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Full text of "Coração. Trad. de V. de Magalhães"

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in  2010  with  funding  from 

University  of  Toronto 


http://www.archive.org/details/coraotraddevOOdeam 


CORAÇÃO 


IMPRENSA  BELEZA  — Rua  da  Rosa,  99  a  107  — USBOA 


EDMUNDO  DE  AMICIS 


CORAÇÃO 


Tradução  de  V.  DE  MAGALHÃES 


Coração  é  um  livro  que  faz  chorar  sem 
entristecer.  Os  olhos  enchem-se  de 
lágrimas,  ao  passo  que  a  alma  se 
sente  cheia  de  força  e  de  alegria. 


EMPRESA  LITERÁRIA  UNIVERSAL 
15-  RUA  DA    ERA  -  17 

LISBOA 


.^ 


NC 


PREFACIO 


Este  livro  é  particularmente  dedicado  aos 
rapazes  das  escolas  elementares,  que  contam 
entre  nove  a  treze  anos,  e  podia  intitular- 
-se:  História  de  um  ano  escolar,  escrita 
por  um  aluno  da  terceira  classe,  de  uma 
escola  municipal  de  Itália  —  dizendo  escrita 
por  um  aluno  da  terceira,  não  quere  dizer 
que  êle  próprio  a  tenha  escrito  tal  e  qual 
ela  é  agora  impressa.  Êle  anotava  sucessiva- 
mente num  caderno,  como  sabia,  tudo  o 
que  via,  sentia  e  pensava  na  escola  e  fora 
dela;  e  seu  pai  no  fim  do  ano  corrigia 
aquelas  notas,  forcejando  por  não  alterar 
o  pensamento,  e  conservando,  quanto  pos- 
sível, as  palavras  do  filho.  Este,  quatro  anos 
mais  tarde,  frequentava  já  o  Liceu,  releu 
o  caderno,  acrescentou-lhe  alguma  coisa  da 
sua  lavra,  valendo-se  para  isso  da  memória 
ainda  fresca  das  pessoas  e  das  coisas.  — 
Recomendo-vos  este  livro,  rapazes,  espe- 
rando que  a  sua  leitura  vos  seja  agradável 
e  profícua. 

O  TRADUTOR 


CORACAO 


OUTUBRO 


O  primeiro  dia  de  escola 

Segunda-feira,  17 

É  hoje  o  primeiro  dia  de  escola.  Passaram  como  um 
sonho  aqueles  três  meses  de  férias  no  campo!  Minha  mãi 
foi  comigo  esta  manhã  para  me  inscrever  na  terceira 
classe.  Eu  ia-me  lembrando  do  campo,  e  seguia-a  de  má 
vontade.  Todas  as  ruas  estavam  cheias  de  rapazes;  e  as 
lojas  de  livros  apinhadas  de  pais  e  mais,  que  compravam 
bolsas,  carteiras  e  cadernos.  Diante  da  escola  era  tal  a 
multidão,  que  o  contínuo,  a  muito  custo,  conseguia  abrir 
caminho.  Junto  à  porta,  senti  que  me  tocavam  no  ombro. 
Era  o  meu  mestre  da  segunda,  sempre  alegre,  com  os  ca- 
belos ruivos,  desgrenhados,  que  me  dizia:  — Com  que  en- 
tão, Henrique,  vamo-nos  separar  para  sempre?  —  Já  o  sa- 


CORAÇÃO 

bia,  e,  apesar  disso,  aquelas  palavras  fizeram-me  pena.  En- 
trámos com  aiiicuiuaue.  iaomens,  seiuioias,  muineres  do 
povo,   operários,   militares,    criaaos,    toaos    levando    pela 
raao  os  seus  rapazes,  que  seguravam  os  seus  certiiicados 
de  exame,  agiomeravam-se  na  saia  aa  entraaa  e  nas  esca- 
das, íazenao  um  borbormho  que  parecia  uma  sala  de  es- 
pectáculo. Tornei  a  ver  com  prazer  aqueie  saiáo,  com  as 
suas  sete  portas,  dando  entraaa  para  as  aiversas  classes, 
onde  passei  durante  três  anos  quasi  todos  os  dias !  A  mul- 
tidão   era   imensa,    e  os  professores  andavam  numa  roda 
viva.    A   minha   mestra  da  primeira  superior  saiidou-me 
da  porta  da  sala,  dizendo-me  —  Henrique,  já  sei  que  vais 
este  ano  lá  para  cima,  e  nem  ao  menos  te  verei  passar  1  — 
E  olhava  para  mim  com  ar  melancólico.  O  director  estava 
rodeado  de  mulheres,   contrariadas  por  não  arranjarem 
lugar  para  seus  filhos,  e  pareceu-me  que  êle  tinha  a  oarba 
mais  embranquecida  do  que  no  ano  anterior.  Achei  os 
rapazes  gordos  e  crescidos.  Na  sala  de  entrada  onde  se 
tinham  já  feito  distribuições,  havia  alunos  da  primeira 
classe  que  não  queriam  entrar  na  aula,  e  apertavam-se 
uns  contra  os  outros  como  carneirinhos.  Era  necessário 
empurrá-los  para  os  obrigar  a  entrar.  Alguns  escapavam- 
-se    dos   bancos,    outros,   ao    verem   afastar    os    parentes 
começavam  a  chorar,  até  que  estes  voltassem  a  consolá- 
-los  ou  a  levá-los  consigo.  As  mestras  impacientavam-se. 
Meu  irmão  mais  novo  foi  para  a  aula  da  professora  Del- 
cati  e  eu,  para  a  do  professor  Perboni,  em  cima,  no  pri- 
meiro andar.  Às  dez  horas  estávamos  itodos  na  aula:  cin- 
coenta  e  quatro.  Apenas  lá  vi  quinze  ou  dezasseis  dos 
meus  companheiros  da  segunda,  e  entre  estes  o  Derossi, 
aquele  que  ganha  sempre  o  primeiro  prémio.  Como  me 
pareceu  mesquinha  e  triste  a  escola  ao  lembrar-me  dos 
bosques  e  das  montanhas  onde  passei  o  verão!  Também 
me  recordava  do  meu  mestre  da  segunda,  tão  bom,  rindo 
connosco,  quási  do  nosso  tamanho,  que  mais  parecia  um 
companheiro;  e  tinha  pena  de  já  não  o  ver  ali,  com  os 
seus  cabelos  ruivos,  desgrenhados.  O  nosso  mestre  é  alto, 
cara  rapada,  e  cabelos  compridos  e  grisalhos;  tem  uma 
ruga  horizontal  na  testa,  e  a  voz  grossa;  fita-nos  a  to- 
dos, um  por  um,  como  queni  quer  ler  nas  nossas  cons- 


CORAÇÃO  9 

ciências;  e  não  se  ri  nunca.  Eu  disse  comigo:  é  o  pri- 
meiro dia,  e  faltam  ainda  nove  meses!  quantos  traba- 
lhos, quantos  exames  mensais,  quantas  fadigas!  Que  von- 
tade não  tinha  de  ver  a  minha  mãi!  Logo  que  saí,  corri 
a  beijar-me  a  mao.  tila  disse-me:  —  Então,  Henque,  o 
que  é  isso?  ânimo!  Estudaremos  juntos.  —  E  voltei  pa- 
ra casa,  contente.  —  Mas  lembro-me  tanto  do  meu  antigo 
mestre  e  do  seu  sorriso  bom  e  alegre,  que  até  a  escola 
me  parece  menos  bonita  que  dantes! 

O  nosso  mesíre 


Têrça-feira,  28 

Desde  esta  manha  que  também  gosto  do  meu  novo 
mestre.  Quando  ele  estava  já  sentado  no  seu  lugar  apa- 
reciam à  porta,  de  vez  em  quando,  alguns  dos  seus  alunos 
do  ano  anterior,  para  saudá-lo.  Metiam  a  cabeça  e  di- 
ziam :  —  Bom  dia,  s  e- 
nhor  professor.  —  Bom 
dia,  senhor  Perboni.  — 
Alguns  entravam,  aper- 
tavam-1  h  e  a  mão  e 
saíam  logo.  Bem  se  via 
que  o  estimavam  muito, 
e  que  a  sua  vontade  se- 
ria continuar  com  êle. 
O  mestre  respondia:  — 
Bom  dia!  —  e  apertava 
a  mão  que  lhe  esten- 
diam; mas  não  olhava 
para  ninguém.  A  cada 
nova  saudação  tornava- 
-se  mais  grave  e  sério, 
com  a  sua  ruga  horizon- 
tal na  testa,  olhando 
através  da  janela  e  fi- 
xando o  tecto  da  casa  fronteira,  e  em  vez  de  regosijar-se 
com  estas  demonstrações  de  afecto,  parecia  incomodar-s« 
com  elas.  Depois  encarou-nos  um  por  um,  atentamente. 


10  CORAÇÃO 

Ditando,  desceu  a  passear  por  entre  os  bancos,  e,  no- 
tando que  um  rapazinho  tinha  a  cara  muito  vermelha  e 
algumas  vesículas  na  face,  parou  de  ditar,  tomou-lhe  o 
rosto  entre  as  mãos,  observou-o,  e,  preguntando-lhe  se 
lhe  doia  alguma  coisa,  pôs-lhe  a  mão  sobre  a  itesta  para 
ver  se  tinha  febre.  Nisto  um  rapaz  que  estava  por  de- 
trás dele,  ergueu-se  no  banco  e  pôs-se  a  fazer  gaifonas. 
O  mestre  voltou-se  de  repente,  e  o  rapaz  tornou  a  sentar- 
-se,  ficando  de  cabeça  baixa  como  se  esperasse  o  cas- 
tigo. O  mestre  correu-lhe  então  a  mão  pela  cabeça  e 
apenas  lhe  disse :  —  não  torne  a  fazer  isso.  —  E,  voltando 
para  a  cadeira,  continuou  a  ditar.  Findo  o  ditado,  olhou 
para  nós  um  momento  silencioso,  e  disse  em  seguida, 
vagarosamente,  com  a  sua  voz  grossa,  mas  suave :  — 
Atendei:  Temos  de  passar  juntos  um  ano!  Procuraremos 
passá-lo  em  boa  paz.  Estudai  e  sede  bons.  Eu  não  tenho 
família,  a  minha  família  sois  vós.  O  ano  passado  tinha 
ainda  minha  mãi,  mas  morreu.  Fiquei  só.  Não  tenho 
mais  que  os  discípulos  no  mundo,  não  tenho  outro  afecto, 
não  tenho  outro  pensamento.  Serão  eles  os  meus  filhos. 
Sejam  todos  meus  amigos,  como  eu  sou  amigo  de  todos. 
Desejo  não  ter  que  castigar  nenhum.  Mostrai-me  que 
tendes  coração  e  a  nossa  escola  será  uma  família,  e  vós 
sereis  a  minha  consolação  e  o  meu  orgulho.  Não  peço 
que  me  façam  promessas  porque  estou  cerito  que  o  vosso 
coração  assentiu  já  ao  meu  pedido,  e  agradeço-vos. — 
Neste  ponto  entrou  o  contínuo  a  dizer  que  tinha  dado 
a  hora.  Levantámo-nos  todos,  dos  bancos,  em  silêncio. 
O  rapaz  que  itinha  feito  as  momices  chegou-se  ao  pé  do 
professor,  e  disse-lhe  com  voz  trémula:  —  Senhor  mes- 
tre, perdõe-me.  —  O  mestre  beijou-o  na  fronte,  dizendo- 
Ihe :  —  Ora  vá,  vá,  meu  filho ! 

Uma  desgraça 

Sexta-feira,  21 

O  ano  principiou  por  uma  desgraça.  Indo  eu  para 
a  escola  esta  manhã,  repetia  o  meu  pai  aquelas  pala- 
vras do  mestre,  quando  vimos  a  rua  coberta  de  povo  que 


CORAÇÃO 


11 


se  aglomerava  dianite  da  porta  da  secção.  Meu  pai  disse 
logo:  —  Temos  desgraça.  O  ano  principia  mal.  —  Entrá- 
mos a  custo.  O  grande 
salão  estava  repleto  de 
rapazes,  a  quem  os  mes- 
tres não  conseguiam 
fazer  entrar  nas  aulas, 
e  todos  estavam  volta- 
dos para  o  gabinete  do 
director,  donde  saíam 
estas  palavras :  —  Pobre 
moço !  pobre  Robetti ! 
Por  cima  de  tantas  ca- 
beças, destacavam-se  o 
boné  do  policia  e  a 
calva  do  director.  De- 
pois entrou  um  sujeito, 
de  chapéu  alto,  que  dis- 
seram ser  o  médico. 
Meu  pai  preguntou  a 
um  professor: 

—  Que  foi  isto? 

—  Passou-lhe  uma  roda  sobre  um  pé. 

—  Fraoturou-lhe  o  pé,  disse  outro. 

Era  um  aluno  da  segunda,  que  vindo  para  a  escola 
pela  rua  «Dora  Grossa»  viu  um  pequeno  da  primeira 
classe  fugir  da  sua  mãi  e  cair  no  meio  da  rua,  a  poucos 
passos  dum  ónibus  que  vinha  atrás,  e,  correndo  ousa- 
damente, agarrou  e  salvou  o  camarada;  mas,  não  tendo 
retirado  rapidamente  o  pé,  a  roda  do  carro  passou-lhe 
por  cima.  É  filho  de  um  capitão  de  artilharia. 

Enquanto  nos  contavam  o  sucedido,  entrava  na  sala 
uma  senhora,  como  louca,  rompendo  a  multidão.  Era  a 
mãi  de  Robetti  que  tinham  mandado  chamar.  Ao  encon- 
tro desta,  correu  outra  senhora,  que  a  abraça  estreita- 
mente, soluçando.  Era  a  mãi  da  criança  salva.  Entram 
ambas,  precipitadamente,  no  gabinete,  e  ouvem-se  den- 
tro gritos  aflitivos: 

—  Oh!  meu  Júlio!  meu  querido  filho! 


12  CORAÇÃO 

Neste  momenío  pára  à  porta  uijia  carruagem,  e, 
pouco  depois,  apareceu  o  director  dando  o  braço  ao  estu- 
dante, pálido  com  os  olhos  cerrados,  e  que  apoiava  a 
cabeça  sobre  o  ombro  dele.  O  silêncio  era  completo,  só 
se  ouviam  os  lamentos  da  desolada  mãi.  O  director  pa- 
rou um  instante  e  levantou  o  ferido  nos  braços  para  mos- 
trá-lo aos  assistentes.  E  então  os  professores,  as  mestras, 
os  parentes,  os  rapazes  gritaram  itodos  à  uma:  —  Bravo, 
Robetti!  Bravo,  Robetti.  —  E  atiravam-lhe  beijos.  As 
mestras  e  os  rapazes  que  dele  esitavam  próximos,  beija- 
vam-lhe  as  mãos  e  os  braços.  Êle  gesticulando,  pregun- 
tou: 

—  A  minha  mala? 

A  mãi  da  criança  salva  mostrou-lha  chorando,  e 
disse:  —  Eu  levo-ta,  meu  anjo,  eu  levo-ta.  E  amparava 
ao  mesmo  tempo  a  mãi  do  ferido,  que  cobria  o  rosto 
com  as  mãos.  Saíram  e  acomodaram  o  doente  na  carrua- 
gem. '  j 

O  trem  partiu...  Em  seguida  entrámos  todos  na  aula, 
em  silêncio. 

O  pequeno  calabrês 

Sábado,  32 

Ontem  à  tarde,  quando  o  mestre  nos  dava  noticias 
entrou  o  director  com  um  novo  inscrito. 

É  um  rapaz  de  rosto  muito  trigueiro;  tem  os  cabe- 
los negros,  os  olhos  da  côr  dos  cabelos,  as  sobrancelhas 
cerradas  e  unidas;  veste  de  escuro,  e  trás  uma  correia 
de  marroquim  negro,  em  volta  da  cinta. 

O  director,  depois  de  ter  falado  ao  ouvido  do  mes- 
tre, saiu,  deixando  ao  pé  deste  o  rapaz  que  nos  olhava 
com  aqueles  grandes  olhos  pretos,  como  assustado. 

Então  o  mestre  tomou-o  pela  mão  e  disse  para 
todos: 

—  Deveis  ficar  contentes.  Entra  hoje  na  escola  um 
rapazinho  natural  de  Calábria  que  fica  a  mais  de  qui- 
nhentas milhas  daqui;  estimai  o  vosso  irmão,  que  veio 


CORAÇÃO  13 

de  tSo  longe.  Nasceu  numa  terra  que  tem  dado  à  Itália 
homens  ilustres,  bons  trabalhadores  e  bravos  soldados; 
vem  de  uma  das  mais  belas  terras  da  nossa  pátria,  onde 
há  grandes  montanhas  e  florestas  imensas  habitadas  por 
um  povo  cheio  de  engenho  e  de  coragem.  Tratai-o  com 
amor,  para  que  êle  se  não  lembre  que  está  longe  da  terra 
do  seu  nascimento:  £azei-lhe  compreender  bem,  que  um 
italiano,  em  qualquer  escola  italiana  que  entre,  encontra 
sempre  irmãos. 

Dito  isto,  levantou-se  e  apontou  no  mapa  geral  da 
Itália  para  o  ponto  em  aue  se  acha  Reggio  de  Calábria. 
Depois  chamou  em  voz  alta: 

—  Ernesto  Derossi!...  (É  aqu«lt  que  ganha  sempre 
o  prémio).  l^'^ 

Derossi   levantou-se. 

—  Vem  cá,  disse  o  mestre. 

Ernesto  Derossi  saiu  do  seu  luear  e  foi  colocar-se 
ao  lado  da  mesa,  em  frente  do  calabrês. 

—  Como  és  o  primeiro  da  escola,  disse-lhe  o  pro- 
fessor, dá  o  abraço  de  boas  vindas,  em  nome  de  todos 
os  teus  condiscípulos,  ao  novo  companheiro:  vá,  é  o  abra- 
ço dos  filhos  do  Piemonte  aos  filhos  da  Calábria. 

Derossi  abraçou  o  calabrês,  dizendo  com  voz  clara: 

—  Bemvindo!  E  este.  num  Ímpeto  de  afecto,  beijou-o 
na  face.  Todos  deram  palmas. 

—  Silêncio!  exclamou  o  professor;  não  se  dão  pal- 
mas na  escola!  —  Mas  bem  se  via  que  êle  estava  satis- 
feito, e  o  calabrês  também.  O  mestre  designou  a  este 
o  seu  Inovar  e  acomoanhou-o  até  lá.  Deoois. repetiu  ainda: 
—  recordai-vos  bem  do  oue  vos  di<5se:  Para  que  se  dê 
o  facto  de  po^^er  um  filho  da  Calábria  estar  como  em 
sua  casa  em  Turim,  e  oue  um  filho  de  Turim  se  ache 
como  em  rasa  próoria  em  Reqfp^io  de  Calábria,  lutou  o 
nosso  país  durante  cincoenta  anos,  e  morreram  trinta 
iriíT  itjlinno^f  Deveis  respeitar-vos  e  amar-vos  uns  aos 
outros.  Aouele  nue  ofender  este  companheiro  por  não  ter 
na*!rido  na  nossa  província,  tornar-se-â  indÍP-no  de  le- 
vantar os  olhos  do  chão  quando  passar  a  bandeira  tri- 
color. '  ~^ 

Apenas  o  calabrês  tomou  o  seu  lugar,  os  seus  vizi- 


U  CORAÇÃO 

nhos  presentearam-no,  dando-lhe  penas  e  um  traslado; 
e  um  que  estava  no  último  banco  mandou-lhe  uma  es- 
tampilha da  Suécia. 

Os^meus  companheiros 

Têrça-feira,  25 

O  rapaz  que  deu  a  estampilha  ao  calabrês  é  o  que 
me  agrada  mais  de  todos.  Chama-se  Garrone,  é  o  maior 
da  aula,  tem  quási  catorze  anos,  a  cabeça  grande,  e  os 
ombros  ,largos;  pelo  modo  de  sorrir  bem  se  vê  que  é  bom; 
mas  parece  que  esitá  sempre  a  pensar,  como  se  já  fosse 
um  homem.  Agora  conheço  muitos  dos  companheiros. 
Há  outro  que  também  me  agrada;  chama-se  Coretti,  trás 
uma  amisola  côr  de  chocolate  e  um  barrete  de  pele  de 
gato,  e  está  sempre  alegre;  é  filho  de  um  vendedor  de 
lenha,  que  foi  soldado  na  guerra  de  66,  na  divisão  do 
príncipe  Humberto,  e  até  dizem  que  tem  três  medalhas. 
Há  também  Neilli,  um  pobre  corcundinha,  magro  e  de 
rosto  macilento;  e  um  muito  bem  vestido,  que  está  sem- 
pre a  sacudir  os  pêlos  do  fato  e  chama-se  Vottini.  Na 
bancada  adiante  da  minha  está  um  rapaz  a  quem  cha- 
mam o  «Pedreirito»,  porque  o  pai  é  pedreiro.  Tem  a 
cara  redonda  como  uma  maçã,  e  uma  habilidade  parti- 
cular —  sabe  fazer  o  focinho  de  lebre.  Todos  lhe  pedem 
que  faça  a  habilidade  e  riem.  Usa  uma  chapeleta  muito 
gasta,  que  trás  amarrotada  no  bolso  como  um  lenço;  ao 
lado  do  «pedreirito»  está  o  Garoffi,  um  sugeiíto  muito 
comprido  e  magro,  com  o  nariz  de  coruja  e  olhos  muito 
pequenos;  negoceia  sempre  em  santinhos  e  caixas  de 
fósforos,  e  escreve  a  lição  nas  unhas  para  a  lêr  às  escon- 
didas. Há  também  um  Senhorito  Carlos  Nobis,  que  pa- 
rece muito  soberbo,  e  senta-se  no  meio  de  dois  rapazes 
com  quem  simpatizo  muito:  o  filho  do  ferreiro,  acondi- 
cionado numa  jaqueta  que  lhe  chega  aos  joelhos,  pálido, 
Que  parece  doente  e,  sempre  com  ar  espantado,  nunca  se 
ri;  e  outro  com  os  cabelos  ruivos  e  um  braço  paralítico 
aue  trás  sempre  ao  peito.  O  pai  deste  foi  para  a  Amé- 
rica e  a  mãi  anda  de  porta  em  porta  a  vender  hortaliças. 


CORAÇÃO  15 

É  também  um  tipo  curioso  o  meu  vizinho  da  esquerda, 
Stardi :  pequeno,  atarracado,  sem  pescoço,  focinho  de 
porco,  não  fala  com  pessoa  alguma  e  parece  apatetado; 
mas  está  sempre  atento  para  o  mestre,  sem  pestanejar, 
com  a  testa  franzida  e  os  dentes  cerrados.  Se  o  interro- 
gam quando  o  mestre  fala,  não  responde  à  primeira  nem 
à  segunda  vez,  mas  à  terceira  volta-se  e  arruma  um  pon- 
tapé. Há,  ao  lado,  a  cara  tostada  e  feia  de  um  chamado 
Franti,  que  foi  já  expulso  doutra  secção.  Também  há 
dois  irmãos,  igualmente  vestidos,  que  parecem  dois  ma- 
nequins e  usam  um  chapéu  calabrês  com  uma  pena  de 
faísão. 

O  mais  bonito  de  todos,  aquele  que  tem  mais  talento 
e  que  será  de-certo  o  primeiro  ainda  este  ano,  é  Derossi. 
O  mestre  já  o  conheceu  e  interroga-o  sempre.  Eu  po- 
rém gosto  muito  de  Precossi,  do  filho  do  ferreiro,  da- 
quele da  jaqueta  comprida,  que  parece  doentinho.  Dizem 
que  o  pai  lhe  bate.  Coitado!  é  muito  tímido,  e  todas  as 
vezes  que  faz  alguma  pregunta,  ou  roça  por  alguém,  diz 
logo:  —  «Desculpe...»  e  olha-nos  com  meiguice  e  tris- 
teza. 

Mas  Garrone  é  o  maior,  e,  cá  para  mim,  o  melhor  de 
todos. 

Uma  acção  generosa 

Quarta-feira,  26 

Foi  justamente  esta  manhã  que  Garrone  se  deu  a 
conhecer.  Entrei  na  escola  um  pouco  tarde,  porque  me 
tinha  demorado  a  mestra  da  primeira  classe  para  saber  a 
que  horas  nos  encontraria  em  casa.  Mas  o  mestre  não  es- 
tava ainda,  e  três  ou  quatro  rapazes  atormentavam  o  po- 
bre Crossi,  aquele  que  tem  os  cabelos  ruivos  e  braço  pa- 
ralítico, e  cuja  mãi  vende  horta,liças.  Batiam-lhe  com  as 
réguas,  atiravam-lhe  à  cara  com  cascas  de  castanhas,  cha- 
mavam-lhe  estropeado  e  mostrengo,  e  arremedavam-no 
fingindo  ter  como  êle  o  braço  aleijado.  E  o  rapaz,  sozi- 
nho na  ponta  do  banco,  amortecido,  ouvindo  e  olhando 
ora  para  um,  ora  para  outro  com  olhos  suplicantes,  como 
quem  pedia  que  lhe  não  fizessem  mal.  Os  outros  cada  vez 


16  CORAÇÃO 

O  escarneciam  mais;  e  êle  principiou  a  tremer  e  a  fazer- 
-se  vermelho  de  raiva. 

De  repente,  Franti,  aauela  estúpida  cara,  trepou  a 
um  banco  finp^indo  trazer  dnas  canastras  nos  braços  ma- 
caqueando  deste  modo  a  mãi  de  Crossi,  quando  vinha 
esperar  o  filho  à  porta...  Quando  vinha!  poraue  ela  as:o- 
ra  está  doente.  Muitos  começaram  às  gargalhadas.  Cro«- 
si  vendo  aquilo,  perdeu  a  rabeca  e  ap^arrando  num  tintei- 
ro arremecou-o  à  cara  de  Franti  com  quanta  forca  tinha, 
mas  Franti  asrachou-se  rapidamente,  e  o  tinteiro  foi  bater 
em  cheio  no  peito  do  professor  que  entrava.  Todos  fu- 
giram para  os  seus  lucrares,  e  ficaram  quietos  e  assusta- 
dos. O  professor,  pálido,  chegou  à  mesa  e  com  voz  alte- 
rada, prej^untou: 

—  O  que  foi  isto? 

Nineuém  respondeu.  O  mestre  .levantando  mais  a 
voz,  tornou  a  pree^untar: 

—  Ouem  foi? 

Então  Garrone,  cor»doendo-se  do  pobre  Crossi,  le- 
vantou-se  de-repente  e  disse  com  energia: 

—  Fui  eu. 

O  professor  olhou  para  êle,  olhou  em  seo^uida  para 
os  alunos  estuoef actos,  e  disse  com  voz  tranqiiila: 

—  Não  foste  tu,  não! 

E  um  momento  depois  continuou: 

O  culpado  não  será  punido,  mas  aue  se  levante.^ 

Crossi  levantou-se.  e  disse  chorando:  Batiam-me  in- 
sultavam-me...  eu  perdi  a  cabeça  e  atirei... 

Sente-se !  Levantem-se  os  que  o  maltrataram. 

Levantaram-se  os  quatro,  todos  de  cabeça  caída. 
Então  disse  o  mestre: 

Insultar  um  companheiro  oue  os  não  provoca,  es- 
carnecer um  desp-racado,  bater  num  doente  oue  se  não 
pode  defender,  é  cometer  uma  das  arções  mais  vis  e  mais 
verf^onhosas  com  que  se  pode  manchar  a  criatura  huma- 
na! Cobardes! 

Dito  isto.  desceu  até  aos  bancos,  pôs  uma  mão  por 
baÍ7?o  da  barba  de  Garrone  oue  estava  de  cabeça  curvada, 
e  levantando-lha,  fixou-o  e  disse:  — Tu  és  uma  alma  no- 
bre! 


CORAÇÃO  17 

Garrone  aproveitando  o  momento,  murmurou  não  sei 
que  palavras  ao  ouvido  do  mestre,  e  este  voltando-se  para 
os  quatro  culpados,  disse  bruscamente: 

—  Bem!...  estão  perdoados. 

A  minha  aníiga  mesfra 

Quinta-feira,  ay 

A  minha  mestra  manteve  a  sua  promessa:  veio  hoje 
a  nossa  casa  no  momento  em  que  eu  estava  para  sair  com 
minha  mãi  para  levarmos  alguma  roupa  branca  a  uma  po- 
brezinha de  quem  os  jornais  tinham  falado,  recomendan- 
do-a  à  caridade  pública.  Havia  um  ano  que  a  mestra  nos 
não  tinha  visitado,  e  todos  a  recebemos  com  alegria.  É 
sempre  a  mesma,  pequena,  com  o  seu  véu  verde  enrolado 
em  volta  do  chapéu,  vestida  singelamente  e  mal  penteada, 
como  quem  não  tem  tempo  para  en£eitar-se,  mas  um 
pouco  mais  descorada  do  que  o  ano  passado,  já  com  al- 
guns cabelos  brancos  e  tossindo  sempre.  Minha  mãi  disse- 
-Ihe:  —  ...  E  de  saúde,  querida  professora?  Parece  que  a 
senhora  não  tem  bastante  cuidado  consigo... — Vamos 
indo  assim,  não  tem  dúvida...  respondeu  com  o  seu  sor- 
riso suave  e  melancólico.  —  A  senhora  fala  muito  alto, 
acrescentou  minha  mãi,  e  afadiga-se  muito  com  os  seus 
discípulos...  —  Isso  é  verdade. 

Ouve-se-lhe  sempre  a  voz.  Ainda  me  recordo  de 
quando  andava  na  escola  e,  falava  sempre,  para  que  os  ra- 
pazes se  não  distraíssem,  e  nem  um  momento  parava 
assentada.  Estava  bem  certo  de  que  viria  ver-nos,  porque 
nunca  se  esquece  dos  seus  discípulos;  lembra-se  dos  no- 
mes deles  por  muitos  anos.  Nos  dias  de  exame  mensal- 
corre  a  preguntar  ao  director  quais  são  os  pontos;  espera 
os  meninos  à  saída,  e  quere  que  lhe  mostrem  as  composi- 
ções para  se  certificar  dos  seus  progressos.  Muitos  até 
vêm  procurá-la  do  Liceu,  já  de  calças  compridas  e  reló- 
gio. Hoje  vinha  ela  toda  fatigada  da  biblioteca,  onde 
tinha  acompanhado  os  seus  rapazes,  como  fazia  o  ano 
passado,  quando  todas  as  quintas-feiras  ia  com  eles  ao 
museu,  e  explicava-lhes  tudo.  Pobre  mestra!   está  cada 


18  CORAÇÃO 

vez  mais  magra,  mas  sempre  viva,  e  entusiasma-sc  sempre 
que  fala  da  sua  escola.  Quis  tornar  a  ver  o  leito  onde  me 
tinha  visto  havia  dois  anos  muito  doente,  —  o  leito  que 
é  agora  de  meu  irmão.  Demorou-se  pouco  porque  tinha 
de  ir  visitar  um  rapazito  da  sua  aula,  filho  de  um  seleiro 
que  está  com  sarampo,  e  de  corrigir  ainda  uma  porção 
de  páginas,  trabalhar  todo  o  serão,  e  ainda  antes  de  anoi- 
tecer dar  uma  lição  particular  de  aritmética  a  um  ^ogista. 
—  Adeus,  Henrique,  disse-me  ao  sair.  Então  ainda  és 
muito  amigo  da  tua  mestra,  agora  que  já  resolves  os  pro- 
blemas difíceis  e  fazes  grandes  temas?  —  Beijou-me,  di- 
zendo-me  ainda  do  fundo  da  escada:  —  Não  te  esqueças 
de  mim,  Henrique. 

—  Oh!  minha  querida  mestra...  nunca,  nunca  me  es- 
quecerei de  ti.  Quando  fôr  grande  me  lembrarei  ainda... 
Irei  ver-te  no  meio  dos  teus  alunos,  e  todas  as  vezes  que 
passar  perto  de  uma  escola  e  ouvir  a  voz  de  uma  profes- 
sora há-de  parecer-me  ouvir  a  tua  voz  e  hei-de  recordar 
os  dois  anos  que  passei  na  tua  escola,  onde  aprendi  tan- 
tas coisas,  onde  te  vi  tantas  vezes,  doente  e  cansada,  mas 
sempre  solícita,  sempre  indulgente...  desesperada  quan- 
do não  ageitávamos  os  dedos  para  segurar  bem  a  pena, 
trémula  quando  os  inspectores  nos  interrogavam,  feliz 
quando  fazíamos  boa  figura.  Sempre  boa  e  amorosa  como 
uma  mãi.  Nunca,  nunca  me  esquecerei  de  ti,  querida  mes- 
tra! 

Numa  água-furíada 

Sexta-feira,  28 

Ontem  à  noite  fui  com  minha  mãi  e  minha  irmã 
Sílvia  levar  a  roupa  branca  à  pobrezinha  recomendada 
pelo  jornal.  Eu  é  que  levava  o  pacote  e  Sílvia  o  jornal 
com  as  iniciais  do  nome  e  o  endereço.  Subimos  até  quási 
ao  telhado  de  uma  casa  alta,  onde  havia  um  corredor 
muito  comprido,  com  muitas  portas.  Minha  mãi  bateu  na 
última,  que  foi  aberta  por  uma  mulher  ainda  moça,  lou- 
ra e  macilenta,  que  logo  me  pareceu  ter  já  visto  mais  ve- 
rses com  o  mesmo  lenço  azul  que  tinha  na  cabeça.  —  Fa^ 


CORAÇÃO 


19 


favor  de  me  dizer  se  é  a  senhora  a  pessoa  a  quem  se  re- 
fere o  jornal  assim  e  assim...  preguntou  minha  mãi. — 
Sou  eu,  sim,  minha  senhora,  sou  eu.  —  Muito  bem,  traze- 
mos-lhe  aqui  alguma  roupa  branca.  E  ela  começou  a 
agradecer,  que  parecia  não  acabar  mais.  Foi  então  que 
eu  vi,  num  canto  da  casa  nua  e  escura,  um  rapaz  ajoelha- 
do diante  de  uma  cadeira 
com  as  costas  voltadas 
para  nós,  parecendo  estar 
a  escrever.  Escrevia  real- 
mente com  o  papel  sobre 
a  cadeira  e  o  tinteiro  no 
chão.  Como  poderia  ele 
escrever  assim  às  escuras? 
Enquanto  fazia  a  mim 
mesmo  esta  pregunta  re- 
conheci de  repente  os  ca- 
belos ruivos  e  a  jaqueta  de 
fustão  de  Crossi,  do  filho 
da  vendedeira  de  hortali- 
ças, aquele  do  braço  para- 
lítico. Disse-o  baixo  a 
minha  mãi,  enquanto  a 
mulher  guardava  a  rou- 
pa. —  Cala-te,  atalhou  ela, 
que  pôde  ser  que  ela  se  envergonhe  de  ver  que  trazes  es- 
molas para  a  mãi ;  não  o  chames.  —  Mas  naquele  momento 
Crossi  voltou-se;  eu  fiquei  embaraçado.  Êle  sorriu-se,  e 
então  minha  mãi  fez-me  sinal  para  que  corresse  a  abra- 
çá-lo. Abracei-o ;  êle  levantou-se  e  pegou-me  na  mão.  — 
Eis-me  aqui,  dizia  entretanto  a  mãi  dele  à  minha,  sozinha, 
com  este  pequeno,  meu  marido  na  América  há  seis  anos, 
e  eu,  ainda  para  mais,  doente,  sem  poder  tratar  do  meu 
negócio  de  venda  de  hortaliçass,  em  que  ganhava  alguns 
poucos  escudos.  Nem  sequer  me  ficou  uma  pequena  mesa 
para  o  meu  pobre  Luiz  fazer  a  sua  escrita.  Quando  havia 
mesa  lá  em  baixo,  no  portal,  podia  escrever  sobre  ela,  mas 
agora  nem  isso  há.  Nem  ao  menos  uma  luz  para  estudar 
sem  estragar  a  vista!  E  se  ainda  vai  à  escola  é  porque  o 
município,  fe,lizmente,  lhe  dá  os  livros  e  os  cadernos.  Po- 


20  CORAÇÃO 

bre  Luizito,  que  tanta  vontade  tem  de  aprender!  sou 
muito  infeliz.  —  Minha  mãi  deu-lhe  tudo  o  que  tinha  na 
bolsa,  beijou  o  pequeno  e  quási  chorava  quando  saímos. 
E  bem  razão  tinha  em  dizer-me:  —  Viste  em  que  aperta- 
da miséria  aquele  rapaz  é  obrigado  a  trabalhar?  E  tu,  que 
tens  todas  as  comodidades,  ainda  te  parece  árduo  o  es- 
tudo! Ah!  meu  Henrique;  no  trabalho  de  um  dia  daquele 
rapaz  há  mais  mérito  do  que  no  teu  estudo  de  um  ano! 
A  uns  assim  é  que  deveriam  ser  dados  primeiros  prémios. 


A  e<?rola 

Sim,  caro  Henrique,  parece  ser-te  árduo  o  estudo,  como  te 
disse  tua  mSi.  Já  te  não  vejo  ir  para  a  escola  com  aquele  ânim.o 
resoluto  e  rosto  risonho  que  eu  desejaria.  Tu  tens  tendência  para 
vadio.  Mas  ouve:  pensa  um  pouco  em  como  será  para  ti  mofino 
e  triste,  o  dia  em  que  não  fores  à  escola!  Ao  cabo  de  uma  sema- 
na, tu  mesmo,  morto  de  aborrecimento  e  de  vergonha,  enojado 
dos  teus  passatempos  e  da  tua  existência,  pedirás  de  mãos  ergui- 
das para  voltar.  Lembra-te  de  que  hoje  em  dia  toda  a  gente 
estuda,  meu  Henrique.  Estudam  os  operários  que  vão  à  escala 
de  noite,  depois  de  terem  mourejado  todo  o  dia;  estudam  as  ra- 
parigas do  povo  indo  à  escola  no  domingo  depois  de  terem  tra- 
balhado toda  a  sem.ana,  estudam  os  soldados  que  manuseiam  os 
livros  e  os  cadernos  quando  voltam  esfalfados  dos  exercícios. 
Pensa  nos  rapazes  mudos  e  nos  cegos,  que  também  estudam,  e 
até  estudam  os  presos,  que  também  nas  cadeias  aprendem  a  ler 
e  a  escrever.  Pensa  de  manhã,  quando  saíres,  que  naquele  mesmo 
momento,  na  tua  mesma  cidade,  mais  de  trinta  mil  rapazes  vão 
como  tu  fechar-se  por  três  horas  numa  sala  para  estudar.  Pensa 
no  infinito  número  de  crianças  que  àquela  hora  vão  a  caminho 
da  escola  em  todos  os  naíses  do  mundo:  vê-os  através  da  tua 
imaginação,  andando  pelos  sossegados  caminhos  das  aldeias, 
pelas  ruas  das  cidades  rumorosas,  ao  longo  das  praias,  dos  mares 
e  dos  lagos,  ora  debaixo  de  sol  ardente,  ora  por  meio  de  nevoei- 
ros; em  barcos  nos  países  cortados  por  canais;  a  cavalo  pelas 
grandes  planícies:  em  trenó  sobre  as  neves;  por  vales  e  coli- 
nas, 9traves?ndo  bosques  e  correntes,  subindo  por  caminhos  fo- 


CORAÇÃO  21 

litários  das  montanhas;  sozinhos,  aos  pares,  em  grupos  arregi- 
mentados, mas  todos  com  os  livros  debaixo  do  braço,  vestidos 
de  mil  modos,  falando  mil  idiomas,  desde  as  últimas  escolas  da 
Rússia,  quási  perdidas  entre  os  gelos,  até  às  últimas  escolas  da 
Arábia,  assombreadas  pelas  palmeiras;  milhões,  e  milhões  em- 
fim,  todos  aprendendo  as  mesmas  coisas  por  cem  formas  diver- 
sas. Imagina  todo  este  vastíssimo  formigueiro  de  rapazes  de  cen- 
tenares de  povos,  este  movimento  imenso  de  que  também  fazes 
parte,  lembra-te  que  se  este  movimento  cessar  a  humanidade 
cairá  na  barbaria,  porque  este  movimento  é  o  progresso,  a  espe- 
rança e  a  glória  do  mundo.  Coragem,  pois,  meu  pequeno  soldado 
do  imenso  exército!  Os  teus  livros  são  as  tuas  armas,  a  tua 
aula  é  a  tua  esquadra,  o  campo  da  batalha  é  a  terra  inteira,  e  a 
vitória  é  a  civilização  da  humanidade...  Não  sejas  um  soldado 
cobarde,  meu  Henrique. 

Teu  pai. 

O  pequeno  pafrioía  de  Pádua 

CONTO  MENSAL 

Sábado,  2q 

Não  serei  um  soldado  cobarde,  não,  mas  iria  de  muito 
melhor  vontade  à  escola  se  o  mestre  nos  contasse  todos 
os  dias  uma  história  como  a  que  nos  contou  hoje  de 
manhã.  Todos  os  meses,  disse  êle,  que  nos  contará  imia,  e 
que  será  sempre  a  narração  fiel  dum  facto  heróico  prati- 
cado por  um  rapaz.  A  de  hoje  chama-se.  O  pequenito  pa- 
triota de  Pádua,  e  é  assim: 

Um  vapor  francês  partiu  de  Barcelona,  cidade  de  Es- 
panha, para  Génova,  e  iam  a  bordo,  franceses,  italianos  e 
espanhóis.  Havia  entre  eles  um  rapaz  de  onze  anos,  mal 
vestido,  sem  ninguém  de  família,  afastando-se  de  todos 
os  passageiros  como  um  animal  selvagem  e  encarando-os 
com  olhar  sombrio.  E  razão  tinha  para  os  encarar  assim... 
Dois  anos  antes,  sua  mãi  e  seu  pai,  camponeses  dos  arre- 
dores de  Pádua,  tinham-no  vendido  ao  chefe  de  uma  com- 
panhia de  saltimbancos,  o  qual,  depois  de  o  ter  ensinado 


22 


CORAÇÃO 


a  dar  cabriolas,  à  força  de  empuxões,  de  pontapés  e  de 
jejuns,  tinha-o  conduzido  através  da  França  e  da  Espa- 
nha, aguilhoando-o  de  contínuo  e  trazendo-o  sempre  roto 
e  esfomeado.  Chegando  a  Barcelona,  e  não  podendo  mais 
suportar  os  maus  tratos  e  a  fome,  reduzido  a  um  estado 


de  fazer  compaixão,  fugiu  ao  seu  algoz  a  implorar  a  pro- 
tecção do  cônsul  de  Itália,  o  qual,  compadecido,  o  embar- 
cara naquele  vapor,  dando-lhe  uma  carta  para  o  comissá- 
rio de  polícia  de  Génova,  por  intermédio  do  qual,  seria 
mandado  aos  parentes  que  o  tinham  vendido  como  uma 
besta  de  carga.  O  pobre  rapaz  estava  roto  e  adoentado. 
Tinham-lhe  dado  um  camarote  de  segunda  classe-  Todos 
os  passageiros  o  observavam  e  alguns  faziam-lhe  pregun- 
tas,  mas  êle  não  respondia  e  parecia  encarar  todos  com 
ódio  e  com  desprezo,  tanto  o  tinham  irritado  e  entristeci- 
do as  privações  e  as  fadigas.  Três  dos  passageiros,  à  fôrja 


CORAÇÃO  23 

de  insistirem  com  preguntas,  conseguiram  fazê-lo  falar,  e 
em  poucas  e  singelas  palavras,  num  mixto  de  veneziano, 
e  espanhoji  e  de  francês,  contou-lhes  a  sua  história.  Não 
eram  italianos  aqueles  três  indivíduos,  mas  compreende- 
ram-no,  e  movidos  em  parte  pela  compaixão,  deram-lhe 
algum  dinheiro,  gracejando  com  êle,  e  estimulando-o  a 
que  prosseguisse  na  sua  narrativa.  Entravam  naquele  mo- 
mento algumas  senhoras  na  sala,  e  os  três,  por  ostentação, 
deram-lhe  mais  dinheiro,  gritando :►— Toma !  apanha!  — 
E  as  moedas,  atiradas  tiniam  sobre  a  mesa.  O  rapaz  meteu 
tudo  no  bolso,  resmungando  uns  agradecimentos  com  o 
seu  modo  brusco,  mas  com  um  olhar  pela  primeira  vez 
risonho  e  afectuoso.  Daí  a  pouco  trepou  para  o  seu  beli- 
che, correu  a  cortina,  e  ficou  muito  quieto,  pensando  na 
vida.  Com  aquele  dinheiro  podia  comprar  a  bordo  algum 
alimento  bom;  havia  dois  anos  que  não  comia  pão  com 
fartura...  Podia  comprar  uma  jaqueta,  mal  desembarcasse 
em  Génova,  porque,  desde  que  saíra  de  casa  de  seu  pais, 
andava  vestido  de  farrapos;  e  podia. ainda,  levando  o  res- 
tante para  casa,  ter  a  esperança  de  ser  aco,lhido  pelo  pai 
e  pela  mãi  mais  humanamente  do  que  seria  se  chegasse 
com  as  algibeiras  vazias.  Era  uma  pequena  fortuna  aquele 
dinheiro.  E  nisto  pensava,  um  pouco  mais  consolado,  por 
detrás  da  cortina  do  beliche,  enquanto  os  três  passageiros 
palestravam  sentados  à  mesa  do  jantar,  no  meio  da  sala 
da  segunda  classe.  Bebiam  e  falavam  de  viagens  e  de  paí- 
ses que  tinham  visitado,  e  de  narração  em  narração  vie- 
ram a  falar  de  Itália.  Principiou  um  a  queixar-se  das  hos- 
pedarias, outro  das  grandes  estradas  de  ferro,  e,  a  breve 
trecho,  todos  juntos,  afervorando-se,  começarm  a  dizer 
mal  de  tudo.  Este  preferiria  viajar  na  Lapónia,  aquele  di- 
zia não  ter  encontrado  na  Itália  senão  velhacos  e  desordei- 
ros, e  o  terceiro  concluía  que  os  empregados  italianos  não 
sabiam  lêr.  —  Um  povo  ignorante,  afirmou  o  primeiro.  — 
E  sujo,  asseverou  o  segundo.  —  E  la...,  exclamou  o  últi- 
mo, mas  não  pôde  terminar  o  termo  ladrão,  porque  uma 
tempestade  de  soldos  e  de  meias  liras  se  desencadeou  so- 
bre as  cabeças  dos  três,  e,  caíndo-lhes  pelas  costas  abaixo, 
passaram  de  cima  da  mesa  ao  pavimento  com  um  tinido 
infernal.  Levantaram-se  furiosos,  olhando  para  cima,  re- 


24 


CORAÇÃO 


cebendo  ainda  uma  mão  cheia  de  soldos  pela  cara.— 
Guardem  o  seu  dinheiro,  disse  com  desprezo  o  rapaz,  pon- 
do a  cabeça  fora  da  cortina  do  beliche.  Eu  não  aceito  es- 
molas de  quem  insulta  o  meu  pais. 


NOVEMBRO 


O  Limpa-chaminés 

I  de  Novembro 

Ontem  à  noite  fui  à  aula  das  meninas  que  é  ao  lado 
das   nossas,   para  dar  a  história  do  pequeno  de  Pádua  à 

mestra  da  Silvia  que  a  queria 
;ier.  Setecentas  raparigas  fre- 
quentam essas  aulas.  Quando 
cheguei  começavam  a  sair  to- 
das alegres,  pelas  férias  de 
Todos-os-Santos  e  eis  a  bela 
cena  que  presenciei.  Em  fren- 
te à  porta  da  escola,  do  outro 
lado  da  rua,  estava  com  o  bra- 
ço apoiado  ao  muro  e  a  cabeça 
apoiada  ao  braço,  um  pequeni- 
to limpa-chaminés,  com  o  seu 
raspador  e  o  seu  saco,  todo  en- 
farruscado, chorando  e  solu- 
çando amargamente.  Duas 
^  meninas  da  segunda  classe, 
''  aproximando-se,  preguntaram- 
-Ihe: 

—  Porque     choras     tu     pe- 
queno? 
Mas  ele  não  respondeu;  e  continuou  a  chorar. 

Tu  não  ouves?  o  que  é  que  tens  para  estar  a  chorar 

tanto?  repetiram-lhe  as  meninas 

Levantou  então  o  rosto,  um  rosto  de  criança,  e  disse : 


CORAÇÃO  25 

—  que  estivera  em  várias  casas  a  varrer,  que  ganhara  trin- 
ta soldos,  e  que  os  perdera,  porque  tinha  o  bolso  rasgado 
(e  mostrava  o  rasgão;  e  que  se  nao  atrevia  a  entrar  em  ca- 
sa sem  o  dinheiro.  —  O  patrão  bate-me,  —  exclamava  solu- 
çando e  deixando  cair  outra  vez  a  cabeça  sobre  o  braço 
como  aflito.  As  meninas  estavam  a  olhar  para  êle,  muito 
sérias,  e  no  entanto,  muitas  outras,  grandes  e  pequenas 
pobres  e  ricas  com  as  suas  pastas  debaixo  do  braço,  iam- 
-se  aproximando,  quando  uma  delas,  a  mais  crescida,  que 
trazia  um  chapéu  com  uma  pena  azul,  tirou  da  algibeira 
dois  soldos,  e  disse: — Eu  não  tenho  mais  do  que  dois  sol- 
dos, façamos  uma  subscrição. — Uma  outra  vestida  de  ama- 
relo, disse: — Eu  tenho  tanto  como  tu,  mas  vamos  arranjar 
o  dinheiro  entre  todas,  e  principiaram  a  chamar  umas  pe- 
las outras:  —  Amélia!  Luiza!  Aninha!  um  soldo  cada 
uma!  —  Quem  tem  dinheiro?  Vá,  vá,  venham  aqui  soldos. 
Algumas  tinham-nos  para  comprar  flores  ou  cadernos,  e 
entregaram-nos  logo.  Outras  mais  pequeninas  deram  me- 
nos. A  da  pena  azul  é  que  recolhia  tudo,  e  ia  contando  em 
voz  alta:  —  Oito,  dez,  quinze...!  Mas  era  preciso  mais. 
Foi  então  que  apareceu  uma,  a  maior  de  todas,  que  pare- 
cia uma  mestrazinha  e  ofereceu  meia  lira.  Todas  a  aplau- 
diram muito.  Faltavam  ainda  cinco  soldos.  Agora  que  ve- 
nham as  meninas  da  quarta  que  também  têm  dinheiro, 
disse  uma  da  roda.  E  efectivamente  os  soldos  destas  caí- 
ram em  quantidade.  Todas  formaram  roda,  e  era  encanta- 
dor ver  aquele  limpa-chaminés,  no  meio  de  tantos  vesti- 
dinhos de  cores  variadas  e  daquela  confusão  de  penas, 
de  fitas,  e  de  cabelos  anelados  e  soltos.  Já  havia  trinta 
soldos,  mas  ainda  apareciam  mais,  e  as  pequeninas  que 
não  tinham  dinheiro  furavam  por  entre  as  maiores  e  ofe- 
reciam raminhos  de  flores,  só  para  darem  alguma  coisa. 
Nisto  aparecee  a  porteira  gritando:  —  A  senhora  Direc- 
tora!—  As  raparigas  debandaram  para  todos  os  lados 
como  um  bando  de  pássaros.  E  viu-se  então  o  pequeno 
limpador  de  chaminés,  só,  no  meio  da  rua,  enxugando  os 
olhos,  muito  contente,  com  as  mãos  cheias  de  dinheiro,  e 
tendo  nas  casas  da  jaqueta,  na  abertura  das  algibeiras  e 
no  chapéu,  muitos  raminhos  de  flores...  Até  se  viam  tam- 
bém muitas  flores  no  chão,  aos  pés  dele. 


26  CORAÇÃO 


O  dia  de  finados 

Novembro,  2 

Este  é  o  dia  consagrado  à  comemoração  dos  mortos.  Sabes, 
Henrique,  quais  são  os  mortos  a  que  vós,  rapazes,  deveis  dedicar 
um  pensamento  neste  dia?  —  São  aqueles  que  morreram  por  vós, 
moços  e  crianças.  E  quantos  destes  têem  morrido  e  morrem  to- 
dos os  dias?  Sabes  quantos  homens  têem  cravado  uma  faca  no 
coração,  desesperados  por  verem  os  filhos  na  miséria,  e  quantas 
mulheres  se  afogaram  ou  morreram  de  dôr,  ou  enlouqueceram 
pela  perda  de  um  filho  estremecido?  Lembra-te  de  todos  esses 
mortos  nesta  dia,  Henrique.  Pensa  em  tantas  mestras  que  se  fi- 
naram na  flor  da  existência,  tísicas  pela  fadiga  do  ensino,  pelo 
amor  às  criancinhas,  das  quais  não  tiveram  coração  para  sepa- 
rar-se.  Pensa  nos  médicos  que  sucumbiram  corajosamente,  afron- 
tando moléstias  contagiosas  para  acudir  aos  pequeninos  enfer- 
mos. Pensa  em  todos  aqueles  que  nos  naufrágios,  nos  incêndios  e 
nas  fomes,  em  um  momento  de  supremo  perigo,  deram  à  infân- 
cia o  último  bocado  de  pão,  a  última  tábua  de  salvação,  a  última 
corda  para  escapar  às  chamas,  e  expiraram  contentes  o  seu  sa- 
crifício, porque  com  êle  ficava  a  salvo  a  vida  de  um  inocente. 
São  inumeráveis,  Henrique,  estes  mortos;  há  centenares  destas 
criaturas,  que  se  pudessem  levantar-se  um  momento,  do  túmulo, 
pronunciariam  o  nome  de  uma  criança,  daquela  a  que  sacrifica- 
ram os  prazeres  da  juventude,  a  paz  da  velhice,  os  afectos,  a  inte- 
ligência, a  vida;  esposas  de  vinte  anos,  homens  exuberantes  de 
força,  velhos  octogenários  e  mancebos  —  mártires  heróicos,  e 
obscuros  da  infância,  —  tão  grandes  e  tão  nobres  todos,  que  não 
tem  a  terra  tantas  flores  quantas  deveríamos  desfolhar  nas  suas 
sepulturas.  Tanto  sois  amadas,  oh!  criancinhas!  Pensa  hoje  com 
gratidão  nestes  mortos,  Henrique,  e  serás  melhor  e  mais  afec- 
tuoso com  todos  aqueles  que  te  estimam  e  se  afadigam  por  ti, 
meu  querido  filho,  tão  feliz,  que  no  dia  dos  mortos  não  tens  a 
derramar  lágrimas  por  nenhum! 

Tua  mãi. 


CORAÇÃO  27 

O  meu  amigo  Garrone 

Sexta-feira,  4 

Só  houve  dois  dias  de  feriado,  e  parece-me  que  já  se 
passou  muito  tempo  sem  ver  Garrone !  Quanto  mais  o  co- 
nheço, mais  o  estimo;  e  assim  acontece  a  todos  os  outros, 
excepto  aos  insolentes  que  com  êle  nada  conseguem,  por- 
que Gfrione  não  deixa  praticar  insolências.  Se  acontece 
às  vezes  que  um  mais  taludo  levante  a  mão  sobre  algum 
pequeno  e  este  grite :— -Garrone ! — O  taludo  não  se  mexe 
mais.  Seu  pai  é  maquinista  do  caminho  de  ferro,  e  êjie  en- 
trou tarde  na  escola,  porque  esteve  doente  dois  anos...  É 
o  mais  alto  e  o  mais  forte  da  aula;  levanta  um  banco  nu- 
ma só  mão ;  come  sempre,  e  é  bom.  Qualquer  coisa  que  lhe 
peçam,  lápis,  goma,  papel,  canivete,  empresta  logo  ou  dá; 
e  não  fala  nem  ri  na  escola ;  está  sempre  imóvel  no  banco, 
que  já  é  estreito  para  êle,  com  as  costas  arredondadas  e  a 
cabeça  enterrada  nos  ombros.  Quando  olho  para  êle,  sorri- 
-me  com  os  olhos  meios  cerrados  como  quem  diz:— -So- 
mos amigos,  Henrique!  A  sua  figura  faz  rir;  grande  e 
gordo  como  é,  veste  jaquetão  e  calças,  tudo  apertado  e 
muito  curto;  chapéu  mais  pequeno  do  que  a  cabeça  rapa- 
da à  escovinha;  sapatos  grossos;  e  a  gravata  sempre  tor- 
cida como  uma  corda.  Caro  Garrone !  Basta  vê-lo  uma  vez 
para  a  gente  ficar  a  gostar  dele.  Todos  os  mais  pequenos 
desejariam  estar  ao  seu  ^ado  no  banco.  Sabe  bem  aritmé- 
tica. Traz  os  livros  acamados  e  apertados  com  uma  cor- 
reia de  coiro  vermelho.  Tem  uma  faca  com  um  cabo  de 
madrepérola  que  achou  o  ano  passado  na  praça  de  armas, 
e  um  dia  cortou-se  num  dedo  até  ao  osso,  mas  ninguém 
na  escola  deu  por  isso,  e  em  casa  também  não  disse  nada 
para  não  afligir  o  pai  nem  a  mãi.  Nunca  toma  a  mal  qual- 
quer coisa  que  lhe  digam  por  brincadeira;  mas  ai!  do  que 
lhe  disser:  —  Isso  não  é  verdade  —  quando  êle  afirmar; 
então  incendeiam-se-lhe  os  olhos  e  dá  murros  de  despe- 
daçar os  bancos. 

Sábado  de  manhã,  deu  um  soldo  a  um  aluno  da  pri- 
meira classe  que  estava  a  chorar  no  meio  da  rua  porque 


28  CORAÇÃO 

lhe  tinham  roubado  um,  único  que  tinha,  destinado  à  com- 
pra de  um  caderno.  Há  três  dias  que  está  desenhando  nas 
margens  de  uma  carta  de  oito  páginas  uns  ornatos  à  pena, 
para  o  aniversário  de  sua  mãi,  que  muitas  vezes  vem  bus- 
cá-lo, e  é  alta,  gorda  e  simpática  como  êle.  O  mestre  não 
íhe  tira  os  olhos  de  cima,  e  todas  as  vezes  que  lhe  passa 
perto  toca-lhe  com  as  mãos  nas  espáduas,  como  se  faz  a 
um  toirinho  manso.  Eu  gosto  muito  dele.  Fico  todo  con- 
tente quando  lhe  aperto  com  a  minha  a  sua  grande  mão, 
que  parece  mesmo  a  mão  de  um  homem.  Estou  certo  que 
arriscaria  a  vida  para  salvar  a  de  um  companheiro,  e  que 
se  deixaria  matar  para  defendê-lo.  Lê-se  claramente  nos 
olhos.  Parece  que  anda  sempre  resmungando  com  aquele 
vozeirão  enorme,  mas  sente-se  que  é  a  voz  de  um  coração 
generoso  e  nobre. 

O  carvoeiro  e  o  fidalgo 

Segunda-feira,  7 

Garrone  não  era  capaz  de  dizer  aquelas  palavras  que 
ontem  de  manhã  disse  Carlos  Nobis  a  Beti.  Carlos  Nobis 
é  um  soberbo  porque  seu  pai  é  fidalgo...  um  homem  alto, 
com  toda  a  barba  preta,  muito  sério,  que  vem  quási  todos 
os  dias  acompanhar  o  filho.  Ontem  de  manhã  Nobis  dis- 
cutiu com  Beti,  que  é  um  dos  mais  pequenos,  filho  do  car- 
voeiro, e  não  sabendo  mais  que  lhe  devia  dizer,  porque  ti- 
nha sido  injusto,  disse-lhe  altaneiro:  —  Teu  pai  é  um  po- 
bretão. Beti  corou  até  à  raiz  dos  cabelos,  e  calou-se:  mas 
vieram-lhe  as  lágrimas  aos  olhos.  Quando  foi  para  casa 
repetiu  a  frase  ao  pai,  e  logo  o  carvoeiro,  um  homem  pe- 
queno, todo  enfarruscado,  resolveu  ir  à  lição  da  tarde, 
com  o  filho,  queixar-se  ao  mestre.  Enquanto  fazia  as  suas 
queixas,  e  todos  nós  muito  calados,  o  pai  de  Nobis  que 
tirava,  como  fazia  sempre,  a  capa  dos  ombros  do  filho  à 
entrada  da  porta,  ouvindo  pronunciar  o  seu  nome,  entrou 
e  pediu  explicações. 

—  É  este  operário,  respondeu  o  mestre,  que  vem  quei- 
xar-se de  que  seu  filho  Carlos  dissera  ao  filho  dele:  — 
Teu  pai  é  um  pobretão. 


CORAÇÃO 


29 


O  pai  de  Nobis  carregou  o  sobrolho  e  corou  ligei- 
ramente. Depois  preguntou  ao  filho: 

—  Disseste  aquelas  palavras  ? 

O  filho,  em  pé,  no  meio  da  escola,  com  a  cabeça  baixa, 
não  respondeu.  O  pai  tomou-o  então  por  um  braço,  em- 


purrou-© para  diante  em  frente  de  Beti,  quási  a  tocar-lhe 
e  disse: 

—  Pede-lhe  perdão. 

O  carvoeiro  quiz  interpor-se,  dizendo: 

—  Não,  isso  não... 

Mas  o  pai  de  Nobis  não  o  atendeu,  e  repetiu  ao  filho: 

—  Pede-lhe  perdão.  Repete  as  minhas  palavras:  Pe- 
ço-te  perdão  pela  frase  injuriosa,  insensata  e  indigna  que 
proferi  contra  teu  pai,  a  quem  o  meu  se  honra  de  apertar 
a  mão.  I 

O  carvoeiro  fez  um  gesto  impaciente  como  quem  diz: 
Não  senhor,  isso  não  pode  ser,  O  pai  de  Nobis  não  lhe 
deu  atenção :  e  o  filho  disse  lentamente,  com  um  ténue 
fio  de  voz,  e  sem.  levantar  os  olhos  do  chão; 


30  CORAÇÃO 

—  Peço-te  perdão  pela  frase  injuriosa,  insensata  e 
indigna  que  proferi  contra  teu  pai,  a  quem  o  meu  se  hon- 
ra de  apertar  a  mão. 

Neste  momento  Nobis  estendeu  a  mão  ao  carvoeiro, 
que  lha  apertou  com  força,  e  num  impulso  espontâneo, 
atirou  o  filho  para  os  braços  de  Carlos  Nobis, 

—  Faça-me  o  favor  de  os  colocar  um  ao  lado  do  outro, 
no  banco,  disse  Nobis  ao  professor. 

O  mestre  pôs  Beti  no  banco  de  Carlos.  Quando  se 
sentaram,  o  pai  de  Nobis  fez  uma  cortesia  e  saiu. 

O  carvoeiro  ficou  por  algum  itempo  pensativo,  olhan- 
do para  os  dois  rapazes;  depois  aproximou-se  do  banco 
e  fixou  Nobis  com  expressão  de  pezar,  como  quem  queria 
dizer  alguma  coisa,  mas  não  disse  nada;  estendeu-lhe  a 
mão  para  fazer-lhe  uma  carícia,  mas  não  se  atreveu,  e  ape- 
nas lhe  roçou  a  fronte  com  dois  dos  seus  grossos  dedos. 
Depois  encaminhou-se  para  a  porta,  e  voltando-se  ainda 
mais  uma  vez,  olhou  para  êle  e  saiu... 

—  Recordem-se  bem  do  que  acabam  de  ver,  meus  fi- 
lhos, —  disse  o  mestre  —  esta  é  a  mais  bela  lição  do  ano. 

A  mesíra  do  meu  irmão 

Quinta-feira  lo 

O  filho  do  carvoeiro  foi  discípulo  da  mestra  Del- 
cati,  que  veio  hoje  ver  meu  irmão  que  está  adoentado,  e 
fez-nos  rir  contando-nos  que  a  mãi  daquele  rapaz  lhe  le- 
vara, havia  dois  anos,  um  avental  cheio  de  carvão  em  sinal 
de  grande  reconhecimento  por  ela  ter  dado  uma  medalha 
ao  filho,  e  teimava  a  pobre  mulher  em  não  querer  tornar  a 
levar  o  carvão  para  casa  e  quási  chorou  quando  soube 
que  tinha  de  voltar  com  o  avental  cheio.  Também  de  uma 
pobre  mulher  nos  contou  ela,  que  lhe  levara  um  ramalhete 
de  flores  muito  pesado,  porque  (tinha  dentro  um  punhado 
de  moedas  de  cobre.  Divertimo-nos  muito  a  ouvi-la,  e 
meu  irmão  foi  ingerindo  o  remédio  que  até  ali  não  que- 
ria tomar. 

Quanta  paciência  não  é  necessária  para  com  aqueles 
rapazitos  da  primeira,  todps  desdentados  corno  uns  ve- 


CORAÇÃO  31 

Ihinhos,  sem  poderem  pronunciar  nem  o  R,  nem  o  S.  Um 
a  tossir,  outro  a  deitar  sangue  pelo  nariz,  este  perdendo 
os  tamancos  debaixo  do  banco,  aquele  berrando  porque  se 
picou  com  a  pena,  e  outro  chorando  porque  comprou  o 
caderno  número  dois  em  vez  do  caderno  número  um!  Cin- 
quenta numa  aula,  sem  saberem  coisa  alguma,  com  umas 
mãozinhas  de  manteiga.  E  ser-se  obrigada  a  ensinar  a  es- 
crever tudo  aquilo !  Alguns  trazem  de  casa  no  bolso,  pau- 
zinhos de  alcaçuz,  botões,  pequenos  saca-rôlhas,  tijolo 
moído,  toda  a  espécie  de  coisas  miúdas,  e  é  preciso  que  a 
mestra  os  reviste:  mas  escondem  os  objectos,  até  nos  sa- 
patos! e  nunca  estão  atentos;  um  moscardo  que  entra 
pela  janela  põe-nos  a  todos  em  alvoroço.  No  verão,  levam 
para  a  escola  palhinhas  e  folhas  de  rosa,  que  lançam  ao 
ar  e  vão  cair  nos  tinteiros;  depois  enchem  os  cadernos  de 
borrões.  A  mestra  tem  de  fazer  de  mamã  para  eles;  ajuda- 
-os  a  vestir,  liga-lhes  os  dedinhos  feridos,  apanha  do 
chão  as  carapuças  que  caem,  toma  sentido  que  não  tro- 
quem os  capotes,  senão  depois  berram  desesperadamente. 
Pobres  mestras!  E  ainda  por  cima  de  tudo  isto,  vêm  as 
mais  queixar-se: 

—  Como  foi  que  o  meu  pequeno  perdeu  a  pena? — 
Como  é  que  o  meu  não  aprende  nada?  —  Porque  não  dá 
prémio  ao  meu  que  sabe  tanto?  —  Porque  não  manda  tirar 
o  prego  do  banco  que  rasgou  as  calças  ao  meu  Pedro? 

Algumas  vezes  a  mestra  de  meu  irmão  zanga-se  com 
os  rapazes,  e  quando  não  pode  aturá-los,  ferra  os  dentes 
nos  dedos  para  não  desandar  algum  tabefe.  Perde  a  paciên- 
cia, mas  arrepende-se  logo  e  acaricia  a  criança  com  quem 
ralhou.  Expulsa  um  garoto  da  escola,  mas  engole  as 
lágrimas,  e  ncoleriza-se  com  os  pais  que  fazem  jejuar 
as  crianças  por  castigo.  É  jovem  e  alta.  a  professora  Del- 
cati,  bem  vestida,  morena  e  buliçosa,  parece  sempre  im- 
pelida por  uma  mola.  Comove-se  com  qualquer  insignifi- 
cância e  fala  então  com  extrema  brandura  . 

—  Em  paga,  as  crianças  af eiçoam-se-lhe,  disse  minha 
mãi. 

—  Muitas  sim,  —  respondeu  —  mas  depois,  acabado 
o  ano,  a  maior  parte,  nem  sequer  nos  conhecem.  Quando 
çstudam  com  os  rnes-tres  cjuási  se  çnvergonham  de  tereni 


32 


CORAÇÃO 


estado  connosco...  com  uma  mestra!  Depois  de  dois  anos 
de  cuidados,  depois  de  termos  amado  tanto  uma  criança, 
faz-nos  tristeza  quando  nos  separam  dela  e  dizemos:  j- 
Desta  estou  eu  segura  que  se  não  ha-de  esquecer  de 
mim  ..  Mas,  passam-se  as  férias,  entra  de  novo  na  escola, 
^or^emos-lhe^o  encontro:  -  Oh!  meu  amor!  oh!  meu 
Querido !  —  E  ela  volta  a  cabeça  para  o  outro  lado  . .  ^ 

Neste  ponto  a  mestra  calou-se;  e  levantando-se  foi 
beijar  meu  irmão,  dizendo: -Mas  tu  não  farás  assim,  pe- 
querrucho, não  é  verdade?  Tu  não  me  voltaras  a  cara, 
não?  Não  repudiarás  a  tua  pobre  amiga! 

Minha  mãi 

Quinta-feira.  lo  de  Novembro 

Em  presença  da  mestra  de  teu  irmão,  tu  faltaste  ao  res- 
peito a  tua  mãi!   Que  isto  não  aconteça  mais,   Henrique!   nun- 
ca   mais!    A    tua    palavra    irreverente    penetrou-me    no  ^coração 
como   uma   ponta   de   aço.   Lembrei-me   logo   da   tua  mai   quan- 
do    há   anos,   esteve   debruçada   uma   noite   inteira   sobre   o   teu 
berço  medindo   a   tua   respiração,    chorando   lágrimas   angustio- 
sas    batendo    os    dentes    de    terror,    com    receio    de    perder-te, 
quási  louca.  E,  ao  lembrar-me  disto,  experimentei  um  sentimen- 
to  de  horror  por  ti.  Tu!  ofenderes  a  tua  mãi!  Tua  mai  que  dana 
um  ano  de  felicidade  para  poupar-te  um  momento  de  dor!  que 
mendigaria  para  ti!  que  se  deixaria  matar  para  salvar-te  a  vida. 
Ouve,  Henrique,  e  fixa  bem  na  memória  o  quete  vou  dizer, 
imagina  que  te  estão  reservados  na  tua  vida  muitos  dias  terrí- 
veis   mas  o  mais  terrível  de  todos  será  aque  e  em  que  tu  per 
deres  tua  mãi.  Mil  vezes,  Henrique,  quando  fores  homem,  forte 
experimentado  nas  lutas,  tu  invocarás,  oprimido  por  um  desejo 
imenso  de  tornar  a  ouvir  uma  vez  a  sua  voz ;  de  te  sentires  aind 
rma  vez,  apertado  nos  seus  braços  convulsos,   como  um  pobre 
apaz  sem  protecção  nem  conforto.   Como   tu  acordarás   então 
todas  as  amarguras  que  lhe   causaste;   e   com  que  -«lor  os   a 
expiarás  todas!   Infeliz!  Não  esperes  tranquilidade  na  tua  vida 
.e  tiveres  contristado  tua  mãi;   podes  arrepender-te,  voâe,  pe- 
dir^lhe  perdão,  podes   venerar   a  sua  memoria,  mas  tudo  será 


CORAÇÃO 


33 


inútil.  A  tua  consciência  não  te  dará  paz;  aquela  imagem  doce  e 
bôa  terá  sempre  para  ti  uma  expressão  de  tristeza,  de  retraimen- 
to, que  te  há-de  torturar  a  alma.  Henrique,  toma  bem  sentido: 
este  é  o  mais  sagrado  de  todos  os  afectos  hmnanos,  e  ai  daquele 
que  o  não  respeita!  O  assassino  que  venera  sua  mãi  tem  ainda 
qualquer  coisa  de  honesto  e  de  nobre  no  coração:  o  mais  glo- 
rioso dos  homens  que  a  magoe  e  que  a  ofenda,  não  é  senão  uma 
criatura  vil.  Que  te  não  saia  mais  da  boca  imaa  frase  dura  para 


'ià\.  ,1,1 


aquela  que  te  deu  a  vida,  e  se  uma  ainda  te  escapar  que  não  seja 
o  temor  de  teu  pai,  mas  o  impulso  da  tua  alma  que  te  lance  a 
seus  pés,  a  suplicar-lhe  que  com  o  beijo  do  perdão  te  apague  da 
fronte  o  estigma  de  ingrato  I  Eu  amo-te,  meu  filho,  tu  és  a  es- 
perança mais  cara  da  minha  vida;  mas  desejo  antes  ver-te  mor- 
to do  que  ingrato  para  tua  mãi.  Vai!  Por  algum  tempo  dispenso 
as  tuas  carícias:  não  poderia  retribuir-tas  com  o  coração. 


Teu  pai. 


34  CORAÇÃO 

O  meu  companheiro  Coreffi 

Domingo,  13 

Meu  pai  perdoou-me,  mas  eu  fiquei  um  pouco  triste. 
Minha  mãi  então  mandou-me  com  o  filho  mais  velho  do 
porteiro  dar  um  passeio  pelo  Corso.  A  meio  do  caminho, 
pouco  mais  ou  menos,  passando  junto  de  uma  carroça 
que  estava  parada  a  uma  loja,  ouvi  pronunciar  o  meu  no- 
me; volto-me,  era  Coretti,  o  meu  companheiro  de  escola, 
com  a  sua  camisola  côr  de  chocolate  e  o  seu  barrete  de 
pele  de  gato,  todo  suado  e  alegre,  com  um  grande  feixe 
de  lenha  às  costas.  Um  homem  em  pé,  sobre  a  carroça,  da- 
va-lhe  de  cada  vez  uma  braçada  de  lenha  em  que  êle  pe- 
idava e  levava  para  o  armazém  de  seu  pai  onde  diligente- 
mente a  ia  encastelando. 

—  Que  fazes,  Coretti?  lhe  preguntei. 

—  Não  vês?  —  respondeu,  estendendo  os  braços  para 
receber  ouitro  feixe  de  lenha — ando  a  repetir  a  lição. 

Eu  ri-me,  mas  êle  falava  sério,  e  tomando  o  feixe  de 
lenha  ia  andando  e  dizendo :  —  Chamam-se  acidentes  do 
verbo...  as  suas  variantes...  segundo  o  número...  segun- 
do o  número  e  a  pessoa... 

E  tornava  a  carregar  mais  lenha,  e  continuando  a  en- 
castelá-la repetia :  —  Segundo  o  tempo  a  que  se  refere  a 
acção.  E  tornava  de  novo  a  levar  outra  braçada,  dizendo: 
—  Segundo  o  modo  com  que  a  acção  é  enunciada.  Era  a 
nossa  lição  de  gramática  para  o  dia  seguinte. 

—  Que  queres  tu?  —  disse  êle  —  vai-se  aproveitan- 
do o  tempo.  Meu  pai  saiu  com  o  caixeiro  para  uma  quinta. 
Minha  mãi  está  doente.  Toca-me  este  serviço.  No  entan- 
to vou  repassando  a  gramática.  É  uma  lição  difícil  a  de 
hoje.  Não  consigo  encasquetá-la  na  cabeça.  E  dirigindo- 
-se  ao  carroceiro  disse-lhe: 

— .  Meu  pai  deve  estar  aqui  às  sete  horas  para  lhe 
pagar. 

O  carroceiro  partiu: 

—  Entra  um  momento,  disse  Coretti. 

Entrei.  Era  um  casarão  cheio  de  pilhas  de  lenha  e  de 
faxina,  com  uma  grande  balança  a  um  lado  . 

—  Hoje,  para  mim,  é  dia  de  grande  maçada,  digo-to 


CORAÇÃO  35 

eu.  Tenho  de  fazer  o  trabalho  aos  bocados.  Estava  escre- 
vendo as  preposições,  e  veio  gente  comprar.  Volto  a  es- 
crever, chega  a  carroça.  Já  fui  esta  manhã  ao  mercado  da 
lenha,  à  praça  Veneza.  Já  não  sinto  as  pernas  e  tenho  as 
mãos  inchadas.  Estava  arranjado  se  tivesse  lição  de  dese- 
nho! 

E  enquanto  dizia  isto,  ia  dando  uma  varredela  às  fo- 
lhas secas  e  às  palhas  que  cobriam  o  ladrilho. 

—  Mas  onde  estudas  tu,  Coretti?  —  lhe  preguntei. 

—  Já  se  vê  que  não  é  aqui.  —  replicou;  anda  ver. 

E  conduziu-me  a  um  quartinho  ao  fundo  da  loja,  que 
serve  de  cozinha  e  de  sala  de  jantar,  com  uma  mesa  a  um 
canto,  onde  estavam  os  livros,  os  cadernos  e  a  escrita 
principiada. 

—  Estou  aqui,  justamente ;  f alta-me  responder  à  se- 
gunda pregunta:  com  o  coiro  faz-se  o  calçado  e  as  ci- 
Ihas...  agora  acrescento:  —  e  malas  —  e,  pegando  na  pe- 
na, principiou  a  escrever  com  a  sua  bela  caligrafia. 

Neste  momento  ouve-se  alto  na  loja:  —  Então  não 
está  cá  ninguém? 

Era  uma  mulher  que  vinha  comprar  lenha  miúda. 

—  Pronto !  —  respondeu  Coretti.  E  correndo,  foi  pe- 
sar a  lenha,  recebeu  o  dinheiro,  foi  a  um  livro,  tomou 
nota  da  venda,  e  voltou  para  a  escrita,  dizendo: 

—  Vamos  a  ver  se  posso  acabar  o  período.  E  escre- 
veu :  —  bolsas  de  viagem  —  mochilas  para  os  soldados.  — 
Ah!  meu  pobre  café  que  se  vai  embora!  exclamou  de  re- 
pente, e  correu  ao  fogão,  retirando  a  cafeteira  do  fogo. 
—  É  o  café  para  minha  mãi.  Foi  bom  aprender  a  fazê-lo. 
Espera  um  pouco  que  vamos  levar-lho.  Assim  ela  te  verá 
e  há-de  ficar  contente.  Há  sete  dias  que  está  de  cama... 
acidentes  do  verbo...  Escaldo  sempre  os  dedos  com  esta 
cafeteira.  Que  devo  acrescentar  depois  de  mochilas  para 
os  soldados!  Há-de  haver  mais  alguma  coisa  aue  se  faça 
de  coiro,  mas  não  me  lembro.  Vamos  ver  a  mãi. 

Abriu  uma  porta  e  entrámos  num  outro  quarto  pe- 
queno. Estava  a  mãi  de  Coretti  num  leito  grande,  com  um 
lenço  branco  na  cabeça. 

—  Aqui  está  o  café,  mamã  —  disse  Coretti,  dando- 
-Ihe  a  chícara.  Este  é  meu  companheiro  de  escola. 


36  CORAÇÃO 

—  Ah!  muito  bem,  meu  menino,  vem  fazer  uma  visi- 
ta à  doente,  não  é  verdade? 

Entretanto  Coretti  arranjava  os  travesseiros  para  a 
mãi  se  encostar,  endireitava  a  coberta  da  cama;  atiçava  o 
fogo,  e  enxotava  o  gato  de  cima  da  caixa. 

—  Quere  mais  alguma  coisa,  mamã?  preguntou  de- 
pois, pegando  na  chícara.  —  Tomou  as  duas  colheres  do 
xarope?  Quando  se  acabar,  eu  vou  num  pulo  buscar  ou- 
tro à  botica.  A  lenha  já  está  descarregada.  Às  quatro  ho- 
ras porei  a  carne  ao  lume,  como  me  disse,  e  quando  pas- 
sar a  mulher  da  manteiga  lhe  darei  o  dinheiro.  Não  tenha 
cuidado,  que  tudo  irá  bem. 

'—  Obrigada,  meu  filho,  respondeu  ela.  Pobre  filho ! 
Lembra-se  de  tudo. 

Quis  que  eu  tomasse  um  bolo  com  açúcar,  e  depois 
Coretti  mostrou-me  um  quadrosito  com  um  retrato  em 
fotografia  de  seu  pai,  vestido  de  soldado,  com  a  medalha 
de  valor,  que  ganhara  em  65  no  quadrado  do  príncipe 
Humberto.  A  mesma  cara  do  filho,  com  aqueces  olhos  vi- 
vos e  o  mesmo  sorriso  alegre.  Tornámos  à  cozinha. 

—  Já  sei  o  que  é...  disse  Coretti.  E  acrescentou  sobre 
o  caderno ;  —  Fazem-se  também  os  arreios  para  os  cava- 
los. Bem!  o  resto  fá-lo-ei  de  noite,  deitar-me-ei  mais  tar- 
de. Feliz  tu,  que  tens  todo  o  tempo  para  estudar  e  podes 
ainda  sair  a  passeio! 

E  sempre  alegre  e  activo,  tornando  a  entrar  na  loja, 
começou  a  serrar  as  achas  a  meio,  dizendo :  —  Esta  é  a 
minha  gimnástica!  Nada  mais  que  o  impulso  dos  braços 
.para  diante.  Quando  meu  pai  voltar  e  vir  toda  esta  lenha 
serrada,  fica  satisfeito.  O  que  tu  não  sabes  é  que,  depois 
de  ter  serrado,  escrevo  os  tt  e  os  11  que  parecem  serpen- 
tes, como  diz  o  mestre;  mas  que  diabo  lhe  hei-de  fazer? 
—  Digo-lhe  que  foi  necessário  mover  os  braços...  O  que 
eu  quero  é  que  minha  mãi  fique  boa,  isso  sim!  Hoje  está 
melhor,  graças  a  Deus!  A  gramática,  estudá-la-ei  de  ma- 
nhã cedo,  ao  canto  do  galo.  Oh!  lá  está  a  carroça  com  os 
troncos!  Toca  a  trabalhar. 

Uma  carroça  carregada  com  troncos  de  árvores  pára 
defronte  da  loja,  e  Coretti  correu  logo  à  porta  a  falar  com 
o  carroceiro,  voltando  em  seguida. 


CORAÇÃO 


37 


—  Agora  não  posso  fazer-te  mais  companhia.  Até 
amanhã.  Fizeste  bem  em  vir  ver-me.  Bom  passeio.  Feliz, 
tu!  E  apertando-me  a  mão,  correu  a  carregar  o  primeiro 
tronco,  recomeçando  a  lida,  da  loja  para  a  carroça  e  da 
carroça  para  a  loja,  com  a  cara  fresca  como  uma  rosa,  de- 
baixo do  seu  barrete  de  pele  de  gato,  e  esperto  que  fazia 
alegria  vê-lo.  Feliz  tu!  disse-me  êle:  —  Ah!  não,  Coretti, 
não!  mais  feliz  és  tu,  porque  estudas  e  trabalhas,  porque 
és  mais  útil  a  teu  pai  e  a  tua  mãi,  porque  és  bom,  cem  ve- 
zes melhor  e  com  mais  valor  do  que  eu,  caro  compa- 
nheiro ! 


O  Director 


Sexta-feira,  i8 


Coretti  estava  muito  satisfeito  esta  manhã,  porque 
veio  assistir  ao  exame  mensal  o  seu  mestre  da  segunda, 
Coatti,  um  homenzarrão  com  uma  enorme  cabeleira  pre- 
ta, dois  belos  olhos  escuros,  e  uma  voz  de  bombarda,  que 
ameaça  sempre  os  rapazes  de  os  espatifar,  de  levá-los  pe- 
las orelhas  à  polícia,  fa- 
zendo toda  a  espécie  de 
caretas  espantosas...  e 
afinal  não  castiga  nin- 
guém, pelo  contrário, 
sorri  sempre,  por  baixo 
da  barba,  disfarçada- 
mente. São  oito,  com 
Coatti,  os  mestres,  in- 
cluindo um  suplente, 
pequeno  e  sem  barba, 
que  parece  um  menino. 
Um  dos  mestres  da 
quarta,  é  coxo,  constan- 
temente envolvido  nu- 
ma gravata  de  lã,  e  sem- 
pre a  gemer  com  dores 
que  apanhou  quando 
era  professor  geral  numa  esco,la  húmida,  cujas  pa- 
redes   gotejavam    água.    Outro,    também    da  quarta,    um 


38  CORAÇÃO 

velho  de  cabelo  todo  branco  foi  em  tempo  mestre  dos  ce- 
gos. Há  um,  bem  vestido,  de  óculos  e  suícinhas  loiras,  a 
quem  chamam  o  advogadinho,  porque  exercendo  o  magis- 
tério, estudou  a  advocacia  e  ganhou  o  prémio,  e  fez  tam- 
bém um  livro  para  ensinar  a  escrever  cartas.  Um  contras- 
te com  este  é  o  mestre  que  nos  ensina  ginástica...  um  ti- 
po de  soldado ;  andou  com  Garibaldi  e  tem  no  pescoço  a 
cicatriz  de  uma  ferida  de  terçado  que  lhe  fizeram  na  ba- 
talha de  Mijiazzo,  Depois,  o  director,  alto,  calvo,  com  ócu- 
los de  oiro  e  barba  grisalha  caindo-lhe  sobre  o  peito ;  ves- 
te sempre  de  preto,  todo  abotoado  até  debaixo  do  quei- 
xo; é  tão  bom  para  os  rapazes,  que,  quando  são  chamados 
à  direcção  para  serem  repreendidos,  não  lhes  ralha;  pelo 
contrário,  pega-lhes  nas  mãos,  e  começa  a  dizer  por  mui- 
tas formas  que  não  deviam  proceder  assim,  que  é  neces- 
sário que  se  arrependam,  e  que  prometam  ser  bons;  mas 
tudo  isto  com  tão  bom  modo,  e  com  uma  voz  tão  doce,  que 
todos  saem  com  os  olhos  chorosos  e  mais  confusos  do  que 
se  os  tivessem  castigado.  Pobre  director !  êle  é  sempre  o 
primeiro  no  seu  posto,  logo  de  manhã,  a  esperar  os  estu- 
dantes, a  dar  atenção  aos  parentes  que  os  acompanham ;  e, 
quando  os  mestres  vão  já  em  caminho  de  casa,  gira  êle 
pinda  em  volta  da  escola  a  ver  que  os  rapazes  se  não  me- 
tam debaixo  das  carroças  e  não  se  entretenham  pela  es- 
trada a  fazer  travessuras,  ou  a  encher  os  bolsos  de  areia 
ou  de  pedras:  e  todas  as  vezes  que  aparece  a  uma  esquina 
o  seu  vulto  alto  e  escuro,  os  bandos  de  rapazes  dispersam 
por  todos  os  Jados,  abandonando,  o  jogo  das  peninhas  e 
das  bolas,  e  êle  com  o  seu  semblante  amorável  e  triste 
ameaça-os  de  longe  com  a  mão  aberta  e  levantada. 

Diz  minha  mãi  que  nunca  ninguém  o  viu  rir  depois 
que  lhe  morreu  o  filho  que  foi  voluntário  no  exército,  e 
que  tem  sempre  o  retrato  dele  diante  dos  olhos,  em  cima 
da  mesa  da  direcção.  Quis  abandonar  o  lugar  depois  da 
desgraça,  e  tinha  o  requerimento  escrito  e  colocado  so- 
bre a  mesa,  pedindo  a  sua  aposentação  ao  Governo;  mas 
não  se  resolvia  a  mandá-lo,  porque  tinha  pesar  de  deixar 
os  rapazes.  Até  que  um  dia,  estava  decidido  a  apresentá- 
-lo,  e  meu  pai  que  estava  com  êle  na  direcção,  disse-ilhe: 
—  Pena  é  que  se  vá  embora,  senhor  director !  —  Nisto  en- 


CORAÇÃO  39 

trou  um  homem  para  inscrever  um  rapaz  que  passava  de 
outra  secção  para  a  nossa  por  ter  mudado  de  casa.  Ao  ver 
o  novo  aluno,  o  director  ficou  estupefacto.  Fixou-o  por 
alguns  minutos,  olhou  depois  para  o  retrato  que  estava 
sobre  a  mesa  e  tornou  a  fixar  o  rapaz.  Meteu-o  entre  os 
joelhos  e  fez-lhe  levantar  a  cara  para  o  ar.  O  rapaz  asse- 
melhava-se  em  tudo  ao  seu  filho  morto,  disse  o  director. 
Fez  a  inscrição,  despediu  pai  e  filho,  e  ficou  pensativo... 

—  Pena  é  que  se  vá  embora,  repetiu  meu  pai... 
Então  o  director  pegou  no  requerimento,  rasgou-o  e 

disse: 

—  Fico. 

