confia,
Mais asinha a cahir vem:
Natural he o querer bem;
Que o amor n'alma se cria,
Sem o sentir quem o tem.
Filodemo, no que ouvi,
Tèe-lhe sobeja affeiçâo;
E postoque que o creia assi,
Ou eu sonhei, ou ouvi,
Que era d'alta geração.
Logo na phisionomia,
Nas manhas, artes e geito,
Mostra mui grande respeito:
Nem tão alta phantasia
Não se pòe em baixo peito.
Dionysa
Tudo isso cuido, e vi
Mil vezes miudamente;
Mas estas mostras assi
São desculpas para mi,
E não para toda a gente.
Solina
O seu moço vejo vir
A nós, seu passo contado:
Este he muito para ouvir.
Que diz que me quer servir
D'amores esperdiçado.
SCENA VII
Vilardo, Solina e Dionysa
Vilardo
Senhora, o Senhor seu pae,
Mesmo de Vossa Mercê,
IJE LUIZ DK CAMOEíí
79
Ja lá para casa vae:
Por is80, Senhora, andae.
Que elle me mandou n'hura pé,
E diz que fosse jantar
Vossa Mercê mesmameute.
Solina
E ja veio do pomar?
Dionysa
Oh quem pudera escusar
De comer, nem de ver gentel
(Nenhuma cór de verdade
Tenho do que m'elle manda.)
Vilardo
S'ella pem vontade anda.
Eu lhe emprestarei vontade,
Emprestem'ella a vianda.
Solina
Vá, Senhora, por não dar
Mais em que cuidar á gente.
Dionysa
Irei, mas não por jantar:
Que quem vive «'escontente
Mantem-se de imaginar.
Vilardo
Pois também cá minhas dores
Me não deixão comer pào;
Nem come minha affeiçào
Senão sopadas d'amore8,
E mil postas de paixão.
Das lagrimas caldo faço,
Do coração escudella;
Esses olhos são panella
Que coze bofes e baço,
Com toda a mais cabedella.
SCENA VIII
i O Monteiro, hum Pastor e hum
Bobo.
Monteiro
Perdeo-se por esta brenha
Venadoro, meu Senhor,
Sem que novas delle te^ha:
Queira Deos que inda não venha
Desta perda outra maior.
Contra esta parte daqui
Des pós htim cervo correo,
Logo desappareceo:
Como da vista o perdi,
O gosto se me perdeo.
Eu, e os mais caçadores,
Corremos montes e covas;
Falíamos com lavradores
Deste valle, e com pastores,
Sem licharmos delle novas.
Quero ver nestes casais
Que cobre aquelle arv redo.
Se acharei pastores mais,
Que me dem alguns sinais
Que me possão tornar ledo.
Chama
O dos casaes, o de lá :
Ah pastores, não fallais ?
Pastor
Quein sois, ó lo que buscais ?
Monteiro
Ouvis ? Chegae para cá.
Pastor
Dicid vos lo que mandais.
Bobo
No vayais adó os liamó,
80
COMEDIAS
Padre, sin .saber quien es.
Pastor
Porque ?
Bobo
Porque este es
Aquel ladron que hurtó
El asno dei Português.
Y se vais adó estan,
Os juro ai cuerpo sagrado
De San Pisco, y San Juan,
Que tambien os hurtarán,
Que sois asno mas honrado.
Pastor
Déjame ir, que me llamó.
Bobo
No, por vida de mi madre;
Que si allá vais, rauerto so',
Y desta vez quedo jo,
Sin asno, triste í y sin padre.
Monteiro
Vinde, que vo-lo encommendo,
E em vossas mãos me ponho.
Bobo
No vais, que dijo en comiendo.
Eneomiendoos ai demónio !
Ao Monteiro
Y es?o es lo que andais haeiendo ?
Pastor
Déjame ir adó está,
Que no es cosa que me espant».
Bobo
No quereis sino ir allá ?
Pues echadle pan delante,
Puede ser amansará.
Pastor
Dios 08 guarde! Qué cosa es
Esa porque voceais?
Monteiro
Dar-m'heis novas, ou sinais
D'hum Fidalgo Portuguez,
Se passou por onde andais?
Bobo
Yo so' Hidalgo Português :
Que manda su Seiíoriaí
Pastor
Cállate: oh que néscio es?
Bobo
Padre, no me dejarés
Ser lo qne quisiere un dia ?
Ah Santo Dios verdadero !
Ko seré lo que otros son ?
Digo ahora que no quiero
Ser Alonsico, el vaquero.
Pastor
Cállate ya, bobarron.
Bobo
Ya me callo: ahora un poço
He de ser lo que yo quisiere.
Pastor
Seiior, diga lo que quiere.
Porque este uíochacho «s loco,
Y muero porque no muere.
Monteiro
Digo, que se por ventura
Sabeis o que ando buscando:
Hum Fidalgo, que caçando
Se perdeo nesta espessura
Após hum cervo andando.
Tenho esta parte corrida,
Sem delle poder saber:
DE LUIZ DE CAUOK8
81
Trago a alegria perdida ;
E se de todo a perder,
Perca-se tambcin a vicia.
Porque só polo buscar
'J^enlio trabalhos assas.
Bobo
(Yo 110 puedo callar mas.)
Pastor
(Como no puedes callar?
Quítate allá para trás.)
Cuanto por aquesta tierra,
No siento nueva ninguna.
Monteiro
Oh trabalhosa fortuna!
Pastor
Mas detrás daquesta sierra
Ifallareis, por dicha, alguna ;
C^ue unas choças de vaqueros
Portugueses allí estaii ;
Y ahí muchas veees vau
Cazadores Cavalleros :
Puede ser que lo sabrau.
Monteiro
Quero-me ir lá saber.
Ficae-vos a Deos, pastor.
