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CORAÇÃO
IMPRENSA BELEZA — Rua da Rosa, 99 a 107 — USBOA
EDMUNDO DE AMICIS
CORAÇÃO
Tradução de V. DE MAGALHÃES
Coração é um livro que faz chorar sem
entristecer. Os olhos enchem-se de
lágrimas, ao passo que a alma se
sente cheia de força e de alegria.
EMPRESA LITERÁRIA UNIVERSAL
15- RUA DA ERA - 17
LISBOA
.^
NC
PREFACIO
Este livro é particularmente dedicado aos
rapazes das escolas elementares, que contam
entre nove a treze anos, e podia intitular-
-se: História de um ano escolar, escrita
por um aluno da terceira classe, de uma
escola municipal de Itália — dizendo escrita
por um aluno da terceira, não quere dizer
que êle próprio a tenha escrito tal e qual
ela é agora impressa. Êle anotava sucessiva-
mente num caderno, como sabia, tudo o
que via, sentia e pensava na escola e fora
dela; e seu pai no fim do ano corrigia
aquelas notas, forcejando por não alterar
o pensamento, e conservando, quanto pos-
sível, as palavras do filho. Este, quatro anos
mais tarde, frequentava já o Liceu, releu
o caderno, acrescentou-lhe alguma coisa da
sua lavra, valendo-se para isso da memória
ainda fresca das pessoas e das coisas. —
Recomendo-vos este livro, rapazes, espe-
rando que a sua leitura vos seja agradável
e profícua.
O TRADUTOR
CORACAO
OUTUBRO
O primeiro dia de escola
Segunda-feira, 17
É hoje o primeiro dia de escola. Passaram como um
sonho aqueles três meses de férias no campo! Minha mãi
foi comigo esta manhã para me inscrever na terceira
classe. Eu ia-me lembrando do campo, e seguia-a de má
vontade. Todas as ruas estavam cheias de rapazes; e as
lojas de livros apinhadas de pais e mais, que compravam
bolsas, carteiras e cadernos. Diante da escola era tal a
multidão, que o contínuo, a muito custo, conseguia abrir
caminho. Junto à porta, senti que me tocavam no ombro.
Era o meu mestre da segunda, sempre alegre, com os ca-
belos ruivos, desgrenhados, que me dizia: — Com que en-
tão, Henrique, vamo-nos separar para sempre? — Já o sa-
CORAÇÃO
bia, e, apesar disso, aquelas palavras fizeram-me pena. En-
trámos com aiiicuiuaue. iaomens, seiuioias, muineres do
povo, operários, militares, criaaos, toaos levando pela
raao os seus rapazes, que seguravam os seus certiiicados
de exame, agiomeravam-se na saia aa entraaa e nas esca-
das, íazenao um borbormho que parecia uma sala de es-
pectáculo. Tornei a ver com prazer aqueie saiáo, com as
suas sete portas, dando entraaa para as aiversas classes,
onde passei durante três anos quasi todos os dias ! A mul-
tidão era imensa, e os professores andavam numa roda
viva. A minha mestra da primeira superior saiidou-me
da porta da sala, dizendo-me — Henrique, já sei que vais
este ano lá para cima, e nem ao menos te verei passar 1 —
E olhava para mim com ar melancólico. O director estava
rodeado de mulheres, contrariadas por não arranjarem
lugar para seus filhos, e pareceu-me que êle tinha a oarba
mais embranquecida do que no ano anterior. Achei os
rapazes gordos e crescidos. Na sala de entrada onde se
tinham já feito distribuições, havia alunos da primeira
classe que não queriam entrar na aula, e apertavam-se
uns contra os outros como carneirinhos. Era necessário
empurrá-los para os obrigar a entrar. Alguns escapavam-
-se dos bancos, outros, ao verem afastar os parentes
começavam a chorar, até que estes voltassem a consolá-
-los ou a levá-los consigo. As mestras impacientavam-se.
Meu irmão mais novo foi para a aula da professora Del-
cati e eu, para a do professor Perboni, em cima, no pri-
meiro andar. Às dez horas estávamos itodos na aula: cin-
coenta e quatro. Apenas lá vi quinze ou dezasseis dos
meus companheiros da segunda, e entre estes o Derossi,
aquele que ganha sempre o primeiro prémio. Como me
pareceu mesquinha e triste a escola ao lembrar-me dos
bosques e das montanhas onde passei o verão! Também
me recordava do meu mestre da segunda, tão bom, rindo
connosco, quási do nosso tamanho, que mais parecia um
companheiro; e tinha pena de já não o ver ali, com os
seus cabelos ruivos, desgrenhados. O nosso mestre é alto,
cara rapada, e cabelos compridos e grisalhos; tem uma
ruga horizontal na testa, e a voz grossa; fita-nos a to-
dos, um por um, como queni quer ler nas nossas cons-
CORAÇÃO 9
ciências; e não se ri nunca. Eu disse comigo: é o pri-
meiro dia, e faltam ainda nove meses! quantos traba-
lhos, quantos exames mensais, quantas fadigas! Que von-
tade não tinha de ver a minha mãi! Logo que saí, corri
a beijar-me a mao. tila disse-me: — Então, Henque, o
que é isso? ânimo! Estudaremos juntos. — E voltei pa-
ra casa, contente. — Mas lembro-me tanto do meu antigo
mestre e do seu sorriso bom e alegre, que até a escola
me parece menos bonita que dantes!
O nosso mesíre
Têrça-feira, 28
Desde esta manha que também gosto do meu novo
mestre. Quando ele estava já sentado no seu lugar apa-
reciam à porta, de vez em quando, alguns dos seus alunos
do ano anterior, para saudá-lo. Metiam a cabeça e di-
ziam : — Bom dia, s e-
nhor professor. — Bom
dia, senhor Perboni. —
Alguns entravam, aper-
tavam-1 h e a mão e
saíam logo. Bem se via
que o estimavam muito,
e que a sua vontade se-
ria continuar com êle.
O mestre respondia: —
Bom dia! — e apertava
a mão que lhe esten-
diam; mas não olhava
para ninguém. A cada
nova saudação tornava-
-se mais grave e sério,
com a sua ruga horizon-
tal na testa, olhando
através da janela e fi-
xando o tecto da casa fronteira, e em vez de regosijar-se
com estas demonstrações de afecto, parecia incomodar-s«
com elas. Depois encarou-nos um por um, atentamente.
10 CORAÇÃO
Ditando, desceu a passear por entre os bancos, e, no-
tando que um rapazinho tinha a cara muito vermelha e
algumas vesículas na face, parou de ditar, tomou-lhe o
rosto entre as mãos, observou-o, e, preguntando-lhe se
lhe doia alguma coisa, pôs-lhe a mão sobre a itesta para
ver se tinha febre. Nisto um rapaz que estava por de-
trás dele, ergueu-se no banco e pôs-se a fazer gaifonas.
O mestre voltou-se de repente, e o rapaz tornou a sentar-
-se, ficando de cabeça baixa como se esperasse o cas-
tigo. O mestre correu-lhe então a mão pela cabeça e
apenas lhe disse : — não torne a fazer isso. — E, voltando
para a cadeira, continuou a ditar. Findo o ditado, olhou
para nós um momento silencioso, e disse em seguida,
vagarosamente, com a sua voz grossa, mas suave : —
Atendei: Temos de passar juntos um ano! Procuraremos
passá-lo em boa paz. Estudai e sede bons. Eu não tenho
família, a minha família sois vós. O ano passado tinha
ainda minha mãi, mas morreu. Fiquei só. Não tenho
mais que os discípulos no mundo, não tenho outro afecto,
não tenho outro pensamento. Serão eles os meus filhos.
Sejam todos meus amigos, como eu sou amigo de todos.
Desejo não ter que castigar nenhum. Mostrai-me que
tendes coração e a nossa escola será uma família, e vós
sereis a minha consolação e o meu orgulho. Não peço
que me façam promessas porque estou cerito que o vosso
coração assentiu já ao meu pedido, e agradeço-vos. —
Neste ponto entrou o contínuo a dizer que tinha dado
a hora. Levantámo-nos todos, dos bancos, em silêncio.
O rapaz que itinha feito as momices chegou-se ao pé do
professor, e disse-lhe com voz trémula: — Senhor mes-
tre, perdõe-me. — O mestre beijou-o na fronte, dizendo-
Ihe : — Ora vá, vá, meu filho !
Uma desgraça
Sexta-feira, 21
O ano principiou por uma desgraça. Indo eu para
a escola esta manhã, repetia o meu pai aquelas pala-
vras do mestre, quando vimos a rua coberta de povo que
CORAÇÃO
11
se aglomerava dianite da porta da secção. Meu pai disse
logo: — Temos desgraça. O ano principia mal. — Entrá-
mos a custo. O grande
salão estava repleto de
rapazes, a quem os mes-
tres não conseguiam
fazer entrar nas aulas,
e todos estavam volta-
dos para o gabinete do
director, donde saíam
estas palavras : — Pobre
moço ! pobre Robetti !
Por cima de tantas ca-
beças, destacavam-se o
boné do policia e a
calva do director. De-
pois entrou um sujeito,
de chapéu alto, que dis-
seram ser o médico.
Meu pai preguntou a
um professor:
— Que foi isto?
— Passou-lhe uma roda sobre um pé.
— Fraoturou-lhe o pé, disse outro.
Era um aluno da segunda, que vindo para a escola
pela rua «Dora Grossa» viu um pequeno da primeira
classe fugir da sua mãi e cair no meio da rua, a poucos
passos dum ónibus que vinha atrás, e, correndo ousa-
damente, agarrou e salvou o camarada; mas, não tendo
retirado rapidamente o pé, a roda do carro passou-lhe
por cima. É filho de um capitão de artilharia.
Enquanto nos contavam o sucedido, entrava na sala
uma senhora, como louca, rompendo a multidão. Era a
mãi de Robetti que tinham mandado chamar. Ao encon-
tro desta, correu outra senhora, que a abraça estreita-
mente, soluçando. Era a mãi da criança salva. Entram
ambas, precipitadamente, no gabinete, e ouvem-se den-
tro gritos aflitivos:
— Oh! meu Júlio! meu querido filho!
12 CORAÇÃO
Neste momenío pára à porta uijia carruagem, e,
pouco depois, apareceu o director dando o braço ao estu-
dante, pálido com os olhos cerrados, e que apoiava a
cabeça sobre o ombro dele. O silêncio era completo, só
se ouviam os lamentos da desolada mãi. O director pa-
rou um instante e levantou o ferido nos braços para mos-
trá-lo aos assistentes. E então os professores, as mestras,
os parentes, os rapazes gritaram itodos à uma: — Bravo,
Robetti! Bravo, Robetti. — E atiravam-lhe beijos. As
mestras e os rapazes que dele esitavam próximos, beija-
vam-lhe as mãos e os braços. Êle gesticulando, pregun-
tou:
— A minha mala?
A mãi da criança salva mostrou-lha chorando, e
disse: — Eu levo-ta, meu anjo, eu levo-ta. E amparava
ao mesmo tempo a mãi do ferido, que cobria o rosto
com as mãos. Saíram e acomodaram o doente na carrua-
gem. ' j
O trem partiu... Em seguida entrámos todos na aula,
em silêncio.
O pequeno calabrês
Sábado, 32
Ontem à tarde, quando o mestre nos dava noticias
entrou o director com um novo inscrito.
É um rapaz de rosto muito trigueiro; tem os cabe-
los negros, os olhos da côr dos cabelos, as sobrancelhas
cerradas e unidas; veste de escuro, e trás uma correia
de marroquim negro, em volta da cinta.
O director, depois de ter falado ao ouvido do mes-
tre, saiu, deixando ao pé deste o rapaz que nos olhava
com aqueles grandes olhos pretos, como assustado.
Então o mestre tomou-o pela mão e disse para
todos:
— Deveis ficar contentes. Entra hoje na escola um
rapazinho natural de Calábria que fica a mais de qui-
nhentas milhas daqui; estimai o vosso irmão, que veio
CORAÇÃO 13
de tSo longe. Nasceu numa terra que tem dado à Itália
homens ilustres, bons trabalhadores e bravos soldados;
vem de uma das mais belas terras da nossa pátria, onde
há grandes montanhas e florestas imensas habitadas por
um povo cheio de engenho e de coragem. Tratai-o com
amor, para que êle se não lembre que está longe da terra
do seu nascimento: £azei-lhe compreender bem, que um
italiano, em qualquer escola italiana que entre, encontra
sempre irmãos.
Dito isto, levantou-se e apontou no mapa geral da
Itália para o ponto em aue se acha Reggio de Calábria.
Depois chamou em voz alta:
— Ernesto Derossi!... (É aqu«lt que ganha sempre
o prémio). l^'^
Derossi levantou-se.
— Vem cá, disse o mestre.
Ernesto Derossi saiu do seu luear e foi colocar-se
ao lado da mesa, em frente do calabrês.
— Como és o primeiro da escola, disse-lhe o pro-
fessor, dá o abraço de boas vindas, em nome de todos
os teus condiscípulos, ao novo companheiro: vá, é o abra-
ço dos filhos do Piemonte aos filhos da Calábria.
Derossi abraçou o calabrês, dizendo com voz clara:
— Bemvindo! E este. num Ímpeto de afecto, beijou-o
na face. Todos deram palmas.
— Silêncio! exclamou o professor; não se dão pal-
mas na escola! — Mas bem se via que êle estava satis-
feito, e o calabrês também. O mestre designou a este
o seu Inovar e acomoanhou-o até lá. Deoois. repetiu ainda:
— recordai-vos bem do oue vos di<5se: Para que se dê
o facto de po^^er um filho da Calábria estar como em
sua casa em Turim, e oue um filho de Turim se ache
como em rasa próoria em Reqfp^io de Calábria, lutou o
nosso país durante cincoenta anos, e morreram trinta
iriíT itjlinno^f Deveis respeitar-vos e amar-vos uns aos
outros. Aouele nue ofender este companheiro por não ter
na*!rido na nossa província, tornar-se-â indÍP-no de le-
vantar os olhos do chão quando passar a bandeira tri-
color. ' ~^
Apenas o calabrês tomou o seu lugar, os seus vizi-
U CORAÇÃO
nhos presentearam-no, dando-lhe penas e um traslado;
e um que estava no último banco mandou-lhe uma es-
tampilha da Suécia.
Os^meus companheiros
Têrça-feira, 25
O rapaz que deu a estampilha ao calabrês é o que
me agrada mais de todos. Chama-se Garrone, é o maior
da aula, tem quási catorze anos, a cabeça grande, e os
ombros ,largos; pelo modo de sorrir bem se vê que é bom;
mas parece que esitá sempre a pensar, como se já fosse
um homem. Agora conheço muitos dos companheiros.
Há outro que também me agrada; chama-se Coretti, trás
uma amisola côr de chocolate e um barrete de pele de
gato, e está sempre alegre; é filho de um vendedor de
lenha, que foi soldado na guerra de 66, na divisão do
príncipe Humberto, e até dizem que tem três medalhas.
Há também Neilli, um pobre corcundinha, magro e de
rosto macilento; e um muito bem vestido, que está sem-
pre a sacudir os pêlos do fato e chama-se Vottini. Na
bancada adiante da minha está um rapaz a quem cha-
mam o «Pedreirito», porque o pai é pedreiro. Tem a
cara redonda como uma maçã, e uma habilidade parti-
cular — sabe fazer o focinho de lebre. Todos lhe pedem
que faça a habilidade e riem. Usa uma chapeleta muito
gasta, que trás amarrotada no bolso como um lenço; ao
lado do «pedreirito» está o Garoffi, um sugeiíto muito
comprido e magro, com o nariz de coruja e olhos muito
pequenos; negoceia sempre em santinhos e caixas de
fósforos, e escreve a lição nas unhas para a lêr às escon-
didas. Há também um Senhorito Carlos Nobis, que pa-
rece muito soberbo, e senta-se no meio de dois rapazes
com quem simpatizo muito: o filho do ferreiro, acondi-
cionado numa jaqueta que lhe chega aos joelhos, pálido,
Que parece doente e, sempre com ar espantado, nunca se
ri; e outro com os cabelos ruivos e um braço paralítico
aue trás sempre ao peito. O pai deste foi para a Amé-
rica e a mãi anda de porta em porta a vender hortaliças.
CORAÇÃO 15
É também um tipo curioso o meu vizinho da esquerda,
Stardi : pequeno, atarracado, sem pescoço, focinho de
porco, não fala com pessoa alguma e parece apatetado;
mas está sempre atento para o mestre, sem pestanejar,
com a testa franzida e os dentes cerrados. Se o interro-
gam quando o mestre fala, não responde à primeira nem
à segunda vez, mas à terceira volta-se e arruma um pon-
tapé. Há, ao lado, a cara tostada e feia de um chamado
Franti, que foi já expulso doutra secção. Também há
dois irmãos, igualmente vestidos, que parecem dois ma-
nequins e usam um chapéu calabrês com uma pena de
faísão.
O mais bonito de todos, aquele que tem mais talento
e que será de-certo o primeiro ainda este ano, é Derossi.
O mestre já o conheceu e interroga-o sempre. Eu po-
rém gosto muito de Precossi, do filho do ferreiro, da-
quele da jaqueta comprida, que parece doentinho. Dizem
que o pai lhe bate. Coitado! é muito tímido, e todas as
vezes que faz alguma pregunta, ou roça por alguém, diz
logo: — «Desculpe...» e olha-nos com meiguice e tris-
teza.
Mas Garrone é o maior, e, cá para mim, o melhor de
todos.
Uma acção generosa
Quarta-feira, 26
Foi justamente esta manhã que Garrone se deu a
conhecer. Entrei na escola um pouco tarde, porque me
tinha demorado a mestra da primeira classe para saber a
que horas nos encontraria em casa. Mas o mestre não es-
tava ainda, e três ou quatro rapazes atormentavam o po-
bre Crossi, aquele que tem os cabelos ruivos e braço pa-
ralítico, e cuja mãi vende horta,liças. Batiam-lhe com as
réguas, atiravam-lhe à cara com cascas de castanhas, cha-
mavam-lhe estropeado e mostrengo, e arremedavam-no
fingindo ter como êle o braço aleijado. E o rapaz, sozi-
nho na ponta do banco, amortecido, ouvindo e olhando
ora para um, ora para outro com olhos suplicantes, como
quem pedia que lhe não fizessem mal. Os outros cada vez
16 CORAÇÃO
O escarneciam mais; e êle principiou a tremer e a fazer-
-se vermelho de raiva.
De repente, Franti, aauela estúpida cara, trepou a
um banco finp^indo trazer dnas canastras nos braços ma-
caqueando deste modo a mãi de Crossi, quando vinha
esperar o filho à porta... Quando vinha! poraue ela as:o-
ra está doente. Muitos começaram às gargalhadas. Cro«-
si vendo aquilo, perdeu a rabeca e ap^arrando num tintei-
ro arremecou-o à cara de Franti com quanta forca tinha,
mas Franti asrachou-se rapidamente, e o tinteiro foi bater
em cheio no peito do professor que entrava. Todos fu-
giram para os seus lucrares, e ficaram quietos e assusta-
dos. O professor, pálido, chegou à mesa e com voz alte-
rada, prej^untou:
— O que foi isto?
Nineuém respondeu. O mestre .levantando mais a
voz, tornou a pree^untar:
— Ouem foi?
Então Garrone, cor»doendo-se do pobre Crossi, le-
vantou-se de-repente e disse com energia:
— Fui eu.
O professor olhou para êle, olhou em seo^uida para
os alunos estuoef actos, e disse com voz tranqiiila:
— Não foste tu, não!
E um momento depois continuou:
O culpado não será punido, mas aue se levante.^
Crossi levantou-se. e disse chorando: Batiam-me in-
sultavam-me... eu perdi a cabeça e atirei...
Sente-se ! Levantem-se os que o maltrataram.
Levantaram-se os quatro, todos de cabeça caída.
Então disse o mestre:
Insultar um companheiro oue os não provoca, es-
carnecer um desp-racado, bater num doente oue se não
pode defender, é cometer uma das arções mais vis e mais
verf^onhosas com que se pode manchar a criatura huma-
na! Cobardes!
Dito isto. desceu até aos bancos, pôs uma mão por
baÍ7?o da barba de Garrone oue estava de cabeça curvada,
e levantando-lha, fixou-o e disse: — Tu és uma alma no-
bre!
CORAÇÃO 17
Garrone aproveitando o momento, murmurou não sei
que palavras ao ouvido do mestre, e este voltando-se para
os quatro culpados, disse bruscamente:
— Bem!... estão perdoados.
A minha aníiga mesfra
Quinta-feira, ay
A minha mestra manteve a sua promessa: veio hoje
a nossa casa no momento em que eu estava para sair com
minha mãi para levarmos alguma roupa branca a uma po-
brezinha de quem os jornais tinham falado, recomendan-
do-a à caridade pública. Havia um ano que a mestra nos
não tinha visitado, e todos a recebemos com alegria. É
sempre a mesma, pequena, com o seu véu verde enrolado
em volta do chapéu, vestida singelamente e mal penteada,
como quem não tem tempo para en£eitar-se, mas um
pouco mais descorada do que o ano passado, já com al-
guns cabelos brancos e tossindo sempre. Minha mãi disse-
-Ihe: — ... E de saúde, querida professora? Parece que a
senhora não tem bastante cuidado consigo... — Vamos
indo assim, não tem dúvida... respondeu com o seu sor-
riso suave e melancólico. — A senhora fala muito alto,
acrescentou minha mãi, e afadiga-se muito com os seus
discípulos... — Isso é verdade.
Ouve-se-lhe sempre a voz. Ainda me recordo de
quando andava na escola e, falava sempre, para que os ra-
pazes se não distraíssem, e nem um momento parava
assentada. Estava bem certo de que viria ver-nos, porque
nunca se esquece dos seus discípulos; lembra-se dos no-
mes deles por muitos anos. Nos dias de exame mensal-
corre a preguntar ao director quais são os pontos; espera
os meninos à saída, e quere que lhe mostrem as composi-
ções para se certificar dos seus progressos. Muitos até
vêm procurá-la do Liceu, já de calças compridas e reló-
gio. Hoje vinha ela toda fatigada da biblioteca, onde
tinha acompanhado os seus rapazes, como fazia o ano
passado, quando todas as quintas-feiras ia com eles ao
museu, e explicava-lhes tudo. Pobre mestra! está cada
18 CORAÇÃO
vez mais magra, mas sempre viva, e entusiasma-sc sempre
que fala da sua escola. Quis tornar a ver o leito onde me
tinha visto havia dois anos muito doente, — o leito que
é agora de meu irmão. Demorou-se pouco porque tinha
de ir visitar um rapazito da sua aula, filho de um seleiro
que está com sarampo, e de corrigir ainda uma porção
de páginas, trabalhar todo o serão, e ainda antes de anoi-
tecer dar uma lição particular de aritmética a um ^ogista.
— Adeus, Henrique, disse-me ao sair. Então ainda és
muito amigo da tua mestra, agora que já resolves os pro-
blemas difíceis e fazes grandes temas? — Beijou-me, di-
zendo-me ainda do fundo da escada: — Não te esqueças
de mim, Henrique.
— Oh! minha querida mestra... nunca, nunca me es-
quecerei de ti. Quando fôr grande me lembrarei ainda...
Irei ver-te no meio dos teus alunos, e todas as vezes que
passar perto de uma escola e ouvir a voz de uma profes-
sora há-de parecer-me ouvir a tua voz e hei-de recordar
os dois anos que passei na tua escola, onde aprendi tan-
tas coisas, onde te vi tantas vezes, doente e cansada, mas
sempre solícita, sempre indulgente... desesperada quan-
do não ageitávamos os dedos para segurar bem a pena,
trémula quando os inspectores nos interrogavam, feliz
quando fazíamos boa figura. Sempre boa e amorosa como
uma mãi. Nunca, nunca me esquecerei de ti, querida mes-
tra!
Numa água-furíada
Sexta-feira, 28
Ontem à noite fui com minha mãi e minha irmã
Sílvia levar a roupa branca à pobrezinha recomendada
pelo jornal. Eu é que levava o pacote e Sílvia o jornal
com as iniciais do nome e o endereço. Subimos até quási
ao telhado de uma casa alta, onde havia um corredor
muito comprido, com muitas portas. Minha mãi bateu na
última, que foi aberta por uma mulher ainda moça, lou-
ra e macilenta, que logo me pareceu ter já visto mais ve-
rses com o mesmo lenço azul que tinha na cabeça. — Fa^
CORAÇÃO
19
favor de me dizer se é a senhora a pessoa a quem se re-
fere o jornal assim e assim... preguntou minha mãi. —
Sou eu, sim, minha senhora, sou eu. — Muito bem, traze-
mos-lhe aqui alguma roupa branca. E ela começou a
agradecer, que parecia não acabar mais. Foi então que
eu vi, num canto da casa nua e escura, um rapaz ajoelha-
do diante de uma cadeira
com as costas voltadas
para nós, parecendo estar
a escrever. Escrevia real-
mente com o papel sobre
a cadeira e o tinteiro no
chão. Como poderia ele
escrever assim às escuras?
Enquanto fazia a mim
mesmo esta pregunta re-
conheci de repente os ca-
belos ruivos e a jaqueta de
fustão de Crossi, do filho
da vendedeira de hortali-
ças, aquele do braço para-
lítico. Disse-o baixo a
minha mãi, enquanto a
mulher guardava a rou-
pa. — Cala-te, atalhou ela,
que pôde ser que ela se envergonhe de ver que trazes es-
molas para a mãi ; não o chames. — Mas naquele momento
Crossi voltou-se; eu fiquei embaraçado. Êle sorriu-se, e
então minha mãi fez-me sinal para que corresse a abra-
çá-lo. Abracei-o ; êle levantou-se e pegou-me na mão. —
Eis-me aqui, dizia entretanto a mãi dele à minha, sozinha,
com este pequeno, meu marido na América há seis anos,
e eu, ainda para mais, doente, sem poder tratar do meu
negócio de venda de hortaliçass, em que ganhava alguns
poucos escudos. Nem sequer me ficou uma pequena mesa
para o meu pobre Luiz fazer a sua escrita. Quando havia
mesa lá em baixo, no portal, podia escrever sobre ela, mas
agora nem isso há. Nem ao menos uma luz para estudar
sem estragar a vista! E se ainda vai à escola é porque o
município, fe,lizmente, lhe dá os livros e os cadernos. Po-
20 CORAÇÃO
bre Luizito, que tanta vontade tem de aprender! sou
muito infeliz. — Minha mãi deu-lhe tudo o que tinha na
bolsa, beijou o pequeno e quási chorava quando saímos.
E bem razão tinha em dizer-me: — Viste em que aperta-
da miséria aquele rapaz é obrigado a trabalhar? E tu, que
tens todas as comodidades, ainda te parece árduo o es-
tudo! Ah! meu Henrique; no trabalho de um dia daquele
rapaz há mais mérito do que no teu estudo de um ano!
A uns assim é que deveriam ser dados primeiros prémios.
A e<?rola
Sim, caro Henrique, parece ser-te árduo o estudo, como te
disse tua mSi. Já te não vejo ir para a escola com aquele ânim.o
resoluto e rosto risonho que eu desejaria. Tu tens tendência para
vadio. Mas ouve: pensa um pouco em como será para ti mofino
e triste, o dia em que não fores à escola! Ao cabo de uma sema-
na, tu mesmo, morto de aborrecimento e de vergonha, enojado
dos teus passatempos e da tua existência, pedirás de mãos ergui-
das para voltar. Lembra-te de que hoje em dia toda a gente
estuda, meu Henrique. Estudam os operários que vão à escala
de noite, depois de terem mourejado todo o dia; estudam as ra-
parigas do povo indo à escola no domingo depois de terem tra-
balhado toda a sem.ana, estudam os soldados que manuseiam os
livros e os cadernos quando voltam esfalfados dos exercícios.
Pensa nos rapazes mudos e nos cegos, que também estudam, e
até estudam os presos, que também nas cadeias aprendem a ler
e a escrever. Pensa de manhã, quando saíres, que naquele mesmo
momento, na tua mesma cidade, mais de trinta mil rapazes vão
como tu fechar-se por três horas numa sala para estudar. Pensa
no infinito número de crianças que àquela hora vão a caminho
da escola em todos os naíses do mundo: vê-os através da tua
imaginação, andando pelos sossegados caminhos das aldeias,
pelas ruas das cidades rumorosas, ao longo das praias, dos mares
e dos lagos, ora debaixo de sol ardente, ora por meio de nevoei-
ros; em barcos nos países cortados por canais; a cavalo pelas
grandes planícies: em trenó sobre as neves; por vales e coli-
nas, 9traves?ndo bosques e correntes, subindo por caminhos fo-
CORAÇÃO 21
litários das montanhas; sozinhos, aos pares, em grupos arregi-
mentados, mas todos com os livros debaixo do braço, vestidos
de mil modos, falando mil idiomas, desde as últimas escolas da
Rússia, quási perdidas entre os gelos, até às últimas escolas da
Arábia, assombreadas pelas palmeiras; milhões, e milhões em-
fim, todos aprendendo as mesmas coisas por cem formas diver-
sas. Imagina todo este vastíssimo formigueiro de rapazes de cen-
tenares de povos, este movimento imenso de que também fazes
parte, lembra-te que se este movimento cessar a humanidade
cairá na barbaria, porque este movimento é o progresso, a espe-
rança e a glória do mundo. Coragem, pois, meu pequeno soldado
do imenso exército! Os teus livros são as tuas armas, a tua
aula é a tua esquadra, o campo da batalha é a terra inteira, e a
vitória é a civilização da humanidade... Não sejas um soldado
cobarde, meu Henrique.
Teu pai.
O pequeno pafrioía de Pádua
CONTO MENSAL
Sábado, 2q
Não serei um soldado cobarde, não, mas iria de muito
melhor vontade à escola se o mestre nos contasse todos
os dias uma história como a que nos contou hoje de
manhã. Todos os meses, disse êle, que nos contará imia, e
que será sempre a narração fiel dum facto heróico prati-
cado por um rapaz. A de hoje chama-se. O pequenito pa-
triota de Pádua, e é assim:
Um vapor francês partiu de Barcelona, cidade de Es-
panha, para Génova, e iam a bordo, franceses, italianos e
espanhóis. Havia entre eles um rapaz de onze anos, mal
vestido, sem ninguém de família, afastando-se de todos
os passageiros como um animal selvagem e encarando-os
com olhar sombrio. E razão tinha para os encarar assim...
Dois anos antes, sua mãi e seu pai, camponeses dos arre-
dores de Pádua, tinham-no vendido ao chefe de uma com-
panhia de saltimbancos, o qual, depois de o ter ensinado
22
CORAÇÃO
a dar cabriolas, à força de empuxões, de pontapés e de
jejuns, tinha-o conduzido através da França e da Espa-
nha, aguilhoando-o de contínuo e trazendo-o sempre roto
e esfomeado. Chegando a Barcelona, e não podendo mais
suportar os maus tratos e a fome, reduzido a um estado
de fazer compaixão, fugiu ao seu algoz a implorar a pro-
tecção do cônsul de Itália, o qual, compadecido, o embar-
cara naquele vapor, dando-lhe uma carta para o comissá-
rio de polícia de Génova, por intermédio do qual, seria
mandado aos parentes que o tinham vendido como uma
besta de carga. O pobre rapaz estava roto e adoentado.
Tinham-lhe dado um camarote de segunda classe- Todos
os passageiros o observavam e alguns faziam-lhe pregun-
tas, mas êle não respondia e parecia encarar todos com
ódio e com desprezo, tanto o tinham irritado e entristeci-
do as privações e as fadigas. Três dos passageiros, à fôrja
CORAÇÃO 23
de insistirem com preguntas, conseguiram fazê-lo falar, e
em poucas e singelas palavras, num mixto de veneziano,
e espanhoji e de francês, contou-lhes a sua história. Não
eram italianos aqueles três indivíduos, mas compreende-
ram-no, e movidos em parte pela compaixão, deram-lhe
algum dinheiro, gracejando com êle, e estimulando-o a
que prosseguisse na sua narrativa. Entravam naquele mo-
mento algumas senhoras na sala, e os três, por ostentação,
deram-lhe mais dinheiro, gritando :►— Toma ! apanha! —
E as moedas, atiradas tiniam sobre a mesa. O rapaz meteu
tudo no bolso, resmungando uns agradecimentos com o
seu modo brusco, mas com um olhar pela primeira vez
risonho e afectuoso. Daí a pouco trepou para o seu beli-
che, correu a cortina, e ficou muito quieto, pensando na
vida. Com aquele dinheiro podia comprar a bordo algum
alimento bom; havia dois anos que não comia pão com
fartura... Podia comprar uma jaqueta, mal desembarcasse
em Génova, porque, desde que saíra de casa de seu pais,
andava vestido de farrapos; e podia. ainda, levando o res-
tante para casa, ter a esperança de ser aco,lhido pelo pai
e pela mãi mais humanamente do que seria se chegasse
com as algibeiras vazias. Era uma pequena fortuna aquele
dinheiro. E nisto pensava, um pouco mais consolado, por
detrás da cortina do beliche, enquanto os três passageiros
palestravam sentados à mesa do jantar, no meio da sala
da segunda classe. Bebiam e falavam de viagens e de paí-
ses que tinham visitado, e de narração em narração vie-
ram a falar de Itália. Principiou um a queixar-se das hos-
pedarias, outro das grandes estradas de ferro, e, a breve
trecho, todos juntos, afervorando-se, começarm a dizer
mal de tudo. Este preferiria viajar na Lapónia, aquele di-
zia não ter encontrado na Itália senão velhacos e desordei-
ros, e o terceiro concluía que os empregados italianos não
sabiam lêr. — Um povo ignorante, afirmou o primeiro. —
E sujo, asseverou o segundo. — E la..., exclamou o últi-
mo, mas não pôde terminar o termo ladrão, porque uma
tempestade de soldos e de meias liras se desencadeou so-
bre as cabeças dos três, e, caíndo-lhes pelas costas abaixo,
passaram de cima da mesa ao pavimento com um tinido
infernal. Levantaram-se furiosos, olhando para cima, re-
24
CORAÇÃO
cebendo ainda uma mão cheia de soldos pela cara.—
Guardem o seu dinheiro, disse com desprezo o rapaz, pon-
do a cabeça fora da cortina do beliche. Eu não aceito es-
molas de quem insulta o meu pais.
NOVEMBRO
O Limpa-chaminés
I de Novembro
Ontem à noite fui à aula das meninas que é ao lado
das nossas, para dar a história do pequeno de Pádua à
mestra da Silvia que a queria
;ier. Setecentas raparigas fre-
quentam essas aulas. Quando
cheguei começavam a sair to-
das alegres, pelas férias de
Todos-os-Santos e eis a bela
cena que presenciei. Em fren-
te à porta da escola, do outro
lado da rua, estava com o bra-
ço apoiado ao muro e a cabeça
apoiada ao braço, um pequeni-
to limpa-chaminés, com o seu
raspador e o seu saco, todo en-
farruscado, chorando e solu-
çando amargamente. Duas
^ meninas da segunda classe,
'' aproximando-se, preguntaram-
-Ihe:
— Porque choras tu pe-
queno?
Mas ele não respondeu; e continuou a chorar.
Tu não ouves? o que é que tens para estar a chorar
tanto? repetiram-lhe as meninas
Levantou então o rosto, um rosto de criança, e disse :
CORAÇÃO 25
— que estivera em várias casas a varrer, que ganhara trin-
ta soldos, e que os perdera, porque tinha o bolso rasgado
(e mostrava o rasgão; e que se nao atrevia a entrar em ca-
sa sem o dinheiro. — O patrão bate-me, — exclamava solu-
çando e deixando cair outra vez a cabeça sobre o braço
como aflito. As meninas estavam a olhar para êle, muito
sérias, e no entanto, muitas outras, grandes e pequenas
pobres e ricas com as suas pastas debaixo do braço, iam-
-se aproximando, quando uma delas, a mais crescida, que
trazia um chapéu com uma pena azul, tirou da algibeira
dois soldos, e disse: — Eu não tenho mais do que dois sol-
dos, façamos uma subscrição. — Uma outra vestida de ama-
relo, disse: — Eu tenho tanto como tu, mas vamos arranjar
o dinheiro entre todas, e principiaram a chamar umas pe-
las outras: — Amélia! Luiza! Aninha! um soldo cada
uma! — Quem tem dinheiro? Vá, vá, venham aqui soldos.
Algumas tinham-nos para comprar flores ou cadernos, e
entregaram-nos logo. Outras mais pequeninas deram me-
nos. A da pena azul é que recolhia tudo, e ia contando em
voz alta: — Oito, dez, quinze...! Mas era preciso mais.
Foi então que apareceu uma, a maior de todas, que pare-
cia uma mestrazinha e ofereceu meia lira. Todas a aplau-
diram muito. Faltavam ainda cinco soldos. Agora que ve-
nham as meninas da quarta que também têm dinheiro,
disse uma da roda. E efectivamente os soldos destas caí-
ram em quantidade. Todas formaram roda, e era encanta-
dor ver aquele limpa-chaminés, no meio de tantos vesti-
dinhos de cores variadas e daquela confusão de penas,
de fitas, e de cabelos anelados e soltos. Já havia trinta
soldos, mas ainda apareciam mais, e as pequeninas que
não tinham dinheiro furavam por entre as maiores e ofe-
reciam raminhos de flores, só para darem alguma coisa.
Nisto aparecee a porteira gritando: — A senhora Direc-
tora!— As raparigas debandaram para todos os lados
como um bando de pássaros. E viu-se então o pequeno
limpador de chaminés, só, no meio da rua, enxugando os
olhos, muito contente, com as mãos cheias de dinheiro, e
tendo nas casas da jaqueta, na abertura das algibeiras e
no chapéu, muitos raminhos de flores... Até se viam tam-
bém muitas flores no chão, aos pés dele.
26 CORAÇÃO
O dia de finados
Novembro, 2
Este é o dia consagrado à comemoração dos mortos. Sabes,
Henrique, quais são os mortos a que vós, rapazes, deveis dedicar
um pensamento neste dia? — São aqueles que morreram por vós,
moços e crianças. E quantos destes têem morrido e morrem to-
dos os dias? Sabes quantos homens têem cravado uma faca no
coração, desesperados por verem os filhos na miséria, e quantas
mulheres se afogaram ou morreram de dôr, ou enlouqueceram
pela perda de um filho estremecido? Lembra-te de todos esses
mortos nesta dia, Henrique. Pensa em tantas mestras que se fi-
naram na flor da existência, tísicas pela fadiga do ensino, pelo
amor às criancinhas, das quais não tiveram coração para sepa-
rar-se. Pensa nos médicos que sucumbiram corajosamente, afron-
tando moléstias contagiosas para acudir aos pequeninos enfer-
mos. Pensa em todos aqueles que nos naufrágios, nos incêndios e
nas fomes, em um momento de supremo perigo, deram à infân-
cia o último bocado de pão, a última tábua de salvação, a última
corda para escapar às chamas, e expiraram contentes o seu sa-
crifício, porque com êle ficava a salvo a vida de um inocente.
São inumeráveis, Henrique, estes mortos; há centenares destas
criaturas, que se pudessem levantar-se um momento, do túmulo,
pronunciariam o nome de uma criança, daquela a que sacrifica-
ram os prazeres da juventude, a paz da velhice, os afectos, a inte-
ligência, a vida; esposas de vinte anos, homens exuberantes de
força, velhos octogenários e mancebos — mártires heróicos, e
obscuros da infância, — tão grandes e tão nobres todos, que não
tem a terra tantas flores quantas deveríamos desfolhar nas suas
sepulturas. Tanto sois amadas, oh! criancinhas! Pensa hoje com
gratidão nestes mortos, Henrique, e serás melhor e mais afec-
tuoso com todos aqueles que te estimam e se afadigam por ti,
meu querido filho, tão feliz, que no dia dos mortos não tens a
derramar lágrimas por nenhum!
Tua mãi.
CORAÇÃO 27
O meu amigo Garrone
Sexta-feira, 4
Só houve dois dias de feriado, e parece-me que já se
passou muito tempo sem ver Garrone ! Quanto mais o co-
nheço, mais o estimo; e assim acontece a todos os outros,
excepto aos insolentes que com êle nada conseguem, por-
que Gfrione não deixa praticar insolências. Se acontece
às vezes que um mais taludo levante a mão sobre algum
pequeno e este grite :— -Garrone ! — O taludo não se mexe
mais. Seu pai é maquinista do caminho de ferro, e êjie en-
trou tarde na escola, porque esteve doente dois anos... É
o mais alto e o mais forte da aula; levanta um banco nu-
ma só mão ; come sempre, e é bom. Qualquer coisa que lhe
peçam, lápis, goma, papel, canivete, empresta logo ou dá;
e não fala nem ri na escola ; está sempre imóvel no banco,
que já é estreito para êle, com as costas arredondadas e a
cabeça enterrada nos ombros. Quando olho para êle, sorri-
-me com os olhos meios cerrados como quem diz:— -So-
mos amigos, Henrique! A sua figura faz rir; grande e
gordo como é, veste jaquetão e calças, tudo apertado e
muito curto; chapéu mais pequeno do que a cabeça rapa-
da à escovinha; sapatos grossos; e a gravata sempre tor-
cida como uma corda. Caro Garrone ! Basta vê-lo uma vez
para a gente ficar a gostar dele. Todos os mais pequenos
desejariam estar ao seu ^ado no banco. Sabe bem aritmé-
tica. Traz os livros acamados e apertados com uma cor-
reia de coiro vermelho. Tem uma faca com um cabo de
madrepérola que achou o ano passado na praça de armas,
e um dia cortou-se num dedo até ao osso, mas ninguém
na escola deu por isso, e em casa também não disse nada
para não afligir o pai nem a mãi. Nunca toma a mal qual-
quer coisa que lhe digam por brincadeira; mas ai! do que
lhe disser: — Isso não é verdade — quando êle afirmar;
então incendeiam-se-lhe os olhos e dá murros de despe-
daçar os bancos.
Sábado de manhã, deu um soldo a um aluno da pri-
meira classe que estava a chorar no meio da rua porque
28 CORAÇÃO
lhe tinham roubado um, único que tinha, destinado à com-
pra de um caderno. Há três dias que está desenhando nas
margens de uma carta de oito páginas uns ornatos à pena,
para o aniversário de sua mãi, que muitas vezes vem bus-
cá-lo, e é alta, gorda e simpática como êle. O mestre não
íhe tira os olhos de cima, e todas as vezes que lhe passa
perto toca-lhe com as mãos nas espáduas, como se faz a
um toirinho manso. Eu gosto muito dele. Fico todo con-
tente quando lhe aperto com a minha a sua grande mão,
que parece mesmo a mão de um homem. Estou certo que
arriscaria a vida para salvar a de um companheiro, e que
se deixaria matar para defendê-lo. Lê-se claramente nos
olhos. Parece que anda sempre resmungando com aquele
vozeirão enorme, mas sente-se que é a voz de um coração
generoso e nobre.
O carvoeiro e o fidalgo
Segunda-feira, 7
Garrone não era capaz de dizer aquelas palavras que
ontem de manhã disse Carlos Nobis a Beti. Carlos Nobis
é um soberbo porque seu pai é fidalgo... um homem alto,
com toda a barba preta, muito sério, que vem quási todos
os dias acompanhar o filho. Ontem de manhã Nobis dis-
cutiu com Beti, que é um dos mais pequenos, filho do car-
voeiro, e não sabendo mais que lhe devia dizer, porque ti-
nha sido injusto, disse-lhe altaneiro: — Teu pai é um po-
bretão. Beti corou até à raiz dos cabelos, e calou-se: mas
vieram-lhe as lágrimas aos olhos. Quando foi para casa
repetiu a frase ao pai, e logo o carvoeiro, um homem pe-
queno, todo enfarruscado, resolveu ir à lição da tarde,
com o filho, queixar-se ao mestre. Enquanto fazia as suas
queixas, e todos nós muito calados, o pai de Nobis que
tirava, como fazia sempre, a capa dos ombros do filho à
entrada da porta, ouvindo pronunciar o seu nome, entrou
e pediu explicações.
— É este operário, respondeu o mestre, que vem quei-
xar-se de que seu filho Carlos dissera ao filho dele: —
Teu pai é um pobretão.
CORAÇÃO
29
O pai de Nobis carregou o sobrolho e corou ligei-
ramente. Depois preguntou ao filho:
— Disseste aquelas palavras ?
O filho, em pé, no meio da escola, com a cabeça baixa,
não respondeu. O pai tomou-o então por um braço, em-
purrou-© para diante em frente de Beti, quási a tocar-lhe
e disse:
— Pede-lhe perdão.
O carvoeiro quiz interpor-se, dizendo:
— Não, isso não...
Mas o pai de Nobis não o atendeu, e repetiu ao filho:
— Pede-lhe perdão. Repete as minhas palavras: Pe-
ço-te perdão pela frase injuriosa, insensata e indigna que
proferi contra teu pai, a quem o meu se honra de apertar
a mão. I
O carvoeiro fez um gesto impaciente como quem diz:
Não senhor, isso não pode ser, O pai de Nobis não lhe
deu atenção : e o filho disse lentamente, com um ténue
fio de voz, e sem. levantar os olhos do chão;
30 CORAÇÃO
— Peço-te perdão pela frase injuriosa, insensata e
indigna que proferi contra teu pai, a quem o meu se hon-
ra de apertar a mão.
Neste momento Nobis estendeu a mão ao carvoeiro,
que lha apertou com força, e num impulso espontâneo,
atirou o filho para os braços de Carlos Nobis,
— Faça-me o favor de os colocar um ao lado do outro,
no banco, disse Nobis ao professor.
O mestre pôs Beti no banco de Carlos. Quando se
sentaram, o pai de Nobis fez uma cortesia e saiu.
O carvoeiro ficou por algum itempo pensativo, olhan-
do para os dois rapazes; depois aproximou-se do banco
e fixou Nobis com expressão de pezar, como quem queria
dizer alguma coisa, mas não disse nada; estendeu-lhe a
mão para fazer-lhe uma carícia, mas não se atreveu, e ape-
nas lhe roçou a fronte com dois dos seus grossos dedos.
Depois encaminhou-se para a porta, e voltando-se ainda
mais uma vez, olhou para êle e saiu...
— Recordem-se bem do que acabam de ver, meus fi-
lhos, — disse o mestre — esta é a mais bela lição do ano.
A mesíra do meu irmão
Quinta-feira lo
O filho do carvoeiro foi discípulo da mestra Del-
cati, que veio hoje ver meu irmão que está adoentado, e
fez-nos rir contando-nos que a mãi daquele rapaz lhe le-
vara, havia dois anos, um avental cheio de carvão em sinal
de grande reconhecimento por ela ter dado uma medalha
ao filho, e teimava a pobre mulher em não querer tornar a
levar o carvão para casa e quási chorou quando soube
que tinha de voltar com o avental cheio. Também de uma
pobre mulher nos contou ela, que lhe levara um ramalhete
de flores muito pesado, porque (tinha dentro um punhado
de moedas de cobre. Divertimo-nos muito a ouvi-la, e
meu irmão foi ingerindo o remédio que até ali não que-
ria tomar.
Quanta paciência não é necessária para com aqueles
rapazitos da primeira, todps desdentados corno uns ve-
CORAÇÃO 31
Ihinhos, sem poderem pronunciar nem o R, nem o S. Um
a tossir, outro a deitar sangue pelo nariz, este perdendo
os tamancos debaixo do banco, aquele berrando porque se
picou com a pena, e outro chorando porque comprou o
caderno número dois em vez do caderno número um! Cin-
quenta numa aula, sem saberem coisa alguma, com umas
mãozinhas de manteiga. E ser-se obrigada a ensinar a es-
crever tudo aquilo ! Alguns trazem de casa no bolso, pau-
zinhos de alcaçuz, botões, pequenos saca-rôlhas, tijolo
moído, toda a espécie de coisas miúdas, e é preciso que a
mestra os reviste: mas escondem os objectos, até nos sa-
patos! e nunca estão atentos; um moscardo que entra
pela janela põe-nos a todos em alvoroço. No verão, levam
para a escola palhinhas e folhas de rosa, que lançam ao
ar e vão cair nos tinteiros; depois enchem os cadernos de
borrões. A mestra tem de fazer de mamã para eles; ajuda-
-os a vestir, liga-lhes os dedinhos feridos, apanha do
chão as carapuças que caem, toma sentido que não tro-
quem os capotes, senão depois berram desesperadamente.
Pobres mestras! E ainda por cima de tudo isto, vêm as
mais queixar-se:
— Como foi que o meu pequeno perdeu a pena? —
Como é que o meu não aprende nada? — Porque não dá
prémio ao meu que sabe tanto? — Porque não manda tirar
o prego do banco que rasgou as calças ao meu Pedro?
Algumas vezes a mestra de meu irmão zanga-se com
os rapazes, e quando não pode aturá-los, ferra os dentes
nos dedos para não desandar algum tabefe. Perde a paciên-
cia, mas arrepende-se logo e acaricia a criança com quem
ralhou. Expulsa um garoto da escola, mas engole as
lágrimas, e ncoleriza-se com os pais que fazem jejuar
as crianças por castigo. É jovem e alta. a professora Del-
cati, bem vestida, morena e buliçosa, parece sempre im-
pelida por uma mola. Comove-se com qualquer insignifi-
cância e fala então com extrema brandura .
— Em paga, as crianças af eiçoam-se-lhe, disse minha
mãi.
— Muitas sim, — respondeu — mas depois, acabado
o ano, a maior parte, nem sequer nos conhecem. Quando
çstudam com os rnes-tres cjuási se çnvergonham de tereni
32
CORAÇÃO
estado connosco... com uma mestra! Depois de dois anos
de cuidados, depois de termos amado tanto uma criança,
faz-nos tristeza quando nos separam dela e dizemos: j-
Desta estou eu segura que se não ha-de esquecer de
mim .. Mas, passam-se as férias, entra de novo na escola,
^or^emos-lhe^o encontro: - Oh! meu amor! oh! meu
Querido ! — E ela volta a cabeça para o outro lado . . ^
Neste ponto a mestra calou-se; e levantando-se foi
beijar meu irmão, dizendo: -Mas tu não farás assim, pe-
querrucho, não é verdade? Tu não me voltaras a cara,
não? Não repudiarás a tua pobre amiga!
Minha mãi
Quinta-feira. lo de Novembro
Em presença da mestra de teu irmão, tu faltaste ao res-
peito a tua mãi! Que isto não aconteça mais, Henrique! nun-
ca mais! A tua palavra irreverente penetrou-me no ^coração
como uma ponta de aço. Lembrei-me logo da tua mai quan-
do há anos, esteve debruçada uma noite inteira sobre o teu
berço medindo a tua respiração, chorando lágrimas angustio-
sas batendo os dentes de terror, com receio de perder-te,
quási louca. E, ao lembrar-me disto, experimentei um sentimen-
to de horror por ti. Tu! ofenderes a tua mãi! Tua mai que dana
um ano de felicidade para poupar-te um momento de dor! que
mendigaria para ti! que se deixaria matar para salvar-te a vida.
Ouve, Henrique, e fixa bem na memória o quete vou dizer,
imagina que te estão reservados na tua vida muitos dias terrí-
veis mas o mais terrível de todos será aque e em que tu per
deres tua mãi. Mil vezes, Henrique, quando fores homem, forte
experimentado nas lutas, tu invocarás, oprimido por um desejo
imenso de tornar a ouvir uma vez a sua voz ; de te sentires aind
rma vez, apertado nos seus braços convulsos, como um pobre
apaz sem protecção nem conforto. Como tu acordarás então
todas as amarguras que lhe causaste; e com que -«lor os a
expiarás todas! Infeliz! Não esperes tranquilidade na tua vida
.e tiveres contristado tua mãi; podes arrepender-te, voâe, pe-
dir^lhe perdão, podes venerar a sua memoria, mas tudo será
CORAÇÃO
33
inútil. A tua consciência não te dará paz; aquela imagem doce e
bôa terá sempre para ti uma expressão de tristeza, de retraimen-
to, que te há-de torturar a alma. Henrique, toma bem sentido:
este é o mais sagrado de todos os afectos hmnanos, e ai daquele
que o não respeita! O assassino que venera sua mãi tem ainda
qualquer coisa de honesto e de nobre no coração: o mais glo-
rioso dos homens que a magoe e que a ofenda, não é senão uma
criatura vil. Que te não saia mais da boca imaa frase dura para
'ià\. ,1,1
aquela que te deu a vida, e se uma ainda te escapar que não seja
o temor de teu pai, mas o impulso da tua alma que te lance a
seus pés, a suplicar-lhe que com o beijo do perdão te apague da
fronte o estigma de ingrato I Eu amo-te, meu filho, tu és a es-
perança mais cara da minha vida; mas desejo antes ver-te mor-
to do que ingrato para tua mãi. Vai! Por algum tempo dispenso
as tuas carícias: não poderia retribuir-tas com o coração.
Teu pai.
34 CORAÇÃO
O meu companheiro Coreffi
Domingo, 13
Meu pai perdoou-me, mas eu fiquei um pouco triste.
Minha mãi então mandou-me com o filho mais velho do
porteiro dar um passeio pelo Corso. A meio do caminho,
pouco mais ou menos, passando junto de uma carroça
que estava parada a uma loja, ouvi pronunciar o meu no-
me; volto-me, era Coretti, o meu companheiro de escola,
com a sua camisola côr de chocolate e o seu barrete de
pele de gato, todo suado e alegre, com um grande feixe
de lenha às costas. Um homem em pé, sobre a carroça, da-
va-lhe de cada vez uma braçada de lenha em que êle pe-
idava e levava para o armazém de seu pai onde diligente-
mente a ia encastelando.
— Que fazes, Coretti? lhe preguntei.
— Não vês? — respondeu, estendendo os braços para
receber ouitro feixe de lenha — ando a repetir a lição.
Eu ri-me, mas êle falava sério, e tomando o feixe de
lenha ia andando e dizendo : — Chamam-se acidentes do
verbo... as suas variantes... segundo o número... segun-
do o número e a pessoa...
E tornava a carregar mais lenha, e continuando a en-
castelá-la repetia : — Segundo o tempo a que se refere a
acção. E tornava de novo a levar outra braçada, dizendo:
— Segundo o modo com que a acção é enunciada. Era a
nossa lição de gramática para o dia seguinte.
— Que queres tu? — disse êle — vai-se aproveitan-
do o tempo. Meu pai saiu com o caixeiro para uma quinta.
Minha mãi está doente. Toca-me este serviço. No entan-
to vou repassando a gramática. É uma lição difícil a de
hoje. Não consigo encasquetá-la na cabeça. E dirigindo-
-se ao carroceiro disse-lhe:
— . Meu pai deve estar aqui às sete horas para lhe
pagar.
O carroceiro partiu:
— Entra um momento, disse Coretti.
Entrei. Era um casarão cheio de pilhas de lenha e de
faxina, com uma grande balança a um lado .
— Hoje, para mim, é dia de grande maçada, digo-to
CORAÇÃO 35
eu. Tenho de fazer o trabalho aos bocados. Estava escre-
vendo as preposições, e veio gente comprar. Volto a es-
crever, chega a carroça. Já fui esta manhã ao mercado da
lenha, à praça Veneza. Já não sinto as pernas e tenho as
mãos inchadas. Estava arranjado se tivesse lição de dese-
nho!
E enquanto dizia isto, ia dando uma varredela às fo-
lhas secas e às palhas que cobriam o ladrilho.
— Mas onde estudas tu, Coretti? — lhe preguntei.
— Já se vê que não é aqui. — replicou; anda ver.
E conduziu-me a um quartinho ao fundo da loja, que
serve de cozinha e de sala de jantar, com uma mesa a um
canto, onde estavam os livros, os cadernos e a escrita
principiada.
— Estou aqui, justamente ; f alta-me responder à se-
gunda pregunta: com o coiro faz-se o calçado e as ci-
Ihas... agora acrescento: — e malas — e, pegando na pe-
na, principiou a escrever com a sua bela caligrafia.
Neste momento ouve-se alto na loja: — Então não
está cá ninguém?
Era uma mulher que vinha comprar lenha miúda.
— Pronto ! — respondeu Coretti. E correndo, foi pe-
sar a lenha, recebeu o dinheiro, foi a um livro, tomou
nota da venda, e voltou para a escrita, dizendo:
— Vamos a ver se posso acabar o período. E escre-
veu : — bolsas de viagem — mochilas para os soldados. —
Ah! meu pobre café que se vai embora! exclamou de re-
pente, e correu ao fogão, retirando a cafeteira do fogo.
— É o café para minha mãi. Foi bom aprender a fazê-lo.
Espera um pouco que vamos levar-lho. Assim ela te verá
e há-de ficar contente. Há sete dias que está de cama...
acidentes do verbo... Escaldo sempre os dedos com esta
cafeteira. Que devo acrescentar depois de mochilas para
os soldados! Há-de haver mais alguma coisa aue se faça
de coiro, mas não me lembro. Vamos ver a mãi.
Abriu uma porta e entrámos num outro quarto pe-
queno. Estava a mãi de Coretti num leito grande, com um
lenço branco na cabeça.
— Aqui está o café, mamã — disse Coretti, dando-
-Ihe a chícara. Este é meu companheiro de escola.
36 CORAÇÃO
— Ah! muito bem, meu menino, vem fazer uma visi-
ta à doente, não é verdade?
Entretanto Coretti arranjava os travesseiros para a
mãi se encostar, endireitava a coberta da cama; atiçava o
fogo, e enxotava o gato de cima da caixa.
— Quere mais alguma coisa, mamã? preguntou de-
pois, pegando na chícara. — Tomou as duas colheres do
xarope? Quando se acabar, eu vou num pulo buscar ou-
tro à botica. A lenha já está descarregada. Às quatro ho-
ras porei a carne ao lume, como me disse, e quando pas-
sar a mulher da manteiga lhe darei o dinheiro. Não tenha
cuidado, que tudo irá bem.
'— Obrigada, meu filho, respondeu ela. Pobre filho !
Lembra-se de tudo.
Quis que eu tomasse um bolo com açúcar, e depois
Coretti mostrou-me um quadrosito com um retrato em
fotografia de seu pai, vestido de soldado, com a medalha
de valor, que ganhara em 65 no quadrado do príncipe
Humberto. A mesma cara do filho, com aqueces olhos vi-
vos e o mesmo sorriso alegre. Tornámos à cozinha.
— Já sei o que é... disse Coretti. E acrescentou sobre
o caderno ; — Fazem-se também os arreios para os cava-
los. Bem! o resto fá-lo-ei de noite, deitar-me-ei mais tar-
de. Feliz tu, que tens todo o tempo para estudar e podes
ainda sair a passeio!
E sempre alegre e activo, tornando a entrar na loja,
começou a serrar as achas a meio, dizendo : — Esta é a
minha gimnástica! Nada mais que o impulso dos braços
.para diante. Quando meu pai voltar e vir toda esta lenha
serrada, fica satisfeito. O que tu não sabes é que, depois
de ter serrado, escrevo os tt e os 11 que parecem serpen-
tes, como diz o mestre; mas que diabo lhe hei-de fazer?
— Digo-lhe que foi necessário mover os braços... O que
eu quero é que minha mãi fique boa, isso sim! Hoje está
melhor, graças a Deus! A gramática, estudá-la-ei de ma-
nhã cedo, ao canto do galo. Oh! lá está a carroça com os
troncos! Toca a trabalhar.
Uma carroça carregada com troncos de árvores pára
defronte da loja, e Coretti correu logo à porta a falar com
o carroceiro, voltando em seguida.
CORAÇÃO
37
— Agora não posso fazer-te mais companhia. Até
amanhã. Fizeste bem em vir ver-me. Bom passeio. Feliz,
tu! E apertando-me a mão, correu a carregar o primeiro
tronco, recomeçando a lida, da loja para a carroça e da
carroça para a loja, com a cara fresca como uma rosa, de-
baixo do seu barrete de pele de gato, e esperto que fazia
alegria vê-lo. Feliz tu! disse-me êle: — Ah! não, Coretti,
não! mais feliz és tu, porque estudas e trabalhas, porque
és mais útil a teu pai e a tua mãi, porque és bom, cem ve-
zes melhor e com mais valor do que eu, caro compa-
nheiro !
O Director
Sexta-feira, i8
Coretti estava muito satisfeito esta manhã, porque
veio assistir ao exame mensal o seu mestre da segunda,
Coatti, um homenzarrão com uma enorme cabeleira pre-
ta, dois belos olhos escuros, e uma voz de bombarda, que
ameaça sempre os rapazes de os espatifar, de levá-los pe-
las orelhas à polícia, fa-
zendo toda a espécie de
caretas espantosas... e
afinal não castiga nin-
guém, pelo contrário,
sorri sempre, por baixo
da barba, disfarçada-
mente. São oito, com
Coatti, os mestres, in-
cluindo um suplente,
pequeno e sem barba,
que parece um menino.
Um dos mestres da
quarta, é coxo, constan-
temente envolvido nu-
ma gravata de lã, e sem-
pre a gemer com dores
que apanhou quando
era professor geral numa esco,la húmida, cujas pa-
redes gotejavam água. Outro, também da quarta, um
38 CORAÇÃO
velho de cabelo todo branco foi em tempo mestre dos ce-
gos. Há um, bem vestido, de óculos e suícinhas loiras, a
quem chamam o advogadinho, porque exercendo o magis-
tério, estudou a advocacia e ganhou o prémio, e fez tam-
bém um livro para ensinar a escrever cartas. Um contras-
te com este é o mestre que nos ensina ginástica... um ti-
po de soldado ; andou com Garibaldi e tem no pescoço a
cicatriz de uma ferida de terçado que lhe fizeram na ba-
talha de Mijiazzo, Depois, o director, alto, calvo, com ócu-
los de oiro e barba grisalha caindo-lhe sobre o peito ; ves-
te sempre de preto, todo abotoado até debaixo do quei-
xo; é tão bom para os rapazes, que, quando são chamados
à direcção para serem repreendidos, não lhes ralha; pelo
contrário, pega-lhes nas mãos, e começa a dizer por mui-
tas formas que não deviam proceder assim, que é neces-
sário que se arrependam, e que prometam ser bons; mas
tudo isto com tão bom modo, e com uma voz tão doce, que
todos saem com os olhos chorosos e mais confusos do que
se os tivessem castigado. Pobre director ! êle é sempre o
primeiro no seu posto, logo de manhã, a esperar os estu-
dantes, a dar atenção aos parentes que os acompanham ; e,
quando os mestres vão já em caminho de casa, gira êle
pinda em volta da escola a ver que os rapazes se não me-
tam debaixo das carroças e não se entretenham pela es-
trada a fazer travessuras, ou a encher os bolsos de areia
ou de pedras: e todas as vezes que aparece a uma esquina
o seu vulto alto e escuro, os bandos de rapazes dispersam
por todos os Jados, abandonando, o jogo das peninhas e
das bolas, e êle com o seu semblante amorável e triste
ameaça-os de longe com a mão aberta e levantada.
Diz minha mãi que nunca ninguém o viu rir depois
que lhe morreu o filho que foi voluntário no exército, e
que tem sempre o retrato dele diante dos olhos, em cima
da mesa da direcção. Quis abandonar o lugar depois da
desgraça, e tinha o requerimento escrito e colocado so-
bre a mesa, pedindo a sua aposentação ao Governo; mas
não se resolvia a mandá-lo, porque tinha pesar de deixar
os rapazes. Até que um dia, estava decidido a apresentá-
-lo, e meu pai que estava com êle na direcção, disse-ilhe:
— Pena é que se vá embora, senhor director ! — Nisto en-
CORAÇÃO 39
trou um homem para inscrever um rapaz que passava de
outra secção para a nossa por ter mudado de casa. Ao ver
o novo aluno, o director ficou estupefacto. Fixou-o por
alguns minutos, olhou depois para o retrato que estava
sobre a mesa e tornou a fixar o rapaz. Meteu-o entre os
joelhos e fez-lhe levantar a cara para o ar. O rapaz asse-
melhava-se em tudo ao seu filho morto, disse o director.
Fez a inscrição, despediu pai e filho, e ficou pensativo...
— Pena é que se vá embora, repetiu meu pai...
Então o director pegou no requerimento, rasgou-o e
disse:
— Fico.
Os soldados
Terça-feira, 22
O filho, quando morreu, era voluntário do exército,
e por isso o director vai sempre ao Corso ver passar os
soldados quando saimos da escola. Ainda ontem passava
um regimento de infantaria, e mais de cincoenta rapazes
se puseram a pular em volta da banda marcial, cantando e
batendo o compasso com as réguas sobre as pastas. Nós
estávamos num grupo, no passeio, a ver aquilo. Garrone
metido na sua farpela muito esticada, e com os dentes
ferrados num pedaço de pão; Votini, o ta,l muito aceado
que sacode sempre os pelos do fato ; Precossi, o filho do
ferreiro, com a jaqueta do pai; e o Calabrês, e o pedrei-
rito e o Crossi, com a sua cabeça ruiva, e Franti com a sua
face tostada; e também Robetti, o filho do capitão de ar-
tilharia, aquele que salvou uma criança do omnibus e an-
da agora com muletas. Franti deu uma risada mesmo na
cara de um soldado que ia coxeando... Mas de repente
sentiu uma mão sobre o ombro, e voltando-se deu de fren-
te com o director.