Os  soldados 

Terça-feira,  22 

O  filho,  quando  morreu,  era  voluntário  do  exército, 
e  por  isso  o  director  vai  sempre  ao  Corso  ver  passar  os 
soldados  quando  saimos  da  escola.  Ainda  ontem  passava 
um  regimento  de  infantaria,  e  mais  de  cincoenta  rapazes 
se  puseram  a  pular  em  volta  da  banda  marcial,  cantando  e 
batendo  o  compasso  com  as  réguas  sobre  as  pastas.  Nós 
estávamos  num  grupo,  no  passeio,  a  ver  aquilo.  Garrone 
metido  na  sua  farpela  muito  esticada,  e  com  os  dentes 
ferrados  num  pedaço  de  pão;  Votini,  o  ta,l  muito  aceado 
que  sacode  sempre  os  pelos  do  fato ;  Precossi,  o  filho  do 
ferreiro,  com  a  jaqueta  do  pai;  e  o  Calabrês,  e  o  pedrei- 
rito  e  o  Crossi,  com  a  sua  cabeça  ruiva,  e  Franti  com  a  sua 
face  tostada;  e  também  Robetti,  o  filho  do  capitão  de  ar- 
tilharia, aquele  que  salvou  uma  criança  do  omnibus  e  an- 
da agora  com  muletas.  Franti  deu  uma  risada  mesmo  na 
cara  de  um  soldado  que  ia  coxeando...  Mas  de  repente 
sentiu  uma  mão  sobre  o  ombro,  e  voltando-se  deu  de  fren- 
te com  o  director. 

—  Toma  sentido,  disse-lhe  este.  Escarnecer  de  um 
soldado,  quando  está  na  fileira  e  que  não  pode  desafron- 
tar-se,  nem  responder...  é  o  mesmo  que  insultar  um  ho- 
mem preso.  É  uma  vilania! 

Franti  sumiu-se  logo.  Os  soldados  passavam,  quatro 


40  CORAÇÃO 

a  quatro,  suados  e  cobertos  de  poeira,  e  as  espingardas 
cintilavam  ao  sol...  Nesta  ocasião  disse  o  director: 

— -Deveis  estimar  os  soldados;  são  eles  os  nossos  de- 
fensores, são  eles  que  se  atirarão  à  morte  por  nós,  se  ama- 
nhã um  exército  estrangeiro  ameaçar  a  nossa  pátria.  Tam- 
bém eles  são  rapazes,  poucos  anos  mais  têm  do  que  vós 
e  também  vão  à  escola.  Há  entre  eles,  como  entre  vós,  po- 
bres e  ricos  e  vêm  de  todas  as  partes  da  nação.  Quantos 
não  têm  morrido  pela  pátria,  em  volta  da  bandeira,  que  é 
sempre  a  mesma ! 

—  Ela  lá  vem !  disse  Garrone. 

E  efectivamente  via-se  um  pouco  ao  longe  tremular 
a  bandeira  por  cima  das  cabeças  dos  soldados. 

—  Vá,  meus  amigos!  disse  o  director,  fazei  a  vossa 
continência  de  esco,lares,  com  a  mão  na  fronte  quando  ela 
passar. 

A  bandeira,  empunhada  por  um  oficial,  passava  dian- 
te de  nós,  rota  e  desbotada,  com  medalhas  presas  e  pen- 
dentes da  haste...  Todos  à  uma  fizeram  continência.  O 
oficial  olhou  para  nós,  sorriu-se  e  com  um  gesto  retri- 
buiu-nos  o  cumprimento. 

—  Bravo,  rapazes!  exclamou  alguém  por  trás  de  nós. 
Voltámo-nos  para  ver  quem  falara.  Era  um  velho, 

que  tinha  na  lapela  do  casaco  a  fita  azul  da  campanha  da 
Criméa,  um  oficial  reformado. 

v— Bravo!  repetiu:  praticastes  uma  boa  acção. 

Neste  meio  tempo,  a  banda  do  regimento  voltava  ao 
fundo  do  Corso,  cercada  por  uma  turba  de  rapazes,  e  os 
gritos  alegres  de  cem  vozes  acompanhavam  os  sons  das 
trombetas  com  um  canto  de  guerra. 

—  Bravo!  repetia-nos  o  velho  oficial.  Quem  sabe  res- 
peitar a  bandeira  nessa  idade,  saberá  defendê-la  quando 
homem. 

O  proíecíor  do  Nelli 

Quarta- feira,  23 

Nel,li,  o  pobre  corcundinha,  também  ontem  viu  pas- 
sar o  regimento,  mas  com  um  ar  triste  como  quem  pensa- 


CORAÇÃO  41 

va :  —  Eu  é  que  não  posso  nunca  ser  soldado !  Êle  é  bom, 
estuda,  mas  é  tão  magrinho  e  tão  pálido,  e  respira  cora 
tanta  dificuldade!...  Anda  sempre  de  bibe  comprido  de 
paninho  de  lustro.  A  mãi  é  uma  senhora  pequena  e  loira 
vestida  de  preto;  e  vem  sempre  buscá-lo  antes  da  hora, 
para  que  êle  não  desça  de  roldão  com  os  outros,  e  faz-lhe 
muitas  festas.  Nos  primeiros  dias,  porque  tem  a  infelici- 
dade de  ser  aleijado,  muitos  rapazes  escarneciam-no  e  da- 
vam-Ihe  com  as  pastas  na  corcunda ;  mas  êle  não  se  revol- 
tava nunca,  nem  dizia  nada  à  mãi,  para  lhe  não  dar  o  dis- 
sabor de  saber  que  seu  filho  servia  de  chacota  aos  compa- 
nheiros. Escarneciam-no ;  êle  chorava  e  calava-se  apoiando 
a  cabeça  sobre  a  mesa.  Mas  uma  manhã,  sa,ltou  em  cima  de- 
les Garrone  e  disse: 

—  O  primeiro  que  tocar  em  Nelli,  leva  um  sopapo  que 
o  faço  dar  três  reviravoltas. 

Franti  não  fez  caso,  o  sopapo  partiu,  êle  deu  as  três 
reviravoltas;  e  depois  disso  nunca  mais  ninguém  pôs  a  mão 
no  corcundinha.  O  mestre  assentou-o  ao  pé  de  Garrone  no 
mesmo  banco.  Tornaram-se  amigos.  Nelli  afeiçoou-se-lhe 
muito,  e,  mal  entra  na  escola,  procura  logo  Garrone.  Nunca 
se  vai  embora  sem  lhe  dizer :  —  Adeus,  Garrone !  E  Gar- 
rone faz  outro  tanto.  Quando  Nelli  deixa  cair  a  pena  ou 
um  livro  debaixo  da  mesa,  imediatamente  Garrone,  para 
que  Nelli  não  faça  esforço  em  abaixar-se,  abaixa-se  êle, 
Jevanta  e  entrega-lhe  o  livro  ou  a  pena,  e  à  saída  ajuda-o 
a  meter  os  cadernos  e  os  papéis  na  pasta,  e  enfia-lhe  o  ca- 
pote. Por  tudo  isto  Nelli  gosta  muito  de  Garrone  e  tem 
sempre  os  olhos  nele.  Quando  o  professor  elogia  Garro- 
ne, Nelli  fica  contente  e  satisfeito,  como  se  fora  êle  o  elo- 
giado. Mas  é  de  supor  que  Nelli  afinal  contasse  à  mãi  as 
caçoadas  de  que  fora  vítima  nos  primeiros  dias,  de  quan- 
to os  companheiros  o  fizeram  sofrer,  e  como  o  defendeu 
e  se  lhe  afeiçoou  um  condiscípulo,  porque  esta  manhã 
aconteceu  o  seguinte:  O  mestre  mandou-me  levar  ao  di- 
rector o  programa  da  lição,  m.eia  hora  antes  da  saída;  e 
eu  estava  no  seu  gabinete  quando  entrou  uma  senhora 
loira  e  vestida  de  preto.  Era  a  mãi  de  Nelli,  que  pregun- 
tou: 


42  CORAÇÃO 

—  Senhor  director,  há  na  escola  de  meu  filho  um  ra- 
paz que  se  chama  Garrone? 

—  Sim,  minha  senhora,  respondeu  o  director. 

—  Quere  ter  a  bondade  de  o  mandar  chamar  aqui,  um 
momento,  porque  carecia  dar-lhe  uma  palavra? 

O  director  chamou  o  continuo  e  mandou-o  à  aula;  um 
minuto  depois  entrava  Garrone,  com  a  sua  cabeça  grande 
e  rapada,  todo  pasmado ! 

Apenas  o  viu,  a  senhora  corre  para  êle,  abraçando- 
-se-lhe  ao  pescoço,  dando-lhe  muitos  beijos  na  testa,  ex- 
clamando : 

—  És  tu  Garrone,  o  amigo  de  meu  filho,  o  protector 
daquela  pobre  criança!  És  tu,  querido  e  bravo  rapaz,  és 
tu! 

Em  seguida  apalpou  apressadamente  as  algibeiras  e 
a  bolsa,  mas  não  encontrando  nada,  arrancou  do  pescoço 
um  colar  com  uma  pequena  cruz  e  pô-la  ao  pescoço  de 
Garrone,  por  baixo  da  gravata,  dizendo: 

—  Recebe  esse  colar,  e  conserva  essa  cruz  como  lem- 
brança minha,  conserva-a,  caro  rapaz,  em  recordação  da 
mãi  de  Nelli,  que  te  agradece  e  te  abençoa. 

O  primeiro  da  classe 

Sexta-feira,  2$ 

Garrone  atrai  o  afecto  de  todos;  e  Derossi,  a  admi- 
ração. Já  ganhou  a  primeira  medalha,  e  será  o  primeiro 
este  ano,  porque  nenhum  pode  competir  com  êle,  e  todos 
lhe  conhecem  superioridade  em  todas  as  matérias.  É  o 
primeiro  em  aritmética,  em  geometria,  em  composição  e 
em  desenho ;  percebe  tudo  no  ar  e  tem  uma  memória  pro- 
digiosa. Aprende  bem  sem  esforço,  e  parece  que  o  estu- 
do é  um  brinquedo  para  êle.  O  mestre  disse-lhe  ontem: 
Deu-te  Deus  grandes  dons  e  tens  obrigação  de  os  não 
desprezar. 

E  ainda  para  mais  é  alto,  bonito,  com  uma  grande 
juba  anelada  de  cabelos  louros,  e  ágil.  Salta  um  banco, 
apoiando  apenas  uma  mão  em  cima  e  já  sabe  jogar  as  ar- 


CORAÇÃO  43 

mas.  Tem  doze  anos,  é  filho  dum  negociante,  anda  sem- 
pre vestido  de  azul  com  botões  dourados,  e  sempre  vivo, 
alegre  e  gracioso  com  todos;  ajuda  os  outros,  quando  po- 
de, e  nenhum  se  atreveu  ainda  a  £azer-lhe  uma  grosseria 
ou  a  dizer-lhe  uma  palavra  má.  Só  Nobis  e  Franti  o  olham 
de  revez,  e  Voltini,  a  esse  rebenta-lhe  a  inveja  dos  olhos, 
mas  Derossi  nem  sequer  dá  por  isso.  Todos  se  sorriem 
para  êle,  e  lhe  tocam  na  mão  ou  no  braço  quando  êle  anda 
entre  nós  a  recolher  os  trabalhos  com  a  sua  habitual  ma- 
neira   graciosa.    Presenteia-nos    com    jornais    ilustrados, 
com  tudo  que  em  casa  lhe  dão;  fez  para  o  calabrês  uma 
pequena  carta  geográfica  da  Calábria  e  dá  tudo  a  rir  sem 
reparar  no  que  dá,  como  um  fidalgo  sem  preferência  por 
ninguém.  É  impossível  não  lhe  ter  inveja,  e  não  se  sentir 
a  gente  inferior  a  êle  em  todas  as  coisas.  Ah!  até  eu  tam- 
bém como   Voltini   lhe  tenho   inveja.   Experimento  uma 
amargura,  quási  despeito  contra  êle,  quando  me  demoro 
a  fazer  a  minha  lição  em  casa,  e  me  lembro  que  êle,  aque- 
la hora  a  tem  já  acabada,  perfeitamente,  e  sem  lhe  custar 
nada.  Mas  depois,  quando  vou  para  a  escola,  e  o  vejo  tão 
belo,  tão  risonho,  e  oiço  as  respostas  francas  e  seguras 
que  êle  dá  às  interrogações  do  mestre  vejo  como  é  cor- 
tês com  os  companheiros,  então,  toda  a  amargura  e  todo 
o  despeito  desaparecem,  e  envergonho-me  de  ter  experi- 
mentado tais  sentimentos.   Quereria  estar  sempre  junto 
dele,  dar  todas  as  lições  com  êle,  porque  a  sua  presença 
e  a  sua  voz  dão-me  coragem,  vontade  de  trabalhar,  alegria 
e  prazer.  O  mestre  disse-lhe  que  copiasse  o  conto  mensal 
que  há-de  ler  amanhã  —  O  pequeno  vigia  Lombardo.  Êle 
copiava-o  esta  manhã  e  estava  comovido  por  aquele  acto 
heróico,  e  tinha  o  rosto  incendiado,  os  olhos  húmidos,  os 
beiços  trémulos.  E  eu  fitava-o.  Como  era  grande  e  no- 
bre! Com  que  satisfação  lhe  teria  dito  face  a  face  e  ex- 
pansivamente :  —  Derossi,  tu  vales  em  tudo  mais  do  que 
eu!  Tu  és  um  homem  comparado  comigo!  Respeito-te  e 
admiro-te ! 


44 


CORAÇÃO 


O  pequeno  vigia  lombardo 

(CONTO   MENSAL) 

Sábado,  26 

Em  1859,  du- 
rante a  guerra 
da  libertação  da 
Lombardia, 
poucos  dias  de- 
pois da  bata- 
lha de  Solferi- 
no  e  S.  Marti- 
nho vencida  pe- 
los franceses  e  italianos  contra  os 
austríacos,  em  uma  bela  manhã  de 
junho,  um  pequeno  destacamento  de 
cavalaria  ligeira  de  Saluzo,  seguia 
em  passo  vagaroso  por  um  caminho 
solitário,  em  direcção  ao  inimigo, 
explorando  atentamente  o  campo. 
Comandavam  o  destacamento  um 
oficial  e  um  sargento,  e  todos  com 
a  vista  fixa  ao  longe  em  frente,  mu- 
dos, esperando  ver  de  um  momento  para  o  outro  branque- 
jar entre  as  árvores  as  divisas  das  sentinelas  avançadas  do 
inimigo.  Chegaram  assim  a  uma  casa  rústica,  cercada  de 
freixos,  ao  pé  da  qual  estava  um  rapaz  de  meia  dúzia  de 
anos,  que  descascava  com  uma  faca  um  galho  de  árvore  pa- 
ra fazer  um  bastãozinho.  Na  janela  do  prédio  flutuava 
uma  bandeira  tricolor.  Dentro  não  havia  ninguém.  Os 
camponeses  arvoraram  a  bandeira  e  fugiram  com  medo 
dos  austríacos.  Mal  avistou  a  cavalaria  o  rapaz  deitou  fora 
o  bastão  e  tirou  o  barrete.  Era  um  belo  adolescente,  de 
rosto  ousado,  com  olhos  grandes,  azuis,  e  os  cabelos  lou- 
ros e  compridos.  Estava  em  mangas  de  camisa  e  via-se- 
-Ihe  o  peito  nu. 

—  Que  fazes  aqui?  —  preguntou  o  oficial,  parando  o 
cavalo.  Porque  não  fugiste  com  a  tua  família? 


CORAÇÃO  45 

—  Eu  não  tenho  família  —  respondeu  o  rapaz,  sou 
engeitado.  Trabalho  um  pouco  para  todos.  Fiquei  para 
ver  a  guerra. 

—  Viste  passar  austríacos? 

—  Não  senhor,  há  três  dias  que  não  vejo  nenhum. 

O  oficial  esteve  um  momento  pensativo,  depois 
apiou-se  deixando  os  soldados  voltados  em  direcção  ao 
inimigo,  entrou  em  casa  e  subiu  ao  telhado.  A  casa  era 
baixa,  e  do  telhado  não  se  via  mais  que  um  trecho  de  ter- 
reno. Era  necessário  subir  às  árvores,  disse  consigo  o  ofi- 
cial, e  desceu.  Em  frente  da  eira  erguia-se  a  prumo  um 
freixo  altíssimo  e  delgado,  cuja  coroa  oscilava  no  fundo 
azul.  O  oficial,  concentrado,  olhava  ora  para  a  árvore,  ora 
para  os  soldados.  Depois,  de-repente,  preguntou  ao  ra- 
paz: 

—  Tens  tu  bom  olho,  meu  tratante? 

—  Eu!  respondeu  o  rapaz;  vejo  um  parda^  a  uma  mi- 
lha de  distância. 

—  E  és  capaz  de  subir  ao  cimo  daquela  árvore? 

—  Àquela  árvore...  ora  essa!  Eu!  num  minuto  estou 
lá  em  cima. 

E  saberias  dizer  o  que  visses  lá  do  alto;  se  haverá 
soldados  austríacos  por  alguma  parte,  ou  nuvens  de  pó, 
cavalos,  luzir  de  espingardas? 

—  De-certo  que  hei-de  saber. 

—  Que  queres  tu  para  fazer  esse  serviço? 

—  O  que  eu  quero !  disse  o  rapaz  sorrindo. 

Não  quero  coisa  nenhuma...  Se  fosse  para  os  tudes- 
cos... isso  então  por  nada  deste  mundo...  mas  para  os 
nossos!  Eu  sou  lombardo. 

—  Bravo !  sobe  lá. 

—  Um  momento  para  tirar  os  sapatos! 
Descalçou-se,   apertou  o  cinto    das    calças,  atirou  ao 

chão  o  barrete,  e  abraçou-se  ao  tronco  do  freixo. 

—  Mas  toma  cuidado!...  exclamou  o  oficial  fazendo 
menção  de  retê-lo,  como  se  o  assaltasse  um  temor  repen- 
tino. O  rapaz  pôs-se  a  olhar  para  êle  com  os  seus  belos 
olhos  azuis  como  initerogando-o. 

—  Não  é  nada,  dise  o  oficial,  sobe  lá!... 
O  rapaz  trepou  como  um  gato. 


46 


CORAÇÃO 


—  Olhai     em 

frente!  gritou  o 
oficial  aos  sol- 
dados. 

Em  poucos 
momentos  esta- 
va  o    rapaz   no 
topo   da  árvore 
abraçado  ao  tronco,  com  as  per- 
nas entre  as  folhas,  mas  com,  o 
corpo  descoberto.  O  sol  batia- 
-Ihe  sobre  a  cabeça  loura  que 
parecia     de     ouro.     O     oficial 
mal  o  via,  tão  pequeno  êle  pa- 
recia na  coroa  do  freixo. 

Olha  atento,  e  ao  longe!  —  gri- 
tou-lhe  o  oficial. 

O  pequeno,  para  ver  melhor,  des- 
prendeu a  mão  direita  da  árvore,  co- 
locou-a  sobre  a  testa  em  forma  de 
pala. 

—  Que  vês?   preguntou  o  oficial. 
O    rapaz    inclinou   a   cabeça   para 

êle,  e  fazendo  da  mão  porta-voz,  res- 
pondeu: 

—  Vejo,  na  estrada  branca,  dois 
homens  a  cavalo. 

—  A  que  distância  daqui? 

—  Meia  milha. 

—  Movem-se? 

—  Estão  parados. 

—  Que  mais  vês?  preguntou  o  oficial  depois  de  um 
momento  de  silêncio.  Olha  agora  à  direita. 

O  rapaz  olhou  à  direita  e  depois  disse: 

—  Ao  pé  do  cemitério,  entre  as  árvores,  há  qualquer 
coisa  que  reluz,  parecem  baionetas. 

—  Vês  gente? 

—  Não...  pode  ser  que  esteja  escondida  entre  o  mi- 
lho. Naquele  momento,  um  silvo  de  bala  agudíssimo,  sen- 


CORAÇÃO  47 

(tiu-se  a  grande  altura,  indo  morrer  ao  longe,  por  detrás 
da  casa. 

—  Desce,  desce,  que  já  te  viram!  gritou  o  oficial. 
Não  quero  mais  nada;  desce. 

—  Eu  não  tenho  medo  nenhum!  respondeu  o  ra- 
paz. 

—  Desce!  repetiu  o  oficial...   e  que  vês  à  esquerda. 

—  À  esquerda? 

—  Sim,  à  esquerda. 

O  rapaz  voltou  a  cabeça  à  esquerda,  e  nesse  momento 
sentiu-se  um  outro  silvo  mais  agudo  e  mais  baixo  do 
que  o  primeiro.  O  rapaz  encolheu-se  todo. 

—  Escapei  por  milagre:  vinha  direitinha  a  mim! 
A  bala  tinha-lhe  passado  a  pouca  distância. 

—  Abaixo!  —  gritou   o   oficial   imperioso   e   irritado. 

—  Desço  já  —  respondeu  o  rapaz  —  mas  a  árvore  de- 
fende-me,  não  tenha  susto.  À  esquerda  é  que  quere  sa- 
ber, não  é? 

—  A  esquerda,  sim  —  respondeu  o  oficial,  mas  desce! 

—  A  esquerda,  gritou  o  rapaz,  volvendo  o  corpo  para 
aquele  lado...  lá,  onde  está  uma  capela...  parece  que 
vejo...  Ouviu-se  o  terceiro  silvo  mais  forte,  e  quási  em 
seguida,  o  rapaz  cambaleando,  agarrando-se  por  instantes 
aos  troncos  e  aos  ramos,  caía  de  cabeça  para  baixo,  no 
chão. 

—  Maldição!  gritou  o  oficial,  correndo  para  êle. 

O  desgraçado  batera  com  a  espinha  em  terra  e  fi- 
cara estendido  de  costas  com  os  braços  abertos.  Um  jorro 
de  sangue  golfava-lhe  do  lado  esquerdo  do  peito.  O  sar- 
gento e  dois  soldados  apearam-se  logo  e  o  oficial  de- 
bruçou-se  sobre  o  ferido,  abrindo-lhe  a  camisa.  A  bala 
tinha-lhe  entrado  no  pulmão  esquerdo. 

—  Está  morto!  exclamou  o  oficial. 

—  Ainda  vive,  acudiu  o  sargento. 

—  Ah !  pobre  valente  rapaz !  continuou  o  oficial ;  cora- 
gem! coragem! 

Mas  enquanto  êle  o  animava  e  lhe  apertava  um  lenço 
sobre  a  ferida,  o  rapaz  entreabrindo  os  olhos  deixou 
cair  a  cabeça.  Estava  morto.  O  oficial  empalideceu,  fi- 
xou-o  um  momento,  acomodando-o  depois  com  a  cabeça 


4« 


CORAÇÃO 


sobre  a  erva.  Levantou-se  em  seguida,  e  ficou  a  olhar  para 
êle  con/templativo.  O  sargento  e  alguns  soldados,  imóveis, 
tinham  igualmente  os  olhos  fitos  no  pequeno  morto  e  os 
outros  estavam  voltados  com  a  frente  para  o  inimigo. 

—  Pobre  rapaz!  repetiu  tristemente  o  oficial.  Pobre 
e  bravo  rapaz ! 

Depois  abeirou-se  da  casa,  e  tirando  da  janela  a  ban- 
deira tricolor,  estendeu-a  como  um  pano  fúnebre  sobre 
o  cadáver,  deixando-lhe  o  rosto  descoberto.  O  '^^argento 
colocou  ao  lado  do  morto,  os  sapatos,  o  barrete,  o  bastão 
e  a  faca.  Estiveram  ainda  algum  tempo  silenciosos;  e 
em  seguida  o  oficial,  voltando-se  para  o  sargento,  disse- 
-Ihe: 


—  Mandá-lo-emos  receber  pela  ambulância;  morreu 
como  soldado,  que  seja  enterrado  por  soldados! 

Dito  isto,  atirou  com  um  gesto  um  beijo  ao  morto,  e 
gritou : 

—  A  cavalo! 

Todos  montaram,  reiiniu-se  o  destacamento  e  tomou 
o  seu  caminho.  Poucas  horas  depois,  o  pequeno  morto 
recebia  as  honras  de  guerra.  Ao  pôr  do  sol  toda  a  linha 
de  postos  avançados  dos  italianos,  marchava  ao  encontro 


CORAÇÃO  49 

do  inimigo  pelo  mesmo  caminho  percorrido  de  manhã 
pelo  destacamento  de  cavalaria.  Prosseguia  em  duas  filas 
cerradas  um  grosso  batalhão  de  caçadores,  que  poucos 
dias  antes  regara  valorosamente  de  sangue  o  monte  de 
S.  Martinho.  A  notícia  da  morte  do  rapaz  tinha-se  divul- 
gado entre  aqueles  soldados  antes  de  deixarem  o  acampa- 
mento. O  caminho,  ladeado  pelo  regato,  ficava  a  poucos 
passos  de  distância  da  casa.  Quando  os  primeiros  oficiais 
do  batalhão  viram  o  pequeno  cadáver  estendido  ao  pé 
do  freixo  e  coberto  pela  bandeira  tricolor,  saiidaram-o 
com  a  espada,  e  um  deles,  inclinando-se  sobre  a  margem 
do  regato,  que  estava  toda  florida,  arrancou  duas  flores 
e  atirou-lhas.  Em  poço  tempo  estava  o  corpo  do  rapaz 
(todo  coberto  de  flores.  Oficiais  e  soldados  fizeram-lhe 
a  continência. 

—  Bravo !  pequeno  lombardo !  Adeus,  bravo  rapaz ! 
A  ti,  louro  mártir,  Viva!  Glória!  Adeus! 

Um  oficial,  lançou-lhe  a  sua  medalha  de  valor,  e  um 
outro,  deu-lhe  um  beijo  na  testa.  E  as  flores  conti- 
nuavam a  chover  sobre  os  pés  nus,  sobre  o  peito  ensan- 
giientado  e  sobre  os  cabelos  do  pobre  rapaz  envolto  na 
sua  bandeira,  com  o  rosto  pálido  quási  sorrindo,  como 
se  sentisse  aquelas  saudações,  e  estivesse  contente  por 
ter  dado  a  vida  pela  Lombardia. 

Os  pobres 

Terça-feira,  2Q 

Dar  a  vida  pela  pátria  como  o  moço  Lombardo,  é  uma  gran- 
de virtude,  mas  não  se  devem  desprezar  as  pequenas  virtudes, 
meu  filho.  Esta  manhã,  indo  tu  adiante  de  mim,  quando  voltáva- 
mos da  escola,  passaste  junto  duma  pobre,  tendo  entre  os  joelhos 
uma  criança  pálida  e  abatida,  que  te  pediu  esmola.  Tu  olhaste 
para  ela,  e  não  lhe  deste  nada!  e  contudo  tinhas  algum  dinheiro 
na  algibeira.  Ouve  filho:  nunca  te  habitues  a  passar  indiferente 
pela  miséria  que  estende  a  mão:  e  muito  menos  diante  de  uma 
mãi  que  pede  uma  esmola  para  o  seu  filho.  Pensa,  em  que  essa 
criança  pode  ter  fome,  e  calcula  a  desolação  da  pobre  mulher! 


50 


CORAÇÃO 


Imagina  o  desespero  de  tua  mãi  se  um  dia  se  visse  forçada  a  di- 
j:er-te:  —  Henrique!  hoje  não  te  posso  dar  nem  sequer  um  boca- 
dinho de  pão.  —  Quando  eu  dou  um  soldo  a  um  pobre,  e  êle  me 
diz:  —  «Deus  lhe  conserve  a  saúde  e  a  toda  a  sua  família...»  nem 
tu  podes  compreender  o  prazer  que  me  dão  ao  coração  aquelas 

palavras,  e  a  gratidão  que 
sinto!  Parece-me  que  tão 
bons  desejos  me  conservarão 
a  saúde  por  muito  tempo,  e 
volto  a  casa  contente  dizen- 
do comigo:  Oh!  aquele  pobre 
deu-me  mais  do  que  eu  lhe 
dei!...  Agora,  Henrique,  vê  se 
fazes  que  eu  ouça  algumas 
vezes  essas  consoladoras  pa- 
lavras provocadas  e  mereci- 
das por  ti.  Tira  de  vez  em 
quando  algimi  soldo  da  tua 
pequena  bolsa  para  o  deixar 
cair  na  mão  dum  velho  sem 
amparo,  duma  mãi  sem  pão, 
ou  duma  criança  sem  mãi.  Os 
pobres  apreciam  a  esmola 
das  crianças,  que  não  os  himiilha  porque  as  crianças,  que  têm 
necessidade  de  todos,  assemelham-se  a  eles.  Repara  em  como  há 
sempre  muitos  ao  pé  das  escolas.  A  esmola  do  homem  é  sem- 
pre um  acto  de  caridade!  mas  a  da  criança  é  ao  mesmo  tempo  um 
acto  da  caridade  e  uma  carícia;  entendes?  É  como  se  da  sua  mão 
caísse  simultaneamente  um  soldo  e  uma  flor.  Lembra-te  que  a  ti 
não  te  falta  nada,  e  a  eles  falta-lhes  tudo;  que  enquanto  tu  ambi- 
cionas ser  feliz,  eles  contentam-se  em  não  morrer.  Pensa  quanto 
é  horrível  que  no  meio  de  tantos  palácios,  de  tantas  ruas  por  on- 
de passam  ricas  equipagens  e  rapazes  vestidos  de  veludo,  haja 
mulheres  e  crianças  que  não  têm  um  pedaço  de  pão.  Não  ter  que 
comer!...  Meu  Deus!  Rapazes  como  tu,  inteligentes  como  tu,  e 
no  centro  de  imia  grande  cidade,  não  terem  que  comer...  como 
feras  perdidas  num  deserto!  Oh!  nunca  mais,  Henrique,  nunca 
mais,  passes  diante  duma  mãi  mendiga,  sem  deixar-lhe,  ao  me- 
nos, uma  pequena  esmola. 


CORAÇÃO  51 

DEZEMBRO 


O  íraficaníe 


Quinta-feira,  i 


Meu  pai  quere  que  em  todos  os  dias  feriados  convide 
para  casa  um  dos  meus  companheiros,  ou  que  vá  eu  pro- 
curá-los para  me  tornar  pouco  a  pouco  amigo  de  todos. 
Domingo  vou  passear  com  Votini,  o  tal  muito  asseado, 
que  está  sempre  a  escovar-se,  e  que  tanta  inveja  tem  de 
Derossi.  Hoje  o  que  veio  foi  o  Garoffi,  aquele  alto  e  ma- 
gro, com  nariz  de  coruja  e  olhos  pequenos  e  velhacos,  que 
parece  intrometer-se  em  tudo.  É  filho  de  um  droguista  e  é 
muito  original.  Está  sempre  a  contar  o  dinheiro  que  tem 
no  bolso  e  conta  pelos  dedos,  rapidamente,  sem  precisão 
de  tabuada.  E  amontoa.  Tem  já  caderneta  na  caixa  eco- 
nómica escolar.  Desconfio  que  não  gasta  nada,  e  se  lhe  cai 
um  soldo  debaixo  dos  bancos  é  capaz  de  o  procurar  du- 
rante uma  semana.  Derossi  diz  que  ê^e  faz  como  as  pegas: 
tudo  que  acha,  penas  enferrujadas,  estampilhas  servidas, 
cotos  de  vela,  tudo  apanha.  Há  mais  de  dois  anos  que  co- 
lecciona estampilhas  e  já  tem  centos  de  todos  os  países 
nvun  grande  álbum  que  tenciona  vender  depois  ao  livreiro, 
quando  estiver  todo  cheio.  O  livreiro  dá-lhe  cadernos  de 
graça  porque  êle  arranja-lhe  outros  rapazes  para  fregue- 
zes.  Na  escola  negoceia  sempre;  todos  os  dias  faz  venda 
de  objectos,  rifas,  trocas  que  se  arrepende  logo  e  quere 
desfazer;  compra  por  dois  e  vende  por  quatro;  joga  o  jo- 
go das  peninhas  e  nunca  perde;  vende  jornais  velhos  aos 
estanqueiros;  e  tem  um  pequeno  caderno,  em  que  toma 
nota  dos  seus  negócios,  todo  cheio  de  somas  e  subtrac- 
ções. Na  escola  não  estuda  senão  a  aritmética,  e  se  deseja 
a  medalha  é  só  para  ter  entrada  grátis  no  teatro  das  Ma- 
rionettes.  Não  desgosto  dele  e  diverte-me.  Temos  jogado 
a  fazer  o  mercado  com  pesos  e  balança,  e  êle  sabe  o  preço 
certo  de  todas  as  coisas,  e  sabe  fazer  cartuchos  muito  bem, 
c   tão    depresa  como  qualquer  lojista.  Diz  que,  ^ogo  que 


52  CORAÇÃO 

sair  da  escola,  há  de  pôr  um  negócio,  um  comércio  novo, 
que  êle  inventou.  Quando  lhe  dei  estampilhas  estrangei- 
ras ficou  todo  contente,  e  disse  exactamente  o  preço  por 
que  se  vende  cada  uma  para  colecções.  Meu  pai,  fingindo 
ler  a  gazeta  estava  a  ouvi-lo  e  a  sorrir-se.  Trás  os  bolsos 
sempre  cheios  das  suas  pequenas  mercadorias  que  reco- 
bre com  um  grande  capote  escuro,  e  parece  continuamente 
absorto  e  afadigado  como  um  negociante.  Mas,  sobretudo, 
o  que  êle  aprecia  é  a  sua  colecção  de  estampilhas;  é  o  seu 
tesouro,  e  fala  sempre  nela  como  se  de  ali  lhe  viesse 
uma  grande  fortuna.  Os  companheiros  chamam-lhe  ava- 
rento e  usurário.  Será,  mas  eu  gosto  dele,  ensina-me  mui- 
tas coisas  e  parece-me  um  homem.  Disse  Coretti,  o  filho 
do  vendedor  de  ,lenha,  que  Garofi  não  era  capaz  de  dar 
as  suas  estampilhas,  nem  para  salvar  a  vida  da  mãi.  Meu 
pai  não  acredita  isso.  Espera  ainda  para  o  julgar  defini- 
tivamente e  disse-me: 

—  Tem  essa  f raquesa,  mas  tem  coração. 

Vaidade 

Segunda-íeira,  5 

Ontem  fui  dar  o  meu  passeio  pela  Avenida  de  Rivoli 
com  Votini  e  seu  pai.  Passando  pela  rua  Dora  Grossa,  vi- 
mos Stardi,  aquele  que  responde  com  pontapés  aos  que 
lhe  fazem  preguntas.  Estava  firme  e  direito  diante  duma 
montra  de  livreiro,  com  os  olhos  fixos  numa  carta  geo- 
gráfica, e  quem  sabe  lá  há  quanto  tempo  ali  estava,  por- 
que êle  estuda  também  pela  rua.  Apenas  correspondeu  ao 
nosso  cumprimento  aquele  casmurro !  Votini  ia  muito  bem 
vestido,  até  de  mais;  calçava  botinas  de  marroquim,  pes- 
pontadas de  vermelho ;  vestia  um  casaquinho  bordado  com 
borlas  de  seda,  relógio,  e  na  cabeça  um  chapéu  de  castor 
branco.  E  pavoneava-se  todo.  Mas  desta  vez  foi  castigado 
r.a  sua  vaidade.  Depois  de  termos  corrido  um  grande  pe- 
daço pela  a,lameda,  seu  pai  ficou  muito  atrás  porque  an- 
dava de  vagar,  e  nós  parámos  junto  dum  banco  de  pedra, 
ao  lado  dum  rapaz  vestido  modestamente,  que  parecia  fa- 
tigado e  pensativo,  com  a  cabeça  sobre  o  peito.  Um  ho- 
mem que  devia  ser  pai  dele,  passeava  debaixo  das  árvores 


CORAÇÃO  53 

lendo  a  gazeta.  Sentámo-nos.  Votini  ficou  entre  mim  e  o 
rapaz  De  repente  lembrou-se  que  estava  muito  aceado,  e 
quis  fazer-se  admirar  e  invejar  do  vizinho;  levantou  um 
pé  e  disse: 

—  Já  viste  as  minhas  botas  de  oficial? 
Disse  isto  para  chamar  a  atenção  do  outro,  mas  ele 
não  se  mexeu.  Abaixou  então  o  pé  e  mostrou  as  borlas  de 
seda,  e  olhando  de  soslaio  o  rapaz,  disse-me  que  lhe  não 
agradavam  muito,  e  que  as  ia  mandar  substituir  por  bo- 
tões de  prata,  e  o  rapaz  nem  sequer  olhou  para  as  borlas. 
Então  Votini  pôs-se  a  fazer  girar  sobre  a  ponta  do  index 
o  seu  belo  chapéu  de  castor  branco,  e  o  rapaz,  —  parece 
que  o  fazia  de  propósito,  —  não  se  dignou  lançar  a  vista 
para  o  chapéu.  Votini  principiava  já  a  impacientar-se,  e 
tirando  o  relógio  do  bolso,  abriu-o  e  mostrou-me  o  ma- 
quinismo. 

—  É  de  prata  dourada?  preguntei. 

—  Não,  —  respondeu  —  é  de  ouro. 

—  Mas  não  será  todo  de  ouro,  repliquei  eu,  também 
há-de  ter  ajguma  prata. 

—  Não  tem  —  retorquiu  ele.  E  para  obrigar  o  rapaz  a 
olhar,  pôs-lhe  o  relógio  à  cara  dizendo: 

—  Vê  tu,  não  é  verdade  que  é  todo  de  ouro? 
O  rapaz  respondeu  secamente: 

—  Não  sei. 

—  Oh!  Oh!  exclamou  Votini  enraivecido,  que  sober- 
ba! 

Enquanto  dizia  isto,  chegou  seu  pai,  que  ouvindo  a 
exclamação,  olhou  um  momento  fixo,  para  o  rapaz  e  de- 
pois disse  bruscamente  ao  filho: 

—  Cala-te ! 

E,  inclinando-se,  disse-lhe  ao  ouvido: 

—  É  cego ! 

Votini  levantou-se  logo  e  fitou  o  rapaz  de  frente.  Ti- 
nha as  pupilas  vitreas,  sem  expressão  e  sem  vida. 

Votini  ficou  humilhado,  silencioso,  com  os  olhos  no 
chão...  Depois  balbuciou:  —  Faz-me  pena...  e  se  o  sou- 
besse... 

Mas  o  cego,  que  compreendera  tudo,  murmurou  com 
wn  sorriso  bom  e  melancólico: 


54  CORAÇÃO 

—  Não  faz  ma,l... 

Votini  é  vaidoso,  mas  não  tem  mau  coração.  Em  todo 
o  passeio  não  se  tornou  a  rir. 

A  primeira  neve 

Sábado,  lo 

Adeus,  passeios  a  Rivoli!  Ei-Ia  a  amiga  dos  rapazes! 
eis  a  primeira  neve!  Desde  ontem  à  tarde  que  caem  flocos 
densos  e  grandes  como  flores  de  jasmineiros.  Era  um  pra- 
zer vê-la  cair  contra  as  vidraças  e  amontoar-se  sobre  as 
sacadas.  Até  o  mestre  olhava,  e  esfregava  as  mãos;  e  to- 
dos estavam  contentes,  pensando  nas  bolas  que  haviam  de 
fazer,  no  gelo  que  viria  em  seguida,  e  no  fogão  de  casa. 
Só  Stardi  se  mostrava  indiferente  a  tudo,  absorto  na  li- 
ção, com  os  punhos  encostados  às  fontes.  Mas  que  bulha 
e  que  festa  que  foi  à  saída!  Todos  a  saltar  pela  rua  fora 
gritando  e  bracejando,  juntavam  montões  de  neve  e  me- 
tiam os  pés  dentro,  como  cãizinhos  na  água!  Os  parentes 
que  esperavam  fora  tinham  os  guarda-chuvas  brancos,  e 
os  capacetes  da  guarda  civil  e  as  nossas  pastas  em  pouco 
tempo  ficaram  também  brancas.  Todos  pareciam  fora  de 
si  de  alegria,  até  Precossi,  o  filho  do  ferreiro,  o  pàlidozi- 
nho  que  não  ri  nunca;  e  Robetti,  o  que  salvou  a  criança 
do  omnibus,  pobrezito !  como  saltava  com  as  suas  mule- 
tas !  O  calabrês,  que  nunca  tinha  tocado  em  neve,  fez  uma 
bo,la  e  pôs-se  a  comê-la,  como  se  fosse  um  pêssego.  Cros- 
si,  o  filho  da  vendedeira  de  hortaliças,  encheu  a  bolsa;  e 
o  pedreiro  fez-nos  rebentar  de  riso  quando  meu  pai  o  con- 
vidou a  vir  amanhã  a  nossa  casa.  Tinha  a  boca  cheia  de 
neve,  e  não  se  resolvendo  a  deitá-la  fora,  nem  a  engoli-la, 
estava  engasgado  a  olhar  para  nós,  sem  dizer  palavra.  Até 
as  mestras  saíam  da  escola  a  correr  e  a  rir,  e  também  a  mi- 
nha mestra  da  primeira  superior,  coitadita,  corria  através 
do  nevisco,  resguardando  a  cara  com  o  seu  véu  verde,  e 
tossia.  E,  no  entanto,  centenares  de  raparigas  da  secção 
vizinha  passavam  aos  gritos  e  pulavam  sobre  o  alvo  tape- 
te. Os  mestres,  os  contínuos  e  o  guarda  gritavam :  —  Para 
casa!  Para  casa!  E  iam  engolindo  flocos  de  neve  e  bran- 


CORAÇÃO 


55 


queando-se-lhes  os  bigodes  e  as  barbas.  Mas  também  esses 
riam  de  louca  alegria  dos  escolares  que  festejavam  o  in- 
verno. 

Vós  festejais  o  inverno,  mas  há  rapazes  que  não  têm  nem 
roupas,  nem  sapatos,  nem  fogão.  Há  mulheres  que  descem  às  al- 
deias, depois  de  ter  andado  um  longo  caminho,  trazendo  nas 
mãos  ensanguentadas  pelas  frieiras  um  molho  ds  lenha  para 
aquecer  a  escola.  Há  centenares  de  escolas  quási  sepultadas  na 
neve,  nuas  e  tétricas  como  espeluncas  onde  os  rapazes  sufocam 
com  fumo  e  batem  os  dentes  com  frio  olhando  com  terror  para 
os  flocos  brancos  que  caem  cada  vez  mais  sobre  as  suas  cabanas 
distantes,  ameaçadas  de  uma  avalanche.  Vós  festejais  o  inverno, 
rapazes,  e  não  vos  lembrais  que  há  milhares  de  criaturas,  a 
quem  o  inverno  leva  a  miséria  e  a  morte. 


O  pedreiriío 


Domingo,  ii 


O  pedreirito  veio  hoje  à  caçadora,  todo  vestido  de 
fato  já  usado  por  seu  pai,  ainda  salpicado  de  cal  e  de 
gesso.  Meu  pai  desejava  ainda  mais  do  que  eu  que  êle 
viesse.  Que  prazer  nos 
deu!  Apenas  entrou, 
tirou  o  chapéu  esfarra- 
pado, todo  molhado  de 
neve,  e  meteu-o  no  bol- 
so. Depois,  adiantando- 
-se  com  o  seu  an- 
dar  descuida  do  de 
o  p  e  r  ário  fatigado,  e 
voltando  para  um  e  ou- 
tro lado  a  sua  carinha 
redonda  como  uma  ma- 
çã e  o  seu  nariz  de  ra- 
banete, quando  chegou 
à  sala  de  jantar,  deu 
uma  olhadela  em  torno 
dos  móveis  e  parando  a 
vista  sobre   um  quadro 


5Ô  CORAÇÃO 

que  representa  Rigoleto,  um  bobo  corcunda,  fêz  o  foci- 
nho de  lebre.  É  impossível  ficar  sério  ao  vê-lo  fazer  o  /o- 
cinho  de  lebre.  Começamos  a  brincar  com  as  tabuinhas. 
Êle  tem  uma  habilidade  extraordinária  para  fazer  torres  e 
pontes,  que  parece  sustentarem-se  por  milagre,  e  trabalha 
com  seriedade  e  a  paciência  de  um  homem.  Enquanto  ia 
erguendo  torres  falou-me  da  sua  família.  Vivem  em  uma 
água-furtada;  o  pai  vai  às  escolas  nocturnas  aprender  a  lêr 
e  a  mãi  é  biolesa.  E  compreende-se  que  o  estimam  muito, 
porque  anda  vestido  como  pobre,  bem  resguardado  do  frio, 
com  a  roupa  bem  remendada  e  a  gravata  muito  bem  posta 
pela  mão  de  sua  mãi.  O  pai,  disse,  é  um  pedaço  de  homem, 
um  gigante,  que  mal  cabe  pelas  portas,  mas  bom.  Chama 
sempre  ao  filho  focinho  de  lebre.  O  filho,  ao  contrário,  é 
pequenito.  Às  quatro  horas  merendámos  pão  e  uvas  sen- 
tados no  sofá,  e  quando  nos  levantamos,  meu  pai,  não  sei 
por  quê,  não  quis  que  eu  limpasse  o  espaldar  que  o  pe- 
dreirito  tinha  manchado  de  branco  com  a  sua  jaqueta.  Se- 
gurou-me  na  mão  e  depois  limpou-o  êle  às  escondidas. 
Jogando,  o  pedreirito  perdeu  um  botão  da  «caçadora»  e 
minha  mãi  pregou-lho.  Êle  fez-se  encarnado  e  estava  a 
vê-la  coser  todo  maravilhado  e  confuso,  contendo  a  res- 
piração. Depois,  mostrei-lhe  álbuns  de  caricaturas,  e  êle 
insensivelmente  imitava  as  expressões  delas,  tão  bem, 
que  até  meu  pai  se  ria.  Ao  sair,  ia  tão  contente  que  se 
esqueceu  de  pôr  na  cabeça  o  barrete  esfarrapado;  e  che- 
gando ao  patamar,  para  significar  a  sua  gratidão  fez  ainda 
o  focinho  de  lebre.  Chama-se  António  Babuco,  tem  oito 
anos  e  oito  meses. 

Sabes  tu,  meu  filho,  porque  não  quis  que  limpasses  o  sofá? 
Porque  limpá-lo  à  vista  do  teu  companheiro  era  quási  censurá- 
-lo  por  o  ter  manchado,  E  isto  não  era  bonito.  Primeiro,  por- 
que êle  o  não  tinha  feito  de  propósito;  segundo,  porque  o  ti- 
nha manchado  com  a  roupa  que  fora  de  seu  pai,  o  qual  a  sal- 
picara de  gesso  trabalhando ;  e  o  que  se  mancha  no  trabalho, 
não  se  pode  dizer  sujo;  são  nódoas  ds  cal,  de  verniz,  de  tudo 
aquilo  que  quiserem...  mas  não  é  porcaria.  O  trabalho  não  em- 
porcalha. Nunca  digas  dum  operário  que  vem  do  trabalho:  «Está 
porco».  Diz  antes:  «Tem  no  seu  fato  os  sinais  e  os  indícios  do 


CORAÇÃO  57 

S€n  ofício».  Recorda-te  bem  disto.  Eu  quero  bem  ao  pedreirito 
não  só  porque  é  teu  companheiro,  mas  porque  é  filho  dum  ope- 
rário. 

Teu  pai 

Uma  bola  de  neve 

Sexta-feira,  i6 

Continua  a  nevar,  a  nevar  sempre.  Houve  um  aconte- 
cimento desagradável  esta  manhã,  por  causa  da  neve,  ao 
sair  da  escola.  Um  bando  de  rapazes  que  apenas  desembo- 
caram no  Corso,  principiaram  a  atirar  bolas  com  aquela 
neve  aquosa  que  as  faz  consistentes  e  pesadas  como  pedra. 
Havia  muita  gente  pelos  passeios.  Um  sujeito  gritou: 

—  Alto  lá,  garotos! 

E  justamente  nessa  ocasião  ouviu-se  um  grito  agudo 
do  outro  lado  da  rua,  e  viu-se  cambalear  um  velho  a  quem 
caíra  o  chapéu,  cobrindo  o  rosto  com  as  mãos,  e  ao  lado 
dele  um  rapaz  que  gritava: 

—  Socorro!  Socorro! 

Correu  gente  de  todos  os  lados.  O  velho  tinha  sido 
ferido  com  uma  bola  num  olho.  Todos  os  rapazes  disper- 
saram, fugindo  como  setas.  Eu  estava  defronte  da  livra- 
ria, onde  tinha  entrado  meu  pai,  e  vi  chegar  a  correr  mui- 
tos dos  meus  companheiros  que  se  misturavam  com  os  ou- 
tros ao  pé  de  mim,  fingindo  olhar  muito  sossegados  para 
as  montras.  Estava  Garrone  com  o  seu  costumado  pão  na 
algibeira.  Coretti,  o  pedreirito,  e  Garroffi,  o  das  estam- 
pilhas. No  entanto  tinha-se  aglomerado  povo  em  volta  do 
relho,  e  alguns  polícias  corriam  duma  parte  para  a  outra, 
ameaçando  e  preguntando : 

—  Que  é  isto?  Quem  foi?  Foste  tu?  diz  quem  foi! 

E  olhavam  para  as  mãos  dos  rapazitos  a  ver  se  esta- 
vam molhadas  de  neve.  Garroffi  estava  ao  meu  lado  e 
notei  que  tremia  todo  e  se  tornara  pálido  como  um  morto. 

—  O  que  foi?  quem  foi?  —  continuava  a  gritar  a  gen- 
te: 

Nisto  ouvi  Garrone  que  disse  baixo  a  Garrof i : 


58  CORAÇÃO 

—  Anda,  apresenta-te;  seria  velhacaria  consentir  que 
outro  aguente  com  as  culpas. 

— Mas  é  que  eu  não  fiz  por  querer,  respondeu  Garoffi 
tremendo  como  varas  verdes. 

—  Não   importa,   faz   o   teu   dever,   repetiu   Garrone. 
— Mas...  eu  não  tenho  coragem... 

— Qual  não  tens  coragem?!  eu  acompanho-te. 

E  o  guarda  e  todos  os  outros  continuavam  .gritando: 

— Quem  foi?  Quem  foi?  Fizeram-lhe  entrar  um  vi- 
dro dos  óculos  pelo  olho  dentro!  Cegaram-o!  Tratantes! 

Eu  cuidei  que  Garroffi  desmaiava. 

— Vem  daí, — i  disse-lhe  resolutamente  Garrone;  eu 
defendo-te. 

E  agarrando-o  por  um  braço,  deu-lhe  um  empurrão 
para  diante,  amparando-o  ao  mesmo  tempo  como  a  um 
doente.  O  povo  viu  e  percebeu  tudo,  e  alguns  correram 
sobre  êle  com  os  punhos  levantados.  Mas  Garrone,  pôs-se 
no  meio,  gritando: 

—  Que  quere  isto  dizer?  Dez  homens  contra  um  rapaz! 
Eles  então  contiveram-se,  e  um  guarda  civil  agarrou 

Garoffi  por  uma  mão  e  abrindo  o  caminho  por  entre  o 
povo  conduziu-o  a  uma  loja  de  massas,  onde  se  tinha  re- 
colhido o  ferido.  Reconheci  logo  no  velho  o  empregado 
que  mora  no  quarto  andar  da  nossa  casa,  com  um  sobri- 
nho. Estava  sentado  numa  cadeira,  com  o  lenço  sobre  os 
olhos. 

—  Não  foi  por  querer,  —  dizia  soluçando  Garoffi, 
meio  morto  de  susto... — Não  foi  por  querer... 

Duas  ou  três  pessoas  empurraram-no  violentamente 
para  dentro  da  loja,  gritando: 

—  De  joelhos!  pede  perdão! 

E  deitaram  por  terra  o  pobre  Garoffi.  Imediatamente, 
dois  braços  vigorosos  o  ergueram,  e  alguém  com  voz  re- 
soluta, disse: 

—  Não,  senhores!  —  Era  o  nosso  director  que  tinha 
visto  tudo.  —  Já  que  teve  a  coragem  de  apresentar-se,  nin- 
guém tem  o  direito  de  humilhá-lo. 

Todos   ficaram   silenciosos! 

—  Pede  perdão!  —  disse  o  director  a  Garoffi. 
Garoffi,  num  pranto  copioso,  abraçou  os  joelhos  do 


CORAÇÃO  5Q 

velho,  e  este,  procurando  com  as  mãos  a  sua  cabeça  afa- 
gou-lhe  os  cabelos.  Então  disseram  todos: 

—  Vai,  rapaz...  vai  para  casa. 

E  meu  pai  retirou-me  dentre  a  multidão  e  disse- 
-me  pelo  caminho :  —  Henrique,  tu,  em  caso  semelhante, 
terias  a  coragem  de  cumprir  o  teu  dever,  e  de  ir  confes- 
sar a  tua  culpa? — Respondi-lhe  que  sim.  E  êle  acres- 
centou : 

—  Dá-me  a  tua  palavra  de  honra  que  o  farias... 

—  Dou-lhe  a  minha  palavra,  meu  pai. 

As  mesíras 

Sábado,  17 

Garoffi  estava  todo  assustado  hoje,  esperando  uma 
grande  repreensão  do  professor,  mas  este  não  compare- 
ceu; e  falando  também  o  suplente,  veio  dar  aula  a  se- 
nhora Cromi,  a  mais  velha  das  mestras,  que  tem  dois 
filhos  já  grandes,  e  já  ensinou  a  ler  e  a  escrever  muitas 
senhoras  que  vem  agora  acompanhar  os  filhos  à  Secção 
Baretti.  Estava  hoje  triste,  porque  tem  um  filho  doente. 
Apenas  a  viram,  principiaram  a  fazer  grande  algazarra: 
porém  ela,  com  voz  pausada  e  tranqiiila,  disse: 

—  Respeitai  os  meus  cabelos  brancos:  não  sou  só 
uma  antiga  mestra,  sou  também  uma  mãi. 

E  nenhum  mais  se  atreveu  a  abrir  a  boca,  nem  mes- 
mo Franti,  aquela  cara  de  estanho,  que  se  contentou  era 
arremedá-la  às  escondidas.  Para  a  classe  de  Cromi,  foi 
mandada  a  Delcati,  mestra  de  meu  irmão,  e  para  o  lugar 
da  Delcati  foi  aquela  a  que  chamam  a  Freirinha,  por  an- 
dar sempre  vestida  de  escuro,  com  um  avental  preto.  Tem 
um  rosto  alvo  e  pequeno,  os  cabelos  sempre  lisos,  e  os 
olhos  muito  claros,  e  uma  voz  subtil  que  parece  estar 
sempre  a  murmurar  orações. 

—  Custa  a  compreender,  diz  minha  mãi,  como  sendo 
ela  tão  branda  e  tímida,  com  aquele  fio  de  voz  sempre 
igual,  que  mal  se  sente,  que  não  grita  nem  se  encoleriza, 
consiga,  a-pesar  disso,  ter  os  pequenos  tão  sossegados 
que  ninguém  os  ouve.  Até  os  mais  travessos  abaixam  a 


60  CORAÇÃO 

cabeça  ao  mais  ligeiro  aceno  que  ela  faça  com  o  dedo. 
Parece  uma  igreja  a  sua  escola,  e  por  isso  também,  lhe 
chamam  a  Freirinha. 

Há  ainda  outra  mestra  que  me  agrada  muito.  É  a 
da  primeira  inferior,  n.°  3,  aquela  moça  ainda,  com  o 
rosto  rosado,  que  tem  duas  covinhas  nas  faces,  e  trás  uma 
grande  pena  vermelha  no  chapelinho,  e  uma  cruz  de  vi- 
dro amarelo  pendente  no  pescoço.  Está  sempre  alegre. 
Tem  a  c4asse  alegre.  Sorri  sempre,  grita  sempre,  com  a 
sua  voz  argentina  que  parece  cantar,  tocando  com  a  va- 
rinha em  cima  da  mesa,  batendo  com  as  mãos  para  impor 
silêncio;  depois,  à  saída,  corre  como  uma  criança  atrás 
de  uns  e  outros,  para  metê-los  em  fileira,  a  este  levanta 
a  gola  da  jaqueta,  àquele  abotoa  o  capote  para  que  se  não 
constipe.  Segue-os  até  à  rua  para  que  não  vão  desgre- 
nhados, pede  aos  pais  que  os  não  castiguem  em  casa,  dá 
pastilhas  aos  que  têm  tosse,  empresta  o  seu  regalo  aos 
que  se  queixam  de  frio,  é  atormentada  de  contínuo  pelos 
mais  pequenitos  que  lhe  fazem  muitas  festas  e  lhe  pe- 
dem beijos,  puxando-lhe  pelo  véu  e  pela  mantilha.  E  ela 
deixa  fazer  tudo,  e  beija-os  a  todos,  rindo,  e  vai  sem- 
pre para  casa  esguedelhada,  com  o  vestido  amarrotado, 
fatigada  e  contente,  com  as  suas  graciosas  covinhas  nas 
faces  e  a  sua  pena  vermelha.  É  também  mestra  de  desenho 
das  meninas  e  mantém  com  seu  trabalho  a  mãi  e  um  irmão. 

Em  casa  do  ferido 

Domingo,  18 

Está  com  a  mestra  de  pena  vermelha  o  sobrinho  do 
velho  empregado  que  foi  ferido  no  olho  pela  bola  de 
neve  de  Garoffi.  Vimo-lo  hoje  em  casa  de  seu  tio  que 
o  estima  como  filho.  Eu  tinha  acabado  de  escrever  o 
conto  mensal  para  a  próxima  semana:  O  pequeno  escre- 
vente florentino,  que  o  mestre  me  deu  para  copiar,  e  o 
pai  disse-me: 

—  Vam.os  lá  acima  ao  quarto  andar  ver  como  está  do 
ôlho  o  nosso  vizinho. 


CORAÇÃO 


61 


Entrámos  num  quarto,  quási  escuro,  onde  estava  o 
velho  na  cama,  sentado,  com  muitas  almofadas  por  trás 
das  costas;  à  cabeceira  sentava-se  a  sua  mulher  e  a  um 
canto  estava  brincando  o  sobrinho.  O  velho  tinha  o  olho 
vendado.  Ficou  muito  satisfeito  por  ver  meu  pai;  man- 
dou-nos  sentar,  e  disse  que  se  sentia  melhor,  que  o  olho 
não   estava   perdido,    e   que   brevemente    estaria   curado. 

—  Foi  uma  desgraça!  e  lamento  o  susto  que  devia 
(ter  tido  aquele  pobre  rapaz...  disse  êle. 

Depois  falou-nos  do  médico,  que  não  devia  tardar 
para  fazer  o   curativo.  Neste  momento   tocaram  à  cam.- 
paínha.  —  Há-de  ser  o  médico,  disse  a  senhora... 
Abre-se    a   porta, 
e    que    vejo    eu? 
Garof  f  i     com     o 
seu    capote    com- 
prido, sem  ter  co- 
ragem   de   entrar. 

—  Quem  é?  pre- 
guntou    o  doente. 

—  É  o  rapaz  que 
atirou  com  a  bola, 
disse  meu  pai.  E 
o  velho  excla- 
mou: 

Oh !  pobre  ra- 
paz! entra.  Então 
vens  visitar  o  fe- 
rido, não  é  verda- 
de?   Vai    melhor, 

fica   sossegado,   vai   melhor!    estou   quási   bom...    Entra, 

vem  cá! 

Garoffi,  confuso,  que  nem  os  via,  aproximou-se  do 
leifto,  esforçando-se  para  não  chorar;  e  o  velho  começou 
a  acariciá-lo,  mas  êle  não  podia  falar. 

—  Muito  obrigado,  disse  o  velho.  Diz  a  teu  pai  e  a 
tua  m_ãi  que  tudo  vai  indo  bem,  que  não  tenham  cuidado. 

Mas  Garoffi  não  se  movia,  percebia-se  porém,  que 
tinha  vontade  de  dizer  alguma  coisa,  mas  não  ousava. 


62  CORAÇÃO 

—  Que  tens  a  dizer?  que  queres  tu? 

—  Eu,  nada. 

—  Bem,  então  adeus,  até  à  visita;  vai  e  leva  o  cora- 
ção sossegado. 

Garoffi  foi  até  à  porta;  mas  aí  parou,  voltando-se  de- 
pois para  o  sobrinho  que  o  seguia  e  olhava  com  curiosi- 
dade. De  repente,  tira  debaixo  do  capote  um  objecto,  e 
mete-o  nas  mãos  do  pequeno,  dizendo-lhe: 

—  É  para  ti. 

E  desapareceu  como  um  relâmpago.  O  pequeno  levou 
o  objecto  ao  tio.  Tinha  escrito  em  cima:  Faço-te  presente 
disto.  Vai-se  a  ver...  Geral  exclamação  de  espanto.  Era  o 
famoso  álbum  com  a  colecção  de  estampilhas  que  o  pobre 
Garoffi  tinha  trazido,  a  colecção  em  que  êle  falava  sem- 
pre, e  que  lhe  custara  tantas  fadigas;  era  o  seu  tesouro, 
pobre  rapaz!  Era  metade  do  seu  sangue  que  êje  dava  em 
troca  do  seu  perdão. 


(CONTO  MENSAL) 

Cursava  a  quarta  elementar.  Era  um  gracioso  fjoren- 
tino  de  doze  anos,  negro  de  cabelos  e  alvo  de  rosto;  filho 
mais  velho  de  imi  empregado  dos  caminhos  de  ferro,  que 
tendo  muita  família  e  pequeno  ordenado  vivia  modesta- 
mente. O  pai  estimava-o  muito,  e  era  bom  e  indulgente 


CORAÇÃO  63 

com  êle  em  tudo,  menos  no  que  se  referia  à  escola.  Nisto 
exigia  muito  porque  era  preciso  que  o  filho  se  colocasse 
em  posição  de  obter  breve  um  emprego  para  ajudar  a  fa- 
milia;  e  para  tornar-se  de  pronto  hábil  em  qualquer  coisa, 
era  necessário  fatigar-se  muito  em  pouco  tempo.  E  por 
muito  que  o  rapaz  estudasse,  o  pai  exortava-o  sempre  a 
estudar  mais.  Era  já  adiantado  em  anos  o  pai,  e  o  muito 
trabalho  tinha-o  envelhecido  antes  de  tempo.  Não  obstan- 
te, para  prover  às  necessidade  da  família,  além  das  horas 
obrigadas  pelo  emprego,  tomava  ainda,  aqui  e  ali,  traba- 
lhos extraordinários  de  copista,  e  passava  imia  grande 
parte  da  noite  à  escrevaninha.  Ultimamente  conseguira  de 
imia  casa  editora,  que  publicava  jornais  e  livros  em  fascí- 
culos, o  encarregar-se  de  escrever  nas  cintas  o  nome  e  mo- 
rada dos  assinantes,  e  ganhava  3  liras  por  cada  quinhen- 
tas daquelas  tiras  de  papel  escritas  em  caracteres  grandes 
e  legíveis.  Esse  trabalho,  porém,  extenuava-o  e  êle  la- 
mentava-se  muitas  vezes  à  família  na  hora  do  jantar. 

—  Os  meus  olhos  desaparecem.  Este  trabalho  de  noi- 
te arruina-me... 

O  filho  disse-lhe  um  dia: 

—  Papá,  deixe-me  fazer  o  seu  trabalho ;  bem  sabe  que 
escrevo  tal  qual  como  o  papá. 

Mas  o  pai  respondeu-lhe: 
—  Não,  meu  f ijho,  tu  deves  estudar ;  a  tua  escola  é  mui- 
to mais  importante  do  que  as  minhas  tiras  de  papel.  Sen- 
tiria remorsos  se  te  roubasse  uma  hora  que  fosse.  Agra- 
deço-te,  mas  não  quero,  e  não  falemos  mais  nisso. 

O  rapaz  sabia  que  com  seu  pai  em  matéria  de  estudo, 
era  inútil  insistir,  e  não  insistiu...  mas  fez  o  seguinte:  Sa- 
bia que  o  pai  à  meia-noite  acabava  de  escrever  e  saía  do 
quarto  de  trabalho  para  o  quarto  de  dormir.  Algumas  ve- 
zes o  sentira.  Dadas  as  doze  pancados  do  relógio,  perce- 
bia-se  imediatamente  o  rumor  de  uma  cadeira  que  se  arras- 
tava e  o  passo  vagaroso  do  pai.  Uma  noite  esperou  que  êle 
se  deitasse ;  vestiu-se  de  vagar,  andou  às  apalpadelas  no 
quarto  de  trabalho,  reacendeu  o  candeeiro  de  petróleo, 
sentou-se  à  escrevaninha,  onde  havia  um  montão  de  cin- 
tas em  branco  e  a  nota  dos  endereços,  e  principiou  a  es- 
crever, imitando  exactamente  a  letra  das  tiras  feitas.  E 


64  CORAÇÃO 

escrevia  de  boa  vontade  e  contente,  mas  um  pouco  assus- 
tado; mas  as  tiras  iam-se  amontoando.  De  vez  em  quando 
pousava  a  pena  para  esfregar  as  mãos,  e  recomeçava  logo 
com  mais  prazer,  apurando  o  ouvido  e  sorrindo.  Escreveu 
cento  e  sessenta  nomes  com  as  respectivas  moradas.  — 
Bem,  uma  lira!  Então  acabou;  pôs  a  pena  onde  a  tinha 
encontrado,  apagou  a  luz  e  voltou  para  a  cama  nos  bicos 
dos  pés. 

Naquele  dia,  ao  meio-dia,  o  pai  sentou-se  à  mesa  de 
bom  humor.  Não  tinha  desconfiado  de  coisa  alguma.  Fa- 
zia aquele  trabalho  mecanicamente  medindo-o  às  horas  e 
pensando  noutras  coisas  e  não  contava  as  cintas  escritas 
senão  no  dia  seguinte.  Assentou-se  à  mesa  satisfeito  e  to- 
cando com  a  mão  no  ombro  do  filho,  disse-lhe : 

—  Ah,  Júlio !  É  ainda  um  bom  trabalhador  o  teu  pai, 
nem  tu  fazes  ideia!  Em  duas  horas  fiz  ontem  à  noite  um 
bom  terço  mais  de  trabalho  do  que  o  costume.  A  mão  está 
ágil,  e  os  olhos  cumprem  ainda  o  seu  dever. 

E  Júlio,  contente,  mudo,  dizia  consigo:  Pobre  pai, 
além  do  ganho,  ainda  lhe  dou  o  prazer  de  julgar-se  reju- 
venescido. Bem!  Coragem!  Animado  pelo  bom  resultado, 
na  noite  seguinte,  dada  a  meia-noite,  pôs-se  a  pé  e  foi  tra- 
balhar. E  assim  fez  por  muitas  noites.  O  pai  não  dava  por 
tal.  Somente  uma  vez,  à  ceia,  saiu-se  com  esta :  —  É  no- 
tável, o  petróleo  que  se  gasta  nesta  casa,  há  um  pouco  de 
tempo!  Júlio  estremeceu;  mas  o  discurso  acabou  a4i  e  o 
trabalho  nocturno  ia  continuando  sempre.  O  pior  foi  que, 
interrompendo  assim  o  sono  todas  as  noites,  Júlio  não 
dormia  bastante ;  de  manhã  levantava-se  fatigado,  e  à  noi- 
te, quando  estudava,  custava-lhe  sustentar  os  olhos  aber- 
tos. Uma  noite,  pela  primeira  vez  na  sua  vida,  adormeceu 
sobre  o  caderno!  —  Animo!  ânimo!...  Êle  acordou  estre- 
munhado e  continuou  a  estudar.  Mas  nas  noites  e  dias  se- 
guintes era  a  mesma  coisa,  ou  pior  ainda...  Cabeceava  so- 
bre os  livros,  levantava-se  mais  tarde  do  que  o  costume, 
estudava  a  lição  com  enfado  e  parecia  desviado  do  estudo. 
O  pai  principiou  a  observá-lo,  a  preocupar-se  com  êle,  e 
finalmente  a  admoestá-lo. 

—  Júlio !  disse-lhe  uma  manhã  —  tu  andas  fora  do  tri- 
lho; não  és  o  que  foste.  Isso  assim  não  me  agrada...  Ou- 


CORAÇÃO  65 

ve...  todas  as  esperanças  da  famUia  se  fundam  em  ti.  Eu 
estou  desgostoso,  entendes? 

Com  esta  censura,  a  primeira  verdadeiramente  séria 
que  recebia,  o  rapaz  perturbou-se.  —  Ah!  sim!...  pensou 
ele  consigo.  Deste  modo  com  efeito  não  se  pode  conti- 
nuar! É  necessário  que  tudo  se  esclareça...  Mas,  à  tarde, 
naquele  mesmo  dia,  ao  jantar,  disse  o  pai  alegremente: 

—  Então  sabem  que  neste  mês  s^anhei  mais  trinta  e 
duas  liras  a  sobrescritar  do  que  no  mês  passado? 

E  dizendo  isto  tirou  debaixo  da  mesa  um  cartucho  de 
bolos  que  tinha  comprado  para  festejar  com  seus  filhos 
o  eanho  extraordinário.  E  todos  aplaudiram  batendo  as 
mãos.  Túlio,  vendo  isto,  cobrou  o  ânim.o,  e  em  seu  coração 
disse:  Não.  pobre  papá,  não  deixarei  de  en?anar-te:  farei 
maiores  esforços  para  estudar  durante  o  dia.  mas  conti- 
nuarei a  trabalhar  de  noite  para  ti,  e  para  todos  nós. 

O  pai  acrescentou  ainda:  — trinta  e  duas  liras  a  mais! 
estou  contente.  Mas  é  aquele,  lá...  (e  indicou  Júlio)  quem 
me  desgosta. 

E  Túlio  recebeu  a  censura  em  silêncio,  sustendo  duas 
lágrimas  prestes  a  rebentar,  mas  sentindo  ao  mesmo  tem- 
po na  sua  alma  um  prazer  imenso.  E  prosseg-uiu  corajosa- 
mente. Mas  a  fadiga  acumulando-se  à  fadiga  cada  vez 
mais  difíril  lhe  tornava  a  resistência.  As  coisas  dura- 
vam assim  havia  dois  meses!  O  pai  continuava  a  increpar 
o  filho,  e  a  encará-lo  sempre  de  sobrolho  carregado.  Um 
dia  foi  pedir  informações  ao  mestre,  e  o  mestre  disse-lhe: 
—  Sim,  vai  indo,  vai  indo,  poroue  é  inteligente:  mas  já 
não  tem  a  boa  vontade  aue  tinha  a  princípio.  Cabeceia, 
boceia.  distrai-se.  Faz  as  composições  curtas,  a  correr,  e 
em  péssima  caligrafia.  Oh!  podia  fazer  mais,  muito  mais. 

Manuela  tarde  o  pai  chamou  o  rapaz  aparte  e  disse- 
-Ihe  r)alavras  de  severidade  com.o  êle  nunca  até  então 
ouvira. 

Túlio!  tit  não  vês  aue  eu  trabalho,  que  consumo  a 
vida  pela  família?...  Tu  não  me  auxilias.  Tu  não  tens 
coração  para  mim,  nem  para  teus  irmãos,  nem  para  tua 
mãi! 

—  Ah!  não,  isso  não,  meu  pai!...  exclamou  o  filho 


66  CORAÇÃO 

em  copioso  pranto.  E  ia  a  abrir  a  boca  para  dizer  tudo, 
quando  o  pai  o  interrompeu  dizendo: 

—  Tu  bem  conheces  a  nossa  posição,  bem  sabes  que 
é  preciso  muita  força  de  vontade  e  sacrifícios  da  parte 
de  todos.  Eu  próprio,  sabes,  terei  de  redobrar  os  meus 
esforços,  porque  contava  este  mês  com  uma  gratificação 
de  cem  liras  do  caminho  de  ferro,  e  soube  esta  manhã 
que  me  não  dão  nada. 

Aquelas  palavras  sufocaram  em  Júlio  a  confissão 
que  ia  partir-lhe  a  alma,  e  de  si  para  si  dizia:  —  Não  meu 
pai,  não  te  direi  nada.  Guardarei  o  meu  segredo  e  con- 
tinuarei a  trabalhar  para  ti.  Da  dôr  que  sofres,  e  de  que 
sou  causa,  eu  te  compensarei  de  outro  modo.  Na  escola 
esitudarei  quanto  baste  para  ser  promovido.  O  que  eu 
quero  é  ajudar-te  a  ganhar  a  vida  e  a  diminuir-te  a  fadi- 
ga que  te  mata. 

E  continuou  sempre,  e  passaram-se  outros  dois  meses 
de  trabalho  de  noite,  de  cansaço  de  dia,  de  esforços  deses- 
perados do  filho  e  de  repreensões  amargas  do  pai.  O  pior 
era  que  este  se  irritava  cada  vez  mais  com  ele,  falava-lhe 
raramente,  como  se  fosse  um  filho  indigno,  de  quem  não 
houvesse  mais  nada  a  esperar ;  e  fugia  quási  de  encontrar 
os  seus  olhos  com  os  dele.  Júlio  compreendia-o  bem,  e 
sofria;  e  quando  o  pai  voltava  costas  aitirava-lhe  furtiva- 
mente um  beijo,  e  inclinava  o  rosto  com  uma  ternura  pie- 
dosa e  triste.  Com  o  trabalho  excessivo  e  o  pesar  constan- 
te, ia  perdendo  as  cores,  emagrecendo  cada  vez  mais,  lu- 
tando com  a  necessidade  de  descurar  os  seus  estudos. 
Percebia  bem  que  isto  havia  de  acabar  um  dia,  e  todas  as 
tardes  dizia  consigo :  —  Já  esta  noite  me  não  levantarei ! 
Mas  ao  soarem  as  doze  badaladas,  no  momento  em  que 
devia  mais  vigorosamente  permanecer  no  seu  propósito, 
sentia  como  que  um  remorso,  e  parecia  que  se  ficasse 
na  cama  faltava  a  um  dever  e  roubava  uma  lira  a  seu  pai 
e  à  sua  família.  Então,  levantava-se,  pensando  que,  qual- 
quer dia,  o  pai,  despertando,  o  surpreenderia  no  trabalho, 
ou  que  poderia  vir  a  conhecer  o  engano,  se  por  acaso  lhe 
desse  para  contar  as  cintas:  e  então  tudo  se  explicaria, 
naturalmente  sem  um  acito  da  sua  vontade,  que  êle  se  não 
sentia  com  coragem  de  exercer.  E  assim  continuava... 


CORAÇÃO  67 

Mas,  uma  tarde,  ao  jantar,  o  pai,  pronunciou  uma  palavra 
que  foi  decisiva  para  êle.  A  mãi  encarou-o,  e  parecendo- 
-Ihe  vê-lo  mais  fraco  e  amortecido  do  que  o  costume,  dis- 
se-lhe: 

—  Júlio !  tu  estás  doente !  e  voltando-se  para  o  pai 
acrescentou...  Júlio,  está  doente...  Vê  como  está  pálido! 
Meu  Júlio,  que  tens? 

O  pai  olhou-o  de  relance  e  disse: 

—  É  a  má  consciência  que  faz  a  má  saúde.  Não  estava 
assim,  quando  era  um  escolar  estudioso  e  um  filho  de 
coração. 

—  Mas  êle  está  mal!  exclamou  a  mãi. 

—  Não  me  importo  nada  com  isso  —  concluiu  o  pai. 
Aquelas  palavras  foram  facadas  no  coração  do  rapaz. 

Ah!  não  se  importava  com  êle...  seu  pai,  que  antes  tremia, 
só  de  ouvi-lo  tossir,  já  não  o  amava,  e  portanto  não  havia 
mais  dúvida  que  morrera  para  o  seu  coração!  —  Oh!  não, 
meu  pai  —  pensou  êle,  com  o  coração  angustiosamente 
oprimido  —  isto  asim  não  pode  continuar.  Eu  não  posso 
viver  sem  o  teu  afecto,  quero  readquiri-lo  todo  inteiro; 
dir-te-ei  tudo,  não  te  iludirei  mais.  estudarei  como  dantes, 
-"^onteça  o  que  acontecer,  com  tanto  que  tu...  meu  pobre 
papá,  continues  a  ouerer-me  bem.  Oh!  desta  vez,  estou 
bem  sep-uro  da  minha  resolução  !  —  E  contudo  ainda  aaue- 
la  noite  se  levantou,  mais  por  força  de  hábito  do  aue  por 
outra  coisa...  Depois  teve  deseio,  uma  vez  ainda,  de  tor- 
nar a  entrar  por  alguns  minutos  naquele  quarto  onde 
tanto  tinha  trabalhado,  às  escondidas,  com  o  coração  cheio 
de  satisfação  e  de  ternura,  E  quando  se  viu  perto  da  es- 
crevaninha,  com  o  candiero  aceso,  e  viu  aquelas  tiras  em 
branco,  sobre  as  quais  só  se  escreviam  nomes  de  cidades 
e  de  pessoas,  nomes  que  já  sabia  de  cór.  foi  invadido  de 
uma  .grande  tristeza;  e  num  momento  rápido  e  nervoso 
peo^ou  na  pena  para  principiar  o  costumado  trabalho.  Mas, 
ao  estender  a  mão,  deu  com  o  braço  num  livro  e  o  livro 
caiu...  Teve  um  sobressalto.  Se  o  pai  acordasse!  É  certo 
cue  o  não  surpreenderia  a  praticar  uma  acção  má...  De 
mais  iá  tinha  resolvido  dizer-lhe  tudo...  mas...  o  sentir 
aouele  peso  naonela  obscuridade,  ser  surprendido  àquela 
hora,  naquele  silêncio...  Sua  mãi  despertaria  também  as- 


68  CORAÇÃO 

sustada.  E  pensar  que  seu  pai  poderia,  pela  primeira  vez, 
sentir-se  humilhado  na  sua  presença  descobrindo  tudo... 
Esta  ideia  quási  o  aterrava.  Apurou  o  ouvido  com  a  res- 
piração suspensa...  não  se  sentiu  rumor.  Escutou  à  fecha- 
dura da  porta  que  lhe  ficava  por  trás  das  costas...  e  nada. 
Todos  em  casa  dormiam...  O  pai  não  ouvira  coisa  algu- 
ma... Tranqiiilizou-se  e  recomeçou  a  escrever...  E  as  cin- 
tas iam-se  amontoando  sobre  as  cintas...  Na  rua  deserta 
sentiu  o  passo  cadenciado  do  guarda  civil,  depois  o  rodar 
de  um  carro  que  parou  de  repente;  seguiu-se  o  estrépido 
de  uma  fila  de  carros  que  passavam  vagarosamente;  mais 
(tarde,  um  silêncio  profundo,  interrompido  de  quando  em 
quando  pelos  latidos  de  um  cão...  E  escrevia...  escrevia 
sempre...  E,  no  entanto,  o  pai  estava  por  detrás  dele.  Le- 
vantára-se  ao  ouvir  o  livro  cair,  e  esperava  a  ocasião 
oportuna.  O  estrépido  dos  carros  tinham  abafado  o  ru- 
mor dos  seus  passos,  e  o  frouxo  chiar  das  dobradiças  da 
porta,  e  estava  ali,  com  a  sua  cabeça  branca,  sobre  a  ca- 
becinha negra  de  Júlio;  vira  correr  a  pena  sobre  as  cintas; 
e  num  momento  tinha  adivinhado  tudo,  compreendera 
tudo,  recordara  tudo;  e  um  arrependimento  súbito,  uma 
ternura  imensa  lhe  invadira  a  alma,  e  retinha-o  sufocado 
ali  por  detrás  do  filho.  De  repente,  Júlio  solta  um  grito 
algudo!...  Dois  braços  convulsos  o  estreitavam  fortei- 
mente. 

—  Oh!  pai,  pai,  perdôe-me!  gritou  reconhecendo  que 
o  pai  chorava. 

Perdôa-me  tu,  filho — respondeu  o  pai  soluçando,  e 
cobrindo-lhe  a  fronte  de  beijos.  Compreendo  agora...  sei 
tudo,  e  sou  eu  que  te  imploro  perdão,  santa  criatura  mi- 
nha. Vem,  vem  comigo. 

E  impeliu-o  ou  antes  levou-o  ao  leito  de  sua  mãi  já 
acordada,  e  deitou-lho  entre  os  braços  dizendo: 

—  Beija,  beija  este  filho  querido,  que  há  três  meses 
não  dorme  trabalhando  por  mim,  e  eu  a  torturar-lhe  a 
alma,  a  ele,  que  nos  ganhava  o  pão! 

A  mãi  apertou-o  afectuosamente  ao  peito,  sem  poder 
desprender  a  voz;  depois  disse: 

—  Vai  dormir,  meu  querido  filho,  vai,  vai  dormir,  e 
descansar !  Leva-o  tu  à  cama. 


CORAÇÃO 


69 


O  pai  tomou-o  nos  braços  e  conduziu-o  ao  quarto, 
deitou-o  no  leito,  comovido,  e  acarinhando-o,  aconche- 
gou-lhe  as  almofadas  e  endireitou-lhe  a  coberta. 

—  Muito  obrigado,  papá  —  dizia  o  filho  —  muito 
obrigado!  Mas  vá  deitar-se...  eu  estou  muito  bem:  vá,  vá 
deitar-se,  papá. 

Mas  o  pai  queria  vê-lo  adormecido,  sentou-se  à  cabe- 
ceira da  cama,  tomou-lhe  a  mão,  e  disse-lhe: 


—  Dorme,  dorme,  meu  filho ! 

E  Júlio,  cansado,  adormeceu  finalmente,  e  dormiu 
muitas  horas,  gozando,  pela  primeira  vez  depois  de  al- 
guns meses,  de  um  sono  tranquilo,  afagado  de  sonhos  ri- 
dentes; e  quando  abriu  os  olhos  já  o  sol  brilhava  há  mui- 
to, e  sentiu  primeiro  e  viu  depois,  junto  ao  peito,  apoia- 
da na  beira  da  cama  a  cabeça  branca  do  pai,  que  tinha 
passado  a  noite  ali,  ao  4ado  dele;  e  dormia  ainda  com  a 
testa  sobre  o  coração. 


70  CORAÇAC 

À  voníade 

Quarta-feira,  28 

Só  Stardi  na  minha  classe  é  que  seria  capaz  de  fazer 
o  que  fez  o  pequeno  Florentino.  Esta  manha  houve  dois 
acontecimentos  na  escola:  Garrotti,  doido  de  contente, 
porque  lhe  tornaram  a  dar  o  seu  álbum  aumentado  com 
três  estampilhas  da  república  de  Guatemala,  que  êle  pro- 
curava havia  três  meses;  e  Stardi,  que  teve  a  segunda  me- 
dalha. Stardi,  primeiro  da  classe,  depois  de  Derossi!  To- 
dos ficaram  maravilhados!  Quem  havia  de  dizer  em  Ou- 
tubro, quando  o  pai  o  conduziu  à  escola,  embiocado  na- 
quele capotão  verde,  e  disse  ao  mestre,  ali,  à  vista  de  to- 
dos:—  E  necessário  que  tenha  muita  paciência  porque 
êle  é  muito  duro  da  cachimónia!  Todos  lhe  chamavam 
testa  de  martelo,  no  principio. 

Mas  êle  dizia:  —  Ou  eu  arrebento  ou  há-de  sair  da- 
qui alguma  coisa!  ^E  pôs-se  obstinadamente  a  estudar 
de  dia,  de  noite,  em  casa,  na  escola;  com  os  dentes  cerra- 
dos, com  os  punhos  fechados,  paciente  como  um  boi,  tei- 
moso como  um  jiunento,  e  assim,  à  força  de  remoer,  desde- 
nhando zombarias,  atirando  pontapés  aos  perturbadores, 
passou  adiante  de  todos,  aquele  cabeçudo!  Não  percebia 
uma  de  X  de  aritmética,  enchia  de  disparates  a  composi- 
ção, não  conseguia  decorar  um  periodo;  e  agora,  resolve 
os  problemas,  escreve  correctamente,  e  canta  como  se  fora 
uma  ária!  Adivinha-se-lhe  a  vontade  de  ferro,  ao  ver  co- 
mo é  feito,  assim  baixo,  com  a  cabeça  quadrada,  sem  pes- 
coço, com  as  mãos  curtas  e  grossas  e  com  aquela  voz  for- 
te e  áspera.  Estuda  até  em  pedaços  de  jornais,  em  avisos 
de  teatros;  e  sempre  que  pode  juntar  dez  soldos  compra 
um  livro;  já  tem  feita  uma  pequena  biblioteca;  e  num 
momento  de  bom  humor,  deixou  perceber,  há  dias  que 
me  há-de  levar  lá  a  casa  a  mostrar-ma.  Não  fala  com  nin- 
guém, não  brinca  com  ninguém;  está  sempre  ali,  à  banca 
com  os  punhos  arrimados  às  frontes,  firme  como  um 
poste,  a  ouvir  o  mestre.  Quanto  se  deve  ter  afadigado, 
pobre  Stardi! 


CORAÇÃO  71 

O  mestre  disse  esta  manhã,  apesar  de  estar  imperti- 
nente e  de  mau  humor,  quando  lhe  deu  as  medalhas: 

—  Bravo,  Stardi !  quem  porfia,  vence  . 

Mas  êle  não  se  mostrou  orgulhoso;  não  se  riu  e,  ape- 
nas voltou  para  o  banco  com  a  medalha,  tornou  a  encaixar 
as  fontes  nos  punhos,  e  ficou  ainda  mais  imóvel  e  mais 
atento  que  dantes.  Mas  o  bom,  foi  à  saida,  onde  o  espera- 
va o  pai,  um  sangrador,  gordo  e  baixo  como  êle,  com  um 
carão  enorme  e  uma  voz  imensa.  Não  esperava  aquela  me- 
dalha, e  não  queria  acreditar  que  o  filho  a  obtivesse.  Foi 
necessário  que  o  mestre  lhe  dissesse  que  era  verdade;  e 
pôs-se  então  a  rir  de  prazer,  e  deu  uma  palmada  na  nuca 
do  filho,  dizendo  forte: 

—  Ora  viva.  senhor!  muito  bem,  meu  cabeça  de  coco. 
E  olhava  para  êle  estupefacto  e  sorrindo.  E  todos 

nós,  em  volta  sorríamos,  exceptuando  Stardi...  Este  ru- 
minava a  lição  de  amanhã. 


Gratidão 


Sábado,  13 


O  teu  companheiro  Stardi  não  se  queixará  mais  do  mestre, 
estou  certo  disso.  O  mestre  estava  de  mau  humor  e  impaciente, 
assim  o  disseste  tu,  em  tom  de  ressentimento.  Pensa  quantas 
vezes  tu  dás  também  mostras  de  impaciência,  e  a  quem?  e  teu 
pai  e  a  tua  mãi,  aqueles  para  quem  a  tua  impaciência  é  um  delito. 
Razão  tem  o  teu  mestre  para  ser  algumas  vezes  impaciente! 
Pensa  no  número  de  anos  que  êle  se  afadiga  pelos  rapazes;  e  se 
entre  eles  encontrou  muitos,  afectuosos  e  corteses,  encontrou 
também  muitíssimos  ingratos,  que  abusaram  da  sua  bondade,  e 
desconheceram  os  seus  esforços;  e  a  verdade  é  que,  em  geral, 
vós  lhes  dais  mais  amarguras  que  prazeres.  Pensa  que  o  mais 
santo  homem  da  terra  no  seu  lugar,  se  deixaria  vencer  algumas 
vezes  da  cólera.  E  se  soubesses  quantos  dias  êle  vai  dar  lição 
doente,  e  vai  porque  a  doença  não  é  tão  grave  que  possa  dispen- 
sá-lo da  sua  obrigação!  É  impaciente  porque  sofre,  e  é  um  gran- 
de pesar  para  êle  o  ver  que  vós,  conhecendo  o  seu  estado  abusais. 


CORAÇÃO 

Respeita  e  ama  o  teu  mestre,  filho.  Ama-o  porque  teu  pai  o  ama 
e  respeita;  ama-o  porque  êle  consagra  a  vida  ao  bem  de  tantos 
rapazes  que  o  esquecem;  ama-o  enfim,  porque  um  dia  quando 
fores  homem,  e  quando  nem  eu  nem  êle  formos  deste  mundo, 
a  sua  imagem  se  te  apresentará  muitas  vezes  à  memória,  ao  lado 
da  minha;  e  então  te  recordarás  da  expressão  de  dôr  e  de  can- 
saço daquela  bôa  fisionomia  de  homem  probo,  expressão  que 
mal  compreendes  agora,  mas,  trinta  anos  decorridos,  sentirás 
pena  e  vergonha  de  o  não  haveres  estimado  como  êle  merecia 
e  de  te  teres  portado  mal  com  êle.  Ama  o  teu  mestre,  porque 
pertence  àquela  grande  família  de  cinqiienta  mil  professores  ele- 
mentares, espalhados  por  toda  a  Itália,  que  são  como  os  pais  in- 
telectuais de  milhões  de  rapazes  que  vencem  contigo,  trabalha- 
dores mal  compreendidos  e  mal  recompensados,  que  preparam 
ao  nosso  país  uma  geração  melhor  do  que  a  presente.  Eu  não  me 
satisfaço  com  o  afecto  que  tens  por  mim,  se  o  não  tens  para  to- 
dos aqueles  que  te  fazem  bem,  e  entre  estes  o  primeiro  é  o 
teu  mestre,  e  depois  os  teus  parentes.  Ama-o  como  amarias  lun 
meu  irmão;  ama-o  quando  te  acaricia,  e  quando  te  repreende, 
quando  é  justo,  e  quando  te  parece  que  é  injusto;  ama-o  quando 
é  alegre  e  afável,  e  ama-o  mais  ainda  quando  o  vires  triste. 
Ama-o  sempre,  e  pronuncia  sempre  com  reverência  este  nome  — 
mestre  —  que  depois  do  de  pai,  é  o  mais  nobre  e  o  mais  doce 
nome  que  pode  dar  um  homem  a  outro  homem. 