Pastor
Dios 08 livre de dolor.
EODO
Y á nos dé siempre comer
Pan y sopas, (ju'cs mejor.
Mirad lo que os liotiíico :
En aquel valle, acullá,
Anda pacieudo un burrico,
Hidalgo, manso, y bonico ;
Puede ser que ese será.
Pastor
Calla, y acaba de andar.
Bobo
Ya ando.
Pastor
Quieres callar ?
Bobo, que tan poço sabe !
Bobo
No diceis que ande y acabe '?
Ando, y no quiero acabar.
ACTO III
SCENA I
Florimena, pastorcij com um iwtei
que vai á fonte.
Florimena
Por este formoso prado
Tudo quanto a vista alcança
Tào alegre está tornado,
Que a qualquer desesperado
Pode dar certa esperança.
O monte, e sua aspereza.
De flórea se veste ledo;
Reverdece o arvoredo,
Somente em minha tristeza
Está sempre o tempo quedo.
Junto desta fonte pura.
Segundo a muitos ouvi,
D'altos parentes nasci
Foi com . quiz a Ventura,
Mas uào como eu mereci.
O dia que fui nascida.
Minha màe do parto forte
Foi sem cura fullecida:
E o dia que me deu vida
Lhe dei eu a ella a morte.
Do mesmo parto nasceo
Meu irmào, que entre os cabritos
Comigo também viveo;
Mas, assi como cresceo.
Crescerão nelle os espritos.
Foi-SG buscar a cidade;
82
COMKDIAS
Teve jiiizo e saber;
Eu fiquei, como mulher,
E niio tive faculdade ,
Para poder mais valer.
A hum pastor obedeço
Por pae. que d'outro níío sei;
E, p(>la màe que matei,
A huma cabra conheço,
L)e cujo h^ite mamei.
Mas porém, ja qu'este monte
Me obriga e meu na!?ciu.ento,
Quero, pois quer meu tormento,
Encher a taliia na foiíte
Que co'os olhos accrescento.
Fiúfie que eudie a talha
SCENA II
Venadoro e Fl.orimena
Venadoro
Pois que me vim alongar
Ijos caminhos e da gente,
Fortuna, que o consente,
ÍSe devia contentar
De me ter tHo descontente.
Porém, segundo adivinho,
Por tào espesso arvoredo.
Por tào áspero rochedo.
Quanto mais bunco o caminho,
Tanto mais dVlle me arredo.
O cavallo, como amigo,
Ja cansado me trazia:
]\ías deixou-me todavia;
Que \v.i\\ pudera comigo
Quem conisíigo não podia.
Quero-me aqui assentar
A sombra, nesta hervinha.
Porque canso Ja de andar;
Mas inda a fortuna minha
Nào cansa de me cansar.
Junto desta fonte pura
Nào &ei quem cuido qu'está;
Mas no coração me dá
I Que aqui me guarda a Ventura
I Alguma ventura má.
i Ou ganhado, ou bem perdido,
Faça, emfim, o que quizer,
Qu'eu o fim d'isío hei de ver;
I Que ja venho apercebido
I A tudo quanto vier.
Qh que formosa serrana
A vista se me off*erece !
Deosa dos montes parece;
E se he certo que he humana,
O monte nào a njerece.
Pastora tào delicada,
De gesto tào singular,
Parece-me qu'em lugar
De porguntar pola Cítrad.T,
l'or mim lhe hei de perguntar.
Atéqui sempre zombei
De qualquer outra pessoa
Que atlei coada topei;
Mas agora zombarei
De quem se nào affeiçoa.
Serrana, cuja pintura
'J'anto a alma me moveo,
Dizei-me: Por qual ventura
Andareis n*eata espessura,
^íerecendo estar no CeoV
Florimena
Tamanho inconveniente
Andar na serra parece?
Pois a ventura da gente
Sempre he mui differcnte
Do que, ao parecer, merece.
Venadoro
Tal resposta é manifesto
Nào se parecer co'as cabras.
Pois nào vos parece honesto
Saberdes matar co'o gesto,
Senào inda com palabras ?
No mato tudo he rudeza.
Ha tal gesto e discrição ?
Nào o creio.
DE LUIZ DE CAMÕES
83
Florimena
Porque nSo?
Não suppvirá natureza
Onde falta criaçào?
Venadoro
Ja Ioga nisso, Senhora.
Dizeis, se mio sinto mal,
Que do vosso natural
Nào era serdes pastora.
Florimena
Digo, mas pouco me vai.
Venadoro
I^ois quem vos pôde trazer
A conversação do monte?
Florimena
Perguntae-o a essa fonte;
Que as cousas duras de crer,
Hum as faça, outro as conte.
Venadoro
Esta fonte, que está aqui.
Que sabe do que dizeis?
Florimena
Senhor, mais não pergunteis,
Porque outra cousa ue uii
Sabei que não sabereis.
De vós agora sabei,
O que não tendes sabido:
8e quereis água, bebei;
Se andais por dita perdido.
Eu vos encaminharei.
Venadoro
Senhora, eu não vos pedia
Que ninguém m'encaminhas8e ;
Que o caminho qu'eu queria,
Se eu agora achasse,
Mais perdido me acharia.
Não quero passar daqui ;
E não vos pareça espanto
Qu'em vos vendo nie rendi ;
Porque quando me perdi,
Nuo cuidei de ganhar tanto.
Florimena
Senhor, quem na serra mora
Também entende a verdade
Dos enganos da cidade:
Yá-se embora, ou fique emboia,
I Qual for mais s-.a vontade.
Venadoro
Oh lindíssima donzella,
A quem a ventura ordena
Que me guie como estrella !
Quereis -me deixar a pena,
E levar-me a causa delia?
E ja que vos conjurastes
Vós e Amor para matar-rac.
Oh não deixeis d'escuíar-me !