— Toma sentido, disse-lhe este. Escarnecer de um
soldado, quando está na fileira e que não pode desafron-
tar-se, nem responder... é o mesmo que insultar um ho-
mem preso. É uma vilania!
Franti sumiu-se logo. Os soldados passavam, quatro
40 CORAÇÃO
a quatro, suados e cobertos de poeira, e as espingardas
cintilavam ao sol... Nesta ocasião disse o director:
— -Deveis estimar os soldados; são eles os nossos de-
fensores, são eles que se atirarão à morte por nós, se ama-
nhã um exército estrangeiro ameaçar a nossa pátria. Tam-
bém eles são rapazes, poucos anos mais têm do que vós
e também vão à escola. Há entre eles, como entre vós, po-
bres e ricos e vêm de todas as partes da nação. Quantos
não têm morrido pela pátria, em volta da bandeira, que é
sempre a mesma !
— Ela lá vem ! disse Garrone.
E efectivamente via-se um pouco ao longe tremular
a bandeira por cima das cabeças dos soldados.
— Vá, meus amigos! disse o director, fazei a vossa
continência de esco,lares, com a mão na fronte quando ela
passar.
A bandeira, empunhada por um oficial, passava dian-
te de nós, rota e desbotada, com medalhas presas e pen-
dentes da haste... Todos à uma fizeram continência. O
oficial olhou para nós, sorriu-se e com um gesto retri-
buiu-nos o cumprimento.
— Bravo, rapazes! exclamou alguém por trás de nós.
Voltámo-nos para ver quem falara. Era um velho,
que tinha na lapela do casaco a fita azul da campanha da
Criméa, um oficial reformado.
v— Bravo! repetiu: praticastes uma boa acção.
Neste meio tempo, a banda do regimento voltava ao
fundo do Corso, cercada por uma turba de rapazes, e os
gritos alegres de cem vozes acompanhavam os sons das
trombetas com um canto de guerra.
— Bravo! repetia-nos o velho oficial. Quem sabe res-
peitar a bandeira nessa idade, saberá defendê-la quando
homem.
O proíecíor do Nelli
Quarta- feira, 23
Nel,li, o pobre corcundinha, também ontem viu pas-
sar o regimento, mas com um ar triste como quem pensa-
CORAÇÃO 41
va : — Eu é que não posso nunca ser soldado ! Êle é bom,
estuda, mas é tão magrinho e tão pálido, e respira cora
tanta dificuldade!... Anda sempre de bibe comprido de
paninho de lustro. A mãi é uma senhora pequena e loira
vestida de preto; e vem sempre buscá-lo antes da hora,
para que êle não desça de roldão com os outros, e faz-lhe
muitas festas. Nos primeiros dias, porque tem a infelici-
dade de ser aleijado, muitos rapazes escarneciam-no e da-
vam-Ihe com as pastas na corcunda ; mas êle não se revol-
tava nunca, nem dizia nada à mãi, para lhe não dar o dis-
sabor de saber que seu filho servia de chacota aos compa-
nheiros. Escarneciam-no ; êle chorava e calava-se apoiando
a cabeça sobre a mesa. Mas uma manhã, sa,ltou em cima de-
les Garrone e disse:
— O primeiro que tocar em Nelli, leva um sopapo que
o faço dar três reviravoltas.
Franti não fez caso, o sopapo partiu, êle deu as três
reviravoltas; e depois disso nunca mais ninguém pôs a mão
no corcundinha. O mestre assentou-o ao pé de Garrone no
mesmo banco. Tornaram-se amigos. Nelli afeiçoou-se-lhe
muito, e, mal entra na escola, procura logo Garrone. Nunca
se vai embora sem lhe dizer : — Adeus, Garrone ! E Gar-
rone faz outro tanto. Quando Nelli deixa cair a pena ou
um livro debaixo da mesa, imediatamente Garrone, para
que Nelli não faça esforço em abaixar-se, abaixa-se êle,
Jevanta e entrega-lhe o livro ou a pena, e à saída ajuda-o
a meter os cadernos e os papéis na pasta, e enfia-lhe o ca-
pote. Por tudo isto Nelli gosta muito de Garrone e tem
sempre os olhos nele. Quando o professor elogia Garro-
ne, Nelli fica contente e satisfeito, como se fora êle o elo-
giado. Mas é de supor que Nelli afinal contasse à mãi as
caçoadas de que fora vítima nos primeiros dias, de quan-
to os companheiros o fizeram sofrer, e como o defendeu
e se lhe afeiçoou um condiscípulo, porque esta manhã
aconteceu o seguinte: O mestre mandou-me levar ao di-
rector o programa da lição, m.eia hora antes da saída; e
eu estava no seu gabinete quando entrou uma senhora
loira e vestida de preto. Era a mãi de Nelli, que pregun-
tou:
42 CORAÇÃO
— Senhor director, há na escola de meu filho um ra-
paz que se chama Garrone?
— Sim, minha senhora, respondeu o director.
— Quere ter a bondade de o mandar chamar aqui, um
momento, porque carecia dar-lhe uma palavra?
O director chamou o continuo e mandou-o à aula; um
minuto depois entrava Garrone, com a sua cabeça grande
e rapada, todo pasmado !
Apenas o viu, a senhora corre para êle, abraçando-
-se-lhe ao pescoço, dando-lhe muitos beijos na testa, ex-
clamando :
— És tu Garrone, o amigo de meu filho, o protector
daquela pobre criança! És tu, querido e bravo rapaz, és
tu!
Em seguida apalpou apressadamente as algibeiras e
a bolsa, mas não encontrando nada, arrancou do pescoço
um colar com uma pequena cruz e pô-la ao pescoço de
Garrone, por baixo da gravata, dizendo:
— Recebe esse colar, e conserva essa cruz como lem-
brança minha, conserva-a, caro rapaz, em recordação da
mãi de Nelli, que te agradece e te abençoa.
O primeiro da classe
Sexta-feira, 2$
Garrone atrai o afecto de todos; e Derossi, a admi-
ração. Já ganhou a primeira medalha, e será o primeiro
este ano, porque nenhum pode competir com êle, e todos
lhe conhecem superioridade em todas as matérias. É o
primeiro em aritmética, em geometria, em composição e
em desenho ; percebe tudo no ar e tem uma memória pro-
digiosa. Aprende bem sem esforço, e parece que o estu-
do é um brinquedo para êle. O mestre disse-lhe ontem:
Deu-te Deus grandes dons e tens obrigação de os não
desprezar.
E ainda para mais é alto, bonito, com uma grande
juba anelada de cabelos louros, e ágil. Salta um banco,
apoiando apenas uma mão em cima e já sabe jogar as ar-
CORAÇÃO 43
mas. Tem doze anos, é filho dum negociante, anda sem-
pre vestido de azul com botões dourados, e sempre vivo,
alegre e gracioso com todos; ajuda os outros, quando po-
de, e nenhum se atreveu ainda a £azer-lhe uma grosseria
ou a dizer-lhe uma palavra má. Só Nobis e Franti o olham
de revez, e Voltini, a esse rebenta-lhe a inveja dos olhos,
mas Derossi nem sequer dá por isso. Todos se sorriem
para êle, e lhe tocam na mão ou no braço quando êle anda
entre nós a recolher os trabalhos com a sua habitual ma-
neira graciosa. Presenteia-nos com jornais ilustrados,
com tudo que em casa lhe dão; fez para o calabrês uma
pequena carta geográfica da Calábria e dá tudo a rir sem
reparar no que dá, como um fidalgo sem preferência por
ninguém. É impossível não lhe ter inveja, e não se sentir
a gente inferior a êle em todas as coisas. Ah! até eu tam-
bém como Voltini lhe tenho inveja. Experimento uma
amargura, quási despeito contra êle, quando me demoro
a fazer a minha lição em casa, e me lembro que êle, aque-
la hora a tem já acabada, perfeitamente, e sem lhe custar
nada. Mas depois, quando vou para a escola, e o vejo tão
belo, tão risonho, e oiço as respostas francas e seguras
que êle dá às interrogações do mestre vejo como é cor-
tês com os companheiros, então, toda a amargura e todo
o despeito desaparecem, e envergonho-me de ter experi-
mentado tais sentimentos. Quereria estar sempre junto
dele, dar todas as lições com êle, porque a sua presença
e a sua voz dão-me coragem, vontade de trabalhar, alegria
e prazer. O mestre disse-lhe que copiasse o conto mensal
que há-de ler amanhã — O pequeno vigia Lombardo. Êle
copiava-o esta manhã e estava comovido por aquele acto
heróico, e tinha o rosto incendiado, os olhos húmidos, os
beiços trémulos. E eu fitava-o. Como era grande e no-
bre! Com que satisfação lhe teria dito face a face e ex-
pansivamente : — Derossi, tu vales em tudo mais do que
eu! Tu és um homem comparado comigo! Respeito-te e
admiro-te !
44
CORAÇÃO
O pequeno vigia lombardo
(CONTO MENSAL)
Sábado, 26
Em 1859, du-
rante a guerra
da libertação da
Lombardia,
poucos dias de-
pois da bata-
lha de Solferi-
no e S. Marti-
nho vencida pe-
los franceses e italianos contra os
austríacos, em uma bela manhã de
junho, um pequeno destacamento de
cavalaria ligeira de Saluzo, seguia
em passo vagaroso por um caminho
solitário, em direcção ao inimigo,
explorando atentamente o campo.
Comandavam o destacamento um
oficial e um sargento, e todos com
a vista fixa ao longe em frente, mu-
dos, esperando ver de um momento para o outro branque-
jar entre as árvores as divisas das sentinelas avançadas do
inimigo. Chegaram assim a uma casa rústica, cercada de
freixos, ao pé da qual estava um rapaz de meia dúzia de
anos, que descascava com uma faca um galho de árvore pa-
ra fazer um bastãozinho. Na janela do prédio flutuava
uma bandeira tricolor. Dentro não havia ninguém. Os
camponeses arvoraram a bandeira e fugiram com medo
dos austríacos. Mal avistou a cavalaria o rapaz deitou fora
o bastão e tirou o barrete. Era um belo adolescente, de
rosto ousado, com olhos grandes, azuis, e os cabelos lou-
ros e compridos. Estava em mangas de camisa e via-se-
-Ihe o peito nu.
— Que fazes aqui? — preguntou o oficial, parando o
cavalo. Porque não fugiste com a tua família?
CORAÇÃO 45
— Eu não tenho família — respondeu o rapaz, sou
engeitado. Trabalho um pouco para todos. Fiquei para
ver a guerra.
— Viste passar austríacos?
— Não senhor, há três dias que não vejo nenhum.
O oficial esteve um momento pensativo, depois
apiou-se deixando os soldados voltados em direcção ao
inimigo, entrou em casa e subiu ao telhado. A casa era
baixa, e do telhado não se via mais que um trecho de ter-
reno. Era necessário subir às árvores, disse consigo o ofi-
cial, e desceu. Em frente da eira erguia-se a prumo um
freixo altíssimo e delgado, cuja coroa oscilava no fundo
azul. O oficial, concentrado, olhava ora para a árvore, ora
para os soldados. Depois, de-repente, preguntou ao ra-
paz:
— Tens tu bom olho, meu tratante?
— Eu! respondeu o rapaz; vejo um parda^ a uma mi-
lha de distância.
— E és capaz de subir ao cimo daquela árvore?
— Àquela árvore... ora essa! Eu! num minuto estou
lá em cima.
E saberias dizer o que visses lá do alto; se haverá
soldados austríacos por alguma parte, ou nuvens de pó,
cavalos, luzir de espingardas?
— De-certo que hei-de saber.
— Que queres tu para fazer esse serviço?
— O que eu quero ! disse o rapaz sorrindo.
Não quero coisa nenhuma... Se fosse para os tudes-
cos... isso então por nada deste mundo... mas para os
nossos! Eu sou lombardo.
— Bravo ! sobe lá.
— Um momento para tirar os sapatos!
Descalçou-se, apertou o cinto das calças, atirou ao
chão o barrete, e abraçou-se ao tronco do freixo.
— Mas toma cuidado!... exclamou o oficial fazendo
menção de retê-lo, como se o assaltasse um temor repen-
tino. O rapaz pôs-se a olhar para êle com os seus belos
olhos azuis como initerogando-o.
— Não é nada, dise o oficial, sobe lá!...
O rapaz trepou como um gato.
46
CORAÇÃO
— Olhai em
frente! gritou o
oficial aos sol-
dados.
Em poucos
momentos esta-
va o rapaz no
topo da árvore
abraçado ao tronco, com as per-
nas entre as folhas, mas com, o
corpo descoberto. O sol batia-
-Ihe sobre a cabeça loura que
parecia de ouro. O oficial
mal o via, tão pequeno êle pa-
recia na coroa do freixo.
Olha atento, e ao longe! — gri-
tou-lhe o oficial.
O pequeno, para ver melhor, des-
prendeu a mão direita da árvore, co-
locou-a sobre a testa em forma de
pala.
— Que vês? preguntou o oficial.
O rapaz inclinou a cabeça para
êle, e fazendo da mão porta-voz, res-
pondeu:
— Vejo, na estrada branca, dois
homens a cavalo.
— A que distância daqui?
— Meia milha.
— Movem-se?
— Estão parados.
— Que mais vês? preguntou o oficial depois de um
momento de silêncio. Olha agora à direita.
O rapaz olhou à direita e depois disse:
— Ao pé do cemitério, entre as árvores, há qualquer
coisa que reluz, parecem baionetas.
— Vês gente?
— Não... pode ser que esteja escondida entre o mi-
lho. Naquele momento, um silvo de bala agudíssimo, sen-
CORAÇÃO 47
(tiu-se a grande altura, indo morrer ao longe, por detrás
da casa.
— Desce, desce, que já te viram! gritou o oficial.
Não quero mais nada; desce.
— Eu não tenho medo nenhum! respondeu o ra-
paz.
— Desce! repetiu o oficial... e que vês à esquerda.
— À esquerda?
— Sim, à esquerda.
O rapaz voltou a cabeça à esquerda, e nesse momento
sentiu-se um outro silvo mais agudo e mais baixo do
que o primeiro. O rapaz encolheu-se todo.
— Escapei por milagre: vinha direitinha a mim!
A bala tinha-lhe passado a pouca distância.
— Abaixo! — gritou o oficial imperioso e irritado.
— Desço já — respondeu o rapaz — mas a árvore de-
fende-me, não tenha susto. À esquerda é que quere sa-
ber, não é?
— A esquerda, sim — respondeu o oficial, mas desce!
— A esquerda, gritou o rapaz, volvendo o corpo para
aquele lado... lá, onde está uma capela... parece que
vejo... Ouviu-se o terceiro silvo mais forte, e quási em
seguida, o rapaz cambaleando, agarrando-se por instantes
aos troncos e aos ramos, caía de cabeça para baixo, no
chão.
— Maldição! gritou o oficial, correndo para êle.
O desgraçado batera com a espinha em terra e fi-
cara estendido de costas com os braços abertos. Um jorro
de sangue golfava-lhe do lado esquerdo do peito. O sar-
gento e dois soldados apearam-se logo e o oficial de-
bruçou-se sobre o ferido, abrindo-lhe a camisa. A bala
tinha-lhe entrado no pulmão esquerdo.
— Está morto! exclamou o oficial.
— Ainda vive, acudiu o sargento.
— Ah ! pobre valente rapaz ! continuou o oficial ; cora-
gem! coragem!
Mas enquanto êle o animava e lhe apertava um lenço
sobre a ferida, o rapaz entreabrindo os olhos deixou
cair a cabeça. Estava morto. O oficial empalideceu, fi-
xou-o um momento, acomodando-o depois com a cabeça
4«
CORAÇÃO
sobre a erva. Levantou-se em seguida, e ficou a olhar para
êle con/templativo. O sargento e alguns soldados, imóveis,
tinham igualmente os olhos fitos no pequeno morto e os
outros estavam voltados com a frente para o inimigo.
— Pobre rapaz! repetiu tristemente o oficial. Pobre
e bravo rapaz !
Depois abeirou-se da casa, e tirando da janela a ban-
deira tricolor, estendeu-a como um pano fúnebre sobre
o cadáver, deixando-lhe o rosto descoberto. O '^^argento
colocou ao lado do morto, os sapatos, o barrete, o bastão
e a faca. Estiveram ainda algum tempo silenciosos; e
em seguida o oficial, voltando-se para o sargento, disse-
-Ihe:
— Mandá-lo-emos receber pela ambulância; morreu
como soldado, que seja enterrado por soldados!
Dito isto, atirou com um gesto um beijo ao morto, e
gritou :
— A cavalo!
Todos montaram, reiiniu-se o destacamento e tomou
o seu caminho. Poucas horas depois, o pequeno morto
recebia as honras de guerra. Ao pôr do sol toda a linha
de postos avançados dos italianos, marchava ao encontro
CORAÇÃO 49
do inimigo pelo mesmo caminho percorrido de manhã
pelo destacamento de cavalaria. Prosseguia em duas filas
cerradas um grosso batalhão de caçadores, que poucos
dias antes regara valorosamente de sangue o monte de
S. Martinho. A notícia da morte do rapaz tinha-se divul-
gado entre aqueles soldados antes de deixarem o acampa-
mento. O caminho, ladeado pelo regato, ficava a poucos
passos de distância da casa. Quando os primeiros oficiais
do batalhão viram o pequeno cadáver estendido ao pé
do freixo e coberto pela bandeira tricolor, saiidaram-o
com a espada, e um deles, inclinando-se sobre a margem
do regato, que estava toda florida, arrancou duas flores
e atirou-lhas. Em poço tempo estava o corpo do rapaz
(todo coberto de flores. Oficiais e soldados fizeram-lhe
a continência.
— Bravo ! pequeno lombardo ! Adeus, bravo rapaz !
A ti, louro mártir, Viva! Glória! Adeus!
Um oficial, lançou-lhe a sua medalha de valor, e um
outro, deu-lhe um beijo na testa. E as flores conti-
nuavam a chover sobre os pés nus, sobre o peito ensan-
giientado e sobre os cabelos do pobre rapaz envolto na
sua bandeira, com o rosto pálido quási sorrindo, como
se sentisse aquelas saudações, e estivesse contente por
ter dado a vida pela Lombardia.
Os pobres
Terça-feira, 2Q
Dar a vida pela pátria como o moço Lombardo, é uma gran-
de virtude, mas não se devem desprezar as pequenas virtudes,
meu filho. Esta manhã, indo tu adiante de mim, quando voltáva-
mos da escola, passaste junto duma pobre, tendo entre os joelhos
uma criança pálida e abatida, que te pediu esmola. Tu olhaste
para ela, e não lhe deste nada! e contudo tinhas algum dinheiro
na algibeira. Ouve filho: nunca te habitues a passar indiferente
pela miséria que estende a mão: e muito menos diante de uma
mãi que pede uma esmola para o seu filho. Pensa, em que essa
criança pode ter fome, e calcula a desolação da pobre mulher!
50
CORAÇÃO
Imagina o desespero de tua mãi se um dia se visse forçada a di-
j:er-te: — Henrique! hoje não te posso dar nem sequer um boca-
dinho de pão. — Quando eu dou um soldo a um pobre, e êle me
diz: — «Deus lhe conserve a saúde e a toda a sua família...» nem
tu podes compreender o prazer que me dão ao coração aquelas
palavras, e a gratidão que
sinto! Parece-me que tão
bons desejos me conservarão
a saúde por muito tempo, e
volto a casa contente dizen-
do comigo: Oh! aquele pobre
deu-me mais do que eu lhe
dei!... Agora, Henrique, vê se
fazes que eu ouça algumas
vezes essas consoladoras pa-
lavras provocadas e mereci-
das por ti. Tira de vez em
quando algimi soldo da tua
pequena bolsa para o deixar
cair na mão dum velho sem
amparo, duma mãi sem pão,
ou duma criança sem mãi. Os
pobres apreciam a esmola
das crianças, que não os himiilha porque as crianças, que têm
necessidade de todos, assemelham-se a eles. Repara em como há
sempre muitos ao pé das escolas. A esmola do homem é sem-
pre um acto de caridade! mas a da criança é ao mesmo tempo um
acto da caridade e uma carícia; entendes? É como se da sua mão
caísse simultaneamente um soldo e uma flor. Lembra-te que a ti
não te falta nada, e a eles falta-lhes tudo; que enquanto tu ambi-
cionas ser feliz, eles contentam-se em não morrer. Pensa quanto
é horrível que no meio de tantos palácios, de tantas ruas por on-
de passam ricas equipagens e rapazes vestidos de veludo, haja
mulheres e crianças que não têm um pedaço de pão. Não ter que
comer!... Meu Deus! Rapazes como tu, inteligentes como tu, e
no centro de imia grande cidade, não terem que comer... como
feras perdidas num deserto! Oh! nunca mais, Henrique, nunca
mais, passes diante duma mãi mendiga, sem deixar-lhe, ao me-
nos, uma pequena esmola.
CORAÇÃO 51
DEZEMBRO
O íraficaníe
Quinta-feira, i
Meu pai quere que em todos os dias feriados convide
para casa um dos meus companheiros, ou que vá eu pro-
curá-los para me tornar pouco a pouco amigo de todos.
Domingo vou passear com Votini, o tal muito asseado,
que está sempre a escovar-se, e que tanta inveja tem de
Derossi. Hoje o que veio foi o Garoffi, aquele alto e ma-
gro, com nariz de coruja e olhos pequenos e velhacos, que
parece intrometer-se em tudo. É filho de um droguista e é
muito original. Está sempre a contar o dinheiro que tem
no bolso e conta pelos dedos, rapidamente, sem precisão
de tabuada. E amontoa. Tem já caderneta na caixa eco-
nómica escolar. Desconfio que não gasta nada, e se lhe cai
um soldo debaixo dos bancos é capaz de o procurar du-
rante uma semana. Derossi diz que ê^e faz como as pegas:
tudo que acha, penas enferrujadas, estampilhas servidas,
cotos de vela, tudo apanha. Há mais de dois anos que co-
lecciona estampilhas e já tem centos de todos os países
nvun grande álbum que tenciona vender depois ao livreiro,
quando estiver todo cheio. O livreiro dá-lhe cadernos de
graça porque êle arranja-lhe outros rapazes para fregue-
zes. Na escola negoceia sempre; todos os dias faz venda
de objectos, rifas, trocas que se arrepende logo e quere
desfazer; compra por dois e vende por quatro; joga o jo-
go das peninhas e nunca perde; vende jornais velhos aos
estanqueiros; e tem um pequeno caderno, em que toma
nota dos seus negócios, todo cheio de somas e subtrac-
ções. Na escola não estuda senão a aritmética, e se deseja
a medalha é só para ter entrada grátis no teatro das Ma-
rionettes. Não desgosto dele e diverte-me. Temos jogado
a fazer o mercado com pesos e balança, e êle sabe o preço
certo de todas as coisas, e sabe fazer cartuchos muito bem,
c tão depresa como qualquer lojista. Diz que, ^ogo que
52 CORAÇÃO
sair da escola, há de pôr um negócio, um comércio novo,
que êle inventou. Quando lhe dei estampilhas estrangei-
ras ficou todo contente, e disse exactamente o preço por
que se vende cada uma para colecções. Meu pai, fingindo
ler a gazeta estava a ouvi-lo e a sorrir-se. Trás os bolsos
sempre cheios das suas pequenas mercadorias que reco-
bre com um grande capote escuro, e parece continuamente
absorto e afadigado como um negociante. Mas, sobretudo,
o que êle aprecia é a sua colecção de estampilhas; é o seu
tesouro, e fala sempre nela como se de ali lhe viesse
uma grande fortuna. Os companheiros chamam-lhe ava-
rento e usurário. Será, mas eu gosto dele, ensina-me mui-
tas coisas e parece-me um homem. Disse Coretti, o filho
do vendedor de ,lenha, que Garofi não era capaz de dar
as suas estampilhas, nem para salvar a vida da mãi. Meu
pai não acredita isso. Espera ainda para o julgar defini-
tivamente e disse-me:
— Tem essa f raquesa, mas tem coração.
Vaidade
Segunda-íeira, 5
Ontem fui dar o meu passeio pela Avenida de Rivoli
com Votini e seu pai. Passando pela rua Dora Grossa, vi-
mos Stardi, aquele que responde com pontapés aos que
lhe fazem preguntas. Estava firme e direito diante duma
montra de livreiro, com os olhos fixos numa carta geo-
gráfica, e quem sabe lá há quanto tempo ali estava, por-
que êle estuda também pela rua. Apenas correspondeu ao
nosso cumprimento aquele casmurro ! Votini ia muito bem
vestido, até de mais; calçava botinas de marroquim, pes-
pontadas de vermelho ; vestia um casaquinho bordado com
borlas de seda, relógio, e na cabeça um chapéu de castor
branco. E pavoneava-se todo. Mas desta vez foi castigado
r.a sua vaidade. Depois de termos corrido um grande pe-
daço pela a,lameda, seu pai ficou muito atrás porque an-
dava de vagar, e nós parámos junto dum banco de pedra,
ao lado dum rapaz vestido modestamente, que parecia fa-
tigado e pensativo, com a cabeça sobre o peito. Um ho-
mem que devia ser pai dele, passeava debaixo das árvores
CORAÇÃO 53
lendo a gazeta. Sentámo-nos. Votini ficou entre mim e o
rapaz De repente lembrou-se que estava muito aceado, e
quis fazer-se admirar e invejar do vizinho; levantou um
pé e disse:
— Já viste as minhas botas de oficial?
Disse isto para chamar a atenção do outro, mas ele
não se mexeu. Abaixou então o pé e mostrou as borlas de
seda, e olhando de soslaio o rapaz, disse-me que lhe não
agradavam muito, e que as ia mandar substituir por bo-
tões de prata, e o rapaz nem sequer olhou para as borlas.
Então Votini pôs-se a fazer girar sobre a ponta do index
o seu belo chapéu de castor branco, e o rapaz, — parece
que o fazia de propósito, — não se dignou lançar a vista
para o chapéu. Votini principiava já a impacientar-se, e
tirando o relógio do bolso, abriu-o e mostrou-me o ma-
quinismo.
— É de prata dourada? preguntei.
— Não, — respondeu — é de ouro.
— Mas não será todo de ouro, repliquei eu, também
há-de ter ajguma prata.
— Não tem — retorquiu ele. E para obrigar o rapaz a
olhar, pôs-lhe o relógio à cara dizendo:
— Vê tu, não é verdade que é todo de ouro?
O rapaz respondeu secamente:
— Não sei.
— Oh! Oh! exclamou Votini enraivecido, que sober-
ba!
Enquanto dizia isto, chegou seu pai, que ouvindo a
exclamação, olhou um momento fixo, para o rapaz e de-
pois disse bruscamente ao filho:
— Cala-te !
E, inclinando-se, disse-lhe ao ouvido:
— É cego !
Votini levantou-se logo e fitou o rapaz de frente. Ti-
nha as pupilas vitreas, sem expressão e sem vida.
Votini ficou humilhado, silencioso, com os olhos no
chão... Depois balbuciou: — Faz-me pena... e se o sou-
besse...
Mas o cego, que compreendera tudo, murmurou com
wn sorriso bom e melancólico:
54 CORAÇÃO
— Não faz ma,l...
Votini é vaidoso, mas não tem mau coração. Em todo
o passeio não se tornou a rir.
A primeira neve
Sábado, lo
Adeus, passeios a Rivoli! Ei-Ia a amiga dos rapazes!
eis a primeira neve! Desde ontem à tarde que caem flocos
densos e grandes como flores de jasmineiros. Era um pra-
zer vê-la cair contra as vidraças e amontoar-se sobre as
sacadas. Até o mestre olhava, e esfregava as mãos; e to-
dos estavam contentes, pensando nas bolas que haviam de
fazer, no gelo que viria em seguida, e no fogão de casa.
Só Stardi se mostrava indiferente a tudo, absorto na li-
ção, com os punhos encostados às fontes. Mas que bulha
e que festa que foi à saída! Todos a saltar pela rua fora
gritando e bracejando, juntavam montões de neve e me-
tiam os pés dentro, como cãizinhos na água! Os parentes
que esperavam fora tinham os guarda-chuvas brancos, e
os capacetes da guarda civil e as nossas pastas em pouco
tempo ficaram também brancas. Todos pareciam fora de
si de alegria, até Precossi, o filho do ferreiro, o pàlidozi-
nho que não ri nunca; e Robetti, o que salvou a criança
do omnibus, pobrezito ! como saltava com as suas mule-
tas ! O calabrês, que nunca tinha tocado em neve, fez uma
bo,la e pôs-se a comê-la, como se fosse um pêssego. Cros-
si, o filho da vendedeira de hortaliças, encheu a bolsa; e
o pedreiro fez-nos rebentar de riso quando meu pai o con-
vidou a vir amanhã a nossa casa. Tinha a boca cheia de
neve, e não se resolvendo a deitá-la fora, nem a engoli-la,
estava engasgado a olhar para nós, sem dizer palavra. Até
as mestras saíam da escola a correr e a rir, e também a mi-
nha mestra da primeira superior, coitadita, corria através
do nevisco, resguardando a cara com o seu véu verde, e
tossia. E, no entanto, centenares de raparigas da secção
vizinha passavam aos gritos e pulavam sobre o alvo tape-
te. Os mestres, os contínuos e o guarda gritavam : — Para
casa! Para casa! E iam engolindo flocos de neve e bran-
CORAÇÃO
55
queando-se-lhes os bigodes e as barbas. Mas também esses
riam de louca alegria dos escolares que festejavam o in-
verno.
Vós festejais o inverno, mas há rapazes que não têm nem
roupas, nem sapatos, nem fogão. Há mulheres que descem às al-
deias, depois de ter andado um longo caminho, trazendo nas
mãos ensanguentadas pelas frieiras um molho ds lenha para
aquecer a escola. Há centenares de escolas quási sepultadas na
neve, nuas e tétricas como espeluncas onde os rapazes sufocam
com fumo e batem os dentes com frio olhando com terror para
os flocos brancos que caem cada vez mais sobre as suas cabanas
distantes, ameaçadas de uma avalanche. Vós festejais o inverno,
rapazes, e não vos lembrais que há milhares de criaturas, a
quem o inverno leva a miséria e a morte.
O pedreiriío
Domingo, ii
O pedreirito veio hoje à caçadora, todo vestido de
fato já usado por seu pai, ainda salpicado de cal e de
gesso. Meu pai desejava ainda mais do que eu que êle
viesse. Que prazer nos
deu! Apenas entrou,
tirou o chapéu esfarra-
pado, todo molhado de
neve, e meteu-o no bol-
so. Depois, adiantando-
-se com o seu an-
dar descuida do de
o p e r ário fatigado, e
voltando para um e ou-
tro lado a sua carinha
redonda como uma ma-
çã e o seu nariz de ra-
banete, quando chegou
à sala de jantar, deu
uma olhadela em torno
dos móveis e parando a
vista sobre um quadro
5Ô CORAÇÃO
que representa Rigoleto, um bobo corcunda, fêz o foci-
nho de lebre. É impossível ficar sério ao vê-lo fazer o /o-
cinho de lebre. Começamos a brincar com as tabuinhas.
Êle tem uma habilidade extraordinária para fazer torres e
pontes, que parece sustentarem-se por milagre, e trabalha
com seriedade e a paciência de um homem. Enquanto ia
erguendo torres falou-me da sua família. Vivem em uma
água-furtada; o pai vai às escolas nocturnas aprender a lêr
e a mãi é biolesa. E compreende-se que o estimam muito,
porque anda vestido como pobre, bem resguardado do frio,
com a roupa bem remendada e a gravata muito bem posta
pela mão de sua mãi. O pai, disse, é um pedaço de homem,
um gigante, que mal cabe pelas portas, mas bom. Chama
sempre ao filho focinho de lebre. O filho, ao contrário, é
pequenito. Às quatro horas merendámos pão e uvas sen-
tados no sofá, e quando nos levantamos, meu pai, não sei
por quê, não quis que eu limpasse o espaldar que o pe-
dreirito tinha manchado de branco com a sua jaqueta. Se-
gurou-me na mão e depois limpou-o êle às escondidas.
Jogando, o pedreirito perdeu um botão da «caçadora» e
minha mãi pregou-lho. Êle fez-se encarnado e estava a
vê-la coser todo maravilhado e confuso, contendo a res-
piração. Depois, mostrei-lhe álbuns de caricaturas, e êle
insensivelmente imitava as expressões delas, tão bem,
que até meu pai se ria. Ao sair, ia tão contente que se
esqueceu de pôr na cabeça o barrete esfarrapado; e che-
gando ao patamar, para significar a sua gratidão fez ainda
o focinho de lebre. Chama-se António Babuco, tem oito
anos e oito meses.
Sabes tu, meu filho, porque não quis que limpasses o sofá?
Porque limpá-lo à vista do teu companheiro era quási censurá-
-lo por o ter manchado, E isto não era bonito. Primeiro, por-
que êle o não tinha feito de propósito; segundo, porque o ti-
nha manchado com a roupa que fora de seu pai, o qual a sal-
picara de gesso trabalhando ; e o que se mancha no trabalho,
não se pode dizer sujo; são nódoas ds cal, de verniz, de tudo
aquilo que quiserem... mas não é porcaria. O trabalho não em-
porcalha. Nunca digas dum operário que vem do trabalho: «Está
porco». Diz antes: «Tem no seu fato os sinais e os indícios do
CORAÇÃO 57
S€n ofício». Recorda-te bem disto. Eu quero bem ao pedreirito
não só porque é teu companheiro, mas porque é filho dum ope-
rário.
Teu pai
Uma bola de neve
Sexta-feira, i6
Continua a nevar, a nevar sempre. Houve um aconte-
cimento desagradável esta manhã, por causa da neve, ao
sair da escola. Um bando de rapazes que apenas desembo-
caram no Corso, principiaram a atirar bolas com aquela
neve aquosa que as faz consistentes e pesadas como pedra.
Havia muita gente pelos passeios. Um sujeito gritou:
— Alto lá, garotos!
E justamente nessa ocasião ouviu-se um grito agudo
do outro lado da rua, e viu-se cambalear um velho a quem
caíra o chapéu, cobrindo o rosto com as mãos, e ao lado
dele um rapaz que gritava:
— Socorro! Socorro!
Correu gente de todos os lados. O velho tinha sido
ferido com uma bola num olho. Todos os rapazes disper-
saram, fugindo como setas. Eu estava defronte da livra-
ria, onde tinha entrado meu pai, e vi chegar a correr mui-
tos dos meus companheiros que se misturavam com os ou-
tros ao pé de mim, fingindo olhar muito sossegados para
as montras. Estava Garrone com o seu costumado pão na
algibeira. Coretti, o pedreirito, e Garroffi, o das estam-
pilhas. No entanto tinha-se aglomerado povo em volta do
relho, e alguns polícias corriam duma parte para a outra,
ameaçando e preguntando :
— Que é isto? Quem foi? Foste tu? diz quem foi!
E olhavam para as mãos dos rapazitos a ver se esta-
vam molhadas de neve. Garroffi estava ao meu lado e
notei que tremia todo e se tornara pálido como um morto.
— O que foi? quem foi? — continuava a gritar a gen-
te:
Nisto ouvi Garrone que disse baixo a Garrof i :
58 CORAÇÃO
— Anda, apresenta-te; seria velhacaria consentir que
outro aguente com as culpas.
— Mas é que eu não fiz por querer, respondeu Garoffi
tremendo como varas verdes.
— Não importa, faz o teu dever, repetiu Garrone.
— Mas... eu não tenho coragem...
— Qual não tens coragem?! eu acompanho-te.
E o guarda e todos os outros continuavam .gritando:
— Quem foi? Quem foi? Fizeram-lhe entrar um vi-
dro dos óculos pelo olho dentro! Cegaram-o! Tratantes!
Eu cuidei que Garroffi desmaiava.
— Vem daí, — i disse-lhe resolutamente Garrone; eu
defendo-te.
E agarrando-o por um braço, deu-lhe um empurrão
para diante, amparando-o ao mesmo tempo como a um
doente. O povo viu e percebeu tudo, e alguns correram
sobre êle com os punhos levantados. Mas Garrone, pôs-se
no meio, gritando:
— Que quere isto dizer? Dez homens contra um rapaz!
Eles então contiveram-se, e um guarda civil agarrou
Garoffi por uma mão e abrindo o caminho por entre o
povo conduziu-o a uma loja de massas, onde se tinha re-
colhido o ferido. Reconheci logo no velho o empregado
que mora no quarto andar da nossa casa, com um sobri-
nho. Estava sentado numa cadeira, com o lenço sobre os
olhos.
— Não foi por querer, — dizia soluçando Garoffi,
meio morto de susto... — Não foi por querer...
Duas ou três pessoas empurraram-no violentamente
para dentro da loja, gritando:
— De joelhos! pede perdão!
E deitaram por terra o pobre Garoffi. Imediatamente,
dois braços vigorosos o ergueram, e alguém com voz re-
soluta, disse:
— Não, senhores! — Era o nosso director que tinha
visto tudo. — Já que teve a coragem de apresentar-se, nin-
guém tem o direito de humilhá-lo.
Todos ficaram silenciosos!
— Pede perdão! — disse o director a Garoffi.
Garoffi, num pranto copioso, abraçou os joelhos do
CORAÇÃO 5Q
velho, e este, procurando com as mãos a sua cabeça afa-
gou-lhe os cabelos. Então disseram todos:
— Vai, rapaz... vai para casa.
E meu pai retirou-me dentre a multidão e disse-
-me pelo caminho : — Henrique, tu, em caso semelhante,
terias a coragem de cumprir o teu dever, e de ir confes-
sar a tua culpa? — Respondi-lhe que sim. E êle acres-
centou :
— Dá-me a tua palavra de honra que o farias...
— Dou-lhe a minha palavra, meu pai.
As mesíras
Sábado, 17
Garoffi estava todo assustado hoje, esperando uma
grande repreensão do professor, mas este não compare-
ceu; e falando também o suplente, veio dar aula a se-
nhora Cromi, a mais velha das mestras, que tem dois
filhos já grandes, e já ensinou a ler e a escrever muitas
senhoras que vem agora acompanhar os filhos à Secção
Baretti. Estava hoje triste, porque tem um filho doente.
Apenas a viram, principiaram a fazer grande algazarra:
porém ela, com voz pausada e tranqiiila, disse:
— Respeitai os meus cabelos brancos: não sou só
uma antiga mestra, sou também uma mãi.
E nenhum mais se atreveu a abrir a boca, nem mes-
mo Franti, aquela cara de estanho, que se contentou era
arremedá-la às escondidas. Para a classe de Cromi, foi
mandada a Delcati, mestra de meu irmão, e para o lugar
da Delcati foi aquela a que chamam a Freirinha, por an-
dar sempre vestida de escuro, com um avental preto. Tem
um rosto alvo e pequeno, os cabelos sempre lisos, e os
olhos muito claros, e uma voz subtil que parece estar
sempre a murmurar orações.
— Custa a compreender, diz minha mãi, como sendo
ela tão branda e tímida, com aquele fio de voz sempre
igual, que mal se sente, que não grita nem se encoleriza,
consiga, a-pesar disso, ter os pequenos tão sossegados
que ninguém os ouve. Até os mais travessos abaixam a
60 CORAÇÃO
cabeça ao mais ligeiro aceno que ela faça com o dedo.
Parece uma igreja a sua escola, e por isso também, lhe
chamam a Freirinha.
Há ainda outra mestra que me agrada muito. É a
da primeira inferior, n.° 3, aquela moça ainda, com o
rosto rosado, que tem duas covinhas nas faces, e trás uma
grande pena vermelha no chapelinho, e uma cruz de vi-
dro amarelo pendente no pescoço. Está sempre alegre.
Tem a c4asse alegre. Sorri sempre, grita sempre, com a
sua voz argentina que parece cantar, tocando com a va-
rinha em cima da mesa, batendo com as mãos para impor
silêncio; depois, à saída, corre como uma criança atrás
de uns e outros, para metê-los em fileira, a este levanta
a gola da jaqueta, àquele abotoa o capote para que se não
constipe. Segue-os até à rua para que não vão desgre-
nhados, pede aos pais que os não castiguem em casa, dá
pastilhas aos que têm tosse, empresta o seu regalo aos
que se queixam de frio, é atormentada de contínuo pelos
mais pequenitos que lhe fazem muitas festas e lhe pe-
dem beijos, puxando-lhe pelo véu e pela mantilha. E ela
deixa fazer tudo, e beija-os a todos, rindo, e vai sem-
pre para casa esguedelhada, com o vestido amarrotado,
fatigada e contente, com as suas graciosas covinhas nas
faces e a sua pena vermelha. É também mestra de desenho
das meninas e mantém com seu trabalho a mãi e um irmão.
Em casa do ferido
Domingo, 18
Está com a mestra de pena vermelha o sobrinho do
velho empregado que foi ferido no olho pela bola de
neve de Garoffi. Vimo-lo hoje em casa de seu tio que
o estima como filho. Eu tinha acabado de escrever o
conto mensal para a próxima semana: O pequeno escre-
vente florentino, que o mestre me deu para copiar, e o
pai disse-me:
— Vam.os lá acima ao quarto andar ver como está do
ôlho o nosso vizinho.
CORAÇÃO
61
Entrámos num quarto, quási escuro, onde estava o
velho na cama, sentado, com muitas almofadas por trás
das costas; à cabeceira sentava-se a sua mulher e a um
canto estava brincando o sobrinho. O velho tinha o olho
vendado. Ficou muito satisfeito por ver meu pai; man-
dou-nos sentar, e disse que se sentia melhor, que o olho
não estava perdido, e que brevemente estaria curado.
— Foi uma desgraça! e lamento o susto que devia
(ter tido aquele pobre rapaz... disse êle.
Depois falou-nos do médico, que não devia tardar
para fazer o curativo. Neste momento tocaram à cam.-
paínha. — Há-de ser o médico, disse a senhora...
Abre-se a porta,
e que vejo eu?
Garof f i com o
seu capote com-
prido, sem ter co-
ragem de entrar.
— Quem é? pre-
guntou o doente.
— É o rapaz que
atirou com a bola,
disse meu pai. E
o velho excla-
mou:
Oh ! pobre ra-
paz! entra. Então
vens visitar o fe-
rido, não é verda-
de? Vai melhor,
fica sossegado, vai melhor! estou quási bom... Entra,
vem cá!
Garoffi, confuso, que nem os via, aproximou-se do
leifto, esforçando-se para não chorar; e o velho começou
a acariciá-lo, mas êle não podia falar.
— Muito obrigado, disse o velho. Diz a teu pai e a
tua m_ãi que tudo vai indo bem, que não tenham cuidado.
Mas Garoffi não se movia, percebia-se porém, que
tinha vontade de dizer alguma coisa, mas não ousava.
62 CORAÇÃO
— Que tens a dizer? que queres tu?
— Eu, nada.
— Bem, então adeus, até à visita; vai e leva o cora-
ção sossegado.
Garoffi foi até à porta; mas aí parou, voltando-se de-
pois para o sobrinho que o seguia e olhava com curiosi-
dade. De repente, tira debaixo do capote um objecto, e
mete-o nas mãos do pequeno, dizendo-lhe:
— É para ti.
E desapareceu como um relâmpago. O pequeno levou
o objecto ao tio. Tinha escrito em cima: Faço-te presente
disto. Vai-se a ver... Geral exclamação de espanto. Era o
famoso álbum com a colecção de estampilhas que o pobre
Garoffi tinha trazido, a colecção em que êle falava sem-
pre, e que lhe custara tantas fadigas; era o seu tesouro,
pobre rapaz! Era metade do seu sangue que êje dava em
troca do seu perdão.
(CONTO MENSAL)
Cursava a quarta elementar. Era um gracioso fjoren-
tino de doze anos, negro de cabelos e alvo de rosto; filho
mais velho de imi empregado dos caminhos de ferro, que
tendo muita família e pequeno ordenado vivia modesta-
mente. O pai estimava-o muito, e era bom e indulgente
CORAÇÃO 63
com êle em tudo, menos no que se referia à escola. Nisto
exigia muito porque era preciso que o filho se colocasse
em posição de obter breve um emprego para ajudar a fa-
milia; e para tornar-se de pronto hábil em qualquer coisa,
era necessário fatigar-se muito em pouco tempo. E por
muito que o rapaz estudasse, o pai exortava-o sempre a
estudar mais. Era já adiantado em anos o pai, e o muito
trabalho tinha-o envelhecido antes de tempo. Não obstan-
te, para prover às necessidade da família, além das horas
obrigadas pelo emprego, tomava ainda, aqui e ali, traba-
lhos extraordinários de copista, e passava imia grande
parte da noite à escrevaninha. Ultimamente conseguira de
imia casa editora, que publicava jornais e livros em fascí-
culos, o encarregar-se de escrever nas cintas o nome e mo-
rada dos assinantes, e ganhava 3 liras por cada quinhen-
tas daquelas tiras de papel escritas em caracteres grandes
e legíveis. Esse trabalho, porém, extenuava-o e êle la-
mentava-se muitas vezes à família na hora do jantar.
— Os meus olhos desaparecem. Este trabalho de noi-
te arruina-me...
O filho disse-lhe um dia:
— Papá, deixe-me fazer o seu trabalho ; bem sabe que
escrevo tal qual como o papá.
Mas o pai respondeu-lhe:
— Não, meu f ijho, tu deves estudar ; a tua escola é mui-
to mais importante do que as minhas tiras de papel. Sen-
tiria remorsos se te roubasse uma hora que fosse. Agra-
deço-te, mas não quero, e não falemos mais nisso.
O rapaz sabia que com seu pai em matéria de estudo,
era inútil insistir, e não insistiu... mas fez o seguinte: Sa-
bia que o pai à meia-noite acabava de escrever e saía do
quarto de trabalho para o quarto de dormir. Algumas ve-
zes o sentira. Dadas as doze pancados do relógio, perce-
bia-se imediatamente o rumor de uma cadeira que se arras-
tava e o passo vagaroso do pai. Uma noite esperou que êle
se deitasse ; vestiu-se de vagar, andou às apalpadelas no
quarto de trabalho, reacendeu o candeeiro de petróleo,
sentou-se à escrevaninha, onde havia um montão de cin-
tas em branco e a nota dos endereços, e principiou a es-
crever, imitando exactamente a letra das tiras feitas. E
64 CORAÇÃO
escrevia de boa vontade e contente, mas um pouco assus-
tado; mas as tiras iam-se amontoando. De vez em quando
pousava a pena para esfregar as mãos, e recomeçava logo
com mais prazer, apurando o ouvido e sorrindo. Escreveu
cento e sessenta nomes com as respectivas moradas. —
Bem, uma lira! Então acabou; pôs a pena onde a tinha
encontrado, apagou a luz e voltou para a cama nos bicos
dos pés.
Naquele dia, ao meio-dia, o pai sentou-se à mesa de
bom humor. Não tinha desconfiado de coisa alguma. Fa-
zia aquele trabalho mecanicamente medindo-o às horas e
pensando noutras coisas e não contava as cintas escritas
senão no dia seguinte. Assentou-se à mesa satisfeito e to-
cando com a mão no ombro do filho, disse-lhe :
— Ah, Júlio ! É ainda um bom trabalhador o teu pai,
nem tu fazes ideia! Em duas horas fiz ontem à noite um
bom terço mais de trabalho do que o costume. A mão está
ágil, e os olhos cumprem ainda o seu dever.
E Júlio, contente, mudo, dizia consigo: Pobre pai,
além do ganho, ainda lhe dou o prazer de julgar-se reju-
venescido. Bem! Coragem! Animado pelo bom resultado,
na noite seguinte, dada a meia-noite, pôs-se a pé e foi tra-
balhar. E assim fez por muitas noites. O pai não dava por
tal. Somente uma vez, à ceia, saiu-se com esta : — É no-
tável, o petróleo que se gasta nesta casa, há um pouco de
tempo! Júlio estremeceu; mas o discurso acabou a4i e o
trabalho nocturno ia continuando sempre. O pior foi que,
interrompendo assim o sono todas as noites, Júlio não
dormia bastante ; de manhã levantava-se fatigado, e à noi-
te, quando estudava, custava-lhe sustentar os olhos aber-
tos. Uma noite, pela primeira vez na sua vida, adormeceu
sobre o caderno! — Animo! ânimo!... Êle acordou estre-
munhado e continuou a estudar. Mas nas noites e dias se-
guintes era a mesma coisa, ou pior ainda... Cabeceava so-
bre os livros, levantava-se mais tarde do que o costume,
estudava a lição com enfado e parecia desviado do estudo.
O pai principiou a observá-lo, a preocupar-se com êle, e
finalmente a admoestá-lo.
— Júlio ! disse-lhe uma manhã — tu andas fora do tri-
lho; não és o que foste. Isso assim não me agrada... Ou-
CORAÇÃO 65
ve... todas as esperanças da famUia se fundam em ti. Eu
estou desgostoso, entendes?
Com esta censura, a primeira verdadeiramente séria
que recebia, o rapaz perturbou-se. — Ah! sim!... pensou
ele consigo. Deste modo com efeito não se pode conti-
nuar! É necessário que tudo se esclareça... Mas, à tarde,
naquele mesmo dia, ao jantar, disse o pai alegremente:
— Então sabem que neste mês s^anhei mais trinta e
duas liras a sobrescritar do que no mês passado?
E dizendo isto tirou debaixo da mesa um cartucho de
bolos que tinha comprado para festejar com seus filhos
o eanho extraordinário. E todos aplaudiram batendo as
mãos. Túlio, vendo isto, cobrou o ânim.o, e em seu coração
disse: Não. pobre papá, não deixarei de en?anar-te: farei
maiores esforços para estudar durante o dia. mas conti-
nuarei a trabalhar de noite para ti, e para todos nós.
O pai acrescentou ainda: — trinta e duas liras a mais!
estou contente. Mas é aquele, lá... (e indicou Júlio) quem
me desgosta.
E Túlio recebeu a censura em silêncio, sustendo duas
lágrimas prestes a rebentar, mas sentindo ao mesmo tem-
po na sua alma um prazer imenso. E prosseg-uiu corajosa-
mente. Mas a fadiga acumulando-se à fadiga cada vez
mais difíril lhe tornava a resistência. As coisas dura-
vam assim havia dois meses! O pai continuava a increpar
o filho, e a encará-lo sempre de sobrolho carregado. Um
dia foi pedir informações ao mestre, e o mestre disse-lhe:
— Sim, vai indo, vai indo, poroue é inteligente: mas já
não tem a boa vontade aue tinha a princípio. Cabeceia,
boceia. distrai-se. Faz as composições curtas, a correr, e
em péssima caligrafia. Oh! podia fazer mais, muito mais.
Manuela tarde o pai chamou o rapaz aparte e disse-
-Ihe r)alavras de severidade com.o êle nunca até então
ouvira.
Túlio! tit não vês aue eu trabalho, que consumo a
vida pela família?... Tu não me auxilias. Tu não tens
coração para mim, nem para teus irmãos, nem para tua
mãi!
— Ah! não, isso não, meu pai!... exclamou o filho
66 CORAÇÃO
em copioso pranto. E ia a abrir a boca para dizer tudo,
quando o pai o interrompeu dizendo:
— Tu bem conheces a nossa posição, bem sabes que
é preciso muita força de vontade e sacrifícios da parte
de todos. Eu próprio, sabes, terei de redobrar os meus
esforços, porque contava este mês com uma gratificação
de cem liras do caminho de ferro, e soube esta manhã
que me não dão nada.
Aquelas palavras sufocaram em Júlio a confissão
que ia partir-lhe a alma, e de si para si dizia: — Não meu
pai, não te direi nada. Guardarei o meu segredo e con-
tinuarei a trabalhar para ti. Da dôr que sofres, e de que
sou causa, eu te compensarei de outro modo. Na escola
esitudarei quanto baste para ser promovido. O que eu
quero é ajudar-te a ganhar a vida e a diminuir-te a fadi-
ga que te mata.
E continuou sempre, e passaram-se outros dois meses
de trabalho de noite, de cansaço de dia, de esforços deses-
perados do filho e de repreensões amargas do pai. O pior
era que este se irritava cada vez mais com ele, falava-lhe
raramente, como se fosse um filho indigno, de quem não
houvesse mais nada a esperar ; e fugia quási de encontrar
os seus olhos com os dele. Júlio compreendia-o bem, e
sofria; e quando o pai voltava costas aitirava-lhe furtiva-
mente um beijo, e inclinava o rosto com uma ternura pie-
dosa e triste. Com o trabalho excessivo e o pesar constan-
te, ia perdendo as cores, emagrecendo cada vez mais, lu-
tando com a necessidade de descurar os seus estudos.
Percebia bem que isto havia de acabar um dia, e todas as
tardes dizia consigo : — Já esta noite me não levantarei !
Mas ao soarem as doze badaladas, no momento em que
devia mais vigorosamente permanecer no seu propósito,
sentia como que um remorso, e parecia que se ficasse
na cama faltava a um dever e roubava uma lira a seu pai
e à sua família. Então, levantava-se, pensando que, qual-
quer dia, o pai, despertando, o surpreenderia no trabalho,
ou que poderia vir a conhecer o engano, se por acaso lhe
desse para contar as cintas: e então tudo se explicaria,
naturalmente sem um acito da sua vontade, que êle se não
sentia com coragem de exercer. E assim continuava...
CORAÇÃO 67
Mas, uma tarde, ao jantar, o pai, pronunciou uma palavra
que foi decisiva para êle. A mãi encarou-o, e parecendo-
-Ihe vê-lo mais fraco e amortecido do que o costume, dis-
se-lhe:
— Júlio ! tu estás doente ! e voltando-se para o pai
acrescentou... Júlio, está doente... Vê como está pálido!
Meu Júlio, que tens?
O pai olhou-o de relance e disse:
— É a má consciência que faz a má saúde. Não estava
assim, quando era um escolar estudioso e um filho de
coração.
— Mas êle está mal! exclamou a mãi.
— Não me importo nada com isso — concluiu o pai.
Aquelas palavras foram facadas no coração do rapaz.
Ah! não se importava com êle... seu pai, que antes tremia,
só de ouvi-lo tossir, já não o amava, e portanto não havia
mais dúvida que morrera para o seu coração! — Oh! não,
meu pai — pensou êle, com o coração angustiosamente
oprimido — isto asim não pode continuar. Eu não posso
viver sem o teu afecto, quero readquiri-lo todo inteiro;
dir-te-ei tudo, não te iludirei mais. estudarei como dantes,
-"^onteça o que acontecer, com tanto que tu... meu pobre
papá, continues a ouerer-me bem. Oh! desta vez, estou
bem sep-uro da minha resolução ! — E contudo ainda aaue-
la noite se levantou, mais por força de hábito do aue por
outra coisa... Depois teve deseio, uma vez ainda, de tor-
nar a entrar por alguns minutos naquele quarto onde
tanto tinha trabalhado, às escondidas, com o coração cheio
de satisfação e de ternura, E quando se viu perto da es-
crevaninha, com o candiero aceso, e viu aquelas tiras em
branco, sobre as quais só se escreviam nomes de cidades
e de pessoas, nomes que já sabia de cór. foi invadido de
uma .grande tristeza; e num momento rápido e nervoso
peo^ou na pena para principiar o costumado trabalho. Mas,
ao estender a mão, deu com o braço num livro e o livro
caiu... Teve um sobressalto. Se o pai acordasse! É certo
cue o não surpreenderia a praticar uma acção má... De
mais iá tinha resolvido dizer-lhe tudo... mas... o sentir
aouele peso naonela obscuridade, ser surprendido àquela
hora, naquele silêncio... Sua mãi despertaria também as-
68 CORAÇÃO
sustada. E pensar que seu pai poderia, pela primeira vez,
sentir-se humilhado na sua presença descobrindo tudo...
Esta ideia quási o aterrava. Apurou o ouvido com a res-
piração suspensa... não se sentiu rumor. Escutou à fecha-
dura da porta que lhe ficava por trás das costas... e nada.
Todos em casa dormiam... O pai não ouvira coisa algu-
ma... Tranqiiilizou-se e recomeçou a escrever... E as cin-
tas iam-se amontoando sobre as cintas... Na rua deserta
sentiu o passo cadenciado do guarda civil, depois o rodar
de um carro que parou de repente; seguiu-se o estrépido
de uma fila de carros que passavam vagarosamente; mais
(tarde, um silêncio profundo, interrompido de quando em
quando pelos latidos de um cão... E escrevia... escrevia
sempre... E, no entanto, o pai estava por detrás dele. Le-
vantára-se ao ouvir o livro cair, e esperava a ocasião
oportuna. O estrépido dos carros tinham abafado o ru-
mor dos seus passos, e o frouxo chiar das dobradiças da
porta, e estava ali, com a sua cabeça branca, sobre a ca-
becinha negra de Júlio; vira correr a pena sobre as cintas;
e num momento tinha adivinhado tudo, compreendera
tudo, recordara tudo; e um arrependimento súbito, uma
ternura imensa lhe invadira a alma, e retinha-o sufocado
ali por detrás do filho. De repente, Júlio solta um grito
algudo!... Dois braços convulsos o estreitavam fortei-
mente.
— Oh! pai, pai, perdôe-me! gritou reconhecendo que
o pai chorava.
Perdôa-me tu, filho — respondeu o pai soluçando, e
cobrindo-lhe a fronte de beijos. Compreendo agora... sei
tudo, e sou eu que te imploro perdão, santa criatura mi-
nha. Vem, vem comigo.
E impeliu-o ou antes levou-o ao leito de sua mãi já
acordada, e deitou-lho entre os braços dizendo:
— Beija, beija este filho querido, que há três meses
não dorme trabalhando por mim, e eu a torturar-lhe a
alma, a ele, que nos ganhava o pão!
A mãi apertou-o afectuosamente ao peito, sem poder
desprender a voz; depois disse:
— Vai dormir, meu querido filho, vai, vai dormir, e
descansar ! Leva-o tu à cama.
CORAÇÃO
69
O pai tomou-o nos braços e conduziu-o ao quarto,
deitou-o no leito, comovido, e acarinhando-o, aconche-
gou-lhe as almofadas e endireitou-lhe a coberta.
— Muito obrigado, papá — dizia o filho — muito
obrigado! Mas vá deitar-se... eu estou muito bem: vá, vá
deitar-se, papá.
Mas o pai queria vê-lo adormecido, sentou-se à cabe-
ceira da cama, tomou-lhe a mão, e disse-lhe:
— Dorme, dorme, meu filho !
E Júlio, cansado, adormeceu finalmente, e dormiu
muitas horas, gozando, pela primeira vez depois de al-
guns meses, de um sono tranquilo, afagado de sonhos ri-
dentes; e quando abriu os olhos já o sol brilhava há mui-
to, e sentiu primeiro e viu depois, junto ao peito, apoia-
da na beira da cama a cabeça branca do pai, que tinha
passado a noite ali, ao 4ado dele; e dormia ainda com a
testa sobre o coração.
70 CORAÇAC
À voníade
Quarta-feira, 28
Só Stardi na minha classe é que seria capaz de fazer
o que fez o pequeno Florentino. Esta manha houve dois
acontecimentos na escola: Garrotti, doido de contente,
porque lhe tornaram a dar o seu álbum aumentado com
três estampilhas da república de Guatemala, que êle pro-
curava havia três meses; e Stardi, que teve a segunda me-
dalha. Stardi, primeiro da classe, depois de Derossi! To-
dos ficaram maravilhados! Quem havia de dizer em Ou-
tubro, quando o pai o conduziu à escola, embiocado na-
quele capotão verde, e disse ao mestre, ali, à vista de to-
dos:— E necessário que tenha muita paciência porque
êle é muito duro da cachimónia! Todos lhe chamavam
testa de martelo, no principio.
Mas êle dizia: — Ou eu arrebento ou há-de sair da-
qui alguma coisa! ^E pôs-se obstinadamente a estudar
de dia, de noite, em casa, na escola; com os dentes cerra-
dos, com os punhos fechados, paciente como um boi, tei-
moso como um jiunento, e assim, à força de remoer, desde-
nhando zombarias, atirando pontapés aos perturbadores,
passou adiante de todos, aquele cabeçudo! Não percebia
uma de X de aritmética, enchia de disparates a composi-
ção, não conseguia decorar um periodo; e agora, resolve
os problemas, escreve correctamente, e canta como se fora
uma ária! Adivinha-se-lhe a vontade de ferro, ao ver co-
mo é feito, assim baixo, com a cabeça quadrada, sem pes-
coço, com as mãos curtas e grossas e com aquela voz for-
te e áspera. Estuda até em pedaços de jornais, em avisos
de teatros; e sempre que pode juntar dez soldos compra
um livro; já tem feita uma pequena biblioteca; e num
momento de bom humor, deixou perceber, há dias que
me há-de levar lá a casa a mostrar-ma. Não fala com nin-
guém, não brinca com ninguém; está sempre ali, à banca
com os punhos arrimados às frontes, firme como um
poste, a ouvir o mestre. Quanto se deve ter afadigado,
pobre Stardi!
CORAÇÃO 71
O mestre disse esta manhã, apesar de estar imperti-
nente e de mau humor, quando lhe deu as medalhas:
— Bravo, Stardi ! quem porfia, vence .
Mas êle não se mostrou orgulhoso; não se riu e, ape-
nas voltou para o banco com a medalha, tornou a encaixar
as fontes nos punhos, e ficou ainda mais imóvel e mais
atento que dantes. Mas o bom, foi à saida, onde o espera-
va o pai, um sangrador, gordo e baixo como êle, com um
carão enorme e uma voz imensa. Não esperava aquela me-
dalha, e não queria acreditar que o filho a obtivesse. Foi
necessário que o mestre lhe dissesse que era verdade; e
pôs-se então a rir de prazer, e deu uma palmada na nuca
do filho, dizendo forte:
— Ora viva. senhor! muito bem, meu cabeça de coco.
E olhava para êle estupefacto e sorrindo. E todos
nós, em volta sorríamos, exceptuando Stardi... Este ru-
minava a lição de amanhã.
Gratidão
Sábado, 13
O teu companheiro Stardi não se queixará mais do mestre,
estou certo disso. O mestre estava de mau humor e impaciente,
assim o disseste tu, em tom de ressentimento. Pensa quantas
vezes tu dás também mostras de impaciência, e a quem? e teu
pai e a tua mãi, aqueles para quem a tua impaciência é um delito.
Razão tem o teu mestre para ser algumas vezes impaciente!
Pensa no número de anos que êle se afadiga pelos rapazes; e se
entre eles encontrou muitos, afectuosos e corteses, encontrou
também muitíssimos ingratos, que abusaram da sua bondade, e
desconheceram os seus esforços; e a verdade é que, em geral,
vós lhes dais mais amarguras que prazeres. Pensa que o mais
santo homem da terra no seu lugar, se deixaria vencer algumas
vezes da cólera. E se soubesses quantos dias êle vai dar lição
doente, e vai porque a doença não é tão grave que possa dispen-
sá-lo da sua obrigação! É impaciente porque sofre, e é um gran-
de pesar para êle o ver que vós, conhecendo o seu estado abusais.
CORAÇÃO
Respeita e ama o teu mestre, filho. Ama-o porque teu pai o ama
e respeita; ama-o porque êle consagra a vida ao bem de tantos
rapazes que o esquecem; ama-o enfim, porque um dia quando
fores homem, e quando nem eu nem êle formos deste mundo,
a sua imagem se te apresentará muitas vezes à memória, ao lado
da minha; e então te recordarás da expressão de dôr e de can-
saço daquela bôa fisionomia de homem probo, expressão que
mal compreendes agora, mas, trinta anos decorridos, sentirás
pena e vergonha de o não haveres estimado como êle merecia
e de te teres portado mal com êle. Ama o teu mestre, porque
pertence àquela grande família de cinqiienta mil professores ele-
mentares, espalhados por toda a Itália, que são como os pais in-
telectuais de milhões de rapazes que vencem contigo, trabalha-
dores mal compreendidos e mal recompensados, que preparam
ao nosso país uma geração melhor do que a presente. Eu não me
satisfaço com o afecto que tens por mim, se o não tens para to-
dos aqueles que te fazem bem, e entre estes o primeiro é o
teu mestre, e depois os teus parentes. Ama-o como amarias lun
meu irmão; ama-o quando te acaricia, e quando te repreende,
quando é justo, e quando te parece que é injusto; ama-o quando
é alegre e afável, e ama-o mais ainda quando o vires triste.
Ama-o sempre, e pronuncia sempre com reverência este nome —
mestre — que depois do de pai, é o mais nobre e o mais doce
nome que pode dar um homem a outro homem.