Teu  Pai 


JANEIRO 

O  mestre  suplente 

Quarta-feira,  c. 

Meu  pai  tinha  razão;  o  mestre  estava  de  mau  humor 
porque  não  se  sentia  bem,  e  há  três  dias,  com  efeito,  que 
vem  substituí-lo  o  suplente,  aquele  pequeno  sem  barba  e 
que  parece  um  senhorita.  Deu-se  com  êle,  esita  manhã, 
um  facto  desairoso.  Já  no  primeiro  dia  e  no  segundo  dia 


CORAÇÃO 


73 


tinham  os  rapazes  feito  chacota  da  escola,  porque  o  su- 
plente tem  uma  paciência  de  santo,  e  não  faz  senão  dizer: 
—  Peço-lhes  que  estejam  calados!  por  favor  estejam  cala- 
dos!—  Mas  esta  manhã  passou  das  marcas.  Faziam  tal 
algazarra  que  não  se  ouvia  nada!  e  êle  admoestava,  pedia, 
mas  era  tempo  perdido.  Duas  vezes  o  director  apareceu  à 
porta,  observando;  mas  apenas  o  sussurro  crescia  como 
em  um  mercado.  Bem  se  voltavam  Garrone  e  Derossi  a 
fazer  acenos  aos  companheiros,  que  estivessem  sossega- 
dos, que  aquilo  era  uma  vergonha.  Nenhum  fazia  caso.  Só 


Stardi  era  o  único  que  estava  silencioso,  com  os  cotovelos 
fincados  na  banca  e  os  punhos  encostados  às  fontes,  pen- 
sando talvez  na  sua  famosa  livraria...  e  Garoffi,  o  nariz  de 
gancho,  o  das  estampilhas,  que  estava  todo  ocupado  a  fazer 
a  lista  dos  subscritores  a  dois  cêntimos  para  a  rifa  de  um 
tinteiro  de  algibeira.  Os  outros  tagarelavam,  riam,  toca- 
vam em  pontas  de  penas  espetadas  nos  bancos,  e  atiravam 
bolinhas  de  papel  com  elásticos  das  ligas.  O  suplente 
agarrava  por  um  braço,  ora  a  um,  ora  a  outro,  sacudia-os, 
e  pôs  um  contra  a  parede.  Tempo  perdido!  Nem  êle  sabia 
já  com  que  santo  se  apegasse,  e  dizia  com  brandura: 


74  CORAÇÃO 

—  Mas  para  que  procedeis  deste  modo?  Quereis  en- 
colerizar-me  por  força? 

Depois  dava  murros  na  mesa,  e  gritava  com  voz  de 
raiva  e  de  choro: 

—  Silêncio!  Silêncio!  Silêncio! 

Fazia  pena  vê-lo;  e  o  rumor  crescia  sempre.  Franiti 
atirou-lhe  uma  flecha  de  papel,  outros  miavam  de  gato 
e  muitos  davam  piparotes;  enfim,  era  uma  inferneira  de 
não  poder  descrever-se.  Nisto  entrou  o  contínuo,  e  disse- 
-Ihe: 

—  Senhor  professor,  o  senhor  director  chama-o. 

O  mestre  ievantou-se,  e  saiu  à  pressa,  como  um  de- 
sesperado. Então  a  algazarra  recomeçou  ainda  mais  forte. 
Mas,  de  repente  Garrone  levanta-se  com  o  rosto  descom- 
posto e  os  punhos  cerrados,  e  com  a  voz  rouca  de  cólera 
exclama: 

—  Basta,  estúpidos!  abusais,  porque  êle  é  bom.  Se 
vos  desancasse  os  ossos,  estarieis  aí  humildes  como  cais! 
Sois  um  bando  de  poltrões!  O  primeiro  que  lhe  fizer  o 
mais  leve  insulto,  espero-o  lá  fora  e  quebro-lhe  os  quei- 
xos. Juro-vos  que  o  faço,  ainda  que  seja  à  vista  dos  vossos 
pais! 

Todos  se  calaram.  Ah!  como  era  belo  ver  Garrone, 
com  os  olhos  que  expeliam  chamas !  Parecia  um  leãozinho 
furioso.  Olhou  a  um  por  um,  para  os  mais  atrevidos,  e 
todos  abaixaram  a  cabeça.  Quando  o  suplente  entrou,  com 
os  olhos  vermelhos  não  se  ouviu  nem  mais  um  respiro. 
Ficou  atónito,  mas  reparando  em  Garrone  que  ainda  es- 
tava incendido  e  trémulo,  compreendeu  o  que  se  passara 
e  disse-lhe  com  entonação  de  grande  afecto: 

—  Muito  obrigado,  Garrone. 


A  livraria  de  Síardi 


Fui  a  casa  de  Stardi,  que  mora  numa  casa  em  frente 
à  escola,  e  tive  realmente  inveja  da  sua  livraria.  Não  é 
rico,  não  pode  comprar  muitos  volumes,  mas  conserva 
com  extremo  cuidado  o  seus  livros  de  escola,  e  todos  os 


ORAÇÃO  75 

escudos  que  lhe  dão  põe-nos  de  parte,  e  gasta-os  com  o  li- 
vreiro. L»este  modo  navia  arranjado  já  uma  pequena  bi- 
blioteca; e  quando  o  pai  conneceu  que  ele  tinna  aquela 
paixão,  compiou-ine  uma  Deia  estante  de  nogueira,  com 
cortinas  verdes,  e  mandou-ine  encadernar  os  livros  todos 
com  as  cores  que  mais  ine  agradavam.  Assim  ele  agora 
puxa  por  um  cordaoziníio,  e  a  cortina  verde  corre,  e  deixa 
ver  três  iuas  de  livros  de  itodas  as  córevS,  e  todos  em  or- 
dem, luxuosos,  com  títulos  dourados  nas  lombadas,  livros 
de  contos,  de  viagens  e  de  poesias,  e  também  os  tem  ilus- 
trados, tj  ele  saoe  comoinar  Dem  as  cores:  póe  os  volumes 
Drancos  ao  laoo  dos  vermelhos;  os  amarelos  ao  lado  dos 
pretos;  os  azuis  ao  lado  dos  brancos,  de  maneira  que  se 
vejam  de  longe  e  iaçam  boa  tigura:  e  depois  diverte-se 
a  variar  as  combinações.  Tem  ja  o  seu  catalogo  como  se 
tosse  um  bibliotecário.  Esita  sempre  junto  dos  livros,  a 
espana-los,  e  a  tolheà-los  e  a  examinar  as  encadernações. 
E  curioso  ver  o  cuidado  com  que  os  abre,  com  aquelas 
máos  curtas  e  grossas,  soprando  entre  as  páginas.  Todos 
os  livros  parecem  novos.  E  eu,  que  tenho  estragado  (to- 
dos os  meus !  Para  êle,  cada  livro  novo  que  compra  é  uma 
festa :  alisa-o,  pòe-no  na  estante,  torna-o  a  tirar  para  o  ob- 
servar de  todos  os  lados;  e  afinal  guarda-o  como  um  te- 
souro. Não  me  mostrou  outra  coisa  durante  uma  hora.  E 
estava  doente  dos  olhos,  de  tanto  ler.  Passando  pela  saia 
o  pai,  que  é  gordo  e  baixo  como  êle,  com  uma  cabeçorra 
como  a  sua,  deu-ihe  duas  ou  itrês  palmadas  na  nuca,  di- 
zendo-me  com  o  seu  enorme  vozeirão: 

—  Então  que  me  dizes  a  esta  cabeça  de  bronze?  É 
uma  cabeça  que  há-de  produzir  alguma  coisa,  estou  certo 
disso. 

E  Stardi  cerrava  os  olhos  debaixo  daquelas  rústicas 
carícias  como  um  grande  cão  de  caça.  Eu  não  sei  porquê, 
mas  não  me  atrevo  a  chalacear  com  êle  e  não  me  parece 
que  tenha  um  só  ano  mais  do  que  eu.  Quando  à  saída  me 
disse :  —  Aité  à  vista  —  com  aquela  cara  que  parece  sem- 
pre amuada,  pouco  faltou  que  eu  lhe  não  respondesse:  — 
Às  suas  ordens !  —  como  se  fosse  a  um  homem.  Eu  depois 
disse  em  casa  a  meu  pai : 

—  Não  compreendo!  Stardi  não  tem  talento,  não  tem 


76  CORAÇÃO 

maneiras  finas;  é  uma  figura  quási  caricata,  e  contudo 
domina-me. 

E  meu  pai  respondeu: 

—  É  porque  item  carácter. 
Eu  acrescentei: 

Numa  hora  que  estive  com  êle  não  pronunciou  cin- 
quenta palavras,  não  me  mostrou  um  só  brinquedo,  não 
se  riu  uma  só  vez,  e  a  pesar  disso  estive  satisfeito. 

E  meu  pai  disse: 

—  É  porque  o  estimas  . 


O  filho  do  ferreiro 


Sim,  mas.  ftambém  estimo  Precossi,  e  é  muito  pouco 
dizer  só  que  o  estimo.  Precossi,  o  filho  do  ferreiro,  aque- 
le pequenino  macilento,  de  o^hos  bons  e  tristes,  de  ar 
espantado,  tão  tímido  que  diz  a  todos:  —  Desculpe-me. 
—  Sempre  adoentado !  é  que  estuda  muito.  O  pai  emtra 
em  casa  embriagado  com  aguardente,  bate-lhe  sem  razão 
alguma;  atira-lhe  pelos  ares,  com  repelões,  os  livros  e  os 
cadernos;  e  êle  vem  para  a  escola  com  manchas  no  rosto 
e  algumas  vezes  com  as  faces  inchadas,  e  os  olhos  infla- 
mados de  muito  chorar:  mas  ninguém  lhe  pode  dizer  que 
levou  pancadas  do  pai. 

—  Foi  teu  pai  que  te  bateu...  —  dizem-lhe  os  compa- 
nheiros. E  êle,  logo : 

—  Não  é  verdade,  não  é  verdade !  —  para  que  não  fa- 
çam mau  juízo  do  pai. 

—  Esita  folha  não  a  queimaste  tu  —  disse-lhe  uma  vez 
o  mestre,  mostrando-lhe  um  trabalho  meio  queimado. 

—  Sim,  senhor,  respondeu  êle  com  voz  trémula;  fui 
eu  que  a  deixei  cair  ao  lume. 

E  contudo  nós  sabíamos  bem  que  fora  o  pai  embria- 
gado que,  com  um  pontapé,  tinha  voltado  a  mesa  com  o 
candeeiro  e  tudo,  quando  êle  estudava  a  lição.  Mora  nu- 
mas águas-furtadas  da  nossa  casa,  para  onde  se  vai  pela 
outra  escada;  a  porteira  conta  tudo  a  minha  mãi.  Minha 
irmã  Silvia  ouviu-o  gritar  do  terraço  um  dia  que  o  pai  o 


CORAÇÃO  77 

fez  descer  as  escadas  aos  trambulhoes,  porque  lhe  pedira 
alguns  escudos  para  comprar  uma  gramática.  O  pai  bebe, 
não  trabalha,  e  a  familia  tem  fome.  Quantas  vezes  o  po- 
bre Precossi  vem  para  a  escola  em  jejum,  e  rói  um  boca- 
do de  pão  que  lhe  dá  Garrone  às  escondidas,  ou  uma  ma- 
çã que  lhe  traz  a  mestra  de  quem  ele  foi  discípulo.  Mas 
nunca  êle  diz:  —  Tenho  fome;  meu  pai  não  me  dá  de 
comer. 

O  pai  vem  algumas  vezes  buscá-lo,  quando  passa  por 
acaso  diante  da  escola,  pálido,  cambaleando,  com  uma 
cara  carrancuda,  os  cabelos  sobre  os  olhos,  e  a  carapuça 
do  avesso;  o  pobre  rapaz  treme  todo  quando  o  vê  na  rua, 
mas  corre-lhe  ao  encontro,  sorrindo;  e  o  pai  parece  que 
nem  o  vê,  pensando  noutra  coisa.  Pobre  Precossi!  Cose 
e  recose  os  cadernos  rotos,  pede  livros  emprestados  para 
estudar  a  lição;  prende  os  punhos  da  camisa  com  alfi- 
netes; e  causa  pena  vê-lo  fazer  ginástica,  com  aqueles 
sapatos  em  que  se  pode  nadar  dentro,  aquelas  calças,  a 
arrastar  no  chão,  e  aquela  jaqueta  muito  comprida,  arre- 
gaçada até  aos  cotovelos!  E  estuda,  empenha-se;  e  seria 
um  dos  primeiros,  se  pudesse  trabalhar  em  casa  tranquilo. 
Esta  manhã  veio  para  a  escola  com  os  sinais  de  uma  unha- 
da na  face,  e  todos  lhe  disseram:  —  Foi  teu  pai  quem  te 
fez  isso!  Diz  ao  director  que  o  faça  chamar  à  polícia. 
Mas  êle  levantou-se  todo  corado,  com  a  voz  trémula  de 
indignação,  exclamando: — Não  é  verdade!  não  é  verda- 
de! meu  pai  não  me  bate  nunca... — Mas  depois  durante 
a  lição,  caíam-lhe  as  lágrimas  sobre  a  mesa;  e  quando  al- 
guém olhava  para  êle,  esforçava-se  por  sorrir,  para  não 
parecer  que  chorava.  Pobre  Precossi!  Amanhã  devem  vir 
a  minha  casa  Derossi  Coretti  e  Nelli.  Quero  dizer-lhe  que 
venha  também;  obrigá-lo-ei  a  merendar  comigo,  e  hei-de 
fazer-lhe  presente  de  livros  e  pôr  em  alvoroço  a  casa  para 
diverti-lo,  e  encher-lhe  as  algibeiras  de  frutas  para  o  ver 
uma  vez  contente.  Pobre  Precossi!  que  é  tão  bom  e  tem 
tanta  coragem!... 


78  CORAÇÃO 


Uma  bela  visiía 

Çuinta-feira,  12 

Foi  esta  uma  das  mais  belas  quintas-feiras  do  ano  pa- 
ra mim.  As  duas  em  ponto  vieram  a  nossa  casa  Derossi, 
Coretti,  com  Nelli,  o  corcundinha.  Precossi  não  veio,  por- 
que o  pai  não  deixou.  Derossi  e  Coretti  riam  ainda,  por- 
que tinham  encontrado  na  rua,  Crossi,  o  filho  da  vende- 
deira  de  hortaliças,  aque,le  do  braço  paralítico  e  dos  ca- 
belos ruivos,  que  andava  a  vender  uma  enorme  couve 
para  com  o  produto  dela  comprar  uma  pena;  e  estava  to- 
do contente  porque  o  pai  tinha  escrito  da  América  que  o 
esperassem  breve.  Oh!  que  belas  duas  horas  passámos  jun- 
tos! São  os  dois  mais  alegres  da  classe  Derossi  e  Co- 
retti; meu  pai  gostou  muito  deles.  Coretti  tinha  a  sua 
camisola  côr  de  chocolate  e  o  barrete  de  pele  de  gato.  É 
um  diabo  que  sempre  quere  fazer  alguma  coisa,  mexer, 
agitar-se.  Já  trouxera  sobre  os  ombros  uma  carrada  de 
lenha,  de  manhã  cedo,  e  apesar  disso,  andou  aos  saltos 
por  por  toda  a  casa,  observando  tudo  e  falando  sempre 
vivo  e  lesto  como  um  rato ;  e  passando  pela  cozinha  pre- 
guntou  à  cozinheira  por  quanto  pagava  o  feixe  de  lenha, 
que  o  pai  vendia  a  quarenta  e  cinco  centavos.  Fala  sem- 
pre do  pai,  de  quando  foi  soldado  do  regimento  4p,  na  ba- 
talha de  Custoza,  onde  se  achou  no  quadrado  do  príncipe 
Humberto;  e  é  muito  delicado  de  maneiras.  Que  importa 
que  tenha  crescido  entre  lenha,  se  tem  a  nobreza  no  san- 
gue e  no  coração,  como  diz  meu  pai !  E  Derossi  diveritiu- 
-nos  muito :  sabe  geogragia  como  um  mestre.  Fechava  os 
olhos  e  dizia:  —  estou  vendo  toda  a  Itália:  os  Apeninos, 
que  se  alongam  até  ao  mar  Jónio;  os  rios  que  correm  de 
cá  e  de  lá;  as  cidades  brancas:  os  golfos;  as  enseadas 
azuis;  as  ilhas  verdes...  E  dizia  os  nomes  certos,  rapida- 
mente, como  se  os  lesse  na  carta;  e  ao  vê-lo  assim  com 
aquela  cabeça  levantada,  toda  cheia  de  anéis  côr  de  ouro, 
os  olhos  cerrados,  todo  vestido  de  azul  com  botões  dou- 
rados, direito  e  belo  como  uma  estátua,  todos  estávamos 
admirados.  Em  uma  hora  êle  tinha  decorado  quási  três 


CORAÇÃO  79 

páginas  de  uma  oração  que  deve  recitar  depois  de  amanhã 
pelo  aniversário  dos  funerais  de  Vítor  Manuel,  E  tam- 
bém Ne,lli  olhava  para  êle,  maravilhado  e  com  afecto,  tor- 
cendo as  pontas  do  seu  grande  avental  de  paninho  preto, 
sorrindo  com  aqueles  olhos  claros  e  melancólicos.  Deu- 
-me  um  grande  prazer  esta  visita,  e  deixou-me  alguma 
coisa,  como  centelhas,  no  espírito  e  no  coração,  E  ainda 
me  agradou,  quando  saíram,  ver  o  pobre  Nelli  no  meio 
dos  outros  dois,  grandes  e  fortes,  que  o  levavam  a  casa 
pelo  braço,  fazendo-o  rir  como  nunca  o  tinha  visto  rir. 
Quando  tornei  a  entrar  na  sala  de  jantar,  notei  que  não 
estava  lá  o  quadro  que  representava  Rigoletto,  o  bobo 
corcunda...  Tinha-o  tirado  meu  pai  para  que  Nelli  não  o 
visse. 

Os  funerais  de  Vííor  Manuel 

Janeiro,  ij 

Hoje,  às  duas  horas,  quando  o  mestre  entrou  na  au- 
la, chamou  Derossi,  que  se  foi  colocar  junto  à  mesa,  em 
frente  de  nós,  e  começou  a  dizer  com  acentuação  vi- 
brante, levantando  gradualmente  a  voz  límpida,  e  ani- 
mando-se-lhe  comovidamente  o  rosto : 

—  Faz  hoje  quatro  anos  que  neste  dia  e  a  esta  hora 
chegava  em  frente  do  Panteão,  em  Roma,  o  carro  fúne- 
bre que  conduzia  o  cadáver  de  Vítor  Manuel  II,  primei- 
ro rei  da  Itália,  falecido  depois  de  vinte  e  nove  anos  de 
reinado,  durante  os  quais  a  grande  pátria  italiana,  divi- 
dida em.  sete  estados,  oprimida  por  es-trangeiros  e  tiranos, 
ressurgia  em  um  Estado  só,  independente  e  livre;  depois 
de  um  reinado  de  vinte  e  nove  anos,  que  êle  tornou  ilus- 
tre e  benéfico,  com  valor,  lealdade,  coragem  nos  perigos, 
prudência  nos  triunfos,  e  constância  nas  desventuras. 
Chegara  o  carro  fúnebre  depois  de  ter  percorrido  Roma 
debaixo  de  uma  chuva  de  flores,  entre  o  silêncio  de  uma 
multidão  que  correra  de  todas  as  partes  da  Itália,  prece- 
dido de  uma  Jegião  de  generais  e  de  um  imenso  concur- 
so de  ministros  e  de  príncipes,  seguido  de  um  cortejo  de 


80  CORAÇÃO 

mutilados,  de  ums  floresta  de  bandeiras,  de  convidados, 
de  trezentas  cidades,  de  tudo  que  representa  o  poder  e  a 
glória  de  um  povo,  e  para  diante  do  templo  aup^usto,  onde 
o  esperava  o  túmulo.  Doze  couraceiros  levantaram  o  fé- 
retro do  carro  e  nesse  momento  a  Itália  dava  o  último 
adeus  ao  seu  rei  morto,  ao  seu  velho  rei  que  tanto  a  ama- 
ra, o  último  adeus  ao  seu  soldado,  ao  seu  pai,  aos  vinte  e 
nove  anos  mais  abençoados  e  felizes  da  sua  história!  Foi 
um  momento  grande  e  solene!  A  vista  e  a  alma  de  todos 
repartiam-se  entre  o  féretro  e  as  bandeiras  denegridas 
de  oitenta  regimentos  do  exército  italiano,  empunhadas 
por  oitenta  oficiais  enfileirados,  pois  que  a  Itália  estava 
ali,  naquelas  oitenta  insígnias,  que  recordavam  os  milha- 
res de  mortos,  as  torrentes  de  saneue,  as  nossas  mais  sa- 
gradas glórias,  os  nossos  mais  santos  sacrifícios,  as  nos- 
sas mais  tremendas  dores.  O  féretro  conduzido  pelos  cou- 
raceiros passara,  e  então  inclinaram-se  a  um  tempo,  em 
respeitosa  continência,  todas  as  bandeiras  dos  novos  re- 
gimentos, os  velhos  pendões  laureados  de  Goito,  de  Pas- 
trengo,  de  Santa  Lúcia,  de  Novara,  da  Crimea,  de  Pales- 
tro, de  San  Martino,  de  Castelfidardo.  Oitenta  véus  ne- 
gros roçaram  o  chão:  cem  medalhas  tilintaram  contra  o 
ataúde...  E  aquele  estrépito  sonoro  e  confuso,  que  agi- 
tava o  sangue  de  todos,  era  como  o  som  de  mil  vozes  hu- 
manas aue  dissessem  unísonas:  «Adeus,  bom  e  excelente 
Rei!  Rei  leal!  Tu  viverás  no  coração  do  teu  povo  en- 
quanto o  sol  raiar  sobre  a  Itália».  Depois  erírueram-se  as 
bandeiras  altivamente  para  o  céu,  e  o  rei  Vítor  entrava 
na  glória  imortal  do  sepulcro. 

Franfi  expulso  da  escola 

Sábado,  21 

Um  ímicamente  seria  capaz  de  rir-se  enquanto  De- 
rossi  falava  nos  fxmerais  do  rei,  e  Franti  riu-se.  Eu  de- 
testo-o.  É  um  perverso.  Guando  alç-um  pai  vem  à  escola 
fazer  queixa  dum  filho,  ele  re?osija-se;  se  alguém  chora, 
ele  ri-se.  Treme  diante  de  Garrone,  mas  bate  no  pearei- 
rito  porque  é  pequeno,  e  atormenta  Crossi  porque  tem 


I 


CORAÇÃO  81 

O  braço  paralítico.  Escarnece  Precossi,  que  todos  esti- 
mam, e  zomba  até  de  Robetti,  daquele  que  anda  de  mu- 
letas por  ter  salvo  uma  criança.  Provoca  todos  os  que 
são  mais  fracos  do  que  êle,  e,  quando  bate,  é  uma  fera. 
Há  qualquer  coisa  de  repelente  naquela  testa  baixa,  na- 
queles olhos  maus,  quási  escondidos  debaixo  da  viseira 
do  seu  gorro  encarnado.  Não  teme  coisa  alguma,  ri  na 
cara  do  mestre,  rouba  quanto  pode,  nega  com  uma  cara 
desavergonhada,  e  está  sempre  em  briga  com  alguém; 
traz  para  a  escola  alfinetes  para  picar  os  vizinhos,  arran- 
ca os  botões  do  seu  casaco  e  do  dos  outros  e  joga-os; 
e  tem  a  carteira,  cadernos,  livros,  tudo  esfrangalhado, 
despedaçado  e  sujo;  a  régua  cheia  de  dentes,  a  caneta 
meio  comida,  as  unhas  roídas,  o  fato  cheio  de  gordura 
e  de  rasgões  feitos  em  briga.  Dizem  que  a  mãi  está  doen- 
te por  causa  dos  trabalhos  que  êle  lhe  dá,  e  que  o  pai 
já  o  expulsou  de  casa  três  vezes;  a  mãi  vem  de  vez  em 
quando  pedir  informações  ao  mestre,  e  volta  sempre  cho- 
rando. Êle  odeia  os  companheiros,  odeia  o  mestre.  Este 
finge  algumas  vezes  que  não  vê  as  suas  velhacadas,  e 
êle  ainda  faz  pior.  Tentou  levá-lo  por  boas  maneiras  e 
nada  conseguiu.  Disse-lhe  então  palavras  mviito  duras,  e 
êle  cobriu  a  cara  com  as  mãos,  a  fingir  que  chorava,  e 
estava  a  rir-se!  Foi  suspenso  da  escola  por  três  dias,  e, 
nuando  voltou,  vinha  ainda  mais  insolente  do  que  dantes. 
Derossi  disse-lhe  um  dia:  «Acaba  de  vez  com  isso;  olha 
que  o  mestre  já  te  atura  de  mais».  E  êle  ameaçou-o  de 
meter-lhe  um_  prego  na  barriga.  Mas  finalmente  esta  ma- 
nhã foi  expulso  como  um  cão.  Enquanto  o  mestre  dava 
a  Garrone  o  rascunho  do  Tamborzinho  sardo,  o  conto 
mensal  de  Janeiro,  para  copiar,  atirou  para  o  chão  uma 
bomba,  que  rebentou  fazendo  um  estrondo  como  uma 
descarga  de  fuzilaria.  Toda  a  aula  estremeceu.  O  mestre 
pôs-se  de  pé.  gritando: 

—  Franti;  fora  da  escola! 
Êle  respondeu: 

—  Não  fui  eu...  — mas  ria-se. 
O  me^-tre  repetiu: 

—  Tá  lá  fora! 

—  Pois  não  saio  daqui  —  replicou  êle... 


S2 


CORAÇÃO 


Nisto  o  mestre  perdeu  a  cabeça,  lançou-se  a  ele, 
agarrou-o  por  um  braço,  e  arrancou-o  do  banco.  E  êle 
debatia-se  e  rangia  os  dentes;  foi  preciso  arrastá-lo  à 
viva  força.  O  mestre  levou-o  ao  Director,  e  depois  vol- 
tando só,  sentou-se  à  mesa  com  a  cabeça  entre  as  mãos, 


aflito  com  uma  expressão  de  dôr  e  de  fadiga,  que  fazia 
pena  vê-lo.  '    '  r'~\ 

—  Há  trinta  anos  que  exerço  o  magistério... — ex- 
clamou tristemente,  inclinando  a  cabeça.  Ninguém  respi- 
rava. As  mãos  tremiam-lhe  de  cólera,  e  a  ruga  que  lhe 
atravessava  horizontalmente  a  testa  estava  tão  profunda 
que  parecia  uma  ferida.  Pobre  mestre!  Todos  sofriam 
com  êle.  Derossi  levantou-se  então  e  disse : 

—  Senhor  profesor,  não  se  aflija.  Nós  somos  muito 
seus  amigos  e  temos-lhe  muito  respeito. 

Ouvindo  isto,  pareceu  ficar  mais  sossegado  e  disse: 

—  Continuemos  a  lição,  meus  amigos. 


•  ORAÇÃO 


83 


O  íamborzinho  sardo 

(CONTO  MENSAL) 

No  primeiro  dia  de  batalha  de  Mustosa,  em  24  de 
julho  de  1848,  uns  sessenta  soldados  dum  regimento  do 
nosso  exército,  mandados  a  ocupar  uma  casa  solitária 
sobre  uma  encosta,  foram  inesperadamente  assaltados  por 
duas  companhias  de  soldados  austríacos,  que,  atacando-o 
com  uma  sa- 
raivada de  ba- 
las, partindo 
de  todos  os 
lados,  apenas 
lhes  deram 
tempo  de  se 
r  e  £  u  g  iarem 
na  casa  e 
t  r  a  n  carem 
pr'ecipitada- 
mente  as  por- 
tas, depois  de 
terem  deixa- 
do alguns  fe- 
ridos e  mor- 
tos no  campo. 
Fechadas    as 

entradas,  os  nossos  correram  furiosamente  às  janelas  do 
rez-do-chão  e  do  primeiro  andar,  e  principiaram  a  fazer 
fogo  vivissimo  sobre  os  assaltantes,  que  iam  avançando 
gradualmente  em  semicírculo  e  respondendo  ao  fogo  vi- 
gorosamente. Comandavam  os  sessenta  soldados  italianos 
dois  oficiais  subalternos  e  um  capitão,  militar  velho,  alto, 
seco  e  austero,  com  os  cabelos  e  o  bigode  brancos;  e  esta- 
va com  ele  um  tamborzinho  sardo,  rapaz  de  pouco  mais 
de  14  anos,  que  parecia  não  ter  doze,  pequeno,  de  rosto 
trigueiro  azeitonado,  com  dois  olhinhos  negros,  profun- 
dos e  cintilantes.  O  capitão  dirigia  de  uma  sala  do  pri- 
meiro andar  a  defesa  com  vozes  de  comando  que  pareciam 


4  CORAÇÃO 

tiros  de  pistola,  e  não  se  percebia  no  seu  rosto  férreo  ne- 
nhum sinal  de  comoção.  O  tamborzinho,  um  pouco  pálido, 
mas  firme  de  pernas,  trepando  sobre  uma  mesa,  estendia 
o  pescoço  encostando-se  à  parede,  afim  de  ver  pelas  jane- 
las o  que  se  passava  lá  fora,  e  descortinava  através  do  fu- 
mo, pelos  campos,  as  divisas  brancas  dos  austríacos  que 
vinham  marchando  lentamente.  A  casa  era  situada  no  alto 
duma  encosta  escarpada,  e  não  tinha  da  parte  do  maior 
declive  senão  uma  janelinha  alta  correspondente  a  um 
quarto  do  sótão;  por  isso  os  austríacos  não  atacavam  por 
aquele  lado  e  a  descida  estava  ,livre.  O  fogo  dirigia-se  à 
fachada  e  aos  dois  flancos.  Mas  era  um  fogo  de  inferno! 
uma  saraivada  de  balas  de  chumbo  que  fendia  por  fora  as 
paredes  e  despedaçava  os  telhados,  e  dentro  quebrava  es- 
tuques, móveis,  ombreiras  e  batentes,  e  arremessava  ao  ar 
estilhaços  de  madeira,  nuvens  de  caliça,  fragmentos  de 
loiças  e  de  vidros.  Uma  dança  infernal,  em  que  as  balas 
assobiavam,  ricocheteavam  e  destroçavam  tudo  com  um 
fragor  de  fender  o  crânio.  De  quando  em  quando,  alguns 
dos  soldados  que  atiravam  das  janelas  caíam  de  costas  so- 
bre o  pavimento,  e  eram  arrastados  para  o  fundo.  Outros, 
com  passos  vacilantes,  passavam  de  sala  em  sala,  compri- 
mindo a  ferida  com  as  mãos.  Na  cozinha  havia  já  um 
morto  com  a  cabeça  despedaçada.  O  semicírculo  dos  ini- 
migos cada  vez  se  estreitava  mais.  Num  certo  momento 
viu-se  o  capitão,  até  ali  impassível,  dar  sinal  de  inquieta- 
ção e  sair  apressadamente  da  sala  seguido  dum  sargento. 
Passados  três  minutos  voltou  a  correr  o  sargento,  chaman- 
do o  tamborzinho  e  acenando-lhe  que  o  seguisse.  O  rapaz 
seguiu-o  subindo  apressadamente  por  uma  escada  de  ma- 
deira; entraram  numa  água-f untada  nua,  onde  estava  o 
capitão  escrevendo  com  um  lápis  numa  folha  de  papel, 
apoiado  à  pequena  janela,  tendo  aos  pés,  no  chão,  uma 
corda  de  pôco.  O  capitão  dobrou  a  folha  de  papel,  e  disse 
bruscamente,  fitando  nos  olhos  do  rapaz  as  suas  pupilas, 
pardas  e  fixas,  diante  das  quais  todos  os  soldados  tre- 
miam: 

—  Tambor ! 

E  pôs  a  mão  na  viseira. 

i^Tens  fígados? 


CÔRAgAÔ  85 

Os  olhos  do  rapaz  lampejaram. 

—  Tenho  sim,  meu  capitão  —  respondeu. 

—  Olha  lá  para  baixo  —  disse  o  capiítão  impelindo-o 
para  a  janela  —  vés  no  plano  vizinho  das  casas  de  Vila- 
iranca,  uma  cintilação  ae  baionetas?  É  lá  que  estão  os 
nossos  imóveis.  Toma  este  bilhete,  agarra-te  á  corda  e 
desce  pela  janela,  deixas-te  escorregar  pela  rampa,  corres 
pelos  campos  até  chegar  a  eles,  e  entregas  o  bilhete  ao 
primeiro  oficial  que  encontrares.  Tira  o  cinturão  e  a  mo- 
chila. 

O  tamborzinho  tirou  o  cinturão  e  a  mochila  e  meteu 
o  bilhete  no  bolso  do  peito.  O  sargento  deitou  a  corda 
para  fora  da  janela,  segurando-a  fortemente  por  uma  das 
pontas;  e  o  capitão,  ajudando  o  rapaz  a  passar  pela  jane- 
la com  as  costas  voltadas  para  fora,  disse-lhe: 

—  A  salvação  do  destacamento  está  na  tua  coragem 
e  nas  tuas  pernas. 

—  Confie  em  mim,  meu  capitão !  —  respondeu  o  tam- 
bor já  suspenso  da  parte  de, fora. 

—  Curvaste  na  descida,  disse  ainda  o  capitão,  segu- 
rando a  corda  juntamente  com  o  sargento. 

—  Sossegue. 

—  Deus  te  ajude! 

Em  poucos  momentos  o  tamborzinho  estava  em  terra ; 
o  sargento  puxou  para  cima  a  corda  e  desapareceu;  o  ca- 
pitão foi  rapidamente  direito  à  janela  e  viu  o  rapaz  voan- 
do pela  rampa  abaixo;  e,  quando  o  supunha  já  livre  das 
vistas  do  inimigo,  algumas  nuvens  de  poeira,  que  se  er- 
guiam do  chão  em  torno  do  rapaz,  deram-lhe  a  perceber 
que  tinha  sido  descoberto  pelos  austríacos,  que  do  ponto 
mais  elevado  da  ladeira  lhe  faziam  fogo  pelas  costas  e 
aquelas  pequenas  nuvens  eram  produzidas  pelas  balas 
que  raspavam  a  terra.  Mas  o  tamborzinho  continuava  em 
vertiginosa  corrida.  De  repente  caiu. 

—  Morto !  rugiu  o  capitão  mordendo  os  punhos. 
Mas,  mal  tinha  pronunciado  esta  palavra,  quando  viu 

o  tamborzinho  levantar-se. 

—  Ah!  caiu,  mas  levantou-se...  disse  consigo,  e  res- 
pirou. O  tamborzinho  efectivamente  recomeçara  a  correr 
com  toda  a  força,  mas  coxeava.  —  Torceu  um  pé...  pensou 


a6  CORAÇÃO 

o  capitão.  Algumas  nuvenzinhas  de  pó  se  levantaram  ain- 
da aqui  e  ali,  em  volta  do  rapaz,  mas  cada  vez  mais  distan- 
tes. Kstava  pois  salvo,  e  o  capitão  soltou  uma  exclamação  de 
(triunfo;  mas  continuou  seguindo-o  com  os  olhos  ansiosa- 
mente, porque  estava  seguro  de  que,  se  o  emissário  não 
chegasse  lá  abaixo  depressa  com  o  bilhete  em  que  pedia 
socorro  imediato,  ou  todos  os  soldados  cairiam  mortos  ou 
teria  ê^e  de  render-se  e  ficar  prisioneiro  com  os  seus.  O 
rapaz  corria  com  rapidez  um  pedaço,  depois  afrouxava  o 
passo,  coxeando,  tornava  a  correr,  mas  cada  vez  mais  can- 
sado, ora  tropeçava,  ora  parava  de  repente.  —  É  que  algu- 
ma bala  o  apanhou  de  raspão,  pensou  o  capiítão  tremendo. 
Observava-lhe  todos  os  movimentos,  animava-o,  falava- 
-Ihe,  como  se  êle  o  pudese  ouvir,  media  sem  descanso  com 
o  olhar  perscrutador  o  espaço  interposto  entre  o  rapaz 
que  corria  e  o  cintilar  das  baionetas  que  brilhavam  lá 
ao  longe,  na  planície,  no  meio  dos  campos  de  trigo  dou- 
rados pelo  sol  . 

£  neste  anseio  ouvia  o  zumbido  e  o  estrondo  das  balas 
nas  salas  de  baixo,  as  vozes  do  comando  dos  oficiais  e 
sargentos  enraivecidos,  os  lamentos  angustiosos  dos  fe- 
ridos, o  estalido  dos  móveis  que  se  partiam  e  o  rumor 
produzido  pela  caliça  que  se  desprendia  das  paredes. — 
Avante!  coragem  —  gritava  seguindo  com  a  vista  o  pe- 
queno tambor  —  mais...  mais...  corre...  àvanite...  corre... 
Lá  pára  o  maldito!  Bem,  torna  outra  vez  a  correr!  —  Nis- 
to um  oficial  veio  dizer-lhe,  ofegante,  que  os  inimigos, 
sem  interromper  o  fogo,  desfraldavam  uma  bandeira  bran- 
ca, impondo  assim  a  rendição. 

—  Não  se  responde!  —  gritou  êle  sem  despregar  os 
olhos  do  rapaz  que  já  entrara  na  planície,  mas  andando 
vagarosamente  e  parecendo  arrasitar-se  a  custo...  -—Mais! 
mais!  corre!...  vociferava  o  capitão,  cerrando  os  dentes  e 
os  punhos.  Mata-te...  morre,  celerado,  mas  chega!  De- 
pois soltou  uma  imprecação  horrível  e  continuou:  —  Ah! 
o  infame  poltrão  sentou-se! 

Efectivamente  o  rapaz,  cuja  cabeça  até  então  se  des- 
cobria por  cima  de  um  campo  de  trigo,  desaparecera  co- 
mo se  tivesse  caído.  Passado,  porém,  um  momento  reapa- 
receu ainda  uma  vez,   furtivamente,  para  perder-ae  de 


CORAÇÃO  87 

novo  entre  os  silvados...  e  o  capitão  não  o  viu  mais.  Des- 
ceu então  precipitadamenite ;  saraivavam  as  balas,  as  salas 
estavam  atulhadas  de  feridos,  alguns  dos  quais  cambalea- 
vam como  ébrios,  agarrando-se  aos  móveis  despedaçados 
que  encontravam;  as  paredes  e  o  pavimento  estavam  man- 
chados de  sangue,  e  os  cadáveres  amontoavam-se  às  por- 
tas. O  tenente  tinha  o  braço  partido  por  uma  bala,  e  o 
fumo  e  a  poeira  envolviam  tudo. 

—  Coragem!  gritou  o  capitão.  Cada  um  ao  seu  posto! 
Chegam-nos  socorros,  vá,  ainda  um  momento  de  coragem. 

Os  austríacos  tinham-se  aproximado  mais,  viam-se 
de  cima,  através  do  fumo,  os  seus  rostos  enraivecidos;  ou- 
via-se  o  estrépido  das  descargas,  e  os  gritos  selvagens 
acompanhados  de  ameaças  de  extermínio  com  que  insul- 
tavam e  intimavam  a  rendição.  Se  algum  soldado  menos 
corajoso  se  retirava  da  janela,  os  sargentos  empurravam- 
-no  para  a  frente;  mas  o  fogo  de  defesa  ia  enfraquecendo, 
o  desânimo  manifestava-se  em  todos  os  rostos,  e  não  era 
possível  prolongar  a  resistência.  Num  momento  dado,  os 
tiros  dos  austríacos  afrouxaram  e  uma  voz  trovejante 
bradou,  primeiro  em  tudesco,  depois  em  italiano: 

—  Rendei-vos! 

—  Não!  nunca!  —  gritou  o  capitão  de  uma  das  ja- 
nelas. 

E  o  fogo  recomeçou  mais  vivo  e  mais  furioso  das  duas 
partes.  Caíram  mais  soldados;  já  havia  janelas  sem  de- 
fensores. O  momento  fatal  estava  iminente,  e  o  capitão 
gritava  com  voz  presa,  entre  os  dentes: 

—  Não  vêm!  não  vêm!  —  e  corria  em  torno,  furioso, 
torcendo  a  espada  nas  mãos  convulsas,  resolvido  a  mor- 
rer no  seu  posto. 

Nisto  um  sargento,  descendo  do  sótão,  exclamou  em 
altos  gritos: 

—  Aí  vem  socorro! 

E  o  capitão  num  brado  de  alegria,  repetiu: 

—  Aí  vem  socorro ! 

Aquela  voz,  todos,  feridos,  sargentos  e  oficiais,  se  di- 
rigiram para  a  janela,  e  a  resistência  tornou-se  mais  feroz 
ainda.   Passados  momentos   notou-se   entre   os   inimigos 


88 


CORAÇÃO 


como  que  uma  tal  ou  qual  incerteza,  e  um  princípio  de 
insubordinação. 

De  repente,  o  capitão,  furioso,  reuniu  alguns  homens 
numa  sala  do  rez-do-chão  para  esperarem  o  inimigo  à 
baioneta  calada.  Voltou  ainda  acima  e  mal  tinha  chegado, 
quando  se  sentiu  o  estrépido  de  passos  precipitados, 
acompanhados  de  um  hurrah  formidável,  e  se  viu  das  ja- 
nelas, por  entre  o  fumo,  aproximarem-se  os  chapéus  de 
dois  bicos  dos  carabineiros  italianos,  um  esquadrão  de 
cavalaria  a  todo  o  galope,  um  relampejar  vivíssimo  das 
lâminas  espargindo  centelhas  que  caíam  sobre  as  cabeças, 
os  ombros  e  as  costas  dos  soldados.  Os  sitiados  então, 
abrindo  repentinamente  a  porta,  irromperam  de  baionefta 
calada,  e  os  inimigos,  vacilantes,  em  desordem,  voltaram 
as  costas  fugindo. 

O  terreno  ficou  desembaraçado,  a  casa  ficou  livre, 

e  pouco  de- 
pois dois  ba- 
talhões de  in- 
fantaria ita- 
liana, e  dois 
canhões  ocu- 
pavam o  cimo 
da  encosta.  O 
capitão,  com 
os  soldados 
que  lhe  resta- 
vam, uniu-se 
ao  seu  regií- 
mento,  com- 
bateu ainda  e 
f  o  i  ligeira- 
mente   ferido 

na  mão  esquerda  por  uma  bala  de  ricochete,  no  último 
assalto  à  baioneta.  O  combate  acabou  com  a  vitória  dos 
nossos.  Mas  um  dia  depois,  tendo  recomeçado  a  batalha, 
os  italianos  foram  vencidos,  a-pesar  da  valorosa  resistên- 
cia, pelo  número  excessivo  de  austríacos,  e  na  manhã  de 
vinte  e  seis  tiveram  de  tomar  (tristemente  o  caminho  de 
retirada  em  direcção  ao  Minicio.  O  capitão,  posto  que  fe- 


CORAÇÃO  89 

rido,  acompanhou  a  pé  os  seus  soldados,  cansados  e  si- 
lenciosos; e  chegando  ao  cair  do  dia  a  Goito,  sobre  o  Mi- 
nicio,  procurou  logo  o  tenente,  que  fora  conduzido  na 
ambulância  com  o  braço  partido  e  devia  ter  chegado  ali 
antes  dêie.  Indicaram-lhe  uma  igreja  transformaaa  apres- 
sadamente em  hospital  de  sangue.  Foi  lá.  A  igreja  estava 
cheia  de  feridos,  deitados  em  duas  filas  de  leitos  e  de 
colchões  estendidos  no  pavimento;  dois  médicos  e  vários 
ajudanites  iam  e  vinham,  apressados  e  solícitos,  e  ouviam- 
-se  ais  sufocados  e  gemidos  dolorosos.  Apenas  entrou,  o 
capitão  parou,  olhando  em  volta,  em  procura  do  seu  ofi- 
cial. Nesse  momento  ouviu  que  o  chamava  uma  voz  fraca, 
mas  muito  próxima: 

—  Meu  capitão!... 
Voltou-se...  era  o  tamborzinho.,. 

Estava  esitendido  numa  cama  de  bancos,  coberto  até 
ao  peito  com  uma  cortina  de  janela,  áspera,  de  quadradi- 
nhos vermelhos  e  brancos,  com  os  braços  de  fora,  pálido, 
emagrecido,  mas  sempre  com  aqueles  olhos  cintilantes 
como  dois  brilhantes  negros... 

—  Aqui !  exclamou  o  capitão  rudemente,  mas  sur- 
preendido.—  Bravo!  cumpriste  o  teu  dever. 

—  Fiz  o  que  pude,  meu  capitão !  —  disse  o  tambor- 
zinho. 

—  Estás  ferido? —  preguntou  o  capitão,  procurando 
ao  mesmo  tempo  com  os  olhos  o  seu  oficial. 

—  Estou,  meu  capitão,  disse  o  rapaz,  a  quem  dava  co- 
ragem para  falar  a  orgulhosa  satisfação  de  ser  pela  pri- 
meira vez  ferido,  sem  o  que  se  não  atreveria  a  abrir  a 
boca  em  presença  do  seu  capitão.  Foi  uma  boa  corrida, 
mas  viram-me  logo.  Era  capaz  de  chegar  vinte  minutos 
mais  cedo  se  me  não  acertam.  Felizmente  encontrei  logo 
um  capitão  do  estado  maior,  a  quem  entreguei  o  bilhete. 
Mas...  custou-me  tanto  a  correr  na  descida,  depois  de 
ferido!...  Morria  de  sede,  receava  não  chegar  a  tempo, 
chorava  de  raiva  pensando  que,  por  cada  minuto  de  de- 
mora, lá  em  cima,  na  encosta,  ia  indo  um  camarada  para 
o  outro  mundo.  Acabou-se ;  fiz  o  que  pude  e  estou  con- 
tente. Mas...  com  licença,  meu  capitão...  também  está 
ferido!... 


gO  CORAÇÃO 

Com  efeito,  da  mão  mal  ligada  do  capitão,  caiam,  pe- 
los dedos  abaixo,  algumas  gotas  de  sangue. 

—  Quere  que  eu  lhe  aperte  mais  a  ligadura  ,meu  ca- 
pitão? Faça  favor  de  pôr  aqui  a  mão,  um  momento. 

O  capitão  apresentou  a  mão  esquerda,  estendendo  a 
direita  para  ajudar  o  rapaz  a  desfazer  o  nó  e  tornar  a  fa- 
zê-lo;  mas  o  tamborzinho,  meio  erguido  apenas  do  traves- 
seiro, empalideceu  e  deixou  cair  de  novo  a  cabeça. 

—  Basta!  basita!  disse  o  capitão,  olhando-o  atento  e 
retirando  a  mão  ligada  que  êle  tentava  reter.  Cuida  de 
ti,  em  vez  de  cuidares  dos  outros;  as  feridas  leves  descu- 
radas podem  tornar-se  graves. 

O  tamborzinho  abanou  a  cabeça. 

—  Mas  tu,  continuou  o  capitão,  fixando-o  atenta- 
mente, deves  ter  perdido  muito  sangue  para  estares  de- 
bilitado desse  modo... 

—  Perdido  muito  sangue?  —  respondeu  o  rapaz  com 
um  sorriso  —  perdi  mais  alguma  coisa...  olhe,  meu  capi- 
tão... E  tirou  de  repente  a  coberta. 

O  capitão  deu  um  passo  à  retaguarda  horrorizado! 
O  rapaz  tinha  apenas  a  perna  direita,  a  esquerda  fôra-lhe 
amputada  por  cima  do  joelho.  A  coxa  estava  embrulhada 
em  panos  ensangiientados.  Passava  naquela  ocasião,  em 
mangas  de  camisa,  um  médico  militar,  pequeno  e  gordo, 
que  disse,  indicando  o  tamborzinho : 

—  Ai  tem,  senhor  capitão,  um  caso  bem  desgraçado. 
Salvava-se-lhe  facilmente  a  perna,  se  êle  a  não  tivesse  for- 
çado dum  modo  louco,  porque  a  forçou...  Depois  veio 
uma  inflamação  enorme,  e  foi  necessário  amputar-lha, 
como  vê.  Oh!  mas  é  um  bravo  este  rapaz!  asseguro-lho 
eu!  Nem  uma  lágrima!  nem  um  grito!  Orgulhava-me  de 
que  êle  fôse  italiano  quando  o  estava  operando.  Palavra 
de  honra!  este,  por  Deus,  é  de  bôa  raça! 

E  seguiu  o  seu  caminho... 

O  capitão  carregou  as  grandes  sobrancelhas  brancas, 
olhou  fixo  para  o  tamborzinho  e  tornou  a  estender-lhe  a 
coberta  por  cima;  depois,  lentamente,  quási  sem  se  aper- 
ceber do  que  fazia,  e  fixando-o  sempre,  levou  a  mio  à  ca- 
beça e  descobríu-ee... 


CORAÇÃO  91 

■  -•.-■  i 

—  Meu  capitão!  respondeu  o  rapaz,  maravilhado. 
Que  faz,  meu  capitão?  Isso  é  para  mim?! 

E  neste  momento  aquele  rude  soldado,  que  nunca  dis- 
sera uma  palavra  branda  a  um  inferior  qualquer,  respon- 
deu com  uma  voz  indizivelmente  afectuosa  e  doce: 

—  Eu  não  sou  senão  um  capitão,  e  tu  és  um  herói ! 
Em  seguida  debruçou-se  para  o  tamhorzinho,  e  bei- 

jou-lhe  três  vezes  o  coração. 

O  amor  da  Páíria 

Terça-feira,  24 

Visto  que  a  história  do  tamborzinho  te  fez  palpitar  o  cora- 
ção, devia  ser-te  fácil  esta  manhã  discorrer  bem  sobre  o  tema 
da  composição:  — Porque  amas  a  Itália?  — Porque  amo  a  Itália? 
Não  te  acodem  mil  respostas?  Eu  amo  a  Itália  porque  minha 
mãi  é  italiana;  porque  o  sangue  que  me  corre  nas  veias  é  ita- 
liano; porque  é  italiana  a  terra  onde  são  sepultados  os  mortos 
que  minha  mãi  e  meu  pai  veneram;  porque  é  italiana  a  cidade  onde 
nasci,  a  líng^ua  que  falo,  os  livros  que  me  educam,  meu  irmão,  mi- 
nha irmã,  os  meus  companheiros,  o  grande  povo  no  meio  do  qual 
eu  vivo,  a  bela  natureza  que  me  cerca,  tudo  quanto  vejo,  amo 
estudo  e  admiro,  é  italiano.  Ah!  tu  não  podes  ainda  sentir  toda 
a  veemência  destes  afectos!  Hás-de  senti-la  quando  fores  ho- 
mem, quando,  ao  voltar  de  uma  viagem  longa,  depois  de  dilata- 
da ausência,  te  debruçares  uma  manhã,  no  parapeito  da  embarca- 
ção e  vires  no  horizonte  as  grandes  montanhas  do  país...  Hás-de 
senti-la,  então,  na  onda  impetuosa  da  ternura  que  te  encherá  os 
olhos  de  lágrimas  e  te  arrancará  um  grito  do  coração.  Hás-de 
senti-la  em  qualquer  grande  cidade  estrangeira  no  impulso  de 
alma  que  te  arrastar,  por  entre  uma  multidão  desconhecida,  para 
um  operário  desconhecido,  que  ao  passar  por  ti  pronunciar  uma 
palavra  da  tua  língua...  Hás-de  senti-la  na  indignação  dolorosa 
e  soberba  que  te  fará  subir  o  sangue  às  faces  quando  ouvires 
injuriar  o  teu  país  pela  boca  de  um  estrangeiro...  Hás-de  senti- 
-la  mais  violenta  e  mais  ainda  no  dia  em  que  a  ameaça  de  um 
povo  inimigo  desencadear  uma  tempestade  do  fdgo  sôbr*  a  tut 
p&tria,  •  virM  «urgir  «xlrcitos  d«  tôdts  as  partei,  eorrtr*m  oe 


92  CORAÇÃO 

mancebos  em  legiões,  os  pais  beijarem  os  filhos  bradando  «cora- 
gem!» e  as  mais  com  um  saudoso  «adeus»  gritar-lhes:  «à  vitória». 
Hás-de  senti-la  com  uma  alegria  divina  se  tiveres  a  fortuna  de 
veres  entrar  na  tua  cidade  os  regimentos  cansados,  com  o  es- 
plendor da  vitória  nos  olhos,  e  as  bandeiras  crivadas  de  balas, 
seguido  de  um  comboio  de  mutilados  valorosos  que  levantarão 
altivos  as  cabeças  feridas  e  ligadas,  no  meio  de  uma  multidão 
louca  de  entusiasmo  que  os  cobrirá  de  flores,  beijos  e  bênçãos... 
Compreenderás  então  o  amor  da  pátria,  sentirás  em  ti  mesmo  a 
pátria,  Henrique.  Ela  é  tão  grande!  tão  sagrada!  que  se  um  dia 
te  visse  voltar  salvo  de  uma  batalha  combatida  em  sua  defesa... 
a  ti,  que  és  a  minha  carne,  a  minha  alma...  e  se  soubesse  que  ti- 
nhas salvo  a  vida  cobardemente,  fugindo  ao  perigo,  eu,  teu 
pai,  que  te  acolho  com  um  grito  de  alegria  quando  voltas  da  es- 
cola, receber-te-ia  com  um  suspiro  angustioso,  não  poderia  amar- 
-te  mais,  e  morreria  com  esse  punhal  no  coração. 

Teu  Pai. 

Inveja 

Çuarta-feira,  25 

I 
A  melhor  de  todas  as  composições  sobre  a  Pátria  foi 

a  de  Derossi.  E  Voltini  que  contava  já  com  a  primeira 
medalha!  Eu  poderia  ainda  gostar  de  Voltini  a-pesar-de 
ser  bastante  vaidoso  e  de  se  pentear  muito,  mas  agora, 
que  estou  perto  dele  no  banco,  e  vejo  como  é  invejoso, 
en£astia-me.  É  certo  que  estuda  muito,  mas  não  pode  com- 
petir com  êle  de  nenhum  modo.  Derossi  sabe  de  todas  as 
matérias  dez  vezes  mais  do  que  Voltini,  e  este,  como  vê 
que  não  pode  competir,  morde  os  dedos  de  raiva.  Carlos 
Nobis  também  lhe  tem  inveja,  mas  há  tanta  soberba  na- 
quele corpo,  que,  mesmo  por  soberba  a  não  dá  a  perceber. 
Voltini,  ao  contrário,  lamenta-se  e  queixa-se  em  casa,  di- 
zendo que  o  mestre  faz  injustiças!...  Mas  quando  Derossi 
responde  às  preguntas  tão  pronto  e  tão  bem,  como  faz  sem- 
pre, êle  perturba-se,  inclina  a  cabeça,  finge  que  não  ouve, 
ou  então  esforça-se  para  rir,  mas  com  um  riso  amarelo... 
Todos  o  conhecem  já,  e  quando  o  mestre  elogia  Derossi 
voltam-se  a  olhar  para  Voltini,  que  engole  em  seco,  e  o 
pedreirito  faz-lhe  o  focinho  de  lebre.  Esta  manhã,  por 


CORAÇÃO  ^c 

exemplo,  £ê-la  bonka.  O  mestre  entrou  na  escola  e  anun- 
ciou o  exame  dizendo:  —  Derossi,  quinze  valores  e  a  pri- 
meira medalha.  Nisto  Voltini  deu  um  grande  espir- 
ro. O  mestre  fixou  os  olhos  nele,  e  de  tal  modo  que  todos 
nós  compreendemos  logo  a  razão  porque.  Depois  disse- 
-Ihe: 

—  Voltini,  não  deixes  entrar  no  teu  cérebro  a  inveja; 
é  uma  serpente  que  rói  o  cérebro  e  corrompe  o  coração. 

Todos  se  viraram  para  êle,  excepto  Derossi.  Voltini, 
quis  responder  mas  não  pôde...  ficou  como  petrificado 
e  com  o  rosto  pálido.  Daí  a  pouco,  enquanto  o  mestre  ex- 
plicava a  lição,  pôs-se  a  escrever  em  grandes  caracteres 
em  cima  duma  folha  de  papel;  Eu  não  tenho  inveja  dos 
que  ganham  a  primeira  medalha  com  protecções  e  injus- 
tiças. Era  um  bilhete  que  queria  mandar  a  Derossi,  e  en- 
tretanto, via  eu  que  os  vizinhos  deste  cochichavam  e  ma- 
quinavam alguma  coisa  entre  si,  e  que  um  cortava  com  o 
canivete  uma  grande  medalha  de  papel,  sobre  a  qual  ti- 
nha já  desenhado  uma  serpente  negra.  Voltini  também 
percebeu  tudo.  O  mestre  saiu  por  poucos  minutos.  De 
repente  os  que  estavam  ao  lado  de  Derossi  levantaram-se 
para  sair  da  bancada  e  vir  apresentar  solenemente  a  me- 
dalha de  papel  a  Voltini.  Toda  a  aula  se  preparava  para 
vma  farçada,  e  Voltini  tremia  todo.  Derossi  então  gri- 
tou: 

—  Dêm-m.e  cá  isso... 

—  Sim,  sim,  é  melhor  que  sejas  tu  que  lha  leves  — 
responderam  todos. 

Derossi  pegou  na  medalha  e  rasgou-a  em  pedaços- 
Naquele  momento  tornou  a  entrar  o  mestre  e  continuou 
a  explicar  a  lição.  Eu  não  tirava  os  olhos  de  Voltini.  Ti- 
nha-se  posto  vermelho  como  brasas.  Pegou  vagarosamen- 
te no  papel  que  escrevera,  como  se  o  fizesse  por  distrac- 
ção, machucou-o  às  escondidas,  meteu-o  na  boca,  e  mas- 
ti^ando-o  por  um  pouco,  cuspiu-o  depois  debaixo  do 
banco.  Ao  sair  da  escola,  passando  diante  de  Derossi, 
Voltini,  que  estava  ainda  um  pouco  atrapalhado,  deixou 
cair  uma  folha  de  papel  de  mataborrão.  Derossi  apa- 
nhou-a  delicadamente  e  meteu-a  na  carteira,  ajudando-o 
a  apertar  a  correia.  Voltini  nem  sequer  ousou  levantar 
s  cabeça. 


94  CORAÇÃO 

À  mâi  de  Franíi 


Sábado,  28 


Mas  Voltini  é  incorrigível.  Ontem,  na  lição  de  reli- 
gião, em  presença  do  director,  o  mestre  pregunitava  a 
Derossi  se  sabia  de  cór  as  duas  estrofesinhas  do  livro  de 
leitura;  1        ,  í  J.:/, 

E  por  onde  o  olhar  se  volva 
Sempre  a  Deus  encontrará... 

Derossi  respondeu:  —  Não  sei  —  e  Voltini  atalhou 
imediatamente:  —  Sei  eu  —  e  disse  isto  sorrindo  para  fa- 
zer perrice  a  Derossi.Pêrro,  porém,  ficou  ê^e,  que  não  pôde 
recitar  a  poesia,  porque  neste  momento  entrou  na  escola 
a  mãi  de  Franti,  aflita,  com  os  cabelos  grisalhos  em 
desordem,  toda  molhada  de  neve,  e  empurrando  adiante 
de  si  o  filho  que  fora  expulso  da  escola  por  oito  dias. 
Que  triste  cena  se  passou  então!  A  pobre  mulher  quási 
se  deitou  de  joelhos  diante  do  director,  suplicando  com 
as  mãos  erguidas: 

—  Oh!  senhor  director,  faça-me  esta  esmola...  torne 
a  admitir  o  rapaz  na  escola!  Há  três  dias  que  está  em 
casa,  tenho-o  tido  escondido,  mas  Deus  me  livre  que  o 
pai  o  descubra,  porque  o  mata.  Tenha  piedade  de  mim, 
senhor,  que  não  sei  o  que  hei-de  fazer.  Entrego-me  de 
todo  o  coração  à  sua  generosidade. 

O  director  procurou  conduzi-la  para  fora,  mas  ela 
resistia  sempre,  pedindo,  chorando. 

—  Oh !  se  soubesse  os  trabalhos  que  tenho  sofrido 
por  causa  deste  filho,  teria  compaixão  de  mim.  Faça-me 
esta  esmola!  Êle  há-de  mudar,  senhor  director;  eu  não 
viverei  muito,  itenho  a  morte  aqui;  mas  queria  vê-lo  mu- 
dado antes  de  morrer,  porque...  E  desatando  em  copioso 
pranto  continuou :  —  É  meu  filho,  quero-lhe  como  mãi 
e  morreria  desesperada. . .  Consinta-o  aqui  ainda  mais  uma 
vez,  senhor  director,  para  que  não  suceda  alguma  des- 
graça na  família; ;. 


CORAÇÃO  95 

E  cobriu  o  rosto  com  as  mãos,  soluçando.  Franti 
estava  de  cabeça  baixa,  impassível.  O  director  olhou  para 
êle,  pensou  um  pouco,  e  disse: 

—  Franti,  vá  para  o  seu  lugar. 

Ouvindo  isto,  a  mãi  tirou  as  mãos  do  rosto,  toda 
satisfeita,  e  sem  deixar  falar  o  director,  principiou  a 
dizer:  ■   ^1T?Í 

—  Muito  obrigada!  muito  obrigada,  e  encaminhou-se 
para  a  porta,  enxugando  os  olhos  e  dizendo  atropelada- 
mente:  —  Meu  filho,  olha  se  tomas  juízo!  Tenham  pa- 
ciência todos,  sim?...  Muito  obrigada,  senhor  director: 
fez  uma  obra  de  caridade.  Olha  se  te  portas  bem,  meu 
filho!...  Bom  dia,  meninos...  Muito  obrigada!  Até  à  vis- 
ta, senhor  mestre...  e  desculpem  todos  a  uma  pobre  mãi. 

Ainda  da  porta  olhou  com  ar  suplicante  para  o  fi- 
lho e  foi-se  embora,  apanhando  o  chalé  que  ia  de  rastos, 
pálida,  curvada,  com  a  cabeça  trémula.  Ouvia-se  ainda 
tossir  quando  descia  as  escadas.  O  silêncio  na  aula  era 
completo.  O  director  olhou  fixamente  para  Franti,  e  com 
um  acento  de  fazer  tremer  disse-lhe: 

—  Franti,  tu  matas  tua  mãi ! 

Todos  olharam  para  Franti,  e  êle,  o  maroto,  ria-se. 


Esperança 


sábado,  zg 


Magnífico,  Henrique,  o  modo  como  te  lançaste  nos  bra- 
ços de  tua  mãi  quando  voltavas  da  lição  de  religião.  Sim,  gran- 
des e  consoladoras  palavras  te  disse  o  professor!  Deus,  que 
nos  deitou  nos  braços  um  do  outro,  não  há-de  separar-nos  para 
sempre.  Quando  eu  morrer,  quando  teu  pai  morrer,  não  mais 
diremos  aquelas  tremendas  e  desesperadas  palavras:  mãi,  pai, 
Henrique,  não  te  verei  mais!  Sim,  ver-nos-emos  em  uma  outra 
vida,  onde  aquele  que  muito  sofreu  nesta,  será  compensado! 
onde  aquele  que  muito  amou  na  terra,  tornará  a  encontrar  as 
almas  amadas  num  mundo  sem  lágrimas  e  sem  morte!  Mas  de- 
vemos tomar-nos  todos  dignos  dessa  outra  vida.  Ouve,  filho, 
cada  acção  boa  que  praticares,  cada  palavra  de  afecto  que  dirj' 


96 


CORAÇÃO 


gires  aos  que  te  amam,  cada  acto  de  cortesia  para  com  os  teus 
companheiros,  e  cada  nobre  pensamento  que  tiveres  será  como 
que  o  impulso  que  te  elevará  para  aquele  mundo.  É  também  lá 
que  conduzem  as  desgraças  e  as  dores,  porque  cada  dor  é  a  ex- 
piação de  uma  culpa,  e  cada  lágrima  apaga  uma  nódoa.  Procura 
cada  dia  ser  melhor  e  mais  amável  que  no  dia  anterior.  Diz  con- 
tigo todas  as  manhãs:  Hoje  vou  fazer  qualquer  coisa  de  que  a 
consciência  me  louve  e  meu  pai  fique  contente,  qualquer  coisa 
que  me  faça  estimado  deste  ou  daquele  companheiro,  do  mes- 
tre, do  meu  irmão,  ou  de  outro,  enfim,  E  pede  a  Deus  que  te  dê 
força  para  pôr  em  acção  o  teu  propósito,  e  diz:  Senhor,  eu  que- 
ro ser  bom,  nobre,  corajoso,  dedicado,  sincero;  ajuda-me,  faz 
que  todas  as  noites,  quando  minha  mãi  me  dá  o  último  beijo,  eu 
possa  dizer-lhe:  Tu  beijas  esta  noite  um  filho  mais  honesto  e 
mais  digno  do  que  aquele  que  beijaste  ontem.  Tem  sempre  no 
pensamento  aquele  outro  Henrique  sobrehumano  e  feliz  que  tu 
poderás  ser  na  outra  vida,  e  reza,  Henrique.  Nem  podes  imagi- 
nar que  doçuras  experim.enta  uma  mãi,  como  ela  se  sente  bem, 
quando  vê  um  filho  de  joelhos  com  as  mãos  erguidas!  Quando 
te  vejo  em  oração,  parece-me  impossível  que  não  haja  quem 
te  vigie  e  quem  te  escute!  Creio  então  mais  firmemente  que 
existe  uma  bondade  suprema  e  uma  piedade  infinita.  Amo-te 
mais,  trabalho  com  mais  ardor,  sofro  mais  resignada,  perdoo 
com  toda  a  minha  alma,  e  penso  na  alma  serenamente.  Oh!  Deus 
é  grande  e  bom!  Tornar  a  ouvir,  depois  da  morte,  a  voz  da  mi- 
nha mãi,  tornar  a  encontrar-me  com  meus  filhos,  tornar  a  ver 
o  meu  Henrique,  o  meu  Henrique  abençoado  e  imortal,  apertá- 
-lo  num  abraço  que  não  se  dissolverá  mais,  nunca  mais...  nunca 


CORAÇÃO  97 

mais...  eternamente!  Oh!  reza,  rezemos,  amemo-nos,  sejamos 
bons,  alimentemos  na  alma  esta  celeste  esperança,  meu  adora- 
do filho. 

Tua  Mài. 


FEVEREIRO 


Uma  medalha  bem  dada 

Sábado,  4 

Esta  manhã  veio  para  distribuir  as  medalhas  o  su- 
perintendente das  escolas,  um  senhor  com  a  barba  branca, 
vestido  de  preto.  Entrou  com  o  director,  pouco  antes  da 
hora  da  saída  e  sentou-se  ao  lado  do  mestre.  Interrogou 
vários  alunos  e  depois  deu  a  primeira  medalha  a  Derossi; 
e,  antes  de  dar  a  segunda,  esteve  alguns  minutos  es- 
cutando o  mestre  e  o  director,  que  lhe  falavam  em  voz 
baixa.  Todos  preguntaram  baixinho: — A  quem  dará  ele 
a  segunda?  —  O  superintendente  disse  por  fim  em  voz 
alta: 

—  A  segunda  medalha  mereceu-a  esta  semana  o  alu- 
no Pedro  Precossi ;  mereceu-a  pelos  trabalhos  que  fez 
em  casa,  pelas  lições,  pela  caligrafia,  e  pelo  seu  proce- 
dimento; por  tudo! 

Todos  se  voltaram  para  ver  Precossi,  e  sentiu-se  um 
movimento  geral  de  satisfação.  Precossi  levantou-se 
muito  confuso,  como  quem  não  sabia  mais  onde  estava. 

—  Vem  cá !  —  disse  o  superintendente. 

Precossi  saltou  abaixo  do  banco  e  foi  colocar-se  ao 
lado  da  mesa  do  mestre.  O  superintendente  olhou  aten- 
tamente para  aquela  carita  côr  de  cera,  para  aquele  cor- 
pinho metido  numas  roupas  todas  arregaçadas,  dentro 
das  quais  dificilmente  se  movia,  para  aqueles  olhos  cheios 
de  bondade  e  de  ternura,  que  evitavam  os  seus,  m.as  que 
deixavam  adivinhar  uma  história  de  sofrimentos;  e  de- 
pois, com  voz  afectuosa,  prendendo-lhe  a  medalha  ao 
peito : 


98  CORAÇÃO 

—  Precossi,  con£io-te  esta  medalha.  Nenhum  é  mais 
digno  do  que  tu  de  a  ter.  Não  a  dou  só  à  tua  inteligência 
c  à  tua  boa  vontade;  dou-a  ao  teu  coração,  à  tua  cora- 
gem, ao  teu  carácter  de  bom  e  digno  filho.  Não  é  verdade 
que  êle  a  merece  por  todo  os  títulos? 

—  Merece,  sim  senhor,  merece!  —  responderam  to- 
dos unísonos. 

Precossi  fez  um  movimento  com  o  pescoço  como 
para  engolir  qualquer  coisa,  e  lançou  sobre  toda  a 
aula  um  olhar  dulcissimo,  que  exprimia  uma  gratidão 
imensa. 

—  Vai...  caro  Precossi...  disse-lhe  o  superintendente. 
—  E  que  Deus  te  proteja! 

Era  a  hora  de  sair,  e  a  nossa  aula  acabou  antes  das 
outras.  Em  baixo  no  grande  vestíbulo,  à  entrada,  quem 
havíamos  nós  de  ver?  O  pai  de  Precossi,  o  ferreiro,  pá- 
lido como  de  costume,  com  o  aspecto  carrancudo,  os  ca- 
belos sobre  os  olhos,  com  a  carapuça  do  avesso,  e  mal 
se  segurando  nas  pernas.  O  mestre  viu-o  logo  e  falou  ao 
ouvido  do  superintendente;  êsíe  procurou  Precossi  apres- 
sadamente, e,  tornando-o  pela  mão,  íevou-o  junto  do  pai. 
O  rapaz  tremia.  O  mestre  e  o  director  aproximaram-se,  e 
muitos  rapazes  faziam-lhe  roda. 

—  O  senhor  é  o  pai  deste  rapaz,  não  é  verdade?  — 
preguntou  o  superintendente  ao  ferreiro,  com  ar  alegre, 
como  se  fossem  amigos.  E,  sem  esperar  resposta,  conti- 
nuou: Pois  congratulo-me  com  o  senhor.  Oiça,  seu  filho 
ganhou  a  segunda  medalha  entre  cinqiienta  e  quatro  com- 
panheiros; e  ganhou-a  pela  escrita,  pela  composição,  pela 
aritmética  e  por  tudo.  É  um  rapaz  cheio  de  inteligência 
e  de  boa  vontade,  que  há-de  ir  muito  longe!  um  exce- 
lente rapaz  que  tem  a  afeição  e  a  estima  de  todos.  Pode 
orgulhar-se  dele,  digo-lho  eu! 

O  ferreiro,  que  estava  a  ouvir  de  boca  aberta,  olhou 
fixamente  para  o  superintendente  e  para  o  director  e 
depois  para  o  filho  que  tinha  ao  pé  de  si,  com  os  olhos 
baixos,  tremendo  como  se  se  recordasse  e  compreendesse 
naquele  momento,  pela  primeira  vez,  tudo  quanto  tinha 
feito  sofrer  à  pobre  criança,  e  toda  a  bondade,  itôda  a 
constância  heróica  com  que  êle  tudo  sofrera;  manifestou 


CORAÇÃO  99 

de  repente  no  rosto  uma  certa  maravilha  estúpida,  em 
seguida  uma  amargura  concentrada  e  afinal  um  enterne- 
cimento violento  e  triste;  e  c'om  um  gesto  rápido,  lan- 
çou os  braços  ao  pescoço  do  filho,  apertando-o  convulsa- 
mente  ao  peito.  Nós  passamos  todos  adiante  deles,  e 
eu  convidei  o  filho  a  vir  a  nossa  casa,  quinta-feira,  com 
Garrone  e  Crossi.  Uns  cumprimentavam-no,  outros  faziam- 
Ihe  caricias  e  tocavam-lhe  na  medalha,  e  todos  lhe  dis- 
seram algumas  palavras  afectuosas.  E  o  pai  olhava  para 
nós,  estupefacto,  tendo  sempre  apertada  contra  o  peito 
a  cabeça  do  filho  que  soluçava. 

Bons  propósitos 

Domingo,  5 

Despertou-me  remorsos  aquela  medalha  dada  a  Pre- 
cossi.  E  eu  que  ainda  não  ganhei  nenhuma!  Há  tempo 
que  não  estudo ;  ando  pouco  satisfeito ;  o  mestre,  meu 
pai  e  minha  mãi  andam  igualmente  descontentes  comigo. 
Nem  ao  menos  sinto  prazer  em  divertir-me,  como  sentia 
dantes,  quando  trabalhava  de  boa  vontade,  e  deixava  a 
mesa  do  trabalho,  correndo  para  os  meus  brinquedos 
cheio  de  alegria  como  se  não  tivesse  brincado  depois  de 
um  mês.  Nem  à  mesa,  com  a  família,  sinto  a  satisfação 
doutro  tempo!  Trago  sempre  como  que  uma  sombra  no 
espírito,  e  uma  voz  interior  que  me  diz  continuamente:  — 
Isto  não  vai  bem...  isto  não  vai  bem!  Quando  vejo  à 
tarde,  passar  pela  praça  tantos  rapazes  que  voltam  do 
trabalho,  no  meio  de  grupos  de  operários  todos  cansados 
mas  alegres,  apressando  o  passo,  impacientes  por  chega- 
rem a  casa  para  cear,  falando  animadamente,  rindo, 
batendo  nos  ombros  uns  dos  outros,  com  as  mãos  negras 
de  carvão  ou  brancas  de  cal,  e  me  lembro  de  que  traba- 
lharam desde  o  romper  de  alva  até  aquela  hora,  e  tantos 
outros,  ainda  mais  pequenos,  que  passaram  o  dia  inteiro 
em  cima  dos  telhados,  junto  às  forjas,  no  meio  de  má- 
quinas, dentro  da  água  e  debaixo  da  terra,  não  comendo 
mais  do  que  um  bocado  de  pão...  sinto-me  envergonhado 


100  CORAÇÃO 

por  não  ter  feito  em  todo  aquele  tempo  senão  uns  rabis- 
cos em  quatro  páginas,  e  de  má  vontade!  Ah!  estou  des- 
contente... muito  descontente!  Vejo  bem  que  meu  pai 
está  de  mau  humor,  e  com  vontade  de  o  manifestar,  mas 
tem  pesar  de  o  fazer,  e  espera  ainda...  Êle,  o  meu  que- 
rido pai  que  itanto  trabalha!  Tudo  é  seu,  tudo  aquilo 
que  toco,  tudo  o  que  me  veste  e  me  alimenta,  tudo  o  que 
me  educa  e  me  diverte,  tudo  é  fruto  do  seu  trabalho,  e 
eu  não  trabalho!  Tudo  lhe  tem  custado  canseiras,  pri- 
vações, desgostos,  fadigas,  e  eu  não  me  afadigo!  Ah! 
não,  isto  desgosta-me  profundamente  e  não  posso  con- 
tinuar assim...  Quero  principiar  desde  hoje,  quero  lan- 
çar-me  ao  estudo  como  Stardi,  com  os  punhos  e  os  den- 
tes cerrados,  empregar  toda  a  força  da  minha  vontade  e 
do  meu  coração;  quero  vencer  o  sono  à  noite,  levantar- 
-me  cedo  de  manhã,  atormentar  o  cérebro  sem  descanso, 
castigar  a  preguiça  sem  piedade,  afadigar-me  sofrer  e 
adoecer  até!...  mas  acabar  por  uma  vez  com  esta  vida 
fraca  e  indolente  que  me  avilta  e  entristece  os  outros! 
Coragem!  ao  trabalho!  ao  trabalho  com  toda  a  alma  e 
com  toda  a  energia!  Ao  trabalho,  que  me  tornará  outra 
vez  aprasivel  o  recreio,  divertidos  os  jogos  e  alegre  o 
jantar;  ao  trabalho,  que  me  há-de  restituir  o  bom  sorriso 
do  meu  mestre  e  o  beijo  abençoado  de  meu  pai! 

comboiozinho 

Sexta-feira,  lo 

Precossi  veio  ontem  a  nossa  casa  com  Garrone.  Creio 
que,  se  fossem  filhos  de  príncipes,  não  seriam  recebidos 
com  mais  festas.  Garrone  era  a  primeira  vez  que  vinha, 
porque  é  um  pouco  urso,  e  além  disso  envergonha-se  de 
aparecer  por  ser  já  crescido  e  estar  ainda  na  terceira. 
Fomos  todos  abrir-lhes  a  porta  quando  tocaram  a  cam- 
painha. Crossi  não  veio,  porque  Jhe  tinha  finalmente 
chegado  o  pai  da  América,  ausente  havia  seis  anos.  Mi- 
nha mãi  beijou  Precossi,  à  entrada;  e  meu  pai  apresen- 
tou-lhe  Garrone,  dizendo: 


CORAÇÃO  101 

—  Aqui  está!...  Este  não  é  somente  ura  bom  rapaz,  é 
um  homem  de  bem  e  um  fidalgo... 

Êle  curvou  a  sua  grande  cabeça  rapada,  sorrindo  dis- 
farçadamente. Precossi  trazia  a  medalha  e  estava  con- 
tente porque  o  pai  resolvera-se  novamente  a  trabalhar,  e 
havia  cinco  dias  que  se  não  embriagava,  desejando  tê-lo 
sempre  na  oficina  a  fazer-lhe  companhia,  e  diz  que  pare- 
ce outro.  Prinpiámos  a  jogar  e  eu  apresentei  todos  os 
meus  brinquedos.  Precossi  ficou  encantado  diante  do 
meu  comboio  de  caminho  de  ferro,  com  a  máquina  que 
marcha  por  si  dando-lhe  corda.  Nunca  vira  coisa  igual,  e 
devorava  com  os  olhos,  aqueles  vagõezinhos  encarnados. 
Dei-lhe  a  chave  para  que  êle  desse  corda,  ajoelhou-se  a 
brincar  e  não  levantou  mais  a  cabeça.  Nunca  o  vi  tão  ale- 
gre! E  dizia  sempre :i — Desculpe-me!...  desculpe-me!  — 
a  propósito  de  qualquer  coisa,  acenando  com  a  mão,  para 
que  não  fizéssemos  parar  a  máquina-  E  depois  pegava  e 
tornava  a  pôr  os  vagõezinhos  com  mil  cuidados,  como  se 
fossem  de  vidro,  receando  embaciá-los  com  o  bafo,  lim- 
pando-os  e  examinando-os  por  cima  e  por  baixo,  sorrindo- 
-se.  Nós  todos  em  pé,  observávamo-lo,  olhávamos  para 
aquele  pescoço  delgado,  para  as  pobres  orelhinhas  que  eu 
vira  um  dia  a  escorrer  sangue,  para  a  enorme  jaqueta  com 
as  mangas  arregaçadas,  donde  saíam  dois  bracinhos  de 
doente  que  se  haviam  erguido  tantas  vezes  para  defen- 
der o  rosto  das  pancadas.  Oh!  naquele  momento  a  minha 
vontade  era  Jançar-lhe  aos  pés  todos  os  meus  brinquedos, 
e  todos  os  meus  livros,  tiraria  da  boca  o  último  bocado 
de  pão  para  lhe  dar.  Ter-me-ia  despido  para  o  vestir...  e 
prostar-me-ia  de  joelhos  para  beijar-lhe  as  mãos.  —  Ao 
menos  o  comboio,  quero  dar-lho  —  pensei  eu.  Mas  era  pre- 
ciso pedir  licença  a  meu  pai ;  e  nesse  momento  sinto  que 
me  metiam  um  pedaço  de  papel  na  mão;  olhei:  era  escri- 
to por  meu  pai,  a  lápis,  e  dizia  assim:  «O  teu  comboio 
agrada  a  Precossi...  Êle  não  tem  brinquedos...  Não  te  su- 
gere nada  o  teu  coração?»  imediatamente  peguei  na  má- 
ouina  e  nos  vagões  com  ambas  as  mãos  e  entreguei-lhos, 
dizendo : 

—  Toma,  tudo  é  para  ti.  Êle  olhou  para  mim,  pare- 


102  CORAÇÃO 

cendo    não    compreender    nada.  —  É    para  ti  —  repeti  — 
dou-te  isso  tudo  de  presente. 

Então  ele  olhou  para  meu  pai  e  para  minha  mãi,  ainda 
mais  espantado,  e  preguntou-lhe: 

—  Mas  porquê? 
Meu  pai  disse-lhe: 

—  Porque  Henrique  é  teu  amigo,  e  porque  te  quere 
bem:  isso  é  para  festejar  a  tua  medalha. 

Precossi  preguntou  timidamente: 

—  Posso  levar  tudo  para  casa? 

—  Certamente  que  podes,  respondemos  todos.  Esta- 
va à  porta  e  não  ousava  sair.  Era  fe,liz!  Pedia  desculpa 
com  os  lábios  trémulos,  e  ria.  Garrone  ajudou-o  a  em- 
brulhar o  comboio  no  lenço  e  inclinando-se  deixou  cair 
os  biscoitos  que  lhe  enchiam  as  algibeiras. 

—  Também  um  dia  —  disse-me  Precossi — 'hei-de  le- 
var-te  à  oficina  para  veres  meu  pai  trabalhar,  e  hei-de 
dar-te  pregos. 

Minha  rnãi,  pôs  um  raminho  na  casa  da  jaqueta  de 
Garrone,  para  que  o  desse  à  mãi  em  seu  nome.  Garrone 
disse  com  o  seu  vozeirão:  —  Muito  obrigado! — mas.  isto 
sem  levantar  a  barba  do  peito.  Resplandecia-lhe  contudo 
nos  olhos  a  sua  boa  e  nobre  alma. 


Soberba 

Sábado,  lo 

E  dizer  que  Carlos  Nobis  limpa  sempre  a  manga  com 
afectação  quando  Precossi  roça  por  êle  ao  passar!  E 
toda  esta  soberba  porque  seu  pai  é  um  homem  rico!  Lá 
por  isso  também  o  pai  de  Derossi  é  rico!  O  gosto  dele 
seria  ter  um  banco  só  para  si,  porque  receia  que  o  su- 
jem, e  olha  para  todos  de  cima  para  baixo,  e  sempre  com 
um  rizinho  desdenhoso  nos  lábios.  Ai  do  que  ^he  tocar 
num  calcanhar  quando  saímos  enfileirados  dois  a  dois! 
Pela  coisa  mais  insignificante  lança  em  rosto  uma  pala- 
vra injuriosa,  ou  ameaça  os  companheiros  com  a  vinda 
do  pai  à  escola,  apesar-de  lhe  ter  dado  uma  boa  ensina- 


CORAÇÃO  103 

dela  quando  êle  chamou  pobretão  ao  carvoeiro.  Eu  nun- 
ca vi  uma  basófia  igual.  Ninguém  lhe  fala,  ninguém  lhe 
diz  adeus  quando  sai  e  não  há  um  só  que  o  auxilie  na  li- 
ção quando  a  não  sabe  e  se  atrapalha.  Êle  também  não  dá 
confiança  a  ninguém  e  finge  desprezar  principalmente 
Derossi,  porque  é  o  primeiro,  e  Garrone  porque  é  esti- 
mado de  todos.  Derossi  nem  sequer  olha  para  ê^e,  e  Gar- 
rone quando  lhe  contaram  que  Nobis  dizia  mal  dele,  disse: 

—  É  tão  estupidamente  soberbo  que  não  merece  os 
meus  cachações. 

Também  Coretti,  um  dia,  em  que  êle  se  sorria  com 
desprezo  do  seu  barrete  de  pele  de  gato,  disse-lhe: 

—  Vai  ter  com  Derossi,  se  queres  aprender  um  pou- 
co a  fazer  de  senhor. 

Ontem  queixou-se  ao  mestre,  porque  o  calabrês  lhe 
tocara  numa  perna  com  o  pé.  O  mestre  preguntou: 

—  Fizeste-o  de  propósito? 

^  Não,  senhor  —  respondeu  friamente  o  calabrês. 

E  o  mestre  continuou:  —  Sois  muito  melindroso,  No- 
bis! E  este,  com  o  seu  ar  costumado,  atalhou:  —  Hei-de 
dizê-lo  a  meu  pai.  Então  o  mestre  irritou-se.  —  Seu  pai 
não  lhe  há-de  dar  razão  como  tem  acontecido  outras  ve- 
zes—  disse.  —  E  tome  nota:  na  escola  não  há  senão  o 
mestre  que  julga  e  castiga.  —  Depois  acrescentou  com. 
brandura:  —  Ora  vamos,  Nobis,  mude  de  maneiras,  seja 
bom  e  cortês  com  os  seus  companheiros.  Veja  que  há 
aqui  filhos  de  operários  e  de  senhores  ricos  e  pobres,  e 
todos  se  estim.am  e  se  tratam  como  irmãos,  que  na  verda- 
de são.  Porque  não  há-de,  Carlos,  fazer  como  fazem  os 
outros?  Custava-lhe  tão  pouco  fazer-se  estimado  de  to- 
dos!... Havia  de  andar  rnais  satisfeito...  Então  não  tem 
nada  a  responder-me? 

Nobis,  que  estivera  ouvindo  com  o  seu  habitual  sor- 
riso de  desprezo,  respondeu  friamente:  —  Não  senhor. 

—  Bem,  sente-se  —  disse-lhe  o  mestre.  —  Lastimo-o 
porque  é  um  rapaz  sem  coração. 

Parecia  ter  acabado  o  incidente:  mas  o  pedreirito 
que  está  no  primeiro  banco,  voltando  a  carinha  redonda 
para  Nobis,  que  está  no  último,  fez-lhe  um  focinho  de  le- 
bre tão  caricato,  que  toda  a  classe  desatou  a  rir.  O  mestre 


104  CORAÇÃO 

repreendeu-o,  mas  viu-se  obrigado  a  tapar  a  boca  com 
a  mão  para  esconder  o  riso.  Nobis  também  desprendeu 
um  rizinho,  mas  daqueles  que  nascem  e  morrem  amarelos. 

Os  feridos  pelo  írabalho 

Segunda-feira,  13 

Nobis  e  Franti  parecem-se  um  com  o  outro.  Só  não  se 
comoveram  esta  manhã  diante  do  terrível  espectáculo  que 
nos  passou  diante  dos  olhos.  Saíamos  da  escola,  e  estava 
eu  com  meu  pai  a  observarmos  uns  poucos  de  gaiatos  da 
segunda,  que  se  atiravam  de  joe,lhos  em  terra,  esfregando 
o  gelo  com  as  capas  e  os  barretes,  para  o  tornar  mais  es- 
corregadio, quando  vimos  ao  fundo  da  rua  uma  multidão 
de  gente  caminhando  apressadamente,  séria  e  meia  espan- 
tada, falando  em  voz  baixa.  No  centro  vinham  três  guar- 
das municipais  e,  por  trás  destes,  dois  homens  conduzin- 
do uma  padiola.  Os  rapazes  corriam  de  toda  a  parte  e  a 
multidão  caminhava  em  direcção  a  nós.  Sobre  a  padiola 
estava  estendido  um  homem,  pálido  como  um  cadáver, 
com  a  cabeça  caída  sobre  um  ombro,  os  cabe,los  em  de- 
sordem e  ensanguentados,  saíndo-lhe  sangue  pela  boca  e 
pelos  ouvidos.  Ao  lado  da  padiola,  caminhava  uma  mu- 
lher que  parecia  louca,  com  uma  criança  ao  colo,  gritan- 
do de  momento  a  momento :  —  Está  morto !  Está  morto ! 
—  Seguia-a  um  rapaz  com  a  pasta  debaixo  do  braço,  so- 
luçando. 

—  Que  foi  que  aconteceu?  preguntou  meu  pai. 