Pois a "N-ida me tirastes,
Xào me tireis o queixar-me !
Queu, cm sangue e em nobreza
O claro Ceo me extremou ;
E a fortuna me dotou
De grandes bens c riqueza,
Que sempre a muitos negou.
I Andando caçando aqui,
' Após hum cervo ferido,
Pennittio meu fado assi,
Que andando dos meus perdido,
Me venha perder a mi.
E porqu'inda mais passasse
Do que tinha por passar,
Buscando quem m'ensinasse,
Por que via me tornasse.
Acho quem me faz ficar.
Que vingança permittio
A fortuna n"hum perdido!
Oh que tyranno partido.
Que quem o cervo ferio.
Vá como cervo ferido I
Ambos feridos n'hum monte,
Eu a elle, outrem a mi :
84
COMEDIAS
Huma differença ha aqui,
Qu"elle vai sarar á fonte,
E eu nella me feri.
E pois que tào transformado
Me tce vossa formosura,
Hum de nós troque o estado,
Ou YÓs para o povoado,
Ou eu para a espessura.
Florimena
Dos arminhos he certeza,
Se iUe a cova alguém çujar,
Morar fora. antes dentrar:
D*estimar nmito a limpeza
Pola vida a vai trocar:
Também quem na serra mora
Tanto estima a honestidade,
Que antes toma ser pastora.
Que perder a honestidade
A truco de sor Senhora.
Se mais quereis, esta fonte
Vos descubra o mais de mim:
O que ella vio, ella o conte ;
Porque eu vou-mc para, o monte,
Porque ha ja muito que vim.
SCENA III
Venadoro
O linda minha inimiga,
Gentil pastora, esperae!
Pois que tanto amor mo obriga,
Consenti-me que vos siga;
Vá o corpo onde alma vae.
E pois por vós me perdi,
E neste estado Amor pôs
Os olhos com que vos vi,
Pois 03 deixaste sem mi.
Oh nâo os deixeis sf^m vós!
Porque a Fortima me disse
Que nas serras, onde andais.
Em estes extremos tais.
Não era bem que vos visse
Para nào ver de vós mais.
j E pois Amor se quiz ver '
} Da livre vida vingado,
• Em que eu sohia viver ;
i Faça em mi o que quizer,
l Que aqui vou ao jugo atado.
SCENA IV
Dom Lusidardo, o Monteiro e Fi-
lodemo
Lusidardo
Oh Santo Deos verdadeiro,
A quem o mundo obedece !
Meu filho nao apparece.
E que me dizeis, Monteiro?
Monteiro
Digo-lhe que m'eniristece.
Qu'eu corri por esses montes,
Bem quinze léguas, on mais,
E busquei pelos casais,
Por serras, montes e fontes,
Sem vêr novas, nem sinaes.
Toda a gente que levou,
Buscando-o, muito cansada
Pelo mato anda espalhada;
Mas ainda ninguém tornou,
Que soubesse delle nada.
Lusidardo
Oh fortima líunca igual !
Quem me fará sabedor
De meu filho e meu amor?
Que se ho muilo grande o mal,
Muito mór hc o temor.
Quem tolhe que nao achasse
Algum leào temeroso
N'algum monte cavernoso,
Que sua alma fartasse
Em seu corpo tao formoso?
Quem ha que saiba, ou que visse,
Que das montanhas erguidas
Algum monstro nào sahisse.
DE LUIZ DE CÂMUES
85
E com seu sangue tingisse
As hervas nellas nascidas?
Oh fillio ! vai-mȒ a lembrar
Quantas vezes os mandava
Que deixásseis o caçarl
Não cuidei de adivinhar
O que Fortuna ordenava.
Eu irei, filho, buscar-vos
Por esses montes, por hi,
Ou a perder-me, ou cobrar-vos ;
Que morte que qniz matar-vos,
Quero que me mate a mi.
Onde fostes fenecido,
Seja também vosso pae;
Ser-me-ha acontecido,
Como a virote que vce
Buscar outro que he perdido.
Vós 80 haveis de ficai ,
Filodemo, encarregado
Para esta casa guardar;
Que do vosso bom cuidado
Tudo se pôde fiar.
Ide-vos a fazer prestes.
Mandae cavallos sellar ;
Pois achá-lo nào pudestes;
Ir-m'heis buscar o lugar
Onde da vista o perdestes.
SCENA Y
O Bobo com o vestido de VenadorOf
a quem dera o seu.
Canta
Los muchachos dei Obispo
No comen cosa mimosa,
Ni zanca d'arana, ni cosa mimosa,
Talla
De su sayo colorado
Tan lozano me vestiu,
Que yo ya no soy yo,
Ya per otro estoy trocado ;
Que este Bayo me troco.
Oh que asno Português,
Que loco por Fiorimena,
Deseó zamarra agena,
Y dame por enterés
Una zamarra tan buena !
Como yo vi la bobilla
Andar com él en questioneS;
Y parár.sele amarilla,
Díjele: Florimenilla,
Andais en dongolondrones?
El me dijo : Matalote,
Xo tengais dello desmayo.
Y en esto, como un rayo,
Tomóme mi capirote,
Y dióme su capÍRayo.
Capirote, en buena fé,
Si vos, cuando em mi entrastes,
Capisayo vos tornastes,
Que yo por eso cantaré,
Pues ansi me mejorastes.
Canta
Lyrio, lyrio, lyrio loco,
Con qué ? Con capirotada.
Por liablar con la golosa
De amores, mirad la cosa !
Zamarilla tan hermosa.
Que me ha dado tan honrada,
Con qué ? Con capirotada.
Folia
Yo entonces respondi :
Seiíor. dame pan y queso,
Mas despues que lo entendi,
Dije á ella : Dale un beso,
Que él me dió zamarra á mi.