Teu Pai
JANEIRO
O mestre suplente
Quarta-feira, c.
Meu pai tinha razão; o mestre estava de mau humor
porque não se sentia bem, e há três dias, com efeito, que
vem substituí-lo o suplente, aquele pequeno sem barba e
que parece um senhorita. Deu-se com êle, esita manhã,
um facto desairoso. Já no primeiro dia e no segundo dia
CORAÇÃO
73
tinham os rapazes feito chacota da escola, porque o su-
plente tem uma paciência de santo, e não faz senão dizer:
— Peço-lhes que estejam calados! por favor estejam cala-
dos!— Mas esta manhã passou das marcas. Faziam tal
algazarra que não se ouvia nada! e êle admoestava, pedia,
mas era tempo perdido. Duas vezes o director apareceu à
porta, observando; mas apenas o sussurro crescia como
em um mercado. Bem se voltavam Garrone e Derossi a
fazer acenos aos companheiros, que estivessem sossega-
dos, que aquilo era uma vergonha. Nenhum fazia caso. Só
Stardi era o único que estava silencioso, com os cotovelos
fincados na banca e os punhos encostados às fontes, pen-
sando talvez na sua famosa livraria... e Garoffi, o nariz de
gancho, o das estampilhas, que estava todo ocupado a fazer
a lista dos subscritores a dois cêntimos para a rifa de um
tinteiro de algibeira. Os outros tagarelavam, riam, toca-
vam em pontas de penas espetadas nos bancos, e atiravam
bolinhas de papel com elásticos das ligas. O suplente
agarrava por um braço, ora a um, ora a outro, sacudia-os,
e pôs um contra a parede. Tempo perdido! Nem êle sabia
já com que santo se apegasse, e dizia com brandura:
74 CORAÇÃO
— Mas para que procedeis deste modo? Quereis en-
colerizar-me por força?
Depois dava murros na mesa, e gritava com voz de
raiva e de choro:
— Silêncio! Silêncio! Silêncio!
Fazia pena vê-lo; e o rumor crescia sempre. Franiti
atirou-lhe uma flecha de papel, outros miavam de gato
e muitos davam piparotes; enfim, era uma inferneira de
não poder descrever-se. Nisto entrou o contínuo, e disse-
-Ihe:
— Senhor professor, o senhor director chama-o.
O mestre ievantou-se, e saiu à pressa, como um de-
sesperado. Então a algazarra recomeçou ainda mais forte.
Mas, de repente Garrone levanta-se com o rosto descom-
posto e os punhos cerrados, e com a voz rouca de cólera
exclama:
— Basta, estúpidos! abusais, porque êle é bom. Se
vos desancasse os ossos, estarieis aí humildes como cais!
Sois um bando de poltrões! O primeiro que lhe fizer o
mais leve insulto, espero-o lá fora e quebro-lhe os quei-
xos. Juro-vos que o faço, ainda que seja à vista dos vossos
pais!
Todos se calaram. Ah! como era belo ver Garrone,
com os olhos que expeliam chamas ! Parecia um leãozinho
furioso. Olhou a um por um, para os mais atrevidos, e
todos abaixaram a cabeça. Quando o suplente entrou, com
os olhos vermelhos não se ouviu nem mais um respiro.
Ficou atónito, mas reparando em Garrone que ainda es-
tava incendido e trémulo, compreendeu o que se passara
e disse-lhe com entonação de grande afecto:
— Muito obrigado, Garrone.
A livraria de Síardi
Fui a casa de Stardi, que mora numa casa em frente
à escola, e tive realmente inveja da sua livraria. Não é
rico, não pode comprar muitos volumes, mas conserva
com extremo cuidado o seus livros de escola, e todos os
ORAÇÃO 75
escudos que lhe dão põe-nos de parte, e gasta-os com o li-
vreiro. L»este modo navia arranjado já uma pequena bi-
blioteca; e quando o pai conneceu que ele tinna aquela
paixão, compiou-ine uma Deia estante de nogueira, com
cortinas verdes, e mandou-ine encadernar os livros todos
com as cores que mais ine agradavam. Assim ele agora
puxa por um cordaoziníio, e a cortina verde corre, e deixa
ver três iuas de livros de itodas as córevS, e todos em or-
dem, luxuosos, com títulos dourados nas lombadas, livros
de contos, de viagens e de poesias, e também os tem ilus-
trados, tj ele saoe comoinar Dem as cores: póe os volumes
Drancos ao laoo dos vermelhos; os amarelos ao lado dos
pretos; os azuis ao lado dos brancos, de maneira que se
vejam de longe e iaçam boa tigura: e depois diverte-se
a variar as combinações. Tem ja o seu catalogo como se
tosse um bibliotecário. Esita sempre junto dos livros, a
espana-los, e a tolheà-los e a examinar as encadernações.
E curioso ver o cuidado com que os abre, com aquelas
máos curtas e grossas, soprando entre as páginas. Todos
os livros parecem novos. E eu, que tenho estragado (to-
dos os meus ! Para êle, cada livro novo que compra é uma
festa : alisa-o, pòe-no na estante, torna-o a tirar para o ob-
servar de todos os lados; e afinal guarda-o como um te-
souro. Não me mostrou outra coisa durante uma hora. E
estava doente dos olhos, de tanto ler. Passando pela saia
o pai, que é gordo e baixo como êle, com uma cabeçorra
como a sua, deu-ihe duas ou itrês palmadas na nuca, di-
zendo-me com o seu enorme vozeirão:
— Então que me dizes a esta cabeça de bronze? É
uma cabeça que há-de produzir alguma coisa, estou certo
disso.
E Stardi cerrava os olhos debaixo daquelas rústicas
carícias como um grande cão de caça. Eu não sei porquê,
mas não me atrevo a chalacear com êle e não me parece
que tenha um só ano mais do que eu. Quando à saída me
disse : — Aité à vista — com aquela cara que parece sem-
pre amuada, pouco faltou que eu lhe não respondesse: —
Às suas ordens ! — como se fosse a um homem. Eu depois
disse em casa a meu pai :
— Não compreendo! Stardi não tem talento, não tem
76 CORAÇÃO
maneiras finas; é uma figura quási caricata, e contudo
domina-me.
E meu pai respondeu:
— É porque item carácter.
Eu acrescentei:
Numa hora que estive com êle não pronunciou cin-
quenta palavras, não me mostrou um só brinquedo, não
se riu uma só vez, e a pesar disso estive satisfeito.
E meu pai disse:
— É porque o estimas .
O filho do ferreiro
Sim, mas. ftambém estimo Precossi, e é muito pouco
dizer só que o estimo. Precossi, o filho do ferreiro, aque-
le pequenino macilento, de o^hos bons e tristes, de ar
espantado, tão tímido que diz a todos: — Desculpe-me.
— Sempre adoentado ! é que estuda muito. O pai emtra
em casa embriagado com aguardente, bate-lhe sem razão
alguma; atira-lhe pelos ares, com repelões, os livros e os
cadernos; e êle vem para a escola com manchas no rosto
e algumas vezes com as faces inchadas, e os olhos infla-
mados de muito chorar: mas ninguém lhe pode dizer que
levou pancadas do pai.
— Foi teu pai que te bateu... — dizem-lhe os compa-
nheiros. E êle, logo :
— Não é verdade, não é verdade ! — para que não fa-
çam mau juízo do pai.
— Esita folha não a queimaste tu — disse-lhe uma vez
o mestre, mostrando-lhe um trabalho meio queimado.
— Sim, senhor, respondeu êle com voz trémula; fui
eu que a deixei cair ao lume.
E contudo nós sabíamos bem que fora o pai embria-
gado que, com um pontapé, tinha voltado a mesa com o
candeeiro e tudo, quando êle estudava a lição. Mora nu-
mas águas-furtadas da nossa casa, para onde se vai pela
outra escada; a porteira conta tudo a minha mãi. Minha
irmã Silvia ouviu-o gritar do terraço um dia que o pai o
CORAÇÃO 77
fez descer as escadas aos trambulhoes, porque lhe pedira
alguns escudos para comprar uma gramática. O pai bebe,
não trabalha, e a familia tem fome. Quantas vezes o po-
bre Precossi vem para a escola em jejum, e rói um boca-
do de pão que lhe dá Garrone às escondidas, ou uma ma-
çã que lhe traz a mestra de quem ele foi discípulo. Mas
nunca êle diz: — Tenho fome; meu pai não me dá de
comer.
O pai vem algumas vezes buscá-lo, quando passa por
acaso diante da escola, pálido, cambaleando, com uma
cara carrancuda, os cabelos sobre os olhos, e a carapuça
do avesso; o pobre rapaz treme todo quando o vê na rua,
mas corre-lhe ao encontro, sorrindo; e o pai parece que
nem o vê, pensando noutra coisa. Pobre Precossi! Cose
e recose os cadernos rotos, pede livros emprestados para
estudar a lição; prende os punhos da camisa com alfi-
netes; e causa pena vê-lo fazer ginástica, com aqueles
sapatos em que se pode nadar dentro, aquelas calças, a
arrastar no chão, e aquela jaqueta muito comprida, arre-
gaçada até aos cotovelos! E estuda, empenha-se; e seria
um dos primeiros, se pudesse trabalhar em casa tranquilo.
Esta manhã veio para a escola com os sinais de uma unha-
da na face, e todos lhe disseram: — Foi teu pai quem te
fez isso! Diz ao director que o faça chamar à polícia.
Mas êle levantou-se todo corado, com a voz trémula de
indignação, exclamando: — Não é verdade! não é verda-
de! meu pai não me bate nunca... — Mas depois durante
a lição, caíam-lhe as lágrimas sobre a mesa; e quando al-
guém olhava para êle, esforçava-se por sorrir, para não
parecer que chorava. Pobre Precossi! Amanhã devem vir
a minha casa Derossi Coretti e Nelli. Quero dizer-lhe que
venha também; obrigá-lo-ei a merendar comigo, e hei-de
fazer-lhe presente de livros e pôr em alvoroço a casa para
diverti-lo, e encher-lhe as algibeiras de frutas para o ver
uma vez contente. Pobre Precossi! que é tão bom e tem
tanta coragem!...
78 CORAÇÃO
Uma bela visiía
Çuinta-feira, 12
Foi esta uma das mais belas quintas-feiras do ano pa-
ra mim. As duas em ponto vieram a nossa casa Derossi,
Coretti, com Nelli, o corcundinha. Precossi não veio, por-
que o pai não deixou. Derossi e Coretti riam ainda, por-
que tinham encontrado na rua, Crossi, o filho da vende-
deira de hortaliças, aque,le do braço paralítico e dos ca-
belos ruivos, que andava a vender uma enorme couve
para com o produto dela comprar uma pena; e estava to-
do contente porque o pai tinha escrito da América que o
esperassem breve. Oh! que belas duas horas passámos jun-
tos! São os dois mais alegres da classe Derossi e Co-
retti; meu pai gostou muito deles. Coretti tinha a sua
camisola côr de chocolate e o barrete de pele de gato. É
um diabo que sempre quere fazer alguma coisa, mexer,
agitar-se. Já trouxera sobre os ombros uma carrada de
lenha, de manhã cedo, e apesar disso, andou aos saltos
por por toda a casa, observando tudo e falando sempre
vivo e lesto como um rato ; e passando pela cozinha pre-
guntou à cozinheira por quanto pagava o feixe de lenha,
que o pai vendia a quarenta e cinco centavos. Fala sem-
pre do pai, de quando foi soldado do regimento 4p, na ba-
talha de Custoza, onde se achou no quadrado do príncipe
Humberto; e é muito delicado de maneiras. Que importa
que tenha crescido entre lenha, se tem a nobreza no san-
gue e no coração, como diz meu pai ! E Derossi diveritiu-
-nos muito : sabe geogragia como um mestre. Fechava os
olhos e dizia: — estou vendo toda a Itália: os Apeninos,
que se alongam até ao mar Jónio; os rios que correm de
cá e de lá; as cidades brancas: os golfos; as enseadas
azuis; as ilhas verdes... E dizia os nomes certos, rapida-
mente, como se os lesse na carta; e ao vê-lo assim com
aquela cabeça levantada, toda cheia de anéis côr de ouro,
os olhos cerrados, todo vestido de azul com botões dou-
rados, direito e belo como uma estátua, todos estávamos
admirados. Em uma hora êle tinha decorado quási três
CORAÇÃO 79
páginas de uma oração que deve recitar depois de amanhã
pelo aniversário dos funerais de Vítor Manuel, E tam-
bém Ne,lli olhava para êle, maravilhado e com afecto, tor-
cendo as pontas do seu grande avental de paninho preto,
sorrindo com aqueles olhos claros e melancólicos. Deu-
-me um grande prazer esta visita, e deixou-me alguma
coisa, como centelhas, no espírito e no coração, E ainda
me agradou, quando saíram, ver o pobre Nelli no meio
dos outros dois, grandes e fortes, que o levavam a casa
pelo braço, fazendo-o rir como nunca o tinha visto rir.
Quando tornei a entrar na sala de jantar, notei que não
estava lá o quadro que representava Rigoletto, o bobo
corcunda... Tinha-o tirado meu pai para que Nelli não o
visse.
Os funerais de Vííor Manuel
Janeiro, ij
Hoje, às duas horas, quando o mestre entrou na au-
la, chamou Derossi, que se foi colocar junto à mesa, em
frente de nós, e começou a dizer com acentuação vi-
brante, levantando gradualmente a voz límpida, e ani-
mando-se-lhe comovidamente o rosto :
— Faz hoje quatro anos que neste dia e a esta hora
chegava em frente do Panteão, em Roma, o carro fúne-
bre que conduzia o cadáver de Vítor Manuel II, primei-
ro rei da Itália, falecido depois de vinte e nove anos de
reinado, durante os quais a grande pátria italiana, divi-
dida em. sete estados, oprimida por es-trangeiros e tiranos,
ressurgia em um Estado só, independente e livre; depois
de um reinado de vinte e nove anos, que êle tornou ilus-
tre e benéfico, com valor, lealdade, coragem nos perigos,
prudência nos triunfos, e constância nas desventuras.
Chegara o carro fúnebre depois de ter percorrido Roma
debaixo de uma chuva de flores, entre o silêncio de uma
multidão que correra de todas as partes da Itália, prece-
dido de uma Jegião de generais e de um imenso concur-
so de ministros e de príncipes, seguido de um cortejo de
80 CORAÇÃO
mutilados, de ums floresta de bandeiras, de convidados,
de trezentas cidades, de tudo que representa o poder e a
glória de um povo, e para diante do templo aup^usto, onde
o esperava o túmulo. Doze couraceiros levantaram o fé-
retro do carro e nesse momento a Itália dava o último
adeus ao seu rei morto, ao seu velho rei que tanto a ama-
ra, o último adeus ao seu soldado, ao seu pai, aos vinte e
nove anos mais abençoados e felizes da sua história! Foi
um momento grande e solene! A vista e a alma de todos
repartiam-se entre o féretro e as bandeiras denegridas
de oitenta regimentos do exército italiano, empunhadas
por oitenta oficiais enfileirados, pois que a Itália estava
ali, naquelas oitenta insígnias, que recordavam os milha-
res de mortos, as torrentes de saneue, as nossas mais sa-
gradas glórias, os nossos mais santos sacrifícios, as nos-
sas mais tremendas dores. O féretro conduzido pelos cou-
raceiros passara, e então inclinaram-se a um tempo, em
respeitosa continência, todas as bandeiras dos novos re-
gimentos, os velhos pendões laureados de Goito, de Pas-
trengo, de Santa Lúcia, de Novara, da Crimea, de Pales-
tro, de San Martino, de Castelfidardo. Oitenta véus ne-
gros roçaram o chão: cem medalhas tilintaram contra o
ataúde... E aquele estrépito sonoro e confuso, que agi-
tava o sangue de todos, era como o som de mil vozes hu-
manas aue dissessem unísonas: «Adeus, bom e excelente
Rei! Rei leal! Tu viverás no coração do teu povo en-
quanto o sol raiar sobre a Itália». Depois erírueram-se as
bandeiras altivamente para o céu, e o rei Vítor entrava
na glória imortal do sepulcro.
Franfi expulso da escola
Sábado, 21
Um ímicamente seria capaz de rir-se enquanto De-
rossi falava nos fxmerais do rei, e Franti riu-se. Eu de-
testo-o. É um perverso. Guando alç-um pai vem à escola
fazer queixa dum filho, ele re?osija-se; se alguém chora,
ele ri-se. Treme diante de Garrone, mas bate no pearei-
rito porque é pequeno, e atormenta Crossi porque tem
I
CORAÇÃO 81
O braço paralítico. Escarnece Precossi, que todos esti-
mam, e zomba até de Robetti, daquele que anda de mu-
letas por ter salvo uma criança. Provoca todos os que
são mais fracos do que êle, e, quando bate, é uma fera.
Há qualquer coisa de repelente naquela testa baixa, na-
queles olhos maus, quási escondidos debaixo da viseira
do seu gorro encarnado. Não teme coisa alguma, ri na
cara do mestre, rouba quanto pode, nega com uma cara
desavergonhada, e está sempre em briga com alguém;
traz para a escola alfinetes para picar os vizinhos, arran-
ca os botões do seu casaco e do dos outros e joga-os;
e tem a carteira, cadernos, livros, tudo esfrangalhado,
despedaçado e sujo; a régua cheia de dentes, a caneta
meio comida, as unhas roídas, o fato cheio de gordura
e de rasgões feitos em briga. Dizem que a mãi está doen-
te por causa dos trabalhos que êle lhe dá, e que o pai
já o expulsou de casa três vezes; a mãi vem de vez em
quando pedir informações ao mestre, e volta sempre cho-
rando. Êle odeia os companheiros, odeia o mestre. Este
finge algumas vezes que não vê as suas velhacadas, e
êle ainda faz pior. Tentou levá-lo por boas maneiras e
nada conseguiu. Disse-lhe então palavras mviito duras, e
êle cobriu a cara com as mãos, a fingir que chorava, e
estava a rir-se! Foi suspenso da escola por três dias, e,
nuando voltou, vinha ainda mais insolente do que dantes.
Derossi disse-lhe um dia: «Acaba de vez com isso; olha
que o mestre já te atura de mais». E êle ameaçou-o de
meter-lhe um_ prego na barriga. Mas finalmente esta ma-
nhã foi expulso como um cão. Enquanto o mestre dava
a Garrone o rascunho do Tamborzinho sardo, o conto
mensal de Janeiro, para copiar, atirou para o chão uma
bomba, que rebentou fazendo um estrondo como uma
descarga de fuzilaria. Toda a aula estremeceu. O mestre
pôs-se de pé. gritando:
— Franti; fora da escola!
Êle respondeu:
— Não fui eu... — mas ria-se.
O me^-tre repetiu:
— Tá lá fora!
— Pois não saio daqui — replicou êle...
S2
CORAÇÃO
Nisto o mestre perdeu a cabeça, lançou-se a ele,
agarrou-o por um braço, e arrancou-o do banco. E êle
debatia-se e rangia os dentes; foi preciso arrastá-lo à
viva força. O mestre levou-o ao Director, e depois vol-
tando só, sentou-se à mesa com a cabeça entre as mãos,
aflito com uma expressão de dôr e de fadiga, que fazia
pena vê-lo. ' ' r'~\
— Há trinta anos que exerço o magistério... — ex-
clamou tristemente, inclinando a cabeça. Ninguém respi-
rava. As mãos tremiam-lhe de cólera, e a ruga que lhe
atravessava horizontalmente a testa estava tão profunda
que parecia uma ferida. Pobre mestre! Todos sofriam
com êle. Derossi levantou-se então e disse :
— Senhor profesor, não se aflija. Nós somos muito
seus amigos e temos-lhe muito respeito.
Ouvindo isto, pareceu ficar mais sossegado e disse:
— Continuemos a lição, meus amigos.
• ORAÇÃO
83
O íamborzinho sardo
(CONTO MENSAL)
No primeiro dia de batalha de Mustosa, em 24 de
julho de 1848, uns sessenta soldados dum regimento do
nosso exército, mandados a ocupar uma casa solitária
sobre uma encosta, foram inesperadamente assaltados por
duas companhias de soldados austríacos, que, atacando-o
com uma sa-
raivada de ba-
las, partindo
de todos os
lados, apenas
lhes deram
tempo de se
r e £ u g iarem
na casa e
t r a n carem
pr'ecipitada-
mente as por-
tas, depois de
terem deixa-
do alguns fe-
ridos e mor-
tos no campo.
Fechadas as
entradas, os nossos correram furiosamente às janelas do
rez-do-chão e do primeiro andar, e principiaram a fazer
fogo vivissimo sobre os assaltantes, que iam avançando
gradualmente em semicírculo e respondendo ao fogo vi-
gorosamente. Comandavam os sessenta soldados italianos
dois oficiais subalternos e um capitão, militar velho, alto,
seco e austero, com os cabelos e o bigode brancos; e esta-
va com ele um tamborzinho sardo, rapaz de pouco mais
de 14 anos, que parecia não ter doze, pequeno, de rosto
trigueiro azeitonado, com dois olhinhos negros, profun-
dos e cintilantes. O capitão dirigia de uma sala do pri-
meiro andar a defesa com vozes de comando que pareciam
4 CORAÇÃO
tiros de pistola, e não se percebia no seu rosto férreo ne-
nhum sinal de comoção. O tamborzinho, um pouco pálido,
mas firme de pernas, trepando sobre uma mesa, estendia
o pescoço encostando-se à parede, afim de ver pelas jane-
las o que se passava lá fora, e descortinava através do fu-
mo, pelos campos, as divisas brancas dos austríacos que
vinham marchando lentamente. A casa era situada no alto
duma encosta escarpada, e não tinha da parte do maior
declive senão uma janelinha alta correspondente a um
quarto do sótão; por isso os austríacos não atacavam por
aquele lado e a descida estava ,livre. O fogo dirigia-se à
fachada e aos dois flancos. Mas era um fogo de inferno!
uma saraivada de balas de chumbo que fendia por fora as
paredes e despedaçava os telhados, e dentro quebrava es-
tuques, móveis, ombreiras e batentes, e arremessava ao ar
estilhaços de madeira, nuvens de caliça, fragmentos de
loiças e de vidros. Uma dança infernal, em que as balas
assobiavam, ricocheteavam e destroçavam tudo com um
fragor de fender o crânio. De quando em quando, alguns
dos soldados que atiravam das janelas caíam de costas so-
bre o pavimento, e eram arrastados para o fundo. Outros,
com passos vacilantes, passavam de sala em sala, compri-
mindo a ferida com as mãos. Na cozinha havia já um
morto com a cabeça despedaçada. O semicírculo dos ini-
migos cada vez se estreitava mais. Num certo momento
viu-se o capitão, até ali impassível, dar sinal de inquieta-
ção e sair apressadamente da sala seguido dum sargento.
Passados três minutos voltou a correr o sargento, chaman-
do o tamborzinho e acenando-lhe que o seguisse. O rapaz
seguiu-o subindo apressadamente por uma escada de ma-
deira; entraram numa água-f untada nua, onde estava o
capitão escrevendo com um lápis numa folha de papel,
apoiado à pequena janela, tendo aos pés, no chão, uma
corda de pôco. O capitão dobrou a folha de papel, e disse
bruscamente, fitando nos olhos do rapaz as suas pupilas,
pardas e fixas, diante das quais todos os soldados tre-
miam:
— Tambor !
E pôs a mão na viseira.
i^Tens fígados?
CÔRAgAÔ 85
Os olhos do rapaz lampejaram.
— Tenho sim, meu capitão — respondeu.
— Olha lá para baixo — disse o capiítão impelindo-o
para a janela — vés no plano vizinho das casas de Vila-
iranca, uma cintilação ae baionetas? É lá que estão os
nossos imóveis. Toma este bilhete, agarra-te á corda e
desce pela janela, deixas-te escorregar pela rampa, corres
pelos campos até chegar a eles, e entregas o bilhete ao
primeiro oficial que encontrares. Tira o cinturão e a mo-
chila.
O tamborzinho tirou o cinturão e a mochila e meteu
o bilhete no bolso do peito. O sargento deitou a corda
para fora da janela, segurando-a fortemente por uma das
pontas; e o capitão, ajudando o rapaz a passar pela jane-
la com as costas voltadas para fora, disse-lhe:
— A salvação do destacamento está na tua coragem
e nas tuas pernas.
— Confie em mim, meu capitão ! — respondeu o tam-
bor já suspenso da parte de, fora.
— Curvaste na descida, disse ainda o capitão, segu-
rando a corda juntamente com o sargento.
— Sossegue.
— Deus te ajude!
Em poucos momentos o tamborzinho estava em terra ;
o sargento puxou para cima a corda e desapareceu; o ca-
pitão foi rapidamente direito à janela e viu o rapaz voan-
do pela rampa abaixo; e, quando o supunha já livre das
vistas do inimigo, algumas nuvens de poeira, que se er-
guiam do chão em torno do rapaz, deram-lhe a perceber
que tinha sido descoberto pelos austríacos, que do ponto
mais elevado da ladeira lhe faziam fogo pelas costas e
aquelas pequenas nuvens eram produzidas pelas balas
que raspavam a terra. Mas o tamborzinho continuava em
vertiginosa corrida. De repente caiu.
— Morto ! rugiu o capitão mordendo os punhos.
Mas, mal tinha pronunciado esta palavra, quando viu
o tamborzinho levantar-se.
— Ah! caiu, mas levantou-se... disse consigo, e res-
pirou. O tamborzinho efectivamente recomeçara a correr
com toda a força, mas coxeava. — Torceu um pé... pensou
a6 CORAÇÃO
o capitão. Algumas nuvenzinhas de pó se levantaram ain-
da aqui e ali, em volta do rapaz, mas cada vez mais distan-
tes. Kstava pois salvo, e o capitão soltou uma exclamação de
(triunfo; mas continuou seguindo-o com os olhos ansiosa-
mente, porque estava seguro de que, se o emissário não
chegasse lá abaixo depressa com o bilhete em que pedia
socorro imediato, ou todos os soldados cairiam mortos ou
teria ê^e de render-se e ficar prisioneiro com os seus. O
rapaz corria com rapidez um pedaço, depois afrouxava o
passo, coxeando, tornava a correr, mas cada vez mais can-
sado, ora tropeçava, ora parava de repente. — É que algu-
ma bala o apanhou de raspão, pensou o capiítão tremendo.
Observava-lhe todos os movimentos, animava-o, falava-
-Ihe, como se êle o pudese ouvir, media sem descanso com
o olhar perscrutador o espaço interposto entre o rapaz
que corria e o cintilar das baionetas que brilhavam lá
ao longe, na planície, no meio dos campos de trigo dou-
rados pelo sol .
£ neste anseio ouvia o zumbido e o estrondo das balas
nas salas de baixo, as vozes do comando dos oficiais e
sargentos enraivecidos, os lamentos angustiosos dos fe-
ridos, o estalido dos móveis que se partiam e o rumor
produzido pela caliça que se desprendia das paredes. —
Avante! coragem — gritava seguindo com a vista o pe-
queno tambor — mais... mais... corre... àvanite... corre...
Lá pára o maldito! Bem, torna outra vez a correr! — Nis-
to um oficial veio dizer-lhe, ofegante, que os inimigos,
sem interromper o fogo, desfraldavam uma bandeira bran-
ca, impondo assim a rendição.
— Não se responde! — gritou êle sem despregar os
olhos do rapaz que já entrara na planície, mas andando
vagarosamente e parecendo arrasitar-se a custo... -—Mais!
mais! corre!... vociferava o capitão, cerrando os dentes e
os punhos. Mata-te... morre, celerado, mas chega! De-
pois soltou uma imprecação horrível e continuou: — Ah!
o infame poltrão sentou-se!
Efectivamente o rapaz, cuja cabeça até então se des-
cobria por cima de um campo de trigo, desaparecera co-
mo se tivesse caído. Passado, porém, um momento reapa-
receu ainda uma vez, furtivamente, para perder-ae de
CORAÇÃO 87
novo entre os silvados... e o capitão não o viu mais. Des-
ceu então precipitadamenite ; saraivavam as balas, as salas
estavam atulhadas de feridos, alguns dos quais cambalea-
vam como ébrios, agarrando-se aos móveis despedaçados
que encontravam; as paredes e o pavimento estavam man-
chados de sangue, e os cadáveres amontoavam-se às por-
tas. O tenente tinha o braço partido por uma bala, e o
fumo e a poeira envolviam tudo.
— Coragem! gritou o capitão. Cada um ao seu posto!
Chegam-nos socorros, vá, ainda um momento de coragem.
Os austríacos tinham-se aproximado mais, viam-se
de cima, através do fumo, os seus rostos enraivecidos; ou-
via-se o estrépido das descargas, e os gritos selvagens
acompanhados de ameaças de extermínio com que insul-
tavam e intimavam a rendição. Se algum soldado menos
corajoso se retirava da janela, os sargentos empurravam-
-no para a frente; mas o fogo de defesa ia enfraquecendo,
o desânimo manifestava-se em todos os rostos, e não era
possível prolongar a resistência. Num momento dado, os
tiros dos austríacos afrouxaram e uma voz trovejante
bradou, primeiro em tudesco, depois em italiano:
— Rendei-vos!
— Não! nunca! — gritou o capitão de uma das ja-
nelas.
E o fogo recomeçou mais vivo e mais furioso das duas
partes. Caíram mais soldados; já havia janelas sem de-
fensores. O momento fatal estava iminente, e o capitão
gritava com voz presa, entre os dentes:
— Não vêm! não vêm! — e corria em torno, furioso,
torcendo a espada nas mãos convulsas, resolvido a mor-
rer no seu posto.
Nisto um sargento, descendo do sótão, exclamou em
altos gritos:
— Aí vem socorro!
E o capitão num brado de alegria, repetiu:
— Aí vem socorro !
Aquela voz, todos, feridos, sargentos e oficiais, se di-
rigiram para a janela, e a resistência tornou-se mais feroz
ainda. Passados momentos notou-se entre os inimigos
88
CORAÇÃO
como que uma tal ou qual incerteza, e um princípio de
insubordinação.
De repente, o capitão, furioso, reuniu alguns homens
numa sala do rez-do-chão para esperarem o inimigo à
baioneta calada. Voltou ainda acima e mal tinha chegado,
quando se sentiu o estrépido de passos precipitados,
acompanhados de um hurrah formidável, e se viu das ja-
nelas, por entre o fumo, aproximarem-se os chapéus de
dois bicos dos carabineiros italianos, um esquadrão de
cavalaria a todo o galope, um relampejar vivíssimo das
lâminas espargindo centelhas que caíam sobre as cabeças,
os ombros e as costas dos soldados. Os sitiados então,
abrindo repentinamente a porta, irromperam de baionefta
calada, e os inimigos, vacilantes, em desordem, voltaram
as costas fugindo.
O terreno ficou desembaraçado, a casa ficou livre,
e pouco de-
pois dois ba-
talhões de in-
fantaria ita-
liana, e dois
canhões ocu-
pavam o cimo
da encosta. O
capitão, com
os soldados
que lhe resta-
vam, uniu-se
ao seu regií-
mento, com-
bateu ainda e
f o i ligeira-
mente ferido
na mão esquerda por uma bala de ricochete, no último
assalto à baioneta. O combate acabou com a vitória dos
nossos. Mas um dia depois, tendo recomeçado a batalha,
os italianos foram vencidos, a-pesar da valorosa resistên-
cia, pelo número excessivo de austríacos, e na manhã de
vinte e seis tiveram de tomar (tristemente o caminho de
retirada em direcção ao Minicio. O capitão, posto que fe-
CORAÇÃO 89
rido, acompanhou a pé os seus soldados, cansados e si-
lenciosos; e chegando ao cair do dia a Goito, sobre o Mi-
nicio, procurou logo o tenente, que fora conduzido na
ambulância com o braço partido e devia ter chegado ali
antes dêie. Indicaram-lhe uma igreja transformaaa apres-
sadamente em hospital de sangue. Foi lá. A igreja estava
cheia de feridos, deitados em duas filas de leitos e de
colchões estendidos no pavimento; dois médicos e vários
ajudanites iam e vinham, apressados e solícitos, e ouviam-
-se ais sufocados e gemidos dolorosos. Apenas entrou, o
capitão parou, olhando em volta, em procura do seu ofi-
cial. Nesse momento ouviu que o chamava uma voz fraca,
mas muito próxima:
— Meu capitão!...
Voltou-se... era o tamborzinho.,.
Estava esitendido numa cama de bancos, coberto até
ao peito com uma cortina de janela, áspera, de quadradi-
nhos vermelhos e brancos, com os braços de fora, pálido,
emagrecido, mas sempre com aqueles olhos cintilantes
como dois brilhantes negros...
— Aqui ! exclamou o capitão rudemente, mas sur-
preendido.— Bravo! cumpriste o teu dever.
— Fiz o que pude, meu capitão ! — disse o tambor-
zinho.
— Estás ferido? — preguntou o capitão, procurando
ao mesmo tempo com os olhos o seu oficial.
— Estou, meu capitão, disse o rapaz, a quem dava co-
ragem para falar a orgulhosa satisfação de ser pela pri-
meira vez ferido, sem o que se não atreveria a abrir a
boca em presença do seu capitão. Foi uma boa corrida,
mas viram-me logo. Era capaz de chegar vinte minutos
mais cedo se me não acertam. Felizmente encontrei logo
um capitão do estado maior, a quem entreguei o bilhete.
Mas... custou-me tanto a correr na descida, depois de
ferido!... Morria de sede, receava não chegar a tempo,
chorava de raiva pensando que, por cada minuto de de-
mora, lá em cima, na encosta, ia indo um camarada para
o outro mundo. Acabou-se ; fiz o que pude e estou con-
tente. Mas... com licença, meu capitão... também está
ferido!...
gO CORAÇÃO
Com efeito, da mão mal ligada do capitão, caiam, pe-
los dedos abaixo, algumas gotas de sangue.
— Quere que eu lhe aperte mais a ligadura ,meu ca-
pitão? Faça favor de pôr aqui a mão, um momento.
O capitão apresentou a mão esquerda, estendendo a
direita para ajudar o rapaz a desfazer o nó e tornar a fa-
zê-lo; mas o tamborzinho, meio erguido apenas do traves-
seiro, empalideceu e deixou cair de novo a cabeça.
— Basta! basita! disse o capitão, olhando-o atento e
retirando a mão ligada que êle tentava reter. Cuida de
ti, em vez de cuidares dos outros; as feridas leves descu-
radas podem tornar-se graves.
O tamborzinho abanou a cabeça.
— Mas tu, continuou o capitão, fixando-o atenta-
mente, deves ter perdido muito sangue para estares de-
bilitado desse modo...
— Perdido muito sangue? — respondeu o rapaz com
um sorriso — perdi mais alguma coisa... olhe, meu capi-
tão... E tirou de repente a coberta.
O capitão deu um passo à retaguarda horrorizado!
O rapaz tinha apenas a perna direita, a esquerda fôra-lhe
amputada por cima do joelho. A coxa estava embrulhada
em panos ensangiientados. Passava naquela ocasião, em
mangas de camisa, um médico militar, pequeno e gordo,
que disse, indicando o tamborzinho :
— Ai tem, senhor capitão, um caso bem desgraçado.
Salvava-se-lhe facilmente a perna, se êle a não tivesse for-
çado dum modo louco, porque a forçou... Depois veio
uma inflamação enorme, e foi necessário amputar-lha,
como vê. Oh! mas é um bravo este rapaz! asseguro-lho
eu! Nem uma lágrima! nem um grito! Orgulhava-me de
que êle fôse italiano quando o estava operando. Palavra
de honra! este, por Deus, é de bôa raça!
E seguiu o seu caminho...
O capitão carregou as grandes sobrancelhas brancas,
olhou fixo para o tamborzinho e tornou a estender-lhe a
coberta por cima; depois, lentamente, quási sem se aper-
ceber do que fazia, e fixando-o sempre, levou a mio à ca-
beça e descobríu-ee...
CORAÇÃO 91
■ -•.-■ i
— Meu capitão! respondeu o rapaz, maravilhado.
Que faz, meu capitão? Isso é para mim?!
E neste momento aquele rude soldado, que nunca dis-
sera uma palavra branda a um inferior qualquer, respon-
deu com uma voz indizivelmente afectuosa e doce:
— Eu não sou senão um capitão, e tu és um herói !
Em seguida debruçou-se para o tamhorzinho, e bei-
jou-lhe três vezes o coração.
O amor da Páíria
Terça-feira, 24
Visto que a história do tamborzinho te fez palpitar o cora-
ção, devia ser-te fácil esta manhã discorrer bem sobre o tema
da composição: — Porque amas a Itália? — Porque amo a Itália?
Não te acodem mil respostas? Eu amo a Itália porque minha
mãi é italiana; porque o sangue que me corre nas veias é ita-
liano; porque é italiana a terra onde são sepultados os mortos
que minha mãi e meu pai veneram; porque é italiana a cidade onde
nasci, a líng^ua que falo, os livros que me educam, meu irmão, mi-
nha irmã, os meus companheiros, o grande povo no meio do qual
eu vivo, a bela natureza que me cerca, tudo quanto vejo, amo
estudo e admiro, é italiano. Ah! tu não podes ainda sentir toda
a veemência destes afectos! Hás-de senti-la quando fores ho-
mem, quando, ao voltar de uma viagem longa, depois de dilata-
da ausência, te debruçares uma manhã, no parapeito da embarca-
ção e vires no horizonte as grandes montanhas do país... Hás-de
senti-la, então, na onda impetuosa da ternura que te encherá os
olhos de lágrimas e te arrancará um grito do coração. Hás-de
senti-la em qualquer grande cidade estrangeira no impulso de
alma que te arrastar, por entre uma multidão desconhecida, para
um operário desconhecido, que ao passar por ti pronunciar uma
palavra da tua língua... Hás-de senti-la na indignação dolorosa
e soberba que te fará subir o sangue às faces quando ouvires
injuriar o teu país pela boca de um estrangeiro... Hás-de senti-
-la mais violenta e mais ainda no dia em que a ameaça de um
povo inimigo desencadear uma tempestade do fdgo sôbr* a tut
p&tria, • virM «urgir «xlrcitos d« tôdts as partei, eorrtr*m oe
92 CORAÇÃO
mancebos em legiões, os pais beijarem os filhos bradando «cora-
gem!» e as mais com um saudoso «adeus» gritar-lhes: «à vitória».
Hás-de senti-la com uma alegria divina se tiveres a fortuna de
veres entrar na tua cidade os regimentos cansados, com o es-
plendor da vitória nos olhos, e as bandeiras crivadas de balas,
seguido de um comboio de mutilados valorosos que levantarão
altivos as cabeças feridas e ligadas, no meio de uma multidão
louca de entusiasmo que os cobrirá de flores, beijos e bênçãos...
Compreenderás então o amor da pátria, sentirás em ti mesmo a
pátria, Henrique. Ela é tão grande! tão sagrada! que se um dia
te visse voltar salvo de uma batalha combatida em sua defesa...
a ti, que és a minha carne, a minha alma... e se soubesse que ti-
nhas salvo a vida cobardemente, fugindo ao perigo, eu, teu
pai, que te acolho com um grito de alegria quando voltas da es-
cola, receber-te-ia com um suspiro angustioso, não poderia amar-
-te mais, e morreria com esse punhal no coração.
Teu Pai.
Inveja
Çuarta-feira, 25
I
A melhor de todas as composições sobre a Pátria foi
a de Derossi. E Voltini que contava já com a primeira
medalha! Eu poderia ainda gostar de Voltini a-pesar-de
ser bastante vaidoso e de se pentear muito, mas agora,
que estou perto dele no banco, e vejo como é invejoso,
en£astia-me. É certo que estuda muito, mas não pode com-
petir com êle de nenhum modo. Derossi sabe de todas as
matérias dez vezes mais do que Voltini, e este, como vê
que não pode competir, morde os dedos de raiva. Carlos
Nobis também lhe tem inveja, mas há tanta soberba na-
quele corpo, que, mesmo por soberba a não dá a perceber.
Voltini, ao contrário, lamenta-se e queixa-se em casa, di-
zendo que o mestre faz injustiças!... Mas quando Derossi
responde às preguntas tão pronto e tão bem, como faz sem-
pre, êle perturba-se, inclina a cabeça, finge que não ouve,
ou então esforça-se para rir, mas com um riso amarelo...
Todos o conhecem já, e quando o mestre elogia Derossi
voltam-se a olhar para Voltini, que engole em seco, e o
pedreirito faz-lhe o focinho de lebre. Esta manhã, por
CORAÇÃO ^c
exemplo, £ê-la bonka. O mestre entrou na escola e anun-
ciou o exame dizendo: — Derossi, quinze valores e a pri-
meira medalha. Nisto Voltini deu um grande espir-
ro. O mestre fixou os olhos nele, e de tal modo que todos
nós compreendemos logo a razão porque. Depois disse-
-Ihe:
— Voltini, não deixes entrar no teu cérebro a inveja;
é uma serpente que rói o cérebro e corrompe o coração.
Todos se viraram para êle, excepto Derossi. Voltini,
quis responder mas não pôde... ficou como petrificado
e com o rosto pálido. Daí a pouco, enquanto o mestre ex-
plicava a lição, pôs-se a escrever em grandes caracteres
em cima duma folha de papel; Eu não tenho inveja dos
que ganham a primeira medalha com protecções e injus-
tiças. Era um bilhete que queria mandar a Derossi, e en-
tretanto, via eu que os vizinhos deste cochichavam e ma-
quinavam alguma coisa entre si, e que um cortava com o
canivete uma grande medalha de papel, sobre a qual ti-
nha já desenhado uma serpente negra. Voltini também
percebeu tudo. O mestre saiu por poucos minutos. De
repente os que estavam ao lado de Derossi levantaram-se
para sair da bancada e vir apresentar solenemente a me-
dalha de papel a Voltini. Toda a aula se preparava para
vma farçada, e Voltini tremia todo. Derossi então gri-
tou:
— Dêm-m.e cá isso...
— Sim, sim, é melhor que sejas tu que lha leves —
responderam todos.
Derossi pegou na medalha e rasgou-a em pedaços-
Naquele momento tornou a entrar o mestre e continuou
a explicar a lição. Eu não tirava os olhos de Voltini. Ti-
nha-se posto vermelho como brasas. Pegou vagarosamen-
te no papel que escrevera, como se o fizesse por distrac-
ção, machucou-o às escondidas, meteu-o na boca, e mas-
ti^ando-o por um pouco, cuspiu-o depois debaixo do
banco. Ao sair da escola, passando diante de Derossi,
Voltini, que estava ainda um pouco atrapalhado, deixou
cair uma folha de papel de mataborrão. Derossi apa-
nhou-a delicadamente e meteu-a na carteira, ajudando-o
a apertar a correia. Voltini nem sequer ousou levantar
s cabeça.
94 CORAÇÃO
À mâi de Franíi
Sábado, 28
Mas Voltini é incorrigível. Ontem, na lição de reli-
gião, em presença do director, o mestre pregunitava a
Derossi se sabia de cór as duas estrofesinhas do livro de
leitura; 1 , í J.:/,
E por onde o olhar se volva
Sempre a Deus encontrará...
Derossi respondeu: — Não sei — e Voltini atalhou
imediatamente: — Sei eu — e disse isto sorrindo para fa-
zer perrice a Derossi.Pêrro, porém, ficou ê^e, que não pôde
recitar a poesia, porque neste momento entrou na escola
a mãi de Franti, aflita, com os cabelos grisalhos em
desordem, toda molhada de neve, e empurrando adiante
de si o filho que fora expulso da escola por oito dias.
Que triste cena se passou então! A pobre mulher quási
se deitou de joelhos diante do director, suplicando com
as mãos erguidas:
— Oh! senhor director, faça-me esta esmola... torne
a admitir o rapaz na escola! Há três dias que está em
casa, tenho-o tido escondido, mas Deus me livre que o
pai o descubra, porque o mata. Tenha piedade de mim,
senhor, que não sei o que hei-de fazer. Entrego-me de
todo o coração à sua generosidade.
O director procurou conduzi-la para fora, mas ela
resistia sempre, pedindo, chorando.
— Oh ! se soubesse os trabalhos que tenho sofrido
por causa deste filho, teria compaixão de mim. Faça-me
esta esmola! Êle há-de mudar, senhor director; eu não
viverei muito, itenho a morte aqui; mas queria vê-lo mu-
dado antes de morrer, porque... E desatando em copioso
pranto continuou : — É meu filho, quero-lhe como mãi
e morreria desesperada. . . Consinta-o aqui ainda mais uma
vez, senhor director, para que não suceda alguma des-
graça na família; ;.
CORAÇÃO 95
E cobriu o rosto com as mãos, soluçando. Franti
estava de cabeça baixa, impassível. O director olhou para
êle, pensou um pouco, e disse:
— Franti, vá para o seu lugar.
Ouvindo isto, a mãi tirou as mãos do rosto, toda
satisfeita, e sem deixar falar o director, principiou a
dizer: ■ ^1T?Í
— Muito obrigada! muito obrigada, e encaminhou-se
para a porta, enxugando os olhos e dizendo atropelada-
mente: — Meu filho, olha se tomas juízo! Tenham pa-
ciência todos, sim?... Muito obrigada, senhor director:
fez uma obra de caridade. Olha se te portas bem, meu
filho!... Bom dia, meninos... Muito obrigada! Até à vis-
ta, senhor mestre... e desculpem todos a uma pobre mãi.
Ainda da porta olhou com ar suplicante para o fi-
lho e foi-se embora, apanhando o chalé que ia de rastos,
pálida, curvada, com a cabeça trémula. Ouvia-se ainda
tossir quando descia as escadas. O silêncio na aula era
completo. O director olhou fixamente para Franti, e com
um acento de fazer tremer disse-lhe:
— Franti, tu matas tua mãi !
Todos olharam para Franti, e êle, o maroto, ria-se.
Esperança
sábado, zg
Magnífico, Henrique, o modo como te lançaste nos bra-
ços de tua mãi quando voltavas da lição de religião. Sim, gran-
des e consoladoras palavras te disse o professor! Deus, que
nos deitou nos braços um do outro, não há-de separar-nos para
sempre. Quando eu morrer, quando teu pai morrer, não mais
diremos aquelas tremendas e desesperadas palavras: mãi, pai,
Henrique, não te verei mais! Sim, ver-nos-emos em uma outra
vida, onde aquele que muito sofreu nesta, será compensado!
onde aquele que muito amou na terra, tornará a encontrar as
almas amadas num mundo sem lágrimas e sem morte! Mas de-
vemos tomar-nos todos dignos dessa outra vida. Ouve, filho,
cada acção boa que praticares, cada palavra de afecto que dirj'
96
CORAÇÃO
gires aos que te amam, cada acto de cortesia para com os teus
companheiros, e cada nobre pensamento que tiveres será como
que o impulso que te elevará para aquele mundo. É também lá
que conduzem as desgraças e as dores, porque cada dor é a ex-
piação de uma culpa, e cada lágrima apaga uma nódoa. Procura
cada dia ser melhor e mais amável que no dia anterior. Diz con-
tigo todas as manhãs: Hoje vou fazer qualquer coisa de que a
consciência me louve e meu pai fique contente, qualquer coisa
que me faça estimado deste ou daquele companheiro, do mes-
tre, do meu irmão, ou de outro, enfim, E pede a Deus que te dê
força para pôr em acção o teu propósito, e diz: Senhor, eu que-
ro ser bom, nobre, corajoso, dedicado, sincero; ajuda-me, faz
que todas as noites, quando minha mãi me dá o último beijo, eu
possa dizer-lhe: Tu beijas esta noite um filho mais honesto e
mais digno do que aquele que beijaste ontem. Tem sempre no
pensamento aquele outro Henrique sobrehumano e feliz que tu
poderás ser na outra vida, e reza, Henrique. Nem podes imagi-
nar que doçuras experim.enta uma mãi, como ela se sente bem,
quando vê um filho de joelhos com as mãos erguidas! Quando
te vejo em oração, parece-me impossível que não haja quem
te vigie e quem te escute! Creio então mais firmemente que
existe uma bondade suprema e uma piedade infinita. Amo-te
mais, trabalho com mais ardor, sofro mais resignada, perdoo
com toda a minha alma, e penso na alma serenamente. Oh! Deus
é grande e bom! Tornar a ouvir, depois da morte, a voz da mi-
nha mãi, tornar a encontrar-me com meus filhos, tornar a ver
o meu Henrique, o meu Henrique abençoado e imortal, apertá-
-lo num abraço que não se dissolverá mais, nunca mais... nunca
CORAÇÃO 97
mais... eternamente! Oh! reza, rezemos, amemo-nos, sejamos
bons, alimentemos na alma esta celeste esperança, meu adora-
do filho.
Tua Mài.
FEVEREIRO
Uma medalha bem dada
Sábado, 4
Esta manhã veio para distribuir as medalhas o su-
perintendente das escolas, um senhor com a barba branca,
vestido de preto. Entrou com o director, pouco antes da
hora da saída e sentou-se ao lado do mestre. Interrogou
vários alunos e depois deu a primeira medalha a Derossi;
e, antes de dar a segunda, esteve alguns minutos es-
cutando o mestre e o director, que lhe falavam em voz
baixa. Todos preguntaram baixinho: — A quem dará ele
a segunda? — O superintendente disse por fim em voz
alta:
— A segunda medalha mereceu-a esta semana o alu-
no Pedro Precossi ; mereceu-a pelos trabalhos que fez
em casa, pelas lições, pela caligrafia, e pelo seu proce-
dimento; por tudo!
Todos se voltaram para ver Precossi, e sentiu-se um
movimento geral de satisfação. Precossi levantou-se
muito confuso, como quem não sabia mais onde estava.
— Vem cá ! — disse o superintendente.
Precossi saltou abaixo do banco e foi colocar-se ao
lado da mesa do mestre. O superintendente olhou aten-
tamente para aquela carita côr de cera, para aquele cor-
pinho metido numas roupas todas arregaçadas, dentro
das quais dificilmente se movia, para aqueles olhos cheios
de bondade e de ternura, que evitavam os seus, m.as que
deixavam adivinhar uma história de sofrimentos; e de-
pois, com voz afectuosa, prendendo-lhe a medalha ao
peito :
98 CORAÇÃO
— Precossi, con£io-te esta medalha. Nenhum é mais
digno do que tu de a ter. Não a dou só à tua inteligência
c à tua boa vontade; dou-a ao teu coração, à tua cora-
gem, ao teu carácter de bom e digno filho. Não é verdade
que êle a merece por todo os títulos?
— Merece, sim senhor, merece! — responderam to-
dos unísonos.
Precossi fez um movimento com o pescoço como
para engolir qualquer coisa, e lançou sobre toda a
aula um olhar dulcissimo, que exprimia uma gratidão
imensa.
— Vai... caro Precossi... disse-lhe o superintendente.
— E que Deus te proteja!
Era a hora de sair, e a nossa aula acabou antes das
outras. Em baixo no grande vestíbulo, à entrada, quem
havíamos nós de ver? O pai de Precossi, o ferreiro, pá-
lido como de costume, com o aspecto carrancudo, os ca-
belos sobre os olhos, com a carapuça do avesso, e mal
se segurando nas pernas. O mestre viu-o logo e falou ao
ouvido do superintendente; êsíe procurou Precossi apres-
sadamente, e, tornando-o pela mão, íevou-o junto do pai.
O rapaz tremia. O mestre e o director aproximaram-se, e
muitos rapazes faziam-lhe roda.
— O senhor é o pai deste rapaz, não é verdade? —
preguntou o superintendente ao ferreiro, com ar alegre,
como se fossem amigos. E, sem esperar resposta, conti-
nuou: Pois congratulo-me com o senhor. Oiça, seu filho
ganhou a segunda medalha entre cinqiienta e quatro com-
panheiros; e ganhou-a pela escrita, pela composição, pela
aritmética e por tudo. É um rapaz cheio de inteligência
e de boa vontade, que há-de ir muito longe! um exce-
lente rapaz que tem a afeição e a estima de todos. Pode
orgulhar-se dele, digo-lho eu!
O ferreiro, que estava a ouvir de boca aberta, olhou
fixamente para o superintendente e para o director e
depois para o filho que tinha ao pé de si, com os olhos
baixos, tremendo como se se recordasse e compreendesse
naquele momento, pela primeira vez, tudo quanto tinha
feito sofrer à pobre criança, e toda a bondade, itôda a
constância heróica com que êle tudo sofrera; manifestou
CORAÇÃO 99
de repente no rosto uma certa maravilha estúpida, em
seguida uma amargura concentrada e afinal um enterne-
cimento violento e triste; e c'om um gesto rápido, lan-
çou os braços ao pescoço do filho, apertando-o convulsa-
mente ao peito. Nós passamos todos adiante deles, e
eu convidei o filho a vir a nossa casa, quinta-feira, com
Garrone e Crossi. Uns cumprimentavam-no, outros faziam-
Ihe caricias e tocavam-lhe na medalha, e todos lhe dis-
seram algumas palavras afectuosas. E o pai olhava para
nós, estupefacto, tendo sempre apertada contra o peito
a cabeça do filho que soluçava.
Bons propósitos
Domingo, 5
Despertou-me remorsos aquela medalha dada a Pre-
cossi. E eu que ainda não ganhei nenhuma! Há tempo
que não estudo ; ando pouco satisfeito ; o mestre, meu
pai e minha mãi andam igualmente descontentes comigo.
Nem ao menos sinto prazer em divertir-me, como sentia
dantes, quando trabalhava de boa vontade, e deixava a
mesa do trabalho, correndo para os meus brinquedos
cheio de alegria como se não tivesse brincado depois de
um mês. Nem à mesa, com a família, sinto a satisfação
doutro tempo! Trago sempre como que uma sombra no
espírito, e uma voz interior que me diz continuamente: —
Isto não vai bem... isto não vai bem! Quando vejo à
tarde, passar pela praça tantos rapazes que voltam do
trabalho, no meio de grupos de operários todos cansados
mas alegres, apressando o passo, impacientes por chega-
rem a casa para cear, falando animadamente, rindo,
batendo nos ombros uns dos outros, com as mãos negras
de carvão ou brancas de cal, e me lembro de que traba-
lharam desde o romper de alva até aquela hora, e tantos
outros, ainda mais pequenos, que passaram o dia inteiro
em cima dos telhados, junto às forjas, no meio de má-
quinas, dentro da água e debaixo da terra, não comendo
mais do que um bocado de pão... sinto-me envergonhado
100 CORAÇÃO
por não ter feito em todo aquele tempo senão uns rabis-
cos em quatro páginas, e de má vontade! Ah! estou des-
contente... muito descontente! Vejo bem que meu pai
está de mau humor, e com vontade de o manifestar, mas
tem pesar de o fazer, e espera ainda... Êle, o meu que-
rido pai que itanto trabalha! Tudo é seu, tudo aquilo
que toco, tudo o que me veste e me alimenta, tudo o que
me educa e me diverte, tudo é fruto do seu trabalho, e
eu não trabalho! Tudo lhe tem custado canseiras, pri-
vações, desgostos, fadigas, e eu não me afadigo! Ah!
não, isto desgosta-me profundamente e não posso con-
tinuar assim... Quero principiar desde hoje, quero lan-
çar-me ao estudo como Stardi, com os punhos e os den-
tes cerrados, empregar toda a força da minha vontade e
do meu coração; quero vencer o sono à noite, levantar-
-me cedo de manhã, atormentar o cérebro sem descanso,
castigar a preguiça sem piedade, afadigar-me sofrer e
adoecer até!... mas acabar por uma vez com esta vida
fraca e indolente que me avilta e entristece os outros!
Coragem! ao trabalho! ao trabalho com toda a alma e
com toda a energia! Ao trabalho, que me tornará outra
vez aprasivel o recreio, divertidos os jogos e alegre o
jantar; ao trabalho, que me há-de restituir o bom sorriso
do meu mestre e o beijo abençoado de meu pai!
comboiozinho
Sexta-feira, lo
Precossi veio ontem a nossa casa com Garrone. Creio
que, se fossem filhos de príncipes, não seriam recebidos
com mais festas. Garrone era a primeira vez que vinha,
porque é um pouco urso, e além disso envergonha-se de
aparecer por ser já crescido e estar ainda na terceira.
Fomos todos abrir-lhes a porta quando tocaram a cam-
painha. Crossi não veio, porque Jhe tinha finalmente
chegado o pai da América, ausente havia seis anos. Mi-
nha mãi beijou Precossi, à entrada; e meu pai apresen-
tou-lhe Garrone, dizendo:
CORAÇÃO 101
— Aqui está!... Este não é somente ura bom rapaz, é
um homem de bem e um fidalgo...
Êle curvou a sua grande cabeça rapada, sorrindo dis-
farçadamente. Precossi trazia a medalha e estava con-
tente porque o pai resolvera-se novamente a trabalhar, e
havia cinco dias que se não embriagava, desejando tê-lo
sempre na oficina a fazer-lhe companhia, e diz que pare-
ce outro. Prinpiámos a jogar e eu apresentei todos os
meus brinquedos. Precossi ficou encantado diante do
meu comboio de caminho de ferro, com a máquina que
marcha por si dando-lhe corda. Nunca vira coisa igual, e
devorava com os olhos, aqueles vagõezinhos encarnados.
Dei-lhe a chave para que êle desse corda, ajoelhou-se a
brincar e não levantou mais a cabeça. Nunca o vi tão ale-
gre! E dizia sempre :i — Desculpe-me!... desculpe-me! —
a propósito de qualquer coisa, acenando com a mão, para
que não fizéssemos parar a máquina- E depois pegava e
tornava a pôr os vagõezinhos com mil cuidados, como se
fossem de vidro, receando embaciá-los com o bafo, lim-
pando-os e examinando-os por cima e por baixo, sorrindo-
-se. Nós todos em pé, observávamo-lo, olhávamos para
aquele pescoço delgado, para as pobres orelhinhas que eu
vira um dia a escorrer sangue, para a enorme jaqueta com
as mangas arregaçadas, donde saíam dois bracinhos de
doente que se haviam erguido tantas vezes para defen-
der o rosto das pancadas. Oh! naquele momento a minha
vontade era Jançar-lhe aos pés todos os meus brinquedos,
e todos os meus livros, tiraria da boca o último bocado
de pão para lhe dar. Ter-me-ia despido para o vestir... e
prostar-me-ia de joelhos para beijar-lhe as mãos. — Ao
menos o comboio, quero dar-lho — pensei eu. Mas era pre-
ciso pedir licença a meu pai ; e nesse momento sinto que
me metiam um pedaço de papel na mão; olhei: era escri-
to por meu pai, a lápis, e dizia assim: «O teu comboio
agrada a Precossi... Êle não tem brinquedos... Não te su-
gere nada o teu coração?» imediatamente peguei na má-
ouina e nos vagões com ambas as mãos e entreguei-lhos,
dizendo :
— Toma, tudo é para ti. Êle olhou para mim, pare-
102 CORAÇÃO
cendo não compreender nada. — É para ti — repeti —
dou-te isso tudo de presente.
Então ele olhou para meu pai e para minha mãi, ainda
mais espantado, e preguntou-lhe:
— Mas porquê?
Meu pai disse-lhe:
— Porque Henrique é teu amigo, e porque te quere
bem: isso é para festejar a tua medalha.
Precossi preguntou timidamente:
— Posso levar tudo para casa?
— Certamente que podes, respondemos todos. Esta-
va à porta e não ousava sair. Era fe,liz! Pedia desculpa
com os lábios trémulos, e ria. Garrone ajudou-o a em-
brulhar o comboio no lenço e inclinando-se deixou cair
os biscoitos que lhe enchiam as algibeiras.
— Também um dia — disse-me Precossi — 'hei-de le-
var-te à oficina para veres meu pai trabalhar, e hei-de
dar-te pregos.
Minha rnãi, pôs um raminho na casa da jaqueta de
Garrone, para que o desse à mãi em seu nome. Garrone
disse com o seu vozeirão: — Muito obrigado! — mas. isto
sem levantar a barba do peito. Resplandecia-lhe contudo
nos olhos a sua boa e nobre alma.
Soberba
Sábado, lo
E dizer que Carlos Nobis limpa sempre a manga com
afectação quando Precossi roça por êle ao passar! E
toda esta soberba porque seu pai é um homem rico! Lá
por isso também o pai de Derossi é rico! O gosto dele
seria ter um banco só para si, porque receia que o su-
jem, e olha para todos de cima para baixo, e sempre com
um rizinho desdenhoso nos lábios. Ai do que ^he tocar
num calcanhar quando saímos enfileirados dois a dois!
Pela coisa mais insignificante lança em rosto uma pala-
vra injuriosa, ou ameaça os companheiros com a vinda
do pai à escola, apesar-de lhe ter dado uma boa ensina-
CORAÇÃO 103
dela quando êle chamou pobretão ao carvoeiro. Eu nun-
ca vi uma basófia igual. Ninguém lhe fala, ninguém lhe
diz adeus quando sai e não há um só que o auxilie na li-
ção quando a não sabe e se atrapalha. Êle também não dá
confiança a ninguém e finge desprezar principalmente
Derossi, porque é o primeiro, e Garrone porque é esti-
mado de todos. Derossi nem sequer olha para ê^e, e Gar-
rone quando lhe contaram que Nobis dizia mal dele, disse:
— É tão estupidamente soberbo que não merece os
meus cachações.
Também Coretti, um dia, em que êle se sorria com
desprezo do seu barrete de pele de gato, disse-lhe:
— Vai ter com Derossi, se queres aprender um pou-
co a fazer de senhor.
Ontem queixou-se ao mestre, porque o calabrês lhe
tocara numa perna com o pé. O mestre preguntou:
— Fizeste-o de propósito?
^ Não, senhor — respondeu friamente o calabrês.
E o mestre continuou: — Sois muito melindroso, No-
bis! E este, com o seu ar costumado, atalhou: — Hei-de
dizê-lo a meu pai. Então o mestre irritou-se. — Seu pai
não lhe há-de dar razão como tem acontecido outras ve-
zes— disse. — E tome nota: na escola não há senão o
mestre que julga e castiga. — Depois acrescentou com.
brandura: — Ora vamos, Nobis, mude de maneiras, seja
bom e cortês com os seus companheiros. Veja que há
aqui filhos de operários e de senhores ricos e pobres, e
todos se estim.am e se tratam como irmãos, que na verda-
de são. Porque não há-de, Carlos, fazer como fazem os
outros? Custava-lhe tão pouco fazer-se estimado de to-
dos!... Havia de andar rnais satisfeito... Então não tem
nada a responder-me?
Nobis, que estivera ouvindo com o seu habitual sor-
riso de desprezo, respondeu friamente: — Não senhor.
— Bem, sente-se — disse-lhe o mestre. — Lastimo-o
porque é um rapaz sem coração.
Parecia ter acabado o incidente: mas o pedreirito
que está no primeiro banco, voltando a carinha redonda
para Nobis, que está no último, fez-lhe um focinho de le-
bre tão caricato, que toda a classe desatou a rir. O mestre
104 CORAÇÃO
repreendeu-o, mas viu-se obrigado a tapar a boca com
a mão para esconder o riso. Nobis também desprendeu
um rizinho, mas daqueles que nascem e morrem amarelos.
Os feridos pelo írabalho
Segunda-feira, 13
Nobis e Franti parecem-se um com o outro. Só não se
comoveram esta manhã diante do terrível espectáculo que
nos passou diante dos olhos. Saíamos da escola, e estava
eu com meu pai a observarmos uns poucos de gaiatos da
segunda, que se atiravam de joe,lhos em terra, esfregando
o gelo com as capas e os barretes, para o tornar mais es-
corregadio, quando vimos ao fundo da rua uma multidão
de gente caminhando apressadamente, séria e meia espan-
tada, falando em voz baixa. No centro vinham três guar-
das municipais e, por trás destes, dois homens conduzin-
do uma padiola. Os rapazes corriam de toda a parte e a
multidão caminhava em direcção a nós. Sobre a padiola
estava estendido um homem, pálido como um cadáver,
com a cabeça caída sobre um ombro, os cabe,los em de-
sordem e ensanguentados, saíndo-lhe sangue pela boca e
pelos ouvidos. Ao lado da padiola, caminhava uma mu-
lher que parecia louca, com uma criança ao colo, gritan-
do de momento a momento : — Está morto ! Está morto !
— Seguia-a um rapaz com a pasta debaixo do braço, so-
luçando.
— Que foi que aconteceu? preguntou meu pai.
Alguém respondeu que era um pedreiro que caíra
dum quarto andar, onde trabalhava. Os portadores da pa-
diola descansaram um momento, e muitos voltaram o ros-
to horrorizados. Vi a mestra da pena vermelha, que am-
parava a sua colega da primeira superior, quási desmaia-
da; e ao mesmo tempo senti que me tocavam no coto-
velo. Era o pedreirito, pálido, que tremia da cabeça aos
pés. Pensava em seu pai certamente; e eu também me
lembrei dele. Eu felizmente tenho o espírito sossegado
quando estou na escola, porque sei que meu pai está em
CORAÇÃO
105
casa sentado à escrevaninha, longe de todo o perigo; mas
quantos dos meus companheiros pensam nos pais que
trabalham sobre uma ponte altíssima, ou perto das rodas
de uma máquina onde um movimento, ou passo em fal-
so, pode custar-lhes a vida! São como os filhos dos sol-
dados que têm os pais na guerra. E o pedreirito tremia
cada vez mais, e meu pai reparando nele, disse-lhe:
— Vai, vai para casa, pequeno; vai para casa de teu
pai, que lá o acharás são e tranqiiilo, vai...