Alguém  respondeu  que  era  um  pedreiro  que  caíra 
dum  quarto  andar,  onde  trabalhava.  Os  portadores  da  pa- 
diola descansaram  um  momento,  e  muitos  voltaram  o  ros- 
to horrorizados.  Vi  a  mestra  da  pena  vermelha,  que  am- 
parava a  sua  colega  da  primeira  superior,  quási  desmaia- 
da; e  ao  mesmo  tempo  senti  que  me  tocavam  no  coto- 
velo. Era  o  pedreirito,  pálido,  que  tremia  da  cabeça  aos 
pés.  Pensava  em  seu  pai  certamente;  e  eu  também  me 
lembrei  dele.  Eu  felizmente  tenho  o  espírito  sossegado 
quando  estou  na  escola,  porque  sei  que  meu  pai  está  em 


CORAÇÃO 


105 


casa  sentado  à  escrevaninha,  longe  de  todo  o  perigo;  mas 
quantos  dos  meus  companheiros  pensam  nos  pais  que 
trabalham  sobre  uma  ponte  altíssima,  ou  perto  das  rodas 
de  uma  máquina  onde  um  movimento,  ou  passo  em  fal- 


so, pode  custar-lhes  a  vida!  São  como  os  filhos  dos  sol- 
dados que  têm  os  pais  na  guerra.  E  o  pedreirito  tremia 
cada  vez  mais,  e  meu  pai  reparando  nele,  disse-lhe: 

—  Vai,  vai  para  casa,  pequeno;  vai  para  casa  de  teu 
pai,  que  lá  o  acharás  são  e  tranqiiilo,  vai... 

O  pedreirito  foi  andando,  mas  voltando-se  para  trás 


105  CORAÇÃO 

a  cada  passo.  Neste  meio  tempo  a  multidão  pôs-se  de  novo 
em  movimento,  e  a  muiher  continuava  a  gritar  numa 
aflição  terrível:  —  Está  morto!  Está  morto! 

—  Não,  não,  não  está  morto  —  asseveram-lhe  de  to- 
das as  partes,  mas  a  pobre  mulher  a  nada  atendia  e  arran- 
cava ds  cabelos.  Nisto  ouvi  uma  voz  indignada  que  di- 
zia :^— Tu  ris,  patife:  —  e  volíando-me  vi  um  homem  bar- 
bado a  olhar  para  Franti,  que  continuava  a  rir-se.  Então 
o  homem  de  barbas  atirou-lhe  o  barrete  ao  meio  da  rua 
com  um  safanão,  dizendo : 

—  Tira  o  barrete,  maroto  quando  passa  uma  vítima 
do  trabalho. 

A  multidão  havia  já  desaparecido,  e  via-se  ainda  no 
meio  da  rua  um  extenso  rasto  de  sangue. 

O  prisioneiro 

Sexta-feira,  ij 

Ah!  é  este  certamente  o  caso  mais  extraordinário 
de  todo  o  ano.  Meu  pai  conduziu-me  ontem  de  manhã 
aos  arredores  de  Moncalieri,.  a  ver  uma  vila  que  se  alu- 
gava para  o  próximo  verão,  porque  este  ano  não  vamos 
para  Chiri.  Soubemos  que  quem  tinha  a  chave  era  um 
mestre  que  serve  de  secretário  ao  senhorio.  Mostrou-nos 
a  casa,  depois  levou-nos  ao  seu  gabinete,  onde  nos  deu 
de  beber.  Havia  sobre  a  escrevaninha  um  tinteiro  de  ma- 
deira de  forma  cónica,  esculpido  de  um  modo  singular. 
Vendo  que  meu  pai  o  analisava,  o  mestre  disse-lhe: 

—  Esse  tinteiro  é  para  mim  precioso.  Se  o  senhor 
soubesse  a  história  dele...  E  contou  o  seguinte: 

Há  anos, — era  êle  mestre  em  Turim,  e  foi  durante  todo 
o  inverno  dar  lições  aos  prisioneiros  das  cadeias  civis. 
— dava  lição  na  igreja  da  cadeia,  que  é  um  edifício  em  for- 
ma circular,  em  torno  do  qual,  nas  paredes  altas  e  nuas, 
se  vêm  pequenas  janelas  quadradas,  veladas  por  duas 
barras  de  ferro  em  cruz,  correspondendo  a  cada  uma  de- 
las uma  pequeníssima  cela.  Êle  dava  lições  passeando 
pela  igreja  fria  e  escura,  e  os  discípulos  debruçavam-se 


CORAÇÃO  107 

naquelas  aberturas,  abrindo  os  cadernos  de  encontro  aos 
ferros,  distinguindo-se  vagamente  as  cabeças  na  sombra, 
os  rostos  descarnados  e  tétricos,  as  barbas  grisalhas  e 
descuidadas,  os  olhos  fixos  de  homicidas  e  de  ladrões.  Ha- 
via entre  eles  um,  o  número  78,  que  prestava  mais  aten- 
ção que  todos  os  outros,  estudava  muito,  e  olhava  para 
o  mestre  com  olhos  cheios  de  respeito  e  gratidão.  Era 
moço  ainda,  de  barba  preta,  mais  desgraçado  que  mal- 
vado, fora  marceneiro,  e  num  ímpeto  de  cólera  tinha 
atirado  com  uma  garlopa  contra  o  mestre  que  o  repreen- 
dera, ferindo-o  mortalmente  na  cabeça,  e  por  isso  havia 
sido  condenado  a  ajguns  anos  de  prisão.  No  fim  tíe  três 
meses  tinha  aprendido  a  ler  e  a  escrever,  e  lia  continua- 
mente, e  quanto  mais  aprendia,  tanto  mais  parecia  me- 
lhorar de  carácter  e  arrepender-se  do  seu  delito.  Um 
dia,  ao  terminar  a  lição,  fez  sinal  ao  mestre  para  se  apro- 
ximar da  grade,  e  anunciou-lhe  com  tristeza  que  na  ma- 
nhã seguinte  partiria  de  Turim  para  ir  cumprir  senten- 
ça num  dos  cárceres  de  Veneza;  e  dizendo-lhe  adeus  pe- 
diu-lhe  com  voz  humilde  e  comovida  que  consentisse  que 
êle  lhe  apertasse  a  mão.  O  mestre  deu-lhe  a  m-ão,  e  êle 
beijando-a,  disse:  —  Obrigado,  muito  obrigado.  — E  de- 
sapareceu. Quando  o  mestre  retirou  a  mão,  tinha-a  ba- 
nhada de  lágrimas.  Depois  disso,  não  o  viu  mais.  Tinham 
decorrido  seis  anos. 

Podia  eu  pensar  em  tudo  menos  naquele  desgraçado 
—  disse  o  mestre  —  quando  ontem  de  manhã  me  apa- 
rece em  casa  um  desconhecido,  com  uma  grande  barba 
preta  já  com  alguns  fios  brancos,  mal  vestido,  que  me 
preguntou : 

—  É  o  senhor  o  mestre  assim,  assim... 

—  Sou,  e  o  senhor  quem  é?  —  preguntei-lhe  eu. 

—  Sou  aquele  que  esteve  preso  e  que  tinha  o  número 
78.  Foi  o  senhor  —  continuou  —  que  ha  seis  anos  me  en- 
sinou a  ler  e  escrever...  Veja  lá  se  se  recorda...  Acabei 
de  cumprir  a  sentença  e  aqui  estou  para  lhe  pedir  que 
me  faça  o  favor  de  aceitar  uma  lembrança  minha,  uma 
coisa  insignificante  que  eu  fiz  na  prisão.  Aqui  está, 
aceite-me  por  favor  esta  lembrança,  senhor  mestre. 

Fiquei  absorto  sem  poder  dar  palavra,  e  êle  pensan- 


108  CORAÇÃO 

do  que  eu  lhe  não  aceitava  a  oferta,  olhou  para  mim,  como 
quem  queria  dizer:  Então,  seis  anos  de  sofrimento  não 
são  ainda  bastantes  para  me  purificarem  as  mãos?  —  E 
olhava  para  mim  com  tão  viva  expressão  de  dor,  que  eu 
estendi  logo  a  mão  e  peguei  no  objecto  que  me  era  ofe- 
recido. Êle  aí  está.  Examinamos  detidamente  o  tinteiro; 
parecia  ter  sido  trabalhado  com  a  ponta  de  um  prego  e 
feito  com  extrema  paciência.  Estava  na  parte  superior  es- 
culpida uma  pena  atravessada  sobre  um  caderno  e  escrito 
em  volta:  Ao  meu  mestre  —  Lembrança  do  número  y8  — 

—  Seis  anos!  E  por  baixo  em  letras  miudinhas:  — Es- 
tudo e  esperança.  —  O  mestre  não  disse  mais  nada  e  saí- 
mos; mas  por  todo  o  caminho  de  Moncalieri  a  Turim,  eu 
não  podia  esquecer-me  um  momento  daquele  prisioneiro 
debruçado  na  grade,  do  adeus  ao  mestre,  e  do  modesto 
tinteiro  trabalhado  no  cárcere,  que  significa  tanto...  So- 
nhei com  êle  de  noite,  e  ainda  esta  manhã  pensava  no 
tinteiro...  Quão  longe  estava  eu  de  imaginar  a  surpresa 
que  me  esperava  na  escola!  Mal  entrei  e  me  sentei  no 
meu  novo  banco  ao  lado  de  Derossi,  e  depois  de  escrito 
o  problema  de  aritmética  para  o  exame  mensal,  contei  ao 
meu  condiscípulo  a  história  do  condenado  e  do  tinteiro, 
como  era  feito,  e  como  tinha  uma  pena  sobre  o  caderno 
e  mais  as  inscrições  em  volta:  Seis  anos!  Derossi,  ouvindo 
aquilo,  ficou  estupefacto  e  principiou  a  olhar,  ora  para 
mim,  ora  para  Crossi,  o  filho  da  vendedeira  de  hortaliças, 
que  estava  no  banco  da  frente  com  as  costas  voltadas  para 
nós,  todo  absorto  em  resolver  o  problema. 

—  Sciu...!  Cala-te  —  disse  logo  em  voz  baixa,  agar- 
rando-o  por  um  braço  —  Queres  tu  saber?  Crossi  disse- 
-me  ante-ontem  que  vira  de  fugida  um  tinteiro  de  ma- 
deira nas  mãos  de  seu  pai  que  chegou  da  América,  um 
tinteiro  cómico,  feito  à  mão,  com  um  caderno  e  uma  pena, 
e  a  inscrição  que  tu  viste ;  e  disse-me  mais  que  o  pai  esti- 
vera na  América.  Esteve,  mas  foi,  na  cadeia.  Como  Crossi 
era  criança,  quando  o  pai  cometeu  o  delito,  não  sabe  nada 
e  a  mãi  trouxe-o  sempre  enganado.  Ora  o  que  é  preciso 
é  que  nos  não  escape  agora  uma  palavra  a  este  respeito. 

Eu  fiquei  mudo,  com  os  olhos  pregados  em  Crossi 
e  Derossi,  resolvendo  o  problema,  passou-lho  por  baixo 


CORAÇÃO  109 

do  banco ;  deu-lhe  uma  folha  de  papel  e  tomou-lhe  a  mão. 
O  enfermeiro  de  Tatá,  história  mensal  que  o  mestre  lhe 
dera  para  copiar,  com  o  fim  de  fazer  por  ele  o  trabalho; 
e  deu-lhe  também  penas,  acariciou-o  pousando-lhe  bran- 
damente as  mãos  nos  ombros;  e  fez  que  eu  lhe  desse  a 
minha  palavra  de  horura  de  não  dizer  a  ninguém  coisa  al- 
guma do  que  sabia.  E  quando  saímos  da  escola,  disse- 
-me  apressadamente: 

—  Ontem  o  pai  veio  buscá-lo,  e  decerto  também  hoje 
vem.  Anda  comigo  e  faz  o  que  eu  fizer. 

Chegamos  à  rua,  e  lá  estava  o  pai  de  Crossi,  um 
pouco  retirado,  um  homem  com  a  barba  negra,  um  tanto 
grisalha,  mal  vestido,  com  rosto  macilento  e  pensativo» 
Derossi  apertou  a  mão  de  Crossi  de  modo  que  todos  vis- 
sem bem,  dizendo  em  voz  alta :  —  Até  à  vista,  Crossi,  e 
passou-lhe  a  mão  pela  cara.  Eu  fiz  o  mesmo,  mas  ficámos 
ambos  muito  vermelhos ;  e  o  pai  de  Crossi  olhou-nos  aten- 
tamente com  um  olhar  benévolo,  mas  em  que  transluzia 
uma  expressão  de  desassossego  e  de  suspeita  que  nos  ge- 
lou o  coração. 

O  enfermeiro  de  Taía 

(CONTO  MENSAL) 

Na  manhã  de  um  chuvoso  dia  de  março  um  rapaz  ves- 
tido de  camponês,  todo  encharcado  e  enlameado,  com  uma 
trouxa  de  roupa  debaixo  do  braço,  chegava  ao  hospital 
de  Nápoles  e  preguntava  ao  porteiro  por  seu  pai  apre- 
sentando-lhe  ao  mesmo  tempo  uma  carta.  Tinha  um  belo 
rosto  oval,  de  um  trigueiro  pálido,  os  olhos  pensativos 
e  dois  grossos  lábios  semi-abertos  deixando  ver  uns  den- 
tes alvíssimos.  Chegava  de  uma  aldeia  dos  arredores  de 
Nápoles.  O  pai  partira  de  casa  no  ano  anterior  para  ir 
procurar  trabalho  em  França,  e  regressara  à  Itália  desem- 
barcando em  Nápoles  poucos  dias  antes,  mas,  adoecendo 
repentinamente,  apenas  tinha  tido  tempo  para  escrever 
duas  linhas  à  família  anunciando-lhe  a  sua  chegada  e  di- 
zendo que  entrava  no  hospital.  A  mulher  aflita  com  a 


110 


CORAÇÃO 


notícia,  não  podendo  sair  de  casa  porque  tinha  uma  fi- 
lhinha enferma  e  outra  de  peito,  mandara  a  Nápoles  o  fi- 
lho mais  velho  com  algum  dinheiro  no  bolso  para  ir  fa- 
zer companhia  ao  pai,  ao  seu  Tatá,  como  lá  se  diz.  O 
rapaz  andara  dez  milhas  para  chegar  ali.  O  porteiro  leu 
de  relance  a  carta  e  chamando  um  enfermeiro  disse-lhe 
que  conduzisse  o  rapaz  ao  pai. 

—  Que  pai?  —  preguntou  o  enfermeiro. 

O  rapaz  es- 
t  r  em  e  c  e  ndo 
com  receio  de 
uma  triste  no- 
tícia disse  o  no- 
m.e  do  pai.i  O 
enfermeiro  não 
se  recordava  do 
nome. 

— É  operário, 
—  r  e  s  p  o  ndeu 
o  rapaz  cada 
vez  mais  ansio- 
so —  mas  não 
muito  velho.  De 
fora  veio,  sim. 
—  E  quando 
entrou  no  hos- 
pital? —  preii- 
guntou  o  enfer- 
meiro. 

—  Há  cinco 
dias,  acho    eu. 
O  enfermeiro  pensou  um  pouco,  e  depois,  como  que 
recordando-se  de  repente,  disse: 

Ah!  sim...  no  quarto  salão...  na  última  cama. 
— Estará  muito  doente?  Como  está  ele?  — preguntou 
ansiosamente  o  rapaz. 

O    enfermeiro   olhou  para   êle  sem  responder.   Pas- 
sados momentos  disse: 


CORAÇÃO  111 

—  Vem  comigo. 

Subiram  dois  lanços  de  escadas,  e  seguindo  até  ao  fim 
de  um  largo  corredor,  acharam-se  em  frente  da  porta  de 
um  salão,  onde  se  viam  em  todo  o  comprimento,  duas  fi- 
las de  leitos. 

—  Segue-me  —  repetiu  o  enfermeiro  entrando. 

O  rapaz  cobrou  ânimo  e  seguiu-o  lançando  medrosa- 
mente a  vista  para  a  direita  e  para  a  esquerda,  sobre  os 
rostos  pálidos  e  cadavéricos  dos  doentes,  alguns  dos 
quais  tinham  os  olhos  fechados  como  se  estivessem,  mor- 
tos e  outros  olhavam  fixamente  para  o  teto  com^  os  olhos 
abertos  e  espantados.  Alguns  gemiam  como  crianças.  O 
salão  estava  escuro,  o  ar  impregnado  de  um  cheiro  agu- 
do de  remédios.  Duas  irmãs  de  caridade  iam  e  vinham 
com  garrafas  de  medicamentos.  Chegando  ao  fundo  do 
salão  o  enfermeiro  parou  à  cabeceira  de  um  leito,  e 
abrindo  as  cortinas,  disse: 

—  Aqui  está  teu  pai. 

O  rapaz  desatou  a  chorar,  e  largando  a  trouxa  deixou 
cair  a  cabeça  sobre  o  ombro  do  doente,  agarrando-lhe  com 
a  mão  no  braço  que  tinha  estendido,  imóvel  sobre  a 
coberta.  O  doente  não  se  mexeu.  O  rapaz  levantou-se, 
olhou  para  o  pai  e  rompeu  de  novo  num  choro  aflitivo. 
Então  o  doente  volveu-lhe  um  olhar  vagaroso  e  pareceu 
reconhecê-lo.  Mas  os  seus  lábios  não  se  m.oviam.  Pobre 
Tatá!  como  ele  estava  mudado!  Seria  impossível  que  o 
filho  o  tivesse  reconhecido  em  tal  estado.  Tinham-se-lhe 
branqueado  os  cabelos,  crescido  a  barba;  inchara-lhe  o 
rosto  tomando  u_ma  côr  vermelha  carregada,  com  a  pele 
tensa  e  lustrada,  os  olhos  meio  apagados,  os  lábios  entu- 
mecidos, a  fisionomia  toda  alterada.  Conservava  apenas 
do  que  fora,  o  arco  das  sobrancelhas.  Respirava  dificil- 
mente. 

—  Tatá!  meu  querido  Tatá!  —  disse  o  rapaz  —  sou 
eu,  não  me  conheces?  Sou  Cecílio,  o  teu  Cecílio.  Venho 
agora  de  casa,  e  foi  a  mamã  que  me  mandou.  Olha  bem 
para  mim...  então?  não  me  reconheces?  Diz-me  ao  me- 
nos uma  palavra... 

O  doente,  depois  de  tê-lo  fixado  atentamente,  fechou 
os  olhos. 


1J2  CORAÇÃO 

—  Tatá!  Tatá!  que  tens?  olha,  sou  eu...  sou  o  teu 
filho,  o  Cecílio. 

O  doente  não  se  mexeu  mais  e  continuou  a  respirar 
com  dificuldade.  Então  o  rapaz  chorando  sempre,  puxou 
uma  cadeira,  sentou-se,  e  ficou  esperando  sem  levantar 
os  olhos  do  rosto  do  pai  e  pensando  consigo  mesmo;  — 
Algum  médico  há-de  vir  fazer  a  visita  e  êle  me  dirá  al- 
guma coisa.  E  concentrou-se  nos  seus  tristes  pensamen- 
tos, recordando  tantas  coisas  do  seu  bom  pai,  do  dia  da 
partida  dele,  do  último  adeus  que  lhe  dera  já  a  bordo  do 
navio,  das  esperanças  que  alimentara  a  família  com  aque- 
la viagem,  da  desolação  de  sua  mãi,  à  chegada  da  carta, 
e  pensou  na  morte;  viu  o  pai  morto,  a  mãi  vestida  de 
preto,  a  família  na  miséria...  E  assim  esteve  muito  tempo, 
até  que  uma  mão  ligeira  lhe  tocou  no  ombro  e  o  fez  es- 
tremecer; era  uma  religiosa. 

—  Que  tem  meu  pai? — preguntou-lhe  logo. 

—  É  teu  pai?  —  disse  a  irmã  com  doçura. 

—  É  sim  senhora,  é  meu  pai  e  eu  vim...  Mas  êle  que 
tem? 

—  Coragem,  rapaz  —  respondeu  a  irmã  —  logo  virá 
o  médico  —  e  retirou-se  sem  dizer  mais  nada. 

Meia  hora  depois  ouviu  o  toque  de  uma  campainha 
e  viu  entrar  de  uma  da  outra  extremidade  da  enfermaria 
o  médico,  acompanhado  de  um  assistente,  e  seguidos  de 
luna  irmã  e  de  um  enfermeiro.  Principiaram  a  visita,  pa- 
rando em  cada  leito-  A  demora  parecia  eterna  ao  rapaz,  e 
cada  passo  do  médico  lhe  aumentava  a  ansiedade.  Final- 
mente, chegara  ao  leito  do  vizinho.  O  médico  era  um  velho 
alto,  corcovado,  e  de  um  ar  grave  e  sério.  Antes  que  se 
afastasse  do  leito  vizinho  o  rapaz  levantou-se;  e,  quando 
o  médico  se  aproximou  do  pai,  pôs-se  a  chorar.  O  médico 
olhou  para  êle. 

—  Este  é  filho  do  doente  —  disse  a  irmã  —  chegou 
esta  manhã  da  terra. 

O  médico  passou-lhe  a  mão  pelo  ombro,  e  depois 
inclinando-se  sobre  o  doente  tomou-lhe  o  pulso,  apalpou- 
-Ihe  a  testa,  e  fez  algumas  preguntas  à  irmã  que  res- 
pondeu : 


CORAÇÃO  113 

—  Nada  de  novo... 

Ficou  um  momento  pensativo,  dizendo  em  seguida: 

—  Continue  como  até  aqui. 

Então  o  rapaz  enchendo-se  de  coragem,  preguntou 
•m  voz  lacrimosa: 

—  Mas  o  que  é  que  meu  pai  tem? 

—  Cria  ânimo,  meu  filho  —  respondeu  o  médico  tor- 
nando a  passar-lhe  a  mão  pelo  ombro.  Teu  pai  tem  uma 
•risipela  facial.  É  grave  mas  ainda  não  estão  perdidas 
as  esperanças.  Fica  ao  pé  dele,  a  tua  presença  há-de  fa- 
zer-lhe  bem. 

—  Mas  é  que  êle  não  me  reconhece,  exclamou  o  ra- 
paz num  tom  amargurado. 

—  Há-de  vir  a  reconhecer-te...  talvez  amanhã.  Espe- 
remos sempre  o  melhor,  e  tem  coragem. 

Bem  queria  o  rapaz  preguntar  mais  alguma  coisa, 
mas  não  se  atreveu.  O  médico  continuou  na  sua  visita  e 
o  rapaz  começou  então  a  sua  vida  de  enfermeiro.  Não  po- 
dendo fazer  mais  nada,  arranjava  e  estendia  a  roupa  da 
cama,  tocava  de  vez  em  quando  na  mão  do  doente,  enxo- 
tava-lhe  as  moscas  e  inclinava-se  sobre  êle  a  cada  gemido 
que  dava,  e  quando  a  irmã  trazia  água  ou  remédio,  tirava- 
-Ihe  da  mão  o  copo  ou  a  colher,  e  era  êle  que  a  apresenta- 
va ao  doente.  Este,  encarava-o  algumas  vezes,  mas  não 
dava  sinal  de  o  reconhecer.  Somente  o  seu  olhar  se  deti- 
nha cada  vez  mais  sobre  êle,  e  especialmente  quando  o 
via  levar  o  lenço  aos  olhos.  Assim  passou  o  primeiro  dia. 
À  noite  o  rapaz  dormia  em  cima  de  duas  cadeiras,  num 
canto  da  enfermaria  e  de  manhã  recomeçava  o  seu  piedoso 
oficio.  Nesse  dia  pareceu-lhe  que  os  olhos  do  doente 
começavam  a  revelar  uma  tal  ou  qual  inteligência,  À  voz 
acariciadora  do  rapaz  parecia  que  uma  expressão  vaga 
de  gratidão  lhe  brilhava  por  momentos  nas  pupilas;  e 
até  uma  vez  moveu  um  pouco  os  lábios  como  quem  queria 
dizer  alguma  coisa.  Em  seguida  a  alguma  breve  sonolên- 
cia, reabria  os  olhos  e  movia-os  em  torno,  como  se  pro- 
curase  o  seu  pequeno  enfermeiro.  O  médico  passando  por 
ali  duas  vezes,  notou  algumas  melhoras  no  doente.  À 
tarde  chegando-lhe  um  copo  à  boca,  o  rapaz  julgou  ver 
desprenderem-se  em  ligeiríssimo  sorriso  os  lábios  entu- 


114  CORAÇÃO 

inecidos  do  pai.  Principiou  então  a  animar-se  e  a  ter  es- 
perança, e  uma  alegria  infinda  o  invadiu;  e  supondo  que 
era  compreendido,  embora  confuséimente,  falava-lhe  mui- 
to da  mãi,  dos  irmãos  pequenos,  da  volta  para  casa,  e  exor- 
tava-o  com  as  palavras  ternas  e  amorosas  para  cobrar  o 
ânimo  e  alento;  e  posto  que  muitas  vezes  duvidasse  de 
ser  realmente  compreendido,  falava-lhe  sempre  porque 
lhe  parecia  que  embora  o  doente  o  não  entendesse,  escu- 
taria apesar  disto  com  prazer  a  sua  voz  repassada  du- 
ma entonação  desusada,  afectuosa  e  triste.  E  assim  pas- 
sara o  segundo  dia,  o  terceiro  e  o  quarto,  ora  apresentan- 
do o  doente  ligeiras  melhoras,  ora  peorando  repentina- 
mente, e  o  rapaz  sempre  ali,  e  por  tal  modo  absorto  nos 
seus  cuidados  que  apenas  tomava  duas  vezes  ao  dia  uma 
fatia  de  pão  e  um  bocado  de  queijo,  que  a  irmã  de  carida- 
de lhe  levava,  e  nem  dava  fé  do  que  se  passava  em  torno 
nem  dos  enfermos  moribundos,  nem  do  decorrer  inespe- 
rado das  irmãs,  de  noite,  nem  do  pranto  e  actos  de  deso- 
lação dos  visitantes  que  saíam  sem  esperança,  não  aten- 
dendo, enfim,  a  nenhuma  dessas  cenas  dolorosas  e  lúgubres 
da  vida  dum  hospital,  que  em  qualquer  outra  ocasião  o 
ateriam  aturdido  e  horrorizado.  E  iam-se  passando  as  ho- 
ras e  os  dias  e  êle  sempre  ao  lado  do  seu  Tatá,  atento, 
solícito,  estremecendo  a  cada  suspiro,  a  cada  olhar  agita- 
do, sem  repouso,  oprimido  entre  uma  esperança  que  lhe 
consolava  a  alma,  e  um  desânimo  que  lhe  apertava  o  cora- 
ção. No  quinto  dia  o  doente  peorou  repentinamente.  O 
médico,  sendo  interrogado,  abanou  a  cabeça,  como  quem 
queria  dizer  que  estava  tudo  acabado,  e  o  rapaz  deixou-se 
cair  sobre  uma  cadeira  chorando  e  soluçando.  E,  contu- 
do, uma  coisa  o  consolava...  Parecia-lhe  que  o  doente  ia 
lentamente  readquirindo  um  pouco  de  inteligência  a-pe- 
saf  do  prognóstico  do  médico.  Encarava-o  agora  mais  fi- 
xamente, e  com  uma  expressão  cada  vez  mais  pronuncia- 
da de  doçura;  não  queria  beber,  nem  tomar  remédios  que 
não  fossem  ministrados  por  êle,  fazia  mais  amiudada- 
mente  um  movimento  forçado  de  lábios,  como  se  quizes- 
se  pronunciar  uma  palavra;  e  às  vezes,  com  tais  contrac- 
ções o  fazia,  que  o  pequeno  segurava-lhe  o  braço  com  for- 
ça e  embalado  por  uma  doce  e  repentina  esperança,  dizia- 


CORAÇÃO 


113 


-lhe  com  meiguice,  quási  alegre: — Coragem!  coragem, 
Tatá!  Hás-de 
ficar  bom,  ire- 
mos abraçar  a 
mamã,  vamos ! 
Ânimo !  Eram 
quatro  horas 
da  tarde,  justa- 
meiíte  num 
ponto  em  que  o 
rapaz  se  entre- 
gava a  um  da- 
queles impul- 
sos de  ternura 
e  de  esperança, 
quando,  ouvin- 
do para  lá  da 
porta  mais  pró- 
xima da  enfer- 
maria, um  ru- 
mor de  passos, 
e  logo  em  se- 
guida estas  pa- 
lavras :  —  até 
à  vista  irmã!  — 
deu  um  pulo  e 
soltou  um.  grito  meio  estrangulado  na  garganta.  Ao  mes- 
mo tempo  que  entrava  no  salão  um  homem  com  uma  trouxa 
na  mão,  seguido  de  uma  irmã  da  caridade.  O  rapaz  sol- 
tou um  grito  agudo  e  ficou  como  se  estivesse  pregado  no 
chão.  O  homem  voltou-se  e  encarando-o  um  momento, 
correspondeu  ao  grito  com  uma  exclamação:  —  Cecílio! 
—  E  correu  direito  para  êle.  O  rapaz  caiu  nos  braços  de 
seu  pai,  sufocado.  As  irmãs,  os  enfermeiros,  o  assistente, 
de  todos  os  lados  correram  e  ali  ficaram  estupefactos!  O 
rapaz  não  podia  falar. 

—  Oh!  meu  Cecílio!  exclamou  o  pai,  depois  de  olhar 
atentamente  para  o  doente,  beijando  e  tornando  a  beijar 
o  rapaz, — meu  querido  filho!  Como  foi  isto?  Pois  con- 
duziram-te  à  cama  doutro  doente?  Eu  bem  sabia  pela  car- 


llé  CORAÇÃO 

ta  de  tua  mãi  que  vieras  e  já  desesperava  de  te  não  ver  ao 
pé  de  mim...  Pobre  Cecílio!  Há  quantos  dias  estás  tu 
aqui?  que  confusão  foi  esta!...  Olha  que  escapei  de  bôa... 
mas  sinto-me  forte,  sabes?  e  a  tua  mãi?  e  a  Conceiçãozi- 
nha?  e  a  pequerrucha?  como  vão  todos?  Eu  saio  já  do 
hospital...  vamos!  Ah!  meu  Deus!  quem  o  teria  adivi- 
nhado ! 

O  rapaz  custou-lhe  a  articular  algumas  palavras  para 
dar  notícias  da  família,  depois  balbuciou: 

—  Oh !  como  estou  contente !  Como  estou  satisfeito ! 
Mas  que  dias  horríveis  que  eu  tenho  passado!  E  não  ces- 
sava de  beijar  o  pai. 

—  Anda  daí !  —  disse-lhe  o  pai.  Ainda  esta  tarde  che- 
garemos a  nossa  casa...  vamos,  anda!...  e  puxou-o  para  si. 

Mas  o  filho  voltou-se  a  olhar  para  o  doente. 

—  Então!  vens  ou  não  vens?  preguntou-lhe  o  pai 
espantado. 

E  o  rapaz  dirigiu  ainda  um  saudoso  olhar  ao  enfermo, 
que  naquele  momento  abrira  os  olhos  e  o  fixara  atenta- 
mente. Rebentou-lhe  então  da  alma  uma  torrente  de  pa- 
lavras : 

—  Eu  vou  Tatá,  espera...  eu  vou...  mas  não  posso... 
E  aquele  velho  que  ali  está?  Há  cinco  dias  que  estou  jun- 
to dele...  Procura-me  sempre  com  os  olhos...  E  eu  a  pen- 
sar que  era  meu  pai!...  Já  lhe  queria  bem...  Olha  para 
mim...  Sou  eu  que  lhe  dou  os  remédios  e  sinto  que  me 
deseja  sempre  a  seu  lado.  Olhe,  agora  está  ele  muito 
mal...  tenha  paciência,  mas  eu  não  tenho  ânimo  de  o  dei- 
xar; faz-me  muita  pena.  Voltarei  a  casa  amanhã...  Con- 
sinta que  eu  fique  aqui  mais  um  pouco,  não  devo  aban- 
doná-lo. Veja,  veja,  de  que  maneira  êle  me  está  olhando! 
Eu  não  sei  quem  é,  mas  sinto  que  me  estima,  e  morreria 
abandonado,  deixe-me  ficar,  meu  querido  Tatá! 

—  Bravo !  Bravo,  meu  rapaz !  gritou  o  assistente. 

O  pai  ficou  perplexo,  olhando  para  o  filho  e  para  o 
enfermo... 

—  Mas...  quem  é  êle?  —  preguntou. 

—  É  um  camponês  como  o  senhor,  respondeu  o  as- 
sistente. Veiu  da  aldeia  e  entrou  no  hospital  no  mesmo 
dia  em  oue  o  senhor  entrou.  Trouxeram-no  aqui,  porque 


CORAÇÃO  117 

estava  sem  sentidos,  e  não  pôde  até  agora  dizer  nada.  Teim 
talvez  alguma  família  disitante,  tem  filhos  e  cuida  de  cer- 
to que  este  é  algum  dos  seus. 

O  doente  não  despregava  a  vista  do  rapaz.  O  pai  disse 
então  a  Cecílio: 

—  Bem,  bem,  fica. 

—  Não  terá  de  ficar  por  muito  tempo,  murmurou  o 
assistente. 

—  Fica,  —  repetiu  o  pai, — tens  bom  coração...  Eu 
cá  vou  direito  a  casa  para  livrar  tua  mãi  de  cuidados. 

Abraçou-o,  fixou-o  docemente,  e,  beijando-o  de  no- 
vo na  testa,  partiu.  O  rapaz  voltou  para  a  cabeceira  da 
cama  e  o  enfermo  pareceu  ficar  mais  consolado.  Cecílio 
continuou  a  servir-lhe  de  enfermeiro,  não  chorando  mais, 
mas  empregando  a  mesma  solicitude,  a  mesma  paciência 
que  até  ali  empregara.  Continuou  a  dar-lhe  de  beber,  a 
chegar-lhe  os  remédios,  a  endireitar-lhe  a  roupa  da  cama, 
a  acariciar-lhe  a  mão,  a  falar-lhe  com  doçura,  procurando 
animá-lo.  Assistiu-lhe  o  resto  da  tarde,  toda  a  noite,  e 
esteve  sempre  ao  lado  dele  todo  o  dia  seguinte.  O  doen- 
te, porém,  ia  sempre  a  pior,  o  rosto  tornara-se  côr  de  vio- 
leta, a  respiração  pesada,  a  agitação  aumentava  sempre. 
Da  boca  saím-lhe  sons  inarticulados  e  a  inflamação  tor- 
nava-se  monstruosa,  A  visita  da  tarde,  o  médico  disse  que 
o  doente  não  passava  daquela  noite.  Cecílio  redobrou  de 
cuidados,  não  se  afastando  do  leito  um  só  instante.  O  do- 
eníte  conservava  sempre  os  olhos  fitos  nele;  movia  ainda 
os  lábios,  de  quando  em  quando,  com  grande  esforço  como 
se  quizesse  dizer  alguma  coisa,  e  uma  expressão  de  extra- 
ordinária doçura  transparecia  na  luz  dos  seus  olhos,  que 
se  ia  gradualmente  apagando.  Naquela  noite,  o  rapaz  vi- 
giou-o  sempre,  até  que  viu  através  das  janelas  os  primei- 
ros alvores  da  aurora,  e  aparecer  junto  dele  uma  irmã  de 
caridade.  Esta,  abeirando-se  do  leito,  olhou  um  momento 
para  o  enfermo,  e  saiu  a  passos  rápidos,  voltando  logo 
com  o  médico  assistente  e  com  um  enfermeiro  que  trazia 
uma  lanterna. 

—  Está  a  expirar,  disse  o  médico. 

O  rapaz  pousou  a  mão  sobre  a  do  moribundo,  e  este 
abriu  os  olhos,  fixou-o  e  tornou  a  fechá-los.  Neste  mo- 


118  CORAÇÃO 

mento  pareceu  ao  rapaz  ter  sentido  um  aperto  de  mão,  e 
exclamou :  —  Apertou-me  a  mão !  —  O  médico  debruçou- 
-se  sobre  o  doente,  observando-o  e  erguendo-se  logo.  A 
irmã  da  caridade,  tirou  da  parede  um  crucifixo. 

—  Morreu?  —  preguntou  o  rapaz 

—  Vai,  filho  —  respondeu  o  médico.  A  tua  sagrada 
missão  terminou.  Vai  e  sê  feliz,  que  bem  o  mereces.  Deus 
há-de  proteger-te...  Adeus. 

A  irmã,  que  se  afastara  um  momento,  voltou  com  um 
raminho  de  violetas,  tiradas  dum  copo,  que  estava  na 
janela,  e  entregou-o  ao  rapaz,  dizendo: 

—  Não  tenho  mais  nada  que  te  dar.  Guarda-o  como 
lembrança  do  hospital... 

—  Obrigado,  disse  o  rapaz  tomando-o  com  uma  mão 
e  enxugando  os  olhos  com  a  outra;  mas  é  tanto  o  caminho 
que  tenho  a  andar  a  pé...  que  vão  murchar  de  certo!  E 
soltando  as  violetas,  espalhou-as  pelo  leito,  dizendo: 

—  Deixo-as  como  recordação  ao  meu  pobre  morto. 
Obrigado,  boa  irmã.  Agradecido,  senhor  doutor.  —  De- 
pois voltando-se  para  o  morto.  —  Adeus...  disse.  E,  en- 
quanto procurava  o  nome  que  lhe  havia  de  dar,  subiu-lhe 
do  coração  aos  lábios  o  nome  que  lhe  dera  durante  cinco 
dias,  e  concluiu:  —  Adeus,  pobre  Tatá! 

E  dizendo  isto,  meteu  debaixo  do  braço  a  trouxa  de 
roupa  e  a  passos  vagarosos,  extenuado  de  fadiga,  partiu. 
Despontava  a  madrugada. 

A  oficina 

Sábado,  13 

Precossi  veio  ontem  de  tarde  convidar-me  para  ir  ver 
a  sua  oficina,  que  é  em  baixo,  na  estrada,  e  esta  manhã, 
saindo  com  meu  pai,  fomos  lá  um  momento.  Quando  nos 
aproximávamos  da  oficina,  saía  dela  Garoffi,  a  correr 
com  um  pacote  na  mão,  fazendo  esvoaçar  o  seu  grande  ca- 
pote que  lhe  serve  de  abrigo  às  mercancias.  Ah!  agora 
já  sei  onde  o  traficante  de  Garoffi  vai  buscar  a  limalha 
de  ferro  para  trocar  por  jornais  velhos!  Chegando  à  porta, 


CORAÇÃO  119 

vimos  Precossi  sentado  sobre  um  monte  de  tijolos,  estu- 
dando a  lição,  com  o  livro  sobre  os  joelhos.  Levantou-se 
logo  e  fez-nos  entrar.  Era  um  armazém  cheio  de  pó  de 
carvão,  com  as  paredes  todas  cobertas  de  martelos,  tena- 
zes, alavancas  e  ferros  de  todas  as  formas.  A  um  canto 
ardia  o  fogo  de  uma  forja,  a  que  soprava  um  fole  movi- 
do por  um  rapaz.  Precossi,  pai,  estava  ao  pé  da  bigorna 
e  um  aprendiz  sustentava  um  varão  de  ferro  metido  no 
fogo. 

—  Cá  está  êle  —  disse  o  ferreiro,  tirando  a  carapuça 
apenas  nos  viu,  —  o  nobre  moço,  que  faz  presentes  de 
comboios...  Com  que  então  veio  ver  trabalhar  um  pouco, 
não  é  verdade? 

E  dizendo  isto,  sorria,  e  não  tinha  já  aquele  aspecto 
sombrio,  nem  aqueles  olhos  vesgos  doutras  vezes.  O  apren- 
diz apresentou-lhe  uma  longa  vara  de  ferro,  candente  na 
extremidade,  e  o  ferreiro  pô-la  na  bigorna.  Estava  fa- 
zendo grades,  como  as  que  servem  de  parapeito  em. 
volta,  dos  terraços.  Levantou  um  grande  martelo  e  começou 
a  bater,  voltando  a  parte  rubra  ora  de  um,  ora  de  outro  la- 
do, entre  uma  ponta  e  o  centro  da  bigorna,  girando  com  a 
vara  de  vários  modos-  Era  para  admirar  ver  como,  debaixo 
dos  golpes  rápidos  e  certeiros,  o  ferro  se  encurvava  e  tor- 
cia, tomando,  pouco  a  pouco,  a  forma  graciosa  da  folha 
encrespada  de  uma  flor,  como  se  aquele  ferro  fosse  um 
pedaço  de  massa  que  êle  modelasse  com  as  mãos.  E,  no 
entanto,  o  filho  olhava  para  nós  com  um  certo  ar  al- 
tivo, como  se  quizesse  dizer :  —  Então  vêm  como  o  meu 
pai  trabalha?  O  ferreiro  quando  acabou,  mostrou-me  a 
vara  de  ferro  que  parecia  o  báculo  dum  bispo. 

—  Já  viu  como  isto  se  faz? 

Depois  pô-la  de  parte,  e  meteu  outra  vara  no  fogo. 

—  Isso  é,  na  verdade  ,bem  ferto,  disse-lhe  meu  pai. 
E  acrescentou:  —  Vejo  que  lhe  voltou  a  vontade  de  tra- 
balhar. 

—  Voltou  sim  senhor;  voltou,  respondeu  o  operário, 
enxugando  o  suor  e  corando  um  pouco.  E  sabe  quem  m.a 
fez  voltar? 

Meu  pai  fingiu  que  o  não  entendia,  e  o  ferreiro 
apontou  com  o  dedo  para  o  filho. 


120  CORAÇÃO 

—  Foi  aquele  bom  rapaz,  aquele  bom  filho,  que  es- 
tudava, fazendo  honra  a  seu  pai,  enquanto  o  pai  andava  na 
vadiagem  e  o  tratava  como  um  animal...  Ah!  senhor, 
quando  vi  a  medalha...  Vem  cá,  meu  pitorrinha,  vem  cá, 
deixa  lá  ver  esse  focinho... 

O  rapaz  correu  direito  a  êle,  e  o  ferreiro  pô-lo  em  pé 
sobre  a  bigorna,  segurando-o  por  debaixo  dos  braços  e 
dizendo: 

—  Limpa  um  pouco  a  cara  a  este  anim.aião  de  teu  pai, 
anda... 

E  então  Precossi  cobriu  de  beijos  o  rosto  enfarrus- 
cado do  pai  e  ficou  também  com  a  cara  toda  preta. 

—  Assim  vai  bem...  disse-lhe  o  ferreiro  pondo-o  no 
chão. 

—  Com  certeza,  Precossi !  exclamou  meu  pai  saitis- 
feito. 

S,  despedindo-nos  do  ferreiro  e  do  filho,  saímos.  À 
porta  o  pequeno  Precossi  disse-me: 

—  Desculpe-me,  e  meteu-me  na  algibeira  um  paco- 
tinho de  pregos.  Eu,  convidei-o  a  vir  ver  o  carnaval  de 
nossa  casa. 

Pelo  caminho  adiante  disse-me  meu  pai: 

—  Tu  presenteaste-o  com  o  teu  comboio,  mas,  se  êle 
fosse  de  oiro  e  carregado  de  pérolas,  ainda  seria  um  pe- 
queno presente  para  aquela  abençoada  criança,  que  fez 
ressuscitar  o  coração  de  seu  pai. 

O  pequeno  palhaço 

Segunda-feira,  20 

Toda  a  cidade  está  em  movimento  pelo  carnaval,  que 
está  a  findar.  Em  todas  as  praças  se  erguem  barracas  de 
saltimbancos  e  cavalinhos,  e  nós  temos  debaixo  da  janela 
um  circo  aberto  de  lona,  onde  dá  espectáculos  uma  peque- 
na companhia  veneziana,  com  cinco  cavalos.  O  circo  é  no 
meio  da  praça,  e  num  ângulo  há  três  carroças  grandes, 
onde  os  saltimbancos  se  vestem,  despem  e  dormem.  São 
três  casas  com  rodas,  janelas  e  uma  chaminé  que  fumega 


CORAÇÃO  121 

sempre;  e  entre  uma  e  outra  janela  vêm-se  fraldas  de 
crianças  estendidas  a  secar.  Há  uma  mulher  que  amamen- 
ta uma  criança,  faz  o  comer  e  dança  na  corda !  Pobre  gen- 
te! Todos  lhe  chamam  como  uma  injuria,  saltimbancos! 
e,  contudo,  eles  ganham  o  pão  honestamente,  divertindo 
os  outros.  E  como  se  afadigam!  Durante  o  dia  correm 
entre  o  circo  e  a  carroça,  vestidos  de  malha,  tiritando  de 
frio;  comem  mal,  de  fugida,  às  carreiras,  em  pé,  entre 
uma  e  outra  representação,  e  às  vezes,  quando  têm  já  o 
circo  cheio  de  gente,  levanta-se  uma  ventania  que  arran- 
ca o  toldo,  apaga  as  luzes,  e  adeus  espectáculo !  Tornam 
então  a  entregar  o  dinheiro  e  andam  a  pé  toda  a  noite 
para  consitruír  a  barraca.  Há  dois  rapazes  pequenos  que 
trabalham;  e  meu  pai  reconheceu  o  mais  novo  quando 
atravessava  a  praça.  É  um  filho  do  director  da  companhia, 
o  mesmo  que  vimos  fazer  habilidades  a  cavalo,  no  ano 
passado,  no  circo,  na  praça  Victor  Manuel.  É  já  espigadi- 
nho,  terá  oito  anos  e  é  um  lindo  rapaz,  de  carinha  re- 
donda, trigueira  e  agarotada,  com  cabelos  negros,  encara- 
colados, que  se  lhe  vêem  em  torno  do  chapéu,  de  forma 
cónica.  Anda  vestido  de  palhaço,  metido  dentro  duma  es- 
pécie de  saco  com  mangas,  branco,  bordado  de  preto,  e 
com  sapatos  de  lona.  É  um  diabinho  de  quem  todos  gos- 
tam. Faz  de  tudo.  Vimo-lo  em.brulhado  num  chalé,  de  ma- 
nhã cedo,  levando  o  leito  para  a  sua  cama  de  madeira;  de- 
pois vai  buscar  os  cavalos  à  cocheira  da  rua  Bertol,  anda 
com  o  pequerrucho  ao  colo;  transporta  os  arcos,  os  cava- 
letes, as  barras  e  as  cordas;  limpa  as  carroças,  acende  o 
fogo ;  e  nos  momentos  de  descanso,  está  sempre  agarrado 
à  mãi.  Meu  pai  vê-o  sempre  da  janela,  e  fala  muito  dele  e 
nos  seus,  que  todos  têm  ar  de  boa  gente  e  de  estimarem 
muito  os  filhos.  Uma  noite,  fomos  ao  circo,  fazia  frio, 
não  havia  quási  ninguém,  e,  contudo,  o  palhacinho  fazia 
toda  a  diligência  para  alegrar  aquela  pouca  gente:  dava 
saltos  mortais,  agarrava-se  à  cauda  dos  cavalos,  andava 
com  as  pernas  no  ar,  sósinho,  e  cantava  sempre  sorriden- 
te, com  a  sua  carinha  trigueira  e  graciosa.  E  seu  pai,  que 
vestia  casaca  vermelha,  calções  brancos,  botas  altas,  de 
chicote  na  mão,  olhava  para  êle;  mas  bem  se  via  que  es- 
tava triste.  Meu  pai  teve  pena  deles,  e  falou  a  seu  res- 


122  CORAÇÃO 

peito,  no  dia  seguinte,  com  o  pintor  Delis  que  veio  visi- 
tar-nos. 

—  É  uma  pobre  gente  que  se  mata  a  trabalhar  e  pouco 
ou  nada,  ganha.  Gosto  tanto  daquele  rapazinho.  O  que 
se  poderia  fazer  em  seu  favor? 

O  pintor  teve  uma  lembrança.  Escreve  um  artigo 
para  a  gazeta  —  disse-lhe  —  tu  que  sabes  escrever.  Con* 
ta  as  proezas  do  palhacinho,  e  eu  faço-lhe  o  retrato, 
e  como  todos  lêm  a  gazeta,  arranja-se-lhe,  pelo  menos 
uma  enchente. 

E  assim  foi.  Meu  pai  escreveu  um  artigo,  cheio  e 
graça,  contando  tudo  o  que  nós  víamos  da  janela,  artigo 
que  excitava  o  apetite  de  conhecer  e  acariciar  o  pequeno 
artista,  e  o  pintor  esboçou  um  retratinho  muito  parecido 
e  gracioso,  que  saiu  publicado,  no  sábado  de  tarde.  E 
daqui  veio,  que  no  espectáculo  de  domingo,  correu  ao 
circo  uma  grande  multidão  de  curiosos.  Estava  anun- 
ciado :  —  Representação  em  benefício  do  Palhacinho, 
como  lhe  chamava  a  gazeta.  Meu  pai  levou-me  para  os 
primeiros  lugares.  Na  porta  de  entrada,  via-se  afixada  a 
gazeta.  O  circo  estava  replecto,  e  muitos  espectadores 
tinham  o  jornal  na  mão  e  mostravam-no  ao  beneficiado, 
que  ria  e  pulava  de  um  lado  para  o  outro,  todo  alegre  e 
todo  feliz.  Também  o  director  estava  contente.  Imagi- 
ne-se!  Nunca  jornal  nenhum  lhe  fizera  tanta  honra,  e 
a  gaveta  ia-se  enchendo  de  dinheiro.  Meu  pai  sentou-se 
ao  meu  lado,  e  entre  os  espectadores  vimos  muitas  pes- 
soas conhecidas.  O  mestre  de  gim.nástica,  aquele  que  an- 
dou com  Garibaldi,  estava  próximo  da  porta  por  onde 
entravam  e  saíam  os  cavalos,  e  em  frente  a  nós  nos  se- 
gundos lugares,  via-se  o  pedreirito,  com  a  sua  carinha 
redonda,  sentado  ao  lado  do  gabinete  do  pai;  e,  apenas 
me  viu,  íez-me  de  lá  o  focinho  de  lebre.  Um  pouco  mais 
adiante  estava  Garoffi,  que  contava  os  espectadores,  cal- 
culando pelos  dedos  quanto  poderia  ter  embolsado  a  com- 
panhia. Estava  também  nos  lugares  superiores,  pouco 
adiante  de  nós,  o  pobre  Robetti,  o  que  salvou  a  criança 
do  omnibus,  com  as  suas  muletas  entre  os  joelhos,  ao 
pé  do  pai,  capitão  de  artilharia  que  lhe  pousava  a  mão 
sobre  o  ombro.  Principiou  o  espectáculo.  O  palhacinho 


CORAÇÃO  123 

fez  maravilhas  em  cima  do  cavalo,  no  trapézio  e  na  cor- 
da, e  sempre  que  saltava  abaixo,  todos  davam  palmas, 
e  muitos  lhe  puxavam,  brincando,  pelos  anéis  do  cabelo. 
Depois  vários  funâmbulos  e  picadores,  vestidos  de  farra- 
pos e  cintilantes  de  prata  falsa,  fizeram  muitos  exercí- 
cios e  habilidades.  Mas,  quando  o  palhacinho  não  estava 
na  praça,  parecia  que  o  publico  se  achava  aborrecido. 
Numa  ocasião,  observei  que  o  mestre  de  gimnástica  que 
estava  parado,  no  mesmo  sítio,  perto  da  entrada  dos  ca- 
valos, falava  ao  ouvido  do  director  do  circo  e  que  este 
corria  a  vista  por  todos  os  espectadores,  como  se  pro- 
curasse designadamente  algum,  e  fixar-nos  em  seguida 
atentamente.  Meu  pai  que  vira  também  o  que  se  passava, 
supôs  logo  que  o  mestre  dissera  ao  chefe  ser  êle  o  au- 
tor do  artigo;  e,  para  se  esquivar  aos  agradecimentos, 
saiu,  dizendo-me: 

—  Fica,  Henrique;  eu  espero-te  lá  fora. 

O  palhacinho,  depois  de  ter  trocado  algumas  pala- 
vras com  o  pai,  fez  ainda  um  exercício,  de  pé  sobre  o 
cavalo,  galopando ;  e  caracterizou-se  quatro  vezes,  de  pe- 
regrino, de  marinheiro,  de  soldado,  e  de  acrobata,  e  to- 
das as  vezes  que  passava  perto,  sorria-se  para  mim.  De- 
pois, quando  desceu,  principiou  a  fazer  o  giro  do  circo 
com  o  chapéu  de  palhaço  entre  as  mãos,  e  todos  lhe  iam 
deitando  dentre,  soldos,  mas  quando  chegou  diante  de 
mim,  em  vez  de  apresentar  o  chapéu,  retirou-o  olhando- 
-me,  e  passou  adiante.  Fiquei  incomodado.  Porque  me 
faria  êle  tal  desconsideração?  A  representação  terminou, 
o  chefe  agradeceu  ao  público,  e  toda  a  gente  se  levan- 
tou, aglomerando-se  na  saída.  Eu  ia  confundido  na  mul- 
tidão, e  estava  já  perto  da  rua,  quando  senti  tocarem-me 
na  mão.  Voltei-me,  era  o  palhacinho,  com  a  sua  gra- 
ciosa carinha  trigueira,  e  os  seus  anéis  de  cabelos  pre- 
tos, que  sorria  para  mim,  com  as  mãos  cheias  de  con- 
feitos. Compreendi  tudo. 

—  Quererás,  disse  êle,  aceitar  estes  confeitos  do  pa- 
lhacinho? 

Eu  fiz  sinal  que  sim,  e  peguei  em.  três  ou  quatro. 
Então    acrescentou    ainda:  —  Aceita    também    um    beijo. 

—  Dá-me  dois,  disse-lhe  e  apresentei-lhe  a  face. 


124  CORAÇÃO 

Então  ele  limpou  com  a  manga  a  cara  enfarinhada, 
pôs-me  um  braço  em  volta  do  pescoço  e  deu-me  dois 
beijos  nas  faces,  dizendo-me: 

—  Um  é  para  fteu  pai. 

O  úlíimo  dia  de  carnaval 

Terça-feira,  ai 

Que  triste  cena  presenceamos  hoje  na  corrida  das 
máscaras!  Acabou  bem,  felizmente,  mas  podia  dar-se 
uma  grande  desgraça.  Na  praça  de  D.  Carlos,  toda  de- 
corada de  festões  amarelos,  vermelhos  e  brancos,  atro- 
pelava-se  uma  grande  multidão,  giravam  máscaras  de  to- 
das as  cores,  rodavam  carros  dourados  e  embandeirados, 
em  forma  de  pavilhões,  de  teatrinhos  e  de  barcos,  cheios 
de  arlequins  e  de  guerreiros,  de  cozinheiros,  de  mari- 
nheiros e  de  pastorinhas.  Era  uma  confusão  ta^  que  nem 
a  gente  sabia  para  onde  devia  olhar;  um  estrondar  de 
trombetas,  de  clarins  e  de  pratos  turcos  que  atordoa- 
va os  ouvidos.  As  máscaras,  nos  carros,  bebiam  e  can- 
tavam, apostrofando  os  transeuntes  e  as  pessoas  que  es- 
tavam nas  janelas,  as  quais  respondiam  no  mesmo  tom, 
atirando  com  fúria  laranjas  e  confeitos.  Por  cima  dos 
carros  e  da  multidão,  até  onde  a  vista  podia  alcançar, 
viam-se  flutuar  bandeirinhas,  cintilar  capacetes,  tremu- 
lar penachos,  agitarem-se  enormes  cabeças  de  papelão, 
toucados  gigantes,  tubos  enormes,  armas  extravagantes, 
caixas  de  rufo,  serpentes,  barretes  vermelhos  e  garrafas. 
Parecia  um  bando  de  doidos!  Quando  a  nossa  carruagem 
entrou  na  praça,  ia  diante  de  nós  um  carro  tirado  por 
quatro  ca\'alos,  todo  engrinaldado  de  rosas  artificiais, 
sobre  o  qual  iam  catorze  ou  quinze  senhores  fidalgos 
mascarados  de  gentis-homens  da  corte  de  França,  todos 
resplandecentes  de  sedas,  com  cabeleiras  brancas,  cha- 
péu emplumado  debaixo  do  braço,  espadim,  laço  de  fi- 
tas e  rendas  ao  peito.  Magnificos!  Cantavam  todos  em 
coro  uma  cançoneta  francesa  e  lançavam  doces  ao  povo, 
e  o  povo  gritando,  aplaudia-os  muito.  De  repente  vimos 


CORAÇÃO  123 

• 

à  nossa  esquerda  um  homem  levantar  ao  ar,  por  cima 
das  cabeças  da  multidão  uma  menina  com  cinco  ou  seis 
anos,  uma  pobresita  que  chorava  desesperadamente,  agi- 
tando os  braços,  como  atacada  de  convulsões.  O  homem 
abriu  caminho  até  ao  carro  dos  fidalgos,  e  um  destes 
inclinou-se,  dizendo-lhe  aquele  em  voz  alta: 

—  Tome  conta  desta  menina,  perdeu-se  da  mãi,  no 
meio  da  multidão;  levante-a  nos  braços,  que  não  há  ou- 
tro meio  de  a  mãi,  que  não  deve  estar  longe,  tornar  a 
vê-la. 

Recebida  a  menina  nos  braços,  todos  os  outros  ces- 
saram de  cantar;  mas  a  criança  berrava  e  bracejava,  até 
que  êle  tirou  a  máscara  e  o  carro  continuou  a  andar 
vagarosamente.  Neste  momento,  segundo  depois  nos  dis- 
seram, na  extremidade  oposta  da  praça,  uma  pobre  mu- 
lher rompia  por  entre  o  povo,  acotovelando,  e  empur- 
rando todos  e  gritando: 

—  Maria!  Maria!  Maria!  Perdi  a  minha  filha.  Rou- 
baram-ma!   esmagaram-ma !   minha  pobre   Maria! 

Havia  um  quarto  de  hora  que  se  agitava  desespe- 
radamente, furando  de  uma  parte  para  outra  oprimida 
pela  multidão,  que  a  muito  custo  lhe  dava  lugar  para 
passar.  O  fidalgo  do  carro,  no  entanto,  tinha  a  criança 
apertada  ao  peito,  contra  as  fitas  e  as  rendas,  e  girando 
a  vista  pela  praça  procurava  sossegar  a  pobre  menina, 
que  cobria  o  rosto  com  as  mãos,  não  sabendo  onde  es- 
tava, e  soluçando  de  modo  que  cortava  o  coração.  Êle 
estava  comovido,  e  via-se  bem  que  aqueles  gritos  lhe 
dilaceravam  a  alma.  Todos  os  seus  companheiros  ofere- 
ciam à  menina  laranjas  e  confeitos,  mas  ela  repelia  tudo, 
cada  vez  mais  espantada  e  convulsa. 

—  Procurem  a  mãi,  disseram,  dirigindo-se  ao  povo. 
Procurem  a  mãi  gritavam  do  carro,  dirigindo-se  ao  povo. 
Procurem  a  mãi ! 

E  todos  se  voltaram  para  a  direita  e  para  a  esquerda, 
mas  ninguém  sabia  onde  ela  estava.  Finalmente  a  pou- 
cos passos  da  embocadura  da  rua,  viu-se  uma  mulher, 
correndo  direita  ao  carro...  Ah!  Nem  parecia  uma  cria- 
tura humana!  Tinha  os  cabelos  soltos,  o  rosto  desfigu- 
rado,  os  vestidos   rotos.  Arremessou-se   impetuosamente 


126  CORAÇÃO 

ao  carro,  soltando  um  grito  rouco,  que  se  não  compre- 
endia bem  se  era  de  alegria,  de  angústia  ou  de  raiva, 
e  estendeu  as  mãos  como  duas  garras  para  empolgar  a 
filha.  Nisto  o  carro  parou. 

—  Aqui  tem  —  disse  o  fidalgo,  apresentando  a  crian- 
ça, e,  depois  de  a  ter  beijado,  pô-la  nos  braços  da  mãi, 
que  a  apertou  logo  ao  seio  com  fúria  convulsa. 

Mas  uma  das  mãozinhas  da  criança,  ficou  ainda  al- 
guns segundos  presa  entre  as  mãos  do  fidalgo  e  este 
tirando  então  do  dedo  um  anel  de  ouro  com  um  grande 
diamante,  enfiou-o  rapidamente  no  dedinho  da  criança, 
dizendo: 

—  Toma  lá!  será  o  teu  dote  de  noiva. 

A  mãi  ficou  ali  como  encantada;  o  povo  rompeu 
em  aplausos  e  êle  tornou  a  pôr  a  máscara  e  os  seus  com- 
panheiros recomeçaram  o  canto.  E  o  carrro  seguiu  len- 
tamente, no  meio  de  uma  tempestade  de  palmas  e  de 
vivas. 

Os  rapazes  cegos 

Quinta-feira,  24 

O  mestre  está  muito  doente,  e  mandaram  para  o 
substituir  o  da  quarta,  que  fora  professor  do  Instituto 
dos  cegos.  É  o  mais  velho  de  todos,  tão  branco,  que  pa- 
rece ter  na  cabeça  uma  cabeleira  de  algodão.  Fala  bem, 
mas  fala  como  se  cantasse  uma  canção  melancólica,  e 
sabe  muito.  Mal  entrou  na  escola,  vendo  um  rapaz  com 
um  olho  vendado,  aproximou-se  dele  e  preguntou-lhe  o 
que  tinha.  É  preciso  muito  cuidado  com  os  olhos,  disse. 
Nisto  Derossi  preguntou-lhe: 

—  É  verdade  que  o  senhor  já  foi  mestre  dos  cegos? 

—  Fui  sim,  por  muitos  anos. 

E  Derossi  disse  a  meia  voz:  —  Se  nos  contasse  al- 
guma coisa... 

O  mestre  foi  sentar-se  à  mesa. 

Coretti  disse  alto :  —  O  Instituto  dos  cegos  é  na  rua 
Nizza. 

—  Dizeis   cegos,    cegos...  —  começou   o   mestre.  —  Se 


CORAÇÃO  127 

compreendêsseis  bem  o  significado  dessa  palavra...  Re- 
flecti um  pouco.  Cegos!  não  ver  coisa  nenhuma...  nunca! 
Não  distinguir  o  dia  da  noite;  não  ver  nem  o  céu,  nem 
o  sol,  nem  os  próprios  pais...  nada  de  tudo  aquilo  que 
está  em  volta  de  nós  e  em  que  se  toca,  permanecer  imerso 
numa  obscuridade  perpétua,  e  como  que  sepultados  nas 
profundezas  da  terra;  Experimentai  um  momento,  cerrai 
os  olhos  e  lembrai-vos  que  podeis  ficar  sempre  assim... 
Um  terror  repentino  se  apossará  de  vós,  e  uma  aflição, 
a  que  vos  seria  impossível  resistir,  vos  obrigaria  a  gri- 
tar e  vos  conduziria  à  loucura  e  à  morte...  E  contudo... 
Pobres  cegos!  quando  se  entra  pela  primeira  vez  no  Ins- 
tituto, à  hora  do  recreio,  se  ouve  tocar  violinos  e  flautas 
de  todas  as  partes,  falar  alto  e  rir,  subindo  e  descendo 
escadas  a  passos  apressados,  girando  livremente  pelos 
dormitórios,  ninguém  diria  serem  aqueles  os  desventu- 
rados que  são.  É  preciso  observá-los  bem.  Há  moços  de 
dezasseis  e  dezoito  anos,  robustos  e  alegres,  que  supor- 
tam a  cegueira  com  tal  ou  qual  indiferença:  e  alguns, 
quási  com  ufania  até;  mas  comprende-se  pela  expressão 
dos  seus  rostos,  que  devem  ter  sofrido  horrivelmente 
antes  de  se  resignarem  àquela  desventura.  Há  outros  de 
rosto  pálido  e  suave,  onde  se  vê  uma  serena  mas  triste 
resignação  e  adivinha-se  que  algumas  vezes,  em  segre- 
do, devem  chorar  ainda.  Ah!  meus  filhos...  Lembrai-vos 
que  alguns  deles  perderam  os  olhos  em  poucos  dias,  ou- 
tros, depois  de  longos  anos  de  martírio  e  de  muitas  opera- 
ções cirúrgicas  terríveis,  e  que  muitos  já  nasceram  assim! 
Nascer  numa  noite  que  nunca  tem  alvorada!  entrar  ho 
mundo  como  se  fora  num  sepulcro  enorme,  ignorar  como 
seja  formado  o  rosto  humano!  Imaginar  quanto  não  te- 
rão sofrido,  quanto  não  sofrerão,  pensando  confusamente 
na  indiferença  que  existe  entre  eles  e  os  que  vêem,  pre- 
guntando  a  si  mesmos  —  Porque  é  esta  indiferença,  se 
não  temos  culpa  nenhuma?  Eu,  que  tenho  passado  mui- 
tos anos  entre  eles,  quando  me  lembro  da  sua  escola,  e 
vejo  aqueles  olhos  apagados  para  sempre,  todas  nque- 
las  pupilas  sem  expressão  e  sem  vida,  e  olho  para  vós, 
parece-me  impossível  que  não  sejais  todos  felizes.  No- 
tai bem.  Há  cerca  de  vinte  e  seis  mil  cegos  na  Itália. 


128  CORAÇÃO 

Vinte  e  seis  mil  pessoas  que  não  vêm  a  luz!  Um  exér- 
cito que  gastaria  quatro  horas  a  desfilar  debaixo  das 
nossas  janelas. 

O  mestre  calou-se;  não  se  sentia  nem  um  respiro  na 
escola!  Derossi  preguntou  se  era  verdade  que  os  cegos 
tinham  o  tacto  mais  apurado  do  que  nós.  O  mestre  disse: 

—  É  verdade.  Todo^  os  outros  sentidos  se  aperfei- 
çoam neles,  e  a  razão  é  porque,  devendo  todos  conjun- 
tamente suprir  o  da  vista,  são  mais  exercitados,  o  que 
não  acontece  aos  que  vêm.  De  manhã,  nos  dormitórios, 
pregunta  um:  —  Faz  sol?  e  o  que  é  mais  ligeiro  em  ves- 
tir-se  corre  imediatamente  ao  pátio;  agita  as  mãos  ao 
ar,  para  sentir  se  há  calor  do  sol  e  vojta  com  a  mesma 
pressa  a  dar  a  boa  notícia:  —  Faz  sol...  Pela  voz  de  qual- 
quer pessoa  fazem  idéa  da  sua  estatura.  Nós  avaliamos 
a  coragem  duma  pessoa  pelos  olhos;  eles  pela  voz  e  re- 
cordam-se  da  entonação  e  do  acento  dela  durante  anos. 
Percebem  se  numa  sala,  está  mais  que  um  indivíduo,  ain- 
da que  um  só  fale  e  os  outros  se  conservem  imóveis. 
Conhecem  pelo  tacto  se  uma  colher  está  pouco  ou  muito 
limpa.  As  crianças  diferençam  a  lã  tingida  daquela  que 
tem  a  côr  natural.  Passando  dois  a  dois  pela  rua,  dis- 
tinguem quási  todas  as  lojas  pelo  cheiro,  mesmo  aque- 
las em  que  nós  não  sentimos  cheiro  algum.  Jogam  o  pião 
e  ouvindo  o  zumbido  que  êle  faz,  girando,  vão  direitos 
apanhá-lo  sem  se  enganar.  Correm  com  arcos,  jogam  a 
bola,  saltam  a  corda,  fabricam  caixinhas  de  seixos,  co- 
lhem violetas  como  se  as  vissem;  fazem  estojos  e  ces- 
tinhos,  entrelaçando  palha  de  várias  cores,  depressa  e 
bem.  Tão  exercitado  têm  o  tacto,  que  é  a  sua  vista.  Um 
dos  maiores  prazeres  para  eles  é  o  de  apalpar,  de  aper- 
tar e  de  adivinhar  a  forma  dos  objectos  tateando-os.  É 
comovente  vê-los  quando  os  levam  ao  museu  industrial, 
onde  lhes  deixam  pôr  a  mão  em  tudo  quanto  queiram. 
Com  que  alegria  se  apoderam  dos  instrumentos  geomé- 
tricos, dos  modelos  de  casas,  de  todos  os  objectos  enfim... 
e  com  que  satisfação  apalpam,  esfregam,  viram  e  reviram 
entre  as  mãos  todas  as  coisas  para  ver  como  são  feitas! 
Eles  dizem  ver! 

Garoffi  interrompeu  o  mestre  para  lhe  preguntar  se 


CORAÇÃO  129 

•ra  verdade  que  os  rapazes  cegos  aprendem  a  fazer  contas 
melhor  que  os  outros. 

É  verdade  —  respondeu  o  mestre.  —  Aprendem  a  ta- 
zer  contas  e  a  Jer.  Há  livros  de  propósito  para  eles  com 
as  letras  em  relevo;  passam-lhes  os  dedos  por  cima,  re- 
conhecem-as  e  dizem  as  palavras,  chegando  a  ler  corren- 
temente. E  é  digno  de  ver-se  como  eles.  coitaditos!  co- 
ram quando  cometem  algum  erro.  E  escrevem,  mas  sem 
tinta,  escrevem  sobre  um  papel  espesso  e  duro  com  um 
ponteiro  de  metal;  abrindo  pontinhos  agrupados  segun- 
do um  alfabeto  especial,  cujos  sinais  aparecem  em  relevo 
no  reverso  do  papel,  de  modo  que,  voltando  o  papel  e 
passando  os  dedos  por  cima  daquelas  saliências,  lêem 
quanto  escreveram,  e  do  mesmo  modo  o  que  os  outros 
escrevem.  É  assim  que  eles  fazem  composições  e  se  cor- 
respondem entre  si.  Pelo  mesmo  sistema  escrevem  alga- 
rismos e  resolvem  problemas.  Calculam  bem  de  cabeça  e 
com  uma  facilidade  incrível,  porque  se  não  distraem  com 
a  vista,  como  a  nós  nos  sucede.  E  se  vísseis  como  eles 
são  apaixonados  por  ouvir  ler;  como  estão  atentos...  e  co- 
mo depois  se  recordam  de  tudo...  como  discutem  uns  com 
os  outros  —  até  os  pequenos  —  acerca  de  coisas  de  histó- 
ria e  de  língua,  sentados  todos,  aos  quatro  e  aos  cinco 
no  mesmo  banco,  sem  se  voltarem  uns  para  os  outros,  e 
conversando  o  primeiro  com  o  terceiro,  o  segundo  com  o 
quarto,  em  voz  alta  e  todos  juntos,  sem  perderem  uma 
só  palavra,  de  tal  modo  têm  o  ouvido  agudo  e  pronto!... 
Dão  mais  importância  aos  exames  e  af  eiçoam-se  mais  aos 
mestres  do  que  vós;  isto  o  afirmo  eu...  Reconhecem  o 
mestre  pelos  passos  e  pelo  cheiro,  percebem  se  está  de 
bom  humor  ou  mau  humor,  se  está  doente  ou  são,  e  isto 
só  pelo  som  das  palavras.  Gostam  muito  que  êle  lhes  po- 
nha a  mão  quando  os  anima  e  os  Jouva,  e  apalpam-lhe 
também  as  mãos  e  os  braços  para  exprimir-lhe  a  sua  gra- 
tidão. São  amigos  uns  dos  outros  e  bons  companheiros. 
Nas  horas  de  recreio  quási  sempre  são  os  mesmos  que  se 
juntam  em  grupo.  Na  secção  das  raparigas,  formam  gru- 
pos segundo  os  instrumentos  que  tocam,  as  violinistas, 
as  pianistas  e  as  que  tocam  flauta,  e  nunca  se  separam. 
Quando  se  afeiçoam  é  difícil  separá-los,  porque  encon- 

9 


130  CORAÇÃO 

tram  grande  conforto  na  amizade.  Julgara-se  imparci»!- 
mente  entre  si.  Têm  uma  idea  clara  e  profunda  do  bem 
e  do  mal.  Ninguém  se  exalta  como  eles  com  a  narração  de 
um  acto  generoso  ou  de  um  feito  heróico. 
Voltini  preguntou  se  tocavam  bem. 

—  Amam  a  música  ardentemente  —  respondeu  o  mcE- 
tre.  —  É  ela  a  sua  alegria  e  a  sua  vida...  Crianças  cegas, 
mal  entram  no  Instituto,  são  capazes  de  estar  três  ho- 
ras imóveis,  de  pé,  a  ouvir  tocar.  Aprendem  facilmente 
e  tocam  com  paixão.  Quando  o  mestre  diz  a  algum  que 
não  tem  disposição  para  a  música,  esse  mostra  por  isso 
grande  desgosto  e  lança-se  a  estudar  desesperadamente! 
Ah!  se  ouvísseis  a  música  lá  dentro,  se  os  vísseis  quando 
eles  tocam,  com  a  fronte  a,lta,  com  o  sorriso  nos  lábios, 
trémulos  de  comoção,  extáticos  quási,  escutando  as  har- 
monias que  expandem  na  obscuridade  infinita  que  os  cir- 
cunda, compreenderíeis  então  que  consolação  divina  é 
para  eles  a  música!  Regosijam-se  e  exultam  de  felicida- 
de quando  o  mestre  lhe  diz:  — Tu  virás  a  ser  um  artis- 
ta! Para  eles  é  como  o  rei  o  que  fôr  primeiro  na  música, 
o  que  sobressair  a  todos  no  piano  ou  no  violino,  e  então 
amam-no  e  veneram-o.  Se  dois  discutem,  recorrem  a  êle 
como  juiz,  se  dois  se  zangam,  é  êle  que  os  reconcilia.  Os 
mais  pequenos,  a  quem  êle  ensina  a  tocar,  tratam-no  como 
um  pai.  Antes  de  se  irem  deitar  vão  todos  dar-lhe  as  boas 
noites.  E  falam  continuamente  de  música.  Estão  já  na 
cama,  de  noite,  tarde,  quási  todos  cansados  do  estudo  e 
do  trabalho  e,  meio  adormecidos,  discorrem  ainda,  em  voz 
baixa,  sobre  óperas,  maestros,  instrumentos  e  orquestras. 
E  é  um  grande  castigo  para  eles,  privá-los  da  leitura  ou 
da  Jição  de  música,  e  sofrem  tanto  com  essa  pena,  que 
quási  não  há  coragem  de  lha  infligir.  O  que  a  luz  é  para 
os  nossos  olhos,  é  a  música  para  o  seu  coração. 

Derossi  preguntou  se  não  era  possível  ir  vê-los? 

—  É  possível,  sim,  respondeu  o  mestre  —  mas  vós, 
rapazes,  não  deveis  lá  ir  por  ora.  Ireis  mais  tarde,  quan- 
do estiveres  no  caso  de  compreender  toda  a  grandeza  da- 
quela desventura,  e  de  sentir  toda  a  compaixão  que  ela 
merece.  É  um  espectáculo  triste,  meus  filhos!  Vêm-se  lá, 


CORAÇÃO  m 

algumas  vezes,  rapazes  sentados  junto  a  uma  janela  aber- 
ta, gozando  o  ar  fresco  com  as  feições  imóveis,  que  pare- 
cem estar  a  olhar  para  a  grande  planície  verde  e  para  as 
bejas  montanhas  azuis  que  nós  vemos,  e  ao  pensar  que 
não  vêem  nada,  e  que  não  verão  nunca  coisa  alguma  des- 
sa imensa  beleza,  confrange-se-nos  a  alma,  como  se  fi- 
cássemos cegos  naquele  momento.  E  ainda  os  cegos  de 
nascença,  que  nunca  viram  o  mundo,  não  sofrem  tanto, 
porque  não  têm  a  imagem  de  coisa  nenhuma,  e  inspiram 
por  isso  menos  compaixão.  Mas  há  rapazes  cegos  de  pou- 
cos meses  que  se  recordam  ainda  de  tudo,  e  avaliam  bera 
quanto  perderam;  esses  têm  a  dôr  de  sentir  que  se  lhe 
vão  escurecendo  na  mente,  dia  a  dia  as  imagens  mais  que- 
ridas, de  sentir  como  que  apagar-se-lhes  na  memória  as 
feições  das  pessoas  amadas.  Um  destes  rapazes  disse-me 
um  dia  com  uma  tristeza  inexprimível :  —  Como  eu  dese- 
java ainda  ter  vista  uma  vez,  um  momento  apenas  para 
tornar  a  ver  as  feições  de  minha  mãi,  porque  já  não  me 
recordo  delas!  E  quando  as  mais  vão  visitá-los  põem- 
-Ihes  as  mãos  no  rosto,  apalpam-no  muito  desde  a  testa 
até  o  queixo,  e  depois  apalpam-lhe  ainda  as  orelhas,  como 
para  compenetrar-se  bem  da  sua  forma.  E  quási  se  não 
persuadem  que  não  podem  vê-la,  e  chamam-lhe  pelo  nome 
muitas  vezes,  como  para  rogar-lhe  que  se  deixe  ver,  que 
se  mostre  ao  menos  uma  vez.  Quantos  visitantes,  mes- 
mo homens  de  coração  duro,  não  saem  de  lá  chorando! 
E  quando,  ao  sair,  vemos  gente,  as  casas  e  o  céu,  parece 
que  somos  uma  excepção  no  gôso  de  um  privilégio  não 
merecido.  Oh!  não  há  nenhum  de  vós,  estou  certo  disso, 
que  saindo  do  Instituto  dos  cegos,  não  se  sentisse  dis- 
posto a  privar-se  de  um  pouco  da  própria  vista,  para  dar 
os  raios  dela,  embora  ténues,  àquelas  pobres  crianças, 
para  as  quais  o  sol  não  tem  luz,  e  a  mãi  não  tem  feições. 


13« 


CORAÇÃO 


O  mesíre  enfermo 


Sábado,  25 


Ontem  de  tarde,  ao  sair  da  escola,  fui  visitar  o  meu 
mestre,  que  está  doente.  De  muito  trabalhar,  adoeceu. 
Cinco  horas  de  lição  por  dia,  uma  hora  de  gimnástica,  de- 
pois mais  duas  horas  na  escola  nocturna...  o  que  quere 
dizer:  dormir  pouco,  comer  às  carreiras  e  esfal£ar-se  des- 
de manhã  até  noite!  Assim  arruinou  a  saúde,  disse  mi- 
nha mãi,  que  me  acompanhou  até  à  casa  dele,  esperando 
por  mim  em  baixo  no  portal.  Subi  só,  e  encontrei  nas  es- 
cadas o  mestre  das  barbas  grandes  e  pretas,  Coatti,  o  que 
mete  medo  a  todos  e  não  castiga  nenhum.  Olhou  para 
mim  com  os  seus  grandes  olhos,  imitou  ao  passar  a  voz 


do  leão,  por  brincadeira,  mas  sem  se  rir.  Eu  é  que  ria  ain- 
da puxando  a  campainha  no  quarto  andar,  mas  fiquei  lo- 
go triste,  quando  a  criada  me  fez  entrar  numa  alcova  po- 
bre, meio  escura,  onde  estava  o  meu  mestre  deitado  numa 


CORAÇÃO  13t 

pequena  cama  de  ferro;  tinha  a  barba  crescida.  Fêz  pala 
com  a  mão  sobre  os  olhos  para  ver  mejhor,  e  exclamou 
com  a  sua  voz  afectuosa: 

—  Olá,  Henrique! 

Aproximei-me  do  leito,  e  êle  pousando-me  a  mão  em 
cima  do  ombro,  disse: 

—  Muito  bem,  meu  filho,  muito  bem !  Fizeste  bem  em 
vir  visitar  o  teu  pobre  mestre.  Estou  reduzido  a  este  es- 
tado que  vês,  meu  caro  Henrique.  Como  vai  a  escola? 
Como  vão  os  teus  companheiros?  Tudo  bem,  hein?  mes- 
mo sem  mim.  Não  faz  lá  falta  o  velho  mestre,  não  é  ver- 
dade? 

Eu  queria  dizer  que  fazia,  mas  êle  interrompeu-me 
logo,  dizendo: 

—  Bem  sei  que  sois  todos  meus  amigos...  e  suspirou. 
Eu   olhava   para   algumas   fotografias    suspensas   na 

parede. 

—  Vês  —  continuou  êle  —  São  todos  rapazes  que  há 
vinte  anos  a  esta  parte  me  têm  dado  os  seus  retratos... 
Bons  rapazes!  São  essas  as  minhas  memórias.  Quando  eu 
morrer,  o  meu  derradeiro  olhar  será  para  todos  esses  tra- 
quinas, entre  os  quais  passei  a  minha  vida  inteira...  Tu 
também  me  hás-de  dar  o  teu  retrato,  não  é  verdade?  mas 
há-de  ser  quando  tiveres  acabado  os  primeiros  prepara- 
tórios. 

Depois  disto  pegou  numa  laranja  que  tinha  sobre  a 
mezinha  de  cabeceira  e  deu-ma,  dizendo : 

—  Não  tenho  mais  nada  que  te  dar.  É  um  pequeno 
presente  de  doente. 

Eu  olhava  para  êle,  com  o  coração  triste,  sem  saber 
porquê. 

—  Olha  lá  —  murmurou  o  mestre.  —  Eu  espero  não 
ir  desta,  mas,  se  não  melhorar  mais,  vê  se  te  fazes  mais 
forte  na  aritmética,  que  é  onde  estás  fraco.  Faz  um  esfor- 
ço, não  se  trata  senão  de  um  pequeno  esforço,  porque  às 
vezes  não  é  falta  de  aptidão...  é  um  preconceito...  uma 
idea... 

Mas,  dizendo  isto,  respirava  dificilmente  e  via-se  que 
sofria. 

—  Tenho    imia    febre    diabólica,    balbuciou.  Isto  não 


184  CORAÇÃO 

vai  muito  longe...  Nota  o  que  te  digo,  insiste  na  aritmé- 
tica e  no  estudo  dos  problemas...  Não  te  saem  bem  à  pri- 
meira? Descansa  um  pouco  e  torna  a  principiar...  Não  vai 
ainda  da  segunda?  Torna  a  descansar  e  torna  a  repetir.  E 
assim  por  diante,  sem  impaciências  nem  esmorecimen- 
tos...  Agora  vai...  dá  lembranças  à  mamã,  e  não  tornes  a 
subir  as  escadas,  porque  nos  havemos  de  ver  breve  na  es- 
cola... mas,  se  assim  não  fôr,  recorda-te  algumas  vezes  do 
teu  mestre  da  terceira,  que  foi  muito  teu  amigo... 

Ouvindo  aquelas  palavras,  não  pude  deixar  de  cho- 
rar. E  êle  então  disse: 

—  Ouve  cá... 

Eu  aproximei-me,  inclinei  a  cabeça  sobre  o  traves- 
seiro e  êle  beijou-me  os  cabelos.  Depois  repetiu: 

—  Vai  —  e  voltou  a  cara  para  a  parede. 

Eu  voei  pelas  escadas  abaixo,  porque  sentia  vontade 
ée  abraçar  minha  mãi. 

A  Rua 

Sábado,  25 

Estando  a  observar-te  da  janela  esta  tarde  quando  ▼oita- 
vas da  casa  do  mestre,  vi  que  deste  um  encontrão  numa  senho- 
ra. Toma  cuidado  quando  andares  pela  rua.  Ali  também  há  de- 
veres a  cumprir.  Pois  se  tu  medes  os  teus  passos  e  as  tuas  acções 
numa  casa  particular,  porque  não  hás-de  fazer  o  mesmo  na  rua 
que  é  casa  de  todos?  Repara  bem  no  que  vou  dizer-te,  Henrique. 
Todas  as  vezes  que  encontrares  um  velho  trôpego,  um  pobre, 
uma  mulher  com  imia  criança  ao  colo,  um  aleijado,  um  homem 
carregado,  uma  família  vestida  de  luto,  cede-lhe  o  passo  com 
respeito;  porque  devemos  respeitar  a  velhice,  a  miséria,  o 
amor  materno,  a  enfermidade,  a  fadiga  e  a  morte.  Todas  as  ve- 
zes que  vires  uma  pessoa,  que  distraidamente  vai  adiante  de 
um  carro,  desvia-a,  se  fôr  criança,  e  adverte-a  se  fôr  um  ho- 
mem. Pregunta  sempre  à  criança  sozinha  que  chora,  o  que  tem, 
e  apanha  a  bengala  ao  ancião  que  a  deixar  cair.  Se  dois  rapa- 
zitos brigarem,  separa-os,  se  forem  dois  homens,  afasta-te,  e 
não  assistas  à  violência  brutal  que  ofende  e  endurece  o  coração. 
Se  passar  por  ti  um  homem  preso  no  meio  de  guardas,  não  jun- 


CORAÇÃO  135 

tes  a  tua  à  curiosidade  cruel  da  multidão,  porque  aquele  ho- 
»iem  pode  ser  um  inocente.  Cessa  de  falar  com  o  teu  compa- 
nheiro e  de  sorrir  quando  encontrares  uma  maca  do  hospital, 
que  condu2  talvez  um  moribundo ;  ou  um  carro  mortuário,  por- 
que no  dia  seguinte  um  igual  pode  sair  de  tua  casa.  Olha  com 
reverência  para  todos  os  rapazes  dos  Institutos,  que  passam, 
dois  a  dois:  são  os  cegos,  mudos,  raquíticos,  órfãos  e  crianças 
abandonadas,  e  lembra-te  que  é  a  desventura  e  a  caridade  hu- 
mana que  passa.  Finge  sempre  não  ver  o  indivíduo  que  tem 
uma  deformidade  repugnante  ou  ridícula.  Apaga  Gcmpre  os  fós- 
foros acesos  que  encontrares  debaixo  dos  teus  passos  e  que 
podem  ser  causa  da  morte  de  alguém.  Responde  com  amabili- 
dade ao  transeunte  que  te  pregfuntar  onde  fica  esta  ou  aquela 
rua.  Não  olhes  para  pessoa  alguma  rindo,  nem  corras  nem  gri- 
tes sem  necessidade.  Respeita  a  rua.  A  educação  de  um  povo 
julga-se,  antes  de  tudo,  pelo  comportamento  desse  povo  na  rua. 
Onde  vires  a  grosseria  nas  praças,  encontrarás  a  grosseria  nas 
casas.  Estuda  as  ruas,  estuda  a  cidade,  onde  vives,  porque  se 
amanhã  fores  forçado  a  deixá-la,  hás-de  sentir  prazer  tendo-a 
bem  presente  na  memória,  e  poder  percorre-la  toda  com  o 
pensamento,  A  tua  cidade  é  a  tua  pequena  pátria,  aquela  que 
fo!  por  tantos  anos  o  teu  mundo,  onde  deste  os  primeiros  pas- 
sos ao  lado  de  tua  mãi,  onde  experimentaste  as  primeiras  co- 
moções, e  abriste  o  espírito  às  primeiras  ideias;  onde  enfim  ti- 
veste os  primeiros  amigos.  Essa  foi  uma  mãi  para  ti,  instruiu- 
-te,  deleitou-te,  protegeu-te.  Estuda-a  pois,  nas  suas  ruas  e  na 
tma  gente,  e  ama-a...   E  quando  ouvires  injuriá-la,  defende-a. 

Teu  Pai. 


MARÇO 


ÀS  escolas  nocíurnas 

Quinta-feira,  2 

Meu  pai  levou-me  ontem  às  escolas  nocturnas  da 
mossa  secção  Baretti,  que  estavam  todas  iluminadas,  e 
o«  operários  começavam  a  entrar.  Ao  chegar,  encontrá- 
mos   o    director    e    os    mestres    muito  irritados,  porque 


136  CORAÇÃO 

pouco  tempo  antes  alguém  quebrara  com  uma  pedrada  um 
vidro  da  janela.  O  contínuo  saíra  num  pulo  à  rua,  e  agar- 
rou pelos  cabelos  um  rapaz  que  passava,  mas  logo  se 
apresentou  Stardi,  que  mora  defronte  da  escola,  dizen- 
do: 

—  Não  foi  esse,  vi  com  os  meus  olhos.  Foi  Franti 
quem  atirou  a  pedra,  e  até  me  disse:  —  Ai  de  ti,  se  te 
não  calas.  Mas  eu  não  tenho  medo  dele. 