Ahora me mirarán
Cuantos á la eglesia fueren ;
i Y aquellos que no me quieren,
Ahora me rogarán.
Sabeis porque no querré ?
Porque estou ahidalgado ;
Y cuando fuere rogado,
86
COMEDIAS
Cantando re.-ponderé,
Que ya estoy otro tornado.
Canta e baila
Soropicote, picote, mozas,
Ahora cjuiero amores con vosotrai.
SCEXA VI
O Pastor e o Bobo
Pastor
Ilijo Alonsillo.
Bobo
Hijo Aloiieillo
Pastor
Xo me quieres escuehar ?
Bobo
Pues déjame suspirar.
Pastor
Escúcliame aliora, asnillo,
Lo que te quiero mandar.
Vete ai valle de lus rosas,
Y di á Anton dei Lugar
Que si puede acá llegar,
Porque tengo muclias cosas
Que importan para le hablar.
Porque es aqui Uegado
A' este valle un liombre bom'ado,
Mancebo de casta buena.
Que amores de Florimena
Le traen loco y penado.
Dice que quiere casar
Con ella, que su tormento
No le deja reposar ;
Y que venga festejar
Tan diclioso casam) ento.
Bobo
Dicid, padre, tambieu vos,
No quereis casar comigo?
Casemos ambos i^dus.
Pastor
Vé, y haz lo que te digo.
Bobo
Responde, padre, por Dios.
Pastor
Vé luego, y vuelve apresado.
Anda. Xo quieres andar ?
Bobo
Pues que me babeis empujado.
Juro á mi de desandar
Todo cuanto tengo andado.
Pastor
Trabajoso es este insano !
Nunca liace lo que quereis.
Bobo
Ora no os apasioneis,
Mi padrecico lozano :
Que burlaba, no lo veis ?
Vete dabi.
Pastor
Bobo
Ilémc aqui.
Pastor
Vé donde te dije.
Bobo
Ya vengo.
Oh que padrasto que tengo,
Que asi me manda por ahi,
Siendo camino tan luengo !
1>K LUIZ DK OA>;uKá
«7
ACTO, IV
SCENA 1.
Dionysa e Solina.
Dionysa
Oh Solina, minha auniga,
Que todo este coração
Tenho posto em vossa mào ;
Amor me manda qne diga,
Vergonha me diz que nào.
Que farei V
Como me descohrirci ?
Porque a tamanho tormento
Mais remédio lhe nào sei,
Que entre-la lo a'o soírrimento.
Meu pae muito entristíicido
Se vai pela serra erguida,
Ja da vida aborrecido,
Buscando <> fillio perdido.
Tendo a filha cá perdida !
8em cuidar.
Foi a casa encommendar
A quem destruir lha quer :
Olhae í(Tio gentil sjsber,
Que vai comigo deixar
Quem me nào deixa viver.
Solina
Senhora, em tanto desi;òsto
Nào posso meter a mào ;
Mas como diz o rifào,
Mais vai vergonha no rosto,
Que mágoa no coraçào.
E bofe, se eu tanto amasse,
E viflse tempo c saxào,
Sem seu pae, som seu irmào,
Que a nuvom triste tirasse
De cima do coracào.
j Dionysa
! Ah mana I qiie tenho ukhIo,
\ Que s'eu em tal consentisse
■ Que h'go o mundo o sentisse,
I Porque mnica houve segiedo.
Que, emíim, se nào descobrisse.
I Solina
: Se en tantas dobras tivesse
1 Como quiuitas houve erradas,
' Sem que o mundo o soubásse,
I A' fé qu'eu enrirju<;cesse,
E fosse das mais bonrad.is.
Dionysa
i Sabeis que tenho em vontade ?
j Solina
I Que podeis. Senhora, ter?
i Dionysa
; Fallar-lhe, só para ver
' Se he por ventura verdade
I O que dizeis que me quer.
. j Solina
j Bofe, mana, dizeis bem,
E eu o mandarei chamar,
j Conio para lhe rogar
! Que hum annel, que lá me tem,
• Que mo mande concertar.
I
j Dionysa
\ Dizeis mui bem.
Solina
Vou me lá
I Chamar o seu moço á sala*,
I E s'esle parvo vem cá,
} Com elle hum pouco rirá,
88
COMEDIAS
Que sempro atriores me fala.
Vilardo, moço?
SCEXA 11
Yilardo e Soliua
Vilardo
Quem clKima?
Solina
Vera cá, moço; eu te cliamo.
Qn'he de teu amo ?
Vilard.0
Ah qui dama I
Per,£i'initais-me por mon amo,
K nào por lium que vos ama ?
Solina
¥^ quem he esse amador.
Que quer ter comigo passo?
Será ellc algum madrasso ?
Vilardo
Eu sou o mesmo, quo o amor
Me quebra pelo espinhasso.
E irais vós sabei de mi,
Se eu a dizê-lo me alrevo,
Que desque osses olhos vi,
Que yo m como, ui !)el)0,
Ni liago vida siu íi.
E mais para namorado
Nào sou ora tào madraço.
Solina
Sois muito desmazelado.
Vilardo
Mas jiutes, de delicado
Caio pedaço a pedaço.
E maia eu soíFrer ijuo posso
Quo riic façais tnnto fero,
Qu'o3tou ja posto no osso,
Porque sou vosso e revosso,
Por vida de quanto quero.
Solina
Feros está cheia a nia.
Ora estou bem aviada !
Vilardo
Cupido, por vida tua.
Que a não faças tào crua,
Pois que te nào faço nada !
Amor. Amor, mas te pido,*^
Que quando se for deitar,
Que le digas ai oido:
Devieis-vos de lembrar
Neste tempo de hum perdido.
Solina
E tu ja fazes coprinhas?
Aiuda tu trovarás?