O pedreirito foi andando, mas voltando-se para trás
105 CORAÇÃO
a cada passo. Neste meio tempo a multidão pôs-se de novo
em movimento, e a muiher continuava a gritar numa
aflição terrível: — Está morto! Está morto!
— Não, não, não está morto — asseveram-lhe de to-
das as partes, mas a pobre mulher a nada atendia e arran-
cava ds cabelos. Nisto ouvi uma voz indignada que di-
zia :^— Tu ris, patife: — e volíando-me vi um homem bar-
bado a olhar para Franti, que continuava a rir-se. Então
o homem de barbas atirou-lhe o barrete ao meio da rua
com um safanão, dizendo :
— Tira o barrete, maroto quando passa uma vítima
do trabalho.
A multidão havia já desaparecido, e via-se ainda no
meio da rua um extenso rasto de sangue.
O prisioneiro
Sexta-feira, ij
Ah! é este certamente o caso mais extraordinário
de todo o ano. Meu pai conduziu-me ontem de manhã
aos arredores de Moncalieri,. a ver uma vila que se alu-
gava para o próximo verão, porque este ano não vamos
para Chiri. Soubemos que quem tinha a chave era um
mestre que serve de secretário ao senhorio. Mostrou-nos
a casa, depois levou-nos ao seu gabinete, onde nos deu
de beber. Havia sobre a escrevaninha um tinteiro de ma-
deira de forma cónica, esculpido de um modo singular.
Vendo que meu pai o analisava, o mestre disse-lhe:
— Esse tinteiro é para mim precioso. Se o senhor
soubesse a história dele... E contou o seguinte:
Há anos, — era êle mestre em Turim, e foi durante todo
o inverno dar lições aos prisioneiros das cadeias civis.
— dava lição na igreja da cadeia, que é um edifício em for-
ma circular, em torno do qual, nas paredes altas e nuas,
se vêm pequenas janelas quadradas, veladas por duas
barras de ferro em cruz, correspondendo a cada uma de-
las uma pequeníssima cela. Êle dava lições passeando
pela igreja fria e escura, e os discípulos debruçavam-se
CORAÇÃO 107
naquelas aberturas, abrindo os cadernos de encontro aos
ferros, distinguindo-se vagamente as cabeças na sombra,
os rostos descarnados e tétricos, as barbas grisalhas e
descuidadas, os olhos fixos de homicidas e de ladrões. Ha-
via entre eles um, o número 78, que prestava mais aten-
ção que todos os outros, estudava muito, e olhava para
o mestre com olhos cheios de respeito e gratidão. Era
moço ainda, de barba preta, mais desgraçado que mal-
vado, fora marceneiro, e num ímpeto de cólera tinha
atirado com uma garlopa contra o mestre que o repreen-
dera, ferindo-o mortalmente na cabeça, e por isso havia
sido condenado a ajguns anos de prisão. No fim tíe três
meses tinha aprendido a ler e a escrever, e lia continua-
mente, e quanto mais aprendia, tanto mais parecia me-
lhorar de carácter e arrepender-se do seu delito. Um
dia, ao terminar a lição, fez sinal ao mestre para se apro-
ximar da grade, e anunciou-lhe com tristeza que na ma-
nhã seguinte partiria de Turim para ir cumprir senten-
ça num dos cárceres de Veneza; e dizendo-lhe adeus pe-
diu-lhe com voz humilde e comovida que consentisse que
êle lhe apertasse a mão. O mestre deu-lhe a m-ão, e êle
beijando-a, disse: — Obrigado, muito obrigado. — E de-
sapareceu. Quando o mestre retirou a mão, tinha-a ba-
nhada de lágrimas. Depois disso, não o viu mais. Tinham
decorrido seis anos.
Podia eu pensar em tudo menos naquele desgraçado
— disse o mestre — quando ontem de manhã me apa-
rece em casa um desconhecido, com uma grande barba
preta já com alguns fios brancos, mal vestido, que me
preguntou :
— É o senhor o mestre assim, assim...
— Sou, e o senhor quem é? — preguntei-lhe eu.
— Sou aquele que esteve preso e que tinha o número
78. Foi o senhor — continuou — que ha seis anos me en-
sinou a ler e escrever... Veja lá se se recorda... Acabei
de cumprir a sentença e aqui estou para lhe pedir que
me faça o favor de aceitar uma lembrança minha, uma
coisa insignificante que eu fiz na prisão. Aqui está,
aceite-me por favor esta lembrança, senhor mestre.
Fiquei absorto sem poder dar palavra, e êle pensan-
108 CORAÇÃO
do que eu lhe não aceitava a oferta, olhou para mim, como
quem queria dizer: Então, seis anos de sofrimento não
são ainda bastantes para me purificarem as mãos? — E
olhava para mim com tão viva expressão de dor, que eu
estendi logo a mão e peguei no objecto que me era ofe-
recido. Êle aí está. Examinamos detidamente o tinteiro;
parecia ter sido trabalhado com a ponta de um prego e
feito com extrema paciência. Estava na parte superior es-
culpida uma pena atravessada sobre um caderno e escrito
em volta: Ao meu mestre — Lembrança do número y8 —
— Seis anos! E por baixo em letras miudinhas: — Es-
tudo e esperança. — O mestre não disse mais nada e saí-
mos; mas por todo o caminho de Moncalieri a Turim, eu
não podia esquecer-me um momento daquele prisioneiro
debruçado na grade, do adeus ao mestre, e do modesto
tinteiro trabalhado no cárcere, que significa tanto... So-
nhei com êle de noite, e ainda esta manhã pensava no
tinteiro... Quão longe estava eu de imaginar a surpresa
que me esperava na escola! Mal entrei e me sentei no
meu novo banco ao lado de Derossi, e depois de escrito
o problema de aritmética para o exame mensal, contei ao
meu condiscípulo a história do condenado e do tinteiro,
como era feito, e como tinha uma pena sobre o caderno
e mais as inscrições em volta: Seis anos! Derossi, ouvindo
aquilo, ficou estupefacto e principiou a olhar, ora para
mim, ora para Crossi, o filho da vendedeira de hortaliças,
que estava no banco da frente com as costas voltadas para
nós, todo absorto em resolver o problema.
— Sciu...! Cala-te — disse logo em voz baixa, agar-
rando-o por um braço — Queres tu saber? Crossi disse-
-me ante-ontem que vira de fugida um tinteiro de ma-
deira nas mãos de seu pai que chegou da América, um
tinteiro cómico, feito à mão, com um caderno e uma pena,
e a inscrição que tu viste ; e disse-me mais que o pai esti-
vera na América. Esteve, mas foi, na cadeia. Como Crossi
era criança, quando o pai cometeu o delito, não sabe nada
e a mãi trouxe-o sempre enganado. Ora o que é preciso
é que nos não escape agora uma palavra a este respeito.
Eu fiquei mudo, com os olhos pregados em Crossi
e Derossi, resolvendo o problema, passou-lho por baixo
CORAÇÃO 109
do banco ; deu-lhe uma folha de papel e tomou-lhe a mão.
O enfermeiro de Tatá, história mensal que o mestre lhe
dera para copiar, com o fim de fazer por ele o trabalho;
e deu-lhe também penas, acariciou-o pousando-lhe bran-
damente as mãos nos ombros; e fez que eu lhe desse a
minha palavra de horura de não dizer a ninguém coisa al-
guma do que sabia. E quando saímos da escola, disse-
-me apressadamente:
— Ontem o pai veio buscá-lo, e decerto também hoje
vem. Anda comigo e faz o que eu fizer.
Chegamos à rua, e lá estava o pai de Crossi, um
pouco retirado, um homem com a barba negra, um tanto
grisalha, mal vestido, com rosto macilento e pensativo»
Derossi apertou a mão de Crossi de modo que todos vis-
sem bem, dizendo em voz alta : — Até à vista, Crossi, e
passou-lhe a mão pela cara. Eu fiz o mesmo, mas ficámos
ambos muito vermelhos ; e o pai de Crossi olhou-nos aten-
tamente com um olhar benévolo, mas em que transluzia
uma expressão de desassossego e de suspeita que nos ge-
lou o coração.
O enfermeiro de Taía
(CONTO MENSAL)
Na manhã de um chuvoso dia de março um rapaz ves-
tido de camponês, todo encharcado e enlameado, com uma
trouxa de roupa debaixo do braço, chegava ao hospital
de Nápoles e preguntava ao porteiro por seu pai apre-
sentando-lhe ao mesmo tempo uma carta. Tinha um belo
rosto oval, de um trigueiro pálido, os olhos pensativos
e dois grossos lábios semi-abertos deixando ver uns den-
tes alvíssimos. Chegava de uma aldeia dos arredores de
Nápoles. O pai partira de casa no ano anterior para ir
procurar trabalho em França, e regressara à Itália desem-
barcando em Nápoles poucos dias antes, mas, adoecendo
repentinamente, apenas tinha tido tempo para escrever
duas linhas à família anunciando-lhe a sua chegada e di-
zendo que entrava no hospital. A mulher aflita com a
110
CORAÇÃO
notícia, não podendo sair de casa porque tinha uma fi-
lhinha enferma e outra de peito, mandara a Nápoles o fi-
lho mais velho com algum dinheiro no bolso para ir fa-
zer companhia ao pai, ao seu Tatá, como lá se diz. O
rapaz andara dez milhas para chegar ali. O porteiro leu
de relance a carta e chamando um enfermeiro disse-lhe
que conduzisse o rapaz ao pai.
— Que pai? — preguntou o enfermeiro.
O rapaz es-
t r em e c e ndo
com receio de
uma triste no-
tícia disse o no-
m.e do pai.i O
enfermeiro não
se recordava do
nome.
— É operário,
— r e s p o ndeu
o rapaz cada
vez mais ansio-
so — mas não
muito velho. De
fora veio, sim.
— E quando
entrou no hos-
pital? — preii-
guntou o enfer-
meiro.
— Há cinco
dias, acho eu.
O enfermeiro pensou um pouco, e depois, como que
recordando-se de repente, disse:
Ah! sim... no quarto salão... na última cama.
— Estará muito doente? Como está ele? — preguntou
ansiosamente o rapaz.
O enfermeiro olhou para êle sem responder. Pas-
sados momentos disse:
CORAÇÃO 111
— Vem comigo.
Subiram dois lanços de escadas, e seguindo até ao fim
de um largo corredor, acharam-se em frente da porta de
um salão, onde se viam em todo o comprimento, duas fi-
las de leitos.
— Segue-me — repetiu o enfermeiro entrando.
O rapaz cobrou ânimo e seguiu-o lançando medrosa-
mente a vista para a direita e para a esquerda, sobre os
rostos pálidos e cadavéricos dos doentes, alguns dos
quais tinham os olhos fechados como se estivessem, mor-
tos e outros olhavam fixamente para o teto com^ os olhos
abertos e espantados. Alguns gemiam como crianças. O
salão estava escuro, o ar impregnado de um cheiro agu-
do de remédios. Duas irmãs de caridade iam e vinham
com garrafas de medicamentos. Chegando ao fundo do
salão o enfermeiro parou à cabeceira de um leito, e
abrindo as cortinas, disse:
— Aqui está teu pai.
O rapaz desatou a chorar, e largando a trouxa deixou
cair a cabeça sobre o ombro do doente, agarrando-lhe com
a mão no braço que tinha estendido, imóvel sobre a
coberta. O doente não se mexeu. O rapaz levantou-se,
olhou para o pai e rompeu de novo num choro aflitivo.
Então o doente volveu-lhe um olhar vagaroso e pareceu
reconhecê-lo. Mas os seus lábios não se m.oviam. Pobre
Tatá! como ele estava mudado! Seria impossível que o
filho o tivesse reconhecido em tal estado. Tinham-se-lhe
branqueado os cabelos, crescido a barba; inchara-lhe o
rosto tomando u_ma côr vermelha carregada, com a pele
tensa e lustrada, os olhos meio apagados, os lábios entu-
mecidos, a fisionomia toda alterada. Conservava apenas
do que fora, o arco das sobrancelhas. Respirava dificil-
mente.
— Tatá! meu querido Tatá! — disse o rapaz — sou
eu, não me conheces? Sou Cecílio, o teu Cecílio. Venho
agora de casa, e foi a mamã que me mandou. Olha bem
para mim... então? não me reconheces? Diz-me ao me-
nos uma palavra...
O doente, depois de tê-lo fixado atentamente, fechou
os olhos.
1J2 CORAÇÃO
— Tatá! Tatá! que tens? olha, sou eu... sou o teu
filho, o Cecílio.
O doente não se mexeu mais e continuou a respirar
com dificuldade. Então o rapaz chorando sempre, puxou
uma cadeira, sentou-se, e ficou esperando sem levantar
os olhos do rosto do pai e pensando consigo mesmo; —
Algum médico há-de vir fazer a visita e êle me dirá al-
guma coisa. E concentrou-se nos seus tristes pensamen-
tos, recordando tantas coisas do seu bom pai, do dia da
partida dele, do último adeus que lhe dera já a bordo do
navio, das esperanças que alimentara a família com aque-
la viagem, da desolação de sua mãi, à chegada da carta,
e pensou na morte; viu o pai morto, a mãi vestida de
preto, a família na miséria... E assim esteve muito tempo,
até que uma mão ligeira lhe tocou no ombro e o fez es-
tremecer; era uma religiosa.
— Que tem meu pai? — preguntou-lhe logo.
— É teu pai? — disse a irmã com doçura.
— É sim senhora, é meu pai e eu vim... Mas êle que
tem?
— Coragem, rapaz — respondeu a irmã — logo virá
o médico — e retirou-se sem dizer mais nada.
Meia hora depois ouviu o toque de uma campainha
e viu entrar de uma da outra extremidade da enfermaria
o médico, acompanhado de um assistente, e seguidos de
luna irmã e de um enfermeiro. Principiaram a visita, pa-
rando em cada leito- A demora parecia eterna ao rapaz, e
cada passo do médico lhe aumentava a ansiedade. Final-
mente, chegara ao leito do vizinho. O médico era um velho
alto, corcovado, e de um ar grave e sério. Antes que se
afastasse do leito vizinho o rapaz levantou-se; e, quando
o médico se aproximou do pai, pôs-se a chorar. O médico
olhou para êle.
— Este é filho do doente — disse a irmã — chegou
esta manhã da terra.
O médico passou-lhe a mão pelo ombro, e depois
inclinando-se sobre o doente tomou-lhe o pulso, apalpou-
-Ihe a testa, e fez algumas preguntas à irmã que res-
pondeu :
CORAÇÃO 113
— Nada de novo...
Ficou um momento pensativo, dizendo em seguida:
— Continue como até aqui.
Então o rapaz enchendo-se de coragem, preguntou
•m voz lacrimosa:
— Mas o que é que meu pai tem?
— Cria ânimo, meu filho — respondeu o médico tor-
nando a passar-lhe a mão pelo ombro. Teu pai tem uma
•risipela facial. É grave mas ainda não estão perdidas
as esperanças. Fica ao pé dele, a tua presença há-de fa-
zer-lhe bem.
— Mas é que êle não me reconhece, exclamou o ra-
paz num tom amargurado.
— Há-de vir a reconhecer-te... talvez amanhã. Espe-
remos sempre o melhor, e tem coragem.
Bem queria o rapaz preguntar mais alguma coisa,
mas não se atreveu. O médico continuou na sua visita e
o rapaz começou então a sua vida de enfermeiro. Não po-
dendo fazer mais nada, arranjava e estendia a roupa da
cama, tocava de vez em quando na mão do doente, enxo-
tava-lhe as moscas e inclinava-se sobre êle a cada gemido
que dava, e quando a irmã trazia água ou remédio, tirava-
-Ihe da mão o copo ou a colher, e era êle que a apresenta-
va ao doente. Este, encarava-o algumas vezes, mas não
dava sinal de o reconhecer. Somente o seu olhar se deti-
nha cada vez mais sobre êle, e especialmente quando o
via levar o lenço aos olhos. Assim passou o primeiro dia.
À noite o rapaz dormia em cima de duas cadeiras, num
canto da enfermaria e de manhã recomeçava o seu piedoso
oficio. Nesse dia pareceu-lhe que os olhos do doente
começavam a revelar uma tal ou qual inteligência, À voz
acariciadora do rapaz parecia que uma expressão vaga
de gratidão lhe brilhava por momentos nas pupilas; e
até uma vez moveu um pouco os lábios como quem queria
dizer alguma coisa. Em seguida a alguma breve sonolên-
cia, reabria os olhos e movia-os em torno, como se pro-
curase o seu pequeno enfermeiro. O médico passando por
ali duas vezes, notou algumas melhoras no doente. À
tarde chegando-lhe um copo à boca, o rapaz julgou ver
desprenderem-se em ligeiríssimo sorriso os lábios entu-
114 CORAÇÃO
inecidos do pai. Principiou então a animar-se e a ter es-
perança, e uma alegria infinda o invadiu; e supondo que
era compreendido, embora confuséimente, falava-lhe mui-
to da mãi, dos irmãos pequenos, da volta para casa, e exor-
tava-o com as palavras ternas e amorosas para cobrar o
ânimo e alento; e posto que muitas vezes duvidasse de
ser realmente compreendido, falava-lhe sempre porque
lhe parecia que embora o doente o não entendesse, escu-
taria apesar disto com prazer a sua voz repassada du-
ma entonação desusada, afectuosa e triste. E assim pas-
sara o segundo dia, o terceiro e o quarto, ora apresentan-
do o doente ligeiras melhoras, ora peorando repentina-
mente, e o rapaz sempre ali, e por tal modo absorto nos
seus cuidados que apenas tomava duas vezes ao dia uma
fatia de pão e um bocado de queijo, que a irmã de carida-
de lhe levava, e nem dava fé do que se passava em torno
nem dos enfermos moribundos, nem do decorrer inespe-
rado das irmãs, de noite, nem do pranto e actos de deso-
lação dos visitantes que saíam sem esperança, não aten-
dendo, enfim, a nenhuma dessas cenas dolorosas e lúgubres
da vida dum hospital, que em qualquer outra ocasião o
ateriam aturdido e horrorizado. E iam-se passando as ho-
ras e os dias e êle sempre ao lado do seu Tatá, atento,
solícito, estremecendo a cada suspiro, a cada olhar agita-
do, sem repouso, oprimido entre uma esperança que lhe
consolava a alma, e um desânimo que lhe apertava o cora-
ção. No quinto dia o doente peorou repentinamente. O
médico, sendo interrogado, abanou a cabeça, como quem
queria dizer que estava tudo acabado, e o rapaz deixou-se
cair sobre uma cadeira chorando e soluçando. E, contu-
do, uma coisa o consolava... Parecia-lhe que o doente ia
lentamente readquirindo um pouco de inteligência a-pe-
saf do prognóstico do médico. Encarava-o agora mais fi-
xamente, e com uma expressão cada vez mais pronuncia-
da de doçura; não queria beber, nem tomar remédios que
não fossem ministrados por êle, fazia mais amiudada-
mente um movimento forçado de lábios, como se quizes-
se pronunciar uma palavra; e às vezes, com tais contrac-
ções o fazia, que o pequeno segurava-lhe o braço com for-
ça e embalado por uma doce e repentina esperança, dizia-
CORAÇÃO
113
-lhe com meiguice, quási alegre: — Coragem! coragem,
Tatá! Hás-de
ficar bom, ire-
mos abraçar a
mamã, vamos !
Ânimo ! Eram
quatro horas
da tarde, justa-
meiíte num
ponto em que o
rapaz se entre-
gava a um da-
queles impul-
sos de ternura
e de esperança,
quando, ouvin-
do para lá da
porta mais pró-
xima da enfer-
maria, um ru-
mor de passos,
e logo em se-
guida estas pa-
lavras : — até
à vista irmã! —
deu um pulo e
soltou um. grito meio estrangulado na garganta. Ao mes-
mo tempo que entrava no salão um homem com uma trouxa
na mão, seguido de uma irmã da caridade. O rapaz sol-
tou um grito agudo e ficou como se estivesse pregado no
chão. O homem voltou-se e encarando-o um momento,
correspondeu ao grito com uma exclamação: — Cecílio!
— E correu direito para êle. O rapaz caiu nos braços de
seu pai, sufocado. As irmãs, os enfermeiros, o assistente,
de todos os lados correram e ali ficaram estupefactos! O
rapaz não podia falar.
— Oh! meu Cecílio! exclamou o pai, depois de olhar
atentamente para o doente, beijando e tornando a beijar
o rapaz, — meu querido filho! Como foi isto? Pois con-
duziram-te à cama doutro doente? Eu bem sabia pela car-
llé CORAÇÃO
ta de tua mãi que vieras e já desesperava de te não ver ao
pé de mim... Pobre Cecílio! Há quantos dias estás tu
aqui? que confusão foi esta!... Olha que escapei de bôa...
mas sinto-me forte, sabes? e a tua mãi? e a Conceiçãozi-
nha? e a pequerrucha? como vão todos? Eu saio já do
hospital... vamos! Ah! meu Deus! quem o teria adivi-
nhado !
O rapaz custou-lhe a articular algumas palavras para
dar notícias da família, depois balbuciou:
— Oh ! como estou contente ! Como estou satisfeito !
Mas que dias horríveis que eu tenho passado! E não ces-
sava de beijar o pai.
— Anda daí ! — disse-lhe o pai. Ainda esta tarde che-
garemos a nossa casa... vamos, anda!... e puxou-o para si.
Mas o filho voltou-se a olhar para o doente.
— Então! vens ou não vens? preguntou-lhe o pai
espantado.
E o rapaz dirigiu ainda um saudoso olhar ao enfermo,
que naquele momento abrira os olhos e o fixara atenta-
mente. Rebentou-lhe então da alma uma torrente de pa-
lavras :
— Eu vou Tatá, espera... eu vou... mas não posso...
E aquele velho que ali está? Há cinco dias que estou jun-
to dele... Procura-me sempre com os olhos... E eu a pen-
sar que era meu pai!... Já lhe queria bem... Olha para
mim... Sou eu que lhe dou os remédios e sinto que me
deseja sempre a seu lado. Olhe, agora está ele muito
mal... tenha paciência, mas eu não tenho ânimo de o dei-
xar; faz-me muita pena. Voltarei a casa amanhã... Con-
sinta que eu fique aqui mais um pouco, não devo aban-
doná-lo. Veja, veja, de que maneira êle me está olhando!
Eu não sei quem é, mas sinto que me estima, e morreria
abandonado, deixe-me ficar, meu querido Tatá!
— Bravo ! Bravo, meu rapaz ! gritou o assistente.
O pai ficou perplexo, olhando para o filho e para o
enfermo...
— Mas... quem é êle? — preguntou.
— É um camponês como o senhor, respondeu o as-
sistente. Veiu da aldeia e entrou no hospital no mesmo
dia em oue o senhor entrou. Trouxeram-no aqui, porque
CORAÇÃO 117
estava sem sentidos, e não pôde até agora dizer nada. Teim
talvez alguma família disitante, tem filhos e cuida de cer-
to que este é algum dos seus.
O doente não despregava a vista do rapaz. O pai disse
então a Cecílio:
— Bem, bem, fica.
— Não terá de ficar por muito tempo, murmurou o
assistente.
— Fica, — repetiu o pai, — tens bom coração... Eu
cá vou direito a casa para livrar tua mãi de cuidados.
Abraçou-o, fixou-o docemente, e, beijando-o de no-
vo na testa, partiu. O rapaz voltou para a cabeceira da
cama e o enfermo pareceu ficar mais consolado. Cecílio
continuou a servir-lhe de enfermeiro, não chorando mais,
mas empregando a mesma solicitude, a mesma paciência
que até ali empregara. Continuou a dar-lhe de beber, a
chegar-lhe os remédios, a endireitar-lhe a roupa da cama,
a acariciar-lhe a mão, a falar-lhe com doçura, procurando
animá-lo. Assistiu-lhe o resto da tarde, toda a noite, e
esteve sempre ao lado dele todo o dia seguinte. O doen-
te, porém, ia sempre a pior, o rosto tornara-se côr de vio-
leta, a respiração pesada, a agitação aumentava sempre.
Da boca saím-lhe sons inarticulados e a inflamação tor-
nava-se monstruosa, A visita da tarde, o médico disse que
o doente não passava daquela noite. Cecílio redobrou de
cuidados, não se afastando do leito um só instante. O do-
eníte conservava sempre os olhos fitos nele; movia ainda
os lábios, de quando em quando, com grande esforço como
se quizesse dizer alguma coisa, e uma expressão de extra-
ordinária doçura transparecia na luz dos seus olhos, que
se ia gradualmente apagando. Naquela noite, o rapaz vi-
giou-o sempre, até que viu através das janelas os primei-
ros alvores da aurora, e aparecer junto dele uma irmã de
caridade. Esta, abeirando-se do leito, olhou um momento
para o enfermo, e saiu a passos rápidos, voltando logo
com o médico assistente e com um enfermeiro que trazia
uma lanterna.
— Está a expirar, disse o médico.
O rapaz pousou a mão sobre a do moribundo, e este
abriu os olhos, fixou-o e tornou a fechá-los. Neste mo-
118 CORAÇÃO
mento pareceu ao rapaz ter sentido um aperto de mão, e
exclamou : — Apertou-me a mão ! — O médico debruçou-
-se sobre o doente, observando-o e erguendo-se logo. A
irmã da caridade, tirou da parede um crucifixo.
— Morreu? — preguntou o rapaz
— Vai, filho — respondeu o médico. A tua sagrada
missão terminou. Vai e sê feliz, que bem o mereces. Deus
há-de proteger-te... Adeus.
A irmã, que se afastara um momento, voltou com um
raminho de violetas, tiradas dum copo, que estava na
janela, e entregou-o ao rapaz, dizendo:
— Não tenho mais nada que te dar. Guarda-o como
lembrança do hospital...
— Obrigado, disse o rapaz tomando-o com uma mão
e enxugando os olhos com a outra; mas é tanto o caminho
que tenho a andar a pé... que vão murchar de certo! E
soltando as violetas, espalhou-as pelo leito, dizendo:
— Deixo-as como recordação ao meu pobre morto.
Obrigado, boa irmã. Agradecido, senhor doutor. — De-
pois voltando-se para o morto. — Adeus... disse. E, en-
quanto procurava o nome que lhe havia de dar, subiu-lhe
do coração aos lábios o nome que lhe dera durante cinco
dias, e concluiu: — Adeus, pobre Tatá!
E dizendo isto, meteu debaixo do braço a trouxa de
roupa e a passos vagarosos, extenuado de fadiga, partiu.
Despontava a madrugada.
A oficina
Sábado, 13
Precossi veio ontem de tarde convidar-me para ir ver
a sua oficina, que é em baixo, na estrada, e esta manhã,
saindo com meu pai, fomos lá um momento. Quando nos
aproximávamos da oficina, saía dela Garoffi, a correr
com um pacote na mão, fazendo esvoaçar o seu grande ca-
pote que lhe serve de abrigo às mercancias. Ah! agora
já sei onde o traficante de Garoffi vai buscar a limalha
de ferro para trocar por jornais velhos! Chegando à porta,
CORAÇÃO 119
vimos Precossi sentado sobre um monte de tijolos, estu-
dando a lição, com o livro sobre os joelhos. Levantou-se
logo e fez-nos entrar. Era um armazém cheio de pó de
carvão, com as paredes todas cobertas de martelos, tena-
zes, alavancas e ferros de todas as formas. A um canto
ardia o fogo de uma forja, a que soprava um fole movi-
do por um rapaz. Precossi, pai, estava ao pé da bigorna
e um aprendiz sustentava um varão de ferro metido no
fogo.
— Cá está êle — disse o ferreiro, tirando a carapuça
apenas nos viu, — o nobre moço, que faz presentes de
comboios... Com que então veio ver trabalhar um pouco,
não é verdade?
E dizendo isto, sorria, e não tinha já aquele aspecto
sombrio, nem aqueles olhos vesgos doutras vezes. O apren-
diz apresentou-lhe uma longa vara de ferro, candente na
extremidade, e o ferreiro pô-la na bigorna. Estava fa-
zendo grades, como as que servem de parapeito em.
volta, dos terraços. Levantou um grande martelo e começou
a bater, voltando a parte rubra ora de um, ora de outro la-
do, entre uma ponta e o centro da bigorna, girando com a
vara de vários modos- Era para admirar ver como, debaixo
dos golpes rápidos e certeiros, o ferro se encurvava e tor-
cia, tomando, pouco a pouco, a forma graciosa da folha
encrespada de uma flor, como se aquele ferro fosse um
pedaço de massa que êle modelasse com as mãos. E, no
entanto, o filho olhava para nós com um certo ar al-
tivo, como se quizesse dizer : — Então vêm como o meu
pai trabalha? O ferreiro quando acabou, mostrou-me a
vara de ferro que parecia o báculo dum bispo.
— Já viu como isto se faz?
Depois pô-la de parte, e meteu outra vara no fogo.
— Isso é, na verdade ,bem ferto, disse-lhe meu pai.
E acrescentou: — Vejo que lhe voltou a vontade de tra-
balhar.
— Voltou sim senhor; voltou, respondeu o operário,
enxugando o suor e corando um pouco. E sabe quem m.a
fez voltar?
Meu pai fingiu que o não entendia, e o ferreiro
apontou com o dedo para o filho.
120 CORAÇÃO
— Foi aquele bom rapaz, aquele bom filho, que es-
tudava, fazendo honra a seu pai, enquanto o pai andava na
vadiagem e o tratava como um animal... Ah! senhor,
quando vi a medalha... Vem cá, meu pitorrinha, vem cá,
deixa lá ver esse focinho...
O rapaz correu direito a êle, e o ferreiro pô-lo em pé
sobre a bigorna, segurando-o por debaixo dos braços e
dizendo:
— Limpa um pouco a cara a este anim.aião de teu pai,
anda...
E então Precossi cobriu de beijos o rosto enfarrus-
cado do pai e ficou também com a cara toda preta.
— Assim vai bem... disse-lhe o ferreiro pondo-o no
chão.
— Com certeza, Precossi ! exclamou meu pai saitis-
feito.
S, despedindo-nos do ferreiro e do filho, saímos. À
porta o pequeno Precossi disse-me:
— Desculpe-me, e meteu-me na algibeira um paco-
tinho de pregos. Eu, convidei-o a vir ver o carnaval de
nossa casa.
Pelo caminho adiante disse-me meu pai:
— Tu presenteaste-o com o teu comboio, mas, se êle
fosse de oiro e carregado de pérolas, ainda seria um pe-
queno presente para aquela abençoada criança, que fez
ressuscitar o coração de seu pai.
O pequeno palhaço
Segunda-feira, 20
Toda a cidade está em movimento pelo carnaval, que
está a findar. Em todas as praças se erguem barracas de
saltimbancos e cavalinhos, e nós temos debaixo da janela
um circo aberto de lona, onde dá espectáculos uma peque-
na companhia veneziana, com cinco cavalos. O circo é no
meio da praça, e num ângulo há três carroças grandes,
onde os saltimbancos se vestem, despem e dormem. São
três casas com rodas, janelas e uma chaminé que fumega
CORAÇÃO 121
sempre; e entre uma e outra janela vêm-se fraldas de
crianças estendidas a secar. Há uma mulher que amamen-
ta uma criança, faz o comer e dança na corda ! Pobre gen-
te! Todos lhe chamam como uma injuria, saltimbancos!
e, contudo, eles ganham o pão honestamente, divertindo
os outros. E como se afadigam! Durante o dia correm
entre o circo e a carroça, vestidos de malha, tiritando de
frio; comem mal, de fugida, às carreiras, em pé, entre
uma e outra representação, e às vezes, quando têm já o
circo cheio de gente, levanta-se uma ventania que arran-
ca o toldo, apaga as luzes, e adeus espectáculo ! Tornam
então a entregar o dinheiro e andam a pé toda a noite
para consitruír a barraca. Há dois rapazes pequenos que
trabalham; e meu pai reconheceu o mais novo quando
atravessava a praça. É um filho do director da companhia,
o mesmo que vimos fazer habilidades a cavalo, no ano
passado, no circo, na praça Victor Manuel. É já espigadi-
nho, terá oito anos e é um lindo rapaz, de carinha re-
donda, trigueira e agarotada, com cabelos negros, encara-
colados, que se lhe vêem em torno do chapéu, de forma
cónica. Anda vestido de palhaço, metido dentro duma es-
pécie de saco com mangas, branco, bordado de preto, e
com sapatos de lona. É um diabinho de quem todos gos-
tam. Faz de tudo. Vimo-lo em.brulhado num chalé, de ma-
nhã cedo, levando o leito para a sua cama de madeira; de-
pois vai buscar os cavalos à cocheira da rua Bertol, anda
com o pequerrucho ao colo; transporta os arcos, os cava-
letes, as barras e as cordas; limpa as carroças, acende o
fogo ; e nos momentos de descanso, está sempre agarrado
à mãi. Meu pai vê-o sempre da janela, e fala muito dele e
nos seus, que todos têm ar de boa gente e de estimarem
muito os filhos. Uma noite, fomos ao circo, fazia frio,
não havia quási ninguém, e, contudo, o palhacinho fazia
toda a diligência para alegrar aquela pouca gente: dava
saltos mortais, agarrava-se à cauda dos cavalos, andava
com as pernas no ar, sósinho, e cantava sempre sorriden-
te, com a sua carinha trigueira e graciosa. E seu pai, que
vestia casaca vermelha, calções brancos, botas altas, de
chicote na mão, olhava para êle; mas bem se via que es-
tava triste. Meu pai teve pena deles, e falou a seu res-
122 CORAÇÃO
peito, no dia seguinte, com o pintor Delis que veio visi-
tar-nos.
— É uma pobre gente que se mata a trabalhar e pouco
ou nada, ganha. Gosto tanto daquele rapazinho. O que
se poderia fazer em seu favor?
O pintor teve uma lembrança. Escreve um artigo
para a gazeta — disse-lhe — tu que sabes escrever. Con*
ta as proezas do palhacinho, e eu faço-lhe o retrato,
e como todos lêm a gazeta, arranja-se-lhe, pelo menos
uma enchente.
E assim foi. Meu pai escreveu um artigo, cheio e
graça, contando tudo o que nós víamos da janela, artigo
que excitava o apetite de conhecer e acariciar o pequeno
artista, e o pintor esboçou um retratinho muito parecido
e gracioso, que saiu publicado, no sábado de tarde. E
daqui veio, que no espectáculo de domingo, correu ao
circo uma grande multidão de curiosos. Estava anun-
ciado : — Representação em benefício do Palhacinho,
como lhe chamava a gazeta. Meu pai levou-me para os
primeiros lugares. Na porta de entrada, via-se afixada a
gazeta. O circo estava replecto, e muitos espectadores
tinham o jornal na mão e mostravam-no ao beneficiado,
que ria e pulava de um lado para o outro, todo alegre e
todo feliz. Também o director estava contente. Imagi-
ne-se! Nunca jornal nenhum lhe fizera tanta honra, e
a gaveta ia-se enchendo de dinheiro. Meu pai sentou-se
ao meu lado, e entre os espectadores vimos muitas pes-
soas conhecidas. O mestre de gim.nástica, aquele que an-
dou com Garibaldi, estava próximo da porta por onde
entravam e saíam os cavalos, e em frente a nós nos se-
gundos lugares, via-se o pedreirito, com a sua carinha
redonda, sentado ao lado do gabinete do pai; e, apenas
me viu, íez-me de lá o focinho de lebre. Um pouco mais
adiante estava Garoffi, que contava os espectadores, cal-
culando pelos dedos quanto poderia ter embolsado a com-
panhia. Estava também nos lugares superiores, pouco
adiante de nós, o pobre Robetti, o que salvou a criança
do omnibus, com as suas muletas entre os joelhos, ao
pé do pai, capitão de artilharia que lhe pousava a mão
sobre o ombro. Principiou o espectáculo. O palhacinho
CORAÇÃO 123
fez maravilhas em cima do cavalo, no trapézio e na cor-
da, e sempre que saltava abaixo, todos davam palmas,
e muitos lhe puxavam, brincando, pelos anéis do cabelo.
Depois vários funâmbulos e picadores, vestidos de farra-
pos e cintilantes de prata falsa, fizeram muitos exercí-
cios e habilidades. Mas, quando o palhacinho não estava
na praça, parecia que o publico se achava aborrecido.
Numa ocasião, observei que o mestre de gimnástica que
estava parado, no mesmo sítio, perto da entrada dos ca-
valos, falava ao ouvido do director do circo e que este
corria a vista por todos os espectadores, como se pro-
curasse designadamente algum, e fixar-nos em seguida
atentamente. Meu pai que vira também o que se passava,
supôs logo que o mestre dissera ao chefe ser êle o au-
tor do artigo; e, para se esquivar aos agradecimentos,
saiu, dizendo-me:
— Fica, Henrique; eu espero-te lá fora.
O palhacinho, depois de ter trocado algumas pala-
vras com o pai, fez ainda um exercício, de pé sobre o
cavalo, galopando ; e caracterizou-se quatro vezes, de pe-
regrino, de marinheiro, de soldado, e de acrobata, e to-
das as vezes que passava perto, sorria-se para mim. De-
pois, quando desceu, principiou a fazer o giro do circo
com o chapéu de palhaço entre as mãos, e todos lhe iam
deitando dentre, soldos, mas quando chegou diante de
mim, em vez de apresentar o chapéu, retirou-o olhando-
-me, e passou adiante. Fiquei incomodado. Porque me
faria êle tal desconsideração? A representação terminou,
o chefe agradeceu ao público, e toda a gente se levan-
tou, aglomerando-se na saída. Eu ia confundido na mul-
tidão, e estava já perto da rua, quando senti tocarem-me
na mão. Voltei-me, era o palhacinho, com a sua gra-
ciosa carinha trigueira, e os seus anéis de cabelos pre-
tos, que sorria para mim, com as mãos cheias de con-
feitos. Compreendi tudo.
— Quererás, disse êle, aceitar estes confeitos do pa-
lhacinho?
Eu fiz sinal que sim, e peguei em. três ou quatro.
Então acrescentou ainda: — Aceita também um beijo.
— Dá-me dois, disse-lhe e apresentei-lhe a face.
124 CORAÇÃO
Então ele limpou com a manga a cara enfarinhada,
pôs-me um braço em volta do pescoço e deu-me dois
beijos nas faces, dizendo-me:
— Um é para fteu pai.
O úlíimo dia de carnaval
Terça-feira, ai
Que triste cena presenceamos hoje na corrida das
máscaras! Acabou bem, felizmente, mas podia dar-se
uma grande desgraça. Na praça de D. Carlos, toda de-
corada de festões amarelos, vermelhos e brancos, atro-
pelava-se uma grande multidão, giravam máscaras de to-
das as cores, rodavam carros dourados e embandeirados,
em forma de pavilhões, de teatrinhos e de barcos, cheios
de arlequins e de guerreiros, de cozinheiros, de mari-
nheiros e de pastorinhas. Era uma confusão ta^ que nem
a gente sabia para onde devia olhar; um estrondar de
trombetas, de clarins e de pratos turcos que atordoa-
va os ouvidos. As máscaras, nos carros, bebiam e can-
tavam, apostrofando os transeuntes e as pessoas que es-
tavam nas janelas, as quais respondiam no mesmo tom,
atirando com fúria laranjas e confeitos. Por cima dos
carros e da multidão, até onde a vista podia alcançar,
viam-se flutuar bandeirinhas, cintilar capacetes, tremu-
lar penachos, agitarem-se enormes cabeças de papelão,
toucados gigantes, tubos enormes, armas extravagantes,
caixas de rufo, serpentes, barretes vermelhos e garrafas.
Parecia um bando de doidos! Quando a nossa carruagem
entrou na praça, ia diante de nós um carro tirado por
quatro ca\'alos, todo engrinaldado de rosas artificiais,
sobre o qual iam catorze ou quinze senhores fidalgos
mascarados de gentis-homens da corte de França, todos
resplandecentes de sedas, com cabeleiras brancas, cha-
péu emplumado debaixo do braço, espadim, laço de fi-
tas e rendas ao peito. Magnificos! Cantavam todos em
coro uma cançoneta francesa e lançavam doces ao povo,
e o povo gritando, aplaudia-os muito. De repente vimos
CORAÇÃO 123
•
à nossa esquerda um homem levantar ao ar, por cima
das cabeças da multidão uma menina com cinco ou seis
anos, uma pobresita que chorava desesperadamente, agi-
tando os braços, como atacada de convulsões. O homem
abriu caminho até ao carro dos fidalgos, e um destes
inclinou-se, dizendo-lhe aquele em voz alta:
— Tome conta desta menina, perdeu-se da mãi, no
meio da multidão; levante-a nos braços, que não há ou-
tro meio de a mãi, que não deve estar longe, tornar a
vê-la.
Recebida a menina nos braços, todos os outros ces-
saram de cantar; mas a criança berrava e bracejava, até
que êle tirou a máscara e o carro continuou a andar
vagarosamente. Neste momento, segundo depois nos dis-
seram, na extremidade oposta da praça, uma pobre mu-
lher rompia por entre o povo, acotovelando, e empur-
rando todos e gritando:
— Maria! Maria! Maria! Perdi a minha filha. Rou-
baram-ma! esmagaram-ma ! minha pobre Maria!
Havia um quarto de hora que se agitava desespe-
radamente, furando de uma parte para outra oprimida
pela multidão, que a muito custo lhe dava lugar para
passar. O fidalgo do carro, no entanto, tinha a criança
apertada ao peito, contra as fitas e as rendas, e girando
a vista pela praça procurava sossegar a pobre menina,
que cobria o rosto com as mãos, não sabendo onde es-
tava, e soluçando de modo que cortava o coração. Êle
estava comovido, e via-se bem que aqueles gritos lhe
dilaceravam a alma. Todos os seus companheiros ofere-
ciam à menina laranjas e confeitos, mas ela repelia tudo,
cada vez mais espantada e convulsa.
— Procurem a mãi, disseram, dirigindo-se ao povo.
Procurem a mãi gritavam do carro, dirigindo-se ao povo.
Procurem a mãi !
E todos se voltaram para a direita e para a esquerda,
mas ninguém sabia onde ela estava. Finalmente a pou-
cos passos da embocadura da rua, viu-se uma mulher,
correndo direita ao carro... Ah! Nem parecia uma cria-
tura humana! Tinha os cabelos soltos, o rosto desfigu-
rado, os vestidos rotos. Arremessou-se impetuosamente
126 CORAÇÃO
ao carro, soltando um grito rouco, que se não compre-
endia bem se era de alegria, de angústia ou de raiva,
e estendeu as mãos como duas garras para empolgar a
filha. Nisto o carro parou.
— Aqui tem — disse o fidalgo, apresentando a crian-
ça, e, depois de a ter beijado, pô-la nos braços da mãi,
que a apertou logo ao seio com fúria convulsa.
Mas uma das mãozinhas da criança, ficou ainda al-
guns segundos presa entre as mãos do fidalgo e este
tirando então do dedo um anel de ouro com um grande
diamante, enfiou-o rapidamente no dedinho da criança,
dizendo:
— Toma lá! será o teu dote de noiva.
A mãi ficou ali como encantada; o povo rompeu
em aplausos e êle tornou a pôr a máscara e os seus com-
panheiros recomeçaram o canto. E o carrro seguiu len-
tamente, no meio de uma tempestade de palmas e de
vivas.
Os rapazes cegos
Quinta-feira, 24
O mestre está muito doente, e mandaram para o
substituir o da quarta, que fora professor do Instituto
dos cegos. É o mais velho de todos, tão branco, que pa-
rece ter na cabeça uma cabeleira de algodão. Fala bem,
mas fala como se cantasse uma canção melancólica, e
sabe muito. Mal entrou na escola, vendo um rapaz com
um olho vendado, aproximou-se dele e preguntou-lhe o
que tinha. É preciso muito cuidado com os olhos, disse.
Nisto Derossi preguntou-lhe:
— É verdade que o senhor já foi mestre dos cegos?
— Fui sim, por muitos anos.
E Derossi disse a meia voz: — Se nos contasse al-
guma coisa...
O mestre foi sentar-se à mesa.
Coretti disse alto : — O Instituto dos cegos é na rua
Nizza.
— Dizeis cegos, cegos... — começou o mestre. — Se
CORAÇÃO 127
compreendêsseis bem o significado dessa palavra... Re-
flecti um pouco. Cegos! não ver coisa nenhuma... nunca!
Não distinguir o dia da noite; não ver nem o céu, nem
o sol, nem os próprios pais... nada de tudo aquilo que
está em volta de nós e em que se toca, permanecer imerso
numa obscuridade perpétua, e como que sepultados nas
profundezas da terra; Experimentai um momento, cerrai
os olhos e lembrai-vos que podeis ficar sempre assim...
Um terror repentino se apossará de vós, e uma aflição,
a que vos seria impossível resistir, vos obrigaria a gri-
tar e vos conduziria à loucura e à morte... E contudo...
Pobres cegos! quando se entra pela primeira vez no Ins-
tituto, à hora do recreio, se ouve tocar violinos e flautas
de todas as partes, falar alto e rir, subindo e descendo
escadas a passos apressados, girando livremente pelos
dormitórios, ninguém diria serem aqueles os desventu-
rados que são. É preciso observá-los bem. Há moços de
dezasseis e dezoito anos, robustos e alegres, que supor-
tam a cegueira com tal ou qual indiferença: e alguns,
quási com ufania até; mas comprende-se pela expressão
dos seus rostos, que devem ter sofrido horrivelmente
antes de se resignarem àquela desventura. Há outros de
rosto pálido e suave, onde se vê uma serena mas triste
resignação e adivinha-se que algumas vezes, em segre-
do, devem chorar ainda. Ah! meus filhos... Lembrai-vos
que alguns deles perderam os olhos em poucos dias, ou-
tros, depois de longos anos de martírio e de muitas opera-
ções cirúrgicas terríveis, e que muitos já nasceram assim!
Nascer numa noite que nunca tem alvorada! entrar ho
mundo como se fora num sepulcro enorme, ignorar como
seja formado o rosto humano! Imaginar quanto não te-
rão sofrido, quanto não sofrerão, pensando confusamente
na indiferença que existe entre eles e os que vêem, pre-
guntando a si mesmos — Porque é esta indiferença, se
não temos culpa nenhuma? Eu, que tenho passado mui-
tos anos entre eles, quando me lembro da sua escola, e
vejo aqueles olhos apagados para sempre, todas nque-
las pupilas sem expressão e sem vida, e olho para vós,
parece-me impossível que não sejais todos felizes. No-
tai bem. Há cerca de vinte e seis mil cegos na Itália.
128 CORAÇÃO
Vinte e seis mil pessoas que não vêm a luz! Um exér-
cito que gastaria quatro horas a desfilar debaixo das
nossas janelas.
O mestre calou-se; não se sentia nem um respiro na
escola! Derossi preguntou se era verdade que os cegos
tinham o tacto mais apurado do que nós. O mestre disse:
— É verdade. Todo^ os outros sentidos se aperfei-
çoam neles, e a razão é porque, devendo todos conjun-
tamente suprir o da vista, são mais exercitados, o que
não acontece aos que vêm. De manhã, nos dormitórios,
pregunta um: — Faz sol? e o que é mais ligeiro em ves-
tir-se corre imediatamente ao pátio; agita as mãos ao
ar, para sentir se há calor do sol e vojta com a mesma
pressa a dar a boa notícia: — Faz sol... Pela voz de qual-
quer pessoa fazem idéa da sua estatura. Nós avaliamos
a coragem duma pessoa pelos olhos; eles pela voz e re-
cordam-se da entonação e do acento dela durante anos.
Percebem se numa sala, está mais que um indivíduo, ain-
da que um só fale e os outros se conservem imóveis.
Conhecem pelo tacto se uma colher está pouco ou muito
limpa. As crianças diferençam a lã tingida daquela que
tem a côr natural. Passando dois a dois pela rua, dis-
tinguem quási todas as lojas pelo cheiro, mesmo aque-
las em que nós não sentimos cheiro algum. Jogam o pião
e ouvindo o zumbido que êle faz, girando, vão direitos
apanhá-lo sem se enganar. Correm com arcos, jogam a
bola, saltam a corda, fabricam caixinhas de seixos, co-
lhem violetas como se as vissem; fazem estojos e ces-
tinhos, entrelaçando palha de várias cores, depressa e
bem. Tão exercitado têm o tacto, que é a sua vista. Um
dos maiores prazeres para eles é o de apalpar, de aper-
tar e de adivinhar a forma dos objectos tateando-os. É
comovente vê-los quando os levam ao museu industrial,
onde lhes deixam pôr a mão em tudo quanto queiram.
Com que alegria se apoderam dos instrumentos geomé-
tricos, dos modelos de casas, de todos os objectos enfim...
e com que satisfação apalpam, esfregam, viram e reviram
entre as mãos todas as coisas para ver como são feitas!
Eles dizem ver!
Garoffi interrompeu o mestre para lhe preguntar se
CORAÇÃO 129
•ra verdade que os rapazes cegos aprendem a fazer contas
melhor que os outros.
É verdade — respondeu o mestre. — Aprendem a ta-
zer contas e a Jer. Há livros de propósito para eles com
as letras em relevo; passam-lhes os dedos por cima, re-
conhecem-as e dizem as palavras, chegando a ler corren-
temente. E é digno de ver-se como eles. coitaditos! co-
ram quando cometem algum erro. E escrevem, mas sem
tinta, escrevem sobre um papel espesso e duro com um
ponteiro de metal; abrindo pontinhos agrupados segun-
do um alfabeto especial, cujos sinais aparecem em relevo
no reverso do papel, de modo que, voltando o papel e
passando os dedos por cima daquelas saliências, lêem
quanto escreveram, e do mesmo modo o que os outros
escrevem. É assim que eles fazem composições e se cor-
respondem entre si. Pelo mesmo sistema escrevem alga-
rismos e resolvem problemas. Calculam bem de cabeça e
com uma facilidade incrível, porque se não distraem com
a vista, como a nós nos sucede. E se vísseis como eles
são apaixonados por ouvir ler; como estão atentos... e co-
mo depois se recordam de tudo... como discutem uns com
os outros — até os pequenos — acerca de coisas de histó-
ria e de língua, sentados todos, aos quatro e aos cinco
no mesmo banco, sem se voltarem uns para os outros, e
conversando o primeiro com o terceiro, o segundo com o
quarto, em voz alta e todos juntos, sem perderem uma
só palavra, de tal modo têm o ouvido agudo e pronto!...
Dão mais importância aos exames e af eiçoam-se mais aos
mestres do que vós; isto o afirmo eu... Reconhecem o
mestre pelos passos e pelo cheiro, percebem se está de
bom humor ou mau humor, se está doente ou são, e isto
só pelo som das palavras. Gostam muito que êle lhes po-
nha a mão quando os anima e os Jouva, e apalpam-lhe
também as mãos e os braços para exprimir-lhe a sua gra-
tidão. São amigos uns dos outros e bons companheiros.
Nas horas de recreio quási sempre são os mesmos que se
juntam em grupo. Na secção das raparigas, formam gru-
pos segundo os instrumentos que tocam, as violinistas,
as pianistas e as que tocam flauta, e nunca se separam.
Quando se afeiçoam é difícil separá-los, porque encon-
9
130 CORAÇÃO
tram grande conforto na amizade. Julgara-se imparci»!-
mente entre si. Têm uma idea clara e profunda do bem
e do mal. Ninguém se exalta como eles com a narração de
um acto generoso ou de um feito heróico.
Voltini preguntou se tocavam bem.
— Amam a música ardentemente — respondeu o mcE-
tre. — É ela a sua alegria e a sua vida... Crianças cegas,
mal entram no Instituto, são capazes de estar três ho-
ras imóveis, de pé, a ouvir tocar. Aprendem facilmente
e tocam com paixão. Quando o mestre diz a algum que
não tem disposição para a música, esse mostra por isso
grande desgosto e lança-se a estudar desesperadamente!
Ah! se ouvísseis a música lá dentro, se os vísseis quando
eles tocam, com a fronte a,lta, com o sorriso nos lábios,
trémulos de comoção, extáticos quási, escutando as har-
monias que expandem na obscuridade infinita que os cir-
cunda, compreenderíeis então que consolação divina é
para eles a música! Regosijam-se e exultam de felicida-
de quando o mestre lhe diz: — Tu virás a ser um artis-
ta! Para eles é como o rei o que fôr primeiro na música,
o que sobressair a todos no piano ou no violino, e então
amam-no e veneram-o. Se dois discutem, recorrem a êle
como juiz, se dois se zangam, é êle que os reconcilia. Os
mais pequenos, a quem êle ensina a tocar, tratam-no como
um pai. Antes de se irem deitar vão todos dar-lhe as boas
noites. E falam continuamente de música. Estão já na
cama, de noite, tarde, quási todos cansados do estudo e
do trabalho e, meio adormecidos, discorrem ainda, em voz
baixa, sobre óperas, maestros, instrumentos e orquestras.
E é um grande castigo para eles, privá-los da leitura ou
da Jição de música, e sofrem tanto com essa pena, que
quási não há coragem de lha infligir. O que a luz é para
os nossos olhos, é a música para o seu coração.
Derossi preguntou se não era possível ir vê-los?
— É possível, sim, respondeu o mestre — mas vós,
rapazes, não deveis lá ir por ora. Ireis mais tarde, quan-
do estiveres no caso de compreender toda a grandeza da-
quela desventura, e de sentir toda a compaixão que ela
merece. É um espectáculo triste, meus filhos! Vêm-se lá,
CORAÇÃO m
algumas vezes, rapazes sentados junto a uma janela aber-
ta, gozando o ar fresco com as feições imóveis, que pare-
cem estar a olhar para a grande planície verde e para as
bejas montanhas azuis que nós vemos, e ao pensar que
não vêem nada, e que não verão nunca coisa alguma des-
sa imensa beleza, confrange-se-nos a alma, como se fi-
cássemos cegos naquele momento. E ainda os cegos de
nascença, que nunca viram o mundo, não sofrem tanto,
porque não têm a imagem de coisa nenhuma, e inspiram
por isso menos compaixão. Mas há rapazes cegos de pou-
cos meses que se recordam ainda de tudo, e avaliam bera
quanto perderam; esses têm a dôr de sentir que se lhe
vão escurecendo na mente, dia a dia as imagens mais que-
ridas, de sentir como que apagar-se-lhes na memória as
feições das pessoas amadas. Um destes rapazes disse-me
um dia com uma tristeza inexprimível : — Como eu dese-
java ainda ter vista uma vez, um momento apenas para
tornar a ver as feições de minha mãi, porque já não me
recordo delas! E quando as mais vão visitá-los põem-
-Ihes as mãos no rosto, apalpam-no muito desde a testa
até o queixo, e depois apalpam-lhe ainda as orelhas, como
para compenetrar-se bem da sua forma. E quási se não
persuadem que não podem vê-la, e chamam-lhe pelo nome
muitas vezes, como para rogar-lhe que se deixe ver, que
se mostre ao menos uma vez. Quantos visitantes, mes-
mo homens de coração duro, não saem de lá chorando!
E quando, ao sair, vemos gente, as casas e o céu, parece
que somos uma excepção no gôso de um privilégio não
merecido. Oh! não há nenhum de vós, estou certo disso,
que saindo do Instituto dos cegos, não se sentisse dis-
posto a privar-se de um pouco da própria vista, para dar
os raios dela, embora ténues, àquelas pobres crianças,
para as quais o sol não tem luz, e a mãi não tem feições.
13«
CORAÇÃO
O mesíre enfermo
Sábado, 25
Ontem de tarde, ao sair da escola, fui visitar o meu
mestre, que está doente. De muito trabalhar, adoeceu.
Cinco horas de lição por dia, uma hora de gimnástica, de-
pois mais duas horas na escola nocturna... o que quere
dizer: dormir pouco, comer às carreiras e esfal£ar-se des-
de manhã até noite! Assim arruinou a saúde, disse mi-
nha mãi, que me acompanhou até à casa dele, esperando
por mim em baixo no portal. Subi só, e encontrei nas es-
cadas o mestre das barbas grandes e pretas, Coatti, o que
mete medo a todos e não castiga nenhum. Olhou para
mim com os seus grandes olhos, imitou ao passar a voz
do leão, por brincadeira, mas sem se rir. Eu é que ria ain-
da puxando a campainha no quarto andar, mas fiquei lo-
go triste, quando a criada me fez entrar numa alcova po-
bre, meio escura, onde estava o meu mestre deitado numa
CORAÇÃO 13t
pequena cama de ferro; tinha a barba crescida. Fêz pala
com a mão sobre os olhos para ver mejhor, e exclamou
com a sua voz afectuosa:
— Olá, Henrique!
Aproximei-me do leito, e êle pousando-me a mão em
cima do ombro, disse:
— Muito bem, meu filho, muito bem ! Fizeste bem em
vir visitar o teu pobre mestre. Estou reduzido a este es-
tado que vês, meu caro Henrique. Como vai a escola?
Como vão os teus companheiros? Tudo bem, hein? mes-
mo sem mim. Não faz lá falta o velho mestre, não é ver-
dade?
Eu queria dizer que fazia, mas êle interrompeu-me
logo, dizendo:
— Bem sei que sois todos meus amigos... e suspirou.
Eu olhava para algumas fotografias suspensas na
parede.
— Vês — continuou êle — São todos rapazes que há
vinte anos a esta parte me têm dado os seus retratos...
Bons rapazes! São essas as minhas memórias. Quando eu
morrer, o meu derradeiro olhar será para todos esses tra-
quinas, entre os quais passei a minha vida inteira... Tu
também me hás-de dar o teu retrato, não é verdade? mas
há-de ser quando tiveres acabado os primeiros prepara-
tórios.
Depois disto pegou numa laranja que tinha sobre a
mezinha de cabeceira e deu-ma, dizendo :
— Não tenho mais nada que te dar. É um pequeno
presente de doente.
Eu olhava para êle, com o coração triste, sem saber
porquê.
— Olha lá — murmurou o mestre. — Eu espero não
ir desta, mas, se não melhorar mais, vê se te fazes mais
forte na aritmética, que é onde estás fraco. Faz um esfor-
ço, não se trata senão de um pequeno esforço, porque às
vezes não é falta de aptidão... é um preconceito... uma
idea...
Mas, dizendo isto, respirava dificilmente e via-se que
sofria.
— Tenho imia febre diabólica, balbuciou. Isto não
184 CORAÇÃO
vai muito longe... Nota o que te digo, insiste na aritmé-
tica e no estudo dos problemas... Não te saem bem à pri-
meira? Descansa um pouco e torna a principiar... Não vai
ainda da segunda? Torna a descansar e torna a repetir. E
assim por diante, sem impaciências nem esmorecimen-
tos... Agora vai... dá lembranças à mamã, e não tornes a
subir as escadas, porque nos havemos de ver breve na es-
cola... mas, se assim não fôr, recorda-te algumas vezes do
teu mestre da terceira, que foi muito teu amigo...
Ouvindo aquelas palavras, não pude deixar de cho-
rar. E êle então disse:
— Ouve cá...
Eu aproximei-me, inclinei a cabeça sobre o traves-
seiro e êle beijou-me os cabelos. Depois repetiu:
— Vai — e voltou a cara para a parede.
Eu voei pelas escadas abaixo, porque sentia vontade
ée abraçar minha mãi.
A Rua
Sábado, 25
Estando a observar-te da janela esta tarde quando ▼oita-
vas da casa do mestre, vi que deste um encontrão numa senho-
ra. Toma cuidado quando andares pela rua. Ali também há de-
veres a cumprir. Pois se tu medes os teus passos e as tuas acções
numa casa particular, porque não hás-de fazer o mesmo na rua
que é casa de todos? Repara bem no que vou dizer-te, Henrique.
Todas as vezes que encontrares um velho trôpego, um pobre,
uma mulher com imia criança ao colo, um aleijado, um homem
carregado, uma família vestida de luto, cede-lhe o passo com
respeito; porque devemos respeitar a velhice, a miséria, o
amor materno, a enfermidade, a fadiga e a morte. Todas as ve-
zes que vires uma pessoa, que distraidamente vai adiante de
um carro, desvia-a, se fôr criança, e adverte-a se fôr um ho-
mem. Pregunta sempre à criança sozinha que chora, o que tem,
e apanha a bengala ao ancião que a deixar cair. Se dois rapa-
zitos brigarem, separa-os, se forem dois homens, afasta-te, e
não assistas à violência brutal que ofende e endurece o coração.
Se passar por ti um homem preso no meio de guardas, não jun-
CORAÇÃO 135
tes a tua à curiosidade cruel da multidão, porque aquele ho-
»iem pode ser um inocente. Cessa de falar com o teu compa-
nheiro e de sorrir quando encontrares uma maca do hospital,
que condu2 talvez um moribundo ; ou um carro mortuário, por-
que no dia seguinte um igual pode sair de tua casa. Olha com
reverência para todos os rapazes dos Institutos, que passam,
dois a dois: são os cegos, mudos, raquíticos, órfãos e crianças
abandonadas, e lembra-te que é a desventura e a caridade hu-
mana que passa. Finge sempre não ver o indivíduo que tem
uma deformidade repugnante ou ridícula. Apaga Gcmpre os fós-
foros acesos que encontrares debaixo dos teus passos e que
podem ser causa da morte de alguém. Responde com amabili-
dade ao transeunte que te pregfuntar onde fica esta ou aquela
rua. Não olhes para pessoa alguma rindo, nem corras nem gri-
tes sem necessidade. Respeita a rua. A educação de um povo
julga-se, antes de tudo, pelo comportamento desse povo na rua.
Onde vires a grosseria nas praças, encontrarás a grosseria nas
casas. Estuda as ruas, estuda a cidade, onde vives, porque se
amanhã fores forçado a deixá-la, hás-de sentir prazer tendo-a
bem presente na memória, e poder percorre-la toda com o
pensamento, A tua cidade é a tua pequena pátria, aquela que
fo! por tantos anos o teu mundo, onde deste os primeiros pas-
sos ao lado de tua mãi, onde experimentaste as primeiras co-
moções, e abriste o espírito às primeiras ideias; onde enfim ti-
veste os primeiros amigos. Essa foi uma mãi para ti, instruiu-
-te, deleitou-te, protegeu-te. Estuda-a pois, nas suas ruas e na
tma gente, e ama-a... E quando ouvires injuriá-la, defende-a.
Teu Pai.
MARÇO
ÀS escolas nocíurnas
Quinta-feira, 2
Meu pai levou-me ontem às escolas nocturnas da
mossa secção Baretti, que estavam todas iluminadas, e
o« operários começavam a entrar. Ao chegar, encontrá-
mos o director e os mestres muito irritados, porque
136 CORAÇÃO
pouco tempo antes alguém quebrara com uma pedrada um
vidro da janela. O contínuo saíra num pulo à rua, e agar-
rou pelos cabelos um rapaz que passava, mas logo se
apresentou Stardi, que mora defronte da escola, dizen-
do:
— Não foi esse, vi com os meus olhos. Foi Franti
quem atirou a pedra, e até me disse: — Ai de ti, se te
não calas. Mas eu não tenho medo dele.
O director declarou que Franti ia ser expulso para
sempre. Entretanto, ia eu olhando para os operários que
estavam aos dois e aos três juntos, e já lá havia mais
de duzentos! Não imaginava quanto era bela uma escola
nocturna! Havia rapazes de doze anos para cim.a e ho-
mens com barba, que vinham do trabalho, trazendo li-
vros e cadernos; carpinteiros, fogueiros, com a cara negra,
pedreiros com os cabelos enfarinhados; e sentiu-se o
cheiro do verniz, de coiros, de peixe, de azeite, de todos
os ofícios, enfim. Entrou também uma companhia de
operários de artilharia, vestidos de soldados, conduzidos
por um cabo. Enfileiraram-se todos, à pressa, nos bancos,
tirando a tábua de baixo, onde costumamos pôr os pés,
e curvando logo a cabeça sobre o trabalho. Alguns iam
pedir explicações ao mestre, com os cadernos abertos.
Vi lá aquele mestre, muito moço, que anda sempre muito
bem vestido, o Advogadinho, com três ou quatro operá-
rios em volta da escrevaninha, fazendo-lhes correcções
na escrita, e vi também aquele outro coxo, que ria mos-
trando o tintureiro, que lhe levara um caderno todo man-
chado de tinta vermelha e azul.
Estava também o meu mestre, já restabelecido, e
que deve voltar amanhã à escola. As portas da aula
estavam abertas.