O  director  declarou  que  Franti  ia  ser  expulso  para 
sempre.  Entretanto,  ia  eu  olhando  para  os  operários  que 
estavam  aos  dois  e  aos  três  juntos,  e  já  lá  havia  mais 
de  duzentos!  Não  imaginava  quanto  era  bela  uma  escola 
nocturna!  Havia  rapazes  de  doze  anos  para  cim.a  e  ho- 
mens com  barba,  que  vinham  do  trabalho,  trazendo  li- 
vros e  cadernos;  carpinteiros,  fogueiros,  com  a  cara  negra, 
pedreiros  com  os  cabelos  enfarinhados;  e  sentiu-se  o 
cheiro  do  verniz,  de  coiros,  de  peixe,  de  azeite,  de  todos 
os  ofícios,  enfim.  Entrou  também  uma  companhia  de 
operários  de  artilharia,  vestidos  de  soldados,  conduzidos 
por  um  cabo.  Enfileiraram-se  todos,  à  pressa,  nos  bancos, 
tirando  a  tábua  de  baixo,  onde  costumamos  pôr  os  pés, 
e  curvando  logo  a  cabeça  sobre  o  trabalho.  Alguns  iam 
pedir  explicações  ao  mestre,  com  os  cadernos  abertos. 
Vi  lá  aquele  mestre,  muito  moço,  que  anda  sempre  muito 
bem  vestido,  o  Advogadinho,  com  três  ou  quatro  operá- 
rios em  volta  da  escrevaninha,  fazendo-lhes  correcções 
na  escrita,  e  vi  também  aquele  outro  coxo,  que  ria  mos- 
trando o  tintureiro,  que  lhe  levara  um  caderno  todo  man- 
chado de  tinta  vermelha  e  azul. 

Estava  também  o  meu  mestre,  já  restabelecido,  e 
que  deve  voltar  amanhã  à  escola.  As  portas  da  aula 
estavam  abertas. 

Fiquei  maravilhado,  quando  principiaram  as  lições, 
ao  ver  como  todos  se  conservavam  atentos  e  de  olhos 
fixos. 

E  contudo  a  maior  parte  deles,  dizia  o  director,  para 
não  chegarem  tarde,  nem  ao  menos  passaram  por  casa 
para  comer  um  bocado  de  pão,  e  tinham  fome.  Os  pe- 
quenos, esses,  depois  de  meia  hora  de  escola,  caíam  de 
sono;  alguns  até  adormeciam  cem  a  cabeça  encostada  à 


CORAÇÃO  137 

carteira,  e  o  mestre  ia  acordá-los,  fazendo-lhes  cócegas 
nas  orelhas  com  a.  pena.  Mas  os  grandes  estavam  com 
a  boca  aberta,  ouvindo  a  lição  sem  pestanejar. 

A  mim  fazia-me  impressão  ver  todos  aqueles  homens 
barbados  nos  nossos  bancos.  Subimos  depois  ao  outro  an- 
dar e,  indo  eu  logo  direito  à  porta  da  minha  aula,  vi, 
no  meu  lugar  um  homem  com  grandes  bigodes  e  uma 
das  mãos  entrapada,  talvez  por  se  ter  ferido  em  alguma 
máquina,  e,  todavia  procurava  meio  de  escrever,  de  va- 
gar. Mas  o  que  mais  mais  me  agradou,  foi  ver  no  lugar 
do  pedreiritG,  exactamente  no  mesmo  banco  e  no  mesmo 
canto,  seu  pai,  aquele  pedreiro  grande  como  um  gigante, 
que  lá  estava,  sem  poder  mexer-se,  com  os  cotovelos  so- 
bre o  banco,  a  barba  apoiada  nos  punhos  e  os  olhos  so- 
bre o  livro,  tão  atento  que  quási  nem  respirava. 

E  não  estava  ali  por  simples  coincidência.  Êle  pró- 
prio, na  primeira  noite  que  veio  à  escola,  disse  ao  direc- 
ctor: 

—  Senhor  director,  há-de  fazer-me  o  favor  de  me  co- 
locar no  Jugar  do  meu  focinho  de  lebre,  (assim  é  que  êle 
chama  ao  filho...) 

Meu  pai,  entreteve-se  ali  até  ao  fim,  e  ao  sair  vimos 
na  rua  muitas  mulheres  com  crianças  ao  colo,  que  es- 
peravam os  maridos.  Os  operários  traziam  os  filhos  nos 
braços  e  davam  às  mulheres  os  livros  e  os  cadernos,  e 
assim  iam  para  casa.  A  rua  esteve  por  alguns  momentos 
cheia  de  gente  e  de  rumor.  Depois  caiu  tudo  em  silên- 
cio, e  não  vimos  mais  do  que  a  figura  esguia  e  curva 
do  director  que  se  ia  embora. 


A  lufa 


Domingo,  5 


Era  de  esperar.  Franti,  expulso  pelo  director,  quis 
vingar-se  e  esperou  Stardi  em  uma  esquina,  depois  da 
saída  da  escola,  quando  êle  passava  com  a  irmã,  que  vai 
buscar  todos  os  dias  a  um  Instituto  da  rua  Dora  Grossa. 
Minha  irmã  Silvia,  saindo  do  colégio,  viu  tudo  e  chegou 
a  casa  cheia  de  susto. 


15»  CORAÇÃO 

Eis  o  que  aconteceu-  Franti  com  o  seu  barrete  de 
oleado,  achatado  à  banda  sobre  uma  orelha,  correu  nas 
pontas  dos  pés  atrás  de  Stardi  e,  para  o  provocar,  puxou 
pela  trança  dos  cabelos  da  irmã,  puxão  tão  forte,  que 
quási  a  deitou  por  terra,  de  costas. 

A  menina  deu  um  grito  e  seu  irmão  voltou-se  logo. 
Franti,  que  é  muito  mais  alto  e  mais  forte  do  que  Stardi, 
pensava:  —  ou  êle  não  diz  nada  ou  bater-lhe-ei  a  valer. 
Mas  Stardi  não  se  demorou  a  pensar,  e,  assim  pequeno 
como  é,  arremessou-se  de  um  salto  sobre  o  grandalhão,  e 
começou  a  socá-lo;  porém,  como  era  menos  possante,  apa- 
nhava mais  do  que  dava.  Na  rua  não  havia  senão  meninas 
e  ninguém  podia  separá-los.  Franti  atirou-o  ao  chão,  po- 
rém Stardi  ergueu-se  logo  e  investiu  de  novo ;  mas  Franti 
batia-lhe  como  numa  porta;  num  momento  arrancou-lhe 
metade  de  uma  orelha,  machucou-lhe  um  olho,  e  fez-lhe 
deitar  sangue  pelo  nariz.  Mas  Stardi,  forte,  rugia: 

—  Mata-me,  mas  hás-de  pagar-me. 

E  Franti,  de  cima,  aos  bofetões  e  ponta-pés;  e  Stardi 
de  baixo,  correspondia  com  cabeçadas  e  muros. 
Uma  senhora  gritou  da  janela: 

—  Bravo,  rapaz ! 
Diziam  outras: 

j— É  um  irmão  que  defende  sua  irmã...  Coragem! 
Dá-lhe,  dá-lhe  sem  pena. 

E  gritavam  a  Franti: 

— I  Preverso,  covarde ! 

Franti  estava  furioso;  passou-lhe  uma  rasteira.  Star- 
di caiu  por  baixo  dele. 

—  Rende-te ! 

—  Não! 

—  Rende-te! 

—  Não ! 

E  num  pulo  conseguiu  Stardi  levantar-se,  e,  cingindo 
Franti  pela  cintura  e  fazendo  um  furioso  esforço,  ati- 
rou-o de  costas  na  calçada,  e  pôs-lhe  um  joelho  no  peito. 

—  Ai!  que  o  infame  puxa  por  uma  faca;  gritou  um 
homem  correndo  para  desarmar  Franti. 

Mas  Stardi,  fora  de  si,  já  lhe  tinha  agarrado  no  braço 
com  ambas  as  mãos  e  dado  na  mão  uma  tal  dentada,  que  a 


CORAÇÃO 


139 


laca  lhe  caíra,  e  da  mão  escorria  sangue.  Neste  meio  tem- 
po, acudiram  outros  que  os  separaram  e  levantaram ;  Franti 
foi-se  safando,  muito  maltratado;  e  Stardi  ficou  com  a 
cara  arranhada  e  um  olho  pisado,  mas  vencedor,  ali  ao 
lado  da  irmã,  que  chorava,  enquanto  algumas  meninas 
apanhavam  os  livros  e  os  cadernos  espalhados  pela  rua. 


—  Bravo !  —  diziam  todos  —  defendeu  sua  irmã ! 
Mas  Stardi  ocupava-se  mais  da  sua  carteira  do  qu« 

da  vitória,  e  pôs-se  logo  a  examinar,  um  por  um,  os  livros 
e  os  cadernos,  a  ver  se  tinha  algum  perdido  ou  roto; 
limpou-os  com  a  manga,  guardou  a  pena,  e  pôs  cada  cousa 
em  seu  lugar ;  depois,  tranquilo  e  sério  como  sempre,  dis- 
se à  irmã : 

—  Vamos  depressa,  que  tenho  que  resolver  um  pro- 
blema de  quatro  operações. 

Os  parentes  dos  meninos 

Segunda-feira  6 

Esta  manhã  estava  Stardi,  pai  à  porta  da  escola,  à 
espera  do  filho,  com  receio  de  que  este  se  encontrasse 
outra  vez  com  Franti.  Mas  Franti  não  aparecerá  mais,  di- 
ziam, porque  vai  ser  preso.  Entre  outros  via-se  também 
o  vendedor  de  lenha,  o  pai  de  Coretti,  completo  retrato 
do  filho,  esbelto,  alegre,  com  os  seus  bigodinhos  pontu- 


140  CORAÇÃO 

dos  e  uma  fita  de  duas  cores  na  casa  do  casaco.  Eu  já 
vou  conhecendo  quási  todos  os  pais  dos  rapazes,  por  os 
ver  ali  sempre.  Há  uma  avó  corcovada,  que  vem  quatro 
vezes  ao  dia  chova,  nevisque  ou  haja  tempestade,  trazer 
e  buscar  um  seu  netinho  da  primeira  superior;  pega-lhe 
no  capote,  enfia-lho,  endireita-lhe  a  gravata,  sacode-lhe 
a  poeira,  penteia-o  e  guarda-lhe  os  cadernos...  Vê-se  que 
não  tem  outra  preocupação,  nem  vê  coisa  mais  bela 
neste  mundo.  Também  aparece  muitas  vezes  o  capitão  de 
artilharia,  pai  de  Robetti,  aquele  das  muletas  que  salvou 
a  criança,  e  assim  como  todos  os  companheiros  o  saúdam 
ao  passarem  diante  dele,  também  retribui  do  mesmo 
modo,  e  não  há  exemplo  de  esquecer-se  dum;  inclina-se 
para  todos ;  e  quanto  mais  pobres  são  e  mal  vestidos,  mais 
satisfeito  fica,  e  mais  lhes  agradece. 

Mas  às  vezes  vêm-se  coisas  bem  tristes. 

Um  senhor  que  não  aparecia  havia  mais  de  um  mês 
porque  lhe  morrera  um  filho,  e  mandava  o  outro  pela 
criada,  voltando  ontem  pela  primeira  vez,  e  tornando  a 
ver  a  classe  e  os  companheiros  do  seu  filho  morto,  rom- 
peu em  soluços,  cobrindo  o  rosto  com  as  mãos;  e  o  di- 
rector tomando-o  por  um  braço,  conduziu-o  ao  seu  ga- 
binete. 

Há  pais  e  m.ãis,  que  conhecem  pelos  nomes  todos  os 
companheiros  dos  filhos,  as  meninas  da  escola  vizinha  e 
os  estudantes  que  vêm  esperar  os  irmãos. 

Há  um  senhor  velho  que  foi  coronel,  e  quando  algum 
deixa  cair  um  caderno  ou  uma  pena,  apanha-a  e  entrega- 
-Iha.  Vêm-se  também  senhoras  bem  vestidas,  que  falam  a 
respeito  da  escola,  com  outras  de  lenço  na  cabeça  e  cesta 
no  braço,  e  dizem: 

—  Ah!  foi  terrível  desta  vez  o  problema! 

—  A  lição  de  gramática  parecia  não  ter  fim  hoje! 
E  quando  há  um  doente  na  classe,  todos  sabem;   e 

quando  o  doente  melhora,  todos  se  alegram.  Ainda  esta 
manhã  oito  ou  dez  senhoras  e  operários  estavam  em  volta 
da  mãi  de  Crossi,  a  quitandeira,  a  pedir-lhe  notícia  de 
um  pobre  pequeno  da  classe  de  meu  irmão,  que  mora  na 
mesma  casa  e  está  em  perigo  de  vida.  É  que  a  escola  tor- 
na todos  amigos  e  iguais. 


CORAÇÃO  Ul 

O  número  78 

Quarta-feira,  8 

Ontem  à  tarde,  vi  uma  cena  comovente.  Havia  já 
Kiuitos  dias  que  a  quitandeira,  todas  as  vezes  que  passava 
por  Derossi,  o  olhava  sempre  com  expressão  de  grande 
afecto;  isso  porque  Derossi,  depois  que  fez  a  descoberta 
do  tinteiro  e  do  preso  número  78,  principiou  a  estimar 
muito  seu  filho  Crossi,  o  dos  cabelos  ruivos  e  do  braço 
paralitico,  ajudando-o  a  fazer  o  trabalho  na  escola,  suge- 
rindo-lhe  as  respostas  e  dando-lhe  papel,  penas  e  lápis; 
em  suma,  fazendo  o  que  faria  a  um  irmão,  e  isso  para 
o  compensar  da  desgraça  que  aconteceu  ao  pai  e  que  êle 
nem  sabe.  v-j 

E  por  isso  a  quitandeira  olhava  com  insistência  para 
Derossi;  parecia  não  poder  desprender  os  olhos  dele,  por- 
que é  uma  bôa  mulher  que  vive  toda  para  seu  filho,  a  quem 
Derossi  auxilia  para  que  faça  boa  figura  na  aula.  Derossi, 
que  é  um  senhor  e  o  primeiro  da  escola,  parece-lhe  um  rei, 
um  santo.  Olhava  sempre  para  êle,  e  parecia  querer  di- 
zer-lhe  alguma  coisa,  mas  acanhava-se.  Ontem  de  manhã, 
finalmente,  encheu-se  de  coragem  e  fê-lo  parar  diante 
de  um  portão,  dizendo-lhe: 

—  Perdõe-me,  senhor,  que  tão  bom  é,  e  tanto  bem 
quere  a  meu  filho,  dê-me  o  prazer  de  aceitar  esta  pequena 
lembrança  de  uma  pobre  mãi  (e  tirou  da  cesta  da  horta- 
liça uma  caixinha  de  cartão  branco  e  dourado). 

Derossi  corou  e  recuou,  dizendo  resolutamente: 

—  Dê-a  a  seu  filho,  que  eu  não  aceito  nada. 

A  mulher  ficou  muito  vexada  e  pediu  desculpa  bal- 
buciando : 

—  Eu  não  pensava  ofendê-lo ;  a  caixinha  não  tem  se- 
não caramelos. 

Derossi  abanou  a  cabeça.  Então,  timidamente  ela 
tirou  da  cesta  um  molhinho  de  rabanetes,  e  disse: 

—  Aceite-os  que  são  muito  fresquinhos;  faça  favor 
de  os  levar  a  sua  mamã. 

Ela,  insistiu  para  que  aceitassse. 
Derossi  sorriu  e  respondeu: 


142  CORAÇÃO 

—  Muito  obrigado,  não  aceito,  não  quero  coisa  algu- 
ma, e  esteja  certa  que  farei  sempre  o  que  puder  por  Cros- 
si.  Nada  posso  aceitar.  Muito  obrigado  e  agradeço-lhe 
como  se  aceitasse. 

Derossi  disse-lhe  que  não,  sorrindo,  e  seguindo  o 
seu  caminho,  enquanto  a  mulher  clamava  toda  contente: 

—  Oh!  que  rapazinho  este!  Nunca  vi  nenhum  tão 
bom,  nem  tão  bonito  assim ! 

Parecia  tudo  terminado,  quando,  às  quatro  da  tarde, 
em  vez  da  mãi  de  Crossi,  aproximou-se  de  Derossi  o  pai 
com  o  seu  semblante  pálido  e  melancólico,  £ê-lo  parar,  e 
pelo  modo  por  que  o  encarava  compreendi  logo  que  sus- 
peitava que  Derossi  tivesse  conhecimento  do  seu  se- 
gredo, 

Olhou-o  fixamente,  e  disse  com  voz  triste  e  afec- 
tuosa : 

—  Sei  que  estima  muito  meu  filho.  Porque  lhe  quere 
Itanto  bem? 

Derossi  ficou  com  o  rosto  côr  de  fogo,  e  quisera  res- 
ponder-lhe:  Quero-Jhe  bem  porque  tem  sido  infeliz,  e  por- 
que o  senhor  também  tem  sido  talvez  mais  infeliz  que  cul- 
pado; já  expiou  nobremente  o  seu  crime  e  é  um  homem  de 
coração;  mas  faltou-lhe  a  coragem  para  dizer-lhe  isto, 
porque  lá  no  seu  íntimo  sentia  ainda  um  cento  receio  e 
quási  repugnância  diante  do  homem  que  derramara  o 
sangue  de  outro  homem  e  estivera  seis  anos  na  prisão. 

Mas  o  outro  adivinhou  tudo,  e  baixando  a  voz,  disse 
ao  ouvido  de  Derossi,  quási  tremendo: 

—  Quere  bem  ao  meu  filho,  mas  não  quere  mal  nem 
despreza  o  pai,  não  é  verdade? 

—  Ah!  não!  pelo  contrário,  exclamou  Derossi  num 
impulso  da  alma. 

E  então  o  homem  fez  um  gesto  violento,  como  quem 
desejava  apertá-lo  nos  braços,  mas  não  ousou,  e  em  vez 
de  abraço,  tomou  entre  os  dedos  um  anel  dos  seus  cabe- 
los louros,  desenrolando-o,  e  deixou-o  ir  seguindo  o  seu 
caminho;  depois  levou  a  mão  à  boca,  beijou-a  na  palma, 
seguindo  Derossi  com  os  olhos  húmidos,  corao  para  di- 
zer-lhe que  era  para  ele  aquele  beijo...  Em  seguida  deu  a 
mão  ao  filho,  e  foi-se  embora  a  passos  apressados. 


CORAÇÃO  143 

O  pequeno  morío 

Segunda- feira,  1$ 

O  pequeno  que  morava  no  pátio  da  quitandeira,  o  da 
primeira  superior,  companheiro  de  meu  irmão,  morreu. 
A  mestra  Delcati  veio  sábado  de  tarde,  toda  aflita,  dar 
esta  notícia  ao  mestre;  e  logo  Garrone  e  Coretti  se  ofe- 
receram para  ajudar  a  levar  o  caixão. 

Era  um  be^o  menino  e  ainda  na  semana  passada  ga- 
nhara a  medalha;  era  muito  amigo  de  meu  irmão  e  tinha- 
-Ihe  dado  um  mealheiro  quebrado ;  minha  mãi  fazia-lhe 
festas  sempre  que  o  encontrava.  Trazia  um  barrete  com 
duas  listas  de  pano  vermelho.  O  pai  é  carregador  no  ca- 
minho de  ferro.  Ontem  à  tarde,  às  quatro  e  meia  fomos  a 
sua  casa  para  acompanhar  o  filho  à  igreja.  Mora  no  rez- 
-do-chão.  No  pátio,  estavam  muitos  colegas  da  primeira 
superior,  com  as  mais,  e  (todas  traziam  suas  velas,  cinco 
ou  seis  mestras  e  alguns  vizinhos.  A  mestra  da  pena  ver- 
melha e  a  Delcati  tinham  entrado  e  por  uma  janela  aberta 
via-se  que  elas  choravam,  e  via-se  a  mão  do  pequeno  que 
soluçava  alto.  Duas  senhoras,  mais  dos  coleguinhas  do 
morto,  traziam  grinaldas  de  flores.  Às  cinco  em  ponto 
puzemo-nos  a  caminho.  Ia  a  diante  um  rapaz  que  levava 
a  cruz,  depois  um  padre  atrás  do  caixão,  um  caixão  peque- 
nino—  pobre  criança!  —  coberto  com  um  pano  preto,  ao 
qual  iam  presas  as  grinaldas  de  flores  das  duas  senhoras. 
Do  mesmo  pano  pendiam  a  medalha  e  três  menções  hon- 
rosas que  o  pequeno  ganhara  durante  o  ano.  Pegavam  no 
caixão  Garrone,  Coretti  e  dois  rapazes  do  pátio,  Seguiam- 
-no  primeiro  Delcati,  que  chorava  como  se  fosse  seu  fi- 
lho; atrás  dela  iam  outras  mestras,  e  logo  depois  destas, 
crianças,  algumas  das  quais  muito  pequeninas,  e  estas 
olhavam  espantadas  para  o  féretro,  dando  a  mão  às  mais, 
que  levavam  as  velas  por  elas.  A  uma  ouvi  que  pregun- 
tava: 

—  Êle  agora  não  volta  mais  à  escola? 

Quando  o  caixão  saiu  do  pátio,  ouviu-se  pela  janela 
um  grito  desesperado.  Era  a  mãi  do  morto,  mas  logo  a 
fizeram  recolher-se.  Chegando  à  rua  encontramos  os  alu- 


144  CORAÇÃO 

nos  de  um  colégio,  que  passavam  dois  a  dois,  e  vendo  o 
féretro  com  a  medalha  e  as  mesitras,  todos  se  descobriram. 

Pobre  criança  que  foi  dormir  para  sempre  com  a  sua 
medalha!  Não  o  tornaremos  a  ver,  com  o  seu  barretinho 
vermelho.  Estava  bom  ainda  há  pouco  e  em  quatro  dias 
morreu ! 

No  último  dia  fez  ainda  um  esforço  para  levantar-se 
e  fazer  o  seu  trabalhozinho  de  nomenclatura,  e  quis  que 
lhe  puzessem  a  medalha  em  cima  da  cama  com  medo  que 
lha  furtassem. 

Ninguém  ta  furtará  mais,  pobre  criança!  Adeus! 
adeus!  A  sua  memória  não  se  apagará  na  secção  Garetti, 
anjinho!  Dorme  em  paz. 

A  véspera  de  U  de  Março 

Hoje  foi  um  dia  mais  alegre  do  que  o  de  ontem.  Tre- 
ze de  Março!  Véspera  da  distribuição  dos  prémios  no 
Teatro  Vitor  Manuel,  a  bela  e  grandiosa  festa  de  todos  os 
anos !  Mas  desta  vez  não  foram  apanhados  ao  acaso  os  me- 
ninos que  devem  ir  ao  teatro  apresentar  a  lista  dos  pré- 
mios aos  senhores  que  os  distribuem-  O  director  veio  esta 
manhã  à  hora  da  saída  e  disse: 

—  Meus  filhos,  uma  bôa  notícia. 

E  em  seguida  chamou  Coraci,  o  calabrês.  Coraci  le- 
vantou-se. 

—  Queres  ir  amanhã  ao  teatro  apresentar  a  lista  dos 
prémios  à  autoridade? 

O  calabrês  respondeu  que  sim. 

—  Está  bem,  assim  também  a  Calábria  terá  o  seu  re- 
presentante, e  é  uma  bela  coisa. 

O  município  quiz  este  ano  que  os  dez  ou  doze  meni- 
nos que  têm  de  apresentar  os  prémios  sejam  filhos  de  to- 
das as  partes  da  Itália,  tirados  das  diversas  secções  das 
escolas  públicas.  Temos  vinte  secções  com  cinco  sucur- 
sais; sete  mil  alunos.  Em  tão  crescido  número,  não  foi 
difícil  encontrar  um  rapaz  de  cada  uma  das  regiões  ita- 
lianas. Da  secção  Torquato  Tasso  vêm  dois  representan- 
tes das  ilhas,  um  sardo  e  um  siciliano ;  da  escola  Boncom- 


CORAÇÃO  145 

pagni  vai  um  pequeno  florentino,  filho  de  um  entalhador; 
um  romano,  filho  de  Roma,  da  secção  Tommaseo;  também 
há  venezianos,  lombardos  e  romanholos;  da  secção  Mon- 
viso  há  um  napolitano,  filho  de  um  oficial;  nós  damos 
um  genovês  e  um  calabrês  que  és  tu,  Coraci.  Serão  doze 
com  o  piemontês.  É  belo,  não  vos  parece?  Recebereis  os 
prémios  das  mãos  dos  vossos  irmãos  de  todas  as  partes  de 
Itália.  Tomai  sentido.  Devem  comparecer  no  palco  todos 
os  doze  juntos.  Recebei-os  com  aplausos.  São  crianças, 
mas  representam  a  pátria  como  se  fossem  homens.  Uma 
pequena  bandeira  tricolor  é  o  símbo,lo  da  Itália,  da  mesma 
forma  que  uma  bandeira,  não  é  verdade?  Aplaudi-os,  pois 
calorosamente.  Mostrai  que  também  os  vossos  pequenos 
corações  se  inflamam,  que  também  as  vossas  almas  de  dez 
anos  se  exaltam  diante  da  imagem  santa  da  pátria.  Depois 
de  ter  assim  falado,  retirou-se;  o  mestre  disse  sorrindo: 

—  Com  que  então,  Coraci,  tu  és  o  deputado  da  Calá- 
bria? 

E  então  todos  começaram  a  bater  palmas  e  a  rir,  e 
quando  chegaram  à  rua  cercaram  Coraci,  e  agarrando-o 
pelas  pernas,  levaram-no  em  triunfo,  gritando:  —  Viva! 
viva  o  deputado  da  Calábria!  —  Tudo  por  brincadeira,  já 
se  vê,  e  não  por  zombaria;  eram  expansões  de  coração, 
porque  é  uma  criança  estimada  por  todos;  êle  sorria. 
Assim  o  levaram  até  à  esquina  da  rua,  onde  esbarraram 
com  um  sujeito  de  barbas  pretas,  que  se  pôs  a  rir.  O  ca- 
labrês disse:   : 

—  É  meu  pai. 

E  nisto  os  rapazes  deixaram-íhe  o  filho  nos  braços  e 
foram  cada  um  para  seu  lado. 


À  disíribuição  dos  prémios 

Março,  14 

As  duas  horas,  o  enorme  teatro  estava  cheio;  platéa, 
galeria,  camarotes,  palco,  tudo  a  trasbordar!  Milhares  de 
rostos:  meninos,  senhoras,  mestres,  operários,  mulheres 
do  povo,  crianças;  era  um  agitar  de  cabeças  e  de  mãos, 

10 


146  C  O  R  A  Ç  A  • 

um  tremular  de  pernas,  de  laços  de  fita,  de  cabelos,  um 
murmúrio  longo  e  festivo  que  causava  alegria-  O  teatro 
estava  todo  guarnecido  de  festões  de  pano  vermelho, 
branco  e  verde. 

Na  platéa  haviam  feito  duas  pequenas  escadas:  uma 
à  direita  por  onde  os  premiados  deviam  subir  para  o  pal- 
co; outra  à  esquerda  por  onde  os  mesmos  deviam  descer 
depois  de  ter  recebido  o  prémio. 

À  frente  do  palco  havia  duas  ordens  de  poltronas 
vermelhas,  e  do  espaldar  da  do  centro  pendiam  duas  co- 
roazinhas  de  louro.  Ao  fundo,  um  trofeu  de  bandeiras; 
de  um  lado,  uma  mesa  com  um  pano  verde  tendo  em  cima 
todos  os  prémios  atados  com  Jaços  tricolores.  A  banda  de 
música  estava  na  platea,  abaixo  do  palco.  Os  mestres  e  as 
mestras  enchiam  toda  a  metade  da  primeira  galaria,  que 
fora  reservada  para  eles.  Nos  bancos  e  nas  varandas  da 
platea,  acumulavam-se  centenares  de  rapazes  que  deviam 
cantar  e  tinham  a  música  entre  as  mãos.  No  fundo  e  em 
torno,  viam-se  andar  para  um  e  outro  lado  mes- 
tres e  mestras,  que  punham  em  fileira  os  premiados  e  ha- 
via uma  quantidade  enorme  de  parentes  a  dar-lhes  a  úl- 
tima penteadela  aos  cabelos  e  o  último  arranjo  às  gra- 
vatinhas. 

Apenas  entrei  com  minha  família  no  camarote,  vi 
noutro  defronte,  a  mestrazinha  da  pena  vermelha,  que  ria 
com  as  suas  belas  covinhas  nas  faces  e,  com  ela,  a  mestra 
de  meu  irmão,  a  Freirinha  toda  vestidinha  de  preto,  e  a 
minha  bôa  mestra  da  primeira  superior,  mas  tão  pálida, 
coitadinha!  tossia  tão  forte  que  se  ouvia  de  um  lado  a 
outro  do  teatro.  Na  platea  descobri  Jogo  aquela  querida 
cabeçorra  de  Garrone  e  a  cabecinha  loura  de  Nelli,  encos- 
tada ao  ombro  daquele.  Um  pouco  mais  adiante,  vi  Garoffi 
com  o  sevi  nariz  de  bico  de  coruja,  atarefadamente,  a  re- 
colher as  listas  impressas  dos  premiados,  e  tinha  já  um 
grande  maço  delas  para  fazer  o  seu  negócio.  Sabe-lo- 
-e-mos. 

Próximo  à  porta  estava  o  vendedor  de  lenha  com  a 
mulher,  vestidos  de  gala,  ao  pé  do  filho,  que  tem  um  ter- 
ceiro prémio  da  segunda.  Fiquei  pasmado  de  lhe  não  ver 
^  barrete  de  pele  de  ?fato  e  a  jaqueta  de  malha  côr  de 


CORAÇÃO  W 

chocolate.  Desta  vez  estava  vestido  como  um  fidalguinho. 
Numa  galaria  vi  por  um  momento  Voltini,  com  um  gran- 
de colarinho  de  rendas;  depois  desapareceu.  Em  um  ca- 
marote cheio  de  gente,  junto  ao  proscénio  estava  o  capi- 
tão de  artilharia,  pai  de  Robetti,  aquele  das  muletas  que 
salvou  a  criança. 

Ao  dar  duas  horas,  a  banda  tocou  e  foram  subindo 
pela  escadinha  o  síndico,  o  perfeito,  o  provedor  e  muitos 
outros  senhores,  todos  vestidos  de  preto,  que  se  assenta- 
ram nas  poltronas  vermelhas  em  frente  do  palco.  A  músi- 
ca acabou  de  tocar.  Veio  então  à  frente  o  director  da  es- 
cola de  canto  com  uma  batuta  na  mão,  e,  a  um  sinal  seu, 
todos  os  meninos  da  plateia  se  puzeram  em  pé,  e  a  um 
outro  aceno  principiaram  a  cantar.  Eram  setecentos  can- 
tando uma  lindíssima  canção,  setecentos  rapazes  cantan- 
do juntos;  como  é  belo!  Todos  os  escutavam  imóveis;  era 
um  canto  doce,  límpido,  vagaroso,  que  parecia  cântico  de 
igreja. 

Quando  acabaram,  todos  aplaudiram.  Depois  fez-se 
silêncio.  A  distribuição  dos  prémios  ia  começar.  Já  se  via 
na  frente  do  palco  o  mestre  da  segunda  com  a  sua  cabeça 
ruiva  e  os  seus  olhos  vivos,  que  devia  ler  o  nome  dos  pre- 
miados. Esperava-se  que  entrassem  os  doze  rapazes  para 
apresentar  os  atestados.  Os  jornais  tinham  já  dito  que 
apareceriam  filhos  de  todas  as  províncias  da  Itália;  todos 
o  sabiam  e  esperavam-nos,  olhando  com  curiosidade  para 
o  lado  donde  deviam  entrar.  O  síndico  e  outros  senhores 
aguardavam  também  a  entrada  deles;  todo  o  teatro  es- 
tava mudo  e  silencioso. 

De  repente  vêm-se  marchar  até  ao  proscénio  e  parar 
ali,  em  fileira,  os  doze,  sorrindo. 

Três  mij  pessoas,  todo  o  teatro,  se  levantou  ao  mes- 
mo tempo,  rompendo  num  aplauso  que  parecia  um  ribom- 
bar de  trovão.  Os  rapazes  ficaram  um  momento  confusos. 

—  Ei-la,  a  Itália!  disse  uma  voz  no  palco. 

Reconheci  log:o  Coraci,  o  calabrês,  vestido  de  pre- 
to como  sempre.  Um  vereador  municipal  que  estava  con- 
nosco e  conhecia  a  todos,  ia-os  indicando  a  minha  mãi. 
Aquele  pequeno  louro  é  o  representante  de  Veneza,  o  ro- 
mano é  aquele  alto  e  fri«^^. 


148  CORAÇÃO 

Havia  dois  ou  três,  vestidos  fidalgamente,  os  outros 
eram  filhos  de  operários,  mas  todos  limpos  e  aceadinhos. 
O  florentino,  que  era  o  mais  pequenino,  tinha  uma  faixa 
azul,  em  volta  da  cintura.  Passaram  todos  diante  do  sín- 
dico, que  os  beijava  na  fronte,  enquanto  um  homem  ao 
seu  lado  lhe  dizia  devagar  e  sorrindo  os  nomes  das  ci- 
dades. 

—  Florença,  Nápoles,  Bolonha,  Palermo...  E  a  cada 
um  que  passava,  todo  o  teatro  batia  palmas.  Depois  cor- 
reram todos  à  mesa  verde  em  busca  dos  atestados,  e  o 
mestre  principiou  a  ler  a  lista,  dizendo  as  secções,  as 
classes  e  os  nomes;  e  os  que  iam  ser  premiados  princi- 
piaram a  sair  e  a  desfilar. 

Tinham  apenas  subido  os  primeiros  degraus,  quando 
se  ouviu  por  detrás  do  pano  do  fundo  uma  música  ligeira, 
harpejada  de  violinos,  que  não  cessou  enquanto  durou  a 
desfilada,  uma  ária  doce,  sem.pre  igual,  que  parecia  o  mur- 
múrio de  muitas  vozes  carinhosas,  vozes  de  todas  as  mais, 
de  todos  os  m.estres  e  de  todas  as  mestras,  num  coro,  todos 
juntos  dando  consdihos,  rogando  e  fazendo  amorosas 
advertências. 

E,  no  entanto,  os  premiados  passaram,  um  após  ou- 
tro, diante  dos  senhores  sentados,  que  lhe  entregavam  os 
prémios  e  diziam  a  todos  uma  palavra  afectuosa  ou  fa- 
ziam uma  carícia.  Os  rapazes  da  platéa  e  da  galaria  aplau- 
diam todas  as  vezes  que  passava  algum  muito  pequeno, 
ou  que  pelos  vestidos  parecesse  pobre,  e  também  os  que 
tinham  cabeleiras  encaracoladas  ou  estavam  de  vermelho 
ou  de  branco.  Passaram  alguns  da  primeira  superior,  que, 
chegando  ali,  não  sabiam  para  onde  se  haviam  de  virar, 
e  todo  o  teatro  ria.  Passou  um  de  três  palmos  de  altura, 
que  mal  podia  andar,  com  uma  fita  côr  de  rosa  no  ombro ; 
tropeçou  no  tapete,  caiu  e  o  perfeito  levantou-o.  Todos 
riram  e  deram  palmas;  um  outro  resvalou  pe.las  escadas 
até  à  platea  e  ouviram-se  gritos,  mas  não  lhe  aconteceu 
mal  algum.  Passaram  ainda  os  outros  muito  diferentes  da- 
queles, rostos  de  traquinas,  caras  assustadiças,  pequenos 
que  riam  para  todos  e  que  mal  chegavam  à  platea  eram 
detidos  pelos  pais  e  pelas  mais,  que  dali  a  pouco  os  le- 
vavam para  casa.  Quando  chegou  a  v«z  da  nossa  secçáo, 


CORAÇÃO  149 

então  é  que  me  diverti !  Passaram  muitos  dos  meus  co- 
nhecidos. 

Passou  Coreti,  de  roupa  nova  dos  pés  à  cabeça,  mos- 
trando através  do  sorriso  alegre  os  dentes  brancos;  e 
contudo,  quem  sabe  quantos  feixes  de  lenha  não  tinha 
êle  já  carregado  de  manhã. 

O  síndico,  ao  dar-lhe  o  prémio,  preguntou-lhe  o  que 
era  uma  mancha  vermelha  que  tinha  na  testa,  e  passou- 
-,lhe  a  mão  sobre  o  ombro.  Procurei  com  os  olhos  pela 
piatea  o  pai  e  a  mãi,  e  lá  os  vi  rindo  e  cobrindo  a  boca 
com  as  mãos.  Depois  passou  Derossi,  todo  vestido  de 
azul,  com  os  botões  reluzentes  e  os  cabelos  de  ouro  em 
anéis,  esbelto,  ágil,  com  a  fronte  alta,  tão  belo,  tão  sim- 
pático, que  a  minha  vontade  era  atirar-lhe  um  beijo;  e 
todos  aqueles  senhores  lhe  falavam  e  apertavam  as  mãos. 
Depois  o  mesmo  gritou:  —  Júlio  Robetti!  e  viu-se  che- 
gar à  frente,  de  muletas,  o  filho  do  capitão  de  artilharia. 
Centenas  de  rapazes  sabiam  o  facto,  a  notícia  espalhou- 
-se,  explodindo  uma  salva  de  apjausos  e  de  gritos,  que 
fez  estremecer  o  teatro;  os  homens  levantaram-se  todos, 
as  senhoras  começaram  a  agitar  os  lenços  no  ar,  e  aquela 
boa  criança  parou  no  meio  do  palco,  aturdida,  tremen- 
do... O  síndico  chegcu-o  a  si,  dando-lhe  o  prémio  e  um 
beijo,  e  tirando  do  espaldar  da  poltrona  as  duas  coroazi- 
nhas  de  louro  que  ali  estavam  penduradas,  enfiou-lhas 
na  travessinha  das  muletas. 

E  acom.panhou-o  até  ao  camarote  do  proscénio,  onde 
estava  o  capitão  seu  pai,  que  suspendeu  o  filho  e  pas- 
sou-o   para  dentro,  no  meio   de  palmas,  bravos  e  vivas. 

E,  no  entanto,  continuava  a  ouvir-se,  ao  longe,  a 
música  ligeira  e  gentil  dos  violinos,  e  os  meninos  con- 
tinuavam desfilando.  Eram  agora  os  da  secção  da  Con- 
solata,  quási  todos  filhos  de  vendedores  do  mercado ; 
em  seguida  os  da  secção  de  Vanchiglia,  filhos  de  ope- 
rários; vieram  depois  os  da  secção  Boncompagni,  dos 
quais  m.uitos  são  filhos  de  camponeses,  e  os  da  escola 
Rayneri,  que  foram  os  últimos.  Apenas  havia  acabado, 
os  setecentos  rapazes  da  piatea  cantaram  uma  outra  can- 
ção lindíssima;  depois  o  síndico  falou,  •  terminou  o 
discurso  dizendo  aos  rapazes: 


150  CORAÇÃO 

— -  N&o  sairão  daqui  a«m  aaiidardes,  aqu«l»a  que  tanto 
se  afadigaram  por  vós,  que  vos  consagraram  todas  as 
forças  da  sua  inteligência  e  do  seu  coração,  que 
vivem  e  morrem  por  vós.  Ei-los  e  apontou  para  os  mes- 
tres. 

E  então  das  galarias,  dos  camarotes  e  da  platea,  to- 
dos os  rapazes  se  levantaram  e  estenderam  os  braços 
gritando  e  saudando  os  mestres  e  mestras,  que  corres- 
pondiam agitando  as  mãos,  os  chapéus  e  os  lenços,  todos 
direitos,  em  pé,  comovidos.  Depois  disso,  a  banda  tocou 
mais  uma  vez;  mais  uma  vez  ainda  o  público  saudou 
ruidosamente  os  doze  meninos  de  todas  as  províncias  da 
Itália,  que  se  apresentaram  no  proscénio,  enfileirados, 
de  mãos  dadas,  sob  uma  chuva  tempestuosa  de  flores. 

Liíigio 

Segunda-feira,  20 

Não  foi  por  ter  inveja  do  prémio  que  Coretti  ganhou, 
que  briguei  com  êle  esta  manhã.  Não,  não  foi  por  inveja. 
Mas  eu  não  tinha  razão.  O  mestre  tinha-o  mandado  para 
o  meu  lado,  e  eu  estava  a  escrever  no  meu  caderno  de 
caligrafia;  êle  tocou-me  com  o  cotovelo,  fiz  um  borrão 
e  manchei  também  o  original  do  conto  mensal  Sangue 
Romanholo,  que  tinha  de  copiar  para  o  pedreirito  que 
está  doente.  Zanguei-me  e  disse-lhe  uma  palavra  feia; 
êle  respondeu-me  sorrindo:  —  Não  foi  por  querer. — 
Deveria  acreditá-lo,  porque  o  conheço;  mas  não  gostei 
que  êle  risse  e  pensei:  —  Ah!  quem  sabe  se  êle  não  está 
vaidoso  por  ter  ganho  o  prémio!... — E  pouco  depois 
para  vingar-me,  dei-lhe  um  encontrão  tão  grande  que  o 
fez  estragar  a  página  inteira. 

Êle  então,  todo  vermelho  de  raiva,  disse-me :  —  Tu 
sim,  tu  é  que  o  fizeste  de  propósito.  —  E  levantou  a 
mão.  O  mestre  viu  e  êle  retirou-a  logo.  Mas  acrescentou: 
«—Espero-te  lá  fora!  —  Fiquei  incomodado;  a  raiva  asso- 
berbou-me,  mas  eu  arrependera-me. 

Coretti   não   podia   fazê-lo  senão  involuntariamente. 


CORAÇÃO  151 

Êle  c  bom,  pensei.  Record»i-m«  logo  d«  quando  o  vira 
em  sua  casa,  como  trabalhava  e  como  servia  de  enfer- 
meiro à  mãi  doente;  e  depois,  com  que  festa  o  recebi 
em  minha  casa  e  quanto  êle  agradecu  a  meu  pai. 

Quanto  não  daria  eu  agora  para  lhe  não  ter  dito 
aquela  palavra,  para  lhe  não  ter  feito  aquela  vilania! 
E  pensava  no  conselho  que  me  daria  meu  pai.  —  «Não 
tens  razão,  não  senhor  —  então  pede-lhe  desculpa».  Mas 
isso  é  que  eu  não  me  atrevia  a  fazer,  porque  tinha  ver- 
gonha de  humilhar-me.  Olhava  para  êle  de  esguelha, 
via  a  jaqueta  de  malha  descosida  no  ombro,  talvez  por 
ter  carregado  muita  lenha,  sentia  que  o  estimava  e  di- 
zia comigo:  coragem!  Mas!  a  palavra  —  desculpa-me  — 
ficava  na  garganta.  Êle  também  olhava  para  mim,  de 
revés,  de  tempos  a  tempos,  e  parecia-me  mais  atormen- 
tado do  que  enraivecido.  Eu  olhava-o  também  para  mos- 
trar que  não  tinha  medo.  Êle  repetiu-me: 

—  Lá  fora  falaremos. 
E  eu  disse-lhe: 

—  Pois  sim,  lá  fora... 

Mas  lembrava-me  do  que  meu  pai  me  havia  dito 
uma  vez. 

«Se  não  tens  razão,  defende-te,  mas  não  batas».  E 
dizia  comigo:  Defender-me-ei,  mas  não  baterei.  Fiquei 
descontente,  triste,  e  já  nem  dava  mais  atenção  ao  mes- 
tre. Enfim,  chegou  o  momento  de  saída.  Quando  estava 
só  na  rua,  vi  que  êle  me  seguia.  Parei  e  esperei-o  com 
a  régua  na  mão.  Êle  aproximou-se;  levantei  a  régua. 

—  Não,  Henrique,  disse  êle  com  seu  bom  sorriso  e 
deitando-me  para  baixo  a  régua. 

—  Sejamos  amigos  como  dantes. 

Fiquei  extático  um  momento,  senti-me  como  empur- 
rado, pelas  costas  e  fui  cair  nos  braços  de  Coretti.  Bei- 
jou-me  e  disse: 

—  Nunca  mais  havemos  de  brigar,  não  é  assim? 

—  Nunca  mais,  nunca  mais!  respondi. 
E  separámos-nos  contentes. 

Logo  que  cheguei  a  casa,  contei  tudo  a  meu  pai  jul- 
gando que  lhe  seria  agradável  sabê-lo;  êle  ficou  sério  e 
disse-me: 


152  CORAÇÃO 

—  Devias  ser  o  primeiro  a  estender-lhe  a  mão,  por- 
que não  tinhas  razão  alguma.  Levantar  a  régua  para  um 
companheiro  que  é  melhor  do  que  tu  e  de  mais  a  mais 
para  um  filho  de  um  soldado!... 

E  arrancando-me  a  régua  das  mãos  partiu-a  em  pe- 
daços e  atirou-a  fora. 

Minha  irmã 

Sexta-feira,  24 

«Porqu2,  Henrique,  depois  que  o  papá  te  repreendeu  por 
te  haveres  comportado  mal  com  Coretti,  tiveste  ainda  aquela 
desatenção  comigo?  Nem  imaginas  a  dor  que  me  causaste. 
Pois  não  sabes  que  quando  eras  criança,  estava  eu  horas  e 
horas  ao  lado  do  teu  berço,  em  vez  de  divertir-me  com  as  mi- 
nhas companheiras?  que,  quando  adormecias,  me  levantava  a 
todos  os  momentos  da  cama,  de  noits  para  ver  se  queimavas 
de  febre?  Não  sabes  que  magoas  tua  irmã  que  te  serviria  de 
mâi  e  que  te  queria  como  a  um  filho,  se  uma  desgraça  tre- 
menda nos  ferisse  a  nós?  Não  sabes  que,  quando  o  papá  e  a 
mamã  deixarem  de  existir,  serei  a  tua  melhor  amiga  a  única 
com  quem  possas  falar  dos  nossos  mortos  e  da  tua  infância, 
eu  que,  se  fosse  necessário,  trabalharia  por  ti,  Henrique,  para 
ganhar-te  o  pão  e  fazer-te  estudar?  eu  que  te  amarei  sempre 
quando  tu  fores  grande,  que  te  estimarei  sempre  quando  esti- 
veres longe,  porque  crescemos  juntos  e  temos  o  mesmo  san- 
gue? Fica  certo,  ó  Henrique,  que  quando  fores  homem  e  te 
acontecer  uma  desgraça  e  te  vires  só,  fica  certo  de  que  me 
procurarás  logo,  virás  ter  comigo  e  me  dirás:  «Silvia,  minha 
irmã,  deixa-m.e  estar  contigo,  falemos  de  quando  éramos  feli- 
2es,  lembras-íe?  falemos  da  nossa  mãi  e  da  nossa  casa,  da- 
queles belos  dias  que  já  vão  longe!»  E  tu,  Henrique, 
acharás  sempre  tua  irmã  de  braços  abertos.  Sim!  meu  querido 
Henrique,  e  perdôa-me  também  a  censura  que  ora  te  faço. 
Não  me  lembrarei  de  nenhuma  injustiça  tua,  e  se  mais  des- 
gostos me  deres  ainda,  que  importa!  serás  sempre  do  mesmo 
modo  o  meu  irmão,  e  só  me  lembrarei  de  ter-te  acalentado 
nos  meus  braços,  criancinha,  de  ter  amado  contigo  pai   e  mãi. 


CORAÇÃO  153 

de  ter-te  visto  crescer,  e  de  ter  sido  por  tantos  anos  a  tua  mais 
fiel  companheira.  Escreve-me,  pois,  hoje,  uma  frase  amiga  so- 
bre este  caderno,  que  eu  desejo  ler  antes  da  noite.  E,  entre- 
tanto, para  mostrar-te  que  não  estou  zangada  contigo,  vendo 
que  estavas  cansado,  copiei  para  ti  o  conto  mensal  Sangue  lo- 
znanholo  que  querias  copiar  para  o  Pedrehito  doente;  pro- 
cura-o  na  gaveta  do  lado  direito  da  tua  mesinha.  Escrevi-o 
todo  esta  noite,  enquanto  dormias.  E  agora,  Henrique,  escre- 
ve-me uma  palavra,  eu  to  peço. 

Tua   irmã,   Silvia»). 
"Não  sou  digno  de  beijar-te  as  mãos». 

Henrique. 

Sangue  romanholo 

(CONTO  MENSAL) 

Naquela  tarde  a  casa  de  Ferrucio  estava  mais  sosse- 
gada que  de  costume.  O  pai  que  possuía  uma  pequena 
loja  de  merceeiro,  tinha  ido  a  Forli  fazer  compras,  e  a 
mulher  acompanhára-o  com  Luzinha,  uma  menina  que  ia 
ao  médico  para  operar-se  de  um  olho  doente,  e  não  de- 
viam voltar  senão  na  manhã  seguinte.  Faltava  pouco  para 
a  meia-noite.  A  mulher,  que  viera  fazer  o  serviço  do  dia, 
fôra-se  embora  ao  escurecer. 

Em  casa  só  ficava  a  avó  paralítica  e  Ferrucio,  me- 
nino de  treze  anos.  Era  uma  casinha  isolada  no  rez-do- 
-chão,  edificada  sobre  a  estrada,  a  um  tiro  de  espingarda 
duma  aldeia  pouco  distante  de  Forli,  cidade  da  Rcma- 
nha;  e  não  havia  ao  lado  senão  uma  casa  deshabitada, 
arruinada  dois  meses  antes  por  um  incêndio,  sobre  a 
qual  pendia  ainda  a  taboleta  de  uma  hospedaria.  Por 
detraz  da  casinha,  havia  uma  horta  cercada  de  uma  sebe 
de  espinhos,  para  a  qual  dava  tosca  cancela  rústica.  A 
porta  da  venda,  que  servia  igualmente  de  porta  da  casa, 
dava  sobre  a  estrada.  Em  volta  estendia-se  a  campina 
solitária,  vastos  campos  lavrados  e  plantados  de  amoreiras. 


154 


CORAÇÃO 


Faltava  pouco  para  a  meia-noite.  Chovia  e  ventava. 
Ferrucio  e  a  avó,  ainda  despertos,  estavam  na  sala  de 
jantar,  entre  a  qual  e  a  horta  havia  um  quarto  pequeno, 
atulhado  de  mobília  velha.  Ferrucio  só  entrava  em  casa 
às  onze,  depois  de  uma  ausência  furtiva  de  muitas  ho- 
ras, e  a  avó  esperava-o  com  os  olhos  abertos,  cheia  de 
ansiedade,  encravada  numa  poltrona  sobre  a  qual  costu- 
mava passar  o  dia  todo  e  mesmo  muitas  vezes  noites, 
por,  uma  sufocação  que  a  oprimia  e  nem  a  deixava  estar 
deitada. 

Chovia,  e  o 
v  e  n  to  rufiava 
nas  vidra  ças 
com  as  bátegas 
de  água.  A  noi- 
te estava  muito 
escura.  Ferru- 
cio entrara  can- 
s  a  d  o  e  enla- 
meado, com  a 
jaqueta  rasga- 
da e  com  pisa- 
d  u  r  a  de  uma 
pedra  na  testa. 
Jogara  à  pe- 
drada com  o  s 
o  u  tros  compa- 
nheiros;  ti- 
nham  vindo  de- 
p  o  i  s  à  unha, 
como  de  costu- 
me e  ainda  por 
cima  tinha  jogado  e  perdido  todo  o  dinheiro  que  pos- 
suía, e  deixado  cair  o  barrete.  Posto  que  na  cozinha  não 
houvesse  mais  luz  do  que  a  que  dava  um  pequeno  can- 
dieiro  de  azeite,  moribundo,  no  ângulo  da  mesa,  ao  lado 
da  poltrona,  contudo  ,logo  a  pobre  velha  percebeu  o  es- 
tado deplorável  em  que  se  achava  o  neto.  Parte,  já  o  ti- 
nha adivinhado,  o  resto  soube-o  obrigando  o  rapa^:  â 
confessar-se. 


CORAÇÃO  155 

Ela,  a  velhinha,  amava  o  n«to  de  todo  o  coração  e, 
quando  soube  de  tudo  come90u  a  chorar. 

—  Ah!  não!  disse  depois  de  longo  silêncio.  Tu  não 
tens  amizade  a  tua  pobre  avó.  Que  coração  é  o  teu  para 
te  aproveitares  deste  modo  da  ausência  de  teu  pai  e  de 
tua  mãi,  para  dar-me  esses  desesperos!  Todo  o  dia  me  dei- 
xaste só.  Não  tiveste  pena  de  mim!  Toma  sentido  em 
ti,  Ferrucio;  vais  indo  por  um  mau  caminho,  que  te  con- 
duzirá a  um  triste  fim.  Tenho  visto  outros  que  princi- 
piaram como  tu  e  acabaram  mal.  Começa-se  a  fugir  de 
casa,  a  entrar  em  rixas  com  outros  rapazes,  a  perder 
dinheiro  no  jogo;  depois,  pouco  a  pouco,  das  pedradas 
passa-se  às  facadas,  do  jogo  aos  outros  vícios,  e  dos  ví- 
cios ao  crime. 

Ferrucio  ficou  a  escutar  a  três  passos  de  distância, 
encostado  a  um  armário,  com  o  queixo  sobre  o  peito, 
as  sobrancelhas  franzidas,  abrasado,  quente  ainda  do 
calor  da  luta.  Pelo  meio  da  testa  caía-lhe  uma  madeixa 
de   cabelos   castanhos,   e   tinha   os   olhos   azues   imóveis. 

—  Do  jogo  ao  crime,  continuou  a  avó.  Pensa  bem 
nisto,  Ferrucio.  Pensa  naquele  desgraçado,  aqui  vizi- 
nho, no  Vito  Mazzoni  que  anda  agora  na  cidade  feito 
vagabundo ;  que  aos  vinte  e  quatro  anos  já  tinha  estado 
duas  vezes  na  cadeia,  e  matou  de  desgostos  de  coração 
a  sua  pobre  mãi,  que  eu  conheci,  e  fez  o  pai  fugir  para 
a  Suiça,  desesperado...  Lembra-te  desse  infeliz,  a  quem 
teu  pai  se  envergonha  de  cumprimentar,  sempre  acom- 
panhado de  celerados  piores  do  que  êle,  até  ao  dia  em 
que  caiu  na  cadeia!  Pois  bem,  conheci-o  bom  rapaz; 
principiou  como  tu.  Por  esse  caminho  levarás  teu  pai 
e  tua  mãi  ao  mesmo  fim. 

Ferrucio  estava  mudo.  Não  porque  tivesse  o  cora- 
ção duro,  pelo  contrário;  as  suas  extravagâncias  deriva- 
vam mais  da  superabundância  de  vida  e  de  audácia,  que 
de  maus  instintos;  o  pai  acostumára-o  mal,  justamente 
porque,  achando-lhe  um  carácter,  no  fundo  capaz  dos 
mais  belos  sentimentos,  e  tendo  provado  ser  de  acção 
forte  e  generosa,  deixára-o  à  rédea  solta,  supondo  que 
tomaria  juízo  por  si.  Era  antes  bom  do  que  mau,  mas 
teimoso,    e    custava-lhe   muito,    mesmo    quando    tinha    o 


156 


CORAÇÃO 


coração  oprimido  pelo  arrependimento,  deixar  fugir  dos 
lábios  aquelas  boas  palavras  que  fazem  perdoar; 

«Sim,   fiz  mal,  não   o   farei   mais;   prometo,   perdôe- 
me». 

Tinha  às  vezes  a  alma  cheia  de  ternura,  mas  o  orgu- 
lho não  lho  deixava  expandir. 

—  Oh!  Ferrucio,  disse  a  avó  vendo-o  assim  mudo  nem 
uma  palavra  de  arrependimento  me  dizes?  vês  a  que  esta- 
do estou  reduzida?  Já  me  poderiam  enterrar.  Se  tivesses 
coração,  não  me  farias  sofrer  assim;  não  obrigarias  a  cho- 
rar a  mãi  de  tua  mãi,  velha  já,  perto  do  seu  último  dia,  a 
tua  pobre  avó  que  sempre  te  quis  tanto,  que  te  embalava 
noites  e  noites  inteiras,  quando  eras  criança  e  que  não  dor- 
mia, só  para  te 
acalentar.  Eu 
sempre  dizia: 
este  há-de  ser  a 
minha  consola- 
ção ! E  agora  tu 
matas-me,  con- 
somes-me  a  vi- 
da, que  me  res- 
ta, para  ver-te 
bom  e  obedien- 
te, como  o  eras 
naque,Ie  tempo, 
quando  te  con- 
duzia ao  santu- 
ário ;  lembras- 
-te,  Ferrucio? 
Tu  enchias-me 
as  algibeiras  de  pedrinhas  e  de  folhas,  e  eu  trazia-te  para 
casa  nos  braços  adormecido.  Nesse  tempo,  querias  tu  bem 
à  tua  pobre  avó,  mas  agora  que  estou  paralítica  e  tenho 
necessidade  de  afeição  como  de  ar  para  respirar,  que  não 
tenho  mais  nada  no  mundo,  pobre  mulher  meio  morta  co- 
mo já  estou  Deus  meu ! . . . 

Ferrucio,  meio  vencido   pela  comoção,   ia  lançar-s« 
aos  braços  da  avó,  quando  lhe  pareceu  ouvir,  um  ligeiro 


CORAÇÃO  157 

rumor,  um  estalido  no  quarto  próximo,  que  dava  para  a 
horta.  Não  pôde  porém,  perceber  se  eram  as  portas  das 
janelas  batendo  impelidas  pelo  vento,  ou  se  era  outra 
qualquer  cousa.  Aplicou  o  ouvido.  A  chuva  caia.  O  rumor 
repetiu-se.  A  avó  também  o  sentiu. 

—  Que  será? — ^preguntou  ela,  depois  de  um  momen- 
to, perturbada. 

—  A  chuva  —  respondeu  o  rapaz. 

—  Ora  vamos,  Ferrucio,  —  disse  a  velha,  esfregando 
os  olhos  ~  prometes-me  que  hás-de  ser  bom  e  que  não 
mais  hás-de  fazer  chorar  a  tua  mísera  avó? 

Nisto  um  novo  rumor  .ligeiro  interrompeu-os. 

—  Mas...  não  me  parece  chuva!  —  exclamou  empali- 
decendo... Vai  ver.  E  acrescentou  logo:  Não,  fica  aqui  — 
e  agarrou-se  às  mãos  de  Ferrucio. 

Ficaram  ambos  com  a  respiração  suspensa.  Não  ou- 
viam senão  o  estrépido  da  água. 

Depois  estremeceram  ambos. 

A  um  e  outro  pareceu  sentirem  um  arrastar  de  pés  no 
quarto. 

—  Quem  está  aí?  —  preguntou  o  rapaz,  recobrando  a 
voz  a  custo. 

Ninguém  respondeu. 

—  Quem  está  aí? — tornou  a  preguntar  Ferrucio, 
transido  de  susto. 

Apenas  pronunciadas  aquelas  palavras,  os  dois  juntos 
soltaram  um  grito  de  horror!  Dois  homens  apareceram 
repentinamente  na  sala;  um  agarrou  o  rapaz  e  tapou-lhe  a 
boca  com  a  mão;  o  outro  apertou  a  garganta  da  velha.  O 
primeiro  disse: 

—  Silêncio,  senão  morres... — O  segundo:  Cala-te! 
—  e  levantou  uma  faca.  Ambos  traziam  a  cara  tapada  por 
um  lenço  escuro  com  dois  buracos  no  lugar  dos  olhos.  Por 
um  momento  não  se  ouviu  mais  que  a  respiração  penosa 
de  todos  quatro  e  o  estalar  da  chuva  lá  fora. 

A  velha  dava  gemidos  cavernosos  e  tinha  os  olhos  fo- 
ra das  órbitas.  Aquele  que  segurava  o  rapaz  disse-,lhe  ao 
ouvido : 

-?-  Onde  tem  teu  pai  o  dinheiro? 


158  CORAÇÃO 

—  Acolá...  no  armário,  respondeu  o  menino  com  um 
fio  apenas  de  voz. 

—  Anda  comigo,  disse  o  ladrão. 

E  arrastou-o  para  a  sala,  apertando-lhe  a  garganta.  No 
chão  estava  uma  lanterna  furta-fogo. 

—  Onde  está  o  armário?  preguntou. 

O  rapaz  sufocado,  apontou  para  o  armário.  Então,  pa- 
ra segurar  bem  a  criança,  o  ladrão  pô-la  de  joelhos  diante 
do  armário,  apertando-lhe  fortemente  o  pescoço  com  as 
pernas,  de  modo  a  poder,  sufocá-lo,  se  gritasse;  e  seguran- 
do a  faca  entre  os  dentes,  e  a  lanterna  com  uma  das  mãos 
tirou  do  bolso  com  a  outra  um  ferro  aguçado,  introdu- 
ziu-o  na  fechadura,  sondou,  quebrou,  escancarou  as  portas, 
remexeu  furiosamente  tudo,  encheu  as  algibeiras,  fechou 
tornou  a  abrir,  revolvendo  tudo  de  novo;  depois  agarrou 
o  rapaz  pe,la  garganta  e  trouxe-o  de  rastos  até  onde  estava 
o  companheiro,  que  ainda  conservava  subjugada  a  velha, 
convulsa,  já  com  a  cabeça  caída  e  a  boca  aberta. 

Esse  preguntou  em  voz  baixa : 

—  Achou? 

O  companheiro  respondeu:    , 

—  Achei,  acrescentando :  —  Espreita  à  porta. 

O  que  estava  segurando  a  velha  correu  à  porta  da  hor- 
ta a  ver  se  estaria  a,lguém,  e  disse  de  fora  com  uma  voz  que 
parecia  um  assobio :  —  Vem ! 

O  que  tinha  ficado  e  segurava  ainda  Ferrucio,  mos- 
trou a  este  a  faca,  e  à  velha  que  reabriu  os  olhos,  disse: 

—  Nem  uma  palavra!  senão,  volto  atrás  e  corto-lhes 
o  pescoço. 

Nisto,  ouviu  ao  longe  pela  estrada,  um  canto  de  mui- 
tas vozes.  O  ladrão  voltara  a  cabeça  subitamente  para  a 
porta  e  com  aquele  movimento  violento  caíra-lhe  o  lenço 
da  cara.  A  velha  soltou  um  grito : 

—  Mazzoni!... 

—  Maldita!  —  rugiu  o  ladrão  reconhecido,  vais  mor- 
rer. 

E  lançou-se  de  faca  em  punho  contra  a  ve,lha  que  des- 
maiara. 

Mas  com  um  movimento  rapidíssimo,  soltando  um 
grito  desesperado,  Fetrucio  atira-»  «Obre  a  avó,  cobrin- 


C  o  R  A  Ç  A  •  159 

do-a  com  o  próprio  corpo.  O  assassino  fugiu,  atirando  ao 
chão  a  mesa  e  a  lanterna,  que  logo  se  apagou.  O  rapaz  es- 
corregou lentamente  sobre  a  avó,  e,  caindo  de  joelhos,  fi- 
cou naquela  posição,  com  os  braços  em  volta  da  cintura 
da  paralitica  e  a  cabeça  no  seio  dela.  Passaram-se  assim 
alguns  momentos  no  meio  da  escuridão  e  o  canto  dos  alde- 
ões ia-se  perdendo  ao  longe  pela  campina.  A  velha  tornara 
a  si. 

—  Ferrucio!  —  balbuciou  ela,  com  voz  apenas  inin- 
teligível, batendo  os  dentes. 

—  Avozinha!  respondeu  o  rapaz. 

A  velha  fez  um  esforço  para  falar  mas  o  terror  para- 
lisara-lhe  a  língua.  Esteve  um  mom.ento  silenciosa,  tre- 
mendo violentamente.  Depois  conseguiu  preguntar: 

—  Já  aqui  não  estão? 

—  Não. 

—  Não  me  mataram  —  murmurou  a  velha  com  voz 
sufocada. 

—  Não,  estás  salva!  disse  Ferrucio  com  voz  fraca.  Es- 
tás salva,  querida  avozinha.  Roubaram  dinheiro,  mas  o  pa- 
pá tinha-o  levado  quási  todo  consigo. 

A  avó  pode  respirar. 

—  Avó!  —  disse  Júlio  sempre  de  joelhos  e  apertando- 
-a  nos  braços,  querida  avó!  Quere-me  muito  bem,  não 
quere? 

—  Ferrucio !  meu  pobre  filho !  respondeu  ela,  corren- 
do-lhe  a  mão  pelos  cabelos.  Que  susto  não  deves  ter  tido! 
Oh!  .^enhor  de  Mesericórdia!...  Acende  o  candieiro,  não 
fiquemos  às  escuras,  que  ainda  estou  com  medo. 

—  Avozinha,  continuou  o  rapaz  ^ —  eu  tenho-lhe  dado 
muitos  desgostos... 

—  Não  tens,  não,  Ferrucio,  não  digas  essas  coisas.  Já 
esqueci  tudo...  e  quero-te  muito  bem!... 

—  Tenho-lhe  dado  muitos  desgostos,  —  repetiu  Fer- 
rucio, a  custo,  com  a  voz  trémula,  mas  ojhe  que  sempre 
fui  seu  amigo.  Perdôa-me  sim,  avozinha? 

—  Sim,  filho,  perdôo-te  tudo,  perdôo-te  tudo,  perdôo- 
-te  de  todo  o  coração.  Não  estejas  de  joelhos,  levanta-te 
raeu  filho.  Não  te  torno  mais  a  raUbai.  Tu  és  bonj,  muito 


160 


CORAÇÃO 


bom!  Acendamos  o  candieiro.  Tomemos  um  pouco  de  co- 
ragem. Levanta-te,  Ferrucio. 

—  Obrigado,  azózinha,  —  disse  o  rapaz  com  a  voz  ca- 
da vez  mais  débil  —  agora  já  estou  mais  contente  e  a  avó 
há-de  recordar-se  de  mim,  não  é  verdade?  Há-de  recordar- 
-se  sempre  de  mim,  do  seu  Ferrucio. 

—  Meu  filho!  esxclamou  ela,  surpreendida  e  sobres- 
saltada, apalpando  e  inclinando  a  cabeça  para  ver-lhe  o 

lOStO. 

—  Não  te  esqueças  de  mim  —  murmurou  ainda  o  rapaz 
cuja  voz  parecia  um  sopro.  Dá  um  beijo  a  minha  mãi...  a 
meu  pai...  à  Luízinha...  Adeus  avozinha... 

—  Em  nome 
do  céu>  que 
tens?  —  gritou 
a  velha  apalpan- 
do ansiosamen- 
te a  cabeça  do 
rapaz  que  re- 
pousava sobre 
03  joelhos  e, 
com  quanta  for- 
ça tinha,  excla- 
mou no  maior 
desespero: 

—  Ferrucio !  Ferrucio  !  meu  querido  filho !  meu  queri- 
do fi,lho!  meu  amor!  Anjos  do  paraíso,  valei-me! 

Mas  Ferrucio  não  respondeu  mais.  O  pequeno  herói, 
o  salvador  da  mãi  de  sua  mãi,  ferido  com  uma  facada  nas 
costas,  entregara  a  Deus  a  sua  bela  alma  corajosa- 

O  Pedreiro  moribundo 


Terça-feira,  i8 

O  pobre  Pedreirito  está  doente,  e  logo  que  o  mestre 
disse  que  fôssemos  vê-lo,  combinamos  ir  juntos,  Garrone, 
Derossi  e  eu.  Stardi  vinha  connosco,  porém,  como  o  mes- 
tre nos  deu  por  trabalho  a  descrição  do  Monumento  a 
Cavour,  êle  disse-nos  que  tinha  de  ir  vê-lo  para  fazer  a  des- 


CORAÇÃO  lõl 

crição  mais  exacta.  Também,  para  experimentar,  convida- 
mos o  orgulhoso  Nobis.  Respondeu  simplesmente:  —  Não. 
Voltini  também  se  escusou  talvez,  com  receio  de  man- 
char de  cal  as  roupas.  Fomos  às  quatro  horas,  chovia  a 
cântaros.  No  caminho,  Garrone  parou  e  disse: 

—  Que  é  que  se  há-de  comprar? 

E  fazia  tilintar  dois  cêntimos  na  algibeira.  Pusemos 
dois  cêntimos  cada  um,  e  compramos  três  laranjas  gran- 
des. 

Subimos  à  água-furtada.  Diante  da  porta,  Derossi  ti- 
rou a  medalha  e  meteu-a  no  bolso...  Preguntei-lhe  porquê, 
6  êle  respondeu: 

—  Não  sei.  É  para  não  ter  assim  ares  de...  Parece-me 
mais  delicado  entrar  sem  a  medalha. 

Batemos  e  apareceu  o  pai,  um  homemzarrão  que  pare- 
ce um  gigante.  Trazia  um  rosto  mudado  e  aflito. 

—  Quem  procuram?  I —  preguntou. 
Garrone  respondeu  logo: 

—  Somos  companheiros  de  escola  do  António  e  traze- 
mos-lhe  três  laranjas. 

1 — Ah!  o  meu  pobre  Toninho...  —  exclamou  o  pedrei- 
ro, sacudindo  a  cabeça  —  Penso  que  não  chegará  a  comer 
as  vossas  laranjas! 

E  limpou  os  olhos  com  as  costas  da  mão...  Fez-nos 
sinal  para  que  o  acompanhássemos,  e  entramos  numa  man- 
sarda, onde  vimos  o  pedreirito  dormindo  em  um  pequeno 
leito  de  ferro;  a  mãi,  debruçada  sobre  o  leito,  tinha  o  ros- 
to entre  as  mãos,  e  voltou-se  apenas  para  nos  ver.  Na  pare- 
de, viam-se  penduradas  algumas  broxas,  uma  picareta  e  um 
crivo  para  cal;  aos  pés  do  doente  estava  estendida  a  jaque- 
ta do  pedreiro,  sarapintada  de  gesso.  O  pobre  rapaz  tinha 
emagrecido;  estava  pálido  com  o  nariz  afilado  e  tinha  a 
respiração  curta.  Que  pena  me  fez  ver  naquele  estado  o 
pobre  Toninho,  tão  alegre  e  tão  bom  companheiro !  quan- 
to não  daria  por  tornar  a  vê-lo  fazer  o  focinho  de  lebre! 
pobre  Pedreirito!  Garrone  pôs-lhe  uma  laranja  sobre  o 
travesseiro,  mesmo  ao  pé  do  rosto;  o  cheiro  despertou-o, 
pegou  nela,  mas  logo  depois  deixou*a  cair  e  olhou  fixo 
para  Garrone. 

II 


162  CORAÇÃO 

—  Sou  eu  —  disse-lhe  este  —  sou  Garrone.  Conheces- 
-me? 

Êle  sorriu  tão  levemente  que  apenas  se  percebia,  e  le- 
vantando a  custo  da  cama  a  sua  pequena  mão  deu-a  a  Gar- 
rone, que  a  tomou  entre  as  suas,  apoiando  a  face  sobre 
ela,  e  disse-lhe: 

—  Coragem;  coragem!  Pedreirito!  hás-de  ficar  bom, 
depressa!  hás-de  voltar  à  escola  e  o  mestre  há-de  pôr-te 
junto  de  mim.  Estás  contente? 

O  Pedreirito  não  respondeu. 
A  mãi  desatou  em  soluços. 

—  Ai!  meu  pobre  Toninho!  meu  pobre  Toninho!  Tão 
meigo  e  tão  bom !  e  Deus  quere  arrebatar-mo ! 

—  Sossega,  mulher,  —  exclamou  o  operário  entriste- 
cido—  sossega  pelo  amor  de  Deus,  ou  eu  perco  a  cabeça! 

Depois  disse-nos,  com  a  voz  presa  na  garganta: 

—  Vão...  vão!  muito  obrigado!...  vão  para  casa,  aqui 
nada  podem  fazer... 

O  pequeno  tinha  fechado  os  olhos  e  parecia  morto. 

—  Precisa  de  a,lguma  coisa?  preguntou  Garrone. 

—  Não,  meu  filho,  de  nada  preciso,  muito  obrigado  — 
respondeu  o  pedreiro.  —  Vão  para  casa. 

E  dizendo  isto,  conduziu-nos  até  ao  patamar  e  fe- 
chou a  porta.  Estávamos  no  meio  da  escada  quando  ouvi- 
mos gritar  de  cima: 

—  Garrone !  Garrone ! 

Tornamos  a  subir  à  pressa  todos  os  três. 

—  Garrone!...  gritou  o  pedreiro  com  o  rosto  mudado 
■— Chamou-te  pelo  nome...  Há  dois  dias  que  não  falava... 
Disse  duas  vezes :  Garrone !  —  Quere  ver-te,  vem  depressa ! 
Deus  queira  que  seja  um  bom  sinal ! 

—  Até  logo,  disse-nos  Garrone.  Fico  aqui. 
E  entrou  com  o  pai. 

Derossi  tinha  os  olhos  rasos  de  lágrimas,  e  eu  pregun- 
tei-lhe: 

—  Choras  pelo  Pedreirito?  Êle  que  já  falou,  há-de  me- 
lhorar. 

—  Também  me  parece...  respondeu  Derossi  —  mas 
não  pensava  agora  nele...  Pensava  como  ç  boa  a  santa  gl- 
ma  de  Garrone! 


CORAÇÃO  163 


O  conde  Cavour 


Quarta-feira,  2g 

«É  a  descrição  do  monumento  a  Cavour  que  tu  deves  fazer. 
Descreve-o,  pois.  Mas  quem  foi  o  conde  Cavour  é  que  tu  não 
podes  compreender  por  ora.  Agora  basta  que  saibas  somente  que 
foi  êle  por  muitos  anos  o  primeiro  ministro  de  Piemonte;  foi  êle 
quem  mandou  o  exército  piemontês  à  Criméa,  levantando  com  a 
vitória  de  Cernaia  a  nossa  decaída  glória  militar;  foi  êle  quem 
fez  descer  pelos  Alpes  cento  e  cinquenta  mil  franceses  para  ex- 
pulsar os  austríacos  da  Lombardia;  foi  êle  quem  governou  a  Itá- 
lia no  período  mais  solene  da  nossa  revolução;  foi  êle  quem  deu 
naqueles  anos  o  mais  poderoso  impulso  à  santa  empresa  da  uni- 
ficação da  pátria;  êle,  com  o  seu  génio  luminoso,  com  a  sua 
constância  invencível,  com  a  sua  actividade  mais  do  que  humana. 
Muitos  generais  passaram  horas  aflitas  no  campo  da  batalha,  mas 
êle  passou-as  bem  mais  terríveis  no  seu  gabinete,  quando  a  sua 
grande  obra  podia  desmoronar-se  de  um  momento  para  outro  co- 
mo frágil  edifício  a  um  abalo  de  terramoto.  Horas  e  noites  de 
lutas  e  de  angústias  êle  as  passou,  saindo  delas  com  a  razão  des- 
vairada e  a  morte  no  coração.  Foi  este  gigantesco  e  tempestuoso 
trabalho  que  lhe  abreviou  vinte  anos  de  vida!  E,  contudo,  devora- 
do pela  febre  que  o  havia  de  levar  à  sepultura,  lutava  ainda  es- 
forçadamente com  a  doença,  para  fazer  alguma  coisa  em  prol  da 
sua  pátria  —  É  estranho  dizia  dolorosamente  no  seu  leito  de 
morte,  não  posso,  já  não  sei  ler... 

Emquanto  lhe  tiravam  sangue  e  a  febre  aumentava,  pensa- 
va cie  na  sua  pátria,  e  dizia  imperiosamente: 

—  Curai-me!  meu  espírito  obscurece-se,  tenho  necessidade 
d^  todas  as  minhas  faculdades  para  tratar  de  negócios  graves. 

Quando  chegou  aos  últimos  momentos  e  quando  toda  a 
cidade  se  agitava,  ao  rei,  que  estava  à  sua  cabeceira,  êle  dizia 
com  amargura: 

—  Tenho  tantas  coisas  que  dizer-vos,  tantas  coisas  a  reve- 
lar-vos,  mas  estou  doente...  não  posso!  não  posso! 

E  ficava  em  desespero.  O  seu  pensamento  febril  eram  os 
negócios  do  Estado,  as  novas  províncias  italianas  que  se  tinham 


164  CORAÇÃO 

unido  a  nós,  e  tantas  coisas,  enfim,  que  ficavam  por  fazer. 
Quando  o  delírio  o  assaltava: — Educai  a  infância  —  gemia  con- 
vulsivamsntc,  —  educai  a  infância  e  a  mocidade!  governai  com 
liberdade! 

Crescia  o  delírio,  a  morte  estava  prestes  e  êle  invocava, 
ainda,  com  palavras  ardentes,  o  general  Garibaldi,  com  qu2m 
tivera  desinteligências;  Veneza  e  Roma,  que  não  eram  ainda 
livres;  tinha  largas  visões  no  futuro  da  Itália  e  da  Europa; 
sonhava  numa  invasão  estrangeira;  preguntava  onde  estavam  os 
corpos  do  exército  e  os  generais.  Tremia  ainda  por  nós,  pelo 
seu  povo.  A  sua  grande  dôr  não  era,  bem  o  vês,  perder  a  vida, 
mas  era  ver  fugir-lhe  a  pátria  que  carecia  ainda  dele  e  pela  qual 
despendera  em  poucos  anos  as  forças  desmssuradas  do  seu  vi- 
goroso organismo.  Morreu  com  o  grito  de  batalha  na  gargan- 
ta, e  a  sua  morte  foi  grande  como  a  sua  vida.  Agora  pensa  um 
pouco,  Henrique,  no  que  são  os  nossos  trabalhos,  que,  no  en- 
tanto, não  pesam  tanto;  no  que  são  as  nossas  dores,  mesmo  a 
nossa  morte,  em  confronto  com  as  fadigas,  com  as  amarguras 
formidáveis,  com  as  agonias  tremendas  daqueles  homens  em 
cujo  coração  pesa  um  mundo!  Pensa  nisto,  filho,  e  quando 
passares  diante  daquela  imagem  de  mármore,  diz-lhe  de  dentro 
da   alma:  —  Glória!... 


ABRIL 


A  primavera 

Sábado,  i 

Primeiro  de  Abril!  Ainda  três  meses.  Esta  foi  uma 
das  mais  belas  manhãs  no  ano!  Eu  estava  contente  na 
escola,  porque  Ccretti  tinha-me  dito  que  fosse  com  êle  e 
com  o  pai  depois  de  amanhã,  para  ver  a  chegjada  do  rei, 
QV.e  o  pai  conhece;  e  porque  minha  mãi  tinha  prometi- 
do levar-me  no  mesmo  dia  a  visitar  o  Asilo  Infantil  de 
ÇorsQ  Valdoccp.  Além  disso  estava  satisfeito  porque  o 


CORAÇÃO  lõã 

Pedreirito  está  melhor,  e  porque  ontem  de  tarde  o  mes- 
tre, passando,  disse  a  meu  pai :  «Vai  bem,  vai  bem».  Era 
uma  linda  manhã  de  primavera.  Das  janelas  da  escola 
via-se  o  céu  azul,  as  árvores  do  jardim  todas  cobertas  de 
rebentos,  as  janelas  das  casas,  escancaradas,  e  os  sótãos 
cheios  de  vasos  verdejantes.  O  mesitre  não  ria  porque 
não  ri  nunca,  mas  estava  de  bom  humor,  e  tanto  que  quá- 
si  se  lhe  não  via  a  ruga  direita  pelo  meio  da  testa.  Expli- 
cava, gracejando,  uma  lição  na  ardósia.  Via-se  que  sen- 
tia prazer  em  respirar  o  ar  do  jardim  que  entrava  pelas 
janelas  abertas,  impregnando  de  um  cheiro  sadio,  fresco, 
de  terra  e  de  folhas,  que  lembrava  os  passeios  do  cam- 
po. Enquanto  explicava  a  lição,  ouvia-se  numa  rua  pró- 
xima um  ferreiro  batendo  na  bigorna,  e  na  casa  defronte 
uma  mulher  cantando  para  adormecer  uma  criança.  Ao 
longe  no  quartel  de  Cernaia,  tocavam  os  clarins..  Todos 
pareciam  contentes,  até  o  próprio  Stardi. 

Em  certo  momento,  o  ferreiro  principiou  a  bater 
mais  rijo  e  a  mulher  a  cantar  mais  alto.  O  mestre  inter- 
rompeu a  lição  e  pôs-se  a  escutar.  Depois  disse  lentamen- 
te, a  olhar  pelas  janelas: 

—  O  céu  que  sorri,  uma  mãi  que  canta,  um  operário 
honrado  que  trabalha,  as  crianças  que  esitudam.  Que  be- 
lo que  é! 

Quando  saímos  da  au,la,  observámos  que  também 
todos  os  outros  estavam  alegres,  caminhando  em  filas, 
fazendo  barulho  com  os  pés,  cantarolando  como  na  vés- 
pera de  umas  férias  de  quatro  dias.  As  mestras  graceja- 
vam, e  a  da  pena  vermelha  saltava  atrás  dos  seus  peque- 
nos, como  se  fosse  uma  aluna;  os  parentes  dos  meninos 
conversavam  rindo,  e  a  mãi  de  Crossi,  a  quitandeira,  tra- 
zia na  cesta  muitos  ramos  de  violetas  que  perfumavam 
todo  o  salão  de  entrada.  Nunca  senti  tanta  alegria  como 
nesta  manhã,  e  ao  ver  minha  mãi,  que  me  esperava  na 
rua,  disse-lhe,  indo  ao  seu  encontro: 

—  Estou,  mamã,  itão  contente !  que  será  que  me  fez 
assim  alegre  esta  manhã? 

E  minha  mãi  respondeu-me,  sorrindo,  que  era  a  be- 
la estação  e  a  boa  consciência. 


166  CORAÇÃO 


O  Rei  Humberío 

Segunda-íeira,  3 

Às  dez  em  ponto,  meu  pai  viu  da  janela,  Coretti,  o 
vendedor  de  lenha,  e  o  filho,  que  me  estavam  esperando 
na  praça,  e  disse-me: 

—  Eles  lá  estão,  Henrique,  anda  ver  o  teu  rei. 
Desci  rápido  como  um  raio.  Pai  e  filho  pareceram- 

-me  ainda  mais  alegres  que  do  costume,  e  nunca  me  pa- 
receu que  se  assemelhassem  tanto  um  com  o  outro  como 
nesta  manhã.  O  pai  trazia  no  casaco  a  medalha  de  va,lor, 
no  meio  de  duas  comemorativas,  e  os  bigodes  frisados 
e  aguçados  como  dois  alfinetes.  Pusemo-nos  logo  a  ca- 
minho, em  direcção  à  estação  do  caminho  de  ferro,  onde 
o  rei  devia  chegar  às  dez  e  meia.  O  pai  de  Coretti  ia  fu- 
mando cachimbo  e  esfregando  as  mãos. 

—  Sabeis  —  dizia  —  que  o  não  tornei  a  ver  desde  a 
guerra  de  sessenta  e  seis?  a  bagatela  de  quinze  anos  e 
seis  meses!  Vi-o  três  anos  antes  em  França  e  depois  em 
Mondovi ;  e  aqui,  que  o  poderia  ter  visto,  nunca  se  deu  o 
caso  de  estar  na  cidade,  quando  êle  vinha.  Coisas  do 
acaso. 

Êle  falava  do  rei  Humberto  como  se  tratasse  de  um 
camarada:  Humberto  —  comandava  a  16.^  divisão  Hum- 
berto tinha  vinte  e  dois  anos  e  tantos  dias...  Humberto 
montava  um  cavalo  assim  e  assim... 

—  Quinze  anos!  dizia  em  voz  alta  e  alongando  o 
passo.  Tenho  muita  vontade  de  o  tornar  a  ver;  deixei-o 
príncipe,  vou  encontrá-lo  rei,  mas  quanto  a  isso,  também 
eu  mudei:  passei  de  soldado  a  vendedor  de  lenha,  E 
ria-se. 

O  filho  preguntou-lhe: 

—  Se  o  rei  o  vir,  ainda  o  conhecerá? 

—  Tu  és  tolo,  rapaz !  respondeu.  Não  faltava  mais 
nada.  Humberto  era  um  só,  e  nós  éramos  tantos  como 
moscas.  Então  querias  que  êle  estivesse  a  olhar-nos  um 
por  um? 


CORAÇÃO  lõ7 

Desembocamos  no  corso  Vítor  Manue,l,  onde  havia 
muita  gente  a  caminho  da  estação.  Passava  uma  compa- 
nhia de  Alpinos,  com  os  clarins,  e  passavam  também  dois 
carabineiros  a  cavalo  e  a  galope;  o  tempo  estava  magní- 
fico. 

—  Sim,  exclamou  Coretti,  animando-se.  Sinto  muito 
prazer  em  tornar  a  ver  o  meu  general  de  divisão.  Ah! 
como  envelheci  depressa!  Parece-me  que  ainda  foi  ou- 
tro dia  que  tinha  a  mochila  às  costas  e  a  espingarda  na 
mão,  no  meio  daquela  balbúrdia  na  manhã  de  24  de  Ju- 
nho, quando  estávamos  para  atacar  à  baioneta!  Humber- 
to ia  e  vinha  com  os  seus  oficiais,  enquanto  o  canhão 
troava  ao  longe;  e  todos  olhavam  para  êle  e  diziam:  «Que 
o  não  ofenda  alguma  bala!...»  Bem  longe  estava  eu  de 
pensar  que  dali  a  instantes  me  acharia  ao  pé  dele  em 
frente  das  panças  dos  austríacos,  a  quatro  passos  um  do 
outro,  filhos!  estava  um  dia  magnífico!  o  céu  como  um 
espelho,  e  um  calor!...  Mas,  vamos  a  ver  se  se  pode  en- 
trar. 

Chegamos  à  estação,  onde  havia  uma  turba  enorme; 
carrugens,  guardas,  carabineiros,  associações  com  estan- 
dartes. Tocava  a  banda  de  um  regimento.  O  pai  de  Co- 
retti quis  entrar  no  vestíbulo,  mas  não  lho  consentiram. 
Tratou  então  de  colocar-se  na  primeira  fila  do  povo,  que 
formava  alas  à  saída,  e  abrindo  o  caminho  com  os  coto- 
velos, conseguiu  levar-nos  também  para  a  frente.  Mas 
aquela  multidão,  ondeando,  empurrava-nos,  ora  para  aqui, 
ora  para  ali.  O  vendedor  de  lenha  lançava  os  olhos  para 
o  primeiro  pilar  do  vestíbulo,  onde  os  guardas  não  dei- 
xavam estar  ninguém.  De  repente  disse: 

—  Vinde  comigo. 

E  agarrando-nos  pe,las  mãos  atravessou  em  dois  pu- 
los o  espaço  vazio,  e  foi  colocar-se  lá  com  os  ombros  à 
parede.  Correu  logo  um  oficial  de  polícia  a  dizer-lhe: 

—  Aqui  não  pode  entrar  ninguém. 

—  Sou  do  quarto  batalhão  do  49,  respondeu  Coretti, 
apontando  ao  mesmo  tempo  para  a  medalha. 

O  oficial  olhou-lhe  o  peito,  e  disse: 

—  Fique. 


168  CORAÇÃO 

—  Então,  que  disse  eu?  exclamou  Coretti  triunfante- 
São  palavras  mágicas  o  quadrado  do  quarenta  e  nove!  Pois 
não  havia  eu  de  ter  o  direito  de  vê-lo  um  pouco  à  minha 
vontade,  ao  meu  general,  eu  que  estive  no  quadrado!  Se 
então  o  vi  de  perto,  parece-me  justo  que  o  veja  de  perto 
agora.  E  digo  general,  mas  ^le,  por  uma  boa  meia  hora, 
foi  comandante  do  meu  batalhão,  enquanto  estava  no 
centro,  e  não  o  major  Ulrich. 

No  entanto,  via-se  no  salão  da  entrada  e  cá  fora  um 
grande  movimento  de  senhoras  e  de  oficiais,  e  diante  da 
porta  enfileiravam-se  carruagens,  com  os  criados  vesti- 
dos de  vermelho. 

Coretti  preguntou  ao  pai  se  o  príncipe  Humberto 
tinha  a  espada  Jia  mão  quando  estava  no  quadrado. 

—  De  certo,  tinha  a  espada  na  mão  para  aparar  al- 
guma lançada,  que  tanto  podia  tocar  a  êle  como  a  outro! 
Ah!  os  demónios  desenfreados!  Caíram-nos  em  cima  có- 
rneo ira  de  Deus!  volteavam  entre  os  grupos,  os  quadra- 
dos e  os  canhões  que  pareciam  impelidos  por  um  fura- 
cão, destruindo  tudo.  Era  uma  confusão  de  cavaleiros 
de  Alexandria,  de  lanceiros  de  Foggia,  de  infantaria,  de 
caçadores,  um  inferno  que  ninguém  entendia.  Ouvi  gri- 
tar: «Alteza!  Alteza!»  e  vendo  aproximar-se  as  lanças 
caladas,  descarregando  as  espingardas,  e  uma  nuvem  de 
pó  envolveu  tudo.  Depois  a  poeira  rarefez-se  e  a  terra  es- 
tava juncada  de  cavalos  e  ulanos  feridos  e  mortos.  Vol- 
tei-me  para  trás  e  vi  no  meio  de  nós  Humberto  a  cavalo, 
olhando  em  torno,  com  ar  de  quem  preguntava:  —  Foi  ar- 
ranhado algum  dos  meus  camaradas?  —  E  nós  gritámos 
—  Viva!  como  doidos,  mesmo  ao  pé  dele.  Deus!  que  mo- 
mento aquele!...  Ali  chega  o  comboio. 