Vilardo
Q:iem eu ? Por estas barbinhas,
Que se vós virdes as minhas,
Que digaia que nào sào más.
Solina
Ora, pois me quereis bem,
Dizei-me huma.
Vilardo
Ei-la aqui;
E veja o saibo que tem;
Porque esta írovinlia assi,
Ssúba qu'lie troAa do assem.
Trova
Passarinhas, que voais
Nesta manliàa tào serena,
Sabei que só minha pena
Pôde encher mil cabeçais.
Solina
O rifão está salsrado.
DD LUIZ DE CAMUE3
,«9
Essa pena te dou eu ?
Vilar do
Vós e Amor, que de malvado,
Me toe melhor empennado,
Que nenhum virote seu.
P«is se me ouvireis cantar I
Solina
E tu és também cantor ?
Vilardo
Canto melhor que hum açor.
Quereis que vos venha dar
Musiqueta de primor,
E que vos maude tanger
Muito melhor que ninguém ?
Solina
Ja isso quizera ver.
Vilardo
Qnorer-me-heis, se o eu fizer,
Algum pedaço de bem ?
Solina
Querer-te-hei trinta pedaços.
Vilardo
E esse querer dará fruito.
Que me tire destes laços V
Solina
E que fruito ?
Vilardo
Dous abraços.
Solina
Esse fruito custa muito,
Vilardo
Esse he o amor qu'cm vós lia ?
Pezar de minha mâe torta í
Solina
Ora hi, chamae logo lá
Vosso amo que venha cá.
Porque he cousa que importa.
Vilardo
Logo ?
Solina
Logo nessas horas.
Vilardo
Nao estarei aqui mais V
Solina
Nào. Ainda ahi estais ?
Vós haveis mister esporas.
Vilardo
Irei, porque me mandais.
SCEXA III.
O Paafor^e Venadoro com elh: afei-
to Pastor.
Pastor
Mms de un mez qí ya pasado
Que en esta sierra ;in(hiis ;
Y es caso mal mirado
Que andeis guardando ganado
Por una que tanto amais.
Y si os determinais
En querer casar con ella,
Juro á mi que nada errais ;
Y'^ si eso es para habella,
Fn vano cabras guardais.
Y'a Tne distes vnestra fé
(Sábenlo estas tierras todas) :
Yo con ella me engane.
Que lufigo mandar llamé
Quien festojase las bodas.
Y agora dicia con pena.
Que es dura cosa casar :
90
COMKDIAS
Pues volveos nora buena,
Que no babeis de enganar
Con palabias Florimena.
Venadoro
Qne se lui de ter coraçíio
Para taniiinlio temor?
Que em mim pegando estão.
De huma parte a razào,
E d'outra parte o Amor.
Também vejo que perdella
Será minha perdição;
Que bem me diz a aíteieito,
Que pouco iaco por e!la.
Pois nào desfaço em quem suo.
Pastor
Dígoos. si por bajeza
Dicis que no os conviene,
Darns hé una certeza,
Que en • angre y en nobleza.
Tanto como vos la ticne.
Venadoro
Pastor, digo que daqui
Farei tudo que quizerdes ;
E se mais quereis de mi,
Digo que vos dou o si
Para tudo o que quizerdes.
Pastor
Dios os de su bendicion ;
Y pues que casais con ella,
Yo os afirmo en conclusion,
Que aun de vos y mas delia
Verná gran gí-neracion.
Yo mti voy por elia, liijo,
Tomadla así mal compuesta ;
Verná quien liaga la fiesta ;
Que en placer y rcgocijo
Nos festfje esta floresta.
SCENA IV.
Venadoro *o
O ribeiras tao formosas,
Valles, campos pastoris,
Porque vos nào revestis
De novas flores e rosas,
Se minha gloria sentis ?
Puvqne nào seccais, abr»>lhos ?
E vó-, água, que regando,
Os olhos his alegrando.
Correi, que também meus olhos
D'alegrcs estào manando.
Ah pastora, etn quem espero
Poder viver descansado !
Comtigo guardarei gado,
Que ja eu sem ti nào quero
Nenhuma alteza d'estado.
Diga o que quizer a gente,
Tudo terei nMnima palha,
Porque cMk claro e evidente
Qne nào ha honra que vaiha
Contra a vida descontente.
SCENA V.
Três Pastores hailaiido, e cantando
de ferreiro, niante do Pastor, que
traz Florimena.
. Pastor
Pues el amor os oblij^a
A' que hagais tan buena liga,
Tomando á Dios por testigo.
Daqui os la entrego, amigo.
Por muger y por amiga.
Venadoro
Consentis nisto, Senhora ?
Florimena
Senhor, em tudo consente.
DF. LUIZ DE CAMUES
*
Venadoro
Oh grande contentamento !
Florimena
Saiba que nunca íégora
Lhe houve inveja ao tormento.
Pastor
Así lo dices, bobilla ?
Oh ! mala dolor os duela !
Pêro no es maravilla
Quien consiente ansí la silla,
Consienta tambien la espuela.
SCENA YI
Tornão a bailar e cantar, e acaha-
do, entra D. Lvsidardo, e o Mon-
teiro, que andão em busca de Ve
nadoro.
Lnsidardo
Três dias haja qne ando
Por esta larga f^speesura
A Venadoro buscando ;
E o que delle vou achando
He como quer a Ventura.
Monteiro
Senhor, cuido que lá vejo
Huns lavradores cantar.
Lusidardo
Hi diante perguntar.
Monteiro
Cumprido he seu desejo,
Se a vista nâo m'en£ranar.
Como assi ?
Lusidardo
Monteiro
EUe nào vê
Aquelle pastor louçào
Com huma moça pela mão?
Se Venadoro nao he,
Nem eu o Monteiro sâo.
Pastor
Quien veo ai lá asomar.
Que se viene á nuestras bodas ?