Fiquei maravilhado, quando principiaram as lições,
ao ver como todos se conservavam atentos e de olhos
fixos.
E contudo a maior parte deles, dizia o director, para
não chegarem tarde, nem ao menos passaram por casa
para comer um bocado de pão, e tinham fome. Os pe-
quenos, esses, depois de meia hora de escola, caíam de
sono; alguns até adormeciam cem a cabeça encostada à
CORAÇÃO 137
carteira, e o mestre ia acordá-los, fazendo-lhes cócegas
nas orelhas com a. pena. Mas os grandes estavam com
a boca aberta, ouvindo a lição sem pestanejar.
A mim fazia-me impressão ver todos aqueles homens
barbados nos nossos bancos. Subimos depois ao outro an-
dar e, indo eu logo direito à porta da minha aula, vi,
no meu lugar um homem com grandes bigodes e uma
das mãos entrapada, talvez por se ter ferido em alguma
máquina, e, todavia procurava meio de escrever, de va-
gar. Mas o que mais mais me agradou, foi ver no lugar
do pedreiritG, exactamente no mesmo banco e no mesmo
canto, seu pai, aquele pedreiro grande como um gigante,
que lá estava, sem poder mexer-se, com os cotovelos so-
bre o banco, a barba apoiada nos punhos e os olhos so-
bre o livro, tão atento que quási nem respirava.
E não estava ali por simples coincidência. Êle pró-
prio, na primeira noite que veio à escola, disse ao direc-
ctor:
— Senhor director, há-de fazer-me o favor de me co-
locar no Jugar do meu focinho de lebre, (assim é que êle
chama ao filho...)
Meu pai, entreteve-se ali até ao fim, e ao sair vimos
na rua muitas mulheres com crianças ao colo, que es-
peravam os maridos. Os operários traziam os filhos nos
braços e davam às mulheres os livros e os cadernos, e
assim iam para casa. A rua esteve por alguns momentos
cheia de gente e de rumor. Depois caiu tudo em silên-
cio, e não vimos mais do que a figura esguia e curva
do director que se ia embora.
A lufa
Domingo, 5
Era de esperar. Franti, expulso pelo director, quis
vingar-se e esperou Stardi em uma esquina, depois da
saída da escola, quando êle passava com a irmã, que vai
buscar todos os dias a um Instituto da rua Dora Grossa.
Minha irmã Silvia, saindo do colégio, viu tudo e chegou
a casa cheia de susto.
15» CORAÇÃO
Eis o que aconteceu- Franti com o seu barrete de
oleado, achatado à banda sobre uma orelha, correu nas
pontas dos pés atrás de Stardi e, para o provocar, puxou
pela trança dos cabelos da irmã, puxão tão forte, que
quási a deitou por terra, de costas.
A menina deu um grito e seu irmão voltou-se logo.
Franti, que é muito mais alto e mais forte do que Stardi,
pensava: — ou êle não diz nada ou bater-lhe-ei a valer.
Mas Stardi não se demorou a pensar, e, assim pequeno
como é, arremessou-se de um salto sobre o grandalhão, e
começou a socá-lo; porém, como era menos possante, apa-
nhava mais do que dava. Na rua não havia senão meninas
e ninguém podia separá-los. Franti atirou-o ao chão, po-
rém Stardi ergueu-se logo e investiu de novo ; mas Franti
batia-lhe como numa porta; num momento arrancou-lhe
metade de uma orelha, machucou-lhe um olho, e fez-lhe
deitar sangue pelo nariz. Mas Stardi, forte, rugia:
— Mata-me, mas hás-de pagar-me.
E Franti, de cima, aos bofetões e ponta-pés; e Stardi
de baixo, correspondia com cabeçadas e muros.
Uma senhora gritou da janela:
— Bravo, rapaz !
Diziam outras:
j— É um irmão que defende sua irmã... Coragem!
Dá-lhe, dá-lhe sem pena.
E gritavam a Franti:
— I Preverso, covarde !
Franti estava furioso; passou-lhe uma rasteira. Star-
di caiu por baixo dele.
— Rende-te !
— Não!
— Rende-te!
— Não !
E num pulo conseguiu Stardi levantar-se, e, cingindo
Franti pela cintura e fazendo um furioso esforço, ati-
rou-o de costas na calçada, e pôs-lhe um joelho no peito.
— Ai! que o infame puxa por uma faca; gritou um
homem correndo para desarmar Franti.
Mas Stardi, fora de si, já lhe tinha agarrado no braço
com ambas as mãos e dado na mão uma tal dentada, que a
CORAÇÃO
139
laca lhe caíra, e da mão escorria sangue. Neste meio tem-
po, acudiram outros que os separaram e levantaram ; Franti
foi-se safando, muito maltratado; e Stardi ficou com a
cara arranhada e um olho pisado, mas vencedor, ali ao
lado da irmã, que chorava, enquanto algumas meninas
apanhavam os livros e os cadernos espalhados pela rua.
— Bravo ! — diziam todos — defendeu sua irmã !
Mas Stardi ocupava-se mais da sua carteira do qu«
da vitória, e pôs-se logo a examinar, um por um, os livros
e os cadernos, a ver se tinha algum perdido ou roto;
limpou-os com a manga, guardou a pena, e pôs cada cousa
em seu lugar ; depois, tranquilo e sério como sempre, dis-
se à irmã :
— Vamos depressa, que tenho que resolver um pro-
blema de quatro operações.
Os parentes dos meninos
Segunda-feira 6
Esta manhã estava Stardi, pai à porta da escola, à
espera do filho, com receio de que este se encontrasse
outra vez com Franti. Mas Franti não aparecerá mais, di-
ziam, porque vai ser preso. Entre outros via-se também
o vendedor de lenha, o pai de Coretti, completo retrato
do filho, esbelto, alegre, com os seus bigodinhos pontu-
140 CORAÇÃO
dos e uma fita de duas cores na casa do casaco. Eu já
vou conhecendo quási todos os pais dos rapazes, por os
ver ali sempre. Há uma avó corcovada, que vem quatro
vezes ao dia chova, nevisque ou haja tempestade, trazer
e buscar um seu netinho da primeira superior; pega-lhe
no capote, enfia-lho, endireita-lhe a gravata, sacode-lhe
a poeira, penteia-o e guarda-lhe os cadernos... Vê-se que
não tem outra preocupação, nem vê coisa mais bela
neste mundo. Também aparece muitas vezes o capitão de
artilharia, pai de Robetti, aquele das muletas que salvou
a criança, e assim como todos os companheiros o saúdam
ao passarem diante dele, também retribui do mesmo
modo, e não há exemplo de esquecer-se dum; inclina-se
para todos ; e quanto mais pobres são e mal vestidos, mais
satisfeito fica, e mais lhes agradece.
Mas às vezes vêm-se coisas bem tristes.
Um senhor que não aparecia havia mais de um mês
porque lhe morrera um filho, e mandava o outro pela
criada, voltando ontem pela primeira vez, e tornando a
ver a classe e os companheiros do seu filho morto, rom-
peu em soluços, cobrindo o rosto com as mãos; e o di-
rector tomando-o por um braço, conduziu-o ao seu ga-
binete.
Há pais e m.ãis, que conhecem pelos nomes todos os
companheiros dos filhos, as meninas da escola vizinha e
os estudantes que vêm esperar os irmãos.
Há um senhor velho que foi coronel, e quando algum
deixa cair um caderno ou uma pena, apanha-a e entrega-
-Iha. Vêm-se também senhoras bem vestidas, que falam a
respeito da escola, com outras de lenço na cabeça e cesta
no braço, e dizem:
— Ah! foi terrível desta vez o problema!
— A lição de gramática parecia não ter fim hoje!
E quando há um doente na classe, todos sabem; e
quando o doente melhora, todos se alegram. Ainda esta
manhã oito ou dez senhoras e operários estavam em volta
da mãi de Crossi, a quitandeira, a pedir-lhe notícia de
um pobre pequeno da classe de meu irmão, que mora na
mesma casa e está em perigo de vida. É que a escola tor-
na todos amigos e iguais.
CORAÇÃO Ul
O número 78
Quarta-feira, 8
Ontem à tarde, vi uma cena comovente. Havia já
Kiuitos dias que a quitandeira, todas as vezes que passava
por Derossi, o olhava sempre com expressão de grande
afecto; isso porque Derossi, depois que fez a descoberta
do tinteiro e do preso número 78, principiou a estimar
muito seu filho Crossi, o dos cabelos ruivos e do braço
paralitico, ajudando-o a fazer o trabalho na escola, suge-
rindo-lhe as respostas e dando-lhe papel, penas e lápis;
em suma, fazendo o que faria a um irmão, e isso para
o compensar da desgraça que aconteceu ao pai e que êle
nem sabe. v-j
E por isso a quitandeira olhava com insistência para
Derossi; parecia não poder desprender os olhos dele, por-
que é uma bôa mulher que vive toda para seu filho, a quem
Derossi auxilia para que faça boa figura na aula. Derossi,
que é um senhor e o primeiro da escola, parece-lhe um rei,
um santo. Olhava sempre para êle, e parecia querer di-
zer-lhe alguma coisa, mas acanhava-se. Ontem de manhã,
finalmente, encheu-se de coragem e fê-lo parar diante
de um portão, dizendo-lhe:
— Perdõe-me, senhor, que tão bom é, e tanto bem
quere a meu filho, dê-me o prazer de aceitar esta pequena
lembrança de uma pobre mãi (e tirou da cesta da horta-
liça uma caixinha de cartão branco e dourado).
Derossi corou e recuou, dizendo resolutamente:
— Dê-a a seu filho, que eu não aceito nada.
A mulher ficou muito vexada e pediu desculpa bal-
buciando :
— Eu não pensava ofendê-lo ; a caixinha não tem se-
não caramelos.
Derossi abanou a cabeça. Então, timidamente ela
tirou da cesta um molhinho de rabanetes, e disse:
— Aceite-os que são muito fresquinhos; faça favor
de os levar a sua mamã.
Ela, insistiu para que aceitassse.
Derossi sorriu e respondeu:
142 CORAÇÃO
— Muito obrigado, não aceito, não quero coisa algu-
ma, e esteja certa que farei sempre o que puder por Cros-
si. Nada posso aceitar. Muito obrigado e agradeço-lhe
como se aceitasse.
Derossi disse-lhe que não, sorrindo, e seguindo o
seu caminho, enquanto a mulher clamava toda contente:
— Oh! que rapazinho este! Nunca vi nenhum tão
bom, nem tão bonito assim !
Parecia tudo terminado, quando, às quatro da tarde,
em vez da mãi de Crossi, aproximou-se de Derossi o pai
com o seu semblante pálido e melancólico, £ê-lo parar, e
pelo modo por que o encarava compreendi logo que sus-
peitava que Derossi tivesse conhecimento do seu se-
gredo,
Olhou-o fixamente, e disse com voz triste e afec-
tuosa :
— Sei que estima muito meu filho. Porque lhe quere
Itanto bem?
Derossi ficou com o rosto côr de fogo, e quisera res-
ponder-lhe: Quero-Jhe bem porque tem sido infeliz, e por-
que o senhor também tem sido talvez mais infeliz que cul-
pado; já expiou nobremente o seu crime e é um homem de
coração; mas faltou-lhe a coragem para dizer-lhe isto,
porque lá no seu íntimo sentia ainda um cento receio e
quási repugnância diante do homem que derramara o
sangue de outro homem e estivera seis anos na prisão.
Mas o outro adivinhou tudo, e baixando a voz, disse
ao ouvido de Derossi, quási tremendo:
— Quere bem ao meu filho, mas não quere mal nem
despreza o pai, não é verdade?
— Ah! não! pelo contrário, exclamou Derossi num
impulso da alma.
E então o homem fez um gesto violento, como quem
desejava apertá-lo nos braços, mas não ousou, e em vez
de abraço, tomou entre os dedos um anel dos seus cabe-
los louros, desenrolando-o, e deixou-o ir seguindo o seu
caminho; depois levou a mão à boca, beijou-a na palma,
seguindo Derossi com os olhos húmidos, corao para di-
zer-lhe que era para ele aquele beijo... Em seguida deu a
mão ao filho, e foi-se embora a passos apressados.
CORAÇÃO 143
O pequeno morío
Segunda- feira, 1$
O pequeno que morava no pátio da quitandeira, o da
primeira superior, companheiro de meu irmão, morreu.
A mestra Delcati veio sábado de tarde, toda aflita, dar
esta notícia ao mestre; e logo Garrone e Coretti se ofe-
receram para ajudar a levar o caixão.
Era um be^o menino e ainda na semana passada ga-
nhara a medalha; era muito amigo de meu irmão e tinha-
-Ihe dado um mealheiro quebrado ; minha mãi fazia-lhe
festas sempre que o encontrava. Trazia um barrete com
duas listas de pano vermelho. O pai é carregador no ca-
minho de ferro. Ontem à tarde, às quatro e meia fomos a
sua casa para acompanhar o filho à igreja. Mora no rez-
-do-chão. No pátio, estavam muitos colegas da primeira
superior, com as mais, e (todas traziam suas velas, cinco
ou seis mestras e alguns vizinhos. A mestra da pena ver-
melha e a Delcati tinham entrado e por uma janela aberta
via-se que elas choravam, e via-se a mão do pequeno que
soluçava alto. Duas senhoras, mais dos coleguinhas do
morto, traziam grinaldas de flores. Às cinco em ponto
puzemo-nos a caminho. Ia a diante um rapaz que levava
a cruz, depois um padre atrás do caixão, um caixão peque-
nino— pobre criança! — coberto com um pano preto, ao
qual iam presas as grinaldas de flores das duas senhoras.
Do mesmo pano pendiam a medalha e três menções hon-
rosas que o pequeno ganhara durante o ano. Pegavam no
caixão Garrone, Coretti e dois rapazes do pátio, Seguiam-
-no primeiro Delcati, que chorava como se fosse seu fi-
lho; atrás dela iam outras mestras, e logo depois destas,
crianças, algumas das quais muito pequeninas, e estas
olhavam espantadas para o féretro, dando a mão às mais,
que levavam as velas por elas. A uma ouvi que pregun-
tava:
— Êle agora não volta mais à escola?
Quando o caixão saiu do pátio, ouviu-se pela janela
um grito desesperado. Era a mãi do morto, mas logo a
fizeram recolher-se. Chegando à rua encontramos os alu-
144 CORAÇÃO
nos de um colégio, que passavam dois a dois, e vendo o
féretro com a medalha e as mesitras, todos se descobriram.
Pobre criança que foi dormir para sempre com a sua
medalha! Não o tornaremos a ver, com o seu barretinho
vermelho. Estava bom ainda há pouco e em quatro dias
morreu !
No último dia fez ainda um esforço para levantar-se
e fazer o seu trabalhozinho de nomenclatura, e quis que
lhe puzessem a medalha em cima da cama com medo que
lha furtassem.
Ninguém ta furtará mais, pobre criança! Adeus!
adeus! A sua memória não se apagará na secção Garetti,
anjinho! Dorme em paz.
A véspera de U de Março
Hoje foi um dia mais alegre do que o de ontem. Tre-
ze de Março! Véspera da distribuição dos prémios no
Teatro Vitor Manuel, a bela e grandiosa festa de todos os
anos ! Mas desta vez não foram apanhados ao acaso os me-
ninos que devem ir ao teatro apresentar a lista dos pré-
mios aos senhores que os distribuem- O director veio esta
manhã à hora da saída e disse:
— Meus filhos, uma bôa notícia.
E em seguida chamou Coraci, o calabrês. Coraci le-
vantou-se.
— Queres ir amanhã ao teatro apresentar a lista dos
prémios à autoridade?
O calabrês respondeu que sim.
— Está bem, assim também a Calábria terá o seu re-
presentante, e é uma bela coisa.
O município quiz este ano que os dez ou doze meni-
nos que têm de apresentar os prémios sejam filhos de to-
das as partes da Itália, tirados das diversas secções das
escolas públicas. Temos vinte secções com cinco sucur-
sais; sete mil alunos. Em tão crescido número, não foi
difícil encontrar um rapaz de cada uma das regiões ita-
lianas. Da secção Torquato Tasso vêm dois representan-
tes das ilhas, um sardo e um siciliano ; da escola Boncom-
CORAÇÃO 145
pagni vai um pequeno florentino, filho de um entalhador;
um romano, filho de Roma, da secção Tommaseo; também
há venezianos, lombardos e romanholos; da secção Mon-
viso há um napolitano, filho de um oficial; nós damos
um genovês e um calabrês que és tu, Coraci. Serão doze
com o piemontês. É belo, não vos parece? Recebereis os
prémios das mãos dos vossos irmãos de todas as partes de
Itália. Tomai sentido. Devem comparecer no palco todos
os doze juntos. Recebei-os com aplausos. São crianças,
mas representam a pátria como se fossem homens. Uma
pequena bandeira tricolor é o símbo,lo da Itália, da mesma
forma que uma bandeira, não é verdade? Aplaudi-os, pois
calorosamente. Mostrai que também os vossos pequenos
corações se inflamam, que também as vossas almas de dez
anos se exaltam diante da imagem santa da pátria. Depois
de ter assim falado, retirou-se; o mestre disse sorrindo:
— Com que então, Coraci, tu és o deputado da Calá-
bria?
E então todos começaram a bater palmas e a rir, e
quando chegaram à rua cercaram Coraci, e agarrando-o
pelas pernas, levaram-no em triunfo, gritando: — Viva!
viva o deputado da Calábria! — Tudo por brincadeira, já
se vê, e não por zombaria; eram expansões de coração,
porque é uma criança estimada por todos; êle sorria.
Assim o levaram até à esquina da rua, onde esbarraram
com um sujeito de barbas pretas, que se pôs a rir. O ca-
labrês disse: :
— É meu pai.
E nisto os rapazes deixaram-íhe o filho nos braços e
foram cada um para seu lado.
À disíribuição dos prémios
Março, 14
As duas horas, o enorme teatro estava cheio; platéa,
galeria, camarotes, palco, tudo a trasbordar! Milhares de
rostos: meninos, senhoras, mestres, operários, mulheres
do povo, crianças; era um agitar de cabeças e de mãos,
10
146 C O R A Ç A •
um tremular de pernas, de laços de fita, de cabelos, um
murmúrio longo e festivo que causava alegria- O teatro
estava todo guarnecido de festões de pano vermelho,
branco e verde.
Na platéa haviam feito duas pequenas escadas: uma
à direita por onde os premiados deviam subir para o pal-
co; outra à esquerda por onde os mesmos deviam descer
depois de ter recebido o prémio.
À frente do palco havia duas ordens de poltronas
vermelhas, e do espaldar da do centro pendiam duas co-
roazinhas de louro. Ao fundo, um trofeu de bandeiras;
de um lado, uma mesa com um pano verde tendo em cima
todos os prémios atados com Jaços tricolores. A banda de
música estava na platea, abaixo do palco. Os mestres e as
mestras enchiam toda a metade da primeira galaria, que
fora reservada para eles. Nos bancos e nas varandas da
platea, acumulavam-se centenares de rapazes que deviam
cantar e tinham a música entre as mãos. No fundo e em
torno, viam-se andar para um e outro lado mes-
tres e mestras, que punham em fileira os premiados e ha-
via uma quantidade enorme de parentes a dar-lhes a úl-
tima penteadela aos cabelos e o último arranjo às gra-
vatinhas.
Apenas entrei com minha família no camarote, vi
noutro defronte, a mestrazinha da pena vermelha, que ria
com as suas belas covinhas nas faces e, com ela, a mestra
de meu irmão, a Freirinha toda vestidinha de preto, e a
minha bôa mestra da primeira superior, mas tão pálida,
coitadinha! tossia tão forte que se ouvia de um lado a
outro do teatro. Na platea descobri Jogo aquela querida
cabeçorra de Garrone e a cabecinha loura de Nelli, encos-
tada ao ombro daquele. Um pouco mais adiante, vi Garoffi
com o sevi nariz de bico de coruja, atarefadamente, a re-
colher as listas impressas dos premiados, e tinha já um
grande maço delas para fazer o seu negócio. Sabe-lo-
-e-mos.
Próximo à porta estava o vendedor de lenha com a
mulher, vestidos de gala, ao pé do filho, que tem um ter-
ceiro prémio da segunda. Fiquei pasmado de lhe não ver
^ barrete de pele de ?fato e a jaqueta de malha côr de
CORAÇÃO W
chocolate. Desta vez estava vestido como um fidalguinho.
Numa galaria vi por um momento Voltini, com um gran-
de colarinho de rendas; depois desapareceu. Em um ca-
marote cheio de gente, junto ao proscénio estava o capi-
tão de artilharia, pai de Robetti, aquele das muletas que
salvou a criança.
Ao dar duas horas, a banda tocou e foram subindo
pela escadinha o síndico, o perfeito, o provedor e muitos
outros senhores, todos vestidos de preto, que se assenta-
ram nas poltronas vermelhas em frente do palco. A músi-
ca acabou de tocar. Veio então à frente o director da es-
cola de canto com uma batuta na mão, e, a um sinal seu,
todos os meninos da plateia se puzeram em pé, e a um
outro aceno principiaram a cantar. Eram setecentos can-
tando uma lindíssima canção, setecentos rapazes cantan-
do juntos; como é belo! Todos os escutavam imóveis; era
um canto doce, límpido, vagaroso, que parecia cântico de
igreja.
Quando acabaram, todos aplaudiram. Depois fez-se
silêncio. A distribuição dos prémios ia começar. Já se via
na frente do palco o mestre da segunda com a sua cabeça
ruiva e os seus olhos vivos, que devia ler o nome dos pre-
miados. Esperava-se que entrassem os doze rapazes para
apresentar os atestados. Os jornais tinham já dito que
apareceriam filhos de todas as províncias da Itália; todos
o sabiam e esperavam-nos, olhando com curiosidade para
o lado donde deviam entrar. O síndico e outros senhores
aguardavam também a entrada deles; todo o teatro es-
tava mudo e silencioso.
De repente vêm-se marchar até ao proscénio e parar
ali, em fileira, os doze, sorrindo.
Três mij pessoas, todo o teatro, se levantou ao mes-
mo tempo, rompendo num aplauso que parecia um ribom-
bar de trovão. Os rapazes ficaram um momento confusos.
— Ei-la, a Itália! disse uma voz no palco.
Reconheci log:o Coraci, o calabrês, vestido de pre-
to como sempre. Um vereador municipal que estava con-
nosco e conhecia a todos, ia-os indicando a minha mãi.
Aquele pequeno louro é o representante de Veneza, o ro-
mano é aquele alto e fri«^^.
148 CORAÇÃO
Havia dois ou três, vestidos fidalgamente, os outros
eram filhos de operários, mas todos limpos e aceadinhos.
O florentino, que era o mais pequenino, tinha uma faixa
azul, em volta da cintura. Passaram todos diante do sín-
dico, que os beijava na fronte, enquanto um homem ao
seu lado lhe dizia devagar e sorrindo os nomes das ci-
dades.
— Florença, Nápoles, Bolonha, Palermo... E a cada
um que passava, todo o teatro batia palmas. Depois cor-
reram todos à mesa verde em busca dos atestados, e o
mestre principiou a ler a lista, dizendo as secções, as
classes e os nomes; e os que iam ser premiados princi-
piaram a sair e a desfilar.
Tinham apenas subido os primeiros degraus, quando
se ouviu por detrás do pano do fundo uma música ligeira,
harpejada de violinos, que não cessou enquanto durou a
desfilada, uma ária doce, sem.pre igual, que parecia o mur-
múrio de muitas vozes carinhosas, vozes de todas as mais,
de todos os m.estres e de todas as mestras, num coro, todos
juntos dando consdihos, rogando e fazendo amorosas
advertências.
E, no entanto, os premiados passaram, um após ou-
tro, diante dos senhores sentados, que lhe entregavam os
prémios e diziam a todos uma palavra afectuosa ou fa-
ziam uma carícia. Os rapazes da platéa e da galaria aplau-
diam todas as vezes que passava algum muito pequeno,
ou que pelos vestidos parecesse pobre, e também os que
tinham cabeleiras encaracoladas ou estavam de vermelho
ou de branco. Passaram alguns da primeira superior, que,
chegando ali, não sabiam para onde se haviam de virar,
e todo o teatro ria. Passou um de três palmos de altura,
que mal podia andar, com uma fita côr de rosa no ombro ;
tropeçou no tapete, caiu e o perfeito levantou-o. Todos
riram e deram palmas; um outro resvalou pe.las escadas
até à platea e ouviram-se gritos, mas não lhe aconteceu
mal algum. Passaram ainda os outros muito diferentes da-
queles, rostos de traquinas, caras assustadiças, pequenos
que riam para todos e que mal chegavam à platea eram
detidos pelos pais e pelas mais, que dali a pouco os le-
vavam para casa. Quando chegou a v«z da nossa secçáo,
CORAÇÃO 149
então é que me diverti ! Passaram muitos dos meus co-
nhecidos.
Passou Coreti, de roupa nova dos pés à cabeça, mos-
trando através do sorriso alegre os dentes brancos; e
contudo, quem sabe quantos feixes de lenha não tinha
êle já carregado de manhã.
O síndico, ao dar-lhe o prémio, preguntou-lhe o que
era uma mancha vermelha que tinha na testa, e passou-
-,lhe a mão sobre o ombro. Procurei com os olhos pela
piatea o pai e a mãi, e lá os vi rindo e cobrindo a boca
com as mãos. Depois passou Derossi, todo vestido de
azul, com os botões reluzentes e os cabelos de ouro em
anéis, esbelto, ágil, com a fronte alta, tão belo, tão sim-
pático, que a minha vontade era atirar-lhe um beijo; e
todos aqueles senhores lhe falavam e apertavam as mãos.
Depois o mesmo gritou: — Júlio Robetti! e viu-se che-
gar à frente, de muletas, o filho do capitão de artilharia.
Centenas de rapazes sabiam o facto, a notícia espalhou-
-se, explodindo uma salva de apjausos e de gritos, que
fez estremecer o teatro; os homens levantaram-se todos,
as senhoras começaram a agitar os lenços no ar, e aquela
boa criança parou no meio do palco, aturdida, tremen-
do... O síndico chegcu-o a si, dando-lhe o prémio e um
beijo, e tirando do espaldar da poltrona as duas coroazi-
nhas de louro que ali estavam penduradas, enfiou-lhas
na travessinha das muletas.
E acom.panhou-o até ao camarote do proscénio, onde
estava o capitão seu pai, que suspendeu o filho e pas-
sou-o para dentro, no meio de palmas, bravos e vivas.
E, no entanto, continuava a ouvir-se, ao longe, a
música ligeira e gentil dos violinos, e os meninos con-
tinuavam desfilando. Eram agora os da secção da Con-
solata, quási todos filhos de vendedores do mercado ;
em seguida os da secção de Vanchiglia, filhos de ope-
rários; vieram depois os da secção Boncompagni, dos
quais m.uitos são filhos de camponeses, e os da escola
Rayneri, que foram os últimos. Apenas havia acabado,
os setecentos rapazes da piatea cantaram uma outra can-
ção lindíssima; depois o síndico falou, • terminou o
discurso dizendo aos rapazes:
150 CORAÇÃO
— - N&o sairão daqui a«m aaiidardes, aqu«l»a que tanto
se afadigaram por vós, que vos consagraram todas as
forças da sua inteligência e do seu coração, que
vivem e morrem por vós. Ei-los e apontou para os mes-
tres.
E então das galarias, dos camarotes e da platea, to-
dos os rapazes se levantaram e estenderam os braços
gritando e saudando os mestres e mestras, que corres-
pondiam agitando as mãos, os chapéus e os lenços, todos
direitos, em pé, comovidos. Depois disso, a banda tocou
mais uma vez; mais uma vez ainda o público saudou
ruidosamente os doze meninos de todas as províncias da
Itália, que se apresentaram no proscénio, enfileirados,
de mãos dadas, sob uma chuva tempestuosa de flores.
Liíigio
Segunda-feira, 20
Não foi por ter inveja do prémio que Coretti ganhou,
que briguei com êle esta manhã. Não, não foi por inveja.
Mas eu não tinha razão. O mestre tinha-o mandado para
o meu lado, e eu estava a escrever no meu caderno de
caligrafia; êle tocou-me com o cotovelo, fiz um borrão
e manchei também o original do conto mensal Sangue
Romanholo, que tinha de copiar para o pedreirito que
está doente. Zanguei-me e disse-lhe uma palavra feia;
êle respondeu-me sorrindo: — Não foi por querer. —
Deveria acreditá-lo, porque o conheço; mas não gostei
que êle risse e pensei: — Ah! quem sabe se êle não está
vaidoso por ter ganho o prémio!... — E pouco depois
para vingar-me, dei-lhe um encontrão tão grande que o
fez estragar a página inteira.
Êle então, todo vermelho de raiva, disse-me : — Tu
sim, tu é que o fizeste de propósito. — E levantou a
mão. O mestre viu e êle retirou-a logo. Mas acrescentou:
«—Espero-te lá fora! — Fiquei incomodado; a raiva asso-
berbou-me, mas eu arrependera-me.
Coretti não podia fazê-lo senão involuntariamente.
CORAÇÃO 151
Êle c bom, pensei. Record»i-m« logo d« quando o vira
em sua casa, como trabalhava e como servia de enfer-
meiro à mãi doente; e depois, com que festa o recebi
em minha casa e quanto êle agradecu a meu pai.
Quanto não daria eu agora para lhe não ter dito
aquela palavra, para lhe não ter feito aquela vilania!
E pensava no conselho que me daria meu pai. — «Não
tens razão, não senhor — então pede-lhe desculpa». Mas
isso é que eu não me atrevia a fazer, porque tinha ver-
gonha de humilhar-me. Olhava para êle de esguelha,
via a jaqueta de malha descosida no ombro, talvez por
ter carregado muita lenha, sentia que o estimava e di-
zia comigo: coragem! Mas! a palavra — desculpa-me —
ficava na garganta. Êle também olhava para mim, de
revés, de tempos a tempos, e parecia-me mais atormen-
tado do que enraivecido. Eu olhava-o também para mos-
trar que não tinha medo. Êle repetiu-me:
— Lá fora falaremos.
E eu disse-lhe:
— Pois sim, lá fora...
Mas lembrava-me do que meu pai me havia dito
uma vez.
«Se não tens razão, defende-te, mas não batas». E
dizia comigo: Defender-me-ei, mas não baterei. Fiquei
descontente, triste, e já nem dava mais atenção ao mes-
tre. Enfim, chegou o momento de saída. Quando estava
só na rua, vi que êle me seguia. Parei e esperei-o com
a régua na mão. Êle aproximou-se; levantei a régua.
— Não, Henrique, disse êle com seu bom sorriso e
deitando-me para baixo a régua.
— Sejamos amigos como dantes.
Fiquei extático um momento, senti-me como empur-
rado, pelas costas e fui cair nos braços de Coretti. Bei-
jou-me e disse:
— Nunca mais havemos de brigar, não é assim?
— Nunca mais, nunca mais! respondi.
E separámos-nos contentes.
Logo que cheguei a casa, contei tudo a meu pai jul-
gando que lhe seria agradável sabê-lo; êle ficou sério e
disse-me:
152 CORAÇÃO
— Devias ser o primeiro a estender-lhe a mão, por-
que não tinhas razão alguma. Levantar a régua para um
companheiro que é melhor do que tu e de mais a mais
para um filho de um soldado!...
E arrancando-me a régua das mãos partiu-a em pe-
daços e atirou-a fora.
Minha irmã
Sexta-feira, 24
«Porqu2, Henrique, depois que o papá te repreendeu por
te haveres comportado mal com Coretti, tiveste ainda aquela
desatenção comigo? Nem imaginas a dor que me causaste.
Pois não sabes que quando eras criança, estava eu horas e
horas ao lado do teu berço, em vez de divertir-me com as mi-
nhas companheiras? que, quando adormecias, me levantava a
todos os momentos da cama, de noits para ver se queimavas
de febre? Não sabes que magoas tua irmã que te serviria de
mâi e que te queria como a um filho, se uma desgraça tre-
menda nos ferisse a nós? Não sabes que, quando o papá e a
mamã deixarem de existir, serei a tua melhor amiga a única
com quem possas falar dos nossos mortos e da tua infância,
eu que, se fosse necessário, trabalharia por ti, Henrique, para
ganhar-te o pão e fazer-te estudar? eu que te amarei sempre
quando tu fores grande, que te estimarei sempre quando esti-
veres longe, porque crescemos juntos e temos o mesmo san-
gue? Fica certo, ó Henrique, que quando fores homem e te
acontecer uma desgraça e te vires só, fica certo de que me
procurarás logo, virás ter comigo e me dirás: «Silvia, minha
irmã, deixa-m.e estar contigo, falemos de quando éramos feli-
2es, lembras-íe? falemos da nossa mãi e da nossa casa, da-
queles belos dias que já vão longe!» E tu, Henrique,
acharás sempre tua irmã de braços abertos. Sim! meu querido
Henrique, e perdôa-me também a censura que ora te faço.
Não me lembrarei de nenhuma injustiça tua, e se mais des-
gostos me deres ainda, que importa! serás sempre do mesmo
modo o meu irmão, e só me lembrarei de ter-te acalentado
nos meus braços, criancinha, de ter amado contigo pai e mãi.
CORAÇÃO 153
de ter-te visto crescer, e de ter sido por tantos anos a tua mais
fiel companheira. Escreve-me, pois, hoje, uma frase amiga so-
bre este caderno, que eu desejo ler antes da noite. E, entre-
tanto, para mostrar-te que não estou zangada contigo, vendo
que estavas cansado, copiei para ti o conto mensal Sangue lo-
znanholo que querias copiar para o Pedrehito doente; pro-
cura-o na gaveta do lado direito da tua mesinha. Escrevi-o
todo esta noite, enquanto dormias. E agora, Henrique, escre-
ve-me uma palavra, eu to peço.
Tua irmã, Silvia»).
"Não sou digno de beijar-te as mãos».
Henrique.
Sangue romanholo
(CONTO MENSAL)
Naquela tarde a casa de Ferrucio estava mais sosse-
gada que de costume. O pai que possuía uma pequena
loja de merceeiro, tinha ido a Forli fazer compras, e a
mulher acompanhára-o com Luzinha, uma menina que ia
ao médico para operar-se de um olho doente, e não de-
viam voltar senão na manhã seguinte. Faltava pouco para
a meia-noite. A mulher, que viera fazer o serviço do dia,
fôra-se embora ao escurecer.
Em casa só ficava a avó paralítica e Ferrucio, me-
nino de treze anos. Era uma casinha isolada no rez-do-
-chão, edificada sobre a estrada, a um tiro de espingarda
duma aldeia pouco distante de Forli, cidade da Rcma-
nha; e não havia ao lado senão uma casa deshabitada,
arruinada dois meses antes por um incêndio, sobre a
qual pendia ainda a taboleta de uma hospedaria. Por
detraz da casinha, havia uma horta cercada de uma sebe
de espinhos, para a qual dava tosca cancela rústica. A
porta da venda, que servia igualmente de porta da casa,
dava sobre a estrada. Em volta estendia-se a campina
solitária, vastos campos lavrados e plantados de amoreiras.
154
CORAÇÃO
Faltava pouco para a meia-noite. Chovia e ventava.
Ferrucio e a avó, ainda despertos, estavam na sala de
jantar, entre a qual e a horta havia um quarto pequeno,
atulhado de mobília velha. Ferrucio só entrava em casa
às onze, depois de uma ausência furtiva de muitas ho-
ras, e a avó esperava-o com os olhos abertos, cheia de
ansiedade, encravada numa poltrona sobre a qual costu-
mava passar o dia todo e mesmo muitas vezes noites,
por, uma sufocação que a oprimia e nem a deixava estar
deitada.
Chovia, e o
v e n to rufiava
nas vidra ças
com as bátegas
de água. A noi-
te estava muito
escura. Ferru-
cio entrara can-
s a d o e enla-
meado, com a
jaqueta rasga-
da e com pisa-
d u r a de uma
pedra na testa.
Jogara à pe-
drada com o s
o u tros compa-
nheiros; ti-
nham vindo de-
p o i s à unha,
como de costu-
me e ainda por
cima tinha jogado e perdido todo o dinheiro que pos-
suía, e deixado cair o barrete. Posto que na cozinha não
houvesse mais luz do que a que dava um pequeno can-
dieiro de azeite, moribundo, no ângulo da mesa, ao lado
da poltrona, contudo ,logo a pobre velha percebeu o es-
tado deplorável em que se achava o neto. Parte, já o ti-
nha adivinhado, o resto soube-o obrigando o rapa^: â
confessar-se.
CORAÇÃO 155
Ela, a velhinha, amava o n«to de todo o coração e,
quando soube de tudo come90u a chorar.
— Ah! não! disse depois de longo silêncio. Tu não
tens amizade a tua pobre avó. Que coração é o teu para
te aproveitares deste modo da ausência de teu pai e de
tua mãi, para dar-me esses desesperos! Todo o dia me dei-
xaste só. Não tiveste pena de mim! Toma sentido em
ti, Ferrucio; vais indo por um mau caminho, que te con-
duzirá a um triste fim. Tenho visto outros que princi-
piaram como tu e acabaram mal. Começa-se a fugir de
casa, a entrar em rixas com outros rapazes, a perder
dinheiro no jogo; depois, pouco a pouco, das pedradas
passa-se às facadas, do jogo aos outros vícios, e dos ví-
cios ao crime.
Ferrucio ficou a escutar a três passos de distância,
encostado a um armário, com o queixo sobre o peito,
as sobrancelhas franzidas, abrasado, quente ainda do
calor da luta. Pelo meio da testa caía-lhe uma madeixa
de cabelos castanhos, e tinha os olhos azues imóveis.
— Do jogo ao crime, continuou a avó. Pensa bem
nisto, Ferrucio. Pensa naquele desgraçado, aqui vizi-
nho, no Vito Mazzoni que anda agora na cidade feito
vagabundo ; que aos vinte e quatro anos já tinha estado
duas vezes na cadeia, e matou de desgostos de coração
a sua pobre mãi, que eu conheci, e fez o pai fugir para
a Suiça, desesperado... Lembra-te desse infeliz, a quem
teu pai se envergonha de cumprimentar, sempre acom-
panhado de celerados piores do que êle, até ao dia em
que caiu na cadeia! Pois bem, conheci-o bom rapaz;
principiou como tu. Por esse caminho levarás teu pai
e tua mãi ao mesmo fim.
Ferrucio estava mudo. Não porque tivesse o cora-
ção duro, pelo contrário; as suas extravagâncias deriva-
vam mais da superabundância de vida e de audácia, que
de maus instintos; o pai acostumára-o mal, justamente
porque, achando-lhe um carácter, no fundo capaz dos
mais belos sentimentos, e tendo provado ser de acção
forte e generosa, deixára-o à rédea solta, supondo que
tomaria juízo por si. Era antes bom do que mau, mas
teimoso, e custava-lhe muito, mesmo quando tinha o
156
CORAÇÃO
coração oprimido pelo arrependimento, deixar fugir dos
lábios aquelas boas palavras que fazem perdoar;
«Sim, fiz mal, não o farei mais; prometo, perdôe-
me».
Tinha às vezes a alma cheia de ternura, mas o orgu-
lho não lho deixava expandir.
— Oh! Ferrucio, disse a avó vendo-o assim mudo nem
uma palavra de arrependimento me dizes? vês a que esta-
do estou reduzida? Já me poderiam enterrar. Se tivesses
coração, não me farias sofrer assim; não obrigarias a cho-
rar a mãi de tua mãi, velha já, perto do seu último dia, a
tua pobre avó que sempre te quis tanto, que te embalava
noites e noites inteiras, quando eras criança e que não dor-
mia, só para te
acalentar. Eu
sempre dizia:
este há-de ser a
minha consola-
ção ! E agora tu
matas-me, con-
somes-me a vi-
da, que me res-
ta, para ver-te
bom e obedien-
te, como o eras
naque,Ie tempo,
quando te con-
duzia ao santu-
ário ; lembras-
-te, Ferrucio?
Tu enchias-me
as algibeiras de pedrinhas e de folhas, e eu trazia-te para
casa nos braços adormecido. Nesse tempo, querias tu bem
à tua pobre avó, mas agora que estou paralítica e tenho
necessidade de afeição como de ar para respirar, que não
tenho mais nada no mundo, pobre mulher meio morta co-
mo já estou Deus meu ! . . .
Ferrucio, meio vencido pela comoção, ia lançar-s«
aos braços da avó, quando lhe pareceu ouvir, um ligeiro
CORAÇÃO 157
rumor, um estalido no quarto próximo, que dava para a
horta. Não pôde porém, perceber se eram as portas das
janelas batendo impelidas pelo vento, ou se era outra
qualquer cousa. Aplicou o ouvido. A chuva caia. O rumor
repetiu-se. A avó também o sentiu.
— Que será? — ^preguntou ela, depois de um momen-
to, perturbada.
— A chuva — respondeu o rapaz.
— Ora vamos, Ferrucio, — disse a velha, esfregando
os olhos ~ prometes-me que hás-de ser bom e que não
mais hás-de fazer chorar a tua mísera avó?
Nisto um novo rumor .ligeiro interrompeu-os.
— Mas... não me parece chuva! — exclamou empali-
decendo... Vai ver. E acrescentou logo: Não, fica aqui —
e agarrou-se às mãos de Ferrucio.
Ficaram ambos com a respiração suspensa. Não ou-
viam senão o estrépido da água.
Depois estremeceram ambos.
A um e outro pareceu sentirem um arrastar de pés no
quarto.
— Quem está aí? — preguntou o rapaz, recobrando a
voz a custo.
Ninguém respondeu.
— Quem está aí? — tornou a preguntar Ferrucio,
transido de susto.
Apenas pronunciadas aquelas palavras, os dois juntos
soltaram um grito de horror! Dois homens apareceram
repentinamente na sala; um agarrou o rapaz e tapou-lhe a
boca com a mão; o outro apertou a garganta da velha. O
primeiro disse:
— Silêncio, senão morres... — O segundo: Cala-te!
— e levantou uma faca. Ambos traziam a cara tapada por
um lenço escuro com dois buracos no lugar dos olhos. Por
um momento não se ouviu mais que a respiração penosa
de todos quatro e o estalar da chuva lá fora.
A velha dava gemidos cavernosos e tinha os olhos fo-
ra das órbitas. Aquele que segurava o rapaz disse-,lhe ao
ouvido :
-?- Onde tem teu pai o dinheiro?
158 CORAÇÃO
— Acolá... no armário, respondeu o menino com um
fio apenas de voz.
— Anda comigo, disse o ladrão.
E arrastou-o para a sala, apertando-lhe a garganta. No
chão estava uma lanterna furta-fogo.
— Onde está o armário? preguntou.
O rapaz sufocado, apontou para o armário. Então, pa-
ra segurar bem a criança, o ladrão pô-la de joelhos diante
do armário, apertando-lhe fortemente o pescoço com as
pernas, de modo a poder, sufocá-lo, se gritasse; e seguran-
do a faca entre os dentes, e a lanterna com uma das mãos
tirou do bolso com a outra um ferro aguçado, introdu-
ziu-o na fechadura, sondou, quebrou, escancarou as portas,
remexeu furiosamente tudo, encheu as algibeiras, fechou
tornou a abrir, revolvendo tudo de novo; depois agarrou
o rapaz pe,la garganta e trouxe-o de rastos até onde estava
o companheiro, que ainda conservava subjugada a velha,
convulsa, já com a cabeça caída e a boca aberta.
Esse preguntou em voz baixa :
— Achou?
O companheiro respondeu: ,
— Achei, acrescentando : — Espreita à porta.
O que estava segurando a velha correu à porta da hor-
ta a ver se estaria a,lguém, e disse de fora com uma voz que
parecia um assobio : — Vem !
O que tinha ficado e segurava ainda Ferrucio, mos-
trou a este a faca, e à velha que reabriu os olhos, disse:
— Nem uma palavra! senão, volto atrás e corto-lhes
o pescoço.
Nisto, ouviu ao longe pela estrada, um canto de mui-
tas vozes. O ladrão voltara a cabeça subitamente para a
porta e com aquele movimento violento caíra-lhe o lenço
da cara. A velha soltou um grito :
— Mazzoni!...
— Maldita! — rugiu o ladrão reconhecido, vais mor-
rer.
E lançou-se de faca em punho contra a ve,lha que des-
maiara.
Mas com um movimento rapidíssimo, soltando um
grito desesperado, Fetrucio atira-» «Obre a avó, cobrin-
C o R A Ç A • 159
do-a com o próprio corpo. O assassino fugiu, atirando ao
chão a mesa e a lanterna, que logo se apagou. O rapaz es-
corregou lentamente sobre a avó, e, caindo de joelhos, fi-
cou naquela posição, com os braços em volta da cintura
da paralitica e a cabeça no seio dela. Passaram-se assim
alguns momentos no meio da escuridão e o canto dos alde-
ões ia-se perdendo ao longe pela campina. A velha tornara
a si.
— Ferrucio! — balbuciou ela, com voz apenas inin-
teligível, batendo os dentes.
— Avozinha! respondeu o rapaz.
A velha fez um esforço para falar mas o terror para-
lisara-lhe a língua. Esteve um mom.ento silenciosa, tre-
mendo violentamente. Depois conseguiu preguntar:
— Já aqui não estão?
— Não.
— Não me mataram — murmurou a velha com voz
sufocada.
— Não, estás salva! disse Ferrucio com voz fraca. Es-
tás salva, querida avozinha. Roubaram dinheiro, mas o pa-
pá tinha-o levado quási todo consigo.
A avó pode respirar.
— Avó! — disse Júlio sempre de joelhos e apertando-
-a nos braços, querida avó! Quere-me muito bem, não
quere?
— Ferrucio ! meu pobre filho ! respondeu ela, corren-
do-lhe a mão pelos cabelos. Que susto não deves ter tido!
Oh! .^enhor de Mesericórdia!... Acende o candieiro, não
fiquemos às escuras, que ainda estou com medo.
— Avozinha, continuou o rapaz ^ — eu tenho-lhe dado
muitos desgostos...
— Não tens, não, Ferrucio, não digas essas coisas. Já
esqueci tudo... e quero-te muito bem!...
— Tenho-lhe dado muitos desgostos, — repetiu Fer-
rucio, a custo, com a voz trémula, mas ojhe que sempre
fui seu amigo. Perdôa-me sim, avozinha?
— Sim, filho, perdôo-te tudo, perdôo-te tudo, perdôo-
-te de todo o coração. Não estejas de joelhos, levanta-te
raeu filho. Não te torno mais a raUbai. Tu és bonj, muito
160
CORAÇÃO
bom! Acendamos o candieiro. Tomemos um pouco de co-
ragem. Levanta-te, Ferrucio.
— Obrigado, azózinha, — disse o rapaz com a voz ca-
da vez mais débil — agora já estou mais contente e a avó
há-de recordar-se de mim, não é verdade? Há-de recordar-
-se sempre de mim, do seu Ferrucio.
— Meu filho! esxclamou ela, surpreendida e sobres-
saltada, apalpando e inclinando a cabeça para ver-lhe o
lOStO.
— Não te esqueças de mim — murmurou ainda o rapaz
cuja voz parecia um sopro. Dá um beijo a minha mãi... a
meu pai... à Luízinha... Adeus avozinha...
— Em nome
do céu> que
tens? — gritou
a velha apalpan-
do ansiosamen-
te a cabeça do
rapaz que re-
pousava sobre
03 joelhos e,
com quanta for-
ça tinha, excla-
mou no maior
desespero:
— Ferrucio ! Ferrucio ! meu querido filho ! meu queri-
do fi,lho! meu amor! Anjos do paraíso, valei-me!
Mas Ferrucio não respondeu mais. O pequeno herói,
o salvador da mãi de sua mãi, ferido com uma facada nas
costas, entregara a Deus a sua bela alma corajosa-
O Pedreiro moribundo
Terça-feira, i8
O pobre Pedreirito está doente, e logo que o mestre
disse que fôssemos vê-lo, combinamos ir juntos, Garrone,
Derossi e eu. Stardi vinha connosco, porém, como o mes-
tre nos deu por trabalho a descrição do Monumento a
Cavour, êle disse-nos que tinha de ir vê-lo para fazer a des-
CORAÇÃO lõl
crição mais exacta. Também, para experimentar, convida-
mos o orgulhoso Nobis. Respondeu simplesmente: — Não.
Voltini também se escusou talvez, com receio de man-
char de cal as roupas. Fomos às quatro horas, chovia a
cântaros. No caminho, Garrone parou e disse:
— Que é que se há-de comprar?
E fazia tilintar dois cêntimos na algibeira. Pusemos
dois cêntimos cada um, e compramos três laranjas gran-
des.
Subimos à água-furtada. Diante da porta, Derossi ti-
rou a medalha e meteu-a no bolso... Preguntei-lhe porquê,
6 êle respondeu:
— Não sei. É para não ter assim ares de... Parece-me
mais delicado entrar sem a medalha.
Batemos e apareceu o pai, um homemzarrão que pare-
ce um gigante. Trazia um rosto mudado e aflito.
— Quem procuram? I — preguntou.
Garrone respondeu logo:
— Somos companheiros de escola do António e traze-
mos-lhe três laranjas.
1 — Ah! o meu pobre Toninho... — exclamou o pedrei-
ro, sacudindo a cabeça — Penso que não chegará a comer
as vossas laranjas!
E limpou os olhos com as costas da mão... Fez-nos
sinal para que o acompanhássemos, e entramos numa man-
sarda, onde vimos o pedreirito dormindo em um pequeno
leito de ferro; a mãi, debruçada sobre o leito, tinha o ros-
to entre as mãos, e voltou-se apenas para nos ver. Na pare-
de, viam-se penduradas algumas broxas, uma picareta e um
crivo para cal; aos pés do doente estava estendida a jaque-
ta do pedreiro, sarapintada de gesso. O pobre rapaz tinha
emagrecido; estava pálido com o nariz afilado e tinha a
respiração curta. Que pena me fez ver naquele estado o
pobre Toninho, tão alegre e tão bom companheiro ! quan-
to não daria por tornar a vê-lo fazer o focinho de lebre!
pobre Pedreirito! Garrone pôs-lhe uma laranja sobre o
travesseiro, mesmo ao pé do rosto; o cheiro despertou-o,
pegou nela, mas logo depois deixou*a cair e olhou fixo
para Garrone.
II
162 CORAÇÃO
— Sou eu — disse-lhe este — sou Garrone. Conheces-
-me?
Êle sorriu tão levemente que apenas se percebia, e le-
vantando a custo da cama a sua pequena mão deu-a a Gar-
rone, que a tomou entre as suas, apoiando a face sobre
ela, e disse-lhe:
— Coragem; coragem! Pedreirito! hás-de ficar bom,
depressa! hás-de voltar à escola e o mestre há-de pôr-te
junto de mim. Estás contente?
O Pedreirito não respondeu.
A mãi desatou em soluços.
— Ai! meu pobre Toninho! meu pobre Toninho! Tão
meigo e tão bom ! e Deus quere arrebatar-mo !
— Sossega, mulher, — exclamou o operário entriste-
cido— sossega pelo amor de Deus, ou eu perco a cabeça!
Depois disse-nos, com a voz presa na garganta:
— Vão... vão! muito obrigado!... vão para casa, aqui
nada podem fazer...
O pequeno tinha fechado os olhos e parecia morto.
— Precisa de a,lguma coisa? preguntou Garrone.
— Não, meu filho, de nada preciso, muito obrigado —
respondeu o pedreiro. — Vão para casa.
E dizendo isto, conduziu-nos até ao patamar e fe-
chou a porta. Estávamos no meio da escada quando ouvi-
mos gritar de cima:
— Garrone ! Garrone !
Tornamos a subir à pressa todos os três.
— Garrone!... gritou o pedreiro com o rosto mudado
■— Chamou-te pelo nome... Há dois dias que não falava...
Disse duas vezes : Garrone ! — Quere ver-te, vem depressa !
Deus queira que seja um bom sinal !
— Até logo, disse-nos Garrone. Fico aqui.
E entrou com o pai.
Derossi tinha os olhos rasos de lágrimas, e eu pregun-
tei-lhe:
— Choras pelo Pedreirito? Êle que já falou, há-de me-
lhorar.
— Também me parece... respondeu Derossi — mas
não pensava agora nele... Pensava como ç boa a santa gl-
ma de Garrone!
CORAÇÃO 163
O conde Cavour
Quarta-feira, 2g
«É a descrição do monumento a Cavour que tu deves fazer.
Descreve-o, pois. Mas quem foi o conde Cavour é que tu não
podes compreender por ora. Agora basta que saibas somente que
foi êle por muitos anos o primeiro ministro de Piemonte; foi êle
quem mandou o exército piemontês à Criméa, levantando com a
vitória de Cernaia a nossa decaída glória militar; foi êle quem
fez descer pelos Alpes cento e cinquenta mil franceses para ex-
pulsar os austríacos da Lombardia; foi êle quem governou a Itá-
lia no período mais solene da nossa revolução; foi êle quem deu
naqueles anos o mais poderoso impulso à santa empresa da uni-
ficação da pátria; êle, com o seu génio luminoso, com a sua
constância invencível, com a sua actividade mais do que humana.
Muitos generais passaram horas aflitas no campo da batalha, mas
êle passou-as bem mais terríveis no seu gabinete, quando a sua
grande obra podia desmoronar-se de um momento para outro co-
mo frágil edifício a um abalo de terramoto. Horas e noites de
lutas e de angústias êle as passou, saindo delas com a razão des-
vairada e a morte no coração. Foi este gigantesco e tempestuoso
trabalho que lhe abreviou vinte anos de vida! E, contudo, devora-
do pela febre que o havia de levar à sepultura, lutava ainda es-
forçadamente com a doença, para fazer alguma coisa em prol da
sua pátria — É estranho dizia dolorosamente no seu leito de
morte, não posso, já não sei ler...
Emquanto lhe tiravam sangue e a febre aumentava, pensa-
va cie na sua pátria, e dizia imperiosamente:
— Curai-me! meu espírito obscurece-se, tenho necessidade
d^ todas as minhas faculdades para tratar de negócios graves.
Quando chegou aos últimos momentos e quando toda a
cidade se agitava, ao rei, que estava à sua cabeceira, êle dizia
com amargura:
— Tenho tantas coisas que dizer-vos, tantas coisas a reve-
lar-vos, mas estou doente... não posso! não posso!
E ficava em desespero. O seu pensamento febril eram os
negócios do Estado, as novas províncias italianas que se tinham
164 CORAÇÃO
unido a nós, e tantas coisas, enfim, que ficavam por fazer.
Quando o delírio o assaltava: — Educai a infância — gemia con-
vulsivamsntc, — educai a infância e a mocidade! governai com
liberdade!
Crescia o delírio, a morte estava prestes e êle invocava,
ainda, com palavras ardentes, o general Garibaldi, com qu2m
tivera desinteligências; Veneza e Roma, que não eram ainda
livres; tinha largas visões no futuro da Itália e da Europa;
sonhava numa invasão estrangeira; preguntava onde estavam os
corpos do exército e os generais. Tremia ainda por nós, pelo
seu povo. A sua grande dôr não era, bem o vês, perder a vida,
mas era ver fugir-lhe a pátria que carecia ainda dele e pela qual
despendera em poucos anos as forças desmssuradas do seu vi-
goroso organismo. Morreu com o grito de batalha na gargan-
ta, e a sua morte foi grande como a sua vida. Agora pensa um
pouco, Henrique, no que são os nossos trabalhos, que, no en-
tanto, não pesam tanto; no que são as nossas dores, mesmo a
nossa morte, em confronto com as fadigas, com as amarguras
formidáveis, com as agonias tremendas daqueles homens em
cujo coração pesa um mundo! Pensa nisto, filho, e quando
passares diante daquela imagem de mármore, diz-lhe de dentro
da alma: — Glória!...
ABRIL
A primavera
Sábado, i
Primeiro de Abril! Ainda três meses. Esta foi uma
das mais belas manhãs no ano! Eu estava contente na
escola, porque Ccretti tinha-me dito que fosse com êle e
com o pai depois de amanhã, para ver a chegjada do rei,
QV.e o pai conhece; e porque minha mãi tinha prometi-
do levar-me no mesmo dia a visitar o Asilo Infantil de
ÇorsQ Valdoccp. Além disso estava satisfeito porque o
CORAÇÃO lõã
Pedreirito está melhor, e porque ontem de tarde o mes-
tre, passando, disse a meu pai : «Vai bem, vai bem». Era
uma linda manhã de primavera. Das janelas da escola
via-se o céu azul, as árvores do jardim todas cobertas de
rebentos, as janelas das casas, escancaradas, e os sótãos
cheios de vasos verdejantes. O mesitre não ria porque
não ri nunca, mas estava de bom humor, e tanto que quá-
si se lhe não via a ruga direita pelo meio da testa. Expli-
cava, gracejando, uma lição na ardósia. Via-se que sen-
tia prazer em respirar o ar do jardim que entrava pelas
janelas abertas, impregnando de um cheiro sadio, fresco,
de terra e de folhas, que lembrava os passeios do cam-
po. Enquanto explicava a lição, ouvia-se numa rua pró-
xima um ferreiro batendo na bigorna, e na casa defronte
uma mulher cantando para adormecer uma criança. Ao
longe no quartel de Cernaia, tocavam os clarins.. Todos
pareciam contentes, até o próprio Stardi.
Em certo momento, o ferreiro principiou a bater
mais rijo e a mulher a cantar mais alto. O mestre inter-
rompeu a lição e pôs-se a escutar. Depois disse lentamen-
te, a olhar pelas janelas:
— O céu que sorri, uma mãi que canta, um operário
honrado que trabalha, as crianças que esitudam. Que be-
lo que é!
Quando saímos da au,la, observámos que também
todos os outros estavam alegres, caminhando em filas,
fazendo barulho com os pés, cantarolando como na vés-
pera de umas férias de quatro dias. As mestras graceja-
vam, e a da pena vermelha saltava atrás dos seus peque-
nos, como se fosse uma aluna; os parentes dos meninos
conversavam rindo, e a mãi de Crossi, a quitandeira, tra-
zia na cesta muitos ramos de violetas que perfumavam
todo o salão de entrada. Nunca senti tanta alegria como
nesta manhã, e ao ver minha mãi, que me esperava na
rua, disse-lhe, indo ao seu encontro:
— Estou, mamã, itão contente ! que será que me fez
assim alegre esta manhã?
E minha mãi respondeu-me, sorrindo, que era a be-
la estação e a boa consciência.
166 CORAÇÃO
O Rei Humberío
Segunda-íeira, 3
Às dez em ponto, meu pai viu da janela, Coretti, o
vendedor de lenha, e o filho, que me estavam esperando
na praça, e disse-me:
— Eles lá estão, Henrique, anda ver o teu rei.
Desci rápido como um raio. Pai e filho pareceram-
-me ainda mais alegres que do costume, e nunca me pa-
receu que se assemelhassem tanto um com o outro como
nesta manhã. O pai trazia no casaco a medalha de va,lor,
no meio de duas comemorativas, e os bigodes frisados
e aguçados como dois alfinetes. Pusemo-nos logo a ca-
minho, em direcção à estação do caminho de ferro, onde
o rei devia chegar às dez e meia. O pai de Coretti ia fu-
mando cachimbo e esfregando as mãos.
— Sabeis — dizia — que o não tornei a ver desde a
guerra de sessenta e seis? a bagatela de quinze anos e
seis meses! Vi-o três anos antes em França e depois em
Mondovi ; e aqui, que o poderia ter visto, nunca se deu o
caso de estar na cidade, quando êle vinha. Coisas do
acaso.
Êle falava do rei Humberto como se tratasse de um
camarada: Humberto — comandava a 16.^ divisão Hum-
berto tinha vinte e dois anos e tantos dias... Humberto
montava um cavalo assim e assim...
— Quinze anos! dizia em voz alta e alongando o
passo. Tenho muita vontade de o tornar a ver; deixei-o
príncipe, vou encontrá-lo rei, mas quanto a isso, também
eu mudei: passei de soldado a vendedor de lenha, E
ria-se.
O filho preguntou-lhe:
— Se o rei o vir, ainda o conhecerá?
— Tu és tolo, rapaz ! respondeu. Não faltava mais
nada. Humberto era um só, e nós éramos tantos como
moscas. Então querias que êle estivesse a olhar-nos um
por um?
CORAÇÃO lõ7
Desembocamos no corso Vítor Manue,l, onde havia
muita gente a caminho da estação. Passava uma compa-
nhia de Alpinos, com os clarins, e passavam também dois
carabineiros a cavalo e a galope; o tempo estava magní-
fico.
— Sim, exclamou Coretti, animando-se. Sinto muito
prazer em tornar a ver o meu general de divisão. Ah!
como envelheci depressa! Parece-me que ainda foi ou-
tro dia que tinha a mochila às costas e a espingarda na
mão, no meio daquela balbúrdia na manhã de 24 de Ju-
nho, quando estávamos para atacar à baioneta! Humber-
to ia e vinha com os seus oficiais, enquanto o canhão
troava ao longe; e todos olhavam para êle e diziam: «Que
o não ofenda alguma bala!...» Bem longe estava eu de
pensar que dali a instantes me acharia ao pé dele em
frente das panças dos austríacos, a quatro passos um do
outro, filhos! estava um dia magnífico! o céu como um
espelho, e um calor!... Mas, vamos a ver se se pode en-
trar.
Chegamos à estação, onde havia uma turba enorme;
carrugens, guardas, carabineiros, associações com estan-
dartes. Tocava a banda de um regimento. O pai de Co-
retti quis entrar no vestíbulo, mas não lho consentiram.
Tratou então de colocar-se na primeira fila do povo, que
formava alas à saída, e abrindo o caminho com os coto-
velos, conseguiu levar-nos também para a frente. Mas
aquela multidão, ondeando, empurrava-nos, ora para aqui,
ora para ali. O vendedor de lenha lançava os olhos para
o primeiro pilar do vestíbulo, onde os guardas não dei-
xavam estar ninguém. De repente disse:
— Vinde comigo.
E agarrando-nos pe,las mãos atravessou em dois pu-
los o espaço vazio, e foi colocar-se lá com os ombros à
parede. Correu logo um oficial de polícia a dizer-lhe:
— Aqui não pode entrar ninguém.
— Sou do quarto batalhão do 49, respondeu Coretti,
apontando ao mesmo tempo para a medalha.
O oficial olhou-lhe o peito, e disse:
— Fique.
168 CORAÇÃO
— Então, que disse eu? exclamou Coretti triunfante-
São palavras mágicas o quadrado do quarenta e nove! Pois
não havia eu de ter o direito de vê-lo um pouco à minha
vontade, ao meu general, eu que estive no quadrado! Se
então o vi de perto, parece-me justo que o veja de perto
agora. E digo general, mas ^le, por uma boa meia hora,
foi comandante do meu batalhão, enquanto estava no
centro, e não o major Ulrich.
No entanto, via-se no salão da entrada e cá fora um
grande movimento de senhoras e de oficiais, e diante da
porta enfileiravam-se carruagens, com os criados vesti-
dos de vermelho.
Coretti preguntou ao pai se o príncipe Humberto
tinha a espada Jia mão quando estava no quadrado.
— De certo, tinha a espada na mão para aparar al-
guma lançada, que tanto podia tocar a êle como a outro!
Ah! os demónios desenfreados! Caíram-nos em cima có-
rneo ira de Deus! volteavam entre os grupos, os quadra-
dos e os canhões que pareciam impelidos por um fura-
cão, destruindo tudo. Era uma confusão de cavaleiros
de Alexandria, de lanceiros de Foggia, de infantaria, de
caçadores, um inferno que ninguém entendia. Ouvi gri-
tar: «Alteza! Alteza!» e vendo aproximar-se as lanças
caladas, descarregando as espingardas, e uma nuvem de
pó envolveu tudo. Depois a poeira rarefez-se e a terra es-
tava juncada de cavalos e ulanos feridos e mortos. Vol-
tei-me para trás e vi no meio de nós Humberto a cavalo,
olhando em torno, com ar de quem preguntava: — Foi ar-
ranhado algum dos meus camaradas? — E nós gritámos
— Viva! como doidos, mesmo ao pé dele. Deus! que mo-
mento aquele!... Ali chega o comboio.
A banda tocou, os oficiais correram, a multidão le-
vantou-se nas pontas dos pés.
— Não sai tão cedo...' — disse um guarda. Ainda lhe
vão fazer um discurso.
Coretti pai não cabia mais em si.
— Ah! quando penso nisto... estou mesmo a vê-lo
lá. Foi um bravo no tempo da cólera, e quando houve ter-
ramotos e todas essas coisas... mas eu tenho-o na memó-
ria como o vi então no meio de nós com a fisionomia
CORAÇÃO 169
tranquila! E estou certo de que também êle se recordará
do quadrado do 49, mesmo hoje, que é rei, e que ficaria sa-
tisfeito se nos visse uma vez à mesa, a todos que o cer-
caram, naqueles instantes. Temos agora, por cá, generais,
muitos galões e grandes senhores, mas lá não havia se-
não so,ldados rasos. Ah! se pudesse trocar com êle quatro
palavras!... O nosso general de vinte e dois anos, o nosso
príncipe que estava então confiado às nossas baionetas!