A  banda  tocou,  os  oficiais  correram,  a  multidão  le- 
vantou-se  nas  pontas  dos  pés. 

—  Não  sai  tão  cedo...' — disse  um  guarda.  Ainda  lhe 
vão  fazer  um  discurso. 

Coretti  pai  não  cabia  mais  em  si. 

—  Ah!  quando  penso  nisto...  estou  mesmo  a  vê-lo 
lá.  Foi  um  bravo  no  tempo  da  cólera,  e  quando  houve  ter- 
ramotos e  todas  essas  coisas...  mas  eu  tenho-o  na  memó- 
ria como  o  vi  então  no  meio  de  nós  com  a  fisionomia 


CORAÇÃO  169 

tranquila!  E  estou  certo  de  que  também  êle  se  recordará 
do  quadrado  do  49,  mesmo  hoje,  que  é  rei,  e  que  ficaria  sa- 
tisfeito se  nos  visse  uma  vez  à  mesa,  a  todos  que  o  cer- 
caram, naqueles  instantes.  Temos  agora,  por  cá,  generais, 
muitos  galões  e  grandes  senhores,  mas  lá  não  havia  se- 
não so,ldados  rasos.  Ah!  se  pudesse  trocar  com  êle  quatro 
palavras!...  O  nosso  general  de  vinte  e  dois  anos,  o  nosso 
príncipe  que  estava  então  confiado  às  nossas  baionetas! 
Quinze  anos  há  que  o  não  vejo!...  O  nosso  Humberto!... 
E  então  esta  música  faz-me  ferver  o  sangue,  palavra  de 
honra! 

Uma  explosão  de  gritos  interrompeu-o,  milhares  de 
chapéus  se  levantaram  ao  ar.  Quatro  senhores  vestidos 
de  preto  subiram  a  primeira  carruagem. 

—  É  êle,  gritou  Coretti,  e  ficou  como  que  encantado. 
Depois  balbuciou  lentamente: 

—  Minha   Nossa    Senhora!    como    êle    está   grisalho! 
Todos  três  nos  descobrimos;  a  carruagem  caminhava 

vagarosamente  pelo  meio  da  multidão  que  gritava,  e  todos 
agitavam  os  chapéus.  Olhei  para  Coretti,  pai. 

Parecia-me  outro,  parecia-me  que  crescera;  estava 
sério,  um  pouco  pálido,  direito,  encostado  à  pilastra.  A 
carruagem  chegara  diante  de  nós,  a  um  passo  de  dis- 
tância. 

—  Viva!...  gritaram  muitas  vozes. 

—  Viva!...  gritou  Coretti,  depois  dos  outros. 

O  rei  encarou-o  de  frente  e  fixou  um  momento  a 
vista  sobre  as  três  medalhas.  Coretti,  então  perdeu  a  ca- 
beça e  bradou: 

—  Quarto  batalhão  do  49 ! 

O  rei,  que  se  tinha  voltado  para  o  outro  ^lado,  tor- 
nou a  olhar  em  direcção  a  nós,  fixando  muito  Coretti ; 
estendeu  a  mão  para  fora  da  carruagem,  Coretti  deu  um 
salto  para  a  frente  e  apertou-lha.  A  carruagem  passou, 
a  multidão  fechou-se,  separando-nos,  e  perdemos  um  mo- 
mento de  vista  Coretti,  encontrando-o  logo  ofegante, 
com  os  olhos  húmidos  chamando  em  volta  pelo  filho,  e 
frazendo  a  mão  muito  erguida. 

O  filho  foi  ao  encontro  do  pai  e  êle  exclamou: 


170  CORAÇÃO 

— lAqui,  meu  filho,  que  ainda  tenho  esta  mão 
quente. 

E  passou-lhe  a  mão  pelo  rosto  dizendo: 

— 'Aí  está  uma  caricia  do  rei. 

E  ali  ficou  como  espantado,  com  os  olhos  fitos  na 
carruagem  que  se  ia  afastando,  com  o  cachimbo  entre  as 
mãos,  no  centro  de  um  grupo  de  curiosos  que  o  exa- 
minavam. 

—  Foi  um  do  quadrado  do  49,  diziam. 

—  É  um  soldado  quç  conhece  o  rei.  Foi  este  quem  ■lhe 
estendeu  a  mão. 

—  Apresentou  uma  petição  ao  rei  —  disse  um  mais 
alto. 

—  Não!  respondeu  Coretti.  Não  apresentei  petição 
alguma.  Alguma  cousa  lhe  daria  eu,  se  êle  me  pedisse. 

Todos  olham  para  o  velho  soldado. 
E  Coretti  disse  simplesmente: 

—  O  meu  sangue. 

O  asilo  infantil 

Terça-feira,  4 

Minha  mãi,  como  me  havia  promeitido,  levou-me  on- 
tem depois  do  almoço  ao  asilo  infantil  do  curso  Valdocco, 
para  me  recomendar  à  directora  a  irmãzinha  de  Pre- 
cossi.  Nunca  tinha  visto  um  asilo  e  gostei  muito. 

Eram  duzentas  crianças,  meninos  e  meninas,  tão  pe- 
queninas, que  os  nossos  da  primeira  inferior  pareciam 
homens  ao  pé  delas.  Chegámos  justamente  quando  en- 
travam enfileiradas  para  o  refeitório,  onde  havia  duas 
mesas  muito  compridas,  cheias  de  buracos  redondos,  e 
em  cada  buraco  uma  ti j  ela  escura  cheia  de  arroz  e  de  fei- 
jão, com  uma  colher  de  estanho  ao  lado. 

Entrando,  umas  caíam,  e  estendiam-se  ao  comprido  e 
ali  ficavam  estiradas  até  que  algumas  das  mestras  as 
fossem  erguer.  Muitas  paravam  diante  de  uma  itijela,  jul- 
gando ser  ali  o  seu  lugar,  e  engolindo  precipitadamente 
uma  colherada.  Quando  chegava  alguma  mestra  e  dizia 


CORAÇÃO  171 

—  Adiante  —  as  criancinhas  davam  três  ou  quatro  pas- 
sos, e  zás,  outra  colherada.  Isto  repetia-se  até  que  che- 
gavam ao  seu  lugar,  depois  de  terem  comido  às  furtade- 
las  uma  meia  tijela. 

Finalmente,  à  força  de  empurrões,  e  gritos :  — 
Aviem-se!  Despachem-se!  —  puseram-se  todas  em  ordem 
e  principiaram  a  rezar.  Todas  as  duas  filas  de  dentro, 
que  para  rezar  tinham  de  dar  as  cositas  à  tijela,  voltavam 
a  cabeça  para  trás,  e  tinham-a  sempre  de  olho,  com  re- 
ceio de  que  a  tirassem;  e  assim  rezavam  com  as  mãos 
juntas,  os  olhos  no  céu  mas  o  coração  na  papa. 

Finalmente,  principiaram  a  comer.  Que  curioso  es- 
pectáculo !  uma  comia  com  duas  colheres  outra  tomava 
a  comida  com  ambas  as  mãos;  umas  apanhavam  os  fei- 
jões um  a  um,  e  encafuavam-nos  no  bolso;  outras  aperta- 
vam-os  na  toalha  e  batiam-lhes  em  cima,  reduzindo-os  a 
massa.  Algumas  ficavam  sem  comer,  vendo  voar  as  mos- 
cas, e  outras  agastavam-se,  tossiam  e  espalhavam  em  volta 
uma  chuva  de  arroz.  Parecia  um  galinheiro.  Mas  era  en- 
graçado. Faziam  um  belo  efeito  as  duas  filas  de  meni- 
nas, todas  com  os  cabelinhos  atados  no  alto  da  cabeça 
com  lenços  vermelhos,  verdes  e  azues.  Uma  mestra  pre- 
guntou  a  um  grupo  de  oito  meninas: 

—  Onde  nasce  o  arroz? 

Todas  oito  escancararam  a  boca  cheia  de  sopa,  e  res- 
ponderam ao  mesmo  tempo,  cantando: 

—  Nasce  na  água. 

Em  seguida  a  mestra  ordenou  que  todas  levantas- 
sem as  mãos.  Então  é  que  foi  bonito  ver  erguerem-se 
todos  aqueles  bracinhos  que  poucos  meses  antes  esta- 
vam ainda  envoltos  nas  faixas  infantis;  agitaram-se  aque- 
las mãos  pequeninas  que  pareciam  outras  tantas  borbo- 
letas brancas  e  róseas.  Depois  saíram  para  o  recreio,  ten- 
do antes  tomado  cada  uma  o  seu  cestinho  que  estava 
pendurado  na  parede  e  dentro  do  qual  levava  cada  uma 
a  sua  merenda.  Sairam  para  o  jardim,  e  espalharam-se, 
tirando  para  fora  dos  cestos  as  provisões,  pão,  ameixas 
cozidas,  um  pedacinho  de  queijo,  rnn  ôvo  cozido,  maçãs 
pequenas,  grãos  de  ervilha  e  uma  asa  de  frango.  Todo 
o  jardim,  se  cobriu  num  momento  de  migalhas,  como  se 


172  CORAÇÃO 

aí  se  tivesse  espalhado  milho  para  um  bando  de  passari- 
nhos. 

Comiam  de  todas  as  maneiras,  as  mais  extravagan- 
tes, parecendo  coelhos,  ou  ratos  e  gatos,  roendo,  lam- 
bendo e  chupando.  Havia  uma  pequena  que  trazia  ao 
peito  um  sino,  espécie  de  biscoito  longo  e  duro,  e  esfre- 
gava-o  com  uma  nêspera,  como  se  estivesse  polindo  uma 
espada;  algumas  machucavam  nas  mãos  queijinhos  fres- 
cos, que  lhes  escorriam  por  entre  os  dedos  que  nem 
leite,  passando-lhes  para  dentro  das  mangas,  com  os 
guardanapos  e  maçãs  presas  nos  dentes,  como  cãezinhos. 
Vi  três  que  remexiam  uma  palha  dentro  dum  ôvo  cozi- 
do, julgando  encontrar  ali  algum  tesouro;  espalhavam 
metade  pelo  chão,  apanhando  depois  os  bocadinhos,  com 
grande  paciência  como  se  fossem  pérolas.  Se  alguma 
possuia  qualquer  coisa  de  extraordinário,  era  logo  cer- 
cada por  oito  ou  dez  com  as  cabeças  inclinadas  a  olha- 
rem para  dentro  do  cestinho,  como  teriam  olhado  para 
a  lua  no  fundo  de  um  poço.  Estavam  talvez  vinte  em 
roda  de  um  menino,  todo  cheio  de  si  por  ter  na  mão 
ima  cartuchinho  de  açúcar;  e  todos  a  fazer-lhe  negaças 
por  ver  se  conseguiam  meter  dentro  o  pão,  e  êle  a  uns 
deixava,  mas  a  outros  apenas  consentia  que  metessem 
o  dedo  para  o  chupar  depois. 

Entretanto  minha  mãi,  que  tinha  também  vindo  ao 
jardim,  acariciava  ora  uma,  ora  outra.  Muitas  crianci- 
nhas andavam  em  volta  dela  a  pedir-lhe  beijos,  com  a 
carinha  levantada  para  cima  como  se  olhassem  para  um 
terceiro  andar,  abrindo  e  fechando  a  boca  como  para 
pedir  maminha.  Uma  oferecia-lhe  um  gomo  de  laranja 
meio  chupado,  outra  uma  codeazinha  de  pão;  uma  me- 
nina deu-lhe  uma  folha,  outra  mostrou-lhe  com  grande 
seriedade  a  ponta  de  um  dedo,  onde,  olhando  com  aten- 
ção, se  via  uma  bo,lhazinha  microscópica  que  fizera  no 
dia  anterior,  chegando  o  dedo  à  chama  de  um  lampeão. 
Punham-lhe  debaixo  dos  olhos,  como  grandes  maravi- 
lhas, insectos  pequeníssimos,  que  nem  sei  como  conse- 
guiam vê-los  e  apanhá-los,  rolhinhas  de  cortiça,  botõezi- 
nhos  de  camisa  e  florzinhas  arrancadas  dos  canteiros. 
Um  pequerrucho  com  a  cabeça  amarrada  de  ataduras  que- 


CORAÇÃO  173 

ria  ser  ouvido,  por  força,  e  tagarelava  não  sei  que  his- 
tória de  uma  cambalhota,  de  que  se  não  entendia  uma 
palavra.  Outro  quis  que  minha  mãi  se  curvasse  e  disse- 
-Ihe  ao  ouvido :  —  Meu  pai  faz  escovas.  —  Em  meio  de 
tudo  isso  aconteciam  aqui  e  ali  mil  desastrezinhos  que 
faziam  andar  as  mestras  numa  roda  viva;  crianças  que 
choravam  porque  não  podiam  desatar  o  nó  dum  lenço; 
outras  que  disputavam  a  berros  e  unhadas  duas  pevides 
de  maçãs;  um  pequenino  que  tinha  caído  de  bruços  so- 
bre um.a  cadeirinha  tombada,  e  chorava  sem  poder  le- 
vantar-se. 

Antes  de  sairmos,  minha  mãi  agarrou  pelos  braços 
três  ou  quatro,  então  correram  de  todos  os  lados  para 
se  deixarem  agarrar,  com  as  carinhas  sujas  de  gemas 
de  ovos  e  de  sumo  de  laranjas.  Uma  pegava-lhe  das 
mãos,  outra  puxava-lhe  pelo  dedo  para  ver  o  anel ;  qual 
a  puxar-lhe  pela  cadeia  do  relógio,  qual  a  querer  apa- 
nhar-lhe  as  tranças.  —  Cuidado !  —  diziam  as  mestras  — 
que  lhe  estragam  o  vestido!  —  Minha  mãi,  sem  se  im- 
portar com  o  vestido,  continuou  a  beijá-las  e  elas  cada 
vez  mais  se  agrupavam  em  torno  dela;  as  mais  próximas 
estendendo  os  bracinhos  como  quem  queria  subir;  as 
de  mais  longe  empurrando  as  outras  para  abrir  caminho, 
e  todas  gritavam:  adeus!  adeus!  adeus! 

Enfim,  minha  mãi  sempre  pôde  sair  do  jardim.  Cor- 
reram então  todas  a  meíer  as  cabecitas  entre  as  grades 
da  cancela  para  a  verem  passar  e  puseram  os  braços  de 
fora  para  saudar,  oferecendo  ainda  bocados  de  pão,  pe- 
dacinhos de  nêsperas  e  cascas  de  queijo,  todas  na  mesma 
gritaria. 

—  Adeus !  adeus !  adeus !  volta  amanhã,  vem  outra 
vez,  sim? 

Minha  mãi,  ao  passar,  correu  a  mão  por  aquelas  cem 
mãozinhas  abertas,  como  sobre  uma  grinalda  de  rosas 
vivas,  e  chegou  desembaraçada  à  rua;  mas  toda  coberta 
de  migalhas  e  de  nódoas,  amarrotada,  desgrenhada,  com 
uma  das  mãos  cheia  da  flores  e  os  olhos  cheioa  de  lá- 
grimas, contente,  como  se  saísse  de  uma  festa, 


174  CORAÇÃO 

E  lá  dentro  ouvia-se  ainda  um  murmúrio  de  vozes, 
como  um  longo  pipilo   de  pássaros  que  diziam: 
—  Adeus!  Adeus!  Vem  outra  vez! 


Na  gimnásíica 

Quarta-feira,  5 

Continuando  o  tempo  belíssimo,  fizeram-nos  passar 
da  gimnástica  de  salão  para  a  dos  aparelhos  no  jardim. 

Garrone  estava  ontem  no  gabinete  do  director,  quan- 
do chegou  a  mãi  de  Nelli,  aquela  senhora  loura  vestida 
de  preto,  pedindo  que  o  filho  fosse  dispensado  dos  novos 
exercícios.  Cada  palavra  lhe  custava  um  esforço,  e  fala- 
va pousando  a  mão  sobre  a  cabeça  do  pequeno.  —  Êle 
não  pode  —  dizia  ela  ao  director.  Mas  Nelli  mostrou-se 
muito  maguado  por  ser  excluído  dos  exercícios,  e  ainda 
mais  por  aquela  humilhação... 

—  Mamã,  verás  que  eu  faço  como  os  outros!  dizia. 
A  mãi  olhava-o  em  silêncio,  com  um  ar  de  piedade 

e  de  afecto.  Depois  observou  com  excitação: 

—  Receio  que  os  teus  companheiros... 
E,la  queria  dizer : '—  Temo  que  riam  dele. 

Não  fazem  nada;  está  lá  Garrone.  Basta  que  êle  se 
não  ria. 

Deixaram  enfim  que  êle  viesse.  O  mestre,  o  da  cica- 
triz no  pescoço,  o  que  andou  com  Garibaldi,  conduziu-nos 
logo  aos  mastros,  que  são  muito  altos;  era  necessário  tre- 
par até  cima,  e  ficar  em  pé  sobre  a  prancha  transversal. 
Derossi  e  Coretti  andaram  lá  por  cima  como  dois  maca- 
cos; Precossi  também  subiu  com  agilidade,  apesar  de 
embaraçado  com  aquele  jaquetão  que  lhe  bate  pelos  joe- 
lhos; e  para  ver  se  o  faziam  rir  enquanto  subia,  todos 
lhe  repetiam  o  seu  estribilho:  —  Desculpa-me,  descul- 
pa-me!  —  Stardi  bufava  e  ficava  vermelho  como  um  períí; 
apertava  os  dentes  que  nem  um  cão  danado ;  mas  ainda 
com  o  perigo  de  arrebentar,  havia  de  chegar  até  cima  e 
chegou  realmente ;  Nobis,  quando  se  viu  lá  no  a,lto,  tomou 
Virria  postura  de  imperador.  Mas  Voltini  escorregou  duas 


CORAÇÃO  175 

vezes  apesar  do  seu  vestido  novo,  de  listrinhas  azuis,  fei- 
to de  propósito  para  gimnástica.  Para  subir  mais  facil- 
mente, todos  untaram  as  mãos  com  uma  espécie  de  breu, 
colofónia,  como  lhe  chamam;  e  sabe-se  que  é  o  negociante 
do  Garoffi  que  a  fornece  em  pó  a  todos,  vendendo-a  a 
vintém  o  cartucho,  ganhando  uma  comissão.  Depois  to- 
cou a  vez  de  Garrone,  que  subiu  mastigando  pão,  como 
se  nada  fosse,  e  creio  que  seria  capaz  de  levar  sobre  os 
ombros  qualquer  de  nós,  tão  corpulento  e  tão  forte  que 
é  aquele  tourozinho !  Depois  de  Garrone  foi  Nelli.  Ape- 
nas o  viram  agarrar-se  à  barra  com  aqueles  braços  com- 
pridos e  débeis,  muitos  começaram  a  rir  e  a  zombar;  mas 
Garrone,  encruzando  os  grossos  braços  sobre  o  peito,  lan- 
çou em  torno  um  olhar  de  tal  modo  expressivo,  que  dava 
mesmo  a  entender  claramente  que  largaria,  à  primeira, 
quatro  sopapos,  mesmo  em  presença  do  mestre;  e  todos 
cessaram  de  rir  no  mesmo  instante.  Nel.li  começou  a  tre- 
par; forcejava,  coitado,  fazia-se-lhe  a  cara  arroxeada,  res- 
pirava a  custo  caía-lhe  o  suor  pela  testa. 

O  mestre  disse-lhe  —  desce  —  mas  êle  nada!  e  esfor- 
çava-se;  obstinava-se,  estava  eu  a  vê-lo  de  um  momento  a 
outro  resvalar  por  ali  abaixo,  meio  morto.  Pobre  Nelli ! 
estava  a  lembrar  quanto  sofreria  minha  mãi  se  me  visse 
assim  na  posição  dele,  e  pensando  no  bem  que  queria  a 
Nelli,  dando  não  sei  o  que,  para  vê-lo  acabar,  e  para  o 
ajudar  de  baixo,  sem  ser  visto.  Derossi  e  Coretti  diziam, 
no  entanto: 

—  Acima,  acima,  Neli!  força...  mais  um  bocadinho, 
ânimo!... 

E  Nelli  fez  ainda  um  esforço  violento,  dando  um  ge- 
mido, e  achou-se  a  dois  palmos  da  prancha. 

—  Bravo!  —  gritaram-lhe  os  outiros.  Coragem!  mais 
um  impulso!... 

E  eis  Nelli  agarrando-se  à  prancha.  Todos  batiam 
palmas.  —  Bravo! — 'disse  o  mestre  —  mas  agora  basta; 
desce- 

Nelli,  porém,  quiz  subir  até  cima  como  os  outros,  e 
com  um  pouco  mais  de  esforço  conseguiu  pôr  os  cotovelos 
em  cim.a  da  prancha,  depois  os  joellios,  por  último  os  pés. 

Por  fim  aprumou-se,  ofegante,  e  sorriu-nos, 


176  CORAÇÃO 

Tornamos  a  dar  palmas  e  então  êle,  voltou-se  para  o 
lado  da  rua ;  vojtei-me  também  para  o  mesmo  lado,  e  atra- 
vés das  plantas  que  marchetam  a  grade  do  jardim,  vi  a 
mãi  dele  que  estava  sobre  o  passeio,  sem  se  atrever  a  olhar. 

Nel,li  desceu  e  todos  lhe  fizeram  muita  festa;  estava 
excitado,  cerado,  brilhavam-lhe  os  olhos  e  não  parecia 
o  mesmo. 

Depois,  à  saída,  quando  a  mãi  lhe  veio  ao  encontro, 
preguntou-lhe  um  pouco  inquieta,  abraçando-o: 

—  Então,  meu  pobre  filho,  que  tal?  como  te 
saíste? 

Todos  os  companheiros  responderam  à  uma: 

—  Muito  bem!  subiu  como  nós.  É  forte!  É  ágil;  fez 
tal  qual  como  os  outros. 

Era  de  ver-se  então  a  alegria  daquela  senhora. 

Quiz  agradecer-nos  e  não  pôde...  apertou  a  mão  a  três 
ou  quatro,  fez  uma  carícia  a  Garrone,  e  levando  consigo 
o  filho,  vimo-los  por  um  pedaço  caminhar  à  pressa,  dis- 
correndo e  gesticulando  ambos,  e  tão  contentes  como 
nunca  vi  tanta  alegria. 

O  mesíre  de  meu  pai 

Terça-feira,  ii 

Que  magnífico  passeio  dei  com  meu  pai !  Foi  assim. 
Ante-ontem  ao  jantar,  meu  pai  lendo  o  jornal  soltou 
de  repente  uma  exclamação  de  surpresa.  E  disse: 

—  E  eu  que  o  julgava  morto  há  vinte  anos!  Querem 
saber  que  é  vivo  ainda  o  meu  primeiro  mestre  elemen- 
tar, Vicente  Crosetti,  que  tem  hoje  oitenta  e  quatro  anos? 
Leio  aqui  que  o  ministério  acaba  de  conferir-lhe  a  me- 
dalha ds  mérito,  por  sessenta  anos  de  professorado!  ses- 
senta anos,  compreendes?  E  apenas  há  dois  anos  que 
deixou  de  dar  aula.  Pobre  Crosetti!  Mora  a  uma  hora 
de  caminho  de  ferro  daqui,  em  Condove,  na  terra  da 
nossa  antiga  jardineira  da  vila  de  Chieri. 

E  ajuntou: -—Henrique!  Havemos  ambos  de  ir  vê-lo. 

E  em  toda  a  noite  não  falou  de  mais  nada,  ssnSo  dele 

O  nome  de  seu  mestre  elementar  trazia-lhe  à  memória 


CORAÇÃO 


177 


mil  coisas   de   quando   era  menino,   dos   seus   primeiros 
companheiros,  de  sua  mãi  já  morta. 

—  Crosseti !    exclamava  —  tinha    êle    quarenta    anos 
quando  fui  seu  discípulo.  Parece-me  que  o  estou  a  ver: 


um  homenzinho  já  um  pouco  curvado  com  os  olhos  cla- 
ros e  a  cara  sempre  rapada.  Era  severo,  mas  de  boas 
maneiras;  amava-nos  como  pai  mas  não  nos  perdoava 
uma  falta.  Era  um  simples  camponês,  e  subiu  assim  à 
força  de  estudo  e  de  privações.  Um  homem  de  bem.  Mi- 
nha mãi  era-lhe  muito  afeiçoada,  e  meu  pai  tratava-o 
como  a  um  amigo.  Como  foi  de  Turim  meter-se  em  Con- 

12 


J78  CORAÇÃO 

dove?...  De  certo  não  me  conhecerá;  não  importa,  re- 
conhecê-lo-ei. São  passados  quarenta  e  quatro  anos.  Hen- 
rique, iremos  vê-lo  amanhã. 

E  ontem  às  nove  horas,  estávamos  já  na  estação  do 
caminho  de  ferro  de  Susa.  Eu  bem  queria  que  viess^e 
também    Garrone,   mas   não    pôde,    porque    tinha   a  mai 

doente. 

Estava  um   belo   dia   de   primavera.   O   trem   corna 
por  entre  os  prados  verdejantes  e  sebes  em  flor,  e  res- 
pirava-se  um  ar  perfumado.  Meu  pai,  contente,  de  quan- 
do  em  quando  punha-me  o  braço  em  volta  do  pescoço  e 
falava-me  como  a  um  amigo.  E  olhando  para  a  campma: 
—  Pobre  Crosetti!  dizia.  Foi  êle  o  primeiro  homem 
que  me  acariciou  e  mais  bem  me  fez,  depois  de  meu  pai. 
Nunca  esqueci  os  seus  bons  conselhos,  nem  algumas  das 
admoestações  tão  ásperas  que  me  faziam  voltar  a  casa 
com  um  nó  na  garganta.  Tinha  as  mãos  grossas  e  curtas. 
Estou  a  vê-lo  ainda,  quando  entrava  na  escola,  po^do  » 
bengala  a  um  canto,  e  pendurando  o  capote  no  cabide, 
sempre  da  mesma  forma.  Todos  os  dias  o  mesmo  hu- 
mor; sempre  consciencioso,  cheio  de  boa  vontade  e  aten- 
to, como  se  cada  dia  fosse  o  primeiro  em  que  dava  aula. 
Recordo-me,  como  se  o  estivesse  ouvindo  agora,  quando 
êle  se  dirigia  a  mim.  —  Bottini,  eia,  Bottini!   olha  que 
é  o   dedo   indicador  e  o  médio   sobre   a  caneta.  — Deve 
estar  muito  mudado  depois  de  quarenta  e  quatro  anos! 
Apenas  chegámos  a  Condove,  fomos  procurar  a  jar- 
dineira de  Chieri  que  tem  uma  loja  de  vinhos  num  beco. 
Achamo-la   com   os   seus  meninos;   fez-nos  muita   festa, 
deu-nos  notícias  do  marido,  que  deve  voltar  da  Grécia, 
onde  está  a  trabalhar  há  três  anos,  e  da  filha  mais  velha 
que  está  no  Instituto  dos  Surdos-Mudos,  em  Turim.  De- 
pois  ensinou-nos  o   caminho   para  ir  a  casa  do  mestre, 
que  é  lá  conhecido  por  todos. 

Saímo^.  da  povoação  e  tomámos  por  uma  ladeira  m- 
<^reme,  flanqueada  de  moitas  em  flor.  Meu  pai  ia  calado. 
Sarecia  todo  absorto  nas  suas  recordações,  e  de  vez  em 
quando  sorria  e  sacudia  a  cabeça.  De  repente  parou,  di- 
zendo : 

Ei-lo !  aposto  que  é  êle. 


CORAÇÃO  179 

Vinha  descendo  pelo  atalho  em  direcção  a  nós  um 
velho  baixo  com  a  barba  toda  branca,  chapéu  grande, 
apoiando-se  a  uma  bengala.  Arrastava  os  pés,  e  tremiam- 
-Ihe  as  mãos. 

—  É  êle,  repetiu  meu  pai,  apressando  o  passo. 
Quando   chegamos   ao   pé,   paramos;    o   velho   parou 

também  e  olhou  para  meu  pai.  Tinha  o  rosto  ainda  fresco, 
e  os  olhos  claros  e  vivos. 

—  O  senhor  é  —  preguntou  meu  pai  tirando  o  cha- 
péu—  o  mesitre  Vicente   Crosetti? 

O  velho  descobriu-se  também  e  respondeu:  —  Sou  eu 
—  com  a  voz  trémula,  mas  ainda  cheia. 

—  Bem  —  disse  meu  pai  pegando-lhe  na  mão — per- 
mita a  um  seu  antigo  discípulo  o  prazer  de  apertar-lhe  a 
mão,  e  preguntar-lhe  como  está.  Vim  de  Turim  para  o 
ver. 

A  velho  olhou  para  êle,  espantado,  dizendo  em  se- 
guida: 

—  Faz -me  muita  honra;  não  sei...  meu  discípulo,  des- 
culpe-me...  o  seu  nome  por  obséquio? 

Meu  pai  disse  o  nome  —  Alberto  Bottini,  o  ano  em 
que  frequentara  a  sua  escola  e  onde,  acrescentando: 

—  O  senhor  não  se  recorda  de  mim,  é  natural,  mas 
eu  reconheço-o  perfeitamente. 

O  mestre  inclinou  a  cabeça,  e  olhando  para  o  chão, 
pensando,  duas  ou  três  vezes  murmurou  o  nome  de  meu 
pai,  que  entretanto  olhava  para  êle,  com  o  olhar  fixo, 
jovialmente.  De  repente,  o  velho  levantou  a  cabeça,  arre- 
galou os  olhos,  e  disse  vagarosamente: 

—  Alberto  Bottini...  O  filho  do  engenheiro  Bottini? 
aquele  que  morava  na  praça  Delia  Consolaita? 

—  Esse  mesmo  —  respondeu  meu  pai,  estendendo-lhe 
as  m.ãos. 

—  Então... — disse  o  velho  —  permita-me,  caro  se- 
nhor, permita-me...  e  avançando  um  passo,  abraçou  meu 
pai ;  a  sua  cabeça  branca  apenas  lhe  chegava  ao  ombro. 
Meu  pai  apoiou  a  face  sobre  a  fronte  dele. 

—  Tenha  a  bondade  de  vir  comigo,  disse  o  mestre. 
E  sem  falar,  voltou-se  e  tomou  o   caminho  que   ia 

para  casa. 


180  CORAÇÃO 

Em  poucos  minutos  chegámos  a  um  terreiro,  diante 
de  uma  pequena  casa  com  duas  portas  e  um  pedaço  de 
muro  caiado  de  branco. 

O  mestre  abriu  a  porta  e  fez-nos  entrar  numa  sala. 
Eram  quatro  paredes  brancas.  Num  canto,  um  leito  de 
cavaletes  com  uma  coberta  de  quadradinhos  brancos  e 
azues;  no  outro,  uma  mesa  com  uma  pequena  estante, 
quaitro  cadeiras  e  uma  velha  carta  geográfica  suspensa 
na  parede.  Sentia-se  um  cheiro  agradável  de  maçãs. 

Sentamo-nos  todos  três.  Meu  pai  e  o  mestre  olha- 
ram-se  por  alguns  momentos  em  silêncio. 

—  Bottini !  exclamou  depois  o  mestre,  fixando  os 
olhos  no  chão  de  tijolos,  que  com  o  sol  fazia  o  efeito 
de  um  itaboleiro  de  xadrez.  —  «Agora  me  vou  recordando 
bem;  a  sua  excelente  mãi  era  tão  boa  senhora!  No  pri- 
meiro ano,  esteve  o  senhor  no  primeiro  banco  à  esquer- 
da, próximo  da  janela.  Veja  lá  se  me  recordo.  Estou  a 
ver  ainda  os  seus  cabelos  em  anéis».  Depois  esteve  um 
pouco  a  pensar.  —  Era  um  rapaz  muito  vivo.  No  segundo 
ano  adoeceu  de  crup,  recordo-me  até  de  quando  voltou 
à  escola,  muito  magro,  e  embrulhado  num  chalé.  Já  lá 
vão  quarenta  anos,  não  é  verdade?  E  que  bondade  tama- 
nha em  recordar-se  e  vir  ver  o  seu  pobre  mestre!  Já 
aqui  têm  vindo  outros,  meus  antigos  discípulos  visitar- 
-me;  um  coronel,  alguns  sacerdotes  e  vários  senhores». 

Preguntou  a  meu  pai  qual  era  a  sua  profissão.  E  de- 
pois disse: 

—  Muito  me  alegro!  de  todo  o  coração!  Agradeço- 
-Ihe  muito.  Há  já  bastante  tempo  que  não  via  nenhum 
antigo  discípulo,  e  receio  bem  que  o  senhor  seja  o  últi- 
mo, meu  bom  amigo. 

—  Para  que  diz  isso?  exclamou  meu  pai  —  o  senhor 
está  bom  e  ainda  robusto.  Não  deve  falar  assim. 

—  Oh!  não  respondeu  o  mestre  —  veja  esta  tremura 
—  e  mostrou  as  mãos.  —  Isto  é  mau  sinal.  Apareceu-me 
esta  moléstia  há  trinta  anos  quando  ainda  dava  aula.  A 
pincipio  não  fiz  caso,  julguei  que  era  incómodo  passa- 
geiro; mas,  ao  contrário,  ficou  e  foi  aumentando,  até 
que  um  dia  chegou  que  não  pude  mais  escrever.  Ah!  aquele 
dia,  a  primeira  vez  que   fiz   um  borrão  no   caderno   de 


CORAÇÃO  181 

um  discípulo,  foi  um  golpe  para  o  meu  coração,  caro 
senhor;  trabalhei  ainda  por  algum  tempo,  mas  afinal 
não  pude  mais.  Depois  de  sessenta  anos  de  ensino,  devia 
dizer  adeus  à  escola,  aos  rapazes,  ao  trabalho!  custou- 
-me  muito;  a  última  vez  que  dei  lição,  acompanharam-me 
todos  a  casa;  fizeram-me  uma  festa,  mas  eu  estava  muito 
triste,  compreendia  que  a  minha  vida  estava  acabada.  Já 
um  ano  antes  tinha  perdido  minha  mulher  e  meu  único 
filho;  ficaram-me  apenas  dois  sobrinhos  camponeses. 
Agora  vivo  de  algumas  centenas  de  liras  de  pensão;  não 
faço  mais  nada.  Os  dias  parece-me  que  nunca  se  acabam. 
A  minha  ocupação  é  folhear  os  meus  livros  velhos  de 
escola,  algumas  colecções  de  jornais,  escolares  e  um  ou 
outro  livrinho  de  que  me  têm  feito  presente.  Estão  a^i, 
disse  apontando  para  uma  pequena  livraria,  estão  ali  as 
minhas  recordações  e  todo  o  meu  passado.  Nada  mais 
me  resta  do  mundo. 

Depois,  num  tom  alegre: 

—  Quero  fazer-lhe  uma  surpresa,  meu  caro  senhor 
Bottini. 

Levantou-se,  aproximou-se  da  mesa,  abriu  uma  ga- 
veta onde  estavam  muitos  pacotinhos,  todos  amarrados 
com  um  cordão,  e  sobre  cada  um  dêjes  via-se  escrita  uma 
data  com  quatro  algarismos.  Depois  de  ter  procurado  um 
pouco,  abriu  um,  folheou  muitos  papéis,  tirou  uma  fô^ha 
amarela,  e  apresentou-a  a  meu  pai.  Era  trabalho  da  esco- 
la feito  havia  quarenta  anos!  Em  cima  estava  escrito:  3 
de  Abril  de  1838,  Alberto  Bottini.  Meu  pai  conheceu  logo 
a  sua  letra  grande,  de  então,  e  pôs-se  a  ler  sorrindo;  mas 
de  repente,  humedeceram-se-lhe  os  olhos.  Levantei-me  e 
fui  preguntar  o  que  tinha. 

Passou-me  um  braço  em  volta  da  cinta  e,  apertando- 
-me  ao  peito,  disse: 

—  Olha  esta  folha-  Vês?  Estas  são  as  correcções  da 
minha  pobre  mãi.  Ela  engrossava-me  sempre  os  //  e  os  tt. 
As  últimas  .linhas  são  todas  de  sua  mão.  Aprendera  a 
imitar  a  minha  letra,  e  quando  eu  estava  cansado  e  tinha 
sono,  era  ela  quem  terminava  o  trabalho  por  mim!  a  mi- 
nha santa  mãi ! 

E  beijou  a  página. 


182  CORAÇÃO 

—  Estão  aqui,  disse  o  mestre,  mostrando  os  outros 
pacotes  —  as  minhas  memórias.  Todos  os  anos  punha  de 
parte  um  trabalho  de  cada  iim  dos  meus  discípulos,  e  es- 
tão todos  aqui  em  ordem  e  numerados.  Às  vezes  £olheio-os 
6  leio  uma  linha  aqui,  outra  ali,  e  vêm-me  ao  espírito  mil 
coisas;  parece-me  reviver  os  anos  passados.  E  quantos 
não  são  já  passados,  meu  caro  senhor!  Fecho  os  olhos  e 
vejo  rostos  após  rostos,  classes  após  classes,  centenares 
e  centenares  de  crianças,  e  quantas  destas  não  terão  já 
morrido!  De  muitas  me  recordo  bem.  Recordo-me  prin- 
cipalmente dos  melhores  e  dos  piores,  daqueles  que  me 
deram  satisfação  e  dos  que  me  fizeram  passar  momentos 
de  tristeza.  Porque  eu  tive  também  ingratos  como  deve 
saber,  e  em  não  pequeno  número,  mas  agora,  bem  vê,  é 
como  se  estivesse  já  no  outro  mundo,  quero  bem  a  todos, 
igualmente. 

Tornou  a  sentar-se  e  tomou  uma  das  minhas  mãos 
entre  as  suas. 

E  de  mim?  —  preguntou  meu  pai,  sorrindo.  —  Não 
se  lembra  das  minhas  travessuras? 

—  Do  senhor !  respondeu  o  velho  com  um  sorriso  — 
neste  momento  não.  Mas  isto  não  quere  dizer,  de  modo 
nenhum,  que  as  não  tivesse  feito.  Porém  o  senhor  tinha 
muito  juízo  para  a  sua  idade,  era  um  rapaz  sério.  Recor- 
do-me da  grande  afeição  que  Jhe  tinha  a  senhora  sua  mãi. 
Mas  teve  muita  bondade  e  muita  gentileza  em  vir  pro- 
curar-me.  Como  pôde  deixar  as  suas  ocupações  para  vir 
visitar  o  pobre  velho  mestre? 

—  Ouça,  sr.  Crosetti !  —  respondeu  meu  pai  vivamen- 
te. —  Recordo-me  da  primeira  vez  que  minha  bôa  mãi  me 
acompanhou  à  escola.  Era  a  primeira  vez  que  ela  devia 
separar-se  de  mim  por  duas  horas,  e  deixar-me  fora  de 
casa,  em  outras  mãos  que  não  fossem  as  de  meu  pai,  nas 
mãos  de  uma  pessoa  deconhecida,  em  suma.  Para  aquela 
bôa  criatura,  a  minha  entrada  na  escola  era  como  a  entra- 
da no  mundo,  a  primeira  de  uma  longa  série  de  separa- 
ções necessárias  e  dolorosas;  era  a  sociedade  que  lhe  ar- 
rebatava pela  primeira  vez  o  filho,  para  não  mais  lho  res- 
tituir inteiro  e  completamente,  Estava  comovida  e  eu 
também.  Recomendou-me  ao  senhor  com  a  voz  trémula,  e 


CORAÇÃO  183 

depois,  saindo,  ainda  me  saudou  já  fora  da  porta,  com  os 
olhos  rasos  de  lágrimas.  Lembro-me  que  nesse  momento, 
o  senhor  lhe  fez  um  aceno  com  a  mão,  pondo  a  outra  no 
peito,  como  para  dizer-lhe:  «Confie  em  mim».  Pois  bem, 
meu  mestre,  aquele  gesto,  acompanhado  de  um  olhar,  pe- 
lo qual  percebi  que  compreendera  todos  os  afectos  e  to- 
dos os  pensamentos  de  minha  mãi,  aquele  olhar  que 
queria  dizer  —  Coragem!  aquele  gesto  que  era  uma  ho- 
ncòta  promessa  de  protecção,  de  afecto  e  de  indulgência, 
não  o  esqueci  mais,  gravou-se-me  no  coração  para  sempre ; 
e  foi  essa  recordação  que  me  fez  partir  de  Turim.  E  eis- 
-me  aqui,  depois  de  quarenta  e  quatro  anos,  a  dizer-lhe: 

—  obrigado,  querido  mestre. 

O  mestre  não  respondeu.  Acariciava-me  os  cabelos 
com  a  mão,  e  a  mão  trémula  caía-me  dos  cabelos  sobre  a 
testa,  e  da  testa  sobre  os  ombros. 

No  entanto,  meu  pai  olhava  para  as  paredes  nuas, 
para  o  modesto  leito,  para  um  pedaço  de  pão  e  uma  lata 
de  azeitonas  que  estavam  sobre  a  janela,  e  parecia  dizer: 

—  Pobre  mesitre !  Depois  de  sessenta  anos  de  trabalho,  é 
este  todo  o  seu  prémio? 

Mas  o  bom  velho  estava  contente  e  principiou  de  no- 
vo a  falar  com  vivacidade  da  nossa  família,  dos  outros 
mestres  do  seu  tempo  e  dos  companheiros  de  escola  de 
meu  pai,  que  de  uns  se  recordava,  e  de  outros  não;  e  so- 
bre cada  um,  dava  noticias  disto  e  daquilo,  quando  meu 
pai  interrompendo  a  conversa  pediu  ao  mestre  que  viesse 
à  povoação  para  almoçarmos  juntos.  Êle  respondeu  com 
«xpansão : 

—  Agradeço,  agradeço. 

—  Mas,  parecia  indeciso.  Meu  pai  pegou-lhe  das  mãos 
e  instou  de  novo. 

—  Mas  como  me  arranjarei  eu  para  comer?  —  disse 
o  mestre.  —  Com  estas  pobres  mãos  que  me  bailam  desta 
maneira?  É  uma  penitência  até  para  os  outros... 

—  Nós  o  ajudaremos,  mestre,  disse  meu  pai. 
Aceitou  então,  abanando  a  cabeça  e  sorrindo. 

—  Um  belo  dia  este!  —  exclamou,  fechando  a  porta 
por  fora;  um  magnífico  dia,  caro  senhor  Botini.  Assegu- 
ro-lhe  o  que  o  hei-de  recordar  sempre  até  o  fim  da  vida. 


184  CORAÇÃO 

Meu  pai  deu  o  braço  ao  mestre,  este  pegou-me  na 
mão,  e  descemos  a  rampa.  Encontramos  duas  raparigui- 
nhas  descalças  que  conduziam  umas  vacas  e  um  rapaz  que 
passou  correndo  com  um  feixe  de  palha  aos  ombros.  O 
mestre  disse-nos  que  eram  duas  escolares  e  um  estudante 
da  segunda,  que  de  manhã  levavam  o  gado  a  pastar  e  tra- 
balhavam nos  campos,  descalços,  e  de  tarde  calçavam  os 
sapatos  e  iam  à  escola.  É  quási  meio-dia.  Não  encontra- 
mos ninguém. 

Em  poucos  minutos  chegamos  à  hospedaria,  sentá- 
mo-nos  a  uma  grande  mesa,  ficando  no  meio  o  mestre,  e 
principiamos  logo  a  almoçar.  A  hospedaria  estava  silen- 
ciosa como  um  convento. 

O  mestre  estava  muito  contente  e  com  a  comoção  au- 
tnentava-lhe  muito  a  tremura.   Quási   não   podia   comer. 

Mas  meu  pai  partia-lhe  a  carne  e  o  pão,  punha-lhe 
o  sal  no  prato.  Para  beber  precisava  sustentar  o  copo  com 
as  mãos  ambas,  e  ainda  assim  lhe  tilintavam  os  dentes; 
mas  descorria  com  certo  calor  sobre  os  livros  de  leitura, 
de  quando  era  moço,  os  horários  de  então,  os  elogios  que 
ihe  tinham  feito  os  superiores,  os  regulamentos  dos  úl- 
timos anos.  sempre  com  aquele  rosto  sereno,  um  pouco 
mais  corado  do  que  antes,  com  a  voz  alegre  e  um  sorriso 
quási  de  meço.  Meu  pai  olhava  para  ele,  e  olhava  com  a 
mesma  expressão  com  que  o  surpreendia  muitas  vezes  a 
olhar  para  mim,  em  casa,  quando  pensa  e  sorri  consigo 
mesmo.  O  mestre  deixou  cair  vinho  no  peito;  meu  pai  le- 
vantou-se  e  limpou-o  com  o  guardanapo. 

—  Oh!  por  quem  é,  senhor,  não  consinto  —  disse  ele 
rindo-se  e  murmurou  a,lgumas  palavras  em  latim. 

Por  último  levantou  o  copo,  que  lhe  dansava  na  mão, 
e  articulou  muito  sério:  —  À  sua  saúde,  caro  senhor  enge- 
nheiro, à  saúde  de  seus  filhos  e  à  memória  de  sua  boa 
mãi, 

—  À  sua,  meu  bom  mestre !  —  respondeu  meu  pai 
apertando-lhe  a  mão- 

No  fundo  da  sala  estavam  o  dono  da  hospedaria  e 
outros,  que  olhavam  e  sorriam  de  um  modo  que  se  via  es- 
tarem contentes  com  aquela  festa  que  se  fazia  ao  mestre 
da  sua  terra. 


CORAÇÃO  185 

Às  duas  da  tarde  saímos.  O  mestre  quiz  acompanhar- 
nos  até  à  estação.  Meu  pai  deu-lhe  de  novo  o  braço,  e  êle 
tornou  a  pegar-me  pela  mão.  Eu  levava-lhe  a  bengala.  A 
gente  passava  e  olhava  porque  todos  o  conheciam;  alguns 
cumprimentavam-no.  A  certa  altura  da  estrada,  ouvimos 
de  uma  janela  muitas  vozes  de  meninos  que  liam  juntos, 
soletrando.  O  mestre  parou,  e  pareceu  ficar  triste. 

—  Aí  está,  caro  senhor  Botini  —  disse  —  o  que  me 
faz  penar  é  ouvir  a  voz  das  crianças  na  escola  e  não  estar 
eu  lá  e  saber  que  está  outro !  Por  espaço  de  sessenta  anos 
ouvi  aquela  música  e  já  tinha  o  coração  habituado  a  ela. 
Agora  estou  sem  família,  não  tenho  mais  filhos. 

—  Não,  mestre!  —  disse-lhe  meu  pai  continuando  a 
caminhar.  O  senhor  tem  ainda  muitos  filhos  espalhados 
neste  mundo,  que  se  recordam  do  senhor,  como  eu  me  re- 
cordei sempre. 

—  Não,  não  —  respondeu  o  mestre  com  tristeza.  Já 
não  tenho  escola,  já  não  tenho  filhos.  E  pouco  viverei 
sem  eles-  A  minha  hora  está  chegando. 

—  Não  diga  isso,  nem  pense  em  semelhante  coisa, 
mestre!  —  acudiu  meu  pai.  Em  todo  o  caso,  o  senhor  fez 
tanto  bem!  empregou  a  sua  vida  tão  nobremente, 

O  velho  mestre  inclinou  a  cabeça  branca  sobre  o  om- 
bro de  meu  pai  e  apertou-lhe  a  mão.  Tínhamos  entrado  na 
estação  e  ia  partir  o  comboio. 

—  Adeus!  querido  mestre!  —  disse  meu  pai,  beijan- 
do-o  nas  faces. 

—  Adeus!  e  muito  obrigado!  adeus...  respondeu  o 
mestre,  tomando  com  as  mãos  trémulas  uma  das  mãos  de 
meu  pai,  apertando-a  sobre  o  coração. 

Depois  beijei-o  e  senti-lhe  o  rosto  húmido. 

Meu  pai  impeliu-me  para  o  carro,  e  quando  ia  subir, 
tirou  rapidamente  da  mão  do  mestre  o  bastão  grosseiro, 
e  trocou-o  pela  sua  magnífica  bengala  de  castão  de  ouro 
com  as  suas  iniciais  dizendo-lhe: 

—  Conserve-a  para  memória  minha. — ^O  velho  pro- 
curou restituír-lha  e  tornar  a  receber  a  sua,  mas  meu  pai 
estava  já  dentro,  e  tinha  fechado  a  portinhola  do  carro. 

—  Adeus,  meu  bom  mestre! 

—  Adeus,  meu  filho,  —  respondeu  o  velho  quando  o 


186  CORAÇÃO 

comboio  começava  a  mover-se.  Deus  o  abençoe  pela  conso- 
lação que  veio  trazer  a  este  pobre  velho. 

—  Até  à  vista  li — gritou  meu  pai,  com  a  voz  comovi- 
da. 

Mas  o  mestre  sacudiu  a  cabeça  como  quem  queria  di- 
zer: «Não  nos  veremos  mais». 

—  Sim,  sim,  —  repetiu  meu  pai  —  até  à  vista. 

E  êle  respondeu,  levantando  a  mão  trémula  ao  céu: 

—  Lá  em  cima... 

E  movendo-se  o  comboio,  o  velho  mestre  desapare- 
ceu aos  nossos  olhos,  assim,  com  a  mão  levantada... 

Convalescença 

Quinta-feira,  20 

Quem  me  diria,  quando  voltava  tão  alegre,  com  meu 
pai,  daquele  belo  passeio,  que  passariam  dez  dias  sem 
ver  nem  os  campos  nem  o  céu! 

Estive  muito  doente,  em  perigo  de  vida.  Ouvi  minha 
mãi  chorar,  vi  meu  pai  muito  pálido  a  olhar-me  fixamen- 
te; minha  irmã  Silvia  e  meu  irmão,  falando  baixo  entre 
si,  e  o  médico,  com  os  seus  óculos,  sempre  junto  de  mim, 
dizendo  coisas  que  eu  não  compreendia.  Estive,  com  efei- 
to, a  ponto  de  dizer  o  último  adeus  a  todos.  Ah!  pobre 
de  minha  mãi !  Passaram-se  pelo  menos  três  ou  quatro 
dias  de  que  quási  nada  me  recordo,  como  se  tivesse  tido 
um  sonho  complicado  e  obscuro.  Entretanto,  lembro-me 
de  ter  visto  à  cabeceira  da  cama  a  minha  mestra  da  primei- 
ra superior,  que  se  esforçava  por  sufocar  a  tosse  com  o 
lenço,  para  não  me  acordar;  e  recordo-me  também,  con- 
fusamente, de  meu  mestre  que,  inclinando-se  para  me  bei- 
jar, roçou-me  a  cara  com  a  barba;  e  vi  passar  como  uma 
névoa  a  cabeça  ruiva  de  Crossi,  os  anéis  louros  de  Derossi, 
o  calabrês  vestido  de  preto  e  Garrone,  que  trouxe  um  ra- 
minho de  amêndoas  com  folhas,  e  saiu  logo,  porque  sua 
mãi  estava  doente.  Depois  despertei  como  se  acordasse 
de  um  sono  longuíssimo,  e  percebi  que  estava  melhor  ven- 
do meu  pai  e  minha  mãi  que  sorriam,  e  ouvindo  Silvia  que 


CORAÇÃO  187 

cantarolava.  Oh!  que  triste  sonho  tive!  Depois  principiei 
a  melhorar  todos  os  dias.  Veio  ver-me  o  Pedreirito,  que 
me  fez  rir  pela  primeira  vez  com  o  seu  focinho  de  lebre. 
E  como  o  faz  bem,  agora  que  ficou  com  a  cara  mais  com- 
prida por  causa  da  moléstia  que  teve!  Coitado!  Veio  tam- 
bém Coretti,  e  veio  Garotti,  que  me  trouxe  dois  bilhetes 
de  presente,  para  uma  rifa  que  vai  fazer  com  cinco  sur- 
presas, que  comprou  a  um  bufarinheiro  da  praça  de  Ber- 
tola.  Ontem,  também,  enquanto  dormia,  veio  Precossi, 
encostou  a  face  nas  costas  da  minha  mão,  sem  me  desper- 
tar, e  como  vinha  da  oficina  do  pai,  com  o  rosto  enegreci- 
do de  carvão,  deixou-me  um  sinal  negro  no  punho  da  ca- 
misa, que  vi  com  grande  prazer,  quando  acordei.  Como  se 
tornaram  verdes  as  árvores  nestes  poucos  dias!  E  que  in- 
veja me  fazem  os  meninos  que  vejo  correr  para  a  escola 
com  os  livros,  quando  meu  pai  me  leva  à  janela.  Mas  den- 
tro em  pouco  irei  também.  Estou  impaciente  por  ver  ou- 
tra vez  todos  os  meus  colegas,  a  minha  carteira,  o  jardim, 
aquelas  ruas;  saber  tudo  o  que  tem  acontecido  nesse  tem- 
po ;  tornar  a  entregar-me  aos  livros,  aos  cadernos,  que  já 
me  parece  não  ver  há  mais  de  um  ano.  Pobre  de  minha 
mãi  que  está  tão  magra  e  tão  pálida!  Pobre  de  meu  pai 
que  está  tão  abatido !  E  os  meus  bons  companheiros  que 
vieram  visitar-me  e  andavam  na  ponta  dos  pés  e  me  bei- 
javam a  fronte!  Faz-me  tristeza  agora  que  me  lembro  que 
nm  dia  nos  havemos  de  separar.  Com  Derossi  e  mais  al- 
guns continuarei  a  estudar  ainda,  de  certo,  mas  os  outros? 
Uma  vez  terminada  a  quarta,  adeus;  não  nos  veremos 
mais.  Nunca  mais  os  terei  à  minha  cabeceira,  quando  es- 
tiver doente,  Garrone,  Precossi,  os  belos  rapazes,  os  bons 
e  queridos  companheiros,  nunca  mais! 

Os  amigos  operários 

Çuinta-feira,  20 

«Nunca  mais,  e  porquê,  Henrique?  Isso  dependerá  de  tL 
Acabada  a  4.*  classe,  irás  para  o  liceu;  eles  serão  operários  mas 
ficarás  na  mesma  cidade  e  talvez  por  muitos  anos.  E  porque  en- 


188  CORAÇÃO 

tão  os  não  verás  mais?  Quando  estiveres  na  Universidade  ou  no 
Liceu,  poderás  procurá-los  nas  suas  lojas  e  nas  suas  oficinas, 
e  sentirás  grande  prazer  tornando  a  ver  os  teus  companheiros 
de  infância,  já  homens,  a  trabalhar.  Sempre  quizera  ver  se  não 
irias  procurar  Coretti  e  Precossi,  onde  quer  que  estivessem! 
Hás-de  ir  lá  e  hás-de  passar  muitas  horas  em  sua  companhia, 
estudando  a  vida  e  o  mundo,  aprendendo  com  eles  muitas  coi- 
sas que  outros  não  te  saberiam  ensinar,  a  respeito  das  suas  artes, 
da  sua  sociedade  e  do  teu  país.  E  nota  que,  se  não  conservares 
estas  amizades,  será  difícil  que  adquiras  outras  semelhantes  no 
futuro;  amizades,  quero  dizer,  fora  da  classe  a  que  pertences; 
viverás  assim  numa  classe  só,  e  o  homem  que  frequenta  uma  só 
classe  social,  é  como  o  estudioso  que  não  lê  senão  um  livro. 
Prepara-te,  portanto,  desde  já  para  conservar  aqueles  bons 
amigos  para  quando  estiverdes  separados,  e  começa  desde  já  a 
preferi-los,  por  isso  mesmo  que  são  filhos  de  operários.  Os  ho- 
mens das  classes  superiores  são  os  oficiais,  e  são  os  operários 
os  soldados  do  trabalho;  mas  assim  na  sociedade  como  no  exér- 
cito, o  soldado  não  é  menos  do  que  o  oficial,  porque  a  no- 
breza está  no  trabalho  e  não  no  dinheiro;  no  valor  e  não  nos  ga- 
lões; mas  se  há  uma  superioridade  no  mérito,  pertence  esta  ao 
soldado  e  ao  operário,  porque  tiram  menor  proveito  da  própria 
obra.  Ama  pois  e  respeita,  entre  todos  os  teus  companheiros, 
03  filhos  dos  soldados  do  trabalho;  honra  neles  as  fadigas,  os  sa- 
crifícios de  seus  pais,  despreza  as  diferenças  de  fortuna  e  de 
classe,  pelas  quais  só  os  homens  vis  regulam  os  sentimentos 
e  a  cortesia,  e  pensa  que  o  sangue  abençoado  que  resgatou  a 
nossa  pátria  saiu  quási  todo  das  veias  dos  operários  das  ofici- 
nas e  dos  trabalhadores  dos  campos.  Ama  Garrone,  attia  Precos- 
si, ama  Coretti,  ama  o  teu  pedreirito,  pois  no  peito  desses  peque- 
nos operários  palpita  corações  de  príncipes;  jura  a  ti  mesmo  que 
nenhuma  mudança  de  fortuna  poderá  jamais  arrancar  estas  san- 
tas amizades  infantis  da  tua  alma.  Jura  que  se  daqui  a  quarenta 
anos,  passando  por  uma  estação  de  caminho  de  ferro,  reconhece- 
res, metido  na  blusa  de  maquinista,  o  teu  velho  Garrone,  com  a 
cara  empoeirada...  ah!  não  preciso  do  teu  juramento;  estou  cer- 
to que  saltarias  à  máquina  e  te  lançarias  nos  braços  do  teu  amigo, 
ainda  que  fosses  senador. 

Teu  pai. 


CORAÇÃO  189 


À  mãide  Garrone 


Sábado,  2g 


Triste  notícia  logo  que  voltei  à  escola!  Há  muitos 
dias  Garrone  não  aparecia,  porque  a  mãi  estava  gravemen- 
te doente.  Sábado  à  noite  morreu. 

Ontem  de  manhã,  apenas  entramos  na  escola,  disse- 
-nos  o  mestre: 

—  Ao  pobre  Garrone  feriu  a  maior  desgraça  que  pode 
ferir  um  homem:  morreu-lhe  a  mãi.  Amanhã  voltará  êle 
e  peço-vos  que  respeitem  aquela  terrível  dor  que  lhe  dila- 
cera a  mão.  Quando  êle,  entrar,  saiidai-o  com  afecto; 
nenhum  gracejo,  nenhum  riso,  peço-vos. 

E  esta  manhã,  um  pouco  mais  tarde  do  que  os  outros, 
entrou  o  pobre  Garrone.  Senti  um  golpe  no  coração  ao 
vê-lo.  Tinha  o  rosto  amortecido,  os  olhos  vermelhos,  e  mal 
se  sustinha  nas  pernas;  parecia  ter  estado  um  mês  de  ca- 
ma. Quási  se  não  reconhecia;  vinha  todo  vestido  de 
preto,  fazia  compaixão. 

Ninguém  respirava,  e  todos  olhavam  para  êle.  Apenas 
entrou  e  viu  outra  vez  aquela  escola,  onde  sua  mãi  vinha 
buscá-lo  quási  todos  os  dias,  aquela  carteira  onde  tantas 
vezes  ela  se  inclinara  nos  dias  dos  exames  para  lhe  fazer  a 
última  recomendação,  olhou  par  o  lugar  onde  tantas  vezes 
tinha  pensado  nela,  impaciente  por  sair  para  correr-lhe 
ao  encontro  e  caiu  num  pranto  desesperado.  O  mestre 
chamou-o  para  ao  pé  de  si,  apertou-o  ao  peito  e  disse-lhe: 

—  Chora,  chora,  pobre  criança,  mas  tem  ânimo.  Tua 
mãi  já  não  existe  nesite  mundo;  mas  vê-te,  ama-te  ainda, 
vive  ao  teu  lado,  e  has-de  tornar  a  vê-Ja,  porque  és  uma 
alma  boa  e  honesta.  Tem  coragem! 

Dito  isto,  acompanhou-o  até  à  carteira  junto  à  mi- 
nha. 


190  CORAÇÃO 

Eu  não  ousava  olhar  para  ele.  Tirou  os  cadernos  e 
os  livros  que  não  tinha  folheado  havia  muitos  dias  e 
abrindo  um  livro  de  leitura,  que  tem  uma  vinheta  repre- 
sentando o  retrato  de  uma  mãi  com  o  filho  pela  mão, 
prorrompeu  a  chorar  de  novo  num  pranto  copioso,  dei- 
xando pender  a  cabeça  sobre  o  braço.  O  mestre  fez-nos 
sinal  para  que  o  deixássemos  estar  assim,  e  princi- 
piou a  lição.  Eu  desejava  falar-lhe,  mas  nem  sabia  o  que 
lhe  havia  de  dizer.  Pus-lhe  uma  das  mãos  no  braço  e 
disse-lhe  ao  ouvido: 

—  Não  chores,  Garrone ! 

E  êle  não  respondeu  e,  sem  levantar  a  cabeça  da 
carteira,  pôs  a  sua  mão  na  minha  e  deixou-a  ficar  algum 
tempo.  À  saída  ninguém  lhe  falou;  todos  o  rodeavam 
com  respeito  e  silêncio. 

Eu  vi  minha  mãi,  que  me  esperava,  e  corri  a  abra- 
çá-la; porém  ela,  com  os  olhos  fitos  em  Garrone  repeliu- 
-me!  À  primeira  vista  não  percebi  porquê,  mas  depois 
notei  que  Garrone  sozinho,  um  pouco  afastado,  olhava 
para  mim  com  um  olhar  de  inexprimível  tristeza,  que 
queria  dizer:  «Abraças  tua  mãi,  e  eu  não  abraçarei  mais 
a  minha...  Tu  tens  ainda  a  tua  mãi  viva,  e  a  minha  mor- 
reu! 

E  então  compreendi  a  razão  porque  minha  mãi  me 
repelira,  e  saí  sem  dar-lhe  a  mão. 


José  Maziní 

Sábado,  2§ 


Garrone  ainda  veio  esta  manhã  à  escola;  trazia  os 
olhos  inchados  de  chorar  e  apenas  olhou  para  os  pe- 
queninos presentes  que  lhe  tínhamos  posto  sobre  a  car- 
teira para  o  consolar.  O  mestre  tinha  trazido  uma  pá- 
gina de  um  livro  para  lhe  ler  e  incutir  coragem.  Pri- 


CORAÇÃO  191 

meiro  advertiu-nos  de  que  nós  iríamos  todos  amanhã,  ao 
meio-dia,  à  Câmara  Municipal  para  ver  entregar  a  me- 
dalha de  valor  cívico  a  um  rapaz  que  salvara  uma  crian- 
ça do  rio  Pó;  e  que  na  segunda-feira  nos  ditaria  a  des- 
crição da  festa  em  lugar  do  conto  mensal.  Depois,  vol- 
tando-se  para  Garrone,  que  estava  de  cabeça  baixa,  disse- 
-Ihe: 

—  Garrone,  faz  um  esforço  e  escreve  também  o  que 
vou  ditar. 

Todos  pegaram  na  pena.  O  mestre  ditou: 
«José  Mazini  nasceu  em  Génova  em  1805,  faleceu 
em  Pisa  em  1872.  Grande  alma  de  patriota,  grande  en- 
genho de  escritor,  inspirador  genial,  o  primeiro  após- 
tolo da  revolução  italiana,  que  por  amor  da  pátria  viveu 
quarenta  anos  pobre,  proscrito,  perseguido,  errante,  heroi- 
camente firme  nos  seus  princípios  e  nos  seus  propósitos; 
José  Mazini  adorava  sua  mãi  e  herdara  dela,  quanto  na 
sua  alma  fortíssima  e  nobre,  existia  de  mais  alto  e  mais 
puro.  A  um  seu  fiel  amigo  assim  escrevia  êle  para  o 
consolar  na  maior  das  desventuras.  São  pouco  mais  ou 
menos  estas  as  suas  palavras: 

«Amigo!  não  tornarás  a  ver  mais  tua  mãi  neste  mundo. 
Ê  esta  a  tremnda  verdade.  Não  vou  ter  contigo,  porque  a  tua 
dor  é  daquelas  dores  solenes  e  santas  que  é  necessário  sofrer 
e  vencer  por  si  só.  Compreendes  o  que  quero  dizer  com  estas 
palavras:  Ê  necessário  vencer  a  dor!  Vencer  o  que  a  dor  tem 
de  menos  santo  e  de  menos  purificador,  o  que  em  vez  de  me- 
lhorar a  alma,  a  enfraquece  e  a  baixa.  Mas  a  outra  parte  da 
dor,  a  parte  nobre,  aquela  que  engrandece  e  eleva  a  alma, 
essa  deve  ficar  contigo  e  não  te  deve  deixar  mais  nunca.  Nada 
neste  mundo  substitui  uma  mãi.  Ou  nas  dores,  ou  nas  conso- 
lações que  a  vida  te  pode  dar  ainda,  nunca  a  esquecerás.  De- 
ves, porém,  recordá-la,  amá-la  e  sentir  a  sua  morts  de  um 
modo  digno  dela.  Amigo,  escuta-me!  A  morte  não  existe,  a 
morte  nada  é.  Não  se  pode  compreendê-la. 

A  vida  é  vida,  e  segue  a  própria  lei,  o  progresso.  Ainda 
ontem  tinhas  tua  mãi  na  terra,  hoje  tens  um  anjo  em  outro 
lugar;  tudo  o  que  é  bom  sobrevive,  e,  engrandecido  de  poder, 
toma   à   vida   terrena.   Assim   também   o   amor   d©   tua   mãi.    Ela 


192  CORAÇÃO 

ama-te  agora  mais  do  que  nunca.  E  tu  és  responsável  peias 
tuas  acções  em  relação  a  eia,  e  das  tuas  obras  depende  en- 
contrá-ia,  tornar  a  vê-la  em  uma  outra  existência.  Deves,  pois, 
por  amor  e  reverência  a  tua  mãi  tornar-te  meiiior  e  dar-liie 
alegria.  Deverás  dora  avante,  em  cada  um  dos  teus  actos  in- 
quirir de  ti  mesmo:  aprová-io-à  minlia  mãi?  A  sua  transforma- 
ção deu-te  no  mundo  um  anjo  da  guarda,  a  quem  deves  re- 
ferir todas  as  tuas  ações.  Sê,  pois,  forte  e  bom;  resiste  à  dor 
desesperada  e  vulgar,  mas  conserva  a  tranqiiilidade  das  gran- 
des almas  nos  grandes   sofrimentos.   É   isso   o   que   ela   quare». 

—  Garrone  —  acrescenitou  o  mestre  —  sê  forte  e 
tranquiliza-te ;  é  isso  o  que  ela  quere  —  entendes? 

Garrone  acenou  que  sim  com  a  cabeça,  e  no  entanto, 
caíam-lhe  as  lágrimas  copiosas,  grossas,  sobre  a  carteira. 


Valor  cívico 

(CONTO  MENSAL) 


Ao  meio  dia  estávamos  com  o  mestre  diante  do  pa- 
lácio municipal,  para  ver  entregar  a  medalha  de  valor 
cívico  ao  rapaz  que  salvou  o  companheiro  do  rio 
Pó. 

No  terraço  da  fachada  flutuava  uma  grande  bandeira 
tricolor. 

Entramos  no  átrio  do  palácio. 

Já  estava  cheio.  Viam-se  ao  fundo  uma  mesa  com 
um  pano  vermelho  tendo  em  cima  papeis,  e,  por  trás, 
uma  fila  de  poltronas  douradas  para  o  síndico  e  para  a 
junta;  os  guardas  do  município  estavam  de  fardamento 
azul  e  meias  brancas.  A  direita  estava  enfileirado  um 
destacamento  de  soldados  da  guarda  cívica,  cobertos  de 
medalhas,  e  ao  lado  dele  um  pelotão  de  guardas  da  al- 
fândega. Do  outro  lado,  os  bombeiros  com  fardamento 
de  gala  e  muitos  soldados  de  cavalaria,  caçadores  e  arti- 
lheiros, que  foram  aí  apenas  para  ver.  Em  volta  estava 


CORAÇÃO 


193 


tudo  cheio  de  senhores,  de  paisanos,  de  oficiais,  de  mu- 
lheres e  crianças  que  se  acotovelavam.  Nós  reiinimo- 
-nos  a  um  canto,  onde  estavam  já  apinhados  alguns  alu- 
nos de  outras  secções  com  os  seus  mestres,  e  próximo 
_  .j;;,,^  de  nós,    acha- 

L^Í-;^.:ívTí._  -. ,,,^, 


va-se  um  grupo 
de  rapazes  do 
povo,  de  entre 
dez  a  dezoito 
anos,  que  riam 
e  falavam  ani- 
m  a  d  aniente,  • 
via-se  que  eram 
todos  d  a  mar- 
g  e  m  do  Pó, 
companheiros  e 
conhecidos  da- 
quele que  ia 
ganhar  a  meda- 
lha. Em  cima, 
de  todas  as  janelas,  debruçavam-se  empregados  do  mu- 
nicípio, e  até  a  galaria  da  biblioteca  estava  repleta  de 
gente,  que  se  oprimia  centra  a  balaustrada.  No  lado  opos- 
to viam-se,  como  imprensadas,  grande  número  de  m.ani- 
nas  das  escolas  públicas  e  muitas  filhas  dos  militares, 
com  os  seus  véus  azul  celeste.  Parecia  um  teatro. 

Todos  conversavam  alegres,  olhando  a  cada  momento 
para  o  lado  da  mesa  vermelha,  a  ver  se  aparecia  alguém. 
A  banda  de  música  tocava  em  andamento  vagaroso,  ao 
fundo  do  pórtico. 

Nas  paredes  batia  o  sol. 
Belíssimo! 

De  repente,  os  que  estavam  no  átrio,  nas  galarias  e 
nas  janelas  começaram  todos  a  bater  palm.as.  Pus-me 
nas  pontas  dos  pés  para  ver. 

A  multidão  que  estava  por  detrás  da  mesa  vermelha 
rompeu-se,  e  apareceram  à  frente  um  homem  e  uma  m.u- 
Iher.  O  homem  trazia  pela  mão  um  menino.  Era  o  que 
tinha  salvado  o  companheiro.  O  homem  era  o  pai  um.  pe- 
dreiro, vestido  de  festa;  a  mulher  era  a  mãi,  pequena  e 


13 


IH  CORAÇÃO 

loura,  vestida  de  preto.  O  rapaz  também  pequeno  e  louro, 
trajava  jaquetão  cinzento. 

Ao  ver  tanta  gente  e  ao  ouvir  tão  grande  estrépido 
de  aplausos,  ficaram  todos  três  de  modo  que  não  ousavam 
olhar  nem  mover-se.  Um  guarda  municipal  colocou-se  ao 
lado  da  mesa  direita.  Tudo  ficou  calado  um  momento,  e 
depois  ruidosamente  elevaram-se  os  aplausos  de  todas  as 
partes.  O  rapaz  olhou  para  as  janelas  e  depois  para  as  ga- 
larias das  filhas  dos  militares;  tinha  o  chapéu  entre  as 
mãos,  e  parecia  não  compreender  bem  onde  estava.  Achei 
que  se  parecia  um  pouco  com  Coretti,  no  rosto,  mas  um 
pouco  mais  corado.  O  pai  e  a  mãi  tinham  os  olhos  fitos 
na  mesa. 

No  entanto,  todos  os  rapazes  do  lado  do  rio  Pó,  que 
estavam  ao  pé  de  nós,  apresentaram-se  à  frente,  faziam 
gestos  ao  seu  companheiro,  para  que  este  os  visse,  chama- 
vam-no  em  voz  baixa:  «Pin!  Pin!  Pinot!...» 

À  força  de  o  chamar,  conseguiram  fazer-se  ouvir-  O 
rapaz  olhou  para  eles  e  escondeu  o  sorriso  por  detrás  do 
chapéu. 

Em  certo  momento  os  guardas  perfi^aram-se. 

Entrou  o  síndico,  acompanhado  de  muitos  senhores. 
O  síndico,  todo  de  branco,  com  uma  grande  faxa  tricolor, 
aproximou-se  da  mesa.  Ficou  de  pé  e  todos  os  outros  fi- 
caram por  detrás  e  dos  lados. 

A  banda  cessou  de  tocar  e  a  um  gesto  do  síndico  tu- 
do se  calou. 

Êle  principiou  então  a  falar.  As  primeiras  palavras 
não  as  entendi  bem,  mas  compreendi  que  contava  o  suce- 
dido. Depois  levantou  a  voz,  que  se  espalhou  clara  e  so- 
nora por  todo  o  átrio,  e  não  perdi  mais  uma  palavra. 

«Quando  viu  do  cais  o  companheiro  que  se  debatia 
nas  águas,  já  tomado  pelo  terror  da  morte,  despiu-se  pre- 
cipitadamente e  correu  sem  hesitar  um  momento.  Grita- 
ram-no :  Af ogas-te  —  e  ê,le  não  respondeu.  Agarraram-no, 
e  êle  soltou-se.  Chamaram-no  pelo  nome  e  já  êle  estava  na 
água!  O  rio  rolava  cheio,  e  era  terríve,!  o  perigo,  mesmo 
para  um  homem.  Mas  arremessou-se  contra  a  morte,  com 
tAda  a  força  do  seu  pequeno  corpo  e  do  seu  grande  cora- 
çSo;  foi  até  deitar  a  mão  ao  desgraçado,  que  já  estava 


CORAÇÃO  195 

mergulhado,  e  trouxe-o  à  tona  da  água.  Lutou  furiosa- 
mente com  a  onda  que  queria  tragá-lo,  com  o  companheiro 
que  tentava  agarrar-se-lhe;  muitas  vezes  desapareceu, 
para  reaparecer  de  novo  por  um  desesperado  esforço,  obs- 
tinado e  invencível  no  seu  santo  propósito,  não  como  uma 
criança  que  tentasse  salvar  outra  criança,  mas  como  um 
homem,  como  um  pai  que  lutasse  para  salvar  um  filho 
que  fôssse  a  sua  esperança  e  a  sua  vida!  Afinal  Deus  não 
permitiu  que  tão  generosa  coragem  ficasse  inútil.  E  o 
nadador  arrancou  a  vítima  ao  rio  gigante;  trouxe-a  à 
terra  e  prestou-lhe  ainda  com  os  outros  os  primeiros  so- 
corros; depois  do  que,  voltou  para  casa,  só  e  tranquilo, 
a  contar  ingenuamente  o  que  havia  feito.  Senhores!  Belo, 
venerável,  é  o  heroísmo  do  hom.em!  Mas  numa  criança,  a 
quem  nada  pedimos,  porque  em  nada  a  avaliamos ;  que  nos 
parece  já  muito  nobre  e  digna  de  ser  amada,  não  quando 
faça,  mas  quando  compreenda  e  reconheça  os  sacrifícios 
de  outrem;  na  criança  o  heroísmo  é  alguma  coisa  de  divi- 
no! Nada  mais  direi,  senhores!  Não  quero  ornar  de  lou- 
vores supérfluos  uma  tão  simples  grandeza.  Ei-lo  aqui 
diante  de  vós,  o  salvador  valoroso  e  gentil.  Soldados!  sau- 
dai-o  como  a  um  irmão;  mais!  abençoai-o  como  a  um  fi- 
lho; crianças,  recordai-vos  do  seu  nome;  fixai  na  mente  as 
suas  feições,  e  que  elas  não  se  apaguem  mais  da  vossa 
memória  nem  do  vosso  coração.  Em  nome  do  rei  da  Itá- 
lia, eu  te  dou  a  medalha  de  valor  cívicoy>. 

Um  viva  altíssimo,  levantado  ao  mesmo  tempo  por 
muitas  vozes,  ecoou  em  todo  o  palácio. 

O  síndico  tomou  de  sobre  a  mesa  a  medalha,  e  pren- 
deu-a  ao  peito  do  rapaz.  Depois  abraçou-o  e  beijou-o. 

A  mãi,  pôs  uma  das  mãos  sobre  os  olhos;  o  pai  tinha 
a  cabeça  inclinada  sobre  o  peito. 

O  síndico  apertou  a  mão  a  ambos,  e  pegando  no  de- 
creto, da  condecoração,  atado  com  uma  fita,  entregou-o 
à  mãi. 

Depois  dirigiu-se  ao  rapazinho  e  disse: 

«Que  a  recordação  deste  dia  tão  glorioso  para  ti,  tão 
feliz  para  teu  pai  e  para  tua  mãi,  te  mantenha  por  toda 
a  vida  no  caminho  da  virtude  e  da  honra.  Adeus- 

O  síndico  saiu,  a  Í7anda  tocou,  e  tudo  par«c^a  ac«ba'de, 


196  CORAÇÃO 

quando  o  destacamento  dos  bombeiros  se  abriu  e  uma 
criança  de  oito  a  nove  anos,  impelida  para  a  frente  por 
uma  mulher  que  logo  se  escondeu,  foi  direita  ao  condeco- 
rado, e  estreitou-o  entre  os  braços.  Um  outro  estrondo  de 
vivas  e  aplausos  retumbou  por  todo  o  átrio.  Todos  com- 
preenderam ,logo  que  era  aquele  o  rapaz,  salvo  do  no  Po, 
que  vinha  agradecer  ao  seu  salvador.  Depois  de  o  ter  bei- 
jado, agarrou-se-lhe  a  um  braço  para  acompanhá-lo  à  saída. 
Eles  adiante,  o  pai  e  a  mãi  atrás,  caminhavam  para  a  por- 
ta da  saída,  passando  a  custo  entre  o  povo  que  fazia  alas 
à  sua  passagem  —  guardas,  meninos,  mulheres,  tudo  em 
confusão.  Todos  tentavam  chegar-se  à  frente,  e  punham- 
-se  nas  pontas  dos  pés  para  ver  o  hercizinho.  Os  que  esta- 
vam na  frente,  na  passagem  apertaram-ihe  a  mao.  Quando 
passou  diante  dos  alunos  das  escolas  do  Po  fizeram  um 
crrande  barulho,  puxando-lhe  pejos  braços  e  pela  jaqueta, 
gritando :  — Pin !  viva  Pin!  Bravo,  Pinot!  eu  vi-o  passar 
mesmo  perto  de  mim.  Estava  com.  o  rosto  corado  e  muito 
contente.  A  medalha  de  ouro  tinha  uma  fita  branca,  ver- 
melha e  verde.  A  sua  mãizinha  chorava  e  sorria,  o  pai 
torcia  o  bigode  com  uma  das  mãos,  que  lhe  tremia  como 
«e  tivesse  febre;  e  de  cima  das  janelas  e  das  galenas  de- 
brucavam-se  todos  a  aplaudir.  De  repente  quando  estava 
a  cheo-ar  debaixo  do  pórtico,  veio  de  cima,  da  galena  das 
fVhss   dos  militares,   uma  verdadeira   chuva   da   amores 
perfeitos,  de  raminhos  de  violetas  e  de  margaridas,  que 
caíam  sobre  a  cabeça  do  heroizinho,  do  pai  e  da  mai,  es- 
nalhando-se    depois   pelo    chão.   Muitos   apanhavam-os   a 
pressa  e  entregavam-nos  à  mãi.  A  banda  do  fundo  do  atrio 
tocava  uma  ária  belíssima,  que  parecia  o  canto  de  muitas 
vozes  arí^entinas,  que  vagarosamente   pelas  margens   de 
um  rio,  se  fossem  afastando,  perdendo-se  ao  longe. 


CORAÇÃO 
•  MAIO 


197 


ÀS  crianças  raquíticas 

Sexta-feira,  5 

Hoje  .não  fui  à  escola  porque  não  estava  bom,  e  mi- 
nha mãi  levou-me  consigo  ao  Instituto  dos  meninos  raquí- 
ticos, onde  ia  recomendar  uma  menina,  filha  do  porteiro, 
mas  não  me  deixou  entrar  na  escola... 

«Não  compreendeste,  Henriqua,  porque  não  te  deixei  en- 
trar? Para  não  pôr  diante  daqueles  desgraçados,  ali  no  meio 
da  escola,  quási  como  em  exposição,  um  menino  são  e  robusto. 

Muitas  ocasiões 
têm  eles  já  de 
se  achar  em 
comparações  do- 
lorosas. Que 
triste  coisa!  So- 
bem-me  as  lá- 
grimas do  cora- 
ção ao  entrar  lá 
dentro.  Eram 
uns  sessenta  en- 
tre meninos  e 
meninas.  Pobres 
ossos  tortura- 
do s  !  pobres 
mãos!  pobres 
pezinhos  con- 
frangidos e  tor- 
tos !  Pobres 
corpinhos  alei- 
jados! Observei 
logo  à  entrada  muitas  criancinhas  simpáticas  9  olhos 
cheios  de  afectos.  Havia  uma  pequerrucha  com  o  nariz  afi- 
lado e  o  queixo  pequeno,  que  parecia  uma  velhinha;  mas  ti- 
iha   um   sorriso   de   suavidade   celeste.   Alguns   d«   frente,    são 


198  CORAÇÃO 

belos  e  nâo  parecem  deftituosoa;  mas  voltam-s»  •  comprime- 
-se-nos  o  coração.  Estava  o  médico  a  fazer  a  visita.  Punha-os 
em  pé  em  cima  dos  bancos,  e  levaníava-lhes  os  vestidinhos 
para  tocar-lhes  no  ventre  inchado  e  nas  articulações  intume- 
cidas;  mas  não  se  envergonhavam  disso,  pobres  criaturas!  Bem 
se  via  que  eram  crianças  acostumadas  a  ser  despidas,  examina- 
das e  voltadas  de  todos  os  lados...  E  pensar  que  ainda  agora 
elas  estão  no  período  mais  suave  da  doença,  que  quási  nada  so- 
frem!... Mas  quem  pode  imaginar  os  seus  sofrimentos  ao  prin- 
cipiar a  desformação  do  corpo,  quando  com  o  crescer  da  enfer- 
midade sentirem  diminuir  o  afecto  em  torno  de  8Í,  pobres  crian- 
ças deixadas  horas  e  horas  sozinhas  no  canto  de  uma  sala  ou 
de  um  pátio,  mal  nutridas,  às  vezes  ainda  atormentadas,  meses 
e  meses  com  ligaduras  e  aparelhos  ortopédicos  inúteis! 

Agora,  porém,  graças  aos  cuidados,  à  boa  alimentação  e  à 
gimnástica,  muitas  melhoram. 

A  mestra  mandou-as  fazer  gimnástica.  Fazia  compaixão  vê- 
-las,  obedecendo  às  vozes,  esticar  debaixo  dos  bancos  todas 
aquelas  perninhas  enfaixadas  e  apertadas,  cheias  de  inchações 
e  aleijões,  aquelas  perninhas  que  seriam  cobertas  de  beijos! 
Muitas  não  podiam  levantar-se  do  banco,  e  ficavam  ali  coni  a 
cabeça  encostada  ao  braço,  acariciando  a  muleta  com  a  mão; 
outras  faziam  movimentos  com  o  braço,  mas  faltava-lhes  a 
respiração  e  caíam  sobre  o  banco,  pálidas,  mas  sorrindo  para 
dissimularem  o  cansaço.  Ah!  Henrique,  vós  outros  que  ten- 
des saúde,  não  sabeis  aprsciá-la,  parecendo-vos  coisa  de  pe- 
queno valor.  Eu  pensava  nos  rapazes  fortes  e  florescentes  de 
viço,  que  as  mais  levam,  como  em  triunfo,  soberbas  da  sua 
beleza;  e  sentia-me  capaz  de  estreitar  ao  coração  todas  aque- 
las cabecinhas  e  dizer-lhes:  «Se  eu  fosse  só,  não  sairia  mais 
daqui,  consagrar-vo3-ia  a  vida,  servir-vos-ia  de  mãi  a  vós  to- 
das, até  ao  meu  último  dia».  E  também  têm  aptidões  aqueles 
anjinhos,  e  estudam,  disse-me  a  mestra,  uma  senhora  jovem 
e  gentil,  que  tem  a  fisionomia,  cheia  de  bondade,  certa  ex- 
pressão de  tristeza,  como  um  reflexo  das  desventuras  que  ela 
acaricia  e  consola.  Santa  mulher!  Entre  todas  as  crianças  hu- 
manas que  ganham  a  vida  com  o  trabalho,  não  há  nenhuma 
que  ganhe  a  vida  mais  santamente  do  que  tu,  minha  boa  filha. 

Tua  MSi. 


CORAÇÃO 


19Q 


Sacrifício 


Terça-feira,  g 


Minha  n:ãi  é  boa  e  minha  irmã  Silvia  é  também  como 
ela,  tem  o  mesmo  coração  grande  e  nobre.  Eu  estava  co- 
piando ontem  à  noite  uma  parte  do  conto  mensal  —  Dos 
Apeninos  aos  Andes  —  que  o  mestre  repartiu  por  uns 
poucos  para  copiar,  quando  Silvia  entrou  nos  bicos  dos 
pés  e  me  disse  apressadamente: 


—  Vem  comigo,  onde  está  a  mamã.  Ouvi  esta  manhS 
o   papá   dizer,   quando    conversávamos,   que    lhe   correra 


200  CORAÇÃO 

mal  um  negócio,  e  estava  aborrecido;  a  mamã  animava-o; 
estamos  em  máa  circunstâncias,  entendes?  Não  há  dinhei- 
ro; o  papá  disse  mais,  que  lhe  era  necessário  fazer  sacri- 
fícios para  equilibrar-se.  Ora,  é  necessário  que  nós  faça- 
mos também  sacrifícios  iguais,  não  te  parece?  Estás 
pronto?...  Bem;  eu  vou  falar  à  mamã;  tu  hás-de  dizer- 
-lhe  que  sim,  que  prometes  fazer  o  que  eu  disser. 

Dito  isto,  pegou-me  da  mão  e  levou-me  à  mamã,  que 
estava  cosendo  rnuito  pensativa.  Sentei-me  de  um  lado 
do  sofá,  e  Silvia  disse-ihe  sem  rodeios: 

—  Ouve,  mamã,  nós  temos  que  te  falar. 

A  mamã  olhou  para  nós  maravilhada  e  Sílvia  prin- 
cipiou: 

—  O  papá  está  sem  dinheiro,  não  é  verdade? 

—  Que  dizes?  respondeu  nossa  mãi,  corando.  —  Não 
é  exacto;  que  sabes  tu?  quem  te  contou  isso? 

—  Eu  sei,  disse  Sílvia  reso,lutamente.  Ouça  mamã*. 
a  nós  também  deve  tocar  uma  parte  dos  sacrifícios.  A 
mamã  tinha-me  prometido  um  leque  para  o  fim  de  maio, 
e  Henrique  esperava  a  sua  caixa  de  tintas.  Pois  bem,  não 
queremos  coisa  alguma;  não  queremos  que  se  gaste  di- 
nheiro; ficaremos  satisfeitos  do  mesmo  modo,  entende? 

A  mamã  tentou  falar,  mas  Sílvia  disse: 

—  Não ;  há-de  ser  assim,  temos  decidido.  E  enquanto 
o  papá  não  tiver  dinheiro  não  queremos  mais  frutas  nem 
mais  nada;  bastar-nos-á  a  sopa,  e  de  manhã  ao  almoço 
comeremos  pão;  assim  gastar-se-á  menos  com  a  mesa, 
com  que  se  dispende  muito.  E  nós  prometemos  andar 
sempre  contentes  como  até  aqui.  Não  é  verdade,  Hen- 
rique? 

Respondi  que  sim.  E  ela  repetiu  pondo  a  mão  na 
boca  da  mamã:  —  Sempre  contentes  da  mesma  maneira! 
E  se  há  outros  sacrifícios  a  fazer,  ou  seja  no  vestir  ou 
no  que  fôr,  nós  os  faremos  de  boa  vontade;  também  se 
podem  vender  os  nossos  brinquedos.  Dou  todas  as  mi- 
nhas coisas  e  sirvo  de  criada  de  quarto;  não  daremos 
mais  nada  a  fazer  fora  de  casa,  trabalharei  com  a  mamã 
todo  o  dia  e  farei  quanto  quiser,  porque  estou  disposta  a 
tudo. 

—  A  tudo !  —  exclamou,  lançando  os  braços  ao  pes- 


CORAÇÃO  201 

coço  de  minha  mai  —  contanto  que  o  papá  e  a  mamã  não 
tenham  mais  desgostos,  e  que  continuemos  e  vê-los  am- 
bos tranquilos  e  de  bom  humor  como  até  aqui,  juntos  da 
sua  Sílvia  e  do  seu  Henrique,  que  lhes  querem  tanto  bem 
e  que  dariam  a  vida  por  eles. 

Ah!  nunca  vi  minha  mãi  íáo  contente  como  ao  ou- 
vir aquelas  palavras;  nunca  nos  beijou  nas  faces  daquele 
modo,  entre  chorando  e  rindo,  sem  poder  falar. 