Bobo
Xo los dejemos llegar,
Que nos vernan á roubar,
Juro á mi, las migas todas.
Lusidardo
Oh Venadoro, meu filho!
Es tu este ?
Venadoro
Tal estou,
Que cuido que este não sou.
Lusidardo
Certo que me maravilho
De quem tanto te mudou.
Como estais assi mudado
No rosto e mais no vestido !
Venadoro
Ando ja n'outro trocado,
Tanto, que fiquei pasmado
! De como fui conhecido.
; E se Vossa Mercr vem
! Para me levar d'aqui,
Mais ha de levar que a mi;
E ha de ser quem me tem
Todo transformado em si.
Bobo
Eso porque lo entendeis?
Por las migas por ventura?
Voto á tal no llevareis :
Por mas y por mas que andeis
No hareis tal travesura.
92
COMEDIAS
Venadoro
Esta formosa donzella
Em mi teve tal poder.
Que folguei de me perder ;
Pois, emíim, vim achar nella
O que não cuidei de ser.
Tanto em mi pode este amor,
Que a tenho recebida;
E se o erro grave for,
Aqui quero ser pastor :
Deixe-me ter esta vida.
Lusidardo
He certo tal casamento ?
Venadoro
Tenha-o por cousa segura.
Lusidardo
Oh grande acontecimento !
D'est'arte sabe a ventura
Aguar hum conteutameato !
Pastor
Olgame, Seííor, á mi,
Como hombre sábio, discreto,
Porque acaeció así,
Y lo que supo hasta aqui
Lo puede tener por cierto.
Muchos aiios son corridos
Que en esta fuente abicrta,
En estos valles floridos
Hallé dos niíios nascidos,
y á su madre casi muerta.
Los ninos chicos crie,
(Y desto cierto me nrreo)
Y á la madre sepulte-,
Y' despues uu gran deseo
De saber esto tome.
Como yo fuese enseSado
De chico á la mágica arte
Por mi padre, que es finado ;
Muy conoscido y nombrado
1 Soy por tal en toda parte.
1 Y'^0 con yervas de la sierra,
Animales y otras cosas
Haré, si el arte no se yerra,
Que desciendan á la tierra
Las estrellas luminosas.
Soy, en fin, certificado
Que la madre de los dos
Fué Princeza de alto estado,
Y por um caso nombrado
La trajo á esta tierra Dios.
El macho, como creció,
Deseoso de otro bien,
A' la Corte se partió :
La hembra es esta por quien
Yuestro hijo se perdió.
Y' si mas quiere, Senor,
De mi arte, prestamentc
Dello le haré sabedor;
Mas ha de ser de tenor
Que no lo sepa la gente.
Lusidardo
Mas vamos-nos, se quereis.
Que nào soffro dilação,
A minha casa, e entào
Lá disso me informareis,
Que caso he de admiração.
E vós, filho, não cuideis
Que a gloria de vos achar
Não he tanto d'estimar,
Qu'em qualquer 'stado que esteis,
Não folgue de vos levar.
DE LUIZ Di: CAMUKS
03
ACTO V
SCENA I
Solina, Dionysa e Filodemo
Solina
Eis Filodemo lá vem :
Asinha acudio ao leme.
Dionysa
Isso he de quem quer bem ;
Mas não sei se o vio alguém,
Porque quem espera teme.
Agora me quizera eu
Daqui cem mil ieguas ver.
Filodemo
Folgara eu assi de ser,
Porqu'estc cuidado meu
Fora mais de agradecer.
Que quando por accidente
A Fortuna desastrada
Vos apartasse da gente
N'um deserto, onde somente
Das feras fosseis guardada ;
Lá por ferro, fogo e íigoa
Buscar minha morte iria ;
A voz ronca, a língua fria,
Tamanho mal, tanta mágoa
As montanhas contaria.
Lá, mui contente e ufano
De mostrar amor lào puro,
Poderia ser que o dano.
Que nào move hum peito humano,
Que movesse hum monte duro.
Dionysa
Nesse deserto apartado
De toda a conver.saçâo
^lerecieis degradado
Por justiça, com pregão
Que dissesse : For ousado.
E eu também merecia
Metida a grave tormento.
Pois que, como náo devia,
Vim a dar consentimento
A tào sobeja ousadia.
Filodemo
Senhora, se m.e atrevi,
Fiz tudo o que Amor ordena ;
E SC pouco mereci,
Tudo o que perco por mi,
Mereço por minha pena.
E se Amor pôde vencer.
Levando de mi a palma,
Eu nào lho pude tolher ;
Que os homens nào tce poder
Sobre os affectos da alma.
E ainda que pudera
Resistir contra o mal meu,
Saiba qp.e o nào fizera 5
Qae pouco valera eu,
Se contra vós me valera.
Nào deve logo ter culpa
Quem se vencco d'armas tais :
Assi que n'isto, e no mais,
Tomo por minha desculpa
Vós mesma que me culpais.
E se este atrevimento
Com tudo fór de culpar,
Acaliae do me matar ;
Que aqui tenho hum soffrimento
Que tudo i)óde passar.
E se esta penitencia,
Que faço em me perder.
Algum bem vos m.erecer,
Fique em vos.-a consciência
O que me podeis dever.
Que dizeis a isto, Senhora?
94
COMEDIAS
Dionysa
En, que vos posso dizer?
Já nào tenho em rui poder.
Segundo me sinto agora,
Para poder responder.
Respondei-llie vós, Solina,
Pois que a vós me entreguei.
Solina
Bofe nJio responderei :
Veja ella o que determina.
Dionysa
Xào o vejo, nem o sei.
Solina
Pois eu também nito sei nada.
Dionysa
Porque ?
Solina
Do que eu fizer,
8e despois se arrepender.
Dirá qu'cu fui a culpada.