Quinze anos há que o não vejo!... O nosso Humberto!...
E então esta música faz-me ferver o sangue, palavra de
honra!
Uma explosão de gritos interrompeu-o, milhares de
chapéus se levantaram ao ar. Quatro senhores vestidos
de preto subiram a primeira carruagem.
— É êle, gritou Coretti, e ficou como que encantado.
Depois balbuciou lentamente:
— Minha Nossa Senhora! como êle está grisalho!
Todos três nos descobrimos; a carruagem caminhava
vagarosamente pelo meio da multidão que gritava, e todos
agitavam os chapéus. Olhei para Coretti, pai.
Parecia-me outro, parecia-me que crescera; estava
sério, um pouco pálido, direito, encostado à pilastra. A
carruagem chegara diante de nós, a um passo de dis-
tância.
— Viva!... gritaram muitas vozes.
— Viva!... gritou Coretti, depois dos outros.
O rei encarou-o de frente e fixou um momento a
vista sobre as três medalhas. Coretti, então perdeu a ca-
beça e bradou:
— Quarto batalhão do 49 !
O rei, que se tinha voltado para o outro ^lado, tor-
nou a olhar em direcção a nós, fixando muito Coretti ;
estendeu a mão para fora da carruagem, Coretti deu um
salto para a frente e apertou-lha. A carruagem passou,
a multidão fechou-se, separando-nos, e perdemos um mo-
mento de vista Coretti, encontrando-o logo ofegante,
com os olhos húmidos chamando em volta pelo filho, e
frazendo a mão muito erguida.
O filho foi ao encontro do pai e êle exclamou:
170 CORAÇÃO
— lAqui, meu filho, que ainda tenho esta mão
quente.
E passou-lhe a mão pelo rosto dizendo:
— 'Aí está uma caricia do rei.
E ali ficou como espantado, com os olhos fitos na
carruagem que se ia afastando, com o cachimbo entre as
mãos, no centro de um grupo de curiosos que o exa-
minavam.
— Foi um do quadrado do 49, diziam.
— É um soldado quç conhece o rei. Foi este quem ■lhe
estendeu a mão.
— Apresentou uma petição ao rei — disse um mais
alto.
— Não! respondeu Coretti. Não apresentei petição
alguma. Alguma cousa lhe daria eu, se êle me pedisse.
Todos olham para o velho soldado.
E Coretti disse simplesmente:
— O meu sangue.
O asilo infantil
Terça-feira, 4
Minha mãi, como me havia promeitido, levou-me on-
tem depois do almoço ao asilo infantil do curso Valdocco,
para me recomendar à directora a irmãzinha de Pre-
cossi. Nunca tinha visto um asilo e gostei muito.
Eram duzentas crianças, meninos e meninas, tão pe-
queninas, que os nossos da primeira inferior pareciam
homens ao pé delas. Chegámos justamente quando en-
travam enfileiradas para o refeitório, onde havia duas
mesas muito compridas, cheias de buracos redondos, e
em cada buraco uma ti j ela escura cheia de arroz e de fei-
jão, com uma colher de estanho ao lado.
Entrando, umas caíam, e estendiam-se ao comprido e
ali ficavam estiradas até que algumas das mestras as
fossem erguer. Muitas paravam diante de uma itijela, jul-
gando ser ali o seu lugar, e engolindo precipitadamente
uma colherada. Quando chegava alguma mestra e dizia
CORAÇÃO 171
— Adiante — as criancinhas davam três ou quatro pas-
sos, e zás, outra colherada. Isto repetia-se até que che-
gavam ao seu lugar, depois de terem comido às furtade-
las uma meia tijela.
Finalmente, à força de empurrões, e gritos : —
Aviem-se! Despachem-se! — puseram-se todas em ordem
e principiaram a rezar. Todas as duas filas de dentro,
que para rezar tinham de dar as cositas à tijela, voltavam
a cabeça para trás, e tinham-a sempre de olho, com re-
ceio de que a tirassem; e assim rezavam com as mãos
juntas, os olhos no céu mas o coração na papa.
Finalmente, principiaram a comer. Que curioso es-
pectáculo ! uma comia com duas colheres outra tomava
a comida com ambas as mãos; umas apanhavam os fei-
jões um a um, e encafuavam-nos no bolso; outras aperta-
vam-os na toalha e batiam-lhes em cima, reduzindo-os a
massa. Algumas ficavam sem comer, vendo voar as mos-
cas, e outras agastavam-se, tossiam e espalhavam em volta
uma chuva de arroz. Parecia um galinheiro. Mas era en-
graçado. Faziam um belo efeito as duas filas de meni-
nas, todas com os cabelinhos atados no alto da cabeça
com lenços vermelhos, verdes e azues. Uma mestra pre-
guntou a um grupo de oito meninas:
— Onde nasce o arroz?
Todas oito escancararam a boca cheia de sopa, e res-
ponderam ao mesmo tempo, cantando:
— Nasce na água.
Em seguida a mestra ordenou que todas levantas-
sem as mãos. Então é que foi bonito ver erguerem-se
todos aqueles bracinhos que poucos meses antes esta-
vam ainda envoltos nas faixas infantis; agitaram-se aque-
las mãos pequeninas que pareciam outras tantas borbo-
letas brancas e róseas. Depois saíram para o recreio, ten-
do antes tomado cada uma o seu cestinho que estava
pendurado na parede e dentro do qual levava cada uma
a sua merenda. Sairam para o jardim, e espalharam-se,
tirando para fora dos cestos as provisões, pão, ameixas
cozidas, um pedacinho de queijo, rnn ôvo cozido, maçãs
pequenas, grãos de ervilha e uma asa de frango. Todo
o jardim, se cobriu num momento de migalhas, como se
172 CORAÇÃO
aí se tivesse espalhado milho para um bando de passari-
nhos.
Comiam de todas as maneiras, as mais extravagan-
tes, parecendo coelhos, ou ratos e gatos, roendo, lam-
bendo e chupando. Havia uma pequena que trazia ao
peito um sino, espécie de biscoito longo e duro, e esfre-
gava-o com uma nêspera, como se estivesse polindo uma
espada; algumas machucavam nas mãos queijinhos fres-
cos, que lhes escorriam por entre os dedos que nem
leite, passando-lhes para dentro das mangas, com os
guardanapos e maçãs presas nos dentes, como cãezinhos.
Vi três que remexiam uma palha dentro dum ôvo cozi-
do, julgando encontrar ali algum tesouro; espalhavam
metade pelo chão, apanhando depois os bocadinhos, com
grande paciência como se fossem pérolas. Se alguma
possuia qualquer coisa de extraordinário, era logo cer-
cada por oito ou dez com as cabeças inclinadas a olha-
rem para dentro do cestinho, como teriam olhado para
a lua no fundo de um poço. Estavam talvez vinte em
roda de um menino, todo cheio de si por ter na mão
ima cartuchinho de açúcar; e todos a fazer-lhe negaças
por ver se conseguiam meter dentro o pão, e êle a uns
deixava, mas a outros apenas consentia que metessem
o dedo para o chupar depois.
Entretanto minha mãi, que tinha também vindo ao
jardim, acariciava ora uma, ora outra. Muitas crianci-
nhas andavam em volta dela a pedir-lhe beijos, com a
carinha levantada para cima como se olhassem para um
terceiro andar, abrindo e fechando a boca como para
pedir maminha. Uma oferecia-lhe um gomo de laranja
meio chupado, outra uma codeazinha de pão; uma me-
nina deu-lhe uma folha, outra mostrou-lhe com grande
seriedade a ponta de um dedo, onde, olhando com aten-
ção, se via uma bo,lhazinha microscópica que fizera no
dia anterior, chegando o dedo à chama de um lampeão.
Punham-lhe debaixo dos olhos, como grandes maravi-
lhas, insectos pequeníssimos, que nem sei como conse-
guiam vê-los e apanhá-los, rolhinhas de cortiça, botõezi-
nhos de camisa e florzinhas arrancadas dos canteiros.
Um pequerrucho com a cabeça amarrada de ataduras que-
CORAÇÃO 173
ria ser ouvido, por força, e tagarelava não sei que his-
tória de uma cambalhota, de que se não entendia uma
palavra. Outro quis que minha mãi se curvasse e disse-
-Ihe ao ouvido : — Meu pai faz escovas. — Em meio de
tudo isso aconteciam aqui e ali mil desastrezinhos que
faziam andar as mestras numa roda viva; crianças que
choravam porque não podiam desatar o nó dum lenço;
outras que disputavam a berros e unhadas duas pevides
de maçãs; um pequenino que tinha caído de bruços so-
bre um.a cadeirinha tombada, e chorava sem poder le-
vantar-se.
Antes de sairmos, minha mãi agarrou pelos braços
três ou quatro, então correram de todos os lados para
se deixarem agarrar, com as carinhas sujas de gemas
de ovos e de sumo de laranjas. Uma pegava-lhe das
mãos, outra puxava-lhe pelo dedo para ver o anel ; qual
a puxar-lhe pela cadeia do relógio, qual a querer apa-
nhar-lhe as tranças. — Cuidado ! — diziam as mestras —
que lhe estragam o vestido! — Minha mãi, sem se im-
portar com o vestido, continuou a beijá-las e elas cada
vez mais se agrupavam em torno dela; as mais próximas
estendendo os bracinhos como quem queria subir; as
de mais longe empurrando as outras para abrir caminho,
e todas gritavam: adeus! adeus! adeus!
Enfim, minha mãi sempre pôde sair do jardim. Cor-
reram então todas a meíer as cabecitas entre as grades
da cancela para a verem passar e puseram os braços de
fora para saudar, oferecendo ainda bocados de pão, pe-
dacinhos de nêsperas e cascas de queijo, todas na mesma
gritaria.
— Adeus ! adeus ! adeus ! volta amanhã, vem outra
vez, sim?
Minha mãi, ao passar, correu a mão por aquelas cem
mãozinhas abertas, como sobre uma grinalda de rosas
vivas, e chegou desembaraçada à rua; mas toda coberta
de migalhas e de nódoas, amarrotada, desgrenhada, com
uma das mãos cheia da flores e os olhos cheioa de lá-
grimas, contente, como se saísse de uma festa,
174 CORAÇÃO
E lá dentro ouvia-se ainda um murmúrio de vozes,
como um longo pipilo de pássaros que diziam:
— Adeus! Adeus! Vem outra vez!
Na gimnásíica
Quarta-feira, 5
Continuando o tempo belíssimo, fizeram-nos passar
da gimnástica de salão para a dos aparelhos no jardim.
Garrone estava ontem no gabinete do director, quan-
do chegou a mãi de Nelli, aquela senhora loura vestida
de preto, pedindo que o filho fosse dispensado dos novos
exercícios. Cada palavra lhe custava um esforço, e fala-
va pousando a mão sobre a cabeça do pequeno. — Êle
não pode — dizia ela ao director. Mas Nelli mostrou-se
muito maguado por ser excluído dos exercícios, e ainda
mais por aquela humilhação...
— Mamã, verás que eu faço como os outros! dizia.
A mãi olhava-o em silêncio, com um ar de piedade
e de afecto. Depois observou com excitação:
— Receio que os teus companheiros...
E,la queria dizer : '— Temo que riam dele.
Não fazem nada; está lá Garrone. Basta que êle se
não ria.
Deixaram enfim que êle viesse. O mestre, o da cica-
triz no pescoço, o que andou com Garibaldi, conduziu-nos
logo aos mastros, que são muito altos; era necessário tre-
par até cima, e ficar em pé sobre a prancha transversal.
Derossi e Coretti andaram lá por cima como dois maca-
cos; Precossi também subiu com agilidade, apesar de
embaraçado com aquele jaquetão que lhe bate pelos joe-
lhos; e para ver se o faziam rir enquanto subia, todos
lhe repetiam o seu estribilho: — Desculpa-me, descul-
pa-me! — Stardi bufava e ficava vermelho como um períí;
apertava os dentes que nem um cão danado ; mas ainda
com o perigo de arrebentar, havia de chegar até cima e
chegou realmente ; Nobis, quando se viu lá no a,lto, tomou
Virria postura de imperador. Mas Voltini escorregou duas
CORAÇÃO 175
vezes apesar do seu vestido novo, de listrinhas azuis, fei-
to de propósito para gimnástica. Para subir mais facil-
mente, todos untaram as mãos com uma espécie de breu,
colofónia, como lhe chamam; e sabe-se que é o negociante
do Garoffi que a fornece em pó a todos, vendendo-a a
vintém o cartucho, ganhando uma comissão. Depois to-
cou a vez de Garrone, que subiu mastigando pão, como
se nada fosse, e creio que seria capaz de levar sobre os
ombros qualquer de nós, tão corpulento e tão forte que
é aquele tourozinho ! Depois de Garrone foi Nelli. Ape-
nas o viram agarrar-se à barra com aqueles braços com-
pridos e débeis, muitos começaram a rir e a zombar; mas
Garrone, encruzando os grossos braços sobre o peito, lan-
çou em torno um olhar de tal modo expressivo, que dava
mesmo a entender claramente que largaria, à primeira,
quatro sopapos, mesmo em presença do mestre; e todos
cessaram de rir no mesmo instante. Nel.li começou a tre-
par; forcejava, coitado, fazia-se-lhe a cara arroxeada, res-
pirava a custo caía-lhe o suor pela testa.
O mestre disse-lhe — desce — mas êle nada! e esfor-
çava-se; obstinava-se, estava eu a vê-lo de um momento a
outro resvalar por ali abaixo, meio morto. Pobre Nelli !
estava a lembrar quanto sofreria minha mãi se me visse
assim na posição dele, e pensando no bem que queria a
Nelli, dando não sei o que, para vê-lo acabar, e para o
ajudar de baixo, sem ser visto. Derossi e Coretti diziam,
no entanto:
— Acima, acima, Neli! força... mais um bocadinho,
ânimo!...
E Nelli fez ainda um esforço violento, dando um ge-
mido, e achou-se a dois palmos da prancha.
— Bravo! — gritaram-lhe os outiros. Coragem! mais
um impulso!...
E eis Nelli agarrando-se à prancha. Todos batiam
palmas. — Bravo! — 'disse o mestre — mas agora basta;
desce-
Nelli, porém, quiz subir até cima como os outros, e
com um pouco mais de esforço conseguiu pôr os cotovelos
em cim.a da prancha, depois os joellios, por último os pés.
Por fim aprumou-se, ofegante, e sorriu-nos,
176 CORAÇÃO
Tornamos a dar palmas e então êle, voltou-se para o
lado da rua ; vojtei-me também para o mesmo lado, e atra-
vés das plantas que marchetam a grade do jardim, vi a
mãi dele que estava sobre o passeio, sem se atrever a olhar.
Nel,li desceu e todos lhe fizeram muita festa; estava
excitado, cerado, brilhavam-lhe os olhos e não parecia
o mesmo.
Depois, à saída, quando a mãi lhe veio ao encontro,
preguntou-lhe um pouco inquieta, abraçando-o:
— Então, meu pobre filho, que tal? como te
saíste?
Todos os companheiros responderam à uma:
— Muito bem! subiu como nós. É forte! É ágil; fez
tal qual como os outros.
Era de ver-se então a alegria daquela senhora.
Quiz agradecer-nos e não pôde... apertou a mão a três
ou quatro, fez uma carícia a Garrone, e levando consigo
o filho, vimo-los por um pedaço caminhar à pressa, dis-
correndo e gesticulando ambos, e tão contentes como
nunca vi tanta alegria.
O mesíre de meu pai
Terça-feira, ii
Que magnífico passeio dei com meu pai ! Foi assim.
Ante-ontem ao jantar, meu pai lendo o jornal soltou
de repente uma exclamação de surpresa. E disse:
— E eu que o julgava morto há vinte anos! Querem
saber que é vivo ainda o meu primeiro mestre elemen-
tar, Vicente Crosetti, que tem hoje oitenta e quatro anos?
Leio aqui que o ministério acaba de conferir-lhe a me-
dalha ds mérito, por sessenta anos de professorado! ses-
senta anos, compreendes? E apenas há dois anos que
deixou de dar aula. Pobre Crosetti! Mora a uma hora
de caminho de ferro daqui, em Condove, na terra da
nossa antiga jardineira da vila de Chieri.
E ajuntou: -—Henrique! Havemos ambos de ir vê-lo.
E em toda a noite não falou de mais nada, ssnSo dele
O nome de seu mestre elementar trazia-lhe à memória
CORAÇÃO
177
mil coisas de quando era menino, dos seus primeiros
companheiros, de sua mãi já morta.
— Crosseti ! exclamava — tinha êle quarenta anos
quando fui seu discípulo. Parece-me que o estou a ver:
um homenzinho já um pouco curvado com os olhos cla-
ros e a cara sempre rapada. Era severo, mas de boas
maneiras; amava-nos como pai mas não nos perdoava
uma falta. Era um simples camponês, e subiu assim à
força de estudo e de privações. Um homem de bem. Mi-
nha mãi era-lhe muito afeiçoada, e meu pai tratava-o
como a um amigo. Como foi de Turim meter-se em Con-
12
J78 CORAÇÃO
dove?... De certo não me conhecerá; não importa, re-
conhecê-lo-ei. São passados quarenta e quatro anos. Hen-
rique, iremos vê-lo amanhã.
E ontem às nove horas, estávamos já na estação do
caminho de ferro de Susa. Eu bem queria que viess^e
também Garrone, mas não pôde, porque tinha a mai
doente.
Estava um belo dia de primavera. O trem corna
por entre os prados verdejantes e sebes em flor, e res-
pirava-se um ar perfumado. Meu pai, contente, de quan-
do em quando punha-me o braço em volta do pescoço e
falava-me como a um amigo. E olhando para a campma:
— Pobre Crosetti! dizia. Foi êle o primeiro homem
que me acariciou e mais bem me fez, depois de meu pai.
Nunca esqueci os seus bons conselhos, nem algumas das
admoestações tão ásperas que me faziam voltar a casa
com um nó na garganta. Tinha as mãos grossas e curtas.
Estou a vê-lo ainda, quando entrava na escola, po^do »
bengala a um canto, e pendurando o capote no cabide,
sempre da mesma forma. Todos os dias o mesmo hu-
mor; sempre consciencioso, cheio de boa vontade e aten-
to, como se cada dia fosse o primeiro em que dava aula.
Recordo-me, como se o estivesse ouvindo agora, quando
êle se dirigia a mim. — Bottini, eia, Bottini! olha que
é o dedo indicador e o médio sobre a caneta. — Deve
estar muito mudado depois de quarenta e quatro anos!
Apenas chegámos a Condove, fomos procurar a jar-
dineira de Chieri que tem uma loja de vinhos num beco.
Achamo-la com os seus meninos; fez-nos muita festa,
deu-nos notícias do marido, que deve voltar da Grécia,
onde está a trabalhar há três anos, e da filha mais velha
que está no Instituto dos Surdos-Mudos, em Turim. De-
pois ensinou-nos o caminho para ir a casa do mestre,
que é lá conhecido por todos.
Saímo^. da povoação e tomámos por uma ladeira m-
<^reme, flanqueada de moitas em flor. Meu pai ia calado.
Sarecia todo absorto nas suas recordações, e de vez em
quando sorria e sacudia a cabeça. De repente parou, di-
zendo :
Ei-lo ! aposto que é êle.
CORAÇÃO 179
Vinha descendo pelo atalho em direcção a nós um
velho baixo com a barba toda branca, chapéu grande,
apoiando-se a uma bengala. Arrastava os pés, e tremiam-
-Ihe as mãos.
— É êle, repetiu meu pai, apressando o passo.
Quando chegamos ao pé, paramos; o velho parou
também e olhou para meu pai. Tinha o rosto ainda fresco,
e os olhos claros e vivos.
— O senhor é — preguntou meu pai tirando o cha-
péu— o mesitre Vicente Crosetti?
O velho descobriu-se também e respondeu: — Sou eu
— com a voz trémula, mas ainda cheia.
— Bem — disse meu pai pegando-lhe na mão — per-
mita a um seu antigo discípulo o prazer de apertar-lhe a
mão, e preguntar-lhe como está. Vim de Turim para o
ver.
A velho olhou para êle, espantado, dizendo em se-
guida:
— Faz -me muita honra; não sei... meu discípulo, des-
culpe-me... o seu nome por obséquio?
Meu pai disse o nome — Alberto Bottini, o ano em
que frequentara a sua escola e onde, acrescentando:
— O senhor não se recorda de mim, é natural, mas
eu reconheço-o perfeitamente.
O mestre inclinou a cabeça, e olhando para o chão,
pensando, duas ou três vezes murmurou o nome de meu
pai, que entretanto olhava para êle, com o olhar fixo,
jovialmente. De repente, o velho levantou a cabeça, arre-
galou os olhos, e disse vagarosamente:
— Alberto Bottini... O filho do engenheiro Bottini?
aquele que morava na praça Delia Consolaita?
— Esse mesmo — respondeu meu pai, estendendo-lhe
as m.ãos.
— Então... — disse o velho — permita-me, caro se-
nhor, permita-me... e avançando um passo, abraçou meu
pai ; a sua cabeça branca apenas lhe chegava ao ombro.
Meu pai apoiou a face sobre a fronte dele.
— Tenha a bondade de vir comigo, disse o mestre.
E sem falar, voltou-se e tomou o caminho que ia
para casa.
180 CORAÇÃO
Em poucos minutos chegámos a um terreiro, diante
de uma pequena casa com duas portas e um pedaço de
muro caiado de branco.
O mestre abriu a porta e fez-nos entrar numa sala.
Eram quatro paredes brancas. Num canto, um leito de
cavaletes com uma coberta de quadradinhos brancos e
azues; no outro, uma mesa com uma pequena estante,
quaitro cadeiras e uma velha carta geográfica suspensa
na parede. Sentia-se um cheiro agradável de maçãs.
Sentamo-nos todos três. Meu pai e o mestre olha-
ram-se por alguns momentos em silêncio.
— Bottini ! exclamou depois o mestre, fixando os
olhos no chão de tijolos, que com o sol fazia o efeito
de um itaboleiro de xadrez. — «Agora me vou recordando
bem; a sua excelente mãi era tão boa senhora! No pri-
meiro ano, esteve o senhor no primeiro banco à esquer-
da, próximo da janela. Veja lá se me recordo. Estou a
ver ainda os seus cabelos em anéis». Depois esteve um
pouco a pensar. — Era um rapaz muito vivo. No segundo
ano adoeceu de crup, recordo-me até de quando voltou
à escola, muito magro, e embrulhado num chalé. Já lá
vão quarenta anos, não é verdade? E que bondade tama-
nha em recordar-se e vir ver o seu pobre mestre! Já
aqui têm vindo outros, meus antigos discípulos visitar-
-me; um coronel, alguns sacerdotes e vários senhores».
Preguntou a meu pai qual era a sua profissão. E de-
pois disse:
— Muito me alegro! de todo o coração! Agradeço-
-Ihe muito. Há já bastante tempo que não via nenhum
antigo discípulo, e receio bem que o senhor seja o últi-
mo, meu bom amigo.
— Para que diz isso? exclamou meu pai — o senhor
está bom e ainda robusto. Não deve falar assim.
— Oh! não respondeu o mestre — veja esta tremura
— e mostrou as mãos. — Isto é mau sinal. Apareceu-me
esta moléstia há trinta anos quando ainda dava aula. A
pincipio não fiz caso, julguei que era incómodo passa-
geiro; mas, ao contrário, ficou e foi aumentando, até
que um dia chegou que não pude mais escrever. Ah! aquele
dia, a primeira vez que fiz um borrão no caderno de
CORAÇÃO 181
um discípulo, foi um golpe para o meu coração, caro
senhor; trabalhei ainda por algum tempo, mas afinal
não pude mais. Depois de sessenta anos de ensino, devia
dizer adeus à escola, aos rapazes, ao trabalho! custou-
-me muito; a última vez que dei lição, acompanharam-me
todos a casa; fizeram-me uma festa, mas eu estava muito
triste, compreendia que a minha vida estava acabada. Já
um ano antes tinha perdido minha mulher e meu único
filho; ficaram-me apenas dois sobrinhos camponeses.
Agora vivo de algumas centenas de liras de pensão; não
faço mais nada. Os dias parece-me que nunca se acabam.
A minha ocupação é folhear os meus livros velhos de
escola, algumas colecções de jornais, escolares e um ou
outro livrinho de que me têm feito presente. Estão a^i,
disse apontando para uma pequena livraria, estão ali as
minhas recordações e todo o meu passado. Nada mais
me resta do mundo.
Depois, num tom alegre:
— Quero fazer-lhe uma surpresa, meu caro senhor
Bottini.
Levantou-se, aproximou-se da mesa, abriu uma ga-
veta onde estavam muitos pacotinhos, todos amarrados
com um cordão, e sobre cada um dêjes via-se escrita uma
data com quatro algarismos. Depois de ter procurado um
pouco, abriu um, folheou muitos papéis, tirou uma fô^ha
amarela, e apresentou-a a meu pai. Era trabalho da esco-
la feito havia quarenta anos! Em cima estava escrito: 3
de Abril de 1838, Alberto Bottini. Meu pai conheceu logo
a sua letra grande, de então, e pôs-se a ler sorrindo; mas
de repente, humedeceram-se-lhe os olhos. Levantei-me e
fui preguntar o que tinha.
Passou-me um braço em volta da cinta e, apertando-
-me ao peito, disse:
— Olha esta folha- Vês? Estas são as correcções da
minha pobre mãi. Ela engrossava-me sempre os // e os tt.
As últimas .linhas são todas de sua mão. Aprendera a
imitar a minha letra, e quando eu estava cansado e tinha
sono, era ela quem terminava o trabalho por mim! a mi-
nha santa mãi !
E beijou a página.
182 CORAÇÃO
— Estão aqui, disse o mestre, mostrando os outros
pacotes — as minhas memórias. Todos os anos punha de
parte um trabalho de cada iim dos meus discípulos, e es-
tão todos aqui em ordem e numerados. Às vezes £olheio-os
6 leio uma linha aqui, outra ali, e vêm-me ao espírito mil
coisas; parece-me reviver os anos passados. E quantos
não são já passados, meu caro senhor! Fecho os olhos e
vejo rostos após rostos, classes após classes, centenares
e centenares de crianças, e quantas destas não terão já
morrido! De muitas me recordo bem. Recordo-me prin-
cipalmente dos melhores e dos piores, daqueles que me
deram satisfação e dos que me fizeram passar momentos
de tristeza. Porque eu tive também ingratos como deve
saber, e em não pequeno número, mas agora, bem vê, é
como se estivesse já no outro mundo, quero bem a todos,
igualmente.
Tornou a sentar-se e tomou uma das minhas mãos
entre as suas.
E de mim? — preguntou meu pai, sorrindo. — Não
se lembra das minhas travessuras?
— Do senhor ! respondeu o velho com um sorriso —
neste momento não. Mas isto não quere dizer, de modo
nenhum, que as não tivesse feito. Porém o senhor tinha
muito juízo para a sua idade, era um rapaz sério. Recor-
do-me da grande afeição que Jhe tinha a senhora sua mãi.
Mas teve muita bondade e muita gentileza em vir pro-
curar-me. Como pôde deixar as suas ocupações para vir
visitar o pobre velho mestre?
— Ouça, sr. Crosetti ! — respondeu meu pai vivamen-
te. — Recordo-me da primeira vez que minha bôa mãi me
acompanhou à escola. Era a primeira vez que ela devia
separar-se de mim por duas horas, e deixar-me fora de
casa, em outras mãos que não fossem as de meu pai, nas
mãos de uma pessoa deconhecida, em suma. Para aquela
bôa criatura, a minha entrada na escola era como a entra-
da no mundo, a primeira de uma longa série de separa-
ções necessárias e dolorosas; era a sociedade que lhe ar-
rebatava pela primeira vez o filho, para não mais lho res-
tituir inteiro e completamente, Estava comovida e eu
também. Recomendou-me ao senhor com a voz trémula, e
CORAÇÃO 183
depois, saindo, ainda me saudou já fora da porta, com os
olhos rasos de lágrimas. Lembro-me que nesse momento,
o senhor lhe fez um aceno com a mão, pondo a outra no
peito, como para dizer-lhe: «Confie em mim». Pois bem,
meu mestre, aquele gesto, acompanhado de um olhar, pe-
lo qual percebi que compreendera todos os afectos e to-
dos os pensamentos de minha mãi, aquele olhar que
queria dizer — Coragem! aquele gesto que era uma ho-
ncòta promessa de protecção, de afecto e de indulgência,
não o esqueci mais, gravou-se-me no coração para sempre ;
e foi essa recordação que me fez partir de Turim. E eis-
-me aqui, depois de quarenta e quatro anos, a dizer-lhe:
— obrigado, querido mestre.
O mestre não respondeu. Acariciava-me os cabelos
com a mão, e a mão trémula caía-me dos cabelos sobre a
testa, e da testa sobre os ombros.
No entanto, meu pai olhava para as paredes nuas,
para o modesto leito, para um pedaço de pão e uma lata
de azeitonas que estavam sobre a janela, e parecia dizer:
— Pobre mesitre ! Depois de sessenta anos de trabalho, é
este todo o seu prémio?
Mas o bom velho estava contente e principiou de no-
vo a falar com vivacidade da nossa família, dos outros
mestres do seu tempo e dos companheiros de escola de
meu pai, que de uns se recordava, e de outros não; e so-
bre cada um, dava noticias disto e daquilo, quando meu
pai interrompendo a conversa pediu ao mestre que viesse
à povoação para almoçarmos juntos. Êle respondeu com
«xpansão :
— Agradeço, agradeço.
— Mas, parecia indeciso. Meu pai pegou-lhe das mãos
e instou de novo.
— Mas como me arranjarei eu para comer? — disse
o mestre. — Com estas pobres mãos que me bailam desta
maneira? É uma penitência até para os outros...
— Nós o ajudaremos, mestre, disse meu pai.
Aceitou então, abanando a cabeça e sorrindo.
— Um belo dia este! — exclamou, fechando a porta
por fora; um magnífico dia, caro senhor Botini. Assegu-
ro-lhe o que o hei-de recordar sempre até o fim da vida.
184 CORAÇÃO
Meu pai deu o braço ao mestre, este pegou-me na
mão, e descemos a rampa. Encontramos duas raparigui-
nhas descalças que conduziam umas vacas e um rapaz que
passou correndo com um feixe de palha aos ombros. O
mestre disse-nos que eram duas escolares e um estudante
da segunda, que de manhã levavam o gado a pastar e tra-
balhavam nos campos, descalços, e de tarde calçavam os
sapatos e iam à escola. É quási meio-dia. Não encontra-
mos ninguém.
Em poucos minutos chegamos à hospedaria, sentá-
mo-nos a uma grande mesa, ficando no meio o mestre, e
principiamos logo a almoçar. A hospedaria estava silen-
ciosa como um convento.
O mestre estava muito contente e com a comoção au-
tnentava-lhe muito a tremura. Quási não podia comer.
Mas meu pai partia-lhe a carne e o pão, punha-lhe
o sal no prato. Para beber precisava sustentar o copo com
as mãos ambas, e ainda assim lhe tilintavam os dentes;
mas descorria com certo calor sobre os livros de leitura,
de quando era moço, os horários de então, os elogios que
ihe tinham feito os superiores, os regulamentos dos úl-
timos anos. sempre com aquele rosto sereno, um pouco
mais corado do que antes, com a voz alegre e um sorriso
quási de meço. Meu pai olhava para ele, e olhava com a
mesma expressão com que o surpreendia muitas vezes a
olhar para mim, em casa, quando pensa e sorri consigo
mesmo. O mestre deixou cair vinho no peito; meu pai le-
vantou-se e limpou-o com o guardanapo.
— Oh! por quem é, senhor, não consinto — disse ele
rindo-se e murmurou a,lgumas palavras em latim.
Por último levantou o copo, que lhe dansava na mão,
e articulou muito sério: — À sua saúde, caro senhor enge-
nheiro, à saúde de seus filhos e à memória de sua boa
mãi,
— À sua, meu bom mestre ! — respondeu meu pai
apertando-lhe a mão-
No fundo da sala estavam o dono da hospedaria e
outros, que olhavam e sorriam de um modo que se via es-
tarem contentes com aquela festa que se fazia ao mestre
da sua terra.
CORAÇÃO 185
Às duas da tarde saímos. O mestre quiz acompanhar-
nos até à estação. Meu pai deu-lhe de novo o braço, e êle
tornou a pegar-me pela mão. Eu levava-lhe a bengala. A
gente passava e olhava porque todos o conheciam; alguns
cumprimentavam-no. A certa altura da estrada, ouvimos
de uma janela muitas vozes de meninos que liam juntos,
soletrando. O mestre parou, e pareceu ficar triste.
— Aí está, caro senhor Botini — disse — o que me
faz penar é ouvir a voz das crianças na escola e não estar
eu lá e saber que está outro ! Por espaço de sessenta anos
ouvi aquela música e já tinha o coração habituado a ela.
Agora estou sem família, não tenho mais filhos.
— Não, mestre! — disse-lhe meu pai continuando a
caminhar. O senhor tem ainda muitos filhos espalhados
neste mundo, que se recordam do senhor, como eu me re-
cordei sempre.
— Não, não — respondeu o mestre com tristeza. Já
não tenho escola, já não tenho filhos. E pouco viverei
sem eles- A minha hora está chegando.
— Não diga isso, nem pense em semelhante coisa,
mestre! — acudiu meu pai. Em todo o caso, o senhor fez
tanto bem! empregou a sua vida tão nobremente,
O velho mestre inclinou a cabeça branca sobre o om-
bro de meu pai e apertou-lhe a mão. Tínhamos entrado na
estação e ia partir o comboio.
— Adeus! querido mestre! — disse meu pai, beijan-
do-o nas faces.
— Adeus! e muito obrigado! adeus... respondeu o
mestre, tomando com as mãos trémulas uma das mãos de
meu pai, apertando-a sobre o coração.
Depois beijei-o e senti-lhe o rosto húmido.
Meu pai impeliu-me para o carro, e quando ia subir,
tirou rapidamente da mão do mestre o bastão grosseiro,
e trocou-o pela sua magnífica bengala de castão de ouro
com as suas iniciais dizendo-lhe:
— Conserve-a para memória minha. — ^O velho pro-
curou restituír-lha e tornar a receber a sua, mas meu pai
estava já dentro, e tinha fechado a portinhola do carro.
— Adeus, meu bom mestre!
— Adeus, meu filho, — respondeu o velho quando o
186 CORAÇÃO
comboio começava a mover-se. Deus o abençoe pela conso-
lação que veio trazer a este pobre velho.
— Até à vista li — gritou meu pai, com a voz comovi-
da.
Mas o mestre sacudiu a cabeça como quem queria di-
zer: «Não nos veremos mais».
— Sim, sim, — repetiu meu pai — até à vista.
E êle respondeu, levantando a mão trémula ao céu:
— Lá em cima...
E movendo-se o comboio, o velho mestre desapare-
ceu aos nossos olhos, assim, com a mão levantada...
Convalescença
Quinta-feira, 20
Quem me diria, quando voltava tão alegre, com meu
pai, daquele belo passeio, que passariam dez dias sem
ver nem os campos nem o céu!
Estive muito doente, em perigo de vida. Ouvi minha
mãi chorar, vi meu pai muito pálido a olhar-me fixamen-
te; minha irmã Silvia e meu irmão, falando baixo entre
si, e o médico, com os seus óculos, sempre junto de mim,
dizendo coisas que eu não compreendia. Estive, com efei-
to, a ponto de dizer o último adeus a todos. Ah! pobre
de minha mãi ! Passaram-se pelo menos três ou quatro
dias de que quási nada me recordo, como se tivesse tido
um sonho complicado e obscuro. Entretanto, lembro-me
de ter visto à cabeceira da cama a minha mestra da primei-
ra superior, que se esforçava por sufocar a tosse com o
lenço, para não me acordar; e recordo-me também, con-
fusamente, de meu mestre que, inclinando-se para me bei-
jar, roçou-me a cara com a barba; e vi passar como uma
névoa a cabeça ruiva de Crossi, os anéis louros de Derossi,
o calabrês vestido de preto e Garrone, que trouxe um ra-
minho de amêndoas com folhas, e saiu logo, porque sua
mãi estava doente. Depois despertei como se acordasse
de um sono longuíssimo, e percebi que estava melhor ven-
do meu pai e minha mãi que sorriam, e ouvindo Silvia que
CORAÇÃO 187
cantarolava. Oh! que triste sonho tive! Depois principiei
a melhorar todos os dias. Veio ver-me o Pedreirito, que
me fez rir pela primeira vez com o seu focinho de lebre.
E como o faz bem, agora que ficou com a cara mais com-
prida por causa da moléstia que teve! Coitado! Veio tam-
bém Coretti, e veio Garotti, que me trouxe dois bilhetes
de presente, para uma rifa que vai fazer com cinco sur-
presas, que comprou a um bufarinheiro da praça de Ber-
tola. Ontem, também, enquanto dormia, veio Precossi,
encostou a face nas costas da minha mão, sem me desper-
tar, e como vinha da oficina do pai, com o rosto enegreci-
do de carvão, deixou-me um sinal negro no punho da ca-
misa, que vi com grande prazer, quando acordei. Como se
tornaram verdes as árvores nestes poucos dias! E que in-
veja me fazem os meninos que vejo correr para a escola
com os livros, quando meu pai me leva à janela. Mas den-
tro em pouco irei também. Estou impaciente por ver ou-
tra vez todos os meus colegas, a minha carteira, o jardim,
aquelas ruas; saber tudo o que tem acontecido nesse tem-
po ; tornar a entregar-me aos livros, aos cadernos, que já
me parece não ver há mais de um ano. Pobre de minha
mãi que está tão magra e tão pálida! Pobre de meu pai
que está tão abatido ! E os meus bons companheiros que
vieram visitar-me e andavam na ponta dos pés e me bei-
javam a fronte! Faz-me tristeza agora que me lembro que
nm dia nos havemos de separar. Com Derossi e mais al-
guns continuarei a estudar ainda, de certo, mas os outros?
Uma vez terminada a quarta, adeus; não nos veremos
mais. Nunca mais os terei à minha cabeceira, quando es-
tiver doente, Garrone, Precossi, os belos rapazes, os bons
e queridos companheiros, nunca mais!
Os amigos operários
Çuinta-feira, 20
«Nunca mais, e porquê, Henrique? Isso dependerá de tL
Acabada a 4.* classe, irás para o liceu; eles serão operários mas
ficarás na mesma cidade e talvez por muitos anos. E porque en-
188 CORAÇÃO
tão os não verás mais? Quando estiveres na Universidade ou no
Liceu, poderás procurá-los nas suas lojas e nas suas oficinas,
e sentirás grande prazer tornando a ver os teus companheiros
de infância, já homens, a trabalhar. Sempre quizera ver se não
irias procurar Coretti e Precossi, onde quer que estivessem!
Hás-de ir lá e hás-de passar muitas horas em sua companhia,
estudando a vida e o mundo, aprendendo com eles muitas coi-
sas que outros não te saberiam ensinar, a respeito das suas artes,
da sua sociedade e do teu país. E nota que, se não conservares
estas amizades, será difícil que adquiras outras semelhantes no
futuro; amizades, quero dizer, fora da classe a que pertences;
viverás assim numa classe só, e o homem que frequenta uma só
classe social, é como o estudioso que não lê senão um livro.
Prepara-te, portanto, desde já para conservar aqueles bons
amigos para quando estiverdes separados, e começa desde já a
preferi-los, por isso mesmo que são filhos de operários. Os ho-
mens das classes superiores são os oficiais, e são os operários
os soldados do trabalho; mas assim na sociedade como no exér-
cito, o soldado não é menos do que o oficial, porque a no-
breza está no trabalho e não no dinheiro; no valor e não nos ga-
lões; mas se há uma superioridade no mérito, pertence esta ao
soldado e ao operário, porque tiram menor proveito da própria
obra. Ama pois e respeita, entre todos os teus companheiros,
03 filhos dos soldados do trabalho; honra neles as fadigas, os sa-
crifícios de seus pais, despreza as diferenças de fortuna e de
classe, pelas quais só os homens vis regulam os sentimentos
e a cortesia, e pensa que o sangue abençoado que resgatou a
nossa pátria saiu quási todo das veias dos operários das ofici-
nas e dos trabalhadores dos campos. Ama Garrone, attia Precos-
si, ama Coretti, ama o teu pedreirito, pois no peito desses peque-
nos operários palpita corações de príncipes; jura a ti mesmo que
nenhuma mudança de fortuna poderá jamais arrancar estas san-
tas amizades infantis da tua alma. Jura que se daqui a quarenta
anos, passando por uma estação de caminho de ferro, reconhece-
res, metido na blusa de maquinista, o teu velho Garrone, com a
cara empoeirada... ah! não preciso do teu juramento; estou cer-
to que saltarias à máquina e te lançarias nos braços do teu amigo,
ainda que fosses senador.
Teu pai.
CORAÇÃO 189
À mãide Garrone
Sábado, 2g
Triste notícia logo que voltei à escola! Há muitos
dias Garrone não aparecia, porque a mãi estava gravemen-
te doente. Sábado à noite morreu.
Ontem de manhã, apenas entramos na escola, disse-
-nos o mestre:
— Ao pobre Garrone feriu a maior desgraça que pode
ferir um homem: morreu-lhe a mãi. Amanhã voltará êle
e peço-vos que respeitem aquela terrível dor que lhe dila-
cera a mão. Quando êle, entrar, saiidai-o com afecto;
nenhum gracejo, nenhum riso, peço-vos.
E esta manhã, um pouco mais tarde do que os outros,
entrou o pobre Garrone. Senti um golpe no coração ao
vê-lo. Tinha o rosto amortecido, os olhos vermelhos, e mal
se sustinha nas pernas; parecia ter estado um mês de ca-
ma. Quási se não reconhecia; vinha todo vestido de
preto, fazia compaixão.
Ninguém respirava, e todos olhavam para êle. Apenas
entrou e viu outra vez aquela escola, onde sua mãi vinha
buscá-lo quási todos os dias, aquela carteira onde tantas
vezes ela se inclinara nos dias dos exames para lhe fazer a
última recomendação, olhou par o lugar onde tantas vezes
tinha pensado nela, impaciente por sair para correr-lhe
ao encontro e caiu num pranto desesperado. O mestre
chamou-o para ao pé de si, apertou-o ao peito e disse-lhe:
— Chora, chora, pobre criança, mas tem ânimo. Tua
mãi já não existe nesite mundo; mas vê-te, ama-te ainda,
vive ao teu lado, e has-de tornar a vê-Ja, porque és uma
alma boa e honesta. Tem coragem!
Dito isto, acompanhou-o até à carteira junto à mi-
nha.
190 CORAÇÃO
Eu não ousava olhar para ele. Tirou os cadernos e
os livros que não tinha folheado havia muitos dias e
abrindo um livro de leitura, que tem uma vinheta repre-
sentando o retrato de uma mãi com o filho pela mão,
prorrompeu a chorar de novo num pranto copioso, dei-
xando pender a cabeça sobre o braço. O mestre fez-nos
sinal para que o deixássemos estar assim, e princi-
piou a lição. Eu desejava falar-lhe, mas nem sabia o que
lhe havia de dizer. Pus-lhe uma das mãos no braço e
disse-lhe ao ouvido:
— Não chores, Garrone !
E êle não respondeu e, sem levantar a cabeça da
carteira, pôs a sua mão na minha e deixou-a ficar algum
tempo. À saída ninguém lhe falou; todos o rodeavam
com respeito e silêncio.
Eu vi minha mãi, que me esperava, e corri a abra-
çá-la; porém ela, com os olhos fitos em Garrone repeliu-
-me! À primeira vista não percebi porquê, mas depois
notei que Garrone sozinho, um pouco afastado, olhava
para mim com um olhar de inexprimível tristeza, que
queria dizer: «Abraças tua mãi, e eu não abraçarei mais
a minha... Tu tens ainda a tua mãi viva, e a minha mor-
reu!
E então compreendi a razão porque minha mãi me
repelira, e saí sem dar-lhe a mão.
José Maziní
Sábado, 2§
Garrone ainda veio esta manhã à escola; trazia os
olhos inchados de chorar e apenas olhou para os pe-
queninos presentes que lhe tínhamos posto sobre a car-
teira para o consolar. O mestre tinha trazido uma pá-
gina de um livro para lhe ler e incutir coragem. Pri-
CORAÇÃO 191
meiro advertiu-nos de que nós iríamos todos amanhã, ao
meio-dia, à Câmara Municipal para ver entregar a me-
dalha de valor cívico a um rapaz que salvara uma crian-
ça do rio Pó; e que na segunda-feira nos ditaria a des-
crição da festa em lugar do conto mensal. Depois, vol-
tando-se para Garrone, que estava de cabeça baixa, disse-
-Ihe:
— Garrone, faz um esforço e escreve também o que
vou ditar.
Todos pegaram na pena. O mestre ditou:
«José Mazini nasceu em Génova em 1805, faleceu
em Pisa em 1872. Grande alma de patriota, grande en-
genho de escritor, inspirador genial, o primeiro após-
tolo da revolução italiana, que por amor da pátria viveu
quarenta anos pobre, proscrito, perseguido, errante, heroi-
camente firme nos seus princípios e nos seus propósitos;
José Mazini adorava sua mãi e herdara dela, quanto na
sua alma fortíssima e nobre, existia de mais alto e mais
puro. A um seu fiel amigo assim escrevia êle para o
consolar na maior das desventuras. São pouco mais ou
menos estas as suas palavras:
«Amigo! não tornarás a ver mais tua mãi neste mundo.
Ê esta a tremnda verdade. Não vou ter contigo, porque a tua
dor é daquelas dores solenes e santas que é necessário sofrer
e vencer por si só. Compreendes o que quero dizer com estas
palavras: Ê necessário vencer a dor! Vencer o que a dor tem
de menos santo e de menos purificador, o que em vez de me-
lhorar a alma, a enfraquece e a baixa. Mas a outra parte da
dor, a parte nobre, aquela que engrandece e eleva a alma,
essa deve ficar contigo e não te deve deixar mais nunca. Nada
neste mundo substitui uma mãi. Ou nas dores, ou nas conso-
lações que a vida te pode dar ainda, nunca a esquecerás. De-
ves, porém, recordá-la, amá-la e sentir a sua morts de um
modo digno dela. Amigo, escuta-me! A morte não existe, a
morte nada é. Não se pode compreendê-la.
A vida é vida, e segue a própria lei, o progresso. Ainda
ontem tinhas tua mãi na terra, hoje tens um anjo em outro
lugar; tudo o que é bom sobrevive, e, engrandecido de poder,
toma à vida terrena. Assim também o amor d© tua mãi. Ela
192 CORAÇÃO
ama-te agora mais do que nunca. E tu és responsável peias
tuas acções em relação a eia, e das tuas obras depende en-
contrá-ia, tornar a vê-la em uma outra existência. Deves, pois,
por amor e reverência a tua mãi tornar-te meiiior e dar-liie
alegria. Deverás dora avante, em cada um dos teus actos in-
quirir de ti mesmo: aprová-io-à minlia mãi? A sua transforma-
ção deu-te no mundo um anjo da guarda, a quem deves re-
ferir todas as tuas ações. Sê, pois, forte e bom; resiste à dor
desesperada e vulgar, mas conserva a tranqiiilidade das gran-
des almas nos grandes sofrimentos. É isso o que ela quare».
— Garrone — acrescenitou o mestre — sê forte e
tranquiliza-te ; é isso o que ela quere — entendes?
Garrone acenou que sim com a cabeça, e no entanto,
caíam-lhe as lágrimas copiosas, grossas, sobre a carteira.
Valor cívico
(CONTO MENSAL)
Ao meio dia estávamos com o mestre diante do pa-
lácio municipal, para ver entregar a medalha de valor
cívico ao rapaz que salvou o companheiro do rio
Pó.
No terraço da fachada flutuava uma grande bandeira
tricolor.
Entramos no átrio do palácio.
Já estava cheio. Viam-se ao fundo uma mesa com
um pano vermelho tendo em cima papeis, e, por trás,
uma fila de poltronas douradas para o síndico e para a
junta; os guardas do município estavam de fardamento
azul e meias brancas. A direita estava enfileirado um
destacamento de soldados da guarda cívica, cobertos de
medalhas, e ao lado dele um pelotão de guardas da al-
fândega. Do outro lado, os bombeiros com fardamento
de gala e muitos soldados de cavalaria, caçadores e arti-
lheiros, que foram aí apenas para ver. Em volta estava
CORAÇÃO
193
tudo cheio de senhores, de paisanos, de oficiais, de mu-
lheres e crianças que se acotovelavam. Nós reiinimo-
-nos a um canto, onde estavam já apinhados alguns alu-
nos de outras secções com os seus mestres, e próximo
_ .j;;,,^ de nós, acha-
L^Í-;^.:ívTí._ -. ,,,^,
va-se um grupo
de rapazes do
povo, de entre
dez a dezoito
anos, que riam
e falavam ani-
m a d aniente, •
via-se que eram
todos d a mar-
g e m do Pó,
companheiros e
conhecidos da-
quele que ia
ganhar a meda-
lha. Em cima,
de todas as janelas, debruçavam-se empregados do mu-
nicípio, e até a galaria da biblioteca estava repleta de
gente, que se oprimia centra a balaustrada. No lado opos-
to viam-se, como imprensadas, grande número de m.ani-
nas das escolas públicas e muitas filhas dos militares,
com os seus véus azul celeste. Parecia um teatro.
Todos conversavam alegres, olhando a cada momento
para o lado da mesa vermelha, a ver se aparecia alguém.
A banda de música tocava em andamento vagaroso, ao
fundo do pórtico.
Nas paredes batia o sol.
Belíssimo!
De repente, os que estavam no átrio, nas galarias e
nas janelas começaram todos a bater palm.as. Pus-me
nas pontas dos pés para ver.
A multidão que estava por detrás da mesa vermelha
rompeu-se, e apareceram à frente um homem e uma m.u-
Iher. O homem trazia pela mão um menino. Era o que
tinha salvado o companheiro. O homem era o pai um. pe-
dreiro, vestido de festa; a mulher era a mãi, pequena e
13
IH CORAÇÃO
loura, vestida de preto. O rapaz também pequeno e louro,
trajava jaquetão cinzento.
Ao ver tanta gente e ao ouvir tão grande estrépido
de aplausos, ficaram todos três de modo que não ousavam
olhar nem mover-se. Um guarda municipal colocou-se ao
lado da mesa direita. Tudo ficou calado um momento, e
depois ruidosamente elevaram-se os aplausos de todas as
partes. O rapaz olhou para as janelas e depois para as ga-
larias das filhas dos militares; tinha o chapéu entre as
mãos, e parecia não compreender bem onde estava. Achei
que se parecia um pouco com Coretti, no rosto, mas um
pouco mais corado. O pai e a mãi tinham os olhos fitos
na mesa.
No entanto, todos os rapazes do lado do rio Pó, que
estavam ao pé de nós, apresentaram-se à frente, faziam
gestos ao seu companheiro, para que este os visse, chama-
vam-no em voz baixa: «Pin! Pin! Pinot!...»
À força de o chamar, conseguiram fazer-se ouvir- O
rapaz olhou para eles e escondeu o sorriso por detrás do
chapéu.
Em certo momento os guardas perfi^aram-se.
Entrou o síndico, acompanhado de muitos senhores.
O síndico, todo de branco, com uma grande faxa tricolor,
aproximou-se da mesa. Ficou de pé e todos os outros fi-
caram por detrás e dos lados.
A banda cessou de tocar e a um gesto do síndico tu-
do se calou.
Êle principiou então a falar. As primeiras palavras
não as entendi bem, mas compreendi que contava o suce-
dido. Depois levantou a voz, que se espalhou clara e so-
nora por todo o átrio, e não perdi mais uma palavra.
«Quando viu do cais o companheiro que se debatia
nas águas, já tomado pelo terror da morte, despiu-se pre-
cipitadamente e correu sem hesitar um momento. Grita-
ram-no : Af ogas-te — e ê,le não respondeu. Agarraram-no,
e êle soltou-se. Chamaram-no pelo nome e já êle estava na
água! O rio rolava cheio, e era terríve,! o perigo, mesmo
para um homem. Mas arremessou-se contra a morte, com
tAda a força do seu pequeno corpo e do seu grande cora-
çSo; foi até deitar a mão ao desgraçado, que já estava
CORAÇÃO 195
mergulhado, e trouxe-o à tona da água. Lutou furiosa-
mente com a onda que queria tragá-lo, com o companheiro
que tentava agarrar-se-lhe; muitas vezes desapareceu,
para reaparecer de novo por um desesperado esforço, obs-
tinado e invencível no seu santo propósito, não como uma
criança que tentasse salvar outra criança, mas como um
homem, como um pai que lutasse para salvar um filho
que fôssse a sua esperança e a sua vida! Afinal Deus não
permitiu que tão generosa coragem ficasse inútil. E o
nadador arrancou a vítima ao rio gigante; trouxe-a à
terra e prestou-lhe ainda com os outros os primeiros so-
corros; depois do que, voltou para casa, só e tranquilo,
a contar ingenuamente o que havia feito. Senhores! Belo,
venerável, é o heroísmo do hom.em! Mas numa criança, a
quem nada pedimos, porque em nada a avaliamos ; que nos
parece já muito nobre e digna de ser amada, não quando
faça, mas quando compreenda e reconheça os sacrifícios
de outrem; na criança o heroísmo é alguma coisa de divi-
no! Nada mais direi, senhores! Não quero ornar de lou-
vores supérfluos uma tão simples grandeza. Ei-lo aqui
diante de vós, o salvador valoroso e gentil. Soldados! sau-
dai-o como a um irmão; mais! abençoai-o como a um fi-
lho; crianças, recordai-vos do seu nome; fixai na mente as
suas feições, e que elas não se apaguem mais da vossa
memória nem do vosso coração. Em nome do rei da Itá-
lia, eu te dou a medalha de valor cívicoy>.
Um viva altíssimo, levantado ao mesmo tempo por
muitas vozes, ecoou em todo o palácio.
O síndico tomou de sobre a mesa a medalha, e pren-
deu-a ao peito do rapaz. Depois abraçou-o e beijou-o.
A mãi, pôs uma das mãos sobre os olhos; o pai tinha
a cabeça inclinada sobre o peito.
O síndico apertou a mão a ambos, e pegando no de-
creto, da condecoração, atado com uma fita, entregou-o
à mãi.
Depois dirigiu-se ao rapazinho e disse:
«Que a recordação deste dia tão glorioso para ti, tão
feliz para teu pai e para tua mãi, te mantenha por toda
a vida no caminho da virtude e da honra. Adeus-
O síndico saiu, a Í7anda tocou, e tudo par«c^a ac«ba'de,
196 CORAÇÃO
quando o destacamento dos bombeiros se abriu e uma
criança de oito a nove anos, impelida para a frente por
uma mulher que logo se escondeu, foi direita ao condeco-
rado, e estreitou-o entre os braços. Um outro estrondo de
vivas e aplausos retumbou por todo o átrio. Todos com-
preenderam ,logo que era aquele o rapaz, salvo do no Po,
que vinha agradecer ao seu salvador. Depois de o ter bei-
jado, agarrou-se-lhe a um braço para acompanhá-lo à saída.
Eles adiante, o pai e a mãi atrás, caminhavam para a por-
ta da saída, passando a custo entre o povo que fazia alas
à sua passagem — guardas, meninos, mulheres, tudo em
confusão. Todos tentavam chegar-se à frente, e punham-
-se nas pontas dos pés para ver o hercizinho. Os que esta-
vam na frente, na passagem apertaram-ihe a mao. Quando
passou diante dos alunos das escolas do Po fizeram um
crrande barulho, puxando-lhe pejos braços e pela jaqueta,
gritando : — Pin ! viva Pin! Bravo, Pinot! eu vi-o passar
mesmo perto de mim. Estava com. o rosto corado e muito
contente. A medalha de ouro tinha uma fita branca, ver-
melha e verde. A sua mãizinha chorava e sorria, o pai
torcia o bigode com uma das mãos, que lhe tremia como
«e tivesse febre; e de cima das janelas e das galenas de-
brucavam-se todos a aplaudir. De repente quando estava
a cheo-ar debaixo do pórtico, veio de cima, da galena das
fVhss dos militares, uma verdadeira chuva da amores
perfeitos, de raminhos de violetas e de margaridas, que
caíam sobre a cabeça do heroizinho, do pai e da mai, es-
nalhando-se depois pelo chão. Muitos apanhavam-os a
pressa e entregavam-nos à mãi. A banda do fundo do atrio
tocava uma ária belíssima, que parecia o canto de muitas
vozes arí^entinas, que vagarosamente pelas margens de
um rio, se fossem afastando, perdendo-se ao longe.
CORAÇÃO
• MAIO
197
ÀS crianças raquíticas
Sexta-feira, 5
Hoje .não fui à escola porque não estava bom, e mi-
nha mãi levou-me consigo ao Instituto dos meninos raquí-
ticos, onde ia recomendar uma menina, filha do porteiro,
mas não me deixou entrar na escola...
«Não compreendeste, Henriqua, porque não te deixei en-
trar? Para não pôr diante daqueles desgraçados, ali no meio
da escola, quási como em exposição, um menino são e robusto.
Muitas ocasiões
têm eles já de
se achar em
comparações do-
lorosas. Que
triste coisa! So-
bem-me as lá-
grimas do cora-
ção ao entrar lá
dentro. Eram
uns sessenta en-
tre meninos e
meninas. Pobres
ossos tortura-
do s ! pobres
mãos! pobres
pezinhos con-
frangidos e tor-
tos ! Pobres
corpinhos alei-
jados! Observei
logo à entrada muitas criancinhas simpáticas 9 olhos
cheios de afectos. Havia uma pequerrucha com o nariz afi-
lado e o queixo pequeno, que parecia uma velhinha; mas ti-
iha um sorriso de suavidade celeste. Alguns d« frente, são
198 CORAÇÃO
belos e nâo parecem deftituosoa; mas voltam-s» • comprime-
-se-nos o coração. Estava o médico a fazer a visita. Punha-os
em pé em cima dos bancos, e levaníava-lhes os vestidinhos
para tocar-lhes no ventre inchado e nas articulações intume-
cidas; mas não se envergonhavam disso, pobres criaturas! Bem
se via que eram crianças acostumadas a ser despidas, examina-
das e voltadas de todos os lados... E pensar que ainda agora
elas estão no período mais suave da doença, que quási nada so-
frem!... Mas quem pode imaginar os seus sofrimentos ao prin-
cipiar a desformação do corpo, quando com o crescer da enfer-
midade sentirem diminuir o afecto em torno de 8Í, pobres crian-
ças deixadas horas e horas sozinhas no canto de uma sala ou
de um pátio, mal nutridas, às vezes ainda atormentadas, meses
e meses com ligaduras e aparelhos ortopédicos inúteis!
Agora, porém, graças aos cuidados, à boa alimentação e à
gimnástica, muitas melhoram.
A mestra mandou-as fazer gimnástica. Fazia compaixão vê-
-las, obedecendo às vozes, esticar debaixo dos bancos todas
aquelas perninhas enfaixadas e apertadas, cheias de inchações
e aleijões, aquelas perninhas que seriam cobertas de beijos!
Muitas não podiam levantar-se do banco, e ficavam ali coni a
cabeça encostada ao braço, acariciando a muleta com a mão;
outras faziam movimentos com o braço, mas faltava-lhes a
respiração e caíam sobre o banco, pálidas, mas sorrindo para
dissimularem o cansaço. Ah! Henrique, vós outros que ten-
des saúde, não sabeis aprsciá-la, parecendo-vos coisa de pe-
queno valor. Eu pensava nos rapazes fortes e florescentes de
viço, que as mais levam, como em triunfo, soberbas da sua
beleza; e sentia-me capaz de estreitar ao coração todas aque-
las cabecinhas e dizer-lhes: «Se eu fosse só, não sairia mais
daqui, consagrar-vo3-ia a vida, servir-vos-ia de mãi a vós to-
das, até ao meu último dia». E também têm aptidões aqueles
anjinhos, e estudam, disse-me a mestra, uma senhora jovem
e gentil, que tem a fisionomia, cheia de bondade, certa ex-
pressão de tristeza, como um reflexo das desventuras que ela
acaricia e consola. Santa mulher! Entre todas as crianças hu-
manas que ganham a vida com o trabalho, não há nenhuma
que ganhe a vida mais santamente do que tu, minha boa filha.
Tua MSi.
CORAÇÃO
19Q
Sacrifício
Terça-feira, g
Minha n:ãi é boa e minha irmã Silvia é também como
ela, tem o mesmo coração grande e nobre. Eu estava co-
piando ontem à noite uma parte do conto mensal — Dos
Apeninos aos Andes — que o mestre repartiu por uns
poucos para copiar, quando Silvia entrou nos bicos dos
pés e me disse apressadamente:
— Vem comigo, onde está a mamã. Ouvi esta manhS
o papá dizer, quando conversávamos, que lhe correra
200 CORAÇÃO
mal um negócio, e estava aborrecido; a mamã animava-o;
estamos em máa circunstâncias, entendes? Não há dinhei-
ro; o papá disse mais, que lhe era necessário fazer sacri-
fícios para equilibrar-se. Ora, é necessário que nós faça-
mos também sacrifícios iguais, não te parece? Estás
pronto?... Bem; eu vou falar à mamã; tu hás-de dizer-
-lhe que sim, que prometes fazer o que eu disser.
Dito isto, pegou-me da mão e levou-me à mamã, que
estava cosendo rnuito pensativa. Sentei-me de um lado
do sofá, e Silvia disse-ihe sem rodeios:
— Ouve, mamã, nós temos que te falar.
A mamã olhou para nós maravilhada e Sílvia prin-
cipiou:
— O papá está sem dinheiro, não é verdade?
— Que dizes? respondeu nossa mãi, corando. — Não
é exacto; que sabes tu? quem te contou isso?
— Eu sei, disse Sílvia reso,lutamente. Ouça mamã*.
a nós também deve tocar uma parte dos sacrifícios. A
mamã tinha-me prometido um leque para o fim de maio,
e Henrique esperava a sua caixa de tintas. Pois bem, não
queremos coisa alguma; não queremos que se gaste di-
nheiro; ficaremos satisfeitos do mesmo modo, entende?
A mamã tentou falar, mas Sílvia disse:
— Não ; há-de ser assim, temos decidido. E enquanto
o papá não tiver dinheiro não queremos mais frutas nem
mais nada; bastar-nos-á a sopa, e de manhã ao almoço
comeremos pão; assim gastar-se-á menos com a mesa,
com que se dispende muito. E nós prometemos andar
sempre contentes como até aqui. Não é verdade, Hen-
rique?
Respondi que sim. E ela repetiu pondo a mão na
boca da mamã: — Sempre contentes da mesma maneira!
E se há outros sacrifícios a fazer, ou seja no vestir ou
no que fôr, nós os faremos de boa vontade; também se
podem vender os nossos brinquedos. Dou todas as mi-
nhas coisas e sirvo de criada de quarto; não daremos
mais nada a fazer fora de casa, trabalharei com a mamã
todo o dia e farei quanto quiser, porque estou disposta a
tudo.
— A tudo ! — exclamou, lançando os braços ao pes-
CORAÇÃO 201
coço de minha mai — contanto que o papá e a mamã não
tenham mais desgostos, e que continuemos e vê-los am-
bos tranquilos e de bom humor como até aqui, juntos da
sua Sílvia e do seu Henrique, que lhes querem tanto bem
e que dariam a vida por eles.
Ah! nunca vi minha mãi íáo contente como ao ou-
vir aquelas palavras; nunca nos beijou nas faces daquele
modo, entre chorando e rindo, sem poder falar.
Depois assegurou a Sílvia, que esta tinha compreen-
dido mal, que não estávamos reduzidos ao que julgava,
felizmente; e cem vezes nos agradeceu, ficando alegre
toda a noite, até que meu pai entrou, e ela contou-lhe
tudo. Meu pobre pai não disse nada. Mas esta manhã,
sentando-me à mesa... experimentei um grande prazer
e uma grande tristeza ao mesmo tempo. Debaixo do
guardanapo, encontrei a caixinha de tintas e Sílvia achou
o leque.
O incêndio
Quinta-íeira, ii
Esta manhã, tinha eu acabado de copiar a minha
parte da história Dos Apeninos aos Andes, e procurava
um tema para a composição livre que devia fazer, quan-
do ouvi um rumor estranho nas escadas, e logo depois
entraram dois bombeiros, que pediram a meu pai licença
para examinar as estufas e as chaminés, porque, diziam,
via-se sair fumo de cima do telhado, sem saber de onde
vinha. Meu pai disse : — Examinem ! e apesar de não ter-
mos fogo aceso em parte alguma, eles principiaram a en-
trar nos quartos e a aplicar o ouvido às paredes para
averiguar se sentiam o rumorejar do fogo nos tubos que
vão para os outros andares da casa. Enquanto os bom-
beiros andavam pelos quartos, meu pai disse-me:
— Henrique ! aí tens tu um bom tema para a tua com-
posição «Os bombeiros». Experimenta um pouco escre-
ver o que te vou contar.