Depois  assegurou  a  Sílvia,  que  esta  tinha  compreen- 
dido mal,  que  não  estávamos  reduzidos  ao  que  julgava, 
felizmente;  e  cem  vezes  nos  agradeceu,  ficando  alegre 
toda  a  noite,  até  que  meu  pai  entrou,  e  ela  contou-lhe 
tudo.  Meu  pobre  pai  não  disse  nada.  Mas  esta  manhã, 
sentando-me  à  mesa...  experimentei  um  grande  prazer 
e  uma  grande  tristeza  ao  mesmo  tempo.  Debaixo  do 
guardanapo,  encontrei  a  caixinha  de  tintas  e  Sílvia  achou 
o  leque. 

O  incêndio 

Quinta-íeira,  ii 

Esta  manhã,  tinha  eu  acabado  de  copiar  a  minha 
parte  da  história  Dos  Apeninos  aos  Andes,  e  procurava 
um  tema  para  a  composição  livre  que  devia  fazer,  quan- 
do ouvi  um  rumor  estranho  nas  escadas,  e  logo  depois 
entraram  dois  bombeiros,  que  pediram  a  meu  pai  licença 
para  examinar  as  estufas  e  as  chaminés,  porque,  diziam, 
via-se  sair  fumo  de  cima  do  telhado,  sem  saber  de  onde 
vinha.  Meu  pai  disse :  —  Examinem !  e  apesar  de  não  ter- 
mos fogo  aceso  em  parte  alguma,  eles  principiaram  a  en- 
trar nos  quartos  e  a  aplicar  o  ouvido  às  paredes  para 
averiguar  se  sentiam  o  rumorejar  do  fogo  nos  tubos  que 
vão  para  os  outros  andares  da  casa.  Enquanto  os  bom- 
beiros andavam  pelos  quartos,  meu  pai  disse-me: 

—  Henrique !  aí  tens  tu  um  bom  tema  para  a  tua  com- 
posição «Os  bombeiros».  Experimenta  um  pouco  escre- 
ver o  que  te  vou  contar. 

Vi-os  trabalhar  há  dois  anos,  quando  saía  do  tea- 
tro Balbo,  já  tarde.  Entrando  na  rua  de  Roma,  vi  um  cla- 
rão desusado,  e  uma  onda  de  gente  que  corria.  Uma  casa 


202  CORAÇÃO 

estava  a  arder,  línguas  de  íògo  e  nuvens  de  fumo  irrom- 
piam das  janelas  e  do  tecto;  homens  e  mu,lheres  apare- 
ciam às  janelas  e  desapareciam  lançando  gritos  desespe- 
rados. Era  grande  o  tumulto  em  frente  da  porta.  A  mul- 
tidão gritava:  Morrem  queimados:  socorro!  Os  bom- 
beiros! 

Chegara  um  carro  nessa  ocasião  e  dele  saltaram  qua- 
tro bombeiros  municipais,  os  primeiros  que  comparece- 
ram, e  entraram  apressadamente  na  casa.  Mal  tinham  en- 
trado, prcsenciou-se  uma  cena  horrível.  Uma  mulher  de- 
bruçou-se,  gritando  de  uma  janela  do  terceiro  andar;  su- 
biu ao  peitoril,  e  ficou  agarrada,  quási  suspensa  no  ar, 
com  as  costas  para  fora,  curvada  por  baixo  do  fumo  e 
das  chamas,  que,  saindo  pela  janela,  quási  lhe  crestavam 
os  cabelos.  A  multidão  soltou  um  grito  de  horror.  Os 
bombeiros,  detidos  por  engano  no  segundo  andar  pelos 
inquijinos  aterrados,  tinham  já  destruído  uma  parede  e 
entrado  precipitadamente  numa  sala,  quando  cem  vozes 
gritaram:— No  terceiro  andar! 

Voaram  ao  terceiro  andar.  Aí  eram  as  ruínas  do  in- 
ferno! traves  do  tecto  que  desabavam,  o  corredor  cheio 
de  labaredas  e  nuvens  de  fumo  que  sufocava,  para  que 
pudessem  chegar  às  salas  onde  estavam  os  inquilinos  fo- 
ragidos, o  único  remédio  era  passar  pelo  telhado.  Subi- 
ram sem  hesitação,  e  um  minuto  depois  apareceu  sobre 
as  telhas  como  que  um  fantasma  negro,  entre  a  fumaça. 
Era  o  cabo  de  bombeiros,  que  primeiro  tinha  chegado. 
Mas  para  atingir  a  parte  do  telhado  que  correspondia 
ao  quarto  invadido  pelo  fogo,  era  necessário  passar  por 
um  espaço  estreitíssimo,  compreendido  entre  uma  tra- 
peira e  a  borda  do  telhado.  Tudo  mais  ardia.  A  pequena 
passagem,  coberta  de  neve  e  de  gelo,  não  tinha  ponto  al- 
gum de  apoio.  —  É  impossível  passar !  —  gritava  de  bai- 
xo a  multidão.  O  cabo  avançou  para  a  beira  do  telhado: 
todos  estremeceram  e  ficaram  a  olhar,  com  a  respiração 
suspensa.  Passou;  um  imenso  viva  subiu  ao  céu.  O  cabo 
continuou  a  correr,  e  chegando  ao  ponto  ameaçado  come- 
çou a  quebrar  furiosamente,  a  golpes  de  machado,  te- 
lhas, traves,  ripas,  para  abrir  um  buraco  por  onde  pu- 
desse penetrar  e  descer  ao  interior.  No  entanto  a  mu- 


CORAÇÃO  203 

Iher  continuava  suspensa  para  fora  da  janeja,  o  fogo 
rastejava-lhe  pela  cabeça;  mais  um  minuto,  precipitar- 
-se-ia  na  rua. 

O  buraco  estava  aberto,  e  viu-se  o  cabo  tirar  o  bol- 
drié e  descer. 

Os  outros  bombeiros  que  já  lá  estavam,  seguiam-no. 
No  mesmo  momento,  uma  altíssima  escada  apropriada,  tra- 
zida então,  foi  encostada  à  cornija  da  casa,  em  frente  das 
janelas    donde    saíam    chamas  e  gritos    desesperados  de 
verdadeiros   loucos!   Julgava~se  que   fosse  tarde.  —  Nin- 
guém se  salva,  gritavam.   Os    bombeiros    morrem  quei- 
mados! Acabou!   Estão  mortos!  —  De  repente    apareceu 
à  janela  do  peitoril  a  figura  negra  do  cabo  de  bombeiros, 
iluminada  de  cima  abaixo  pelas  chamas.  A  mulher  agar- 
rou-se-lhe  ao    pescoço,  e  êle,    segurando-a    pela    cintura 
com  ambos  os  braços,  levantou-se  e  levou-a  para  dentro 
do  quarto.  A  multidão  so,ltou  um  grito  de  mil  vozes,  que 
cobriu  o  ruído  crepitante  produzido  pelo  incêndio.  Mas 
os    outros?   e  para    descer?  —  A  escada,    apoiada    numa 
cornija  diante  de  uma  janela,  ficava  um  pouco  longe  da 
varanda.    Como    poderiam    agarrar-se  a    ela?    Enquanto 
isso  se  dizia,  um  dos  bombeiros,  saindo  pela  janela,  pôs 
o  pé  direito  sobre  o  batente  e  o  esquerdo  num  degrau  da 
escada,  e  assim,  direito  no  ar,  sobraçando  um  a  um  os 
inquilinos    que    os    companheiros    lhe  apresentavam  de 
dentro,  entregava-os  a  outro  que  subira  da  rua,  e  ia-os 
atando  a  um  cabo,  descendo-os  cada  um  por  sua  vez,  aju- 
dado por  companheiros  que  estavam  em  baixo  e  os  re- 
cebiam nos  braços.  Passou  primeiro  a  mulher  do  peito- 
ril, depois  uma  criança,  depois  outra  mulher  e  um  velho. 
Todos    estavam    salvos.    Depois    do    velho,  desceram  os 
bombeiros  que  tinham  ficado  dentro;  o  último  a  descer 
foi  o  cabo,  que  tinha  sido  o  primeiro  a  chegar.  A  multi- 
dão   acolheu-os    com    uma    explosão  de    aplausos;    mas, 
quando  veio  o  último,  a  vanguarda  dos  salvadores,  aque- 
le que    primeiro    tinha  afrontado   o    abismo,  que    teria 
morrido,  se  algum  houvesse  de  morrer,  a  multidão  saii- 
dou-o  como  a  um  triunfador,  gritando  e  estendendo  os 
braços  num  impulso  afectuoso  de  respeito  e  de  gratidão, 
e  em  poucos  momentos  o  seu  nome  obscuro,  José  Robbi- 


20i  CORAÇÃO 

no,  foi  pronunciado  por  mii  bôcRs.  Compreendes?  Esta  é 
que  é  a  coragem  de  coração,  que  não  raciocina,  que  não 
vacila,  que  vai  direita,  cega,  como  um  raio,  onde  sente 
o  grito  de  quem  morre.  Levar-te-ei  um  dia  aos  exercícios 
dos  bombeiros,  e  mostrar-te-ei  o  cabo  Robbino,  porque 
hás-de  ficar  satisfeito  em  conhecê-lo?  não  é  verdade? 
Respondi  que  sim- 

—  Ei-lo,  é  este  —  disse  meu  pai.  Voltei-me  logo.  Os 
dois  bombeiros,  terminando  a  visita,  atravessavam  a  sa- 
la para  sair. 

Meu  pai  apontou-me  o  mais  pequeno,  o  que  tinha  os 
galões,  e  disse-me; 

—  Aperta  a  mão  do  cabo  Robbino. 

O  cabo  parou  e  estendeu-me  a  mão,  sorrindo.  Eu 
apertei-lha;  ele  fez  um  cumprimento  e  saiu. 

Lembra-íe  bem  —  disse  meu  pai  —  porque  de  milha- 
res de  mãos  que  hás-de  apertar  em  tua  vida,  não  haverá 
talvez  dez  que  valham  as  suas. 

Dos  Apeninos  aos  Andes 

(CONTO  MENSAL) 

Muitos  anos  há,  um  rapaz  genovês  de  treze  anos  de 
idade,  filho  de  um  operário,  partiu  de  Génova  para  a 
América,  sozinho,  em  procura  de  sua  mãi. 

Saíra  ela  dois  anos  antes  para  a  América,  a-fim-de 
se  pôr  ao  serviço  de  alguma  casa  rica  e  ganhar  assim,  em 
pouco  tempo,  o  bastante  para  rehabilitar  a  família,  a 
qual,  em  conseqiiência  de  vários  contratempos,  caíra  em 
pobreza  e  achava-se  cheia  de  dívidas. 

Tinha  a  pobre  mãi  chorado  lágrimas  de  sangue  ao 
separar-se  dos  filhos,  um  de  dezoito  anos,  outro  de  on- 
ze, mas  partira  com  coragem  e  cheia  de  esperanças.  Ape- 
nas chegada  à  América,  encontrou  logo  por  intermédio 
de  um  negociante  genovês,  primo  de  seu  marido,  estabe- 
belecido  aí  havia  muito  tempo,  uma  família  americana, 
que  lhe  pagava  caro  e  a  tratava  bem.  Durante  algum  tem- 
po, tinha  mantido  com  os  seus  uma  correspondência  re- 
gular. Como  haviam  combinado  entre  si,  o  marido  diri- 


CORAÇÃO 


205 


gia  as  cartas  ao  primo,  que  as  entregava  à  mulher,  e  man- 
dava também  as  respostas,  que  expedia  para  Génova, 
acrescentando-lhes  algumas  linhas  do  seu  punho.  Ga- 
nhando oitenta  liras  por  mês,  e  nada  gastando  consigo, 
mandava  para  casa  todos  os  trimestres  uma  boa  soma, 
com  a  qual  o  marido,  que  era  homem  honrado,  ia  pagando 
pouco  a  pouco  as  dívidas  mais  urgentes,  readquirindo 
assim  a  sua  boa  reputação-  E  no  entanto  trabalhava  e  an- 
dava muito  satisfeito  da  vida,  pela  esperança  de  que  a 

mulher  r  e- 
gressaria  em 
pouco  tempo, 
porque  a  casa 
lhe  parecia  va- 
zia sem  ela. 

Decorrido, 
porém,  um  ano 
da  partida,  de- 
pois de  uma 
pequena  carta 
em  que  ela  di- 
zia achar-se 
mal  de  saúde, 
nunca  mais  re- 
ceberam car- 
tas suas.  Es- 
creveram duas 
vezes  ao  pri- 
mo, mas  o  pri- 
mo não  res- 
pondeu. Es- 
creveram à  fa- 
mília americana,  em  cuja  casa  ela  estava  a  servir,  mas 
porque  talvez  estropiassem  o  endereço,  também  não  ti- 
veram resposta. 

Pai  e  filhos  estavam,  consternados,  e  o  mais  novo 
vivia  oprimido  de  uma  tristeza  que  não  podia  vencer. 

Que  fazer?  A  quem  recorrer?  A  primeira  ideia  do 
pai  foi  partir  e  ir  procurar  a  mulher  na  América;  mas  o 
seu   trabalho?   <juem  lhe   sustentaria  05  filhos?    Nem  o 


206  CORAÇÃO 

mais  velho  poderia  ir,  porque  esse  justamente  princi- 
piava a  ganhar  alguma  coisa  para  ajudar  a  família.  E 
nesta  aflição  viviam,  repetindo  todos  os  dias  as  mesmas 
considerações,  tristes  ou  olhando  uns  para  os  outros  em 
silêncio,  até  que  uma  tarde,  Marcos,  o  mais  pequeno,  saiu- 
-se  desembaraçadamente  dizendo: 

—  Pois  vou  eu  à  América  procurar  minha  mãi ! 

O  pai  inclinou  a  cabeça  tristemente  sem  responder. 
Aos  treze  anos,  fazer  sozinho  uma  viagem  à  América, 
quando  é  necessário  um  mês  para  lá  chegar !  Mas  o  rapaz 
insistiu  pacientemente.  Insistiu  naquele  dia,  no  outro 
dia,  todos  os  dias,  com  grande  calma,  raciocinando  com  o 
bom  senso  de  um  homem. 

Outros  lá  têm  ido  —  dizia  êle  —  e  ainda  mais  peque- 
nos do  que  eu.  Uma  vez  a  bordo  do  navio,  chegarei  lá 
como  outro  qualquer-  E  assim,  pouco  a  pouco,  chegou 
quási  a  convencer  o  pai,  que  o  estimava  e  que  sabia  que 
êle  tinha  juízo  e  coragem,  que  estava  acostumado  a  priva- 
ções e  sacrifícios,  e  que  tão  boas  qualidades  dobrariam 
de  força  no  seu  coração,  para  o  santo  fim  de  achar  sua 
mãi,  que  êle  adorava.  Acresce  ainda  que  um  comandante 
de  vapor,  amigo  de  um  seu  conhecido,  ouvindo  falar  no 
facto,  empenhou-se  em  obter  grátis  um  bilhete  de  ter- 
ceira classe  para  a  América.  Foi  então  que,  depois  ainda 
de  alguma  hesitação,  o  pai  consentiu,  e  a  viagem  ficou 
decidida.  Encheram-lhe  um  saco  de  roupa,  meteram-lhe 
no  bolso  algum  dinheiro,  deram-Jhe  o  endereço  do  pri- 
mo, e  numa  bela  tarde  do  mês  de  Abril  levaram-o  a 
bordo. 

—  Marcos,  meu  filho!  —  disse  o  pai,  dando-lhe  o 
último  beijo,  com  as  lágrimas  nos  olhos,  na  escada  do 
vapor  que  ia  partir.  Tem  coragem!  Partes  para  uma  san- 
ta missão.  Deus  te  ajudará. 

Pobre  Marcos!  Êle  tinha  o  coração  forte  e  prepara- 
do também  para  as  mais  duras  provas  naquela  viagem; 
mas,  quando  viu  desaparecer-lhe  no  horizonte  a  sua  bela 
Génova,  e  se  achou  em  alto  mar,  sobre  aquele  grande 
vapor,  cheio  de  camponeses  emigrantes,  sozinho,  sem 
conhecer  ninguém,  com  aquele  pequeno  saco  que  encer- 
rava toda  a  sua  fçrtuna,  um  desânimo  triste  «  »úbito  assai- 


CORAÇÃO  207 

tou-o.  Durante  dois  dias  esteve  atirado  como  um  cão,  à 
proa,  quási  sem  comer,  oprimido,  preso  por  uma  gran- 
de vontade  de  chorar.  Toda  a  espécie  de  pensamentos 
tristes  lhe  atravessavam  o  espírito;  atormentava-o  a  ideia 
de  que  sua  mãi  talvez  tivesse  morrido.  Nos  seus  sonhos 
interrompidos  e  penosos,  via  sempre  a  cara  de  um  des- 
conhecido que  olhava  para  êle  com  ar  de  compaixão  e 
lhe  dizia  depois  ao  ouvido :  —  Tua  mãi  morreu !  através 
do  oceano,  na  solidão,  vinha-lhe  um  grande  acabrunha- 
mento.  Os  dias  que  se  sucediam,  vazios  e  monótonos, 
confundiam-se-lhe  na  memória,  como  se  dá  com  os  doen- 
tes. Parecia-lhe  estar  no  mar  havia  um  ano.  E  todas  as 
manhãs,  acordando,  experimentava  novas  tristezas,  ven- 
do-se,  ali,  só,  no  meio  daquela  imensidade  da  água,  em 
viagem  para  a  América- 

E  a  viagem  não  acabava  mais,  mar  e  céu,  hoje  como 
ontem,  amanhã  como  hoje,  agora  como  logo,  sempre,  eter- 
namente. E  passava  longas  horas  encostado  à  amurada,  a 
olhar  para  o  mar  sem  fim,  absorto,  pensando  vagamente 
em  sua  mãi,  até  que  os  olhos  se  ,lhe  fechavam  e  a  cabeça 
lhe  caía  de  sono ;  e  então  tornava  a  ver  aquela  cara  desco- 
nhecida que  o  olhava  com  ar  de  piedade,  repetindo-lhe 
ao  ouvido :  —  Tua  mãi  morreu !  E  a  essa  voz  acordava 
sobressaltado  e  começava  de  novo  a  sonhar,  com  os  olhos 
desmesuradamente  abertos  para  o  horizonte  ignoto. 

Durara  a  viagem  longuíssimos  dias!  Os  últimos  fo- 
ram os  melhores.  O  tempo  estava  lindo  e  o  ar  fresco. 
Marcos  travara  conhecimento  com  um  bom  velho  lom- 
bardo que  ia  à  América  procurar  um  filho,  cultivador 
de  terras,  e  tinha-lhe  contado  toda  a  sua  história.  O  ve- 
lho repetia-lhe  a  cada  momento,  batendo-lhe  com  a  mão 
na  nuca! 

—  Coragem,  meu  rapaz !  tu  encontrarás  tua  mãi  com. 
saúde  e  contente. 

Aquela  companhia  reanimava-o,  a  ponto  de  os  seus 
pensamentos  passarem  de  tristes  a  alegres. 

Assentado  à  proa,  ao  pé  do  velho  camponês  que  fu- 
mava cachimbo,  debaixo  de  um  belo  céu  estrelado  no 
meio  de  grupos  de  emigrantes  que  cantavam,  cem  vezes 
W  íhç  apresentava  no  pensamento  a  sua  chegada  à  Amé- 


20S 


CORAÇÃO 


rica.  Via-se  numa  determinada  rua,  achava  a  loja,  cor- 
ria ao  encontro  do  primo,  preguntava-lhe :  —  Como  está 
minha  mãi?  onde  está  ela? 

«Vamos  depressa!  vamos  depressa!  e  corriam  jun- 
tos, subiam  uma  escada,  abria-se  uma  porta...» 

E  aqui,  o  seu  colóquio  em  silêncio  parava,  a  sua 
imaginação  perdia-se  num  sentimento  de  inexprimível 
ternura,  que  lhe  fazia  tirar,  às  escondidas,  uma  medalhi- 
nha  que  trazia  ao  pescoço,  c  murmurar,  beijando-a,  as 
suas  orações. 

No  fim  ce 
luitos  dias, 
depois  da  par- 
tida, chega- 
ram.  Por  uma 
j^  bela  e  róssa 
|||,^  aurora  de 
maio,  o  vapor 
lançava  ânco- 
ra no  porto. 
Aquele  tempo 
e  s  p  1  ê  n  dido 
pareceu-lhe  de 
bom  agouro- 
Estava  fora  de 
si  de  alegria  e 
de  impaciên- 
cia. A  poucas 
milhas  de  dis- 
tância   estava 

sua  mãi;  ia  vê-la  em  poucas  horas!  E  êle  achava-se  na 
América,  no  novo  mundo,  e  tinha  tido  a  coragem  de  vir 
SC !  A  longuíssima  viagem  parecera-lhe  então  ter-se  es- 
coado num  minuto.  Parecera-lhe  que  viera  voando,  so- 
nhando, e  despertara  ali. 

Com  o  saco  na  mão,  embarcou  juntamente  com  ou- 
tros muitos  italianos  num  vaporzinho,  que  os  levou  até 
pouca  distância  da  margem,  desembarcou  no  cais,  despe- 
diu-se  do  seu  velho  amigo  lombardo  e  caminhou  a  passos 
apressados  para  a  cidade. 


CORAÇÃO  209 

Chegando  à  embocadura  da  primeira  rua,  aproximou- 
-se  de  um  homem  que  passava,  e  pediu-lhe  por  favor  que 
lhe  indicasse  o  rumo  a  seguir. 

Mas  não  lhe  tardou  a  notícia  desesperada  de  que  sua 
mãi  não  estava  na  cidade,  e  que  se  achava  no  interior 
do  país. 

A  criança  emudeceu  e  após  a  tortura  desse  desengano 
resolveu  procurar  sua  mãizinha  onde  quer  que  ela  esti- 
vesse. 

Êle  sabia  que  ia  partir  para  o  interior,  pelo  grande 
rio  que  vinha  desembocar  no  porto,  uma  barca  onde  iam 
patrícios  seus,  genoveses  robustos,  bronzeados,  cuja  lin- 
guagem suave  lhe  lembrava  a  pátria  amada.  E  Marcos 
resolveu  partir  com  eles. 

Partiram;  e  a  viagem  durou  três  dias  e  quatro  noi- 
tes, e  foi  ela  um  espanto  para  o  pequeno  viajante. 

Três  dias  e  quatro  noites  subindo  aquele  maravilho- 
so rio,  que,  comparado  ao  nosso  grande  Pó,  não  passa  es- 
te de  um  regato;  e  o  cumprimento  da  Itália  quadrupli- 
cado não  atinge  ao  seu  curso.  A  grande  barca  seguia  len- 
tamente contra  a  corrente  de  tão  desmesurada  massa  de 
água.  Passava  pelo  meio  de  grandes  ilhas,  em  outro  tem- 
po cheias  de  ninhos  de  serpentes  e  de  tigres,  cobertas  de 
laranjeiras  e  salgueiros,  semelhantes  a  bosques  flutuantes. 
A  barca  ora  se  enfiava  por  estreitos  canais  de  que  parecia 
não  poder  mais  sair,  ora  desembocava  em  grandes  exten- 
sões de  água,  semelhantes  a  vastos  lagos  tranquilos.  De- 
pois outra  vez  por  entre  ilhas  e  canais  enredados  de  um  ar- 
quipélago, no  meio  de  maciços  enormes  de  vegetação- 
Reinava  um  silêncio  profundo.  Por  largos  espaços,  as. 
margens  e  as  águas  solitárias,  vastíssimas,  davam  a  ima- 
gem de  um  rio  desconhecido,  onde  aquela  pobre  vela  fos- 
se a  primeira  do  mundo  a  aventurar-se.  Quanto  mais  se 
adiantavam,  tanto  mais  aquele  monstruoso  rio  o  desani- 
mava. Imaginava  sua  mãi  lá  nas  origens,  e  que  a  nave- 
gação duraria  anos!  Duas  vezes  no  dia  comia  um  pouco 
de  pão  e  de  carne  salgada  com  os  barqueiros,  que,  ven- 
do-o  triste,  não  lhe  dirigiram  mais  palavra.  A  noite,  dor- 
mia sobre  a  coberta,  e  despertava  a  cada  momento  em  so- 
bressalto,  eléctrizado,   estatelado   pela   luz  limpidíssima 

U 


210  C  O  R  A  Ç  A  C 

da  lua,  que  branqueava  as  águas  de  leite,  imensas,  e  as 
praias  longinqúas,  geladas.  Então  o  coração  confrangia-se- 
-Ihe.  Mas,  depois,  pensava:  «Minha  mãi  passou  por  aqui, 
viu  6£tas  ilhas  e  praiasy),  e  não  lhe  pareciam  mais  estra- 
nhos e  solitários  aqueles  lugares,  por  onde  o  olhar  de  sua 
mãi  se  detivera.  À  noite  um  dos  barqueiros  cantava... 
Aque,la  voz  fazia-ihe  lembrar  as  cantigas  de  sua  mãi, 
quando  o  adormecia  em  criança.  A  última  noite,  ao  ouvir 
aquele  canto  espiritualmente,  sagrado  e  triste,  começou 
a  soluçar.  O  barqueiro  parou;  depois  gritou-lhe: 

Ânimo!  ânimo!  Que  diabo!  Um  genovês  a  chorar 
porque  está  longe  de  casa!  Os  genoveses  dão  volta  ao 
mundo  gloriosos  e  triunfantes! 

Mas,  novas  decepções  e  outras  novas  dores  vieram 
desiludi-Jo.  Depois  de  várias  peregrinações  pelo  interior, 
tendo  cada  dia  um  desengano,  e  cada  noite  uma  espe- 
rança, depois  de  todos  os  sofrimentos  curtidos  em  terra 
estranha,  sem  agasalho  suficiente,  sem  pão  às  vezes,  sem 
dinheiro  e  sem  roupa,  esfarrapado,  abatido,  mas  sempre 
revoltado  contra  a  conspiração  surda  da  terra  e  dos 
homens,  afinal  veio  a  saber  que  em  longes  terras,  além 
das  montanhas,  aí  devia  estar  sua  mãi  querida  a  quem 
buscava. 

Esta  notícia,  que  bastaria  para  desanimar  um  homem, 
deu-lhe  nova  seiva  e  nova  energia.  Agregou-se  a  um 
bando  de  homens  rústicos  e  boiadeiros,  que  fasiam  a  tra- 
vessia do  sertão,  e  com  eles  partiu  quási  mendigo,  pagan- 
do esse  favor  com  o  serviço  de  criado,  ajuntando  lenha 
para  o  rancho,  vigiando  os  pousos,  enfim,  trabalhando 
como  podia. 

Afinal,  nas  proximidades  do  lugar,  onde  devia  estar 
sua  mãizinha,  despediu-se  do  capataz  e  dos  boiadeiros. 
A  caravana  devia  seguir  caminho  diferente,  e  o  rapaz  teve 
de  deixá-la.  O  capataz,  coi»ovido,  deu-lhe  as  informações 
precisas,  pôs-lhe  o  saco  ao  ombro  de  modo  a  não  o  inco- 
modar e  sem  mais  demora,  como  se  tivesse  receio  de  como- 
ver-se,  disse-lhe  adeus, 

O  rapaz  teve  apenas  tempo  de  beijar-lhe  um  braço. 
Até  os  homens  rudes  e  de  trato  áspero  pareciam  movidos 
de  lástima  ao  verem-no  fiear  assim,  agora  sozinho,  ç  cjis- 


ORAÇÃO  311 

seram-lhe  adeus  com  a  mão,  a£astando-se.  Êle  correspon- 
deu a  esse  adeus,  e  ficou  a  olhar  para  o  comboio,  até  que 
o  perdeu  de  vista,  envolvido  na  poeira  vermelha  da  cam- 
pina- Depois  poz-se  a  caminho  tristemente. 

Uma  coisa,  porém,  confortou-o  um  pouco  desde  o 
começo.  Depois  de  tantos  dias  de  viagem  por  aquela 
interminável  planície  sempre  a  mesma,  via  diante  de  si 
uma  cadeia  de  montanhas  altíssimas,  azues,  que  lhe  re- 
cordaram os  Alpes  e  lhe  davam  uma  ideia  da  aproxima- 
ção da  sua  pátria.  Eram  os  Andes,  a  espinha  dorsal  do 
continente  americano,  essa  cadeia  im.ensa  que  se  estende 
da  Terra  do  Fogo  até  o  mar  glacial  do  polo  árctico,  por 
milhares  de  léguas.  E  também  o  confortava  o  sentir  o 
ar  cada  vez  mais  quente;  o  que  acontecia  pela  razão  de 
que,  subindo  em  direcção  ao  norte,  mais  se  avezinhava 
das  regiões  tropicais.  A  grandes  distâncias  deparavam-se 
pequenos  grupos  de  casas  e  uma  taberna,  onde  comprava 
qua,lquer  coisa  para  comer.  Encontrava  homens  a  cavalo, 
e  de  vez  em  quando  mulheres  e  meninos  sentados  no  chão, 
imóveis  e  graves,  com  caras  verdadeiramente  estranhas 
para  êle,  côr  de  barro,  com  os  olhos  oblíquos,  os  olhos 
nas  faces  salientes,  que  o  olhavam  atentamente,  e  acompa- 
nhavam-no  com  a  vista,  voltando  a  cabeça  lentamente 
como  autómatos.  Eram  índios- 

No  primeiro  dia  caminhou  quanto  lhe  permitiam  as 
forças,  e  dormiu  debaixo  de  uma  árvore.  No  segundo  ca- 
minhou muito  menos  e  com  menos  coragem.  Tinha  os  sa- 
patos rotos,  os  pés  esfolados  e  o  estômago  enfraquecido 
pela  má  alimentação.  Ao  anoitecer,  principiou  a  ter  medo. 
Tinha  ouvido  dizer  na  Itália  que  naqueles  países  havia 
muitas  serpentes.  Parecia-lhe  que  as  sentia  rastejar,  ba- 
bando visgos  imundos,  e  êle  parava,  depois  corria,  sentin- 
do calafrios  nos  ossos.  As  vezes  compadecia-se  de  si  pró- 
prio, e  chorava  em  sj.lêncio,  caminhando.  Depois  pensa- 
va: Oh!  quanto  não  sofreria  minha  mãi,  se  soubesse  do 
tamanho  medo  que  tenho ! 

Esta  ideia  restituía-lhe  a  coragem.  Então,  para  se  dis- 
trair, pensava  em  muitas  coisas  dela;  recordava  as  suas 
palavras  quando  partira  de  Génova,  recordava  o  cuidado 
om  que  ela  costumava  conchegar-lhe  a  roupa  em  volta 


212 


CORAÇÃO 


do  pescoço,  quando  estava  na  cama  e  era  ainda  criança, 
e  quando  às  vezes  pegava  nele  ao  colo  e  lhe  dizia:  -  «Fi- 
ca  um  pouco  aqui  comigo»;  e  ficava  assim  muito  tempo, 
com  a  cabeça  apoiada  na  sua,  cismando.  E  dizia  consigo. 
!!  Ver-te-ei  um  dia,  querida  mãi?  Chegarei  ao  fim  da  mi- 
nha viagem,  minha  mãi?  E  caminhava,  cammhava  por  en- 
tre árvores  desconhecidas  e  vastas  plantações  de  cana  de 
açúcar,  e  prados  sem  fim,  sempre  com  aquelas  grandes 
montanhas  azues,  agudas,  que  espinguilhavam  o  ceu  sere- 
no  como  pontas  luzidas  de  touros  robustos    enfurecidos.     - 
Ouatr?dias,  cinco,  uma  semana  se  passou.  As  forças  lam- 
?he  gradualmente  faltando,  e  dos  Pé^  ^escorna-he  mais 
sans^ue     Finalmente    uma   tarde,    ao    por    do    sol,    disse- 
.ram-The:--<<Fica  a  cinco  milhas  daqui».  Soltou  um  grito 
deílegria,  e  apressou  o  passo,  como  se  tivesse  readquirido 
num  momento  todo  o  vigor  perdido.  ^^^^^     ^^^ 

durou  a  ilusão ; 
as  forças  aban- 
donaram-no  de 
repente ;  caiu 
sobre  as  bor- 
das de  um  fos- 
so fundo.  Mas 
o  coração  ba- 
tia-lhe  de  con- 
tentamento. 

O  céu  cober- 
to de  estrelas 
luminosas 
nunca  lhe  parecera  tão  belo.  Contemplava-o  deitado  sobre 
a  relva  para  dormir,  e  pensava  que  talvez  ao  mesmo  em- 
po, a  sua  mãi  estivesse  vendo  aquele  mesmo  ceu.  E  dizia. 
Minha  mãi,  onde  estás,  que  fazes  neste  momento?  pen- 
saras  no  teu  filho?  pensarás  no  teu  Marcos,  ]a  tao  pró- 
ximo de  ti? 

Pobre  Marcos  I  se  êl»  pudesse  ver  o  estado  em  que 
•ntSo  S0  achava  sua  m&i,  t«ria  feito  um  ««/Orço  .obr*. 
humano  para  caminhar  ainda,  e  chegar  perto  dela  algu- 


CORAÇÃO  21S 

mas  horas  antes.  Estava  doente  de  cama  numa  sala  ao  reac- 
-do-chão  de  uma  cazinha  fidalga,  onde  habitava  toda  a 
família  Mequinez,  que  lhe  era  muito  afeiçoada  e  lhe  fazia 
grande  esmola.  A  pobre  mulher  estava  já  adoentada,  quan- 
do o  engenheiro  Mequinez  foi  obrigado  a  partir  à  pressa 
da  cidade,  e  não  tinha  melhorado  ainda  com  os  bons  ares 
do  interior.  Depois,  o  não  ter  recebido  resposta  às  suas 
cartas,  nem  do  marido,  nem  do  primo,  o  pressentimento 
sempre  vivo  de  alguma  grande  desgraça,  a  ansiedade  con- 
tínua em  que  vivia,  incerta  entre  o  partir  e  o  ficar,  espe- 
rando todos  os  dias  uma  notícia  funesta,  tinha-a  feito, 
peorar,  fora  do  comum.  Por  último  manifestára-se-lhe 
uma  moléstia  gravíssima,  uma  hérnia  intestinal  estran- 
gulada. 

Havia  quinze  dias  que  se  não  levantava  da  cama.  Era 
necessária  uma  operação  cirúrgica  para  salvar-lhe  a  vida. 
Naquele  momento,  justamente,  em  que  o  seu  Marcos  cha- 
m.ava  por  ela,  estavam  à  sua  cabeceira  a  dona  e  o  dono 
da  casa,  procurando  convencê-la  com  muita  ternura  de 
que  se  deixasse  operar,  e  ela  persistia  na  recusa,  choran- 
do. Um  distinto  médico  da  cidade  já  tinha  vindo  uma  se- 
mana antes,  mas  inutilmente. 

—  Não,  meus  queridos  senhores ' —  dizia  ela  —  não 
me  falem  nisso ;  não  tenho  forças  para  resistir ;  morreria 
na  operação.  É  melhor  que  me  deixem  assim.  Não  me  inte- 
resso mais  pela  vida.  Está  tudo  acabado  para  mim.  E  me- 
lhor é  que  eu  morra  antes  de  saber  o  que  aconteceu  à  mi- 
nha família. 

E  os  amos  a  dizerem-lhe  que  não,  que  tivesse  cora- 
gem, que  das  últimas  cartas,  mandadas  para  Génova  direc- 
tamente, havia  de  receber  a  resposta,  que  se  deixasse  ope- 
rar pelo  amor  que  tinha  a  seus  filhos.  Mas  aquele  pensa- 
mento dos  filhos  não  fazia  senão  agravar  mais  angustio- 
samente o  desânimo  profundo  que  a  prostrava  desde  tanto 
tempo.  Aquelas  palavras  desatava  em  pranto. 

—  Oh!  os  meus  filhos!  os  meus  filhos!  exclamava 
juntando  as  mãos,  talvez  já  não  existam!  É  melhor  que 
eu  morra  também.  Muito  obrigado,  meus  amigos,  agrade- 
ço-lhes  de  todo  o  coração.  Mas  é  melhor  que  eu  morra. 
Também  não   ficaria  boa   com  a  operação,   estou   certa. 


214  CORAÇÃO 

Muito  obrigada  por  tantos  cuidados,  meus  bons  patrões. 
É  destino  meu  morrer  aqui.  Está  decidido. 

E  eles  a  consolá-la  e  a  repetir-lhe:  —  Não,  não  diga 
isso.  —  Pegavam-lhe  nas  mãos  e  pediam ;  porém  ela  fe- 
chava os  olhos  e  caia  numa  prostração  funda- 

E  os  patrões  ficavam  ali,  por  um  pouco  de  tempo,  à 
luz  fraca  de  uma  lamparina,  contemplando  com  grande 
piedade  aquela  mãi  admirável,  que  para  salvar  a  sua  fa- 
mília vinha  morrer  a  duas  mil  ,léguas  da  sua  pátria;  mor- 
rer depois  de  ter  sofrido  tanto !  pobre  mulher,  tão  honesta, 
tão  boa  e  tão  desgraçada! 

No  dia  seguinte,  de  manhã  cedo,  com  o  seu  saco  aos 
ombros,  curvado  e  coxeando,  mas  cheio  de  ânimo.  Marcos 
entrava  na  cidade  onde  devia  encontrar  sua  mãizinha  que- 
rida; vinha  com  as  mesmas  ilusões  e  os  mesmos  deses- 
peros; a  cidade  tinha  a  mesma  cruel  semelhança  das  ou- 
tras; eram  as  mesmas  ruas  estreitas  e  compridas;  as  mes- 
mas casas  baixas  e  brancas;  em  toda  a  parte,  uma  vege- 
tação nova  e  esplêndida,  um  ar  perfumado,  uma  luz  mara- 
vilhosa, um  céu  límpido  e  profundo,  como  ele  nunca  vira 
nem  mesmo  na  Itália.  Caminhando  pelas  ruas  adiante, 
tornou  a  sentir  a  agitação  febril,  o  mistério  esperado  das 
notícias  imprevistas.  Olhava  para  as  janelas  de  todas  as 
casas:  olhava  para  todas  as  mulheres  que  passavam,  com  a 
inquieta  esperança  de  encontrar  sua  mãi;  quizera  inter- 
rogar quantos  passavam  e  não  se  atrevia  a  interromper 
ninguém. 

Todos  os  que  chegavam  às  portas,  olhavam  com  curio- 
sidade para  o  pobre  rapaz  esfarrapado  e  poeirento,  que 
mostrava  vir  de  tão  longe.  Procurava  ê,le  entre  a  gente, 
pessoa  cuja  fisionomia  lhe  desse  confiança  e  a  quem  fi- 
zesse a  tremenda  pregunta,  quando  deu  com  a  vista  na  ta- 
boleta  de  uma  taberna,  na  qual  estava  escrito  um  nome  ita- 
liano. Dentro  estava  um  homem  de  óculos  e  duas  mulhe- 
res. Marcos  aproximou-se  vagarosamente  da  porta,  e  to- 
mando alento  preguntou: 

—  Os  senhores  saber-me-ão  dizer  onde  mora  a  famí- 
lia Mequinez? 


CORAÇÃO  215 

—  Do  engenheiro  Mequinez?  —  preguntcu  o  taber- 
neiro. 

1—  Sim,  do  engenheiro  Mequinez  —  respondeu  Mar- 
cos com  voz  de  contentamento. 

—  A  família  Mequinez  —  disse  o  taberneiro  —  não 
está  na  cidade. 

Um  grito  desesperado  de  dor,  como  de  uma  pessoa 
apunhalada,  fez  eco  àquelas  palavras. 

O  taberneiro  e  a  mulher  levantaram-se  e  alguns  vi- 
zinhos correram. 

—  Que  é?  que  tens  tu?  —  preguntou  o  taberneiro  pu- 

xando-o  para  dentro   e   fazendo-o  sentar Não   é   coisa 

para  desesperar;  que  diabo!   Se  os  Mequinez  não  estão 
aqui,  perto  estão,  a  poucas  horas  daqui. 

—  Onde?  onde?  —  gritou  Marcos,  levantando-se  co- 
mo um  ressuscitado. 

—  A  umas  quinze  milhas  da  cidade  —  continuou  o 
homem  —  na  margem  do  Saladilo;  num  Jugar  onde  se  está 
construindo  um  grande  engenho  de  açúcar  e  um  grupo 
de  casas;  é  aí  a  morada  do  Sr.  Mequinez.  Todo  o  mundo 
sabe;  podes  lá  chegar  em  poucas  horas. 

—  Há  um  mês  que  lá  estive,  disse  um  sujeito  que  acu- 
dira ao  grito  de  Marcos. 

Marcos  olhou  para  êle,  com  os  olhos  muito  abertos, 
e   preguntou   precipitadam.ente,   empalidecendo: 

—  E  viu  lá  a  criada  do  Sr.  Mequinez,  a  genovêsa? 

—  A  genovêsa?  Vi,  sim. 

Marcos  rompeu  em  soluços,  convulsivos,  estrepito- 
sos, rindo  e  chorando.  Depois,  com  um  ímpeto  de  resolu- 
ção violenta: 

—  Por  onde  se  vai?  Depressa,  digam-me  onde  é  o  ca- 
minho... parto  já,  ensinem-me  o  caminho. 

—  Mas  é  um  dia  de  viagem  —  disseram  todos  a  uma 
só  voz.  —  Tu  estás  muito  fatigado  e  precisas  de  repouso. 
Partirás  amanhã. 

—  É    impossível!    impossível!  —  respondeu    Marcos. 
•—  Diga-me  por  onde  se  vai,  não  esperarei  mais  um 

minuto;  parto  imediatamente,  ainda  que  tivesse  de  mor- 
rer pelo  caminho. 

Vendo  que  não  cedia,  não  se  opuseram  mais. 


CORAÇÃO 

—  DcuK  te  acompanhe !  —  disseram-lhe.  —  Tem  cui- 
dado no  caminho  da  mata...  Boa  viagem,  italianito.  Um 
homem  acompanhou-o  até  lá  fora  da  cidade.  Indicou-lhe 
o  caminho  deu-lhe  alguns  conselhos  e  demorou-se  a  vê- 
-lo  seguir  pela  estrada.  Em  poucos  minutos  o  rapaz  di- 
minuiu o  passo  e  desapareceu,  coxeando  com  o  saco  às 
costas,  por  detrás  das  árvores  frondosas  que  orlavam  a 
estrada. 

Aquela  noite  foi  tremenda  para  a  nobre  enferma. 
Sofria  dores  atrozes  que  lhe  arrancavam  gritos  de  re- 
bentar as  veias  e  lhe  davam  momentos  de  delírio.  As 
mulheres  que  lhe  assistiam,  não  sabiam  o  que  fazer. 

A  senhora  vinha  vê-la  de  quando  em  quando,  muito 
entristecida.  Todos  pareciam  recear  que,  embora  a  doen- 
te consentisse  em  deixar-se  operar,  o  médico  que  devia 
vir  na  manhã  seguinte,  chegaria  já  tarde.  Nos  momen- 
tos em  que  delirava,  compreendia-se  que  os  seus  terrí- 
veis padecimentos  não  provinham  das  dores  do  corpo, 
mas  do  pensamento  na  família.  Pálida,  magra,  com  o 
rosto  mudado,  metia  as  mãos  pelos  cabelos,  em  deses- 
peração que  confrangia  a  alma,  e  gritava: 

—  Meu  Deus!  Meu  Deus!  morrer  tão  longe!...  mor- 
rer sem  tornar  a  vê-los.  Infelizes  que  ficaram  sem  mãi, 
oh!  minhas  criaturas,  oh!  meu  pobre  sangue!  E  o  meu 
Marcos,  ftão  pequenino  ainda,  tão  bom!  tão  afectuoso! 
Nem  sabeis  como  êle  era!  se  a  senhora  o  conhecesse... 
Não  o  podia  largar  dos  braços  quando  parti;  chorava, 
chorava  que  fazia  dó!  Parecia  adivinhar  que  não  veria 
mais  sua  mãi.  Pobre  Marcos!  meu  pobre  filho!  Pen- 
sei que  me  estalava  o  coração.  Se  eu  morresse  naquele 
momento!  Se  eu  morresse  quando  me  dizias  adeus!... 
Se  então  caísse  fulminada,  se  morta  eu  caísse!... 

«Sem  mãi,  pobre  criança,  que  amava  tanto,  e  tanta 
necessidade  tem  de  mim;  sem  mãi,  na  miséria,  mendi- 
gando talvez,  êle,  o  meu  querido  Marcos,  a  estender  a 
mão  com  fome!  Oh!  Deus  eterno!  Não!  Eu  não  quero 
morrer!  O  médico!  Chamem-no  depressa.  Que  venha; 
despedace-me,  corte-me  as  entranhas,  faça-me  enlouque- 
cer, mas  salve-me  a  vida.  Quero  ficar  boa.  Quero  viver, 
partir,  fugir,  amanhã!  já!  O  médico!  socorro!  socorro! 


CORAÇÃO  217 

E  as  mulherci  agarravam-lhe  as  mãos,  afagavam-na, 
rogavam  e  a  faziam  tornar  a  si  pouco  a  pouco,  falando- 
-Ihe  de  Deus  e  de  esperança.  Então  ela  recaia  num  aba- 
timento mortal,  chorava,  metendo  as  mãos  nos  cabelos 
grisalhos,  gemia  como  uma  criança,  em  lamentos  pro- 
longados e  murmurando  de  quando  em  quando:  —  Oh! 
a  minha  Génova!  A  minha  casa!  Todo  aquele  mar!... 
O  meu  Marcos,  o  meu  pobre  filho !  Onde  estará  agora 
a  minha*  pobre  criatura! 

Era  meia  noite.  E  o  pobre  Marcos,  depois  de  ter 
passado  muitas  horas  à  borda  de  um  barranco,  exte- 
nuado de  forças,  caminhava  através  de  mato  vastís- 
simo, de  árvores  gigantescas,  e  monstros  de  vegetação  e 
de  troncos  desmesurados  semelhantes  a  pilastras  de  ca- 
tedrais, que  entrançavam,  a  prodigiosa  altura,  as  cabe- 
leiras enormes,  brancas,  inundadas  pelo  luar.  Vagamente 
naquela  meia  obscuridade,  via  miríades  de  tron- 
cos de  todas  as  formas:  direitos,  inclinados,  torci- 
dos, em  atitudes  estranhas  de  ameaça  e  de  luta;  alguns 
derrubados  por  terra,  como  torres  caídas  dum  jacto, 
cobertos  de  uma  folhagem  vigorosa  e  confusa,  que  se- 
melhavam uma  multidão  irada,  lutando  palmo  a  palmo; 
outros,  juntos,  em  grandes  grupos,  verticais  e  cerrados, 
como  feixes  de  lanças  titânicas,  cujas  pontas  espetas- 
sem as  nuvens  feridas,  sangrentas;  uma  grandeza  so- 
berba, uma  desordem  prodigiosa  de  formas  colossais! 
espectáculo  formidável! 

Momentos  havia  que  era  invadido  de  grande  terror. 
Mas,  de  repente,  fugiu-lhe  a  alma  rápida  para  a  mãi. 
Estava  exausto,  com  os  pés  em  sangue,  só  no  meio  da- 
quela formidável  floresta,  onde  não  via  senão  de  tem- 
pos a  tempos,  demoradamente  pequenas  habitações  hu- 
manas, que  ao  pé  daquelas  árvores  semelhavam  míse- 
ros mamelões  terrosos  de  formigas  subterrâneas  e  la- 
boriosas. 

Estava  abatido,  mas  não  sentia  fadiga;  estava  só  e 
todavia  não  tinha  medo.  A  grandeza  da  floresta  dila- 
tava, engrandecia-lhe  também  a  alma;  a  proximidade  de 
sua  mãi  dava-lhe  a  força  e  ousadia  de  um  homem:  a  re- 
cordação do  oceano,  dos  desânimos,  das  dores  sofridas 


2ld  CORAÇÃO 

e  vencidas,  das  fadigas  já  suportadas,  da  sua  rija  cons- 
tância inabalável,  fazia-lhe  levantar  a  fronte,  e  todo  o 
seu  forte  e  nobre  sangue  genovês  refluía-lhe  ao  cora- 
ção, numa  onda  vermelha  de  altivez  e  audácia.  E  uma 
coisa  nova  e  original  se  dava  nele;  depois  de  dois  anos 
de  ausência,  a  imagem  de  sua  mãi  conservava-se-lhe  na 
mente,  obscura  e  esmaecida,  e  naquele  momento  essa  ima- 
gem iluminava-se,  clara,  completa;  e  tornava  a  ver-lhe  o 
rosto  inteiro  e  puro,  como  nunca  o  tinha  visto  até  ali, 
via-o  muito  perto,  a  falar,  via  os  movimentos  fugitivos 
dos  seus  olhos  e  dos  lábios,  todas  as  suas  posições,  to- 
dos os  gestos,  todas  as  sombras  do  pensamento  dela;  e, 
impelido  por  aquelas  recordações  insistentes,  apressava 
o  passo;  e  uma  comoção  nova,  uma  ternura  indisível 
crescia-lhe  no  coração,  fazendo-lhe  correr  pelas  faces 
lágrimas  torrentosas,  doces,  consoladoras;  e  seguindo 
nas  trevas  falava  com  ela,  dizendo  as  palavras  que  den- 
tro em  pouco  lhe  murmuraria  ao  ouvido: 

—  Estou  aqui,  minha  mãi,  estou  aqui ;  não  a  dei- 
xarei mais;  voltaremos  para  casa  juntos;  estarei  sem- 
pre a  teu  lado  no  navio,  agarrado  a  ti,  e  ninguém  mais 
te  separará  de  mim,  querida  mãi,  ninguém,  nunca  mais. 

E  nem  se  apercebia  que  nos  cimos  das  árvores  gi- 
gantescas se  ia  esbatendo  a  luz  argentina  da  lua,  diante 
da  branca  e  límpida  aurora. 

Às  oito  horas  daquela  manhã,  o  médico,  jovem  ame- 
ricano, estava  já  à  cabeceira  da  doente  em  companhia  de 
um  assistente,  tentando  pela  última  vez  persuadi-la  a 
deixar-se  operar,  e  com  êle  faziam  calorosas  instâncias 
o  engenheiro  Mequinez  e  sua  esposa. 

Tudo,  porém,  era  inútil.  A  mulher,  sentindo-se 
axausta  de  forças,  não  tinha  mais  fé  na  operação;  es- 
tava certa,  dizia,  de  morrer  no  acto  ou  de  não  sobrevi- 
ver mais  que  algumas  horas,  depois  de  ter  sofrido  do- 
res mais  atrozes  do  que  as  que  a  deviam  matar  natural- 
mente. O  médico  insistia  em  repetir: 

—  A  operação  é  segura  e  a  sua  cura  é  certa;  basta 
só  um  pouco  de  coragem!  E  é  igualmente  certa  a  sua 
morte  se  se  recusar  a  ela. 


CORAÇÃO  219 

Eram  palavras  soltas  ao  vento. 

—  Não,  respondeu  ela  com  voz  fraca  —  tenho  ainda 
coragem  para  morrer;  mas  £alta-me  para  sofrer  inutil- 
mente. Obrigada,  senhor  doutor.  Está  destinado  que  seja 
assim.   Deixe-me  morrer   tranqiiila. 

Ninguém  falou  mais.  Então  a  doente  voltou  o  rosto 
para  a  sua  ama  e  fez-lhe  com  a  sua  voz  moribunda  os 
seus  últimos  pedidos. 

—  Querida  e  boa  senhora,  disse  a  muito  custo  em 
soluços,  peço  o  favor  de  mandar  aquele  pouco  dinheiro 
à  minha  família,  por  intermédio  do  senhor  cônsul.  Es- 
pero que  ainda  estejam  todos  vivos.  O  meu  coração  mo 
prediz  bem  nes-tes  últimos  momentos.  Faça-me  o  favor 
de  escrever-lhes  dizendo-lhes  que  tenho  sempre  pensa- 
do neles,  que  tenho  sempre  trabalhado  para  eles...  para 
os  meus  filhos...  mas  que  morri  com  coragem...  resi- 
gnada... abençoando-os...  e  que  recomendo  a  meu  marido 
e  a  meu  filho  mais  velho...  o  mais  pequeno,  o  meu  po- 
bre Marcos,  a  quem  tive  sempre  no  coração  até  ao  último 
momento. 

E,  exaltando-se  de  repente,  gritou,  erguendo  as 
mãos: 

—  O  meu  Marcos!  o  meu  filho  a  minha  vida!  E 
volvendo  os  olhos  cheios  de  lágrimas,  viu  que  sua  ama 
não  estava  ali,  porque  a  tinham  chamado  furtivamente. 
Procurou  com  o  olhar  o  amo ;  tinha  também  desapare- 
cido! Via  apenas  duas  enfermeiras  e  o  assistente. 

Na  sala  vizinha  sentia-se  um  rumor  de  passos  apres- 
sados, um  murmúrio  de  vozes  rápidas  e  contidas,  de  ex- 
clamações sufocadas.  A  doente  fixou  os  seus  olhos  ve- 
lados, esperando.  Depois  de  alguns  minutos  viu  voltar 
o  médico  também  com  as  feições  alteradas.  Todos  três 
olhavam  para  ela  com  expressão  singular,  e  trocavam 
entre  si  algumas  palavras  em  voz  baixa.  Parece-lhe  que 
o  médico  dissera  à  senhora:  —  «É  melhor  já».  A  doente 
não  compreendia. 

—  Josefa — disse  a  ama  com  voz  trémula  —  tenho 
uma  boa  notícia  a  dar-lhe.  Vá  preparando  o  coração  para 
a  receber. 

A  mulher  fixou-a  atentamente. 


220  CORAÇÃO 

—  Uma  notícia  —  continuou  a  lenhora,  sempre  agi- 
tada—  que  lhe  vai  dar  muita  alegria. 

A   enferma  abriu  os  olhos. 

—  Prepare-se,  prosseguiu  a  senhora,  para  ver  uma 
pessoa  a  quem  quere  muito  bem. 

A  mulher  levantou  a  cabeça  com  um  impulso  vigo- 
roso e  principiou  a  ojhar  rapidamente,  ora  para  a  senhora, 
ora  para  a  porta,  com  os  olhos  fulgurantes. 

—  Uma  pessoa,  acrescentou  a  senhora,  que  chegou 
agora  inesperadamente. 

—  Quem?  gritou  a  mulher  com  voz  rouca  e  estra- 
nha, como  de  pessoa  assustada. 

Um  instante  depois  soltou  um  grito  agudíssimo; 
sentando-se  repentinamente  na  cama,  ficou  imóvel,  com 
os  olhos  arregalados  e  com  as  mãos  nas  fontes,  como 
diante  de  uma  aparição  sobre-humana.  Marcos,  roto  e 
coberto  de  pó,  estava  hirto  à  entrada  da  sala,  agarrado 
por  um  braço  pelo  doutor. 

A  mulher  gritou  três  vezes: 

—  Deus!  Deus!  oh!  meu  Deus! 

Marcos  aproximou-se,  e  ela,  estendendo  os  braços 
descarnados  e  apertando-o  ao  seio  com  força  de  um  ti- 
gre, desatou  num  riso  violento,  cortado  de  profundos 
soluços  e  lágrimas,  que  a  fizera  tornar  a  cair  sufocada 
no  travesseiro. 

Mas  reanimou-se  logo,  e  gritou  louca  de  alegria,  en- 
chendo-lhe  a  cabeça  de  beijos: 

—  Como  vieste  aqui?  Porquê?  Ês  tu?  Como  estás 
crescido?...  Quem  te  trouxe?  Estás  só?  Não  estás  doen- 
te? És  tu,  Marcos?  Não  é  um  sonho?  Deus  meu!  fala- 
-me! 

Depois,  mudando  de  tom  e  repentinamente:  Não, 
cala-te!  Espera!  E  voltou-se  para  o  médico,  impetuosa- 
mente :  —  Já,  depressa,  doutor.  Quero  ficar  boa.  Estou 
pronta.  Não  perca  um  momento.  Mande  sair  Marcos,  para 
que  não  veja...  Isto  não  é  nada,  meu  Marcos.  Contar- 
-me-ás  depois...  Ainda  um  beijo...  Vai!  Aqui  estou,  dou- 
Itor. 

Marcos  foi  conduzido  para  fora. 

Os   amos  e   as   enfermeiras   saíram   apressadamente, 


CORAÇÃO  221 

ficando  apenas  o  operador  e  o  ajudante,  que  fecharam 
a  porta. 

O  sr.  Mequinez  tentou  conduzir  Marcos  para  uma 
sala  afastada,  mas  foi-lhe  impossível,  Êle  parecia  pre- 
gado no  soalho. 

—  Que  é,  preguntou,  que  tem  minha  mãi?  Que  é 
que  lhe  estão  fazendo? 

—  Então  Mequinez,  de  vagar,  e  tentando  sempre  afas- 
tá-lo, disse-lhe: 

—  Olha  cá.  .  ouve.  Tua  mãi  está  doente;  é  preciso 
fazer-lhe  uma  operação...  Depois  te  explicarei.  Vem 
comigo. 

—  Não  respondeu  o  rapaz,  resistindo —  quero  ficar 
aqui.  Explique-me  aqui  mesmo. 

O  engenheiro  amontoava  palavras,  insistindo  em 
afastá-lo.  O  rapaz  principiava  a  assustar-se  e  a  tremer. 

De  repente,  um  grito  agudíssimo,  como  um  grito 
de  um  ferido  de  morte,  ressoou  por  toda  a  casa.  O  rapaz 
respondeu  com  um  grito  de  desesperado: 

—  Minha  mãi   está  morta! 

O  médico  abriu  a  porta  e  disse: 

—  Não;  tua  mãi  está  salva! 

O  rapaz  olhou  para  êle  um  momento,  e  depois  rojou- 
-se-lhe  aos  pés  soluçando: 

—  Muito  obrigado. . . 

O  médico  ergueu-o  com.  um  gesto  dizendo-lhe: 

—  Levanta-te.  Foste  tu,  pequeno  herói,  que  salvaste 
tua  mãi. 


Verão 

Quarta- feira,  24 

Marcos,  o  genovês,  c  o  penúltimo  pequeno  herói 
que  conhecemos,  este  ano,  c  falta-nos  apenas  um  mês 
para  as  férias. 

Temos  apenas  dois  exames  mensais  vinte  t  seis  dias 
d«  lição,  seis  quinta«-f eiras  0  cinco  domingo»! 

Sentê-se  já  o  ar  do  fim  do  ano, 


222  CORAÇÃO 

As  árvores  «^.o  jardim,  frondosas  e  floridas,  cobrem 
de  bela  sombra  os  aparelhos  de  gimnástica. 

Os  alunos  amdam  já  vestidos  de  verão.  É  bonito  ver 
agora,  à  saída  à^s  classes,  como  tudo  é  diverso  dos  me- 
ses decorridos.  Os  cabelos  que  chegavam  aos  ombros 
foram  deitados  '  baixo,  e  todas  as  cabeças  estão  à  escovi- 
nha. Vêem-se  cV  jpéuzinhos  de  palha  de  todas  as  formas, 
com  fitas  que  d'»'- cem  pelas  costas  abaixo,  camisas  e  grava- 
tinhas  de  toda*-  as  cores;  todos  os  mais  pequenos  com 
qualquer  coisa  ''írmelha  ou  azul  nas  vestes,  um  enfeite, 
um  debrum  um«i  borlazinha,  um  trapinho  que  seja  de 
côr  viva,  aplicarío  de  qualquer  modo  pela  mamã,  con- 
tanto que  faça  ^  ista;  até  os  mais  pobres;  e  muitos  vêm 
para  a  escola  sem  chapéu,  como  fugidos  de  casa.  Alguns 
trazem  o  traje  branco  de  gimnástica.  Há  um  aluno  da 
mestra  Delcati,  vestido  de  vermelho  da  cabeça  aos  pés, 
parecendo  um  caranguejo  cozido. 

Andam  alguns  vestidos  à  marinheira.  Mas  o  mais 
belo  é  o  Pedreirito,  que  trás  um  chapeuzinho  de  palha, 
que  lhe  dá  ares  de  um  coto  de  vela  com  um  pára-lume; 
e  é  engraçado  vê-lo  fazer  o  focinho  de  lebre  por  de- 
baixo das  abas.  Correti  também  pôs  de  parte  o  seu  bar- 
rete de  pêlo  de  gato,  e  trás  agora  um  velho  gorro  de 
viajante,  de  seda  cinzenta.  Voltini  trás  um  vestido  à 
escocesa,  todo  justinho.  Grossi  mostra  o  peito  nú.  Pre- 
cossi  regala-se  dentro  de  uma  blusa  azul  de  me&tre  fer- 
reiro. E  Garoffi?  Agora  que  se  viu  obrigado  a  deixar 
o  capote  que  escondia  o  seu  comércio,  trás  à  mostra  as 
algibeiras  cheias  de  toda  a  espécie  de  bagatelas  de  ade- 
lo;  vêem-se-lhe  sair  dos  bolsos  listas  de  lotarias.  Agora 
todos  mostram  o  que  (trazem:  leques  feitos  de  jornal, 
gaitas  de  cana,  flechas  para  atirar  aos  pássaros,  ervas, 
grilos  que  saem  para  fora  do  bolso  e  vão  vagarosamente 
subindo  pelo  casaco!  muitos  dos  pequenos  trazem  ra- 
minhos de  flores  para  as  mestras.  Também  as  mestras 
andam  tcdas  vestidas  de  verão,  e  de  cores,  excepto  a 
Freirinha,  que  se  veste  sempre  de  preto  e  a  mestrazi- 
nha  da  pena  vermelha,  que  não  deixa,  nem  a  sua  pena, 
nem  o  laço  de  fitas  de  côr  de  rosa  ao  pescoço,  todas 
amarrotadas   pelas  mãozinhas    das   suas   discípulas,   que 


CORAÇÃO  223 

a  fazem  sempre  rir  e  correr.  É  a  estação  das  cerejas, 
das  borboletas,  das  músicas  nas  ruas  e  dos  passeios  aos 
campos;  muitos  da  quarta  classe  fogem  para  ir  aos  ba- 
nhos no  Pó,  todos  já  têm  o  coração  em  férias,  e  cada 
dia  saiise  da  escola  mais  impaciente,  mais  éjlegre  do 
que  no  anterior.  Entretanto  faz-me  pena  ver  Garrone 
vestido  de  luto,  e  a  minha  pobre  mestra  da  primeira 
cada  vez  mais  abatida  e  mais  pálida,  tossindo  sempre 
mais  forte.  Agora  anda  curvada  e  cumprimenta-me  com 
um  modo  tão  triste!... 


Poesia 

Sexta-feira,  26 

«Principias  a  compreender  a  poesia  da  escola,  Henrique; 
mas  por  ora  não  vês  a  escola  senão  por  dentro.  Parecer-te-á 
mais  bela  e  mais  poética  daqui  a  trinta  anos  , quando  lá 
fores  acompanhar  teus  filhos,  e  a  vires  de  fora  como  a  vejo 
agora.  Esperando  por  ti,  passeio  pela  rua  silenciosa  em  volta  do 
fedifício,  e  aplico  o  ouvido  às  janelas  do  rés-do-chão,  fechadas 
com  persianas.  Numa  janela  ouço  a  voz  de  uma  mestra  que 
diz:  «Ah!  aquele  corte  do  t!  Assim  não  está  bem,  meu  filho! 
Que  diria  teu  pai?» 

Noutra  janela  próxima  sôa  a  voz  grossa  de  um  mestre  que 
dita  lentamente:  «Comprei  cinquenta  metros  de  seda  a  quatro 
mil  e  seiscentos  o  metro,  vendi-os  a...» 

Mais  além,  a  mestra  de  pena  vermelha,  que  lê  em  voz 
alta:  «Então,  Pedro  Micca,  com  o  morrão  aceso...» 

Da  classe  vizinha  ouve-se  como  um  chilrear  de  cem  pássa- 
ros, o  que  quere  dizer  que  o  mestre  se  ausentou  por  um  mo- 
mento. Vou  andando,  e  ao  voltar  a  esquina  ouço  chorar  um 
menino,  e  a  voz  da  mestra  repreendendo-o  ou  consolando-o.  De 
outras  janelas  ouvem-se  cá  fora  versos,  nomes  de  grandes  ho- 
mens e  bons,  fragmentos  de  sentenças  que  aconselham  a  vir- 
tude, o  amor  da  pátria  e  a  coragem. 

Depois  segruem-se  momentos  de  silêncio,  em  que  se  diria 
que  o  edifício  está  vazio  e  parece  incrível  que  lá  estejam  den- 
tro   setecentos    rapazes;    depois    sentçin-se    estrondosas    gargg- 


324  CORAÇÃO 

Ihadas  provocadas  pelo  gracejo  de  um  mestre  de  bom  hu« 
mor...  E  a  gente,  que  passa,  pára  para  escutar,  e  todos  vol- 
vem um  olhar  de  simpatia  para  aquele  belo  edifício,  que  en- 
cerra em  si  tanta  mocidade  e  tantas  esperanças.  Depois  ouve-se 
repentinamente  um  rumor  surdo,  um  bater  de  livros,  um  ru- 
mor de  carteiras,  um  estrépito  de  pés,  um  borborinho,  que  se 
propaga  de  classe  em  classe,  debaixo  para  cima,  como  ao  divul- 
gar-se  a  nova  de  estar  finda  a  aula.  E  àquele  rumor  uma  multidão 
dentro  e  fora  da  porta,  esperando  os  filhos,  os  irmãos,  os  sobri- 
nhos; enquanto  das  portas  das  aulas  rompem  aos  pulos  pelo  salão 
de  entrada  os  mais  pequenos  para  tomarem  as  suas  capas  e  os 
seus  chapéus,  fazendo  grande  traquinada  no  soalho,  bailando  em 
roda  até  que  o  bedel  lhos  dê  um  a  um.  E  finalmente  saem  em 
grandes  fileiras,  batendo  com  os  pés.  Principia  então  a  chuva  de 
preguntas  dos  parentes:  —  Soubeste  a  lição?  Que  trabalho  te  deu 
o  mestre?  Que  tens  tu  para  amanhã?  Quando  é  o  exame  mensal? 

E  também  as  pobres  mais  que  não  sabem  ler,  abrem  os  ca- 
dernos, olham  para  os  problemas,  preguntando  pelos  pontos  — 
Pois  s6  oito!  Dez  com  louvor!  —  Nove  de  lição!  —  E  inquietam- 
-se,  alegram-se,  interrogam  os  mestres,  falam  de  programas  e 
de  exames. 

Como  é  belo  tudo  isto!  Como  é  grande,  e  que  imensa  pro- 
messa é  para  o  mundol 

Teu  pai 

A  surda-muda 

Domingo,  28 

Não  podia  acabar  melhor  do  que  acabou,  com  a  vi- 
sita desta  manhã,  o  mês  de  maio.  Sentimos  tocar  a  campai- 
nha e  correm.os  todos-  Ouço  a  voz  de  meu  pai  que  diz 
cheio  de  espanto:  —  Por  aqui,  Jorge!?  —  Era,  Jorge  o 
nosso  jardineiro  de  Chieri,  que  tem  agora  a  família  em 
Condove,  e  chegava  nesse  instante  de  Génova,  onde  havia 
desembarcado  no  dia  anterior,  de  regresso  da  Grécia,  de- 
pois de  trabalhar  três  anos  numa  estrada  de  ferro.  Trazia 
um  grande  fardo  debaixo  do  braço.  Está  um  pouco  enve* 
Ihecido,  mas  sempre  corado  e  jovial. 


CORAÇÃO  225 

Meu  pai  queria  que  entrasse,  mas  êle  disse  que  não, 
e  preguntou  logo  muito  sério: 

—  Como    vai    a   minha    família?    Como    está    Gigia? 

—  Bem  até  há  poucos  dias  —  respondeu  minha  mãi. 
Jorge   deu  um  grande   suspiro: 

—  Oh!  Deus  seja  louvado!  Não  tinha  coragem  de 
me  apresentar  nos  Surdos-Mudos,  sem  primeiro  ter  no- 
tícias dela.  Deixo  aqui  este  fardo  e  corro  a  buscá-la-  Há 
três  anos  que  não  vejo  a  minha  pobre  filha!  Três  anos  já, 
que  não  vejo  nenhum  dos  meus. 

—  Accmpanha-o,  disse  meu  pai. 

—  Ainda  uma  palavra,  desculpe-me,  disse  o  jardinei- 
lo  no  patamar. 

Mas  meu  pai  interrompeu-o : 
— «E  os  negócios? 

—  Bem,  respondeu  —  graças  a  Deus!  Trouxe  alguns 
cobres  e...  mas...  queria  preguntar...  Como  vai  a  instru- 
ção da  miudinha?  diga-me  alguma  coisa.  Deixei-a  que 
era  mesmo  um  animalzinho,  pobre  animalzinho,  pobre 
criatura!  Creio  pouco,  já  nesses  colégios.  Aprenderia  a 
fazer  os  sinais?  Minha  mulher  escrevia-me:  «Está  apren- 
dendo a  falar  e  está  fazendo  progresso».  Mas,  dizia  eu, 
que  vale  que  ela  aprenda  a  falar,  se  não  sei  fazer  os  si- 
nais? Como  nos  poderemos  entender?  pobre  criança? 
Aquilo  é  bom  para  se  compreenderem  entre  si,  um  desgra- 
çado com  o  outro.  —  Mas  como  vai  ela?  como  vai? 

Meu  pai  sorriu-se  e  respondeu: 

—  Não  te  digo  nads.  tu  verás.  Vai,  depressa,  não 
lhe  roubes  mais  um  mánuto. 

Saímos;  o  Instituto  é  perto.  Caminhando  a  passos  lar- 
gos o  jardineiro  falava-me  de  m.odo  a  entristecer-se.  Ah!  a 
minha  pobre  Giçia!  Nascer  com  aquela  desgraça!  E  di- 
zer que  nunca  pude  ouvir,  pronunciado  por  ela,  o  nome 
de  pai,  e  que  nunca  me  ouviu  chamar-lhe  filha,  porque 
nunca  disse  nem  ouviu  un)a  palavra  no  mundo!...  e  gra- 
ças 3  Deus  por  se  ter  encontrado  ainda  uma  pessoa  cari- 
dosa que  tem  feito  as  despesas  do  Instituto!  Mas  antes 
de  oito  anos  não  podia  entrar.  Há  três  anos  que  não  está 
em  casa.  Já  vai  fazer  onze.  Está  crescida?  diga-me  al- 
guma coisa,  está  crescida?  É  alegre? 

■   15 


22è  CORAÇÃO 

—  Há-de  ver,  há-de  ver!  respondi-lhe,  apressando  o 
passo. 

—  Mas  onde  está  esse  Instituto?  preguntou.  Quando 
minha  mulher  a  levou  lá,  já  eu  tinha  partido;  parece-me 
que  deve  ser  deste  lado. 

Tinhamos  justamente  chegado.  Entramos  logo  no 
parlatório.  Veio-nos  ao  encontro  um  guarda. 

—  Sou  o  pai  de  Gigia  Voggi  —  disse  o  jardineiro; 
quero  ver  minha  filha,  depressa,  depressa! 

—  Estão  no  recreio,  respondeu  o  guarda.  Vou  avisar 
a  mestra. 

E  saiu. 

O  jardineiro  nem  sequer  podia  falar,  nem  estar  para- 
do; olhava  para  os  quadros,  das  paredes,  mas  sem  ver 
nada.  A  porta  abriu-se;  entrou  uma  mestra  vestida  de 
preto,  com  uma  rapariga  pela  mão,  e  pai  e  filha  olnaram- 
-se  um  momento,  e  depois  lançaram-se  nos  braços  um  do 
outro  dando  um  grito.  A  menina  estava  vestida  de  risca- 
dinho branco  e  verme,lho  com  avental  branco.  É  mais  alta 
do  que  eu-  Chorava  e  tinha  o  pai  apertado  ao  peito  com 
ambos  os  braços. 

O  pai  recuou  um  pouco  e  pôs-se  a  mirá-la  dos  pés 
à  cabeça,  com  chispas  nos  olhos,  ansiando,  como  se  tives- 
se dado  uma  grande  corrida,  e  exclamou:  Ah!  como  está 
crescida!  E  como  está  bonita!  Oh!  a  minha  querida,  a  mi- 
nha pobre  Gigia!  A  minha  mudinha!  É  a  senhora  a  mes- 
tra? Diga-lhe  por  favor,  que  me  faça  alguns  dos  seus  si- 
nais, que  sem.pre  entederei  alguma  coisa,  e  depois  irei 
aprendendo  pouco  a  pouco.  Diga-lhe  que  me  faça  com- 
preender alguma  coisa  com  os  seus  gestos. 

A  mestra  sorriu-se  e  disse  em  voz  baixa  à  menina: 

—  Quem  é  este  homem  que  veio  procurar-te? 

E  a  pequena,  com  uma  voz  grossa,  estranha,  deshar- 
raoniosa  como  de  selvagem  que  falasse  pela  primeira 
vez  a  nossa  língua,  mas  pronunciando  claro  e  sorrindo, 
respondeu: 

—  É  meu  pai. 

O  jrardineiro  deu  um  passo  para  trás  e  gritou  como 
um  louco: 


CORAÇÃO  227 

—  Ela  fala?  Mas  é  possível?  Será  verdade?  Fala? 
Mas  tu  falas,  minha  filha?  falas?  —  E  abraçou-a  de  novo 
e  beijou-a  na  testa  três  vezes.  —  Mas  não  é  com  os  gestos 
que  falam,  senhora  mestra?  Pois  não  é  com  os  dedos,  as- 
sim?... Mas  que  é  isto? 

—  Não,  sr.  Voggi,  respondeu  a  mestra,  não  é  com 
gestos.  Era  assim  pelo  método  antigo.  Aqui  ensina-se  pelo 
método  novo,  pelo  método  oral.  O  senhor  não  sabia? 

—  Mas  eu  não  sabia  nada,  respondeu  o  jardineiro  es- 
tupefacto. Há  três  anos  que  estou  fora.  Talvez  mo  tives- 
sem escrito,  mas  não  compreendi.  Tenho  uma  cabeça  de 
ferro.  Oh!  minha  filha,  pois  tu  compreendes-me?  Ouves 
a  minha  voz?  Responde,  sentes?  Ouves  o  que  te  digo? 

—  Não,  bom  homem,  disse  a  mestra.  Não  ouve  a  sua 
voz,  porque  é  surda.  Ela  percebe  pelos  movimentos  da 
nossa  boca  quais  são  as  palavras;  é  este  o  método  novo; 
mas  não  ouve  as  palavras  de  ninguém,  nem  tão  pouco  as 
que  ela  mesma  diz;  pronuncia-as,  porque  lhas  temos  ensi- 
nado, letra  por  letra,  e  modo  como  deve  dispor  os  lábios 
e  mover  a  língua  e  o  esforço  que  deve  fazer  com  o  peito 
e  com  a  garganta  para  emitir  a  voz. 

O  jardineiro  não  percebeu  e  ficou  com  a  boca  aberta. 
Não  acreditava. 

—  Diz-me,  Gigia,  preguntou  à  filha,  falando-lhe  ao 
ouvido.  Estás  contente  por  teu  pai  ter  voltado? 

E  levantando  a  cabeça  ficou  esperando  a  resposta.  A 
filha  olhou  para  êle,  pensativa,  e  nada  disse. 

O  pai  ficou  perturbado.  A  mestra  riu-se.  Depois 
disse:  r-M:^^*T^ 

—  Note,  bom  homem.  Ela  não  respondeu  porque  não 
viu  os  movimentos  dos  seus  lábios.  O  senhor  falou-lhe 
ao  ouvido.  Agora  repita  a  pregunta,  tendo  o  rosto  bem 
defronte  do  rosto  dela. 

O  pai  olhando  para  ela  mesmo  em  face,  repetiu: 

—  Estás  contente  por  teu  pai  ter  voltado?  Por  não 
se  ausentar  mais? 

A  pequena  que  tinha  olhado  atentamente  para  os  lá- 
bios, procurando  até  ver  dentro  da  boca,  respondeu  fran- 
camente: 


228  CORAÇÃO 

—  Sim,  estou  contente  por  teres  voltado,  e  não  quero 
que  te  vás  mais  embora...   nunca  mais.  . 

O  pai  abraçou-a  impetuosamente;  depois,  à  pressa, 
como  para  confirmar-se  melhor,  fez  uma  infinidade  de 
preguntas,  umas  sobre  outras. 

—  Como  se  chama  a  mamã? 
' —  An-tó-ni-a- 

—  Como  se  chama  a  tua  irmã  pequena? 

—  A-de-lai-de. 

—  Como  se  chama  este  colégio? 
' — Dos  surdos  mudos. 

—  Duas  vezes  dez  quantos  são? 

—  Vinte. 

Quando  pensamos  vê-lo  rir  de  alegria,  começou  de 
repente  a  chorar.  Mas  eram  lágrimas  de  prazer. 

—  Animo!  disse-lhe  a  mestra.  O  senhor  tem  moti- 
vos para  alesrrar-se,  não  para  chorar.  Repare  que  também 
faz  chornr  sua  filha.  Então  está  contente,  não  é  verdade? 

O  iardineiro  tomou  a  mão  da  mestra  e  beijou-a  por 
duas  ou  três  vezes,  dizendo: — ^ Obrigado,  senhora  pro- 
fessora. E  perdõe-me  não  saber  agradecer-lhe  mais. 

—  Mas  não  só  fala,  disse  a  mestra,  também  escreve. 
F^r=,  rontas.  Conhece  o  nome  de  todos  os  objectos  usuais. 
S-^b?  um  T50UC0  de  história  e  de  geografia.  Ap-ora  está 
çlrt  r;^  rl^sse  norm.al.  Quando  freaijentar  as  outras  classes, 
s'íberá  muito,  mni^o  mais.  Há-de  sair  daaui  habilitaria  n-'-- 
exercer  uma  nrofjssão.  Temos  surdas-mudas  que  estão 
nas  loias  servindo  freo-ueses,  e  que  tratam  dos  seus  negó- 
cios romo  as  outras  pessoas. 

O  jardineiro  ficou  outra  vez  pasmado.  Parecia  que 
se  lhe  confundiam  as  ideas.  Olhou  para  a  filha  e  coçou  a 
cabeça. 

A  sua  fisionomia  era  de  quem  queria  ainda  alguma 
explicação. 

Então  a  mestra  voltando-se  para  o  guarda,  disse-Jhe: 

—  Chame  cá  uma  menina  da  classe  preparatória. 

O  guarda  voltou  pouco  depois  com  uma  surda-muda 
de  oito  a  nove  anos,  entrada  há  poucos  dias  no  Instituto. 

—  Esta,  disse  a  mestra  —  é  uma  daquelas  a  quem  en- 


CORAÇÃO  22Q 

sinamos  os  primeiros  elementos.  Eis  como  se  faz:  quero 
por  exempio,  que  ela  diga  —  é  —  Repare  com  atenção. 
A  mestra  abriu  a  boca  como  se  abre  para  pronunciar 
a  vogal  e,  e  íez  sinai  á  menina  para  que  a  imitasse.  A  me- 
nina obedeceu.  Então  a  mestra  acenou-lhe  que  imitasse 
a  sua  voz.  Ernitiu  logo  um  som  mas  em  vez  de  —  é  —  pro- 
nunciou —  ó. 

—  Não  é  assim — le  pegando  nas  mãos  da  menina, 
pôs  uma  delas  aberta  na  garganta  e  outra  sobre  o  peito, 
e  repetiu  —  é. 

A  menina  sentindo  pelo  táto  o  movimento  da  gar- 
ganta e  do  peito  da  mestra,  reabriu  a  boca  como  antes,  e 
pronunciou  perfeitamente  —  é.  Do  mesmo  modo  fez-lhe 
dizer  c  e  d,  conservando  sempre  as  pequeninas  mãos  no 
peito  e  garganta. 

—  Compreende  agora?  preguntou. 

O  pai  tinha  compreendido  mas  parecia  mais  maravi- 
lhado do  que  quando  não  compreendia. 

—  Então  ensinam  a  falar  assim,  —  preguntou  depois 
de  um  momento  de  reflexão,  olhando  para  a  mestra.  — 
E  têm  paciência  de  ensinar  assim,  a  pouco  e  pouco,  a  um 
por  um,  a  todos?  durante  anos  e  anos!?...  Mas  as  senho- 
ras são  santas!  santas  e  anjos  do  paraíso!  Mas  não  há  no 
mundo  recompensa  para  elas!  Que  posso  eu  dizer?  —  Ah! 
deixem-me  agora  um  bocado  com  a  minha  fi,lha,  deixem- 
-na  só  comigo  por  cinco  minutos. 

E,  retirando-se  para  um  lado  com  ela,  fê-la  sentar 
e  principiou  a  interrogá-la;  ela  a  responder  e  êle  a  rir-se 
com  os  olhos  brilhantes  batendo  com  as  mãos  em  cima  dos 
joelhos,  pegando  nas  mãos  da  filha  e  olhando  para  ela, 
fora  de  si  de  contentamento,  a  ouvi-la  como  a  uma  voz 
que  viesse  do  céu.  E  logo  preguntou  à  mestra: 

—  O  sr.  director  dará  licença  que  eu  lhe  agradeça? 

—  O  director  não  está  —  respondeu  a  mestra  —  mas 
há  uma  pessoa  a  quem  deve  agradecer.  Aqui  cada  menina 
pequena  é  entregue  aos  cuidados  de  uma  companheira 
maior,  que  lhe  serve  de  irmã  e  de  mãi.  A  sua  filha  está 
confiada  a  uma  surda-muda  de  dezasseis  anos,  filha  de 
um  padeiro,  que  é  boa  e  quere-lhe  muito  bem.  Há  dois 
anos,  vai  todas  as  manhãs  ajudá-Ja  a  vestir-se,  penteia-a, 


230  CORAÇÃO 

ensina-lhe  a  coser,  arranja-lhe  a  roupa,  faz-lhe  boa  compa- 
nhia. Luiza,  como  se  chama  a  tua  mamã  do  Instituto? 
A  rapariga  sorriu  e  respondeu: 

—  Ca-ta-ri-na  Gior-da-no- 

E  voltando-se  para  o  pai  disse: 

—  É  muito,  muito  boazinha. 

O  guarda,  saindo  a  um  sinal  da  mestra,  voltou  logo 
com  outra  surda-muda,  loura,  robusta,  de  cara  alegre,  ves- 
tida também  de  riscadinho  vermelho,  com  avental  cinzen- 
to, a  qual  parou  à  porta;  £ez-se  muito  corada,  depois  in- 
clinou a  cabeça,  rindo.  Tinha  o  corpo  de  uma  mulher  e 
parecia  uma  criança. 

A  filha  de  Jorge  correu-lhe  logo  ao  encontro,  pegou- 
-Ihe  na  mão  como  uma  criança,  e  trouxe-a  ao  pé  do  pai, 
dizendo  com  a  sua  voz  grossa: 

—  Ca-ta-ri-na  Gior-da-no. 

—  Ah!  a  boa  menina!  exclamou  o  pai,  estendendo  a 
mão  para  a  acariciar,  mas  retirou-a  outra  vez  e  repetiu: 

—  Ah!  a  boa  menina,  que  Deus  a  abençoe,  e  lhe  dê  todas 
as  fortunas,  todas  as  conso.lações,  e  a  faça  sempre  feliz, 
à  menina  e  a  todos  os  seus,  uma  boa  rapariga  assim!  Po- 
bre da  minha  Gigia!...  É  um  operário  honesto,  um  pobre 
pai  de  família  que  lhe  deseja  a  felicidade,  de  todo  o  cora- 
ção. 

Ela,  a  grande,  acariciava  a  pequena,  que  se  conserva- 
va de  cabeça  baixa,  sorrindo;  e  o  jardineiro  continuava 
a  olhá-la  como  se  fosse  ela  uma  santa. 

—  Hoje  pode  levar  consigo  a  sua  filha  —  disse  a  mes- 
tra. 

—  Se  a  levo  —  respondeu  o  jardineiro,  i — Levo-a  a 
Condove  e  trago-a  amanhã  de  manhã.  Ora,  se  eu  não  le- 
vasse a  minha  filha! 

A  filha  saiu  para  vestir-se. 

—  Há  três  anos  que  não  a  vejo!' — disse  o  jardineiro. 

—  E  agora  que  fala!  Levo-a  a  Condove.  Mas  antes,  vou 
dar  um  giro  por  Turim,  com  a  minha  mudinha  pelo  bra- 
ço; quero  que  todos  a  vejam  e  hei-de  levá-la  aos  meus 
quatro  amigos  para  que  a  ouçam-  Ah!  que  dia  feliz!  Isto 
é  que  se  chama  uma  congolação!  vamo»!  dá  o  brajo  a  t«u 
pai,  minha  Gigia. 


CORAÇÃO  231 

A  rapariga,  que  tinha  voltado  com  um  chalezinho  e 
uma  touca,  deu-lhe  o  braço. 

—  E  muito  obrigado  a  todos,  disse  o  pai;  muito  obri- 
gado a  todos,  com  toda  a  minha  alma  o  digo,  ainda  cá  hei- 
-de  voltar  para  lhes  agradecer. 

Ficou  um  momento  a  pensar,  e,  apartando-se  arreba- 
tadamente da  filha,  voltou  atrás,  mexendo  com  uma  das 
mãos  na  algibeira,  e  gritou  como  um  furioso: 

—  Muito  bem!  eu  sou  um  pobre  diabo,  mas  aqui  está, 
deixo  vinte  liras  para  o  Instituto.  Um  marengo  de  ouro, 
bonito  e  novo. 

E  dando  uma  grande  pancada  sobre  a  mesa,  deixou 
lá  ficar  o  marengo. 

—  Não,  não,  bom  homem  —  disse  a  mestra,  comovida 
—  guarde  o  seu  dinheiro,  não  posso  aceitá-lo.  Isto  não  me 
pertence.  Venha  quando  cá  estiver  o  director.  Mas  êle  não 
aceitará  também,  esteja  certo  disso.  Custou-lhe  muito  a 
ganhar,  bom  homem.  Ficamos-lhe  grato  do  mesmo  modo. 

—  Não,  senhora,  deixo  —  respondeu  o  jardineiro  in- 
sistindo. Depois...  ver-se-á. 

Mas  a  mestra  tornou  a  meter-lhe  a  moeda  na  algi- 
beira sem  lhe  dar  tempo  a  que  a  repelisse.  Êle  então  re- 
signou-se,  inclinando  a  cabeça,  e  depois,  rapidamente 
atirando  um  beijo  com  a  mão  à  mestra  e  à  menina  maior, 
tornou  a  pegar  no  braço  da  sua  Gigia  e  saiu  pe,la  porta 
fora,  dizendo : 

—  Vem,  vem,  minha  filha,  minha  pobre  miudinha, 
meu  tesouro! 

E  a  filha  exclamou  com  a  voz  grossa: 

—  Oh!  que  dia  bonito! 

Garibaldi 

3  de  Junho.  Amanhã  é  festa  nacional 

Ontem  à  noite  morreu  Garibaldi.  Sabes  tu  quem  foi  Gari- 
baldi? Foi  aquele  que  libertou  dez  milhões  de  italianos  da  tira- 
nia dos  Bourbons.  Morreu  aos  setenta  e  cinco  anos.  Nasceu  em 
Nisa,  filho  de  um  capitão  d%  navios.  Aos  oito  anos  salvou  uma 


232  CORAÇÃO 

mulher,  aos  treze  salvou  uma  barca  cheia  de  companheiros  que 
naufragavam,  aos  vinte  e  sete  arrebatou  das  águas  de  Marselha 
um  moço  que  se  afogava,  aos  quarenta  e  um  livrou  um  navio  de 
incêndio  no  oceano.  Combateu  dez  anos  na  América  pela  liberda- 
de de  um  povo  estranho,  combateu  em  três  guerras  contra  os 
austríacos  pela  liberdade  da  Lombardia  e  do  Trentino,  defen- 
deu Roma  dos  franceses  em  1840,  libertou  Palermo  e  Nápoles 
em  1860;  combateu  em  favor  de  Roma,  em  1857;  lutou  contra  os 
alemãis  em  defesa  da  França.  Sle  tinha  a  chama  do  heroísmo  e 
o  génio  da  guerra.  Lutou  em  quarenta  combates  e  venceu  trinta 
e  sete.  Quando  não  combateu,  trabalhou  para  viver  e  isolou-se 
numa  ilha  solitária  cultivando  a  terra. 