Dionysa
Eu só quero a culpa ter.
Solina
Senliora, por não errar,
Nào quero que fique em mim.
Esla noite no jardim
Ambos podem praticar
Como isto venha a bom fim.
Lá poderão ajustar
Entr'ambos o parecer ;
Qu'eu nào m"hei nisso úq achar,
Que nào quero temperar
O que outreni ha de comer.
Dionysa
Vós vedes a torvação,
Que lá nessa casa vae?
Dolina
Dá-me cá no coraçào
Que he vindo o Senhor seu pae
Com o Senhor seu irraào.
Dionysa
Filodemo, hi-vos embora,
Fallae despois com Solina.
Solina
Vamos-nos também, Senhora,
Receber seu pae lá fora;
Nào venha sentir a mina.
SCENA ir
\ilardo o Doloroso, que vem dar hum descante a Solina com os Músicos
Vilardo
Assi que te contava. Doloroso, distas em que sempre andao rugin-
do as sedas.
Doloroso
Avante, que bem sei que o nào dizeis polas sedas de Veneza.
Vilardo
Ja sabeis que esta nossa Solina he tào Celestina, que nào ha quem
a traga a nós.
DE LUIZ DE CAMÕES ' ^
Doloroso
Logo parece moça brigosa, que por dá cá aquellas palhas, dará e
tomará quatro espaldciradas; e ao outro dia quem ha de cuidar que
huma mulher de sua arte ha de querer bem a hum parvo como a ti?
porque Cítas taes sào como homens sitíudo.s; se de noite se achào em
algum arruido. onde possào fugir sem serem conhecidos, facilmente o
fa?em; e ao outro dia f^uem ha de cuidar que hum tào honrado havia
de fugir? Outros dizem: bem pode ser, porque noite e.scura he capa de
judeus e de envergonhados.
Vilar do
Mui gentil comparação he está. Mas assi que te dizia, o outro dia
assi zombando lhe prometti de lhe dar huma musica, e ja chamei ou-
tros dous meus amigos, que logo hào de vir aqui ter comnosco.
Doloroso
Que tal he a musica que determinas de lhe dar? Níto seja de siso;
porque será a maior parvoíce do mundo, porque nào concerta com a
parvoice que tu finges.
Vilar do
A musica nào he senão das nossas; mas faço-te queixume, que nem
com hum câo de busca pude achar umas nesperas por toda e. ta terra.
Doloroso
Nem as acharás senào alugadas; mas eu não sou de opinião que teus
amores te custem dinheiro. Ora ja 1 'i apoarecem os outros companheiros,
e eu também ajudarei de telhinha ou de assovio; e vem-me isto á popa,
por que daqui iremos á porta da minlia padeirinha, porque ando com
ella ii'hum certo requerimento.
Vilardo
Vossas Mercês vem ao próprio; boa seja a vinda. As guitarras vem
temperadas ?
Doloroso
Tudo vem como cumpre: mandae vigiar a justiça entretanto.
Vilardo
Ora sus: fazei fazei como se temperásseis cabeçs de pescada com
seu ligado e bucho, e canada e meia, que nunca meu pae fez tamanho
pasto na. sua Missa nova.
96 COMEDIAS
Xesie pasòO se dá a musica com todos citicdro, hum tange guitarra^ otdro
pentem, outro telliinha, outro canta cantigas muito velhas, e no melhor
diz Vilardo:
Eátae ussi quedos, que eu sinto quem quer que be.
Doloroso
Justiça, pelo corpo de tal I Ora sus: aqui não ha outro valhacouto
que uos valha que por os pés ao caminho, e mostrar-lhe as ferraduras.
SCEXA III
lílonteiro s6
Como he gracioso este mundo, e como he galante ! E quào gracioso
seria quem o pudesse ver de palanque com carta d'alforria ao pesco-
ço, porque nào podessem entender n'elle ?iíeirinhos, Ahnotacés da lim-
peza, trabalhos, esperanças, temores, com. toda a outra cabedella de en-
fadamentos ! Ora notae bem de quantas cores teceo a Fortuna esta
manta d'Alcntejo: perdeo-se Veuadoro na caça, eis a casa toda en-
volta como rio: o pae enfadado, a irmà triste, a gente desgostosa; tu-
do, emíim, fora do couce; e o galante aposentado nos matos com tra-
jos mudados como camaleão, decepado dos pés e das màos, por huma
serranica d'Alentejo: e veio acaso a sahir de maneira tora da madre,
que a recebeu por mulher; e rapa óleo e chrisma de quem he, e renega
todas as lembranças de seu pae; pois tanto tomou ao pé da letra o que
Deus disse: Por esta deixarás teu jjae e mãe. E attentae isto por
me fazer mercê: cuidareis que este caso era soliis ijeregrinus: sabei que
os nào dá a fortuna senào aos pares, como quedas. Dionysa mais mimosa
e mais guardada de seu pae que bicho de seda, moça sem fel como
pombinha, que nos annos não tinha feito ainda o enequim: mais for-
mosa qu- huma manha de S. Joào, mais mansa que o rio Tejo, mais
branda que hum soneto de Garcilasso, mais delicada que hum pucari-
nho de Natal; ernfim, que por meia hora de sua conversação se poderá
soíFrer huma pipa com cobra e gallo e doninha, como a parricida, com
tanto que dissesse o prcgào o porque; porque vos nào íieis em casta-
nhas (nào sei se diga, se o cale, que de magoado me trava pola manga
a falia da garganta; ma.^, com tudo, nào ha quem se tenlia) seu pae a
achou esta noite no jardim com Filodemo, mais arrependida do tempo
que perdera, que do quo alli jDerdia: eu, coitado de mi, que meta os
dentes nos cabeçaes se desejar ave de penna.
Ti ri ri, ti ri rao.