Vi-os trabalhar há dois anos, quando saía do tea-
tro Balbo, já tarde. Entrando na rua de Roma, vi um cla-
rão desusado, e uma onda de gente que corria. Uma casa
202 CORAÇÃO
estava a arder, línguas de íògo e nuvens de fumo irrom-
piam das janelas e do tecto; homens e mu,lheres apare-
ciam às janelas e desapareciam lançando gritos desespe-
rados. Era grande o tumulto em frente da porta. A mul-
tidão gritava: Morrem queimados: socorro! Os bom-
beiros!
Chegara um carro nessa ocasião e dele saltaram qua-
tro bombeiros municipais, os primeiros que comparece-
ram, e entraram apressadamente na casa. Mal tinham en-
trado, prcsenciou-se uma cena horrível. Uma mulher de-
bruçou-se, gritando de uma janela do terceiro andar; su-
biu ao peitoril, e ficou agarrada, quási suspensa no ar,
com as costas para fora, curvada por baixo do fumo e
das chamas, que, saindo pela janela, quási lhe crestavam
os cabelos. A multidão soltou um grito de horror. Os
bombeiros, detidos por engano no segundo andar pelos
inquijinos aterrados, tinham já destruído uma parede e
entrado precipitadamente numa sala, quando cem vozes
gritaram:— No terceiro andar!
Voaram ao terceiro andar. Aí eram as ruínas do in-
ferno! traves do tecto que desabavam, o corredor cheio
de labaredas e nuvens de fumo que sufocava, para que
pudessem chegar às salas onde estavam os inquilinos fo-
ragidos, o único remédio era passar pelo telhado. Subi-
ram sem hesitação, e um minuto depois apareceu sobre
as telhas como que um fantasma negro, entre a fumaça.
Era o cabo de bombeiros, que primeiro tinha chegado.
Mas para atingir a parte do telhado que correspondia
ao quarto invadido pelo fogo, era necessário passar por
um espaço estreitíssimo, compreendido entre uma tra-
peira e a borda do telhado. Tudo mais ardia. A pequena
passagem, coberta de neve e de gelo, não tinha ponto al-
gum de apoio. — É impossível passar ! — gritava de bai-
xo a multidão. O cabo avançou para a beira do telhado:
todos estremeceram e ficaram a olhar, com a respiração
suspensa. Passou; um imenso viva subiu ao céu. O cabo
continuou a correr, e chegando ao ponto ameaçado come-
çou a quebrar furiosamente, a golpes de machado, te-
lhas, traves, ripas, para abrir um buraco por onde pu-
desse penetrar e descer ao interior. No entanto a mu-
CORAÇÃO 203
Iher continuava suspensa para fora da janeja, o fogo
rastejava-lhe pela cabeça; mais um minuto, precipitar-
-se-ia na rua.
O buraco estava aberto, e viu-se o cabo tirar o bol-
drié e descer.
Os outros bombeiros que já lá estavam, seguiam-no.
No mesmo momento, uma altíssima escada apropriada, tra-
zida então, foi encostada à cornija da casa, em frente das
janelas donde saíam chamas e gritos desesperados de
verdadeiros loucos! Julgava~se que fosse tarde. — Nin-
guém se salva, gritavam. Os bombeiros morrem quei-
mados! Acabou! Estão mortos! — De repente apareceu
à janela do peitoril a figura negra do cabo de bombeiros,
iluminada de cima abaixo pelas chamas. A mulher agar-
rou-se-lhe ao pescoço, e êle, segurando-a pela cintura
com ambos os braços, levantou-se e levou-a para dentro
do quarto. A multidão so,ltou um grito de mil vozes, que
cobriu o ruído crepitante produzido pelo incêndio. Mas
os outros? e para descer? — A escada, apoiada numa
cornija diante de uma janela, ficava um pouco longe da
varanda. Como poderiam agarrar-se a ela? Enquanto
isso se dizia, um dos bombeiros, saindo pela janela, pôs
o pé direito sobre o batente e o esquerdo num degrau da
escada, e assim, direito no ar, sobraçando um a um os
inquilinos que os companheiros lhe apresentavam de
dentro, entregava-os a outro que subira da rua, e ia-os
atando a um cabo, descendo-os cada um por sua vez, aju-
dado por companheiros que estavam em baixo e os re-
cebiam nos braços. Passou primeiro a mulher do peito-
ril, depois uma criança, depois outra mulher e um velho.
Todos estavam salvos. Depois do velho, desceram os
bombeiros que tinham ficado dentro; o último a descer
foi o cabo, que tinha sido o primeiro a chegar. A multi-
dão acolheu-os com uma explosão de aplausos; mas,
quando veio o último, a vanguarda dos salvadores, aque-
le que primeiro tinha afrontado o abismo, que teria
morrido, se algum houvesse de morrer, a multidão saii-
dou-o como a um triunfador, gritando e estendendo os
braços num impulso afectuoso de respeito e de gratidão,
e em poucos momentos o seu nome obscuro, José Robbi-
20i CORAÇÃO
no, foi pronunciado por mii bôcRs. Compreendes? Esta é
que é a coragem de coração, que não raciocina, que não
vacila, que vai direita, cega, como um raio, onde sente
o grito de quem morre. Levar-te-ei um dia aos exercícios
dos bombeiros, e mostrar-te-ei o cabo Robbino, porque
hás-de ficar satisfeito em conhecê-lo? não é verdade?
Respondi que sim-
— Ei-lo, é este — disse meu pai. Voltei-me logo. Os
dois bombeiros, terminando a visita, atravessavam a sa-
la para sair.
Meu pai apontou-me o mais pequeno, o que tinha os
galões, e disse-me;
— Aperta a mão do cabo Robbino.
O cabo parou e estendeu-me a mão, sorrindo. Eu
apertei-lha; ele fez um cumprimento e saiu.
Lembra-íe bem — disse meu pai — porque de milha-
res de mãos que hás-de apertar em tua vida, não haverá
talvez dez que valham as suas.
Dos Apeninos aos Andes
(CONTO MENSAL)
Muitos anos há, um rapaz genovês de treze anos de
idade, filho de um operário, partiu de Génova para a
América, sozinho, em procura de sua mãi.
Saíra ela dois anos antes para a América, a-fim-de
se pôr ao serviço de alguma casa rica e ganhar assim, em
pouco tempo, o bastante para rehabilitar a família, a
qual, em conseqiiência de vários contratempos, caíra em
pobreza e achava-se cheia de dívidas.
Tinha a pobre mãi chorado lágrimas de sangue ao
separar-se dos filhos, um de dezoito anos, outro de on-
ze, mas partira com coragem e cheia de esperanças. Ape-
nas chegada à América, encontrou logo por intermédio
de um negociante genovês, primo de seu marido, estabe-
belecido aí havia muito tempo, uma família americana,
que lhe pagava caro e a tratava bem. Durante algum tem-
po, tinha mantido com os seus uma correspondência re-
gular. Como haviam combinado entre si, o marido diri-
CORAÇÃO
205
gia as cartas ao primo, que as entregava à mulher, e man-
dava também as respostas, que expedia para Génova,
acrescentando-lhes algumas linhas do seu punho. Ga-
nhando oitenta liras por mês, e nada gastando consigo,
mandava para casa todos os trimestres uma boa soma,
com a qual o marido, que era homem honrado, ia pagando
pouco a pouco as dívidas mais urgentes, readquirindo
assim a sua boa reputação- E no entanto trabalhava e an-
dava muito satisfeito da vida, pela esperança de que a
mulher r e-
gressaria em
pouco tempo,
porque a casa
lhe parecia va-
zia sem ela.
Decorrido,
porém, um ano
da partida, de-
pois de uma
pequena carta
em que ela di-
zia achar-se
mal de saúde,
nunca mais re-
ceberam car-
tas suas. Es-
creveram duas
vezes ao pri-
mo, mas o pri-
mo não res-
pondeu. Es-
creveram à fa-
mília americana, em cuja casa ela estava a servir, mas
porque talvez estropiassem o endereço, também não ti-
veram resposta.
Pai e filhos estavam, consternados, e o mais novo
vivia oprimido de uma tristeza que não podia vencer.
Que fazer? A quem recorrer? A primeira ideia do
pai foi partir e ir procurar a mulher na América; mas o
seu trabalho? <juem lhe sustentaria 05 filhos? Nem o
206 CORAÇÃO
mais velho poderia ir, porque esse justamente princi-
piava a ganhar alguma coisa para ajudar a família. E
nesta aflição viviam, repetindo todos os dias as mesmas
considerações, tristes ou olhando uns para os outros em
silêncio, até que uma tarde, Marcos, o mais pequeno, saiu-
-se desembaraçadamente dizendo:
— Pois vou eu à América procurar minha mãi !
O pai inclinou a cabeça tristemente sem responder.
Aos treze anos, fazer sozinho uma viagem à América,
quando é necessário um mês para lá chegar ! Mas o rapaz
insistiu pacientemente. Insistiu naquele dia, no outro
dia, todos os dias, com grande calma, raciocinando com o
bom senso de um homem.
Outros lá têm ido — dizia êle — e ainda mais peque-
nos do que eu. Uma vez a bordo do navio, chegarei lá
como outro qualquer- E assim, pouco a pouco, chegou
quási a convencer o pai, que o estimava e que sabia que
êle tinha juízo e coragem, que estava acostumado a priva-
ções e sacrifícios, e que tão boas qualidades dobrariam
de força no seu coração, para o santo fim de achar sua
mãi, que êle adorava. Acresce ainda que um comandante
de vapor, amigo de um seu conhecido, ouvindo falar no
facto, empenhou-se em obter grátis um bilhete de ter-
ceira classe para a América. Foi então que, depois ainda
de alguma hesitação, o pai consentiu, e a viagem ficou
decidida. Encheram-lhe um saco de roupa, meteram-lhe
no bolso algum dinheiro, deram-Jhe o endereço do pri-
mo, e numa bela tarde do mês de Abril levaram-o a
bordo.
— Marcos, meu filho! — disse o pai, dando-lhe o
último beijo, com as lágrimas nos olhos, na escada do
vapor que ia partir. Tem coragem! Partes para uma san-
ta missão. Deus te ajudará.
Pobre Marcos! Êle tinha o coração forte e prepara-
do também para as mais duras provas naquela viagem;
mas, quando viu desaparecer-lhe no horizonte a sua bela
Génova, e se achou em alto mar, sobre aquele grande
vapor, cheio de camponeses emigrantes, sozinho, sem
conhecer ninguém, com aquele pequeno saco que encer-
rava toda a sua fçrtuna, um desânimo triste « »úbito assai-
CORAÇÃO 207
tou-o. Durante dois dias esteve atirado como um cão, à
proa, quási sem comer, oprimido, preso por uma gran-
de vontade de chorar. Toda a espécie de pensamentos
tristes lhe atravessavam o espírito; atormentava-o a ideia
de que sua mãi talvez tivesse morrido. Nos seus sonhos
interrompidos e penosos, via sempre a cara de um des-
conhecido que olhava para êle com ar de compaixão e
lhe dizia depois ao ouvido : — Tua mãi morreu ! através
do oceano, na solidão, vinha-lhe um grande acabrunha-
mento. Os dias que se sucediam, vazios e monótonos,
confundiam-se-lhe na memória, como se dá com os doen-
tes. Parecia-lhe estar no mar havia um ano. E todas as
manhãs, acordando, experimentava novas tristezas, ven-
do-se, ali, só, no meio daquela imensidade da água, em
viagem para a América-
E a viagem não acabava mais, mar e céu, hoje como
ontem, amanhã como hoje, agora como logo, sempre, eter-
namente. E passava longas horas encostado à amurada, a
olhar para o mar sem fim, absorto, pensando vagamente
em sua mãi, até que os olhos se ,lhe fechavam e a cabeça
lhe caía de sono ; e então tornava a ver aquela cara desco-
nhecida que o olhava com ar de piedade, repetindo-lhe
ao ouvido : — Tua mãi morreu ! E a essa voz acordava
sobressaltado e começava de novo a sonhar, com os olhos
desmesuradamente abertos para o horizonte ignoto.
Durara a viagem longuíssimos dias! Os últimos fo-
ram os melhores. O tempo estava lindo e o ar fresco.
Marcos travara conhecimento com um bom velho lom-
bardo que ia à América procurar um filho, cultivador
de terras, e tinha-lhe contado toda a sua história. O ve-
lho repetia-lhe a cada momento, batendo-lhe com a mão
na nuca!
— Coragem, meu rapaz ! tu encontrarás tua mãi com.
saúde e contente.
Aquela companhia reanimava-o, a ponto de os seus
pensamentos passarem de tristes a alegres.
Assentado à proa, ao pé do velho camponês que fu-
mava cachimbo, debaixo de um belo céu estrelado no
meio de grupos de emigrantes que cantavam, cem vezes
W íhç apresentava no pensamento a sua chegada à Amé-
20S
CORAÇÃO
rica. Via-se numa determinada rua, achava a loja, cor-
ria ao encontro do primo, preguntava-lhe : — Como está
minha mãi? onde está ela?
«Vamos depressa! vamos depressa! e corriam jun-
tos, subiam uma escada, abria-se uma porta...»
E aqui, o seu colóquio em silêncio parava, a sua
imaginação perdia-se num sentimento de inexprimível
ternura, que lhe fazia tirar, às escondidas, uma medalhi-
nha que trazia ao pescoço, c murmurar, beijando-a, as
suas orações.
No fim ce
luitos dias,
depois da par-
tida, chega-
ram. Por uma
j^ bela e róssa
|||,^ aurora de
maio, o vapor
lançava ânco-
ra no porto.
Aquele tempo
e s p 1 ê n dido
pareceu-lhe de
bom agouro-
Estava fora de
si de alegria e
de impaciên-
cia. A poucas
milhas de dis-
tância estava
sua mãi; ia vê-la em poucas horas! E êle achava-se na
América, no novo mundo, e tinha tido a coragem de vir
SC ! A longuíssima viagem parecera-lhe então ter-se es-
coado num minuto. Parecera-lhe que viera voando, so-
nhando, e despertara ali.
Com o saco na mão, embarcou juntamente com ou-
tros muitos italianos num vaporzinho, que os levou até
pouca distância da margem, desembarcou no cais, despe-
diu-se do seu velho amigo lombardo e caminhou a passos
apressados para a cidade.
CORAÇÃO 209
Chegando à embocadura da primeira rua, aproximou-
-se de um homem que passava, e pediu-lhe por favor que
lhe indicasse o rumo a seguir.
Mas não lhe tardou a notícia desesperada de que sua
mãi não estava na cidade, e que se achava no interior
do país.
A criança emudeceu e após a tortura desse desengano
resolveu procurar sua mãizinha onde quer que ela esti-
vesse.
Êle sabia que ia partir para o interior, pelo grande
rio que vinha desembocar no porto, uma barca onde iam
patrícios seus, genoveses robustos, bronzeados, cuja lin-
guagem suave lhe lembrava a pátria amada. E Marcos
resolveu partir com eles.
Partiram; e a viagem durou três dias e quatro noi-
tes, e foi ela um espanto para o pequeno viajante.
Três dias e quatro noites subindo aquele maravilho-
so rio, que, comparado ao nosso grande Pó, não passa es-
te de um regato; e o cumprimento da Itália quadrupli-
cado não atinge ao seu curso. A grande barca seguia len-
tamente contra a corrente de tão desmesurada massa de
água. Passava pelo meio de grandes ilhas, em outro tem-
po cheias de ninhos de serpentes e de tigres, cobertas de
laranjeiras e salgueiros, semelhantes a bosques flutuantes.
A barca ora se enfiava por estreitos canais de que parecia
não poder mais sair, ora desembocava em grandes exten-
sões de água, semelhantes a vastos lagos tranquilos. De-
pois outra vez por entre ilhas e canais enredados de um ar-
quipélago, no meio de maciços enormes de vegetação-
Reinava um silêncio profundo. Por largos espaços, as.
margens e as águas solitárias, vastíssimas, davam a ima-
gem de um rio desconhecido, onde aquela pobre vela fos-
se a primeira do mundo a aventurar-se. Quanto mais se
adiantavam, tanto mais aquele monstruoso rio o desani-
mava. Imaginava sua mãi lá nas origens, e que a nave-
gação duraria anos! Duas vezes no dia comia um pouco
de pão e de carne salgada com os barqueiros, que, ven-
do-o triste, não lhe dirigiram mais palavra. A noite, dor-
mia sobre a coberta, e despertava a cada momento em so-
bressalto, eléctrizado, estatelado pela luz limpidíssima
U
210 C O R A Ç A C
da lua, que branqueava as águas de leite, imensas, e as
praias longinqúas, geladas. Então o coração confrangia-se-
-Ihe. Mas, depois, pensava: «Minha mãi passou por aqui,
viu 6£tas ilhas e praiasy), e não lhe pareciam mais estra-
nhos e solitários aqueles lugares, por onde o olhar de sua
mãi se detivera. À noite um dos barqueiros cantava...
Aque,la voz fazia-ihe lembrar as cantigas de sua mãi,
quando o adormecia em criança. A última noite, ao ouvir
aquele canto espiritualmente, sagrado e triste, começou
a soluçar. O barqueiro parou; depois gritou-lhe:
Ânimo! ânimo! Que diabo! Um genovês a chorar
porque está longe de casa! Os genoveses dão volta ao
mundo gloriosos e triunfantes!
Mas, novas decepções e outras novas dores vieram
desiludi-Jo. Depois de várias peregrinações pelo interior,
tendo cada dia um desengano, e cada noite uma espe-
rança, depois de todos os sofrimentos curtidos em terra
estranha, sem agasalho suficiente, sem pão às vezes, sem
dinheiro e sem roupa, esfarrapado, abatido, mas sempre
revoltado contra a conspiração surda da terra e dos
homens, afinal veio a saber que em longes terras, além
das montanhas, aí devia estar sua mãi querida a quem
buscava.
Esta notícia, que bastaria para desanimar um homem,
deu-lhe nova seiva e nova energia. Agregou-se a um
bando de homens rústicos e boiadeiros, que fasiam a tra-
vessia do sertão, e com eles partiu quási mendigo, pagan-
do esse favor com o serviço de criado, ajuntando lenha
para o rancho, vigiando os pousos, enfim, trabalhando
como podia.
Afinal, nas proximidades do lugar, onde devia estar
sua mãizinha, despediu-se do capataz e dos boiadeiros.
A caravana devia seguir caminho diferente, e o rapaz teve
de deixá-la. O capataz, coi»ovido, deu-lhe as informações
precisas, pôs-lhe o saco ao ombro de modo a não o inco-
modar e sem mais demora, como se tivesse receio de como-
ver-se, disse-lhe adeus,
O rapaz teve apenas tempo de beijar-lhe um braço.
Até os homens rudes e de trato áspero pareciam movidos
de lástima ao verem-no fiear assim, agora sozinho, ç cjis-
ORAÇÃO 311
seram-lhe adeus com a mão, a£astando-se. Êle correspon-
deu a esse adeus, e ficou a olhar para o comboio, até que
o perdeu de vista, envolvido na poeira vermelha da cam-
pina- Depois poz-se a caminho tristemente.
Uma coisa, porém, confortou-o um pouco desde o
começo. Depois de tantos dias de viagem por aquela
interminável planície sempre a mesma, via diante de si
uma cadeia de montanhas altíssimas, azues, que lhe re-
cordaram os Alpes e lhe davam uma ideia da aproxima-
ção da sua pátria. Eram os Andes, a espinha dorsal do
continente americano, essa cadeia im.ensa que se estende
da Terra do Fogo até o mar glacial do polo árctico, por
milhares de léguas. E também o confortava o sentir o
ar cada vez mais quente; o que acontecia pela razão de
que, subindo em direcção ao norte, mais se avezinhava
das regiões tropicais. A grandes distâncias deparavam-se
pequenos grupos de casas e uma taberna, onde comprava
qua,lquer coisa para comer. Encontrava homens a cavalo,
e de vez em quando mulheres e meninos sentados no chão,
imóveis e graves, com caras verdadeiramente estranhas
para êle, côr de barro, com os olhos oblíquos, os olhos
nas faces salientes, que o olhavam atentamente, e acompa-
nhavam-no com a vista, voltando a cabeça lentamente
como autómatos. Eram índios-
No primeiro dia caminhou quanto lhe permitiam as
forças, e dormiu debaixo de uma árvore. No segundo ca-
minhou muito menos e com menos coragem. Tinha os sa-
patos rotos, os pés esfolados e o estômago enfraquecido
pela má alimentação. Ao anoitecer, principiou a ter medo.
Tinha ouvido dizer na Itália que naqueles países havia
muitas serpentes. Parecia-lhe que as sentia rastejar, ba-
bando visgos imundos, e êle parava, depois corria, sentin-
do calafrios nos ossos. As vezes compadecia-se de si pró-
prio, e chorava em sj.lêncio, caminhando. Depois pensa-
va: Oh! quanto não sofreria minha mãi, se soubesse do
tamanho medo que tenho !
Esta ideia restituía-lhe a coragem. Então, para se dis-
trair, pensava em muitas coisas dela; recordava as suas
palavras quando partira de Génova, recordava o cuidado
om que ela costumava conchegar-lhe a roupa em volta
212
CORAÇÃO
do pescoço, quando estava na cama e era ainda criança,
e quando às vezes pegava nele ao colo e lhe dizia: - «Fi-
ca um pouco aqui comigo»; e ficava assim muito tempo,
com a cabeça apoiada na sua, cismando. E dizia consigo.
!! Ver-te-ei um dia, querida mãi? Chegarei ao fim da mi-
nha viagem, minha mãi? E caminhava, cammhava por en-
tre árvores desconhecidas e vastas plantações de cana de
açúcar, e prados sem fim, sempre com aquelas grandes
montanhas azues, agudas, que espinguilhavam o ceu sere-
no como pontas luzidas de touros robustos enfurecidos. -
Ouatr?dias, cinco, uma semana se passou. As forças lam-
?he gradualmente faltando, e dos Pé^ ^escorna-he mais
sans^ue Finalmente uma tarde, ao por do sol, disse-
.ram-The:--<<Fica a cinco milhas daqui». Soltou um grito
deílegria, e apressou o passo, como se tivesse readquirido
num momento todo o vigor perdido. ^^^^^ ^^^
durou a ilusão ;
as forças aban-
donaram-no de
repente ; caiu
sobre as bor-
das de um fos-
so fundo. Mas
o coração ba-
tia-lhe de con-
tentamento.
O céu cober-
to de estrelas
luminosas
nunca lhe parecera tão belo. Contemplava-o deitado sobre
a relva para dormir, e pensava que talvez ao mesmo em-
po, a sua mãi estivesse vendo aquele mesmo ceu. E dizia.
Minha mãi, onde estás, que fazes neste momento? pen-
saras no teu filho? pensarás no teu Marcos, ]a tao pró-
ximo de ti?
Pobre Marcos I se êl» pudesse ver o estado em que
•ntSo S0 achava sua m&i, t«ria feito um ««/Orço .obr*.
humano para caminhar ainda, e chegar perto dela algu-
CORAÇÃO 21S
mas horas antes. Estava doente de cama numa sala ao reac-
-do-chão de uma cazinha fidalga, onde habitava toda a
família Mequinez, que lhe era muito afeiçoada e lhe fazia
grande esmola. A pobre mulher estava já adoentada, quan-
do o engenheiro Mequinez foi obrigado a partir à pressa
da cidade, e não tinha melhorado ainda com os bons ares
do interior. Depois, o não ter recebido resposta às suas
cartas, nem do marido, nem do primo, o pressentimento
sempre vivo de alguma grande desgraça, a ansiedade con-
tínua em que vivia, incerta entre o partir e o ficar, espe-
rando todos os dias uma notícia funesta, tinha-a feito,
peorar, fora do comum. Por último manifestára-se-lhe
uma moléstia gravíssima, uma hérnia intestinal estran-
gulada.
Havia quinze dias que se não levantava da cama. Era
necessária uma operação cirúrgica para salvar-lhe a vida.
Naquele momento, justamente, em que o seu Marcos cha-
m.ava por ela, estavam à sua cabeceira a dona e o dono
da casa, procurando convencê-la com muita ternura de
que se deixasse operar, e ela persistia na recusa, choran-
do. Um distinto médico da cidade já tinha vindo uma se-
mana antes, mas inutilmente.
— Não, meus queridos senhores ' — dizia ela — não
me falem nisso ; não tenho forças para resistir ; morreria
na operação. É melhor que me deixem assim. Não me inte-
resso mais pela vida. Está tudo acabado para mim. E me-
lhor é que eu morra antes de saber o que aconteceu à mi-
nha família.
E os amos a dizerem-lhe que não, que tivesse cora-
gem, que das últimas cartas, mandadas para Génova direc-
tamente, havia de receber a resposta, que se deixasse ope-
rar pelo amor que tinha a seus filhos. Mas aquele pensa-
mento dos filhos não fazia senão agravar mais angustio-
samente o desânimo profundo que a prostrava desde tanto
tempo. Aquelas palavras desatava em pranto.
— Oh! os meus filhos! os meus filhos! exclamava
juntando as mãos, talvez já não existam! É melhor que
eu morra também. Muito obrigado, meus amigos, agrade-
ço-lhes de todo o coração. Mas é melhor que eu morra.
Também não ficaria boa com a operação, estou certa.
214 CORAÇÃO
Muito obrigada por tantos cuidados, meus bons patrões.
É destino meu morrer aqui. Está decidido.
E eles a consolá-la e a repetir-lhe: — Não, não diga
isso. — Pegavam-lhe nas mãos e pediam ; porém ela fe-
chava os olhos e caia numa prostração funda-
E os patrões ficavam ali, por um pouco de tempo, à
luz fraca de uma lamparina, contemplando com grande
piedade aquela mãi admirável, que para salvar a sua fa-
mília vinha morrer a duas mil ,léguas da sua pátria; mor-
rer depois de ter sofrido tanto ! pobre mulher, tão honesta,
tão boa e tão desgraçada!
No dia seguinte, de manhã cedo, com o seu saco aos
ombros, curvado e coxeando, mas cheio de ânimo. Marcos
entrava na cidade onde devia encontrar sua mãizinha que-
rida; vinha com as mesmas ilusões e os mesmos deses-
peros; a cidade tinha a mesma cruel semelhança das ou-
tras; eram as mesmas ruas estreitas e compridas; as mes-
mas casas baixas e brancas; em toda a parte, uma vege-
tação nova e esplêndida, um ar perfumado, uma luz mara-
vilhosa, um céu límpido e profundo, como ele nunca vira
nem mesmo na Itália. Caminhando pelas ruas adiante,
tornou a sentir a agitação febril, o mistério esperado das
notícias imprevistas. Olhava para as janelas de todas as
casas: olhava para todas as mulheres que passavam, com a
inquieta esperança de encontrar sua mãi; quizera inter-
rogar quantos passavam e não se atrevia a interromper
ninguém.
Todos os que chegavam às portas, olhavam com curio-
sidade para o pobre rapaz esfarrapado e poeirento, que
mostrava vir de tão longe. Procurava ê,le entre a gente,
pessoa cuja fisionomia lhe desse confiança e a quem fi-
zesse a tremenda pregunta, quando deu com a vista na ta-
boleta de uma taberna, na qual estava escrito um nome ita-
liano. Dentro estava um homem de óculos e duas mulhe-
res. Marcos aproximou-se vagarosamente da porta, e to-
mando alento preguntou:
— Os senhores saber-me-ão dizer onde mora a famí-
lia Mequinez?
CORAÇÃO 215
— Do engenheiro Mequinez? — preguntcu o taber-
neiro.
1— Sim, do engenheiro Mequinez — respondeu Mar-
cos com voz de contentamento.
— A família Mequinez — disse o taberneiro — não
está na cidade.
Um grito desesperado de dor, como de uma pessoa
apunhalada, fez eco àquelas palavras.
O taberneiro e a mulher levantaram-se e alguns vi-
zinhos correram.
— Que é? que tens tu? — preguntou o taberneiro pu-
xando-o para dentro e fazendo-o sentar Não é coisa
para desesperar; que diabo! Se os Mequinez não estão
aqui, perto estão, a poucas horas daqui.
— Onde? onde? — gritou Marcos, levantando-se co-
mo um ressuscitado.
— A umas quinze milhas da cidade — continuou o
homem — na margem do Saladilo; num Jugar onde se está
construindo um grande engenho de açúcar e um grupo
de casas; é aí a morada do Sr. Mequinez. Todo o mundo
sabe; podes lá chegar em poucas horas.
— Há um mês que lá estive, disse um sujeito que acu-
dira ao grito de Marcos.
Marcos olhou para êle, com os olhos muito abertos,
e preguntou precipitadam.ente, empalidecendo:
— E viu lá a criada do Sr. Mequinez, a genovêsa?
— A genovêsa? Vi, sim.
Marcos rompeu em soluços, convulsivos, estrepito-
sos, rindo e chorando. Depois, com um ímpeto de resolu-
ção violenta:
— Por onde se vai? Depressa, digam-me onde é o ca-
minho... parto já, ensinem-me o caminho.
— Mas é um dia de viagem — disseram todos a uma
só voz. — Tu estás muito fatigado e precisas de repouso.
Partirás amanhã.
— É impossível! impossível! — respondeu Marcos.
•— Diga-me por onde se vai, não esperarei mais um
minuto; parto imediatamente, ainda que tivesse de mor-
rer pelo caminho.
Vendo que não cedia, não se opuseram mais.
CORAÇÃO
— DcuK te acompanhe ! — disseram-lhe. — Tem cui-
dado no caminho da mata... Boa viagem, italianito. Um
homem acompanhou-o até lá fora da cidade. Indicou-lhe
o caminho deu-lhe alguns conselhos e demorou-se a vê-
-lo seguir pela estrada. Em poucos minutos o rapaz di-
minuiu o passo e desapareceu, coxeando com o saco às
costas, por detrás das árvores frondosas que orlavam a
estrada.
Aquela noite foi tremenda para a nobre enferma.
Sofria dores atrozes que lhe arrancavam gritos de re-
bentar as veias e lhe davam momentos de delírio. As
mulheres que lhe assistiam, não sabiam o que fazer.
A senhora vinha vê-la de quando em quando, muito
entristecida. Todos pareciam recear que, embora a doen-
te consentisse em deixar-se operar, o médico que devia
vir na manhã seguinte, chegaria já tarde. Nos momen-
tos em que delirava, compreendia-se que os seus terrí-
veis padecimentos não provinham das dores do corpo,
mas do pensamento na família. Pálida, magra, com o
rosto mudado, metia as mãos pelos cabelos, em deses-
peração que confrangia a alma, e gritava:
— Meu Deus! Meu Deus! morrer tão longe!... mor-
rer sem tornar a vê-los. Infelizes que ficaram sem mãi,
oh! minhas criaturas, oh! meu pobre sangue! E o meu
Marcos, ftão pequenino ainda, tão bom! tão afectuoso!
Nem sabeis como êle era! se a senhora o conhecesse...
Não o podia largar dos braços quando parti; chorava,
chorava que fazia dó! Parecia adivinhar que não veria
mais sua mãi. Pobre Marcos! meu pobre filho! Pen-
sei que me estalava o coração. Se eu morresse naquele
momento! Se eu morresse quando me dizias adeus!...
Se então caísse fulminada, se morta eu caísse!...
«Sem mãi, pobre criança, que amava tanto, e tanta
necessidade tem de mim; sem mãi, na miséria, mendi-
gando talvez, êle, o meu querido Marcos, a estender a
mão com fome! Oh! Deus eterno! Não! Eu não quero
morrer! O médico! Chamem-no depressa. Que venha;
despedace-me, corte-me as entranhas, faça-me enlouque-
cer, mas salve-me a vida. Quero ficar boa. Quero viver,
partir, fugir, amanhã! já! O médico! socorro! socorro!
CORAÇÃO 217
E as mulherci agarravam-lhe as mãos, afagavam-na,
rogavam e a faziam tornar a si pouco a pouco, falando-
-Ihe de Deus e de esperança. Então ela recaia num aba-
timento mortal, chorava, metendo as mãos nos cabelos
grisalhos, gemia como uma criança, em lamentos pro-
longados e murmurando de quando em quando: — Oh!
a minha Génova! A minha casa! Todo aquele mar!...
O meu Marcos, o meu pobre filho ! Onde estará agora
a minha* pobre criatura!
Era meia noite. E o pobre Marcos, depois de ter
passado muitas horas à borda de um barranco, exte-
nuado de forças, caminhava através de mato vastís-
simo, de árvores gigantescas, e monstros de vegetação e
de troncos desmesurados semelhantes a pilastras de ca-
tedrais, que entrançavam, a prodigiosa altura, as cabe-
leiras enormes, brancas, inundadas pelo luar. Vagamente
naquela meia obscuridade, via miríades de tron-
cos de todas as formas: direitos, inclinados, torci-
dos, em atitudes estranhas de ameaça e de luta; alguns
derrubados por terra, como torres caídas dum jacto,
cobertos de uma folhagem vigorosa e confusa, que se-
melhavam uma multidão irada, lutando palmo a palmo;
outros, juntos, em grandes grupos, verticais e cerrados,
como feixes de lanças titânicas, cujas pontas espetas-
sem as nuvens feridas, sangrentas; uma grandeza so-
berba, uma desordem prodigiosa de formas colossais!
espectáculo formidável!
Momentos havia que era invadido de grande terror.
Mas, de repente, fugiu-lhe a alma rápida para a mãi.
Estava exausto, com os pés em sangue, só no meio da-
quela formidável floresta, onde não via senão de tem-
pos a tempos, demoradamente pequenas habitações hu-
manas, que ao pé daquelas árvores semelhavam míse-
ros mamelões terrosos de formigas subterrâneas e la-
boriosas.
Estava abatido, mas não sentia fadiga; estava só e
todavia não tinha medo. A grandeza da floresta dila-
tava, engrandecia-lhe também a alma; a proximidade de
sua mãi dava-lhe a força e ousadia de um homem: a re-
cordação do oceano, dos desânimos, das dores sofridas
2ld CORAÇÃO
e vencidas, das fadigas já suportadas, da sua rija cons-
tância inabalável, fazia-lhe levantar a fronte, e todo o
seu forte e nobre sangue genovês refluía-lhe ao cora-
ção, numa onda vermelha de altivez e audácia. E uma
coisa nova e original se dava nele; depois de dois anos
de ausência, a imagem de sua mãi conservava-se-lhe na
mente, obscura e esmaecida, e naquele momento essa ima-
gem iluminava-se, clara, completa; e tornava a ver-lhe o
rosto inteiro e puro, como nunca o tinha visto até ali,
via-o muito perto, a falar, via os movimentos fugitivos
dos seus olhos e dos lábios, todas as suas posições, to-
dos os gestos, todas as sombras do pensamento dela; e,
impelido por aquelas recordações insistentes, apressava
o passo; e uma comoção nova, uma ternura indisível
crescia-lhe no coração, fazendo-lhe correr pelas faces
lágrimas torrentosas, doces, consoladoras; e seguindo
nas trevas falava com ela, dizendo as palavras que den-
tro em pouco lhe murmuraria ao ouvido:
— Estou aqui, minha mãi, estou aqui ; não a dei-
xarei mais; voltaremos para casa juntos; estarei sem-
pre a teu lado no navio, agarrado a ti, e ninguém mais
te separará de mim, querida mãi, ninguém, nunca mais.
E nem se apercebia que nos cimos das árvores gi-
gantescas se ia esbatendo a luz argentina da lua, diante
da branca e límpida aurora.
Às oito horas daquela manhã, o médico, jovem ame-
ricano, estava já à cabeceira da doente em companhia de
um assistente, tentando pela última vez persuadi-la a
deixar-se operar, e com êle faziam calorosas instâncias
o engenheiro Mequinez e sua esposa.
Tudo, porém, era inútil. A mulher, sentindo-se
axausta de forças, não tinha mais fé na operação; es-
tava certa, dizia, de morrer no acto ou de não sobrevi-
ver mais que algumas horas, depois de ter sofrido do-
res mais atrozes do que as que a deviam matar natural-
mente. O médico insistia em repetir:
— A operação é segura e a sua cura é certa; basta
só um pouco de coragem! E é igualmente certa a sua
morte se se recusar a ela.
CORAÇÃO 219
Eram palavras soltas ao vento.
— Não, respondeu ela com voz fraca — tenho ainda
coragem para morrer; mas £alta-me para sofrer inutil-
mente. Obrigada, senhor doutor. Está destinado que seja
assim. Deixe-me morrer tranqiiila.
Ninguém falou mais. Então a doente voltou o rosto
para a sua ama e fez-lhe com a sua voz moribunda os
seus últimos pedidos.
— Querida e boa senhora, disse a muito custo em
soluços, peço o favor de mandar aquele pouco dinheiro
à minha família, por intermédio do senhor cônsul. Es-
pero que ainda estejam todos vivos. O meu coração mo
prediz bem nes-tes últimos momentos. Faça-me o favor
de escrever-lhes dizendo-lhes que tenho sempre pensa-
do neles, que tenho sempre trabalhado para eles... para
os meus filhos... mas que morri com coragem... resi-
gnada... abençoando-os... e que recomendo a meu marido
e a meu filho mais velho... o mais pequeno, o meu po-
bre Marcos, a quem tive sempre no coração até ao último
momento.
E, exaltando-se de repente, gritou, erguendo as
mãos:
— O meu Marcos! o meu filho a minha vida! E
volvendo os olhos cheios de lágrimas, viu que sua ama
não estava ali, porque a tinham chamado furtivamente.
Procurou com o olhar o amo ; tinha também desapare-
cido! Via apenas duas enfermeiras e o assistente.
Na sala vizinha sentia-se um rumor de passos apres-
sados, um murmúrio de vozes rápidas e contidas, de ex-
clamações sufocadas. A doente fixou os seus olhos ve-
lados, esperando. Depois de alguns minutos viu voltar
o médico também com as feições alteradas. Todos três
olhavam para ela com expressão singular, e trocavam
entre si algumas palavras em voz baixa. Parece-lhe que
o médico dissera à senhora: — «É melhor já». A doente
não compreendia.
— Josefa — disse a ama com voz trémula — tenho
uma boa notícia a dar-lhe. Vá preparando o coração para
a receber.
A mulher fixou-a atentamente.
220 CORAÇÃO
— Uma notícia — continuou a lenhora, sempre agi-
tada— que lhe vai dar muita alegria.
A enferma abriu os olhos.
— Prepare-se, prosseguiu a senhora, para ver uma
pessoa a quem quere muito bem.
A mulher levantou a cabeça com um impulso vigo-
roso e principiou a ojhar rapidamente, ora para a senhora,
ora para a porta, com os olhos fulgurantes.
— Uma pessoa, acrescentou a senhora, que chegou
agora inesperadamente.
— Quem? gritou a mulher com voz rouca e estra-
nha, como de pessoa assustada.
Um instante depois soltou um grito agudíssimo;
sentando-se repentinamente na cama, ficou imóvel, com
os olhos arregalados e com as mãos nas fontes, como
diante de uma aparição sobre-humana. Marcos, roto e
coberto de pó, estava hirto à entrada da sala, agarrado
por um braço pelo doutor.
A mulher gritou três vezes:
— Deus! Deus! oh! meu Deus!
Marcos aproximou-se, e ela, estendendo os braços
descarnados e apertando-o ao seio com força de um ti-
gre, desatou num riso violento, cortado de profundos
soluços e lágrimas, que a fizera tornar a cair sufocada
no travesseiro.
Mas reanimou-se logo, e gritou louca de alegria, en-
chendo-lhe a cabeça de beijos:
— Como vieste aqui? Porquê? Ês tu? Como estás
crescido?... Quem te trouxe? Estás só? Não estás doen-
te? És tu, Marcos? Não é um sonho? Deus meu! fala-
-me!
Depois, mudando de tom e repentinamente: Não,
cala-te! Espera! E voltou-se para o médico, impetuosa-
mente : — Já, depressa, doutor. Quero ficar boa. Estou
pronta. Não perca um momento. Mande sair Marcos, para
que não veja... Isto não é nada, meu Marcos. Contar-
-me-ás depois... Ainda um beijo... Vai! Aqui estou, dou-
Itor.
Marcos foi conduzido para fora.
Os amos e as enfermeiras saíram apressadamente,
CORAÇÃO 221
ficando apenas o operador e o ajudante, que fecharam
a porta.
O sr. Mequinez tentou conduzir Marcos para uma
sala afastada, mas foi-lhe impossível, Êle parecia pre-
gado no soalho.
— Que é, preguntou, que tem minha mãi? Que é
que lhe estão fazendo?
— Então Mequinez, de vagar, e tentando sempre afas-
tá-lo, disse-lhe:
— Olha cá. . ouve. Tua mãi está doente; é preciso
fazer-lhe uma operação... Depois te explicarei. Vem
comigo.
— Não respondeu o rapaz, resistindo — quero ficar
aqui. Explique-me aqui mesmo.
O engenheiro amontoava palavras, insistindo em
afastá-lo. O rapaz principiava a assustar-se e a tremer.
De repente, um grito agudíssimo, como um grito
de um ferido de morte, ressoou por toda a casa. O rapaz
respondeu com um grito de desesperado:
— Minha mãi está morta!
O médico abriu a porta e disse:
— Não; tua mãi está salva!
O rapaz olhou para êle um momento, e depois rojou-
-se-lhe aos pés soluçando:
— Muito obrigado. . .
O médico ergueu-o com. um gesto dizendo-lhe:
— Levanta-te. Foste tu, pequeno herói, que salvaste
tua mãi.
Verão
Quarta- feira, 24
Marcos, o genovês, c o penúltimo pequeno herói
que conhecemos, este ano, c falta-nos apenas um mês
para as férias.
Temos apenas dois exames mensais vinte t seis dias
d« lição, seis quinta«-f eiras 0 cinco domingo»!
Sentê-se já o ar do fim do ano,
222 CORAÇÃO
As árvores «^.o jardim, frondosas e floridas, cobrem
de bela sombra os aparelhos de gimnástica.
Os alunos amdam já vestidos de verão. É bonito ver
agora, à saída à^s classes, como tudo é diverso dos me-
ses decorridos. Os cabelos que chegavam aos ombros
foram deitados ' baixo, e todas as cabeças estão à escovi-
nha. Vêem-se cV jpéuzinhos de palha de todas as formas,
com fitas que d'»'- cem pelas costas abaixo, camisas e grava-
tinhas de toda*- as cores; todos os mais pequenos com
qualquer coisa ''írmelha ou azul nas vestes, um enfeite,
um debrum um«i borlazinha, um trapinho que seja de
côr viva, aplicarío de qualquer modo pela mamã, con-
tanto que faça ^ ista; até os mais pobres; e muitos vêm
para a escola sem chapéu, como fugidos de casa. Alguns
trazem o traje branco de gimnástica. Há um aluno da
mestra Delcati, vestido de vermelho da cabeça aos pés,
parecendo um caranguejo cozido.
Andam alguns vestidos à marinheira. Mas o mais
belo é o Pedreirito, que trás um chapeuzinho de palha,
que lhe dá ares de um coto de vela com um pára-lume;
e é engraçado vê-lo fazer o focinho de lebre por de-
baixo das abas. Correti também pôs de parte o seu bar-
rete de pêlo de gato, e trás agora um velho gorro de
viajante, de seda cinzenta. Voltini trás um vestido à
escocesa, todo justinho. Grossi mostra o peito nú. Pre-
cossi regala-se dentro de uma blusa azul de me&tre fer-
reiro. E Garoffi? Agora que se viu obrigado a deixar
o capote que escondia o seu comércio, trás à mostra as
algibeiras cheias de toda a espécie de bagatelas de ade-
lo; vêem-se-lhe sair dos bolsos listas de lotarias. Agora
todos mostram o que (trazem: leques feitos de jornal,
gaitas de cana, flechas para atirar aos pássaros, ervas,
grilos que saem para fora do bolso e vão vagarosamente
subindo pelo casaco! muitos dos pequenos trazem ra-
minhos de flores para as mestras. Também as mestras
andam tcdas vestidas de verão, e de cores, excepto a
Freirinha, que se veste sempre de preto e a mestrazi-
nha da pena vermelha, que não deixa, nem a sua pena,
nem o laço de fitas de côr de rosa ao pescoço, todas
amarrotadas pelas mãozinhas das suas discípulas, que
CORAÇÃO 223
a fazem sempre rir e correr. É a estação das cerejas,
das borboletas, das músicas nas ruas e dos passeios aos
campos; muitos da quarta classe fogem para ir aos ba-
nhos no Pó, todos já têm o coração em férias, e cada
dia saiise da escola mais impaciente, mais éjlegre do
que no anterior. Entretanto faz-me pena ver Garrone
vestido de luto, e a minha pobre mestra da primeira
cada vez mais abatida e mais pálida, tossindo sempre
mais forte. Agora anda curvada e cumprimenta-me com
um modo tão triste!...
Poesia
Sexta-feira, 26
«Principias a compreender a poesia da escola, Henrique;
mas por ora não vês a escola senão por dentro. Parecer-te-á
mais bela e mais poética daqui a trinta anos , quando lá
fores acompanhar teus filhos, e a vires de fora como a vejo
agora. Esperando por ti, passeio pela rua silenciosa em volta do
fedifício, e aplico o ouvido às janelas do rés-do-chão, fechadas
com persianas. Numa janela ouço a voz de uma mestra que
diz: «Ah! aquele corte do t! Assim não está bem, meu filho!
Que diria teu pai?»
Noutra janela próxima sôa a voz grossa de um mestre que
dita lentamente: «Comprei cinquenta metros de seda a quatro
mil e seiscentos o metro, vendi-os a...»
Mais além, a mestra de pena vermelha, que lê em voz
alta: «Então, Pedro Micca, com o morrão aceso...»
Da classe vizinha ouve-se como um chilrear de cem pássa-
ros, o que quere dizer que o mestre se ausentou por um mo-
mento. Vou andando, e ao voltar a esquina ouço chorar um
menino, e a voz da mestra repreendendo-o ou consolando-o. De
outras janelas ouvem-se cá fora versos, nomes de grandes ho-
mens e bons, fragmentos de sentenças que aconselham a vir-
tude, o amor da pátria e a coragem.
Depois segruem-se momentos de silêncio, em que se diria
que o edifício está vazio e parece incrível que lá estejam den-
tro setecentos rapazes; depois sentçin-se estrondosas gargg-
324 CORAÇÃO
Ihadas provocadas pelo gracejo de um mestre de bom hu«
mor... E a gente, que passa, pára para escutar, e todos vol-
vem um olhar de simpatia para aquele belo edifício, que en-
cerra em si tanta mocidade e tantas esperanças. Depois ouve-se
repentinamente um rumor surdo, um bater de livros, um ru-
mor de carteiras, um estrépito de pés, um borborinho, que se
propaga de classe em classe, debaixo para cima, como ao divul-
gar-se a nova de estar finda a aula. E àquele rumor uma multidão
dentro e fora da porta, esperando os filhos, os irmãos, os sobri-
nhos; enquanto das portas das aulas rompem aos pulos pelo salão
de entrada os mais pequenos para tomarem as suas capas e os
seus chapéus, fazendo grande traquinada no soalho, bailando em
roda até que o bedel lhos dê um a um. E finalmente saem em
grandes fileiras, batendo com os pés. Principia então a chuva de
preguntas dos parentes: — Soubeste a lição? Que trabalho te deu
o mestre? Que tens tu para amanhã? Quando é o exame mensal?
E também as pobres mais que não sabem ler, abrem os ca-
dernos, olham para os problemas, preguntando pelos pontos —
Pois s6 oito! Dez com louvor! — Nove de lição! — E inquietam-
-se, alegram-se, interrogam os mestres, falam de programas e
de exames.
Como é belo tudo isto! Como é grande, e que imensa pro-
messa é para o mundol
Teu pai
A surda-muda
Domingo, 28
Não podia acabar melhor do que acabou, com a vi-
sita desta manhã, o mês de maio. Sentimos tocar a campai-
nha e correm.os todos- Ouço a voz de meu pai que diz
cheio de espanto: — Por aqui, Jorge!? — Era, Jorge o
nosso jardineiro de Chieri, que tem agora a família em
Condove, e chegava nesse instante de Génova, onde havia
desembarcado no dia anterior, de regresso da Grécia, de-
pois de trabalhar três anos numa estrada de ferro. Trazia
um grande fardo debaixo do braço. Está um pouco enve*
Ihecido, mas sempre corado e jovial.
CORAÇÃO 225
Meu pai queria que entrasse, mas êle disse que não,
e preguntou logo muito sério:
— Como vai a minha família? Como está Gigia?
— Bem até há poucos dias — respondeu minha mãi.
Jorge deu um grande suspiro:
— Oh! Deus seja louvado! Não tinha coragem de
me apresentar nos Surdos-Mudos, sem primeiro ter no-
tícias dela. Deixo aqui este fardo e corro a buscá-la- Há
três anos que não vejo a minha pobre filha! Três anos já,
que não vejo nenhum dos meus.
— Accmpanha-o, disse meu pai.
— Ainda uma palavra, desculpe-me, disse o jardinei-
lo no patamar.
Mas meu pai interrompeu-o :
— «E os negócios?
— Bem, respondeu — graças a Deus! Trouxe alguns
cobres e... mas... queria preguntar... Como vai a instru-
ção da miudinha? diga-me alguma coisa. Deixei-a que
era mesmo um animalzinho, pobre animalzinho, pobre
criatura! Creio pouco, já nesses colégios. Aprenderia a
fazer os sinais? Minha mulher escrevia-me: «Está apren-
dendo a falar e está fazendo progresso». Mas, dizia eu,
que vale que ela aprenda a falar, se não sei fazer os si-
nais? Como nos poderemos entender? pobre criança?
Aquilo é bom para se compreenderem entre si, um desgra-
çado com o outro. — Mas como vai ela? como vai?
Meu pai sorriu-se e respondeu:
— Não te digo nads. tu verás. Vai, depressa, não
lhe roubes mais um mánuto.
Saímos; o Instituto é perto. Caminhando a passos lar-
gos o jardineiro falava-me de m.odo a entristecer-se. Ah! a
minha pobre Giçia! Nascer com aquela desgraça! E di-
zer que nunca pude ouvir, pronunciado por ela, o nome
de pai, e que nunca me ouviu chamar-lhe filha, porque
nunca disse nem ouviu un)a palavra no mundo!... e gra-
ças 3 Deus por se ter encontrado ainda uma pessoa cari-
dosa que tem feito as despesas do Instituto! Mas antes
de oito anos não podia entrar. Há três anos que não está
em casa. Já vai fazer onze. Está crescida? diga-me al-
guma coisa, está crescida? É alegre?
■ 15
22è CORAÇÃO
— Há-de ver, há-de ver! respondi-lhe, apressando o
passo.
— Mas onde está esse Instituto? preguntou. Quando
minha mulher a levou lá, já eu tinha partido; parece-me
que deve ser deste lado.
Tinhamos justamente chegado. Entramos logo no
parlatório. Veio-nos ao encontro um guarda.
— Sou o pai de Gigia Voggi — disse o jardineiro;
quero ver minha filha, depressa, depressa!
— Estão no recreio, respondeu o guarda. Vou avisar
a mestra.
E saiu.
O jardineiro nem sequer podia falar, nem estar para-
do; olhava para os quadros, das paredes, mas sem ver
nada. A porta abriu-se; entrou uma mestra vestida de
preto, com uma rapariga pela mão, e pai e filha olnaram-
-se um momento, e depois lançaram-se nos braços um do
outro dando um grito. A menina estava vestida de risca-
dinho branco e verme,lho com avental branco. É mais alta
do que eu- Chorava e tinha o pai apertado ao peito com
ambos os braços.
O pai recuou um pouco e pôs-se a mirá-la dos pés
à cabeça, com chispas nos olhos, ansiando, como se tives-
se dado uma grande corrida, e exclamou: Ah! como está
crescida! E como está bonita! Oh! a minha querida, a mi-
nha pobre Gigia! A minha mudinha! É a senhora a mes-
tra? Diga-lhe por favor, que me faça alguns dos seus si-
nais, que sem.pre entederei alguma coisa, e depois irei
aprendendo pouco a pouco. Diga-lhe que me faça com-
preender alguma coisa com os seus gestos.
A mestra sorriu-se e disse em voz baixa à menina:
— Quem é este homem que veio procurar-te?
E a pequena, com uma voz grossa, estranha, deshar-
raoniosa como de selvagem que falasse pela primeira
vez a nossa língua, mas pronunciando claro e sorrindo,
respondeu:
— É meu pai.
O jrardineiro deu um passo para trás e gritou como
um louco:
CORAÇÃO 227
— Ela fala? Mas é possível? Será verdade? Fala?
Mas tu falas, minha filha? falas? — E abraçou-a de novo
e beijou-a na testa três vezes. — Mas não é com os gestos
que falam, senhora mestra? Pois não é com os dedos, as-
sim?... Mas que é isto?
— Não, sr. Voggi, respondeu a mestra, não é com
gestos. Era assim pelo método antigo. Aqui ensina-se pelo
método novo, pelo método oral. O senhor não sabia?
— Mas eu não sabia nada, respondeu o jardineiro es-
tupefacto. Há três anos que estou fora. Talvez mo tives-
sem escrito, mas não compreendi. Tenho uma cabeça de
ferro. Oh! minha filha, pois tu compreendes-me? Ouves
a minha voz? Responde, sentes? Ouves o que te digo?
— Não, bom homem, disse a mestra. Não ouve a sua
voz, porque é surda. Ela percebe pelos movimentos da
nossa boca quais são as palavras; é este o método novo;
mas não ouve as palavras de ninguém, nem tão pouco as
que ela mesma diz; pronuncia-as, porque lhas temos ensi-
nado, letra por letra, e modo como deve dispor os lábios
e mover a língua e o esforço que deve fazer com o peito
e com a garganta para emitir a voz.
O jardineiro não percebeu e ficou com a boca aberta.
Não acreditava.
— Diz-me, Gigia, preguntou à filha, falando-lhe ao
ouvido. Estás contente por teu pai ter voltado?
E levantando a cabeça ficou esperando a resposta. A
filha olhou para êle, pensativa, e nada disse.
O pai ficou perturbado. A mestra riu-se. Depois
disse: r-M:^^*T^
— Note, bom homem. Ela não respondeu porque não
viu os movimentos dos seus lábios. O senhor falou-lhe
ao ouvido. Agora repita a pregunta, tendo o rosto bem
defronte do rosto dela.
O pai olhando para ela mesmo em face, repetiu:
— Estás contente por teu pai ter voltado? Por não
se ausentar mais?
A pequena que tinha olhado atentamente para os lá-
bios, procurando até ver dentro da boca, respondeu fran-
camente:
228 CORAÇÃO
— Sim, estou contente por teres voltado, e não quero
que te vás mais embora... nunca mais. .
O pai abraçou-a impetuosamente; depois, à pressa,
como para confirmar-se melhor, fez uma infinidade de
preguntas, umas sobre outras.
— Como se chama a mamã?
' — An-tó-ni-a-
— Como se chama a tua irmã pequena?
— A-de-lai-de.
— Como se chama este colégio?
' — Dos surdos mudos.
— Duas vezes dez quantos são?
— Vinte.
Quando pensamos vê-lo rir de alegria, começou de
repente a chorar. Mas eram lágrimas de prazer.
— Animo! disse-lhe a mestra. O senhor tem moti-
vos para alesrrar-se, não para chorar. Repare que também
faz chornr sua filha. Então está contente, não é verdade?
O iardineiro tomou a mão da mestra e beijou-a por
duas ou três vezes, dizendo: — ^ Obrigado, senhora pro-
fessora. E perdõe-me não saber agradecer-lhe mais.
— Mas não só fala, disse a mestra, também escreve.
F^r=, rontas. Conhece o nome de todos os objectos usuais.
S-^b? um T50UC0 de história e de geografia. Ap-ora está
çlrt r;^ rl^sse norm.al. Quando freaijentar as outras classes,
s'íberá muito, mni^o mais. Há-de sair daaui habilitaria n-'--
exercer uma nrofjssão. Temos surdas-mudas que estão
nas loias servindo freo-ueses, e que tratam dos seus negó-
cios romo as outras pessoas.
O jardineiro ficou outra vez pasmado. Parecia que
se lhe confundiam as ideas. Olhou para a filha e coçou a
cabeça.
A sua fisionomia era de quem queria ainda alguma
explicação.
Então a mestra voltando-se para o guarda, disse-Jhe:
— Chame cá uma menina da classe preparatória.
O guarda voltou pouco depois com uma surda-muda
de oito a nove anos, entrada há poucos dias no Instituto.
— Esta, disse a mestra — é uma daquelas a quem en-
CORAÇÃO 22Q
sinamos os primeiros elementos. Eis como se faz: quero
por exempio, que ela diga — é — Repare com atenção.
A mestra abriu a boca como se abre para pronunciar
a vogal e, e íez sinai á menina para que a imitasse. A me-
nina obedeceu. Então a mestra acenou-lhe que imitasse
a sua voz. Ernitiu logo um som mas em vez de — é — pro-
nunciou — ó.
— Não é assim — le pegando nas mãos da menina,
pôs uma delas aberta na garganta e outra sobre o peito,
e repetiu — é.
A menina sentindo pelo táto o movimento da gar-
ganta e do peito da mestra, reabriu a boca como antes, e
pronunciou perfeitamente — é. Do mesmo modo fez-lhe
dizer c e d, conservando sempre as pequeninas mãos no
peito e garganta.
— Compreende agora? preguntou.
O pai tinha compreendido mas parecia mais maravi-
lhado do que quando não compreendia.
— Então ensinam a falar assim, — preguntou depois
de um momento de reflexão, olhando para a mestra. —
E têm paciência de ensinar assim, a pouco e pouco, a um
por um, a todos? durante anos e anos!?... Mas as senho-
ras são santas! santas e anjos do paraíso! Mas não há no
mundo recompensa para elas! Que posso eu dizer? — Ah!
deixem-me agora um bocado com a minha fi,lha, deixem-
-na só comigo por cinco minutos.
E, retirando-se para um lado com ela, fê-la sentar
e principiou a interrogá-la; ela a responder e êle a rir-se
com os olhos brilhantes batendo com as mãos em cima dos
joelhos, pegando nas mãos da filha e olhando para ela,
fora de si de contentamento, a ouvi-la como a uma voz
que viesse do céu. E logo preguntou à mestra:
— O sr. director dará licença que eu lhe agradeça?
— O director não está — respondeu a mestra — mas
há uma pessoa a quem deve agradecer. Aqui cada menina
pequena é entregue aos cuidados de uma companheira
maior, que lhe serve de irmã e de mãi. A sua filha está
confiada a uma surda-muda de dezasseis anos, filha de
um padeiro, que é boa e quere-lhe muito bem. Há dois
anos, vai todas as manhãs ajudá-Ja a vestir-se, penteia-a,
230 CORAÇÃO
ensina-lhe a coser, arranja-lhe a roupa, faz-lhe boa compa-
nhia. Luiza, como se chama a tua mamã do Instituto?
A rapariga sorriu e respondeu:
— Ca-ta-ri-na Gior-da-no-
E voltando-se para o pai disse:
— É muito, muito boazinha.
O guarda, saindo a um sinal da mestra, voltou logo
com outra surda-muda, loura, robusta, de cara alegre, ves-
tida também de riscadinho vermelho, com avental cinzen-
to, a qual parou à porta; £ez-se muito corada, depois in-
clinou a cabeça, rindo. Tinha o corpo de uma mulher e
parecia uma criança.
A filha de Jorge correu-lhe logo ao encontro, pegou-
-Ihe na mão como uma criança, e trouxe-a ao pé do pai,
dizendo com a sua voz grossa:
— Ca-ta-ri-na Gior-da-no.
— Ah! a boa menina! exclamou o pai, estendendo a
mão para a acariciar, mas retirou-a outra vez e repetiu:
— Ah! a boa menina, que Deus a abençoe, e lhe dê todas
as fortunas, todas as conso.lações, e a faça sempre feliz,
à menina e a todos os seus, uma boa rapariga assim! Po-
bre da minha Gigia!... É um operário honesto, um pobre
pai de família que lhe deseja a felicidade, de todo o cora-
ção.
Ela, a grande, acariciava a pequena, que se conserva-
va de cabeça baixa, sorrindo; e o jardineiro continuava
a olhá-la como se fosse ela uma santa.
— Hoje pode levar consigo a sua filha — disse a mes-
tra.
— Se a levo — respondeu o jardineiro, i — Levo-a a
Condove e trago-a amanhã de manhã. Ora, se eu não le-
vasse a minha filha!
A filha saiu para vestir-se.
— Há três anos que não a vejo!' — disse o jardineiro.
— E agora que fala! Levo-a a Condove. Mas antes, vou
dar um giro por Turim, com a minha mudinha pelo bra-
ço; quero que todos a vejam e hei-de levá-la aos meus
quatro amigos para que a ouçam- Ah! que dia feliz! Isto
é que se chama uma congolação! vamo»! dá o brajo a t«u
pai, minha Gigia.
CORAÇÃO 231
A rapariga, que tinha voltado com um chalezinho e
uma touca, deu-lhe o braço.
— E muito obrigado a todos, disse o pai; muito obri-
gado a todos, com toda a minha alma o digo, ainda cá hei-
-de voltar para lhes agradecer.
Ficou um momento a pensar, e, apartando-se arreba-
tadamente da filha, voltou atrás, mexendo com uma das
mãos na algibeira, e gritou como um furioso:
— Muito bem! eu sou um pobre diabo, mas aqui está,
deixo vinte liras para o Instituto. Um marengo de ouro,
bonito e novo.
E dando uma grande pancada sobre a mesa, deixou
lá ficar o marengo.
— Não, não, bom homem — disse a mestra, comovida
— guarde o seu dinheiro, não posso aceitá-lo. Isto não me
pertence. Venha quando cá estiver o director. Mas êle não
aceitará também, esteja certo disso. Custou-lhe muito a
ganhar, bom homem. Ficamos-lhe grato do mesmo modo.
— Não, senhora, deixo — respondeu o jardineiro in-
sistindo. Depois... ver-se-á.
Mas a mestra tornou a meter-lhe a moeda na algi-
beira sem lhe dar tempo a que a repelisse. Êle então re-
signou-se, inclinando a cabeça, e depois, rapidamente
atirando um beijo com a mão à mestra e à menina maior,
tornou a pegar no braço da sua Gigia e saiu pe,la porta
fora, dizendo :
— Vem, vem, minha filha, minha pobre miudinha,
meu tesouro!
E a filha exclamou com a voz grossa:
— Oh! que dia bonito!
Garibaldi
3 de Junho. Amanhã é festa nacional
Ontem à noite morreu Garibaldi. Sabes tu quem foi Gari-
baldi? Foi aquele que libertou dez milhões de italianos da tira-
nia dos Bourbons. Morreu aos setenta e cinco anos. Nasceu em
Nisa, filho de um capitão d% navios. Aos oito anos salvou uma
232 CORAÇÃO
mulher, aos treze salvou uma barca cheia de companheiros que
naufragavam, aos vinte e sete arrebatou das águas de Marselha
um moço que se afogava, aos quarenta e um livrou um navio de
incêndio no oceano. Combateu dez anos na América pela liberda-
de de um povo estranho, combateu em três guerras contra os
austríacos pela liberdade da Lombardia e do Trentino, defen-
deu Roma dos franceses em 1840, libertou Palermo e Nápoles
em 1860; combateu em favor de Roma, em 1857; lutou contra os
alemãis em defesa da França. Sle tinha a chama do heroísmo e
o génio da guerra. Lutou em quarenta combates e venceu trinta
e sete. Quando não combateu, trabalhou para viver e isolou-se
numa ilha solitária cultivando a terra.
Foi mestre, marinheiro, operário, negociante, soldado, ge-
neral e ditador. Era grande, simples e bom. Odiava todos os
opressores, amava todos os povos, protegia todos os fracos; não
tinha outra aspiração que não fosse o bem; recusava as honras,
desprezava a morte, adorava a Itália. Quando soltava um grito
de guerra, legiões de valentes corriam ao seu encontro de todas
as partes. Os fidalgos deixavam os seus palácios; os operários as
suas oficinas; os alunos, a escola, para ir combater ao sol da sua
glória. Na guerra trazia uma camisa vermelha. Era robusto, lou-
ro, belo. Nos campos de batalha era um raio, nas suas amizades
uma criança, nas suas dores um santo. Mil italianos morreram
pela pátria, felizes por morrerem vendo-o passar de longe vito-
rioso; milhares se deixaram matar por êle, milhões o abençoa-
ram e hão-de abençoá-lo sempre.