Foi  mestre,  marinheiro,  operário,  negociante,  soldado,  ge- 
neral e  ditador.  Era  grande,  simples  e  bom.  Odiava  todos  os 
opressores,  amava  todos  os  povos,  protegia  todos  os  fracos;  não 
tinha  outra  aspiração  que  não  fosse  o  bem;  recusava  as  honras, 
desprezava  a  morte,  adorava  a  Itália.  Quando  soltava  um  grito 
de  guerra,  legiões  de  valentes  corriam  ao  seu  encontro  de  todas 
as  partes.  Os  fidalgos  deixavam  os  seus  palácios;  os  operários  as 
suas  oficinas;  os  alunos,  a  escola,  para  ir  combater  ao  sol  da  sua 
glória.  Na  guerra  trazia  uma  camisa  vermelha.  Era  robusto,  lou- 
ro, belo.  Nos  campos  de  batalha  era  um  raio,  nas  suas  amizades 
uma  criança,  nas  suas  dores  um  santo.  Mil  italianos  morreram 
pela  pátria,  felizes  por  morrerem  vendo-o  passar  de  longe  vito- 
rioso; milhares  se  deixaram  matar  por  êle,  milhões  o  abençoa- 
ram e  hão-de  abençoá-lo  sempre. 

Morreu;  o  mundo  inteiro  chora-o.  Tu  não  compreendes 
por  ora ;  lerás  os  seus  feitos,  ouvirás  falar  dele  continuamente 
na  vida,  e  à  medida  que  fores  crescendo,  a  sua  imagem  crescerá 
também  diante  de  ti;  quando  fores  homem,  vê-lo-ás  gigante;  e 
quando  tu  não  existires,  quando  já  não  viverem  os  filhos  dos 
teus  e  aqueles  que  deles  nascerem,  ainda  as  gerações  hão-de  ver 
alta,  na  glória,  a  cabeça  luminosa  do  redentor  dos  povos,  coroa- 
da pelos  nomes  das  suas  vitórias,  como  um  esplendor  de  estre- 
las, e  a  cada  italiano  iluminar-se-á  a  fronte  e  a  alma  ao  pronun- 
ciar o  seu  nome. 

Teu  pai. 


CORAÇÃO  233 

O  exército 


Domingo  ii.  Festa  nacional  retardada  sete  dias  por  cau- 
sa da  morte  da  Garibaldi. 

Fomos  à  praça  Castelo,  ver  a  revista  dos  soldados  que 
desfilavam  diante  do  comandante  do  corpo  do  exército, 
no  meio  de  duas  grandes  alas  de  povo.  À  medida  que  des- 
filavam ao  som  das  fanfarras  e  das  bandas,  meu  pai  ia- 
-me  mostrando  os  corpos  e  os  trofeus  das  bandeiras.  Pri- 
meiro, os  académicos,  que  um  dia  serão  oficiais  de  enge- 
nheiros e  de  artilharia,  cerca  de  trezentos  vestidos  de 
preto,  passaram  com  uma  elegância  ousada  e  desenvolta 
de  soldados  e  de  estudantes.  Depois  dele  desfilou  a  infan- 
taria, a  brigada  Aosta,  que  combateu  em  Goito  e  em  S. 
Martinho;  a  brigada  Bergamo,  que  combateu  em  Gastei 
Fidardo;  quatro  regimentos,  companhias  atrás  de  compa- 
nhias; milhares  de  borjazinhas  vermelhas,  que  pareciam 
grinaldas  extensíssimas  de  flores  côr  de  sangue,  presas 
pelas  extremidades,  agitadas  e  conduzidas  através  da  mul- 
tidão. Depois  da  infantaria  seguiam  os  soldados  do  corpo 
de  engenheiros,  os  operários  de  guerra,  com  penachos  de 
crina  preta  e  galões  carm.esim;  e  enquanto  estes  desfila- 
vam, viam-se  à  rectaguarda,  avançando,  centenares  de  pe- 
nas compridas,  direitas,  que  sobrelevavam  às  cabeças  dos 
espectadores:  eram  os  alpinos,  os  defensores  das  portas 
de  Itália,  todos  altos,  rosados  e  fortes,  com  os  cabelos  à 
calabresa,  e  as  divisas  de  um  lindo  verde,  côr  de  erva  das 
suas  montanhas.  Desfilavam  ainda  os  alpinos,  quando  um 
sussurro  da  multidão  se  levantou  e  o  antigo  batalhão  12-° 
de  caçadores,  os  primeiros  que  entraram  em  Roma  pela 
brecha  da  porta  Pia,  todos  de  preto,  ágeis,  vivos,  com  pe- 
nachos ao  vento,  passaram  com^o  uma  onda  de  corrente 
negra,  fazendo  ecoar  na  praça  os  sons  agudos  dos  clarins, 
que  pareciam  gritos  de  alegria.  Mas  a  sua  fanfarra  foi  co- 
berta pelo  estrépido  áspero  e  pesado  da  artilharia  de  cam- 
panha; então  passaram  soberbamente  sentados  sobre  os 
altos  caixões,  puxados  por  trezentas  parelhas  de  cavalos 


234  CORAÇÃO 

impetuosos,  os  belos  soldados,  com  os  seus  galões  amare- 
los, os  formidáveis  canhões  de  aço  e  de  bronze,  cintilantes 
sobre  as  carretas  ligeiras  que  saltavam  e  ressoavam  fa- 
zendo tremer  a  terra. 

Vinha  depois,  lenta,  grave,  bela,  na  sua  aparência  do- 
lorosa e  rude,  com  os  seus  robustos  soldados,  com  as  suas 
mulas  valentes,  a  artilharia  de  montanha,  que  leva  a  des- 
truição e  a  morte  até  onde  sobe  o  pé  do  homem.  E,  final- 
mente, passou  a  galope,  com  as  bandeiras  ao  vento,  com 
cintilações  de  prata  e  de  ouro,  enchendo  o  ar  de  tinidos  e 
relinchos  de  cavalos,  o  soberbo  regimento  de  cavalaria  de 
Génova,  que  se  assinalou  em  dez  campos  de  batalha,  des- 
de Santa  Lúcia  a  Vila  Franca. 

—  Como  é  belo !  exclamei. 

Mas  meu  pai  fez-me  quási  uma  censura  por  aquelas 
palavras,  dizendo~me: 

—  Não  consideres  o  exército  como  um  belo  espectá- 
culo. Todos  esses  moços,  cheios  de  força  e  de  esperança, 
podem  de  um  dia  para  o  outro  ser  chamados  a  defender 
o  nosso  país  e  em  poucas  horas  caírem  despedaçados  pe- 
las balas  e  pe,la  metralha.  Todas  as  vezes  que  ouvires  gri- 
tar numa  festa:  viva  o  exército!  viva  a  Itália!  imagina 
para  além  dos  regimentos  que  passam,  um  campo  juncado 
de  cadáveres  e  alagado  de  sangue,  e  então  o  viva  ao  exér- 
cito te  sairá  mais  do  fundo  do  coração,  e  a  imagem  da  Itá- 
lia se  te  apresentará  mais  severa  e  mais  grandiosa. 


Itália 

Terça-feira,  13 

Deves  saudar  assim  a  pátria,  nos  dias  das  suas  festas:  Itá- 
lia, minha  pátria,  nobre  e  querida  terra,  onde  meu  pai  e  minha 
mãi  nasceram  e  serão  sepultados,  onde  espero  viver  e  morrer, 
e  onde  meus  filhos  crescerão  e  morrerão;  bela  Itália,  grande  e 
gloriosa  de  muitos  séculos,  unida  e  livre  de  há  pouco,  tu,  que 
derramaste  a  lu«  de  tantos  génios  divinos  sobre  o  mundo,  e 
por  quem  Valorosos  filhos  morreram  no  campo  de  batalha  e  tan- 


CORAÇÃO  235 

tos  heróis  no  patíbulo,  mãi  augusta  de  treeentas  cidades  e  de 
trinta  milhões  de  filhos,  eu,  criança  que  ainda  te  não  compreen- 
do e  te  não  conheço  inteira,  venero-te  e  amo-te  de  toda  a  minha 
alma,  e  tenho  orgulho  de  ter  nascido  de  ti  e  de  chamar-me  teu 
filho. 

Amo  os  teus  mares  esplêndios  e  os  teus  Alpes  sublimes, 
amo  os  teus  monumentos  solenes  e  as  tuas  recordações  imortais, 
amo  a  tua  glória  e  a  tua  belêsa; — amo-te  e  venero-te  toda, 
como  a  parte  da  tua  dileta,  onde  pela  primeira  vez  vi  o  sol  e  ouvi 
o  teu  nome ! 

Amo-vos  toda  de  um  grande  afecto  e  com  igual  gratidão  — 
Turim  valorosa,  Génova  soberba,  Bolonha  douta,  Veneza  encan- 
tadora, Milão  poderosa;  amo-vos  com  igual  reverência  de  filho, 
Florença  gentil  e  Palermo  terrível,  Nápoles  imensa  e  bela,  Roma 
maravilhosa  e  eterna!  Amo-te,  pátria  sagrada!  Juro-te  que  ama- 
rei todos  os  teus  filhos  como  irmão;  que  honrarei  sempre  no 
meu  coração  os  teus  grandes  vivos  e  os  teus  grandes  mortos; 
que  serei  um  cidadão  trabalhador  e  honesto,  que  trabalharei 
constantemente  por  nobilizar-me,  para  tornar-me  dignio  de  ti,  e 
concorrerei  com  as  minhas  pequenas  forças  para  que  desapare- 
çam um  dia  da  tua  face  a  miséria,  a  ignorância,  a  injustiça,  o  cri- 
me, e  para  que  possas  viver  e  expandir-te,  tranquila  na  magestade 
do  teu  direito  e  da  tua  força.  Juro-te  que  te  servirei  com  quan- 
to estiver  em  mim,  com  a  inteligência,  com  o  braço,  com  o  cora- 
ção, humildemente,  ousadamente;  e  que,  se  um  dia  careceres  do 
meu  sangue  e  da  minha  vida,  darei  vida  e  sangue,  morrerei  le- 
vando num  grito  ao  céu  o  teu  santo  nome,  e  mandando  o  meu  úl- 
timo beijo  à  tua  bandeira  abençoada». 

32  graus 

Sexta-feira,  i6 

Nestes  cinco  dias  que  passaram  depois  da  festa  na- 
cional, o  calor  tem  subido  três  graus.  Agora  estamos  em 
pleno  verão;  todos  começaram  a  achar-se  fatigados;  to- 
dos têm  perdido  as  belas  cores  rosadas  da  primavera;  os 
pescoços  e  as  pernas  adelgaçam-se,  as  cabeças  inclinam-se 
e  os  olhos  fecham-se. 

O  pobre  Nelli,  qu9  sofre  muito  com  o  calor,  traz  o 


236  CORAÇÃO 

rosto  côr  de  cera,  e  adormece  algumas  vezes,  profunda- 
mente, com  a  cabeça  sobre  o  caderno;  mas  Garrone  está 
sempre  atento,  e  póe-lhe  diante  um  livro  aberto,  em  pé, 
para  que  o  mestre  o  não  veja. 

Crossi  apoia  a  cabeça  ruiva  sobre  a  carteira,  de  modo 
que  parece  deslocada  do  corpo  e  posta  a^i.  Nobis  queixa- 
-se  de  que  somos  muitos  e  lhe  tiramos  o  ar.  Ah!  que  es- 
forço é  necessário  fazer  agora  para  estudar!  Vejo  das  ja- 
nelas de  casa  aquelas  formosas  árvores,  de  sombra  tão 
cerrada  e  para  onde  correria  de  tão  boa  vontade;  e  vêm- 
-me  a  tristeza  e  a  contrariedade  por  ser  obrigado  a  ir  me- 
ter-me  entre  os  bancos.  Mas  depois  animo-me  ao  ver  a  mi- 
nha boa  mãi,  que  me  observa  sempre,  quando  saio  para  a 
escola,  vê  se  estou  pálido,  e  diz-me  a  cada  página  de  tra- 
balho:—Estás  bom?  E  todas  as  manhãs,  às  seis,  acordan- 
do-me  para  a  lição:  —  Coragem!  Poucos  dias  faltam,  de- 
pois serás  livre,  descansarás  e  gozarás  na  sombra  das  ala- 
medas- 

Sim,  ela  tem  bastante  razão  em  lembrar-me  os  meni- 
nos que  trabalham  nos  campos,  sob  a  força  do  sol,  ou  en- 
tre os  cascalhos  do  rio  que  cegam  e  escaldam,  e  aqueles 
outros  das  fábricas  de  vidros  que  estão  todos  os  dias  imo-  , 
veis,  com  o  rosto  inclinado  sobre  uma  ,luz  de  gás,^  se  le- 
vantam todos  os  dias  mais  cedo  do  que  nós,  e  não  têm 
férias.  Coragem,  pois!  E  até  nisto  é  Derossi  o  primeiro 
de  todos,  pois  não  sofre  nem  calor  nem  sono ;  sempre  vi- 
vo, alegre,  com  os  seus  anéis  de  cabelos  louros,  como  no 
inverno,  e  estuda  sem  fadiga,  esperta  a  todos  em  volta  de 
si,  como  se  refrescasse  o  ar,  à  sua  voz.  Há  ainda  dois  ou- 
tros, também  vivos  e  atentos:  o  cabeçudo  do  Stardi,  que 
dá  murros  na  cara  para  não  adormecer,  e  que  quanto  mais 
fatigado   está  e  mais  calor   sente,   tanto  mais  aperta  os 
dentes  e  arregala  os  olhos,  que  parece  querer  comer  o 
mestre;  e  o  negociante  do  Garoffi,  todo  atarefado  em  fa- 
bricar leques  de  papel  vermelho,  ornados  com  figurinhas 
de  caixas  de  fósforos,  que  vende  a  dois  vinténs  cada  um. 
Mas  o  mais  bravo  é  Coretti,  o  pobre  Coretti,  que  se  le- 
vanta às  cinco  para  ajudar  o  pai  a  carregar  a  lenha  Às  onze 
na  escola,  já  não  pode  ter  os  olhos  abertos,  e  cai-lhe  a  ca- 
beça sobre  o  peito.  E,  contudo,  reanima-se,  da  palmadas 


CORAÇÃO  237 

na  nuca,  pede  licença  para  sair  para  lavar  a  cara,  e  que- 
re  que  os  vizinhos  o  sacudam  e  belisquem.  Mas,  apesar 
de  tudo,  esta  manhã  não  pôde  resistir,  adormeceu  num 
sono  de  chumbo;  o  mestre  chamou-o  alto:  Coretti !  En- 
tão o  filho  do  carvoeiro,  que  mora  perto  dele,  levantou-se 
e  disse: 

—  Coretti  trabalhou  das  cinco  às  sete  a  carregar 
lenha. 

O  mestre  deixou-o  dormir  e  continuou  a  dar  a  lição 
por  uma  meia  hora.  Depois  foi  ao  banco  de  Coretti,  e  de- 
vag:arinho,  soprando-lhe  no  rosto,  acordou-o.  Ao  ver  dian- 
te de  si  o  mestre,  inclinou-se  para  trás  assustado.  Mas 
o  mestre  tomou-lhe  a  cabeça  entre  as  mãos,  e  disse,  bei- 
jando-o  nos  cabelos. 

—  Não  te  censuro,  meu  filho.  Não  é  teu  sono  o  da  pre- 
guiça, mas  o  sono  da  fadiga. 


Meu  pai 


Sábado,  17 


«Certamente,  nem  teu  companheiro  Coretti,  nem  Garrone 
responderiam  nunca  a  seu  pai,  como  respondeste  esta  tarde 
ao  teu.  Henrique!  Como  é  possível?  Deves  jurar-me  que  jamais 
acontecerá  cousa  semelhante,  enquanto  eu  viver.  Todas  as 
vezes  que  a  uma  repreensão  do  teu  pai  te  corra  aos  lábios 
uma  resposta  má,  pensa  naquele  dia  que  há-de  irremediavel- 
mente cheear,  quando  êle  te  chamar  à  cabeceira  da  sua  cama 
para  diz3r-te:  —  Henrique,  vou  deixar-te.  —  Oh!  meu  filho, 
quando  sentires  a  sua  falta  pela  última  vez,  e  ainda  por  muito 
temno  depois,  quando  chorares  só  no  seu  gabinete  abando- 
nado, no  meio  daqueles  livros  que  êle  não  abrirá  mais,  então, 
recnrdando-te  de  lhe  teres  alemãs  vezes  faltado  ao  respeito, 
preeruntarás  a  ti  masmo:  —  Como  foi  possível?  —  Então  com- 
preender.?.? aue  êle  foi  sempre  o  teu  melhor  amigo;  que,  quan- 
do era  obrigado  a  castigar-te,  sofria  mais  do  que  tu,  e  que 
nunca  t3  fez  chorar  senão  para  fazer-te  bem;  então  arreoen- 
íer-te-^s  e  beiiarás  chorando  aquela  mesa  sobre  a  qual  tanto 
trabalhou,  sobre  a  qual  consumiu  a  vida  por  amor  de  seus  fi- 


238  CORAÇÃO 

lhos.  Agora  não  compretndes :  êl«  oculta  tudo  que  lhe  diz 
respeito,  excepto  a  sua  bondade  e  seu  amor.  Tu  não  sabes 
que  êle  está  algumas  vezes  de  tal  modo  acabrunhado  pela  fa- 
diga, que  julga  não  ter  mais  que  poucos  dias  de  vida  e  que 
nesses  momentos  não  fala  senão  em  ti  e  não  tem  outro  pesar 
no  coração  senão  o  de  deixar-te  pobre  e  sem  amparo.  E  quan- 
tas vezes  pensando  nisto  entra  na  tua  alcova  enquanto  dormes 
e  fica  ali  com  a  luz  na  mão  a  contemplar-te,  e  fazendo  depois 
um  esforço,  cansado  e  triste  como  ao  voltar  do  trabalho! 
Então  ignoras  que  muitas  vezes  êle  te  procura,  porque  tem 
uma  amargura  no  coração,  desgostos  que  cabem  a  todos  os 
homens  nesta  mundo;  procura-t«  como  a  um  amigo,  para  con- 
fortar-se  e  esquec»r>se,  e  tem  necessidade  de  refugiar-se  no 
tsu  amor  para  reaver  a  serenidade  e  a  coragem!  Pensa!  pois, 
que  dor  deve  ser  a  sua,  quando,  em  vez  de  achar  amor  em 
ti,  encontra  frieza  e  má  criação.  Não  te  macules  mais  desta 
ingratidão  borríveJ.  Pensa  que,  quando  mesmo  fosses  tão  bom 
como  um  santo,  não  poderias  nunca  compensá-lo  bastante 
daquilo  que  êle  tem  feito  e  faz  continuamente  por  ti.  E  pensa 
também,  que  com  a  vida  não  se  pode  contar,  uma  desgraça  pode- 
ria roubar  teu  pai  enquanto  és  ainda  criança  —  nestes  dois 
anos,  dentro  de  três  meses,  amanhã  mesmo.  Ah!  pobre  Hen- 
rique, como  então  verias  mudar-se  tudo  em  volta  de  ti!  como 
te  pareceria  vazia  e  triste  a  casa  com  a  tua  pobre  mãi  vestida 
de  preto!  Vai,  filho.  Vai  onde  está  teu  pai  ao  quarto  onde  tra- 
balha, vai  nas  pontas  dos  pés,  qus  te  não  sinta  entrar,  vai 
pousar  a  fronte  sobre  os  seus  joelhos,  pedir-lhe  que  te  perdoe 
e  te  abençoe. 

Tua  Mãi. 


No  campo 

Segunda-íeira,  ig 

Meu  bom  pai  perdoou-me  ainda  esta  vez,  e  deixou- 
-me  ir  ao  passeio  que  tinhamos  combinado  na  quarta- 
-feira  com  o  pai  de  Coretti,  o  vendedor  de  lenha. 

Tõiaos  nós  prcícisévatTios  de  um  pouoò  de  ar   das 


CORAÇÃO 


239 


montanhas.   Foi    uma   festa.   Encontramo-nos   ontem   às 
duas   na   praça   da   Constituição.   Derossi,    Garrone    Ga- 

provisões  de  frutas,  e  salchichas  e  ovos  cozidos  e  tinha! 
mos  também  copmhos  de  couro   e  canecas.   Garrone   le- 

audra7e%nM'?  i"  ''^"^^  ^'^^"^°'  ^°^^^'t^'  ""^^  f tas- 
queira de  soldado,  de  seu  pai,  cheia  de  vinho  tinto;  e  o 

ba7xo"do  h"""'  '°"^  '"'  '^"^^  ^'  ^---°'  trazia  de! 
baixo  do  braço  um  pao  enorme  de  dois  quilos.  Fomos 
no    carro    eléctrico    até    Gran-Madre    di   Dio,    e    de^is 
eTu.T^"  pelos  montes.  Que  verdura!  tanta  sombra 
e  que  fresco!   Andávamos  às  cambalhotas  na  relva,   bL 

de  eToTnhnf  ^"1."°'  ''^^'°''  "  ^^^^^vamos  pelas  cercas 
de  espinhos.  Coretti,  pai,  seguia-nos  ao  longe  com  o  ia- 
quetao  no  ombro,  fumando  o  seu  cachimbo,  e  de  vez  em 

ro"pas°  Pr^oT^^^  'T  '  "'°'  ^"^  ^°  r;sgássemos  a" 

hiTcoí\T!\u""°^'^''V  """"^  °  *^"h^  °"^íd°  asso- 
biar.  Coretti.    filho,    esse    fazia   tudo,    caminhando;    sabe 

^azer  tudo  aquele  homenzinho;   com  um  canivete  cheio 

moinho''  '  f"  '""'"^^  '^  ""^  ^^^°'  ^^-^  rodinhas  de 

Ts  out  J'1°''  ''''"^/''  '  ^"^""  ^^^^^  °^  embrulhos 
dos  outros;  ia  carregado  a  ponto  de  lhe  cair  o  suor  em 

bagas,  mas  sempre  vivo  como  um  cabrito.  Derossi  pa- 
dofin^í^      momento  para  dizer  o  nome  das  plantas  e 

coL  r.rr'  "^°  ''^  -'^"'^  ^'^^  ^^'  P^^^  '^^'^  tanta 
z^a  m.f.  """"'^  P^°   ""^  '^^^^^^°'  ^^s  "ão  nos  di- 

rl^T  ^'  ^'^'^'  ^^'^'^'  ^^  °"t^°  *^"^P°'  pobre  Gar- 
rone, depois  que  perdeu  a  mãi !  Mas  êle  é  sempre  bom 
como  uma  pérola.  Quando  algum  de  nós  se  preparava 
para  saltar  um  fosso,  corria  logo  para  o  outro  lado  afim 
de  nos  dar  a  mão.  E  como  Precossi  tinha  mêdi^  da^ 
vacas  por  ter  levado  umas  marradas  em  criança,  sem- 
pre que  passava  alguma,  Garrone  punha-se  logo  na  frente 

an  'V  "l^"?u~  "'^  ^""'"  Margarida,  às  escorregadelas 
aos   trambolhões    .    Precossi,    esbarrando   nuns   espinhe': 

com  f  ."""  "'^^°  "^  ^^"'^'  "  ^^"°"  ^^'  envergonhado. 
llZZ  ^'^^°'  ^  '^°^^'  ™^*  ^^^°^^í'  ^"«  t"s  sempre 
llnlT'-  ^^^^^^-t^^-o  ^o  ben^.  que  nSo  se  percebia,  e 
ainda  dizia  sempre:  -  aDesculpe.  desculpei.  Garoffi  não 
perdia  O  S9U  tempo  pelp  caminho:  colljia  ervas  próprias 


240  CORAÇÃO 

para  salada  e  apanhava  caracóis ;  e  todas  as  pedras  que  lu- 
zissem um  pouco,  metia  logo  na  algibeira,  pensando  que 
dentro  houvesse  ouro  e  prata. 

E  correndo  sempre,  de  queda  em  queda,  ora  à  som- 
bra, ora  ao  sol,  acima  e  abaixo,  pelos  cabeços  e  pelos 
atalhos,  chegamos  afinal,  afadigados,  ofegantes,  ao  ci- 
mo de  um  monte,  onde  nos  sentamos  para  comer.  Via-se 
uma  planície  imensa  e  todos  os  Alpes  azuis  com  os  ci- 
mos brancos.  Estávamos  a  morrer  de  fome  e  o  pão  de- 
saparecia. Coretti,  pai,  dava-nos  porções,  rações  de  sal- 
chichas  em  cima  de  folhas  de  abóbora.  E  então  come- 
çamos a  falar,  todos  ao  mesmo  tempo,  dos  mestres,  dos 
companheiros  que  não  tinham  podido  vir,  e  dos  exames. 
Precossi  tinha  vergonha  de  comer,  e  Garrone  metia-lhe 
na  boca,  à  força,  o  melhor  da  sua  parte. 

Coreti  estava  sentado  ao  lado  do  pai,  com  as  per- 
nas cruzadas,  e  pareciam  mais  dois  irmãos  do  que  pai  e 
filho,  ao  vê-los  assim  juntos  ambos,  corados,  a  rir  com 
os  dentes  muito  alvos.  O  pai  trincava  com  gosto,  esva- 
ziava também  os  copinhos  e  as  canecas  que  deixávamos 
em  meio,  e  dizia: 

—  Para  vocês,  que  estudam,  o  vinho  faz  muito  mal. 
São  os  vendedores  de   lenha  que  têm  necessidade   dele. 

Depois  agarrava  o  filho  pelo  nariz,  sacudindo-o  e 
dizendo-nos: 

—  Rapazes  i  deveis  querer  bem  a  este,  que  é  a  flor 
dos  m-cninos.  Sou  eu  quem  o  diz, 

E  todos  riam,  excepto  Garrone;  e  êle  prosseguiu, 
trincando : 

—  Que  pena,  hein?  agora  estão  todos  juntos  como 
bons  amigos  e  camaradas,  mas  daqui  a  alguns  anos... 
quem  sabe?  Henrique  e  Derossi  serão  talvez  advogados, 
professores,  que  sei  eu?  e  os  outros  quatro,  na  loja  ou 
na  oficina,  ou  em  qualquer  parte  para  onde  o  diabo  os 
mande.  E  então,  boa  noite,  camaradas! 

—  Quê!  atalhou  Derossi.  Para  mim,  Garrone  há-de 
ser  sempre  Garrone;  Precossi;  será  sempre  Precossi;  e 
os  outros  o  mesmo,  venha  eu  a  ser  imperador  da  Rús- 
sia: onde  eles  estiverem,  estarei  eu  também. 

—  Muito   bem !  — exclamou   Coretti   pai,   levantando 


CORAÇÃO  2ál 

a  frasqueira;  —  assim  é  que  se  fala,  com  os  diabos!  To- 
que! Vivam  os  bravos  companheiros,  e  viva  a  escola, 
que  faz  uma  só  família  dos  que  a  têm  e  dos  que  a  não 
têm. 

Nós  tocamos  todos  na  sua  frasqueira  com  os  copinhos 
e  canecas,  e  bebemos  a  última  vez.  E  êle: 

—  Viva  o  quadrado  do  49!  gritou,  levantando-se  nas 
pontas  dos  pés  e  entornando  até  o  último  gole;  e  se 
um  dia  tiverdes  de  fazer  quadrados,  tratai  de  resistir 
como  nós  resistimos. 

Era  já  tarde.  Descemos,  correndo,  cantando  e  ca- 
minhando por  muito  tempo,  todos  de  braços  dados,  che- 
gando ao  Pó  ao  escurecer;  andavam  pela  noite  milhares 
de  pirilampos,  E  não  nos  separámos  senão  na  praça  da 
Constituição,  depois  de  termos  todos  combinado  reú- 
nirmo-nos  Domingo  para  ir  ao  Vítor  Manuel  ver  a  dis- 
tribuição dos  prémios  aos  alunos  das  escolas  nocturnas. 
Que  belo  dia!  Como  entraria  em  casa  contente,  se  não 
tivesse  encontrado  a  minha  pobre  mestra!  Encontrei-a, 
quando  ela  vinha  descendo  as  escadas  da  nossa  casa, 
quási  ao  escurecer,  e  apenas  me  recebeu,  tomou-me  as 
duas  mãos  e  disse-me  ao  ouvido:  «Adeus.  Henrique, 
lembra-^te  de  mim».  Percebi  que  chorava.  Subi  e  disse 
a  minha  mãi :  «Encontrei  a  minha  mestra»,  —  Ela  vai 
agora  meter-se  na  cama  —  respondeu  minha  mãi,  que 
tinha  os  olhos  vermelhos.  E  depois  acrescentou  com 
grande  tristeza,  olhando-me  fixamente: 

—  A  tua  probre  mestra...  está  muito  doente. 

A  disíribuição  dos  prémios 
aos  operários 

Domingo,  25 

Como  tínhamos  convencionado,  fomos  todos  juntos 
ao  teatro  «Vítor  Manuel»  para  ver  a  distribuição  dos 
prémios  aos  operários.  O  teatro  estava  enfeitado  como 
a  14  de  Março  e  literalmente  cheio;  eram,  quási  tudo, 
famílias    de    operários,    e    a    platea    era    ocupada    pelos 

lê 


242  CORAÇÃO 

discípulos  e  discípulas  da  escola  do  canto  coral,  que 
entoavam  um  hino  aos  soldados  mortos  na  Crimea,  hino 
tão  belo  que,  quando  acabou,  todos  se  levantaram  a  dar 
palmas  e  a  gritar,  de  modo  que  tiveram  de  cantar  outra 
vez.  Em  seguida,  principiaram  a  desfilar  os  premiados 
diante  do  sindico,  do  perfeito  e  de  muitos  outros,  que 
davam  livros  e  cadernetas  da  Caixa  Económica,  diplomas 
e  medalhas. 

Num  canto  da  píatea  vi  o  Pedreirito  sentado  ao  lado 
da  mãi ;  em  outro  lugar  estava  o  director,  e  por  detrás 
dê,le  a  cabeça  ruiva  do  meu  mestre  da  segunda  classe- 

Desfilaram  os  primeiros  alunos  da  escola  nocturna 
de  desenho,  ourives,  gravadores,  litógrafos  e  também  car- 
pinteiros e  pedreiros.  Depois,  os  da  escola  de  comércio, 
os  do  liceu  municipal,  entre  os  quais  várias  meninas, 
operárias,  todas  vestidas  de  festa,  que  foram  saudadas 
com  grande  aplauso.  Estavam  sorrindo.  No  fim  vieram 
os  alunos  das  escolas  nocturnas  elementares,  e  então 
principiou  a  ser  mais  bela  a  festa.  Passava  gente  de  to- 
das as  idades,  de  todas  as  profissões  e  vestida  de  todas 
as  modas,  homens  com  cabelos  grisalhos,  aprendizes  de 
ofício,  operários  de  grandes  barbas  pretas. 

Os  pequenos  estavam  inquietos;  os  homens  um 
pouco  embaraçados.  O  povo  aplaudia  os  mais  velhos  e 
CS  mais  novos.  Mas  ninguém  sorria  entre  os  espectado- 
res, como  faziam  na  nossa  festa.  Viam-se  todos  os  ros- 
tos atentos  e  sérios.  Muitos  dos  premiados  tinham  a 
mulher  e  os  filhos  na  platea,  e  havia  crianças  que  quan- 
do viam  passar,  no  palco  o  pai,  chamavam-no  pelo  nome 
em  voz  alta,  e  acenavam-lhe  com  a  mão,  sorrindo.  Pas- 
saram camponeses  e  carregadores.  Estes  eram  da  escola 
Buoncompagní.  Da  escola  Cidadella  passou  um  engra- 
xador,  que  meu  pai  conhece;  o  perfeito  deu-lhe  um  di- 
ploma. Depois  dele  vi  passar  um  homem  alto  como  um 
gigante,  que  ms  pareceu  já  ter  visto  outras  vezes-  Era 
o  pai  do  Pedreirito,  que  recebia  o  segundo  prémio.  Re- 
cordei-me  de  quando  o  tinha  visto  nas  águas  furtadas, 
à  cabeceira  do  filho  doente,  e  procurei  logo  o  filho  na 
platea.  Pobre  Pedreirito!  Êle  olhava  para  o  pai  com  os 
olhos  muito  vivos;   e  para  ocultar  a  comoção  fazia  o 


CORAÇÃO  24t 

focinho  de  lebre.  Naqueje  momento  senti  um  estrondo 
de  aplausos,  e  olhei  para  o  palco;  era  a  vez  de  um  pe- 
queno  limpador   de   chaminés,   com   a   cara   lavada,   mas 
com  a  roupa  do  trabalho ;  o  síndico  f alava-lhe,  tomando-o 
pela  mão.  Depois  do  limpador  de  chaminés  veio  um  cozi- 
nheiro. Depois  passou  a  receber  a  medalha  um  varredor 
municipal   da  escola  Raineri.   Eu  senti   não  sei   quê  no 
coração,  como   de  um  grande  afecto   e  um  grande   res- 
peito, pensando  quanto  não   havia  custado   aqueles  pré- 
mios a  todos  aqueles  trabalhadores,  pais  de  famíjia  cheios 
de  cuidados,  quantas  fadigas  além  das  suas  fadigas,  quan- 
tas  horas   roubadas   ao   sono,    de   que   tanto   carecem,    e 
também  quanto  esforço  da  inteligência  não  habituada  ao 
estudo  e  quanto  desuzo  de  mãos  calosas  pelo  trabalho. 
Passou  um  moço  de  oficina,  e  também  se  conhecia 
haver-lhe  o  pai  emprestado  a  jaqueta  para  a  ocasião;  e 
bambaleavam-lhe  tanto  as  mangas,  que  teve  de  as  arre- 
gaçar ali  mesmo,  no  palco,  para  poder  tomar  o  seu  pré- 
mio; e  muitos  riram,  mas  o  riso  foi  logo  sufocado  pelas 
palmas-  Depois  veio  um  velho,  com  a  cabeça  calva  e  as 
barbas  brancas-  Passaram  soldados  de  artilharia,  dos  que 
vinham  à  aula  nocturna  na  nossa  secção;   depois,  guar- 
das   da    a,lfândega,    guardas    municipais,  dos    que  fazem 
guarda  na  nossa  escola.  No  fim  os  alunos  da  escola  coral 
cantaram  ainda  o  Hino  aos  mortos  da  Crimea,  mas  com 
tanto  arrebatamento  desta  vez  e  com  tal  força  de  senti- 
mento,   vinha    tão    direito    ao    coração,    que    o    público 
quási  não  aplaudiu  mais,  e  saíram  todos  comovidos,  len- 
tamente, e  sem  fazer  barulho.  Em  poucos  momentos  toda 
a  rua  ficou  cheia  de  gente. 

Em  frente  à  porta  do  teatro  estava  o  limpador  de 
chaminés,  com  o  seu  livro  de  prémio,  encadernado  em 
vermelho,  e  em  volta  alguns  senhores  que  lhe  falavam. 
Muitos  cumprimentavam  de  um  para  outro  lado  da  rua, 
operárias,   rapazes,   guardas,  mestres- 

O  mestre  da  segunda  saiu  no  meio  de  dois  soldados 
de   artilharia. 

E  viam-se  mulheres  de  operários  com  as  crianças  nos 
braços,  que  sustentavam  nas  mãozinhas  o  diplom.a  do 
pai  e  o  mostravam  a  todos  com  orgulho, 


244 


CORAÇÃO 


A  minha  mesíra  moría 


Terça-feira,  27 

Enquanto  estávamos  no  teatro  «Vítor  Manuel»,  a 
minha  pobre  mestra  morria.  Morreu  às  duas  horas,  sete 
dias  depois  que  veio  a  casa  da  minha  mãi. 

O  director  veio  ontem  de  manhã  dar-nos  a  triste 
notícia  na  aula,  e  disse:  —  Os  que  de  entre  vós  foram 
seus  alunos,  sabem  quanto  lhes  queria  bem;  era  uma  mãi 
para  eles.  Agora  já  não  existe.  Uma  terrível  moléstia 
minava-lhe  desde  muito  tempo  a  vida.  Se  não  fosse  obri- 
gada a  trabalhar  para  ganhar  o  pão,  teria  podido  tratar- 

•se  e  talvez  res- 
tabelecer-se;  e 
sem  dúvida  te- 
ria prolongado 
a  vida  por  al- 
guns meses,  se 
tivesse  pedido 
uma  licença. 
Mas  quis  estar 
entre  os  seus 
discípulos 
até  o  último  dia. 
Na  tarde  de  sá- 
bado 17,  despe- 
diu-se  deles, 
com  a  certeza  de 
os  não  tornar  a 
ver,  deu-lhes 
ainda  bons  conselhos,  beijou-os  a  todos  e  retirou-se,  so- 
luçando. Agora  ninguém  mais  tornará  a  vê-la.  Recor- 
dai-vos  dela,  meus  filhos. 

O  pequeno  Precossi,  que  tinha  sido  seu  aluno  da 
primeira  superior,  inclinou  a  cabeça  sobre  a  mesa  e  pôs-se 
a  chorar. 

Ontem,  de  tarde,  depois  da  escola,  fomos  todos  à  casa 
onde  ela  morava,  para  acompanhar  o  corpo  à  igreja.  Es- 
tava já  na  rua  um  carro  fúnebre  çom  dois  cavalos,  e  miiitg 


CORAÇÃO  245 

gente  que  esperava,  falando  em  voz  baixa.  Estavam  o 
airector  e  todos  os  mestres  e  mestras  da  nossa  escola  e 
de  outras  secções  onde  ela  (tinha  ensinado  anos  antes; 
estavam  também  quási  todos  os  pequenos  da  sua  classe, 
conduzidos  peia  máo  das  mais  que  seguravam  tochas,  e 
muitissimos  de  outras  classes  e  umas  cinquenta  alunas 
da  secçáo  Baretti,  umas  trazendo  coroas,  outras,  grinaldas 
de  rosas.  Já  havia  muitas  flores  sobre  o  carro,  a  que  estava 
presa  uma  grande  coroa  de  saudades  sobre  a  qual  se  via 
escrito  com  letras  pretas  :—À  sua  mestra,  as  antigas  alu- 
nas da  quarta  classe.  —  E  por  baixo  da  coroa  grande  pen- 
dia uma  outra  pequena,  que  tinham  trazido  as  crianças. 
Por  entre  a  multidão  viam-se  muitas  criadas  mandadas 
pelos  amos,  com  velas  e  também  dois  criados  de  libré  com 
tochas  acesas.  Um  fidalgo  rico,  pai  de  um  discípulo  dela, 
tmha  mandado  vir  a  sua  carruagem  forrada  de  seda  azul. 
Todos  se  amontoavam  defronte  da  porta.  Muitas  meninas 
enxugavam  as  lágrimas.  Esperamos  um  pedaço  de  tempo 
em  silêncio.  Finalmente  trouxeram  o  caixão.  Alguns  pe- 
quenos, quando  viram  meter  o  féretro  dentro  do  carro, 
principiaram  a  chorar  alto,  e  um  começou  a  gritar  de  tal 
modo,  como  se  só  naquele  momento  compreendesse  que  a 
sua  mestra  tinha  morrido;  e  caiu  em  soluços  tão  violentos 
que  foi  necessário  retirá-lo.  O  acompanhamento  foi  posto 
em  ordem,  e  lentamente  principiou  a  mover-se.  Iam  adiante 
as  Filhas  do  Retiro  da  Conceição,  vestidas  de  verde  •  de- 
pois as  Filhas  de  Maria,  todas  de  branco  com  uma  faixa 
azul;  depois  os  padres,  e  atráz  do  carro  os  mestres  e  as 
mestras,  os  pequeninos  escolares  da  primeira  superior 
e  todos  os  outros,  e  atrás  de  todos  a  multidão.  A  gente 
que  chegava  às  janelas  e  às  portas,  ao  ver  todo  aquele 
povo  e  as  coroas,  dizia  logo: 

—  É  uma  professora. 

Entre  as  senhoras  que  acompanhavam  os  mais  pe- 
quenos, algumas  havia  que  choravam.  Chegados  que  fo- 
ram à  igreja,  tiraram  o  féretro  do  carro  e  levaram-no  para 
o  centro  da  nave,  defronte  do  altar-mór.  As  mestras  pu- 
seram-lhe  as  coroas  em  cima  e  as  crianças  cobriram-o  de 
flores,  e  toda  a  gente  em  volta,  com  as  velas  acesas,  prin- 
cipiou a  cantar  orações  na  igreja  grande  e  escura. 


246  CORAÇÃO 

Depois,  de  repente,  quando  o  padre  disse  o  último 
Amen,  as  velas  apagaram-se,  todos  saíram  apressada- 
mente, e  a  mestra  íicou  só.  Pobre  mestra,  tão  boa  para 
mim,  que  tinha  tanta  paciência  e  que  tantos  anos  se  ti- 
nha cansado! 

Ela  deixou  os  seus  poucos  livros  aos  seus  discípu- 
los: a  um,  um  tinteiro,  a  outro,  um  quadrinho,  tudo  aquilo 
que  possuía;  e  dois  dias  antes  de  morrer  disse  ao  di- 
rector que  não  deixasse  ir  os  mais  pequenos  ao  seu  en- 
terro, porque  não  queria  que  chorassem.  Fez  tanto  bem, 
sofreu  tanto,  e  morreu.  Pobre  mestra,  que  ficaste  sozi- 
nha naquela  igreja  escura!  Adeus!  Adeus  para  sempre, 
minha  boa  amiga,  doce  e  triste  recordação  da  minha 
infância! 

Agradecimentos 

Quarta-feira,  28 

Quis  acabar  o  seu  ano  de  escola  a  minha  pobre 
mestra,  e  morreu  faltando  três  dias  para  terminar  as 
lições. 

Depois  de  amanhã  iremos  ainda  uma  vez  à  classe 
ouvir  ler  o  último  conto  mensal  ^-Naufrágio  —  e  de- 
pois... está  tudo  acabado.  Sábado,  i  de  Julho,  os  exanies. 
E  passou  assim  o  quarto  ano.  E,  se  não  fosse  a  morte 
de  minha  mestra,  teria  passado  bem. 

Lembro-me  do  que  sabia  em  outubro,  e  parece-me 
que  sei  hoje  muito  mais.  Tenho  muitas  coisas  novas  na 
memória,  e  sei  dizer  e  escrever  melhor  do  que  outros 
maiores,  e  sinto-me  capaz  até  de  os  ajudar  nos  seus  tra- 
balhos; compreendo  com  mais  facilidade  e  entendo  quási 
tudo  que  leio.  Estou  satisfeito. 

Mas  quantos  me  incitaram  e  me  ajudaram  a  apren- 
der, de  um  modo  ou  de  outro,  em  casa,  na  escola,  pela 
rua,  por  toda  a  parte,  enfim,  onde  ia  e  onde  podia  ver 
qualquer  coisa!  A  todos  agradeço  agora.  Agradeço  pri- 
meiro a  ti,  bom  mestre,  que  foste  tão  indulgente  e  afec- 
ctuoso  para  comigo,  e  a  quem  custou  uma  fadiga  cada 
novo  conhecimento  com  que  agora  me  alegro  •  de  que 
tenho    orgulho.    Agrad«ço-te,    Dtrossi,    meu    admirávejl 


CORAÇÃO 


247 


companheiro,  que  com  tuas  explicações  prontas  e  deli- 
cadas me   fizeste   compreender   tantas   coisas   difíceis    e 
vencer  os  obstáculos  dos  exames;  a  ti  também,   Scardi 
bravo  e  forte,  que  me  mostraste  como  uma  vontade  de 
ferro  tudo  subjuga;  a  ti,  Garrone,  bom  e  generoso,  que 
tazes   bons   e   generosos   todos   os   que   te    conhecem;    e 
também  a  vos.  Precossi  e  Coretti,  que  me  deste  o  exem- 
plo   da    coragem,    dos    sofrimentos    e    da   serenidade    no 
trabalho  — eu  digo  obrigado  a  ti  e  a  todos  os  mais'  Mas 
acima  de  todos,  agradeço-te,  meu  pai,  meu  primeiro  mes- 
tre, meu  primeiro  amigo,  que  me  deste  tão  bons  conse- 
lhos e  me  ensinaste  tantas  coisas,  ao  mesmo  tempo  que 
trabalhavas    para    mim.    ocultando-me    sempre    as    tuas 
tristezas  e  procurando  por  todos  os  modos  tornar-me  o 
estudo  facil  e  a  vida  bela;  e  a  ti,  minha  doce  mãi,  meu 
anjo    da   guarda   querido    e    abençoado,   que    gozaste    de 
todas  as  minhas  alegrias  e  participaste  de  todas  as  mi- 
nhas amarguras,  que  te  afadigaste,  estudaste,  e  choraste 
comigo,   acariciando-me   com   uma   das  mãos   e   apontan- 
do-me    com   a   outra   o    céu.    Ajoelho-me    diante    de   vós 
como  quando  era  criança,  e,  com  tôda  a  ternura  aue  sou- 
beste incutir-me  na  alma,  em  doze  anos  de  sacrifícios  e 
de  amor,  eu  vos  agradeço. 

Naufrágio 

(ÚITIMO  CONTO  MENSAL) 
Alguns  anos  há  que  por  uma  manhã  do  mês  de  De- 
zembro, levantava  ferro  do  porto  de  Liverpool  um  gran- 
de vapor,  que  levava  a  bordo  mais  de  duzentas  pessoas 
e  entre  elas,  setenta  homens  de  tripulação. 

O  capitão  e  quási  todos  os  marinheiros  eram  ingje- 
ses.  Entre  os  passageiros  contavam-se  vários  italianos 
três  senhoras,  um  padre  e  um  grupo  de  músicos  ambu- 
lantes. O  navio  dirigia-se  à  ilha  de  Malta  e  o  tempo  es- 
tava enevoado. 

Entre  os  viajantes  de  terceira  classe,  havia  um  ra- 
pazinho de  doze  anos,   pequeno   para  a  sua  idade,  mas 
robusto:    um   belo   rosto    ousado    e   severo    de    siciHano 
Estava  so,  junto  ao  mastro  do  traquete,  sentado  em  cimt 
de  um  montão  de  cordas,  ao  lado  de  uma  mala  usada   qu- 


CORAÇÃO 


continha  as  suas  roupas,  e  sobre  a  qual  apoiava  uma  das 
mãos.  Tinha  o  rosto  moreno  e  os  cabelos  negros  e  on- 
dulados, que  quási  lhe  caíam  nos  ombros.  Estava  vestido 
pobremente,  com  um  manto  já  gasto  sobre  as  costas  e 
uma  velha  bolsa  de  couro  a  tiracolo. 

Olhava  em  torno  de  si,  pensativo,  para  os  passagei- 
ros, para  o  navio,  para  os  marinheiros,  que  passavam 
correndo,  e  para  o  mar  inquieto.  Tinha  a  expressão 
doentia  de  um  rapaz  que  acabava  de  sofrer  grande  des- 
graça de  família,  rosto  de  criança  e  fisionomia  de  ho- 
mem. 

Pouco  depois  da  partida  do  navio,  um  dos  mari- 
nheiros, italiano   de  cabelos  grisa,lhos,  apareceu  à  proa, 

trazendo  pela 
mão  uma  me- 
nina, e,  paran- 
d  o  d  e  f  r  onte 
do  pequeno  si- 
liciano,  disse- 
-Ihe: 

— Aqui  tens 
uma  c  o  m  p  a- 
nheira  de  via- 
gem, Mário- 
Deixou-a  fi- 
car e  foi-s  e 
embora. 

A  menina 
sentou-s  e  s  ô- 
bre  o  montão 
de  cordas  ao 
lado  do  rapaz. 
Olharam  um 
para    o    outro. 

^N    ^ t\^:;:::^^>*«^-^^  •       -"^síP»       7"    Aonde 

vais?     pregun- 

tou-lhe  o  siciliano. 

A  pequena  respondeu: 

—  A  Malta  por  Nápoles.  Depois  acrescentou:  —  Vou 


CORAÇÃO  249 

encontrar-me  com  meu  pai  e  minha  mãi,  que  me  espe- 
ram. Chamo-me  Julieta  Faggiani. 

O  rapaz  nada  disse.  Poucos  minutos  depois  tirou 
de  sua  bolsa  pão  e  frutas  secas;  a  menina  trazia  bis- 
coitos. Comeram. 

■— Alegrai-vos !  gritou  o  marinheiro  italiano,  passan- 
do rapidamente.  Vai  começar  o  baile. 

O  vento  ia  aumentando  e  o  navio  balouçava  forte- 
mente. Mas  os  dois  não  enjoavam,  e  pouco  lhes  impor- 
tava isso.  A  menina  sorria  tinha  aproximadamente  a  ida- 
de de  seu  companheiro,  mas  era  muito  mais  alta;  de 
rosto  moreno,  delicado,  um  pouco  fraca,  e  vestia  mais 
que  modestamente.  Tinha  os  cabelos  curtos  e  anelados, 
um  lenço  vermelho  em  volta  da  cabeça,  duas  argolinhas 
de  prata  nas  orelhas. 

Comendo,  iam  contando  a  sua  vida.  O  rapaz  já  não  ti- 
nha pai  nem  mãi.  O  pai,  operário,  morrera  em  Liverpool 
poucos  dias  antes,  deixando-o  só,  e  o  cônsul  italiano  man- 
dava-© agora  para  Palermo,  sua  terra,  onde  tinha  ainda 
alguns  parentes  afastados.  A  menina  tinha  sido  levada 
para  Londres,  um  ano  antes,  por  uma  tia  viúva  que  a 
estimava  muito,  com  consentimento  de  seus  pais,  pobres, 
que  a  deixaram  ir  por  algum  tempo,  confiados  na  pro- 
messa de  uma  herança;  mas  poucos  meses  depois,  a  tia 
morreu  esmagada  por  um  automóvel  sem  lhe  deixar  um 
vintém;  e  então,  vendo-se  obrigada  a  recorrer  ao  cônsul, 
este  a  embarcara  para  a  Itália.  Ambos  foram  recomen- 
dados ao  marinheiro  italiano.  De  modo  que,  concluiu 
a  pequena,  meu  pai  e  minha  mãi  esperavam  que  vol- 
tasse rica,  e  em  vez  disso  vojto  pobre  como  fui.  Mas 
eles  querem-me  da  mesma  maneira.  E  meus  irmãos  tam- 
bém. Tenho  quatro,  todos  pequeninos.  Sou  a  mais  velha 
da  casa.  Hão-de  fazer-me  muita  festa  ao  ver-me.  Hei-de 
entrar  nas  pontinhas  dos  pés...  O  mar  está  horrível! 

Depois  preguntou  ao  rapaz: 

—  E  tu  vais  ficar  com  os  teus  parentes? 

—  Sim,  se  me  quiserem,  respondeu. 

—  Não  te  querem  bem? 

—  Não  sei. 


250  CORAÇÃO 

—  Eu  completo  treze  anos  pelo  Natal,  disse  a  me- 
nina- 

Depois  principiaram  a  discorrer  do  mar,  da  gente 
que  tinham  em  redor  de  si.  Todo  o  dia  estiveram  jun- 
tos, trocando  de  quando  em  quando  algumas  palavras. 
Os  passageiros  pensavam  ser  irmão  e  irmã.  Ela,  a  menina, 
fazia  uma  meia;  êle  meditava.  O  mar  ia  engrossando 
cada  vez  mais.  À  noite,  quando  se  separaram  para  dor- 
mir, disse  a  Mário: 

—  Dorme  bem. 

—  Ninguém  dormirá  bem;  pobres  crianças!  excla- 
mou o  marinheiro  italiano,  passando  de  corrida  a  cha- 
mado do  capitão.  O  rapazinho  ia  responder  à  sua  amiga 
—  Boa  noite!  —  Quando  um  jorro  de  água  inesperado, 
caindo  sobre  êle  com  violência,  o  atirou  de  encontro  a 
um  banco. 

—  Ai !  mãi  do  céu !  que  se  feriu !  —  gritou  a  rapariga, 
lançando-se  sobre  êle. 

Os  passageiros  que  desciam  à  câmara,  não  deram 
atenção. 

A  menina  ajoelhou-se  ao  lado  de  Mário,  que  ficara 
atordoado  com  a  queda,  limpou-lhe  a  testa,  que  estava 
ensanguentada,  e  tirando  o  lenço  vermelho  que  lhe  cobria 
os  cabelos,  envolveu-lhe  a  cabeça  aconchegando-a  ao 
peito  para  melhor  poder  atar  as  pontas  do  lenço,  caindo- 
-Ihe  nessa  ocasião  no  peito  uma  gota  de  sangue  sobre 
o  seu  vestido  amarelo.  Mário  reanimou-se  e  pôs-se  em 
pé. 

—  Sentes-te  melhor?  —  preguntou  a  menina. 

—  Não  tenho  mais  nada  i—  respondeu  êle- 

—  Dorme  bem  —  Julieta. 

—  Boa  noite  —  respondeu  Mário. 

E  desceram  pelas  duas  escadinhas  dos  seus  dormi- 
tórios. O  marinheiro  tinha  predito  a  verdade.  Ainda  não 
tinham  adormecido,  quando  se  desencadeou  uma  tem- 
pestade medonha.  Foi  como  um  assalto  repentino  de  va- 
gas furiosas,  que  em  poucos  momentos  partiram  um  dos 
mastros  e  levaram  consigo,  como  se  fossem  folhas  se- 
cas, três  botes  que  estavam  presos  aos  guindastes  e  qua- 
tro bois  que  estavam  na  proa.  No  interior  do  navio  nas- 


CORAÇÃO  151 

ceu  a  confusão,  o  terror,  um  alarido  de  gritos,  cho- 
ros e  preces  que  faziam  erriçar  os  cabelos.  A  tempestade 
foi-se  tornando  cada  vez  mais  tormentosa  durante  a 
noite.  Ao  despontar  da  aurora  cresceu  ainda.  As  ondas 
aiterosas,  flagelando  o  vapor  obliquamente  rebentavam 
sobre  a  coberta,  despedaçavam,  lambiam  e  levavam  tudo 
consigo.  A  plataforma  que  cobria  a  máquina  arrombou- 
-se,  e  a  água  precipitou-se  dentro  com  um  estrépito  hor- 
rível; as  fornalhas  chiando  apagaram-se,  e  os  maquinis- 
tas fugiram;  jorros  de  água,  grossos  e  impetuosos,  pe- 
netravam por  toda  a  parte.  Uma  voz  potente  gritou:  As 
bombas!  —  Era  a  voz  do  capitão.  Os  marinheiros  corre- 
ram às  bombas-  Mas  um  golpe  de  mar  repentino,  encon- 
trando o  navio  pela  ré,  despedaçou  parapeitos  e  porti- 
nholas, e  a  água  torrentosa  desabou  pesada  dentro  do 
navio. 

Todos  os  passageiros,  mais  mortos  do  que  vivos,  se 
haviam  refugiado  na  sala  grande.  Num  certo  momento 
apareceu  o  capitão. 

—  Capitão!  capitão!  gritaram  todos  juntos.  Que  se 
faz?  Estamos  em  perigo?  Há  esperanças?  Salve-nos! 

O  capitão  esperou  que  todos  se  calassem  e  disse  fria- 
mente : 

—  Resignemo-nos. 

Só  uma  mulher  soltou  um  grito  —  Piedade!  nin- 
guém mais  pôde  pronunciar  uma  palavra.  O  terror  tinha 
paralisado  todas  as  bocas. 

Muito  tempo  se  passou  assim  num  silêncio  de  tú- 
mulos. Olhavam  uns  para  os  outros,  com  os  rostos  pá- 
lidos, em  calafrio,  trémulos,  O  mar  sempre  e  sempre  fu- 
rioso, horrendo,  bramia  formidável. 

O  navio  balouçava  pesadamente. 

Num  dado  momento  o  capitão  tentou  Rançar  ao  mar 
um  barco  de  salva-vidas.  Cinco  marinheiros  entraram 
nele  e  o  barco  foi  arreado,  mas  foi  logo  emborcado  por 
uma  onda,  e  afogaram-se  dois  marinheiros,  sendo  um 
deles  o  italiano;  os  outros  a  custo  conseguiram  agar- 
rar-se  às  cordas,  e  subiram  escorrendo  água- 

D«pois  disto,  os  próprios  marinheiros  perderam  toda 


252  CORAÇÃO 

a  coragem.  Duas  horas  depois  o  navio  estava  já  imerso 
na  agua  até  a  altura  aas  enxárcias. 

Um  espectáculo  tremenao  passava-se  no  entanto  so- 
bre a  coberta.  As  máis,  desgrennadas,  ferozes,  cmgiam 
os  filhos  ao  peito  desesperaaamente ;  os  amigos  abraça- 
vam-se  e  despediam-se;  alguns  desciam  aos  camaro- 
tes, para  morrer  sem  verem  o  mar;  um  viajante  disparou 
uma  pistola  na  cabeça,  e  caiu  de  bruços  sobre  a  escada 
do  dormitório,  onde  expirou  no  meio  de  sangue. 

Muitos  agarravam-se  freneticamente  aos  outros;  as 
mulheres  contorciam-se  em  convulsões  horrendas,  reza- 
vam e  diziam  orações  com  o  aspecto  herético  e  impie- 
doso dos  que  desesperaram  da  vida. 

Alguns  estavam  ajoelhados  em  volta  de  um  padre. 
Ouvia-se  um  coro  de  suspiros  e  lamentos  infantis,  de  vo- 
zes agudas  e  estranhas;  viam-se  aqui  e  ali  pessoas  imó- 
veis, rijas  como  estátuas,  pasmadas,  com  as  pupilas  aber- 
tas, sem  olhar,  faces  de  cadáveres  e  de  loucos. 

Os  dois  pequenos,  Mário  e  Julieta,  agarrados  a  um 
mastro  do  navio,  olhavam  para  o  mar,  com  os  olhos  des- 
mesuradamente fixos,  penetrando  o  infinito  como  insen- 
satos. 

O  mar  tinha-se  aquietado  um  pouco,  mas  o  navio 
continuava  a  submergir-se  lentamente.  Não  restavam 
mais  do  que  alguns  minutos. 

—  A  lancha  ao  mar !  —  gritou  o  capitão. 

Uma  lancha,  a  última  que  ficara,  foi  lançada  às  águas 
e  catorze  marinheiros  com  três  passageiros  entraram  nela. 
O  capitão  ficou  a  bordo- 

—  Desça  connosco  —  gritaram  de  baixo. 

—  Não!  devo  morrer  no  meu  posto!  respondeu  o  ca- 
pitão. 

—  Encontraremos  algum  navio  —  gritaram  de  novo 
os  marinheiros;  salvar-nos-emos.  Aí,  está  perdido. 

—  Eu  fico. 

—  Há  ainda  um  lugar !  —  gritaram  de  novo  os  mari- 
nheiros, dirigindo-se  aos  outros  viajantes. 

—  Uma  mulher! 

Uma  senhora  adiantou-se  então,  amparada  pelo  ca- 
pitão, mas,  à  vista  da  distância  a  que  se  achava  a  gancha, 


CORAÇÃO  253 

não  se  sentiu  com  coragem  de  tentar  o  salto,  e  tornou 
a  cair  sobre  o  convés.  As  outras  estavam  quási  todas 
desmaiadas  e  moribundas. 

—  Uma    criança!  —  gritaram    ainda    os  marinheiros. 
Àquela  voz,  o  rapaz  siciliano  e  a  sua  companheira, 

que  tinham  estado  até  ali  como  petrificados  por  um  ter- 
ror sobre-humano,  despertados  repentinamente  pelo  vio- 
lento instinto  da  vida,  desprenderam-se  num  impulso  do 
mastro,  e  lançando-se  sobre  a  borda  do  navio,  gritaram 
a  uma  voz: 

—  A  mim !  a  mim !  —  procurando  empurrar-se  um  ao 
outro  para  trás,  como  duas  feras  enfurecidas! 

—  A  lancha  está  sobrecarregada. 

—  O  mais  pequeno! 

Ao  ouvir  aquelas  palavras,  a  menina  deixou  cair  os 
braços  como  fulminada,  e  permaneceu  imóvel,  olhando 
para  Mário  com  os  olhos  já  amortecidos.  Mário,  depois 
de  fitá-la  por  um  instante,  viu  a  mancha  de  sangue  so- 
bre o  seu  peito,  recordou-se,  e  o  lampejo  de  uma  ideia 
divina  iluminou-lhe  o  rosto. 

—  O  mais  pequeno!  gritaram  em  coro  os  marinhei- 
ros,  com   imperiosa   impaciência.   Partimos  já- 

Então  Mário,  com  uma  voz  que  não  parecia  mais  a 
sua,  gritou: 

—  Ela  é  mais  ,leve!  Vai  tu,  Julieta,  tens  pai  e  mãi, 
eu  não  tenho  ninguém.  Dou-te  o  meu  lugar! 

—  Desce! 

—  Deita-a   ao   mar!  —  disseram    os   marinheiros. 
Mário   agarrou   Julieta   pela    cintura    e    deitou-a    ao 

mar.  A  menina  deu  um  grito  e  mergulhou.  Um  mari- 
nheiro agarrou-a  por  um  braço  e  puxou-a  para  cima  da 
lancha. 

O  rapaz  ficou  firme  na  borda  do  navio,  com  a 
fronte  alta,  os  cabelos  ao  vento,  tranquilo,  sublime,  como 
se  a  glória 'o  tivesse  ali  imobilizado  e  petrificado  em 
estátua  do  Sacrifício. 

A  lança  moveu-se  e  fê-lo  apenas  a  tempo  de  esca- 
par do  redemoinho  da  água,  produzido  pela  submersão 
do  navio,  que  esteve  a  ponto  de  embaraçá-la. 

Então    Julieta,    que    estivera    até   àquele   momento 


aM  CORAÇÃO 

quási  insensível,  levantou  os  olhos  para  Mário  e  desa- 
tou em  copioso  pranto. 

—  Adeus,  Mário!  gritou-lhe  entre  soluços,  com  os 
braços  estendidos  para  êle.  Adeus!  Adeus! 

—  Adeus !  —  respondeu   o   rapaz,   levantando   a  mão. 

A  lancha  a£astava-se  velozmente  sobre  o  mar  agi- 
tado, debaixo  de  um  céu  tétrico.  Ninguém  mais  gritava 
a  bordo  do  navio.  A  água  lambia  já  as  bordas  da  co- 
berta- 

De  repente  Mário  caiu  de  joelhos  com  as  mãos  pos- 
tas e  os  olhos  cravados  no  céu. 

A  menina  de  longe  cobriu  o  rosto,  mas  quando  er- 
gueu a  cabeça,  estendeu  a  vista  sobre  o  mar. 

O  navio  já  havia  desaparecido. 


A  última  página  de  minha  mãi 

Está,  pois,  acabado  o  ano,  Henrique.  Bem  é  que  te  fique 
como  recordação  do  último  dia  a  imagem  dessa  criança  sublime 
que  deu  a  vida  por  sua  amiga.  Agora  estás  para  separar-te  dos 
teus  mestres  e  dos  teus  companheiros,  e  eu  devo  dar-te  uma 
noticia  triste.  A  separação  não  durará  somente  três  meses,  durará 
sempre.  Teu  pai,  por  deveres  da  sua  profissão,  tem  de  deixar 
Turim,  e  nós  todos  com  êle.  Sairemos  no  próximo  outono.  Terás 
de  entrar  numa  escola  nova.  Isto  te  entristece,  não  é  verdade? 
porque  estou  certa  de  que  estimas  tua  velha  escola,  onde  durante 
quatro  anos  duas  vezes  ao  dia  experimentaste  o  prazer  do  tra- 
balho, onde  viste  por  tanto  tempo,  a  uma  certa  hora,  os  mesmos 
parentes,  e  teu  pai  e  tua  mãi  que  te  esperavam  a  sorrir,  a  tua 
velha  escola  onde  se  abriu  a  tua  inteligência,  onde  encontraste 
tão  bons  companheiros,  onde  cada  palavra  que  ouvias  tinha  por 
fim  o  teu  bem,  e  nenhum  dissabor  sofreste  que  te  não  fosse  útil. 
Conserva,  pois,  este  afecto  contigo,  e  dá  um  adeus  de  coração 
a  todos  aqueles  colegas.  Alguns  suportarão  grandes  desventuras, 
perderão  cedo  pai  e  mãi,  outros  morrerão  na  flor  da  idade,  ou- 
tros derramarão  nobremente  o  seu  sangue  nas  batalhas,  muitos 
serão  bons  e  honestos  operários,  pais  de  famílias  laboriosas  e 
honestas  como  êles  e  quwn  sabe  se  entre  eles  nio  haverá  alguns 


CORAÇé  2i5 

que  prestem  ainda  grandes  serviços  ao  seu  país  o  façam  o  seu 
nome  glorioso?  Separa-te,  portanto  deles  afectuosamente,  deixa 
um  pouco  da  tua  alma  naquela  grande  família  onde  entraste 
criança  e  donde  sais  moço,  e  que  teu  pai  e  tua  mãi  muito  amam, 
porque  nela  foste  muito  amado. 

A  escola  é  uma  mãi,  meu  Henrique.  Ela  levou  de  meus  bra- 
ços uma  criança  que  balbuciava  apenas  e  agora  restitui-ma  forte, 
robusta,  boa  e  estudiosa.  Abençoada  seja  a  escola,  e  tu  não  a 
esquecerás  mais,  meu  filho.  Oh!  é  impossível  que  a  esqueças. 
Far-te-ás  homem,  viajarás,  verás  cidades  imensas  e  monumentos 
maravilhosos,  e  da  muitos  destes  te  esquecerás;  mas  aquele  mo- 
desto edifício  branco,  com  aquelas  persianas  cerradas  e  aquele 
pequeno  jardim,  onde  desabrochou  a  primeira  flor  da  tua  inte- 
ligência, vê-lo-ás  até  o  último  dia  da  tua  vida,  como  versi  a 
casa  em  que  ouvi  a  tua  voz  pela  primeira  vez. 

Os  exames 

Quarta- feira,  4 

Eis-me  finalmente  na  época  dos  exames. 

Pelas  ruas  que  circundam  as  escolas  não  se  fala  de 
outra  coisa,  os  meninos,  os  pais,  as  mais  e  até  as  criadas: 
—  exames,  pontos,  tema,  média,  reprovação,  promoção, 
todos  dizem  as  mesmas  palavras.  Ontem  de  manhã  ^foi 
o  dia  de  Composição,  hoje  é  o  de  Aritmética.  Era  como- 
vente ver  todos  os  parentes  que  conduziam  os  meninos 
a  escola,  dando-lhes  os  últimos  conselhos  pelo  caminho, 
muitas  mais,  que  acompanhavam  os  filhos  até  às  mesas' 
para  ver  se  havia  tinta  no  tinteiro,  e  experimentar  a  pena! 
E  ainda  ao  sair  da  porta  voltavam-se  dizendo: 

—  Coragem!  Atenção! 

O  nosso  mestre  assistente  era  Coatti,  aquele  de  barba 
preta  que  finge  a  voz  do  leão  e  não  castiga  ninguém  Ha- 
via rapazes  que  estavam  brancos  de  medo.  Quando  o  mes- 
tre abriu  o  município  e  tirou  o  problema,  não  se  ouvia 
respirar.  Ditou  o  problema  em  voz  alta,  olhando  para  um 
e  outro  lado  com  uns  olhos  terríveis;  mas  compreendia-se 
que  se  lhe  fosse  permitido  ditar  também  a  solução  para 
que  todos  fossem  promovidos,  fá-lo-ia  com  o  maior  prg- 


256  CORAÇÃO 

zer.  Depois  de  uma  hora  de  trabalho,  muitos  principiaram 
a  inquietar-se,  porque  o  problema  era  difíci^.  Um  come- 
çou a  chorar.  Crossi  dava  murros  na  cabeça.  E  muitos 
não  eram  realmente  culpados  de  não  saber,  pobres  meni- 
nos! Eles  não  tinham  muito  tempo  para  estudar,  nem  ti- 
nham o  auxílio  interessado  dos  pais. 

Mas  a  Providência  estava  ali.  Era  necessário  ver  a 
que  trabalho  se  dava  Derossi  para  os  ajudar,  os  meios 
que  procurava  para  passar  uma  cifra  e  sugerir  uma  ope- 
ração sem  se  perceber,  tão  solícito  com  todos  que  pa- 
recia ser  êle  o  nosso  mestre.  Também  Garrone,  que  é  for- 
te em  aritmética,  auxiliava  quanto  podia,  e  ajudava  por 
fim  a  Nobis  que  vendo-se  atrapalhado  tornou-se  muito 
amável;  Stardi  esteve  mais  de  uma  hora  com  os  olhos  no 
problema  e  com  os  punhos  nas  fontes,  e  depois  resolveu 
tudo  em  cinco  minutos. 

O  mestre  andava  por  entre  os  bancos,  dizendo: 

—  De  vagar!  recomendo-vos  todo  o  vagar! 

E  quando  via  algum  desanimado,  abria  muito  a  boca 
como  para  devorá-lo,  imitando  o  leão,  unicamente  para 
o  fazer  rir  e  animar.  Pela  volta  das  onze  horas,  esprei- 
tando por  entre  as  persianas,  vi  muitos  pais  que  iam  e  vi- 
nham pela  rua,  impacientes;  entre  eles  estava  o  pai  de 
Precossi  com  a  sua  camisola  azul,  e  que  saíra  naquele  mo- 
mento da  oficina,  ainda  com  a  cara  toda  tisnada. 

Estava  também  a  mãi  de  Crossi,  a  quitandeira;  a  mãi 
de  Nelli,  vestida  de  preto,  que  não  podia  estar  sossegada. 
Pouco  antes  do  meio-dia  chegou  meu  pai  e  levantou  os 
olhos  para  a  minha  janela.  Meu  querido  pai!  Ao  meio-dia 
tcdos  tínhamos  acabado.  E  era  de  ver-se  à  saída  todos  ao 
encontro  dos  meninos  a  fazerem  preguntas  e  a  folhearem 
os  cadernos,  a  compará-los  com  os  trabalhos  dos  compa- 
nheiros. 

—  Quantas  operações?  Qual  é  o  total?  —  e  a  subtra- 
cão?  —  E  a  resposta?  —  E  a  vírgula  das  decimais? 

Todos  os  mestres  andavam  para  um  um  e  outro  lado 
chamados  de  cem  partes.  Meu  pai  arrancou-me  da  mão  o 
meu  rascunho,  olhou  e  disse: 

—  Está  muito  bom. 

Ao  nosso  lado  estava  o  ferreiro  Precossi,  que  exami- 


CORAÇÃO  257 

nava  também  o  trabalho  do  filho,  um  pouco  inquieto  e 
sem  perceber  nada.  Voltou-se  para  meu  pai, 

—  Poderá  fazer-me  o  favor?..,  o  total? 

Meu  pai  leu  a  cifra.  Êle  foi  ver.  Combinava. 

—  Bravo,  meu  pequenino!  —  exclamou  todo  satisfei- 
to. 

E  meu  pai  e  êle  olharam-se  um  momento  com  um  bom 
sorriso  como  dois  amigos. 

Meu  pai  estendeu-lhe  a  mão;  êle  apertou-a.  E  sepa- 
raram-se  dizendo :  —  Ao  exame  oral !  ao  oral ! ! 

Dados  poucos  passos,  ouvimos  uma  voz  de  falsete 
que  nos  fez  voltar  a  cabeça.  Era  o  ferreiro  que  cantava. 

O  úlfimo  exame 

Sexta-feira,  7 

Esta  manhã  fizeram-se  os  exames  orais.  Às  oito  horas 
estavam  todos  na  classe,  e  às  oito  e  um  quarto  pricipia- 
ram  a  chamar-nos,  quatro  de  cada  vez,  à  sala  grande,  onde 
havia  uma  enorme  mesa  coberta  com  um  pano  verde,  e  em 
torno  o  director  e  os  quatro  mestres,  entre  os  quais  o  nos- 
so. Fui  um  dos  primeiros  chamados.  Pobre  mestre! 

Esta  manhã  conheci  bem  quanto  nos  estimava.  En- 
quanto os  outros  nos  interrogavam,  não  tirava  os  olhos 
de  nós;  inquietava-se  quando  nos  via  indecisos  em  res- 
ponder, sossegava  quando  dávamos  boas  respostas.  Ouvia 
tudo  e  fazia-nos  mil  acenos  com  as  mãos  e  com  a  cabeça 
para  dizer-nos:  —  bem  — não  — sê  atento  — mais  deva- 
gar-- coragem !  Ter-nos-ia  sugerido  tudo,  se  pudesse  fa- 
lar. Se  no  lugar  dele  estivessem  colocados  uns  após  ou- 
tros os  pais  de  todos  os  alunos,  não  teriam  feito  mais  Ti- 
ve vontade  de  gritar-lhe  —  obrigado  —  dez  vezes,  na  pre- 
sença de  todos.  E  quando  os  outros  mestres  me  disseram- 
--■Muito  bem,  pode  retirar-se  —  Cintilaram-lhe  os  olhos 
de  alegria.  Voltei  logo  para  a  classe  a  esperar  meu  pai 
Estavam  ainda  lá  quási  todos.  Sentei-me  ao  lado  de  Gar- 
rone  Mas  eu  não  estava  contente.  Pensava  em  que  era 
a  ultima  vez  que  estaríamos  uma  hora  um  perto  do  outro. 

17 


258  CORAÇÃO 

Ainda  lhe  não  tinha  dito  que  não  frequentaria  a  quar- 
ta classe  com  êle,  porque  tinha  de  sair  de  Turim  com  meu 
pai. 

Êle  nada  sabia.  E  estava  ali  curvado,  com  a  sua  gran- 
de cabeça  inclinada  sobre  a  carteira,  a  desenhar  ornatos 
em  volta  da  fotografia  de  seu  pai  vestido  de  maquinista, 
um  homem  alto  e  corpolento,  com  um  pescoço  forte  e 
uma  aparência  séria  e  honesta  como  a  dele.  E 
quando  estava  assim  curvado,  com  a  camisa  um  pouco 
aberta  na  frente,  via-se-lhe  sobre  o  peito  nu  e  robusto  a 
cruzinha  de  ouro  que  lhe  deu  de  presente  a  mãi  de  Nelli, 
quando  soube  que  era  ê^e  o  protector  de  seu  filho-  Mas 
era  necessário  que  eu  lhe  falasse  a  respeito  de  minha  via- 
gem. E  disse-lhe:  «Garrone,  neste  outono  meu  pai  ausen- 
ta-se  de  Turim  para  sempre».  Êle  preguntou-me  se  eu  ia 
também.  Respondi-lhe  que  sim. 

—  Não  frequentarás  a  quarta  classe  connosco?  pre- 
guntou- 

Respondi-lhe  que  não. 

Ficou  então  por  um  pouco  de  tempo  sem  falar,  con- 
tinuando o  seu  desenho.  Depois  preguntou-me,  sem  levan- 
tar a  cabeça: 

—  Hás-de  recordar-te  sempre  de  teus  companheiros 
da  terceira? 

—  Sim,  disse-lhe,  —  de  todos,  mas...  de  ti  mais  do  que 
de  todos.  Quem  poderá  esquecer-se  de  ti? 

Êle  olhou  para  mim  com  um  olhar  firme  e  séri 
um  olhar  que  dizia  mij  coisas,  mas  sem  dar  u- 
só  me  estendeu  a  mão  esquerda,  fingindo  cont.i.  i...;  a     v 
senhar  com  a  outra,  e  eu  apertei  entre  as  minhas  aquela 
mão  forte  e  leal. 

Naquele  momento  entrou  apressadamente  o  mestre 
com  o  rosto  avermelhado,  e  disse  em  voz  baixa  e  rápida, 
com  ar  alegre:  —  Bravo!  até  agora  tudo  vai  bem!  Assim 
possam  ir  os  outros  que  faltam:  bravo,  rapazes!  coragem! 
estou  contentíssimo. 

E  para  mostrar-nos  a  sua  alegria  e  divertir-nos,  fin- 
giu tropeçar  e  agarrou-se  à  parede  para  não  cair ;  e  riu-se 
êle  a  quem  nunca  tínhamos  visto  rir.  O  facto  pareceu-nos 
tão  estranho,  que,  em  vez  de  rir,  ficamos  todos  estupe- 


CORAÇÃO  259 

factos;  todos  sorrimos,  mas  nenhum  riu.  Pois  bem,  não 
sei  porquê,  mas  fez-me  pena  e  ternura  ao  mesmo  tempo 
aquela  manifestação  de  alegria  infantil.  Era  todo  o  seu 
prémio  aquele  momento  de  alegria,  era  a  compensação  de 
longos  meses  de  bondade,  de  paciência  e  também  de  amar- 
g»jies.  Tinha-se  afadigado  tanto  tempo,  tinha  vindo  tan- 
tas vezes  dar  lição  doente,  pobre  mestre!  Isto  era  tudo  o 
que  nos  pedia,  em  troca  de  tanto  afecto  e  de  tantos  cui- 
dados! E  agora  parece-me  que  hei-de  vê-lo  sempre  assim 
naquele  momento  fejiz,  quando  me  recordar  dele  durante 
muitos  anos.  E  se,  quando  eu  fôr  homem,  êle  viver  ainda, 
e  nos  encontrar-mos,  falar-lhe-ei  daquele  dia  em  que  me 
tocou  o  coração,  e  dar-lhe-ei  um  beijo  nos  seus  cabelos 
brancos. 


Adeus 


Segunda-íeira,  lo 


Ao  meio-dia  fomos  todos  pela  última  vez  à  escola  pa- 
ra saber  o  resultado  dos  exames  e  receber  os  certificados 
de  promoção.  A  rua  estava  repleta  de  parentes,  que  ti- 
nhc-m  invadido  até  o  salão  de  entrada,  e  muitos  chegaram 
33  classes,  amontoando-se  ao  lado  da  mesa  do  mestre;  na 
nossa  sala  enchiam  todo  o  espaço  entre  a  parede  e  os 
primeiros  bancos.  Estavam  o  pai  de  Garrone,  a  mãi  de 
Derossi,  e  o  ferreiro  Precossi,  Coretti,  a  senhora  Nelli, 
a  quitandeira,  o  pai  do  Pedreirito,  o  pai  de  Stardi  e 
muitos  outros  que  nunca  tinha  visto;  e  havia  de  todos 
os  lados  um  sussurro,  um  bulício,  que  parecia  estarmos 
numa  praça. 

Entrou  o  mestre.  Fez-se  um  grande  silêncio.  Tinha 
n£?  mãos  a  lista  e  começou  a  ler:  Abatucci,  promovido, 
sessenta  sexagésimos;  Archini,  promovido,  cinqiienta 
e  cinco  septuagéssimos;  o  Pedreirito,  promovido;  Crossi, 
pr(  movido;  depois  leu  mais  alto:  Ernesto  Derossi,  pro- 
movido, setenta  septuagésimos  e  o  primeiro  prémio;  to- 
dos os  parentes,  que  estavam  ali  e  o  conheciam,  dis- 
seram : 


260  CORAÇÃO 

—  Parabéns,  Derossi !  E  êle  sacudiu  os  seus  cabelos 
louros,  com  o  seu  sorriso  desenvolto  e  belo,  olhando  para 
a  sua  mãi,  que  o  saudou  com  a  mão.  Garoffi,  Garrone,  o 
calabrês,  promovidos.  Depois,  três  ou  quatro,  em  segui- 
da reprovados;  e  um  desses  pôs-se  a  chorar,  porque  seu 
pai,  que  estava  à  porta,  £ez-lhe  um  gesto  de  ameaça.  Mas 
o  mestre  disse  ao  pai :  —  Não  senhor,  perdôe-me,  nem  sem- 
pre é  culpa  deles;  muitas  vezes  é  infelicidade.  Este  é  um 
dos  casos. 

Depois  ,leu:  —  Nelli,  promovido,  sessenta  e  dois  sep- 
tuagéssimo.  Sua  mãi  mandou-lhe  um  beijo  com  o  leque. 
Stardi,  promovido,  com  setenta  e  sete  septuagésimo;  mas 
ao  ouvir  aquela  bela  classificação  êle  nem  sequer  despren- 
deu os  punhos  das  fontes.  O  último  Voltini,  que  tinha 
vindo  muito  bem  vestido  e  penteado,  promovido.  Lido  o 
último,  o  mestre  levantou-se  e  disse:  —  «Senhores,  é  es- 
ta a  última  vez  que  nos  encontramos  reiinidos.  Temos  es- 
tado juntos  um  ano,  e  agora  separamo-nos  bons  amigos, 
não  é  verdade?  Aqui  fez  pausa,  e  depois  recomeçou:  «Se 
algumas  vezes  sem  querer  fui  injusto  ou  demasiado  seve- 
ro, desculpai-me». 

—  Não,  não  disseram  os  parentes  e  discípulos;  não 
senhor  mestre,  nunca. 

^Desculpai-me,  repetiu  o  mestre  —  e  continuai  a 
querer-me  bem.  No  ano  vindouro  não  estareis  mais  comi- 
go, mas  tornar-vos-ei  a  ver  e  tereis  sempre  um  lugar  no 
meu  coração.  Até  à  vista,  meus  filhos! 

Dito  isto,  veio  para  junto  de  nós  e  todos  Ih.    j 
demos  a  mão,  trepados  nos  bancos.  Prenderam-no  pelos 
braços  e  pelas  abas  do  casaco,  muitos  beijaram-no;  e  cin- 
quenta vozes  disseram  ao  mesmo  tempo: 

-^  Até  à  vista,  mestre!  obrifrado,  senhor  mestre!  Pas- 
se muito  bem!  Lembre-se  de  nós. 

Quando  saiu,  parecia  oprimido  pela  comoção.  Saímos 
todos  atropeladamente. 

E  todas  as  outras  classes  saíram  também;  era  um  bor- 
borinho.  uma  grande  aleazarra  de  meninos  e  de  parentes 
que  diziam  adeus  aos  mestres  e  às  mestras  e  saúdavam- 
-se  uns  aos  outros.  A  mestra  da  pena  vermelha  tinha  qua- 
tro ou  cinco  crianças  que  se  lhe  pegavam  às  costas  e  umas 


CORAÇÃO  261 

vinte  em  volta  de  si,  que  até  lhe  tiravam  a  respiração ;  e 
à  Freirinha  tinham-lhe  amarrotado  o  chapéu  e  haviam 
prendido  entre  os  botões  do  seu  vestido  preto,  ou  metido 
nas  algibeiras,  uma  dúzia  de  raminhos  de  flores.  Muitos  fa- 
ziam festa  a  Roberti,  que  justamente  naquele  dia  tinha 
abandonado  pela  primeira  vez  as  muletas.  De  toda  a  parte 
se  ouvia  dizer:  —  Até  ao  novo  ano!  Até  20  de  Outubro. 
Até  ao  dia  de  Todos-os-Santos- 

Ah!  como  todos  os  dissabores  eram  esquecidos  na- 
quela hora! 

Voltini,  que  tinha  sido  sempre  tão  invejoso  de  De- 
rossi,  foi  o  primeiro  a  ir  ao  seu  encontro  de  braços  aber- 
tos. Eu  saudei  o  Pedreirito  e  beijei-o  no  momento  em  que 
êle  fazia  o  último  focinho  de  lebre,  bela  criança.  Saudei 
Precossi,  saiidei  Garoffi,  que  me  anunciou  ter  eu  ganho 
na  última  lotaria,  e  deu-me  um  peso  de  louça  para  papeis 
partido  num  canto;  disse  adeus  a  todos  os  outros. 

Era  de  ver  como  o  pobre  Nelli  se  apegava  a  Garrone, 
e  ninguém  os  podia  mais  separar.  Todos  se  juntaram  em 
volta  de  Garrone,  e  —  adeus  Garrone,  adeus  até  à  vista  — 
e  tocavam-no,  abraçavam-no,  faziam-lhe  festas,  àquele  bra- 
vo e  santo  rapaz.  Estava  também  seu  pai  todo  admirado, 
embevecido,  a  sorrir,  Garrone  foi  o  último  que  abracei 
na  rua,  e  não  o  pude  fazer  sem  sufocar  um  soluço  dentro 
do  peito.  Êle  beijou-me  na  fronte. 

Depois  corri  para  meu  pai  e  minha  mãi.  Meu  pai  pre- 

.^^spediste-te  de  todos  os  teus  companheiros? 
'isse  que  sim, 

i  algum,  a  quem  tenhas  ofendido,  vai  pedir- 
j^  tfc  perdoe  e  o  esqueça.  Não  há  nenhum? 

—  Nenhum,  respondi. 

—  Então,  adeus !  —  disse  meu  pai  com  a  voz  comovi- 
da, lançando  um  último  olhar  à  escola- 

—  Adeus! 

E  não  pude  articular  palavra. 

FIM 


ÍNDICE 


Pág. 

Prefácio  5 

O  primeiro  dia  de  escola  7 

O  nosso  mestre  9 

Uma  desgraça  10 

O  pequano  calabrês  12 

Os  meus  companheiros  14 

Uma  acção  generosa  15 

A  minha  antiga  mestra  17 

Numa  água  furtada   18 

A  escola  20 

O  pequeno  patriota  de  Pádua  (Conto  mensal)  21 

O  limpa-chaminés  24 

O   dia  de  finados   26 

O  meu  amigo  Garrone  27 

O  carvoeiro  e  o  fidalgo 28 

A  msstra  do  meu  irmão  30 

Minha  mãi  32 

O  meu  cornpanheiro  Coretti  34 

O   Director    37 

Os  soldados  39 

O  protector  de  Nelli  /^o 

O  primeiro  da  classe  42 

O  pequeno  vigia  lombardo  (Conto  mensal)   44 

Os  pobres  49 

O  traficante  51 

Vaidade    52 

A  primeira  nave  54 

O  pedreirito  55 

Uma  bala  de  neve  ..>, 57 

As  mestras    59 

Em  casa  do  ferido  60 

O  pequeno  escrevente  florentino  (Conto  mensal)   62 

A   vontada   7° 

Gratidão  7i 


CORAÇÃO  263 

O  mestre  suplente  _2 

A  livraria  de  Stardi n» 

O  filho   de   ferreiro    ....^.\..        76 

Uma  bela  visita   *  '*  _g 

Os  funerais  de  Vítor  Manuel 70 

Franti  expulso  da  escola 80 

O  tamborzinho  sardo  (Conto  mensal)  .".!.!!!!!.".  83 

O  amor  da  Pátria qj 

Inveja !!!!!!!!!!!!!!!!!! L 

A  mãi  de  Franti  q. 

Esparança qr 

Uma  medalha  bem  dada 07 

Bons  propósitos  !!!.!!.!. '  qq 

O  comboiozinho  !!!!!!!...  100 

Soberba 

Os  feridos  pelo  trabalho  !!".!.!..!!!.!,!!!!!!!!" 104 

O   prisioneiro    ....".. 106 

O  enfermeiro  de  Tatá  (Conto  mensai)   .........!...'.*.' loo 

A  oficina    g 

O  pequeno  palhaço 120 

O  último  dia  de  carnaval  i..".!....!!...!.!.!.. 124 

Os  rapazes   cegos   !!!!!!!!!!!! 126 

O  msstre  enfermo  

A  Rua "i!!!!!!!;!;;;;;;!;;!;::::; 

As  escolas  nocturnas  í^í 

A  luta !!!."."!!]!." .'.".' .'.*.'.'." 

Os  parentes  dos  meninos  ......''.... ÍH 

O   número    78    ^" 

O  pequeno  morto   \\'\ ^^^ 

A   véspera   de    14   de    Março    ...!!!!!!......".!.'." Jíf 

A   distribuição   dos   prémios    .,Tl 

Litígio    ^45 

Minha  irmã  .'"'."!.'.'!.'!."!!!.*."."!."!.'.'!!! ^^° 

Scingue  romanholo   (Conto  mensal) 11^ 

O  P.  J  -i-c      oribundo  " 

a^í-  Cavour  '^'^^^^''^^."^^'I^^. « 

primavera   ^^3 

u    Rei    Humbsrto ^Z.^ 

O  asilo  infantil   .'.".".'.'.".".".' 

Na    ginástica ^^° 

O  mestre  de  meu  pai   .!.!!!!!!.!.!!!!!! ^^í 

Convalescença ^ 

Os  amigos  dos  operários  .... • ^f*^ 

A  mãi  de  Garrone  ^7 

José  Mazini - ^°9 

Valor  cívico  (Conto  mensal)  ........"..' ^^° 

As  crianças  raquíticas                                     ^^^ 

Sacrifício    ^97 

O    incêndio    .'.... ^99 

201 


264  CORAÇÃO 


Dos  Apeninos  aos  Andes  (Conto  mensal)  204 

Verão 221 

Poesia    223 

A  surda-muda 224 

Garibaldi    231 

O    exército   233 

Itália    234 

32  graus  235 

Meu  pai  ••  •••  237 

No  campo  238 

A  distribuição  dos  prémios  aos  operários  241 

A  minha  mestra  morta  244 

Agradecimentos    246 

Naufrágio  (Último  conto  mensal)  247 

A  última  página  de  minha  mãi  254 

Os   exames   255 

O  último  exame  257 

Adeus  259 


J 


PQ        Amicis,  Edmondo  de 
A683         Coração 
A3C89 


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