DE LUIZ DE CAMÒF.g S7
SCENA IV
Duriano e o Monteiro
Duriano, como cantando
Monteiro
Que he isso, Senhor Duriano? Que descuidos sào esses? Onde he
p4 à ida agora?
Duriano
Vou assi como parvo, porque o melhor he nào saber homem nada
de si.
Monteiro
Que dizeis a vosso amigo Filodemo, que assi se soube aproveitar
do tempo que ficou só em casa ?
Duriano
Eu que hei de dizer? Digo que descreio desta minha capa. se nilo
he isso caso para sahir com elle u desafio.
Monteiro
Porque?
Duriano
Porque nâo basta que lhe dê a Fortuna gostos tào medidos sobre
o funil, que lhe pòe nos braços Diouysa, a mais formosa dama que
nunca espalhou cabellos ao vento, senào ainda para o assegurar em
sua boa ventura, lhe vem a descobrir, que he filho de nào sei quem,
nem quem uào.
Monteiro
Esses sào outros quinhentos. Cujo filho dizem que he? que eu ouvi
já sobre isso nào sei que fábulas.
Duriano
Dir-vo-lo-hei ; pasmareis, que nào he menos que Priucipe, e peor
ainda. Nunca ouvistes dizer de hum irmão do Senhor Dom Lusidardo
que aggravado dei Rei, se foi para os Reinos de Dinamarca?
Monteiro
Tudo isso ouvi já. ♦
7
98 COMEDIAS
Duriano
Pois esse galante, em satisfação de muitas mercês que ElRei de
Dinamarca lhe íizera, meteo-se d'amores com huma sua filha, a mais
moça •, e como era bom justador, manso, discreto, galante, partes que
a qualquer mulher abalào, desejou cila de vêr geração delle ; senào
quando, livre-nos Deos ! se lhe começou d'eneurtar o vestido; e porque
estes sirgos nào se desistem em nove dias, senào em nove mezes, foi-
Ihe a elle então necessário acolher-se com ella, porque não colhessem a
ella com elle : acolheu-se em huma galé ; e vede la Princeza em huma
galera nueva, con el marinero á ser mariuera. Finalmente, vindo nave-
gando todo esse Oceano Germânico, bancos de Fraudes, mar d'Ingla-
terra, e trazidos á costa d"Hespanlia, mio os quiz a Ventura deixar gozar
do repouzo que nella buscavâo : deo-llie subitamente tamanha tormenta
que sem remédio deo a galé á costa, onde feita pedaços, morrerão to-
dos desastradamente, sem escapar mais que a Princeza com o que tra-
zia na barriga, a quem parece que a Fortuna guardava para dar o des-
canso, que a seu pae e mãe negara. Sahio fínahnente a moça na praia,
tal qual o temeroso naufrágio deixaria huma Princeza mais delicada
que hum arminho ; e indo assi a pobre mulher pola terra estranha e
despovoada, e sem quem a encaminhasse por onde, despois de ter per-
dido toda a esperança de ter algum remédio, derão-lhe as dores de parto
junto de huma fonte, aonde em breve espaço lançou duas crianças, ma-
cho e femia, como vizagras. E como a fraca compreição da delicada
mulher nào pudesse sustentar tantos e tão desacostumados trabalhos,
facilmente deo a vida, que tanto havia que desejava de dar, deixando
vivos aquelles dous retratos delia e de smi pae, que por causa de seus
nascimentos a vida lhe tirarão, como acontece a viboras. E como as
crianças fossem destinadas ao que vedes, não faltou hum pastor que
as criasse, que alli veio ter, dando a mãe a alma a Deos : de maneira
que, por não gastar mais palavras, o macho he vosso amigo Filodemo,
e a femia he a serrana Florimena, mulher que he ja de Vcnadoro.
Monteiro
Estranhas cousas me coutais. Assi que logo de seu pae herdou Fi-
lodemo namorar a filha do Senhor que serve : não haverá logo por mal
o Senhor Dom Lusidardo tomar por genro e nora, quem acha por so-
brinhos.
Duriano
Sabei que chora de prazer cora clles, que ja diz que acha que Filo-
demo se parece natural com seu irmão, e Florimena com sua mãe.
Monteiro
Dac-iUe a entender, como se crco tão de ligeiro o Senhor Dom Lu-
sidardo de quem isso contou.
DE LUIZ DE CAMÕES 99
Duriano
No caso nao ha dúvida, porque o pastor que hi achastes, lhe certi-
ficou todo o caso ; e fez ao pastor muitas mercês, e mandou fazer mui-
tas festas solemnes. Venadoro, casado com sua mulher e prima, e Fi-
lodemo, que o mesmo parentesco t(*e com a Senhora Dionysa, estào fora
de crer tamanho contentamento ; cuido que zombào delle.
Monteiro
Ora deixa-me ir a vêr o rosto a esse velhaco de Filodemo ; pois de
meu matalote se me tornou »!:enlior. Creio que vem o Senhor Dom Lu-
sidardo : dissimulemos.
feCENA V
Dom Lusidardo com Venadoro, que traz FLorimena i)da mão, e Filodemo
a Dionysa.
Lusida.rdo
Quem não ficará pasmado
De vér que por tal caminho
Tèe a Ventura ordenado
Filodemo, meu criado,
Vir 8cr meu genro e sobrinho !
Quem não pasmará agora
De vêr a veatura minha,
Que tèe tornado u'hum'hora
Florimena. huma pastora,
Ser minha nora e sobrinha !
Dem-se graças ao Senhor,
Cujo segredo he profundo ;
Pois que vé*mos que quiz dar
A ventura e o amor
Por prazeres deste mundo.
o (D
PLEASE DO NOT REMOVE
CARDS OR SLIPS FROM THIS POCKET
UNIVERSITY OF TORONTO LIBRARY