Morreu; o mundo inteiro chora-o. Tu não compreendes
por ora ; lerás os seus feitos, ouvirás falar dele continuamente
na vida, e à medida que fores crescendo, a sua imagem crescerá
também diante de ti; quando fores homem, vê-lo-ás gigante; e
quando tu não existires, quando já não viverem os filhos dos
teus e aqueles que deles nascerem, ainda as gerações hão-de ver
alta, na glória, a cabeça luminosa do redentor dos povos, coroa-
da pelos nomes das suas vitórias, como um esplendor de estre-
las, e a cada italiano iluminar-se-á a fronte e a alma ao pronun-
ciar o seu nome.
Teu pai.
CORAÇÃO 233
O exército
Domingo ii. Festa nacional retardada sete dias por cau-
sa da morte da Garibaldi.
Fomos à praça Castelo, ver a revista dos soldados que
desfilavam diante do comandante do corpo do exército,
no meio de duas grandes alas de povo. À medida que des-
filavam ao som das fanfarras e das bandas, meu pai ia-
-me mostrando os corpos e os trofeus das bandeiras. Pri-
meiro, os académicos, que um dia serão oficiais de enge-
nheiros e de artilharia, cerca de trezentos vestidos de
preto, passaram com uma elegância ousada e desenvolta
de soldados e de estudantes. Depois dele desfilou a infan-
taria, a brigada Aosta, que combateu em Goito e em S.
Martinho; a brigada Bergamo, que combateu em Gastei
Fidardo; quatro regimentos, companhias atrás de compa-
nhias; milhares de borjazinhas vermelhas, que pareciam
grinaldas extensíssimas de flores côr de sangue, presas
pelas extremidades, agitadas e conduzidas através da mul-
tidão. Depois da infantaria seguiam os soldados do corpo
de engenheiros, os operários de guerra, com penachos de
crina preta e galões carm.esim; e enquanto estes desfila-
vam, viam-se à rectaguarda, avançando, centenares de pe-
nas compridas, direitas, que sobrelevavam às cabeças dos
espectadores: eram os alpinos, os defensores das portas
de Itália, todos altos, rosados e fortes, com os cabelos à
calabresa, e as divisas de um lindo verde, côr de erva das
suas montanhas. Desfilavam ainda os alpinos, quando um
sussurro da multidão se levantou e o antigo batalhão 12-°
de caçadores, os primeiros que entraram em Roma pela
brecha da porta Pia, todos de preto, ágeis, vivos, com pe-
nachos ao vento, passaram com^o uma onda de corrente
negra, fazendo ecoar na praça os sons agudos dos clarins,
que pareciam gritos de alegria. Mas a sua fanfarra foi co-
berta pelo estrépido áspero e pesado da artilharia de cam-
panha; então passaram soberbamente sentados sobre os
altos caixões, puxados por trezentas parelhas de cavalos
234 CORAÇÃO
impetuosos, os belos soldados, com os seus galões amare-
los, os formidáveis canhões de aço e de bronze, cintilantes
sobre as carretas ligeiras que saltavam e ressoavam fa-
zendo tremer a terra.
Vinha depois, lenta, grave, bela, na sua aparência do-
lorosa e rude, com os seus robustos soldados, com as suas
mulas valentes, a artilharia de montanha, que leva a des-
truição e a morte até onde sobe o pé do homem. E, final-
mente, passou a galope, com as bandeiras ao vento, com
cintilações de prata e de ouro, enchendo o ar de tinidos e
relinchos de cavalos, o soberbo regimento de cavalaria de
Génova, que se assinalou em dez campos de batalha, des-
de Santa Lúcia a Vila Franca.
— Como é belo ! exclamei.
Mas meu pai fez-me quási uma censura por aquelas
palavras, dizendo~me:
— Não consideres o exército como um belo espectá-
culo. Todos esses moços, cheios de força e de esperança,
podem de um dia para o outro ser chamados a defender
o nosso país e em poucas horas caírem despedaçados pe-
las balas e pe,la metralha. Todas as vezes que ouvires gri-
tar numa festa: viva o exército! viva a Itália! imagina
para além dos regimentos que passam, um campo juncado
de cadáveres e alagado de sangue, e então o viva ao exér-
cito te sairá mais do fundo do coração, e a imagem da Itá-
lia se te apresentará mais severa e mais grandiosa.
Itália
Terça-feira, 13
Deves saudar assim a pátria, nos dias das suas festas: Itá-
lia, minha pátria, nobre e querida terra, onde meu pai e minha
mãi nasceram e serão sepultados, onde espero viver e morrer,
e onde meus filhos crescerão e morrerão; bela Itália, grande e
gloriosa de muitos séculos, unida e livre de há pouco, tu, que
derramaste a lu« de tantos génios divinos sobre o mundo, e
por quem Valorosos filhos morreram no campo de batalha e tan-
CORAÇÃO 235
tos heróis no patíbulo, mãi augusta de treeentas cidades e de
trinta milhões de filhos, eu, criança que ainda te não compreen-
do e te não conheço inteira, venero-te e amo-te de toda a minha
alma, e tenho orgulho de ter nascido de ti e de chamar-me teu
filho.
Amo os teus mares esplêndios e os teus Alpes sublimes,
amo os teus monumentos solenes e as tuas recordações imortais,
amo a tua glória e a tua belêsa; — amo-te e venero-te toda,
como a parte da tua dileta, onde pela primeira vez vi o sol e ouvi
o teu nome !
Amo-vos toda de um grande afecto e com igual gratidão —
Turim valorosa, Génova soberba, Bolonha douta, Veneza encan-
tadora, Milão poderosa; amo-vos com igual reverência de filho,
Florença gentil e Palermo terrível, Nápoles imensa e bela, Roma
maravilhosa e eterna! Amo-te, pátria sagrada! Juro-te que ama-
rei todos os teus filhos como irmão; que honrarei sempre no
meu coração os teus grandes vivos e os teus grandes mortos;
que serei um cidadão trabalhador e honesto, que trabalharei
constantemente por nobilizar-me, para tornar-me dignio de ti, e
concorrerei com as minhas pequenas forças para que desapare-
çam um dia da tua face a miséria, a ignorância, a injustiça, o cri-
me, e para que possas viver e expandir-te, tranquila na magestade
do teu direito e da tua força. Juro-te que te servirei com quan-
to estiver em mim, com a inteligência, com o braço, com o cora-
ção, humildemente, ousadamente; e que, se um dia careceres do
meu sangue e da minha vida, darei vida e sangue, morrerei le-
vando num grito ao céu o teu santo nome, e mandando o meu úl-
timo beijo à tua bandeira abençoada».
32 graus
Sexta-feira, i6
Nestes cinco dias que passaram depois da festa na-
cional, o calor tem subido três graus. Agora estamos em
pleno verão; todos começaram a achar-se fatigados; to-
dos têm perdido as belas cores rosadas da primavera; os
pescoços e as pernas adelgaçam-se, as cabeças inclinam-se
e os olhos fecham-se.
O pobre Nelli, qu9 sofre muito com o calor, traz o
236 CORAÇÃO
rosto côr de cera, e adormece algumas vezes, profunda-
mente, com a cabeça sobre o caderno; mas Garrone está
sempre atento, e póe-lhe diante um livro aberto, em pé,
para que o mestre o não veja.
Crossi apoia a cabeça ruiva sobre a carteira, de modo
que parece deslocada do corpo e posta a^i. Nobis queixa-
-se de que somos muitos e lhe tiramos o ar. Ah! que es-
forço é necessário fazer agora para estudar! Vejo das ja-
nelas de casa aquelas formosas árvores, de sombra tão
cerrada e para onde correria de tão boa vontade; e vêm-
-me a tristeza e a contrariedade por ser obrigado a ir me-
ter-me entre os bancos. Mas depois animo-me ao ver a mi-
nha boa mãi, que me observa sempre, quando saio para a
escola, vê se estou pálido, e diz-me a cada página de tra-
balho:—Estás bom? E todas as manhãs, às seis, acordan-
do-me para a lição: — Coragem! Poucos dias faltam, de-
pois serás livre, descansarás e gozarás na sombra das ala-
medas-
Sim, ela tem bastante razão em lembrar-me os meni-
nos que trabalham nos campos, sob a força do sol, ou en-
tre os cascalhos do rio que cegam e escaldam, e aqueles
outros das fábricas de vidros que estão todos os dias imo- ,
veis, com o rosto inclinado sobre uma ,luz de gás,^ se le-
vantam todos os dias mais cedo do que nós, e não têm
férias. Coragem, pois! E até nisto é Derossi o primeiro
de todos, pois não sofre nem calor nem sono ; sempre vi-
vo, alegre, com os seus anéis de cabelos louros, como no
inverno, e estuda sem fadiga, esperta a todos em volta de
si, como se refrescasse o ar, à sua voz. Há ainda dois ou-
tros, também vivos e atentos: o cabeçudo do Stardi, que
dá murros na cara para não adormecer, e que quanto mais
fatigado está e mais calor sente, tanto mais aperta os
dentes e arregala os olhos, que parece querer comer o
mestre; e o negociante do Garoffi, todo atarefado em fa-
bricar leques de papel vermelho, ornados com figurinhas
de caixas de fósforos, que vende a dois vinténs cada um.
Mas o mais bravo é Coretti, o pobre Coretti, que se le-
vanta às cinco para ajudar o pai a carregar a lenha Às onze
na escola, já não pode ter os olhos abertos, e cai-lhe a ca-
beça sobre o peito. E, contudo, reanima-se, da palmadas
CORAÇÃO 237
na nuca, pede licença para sair para lavar a cara, e que-
re que os vizinhos o sacudam e belisquem. Mas, apesar
de tudo, esta manhã não pôde resistir, adormeceu num
sono de chumbo; o mestre chamou-o alto: Coretti ! En-
tão o filho do carvoeiro, que mora perto dele, levantou-se
e disse:
— Coretti trabalhou das cinco às sete a carregar
lenha.
O mestre deixou-o dormir e continuou a dar a lição
por uma meia hora. Depois foi ao banco de Coretti, e de-
vag:arinho, soprando-lhe no rosto, acordou-o. Ao ver dian-
te de si o mestre, inclinou-se para trás assustado. Mas
o mestre tomou-lhe a cabeça entre as mãos, e disse, bei-
jando-o nos cabelos.
— Não te censuro, meu filho. Não é teu sono o da pre-
guiça, mas o sono da fadiga.
Meu pai
Sábado, 17
«Certamente, nem teu companheiro Coretti, nem Garrone
responderiam nunca a seu pai, como respondeste esta tarde
ao teu. Henrique! Como é possível? Deves jurar-me que jamais
acontecerá cousa semelhante, enquanto eu viver. Todas as
vezes que a uma repreensão do teu pai te corra aos lábios
uma resposta má, pensa naquele dia que há-de irremediavel-
mente cheear, quando êle te chamar à cabeceira da sua cama
para diz3r-te: — Henrique, vou deixar-te. — Oh! meu filho,
quando sentires a sua falta pela última vez, e ainda por muito
temno depois, quando chorares só no seu gabinete abando-
nado, no meio daqueles livros que êle não abrirá mais, então,
recnrdando-te de lhe teres alemãs vezes faltado ao respeito,
preeruntarás a ti masmo: — Como foi possível? — Então com-
preender.?.? aue êle foi sempre o teu melhor amigo; que, quan-
do era obrigado a castigar-te, sofria mais do que tu, e que
nunca t3 fez chorar senão para fazer-te bem; então arreoen-
íer-te-^s e beiiarás chorando aquela mesa sobre a qual tanto
trabalhou, sobre a qual consumiu a vida por amor de seus fi-
238 CORAÇÃO
lhos. Agora não compretndes : êl« oculta tudo que lhe diz
respeito, excepto a sua bondade e seu amor. Tu não sabes
que êle está algumas vezes de tal modo acabrunhado pela fa-
diga, que julga não ter mais que poucos dias de vida e que
nesses momentos não fala senão em ti e não tem outro pesar
no coração senão o de deixar-te pobre e sem amparo. E quan-
tas vezes pensando nisto entra na tua alcova enquanto dormes
e fica ali com a luz na mão a contemplar-te, e fazendo depois
um esforço, cansado e triste como ao voltar do trabalho!
Então ignoras que muitas vezes êle te procura, porque tem
uma amargura no coração, desgostos que cabem a todos os
homens nesta mundo; procura-t« como a um amigo, para con-
fortar-se e esquec»r>se, e tem necessidade de refugiar-se no
tsu amor para reaver a serenidade e a coragem! Pensa! pois,
que dor deve ser a sua, quando, em vez de achar amor em
ti, encontra frieza e má criação. Não te macules mais desta
ingratidão borríveJ. Pensa que, quando mesmo fosses tão bom
como um santo, não poderias nunca compensá-lo bastante
daquilo que êle tem feito e faz continuamente por ti. E pensa
também, que com a vida não se pode contar, uma desgraça pode-
ria roubar teu pai enquanto és ainda criança — nestes dois
anos, dentro de três meses, amanhã mesmo. Ah! pobre Hen-
rique, como então verias mudar-se tudo em volta de ti! como
te pareceria vazia e triste a casa com a tua pobre mãi vestida
de preto! Vai, filho. Vai onde está teu pai ao quarto onde tra-
balha, vai nas pontas dos pés, qus te não sinta entrar, vai
pousar a fronte sobre os seus joelhos, pedir-lhe que te perdoe
e te abençoe.
Tua Mãi.
No campo
Segunda-íeira, ig
Meu bom pai perdoou-me ainda esta vez, e deixou-
-me ir ao passeio que tinhamos combinado na quarta-
-feira com o pai de Coretti, o vendedor de lenha.
Tõiaos nós prcícisévatTios de um pouoò de ar das
CORAÇÃO
239
montanhas. Foi uma festa. Encontramo-nos ontem às
duas na praça da Constituição. Derossi, Garrone Ga-
provisões de frutas, e salchichas e ovos cozidos e tinha!
mos também copmhos de couro e canecas. Garrone le-
audra7e%nM'? i" ''^"^^ ^'^^"^°' ^°^^^'t^' ""^^ f tas-
queira de soldado, de seu pai, cheia de vinho tinto; e o
ba7xo"do h"""' '°"^ '"' '^"^^ ^' ^---°' trazia de!
baixo do braço um pao enorme de dois quilos. Fomos
no carro eléctrico até Gran-Madre di Dio, e de^is
eTu.T^" pelos montes. Que verdura! tanta sombra
e que fresco! Andávamos às cambalhotas na relva, bL
de eToTnhnf ^"1."°' ''^^'°'' " ^^^^^vamos pelas cercas
de espinhos. Coretti, pai, seguia-nos ao longe com o ia-
quetao no ombro, fumando o seu cachimbo, e de vez em
ro"pas° Pr^oT^^^ 'T ' "'°' ^"^ ^° r;sgássemos a"
hiTcoí\T!\u""°^'^''V """"^ ° *^"h^ °"^íd° asso-
biar. Coretti. filho, esse fazia tudo, caminhando; sabe
^azer tudo aquele homenzinho; com um canivete cheio
moinho'' ' f" '""'"^^ '^ ""^ ^^^°' ^^-^ rodinhas de
Ts out J'1°'' ''''"^/'' ' ^"^"" ^^^^^ °^ embrulhos
dos outros; ia carregado a ponto de lhe cair o suor em
bagas, mas sempre vivo como um cabrito. Derossi pa-
dofin^í^ momento para dizer o nome das plantas e
coL r.rr' "^° ''^ -'^"'^ ^'^^ ^^' P^^^ '^^'^ tanta
z^a m.f. """"'^ P^° ""^ '^^^^^^°' ^^s "ão nos di-
rl^T ^' ^'^'^' ^^'^'^' ^^ °"t^° *^"^P°' pobre Gar-
rone, depois que perdeu a mãi ! Mas êle é sempre bom
como uma pérola. Quando algum de nós se preparava
para saltar um fosso, corria logo para o outro lado afim
de nos dar a mão. E como Precossi tinha mêdi^ da^
vacas por ter levado umas marradas em criança, sem-
pre que passava alguma, Garrone punha-se logo na frente
an 'V "l^"?u~ "'^ ^""'" Margarida, às escorregadelas
aos trambolhões . Precossi, esbarrando nuns espinhe':
com f .""" "'^^° "^ ^^"'^' " ^^"°" ^^' envergonhado.
llZZ ^'^^°' ^ '^°^^' ™^* ^^^°^^í' ^"« t"s sempre
llnlT'- ^^^^^^-t^^-o ^o ben^. que nSo se percebia, e
ainda dizia sempre: - aDesculpe. desculpei. Garoffi não
perdia O S9U tempo pelp caminho: colljia ervas próprias
240 CORAÇÃO
para salada e apanhava caracóis ; e todas as pedras que lu-
zissem um pouco, metia logo na algibeira, pensando que
dentro houvesse ouro e prata.
E correndo sempre, de queda em queda, ora à som-
bra, ora ao sol, acima e abaixo, pelos cabeços e pelos
atalhos, chegamos afinal, afadigados, ofegantes, ao ci-
mo de um monte, onde nos sentamos para comer. Via-se
uma planície imensa e todos os Alpes azuis com os ci-
mos brancos. Estávamos a morrer de fome e o pão de-
saparecia. Coretti, pai, dava-nos porções, rações de sal-
chichas em cima de folhas de abóbora. E então come-
çamos a falar, todos ao mesmo tempo, dos mestres, dos
companheiros que não tinham podido vir, e dos exames.
Precossi tinha vergonha de comer, e Garrone metia-lhe
na boca, à força, o melhor da sua parte.
Coreti estava sentado ao lado do pai, com as per-
nas cruzadas, e pareciam mais dois irmãos do que pai e
filho, ao vê-los assim juntos ambos, corados, a rir com
os dentes muito alvos. O pai trincava com gosto, esva-
ziava também os copinhos e as canecas que deixávamos
em meio, e dizia:
— Para vocês, que estudam, o vinho faz muito mal.
São os vendedores de lenha que têm necessidade dele.
Depois agarrava o filho pelo nariz, sacudindo-o e
dizendo-nos:
— Rapazes i deveis querer bem a este, que é a flor
dos m-cninos. Sou eu quem o diz,
E todos riam, excepto Garrone; e êle prosseguiu,
trincando :
— Que pena, hein? agora estão todos juntos como
bons amigos e camaradas, mas daqui a alguns anos...
quem sabe? Henrique e Derossi serão talvez advogados,
professores, que sei eu? e os outros quatro, na loja ou
na oficina, ou em qualquer parte para onde o diabo os
mande. E então, boa noite, camaradas!
— Quê! atalhou Derossi. Para mim, Garrone há-de
ser sempre Garrone; Precossi; será sempre Precossi; e
os outros o mesmo, venha eu a ser imperador da Rús-
sia: onde eles estiverem, estarei eu também.
— Muito bem ! — exclamou Coretti pai, levantando
CORAÇÃO 2ál
a frasqueira; — assim é que se fala, com os diabos! To-
que! Vivam os bravos companheiros, e viva a escola,
que faz uma só família dos que a têm e dos que a não
têm.
Nós tocamos todos na sua frasqueira com os copinhos
e canecas, e bebemos a última vez. E êle:
— Viva o quadrado do 49! gritou, levantando-se nas
pontas dos pés e entornando até o último gole; e se
um dia tiverdes de fazer quadrados, tratai de resistir
como nós resistimos.
Era já tarde. Descemos, correndo, cantando e ca-
minhando por muito tempo, todos de braços dados, che-
gando ao Pó ao escurecer; andavam pela noite milhares
de pirilampos, E não nos separámos senão na praça da
Constituição, depois de termos todos combinado reú-
nirmo-nos Domingo para ir ao Vítor Manuel ver a dis-
tribuição dos prémios aos alunos das escolas nocturnas.
Que belo dia! Como entraria em casa contente, se não
tivesse encontrado a minha pobre mestra! Encontrei-a,
quando ela vinha descendo as escadas da nossa casa,
quási ao escurecer, e apenas me recebeu, tomou-me as
duas mãos e disse-me ao ouvido: «Adeus. Henrique,
lembra-^te de mim». Percebi que chorava. Subi e disse
a minha mãi : «Encontrei a minha mestra», — Ela vai
agora meter-se na cama — respondeu minha mãi, que
tinha os olhos vermelhos. E depois acrescentou com
grande tristeza, olhando-me fixamente:
— A tua probre mestra... está muito doente.
A disíribuição dos prémios
aos operários
Domingo, 25
Como tínhamos convencionado, fomos todos juntos
ao teatro «Vítor Manuel» para ver a distribuição dos
prémios aos operários. O teatro estava enfeitado como
a 14 de Março e literalmente cheio; eram, quási tudo,
famílias de operários, e a platea era ocupada pelos
lê
242 CORAÇÃO
discípulos e discípulas da escola do canto coral, que
entoavam um hino aos soldados mortos na Crimea, hino
tão belo que, quando acabou, todos se levantaram a dar
palmas e a gritar, de modo que tiveram de cantar outra
vez. Em seguida, principiaram a desfilar os premiados
diante do sindico, do perfeito e de muitos outros, que
davam livros e cadernetas da Caixa Económica, diplomas
e medalhas.
Num canto da píatea vi o Pedreirito sentado ao lado
da mãi ; em outro lugar estava o director, e por detrás
dê,le a cabeça ruiva do meu mestre da segunda classe-
Desfilaram os primeiros alunos da escola nocturna
de desenho, ourives, gravadores, litógrafos e também car-
pinteiros e pedreiros. Depois, os da escola de comércio,
os do liceu municipal, entre os quais várias meninas,
operárias, todas vestidas de festa, que foram saudadas
com grande aplauso. Estavam sorrindo. No fim vieram
os alunos das escolas nocturnas elementares, e então
principiou a ser mais bela a festa. Passava gente de to-
das as idades, de todas as profissões e vestida de todas
as modas, homens com cabelos grisalhos, aprendizes de
ofício, operários de grandes barbas pretas.
Os pequenos estavam inquietos; os homens um
pouco embaraçados. O povo aplaudia os mais velhos e
CS mais novos. Mas ninguém sorria entre os espectado-
res, como faziam na nossa festa. Viam-se todos os ros-
tos atentos e sérios. Muitos dos premiados tinham a
mulher e os filhos na platea, e havia crianças que quan-
do viam passar, no palco o pai, chamavam-no pelo nome
em voz alta, e acenavam-lhe com a mão, sorrindo. Pas-
saram camponeses e carregadores. Estes eram da escola
Buoncompagní. Da escola Cidadella passou um engra-
xador, que meu pai conhece; o perfeito deu-lhe um di-
ploma. Depois dele vi passar um homem alto como um
gigante, que ms pareceu já ter visto outras vezes- Era
o pai do Pedreirito, que recebia o segundo prémio. Re-
cordei-me de quando o tinha visto nas águas furtadas,
à cabeceira do filho doente, e procurei logo o filho na
platea. Pobre Pedreirito! Êle olhava para o pai com os
olhos muito vivos; e para ocultar a comoção fazia o
CORAÇÃO 24t
focinho de lebre. Naqueje momento senti um estrondo
de aplausos, e olhei para o palco; era a vez de um pe-
queno limpador de chaminés, com a cara lavada, mas
com a roupa do trabalho ; o síndico f alava-lhe, tomando-o
pela mão. Depois do limpador de chaminés veio um cozi-
nheiro. Depois passou a receber a medalha um varredor
municipal da escola Raineri. Eu senti não sei quê no
coração, como de um grande afecto e um grande res-
peito, pensando quanto não havia custado aqueles pré-
mios a todos aqueles trabalhadores, pais de famíjia cheios
de cuidados, quantas fadigas além das suas fadigas, quan-
tas horas roubadas ao sono, de que tanto carecem, e
também quanto esforço da inteligência não habituada ao
estudo e quanto desuzo de mãos calosas pelo trabalho.
Passou um moço de oficina, e também se conhecia
haver-lhe o pai emprestado a jaqueta para a ocasião; e
bambaleavam-lhe tanto as mangas, que teve de as arre-
gaçar ali mesmo, no palco, para poder tomar o seu pré-
mio; e muitos riram, mas o riso foi logo sufocado pelas
palmas- Depois veio um velho, com a cabeça calva e as
barbas brancas- Passaram soldados de artilharia, dos que
vinham à aula nocturna na nossa secção; depois, guar-
das da a,lfândega, guardas municipais, dos que fazem
guarda na nossa escola. No fim os alunos da escola coral
cantaram ainda o Hino aos mortos da Crimea, mas com
tanto arrebatamento desta vez e com tal força de senti-
mento, vinha tão direito ao coração, que o público
quási não aplaudiu mais, e saíram todos comovidos, len-
tamente, e sem fazer barulho. Em poucos momentos toda
a rua ficou cheia de gente.
Em frente à porta do teatro estava o limpador de
chaminés, com o seu livro de prémio, encadernado em
vermelho, e em volta alguns senhores que lhe falavam.
Muitos cumprimentavam de um para outro lado da rua,
operárias, rapazes, guardas, mestres-
O mestre da segunda saiu no meio de dois soldados
de artilharia.
E viam-se mulheres de operários com as crianças nos
braços, que sustentavam nas mãozinhas o diplom.a do
pai e o mostravam a todos com orgulho,
244
CORAÇÃO
A minha mesíra moría
Terça-feira, 27
Enquanto estávamos no teatro «Vítor Manuel», a
minha pobre mestra morria. Morreu às duas horas, sete
dias depois que veio a casa da minha mãi.
O director veio ontem de manhã dar-nos a triste
notícia na aula, e disse: — Os que de entre vós foram
seus alunos, sabem quanto lhes queria bem; era uma mãi
para eles. Agora já não existe. Uma terrível moléstia
minava-lhe desde muito tempo a vida. Se não fosse obri-
gada a trabalhar para ganhar o pão, teria podido tratar-
•se e talvez res-
tabelecer-se; e
sem dúvida te-
ria prolongado
a vida por al-
guns meses, se
tivesse pedido
uma licença.
Mas quis estar
entre os seus
discípulos
até o último dia.
Na tarde de sá-
bado 17, despe-
diu-se deles,
com a certeza de
os não tornar a
ver, deu-lhes
ainda bons conselhos, beijou-os a todos e retirou-se, so-
luçando. Agora ninguém mais tornará a vê-la. Recor-
dai-vos dela, meus filhos.
O pequeno Precossi, que tinha sido seu aluno da
primeira superior, inclinou a cabeça sobre a mesa e pôs-se
a chorar.
Ontem, de tarde, depois da escola, fomos todos à casa
onde ela morava, para acompanhar o corpo à igreja. Es-
tava já na rua um carro fúnebre çom dois cavalos, e miiitg
CORAÇÃO 245
gente que esperava, falando em voz baixa. Estavam o
airector e todos os mestres e mestras da nossa escola e
de outras secções onde ela (tinha ensinado anos antes;
estavam também quási todos os pequenos da sua classe,
conduzidos peia máo das mais que seguravam tochas, e
muitissimos de outras classes e umas cinquenta alunas
da secçáo Baretti, umas trazendo coroas, outras, grinaldas
de rosas. Já havia muitas flores sobre o carro, a que estava
presa uma grande coroa de saudades sobre a qual se via
escrito com letras pretas :—À sua mestra, as antigas alu-
nas da quarta classe. — E por baixo da coroa grande pen-
dia uma outra pequena, que tinham trazido as crianças.
Por entre a multidão viam-se muitas criadas mandadas
pelos amos, com velas e também dois criados de libré com
tochas acesas. Um fidalgo rico, pai de um discípulo dela,
tmha mandado vir a sua carruagem forrada de seda azul.
Todos se amontoavam defronte da porta. Muitas meninas
enxugavam as lágrimas. Esperamos um pedaço de tempo
em silêncio. Finalmente trouxeram o caixão. Alguns pe-
quenos, quando viram meter o féretro dentro do carro,
principiaram a chorar alto, e um começou a gritar de tal
modo, como se só naquele momento compreendesse que a
sua mestra tinha morrido; e caiu em soluços tão violentos
que foi necessário retirá-lo. O acompanhamento foi posto
em ordem, e lentamente principiou a mover-se. Iam adiante
as Filhas do Retiro da Conceição, vestidas de verde • de-
pois as Filhas de Maria, todas de branco com uma faixa
azul; depois os padres, e atráz do carro os mestres e as
mestras, os pequeninos escolares da primeira superior
e todos os outros, e atrás de todos a multidão. A gente
que chegava às janelas e às portas, ao ver todo aquele
povo e as coroas, dizia logo:
— É uma professora.
Entre as senhoras que acompanhavam os mais pe-
quenos, algumas havia que choravam. Chegados que fo-
ram à igreja, tiraram o féretro do carro e levaram-no para
o centro da nave, defronte do altar-mór. As mestras pu-
seram-lhe as coroas em cima e as crianças cobriram-o de
flores, e toda a gente em volta, com as velas acesas, prin-
cipiou a cantar orações na igreja grande e escura.
246 CORAÇÃO
Depois, de repente, quando o padre disse o último
Amen, as velas apagaram-se, todos saíram apressada-
mente, e a mestra íicou só. Pobre mestra, tão boa para
mim, que tinha tanta paciência e que tantos anos se ti-
nha cansado!
Ela deixou os seus poucos livros aos seus discípu-
los: a um, um tinteiro, a outro, um quadrinho, tudo aquilo
que possuía; e dois dias antes de morrer disse ao di-
rector que não deixasse ir os mais pequenos ao seu en-
terro, porque não queria que chorassem. Fez tanto bem,
sofreu tanto, e morreu. Pobre mestra, que ficaste sozi-
nha naquela igreja escura! Adeus! Adeus para sempre,
minha boa amiga, doce e triste recordação da minha
infância!
Agradecimentos
Quarta-feira, 28
Quis acabar o seu ano de escola a minha pobre
mestra, e morreu faltando três dias para terminar as
lições.
Depois de amanhã iremos ainda uma vez à classe
ouvir ler o último conto mensal ^-Naufrágio — e de-
pois... está tudo acabado. Sábado, i de Julho, os exanies.
E passou assim o quarto ano. E, se não fosse a morte
de minha mestra, teria passado bem.
Lembro-me do que sabia em outubro, e parece-me
que sei hoje muito mais. Tenho muitas coisas novas na
memória, e sei dizer e escrever melhor do que outros
maiores, e sinto-me capaz até de os ajudar nos seus tra-
balhos; compreendo com mais facilidade e entendo quási
tudo que leio. Estou satisfeito.
Mas quantos me incitaram e me ajudaram a apren-
der, de um modo ou de outro, em casa, na escola, pela
rua, por toda a parte, enfim, onde ia e onde podia ver
qualquer coisa! A todos agradeço agora. Agradeço pri-
meiro a ti, bom mestre, que foste tão indulgente e afec-
ctuoso para comigo, e a quem custou uma fadiga cada
novo conhecimento com que agora me alegro • de que
tenho orgulho. Agrad«ço-te, Dtrossi, meu admirávejl
CORAÇÃO
247
companheiro, que com tuas explicações prontas e deli-
cadas me fizeste compreender tantas coisas difíceis e
vencer os obstáculos dos exames; a ti também, Scardi
bravo e forte, que me mostraste como uma vontade de
ferro tudo subjuga; a ti, Garrone, bom e generoso, que
tazes bons e generosos todos os que te conhecem; e
também a vos. Precossi e Coretti, que me deste o exem-
plo da coragem, dos sofrimentos e da serenidade no
trabalho — eu digo obrigado a ti e a todos os mais' Mas
acima de todos, agradeço-te, meu pai, meu primeiro mes-
tre, meu primeiro amigo, que me deste tão bons conse-
lhos e me ensinaste tantas coisas, ao mesmo tempo que
trabalhavas para mim. ocultando-me sempre as tuas
tristezas e procurando por todos os modos tornar-me o
estudo facil e a vida bela; e a ti, minha doce mãi, meu
anjo da guarda querido e abençoado, que gozaste de
todas as minhas alegrias e participaste de todas as mi-
nhas amarguras, que te afadigaste, estudaste, e choraste
comigo, acariciando-me com uma das mãos e apontan-
do-me com a outra o céu. Ajoelho-me diante de vós
como quando era criança, e, com tôda a ternura aue sou-
beste incutir-me na alma, em doze anos de sacrifícios e
de amor, eu vos agradeço.
Naufrágio
(ÚITIMO CONTO MENSAL)
Alguns anos há que por uma manhã do mês de De-
zembro, levantava ferro do porto de Liverpool um gran-
de vapor, que levava a bordo mais de duzentas pessoas
e entre elas, setenta homens de tripulação.
O capitão e quási todos os marinheiros eram ingje-
ses. Entre os passageiros contavam-se vários italianos
três senhoras, um padre e um grupo de músicos ambu-
lantes. O navio dirigia-se à ilha de Malta e o tempo es-
tava enevoado.
Entre os viajantes de terceira classe, havia um ra-
pazinho de doze anos, pequeno para a sua idade, mas
robusto: um belo rosto ousado e severo de siciHano
Estava so, junto ao mastro do traquete, sentado em cimt
de um montão de cordas, ao lado de uma mala usada qu-
CORAÇÃO
continha as suas roupas, e sobre a qual apoiava uma das
mãos. Tinha o rosto moreno e os cabelos negros e on-
dulados, que quási lhe caíam nos ombros. Estava vestido
pobremente, com um manto já gasto sobre as costas e
uma velha bolsa de couro a tiracolo.
Olhava em torno de si, pensativo, para os passagei-
ros, para o navio, para os marinheiros, que passavam
correndo, e para o mar inquieto. Tinha a expressão
doentia de um rapaz que acabava de sofrer grande des-
graça de família, rosto de criança e fisionomia de ho-
mem.
Pouco depois da partida do navio, um dos mari-
nheiros, italiano de cabelos grisa,lhos, apareceu à proa,
trazendo pela
mão uma me-
nina, e, paran-
d o d e f r onte
do pequeno si-
liciano, disse-
-Ihe:
— Aqui tens
uma c o m p a-
nheira de via-
gem, Mário-
Deixou-a fi-
car e foi-s e
embora.
A menina
sentou-s e s ô-
bre o montão
de cordas ao
lado do rapaz.
Olharam um
para o outro.
^N ^ t\^:;:::^^>*«^-^^ • -"^síP» 7" Aonde
vais? pregun-
tou-lhe o siciliano.
A pequena respondeu:
— A Malta por Nápoles. Depois acrescentou: — Vou
CORAÇÃO 249
encontrar-me com meu pai e minha mãi, que me espe-
ram. Chamo-me Julieta Faggiani.
O rapaz nada disse. Poucos minutos depois tirou
de sua bolsa pão e frutas secas; a menina trazia bis-
coitos. Comeram.
■— Alegrai-vos ! gritou o marinheiro italiano, passan-
do rapidamente. Vai começar o baile.
O vento ia aumentando e o navio balouçava forte-
mente. Mas os dois não enjoavam, e pouco lhes impor-
tava isso. A menina sorria tinha aproximadamente a ida-
de de seu companheiro, mas era muito mais alta; de
rosto moreno, delicado, um pouco fraca, e vestia mais
que modestamente. Tinha os cabelos curtos e anelados,
um lenço vermelho em volta da cabeça, duas argolinhas
de prata nas orelhas.
Comendo, iam contando a sua vida. O rapaz já não ti-
nha pai nem mãi. O pai, operário, morrera em Liverpool
poucos dias antes, deixando-o só, e o cônsul italiano man-
dava-© agora para Palermo, sua terra, onde tinha ainda
alguns parentes afastados. A menina tinha sido levada
para Londres, um ano antes, por uma tia viúva que a
estimava muito, com consentimento de seus pais, pobres,
que a deixaram ir por algum tempo, confiados na pro-
messa de uma herança; mas poucos meses depois, a tia
morreu esmagada por um automóvel sem lhe deixar um
vintém; e então, vendo-se obrigada a recorrer ao cônsul,
este a embarcara para a Itália. Ambos foram recomen-
dados ao marinheiro italiano. De modo que, concluiu
a pequena, meu pai e minha mãi esperavam que vol-
tasse rica, e em vez disso vojto pobre como fui. Mas
eles querem-me da mesma maneira. E meus irmãos tam-
bém. Tenho quatro, todos pequeninos. Sou a mais velha
da casa. Hão-de fazer-me muita festa ao ver-me. Hei-de
entrar nas pontinhas dos pés... O mar está horrível!
Depois preguntou ao rapaz:
— E tu vais ficar com os teus parentes?
— Sim, se me quiserem, respondeu.
— Não te querem bem?
— Não sei.
250 CORAÇÃO
— Eu completo treze anos pelo Natal, disse a me-
nina-
Depois principiaram a discorrer do mar, da gente
que tinham em redor de si. Todo o dia estiveram jun-
tos, trocando de quando em quando algumas palavras.
Os passageiros pensavam ser irmão e irmã. Ela, a menina,
fazia uma meia; êle meditava. O mar ia engrossando
cada vez mais. À noite, quando se separaram para dor-
mir, disse a Mário:
— Dorme bem.
— Ninguém dormirá bem; pobres crianças! excla-
mou o marinheiro italiano, passando de corrida a cha-
mado do capitão. O rapazinho ia responder à sua amiga
— Boa noite! — Quando um jorro de água inesperado,
caindo sobre êle com violência, o atirou de encontro a
um banco.
— Ai ! mãi do céu ! que se feriu ! — gritou a rapariga,
lançando-se sobre êle.
Os passageiros que desciam à câmara, não deram
atenção.
A menina ajoelhou-se ao lado de Mário, que ficara
atordoado com a queda, limpou-lhe a testa, que estava
ensanguentada, e tirando o lenço vermelho que lhe cobria
os cabelos, envolveu-lhe a cabeça aconchegando-a ao
peito para melhor poder atar as pontas do lenço, caindo-
-Ihe nessa ocasião no peito uma gota de sangue sobre
o seu vestido amarelo. Mário reanimou-se e pôs-se em
pé.
— Sentes-te melhor? — preguntou a menina.
— Não tenho mais nada i— respondeu êle-
— Dorme bem — Julieta.
— Boa noite — respondeu Mário.
E desceram pelas duas escadinhas dos seus dormi-
tórios. O marinheiro tinha predito a verdade. Ainda não
tinham adormecido, quando se desencadeou uma tem-
pestade medonha. Foi como um assalto repentino de va-
gas furiosas, que em poucos momentos partiram um dos
mastros e levaram consigo, como se fossem folhas se-
cas, três botes que estavam presos aos guindastes e qua-
tro bois que estavam na proa. No interior do navio nas-
CORAÇÃO 151
ceu a confusão, o terror, um alarido de gritos, cho-
ros e preces que faziam erriçar os cabelos. A tempestade
foi-se tornando cada vez mais tormentosa durante a
noite. Ao despontar da aurora cresceu ainda. As ondas
aiterosas, flagelando o vapor obliquamente rebentavam
sobre a coberta, despedaçavam, lambiam e levavam tudo
consigo. A plataforma que cobria a máquina arrombou-
-se, e a água precipitou-se dentro com um estrépito hor-
rível; as fornalhas chiando apagaram-se, e os maquinis-
tas fugiram; jorros de água, grossos e impetuosos, pe-
netravam por toda a parte. Uma voz potente gritou: As
bombas! — Era a voz do capitão. Os marinheiros corre-
ram às bombas- Mas um golpe de mar repentino, encon-
trando o navio pela ré, despedaçou parapeitos e porti-
nholas, e a água torrentosa desabou pesada dentro do
navio.
Todos os passageiros, mais mortos do que vivos, se
haviam refugiado na sala grande. Num certo momento
apareceu o capitão.
— Capitão! capitão! gritaram todos juntos. Que se
faz? Estamos em perigo? Há esperanças? Salve-nos!
O capitão esperou que todos se calassem e disse fria-
mente :
— Resignemo-nos.
Só uma mulher soltou um grito — Piedade! nin-
guém mais pôde pronunciar uma palavra. O terror tinha
paralisado todas as bocas.
Muito tempo se passou assim num silêncio de tú-
mulos. Olhavam uns para os outros, com os rostos pá-
lidos, em calafrio, trémulos, O mar sempre e sempre fu-
rioso, horrendo, bramia formidável.
O navio balouçava pesadamente.
Num dado momento o capitão tentou Rançar ao mar
um barco de salva-vidas. Cinco marinheiros entraram
nele e o barco foi arreado, mas foi logo emborcado por
uma onda, e afogaram-se dois marinheiros, sendo um
deles o italiano; os outros a custo conseguiram agar-
rar-se às cordas, e subiram escorrendo água-
D«pois disto, os próprios marinheiros perderam toda
252 CORAÇÃO
a coragem. Duas horas depois o navio estava já imerso
na agua até a altura aas enxárcias.
Um espectáculo tremenao passava-se no entanto so-
bre a coberta. As máis, desgrennadas, ferozes, cmgiam
os filhos ao peito desesperaaamente ; os amigos abraça-
vam-se e despediam-se; alguns desciam aos camaro-
tes, para morrer sem verem o mar; um viajante disparou
uma pistola na cabeça, e caiu de bruços sobre a escada
do dormitório, onde expirou no meio de sangue.
Muitos agarravam-se freneticamente aos outros; as
mulheres contorciam-se em convulsões horrendas, reza-
vam e diziam orações com o aspecto herético e impie-
doso dos que desesperaram da vida.
Alguns estavam ajoelhados em volta de um padre.
Ouvia-se um coro de suspiros e lamentos infantis, de vo-
zes agudas e estranhas; viam-se aqui e ali pessoas imó-
veis, rijas como estátuas, pasmadas, com as pupilas aber-
tas, sem olhar, faces de cadáveres e de loucos.
Os dois pequenos, Mário e Julieta, agarrados a um
mastro do navio, olhavam para o mar, com os olhos des-
mesuradamente fixos, penetrando o infinito como insen-
satos.
O mar tinha-se aquietado um pouco, mas o navio
continuava a submergir-se lentamente. Não restavam
mais do que alguns minutos.
— A lancha ao mar ! — gritou o capitão.
Uma lancha, a última que ficara, foi lançada às águas
e catorze marinheiros com três passageiros entraram nela.
O capitão ficou a bordo-
— Desça connosco — gritaram de baixo.
— Não! devo morrer no meu posto! respondeu o ca-
pitão.
— Encontraremos algum navio — gritaram de novo
os marinheiros; salvar-nos-emos. Aí, está perdido.
— Eu fico.
— Há ainda um lugar ! — gritaram de novo os mari-
nheiros, dirigindo-se aos outros viajantes.
— Uma mulher!
Uma senhora adiantou-se então, amparada pelo ca-
pitão, mas, à vista da distância a que se achava a gancha,
CORAÇÃO 253
não se sentiu com coragem de tentar o salto, e tornou
a cair sobre o convés. As outras estavam quási todas
desmaiadas e moribundas.
— Uma criança! — gritaram ainda os marinheiros.
Àquela voz, o rapaz siciliano e a sua companheira,
que tinham estado até ali como petrificados por um ter-
ror sobre-humano, despertados repentinamente pelo vio-
lento instinto da vida, desprenderam-se num impulso do
mastro, e lançando-se sobre a borda do navio, gritaram
a uma voz:
— A mim ! a mim ! — procurando empurrar-se um ao
outro para trás, como duas feras enfurecidas!
— A lancha está sobrecarregada.
— O mais pequeno!
Ao ouvir aquelas palavras, a menina deixou cair os
braços como fulminada, e permaneceu imóvel, olhando
para Mário com os olhos já amortecidos. Mário, depois
de fitá-la por um instante, viu a mancha de sangue so-
bre o seu peito, recordou-se, e o lampejo de uma ideia
divina iluminou-lhe o rosto.
— O mais pequeno! gritaram em coro os marinhei-
ros, com imperiosa impaciência. Partimos já-
Então Mário, com uma voz que não parecia mais a
sua, gritou:
— Ela é mais ,leve! Vai tu, Julieta, tens pai e mãi,
eu não tenho ninguém. Dou-te o meu lugar!
— Desce!
— Deita-a ao mar! — disseram os marinheiros.
Mário agarrou Julieta pela cintura e deitou-a ao
mar. A menina deu um grito e mergulhou. Um mari-
nheiro agarrou-a por um braço e puxou-a para cima da
lancha.
O rapaz ficou firme na borda do navio, com a
fronte alta, os cabelos ao vento, tranquilo, sublime, como
se a glória 'o tivesse ali imobilizado e petrificado em
estátua do Sacrifício.
A lança moveu-se e fê-lo apenas a tempo de esca-
par do redemoinho da água, produzido pela submersão
do navio, que esteve a ponto de embaraçá-la.
Então Julieta, que estivera até àquele momento
aM CORAÇÃO
quási insensível, levantou os olhos para Mário e desa-
tou em copioso pranto.
— Adeus, Mário! gritou-lhe entre soluços, com os
braços estendidos para êle. Adeus! Adeus!
— Adeus ! — respondeu o rapaz, levantando a mão.
A lancha a£astava-se velozmente sobre o mar agi-
tado, debaixo de um céu tétrico. Ninguém mais gritava
a bordo do navio. A água lambia já as bordas da co-
berta-
De repente Mário caiu de joelhos com as mãos pos-
tas e os olhos cravados no céu.
A menina de longe cobriu o rosto, mas quando er-
gueu a cabeça, estendeu a vista sobre o mar.
O navio já havia desaparecido.
A última página de minha mãi
Está, pois, acabado o ano, Henrique. Bem é que te fique
como recordação do último dia a imagem dessa criança sublime
que deu a vida por sua amiga. Agora estás para separar-te dos
teus mestres e dos teus companheiros, e eu devo dar-te uma
noticia triste. A separação não durará somente três meses, durará
sempre. Teu pai, por deveres da sua profissão, tem de deixar
Turim, e nós todos com êle. Sairemos no próximo outono. Terás
de entrar numa escola nova. Isto te entristece, não é verdade?
porque estou certa de que estimas tua velha escola, onde durante
quatro anos duas vezes ao dia experimentaste o prazer do tra-
balho, onde viste por tanto tempo, a uma certa hora, os mesmos
parentes, e teu pai e tua mãi que te esperavam a sorrir, a tua
velha escola onde se abriu a tua inteligência, onde encontraste
tão bons companheiros, onde cada palavra que ouvias tinha por
fim o teu bem, e nenhum dissabor sofreste que te não fosse útil.
Conserva, pois, este afecto contigo, e dá um adeus de coração
a todos aqueles colegas. Alguns suportarão grandes desventuras,
perderão cedo pai e mãi, outros morrerão na flor da idade, ou-
tros derramarão nobremente o seu sangue nas batalhas, muitos
serão bons e honestos operários, pais de famílias laboriosas e
honestas como êles e quwn sabe se entre eles nio haverá alguns
CORAÇé 2i5
que prestem ainda grandes serviços ao seu país o façam o seu
nome glorioso? Separa-te, portanto deles afectuosamente, deixa
um pouco da tua alma naquela grande família onde entraste
criança e donde sais moço, e que teu pai e tua mãi muito amam,
porque nela foste muito amado.
A escola é uma mãi, meu Henrique. Ela levou de meus bra-
ços uma criança que balbuciava apenas e agora restitui-ma forte,
robusta, boa e estudiosa. Abençoada seja a escola, e tu não a
esquecerás mais, meu filho. Oh! é impossível que a esqueças.
Far-te-ás homem, viajarás, verás cidades imensas e monumentos
maravilhosos, e da muitos destes te esquecerás; mas aquele mo-
desto edifício branco, com aquelas persianas cerradas e aquele
pequeno jardim, onde desabrochou a primeira flor da tua inte-
ligência, vê-lo-ás até o último dia da tua vida, como versi a
casa em que ouvi a tua voz pela primeira vez.
Os exames
Quarta- feira, 4
Eis-me finalmente na época dos exames.
Pelas ruas que circundam as escolas não se fala de
outra coisa, os meninos, os pais, as mais e até as criadas:
— exames, pontos, tema, média, reprovação, promoção,
todos dizem as mesmas palavras. Ontem de manhã ^foi
o dia de Composição, hoje é o de Aritmética. Era como-
vente ver todos os parentes que conduziam os meninos
a escola, dando-lhes os últimos conselhos pelo caminho,
muitas mais, que acompanhavam os filhos até às mesas'
para ver se havia tinta no tinteiro, e experimentar a pena!
E ainda ao sair da porta voltavam-se dizendo:
— Coragem! Atenção!
O nosso mestre assistente era Coatti, aquele de barba
preta que finge a voz do leão e não castiga ninguém Ha-
via rapazes que estavam brancos de medo. Quando o mes-
tre abriu o município e tirou o problema, não se ouvia
respirar. Ditou o problema em voz alta, olhando para um
e outro lado com uns olhos terríveis; mas compreendia-se
que se lhe fosse permitido ditar também a solução para
que todos fossem promovidos, fá-lo-ia com o maior prg-
256 CORAÇÃO
zer. Depois de uma hora de trabalho, muitos principiaram
a inquietar-se, porque o problema era difíci^. Um come-
çou a chorar. Crossi dava murros na cabeça. E muitos
não eram realmente culpados de não saber, pobres meni-
nos! Eles não tinham muito tempo para estudar, nem ti-
nham o auxílio interessado dos pais.
Mas a Providência estava ali. Era necessário ver a
que trabalho se dava Derossi para os ajudar, os meios
que procurava para passar uma cifra e sugerir uma ope-
ração sem se perceber, tão solícito com todos que pa-
recia ser êle o nosso mestre. Também Garrone, que é for-
te em aritmética, auxiliava quanto podia, e ajudava por
fim a Nobis que vendo-se atrapalhado tornou-se muito
amável; Stardi esteve mais de uma hora com os olhos no
problema e com os punhos nas fontes, e depois resolveu
tudo em cinco minutos.
O mestre andava por entre os bancos, dizendo:
— De vagar! recomendo-vos todo o vagar!
E quando via algum desanimado, abria muito a boca
como para devorá-lo, imitando o leão, unicamente para
o fazer rir e animar. Pela volta das onze horas, esprei-
tando por entre as persianas, vi muitos pais que iam e vi-
nham pela rua, impacientes; entre eles estava o pai de
Precossi com a sua camisola azul, e que saíra naquele mo-
mento da oficina, ainda com a cara toda tisnada.
Estava também a mãi de Crossi, a quitandeira; a mãi
de Nelli, vestida de preto, que não podia estar sossegada.
Pouco antes do meio-dia chegou meu pai e levantou os
olhos para a minha janela. Meu querido pai! Ao meio-dia
tcdos tínhamos acabado. E era de ver-se à saída todos ao
encontro dos meninos a fazerem preguntas e a folhearem
os cadernos, a compará-los com os trabalhos dos compa-
nheiros.
— Quantas operações? Qual é o total? — e a subtra-
cão? — E a resposta? — E a vírgula das decimais?
Todos os mestres andavam para um um e outro lado
chamados de cem partes. Meu pai arrancou-me da mão o
meu rascunho, olhou e disse:
— Está muito bom.
Ao nosso lado estava o ferreiro Precossi, que exami-
CORAÇÃO 257
nava também o trabalho do filho, um pouco inquieto e
sem perceber nada. Voltou-se para meu pai,
— Poderá fazer-me o favor?.., o total?
Meu pai leu a cifra. Êle foi ver. Combinava.
— Bravo, meu pequenino! — exclamou todo satisfei-
to.
E meu pai e êle olharam-se um momento com um bom
sorriso como dois amigos.
Meu pai estendeu-lhe a mão; êle apertou-a. E sepa-
raram-se dizendo : — Ao exame oral ! ao oral ! !
Dados poucos passos, ouvimos uma voz de falsete
que nos fez voltar a cabeça. Era o ferreiro que cantava.
O úlfimo exame
Sexta-feira, 7
Esta manhã fizeram-se os exames orais. Às oito horas
estavam todos na classe, e às oito e um quarto pricipia-
ram a chamar-nos, quatro de cada vez, à sala grande, onde
havia uma enorme mesa coberta com um pano verde, e em
torno o director e os quatro mestres, entre os quais o nos-
so. Fui um dos primeiros chamados. Pobre mestre!
Esta manhã conheci bem quanto nos estimava. En-
quanto os outros nos interrogavam, não tirava os olhos
de nós; inquietava-se quando nos via indecisos em res-
ponder, sossegava quando dávamos boas respostas. Ouvia
tudo e fazia-nos mil acenos com as mãos e com a cabeça
para dizer-nos: — bem — não — sê atento — mais deva-
gar-- coragem ! Ter-nos-ia sugerido tudo, se pudesse fa-
lar. Se no lugar dele estivessem colocados uns após ou-
tros os pais de todos os alunos, não teriam feito mais Ti-
ve vontade de gritar-lhe — obrigado — dez vezes, na pre-
sença de todos. E quando os outros mestres me disseram-
--■Muito bem, pode retirar-se — Cintilaram-lhe os olhos
de alegria. Voltei logo para a classe a esperar meu pai
Estavam ainda lá quási todos. Sentei-me ao lado de Gar-
rone Mas eu não estava contente. Pensava em que era
a ultima vez que estaríamos uma hora um perto do outro.
17
258 CORAÇÃO
Ainda lhe não tinha dito que não frequentaria a quar-
ta classe com êle, porque tinha de sair de Turim com meu
pai.
Êle nada sabia. E estava ali curvado, com a sua gran-
de cabeça inclinada sobre a carteira, a desenhar ornatos
em volta da fotografia de seu pai vestido de maquinista,
um homem alto e corpolento, com um pescoço forte e
uma aparência séria e honesta como a dele. E
quando estava assim curvado, com a camisa um pouco
aberta na frente, via-se-lhe sobre o peito nu e robusto a
cruzinha de ouro que lhe deu de presente a mãi de Nelli,
quando soube que era ê^e o protector de seu filho- Mas
era necessário que eu lhe falasse a respeito de minha via-
gem. E disse-lhe: «Garrone, neste outono meu pai ausen-
ta-se de Turim para sempre». Êle preguntou-me se eu ia
também. Respondi-lhe que sim.
— Não frequentarás a quarta classe connosco? pre-
guntou-
Respondi-lhe que não.
Ficou então por um pouco de tempo sem falar, con-
tinuando o seu desenho. Depois preguntou-me, sem levan-
tar a cabeça:
— Hás-de recordar-te sempre de teus companheiros
da terceira?
— Sim, disse-lhe, — de todos, mas... de ti mais do que
de todos. Quem poderá esquecer-se de ti?
Êle olhou para mim com um olhar firme e séri
um olhar que dizia mij coisas, mas sem dar u-
só me estendeu a mão esquerda, fingindo cont.i. i...; a v
senhar com a outra, e eu apertei entre as minhas aquela
mão forte e leal.
Naquele momento entrou apressadamente o mestre
com o rosto avermelhado, e disse em voz baixa e rápida,
com ar alegre: — Bravo! até agora tudo vai bem! Assim
possam ir os outros que faltam: bravo, rapazes! coragem!
estou contentíssimo.
E para mostrar-nos a sua alegria e divertir-nos, fin-
giu tropeçar e agarrou-se à parede para não cair ; e riu-se
êle a quem nunca tínhamos visto rir. O facto pareceu-nos
tão estranho, que, em vez de rir, ficamos todos estupe-
CORAÇÃO 259
factos; todos sorrimos, mas nenhum riu. Pois bem, não
sei porquê, mas fez-me pena e ternura ao mesmo tempo
aquela manifestação de alegria infantil. Era todo o seu
prémio aquele momento de alegria, era a compensação de
longos meses de bondade, de paciência e também de amar-
g»jies. Tinha-se afadigado tanto tempo, tinha vindo tan-
tas vezes dar lição doente, pobre mestre! Isto era tudo o
que nos pedia, em troca de tanto afecto e de tantos cui-
dados! E agora parece-me que hei-de vê-lo sempre assim
naquele momento fejiz, quando me recordar dele durante
muitos anos. E se, quando eu fôr homem, êle viver ainda,
e nos encontrar-mos, falar-lhe-ei daquele dia em que me
tocou o coração, e dar-lhe-ei um beijo nos seus cabelos
brancos.
Adeus
Segunda-íeira, lo
Ao meio-dia fomos todos pela última vez à escola pa-
ra saber o resultado dos exames e receber os certificados
de promoção. A rua estava repleta de parentes, que ti-
nhc-m invadido até o salão de entrada, e muitos chegaram
33 classes, amontoando-se ao lado da mesa do mestre; na
nossa sala enchiam todo o espaço entre a parede e os
primeiros bancos. Estavam o pai de Garrone, a mãi de
Derossi, e o ferreiro Precossi, Coretti, a senhora Nelli,
a quitandeira, o pai do Pedreirito, o pai de Stardi e
muitos outros que nunca tinha visto; e havia de todos
os lados um sussurro, um bulício, que parecia estarmos
numa praça.
Entrou o mestre. Fez-se um grande silêncio. Tinha
n£? mãos a lista e começou a ler: Abatucci, promovido,
sessenta sexagésimos; Archini, promovido, cinqiienta
e cinco septuagéssimos; o Pedreirito, promovido; Crossi,
pr( movido; depois leu mais alto: Ernesto Derossi, pro-
movido, setenta septuagésimos e o primeiro prémio; to-
dos os parentes, que estavam ali e o conheciam, dis-
seram :
260 CORAÇÃO
— Parabéns, Derossi ! E êle sacudiu os seus cabelos
louros, com o seu sorriso desenvolto e belo, olhando para
a sua mãi, que o saudou com a mão. Garoffi, Garrone, o
calabrês, promovidos. Depois, três ou quatro, em segui-
da reprovados; e um desses pôs-se a chorar, porque seu
pai, que estava à porta, £ez-lhe um gesto de ameaça. Mas
o mestre disse ao pai : — Não senhor, perdôe-me, nem sem-
pre é culpa deles; muitas vezes é infelicidade. Este é um
dos casos.
Depois ,leu: — Nelli, promovido, sessenta e dois sep-
tuagéssimo. Sua mãi mandou-lhe um beijo com o leque.
Stardi, promovido, com setenta e sete septuagésimo; mas
ao ouvir aquela bela classificação êle nem sequer despren-
deu os punhos das fontes. O último Voltini, que tinha
vindo muito bem vestido e penteado, promovido. Lido o
último, o mestre levantou-se e disse: — «Senhores, é es-
ta a última vez que nos encontramos reiinidos. Temos es-
tado juntos um ano, e agora separamo-nos bons amigos,
não é verdade? Aqui fez pausa, e depois recomeçou: «Se
algumas vezes sem querer fui injusto ou demasiado seve-
ro, desculpai-me».
— Não, não disseram os parentes e discípulos; não
senhor mestre, nunca.
^Desculpai-me, repetiu o mestre — e continuai a
querer-me bem. No ano vindouro não estareis mais comi-
go, mas tornar-vos-ei a ver e tereis sempre um lugar no
meu coração. Até à vista, meus filhos!
Dito isto, veio para junto de nós e todos Ih. j
demos a mão, trepados nos bancos. Prenderam-no pelos
braços e pelas abas do casaco, muitos beijaram-no; e cin-
quenta vozes disseram ao mesmo tempo:
-^ Até à vista, mestre! obrifrado, senhor mestre! Pas-
se muito bem! Lembre-se de nós.
Quando saiu, parecia oprimido pela comoção. Saímos
todos atropeladamente.
E todas as outras classes saíram também; era um bor-
borinho. uma grande aleazarra de meninos e de parentes
que diziam adeus aos mestres e às mestras e saúdavam-
-se uns aos outros. A mestra da pena vermelha tinha qua-
tro ou cinco crianças que se lhe pegavam às costas e umas
CORAÇÃO 261
vinte em volta de si, que até lhe tiravam a respiração ; e
à Freirinha tinham-lhe amarrotado o chapéu e haviam
prendido entre os botões do seu vestido preto, ou metido
nas algibeiras, uma dúzia de raminhos de flores. Muitos fa-
ziam festa a Roberti, que justamente naquele dia tinha
abandonado pela primeira vez as muletas. De toda a parte
se ouvia dizer: — Até ao novo ano! Até 20 de Outubro.
Até ao dia de Todos-os-Santos-
Ah! como todos os dissabores eram esquecidos na-
quela hora!
Voltini, que tinha sido sempre tão invejoso de De-
rossi, foi o primeiro a ir ao seu encontro de braços aber-
tos. Eu saudei o Pedreirito e beijei-o no momento em que
êle fazia o último focinho de lebre, bela criança. Saudei
Precossi, saiidei Garoffi, que me anunciou ter eu ganho
na última lotaria, e deu-me um peso de louça para papeis
partido num canto; disse adeus a todos os outros.
Era de ver como o pobre Nelli se apegava a Garrone,
e ninguém os podia mais separar. Todos se juntaram em
volta de Garrone, e — adeus Garrone, adeus até à vista —
e tocavam-no, abraçavam-no, faziam-lhe festas, àquele bra-
vo e santo rapaz. Estava também seu pai todo admirado,
embevecido, a sorrir, Garrone foi o último que abracei
na rua, e não o pude fazer sem sufocar um soluço dentro
do peito. Êle beijou-me na fronte.
Depois corri para meu pai e minha mãi. Meu pai pre-
.^^spediste-te de todos os teus companheiros?
'isse que sim,
i algum, a quem tenhas ofendido, vai pedir-
j^ tfc perdoe e o esqueça. Não há nenhum?
— Nenhum, respondi.
— Então, adeus ! — disse meu pai com a voz comovi-
da, lançando um último olhar à escola-
— Adeus!
E não pude articular palavra.
FIM
ÍNDICE
Pág.
Prefácio 5
O primeiro dia de escola 7
O nosso mestre 9
Uma desgraça 10
O pequano calabrês 12
Os meus companheiros 14
Uma acção generosa 15
A minha antiga mestra 17
Numa água furtada 18
A escola 20
O pequeno patriota de Pádua (Conto mensal) 21
O limpa-chaminés 24
O dia de finados 26
O meu amigo Garrone 27
O carvoeiro e o fidalgo 28
A msstra do meu irmão 30
Minha mãi 32
O meu cornpanheiro Coretti 34
O Director 37
Os soldados 39
O protector de Nelli /^o
O primeiro da classe 42
O pequeno vigia lombardo (Conto mensal) 44
Os pobres 49
O traficante 51
Vaidade 52
A primeira nave 54
O pedreirito 55
Uma bala de neve ..>, 57
As mestras 59
Em casa do ferido 60
O pequeno escrevente florentino (Conto mensal) 62
A vontada 7°
Gratidão 7i
CORAÇÃO 263
O mestre suplente _2
A livraria de Stardi n»
O filho de ferreiro ....^.\.. 76
Uma bela visita * '* _g
Os funerais de Vítor Manuel 70
Franti expulso da escola 80
O tamborzinho sardo (Conto mensal) .".!.!!!!!.". 83
O amor da Pátria qj
Inveja !!!!!!!!!!!!!!!!!! L
A mãi de Franti q.
Esparança qr
Uma medalha bem dada 07
Bons propósitos !!!.!!.!. ' qq
O comboiozinho !!!!!!!... 100
Soberba
Os feridos pelo trabalho !!".!.!..!!!.!,!!!!!!!!" 104
O prisioneiro ....".. 106
O enfermeiro de Tatá (Conto mensai) .........!...'.*.' loo
A oficina g
O pequeno palhaço 120
O último dia de carnaval i..".!....!!...!.!.!.. 124
Os rapazes cegos !!!!!!!!!!!! 126
O msstre enfermo
A Rua "i!!!!!!!;!;;;;;;!;;!;::::;
As escolas nocturnas í^í
A luta !!!."."!!]!." .'.".' .'.*.'.'."
Os parentes dos meninos ......''.... ÍH
O número 78 ^"
O pequeno morto \\'\ ^^^
A véspera de 14 de Março ...!!!!!!......".!.'." Jíf
A distribuição dos prémios .,Tl
Litígio ^45
Minha irmã .'"'."!.'.'!.'!."!!!.*."."!."!.'.'!!! ^^°
Scingue romanholo (Conto mensal) 11^
O P. J -i-c oribundo "
a^í- Cavour '^'^^^^''^^."^^'I^^. «
primavera ^^3
u Rei Humbsrto ^Z.^
O asilo infantil .'.".".'.'.".".".'
Na ginástica ^^°
O mestre de meu pai .!.!!!!!!.!.!!!!!! ^^í
Convalescença ^
Os amigos dos operários .... • ^f*^
A mãi de Garrone ^7
José Mazini - ^°9
Valor cívico (Conto mensal) ........"..' ^^°
As crianças raquíticas ^^^
Sacrifício ^97
O incêndio .'.... ^99
201
264 CORAÇÃO
Dos Apeninos aos Andes (Conto mensal) 204
Verão 221
Poesia 223
A surda-muda 224
Garibaldi 231
O exército 233
Itália 234
32 graus 235
Meu pai •• ••• 237
No campo 238
A distribuição dos prémios aos operários 241
A minha mestra morta 244
Agradecimentos 246
Naufrágio (Último conto mensal) 247
A última página de minha mãi 254
Os exames 255
O último exame 257
Adeus 259
J
PQ Amicis, Edmondo de
A683 Coração
A3C89
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